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Tradução de Maria João Bento

Título original: Rowan of the Bukshah

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
ÍNDICE

1 É Uma Maldição!
2 A Decisão
3 Sheba
4 Uma para Sonhar
5 Sustos
6 Descobertas Macabras
7 Terrores Noturnos
8 Enfrentando a Verdade
9 A Arca Esculpida
10 Quatro Almas
11 Os Cegos São Sábios
12 A Fonte
13 A Subida
14 A Caverna
15 Sombras
16 O Bosque
17 O Desagradável Torna Belo
18 Antes do Amanhecer
19 Decisões
20 O Trovão Dirigido à Terra
21 A Escada
22 A Fome
23 Vida e Morte
24 Encontros
1
É UMA MALDIÇÃO!

A aldeia de Rin acotovelava-se, gelada, num mundo


branco de silêncio. A neve espessa cobria o vale.
A Montanha recortava-se contra o céu cinzento
como uma enorme escultura encimada por nuvens.
Nunca tinha havido um Inverno assim. A neve
nunca tinha caído com tanta intensidade. Nunca tinha
feito tanto frio.
E este nunca tinha durado tanto. De acordo com o
calendário, era Primavera — altura para plantar, para as
flores desabrocharem, para as abelhas, e para os pássaros
fazerem os seus ninhos. Mas o ar ainda estava gelado, os
campos e os jardins permaneciam soterrados, e a neve
fazia vergar os ramos despidos das árvores do pomar de
Jonn Forte.
Foi convocada uma reunião mas estava demasiado
frio para os habitantes se reunirem na praça da aldeia. Em
vez disso, eles apinharam-se na casa dos livros, a tremer
de frio e a murmurar no meio do cheiro das lamparinas,
dos pergaminhos e do papel antigo. Sombras profundas
tremeluziam nos rostos preocupados, mãos gesticulavam.
As lamparinas estavam no mínimo, pois o azeite, tal como
tudo o mais, era escasso.
Rowan, que estava no campo dos bukshah quando o
sino tocou a convocar para a reunião, foi o último a che-
gar.
Durante algum tempo, ele ficou na porta, a bater
com os pés para tirar a neve das botas. Apesar do frio, ele
não estava com pressa em entrar. Ele sabia o que a velha
Lann, a chefe da aldeia, ia dizer ao povo, e ele já tinha de-
cidido o que ia fazer a esse respeito. Por enquanto, a sua
mente ainda estava com os bukshah.
Os animais enormes e meigos de que ele tomava
conta tinham voltado a fugir durante a noite. Eles tenta-
vam fazê-lo todos os Invernos mas, este ano, tinham saído
várias vezes do campo.
Desta vez, eles tinham passado pelo moinho silen-
cioso, cuja roda enorme estava presa no gelo do riacho, e
foram andando até terem chegado quase ao sopé da
Montanha. Ele levara horas a convencê-los a voltarem
para o seu campo — horas, e as últimas mãos-cheias de
aveia do armazém.
Quando se souber que a aveia desapareceu, vai ha-
ver problemas, pensou Rowan com ironia. Mas que mais
podia ele fazer? Permitir que os bukshah continuassem a
vaguear e acabassem por morrer?
Ele não culpava os animais por terem derrubado a
cerca. Eles estavam com fome. Os fardos de feno com
que se alimentavam no Inverno estavam quase no fim e,
numa tentativa desesperada de tentar fazer com que a co-
mida durasse, Rowan tinha-se visto obrigado a cortar a
sua ração diária para metade. Alguns dos membros mais
velhos e mais débeis da manada já tinham fraquejado e
morrido.
Mas Rowan sabia que, se havia falta de comida no
vale, fora deste não havia absolutamente nenhuma comi-
da. Com exceção dos locais em que os penhascos ín-
gremes, rochosos, pareciam feridas brutais na brancura
cintilante da Montanha, a terra estava toda coberta de ne-
ve, até onde avista conseguia alcançar.
— Vocês têm que tentar não se afastar, Estrela —
dissera Rowan à sua bukshah preferida, a líder da manada,
quando os animais voltaram finalmente para o seu campo.
— Tem que ficar aqui, onde eu posso tomar conta de vo-
cês.
A Estrela virara a enorme cabeça para olhar para ele
e fez um ruído profundo com a garganta. Havia uma ex-
pressão de inquietação nos seus olhinhos escuros. Ela
queria agradar a Rowan e obedecer-lhe. Mas todos os seus
instintos lhe diziam que ele estava enganado.
Compreendendo vagamente o que ela lhe queria di-
zer, Rowan fizera-lhe carícias, sentindo, com tristeza, as
costelas salientes debaixo do pêlo comprido.
— Já falta pouco para a Primavera, Estrela — mur-
murara ele. — A neve vai derreter e vai haver erva para
comeres. É só mais um pouco...
Mas quanto tempo mais? pensou Rowan. Quanto
tempo mais poderia aquilo durar?
Cerrando os dentes, ele abriu a porta e entrou na
sala apinhada. Shaaran e Norris, os dois jovens que ele
resgatara da terra inimiga dos Zebak, colocaram-se rapida-
mente ao seu lado. Os olhos meigos de Shaaran estavam
ansiosos, mas o rosto do seu irmão manifestava uma ávida
curiosidade.
— Onde é que se escondeu, Rowan? — murmurou
Norris. — Há dias que não te vemos! — Ele sorriu e o-
lhou para a irmã com ar maroto. — A Shaaran pensa que
anda a evitar-nos. Ela tem medo que tivéssemos feito
qualquer coisa que te tivesse ofendido. Por favor diga-lhe
que não é nada disso, para ela ficar mais tranquila.
— Norris! — silvou Shaaran, ficando vermelha
como um tomate.
Rowan obrigou-se a si próprio a sorrir.
— Claro que não me ofenderam — murmurou ele.
Pelo menos isso podia ele dizer com toda a verdade, em-
bora não pudesse negar o resto. Como é que ele podia ter
estado com os seus amigos sem lhes dizer o que ia acon-
tecer? Por isso, ele tinha-os evitado.
Mas agora eles estavam prestes a ouvir tudo. Doí-
a-lhe o coração só de pensar no desalento deles.
Norris gostaria de ter insistido com ele mas, nesse
momento, houve movimento na parte da frente da sala.
Lann, a líder da aldeia, estava a preparar-se para falar. Ela
estava no lugar de honra, em frente das faixas de seda
pintadas que contavam a história da escravidão do povo
de Rin na terra dos Zebak. As pinturas coloridas brilha-
vam à luz da lamparina, constituindo um fundo estranho
para a sua figura sóbria.
Durante mais de trezentos anos, o povo de Rin vi-
vera em liberdade no vale verde, sem se recordar do seu
passado e sem fazer a mínima idéia de que muitos dos
seus membros tinham ficado naquele terrível local situado
no outro lado do mar. Depois, pouco mais de um ano an-
tes, Annad, a irmãzinha de Rowan tinha sido raptada e
levada para a terra dos Zebak. Decidido a salvá-la, Rowan
fora atrás dela. Contra todas as probabilidades, ele conse-
guira encontrá-la. E, ao mesmo tempo, ele encontrara
Shaaran e Norris, os últimos dos que tinham lá ficado.
Quando eles fugiram, Shaaran tinha trazido consigo
a caixa de sedas e, desde essa altura, as sedas estavam
penduradas na casa dos livros, para serem admiradas pelos
habitantes da aldeia, que passavam horas a fio a conversar
sobre elas.
Lann pediu que se calassem. Viraram-se todos para
ela, e fez-se um silêncio tenso.
— Amigos — disse Lann. — Peço-lhes que escu-
tem com atenção o que tenho a dizer.
Ela falou com firmeza, assumindo o comando co-
mo fizera muitas vezes antes. Mas pareceu a Rowan que,
de um dia para o outro, o seu rosto ficara com um ar mais
cansado e que ela se apoiava mais na sua bengala. A sua
direita estava Jonn do Pomar, o padrasto de Rowan, e à
esquerda, Timon, o professor. Ela parecia muito débil, no
meio deles.
— A nossa situação é grave — disse Lann. — O
armazém está quase vazio, e a neve não mostra sinais de
derreter. O motivo por que isto está a acontecer...
— É uma maldição! — gritou uma voz ao centro
da sala. As pessoas viraram-se, esticando o pescoço para
verem quem tinha falado.
Era Neel, o oleiro. O seu rosto estreito estava páli-
do e chupado.
— Uma maldição — gritou ele com voz estridente.
— Nós ofendemos a Montanha, e agora a Montanha vi-
rou-se contra nós.
Rowan sentiu um arrepio de frio que não teve nada
a ver com as suas botas encharcadas nem com os dedos
gelados.
— Isso é um disparate, Neel — disse Jonn em voz
baixa.
— Não é! — gritou Neel. — Nunca houve um In-
verno como este. Não é natural! Se não acredita, pergunte
ao Timon. O Timon esteve a estudar os registros do
tempo. Ele sabe que o que eu estou a dizer é verdade.
Todos os olhos se viraram para Timon, que alisou a
barba cinzenta com nervosismo.
— Este Inverno certamente que é mais rigoroso do
que qualquer dos que tivemos antes — disse ele na sua
voz tranqüila, hesitante. — Mas não há necessidade de
falarmos em maldições. Há muitos anos que os nossos
Invernos estão a ficar mais rigorosos e mais longos. E
temos que nos lembrar que vivemos neste vale há apenas
três séculos. Numa terra antiga como esta, trezentos anos
são apenas um abrir e fechar de olhos. Quem pode dizer o
que é natural e o que não é? Há uma história dos Viajantes
que nos diz...
Lann deu-lhe um toque com o cotovelo, e ele ca-
lou-se, mas era demasiado tarde. Neel já estava a acenar
violentamente a cabeça, e os seus olhos vermelhos brilha-
vam à luz da lamparina.
— Exatamente! — exclamou Neel. — A história
do Tempo Frio, quando o Inverno mantinha a terra es-
crava, e os répteis do gelo desciam da Montanha à procura
de carne quente para devorarem!
Um coro de risos de escárnio, liderados por Bron-
den, a marceneira, ecoou através da sala.
— Oh, eu recordo-me dessa! — gritou Allun, o pa-
deiro. — A minha avó contou-me à lareira numa noite de
Inverno, quando eu tinha seis anos. Segundo me lembro,
eu levei a minha espada de madeira comigo para a cama, e
fiquei horas acordado à espera que os répteis do gelo ata-
cassem.
Ouviram-se gargalhadas. Neel mostrou os dentes.
— Vocês troçam de mim e ignoram a mensagem da
história! — gritou ele. — Allun, o padeiro, é mei-
o-Viajante, e devia ter mais juízo! Ele não está sempre a
dizer-nos que os Viajantes vagueiam por esta terra há
quase tanto tempo como os bukshah pastam abaixo da
Montanha? E que as histórias dos Viajantes parecem fan-
tasiosas, mas a maior parte contém um grão de verdade?
As gargalhadas foram diminuindo, acabando por
desaparecer.
— O Neel tem razão — disse, com voz trêmula,
Solla, o doceiro, com os seus papos moles a balouçar en-
quanto falava. — Lembram-se do Vale do Ouro? Nós
pensávamos que era apenas uma lenda dos Viajantes.
Depois as suas ruínas foram encontradas no outro lado da
montanha. Ele era, afinal, bastante real, e as pessoas que
nele viviam também eram, embora estas tenham morrido
há muito tempo.
Os aldeões murmuraram desconfortavelmente. O
barulho tomou-se cada vez mais alto, e só diminuiu
quando Lann ergueu a mão.
— A história do Tempo Frio dos Viajantes só pro-
va o que eu disse — afirmou Timon com firmeza. —
Prova que há algo neste frio que não é natural. Antes des-
te, já houve claramente pelo menos um longo e terrível
Inverno na terra... uma estação suficientemente rigorosa
para se tornar uma lenda. Agora...
— Você está ignorando deliberadamente o mais
importante, Timon! — interrompeu Neel num tom estri-
dente. — Na história, o Tempo Frio veio porque os habi-
tantes do Vale de Ouro voltaram as costas à Montanha e
não a honraram. E nós... nós fizemos o mesmo!
Ele apontou, com um dedo trêmulo, para a seda
pintada pendurada atrás de Lann.
— Essas imagens de outra terra e de um tempo
longínquo não têm lugar no vale. Elas ofendem a Monta-
nha. Elas têm que ser queimadas!
O estômago de Rowan deu uma volta. Por toda a
sala soavam gritos de choque e protesto. Norris tinha o
rosto vermelho e os punhos cerrados. Até mesmo Shaaran
tinha esquecido a sua timidez e estava a gritar. Na terra
dos Zebak, Norris e Shaaran tinham passado a vida a
guardar as sedas. A idéia de as preciosas pinturas antigas
serem destruídas horrorizava-os.
— As sedas são a nossa história, Neel — disse
Lann, com as mãos nodosas a agarrarem com força na
bengala.
— Não! — exclamou Neel num tom irado. — A
história de Rin, a única história que interessa, teve início
no dia em que os nossos antepassados se ergueram contra
os seus amos Zebak na costa desta terra, e começaram
uma vida nova.
Ele deu meia-volta, apelando para os que estavam
perto de si.
— Os nossos antepassados foram trazidos para es-
ta terra para ajudar os Zebak a conquistá-la, mas, em vez
disso, a terra deu-lhes liberdade, e este vale tornou-se o
seu lar — gritou ele. — Esta costumava ser a única histó-
ria que nós sabíamos, e era suficiente para nós!
Ele virou-se e ficou a olhar para Norris e Shaaran,
com uma expressão de desagrado no rosto.
— Mas desde que as sedas e os seus guardiães fo-
ram trazidos para cá, tudo isso mudou. Subitamente, as
nossas mentes estão cheias de perguntas sobre tempos do
passado que é melhor esquecer. Durante quanto tempo os
nossos antepassados viveram como escravos na terra dos
Zebak? De onde é que eles vieram? Haverá outra terra,
uma terra ainda melhor que esta, que já foi nossa e talvez
possa voltar a sê-la?
— É natural que sintamos curiosidade, Neel —
disse Jonn. — Isso não faz mal nenhum.
— Claro que faz mal! — Neel gesticulava, e a sua
voz era cada vez mais estridente. — Vocês não percebem?
Quando olhamos para o passado e fazemos perguntas,
rejeitamos o dom da vida que a Montanha nos concede! E
agora a Montanha ofendeu-se e está a vingar-se!
Jonn fez um som de repugnância, e Timon abanou
a cabeça.
— Eu nunca ouvi um disparate tão grande! — disse
Lann num tom ríspido, e algum do seu fogo antigo bri-
lhava-lhe nos olhos baços. — Cale-se, Neel, e deixe que
outras pessoas com cabeças mais fortes que a sua conti-
nuem a discutir o assunto que é o objetivo desta reunião.
Neel corou e, sem dizer mais uma palavra, abriu ca-
minho por entre a multidão e saiu da sala, batendo a porta
atrás de si. Mas Rowan percebeu que nem todos os que
estavam na sala concordavam com Lann. Algumas pesso-
as olharam para as costas de Neel com um ar de compai-
xão. E Solla, o doceiro, parecia muito nervoso.
Talvez Lann também tivesse reparado nisso e ti-
vesse ficado zangada porque, quando voltou a falar, a sua
voz era ainda mais dura do que antes.
— Conforme eu estava a dizer, a nossa situação é
grave — prosseguiu ela. — De acordo com os meus cál-
culos, a comida que resta no armazém só nos vai alimen-
tar a todos durante mais doze dias. E é preciso que te-
nhamos muito cuidado. Chegou a altura de agirmos... e
receio que não vão gostar do que temos que fazer.
2
A DECISÃO

O s olhos da multidão estavam fixos em Lann. Ela


levantou o queixo.
— É minha opinião que devemos abandonar a
aldeia e ir até á costa, onde os Maris e os Viajantes nos
darão abrigo e comida até podermos regressar.
A sala explodiu num tumulto.
— O quê? — gritou Bronden, numa voz que se er-
gueu acima das dos outros. — Os habitantes de Rin vão
transformar-se em pedintes errantes? E o que pensa que
acontecerá à aldeia se a abandonarmos agora? Se o vento
partir as janelas e estas não forem reparadas? Se a neve
soterrar as casas e os telhados se racharem e caírem?
O rosto enrugado de Lann ficou tenso.
— É isso ou morrermos à fome, Bronden — disse
ela secamente.
— Então eu prefiro morrer de fome! — replicou
Bronden num tom ríspido.
— Eu não! — disse Marlie, a tecelã, chegando-se
mais perto de Allun, seu marido desde o Verão.
Allun tomou a mão de Marlie nas suas e enfrentou
o olhar zangado de Bronden.
— Pode pensar que é um disparate, Bronden, mas
eu e a Marlie estamos mais interessados em viver do que
em morrer — disse ele num tom ligeiro. — O nosso filho
vai nascer antes do fim do mês. Nós não queremos que
ele venha ao mundo só para morrer.
Muitas pessoas acenaram a cabeça em sinal de con-
cordância. Outros começaram a falar alto e a discutir.
Lann observava-os de olhos velados. Os seus om-
bros tinham caído, e os nós dos dedos que agarravam a
bengala estavam brancos.
Rowan sentiu imensa pena dela. Ela tinha feito o
que considerava ser o seu dever — o que ele, Jonn e Ti-
mon a tinham encorajado a fazer — mas o preço tinha
sido muito alto.
— Peço-lhes que pensem neste plano com as suas
mentes e não com os seus corações — disse Jonn, levan-
tando a voz para poder ser ouvido no meio do tumulto da
sala. — Só precisamos estar ausentes até o perigo passar.
Os Maris e os Viajantes são nossos amigos e aliados. Eles
terão muito gosto em ajudar-nos, tal como nós os ajuda-
ríamos se eles precisassem.
— Talvez — disse Bronden com o rosto franzido.
— Mas porque é que temos que ir para a costa e deixar as
nossas casas sujeitas a serem arruinadas pela neve e pelo
vento? Tem que haver outra maneira. Onde está Rowan
dos Bukshah? — Os olhos dela varreram a sala.
Rowan recuou para as sombras, mas não serviu de
nada.
— Ah, Rowan, aí está você! — exclamou Bronden,
quando o avistou. — Porque é que está escondido aí ao
fundo da sala? Se há alguém que deva estar envolvido
nisto, é você... você que, por mais de uma vez, salvou Rin
de catástrofes!
Ela apontou para Rowan, e toda a gente se virou
para olhar para ele.
Rowan sentiu a cara a ficar quente. Ao longo dos
últimos anos, a sua confiança em si próprio tinha aumen-
tado, mas ele ainda não gostava de ser diferenciado dos
outros. E o fato de alguns habitantes de Rin acreditarem
que ele tinha poderes especiais, até mesmo mágicos, fazi-
a-o sentir-se muito pouco à vontade. Era verdade que ele
tinha conseguido salvar a aldeia de vários perigos no pas-
sado, mas não havia nada de mágico no que ele fizera.
Certamente que algum tipo de magia o ajudara — mas
não tinha sido feita por ele.
— Rowan, existem rumores de que você tem uma
ligação estranha... uma união de mentes... com o líder dos
Maris, o Guardião do Cristal — rosnou Bronden. — Se
isso for verdade, seguramente que pode falar ao Guardião
sobre os nossos problemas e pedir-lhe que envie ajuda?
— E os Viajantes, Rowan? — perguntou Solla. —
Você é respeitado por Ogden, o chefe deles, não é? E
muito amigo de Zeel, a filha de Ogden, que te ajudou a
salvar a Annad dos Zebak? Porque é que não usa a flauta
de cana que eles te deram para pedir ajuda? Os Viajantes
podiam trazer provisões para o vale. Nós já partilhamos a
nossa comida com eles muitas vezes, quando eles acam-
param aqui!
Rowan umedeceu os lábios.
— Receio que nem os Maris nem os Viajantes pos-
sam nos ajudar agora, por muito que desejem fazê-lo —
disse ele em voz baixa.
— Claro que não podem! — disse Lann num tom
ríspido. — Nós somos os únicos habitantes desta terra que
conseguimos sobreviver ao Inverno da ilha. Todos vocês
sabem isso! Ou deviam saber. Os Maris e os Viajantes
mantêm-se sempre na costa mais quente, mesmo numa
estação fria normal. Este frio intenso matá-los-ia muito
antes de eles cá chegarem.
Uma expressão de desânimo perpassou o rosto de
Solla, no meio de lamentos de desilusão de outros que
estavam na sala. Bronden simplesmente cruzou os braços
e trocou olhares sombrios com os seus vizinhos.
— Muito bem — disse Lann. — Eu não posso o-
brigar ninguém a partir. A viagem até à costa será longa e
cheia de perigos. A neve é muito espessa, o frio é intenso,
e haverá lobos brancos esfomeados nas planícies. Para que
os mais fracos e mais novos sobrevivam, serão necessárias
a proteção e a coragem de todos os homens e mulheres
fortes de Rin. Mas qualquer viagem, por mais perigosa que
seja, é certamente melhor do ficar aqui a morrer lenta-
mente à fome.
A sala ficou totalmente silenciosa. Os olhos de
Lann percorreram a multidão. Depois ela respirou fundo.
— Vamos fazer uma votação — disse ela. — A-
queles que concordam com o meu plano levantem a mão.
Os rostos eram sérios, mas uma floresta de mãos
ergueu-se.
Rowan suspirou silenciosamente de alívio.
— Então está decidido — disse Lann num tom só-
brio. — A marcha até à costa terá início amanhã, à pri-
meira luz do dia. Eu própria irei dividir a comida que ain-
da existe no armazém, para que todos tenham um quinhão
justo. Quanto ao resto, preparem apenas o que consegui-
rem carregar às costas, pois o caminho será longo e duro.
— Certamente que os bukshah podem transportar...
— começou Norris a dizer, mas Lann abanou a cabeça e
olhou para Rowan.
Este era o momento que Rowan temera. Sentindo
os olhos da multidão pousados nele mais uma vez, ele en-
goliu em seco e obrigou-se a falar.
— Os bukshah estão demasiado fracos para conse-
guirem viajar até para costa — disse ele com voz rouca.
— Eles morreriam durante a viagem.
— Mas agora eles já estão a morrer, um a um! —
gritou alguém. — Se os deixarmos... Se os deixarmos...
O estômago de Rowan deu uma volta.
— Os bukshah não vão ficar cá sozinhos — disse
ele, sentindo Shaaran e Norris ao seu lado, a ouvi-lo aten-
tamente. — Eu vou ficar com eles.
Shaaran soltou uma exclamação de horror e olhou
em redor à procura de Jiller, a mãe de Rowan. Ela estava à
espera que Jiller protestasse, que insistisse para que o filho
fugisse da aldeia com eles. Mas Jiller mantinha-se orgu-
lhosamente silenciosa na frente da sala, e Annad, a irmã
mais nova de Rowan, olhava em frente sem dizer uma pa-
lavra. Era óbvio que elas já tinham conhecimento da deci-
são de Rowan e que a tinham aceito.
— A maior parte deles não irá sobreviver mais do
que uma ou duas semanas — prosseguiu Rowan num tom
tranquilo. — Mas se eu conseguir que alguns dos animais
mais jovens e mais fortes se mantenham vivos até o tem-
po mudar, há uma possibilidade de a manada voltar a
crescer nos próximos anos.
Só os que o conheciam melhor conseguiam perce-
ber a tristeza que havia na sua voz uniforme. Só eles sa-
biam o que lhe custava falar da morte de um sequer dos
seus amados bukshah.
— Não, Rowan! — gritou Shaaran. Ignorando o ir-
mão que, embaraçado, lhe puxava pela manga, mandan-
do-a calar, ela olhava desvairadamente em redor para as
pessoas altas, de rosto sério, que a rodeavam.
— Digam-lhe! — suplicou ela. — Digam-lhe que
ele não deve ficar!
— Rowan é o guardião dos bukshah — disse Lann
num tom ríspido. — Os animais conhecem-no e confiam
nele. A sua presença irá reconfortá-los e poderá ajudá-los
a viver durante algum tempo, mesmo depois de a comida
ter se acabado. Você está aqui há pouco tempo, menina, e
talvez não compreenda como os bukshah são importantes
para Rin. Todo o nosso modo de vida depende deles. Sem
eles, nós não teríamos leite nem queijo, nem lã para a
roupa, nem ajuda para lavrar a terra. A decisão de Rowan
é a decisão correta.
Shaaran abanou a cabeça, incrédula.
— Como pode isso ser? Como pode ser correto
Rowan ficar cá para morrer sozinho?
Lann ergueu a cabeça.
— Ele não irá morrer sozinho — disse ela. Os seus
lábios curvaram-se num sorriso sombrio, e ela fez um
gesto com a bengala. — É óbvio que eu não consigo ca-
minhar até à costa sem ajuda, e não quero ser um fardo
para todos vocês. Por isso, eu também vou ficar.
— E eu! — exclamou Bronden, teimosamente.
As linhas duras do rosto de Lann pareceram des-
contrair-se. Subitamente, ela ficou com um ar cansado e
velho.
— Então é tudo o que eu tenho a dizer — disse ela.
— Vão para casa preparar-se.
As pessoas deram silenciosamente meia volta e di-
rigiram-se para a porta.
— Esperem! — a voz trêmula de Solla ergueu-se
no silêncio. — E a Sheba?
Murmúrios nervosos encheram a sala. Sim. E She-
ba, a Feiticeira, Sheba, a bruxa, agachada, a resmungar,
junto da fogueira, na sua cabana atrás do pomar? Sheba,
cujo mau gênio ficara ainda pior com o frio? Sheba que,
durante semanas, ficara escondida, cuspindo escárnios e
insultos a todos os que se atreviam a aproximar-se da sua
porta, até mesmo às almas corajosas que tinham cami-
nhado penosamente através da neve para lhe levar comi-
da?
Teria Sheba conhecimento do plano para abando-
nar a aldeia? Quase certamente que sim. Ela tinha uma
forma assustadora de saber essas coisas sem que fosse dita
uma única palavra na sua presença.
Os corajosos habitantes de Rin mexeram-se des-
confortavelmente. Tal como Lann, Sheba não seria capaz
de caminhar até à costa. Ficaria ela ali, acenando o punho
fechado enquanto eles partiam, amaldiçoando-os por a
abandonarem?
Ou iria ela insistir em que carregassem com ela?
Mais de um homem forte estremeceu ao pensar nos bra-
ços ossudos de Sheba à volta do seu pescoço, com os seus
rabos-de-cavalo a balouçar enquanto ela se agarrava as
suas costas como uma aranha gigante, silvando para que
ele andasse mais depressa.
Jonn sorriu sombriamente.
— A Sheba não foi esquecida — disse ele. — Eu, a
Jiller e o Timon tentamos entrar na sua cabana esta ma-
nhã, para falar com ela. Ela não só se recusou a deixar-nos
entrar, como nos amaldiçoou. Parece que só há uma pes-
soa que ela deseja ver.
Ele olhou na direção de Rowan.
O coração de Rowan caiu-lhe aos pés.
3
SHEBA

R owan atravessou o pomar, seguindo a trilha das


pegadas fundas deixadas por Jonn, Jiller e Timon
algumas horas antes. Ele mantinha a cabeça baixa.
Não queria olhar para as árvores despidas à sua volta, com
os troncos cobertos de branco e os ramos retorcidos a
arranhar o céu cinzento como dedos de esqueletos conge-
lados. Ele não queria ver a cabana de Sheba à frente, meia
enterrada na neve, com pingentes de gelo a formarem uma
franja à volta do telhado baixo.
Mas ele não conseguia impedir-se de respirar a fu-
maça da lareira de Sheba, a que a cinza e as ervas amargas
davam um odor acre. Ele não conseguia fechar os ouvidos
ao som abafado da voz dela, a entoar num tom monótono
no interior da cabana e parando abruptamente quando ele
chegou ao espaço plano, desimpedido, junto da porta.
É uma tolice sentir este medo, disse ele a si próprio, a-
travessando lentamente o terreno pisado gelado. Eu já não
sou o garoto medroso que era na primeira vez que me vi frente a
frente com Sheba. Nada que ela possa fazer conseguirá piorar a
situação. Nada que ela me possa dizer será mais aterrorizador do
que aquilo que eu imagino.
Mas, mesmo assim, ele estremeceu, porque sabia
que Sheba, apesar de gostar de arreliar os outros e de ter
prazer em ver as suas vítimas sofrer, dizia sempre a ver-
dade. E se ela tivesse pedido para falar com ele com o ob-
jetivo de apagar a última chama de esperança que ainda
ardia no seu coração, ele não seria capaz de suportá-lo.
Não se ouvia qualquer som vindo da cabana. Esta-
va tudo em silêncio, com exceção do som da neve a ser
triturada debaixo das botas de Rowan.
À porta, ele fechou os olhos por um momento, o-
brigando-se a si próprio a ficar calmo. Estava decidido a
que desta vez, pelo menos, ele iria encontrar-se com She-
ba sem medo. Os truques dela não iriam assustá-lo. Le-
vantou a mão para bater.
Antes de os nós dos dedos tocarem na porta, esta
abriu-se subitamente, batendo com força contra a parede
interior da cabana. Os pingentes de gelo partiram-se e caí-
ram, mergulhando como lanças na neve atrás das costas
de Rowan. Uma rajada de ar quente atingiu-o em cheio na
cara. Engasgado, respirando com dificuldade, ele recuou,
com o coração a bater com força e os olhos a arderem.
— O que é que está fazendo aí com a porta aberta?
— gritou Sheba do interior. — O ar quente está todo a
sair! Tolo medroso! Mexa-se!
Rowan atravessou, vacilante, o limiar e entrou na
sala. A porta fechou-se com força atrás dele.
Estava tudo escuro com exceção do fogo da lareira,
vermelho com lampejos verdes. Lentamente, os olhos la-
crimejantes de Rowan distinguiram a forma corcovada
que era Sheba. Ela tinha-se afundado na cadeira, que pare-
cia ter sido levada para tão perto do fogo que os seus pés
estavam ocultos por montículos de cinza branca.
— Chegue mais perto, Rowan dos Bukshah. — A
voz áspera era agora enganadoramente suave. — Chegue
mais perto, mas não demasiado perto. A sua pele está fria,
e o meu calor é precioso.
Rowan avançou desajeitadamente, sentindo-se co-
mo se estivesse a nadar através da obscuridade espessa,
mal cheirosa. Depois, com um grito, ele deu um salto para
trás quando uma coisa enorme, a rosnar, se ergueu de um
dos lados da sala e se lançou sobre ele. O riso desdenhoso
de Sheba soou aos seus ouvidos quando ele se estatelou
no soalho sujo e se contorceu descontroladamente, ten-
tando rastejar para um lugar seguro.
Um nariz quente e escamoso tocou-lhe no braço, e
um hálito quente chamuscou-lhe a face. Olhos amarelos
planos olharam para ele, e asas que pareciam de cabedal
bateram no chão, cobrindo-o de pó.
O pânico de Rowan desapareceu, sendo substituído
por uma vergonha irritada. O ataque não tinha sido um
ataque. Era apenas a companheira de Sheba, a grach Unos,
a cumprimentá-lo.
Ele conseguiu ajoelhar-se. O choque tinha-o dei-
xado sem forças. A mão ainda lhe tremia quando a levan-
tou para coçar o ombro de Unos. A pele escamosa não era
tão fria como ele se recordava, mas sim escaldante. A
grach silvou de prazer.
— Tinha-se esquecido da Unos, rapaz? — pergun-
tou Sheba com um prazer malicioso. — Como foi isso
possível? Ela não te trouxe, a você e aos idiotas dos seus
amigos, da terra dos Zebak para casa, no Verão passado?
Rowan pôs-se de pé, tentando ignorar a dor da
perna e do ombro machucados.
— Eu não me esqueci, Sheba — disse ele o mais
calmamente que conseguiu. — Mas não estava à espera
que ela estivesse aqui dentro com você.
E porque é que havia de estar a espera? pensou ele en-
quanto o enorme corpo pintalgado da grach balouçava à
sua frente, irradiando calor. Quem iria tentar manter um
animal tão grande dentro de casa? Quando os seus olhos
se adaptaram à luz, ele viu que não havia qualquer mobília
da sala, exceto a cadeira de Sheba. Tudo o mais tinha sido
retirado para arranjar espaço para Unos.
— Nós temos trabalho para fazer — disse Sheba.
Ela emitiu um som suave, semelhante a um gorjeio, e U-
nos arrastou-se até junto ela, deixando-se cair pesadamen-
te ao lado da cadeira.
As chamas tornaram-se verdes. A sala pareceu, de
imediato, ficar mais quente. A grach silvou de satisfação e
os espigões do seu dorso atingiram o seu tamanho máxi-
mo para absorver melhor o calor.
Rowan umedeceu os lábios.
— Queria falar comigo, Sheba? — perguntou ele.
— Porque é que eu havia de querer falar com você?
— perguntou a velha com um ar de desdém. — Esses
tolos da aldeia podem pensar que é um grande herói. Eles
podem pensar que tem coisas importantes para dizer. Mas
eu conheço a verdade. Oh, sim! — Ela sorriu, e os seus
dentes castanhos brilharam à luz do fogo.
Rowan ficou calado. Sheba tinha feito o possível
por abalá-lo, e conseguira, mas ele estava decidido a não a
deixar vencer aquela guerra de nervos. O silêncio pro-
longou-se. O fogo crepitava. Rowan sentia a cabeça rodar
por causa do calor.
Ao fim de algum tempo, Sheba mexeu-se impaci-
entemente na cadeira.
— Atreve-se a fazer jogos comigo, rapaz? — per-
guntou ela com a sua voz áspera. — Não sabe que, se eu
quiser, posso parti-lo como se fosse uma casca de noz?
Rowan manteve-se calado e ela prosseguiu.
— Começa a acreditar nas histórias que eles con-
tam a seu respeito? — perguntou ela com desdém. — É
um sonhador! Se não fosse eu, você não seria nada. Nada!
Você foi sempre o meu instrumento, nada mais, a seguir
as minhas instruções.
— Eu sei disso, Sheba — disse Rowan apressada-
mente, embora lhe ocorresse que o que ela dizia não era
totalmente verdadeiro.
— Mentiroso! — silvou Sheba, e Rowan sentiu um
aperto no peito ao perceber que ela tinha lido os seus
pensamentos. Quando começou a balbuciar explicações,
ela cuspiu rancorosamente para o fogo.
— Acha que eu sou tola e tenta lisonjear-me, con-
cordando comigo quando não acredita no que eu digo? —
perguntou ela. — Você é tal e qual como os outros. In-
grato e ignorante. A conspirar e a fazer planos nas minhas
costas. Bem, vocês vão ver do que eu sou capaz!
Aquilo parecia um mau agouro.
— Vai... vai partir com os outros amanhã de ma-
nhã, Sheba? — atreveu-se Rowan a perguntar.
— Não, não vou! — respondeu ela com desdém.
— Acha que eu sou uma peça de bagagem para ser trans-
portada por imbecis? Não, não diga nada. Eu não te cha-
mei aqui para conversar com você, guardião dos bukshah,
mas sim para falar com você. Controle-se e escute.
Ela recostou-se na cadeira, resmungando para si
própria, com as mãos semelhantes a garras entrelaçadas
junto da garganta. As suas pálpebras descaíram lentamente
até os seus olhos se tornarem ranhuras cintilantes, pri-
meiro verdes, depois brancas. O coração de Rowan batia
dolorosamente. A voz monótona subiu e baixou, subiu e
baixou, mas ele não conseguia distinguir as palavras.
Ele deu um passo em frente, mas o calor — o calor
do fogo, ou da própria Sheba — era tão intenso que ele
soltou uma exclamação. Instintivamente, tentou recuar,
mas não conseguiu mexer-se. O calor tinha-o apanhado e
mantinha-o preso, como uma teia de fogo invisível. Ele
esforçou-se por se libertar do seu abraço, sentindo-o a
queimar-lhe a pele, aquecendo-lhe o sangue, chamuscan-
do-lhe os ossos.
Depois a boca de Sheba abriu-se, e ela começou a
falar claramente. As palavras chegaram até Rowan em
ondas de calor escarlate. Era como se, em vez de as ouvir,
ele as visse. Elas pareciam entrar pelos seus olhos como
tições ardentes e ficar gravadas no seu cérebro.
"Os animais são mais sábios do que podemos imaginar
E aonde eles conduzem, quatro almas devem caminhar.
Uma para chorar e uma para lutar,
Uma para sonhar e uma para voar.
Quatro têm que se sacrificar.
No domínio entre o fogo e o gelo
A fome não pode ser negada,
A fome tem que ser mitigada.
E nessa rajada incandescente,
A busca une a vida e a morte iminente."
A voz calou-se. A boca de Sheba fechou-se. Com
as terríveis palavras a ecoar-lhe na mente, Rowan deu por
si à recuar, cambaleante, afastando-se da bruma escaldan-
te.
As pálpebras enrugadas de Sheba levantaram-se
lentamente. O seu rosto estava exausto.
— Então? — balbuciou ela.
— Eu... eu não compreendo — gaguejou Rowan.
— Eu não tenho nada a ver com isso — disse ela
num tom ríspido. — Eu já disse o que tenho a dizer. O
resto é preocupação sua. Eu tenho outra tarefa a cumprir,
e irei cumpri-la, embora ninguém vá me agradecer.
— Sheba, eu tenho que... — exclamou Rowan, mas
ela, irritada, fez um gesto a mandá-lo calar.
— Fique quieto! — ordenou ela. — Está me fa-
zendo perder tempo, a roubar-me o calor e a esgotar a
minha energia.
Ela respirou fundo. Quando recomeçou a falar, fa-
lou rapidamente, e todos os vestígios de despeito tinham
desaparecido da sua voz. Pela primeira na vida de Rowan,
era como se ela estivesse a falar com ele como sua igual.
— Eu não posso ajudá-lo mais, Rowan dos Buk-
shah — disse ela. — A única coisa que sei é que só você
pode fazer o que tem que ser feito. A única coisa que lhe
posso dizer é que tudo o que aprendeu até agora foi a
preparação para este momento. A única coisa que posso
lhe dar é... isto.
Ela levou novamente a mão à garganta, procurando
algo escondido sob o seu xale esfarrapado. Quando ela
trouxe o objeto para a luz, Rowan viu que era o estranho
medalhão velho que ela lhe dera para levar para a terra dos
Zebak. Ela tinha-o pendurado ao pescoço magro, ainda
enfiado no cordão desbotado de seda entrançada.
Rowan ficou olhando para ela. Ele tinha se esque-
cido completamente do medalhão. Certamente que não se
lembrava de o ter devolvido a Sheba quando regressara à
aldeia. Mas devia tê-lo feito, pois ali estava ele, preso entre
as unhas amarelas compridas que se curvavam como gar-
ras sobre a sua superfície baça.
Ela tirou o cordão do pescoço e estendeu o meda-
lhão para Rowan.
— Tome! — silvou ela. — Use-o. Aprenda o que é
ser o que eu sou.
Rowan hesitou. A última coisa que ele queria fazer
era obedecer. Mas a sua mão estendeu-se involuntaria-
mente e, antes de ele conseguir pensar, o medalhão bri-
lhava, quente, entre os seus dedos, e ele estava a colocar o
cordão ao pescoço.
O medalhão era pesado — muito mais pesado do
que ele se recordava. Parecia vergá-lo.
Sheba recostou-se na cadeira, como se se sentisse
aliviada.
— Pronto... está feito — murmurou ela. — Agora
vá embora. Eu e a Unos ainda temos que absorver mais
calor. Temos que aproveitar todo o calor que o fogo tem
para dar. — Ela atirou outro pau para o fogo. As chamas
crepitaram e arderam, verdes. Ela voltou a fechar lenta-
mente os olhos.
— Mas, Sheba, o que devo eu fazer? — perguntou
Rowan num tom de desespero.
— Observe e espere — respondeu Sheba, sem a-
brir os olhos. — Quando chegar a altura, saberá.
A luz verde tremeluziu nas suas faces encovadas.
Ela começou a respirar lenta e profundamente. Rowan
sabia que ela não voltaria a falar com ele.
Saiu da cabana como um sonâmbulo. Quando a
porta se fechou atrás de si, o ar gelado penetrou-lhe pelos
pulmões como uma faca, e a luz branca ofuscou-o. Ator-
doado, com o medalhão a pesar-lhe em volta do pescoço
como uma enorme pedra, cambaleou ao longo da linha
das suas próprias pegadas até o pomar. Enquanto cami-
nhava por entre as árvores enterradas na neve, ele ouviu
novamente a entoação monótona, abafada, de Sheba.
4
UMA PARA SONHAR

R owan sabia que Jiller, Jonn e Annad estariam à sua


espera em casa, ansiosos, mas ele atrasou delibe-
radamente o passo quando saiu do pomar.
Estava abalado e confuso, mas uma coisa estava
clara na sua mente. Independentemente do que ele disses-
se sobre o que se passara na cabana de Sheba, a terrível
profecia devia permanecer um segredo só seu. Quatro têm
que se sacrificar...
Se ouvissem essas palavras, Jonn e Jiller se recusa-
riam a deixar a aldeia na manhã seguinte. Rowan tinha ti-
do grande dificuldade em convencê-los de que deviam
juntar-se à marcha até à costa, enquanto ele ficava com os
bukshah. Só quando Lann tomara o seu partido é que eles
tinham, com relutância, concordado.
Se ouvissem a profecia, com a sua conversa agou-
renta sobre animais e sacrifício, eles mudariam novamente
de idéias.
E isso não deve acontecer, pensou Rowan desespera-
damente. A única coisa que me ajudará a suportar isto é saber que
aqueles que amo... pelo menos as pessoas que eu amo... estão em
segurança.
Mas quando saiu do pomar e começou a atravessar
penosamente a neve que cobria as hortas, até mesmo essa
consolação começou a abandoná-lo. Ao longe, ele via
muitas pessoas reunidas ao pé do armazém. Lann estava
distribuindo a comida que restava. As trouxas que elas
levavam pareciam muito pequenas.
Rowan sentiu um enorme desânimo ao imaginar o
grupo a partir na manhã seguinte, caminhando em direção
à costa através da neve espessa, sem trilhos, guiado apenas
pelo som do riacho soterrado.
Com bom tempo, a viagem até Maris demorava
pelo menos uma semana. Quanto tempo mais demoraria
quando cada passo era uma batalha? Três semanas? Qua-
tro? Mais tempo ainda? A comida se esgotaria lentamente,
e o frio, a fome, a exaustão e os lobos fariam os seus es-
tragos.
Rowan sentiu um arrepio de terror. Tentando do-
miná-lo, reprimindo os terríveis pensamentos que o ti-
nham causado, ele baixou a cabeça e continuou a andar,
fazendo desesperadamente votos para que ninguém se
virasse e o visse.
Para seu alívio, ele chegou às primeiras casas sem
que ninguém o chamasse. Continuou a andar em direção à
praça da aldeia. Quando passou pela oficina de Bronden,
ouviu o som solitário de um martelo. Bronden estava a
trabalhar, recusando-se teimosamente a admitir que em
breve não haveria ninguém precisando dos seus produtos,
tentando esquecer que em breve só ali estariam ela, Lann e
Rowan.
Uma para chorar e uma para lutar,
Uma para sonhar e uma para voar.
Bronden é a lutadora, pensou Rowan. E, se acreditarmos
em Sheba, eu sou o sonhador inútil. Lann poderá chorar lágrimas de
raiva por se sentir tão impotente. Mas quem será a quarta alma? A
que irá voar?
Os seus olhos viraram-se involuntariamente para a
olaria. A porta encontrava-se encerrada, as janelas estavam
fechadas, e não se ouvia qualquer som vindo do interior.
Neel, se lá estivesse, queria estar sozinho.
Como uma sombra, Rowan atravessou a praça de-
serta e continuou a andar. Espreitou através da janela para
a casa dos livros e viu que esta também estava vazia. Só as
sedas se moviam, esvoaçando suavemente na corrente de
ar que passava por baixo da porta, fazendo com que as
figuras pintadas, as árvores e os animais parecessem estar
vivos e a mover-se.
Os olhos de Rowan recaíram sobre uma cena em
particular — a que sempre o perturbara mais. Ela retra-
tava a aldeia escrava na terra dos Zebak, pouco mais de
trezentos anos antes. Mostrava os guardas Zebak a arran-
car os escravos mais corajosos e mais fortes aos braços
dos seus entes amados chorosos e a fechá-los em gaiolas
de ferro.
Talvez as pessoas representadas na cena pintada já
soubessem que as mais fortes iriam ser acorrentadas aos
remos de barcos de guerra e obrigadas a remar através do
mar para lutar pela causa Zebak. Mas ninguém conseguiria
adivinhar que, na nova terra, os escravos se iriam virar
contra os seus amos e obter a liberdade. Ninguém poderia
saber que, na sua nova vida, no pacífico vale de Rin, eles
não se recordariam do seu passado porque os Zebak ti-
nham destruído as suas memórias. E ninguém conseguiria
prever que o número de almas meigas que tinham ficado
para trás como escravos, iria, a pouco e pouco, diminuir,
até, trezentos anos depois, só restarem Shaaran e Norris
para as representar.
Ou talvez, pensou Rowan, houvesse um que tinha
visto o futuro. No meio da confusão, uma velha curvada,
que tinha sido pintada com um ramo de ervas na mão pa-
ra mostrar que era Feiticeira e curandeira, estava a passar
secretamente o medalhão para uma mulher mais nova no
interior de uma das gaiolas.
Rowan levou os dedos ao medalhão pesado que
trazia no pescoço. Veio-lhe à mente o que se recordava
dele. Ele não se parecia apenas com o medalhão da pintura.
Era o mesmo. Ele tinha vindo para o vale de Rin com a-
quela jovem. Tinha sido transmitido ao longo das gerações
sucessivas de feiticeiros que se tinham seguido a ela, até
chegar às mãos de Sheba.
E agora Sheba deu-me, pensou Rowan. Mas não como o
tinha feito antes. Na terra dos Zebak, ela esteve comigo em espírito.
Desta vez, é diferente. Eu sinto-o.
Quando se lembrou das palavras de Sheba, sentiu
um rugido nos ouvidos.
Leve-o. Use-o. Aprenda o que é ser o que eu sou.
A sua respiração estava a embaçar a janela. Ele já
não conseguia ver as sedas esvoaçantes. Mas não fez
qualquer esforço para limpar o vidro. Ele não queria ver
os rostos graves, concentrados, das duas mulheres, a jo-
vem e a velha, no momento em que algo raro e poderoso
passava de uma para a outra. Ele não queria pensar no que
a dádiva de Sheba significava. Aprenda o que é ser o que eu
sou...
Ele virou as costas à janela, certificando-se de que o
medalhão e o seu cordão estavam completamente escon-
didos debaixo da roupa, e começou a afastar-se rapida-
mente. Agora queria chegar a casa o mais depressa possí-
vel. Tinha o rosto a escaldar, mas sentia o coração gelado.
Cobriu rapidamente a distância que restava e, ao
fim de pouco tempo, estava a abrir o portão e a atravessar
o caminho desimpedido até à casa. Annad, que estivera
claramente à sua espera, abriu a porta antes de ele chegar
lá. Ela agarrou-lhe na mão para o puxar para dentro, de-
pois deixou-a cair com um pequeno grito de surpresa.
— Oh, você está tão quente! — exclamou ela. Ro-
wan olhou por cima da cabeça dela para os rostos ansio-
sos de Jonn e de Jiller, que tinham parado de arrumar as
coisas para virem ter com ele.
— A fogueira da Sheba estava muito quente —
disse ele despindo o casaco acolchoado. — Muito mais
quente do que é natural. Acho que ela está fazendo um
feitiço qualquer de calor para ela própria e para a Unos.
— Seria, sem dúvida, uma tolice estarmos à espera
que ela planejasse partilhá-lo com todos nós — comentou
Jiller num tom seco.
— Acho que tem razão — concordou Rowan. —
Ela acusou-me de lhe roubar calor, e parece que, de fato,
lhe roubei algum, sem o saber.
Ele esfregou as mãos, só então percebendo que,
desde que saíra da cabana de Sheba, não sentia frio.
— O que disse ela, Rowan? — perguntou Annad.
Rowan encolheu os ombros.
— Ela estava zangada. Disse que não iria partir a-
manhã de manhã. Disse que nós éramos ignorantes e in-
gratos, e que ela iria fazer-nos ver
— Fazer-nos ver? O que queria ela dizer com isso? —
exclamou Jiller.
— Não sei — Rowan sentou-se à mesa, que estava
cheia de pilhas de cobertores dobrados, comida e outras
provisões por entrouxar. — Ela disse que tinha algo a fa-
zer que ninguém lhe agradeceria, mas não explicou o que
queria dizer com isso.
— Talvez ela vá tentar nos impedir de partir —
disse Jonn.
— Talvez. — Rowan baixou-se para desapertar os
cadarços das botas. Ele tinha feito o que se propusera fa-
zer. Sem dizer uma única mentira, desviara a atenção da
família de si, para a opinião de Sheba sobre a marcha até à
costa.
Era um alívio. Mas, subitamente, sentiu-se muito só
e terrivelmente cansado.
— Desculpem — suspirou ele. — Eu gostaria de
poder ajudar mais. Mas não tenho mais nada para dizer.

