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MARESIA
Para vovô Gegè,
que do mar sentia a poesia.
Ruggero Jannuzzi
CAPÍTULO 1
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ser ainda a mãe. Daí em diante se tornara pra todos Vovó Quinota.
Não falava, mas não era surda, e isso lhe permitia interagir, mas
não conversar. A mulher, envolta numa aura de silêncio, cutucava
a imaginação e a curiosidade de Maria, a última dos bisnetos, que
desde a terceira série se obstinava em fazer-lhe perguntas sobre suas
origens e seu passado. De vez em quando a mãe a repreendia: – Não
a atormente, coitada mulher!
A bisavó ouvia e logo respondia com uma carícia na cabeça,
sorria apenas e suas pálpebras se baixavam por um instante. Ao se
levantar, os olhos eram como encolhidos e as rugas ao seu redor
mais profundas.
Um dia, contudo, recém chegada da escola, a menina a pegara
desprevenida: – Ei Vovó Quinota, tive uma ideia, desenhe-me seu
País! Você não sabe falar, porém as mãos sabe usá-las!
Ofereceu-lhe lápis de cor, franziu os lábios e deslocou o peso
do corpo sobre as pontas dos pés, inclinando-se para frente. Então
a mulher se curvou, assim a bisneta pôde beijá-la. Quinota ergueu
as sobrancelhas em sinal de incredulidade, era a primeira vez que
alguém lhe fazia um símil pedido. Pegou na mão da menina e por ela
se deixou guiar até a mesa onde estava o bloco de desenho. Maria
sentava na frente dela, fremia à espera da primeira linha. A bisavó
hesitava entre o papel branco e as cores, indecisa sobre qual usar
por primeiro.
– Vamos lá, Vovó! – incitava-a com impaciência. – Pegue num
e acabou!
Para a menina era simplesmente escolher uma cor, para Qui-
nota, no entanto, significava escolher por onde começar. Exortada
pela tenacidade da bisneta, agarrou o amarelo, traçou uma circunfe-
rência em cima da página e a hachurou com o lápis.
– É o sol? – antecipou, ansiosa, a menina.
Quinota assentiu com um gesto de cabeça enquanto desenha-
va os raios, em seguida tingiu de azul a parte alta em redor do sol.
Contemplou a série de lápis disponíveis, mas optou por utilizar o
mesmo. Puxou uma linha bastante marcada para delimitar o papel
e colorou para baixo, até uma faixa ondulada. Estendeu o azul es-
curo na parte inferior e o esfumou com uma tonalidade mais clara,
depois tomou o marrom e delineou um “u” invertido. Colocou-lhe
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ao lado outro maior e outro par, menores. Maria a olhava perplexa:
– O que é, Vovó? Não entendo bem. É um arrecife?
A bisavó virou a mão da direta para a esquerda e vice-versa, as-
sentiu, mas depois levantou e abriu os braços para fora, para enten-
der algo até maior. Ainda com o marrom encheu a última parte da
página, à esquerda desenhou uma cabana e, ao confim com o azul
escuro, um barco fino e alongado, semelhante a uma canoa. Com o
verde tracejou algumas árvores, palmeiras, cuja maior cobria a caba-
na, e enfim, com extremo cuidado, decalcou e escureceu os troncos.
Quando teve concluído pegou na mão o papel e o afastou para
o ver melhor; em seguida o mostrou à bisneta. Maria o examinou
atentamente: – Quer dizer que mesmo onde você nasceu há barcos?
E há também árvores na praia?
Quinota anuiu, sorrindo.
– E há inclusive casas na praia?
Mais o menos, respondeu oscilando a palma da mão.
– Agora você tem que assiná-lo.
Quinota contraiu os olhos e se esfregou o queixo.
– Vovó, você tem que escrever seu nome e sobrenome, como
nós fazemos na escola. Senão depois não se sabe quem fez o de-
senho! Eis, assim – mostrou-lhe escrevendo o seu num pedaço de
papel. – Você, porém, é Vovó Quinota.
Soletrando escreveu: – “Vovo Chinota Valenza”, logo depois
parou para refletir: – Mas você não tem o sobrenome de antes de
você casar com vovô Carmine?
Sim, confirmou a cabeça da bisavó.
Então a menina berrou: – Mamãe! Qual era o sobrenome de
Vovó de antes dela se casar com o vovô?
Não houve resposta, Rosa estava fora a estender a roupa, por-
tanto a chamou outra vez, com voz mais aguda. A idosa levou as
mãos para se tapar os ouvidos, após abriu uma à altura do peito e a
moveu levemente para frente, para intimar a bisneta a permanecer
parada e em silêncio. Levantou-se da mesa e se dirigiu ao seu quar-
to, pegou a carteira de identidade e a mostrou a ela: Joaquina Nunes
da Costa, nascida no Rio de Janeiro no dia 01.01.1915.
A menina se espantou ao descobrir o verdadeiro nome da bi-
savó, reescreveu-o por inteiro, assim como mostrava o documento,
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até quando o sepultaram. Desde então passara sempre mais tempo
naquela posição a observar o mar, como se estivesse à espera de algo
ou alguém chegar de lá. Nos últimos anos se entorpecera a tal ponto
que parara completamente de cuidar dos afazeres domésticos e não
saía mais de casa, menos aos domingos de manhã, quando ia à beira
para espalhar umas flores no mar. Sempre o fizera, mas ninguém na
família sabia o significado do gesto. Maria, ao contrário do irmão e
da irmã, quando era criança gostava de acompanhar a bisavó no es-
tranho ritual, mas crescendo perdera o interesse e parara de segui-la.
Maria se sentou em frente à lareira, construída pelo bisavô Car-
mine junto com os muros da casa. A parte exterior era uma colagem
de azulejos coloridos, um diferente do outro, e era bastante longa e
profunda para conter um tripé e uma lata, para cozinhar e aquecer
a água. Rosa se aproximou da filha e então Maria se curvou para as
chamas, não queria cruzar o olhar dela, pelo menos os cabelos sol-
tos a ajudavam a esconder os olhos inchados.
– Está frio hoje. O vento está aumentando, vai fazer um desas-
tre no jardim – disse a mãe.
Maria não respondeu. – Papai? – perguntou ao contrário.
– Foi fazer algumas encomendas. Ele pediu para jantar um
pouco antes esta noite porque tem jogo.
– Eu vou comer algo mais tarde. Não estou com muita fome,
tenho ainda alguns trabalhos a despachar e, ademais, quero tomar
um banho quente.
– Está bem, vou deixar a mesa posta pra você – assentiu Rosa
sem parar suas tarefas. – Estou preparando umas vagens e, mais, há
a ricota fresca do tio Ciccio.
– Eu vou pro quarto – disse então Maria.
Subiu as escadas dando um suspiro de alívio, a mãe não perce-
bera nada. Abriu a porta do seu quarto, outrora da tia Mariangela e
posteriormente tornado-se refúgio dela e de sua irmã. Atirou a bolsa
no chão e se jogou na cama, no escuro. O corpo deitado se relaxara
de repente, mas uma sensação de frio a obrigou a levantar-se e vestir
uma malha, pois no andar superior não havia aquecedores. Acendeu
a luz e levantou a persiana, ligou o notebook e abriu um documento
à toa assim, se sua mãe a tivesse procurado, teria podido dizer que
estava trabalhando. Enrolou um cigarro e o acendeu aspirando pro-
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o estalido de um beijo e, nessa altura, tentara baixar a maçaneta, mas
a porta estava trancada. O que seguira fora um turbilhão de raiva,
dor e gritos que a custo se lembrava, a imagem daquela porta fecha-
da à chave ficava a lembrança mais nítida e dolorosa.
