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Tradução de Maria João Bento

Título original: Rowan and the Keeper of the Crystal

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
ÍNDICE

1 A Mensagem
2 O Cristal dos Maris
3 O Selecionador
4 A Viagem
5 Perigo
6 Veneno
7 O Guardião
8 Os Candidatos
9 O Enigma
10 A Ilha
11 O Início
12 Longe da Vista
13 Água de Prata
14 Lagoa Faminta
15 O Plano
16 O Lutador
17 O Mais Temível Medo
18 A Lua da Escolha
19 Uma Gota
20 O Dissimulado
21 A Escolha
22 Terror
23 Despedidas
1
A MENSAGEM

S ete palavras, escritas a tinta negra num pergaminho


com cheiro a óleo e peixe. O Cristal enfraquece. O Sele-
cionador foi convocado...
O sol aquecia suavemente o vale de Rin no dia em
que a mensagem chegou. Uma brisa ligeira agitava os re-
bentos das árvores de hoopeberry no pomar.
Rowan encontrava-se junto da lagoa dos bukshah,
inalando a fragrância doce trazida pelo vento. Enquanto
os potentes animais que ele guardava bebiam, olhou para
o topo da Montanha revestido de neve que se erguia aci-
ma do vale. Podia ouvir o som dos pássaros, dos insetos
sobre a vegetação, das pessoas a trabalhar nas hortas e nos
campos. Podia ouvir o borbulhar do riacho, atravessando
a aldeia e estendendo-se pelas encantadoras colinas verdes
atrás dele, em direção ao mar.
Para Rowan, aquele parecia um dia como os outros.
No entanto, o mensageiro estava já muito próximo. Já não
era apenas um ponto azul ao longe. Avistava já a aldeia
enquanto avançava, meio a correr, meio tropeçando pelas
colinas, seguindo o riacho como uma linha de vida. As
suas mãos apalpavam já o interior da capa, sentindo o
pergaminho que transportava.
Dentro de alguns momentos, o sino da praça da
aldeia começaria a tocar, assinalando a sua chegada, con-
vocando uma assembléia.
E, depois deste dia, nada voltaria a ser igual para
Rowan.
***

Rowan juntou-se à população na praça, pondo-se


em bicos dos pés para ver melhor o mensageiro. Viera a
correr, tal como os outros, quando ouviu o sino. Via agora
Lann, a pessoa mais velha da aldeia, a receber o pergami-
nho das mãos do exausto homem dos Maris e a lê-lo em
voz alta.
Sete palavras.
O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado.
Mais tarde, Rowan iria recordar-se de tudo como
um sonho. A voz de Lann, alta na praça. A mão enrugada
a segurar o pergaminho. O sol do meio-dia filtrando-se
por entre as árvores. A multidão surpreendida, murmu-
rando entre si.
As brisas suaves e aromas adocicados do vale de
Rin moviam-se à sua volta. Estava rodeado de pessoas
que conhecia desde que nascera. Pássaros familiares can-
tavam nas árvores acima da sua cabeça. Não sentia medo
nem nenhum alerta interior. Tudo o que sentia era inte-
resse, e prazer, porque algo de inesperado acontecera, in-
terrompendo a rotina do dia a dia. Um visitante desco-
nhecido, vindo da longínqua costa, da terra dos Maris. E
uma mensagem ainda mais estranha.
O Cristal enfraquece...
— O que acha que significa? — sussurrou Rowan
para Jiller, sua mãe, muito perfilada junto dele.
Ela não respondeu. Mas, quando olhou para ela,
para repetir a pergunta, as palavras morreram-lhe nos lá-
bios. O rosto de Jiller estava isento de cor e os seus olhos
fixavam o pergaminho na mão de Lann. Atrás dela, Jonn
Forte do Pomar deu um passo e colocou um braço à volta
dos ombros dela. A boca estava severa.
Rowan percebeu então que a mensagem era de ex-
trema importância. Mesmo assim, não fazia idéia que era
algo que o iria afetar.
Sentindo uma curiosidade crescente, fitou de novo
a figura exausta, sentada nas pedras rijas da praça da aldei-
a. Era a primeira vez que via um homem dos Maris. E ne-
nhuma das histórias contadas pelos aldeãos regressados de
viagens à costa, nenhuma das imagens que vira na casa
dos livros, o tinham preparado para a realidade. Sabia que
não devia fixar o olhar, mas era difícil não fazê-lo.
O homem estava vestido dos punhos aos tornoze-
los com umas vestes justas azuis que reluziam à luz do sol.
Nos pés, umas botas leves. Tinha tirado o capuz e luvas
que usava quando entrou na aldeia. Agora, todos conse-
guiam ver a pele reluzente, desprovida de pêlos e a-
zul-esbranquiçada da cabeça, rosto e pescoço, os olhos
lisos e vidrados, a boca branca e as pequenas mãos de de-
dos unidos por uma membrana.
Permanecia sentado, ofegante, aos pés de Lann.
Esta baixou os olhos para ele, apoiando-se na sua bengala.
— Como se chama, homem de Maris? — pergun-
tou, abruptamente.
— Perlain, do clã dos Pandellis.
— Há quanto tempo deixou a costa, Perlain?
— Há quatro sóis — respondeu o homem. A voz
era monótona e rouca, e levou a mão à garganta ao falar,
como se as palavras o ferissem.
Um murmúrio de surpresa ergueu-se da multidão.
As pessoas de Rin necessitavam pelo menos de uma se-
mana para viajar entre o vale e a costa. Aquele homem
deve ter corrido grande parte do percurso e dormido
muito pouco. Não admirava que estivesse exausto. Enca-
raram-no com novo respeito.
— Chegou em tempo muito curto — disse Lann.
— Bom trabalho, Perlain dos Pandellis.
— Há um grande perigo — disse com dificuldade o
homem Maris. — O Selecionador...
— O Selecionador de Rin escutou o chamamento e
irá obedecer — disse Lann calmamente. — Sempre existiu
perigo. Mas nunca, em trezentos anos, deixamos de res-
ponder ao chamamento. O Selecionador e o Primogênito
partirão contigo para a costa ao pôr-do-sol.
O coração de Rowan deu um salto. Perigo! Alguém
ia partir para o seio de um grande perigo. Alguém de Rin.
Mas que perigo seria esse? O que significava tudo aquilo?
Quem era o Selecionador? Selecionador de quê?
Perlain abanava a cabeça.
— Não. Não... podemos demorar tanto tempo.
Cada hora... cada minuto... é precioso! — A garganta mo-
veu-se ao engolir dolorosamente.
— Viajou demasiado tempo sob o sol e também
sob a lua. Precisa de descansar. Precisa se molhar. Ou
morrerá, Perlain — disse Lann.
— Não importa. — O homem Maris umedeceu os
lábios ressequidos. — A morte de um... não é importante.
— Essa pode ser a sua opinião, mas não a nossa —
respondeu Lann, com firmeza. — Além do mais, os nos-
sos têm de se preparar para a viagem. O Selecionador par-
tirá ao pôr-do-sol. — Levantou o tom de voz. — De a-
cordo?
Houve um momento de silêncio. Rowan olhou
com curiosidade para o rosto de Lann. Franzia o cenho,
fitando alguém na multidão. Alguém próximo de Rowan.
Virou a cabeça para ver quem era. A sua volta, ou-
tras crianças e a maioria dos adultos faziam o mesmo. Mas
as expressões de alguns adultos eram sérias e concentra-
das.
Eles sabem, pensou Rowan. Eles sabem.
— De acordo? — repetiu Lann. — O Selecionador
concorda?
Rowan sentiu um movimento quando alguém a-
vançou para o centro da praça.
— Sim — disse uma voz calma. — Concordo. Par-
timos ao pôr-do-sol.
O homem Maris olhou ansiosamente na direção da
voz e depois baixou a cabeça, tocando com a testa no
chão.
— Selecionador de Rin que tem o destino dos Ma-
ris nas tuas mãos, saúdo-te em nome do Guardião do
Cristal — disse. — Sou teu servo. Sou a areia sob os teus
pés. A minha vida é tua.
Rowan pestanejou e conteve a respiração. Não a-
creditava no que se passava. Não conseguia compreender.
Não pode ser! Eu teria tido conhecimento. Deve
haver algum erro, pensou, perdido.
Mas não havia nenhum erro.
A pessoa que aceitava a reverência do homem Ma-
ris, a pessoa que a mensagem apelidara de Selecionador, a
pessoa prestes a partir para o perigo desconhecido, era
Jiller, a sua mãe.
2
O CRISTAL DOS MARIS

— O que se passa? Mãe, diga-me!


Rowan agarrava no braço de Jiller ao dirigi-
rem-se apressadamente para casa. Mas ela
continuava a andar, de cenho franzido e em silêncio.
— Espere, coelho magricelo — disse Jonn Forte
para ele. Fez sinal com a cabeça para as pessoas na praça,
atrás deles. — A sua mãe não falará até estarmos a sós.
Seja paciente. — A sua voz era confiante como sempre,
mas Rowan percebia pela sua expressão que estava preo-
cupado e abalado.
Jonn e Jiller caminharam rapidamente. A irmã mais
nova de Rowan, Annad, corria na frente deles. Annad
pouco percebeu do que se passara na praça. Ela e os seus
amigos estiveram demasiado ocupados a sussurrar uns
para os outros e a observar o estranho homem Maris para
prestar atenção a qualquer outra coisa.
Rowan arrastava-se atrás, a mente turbulenta com
perguntas, pensamentos e receios.
Tudo o que compreendera até agora era que a mãe
tinha de ir a Maris. Que ele, o seu filho primogênito, a ti-
nha que acompanhar. E que um terrível perigo os aguar-
dava no final da viagem.
Mas, que perigo? E, por que tinham sequer que ir?
Maris. Rowan tentou recordar tudo o que sabia. Timon, o
professor, contara às crianças muitas narrativas sobre a
terra na costa. Narrativas de serpentes do mar, de batalhas
e tempestades — e parte da história do estranho povo
Maris.
Subitamente, Rowan recordou-se de um dia especi-
al sob a árvore-escola. Um dia quente de Verão.
Timon estivera a mostrar-lhes imagens de um livro.
Imagens do povo Maris. Para Rowan, eram todos iguais,
exceto que uns usavam roupas prateadas, outros azuis e
alguns verdes.
— Os Maris são um povo secreto — dissera Ti-
mon, apontando para as imagens uma a uma. — Embora
tenham relações comerciais conosco e com outros do ou-
tro lado do mar, não abrem os corações a estranhos e
pouco se sabe em relação a eles.
— Mas algumas coisas sabemos. Os Maris divi-
dem-se em três tribos, ou clãs: o clã prateado, os Umbray,
o clã verde, os Fisk e o clã azul, os Pandellis. Em tempos
remotos, houve guerras terríveis entre os clãs. Conta-se
que, todas as noites, o mar estava tingido de sangue e as
serpentes alimentavam-se da carne dos Maris.
— Mas há mil anos que os clãs estão unidos sob o
poder de um só líder... o Guardião do Cristal. O primeiro
Guardião foi um homem chamado Orin, o Sábio. Foi ele
quem encontrou o Cristal, um tesouro de grande poder e
mistério, numa gruta sob o mar de Maris...
Naquele dia, Rowan estava cansado. Fora desper-
tado a meio da noite por um pesadelo e levara muito
tempo a voltar a adormecer.
Pelo que estava meio adormecido debaixo da árvo-
re-escola, escutando apenas parcialmente o que Timon
dizia.
— Rowan dos bukshah! O que acabei de dizer?
A voz de Timon acordou-o repentinamente.
— Ah... ah... existem três clãs... — gaguejou, sen-
tindo-se corar. — O líder deles é... o Guardião do Cristal.
As outras crianças riram-se e trocaram cotoveladas.
Sabiam como Rowan era tímido. E, habitualmente, estava
sossegado e era bom nas aulas. Acharam engraçado por
ele ter sido apanhado.
Timon franziu o cenho para eles e prosseguiu.
— Muito bem. Antigamente havia um quarto clã, o
clã dos Mirril. Eram peritos em venenos. Criaram mil e
um venenos mortais e, para cada veneno, um antídoto.
Mas os Mirril foram todos destruídos quando os Zebak
invadiram a costa, há trezentos anos.
Olhou de novo para Rowan, os olhos cinzentos
penetrantes.
— O que mais aconteceu há trezentos anos, Ro-
wan?
— Os nossos antepassados vieram para este local e
Rin teve a sua origem — disse Rowan em voz baixa.
Timon anuiu.
— Correto. Os Zebak tentaram muitas vezes inva-
dir a costa desta zona. Mas, há trezentos anos, vieram com
um exército de escravos guerreiros acorrentados aos re-
mos das embarcações. Esses escravos foram os nossos
antepassados.
O rosto de Timon estava sério ao continuar.
— Na manhã em que os Zebak desembarcaram,
todos os clãs Maris estavam reunidos nos seus edifícios de
assembléia separados. Não fora deixado ninguém cá fora,
de guarda. Ninguém sabia que o inimigo chegara. Os Ze-
bak alcançaram o edifício dos Mirril e atiraram um fogo
explosivo para o interior. Houve um estrondo enorme.
Colunas de chamas dispararam para o céu. O edifício ruiu
e incendiou-se. Todos morreram. Não restou vivo nem
um único elemento do clã Mirril. Nem homem, nem mu-
lher, nem criança.
Timon concentrava agora a atenção de todos. As
crianças sentadas sob a árvore-escola estavam em silêncio.
Todos conheciam bem o terror do fogo.
— Os nossos antepassados presenciaram isto —
prosseguiu Timon. — Assistiram às gargalhadas dos Ze-
bak enquanto o fogo se desenvolvia. O horror desse mo-
mento foi uma das razões por que se revoltaram por fim
contra os Zebak. Partiram as correntes e uniram-se ao
povo deste território para combater e derrotar o inimigo.
Foi o dia mais importante na nossa história.
Depois, Timon fez uma coisa estranha. Fechou o
livro e inclinou-se para a frente. Rowan ficou subitamente
com a impressão que Timon se dirigia especificamente a
ele.
— Nunca nos deveremos esquecer — disse Timon
lentamente, os olhos fixos nos de Rowan — que, desde
então, o povo Maris tem sido vital para a nossa segurança.
Sem eles, os Zebak teriam regressado para nos reclamar,
há muitos anos atrás. O objetivo permanente dos Zebak é
apoderarem-se deste território, e a sua astúcia cresce em
cada ano que passa. Nunca podemos perder a confiança
dos Maris, seja a que custo for.
Pouco depois, a lição terminou. Pensando no as-
sunto mais tarde, Rowan decidiu que fora pateta ao pensar
que Timon falava com ele em particular. Por que razão
haveria aquela história de ser mais especial para Rowan do
que para qualquer outra criança de Rin?
Mas agora, com a mensagem dos Maris ainda eco-
ando na sua mente, sentia de modo diferente.
Timon estava a falar especialmente para mim na-
quele dia, pensou, o coração acelerando. Timon sabia que,
um dia, chegaria a mensagem dos Maris. Avisava-me que
não devia lutar contra ela. Que tinha de cumprir a minha
obrigação.
Que obrigação?
Tinha algo a ver com o Cristal. O lendário Cristal
dos Maris.
O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado.
“Poucas pessoas à exceção dos Maris compreen-
dem como é poderoso e misterioso o Cristal. Muito pou-
cas”, dissera Timon uma determinada ocasião.
De novo, os seus olhos cinzentos pareceram mo-
ver-se na direção de Rowan.
Rowan abrandou o passo. Sim. O que estava em
jogo era o Cristal. Teria Timon dito mais alguma coisa a
esse respeito?
Apenas uma coisa. E dissera-o em tom grave, como
se fosse muito importante.
“Os Maris vivem muito tempo. Muito mais do que
nós de Rin. E os Guardiães atingem uma idade superior
em relação aos outros, devido ao poder do Cristal. Apesar
de tudo, há sempre uma altura em que cada Guardião sabe
que a morte está próxima. Nessa altura, o Cristal começa a
perder o seu fogo e força. Deve então ser escolhido um
novo Guardião, para ocupar o lugar do anterior. O novo
Guardião tem que se juntar ao Cristal antes do velho
Guardião falecer, para que não seja perdido o seu poder”.
O Cristal enfraquece...
Rowan sentiu um nó na garganta. Percebeu subita-
mente o significado da mensagem. Lá muito longe em
Maris, o Guardião do Cristal estava a morrer. E um novo
Guardião tinha de ser escolhido.
Mas por que fora a mensagem entregue a Jiller? Por
que lhe chamara o mensageiro o Selecionador? O que ti-
nha ela, uma mulher de Rin, a ver com o Guardião do
Cristal?
Rowan levantou a cabeça e viu que Jiller e Jonn ti-
nham parado e que esperavam por ele. Tinham chegado
ao caminho que conduzia ao jardim deles e aos campos
para além da casa. Annad já tinha corrido pelo portão,
deixando-o totalmente aberto.
Correu para se juntar a eles.
— Vai agora para casa, Rowan — disse Jiller em
tom baixo. — Reúna roupas para a viagem. Roupas quen-
tes, pois vai estar frio em Maris. Depois vá ao campo dos
bukshah e prepare a Estrela. Terá de vir conosco para car-
regar os suprimentos.
Jiller esperou que ele fosse cumprir o que ela pediu,
mas Rowan hesitou.
— Depressa — disse a mãe, severamente. — Par-
timos ao pôr-do-sol.
Rowan permaneceu imóvel.
— Por favor, mãe — disse. — Por que temos que
ir? Como pode ser esse tal... esse tal Selecionador?
— Jiller, tem de lhe contar — pediu Jonn Forte. —
Não pode protelar mais.
Jiller suspirou. Fechou o portão e fitou os campos
cultivados que ondulavam como um mar verde diante de-
la.
— Sou o Selecionador porque nasci para essa mis-
são, Rowan — disse, por fim. — É um dever que tem si-
do transmitido na nossa família há centenas de anos.
— Na nossa família? — Rowan mal acreditava no
que ouvia. — Mas... porquê? Por que nunca soube disso?
Lann sabia. Jonn sabia. Timon sabia. Muitos deviam saber.
— Sentiu uma fúria repentina. — Por que nunca me conta-
ram? — inquiriu.
— É um assunto conhecido por poucos em Rin,
por desejo dos Maris — disse Jonn, pousando uma mão
no ombro de Rowan.
— Talvez já devesse ter lhe contado antes. Mas não
quis te perturbar até ser necessário — afirmou Jiller, ainda
olhando em frente. — Sempre foi um rapaz... que se pre-
ocupava com as coisas, Rowan.
Rowan contraiu-se. Sabia que, se tivesse sido uma
pessoa mais forte e corajosa, a mãe teria partilhado o se-
gredo com ele há muito.
Jiller pareceu compreender o que ele sentia, porque
olhou para ele rapidamente e tocou-lhe na mão.
— Quis proteger-lhe pelo mais tempo possível —
murmurou. — É tudo.
— Bom, chegou a altura de contar a verdade — a-
firmou Jonn Forte. — Agora Rowan tem de ouvir a histó-
ria completa.
3
O SELECIONADOR

F oi assim que, finalmente, caminhando de um lado


para o outro sob as árvores do jardim, Rowan ou-
viu o segredo que a mãe guardara tanto tempo dele.
Quando os Zebak invadiram a costa, no dia que
Timon apelidara o mais importante na história de Rin,
programaram bem a sua chegada. Os seus espiões tinham
informado que o Cristal dos Maris estava a enfraquecer. O
Guardião estava moribundo. Estava prestes a iniciar-se a
Escolha de um novo Guardião.
Os Zebak perceberam que aquela era a altura per-
feita para atacarem. Não só porque os clãs rivais dos Maris
estavam a conspirar para que um dos seus fosse escolhido
como o novo Guardião. Mas também porque o próprio
Cristal estava fraco e não voltaria a fortalecer-se até estar
terminada a Escolha.
Os Zebak sabiam que a Escolha dependia de regras
especiais, estabelecidas por Orin, o Sábio. Orin antecipara
que, quando morresse, cada clã iria exigir que um dos seus
elementos fosse o Guardião. Não queria que o poder do
Cristal se perdesse enquanto os clãs lutavam entre si.
As regras de Orin eram simples. Os Candidatos a
Guardião iriam juntos para a ilha existente no porto dos
Maris. Não para lutar, porque os Maris não apreciavam
grandemente o confronto físico, mas para realizar diversos
testes de inteligência e astúcia. Os Candidatos seriam ava-
liados por um único Selecionador. O Candidato escolhido
no final dos testes seria o novo Guardião do Cristal.
Orin era inteligente e compreendia bem o seu po-
vo. Sabia que o Selecionador tinha de ser alguém em que
toda a gente confiasse. Pelo que decretou que o Selecio-
nador seria sempre do seu próprio clã, o clã de Mirril.
Contudo, em retribuição desta honra, nenhum Mirril po-
deria voltar a ser Guardião do Cristal.
O Selecionador dos Mirril faria a escolha a partir
apenas de três Candidatos — um dos Fisk, um dos Um-
bray e um dos Pandellis. Deste modo, o clã do Seleciona-
dor não teria nada a ganhar ou a perder. A escolha seria
sempre justa.
As pessoas aceitaram a norma de Orin. Manteve-se
inalterada durante séculos — até que algo aconteceu que
nem mesmo Orin poderia ter antecipado.
Os Zebak atacaram, enquanto o velho Guardião
estava às portas da morte. E o seu primeiro ato foi destru-
ir os Mirril.
Não foi fruto do acaso. Não foi por o edifício dos
Mirril se encontrar mais próximo da costa. Mas porque
queriam destruir o clã do Selecionador. Pretendiam evitar
que fosse escolhido um novo Guardião. O Cristal perderia
assim a sua potência para sempre e a vitória seria alcança-
da por eles.
O plano deles quase foi bem sucedido. Havia Can-
didatos à posição de Guardião mas, com todos os Mirril
mortos, não havia Selecionador. Apesar desta crise, com
uma batalha a desenrolar-se na costa Maris, os clãs dos
Fisk, Pandellis e Umbray não chegavam a um acordo para
atribuir a escolha a um deles. Nem permitiram que fosse o
Guardião a escolher, que por sinal estava a morrer e inca-
paz de se deslocar da Gruta da Cristal, onde estava aca-
mado.
Mas os Zebak esqueceram-se de um pormenor: o
Cristal, mesmo enfraquecido, continha dentro de si a sa-
bedoria de várias eras. E o velho Guardião, mesmo mori-
bundo, possuía a astúcia do próprio Orin.
O velho Guardião sabia onde encontrar um Sele-
cionador que o seu povo aceitaria. Voltou-se para os es-
tranhos — os escravos guerreiros que se amotinaram
contra os senhores Zebak e que lutavam lado a lado com
o seu povo. Com ajuda do Cristal, selecionou um homem
para Selecionador. Esse homem era um antepassado de
Jiller e de Rowan. O seu nome era Lieth.
— Assim, enquanto a batalha se travava, Lieth foi
para a Ilha e escolheu o novo Guardião — disse Jiller. —
O Cristal começou a reluzir com uma vida nova e radian-
te. O meu pai contou-me que o seu poder atinge o ponto
máximo quando é escolhido um novo Guardião. O que se
provou verdadeiro nesse dia.
— Logo de imediato, a maré da batalha virou. Os
Zebak foram vencidos e repelidos. Esta terra ficou a sal-
vo. E os nossos antepassados ficaram livres da escravatu-
ra, para darem início a uma nova vida.
— Isso foi há centenas de anos — disse Rowan.
Jiller anuiu.
— Foi. Mas o dever que Lieth aceitou em Maris
naquele dia tem passado pela nossa família desde então.
— É uma grande honra — disse Jonn calmamente.
— Uma grande honra e, ao mesmo tempo, uma
maldição. — O rosto de Jiller estava determinado e pálido.
— Porquê? — perguntou Rowan com ansiedade.
— Por que é uma maldição?
Jiller estendeu a mão para a maçaneta da porta.
— Porque ser um Selecionador em Maris é colo-
carmo-nos num terrível perigo — murmurou. — Trata-se
de um risco de morte.
Virou-se subitamente e tomou o rosto de Rowan
nas mãos.
— Daria tudo para lhe poupar, Rowan. Tudo. Mas
nada posso fazer. Tenho que te levar comigo, para que
ocupe o meu lugar de Selecionador, se eu morrer. Ambos
teremos que enfrentar o que nos espera com coragem.
Ambos. Sozinhos.
Afastou as mãos, voltou-se e correu para dentro de
casa. Rowan seguiu-a. A sua mente estava cheia de confu-
são e medo.
— Porquê, mãe? Por que podemos ficar em perigo?
— gritou. — Por causa dos Zebak? Porque sabem que a
altura para atacar a costa é quando o Cristal está enfraque-
cido?
— Não! — exclamou Jiller. O seu olhar era arden-
te. Rowan retrocedeu. Assustava-o ver a mãe assim. Era
habitualmente tão calma e destemida.
— Jiller! — Jonn Forte deu um passo em frente. —
Vamos sentar-nos. Vamos sentarmo-nos, comer e beber.
Poderá responder às perguntas de Rowan como devem
ser respondidas. Em paz.
— Não há tempo... — começou Jiller, esfregando
as mãos. Depois, subitamente, cedeu. Os seus ombros
descaíram. Puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. —
Tem razão — disse, suavemente. — A culpa é minha.
Carrego este fardo sozinha há tanto tempo que me é difí-
cil partilhá-lo, agora que chegou a altura. — Abanou a ca-
beça. — O meu pai disse-me a mesma coisa, na sua época.
— O avô escolheu um Guardião? — perguntou
Rowan, sentando-se timidamente ao lado dela. O avô
morrera quando ele era muito pequeno. Rowan recorda-
va-se sobretudo de um sorriso rasgado e gentil, olhos a-
zuis e mãos calosas e rijas devido ao trabalho no campo e
aos animais que esculpia em madeira com uma navalha
pequena e afiada.
Jiller abanou a cabeça.
— Não, o meu pai nunca foi convocado — res-
pondeu.
— O atual Guardião foi escolhido pela mãe dele, a
minha avó. Mas o meu pai sabia que o Cristal iria quase de
certeza perder a intensidade durante o meu tempo. E isso
preocupava-o, bastante.
Jonn colocou pão, queijo e leite sobre a mesa.
— Coma, Jiller — disse. — E você, Rowan, coma
também. Vão precisar de todas as forças nos próximos
dias. Perder refeições não terá qualquer utilidade.
Começaram a comer. Jonn estava certo, pensou
Rowan. Alimentar-se o ajudou de fato. Nem percebera
que tinha tanta fome.
— Quer então dizer que é perigoso ser Seleciona-
dor — disse, com a maior calma possível. — Porquê?
— Porque os Maris não mudaram — afirmou Jonn.
— Os ciúmes entre clãs é como uma loucura. — Pousou
a mão no braço de Jiller. — Conte-lhe o resto, Jiller.
A mãe de Rowan anuiu com relutância e começou a
falar de novo.
— À medida que cada Guardião envelhece, os clãs
Maris preparam-se para a Seleção. Cada clã tem pelo me-
nos um Candidato, treinado ou treinada desde tenra idade
para os testes. Os elementos de cada clã farão tudo, tudo
mesmo, para assegurarem a vitória do seu Candidato. Po-
derão roubar, espiar, enganar e mentir. Poderão mesmo
matar, se suspeitarem que o Selecionador está a favorecer
outro.
Esmigalhou o pão no prato, fitando-o sem ver.
— Muitos membros da nossa família morreram em
Maris. O meu bisavô foi o último. Em luto pelo pai e
cheia de medo, a minha avó, a sua primogênita, teve que
assumir a posição dele como Selecionador enquanto ele
jazia morto na Caverna do Cristal. Dizem que se portou
com muita coragem, apesar de ter apenas quinze anos.
Rowan sentiu o coração a dar voltas. Mas forçou-se
a manter-se em silêncio.
Jiller prosseguiu.
— Ela sempre teve consciência do perigo. Muitos
outros na nossa família morreram nos séculos anteriores,
assassinados por Candidatos ciumentos, ou por espiões
dos clãs. Com muita freqüência, a Escolha tem ocasiona-
do a morte do Selecionador. Veneno. Lâminas afiadas na
cobertura da noite. Corpos envoltos em redes e lançados
ao mar faminto.
Rowan olhou para a mãe horrorizado.
— Mas... isso é uma loucura.
Jonn anuiu.
— Tal como lhe disse. Uma loucura — ecoou. —
Uma loucura que se tem prolongado por um milhar de
anos.
— É a forma de ser dos Maris — suspirou Jiller. —
De nada serve revoltarmo-nos contra isso. Pelo menos
agora os clãs só lutam entre si quando o cristal enfraquece.
Assim que um novo Guardião for escolhido, os Maris u-
nir-se-ão de novo, jurando lealdade e obedecendo ao seu
líder sem questionarem. Sempre foi assim.
Sempre foi assim... Rowan respirou fundo.
— Se ambos formos mortos — disse, num tom de
voz inexpressivo —, isso quer dizer que Annad...?
— Não. — Jiller sorriu, cansada. — O meu único
alento é que Annad é demasiado jovem para ser convoca-
da. Se você e eu morrermos, Rowan, o dever passa para
outro. Para Timon. A família dele é a seguinte na linha.
Timon. Por isso os olhos de Timon estavam tão sé-
rios ao falar do Cristal dos Maris.
Jonn afastou o prato e ergueu-se.
— Bom — disse —, já conversamos, já comemos e
agora temos de lançar mãos ao trabalho. Se vamos partir
ao pôr-do-sol, há muito a fazer.
Jiller olhou para cima, surpreendida.
— Vamos? — perguntou. — Não virá conosco, não
é, Jonn?
— Claro que sim — respondeu ele. — Pensou que
permitiria que você e Rowan fossem sozinhos?
Jiller abanou a cabeça.
— Jonn, este é o meu dever e o de Rowan. Não há
necessidade de se por também em perigo. Não há neces-
sidade.
— Há necessidade, sim — disse Jonn gentilmente.
— Sabe isso. Também sabe que, se o pai de Rowan fosse
vivo, os acompanharia à costa. Para ficar com Rowan en-
quanto você participa na Escolha, nem que seja para isso.
Tem de me conceder o mesmo direito.
— Estamos noivos, ainda não somos casados. A-
gora, talvez... — a voz de Jiller tremeu e virou a cara.
Rowan sentiu a respiração contida na garganta.
Jonn agarrou na extremidade da mesa, o olhar duro.
— Não diga essas coisas — disse, em voz alta. —
Vai correr tudo bem. Ficaremos em segurança, tal como
Rowan. Farei tudo por isso.
As palavras eram corajosas. Mas Rowan sabia que
Jonn, apesar de toda a sua força, não poderia os proteger
contra o que estavam prestes a enfrentar. Ninguém os po-
dia proteger.
A voz da mãe ecoou na sua mente. Ambos teremos
que enfrentar o que nos espera com coragem. Ambos. Sozinhos.
4
A VIAGEM

P artiram assim que o sol se pôs. Poucos os viram


partir. Apenas Timon e a velha Lann se deslocaram
ao limite da aldeia para se despedirem.
Annad iria ficar com Marlie, a tecedeira, enquanto
Jiller e Rowan estavam fora. Ficaria aí em segurança e fe-
liz. Para além de que se sentiria importante, pois iria cui-
dar dos bukshah no lugar de Rowan.
— E se... — murmurara Jiller para Marlie. — Se
Rowan e eu não voltarmos...
— Cuidarei de Annad como se fosse minha — dis-
se Marlie rapidamente. — Nada receie. Mas, Jiller... vocês
vão voltar.
A velha Lann fez eco destas palavras ao despedir-se
deles.
— Vocês vão regressar — disse, o rosto forte e
enrugado não demonstrando o receio que talvez sentisse.
— Pelo menos um de vocês regressará. A convocação
chegou tarde. O homem Maris contou-me que o Guardião
está ficando débil muito rapidamente. Não haverá tempo
para vir buscar a Rin outro Selecionador. O que, sem dú-
vida, Timon agradece.
Timon baixou a cabeça.
— Não é bem assim. Se pudesse, tomava o lugar de
Jiller. Mas os Maris não me aceitarão como Selecionador
enquanto ela e Rowan forem vivos.
Lann olhou para Perlain, que aguardava impacien-
temente junto ao riacho.
— Os Maris já não são o que eram — afirmou. —
Atados de mãos e pés por regras e obedecendo apenas aos
costumes antigos, as pessoas não aprendem nada. Os
Guardiães velam pelo Cristal, mas já não o usam como
antigamente. Temem novas idéias. Não querem mudar.
Não querem crescer. Mas os Zebak tornam-se mais astu-
tos em cada ano que passa.
Franziu fortemente o cenho.
— Peço-lhe, Jiller, e a você, Rowan dos bukshah,
que, quando tiverem que cumprir o vosso dever, escolham
com sensatez e ponderação.
— Vou tentar — murmurou Jiller.
Rowan engoliu em seco e anuiu.
Lann inclinou-se para a frente.
— E tenham cuidado — recomendou, num sus-
surro. — Aqueles demônios dos Maris vão estar de olho
em vocês a todo o momento. Agora vão. Os nossos pen-
samentos e confiança estarão convosco.

