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A Companhia dos Lobos

Uma fera, apenas uma, uiva pelos bosques de noite.


O lobo é Carnívoro incarnado e é tão matreiro quanto feroz; uma vez que tenha provado
carne, nada mais lhe servirá.
De noite, os olhos dos lobos brilham como chamas de velas amareladas, avermelhadas,
mas isso é porque as pupilas dos seus olhos engordam com a escuridão e apanham a luz da
lanterna do viajante para lha reenviar — vermelho para perigo; se os olhos dos lobos
reflectirem somente a luz da lua, então brilham com um verde frio e sobrenatural, uma cor
mineral e penetrante. Se o viajante apanhado pela noite vislumbrar essas lantejoulas
luminosas, terríveis, pregadas de repente nos arbustos escuros, então saberá que precisa de
correr — isto se o medo o não tiver imobilizado.
Mas esses olhos são tudo o que você poderá vislumbrar dos assassinos da floresta enquanto
eles se agregam invisivelmente em torno do seu cheiro de carne à medida que você percorre o
bosque insensatamente tarde. Eles serão como sombras, serão como espectros, membros
cinzentos de uma congregação de pesadelo; ai! o seu uivo longo e modulado... uma ária de
medo tornado audível.
A canção do lobo, em si mesma um assassinato, é o som do estraçalhamento que você
sofrerá.
É Inverno e está frio. Nesta região de montanha e floresta, não há nada para os lobos
comerem. Cabras e ovelhas estão fechadas no curral, os veados partiram para as pastagens
remanescentes nas vertentes a sul — os lobos tornam-se magros e famintos. Há neles tão
pouca carne que poderia contar-lhes as costelas famintas através da pele, se eles lhe dessem
tempo antes de saltarem. Essas mandíbulas salivantes; a língua pendente; os fios de cuspo nas
dentuças. De todos os abundantes perigos da noite e da floresta — fantasmas, hobgoblins,
ogres que grelham crianças, bruxas que engordam as suas vítimas em gaiolas para mesas
canibais — o lobo é o pior porque não pode ouvir razão.
Você está sempre em perigo na floresta, onde não há pessoas. Entre nos portais dos
grandes pinheiros cujos ramos luxuriantes se entrecruzam em seu redor, apanhando o
viandante desprevenido em redes, como se a própria vegetação estivesse conluiada com os
lobos que ali vivem, como se as árvores malvadas pescassem em proveito dos seus amigos —
entre nos portais da floresta com a maior trepidação e com precauções infinitas, porque se sair
do carreiro por um instante, os lobos comê-lo-ão. Eles são cinzentos como a fome e tão
impiedosos como a praga.
As crianças com olhos fúnebres nas aldeias esparsas trazem sempre consigo facas quando
saem para tratar dos pequenos rebanhos de cabras que fornecem a cada família leite ácido
assim como queijo rançoso e bichado. As facas têm a metade do seu tamanho e são afiadas
diariamente.
Mas os lobos têm maneiras de chegar às lareiras das pessoas. Por mais que tentemos, às
vezes não conseguimos mantê-los fora. Não há noite de Inverno em que o habitante não tema
ver um focinho magro, cinzento, famélico investigando sob a porta; uma vez, uma mulher foi
mordida na própria cozinha enquanto escoava o esparguete.
Tema o lobo e fuja dele; porque, pior de tudo, o lobo pode ser mais do que aparenta.
Uma vez, perto daqui, um caçador apanhou um lobo num fosso. Este lobo tinha
massacrado ovelhas e cabras; tinha comido um velho louco que vivia sozinho numa cabana na
montanha e ali cantava a Jesus todo o dia; tinha saltado sobre uma pastora que guardava
ovelhas, mas esta tinha feito um tal barulho que acorreram homens com espingardas e
assustaram-no e tentaram persegui-lo na floresta, mas ele era matreiro e facilmente os
despistou. Então este caçador escavou um fosso e pôs nele um pato como isco, bem vivo — ó.
E cobriu o fosso com palha misturada com cocó de lobo. Quá, quá! fez o pato e o lobo veio
furtivamente da floresta, um grande, encorpado, que pesava tanto quanto um homem adulto e
a palha cedeu debaixo dele — caiu no fosso. O caçador saltou atrás dele, cortou-lhe a
garganta, cortou-lhe todas as patas como troféu.
E então não era de todo um lobo que jazia perante o caçador, mas o tronco sanguinolento
dum homem sem cabeça e sem pés, agonizante, morto.
Uma vez, uma bruxa de mais acima no vale transformou todos os convidados dum
casamento em lobos porque o noivo tinha escolhido outra mulher. Por despeito, ela
costumava ordenar-lhes que a visitassem de noite e eles sentavam-se e uivavam para ela em
torno da cabana, fazendo-lhe serenatas da sua tristeza.
Há não muito tempo, uma jovem da nossa aldeia casou como um homem que desapareceu
na noite do casamento. A cama estava feita com lençóis novos e a noiva estava nela deitada; o
noivo disse que ia aliviar-se lá fora, insistiu nisso por uma questão de decência, ela puxou os
cobertores até ao queixo e quedou-se ali. E esperou, esperou e esperou ainda mais — já é com
certeza uma longa demora? Até que ela dá um pulo na cama e guincha ao ouvir um uivo
trazido pelo vento da floresta.
Um tal uivo prolongado e modulado tem, apesar da sua ressonância medonha, uma tristeza
inerente, como se as feras quisessem ser menos bestiais se ao menos soubessem como e nunca
cessassem de lamentar a sua própria condição. Há uma vasta melancolia nos cânticos dos
lobos, infinita como a floresta, sem fim como as longas noites de Inverno, porém essa terrível
tristeza, esse luto pelos próprios apetites irremediáveis, nunca pode comover porque nenhuma
frase sua sugere a possibilidade de redenção. A salvação não poderia vir ao lobo do seu
próprio desespero, mas só por via de algum mediador externo, pelo que, por vezes, o fará
parecerá acolher quase de bom grado a faca que o despachará.
Os irmãos da jovem mulher procuraram nos anexos e nas medas de feno mas não
encontraram quaisquer vestígios, pelo que a sensata moça secou os olhos e arranjou outro
marido, um desprovido de vergonha de urinar num penico e que passasse as noites em casa.
Ela deu-lhe um par de bebés ossudos e tudo correu bem como um tripé até que numa noite
gélida, na noite do solstício, a dobradiça do ano em que as coisas não se ajustam tão bem
quanto deveriam, na mais longa noite, o primeiro homem voltou para casa.
Uma grande pancada na porta anunciou-o enquanto ela mexia a sopa para o pai das suas
crianças. Ela reconheceu-o desde que lhe levantou o trinco embora anos tivessem já passado
desde que ela pusera luto por ele e ele agora estivesse andrajoso e com o cabelo despenteado,
caído ao longo das costas, gorgulhento de piolhos.
«Aqui estou eu de novo, madama», disse ele, «Vai-me buscar a minha tigela de sopa de
couves e despacha-te».
Então o segundo marido voltou com lenha para o fogo e quando o primeiro viu que ela
tinha dormido com outro homem e, pior, pousou os olhos vermelhos nas criancinhas dela que
tinham gatinhado até à cozinha para ver o que era aquela barulheira, ele gritou: «Quem me
dera ser lobo outra vez para dar uma lição a esta galdéria!» Ficou lobo instantaneamente e
arrancou o pé esquerdo ao rapaz mais velho antes de ser decepado com o machado de rachar
troncos. Mas quando o lobo jazia sangrando e exalando o último suspiro, a pele desvaneceu-
se de novo e ele surgiu tal como tinha sido, anos atrás, quando fugira da cama matrimonial,
pelo que ela chorou e o segundo marido bateu-lhe.
Dizem que há um unguento que o Diabo dá que transforma uma pessoa em lobisomem no
próprio minuto em que o esfrega. Ou que o lobisomem nasceu com os pés para a frente e teve
um lobo como pai e o seu torso é de homem mas as pernas e genitais são de lobo. E tem
coração de lobo.
Sete anos é o período natural do lobisomem mas se se queimar as suas roupas humanas
está-se a condená-lo a permanecer lobo para o resto da vida, portanto as velhotas locais acham
benéfico atirar ao lobisomem um chapéu ou um avental, como se as roupas fizessem o
homem. Porém, pelos olhos — esses olhos fosforescentes — pode-se reconhecê-lo em todas
as suas formas; só os olhos permanecem inalterados pela metamorfose.
Antes de poder tornar-se lobo, o licantropo despe-se completamente. Se vir um homem nu
entre os pinheiros, fuja como se o Diabo fosse atrás de si.

É solstício de Inverno e o pisco, amigo do homem, poisa no cabo da pá do jardineiro e


canta. É o pior tempo de todo o ano com respeito a lobos, mas esta criança de espírito forte
insiste em atravessar o bosque. Ela tem a certeza de que as feras não podem fazer-lhe mal,
embora — bem avisada — ponha uma faca de trinchar na cesta que a sua mãe encheu de
queijos. Há uma garrafa de aguardente rústica destilada a partir de silvas; uma porção de
bolos de aveia chatos cozidos na pedra da lareira; um ou dois frascos de doce. A moça de
cabelos cor de palha vai levar estes deliciosos presentes a uma avó solitária, tão velha que o
peso dos anos está a esmagá-la de morte. A avozinha vive a duas horas de caminho laborioso
pelos bosques invernais; a criança embrulha-se no seu xaile grosso, que puxa sobre a cabeça.
Põe os seus fortes sapatos de madeira; está vestida e pronta e é a véspera de Natal. A porta
maligna do solstício ainda abana nas dobradiças, mas a moça tem sido demasiado amada para
alguma vez sentir medo.
As crianças não permanecem jovens muito tempo nesta região selvagem. Não há
brinquedos para eles brincarem e portanto trabalham duramente e tornam-se sensatas; mas
esta, tão bonita e a mais nova da família, nascida tardiamente, tinha sido mimada pela mãe e
pela avó, a qual lhe havia tricotado o xaile vermelho que hoje apresenta a aparência ominosa,
mas brilhante, de sangue na neve. Os seus seios começaram há pouco a inchar e o cabelo é
como estopa, tão claro que quase não faz sombra na sua pálida testa; as suas bochechas são
dum emblemático escarlate e branco e ela acaba de começar o seu fluxo de mulher, o relógio
dentro dela que doravante tocará uma vez por mês.
Ela ergue-se e move-se dentro do pentagrama invisível da sua própria virgindade. Ela é um
ovo intacto; um contentor selado; tem dentro de si um espaço mágico, cuja entrada está
hermeticamente fechada com um troço de membrana; ela é um sistema fechado; não sabe
como tremer. Tem a sua faca e não tem medo de nada.
O pai poderia tê-la proibido, se estivesse em casa, mas está na floresta a apanhar lenha e a
mãe não consegue dizer-lhe não.
A floresta fechou-se sobre ela como um par de mandíbulas.
Há sempre algo para ver na floresta, mesmo no meio do Inverno — os agregados de
pássaros sucumbidos à letargia da estação, amontoados nos ramos rangentes, demasiado
desconsolados para cantarem; os frisos brilhantes de fungos invernais nos troncos manchados
das árvores; as ranhuras cuneiformes dos coelhos e veados, as pegadas enviesadas dos
pássaros, uma lebre tão magra como uma fatia de bacon cruzando o carreiro onde os débeis
raios de sol produzem jogos de sombras nas folhas castanhas dos fetos velhos.
Quando ela ouviu o uivo enregelante dum lobo distante, a sua mão destra saltou para o
cabo da faca, mas não viu qualquer sinal de lobo, nem mesmo dum homem nu, embora então
ouvisse uma restolhada no mato e visse saltar para o carreiro um homem completamente
vestido, jovem e muito bem parecido, ostentando o casaco verde e o chapéu de feltro com
abas largas de um caçador, carregado com pássaros mortos. Ela tinha a mão no cabo da faca
quando ouviu a restolhada, mas ele riu com um brilho de dentes brancos assim que a viu e
fez-lhe uma pequena vénia, cómica mas cortês. Nunca ela tinha visto um tão belo rapaz antes,
não entre os palhaços rústicos da sua aldeia natal. Portanto seguiram caminho juntos através
da luz carregada do entardecer.
Em breve riam e gracejavam como velhos amigos. Quando ele se ofereceu para lhe
carregar o cesto, ela deu-lho apesar de a faca lá se encontrar, por ele ter dito que a sua
espingarda os protegeria a ambos. Quando o dia escureceu recomeçou a nevar; ela sentiu os
primeiros flocos nas pestanas, mas agora só faltava nem um quilómetro e haveria uma lareira
acesa e chá quente e boas vindas, cordiais certamente, para o elegante caçador e para ela
própria.
Este jovem tinha um extraordinário objecto no bolso. Era uma bússola. Ela olhou para o
pequeno mostrador de vidro na palma da mão dele e viu a agulha móvel com um vago
espanto. Ele assegurou-a de que esta bússola o tinha conduzido com segurança através do
bosque na sua expedição de caça porque a agulha lhe indicava sempre o Norte com perfeita
exactidão. Ela não acreditou; sabia que nunca devia abandonar o carreiro ao atravessar o
bosque, sob pena de se perder instantaneamente. Ele riu-se dela novamente; fios brilhantes de
cuspo pendiam dos seus dentes. Disse-lhe que se ele saísse do carreiro para a floresta chegaria
certamente a casa da avó um bom quarto de hora antes dela, encurtando caminho pelo
restolho com a bússola enquanto ela seguisse laboriosamente o caminho mais longo pelo
carreiro sinuoso.
Não acredito em si. Além disso, não tem medo dos lobos?
Ele limitou-se a bater na coronha brilhante da espingarda e sorriu.
É uma aposta? perguntou ele. Fazemos disto um jogo? O que me dá se eu chegar à casa da
sua avó antes de si?
De que gostaria? perguntou ela com falsa candura.
De um beijo.
Lugares comuns da sedução rústica; ela baixou os olhos e corou.
Ele seguiu pelo mato e levou o cesto consigo, mas ela esqueceu-se de ter medo das feras
embora a lua se estivesse agora a levantar; queria demorar-se pelo caminho para ter a certeza
de que o belo cavalheiro ganharia a aposta.
A casa da avó ficava, solitária, a uma curta distância da aldeia. A neve caída de fresco era
soprada por sobre a horta e o jovem tomou delicadamente o carreiro coberto de neve
conducente à porta, como se tivesse medo de molhar os pés, enquanto abanava o seu molho
de caça e o cesto dela e trauteava uma canção para si mesmo.
Ele apresenta um leve traço de sangue no queixo; tem estado a petiscar a caça.
Bateu sonoramente na porta com os nós dos dedos.
Idosa e frágil, a avó está sucumbida em três quartos à mortalidade que a sua dor de ossos
lhe promete; está quase pronta a ceder completamente. Um rapaz veio da aldeia acender-lhe a
lareira uma hora atrás; agora a cozinha crepita com um fogo vivo. Ela tem a Bíblia como
companhia, é uma velhinha devota. Está apoiada a várias almofadas na cama incrustada na
parede à maneira camponesa, embrulhada na colcha de padrão escocês que ela fez antes de
casar, há mais anos do que lhe interessa lembrar-se. Dois cães de porcelana, ostentando
manchas cor de fígado na pelagem e focinho preto, sentam-se aos lados da lareira. Há um
tapete brilhante de trapos entrecosidos na tijoleira. O relógio do avô marca a erosão do tempo
da avó.
Mantemos os lobos lá fora vivendo bem.
Ele bateu sonoramente na porta com os nós dos dedos peludos.
É a sua neta, imitou numa voz de alto soprano.
Levanta o trinco e entra, minha querida.
Pode-se reconhecê-los pelos seus olhos, olhos de fera caçadora, nocturna, olhos
devastadores tão vermelhos como uma ferida; pode atirar-lhe a Bíblia e depois o seu avental,
avozinha, pensou ser isto profiláctico contra estes parasitas infernais... agora peça a ajuda de
Cristo e da sua mãe e de todos os anjos no Céu para protegê-la, mas não lhe servirá de nada.
O focinho de fera dele é aguçado como uma faca; ele deixa cair na mesa o fardo dourado
de faisões mordiscados e deposita o cesto da sua querida menina, também. Ó, meu Deus, o
que fez você dela?
Fora com o disfarce, o casaco de pano cor de floresta, o chapéu com uma pena enfiada na
fita; o cabelo encardido cai por cima da camisa branca e ela consegue ver os piolhos a
moverem-se nele. Os toros na lareira mexem e silvam; a noite e a floresta entraram na cozinha
com escuridão enredada nos cabelos.
Ele tira a camisa. A sua pele tem a cor e a textura da camurça. Uma nítida tira de pêlo
desce-lhe pela barriga, os mamilos são maduros e escuros como frutos venenosos, mas ele é
tão magro que se poderia contar-lhe as costelas sob a pele se ele desse tempo. Tira as calças e
ela pode ver quão peludas são as pernas. E os genitais dele, enormes. Ah! Enormes.
A derradeira coisa que a velha senhora viu neste mundo foi um jovem, olhos como cinzas,
nu como uma pedra, a aproximar-se da sua cama.
O lobo é Carnívoro incarnado.
Quando ele a acabou, lambeu os beiços e depressa tornou a vestir-se, até tornar à aparência
que tinha quando entrou pela porta. Queimou os cabelos não comestíveis na lareira e
embrulhou os ossos num pano de mesa que escondeu debaixo da cama, num baú de madeira
onde encontrou um par de lençóis limpos. Fez cuidadosamente a cama com estes em vez dos
manchados, que pôs no cesto da roupa suja. Sacudiu os travesseiros e esticou a colcha,
apanhou a Bíblia do chão, fechou-a e pousou-a na mesa. Tudo estava agora como antes,
excepto que a avó se fora. Os paus torciam-se na grelha da lareira, o relógio marcava o passar
dos minutos e o jovem sentava-se pacientemente, ardilosamente, ao lado da cama com a touca
de dormir da avó.