– Quem é? – ressoara inquieta a voz de Alessandro, ele perce-
bera que alguém tentava entrar.
Maria, como resposta, empurrara a porta com o ombro e chu-
tara com brutalidade: – Abra, senão quebro tudo! – gritara. Com a
ponta das botas fizera um buraco na madeira e, com uma ombrada
mais enérgica, quebrara o vidro no centro da porta. Assim se en-
contrara na frente dele, ocupado em enfiar a calça do macacão, e de
uma rapariga magra do nariz proeminente, que vestia a camiseta do
seu pijama. Conhecia-a de vista, encontraram-se algumas vezes em
volta da cidade porque trabalhava com ele no call-center, e nunca
teria suposto uma tal coisa, não era nem mesmo incluída na para-
noica lista das mulheres farejadas como potenciais amásias.
– Não é o que você pensa – justificara-se Alessandro saindo
do quarto.
Maria ficara em silêncio, em seguida explodira de raiva, sentira
o sangue subir ao cérebro e se atirara contra ele. Chorava e soluçava
enquanto o enchia de bofetadas, arranhaduras e insultos: – Você é
um stronzo, um covarde!
Ele, em vão, tentava se proteger e pará-la. Com tom ofendido,
intimara-lhe para se acalmar: – Chega, para com isso! Agora você
está realmente exagerando, confundiu tudo!
Mais ele aludia a um equívoco, mais sua raiva aumentava.
– Ela não sabia aonde ir dormir, seus coinquilinos a expulsa-
ram de casa. Estava tarde demais, eu não podia deixá-la na rua – de-
fendera-se com os braços erguidos para proteger o rosto.
– E ela precisava dormir mesmo na sua cama? Você não podia
abrir o sofá?
– Para com isso, você é de verdade uma mulher do Oitocento
se acha que nem posso dormir com uma amiga!
– Eu uma mulher do Oitocento... – repetira em voz alta. – Que
pedaço de merda!
A pobre amiga sem teto, entretanto, vestira-se e tentara dizer
algo.
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lembrara-lhe – ou melhor, há mais tempo, visto que a ultima vez
você não conseguiu nem mesmo ter uma ereção!
Vomitava em cima dele insultos e palavras ruins e, quando ne-
gava, jogava-se-lhe contra: – Pare de mentir! Tenha a coragem de
me olhar nos olhos e dizer a verdade. Mas não, você não, você não
o fará, porque você é um covarde!
Não teria cansado mais de transbordar rancor, nem o teria dei-
xado ir se ele não tivesse ido embora, deixando-a sozinha com seu
rancor e suas lagrimas. Já passava das nove e ela estava atrasada
para o trabalho, enviara um sms ao seu chefe declarando-se gripada
e desligara o celular. Em seguida, montada na bicicleta, dirigira-se à
casa de Milena. A amiga, ao reparar no seu estado confuso, preocu-
para-se: – O que aconteceu com você?
Maria se abandonara nos seus braços: – Encontrei-o na cama
com outra! – exclamara soluçando.
Milena colhera seu choro: – Acalme-se agora. Relaxe, respire
fundo – tentara sossegá-la. Entre choros e silêncios ficara com ela
até o início da tarde, calava enquanto procurava uma explicação
plausível para justificar seu homem, e chorava quando se dava conta
que nada podia desculpá-lo.
Maria ouviu vir do fundo da rua a voz de seu pai, que a desviou
da lembrança do dia apenas passado. Olhou para o relógio, eram
quase as oito. Desceu do telhado e se preparou para tomar um ba-
nho, encheu a banheira e ligou o termoventilador a fim de aquecer
o ambiente. Apenas se imergiu na água quente, sentiu o corpo se
derreter e finalmente encontrar paz. A mente, porém, não acabava
de moer pensamentos.
– Covarde – murmurou com voz triste e apagada, – ele não tive-
ra a coragem de dizer a verdade nem mesmo em frente da evidência!
Ele escolhera outra, não a desejava mais e Maria procurava a
razão nas imperfeições do seu corpo. Olhava suas nudezes, acaricia-
va-se e se perguntava o que faltasse nas suas linhas, nas suas formas.
Suspirou, não tinha mais nem a força pra chorar, derramara todas as
lágrimas. Deitada costas na água fumegante, sentia uma sensação de
alívio. Imergiu também a cabeça por alguns segundos e soprou com
o nariz, gostava de criar bolhas de ar na superfície. Refletia sobre
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seu presente, sua vida lhe dava nojo, ademais, desde que voltara a
morar na casa dos pais, a situação precipitara ao todo. Relembrou
com saudade de quando era estudante, das batalhas combatidas na
família a fim de se mudar para um alojamento universitário e dos
esforços feitos para se manter.
A água na banheira estava esfriando-se, Maria se envolveu no
roupão de banho, usou o secador, enfiou um pijama limpo, o mais
quente que tinha, e desceu na cozinha. Sua mãe já acabara de lavar
as louças, seu pai estava preso pelo jogo na televisão e a bisavó fi-
cava na mesma posição de sempre, sentada na cadeira de balanço.
– Leve Vovó para a cama – pediu-lhe Rosa quando a viu en-
trar. – Entretanto eu frito um ovo pra você.
Maria fez um aceno com a cabeça e se aproximou da idosa:
– Vamos para a cama, Vovó! – exclamou. Estendeu-lhe um braço
como apoio e devagar andaram até o quarto da mulher. Ajudou-a a se
despir, depois a pôr a camisola, tomando cuidado para não torcer o
colar de conchas, não o tirava nem quando ia dormir. Arregaçou-lhe
as cobertas e após lhe deu um beijo na testa: – Sonhos de ouro – de-
sejou-lhe. Apagou a luz e fechou a porta às suas costas.
Ao jantar comeu avidamente, não tocara em comida durante o
dia todo. Sua mãe lhe falava, mas ela não ouvia, tinha o pensamento
em outro lugar. Depressa deu boa noite.
– Que horas acordo você amanhã de manhã? – perguntou-lhe
Rosa.
– Não precisa, inventaram o despertador para isso, sabe? – ir-
ritou-se.
– Maria, não se volte assim contra sua mãe! – reprendeu-a Car-
mine da poltrona.
Ela não respondeu, baixou os olhos e subiu correndo para o
quarto, amaldiçoando sua vida. Enfiou-se debaixo das cobertas,
mas não conseguia dormir, os pensamentos a torturavam e a ima-
gem daquela porta fechada à chave tomava consistência. No silên-
cio da noite ouviu a voz do mar aumentar, estava de novo mudando
o vento, o frio e úmido Mistral vinha do noroeste a prever uma
piora do tempo. Adormeceu-se com a tênue aurora, os raios se in-
filtravam através da janela, e se à manhã a mãe não tivesse pousado
a xícara com o café sobre o criado-mudo, ela não teria tido a força
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para se levantar da cama.
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aprender e aquela de fugir.
Por volta de uma hora bateu à porta de Ettore: – Ei, chefe,
acabei! Preenchi todas as fichas e as enviei aos partners do projeto.
– Disse-lhe mil vezes para não me chamar de “chefe” – adver-
tiu-a, colhia sempre um sarcasmo no epíteto.
Maria sorriu e não reagiu: – Dá-me o relatório, assim o traduzo
à tarde – exortou-o.
– Não está pronto.
– Como não está pronto? – repreendeu-o. – Tem que ser en-
viado amanha até ao meio dia e eu tenho ainda que traduzi-lo!