***

Há anos, tal como qualquer criança de Rin, que


Rowan desejava visitar a costa. Ansiara por observar o
grande oceano, reluzente, em movimento, azul até onde se
conseguia ver.
Imaginara-se a olhar para o misterioso povo Maris,
de pele pálida, navegando os seus barcos para onde o sol
nascia, deslizando como peixes através das ondas no calor
do meio-dia, remendando as redes ao entardecer. Em se-
gurança em casa no seu vale verde, estremecera com o
medo agradável ao pensar nas mandíbulas enormes, cinti-
lantes e gotejantes das serpentes marinhas, caçando as
presas sob o luar.
Tantas imagens que vira e tantas histórias que es-
cutara sobre este local. Desejava ardentemente ver tudo
com os próprios olhos.
Pensara que viajaria para a terra dos Maris numa
das deslocações comerciais da aldeia. Todos os anos um
grupo de aldeãos partia entusiasmado. Com eles iam qua-
tro ou cinco animais da manada dos bukshah, puxando
carruagens repletas de queijo, fruta, vegetais, lã cardada
dos bukshah e outros bens.
Rowan escapava sempre do seu trabalho nos cam-
pos dos bukshah para vê-los partir. E três ou quatro sema-
nas depois, juntava-se aos outros habitantes para lhes dar
as boas-vindas.
Se as transações comerciais tivessem corrido bem,
os artigos de Rin teriam desaparecido das carruagens. Em
seu lugar, haveria peixe seco, frascos de óleo, embalagens
de sal e esponjas.
Os aldeãos que viajaram mostrariam as pequenas
coisas que compraram para si e para os amigos: ornamen-
tos estranhos e bonitos, esculpidos em madeira e madre-
pérola, biscoitos pequenos, duros e matizados que sabiam
a mar, cintos em pele de peixe, colares com pequenos
cristais. Rowan escutava as suas histórias com entusiasmo
e inveja.
Um dia, disse a si mesmo, terei idade e força sufi-
ciente para ir à costa. Um dia...
Mas esse dia chegara muito mais cedo do que ante-
cipara. E chegara de uma forma que o chocara. Por um
motivo que jamais imaginara.
***

Os dias e as noites passaram. Era uma viagem lon-


ga. Para além de ser dura, porque viajavam de noite e a-
pressadamente. Percorrendo os caminhos sinuosos na es-
curidão, seguindo primeiro o riacho e depois o rio que
conduzia ao mar, todos eles ficaram exaustos. Embora
descansassem o mais possível durante o dia, era difícil
dormir profunda e longamente com o sol brilhante no
céu.
Viajavam de noite por causa de Perlain, o homem
Maris. Longe da umidade do mar, a sua pele macia secava
e estalava. O sol do interior, mesmo naquela estação mais
temperada, queimava-o.
Ele não lhes agradeceu a atenção. Disse-lhes que
não o deviam poupar. Disse que o tempo era demasiado
precioso para ser desperdiçado. Mas, após três noites de
caminhada, sentia-se demasiado cansado para continuar a
argumentar. Cingiu-se ao silêncio.
A noite, seguia na frente deles, os pés suaves no
terreno, as vestes azuis brilhando ao luar. Durante o dia,
molhava-se no rio enquanto eles dormiam na margem.
Uma tarde, quando se encontravam próximos do
final da viagem, Rowan despertou de um sono intranqüilo
e viu Perlain sair de dentro de água, pingando, sentan-
do-se no solo.
As sombras eram extensas. Rowan sabia que em
breve seriam horas de comer e de partirem de novo. Mas
Jiller e Jonn continuavam a dormir. Até Estrela dormitava.
Sob impulso, Rowan levantou-se e aproximou-se do ho-
mem Maris.
Perlain viu-o chegar. Os seus olhos planos não re-
velavam nem surpresa nem agrado.
Rowan pensou que poderia conversar com Perlain,
fazer-lhe perguntas sobre Maris. Mas descobriu agora que
não sabia por onde começar. Olhou para ele sem conse-
guir falar, muito consciente da estranha aparência do indi-
víduo, do seu cheiro estranho a peixe.
— Dormiu bem, primogênito do Selecionador? —
perguntou Perlain, educadamente.
— Sim, obrigado — mentiu Rowan. — E você?
Perlain encolheu os ombros e os seus lábios finos
desenharam um sorriso.
— De manhã já estarei em casa — disse, simples-
mente. Olhou para o céu.
— Está na altura do Selecionador acordar — afir-
mou. Era evidente que desejava que Rowan o deixasse só.
Rowan mordeu o lábio.
— Perlain — disse, repentinamente. — O Cristal
de Maris. Pode falar-me sobre ele?
Perlain olhou para ele.
— Sou apenas o mensageiro do Guardião. Não
conheço todos os segredos do Cristal.
— Não quero saber os segredos — afirmou Ro-
wan. — Apenas as coisas que todas as pessoas em Maris
devem saber. Até nós em Rin sabemos um pouco. O
Cristal foi encontrado há muito tempo atrás por um ho-
mem chamado Orin, o Sábio. Eu sei isso. Mas não sei
onde foi encontrado, ou como. Não me pode contar pelo
menos isso, por favor?
Perlain pareceu ponderar por instantes. Depois,
lentamente, anuiu.
— Vou contar-lhe o que sei — disse. Estendeu o
olhar sobre o rio.
— Orin andava à pesca, de forma imprudente,
quando o sol se punha — começou. — A lua cheia exibi-
a-se no céu. A Grande Serpente, a mãe de todas as outras
serpentes do mar, ergueu-se das águas negras, atacou a
embarcação de Orin e perseguiu-o até à Ilha, no porto.
Rowan estremeceu. Na casa dos livros havia uma
imagem da Grande Serpente dos Maris. Sempre provocara
nele um temor imenso. Uma besta enorme, retorcida e
escamosa, com a cabeça de um dragão e o corpo de uma
cobra gigantesca, erguendo-se do mar. Uma embarcação
com elementos do povo Maris aos gritos, de mãos nos
ouvidos, esmagada por entre as terríveis mandíbulas gote-
jantes. Perlain sorriu levemente e prosseguiu.
— Movido pelo terror, Orin fugiu para uma gruta
e, aí, mergulhou num túnel sombrio que conduzia muito
abaixo do nível do mar. Numa caverna pequena e rocho-
sa, encontrou o Cristal. Quando lhe tocou, começou a
brilhar... como se uma centena de luzes de arco-íris esti-
vessem enclausuradas no seu interior. Permaneceu na ca-
verna toda a noite e, na manhã seguinte, levou o Cristal
para terra.
— As pessoas perceberam de imediato que o Cris-
tal era um grande prodígio, embora, naquele tempo, nin-
guém se percebesse o seu verdadeiro poder. Não tardaram
a verificar que só brilhava para Orin. E perceberam que
Orin fora mudado por ele. Subitamente, começou a ver
coisas que eles não viam. A sentir o peixe abaixo da super-
fície do mar. A sentir a aproximação de serpentes. A sa-
borear o vento e a antever a aproximação de tempestades.
Mesmo a ver no interior do coração das pessoas.
— E Orin sofreu modificações de outra ordem.
Antes de encontrar o Cristal, era um homem com ódio
aos outros clãs que não o seu. Contudo, agora, mesmo
com o seu clã a pedir-lhe que usasse o seu poder para des-
truir os seus rivais, nunca o fez. Partilhou com todos o
conhecimento e sabedoria do Cristal.
— Quer dizer que se tornou o líder dos Maris —
interrompeu Rowan. — O primeiro Guardião.
— Sim. Pelo poder do Cristal — disse Perlain. —
Depois, tudo aconteceu como ele disse que aconteceria.
Assim que as pessoas se dedicaram à construção, planeja-
mento e armazenamento de alimentos, em lugar de se
guerrearem entre si, a nossa nação prosperou. Seguiram-se
outros Guardiões a Orin, cada um deles escolhido de a-
cordo com as regras que estabeleceu. E o Cristal...
— Sim? — perguntou Rowan ansioso. — O que
tem o Cristal?
— Com os anos, descobriu-se que o Cristal era
mais, muito mais do que até Orin supusera.
Perlain hesitou e depois prosseguiu, escolhendo
com prudência as palavras.
— O Cristal não se limita a dar. Também recebe e
guarda. Contém agora todo o conhecimento dos Maris.
Quando um velho Guardião morre, todas as suas apren-
dizagens e experiências passam para o Cristal. E deste,
para o novo Guardião. Pelo que nada se perde. Tudo é
recordado.
— Isso quer dizer que cada Guardião é mais sábio
do que os Guardiões do passado! — exclamou Rowan. —
Mais sábios e mais poderosos.
— É o que se diz.
— Não admira então que o lugar de Guardião seja
tão pretendido — disse Rowan. — Todas as pessoas de
Maris devem desejar ser escolhidas como Candidatas.
— Oh, não — respondeu Perlain suavemente. —
Nem todas. Eu, por exemplo, não podia pensar em nada
que me interessasse menos.
Então, parecendo subitamente sentir que dissera
demasiado, pôs-se de pé e afastou-se.
Rowan mirou o rio. A água corria veloz, transpor-
tando paus e folhas com ela, deslocando-se interminavel-
mente em direção ao oceano.
Amanhã, pensou Rowan, estaria para onde aquela
água corria. Estaria no local onde o rio se encontra com o
mar.
Amanhã, estaria em Maris.
5
PERIGO

D e pés doridos, gelado e exausto até à medula,


Rowan sentiu o vento cortante no rosto, sentiu o
sabor do sal nos lábios e fitou, com olhos lacri-
mejantes, o mar interminável e ondulado. Estendeu a mão
para o calor reconfortante da crina de Estrela.
Estrela mugiu bem fundo na garganta e roçou-se
nele. Tal como Rowan, estava distante de casa. Sentia
saudades do ar doce do vale de Rin e da erva macia dos
campos dos bukshah.
Não lhe agradava o vento gélido que soprava bor-
rifos salgados para os seus pequenos olhos negros e o
cheiro pungente e a peixe para o seu nariz sensível. Não
gostava da areia e das pedras sob os cascos. Não gostava
do estábulo sombrio onde a prenderam, nem das estra-
nhas e silenciosas pessoas que a miravam quando passa-
vam.
— Vai sentir-se melhor quando descansar, Estrela
— murmurou-lhe Rowan, esfregando-lhe o focinho. —
Todos nos sentiremos melhor depois.
Sabia que falava tanto para si como para ela.
O vento soprou com maior intensidade. Estrela
raspava a pata no chão, virando a cabeça para a porta do
estábulo, ao ruído do vento e à areia que aferroava.
— Agora tenho de ir— disse Rowan. — Jonn está
à minha espera. Mas não tardarei a vir ver-te.
Estrela mugiu num tom infeliz.
— Tem aqui água e comida. Vá comer, beber e
depois dormir — pediu-lhe Rowan. — Se dormir, o tem-
po passa mais depressa.
Afagou de novo o pescoço de Estrela e afastou-se.
Desejou que as suas palavras de conforto correspondes-
sem à verdade. Detestava ter de deixar Estrela sozinha,
trancada daquele modo. Mas os Maris não tinham outro
lugar para guardá-la.
Pelo menos aqui ficará em segurança, pensou Ro-
wan, trancando a porta do estábulo e começando a per-
correr a calçada de pedra onde ele e Jonn iam ficar. O es-
tábulo era forte, construído com os tijolos tipo pedra que
os Maris fabricavam para as suas próprias casas. As terrí-
veis criaturas que se arrastavam do mar para caçar pela
calada da noite não conseguiriam derrubar aquelas paredes
sólidas.
Fora Perlain quem lhe dissera isso, sorrindo leve-
mente, a cabeça pendendo para o lado. Os Maris não ti-
nham por hábito relacionarem-se com animais. Perlain
estava divertido por Rowan se interessar tanto por Estrela,
mas era demasiado delicado para o afirmar.
Rowan observou de novo o porto, onde a Ilha se
destacava, negra e coberta de espessa floresta, fustigada
pelas ondas e vento. Não avistava nenhum movimento
nas orlas rochosas, mas era possível que a mãe já lá esti-
vesse, oculta por entre as árvores. Fora levada assim que
chegaram a Maris. E tinham já decorrido umas duas horas,
no mínimo.
Rowan e Jonn foram informados que ela iria pri-
meiro à Caverna do Cristal e depois à Ilha. Iria permane-
cer aí até a conclusão da Escolha.
Rowan mirou o mar reluzente e a forma negra da
Ilha, mas não os estava de fato a ver. Já não avistava a
costa Maris, nem a calçada empedrada em que se encon-
trava, nem as casas arredondadas que se aglomeravam a-
trás dele. Deixou de reparar nos olhares curiosos dos Ma-
ris que por ele passavam.
Na sua mente, estava de volta a Rin, junto à lagoa
dos bukshah. Os animais deambulavam à sua volta. A mãe
trabalhava no campo. Jonn Forte estava no pomar. Tudo
estava calmo. Tudo estava em segurança...
Rowan sentiu uma mão no ombro e deu um salto.
Virou-se e deparou com Perlain, que o fitava com ar in-
quisidor.
— O que faz aqui sozinho, primogênito do Sele-
cionador? — perguntou o homem Maris. — Por que não
está na casa segura, com Jonn do Pomar, onde te deixei?
— Eu... eu fui ver como estava a Estrela, o meu
bukshah — gaguejou Rowan.
Um sorriso cansado rasgou o rosto de Perlain.
— As pessoas de Rin são muito estranhas — sus-
pirou. — Quer ser encontrado amanhã de manhã numa
vala, apunhalado no coração, meu amigo? Esse animal,
esse bukshah, é tão importante para se arriscar a isso?
— Não há motivo para alguém desejar matar-me,
Perlain — afirmou Rowan. — Não fiz nenhum mal a
ninguém. E ainda não sei nada sobre a Escolha. Nem se-
quer vi os Candidatos. Ninguém poderia saber como eu
votaria, no caso de competir a mim.
Os olhos pálidos de Perlain pareceram toldar-se por
momentos e depois, mais uma vez, exibiu um sorriso.
— É mais sábio do que parece, Rowan de Rin —
murmurou. — No entanto, não tão sábio quanto se crê.
Os Candidatos estudam a forma de vida de Rin, sobretu-
do a da sua família. Os treinadores deles sabem como vo-
cê pensa. Colheram informações a seu respeito desde o
dia em que nasceu.
As faces de Rowan enrubesceram, apesar do vento
gélido.
Não lhe agradava que a sua vida fosse espiada à
distância por estranhos de olhos frios e pálidos. Olhou
para Perlain e o seu rosto demonstrou claramente o que
sentia.
O homem Maris abriu as mãos de dedos unidos
por uma membrana.
— É assim que sempre foi — disse. — É melhor
para você aceitá-lo. Venha agora comigo para a casa segu-
ra. Sugiro que, a partir de agora, aguarde lá e que não ande
pelas ruas sozinho.
Pegou no braço de Rowan e conduziu-o pela rua de
pedra.
— Tenho de visitar a Estrela pelo menos duas vezes
por dia — disse Rowan, teimosamente. — Para lhe encher
a tigela com água e dar-lhe de comer. Está sozinha e talvez
mesmo com medo.
— E você não tem medo? — Perlain fitou-o. Os
seus olhos planos pareceram penetrar na alma de Rowan.
Depois anuiu. — Oh, sim. Estou percebendo. Está com
medo, mas esforça-se por não o demonstrar. Esse é o
modo de ser de Rin, não é?
Rowan nada disse. Continuou a andar, sentindo o
hálito frio de Perlain na cara. Viu as outras pessoas Maris,
sobretudo aquelas que usavam o prata e verde dos clãs
Umbray e Fisk, a observarem e a sussurrarem à sua pas-
sagem. Talvez se questionassem o que Perlain lhe estaria a
dizer. Questionando-se se Perlain estaria a aproveitar-se
da sua posição como mensageiro do Guardião. Se estaria a
comunicar as virtudes do Candidato do clã de Pandellis.
Apenas no caso do primogênito se tornar no Seleciona-
dor.
A voz baixa prosseguiu, junto do seu ouvido.
— Contudo, é diferente dos outros que conheci.
Diferente das pessoas grandes e ruidosas que vêm negoci-
ar conosco todos os anos. Diferente da sua mãe alta e co-
rajosa, o Selecionador. Os seus olhos contêm a expressão
de alguém que já viu a Grande Serpente e que sobreviveu.
Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num
rapaz tão jovem. Só conheci outro assim.
Rowan tropeçou e olhou para os pés, sem saber o
que dizer.
— Mantém o silêncio — disse Perlain. — Isso é
bom. Em silêncio, está em segurança. — Parou e apontou.
— Ali está a sua casa segura — afirmou. — Não vou lhe
acompanhar mais. Em breve lhes trarão comida. O me-
lhor do nosso peixe. Os ovos do Verme Kirrian, colhidos
frescos esta manhã. Mas sugiro que comam os seus pró-
prios mantimentos.
— Porquê? — questionou Rowan.
Perlain encolheu os ombros.
— Poderá encontrar alguma coisa nos alimentos
dos Maris que não te agrade — disse, calmamente. — In-
forme o seu amigo Jonn, se assim desejar. Se valoriza a
vida dele tanto quanto valoriza a sua.
Fez uma vênia e afastou-se, deslizando como uma
sombra azul por um estreito caminho entre duas casas e
desaparecendo de vista.
Rowan deu os últimos passos até ao pequeno edifí-
cio onde estava hospedado com Jonn.
Perlain, alertava-o para o veneno. Alimentos enve-
nenados, bebidas envenenadas.
Jiller levara os seus próprios alimentos e água para a
Ilha. Ela, Rowan e Jonn concordaram que seria o melhor.
Mas não pensaram que Jonn e Rowan teriam de ter os
mesmos cuidados. Não tão cedo. Não até que o pior a-
contecesse e Jiller fosse morta.
Os elementos de cada clã farão tudo, tudo mesmo, para as-
segurarem a vitória do seu Candidato. Poderão roubar, espiar, en-
ganar e mentir. Poderão mesmo matar, se suspeitarem que o Sele-
cionador está a favorecer outro.
Tome cuidado, mãe, pensou Rowan, unindo as
mãos. Não permita que ninguém perceba como se sente.
Não emita sequer uma sugestão sobre o Candidato que
pensa ser melhor. Oculte as palavras, o rosto e, mesmo, os
pensamentos...
Talvez porque, após mil anos da existência do
Cristal, o Guardião não seja o único em Maris que consiga
ler os pensamentos. Rowan recordou-se como os olhos
pálidos de Perlain investigaram os seus. Perlain pareceu
saber o que ele pensava. Poderia ser? Se assim era, Jiller
não podia estar em segurança, por muito que se precaves-
se.
Não ficaria em segurança até chegar à Caverna do
Cristal, até pousar a mão no ombro de um dos Candidatos
e ter proferido as palavras que sussurrara a Rowan durante
a viagem. As palavras proferidas por todos os Seleciona-
dores desde a época de Orin.
O Selecionador fez a sua Escolha. Que os outros Candida-
tos abandonem este local.
Rowan percebeu que arfava de medo. Deliberada-
mente, abrandou o ritmo da respiração. Passou as mãos
transpiradas pela camisa. Sabia que tinha que se manter
calmo. Tão calmo como a mãe desejaria que ele estivesse.
Mas era difícil. Tão difícil.
Questionou-se pela milésima vez se a mãe agira
corretamente ao ocultar-lhe o segredo da família todos
aqueles anos. Teria sido melhor estar preparado?
Ou teria a história perturbado a sua infância, como
o perturbava agora? Ter-se-ia ele preocupado com isso e
receado, em cada dia, a chegada de um mensageiro dos
Maris? Teriam os seus sonhos sido assombrados por pes-
soas pálidas e vigilantes, de olhos gelados e mãos unidas
por membranas, por uma ilha rochosa negra rodeada de
espuma, um cristal que reluzia como fogo?
Rowan escutou um som e olhou para cima. As
pessoas na rua afastavam-se para dar passagem a um gru-
po apressado. Um grupo de três pessoas, dois homens e
uma mulher, usando capas que esvoaçavam e estalavam ao
vento.
Um homem usava o prateado dos Umbray, o outro
o azul dos Pandellis. A mulher usava o verde dos Fisk. Os
rostos exibiam gravidade. Vinham diretamente na direção
dele. Algo acontecera. Algo terrível.
Todo o corpo de Rowan começou a tremer. O seu
coração parecia ir explodir. Ouviu murmúrios à sua volta
enquanto as pessoas se concentravam para observar. Os
três Maris pararam diante dele e fizeram uma vênia acen-
tuada. O homem de azul olhou para os outros e começou
a falar.
— Selecionador de Rin, que tem o destino dos Ma-
ris nas tuas mãos, saúdo-te em nome do Guardião do
Cristal... — começou.
À medida que a sua voz se ouvia, o burburinho e-
levou-se por entre as pessoas, enchendo os ouvidos de
Rowan, intensificando-se e diminuindo, como a espuma
das ondas sobre a areia. Selecionador... Selecionador... a
mãe... Veneno... Veneno... Veneno...
Quando a maré de horror chegou e inundou a
mente de Rowan, um único pensamento emergia. Jiller
fizera bem em mantê-lo na ignorância enquanto foi pos-
sível. Porque nada que lhe pudesse ter dito o teria prepa-
rado para esta agonia. Absolutamente nada.
6
VENENO

— Q uem fez isso? — Rowan escutou a sua própria


voz falando como que ao longe.
— Não há forma de o sabermos — disse o
homem mais alto, o homem dos Umbray. — A sua mãe
adoeceu na Ilha. Estava lá sozinha com os Candidatos. A
escolha tinha acabado de se iniciar. — O seu rosto não
denotava qualquer expressão. Os olhos planos eram puro
gelo.
Um dos Candidatos, pensou Rowan. Alguém que
pensou que ia perder. A sua cabeça era um verdadeiro
turbilhão. Não há forma de o sabermos. Mas tinha de haver.
A mulher vestida de verde olhou para o sol.
— Temos de nos apressar — disse. — O Cristal
está a apagar-se. A Escolha tem de prosseguir. O tempo
escapa-nos tal como a maré. — Começou a afastar-se.
Cegamente, Rowan agarrou-lhe o braço para segu-
rá-la. Os seus dedos deslizaram na superfície macia das
suas vestes. Sob o tecido, a carne transmitia uma sensação
de frio e umidade.
— Jonn! Jonn já sabe? — gritou, olhando para a
porta fechada da casa segura, um pouco mais à frente.
— Ainda não — respondeu ela.
— Tem de ser informado!
— E será. Já saberia, se você estivesse com ele co-
mo seria de esperar — afirmou a mulher. — Ficamos
surpreendidos por lhe encontrar na rua sozinho. — A voz
dela era gélida: o seu desagrado era evidente.
— Eu não estava... — começou Rowan, contendo
depois as palavras. Ia dizer que não estivera só. Que Per-
lain estivera com ele. Mas, com uma punhalada de medo
que trespassara inclusive a dor e confusão que sentia, teve
consciência que seria perigoso admiti-lo naquele momen-
to.
Perlain pertencia ao clã Pandellis. Se os elementos
dos Fisk e Umbray considerassem que se estava a tornar
demasiado próximo de um Pandellis, mesmo sendo o
mensageiro do Guardião, poderiam sentir ciúmes. Podiam
decidir que Rowan iria seguramente escolher um Candi-
dato dos Pandellis para Guardião. Podiam...
— Venha — disse uma voz calma atrás dele. Era o
homem dos Umbray. O seu rosto estava tão próximo que
Rowan podia ver o seu próprio reflexo nos olhos incolo-
res. — Venha — repetiu o homem. — Não podemos
demorar mais. É agora o Selecionador. O destino dos Ma-
ris está nas suas mãos.
— Quero ver a minha mãe — conseguiu dizer Ro-
wan.
O homem anuiu.
— Claro. Por isso foi levada para a Caverna do
Cristal, por ordem do Guardião. Tem que se despedir dela
antes de assumir o seu lugar na Ilha, Selecionador de Rin.
Já não estará viva quando voltar.
O coração de Rowan deu um salto gigantesco.
— Quer dizer que ela ainda... está viva? — excla-
mou. — Pensei...
— Respira— murmurou o homem dos Umbray,
voltando a cara para o mar crispado. — Mas o coração vai
batendo mais lentamente à medida que o veneno alastra
dentro dela. Em breve deixará de respirar.
— Não está a sofrer — acrescentou o homem dos
Pandellis, percebendo a expressão mortificada de Rowan.
— Está a dormir e a sonhar e, com cada sonho, afasta-se
cada vez mais da costa da vida. É só isso.
O homem dos Umbray sorriu, os lábios finos.
— Não queira se fazer parecer com Selecionador
que tem o coração mole como ele e a sua gente, Pandellis.
Todos os Maris sabem que os Pandellis nascem com
fragmentos de gelo a flutuar nas veias. Que são frios e que
não sentem nada. Ao passo que os Umbray...
A mulher dos Fisk contornou-o e pôs-se na frente
dele.
— Os Umbray são tão maus quanto os Pandellis.
São simplesmente melhores a enganar, escorregadios co-
mo as enguias que se esgueiram no lodo do rio — excla-
mou com desprezo. — O meu clã, pelo contrário...
— Cala essa boca de serpente, Fisk! — rosnou o
homem dos Umbray, erguendo um braço prateado relu-
zente.
Os três juntaram-se mais uns aos outros, prensando
Rowan entre eles. Os tons de vozes elevaram-se, transmi-
tindo rancor. Em volta, as pessoas murmuravam entre si,
formando grupos separados. Pandellis. Umbray. Fisk.
Mãos unidas por membranas moveram-se para navalhas,
longas e estreitas. Lâminas brilharam e cintilaram ao sol.
A cabeça de Rowan girava. Olhou em redor para os
rostos pálidos e estranhos, retorcidos de fúria, os lábios
finos abertos e aos gritos, os olhos planos vidrados de
raiva.
A cólera cresceu dentro dele. Odiava aquela gente.
Odiava-os a todos. A rivalidade estúpida e assassina entre
eles matara-lhe a mãe.
Rangeu os dentes.
— Parem com isso! — gritou, tapando os ouvidos
com as mãos. — Parem com isso!
Com respirações ofegantes, os Maris ficaram imó-
veis e silenciosos e retrocederam. Os seus rostos torna-
ram-se vigilantes.
O vento soprava, as ondas esmagavam-se na costa.
Rowan sentiu um nó na garganta. Parecia que ia
sufocar. Os olhos ardiam-lhe das lágrimas. Engoliu em
seco e pestanejou.
Por fim, conseguiu encontrar a voz.
— Levem-me à Caverna do Cristal — disse. —
Levem-me à minha mãe! Já!