***

Nessa noite esteve mais frio do que nunca. Não


caiu mais neve, mas antes da meia-noite já o vale estava
coberto por uma estranha neblina gelada que enregelava
até aos ossos.
Os habitantes de Rin, com as trouxas preparadas e
prontos para o dia seguinte, foram descansar silenciosa-
mente, com as mentes e os corações tolhidos por um
medo que poucos se atreviam a admitir, até mesmo a si
próprios. E, na escuridão, muitos se lembraram da voz
estridente de Neel na apinhada casa dos livros.
O Tempo Frio... quando o Inverno mantinha a terra escra-
va, e répteis do gelo desciam da Montanha à procura de carne quente
para devorarem...
Rowan estava deitado, completamente vestido, na
sua cama estreita, vendo as sombras moverem-se lenta-
mente nas paredes do seu quarto no sótão enquanto a vela
ardia.
Ele já não partilhava o quarto com Annad, que a-
gora dormia no chão, no pequeno quarto que Jonn e Jiller
tinham construído para ela. Habitualmente, Rowan gosta-
va da sua privacidade e do espaço extra mas, nessa noite,
o sótão parecia muito vazio. Ele disse a si próprio que se
devia despir antes que a vela se apagasse. Disse a si pró-
prio que devia tentar dormir. Mas não conseguia arranjar
energia para se mexer.
A neblina, branca e sufocante, movia-se no exterior
da sua janela. Ele sentiu um arrepio só de vê-la mas, ao
mesmo tempo, ficou satisfeito por ela existir, pois ocul-
tava-lhe a visão da melancólica Montanha.
...os habitantes do Vale de Ouro voltaram as costas à Mon-
tanha e não a honraram. E nós... nós fizemos o mesmo!
Seguramente que o que Neel dissera tinham sido
disparates supersticiosos, tal como Lann afirmara. Segu-
ramente...
No banco ao lado da cama de Rowan estava a co-
ruja de ouro que ele encontrara nas ruínas do Vale de
Ouro, no outro lado da Montanha. A coruja cintilava à luz
trêmula da vela. Os seus olhos cor de esmeralda pareciam
brilhar, como estivessem a tentar dizer-lhe alguma coisa.
Rowan estendeu a mão para ela. A sua superfície
macia pareceu aquecer as pontas dos seus dedos.
O Vale do Ouro não tinha sido destruído pelo
Tempo Frio, recordou ele a si próprio. Na história dos
Viajantes, o povo tinha feito as pazes com a Montanha, e
a Primavera viera outra vez. O Vale só morrera muito
mais tarde, séculos depois, quando foi assaltado pelas ár-
vores assassinas de Unrin.
... o povo fez as pazes com a Montanha...
Mas como? Como?
Quatro têm que se sacrificar...
Os dedos de Rowan apertaram-se sobre a coruja de
ouro. Os olhos verdes dela pareceram lampejar. A chama
da vela tremeu e apagou-se.

***

Rowan abriu os olhos num lugar que lhe era estra-


nho. Um lugar frio e ermo. A neve cobria o chão em de-
clive, e o céu estava sombrio mas ainda não tinha escure-
cido. Os penhascos elevavam-se acima dele. Ele soube
que estava na Montanha.
Não muito longe, três figuras cobertas com capa e
capuz caminhavam através da neve em fila indiana, se-
guindo um caminho muito batido que subia a montanha.
Todas elas levavam archotes, e as chamas eram ati-
çadas pelo vento agreste. O líder, alto e com ombros lar-
gos, coxeava, apoiado numa bengala comprida. A segunda
figura era pequena e delicada. A terceira era magra, de al-
tura média.
Este é o fim...
A última figura da fila parou, virou a cabeça e olhou
diretamente para Rowan. Com um arrepio, Rowan re-
conheceu o rosto. Era o rosto que ele via todas as vezes
que olhava para um espelho. O rosto olhou para ele, o-
lhou através dele, como se ele fosse invisível.
Rowan estava no exterior de si próprio. Estava a
ver a si próprio ao longe. Mas ele conseguia sentir as e-
moções a fervilhar por trás daqueles olhados vidrados,
cegos.
Medo. Ira. Um sofrimento terrível, doloroso.
Eu estou sonhando, pensou Rowan, esforçando-se por
acordar. Mas o sonho era demasiado real, demasiado for-
te. Apoderou-se dele e manteve-o paralisado, obrigando-o
a presenciar a cena à sua frente, sem se poder mexer nem
falar.
A figura pequena do meio parou e virou-se. Era
Shaaran. Ela levava uma caixa comprida de madeira nos
braços — a caixa de sedas que trouxera da terra dos Ze-
bak.
— O que se passa? — perguntou a menina em voz
baixa.
A figura Rowan encolheu os ombros.
— Eu senti que havia mais alguém aqui a obser-
var-nos — disse ele.
O líder alto resmungou impacientemente, parando
e aliviando a perna machucada.
— Como pode isso ser? — rosnou ele. — Nós
somos os únicos que restam. — Era Norris. O seu rosto
atraente estava tenso e os olhos manifestavam inquietação.
— Os únicos que restam — repetiu ele, e subitamente
soltou uma gargalhada áspera.
Shaaran olhou-o ansiosamente.
— A luz está a falhar — disse ela, apertando mais a
caixa contra si. — Temos que continuar andando. Temos
que ir atrás dos animais.
Norris olhou em volta e deu outra gargalhada.
— Para quê? — disse ele em voz alta. — Que im-
porta o local onde vamos morrer? — prosseguiu ele, dei-
xando cair a bengala e atirando-se ao chão.
Shaaran correu para ele, e Rowan viu-se a si próprio
a mexer-se para ir ter com ela. Juntos, puxaram Norris
pelos braços. Norris permaneceu onde estava, estendido
no meio da lama e da neve, com o corpo fustigado re-
petidamente por rajadas daquele riso terrível.
— Levante-se — ouviu Rowan dizer a si próprio
numa voz calma, determinada, que não teria reconhecido
como sua. — Nós não vamos te deixar. Mas, se ficarmos
aqui, vamos morrer todos, para nada. E quando os outros
voltarem da costa...
— Eles não vão voltar — disse Norris com uma
voz arquejante, no meio de gargalhadas que mais pareciam
soluços. — Tenho certeza de que, neste momento, eles já
morreram todos, e a Feiticeira também já morreu. Vocês
não compreendem? Estamos acabados. Isto é o fim.
Isto é o fim...
Shaaran abriu a boca como se fosse gritar. Mas o
som, quando saiu, foi muito sumido, como se Rowan o
estivesse a ouvir de muito longe. Uma névoa estava a fe-
char-se sobre os seus olhos...
Acordou sufocado, com o coração a bater com
força. Estava a arder, banhado em suor.
Saltou da cama, O grito de Shaaran ainda ecoava na
sua mente quando cambaleou até à janela e a abriu. Incli-
nou-se para a noite, respirando fundo. A neblina rodopia-
va à volta da sua cabeça, espessa e gelada.
Aprenda o que é ser o que eu sou...
— Não! — disse Rowan desesperadamente a si
próprio, pressionando os dedos contra a madeira áspera
do parapeito. Foi apenas um sonho estúpido! Não havia nada de
real nele. Como é que eu poderia subir à Montanha com Shaaran e
Norris? Amanhã de manhã, eles vão partir para a costa com os
outros.
Depois o seu coração deu um enorme baque, pois
subitamente o grito que ouvira no seu sonho chegou outra
vez até ele, abafado pela neblina, mas alto e cheio de ter-
ror.
E, desta vez, ele não teve qualquer dúvida de que
era real.
5
SUSTOS

R owan desceu as escadas correndo. Calçou as botas


e vestiu o casaco, que tinham estado a secar junto
das brasas da lareira, e saiu disparado para a noite.
Ouviu Jonn, Jiller e Annad a acordar e a chamar. Ele res-
pondeu-lhes, mas não parou.
Não havia tempo. Ele tinha certeza de que a voz
que ouvira era de Shaaran, e Shaaran não teria gritado da-
quele modo se não estivesse aflita.
A neblina era como um cobertor branco à frente
dos seus olhos. Com os braços estendidos para tentar o-
rientar-se, chegou, aos tropeções, ao portão do jardim.
Durante longos momentos, o silêncio foi total. Depois,
vindo de algum lugar mais adiante, ouviu-se um estrondo,
a voz de Shaaran a pedir desesperadamente ajuda, e outra
voz, estridente e a falar atrapalhadamente.
E agora ele conseguia ver uma luz a cintilar — uma
chama —, a oscilar, sumida, através da neblina. Sem pen-
sar em mais nada, desatou a correr.
Já havia mais gente acordada. Rowan ouviu as suas
vozes alarmadas a fazer perguntas, e os sons de portas e
janelas a abrir-se. Mas ele sabia que estava mais perto da
agitação do que qualquer outra pessoa.
Ele não conseguia compreender uma única das pa-
lavras frenéticas que ainda se misturavam com os gritos de
Shaaran, mas a voz estridente era demasiado familiar, e a
visão da chama tremida constituiu um aviso sinistro do
que ele estava prestes a encontrar.
Tal como esperava, quando chegou à casa dos li-
vros, a porta estava escancarada e, no interior, a luz e as
sombras moviam-se de um lado para o outro. Shaaran,
cuja figura frágil era inconfundível mesmo na obscuridade,
estava lutando com uma figura escura ao fundo da sala. E
havia fogo em algum lugar!
Com um grito, Rowan entrou na sala correndo, e
quase tropeçou num corpo que estava caído, imóvel, no
chão. Recuou, cambaleante. A luz das chamas dançava
sobre o rosto inconsciente.
Era Norris. Tinha a cabeça encostada na base de
uma estante de livros alta, os olhos fechados e a testa
cheia de sangue. Havia um archote a arder ao lado da sua
mão, como se, ao cair, ele o tivesse deixado tombar. O
assoalho por baixo do archote soltava fumaça, e alguns
dos livros na prateleira já estavam a arder, lambidos avi-
damente pelas chamas que subiam em direção ao teto,
atiçadas pela corrente de ar que vinha da porta.
Rowan pegou no archote e segurou-o bem alto.
Agora ele via Shaaran nitidamente. E conseguia ver que o
homem a que ela se agarrava com toda a força. Era Neel,
o oleiro, com o rosto pálido contorcido de raiva enquanto
tentava libertar-se. Rowan deu um passo em frente.
— Não! — gritou Shaaran. — O fogo, Rowan!
Apague o...
Com um grito de raiva lancinante, Neel fez um úl-
timo esforço, atirou-a para o lado e saltou sobre Rowan.
Rowan viu, de relance, o seu rosto tresloucado, os olhos
desvairados, os dentes à mostra, os lábios salpicados de
espuma. Depois Neel lançou-se sobre ele, atirando-o no
chão e tentando arrancar-lhe o archote da mão.
— Largue! — rosnou Neel. — Dê-me! As sedas
têm que ser queimadas! Tenho que as queimar para nos
salvar a todos.
— Não! — disse Rowan, ofegante, agarrando com
força no archote enquanto os dedos fortes de Neel ten-
tavam obrigá-lo a soltá-lo. Ele sabia que não ia conseguir
resistir durante muito mais tempo.
Virou a cabeça até conseguir ver a porta e abriu
muito os olhos, fingindo uma expressão de surpresa e alí-
vio.
— Jonn! — gritou ele. — Ajude-me!
Neel também olhou para a porta. A sua atenção va-
cilou, e ele abriu um pouco a mão. Apenas por um ins-
tante, mas foi o suficiente. Rowan libertou o braço e ati-
rou o archote através da porta aberta para a neve.
Neel gritou e correu atrás do archote. Com a cabe-
ça à rodar, Rowan levantou-se e fechou a porta com um
pontapé. Tirou o casaco e começou a tentar apagar o fogo
das estantes com ele. Muitos livros já tinham queimado.
Chamas pequenas, ávidas, corriam como insetos ao longo
das prateleiras. A sala estava cheia de fumaça.
— Shaaran, sai daqui! — gritou ele.
Quando não recebeu resposta, olhou em volta, re-
ceoso. Através de um véu de fumaça espesso, ele viu, es-
pantado, que Shaaran estava em cima de uma mesa ao
fundo da sala. Estava de costas para ele e tirava rapida-
mente as sedas penduradas, embrulhando-as e metendo-as
na caixa de madeira.
Rowan voltou a chamar, mas Shaaran não se virou.
Estava tão concentrada na sua tarefa que ele duvidou que
ela o conseguisse sequer ouvir. A fumaça estava ficando
cada vez mais espesso. Enquanto a observava, ela come-
çou a tossir e a ficar engasgada.
— Shaaran! — gritou ele.
A porta abriu-se com estrondo atrás dele. Ele deu
meia volta, aterrorizado com a possibilidade de Neel ter
voltado, mas foi inundado por uma sensação de alívio
quando viu, envolvidos pela neblina que se misturava com
a fumaça, os rostos chocados de Jonn, Jiller e Bronden,
com uma multidão de gente atrás deles. Jonn tinha uma
lamparina acesa na mão.
— Foi o Neel! — disse Rowan. — Ele tentou
queimar as sedas. Ele fugiu. Lá fora...
Com uma expressão de ira no rosto, Jonn deu meia
volta e desapareceu na neblina. Bronden foi correndo a-
trás dele. Os outros começaram a pedir cobertores e água.
Deixando-os a apagar o fogo e a tratar de Norris,
Rowan tapou a boca e o nariz com o cachecol e mergu-
lhou na fumaça espessa no fundo da sala.
Encontrou Shaaran a alguns passos da mesa. Ela
tinha a caixa de sedas nos braços mas, vencida pela fuma-
ça, tinha caído de joelhos. Rowan puxou-a, para a pôr de
pé, e começou a arrastá-la em direção à porta.
— Eu não conseguia dormir — disse Shaaran, en-
gasgada. As palavras jorravam dela, entrecortadas pela
tosse e pelos soluços. — Estava preocupada com as sedas.
Por isso, eu e o Norris viemos buscá-las, e... e vimos uma
luz, e era o Neel. Chegamos... mesmo a tempo. Ele estava
prestes a... Norris tirou-lhe o archote, e eles lutaram... o
Neel empurrou-o, e ele caiu e bateu com a cabeça...
— Fique quieta agora, Shaaran. O Norris está em
segurança — acalmou-a Rowan. — E as sedas também
estão em segurança.
Mas uma mão fria apertou-lhe o coração quando
eles saíram finalmente para o ar frio do exterior e viram
Norris, embrulhado num cobertor, apoiado no ombro de
Allun. Norris tinha os olhos vidrados e transpirava de dor
ao tentar pôr-se de pé sobre uma perna que claramente
não aguentava com ele.
Ele sofrerá mais do que uma pancada na cabeça.
Quando caíra, tinha macucado a perna. Agora já não iria
deixar a aldeia com os outros na manhã seguinte. Ele não
conseguiria fazer a viagem até à costa. E Shaaran não a-
bandonaria o irmão. Nada havia de mais certo.
Mesmo assim, isto não significa que o sonho tenha
sido uma profecia, disse Rowan a si próprio, atordoado,
quando Shaaran se soltou dele e correu, aos tropeções,
para junto de Norris. Claro que não significa!
Percebeu que os bukshah estavam a mugir. Certa-
mente que os gritos e o cheiro do fogo os perturbara. Ou
talvez Neel tivesse corrido em direção a eles e os tivesse
sobressaltado.
Inquietos como eles andavam ultimamente, isso
podia ser desastroso. Rowan sabia que, se não fosse feito
nada para os acalmar, eles podiam voltar a derrubar a cer-
ca e fugir. Abrindo caminho por entre a multidão, come-
çou a dirigir-se apressadamente para o campo dos bukshah.
Ele viu, aliviado, que a estranha neblina se tornara
mais fina, pelo que, mesmo sem luz, conseguia ver bas-
tante bem o caminho. Enquanto caminhava, pensava. E,
quanto mais pensava, mais convencido ficava de que o
fato de Norris e Shaaran permanecerem na aldeia não
passava de uma simples coincidência.
Aquelas capas com capuz que usávamos no meu
sonho, eram apenas capas antigas dos guerreiros de Rin,
feitas de pele de bukshah, disse ele a si próprio. Já não há
capas assim em Rin. E, além disso, no sonho, Norris disse
que Sheba tinha ido para a costa. Isso seguramente que não
irá acontecer. Foi a própria Sheba que me disse.
Os bukshah ainda estavam a chamá-lo. O mugido
distintivo da Estrela era mais alto do que todos os outros.
Rowan apressou o passo. Quando chegou ao portão do
campo, estava quase a correr.
Ao lado do portão estava o barracão onde era ar-
mazenada a comida da manada para o Inverno. Rowan
abriu a porta do barracão, mergulhou na escuridão adoci-
cada do interior e tirou metade de um fardo de feno da
orla da pequena pilha que restava. Ele sabia que um pouco
de comida acalmaria os enormes animais mais rapida-
mente do que qualquer outra coisa. Com o fardo às cos-
tas, ele entrou no campo e chamou em voz baixa.
Os mugidos pararam, mas os bukshah não se apro-
ximaram dele. Intrigado, Rowan, espreitou através da es-
curidão e da neblina que ainda rolava, espessa, sobre o
riacho congelado, e voltou a chamar.
Ouviu a Estrela responder-lhe com um mugido, mas
não viu qualquer movimento. Rowan dirigiu-se cautelo-
samente para o som e, ao fim de algum tempo, viu formas
cinzentas corcovadas, encostadas, sem se mexerem, à cer-
ca que separava o campo do pomar. Ali, a neblina era a-
penas um véu tênue e, passado pouco tempo, ele conse-
guiu ver claramente a manada.
Os bukshah tinham-se juntado num grupo, muito
perto uns dos outros, com os maiores e mais fortes no
lado de fora, e os mais fracos no meio. Mesmo depois de
verem o que Rowan trazia, nenhum deles se mexeu exceto
a Estrela, que deu apenas um passo em frente.
— Estrela, não há razão para ter medo — disse
Rowan suavemente quando chegou ao pé dela e deixou
cair o fardo de feno aos seus pés. — O Neel nunca te fa-
ria mal, e o fogo está apagado. Está em segurança.
A Estrela abanou a cabeça, soltando um mugido
vindo do fundo da garganta. A sua pele estremecia de-
baixo da lã encaracolada da crina.
Rowan sentiu uma desagradável ponta de dúvida.
Estariam os bukshah realmente em segurança? A Estrela
certamente que achava que não, e Rowan sabia que, no
passado, os instintos dela tinham sido mais fiáveis do que
os dele.
Ele contou rapidamente as cabeças. Depois, com
uma crescente sensação de frio no peito, moveu-se por
entre os animais, chamando-os pelo nome. Todos, exceto
um, responderam. Faltava a Crepúsculo, a bukshah cin-
zento-clara que era a mais velha, a mais peluda da manada,
a favorita de Lann. E só podia haver uma razão para isso.
Tentando dominar o desespero, Rowan baixou-se
para desfazer o fardo para que toda a manada pudesse
comer.
— Sinto muito, Estrela — disse ele. — Sinto muito
por Crepúsculo. Não percebi que ela estivesse... tão fraca.
Amanhã de manhã vou à procura dela. Mas por agora...
— Rowan! É você?
Rowan deu um salto. A voz de Jonn, vinha da di-
reção do pomar, tinha um tom estranhamento tenso.
Rowan espreitou por cima da cerca. Viu, indistinta-
mente, o brilho de uma lamparina.
— Sou, sim, Jonn! — gritou ele.
— Rowan, venha cá!
Não havia dúvida de que a voz de Jonn estava alte-
rada. O que teria acontecido? Seria alguma coisa a ver com
o Neel?
Com o coração na boca, Rowan fez uma última ca-
rícia à Estrela, saltou por cima da cerca e atravessou a neve
em direção à luz da lamparina.
Encontrou Jonn à sua espera no meio das primeiras
árvores semi-enterradas. O homem grande parecia per-
turbado, mas os seus olhos abriram-se muito, numa ex-
pressão de choque, quando Rowan emergiu da escuridão.
— Rowan! — exclamou ele. — Onde está o seu
casaco? Deve estar gelado!
Só então Rowan percebeu que tinha deixado o ca-
saco no chão da casa dos livros. Ele tinha saído para o
campo dos bukshah sem qualquer proteção a não ser o ca-
saco de lã. E nem sequer tinha reparado.
Ele e Jonn ficaram olhando um para o outro, es-
pantados, durante um longo momento, depois Jonn aba-
nou violentamente a cabeça, como que a desanuviá-la.
— Faz tudo parte da mesma coisa! — murmurou
ele para si próprio. Depois, abruptamente, fez sinal para
Rowan. — Venha ver uma coisa! — ordenou ele. — Veja
o que encontrei quando andava à procura do Neel.
Ele virou-se e começou a caminhar por entre as ár-
vores. Rowan seguiu-o, curioso. O seu estômago começou
a dar voltas quando percebeu que Jonn se dirigia para a
cabana de Sheba.
Na orla do pomar, Jonn parou e levantou a lampa-
rina. A sua frente estava o caminho desimpedido que ia ter
à porta de Sheba.
Mas não estava igual ao que Rowan vira na última
vez que lá estivera. Não havia nenhuma luz trêmula a bri-
lhar, oriunda da cabana. Não havia qualquer cheiro acre de
fumaça. Não se ouvia qualquer entoação. E junto à porta
começava uma trilha larga, preta, que descrevia uma curva
através da neve pisada e desaparecia nas colinas mais adi-
ante.
Rowan ficou a olhar.
— O que é? — perguntou ele em voz baixa.
Sem dizer uma palavra, Jonn conduziu-o até a trilha
preta. Quando o pisou, Rowan sentiu o calor elevar-se do
chão, mesmo através das suas botas grossas, molhadas.
Deu alguns passos e viu, espantado, o vapor a erguer-se
dos lugares que ele pisava.
— A trilha atravessa as colinas — disse Jonn, cuja
voz habitualmente calma estava tensa de excitação. —
Segui ao longo dele, até ter a certeza. Vai dar no riacho,
depois continua em direção à costa.
Rowan ficou a olhar, incapaz de assimilar o que es-
tava a acontecer. Engoliu com dificuldade.
— Mas a Sheba disse-me...
— E só te disse a verdade! — interrompeu-o Jonn.
— A sua maneira rancorosa, enganadora, ela lhe disse e-
xatamente o que estava a planejar. Ela disse que havia de
nos fazer ver, e ela está a fazer-nos ver. Ela disse que não
deixaria a aldeia conosco, e não o vai fazer. Porque ela já se
foi embora! Ela vai guiar-nos!
Ele agarrou no braço de Rowan.
— Não percebe, Rowan? O feitiço do calor era pa-
ra isto. A Sheba vai abrir uma trilha através da neve, até à
costa!
— Mas... — a palavra pareceu ficar colada à gar-
ganta de Rowan. Ele sentia-se sufocar com uma mistura
de espanto, alívio e medo. — Mas a Sheba mal consegue
andar, Jonn! Mesmo que conseguisse derreter a neve, co-
mo é que ela...?
— Ela não vai a pé, vai montada — disse Jonn, bai-
xando a lamparina para que a luz iluminasse o chão preto.
E ali estavam, inconfundíveis, as pegadas pesadas de um
animal enorme, com garras.
As pegadas de Unos, a grach.
6
DESCOBERTAS MACABRAS

E foi assim que os habitantes de Rin saíram no seu


vale ao nascer do dia, não a caminhar penosa-
mente através da neve espessa como tinham pen-
sado, mas avançando em quatro filas, lado a lado, ao lon-
go da trilha preta queimada que a sua Feiticeira tinha dei-
xado para eles seguirem.
Rowan e Shaaran despediram-se deles no local em
que a trilha preta se encontrava com o riacho, depois fica-
ram a vê-los afastar-se. As pessoas iam de cabeça erguida,
com os olhos fixos no horizonte. Sentiam o coração pe-
sado, mas não choraram, e apenas Allun, o meio-Viajante,
olhou para trás.
— Eles não querem saber — murmurou Shaaran,
com os olhos rasos de lágrimas.
— Querem, sim — replicou Rowan. — Mas eles
não têm feitio para manifestá-lo. — Ele retribuiu o aceno
de Allun e depois deu meia-volta, para não continuar a ver
a longa fila que seguia para leste, a única coisa que se mo-
via na imensidão branca.
— Vamos — disse ele pondo o braço à volta dos
ombros de Shaaran. — Temos que voltar para junto dos
outros. O Norris deve estar preocupado com o seu para-
deiro.
Shaaran mordeu o lábio.
— Não está, não — disse ela em voz baixa. — Ele
está muito zangado porque me recusei a deixá-lo. Ele diz
que a minha fraqueza nos envergonha aos dois. Mas, com
exceção do meu avô, o Norris era o meu único compa-
nheiro na terra dos Zebak. Eu não podia abandoná-lo,
Rowan. Não podia!
Rowan teve pena dela. Ele sabia muito bem o que
era sentir-se uma pessoa fraca, diferente, no meio dos
fortes habitantes de Rin.
— Você não é fraca, Shaaran — disse ele, quando
iniciaram a caminhada de regresso à aldeia. — Ao seu
modo, você é muito forte. Olhe só como lutou com o
Neel para proteger as sedas!
Ele desejou imediatamente não ter falado, pois
Shaaran estremeceu ao ouvir o nome de Neel. Apesar de
uma busca que durara horas, o oleiro não tinha sido en-
contrado na noite anterior.
— O idiota caiu num buraco e ficou congelado,
podem ter a certeza — dissera Lann num tom inexpressi-
vo.
Mas Rowan e Jonn não tinham tanta certeza. E
Shaaran tinha medo de que Neel estivesse à espreita em
algum lugar na aldeia, à espera de uma oportunidade para
voltar a tentar destruir as sedas.
— Eu não culpo o Neel — disse ela. — Ele só
tentou fazer o que pensou que estava certo, e espero, do
fundo do coração, que ele esteja bem. Mas se ao menos o
conseguíssemos encontrar! Assim poderíamos conversar
com ele, explicar-lhe...
Rowan olhou para ela e fez votos para que ela não
repetisse essas palavras de perdão em frente de Lann. A
velha guerreira ouvi-las-ia com desdém.
Quando passaram pela cabana de Sheba e começa-
ram a atravessar o pomar, Rowan lembrou-se de algo que
talvez desviasse os pensamentos de Shaaran dos seus pro-
blemas.
— Tenho que ir dar de comer aos bukshah — disse
ele. — Quer vir comigo?
Shaaran hesitou, e uma mistura de medo e vontade
de agradar perpassou-lhe o rosto. Rowan sempre se admi-
rara com o fato de ela ter medo dos meigos bukshah, ao
passo que Unos, a grach, horrenda e com garras, não a
assustava absolutamente nada.
— Não faz mal — disse ele rapidamente. — Em
todo o caso, eu tenho que ir falar primeiro com a Lann,
senão ela ficara preocupada. Mas os bukshah nunca te fa-
riam mal, Shaaran. Eles são uns animais muito meigos.
— Os chifres têm um aspecto muito perigoso —
respondeu Shaaran em voz baixa.
Rowan riu-se.
— Eu já te disse... eles nunca usam os chifres —
disse ele. — Nem sequer uns contra os outros.
— Então porque é que eles têm chifres? — retor-
quiu Shaaran.
Rowan não conseguiu encontrar resposta para essa
pergunta. Ele já a tinha feito muitas vezes a si próprio.
Quando chegaram à aldeia, esta estava estranha-
mente silenciosa. Atravessaram a praça sem falarem, pas-
sando instintivamente em bicos de pés pelas casas fecha-
das, de portadas encerradas. Sem gente para lhe dar vida, a
aldeia parecia um cemitério.
Quando chegaram à padaria, sentiram um enorme
alívio pois ali, pelo menos, havia barulho e movimento.
Quando Rowan e Shaaran entraram na enorme cozinha,
ouviram a voz de Lann a gritar instruções, e o som de
mobília a ser arrastada na sala de estar que ficava a seguir à
cozinha.
Para que a pequena quantidade de madeira e com-
bustível durasse o mais tempo possível, tinha sido decidi-
do que os que permanecessem em Rin iriam mudar-se
para uma única divisão, para poderem partilhar a comida,
a luz e o calor.
Lann tinha decidido que ficariam na padaria, por-
que esta era ampla e ficava perto do centro da aldeia. Ro-
wan ficou muito satisfeito. Ele adorava a padaria, que para
ele estava cheia de agradáveis recordações de Sara, a
bem-disposta mãe de Allun, e do próprio Allun a cantar
enquanto tirava tabuleiros de aromáticos bolos e pãezi-
nhos do velho forno preto.
Mas quando ele e Shaaran entraram na confortável
sala de estar atrás da cozinha, ele percebeu que, com
Lann, a vida na padaria não seria tão alegre e confortável
como tinha sido com Sara quando esta tomava conta da
casa.
Na sala ampla, já não havia mobília. As únicas pe-
ças que tinham ficado eram uma cadeira em frente da la-
reira, onde Norris estava sentado, com um ar carrancudo,
e o banco em cima do qual estava apoiada a sua perna fe-
rida.
Espalhados pelo chão, sobrepostos para evitar as
correntes de ar, estavam tapetes trazidos dos quartos. As
portadas das janelas estavam bem fechadas. Bronden es-
tava bloqueando a escada com mobília e cobertores velhos
para impedir o ar quente de subir, desperdiçando-se.
Cinco conjuntos de roupa de cama enrolada tinham
sido dispostos ordenadamente à volta das paredes nuas. O
saco dos pertences de cada pessoa tinha sido colocado ao
lado do seu rolo, e junto dele estava uma caneca de esta-
nho, um prato e uma colher.
Era como um acampamento militar preparado para
um cerco — um cerco contra o frio. Lann estava no meio
da sala, curvada sobre a sua bengala.
— Até que enfim! Finalmente chegaram! — disse
ela quando Rowan e Shaaran apareceram. — Vejam o que
já fizemos enquanto vocês dois passeavam pelas colinas.
Isto não está começando bem!
O tom da voz dela era duro, e o seu rosto era uma
massa de rugas franzidas. Rowan sentiu Shaaran en-
colher-se, encostada a ele, e suspirou interiormente. Ele
sabia perfeitamente que Lann estava a usar o trabalho e a
zanga para disfarçar a tristeza que a partida do seu povo
lhe causava. Mas, para Shaaran, a velha parecia apenas se-
vera e assustadora.
— Ajude Bronden com as escadas, Rowan dos
Bukshah — prosseguiu Lann num tom ríspido. — Você,
menina, pode ir buscar mais lenha para a lareira.
— Eu posso fazer isso — disse Norris, tentando
pôr-se de pé. — A Shaaran não é suficientemente forte
para...
— Deixe-se ficar onde está, Norris! — gritou Lann.
— Se não descansar, a sua perna não vai sarar. A sua irmã
insistiu em ficar, e tem que ganhar o seu sustento.
Norris voltou a afundar-se na cadeira, com um ar
amuado.
— Neste momento, eu não posso ajudar a Bron-
den, Lann — disse Rowan. — Tenho que ir tratar dos
bukshah. — Ele respirou fundo e obrigou-se a si próprio a
prosseguir no mesmo tom de voz. — Sou capaz de de-
morar mais do que habitualmente. A Crepúsculo morreu
ontem à noite. Tenho que ver se a encontro para enter-
rá-la, por causa dos outros.
— A Crepúsculo? — As rugas no rosto de Lann
pareceram ficar mais fundas e, por um momento, algo
semelhante ao desespero escureceu os seus olhos esmore-
cidos. Mas a única coisa que ela disse foi: — Vá enterrá-la,
então. Mas não se esqueça de a tosquiar primeiro. Não se
pode desperdiçar lã.

***

O campo dos bukshah era uma imensidão silenciosa


branca, castanha e cinzenta. Atrás dele via-se a enorme
Montanha, envolta em neblina.
Os bukshah ainda estavam muito juntos, encostados
na cerca do pomar. A neve à sua volta estava marcada pe-
los buracos que eles tinham escavado para desenterrarem
raízes de ervas, a única comida que ainda havia no campo.
Quando Rowan os chamou, eles não se aproxima-
ram nem sequer se mexeram quando ele partiu o gelo do
lago com um espigão de ferro. Só quando ele se dirigiu
apressadamente para o barracão e tirou de lá a ração de
feno diária é que eles se acercaram dele.
Quando todos eles tinham começado a comer,
Rowan pegou na pá, no saco e na tesoura grande que ti-
nha preparado e seguiu as pegadas de cascos em deban-
dada até chegar a um pedaço de terra pisada ao lado do
riacho coberto de neve.
Para sua surpresa, não havia sinal do corpo de
Crepúsculo em parte alguma.
O riacho gelado gorgolejava secretamente por bai-
xo dos seus pés quando ele atravessou a neve que o cobri-
a. A Montanha erguia-se à sua frente, uma parede disfor-
me de branco em turbilhão. O frio jorrava dela, apanhan-
do Rowan na cara como um sopro gelado, fazendo-o sus-
ter a respiração.
O choque fê-lo recuar. A voz estridente de Neel
ecoava na sua memória.
É uma maldição... Nós ofendemos a Montanha, e agora a
Montanha virou-se contra nós.
Depois Rowan viu algo em que, no frenesi dos úl-
timos dias frenéticos, não tinha reparado.
Naquele lado do riacho não havia pegadas de buk-
shah. Pequenos montes de neve, compridos e regulares,
que se erguiam ao lado uns dos outros como ondas do
mar de Maris, iam até à névoa da Montanha. Mesmo na
sua incessante busca de comida, os bukshah não tinham
atravessado o riacho desde a última queda de neve, três
dias antes.
Rowan deu subitamente um salto, ao ouvir um mu-
gido suave atrás de si. Deu meia volta e viu a Estrela no
outro lado do riacho, a observá-lo. Para experimentar, ele
estendeu a mão, convidando-a a vir ter com ele, mas ela
abanou a cabeça pesada e não se mexeu.
Arrastando a pá atrás de si, Rowan atravessou no-
vamente o riacho e aproximou-se da Estrela. Enfiou as
mãos enluvadas na lã espessa da sua crina e sentiu a pele
tremer debaixo dela.
— Estrela, onde é que a Crepúsculo caiu? — mur-
murou ele.
A Estrela escavou o chão com as patas, com a ca-
beça baixa e com as pontas dos seus enormes chifres cur-
vos quase a tocarem na neve.
— A Crepúsculo! — repetiu Rowan, agarrando
com um pouco mais força na crina. — Mostre-me, Estrela.
A Estrela virou a cabeça para olhar para ele. Depois,
com relutância, começou a andar.
Ela conduziu Rowan ao longo do riacho escondido
até chegar ao canto mais distante do espaço pisado. Ali,
ela parou e recomeçou a escavar o chão.
Rowan olhou em volta. Não havia nada para ver,
exceto um enorme monte de neve que atravessava o ria-
cho e terminava num montículo na orla do espaço.
Ocorreu-lhe uma idéia horrível. Talvez a Crepús-
culo tivesse caído de joelhos, e a extremidade do monte de
neve tivesse desabado em cima dela quando ela tentava
levantar-se. Este pensamento fez-lhe arder os olhos. Lim-
pando as lágrimas antes que estas caíssem e congelassem
nas suas faces, ele pegou na pá e começou a escavar o
montículo de neve.
A Estrela recuou, mugindo insistentemente.
— Não tenha medo, Estrela — disse Rowan. Mas,
com cada pazada de neve que ele atirava para o lado, o seu
próprio medo aumentava. Tinha as mãos a tremer.
O que se passa comigo? pensou ele, zangado. Eu já vi a
morte antes, muitas vezes. Cerrando os dentes, inclinou as
costas para trás e cavou com mais força, abrindo um túnel
na massa branca congelada.
Depois, subitamente, com um grito de choque, foi
impelido para a frente, tropeçando e quase caindo. A pá
tinha mergulhado no vazio. Num espaço oco por baixo da
neve.
Rowan pôs-se de joelhos e espreitou para o espaço
oco. Todo ele ficou arrepiado.
Um espaço comprido, estreito, sombreado de azul.
O gorgolejar alto do riacho a ecoar das paredes geladas.
Ar inerte, tão frio que lhe fazia doer os lábios e os olhos,
tão frio que o medalhão que ele tinha ao pescoço parecia
queimar.
Rowan ficou boquiaberto, hipnotizado pelo ambi-
ente estranho, paralisado de medo. A Estrela gemeu, to-
cando-lhe com o focinho, incitando-o a levantar-se. O
toque dela quebrou o feitiço. Os seus olhos adaptaram-se
lentamente à luz, e a sua mente deu sentido ao que ele vi-
ra.
A neve que desabara tinha escondido a entrada de
um túnel por baixo do monte de neve. No outro extremo,
preso entre as paredes congeladas, estava algo peludo e
cinzento.
A Crepúsculo.
Um nó formou-se na garganta de Rowan. Ele pen-
sou que conseguia perceber o que acontecera. Tal como
ele receara, Crepúsculo tinha caído e fora soterrada pela
neve que desabara. Ela devia ter conseguido arrastar-se
para a frente durante algum tempo, formando, ao mo-
ver-se, um túnel através da brancura gelada. Depois,
quando, finalmente, não conseguira avançar mais, ela ti-
nha simplesmente pousado a cabeça e morrido.
Ele pôs-se de pé, a tremer. A idéia de desenterrar
os restos patéticos da Crepúsculo e de lhe tirar a lã en-
cheu-o de repulsa. A idéia de entrar naquele túmulo ge-
lado, de sombras azuis, encheu-o de medo. Ele soube que
não conseguia fazê-lo.
Pegou na pá e, com alguns movimentos, fechou a
entrada do túnel, voltando a selá-lo.
A Estrela tocou-lhe com força no braço, ansiosa por
sair dali. Rowan pegou-lhe na crina e deixou que ela o
conduzisse. Por baixo do seu pêlo espesso, a pele dela es-
tremecia, estremecia.
Os animais são mais sábios do que imaginamos...
Os dedos de Rowan fecharam-se sobre a lã macia,
ao mesmo tempo que um pensamento terrível lhe pe-
netrou na mente como um fragmento de gelo.
A Estrela amava-o, mas já não confiava nele para
tomar decisões por ela. Ela sabia que o frio vinha da
Montanha. Há dias que ela o sabia. Ela sabia que todos os
cuidados de Rowan e o conforto que ele lhes pudesse
proporcionar só resultariam numa morte mais lenta para a
manada.
Como se sentisse o desespero de Rowan, a enorme
bukshah parou e levantou a cabeça para olhar para ele. Fi-
tou-o nos olhos, com os seus olhinhos pretos a tentar ler
os dele. Rowan retribuiu o olhar dela, impotente. Ao fim
de algum tempo, a Estrela desviou os olhos e prosseguiu o
seu caminho.