A empresa, como referente de um pequeno município do in-
terior, era partner num projeto europeu de informatização do terri-
tório e Ettore, como Project Manager, participava dos workshops
organizados periodicamente nos diferentes Países envolvidos, para
depois relacionar ao tutor do projeto. Porém não era capaz de es-
crever em inglês, portanto era Maria que traduzia, e muitas vezes
aprofundava, os relatórios por ele redigidos em italiano.
– Amanhã de manhã até às dez o terá na escrivaninha – asse-
gurou-lhe.
– Às dez, nem sequer às nove! – endereçou-lhe um olhar torvo.
– Duas horas são poucas.
– Agora não posso. Está vindo buscar-me Caterina para ir es-
quiar.
– Esquiar? – enervou-se ela. – Temos prazos e você vai esquiar?
– Não lhe permito usar esse tom comigo! – disse autoritário. – Há
muitas coisas que eu e você temos que esclarecer.
– Tipo? Além do salário, obviamente... – desafiou-o alusiva.
O engenheiro fingiu não ouvir: – Tipo que você vai embora
sempre antes do horário estabelecido. Ninguém dos seus colegas
faz isso.
– Eu vou embora quando acabo o que você me dá por fazer.
Se demoro um quarto do tempo dos meus colegas para cumprir o
trabalho, quer dizer que tem que comprometer-se de modo particu-
lar para encher oito horas – sorriu gozante.
Ettore estava furioso. Era verdade, ela concluía as tarefas sem-
pre rapidamente e havia umas tardes em que, resignado, não podia
impedir-lhe de ir embora. Isso, porém, enervava-o, porque compro-
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se tornara um forte vento. Chegou a casa com frio.
– Já aqui? – perguntou sua mãe.
– Sim, mamãe, acabei antes o trabalho todo, como sempre. O
Explorador não estava, foi esquiar, e eu vim embora.
– Maria! Já lhe disse mil vezes para não chamá-lo assim, senão
você se acostuma e pode escapar-lhe na frente dele.
– Nunca me escapará, mamãe, pode ficar tranquila. Melhor,
vou dizer-lhe por minha própria vontade, no momento oportuno.
– Não seja tola, com os tempos que correm é uma sorte este
trabalho, você tem só que agradecer!
– Quem e por qual coisa eu teria que agradecer? Para oito ho-
ras por dia presa a uma escrivaninha em troca de dois tostões?
– Minha filha, você tem a cabeça tão dura!
Ouviu-se uma buzina tocar. – É seu pai, estamos indo ao tio
Ciccio. Vou fazer as geleias com Elisa, você está a fim de vir? – con-
vidou-a.
– Não, mamãe, obrigada, prefiro que não. Vou ficar perto da
lareira com meu livro.
– Pergunto-me se todas essas suas esquisitices não sejam culpa
dessas coisas que você lê...
Maria a fitou e percebeu a própria distância do mundo ao qual
pertencia sua mãe e não lhe respondeu, parecia-lhe uma batalha
perdida. A mulher tirou o avental, calçou os sapatos e vestiu o capote.
– Está bem – disse-lhe, – então dê uma olhada em Vovó.
Geralmente, quando a bisavó ficava sozinha em casa, Rosa lhe
deixava um copo de água na mesinha ao lado da cadeira de balanço.
Na sua volta o encontrava sempre vazio, era o agradecimento de
Quinota pelo cuidado.
– Eu vou! – gritou Rosa da porta de entrada.
Maria ficou em silêncio em frente à lareira, perdida nas cha-
mas e no pipocamento da madeira. Aproximou-se da bisavó, fez-lhe
uma carícia na fronte e os olhos da mulher a fitaram. Encostou uma
cadeira e se sentou ao lado dela: – Oh, Vovó! Quanto é difícil viver!
Quinota virou a cabeça e a olhou com indulgência.
– Encontrei ele na cama com outra! – disse-lhe sem circunló-
quio. – Minha autoestima foi completamente destruída. Acho que
nunca mais vou conseguir amar, nem confiar em nenhum homem.
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– Vovó, acredita em mim – enfatizou levando a mão direita ao
coração, – lá fora há uma guerra. E eu não entendo nada disso. Sei
só que estou doente, é um período tremendo!
Caiu-lhe uma lágrima e então a bisavó moveu o dedo para ela.
Maria se acabrunhou às suas pernas e apoiou a cabeça. Quinota a
acariciava, seu calor era curativo.
– Talvez eu também teria que emigrar – suspirou. Em seguida
o silêncio envolveu a sala, arranhado só pelos gemidos do vento e
pelos rangidos da cadeira de balanço.
Quando se acalmou, levantou-se para beber algo. Na geladeira
havia um suco de laranja feito por sua mãe: – Vovó, um pouco de
laranjada? – ofereceu-lhe. Levou o copo até a bisavó e ela estendeu
um braço para pegá-lo.
Os pais voltaram a casa na hora da janta, Maria ficava na frente
da lareira, mergulhada numa leitura que lhe volvera um pouco de paz.
– Que frio está lá fora! Há um vento fortíssimo – disse sua mãe.
– Ar de borrasca! – anunciou Carmine. – Na rua há galhos
quebrados e o mar fraga7, é mais perto que nunca.
Rosa se pôs atrás dos fogões e a hora da janta passou como de
costume, com a televisão ligada a capturar a atenção e a roubar cada
pensamento a compartilhar.
A manhã seguinte chegou ao escritório com um quarto de hora
de atraso, o trem parara por algum motivo na galeria. Encontrou
um estado de agitação, Fabio, Laura e Giulia ficavam em pé e esta-
vam falando entre eles.
– O que está acontecendo? – perguntou preocupada.
– Ontem Ettore quebrou uma perna esquiando – informou-a
Fabio, o braço direito do Explorador.
– Caramba! Verdade? – disse ela. Teve um tremor, pensou em
todas as imprecações que lhe enviara o dia anterior. – E agora?
– E agora nada – respondeu ele, – temos que colocar panos
quentes por algum tempo.
Maria se sentiu afundar, chegara lá para pedir demissão e, ao
contrário, ouviu dizerem que tinha que colocar panos quentes! Es-
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– Então irá você no meu lugar.
Uma luz iluminou o rosto de Maria: – Está bem – respondeu
fria, queria mascarar a excitação.
Explicou-lhe a documentação a estudar e lhe indicou os files
a ler: – Assim você terá coisas por fazer durante os próximos dias.
Concluída a conversa, Maria levou uma mão à fronte: – Oh,
Deus – murmurou entre os dentes. Pensou que, nessa altura, seu
plano de pedir demissão pulava, não podia perder aquela ocasião:
“atrás de uma coisa feia se esconde sempre uma coisa linda”, res-
soaram-lhe na mente as palavras que sua mãe costumava repetir.
Participou da apresentação do livro, em seguida ficou beliscando
e bebendo junto com alguns amigos e voltou a casa com o último
trem, às vinte e três. A ideia de viajar a recarregara de energia nova.
Antes de se deitar parou para observar o mapa-múndi. Indi-
viduou as Ilhas Canarias no meio do oceano Atlântico, um arqui-
pélago a cerca de uma centena de quilômetros a oeste da costa de
Marrocos: – Geograficamente na Africa, mas politicamente espa-
nholas – observou consigo. Lanzarote não comparecia entre os sete
nomes citados, portanto considerou que fosse um dos pontinhos da-
dos a representar outras ilhotas menores. Apontou nele o indicador
e tamborilou com a unha: – Nós conheceremos muito cedo – disse
sorrindo, uma nova terra estava à sua espera.
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conhecemos apenas.
– Está bem, você tem razão – concordou ele. – Espere aí e não
fuja! – brincou com doçura.