***

Enquanto caminhava, Rowan olhava em frente para


as costas magras do homem dos Umbray que seguia na
dianteira. Tinha vagamente consciência da mulher dos
Fisk seguindo à esquerda e do homem dos Pandellis â di-
reita. Não eram muito mais altos do que ele mas agora que
a sua raiva acalmara, deixando-o apenas envolto num en-
torpecimento, sentia-se encurralado por eles. Enclausura-
do, rodeado, indefeso.
O grupo avançou rapidamente pelas ruas, passando
pelos aglomerados de pessoas de verde, azul e prateado
como um peixe enorme através das águas.
“O Selecionador... o Selecionador...”, ouvia Rowan
ao passar. As pessoas falavam sobre ele. Sabiam. Sabiam o
que acontecera à mãe. Talvez alguns até soubessem quem
a envenenara, e porquê.
Em breve deixará de respirar.
As palavras eram tão definitivas. No entanto... Ro-
wan apressou o passo até estar praticamente colado ao
homem dos Umbray. Como tinham os Maris tanta certe-
za? Não conheciam a mãe. Não conheciam a força dela.
Talvez pudesse ser feita alguma coisa para ajudá-la.
— Ainda falta muito? — perguntou, em voz alta.
Sentiu-se subitamente aterrorizado por Jiller poder morrer
antes de ele chegar.
— Não — respondeu o homem dos Pandellis su-
cintamente. — Já chegamos. — O ombro dele roçou no
de Rowan ao virarem bruscamente para a direita, em dire-
ção ao mar.
As ondas rebentavam ruidosamente. Rowan sentiu
borrifos de água no rosto. Olhou para cima e em volta.
Encontravam-se diante de um edifício redondo e
cor de areia, com portas enormes cobertas de madrepéro-
la. No telhado existia uma forma em concha onde uma
chama seria acesa para informar todos os Maris que a Es-
colha fora concluída e que o Selecionador estava prestes a
indicar o nome do novo Guardião. Agora estava fria e va-
zia.
Diante do edifício havia um pátio de pedras ver-
de-pálido. Para lá dele, o mar, colidindo contra as rochas.
E, mais à frente, orlada por espuma branca, a negridão da
Ilha.
O homem dos Umbray estacou e afastou-se para o
lado.
— Tem de entrar sozinho, Selecionador de Rin —
afirmou, com um respeito cuidado.
A mulher dos Fisk fez um movimento rápido, co-
mo se se preparasse para falar. Mas pareceu mudar de i-
déias. Olhou para baixo para as mãos e manteve-se em
silêncio.
Rowan sentiu, sem propriamente ver, os três Maris
a observá-lo quando se encaminhou para o edifício. Já não
se importava com o que eles faziam ou o que pensavam.
Quando empurrou as portas reluzentes e penetrou no es-
tranho aposento, nem sequer sentiu medo. Era como se
estivesse incapaz sequer de sentir. Como se se estivesse a
ver em sonho.
As portas fecharam-se atrás dele e viu que estava
só. O aposento era enorme. As paredes e tetos eram cur-
vos.
Estes, tal como o chão, eram feitos de pedra polida,
dura e brilhante. A única luz provinha de velas que ardiam
em candelabros fixos ao chão.
Umas escadas, num dos cantos, conduzia para bai-
xo.
Rowan dirigiu-se às escadas. Ao fundo, avistou uma
luz tremeluzente. Colocou a mão no corrimão e o pé no
primeiro degrau.
Bem-vindo, Selecionador de Rin.
A voz ecoou no cérebro de Rowan. A cabeça es-
tremeceu. Chocado, olhou em volta.
Estou aqui em baixo. Venha até mim.
A voz era suave, persuasiva. Rowan obedeceu-lhe.
Sabia que estava prestes a conhecer o Guardião do
Cristal.
7
O GUARDIÃO

A s escadas desciam, desciam, em espiral. Rowan


perdeu conta do número de degraus. Percebeu
que se encontrava debaixo de terra, sob o mar.
Um brilho suave e azul-esverdeado iluminava-lhe o cami-
nho. As paredes de ambos os lados eram de pedra, tal
como os próprios degraus, duros e frios debaixo dos seus
pés. Ouvia-se o som de água a pingar e havia o cheiro a sal
e plantas marinhas.
Em cada passo que dava, mais sentia que algo o a-
traía. As pernas pareciam mover-se contra sua vontade.
Era como se estivesse a ser puxado na água por uma rede
invisível.
Sentiu medo, que se sobrepôs a qualquer outro sen-
timento, a qualquer outro pensamento.
Estremeceu e agarrou no corrimão até os nós dos
dedos ficarem brancos. Desejava deixar-se afundar na pe-
dra fria. Desejava conseguir regressar à força à superfície.
Mas, apesar de tudo, continuava a descer, sempre a descer.
Não tenha medo. É o poder do Cristal que sente. Não lhe
fará mal. E a sua mãe está aqui comigo.
A voz possuía-lhe a mente, sobrepondo-se ao me-
do, arrastando-o para longe, deixando tristeza e vergonha
no seu lugar.
Mãe, pensou Rowan. A mãe está ali. Como me
posso ter esquecido? Como posso ter hesitado? Nem que
por um instante?
Agora, o seu medo parecia loucura. Apoiando-se
firmemente ao corrimão para não cair, avançou. A luz a-
zul-esverdeada intensificou-se. O som de água a pingar
aumentou.
Por fim, viu que se encontrava praticamente no
fundo das escadas. À frente, havia uma parede de pedra
reluzente. Nela fora cortado um arco, coberto com uma
cortina de gotas de água que reluziam como pequenos
cristais na luz que fluía do interior da Caverna.
Chegamos.
Rowan já não necessitava da luz para o guiar. Podia
sentir o poder do Cristal, luzindo da Caverna com a mes-
ma intensidade da luz.
Desceu o último degrau e, com duas passadas,
mergulhou através do véu aquoso. Gotas frias e salgadas
afagaram-lhe suavemente o rosto, encheram-lhe os olhos
e fixaram-se ao seu cabelo. Sentiu depois areia sob os pés.
Olhou para cima. Avistou, desfocadamente, paredes ro-
chosas e brilhantes, de onde escorria água e luz.
— Mais uma vez, bem-vindo, Selecionador de Rin.
Desta vez, a voz falou em tom alto. Sussurrante,
rouca, antiga, ecoou das paredes gotejantes vezes sem
conta até cada nicho da Caverna parecer ter o som pene-
trado. Era impossível perceber onde estava quem proferia
as palavras. Rowan esfregou os olhos e olhou nervoso em
volta.
O espaço era iluminado por luz azul-esverdeada,
pelo que o ar era como água profunda e cristalina ilumi-
nada pelo sol. A fonte luminosa provinha de algures no
centro do aposento, mas Rowan nem sequer olhou para
lá. Porque, num dos lados, vestida com trajes de seda e
deitada sobre um sofá, estava Jiller.
Correu para ela, caindo de joelhos junto ao sofá. A
mãe estava perfeitamente imóvel. Tinha os olhos fecha-
dos. A mão que ele tocou estava fria. Mas, quando apro-
ximou o rosto do dela, sentiu-lhe a respiração suave. Era
como se estivesse simplesmente adormecida.
Está a dormir e a sonhar e, com cada sonho, afasta-se cada
vez mais da costa da vida.
— Mãe — murmurou. — Mãe, sou eu. O Rowan.
— Gotas de água da sua cara e cabelo precipitaram-se so-
bre a face dela. Rowan limpou-as com a mão.
Os lábios pálidos desenharam lentamente um leve
sorriso. O coração de Rowan acelerou. Ela podia ouvi-lo!
Apertou-lhe a mão com força.
— Mãe, acorde — suplicou. — Tem de lutar con-
tra os sonhos. Lutar contra o veneno. A mãe é forte. Não
pode morrer! Tem de viver! Por Annad. Por Jonn. Por
mim!
O esboço de uma ruga surgiu no cenho de Jiller e
os seus olhos pestanejaram.
— Não perturbe a paz dela, Rowan — sussurrou
uma voz. — Ela não pode despertar. Faça as suas despe-
didas e deixe-a descansar. Você é agora o Selecionador.
Rowan voltou-se repentinamente. Mas as palavras
de raiva que se preparava para dizer morreram-lhe nos
lábios quando enfrentou os olhos do ser que falara.
A Guardiã do Cristal estava sentada, imóvel, no
centro do aposento, banhado em luz.
Não parecia velha como as pessoas de Rin pareci-
am velhas. Não tinha uma pele enrugada como Lann. Mas
Rowan percebeu logo que nunca vira uma criatura huma-
na tão idosa. Parecia quase transparente. Estava tão abati-
da, tão magra e encolhida, e a pele era tão fina e pálida,
que se tornava difícil vê-la claramente tendo como fundo
a cadeira.
E os seus olhos! Eram desmedidos no pequeno
rosto. Pareciam falar da sabedoria e conhecimento de uma
eternidade e, acima de tudo, de uma terrível ânsia para
repousar.
As coisas que já vi, pareciam afirmar os olhos. As
coisas que eu sei. Mas agora estou exausta. Tão exausta.
As pequeninas mãos, as membranas entre os dedos
quase transparentes, abriam-se harmoniosamente sobre a
fonte de luz— um cristal enorme e reluzente que tinha no
regaço. Inclinou-se então lentamente sobre ele. A luz i-
nundou-lhe o rosto e fechou os olhos, como que assimi-
lando calor.
— Os Candidatos aguardam-no, Rowan de Rin —
disse. — A Escolha tem de prosseguir sem demora. A
minha hora aproxima-se.
Rowan sentiu-se a estremecer por completo.
— Um dos Candidatos envenenou a minha mãe —
disse.
— Pode ser — respondeu a Guardiã.
— Qual deles?
— Não sei dizer. O Cristal está a perder a potência.
Já não consigo ver até à Ilha. E não consigo ler os pensa-
mentos dos que foram treinados para velarem as mentes,
como é o caso dos Candidatos desde a mais tenra infância.
O veneno é uma poção Mirril antiga chamada Sono da
Morte. Há anos que não é vista em Maris. Mata lenta-
mente, mas mata. É tudo o que lhe posso dizer.
Os Mirril. Peritos em venenos. Subitamente, Ro-
wan viu-se de volta a Rin, sob a árvore-escola, escutando
as histórias de Timon sobre os clãs dos Maris. Os Mirril.
Peritos em venenos. E, para cada veneno...
A voz sussurrante continuou, interrompendo-lhe as
recordações.
— Rowan! Preste atenção! O tempo urge. Tem de
continuar com a Escolha.
— Como posso continuar? — perguntou Rowan.
— Como posso fazê-lo, sabendo que um dos Candidatos
é um assassino? Enquanto a minha mãe está ali deitada,
despedindo-se da vida?
— Pode porque é a sua obrigação. Tal como os
seus antepassados antes de você — disse a Guardiã. — E
os Selecionadores dos Mirril antes deles. Assim tem sido
sempre. — Debruçou-se sobre o Cristal. Aguardando.
— Só porque tem sido sempre assim, não significa
que continue a sê-lo. — As palavras irromperam de Ro-
wan antes de ele pensar.
A Guardiã libertou um longo suspiro. Lentamente,
abriu os olhos.
Rowan olhou para trás, para a mãe que jazia no so-
fá. Sabia o que ela diria. Pedir-lhe-ia que fosse forte. Que
aceitasse a dor e que cumprisse o seu dever. Tal como su-
cedera com a avó. Tal como sucederia com ela. Como su-
cedia com os elementos da sua família há séculos.
— Sim — disse a Guardiã, quando ele se virou para
ela. — Tem de ser forte. Ela lera-lhe a mente. Rowan fi-
tou-a diretamente.
— Serei forte, Guardiã dos Maris — afirmou. —
Serei forte ao meu modo.
Rowan pareceu detectar um lampejo, como cinzas a
tornarem-se subitamente incandescentes num fogo mori-
bundo. Talvez fosse ira. Talvez fosse surpresa. Ou...
qualquer outra coisa. Era impossível saber. Nem um só
movimento perturbava a serenidade naquele rosto.
— Tem de existir um antídoto para o Sono da
Morte — disse Rowan.
Ela abanou a cabeça.
— Nada pode ser feito. — Baixou de novo a cabe-
ça para o Cristal.
Rowan cerrou os punhos. Ela mentia-lhe. Sabia-o.
Recordou de novo as palavras de Timon.
Os Mirril. Peritos em venenos. Mil e um venenos mortais.
E, para cada veneno, um antídoto.
Para cada problema, uma solução. Para cada vene-
no, um antídoto.
Mas não havia forma de obrigar a Guardiã a dar-lhe
a informação que sabia seguramente. Tudo o que ela pen-
sava agora era na Escolha. Na necessidade da diligência.
Não estava disposta a desperdiçar tempo precioso em
busca da cura para Jiller. Por muito velha, sábia e rica em
conhecimentos que fosse, continuava a ser um Maris.
“A morte de um não é importante”, dissera Perlain
na praça da aldeia de Rin.
Era assim que os Maris pensavam.
Mas a velha Lann respondera, “Essa pode ser a sua
opinião, mas não a nossa”.
— Não a nossa — afirmou Rowan baixo.
O Cristal reluziu. Em algum lugar para lá da Ca-
verna, escutou um som de algo a ranger, como de uma
porta a abrir.
— Convoquei os Candidatos — disse a Guardiã.
Afastou-se do Cristal e reclinou-se na cadeira.
De novo, o Cristal reluziu. O rosto da Guardiã
manteve-se inalterado. Contudo, Rowan teve a sensação
que a mente dela estava fixa em algo fora daquela sala.
— O seu amigo Jonn do Pomar aproxima-se —
disse. — Mas tenho que lhe negar a entrada na Caverna.
Jonn está cheio de tristeza e raiva. Pretende vingar a morte
da sua mãe.
— A minha mãe não está morta — disse Rowan
em voz alta. A sua voz fez eco. Não está morta. Não está
morta.
No sofá coberto de seda, Jiller agitou-se. Veio um
ruído do fundo da sala.
— Entrem — disse a Guardiã.
Surgiram três figuras. Uma de prateado, uma de a-
zul e outra de verde.
Rowan fitou-os. Contava que os Candidatos tives-
sem pelo menos a idade da mãe, ou de Jonn. Mas aquela
gente era muito mais nova. Por momentos, esse fato sur-
preendeu-o. Recordou-se então que o Cristal transmitia o
conhecimento e recordações de milhares de anos da histó-
ria dos Maris. A idade e a experiência de vida não eram
qualidades importantes para os Candidatos: apenas o teste
de capacidade intelectual, delineado por Orin, o Sábio,
para o qual estudaram ao longo das suas vidas. A inteli-
gência era importante. A determinação era importante.
E uma vontade de ganhar também é importante,
pensou Rowan furioso. E, pelo que parece, também ins-
tintos assassinos. Continuou a observar as figuras junto à
porta. A sua mente estava fria do ódio.
Um de vocês tinha motivos para desejar tirar a vida
à minha mãe, pensou. E pensa que teve êxito nisso. Mas,
de algum modo, vou derrotar-te. E ninguém, nem mesmo
a Guardiã do Cristal, me vai impedir de fazê-lo.
8
OS CANDIDATOS

— A sha, dos Umbray — disse a Guardiã.


A figura vestida de prateado avançou e fez
uma vênia. Era alta, para os Maris, e olhou
para baixo para Rowan, enfrentando o olhar dele sem
pestanejar.
— Saúdo-o, Selecionador de Rin — disse, num
tom de voz regular. — O destino dos Maris está nas suas
mãos.
Será você? Pensou Rowan, fitando bem no fundo
daqueles olhos cinzentos pálidos e firmes. Poderia olhar
assim para mim se tivesse envenenado a minha mãe, A-
sha? Talvez sim, porque, pelo que me disseram, os Um-
bray são manipuladores e enganadores. Escorregadios,
como as enguias que se esgueiram no lodo do rio. Achou
que a minha mãe, forte e prática, era difícil de manobrar?
Pensou que iria ser mais fácil impressionar um Seleciona-
dor mais jovem e mais tímido? Um rapaz? Como eu?
— Seaborn, dos Fisk — zumbiu a voz da Guardiã.
A figura em verde fez uma vênia e repetiu as pala-
vras de Asha. Era ainda mais alto do que ela, parecendo
mais forte. Permanecia perfilado, com os braços alinhados
rigidamente com o corpo. Mas falou suavemente e, ao
falar, os seus olhos não paravam de se desviar para a figu-
ra imóvel no sofá e para a cadeira da Guardiã.
Ou é você o culpado, Seaborn dos Fisk?, pensou
Rowan. É por isso que não consegue olhar para mim? Foi
você quem colocou o veneno na comida ou bebida do
Selecionador pensando que, como mulher, poderia favo-
recer Asha, em vez de você? Ou os seus olhos desviam-se
de mim porque está desapontado, valente e forte Fisk?
Pensou que a minha mãe ia te escolher? Lamenta que a-
gora tenha que me enfrentar a mim, em vez dela?
— Doss, dos Pandellis — disse a Guardiã.
A figura em azul deu uns passos em frente, e mais
uma vez, foram repetidas a vênia e as palavras.
Doss era mais novo do que os outros Candidatos.
Era também menos encorpado e baixo e os seus olhos
pareciam mais sombrios, mais profundos e mais misterio-
sos.
Uma lembrança surgiu na mente de Rowan. Perlain,
fitando-o com curiosidade. As palavras de Perlain: Os seus
olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande Serpente e
que sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho,
num rapaz tão jovem. Só conheci outro assim.
Serás o “outro” de Perlain, Doss?, pensou Rowan.
Tal como ele, pertences ao clã Pandellis. Terá Perlain visto
em mim algo que o recordava de você? Será que outros o
viram? Outras pessoas do seu clã? Terão lhe contado?
Terão pensado que me ligaria mais a você do que a minha
mãe? Que haveria mais probabilidades de eu lhe escolher?
É por isso que...
— O Selecionador está pronto, Candidatos — disse
a Guardiã. — Só tem que se unir ao Cristal, no lugar da
mãe. Poderão depois regressar à Ilha, e a Escolha pode
iniciar-se de novo.
Os três fizeram uma vênia.
Unir-se ao Cristal?, pensou Rowan. O que signifi-
cava isso? Poderia aquela ser a sua oportunidade? Sentiu o
estremecimento de uma esperança receosa.
— Aviso-os a todos — alertou a Guardiã. — Se
algo acontecer a este rapaz, tal como sucedeu à mãe, não
haverá tempo para dar início à Escolha por uma terceira
vez. A Guardiã voltou a cadeira para enfrentá-los. — O
Cristal está a perder a intensidade — afirmou, fitando-os
um a um. — Em breve morrerei. E, se não houver um
Guardião junto de mim quando morrer, para receber de
mim os conhecimentos do Cristal e renovar o seu poder,
também o Cristal morrerá. Os clãs Maris ficarão de novo
divididos e, com o Cristal sem poder para sempre, não
haverá proteção quando os Zebak chegaram de novo às
nossas costas, como chegarão certamente. Para nós, e para
esta terra, tudo ficará perdido.
Perdido, perdido, perdido, murmuraram os ecos. Os
Candidatos ergueram a cabeça e permaneceram silen-
ciosos.
— Dê-me a sua mão, Selecionador de Rin — pediu
a Guardiã.
Rowan hesitou. O coração batia-lhe desordenado
no peito. Esforçou-se por se acalmar.
— Por favor, explique-me por que tenho que fazer
isto — disse, em tom baixo.
De novo, algo cintilou nos olhos da Guardiã. Rai-
va?, pensou Rowan. Divertimento?
— É necessário que o Cristal o conheça, através de
mim — explicou. — Quando isso acontecer, irá reconhe-
cê-lo como o único Selecionador. Por favor, apresse-se.
Jonn, do Pomar, está muito perto. Quero que isto esteja
terminado antes que ele exija a entrada.
Rowan deu um passo a frente. Com todo o seu ser,
concentrou-se, ocultando os pensamentos, aguardando o
momento.
Serei forte ao meu modo.
Estendeu a mão. Os dedos ligados por membrana
da Guardiã tocaram nele. Suaves, frios, úmidos. Rowan
sentiu um formigamento pelo braço acima.
Agora, pensou. Cerrou os olhos e agarrou forte-
mente nos dedos. Depois virou, caiu, mergulhou nas á-
guas profundas, profundas da mente da Guardiã, nas
memórias da Guardiã.
Imagens.
Beleza e luz. Ondas formando-se, em azul e verde, reben-
tando em espuma branca em areia dourada. Uma criança, rindo,
livre, escondendo-se, mergulhando, brincando com amigos. Há muito,
muito tempo atrás...
Estudos, professores, conselheiros, velas ardendo pela noite
dentro. O Cristal, brilhante como o sol, emitindo sinal. Um mundo
reduzido a uma caverna por baixo da terra...
Em pânico, Rowan debateu-se, afundando-se ainda
mais. Para mentes mais antigas, para memórias mais anti-
gas.
Mares remotos. Criaturas retorcendo-se, caçando, ocultan-
do-se em águas cintilantes... a Grande Serpente elevando-se acima de
mim, as presas gotejando veneno...
Veneno. Rowan agarrou a palavra e segurou-se a ela
como uma linha salva-vidas. Apagou as imagens de turbi-
lhão. Criou a sua própria imagem.
Jiller, a minha mãe. Envenenada. Estendida e completa-
mente imóvel. Sonhando enquanto a vida lhe escapa.
Fixou a mente na imagem e nas palavras Sono da
Morte. Diga-me, Guardiã, exigiu. Diga-me, Guardiã.
O Cristal está a perder a intensidade... estou tão exausta...
não há tempo...
Diga-me!
Então, subitamente, algo cedeu, e a resposta apre-
sentou-se perante os seus olhos. Viu um frasco, numas
mãos pequenas de dedos unidos por membrana. O frasco
estava meio cheio com um líquido prateado. Enquanto
Rowan olhava, o líquido mudou de cor, tornando-se tão
azul quanto o céu. O azul transformou-se em verde. Em
seguida, o líquido alterou-se de novo, perdendo qualquer
cor, tornando-se límpido. E uma voz falou.
“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte En-
cha uma mão cheia com água de prata. Em lagoa faminta, alvas
erguem as suas coroas: Colha uma e adicione as lágrimas que der-
ramar. Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes,
não mais, e deixe repousar. Adicione o veneno do seu mais temível
medo... Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina”.
Com uma expressão de triunfo, Rowan libertou-se.
Retrocedeu, a cambalear, da cadeira da Guardiã. A sua
mente fervilhava. A mão ardia-lhe.
Lentamente, abriu os olhos. Avistou trevas, rasga-
das por colunas e remoinhos de cores. Depois, finalmente,
recuperou a visão.
A Guardiã estava desfalecida na cadeira. Tinha os
olhos fechados. O Cristal pulsava sem vigor debaixo das
suas mãos flácidas. Atrás da cadeira estavam Asha, Sea-
born e Doss, fitando-o como se fosse um demônio das
profundezas.
— O que fez? — exclamou Seaborn.
— O que tinha que fazer — disse Rowan. As pala-
vras transmitiam força, mas não era assim que se sentia.
As pernas cambaleavam como as pernas de uma cria buk-
shah recém nascida. A mão que segurara os dedos da
Guardiã ainda latejavam e ardiam.
As pálpebras da Guardiã palpitaram e abriram-se.
— Guardiã... — começou Asha. Mas a anciã nem
sequer olhou para ela. Toda a sua atenção focava-se em
Rowan.
— O que pretende? — perguntou-lhe, bruscamen-
te. Rowan não teve oportunidade para responder porque,
naquele instante, ouviu-se o som de pés nos degraus de
pedra e Jonn Forte irrompeu pela cortina de água para a
Caverna.
Olhou rapidamente em volta, assimilando tudo
num só relance. Encaminhou-se então para junto de Jiller
e inclinou-se sobre ela. Tomou-a nos braços, levantando-a
para junto do peito, chamando por ela. Ela não se mexeu.
Voltou-se para Rowan com uma expressão grave.
— Ela falou de perigo, mas não a levei muito a sé-
rio — disse. — Pensei, não, não com Jiller. Nada podia
acontecer a Jiller. Rowan...
— Tudo vai ficar bem — respondeu Rowan cal-
mamente. — Há um antídoto para o veneno que deram à
mãe. A Guardiã acabou de me revelar.
Alguém soltou uma exclamação por detrás da ca-
deira da Guardiã. Rowan olhou rapidamente para cima.
Asha? Seaborn? Doss? Não tinha forma de saber.
— Não permitirei que a mãe morra — afirmou. E
transmitia essa informação a si próprio e a todos os pre-
sentes na sala, incluindo Jonn.
— A Escolha tem de continuar— disse a Guardiã,
ansiosa.
Rowan virou-se para ela.
— Não — respondeu. Escutou a sua própria voz a
tremer quando a palavra ecoou nas paredes da Caverna.
— Lamento, mas a Escolha terá de aguardar.
Sentiu os olhos de Jonn fixos nele. Sabia que tam-
bém Asha, Seaborn e Doss o observavam. Mas apenas via
a Guardiã.
— Sei que temos pouco tempo — disse. — Mas,
antes de qualquer outra coisa, a minha mãe tem de tomar
o antídoto contra o Sono da Morte. Tem de o dar, Guar-
diã. Ou dizer-me onde o encontrar. Tenho de ajudar a
minha mãe. Nada é mais importante do que isso.
9
O ENIGMA