Toc, toc.
Quem está aí, tremelica ele no falsete antigo da avó.
É só a sua neta.
Então ela entrou, trazendo consigo uma rajada de neve que se derreteu em lágrimas nos
azulejos, e talvez tenha ficado um pouco desapontada por ver apenas a avó sentada perto do
lume. Mas ele então tirou o cobertor e saltou para a porta, encostando-se a esta de tal forma
que ela não podia sair de novo.
A moça olhou em redor do quarto e viu que não havia nenhuma marca duma cabeça na
superfície lisa da almofada e como (pela primeira vez a via assim) a Bíblia estava fechada
sobre a mesa. O som do relógio estalava como um chicote. Ela queria tirar a faca do cesto mas
não se atreveu a tal porque os olhos dele estavam fixos nela — olhos enormes que agora
pareciam brilhar com uma luz única, interior, olhos do tamanho de pires, pires cheios de
matéria incendiária, fosforescência diabólica.
Que grandes olhos tens.
São para te ver melhor.
Nenhum vestígio da velhota, excepto um tufo de cabelo branco que tinha ficado preso na
casca dum tronco não ardido. Quando a jovem viu isso, soube que estava em perigo de morte.
Onde está a minha avó?
Não há aqui ninguém senão nós, minha querida.
Agora um grande uivo ergueu-se em redor deles, perto, muito perto, tão próximo quanto a
janela da cozinha, o uivo duma multidão de lobos; ela sabia que os piores lobos são peludos
por dentro e estremeceu, apesar do xaile escarlate que apertou mais em torno de si, como se a
pudesse proteger apesar de ser vermelho como o sangue que ela está destinada a verter.
Quem veio cantar-nos serenatas, disse ela.
Estas são as vozes dos meus irmãos, querida; adoro a companhia dos lobos. Olha pela
janela e hás-de vê-los lá fora.
A neve quase obstruía a gelosia, que ela abriu para olhar para o jardim. Estava uma noite
branca de luar e neve; o nevão voltejava em torno das feras angulosas e cinzentas sentadas
entre as fileiras de couves de Inverno. As feras apontavam os focinhos afiados à lua e
uivavam como se se lhes partisse o coração. Dez lobos; vinte lobos — tantos lobos que ela
não conseguia contá-los, uivando em concerto como se dementes ou perturbados. Os seus
olhos apanhavam a luz da cozinha e brilhavam como cem velas.
Está muito frio, coitados, disse ela; não admira que uivem tanto.
Fechou a janela ao lamento fúnebre dos lobos e despiu o xaile escarlate cor das papoilas,
dos sacrifícios, da sua menstruação. E visto o medo não a ajudar em nada, deixou de ter
medo.
O que faço com o meu xaile?
Deita-o para o fogo, querida. Não vais precisar mais dele.
Ela enrolou o xaile e deitou-o ao fogo, que instantaneamente o consumiu. Então ela puxou
a blusa pela cabeça; os seus pequenos seios brilharam como se a neve tivesse invadido o
quarto.
O que faço com a minha blusa?
Para o fogo também, minha boneca.
A fina musselina foi a arder pela chaminé acima como um pássaro mágico e agora ela tirou
a saia, as meias de lã, os sapatos e tudo isto foi também para o fogo e perdido para sempre. A
luz do fogo brilhou através da orla da sua pele; agora ela estava vestida apenas com o seu
tegumento de carne intocada. Ofuscante e nua, penteou os cabelos com os dedos; o seu cabelo
parecia branco como a neve lá de fora. Depois foi directa ao homem dos olhos vermelhos, em
cuja juba desarranjada os piolhos se moviam. E, erguendo-se nas pontas dos pés, desabotoou-
lhe o colarinho da camisa.
Que grandes braços tens.
Para melhor te abraçar.
Todos os lobos do mundo uivaram agora um cântico matrimonial fora da janela quando ela
lhe deu de livre vontade o beijo que lhe devia.
Que grandes dentes tens!
Ela viu como a mandíbula dele começou a salivar e o quarto estava cheio do clamor do
cântico de amor-e-morte da floresta; mas a sábia criança não fraquejou, mesmo quando ele
respondeu:
Para melhor te comer.
A jovem desatou a rir; sabia que não era a carne de ninguém. Riu-se dele na sua cara,
rasgou-lhe a camisa e deitou-a para o fogo, junto dos vestígios ígneos da sua própria roupa
descartada. As chamas dançaram como almas mortas na Noite de São Silvestre e os velhos
ossos debaixo da cama começaram a entrechocar-se furiosamente, mas ela não lhes prestou
qualquer atenção.
Carnívoro incarnado, só carne imaculada o apazigua.
Ela há-de deitar a cabeça temível dele no colo e há-de apanhar os piolhos da sua pelagem e
talvez até os ponha na boca e os coma, como ele lhe pedirá e como seria de fazer numa
cerimónia de casamento selvagem.
A tempestade acalmar-se-á.
A tempestade acalmou-se, deixando as montanhas tão arbitrariamente cobertas de neve
como se uma mulher cega tivesse deitado um lençol por cima delas. Os ramos superiores dos
pinheiros da floresta estão como que caiados, rangendo, inchados com o nevão.
Luz da neve, luz da lua, uma confusão de pegadas animais.
Tudo silencioso, tudo parado.
Meia-noite; o relógio toca. É dia de Natal, o dia de anos dos lobisomens, a porta do
solstício está aberta de par em par; deixem-nos passar todos.
Vejam! Doce e incólume, ela dorme na cama da vovó entre as patas do lobo terno.1

1
Angela Carter, The Bloody Chamber. London: Vintage, 1995. 110–18.
A Companhia dos Lobos (guião radiofónico)
(Ruído decrescente de vento gélido. À distância ouve-se o som do grito do lobo. Outro e
outro e ainda outro respondem-lhe. Uma rajada de vento abafa os gritos.)
ANUNCIADOR: «A Companhia dos Lobos»
AVÓ: Prende um, puxa outro, junta dois...
CAPUCHINHO VERMELHO: O que está a tricotar, avó?
AVÓ: Estou a fazer um presente para uma menina sortuda.
CAPUCHINHO VERMELHO: Que menina sortuda, avó?
AVÓ: Deus te benza, minha querida, para quem havia eu de estar a tricotar um lindo xaile
senão para a querida da avó... prende um, puxa outro... um belo xaile que se lhe ajuste bem,
de modo a que a minha querida se possa embrulhar quentinha e trotar pelo bosque para visitar
a avó mesmo quando o vento de Inverno sopra e se espera neve... olha que bela cor a desta lã,
não é? Vermelho para dar com as rosetas nas bochechas da minha bebé!
CAPUCHINHO VERMELHO: Vermelho como o sangue. Como sangue.
AVÓ: Não penses em coisas más, pensa em coisas boas. Um xaile confortável para a
menina preciosa da avó. Quem é a menina preciosa da avó?
CAPUCHINHO VERMELHO: Eu sou a menina preciosa da avó!
AVÓ: E eu escolhi um belo vermelho brilhante porque precisarás de um pouco de cor que te
alegre no Inverno, durante o triste Inverno ... prende um, puxa outro... quando a neve vier...
NARRADOR: É uma terra no norte: uma breve Primavera tardia, um Verão fresco e logo o
frio se instala de novo. Frio, tempestade, animais ferozes nas florestas sob os ramos
arqueados, onde está sempre escuro. A chegada da neve precipita neste território inóspito um
transe ontológico, um sonho prolongado que se estende, aqui e ali, em pesadelo. Os veados
partidos para as encostas a sul, o gado trancado nos currais este é o tempo em que as feras
saem; é agora a parte selvagem do ano, nada resta para os lobos comerem...
AVÓ: Quando a neve vier... vermelho para perigo quando os lobos vierem...
(Relógio, fogo, agulhas tricotando, tudo abafado por uma súbita e poderosa rajada de
vento da direita para a esquerda.)
AVÓ e CAPUCHINHO VERMELHO: Ó! Ah!
(Vento forte. Uivado grave e prolongado.)
AVÓ: Deus nos valha! Os lobos já correm!
NARRADOR: Agora é a estação do lobo, a parte baixa do ano, quando o sol quase não tem a
força necessária para se içar acima do horizonte. Nestes dias o temível lobo anda nas horas
crepusculares —
(Vento.)
LOBISOMEM (Uiva.): Visto a minha pelagem e vou caçar. Posso ser cinzento como uma
nuvem, ou então acastanhado. Ao crepúsculo deambulo para rasgar o mundo com as minhas
enormes garras; ao crepúsculo deambulo para devorar o mundo com os meus fortes dentes.
Ao crepúsculo viajo com olhos nas costas. O meu uivo perturba a aa-alma.
(Uivo de lobo. Vento. Uivos de muitos lobos à distância.)
CAPUCHINHO VERMELHO: O que fazemos, avó? O que fazemos?
AVÓ: Fecha as portadas! Tranca a porta! Põe mais lenha no fogo! Faz um grande lume!
Mantém os lobos lá fora! Teme o lobo e foge-lhe, minha pequena.
(Recomeça a tricotar.)
Puxa um... junta dois... Está-se sempre em perigo na floresta, onde não há gente. Ó, minha
doce neta, faças o que fizeres durante o tempo de Inverno, nunca saias do caminho na floresta,
ou —
CAPUCHINHO VERMELHO: Senão o que me acontece, avó?
AVÓ: Estarás instantaneamente perdida e os lobos encontrar-te-ão! E está em casa ao cair
da noite ou os lobos hão-de...
CAPUCHINHO VERMELHO: O que me fazem se me apanharem?
AVÓ: Mas... devoram-te!
(Em tom de brincadeira, rosna a CAPUCHINHO VERMELHO, que dá gargalhadas deliciadas.)
Comem-te, comem-te, comem-te...
CAPUCHINHO VERMELHO: Pára, avó, estás-me a fazer cócegas!
AVÓ: Grrr!
(Os rosnidos da avó tornam-se mais próximos e ameaçadores. Transformam-se em sons
de estraçalhamento. Um grito agudo corta os ruídos de estraçalhamento e somos deixados
com o vento frio.)
NARRADOR: Depois do escurecer eles chegam, juntam-se em redor do carreiro na floresta e
detectam o seu cheiro a carne quando você passa insensatamente tarde. São como espectros,
como sombras, membros cinzentos duma congregação dos malditos... as bestas do sangue e
da escuridão... carnívoro incarnado, o eterno predador, a fome perpétua do obscuro bosque
que rodeia a casa iluminada da clareira assim como a aldeia confiantemente abrigada no
vale...
CAPUCHINHO VERMELHO: Não tenho medo de nada. O meu pai deu-me um facalhão — veja.
Pensa que não sei usá-lo? Que não vi o meu pai matar o porco? Nada no bosque me pode
fazer mal.
AVÓ: Quando fica suficientemente frio, as feras tornam-se impudentes. Mais de uma vez,
fiquei meia fora de mim ao ver o focinho explorador dum debaixo da porta e na nossa aldeia,
uma vez, uma mulher foi mordida na própria cozinha quando escoava o macarrão.
CAPUCHINHO VERMELHO: Escoava o macarrão?
AVÓ: Mordida no pé. Prende um, puxa outro. Mas o pior de tudo, minha querida, é que —
alguns lobos são peludos por dentro.
CAPUCHINHO VERMELHO: O quê, como um casaco de pele de ovelha? Como pode isso ser,
avó?
AVÓ: Quando ele não for um lobo natural, minha querida, quando não for de todo um
lobo... junta dois.
Perto daqui, mais acima no vale, quando a minha própria avó estava viva, Deus a guarde,
uma vez um lobo veio massacrar ovelhas e cabras durante o Inverno. Ó, que terror ele era!
Que massacres fez entre os rebanhos!
Então este lobo provou carne humana... comeu um velho louco que vivia numa cabana na
montanha e cantava a Jesus ao longo dos dias; era inocente como um cordeiro... Uma vez que
um lobo tenha provado carne humana, nada mais lhe servirá.
Quando tinha já digerido o pobre velho, apenas uns dias mais tarde, o lobo saltou sobre
uma pobre moça, não resistiu à tentação... ela tão branca, tão tenra, uma menina mesmo da tua
idade...
CAPUCHINHO VERMELHO: Doze anos. A caminho dos treze, treze a caminho dos catorze... não
sou assim tão nova, mesmo se a avó me trata como uma bebé. Treze a caminho dos catorze, a
dobradiça da vida quando não se é uma coisa nem outra, nem criança nem mulher, mas antes
uma coisa mágica e liminar, um ovo que contém o seu próprio futuro.
Um ovo ainda não partido contra a chávena.
Sou o próprio espaço mágico que contenho. Ergo-me e movo-me dentro dum pentágono
invisível, intocada, invencível, imaculada como neve. Esperando. O relógio dentro de mim,
que há-de bater uma vez por mês, ainda não... tem... corda.
Eu não sangro, não posso ainda sangrar.
Não sei o significado da palavra medo. Medo?
AVÓ: Apenas com a tua idade ou um ano ou assim mais velha e ela — estava a tomar conta
das ovelhas na pastagem de montanha mas armou um tal chinfrim que os caçadores acorreram
com os seus cães e espingardas; mas este velho lobo era matreiro e cedo os despistou,
regressando à floresta.
CAPUCHINHO VERMELHO: Então o que aconteceu ao pobre lobo?
AVÓ: Prende um, puxa outro... já lá ia. Mandaram chamar à cidade um homem com muita
fama, especializado em exterminar tais parasitas. E este caçador cavou —
CAÇADOR: — um fosso, com paredes íngremes. Um fosso profundo. Uma armadilha para
lobos. E neste fosso espetei uma estaca afiada e atei-lhe, por uma corda passada à volta do
pescoço, um belo —
(Grasnar, revoada de asas.)
(Juntamente com a revoada de asas.) Vamos lá, pára de bater as asas e fica quieto! (Perto.)
Custou-me muito, posso assegurar-vos, dar um pato tão gordo ao lobo quando o poderia ter
assado para mim própria, mas não há no mundo melhor isco para um lobo que um pato.
Portanto atirei-o para o fundo do fosso, cobri este com ramos e escondi-me no restolho,
contra o vento para que ele não pudesse cheirar-me; e esperei...
Aqui vem ele... que tamanho! Quase tão grande como eu e como os seus olhos brilham...
AVÓ: E o lobo idiota caiu no fosso.
CAÇADOR: Então eu salto lá para dentro e corto-lhe o pescoço num piscar de olhos. E
comecei a cortar-lhe as patas, porque queria preparar as enormes almofadas das patas da besta
para decorar a chaminé da minha lareira, junto à cabeça de javali e à cabeça de alce e à grande
carpa que o meu tio apanhou há dez invernos e que embalsamou... mas só cortei aquela
primeira pata porque, tão verdade como eu estar aqui —
(Do fosso.) Valham-me a Virgem Maria e todos os santos do Céu!
AVÓ: O caçador viu cair no chão não uma pata, de todo, mas —
CAÇADOR (Do fosso.) Uma mão! Uma mão de homem!
NARRADOR: As garras desesperadas recolhem-se, refinam-se como se atacadas por pedra-
pomes invisível, até que finalmente se tornam unhas e nunca poderiam ter sido outra coisa, ou
pelo menos assim parece. As almofadas de couro amolecem e encolhem até que se lhes
poderia tirar impressões digitais, até serem pontas de dedos. Os tendões comprimidos esticam,
as falanges encurtadas estendem-se e ganham carne, o pêlo crespo penetra de volta na pele
sem deixar nem um vestígio de resteva atrás de si.
LOBISOMEM : (Aproximando-se de CAPUCHINHO VERMELHO.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Ooh...
LOBISOMEM : Agora a minha pele é do mesmo tipo que a tua pele, irmãzinha. Ei-la! a minha
mão... não a queres segurar?
CAPUCHINHO VERMELHO: (Engole em seco.)
LOBISOMEM : Vê... é igualzinha a qualquer outra mão, excepto talvez um pouco maior... não
viste as pegadas enormes que deixei na neve?
CAPUCHINHO VERMELHO: Uma vez num Inverno, quando eu era pequena, o meu pai levou-me
ao bosque e lá encontrámos o rasto dum lobo; pegadas tão grandes quanto pratos de jantar. O
meu pai apertou a sua espingarda e olhou em volta, mas eu pus o meu pezinho na pegada para
comparar tamanhos. E senti todo o calor subjacente à neve engolir-me...
AVÓ: E agora jazia perante o caçador não um lobo, mas o tronco sangrento de —
CAÇADOR: Assim possa eu nunca mais tocar na pinga, era um homem, com a garganta
cortada e sem mãos, sangrando, morrendo...
NARRADOR: Morto.
CAPUCHINHO VERMELHO: (Pensativa.) Mas eu teria pena da pobre criatura, fosse ela o que
fosse, homem ou fera ou alguma obscura coisa liminar, apanhada por um truque sujo e
despachada sem ao menos poder ter a sua refeição...
AVÓ: Junta dois. E pior que isso já sucedeu com essas criaturas vis e desnaturadas... quando
eu era uma coisinha jovem, mais ou menos da tua idade, havia na nossa aldeia uma mulher
que desposou um homem que desapareceu sem rasto na noite de casamento. Fizeram a cama
com lençóis novos e deitaram nela a noiva e deixaram-nos sozinhos juntos, mas então o noivo
disse...