Não havia perigo de Maria fugir e nem mesmo esfriar, seu cor-
po ardia como possuído por um delírio febril. Quando Ramón a pe-
netrou, com a premura de um amante experto, seu corpo se livrou
e o prazer confluiu numa explosão longa e intensa que, prestes a
sopitar, reacendeu-se com maior vigor, conduzindo-a nas mais altas
esferas dos sentidos. O suor lhe descia da fronte no rosto enrubes-
cido, após os molúsculos se relaxaram, o coração voltou à normal
batida e o respiro afanoso se regularizou.
Ramón se soltou dela para lhe dar o jeito de se acalmar, mas não
parou de acariciá-la: – Gostosa! Eu gosto de ver você gozar – sussur-
rou-lhe à orelha, – eu gosto do seu sabor. Eu gosto do seu respiro.
A trégua foi breve, suas caricias se fizeram mais insistentes e
seus beijos mais intensos, até se unirem de novo, numa troca intima
que parecia cultivada em campos arados de vidas antecedentes. Em
seguida foi o respiro de Ramón a virar sempre mais arquejante e os
ritmos das suas empurradas a aumentar.
– Onde você esteve até agora? – disse-lhe entre os gemidos a
pouco a pouco se tornado cirros que, enforcados na garganta, anun-
ciaram o cume do prazer. Estremecido, caiu beato ao lado daquele
corpo até algumas horas antes desconhecido.
O silêncio da satisfação os envolveu como um manto encan-
tado, esticados sobre um lado repousavam a olhos fechados. Seus
respiros eram acordados no mesmo ritmo, as pernas e as mãos cru-
zadas e as cabeças apoiadas uma à outra, como a não querer dar fim
à confluência criada pelo seu encontro. Maria entorpeceu, mas a
boca dele a despertou pouco depois para continuar a noite de amor
e de prazer. Reparou que Ramón tinha ainda o preservativo e lhe
lembrou de trocá-lo, mas ele respondeu que não precisava.
– Mas não! – reagiu ela espantada ao dever explicar aqueles
detalhes técnicos. – Isso já está cheio, tem que ser trocado.
– É que não há esperma – explicou ele em tom natural.
Ela entrefechou os olhos, como a focar, um reflexo incondi-
cionado para exprimir a incredulidade e a dificuldade em entender:
– Mas antes... pareceu-me que você também... – balbuciou na busca
de uma explicação.
Ramón sorriu: – Chama-se “orgasmo anaejaculador”. Funcio-
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vez parou para pensar em si como fonte de energia, mas era difícil
pra ela separar-se da percepção materialística da vida e do agir com
a qual crescera e fora educada.
– Não, eu não sou um xamã, mas minha vovó paterna era uma
índia da tribo dos Guaranis e, o que se conta, minha bisavó era filha
de mãe de santo.
– Você está me confundindo com todas estas coisas novas!
– Uma família misturada, a minha, brasileira de verdade – riu
com gosto Ramón.
Chegaram a Teguise apenas atrasados, o pouco para não se-
rem notados. Maria estava feliz. Cumprimentou o colega holandês
e tomou lugar atrás de suas costas. Sentada composta, de pernas
cruzadas e com sua prancheta e caneta nas mãos, mantinha o olhar
fixo no cara que falava ao microfone de categorias, de dados, ob-
jetivos e resultados, input e output. As imagens projetadas na tela
gigante, diagramas em pizza, de barras, percentagens e números,
tornavam-se papel branco aos seus olhos vitrados, apenas entrefe-
chados, como num estado meditativo. Seu pensamento, pois, ficara
no Mirador del Rio, na visão infinita e nos braços que lhe cingiam
as costas. Foi assim pela duração toda do meeting até as saudações
conclusivas, acolhidas com aplausos entusiastas. Os presentes tro-
caram apertos de mão com os desejos de futuras colaborações e ela
se prestou ao jogo da mesma forma, despedindo-se com excessivo
calor mesmo de quem nunca notara.
Voltou ao hotel com o primeiro carro a se mover. Tomou um
banho e arrumou suas coisas, em seguida enviou um sms a Ramón e
desceu no hall à espera dele. Alguns dos participantes do workshop
já estavam de partida, os outros teriam ido embora à noite ou no
dia seguinte.
– Mas você não tem o avião amanhã de manhã? – perguntou-lhe
Gerard reparando no seu trolley.
– Sim, mas esta noite vou ficar na casa de um amigo que mora
em La Santa. Sabe, Gerard, prefiro ficar em Lanzarote do que na
Inglaterra – riu.
O holandês a fitou espantado: – Como são sociáveis vocês ita-
lianos!
– Também você seria muito sociável se botasse uma migalha
de paixão nas suas palavras, mesmo só no tom – pensou ela, mas
não lhe disse nada para não ofendê-lo.
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histérico por ninharia: uma palavra considerada a mais, uma caneta
movida da sua escrivaninha, uma malha lavada por sua mãe sem
seu consentimento. Há duas semanas entrava e saía do escritório
na hora estabelecida, Ettore, desde que ela voltara ao trabalho, con-
tara os dias. Observava sua “escrava” disciplinada e submissa, até
mesmo parara de avançar pretensões. Ruminava sobre o que tivesse
acontecido no workshop e no período em que ele faltara: – Deve-se
ter finalmente convencido de quantos problemas tem uma empresa
e que, se a gente trabalha do jeito certo, todo mundo leva benefício
disso – comentou satisfeito com Fabio. Essa mudança, porém, se
o fazia emproado na frente dos seus colaboradores, afligia-o em
outros aspectos, mantidos bem escondidos por trás da máscara do
manager chefe. Maria perdera a verve que levava cada manhã a luz
no escuro porão e que lhe fazia começar o dia de bom humor. Tor-
naram-se monótonas as horas de escritório sem dever repreendê-la,
sem suas observações e seus conselhos sobre o trabalho a fazer, sem
poder desabafar a pequena e sutil obsessão de controlar seus mo-
vimentos, que lhe presenteava um brio vital. Em alternativa Maria
aumentara as pausas, curtas, mas mais frequentes. De fato, começa-
ra a fumar como uma fumadora verdadeira, daquelas que acordam
de manhã e acendem o primeiro cigarro e fumam o último antes de
se deitar. Nunca fora uma fumadora inveterada, um cigarro de vez
em quando, alguns baseados em companhia, mas nada mais. Esse
novo hábito fez sua mãe chorar e seu pai enraivecer, mas ela ficou
inteiramente indiferente. Saía pouco e não parava mais na cidade
para algum evento ou mesmo só para a movida1 noturna nos bares.
Na verdade Maria se entediava, não pensava em outra coisa se não
em como rever Ramón e sonhava com o próximo encontro. Porém
ele não se fizera presente, nem por telefone, nem por e-mail. Revivia
na mente as situações passadas e sentia que qualquer coisa havera
entre eles, fora sincera. Mas por que ele não a procurava? Pergunta-
va-se abatida e impaciente. Mesmo só uma mensagem lhe teria sido
suficiente a entender que não passara na vida dele como qualquer
outra, e ao invés disso nada, silêncio total! Decidiu-se, então, enviar-
-lhe um sms pra saber como ele estava e para cumprimentá-lo. A
partir daquele momento não se separou mais do celular. Trepidava
54
capítulo 3
a cada toque e a cada bip, mas era sempre outra pessoa. No dia
seguinte, quando perdera cada esperança, chegou a resposta tão es-
perada, num misto de português e italiano: “Seu corpo ainda está no
meu corpo. Até breve”. Depois de ter consultado google translate e
apurado o conteúdo exato do texto, Maria voou ao sétimo céu e ali
parou. Voltou-lhe a alegria e o sorriso e, ao mesmo tempo, diminu-
íram os cigarros e aumentaram as saídas.