— D isse que seria forte, Rowan de Rin — acu-


sou-o a Guardiã. — Permiti que se unisse ao
Cristal, que se confirmasse como o Selecio-
nador. Ludibriou-me.
— Disse que seria forte ao meu modo — afirmou
Rowan, esforçando-se em desespero por se mostrar calmo
e firme enquanto as suas pernas tremiam. — Tem de me
dizer o que devo fazer para salvar a minha mãe.
— É impossível! — disse a Guardiã. Agarrava o
Cristal com as pequenas mãos, como que lhe pedindo que
a salvasse daquela situação. Mas este limitava-se a brilhar
sem fulgor.
— Falem com ele! — ordenou a Guardiã aos Can-
didatos. Mas estes permaneceram silenciosos, pasmados.
A Guardiã respirou fundo.
— Bem lhe disse. O Sono da Morte não é utilizado
em Maris desde os tempos dos Mirril.
Rowan olhou para Jonn. Este deitara Jiller e encon-
trava-se de pé junto ao sofá, de punhos cerrados. Rowan
sabia o que lhe passava em mente. Se o veneno era tão
raro, não seria difícil descobrir a sua origem. Descobrir
qual o clã que se apoderara do segredo dos Mirril e que o
pusera em prática.
Mas Rowan não estava interessado em vingança.
Pelo menos por agora.
— Existe um antídoto — repetiu. — Vi-o, Guardi-
ã. Um líquido prateado, que mudou várias vezes de cor,
do azul para verde e depois se tomou cristalino. Vi-o, em
mãos de Maris.
O olhar parado da Guardiã não se alterou.
— As mãos eram de Orin — disse ela.
— Orin — murmurou Asha. Seaborn levou as
mãos à boca. Doss manteve-se inexpressivo.
— Orin estava a fazer o antídoto para o Sono da
Morte na Ilha, no dia em que encontrou o Cristal — disse
a Guardiã. — Foi o que viu na sua mente, Selecionador de
Rin. Viu as memórias de Orin. A última gota da mistura
nesse frasco foi usada há quinhentos anos. Já não existe
mais.
Não existe mais, não existe mais, sussurraram os ecos.
— Nesse caso, a mistura tem de ser feita de novo
— afirmou Rowan, levantando o queixo. — Se foram as
mãos de Orin que vi, então também as palavras que ouvi
eram dele.
— Que palavras, Rowan? — insistiu Jonn.
Os três Candidatos inclinaram-se para a frente, em
simultâneo. Mesmo a fria Asha. Mesmo o Doss introver-
tido.
— A receita para o antídoto — disse Rowan. Pro-
feriu as palavras em voz alta. Não teve dificuldade em re-
cordá-las. Parecia que tinham sido cauterizadas no seu
cérebro.
“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte
Enche uma mão cheia com água de prata.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas:
Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar.
Adicione o veneno do teu mais temível medo...
Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina”.
Asha resfolegou.
— Que ingredientes são esses? — murmurou Sea-
born. Os olhos de Doss brilharam de interesse.
— Orin transformou a receita num segredo — dis-
se.
— Sim — exclamou a Guardiã. — E os segredos
dele são meus. — Voltou-se para Rowan. — Por vontade
de Orin, não posso te dizer como deve ler o enigma —
afirmou, friamente. — Mas, acredite, mesmo que lhe pu-
desse contar quais são os ingredientes, nunca os consegui-
rias obter. O antídoto não pode ser feito.
— Pode — respondeu Rowan. — Tem de poder.
O Cristal reluziu. Rowan sentiu um puxão na men-
te. Combateu-o desesperadamente.
— Não pode me obrigar a satisfazer a sua vontade,
Guardiã — disse. — Não consegue mudar a minha men-
te. Está demasiado fraca.
— Não há tempo! — exclamou a Guardiã. — E o
que planeja é impraticável, rapaz de Rin. Se a preparação
do antídoto fosse uma questão tão fácil como parece a-
creditar, já o teria aqui, e a sua mãe estaria a se recuperar.
Não sou nenhum monstro. Curá-la-ia, se pudesse. Mas o
antídoto para o Sono da Morte é composto por coisas
raras e quase impossíveis de obter. Você sozinho nunca as
conseguiria, nunca...
— Ele não estaria sozinho — interrompeu Jonn
Forte. — Eu estaria com ele.
Deixou o lado de Jiller e dirigiu-se para o centro do
Caverna, para junto de Rowan. Ficou como uma torre re-
lativamente à Guardiã. Comparada com ele, parecia tão
pequena e frágil quanto uma criança. Mas ela abanou a
cabeça, sem qualquer receio.
— Por decreto de Orin, a Ilha está proibida a to-
dos, à exceção do Guardião — disse ela. — E, na altura
da Escolha, estão autorizados o Selecionador e os Candi-
datos, que devem estar sós. Não pode lá ir, Jonn do Po-
mar, sem enfrentar a morte.
Jonn comprimiu os lábios. Virou-se para olhar para
Jiller, imóvel e pálida, mal respirando.
— Há coisas que receio mais do que a minha pró-
pria morte — disse.
— Também eu — exclamou a Guardiã. — E uma
delas é quebrar a minha confiança. Não pode ir à ilha,
Jonn. Tudo farei para impedi-lo. Ainda me resta o poder
suficiente para o fazer.
— O que significa que Rowan irá sozinho, por sua
vontade. — Os olhos de Jonn eram duros. — Vai sozinho
e nós esperamos aqui. E diz que ele nunca será bem suce-
dido sozinho. O que quer dizer que não terá êxito. Nem
regressará para escolher um novo Guardião. Jiller morre.
Você morre. O Cristal extingue-se, para sempre. Não será
isso também quebrar a sua confiança?
A Guardiã sorriu levemente.
— Argumenta bem, homem de Rin. Mas não pode
ir à Ilha.
O silêncio instalou-se, apenas quebrado pelo ruído
suave da água que caía incessantemente.
Rowan percebeu o que tinha que fazer. Necessitava
de ajuda. Sabia qual o caminho a seguir. Não tinha alter-
nativa. Olhou para as três figuras ainda por trás da cadeira
da Guardiã. Sobrepondo uma máscara à desconfiança e
receio nos seus olhos, falou diretamente para eles, pela
primeira vez.
— Asha, dos Umbray, Seaborn, dos Fisk, Doss,
dos Pandellis. A Ilha não lhes é proibida. Irão ajudar-me?
Pensara que eles concordariam de imediato. Afinal,
ele era o Selecionador. Iriam querer impressioná-lo e a-
gradar-lhe. Cada um iria desejar convencê-lo que não fora
ele quem envenenara a mãe.
Mas eles hesitaram, de olhos na Guardiã. Nunca o
ajudariam contra a vontade dela.
A Guardiã permanecia imóvel, debruçada sobre o
Cristal. Depois, por fim, anuiu.
— Muito bem — disse, a voz sem tonalidade e i-
nexpressiva. — O que tem de ser, tem de ser. Mas aler-
to-os. Ao nascer do sol, a minha vida terminará. E o Cris-
tal morrerá comigo, se a Escolha não tiver sido concluída
até lá.
— Regressarei a tempo de terminar a Escolha —
murmurou Rowan. — Prometo.
— Não duvido que esteja a ser sincero — respon-
deu a Guardiã. — Irá regressar... se depender de si. Mas o
percurso que escolheu é perigoso, Selecionador. Perigoso
para você, para os Maris e para todo o território. Mesmo
neste momento, quem sabe, os navios dos Zebak podem
estar a dirigir-se para as nossas costas. Já devem ter to-
mado conhecimento que o Cristal está a enfraquecer. Têm
espiões por todo o lado.
— Esse é um perigo sempre presente na altura da
Escolha — disse Rowan através de lábios que pareceram
subitamente secos e hirtos.
A Guardiã olhou para as suas mãos, as membranas
transparentes à luz do Cristal.
— Mas apenas uma vez esteve o poder do Cristal
em si em tamanho perigo. Uma ocasião, há trezentos a-
nos, quando os Mirril morreram. Depois o seu antecessor,
Lieth, aceitou para o seu povo o ônus da Escolha, permi-
tindo que o Cristal vivesse para bem de todos nós.
Levantou os olhos.
— É muito parecido com Lieth, Rowan de Rin —
afirmou. — Muito, muito parecido. É estranho pensar
que, tal como ele salvou o poder do Cristal, você possa ser
aquele que o destruirá.
Rowan ficou gelado. Olhou para Jonn, que o ob-
servava gravemente. Apenas por instantes, a sua determi-
nação enfraqueceu. Olhou depois para a mãe e soube que
estava certo.
Seaborn vinha a mostrar-se inquieto.
— Permita que o acompanhemos — solicitou. —
O sol iniciou já o seu caminho descendente para oeste.
Devemos tirar proveito da luz.
Rowan voltou-se para Jonn.
— Cuida da Estrela enquanto eu estiver fora? —
perguntou.
Jonn anuiu. Levou então a mão à algibeira e tirou
uma bolsa em couro macio. Despejou o conteúdo para a
mão. Era um pequeno frasco de vidro, com uma reluzente
tampa em prata com a forma de um peixe voador sobre as
ondas.
— Isto era para Jiller — disse. — Tinha acabado de
comprá-lo no mercado quando Perlain chegou até mim
com a notícia do que lhe acontecera. Achei que era... lin-
do. E, por isso, adequado para ela. Leve-o contigo, Ro-
wan, e encha-o com o líquido que lhe há de salvar a vida.
Não vejo melhor propósito para ele.
A sua voz era forte e calma. Mas o seu dedo endu-
recido pelo trabalho estremeceu quando tocou suavemen-
te no pequeno peixe de prata antes de voltar a guardar o
frasco na bolsa, entregando-a depois a Rowan.
Rowan guardou cuidadosamente a bolsa na sua
própria algibeira.
Desejava dizer algo que reconfortasse Jonn, mas
sabia que tudo o que dissesse soaria a falso. Não podia
prometer que seria bem sucedido na sua missão. E sabia
que, fossem quais fossem os problemas e perigos que iria
enfrentar, não se iriam comparar à dor que Jonn Forte iria
sofrer, enquanto ficava ali à espera.
— Farei o meu melhor, Jonn — murmurou. — O
melhor que puder.
Jonn pousou uma mão pesada no ombro dele.
— Eu sei — afirmou. — E os meus pensamentos e
esperanças vão contigo.
Rowan virou-se e dirigiu-se ao local onde os Can-
didatos o aguardavam.
— Não vai se despedir da sua mãe, Selecionador de
Rin? — perguntou a Guardiã, observando-o através de
olhos meio cerrados quando passou pela sua cadeira.
Rowan sentiu-se invadir pela raiva. E a raiva confe-
riu-lhe a coragem para dizer as palavras que não conse-
guira expressar a Jonn.
— Não. Não preciso de me despedir da minha mãe
— disse, suficientemente alto para que todos ouvissem.
— Ela ainda estará aqui, e viva, quando regressar com o
antídoto.
— Veremos — disse a Guardiã. — Veremos.
10
A ILHA

E m silêncio, seguiram em fila indiana ao longo do


túnel para a Ilha. Rowan ia na dianteira. Asha,
Doss e Seaborn deixaram-se ficar para trás, em
tom de respeito, deixando-o entrar primeiro na passagem
escura e gotejante.
Caminhavam agora atrás dele, sintonizando os
passos com os dele. Os seus sapatos macios não provo-
cavam nenhum som nas pedras lisas e úmidas. Por diver-
sas vezes, Rowan teve que olhar para trás para se certificar
que ainda o seguiam. Mas estavam sempre presentes, três
passos atrás, os olhos vigilantes.
Levavam consigo archotes para iluminar o cami-
nho. Sombras tremiam sinistramente no teto e paredes de
rocha. Água brilhava onde se escapava por fendas e escor-
ria em fio para o chão.
Estamos a andar debaixo do mar, não deixou Ro-
wan de pensar. A idéia daquele vasto peso de água em
movimento por cima e em redor deles fê-lo estremecer.
Concentrou os pensamentos na missão a cumprir.
Na Caverna do Cristal, fora tão persuasivo a forçar a
Guardiã a abrir-lhe o caminho que não tivera de fato
tempo para pensar. E, desde então, aquela viagem estra-
nha sob o mar afastara tudo da sua mente.
Não tentara ainda perceber o que poderia significar
a lista enigmática de ingredientes de Orin. Não levara efe-
tivamente em conta o aviso da Guardiã de que não tinha
qualquer esperança de obter os ingredientes, mesmo que
soubesse quais eram.
Mas agora pensava nessas duas coisas. Pergun-
tou-se se os três Maris que seguiam atrás dele pensariam o
mesmo. Ou estariam demasiado preocupados com o
Cristal, com a Guardiã, com eles próprios, e no atraso a
que estavam todos a ser forçados, para sequer pensar?
Avistou uma luz fraca mais adiante. O túnel chega-
va ao fim. Percebeu que podia também ouvir o som das
ondas. Um rebentar distante de água nas rochas escarpa-
das e penhascos da Ilha.
— No fim do túnel há uma escada, Selecionador de
Rin. Era a voz de Asha, impassível e fria.
Rowan voltou-se para ela.
— Talvez seja melhor tratarem-me pelo nome —
disse, tentando sorrir.
Ela não retribuiu o sorriso.
— Como desejar — respondeu.
Rowan virou-se de novo para a luz no fundo do
túnel. Asha, pelo menos, não se estava a forçar muito para
lhe agradar, pensou. Não pretendia mostrar-se diferente
do que realmente era.
Talvez os treinadores a tivessem instruído para agir
assim, disse-lhe uma voz na mente. Lembre-se do que
Perlain disse. Os Candidatos estudam o modo de ser de
Rin, pelo que hão de saber como agradar ao Selecionador.
Talvez os treinadores de Asha a tivessem informado que
nós, em Rin, odiamos falsas aparências. Por isso, faz o
jogo de parecer ser honesta comigo enquanto elabora se-
cretamente esquemas. Quem sabe o que ela de fato pensa?
Abanou a cabeça para afastar o pensamento des-
confortável. Gostaria de poder confiar nas três pessoas
que o acompanhavam. Já seria suficientemente difícil para
ele fazer o que tinha a fazer, sem se questionar continua-
mente quem falava verdade e quem mentia. Muito menos
quem era o culpado do envenenamento, e quem era ino-
cente.
No final do túnel havia umas escadas de pedra ín-
gremes, tal como Asha informara. Lá em cima reluzia a
luz do dia.
Rowan começou a subir. O som das ondas intensi-
ficava-se em cada degrau que avançava. A luz aumentou,
penetrando por umas grades do que parecia um portão.
Começou a apressar o passo, embora já estivesse
ofegante e com dores nas pernas. Independentemente dos
perigos que o aguardavam na Ilha, estava ansioso por res-
pirar ar fresco de novo e de ver o céu por cima da cabeça.
Com alívio, subiu os últimos degraus, abriu o por-
tão de ferro enferrujado e passou por ele. As pernas tre-
miam-lhe, depois do esforço da subida. Ficou a arfar, ten-
tando recuperar a respiração.
Permanecera por tanto tempo sob o solo que a luz
do sol o parecia cegar. Tinha os olhos tão lacrimosos que
mal conseguia ver. Pestanejou furiosamente, limpando-os
com as costas da mão. À medida que a visão voltava ao
normal, viu que se encontrava na costa rochosa da Ilha.
Diante dele havia uma densa floresta, com lianas.
Voltou-se para Asha, Seaborn e Doss que subiam
para a claridade. O portão de ferro cerrou-se após a pas-
sagem deles, protegendo as escadas que pareciam desapa-
recer na escuridão. Mais ao fundo, as ondas lançavam-se
em espuma sobre as rochas. E ao longe, do outro lado do
mar agitado, estendia-se a areia dourada e edifícios re-
dondos de Maris.
Semicerrando os olhos contra os salpicos de água,
Rowan analisou os edifícios, tentando detectar o estábulo
de Estrela. Sabia que esta estaria intrigada com a sua au-
sência quando Jonn o fosse substituir no enchimento da
tigela de água. Estrela iria sentir saudades dele e ficaria in-
feliz.
Na praia, crianças corriam para a água, entrando e
saindo das ondas, pouco incomodadas com o vento frio.
Aqui e ali, homens e mulheres remendavam redes, senta-
dos. Uma figura isolada encapuzada, uma mulher vestida
com o verde do clã dos Fisk, passeava pela praia.
Por algum motivo, parecia-lhe familiar. Tinha algo a
ver com a forma como ela caminhava. Tinha os braços
dobrados sob a capa e as costas muito perfiladas. Ah, é
claro. Era a severa mulher Fisk que servira também de
guia até à Caverna do Cristal.
Rowan percebeu que tinha alguém ao seu lado e,
lentamente, virou a cabeça.
Era Seaborn. Não sabia que estava a ser observado.
Apresentava uma expressão grave e tinha os olhos fixos
na praia.
Para onde olharia ele? Para as crianças? Para os edi-
fícios? Para as pessoas que remendavam as redes? Ou se-
ria a mulher dos Fisk que ele observava?
A mulher na praia parou, virou-se e olhou para o
mar. Permaneceu imóvel. A capa verde esvoaçava ao
vento, o capuz ocultava-lhe o rosto.
Ela está a olhar para nós, pensou Rowan. Fitou de
novo Seaborn. Também ele permanecia imóvel, como que
intensamente concentrado. As gotículas de água salgada
fustigavam-lhe o rosto como chuva, mas ele não se virou
nem semicerrou os olhos como Rowan se vira forçado a
fazer.
Eles não se mexem, nem acenam, nem fazem ne-
nhum sinal, pensou Rowan. Mas, mesmo assim, ela está a
enviar alguma mensagem dos Fisk. Se não conseguem ler
os pensamentos um do outro, então a mensagem tem a
ver como a forma como ela se posiciona. Ou mesmo o
fato de ter sequer aparecido na praia. As intrigas e planos
desta gente são intermináveis.
Cresceu dentro dele uma nova onda de raiva que se
lhe fixou na garganta. Sentia-se como se fosse sufocar.
Deve ter feito algum pequeno ruído, porque Sea-
born olhou rapidamente para ele, o rosto demonstrando
surpresa e culpa.
— O seu clã já sabe que a Escolha foi atrasada? —
perguntou Rowan. — É essa a mensagem dela?
— Mensagem de quem? Não há mensagem ne-
nhuma — respondeu Seaborn, voltando-se.
Mas Rowan sabia que ele estava a mentir.
Não há nada a não ser mentiras aqui, pensou a-
margamente. A mentira contorce-se nas mentes destas
pessoas como as serpentes que se enrolam sob a superfície
do mar deles.
A raiva ainda fervilhava dentro dele. Não lamentava
ter mostrado a Seaborn que não o enganara.
Não necessito de ter cuidado com as palavras, ou
fingir, com esta gente, pensou. Seja o que for que tenha
que recear, não é seguramente a morte às mãos deles. A
Guardiã disse-lhes que não havia tempo para ir buscar
outro Selecionador. Nenhum dos Candidatos arriscaria a
perda do Cristal matando-me agora.
No entanto... surgiu subitamente na mente de Ro-
wan um outro pensamento, como uma coisa viscosa nas
trevas. Pensando bem, o tempo sempre fora curto. A
Guardiã chamara o Selecionador quando era já quase de-
masiado tarde. Os Candidatos sabiam-no desde o início.
Mas Jiller fora envenenada. O atraso na Escolha era
perigoso para os Maris, mas o atraso fora provocado.
Este pensamento aumentou, intensificou-se e re-
torceu-se numa pergunta.
Porquê? Por que haveria alguém de colocar em jo-
go o destino dos Maris? O que teria um clã a ganhar em
ser selecionado na Escolha, se o Cristal deixasse de existir?
Rowan voltou-se para os Candidatos.
Seaborn baixara-se para ajustar melhor o sapato ao
pé. Ou, pelo menos, pretendia dar essa noção. Tinha o
rosto convenientemente oculto. Asha e Doss estavam a-
fastados um do outro na neblina criada pelo rebentamento
das ondas — uma figura alta prateada, a capa esvoaçando
ao vento, uma figura mais baixa em azul.
Rowan recordou-se das palavras de Perlain.
Os Candidatos estudam a forma de vida de Rin... Os trei-
nadores deles sabem como você pensa. Colheram informações a eu
respeito desde o dia em que nasceu.
Se estes estranhos me conhecem, me conhecem de
fato, poderiam ter calculado que não deixaria a minha mãe
morrer sem procurar ajudá-la, pensou Rowan. Podiam ter
calculado que eu retardaria ainda mais a Escolha. Tal co-
mo fiz.
O seu coração acelerou. Este pensamento enchi-
a-lhe a mente agora. Podia vê-lo cara a cara. E era horrível
e aterrorizador.
Comportara-se exatamente como alguém esperara.
Caíra na cilada de fazer parte do plano de alguém.
Alguém pretendia que a Escolha falhasse.
Alguém pretendia que o poder do Cristal se extin-
guisse.
E estavam a utilizar Rowan para ajudá-lo a alcançar
os seus intuitos.
11
O INÍCIO

— J á descansamos o suficiente. Não devemos perder


mais tempo.
Era a voz de Asha, severa e fria.
Rowan engoliu em seco. Não confiava em si para
falar. Pressionou as mãos, tentando evitar que tremessem.
— O que se passa? — perguntou Seaborn rude-
mente. — Está doente?
Embora não visse, Rowan sentiu os Candidatos a
trocarem olhares rápidos e suspeitos.
— Não estou doente — forçou-se a responder.
Respirou fundo e tentou acalmar a mente. Pensou em Es-
trela, em Jonn, em Annad em casa, em Rin. Na mãe deita-
da em sonhos na Caverna do Cristal.
Nada mudou na realidade, disse, para si. Seja quem
for que está por trás desta perversidade, e sejam quais fo-
rem as suas razões, tenho de concretizar o que vim aqui
fazer. Tenho de seguir as instruções de Orin. Tenho de
preparar o antídoto para o Sono da Morte. E rapidamente.
Tinha na algibeira o frasco de vidro que Jonn lhe
dera, protegido na sua suave bolsa de cabedal. Tirou o
frasco para fora e observou-o. Uma coisa bonita e bri-
lhante, mas vazia. Aguardando ser enchida com o que sal-
varia a vida da mãe.
Segurou o jarro na mão e repetiu o verso de Orin,
em voz baixa.
“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte
Enche uma mão cheia com água de prata.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas:
Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar.
Adicione o veneno do seu mais temível medo...
Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina”.
— Essas palavras não fazem qualquer sentido para
mim — disse Seaborn.
— São as palavras de Orin — afirmou Asha rispi-
damente. — São palavras secretas, não destinadas a serem
compreendidas por outros. Há mil anos que estão ocultas.
É errado ir contra a vontade de Orin. Sempre foi.
Doss hesitou.
— A primeira linha é simples — começou final-
mente.
— Mas a segunda... “água de prata”...
— A segunda também é simples — disse Seaborn
com impaciência. — Para começar a poção, temos de tirar
uma mão cheia de água das profundezas. Do mar.
Asha mirou-o com desprezo.
— Até uma criança consegue entender as duas
primeiras linhas — disse. — O problema não está aí.
Rowan desatarraxou a tampa do frasco. Os seus
dedos tremiam. Não dês ouvidos à discussão deles, disse
para si mesmo. Pense apenas no que está a fazer. Vai bus-
car a água. O primeiro ingrediente. Inicia o processo.
Afastou-se dos Candidatos e caminhou rapidamen-
te por entre os salpicos de água para a orla rochosa da I-
lha.
— Espere, Selecionador de Rin — ouviu Asha a
chamar. Rowan continuou a andar. Estava furioso. Quer
que não seja bem sucedido nisto, Asha, zangou-se com ela
mentalmente. Tem tentado desencorajar-me. Mas não vai
conseguir.
Alcançou as rochas e começou a descer por elas,
em direção ao mar.
Foi então, quando a sua raiva começava a diminuir,
que se percebeu o perigo. As ondas lançavam-se sobre a
Ilha, rebentando numa chuva de partículas e lençóis de
espuma sibilantes. Os seus sapatos pesados escorregavam
nas rochas molhadas e polidas. Era como caminhar sobre
gelo. À medida que se aproximava da água, um chuveiro
gelado caia-lhe sobre a cabeça e fustigava-lhe o rosto, pi-
cando-lhe nos olhos e perturbando-lhe a visão.
Sentiu um nó no estômago quando uma onda re-
bentou e sentiu o pé direito a deslizar sob ele. Gritou, de-
batendo-se em desespero para recuperar o equilíbrio. Pe-
rante os seus olhos umedecidos, o mundo inclinou-se es-
tranhamente...
Depois, três pares de mãos agarraram-lhe nos bra-
ços, puxando-o para trás, estabilizando-o. Virou-se, tos-
sindo, vendo os rostos de Seaborn, Asha e Doss fitando-o
sombrios.
Rowan sentiu-se mal. Quase caíra. A cabeça teria
embatido nas rochas duras como o ferro. As ondas
tê-lo-iam sugado para o mar frio e agitado.
Todos os Candidatos avançaram para salvá-lo. Será
que, afinal, estava enganado? Que não teria um inimigo
entre eles?
Ou não seria apenas a altura ideal para ele morrer?
Será que alguém precisava dele vivo e a desperdiçar mo-
mentos preciosos, até a Guardiã se afastar das costas da
vida e o Cristal se extinguir para sempre?
Rowan pestanejou para os três rostos diante de si e
limpou os olhos.
— Obrigado — disse, entorpecido.
Seaborn sorriu.
— Os seus sapatos não são feitos para caminhar
sobre as rochas, Rowan.
— Pedi-lhe para esperar — disse Asha gravemente.
— Tem que deixar que sejamos nós a nadar nas águas
turbulentas, se é que é mesmo necessário.
— Pedi para que me ajudassem — murmurou Ro-
wan. — Mas não estou à espera que arrisquem as suas vi-
das.
Os lábios de Asha assumiram uma linha reta e dura.
— A morte de um de nós não é importante — dis-
se. — Mas, se o perdermos, então os Maris também esta-
rão perdidos.
Seaborn anuiu.
— Dê-me o frasco, eu vou buscar a água — afir-
mou. — Não devemos perder mais tempo.
Doss abriu a boca como que para dizer algo, mas
pareceu mudar de idéias. Os seus olhos, tão estranhamen-
te sonhadores para um Maris, desviaram-se do rosto de
Rowan para o mar irrequieto.
— O que foi? — perguntou-lhe Rowan.
— Eu... não acredito que esta água se ajuste às pa-
lavras do enigma — disse Doss. — Penso que devemos
procurar noutro local.
Os outros ficaram a olhar.
— O mar tem água de prata — disse Asha.
— E reluz como prata ao sol — disse Seaborn.
Doss abanou a cabeça.
— As palavras “água de prata” são tranqüilas e se-
renas, e cheias de mistério — afirmou. — Mas, aqui, o
mar é agitado. Luta com a terra. Desfaz-se em espuma.
Não acredito que Orin lhe tivesse chamado água de prata.
— Quem é você para conhecer a mente de Orin?
— vociferou Asha.
Doss olhou para o chão e não respondeu.
Rowan mordeu o lábio. Lentamente, voltou a en-
roscar a tampa do frasco. Agora que pensava nisso, perce-
bia que Doss estava certo.
Sentiu-se mal com a sua própria falta de senso.
Deixara-se levar pela fúria e medo. Esquecera-se como o
povo Maris era astuto — sobretudo o grande Orin. Senti-
ra-se desesperado e demasiado disposto a acreditar que o
primeiro ingrediente de Orin seria assim tão fácil de en-
contrar.
De fato, fora tão irrefletido que quase perdera a vi-
da apressando-se a colher algo que se iria revelar inútil.
Tenho de ser mais cuidadoso, pensou. Não posso
voltar a entrar em pânico. Tenho de ser tão frio quanto
estes Maris, se quero ser mais astuto do que eles.
Respirou fundo.
— Na sua opinião, o que é água de prata, Doss? —
perguntou, calmamente.
— Não sei — murmurou Doss. — Mas tem que
ser aqui. Sobre ou em redor da Ilha. Porque foi aqui que
Orin preparou a poção.
— Sendo assim, vamos investigar. Vamos investi-
gar até o encontrarmos. — Rowan guardou o frasco de
novo na bolsa e olhou em redor. Um litoral rochoso, on-
das a rebentar, vegetação agreste, uma floresta cerrada e
enredada... Por onde deviam começar?
Repetiu a pergunta em voz alta.
— Por onde devemos começar?
A voz de Seaborn ergueu-se acima das nuvens.
— A Ilha é como águas desconhecidas para nós —
respondeu. — Ninguém, a não ser o Guardião, pode aqui
entrar, exceto na altura da Escolha. Mas já naveguei mui-
tas vezes ao seu redor. E, do outro lado, que não se con-
segue ver de Maris, existem baías calmas e arenosas e lu-
gares protegidos. Talvez aí...
Rowan considerou e depois anuiu.
— Vamos tentar — disse. — Vamos contornar a
costa. Não levará muito tempo. É melhor do que experi-
mentar atravessar a floresta.
— Se formos para o outro lado da Ilha, ficaremos
fora de vista de Maris — murmurou Asha. — E o Cristal
está demasiado enfraquecido para a mente da Guardiã nos
seguir. Se depararmos com algum perigo no lado secreto,
não teremos forma de pedir auxílio.
— Teremos de depender uns dos outros para nos
auxiliarmos — disse Rowan.
Assim que as palavras lhe deixaram os lábios, viu de
novo os três Candidatos a trocar olhares suspeitos, a fran-
zir o cenho e a tocar nas navalhas que traziam nos cintos.
Foi invadido pelo desespero. Havia poucas proba-
bilidades dos Candidatos dos Fisk, Pandellis e Umbray
dependerem uns dos outros. Naquele momento, para eles,
nenhum inimigo era mais perigoso do que um da própria
espécie.
Começou a avançar pela costa, mantendo-se junto
das árvores e o mais afastado possível das rochas traiçoei-
ras.
Recordou as palavras de Asha. O que acontecesse
do outro lado da Ilha não seria avistado em Maris. Iria
ficar bastante desprotegido. Nada poderia impedir que um
dos três Candidatos o matasse. Quem o fizesse poderia
também matar os outros e depois regressar para junto da
Guardiã e contar a história que tinham caído acidental-
mente no mar.
Faria aquela viagem também parte do plano de al-
guém?
12
LONGE DA VISTA