***

O resto do dia passou como um sonho — um so-


nho estranho, quase silencioso. O único som que se ouvia
era o de Bronden a martelar, a entaipar as casas para as
proteger do frio.
Rowan não disse nada sobre o que encontrara no
campo dos bukshah. Não tinha vontade de falar da morte
estranha e horrível da Crepúsculo. Nem estava pronto
para falar do terror que sentira quando o sopro gelado da
Montanha o atingira no rosto. Se dissesse aos outros que
aquele frio terrível que se apoderava da terra provinha da
Montanha, estaria parecendo tão histérico e supersticioso
como Neel.
Passou o resto da manhã a cumprir as ordens de
Lann, transportando comida, combustível e outras coisas
necessárias para a padaria, procurando em vão uma lam-
parina que ninguém sabia onde fora deixada, e que Lann
insistia que era indispensável e que precisava de ser en-
chida de óleo. A tarde, após uma frugal refeição de pão e
queijo, ele trabalhou no campo dos bukshah, verificando as
cercas, partindo novamente o gelo do lago enquanto a ma-
nada o observava com um ar apático.
À medida que escurecia, o ar foi-se tornando mais
frio. Mais frio do que nunca. Rowan continuou a traba-
lhar. Manteve os olhos baixos para não ter que olhar para
a Montanha. Mas todos os nervos do seu corpo estavam
conscientes dela, pairando acima dele, soprando o frio,
soprando a morte.
Quando o Dragão do topo da Montanha rugiu ao
crepúsculo, ele tinha as mãos tão dormentes que já não
conseguia pegar nas ferramentas. A neblina estava a tor-
nar-se mais espessa na base da Montanha, deslocando-se
através dos montes de neve em direção ao riacho. Ele sa-
bia que tinha que procurar a segurança da padaria, e de-
pressa. Mas não queria deixar os bukshah, que permane-
ciam muito juntos ao pé da cerca do pomar. Ele temeu o
que a noite pudesse trazer.
7
TERRORES NOTURNOS

R owan atravessou as ruas sombrias, desertas, pas-


sando pelas casas entaipadas, sentindo-se um fan-
tasma. Mas quando chegou finalmente à padaria e
entrou na cozinha quente, iluminada, ficou um pouco
mais animado.
Uma panela de sopa, rala, mas aromática, fervia a
fogo brando em cima do fogão. Na sala de estar ao lado,
tudo era paz e tranquilidade. Norris estava a ensinar
Bronden a fazer um nó de corda que ela não conhecia.
Lann dormitava ao pé da lareira. E Shaaran estava de pé
em frente de um pedaço de seda esticado numa armação,
com um pincel fino na mão.
— Lann disse que eu devia fazer uma seda deste
momento... da neve e das pessoas a abandonarem a aldeia
— explicou ela a Rowan quando ele se aproximou dela. —
Ela disse que era uma coisa importante que eu podia fazer.
Ela disse que eu tenho que dar continuidade ao trabalho
dos meus antepassados, pintando os acontecimentos im-
portantes da nossa história, de modo a que os que vierem
a seguir não se esqueçam. Os contornos já estão quase
acabados.
Rowan olhou, com admiração, para o belo desenho
— uma longa fila de pessoas a caminhar ao longo de uma
estrada preta que seguia para leste, os bukshah no seu
campo, a Montanha a pairar sobre todos eles. Depois, os
seus olhos cruzaram-se com os de Shaaran, e estes já não
eram mortiços, cheios de desalento, mas sim determina-
dos, e ele abençoou Lann por ter pensado na única coisa
que a poderia reconfortar.
Nessa noite, ele foi cedo para a cama. Não lhe ape-
tecia conversar. Havia demasiadas coisas na sua cabeça
que não podia partilhar. Mas, embora estivesse muito can-
sado, lutou contra o sono.
Ficou deitado com a cara virada para a parede en-
quanto Lann, Bronden e Norris permaneceram sentados à
lareira, a conversar sobre os que se tinham ido embora,
perguntando a si próprios quantos quilômetros teriam
percorrido naquele dia e se estariam em segurança.
Lentamente, as vozes foram ficando mais indistin-
tas, até se transformarem num suave murmúrio em algum
lugar na orla do seu consciente. Ele fechou os olhos e o-
brigou-se a si próprio a descontrair-se.
Não tenha medo, disse ele a si próprio. Desta vez não
vai sonhar. Não vai sonhar...

***

Rowan abriu os olhos. Estava num caverna. A ne-


blina rodopiava na escuridão para além do triângulo es-
treito, denteado, da entrada da caverna. Ao seu lado, esta-
vam três pessoas embrulhadas em capas pesadas, muito
juntas à volta de uma lareira minúscula. A luz vermelha
trêmula, mal se distinguiam os seus rostos, mas Rowan viu
o suficiente para saber quem eram. Norris. Shaaran. Ele
próprio.
Os três não lhe prestaram qualquer atenção. Ele sa-
bia que não o podiam ver. Desta vez, ele soube imediata-
mente que estava a sonhar.
— O fogo vai manter-nos em segurança — mur-
murou Shaaran. — Seguramente que vai.
— Devia manter — retorquiu Norris num tom
impaciente. — Mas a noite vai ser longa.
Rowan viu a sua imagem para a menina. Os olhos
dela estavam escuros de medo. A caixa de sedas estava em
cima do seu colo. Ela agarrava-a com tanta força que os
seus dedos estavam brancos.
— Vamos ver algumas sedas — sugeriu a figura
Rowan suavemente. — Vamos pensar nos tempos anti-
gos. Isso vai desviar as nossas mentes do presente e re-
cordar-nos o motivo por que estamos aqui.
Norris resmungou, mas a menina, grata, acenou a
cabeça em sinal de concordância. Ela abriu a caixa e mos-
trou os familiares rolos de seda. Enfiou a mão na caixa e
tirou um ao acaso, depois levantou-se e desenrolou-o. A
figura Rowan susteve a respiração. Norris virou-se. A me-
nina olhou para baixo, viu qual era a pintura e exclamou,
desanimada:
— Oh, que pouca sorte! Eu não queria...
Ela calou-se e, com mãos trêmulas, começou a en-
rolar novamente a pintura. Mas Rowan tinha visto o sufi-
ciente para ficar com os cabelos da nuca em pé.
A pintura era toda a preto e branco, com sombras
azuis e cinzentas. As sombras eram claras e precisas, as
criações de uma mão hábil.
Uma longa fila de pessoas a caminhar através das
colinas cobertas de neve, ao longo de uma trilha preta que
seguia em direção a um horizonte ermo. Os bukshah, os
únicos objetos escuros numa imensidão branca, estavam
muito juntos por baixo da Montanha que pairava acima de
tudo, envolta em neblina.
E da neblina emergiam, a contorcer-se, centenas,
milhares de coisas brancas enormes parecidas com cobras
sem olhos. Coisas com maxilares abertos, revestidos de
azul, e dentes que pareciam estilhaços de gelo. Coisas que
deslizavam e saíam, ondulantes, do gelo, coisas que faziam
túneis através da neve, procurando, procurando...
Algo agarrou no braço de Rowan. Ele estremeceu,
com o choque, e tentou sacudi-lo. Tentou gritar, mas a
única coisa que conseguiu emitir foi um gemido estran-
gulado.
— Rowan! — A voz era alta ao seu ouvido. Era a
voz de Bronden murmurando secamente. — Acorde! Está
a mexer-te muito e a gemer, perturbando-nos a todos.
Acorde, ou fique quieto, por favor.
Os olhos de Rowan abriram-se rapidamente. Du-
rante uma fração de segundo ele ficou imóvel, ofegante, a
olhar para o rosto gordo, irritado, de Bronden. Depois
pôs-se de pé num salto, quase a deitando ao chão.
— O que se passa com você? — exclamou ela com
um ar zangado.
Rowan tinha a garganta apertada de medo, e a ca-
beça a andar à roda com as visões do sonho.
— Os bukshah! — disse ele com a voz estrangulada,
calçando as botas e pegando na sua faca. — Eu estava
enganado! Muito enganado! A Estrela sabia... todos eles
sabiam... ah, pobre Crepúsculo! Ela foi a primeira. Agar-
raram nela e arrastaram-na. Arrastaram...
Bronden fitava-o, boquiaberta. À luz fraca do Fogo,
ele viu Lann acordar lentamente, e Norris e Shaaran a fi-
tá-lo.
O fogo manter-nos-á em segurança...
Rowan correu para o outro lado da sala, tirou um
archote da pilha e mergulhou-o nas brasas da lareira. Ele
pegou rapidamente fogo.
— Rowan! — gritou Lann, estendendo impacien-
temente um braço para que Bronden a puxasse para se
pôr de pé. — O que é que passa?
— Tragam archotes! — gritou Rowan. — O campo
dos bukshah! Apressem-se, por favor!
Segurando o archote bem alto, ele correu para a co-
zinha e saiu para a rua, onde uma neblina gelada rodopia-
va como uma coisa viva, prendendo-se à roupa, pene-
trando-lhe nos pulmões, cegando-o.
Mas ele correu como o vento, com o coração a ba-
ter com força e o peito a doer de medo. Ouvia os passos
pesados de Bronden atrás de si. E também uns passos
mais leves, atrás de Bronden. E Norris a ordenar a Shaa-
ran que voltasse para trás, que se deixasse ficar em segu-
rança. E Lann a gritar ordens inúteis a todos eles.
Quando emergiu do aglomerado de casas e se diri-
giu para o campo silencioso dos bukshah, Rowan olhou
por cima do ombro e viu as chamas trêmulas dos archotes
através da névoa. Quatro archotes em fila, a balancear pa-
ra cima e para baixo.
Uma para chorar e uma para lutar,
Uma para sonhar e uma para voar...
E subitamente, muito perto, ouviu um grito lanci-
nante.
Não era a Estrela. Nem nenhum dos outros bukshah.
Animal algum fazia aquele som. Aquela era uma voz hu-
mana a flutuar através da névoa em ondas de um frio
mortal.
À frente viam-se os contornos do barracão da co-
mida. A porta estava escancarada. Ao lado dele, uma parte
da cerca estava achatada, meio enterrada na neve pisada. E
muito perto, no campo dos bukshah, havia uma luz a mo-
ver-se desordenadamente.
— Ah, não! Não! — o grito lancinante erguia-se,
estridente, num lamento.
Rowan passou por cima da cerca deitada abaixo. E
através da névoa viu Neel, o oleiro, a escorregar e a cam-
balear, recuando, na neve.
Neel gritava, ao mesmo tempo que recuava na di-
reção do barracão, rodando a lamparina em arcos enormes
em frente do corpo.
Ele tinha bocados de feno agarrados ao cabelo e à
roupa. A neblina rodopiava à sua volta, por cima dele,
formando formas brancas que se contorciam à luz da
lamparina. Os seus olhos estavam muito abertos e fixos, e
o rosto distorcido virado para cima era uma máscara de
terror.
O Neel não está morto, deu Rowan por si a pensar
inexpressiva, estupidamente, ao mesmo tempo que a sua
mente absorvia o que os seus olhos viam. Neel tinha le-
vado a lamparina de Lann. Durante todo aquele tempo,
Neel estivera escondido no barracão da comida dos ani-
mais, atrás dos fardos de feno. Mas o que é que ele...
Porque é que ele...?
Neel gritou, rodando a lamparina muito alto. Foi
então que Rowan, horrorizado, viu finalmente o que o
oleiro via. Viu o que eram as formas que se contorciam
para além do círculo de luz.
A volta de Neel, a pairar por cima dele, havia ani-
mais brancos enormes, horrendos, parecidos com cobras,
com as cabeças sem olhos viradas para baixo em posição
de ataque, e as bocas abertas como buracos na neve som-
breados de azul.
Neel gritou outra vez, e óleo a arder derramou-se
da lamparina quando ele a rodou por cima da cabeça. Fo-
go líquido salpicou-lhe as mãos e caiu, crepitante, na neve.
Os animais silvaram, e o frio do seu sopro pareceu gelar o
ar, de tal modo que este se tornou mais espesso e branco.
Neel caiu de costas, ainda a segurar na lamparina. O suor
do seu rosto congelou numa máscara pálida, rachada.
Rowan gritou e deu um salto em frente, segurando
o archote bem alto acima da cabeça. Deslizou em direção
a Neel, tentando desesperadamente alcançá-lo. Mas Neel
estava outra vez a gritar, contorcendo-se no chão gelado.
Rowan agarrou-lhe no braço e tentou puxá-lo e pô-lo de
pé. Neel agarrou-se a ele e fê-lo cair de joelhos.
— Eles vieram atacar-nos! — gritou Neel. — Ago-
ra acredita? Agora já compreende?
— Levante-se! — gritou Rowan, esforçando-se por
se pôr novamente de pé e, ao mesmo tempo, levantar Ne-
el.
Mas, louco de terror, a chorar e a balbuciar como se
estivesse a ter um pesadelo do qual não conseguia acordar,
Neel agarrava-se a Rowan como um homem a afogar-se,
impedindo-o de se erguer.
E os terríveis animais desciam, com as bocas azuis
mais abertas, suficientemente abertas para engolirem um
homem, os dentes brilhantes como agulhas de gelo com-
pridas, inclinados para trás para morderem fundo, segura-
rem bem, arrastarem a presa para a escuridão gelada.
Répteis do gelo...
Os animais silvavam, e o som era como uma faca a
cortar através da neve fresca, e um sopro gelado exalava
das suas bocas abertas.
— Não — gritou Neel, atirando desvairadamente a
lamparina. Esta voou para o lado e bateu contra uma pa-
rede do barracão. As chamas saltaram e elevaram-se no ar.
Neel gritava, em pânico, rolando os olhos. Depois,
subitamente, começou a mexer-se, atirando-se para cima
do corpo de Rowan, gatinhando por cima dele como se
fosse um pedaço de lenha ou um saco de trigo, dando
pontapés com as suas botas pesadas, dirigindo-se para o
fogo.
Os répteis do gelo viraram as cabeças cegas e segui-
ram o movimento.
E enquanto se punha de pé, com um braço à volta
das costelas doloridas, Rowan só viu uma mancha branca
quando um dos animais atacou, e Neel foi levado, aos
gritos, pelo ar.
Numa questão de segundos, o animal voltara para o
interior da neblina, ouviu-se um som suave de neve a des-
lizar, e Neel tinha desaparecido. Desaparecido na escuri-
dão gelada. Os répteis que ficaram voltaram-se para Ro-
wan.
Ele oscilou freneticamente o archote de um lado
para o outro, recuando, obrigando-se a si próprio a mo-
ver-se devagar, deslocando-se cautelosamente no chão
traiçoeiro, escorregadio. Os animais desceram sobre ele, a
silvar, e ele sentia o seu sopro a cortá-lo como facas frias.
Os membros de Rowan pareceram congelar. Ele
cambaleou. A chama tremeu. Através do rugido nos seus
ouvidos ele ouviu Shaaran a gritar, Bronden a praguejar,
chamando o seu nome. Shaaran e Bronden tinham che-
gado à cerca. Elas tinham visto...
— Não se aproximem! — ouviu-se a si próprio
gritar com voz rouca. — Vão embora!
Mas já havia passos pesados atrás dele, bem como
sons de respirações ofegantes e de soluços. Rowan sentiu
alguém agarrar-lhe no braço. Viu, de relance, o rosto des-
vairado de Bronden enquanto ela o empurrava vio-
lentamente para trás dela.
Depois, Bronden estava a escudá-lo com o seu
próprio corpo. Bronden estava a enfrentar os animais fe-
rozes, segurando um archote a arder bem alto numa mão,
e a sua espada brilhante na outra. E ao lado dele estava
Shaaran, a soluçar e a tremer, segurando-o com o seu
braço frágil, e o archote levantado de modo a arder ao
lado do dele.
— Para trás! — gritou Bronden. — Para trás!
Ela deu um passo gigante para trás, e Rowan e Sha-
aran seguiram-na, cambaleantes. Mas os répteis do gelo
foram atrás deles, com os maxilares abertos e as cabeças
prontas a atacar a descer, descer, descer...
8
ENFRENTANDO A VERDADE

P elo canto do olho, Rowan via o fogo a tremeluzir


no local em que a lamparina tinha caído de encon-
tro ao barracão da comida dos bukshah. A lã velha
tinha pegado fogo, e as chamas estavam a subir.
— O fogo! — gritou ele. — Bronden! Aproxi-
me-se...
Bronden ouviu e começou a dirigir-se para o barra-
cão. Lenta, muito lentamente...
Nisto, Norris, ofegante e a praguejar, emergiu,
cambaleante, da neblina, com um archote a arder numa
mão e a espada de Lann na outra.
Os olhos de Bronden voltaram-se para ele. Foi a-
penas um relance, uma questão de uma fração de segundo.
Mas foi fatal. Porque, quando ela olhou, o seu archote in-
clinou-se ligeiramente para a esquerda, e um réptil atacou
e prendeu os dentes ao seu lado direito, mesmo acima da
cintura.
Bronden soltou um gemido. A espada caiu-lhe da
mão. Ela tentou desesperadamente sacudir o animal en-
quanto este a puxava para cima.
Rowan atirou-se para a frente e apanhou-a pelos
joelhos. Norris, a gritar, horrorizado, atirou o archote para
o lado e agarrou-lhe no braço esquerdo. Mas a força con-
junta dos dois não era suficiente para puxar Bronden para
trás.
Norris golpeou desordenadamente a cabeça horrí-
vel do animal com a espada de Lann. A espada deslizou da
pele branca, brilhante, com um som metálico. O animal
pareceu estremecer, mas não largou a presa.
Ele nunca a largaria. Ele tinha atacado Bronden
apenas uma vez, mas os seus dentes estavam cravados no
forro do casaco dela e tinham-se enterrado na pele por
baixo dele. Shaaran, muito pálida, balouçava o archote de
um lado para o outro, protegendo-os dos outros animais
que se contorciam à volta deles.
— Shaaran! — rugiu Norris. — Sai de perto de
nós! Corra!
Shaaran não respondeu.
— O casaco de Bronden! — exclamou Rowan. —
Norris! Tire-lhe o casaco! Depois segure-lhe as pernas!
Segure-a!
Norris agarrou nas costas do casaco de Bronden e
puxou. Ouviu-se o som do tecido a rasgar-se quando as
costuras se descoseram e os fechos rebentaram. Rowan
esperou um agonizante momento enquanto Norris agar-
rava bem nas pernas de Bronden. Depois, atirou o seu
archote diretamente à cabeça do animal.
O réptil sacudiu-se, silvando violentamente. Bron-
den soltou um grito de angústia. E depois o réptil recuou,
com o casaco rasgado ainda pendurado nos dentes, e
Bronden caiu ao chão, salpicando a neve com o sangue do
seu lado.
Os outros répteis do gelo atacaram furiosamente.
Rowan, Shaaran e Bronden mantiveram-se bem juntos
sobre o corpo de Bronden, erguendo os archotes bem alto
nos braços doloridos; as chamas, vacilantes e pequenas,
impediam os terríveis animais de avançar.
Todos eles sabiam que não podiam resistir durante
muito mais tempo. Os répteis também o sabiam. Os seus
corpos lisos, brilhantes, arqueavam-se e contorciam-se. As
suas cabeças baixavam. Com as bocas muito abertas e a
silvar, parecia que estavam a sorrir...
Foi então que o grito de desafio de Lann ecoou a-
través da neblina, e o barracão da comida dos animais ex-
plodiu em chamas. As chamas rugiram através do telhado.
Faíscas incandescentes e fragmentos de feno queimado
encheram o ar. Ondas de calor percorreram a neve.
Os répteis do gelo recuaram. Ouviu-se o som de
algo a deslizar, como neve a escorregar de um telhado. E,
no momento seguinte, eles tinham desaparecido.
Mal conseguindo acreditar no que tinha acontecido,
que estavam sãos e salvos, Rowan, Shaaran e Norris ar-
rastaram Bronden em direção ao fogo, mantendo as ca-
beças baixas para se protegerem das faíscas que caíam à
sua volta.
Quando chegaram à brecha na cerca, foram envol-
vidos pelo calor abençoado. A neve sob os seus pés derre-
tia-se e fumegava. Lann estava à espera deles, com o rosto
enrugado preto de cinza e os dentes à mostra num sorriso
feroz.
— Aquilo fez parar os demônios! — disse ela num
tom seco.
Com exceção da bengala, ela tinha as mãos vazias.
Dera a sua espada a Norris. E Rowan sabia que o archote
que ela levara para o campo estava no barracão a arder.
Lann, a mais persistente protetora das provisões da aldeia,
tinha lançado o seu archote para o precioso feno. Para
atiçar o fogo. Para salvar as vidas deles.
Como se adivinhasse os pensamentos dele, Lann
olhou para o inferno em que o barracão se transformara.
O seu sorriso de triunfo desapareceu, deixando o seu ros-
to cinzento e cansado.
— Não havia outra maneira — murmurou ela.
— Agora já não tem importância — replicou Ro-
wan. A sua voz soou como a voz de um estranho, até para
si próprio.
Lann lançou-lhe um olhar penetrante. Depois com-
primiu os lábios enquanto observava o lado de Bronden.
— A carne foi rasgada — disse ela despindo o ca-
saco e colocando-o em cima de Bronden. — É uma ferida
dolorosa, mas uma mulher forte como a Bronden não de-
via ter ficado tão prostrada. E há muito pouco sangue pa-
ra o meu gosto. É como se o contato com o animal a ti-
vesse gelado até aos ossos. Temos que a tirar do frio sem
demora. Carreguem os dois com ela. Eu levo os archotes e
vou à frente.
Lenta, desajeitadamente, Norris, Rowan e Shaaran
levantaram Bronden do chão. O corpo dela estava mole,
um peso morto.
Tinham dado apenas alguns passos quando Shaaran
parou subitamente.
— Oh... e os bukshah? — exclamou ela. — Não po-
demos deixá-los...
— Use os ouvidos, menina! — disse Lann num
tom ríspido. — Alguma vez viu os bukshah assim tão si-
lenciosos? E use os seus olhos!
Ela bateu com a bengala no chão. A luz do fogo
que ainda lavrava nas ruínas do barracão, todos viram a
trilha larga pisada que atravessava a brecha da cerca e se-
guia na direção da neblina e da escuridão.
— Há muito tempo que a Estrela levou a manada,
Shaaran — disse Rowan, com voz baixa, quando recome-
çaram a andar. — Ela deve ter esperado até eu ter ido
embora, depois fez o que sabia que estava certo. Assim,
quando os répteis vieram, não havia presas no campo.
Exceto o Neel.
Lann e Norris olharam em volta, espantados. Eles
tinham chegado demasiado tarde para ver o que aconte-
cera ao Neel.
— Quando eu e a Bronden chegamos ao campo, o
Neel... estava lá — disse Rowan com os olhos fixos no
chão. — Ele tinha se escondido no barracão. Por qualquer
motivo, ele saiu de lá no meio da noite.
— Certamente para roubar comida do armazém —
disse Lann num tom sombrio.
— Talvez — disse Rowan. Ele sentia relutância em
falar mal de Neel, embora as costelas machucadas ainda
lhe doessem dos pontapés das botas do oleiro. — De
qualquer modo, ele deve ter visto que a cerca tinha sido
derrubada enquanto ele dormia. Foi ao campo ver se os
bukshah tinham realmente ido embora...
— E encontrou mais do que estava à espera —
terminou Norris num tom sombrio.
Shaaran emitiu um soluço estrangulado.
— O Neel foi sempre demasiado curioso para o
seu próprio bem — murmurou Lann. — Curioso e fraco
de espírito, tal como o pai antes dele. — Abanando a ca-
beça, ela prosseguiu. — Mas o pai dele morreu tran-
quilamente na cama, e o mesmo devia ter acontecido ao
Neel... teria acontecido, sem dúvida, se esta catástrofe não
tivesse desabado sobre nós.
Ela levantou os ombros e continuou a atravessar a
neve.
— É uma pena. O Neel nunca foi uma pessoa ale-
gre, nem sequer em criança, mas assobiava tão bem que
conseguia encantar os pássaros e fazê-los sair das árvores.
E os seus potes eram tão perfeitos quanto qualquer pessoa
poderia desejar.
As palavras eram simples e secas como a própria
Lann, mas trouxeram memórias vivas a Rowan. O som do
assobio a sair da olaria nas noites doces de Verão. A visão
de Neel sentado à sua roda de oleiro, com as mãos ossu-
das molhadas, a transformar pedaços giratórios de argila
em taças, jarros e canecas.
Neel não tinha sido o homem mais simpático de
Rin. Mas ele tinha feito parte da aldeia, tanto como a Ár-
vore do Ensino ou a Casa dos Livros. Agora ele já não
estava entre eles.
Uma visão do rosto de Neel como a vira pela últi-
ma vez — branca com o suor congelado, enlouquecida de
terror — ergueu-se perante os olhos de Rowan. Pergun-
tou a si próprio se alguma vez conseguiria esquecê-la.
O pequeno e desalentado grupo continuou a cami-
nhar em silêncio.
— O Neel talvez fosse fraco de espírito — disse
Shaaran em voz baixa, quando chegaram finalmente às
ruas da aldeia e se dirigiram para a padaria. — Mas ele ti-
nha toda a razão. Ele avisou-nos de que o Tempo Frio
estava a chegar outra vez. Ele avisou-nos sobre os répteis
do gelo. Ele avisou-nos, e nós recusamo-nos a escutá-lo, e
ele morreu por causa disso.
— Ele morreu por causa dos seus próprios dispara-
tes, rapariga — disse Lann num tom ríspido.
— E as outras coisas que ele disse, Shaaran? —
perguntou Norris. — Certamente que não acredita que a
Montanha está a castigar a aldeia por nossa causa? Por
causa das sedas?
— Eu já não sei em que hei de acreditar — mur-
murou Shaaran.— Eu só sei que deve haver uma razão
para tudo isto. E se a razão não é a que Neel disse que era,
qual é? Quando nós cá chegamos, Norris, a aldeia estava
cheia de vida. Agora está praticamente morta. As pessoas
foram-se embora. Os bukshah foram-se embora...
— Nós ainda estamos aqui, Shaaran das Sedas —
disse Lann vigorosamente, parando à porta da padaria e
abrindo-a para que Bronden fosse transportada para o
interior.
Shaaran mordeu o lábio. Quando voltou a falar, a
sua voz era pouco firme.
— Estamos aqui agora — disse ela. — Mas quanto
tempo falta para também nós nos irmos embora? Cada dia
que passa fica mais frio. Os monstros desceram da Mon-
tanha, à procura de presas. Eles já invadiram os campos.
Talvez, dentro em breve, eles andem pelas ruas.
— Fique calada, Shaaran — replicou Norris. — Se
eles vierem, nós nos defenderemos. É tudo.
Eles pousaram Bronden em frente da lareira que
ainda estava a arder.
— Traga cobertores, Rowan! — ordenou Lann, a-
joelhando-se com dificuldade ao lado da mulher incons-
ciente. — E também ligaduras e bálsamo. Norris, ponha
mais lenha no fogo. E você, menina, faça alguma coisa de
útil e ponha água a ferver. Temos trabalho a fazer aqui.
Shaaran dirigiu-se para a cozinha mas, quando che-
gou à porta, virou-se. Duas manchas vermelhas tingi-
am-lhe as faces. Ela olhou diretamente para Rowan.
— A Lann recusa-se a discutir esta questão — disse
ela num tom agudo. — E o Norris vira a cara, fingindo
que está ocupado com o cesto da lenha. Mas você sabe
que eu tenho razão, Rowan, e... você sabe mais do que diz.
Os olhos dela, habitualmente meigos, eram tão du-
ros como as palavras que jorravam da sua boca.
— O que é que a Sheba te disse, Rowan? Eu sei
que havia mais, muito mais, do que você admitiu. Eu vi
isso nos seus olhos durante todo este longo dia. Chegou a
altura de dizer a verdade. E chegou a altura de nós a en-
frentarmos, seja ela qual for.
Rowan sentiu-se como se o seu coração tivesse sido
agarrado por uma mão gelada. Uma suspeita tinha-lhe
vindo à mente no momento em que vira a cerca partida e
as pegadas dos bukshah a desaparecerem na escuridão.
Agora, a suspeita transformara-se numa certeza.
Quando chegar a altura, saberá.
— É verdade — respondeu ele com voz rouca. Ele
sentiu Lann fitá-lo com olhos chocados, zangados, e ou-
viu Norris soltar uma exclamação de surpresa. — Sheba
deu-me uma profecia — disse ele. — As palavras eram
assustadoras, mas eu não compreendi o seu significado.
Talvez eu não quisesse compreender. Agora, acho que
compreendo pelo menos as primeiras. Quanto às outras...
A sala ficou muito silenciosa. Os olhos dos seus
companheiros estavam fixos nele. Rowan engoliu em se-
co, olhou para o fogo e repetiu lentamente a profecia:
"Os animais são mais sábios do que podemos imaginar
E aonde eles conduzem, quatro almas devem caminhar.
Uma para chorar e uma para lutar,
Uma para sonhar e uma para voar.
Quatro têm que se sacrificar.
No domínio entre o fogo e o gelo
A fome não pode ser negada,
A fome tem que ser mitigada.
E nessa rajada incandescente,
A busca une a vida e a morte iminente."
O silêncio da sala era quebrado apenas pela crepi-
tação do fogo. Ao fim de algum tempo, Lann falou.
— Sacrifício? — disse ela em voz baixa, com um ar
de aflição no rosto.
— Os animais... — disse Norris. — Os répteis do
gelo...?
Rowan abanou a cabeça.
— Os répteis do gelo, não. Os bukshah. Há várias
semanas que eles teimam em fugir do campo. Eu trou-
xe-os sempre de volta. Desta vez, eu sei que não devo fa-
zê-lo. A comida deles ardeu. Não há nada para eles aqui.
Mas eles irão conduzir-me... aonde eu tenho que ir.
— A profecia diz que quatro almas devem segui-los,
não uma — comentou Lann num tom mal-humorado. —
Mas a Bronden está ferida, e eu... eu estou inválida.
Todos os que estavam na sala conseguiam ver
quanto lhe custava admiti-lo. O seu rosto enrugado estava
rígido como se fosse feito de ferro.
Norris endireitou-se na cadeira.
— Eu vou com o Rowan — disse ele.
Lann franziu os lábios.
— Você não pode...
— Posso — insistiu Norris. Ele virou-se para Ro-
wan, que estava a abanar a cabeça. — E não pense em
escapar-te sorrateiramente sozinho, meu amigo — disse
ele. — Se o fizer, eu vou atrás de você. O meu lugar é ao
seu lado.
— E meu — disse Shaaran, com a voz a tremer.
— Não! — exclamou Rowan num tom ríspido. —
Norris, diga-lhe...
Mas Norris baixou a cabeça e ficou calado. Rowan
fitou-os com um ar de impotência. Ele sabia que não po-
dia continuar a opor-se.
— Mesmo assim — disse Lann —, só são três.
Na mente de Rowan surgiram, vividas, imagens de
sonhos, como sedas pintadas a flutuar na brisa.
Três figuras a caminhar através da neve, uma quarta
figura a observá-los de longe. Três figuras muito juntas
dentro de uma caverna, uma quarta por perto.
Uma para sonhar...
Rowan sentiu um formigueiro na pele.
— Três serão suficientes — disse ele.
— Como é que sabe isso? — perguntou Norris o-
lhando-o com curiosidade.
Rowan hesitou, desejando ter ficado calado.
Aprende o que é ser o que eu sou...
Uma visão da face sorridente de Sheba veio-lhe à
mente. Sheba, horrenda, a rir-se, transbordando de rancor,
com espuma a formar-se aos cantos da boca enquanto
murmurava, inclinada sobre o seu fogo malcheiroso. She-
ba, temida e detestada por todos.
Ao pensar nela, sentiu repulsa. A idéia de que as
pessoas pudessem pensar que ele era igual a ela fez o seu
estômago dar uma volta. O dom da profecia que ela lan-
çara sobre ele era como uma infecção. Ele sabia que tinha
que o ocultar, que devia manter os sonhos secretos. Ele
nunca admitiria que o tinha, pois não queria ver o lábio de
Lann a enrugar-se, nem ver Shaaran e Norris a afasta-
rem-se dele com um temor fascinado.
— Três... terão que ser suficientes — disse ele ao
fim de algum tempo.
— E onde é que acha que os animais te conduzi-
rão? — perguntou Lann secamente.
Quatro têm que se sacrificar.
No domínio entre o fogo e o gelo
Rowan umedeceu os lábios.
— A Montanha — respondeu ele. — Eu acho que
temos que ir... à Montanha.
9
A ARCA ESCULPIDA

O s preparativos para a viagem foram feitos rapi-


damente. Comida, combustível, archotes, cordas
e roupa foram entrouxados. Depois, só restou
esperar. Até mesmo Rowan, preocupado com a possibili-
dade de a neve cair e cobrir as pegadas dos bukshah, sabia
que eles só poderiam partir de dia.
Lann, de vigília ao pé de Bronden, que ainda estava
inconsciente, mandou-os dormir, mas apenas Norris con-
seguiu obedecer-lhe. Com uma tranquilidade que Rowan
invejou, ele atirou-se para cima da cama e, passados alguns
momentos, estava a ressonar.
Shaaran dirigiu-se para o seu canto da sala mas,
quando se encontrou fora do campo de visão de Lann,
instalou-se ao pé da armação das sedas e pegou novamen-
te nos pincéis.
Rowan ficou acordado, levantando-se de vez em
quando para ver se a neve continuava a cair.
Ao fim de algum tempo, o céu começou a clarear.
Não tinha nevado mas, quando passou a porta da cozinha,
Rowan percebeu que, mesmo com a aproximação do nas-
cer do sol, o ar não estava a aquecer. Estava muito frio —
ainda mais frio do que na manhã anterior.
A porta rangeu atrás dele. Ele deu um pequeno
salto e olhou em volta. Lann estava à porta, com uma
lamparina na mão. O seu rosto enrugado estava pálido de
cansaço devido à longa vigília noturna.
— Em breve será hora de partirem — disse ela, e o
seu hálito fez nuvens de névoa no ar gelado. — Antes
disso, eu tenho que ir buscar algumas coisas na minha ca-
sa, e agradeceria se me ajudasse.
Rowan anuiu, engolindo em seco com força quan-
do começaram a andar. Pela primeira vez, ele permitiu-se
enfrentar o fato de que, depois desta manhã, Lann e
Bronden ficariam sozinhas. Uma velha e outra gravemente
ferida, com pouca comida, e ainda menos esperança, a
sustentá-las.
— Como está a Bronden? — perguntou ele.
— Ela não se mexeu — respondeu Lann num tom
sombrio. — Ainda está inconsciente, embora esteja ao pé
do fogo e embrulhada em cobertores. A menina está a
tomar conta dela.
— Lann, eu lamento muito... — começou Rowan a
dizer.
A velha levantou a mão para o calar.
— Você está fazendo o que tem que fazer, Rowan
dos Bukshah — disse ela, — E eu e a Bronden também
estamos a jogar as cartas que o destino nos deu. Não há
mais nada a dizer.
Chegaram ao chalé estreito de Lann e ela entrou à
frente dele. A casa estava esparsamente mobiliada e es-
crupulosamente arrumada. Cheirava a cabedal antigo e a
sândalo.
Lann olhou em volta, com um ar inexpressivo.
Distraidamente, tocou nas costas da cadeira que estava ao
lado da lareira vazia. Ali, adivinhou Rowan, ela tinha pas-
sado tranquilamente as suas noites em paz. Antes disto.
De tudo isto...
— Com a trilha da Sheba, eles irão chegar à costa
mais cedo do que esperávamos, Lann — disse ele. —
Uma equipe de salvamento irá voltar com comida e outras
provisões. Jonn prometeu.
— É verdade, ele prometeu — respondeu Lann
ainda a olhar em redor da sala — mas, quanto à equipe de
salvamento, saberemos quando ela chegar...
Subitamente, ela abanou a cabeça e tirou a mão da
cadeira e dirigiu-se para o quarto minúsculo ao fundo da
casa. Rowan foi atrás dela. Ela apontou com a bengala
para a cama de ferro.
— Há uma arca de madeira debaixo da cama —
disse ela. — Por favor, tire-a para fora.
Rowan inclinou-se e fez o que ela lhe pediu. A arca
era pesada e, ao arrastá-la para fora, ele conseguia sentir a
madeira esculpida debaixo dos seus dedos. Ele supôs que
contivesse mais cobertores, ou talvez tapetes de pele de
bukshah.
Lann baixou a lamparina. A luz suave brilhou sobre
a tampa da arca, iluminando as esculturas de pássaros,
animais, quadrúpedes e flores.
— É linda! — exclamou Rowan. Demasiado tarde,
ele percebeu que Lann talvez se sentisse insultada pela sua
surpresa óbvia. Mas ele não estava à espera que ela possu-
ísse uma coisa daquelas. Tudo o mais que existia na casa
era tão simples...
Mas Lann não pareceu ficar aborrecida. Ela própria
estava a olhar para a arca com uma expressão que parecia
de espanto.
— É muito bonita — concordou ela. — Há muito
tempo que eu não a via de perto. Há muito tempo que se
tornou demasiado pesada para eu a trazer para a luz.
Com alguma dificuldade, ela baixou-se para tocar
na madeira esculpida com as pontas dos dedos.
— É adequado que a admire, pois ela foi feita para
mim pelo Morgan, o pai do seu pai, como prenda de ca-
samento — disse ela.
Desta vez, a exclamação de surpresa de Rowan fê-la
sorrir ligeiramente.
— Ah, sim! — murmurou ela. — Nós estivemos
noivos, eu e o seu avô.
Ela suspirou.
— O Morgan era um homem bonito. O seu pai era
muito parecido com ele. As semelhanças familiares são
frequentemente muito fortes em Rin. Quando o seu pai se
fez homem, eu costumava olhar para ele e pensar, Se as
coisas tivessem sido diferentes, você podia ter sido meu
filho.
O meu pai, que morreu para me salvar de um incêndio,
pensou Rowan, olhando para Lann com novos olhos.
Durante toda a sua infância ele soubera que a maior
parte dos aldeões pensava que um rapaz franzino, enfer-
miço, era uma pobre troca por um homem forte, amado
por todos. Ele compreendia agora que Lann devia ter sen-
tido ainda mais azedume do que o resto. Ela ocultara-o
bem. Por que motivo estaria ela a falar-lhe no assunto?
— A aldeia pensou que seria um belo casamento,
pois tanto eu como o Morgan éramos heróis de batalhas
contra os Zebak — prosseguiu Lann, sem levantar os o-
lhos. — Mas... — Ela encolheu os ombros. — O casa-
mento nunca se realizou.
— Porquê? — perguntou Rowan, pensando segui-
damente como é que se atrevera a fazer uma pergunta da-
quelas. Ficou à espera que Lann o repreendesse, mas ela
não o fez. Ela respondeu, numa voz hesitante, como se as
palavras tivessem dificuldade em formar-se.
— O Morgan tinha um irmão muito mais novo
chamado Joel — disse ela olhando para a arca esculpida.
— Quando o Joel nasceu, há muito que a sua mãe tinha
passado a idade fértil habitual. Quando ele tinha dez anos,
já os pais tinham morrido, e o Morgan era o seu único
guardião.
Os seus dedos gastos percorriam as linhas graciosas
da madeira esculpida — pássaros a voar, lagartos agacha-
dos junto de tufos de ervas, flores.
— O Joel era uma criança débil, triste... sonhadora
e tímida, com medo da sua própria sombra. Ele era pouco
útil nos campos. As outras crianças troçavam dele. As
pessoas não sabiam o que fazer com ele.
Rowan sentiu o rosto corar. Era como se Lann esti-
vesse a descrever a sua própria infância. E, pelo tom da
sua voz e pelos seus olhos baixos, ele percebia que ela sa-
bia isso perfeitamente bem.
— O Joel também era guardião dos bukshah? —
perguntou ele em voz baixa.
— Era. Esse era um trabalho que ele podia fazer —
respondeu Lann. — Como você sabe, essa tarefa é sem-
pre... foi sempre... considerada demasiado fácil para qual-
quer pessoa, exceto os muito jovens ou os que têm algu-
ma forma de deficiência...
Os lábios dela comprimiram-se. Ela parecia estar a
obrigar-se a si própria a prosseguir.
— Eu desprezava o Joel — disse ela. — Conside-
rava-o fraco e covarde. As características positivas que o
Morgan via nele... a sua ternura para com todos os ani-
mais, a sua natureza amável... não significavam nada para
mim. Eu tinha vergonha de ser vista na sua companhia.
Mas o Morgan recusava-se a abandoná-lo. O Morgan dizia
que o Joel tinha que viver conosco até ser adulto. Nós
discutíamos sobre isso. Discutíamos muito. Ao fim de
pouco tempo, toda a aldeia sabia que as coisas não corri-
am bem entre nós, e adivinharam o motivo. Eu fazia
pouco para escondê-lo.
Ela suspirou, com os dedos a esfregar a madeira es-
culpida como se conseguisse eliminar o passado.
— Eu era jovem — disse ela. — Jovem e com
sangue na guelra. Acho que também tinha ciúmes da leal-
dade do Morgan para com o irmão. Todos nós pagamos o
preço do meu orgulho.
Rowan olhou para ela, emudecido. Lann nunca fa-
lara com ele sobre os seus sentimentos... nem, tanto
quanto ele sabia, com mais ninguém.
— O que aconteceu? — perguntou ele. A história
provocara-lhe uma sensação de tristeza, um aperto no co-
ração, e ele não queria saber o fim. Mas ele sabia que Lann
queria contá-lo. Por qualquer motivo, ela sentia-se impe-
lida a contá-lo.
— O Joel morreu — disse Lann num tom inex-
pressivo. — Ele tinha medo de altura, mas subiu em uma
árvore para se esconder de algumas crianças que o esta-
vam a atormentar porque ele se interpusera entre mim e o
Morgan. Os seus perseguidores descobriram-no em cima
da árvore. Atiraram-lhe pedras enquanto ele subia cada
vez mais alto. E ele caiu. Talvez tivesse sido atingido por
uma pedra. Talvez tenha simplesmente escorregado. Ou
talvez ele apenas... tenha se deixado cair...
Ela calou-se, e pareceu ficar mais escuro, como se
as sombras da velha tragédia tivessem enchido a pequena
sala. Rowan sentiu os olhos a arder ao pensar no rapazi-
nho débil, envergonhado e desesperado, perseguido até à
morte porque...
Porque era como eu, pensou Rowan. Uma reversão a um
tempo antigo, quando todos os nossos homens, os fortes e os fracos, os
corajosos e os bondosos, os artistas e os guerreiros, viviam juntos co-
mo um só povo. Antes de os Zebak nos terem separado e trazido os
fortes e corajosos para esta terra, deixando os mais dóceis para trás.
Sempre que a Lann olha para mim, ela vê o Joel outra vez. E ela
lembra-se...
— O Joel caiu da árvore grande... a árvore debaixo
da qual nós, os habitantes de Rin, nos casamos e nos des-
pedimos dos nossos mortos — murmurou Lann. — Foi
uma estranha reviravolta do destino porque, quando o
Joel morreu à sombra dessa árvore, a minha esperança de
me casar com o Morgan morreu com ele.
Ela ainda estava a olhar para a arca, ainda a acariciar
a madeira esculpida com os dedos gastos pelo trabalho.
— O Morgan veio ter comigo nessa noite e deu-me
esta arca — prosseguiu ela numa voz tão baixa que Rowan
teve dificuldade em ouvi-la. — Ele disse que o Joel tinha
desenhado o padrão a partir do qual ele esculpira a ma-
deira. Devia ser a oferta de ambos para mim. Ele não dis-
se mais nada, não disse uma só palavra de raiva ou de cul-
pa, mas eu soube que os seus sentimentos por mim ti-
nham mudado. Vi isso nos seus olhos. Libertei-o do nos-
so noivado.
Ela levantou-se lentamente e fitou Rowan nos o-
lhos.
— Anos mais tarde, ele casou-se com a Else, a sua
avó. Eu fiquei contente por ele ter finalmente encontrado
a felicidade. Ou, pelo menos, disse isso a mim própria.
— E você...? — perguntou Rowan.
— Nunca encontrei ninguém que se comparasse
com o Morgan, por isso fiquei sozinha — respondeu
Lann, recuperando alguma da sua energia antiga. — Sem
dúvida que foi melhor assim. Eu sempre gostei demasiado
de minha independência para partilhar a minha vida com
outra pessoa.
— Lamento muito — balbuciou Rowan, sem saber
o que dizer.
— Ah, bem. Isso foi há muito, muito tempo —
disse Lann. — E o que está feito, está feito.
Por um momento, ela ficou calada, depois cerrou
os lábios com um ar determinado e fixou Rowan com o
seu habitual ar duro.
— Abra a arca, se fazes favor — disse ela.
O fecho de metal estava emperrado mas, ao fim de
algum tempo, Rowan conseguiu soltá-lo. Ele abriu cuida-
dosamente a tampa.
Por qualquer motivo, sentiu-se decepcionado ao
encontrar o que já esperava. A arca estava cheia de tapetes
de pele de bukshah enrolados.
Lann soltou um suspiro. Baixou-se e pegou num
dos tapetes. Depois sacudiu-o e deixou-o pendurado.
E Rowan viu que não era um tapete, mas sim uma
capa comprida, com capuz. Era uma capa de pele de buk-
shah, feita com a pele de um animal inteiro, com lã áspera
no exterior e cabedal, ainda espantosamente macio e ma-
leável, no interior.
Ele já vira algo parecido antes, em pinturas e dese-
nhos, na Casa dos Livros.
E vira-o no sonho com a Montanha.
— Eu tenho quatro destas — disse Lann. — São
capas de guerreiros de Rin... as últimas que restam na al-
deia, pois, ao que parece, hoje em dia os jovens preferem
peças de roupa de tecido. Uma é minha, duas pertenceram
aos meus pais, e a outra era de Morgan. A Else me deu
quando ele morreu. Elas já viram muita coisa. E aque-
cer-te-ão como nada mais conseguirá fazê-lo. A você e aos
seus companheiros.
Ela tirou mais três capas da arca, sacudindo-as cui-
dadosamente e empilhando-as nos braços de Rowan.
Rowan não conseguia falar. Havia um rugido nos
seus ouvidos. Mas Lann ainda estava a falar. Obrigou-se a
si próprio a prestar-lhe atenção.
— Eu e você nem sempre estivemos de acordo,
Rowan dos Bukshah — disse ela. — Encontrei defeitos
em você, tal como outrora os encontrei no Joel. Você
certamente pensou que eu era dura e obstinada. Mas, ao
longo destes últimos anos, eu comecei a ver que, embora
eu e você sejamos muito diferentes, em aspectos impor-
tantes nós somos parecidos.
Ao ver a expressão de espanto de Rowan, ela er-
gueu o queixo. Quando ela olhou para ele, o seu rosto
desgastado pelas intempéries adquiriu uma expressão ca-
lorosa.
— Eu não vou fingir que compreendo esta... esta
coisa que lhe foi pedida — disse ela num tom constran-
gido. — Se é o que parece, ela vai contra tudo aquilo que
eu sempre acreditei a respeito das nossas vidas e desta
terra.
Ela fez uma pausa. Estava a respirar profundamen-
te, como se estivesse a esforçar-se por controlar uma e-
moção profunda. Rowan aguardou.
— Eu estou velha, e o meu tempo neste mundo em
breve chegará ao fim — disse Lann finalmente. — O que
tenho para dar ao meu povo já foi dado. Com você, a
questão é diferente. Eu sinto uma grande amargura por a
fraqueza do meu corpo me impedir de enfrentar esta pro-
vação no seu lugar.
Rowan sabia o suficiente para não a insultar com
agradecimentos inúteis. Em vez disso, disse-lhe a verdade.
— Você não poderia ocupar o meu lugar, Lann,
nem que tivesse força — disse ele diretamente. — Só po-
deria acompanhar-me, tal como Shaaran e Norris parecem
destinados a fazer. A Sheba disse-me que só eu podia fa-
zer o que tem que ser feito.
Lann respirou fundo.
— Só você? — disse ela secamente. — O que subiu
à Montanha e enfrentou o Dragão para fazer com que o
riacho voltasse a correr? O que forjou os laços de con-
fiança com os Maris e os Viajantes? O que nos deu o co-
nhecimento do nosso passado e nos salvou do ataque dos
Zebak?
Ela virou-lhe as costas.
— Que ser maligno exigiria o nosso melhor como
sacrifício?
A fome tem que ser mitigada...
Rowan sentiu um arrepio de frio dentro de si.
Sem aviso, naquela casa estreita cheia de objetos
domésticos e recordações ensombradas da vida de uma
velha, o medo que ele controlara durante tanto tempo
ameaçou dominá-lo.
O coração batia-lhe com força. Sentiu-se impelido a
fugir.
Como seria fácil! Deixar cair as capas ao chão e
voltar para a padaria. Agarrar no saco que tinha preparado
e fugir, ao longo da trilha nítida, escura, feita pela Sheba,
atravessando as colinas para bem longe dali.
Ao fim de um dia, ele podia estar muito distante. O
caminho seria longo e duro, mas acabaria por chegar à
costa. Se o seu próprio povo não o recebesse, se lhe vol-
tasse as costas com repugnância, ele poderia ficar a viver
com os Maris ou com os Viajantes. Na costa, ele poderia
começar uma vida nova. Estaria em segurança...
A medalha que trazia ao pescoço parecia latejar.
Agarrou nela, com a intenção de a arrancar.
Mas quando os dedos tocaram no metal quente, as
palavras da profecia de Sheba começaram a ecoar na sua
mente. E com as palavras veio uma visão.
Rin, presa num sonho silencioso, gelado. Répteis
do gelo a contorcer-se e a deslizar por entre as árvores do
pomar e as ruas brancas, desertas. A Montanha a pairar
acima da povoação, soprando maldade fria para a terra e
para o céu. E o frio mortífero a espalhar-se, a espalhar-se,
sem parar. Até as planícies onde os Viajantes outrora va-
gueavam terem-se transformado em desertos cobertos por
uma névoa branca, e as ondas terem deixado de se que-
brar nas praias dos Maris, pois o próprio mar tinha con-
gelado e ficado imóvel.
E Rowan soube que aquilo era o futuro. O futuro
se ele fugisse. O futuro se ele fracassasse.
Rowan...?
A voz do Guardião do Cristal murmurou na mente
de Rowan, suave como a água. A visão era tão forte e tão
clara que o Guardião estava a partilhá-la. Muito longe, em
Maris, o Guardião, ao fundo da sua caverna arco-íris,
também estava a olhar para aquela imensidão coberta de
neve, para aquele mar gelado.
— Rowan? Rowan?
Esta voz era real. A mão que lhe sacudia o braço
também era real. Rowan virou-se lentamente, e o seu o-
lhar cruzou-se com os olhos ansiosos de Lann. Ele per-
guntou a si próprio quanto tempo estivera ali imóvel, pe-
trificado por algo que ela não conseguia ver, escutando
algo que ela não conseguia ouvir.
O enorme impulso de fugir desapareceu, deixando
uma vergonha amarga no seu lugar.
— Vamos para junto dos outros — disse ele. — É
quase hora de partirmos.
10
QUATRO ALMAS