Um domingo de manhã de final de fevereiro, em que estra-
nhamente acordara cedo, a mãe lhe pediu para acompanhar Vovó
Quinota no habitual passeio na praia, ela estava empenhada em fa-
zer os fusilli2. Eram a sua especialidade, os preparava uma vez por
mês e seu irmão Ciccio e família eram convidados fixos. Tinha uma
habilidade inata em enfiar a massa macia na agulha de tricô e uma
mestria particular em enrolá-la, Maria a olhava encantada.
– Eu não sei de verdade como temos que fazer com Vovó!
Não fala, mas é teimosa como uma mula – desabafou Rosa com
a filha. – Parece-lhe possível que uma mulher de noventa e cinco
anos, que mal consegue andar, saia com este frio pra ir à beira mar?
Tentei explicar-lhe isso, mas nada, olhe-a, já se levantou da cadeira!
Maria virou o olhar para a bisavó e sorriu. Sua tenacidade a es-
pantava: – Só não apoiá-la mais e está feito! Pois ela sozinha não sai.
A mãe a olhou divertida: – E você acredita de verdade que ela
não o faça? Acha que sou tão estúpida de não ter pensado nisso?
Tentei mesmo, sabe? Mas, minha filha, às nove em ponto de cada
domingo aquela mulher já está na porta de casa e, se ninguém a
acompanha, sai sozinha.
Rosa suspirou: – Melhor ir ao jardim e colher alguma flor, tem
que haver umas prímulas no canteiro redondo e talvez um par de
anêmonas. Pelo menos lhe poupamos esse esforço.
Maria seguiu as indicações da mãe, compôs um buquê roxo
e branco e depois voltou a casa para pegar a bisavó, que estava à
espera dela com o capote na mão, apoiada na bengala. Levantou um
braço para entrelaçá-lo com aquele da neta, acenou os primeiros
passos, pequenos e incertos, e com calma atingiram à beira. O mar,
agitado por um forte Mistral, reduzira a praia notavelmente. Quino-
ta, envolvida num xale de lã para se proteger do vento, parou onde
55
maresia
chegava a espuma, desabotoou o capote e, com delicadeza cerimo-
nial, tirou o longo colar de cochas que usava sempre ao pescoço.
Colocou-o numa palma, apoiou sobre ela a outra e juntou as mãos.
Em seguida as agitou para frente e para trás em modo circular, a
fim de produzir um som modulado. A mulher, de olhos cerrados,
acompanhava o tique-taque das conchas com um canto a boca fe-
chada, suave e melodioso, um canto sem palavras que “falava” de
tristeza e de esperança, de temor e de coragem. Maria teve um frê-
mito, uma profunda comoção a permeou e os olhos se encheram de
lágrimas. Esquecera aquela melodia, há anos não participava mais
do ritual, demais, considerou. Parecia-lhe um mantra que Quinota,
como em transe, repetia sem uma desafinação, uma oração confian-
te voltada às águas do mar, um chamado desesperado em direção
ao horizonte. Maria tinha a sensação de estar dentro daquelas notas,
deixava-se transportar por elas como por uma corrente. Sentiu algo
de não captável fluir no sangue, encher-lhe a alma na sua inteireza
e uma sensação de paz a envolveu. Os pensamentos não lhe faziam
mais mal, também a ansiedade se dissolvera, como por encanto,
transportada pelo vento quem sabe onde. Quando o canto acabou,
as mãos pretas e tremulantes se aproximaram daquelas brancas e
firmes da neta, Quinota percebeu a emoção no rosto de Maria e lhe
fez uma caricia na bochecha. Agarrou uma parte das flores e com
os olhos a convidou a imitá-la. As duas mulheres, com solenidade li-
túrgica, lançaram na espuma prímulas e anêmonas e ficaram a olhar
o roxo e o branco das pétalas se confundirem entre as ondas, para
depois se dispersarem no cinzento do mar de inverno.
– Vovó, tinha esquecido tudo isso – disse Maria enquanto su-
biam a praia de volta. – E talvez nunca percebera quanto fosse bom.
Se amo menos você pudesse explicar-me o sentido!
Quinota se virou pra ela e sorriu. Estava feliz de ouvir aquelas
palavras.
– É claro que se trata de uma oferenda ao mar, mas é uma
coisa que inventou você ou pertence a uma tradição do seu país? A
propósito, sabe que em Lanzarote conheci um homem brasileiro?
Do Rio de Janeiro, como você.
A bisavó emitiu um som de espanto.
– Na verdade não apenas o conheci, nós nos amamos! – con-
fiou-lhe Maria. – E foi um amor tão lindo ao ponto de ser como-
vente! Ficamos juntos só dois dias, contudo eu sempre penso nele,
56
capítulo 3
remoo sem parar sobre como fazer para revê-lo.
Maria contava descontroladamente, como sempre com Vovó
Quinota. Eram monólogos curativos, interrompidos só pelos acenos
da sua interlocutora, muda, mas perfeitamente capaz de ouvir e cap-
tar sentimentos e emoções atrás dos gestos e das gradações da voz.
– Oh, Vovó! Ele desenhou cada curva do meu corpo, e depois
a contemplava, como fosse uma obra de arte. E ele é mesmo lindo
como o sol! Pele escura, olhos cinza-verde, corpo escultural... é um
surfista, sabe? E também arquiteto, e artista, e joga capoeira.
Quinota fez um gemido, e uma lagrima clara desceu sobre sua
pele escura.
– Vovó! – exclamou Maria. – O que está acontecendo com
você? Conhece a capoeira e essa lembrança lhe faz sofrer?
A cabeça da mulher se moveu para frente: – Sim, sim.
Conhecia a capoeira, mas desde que chegara à Itália, oitenta
anos antes, não ouvira nunca mais pronunciar aquela palavra.
Maria se virou e a apertou entre seus braços: – Não aguento
suas lágrimas!
Tirou do bolso um lenço e lhe enxugou o rosto: – Se mamãe
vir você nessas condições, quem sabe o que vai pensar! E, depois,
ela vai brigar comigo. Eia! – exortou-a. – Não faça isso, faz eu me
sentir culpada!
Chagando ao portão de casa Quinota se recompôs, mas seus
olhos eram avermelhados e ainda reluziam. Abriram a porta e res-
soou a voz de Rosa: – Tudo bem? Por que demoraram tanto assim?
– Tudo bem mamãe, só um pouco de frio – respondeu a filha
com tom chateado. Desde que voltara a morar em casa, tudo de
Rosa a aborrecia: o tom lamentoso, a resignação no olhar, as chatas
recomendações, os banais conselhos, até mesmo seu jeito de rir dos
estúpidos motejos do pai. Irritava-a que ela tentasse investigar na
sua vida, que desse ordem nas suas coisas, que cada manhã lhe per-
guntasse o que ela queria para o jantar. A maioria das vezes tenta-
va controlar-se e se arrependia quando exagerava, incubava dentro
uma cega raiva a seu respeito, mas lhe doía porque, apesar de tudo,
amava-a intensamente. Ajudou a bisavó a tirar xale e capote, en-
tretanto a mãe lhe lembrou de acompanhá-la ao banheiro antes de
acomodá-la na cadeira de balanço. Maria atendeu aos pedidos, em
seguida se colocou na frente da lareira para se aquecer um pouco,
sentia-se congelada. Pensava e repensava na reação de Quinota ao
57
maresia
ouvir a palavra “capoeira”. Por que ela chorara? Talvez, quando era
criança, ela também “jogava”, ou alguém da sua família de origem.