R owan sentia-se só e temeroso. Se conseguisse ao


menos falar com alguém que eu soubesse poder
confiar, pensou.
Olhou para trás. Os Candidatos seguiam-no em fila
indiana. Asha, a capa prateada refletindo à vez as árvores e
o mar, seguia na frente, praticamente atrás dele.
Rowan percebeu subitamente que ela parecia muito
familiar. Apesar do aspecto e roupas estranhas, Asha re-
cordava-o Jiller, a mãe. Parecia honesta, firme, direta, de-
terminada a fazer o que era correto, fosse a que preço
fosse.
Virou-se para a frente e prosseguiu caminho. Con-
tornavam agora a Ilha. Em breve, deixariam de ver a costa
Maris.
Os seus pensamentos não paravam. Sim, Asha fa-
zia-o lembrar-se da sua mãe. Apesar da fúria que ele sentia
e da falta de encorajamento por parte dela, queria confiar
nela. Recordou-se que fora Asha quem soara o alarme so-
bre o lado secreto da Ilha.
Mas ela sabia que eu não hesitaria por causa disso,
pensou. Sabia, mesmo, que isso me tornaria mais deter-
minado.
Os treinadores deles sabem como você pensa.
Não posso esquecer-me disso, disse Rowan para si.
Nunca o posso esquecer.
Centrou os pensamentos em Seaborn, que seguia
atrás de Asha, alto e sólido em verde. Seaborn era enérgi-
co, confiante e forte. Um homem com quem se podia
contar. Recordava-lhe Jonn — Jonn Forte, que tantas ve-
zes o ajudara e ficara do seu lado em épocas de perigo.
Fora Seaborn quem sugerira deslocarem-se para o
lado secreto da Ilha. Parecera sugeri-lo apenas porque es-
tava ansioso por ajudar. Ansioso por alguma ação, como
seria o caso de Jonn.
Mas, será que sim? Ou estaria simplesmente a de-
senrolar o próximo passo de uma intriga?
Rowan abanou a cabeça. Também não podia estar
seguro em relação a Seaborn.
Quanto a Doss. Este seguia no fim da fila. Era tão
mais baixo em relação aos outros que tudo o que Rowan
conseguia ver era uma forma azul intermitente, aparecen-
do por breves instantes e depois desaparecendo por trás
do verde de Seaborn.
Doss era calmo e sonhador e mais inseguro do que
os outros. Será que Doss recordava alguém a Rowan?
Sim, claro que sim. Doss era como Rowan. Seria
então a pessoa em quem confiar.
No entanto, fora Doss quem suscitara as dúvidas
sobre a água de prata. Foram as suas palavras alegada-
mente hesitantes que acabaram por dar origem àquela vi-
agem, embora Doss por si não a tivesse sugerido.
Seria Doss, de fato, o mais esperto e mais perigoso
de todos eles?
A mente de Rowan era um verdadeiro turbilhão.
Nada era certo. Flutuava indefeso em marés agitadas de
perguntas e confusão. Enfiou a mão na algibeira e segurou
no frasco de tampa de prata, retirando conforto da sua
dureza sólida.
Não posso confiar em nenhum deles, pensou. Só
posso confiar em mim.
Subitamente, percebeu que caminhava sobre areia e
não sobre rocha. Olhou para cima e verificou que, en-
quanto pensava para si, contornara a curva da Ilha sem
reparar.
Tal como Seaborn dissera, o outro lado da Ilha era
uma baía abrigada. As árvores que o ladeavam já não eram
uma massa sólida. Carreiros sombrios e com fetos mer-
gulhavam nas profundezas da floresta e podia avistar cla-
reiras de vegetação rasteira por entre os troncos.
Naquela costa mais amena, as ondas desfaziam-se
calmamente, transformando-se em espuma. Na outra ex-
tremidade da praia, um elevado penhasco recortado ergui-
a-se do mar como uma barreira. A sua volta, duas aves
grandes voavam e piavam. Eram os únicos sinais de vida.
Para lá das ondas, até onde os seus olhos conse-
guiam ver, não havia nada a não ser mar e céu.
Agora, pensou Rowan, estou verdadeiramente so-
zinho. Forçou a mente a apagar este medo.
Água de prata...
Rowan observou a linha de ondas rolando para a
praia. Eram seguramente menores do que do outro lado
da Ilha. Mas, apesar de tudo, não pareciam adequar-se às
palavras.
Sentiu um arrepio na nuca e virou-se, vendo Asha,
Seaborn e Doss mesmo atrás dele. Tinham alcançado o
local onde Rowan se encontrava e aguardavam. Há quanto
tempo estariam ali? Não sabia dizer. Moviam-se em per-
feito silêncio.
Tenho de informá-los sobre o que vamos fazer de
seguida, pensou Rowan. E sentiu-se de novo invadido
pelo desespero.
Não sou um líder, pensou. Não sei para onde me
virar. Sou um estranho aqui. Estou com medo. Insisti em
fazer isto e, agora, não sei para onde ir ou o que fazer.
Mirou mais uma vez os Candidatos. E percebeu
lentamente que pareciam diferentes.
Há duas horas atrás, não o teria detectado. Mas,
desde então, acostumara-se a ver rostos de Maris. Já não
lhe pareciam todos iguais. Começara a perceber expres-
sões e alterações de humor naqueles com quem falava.
Via agora que Asha, Seaborn e Doss estavam com
medo. O olhar deles era cauteloso. Permaneciam imóveis,
preparando-se para o perigo. As mãos pairavam próximas
das navalhas nos cintos.
Neste lado da Ilha, pensou, são tão estranhos
quanto eu. Não estudaram este lugar. Não conseguem ver
as suas casas. Nunca pisaram esta areia. Não sabem o que
poderão encontrar aqui.
Por alguma razão, esse pensamento deu-lhe alento.
— Penso que devemos começar por caminhar ao
longo da areia — disse, em voz alta. — Olhem para a es-
querda e para a direita, tentando detectar algo que se adé-
qüe às palavras.
— A água só pode ser o mar — disse Asha, atrás
dele. — Não a encontraremos entre as árvores, Selecio-
nador de Rin.
— A água em si tem mais do que um significado —
disse Doss, em voz baixa. — O enigma não diz “as águas
de prata” mas apenas “água de prata”.
— Que diferença faz? — retorquiu a mulher. — É
claro ao que Orin se referia.
Seaborn riu-se.
— Quem é você, Asha dos Umbray, para conhecer a
mente de Orin? — troçou.
— Cuidado com essa língua suja, Fisk! — cuspiu
Asha.
— Cuidado com a sua — disse Seaborn.
Rowan não disse nada. Apetecia-lhe gritar com eles.
Apetecia-lhe rogar-lhes que trabalhassem em equipe, para
o ajudarem. Mas sabia que não valia a pena.
Pôs-se a caminhar, sabendo que eles o seguiriam. A
areia chiava sob os seus pés. Seguindo em frente, olhava
alternadamente da floresta para o mar e do mar para a
floresta.
O seu coração entristecia-se à medida que os mi-
nutos passavam.
Nada. Não conseguia ver nada.
Não muito à frente, a areia terminava no sopé do
enorme penhasco rochoso que se estendia pela praia e
penetrava no mar. Assim que o alcançassem, não poderi-
am avançar. O único lugar que lhes restaria para investigar
seria a floresta em si. E, embora a Ilha fosse pequena, sem
nenhuma pista de orientação isso poderia levar dias.
Se ao menos soubesse o que procuro, pensou Ro-
wan desesperadamente. Passou por uma outra abertura no
arvoredo, espreitou, viu vegetação alta e aguçada a oscilar
e seguiu caminho.
Uma das aves que avistara antes piou das profun-
dezas da floresta. Olhou na direção do som. Então,
quando voltava a cabeça de novo para o mar, avistou algo.
Apenas de relance, pelo canto do olho.
Estacou de imediato e retrocedeu um passo. Es-
preitou por entre as árvores. Sim, lá estava de novo. Em
algum lugar por entre as profundezas verdes, algo reluzia
em tom de prata. Como água parada e secreta, brevemente
tocada pelo sol.
— Penso... há qualquer coisa ali — disse, apontan-
do. Tentou falar com calma, mas o coração batia desor-
denado.
De algum modo, sabia, sem sombra de dúvida, que
encontrara finalmente a água de prata de Orin.
13
ÁGUA DE PRATA

A briram caminho por entre a vegetação alta e pene-


traram cautelosamente na floresta. Hesitaram por
momentos, apreensivos e silenciosos.
As árvores elevavam-se bem alto de ambos os la-
dos. Ramos frondosos, entrelaçados, formavam uma co-
bertura sobre a cabeça deles, bloqueando o sol. Agora que
tinham ultrapassado a vegetação alta, viram-se num ca-
minho largo que se estendia para o seio da floresta.
Rowan viu Doss a estremecer ao olhar ao redor.
— Quem abriu este caminho? — questionou-se Se-
aborn em voz alta.
Era certo que aquela trilha não existia ali por acaso.
Era plano e largo — suficientemente largo para os quatro
caminharem facilmente lado a lado. Era ladeado por mon-
tes de terra afastados para o lado, que ficaram depois co-
bertos de arbustos, musgo e fetos.
— Deve ter sido a Guardiã — disse Asha. — Só
um Guardião está autorizado a vir à Ilha. Mas parece evi-
dente que o caminho não é utilizado há muito tempo.
Apontou para a camada espessa de folhas apodre-
cidas que cobriam o trilho e os grupos de fetos que esten-
diam as suas tenras folhas aqui e ali.
Rowan anuiu.
— Pelo menos um ano — disse. — Se estas plantas
crescem como em Rin.
— Mesmo assim — afirmou Seaborn gravemente
—, devemos manter a vigilância quanto a um possível pe-
rigo.
Avançaram, os pés afundando-se no tapete casta-
nho de folhas. Traças gordas e cinzentas esvoaçavam ce-
gamente no caminho, roçando-lhes com as suaves asas
nos rostos.
Rowan forçou a visão na penumbra, procurando à
frente nova cintilação de prata.
Por entre as árvores, detectou o brilho de um verde
mais brilhante e escutou de novo o piar feroz de uma das
aves que avistara junto do penhasco.
Não parece um som simpático, pensou. Uma idéia
agitou-lhe a mente mas um entusiasmo súbito dissipou-a
rapidamente. Porque, mesmo à sua frente, ainda o piar da
ave esmorecia, o prateado que ele buscava reluziu de no-
vo.
— Ali — exclamou. Começou a correr.
Podia ouvir Asha, Seaborn e Doss apressando-se
atrás dele. Pela primeira vez, estavam com maiores difi-
culdades do que ele. Os seus sapatos leves afundavam-se
na suavidade do caminho, retardando-os.
Das folhas emanava um cheiro a umidade e terra ao
serem esmagadas debaixo dos pés de Rowan. Misturou-se
com outros odores da floresta. Folhas frescas, fetos par-
tidos, mofo... e algo mais.
Rowan torceu o nariz, tentando determinar o que
era esse algo mais. Era um perfume forte e doce. Talvez
uma flor de floresta, mas não havia nada que se asseme-
lhasse em Rin. E era cada vez mais intenso.
O caminho fez uma curva ligeira e deu acesso ao
que parecia ser uma clareira natural, rodeada de árvores.
Havia folhas e vegetação em torno da clareira mas, no
centro, erguia-se um rochedo liso e descoberto, dobrado e
curvo, como um grande animal enroscado a dormir.
O céu criava um círculo pálido por cima, ilumi-
nando a clareira. O enorme rochedo elevava-se, cinzento,
de um dos lados, acima dos topos das árvores.
Não havia vento. Nenhum ruído, à exceção do som
distante do mar. Era um local tranqüilo e secreto. No ro-
chedo, reluziam charcos de água.
— Deve haver uma nascente lá em cima — mur-
murou Rowan. — Alimentada de um riacho sob o roche-
do.
Não havia razão para murmurar. Mas Rowan sentia
a pele eriçada. Pressentia perigo.
Talvez fosse a luz, depois da penumbra na floresta.
Talvez fosse o cheiro estranho e adocicado que surgiu su-
bitamente à sua volta. Ou talvez fosse o silêncio do lugar,
e a sua estranheza.
Também Asha, Seaborn e Doss pareciam ter sido
afetados. Rowan só sabia que estavam atrás dele porque
os ouvia a respirar.
Aproximou-se do rochedo. Eles o seguiram quando
Rowan subiu lentamente para o topo.
E ali, tal como ele contara, havia uma lagoa de água
cristalina, escavada na rocha. Era quase perfeitamente re-
donda e tão pequena que duas pessoas conseguiam tocar
nas mãos uma da outra no seu diâmetro.
Muito abaixo da superfície, um reluzir de prata. O
fundo da lagoa estava coberto com um tipo qualquer de
lama ou areia reluzente.
Mas não foi isso que levou Rowan a libertar uma
exclamação e o seu coração a encher-se de esperança. Ha-
via algo mais debaixo daquela superfície límpida e ondu-
lada. Algo redondo e branco, brilhando na água como
uma lua cheia flutuando no céu.
Era uma flor. Tinha a face virada para o céu, as pé-
talas abertas, formando um círculo perfeito. Rowan podia
sentir o seu perfume elevando-se da água. A fragrância
forte e adocicada que já sentira.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas...
— As flores não conseguem crescer debaixo de
água — exclamou Asha, quebrando o seu silêncio em
choque.
Parecia quase irritada, porque aquilo revolucionava
as leis que lhe ensinaram como sendo inalteráveis. Para
Asha, as flores cresciam ao ar e ao sol. Sempre assim fora.
Era assim que sempre teria que ser.
Mas o rosto de Seaborn estava intenso de curiosi-
dade e entusiasmo.
— Não é o caso desta — disse. — E é o segundo
ingrediente. Encontramos dois num só lugar! Rápido,
Rowan. A água e depois a flor.
Rowan tirou o frasco da algibeira e desapertou a
tampa. Enche uma mão cheia com água de prata... Estendeu a
mão, inclinou-se sobre a água, olhou para os dedos, hesi-
tou...
— Espera — disse Doss, tocando-lhe no braço. —
Lembre-se...
Rowan mal o escutou. Fixava, fascinado, a água.
Porque, subitamente, a flor alva desaparecia. A lagoa dei-
xou de ser cristalina. Transformava-se em cor de prata ao
olhar para ela.
Virou-se para Seaborn, para lhe dizer. E, nesse ins-
tante, viu o rosto do homem a alterar-se, sentiu-se a ser
rudemente empurrado para o chão.
— Cuidado! — gritou Seaborn.
Um grito terrível e penetrante cortou o ar. Asas
enormes bateram sobre as cabeças deles. Ouviu-se um
som de chapinhar e água transbordou para o rochedo.
Depois, uma ave verde, enorme, voou para longe,
regressando ao cume do penhasco com vários peixes pe-
quenos agitando-se por entre as suas garras. Rowan nunca
vira uma ave assim. Era tão grande quanto ele.
Seaborn resfolegou com um riso contido.
— Pensei que estava a nos atacar. Mas pretendia
apenas encher a barriga! E as barrigas das crias. Não ad-
mira que Orin lhe tenha chamado uma “lagoa faminta”.
Doss começou a falar, mas a sua voz foi abafada
pela de Asha. Pusera-se de pé e apontava receosa para a
lagoa.
— Aquela luz! — disse. — O que é?
Rowan aproximou-se da beira da lagoa. O perfume
da flor era muito forte. E a água parecia prata fundida.
Prateada como a capa de Asha. Prateada como os raios de
sol incidindo sobre a água. Prateada como um peixe. Mal
conseguia olhar para lá, tal o brilho que emitia com o sol.
Num instante, percebeu do que sucedera. Os pei-
xes, mergulhando em busca de segurança da ave, agitaram
a areia brilhante no fundo da lagoa.
Enche uma mão cheia com água de prata...
— Seaborn! — gritou. — Rápido! Antes que a pra-
ta se afunde de novo. Tire uma mão cheia de água!
Seaborn hesitou, intrigado.
— A minha mão não serve — gritou Rowan. —
Compreendi isso antes da ave descer. Aberta, a minha
mão é inútil. O enigma refere-se a uma mão Maris. Com
dedos unidos por uma membrana, tal como a de Orin.
Seaborn anuiu e saltou para junto de Rowan.
— Não! — gritou Doss.
Mas Seaborn tinha já enfiado a mão aberta na água.
Começou a levantar o braço. Rowan preparou o
frasco para colher a água. Então, subitamente, Seaborn
gritou em agonia.
Estremeceu a mão no ar. Tinha um líquido pratea-
do na mão aberta em concha. Mas as costas da mão e o
punho estavam cobertos por dezenas de peixes sinuosos.
Mesmo fora de água, continuavam a morder-lhe a carne,
regressando depois à lagoa coberta com o pálido sangue
do Maris.
Asha gritou repugnada e horrorizada.
— Lagoa faminta... — murmurou Doss.
— Rowan, o frasco — gritou Seaborn, estreme-
cendo com dores. — Oh, depressa, por amor de Orin!
Estão a comer-me vivo!
Sem uma palavra, Rowan lançou-lhe o recipiente.
Com a mão livre, Seaborn agarrou no punho ferido, imo-
bilizou-o e despejou o precioso líquido para o frasco.
Os peixes continuavam a cair-lhe da carne. O seu
sangue pingava livremente para a lagoa. E esta pulsava,
fervilhava, enquanto os peixes se banqueteavam.
Grunhindo, Seaborn retrocedeu. Arrancou a última
criatura da mão e atirou-a contra a rocha. Vacilou. Tinha o
rosto tão pálido quanto o ventre de um peixe.
Rowan correu para o seu lado e ajudou-o a sen-
tar-se e depois a deitar-se no chão. Suavemente, virou a
pequena mão membranosa. Só então se revelou o total
horror dos ferimentos.
Os peixes tentaram de fato desossar a carne a Sea-
born. Os ferimentos eram terríveis.
— Nos meus pertences — disse Seaborn com difi-
culdade. — Creme curativo. Ligaduras.
Asha e Doss aproximaram-se quando Rowan tirou
um frasco com uma pomada castanha pegajosa e um rolo
de ligadura sedosa de uma bolsa cozida à capa de Seaborn.
— Eu ajudo — disse Asha, estendendo a mão para
a ligadura.
— Não! — gritou Seaborn fracamente, agarrando o
casaco de Rowan com a mão sã. — Rowan! Não permita
que eles me toquem! Não os deixe aproximar das minhas
coisas!
Asha deu um passo para trás.
— Não tentaria fazer-lhe mal, homem dos Fisk —
disse, franzindo o cenho. — É proibido. Seja como for,
não havia qualquer necessidade. Já fez bastante mal a si
mesmo, sem a minha intervenção.
Rowan começou a espalhar a pomada castanha na
mão de Seaborn. Fê-lo com a maior suavidade possível,
mas Seaborn fechou os olhos, o rosto retorcido em dores.
— Se Seaborn está ferido, é por culpa minha —
murmurou Rowan. — A superfície da lagoa estava ondu-
lada, embora não houvesse vento. Não reparei nesse fato.
Mesmo quando vi a ave a levar os peixes da água, não
considerei o perigo. Não prestei atenção ao aviso no e-
nigma de Orin.
Olhou para Doss.
— Mas você prestou — acrescentou. — Tentou
alertar-me. Bem devia ter-lhe dado ouvidos.
— Eu devia ter falado com maior firmeza — res-
pondeu Doss. — Mas não estava seguro. Era apenas uma
idéia. — Fitou apreensivo o rosto pálido de Seaborn.
Agora que a crise passara, Doss estava calmo como
sempre. Não parecia particularmente preocupado com a
aflição de Seaborn. Mesmo para um Maris, estava estra-
nhamento imperturbado.
Rowan questionou-se sobre isto ao dobrar-se para
ligar a mão tremente do homem que gemia. Estaria Doss
secretamente satisfeito por Seaborn estar ferido? Ter-se-ia
deliberadamente calado até o alerta chegar demasiado tar-
de?
Ou seria apenas o fato de Doss ter presenciado
tanto sofrimento e morte durante ávida que já não ficava
afetado?
Há tanta coisa sobre esta gente que eu desconheço,
pensou Rowan. Quando chegar a altura de escolher, como
irei decidir qual destes Candidatos irá governar melhor os
Maris?
Tentou desviar a mente da pergunta. O importante
agora era curar Jiller. Isso estava em primeiro lugar.
Fora já encontrado um ingrediente para o antídoto.
Teria agora que ser adicionado o segundo.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colhe uma
e adiciona as lágrimas que derramar.
Apenas há alguns minutos atrás, essa tarefa parece-
ra fácil. Mergulhar um braço naquela água clara e ondu-
lante. Apanhar a flor que crescia bem lá no fundo.
Mas agora... quem arriscaria tal coisa?
Ninguém.
14
LAGOA FAMINTA

R owan acabou de ligar a mão de Seaborn e ajudou-o


a sentar-se direito enquanto lhe suspendia o braço.
Viu o homem olhar com ódio para o peixe, agora
imóvel sobre a pedra onde caíra.
Agora, todos podiam ver claramente o seu corpo
transparente e tipo verme e a cabeça inchada que parecia
ter apenas a dimensão suficiente para conter a fileira dupla
de dentes afilados.
— Nunca tinha visto nada assim! — exclamou A-
sha. — E são aos milhares.
Subiu para o rochedo e observou a lagoa.
— Está outra vez límpida — disse. Rowan foi ver.
Não havia dúvida, a lagoa brilhava cristalina. A a-
reia prateada assentara de novo no fundo. Também não
havia sinal do sangue de Seaborn. Pelo que parecia, os
peixes trataram rapidamente dele.
A flor alva flutuava tentadora nas profundezas agi-
tadas. Parecia que se conseguiria estender a mão e apa-
nhá-la... com a maior das facilidades. E, há apenas alguns
minutos atrás, Rowan pensou que o poderia fazer.
— Vamos ter de partir o pedúnculo da flor com
dois paus e retirá-la da água — sugeriu Asha.
Rowan abanou a cabeça.
— O enigma diz que temos de adicionar as lágri-
mas que a flor derramar. Penso que as lágrimas devem ser
a seiva que pinga do caule partido. Se partirmos o pedún-
culo aqui de cima, irá diluir-se na água. A flor tem de ser
apanhada à mão e o caule protegido para não deixar es-
capar a seiva.
Uma das grandes borboletas cinzentas da floresta
pairou sobre a lagoa, atraída pelo aroma da flor. A água
estremeceu. Um perfume erguia-se da superfície em ondas
de doçura. A borboleta voou mais baixo. As suas asas to-
caram na água...
Num abrir e fechar de olhos, desapareceu da super-
fície. A água borbulhou e ondulou como se estivesse em
ebulição. Depois, mais nada.
Rowan estremeceu. Combateu a agonia que sentia
no estômago.
É assim que as coisas são no mundo, disse a si
mesmo. Os peixes comem borboletas. As aves comem os
peixes. É assim o ciclo da vida.
Apesar de tudo, a morte da inocente borboleta
perturbara-o.
— Se aquelas criaturas só comem borboletas, é de
admirar serem em tamanho número — comentou Asha,
imperturbada.
Rowan engoliu em seco e anuiu.
— Temos de arranjar uma forma de lidar com eles
— disse. — Seja como for, temos de apanhar a flor alva.
— Só há um modo de lidar com peixes — afirmou
Asha com firmeza. — Mesmo peixes tão extraordinários
como estes. Vamos capturá-los. Apanhá-los com uma re-
de, até ao último.
— Não creio que tenhamos uma rede que os segure
— disse Doss, ouvindo a sugestão.
Asha voltou-se para ele, envolvendo-se na sua capa
prateada.
— Não dispomos de uma rede suficientemente a-
dequada, é verdade — respondeu. — Mas, se unirmos
todas as nossas redes, de forma a que a malha fique cru-
zada, a rede servirá para o efeito. Tenho certeza.
Doss olhou para o céu.
— É melhor afastarmo-nos da lagoa — disse. — A
ave está de volta.
Recordando-se do que acontecera da última vez,
Rowan e Asha apressaram-se a descer do rochedo.
Rowan virou-se para observar. A ave mergulhou na
direção da lagoa a uma velocidade vertiginosa. Era enor-
me. O seu bico era cruel e curvo. Tinha as garras estendi-
das, prontas a capturar a presa.
Enquanto Rowan olhava, a ave pairou por instantes
sobre a lagoa. A água começou a ficar prateada quando os
peixes procuraram segurança.
Então, subitamente, a ave guinou no ar e, libertan-
do um pio, lançou-se direta a Rowan e Asha.
— Para baixo! — gritou Rowan, empurrando Asha
para o chão.
Mesmo a tempo. O bico a estalar, as asas em mo-
vimento e as garras afiadas como lâminas não os apanha-
ram por uma fração de segundo.
Rowan ficou a ver, perplexo, a ave a afastar-se.
— O que... o que ela está a fazer? — gritou Sea-
born.
— Não sei — respondeu Rowan, ofegante. — Pa-
rece ter decidido que somos inimigos dela.
Asha pôs-se de pé, lívida e abalada.
— Ficarei satisfeita quando sair deste lugar — dis-
se. Tirou uma rede fina da bolsa na capa. — Com esse fim
— acrescentou —, pedirei aos Candidatos dos Pandellis e
dos Fisk que me entreguem as suas redes, para que possa
limpar a lagoa.
Sem uma palavra, Seaborn levou a mão sã à sua
capa e retirou uma rede ainda mais fina do que a de Asha.
Estendeu-a.
Doss hesitou e depois procedeu de igual modo.
Asha estendeu as três redes sobre a rocha, umas
por cima das outras, e atou as extremidades em vários lu-
gares. Rowan viu que, em conjunto, as redes formavam
uma teia fina. Havia muito poucos orifícios através dos
quais peixes podiam escapar, mesmo peixes tão pequenos
como os que viviam na lagoa.
Asha levantou-se, com as três redes tornadas numa
só na mão. Olhou para o topo do penhasco para lá das
árvores. A ave verde guinchava aí, batendo as asas para
um animal da sua espécie que se atrevera a entrar no seu
território.
— O nosso amigo está ocupado por agora — disse.
— Este é o momento oportuno.
Levou a rede para a lagoa da flor alva e ajoelhou-se
junto a ela. Rowan e Doss correram para a ajudar. Baixa-
ram-se à beira da lagoa, segurando a rede entre si.
— Temos de mergulhar a rede, erguer os peixes
para fora, lançá-los para a rocha onde não nos possam
fazer mal e mergulhar de novo o mais depressa possível
— afirmou Asha. — Vai levar algum tempo a esvaziar a
lagoa por completo. — Olhou para trás para Seaborn, que
observava sem nada poder fazer, afagando a mão ferida.
— Avise-nos se a ave se aproximar — ordenou. — Certa-
mente que ficará satisfeito por ter algo útil para fazer.
Virou-se para Rowan e Doss. Agrada-lhe estar no
comando, pensou Rowan.
— Prontos? — perguntou Asha. — Agora!
Mergulharam a rede na lagoa. A água agitou-se.
Rowan sentiu um ligeiro esticar nas mãos. Tornou os
músculos tensos, pronto a levantar...
— Para fora! — gritou Asha.
Puxaram em simultâneo. Rowan contara com um
pequeno peso... mas não havia qualquer peso.
Retrocedeu alguns passos, mirando estupidamente
o fragmento de rede esfarrapado que segurava. Olhou pa-
ra os outros. Também eles estavam perplexos, como se
não entendessem o que acontecera.
Toda a zona central da rede desaparecera. E, na la-
goa, os peixes banqueteavam-se.
— Nunca... — Asha tremia em choque e raiva. —
Nunca vi nada assim. Que diabos serão estes?
A água acalmava-se. Não tardou a ondular de novo
e puderam avistar outra vez a flor alva. Não havia sinais
da rede, nem de qualquer pedaço. Fora completamente
consumida.
— Não acredito! — gritou Asha. — Comem a
nossa rede, mas não tocam na flor!
— Penso que sei porquê — disse Doss. — É por-
que necessitam da flor. O seu perfume atrai as borboletas
que eles usam como alimento. — Sorriu. — E, como é
evidente — acrescentou —, a flor também precisa dos
peixes. Eles devoram tudo o que cai na lagoa, pelo que a
água permanece límpida e cristalina e a flor consegue
sempre ver o sol.
— Cuidado! — gritou Seaborn.
Apressaram-se a afastarem-se da lagoa, manten-
do-se acocorados.
A ave de penas verdes fez um vôo raso. A lagoa
começou a ficar prateada. A ave mergulhou e depois er-
gueu-se, guinchando, levando consigo presas que se con-
torciam.
— A ave consegue apanhar os peixes — disse Doss
lentamente.
— Foi adequado pela natureza para poder fazê-lo!
— exclamou Asha. — Mas não podemos esperar que es-
vazie a lagoa para nós.
— Temos algum recipiente com o qual consigamos
retirar a água para fora? — perguntou Seaborn.
Ninguém tinha. E, depois do que acontecera com a
rede, todos sabiam que um recipiente feito de folhas, te-
cido ou casca de árvore seria inútil.
— Já sei! Vamos encher a lagoa com areia e rochas
— disse Asha, dando um salto. — Depois a água trans-
borda e os peixes demônios morrem.
— Não temos tempo a perder. Seriam necessárias
muitas, muitas horas para encher aquela lagoa — mur-
murou Seaborn. — E eu... — Fez uma careta, afagando a
mão dorida. — Eu pouco os posso ajudar.
— Não importa! — Os olhos pálidos de Asha relu-
ziam de fúria. — Aquelas criaturas têm de ser destruídas.
Têm mesmo!
Rowan abanou a cabeça.
— Está a esquecer-se — disse, gentilmente. — O
nosso objetivo não é destruir os peixes. O nosso objetivo
é colher a flor alva. Se enchermos a lagoa, a flor ficará so-
terrada no fundo. Ficará danificada, talvez mesmo partida.
Depois, será inútil.
Asha levantou as mãos.
— Temos de destruir os peixes antes de conse-
guirmos chegar à flor! — explodiu. — Se não os conse-
guirmos destruir, nada se poderá fazer!
— Pode, sim — gritou Rowan. — Tem de poder.
— Pode ser feito — disse Doss. — Porque Orin
fê-lo. Tem de existir uma forma. Só precisamos descobrir.
Fez-se silêncio. Baixaram-se no rochedo, obser-
vando a ave grande a aproximar-se de novo da lagoa, a
pairar por um segundo enquanto a água se tornava prate-
ada sob a sua sombra e depois a mergulhar.
— Os peixes têm medo da ave — disse Doss subi-
tamente.
— Correm a esconder-se sob a areia prateada antes
de ela mergulhar. E é aí que permanecem até o perigo
passar.
— Está a pensar que, nesse momento, poderíamos
apanhar a flor em segurança — murmurou Rowan.
Seaborn parecia duvidoso.
— Tudo sucede num abrir e fechar de olhos —
disse.
— E continua a haver peixes na água, porque a ave
captura alguns. Mas poderíamos tentar, e esperar, que se-
jam em número suficientemente reduzido para provocar
muitos danos.
Asha resfolegou.
— Estão a sonhar, vocês três, se pensam estar no
caminho daquela ave quando ataca. Seria uma loucura. Se-
riam dilacerados.
Olhou de novo para o topo do penhasco, onde a
ave lutava de novo com outra da sua espécie. No mar, ca-
íam penas verdes enquanto ela batia as asas em fúria, as
garras curvas golpeando o intruso.
Rowan anuiu. A seu modo, a ave era tão perigosa
quanto os peixes vorazes. Seja como for, a objeção de Se-
aborn também fazia sentido. O momento de segurança,
enquanto a ave pairava, era mínimo. Nem os peixes dis-
punham todos de tempo para se esconderem na areia pra-
teada.
Mas todos tentavam. Porque sabiam que estavam
em perigo. Como os pássaros que se afastavam rapida-
mente dos campos de cereais em Rin quando alguém se
aproximava. Ou quando Jiller colocava um...
Rowan conteve a respiração.
— O que foi? — perguntou Doss.
— Já sei o que tenho que fazer — disse Rowan. —
Preciso de uma navalha. E da capa de Seaborn. E de al-
guns paus compridos e direitos.
15
O PLANO