R owan, Shaaran e Norris partiram da aldeia quando


o Dragão da Montanha rugiu ao amanhecer. O seu
caminho estava distintamente marcado. As pega-
das dos bukshah eram como uma faixa larga, salpicada, na
neve, seguindo a linha do riacho soterrado e desapare-
cendo no meio das árvores que se agrupavam ao fundo da
montanha.
Os três companheiros usavam capas de pele de
bukshah. Tal como Lann assegurara, as capas eram muito
quentes. Também eram surpreendentemente confortáveis,
embora quase tocassem no chão. Lann tinha-se visto o-
brigada a encurtar duas delas com a sua faca, para que
Rowan e Shaaran conseguissem andar sem tropeçar.
Norris levava a espada de Lann e um bastão com-
prido para se apoiar quando caminhava, a coxear. Shaaran
levava a caixa das sedas, que ela se recusara a deixar para
trás.
— Eu sou a guardiã das sedas — disse ela com tei-
mosia, quando Norris e Lann lhe quiseram fazer ver que
estava a ser insensata. — Elas têm que estar comigo. Eu
sinto-o.
Passaram o moinho, alto e silencioso, cuja roda e-
norme estava presa numa cama de gelo. Continuaram a
andar, descansando de vez em quando mas falando pou-
co. Rowan sabia que o sol devia estar a elevar-se atrás do
véu espesso das nuvens, mas o dia não se tornava mais
claro, e o ar não aquecia.
À medida que se aproximavam da Montanha, as ár-
vores passaram a ser mais numerosas e a trilha dos buk-
shah tornou-se mais estreito e sinuoso por entre elas. As
árvores eram como sentinelas a desfalecer, com os ramos
escuros curvados sob o peso da neve. Ouvia-se o riacho
abafado a gorgolejar timidamente. Era difícil respirar o ar
gelado. A frente deles, pairava a Montanha, enorme e a-
meaçadora.
Rowan fixou os olhos no chão, tentando não pen-
sar em nada. O medalhão ficou quente. Involuntariamen-
te, tocou-lhe com a mão.
Aprende o que é ser o que eu sou.
O som de algo a bater na água fê-lo erguer o olhar.
Através das árvores ele viu... viu três figuras com capas de
pele de bukshah ajoelhadas junto de um pequeno lago no
sopé de um penhasco íngreme. Enquanto olhava, uma
figura endireitou-se, enrascando a tampa de um cantil de
água a escorrer. Depois, ela ficou imóvel e olhou subita-
mente por cima do ombro, diretamente para Rowan.
Foi como se estivesse a olhar para um espelho. Mas
os olhos escuros, ansiosos, não estavam concentrados em
nada, procuravam...
— Ah, é aqui que o riacho começa!
Era a voz de Norris. Rowan pestanejou. As figuras
mais adiante cintilaram e desapareceram. Agora restava
apenas o penhasco. A água jorrava de um buraco preto
perto da base do penhasco, para o lago redondo, pro-
fundo, que estava apenas parcialmente coberto de gelo.
Norris tirou o seu cantil do cinto e foi enchê-lo.
Rowan seguiu-o, mas permaneceu de pé enquanto Shaa-
ran se ajoelhava ao lado do irmão para encher o seu pró-
prio cantil.
— O que se passa, Rowan? — perguntou Norris,
erguendo os olhos para ele. — Parece que viu um fantas-
ma!
Seria uma loucura não encher o meu cantil, só para de-
monstrar que a visão era um retrato do futuro, pensou Rowan.
Não se pode lutar contra isto. Foi um disparate tentar.
Cansado, deixou-se cair de joelhos e inclinou o can-
til para o encher até ao gargalo. Quando se endireitou, não
resistiu a olhar para trás, para o local onde estivera apenas
alguns minutos antes. Obviamente que não viu nada...
nada a não ser uma massa de troncos pretos, escuros, ra-
mos carregados de neve e as pegadas que iam dar à aldeia.
Depois os seus olhos viram uma pequena mancha
de cor no céu por cima das árvores — um clarão amarelo
vivo, contrastando com o cinzento. O clarão surgiu outra
vez. Havia algo a descer rapidamente em direção a ele.
Com um grito de aviso, Rowan pôs-se de pé num salto,
levando a mão a faca.
— O que é? — gritou Shaaran, aterrorizada.
Mas a forma amarela já esvoaçava por cima deles.
Seguidamente, dobrou-se sobre si própria e mergulhou. E
Rowan soltou uma exclamação de espanto ao ver, pendu-
rada nela, uma figura pequena embrulhada numa capa de
pele de bukshah.
Era Zeel dos Viajantes.

***

Rowan ficou a olhar, atordoado, para as botas ma-


cias de Zeel a baterem no chão, e o seu papagaio de seda
amarelo a cair atrás dela. Shaaran e Norris soltaram ex-
clamações, mas ele não conseguia falar.
— Está muito surpreendido por me ver, Rowan! —
disse Zeel com uma gargalhada, apanhando a seda e ati-
rando-a por cima do ombro. — Parece um peixe de Maris!
Mas certamente que sabia que eu viria?
Rowan conseguiu finalmente falar.
— Não — disse ele com a voz estrangulada. — Eu
nunca sonhei que o fizesse. Porquê...? Como...?
Zeel aproximou-se rapidamente dele e apertou-lhe
a mão.
— Os Viajantes estão acampados às portas de Ma-
ris — disse ela. — O Guardião do Cristal chamou Ogden
ao amanhecer e contou-lhe a visão que tinha partilhado
com você. Ogden voltou rapidamente para o nosso acam-
pamento com a notícia, e eu parti imediatamente, para me
juntar a você na sua busca.
Uma para voar...
As palavras pareceram chamejar na mente de Ro-
wan. Ele julgara que elas significavam que ele, Shaaran ou
Norris acabariam por fugir do perigo. Mas estivera enga-
nado, muito enganado — ele enganara-se ao pensar que o
seu eu do sonho seria o quarto membro daquele malfa-
dado grupo.
O quarto membro estava agora à sua frente. Zeel, a
filha adotiva de Ogden, a amiga de Rowan, muito direita e
forte, cheia de vida.
Que ser maligno iria exigir o nosso melhor como sacrifício?
À recordação da voz de Lann, tremendo de ira, pa-
recia rugir aos ouvidos de Rowan.
Ele sentiu a mão de Zeel apertar mais a sua.
— Eu sobrevoei a sua gente que caminhava ao
longo de uma estranha estrada preta em direção à costa,
Rowan — disse ela. — Encontrei a sua aldeia deserta,
com exceção da velha guerreira Lann e da mulher Bron-
den que dormia profundamente um sono gelado. Fiquei
sabendo que você, Shaaran e Norris tinham partido sozi-
nhos para a Montanha, seguindo as pegadas dos bukshah.
Rowan, porque é que não me chamou antes?
— Há... um grande perigo... — começou Rowan a
dizer num tom hesitante.
— Eu sei disso! — afirmou Zeel. — Por que outro
motivo estaria eu aqui?
— Mas eu pensei que os Viajantes não conseguiam
sobreviver ao frio do Inverno no interior do país! — ex-
clamou Norris. — E já ouvi dizer que, para os Viajantes, a
Montanha é proibida! — O seu rosto estava crispado de
ansiedade. Ele conhecia Zeel da terra dos Zebak e sentia
uma enorme admiração por ela.
— Isso é verdade — disse Zeel com um sorriso, e
os dentes brancos brilharam no seu rosto castanho. —
Mas já se esqueceu, Norris? Eu não sou Viajante de nas-
cença. Eu era um bebê Zebak... fui encontrada na praia
desta terra e adotada por Ogden há muito tempo. Eu con-
sigo fazer o que os outros Viajantes não conseguem. Pos-
so subir à Montanha, se for necessário. E consigo sobre-
viver ao frio intenso, embora — ela estremeceu, embru-
lhando-se melhor na capa —, embora nunca tivesse tido
tanto frio. Ainda bem que tenho esta estranha peça de
roupa que a Lann me deu.
Com um ar pensativo, ela passou as mãos pelo pêlo
da capa.
— A Lann mudou muito. Antigamente, ela teria fi-
cado furiosa só de pensar que uma Viajante... quanto mais
uma Zebak... pudesse usar uma capa dos guerreiros de
Rin. Mas ela obrigou-me a trazê-la. Disse que a capa esta-
va à minha espera.
— Isso foi porque a profecia da Sheba dizia que
quatro almas seguiriam os animais — murmurou Rowan.
— Mas, Zeel, a profecia fala também de morte e de sacri-
fício.
Zeel acenou a cabeça em sinal de concordância, e
os últimos vestígios do seu sorriso desapareceram.
— Eu sei — disse ela. — A profecia passou da sua
mente para a do Guardião juntamente com a visão. Assim
que a ouvi, eu soube que estava destinada a vir ter contigo
e partilhar o seu destino, seja ele qual for.
— Não! — A palavra jorrou dos lábios de Rowan
como um gemido de dor.
Zeel endireitou-se.
— A terra está ameaçada. Se for necessário um sa-
crifício, porque é que é que há de ser Rin sozinha a sacri-
ficar-se? Eu estou aqui de minha livre vontade, em repre-
sentação do povo de Maris e dos Viajantes, com os agra-
decimentos do Guardião e a bênção de Ogden. Fico mui-
to satisfeita com o fato de, devido às minhas origens, eu
ser a única escolha possível. Estou muito contente por o
meu papagaio ser capaz de me trazer tão depressa para
junto de você.
Os seus olhos azuis-claros percorreram o rosto as-
sustado de Shaaran e a cara excitada de Norris, depois vol-
taram-se para Rowan.
— Nós somos quatro quartos de um todo — disse
ela. — Cada um de nós tem um papel a desempenhar nis-
to. Todos nós somos necessários. Ainda não sabemos
como nem porquê. Mas depressa iremos descobrir. E,
nessa altura... o que for, será.
***

As pegadas dos bukshah continuavam ao longo da


base da Montanha até os penhascos da face leste darem
lugar a massas desordenadas de pedras nuas, cobertas de
neve, no lado sul. E ali o trilho virava abruptamente para
o interior e começava a subir.
Os companheiros pararam, e um enorme silêncio
envolveu-os. Nada se mexia. Nem uma pequena brisa se
movia no ar gelado. A Montanha erguia-se acima deles, à
espera.
— Até que enfim! — exclamou Norris, esfregando
as mãos de contentamento. — Aqui começa o verdadeiro
teste!
Rowan olhou para ele, curioso. Não havia nos o-
lhos de Norris o mínimo vestígio de medo. Ele tinha a ca-
beça erguida, os ombros fortes atirados para trás e a boca
cerrada numa expressão de determinação.
Lann devia ter tido um ar semelhante quando, há
muito tempo, se preparava para combater os Zebak, pen-
sou Rowan. Norris é um verdadeiro filho de Rin. Forte.
Sem medo. Um guerreiro.
Nesse momento, Rowan sentiu um movimento ao
seu lado e olhou em volta. Shaaran também estava a olhar
para a Montanha. Mas o seu rosto delicado estava cheio
de medo. Ela agarrava-se desesperadamente à caixa das
sedas, premindo-a com força contra o corpo para aquietar
as mãos trêmulas.
Rowan pensou nas pinturas no interior da caixa —
as pinturas cheias de cor, de vida e de movimento. Ele
pensou na mão de Shaaran a mover habilmente o pincel
fino sobre a seda, criando verdade e beleza, tal como os
seus antepassados tinham feito durante séculos.
E, com um sobressalto, ele lembrou-se também de
que Shaaran era uma verdadeira filha dos habitantes de
Rin. Não dos habitantes de Rin como eles eram atual-
mente, mas como tinham sido séculos atrás, na terra dos
Zebak, quando artistas e guerreiros viviam lado a lado, e a
meiguice era tão valorizada quanto a força. Antes de os
fortes terem sido levados para longe.
E, subitamente, naquela terrível quietude expectan-
te, foi como se as peças de um puzzle se tivessem en-
caixado.
Quatro almas...
Quatro quartos de um todo...
Shaaran e Norris, que eram a prova viva da história
que as sedas contavam.
Ele, Rowan, que os trouxera para o vale.
E Zeel, que representava todos aqueles que o ti-
nham ajudado a fazê-lo.
Nós ofendemos a Montanha...
Um dedo gelado tocou-lhe no coração.

***

Os bukshah tinham passado cuidadosamente por


entre as pedras, fazendo uma trilha estreita e sinuosa.
Com Rowan à frente, Norris e Shaaran a seguir, e Zeel
atrás de todos, os companheiros seguiram a trilha.
A caminhada era difícil e incômoda, especialmente
para Shaaran e Norris, a quem a perna machucada difi-
cultava o andar. Mas nenhum deles pediu para descansar,
e nem Rowan nem Zeel o sugeriram. A luz desaparecia
lentamente, e todos eles sentiam que, quando anoitecesse,
era melhor já não estarem naquele labirinto sinistro. As-
sim, eles continuaram a andar, sempre a subir e sempre
em direção a oeste.
As pedras tornaram-se gradualmente maiores, er-
guendo-se acima deles e impedindo-os de ver o caminho à
sua frente. Ao fim de algum tempo, a trilha era apenas um
caminho estreito em ziguezague no meio de penhascos
pretos alcantilados, e eles não tinham outra opção a não
ser seguir em frente ou voltar para trás.
Continuaram a caminhar na obscuridade. O cami-
nho tornou-se mais estreito até o céu ser apenas uma nes-
ga de luz pouco intensa muito acima deles. As paredes
rochosas que os cercavam estavam marcadas por estra-
nhos riscos compridos à altura dos ombros. Ao fim de
algum tempo, Rowan percebeu que eles deviam ter sido
feitos pelos chifres dos bukshah quando os animais abriam
caminho ao longo da trilha estreita.
O medalhão junto da sua garganta parecia latejar ao
ritmo do seu coração. A mochila, cada vez mais pesada,
machucava-lhe os ombros.
— Não estou a gostar disto — a voz de Zeel ecoou
estranhamente. — E se estivermos a ser atraídos para uma
armadilha? Se alguma coisa nos atacar aqui, não teremos
possibilidade de fugir.
Norris balbuciou um som de concordância. A res-
piração de Shaaran pulsava-lhe na garganta. Mas Rowan
mal os ouvia. Ele tinha virado uma esquina e, subitamen-
te, toda a sua atenção se concentrou em algo que só ele
conseguia ver. Não muito longe à frente deles o caminho
terminava num arco rochoso. A seguir ao arco, brilhava
uma estranha luz azul. E, no interior da luz, havia algo a
mover-se.
Rowan imobilizou-se, semicerrando os olhos para
ver melhor a forma ondulante. Depois, o coração pareceu
saltar-lhe para a garganta quando viu rodopiar, primeiro
uma capa comprida pesada, depois outra, e compreendeu
o que era aquela forma.
Figuras envoltas em capas iam à sua frente, a cami-
nhar na luz azul. Seguiam umas atrás das outras, de cabeça
baixa, tão juntas umas das outras que, a princípio, pare-
ciam uma única pessoa. Elas deslocavam-se muito, muito
depressa.
E estavam com medo. Rowan sentia o medo delas
como se fosse seu.
Apressem-se! Mantenham-se juntos. Não olhem...
Com a pele arrepiada, mal tendo a noção do que es-
tava a fazer, Rowan abriu a boca para gritar. Mas, antes de
conseguir emitir um único som, as figuras tinham desapa-
recido.
Rowan encostou-se à face do penhasco num dos
lados da trilha, pressionando o ombro contra a rocha ge-
lada para se manter ereto. Sentia os joelhos fracos. O co-
ração ainda batia com força, de medo. O arco abria-se à
sua frente, com a luz azul a brilhar. Ouviu as exclamações
de Shaaran, Norris e Zeel quando se aproximaram dele e
também viram a luz. Mas ele não conseguia falar.
Era óbvio que havia algo assustador do outro lado
do arco. Ele cravou os dedos enluvados na pedra dura
para os obrigar a parar de tremer.
— O que é? — gritou Shaaran. — Rowan, que lu-
gar é aquele? O que devemos fazer?
E, subitamente, o medalhão estava tão quente que
o queimava. Estremecendo de dor, Rowan agarrou nele,
tentando afastá-lo da pele. Mas, para seu espanto, ele não
se moveu. Parecia preso ao sítio onde estava e, quanto
mais o puxava, mais ele se colava a ele e mais quente se
tornava.
Ele viu os seus companheiros virarem-se, alarma-
dos para ele quando gritou. Viu-os estenderem-lhe os
braços quando ele caiu de joelhos, com a mão na garganta.
Mas eles não podiam fazer nada por ele, nada. Naquele
momento, era como se a coisa que ele tinha no pescoço
estivesse a afundar-se na sua pele. O medalhão queimava,
queimava, e a sua garganta estava a ficar cheia do que lhe
parecia serem brasas incandescentes, tão cheia que ele se
sentiu sufocar com o fogo.
Tentou gritar, mas, quando os seus lábios secos se
abriram, não saiu qualquer grito. Em vez disso, ele sentiu
os pedaços de fogo a subir da garganta para a boca e
transbordar para o ar gelado. Mesmo na sua agonia, ele
ficou espantado quando percebeu que não eram brasas
incandescentes, mas sim palavras... palavras que jorraram
dele numa voz rouca, áspera, que mal reconheceu como
sua.
Dentro deste vale os cegos são sábios.
Horrores espreitam atrás dos vossos olhos.
A cura é água de uma fonte
Onde não existe ódio nem ira.
Quando pronunciou a última palavra, Rowan caiu
para frente na neve, inconsciente.
11
OS CEGOS SÃO SÁBIOS

R owan voltou a si lenta e dolorosamente. Tinha o


coração a bater com muita força. Sentiu-se tonto e
agoniado. Sentiu uma mão suave a fazer-lhe carícia
no rosto, e ouvia vozes a chamá-lo, mas não lhe agradava
abrir os olhos. A única coisa que queria era dormir, dormir
para sempre. Mas as vozes não o deixavam descansar.
— Rowan, acorde! — era a voz de Zeel, num tom
urgente e autoritário. — Não podemos ficar aqui!
— Ele está enfeitiçado! — Era Norris, quase a gri-
tar. — Aquelas palavras não eram dele! E aquela voz... não
era...
— Rowan, abra os olhos. — Uma voz mais suave,
a voz de Shaaran, junto do seu ouvido. — Rowan, os buk-
shah precisam de você. Temos que os seguir. Lembra-se?
Os bukshah...
A memória varreu a mente de Rowan e, com um
movimento brusco, ele ficou completamente desperto. Os
seus olhos abriram-se. Ele levou a mão à garganta. Por
baixo da roupa, a pele estava lisa e intacta, e o medalhão
pendia, inofensivo, do cordão. Esforçou-se por se pôr de
pé, ajudado por seis mãos ansiosas.
— O que aconteceu? — perguntou Norris, clara-
mente abalado pelo que acabara de ver e ouvir. — Rowan,
você começou a delirar, a dizer palavras sem qualquer sen-
tido e a revirar os olhos... — Ele estremeceu e calou-se.
— O medalhão... — a voz de Rowan era estrangu-
lada e rouca. Ele pigarreou e tentou novamente. — A
Shaaran fez uma pergunta, e o medalhão deu-me as pala-
vras para lhe responder. Não consigo explicar...
— Não vale a pena tentar — disse Zeel secamente.
— Nós temos os nossos conselhos e o nosso aviso. Há
perigos para além do arco. Nós sabemos o que temos que
fazer para nos protegermos deles. Por enquanto, isso é a
única coisa que interessa. Temos que continuar a avançar,
e depressa. A tarde está a chegar ao fim.
Rowan acenou a cabeça em sinal de concordância e,
sem dizer mais nada, começou a caminhar, com um passo
pouco firme, em direção à luz azul cintilante. Shaaran,
com os olhos ensombrados pelo medo, foi atrás dele.
Norris seguiu-os, olhando continuamente para trás,
para Zeel, procurando no rosto dela as respostas para a
sua perplexidade. Por fim, quando o arco se abriu final-
mente à sua frente, preenchendo-lhes o campo de visão,
eles não puderem manter o silêncio por mais tempo.
— Porque é que disse que nós sabemos o que fa-
zer? — perguntou ele. — Nós não sabemos nada!
— Você não ouviu, Norris? — retorquiu Zeel num
tom ríspido. — A profecia nos disse que no vale os cegos
são sábios. Certamente que isso significa que o que nós
não virmos não nos fará mal.
— O quê? — exclamou Norris. — Será que temos
de caminhar para o desconhecido com os olhos fechados?
— Não podemos fazer isso — disse Rowan, sem se
virar. — Mas temos que ser tão cegos quanto possível.
Quando entrarmos na luz azul, temos que baixar a cabeça
e seguir a trilha, sem olhar para a direita nem para a es-
querda... pelo menos até chegarmos a essa fonte miste-
riosa que é um lugar seguro.
Enquanto falava, ele recordava-se da visão que ti-
vera — as figuras cobertas pelas capas a andar rapida-
mente, muito juntas, com as cabeças encapuzadas baixas.
Ele estremeceu novamente ao sentir o medo delas.
Apressem-se! Mantenham-se juntos! Não olhem...
O arco estava agora à frente deles. Ele parou e en-
costou-se a uma rocha para se equilibrar. A luz azul pare-
cia rodopiar à frente dos seus olhos como neblina colori-
da. E agora ele conseguia ver o brilho do gelo. O lugar
para além do arco estava cravejado de enormes colunas de
gelo retorcidas que se erguiam da terra como árvores!
Não havia neve no chão. O que queria dizer que o
vale era coberto. Era uma caverna — ou talvez um túnel
comprido que atravessava a rocha da Montanha.
— Parece-me que só um tolo seria capaz de atra-
vessar um lugar maligno como este sem estar atento —
estava Norris a murmurar. — E se a profecia for uma ar-
madilha?
— Não são uma armadilha! — retorquiu Zeel,
zangada.
— E você é um tolo, Norris, por sugerir isso.
Norris corou muito e endireitou os ombros pesa-
dos.
— Talvez eu seja um tolo — balbuciou ele. — Eu
sei que o meu avô sempre achou que eu era tolo porque
não tinha qualquer talento para pintar, nem ouvido para a
música, e porque gostava de lutar. Mas por ser desconfia-
do, por reconhecer um inimigo quando o via, e por estar
preparado para lutar, quando ele e a Shaaran não estavam,
eu salvei-lhe muitas vezes a vida na terra dos Zebak.
— Isso é verdade — disse Shaaran em voz baixa.
— Sem o Norris nós não teríamos sobrevivido.
Zeel franziu a testa.
— Desculpa, Norris — disse ela, embaraçada. —
Falei sem pensar. Você tem razão em estar desconfiado.
Você não tem tanta experiência destes versos proféticos
como eu e o Rowan. Mas acredita que podemos confiar
neles.
Norris olhou-a nos olhos e acenou lentamente a ca-
beça em sinal de assentimento.
— Muito bem — disse ele. — Mas se vamos andar
as cegas, pelo menos vamos juntar-nos bem para não po-
dermos nos separar.
— Isso seria muito sensato — concordou Zeel,
aproximando-se dele e colocando-lhe a mão em cima do
ombro.
Corando ainda mais, desta vez de satisfação, Norris
segurou no ombro de Shaaran. Shaaran segurou no de
Rowan.
— Cabeças baixas — disse Rowan, e ouviu Zeel
murmurar uma bênção. Ele respirou fundo e atravessou o
arco, com os companheiros a arrastar os pés atrás dele.
A luz azul envolveu-os. E com ela veio o medo. O
medo trespassou a mente de Rowan como água gelada,
gelando-lhe o sangue, invadindo-lhe o coração. Um for-
migueiro na pele fazia-o sentir que não estavam sós, que
havia algo ali que tinha consciência da presença deles, algo
cheio de maldade.
Ele sentiu a mão de Shaaran apertar-lhe mais o
ombro, ouviu a respiração curta dela e percebeu que ela
também estava aterrorizada.
— Mantém a cabeça baixa — murmurou ele. Mas
mesmo enquanto obrigava as palavras a sair dos seus lá-
bios, o impulso de abrir os seus próprios olhos estava a
tornar-se quase avassalador.
Espirais de gelo surgiam nas orlas do seu campo de
visão como sombras azuis. Os cascos dos bukshah tinham
deixado apenas marcas sumidas no chão duro, pelo que a
trilha estreita e sinuosa que eles tinham feito era quase
invisível. Rowan viu-se obrigado a hesitar muitas vezes
antes de prosseguir cautelosamente.
Nisto, a trilha pareceu desaparecer totalmente.
Mesmo à frente deles estava um pilar de gelo, e Rowan
não sabia se devia virar para a direita ou para a esquerda.
Parou, paralisado, procurando desesperadamente a
trilha no chão envolto em neblina. Tinha a testa coberta
de suor gelado. Estava aterrorizado com a possibilidade de
tomar a decisão errada. A idéia de se perder, de vaguear
sem rumo naquele temível labirinto gelado enchia-o de
medo.
Sentiu Shaaran premir-se contra as suas costas,
como se estivesse a ser empurrada por trás.
— Não consigo ver a trilha — disse ele. — Espe-
rem... Ele calou-se quando Norris ouviu praguejar furiosa-
mente e Zeel emitir um assobio longo e arrastado.
Rowan sentiu um acesso de ira. Eles não sabiam
como aquilo era difícil? Então eles que experimentassem ir
à frente, a guiá-los.
— Eu estou a fazer o melhor que posso! — gritou
ele. — Tenham paciência!
Houve um rugido de raiva confusa, depois um grito
estranho, alto, e, subitamente, Shaaran foi empurrada tão
violentamente contra as costas de Rowan que ele quase se
desequilibrou. Rowan gritou, cambaleante, esforçando-se
por se manter de pé enquanto Shaaran se agarrava a ele.
Atrás deles, alguém caiu pesadamente no chão du-
ro. Rowan sentiu a sua capa a ser puxada e torcida, e ge-
meu alto quando percebeu de que Shaaran tinha se virado
para olhar por cima do ombro.
Shaaran soltou um grito lancinante, gritou o nome
dele.
No interior deste vale os cegos são sábios...
As palavras soavam aos ouvidos de Rowan, mas ele
já não conseguia ouvir.
Deu meia volta, empurrando a menina aos gritos
para o lado e parcialmente para trás dele. E, horrorizado,
viu que tinham caído numa armadilha. Havia duas figuras
a lutar no chão. Lutavam selvagemente, rolando no meio
das colunas de gelo retorcidas. Uma neblina azul rodopia-
va à volta delas, encobrindo-as, pelo que Rowan não con-
seguia ver se quem tinha sido atacado era Zeel ou Norris.
Mas ele conseguia ver a lâmina brilhante de um punhal. E
via manchas de sangue escarlate no gelo.
Procurando a sua própria faca, tirou a mochila dos
ombros e deu um salto para a frente, com um grito.
Uma das figuras que lutavam atirou a outra pesada-
mente para o lado e pôs-se de pé num salto para o en-
frentar.
A respiração ficou presa na garganta de Rowan, e
ele recuou, chocado, com o coração a bater com muita
força. A sua frente estava uma guarda Zebak a rosnar fe-
rozmente, com o rosto manchado de sangue. O risco
preto tatuado que identificava todo o seu povo era como
um sulco no centro da testa.
A Zebak ergueu o punhal e saltou sobre ele. Instin-
tivamente, Rowan bloqueou-lhe o golpe, agarrando no
pulso da mão que empunhava o punhal, para manter a
arma à distância. O peso dela atirou-o contra o pilar de
gelo, que se estilhaçou como vidro. A faca caiu-lhe da mão
e rodopiou para longe.
Rolaram os dois pelo chão, e os estilhaços de gelo
despedaçaram-se debaixo deles. Ele sentia o hálito quente
da Zebak no seu rosto. Conseguia sentir o seu ódio. O
punhal dela cintilava acima dele, com a ponta manchada
de sangue apontada para a sua garganta. As mãos e os
pulsos dele eram fortes devido ao seu trabalho com os
bukshah — eram a sua única força — mas já estavam a
tremer com o esforço. Durante quanto tempo conseguiria
ele manter o punhal afastado? Durante quanto tempo...
Ao fundo, havia alguém a gritar. Shaaran. Shaaran
estava a gritar desesperadamente pela Zeel. Porque é que a
Zeel não respondia? Porque é que não o vinha ajudar?
E, subitamente, Rowan soube porquê. A Zeel não
vinha porque estava morta. Como, sem dúvida, devia estar
Norris, que era o último da fila. Esta mulher cruel tinha
matado os dois.
E aquele fora o plano dos Zebak. Apanhar os qua-
tro um a um, à medida que eles se arrastavam às cegas a-
través da neblina. Para garantir que eles nunca atingiriam o
seu objetivo, nunca cumpririam a profecia.
E porquê? A mente de Rowan estava a trabalhar
como um relâmpago. Porquê? Porque os Zebak queriam
que aquela terra, a terra que eles não tinham conseguido
conquistar, fosse destruída. Eles queriam que o seu povo
fosse castigado por se ter atrevido a desafiá-los.
Uma raiva intensa percorreu-o. As suas mãos aper-
taram os pulsos da Zebak e, com uma força que ele não
tinha consciência de possuir, afastou-a de si, esmagando a
mão que empunhava o punhal contra a orla denteada do
pilar estilhaçado.
Ela gritou de dor e raiva. O punhal voou para lon-
ge. Rowan mergulhou para o apanhar, agarrou nele...
E ouviu um som estranho.
Ergueu o olhar e viu, erguendo-se mesmo à sua
frente, algo escuro e horrendo. Era uma árvore baixa, re-
torcida. Os seus ramos grossos e curtos com folhas roxas
baças nas pontas ondulavam e agitavam-se. As suas raízes
brancas e gordas já estavam a serpentear avidamente em
direção a ele.
Rowan sentiu o sangue gelar. Aquela era uma árvo-
re de Unrin — uma árvore que gostava de carne humana,
uma árvore semelhante às que, muito tempo antes, tinham
asfixiado o Vale do Ouro.
Árvores demoníacas, chamara-lhes Zeel. Ela e Ro-
wan tinham lutado contra elas no Fosso de Unrin, quase
tinham morrido nas suas odiosas garras. Mas a Montanha
era o habitat natural das árvores, e aquela estava ali, a ten-
tar apanhá-lo, ávida dele...
Estremecendo de repugnância, Rowan recuou, ten-
tando manter os pés longe daquelas raízes esfomeadas,
que pareciam cobras.
A capa emaranhara-se à volta das suas pernas, difi-
cultando-lhe os movimentos quando ele se tentou levan-
tar. Ouviu Shaaran gritar, a soluçar desvairadamente e,
com uma onda de pânico, apercebeu-se de que ela vinha a
correr em direção a ele, gritando cada vez mais alto. Ele
ouvia os seus passos, cada vez mais próximos.
— Não, Shaaran! Não se aproxime! — rugiu ele,
golpeando as raízes quando elas o atacaram.
A sua mente trabalhava velozmente. Nessa altura, a
Zebak devia estar a pôr-se de pé, com a raiva inflamada
pela dor dos seus ferimentos.
Ela tinha perdido o punhal, mas, ferida ou não, a-
tacaria com as mãos nuas se fosse necessário. E ela era
forte, muito forte. Ela faria qualquer coisa para cumprir a
tarefa que lhe fora atribuída. Ela partiria o pescoço magro
de Shaaran como se este fosse um galho de uma árvore.
Arrancaria o punhal a Rowan e matá-lo-ia também.
Mas... o coração de Rowan deu um salto. A árvore
demoníaca. A Zebak não tinha maneira de saber como ela
era perigosa. Se ele conseguisse atraí-la para as suas gar-
ras...
Arriscou-se a olhar para trás, para ver se o caminho
estava desimpedido. E o seu coração pareceu parar quan-
do viu erguer-se atrás de si uma forma branca retorcida
com maxilares abertos, forrados de azul, e dentes afiados
como agulhas.
12
A FONTE

C om o punhal erguido, Rowan levantou os olhos


para o réptil do gelo, à espera da morte. Ele já es-
tava para além do terror, para além da dor. Todos
os sentimentos tinham sido varridos da sua mente, com
exceção de um: ódio puro. Se ia morrer, se tudo estava
perdido, ele levaria consigo o maior número de inimigos
possível.
Ele viu a Zebak agachada atrás do animal, com um
estilhaço de gelo afiado como uma agulha na mão ensan-
guentada. Ele sentiu uma raiz da árvore do demônio agar-
rar-lhe no tornozelo, apertando-o como um aro de ferro.
Muito bem. Elas que lutassem por causa dele e que
se matassem uma à outra na briga.
Fez um esforço para resistir à árvore do demônio.
Riu-se para a Zebak, escarnecendo dela, desafiando-a a
aproximar-se mais. Depois ergueu novamente os olhos
para o réptil do gelo. Acima dos horrendos maxilares, a
cabeça do animal brilhava como se um líquido imundo lhe
escorresse da pele. O rosto de Rowan contorceu-se de
ódio.
O animal soltou um silvo estranho. Inclinou-se
mais, e a sua cabeça sem olhos aproximou-se, cada vez
mais...
Rowan segurou o punhal com mais força, preparan-
do-se para atacar. Depois... com grande espanto seu, sen-
tiu algo quente borrifar-lhe a cara virada para cima.
E instantaneamente o réptil do gelo serpenteou e
recuou, vencido. No seu lugar estava Shaaran — Shaaran
inclinada sobre ele, com a caixa das sedas nos braços e
lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
Rowan olhou para ela, espantado. O punhal ca-
iu-lhe da mão. Depois o coração pareceu saltar-lhe para a
garganta quando viu uma sombra erguer-se atrás da cho-
rosa menina — uma sombra a empunhar uma lâmina de
gelo mortífera.
A Zebak!
— Cuidado! — gritou ele, agarrando no braço de
Shaaran e puxando-a para baixo, para baixo e para o lado.
A lâmina falhou-a por pouco, e a sua atacante caiu para a
frente, tropeçando nos seus corpos e caindo pesadamente
ao chão.
E só então Rowan viu quem era a atacante... era a
Zeel! Pestanejou, incrédulo. Mas não havia qualquer en-
gano.
Não havia qualquer guerreira Zebak. Nunca hou-
vera. Era Zeel quem estava de joelhos à sua frente, com
uma mão a sangrar e a outra a tatear o chão à procura de
uma arma.
Atordoado de choque, horror e alegria, Rowan sol-
tou um grito estrangulado. Nesse mesmo momento, a
mão de Zeel fechou-se sobre a faca dele, que tinha estado
meio escondida atrás da coluna de gelo. Seguidamente,
ainda vacilante, ela pôs-se de pé. Os seus olhos vidrados
concentraram-se nele. O seu rosto franziu-se em rugas de
ódio.
— Morra, ishkin! — silvou ela, atirando-se para a
frente.
— Zeel, não! — gritou Rowan. Mas, no preciso
momento em que as palavras lhe saíram dos lábios e ele
deu um salto para trás, e a faca golpeou desajeitadamente
o local onde ele estivera, ele compreendeu.
Horrores espreitam atrás dos teus olhos...
Ele amaldiçoou-se freneticamente pela sua estupi-
dez, por não ter pensado mais atentamente nas palavras da
profecia.
O verso dizia atrás dos teus olhos, não à frente deles!
Rowan estava furioso consigo próprio. E o que está atrás
dos teus olhos? A sua mente, seu estúpido! A sua mente!
Essa é a traição deste lugar. Ela lhe mostra os inimigos que
vivem na sua memória. A Zeel não está a te ver como é!
Quando olha para você, ela o vê como um ishkin, um
monstro da terra dos Zebak. Tal como você a viu como
um guarda Zebak, e viu a Shaaran como um réptil do gelo.
Inimigos que, não só detesta, como teme...
Com um sobressalto, ele olhou para o seu pé preso.
Em vez da raiz da árvore demoníaca, agora ele viu a mão
enluvada de Norris a segurá-lo com uma mão de ferro. O
braço de Norris estava estendido, muito hirto. Norris es-
tava deitado no chão de barriga para baixo, imóvel como a
morte.
— Rowan! — gritou Shaaran. Rowan levantou os
olhos mesmo a tempo de a ver lançar-se em direção a ele,
ao mesmo tempo que Zeel voltava a atacar.
E, no instante seguinte, a faca dirigida ao seu cora-
ção tinha mergulhado na caixa de madeira que Shaaran
segurava à frente dele como um escudo. O lado da caixa
estilhaçou-se. Os preciosos rolos de seda começaram a
deslizar para fora, caindo e rolando no chão duro.
Shaaran soltou um grito agonizante. Zeel agarrou-a
e atirou-a violentamente ao chão.
— Com que então quer atirar-me ao ishkin, guarda?
— silvou ela para Shaaran. — Quer ver-me esfolada e ar-
rastada para debaixo da terra, como os meus amigos?
Bem, sem dúvida que o seu desejo será cumprido. Mas
você vem comigo, viva ou morta! — Ela levou as mãos
manchadas de sangue ao pescoço de Shaaran e apertou.
— Não, Zeel, não! — soluçou Shaaran, tentando
libertar-se dos dedos que a estrangulavam.
Rowan tentou puxar Zeel para trás, obrigá-la a sol-
tar Shaaran. Era inútil. A sua mente rugia de horror.
Ver-se-ia ele obrigado a usar o punhal da própria Zeel pa-
ra salvar Shaaran? As coisas tinham chegado àquele pon-
to?
— O que... o que se passa com ela? — perguntou
Shaaran, sufocando.
— Ela pensa que você é uma guarda Zebak —
respondeu Rowan. — Como eu pensei que ela era, até...
Ele calou-se.
Até o quê? O que quebrara a ilusão? Porque é que
ele tinha ficado curado tão repentinamente, tão comple-
tamente? O que tinha...?
As últimas palavras da profecia ecoaram subita-
mente aos seus ouvidos.
A cura é água de uma fonte
Onde não há ódio nem raiva.
A compreensão atingiu-o como um raio.
— Shaaran! — gritou ele. — Limpa os olhos, de-
pois toca-lhe no rosto! Agora! Depressa!
Era típico de Shaaran não lhe fazer perguntas, não
hesitar. Tirou as mãos da garganta, limpou as lágrimas dos
olhos, depois colocou os dedos nas faces de Zeel.
E, instantaneamente, Zeel pestanejou e recuou,
com uma expressão de choque no rosto. As mãos larga-
ram o pescoço de Shaaran, e ela olhou para elas como se
não lhe pertencessem.
— Zeel! — gritou Rowan, cheio de alegria. Ela vi-
rou-se para ele com um ar inexpressivo. Depois, a memó-
ria invadiu-a, e ela olhou para Shaaran que estava caída no
meio de um emaranhado de seda, a tentar recuperar a res-
piração.
— O que... o que é que eu fiz? — perguntou ela,
horrorizada.
— Não se preocupe — conseguiu dizer Shaaran,
pondo-se de joelhos. — A culpa não foi sua. A sério que
não foi.
— Você não fez nada que eu não tenha feito, Zeel
— disse Rowan. — E o Norris também. A Shaaran foi a
única de nós que...
Um gemido baixo fê-lo virar-se, alarmado.
Norris estava a acordar. Ele levantou a cabeça e a-
briu os olhos. Olhou diretamente para o rosto de Rowan.
Os seus olhos escureceram, e ele mostrou os dentes. A
sua mão apertou o tornozelo de Rowan com mais força.
Com um grito, Shaaran começou a gatinhar dolo-
rosamente na direção do irmão.
Rowan estendeu rapidamente a mão, passou os
dedos pelas faces molhadas da menina e espalhou as lá-
grimas pela testa franzida de Norris. As rugas de expres-
são desapareceram do rosto dele, deixando-o liso, perple-
xo e quase infantil.
— Eu... eu estava a sonhar — balbuciou ele. —
Shaaran, você está viva! E o Rowan! Mas eu pensava...
O seu rosto adquiriu subitamente uma expressão de
alarme, e ele começou a tentar levantar-se, com o sangue a
jorrar de uma enorme facada num dos lados.
— Norris, não se mexa! — gritou Shaaran. Mas
Norris já estava de pé, a olhar desvairadamente em volta.
— Há uma guarda Zebak aqui! — silvou ele. — Ela
matou a Zeel e tomou o seu lugar, em algum lugar na tri-
lha. A culpa foi minha! Eu não ouvi nada! Só percebi isso
quando me virei para falar com a Zeel, depois de termos
parado. A bandida atacou-me... nós lutamos...
Ele tentou endireitar-se, gemeu e levou a mão ao
lado.
— E também há aqui um grach guerreiro... enorme!
Um assassino! Eu estava a agarrá-lo... a tentar mantê-lo
longe de você... mas agora não consigo vê-lo! Rowan,
Shaaran, ponham-se atrás de mim. Onde está a minha es-
pada? A minha espada!
Rowan viu a espada caída no chão. Apanhou-a e
colocou-a na mão de Norris.
— Está aqui, mas não precisa dela, Norris — disse
ele. — Não há ninguém para combater. Não há nenhuma
guarda, nem nenhum grach. — Ele suspirou. — Tal como
não havia nenhum réptil do gelo, nem árvore demoníaca...
— Nem ishkin — acrescentou Zeel calmamente,
aproximando-se deles a coxear. — Eram apenas ilusões,
Norris. Nós quase nos matamos uns aos outros, lutando
contra as nossas recordações.
Norris oscilou, abanando a cabeça, confuso.
— Mas eu não vi nada! — disse Shaaran com voz
rouca e uma mão na garganta magoada. — Só os vi... a
todos vocês... a atacarem-se uns aos outros. E os seus
rostos... — Uma sombra pareceu perpassar-lhe o rosto, e
ela estremeceu.
— Você não viu nada porque não tem inimigos
para ver, Shaaran — disse Rowan.
Shaaran quase riu.
— Mas isso é ridículo — gritou ela. — Eu tenho
mais medos do que todos vocês juntos!
— Você tem medo de muitas coisas, mas não tem
ódio a nada — disse Rowan. — Não há uma única pessoa
ou animal que você fosse capaz de destruir de propósito,
nem mesmo para salvar a si própria. Não é verdade?
Shaaran olhou para ele, com o rosto ligeiramente
corado como se tivesse vergonha.
— O nosso Avô era a mesma coisa — murmurou
Norris. — E a minha mãe e o meu pai também. Prote-
gê-los era uma tarefa quase inglória.
— Posso bem imaginar isso — disse Zeel num tom
caloroso. — Mas parece que desta vez a situação foi ao
contrário.
Norris pareceu perplexo.
Ele não viu nada do que aconteceu, pensou Rowan.
Ele continua sem compreender.
— A Shaaran salvou-nos a todos — disse ele a
Norris. — Lembra-se dos últimos versos da profecia? A
fonte livre de ódio e raiva não era uma fonte verdadeira,
mas sim o coração transbordante da Shaaran. E as lágri-
mas dela eram a água curativa.
— Uma para chorar — disse Zeel.
Shaaran corou ainda mais. Norris franziu o sobro-
lho.
— Então porque é que a profecia não disse isso
claramente? — perguntou ele, zangado. — Porque é que
um enigma nos há de enganar e confundir?
— Porque a vida em si é um enigma — respondeu
Zeel — e, à medida que fazemos a nossa viagem através
dela, temos que resolver todos os enigmas por nós pró-
prios. — Ela falou num tom ligeiro, mas os seus olhos
tinham um ar pensativo.
Shaaran tinha começado a apanhar os rolos de seda
espalhados pelo chão.
— Eu não consigo ver as pegadas dos bukshah —
disse ela com nervosismo. — Acho que estamos perdidos.
Mas Rowan ainda conseguia ver a sua mochila no
lugar onde a deixara cair, não muito longe.
— Está tudo bem — exclamou ele, apontando. —
Foi ali que deixei a trilha.
— Ainda bem! — suspirou Zeel. — Então vamos
pôr ligaduras nas nossas feridas, consertar a caixa das se-
das e sair deste lugar maldito o mais depressa que pu-
dermos. O próprio ar põe-me doente.