Quem sabe quais lembranças estavam escondidas atrás daquelas lá-
grimas! Considerou que a vida da quase centenária mulher tinha um
buraco escuro, às vezes refletira nisso, porém não descera em pro-
fundidade, nunca fora além da história transmitida em família. Sua
curiosidade se exaurira junto com sua meninez, estava concentrada
demais na sua vida, na busca da sua autonomia, da sua liberdade... e
Vovó Quinota sempre fora ali, como algo de certo: sua pele escura,
suas esquisitas joias, os olhos perscrutadores, o sorriso triste, seus
silêncios. De repente ela teve uma ideia: e se lhe tiver mostrado al-
guns vídeos no youtube? Certamente a teria deixado contente, já já
indagou: – Ei Vovó, perguntava-me se gostaria de ver alguns vídeos
de capoeira, têm muitos na internet.
A mulher anuiu com a cabeça e bateu as palmas com alegria e
então Maria, satisfeita pela intuição, subiu depressa as escadas para
pegar no quarto o computador portátil. Na tela compareceram ce-
nas de pessoas de calça branca dispostas em círculo, no meio do
qual dois jogadores se encaixavam sem nunca se tocar. Quinota era
visivelmente feliz, seguia o ritmo da música batendo as palmas e de
vez em quando seus olhos reluzentes se moviam para a neta, em
sinal de agradecimento.
– Se você quiser posso mostrar-lhe inclusive umas fotos do
Rio de Janeiro, assim, só para lhe lembrar da cidade onde você nas-
ceu – propôs-lhe Maria. Mesmo aí a mulher moveu a cabeça para
frente, o coração lhe batia forte enquanto mergulhava no seu passa-
do. Chorou já à primeira imagem, com o Cristo Redentor de costas
e o Pão de Açúcar cercado pelo azul do oceano. Estendeu os dedos
na tela para acariciar a foto, assim como fazia com aquelas dos seus
filhos mortos.
– Porém não faça assim, Vovó. Eu achava que a teria feito
feliz, não que a teria feito chorar!
Então a bisavó lhe agarrou uma mão e a apertou, implorava-a
para continuar apesar das lágrimas, não conseguia retê-las, era a pri-
meira vez que recebia um presente tão precioso.
Quinota sabia que Maria era especial, diferente de todos os ou-
tros netos e bisnetos, sempre soubera disso, desde o domingo de sol
em que nascera. Vira-a crescer, perder-se em longas contemplações
do mar, lutar contra os pais para afirmar sua autonomia e quebrar os
58
capítulo 3
esquemas da tradição familiar. Sempre reconhecera nela o gene da
rebelião, aquele que se portam atrás os descendentes dos escravos
africanos. O seu já adormecera, anulado por uma viagem distante
no tempo e no espaço, por uma vida feita de silêncios e de desejos
escondidos.
Rosa, da cozinha, reparou no pranto de Quinota: – Oh, bom
Deus, Maria! O que está fazendo? – ralhou com ela. – Por que Vovó
está chorando?
– Estou apenas mostrando-lhe umas fotos do Rio de Janeiro!
Acho que esteja comovida, são lágrimas de alegria, suponho.
– Por acaso quer provocar-lhe um infarto? Esqueceu a idade
que tem? O coração dela é fraco, certas emoções poderiam fazer-lhe
mal. Às vezes você me parece tão boba, superficial...
– Mas mamãe... – respondeu com o rosto abatido, sem arti-
cular algumas frases. Sentiu-se ofendida da repreensão, a mãe não
considerara sua boa fé e nem mesmo tentara entender seu gesto.
– Melhor, em vez de fazer besteira, venha-me ajudar! Força,
sus! Ponha a mesa – ordenou-lhe.
Pouco depois chegou o tio Ciccio com a esposa Elisa e os fi-
lhos, a pequena Mariella e Eugenio, por todos chamados de Genio,
com o qual Maria tinha uma relação especial. Brincando se definiam
“primos gémeos”, porque nasceram no mesmo ano a poucos dias
de distância. A chegada dos familiares dissolveu a tensão em casa, e
ela voltou alegre.
– Priminha querida! – exclamou Genio abraçando-a. – Entre
uma coisa e outra a gente não se vê desde sua viagem, como foi seu
final de semana em Lanzarote? Conta-me algo, vamos lá!
– Uma fábula! – respondeu ela com ar sonhante. – Depois va-
mos dar um passeio, tenho algo para lhe contar – piscou.
O almoço foi rico e prazeroso. Os fusilli com o molho simples
de tomates pelados feitos em casa, os cicoli3, o bacalhau com os pipi
arrigliati4, as conversas. Maria comeu muito e com gosto, a alegria
na mesa lhe estimulava o apetite: tudo graças ao tio Ciccio, entre
59
maresia
todos os irmãos da mãe era o seu preferido, capaz de fazer emergir
o lado melhor das pessoas que ficavam ao seu redor. Entre uma
zombaria e outra, o argumento principal de conversa foi o pedaço
de terra herdado por Elisa à morte do pai, cerca de dez anos antes.
Era o lugar onde ela crescera, mas o casebre estava quase em ruínas,
desgastado pelo tempo e pela falta de cuidado. A construção levava
os traços de um passado fastoso, a história de uma família de ricos
donos de terras depauperadas pouco a pouco, uma geração depois
da outra, que vira o sítio amear-se e a casa ceder um pouco por vez.
– Vale a pena pra você vender – sugeriu Carmine, – são apenas
taxas a pagar.
– É que sinto muito – abriu-se Elisa, – é como se renegasse
minha família!
– Vamos lá, sus... – inseriu-se Ciccio. – Carmine está certo.
Não temos o dinheiro para uma reforma e, mesmo querendo, acho
que nenhum dos nossos filhos esteja disposto a confinar-se ali em
cima. Seja razoável!
– Mas quem vocês querem que compre uma casa em ruína sobre
uma colina perdida entre o mar e a montanha? – perguntou Maria.
– Sempre a mesma derrotista! – comentou seu pai.
– Não é derrotismo – replicou ela, – é concretude!
– Pensando bem, a posição não é tão ruim, um quarto de hora
da cidade e um quarto de hora do mar – disse Ciccio.
– Sim, claro, um quarto de hora depois de meia hora de selva
para chegar à estrada estatal! – apontou Maria.
– Em cada caso há um panorama maravilhoso – acrescentou
Elisa, – do alto se vê o Tirreno todo!
A discussão continuou entre a alternância das diferentes opi-
niões, vender ou não vender, alugar ou reformar, sem chegar a uma
conclusão.
Após o café Genio e Maria saíram para dar um passeio. Na beira
mar, onde as intimidades afloram num jeito mais simples e natural.
– Você não vai acreditar no que aconteceu comigo em Lanza-
rote! – disse ela apenas longe de ouvidos indiscretos.
O tom e a expressão usados deixaram intuir a Genio outra das
extravagâncias da sua prima: – Diga-me, diga-me! – exortou-a entre
o curioso e o gozante.
Sem levar em conta a expressão dele, Maria se lançou num
apaixonado conto sobre Ramón e a ilha, sem negligenciar detalhe
60
capítulo 3
algum. Confidenciou-lhe estar apaixonada por ele e sua intenção de
alcançá-lo logo. O vento soprava, mas era mais calmo do que pela
manhã. Os dois andavam para sul na areia úmida e, ao passar, deixa-
vam pegadas nítidas ao lado daquelas das gaivotas. Genio ouvia com
o rosto espantado, achava-a uma situação paradoxal: – Maria – sus-
pirou com tom de repreensão, – você se deixou comer por dois dias
seguidos por um galo de um galinheiro que nem mesmo ejacula, e
que claramente não lhe procurou mais... e você? Apaixonou-se por
ele. Razoável, me parece! – concluiu sarcástico.