LOBISOMEM : Mas, bem, antes de me juntar a ti entre os lençóis, acontece, minha doçura, que
preciso de ir lá fora responder a um chamamento da natureza.
NOIVA: Amor, porque não fazes no penico que aí está?
LOBISOMEM : O quê, na nossa noite de casamento, minha querida? Em nome da decência...
(Bater de porta.)
AVÓ: Então ela esperou...
NOIVA: E não estava ele lindo enquanto me esperava em frente do altar e eu descia a igreja
no meu vestido branco e ele virou a cabeça para me ver... (Boceja.)
... um homem lindo, mesmo se as suas sobrancelhas se encontram... e ele claramente puxa
para o peludo...
AVÓ: ... e esperou...
NOIVA: (Sonhadora.) e o primeiro, se for um rapaz, vamos pôr-lhe o nome do pai dele, mas
se for uma menina, então pomos-lhe o nome da minha mãe... (Boceja de novo.)
AVÓ: ... e esperou ainda, até que pensa —
NOIVA: ... mas... ele está certamente a demorar muito?
(Uivo.)
NOIVA: (Sentando-se na cama, desperta.) Deus nos salve a todos!
NARRADOR: Esse uivo arrastado e modulado tem, apesar da sua ressonância medonha,
alguma tristeza inerente, como se as feras adorassem ser menos bestiais se ao menos
soubessem como; e nunca cessassem, num certo sentido devastador e sem palavras, de
lamentar a sua condição. Há uma vasta melancolia nos cânticos dos lobos, infinita como a
floresta, sem fim como as longas noites de Inverno, porém essa terrível tristeza, esse luto
pelos próprios apetites irremediáveis, nunca pode comover porque nenhuma frase sua sugere
a possibilidade de redenção... a salvação não poderia vir ao lobo do seu próprio desespero, só
por via de algum mediador externo...
NOIVA: Quando os uivos cessaram e me pareceu seguro sair ao pátio, peguei na lanterna e
procurei nos edifícios da quinta em camisa de noite, tal como estava, e tão perturbada! Ó, eu
chorava e gemia, pensando que os lobos tinham comido o meu noivo sem deixar sequer algo
que se pudesse enterrar; porque não encontrei nem um osso roído nem mesmo um tufo de
cabelo, nem sequer um farrapo do seu fato de casamento. Vi apenas, na neve, muitas pegadas
enormes, como se as feras tivessem estado a dançar. A dançar!
Então dei-me conta de que ele está mesmo liquidado, portanto sequei os meus olhos, saí e
arranjei outro marido que não fosse demasiado tímido para urinar debaixo do seu próprio
tecto e pusemos ao primeiro rapaz o nome do pai dele mas ele insistiu que a menina tivesse o
meu nome. Os meus robustos bebés, alegres como cigarras, primeiro gatinham, depois dão os
primeiros passos, andam, correm... o tempo voa... anos depois, oh, anos depois, era uma noite
de Inverno, uma noite gélida dessas em que o luar parece cortante... o meu marido no curral a
tratar dos animais, eu na cozinha com os pequenos... eu a servir a sopa... era mesmo antes do
Natal, quando as noites são maiores que os dias...
NARRADOR: era a época do solstício, a dobradiça do ano, o tempo em que as coisas não se
ajustam tão bem quanto deveriam, quando a porta do ano está suficientemente aberta para
deixar passar toda a espécie de coisas que não têm um lugar próprio no mundo.
NOIVA: ... numa noite de neve e de lua...
AVÓ: ... o primeiro homem dela voltou.
CAPUCHINHO VERMELHO: Ele não se tinha esquecido dela, então. Voltou a casa para o Natal.
(Batida na porta.)
LOBISOMEM : Levanta o trinco e deixa-me entrar!
(O trinco estala; inspiração rápida da noiva à porta.)
NOIVA: Reconheci-o mal o vi, embora ele estivesse andrajoso e com o cabelo comprido
pelas costas abaixo, sem ter visto uma escova durante anos e vivo com piolhos, com fogo do
inferno... sim! fogo do inferno dardejando no olhar.
LOBISOMEM : (Entrando.) Aqui estou de novo, madama! (Fecha a porta.) Vai buscar a minha
tigela de sopa de couves e despacha-te!
NOIVA: Houve mudanças nesta casa, seu vilão! Estiveste fora demasiado tempo para teres
qualquer direito sobre mim!
FILHA: Mamã!
LOBISOMEM : Quem é este petisco tenrinho?
FILHO: Mamã, mamã, que grandes olhos ele tem...
LOBISOMEM : O que é isto? Crias? Esteve esta desgraçada a brincar entre os cobertores
enquanto o marido legítimo estava fora? Seus bastardos, adventícios —
(Crianças guincham.)
FILHOS: Mamã, salva-nos!
NOIVA: Não te atrevas a pôr a mão...
LOBISOMEM : Quem me dera tornar a ser lobo para ensinar a esta puta uma lição.
NOIVA: E então ele tirou o casaco, a camisa, as botas, as calças... instantaneamente
tornou-se... lobo. Mas o meu marido legítimo, ouvindo o barulho, acorreu.
MARIDO: O que se passa?
NOIVA:...agarrou o machado que usava para rachar madeira —
MARIDO: Já tem a sua conta.
NOIVA: Assim, o pai das minhas crianças acabou com o meu... visitante... ali e então,
fazendo uma tal porcaria, sangue e tripas pelo chão da cozinha, com o golpe cortou-lhe a
cabeça; o tronco ainda mexeu um pouco, mas então —
FILHO: Mamã, a pelagem dele —
FILHA: A pelagem está toda a derreter —
NOIVA: De facto, a pelagem dele desvaneceu-se como neve num telhado em Fevereiro,
quando o degelo chega, e pudemos ver que debaixo ele não era senão um homem normal e
que os anos desde que eu o conhecera mal o haviam tocado... e a sua cabeça, que tinha rolado
para a lareira e ficado perto da chaleira, a cabeça peluda com orelhas pontiagudas e focinho
estriado e temível mandíbula trituradora... bem, reverteu à cabeça dele e ali estava de novo a
cara do meu antigo amor... com aquele mesmo sorriso que ele me tinha prodigado há tanto
tempo, quando éramos jovens, quando eu desci a igreja em direcção a ele — eu no meu
vestido branco — e ele se tinha virado para olhar para mim e me tinha sorrido um pouco,
como quem diz, coragem, miúda... e eu nunca me importei que as suas sobrancelhas se
juntassem... portanto agora não consegui resistir e...
(A noiva chora.)
MARIDO: É este o agradecimento que me dás por matar a fera? Sua puta, vou-te dar uma
sova valente, isso vou — toma lá —
(Golpe; grito; mais choro. Choro substituído pelo som doméstico da cozinha da AVÓ:
relógio; fogo; tricotar.)
AVÓ: Junta dois... bem. Já estou pronta para rematar, vês como se faz? E então o xaile
estará pronto para envolver os teus pequenos ombros...
(Pausa.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Como?
AVÓ: Como o quê?
CAPUCHINHO VERMELHO: Como é que o interior deles vem para fora?
AVÓ: É a recompensa do diabo por longo serviço! Porque dizem que há um bálsamo que o
diabo lhes dá, entrega-lhos no Sabat...
NARRADOR: Banha de gato; cânfora; anis; ópio, tudo misturado, bem esfregado na pele.
AVÓ: Ou ainda, que ingerem uma bebida que o diabo prepara —
NARRADOR: Uma infusão de mandrágora e beladona e meimendro tomada num copo de
vinho.
AVÓ: Ou ainda, que bebem dum riacho que o diabo lhes mostra e começam então as suas
rapinas. Ou que bebem a água da chuva duma pegada de lobo do tamanho duma poça. E que
alguns nascem assim, aqueles que vêm ao mundo com os pés para a frente na véspera do São
João e cujo pai é um lobo... o seu dorso será humano mas as pernas e genitais serão de lobo...
e terão coração de lobo.
CAPUCHINHO VERMELHO: Coração de lobo.
AVÓ: Antes de se transformarem em lobisomem, têm sempre que se despir completamente;
despojar-se de todos os artifícios humanos até à nua pele natural. Se vires um homem nu no
meio dos pinheiros, minha querida, corre como se o diabo fosse atrás de ti.
CAPUCHINHO VERMELHO: Um homem nu? Com este tempo? Ele teria os coisos congelados,
avó!
(Ri.)
AVÓ: Bem, tem cuidado!
(Mas CAPUCHINHO VERMELHO continua a rir. O seu riso mistura-se com som de vento e
tempestade. Este mistura-se com som de manhã campestre — canto do galo, mugir de vacas.)
Mãe: Tem cuidado.
CAPUCHINHO VERMELHO: Preciso de ir hoje à casa da avó e irei. Estou decidida.
MÃE: Então não abandones o caminho no bosque —
CAPUCHINHO VERMELHO: O grande xaile vermelho que a avó me tricotou manter-me-á
quentinha e a minha mãe está a preparar um cesto —
MÃE: (Preparando o cesto.) — Bolos de aveia, manteiga, queijo —
CAPUCHINHO VERMELHO: Cheio de coisas boas para a pobre velhota.
MÃE: ... um frasquinho de geleia de bagas silvestres... Ó, mimada, oh, caprichosa! Mas se
precisas mesmo de ir, então mantém-te no carreiro e não —
CAPUCHINHO VERMELHO: — permaneças fora —
MÃE: — após o anoitecer —
CAPUCHINHO VERMELHO: — ou então —
MÃE: — os lobos —
CAPUCHINHO VERMELHO: — comem-me.
(CAPUCHINHO VERMELHO ri.)
MÃE: Se o teu pai estivesse aqui, nunca te deixaria —
CAPUCHINHO VERMELHO: Mas está na floresta a apanhar paus.
MÃE: (Suspira — aparte para a audiência.) Sendo ela a nossa mais nova e, sim, a mais
bonita, o nosso botãozinho, a nossa flor, não posso negar-lhe nada. E ela tem uma tão alta
opinião de si própria que acha que a própria neve se absterá de lhe cair em cima...
CAPUCHINHO VERMELHO: E tenho comigo a faca do pai... porventura não sei matar os porcos
com ela? Quero e vou ir hoje à casa da avó.
MÃE: Vou juntar uma garrafa de aguardente ao teu cesto para manter os olhos da velhota
quentes... e não saias do caminho por um minuto sequer, nem deixes o sol pôr-se contigo
ainda fora de casa —
CAPUCHINHO VERMELHO: Se fosse Verão, eu havia de apanhar flores e caçar borboletas, mas
agora é Inverno e a neve nos ramos despidos data de ontem, portanto não há razão para
vaguear... como a minha respiração deita fumo!
(Um pisco canta.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Bem, aqui está o pisco, o amigo do homem no seu colete
sanguinolento, empoleirado num tronco para me desejar bom dia.
E se eu caminhar tão silenciosamente quanto possa, conseguirei espiar o raposo Reynard a
levar para casa uma das nossas galinhas para que a família dele possa jantar...
Eis um corvo... bem, o raposo Reynard saiu cedo esta manhã; aqui está o sangue de algum
pobre coelho morto na neve, o horrível corvo já a debicá-lo... shoo, seu canibal, shoo!
(Grasnar; bater de asas; uivo distante.)
O que é isso?
(Restolhada; uma chegada.)
LOBISOMEM : Ó, por favor, menina, ponha de lado essa faca! Que aparência feroz! Não tinha
a intenção de a assustar, pensava que não havia ninguém no bosque senão eu.
CAPUCHINHO VERMELHO: Bem, bem, bem... quem é este belo jovem, saído assim do nada...
AVÓ: (Em eco.) Se vires um homem nu na floresta, foge como se o diabo estivesse atrás de
ti...
CAPUCHINHO VERMELHO: Mas este tem roupas vestidas, avó! E bonitas roupas... belo pedaço
de tecido, com os remendos de couro nos cotovelos. E um chapéu de feltro com uma pena na
fita. E lindos calções de cânhamo; e que brilho nas botas de couro! Terá sido preciso um
lacaio para dar às botas deste cavalheiro um tal brilho. Saído à caça, ele deve estar aqui fora
atrás de caça... não traz ele a espingarda sobre o ombro?
LOBISOMEM : Aqui estou eu, um alegre caçador.
CAPUCHINHO VERMELHO: Então ele faz-me uma pequena vénia, tão cortês quanto é possível, e
—
LOBISOMEM : Permita-me.
(Tira-lhe o cesto.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Que belas maneiras, tirar-me o velho cesto pesado das mãos para o
levar ele. Nada como aqueles palhaços rudes da aldeia que não sabem como tratar uma
senhora, deixam uma moça alombar sozinha com os sacos de batatas — Ó, a minha faca!
Deixei a faca no cesto!
LOBISOMEM : A minha espingarda vai proteger-nos a ambos, jovem. Nada tem a temer
quando está comigo. Permita-me —
(Passos no restolho.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Então este belo e jovem cavalheiro toma o meu braço e seguimos
caminho juntos, como se tivéssemos saído para um passeio. Em pouco tempo, estamos a
tagarelar juntos como se tivéssemos mamado do mesmo mamilo...
CAPUCHINHO VERMELHO: ... a levar uns pedaços disto e daquilo à minha velha avó, senhor,
porque ela está de cama —
LOBISOMEM : — separei-me dos meus companheiros para caçar sozinho e dirijo-me agora à
aldeia —
CAPUCHINHO VERMELHO: — despachar-me e ir agora depressa porque anoitece cedo nesta
altura do ano —
LOBISOMEM : — esperando encontrar abrigo hospitaleiro, algo para comer e para beber —
CAPUCHINHO VERMELHO: Senhor, se me quiser acompanhar até à casa da minha avó, estou
certa de que ela lhe daria de boa vontade uma chávena de chá ou mesmo algo mais forte, dado
que levo uma garrafa de brandy com a manteiga e o queijo.
LOBISOMEM : Encantado, encantado.
CAPUCHINHO VERMELHO: E eu toda excitada, pobre moça simples que sou. Porque ele é tão
bonito, apesar de as sobrancelhas lhe crescerem praticamente juntas...
LOBISOMEM : Quinze a ir para os dezasseis, a idade mais tenra. Sob aquele xaile vermelho
quão branca deve ser a carne, branca como peito de galinha, suculenta como lombo de
porco...
Jovem, bela jovem, veja o que eu tenho no bolso!
CAPUCHINHO VERMELHO: Este mancebo tinha o mais notável objecto no seu bolso, o qual ele
tirou para fora e me mostrou. Primeiro pensei que fosse alguma espécie de relógio de bolso,
dado ser redondo e estar pendurado numa corrente. Mas não fazia tic-tac e então pensei que
podia ser a moldura de algum retrato da querida dele, o que me fez olhar um pouco de viés até
que ele disse —
LOBISOMEM : Chama-se a isto uma bússola.
CAPUCHINHO VERMELHO: Tinha uma face redonda, como um relógio, mas sem números e com
um só ponteiro, o qual se movia de modo oscilante. Oscilando como se procurasse algo.
LOBISOMEM : Mostra o Norte.
CAPUCHINHO VERMELHO: E ele disse-me como a sua bússola o tinha ajudado a encontrar o seu
caminho através da floresta densa devido a o ponteiro apontar sempre o Norte com perfeita
exactidão —
LOBISOMEM : Portanto, bem vê, nunca me posso perder! Na floresta estou sempre em casa.
CAPUCHINHO VERMELHO: Mas eu não acreditei nele. Sabia que nunca devia deixar o caminho
na floresta, ou então ficaria perdida instantaneamente.
LOBISOMEM : Mas sim, garanto-lhe, se eu saltar deste carreiro serpenteante directamente para
o bosque — agora, neste preciso momento — e usar a bússola para me orientar, chegarei a
casa da sua avó um bom quarto de hora antes de si. Juro!
CAPUCHINHO VERMELHO: Não hei-de deixar o caminho; não vou abandonar o caminho.
LOBISOMEM : Então... você fica no caminho e eu vou pelo bosque e veremos qual de nós
chega primeiro à casa da avó. Fazemos uma aposta?
CAPUCHINHO VERMELHO: Você chega lá como quiser; eu chegarei lá como escolher.
LOBISOMEM : O que me dá se eu chegar lá antes de si?
(Pausa.)
CAPUCHINHO VERMELHO: (Com falsa candura.) O que gostaria que eu lhe desse?
(Pausa.)
LOBISOMEM : Um beijo. Como ela está a corar, parece sangue tingindo a neve...
(Um mocho pia; barulhos ominosos.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Veja como se está a pôr escuro! Acho que teremos mais neve —
LOBISOMEM : Um beijo?
CAPUCHINHO VERMELHO: (Desata a rir.) Combinado.
(Restolhada. O lobisomem desaparece no bosque.)
Olhe, espere — levou o meu cesto consigo! E a minha faca, levou a minha faca!
(Restolhada distante.)
Bem, não importa, em breve o reencontrarei... (Risada.) Mas que aventura! Na realidade...
não querendo reencontrá-lo demasiado cedo... vou devagar, é isso mesmo, neste derradeiro
quilómetro até à casa da avó, embora a neve esteja a chegar...
LOBISOMEM : (Trauteia a canção de sedução de Don Giovanni.)
NARRADOR: Perto da borda da floresta, aninhada numa clareira, há uma casa cujas janelas
vermelhas emanavam luz reconfortante como se, na escuridão iminente e no começo
turbulento do nevão, essa casa contivesse todo o calor humano do mundo.
O caçador dirige agora decididamente os seus passos para a porta da casa.
AVÓ: Quem está a bater à minha porta?