***

Ao fim de menos de uma hora, os companheiros já


prosseguiam lentamente o seu caminho por entre as colu-
nas de gelo, desta vez com Zeel à frente. Os seus olhos
perspicazes não tinham demorado muito tempo a localizar
a trilha que Rowan não conseguira encontrar.
Todos eles estavam machucados, mas Norris era
quem estava em pior estado. A sua perna machucada tinha
piorado com a luta, e a ferida num dos lados era profunda
e dolorosa.
Mas seria o sofrimento o único motivo para o seu
silêncio? perguntou Rowan a si próprio. Ou residiria o
verdadeiro problema em algum lugar dentro dele?
O rosto de Norris estava carrancudo. Ele não se
juntou ao coro de fracos vivas que saudaram a visão de
outro arco rochoso à sua frente — um arco através do
qual se via uma mancha cinzenta. Ele não ergueu o olhar
quando os companheiros saíram finalmente do vale de
horrores e chegaram ao espaço aberto.
Isto não pressente nada de bom, pensou Rowan. E,
quando olhou em redor e reconheceu a encosta erma, ín-
greme, coberta de neve, que ficava para além do arco, o
coração caiu-lhe aos pés.
Um vento agreste soprava à volta deles. Havia
pouca luz. As pegadas dos bukshah eram escuras na neve e
subiam até se perderem no meio das rochas caídas. Para
além das rochas havia uma parede de penhascos pretos.
Acima dos penhascos não se via nada a não ser a neblina
rodopiante.
Três figuras, subindo em fila indiana...
Este era o local do seu sonho. Do primeiro sonho.
Mas o sonho não se tornará realidade, disse Rowan a si
próprio. Não pode tornar-se realidade. Eu, o Norris e a
Shaaran não estamos sós. A Zeel está conosco.
Percebeu que Zeel estava a falar com ele.
— Temos que encontrar um abrigo, e depressa —
murmurava ela. — Um lugar onde possamos fazer uma
fogueira.
Três figuras juntas, cheias de medo, à volta de uma foguei-
ra...
— A caverna... — balbuciou Rowan.
— A caverna? — exclamou Zeel. — Qual caverna?
Rowan abanou a cabeça para desanuviá-la.
— Eu só queria dizer... ali... certamente que deve
haver uma caverna, naqueles penhascos lá em cima —
gaguejou ele.
Zeel olhou para ele com a cabeça inclinada para um
lado.
— Porque é que tem tanta certeza? — perguntou
ela.
Rowan hesitou, percebendo que Zeel estava des-
confiada de que ele sabia mais do que dizia. Por um lado,
ele ansiava por lhe fazer confidencias. Mas se, até agora,
ele não admitira ter aqueles sonhos terríveis, como é que
podia fazê-lo naquele momento, naquele lugar ermo, com
Shaaran e Norris à beira do desespero?
Zeel abanou impacientemente a cabeça.
— Pode guardar os seus segredos! — disse ela num
tom ríspido. — Mas se você sabe que há uma caverna,
Rowan, é loucura não me dizer. Nós estamos em perigo!
Para onde devemos ir? Como é que nos podemos es-
conder?
E, instantaneamente, o medalhão começou a aque-
cer. Rowan, horrorizado, agarrou nele, consumido pela
recordação daquela dor que o queimava, por aquela sen-
sação aterrorizadora de ser dominado por algo que não
era ele próprio.
— Oh, Rowan! Não foi minha intenção... oh, des-
culpa! — o grito de Zeel ressoou nos seus ouvidos. —
Rowan, não resista! Deixa que...
A voz dela deixou de se ouvir. Não resista.
Rowan resistiu ao impulso de afastar o medalhão da
pele. Em vez disso, ele premiu-o mais contra si. O calor
começou na garganta, chamuscando-a e fazendo-a inchar,
mas ele obrigou-se a si próprio a não ficar sufocado. E
assim as palavras estranhas fluíram dele para o ar gelado,
não com facilidade, mas também não o fizeram de uma
forma atroz.
“O refúgio espera no alto, mais adiante
Sobe a escada do morto.
Esconde-te no interior das paredes rochosas
Fica imóvel enquanto a escuridão gelada cai.”
13
A SUBIDA

Q uando as últimas palavras lhe saíram dos lábios,


Rowan caiu de joelhos, sentindo-se tonto e ago-
niado. Lentamente, o mundo pareceu estabilizar, e
ele ergueu o olhar. Norris estava a fitá-lo com um ar inex-
pressivo. Shaaran também o fitava, mas tinha a mão pre-
mida contra a boca. E a Zeel...
Zeel estava a abrir o seu papagaio.
— Não, Zeel! — gritou Rowan, em pânico, a tentar
pôr-se de pé. Novas vagas de tonturas fizeram-no camba-
lear.
Zeel olhou para ele.
— Eu não tinha a intenção de te fazer sofrer, Ro-
wan, mas, pelo menos, posso fazer com que a dor valha a
pena — disse ela. — A profecia fala de “paredes rocho-
sas.” Deve haver, de fato, uma caverna mais adiante. Eu
vou à procura dela a partir do ar enquanto vocês come-
çam a subir.
— Não! — retorquiu Rowan num tom de deses-
pero. — Você tem uma mão machucada. Voar aqui é de-
masiado perigoso. Se o vento mudar, será atirada contra
os penhascos!
Zeel levantou a cabeça.
— Você se esquece — disse ela suavemente — de
que eu sou uma Batedora dos Viajantes. A minha tarefa na
vida é voar à frente da tribo qualquer que seja o tempo, à
procura de abrigo, ver se há perigos à espreita. Os meus
conhecimentos podem ajudar-nos agora. Eu não me ar-
riscaria a levar o peso de um passageiro extra, mas sozinha
consigo voar, com uma mão só, se necessário.
Ela levantou o papagaio, de modo a que a seda a-
marela esvoaçasse por cima dela.
— Nos veremos em breve, Rowan,
Rowan reconheceu as palavras. Eram usadas pelos
Viajantes quando se despediam uns dos outros em mo-
mentos de perigo.
— Nos veremos em breve — respondeu ele. Zeel
sorriu-lhe, virou a cabeça para o vento, e este levou-a para
cima, para longe.
Rowan ficou um momento a ver o papagaio a voar
por cima deles, uma mancha de cor contra o fundo bran-
co, preto e cinzento. Depois voltou-se para Shaaran e para
Norris.
Estavam os dois a olhar para Zeel, Shaaran com um
misto de espanto e medo, Norris com um ar de desespero.
O jovem estava parado, a oscilar, com o rosto marcado
pela tensão e os ombros curvados.
Rowan sentiu um enorme desânimo.
— Devíamos acender archotes antes de continuar-
mos — disse ele. — Temos uma longa subida pela frente,
e a qualquer momento... — Ele calou-se ao ver os olhos
aterrorizados de Shaaran. Não precisava de lhe lembrar do
que, naquele preciso momento, poderia estar a deslizar
por baixo da neve em direção a eles.
Norris não disse nada. Não falou sequer quando
Rowan lhe meteu um archote a arder na mão, simples-
mente deu meia volta e começou a afastar-se, a coxear,
seguindo as pegadas dos bukshah.
Shaaran olhou para Rowan, com os olhos cheios de
ansiedade.
— Deixe-o ir — disse Rowan. — Vamos atrás dele.
— O medo acabrunhava-o. Ele sabia o que ia acontecer a
seguir, mas não podia fazer nada.
Aprende o que é ser o que eu sou.
Começaram a subir os três em fila indiana. Na
mente de Rowan estava um retrato claro do aspecto que
eles deveriam ter. A figura alta, a coxear, à frente; a seguir,
a figura pequena, frágil, com uma caixa comprida de ma-
deira nas mãos; por último, ele próprio...
Incapaz de resistir à tentação, ele virou-se e olhou
para trás. Não viu nada a não ser uma imensidão cheia de
neve, rocha preta e o arco, de um azul cintilante.
— Rowan, o que é?
Shaaran tinha parado e estava a olhar para ele com
um ar alarmado.
Rowan encolheu os ombros, decidido a não dizer
nada. Viu que Norris também tinha parado e se virara. Os
olhos de Norris tinham um ar inquieto, mas ele não falou.
Pelo menos isto não é igual ao meu sonho, pensou Rowan,
com um lampejo de esperança. Mantendo-me calado, alterei as
coisas. Talvez...
— Vamos continuar a andar — insistiu Shaaran. —
Daqui a pouco vai ficar escuro.
Os lábios de Norris distenderam-se num sorriso
terrível.
— Que importância tem isso? — disse ele subita-
mente. — Quer paremos aqui, quer mais acima na Mon-
tanha, quer seja noite, quer dia, estamos condenados.
A bengala e o archote caíram-lhe das mãos, e ele
tombou no chão.
Shaaran correu para ele e começou a puxar-lhe os
braços, chamando-o pelo nome. Ele limitou-se a virar-lhe
a cara e a enterrar-se mais na neve, como uma criança que
não quisesse levantar-se de uma cama quentinha.
— Rowan, ajude-me! — gritou Shaaran.
Rowan pegou o archote caído e obrigou-se a si pró-
prio a pensar.
Eu vi todos juntos numa caverna, recordou ele a si pró-
prio. Eu sei que, de algum modo, Norris vai conseguir sobreviver a
isto... que todos nós vamos conseguir sobreviver. Mas eu também sei
que suplicar-lhe ou tentar convencê-lo não o fará mexer-se. Tem que
haver outra maneira.
Mas que outra maneira? Ele e Shaaran não tinham
força suficiente para carregar Norris, nem sequer para ar-
rastá-lo mais do que uma curta distância pela colina acima.
— Levante-se, Norris, por favor! — dizia Shaaran,
a chorar, ajoelhada ao pé do irmão, ela própria meio en-
terrada na neve.
— Deixe-me dormir — resmungou Norris. — Isto
é o fim.
Isto é o fim...
Rowan viu Shaaran cobrir a boca com a mão para
abafar um grito de desespero.
Era ali que o seu sonho tinha terminado. E agora?
Ele deitou-se ao lado de Norris.
— Isto não é o fim, a não ser que faça com que se-
ja, meu amigo — disse ele num tom inexpressivo.
Norris suspirou profundamente. Depois rolou, fi-
cou deitado de costas e olhou para Rowan.
— É o fim — disse ele. — Todos nós tivemos o
nosso papel a desempenhar nesta busca. Uma alma para
chorar, uma para lutar, uma para sonhar, uma para voar.
Não é assim?
Rowan acenou afirmativamente a cabeça e aguar-
dou.
— A Shaaran é a que chora — disse Norris er-
guendo os olhos para o céu que já estava a escurecer. —
As suas lágrimas salvaram-nos no vale dos horrores. Você
é o que sonha, Rowan, pois usa o medalhão e diz as pro-
fecias. Zeel é a que voa, conforme acabamos de ver. E
eu...
Ele calou-se e fechou os olhos.
— Continue! — insistiu Rowan, lutando contra a
sensação de culpa que o inundara quando Norris falara em
sonhar. — E você... você é o que luta?
— Claro! — respondeu Norris, abrindo os olhos.
— Eu pensava que estava destinado a ser o seu protetor.
Eu tinha tanta certeza disso que nem sequer tentei im-
pedir que a Shaaran viesse nesta viagem. Eu pensei que ia
salvar aos dois.
Shaaran soluçou, um soluço estrangulado. Norris
olhou na direção dela mas desviou imediatamente o olhar.
— Eu sentia-me tão orgulhoso do papel que estava
destinado a desempenhar — murmurou ele. — Eu, que
fazia desesperar o meu avô, ia provar finalmente que era
um herói, não um tolo.
Ele soltou uma gargalhada amargurada.
— Norris — começou Rowan a dizer. Mas Norris
não estava a ouvir. — Quando foi altura de lutar, com que
satisfação eu me apressei a atacar! — prosseguiu ele, com
o rosto contorcido de dor e de vergonha. — Mas depois...
depois descobri que não tinha estado a lutar contra inimi-
gos, mas sim contra os amigos que tinha jurado defender.
Mais uma vez, eu tinha sido um tolo estouvado. E agora
não passo de um peso ferido, inútil.
— Eu e a Zeel também fomos vítimas das visões!
— exclamou Rowan.— Você não pode culpar-se a si
próprio pelo que aconteceu.
— Posso, porque fui eu que me virei. Fui eu que
dei origem a tudo, ao armar-me em grande guarda e pro-
tetor — disse Norris. — E agora a nossa busca terminou.
Eu compreendi isso quando vi a Zeel lançar o seu papa-
gaio. Chorar, lutar, sonhar e voar. Os quatro papéis já fo-
ram todos desempenhados.
O estômago de Rowan deu uma volta.
— E o meu papel — prosseguiu Norris numa voz
cada vez mais baixa —, o meu papel, longe de nos salvar,
tem sido deixar-nos fracos e indefesos, presas fáceis do
destino que a Montanha nos reserva. Eu não passei de um
peão num jogo maligno.
Lágrimas amargas ardiam-lhe nos olhos.
— Deixem-me. Eu não quero viver o que está para
acontecer. O ente maligno que nos trouxe para este lugar
triunfou.
Ele virou-se para a neve, cobrindo a cabeça com os
braços e puxando os joelhos para o peito.
— Norris — gritou Rowan, abanando-o. — Mes-
mo que tivesses razão... mesmo que uma força maligna
nos tenha conduzido a uma armadilha... nós não podemos
simplesmente deixar-nos morrer.
Mas desta vez Norris não se mexeu.
Ouviu-se um grito estranho, agudo, vindo de algu-
res lá no alto. Era a Zeel! Rowan pôs-se de pé e olhou pa-
ra cima. O papagaio amarelo pairava perto da face do pe-
nhasco, com um lado ligeiramente inclinado como se es-
tivesse a apontar para um lugar mais abaixo.
Ele sentiu uma ponta de esperança. Zeel tinha en-
contrado a caverna. A única coisa de que eles precisavam
era chegar lá; depois, teriam calor, descanso e alguma es-
pécie de segurança.
Mas Norris estava deitado na neve como um toro
de madeira, retendo-os naquela colina sombria e perigosa.
O Norris, imagine-se só! Ele que era tão admirado por
todos os habitantes de Rin pela sua força e coragem.
Rowan sentiu a ira aumentar dentro de si. Ele sabia
que era imerecido e injusto mas, por um instante, dei-
xou-se dominar por ela. Se a Lann visse o Norris agora!
Ou a Bronden! O que fariam elas?
E, de repente, ele soube. Lann e Bronden tratariam
Norris tal como esperariam ser tratadas. Elas saberiam
instintivamente o que poderia quebrar a casca de deses-
pero que o envolvera, pois ele era igual a elas.
Rowan respirou fundo e preparou-se para agir.
— Levante-se! — disse ele, dando um pontapé no
ombro de Norris, com um ar de desprezo.
Shaaran gritou.
Rowan ignorou-a e deu outro pontapé.
Norris abriu os olhos.
— Deixe-me em paz — gemeu ele.
— Covarde! — disse Rowan com desdém. — É
um covarde!
— Rowan, como pôde fazer uma coisa dessas? —
perguntou Shaaran, a chorar. — Ele está a sofrer muito!
Mas os olhos baços de Norris tinham adquirido vi-
da, e havia um ar zangado no seu rosto.
— Você está me chamando de covarde? — rosnou
ele. Rowan virou-lhe as costas. A Norris, pareceu certa-
mente que ele lhe virava as costas com repulsa. Norris não
conseguia ver que o seu atormentador estava a fazer figas
e sustinha a respiração.
Mas Shaaran via. Os seus olhos chocados abri-
ram-se muito em sinal de compreensão, e ela calou-se.
Norris mexeu-se. Procurou desajeitadamente a ben-
gala. Quando a tinha na mão, pôs-se em pé, com dificul-
dade. A neve caiu-lhe pesadamente da roupa como um
aguaceiro. Ele arrancou o seu archote da mão de Rowan.
— Eu vou mostrar-te quem é covarde — rosnou
ele. — Acompanhe o meu passo, se puder!
E, a cambalear, ele começou a afastar-se, seguindo
a trilha.
Shaaran e Rowan foram atrás dele. Certamente que
ele me está a amaldiçoar, pensou Rowan. Mas, pelo me-
nos, está vivo.
Vivo por enquanto.
Rowan afastou o pensamento indesejado e conti-
nuou a andar.
A subida era longa e árdua. Estava cada vez mais
frio e mais escuro, e o vento era agreste, picando-lhes a
cara e soprando-lhes o fogo dos archotes para os olhos. À
medida que se aproximavam da face do penhasco, o ca-
minho foi se tornando mais íngreme e sinuoso. A sua vol-
ta havia pedregulhos enormes. A neve debaixo dos seus
pés era gelada, e tinha congelado em pedaços duros den-
teados, escorregadios como o gelo.
Zeel descrevia círculos por cima das suas cabeças,
atenta aos sinais de perigo — perigo que se contorcia de-
baixo da neve, escondido na neblina que rodopiava por
entre as rochas.
Ao fim de algum tempo, os penhascos ergueram-se,
enormes e escuros, à sua frente. As pegadas dos bukshah
seguiam para a esquerda, mas Zeel dirigiu-se para a direita,
e os três em terra seguiram-na aos tropeções através da
neve espessa. Pouco depois, o papagaio estava a pairar
como uma enorme borboleta sobre um local onde dois
terços da face do penhasco formavam uma saliência sobre
o resto, lançando sombras sobre uma abertura estreita e
escura na rocha.
Rowan reconheceu imediatamente a abertura como
a caverna do seu sonho, embora, sem a ajuda de Zeel,
certamente que teria passado sem reparar nela. Visto de
fora, o triângulo estreito, irregular, parecia uma simples
racha na rocha. E não estava na base da face do penhasco
como ele esperara, mas sim a um terço da subida, mesmo
abaixo da saliência.
O refúgio aguarda no alto, mais adiante...
O verso dizia literalmente a verdade. A caverna era,
de fato, um refúgio bem alto. Como é que iriam chegar lá?
A face do penhasco era lisa, e era impossível escalá-la.
Rowan apressou o passo, passando, quase a correr,
por Shaaran e por Norris. Quando estava diretamente a-
baixo da caverna, encostou-se à face do penhasco e le-
vantou as mãos o mais que conseguiu. As pontas dos seus
dedos ficaram longe da entrada, pelo menos a altura de
uma pessoa.
Sobre a escada do morto...
— Tem que subir para os meus ombros.
Rowan virou-se, surpreendido. Norris tinha surgido
ao seu lado, com o rosto pálido de dor e cansaço.
— Você primeiro, Rowan, para poder ajudar a
Shaaran de cima — disse Norris. — A Zeel pode ir a se-
guir.
— Norris, você não está em condições... — come-
çou Rowan a dizer. Mas Norris abanou a cabeça.
— Para chegar à caverna tem que subir a escada do
morto, é que diz o verso — murmurou ele. — E o que
sou eu senão um homem morto?
Shaaran, que ainda caminhava penosamente em di-
reção a eles, ouviu as últimas palavras e soltou uma ex-
clamação de horror. Norris não se virou para ela. Os seus
olhos estavam fixos em Rowan.
— Eu não consigo chegar à abertura, e vocês três
juntos não seriam capazes de me içar — disse ele. — Mas
eu posso ser-lhes útil. E depois talvez... talvez você, a Zeel
e a Shaaran tenham a possibilidade de sobreviver a isto.
Seria muito importante para mim pensar que isso pode
acontecer. Rowan, eu suplico-te!
Rowan não foi capaz de lhe negar o pedido. Ace-
nou rapidamente a cabeça em sinal de assentimento e
Norris, com um gemido abafado, curvou as costas. Igno-
rando o grito de aflição de Shaaran, Rowan subiu para os
ombros largos. Depois, quando Norris se endireitou, le-
vantou as mãos e agarrou-se à base da entrada da caverna.
Os seus músculos retesaram-se quando ele se içou.
As botas tentaram em vão encontrar apoio na face lisa do
penhasco. Mas a idéia de cair para trás, para o chão, de ter
causado dor a Norris para nada, deu-lhe força aos braços.
Alguns momentos depois, ele estava estendido, ofegante,
no chão da caverna.
A caverna era escura mas pouco funda. Ele conse-
guia ver suficientemente bem para confirmar que não ha-
via nada à espreita nos cantos envoltos em sombras. Ro-
dou rapidamente de modo a ficar virado para fora, e des-
lizou para a frente, com a cabeça e os ombros fora da en-
trada da caverna.
Norris estava muito curvado. Shaaran estava aga-
chada ao lado dele, a soluçar.
— Shaaran! — chamou Rowan, estendendo o bra-
ço para ela.
Mas ela abanou a cabeça.
— Ele está cheio de dores! — disse ela em voz alta.
— Eu não consigo.
Rowan ouviu um grito de aviso lancinante vindo de
cima. Ergueu o olhar. O papagaio amarelo rodava e mer-
gulhava. Zeel fazia freneticamente sinais. Ele voltou a o-
lhar para baixo e o coração começou a bater-lhe com for-
ça quando viu que a neve espessa um pouco mais adiante,
junto da base do penhasco, estava a mover-se e a er-
guer-se, formando um monte de neve branco.
Havia algo a correr ao longo da base do penhasco,
em direção a Shaaran e Norris, serpenteando através da
neve como uma enguia na água.
— Réptil do gelo! — gritou Rowan. — Shaaran!
Norris! Cuidado!
14
A CAVERNA

N orris endireitou-se. Cerrando os dentes, agarrou


em Shaaran pela cintura e, com um gemido, ati-
rou-a para cima, com tanta força que Rowan
conseguiu agarrá-la pelos ombros e puxá-la para dentro da
caverna.
Caíram os dois para trás no chão de areia. Shaaran
gritava. Rowan levantou-se e foi até à entrada.
Não viu Zeel em parte nenhuma. Ela devia ter vo-
ado para o topo do penhasco e aterrado lá, pensou Ro-
wan, atordoado. Ela devia ter tido medo de que o réptil do
gelo a agarrasse. Mas Norris...
Norris estava encostado ao penhasco. A ferida do
seu lado tinha-se aberto novamente quando ele agarrara
em Shaaran, e sangrava profusamente. Ele segurava os
três archotes à sua frente como um escudo.
— Norris! — gritou Rowan, empurrando-se para a
frente e estendendo os braços. — Agarra nas minhas
mãos!
Norris nem sequer ergueu a vista.
— Vá para trás! — gritou ele. — Não consegue me
içar. Protejam-se. Acenda uma fogueira na entrada da ca-
verna. Depressa! Eu vou reter esta coisa o mais tempo que
puder, mas...
A neve aos seus pés inchou, depois a superfície ge-
lada abriu-se e dela surgiu uma cabeça cega hedionda, com
a boca aberta. Norris não pestanejou. Atirou os archotes
para a frente. O réptil silvou, encolheu-se e preparou-se
para voltar a atacar.
Segurando Shaaran, que gritava, para a afastar da
beira, Rowan tirou archotes novos da mochila e começou
a tentar acendê-los. Tinha as mãos a tremer e amaldi-
çoou-se pela sua falta de jeito.
Norris vociferou, tentando atingir o réptil com os
archotes. O animal atacava, enfurecido, com a boca aber-
ta, sombreada de azul. Nisto, um clarão amarelo desceu
do topo do penhasco e passou-lhe por cima da cabeça,
numa golfada de calor e chamas, e ele estremeceu.
Era Zeel — Zeel, agarrada ao papagaio com a mão
boa e empunhando um archote a arder na outra. Ela tinha
certamente aterrado no topo do penhasco, mas permane-
cera lá apenas o tempo suficiente para acender o archote.
O réptil do gelo silvou e atacou, apanhando a orla
da seda amarela com os dentes. A seda rasgou-se com um
terrível som agudo. O papagaio estremeceu, inclinou-se
para o lado e começou a descer. O réptil ergueu-se e con-
torceu-se em direção a ele, pronto para voltar a atacar.
Norris viu a sua oportunidade e aproveitou-a. Com
um grito, lançou-se para a frente, empurrando os três ar-
chotes juntos contra o corpo desprotegido do animal.
Ouviu-se um crepitar horrível e um cheiro quente e
azedo. Uma onda de vapor azul escuro jorrou, com um
rugido, da boca aberta do animal. Por um momento, o seu
corpo enorme pareceu tremer no ar. Depois, enquanto
Norris saía apressadamente do caminho, o réptil caiu jun-
to da face do penhasco e ficou imóvel.
Norris ficou a olhar, com olhos vidrados, para o
monte de anéis flácidos que quase chegavam à entrada da
caverna. Ele não virou a cabeça quando Zeel surgiu ao pé
dele, com os pedaços rasgados do seu precioso papagaio
por cima do ombro. Mas, quando ela lhe pegou no braço,
ele não discutiu e deixou que ela o segurasse enquanto se
aproximavam do corpo do animal.
Zeel tocou-lhe com o pé. A pele do réptil já estava
a ficar baça e ligeiramente enrugada, e o pé fez uma mossa
na carne.
— Matou-o — disse ela num tom respeitoso.
— Mas foi apenas uma pequena queimadura, num
corpo tão grande — Norris abanou a cabeça. — Como é
que o animal podia morrer disso?
— Para ele, o calor deve ser como um veneno —
respondeu Zeel. — Como veneno no sangue. Ah, como
investiu contra ele! Como um homem possesso!
— Você deu-me a oportunidade de que eu precisa-
va — murmurou ele.
Ela encolheu os ombros.
— Fiz o que pude — disse ela. — Mas foi a sua
força que nos salvou a todos.
Ele fez um pequeno som estrangulado e ela ergueu
o olhar para ele. Os olhos dele estavam estranhamente
brilhantes, e os músculos tensos à volta da sua boca ti-
nham-se descontraído subitamente, deixando o seu rosto
liso e tranqüilo.
O que foi que eu disse para ele ficar assim?, pensou ela.
Limitei-me a dizer a verdade.
Ela refletiu sobre o assunto durante alguns instan-
tes, depois afastou o pensamento da mente, tal como a-
fastara o desgosto por causa do papagaio, e concentrou-se
em questões práticas. Norris estava a cambalear e tinha a
roupa ensopada de sangue. Ela segurou-lhe com mais fir-
meza no braço.
— Ande — disse ela. — Você deu-nos a nossa es-
cada. A nossa escada do morto. Agora temos que a subir.
Com Rowan e Shaaran a incitá-los, subiram os dois
juntos, utilizando a coisa branca sem vida como escada.
Os anéis flácidos faziam-nos deslizar e escorregar a cada
passo. Zeel tinha os maxilares cerrados, e havia uma ex-
pressão de horror nos seus olhos. Norris tremia todo.
Ao fim de alguns momentos eles chegaram à ca-
verna e entraram.
Assim que lhes apertou as mãos para lhes dar as
boas-vindas, Rowan começou a acender uma fogueira. Ele
sabia que Shaaran cuidaria de Norris. Ele sabia que Zeel ia
querer ficar sozinha, a chorar o papagaio ao seu modo. A
sua tarefa agora seria tornar a caverna segura — tanto
quanto possível — para a longa noite que tinham pela
frente.

***

Enquanto a escuridão aumentava no exterior da ca-


verna, Rowan, Zeel e Shaaran ferveram um pouco de água
para fazerem chá. Depois torraram pão, que comeram
primeiro com queijo derretido e depois com o mel e os
frutos secos que Zeel trouxera consigo.
O fogo, a comida e a bebida quentes reconforta-
ram-lhes as mentes, bem como os corpos. Ao fim de al-
gum tempo, até mesmo Norris pareceu recuperar um
pouco e conseguiu sentar-se, embrulhado em cobertores e
encostado à parede da caverna.
Por acordo tácito, eles não falaram do dia que pas-
sara, nem do futuro, embora houvesse muito a dizer. Em
vez disso, conversaram sobre pequenas coisas — o sabor
doce e fresco do mel, refeições que tinham saboreado an-
tes.
Rowan falou do peixe salgado dos Maris. Shaaran e
Norris falaram das hortaliças e da fruta que tinham culti-
vado na terra dos Zebak. Zeel falou das abelhas dos Via-
jantes, transportadas de um lado para o outro quando a
tribo seguia a floração das flores.
Depois ela calou-se, e Rowan desconfiou que ela
estava a pensar que poderia vir aí um tempo em que já
não haveria flores, nem abelhas, nem sequer Viajantes na
terra. Em que não haveria nada a não ser a brancura fria e
estéril de um Inverno interminável.
Ele moveu-se, inquieto, tentando expulsar esses
pensamentos da sua mente.
— É melhor tentarmos dormir — disse ele. — Eu
serei o primeiro a ficar de guarda.
— Eu ficarei a seguir — disse Zeel rapidamente,
antes de Norris poder falar. — Não se esqueça de me a-
cordar quando forem horas.
Ao fim de pouco tempo, estava tudo silencioso. O
chão da caverna era duro, mas Norris, Zeel e Shaaran es-
tavam exaustos e, assim que se embrulharam nos seus co-
bertores, nem mesmo a dor e os receios conseguiram
mantê-los acordados.
Rowan ficou de guarda enquanto as longas horas
passavam, sentado muito rígido junto da fogueira, a ver as
chamas dançar. De vez em quando, ele deitava mais um
pau para manter o fogo vivo mas, sempre que o fazia, era
assaltado pelo medo.
O feixe de paus que eles tinham trazido estava a fi-
car cada vez mais pequeno. E se mais répteis viessem... se
ele, Zeel, Norris e Shaaran ficassem cercados, encurra-
lados na caverna por dúzias desses animais... o que acon-
teceria?
Eles tinham comida e tinham água. Mas isso não os
salvaria se eles não tivessem combustível.
O fogo apagar-se-ia. O último archote arderia até o
fim. Depois não haveria nada que impedisse os répteis do
gelo de os arrancar da caverna um a um, como lagartos a
roubar filhotes de passarinhos de um ninho.
Esconde-te no interior das paredes rochosas
Fica imóvel quando a escuridão gelada cair
Escuridão gelada...
Rowan sentiu um arrepio. Iria aquela caverna ser o
fim da viagem? Seria aquele pequeno buraco numa parede
gelada o local onde todos eles iriam morrer?
O seu coração era como um bloco de gelo. Ele sen-
tia todo o corpo dormente. Subitamente, no meio do si-
lêncio, começou a ouvir sons sumidos.
Todo ele se arrepiou. Escutou atentamente. Ouviu
novamente os sons, aterrorizadores e inconfundíveis. Ha-
via algo a contorcer-se e a esgaravatar por cima dele, na
saliência da rocha.
Os sons aumentaram de volume. Pedaços de neve
começaram a cair da beira da saliência, passando pela en-
trada da caverna antes de chegarem ao chão.
Zeel sentou-se, instantaneamente atenta. Norris e
Shaaran mexeram-se e abriram os olhos.
— Começou há pouco tempo — murmurou Ro-
wan. — No início acho que era só um. Mas agora são
muitos.
Zeel rangeu os dentes. Shaaran começou a tremer.
O rosto de Norris parecia ser esculpido de pedra. Rowan
sabia que em todas as suas mentes estava a aterrorizadora
imagem de uma massa de corpos brancos contorcidos,
semelhantes a cobras, com maxilares sombreados de azul
e cabeças sem olhos a baterem na rocha, à procura de uma
entrada.
Ele acrescentou outro pau à fogueira. Não podia
fazer mais nada.
— O fogo vai manter-nos em segurança — disse
Zeel. Mas ela não parecia muito segura.
Rowan procurou algo que servisse de tópico de
conversa — qualquer coisa para camuflar aqueles sons
terríveis.
— Fale-nos da nossa gente que seguia a trilha da
Sheba — disse ele. — Eles estavam bem?
— Razoavelmente bem — respondeu Zeel seguin-
do a deixa dele com determinação. — Eu não desci até
junto deles, pois estava ansiosa por me juntar a vocês e
não queria arriscar-me a perder o vento. Mas eles iam a
marchar a um bom ritmo, concentrados no seu objetivo e
a olhar em frente, como os habitantes de Rin fazem.
Involuntariamente, ela esboçou um meio sorriso.
— Todos, com exceção de Allun, que ainda não
perdeu totalmente os seus modos de Viajante — acres-
centou ela. — Eu penso que ele talvez me tenha visto,
porque levantou o braço. Mas eu tinha passado muito ra-
pidamente, e não tenho bem a certeza.
— E a Lann e a Bronden? — perguntou Shaaran,
arranjando ânimo para manter a conversa, embora os seus
lábios estivessem rígidos de medo. — Como estavam elas?
— A Lann tem as coisas bem sob controle — disse
Zeel. — Ela fez um círculo à volta da padaria com toda a
madeira velha e inútil que conseguiu encontrar. Ela ten-
ciona deitar petróleo na madeira e pegar-lhe fogo se ne-
cessário, para se proteger a ela própria e à Bronden dos...
Ela calou-se, aborrecida consigo própria por ter
feito lembrar aos seus companheiros o perigo que os ame-
açava. Por um momento, tomaram todos novamente
consciência dos sons por cima das suas cabeças.
Os ásperos ruídos furtivos eram agora mais altos e
pareciam mais próximos. Era como se, a cada momento,
cada vez mais répteis do gelo se arrastassem através da
neve que cobria a saliência. Como se uma massa de cor-
pos frios e brancos a contorcerem-se estivesse agora a
raspar a própria rocha.
Os olhos de Zeel recaíram sobre a caixa de sedas
que Shaaran segurava em cima do colo.
— Shaaran, deixe-me ver outra vez algumas sedas.
Por favor — disse ela, erguendo a voz.
O coração de Rowan deu um salto. Até àquele mo-
mento, tudo tinha sido diferente da cena do seu sonho.
Mas parecia que não havia forma de escapar ao que estava
para vir. Zeel estava a fazer o mesmo pedido que ele pró-
prio jurara não fazer.
— O Ogden não tem falado de outra coisa desde
que viu as sedas na sua aldeia, no Verão passado — pros-
seguiu Zeel. — E eu acho que ele pensa nelas com mais
frequência ainda do que fala delas. É estranho.
Ela inclinou-se para a frente para alimentar o fogo,
sem reparar no silêncio súbito dos seus companheiros.
Rowan trocou olhares com Shaaran e Norris. Ele sabia
que eles estavam a pensar o mesmo que ele.
Teria Ogden dos Viajantes pressentido perigo nas
sedas? Perigo para a terra? Pensando bem, Rowan lem-
brou-se de que ele tinha examinado cuidadosamente as
sedas e deixado apressadamente a aldeia logo a seguir.
Ele não me disse nada sobre esses receios, mas talvez quises-
se ter tempo para refletir, pensou Rowan. Se assim foi, ele esperou
demasiado tempo. Mas mesmo que ele tivesse falado, será que nós, os
habitantes de Rin, lhe teríamos dado ouvidos? As pessoas sentiam-se
tão felizes por aprenderem um pouco sobre o seu passado. Elas não
acatariam de bom grado um aviso de um Viajante.
Ele voltou a concentrar a sua atenção em Zeel. Esta
entusiasmara-se com o assunto e estava a falar rapida-
mente, olhando para o fogo. Era óbvio que Lann não lhe
dissera nada sobre o terrível aviso de Neel, o oleiro, nem
sobre como este tentara queimar as sedas. Zeel não fazia
idéia de que, a cada palavra que proferia, o medo dos seus
companheiros aumentava.
— É intrigante — disse ela. — O Ogden elogiou
muitas vezes a técnica com que estas sedas foram feitas,
bem como a intemporalidade desta forma de preservar a
história. Mas não há dúvida de que há algo nelas que o...
perturba. Uma vez, quando estava a falar nelas, ele disse,
quase para si próprio, “O que devo fazer? Falar, dizer o
que suspeito, ou não mexer no assunto?” Mas quando lhe
perguntei o que ele queria dizer, ele virou-me as costas e
recusou-se a falar mais sobre o assunto.
Ela suspirou.
— É um mistério. Eu decidi que, quando tivesse
oportunidade, o tentaria resolver. Posso ver as sedas?
Incapaz de recusar, Shaaran respirou fundo e me-
xeu no fecho da caixa de madeira. A caixa tinha um ar
muito estragado. O lado partido tinha sido forrado com
um pedaço de cobertor para manter as sedas seguras no
interior. Ela abriu cuidadosamente a tampa.
Não, Shaaran, pensou Rowan. Mas a menina já es-
tava a tirar os rolos de seda da caixa. Ela soltou um rolo e
estendeu-o. Rowan sentiu um arrepio na espinha. Era a
seda que ela tinha pintado na padaria.
As cores eram mais vivas do que as cores da seda
no seu sonho mas, tirando isso, a pintura era a mesma.
Rowan ficou a olhar para as formas pretas, brancas, azuis
e cinzentas de que se recordava. Olhou para a longa fila de
pessoas a caminhar através das colinas cobertas de neve
ao longo de um trilho preto queimado. Olhou para os
bukshah, dentro da cerca do seu campo cheio de neve.
Depois, virou os olhos para a Montanha, atemori-
zado. Durante aquela última longa noite antes de partirem,
Shaaran não só tinha acabado a pintura, como lhe acres-
centara alguns pormenores. Emergindo, a contorcer-se, da
neblina da Montanha havia centenas de formas hediondas,
parecidas com cobras, com os maxilares abertos, forrados
de azul, e dentes semelhantes a estilhaços de gelo.
Zeel susteve a respiração e virou o rosto. Norris
soltou um longo gemido.
— Oh, desculpem! — balbuciou Shaaran, enrolan-
do as sedas com as mãos a tremer. — Eu tinha que pintar
a verdade. Mas não tencionava mostrar-lhes esta...
Depois, subitamente, ouviu-se uma profunda ros-
nadela em surdina oriunda da rocha, e foi como se o
mundo tivesse desabado, acompanhado pelo som de uma
onda enorme a rebentar. Rowan correu para a frente da
caverna, tapando os ouvidos com as mãos.
Ele ouviu vagamente Zeel a exclamar, Shaaran a
gritar e Norris a praguejar.
O fogo apagou-se. Depois, foram envolvidos pelo
frio e pela escuridão.
15
SOMBRAS

O s bukshah iam em fila indiana, a subir uma escada


estreita cortada na rocha. O seu aspecto não era
aquele de que Rowan se recordava. Iam de ca-
beça erguida. Os chifres estavam brancos e afiados. O seu
pêlo espesso parecia brilhar. Os cascos cintilavam e, à luz
do sol, pareciam dourados.
Rowan subia a escada atrás deles, seguindo as pe-
gadas dos cascos dourados. Estava cheio de medo. As
pernas doíam-lhe, mas ele sabia que não podia parar. Não
havia qualquer outra opção. Não podia voltar para trás.
Temos que seguir os animais...
Rowan ergueu involuntariamente os olhos. No to-
po da escada, no meio da rocha vincada e marcada como
uma cara antiga, havia um enorme buraco escuro a fume-
gar.
Fome...
A sua visão ficou nublada. Os degraus brilhavam,
ofuscantes, subindo, subindo...
Rowan acordou com a boca seca e o coração a ba-
ter com força. Abriu os olhos e só viu escuridão. Durante
um terrível minuto ele pensou que deixara de ver. Depois
ouviu Norris, Shaaran e Zeel a chamarem-se uns aos ou-
tros e a ele. Lembrou-se do que sentira e ouvira antes de
adormecer. E as palavras da profecia ecoaram-lhe na
mente, torturando-o.
Esconde-te no interior das paredes rochosas.
Fica imóvel enquanto a escuridão gelada cai.
Amaldiçoou-se freneticamente por ter sido imbecil.
As últimas palavras da profecia tinham-lhe dito o que ia
acontecer — tinham-no feito em palavras simples, embora
ele não as compreendesse.
O topo do penhasco saliente, a enorme saliência da
rocha coberta de neve e cheia de répteis do gelo tinha-se
partido e caído. A neve e os detritos tinham-se empilhado
contra a face do penhasco. A entrada da caverna estava
bloqueada.
Rowan sentiu a testa a ficar coberta de suor. Esta-
vam encurralados. Escondidos no interior das paredes
rochosas. Escondidos para sempre. A escuridão parecia
premir-se contra ele.
Às cegas, procurou a sua pederneira e tirou um ar-
chote da mochila. Quando a chama se acendeu, ele viu
Shaaran encolhida contra uma parede, Zeel ajoelhada com
a cabeça apoiada nas mãos, e Norris agachado ao pé da
entrada da caverna, com o bastão na mão. A neve branca
do estreito triângulo da entrada cintilava.
Norris deu meia-volta, fazendo um esgar de dor
quando o movimento lhe repuxou a ferida.
— Apague isso! — rugiu ele. — A chama vai con-
sumir o ar que respiramos, e já há muito pouco!
Rowan obedeceu apressadamente, envergonhado
por, no seu pânico, não ter pensado nisso.
Ouviu Norris gemer de esforço, e depois o som do
bastão a mergulhar na neve, empurrando e triturando. Os
sons repetiram-se duas vezes. Depois, subitamente, Norris
soltou um grito de triunfo, e Rowan sentiu uma pequena
corrente de ar frio na cara.
— Consegui! — disse Norris. — Estamos com
sorte! Acho que é sobretudo a neve que está a bloquear a
entrada, e a neve nem sequer tem a espessura do compri-
mento do meu bastão.
Ele recomeçou a furar a neve. Ao fim de pouco
tempo, uma mancha de luz fraca brilhou na escuridão de
breu, e a corrente de ar frio tornou-se mais forte.
— Os répteis — murmurou Shaaran. — Eles de-
vem estar à espera.
— Eu prefiro enfrentar uma centena de répteis do
gelo a permanecer neste túmulo — disse Zeel. — Mas
agora já é seguro acender archotes, por isso, por favor a-
cende alguns, Shaaran, enquanto eu e o Rowan ajudamos
o Norris a desimpedir o caminho. Assim, pelo menos,
podemos dar-lhes luta.
Mas quando Norris, Zeel e Rowan fizeram um bu-
raco suficientemente largo para poderem passar, as cha-
mas dos archotes que Shaaran acendera apressadamente já
estavam muito pequenas. E quando, finalmente, os quatro
conseguiram sair cautelosamente, um a um, para o enorme
monte de rocha e neve que descia agora da entrada da ca-
verna até ao chão, os únicos répteis do gelo que eles viram
estavam mortos.
O dia estava a nascer, envergonhado, e um verme-
lho baço manchava o céu. Os companheiros desceram aos
tropeções para o nível do chão, escorregando na neve
amontoada e pisando os restos de dezenas de répteis es-
magados e mirrados por baixo de enormes pedaços de
rocha. Quando olharam em redor, eles viram que não ti-
nha sido só a saliência por cima da caverna que tinha de-
sabado, mas também um enorme pedaço da face do ro-
chedo negro. Os pedregulhos gigantes que outrora se
amontoavam no sopé do penhasco um pouco mais para
oeste estavam agora invisíveis debaixo de uma mistura de
neve, pedras e árvores mortas caídas. E por todo o lado
havia corpos, parcialmente cobertos, de répteis do gelo,
mutilados e cinzentos. Tantos...
Rowan abanou a cabeça. Era como se alguém ti-
vesse murmurado ao seu ouvido. Mas isso não podia ser,
pois ele conseguia ouvir os seus companheiros a conversar
uns com os outros, não muito longe.
— Aqueles répteis mortos devem ser apenas alguns
dos que aqui estavam. Pensem em quantos mais devem ter
escapado — estava Norris a murmurar. — Deve ter ha-
vido centenas deles a aproximar-se de nós.
— Como é que tantos souberam onde nós estáva-
mos? — perguntou Shaaran.
— Eu penso que eles devem sentir o nosso calor
— disse Zeel. — Mas, seja como for, é uma sorte não
termos acampado junto de um daqueles pedregulhos, co-
mo eu pensei que acontecesse. Seguramente que teríamos
sido mortos, ou pelos répteis, ou pelo desabamento do
penhasco. Só fomos poupados porque estávamos dentro
da caverna.
...Ninguém será poupado... Ninguém sobreviverá... Frio,
tanto frio... E há tantos... tantos...
As palavras perpassaram a mente de Rowan. De-
pois houve um movimento vacilante na orla da sua visão,
e ele viu que, à sua volta, havia sombras oscilantes com
rostos magros, esfomeados, e olhos encovados nas ór-
bitas. E, horrorizado, ele reconheceu, por baixo das rugas
de sofrimento, traços que ele conhecia. Os traços de Jonn,
de Bronden, de Timon, da sua mãe...
Estremeceu. Sentiu-se quente, depois gelado. Mur-
múrios, silvos e ecos fervilhavam-lhe na mente, torcen-
do-se e misturando-se, sobrepondo-se uns com os outros.
Tantos... demasiados... O que fizemos?
Rowan tapou os ouvidos com as mãos e fechou os
olhos com força. Mas não servia de nada. As sombras ro-
deavam-no. Ele ainda conseguia ouvir os murmúrios, ain-
da via os rostos familiares, horrivelmente alterados. O ca-
belo da sua mãe estava da cor da cinza. Ela tinha os olhos
vermelhos de tanto chorar.
Nós sabíamos demasiado, e demasiado pouco. Estávamos
errados... tão errados... Agora a Montanha faz-nos pagar...
Alguém lhe tocou na mão.
— Rowan! — chamou uma voz suave.
As sombras desapareceram. Os murmúrios deixa-
ram de se ouvir. Rowan oscilou.
— Você não está bem, Rowan — ouviu Shaaran
dizer. — Está a desfalecer. — A voz dela elevou-se. —
Norris! Zeel!
Rowan ouviu exclamações, sentiu braços fortes a
baixá-lo suavemente para o chão. Sentou-se com a cabeça
baixa e as tonturas foram desaparecendo gradualmente, e
o mundo voltou a ficar nítido. Zeel e Norris ladeavam-no.
Shaaran estava ajoelhada à sua frente, a oferecer-lhe água.
Ele bebeu, agradecido. Tinha a cabeça a latejar. A
luz fraca fazia-lhe doer os olhos.
— Desculpem — balbuciou ele. — Eu não conse-
gui evitar...
— Foi mais uma profecia? Diga-nos! — instou
Norris.
— Não... não foi mais uma profecia. — Rowan en-
goliu em seco. — Eu vi... — ele sentiu um arrepio e ca-
lou-se.
Zeel tinha estado a observá-lo atentamente.
— Eu penso que você tem algo para nos dizer,
Rowan — disse ela. — Já há algum tempo que acho isso.
Mas não é esta a altura nem o local. Aqui estamos dema-
siado expostos ao perigo. Consegue andar?
Rowan conseguiu acenar a cabeça em sinal afirma-
tivo, e ela ajudou-o a pôr-se de pé.
— Vamos andando devagarinho — disse ela. — Eu
ajudo-o.
— Mas as pegadas dos bukshah ficaram cobertas
quando o penhasco caiu — disse Norris olhando em vol-
ta, com o cenho franzido. — Perdemos a trilha.
Zeel abanou a cabeça.
— Eu vi a trilha do ar ontem à noite — disse ela.
— Ele seguia o penhasco para oeste, depois entrava num
bosque. A manada pode ter parado no bosque para co-
mer, pois as árvores são muito densas, e são perenes. No
mínimo, encontraremos a trilha lá.
Começaram a andar, mantendo-se perto do pe-
nhasco, passando cuidadosamente por cima dos detritos
gelados. Era difícil, mas todos eles se sentiam mais segu-
ros sem a neve espessa à sua volta.
A princípio, Rowan apoiou-se no braço de Zeel, tal
como ela sugerira, mas, ao fim de pouco tempo, ele já
conseguia andar sozinho, embora ainda se sentisse fraco.
O medo de que as sombras voltassem perseguia-o, mas
Zeel mantinha-se ao seu lado, falando muitas vezes com
ele como se soubesse que ele precisava que o distraíssem
dos seus pensamentos.