– Em primeiro lugar não use a expressão “deixar-se comer”,
porque eu não sofri nada, participei de jeito ativo tanto quanto ele.
Gozamos também nós mulheres, sabe? – provocou-o.
– Tá bom, tá bom – cortou ele. – É que vocês mulheres são as-
sim, apaixonam-se pelo mais gato, que antes faz com que acreditem
sabe-se lá no que e logo foge. E talvez ao lado de vocês há um ho-
mem normal que espera só amá-las, formar uma família, ter filhos.
– Quantas besteiras está dizendo! – enraiveceu ela. – Uma série
de banalidade que, entre outros, cabem só à sua vida pessoal.
Referia-se à longa história de amor de Genio com Loredana,
começada quando eram adolescentes e terminada depois de quator-
ze anos, quando ela perdera a cabeça para um colega de universida-
de, bonito e danado, o qual a deixara, em seguida, entre lágrimas de
amor e de pesar.
Discutiram animadamente por uma boa meia hora, Genio ten-
tou convencer a prima da absurdidade da coisa: – Deixa que seja
ele a procurá-la – sugeriu-lhe enfim – porque, se não o fizer entre
breve tempo, é inútil que você se martela o dia todo, será um claro
sinal de indiferença.
O primo não estava errado, pensou Maria, mas seguir suas ad-
vertências significaria renunciar ao que ela achava um grande amor,
e não queria fazê-lo.
Nos dias a seguir a história de Ramón foi repetida e ouvida
várias vezes. Milena, Anna, as colegas, os amigos da cidadezinha e
aqueles da cidade. A todo mundo Maria pedia conselho. Entretanto,
as temperaturas subiam e as primeiras flores desabrochavam nas
árvores, mas ele ainda não a procurara.
61
maresia
dos filhos emigrados. Na Páscoa, ao contrário do Natal, as férias
se contavam em pouco mais de um final de semana e nem todo
mundo tinha o apego, ou a possibilidade, de enfrentar viagens lon-
gas e caras por poucos dias. Os feriados representavam, seja como
for, um momento de extrema alegria, porque as ruas e os bares da
cidadezinha se repovoavam. Entre os amigos de Maria havia quem
tinha um bom trabalho e um bom salário e não tinha nenhuma
vontade de voltar; havia quem, ao contrario, encontrava dificuldade
para chegar ao final do mês nas custosas cidades do norte. Havia
quem vivia de nostalgia em lugares e empregos odiados, quem até
mesmo fora fazer pesquisa universitária no exterior. Voltaram in-
clusive Anna e Francesco, acompanhados pelos próprios cônjuges,
e a casa se encheu de bom humor. Rosa estava eufórica, nos dias
anteriores se preocupara em limpar a fundo cada quarto, preparar
doces e cada tipo de iguarias para os filhos distantes. Carmine tam-
bém estava ansioso à espera da volta deles. Alguns dias antes de
chegarem, discutiram a partição das camas: Maria teria cedido a sua
ao marido da irmã e teria dormido no sofá da cozinha, difícil era
decidir onde colocar a nova namorada de Francesco.
– Adicionamos a caminha àquela de Fra’ – propusera Maria,
considerava-a coisa óbvia.
– Mas o que você está dizendo? – rebatera Rosa. – A menina é
a primeira vez que vem na minha casa e é sob minha responsabilida-
de e não pretendo me botar numa posição desagradável a respeito
de seus pais.
– Mamãe, quero que você repare em que a “menina” é uma
quarentona de Milão, advogada, que certamente não pede permis-
são ao seus pais para ir de férias com o namorado, que, entre outras
coisas, em junho mudará para a casa dela. Se você lhe fizer encon-
trar um quartinho com uma triste cama de solteiro, vai pensar de ter
arrumado uma sogra retrógrada de verdade.
Naquele caso Carmine também concordava com a filha, mas
apenas porque se tratava do filho macho, nunca permitira a Anna
de dormir com Guglielmo antes do casamento. Chegaram, porém, a
um acordo que contentava todo mundo e mantinha pelo menos as
aparências: sim a uma cama a mais no quarto, não à cama de casal.
Os dias de festa passaram rápidos e a terça-feira após a Pas-
62
capítulo 3
quetta5 Maria se encontrou a chorar no teto de casa, agachada numa
posição fetal que exprimia por inteiro sua fragilidade. Fora todo
mundo embora, no mesmo dia, e ela ficara ali como de costume,
sempre mais sozinha, longe da proteção do seu bando: o irmão, a
irmã, todos os afetos considerados uma certeza. E ela por sua vez?
O que diabos estava a fazer? Por que ainda não arrumara as malas?
O que a detinha? Amava sua terra, com suas contradições, contínua
fonte de irrequietude e de estímulo ao pensamento, mas ao mesmo
tempo a odiava, porque morar na Calábria era de verdade cansati-
vo. Contudo, uma dúvida a perseguia: tivera a coragem de ficar ou
lhe faltara a coragem de ir? Maria tentava responder-se, dialogando
consigo, invocando às vezes o mar.
A imagem de Ramón se materializou no horizonte, como um
holograma. No domingo de Páscoa lhe enviara uma mensagem de
parabéns, mas ele não se dignara nem mesmo a responder. Pror-
rompeu em lágrimas porque se sentia estúpida, obcecada por um
sentimento de adolescente, pouco concreto, o tormento por um
homem mal conhecido e que idealizara. Não era talvez a projeção
maníaca de uma alma carente de amor? Não era, na realidade, toda
uma sua construção? Pensou nele como à “flor que não dura mais
do que a sombra dum momento” duma poesia, há pouco lida, de
Fernando Pessoa, aquela onde invoca a flor que nunca viu se não
“onde não sou senão a terra e o céu”. Assim como um daqueles
sonhos que esvanece na madrugada e deixa crer que tenha sido, ao
contrário, realidade. Aquele pensamento poético foi como uma in-
tuição, sugeriu-lhe a ideia que, no fundo, a chave está na perspectiva
da qual se olha uma coisa. Portanto, apenas uma obsessão ou uma
maravilha destinada, que precisa de mais tempo para ser atingida?
Maria suspirou: – Seja o que for, deixará de ser o primeiro pensa-
mento ao meu acordar e o último antes de me deitar – propôs-se
enxugando-se os olhos.
Assim, a partir daquele dia, a figura de Ramón foi empurrada
lentamente numa gaveta, até que parou de procurá-la nos sonhos. Já
chegara a primavera, geradora de despertares, e mãe terra emanava
novos fluídos de energia, novas vibrações, com seus perfumes e
63
maresia
suas cores, intensas e vivazes.
Num domingo de sol, Maria se levantou de manhãzinha para
dar um passeio no campo junto com os amigos da cidade. Uma
amiga, de uma cidadezinha próxima, veio buscá-la de carro e juntas
se dirigiram ao encontro marcado embaixo de casa de Milena, para
depois prosseguir todo mundo junto para a Sila6. Durante o cami-
nho Maria foi raptada pela paisagem ao redor: mais uma vez ficava
inerme frente ao encanto da mãe natureza, assim generosa com a
sua terra. Do azul do Tirreno que brilhava embaixo dos quentes
raios de sol se encontrou entre as montanhas cobertas de verde,
em todas suas tonalidades e nuances. O amarelo à margem da rua,
das azedas antes e, subindo de altitude, das giestas, acompanhou a
viagem até um prado ao lado do Lago Arvo. Ali era um conjunto
de manchas de cor: o vermelho das papoulas, o roxo das violetas, o
branco e o lilás das margaridinhas. Uma pintura rara, dom especial
da biodiversidade. Maria se sentiu renascer ao respirar fundo o ar
limpo e refrescante da Sila.