LOBISOMEM : (Falsete.) É apenas a sua neta, vinda de longe para vê-la numa tão fria noite de
neve!
(Trinco levantado. Porta aberta. Uma grande rajada de vento sopra através da casa,
abafando os barulhos domésticos.)
Narrador: Ela reconheceu imediatamente, pelos olhos incandescentes, a natureza do seu
visitante; juntando as mãos, implorou —
AVÓ: JesuJoséMariaSant’AnaSantaIsabelSanta —
LOBISOMEM : Chame todos os santos do calendário para virem depressa do Céu socorrê-la,
avó, mas não lhe servirá de nada. Como poderia você manter a noite lá fora, quando ela quer
tanto entrar?
AVÓ: (Grita.) (Sobreposto ao seu próprio grito, tal como ouvido anteriormente.) Antes de
se transformar em lobo, o lobisomem tem que despir-se completamente.
LOBISOMEM : (Despindo-se.) ... bom... sair destas roupas ridículas...
AVÓ: Sob as roupas, ele era cor de queijo de cabra, com mamilos pretos como bagas
venenosas e uma tira de pêlos pelo ventre abaixo. E era tão magro que se podia contar-lhe as
costelas...
LOBISOMEM : ... mas não lhe vou dar tempo...
NARRADOR: E agora a velhota, tremendo de medo, assistiu à inimaginável metamorfose — a
pelagem escura e hirsuta, grosseira e cinzenta, a nascer da pele nua do seu visitante... grandes
mandíbulas salivantes... os olhos vermelhos, agora brilhando com muito maior intensidade
que as brasas na sua lareira...
AVÓ: ... e os seus genitais, de lobo, enormes... ele nu como uma pedra, mas peludo... ele...
aaaaaagh!
LOBISOMEM : Eis um velho pássaro duro de roer... verdadeira destruidora de mandíbulas...
Quase carne nenhuma, tudo cartilagens... mas no poupar é que está o ganho; pela via
vermelha abaixo, avó... e a sobremesa está a trotar pelo bosque na minha direcção neste
mesmo minuto, tenra como um pêssego... sumarenta como um morango silvestre...
(Engole. Estala os lábios. Arroto.)
NARRADOR: Quando o lobo acabou de comê-la, vestiu-se rapidamente e voltou à forma que
tinha ao entrar em casa. Queimou o cabelo incomestível na lareira — e embrulhou os ossos na
toalha de mesa.
(Ténue chocalhar de ossos)
LOBISOMEM : O quê, avó, está a entrechocar os velhos ossos para mim? A tocar uma música
no seu próprio xilofone? Vou pô-la debaixo da cama em segurança... vê o que faço por si,
avó?
(Chocalhar de ossos atirados para debaixo da cama.)
LOBISOMEM : Ah, é melhor esconder a minha espingarda na chaminé, para que a sobremesa
não se lembre de dispará-la sobre mim... olha, o cesto: bolos de aveia, manteiga... queijo...
nada apropriado a um carnívoro... ah, brandy! Que tal um digestivo, avó?
(Verte, bebe.)
À sua saúde póstuma! Agora... instalar-me na cadeira da avó. Melhor... vestir... a toca da
velhota, não quero assustar a belezinha quando ela olhar pela janela para ver se o belo caçador
chegou antes dela. (Ri.)
(Instala-se; recomeça a trautear a ária de Don Giovanni. O relógio toca a meia-hora.)
Aonde pode ela ter ido...
(Toc, toc.)
(Falsete.) Quem bate à minha porta?
CAPUCHINHO VERMELHO: Não chegou um jovem cavalheiro antes de mim, avó?
LOBISOMEM : (Falsete.) Jovem cavalheiro? Que jovem cavalheiro? Não vi nenhum jovem
cavalheiro!
CAPUCHINHO VERMELHO: Ó...
LOBISOMEM : Levanta o trinco e entra, como uma neta dedicada!
(O trinco levanta, a porta abre; intensificação dos barulhos domésticos.)
CAPUCHINHO VERMELHO: E então, oh, então, como eu quis o facalhão que o meu pai me deu
para o substituir — oh, sim, como o quis. Mas não pude chegar à faca, que estava no cesto
sobre a mesa; e ele entre mim e a mesa, alto e selvagem, como se o bosque silvestre se tivesse
feito homem e tivesse entrado na cozinha e os seus olhos grandes como pires inflamados —
Que grandes olhos tem.
LOBISOMEM : São para melhor te ver, minha beleza. Vale a pena olhar para ti.
CAPUCHINHO VERMELHO: E não havia vestígio da minha avó em lado nenhum na cozinha,
excepto um tufo de cabelo branco preso a um pedaço de toro não ardido na lareira; então
percebi que estava em perigo de morte.
O que fez com a minha avó?
LOBISOMEM : Só aqui estamos nós os dois, querida.
CAPUCHINHO VERMELHO: Então o medo da morte assolou-me, a mim que não tinha tido medo
de nada, porque, embora soubesse que ele tinha acabado de comer, sei também que o lobo
tem sempre fome...
E não posso gritar por socorro porque estamos a uma boa milha da aldeia.
(Uivo solitário lá fora.)
No entanto, embora eu esteja entre as feras —
Não posso ter medo porque medo é a sua carne.
(Mais uivos.)
E portanto não o posso admitir.
(Uivos decrescem. Ela respira fundo.)
Quem veio cantar para nós?
LOBISOMEM : Essas são as vozes dos meus irmãos, querida. Adoro a companhia dos lobos.
Olha pela janela e hás-de vê-los.
CAPUCHINHO VERMELHO: Como neva! Não se vê nada pela gelosia, o vidro está cheio de
neve...
LOBISOMEM : Abre a janela...
(Gelosia abre. Muito vento, coro de lobos.)
CAPUCHINHO VERMELHO: E nos ramos da macieira fora da janela da minha avó estava
pousado um fruto de lobos... tinha-se tornado uma árvore de lobos... todos eles olhando para
mim com os seus olhos enormes e bestiais, olhos com tanta tristeza nas pupilas... dez lobos,
vinte lobos, mais lobos do que posso contar... olhos reflectindo a luz da cozinha e brilhando
como velas... cada fera apontando o focinho à lua e uivando como que para nos partir o
coração...
(Portada fechada, cortando o vento e os uivos.)
Está um frio de enregelar, pobres coisas, não admira que uivem assim.
LOBISOMEM : (Persuasivo.) Também tens muito frio, minha querida? Queres um copo de
brandy para aqueceres?
CAPUCHINHO VERMELHO: Ó, dentro de casa ao pé do lume está calor que chegue.
LOBISOMEM : Então tira... o teu xaile.
CAPUCHINHO VERMELHO: O que... faço com ele, agora?
LOBISOMEM : Queima-o, querida. Não vais precisar mais dele.
CAPUCHINHO VERMELHO: Então enfiei o meu xaile na lareira e, vendo a garrafa de brandy que
a mãe me dera para eu dar à avó, reguei com ele o fogo para fazer as chamas crescerem.
LOBISOMEM : A luz! Os meus olhos!
CAPUCHINHO VERMELHO: E pela chaminé acima foi o xaile vermelho que a minha avó me
tricotou, inflamado, whooosh! Olhem! Como um pássaro com asas de fogo!
LOBISOMEM : (Geme.)
CAPUCHINHO VERMELHO: E, como se a minha avó estivesse zangada comigo por eu pegar
fogo ao seu xaile, ouviu-se um tal entrechocar dos seus velhos ossos...
Bem... penso que esta noite, numa tal noite, não devo usar nada a não ser a minha pele;
porque deveria eu estar vestida quando os pobres lobos lá fora não —
(Matraquear de ossos.)
A minha saia... a minha blusa... uma meia... duas meias... para o fogo. Que labaredas!
(Clangor. Chamas.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Ó, silêncio e acalme-se, avó, enquanto a sua neta faz sala à sua
visita!
(Ossos entrechocam-se uma última vez, desaprovadoramente.)
LOBISOMEM : (Queixume.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Aqui tem. Vê? Todas as minhas roupas queimadas. Ó, senhor, os
seus olhos — estão a lacrimejar! Está com dores? Não aguenta a luz forte?
LOBISOMEM : (Soluça e geme.) Os meus olhos...
CAPUCHINHO VERMELHO: Ó, senhor, mas não desvie o seu olhar... não duma pobre moça
como eu. Ou será que a luz do fogo entrou na minha pele também? Estou eu radiante? Estou
demasiado brilhante para si, senhor?
LOBISOMEM : Não consigo... não consigo...
CAPUCHINHO VERMELHO: O que se passa, senhor? Dar-se-á porventura o caso de estar com
dificuldade em tornar-se lobo, senhor, por eu me ter despido primeiro? É isso?
LOBISOMEM : Não tens medo do lobo?
CAPUCHINHO VERMELHO: Já que o meu medo não me servia de nada, pu-lo de lado, senhor;
descartei-o com as minhas roupas.
Ó, belo cavalheiro! O que é justo é justo. Se eu tenho que andar nua, então você tem que se
pôr nu também. Deixe-me desabotoar-lhe essa camisa... vá lá, não se debata... como diz a
minha mãe, «Vamos esfolar o coelho»... mas este coelho tem o pêlo debaixo da pele...
Que grandes braços tem. Vá... ponha-os à minha volta... assim...
LOBISOMEM : (Geme.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Creio que, já que você chegou cá antes de mim, me deve um beijo.
Que grandes dentes tem!
Lobisomem. (A sufocar — tentando recompor-se.) São para melhor... te comer.
CAPUCHINHO VERMELHO: Ó, essa é boa!
(Ela desata às gargalhadas.)
Bem, cada qual à sua carne, mas eu não sou carne para nenhum homem! Agora vou
queimar a tua roupa, tal como queimei a minha própria...
LOBISOMEM : Isso não!
CAPUCHINHO VERMELHO: O quê, poder-se-ia pensar que estás com medo de ser um bom lobo
o tempo todo...
(Labaredas aumentam.)
E agora vou ver-te como o bom lobo que és, o lobo honesto, o lobo benévolo.
Porque os lobos são ternos para os da própria espécie, não é? Se tu fosses verdadeiramente
um lobo, não me deixarias montar às tuas costas e não me levarias para casa através da
floresta?
LOBISOMEM : (Voz pastosa.) Lá fora não é sítio para se estar esta noite, com o nevão e os
ventos gélidos... fica cá dentro comigo, deita-te na cama da avó...
CAPUCHINHO VERMELHO: O quê, pormo-nos confortáveis?
(A cama range.)
CAPUCHINHO VERMELHO: Aqui estamos... põe a tua cabeça no meu colo, assim... a tua
cabeçorra cinzenta... deixa-me coçar as tuas lindas orelhas, tu consegues ouvir as nuvens
passarem, não consegues, consegues ouvir a erva crescer, orelhas tão sensíveis, audição tão
apurada... e posso ver os piolhos a moverem-se na tua pelagem, pobre bicho...
(Rosnido.)
E vou-te catar, seria isto algo que apreciasses?
(Rosnido afirmativo. O relógio dispara — vai tocar. Toca doze badaladas.)
NARRADOR: Meia-noite. A tempestade vai acalmar-se; a porta do solstício está aberta de par
em par.
CAPUCHINHO VERMELHO: (Boceja.) Ela está letárgica, está adormecida... como é macio o teu
pêlo! Quente!
LOBISOMEM : Quando eu era homem, ouvi uma história em que não acreditei porque pensava
então que todos os lobos eram como eu.
Uma história de como era uma vez uma mulher que vivia na montanha e entrou em
trabalho de parto no Inverno, durante uma tempestade, tendo dado à luz uma filha e morrido
disso sem ninguém por perto excepto o marido. Ele fez o que pôde mas, quando não havia já
esperança para ela, foi à aldeia buscar o padre, a neve caindo e o vento soprando. O gelo na
ribeira partiu-se sob o seu peso e ele afogou-se.
Quando a tempestade passou, a mãe desta mulher foi saber dela e encontrou um cadáver
mas nenhum bebé, nenhum vestígio de bebé, portanto todos pensaram que os lobos a tinham
comido. E passaram sete anos, até que chegou outro Inverno duro em que os lobos saem da
floresta atrás das cabras; então a mãe da morta viu uma criatura de cabelos compridos, que
poderia ser uma mocinha, correndo com os lobos. E encontraram pegadas humanas juntas
com as dos lobos. Pegadas humanas.
Então passaram a montanha a pente fino e encontraram a criança numa gruta com uma
velha loba cinzenta, que mataram quando ela saltou sobre eles. Então levaram a criança para a
aldeia e trancaram-na num celeiro; mas ela uivava — como ela uivava. Uivou até que trouxe
todos os lobos dos quatro cantos da floresta, dezenas e centenas deles, uivando juntos como
que tresloucados. Os lobos puseram cerco ao celeiro e não deixaram ninguém aproximar-se; a
menina fugiu com eles.
Sete anos depois, a velhota, estando a apanhar cogumelos, viu uma mulher crescida com
duas crias, ajoelhada à beira do riacho, bebendo água com a língua. Mas quando a velha
gritou «Minha querida, minha ternura, volta para mim!» a outra correu para onde os seus
amigos a esperavam.
Estás a ouvir-me? Estás a dormir?
CAPUCHINHO VERMELHO: (Mexe-se, murmura sem palavras no seu sono.)
NARRADOR: A tempestade amainou, deixando o bosque tão aleatoriamente coberto de neve
como se um cozinheiro desastrado tivesse deixado cair o barril da farinha por cima dele.
Luar, luz de neve, uma confusão de pegadas de lobo sob a macieira fora da janela.
Tudo silencioso, tudo parado.
LOBISOMEM : Ela dorme, vejam, as patas dela estremecem, está a sonhar com coelhos...
Narrador: Ela dorme docemente um pesado sono na cama da avó, entre as patas do terno
lobo.2

2
Guião da peça radiofónica The Company of Wolves (1984), in Angela Carter, The Curious Room: Collected
Dramatic Works. Edited by Mark Bell. London: Vintage / Random House, 1997. 61–83.
A Companhia dos Lobos (excertos do guião cinematográfico, em
colaboração com Neil Jordan)
[...]
(A avó acaricia o cabelo de Rosaleen até que esta acalma. A sua voz é assaz hipnótica.)
AVÓ: É um longo caminho através do bosque. Mas é seguro de dia. Seguro se te mantiveres
no carreiro comigo...
(Rosaleen e a avó caminham de mãos dadas através da clareira com a rocha musguenta e
um esguio choupo, na qual Alice encontrara o lobo.)
AVÓ: E em nenhum lado é tão seguro como em casa da avó.
[...]
(ROSALEEN apercebe bagas vermelhas nos arbustos fora do carreiro.)
ROSALEEN: Bagas —
(Liberta-se da mão da avó e dirige-se a elas através dos arbustos. Apanha um grande
punhado e está prestes a comê-las quando a mão da avó a puxa abruptamente dos arbustos
de volta para o caminho.)
AVÓ: Mas não saias do caminho, moça. Não ouviste o que eu disse? Uma vez saída do
carreiro, estás inteiramente perdida. As feras não conhecem o perdão. Esperam por nós no
bosque, nas sombras. E quando dermos um passo em falso, elas saltam.
(Rosaleen olha para a cara da avó com olhos amedrontados. Os discos dos óculos da
velha reflectem a luz do sol, escondendo os seus olhos.)
AVÓ: Vá, vá. Não fiques assim. É uma lição que tens que aprender...
(Pega na mão de Rosaleen e torna a andar energicamente.)
AVÓ: Ou ainda acabas como a tua pobre irmã...
(Andam em frente através do carreiro, de mãos dadas, até que chegam à clareira onde
fica a casa da avó. É uma pequena casa isolada situada num jardim murado com um portão
e um carreiro. Há uma macieira no jardim carregada de abundantes frutos vermelhos. A
casa está abrigada na clareira da floresta, totalmente sozinha. Há algumas flores tardias,
dálias, gladíolos, em torno da macieira e os começos de várias fileiras de couves de Inverno
tardias.
A AVÓ abre o portão, percorre o carreiro em direcção à casa com as suas janelas de
cortinas com laços e o seu ténue fio de fumo na chaminé. Rosaleen pára perto da macieira,
puxando a mão da avó.)
ROSALEEN: Avó —
AVÓ: (Impacientemente.) Sim, querida?
ROSALEEN: Posso comer uma?
AVÓ: Não vejo porque não.
(Rosaleen pega numa maçã caída na terra perto do tronco da árvore. A avó está atarefada
com a chave da casa. Rosaleen está prestes a morder a maçã quando vê um verme enrolado
num buraco. Deita fora a maçã, enojada.)
ROSALEEN: Ugh!
(A avó suspira e dirige-se a ela. Arranca uma soberba maçã vermelha da própria árvore.)
AVÓ: Ainda tens muito que aprender, criança.
ROSALEEN: O que é que tenho que aprender, avó?
AVÓ: Nunca saias do caminho, nunca comas um fruto caído. Nunca confies num homem
cujas sobrancelhas se toquem...
(Mas Rosaleen não a está a escutar. Enterra os dentes na maçã e segue a Avó, que levanta
o trinco e entra em casa.
Lá dentro é tudo ordenado e confortável. Chão de azulejos, um tapete de trapos, uma
grande cama de latão num canto com uma colcha escocesa, uma cadeira de baloiço junto a
uma lareira crepitante, um par de cães de cerâmica aos lados do parapeito da chaminé. Uma
cadeira de baloiço dum lado da lareira e um pequeno banco de criança do outro. Rosaleen
vai direita ao banco e senta-se nele, mastigando a maçã. Observa a avó pôr lenha no fogo e
colocar uma grande chaleira preta no gancho acima.)