***
Já era dia claro quando chegaram ao fim dos detri-
tos, um local onde a face do penhasco se curvava para a
direita. Quando dobraram a esquina e chegaram, aliviados,
a um terreno mais suave, viram-se no meio de uma con-
fusão de pegadas de bukshah.
— Ali! Estão a ver? — exclamou Zeel, apontando.
E, de fato, as pegadas dirigiam-se diretamente para uma
mancha verde... um bosque aninhado contra a face do
penhasco.
Começaram todos a dirigir-se para o bosque o mais
depressa que conseguiam. O verde vivo, surpreendente de
encontro ao cinzento, preto e branco mortos do resto da
paisagem, parecia chamá-los. Mas Rowan depressa perce-
beu que, mesmo que quisessem evitar o bosque, não con-
seguiriam fazê-lo. O terreno à esquerda deles começara a
formar um declive íngreme. Ao fim de pouco tempo, eles
tinham a parede negra da face do penhasco num dos lados
e um abismo no outro. Tal como os bukshah antes deles,
não tinham outra opção a não ser seguir em frente.
E as árvores atravessavam-se no caminho, preen-
chendo-o de um lado ao outro.
Rowan começou a sentir um formigamento no es-
tômago. A situação trazia-lhe a desagradável lembrança da
trilha no meio das rochas antes do vale dos horrores. Ele
via que Zeel, Norris e Shaaran também estavam a começar
a sentir-se pouco à vontade. A pouco e pouco, o seu pas-
so rápido foi abrandando e eles começaram a arrastar os
pés.
Ao fim de algum tempo, quando tinham as árvores
mesmo à sua frente, os quatro pararam. Instintivamente,
levaram as mãos ao nariz, pois um cheiro estranho, desa-
gradável, semelhante ao de ovos podres, pairava no ar.
— Eu sinto que fui empurrada para este lugar —
disse Zeel em voz baixa. — Não estou a gostar nada disto.
— Eu também não — concordou Norris, esprei-
tando por entre as árvores. — Mas não parece haver pe-
rigo. É óbvio que os bukshah entraram sem qualquer hesi-
tação. Podemos ver isso pelas pegadas.
— Os bukshah também atravessaram o vale dos
horrores — recordou-lhe Shaaran. — Só porque um lugar
é seguro para os animais, não significa que seja seguro pa-
ra nós.
— Pode nem sequer ser seguro para os animais —
disse Zeel, olhando para Rowan. — Os bukshah entraram
no bosque, mas não sabemos se saíram de lá. Aquele
cheiro...
— Não é o cheiro da morte — interrompeu-a Ro-
wan rapidamente. Mas a sensação de medo era cada vez
maior. Ele tinha a certeza de que os bukshah estavam
muito perto. Sentia a presença deles. Mas o bosque estava
totalmente silencioso.
— Estrela! — chamou.
O grito ecoou, triste, em volta dos penhascos, e
morreu sem obter resposta.
— Eles podem ter saído do bosque há muito tem-
po e já não conseguirem ouvir — murmurou Shaaran,
puxando-lhe pela manga.
Rowan compreendeu que ela estava a tentar conso-
lá-lo, mas não lhe pôde responder. Sentia-se ansioso por
avançar imediatamente para o meio das árvores. Mas ele
sabia que os seus companheiros o seguiriam. Ele não po-
dia arrastá-los atrás de si numa imprudente precipitação
para o perigo. Embora a espera fosse agonizante, ele tinha
que ser cauteloso e descobrir tudo o que pudesse antes de
seguir em frente.
Era impossível ver muito longe no interior do bos-
que. Muitas árvores mortas tinham caído do topo do pe-
nhasco, emaranhando-se nos ramos das árvores vivas e
formando um dossel baixo e espesso que não deixava en-
trar a luz.
Porém, as primeiras filas de árvores eram visíveis, e
Rowan observou-as atentamente. Certamente que não
pareciam perigosas, nem se pareciam nada com as árvores
demoníacas de Unrin.
Eram todas do mesmo tipo — grossas, embora não
muito altas, com ramos bem espalhados e folhas brilhan-
tes. A única diferença entre elas era a casca. As árvores
que cresciam nas orlas exteriores do bosque tinham uma
casca áspera, cinzenta, peluda. Mas, nas árvores mais pró-
ximas do centro, a casca cinzenta só aparecia em manchas,
e os troncos e os ramos das árvores mesmo no meio, de
cada lado da trilha dos bukshah, eram lisos e brancos.
Talvez as árvores exteriores precisassem de mais
proteção do que as interiores, pensou Rowan. Talvez o
bosque gere o seu próprio calor. Porque ele tinha repara-
do que ali o ar era mais quente, e que havia pouca neve no
chão à sua volta.
E isso era muito estranho.
— Nós temos vindo a subir a manhã inteira —
disse Zeel, colocando os pensamentos dele em palavras.
— Estamos a uma altitude mais elevada. Aqui devia ser
mais frio, não mais quente.
Fez-se um silêncio breve, ansioso.
— O que havemos de fazer? — exclamou Norris.
E Rowan sentiu instantaneamente o medalhão a ficar
quente como fogo.
16
O BOSQUE

D esta vez, a profecia veio mais depressa. A sensa-


ção de queimadura e asfixia era muito menor, e
até mesmo a voz se parecia mais com a de Ro-
wan. Mas isso tornou a experiência ainda mais horrível. O
estômago de Rowan dava voltas enquanto ele dizia as pa-
lavras que eram tão novas e estranhas para ele como para
os seus companheiros:
"Apressa-te, o caminho é sempre em frente.
Afasta os mortos caídos.
Se desesperares, a vida desvanecer-se-á.
A doença cura, e o desagradável torna belo."
Quando as últimas palavras lhe saíram dos lábios
ele recuperou o ânimo, decidido a não cair ao chão. Mas
não precisava de se ter preocupado. Zeel, Norris e Shaa-
ran tinham-se juntado à sua volta, prontos para o segura-
rem.
— A Sheba disse, “Aprende o que é ser o que eu
sou” — murmurou ele, olhando para eles. — Agora eu
sei. E quem me dera não saber.
— Qualquer pessoa sensata sentiria o mesmo —
disse Norris secamente. — Desculpe, Rowan. Eu devia ter
tido cuidado com a língua. E não serviu de nada. Esse
maldito enigma deu-nos pouca ajuda e ainda menos espe-
rança.
Afasta os mortos caídos...
Rowan sentiu um arrepio.
— A profecia disse que seguíssemos em frente, e
que nos apressássemos, Norris — disse Zeel num tom
ríspido. — Também nos disse que não desesperássemos.
Isso, pelo menos, nós conseguimos compreender. Quan-
do ao resto, veremos.
Ela voltou-se para Rowan.
— Consegue andar?
Como resposta, ele deu um passo em frente, para a
sombra das árvores. Os outros juntaram-se atrás dele.
Começaram a seguir as pegadas dos bukshah. Os
troncos brancos lisos das árvores erguiam-se de ambos os
lados como postes de orientação. Ramos brancos entrela-
çavam-se por cima das suas cabeças. Eles mantinham-se
muito juntos, com os olhos e os ouvidos atentos a qual-
quer som ou movimento súbitos. Mas estava tudo silen-
cioso e, à medida que as árvores se fechavam à sua volta,
o silêncio e a sombra tornavam-se mais profundos.
Falaram pouco uns aos outros e, quando o faziam,
era em murmúrios. Ao fim de pouco tempo, o dossel e-
maranhado tinha-se tornado tão baixo que Norris teve
que caminhar com os ombros curvados e a cabeça baixa.
Uma leve neblina pairava na obscuridade, misturando-se
com o vapor da respiração deles, e o cheiro desagradável
em que tinham reparado antes estava a tornar-se mais
forte.
Rowan viu um pouco de luz mais adiante. O seu
coração deu um baque. Já tinham chegado ao fim do
bosque?
— Zeel! — murmurou ele.
— Estou vendo — silvou ela atrás dele. — Acho
que é uma espécie de clareira. E tenho certeza de que o
cheiro vem de lá.
Rowan teve que se obrigar a não começar a correr.
A sua respiração tornou-se ofegante. A pele do peito e das
costas tinha começado a picar, e ele sentia uma comichão
insuportável.
Estou a transpirar, pensou ele. A capa é demasiado
quente para este lugar. Mas nem sequer pensou em parar
para tirar a capa.
Ao fim de pouco tempo, já estavam muito perto da
clareira, mas a neblina espessa que a envolvia impedia
Rowan de a ver com grande nitidez. Ele só conseguia ver
formas e cores. O terreno não era plano, mas sim cheio de
formas angulares verdes e brancas. Não havia movimento
em lado nenhum.
Rowan começou a andar mais depressa.
— Tenha cuidado — avisou-o Zeel atrás dele. —
Rowan...
Nesse momento, Shaaran deu um grito.
Rowan e Zeel deram meia volta. Shaaran estava a
arranhar freneticamente o ombro, com uma expressão de
terror no rosto. Norris tentava, em vão, ajudá-la.
— Tirem isso daí! — gritava Shaaran. — Aju-
dem-me!
— O que é? — perguntou Zeel num tom ríspido.
— Shaaran, fique quieta.
— Tira as mãos. Nós não conseguimos ver...
— Vocês também os têm! — gritou Shaaran, estre-
mecendo de repulsa. — Oh, eles estão em todo o lado!
Oh, é horrível!
Rowan sentiu a pele a arrepiar-se quando viu, de-
baixo dos dedos dela, agarrada ao ombro, uma coisa cin-
zenta, com a pele rija e a forma de uma estrela. Achatada
contra a lã áspera da capa, ficava completamente disfarça-
da, quase invisível. Mas agora que a vira, ele conseguia ver
outras — uma num dos lados dela e outra no braço.
No braço de Zeel, também. E na nuca. E ali, agar-
radas ao capuz de Norris, estavam mais duas.
De onde tinham elas vindo?
Enquanto a pergunta se formava na sua mente, o
ramo da árvore por cima da cabeça de Shaaran pareceu
mover-se, e um pedaço de casca flácido, com a forma de
uma estrela, descolou-se e caiu silenciosamente nas costas
dela.
— A... a casca das árvores — gaguejou Rowan. —
Não é casca. E... são...
O peito picava-lhe. Cheio de uma súbita e terrível
suspeita, ele olhou para baixo e gritou alto, com re-
pugnância e horror. Tinha o peito coberto por uma massa
cinzenta peluda. Alguns dos seres ainda se contorciam,
ainda estavam a instalar-se. Outros estavam bem fixos, e
era óbvio que se encontravam lá há algum tempo, pois
estavam inchados e gordos.
Gordos com o sangue dele!
Rowan tentou freneticamente arrancá-los. Dores
finas como uma agulha penetravam-lhe na carne quando
ele puxava, mas as coisas cinzentas continuavam agarra-
das.
— Aqueça a sua faca com a chama do archote, Ro-
wan! — ouviu ele Zeel gritar acima dos gritos de Shaaran.
— O metal quente certamente que os fará soltar-se.
Enquanto Rowan procurava a faca, um ramo ro-
çou-lhe o braço e outro ser cinzento deslizou-lhe para as
costas da mão.
Ele sacudiu o braço, com um grito. O ser rodopiou
para longe. Mas enquanto olhava para ele, Rowan viu que
o dossel estava enxameado de outros. E ainda havia cen-
tenas a abandonar os troncos das árvores situadas para
além da trilha, a subir para se juntarem à enorme quanti-
dade que se movia furtivamente em direção a ele e aos
seus companheiros.
— Corram! — gritou ele. — Para fora do bosque!
A tremer e a soluçar, horrorizados, tropeçando de-
sajeitadamente, eles correram em direção à clareira, com
as cabeças baixas, embrulhados nas capas.
E foi quando se precipitaram para fora da sombra
verde e chegaram a uma pilha fumegante, mal cheirosa, de
árvores mortas misturadas com trepadeiras, que viram os
bukshah.
Os animais estavam deitados perto do meio dos de-
tritos, imóveis como pedras. Os seus corpos peludos es-
tavam cobertos de animais em forma de estrela tão in-
chados e tão juntos que era difícil ver onde terminava um
e começava outro.
A Estrela estava à cabeça da manada. Os seus po-
derosos chifres estavam manchados de lama e enfiados
debaixo de um tronco. Ela estava coberta de parasitas que
se banqueteavam nela.
Com um grito de angústia, Rowan deixou cair o ar-
chote e deu um salto, passando por cima da madeira caída,
sem se incomodar com as trepadeiras espinhosas que se
emaranhavam e o feriam. Ele chegou ao pé da Estrela e
ajoelhou-se ao seu lado, chamando-a pelo nome.
Os olhinhos pretos da bukshah abriram-se. Ela mu-
giu suavemente, no fundo da garganta. Um som de amor e
confiança.
O coração de Rowan deu um salto de alegria incré-
dula.
— Ela está viva! — gritou ele, com a voz embar-
gada. — A Estrela ainda está viva! Os outros... talvez eles
também... eles também...
Ele virou-se para o bukshah atrás de si. Era o Te-
souro, o único bukshah preto da manada, nascido em Rin
na Primavera anterior. Os olhos do Tesouro estavam fe-
chados, e, quando Rowan lhe tocou no nariz, ele não emi-
tiu qualquer som. Mas estava quente. Ainda estava quente,
e a respirar!
Se o Tesouro, tão novo e tão pequeno, ainda estava
vivo, havia esperança para todos os outros. Rowan gati-
nhou freneticamente no meio dos corpos cinzentos imó-
veis. Chamou os animais pelos nomes, fazendo-lhes afa-
gos onde quer que conseguiu pôr a mão. E, ao som da sua
voz e ao toque da sua mão, a pele quente estremecia, as
pálpebras mexiam-se, e os animais gemiam e suspiravam.
Mas era quase demasiado tarde. Ele sabia isso. Ti-
nha-o visto nos olhos baços da Estrela, ouvira-o na sua
voz fraca.
Há quanto tempo teriam os bukshah atravessado o
bosque, a passo lento, parando para comer as folhas ver-
des ao longo do caminho? Há quanto tempo teriam os
seres em forma de estrela presos às árvores de ambos os
lados do caminho deslizado para as costas deles, deixando
os troncos lisos e brancos das árvores do centro do bos-
que?
Rowan conseguia imaginar o que se tinha passado.
Quando saíram do meio das árvores, os bukshah estavam
todos cobertos de parasitas e começaram rapidamente a
enfraquecer. A Estrela tinha tentado levá-los a atravessar a
clareira mas, um a um, eles tinham caído por terra. E,
desde essa altura que eles estavam ali deitados, indefesos,
com a vida a ser-lhes sugada lentamente.
Começou a levantar-se, olhando desvairadamente à
sua volta. Onde estavam Zeel, Shaaran e Norris? Sentiu-se
tonto e, por um instante, não conseguiu focar os olhos.
Porque é que não o unham vindo ajudar?
Quando viu que eles ainda estavam onde os tinha
deixado, nem conseguiu acreditar. Shaaran estava ajoelha-
da, com o rosto branco como a cal. Norris estava inclina-
do sobre ela, com o ar de quem está doente e em pânico.
Zeel estava de pé ao lado deles.
— Ajude-me, Zeel! — gritou Rowan. — Traga o
archote! Depressa!
Zeel abanou a cabeça e chamou-o. Furioso com a
demora, Rowan começou a subir por cima do mar de ár-
vores caídas, em direção a eles.
Eles vieram ao seu encontro, movendo-se devagar.
— Têm que me ajudar! — explodiu ele quando es-
tavam finalmente juntos. — Os bukshah estão a morrer!
Eu preciso...
— Não vale a pena, Rowan — interrompeu-o Zeel
em voz baixa. — Acha que não estávamos a fazer nada?
Nós temos estado a tentar tirar as malditas coisas dos
nossos próprios corpos. E não conseguimos. É como se
elas fossem de pedra. O meu punhal, quer esteja frio,
morno ou muito quente, não lhes faz mal nenhum.
Ele fitou-a, de boca aberta.
— Mas... mas certamente que...
Ela abanou a cabeça.
— Nem sequer as chamas fazem algum efeito. Eu
já tentei — prosseguiu ela, mostrando-lhe o braço com
um ar triste. Tinha dois seres horríveis em forma de es-
trela agarrados, intactos, no centro de uma enorme man-
cha de tecido queimado e de pele ferida coberta de bolhas.
— Zeel! — exclamou ele em voz baixa. Shaaran
soluçou, e Norris fez uma careta.
— Ela fê-lo antes de nós conseguirmos impedi-la
— disse ele num tom sombrio.
Zeel encolheu os ombros.
— Tive que tentar — disse ela. — Estas coisas es-
tão a sugar-nos a vida.
— E acho que não vão demorar muito a terminar o
trabalho — disse Norris. — Se elas conseguem matar um
bukshah num dia, muito mais facilmente acabam conosco.
Shaaran tinha-se deixado cair em cima de um tron-
co, com o rosto ensombrado de desespero.
A vida esvair-se-á se desesperares...
— Esperem! — exclamou Rowan. — Esquece-
mo-nos da profecia!
Shaaran ergueu o olhar, com um ar de espanto, e
repetiu lentamente as palavras:
"Apressa-te, o caminho é sempre em frente.
Afasta os mortos caídos.
Se desesperares, a vida desvanecer-se-á.
A doença cura, e o desagradável torna belo."
— Na verdade, as nossas vidas e as vidas dos buk-
shah esvair-se-ão se desistirmos — disse Norris. — Pelo
menos esse verso eu consigo entender. E os outros? Será
que os primeiros versos significam que, para nos salvar-
mos, temos que deixar os animais entregues ao seu desti-
no e seguir em frente?
Rowan mordeu o lábio. Essa idéia tinha-lhe ocor-
rido, mas ele não queria acreditar nela.
— Se seguirmos em frente, isso significa que atra-
vessamos a clareira e prosseguimos por entre as árvores
que estão do outro lado — disse Zeel. — Mas essas árvo-
res estão cheias de seres em forma de estrela. Todos os
troncos são cinzentos.
— Talvez os seres não consigam viver fora do
bosque — sugeriu subitamente Shaaran. — Talvez, se
conseguirmos sair dele, nos vejamos livres deles.
Norris pareceu esperançoso, mas Zeel abanou a
cabeça.
— Eu acho que eles conseguem viver onde quer
que haja árvores que os sustentem — disse ela, apontando
para a árvore morta em que Shaaran estava sentada e para
as outras árvores à volta deles. Os troncos brancos esta-
vam cravejados de fracas marcas em forma de estrela.
— Estas árvores morreram e caíram do topo do pe-
nhasco — prosseguiu Zeel. — E é óbvio que havia seres
em forma de estrela a viver nelas, tal como vivem nas ár-
vores aqui. Eles talvez suguem a seiva — acrescentou ela
calmamente — até aparecer uma comida mais substancial.
Rowan viu Shaaran ficar ainda mais pálida.
— As árvores do bosque talvez estejam tão infes-
tadas porque as árvores no topo do penhasco morreram
— disse ele rapidamente. — Se as árvores lá em cima
morreram e caíram...
E, com um clarão ofuscante, ele viu a resposta.
— Os mortos caídos! — disse ele. — As árvores! As
árvores mortas caídas aqui, nesta clareira. São delas que nós
devemos nos afastar!
— Mas porquê? — perguntou Zeel num tom inex-
pressivo.
— Porque há qualquer coisa debaixo delas! — excla-
mou Norris. — Algo que nos vai ajudar! E...
— Mas a clareira está cheia de árvores mortas! —
contrapôs Zeel. — Não conseguimos movê-las a todas.
Não a tempo. Não...
— Não precisamos mover todas — disse Rowan.
Com o coração a transbordar, ele virou-se e olhou para o
local onde a Estrela estava deitada. Ele sabia, sem qualquer
sombra de dúvida, que a Estrela teria lutado contra a fra-
queza até ao fim. Ela teria tentado salvar a manada. E ela
tinha caído com os chifres enlameados debaixo do tronco
de uma árvore.
— Ali — disse ele, apontando. — Ali, onde a Es-
trela está deitada, e a neblina e o cheiro são mais fortes. E
onde temos que afastar os mortos caídos. O que quer que
esteja por baixo é a resposta!
17
O DESAGRADÁVEL
TORNA BELO

R owan estava desesperado, Zeel estava decidida, e


Shaaran não se poupava. Mas todos eles estavam a
ficar mais fracos a cada momento que passava e,
se não fosse Norris, a tarefa teria sido inútil.
Norris viu de imediato que eles não conseguiriam
mover as árvores caídas com a força bruta. Em vez disso,
ele atou cordas à volta delas, depois procurou ramos retos
compridos que pudessem usar como alavancas para le-
vantar os troncos brancos enquanto puxavam as cordas.
Zeel e Shaaran encarregaram-se das cordas, Norris
e Rowan das alavancas. A transpirar e fazendo um enorme
esforço, os companheiros puxaram ao compasso das or-
dens de Norris até cada uma das árvores se deslocar um
pouco do local onde estivera caída durante tanto tempo.
Eles trabalharam durante horas, enquanto a luz di-
minuía lentamente no céu acima deles. Deslocaram as ár-
vores para o lado uma a uma, revelando apenas mais ra-
mos partidos emaranhados e mais raízes arrancadas.
O rosto de Norris estava cinzento, marcado por
rugas de dor profundas. A ferida do lado tinha voltado a
abrir-se, e a perna machucada mal conseguia apoiá-lo. Mas
ele recusava-se a descansar, recusava-se a parar. Voltou a
colocar as alavancas e a atar as cordas. Deu novamente as
suas ordens e começou a coxear para o seu lugar, pronto
para continuar a levantar as árvores.
Um para lutar, pensou Rowan. Mas Norris nunca recu-
perará disto. Talvez nenhum de nós o faça. Talvez seja este o fim da
história.
Sentiu a cabeça a toldar-se. Ele sabia que os seres
que se tinham agarrado a ele lhe estavam a sugar a força
física e a força de vontade. Viu, sem surpresa, Norris tro-
peçar subitamente, oscilar e depois cair lentamente ao
chão entre a Estrela e o Tesouro. Os gritos de Shaaran so-
aram aos seus ouvidos como campainhas distantes en-
quanto ela corria para o irmão e se inclinava sobre ele.
Os olhos de Rowan e de Zeel cruzaram-se.
— Mais uma vez — disse ela, enrolando a corda à
volta da mão.
Ele acenou apaticamente a cabeça e deslocou-se
para o local onde Norris teria estado. Agarrou no ramo
comprido preso debaixo do tronco da árvore.
— Agora! — gritou ele. E, fazendo apelo às suas
últimas forças, à sua última esperança e força de vontade,
empurrou para baixo.
Durante um longo momento, nada aconteceu. De-
pois a árvore moveu-se. Rowan ouviu o gemido de triunfo
de Zeel, viu a corda esticada. Empurrar outra vez, em-
purrou com toda a força. Mas havia qualquer coisa a ofe-
recer resistência. Havia algo a prender a árvore. Algo...
— Shaaran! — gritou ele. — Ajude-nos! Aqui! Ele
não acreditava que Shaaran viesse. Mas ela veio.
Com o rosto manchado de lágrimas, pálida como
um fantasma, ela colocou-se à frente dele e colocou o seu
fraco peso sobre o ramo.
E foi o suficiente. Ouviu-se um murmúrio, um som
de algo a sugar. A árvore rolou para o lado. E, ao mesmo
tempo, um tapete de madeira podre, trepadeiras e folhas
mortas moveram-se com ela, e vapor fétido elevou-se do
lugar onde ela estivera caída.
Tontos, cambaleantes de cansaço, Rowan, Zeel e
Shaaran ficaram a olhar para o que tinham posto a desco-
berto.
Era um lago de água fumegante a borbulhar. A Es-
trela e Norris estavam deitados na lama da sua orla.
Shaaran sentou-se de repente, com os olhos muito
abertos de choque.
Zeel inclinou-se cautelosamente para a frente e
testou a água com a ponta de um dedo.
— Está quente! — disse ela, espantada. — Água
quente a borbulhar, a sair do chão! É um milagre! — Ela
sentou-se sobre os calcanhares, torcendo o nariz. — Mas,
oh, como cheira mal. Tem o cheiro de mil ovos podres.
A doença cura, o desagradável torna belo...
Rowan estava sem fala, consumido pela esperança
desesperada. Ajoelhou-se ao lado da Estrela e mergulhou
cautelosamente as mãos em concha na nascente. Sentiu
calor e um ligeiro formigueiro, mas nada mais. Levantou
as mãos, cheias de água turva e segurou-as perto do nariz
da Estrela.
— Estrela — murmurou. — É disto que estava à
procura? É isso o que vai te ajudar? Que nos vai ajudar?
Os olhos da Estrela abriram-se, e ela viu a água a
escorrer por entre os dedos de Rowan. O odor chegou-lhe
às narinas e ela fungou. Depois começou a tentar levan-
tar-se.
Mas ela não lambeu as mãos de Rowan, só esfregou
o nariz contra elas, pelo que Rowan ficou a saber que a
água não era para beberem, mas sim para se banharem
nela.
— Zeel! — chamou ele. — O seu braço! Mete-o na
água!
Zeel mergulhou o braço ferido na nascente. Man-
teve-o lá e contou até três. E, quando o retirou, o ser em
forma de estrela tinha caído e estava a boiar, enrolado e
morto, no meio das bolhas da superfície da nascente.
Era isto que Rowan tinha esperança que aconte-
cesse. Mas o que ele não esperava, o que o fez ficar de
boca aberta de espanto, era que a pele queimada, empola-
da, de Zeel, tivesse ficado novamente sã e lisa.
A própria Zeel estava a olhar para o braço, espan-
tada.
— Eu... não consigo acreditar! — gaguejou ela.
— Parece magia! — disse Shaaran. — É como a
nascente mágica do país das fadas de que o meu avô me
costumava falar, há muito tempo. — O seu rosto ilumi-
nou-se de esperança como a chama de uma vela a cintilar,
e ela precipitou-se através da lama para junto do irmão.
Zeel e Rowan correram a ajudá-la e, juntos, levaram
o corpo mole, pesado, de Norris até à nascente.
Ao tocar na água, Norris acordou. Esbracejou, em
pânico, a gemer e tossir. Depois, subitamente, ficou quie-
to. O seu rosto alterou-se. Os olhos abriram-se, livres da
dor, redondos de surpresa.
Deixando-o entregue a Zeel e a Shaaran, Rowan
voltou para junto da Estrela. Esta ainda estava a tentar le-
vantar-se, com uma coragem que quase despedaçou o co-
ração de Rowan. Vieram-lhe lágrimas aos olhos enquanto
tentava, em vão, ajudá-la.
Depois Norris, Shaaran e Zeel aproximaram-se de-
le, todos eles molhados e a pingar, todos eles livres de pa-
rasitas, com os olhos límpidos e brilhantes. Quando eles
se debruçaram sobre a Estrela, a água do cabelo e da roupa
caiu sobre o corpo da bukshah. E, onde quer que a água
caísse, os seres em forma de estrela enrolavam-se e tom-
bavam para o chão.
A Estrela gemeu de alívio, tentou novamente e, ao
fim de algum tempo, conseguiu finalmente pôr-se de pé e
ficar ereta, magra e a oscilar, junto do lago borbulhante.
Mas ela não entrou logo na água. Primeiro mugiu, cha-
mando a manada, ordenando-lhe que a ouvisse.
Os outros bukshah mexeram-se. Por todo o lado as
orelhas estremeceram um pouco, os olhos baços abri-
ram-se. A Estrela mugiu outra vez. Depois, subitamente,
lançou-se para a frente, caindo no centro do lago com um
enorme borrifo e mergulhando abaixo da superfície.
A água ergueu-se numa enorme onda que cobriu a
margem lamacenta, ensopando o Tesouro e mais uma dú-
zia de animais, e borrifando a clareira como chuva quente,
enlameada. A superfície da nascente parecia ferver quando
a Estrela mergulhou cada vez mais fundo...
Com um grito de medo, Rowan atirou-se atrás dela.
O cheiro da água queimava-lhe o nariz e irritava-lhe a
garganta, fazendo-o engasgar-se. Ele tentou frenetica-
mente ver por baixo da superfície borbulhante, cheia de
folhas. Viu, de relance, algo pálido muito abaixo dele e
mergulhou, com os olhos bem fechados e as mãos esten-
didas, a tentar encontrar o caminho às cegas.
Sentiu a dor súbita de uma picada quando a ponta
de um dos chifres da Estela lhe perfurou a mão. Fez desli-
zar a mão para baixo, agarrou com mais firmeza e segu-
rou. Puxou com toda a força, mas era como se a Estrela
fosse uma enorme pedra. Ele não conseguia içá-la. Sen-
tiu-se como se tivesse os pulmões a rebentar.
Sentiu algo a puxar-lhe pela capa. Alguém estava a
tentar puxá-lo para cima, mas ele estava a agarrar a Estrela
e recusava-se a largá-la.
Nisto, houve um movimento súbito vindo de baixo
e, no meio de um jato de bolhas, ele foi impulsionado para
cima, para a luz. A sua cabeça emergiu à superfície, e ele
abriu a boca para inspirar. Tinha zumbidos nos ouvidos.
Quando abriu os olhos nublados, a primeira coisa que viu
foi a cabeça magra de Norris a flutuar ao lado dele. Norris
ainda lhe segurava na capa e estava a tentar arrastá-lo em
direção à margem, proferindo palavras que ele não con-
seguia ouvir.
Depois foram os dois atirados para o lado quando,
com um enorme borrifo, o corpo enorme da Estrela subiu
à superfície quase diretamente abaixo deles. Com uma e-
norme alegria, Rowan viu a bukshah erguer a cabeça acima
da água e começar a nadar vigorosamente. Tinha os olhos
límpidos, os chifres brancos a brilhar, e água a escorrer da
crina de lã. Rowan deu um grito, engasgou-se e deu outro
grito mas, para seu espanto, quando tentou tocar-lhe, a
Estrela empurrou-o vigorosamente para a zona menos
funda.
Ele pôs-se de pé, depois caiu de joelhos, confuso e
magoado. Sentiu Norris a puxá-lo. Ouviu a Estrela a mu-
gir. E, ao fim de algum tempo, os seus ouvidos a zumbir
perceberam os gritos de Norris.
— Sai da água, Rowan! — estava Norris a gritar. —
Vai ser esmagado! Deixe-os passar!
Rowan viu então que a Estrela não era a única buks-
hah que estava na nascente. O Tesouro já tinha água até ao
pescoço. Dois outros filhotes — a Névoa e o Genica —
chapinhavam, pouco firmes, atrás dele. Seguiam-se mais
três. E atrás deles vinham os outros membros da manada,
magros, fracos e a cambalear, com seres em forma de es-
trela a cobri-los como uma armadura hedionda, exceto
nos locais em que tinham sido borrifados quando a Estrela
se atirara vigorosamente à água.
Os enormes animais peludos avançavam frenetica-
mente, surdos e cegos a tudo exceto à nascente. Norris
tirou Rowan do caminho deles e, um instante depois, os
cascos estavam a calcar a lama em que os dois tinham es-
tado deitados.
Em grupos de três e quatro, os bukshah mergulha-
ram na água gemendo de alívio quando os parasitas os
deixavam; seguidamente, eles ergueram a cabeça e nada-
ram para o lado oposto da nascente, onde a Estrela já es-
tava à espera deles.
E depois de todos eles terem feito a travessia,
quando estavam todos de pé no outro lado da nascente,
com o pêlo a pingar e a deitar vapor, Rowan, Zeel, Shaa-
ran e Norris pegaram nos seus pertences e seguiram-nos.

***

Passaram aquela noite na clareira, com os bukshah à


volta deles. Apesar de estarem encharcados, não tiveram
frio, pois o ar ao lado da nascente era tão quente como
uma tarde de Verão em Rin, embora não cheirasse tão
bem.
Acenderam uma fogueira, aqueceram um pouco de
água para o chá e torraram pão para comerem com queijo
e mel. E, quando o sol se pôs, deitaram-se e dormiram
profundamente, pois sabiam que, pelo menos ali, os rép-
teis do gelo não chegariam.
Ainda estava muito escuro quando Rowan acordou.
A Estrela estava a tocar-lhe com o focinho na cara. Os
seus enormes chifres curvos, afiados nas paredes rochosas
antes do vale dos horrores até terem ficado como bicos de
facas, pareceram-lhe demasiado perto dos olhos para se
sentir à vontade.
— Estrela, porque é que está a me acordar tão ce-
do? — resmungou ele, virando-se para o outro lado. —
Devem faltar horas para o dia nascer.
A Estrela fez um ruído surdo, escavou o chão com a
pata e depois deu meia volta. Ele sentou-se e viu que os
outros animais já estavam de pé, à espera. Ficou a ver a
Estrela passar no meio deles e começar a conduzi-los para
as árvores.
A manada estava outra vez em movimento. Rowan
acordou rapidamente Norris, Shaaran e Zeel. Todos eles
beberam apressadamente um gole de água e comeram
uma mão cheia de frutos secos. Depois acenderam archo-
tes, puseram as mochilas às costas e seguiram os bukshah,
até mesmo Zeel ainda estava a esfregar os olhos de sono.
A trilha por entre as árvores para além da nascente
estava cheio de madeira morta, mas os bukshah removiam
todos os obstáculos, esmagando-os com as patas, desim-
pedindo o caminho. Os quatro foram caminhando atrás
deles, encantados por terem recuperado as forças e por se
terem visto livres das dores.
O archote iluminava as árvores, iluminava os seres
em forma de estrela agrupados nos troncos e nos ramos,
mas poucos parasitas tentaram instalar-se nos seres hu-
manos ou nos animais. Os que o fizeram pagaram ins-
tantaneamente pelo seu erro, caindo mortos assim que
tocaram no cabelo e na roupa ainda úmidos da água da
nascente.
A umidade desapareceu lentamente no calor da
floresta, e Rowan começou a sentir medo. Mas os seres
em forma de estrela mantiveram-se onde estavam, e os
seres humanos continuaram a caminhar em paz, como se
a água lhes tivesse dado um revestimento protetor.
Era como andar num sonho, mas este terminou de-
masiado depressa. O sol ainda estava muito abaixo do ho-
rizonte quando Rowan, Zeel, Shaaran e Norris saíram do
meio das árvores, mas eles conseguiram ver bastante bem
o lugar sinistro e brutal de rocha gelada a que tinham che-
gado.
Eles estavam no único lugar plano de uma paisa-
gem de ângulos agudos. Pedregulhos atravancavam o chão
em declive à sua frente. À direita elevavam-se os penhas-
cos envoltos em neblina, encimados por árvores mortas e
neve. As paredes pretas escarpadas dos penhascos esta-
vam semi-ocultas pelas enormes rochas empilhadas de
encontro a elas.
À esquerda, tudo era escuridão, mas Rowan conse-
guia ver que o chão que descia da zona onde eles estavam
era íngreme e estéril. E, por qualquer motivo, terrivel-
mente familiar.
Zeel estremeceu.
— Chegamos à face ocidental da Montanha —
disse ela em voz baixa. — Lá em baixo é o Fosso de Un-
rin.
18
ANTES DO AMANHECER

S haaran aproximou-se um pouco mais de Norris.