A ave verde mergulhou muitas vezes na lagoa até


Rowan terminar a sua obra.
— Em nome de Orin, por favor despache-se —
pediu-lhe Seaborn, mirando o sol, inquieto.
Rowan mordeu o lábio, forçando-se a concentrar-se
no que fazia. Sabia perfeitamente que o tempo era pre-
cioso. Mas o trabalho tinha que ser feito adequadamente,
sob pena de não resultar.
Atou por fim os últimos nós e retrocedeu.
Asha, Doss e Seaborn fitaram em silêncio a coisa
que Rowan criara. Tinha a forma de um pássaro, feito
com partes da capa verde de Seaborn, formando uma es-
trutura tipo papagaio de papel com diversos paus.
Seaborn franziu o cenho.
— É uma idéia curiosa — disse. — Como lhe o-
correu tal coisa?
— A minha mãe faz uma figura em madeira e ves-
te-lhe as suas roupas, para afugentar os pássaros dos nos-
sos campos — disse Rowan, erguendo a forma nos bra-
ços.
— Mas tenho certeza que não enganará os peixes
diabo — disse Asha.
— Tenho esperanças que sim — disse Rowan. —
Em Rin, o truque não resulta com os pássaros mais ve-
lhos. Mas assusta aqueles que não sabem ainda diferenciar
o perigo verdadeiro do falso. E penso que estes peixes são
como esses pássaros mais jovens. Porque, se estiver certo,
nunca ninguém tentou este truque aqui desde o tempo de
Orin.
Levou a estrutura para a lagoa e observou os céus.
A ave verde não estava à vista.
— Agora é o momento — disse, acenando. — Rá-
pido, antes que o pássaro verdadeiro regresse ou o sol se
ponha. É importante que a sombra do pássaro incida na
superfície da água.
Doss e Asha afastaram-se da lagoa e seguraram a
estrutura pelas extremidades das asas.
Rowan deitou-se junto à lagoa, de olhos fixos na
flor alva. Seaborn, contraindo-se com dores ao mover-se,
ajoelhou-se ao lado dele, segurando o frasco de vidro.
Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colhe u-
ma...
— Agora — murmurou Rowan.
Asha e Doss avançaram, um de cada lado da lagoa.
A sombra da forma de pássaro que seguravam incidiu so-
bre a água.
De imediato, a lagoa começou a turvar-se e depois
a brilhar. Os peixes enterravam-se na areia de prata, pro-
curando salvar as vidas.
— Espera... espera — murmurou Doss. — Deixa
que todos se escondam.
Rowan sentia formigamento na mão. Contou len-
tamente até cinco. Depois, soube que não podia esperar
mais. Rangendo os dentes, mergulhou o braço nas pro-
fundezas frias e prateadas. Cada vez mais fundo... espe-
rando a cada segundo aquela dor penetrante que assinala-
ria que os peixes vorazes tinham abandonado o esconde-
rijo, conscientes de que tinham sido enganados.
Tinha o caule da flor alva entre os dedos, suave e
duro. Dobrou-o, mas este não se partiu.
— Depressa! — suplicou Seaborn. Desesperada-
mente, Rowan inclinou-se mais sobre a lagoa e enfiou o
outro braço na água, cortando o caule da flor com as u-
nhas. A água prateada roçava-lhe o peito, o pescoço, o
queixo. Se os peixes atacassem agora...
Sentiu o caule a partir. Apertando a extremidade
entre os dedos de uma mão e segurando na flor com a
outra, puxou-se para trás, roçando na rocha. E, no preciso
instante em que a flor branca rasgou a superfície da água,
uma dor ardente disparou pelos seus antebraços e pulsos.
Ouviu Asha e Seaborn a gritar horrorizados. Chei-
rou o aroma pesado e sufocante da flor que murchava já.
Olhou para os braços, onde uma dúzia de criaturas trans-
parentes se agarravam a ele, mordendo e contorcendo-se.
A sua mente ficou toldada pela dor que se asseme-
lhava a um milhar de agulhas. Mas Seaborn segurava no
frasco de vidro, chamando por ele.
Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar...
Rowan colocou o caule da flor sobre o jarro e li-
bertou o aperto dos dedos.
...adiciona as lágrimas que derramar.
E gotas preciosas caíram no frasco. Misturando-se
com o líquido prateado. Tornando-o azul. Azul como o
tecido brilhante da capa de Doss. Azul como o mar. Azul
como o céu.

***

— Pronto. Está feito — disse Doss, apertando a


última ligadura.
Rowan agradeceu-lhe. Os seus braços continuavam
a latejar e a doer. Mas a pomada pegajosa castanha e as
ligaduras eram reconfortantes.
Olhou para a rocha onde se encontrava a flor alva,
já amarelecendo. Sentiu pena que ela tivesse que morrer.
Doss seguiu o olhar dele e emitiu um dos seus sor-
risos raros.
— Venha aqui — disse, chamando. Rowan levan-
tou-se e seguiu-o.
A lagoa estava ondulante e límpida. Muito abaixo
da sua superfície, reluzia a corola branca de outra flor alva.
— Havia um botão por baixo da flor que apanhou
— disse Doss, enquanto Rowan continha a respiração. —
Abriu assim que a água da lagoa se tornou clara. Vi isso a
acontecer. Foi como um milagre.
— Um milagre!? — exclamou Asha, juntou-se a e-
les. — Como pode chamar a uma coisa tão demoníaca um
milagre?
Doss virou uns olhos sérios para ela.
— A flor não é demoníaca por florir onde floresce
— disse. — Limita-se a existir. Tal como os peixes na la-
goa e a ave no penhasco e você e eu.
Asha retribuiu-lhe friamente o olhar.
— Nunca se esqueça que é um Candidato, pois
não, Doss dos Pandellis? — escarneceu. — E como es-
tudou bem o Selecionador! Diz exatamente o que lhe a-
grada.
Doss franziu o cenho.
— Não, não digo — retorquiu. — Afirmo aquilo
que penso.
Ela riu-se em descrença e foi sentar-se sozinha na
extremidade do rochedo.
Rowan olhou rapidamente para Doss e desviou lo-
go o olhar. Sentia-se chocado consigo mesmo. Percebera
subitamente que deixara cair a guarda.
Por momentos, esquecera-se que os seus compa-
nheiros não eram seus amigos nem mesmos ajudantes
voluntariosos. Esquecera-se do que Perlain lhe dissera:
tinham sido criados desde tenra idade para serem astutos e
agradarem ao Selecionador, independentemente do que
pudessem pensar.
Esquecera-se que um deles envenenara a sua mãe.
Mas recordara-se agora e a sua raiva regressou. Er-
gueu a cabeça, ignorando a dor dilacerante nos braços e a
dor ainda mais intensa no coração.
— Temos de localizar o terceiro ingrediente —
disse, em voz alta, evitando olhar para eles.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes,
não mais, e deixa repousar.
A voz calma e forte que proferiu as palavras foi a
de Seaborn.
— Penso que já tenho o terceiro ingrediente, Ro-
wan — disse. Mostrou uma pena verde comprida — A
ave arrancou-a da sua própria asa, irada, quando atacou
Asha.
Rowan pensou rapidamente. Uma pluma era uma
pena. Isso era verdade. A ave podia ser considerada um
lutador. Isso era verdade. Os outros dois ingredientes ti-
nham sido encontrados ali, naquele lugar. Era muito pro-
vável que a ave fizesse parte.
E o quarto?
Rowan cerrou os olhos. Não pensaria no quarto.
Nunca desejara pensar no quarto.
Estendeu a mão e Seaborn entregou-lhe a pena.
Viram que a ave se aproximava de novo na direção deles e
saltaram para o lado. Mas a ave não lhes prestou nenhuma
atenção. Limitou-se a mergulhar na lagoa como antes e
depois afastou-se.
Rowan desapertou a tampa do frasco. Enfiou a ex-
tremidade aguçada da pena verde no líquido azul e mexeu.
Uma, duas, três vezes.
Nada aconteceu.
O enigma diz, “deixa repousar”, pensou. Pousou o
frasco sobre a rocha e observou cuidadosamente o con-
teúdo.
Lentamente, o líquido assentou. Mas a cor perma-
neceu inalterada.
Rowan esforçou-se por se manter em silêncio. Vi-
rou a pena, forçou a extremidade mais larga pelo gargalo
do frasco e mexeu de novo a mistura. Retrocedeu de no-
vo, para observar e aguardar.
Após dois longos minutos, soube que não podia
esperar mais. Lentamente, enroscou a tampa do frasco.
Os três Candidatos miravam-no com curiosidade.
Percebiam que algo se passava, mas não entendiam qual
era o problema.
— A mistura devia ter ficado verde — disse-lhes
Rowan. Tentou falar num tom forte, como um líder. Mas
ouvia a sua voz a transmitir desapontamento.
— Quer dizer que o enigma não se referia à pena
— disse Seaborn. Abanou a cabeça. — Lamento — disse.
— Tinha quase a certeza que era isso.
— Também eu — acrescentou Doss. Fitou por
breves instantes os olhos de Rowan, detectou inimizade e
baixou o olhar.
— Não concordo — disse Asha firmemente. —
Nunca compreendi como uma simples pena podia adicio-
nar fosse o que fosse à poção. As penas são usadas para
decoração e, por vezes, como caneta para escrever. É a
única coisa para que servem.
Rowan rolou a extremidade pontiaguda da pena por
entre os dedos. Apesar do que Asha dissera, tinha a certe-
za que o enigma de Orin se referia à pena da ave verde. Re-
petiu de novo as instruções para si. Será que fizera exata-
mente o que elas indicavam?
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar.
Mexera a mistura com a pena. Mexera três vezes,
não mais. Deixara-a repousar. Não havia nada mais. Na-
da...
Foi então que percebeu. A única palavra que não
considerara.
Suspirou. Pelo menos sabia o que tinha que fazer.
16
O LUTADOR

N ova. Essa era a palavra chave.


— Uma pena pode adicionar algo à poção — dis-
se Rowan para Asha. — Pode adicionar um ves-
tígio do óleo do corpo da ave que a torna impermeável.
Mas só quando é acabada de apanhar. O óleo deve secar e
evaporar muito rapidamente.
Em simultâneo, os Candidatos olharam para cima,
para o céu que escurecia acima do topo do penhasco, on-
de a ave piava, atacava, esvoaçava e lançava as garras a
outro invasor. Naquele momento, uma pena caiu da asa
da ave e planou para o mar muito abaixo.
— As penas caiem quando as aves combatem —
disse Doss.
— Não podemos escalar aquele penhasco, Doss
dos Pandellis — escarneceu Asha. — As mãos dos Maris
não são feitas para escalarem. E o Selecionador não pode
ir só para enfrentar tamanho perigo.
— Seria idiota só de tentar — afirmou Rowan com
desalento. — Não estou suficientemente forte para esca-
lar. Tenho os braços feridos. Além do mais, tenho verti-
gens e acabaria provavelmente por cair.
Nenhum dos Candidatos considerou isto surpre-
endente. Claro que não iriam considerar, pensou Rowan.
Ao contrário de Perlain, que ficara surpreendido de como
ele era diferente das pessoas de Rin que se deslocavam a
Maris nos dias de mercado, sabiam tudo a respeito dele.
Os seus treinadores devem ter-lhes dito que ele não tinha
nada a ver com o seu povo, que era forte e corajoso por
natureza.
Sentiu as faces a enrubescerem. Por vezes, era ainda
difícil enfrentar esta diferença. Não pela primeira vez, de-
sejou de todo o coração que Jonn forte estivesse ali com
ele. Jonn não teria ficado a falar e com receios. Jonn já
estaria a meio daquele penhasco.
— As aves combatem sobre o mar — disse Doss.
— As penas caem na água. Não acredito que conseguís-
semos apanhar uma lá em cima, mesmo que lá chegásse-
mos.
— Então? — Seaborn esperava com impaciência.
— O que sugere então?
Doss mirou-o, sem pestanejar.
— Esperamos que a ave venha até nós. Não tardará
a chegar, quando desejar mais peixes.
Asha anuiu.
— Sim. Depois capturamo-la — disse, com entusi-
asmo.
— E tiramos uma pena à força.
Rowan meio sorriu.
— E capturamo-la com o quê? — inquiriu.
— Com as nossas redes, é claro — respondeu ela.
— O que mais poderíamos...? Oh! — A sua boca cer-
rou-se numa linha rígida ao perceber o problema.
Seaborn riu-se.
— Infelizmente, não dispomos de uma única rede.
Devido à sua experiência na pesca, Asha!
Ela voltou-se furiosa, sabendo que estavam a gozar
com ela. Seaborn anuiu para Rowan.
— É simples. Aguardamos que a ave chegue à la-
goa. Mas, desta vez, não fugimos dela. Enfrentamo-la.
Obrigamo-la a lutar conosco.
O coração de Rowan inchou de gratidão. Se Jonn
não podia estar com ele, pelo menos podia contar com
Seaborn.
Asha virou-se para os enfrentar.
— Está louco, Seaborn dos Fisk? — gritou. —
Começou a acreditar ser você próprio aquilo que os seus
treinadores te ensinaram a representar? O destemido he-
rói, tão amado pelos agricultores de Rin?
Mais uma vez, Rowan sentiu um aperto.
Seaborn não é Jonn, recordou-se. Seaborn é um
Maris. Os Maris valorizam a astúcia, não a força. Deve
estar a representar um papel, tal como Asha diz.
Mas Seaborn fuzilava Asha com o olhar.
— É você quem está louca, Asha dos Umbray —
disse, friamente. — Sou o que sou. E, se o que necessita-
mos é de uma pena acabada de cair da ave, estou disposto
a lutar por ela.
— Uma das suas mãos já não está funcional — re-
torquiu ela.
Seaborn pegou na sua navalha.
— Nesse caso, utilizarei a outra — respondeu.
— A ave vem aí — alertou Doss.
Tentando ignorar a dor lancinante nos braços en-
volvidos por ligaduras, Rowan pegou num pau e correu
para a lagoa. Seaborn acompanhou-o, a mão sã empu-
nhando a navalha. Após um momento de hesitação, Doss
sacou a sua e seguiu-os. Mas Asha envolveu-se na sua ca-
pa prateada e voltou de novo as costas.
A ave avançava na direção deles. Podiam ouvir o
esvoaçar das suas asas. Rowan, Seaborn e Doss ficaram à
espera, ombros com ombros.
É enorme, pensou Rowan. As garras são como na-
valhas. Abraçou-se.
— Deixe a luta conosco, Rowan — gritou Seaborn.
— Tente apanhar a pena enquanto nós...
A voz dele foi abafada pelo grito irritado da ave.
Estava sobre eles! Rowan percebeu o brilho perverso dos
seus olhos negros. Retrocedeu, vacilante, enquanto as asas
gigantes fustigavam o ar acima da cabeça dele.
Depois, perplexo, percebeu que a ave passara por
ele, passara por todos eles. Seguia direta para Asha, que
permanecia teimosamente de costas voltadas para eles.
— Asha! — gritou.
Ela virou-se ligeiramente, viu o que se passava e ati-
rou-se para o chão rochoso. A ave roçou por cima dela, o
bico abrindo e fechando, e depois elevou-se no ar.
Rowan correu para ela. Asha levantava-se já, ma-
chucada, arranhada e estremecendo do choque.
— O que aconteceu? Por que ela fez aquilo? —
disse, com dificuldade.
— Não ligou para nós! — gritou Seaborn, quando
ele e Doss correram para junto deles. — E estávamos ao
lado da lagoa onde se alimenta.
— Já uma dada ocasião atacou Asha, ignoran-
do-nos a todos — murmurou Rowan.
— Mas, porquê? Porquê? — Asha olhou para cima,
temerosa. Levou a mão à boca. — Está voltando! — gri-
tou.
— Vem de novo atrás de mim!
Rowan olhou para cima. Não havia dúvida. Bem
alto no céu, a ave voava em círculos, preparando-se para
atacar mais uma vez.
— Esconda-se na floresta — disse Rowan. — Va-
mos tentar impedi-la.
Asha começou a descer a rocha em direção às ár-
vores. A capa prateada ondulava atrás dela. Na sua super-
fície brilhante, movia-se uma confusão de imagens: o ro-
chedo, o céu, a forma pequena da ave que se aproximava,
as formas maiores de Rowan, Doss e Seaborn. Rowan es-
bugalhou os olhos.
— Asha! — gritou. — A capa! Tire-a! Tire-a!
A mulher hesitou.
Mas Rowan corria já para ela, chamando pelos ou-
tros.
— Não percebe? A capa é um espelho! — disse
Rowan rapidamente, alcançando Asha. Começou a puxar
pelas fitas que prendiam a capa prateada sobre os ombros
dela. — Quando vira as costas, a ave vê o seu próprio re-
flexo. Por isso ataca. Pensa que está a lutar com uma ave
igual a ela.
Agora, Asha não conseguia desprender a capa com
a velocidade necessária. Esta acabou por cair no chão e
Asha afastou-se.
No preciso instante. A ave quase os alcançara.
— Não desperdice a oportunidade — gritou Doss,
correndo para a capa e pegando num dos lados. — Asha,
afaste-se! Seaborn... levante-a comigo.
Seaborn assim fez, sem qualquer pergunta. Esten-
deram a capa entre eles. A ave gigantesca lançou um grito
furioso de aviso. O seu reflexo na capa foi aumentando
gradualmente, enchendo a superfície prateada com um
verde em movimento.
A ave estendeu as garras e bateu as asas numa exi-
bição frenética de raiva. Um rival atrevera-se a invadir o
seu território! Era como aquele que por vezes aparecia na
lagoa prateada. Mas este rival era maior. Batia as suas pró-
prias asas e estendia as garras. Recusava-se a voar dali para
fora. Recusava-se a render-se!
Guinchando, a ave embateu na capa com as asas
enormes, rasgando-a com as garras afiadas como lâminas.
Doss e Seaborn cambalearam e vacilaram, tentando man-
ter o equilíbrio.
De novo, a ave atirou-se contra o inimigo imaginá-
rio. O coração de Rowan deu um salto quando uma pena
caiu, reluzente, para o chão.
— Larguem a capa! — gritou. — Atirem-na para
longe!
Doss e Seaborn lançaram a capa para o lado. Foi
cair amontoada sobre a rocha. A ave pousou sobre ela,
rasgando-a com o bico e guinchando em triunfo.
Rowan mergulhou para a pena, as lágrimas surgin-
do-lhe nos olhos quando a dor disparou nos seus braços
feridos. Retirou o precioso frasco de cristal da algibeira.
Tentando impedir que os dedos tremessem, desatarraxou
a tampa.
Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,
Três vezes, não mais, e deixa repousar...
A pena estava ainda quente na sua mão. A extre-
midade macia e pontiaguda reluzia com óleo. Rowan
mergulhou-a na mistura azul. Contendo a respiração, me-
xeu lentamente. Uma, duas, três vezes.
Pousou a mistura sobre a rocha na sua frente e fe-
chou os olhos. Nem se atrevia a olhar.
Escutou então três vozes a gritar. Abriu os olhos.
O líquido no frasco brilhava num verde brilhante.
Verde como as árvores. Verde como as penas da ave luta-
dora. Verde como a vegetação no vale de Rin.
17
O MAIS TEMÍVEL MEDO

F
ave.
oi agora a vez de Asha ser ligada. As mãos tinham
raspado na rocha e as costas e ombros estavam ar-
ranhados e magoados devido às asas e garras da

Não permitiu que ninguém lhe tocasse nos feri-


mentos a não ser Rowan. Ficou rigidamente sentada en-
quanto ele aplicava a pomada através dos rasgões na roupa
dela. Deve-lhe ter doido, mas não emitiu um único som
de lamento.
Doss e Seaborn observaram ao longe. Seaborn o-
lhava constantemente para o céu. Por fim falou.
— Temos de nos apressar a encontrar o último in-
grediente — disse. — Já está a ficar escuro. A noite não
tarda a cair.
Rowan sabia que Seaborn pensava na força em de-
cadência da Guardiã. Mas Rowan apenas conseguia pensar
na mãe. Quanto tempo lhe restaria?
— A Escolha já devia estar concluída — murmu-
rou Asha. — Nesta altura, o Selecionador devia estar a
nomear a Escolha.
— Como pode a Guardiã ter tanta certeza que irá
morrer ao nascer do sol? — inquiriu Rowan.
— Sempre assim foi — respondeu Asha. — Faz
parte do mistério do Cristal. Esta noite, de todas as noites
do ano, é sempre a noite da Escolha. A noite da lua cheia.
Orin encontrou o Cristal neste mês, na noite de lua cheia.
Mas antes, a chama acima da Caverna do Cristal sempre
esteve acesa ao pôr-do-sol.
Olhou de forma acusadora para Rowan.
— Não tenho culpa que tenhamos tão pouco tem-
po — exclamou Rowan. — Viemos de Rin assim que fo-
mos convocados. E não pedi para que a minha mãe fosse
envenenada.
As últimas linhas do verso de Orin não paravam de
repetir-se na sua mente.
Adiciona o veneno do seu mais temível medo... Uma gota... e
a verdade tornar-se-á cristalina.
Qual era o seu mais temível medo? Era que falhasse
tudo o que tinha que fazer. Que a sua mãe morresse. Que
não fosse escolhido um novo Guardião a tempo para
manter o Cristal vivo. Que, por sua causa, a sua terra fi-
casse à ameaça de uma última e terrível invasão pelos Ze-
bak. Que ele e Jonn, Annad e todos os seus amigos fos-
sem de novo escravizados e o encantador vale destruído.
Mas, não podia ser aquilo o que o enigma de Orin
aludia. Orin referia-se a um tipo diferente de medo. Orin
era um Maris. A receita tinha como fim ser compreendida
pelas mentes dos Maris.
Olhou para Doss, Seaborn e Asha, um a um. Ros-
tos pálidos e tensos. Olhos inexpressivos.
— Qual é o seu maior receio? — inquiriu.
Houve apenas um segundo de hesitação. Depois,
todos afirmaram em simultâneo:
— A Grande Serpente.
Rowan respirou fundo. Já o suspeitava. Mas nem
quisera pensar nisso.
— As garras da Grande Serpente libertam veneno
— disse Doss. — Penso que é a isso que se refere o e-
nigma de Orin. Temos de obter uma gota do veneno para
completar o antídoto.
Os outros dois anuíram.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles. Na cla-
reira, estava tudo tranqüilo e escuro. A ave lutadora já não
guinchava contra os rivais no topo do penhasco. E não
regressara à lagoa. Talvez tivesse regressado ao ninho du-
rante a noite.
— Como encontramos a Grande Serpente? —
perguntou Rowan por fim.
Na sua mente, agigantava-se a imagem que vira na
casa dos livros em Rin. Já nessa altura o amedrontara. O
pensamento de ter que enfrentar o animal em pessoa en-
chia-o de terror.
— O mar está cheio de serpentes — disse Seaborn.
— Não são difíceis de encontrar. É uma questão de nos
aventurarmos na praia depois do sol se pôr, que elas en-
contram-nos.
— Mas, e a Grande Serpente? — persistiu Rowan.
Asha e Seaborn olharam para Doss. E Rowan recordou-se
do que Perlain dissera.
“Os teus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a
Grande Serpente e que sobreviveu. Profundos e extremamente conhe-
cedores. Estranho, num rapaz tão jovem. Só conheci outro assim.”
Virou-se para Doss.
— Você já a viu — afirmou, calmamente. Doss a-
nuiu.
— Já. — Não olhou para Rowan ao responder.
Rowan aguardou. Sabia que, se esperasse o tempo sufi-
ciente, Doss voltaria a falar. — Foi exatamente nesta altu-
ra, há um ano atrás — acabou por murmurar Doss. —
Nesse dia, estava com a minha família, no nosso barco. Ia
estar lua cheia, como estaria durante a Escolha. Era o meu
Dia da Despedida.
— Todos os Candidatos têm um Dia de Despedida
— disse Seaborn, respondendo ao olhar intrigado de Ro-
wan. — É o dia em que nos despedimos da nossa família.
Depois disso, vivemos afastados dos restantes Maris. Re-
tiramo-nos para a casa do Candidato do nosso clã, tendo
apenas por companhia os nossos treinadores e livros, para
nos prepararmos integralmente para a Escolha.
— Isso deve ser duro — afirmou Rowan, pensando
no que sentiria se tivesse que se separar de todos e tudo
que conhecia e amava.
— É necessário — retorquiu Seaborn.
— E representa também preparação — acrescen-
tou Asha. — Porque o novo Guardião só é levado uma
vez à superfície para ser mostrado às pessoas. Posterior-
mente, ele ou ela regressa à Caverna do Cristal, para sem-
pre.
Rowan sentiu um arrepio gelado de horror.
— Querem dizer... que os Guardiães não voltam a
sair da Caverna? — afirmou, perplexo. — Nunca mais
vêem as suas casas e famílias, não respiram ar puro, não
vêem o céu?
Doss sorriu.
— Não precisam de fazê-lo, Rowan. O Cristal é
tudo para eles.
— Estão lá para servir — disse Seaborn.
Rowan fechou os olhos. Para ele, aquilo soava a
uma morte viva. Compreendia agora o que queria Perlain
dizer quando dissera que nem toda a gente desejava ser
Guardião.
— Não entende — afirmou Doss. — Não é dor, é
alegria.
— É um dever glorioso — disse Asha. — Sempre
foi. — Os olhos dela reluziam.
Rowan disse a si mesmo que aquilo era algo que
não lhe dizia respeito. Não lhe competia julgar a forma de
vida dos Maris.
— Fale-me da Grande Serpente, Doss — disse,
abruptamente.
— Tínhamos navegado para longe — disse Doss.
— Pensávamos regressar a casa quando o nosso barco
começou a meter água. Não só num local, mas em vários.
A madeira tinha sido perfurada e os orifícios sagazmente
preenchidos com algo que só caía passado bastante tem-
po, quando o barco já estivesse muito afastado da costa.
Olhava diretamente em frente. Não acusava nin-
guém. Mas Seaborn e Asha franziram o cenho.
— O meu clã não tocou no seu barco! — exclamou
Asha.
— Nem o meu — retorquiu Seaborn. Doss conti-
nuava a não olhar para eles.
— Seja o que for que aconteceu, o barco afun-
dou-se — disse. — Nadamos, mas a corrente estava forte.
— Falava tão baixo que Rowan teve que se inclinar para
ouvi-lo.
— Não tardei a perder de vista a minha mãe e o
meu pai, tal como os meus irmãos — prosseguiu a voz
calma. — Lutei contra a maré. Estava exausto. O sol co-
meçou a pôr-se. Foi então que ouvi um barulho. Um som
alto e estridente. Parecia vir de toda a volta. Do céu por
cima e do mar por baixo. Aumentou de intensidade. Sem-
pre contínuo. Enchia-me os ouvidos e pareceu-me pene-
trar na mente, enchendo-a também, de tal modo que não
conseguia pensar em mais nada. Era o cântico da Grande
Serpente.
Mais uma vez, surgiu na mente de Rowan a imagem
que vira. O barco, e as pessoas aos gritos, com as mãos
sobre os ouvidos. Estremeceu.
A voz de Doss tornara-se monótona e inerte, um
cântico, como se recitasse uma lição repetida tantas vezes.
— A Grande Serpente surgiu das profundezas. Ele-
vou-se como uma torre diante de mim. Os seus olhos
eram dourados e repletos de segredos ancestrais. As es-
camas refaziam como fogo no pôr-do-sol. Mirou-me.
Soube que ia morrer.
— Mas não morreu — exclamou Rowan. O seu
próprio coração batia rápido. Sabia o que era enfrentar
pesadelos.
— Não — respondeu Doss simplesmente. — Fui
envolvido por uma negridão. Não sei o que se passou de-
pois disso. Não me recordo de nada nessa noite. Mas,
quando acordei, o sol levantava-se e eu estava deitado
num fragmento do barco da minha família, à deriva junto
à costa. O meu clã avistou-me e trouxe-me para terra.
Também procuraram os outros. Mas nunca foram encon-
trados.
Voltou os olhos sonhadores para Rowan.
— Da minha família, apenas eu fui poupado. E eu...
mudei. Sentia-o. Todos à minha volta perceberam isso.
Era como se algo tivesse sido perdido... ou acrescido. Não
sei qual dos casos.
— Não deixa de ser invulgar — disse Asha rude-
mente — que o seu clã tenha permitido que continuasse a
ser o Candidato deles. Não havia outros, imperturbados,
que pudessem tomar o seu lugar?
— Claro que sim — respondeu Doss. — E eu
contava com isso. Mas depois percebi que os meus trei-
nadores encaravam a mudança como algo positivo. Não
afetara a minha perspicácia. Mas separou-me dos outros.
Tornou-me diferente. E, na opinião deles, especial.
De novo, um estranho sorriso aflorou nos seus lá-
bios.
— Porque, como é evidente, ver a Grande Serpente
e sobreviver é um poderoso sortilégio. Nunca aconteceu a
ninguém desde Orin, o Sábio.
Seaborn, que estivera a ouvir em silêncio, acabou
por falar.
— Há quem diga que toda essa história é uma
mentira — roncou. — Uma mentira inventada pelos seus
treinadores para impressionar as pessoas e, um dia, o Sele-
cionador. Como talvez esteja a acontecer neste momento.
Doss enfrentou calmamente o olhar frio dele.
— Bem que gostaria que fosse uma mentira — re-
torquiu. — Porque, se assim fosse, aquele som, e aqueles
olhos amarelos, não assombrariam os meus sonhos... co-
mo, depois desta noite, poderão assombrar os seus.
...como, depois desta noite, poderão assombrar os teus.
Rowan endireitou os ombros. Apesar dos seus
medos, das suas dúvidas, sabia que a única alternativa era
ir em frente.
— O sol já se pôs — disse. — O tempo escasseia.
Temos de encontrar a Grande Serpente. Como acham que
devemos começar?
18
A LUA DA ESCOLHA