AVÓ: uma lareira em ordem é uma casa em ordem. Temo que isto seja uma lição, que a tua
mãe deveria aprender.
ROSALEEN: (Mastigando.) Ninguém é perfeito, avó.
AVÓ: Quem te disse isso?
ROSALEEN: A mãe.
AVÓ: Era de esperar.
(ROSALEEN fixa o olhar na chaleira que fuma suavemente.)
AVÓ: Uma chaleira olhada nunca ferve, criança. Ajuda-me com as coisas do chá.
(Rosaleen levanta-se, vai até ao armário das porcelanas e começa a tirar as chávenas.)
(Uma lua quase de conto de fadas brilha por cima da chaminé da casa da AVÓ. Um mocho
está pousado na macieira, entre as maçãs, virando a cabeça dum lado para o outro. Através
da janela pode-se ver as figuras da avó e de Rosaleen tremeluzindo à luz duma lamparina de
azeite.
(O chá terminou. Há um grande missal preto na mesa ao lado das coisas do chá. Rosaleen
senta-se no tapete aos pés da AVÓ, comendo uma fatia de pão com doce. A avó está a
balançar-se na cadeira de baloiço, tricotando um xaile com lã de cor vermelho vivo.)
AVÓ: A melhor lã de Inverno, querida. Fiada no vale distante. Era tão boa, tão macia, que
pensava fazer um xaile para a tua irmã. Mas agora sabes o que vou fazer?
ROSALEEN: O quê, avó?
AVÓ: Vou fazer um para ti. Um xaile muito especial para uma donzela muito especial!
(Rosaleen estende a mão para tocar na lã.)
ROSALEEN: Macia como um gatinho...
(A avó balança-se enquanto tricota. A luz do fogo reflecte-se na cara de Rosaleen.)
ROSALEEN: Prende um, puxa outro...
(A avó olha para ela inquisitoriamente. Rosaleen sustem o seu olhar.)
AVÓ: Há algo que eu deveria dizer-te —
(As orelhas de Rosaleen endireitam-se.)
AVÓ: Mas talvez sejas demasiado jovem.
ROSALEEN: Diga-me, avó, por favor —
AVÓ: Demasiado jovem para perceber...
ROSALEEN: Tenho nove anos e três quartos —
AVÓ: Mas talvez nenhuma criança seja alguma vez demasiado jovem — porque o Diabo
tem maneiras de fazer chegar a sua vontade mesmo aos corações mais puros. E entre os puros,
criança, ele precisa mesmo de ser subtil. Precisa de vir sob vários disfarces.
(Tricota por um momento, como se pensando para consigo mesma.)
AVÓ: Um lobo... pode ser mais do que parece.
ROSALEEN: Como é isso?
AVÓ: O lobo que comeu a tua irmã era peludo por fora; quando ela morreu foi direita para o
Céu. Mas os piores tipos de lobos são peludos por dentro e, quando mordem, arrastam-nos
com eles para o Inferno.
ROSALEEN: O que quer dizer? Peludos por dentro? Como um casaco de pele de ovelha?
(Dá uma risada.)
[...]
(A AVÓ olha para o fogo. Está a esmorecer.)
AVÓ: Chega de tricotar por hoje. Hora de ir para a cama! Vem e dá um grande beijo à tua
AVÓ.
(A AVÓ tira os óculos. Sem eles os seus olhos são frios como o aço. Rosaleen, ainda a
pensar na história, fica a olhar distraidamente para o fogo.)
[ ]
(Rosaleen olha para a avó e hesita, como se os olhos dela a repelissem. Depois aproxima
os seus lábios das bochechas da avó e beija suavemente a velha pele enrugada. A avó olha
para ela, balançando-se e sorrindo, mas os velhos olhos não sorriem.)
AVÓ: A melhor das moças!
(O mocho levanta voo da macieira e bate asas pela noite fora. Na casa, a luz que sai pela
janela diminui.)
(A avó e Rosaleen, em camisas de noite compridas, muito direitas, ajoelham-se à beira da
cama com uma fraca lamparina de azeite acesa ao seu lado.)
AVÓ: ... e dos perigos e ameaças desta noite livrai-nos, Senhor. Ámen.
ROSALEEN: Ámen.
(Rosaleen salta depressa para a cama. A avó iça-se mais lentamente. Rosaleen dorme
contra a parede, a AVÓ na parte de fora. Instalam-se.)
AVÓ: Sonhos doces, querida.
(A avó vira-se no seu travesseiro, fecha os olhos e começa a ressonar. Rosaleen fecha os
olhos, mas passado um bocado abre-os de novo. Olha em volta no quarto. Está cheio de luar.
Há um uivar ténue, como que trazido pelo vento duma grande distância, ténue e muito
longínquo.
Rosaleen, devagar, muito cuidadosamente, ergue-se sobre um cotovelo para ouvir.)
(Rosaleen e a avó andam de regresso à aldeia. [ ] Elas passam debaixo dos ramos dum
eucalipto — parecem minúsculas, diminuídas pela imensa vegetação.)
AVÓ: Não vais ser uma rapariguinha muito mais tempo...
(Uma cobra desenrola-se dos ramos acima delas. Passam-lhe debaixo sem se
aperceberem, mas a cabeça da pele de raposa da avó, pendurada sobre o ombro desta,
revira os olhos brilhantes para olhar para ela e inclina a cabeça.)
AVÓ: E a tua mãe e o teu pai vão precisar de toda a ajuda que lhes possam dar. Tens que
trabalhar duramente e tornar-te sensata! Agora que a tua irmã se foi...
[...]
(Rosaleen lava a roupa com a mãe junto dum grande alguidar com tábua de esfregar.
Rosaleen enche o alguidar de água enquanto a mãe torce a roupa na tábua de esfregar.)
MÃE: A tua avó não deveria encher-te a cabeça com histórias. Histórias de dormir em pé.
Mentiras.
ROSALEEN: Quer dizer que o que ela diz não é verdade?
MÃE: Não são os verdadeiros lobos suficientemente maus?
ROSALEEN: A avó diz que os piores lobos são peludos por dentro. Há uma fera dentro de
todos os homens.
MÃE: Descobrirás tudo isso no tempo devido.
(De repente dois braços levantam-nas a partir de trás. É o pai. Traz um molho de coelhos
mortos atravessado num ombro e a espingarda no outro.)
PAI: Eis aqui duas belas braçadas...
(Rosaleen solta risadas. A mãe protesta. As mãos dele estão sangrentas e mancharam a
roupa.)
MÃE: Cuidado com o que fazes — depois de todo o trabalho que tivemos —
PAI: Aqui está o jantar que o Papá apanhou para ti —
(Leva-as ambas para dentro de casa, uma em cada braço.)
(Mesa de jantar. O lume crepita e uma candeia tremeluz dentre os pratos. Rosaleen e o
pai sentam-se. A mãe baixa uma grande panela, levanta a tampa e serve o ensopado de
coelho.)
MÃE: É demasiado para três pessoas.
PAI: Pára de te lamentar, está bem? Quanto menos se diga, mais depressa cicatriza.
(Ele começa a servir o ensopado.)
(A mãe empilha os pratos no lava-louça. Olha pela janela para a grande lua. O pai vem e
abraça-a por detrás. Mergulha a cara no pescoço dela e murmura algo que nós não
conseguimos ouvir. A mãe olha para a lua através da janela, depois volta-se e beija-o.)
(Rosaleen está na cama a dormir. É acordada pelo esvoaçar duma traça contra o vidro da
janela. Ela estende a mão e toca-lhe. A traça torna a esvoaçar.
Ela ouve o som dos murmúrios da mãe vindos da cama dos pais. Olha em volta. O quarto
está iluminado pelo clarão do fogo esmorecente. Os olhos dela pousam na cama dos pais. A
colcha na cama está a mexer.
Rosaleen ergue-se sobre o cotovelo e olha. A cama dos PAIs começa a tremer. Rosaleen
continua a observar, em fascínio horrorizado. Começa a sacudir a própria cama em uníssono
com a dos pais.
Depois a agitação cessa abruptamente. Pode-se ver a cara da mãe, suspirando, virando-
se sobre o travesseiro.
Rosaleen baixa a cara e vira-se para o outro lado, suspirando como a mãe.)
[...]
(Rosaleen acorda na sua cama. A mãe está a limpar a mesa da cozinha, sozinha.)
ROSALEEN: Mãe —
MÃE: Sim, querida?
ROSALEEN: Ele magoa-te?
MÃE: Quem magoa-me?
ROSALEEN: O pai magoa-te quando ele —
MÃE: Não. De todo.
ROSALEEN: Soa como...
MÃE: Como o quê?
ROSALEEN: Como a fera de que a avó falou —
MÃE: Prestas demasiada atenção à tua avó. Ela sabe muito, mas não sabe tudo. Se há uma
fera nos homens, esta tem o seu par nas mulheres. Agora levanta-te e vai-me buscar água.
[...]
(Rosaleen, embrulhada no xaile vermelho, espalha milho dum cesto para as galinhas.
Coração do Inverno. Rajadas de neve a toda a volta. Pingentes de gelo pendem de cada
goteira.)
MÃE: (Gritando de dentro da casa.) Só podes ir se te mantiveres no caminho!
(Rosaleen esvazia o cesto de milho e vira-se para a casa.)
(Rosaleen entra em casa. A mãe está na mesa a empilhar bolos de aveia acabados de fazer
num prato. Rosaleen vai a um armário, tira um par de frascos de doce.)
ROSALEEN: Eu sou...
ROSALEEN/MÃE: ... uma menina crescida agora! Já não sou um bebé!
(A MÃE sorri. Rosaleen volta para a mesa, tira bolos de aveia do prato, começa a pô-los
juntamente com o doce e uma garrafa no cesto que tinha o milho das galinhas.)
MÃE: Estás aparvalhada com a velhota! Ela e os seus contos da carochinha.
(Rosaleen ignora tudo isto, continua a arrumar o cesto.)
ROSALEEN: Temos que lhe levar alguma alegria de Natal, coitadinha!
MÃE: Coitadinha, ela! Com a sua casa bonita e os seus queridos cães. Talvez não devesses
ir.
ROSALEEN: O pai não matou o grande lobo? Não há nada que temer na floresta agora!
MÃE: Não saias do carreiro, lembra-te! Não haverá nada que possas levar para te protegeres
—
(Rosaleen abre a gaveta da cutelaria na mesa. Tira a faca de trinchar. Testa a lâmina da
faca contra o polegar. Coloca-a a no cesto.)
ROSALEEN: Há poder numa faca.
(Tira a toalha de chá da gaveta, põe-a sobre o conteúdo do cesto.)
MÃE: Não estás com medo, pois não? És uma criança intrépida, isso concedo. A velhota
vai-te convidar para dormir lá. Sempre foste a sua favorita, ela nunca ligou à —
(Ainda não consegue mencionar o nome. Rosaleen conhece os sinais de perigo; apressa-se
a atalhar:)
ROSALEEN: É claro que ficarei para dormir se ela mo pedir! Seria rude não o fazer. Ela é a
minha avó, mãe. É a mãe do pai; a mãe tirou-lhe o seu amado rapaz, não foi, por isso ela não
tem uma palavra amável para si. Mas sempre foi boa para mim. E não tem mais ninguém, só a
nós.
(A mãe ouve pensativamente; então vai ao armário, retira uma garrafa verde de
aguardente caseira, junta-a ao conteúdo do cesto e torna a entalar a toalha por cima.)
MÃE: Talvez tenhas razão e talvez não. Mas dá-lhe isso da minha parte. E não te percas.
Confio em ti, Rosaleen. Não saias do caminho, mesmo se nada de mal aconteceu da última
vez que o fizeste.
ROSALEEN: Prometo.
(Rosaleen beija a Mãe e pega no cesto.)
[...]
(Rosaleen anda pela floresta, uma cena lírica de bosques no coração do Inverno.
Ela parece muito só, no seu xaile vermelho que brilha contra o fundo predominantemente
branco da paisagem, mas está completamente segura do seu conhecimento do bosque, que é
o bosque perfeitamente real que por vezes é. Restolhar dos fenos quando um coelho os
atravessa; Rosaleen sorri. Um pisco empoleirado num tronco começa a cantar e ela pára
para ouvir.
Mete a mão no cesto, tira um bolo de aveia, desfá-lo em migalhas, ajoelha-se, espalha
migalhas na neve. O pisco pára de cantar, esvoaça para baixo, debica as migalhas.
Rosaleen põe migalhas na palma da sua mão, oferece-as ao pisco. Este saltita e come as
migalhas da sua mão.)
(Mais adiante no carreiro Rosaleen descansa, sentada numa árvore caída. Tira o pequeno
espelho do bolso; olha-se nele; sorri para si própria; procura de novo no bolso e tira o
batom. Estica os lábios, mostrando os dentes e gengivas numa expressão de rosnido, que
supostamente ajuda a pôr batom.
Numa careta de rosnadela, ela pinta-se uma enorme boca vermelha.
Uivar distante.
Instantaneamente alerta, ela pousa o batom e o espelho. O mato restolha. Ela tira a faca
do cesto, levanta-se. Atitude ameaçadora.
O mato restolha de novo. Ela afasta-se do barulho e do movimento, com a faca pronta.
Grande plano de Rosaleen a reagir — surpresa, riso.
O restolho está ainda a mexer devido à saída dum belo jovem alto, tão belo que nem se
nota que as suas sobrancelhas quase se tocam. Está a usar um fato de caça completo do
século XIX, com um efeito de excesso como seria o da fotografia à moda vitoriana dum
desportista. Chapéu com penas de pássaros na fita; colete de caçador; calças até ao joelho;
botas. Espingarda sobre o ombro, um molho de faisões a balançar na mão.
Emergiu como uma aparição de graça e elegância.
Tira o chapéu.)
CAÇADOR: Menina —
ROSALEEN: (Rindo.) De onde saiu você?
CAÇADOR: Assustei-a? Lamento —
ROSALEEN: Pelo menos está vestido!
(O caçador fica momentaneamente atrapalhado com isto. Ela inclina-se para a frente,
toca nos faisões com a faca.)
ROSALEEN: Roupa tantivvy, não é? Andamos à caça? Perdeu o cavalo, ou está a palmilhar o
bosque a pé?
CAÇADOR: Perdi o meu cavalo e os meus companheiros, jovem.
(ROSALEEN devolve ao cesto a faca, que bate sonoramente contra a garrafa.)
ROSALEEN: E perdeu o seu caminho, também.
CAÇADOR: Julgo que acabo de o encontrar. Diga, acha que podia dar-me um golo dessa —
(Sorri sedutoramente a Rosaleen.)
CAÇADOR: Conheço o local perfeito, mais acima no caminho, para um piquenique —
(ROSALEEN estendeu no chão a toalha que cobria o seu cesto e dispôs nela os bolos de aveia
e o doce, com a garrafa de aguardente no meio. Mergulha a ponta da faca de trinchar no
doce, que espalha no bolo de aveia; oferece este ao caçador.)
CAÇADOR: Tenho o mais notável dos objectos no meu bolso, o que quer dizer que nunca me
perco no bosque.
ROSALEEN: No seu bolso, diz você.
(O caçador aceita o bolo de aveia, mas com a outra mão pega na garrafa e dá um golo
rápido. O espelho esquecido apanha a luz e faísca.)
CAÇADOR: Este objecto vai a todo o lado comigo. Sempre que, entenda-se, eu estou de
calças.
(Ele dá uma dentada no bolo de aveia na sua mão esquerda, depois oferece-o de volta a
Rosaleen estendendo-o para a boca dela.)
CAÇADOR: Vá lá! Dê uma dentada! Trinque-o!
(ROSALEEN tenta escapar mas ele persegue-a com o bolo de aveia com doce até que ela tem
que abrir a boca e trincá-lo. Deixam-se cair os dois, rindo. Ele oferece-lhe a garrafa que
ainda segura; ela abana a cabeça. Ele bebe de novo.
ROSALEEN tira-lhe a garrafa, levanta-a para a luz para verificar o nível da aguardente,
abana a cabeça, rolha a garrafa firmemente e devolve-a ao cesto.)
ROSALEEN: Não sabe quão forte é essa coisa? Um homem na nossa aldeia opera o
alambique... Tem o nariz mais vermelho que já se viu... É a bebida que fala por ele! O que
você diz é uma fantasia, não acredito na existência dum tal objecto.
(Ela pega num bolo de aveia com doce e consome-o firmemente.)
CAÇADOR: Há que ver para crer.
(O caçador tira uma bússola do bolso e mostra-lha na palma da sua mão.)
CAÇADOR: A agulhinha aponta sempre o norte, esteja eu onde estiver. Por isso sei sempre
exactamente onde estou.
ROSALEEN: Vejo mas ainda não creio.
CAÇADOR: Foi esta bússola que me trouxe com segurança pelo bosque.
ROSALEEN: Você perdeu-se no bosque.
CAÇADOR: Mas encontrei-a a si.
(Pausa.)
CAÇADOR: Lamenta o nosso encontro?
(Pausa.)
ROSALEEN: Não o lamento. São uns palhaços, os rapazes da aldeia.
CAÇADOR: Bom, então.
ROSALEEN: Mas não sabe que nunca deveria deixar o carreiro?
CAÇADOR: Só agora é que me pus no carreiro. Estava perfeitamente a salvo antes.
ROSALEEN: Não tem medo dos lobos?
CAÇADOR: Porque havia de ter?
(O caçador dá uma palmada na coronha da sua espingarda.)
ROSALEEN: Os lobos matam por prazer — tal como você.
(ROSALEEN dá um pontapé nos faisões mortos.)