— O que... o que é o Fosso de Unrin? — perguntou
ela, a gaguejar. Desde que chegara a Rin, ela ouvira
muitas histórias, mas não aquela. Ninguém falava de bom
grado do Fosso de Unrin.
Rowan umedeceu os lábios.
— É um lugar de morte... um vale morto cheio de
árvores que comem carne — disse ele. — Antigamente
era o Vale do Ouro. Vivia lá um grande povo, antigos ali-
ados dos Viajantes e dos Maris.
— O Vale do Ouro! — exclamou Norris. — Mas
esse foi o lugar de que o Timon e o Neel falaram na reu-
nião! O lugar onde viviam as pessoas que viraram as cos-
tas à Montanha e provocaram o primeiro Tempo Frio.
O ar pareceu escurecer. Um ligeiro vento cruel so-
prava à volta deles, fustigando-lhes o rosto, desviando as
chamas dos archotes e torcendo o pêlo comprido dos
bukshah que vagueavam por entre as rochas como almas
perdidas, escavando o chão com as patas.
— Chegamos — pensou Rowan subitamente. —
Este é o fim da viagem.
— O Tempo Frio ocorreu nos primeiros tempos da
terra — disse Zeel lentamente. — O povo do Vale do
Ouro viveu durante muito tempo e em paz, muito depois
de ele ter terminado. Depois, subitamente, eles deixaram
de existir. Durante séculos não se soube o que lhes tinha
acontecido. Agora nós sabemos que as árvores demonía-
cas ocuparam o Vale e mataram-nos a todos. O Ogden
pensa que as raízes das árvores minaram esta parte da
Montanha, fazendo com que parte dos penhascos ruíssem
e caíssem.
— Mas como é possível um povo inteiro, rico e fe-
liz, simplesmente desaparecer? — murmurou Shaaran,
olhando para a escuridão lá em baixo. — Eles não pe-
diram ajuda? Os Viajantes não...
— Os Viajantes estavam longe — disse Zeel, com
uma expressão sombria no rosto. — Eles tinham acam-
pado na costa perto de Maris para passarem ali a estação
fria, como sempre faziam. Os primeiros ventos do In-
verno trouxeram uma invasão dos Zebak. Os Viajantes
combateram ao lado do povo Maris para defender a terra,
mas os Zebak eram muitos, e os Maris eram fracos e es-
tavam divididos, porque o seu líder, o Guardião do Cris-
tal, estava a morrer. Foi enviado um pedido urgente ao
Vale do Ouro. O povo do Vale respondia sempre a uma
chamada às fileiras.
— Mas dessa vez eles não apareceram? — Norris
estava inclinado para a frente, fascinado como sempre por
histórias de batalhas.
Zeel abanou a cabeça.
— Não só não apareceram, como os mensageiros
dos Viajantes não regressaram. Supõe-se que os mensa-
geiros morreram de frio antes de chegarem ao seu destino.
Nesse ano nevou cedo, e em grande abundância.
Ela virou-se para olhar para os bukshah. Rowan não
insistiu com ela. Zeel não gostava de histórias de guerras.
Embora fingisse o contrário, ela sofria muito com a
guerra, aparentemente interminável, entre o seu povo na-
tural e o adotado.
Os sentimentos de Norris não eram tão delicados.
— E então o que aconteceu? — perguntou ele. —
Continua, Zeel! Ao que parece, os animais estão a des-
cansar, ou então não sabem que caminho seguir. Que mais
temos nós para fazer a não ser conversar?
Zeel olhou para ele e sorriu ironicamente ao ver
que ele não lhe daria sossego enquanto ela não terminasse
a história.
— A cidade de Maris caiu rapidamente frente ao
inimigo e o povo Maris foi obrigado a fugir para túneis
debaixo do mar onde o seu líder ainda conseguia prote-
gê-los — disse ela em voz baixa. — Os Zebak tentaram
fazer os Viajantes de escravos, mas a tribo escapou das
garras deles como sombras e fugiu, tendo-se escondido
mais para norte.
Ele fez uma careta.
— Só podemos tentar adivinhar o que aconteceu
depois, pois nem os Maris nem os Viajantes estavam lá
para ver. Mas quando regressaram a Maris na Primavera,
os Viajantes descobriram que muitos dos barcos dos Ze-
bak já tinham sido enviados de volta para o seu país... car-
regados com bens dos Maris, com toda a certeza saquea-
dos, porque a cidade tinha sido totalmente despojada de
tudo. Os Zebak que ficaram pensaram que a guerra tinha
sido ganha.
Ela abanou a cabeça ao pensar na idéia ridícula de-
les.
— Para os Viajantes, claro, a luta tinha acabado de
começar. Eles enviaram novos mensageiros ao Vale de
Ouro e começaram a perseguir o inimigo de todas as for-
mas que podiam. Ciladas e ataques súbitos. Roubos de
comida e de armas. Distúrbios noite após noite...
Todos os seus companheiros a escutavam atenta-
mente. Shaaran ouvia-a com tanta atenção como Rowan e
Norris.
— Sem comida e sem conseguirem dormir, amea-
çados por um inimigo que eles não conseguiam ver, ao
fim de pouco tempo os Zebak tinham medo das sombras
— prosseguiu Zeel. — Depois, aquilo de que os Viajantes
estavam à espera aconteceu. O Guardião velho e fraco
morreu. Um novo Guardião tomou o seu lugar, e o Cristal
Mágico de Maris voltou a luzir. O povo Maris saiu dos
túneis, unido e cheio de uma nova esperança. Nesta altura,
eles eram muito mais fortes que os Zebak. E, assim, o
inimigo foi finalmente derrotado e escorraçado.
Ela franziu a testa e olhou para baixo, para as en-
costas sinistras que desapareciam na escuridão.
— Mas, no meio do regozijo, os novos mensagei-
ros regressaram do centro e, quando eles contaram o que
tinham encontrado, o triunfo transformou-se em sofri-
mento. Acima do Vale do Ouro, a face da Montanha ti-
nha-se transformado numa massa de detritos, como se
tivesse sido palco de uma batalha entre dois gigantes. O
Vale tinha desaparecido. Em seu lugar estava o horror a
que mais tarde foi dado o nome de Fosso de Unrin... uma
massa de árvores hediondas que pareciam exalar o mal. E
o povo do Vale tinha desaparecido da face da terra.
Rowan suspirou profundamente. Ele já ouvira
muitas vezes essa história antiga, mas nunca daquela for-
ma. De algum modo, a voz de Zeel, inexpressiva e neutra,
fazia sobressair os pormenores da história de uma forma
que a narrativa colorida e dramática de Ogden nunca fize-
ra.
Shaaran deu voz aos pensamentos dele.
— O acaso desempenhou realmente um papel terrí-
vel nessa história — disse ela. — Se os Zebak tivessem
atacado algumas semanas antes... se não tivesse nevado
antes do que se esperava... se os mensageiros tivessem
chegado ao Vale do Ouro... os habitantes do Vale teriam
ido para a costa combater e não teriam sido mortos pelas
árvores demoníacas.
— Em vez disso, talvez tivessem sido mortos pelos
Zebak — comentou Norris num tom sombrio. — Quem
sabe? Não vale a pena pensarmos nos “sés”, Shaaran. Mas
aqui tem outro: se os habitantes do Vale do Ouro não ti-
vessem morrido todos, nós poderíamos saber o que nos
vai acontecer. Eles podiam ter-nos dito como é que fize-
ram as pazes com a Montanha e puseram termo ao pri-
meiro Tempo Frio.
Zeel suspirou, olhando novamente para os buk-
shah.
— Esse conhecimento perdeu-se na névoa do
tempo — disse ela. — O povo do Vale não o partilhou
com os seus amigos. Talvez fossem demasiado arrogantes.
Ou tivessem vergonha. Ogden conhece muitos segredos
antigos mas, quando lhe fiz perguntas sobre este, ele não
me pôde dizer nada.
Não pôde, ou não quis? perguntou Rowan silenciosa-
mente a si próprio. Uma imagem do rosto moreno, de
falcão, de Ogden, perpassou-lhe a mente — o rosto de
Ogden na primeira vez que se tinham encontrado, os o-
lhos pretos de Ogden a fitá-lo atentamente.
Desde o início que Ogden, o contador de histórias,
o líder dos Viajantes, manifestara um grande interesse por
Rowan. Um interesse muito maior do que Rowan ou
qualquer outra pessoa poderia esperar.
Porquê? Porque é que Ogden lhe tentara ler a
mente tão profundamente naquele primeiro encontro, de-
sejando saber tudo, mesmo as coisas triviais, sobre os pais
de Rowan, os bukshah e a vida que ele levava?
No seu íntimo, Rowan sabia a resposta. Desde a
noite na caverna que sabia. Agora ele enfrentou-a honesta-
mente.
Ogden tinha pressentido qualquer coisa. Tinha
pressentido que, por mais improvável que parecesse, o
rapaz franzino e assustado que estava à sua frente estava
destinado a desempenhar um papel importante na história
da terra que eles partilhavam.
O contador de histórias tinha sido um aliado firme.
Mas Rowan tivera sempre a sensação de que ele ocultava
qualquer coisa — um conhecimento secreto ou uma sus-
peita sobre os quais ele não conseguia falar.
Ele não tinha ficado surpreendido quando Rowan
trouxe Shaaran e Norris da terra dos Zebak. Parecia que
estava à espera que isso acontecesse. Só quando as sedas
foram desenroladas, e os habitantes de Rin começaram a
admirá-las e a fazer perguntas sobre elas é que ele parecera
perturbado. Ogden cerrara os lábios finos e afastara-se.
Talvez naquele momento Ogden tivesse compreen-
dido que aquilo por que esperara, aquilo que ele temia, já
tinha começado. Que Rowan tinha involuntariamente
posto em marcha uma série de acontecimentos que ter-
minariam...
Terminariam aqui, pensou Rowan, olhando em
volta para os seus companheiros e, para além deles, para
as formas vagas dos bukshah a vaguearem sem destino por
entre as rochas. Terminariam ali, para o bem ou para o
mal.
— Já não falta muito para o dia nascer — disse Ze-
el subitamente.
Rowan virou-se para olhar para ela. Havia algo na
sua voz...
— O que é? — murmurou ele.
Zeel estava muito rígida, com a cabeça erguida co-
mo se estivesse a farejar o ar. O archote que ela tinha na
mão lançava uma luz amarela sobre as suas maçãs do ros-
to altas e sobre as sobrancelhas direitas e fortes.
— Não sei — disse ela, mal mexendo os lábios.
— O que está a acontecer? — pensou Rowan num
tom de desespero. — O que devo eu fazer?
Sentiu o medalhão aquecer junto da garganta e um
formigueiro na pele. A horrível sensação de enjôo habitual
percorreu-o.
Não, pensou ele com temor. Não!
Mas ele sabia que não servia de nada. Ele tinha feito
a sua pergunta. A coisa aconteceria, quer ele quisesse ou
não.
Sentiu o archote cair dos seus dedos entorpecidos,
ouviu a exclamação abafada de Zeel quando ela se virou
para ele. A sua boca abriu-se. Os seus lábios começaram a
mexer-se, formando as palavras.
"Quando o trovão preso à terra saúda o dia,
O coração destroçado desimpedirá o caminho.
E onde o rio dourado corre,
A escada oculta revela o seu segredo."
Quando ele disse o último verso, a memória avi-
vou-se — a memória de um sonho, um sonho aterroriza-
dor de que se esquecera até àquele momento. Ele ia atrás
dos bukshah, a subir uma escada de pedra em direção a um
buraco no topo.
Tinha a cabeça a andar à rodar. Não conseguia
pensar.
Quando ele tinha sonhado aquilo? Como podia ter
se esquecido daquele sonho? A memória era verdadeira ou
falsa?
Espere, disse ele a si próprio. Espere...
Lentamente, as tonturas e a sensação de enjôo fo-
ram desaparecendo. A sua mente ficou desanuviada. Per-
cebeu que tinha caído encostado a Zeel, de que esta tinha
um braço em volta dele, e de que Norris o estava segu-
rando do outro lado. Empurrou-os suavemente, e mante-
ve-se de pé sem qualquer apoio.
Já se lembrava. O sonho da escada de pedra ti-
nha-lhe vindo na caverna. O medo de ficar encurralado, a
fuga da caverna, e tudo o que acontecera desde então, ti-
nha-o feito esquecê-lo. Mas agora a memória voltara, si-
nistra e assustadora.
Todos os outros sonhos se tinham tornado reali-
dade, em todos os aspectos importantes. Por isso este pe-
sadelo também se tornaria realidade. E em breve.
Quando o trovão preso à terra saúda o dia.
Quando o Dragão da Montanha rugisse ao nascer
do sol?
Rowan sentia um zumbido nos ouvidos. Era como
se tivesse a cabeça cheia de abelhas. Atordoado, olhou
para o topo dos penhascos envoltos em neblina. Lenta-
mente, os seus olhos moveram-se para baixo.
E pararam.
Era imaginação sua, ou ele conseguia ver uma leve
mancha de cor mais clara na face do penhasco? Semicer-
rou os olhos, cada vez mais seguro de que tinha razão.
Havia algo — uma marca ou falha — mesmo acima
do local onde começava a encosta íngreme formada pelas
pedras.
Se não tivesse sido o sonho, ele teria pensado que
as rochas eram a escada da profecia. Mas ele tivera o sonho
e sabia que não eram.
Mas, ao nascer do dia, o segredo seria revelado. O
sol nascente iluminaria as rochas. A escada, agora oculta,
estaria banhada por um rio de luz dourada.
Vai acontecer, pensou Rowan. Não preciso fazer nada a
não ser esperar. Ele sentiu-se estranhamente calmo.
— Porque é que ele não responde? — Subitamente,
o zumbido dos seus ouvidos transformou-se em palavras,
e ele reconheceu a voz de Norris, cheia de pânico. Perce-
beu que os seus companheiros o estavam a chamar há
longos minutos, a tentar fazê-lo falar.
Ele virou-se para o som. Três rostos ansiosos flutu-
avam na obscuridade. Zeel. Shaaran. Norris.
Pouco a pouco, percebeu que havia algo que ele ti-
nha que fazer. Antes de o dia nascer. Antes que o Dragão
rugisse. Antes de o sol revelar a escada, e ele iniciar a últi-
ma, longa subida ao encontro do seu destino.
Irá acontecer, disse ele a si próprio. Mas não tem forço-
samente que acontecer a todos. No sonho, eu não vi ninguém na es-
cada a não ser eu próprio e os bukshah.
Uma imensa solidão desceu sobre ele. Doía-lhe o
peito.
O coração destroçado desimpedirá o caminho... Ele tinha
perguntado a si próprio o que significariam aquelas pala-
vras. Agora ele sabia. Abriu os lábios secos.
— É altura de me deixarem — disse ele, com uma
voz que soou estranha e rouca aos seus próprios ouvidos.
— O que tem que ser feito, eu tenho que o fazer sozinho.
19
DECISÕES

S haaran, Norris e Zeel protestaram, tal como Rowan


sabia que eles fariam. A profecia tinha-os abalado,
mas não tinha abalado a sua força de vontade nem a
sua lealdade.
Ele sabia que havia apenas uma forma de conven-
cê-los. Tinha que lhes contar o seu pesadelo com a escada
de pedra e o buraco fumegante no topo. Ele sentia relu-
tância em fazê-lo porque, para que eles acreditassem que o
que ele sonhara iria certamente acontecer, ele teria que
confessar os outros sonhos que tinham se tornado reali-
dade — os sonhos que ele mantivera secretos durante to-
do aquele tempo.
Isso irá destruir a confiança deles em mim, pensou ele, e a
dor no seu coração tornou-se mais forte. Irá destruir a nossa
amizade. Mas... mas talvez seja melhor assim. O seu amor e a sua
lealdade mantêm-nos ligados a mim. Se esses laços forem cortados,
eles ficarão livres para partir. O regresso a Rin será perigoso, mas
terão a água do bosque para ajudá-los. E nada é mais perigoso do
que permanecer aqui.
— Vocês não compreendem — disse ele em voz
alta, interrompendo os protestos deles. — E isso acontece
porque... porque eu os enganei.
As vozes pararam subitamente. Ele viu três pares
de olhos espantados a olhar para ele e baixou a cabeça.
Respirou fundo para ganhar alento e, numa voz
baixa, confessou tudo. Falou rapidamente, obrigando-se a
si próprio a limitar-se ao essencial da história. Ninguém o
interrompeu.
— Eu devia ter-lhes contado logo no início, mas fui
egoísta e não o fiz — terminou Rowan desajeitadamente,
sem levantar os olhos. — Eu queria que a nossa amizade
se mantivesse tal como sempre fora. Eu não queria que
me olhassem com repulsa nem que tivessem medo de
mim como as pessoas têm de Sheba. Agora sinto-me um
ser bizarro. Mas não tenho desculpa. Perdoem-me.
Fez-se silêncio. Este durou tanto tempo que Rowan
quase se interrogou se os três já se teriam afastado si-
lenciosamente, deixando-o sozinho. Obrigou-se a si pró-
prio a erguer a vista.
Estavam à sua frente, exatamente como antes de
ele ter começado o seu discurso. Os seus rostos eram
graves. Shaaran tinha lágrimas nos olhos. Nesse momento,
Rowan quase desejou que eles tivessem ido embora sem
dizer nada.
Depois Shaaran atirou-se para os seus braços.
— Eu não consigo acreditar que suportou este
fardo sozinho, todo este tempo, por nossa causa, Rowan
— exclamou ela. — Eu nunca teria conseguido fazê-lo!
— Nem eu — disse Norris, abanando a cabeça e
apertando a mão de Rowan.
— Eu talvez conseguisse — disse Zeel calmamen-
te. — Mas felizmente não tive que tentar.
Rowan ficou a olhar para eles, espantado. A reação
dos seus amigos era tão diferente do que ele esperara, que
ficou sem fala.
— Eu sabia que estava a esconder qualquer coisa,
Rowan, mas não fazia idéia do que pudesse ser tão assus-
tador que precisasse de o ocultar — disse Zeel. — Isso é
algo que eu não compreendo muito bem, pois porque é
que alguém iria virar as costas a um bom amigo só porque
ele tem um talento inesperado e muito útil?
— É mais uma maldição do que um talento —
conseguiu dizer Rowan.
— Maldição ou talento, não interessa — disse Sha-
aran, recuando um pouco para poder olhar para ele, mas
ainda a segurar-lhe no braço. — Não se pode dividir um
amigo verdadeiro aos pedaços e dizer, “Deste pedaço eu
gosto, mas não quero aquela parte”! O pacote tem que ser
levado inteiro.
— E, por falar nisso, se pensa que pode dividir o
todo em que nós quatro nos tornamos e enviar três quar-
tos para casa enquanto você prossegue a viagem sozinho,
está muito enganado — rosnou Norris.
Shaaran acenou a cabeça em sinal de concordância.
— Eu não diria que não tenho medo — disse ela.
— Tenho muito medo. Mas isso não significa que eu
queira voltar para trás.
— Mas... mas vocês não ouviram o que eu disse?
— gaguejou Rowan. — O sonho da escada... havia terror
nele. E morte. Eu senti-o.
— E depois? — perguntou Zeel calmamente. —
Não é a você que compete tomar a decisão, Rowan dos
Bukshah. Quer nos tenha visto no seu sonho quer não, a
profecia da Sheba dizia claramente que quatro almas têm
que seguir os animais.
Ela olhou de Norris para Shaaran, e depois nova-
mente para Rowan.
— E nós vamos segui-los — acrescentou ela — até
onde quer que a trilha nos leve. Não por amor a você, mas
por amor a esta terra e a tudo o que nos é caro.
Rowan, envergonhado, ficou calado.
Norris pigarreou.
— Muito bem — disse ele num tom decidido. —
Agora, vamos pensar no que podemos fazer para nos aju-
darmos a nós próprios. Com sonho ou sem ele não me
agrada a idéia de ficar aqui à espera do nascer do dia como
uma vítima indefesa que não tem qualquer controle sobre
o seu destino.
— A escada do sonho de Rowan ia ter a um buraco
— disse Zeel. — O buraco tem que ser certamente a en-
trada de outra caverna.
— Acha? — perguntou Shaaran timidamente. —
Mas o sopro quente estava a fumegar...
— Muitas vezes, os sonhos mostram coisas vulga-
res de uma forma estranha — interrompeu Norris. — Os
bukshah também eram diferentes do que são na realidade.
Não é assim, Rowan?
Rowan hesitou. Claro que Norris tinha razão, mas...
Zeel estava a olhar para cima, semicerrando os olhos para
tentar ver na obscuridade.
— Aquela mancha cinzenta é o único sinal de uma
entrada que eu consigo ver na face do penhasco. Se su-
birmos até lá agora, talvez fiquemos a saber algo que nos
irá ajudar mais tarde.
Shaaran emitiu um pequeno som de protesto, mas
Norris concordou imediatamente. Para ele, uma subida
difícil era preferível a esperar, impotente, na escuridão.
Rowan permaneceu em silêncio. Ele via que o plano de
Zeel era sensato, mas continuava a sentir-se inquieto.
Talvez eu esteja aborrecido porque já não sou eu a tomar as
decisões, pensou ele. Talvez esteja demasiado habituado a ser o
líder.
Apesar dos seus temores, este pensamento fê-lo
sorrir.
— Eu... eu não consigo subir aquelas rochas —
disse Shaaran num fio de voz.
Norris deu uma gargalhada.
— Claro que não, Shaaran — disse ele. — Nin-
guém está à espera que o faça. Eu e a Zeel vamos ver o
que há para ver, e depois voltamos para te contar, a você e
ao Rowan.
Rowan sentiu um baque. Aquilo estava tudo errado.
Ele sabia. Mas não podia proibir Zeel e Norris de tenta-
rem o que eles achavam que deviam fazer.
E eu também não posso ficar aqui à espera enquanto eles o
fazem, pensou ele. Tenho que ver o que está lá em cima com os
meus próprios olhos.
— Se estão decididos a fazer isso, eu vou com vo-
cês — disse ele em voz alta. — Eu acho que consigo su-
bir.
— E a Shaaran? — exclamou Norris. — Ela não
pode ficar aqui sozinha!
— Claro que posso! — disse Shaaran vigorosa-
mente. — Eu não preciso de um guarda. Eu fico aqui de
vigia. Se houver alguma ameaça de perigo, ou se os buk-
shah começarem a dispersar-se, eu os chamo.
E assim ficou decidido. Ao fim de alguns minutos,
Zeel, Norris e Rowan estavam a dirigir-se para as rochas
mesmo por baixo do seu objetivo.
Quando Rowan começou a subir, a Estrela sacudiu
a cabeça e começou a caminhar em direção a ele. Pareceu
a Rowan que ela, se pudesse, teria tentado impedi-lo de
subir. Mas, quando ela chegou ao fundo da pilha de ro-
chas, ele já ia demasiado alto para ela conseguir aproxi-
mar-se dele.
Ele olhou para baixo. A Estrela estava a esgaravatar
as rochas como se quisesse ir atrás dele. Mas não conse-
guia. A pilha de rochas era demasiado íngreme. Ela esti-
cou o pescoço e mugiu, desanimada, enquanto ele conti-
nuava a subir.
A Estrela está a gostar disto tanto quanto eu, pensou
Rowan, com inquietação. O seu pé escorregou, e ele pro-
curou freneticamente algo a que se agarrar, salvando-se
por milagre.
— Tenha cuidado, Rowan! — gritou-lhe Zeel aci-
ma dele. — Estas rochas são traiçoeiras, especialmente no
escuro! Com metade da mente a pensar noutra coisa, não
consegue subir.
Rowan sabia que ela tinha razão. Expulsou tudo da
sua mente exceto a tarefa em que estava empenhado e
continuou a subir.

***

Ao fim de algum tempo, chegaram ao topo da pilha


de rochas. O ar tornara-se subitamente muito mais frio.
Neblina gelada rodopiava acima deles, e Rowan sentiu um
arrepio ao olhar para a mancha cinzenta na face do pe-
nhasco à sua frente. Não era o lugar que vira no seu so-
nho. Ele não teve a certeza se ficou alegre ou triste.
A área cinzenta era muito maior e mais clara do que
parecera lá de baixo, e agora eles viram que não era um
buraco, mas sim parte da parede do próprio penhasco.
Fazia parte do penhasco mas, ao mesmo tempo,
não fazia. Era muito diferente da rocha preta à sua volta.
Norris descalçou a luva, inclinou-se para a frente e
tocou no material cinzento. Um ar de surpresa perpas-
sou-lhe o rosto, e ele retirou a mão.
— Eu nunca senti nada assim! — exclamou ele. —
É dura, mas muito mais macia do que a rocha. E não é
fria! É apenas um pouco mais fria que os meus dedos!
— Norris, como pode ser tão imprudente! — ra-
lhou-lhe Zeel. — Provavelmente é alguma espécie de
fungo que cresceu em cima da rocha. Não faz qualquer
idéia do mal que ele te possa ter feito!
Aterrado, Norris começou a limpar vigorosamente
os dedos na capa.
Zeel pegou no seu punhal e enfiou a ponta no ma-
terial cinzento.
— Se for um fungo, é muito espesso — disse ela,
intrigada, empurrando afaça com mais força. A lâmina
brilhante deslizou para a frente e mergulhou até ao cabo.
Zeel puxou-a para trás, torcendo-a, e um pedaço de mate-
rial cinzento soltou-se e caiu para dentro da sua manga.
Ela sacudiu-o apressadamente.
— Que estranho — murmurou ela, com os olhos
cheios de curiosidade. Enfiou novamente a faca no buraco
e começou a raspar energicamente.
— Deixe isso, Zeel — disse Rowan, sem muita es-
perança de que ela lhe prestasse atenção. Ele olhou para
baixo, por cima do ombro, para onde os bukshah andavam
ansiosamente de um lado para outro, e Shaaran estava à
espera.
Ele conseguia distinguir a Estrela no meio da ma-
nada. Conseguia ver o rosto pálido de Shaaran virado para
cima. O seu estômago deu uma volta quando percebeu
que o céu estava a clarear. Faltava pouco para o dia nas-
cer.
— Zeel! — disse ele, virando-se novamente para o
penhasco. — Zeel, é melhor nós...
Mas Zeel não o ouvia. Ela tinha-se içado de modo a
ficar ao mesmo nível que o material cinzento. Tinha o o-
lho pressionado contra o buraco que fizera. Enquanto Ro-
wan a observava, ela recuou. Não havia qualquer expres-
são no seu rosto.
— É melhor ver isto — disse ela tranquilamente.
Rowan avançou, mas Norris estava à sua frente, a
aproximar ansiosamente o olho do buraco. Houve um
momento de silêncio, depois Norris também recuou.
— O que é? — perguntou Rowan.
Norris estava muito pálido. Os seus olhos estavam
quase pretos. A boca moveu-se, como se ele quisesse falar,
mas não emitiu qualquer som.
Com o coração a bater como um tambor, Rowan
lançou-se para a frente e olhou pelo buraco.
A princípio, ele só conseguia ver uma mancha de
um azul baço. O frio era tão intenso que os olhos lhe do-
eram e ficaram rasos de água.
Muito mais frio do que aqui fora, pensou ele. No en-
tanto, a barreira cinzenta não era fria.
Lentamente, ocorreu-lhe que o material cinzento
era um tampão. Este constituía, tal como a capa de pele de
bukshah que ele usava, uma poderosa barreira tanto contra
o calor como contra o frio. Evitava que um fluísse para o
outro.
O material cinzento estava a preencher uma fenda
na rocha. Estava a ser usado para manter o frio mortífero
no interior e não deixar entrar o ar menos gelado do exte-
rior.
Mas porquê ali? pensou ele, confuso. Quem o fizera?
Depois o seu olho ajustou-se à estranha luz azul
para além da barreira cinzenta, e viu...
Viu uma caverna enorme, tão grande que a aldeia
inteira de Rin poderia caber quatro vezes lá dentro. Viu
que o teto e as paredes da caverna brilhavam com o
mesmo fungo branco azulado de que ele se lembrava da
viagem que fizera ao interior da montanha alguns anos
antes. Viu que o teto estava cravejado de manchas pálidas
que ele depressa identificou como sendo extremidades
roídas de raízes de árvores. Viu as entradas para outras
câmaras e túneis que subiam, serpenteando através do
centro da Montanha.
E viu, horrorizado, répteis do gelo. Dezenas de
milhares de répteis do gelo. Répteis do gelo a contorce-
rem-se ao longo de todo aquele enorme espaço, enrolan-
do-se em cima uns dos outros numa enorme massa branca
movediça. Répteis do gelo a construir, a construir ine-
xoravelmente, deslizando através dos túneis com os maxi-
lares a trabalhar, utilizando o material mastigado para
construir mais e mais celas cinzentas que já forravam as
paredes geladas da caverna e se erguiam em enormes tor-
res até ao teto.
O centro oco da Montanha era um ninho. Um ni-
nho gigantesco. Em todas as celas acabadas havia um
verme branco — uma réplica minúscula dos adultos que
tomavam conta dele.
E depois, aterrorizado, Rowan viu que os animais
mais próximos dele ficaram imóveis, viraram as cabeças
cegas para ele, abriram os maxilares e atiraram-se a silvar,
contra o buraco por onde ele estava a olhar.
20
O TROVÃO DIRIGIDO À TERRA

R owan recuou com tanta força que quase se soltou


e caiu. As exclamações de espanto dos seus com-
panheiros e os gritos estridentes de Shaaran vindos
de baixo soaram aos seus ouvidos enquanto ele se agarra-
va à rocha cortante com as pontas dos dedos.
— Para trás! — disse ele com a voz estrangulada.
— Eles pressentiram-me. Eles sentiram o ar mais quente.
Eles estão...
Horrorizado, ele viu pequenas rachas a irradiar do
buraco como teias de aranha. Viu o material cinzento a
começar a desfazer-se, à medida que o buraco ficava cada
vez maior...
Começou a descer atrapalhadamente juntamente
com Zeel e Norris, de costas, com as biqueiras das botas a
procurar apoios para os pés, as mãos a doer, e a rocha,
dura e fria, a raspar-lhe o peito e as pernas.
Mas a cabeça horrível de um réptil do gelo já estava
a atravessar a barreira cinzenta. Enorme, feroz, o réptil
deslizou, a contorcer-se, para as rochas e começou a per-
segui-los. Um hálito gelado jorrava-lhe da boca, enchendo
o ar à sua frente com uma névoa gelada e revestindo as
rochas com uma camada branca.
— Para baixo! — gritava Shaaran lá em baixo. —
Venham para baixo!
Para baixo! Para baixo! Para baixo onde estava mais
quente. Onde havia archotes. Onde o bosque não estava
muito distante.
Rowan escorregou, recuperou o equilíbrio, voltou a
escorregar. A respiração doía-lhe na garganta. Agarran-
do-se desesperadamente à rocha, olhou para cima.
O réptil estava quase ao pé deles, com a cabeça ce-
ga a investir, e os horríveis maxilares abertos. Era tão
grande que a ponta da cauda ainda batia nas rochas do
topo da pilha. E, mesmo cheio de terror, Rowan ficou
espantado com o fato de a barreira cinzenta do penhasco
já estar outra vez inteira e lisa. Mal o réptil do gelo emer-
giu totalmente, o buraco ficou selado atrás dele.
Tão rapidamente. O pensamento girou na mente ator-
doada de Rowan, ao mesmo tempo que o seu pé encon-
trou, finalmente, uma fenda em que conseguiu apoiar-se, e
ele retomou a arriscada descida. O seu estômago dava
voltas quando ele pensava nos répteis do gelo a correrem
para o buraco, com as cabeças cegas a baterem contra ele
enquanto as bocas abertas cuspiam o material cinzento
pegajoso que ficaria rijo ao fim de poucos momentos, re-
parando os danos, selando o frio precioso no interior.
Só seriam necessários alguns. Alguns entre as deze-
nas de milhares daquelas hediondas coisas rastejantes que
infestavam a Montanha, fazendo túneis através da rocha,
roendo as raízes das árvores. Construindo, construindo...
— Dezenas de milhares? — resmungou Rowan
para si próprio. Centenas de milhares! E, em breve, mais
centenas de milhares. Os túneis dos répteis minavam a
rocha gelada da Montanha. As celas das crias parecidas
com vermes enchiam as cavernas cheias de gelo da Mon-
tanha.
No frio agreste do Tempo Frio elas procriariam in-
cessantemente, e as suas crias espalhar-se-iam aos milhões
pela Montanha. Até todas as árvores terem morrido e to-
dos os seres vivos terem sido destruídos.
Ele escorregou por um pedaço liso da rocha abaixo
e aterrou, com um baque surdo, num pedregulho plano
junto da base. Ainda a tremer, respirou fundo. Tinha a
certeza de que ali não estava tanto frio. Ele tinha deixado
o ar gelado do topo da pilha de rochas e passara para o ar
quente mais abaixo.
Atreveu-se a olhar para cima e viu que tinha razão.
O réptil do gelo estava a abrandar. Balouçava, a silvar,
claramente desconfortável. Mas continuava a avançar.
Rowan ouviu gritos, olhou rapidamente em volta e viu
Norris e Zeel um pouco abaixo dele. Estavam os dois a
olhar para baixo e a chamar. Norris tinha um braço es-
tendido para... para o local onde uma chama se movia para
cima e para baixo. Uma chama a subir!
Rowan percebeu que Shaaran estava a subir em di-
reção a eles, segurando desajeitadamente um archote ace-
so. O rosto pálido, aterrorizado, da menina parecia flutuar
na obscuridade atrás da chama. Abaixo dela viam-se os
bukshah. Os animais estavam muito juntos, formando um
nó imóvel apertado junto do sopé da pilha de rochas.
Shaaran devia ter aberto caminho entre eles para iniciar a
sua subida.
E ela tinha tanto medo deles! pensou Rowan. Este
pensamento quase o fez soltar uma gargalhada. Medo dos
bukshah, quando as rochas eram duras, altas e denteadas, e
um réptil do gelo silvava a sua raiva acima deles!
Mas ele sabia, melhor do que ninguém, que os pe-
quenos medos podiam ser tão aterrorizadores como os
grandes. Ele sabia que Shaaran tinha recorrido a toda a sua
força, num esforço desesperado para levar aos seus com-
panheiros aquilo de que eles necessitavam para consegui-
rem sobreviver.
Ela podia facilmente escorregar e cair! Rowan ob-
servou, aterrorizado, a chama oscilante. Ele sabia como a
subida da rocha era difícil e perigosa. E Shaaran, frágil e
cheia de medo, estava a subir só com uma mão, com o
archote que trazia na outra a dificultar-lhe os movimentos.
— Rowan! — o grito agudo de Zeel fê-lo dar um
salto. Instintivamente, olhou de novo para cima, para on-
de o réptil do gelo se contorcia numa nuvem de ar gelado.
Os seus olhos viram algo a mover-se acima dele, e ele sen-
tiu o sangue a gelar-lhe nas veias. A face do penhasco es-
tava quase oculta pela névoa branca ondulante. E na né-
voa havia centenas de formas brancas azuladas, deslizando
pesadamente do topo do penhasco coberto de neve.
Claro, pensou Rowan, paralisado. Como é que eu pude
pensar que apenas um animal iria defender o ninho? A porta cin-
zenta tinha que ser selada, para impedir que o ar mais
quente entrasse na câmara. Mas, mais acima, onde está
tanto frio no exterior como no interior, não havia necessi-
dade de selar as portas. E através dessas aberturas saíam
mais répteis, às centenas...
Recomeçou a descida. O medo dominava-o, mas
ele cerrou os dentes, combatendo-o. Tinha que se concen-
trar no que estava a fazer, pensar apenas em colocar os
pés com segurança, em utilizar bem as mãos. Se es-
corregasse e partisse um osso — até mesmo se torcesse
um pé — estaria acabado.
O som de um silvo encheu-lhe os ouvidos. Uma
golfada de névoa gelada envolveu-o. Abriu a boca e engas-
gou-se, olhou para cima e viu o primeiro réptil do gelo
mesmo por cima dele, com o seu enorme corpo seme-
lhante ao de uma cobra quase escondido no meio de uma
nuvem branca.
O animal tinha, de alguma forma, arranjado forças
para enfrentar o ar mais quente da parte inferior da pilha
de rochas.
E atrás dele... estavam outros.
Rowan ouviu o seu próprio grito de terror. A parte
superior da rocha estava coberta por uma neblina ondu-
lante. A neblina descia lentamente e, dentro dela, havia
uma massa de bocas azuis a silvar, corpos brancos azula-
dos a contorcer-se nas rochas que o gelo preto fazia cinti-
lar.
Eles não se limitam a viver no frio. Eles causam-no! Quanto
mais numerosos são, mais frio fica... O pensamento pene-
trou-lhe na mente como um punhal de gelo. E, logo a se-
guir, ele percebeu a terrível verdade.
Nenhum lugar está a salvo deles.
O réptil do gelo avançava às cegas. Rowan recuou,
com um grito, largando o apoio da mão, escorregando,
deslizando, abandonando todas as precauções. Os seus
calcanhares bateram na rocha e resvalaram para a frente e
para baixo. No momento seguinte, ele estava entalado até
à cintura numa fenda entre dois pedregulhos.
Quando tentava içar-se para se soltar, olhou, aterro-
rizado, para cima. A boca do réptil estava muito aberta
por cima dele. Os seus dentes oblíquos brilhavam quando
ele investiu, tentando agarrá-lo...
Ouviu-se um enorme grito, e Rowan, atordoado de
medo, viu um rastro de fogo passar-lhe ao lado da cabeça
e mergulhar nos maxilares abertos forrados de azul. O
réptil empinou-se, com a ponta do archote ainda a sair-lhe
da boca. Uma neblina azul escura gelada jorrou-lhe da
garganta. Depois ele enrugou-se e caiu.
Braços fortes nada meigos içaram Rowan para fora
da fenda.
— Depressa! — rugiu Norris aos seus ouvidos.
A massa de formas brancas que estava nas rochas
por cima deles pareceu avançar enquanto Rowan e Norris
desciam atrapalhadamente. Quando olhou por cima do
ombro, Rowan viu Shaaran e Zeel a chegarem ao fim da
sua apavorada descida.
Não caiam! Não caiam! pensava ele repetidamente,
falando tanto para elas, como para si próprio. Foi com um
enorme alívio que viu as duas meninas deslizarem pela
última rocha íngreme, aterrando, sãs e salvas, no meio da
manada de bukshah. Instintivamente, ele e Norris dirigi-
ram-se para o mesmo local.
Mas, quando chegaram finalmente ao fundo, eles
viram que os bukshah tinham se movido, e que Shaaran e
Zeel se tinham movido com eles. Eles estavam agora na
outra extremidade da pilha de rochas — na extremidade
mais distante do bosque. Zeel e Shaaran estavam estra-
nhamente imóveis, com os bukshah muito juntos à sua
volta.
Norris e Rowan correram a gritar para lá. Os buks-
hah deslocaram-se para os deixar passar, depois voltaram a
fechar-se silenciosamente atrás deles.
— Porque é que estão aqui? — perguntou Norris,
ofegante, quando chegou ao pé de Shaaran.
Ela não respondeu e limitou-se a fitá-lo com os
seus enormes olhos assustados.
Ele puxou-lhe pelo braço.
— Não percebe? Vêm aí centenas de répteis! Te-
mos que voltar para o bosque. É a nossa única possibili-
dade!
Mas, quando ele se virou, arrastando Shaaran con-
sigo, encontrou o caminho bloqueado pelos bukshah. Os
animais tinham-se deslocado de modo a incluírem os re-
cém-chegados no seu círculo, e agora permaneciam lado a
lado à volta deles como uma sólida parede peluda. Eles
farejavam e faziam um ruído surdo, tocando suavemente
em Rowan, Zeel e Norris com o nariz como se estivessem
ansiosos por lhes tocarem. Mas não tocaram em Shaaran,
mantendo-se afastados dela como se soubessem que ela
tinha medo.
Norris barafustou e empurrou-os em vão.
— Rowan! — gritou ele, olhando desvairadamente
à sua volta. — Obrigue-os a se mexerem!
Rowan sabia que não havia qualquer esperança de
que isso acontecesse. A Estrela estava no centro do grupo,
mesmo ao lado dele. Os seus olhinhos pretos estavam fi-
xos nele, e naqueles olhos ele via a determinação dela. Ela
não o deixaria passar.
Os animais são mais sábios do que nós imaginamos...
Rowan sentiu os cabelos da nuca a eriçarem-se.
— Eles não vão se mexer — disse Zeel. — Eles
empurraram-nos para aqui e é aqui que eles querem que
fiquemos. — A voz dela era muito baixa. Os seus olhos
claros estavam fixos e concentrados, como se ela estivesse
a escutar algo que mais ninguém conseguia ouvir.
— O que é, Zeel? — murmurou Rowan.
— Escuta — respondeu ela.
Rowan escutou. E... não ouviu nada. Nada a não
ser o seu próprio coração a bater, a respiração pesada de
Norris, e os cascos dos bukshah a raspar levemente o chão
rochoso.
O vento tinha diminuído. Havia uma estranha qui-
etude, como se a Montanha estivesse a suster a respiração.
O silêncio pareceu premir-se contra os ouvidos e os
olhos de Rowan. Os dentes começaram a doer-lhe. Sentia
um formigamento na pele como se um milhão de formi-
gas lhe percorresse os pêlos das pernas e dos braços.
Obrigou-se a si próprio a olhar para cima. Os rép-
teis que estavam em cima da pilha de rochas tinham pa-
rado. No meio da neblina rodopiante, as suas cabeças ce-
gas oscilavam indecisamente.
— O que...? — começou a perguntar Norris, en-
gasgando-se seguidamente quando a voz secou na gargan-
ta.
A luz tinha-se alterado. O céu sombrio estava man-
chado de vermelho. O dia estava a nascer.
Muito alto acima deles, na sua caverna de gelo no
topo, o Dragão rugiu.
E, vindo do interior da Montanha, ouviu-se um ru-
gido baixo e longo como o ribombar de um trovão.
O ar cintilou à frente dos olhos de Rowan. A terra
pareceu tremer debaixo dele.
Depois as rochas começaram a cair. Lentamente,
como um castelo de uma criança feito de blocos de ma-
deira, um castelo deitado abaixo por um dedo descuidado,
as rochas tombaram, caíram em cima umas das outras e
em cima dos répteis do gelo que se moviam, indefesos, no
trajeto delas.
À medida que a Montanha tremia, as rochas come-
çaram a tombar cada vez mais depressa, caindo no local
onde os companheiros tinham estado apenas alguns mi-
nutos antes, rodopiando e caindo no Fosso de Unrin, le-
vando consigo os corpos esmagados dos répteis do gelo.
Rowan caiu de joelhos, pressionando a cabeça con-
tra o lombo peludo da Estrela, escondendo os olhos da
imagem do mundo a desfazer-se à sua volta, tentando
proteger os ouvidos do ronco do trovão.
Mas não era possível escapar ao som. Este estava
em todo o lado. Fazia tremer o corpo da Estrela. Fazia vi-
brar o mundo. Enchia o ar que ele respirava.
Que som aquele! Rowan nunca ouvira um som as-
sim. Não oriundo do Dragão da Montanha. Nem vindo
das árvores demoníacas de Unrin. Nem proveniente da
Grande Serpente de Maris. O rugido da Montanha era
baixo e terrível, como um rugido de ira. E enquanto Ro-
wan se encolhia, subjugado por ele, o som foi aumentando
cada vez mais até se ouvir o lamento áspero, estridente, de
rocha a partir-se. Depois uma rajada de vento quente var-
reu tudo à sua volta, atirando-o ao chão.
21
A ESCADA