— N ão vejo como seja possível — disse Asha. —


Só os incautos se aventuram no mar à noite,
mesmo de barco. E não temos nenhum bar-
co. Se formos a nado, seremos seguramente apanhados
pelas serpentes mais pequenas, sem nunca avistarmos a
grande que procuramos.
O céu estava negro e cheio de estrelas. A flor alva
reluzia branca na lagoa negra. As ondas rebentavam na
praia, para lá da floresta.
— Tem de haver uma forma — disse Rowan, ob-
servando Doss. — Porque Orin conseguiu. A resposta
reside nele.
Ver a Grande Serpente e sobreviver é um poderoso sortilégio.
Nunca aconteceu a ninguém desde Orin, o Sábio. Orin, o Sábio...
Há mil anos atrás, no dia em que encontrou o Cris-
tal, Orin deparou com a Grande Serpente, pensou Rowan.
Foi exatamente nesta altura do ano. É por esse motivo
que a Escolha decorre nesta época.
Recordou mentalmente a história. A história que
Perlain lhe contara. Orin andava à pesca. Começou a diri-
gir-se para casa no seu barco, depois do pôr-do-sol. A
Grande Serpente ergueu-se do mar. Intrometeu-se com o
barco dele e perseguiu-o. Orin fugiu para a Ilha. Encon-
trou o Cristal.
E foi assim que tudo começou, pensou Rowan.
Depois, franziu o cenho.
Havia algo de estranho na história. Algum porme-
nor que não estava correto. No início, Rowan não conse-
guiu perceber o que era. Recordou-se então.
Orin não andava a pescar no dia em que encontrou
o Cristal. A Guardiã contara, sem intenção, que Orin se
encontrava na Ilha nesse dia, preparando o antídoto para
o Sono da Morte.
Rowan refletiu. Orin deve ter dito que andava à
pesca, para ocultar os seus verdadeiros objetivos. Não
queria que os outros soubessem que estava a preparar o
secreto antídoto para o Sono da Morte. E nessa altura, e
desde então, ninguém questionara a sua história.
Ninguém questionara porque Orin trouxera o Cris-
tal com ele e todos os interesses se focaram no seu prodí-
gio. E, depois disso, ninguém questionou a história por-
que Orin se tornara em Orin, o Sábio. Alguém extraordi-
nário. O primeiro Guardião do Cristal.
Mas, no dia em que encontrou o Cristal, não pas-
sava de um vulgar homem Maris. E, vendo as coisas sob
esse prisma, a história do seu encontro com a Grande
Serpente era ainda mais improvável.
Teria Orin mais medo de passar a noite na Ilha do
que fazer avançar o seu barco pelas águas negras? Quase
certamente que não.
E, mesmo que tivesse enfrentado a água, teria
mesmo Orin conseguido escapar à Grande Serpente, se
esta o estivesse a perseguir? De novo, quase certamente
que não.
Rowan continuou a refletir. Nesse caso, então
também essa parte da história era falsa. Orin não abando-
nara a Ilha depois do pôr-do-sol. Não encontrara o animal
no mar. Será que o chegara a ver?
Sim, porque o seu veneno era o quarto ingrediente
do antídoto.
Então... Rowan sentiu os pêlos da nuca a arrepia-
rem-se. Então isso significava algo muito estranho de fato.
Significava que, de alguma forma, Orin e a Grande Ser-
pente se encontraram em terra. Na Ilha. Talvez mesmo...
— Olhem para a lua — murmurou Doss, apon-
tando. Uma enorme lua cheia erguera-se acima das copas
das árvores. Calma, fria e branca, flutuava no céu cinzento
como a flor nas profundezas da lagoa negra.
— A lua da Escolha — murmurou Asha.
Foi então que ouviram. Um som pesado e arrasta-
do, vindo do caminho por entre a floresta. Aproximan-
do-se.
— O que é? — perguntou Seaborn, ofegante.
Doss levantou-se, os olhos esbugalhados.
— Rápido — disse. — Vamos sair daqui! Embora!
Correram para longe da rocha e esconderam-se por entre
as árvores.
O som intensificou-se. O ruído das folhas a serem
esmagadas e arrastadas. O som dos fetos a serem vergados
e quebrados sob um peso gigantesco.
Surgiu na clareira a Grande Serpente, deixando a-
trás de si um caminho rasgado, como acontecera tantas
vezes antes. A água do mar ainda escorria da sua cabeça
de dragão. Os olhos amarelos estavam vidrados. As esca-
mas douradas que secavam brilhavam à Lua da Escolha.
O seu corpo enorme e inchado açoitava e ondulava.
Ondas de terror invadiram Rowan. Escutou o cho-
ramingar baixo de Doss, a respiração pesada de Asha e
Seaborn, logo atrás dele. Levou a mão à algibeira e pegou
no pequeno frasco, o frasco que continha a mistura que
iria salvar a vida da mãe. Se fosse adicionada uma pequena
coisa. Uma gota...
— Por que estará aqui? — sussurrou Asha, surpre-
endida. — Por que invade a terra? O mar... o mar é o rei-
no da Grande Serpente. Sempre assim foi.
Mas Rowan já adivinhara.
— Vem aqui uma vez por ano — murmurou em
resposta. — É assim que sempre tem sido. Mas vocês não
o sabiam, porque acontece deste lado da Ilha. O lado que
vocês em Maris nunca avistam, depois do sol se pôr.
O aroma da flor alva pairava forte no ar. Elevava-se
da lagoa. A serpente retorceu-se até ela, lentamente, tre-
pando com dificuldade pelo rochedo.
— Está à nossa procura — disse Seaborn, numa
agonia de medo.
— Não — respondeu Rowan. — Nem sequer sabe
que estamos aqui. Procura outra coisa. Um lugar. Obser-
vem. Esperem.
A serpente alcançou a lagoa no topo do rochedo.
Fitou com os olhos amarelos a flor alva, flutuando branca
na água ondulada. Olhou depois para a lua no céu. Abriu
as mandíbulas enormes e libertou um grito. Um som es-
tranho e estridente que penetrava nos ouvidos e enchia a
mente.
Doss envolveu a cabeça com os braços e gemeu
suavemente.
Também Asha tapou os olhos.
Mas Seaborn observava, fascinado, enquanto o
monstro enrolava o corpo enorme em tomo da lagoa.
— Está a pôr ovos — exclamou.
— Sim — disse Rowan. — É como as tartarugas
gigantes que nadam nos seus mares. Como o verme Kir-
rian, cujos ovos vocês apanham todas as manhãs da Pri-
mavera. Vive no mar, mas põe os ovos em terra. E este é
o lugar dela. Foi aqui que Orin a encontrou.
A serpente estava de fato a pôr ovos. Brilhavam
como prata ao luar. Com cada um que saía, a ponta da
cauda enorme lançava-o para o interior da lagoa da flor
alva, onde afundava e pousava no leito da areia prateada.
— Não podia haver local melhor para esconder os
ovos. — Rowan estava maravilhado. — Nenhuma criatura
se atreveria a tocar neles. A casca deve ser dura como pe-
dra, pelo que os peixes não lhes podem fazer mal.
Doss e Asha já se atreviam a olhar.
— Mas, quando chocarem... — começou Asha.
— Quando chocarem, não haverá muitos peixes —
disse Rowan calmamente. — A ave lutadora já terá levado
bastantes.
— Os peixes que restarem atacarão as serpentes
recém-nascidas — anuiu Doss. — E muitas serão mortas.
Mas algumas irão sobreviver, nadando para a superfície,
arrastando-se para fora da lagoa, rastejando pelo caminho
até à praia e mergulhando no mar.
— E as cascas dos ovos irão ficar, sendo gradual-
mente esmagadas pela água em movimento, criando mais
areia prateada — disse Seaborn. — Por Orin, é incrível.
— O seu rosto revelava uma expressão de vivo interesse.
Estava tão maravilhado que se esquecera do medo.
— Se não fosse a ave lutadora, a lagoa estaria re-
pleta de peixes, e as serpentes bebês morreriam todas
quando saíssem dos ovos — murmurou Rowan. — Se a
ave lutadora não defendesse a lagoa contra todos os vizi-
nhos, esta ficaria sem nenhum peixe. Assim, todos os o-
vos seriam chocados e o mar ficaria infestado de serpen-
tes, mas sem qualquer outro ser vivo.
— Sem peixe — disse Doss. — Sem alimentos pa-
ra os Maris, sem óleo para as nossas lanternas, pele de
peixe para os nossos sapatos e roupas. Sem segurança,
nem mesmo de dia, para as embarcações que vêm negoci-
ar, porque as serpentes estariam esfomeadas e desespera-
das. Desse modo, os Maris morreriam. E também as ser-
pentes, no final de contas. Faz tudo parte de um grande
círculo.
— Não tem qualquer significado! — Seaborn fran-
zia agora o sobrolho. — As aves comem os peixes. Os
peixes comem as serpentes. Para que existe afinal o ciclo?
Se viermos todos os anos à Ilha e destruirmos os ovos da
Grande Serpente, conforme Rowan nos ensinou, os nos-
sos mares não tardariam a ficar livres de perigo. Podíamos
pescar tanto de noite como de dia, e duplicar, ou mesmo
triplicar, a apanha. Podíamos vender aos comerciantes e
alimentar muitas, muitas pessoas.
— A Ilha está proibida por Orin, Seaborn dos Fisk
— disse Asha teimosamente. — E sempre existiram ser-
pentes nos nossos mares. Sempre foi assim.
Para Asha, era o bastante. Mas não para Seaborn.
— Por que não haveremos de destruir as serpentes?
— inquiriu. — Que utilidade têm? Tudo o que fazem é
impedir-nos de pescarmos quando queremos.
Não está entendendo, Seaborn?, pensou Rowan.
Não vê a utilidade? Acabou de a explicar.
Mas não disse nada. Levantou-se. Todo ele tremia,
mas sabia o que tinha que fazer. Desatarraxou a tampa
prateada do frasco e caminhou para o rochedo.
19
UMA GOTA

A Grande Serpente virou a cabeça. Os seus olhos


amarelos fixavam-se em Rowan.
— Não olhs para ela — gritou Doss.
Mas era demasiado tarde. Rowan mirava já aqueles
olhos vidrados. E não conseguia desviar o olhar. Era co-
mo se o seu corpo estivesse entorpecido.
Mãos puxaram-lhe pela manga.
— Rowan! — disse uma voz sufocada. — Lem-
bre-se! A sua mãe! O veneno!
Rowan desviou os olhos do olhar frio e dourado.
Doss, Asha e Seaborn estavam atrás dele. Os seus rostos
pareciam fantasmas ao luar.
Fora Asha quem falara. Como que em sonho, Ro-
wan percebeu que ela utilizara pela primeira vez o seu
nome. Era ela quem segurava fortemente o seu braço.
— Você é o Selecionador. Não pode fazer isto. Irei
no seu lugar. A minha morte não teria qualquer importân-
cia. A sua representaria o fim dos Maris. Dê-me o frasco.
Rowan fitou os olhos pálidos dela. Demonstravam
um medo profundo, mas mirava-o com firmeza. Ela era
como a minha mãe, pensou. Fará sempre o que considerar
que está certo. Até à morte.
Seaborn abanou a cabeça.
— Sou mais forte e mais alto — disse, em voz bai-
xa. — Compete-me a mim enfrentar o animal. Dê-me o
frasco.
No rochedo, a serpente aguardava. Rowan hesitou
e depois virou-se para Doss, uma pequena sombra azul na
luz fosca.
— Não — disse Doss calmamente. — Nenhum de
nós pode fazer isto no lugar de Rowan.
Asha e Seaborn começaram violentamente a argu-
mentar, mas Doss ergueu a mão.
— Desde que nascemos que receamos esta criatura
e a sua espécie. E ela conhece-nos, e à nossa espécie. Co-
nhece o nosso cheiro. Conhece a nossa pele pálida. Sabe
como nos movemos. Somos as suas presas naturais. Irá
atacar-nos sem pensar. O único com possibilidades de se
aproximar é o que lhe for desconhecido.
Rowan respirou fundo.
— Sim — afirmou.
Virou-se e enfrentou de novo o animal. Desta vez,
este não o fitou nos olhos. Rowan deu um passo em fren-
te. E depois outro.
A serpente não se moveu mas abriu as maxilas e-
normes, estendeu uma língua negra e bifurcada e sibilou.
O interior da sua boca era mole e amarelo. As presas eram
brancas, com as pontas negras. O veneno pingava daque-
las agulhas pretas como gotas de ouro líquido fumegante e
caíam, chiando, no solo.
Rowan subiu. Sentia a rocha macia sob os pés. Ou-
via-se a arfar. Segurava com força o frasco.
O pé roçou em algo no chão. Era a flor alva morta.
Já castanha e seca, as suas pétalas estavam engelhadas
como taças de couro rasas. Ajoelhou-se e pegou numa das
pétalas.
A serpente continuava a pôr os seus ovos. Ainda
empurrando-os, um a um, para a lagoa. Por cima, a lua
brilhava enorme e branca. Mas os seus olhos amarelos
estavam fixos em Rowan.
Doss estava certo, pensou Rowan. Não sabe bem o
que eu sou. E quer acabar de pôr os ovos. Irá ameaçar,
mas não se moverá a menos que eu faça um movimento
brusco. Há uma possibilidade.
Foi subindo em direção à lagoa. Cada vez mais
perto, e mais ainda... até conseguir avistar a flor alva bri-
lhando sob as águas negras, como um reflexo da lua no
céu. Começou a deslocar-se em redor das vastas espirais
que contornavam a lagoa, em direção à cabeça.
Os olhos da Grande Serpente reluziram. Arqueou o
pescoço e o seu grito estranho e estridente rasgou o ar.
O som era tão penetrante que surgiram lágrimas
nos olhos de Rowan. Desejava tapar os ouvidos. Mas ti-
nha a pétala da flor numa mão e o precioso frasco na ou-
tra. Não podia fazer nada.
Depois, a serpente sibilou de novo. As mandíbulas,
que conseguiam desfazer um barco dos Maris, abriram-se
largamente. A língua vibrou, saboreando o ar. As presas
reluziam ao luar, brancas com pontas de negro, gotejando
ouro líquido letal.
Agora! Rowan lançou-se rapidamente para a frente,
segurando a pétala da flor alva, captando o veneno no re-
cipiente em que se tornara.
A serpente lançou-se a ele, gritando de raiva. Ro-
wan caiu desamparado para trás, o som rasgando-lhe o
cérebro. Sentiu uma dor terrível nos braços ligados. O
veneno fumegava e chiava na pétala da flor alva. O frasco
inclinou-se perigosamente.
Adiciona o veneno do teu mais temível medo... Uma gota...
Em pânico, Rowan olhou para o frasco. O líquido
verde estava ainda em segurança. Voltou depois os olhos
para a pétala e, horrorizado, viu que o veneno começava a
queimá-la. O precioso líquido dourado escapava por entre
orifícios negros e queimados, desperdiçando-se sobre a
rocha. Caía numa corrente fina e fumegante. Já havia
muito pouco.
— Não! — Mal percebera que tinha gritado.
— Rowan, sai daí! Oh... oh, em nome de Orin,
corre! Corre! Está a mexer-se! Vai...
Mal escutou os gritos dos três Maris. Percebeu a
uma forma monstruosa erguendo-se acima dele, bloque-
ando a lua. De grandes espirais arrastando-se e desenro-
lando-se da lagoa. De maxilas gotejantes abrindo-se para
atacar de novo.
Mas o antídoto...
Uma gota...
Com as mãos a tremer, virou a pétala sobre o fras-
co.
E uma última gota dourada caiu, chiando, nas tre-
vas do líquido verde. Tornando-o límpido. Límpido como
a água na lagoa. Transparente como o vidro do frasco.
Cristalino como a verdade.
— Rowan!
Colocou a tampa de prata no frasco. Cambaleando,
pôs-se de pé. Saltou para salvar a vida, correndo aos tro-
peções pela superfície castanha lisa da rocha, o seu bem
mais precioso nas mãos latejantes.
Mas o animal manifestava a sua ira, lançando-se a-
trás dele com uma rapidez assoladora. Ouvia-o atrás dele
— mais próximo em cada segundo. Atordoado pela dor e
terror, nunca parou. Para onde devia ir? Para onde devia
correr?
— Aqui!
Os três Maris chamavam-no. Com os olhos ofus-
cados, avistou-os correndo para ele, os seus próprios ros-
tos desfigurados pelo medo.
Cegamente, Rowan estendeu as mãos. Asha e Sea-
born apanharam-no e puxaram-no do rochedo para as
árvores. Meio arrastando-o, começaram a abrir caminho
por entre o arvoredo cerrado.
Por todos os lados, viram-se envolvidos por arbus-
tos e fetos. Das árvores pendiam um número sem fim de
lianas, retorcidas e emaranhadas, prendendo-lhes as mãos,
pés e roupas, retardando a fuga. As folhas formavam uma
cobertura sobre as suas cabeças, bloqueando a luz da lua.
Seaborn e Asha arrastavam Rowan entre eles. Doss seguia
na traseira.
O monstro roncava. As árvores estalavam e caiam à
medida que a serpente, guinchando e sibilando, se retorcia
atrás deles. Não necessitava de luz. Seguia o som deles,
bem como o cheiro. Aproximava-se em cada segundo.
Eles iam rasgando o caminho através da vegetação, solu-
çando e arfando, cegos na escuridão, os gritos horríveis
ecoando nos seus ouvidos. Também Orin deve ter corrido
assim, aterrorizado pela sua vida.
— Para onde? — Rowan ouviu Asha a perguntar.
— Não consigo ver!
Ouviu-se então um grito aterrorizado e sufocante
atrás deles.
No início, esforçando a visão nas trevas, Rowan
não conseguiu ver o que acontecera. Mas depois viu. Doss
estava preso numa liana. Envolvera-se à volta do pescoço
dele e, ao debater-se para se libertar, cingira-a ainda mais.
Estava a sufocar e imobilizado.
O animal estava quase em cima dele. Podiam ver as
árvores a sacudirem e a caírem no seu caminho. Roncou
ao cheirar o terror deles. Doss permanecia pendurado, in-
defeso, as pontas dos pés batendo inutilmente no terreno
macio.
— Deixem-no! — gritou Asha.
Mas Rowan não o podia fazer. Soltou-se das mãos
de Asha e de Seaborn e dirigiu-se ao local onde Doss se
encontrava.
Tentou partir a liana com os dedos, ignorando os
seus próprios ferimentos. Uma dor agonizante difundiu-se
pelos braços ligados.
Doss soltou um grito estrangulado. Depois, uma
navalha cortou a liana e ele caiu no solo. Ficou aí imóvel,
ofegante.
— Levante-se! — gritou Asha, dando-lhe um pon-
tapé. A navalha que o libertara cintilava na sua mão.
Seaborn baixou-se e levantou Doss para os seus
braços.
— Rápido! — exclamou. Vacilando com o peso
que carregava, lançou-se a correr de novo, com Rowan e
Asha logo atrás.
Avançaram às cegas pela noite escura como breu.
— Deixem-me — pediu Doss, agitando-se. — Po-
nham-me no chão. Deixem-me. O Selecionador tem de
viver... O Cristal tem de viver...
— Fique quieto. O Selecionador não quer te deixar
— disse Seaborn ofegante.
— Ali! — exclamou Asha. — Oh, ali!
Apontava para uma luz cintilante. Tão débil, tão
pequena, que reluzia através das árvores negras como uma
estrela.
— Maris! — gritou Seaborn.
Marcharam com ímpeto em direção à luz. Foi au-
mentando de tamanho e intensidade. Começaram a ouvir
o rebentamento das ondas. Nunca teriam encontrado o
caminho tão rapidamente à luz do dia. Mas, durante a
noite, as luzes de Maris brilhavam sobre as águas, rasgan-
do a escuridão, guiando-os.
Sibilando, retorcendo-se, a serpente avançava atrás
deles. A terra não era o seu ambiente. Mas estava irritada.
Estava esfomeada. Caçava.
Respirando com dificuldade, gritando de medo,
abandonaram a floresta e chegaram à praia. Ondas enor-
mes esmagavam-se contra as rochas. A espuma salgada
salpicou-lhes os rostos. Do outro lado do mar, todas as
casas em Maris estavam iluminadas.
— Acederam todas as lanternas para nós — disse
Seaborn, pousando Doss finalmente. — Devem... devem
estar todos... à espera.
— Depressa! — rogou Asha.
Ali, diante deles, estava o portão de ferro.
Arrastando Doss entre eles, correram para lá e abri-
ram-no. Entraram de rompante nas escadas e, no preciso
momento em que a enorme serpente derrubava o último
anel de árvores, o portão fechou-se.
Ouviram a cauda da criatura a bater furiosamente.
Avistaram a enorme cabeça a virar-se de um lado para o
outro, em busca deles.
Permaneceram juntos, tremendo e exaustos. Mas
sabiam que estavam em segurança. O animal não os con-
seguiria seguir naquele espaço exíguo. Tal como Orin an-
tes, tinham escapado.
Rowan tocou no frasco na sua algibeira. E, tal co-
mo Orin, pensou, trazemos de volta algo precioso. Pre-
cioso, se não fosse tarde demais. A sua voz abalada ecoou
nas paredes rochosas do túnel.
— Venham — disse. — Temos de nos apressar.
20
O DISSIMULADO

E les meio saltaram, meio correram pelo túnel. Pare-


cia interminável. Pela frente, apenas escuridão.
— Onde está a luz do Cristal? — perguntou Asha,
arfando. — Devemos estar muito próximo da Caverna,
mas não a consigo ver. E se...
— A Guardiã está viva— afirmou Seaborn com
firmeza. — De outro modo, as pessoas não estariam nas
suas casas, com as luzes acesas para nós.
— Ali! — exclamou Rowan.
Apontou para uma luz fraca que coloria apenas as
trevas mais à frente.
Correram nesse sentido. A cabeça de Rowan batia
ao ritmo do coração. Sentia a garganta fechada e contraí-
da.
Estavam praticamente na Caverna mas não sentia
nada. Nenhuma atração invisível do Cristal, atraindo-o.
Nenhuma voz sussurrando na sua mente como os seus
próprios pensamentos.
Encontravam-se na entrada. No interior, tudo es-
tava silencioso, exceto o pingar constante da água. Sea-
born, Doss e Asha ficaram para trás. Rowan respirou
fundo e entrou, temendo aquilo com que poderia deparar.
A Guardiã estava sentada na cadeira no centro da
Caverna. O Cristal brilhava fracamente debaixo das suas
mãos, difundindo um círculo de luz verde em redor da
cadeira, deixando o restante espaço mergulhado na escu-
ridão.
Nas sombras, Jonn estava ajoelhado junto ao sofá
de Jiller, a cabeça inclinada. Rowan sentiu o coração a sal-
tar.
— Então, Selecionador de Rin. Regressou.
A Guardiã não se moveu nem olhou para cima.
Mas a sua voz baixa encheu a Caverna.
Jonn ergueu a cabeça. Pôs-se de pé, num salto. E
pela expressão de louca e descrente esperança no rosto
dele, Rowan percebeu que, afinal, não chegara tarde de-
mais.
Atravessou a caverna a correr e ajoelhou-se ao lado
da mãe. Sim. Ela ainda respirava. Mas fracamente. Tão
fracamente.
Rowan batia os dentes. Todo ele tremia. Tinha os
dedos rígidos e desajeitados ao tirar o frasco da algibeira e
ao desapertar a tampa.
— Tenho o antídoto, Guardiã — disse, olhando
por cima do ombro. — Que quantidade devo utilizar?
A Guardiã continuava sem se mover. Mas pare-
ceu-lhe detectar um sorriso a delinear-se na fina boca dela.
— Parece que você é tudo aquilo que dizem, Ro-
wan de Rin — afirmou ela. — Mergulhe o dedo na poção,
apenas uma vez, e esfregue-lhe nos lábios. Será suficiente.
O líquido no frasco estava frio. Ardeu-lhe no dedo
quando o esfregou na boca da mãe.
Jiller franziu levemente o cenho no seu sono. De-
pois, suspirando, lambeu os lábios.
A mão forte de Jonn agarrou no ombro de Rowan.
— Quando...? — começou Rowan.
— Em breve. — A voz da Guardiã era seca e cal-
ma, como o restolhar de folhas mortas. — O Sono da
Morte leva duas horas completas a manifestar-se. Não
pode contar que seja neutralizado em momentos. Mas não
podemos esperar. Eu não posso esperar. O Cristal apa-
ga-se. A minha hora está preste a chegar. Muito em breve.
Dirija-se para a luz.
— A Escolha... — começou Rowan, pondo-se de
pé.
A Guardiã olhou para cima. Atrás dela estavam
Doss, Seaborn e Asha, mas ela não lhes prestou nenhuma
atenção. Os seus grandes olhos pálidos, perdendo o brilho
como o Cristal, procuraram Rowan nas trevas.
— Dirija-se para a luz, Selecionador de Rin — re-
petiu.
Rowan assim fez.
Ela fitou-lhe o rosto.
— A chama está acesa. A Escolha está feita — a-
firmou ela.
Rowan abriu a boca. Olhou para lá da Guardiã, pa-
ra as figuras silenciosas dos Candidatos. O olhar deles re-
velava choque e descrença.
— Guardiã, a Escolha ainda não se iniciou — bal-
buciou. — Os testes...
— As provações por que passaram foram os testes
— disse ela.
Rowan fitou-a.
Exausta, cerrou os olhos.
— Os testes antigos já não são úteis. Cada vez
mais, os Candidatos estudam para eles. Tal como estudam
as pessoas de Rin, para que consigam os favores do Sele-
cionador. São fechados longe dos seus. Fechados e afas-
tados da própria vida. Esta não é a forma de escolher o
líder dos Maris. Já há muito que percebera que era um er-
ro. Tive noção disso quando eu própria nunca pude fazer
mais do que guardar o Cristal. Que eu não conseguia che-
fiar os Maris nem mudar os seus costumes.
— Você... — Rowan conteve a respiração. Olhou
como louco para o Jonn vigilante, para Jiller, deitada imó-
vel e silenciosa no sofá.
Virou-se de novo para a Guardiã. O que compre-
endeu inundou-o numa maré vermelha de fúria que neu-
tralizou o medo e a dúvida.
— Foi você! — sibilou. — Foi você quem planejou
tudo isto. Foi você quem deu o Sono da Morte à minha
mãe.
— Atreve-se a me acusar, a mim... — A voz era
baixa e repleta de aviso. Mas Rowan pouco se importou
com isso.
— Sim, acuso-a — gritou. — Acabou de admitir
que o veneno levou duas horas a atuar. Isso significa que a
mãe tomou o veneno quando chegou a esta Caverna.
Mesmo antes de ter conhecido os Candidatos. Antes de
pôr o pé na Ilha.
Apontou para a Guardiã com uma mão enfaixada.
— Foi você a responsável, a pessoa que planejou
isto tudo. Enganou-me a mim, aos Candidatos e pôs em
risco a vida da minha mãe! Apenas porque desejou esta-
belecer novos testes para os quais ninguém estava prepa-
rado!
A Guardiã abriu os olhos e, por momentos, o Cris-
tal brilhou com o antigo fogo verde.
— A Escolha tem de revelar a verdade — disse. —
O Cristal fornece o conhecimento, a experiência e o po-
der. Mas os cuidados e a astúcia são fornecidos pelo
Guardião. Este tem de ser capaz de resolver novos pro-
blemas, bem como os antigos. O Guardião deve poder
mudar tal como o mar muda, atrever-se a experimentar
caminhos que nunca foram trilhados. Só assim poderão os
Maris sobreviver.
— Quase matou a minha mãe — disse Rowan ofe-
gante.
— A morte de uma pessoa não é importante.
— E pôs tantas outras coisas em risco.
— Talvez não assim tanto. Mas confiei no Cristal,
como sempre confiei, e ele disse-me que tudo iria correr
bem. Que você seria bem sucedido e que regressaria a
tempo. Tive de partir as correntes que nos ligam. Fi-lo na
única forma que pude. Utilizei-te. A única pessoa que eu
sabia não ser igual às outras de Rin.
Colheram informações a seu respeito desde o dia em que nas-
ceste.
Rowan fitou-a. Devia ter percebido que, se os Can-
didatos o conheciam, o mesmo se aplicava à Guardiã. Ela,
mais do que qualquer outro.
— A Escolha está concluída — disse a Guardiã
com voz arrastada. — Indique a sua escolha.
Rowan ergueu os olhos para os três Candidatos, a-
trás da cadeira da Guardiã.
Asha. Seaborn. Doss. Aprendera a admirá-los a to-
dos. Todos se uniram a ele quando enfrentou a Grande
Serpente. E sabia agora que nenhum deles estivera a re-
presentar.
Seaborn era de fato corajoso e forte, para além de
amar a vida, tal como Jonn. Fora escolhido como Candi-
dato dos Fisk por esse fato. Era invulgar para um Maris,
mas acreditaram que ele iria impressionar o Selecionador
de Rin.
Asha era realmente dedicada às suas obrigações,
honesta e prática, tal como Jiller. Fora escolhida pelo clã
dos Umbray por causa disso. Era invulgar para um Maris,
mas acreditaram que ela iria impressionar o Selecionador
de Rin.
E Doss. Doss era uma simpatia. Preocupava-se
com as coisas vivas e enfrentara a morte, como o próprio
Rowan. Fora escolhido pelo clã dos Pandellis por esse fa-
to. Era invulgar para um Maris, mas acreditaram que ele
iria impressionar o Selecionador de Rin.
Todos os três Candidatos tinham ajudado Rowan a
solucionar o enigma do antídoto para o Sono da Morte.
Cada um, a seu modo. Mas, qual deles demonstrara maio-
res cuidados e astúcia, a disposição para experimentar
novos procedimentos, que a Guardiã dissera serem ne-
cessários aos Maris?
— Indique a sua escolha — disse a Guardiã fraca-
mente. — Tem... tem... de indicar. Fala!
O Cristal tremeluziu.
Ouviram-se passos apressados nas escadas. Através
da cortina de água, irrompeu Perlain.
— Velas. Avistamos velas — disse ofegante. — O
horizonte está repleto delas. E estão a aproximar-se. São
os Zebak!
21
A ESCOLHA