CAÇADOR: Vou-lhe contar uma história de lobos, sobre a ternura dos lobos.
(Meio a contragosto, ela aproxima-se, atraída pela ideia duma história mesmo se está a
discutir com o contador.)
CAÇADOR: Há muitos anos, antes de você ser concebida ou de a sua vó ser concebida, havia
um casal que vivia...
(Panorama de montanhas áridas sob nuvens de tempestade.)
CAÇADOR: (Voz sobreposta.) ... no alto numa montanha.
(Na montanha, um casebre de pedra, roupas penduradas numa corda fora, fumo a sair
pela chaminé.)
CAÇADOR: (Voz sobreposta.) E a mulher estava perto da sua hora.
(Grito provindo do casebre.)
CAÇADOR: (Voz sobreposta.) Portanto o marido foi à aldeia buscar a MÃE da mulher para a
ajudar.
(Abre-se a porta do casebre, homem sai apressadamente. Corre pelo carreiro pedregoso
abaixo.
Trovão, relâmpagos, chuva torrencial. Água corre pelo carreiro pedregoso abaixo. O
homem é assaltado pelo vento e pela chuva. Põe um pé em falso, cai. Rebola um pouco. Tenta
levantar-se sob o vento e a chuva torrencial. Cai de frente e rebola, batendo aqui e ali, pelo
carreiro abaixo.)
(Desolada pobreza no interior do casebre. Galinhas aninham-se sob os alpendres, nas
traves do telhado. Uma mulher está deitada num monte de palha. A sua face está coberta de
suor. Grita. Está em trabalho de parto.
A porta do casebre abre de rompante, deixando entrar a tempestade, o vento e a chuva. A
forma prostrada da mulher é iluminada pelos relâmpagos. Ela grita de novo.
Uivo de lobos, decrescente.)
(Uma velha escala o carreiro de montanha. Já não há vento nem chuva — apenas sol
pálido sobre a erva encharcada.
Corvos levantam voo ao lado do caminho.
A velha vê os corvos e, apreensivamente, vai inspeccionar aquilo de que eles levantaram
voo. Encontra o cadáver dum homem, contusões na testa, deitado sob um arbusto ao lado do
caminho. Um ribeiro criado pela forte chuvada atravessa-o, as roupas dele estão
encharcadas e o seu cabelo flutua para aqui e para ali.
A velha põe a mão na testa dele, retira-a. Abana a cabeça tristemente.)
(A velha aproxima-se do casebre. Nenhum fumo sai da chaminé. A corda da roupa está
rebentada, as roupas pisadas na erva lamacenta. A erva e as roupas molhadas estão cobertas
de grandes pegadas de animais.
A velha inclina-se para olhar as pegadas. Endireita-se. A porta do casebre oscila sobre os
gonzos, para aqui e para ali. A velha faz uma pausa, como que para ganhar forças, antes de
penetrar no casebre.)
(Dentro do casebre reina a confusão. Toda a mobília existente, uma mesa, duas cadeiras,
está deitada ao chão. Um barril de farinha foi aberto. Galinhas mordiscadas jazem no chão,
assim como montes de penas. Pegadas lamacentas cobrem o chão, assim como pegadas que
espalharam pelo aposento a farinha entornada.
A palha na qual a mulher em trabalho de parto se deitava está espalhada mas o cadáver
da mulher jaz no chão, intocado.)
Velha: Então os lobos não te tocaram, pois não, minha muito querida. Mas devem ter
levado a criança... Pouparam os mortos mas levaram os vivos. Levaram quem vivesse.
(A velha ajoelha-se ao lado da filha, olha para o seu corpo intocado, fecha suavemente os
seus olhos fixos.
Então olha em torno do casebre.
Grande plano da cara estóica e imóvel da velha, na qual uma lágrima rola de apenas um
olho ao longo duma bochecha. Então ela começa a carpir.)
(Rosaleen senta-se com os braços em redor dos joelhos, totalmente absorta na história do
caçador.)
CAÇADOR: Passaram sete anos. E depois, num dia de Verão...
(A mesma montanha, mas desta vez sob sol brilhante. Há o tinir dum pequeno chocalho.
Uma cabra branca com um chocalho em volta do pescoço aparece aos saltos.
A cabra saltita em frente da velha, que a segue apoiando-se pesadamente num pau.
A cabra pára de repente, bale de terror. Uma loba e suas crias brincam entre os penedos
e as rochas na encosta da montanha.
Cena muito inocente e lírica. As crias rolam sobre e em volta da loba. Entre eles há outra
figurinha, não destrinçável à primeira vista.)
VELHA: Hei!
(A velha grita e brande o seu cajado. A loba levanta-se e foge, com as crias estridentes
correndo atrás dela.
A outra figura levanta-se sobre os joelhos mais lentamente, olha na direcção da velha.
Plano detalhado da criança/lobo. (Sugestão de que é a mesma criança que Rosaleen
quando era pequena.)
Criança/lobo, sobre os joelhos e antebraços, olhando curiosamente para a câmara.
Longos cabelos castanhos emaranhados com ouriços, folhas, ervas e flores de giesta
enredados. Ela é completamente castanha mas, de resto, nada a cobre excepto o cabelo.
Muito brava, muito linda — muito tímida, mas atraída por algo na velha.
Velha a alguns metros da criança/lobo.)
VELHA: Querida! Minha neta!
(A velha cambaleia em frente, largando o pau e abrindo os braços.)
VELHA: Vem a mim!
(A criança/lobo hesita. Dá alguns passos incertos em direcção à velha.
Uivos à distância.
A criança-lobo levanta-se e move-se rapidamente, correndo, curvada baixo, muito
graciosamente. Desaparece através da encosta ensolarada.)
VELHA: Volta!
(Grande concerto de uivos, triunfante.)
(A velha iça-se até à crista da colina. Vê a criança em baixo correndo em direcção a um
círculo de lobos que a esperam.
A velha cobre o rosto com as mãos. Quando emerge de novo, está a sorrir
pensativamente.)
CAÇADOR: ... E a velha soube que a sua neta estava salva com aqueles que a encontraram a
chorar ao lado da mãe e a salvaram da tempestade.
(Pausa.)
ROSALEEN: Mas esses eram lobos verdadeiros.
CAÇADOR: O que quer dizer?
(De repente, ele está pouco à vontade.)
ROSALEEN: Não sabe que os piores lobos são peludos no interior?
CAÇADOR: Contos da carochinha! Superstições camponesas! O quê! Uma jovem esperta
como você — uma moça bonita e inteligente como você — acredita em lobisomens?
(Ele ri.)
ROSALEEN: A minha avó disse —
CAÇADOR: Por acreditar em histórias da carochinha, você merece... ser... castigada —
(O caçador salta-lhe para cima, derrubando-a de costas, e começa a fazer-lhe cócegas.)
ROSALEEN: Pare — pare!
(Rosaleen torce-se de um lado para o outro, dando gargalhadas deliciadas.
O caçador senta-se em cima dela.)
CAÇADOR: Vou-te mostrar que não tenho medo dos lobos, Rosaleen. Vou fazer uma aposta
contigo.
Aposto contigo — aquilo que queiras! — que chego à casa da tua AVÓ antes de ti. Porque
vou usar a minha bússola para me orientar a corta-mato enquanto tu penas pelo árduo
caminho.
ROSALEEN: (Rindo.) Apostas o teu compasso?
CAÇADOR: Aposto... o que o teu coração desejar.
(Os olhos de Rosaleen cintilam.)
[...]
ROSALEEN: E se eu perder?
CAÇADOR: Podes dar-me... um beijo.
(Grande carga erótica entre eles.
Então Rosaleen põe-se de pé, carrega o cesto.)
CAÇADOR: Toma — fica com o meu chapéu como penhor de boa-vontade. Usa-o até
tornarmos a encontrar-nos.
(Ele enfia-lho na cabeça num ângulo estiloso.
O caçador mete a faca de trinchar no cesto e levanta-se. Tira-lhe o cesto da mão. Então,
com uma vénia elaborada, recua até aos arbustos, sempre sorrindo, até que desaparece.)
Rosaleen ouve os seus passos a afastarem-se. Então começa a andar, sorrindo para si
mesma, esquecendo-se do espelho, que fica entre as migalhas na relva atrás dela.)
(Rajadas de neve passam agora através da clareira. O espelho esquecido brilha no chão
nevado. Visto de perto, ainda retém a imagem da cara sorridente de Rosaleen. É
gradualmente coberto por grandes flocos de neve.)
(Está agora mais escuro. Põe-se vento. Rosaleen, sozinha, vagueia devagar, sorrindo.
Rajadas de neve. Rosaleen ignora-as.)
ROSALEEN: (Para si mesma:) E o que me importa que ele tenha levado o meu facalhão
consigo? Sei que o tornarei a ver em breve. Mas não demasiado depressa!
(Grande sorriso, vermelho.)
(É dia, mas escurece. Rajadas de neve. O caçador abre o portão do jardim. Os faisões que
carrega têm um ar mordiscado. Há sangue em torno da boca dele. Passa a macieira sem
folhas e as couves de Inverno, subindo o carreiro até à porta.
Ele mudou. O seu cabelo está comprido, menos cuidado. Ainda transporta o cesto de
Rosaleen, balançando-o descuidadamente. Os tacões das suas botas ressoam no carreiro.
Levanta a mão para bater à porta.
Há pêlos nos nós dos dedos. Bate.)
AVÓ: (Dentro de casa.) Quem está aí?
(Apressadamente, ele retira o colete e desabotoa a camisa com a mão peluda.)
CAÇADOR: (Tom de falsete.) É apenas a sua neta!
AVÓ: (Dentro de casa.) Levanta o trinco e entra!
(Ele põe a mão peluda no trinco.)
(A avó está sentada na cadeira perto do fogo, óculos de armadura de arame no seu nariz,
missal aberto em cima do joelho. Lume aceso. Luz de lamparina.
O trinco sobe. Os olhos da avó fixam-se na porta com uma expressão feliz. A sua pele de
raposa está pendurada num cabide atrás da porta.
A porta abre-se. A expressão feliz da avó muda para horror.)
AVÓ: Valha-nos Deus!
(O visitante reflecte-se perfeitamente em cada lente dos seus óculos de armação de arame.
Ele ainda não se tornou lobo mas já está aterrador — magro, feroz, selvagem, a cara
manchada de sangue, cabelos desalinhados.
Os seus olhos são já apenas discos vermelhos de luz. Sem pupila visível. Tem o cesto de
vitualhas de Rosaleen na mão e os faisões mortos em cima. Anda devagar em direcção à avó,
sendo ainda evidente algo da sua anterior cortesia.
A avó levanta-se, segurando o missal à sua frente como um escudo.)
AVÓ: Volta para o inferno, donde vieste.
(Os olhos da pele de raposa relampejam do cabide. A sua boca abre-se e um grito
estrangulado sai dela. O caçador silencia-a com um golpe da sua espingarda.)
CAÇADOR: Não venho do inferno. Venho da floresta.
(Deposita o cesto de Rosaleen sobre a mesa. O conteúdo cai para fora. Ele encosta a
espingarda num canto. Olha em volta, como se tivesse chegado para jantar.)
AVÓ: O que fizeste com a minha neta?
CAÇADOR: Nada que ela não quisesse.
(A avó atira-lhe o missal. Este atinge-o de raspão na testa e cai ao chão, espalhando
textos e flores secas. O caçador esfrega a testa ferida e fixa a avó.)
CAÇADOR: Não —
(Os olhos dele faíscam de raiva. A avó pega numa vassoura e assenta-lhe um sólido golpe.
Ele cai ao chão, uivando de dor. Os uivos são bastante lupinos. Vemos a cara dele começar a
transformar-se, a pele abrir-se revelando o lobo debaixo.
A avó grita horrorizada. Recua em direcção ao fogo. Vemos o caçador em transformação
reflectido nos óculos dela.
O caçador em transformação dá um uivo de dor longamente arrastado. A sua cabeça está
agora quase completamente lupina. A pele das mãos está a abrir-se, revelando as mãos de
lobo por baixo.
A avó pega num atiçador ao rubro que tira do fogo. Desfere um golpe. O caçador,
levantando-se, pára o atiçador com a sua mão de lobo.
Grande plano da mão lupina a agarrar o atiçador. Silvo de carne a queimar. O caçador
uiva de novo, agora com verdadeira dor. Desfere a sua outra mão com enorme força em
direcção à cabeça da avó.
A mão lupina atinge a cabeça da avó. Arranca-a do corpo.
A cabeça da AVÓ voa através do quarto, com a cara fixada numa expressão de indignação.
Parece-se muito com uma boneca de porcelana. Choca contra a parede de madeira e parte-
se em cacos.
Grande plano da mão do lobo deixando cair o atiçador. Este cai ao lado do corpo sem
cabeça da avó. Mas não há sangue e o corpo parece-se com uma boneca vitoriana
demasiado enfarpelada, decapitada.)
(A neve já cobriu a floresta com um véu branco. Uma lua de contos de fadas está a
levantar-se. Um lobo solitário uiva.
Rosaleen atravessa a paisagem branca, apertando mais o xaile vermelho em redor do
corpo. Trauteia uma canção para manter a coragem.
Quando chega ao portão da casa da avó, suspira de alívio. Abre o portão e vê a lua sobre
a macieira. A lua colora-se lentamente de vermelho, como que de sangue. O sangue pinga
para a mão dela e mancha a neve.
Rosaleen estremece e dirige-se à porta. Bate, fazendo ressoar sonoramente os nós dos
dedos.)
CAÇADOR: (Voz de falsete:) Quem está aí?
ROSALEEN: É só a sua neta!
CAÇADOR: (Dentro, voz de falsete:) Levanta o trinco e entra!
(ROSALEEN entra, trazendo consigo uma rajada de neve.
O CAÇADOR fica atrás da porta, escondido, no momento em que ela entra.)
ROSALEEN: Esta noite está um frio infernal lá fora, avó. Viu um jovem — ?
(Ela percebe que a AVÓ não está sentada na cadeira de baloiço como é usual. Compreende
que há algo de errado. Há um clique quando o caçador fecha a porta suavemente atrás dela.)
ROSALEEN: Avó?
(ROSALEEN vira-se. Vê o caçador.)
ROSALEEN: Então... chegaste antes de mim, tal como disseste que chegarias.
(O caçador sorri. Apesar da aparência selvagem, é patentemente a mesma pessoa.
Rosaleen está espantada mas meio reconfortada.)
CAÇADOR: Pois cheguei.
ROSALEEN: Onde está a minha avó?
CAÇADOR: Foi lá fora à pilha de lenha buscar mais toros.
ROSALEEN: Um verdadeiro cavalheiro nunca deixaria uma velhota ir buscar madeira numa
noite destas.
(Mas isto é uma tentativa de gracejo. Ela ainda está quase reconfortada e dirige-se à
lareira para se aquecer.
Mas, quando o faz, algo quebra sob os seus pés. Vê os óculos da avó.
Ela respira fundo. Vê um círculo de cacos de porcelana que a intriga. Agora tem medo,
mas é corajosa. Senta-se na cadeira de baloiço e olha para o fogo; vê um tufo de cabelos
cinzentos presos num tronco.
Enquanto ela olha, o tufo pega fogo e arde.)
ROSALEEN: Aquilo foi tudo o que deixaste dela? A tua espécie não consegue digerir cabelo,
pois não? Mesmo se os piores lobos são peludos por dentro.
(Ela tira o chapéu dele da cabeça e gira-o incessantemente nas mãos.)
CAÇADOR: O que sabes tu sobre a minha espécie?
ROSALEEN: A minha avó contou-me muita coisa.
(Com um súbito gesto deliberado, ela atira o chapéu para o fogo.
Ela vê a faca de trinchar entre os restos dos bolos de aveia. Inclina-se para a faca, os
olhos no caçador. Ele deixa-a estender a mão quase até ao cabo da faca antes de fazer
descer a sua mão sobre a dela, impedindo-a de apanhar a faca. Inclina-se sobre ela,
encurralando-a na cadeira de baloiço.)
CAÇADOR: Tens muito medo?
ROSALEEN: (Respirando findo:) Não me serviria de muito ter medo.
(Os olhos dele brilham muito vermelhos.)
ROSALEEN: (Respirando fundo:) Que grandes olhos tens!
CAÇADOR: São para te ver melhor!
ROSALEEN: Diz-se «ver para crer», mas eu nunca tal juraria.
(Ele liberta-lhe a mão. Quando ela tenta apoderar-se da faca, ele próprio apanha-a,
inclina-se para a frente e toca o seio dela com a ponta da faca, ainda coberta de doce de
morango.)
CAÇADOR: (Voz normal:) Deves estar completamente molhada. Não tiras o xaile?
(Ele mexe ao de leve no xaile com a faca. Ela tira o xaile. Por debaixo usa uma blusa
camponesa e saia. Segura o xaile molhado na mão.)
ROSALEEN: O que faço com ele?
CAÇADOR: Para o lume. Não vais precisar mais dele.
ROSALEEN: (Respira fundo.)
(Ela agacha-se em frente do fogo, remexendo o xaile com o atiçador para o inflamar. O
tecido ensopado escurece o lume e produz muito fumo. Isto faz o caçador tossir. A ponta da
faca vacila. Rosaleen volta-se para o caçador, com o atiçador pronto para lhe bater. Ele
torna a prender a mão dela e torce-lhe o pulso, obrigando-a a largar o atiçador.)
ROSALEEN: (Respirar furioso.)
(Rosaleen está furiosa.)
CAÇADOR: Agora a blusa.
(O caçador puxa a blusa com a ponta da faca.