A cabeça de Rowan doía-lhe. Tinha zumbidos nos


ouvidos. O nariz da Estrela tocou bruscamente no
rosto. Talvez, em muitas outras ocasiões anterio-
res, ela lhe tivesse tocado mais suavemente, a tentar acor-
dá-lo. Mas agora ela não podia esperar mais tempo. Ele
ouvia-a a fazer barulho, ansiosa, e a escavar o chão com as
patas.
Abriu os olhos. Estes choravam e ardiam-lhe. Viu a
Estrela acima dele, uma forma preta recortada no céu nu-
blado. O terrível amanhecer tinha-se esbatido. Era dia
claro.
Rowan foi percebendo lentamente do que o ro-
deava.
Ao seu lado, Zeel, Norris e Shaaran começavam a
mexer-se. Os outros bukshah ainda os cercavam, ainda
formavam aquela enorme parede cinzenta viva que os es-
cudava do pior da fúria da Montanha. Mas agora a parede
era irregular e oscilante, e o ar estava cheio de mugidos e
resfôlegos. A manada estava impaciente por partir.
Está na hora, pensou Rowan. Ele não sentia nada.
Tinha a mente entorpecida.
Pôs-se de pé, vacilante, esforçando-se por se equili-
brar embora sentisse a cabeça a andar à roda, e agarran-
do-se à crina da Estrela para se segurar. A lã dela era áspera
sob os seus dedos. Recordou-se vagamente de que ela es-
tava assim desde que mergulhara na água da nascente do
bosque. Depois, o pensamento dissipou-se.
Lenta, pacientemente, a Estrela conduziu-o por en-
tre a irrequieta manada. Ele seguiu, a cambalear, ao lado
dela, esfregando os olhos rasos de água. Atordoado, che-
gou ao espaço aberto e viu o que ela queria que ele visse.
As pedras denteadas que tinham estado amontoa-
das contra a face do penhasco tinham desaparecido, como
se tivessem sido empurradas para longe por uma mão de
gigante. Rowan viu que o penhasco e a encosta não esta-
vam separados e formavam uma enorme rocha cintilante.
A escada do seu sonho começava no local em que a
rocha começava a subir a pique. Fitou-a com um ar inex-
pressivo através de uma névoa de vapor e lágrimas. A es-
cada brilhava, iluminada por uma estranha radiância ama-
rela que não era o sol.
Ergueu os olhos. Ao lado da escada, oriundo de
uma enorme fenda situada aproximadamente a meio da
rocha, corria um rio de ouro.
O rio de ouro brotava lentamente da rocha. Fume-
gante, com uma cor forte e espessa como melaço, ele cor-
ria ao lado da escada, descendo a encosta mais suave onde
os bukshah tinham vagueado e escavado a terra com as
patas. Ali, ele alargava e prosseguia o seu caminho, numa
faixa dourada larga, cintilante, derramando-se sobre a orla
do fosso.
— Estou a sonhar — disse Rowan a si próprio.
Mas ele sabia que não estava.
O coração destroçado desimpedirá o caminho...
O coração da Montanha tinha rebentado através da
sua casca de rocha, revelando o seu segredo. E agora o
ouro derretido corria, corria como sangue, pela encosta
abaixo, para o Fosso de Unrin.
Rowan percebeu que Zeel, Norris e Shaaran esta-
vam ao seu lado, vendo o que ele estava a ver. Ele sentia a
sua presença. Ouvia a sua respiração rápida. Mas nenhum
deles disse uma só palavra.
Sentiu a Estrela a afastar-se suavemente dele, sentiu
a mão cair ao lado como uma coisa morta. Viu a Estrela
dirigir-se lentamente para a escada, pisando o chão sal-
picado de manchas e poças de ouro a arrefecer, e os ou-
tros bukshah a seguirem-na, um a um.
E, à medida que os animais começavam a subir, os
olhos de Rowan foram ficando desanuviados e ele viu,
sem surpresa, que o aspecto deles era muito semelhante
ao que tinham tido no seu sonho, embora muito mais
magros e cansados.
Eles mantinham a cabeça erguida. Os chifres eram
brancos e afiados como lâminas. O pêlo era espesso e cin-
tilante. Os cascos brilhavam, dourados e, por onde passa-
vam, deixavam pegadas douradas.
Temos que seguir os animais...
Rowan avançou em direção à escada e começou
também a subir. Ele sabia que os seus companheiros iam
atrás dele, mas não se virou para olhar para eles. Conti-
nuou a subir, um degrau de cada vez, enquanto ao seu la-
do o ouro líquido corria como sangue fumegante oriundo
do coração da Montanha, a escorrer da rocha partida.
Era um sonho que não era um sonho. Um sonho
com calor que ele não conseguia sentir. Com um plano
que ele não conseguia descortinar. Com farrapos de me-
mórias que a sua mente não conseguia alcançar. Com
medo e sofrimento, ânsia e arrependimento, silêncio e
morte.
Só depois de passar o local onde o rio de ouro co-
meçava é que ele olhou para cima. E ali, não muito abaixo
da mancha cinzenta que assinalava a caverna dos répteis
do gelo, estava a boca aberta do seu sonho.
Era a entrada de uma caverna, sombria e horrível,
envolta em vapor ondulante. Um parapeito largo de rocha
cheia de marcas projetava-se por baixo dela, como um
queixo enorme, deformado.
Nós subimos por cima de tudo isto sem sabermos, pensou
Rowan vagamente. Olhou de um lado para o outro, para a
camada externa lisa e dura da encosta da Montanha. Por
baixo de nós bate agora o coração da Montanha, pensou ele. O
seu calor, contido por baixo das rochas, refreou os répteis do gelo e
salvou-nos. Salvou-nos... com outra finalidade.
Para isto.
Rowan ergueu novamente o olhar. Estava quase no
topo da escada. Através do vapor ele viu que o buraco na
rocha não era bem igual à boca aberta do seu sonho. Três
pedras altas, denteadas, permaneciam presas à base, pro-
jetando-se para cima como dentes pretos e tortos.
Pela primeira vez desde que pisara os degraus da es-
cada, Rowan estremeceu de medo.
Quatro têm que se sacrificar...
Rowan virou-se e olhou para trás. Os seus olhos
cruzaram-se com os olhos tranquilos de Zeel.
— Chegamos — disse ela.
Atrás dela, quase escondida pelos seus ombros lar-
gos, estava Shaaran, ofegante e de olhos muito abertos,
com a caixa das sedas nos braços.
E atrás de Shaaran vinha Norris, com um ar deci-
dido no rosto.
Muito acima deles, a neve cobria o cimo do pe-
nhasco e a mancha cinzenta selava a face do penhasco,
protegendo o frio intenso no seu interior. Mais adiante, o
vapor erguia-se da sombra dourada.
No domínio entre o fogo e o gelo...
Os bukshah estavam amontoados em cima do pa-
ra-peito corroído. Eles mugiam e escavavam o chão. Al-
guns tentavam empurrar as rochas.
Eles querem entrar na caverna, mas não conseguem, pen-
sou Rowan. Os espaços entre os dentes — as rochas — são dema-
siado estreitos.
Sentiu-se um pouco mais animado. O que quer que
lhe estivesse reservado, os bukshah, pelo menos, iriam ser
poupados. A tarefa deles estava terminada.
Os companheiros chegaram ao parapeito e começa-
ram a abrir caminho por entre os bukshah. Mais uma vez,
os animais farejaram e tocaram ansiosamente em Rowan,
Zeel e Norris, mas deixaram Shaaran passar lançando-lhe
apenas um olhar.
— Eles não gostam de mim — disse Shaaran.
— Eles sentem o medo que tem deles — respon-
deu distraidamente Rowan, fazendo seguidamente um es-
gar. Se o cheiro do medo repelia os bukshah, porque é que
eles se juntavam à sua volta? Todo o seu corpo tremia de
medo. O medo provocava-lhe um formigamento na pele.
Ele sentia que o terror devia irradiar dele como se fosse
calor.
Entrou na caverna à frente dos outros. Esta era
úmida e cintilante. O vapor flutuava no interior, vaga-
mente colorido de ouro.
A Estrela estava no centro da fila de animais que
tentava forçar a entrada. Ela tinha colocado o ombro de
encontro à rocha do meio e estava a empurrar, do mesmo
modo que empurraria uma cerca para a derrubar. Ela tinha
conseguido deslocá-la um pouco para o lado. Mas embora
os bukshah estivessem magros, o espaço criado continuava
a ser demasiado estreito para eles.
E ela nunca conseguiria empurrá-la para dentro. A
caverna estava situada num degrau alto acima do pa-
ra-peito. As três rochas estavam comprimidas contra o
degrau.
— Não vai conseguir fazê-lo, Estrela — disse Ro-
wan em voz baixa, pondo a mão em cima da crina. —
Poupe as suas forças.
A Estrela levantou a cabeça pesada e olhou para ele.
Os seus olhos pareciam cheios de tristeza e frustração.
— Você e a manada trouxeram-nos até aqui, e isso
é suficiente — disse-lhe Rowan, com um nó na garganta.
— Agora tem que nos deixar agir... fazer o que tem que
ser feito.
A Estrela escavou a terra com a pata, soltando um
gemido profundo, e tentou, mais uma vez, em vão, em-
purrar a rocha.
— Não! Volte para trás, Estrela! — insistiu Rowan
puxando-lhe pela lã, desesperado por fazê-la compreen-
der. — Leva a manada novamente para o bosque e espere.
No bosque há alguma comida, há água, e estarão a salvo
do frio e dos répteis. E talvez... ao fim de algum tempo...
as neves derretam e vocês possam regressar ao vale.
Se nós fizermos o que temos que fazer, pensou ele. Se ti-
vermos forças para fazer o que temos que fazer.
Ele esfregou o rosto na crina da Estrela, sentindo a
sua aspereza pouco familiar contra a pele. Seguidamente,
deixou-a e passou por entre as rochas.
O ar estava cheio de uma névoa dourada sombria.
Ele conseguia ver muito pouco através da neblina.
Ergueu a mão, descobriu que podia tocar facilmen-
te no teto, e pensou nos répteis do gelo enrolados no seu
ninho gelado situado não muito longe acima da sua cabe-
ça. Zeel, Shaaran e Norris atravessaram a barreira formada
pelas rochas e agruparam-se atrás dele. Rowan deu um
passo em frente.
Os bukshah tinham começado novamente a mugir,
com a Estrela a mugir mais alto que todos. Os seus berros
ecoavam de um modo estranho, ecoavam continuamente,
até o som lamentoso parecer encher o ar brumoso.
— Mais adiante está mais claro — disse Zeel em
voz baixa atrás dele.
Rowan olhou e viu que era verdade. A entrada da
caverna estava agora muito atrás deles mas, em vez de fi-
car mais escuro, a estranha luz era cada vez mais forte.
Eles caminhavam na direção de uma luz amarela que, a
cada passo, se tornava mais luminosa.
E o vapor estava a diminuir. Agora era apenas um
véu fino. As paredes do túnel através do qual se deslo-
cavam eram claramente visíveis. Acima das suas cabeças, o
teto era baixo e brilhante.
Nisto, Rowan viu figuras envoltas em capas a andar
não muito à frente, em silêncio e em fila indiana, ca-
minhando cheias de medo e desespero, enquanto os mu-
gidos dos bukshah ecoavam, distantes, à sua volta. Com
um choque, ele reconheceu a imagem.
Está tudo perdido... Estamos perdidos... Não é possível es-
capar...
As figuras cintilaram e desapareceram. Rowan sen-
tiu a respiração a acelerar. A luz amarela aumentava. Ago-
ra ele conseguia ver que no local onde ela começava, o
túnel era mais largo, abrindo-se para um espaço muito
maior. Ele soube que ali eles iriam encontrar a origem da
luz, o fim da viagem.
Tinha as pernas a tremer. Com parte da sua men-
te... a parte que ainda era sua... ele ansiava por parar, por
se atirar contra as paredes brilhantes do túnel, por se a-
garrar a elas, para se conter. Mas era demasiado tarde para
isso. Ele começou a ser impelido para a frente por algo
mais poderoso que ele próprio.
Em vez de abrandar, deu por si a mover-se mais
rapidamente. E, de imediato, a luz dourada rodeou-o, um
calor enorme envolveu-o, e ele viu o que tinha vindo tão
longe para ver.
O teto da caverna era baixo e salpicado de preto e
cinzento. As paredes pretas tinham veios dourados cin-
tilantes, iluminados, tal como o ar enublado, por uma ra-
diância que jorrava de um buraco redondo no centro do
chão liso raiado de ouro.
Não havia mais nada. Nada a não ser calor e som-
bras nos cantos, e os ecos dos lamentos dos bukshah.
Rowan aproximou-se da orla do buraco como al-
guém em transe. Depois olhou para baixo — para um a-
bismo tão fundo que sentiu a cabeça a rodar. Olhou para
o calor inimaginável, para o brilho terrível do ouro derre-
tido escaldante.
Sentindo-se tonto, olhou para o coração da Monta-
nha e não conseguiu desviar o olhar. Tinha a cabeça à ro-
dar. Percebeu que tinha parado de respirar.
A fome não será negada...
A fome tem que ser mitigada...
— Ande, Rowan. Afaste-se da beira.
Rowan ouviu a voz de Shaaran, mas não conseguiu
compreender as palavras. Outras vozes reclamavam a sua
atenção. Vozes da sua memória.
A voz de Neel:
Nós ofendemos a Montanha, e agora a Montanha virou-se
contra nós.
A voz de Norris:
Se o povo do Vale do Ouro não tivesse morrido... eles podi-
am ter-nos dito como é que fizeram as pazes com a Montanha, e
puseram termo ao primeiro Tempo Frio.
A voz de Zeel:
Esse conhecimento perdeu-se... Os habitantes do Vale não o
partilharam... Talvez fossem demasiado orgulhosos. Ou tivessem
vergonha...
— Vergonha — murmurou Rowan. — Vergonha
do que tiveram que fazer para reparar o mal que tinham
feito. Mas o nosso povo nunca saberá. A Lann não lhes
dirá, e eu espero que eles nunca adivinhem.
O coração da Montanha rosnou, à espera.
— E é isto o que tem que ser feito? — perguntou
uma voz num tom firme. — Se é, estou pronta.
22
A FOME

R owan virou-se. Zeel estava ao seu lado, à beira do


precipício. Ela pegou-lhe na mão e fitou-o nos
olhos com um ar altivo. Ele viu a força e a graça
dela, uma combinação de Zebak e Viajante, e o seu cora-
ção pareceu partir-se dentro dele.
— Estou pronta — repetiu ela.
Norris deu um passo em frente e pegou na outra
mão de Zeel.
— Eu também — disse ele. — Eu segui-te até aqui,
Rowan, e se tiver que te seguir até às profundezas e até à
eternidade, fá-lo-ei.
Rowan olhou para ele, viu a sua coragem e o seu
rosto franco e sincero, e sentiu novamente uma dor no
coração.
Só Shaaran não tinha avançado. Só Shaaran não ti-
nha dito nada. Mas agora ela falou e, quando o fez, a sua
voz era trêmula, mas firme.
— Eu não acredito — disse Shaaran.
— Shaaran... — começou Norris a dizer.
Mas Shaaran abanou a cabeça.
— A Montanha é uma coisa de rocha e terra —
disse ela. — É misteriosa. Ela encerra muitas coisas es-
pantosas. Mas ela só exige que a respeitemos. Não quer o
nosso amor, nem lealdade, nem medo... nem sacrifício.
Ela não precisa de nada disso. Precisa... deve precisar... de
qualquer outra coisa.
Rowan levantou a cabeça, como se acordasse de
um sonho. O medalhão latejava junto da sua garganta. Ele
virou-se. Shaaran estava afastada do abismo. As lágrimas
escorriam-lhe pelo rosto.
Uma para chorar...
— Está com medo, Shaaran — disse Zeel num tom
suave.
— Claro que estou com medo — retorquiu Shaa-
ran. — Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso
teria medo! Mas não é por isso que eu recuso juntar-me a
vocês nesta loucura. Eu recuso-me porque vocês estão
enganados! Enganados!
Eles fitaram-na com um ar inexpressivo. Ela bateu
com o pé.
— Além de coração, vocês não têm cabeça? — per-
guntou ela. — Como é que podem pensar que o fato de se
atirarem para o coração a ferver da Montanha irá fazer
derreter um só pingente de gelo em Rin, ou impedir um
réptil do gelo de nascer, ou fazer florir uma única flor?
Rowan já tinha rodado 180 graus e afastou-se um
pouco do abismo.
Ouviu-se um rosnado surdo vindo das profundezas
debaixo deles. A rocha estremeceu sob os seus pés.
— Não podemos esperar — disse Zeel numa voz
sumida. — A ira está a aumentar. Há demasiado calor.
Demasiado...
— Rowan, o medalhão! — disse Shaaran num tom
insistente. — Use-o!
— Cada um de nós fez uma pergunta — disse Ro-
wan. — Já tivemos quatro respostas. Acho que... já não
vai haver mais.
Mas, mesmo assim, ele levantou a mão e levou-a ao
metal que lhe queimava a garganta. Este pareceu contor-
cer-se sob os seus dedos, como se estivesse vivo. Ele sen-
tiu as palavras subirem dentro dele. Abriu os lábios secos
e falou. As palavras vieram facilmente, e ele ouviu-as sem
surpresa, pois eram-lhe muito familiares.
“Os animais são mais sábios do que podemos imaginar
E aonde eles conduzem, quatro almas devem caminhar.
Uma para chorar e uma para lutar,
Uma para sonhar e uma para voar.
Quatro têm que se sacrificar.
No domínio entre o fogo e o gelo
A fome não pode ser negada,
A fome tem que ser mitigada.
E nessa rajada incandescente,
A busca une a vida e a morte iminente.”
Quando as palavras terminaram, ele ficou calado.
Sentia-se muito cansado, mas nada mais.
— Então... — murmurou Zeel.
— Quatro têm que se sacrificar — disse Norris
num tom inexpressivo. — Aqui, no domínio entre o fogo
e o gelo. Não pode haver qualquer engano.
Mas Rowan estava novamente a ouvir uma voz na
sua mente. A voz de Sheba, a dizer a profecia. Ele ti-
nha-os repetido exatamente do mesmo modo. Todas as
palavras, todas as pausas. E...
— Entre o verso que termina com “sacrificar” e o
que termina com “o fogo e o gelo” há uma pausa. Um
ponto — disse ele lentamente. — Podem ser dois versos
completamente diferentes. Não reparei nisso antes, mas
agora estou a ver. O verso sobre o sacrifício pode estar
ligado aos versos sobre as quatro almas que vêm antes
dele. O verso sobre o fogo e o gelo pode estar ligado aos
versos seguintes, os versos sobre a fome. Nesse caso, a
profecia tem um significado diferente.
— É verdade — disse Zeel após um momento de
reflexão. — Mas isso não altera realmente nada. Os quatro
sacrifícios têm que ser feitos.
— Acha? — comentou Rowan. — Ou será que já
foram feitos? A Shaaran abandonou as sedas para me sal-
var no vale dos horrores. O Norris convenceu-se de que
estava perdido, para nos salvar do réptil do gelo na caver-
na. Você, Zeel, sacrificou o seu papagaio, e quase a sua
vida, para salvar o Norris. E eu... — ele sorriu ironi-
camente. — Eu sacrifiquei a coisa mais preciosa que ti-
nha... a nossa amizade e confiança... para tentar fazer com
que me deixassem e se salvassem.
— Tem razão — disse Shaaran em voz baixa. —
Para chegarmos a este lugar, todos nós fizemos sacrifícios.
E agora estamos aqui. Há algo que temos que fazer. Antes
que... — Ela estremeceu quando a Montanha rosnou de-
baixo dos seus pés.
Antes que a rocha volte a explodir, pensou Rowan. An-
tes que a escada caia e os bukshah morram. Antes que esta caverna
se torne o nosso túmulo.
— E... sobre a fome— balbuciou Norris. — A fo-
me...
As palavras ficaram a pairar, pesadas, no meio de-
les.
No domínio entre o fogo e o gelo
A fome não pode ser negada,
A fome tem que ser mitigada
Algo brilhou na orla do campo de visão de Rowan.
Ele virou a cabeça e viu movimento num canto envolto
em sombras mesmo atrás de Shaaran. Viu uma capa de
pele de bukshah no chão a mexer-se, o débil movimento de
uma mão delicada a curvar-se protetoramente à volta de
uma caixa de madeira comprida. Viu outra mão, uma mão
mais forte, a escrever, uma cabeça inclinada a brilhar, es-
cura, na luz dourada. Sentiu os pensamentos, as palavras
rabiscadas na folha...
Quando regressarem, vocês têm que saber o que aconteceu,
por isso eu escrevo estas palavras...
E ele viu o quadro de que a sua mente se estava a
recordar. Um quadro pintado na seda. Uma longa fila de
pessoas a atravessar a neve ao longo de uma trilha preta,
queimada. Répteis do gelo saindo, a contorcer-se, da né-
voa da Montanha. Bukshah juntos lá em baixo, as únicas
marcas pretas numa imensidão branca.
As únicas marcas pretas...
Rowan susteve a respiração. A mão que se movia
parou, um rosto olhou para cima.
Era o seu próprio rosto. E nele ele leu o fim da es-
perança, o fim do medo, a aceitação do que tinha que ser.
Por um momento, os olhos fitaram-no, inexpressivos,
depois a boca pareceu curvar-se numa sombra de sorriso,
e a cabeça inclinou-se mais uma vez sobre o papel.
Rowan virou-se rapidamente, com o coração a ba-
ter com força, e a mente a tentar abarcar a espantosa idéia
que lhe viera. Ele viu que os seus companheiros olhavam
para ele com um terror fascinado, com os olhos cheios de
perguntas que eles tinham medo de fazer. Ele sempre te-
mera o dia em que eles olhariam para ele daquele modo.
Mas isso já não parecia importante.
— O que viu? — perguntou Norris, sem se conse-
guir conter. — Você estava a olhar fixamente... para nada!
Era o nosso futuro? Era, Rowan?
Rowan não respondeu. Nem sequer ouviu. Estava a
ouvir os ecos. Os ecos dos mugidos que nunca tinham
parado... os berros dos bukshah esfomeados que ainda es-
tavam à entrada da caverna. Os bukshah.
Os bukshah, que tinham vivido e morrido na som-
bra da Montanha desde que os Viajantes vagueavam pela
terra, e até mesmo antes disso. Os animais sábios que os
companheiros tinham salvado da morte no bosque. Os
animais que os tinham conduzido àquele lugar. Os animais
que farejavam e tocavam ansiosamente nele, em Zeel e em
Norris, mas que tinham ignorado Shaaran. Os animais
com os chifres afiados há pouco tempo, os cascos doura-
dos, o pêlo brilhante sobre os corpos magros, esfomea-
dos...
Fome...
Rowan olhou em redor da caverna. Chão preto liso,
raiado de ouro. Cantos envoltos em sombras. Paredes
pretas, raiadas de ouro. Calor e luz oriundos de um poço
de fogo jorrando para cima, até chegar a um teto baixo
salpicado de preto e cinzento.
Salpicado de cinzento... embora as paredes e o chão
fossem pretos.
Ele ergueu a mão e tocou no teto.
E nessa rajada de sopro incandescente...
Rowan rodou e agarrou no braço de Norris.
— Ajude-me! — pediu ele.
E ele desatou a correr, com Norris, Zeel e Shaaran
atrás, e as perguntas confusas deles a soarem aos seus ou-
vidos.
Correram velozmente através da neblina. Os ecos
dos berros eram cada vez mais altos, e o ouro foi substi-
tuído por uma luz branca. Ao fim de algum tempo, ti-
nham à sua frente as rochas denteadas que os bukshah
tentavam, em vão, empurrar.
A Estrela ainda se encontrava à cabeça da manada e
ergueu a cabeça cansada.
— Para trás, Estrela! Para trás! — gritou Rowan. A
Estrela viu-o premir o ombro contra a rocha do meio, com
Norris ao seu lado e, desta vez, obedeceu. Recuou, e os
outros bukshah recuaram também, até o caminho em fren-
te da rocha estar desimpedido.
Depois Norris empurrou com toda a força, e Ro-
wan, Zeel e Shaaran adicionaram o seu peso ao dele. E a
enorme rocha, que os bukshah há muito tinham despren-
dido, oscilou na sua base e rolou lentamente para longe da
entrada.
Os bukshah avançaram, com a Estrela à frente. Os
companheiros encolheram-se e comprimindo contra o
lado da entrada. Com uma pressa frenética, os animais
passaram, um a um, pelo espaço entre as rochas, meio
saltando o degrau baixo para entrarem no túnel, irrom-
pendo seguidamente num galope pesado.
O som dos seus cascos pesados era como um tro-
vão, e a neblina rodopiava como nuvens de tempestade.
Rowan, Zeel, Norris e Shaaran corriam atrás deles en-
quanto eles galopavam em direção à caverna.
— O que estamos a fazer? — rugiu Norris.
— Estamos a fazer o que devíamos ter feito logo
de início — respondeu Rowan no mesmo tom. — Esta-
mos a seguir os animais. Durante todo este tempo, o nos-
so único papel tem sido garantir que eles chegassem à ca-
verna. Eles é que são necessários aqui, não somos nós!
— Porquê? — gritou Shaaran. — O que é que eles
vão fazer?
Mas Rowan não teve que lhe responder porque, en-
quanto ela falava, eles chegaram à caverna, e ela viu por si
própria.
Viu os animais a abanar a cabeça, e os seus chifres
acabados de afiar, os chifres de que ela tinha tanto medo,
a fazer o que deviam fazer. Ela viu os chifres a penetrar
profundamente nas manchas claras que salpicavam o teto
da caverna, a escavar pedaços grandes cinzentos, grossos e
viscosos. Viu os bukshah a engolir sofregamente os peda-
ços cinzentos como se fossem a comida mais deliciosa da
terra, e a voltar a levantar a cabeça para arrancarem mais.
A fome tem que ser mitigada...
— Este é o material que os répteis do gelo usam
para selar o seu ninho! — gritou Norris, olhando em pâ-
nico para as migalhas cinzentas espalhadas pelo chão e
para os pedaços maiores que caíam do teto como granizo.
— O ninho está mesmo por cima de nós... e o teto da ca-
verna está todo esburacado! Esburacado como uma pe-
neira! Rowan, faça os animais parar! Eles vão escavar até
ao ninho! Vão ser a nossa morte!
— Eles vão ser a nossa salvação! — replicou Ro-
wan. Mas, embora se sentisse seguro, mesmo ele susteve a
respiração quando a Estrela, com um vigoroso movimento
dos chifres, rasgou a última camada cinzenta do enorme
buraco por cima da sua cabeça.
Por um instante, o buraco era apenas rocha preta
em volta de uma luz branca azulada. Depois um ser bran-
co horrendo a silvar começou a preencher o buraco a par-
tir de cima, a tentar atravessá-lo, com os dentes afiados
como agulhas à mostra e a boca azul muito aberta.
Shaaran gritou. Mas ainda não se tinha começado a
ouvir o eco e já uma névoa azul escura irrompia da boca a
silvar. A garganta branca pareceu murchar, e o réptil do
gelo caiu para trás e desapareceu.
— É o calor! — gritou Rowan acima do barulho
dos bukshah e dos ecos. — Os répteis não conseguem
suportá-lo! Para eles é a morte!
E ele virou-se e viu que, um a um, os buracos iam
ficando desimpedidos à medida que o calor do coração
incandescente da Montanha, que deixara de estar apri-
sionado no interior da caverna, jorrava para cima numa
explosão de fogo e aquecia os domínios escondidos que
os répteis do gelo há tanto tempo, e com tanto trabalho,
tinham tornado seus.
23
VIDA E MORTE

A o fim de algum tempo, o frenesi dos bukshah a-


calmou, e o processo de escavar a estranha comi-
da que eles sabiam que os iria fazer sobreviver ao
Inverno mais rigoroso adquiriu um ritmo constante, satis-
feito. O chão estava coberto de fragmentos cinzentos.
Muitos buracos ainda estava bloqueados, mas outros tinha
sido total ou parcialmente abertos, e todos os répteis do
gelo que se tinham aventurado a aproximar-se tinham
morrido com o ar quente que vinha de baixo.
— Assim a nossa busca juntou realmente a vida e a
morte — disse Norris com satisfação. — Morte para os
répteis do gelo, vida para nós.
— Os répteis do gelo não estão todos mortos —
disse Zeel, olhando-o com um ar divertido. — É certo
que o grande ninho ficou destruído, e que os répteis que
estavam a descer, a espalhar o frio de que gostavam, já
não existem. Mas deve haver ainda muitos mais a viver
nos lugares altos da Montanha, onde a neve nunca derrete.
— Ela ergueu o olhar para os buracos do teto da caverna.
— E, à medida que o calor continuar a subir e por conse-
guinte, a diminuir aqui, eles vão voltar, arriscando a vida
para selar novamente os buracos. Faz parte da natureza
deles tentar alargar o seu território.
Os companheiros estavam sentados junto da pare-
de da entrada, fora do caminho dos bukshah. Embora sou-
bessem que, nessa altura, o calor era muito maior do que
eles sentiam, já parecia mais frio na caverna.
— Acho que a nascente do bosque deixou uma
camada na nossa pele e na roupa que nos protege do calor
— disse Rowan. — E protege também o pêlo dos buk-
shah.
— A passagem para o vale dos horrores afiou-lhes
os chifres de modo a estarem prontos para escavar a co-
mida do teto da caverna — comentou Shaaran, sacudindo
a cabeça com um ar de espanto. — E a água da nascente
protegeu-os do calor que aí vinha. É como se eles ti-
vessem sido guiados para seguir a trilha que percorreram.
— Eu tenho certeza de que eles foram guiados —
disse Rowan. — Não por magia, mas pelo instinto. Desde
os tempos antigos que a manada dos bukshah devia vir à
caverna alimentar-se no Inverno. Assim, todos os anos o
teto da caverna era desimpedido, os répteis do gelo recu-
avam, e o equilíbrio mantinha-se.
— Então como é que o primeiro Tempo Frio veio?
— perguntou Norris. — Ou isso não passou, afinal, de
uma lenda?
— Oh, não — respondeu Rowan num tom sério.
— Tenho a certeza de que ele, de fato, aconteceu. Eu a-
cho que aconteceu porque os habitantes do Vale do Ouro
decidiram construir cercas para manter os bukshah confi-
nados o ano inteiro.
— Mas porquê? — quis saber Zeel. — Porque é
que eles haveriam de fazer uma coisa dessas? Eles deviam
saber o que os bukshah vinham fazer à caverna! A Monta-
nha não lhes era proibida, como era para os Viajantes.
Rowan suspirou.
— Eu desconfio, embora nunca possamos ter a
certeza, que os habitantes do Vale do Ouro descobriram
que, quanto mais quente a caverna ficava, e quanto mais a
pressão lá em baixo aumentava, mais rapidamente o seu
rio de ouro secreto corria. Eles só pensaram na beleza e
no poder do ouro. Esqueceram-se de que a Montanha
também tinha necessidades.
— E foi assim que se deu o primeiro Tempo Frio
— murmurou Zeel. — Tolos! Eles acabaram por perceber
o seu erro e corrigiram-no. Mas recusaram-se a dizer aos
Viajantes o que tinham feito. Não admira! Não admira
que tivessem vergonha!
Rowan suspirou.
— Eu também tenho vergonha de não ter perce-
bido que tinha que haver um motivo para que, no Inver-
no, os bukshah tentassem sempre fugir. Os bukshah não
são estúpidos, são sábios. Eu sabia isso, mas não tentei
compreendê-los. Em vez disso, como todos os guardiães
dos bukshah antes de mim, convencia-os a voltar para o
campo dando-lhes a comida armazenada para eles come-
rem durante os meses frios. Eu perguntava muitas vezes a
mim próprio como é que eles tinham sobrevivido antes de
nós virmos para o vale. Agora eu sei.
Zeel franziu o sobrolho.
— Mas quando o Vale do Ouro foi finalmente des-
truído, o deslizamento de terras provocado pelas árvores
demoníacas soterrou a escada e esta caverna. Depois dis-
so, os bukshah já não podiam vir aqui comer.
— Tem razão — concordou Rowan. — Ao longo
de todos esses anos, eles devem ter voltado para trás, de-
cepcionados, e regressado a casa com apenas as folhas do
bosque para encher a barriga. Depois nós chegamos ao
vale, construímos cercas e, tal como os habitantes do Vale
do Ouro tinham feito outrora, começamos a dar de comer
aos nossos animais no Inverno. Assim, embora o seu ins-
tinto para irem até à Montanha continuasse a existir, já
não havia uma necessidade urgente de comida, e eles não
se importavam de se manterem longe dela.
— E, durante todo esse tempo, pouco a pouco, os
tampões dos répteis do gelo no teto da caverna iam-se
tornando mais espessos, e a Montanha foi ficando mais
fria — disse Zeel. — E os répteis foram se reproduzindo
cada vez mais, provocando mais frio, e, a cada ano que
passava, os Invernos eram mais longos e mais rigorosos.
Apesar do calor, Shaaran embrulhou-se melhor na
capa.
— Então, se os habitantes de Rin não tivessem se
instalado no vale e não tivessem começado a dar de comer
aos bukshah no Inverno, a manada teria morrido! — ex-
clamou Norris.
— Toda a terra teria acabado por morrer — disse
Zeel num tom sombrio. — Mas os bukshah sobreviveram,
conduziram-nos até aqui e mostraram-nos o que tinha que
ser feito. — Ela olhou para Rowan com um ar pensativo.
— Ao que parece, foi um feliz acaso o seu povo ter che-
gado aqui, com as suas cercas, colheitas e armazéns, e a
sua capacidade de sobreviver ao frio no interior do país.
Rowan interrogou-se a si próprio. Feliz acaso? Ou
outra coisa?
— Rowan, o que foi que viu imediatamente antes
de começar a correr para conseguir que os bukshah entras-
sem na caverna? — perguntou Norris abruptamente. —
Na altura, não quis nos dizer. Não quer nos dizer agora?
Viu o futuro? Viu... tudo isto? — Ele acenou a mão na
direção dos bukshah que estavam a comer.
Rowan abanou a cabeça e pôs-se lentamente de pé.
Ele sabia que chegara o momento. O momento de deci-
frar o último mistério. O momento de dizer o que ele
pensava que sabia. Quando fora necessário agir urgente-
mente, ele não conseguira dizer nada e, mesmo depois
disso, mantivera-se calado, guardando o precioso segredo
para si próprio, como se, ao falar sobre ele, o pudesse ferir
ou destruir.
Se não existe qualquer prova, qualquer vestígio, será apenas
a minha palavra, pensou ele. A palavra de um sonhador, facil-
mente descartada e ignorada. Se não houver nada, como irei conse-
guir suportar a desilusão?
Mas, seguido de perto pelos seus companheiros, ele
começou a abrir caminho por entre os bukshah, diri-
gindo-se para o canto envolto em sombras da sua última
visão.
O canto estava escuro, guardando os seus segredos.
Ele parou a alguma distância dele e tentou acender
um archote, mas as mãos tremiam-lhe tanto que não con-
seguiu fazê-lo. Olhando-o com um ar de curiosidade, Zeel
tirou-lhe o archote da mão e acendeu-o ela própria.
A chama inflamou-se. Eles aproximaram-se do
canto.
E ali, no meio de uma pilha de ossos cobertos de
poeira, estava uma caixa de madeira comprida.
— Shaaran! — exclamou Norris. — Você deixou
as sedas...
Nisto, ele viu que Shaaran ainda tinha nos braços a
caixa que trouxera de Rin e calou-se.
Rowan ajoelhou-se em frente dos ossos e colocou
as mãos sobre a caixa. A madeira estava dura, preservada
pelo calor seco, constante, da caverna. O fecho tombou
da tampa quando ele a abriu.
Ao ver o que estava dentro da caixa, o seu coração
começou a bater com força. Era um tabuleiro com um
conjunto de frascos de vidro minúsculos, de todas as co-
res do arco-íris. E, em cima dos frascos, havia um pedaço
de pergaminho.
Ele tirou o pergaminho para fora. Estava coberto
por um texto escrito numa letra vacilante, irregular.
Ele leu em voz alta.
Meus amigos,
Quando regressarem, vocês têm que saber o que aconteceu,
por isso eu escrevo estas palavras... O Fliss está demasiado fraco
para fazer mais.
O Bron escapou ao ataque dos Zebak e correu a avisar-nos.
Apesar dos ferimentos, ele levou apenas dois dias a chegar até nós.
Seguindo o plano, o Bron, o Fliss e eu pegamos no tesouro, deixamos
bastante comida para os cavalos e seguimos os animais ao longo do
seu caminho secreto do Vale dos Bukshah até ao Coração da Mon-
tanha. Uma vez em segurança aqui, mantivemo-nos de guarda. To-
dos os dias esperamos que vocês voltassem, impelidos pelos chicotes
dos Zebak ou ditosamente livres, mas vocês não vieram...
A voz de Rowan vacilou.
— O que é isso? — perguntou Norris com voz
rouca. — Eu não compreendo. Quem...?
— Fique quieto, Norris — silvou Zeel, com um ar
concentrado.
No fim do Inverno, os bukshah abandonaram o Coração
da Montanha, mas nós ficamos. Vimos, de longe, as novas colheitas
a florir no nosso vale, e lamentamos que só nós conseguíssemos ver a
sua beleza.
Rowan fez outra pausa. Estava a ter dificuldade em
suportar o sofrimento. Ele podia imaginar o que eram as
“novas colheitas” — arbustos perfumados carregados de
fruta, arbustos nascidos de bagas levadas da Montanha. O
escritor desconhecido não percebera o mal que aquela be-
leza disfarçava, não soubera que desses bonitos arbustos
iriam crescer árvores carnívoras.
Os seus companheiros estavam à espera, sustendo a
respiração. Ele obrigou-se a si próprio a prosseguir.
Algum tempo depois, nós vimos que os cavalos e as aves ti-
nham sido acometidos por uma terrível doença, pois eles jaziam imó-
veis nas ruas. Receando um plano Zebak para nos levar a sair do
esconderijo, fomos mais para o fundo da caverna. Algumas noites
depois, houve uma trovoada terrível. O chão estremeceu e, quando
nos levantamos, descobrimos que a estrada estava escura e selada
pela rocha.
— Eles estavam aqui quando as árvores demonía-
cas irromperam da terra e provocaram o deslizamento de
terras — disse Zeel num tom sombrio. — Ficaram en-
curralados. — Ela olhou para a patética pilha de ossos e
cerrou os punhos.
Rowan respirou fundo e continuou a ler.
Muitas semanas se passaram desde essa altura. O Bron tem
tentado esforçadamente libertar-nos, mas nem sequer a sua enorme
força consegue deslocar a barreira. Há muito que a comida e a água
acabaram. Estamos a morrer. Mas o tesouro está em segurança, e
nós estamos juntos. Isto reconforta-nos.
Sentimos pesar por vocês, os nossos amigos, mas os nossos
corações dizem-nos que um dia irão encontrar uma forma de regres-
sarem, pois a terra irá chamá-los, e vocês irão ouvir o seu apelo. E,
quando regressarem, abrirão mais uma vez o Coração da Monta-
nha, para que os bukshah possam entrar nele como devem. Nessa
altura, irão encontrar-nos e deitar-nos finalmente na terra generosa,
sob o céu aberto, onde ansiamos por estar.
Deixamo-los com a nossa bênção.
Evan dos Bukshah
— “Evan dos Bukshah” — disse Zeel em voz bai-
xa. Havia lágrimas nos seus olhos. As primeiras lágrimas
que Rowan a via derramar.
Ele pousou o pergaminho. Depois levou nova-
mente a mão à caixa, tirou o tabuleiro com os frasquinhos
e pô-lo cuidadosamente de lado. Por baixo do tabuleiro
havia uma cavidade funda. Estava cheia de rolos de seda.
Shaaran soltou uma exclamação, lançou-se para a
frente e, com mãos trêmulas, tirou da caixa o rolo que es-
tava em cima e desenrolou-o ternamente.
Azul, branco e cinzento. Uma longa fila de pessoas a ca-
minhar através da neve branca, seguindo uma trilha preta queima-
da...
— É o mesmo! — murmurou Norris, com uma ex-
pressão de medo no rosto. — E a seda que você pintou,
Shaaran.
— Não — disse Shaaran em voz baixa. — Esta é
muito, muito mais antiga. Está a ver as cores sumidas? E...
— Os seus dedos magros apontaram para os bukshah, de
pé na neve. — Está a ver, Norris? A minha pintura mos-
trava os bukshah dentro da cerca. Mas os habitantes do
Vale do Ouro tinham derrubado as cercas muito antes de
isto ser pintado, deixando os bukshah vaguear à vontade.
O guardião das sedas... o Fliss... pintou apenas a verdade,
como somos obrigados a fazer. Ah... este trabalho não
tem comparação!
E, enquanto Norris, Zeel e Rowan observavam,
maravilhados, Shaaran desenrolou outra seda, e mais ou-
tra, e mais outra. As sedas eram frágeis como gaze, mas as
cores continuavam vivas, e as formas ainda falavam.
A Feiticeira a conduzir o seu povo através das pri-
meiras quedas de neves para combater na costa. O feroz
exército Zebak a atacar inesperadamente a planície. Um
homem ferido, estranhamente parecido com Norris, a fu-
gir, cambaleante. O mesmo homem, apoiado num pau
comprido, a dar a notícia a duas figuras num vale paradi-
síaco onde os trilhos eram pavimentados de pedras pre-
ciosas, onde havia cavalos em miniatura a vaguear e uma
coruja de ouro com olhos de esmeralda ao lado de todas
as portas. Três figuras vestidas com capas forradas de pe-
le, a subir degraus de pedra íngremes em direção à entrada
de uma enorme caverna, atrás de uma manada de bukshah.
— Os habitantes do Vale do Ouro receberam o pe-
dido de ajuda dos Viajantes — disse Zeel, admirada. —
Eles partiram para a costa com os mensageiros, deixando
para trás apenas o guardião dos bukshah e o guardião das
sedas. Mas, durante a viagem, eles foram atacados pelos
Zebak.
— Foram capturados, obrigados a marchar até à
costa, metidos em barcos e levados a atravessar o mar,
para serem feitos escravos — murmurou Rowan.
Zeel abanou a cabeça.
— E os Maris e os Viajantes estavam escondidos e
nunca souberam. Ninguém soube. Até agora.
— Mas... — Norris tinha os olhos muito abertos.
— Mas isso significa que... que...
— Significa que os habitantes do Vale do Ouro fo-
ram nossos antepassados — murmurou Shaaran, sem
conseguir tirar os olhos das sedas. — Significa que esta
terra não é nova para nós. É a nossa terra. Sempre foi.
— Um povo rico, variado, com gente grande e pe-
quena, forte e meiga, desapareceu — disse Zeel esforçan-
do-se por compreender. — Séculos mais tarde, um grupo
de escravos guerreiros altos e comedidos, sem qualquer
recordação do passado, chegou à praia de Maris. Como é
alguém poderia pensar que era o mesmo povo?
— Eu acho que o Ogden sabe — disse Rowan. —
Ou, pelo menos, desconfia. Ele conhece mais histórias do
Vale do Ouro do que qualquer pessoa viva. Eu diria que
uma das coisas que ele sabe é que a história foi preservada
em faixas de seda pintadas.
E, enquanto Zeel e Norris se inclinavam mais uma
vez sobre os tesouros antigos que Shaaran estava a de-
senrolar um a um, Rowan pegou no pedaço de pergami-
nho e tocou suavemente nas palavras rabiscadas.
— Nós regressamos, Evan dos Bukshah — disse
ele em voz baixa. — Encontramos uma forma de o fa-
zermos. Tal como você sabia que iria acontecer.
24
ENCONTROS

E foi assim que Rowan, Zeel e Shaaran deixaram


os bukshah a banquetear-se e desceram a Monta-
nha, transportando consigo mais do que tinham
levado no início da sua viagem.
Eles levavam duas caixas de sedas em vez de uma.
Levavam um conhecimento que enchia os seus corações
ao ponto de estes parecerem estar prestes a rebentar. E
levavam os ossos dos três homens que tinham morrido na
caverna — Bron, o guerreiro, Fliss, o guardião das sedas, e
Evan, o guardião dos bukshah.
— Os nossos antepassados eram assim tão pareci-
dos conosco? — perguntou Shaaran a Rowan em voz
baixa, enquanto os dois caminhavam juntos.
— Muito parecidos — respondeu ele. — Tão pare-
cidos que eu pensava que estava a ver o nosso futuro. Mas
nós estávamos apenas a seguir as pegadas deles.
— E o povo das sombras? Os que você viu no ex-
terior da caverna, cheios de fome? Eles eram...?
Embora o sol brilhasse, Rowan sentiu um arrepio.
— Eu acho que eles eram muito, muito mais anti-
gos — disse ele com relutância. — Acho que eles eram al-
guns membros do nosso povo que sobreviveram ao pri-
meiro Tempo Frio. — Ele sentiu outro arrepio. A recor-
dação desses rostos familiares, torturados, ainda o per-
seguia.
Shaaran mordeu o lábio e, durante bastante tempo,
eles caminharam em silêncio. Depois, ao fim de algum
tempo, ela falou novamente.
— Rowan, a Sheba lhe disse que só você consegui-
ria liderar a busca. Já pensou porquê?
Rowan acenou afirmativamente a cabeça.
— Porque eu sou o guardião dos bukshah, e eu amo
os animais e confio neles, tal como eles me amam e con-
fiam em mim. Porque eu sou um sonhador, e o medalhão
aceita-me. Porque eu tenho... muita prática de pensar em
novas formas de resolver problemas...
Ele engoliu em seco.
— E porque... porque você, o Norris e a Zeel eram
meus amigos e estavam dispostos a seguir-me — acres-
centou ele em voz baixa. — Porque, para que a busca ti-
vesse êxito, todos vocês eram necessários.
Shaaran inclinou a cabeça.
— Eu estava a pensar — disse ela — se parte do
motivo por que eu e Norris formos chamados foi o fato
de sermos parecidos com os outros dois. Os dois de há
muito tempo. Tal como você é parecido com o Evan.
— Tem razão — Rowan hesitou. — E talvez tam-
bém fosse porque você e o Norris representavam as duas
metades dos habitantes de Rin. E eu... era a ponte entre os
dois.
— E eu? — perguntou Zeel secamente, aproximan-
do-se deles. — Qual foi o meu papel?
— Você representava os Viajantes, os Maris e tal-
vez também os Zebak — disse Rowan. — Você era a tes-
temunha.

***
O caminho foi longo e difícil, mas os companheiros
sentiam-se muito felizes. A sua volta, a neve estava a der-
reter, e a terra despertava de novo depois do Inverno
longo e frio.
Quando chegaram ao local onde a água corria até
Rin vinda do topo da Montanha, eles encontraram três
figuras ajoelhadas a encher os seus cantis no lago.
Jonn. Jiller. Allun.
Rowan ficou a olhar para eles, incrédulo.
Os três que estavam à beira do lago ergueram os
olhos, e sorrisos de alegria pura espalharam-se pelos seus
rostos. Jiller atirou-se, com um grito, para os braços de
Rowan. Allun e Jonn fizeram o mesmo e, ao fim de pouco
tempo, os quatro companheiros faziam parte de um alegre
círculo.
— Como é que podem estar aqui? — exclamou
Rowan. — Como é que podiam saber que era seguro re-
gressar?
— Não sabíamos — respondeu Allun alegremente.
— Pelo contrário. Na verdade, nós pensávamos que está-
vamos a entrar na boca da morte.
— Quando o Allun nos disse que tinha visto a Zeel
lá em cima, a dirigir-se apressadamente para Rin, receamos
que algo de novo e muito grave tivesse acontecido — dis-
se Jonn. — Não podíamos prosseguir a viagem. Tivemos
que voltar para trás.
— A Marlie e a Annad também voltaram — disse
Jiller. — Elas estão na aldeia, com a Lann e a Bronden.
Nós viemos à sua procura... para os ajudar, se pu-
déssemos. Embora agora seja óbvio que não precisam de
qualquer ajuda.
— A Lann? A Bronden? — perguntou Rowan an-
siosamente. — Elas estão...?
— Estão as duas bem — disse Allun. — A Bron-
den ainda está muito fraca, mas está a recuperar... embora
seja possível que venha a ter uma recaída quando des-
cobrir que a Lann fez fogueiras com toda a mobília da
aldeia. Ela tem uns dias muito ocupados à sua frente.
Rowan olhou para Zeel.
— Madeira velha, inútil? — murmurou ele.
Zeel encolheu os ombros. Mesas e cadeiras não
significavam nada para ela.
— E, a propósito, Rowan — prosseguiu Allun. —
A Sheba diz que o medalhão que te deu pode parecer um
metal vil, mas ele é feito de ouro puro, e ela está a contar
que o devolva assim que regressar. Ela diz que, inde-
pendentemente do que possas pensar, você nunca poderia
ocupar o seu lugar.
— Folgo muito em ouvir isso — disse Rowan com
sinceridade.
— Como pode perder tempo com disparates a res-
peito de mobílias e da Sheba, Allun! — repreendeu-o Jil-
ler. — O Tempo Frio está a chegar ao fim! Podemos ver a
prova disso por todo o lado à nossa volta! Estes jovens
corajosos conseguiram salvar-nos a todos. Mas como?
Como?
Ela virou-se para Rowan, e o seu rosto manchado
de lágrimas irradiava felicidade e orgulho.
— Conte-nos! — suplicou ela. — O que aconteceu
na Montanha? O que descobriram que alterou tanta coisa,
tão depressa? Onde estão os bukshah?
Rowan sentia-se demasiado emocionado para con-
seguir falar. E, em todo o caso, ele mal sabia por onde
começar.
— Sem dúvida que, a seu tempo, eles nos contarão
tudo — disse Jonn calmamente, colocando a mão no om-
bro de Rowan. — Já sabemos o mais importante. Estas
quatro almas estão salvas. O longo Inverno terminou. E
os habitantes de Rin podem voltar para casa.
Os olhos de Rowan cruzaram-se com os de Norris,
Shaaran e Zeel. Ele pensou em tudo o que eles tinham
para contar. Pensou na pequena e triste trouxa que trazia e
no local onde a enterraria, com honra, debaixo da grande
árvore de Rin. Pensou no sofrimento, na dor, nos erros e
no desperdício de séculos.
Depois pensou no futuro e sorriu.
— Sim — disse ele. — Os habitantes de Rin po-
dem finalmente voltar para casa.

Digitalização: Yuna

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