— P or que chegam agora? — gritou Asha. — Não


faz sentido! Conseguem seguramente ver a
chama da Escolha. O tempo para atacar teria
sido antes, quando o Cristal estava fraco e a Escolha ainda
por concluir.
— Viemos a saber que se tornaram ardilosos. Tal-
vez tenham um plano sobre o qual nada sabemos — a-
firmou Seaborn severamente. — Ou talvez contem que o
Cristal possa ainda falhar antes do novo Guardião se unir
a ele.
— Rowan! — gritou Perlain. — Indique a sua Es-
colha. O Cristal enfraquece.
Rowan ouviu uma exclamação atrás dele e virou-se.
Jonn estava inclinado sobre Jiller. Ela tinha os olhos a-
bertos. Sorria para ele.
— Tenho estado a dormir — murmurou Jiller. —
Jonn, tive sonhos tão maravilhosos. — Mas depois, fran-
ziu levemente o cenho. — Onde estou, afinal? Onde está
Rowan?
Uma alegria infinita invadiu o coração de Rowan.
Mas teve uma breve duração. A mãe estava viva. Estava
acordada e feliz. Mas os Zebak chegavam. Tinha de agir.
Tinha de nomear o novo Guardião e renovar a vida do
Cristal, ou estariam perdidos.
Virou-se de novo para os Candidatos.
— A Guardiã disse-me que devia esforçar-me por
encontrar cuidado, astúcia e a disposição para experimen-
tar coisas novas — afirmou, rapidamente. — Disse que o
Cristal fornecerá tudo o resto. Fitou os olhos ardentes de
Asha.
— Você... você é boa e fará sempre aquilo que a-
char correto — afirmou. — Mas não tem uma mente a-
berta. Agarra-se às regras e aos velhos costumes, vivendo
apenas segundo esses parâmetros. Por isso, embora a ad-
mire, não posso lhe escolher.
A expressão dela não se alterou, mas baixou a ca-
beça. Rowan voltou-se para Seaborn.
— Você é corajoso e forte — disse. — E está dis-
posto a experimentar o que é novo. Mas age muitas vezes
sob impulso, sem o cuidado e astúcia que a Guardiã pro-
cura. Por isso, esperando que possamos sempre ser ami-
gos, não lhe posso escolher.
Também Seaborn baixou a cabeça. Mas, ao fazê-lo,
os seus olhos pareceram cintilar com algo — algo muito
semelhante a alívio. Rowan questionou-se sobre isso ape-
nas por um segundo. Não havia tempo para nada mais a
não ser a Escolha.
Avançou para Doss e pousou-lhe uma mão no
ombro. Entreolharam-se. Um olhar longo e penetrante.
Rezo para que esteja certo, pensou Rowan.
— Tem de proferir as palavras — lembrou Perlain
suavemente.
Rowan engoliu em seco.
— O Selecionador fez a sua Escolha — proferiu.
Sentiu o ombro de Doss ficar tenso sob os seus dedos, —
Que os outros Candidatos abandonem este local.
Doss permaneceu imóvel. O seu olhar era inex-
pressivo, como se não visse nada.
Com o rosto habitualmente calmo tenso, Perlain
levou Asha e Seaborn através da cortina de água e depois
regressou.
O Cristal reluziu fracamente. Uma vez, duas vezes,
três vezes. A Guardiã mexeu-se.
— As portas estão trancadas e não se voltarão a a-
brir até essa ser a vontade do novo Guardião — exalou.
— Rápido. O sol não tardará a nascer.
— Doss dos Pandellis — disse Perlain rapidamen-
te. — O Cristal.
Doss deslocou-se para a cadeira da Guardiã como
que em sonho. Rigidamente, estendeu as mãos na direção
do suave brilho do Cristal. Rowan olhou com curiosidade
para os seus olhos inexpressivos.
Os olhos de alguém que já viu a Grande Serpente e que so-
breviveu.
Está certo, disse Rowan para si. A minha escolha
está correta. Doss possui tudo aquilo que a Guardiã soli-
citou. E estava destinado a esta tarefa. Tal como Orin, viu
a Grande Serpente. E, depois disso, modificou-se.
No entanto, havia algo de errado. Rowan sentia-o.
A mão de Doss pairou sobre o Cristal.
— Una-se ao Cristal e a mim — murmurou a
Guardiã.
Eu também vi a Grande Serpente, pensou Rowan
subitamente. Tal como Asha e Seaborn. Mas nós não es-
tamos mudados. Por que estaria então Doss? O que lhe
sucedera, há um ano atrás?
Não me recordo de nada daquela noite... Eu estava muda-
do... Era como se algo tivesse sido perdido... ou acrescido. Não sei
qual dos casos.
O que teria acontecido a Doss durante essa longa
noite, sob a lua cheia, longe da costa? Sob a lua cheia...
— Espere! — exclamou Rowan. Agarrou na mão
de Doss. A sua voz ecoou, chocantemente alta, pela Ca-
verna. Jonn e Jiller olharam para cima, surpreendidos, e
Perlain agarrou as costas da cadeira da Guardiã.
Lentamente, Doss virou-se. Olhou inexpressiva-
mente, primeiro para Rowan, depois para a mão que lhe
prendia a sua.
— Doss, não pode ter visto a Grande Serpente há
um ano atrás — exclamou Rowan.
— Rowan, isso não importa agora — gritou Perla-
in. — Por Orin, não compreende? A Guardiã está a mor-
rer. A sua vida está por um fio. A cerimônia já se iniciou.
Deve prosseguir. Os Zebak...
A boca de Doss abriu-se.
— O Selecionador fez a sua Escolha — disse, sem
emotividade. — Que os outros Candidatos abandonem
este local.
Rowan tremia, mas, apesar de tudo, não largava a
mão fria e de dedos unidos por membrana.
— Neste mês, na lua cheia, a Grande Serpente está
na Ilha a pôr os seus ovos. Sabemos isso agora. Doss, não
a pode ter visto no mar, tão distante da terra.
— Rowan! — gritou Jiller. — Deixe-o!
Jonn pôs-se de pé e, com duas passadas, aproxi-
mou-se de Rowan.
— Rowan, largue-lhe a mão — murmurou com in-
tensidade. — Agora já nada importa. Todas as perguntas
podem ser respondidas mais tarde.
Mas Rowan sabia que as perguntas não podiam es-
perar.
— Doss, fale comigo! — rogou. — O que se passa
com você? Conte-me o que aconteceu naquela noite. O
que te fez mudar? Não foi a Grande Serpente. O que foi?
— A Grande Serpente surgiu das profundezas —
disse Doss. — Elevou-se acima de mim. Os seus olhos
eram dourados e repletos de segredos ancestrais.
Rowan ouvia, horrorizado. Doss utilizava precisa-
mente as mesmas palavras que proferira na Ilha. Até a voz
era igual. Entoava, como que repetindo uma lição que de-
corara.
E ele acredita nisso, pensou Rowan. Acredita nisso.
Mas não é verdade!
— As escamas reluziam como fogo no pôr-do-sol
— entoou Doss. — Mirou-me. Soube que ia morrer.
— Não está falando de algo que tenha realmente
visto! — exclamou Rowan. — É algo que alguém lhe me-
teu na cabeça!
Foi invadido por um medo terrível.
— Doss, quem danificou o seu barco? — gritou.
— Quem esperava por você no meio do mar, para lá do
horizonte? Quem te apanhou das águas negras e te guar-
dou toda a noite, mandando-o de volta apenas com uma
recordação falsa do que se sucedera?
Mas ele sabia a resposta. E pela expressão aterrori-
zada no rosto de Perlain, percebeu que o homem Maris
também sabia. Havia apenas uma explicação possível.
Tornaram-se astutos...
— Foi capturado por um barco dos Zebak! — ex-
clamou. — De alguma forma, os Zebak obrigaram-lhe a
ceder à vontade deles, Doss. Infiltraram ordens secretas
no interior da sua mente e revestiram-nas com a recorda-
ção falsa da Grande Serpente. Quando regressou a Maris,
as pessoas perceberam que estavas mudado, mas desco-
nheciam os verdadeiros motivos. Como haveriam de sa-
ber? Nem você sabia.
— É impossível — ouviu Jonn a murmurar para
Jiller.
— Os treinadores do rapaz tê-lo-iam detectado. A
Guardiã tê-lo-ia percebido.
— Não! — exclamou Rowan sem se virar. — Há
um ano atrás, o poder da Guardiã tinha já enfraquecido. E
mais ninguém o poderia ter visto, porque parte do plano
deve ter sido que as ordens secretas só poderiam aflorar à
superfície da mente de Doss quando certas palavras fos-
sem proferidas.
Fixou diretamente os olhos inexpressivos de Doss.
— Eu disse essas palavras há pouco, não disse? São
sempre proferidas quando um Guardião é escolhido. “O
Selecionador fez a sua Escolha”.
Doss estremeceu, olhando para ele. Rowan sentiu
um nó no estômago. Era horrível ver o rosto familiar tão
alterado.
— Eu vi e senti isso a acontecer, Doss. Na altura
perguntei-me o que se passaria e agora sei. Naquele mo-
mento, perdeu a sua vontade própria. Tornou-se um servo
dos Zebak. É por isso que as suas embarcações surgem
agora. Avistaram a chama e compreenderam que tinha
chegado a altura. Estão à espera do seu sinal de que o
Cristal, e este território, é deles.
Perlain gemeu. Cobrira o rosto com as mãos e os-
cilava lentamente para a frente e para trás.
— Perlain! — disse Rowan com autoridade. —
Não desperdice tempo com desesperos! Traga Seaborn e
Asha de volta aqui!
Perlain abanou a cabeça.
— Rápido! — gritou Rowan. — Não entende?
Doss não pode ser o Guardião. Irá trair os Maris. Irá tra-
ir-nos a todos!
— Cuidado! — gritou Jiller.
Antes de qualquer outro, avistara a faca a reluzir na
mão de Doss.
Com um clamor, Jonn saltou para a frente e agar-
rou na faca que mergulhava para o coração da moribunda
Guardiã. Debateu-se com Doss para o afastar e conteve-o.
Doss lutou por alguns momentos e depois, subitamente,
cedeu. Permaneceu imóvel, segurado por Jonn.
— O Selecionador fez a sua Escolha — murmurou.
— Se a Escolha não for Doss dos Pandellis, a Guardiã
tem de morrer. O Cristal tem de morrer.
— Perlain! — gritou Rowan. — De que está à es-
pera? Traga...
— As portas estão trancadas — respondeu Perlain.
A voz estava inundada de desespero. — Só se abrirão para
o Guardião. E não conseguimos que a Guardiã recupere a
consciência. Não conseguimos contar com ela.
— Terá de ser você! — disse Jonn. — Você, Per-
lain. Terá de se unir com o Cristal. Poderá não ser o que
desejava. Mas é melhor tê-lo como Guardião do que nin-
guém.
Perlain abanou de novo a cabeça.
— Não posso — afirmou. — Não sou conhecido
pelo Cristal. Se lhe tocar, morrerei.
— Então, o que vamos fazer? — exclamou Rowan,
desesperado. — Perlain, o que vamos fazer?
Perlain olhou para ele.
— Só há uma coisa que podemos fazer — respon-
deu. — Para além de Doss dos Pandellis, só há aqui uma
pessoa que pode tocar no Cristal e sobreviver. Apenas
uma pessoa que se pode unir a ele, tornando-se no Guar-
dião dos Maris. E essa pessoa é você.
22
TERROR

— N ão! — A palavra explodiu da boca de Ro-


wan e ecoou na Caverna. Afastou-se da ca-
deira da Guardiã, do Cristal enfraquecido,
abanando incessantemente a cabeça.
Nunca mais voltar a ver a sua casa. Nunca mais
voltar a ver o céu, as colinas verdejantes, o riacho, a neve
na Montanha. Nunca mais voltar a sentir o ar fresco e
doce no rosto nem os sons dos pássaros. Nunca mais.
Passar o resto da vida abaixo do solo, tragado, dissolvido,
no grande mistério do Cristal.
— Não — repetiu. — Não!
— Tem de fazê-lo — disse Perlain.
— Não pertenço aos Maris — exclamou Rowan.
— Não posso...
— Pode — afirmou Perlain. — Se não o fizer, esta-
mos perdidos. — Estendeu as mãos para Jiller. — Expli-
que-lhe — gritou.
Rowan virou-se para a mãe. As lágrimas corri-
am-lhe pela face.
— Tem de fazê-lo. É o único — murmurou ela. —
O Cristal já não me conhece. Apenas a você. Apenas a
você...
— Depressa! — silvou Perlain. — Não há tempo.
Rowan voltou-se para Jonn, que continuava a agar-
rar em Doss, silencioso. A boca de Jonn revelava uma li-
nha severa. Os seus olhos estavam repletos de dor ao a-
nuir.
Rowan não tinha para onde se virar, a não ser para
o seu próprio coração. E sabia que não lhe restava alterna-
tiva. Se abdicasse das coisas que amava, talvez os pudesse
salvar. Se recusasse abdicar delas, iria quase seguramente
destruí-los.
Endireitou os ombros e encaminhou-se para a
Guardiã. O Cristal era como uma pedra no regaço dela.
Detectava-se apenas um brilho fraquíssimo no seu núcleo,
iluminando-lhe as mãos com uma luz verde.
Rowan colocou as mãos sobre as dela. A Guardiã
abriu os olhos.
— Você... — suspirou ela. — Porquê?
— Não há mais ninguém — respondeu Rowan su-
avemente. Atrás dele, ouviu o soluçar baixo de Jiller.
A Guardiã cerrou de novo os olhos. Estava para lá
da surpresa e perguntas. Mas os seus lábios moveram-se.
Rowan baixou-se para ouvir o que ela dizia.
— Eu digo as palavras mas ninguém acredita. Nada
se pode opor ao poder do Cristal — sussurrou a voz ao
seu ouvido. — Sente... e... compreende.
E pareceu que Rowan estava a precipitar-se — len-
tamente, lentamente, flutuando através das eras do tempo
e recordações em turbilhão. Já não conseguia ver a Ca-
verna. Já não escutava a voz da mãe. Sentiu-se a abando-
nar-se. Entregando-se ao poder, não com tristeza mas
com uma profunda alegria.
E afundou-se mais... cada vez mais, sabendo que
estava a tornar-se parte de algo superior a ele. Era como
um mar profundo, extenso, velho como o tempo.
Nada se conseguia opor a isso. Nenhum amor por
um clã, por uma família. Sem laços ou exigências de ou-
tros.
Tudo desaparecia. O seu próprio ser — os seus
amores, receios, esperanças, erros — tudo o que o ligava à
sua vida sumia-se dele. Resistiu um pouco, não desejando
abrir mão deles.
Sente... e... compreende.
Teria a Guardiã falado de novo? Ou seriam as suas
recordações?
As mãos sob as dele estremeceram.
Nada se pode opor ao poder do Cristal...
Foi então que Rowan compreendeu. Compreendia,
por fim.
Ajude-me, Guardiã, disse, mentalmente. Ajude-me a
cumprir o meu dever.
Sentiu uma vibração de poder. E depois gritava al-
to. Puxava uma mão do Cristal, inclinando-se para trás e
estendia a outra para a figura imóvel e pálida de Doss.
— Rowan! — Como que em sonho, ouviu o grito
da mãe. Mas sabia o que tinha que fazer.
Agarrou na mão de Doss e arrastou-o para longe de
Jonn. Sentiu o forte poder curativo passando dele para
Doss como um rio correndo para o mar.
Depois, no limite das suas forças, puxou Doss para
a frente. Conduziu a pequena mão de Doss sobre as da
Guardiã e retirou as suas.
A separação atingiu-o como um golpe. Cambaleou
para longe da cadeira e caiu de joelhos no solo. O seu
peito estava oprimido com a dor súbita de solidão e perda.
As lágrimas cegavam-no.
Percebeu que a Caverna ecoava com sons.
— O que fez? — gritava Perlain em pânico.
— Rowan! Rowan! — bradava Jiller.
Tentou falar, mas as palavras sufocavam-lhe a gar-
ganta. Afastou-se engatinhando da luz estonteante. O
Cristal reluzia, cada vez com maior intensidade. Estava
vivo de fogo, cintilando com todas as cores da terra, mar e
céu. Cor e luz encheram o ar, iluminava as paredes da Ca-
verna como arco-íris...
E, depois, tudo terminou. O pequeno corpo do-
brado da velha Guardiã permanecia como uma casca vazia
na cadeira. Um novo Guardião olhava para eles. Os seus
olhos eram os olhos profundos e solenes de Doss dos
Pandellis. Mas era um Doss mais perfilado e alto. As suas
roupas já não eram azuis, mas de nenhuma cor e de todas
as cores em simultâneo, como água reluzente. E, nas suas
mãos, o Cristal brilhava e ardia como uma estrela.
Perlain retrocedeu e fez uma vênia.
— Saúdo-lhe, Guardião do Cristal — murmurou.
O seu rosto estava tenso de terror.
— O sol está a nascer — disse o Guardião. Vol-
tou-se para Rowan. — Venha comigo, lá para cima para a
luz.
Rowan e os outros seguiram em silêncio enquanto
ele passava pela cortina de água, subia as escadas e atra-
vessava a enorme sala vazia por cima. Sem um som, as
portas abriram-se.
O espaço no exterior estava apinhado de pessoas.
Pandellis em azul. Umbray em prata. Fisk em verde. To-
dos nos seus clãs separados. Todos miravam o mar, na
direção do sol que nascia.
O Guardião saiu para o ar livre, o Cristal reluzente
nas mãos. Ouviu-se uma exclamação coletiva. Uma ex-
clamação de boas-vindas, alívio e alegria, enquanto as
pessoas o saudavam e apontavam para o mar.
Lentamente, o Guardião virou-se e olhou. O hori-
zonte estava picotado com velas dos Zebak. Rowan sentiu
um arrepio de medo.
O Guardião elevou o Cristal bem alto no ar. Bri-
lhou como um farol no sol nascente. As exclamações de
júbilo das pessoas transformaram-se em gemidos de medo
quando as velas avançaram, como que em resposta a um
sinal.
— Ele assinalou-lhes para avançarem. Estamos
perdidos — murmurou Perlain.
O Guardião ficou a observar a frota dos Zebak a-
vançarem para eles, impulsionados pelo vento. Não fez
qualquer gesto ou sinal.
Rowan sentiu um toque no braço.
— Leve a sua mãe — murmurou-lhe Jonn ao ou-
vido. — Infiltre-se por entre as pessoas. Regresse o mais
rápido possível a Rin.
— Não vou te deixar, Jonn — disse Jiller, ouvindo.
— Tem de fazê-lo — respondeu ele, severamente.
— Alguém tem de avisar a nossa gente, para não serem
apanhados desprevenidos.
— Então Rowan irá sozinho — disse ela. — Estou
ainda demasiado fraca para viajar. Iria retardá-lo.
— Jiller, tem de ir!
— Não vou.
O povo Maris estava tão silencioso como a morte.
Todos os olhos se fixavam no Guardião. Aguardando o
seu sinal. Aguardando a ordem que os conduziria à bata-
lha.
Mas o Guardião não se moveu.
Fui eu a causa disto, pensou Rowan. E, no seu de-
sespero, pensou em Estrela, trancada no estábulo. Sem
poder fugir ou defender-se. Aguardando ser abatida por
mãos cruéis.
Correu para junto do Guardião.
— Doss... — começou. Mas as palavras morreram
na sua boca quando o Guardião se voltou para ele.
— O Doss dos Pandellis já não existe, Rowan de
Rin — afirmou o Guardião. — Sou o Guardião do Cristal.
— Pensei... — começou Rowan de novo. E, mais
uma vez, calou-se.
— Estava certo — disse o Guardião suavemente,
como se Rowan tivesse vocalizado os seus pensamentos.
— Aguarde.
As primeiras embarcações dos Zebak estavam ago-
ra tão próximas que Rowan conseguia avistar os rostos
cruéis e triunfantes dos guerreiros sobre o convés. Con-
seguia avistar a linha negra que marcava cada testa, do na-
riz aos cabelos. Conseguia ver o metal reluzente das suas
armas.
O Guardião ergueu os braços.
— Agora! — disse, tranquilamente. O Cristal relu-
ziu, cegando.
Nesse instante, grandes nuvens negras varreram o
horizonte. Formavam-se grossas e negras pelo céu, em-
purradas por um vento gelado, toldando o sol, toldando o
céu pálido. Todo o mundo enegreceu, tornando-se escuro
como a noite.
— O que se passa? — gritou Jonn. Agarrou no
braço de Rowan. — Rowan...
O Guardião elevou ainda mais o Cristal. Ouviu-se o
ribombar de trovoadas e relâmpagos rasgaram o céu, ca-
indo como lanças nas águas límpidas.
As pessoas gritaram. No mar, as embarcações dos
Zebak, muito próximas umas das outras, oscilaram e ba-
lançaram. Mastros partiram-se e velas rasgaram-se en-
quanto o vento rugia e os relâmpagos cintilavam em volta.
Seguiu-se um agitar e borbulhar no mar e as águas
cobriram-se de espuma quando as serpentes das profun-
dezas subiram à superfície, irritadas por seu descanso ter
sido perturbado.
Sibilaram e lançaram-se contra os grandes barcos
de guerra, os quais, perante a sua raiva, eram tão frágeis
quanto folhas na corrente de um riacho. A madeira foi
partida e despedaçada, armas inúteis chocaram e caíram na
espuma e os gritos aterrorizados dos Zebak condenados
perderam-se no rugir do vento.
Rowan desviou o olhar. Tentou recordar-se que
aqueles eram os inimigos do seu povo. Que tinham che-
gado para trazer sofrimento e morte àqueles que ele ama-
va. Apesar de tudo, não conseguia assistir à sua destruição.
Mas o Guardião do Cristal presenciou tudo. E só
quando tudo terminou é que acalmou a tempestade.
23
DESPEDIDAS

I am voltar a casa. Partindo com as bênçãos dos Maris,


com muitas ofertas, com promessas de regressarem
em breve. Permaneceram por mais dois dias em Ma-
ris, concedendo algum tempo a Jiller e a Rowan para des-
cansar. Mas agora, todos ansiavam partir.
Quando tudo já estava preparado para a viagem,
Rowan deixou a casa segura e seguiu sozinho para a Ca-
verna do Cristal. As portas abriram-se para ele. Caminhou
lentamente para a vazia sala circular superior e desceu as
escadas. Bem-vindo.
A Caverna estava banhada numa luz gloriosa. O
Guardião estava sentado na sua cadeira, rodeado de ar-
co-íris.
— Vim despedir-me — disse Rowan.
— Não é uma despedida. Sabe que sempre estarei
com você, Rowan de Rin — disse o Guardião. — Tal
como você estará comigo.
Rowan anuiu. Não conversara sobre isto com nin-
guém, nem mesmo com Jiller. Mas, nos últimos dias, per-
cebera lentamente a verdade. No momento em que o po-
der do Cristal fluíra por ele, o Doss dos Pandellis mudara
para sempre.
O Guardião sorriu.
— Tenho memórias de Rin, embora nunca a tenha
visto — disse. — Vejo as margaridas-selvagens flores-
cendo amarelas nas colinas. Ouço os bukshah a mugir nos
campos. Sinto terra macia nas mãos e sinto prazer com as
pequenas coisas a crescer.
— E eu sinto-me a deslizar pela água como um
peixe — disse Rowan. — Sinto areia fresca e úmida sob
os pés. Remendo redes à luz de candeeiros de petróleo à
noite. Ouço aves marinhas a gritar e vejo peixes voadores
a roçarem as ondas sob um céu azul escuro.
— Compreendemo-nos então um ao outro, o que
nunca aconteceu entre duas pessoas de Maris e de Rin —
disse o Guardião. — E, quando te digo que, devido ao
que aconteceu na manhã em que nomeou a sua Escolha, a
sua família não voltará a sofrer às mãos dos Maris, acredi-
tará em mim.
— Sim — respondeu Rowan. — Acredito.
— Satisfazendo as minhas ordens, Perlain dos
Pandellis contou às pessoas o que aconteceu entre nós —
disse o Guardião. — Contou-lhes que era um inimigo se-
creto dos Maris, que me encontrava sob o domínio dos
Zebak, antes de me unir ao Cristal. Mas eles viram com os
próprios olhos o que aconteceu quando os Zebak chega-
ram.
Sorriu.
— Pelo que agora já compreendem. Pouco importa
qual o clã onde tem origem o Guardião. Nada se pode
opor ao poder do Cristal. Nem o amor familiar, nem os
amigos, nem o lar. Nem a lealdade a um clã ou a um país.
Nem mesmo os jogos mentais de um inimigo.
— Só o entendi quando senti eu próprio o poder
— murmurou Rowan. — Só então percebi que nenhum
Guardião podia trair o povo Maris.
Virou-se para se ir embora.
— Adeus, Doss — afirmou.
— Adeus, meu amigo — disse o Guardião do
Cristal.

***

Muitas pessoas juntaram-se nos limites de Maris


para se despedirem deles. Asha, Seaborn e Perlain estavam
entre eles.
— Adeus, Selecionador de Rin. — Asha apertou
gravemente a mão a Rowan. — Eu... estou-lhe grata.
Rowan pestanejou, não sabendo o que dizer.
— Se eu tivesse sido a Guardiã, teria ordenado que
os nossos barcos se fizessem ao mar quando os Zebak
atacaram. Porque foi isso que sempre foi feito. Teríamos
lutado, como sempre lutamos. Podíamos ter ganho, pelo
poder do Cristal, mas muitos de nós teriam morrido. Fez a
escolha correta em relação a Doss dos Pandellis. A mente
dele é nova e fresca. Será como os Guardiões do passado.
Utilizando o Cristal, aumentando o seu poder, em vez de
apenas retirar dele. Por isso, agradeço-o.
Retrocedeu, grave e calma como sempre.
Seguiu-se Seaborn. Com ele estava uma mulher alta
vestida no verde dos Fisk, o rosto já não tenso e sério,
mas cheio de luz e alegria. Rowan reconheceu-a como
uma das três que o acompanhou à Caverna. A mulher que
os observara da costa, quando se encontravam na Ilha.
— Esta é Imlay. Vamos casar no Verão, quando os
meus ferimentos tiverem sarado — informou-o Seaborn.
— Talvez queira vir ao nosso casamento. Gostaríamos de
contar com a sua presença, meu amigo. Sobretudo com a
sua.
Rowan anuiu, sorrindo. Compreendia finalmente a
expressão de alívio no rosto de Seaborn quando lhe foi
dito que não seria o Guardião do Cristal. Seaborn era um
homem forte e corajoso. Estava disposto a cumprir o seu
dever. Esforçara-se por ser aquilo que o seu clã desejara.
Mas, tendo falhado, estava livre para conduzir a sua vida
como sempre ansiara. Estava livre para respirar o ar fres-
co, para ver o céu, para casar com a mulher que amava.
Perlain foi o último a despedir-se deles. Apertou a
mão a Jiller, a Jonn e a Rowan. Mas Rowan reparou, com
um sorriso secreto, que se mantinha afastado de Estrela.
— Poderá desejar não voltar a ver as costas de Ma-
ris, Rowan — disse Perlain, ao seu jeito formal. — Mas
deve vir. A minha casa será sempre a sua.
— Eu voltarei — respondeu Rowan. Olhou para
Seaborn e Imlay, que observavam afastados. — Nem que
seja para um casamento no Verão — acrescentou.
Perlain sorriu e fez uma vênia.
Rowan, Jonn, Jiller e Estrela viraram então as costas
ao mar e começaram a andar. Caminharam durante muitos
minutos sem trocar uma só palavra.
O rio serpenteava até se perder de vista, perden-
do-se nas suaves colinas verdes. Tinham uma extensa via-
gem diante deles, mas nenhum se queixava.
Estavam em segurança. Estavam juntos. E cada
passo aproximava-os mais de casa.
Digitalização: Yuna

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