Ela abre a blusa. Primeiro, esconde os seios. Depois, com um gesto de desafio, de repente
revela-lhos. É óbvio que, ao fazê-lo, ganha uma espécie de confiança.
O caçador examina-a. Agora ela cora furiosamente e torna a cobrir-se com a blusa.)
CAÇADOR: Tens que tirar todas as tuas roupas, minha querida.
ROSALEEN: Pensas então que elas dão cólicas?
(Um uivado terrível começa lá fora.)
ROSALEEN: Quem veio fazer-nos serenatas?
(ROSALEEN apura o ouvido para os uivos. Está a tentar ganhar tempo.)
CAÇADOR: São apenas os meus companheiros, querida. Eu adoro a companhia dos lobos.
Olha pela janela e hás-de vê-los.
(Rosaleen vai para a janela, levanta a cortina.)
(O jardim da cozinha está cheio de lobos, lobo após lobo, uns sentados, outros de pé ou
deslizando entre as fileiras de couves de Inverno.
Alguns sentam-se nos ramos da macieira, lá estão como se fossem fruta, excepto que
uivam.
Uivos, neve, vento.)
(Rosaleen deixa cair a cortina. Vê a caçadeira perto da janela, contra a parede.)
ROSALEEN: Está um frio de morte; pobres criaturas, não admira que uivem tanto.
CAÇADOR: O quê? Tens pena deles?
ROSALEEN: Sim. E tua, também.
(Ela pega na caçadeira e dá meia volta, apanhando-o de surpresa. Ameaça-o com a
caçadeira. Ele ri para dentro, suavemente.)
És uma moça ousada e sem medo, isso és! E agora, terminada a tua brincadeira, tens que
me devolver a minha espingarda, minha querida.
(Ele aproxima-se um pouco mais, rindo para consigo, ardiloso, atento.)
ROSALEEN: Pára!
(O caçador, ainda rindo para si, aproxima-se mais. Ela dispara um cano da caçadeira,
rebentando os cães de porcelana na chaminé.
Ele deixa cair a faca e baixa-se, gemendo e começando a uivar. Os lobos lá foram juntam-
se ao uivado.
Rosaleen mantém a caçadeira apontada a ele. Está amedrontada mas porta-se muito
corajosamente.)
ROSALEEN: És da nossa espécie ou da deles? Diz-me a verdade.
CAÇADOR: Nem de uma nem da outra. De ambas.
ROSALEEN: Onde vives? No nosso mundo ou no deles?
CAÇADOR: Vou e venho entre os dois. A minha casa é em nenhures.
ROSALEEN: Só és um homem quando te vestes com roupas, como a avó dizia?
(O CAÇADOR rosna. Retira a camisa, revelando um peito humano.)
ROSALEEN: (Irónica:) Que grandes braços tens!
CAÇADOR: (Sardónico:) São para melhor te abraçar!
(Sem camisa, ele salta para Rosaleen, mas esta bate-lhe na barriga com a coronha da
caçadeira, tirando-lhe a respiração. Ele recua, respirando pesadamente.)
ROSALEEN: Bem, talvez... afinal de contas, talvez... tu venceste a tua aposta, não foi,
cavalheiro, meu belo cavalheiro.
(Ela olha para ele com respeito e admiração irónica. Ele ainda é humano, mas está
magnificamente estranho — maçãs do rosto mais proeminentes; sobrancelhas salientes; mais
peludo; os olhos brilham-lhe mais. Os seus peitorais reluzem.)
ROSALEEN: Dizem que o Príncipe das Trevas é um cavalheiro e parece que têm razão... belo
cavalheiro...
CAÇADOR: Os cavalheiros cumprem sempre as suas promessas. As senhoras também
cumprem as suas?
ROSALEEN: O que queres dizer?
CAÇADOR: De facto ganhei a minha aposta, portanto deves-me —
ROSALEEN: — estou a lembrar-me —
CAÇADOR: — um beijo. Vais ser honrada e pagar-mo, ou não?
(Rosaleen olha para ele. Apreensiva, levanta primeiro a caçadeira quando ele se lhe
dirige, mas depois baixa-a. Estremece, fecha os olhos. Ele beija-a.
Rosaleen abre os olhos, escapa ao abraço. Agora a cara dele está coberta de batom.)
ROSALEEN: Meu Deus! Que grandes dentem tens!
CAÇADOR: São para te comer melhor...
ROSALEEN: Ah! Ah! Ah! És um traste tonto!
(Rindo, ela baixa-se rapidamente, apanha a camisa e colete dele do chão e atira-as ao
fogo. O fogo aumenta de brilho. O caçador tenta recuperar as suas roupas do fogo, mas só
consegue queimar-se. Cai para o chão num lamento. Rosaleen olha para ele, o fogo
brilhando na sua face.)
ROSALEEN: Não sou carne para ninguém, eu não!
(As mãos do caçador estão a arranhar a cara dele, como que para parar a transformação.
Ele uiva, lamentosamente desta vez.
ROSALEEN olha para ele com os olhos abertos de curiosidade. Ela fala devagar, como uma
criança repetindo uma lição.)
ROSALEEN: E agora tens que ser um lobo para todo o sempre. Nunca mais um homem. Nem
cavalheiro nem príncipe das trevas. Apenas um bom e honesto lobo...
(Agora a cabeça e o tronco do caçador são os dum lobo. Ele está agachado perto da
cama, uivando como se se lhe partisse o coração.)
ROSALEEN: O que é? Magoaste-te, não foi? Queimaste a tua pobre pata?
(Rosaleen aproxima-se lentamente dele, arrastando a caçadeira atrás de si.)
ROSALEEN: Eu não sabia que um lobo pode chorar...
(Ela senta-se na cama, toma a cabeça dele nos braços e envolve-a suavemente,
maternalmente.
ROSALEEN: Vá lá, vá lá, não vale a pena fazer tanto caso. Vamos lá, velho compincha, velho
cão. Bom rapaz, bom...
O vento levanta-se lá fora. Os uivos fazem-se ouvir mais distantes. O caçador / lobo
levanta a cabeça, como se ansiasse por se juntar aos seus companheiros.)
ROSALEEN: Estão a deixar-te, não é? Estás agora completamente só.
(Ela trauteia a sua melodia, como se fosse uma canção de embalar.
O uivar dos lobos cessa completamente, tal como o vento, devagar, gradualmente.)
[...]
(A transformação está agora completa. O caçador, agora completamente um lobo, jaz
dormindo nos braços da moça. Ela acaricia-lhe a cabeça.
Rosaleen boceja. Inclina-se para a frente e coloca o protector na lareira. A cabeça nos
seus braços roça contra a mesa. A lamparina arde.
Lá fora, o vento morreu completamente e os lobos foram-se todos. Tudo branco e
silencioso sob a lua.)
(Luz cinzenta da madrugada fora da casa da avó. O pai, com a caçadeira pronta, surge do
mato. Atrás dele vê-se a mãe e outros aldeãos.
Ele está a seguir as pegadas na neve. Vê que se dirigem para a casa da avó e começa a
correr.)
(O pai apressa-se no carreiro que leva à porta. Engatilha a espingarda. Ouve um rosnido
vindo de dentro. Levanta a mão lentamente para o trinco quando o rosnido se transforma
num rugido. Olha para a sua direita.
Crash! A janela parte-se sob o impacto do salto dum lobo. Os fragmentos de vidro voam
por todo o lado e a magnífica criatura voa para lá da macieira, salta sobre o muro e
desaparece na floresta.
O pai olha, estonteado. A mãe, agora ao lado dele, olha para onde o lobo desapareceu
com viva tristeza. Então estende a mão e levanta o trinco.)
(O trinco levanta-se e a porta abre-se. A mãe estaca, olhando para a desordem selvagem
no interior. Ela olha, sem palavras. Os seus olhos percorrem lentamente o quarto e acabam
na cama. Ouve um rosnido ronronante.
Há uma loba enrolada na colcha escocesa. A loba levanta a cabeça e olha directamente
para os olhos da mãe.
A mãe avança, como que hipnotizada pela loba. Em torno do pescoço desta está um fio
com uma cruz.
Os olhos da loba são belos e serenos. Então estreitam-se, como que sentindo perigo.
Ouve-se o clique duma caçadeira.
O pai está agora atrás da mãe, com a caçadeira levantada. A mãe vira-se instintivamente.
Grita.)
MÃE: Não — não —
(Gira os braços e atinge o cano da caçadeira, desviando-o. A caçadeira explode, fazendo
um buraco no tecto de madeira. Neve cai dentro de casa.
A loba geme, aterrorizada, depois salta num voo magnífico pela janela.
A mãe corre para a janela despedaçada. Olha para fora angustiosamente.)
(A loba galopa pela floresta, em imponente câmara lenta, como se estivesse a correr pelo
tempo.)3
[...]

3
Excertos do guião do filme The Company of Wolves (1984), in Angela Carter, The Curious Room:
Collected Dramatic Works. Edited by Mark Bell. London: Vintage / Random House, 1997. 191–244.
O Lobisomem
É um país do Norte; lá têm tempo e corações frios.
Frio; tempestade; animais selvagens na floresta. É uma vida dura. As casas são feitas de
toros e são escuras e fumarentas por dentro. Lá dentro encontrar-se-á uma imagem tosca da
Virgem atrás duma vela pingona, o presunto dum porco pendurado a curar, uma fiada de
cogumelos a secar. Uma cama, um banco, uma mesa. Vidas rudes, breves, pobres.
Para esses habitantes das florestas nas terras altas, o Diabo é tão real como você ou eu.
Mais ainda; a nós não nos viram nem sabem que existimos, mas ao Diabo entrevêem
frequentemente nos cemitérios, essas cidades dos mortos desoladas e comoventes onde as
campas são marcadas com retratos dos defuntos em estilo naïf e não há flores para as adornar;
lá não crescem flores, pelo que se usa pequenas oferendas votivas, pequenas broas, por vezes
um bolo que os ursos, irrompendo da orla da floresta, levam consigo. À meia-noite,
especialmente na noite de São Silvestre, o Diabo organiza piqueniques nos cemitérios e
convida as bruxas; então desenterram cadáveres frescos e comem-nos. Qualquer pessoa lhe
dirá isso.
Réstias de alho nas portas mantêm os vampiros à distância. Uma criança com olhos azuis
nascida com os pés para a frente na noite de São João verá o oculto. Quando descobrem uma
bruxa — alguma velhota cujos queijos curam bem quando os das vizinhas se estragam, outra
velhota cujo gato preto, ó, sinistro! a segue por todo o lado, eles despem a megera, procuram
as suas marcas, o mamilo excedente em que o seu familiar mama. Depressa o encontram.
Então lapidam-na até à morte.
Inverno e tempo frio.
Vai e visita a tua avó, que tem estado doente. Leva-lhe os bolos de aveia que cozi para ela
na pedra da lareira, assim como um potinho de manteiga.
A boa criança faz como a mãe lhe pede — caminhada de três quilómetros pela floresta; não
saias do caminho por causa dos ursos, do javali, dos lobos esfaimados. Toma, leva a faca de
caça do teu pai; sabes usá-la.
A criança tinha um casaco sarnento de pele de ovelha para se proteger do frio e conhecia a
floresta demasiado bem para a temer, mas tinha que estar sempre alerta. Quando ouviu o uivo
enregelante dum lobo, deixou cair as suas prendas, pegou na faca e virou-se para a fera.
Era enorme, com olhos vermelhos e salivantes fauces cinzentas; qualquer outra que não
fosse filha de montanheses teria morrido de medo perante esta visão. A fera buscou-lhe a
garganta, como os lobos fazem, mas ela desferiu um largo golpe com a faca do pai e cortou-
lhe a pata dianteira direita.
O lobo soltou um som estrangulado, quase um gemido, quando viu o que lhe tinha
sucedido: os lobos são menos corajosos do que parecem. Foi-se embora trotando
desconsoladamente por entre as árvores o melhor que podia sobre três patas, deixando um
rasto de sangue. A criança limpou a lâmina da faca ao avental, envolveu a pata do lobo no
pano em que a mãe tinha embrulhado os bolos de aveia e seguiu para casa da avó. Em breve
começou a nevar tão pesadamente que o carreiro e quaisquer pegadas, rasto ou vestígios que
pudesse ter ficaram ocultados.
Descobriu que a avó estava tão doente que tinha caído de cama e mergulhado num sono
irrequieto, gemendo e tremendo tanto que a criança adivinhou que ela estava febril. Tocou-lhe
na testa, que queimava. Puxou do cesto o pano para fazer à velhota uma compressa fria; a pata
do lobo caiu ao chão.
Mas não era já uma pata de lobo. Era uma mão cortada no pulso, uma mão calejada pelo
trabalho e engelhada pela velhice. Havia uma aliança no terceiro dedo e uma verruga no
indicador. Pela verruga, ela reconheceu a mão da avó.
Puxou o lençol para trás; com isso a avó acordou e começou a debater-se, berrando e
guinchando como uma possessa. Mas a criança era forte e estava armada com a faca de caça
do pai; conseguiu dominar a avó o tempo suficiente para ver a causa da sua febre. Havia um
coto sangrento, já cheio de pus, em lugar da mão.
A criança benzeu-se e gritou tão alto que os vizinhos ouviram-na e acorreram.
Reconheceram imediatamente na verruga da mão um mamilo de bruxa; conduziram a velhota
tal como estava para a neve, com paus, batendo a sua velha carcaça até à orla da floresta e
depois crivaram-na de pedras até ela cair morta.
Doravante a criança morou na casa da sua avó; prosperou.4

4
Angela Carter, The Bloody Chamber. London: Vintage, 1995. 108–10.
Lobi-Alice
Tivesse esta menina andrajosa com orelhas sujas podido falar como nós, teria chamado a si
mesma loba; mas não pode falar, embora uive por estar solitária — no entanto «uivar» não é a
palavra certa, já que ela é suficientemente jovem para fazer o barulho que as crias fazem,
borbulhante, delicioso, como o duma frigideira com gordura ao lume. Por vezes as orelhas
apuradas dos seus parentes adoptivos ouvem-na através do golfo irreparável da ausência;
respondem-lhe da longínqua floresta de pinheiros ou da orla nua da montanha. O seu
contraponto atravessa, entrecruzado, o céu nocturno; tentam falar com ela mas não podem,
porque ela não percebe a sua linguagem embora a saiba usar, já que ela não é um lobo mas foi
criada por eles.
A sua língua ofegante pende; os lábios vermelhos são espessos e frescos. As pernas são
longas, magras e musculadas. Os cotovelos, mãos e joelhos são espessamente calejados dado
que ela corre sempre de gatas. Nunca anda; trota ou galopa. O seu ritmo não é o nosso ritmo.
Aparência de bípede, olfacção de quadrúpede. O seu longo nariz está sempre fremente,
captando qualquer cheiro que encontre. Com este útil instrumento, investiga demoradamente
tudo aquilo que entrevê. Pode captar tanto mais do mundo do que nós, através dos filtros
finos, peludos, sensíveis das suas narinas, que a qualidade medíocre da sua visão não a
preocupa. O seu nariz é mais apurado de noite que os nossos olhos de dia; por isso é a noite
que ela prefere, quando a fria luz reflectida da lua não faz os seus olhos lacrimejar e liberta as
várias fragrâncias dos bosques onde ela vagueia sempre que pode. Mas os lobos mantêm-se
bem longe das espingardas dos camponeses e ela já não os encontra.
Ombros largos, braços longos, ela dorme sucintamente enrolada sobre si própria, como se
estivesse a proteger a espinha com a cauda. Nada nela é humano excepto que ela não é um
lobo; é como se a pelagem que ela pensava que tinha houvesse penetrado na sua pele e nela
ficado, embora não exista. Como as feras, ela vive sem futuro. Vive apenas no presente, uma
fuga do contínuo, um mundo de imediatez sensorial tão sem esperança como é sem desespero.
Quando a encontraram no covil de lobo, ao lado do cadáver crivado de balas da sua mãe
adoptiva, não era mais que um pequeno fragmento tão enleado no seu próprio pêlo castanho
que a princípio pensaram ser ela uma cria, não uma criança; tentou morder os seus salvadores
com os seus caninos afilados até que a ataram à força. Passou os seus primeiros dias connosco
agachada e completamente imóvel, olhando para a parede caiada da sua cela no convento para
onde a levaram. As freiras deitaram-lhe água para cima, mexeram-lhe com paus para a
espevitarem. Então ela arrancava pão das suas mãos e corria para o seu canto comê-lo de
costas viradas para elas; foi um grande dia para as noviças quando ela aprendeu a sentar-se
sobre as pernas para pedinchar uma côdea.
Descobriram que ela não era intratável se a tratassem com alguma bondade. Aprendeu a
reconhecer o seu próprio prato; depois, a beber dum copo. Descobriram que lhe podiam
ensinar uma quantidade de habilidades fáceis; mas ela não sentia o frio e por isso demorou
muito até lhe conseguirem enfiar uma vestimenta pela cabeça para lhe cobrir a nudez
provocante. Mas ela sempre se mostrou selvagem, impaciente e de temperamento caprichoso;
quando a Madre Superior tentou ensiná-la a dar graças pela sua salvação dos lobos, ela
arqueou o dorso, bateu o pé, retirou-se para um canto distante da capela, agachou-se, tremeu,
urinou, defecou — reverteu inteiramente, ou assim pareceu, ao seu estado natural.
Consequentemente, sem um rebate de consciência, esta criança extraordinária e embaraçante
foi despachada para a casa destituída e profana do Duque.
Depositada no castelo, ela inalou e farejou e cheirou apenas um fedor a carne, sem o menor
indício de enxofre nem de familiaridade. Instalou-se de cócoras com aquele suspiro canino
que é apenas uma expulsão de ar e não indica alívio ou resignação.
O Duque é ressequido como papel velho; a sua pele seca restolha contra os lençóis da cama
quando ele os atira para trás para tirar as finas pernas incrustadas de velhas cicatrizes onde
espinhos lhe haviam crivado a pele. Vive numa mansão escura e melancólica, sozinho
excepto no que toca a esta criança que tem tão pouco em comum com o resto da humanidade
como ele próprio tem. O seu quarto é de barro pintado, enferrujado com uma demão de dor
como o interior dum talho ibérico, mas no que lhe toca, nada o pode magoar desde que deixou
de projectar a imagem num espelho.
Dorme numa cama de baço ferro forjado preto até que a lua, essa governanta das
transformações e capataz dos sonâmbulos, espeta um dedo imperativo através da janela
estreita e atinge a sua face; então os olhos abrem-se-lhe.
De noite, esses enormes e inconsoláveis olhos vorazes dele são comidos por pupilas
inchadas e brilhantes. Os olhos dele só vêem apetite. Estes olhos abrem-se para devorar o
mundo no qual ele não encontra um único reflexo de si mesmo; passou através do espelho e
agora, doravante, vive como que do outro lado das coisas.
Leite cintilante de luz da lua derramada sobre erva tocada pela geada; numa tal noite, em
tempo aluado, metamórfico, dizem que se pode facilmente encontrá-lo, se se for
suficientemente imprudente para se sair tarde, agitando-se ao longo do muro do cemitério
com um meio torso suculento atravessado nas costas. A luz prateada branqueia os campos e
branqueia-os ainda, até que tudo brilha e ele deixa pegadas zoomórficas na geada vetusta
quando corre uivando em torno das campas nas suas festas lupinas.
Pela hora vermelha do pôr-do-sol precoce do coração do Inverno, todas as portas de milhas
em redor estão trancadas. As vacas mugem irritadamente no curral quando ele passa, os cães a
ganir afundam o focinho nas patas. Ele carrega nos ombros frágeis uma estranha carga de
medo; puseram-no no papel de comedor de cadáveres, o ladrão de corpos que invade a
derradeira privacidade dos mortos. É branco como a lepra, com unhas afiadas; nada o detém.
Se se encher um cadáver com alho, ele só salivará com a delícia: cadáver provençal. Usa a
cruz sagrada como poste para se coçar e agacha-se frente à pia para beber água benta.
Ela dorme nas cinzas macias e quentes da lareira; camas são armadilhas, ela não se mete
numa. Leva a cabo as poucas tarefas miúdas para as quais as freiras a treinaram: varre os
cabelos, vértebras e falanges espalhados pelo quarto dele para um cesto de papéis, faz a cama
dele ao pôr-do-sol — quando ele se levanta e as feras cinzentas lá fora uivam — sabendo que
a transformação dele é a sua própria paródia. Os lobos, impiedosos para com as suas vítimas,
são ternos para com os seus semelhantes; tivesse o Duque sido um lobo, tê-lo-iam expulso
violentamente da matilha, ele teria tido que trotar milhas atrás deles, rastejando em submissão
sobre a barriga até à presa só quando os restantes tivessem comido e estivessem a dormir,
para roer ossos já bem roídos e chupar a pele. No entanto, só a sua criada de cozinha — a qual
não é loba nem mulher, amamentada que foi pelos lobos nas terras altas onde a sua mãe a deu
à luz e deixou — não sabe nada melhor do que fazer as tarefas domésticas por ele.
Ela cresceu com feras. Se se pudesse transportá-la, na sua imundície, andrajos e desordem
selvagem, para o Éden primordial onde Eva e um Adão grunhidor se acocoram entre
margaridas, catando-se mutuamente as pelagens, então ela poderia revelar ser a criança sábia
que os conduz a todos, ser o seu silêncio e a sua linguagem uivante uma autêntica linguagem
da natureza. Num mundo de bichos e flores falantes, ela seria o botão de carne na boca do rei
leão: mas como pode a maçã mordida regenerar a sua cicatriz?
Mutilação é o seu destino; embora por vezes ela emita ruídos involuntários, como se as
cordas sem uso na sua garganta fossem uma harpa de vento que se movesse com os impulsos
aleatórios do ar — o seu sussurro, mais obscuro que as vozes dos mudos.
Profanações familiares no cemitério da aldeia. O caixão havia sido aberto com a
sofreguidão com que uma criança desembrulha um presente na manhã de Natal; do seu
conteúdo nenhum vestígio podia ser encontrado, à excepção dum farrapo do véu nupcial em
que o cadáver tinha sido embrulhado, o qual estava preso, flutuando ao vento, no mato junto
ao portão do cemitério, de modo que era sabido para onde ele o tinha levado: na direcção do
seu macabro castelo.
No lapso de tempo, o transe de pertencer àquele local exilado, esta moça cresceu entre
coisas que não podia nomear nem aperceber. Como pensou ela, como sentiu ela, esta
forasteira perene com os seus pensamentos peludos e a sua sensibilidade primaz existindo
enquanto fluxo de impressões fugazes; não há palavras para descrever como ela lidou com o
abismo entre os seus sonhos, essas vigílias estranhas como sonos. Os lobos tinham tratado
dela porque sabiam que era uma loba imperfeita; nós abrigávamo-la em isolamento animal
por medo da sua imperfeição, que nos mostrava o que nós poderíamos ter sido. Assim o
tempo passava, embora ela mal se desse conta. Então começou a sangrar.
O primeiro sangue espantou-a. Não sabia o seu significado e os primeiros germes de
dedução que alguma vez já sentira em si foram dirigidos à possível causa. A lua tinha estado a
brilhar na cozinha quando ela acordou a sentir o escorrimento entre as pernas e pareceu-lhe
que um lobo que talvez gostasse dela — como os lobos gostavam — e que vivesse, talvez, na
lua? devia ter mordiscado o seu sexo enquanto ela dormia, devia tê-la sujeitado a uma série de
dentadinhas afectuosas demasiado suaves para a acordarem mas suficientemente agudas para
lhe romperem a pele. A forma desta teoria permanecia difusa, mas a partir dela uma espécie
de raciocínio selvagem tomou raiz, como se de uma semente caída no seu cérebro da pata
dum pássaro que passasse.
O fluxo continuou durante alguns dias, que lhe pareceram um tempo interminável. Ela
ainda não tinha noção directa do passado ou do futuro ou da duração, apenas do momento
imediato desprovido de dimensão. De noite, vagueava pela casa à procura de trapos com que
absorver o sangue; tinha aprendido suficiente higiene elementar no convento para saber como
enterrar o seu excremento e limpar-se dos seus eflúvios corporais; embora as freiras não
tivessem podido informá-la sobre como agir neste caso, não era sofisticação mas a vergonha
que a levava a fazê-lo.
Ela encontrou toalhas, lençóis e fronhas em armários que não tinham sido abertos desde
que o Duque viera guinchando ao mundo com a dentição completa para arrancar o mamilo à
mãe e chorar. Encontrou vestidos de baile outrora usados em guarda-roupas cheios de teias de
aranha e, empilhados aos cantos do seu quarto sangrento, mortalhas, camisas de noite e
roupas funerárias que tinham embrulhado itens dos menus do Duque. Ela rasgou tiras dos
tecidos mais absorventes para toscamente se colocar fraldas. No decurso dum desses
vagueares, embateu contra o espelho sobre cuja superfície o Duque passava como vento sobre
gelo.
Primeiro ela tentou cheirar o seu próprio reflexo; depois, farejando-o industriosamente,
depressa percebeu que a imagem não tinha cheiro. Feriu o focinho no vidro frio e partiu as
garras tentando pelejar com essa desconhecida. Viu, com irritação e depois divertimento,
como ela imitava cada um dos seus gestos quando levantava a pata dianteira para se coçar ou
arrastava o rabo sobre o tapete poeirento para se livrar dum ligeiro desconforto nos quartos
traseiros. Esfregou a cabeça contra a cara reflectida, para mostrar o seu sentimento amigável;
sentiu uma superfície fria, sólida e imóvel entre si própria e ela — algum tipo, possivelmente,
de jaula invisível? Apesar desta barreira, ela estava suficientemente solitária para pedir a esta
criatura, descobrindo os dentes e sorrindo, que tentasse brincar com ela. Imediatamente
recebeu um convite recíproco. Regozijou; começou a rodar sobre si própria, latindo
exultantemente. Mas ao afastar-se do espelho parou no meio do seu êxtase, interdita, por ver
como a sua nova amiga diminuía de tamanho.
A luz da lua vertia detrás duma nuvem para o quarto imóvel do Duque e ela viu quão
pálida era esta loba / não-loba que brincava com ela. A lua e os espelhos têm pelo menos isto
em comum: não se consegue ver para lá deles. Branca e iluminada pela lua, Lobi-Alice olhou
para si própria no espelho e interrogou-se sobre se seria este o animal que viera mordê-la de
noite. Então os seus ouvidos sensíveis captaram o som de passos no hall; trotando
imediatamente de volta à sua cozinha, encontrou o duque com a perna dum homem sobre o
ombro. As unhas dos pés ressoaram contra os degraus da escada quando ela passou
imperturbavelmente por ele, ela, a serena, inviolável na sua inocência absoluta e abjecta.
Em breve o fluxo parou. Ela esqueceu-o. A lua desapareceu; mas, pouco a pouco,
reapareceu. Quando a lua visitou de novo a cozinha com o seu pleno brilho, Lobi-Alice
surpreendeu-se com estar de novo a sangrar e assim as coisas continuaram, com uma
pontualidade que transformou o seu vago domínio do tempo. Aprendeu a esperar estes
derrames, a preparar farrapos para lhes acudir e, depois, a enterrar cuidadosamente as coisas
sujas. Com o hábito, a sequência afirmou-se e então ela percebeu perfeitamente o mecanismo
cíclico do relógio, mesmo estando todos os relógios banidos do covil onde ela e o Duque
habitavam as suas solidões separadas, de modo que se poderia dizer que ela descobriu a
própria acção do tempo através deste ciclo reincidente.
Quando ela se enrolava nas cinzas, a cor, textura e calor destas trouxe o ventre da mãe
adoptiva de volta do passado e imprimiu-a na sua carne; a sua primeira memória consciente,
tão dolorosa quanto a primeira vez que as freiras lhe escovaram o cabelo. Uivou um pouco,
numa trajectória mais firme e aprofundada, para obter a consolação inescrutável da resposta
dos lobos, porque agora o mundo em seu redor assumia forma. Ela apercebia uma diferença
essencial entre si própria e o seu ambiente que, poder-se-ia dizer, não conseguia ainda apontar
a dedo — é só que agora as árvores e a erva dos campos lá fora já não pareciam a emanação
do seu nariz inquisitivo e das orelhas erectas, no entanto auto-suficientes, mas antes uma
espécie de pano de fundo para ela, que esperava as suas chegadas para adquirir sentido. Ela
viu-se a si própria sobre tal pano de fundo e os seus olhos, com a sua claridade sombria,
tomaram um velado aspecto introspectivo.
Passava agora horas a examinar a nova pele nascida, pelo menos assim lhe parecia, do seu
sangrar. Lambia a sua penugem macia com a língua comprida e penteava os cabelos com os
dedos. Examinava os seus novos seios com curiosidade; estas excrescências brancas
lembravam-lhe muito aquelas bolas de fibras, nascidas de noite, que ela encontrara por vezes
nas suas excursões nocturnas pelos bosques, uma aparição natural mas desconcertante; mas
então, para seu espanto, descobriu um pequeno diadema de pêlos frescos crescendo entre as
pernas. Mostrou-o à sua companheira do espelho, que a serenou mostrando-lhe que a
partilhava.
O Duque amaldiçoado assombra o cemitério; acha-se ao mesmo tempo menos e mais que
um homem, como se as sua alteridade obscena fosse um sinal de graça. Durante o dia, dorme.
O espelho reflecte fielmente a cama mas nunca a sua magra forma dentro dos cobertores
desordenados.
Por vezes, nas noites brancas em que era deixada sozinha em casa, ela tirava dos armários
os vestidos de baile da avó dele e rolava sobre veludo suave e laço abrasivo porque tal
deleitava a sua pele adolescente. A sua íntima no espelho envolvia-se nas mesmas velhas
roupas, enrugando o nariz deleitadamente perante os cheiros antigos mas ainda poderosos de
almíscar e algália que emanavam de mangas e corpetes. Esta fidelidade habitual e, finalmente,
maçadora a cada movimento seu finalmente acordou-a para a possibilidade de que a sua
companheira não fosse, na realidade, mais do que uma variedade particularmente engenhosa
da sombra que ela projectava sobre vidro iluminado pelo sol. Não tinham ela e o resto da
ninhada lutado e brincado com as suas sombras há muito tempo? Ela espetou o seu nariz ágil
atrás do espelho; só lá encontrou poeira, uma aranha plantada na sua teia e um monte de
farrapos. Escorreu-lhe alguma humidade dos cantos dos olhos, mas a sua relação com o
espelho era muito mais íntima agora que ela sabia que se via dentro dele.
Ela virou e revirou demoradamente o vestido que o Duque tinha enfiado atrás do espelho.
Quando a poeira se dissipou, ela inseriu experimentalmente as suas patas dianteiras nas
mangas. Embora o vestido estivesse rasgado e amarrotado, era tão branco e tinha uma textura
tão sinuosa que ela pensou, antes de o pôr, que tinha que retirar o seu casaco de cinzas com a
água da bomba no pátio, que ela sabia manipular com a sua habilidosa pata dianteira. Ao
espelho, viu como este vestido branco a fazia brilhar.
Embora não pudesse correr tão depressa sobre duas pernas e com uma combinação vestida,
trotou para fora de casa com o vestido novo para investigar as sebes odoríferas de Outubro,
como uma debutante do castelo, radiante consigo própria mas ainda, aqui e ali, cantando aos
lobos com uma espécie de triunfo melancólico, porque ela agora sabia como usar roupas e
tinha portanto vestido o sinal visível da sua diferença em relação a eles.
As pegadas dela na terra molhada são lindas e ameaçadoras como as que Sexta-Feira
deixou.
O jovem marido da noiva morta passou um longo tempo a planear a sua vingança. Encheu
a igreja com um arsenal de campainhas, livros e velas; uma bateria de balas de prata;
trouxeram um recipiente com 45 litros de água benta numa carroça da cidade, onde tinha sido
benzido pelo Arcebispo em pessoa, para afogar o Duque se as balas nele resvalassem.
Juntaram-se na igreja para cantar uma litania e esperar aquele que visitaria com as primeiras
mortes do Inverno.
Agora ela sai mais à noite; a paisagem articula-se em seu redor, ela informa-a com a sua
presença. Ela é a sua significação.
Pareceu-lhe que a congregação na igreja estava a tentar, sem sucesso, imitar o coro dos
lobos. Prestou-lhes a ajuda da sua própria voz treinada durante um bocado, balançando-se
contemplativamente sobre as ancas à porta do cemitério; depois as suas narinas entortaram-se
para captar o fedor pútrido dos mortos, o qual lhe disse que o seu coabitante estava perto;
levantando a cabeça, quem é que os seus olhos novos e penetrantes espiaram senão o senhor
do castelo das teias de aranha, aprontando-se para os seus rituais canibais?
E se as narinas dela se inflamam suspeitosamente ao fedor sufocante do incenso e as dele
não, tal deve-se a ela ser muito mais perceptiva que ele. Consequentemente ela corre, corre!
quando ouve o estalido das balas, porque estas mataram a sua mãe adoptiva. Da mesma
forma, com o mesmíssimo movimento cadenciado, encharcado com água benta, ele corre
também até que o jovem viúvo dispara a bala de prata que morde o seu ombro e arranca
metade da sua pelagem fictícia, pelo que ele tem que levantar-se como qualquer bípede
cornudo e seguir a coxear em frente tão bem quanto possível.
Quando eles viram a noiva branca saltar das campas e disparar em direcção ao castelo com
o lobisomem tropeçando atrás, os camponeses pensaram que a mais querida vítima do Duque
tinha voltado para tomar o caso em mãos. Fugiram, a gritar, da presença da fantástica
vingança que se desencadeava sobre ele.
Pobre coisa ferida... apanhado a meio caminho entre tão estranhos estados, uma
transformação abortada, um mistério incompleto, agora ele torce-se na sua cama preta como
num túmulo miceneano, uiva como um lobo com o pé numa armadilha ou uma mulher em
trabalho de parto — e sangra.
Primeiro ela teve medo quando ouviu o som da dor, não viesse este a magoá-la tal como
tinha feito antes. Rondou em torno da cama, rosnando, farejando a ferida dele que não se
parece com a sua própria ferida. Então teve piedade, como a sua destituída mãe cinzenta
tivera. Saltou para cima da cama a fim de lamber, sem hesitação e sem repugnância, com uma
gravidade alerta e terna, o sangue e a terra das faces e testa dele.
A lucidez do luar acendeu o espelho encostado contra a parede vermelha; o vidro racional,
senhor do visível, registou imparcialmente a moça apaziguante.
À medida que ela continuava as suas ministrações, este vidro, com infinita lentidão, cedeu
à força reflexiva da sua própria construção material. Pouco a pouco apareceu dentro dele, tal
imagem emergente em papel fotográfico, primeiro uma rede amorfa de arabescos, a presa
apanhada na sua própria rede, depois em esboço mais firme mas ainda sombrio e, finalmente,
tão vívida como a própria vida — como se trazida à luz pela língua macia, húmida e delicada
dela — a cara do Duque.5

5
Angela Carter, The Bloody Chamber. London: Vintage, 1995. 119–26.

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