A comitiva era composta por uma quinzena de pessoas, dividi-
ram as tarefas a fim de organizar a grelhada e ela se juntou à expedi-
ção no bosque para colher a lenha. Encheu os pulmões do perfume
dos pinheiros, dos abetos seculares e da resina sobre os troncos e,
depois de tanto tempo, redescobriu o prazer de fazer xixi ao ar livre,
com as folhas aciculares no terreno que espicaçam as coxas. O dia
passou em companhia de um violão, um par de pandeiros e de um
acordeão, e o vinho e a carne assada alimentavam as energias para
cantar e dançar ao ritmo da tarantella7. O pôr do sol foi um espetá-
culo de graça sublime, uma luz avermelhada ao horizonte penetrou
as nuvens e se refletiu nos franzidos do lago, cujas dóceis águas se
tornaram preciosas de quentes nuances índigo. A uma certa altura
duas silhuetas começaram a mover-se, entrelaçando-se sem nunca
se tocar, e Maria, naquele balanço, reconheceu a capoeira. Não lhe
pareceu um jogo atlético como aquele dos vídeos na internet, mas
6. É uma vasta área montanhosa da Itália meridional, na zona centro-setentrional
da região Calábria, que se estende através das províncias (divisões administrativas
de uma região italiana) de Cosenza, Crotone e Catanzaro, e que é caracterizada
pela presença de vários cumes montanhosos, planaltos, espessas zonas cobertas
de bosques e lagos artificiais. É dividida (de norte a sul) em Sila Grega, Sila Gran-
de e Sila Pequena.
7. Dança popular da Calábria.
64
capítulo 3
era quase certa de não errar. Aproximou-se para ter confirmação e
descobriu assim a existência de um grupo de capoeira em Cosenza.
Uma das duas silhuetas, Anna, convidou-a a provar o movimento
básico, a ginga, da qual se originam todos os outros movimentos
de ataque e de defesa. Seguindo as indicações, Maria posicionou a
perna esquerda flexionada na frente, a outra esticada para trás e o
braço direito dobrado e levantado.
– Leva a perna direita para frente de um lado e já desloca à
esquerda para trás e depois para frente, e assim por diante – expli-
cou-lhe Anna.
– E acompanha o movimento com os braços – acrescentou
Michelangelo, o outro jogador. – Você tem que alterná-los em opo-
sição às pernas, para proteger o rosto.
Os dois mostraram a execução, Maria os seguiu e logo após
alguns passos também seu corpo balançava de um lado para outro,
com cadência rítmica. Entusiasmou-se e aceitou o convite para um
treino de prova na terça-feira seguinte. Por toda a viagem de volta
pensou no estranho poder das coincidências e no encontro com
Ramón. Ele lhe deixara algo de muito mais importante do que uma
simples lembrança duma esplêndida história de amor: o desejo de
descobrir um mundo que lhe fluía no sangue e que, por ela, signifi-
cava a reapropriação de uma parte de si. O Brasil, o mundo de Vovó
Quinota, desde sempre ali, silente, à espera de ser explorado.
A semana seguinte, como estabelecido, ela foi à aula de capo-
eira. O grupo, formado por pessoas de várias idades, deixaram-na
imediatamente à vontade e ela entrou até na roda, mesmo conse-
guindo apenas fazer algumas desajeitadas flexões. No final do treino
estava destruída, mas feliz e cheia de energia. Anna e outras três
meninas a acompanharam para pegar o último trem, o das vinte e
três. Voltou a treinar ainda na quinta-feira, mas avaliou que estava
muito estressante para ela. Depois de um dia de trabalho tinha que
chegar à academia com os meios de transporte, vadiar até a hora
da aula e depois esperar sempre uma carona até a estação, decidiu
então adiar a inscrição no grupo até que tenha voltado a morar na
cidade. Estava maturando, na verdade, um plano para separar um
pouco de dinheiro e recuperar sua autonomia.
65
maresia
não fosse outro porque se falava de folgas e o espectro das férias
se situava entre as páginas web e as conversas nas pausas. Chegou
até mesmo a primeira parte do pagamento e se sentia o cheiro da
renovação do contrato, com aumento do salário. No final de maio
o engenheiro comunicou as datas: uma semana entre ferragosto8. Os
olhos de Maria se inflamaram, pareciam desfechar raios. Ettore, em-
baraçado, virou o olhar. Ela esteve à espera de uma palavra de dis-
sidência por parte dos colegas, mas era uma esperança vã, ninguém
se atreveu a rebater.
– Não lhe parece pouco apenas uma semana depois de um ano
de trabalho? – atacou Maria.
– Em todas as empresas as folgas são assim – enervou-se Et-
tore.
– Primeiro de tudo fale baixo, você não está autorizado a levan-
tar a voz comigo só porque trabalho no seu escritório – avisou-o.
– Desculpa, sim, eu sei, desculpa – blaterou Ettore. – É você
que me deixa nervoso... é sempre e só você a única a reclamar! –
defendeu-se. Já ficara tonto, a ideia de enfrentar uma discussão com
Maria o angustiava.
– Segundo – continuou ela, – estou certa de falar em nome de
todos.
Virou-se para os colegas para estimular um assentimento que,
tímido, intuiu-se pelo aceno das cabeças.
– Terceiro, o que fazem nas outras empresas não me cabe. Eu
só sei que para nós uma semana de descanso é pouco.
– Os contratos de vocês não contemplam folgas, esses dias são
um presente que eu lhes faço. Quem deseja descansar mais tempo,
que espere o fim do contrato em setembro – concluiu ameaçador o
engenheiro.
Maria se esforçou por manter a calma, porque era a coisa que
mais irritava seu chefe: – Eu, no entanto, lembro-lhe de que nossos
contratos não contemplam oito horas por dia de trabalho. Uma se-
mana não é suficiente – repisou com firmeza.
O embate continuou até que o engenheiro Cristiano se rendeu,
66
capítulo 3
derrotado por uma língua comprida e afiada, que aduzia argumenta-
ções às quais ele não podia rebater e que o faziam sentir-se um verme.
Junho chegou num relâmpago, e com ele um calor abafado
de tirar o fôlego. Maria começou a temporada de verão no bar da
pracinha do mar e sua vida se tornou um verdadeiro tour de force.
De manhã ia ao escritório e às sete da noite iniciava ao bar. O ho-
rário coincidia com aquele de saída do “porão”, mas ela conseguira
convencer o Explorador a antecipar sua volta em uma hora, assim
podia pegar o trem das seis e cinco. Quando conseguia, esgueirava
mesmo antes e então aproveitava para tirar uma soneca, depois de
um mês dessa vida o cansaço fazia sentir-se.
O trabalho no bar não era particularmente esforçoso, havia
ainda pouca gente, e ela saía além da meia noite apenas nos final de
semana, porém não tinha nem um dia de descanso e isso a reduzira
a um autômato.
Suas folgas chegaram em coincidência com a grande lotação
das férias, a cidadezinha se repovoou dos seus filhos distantes e de
gente em fuga do afã da cidade. Os ritmos de Maria se reviraram
completamente: dormia até duas horas da tarde e nunca se deitava
antes das três. Às vezes chegava até mesmo ao amanhecer, porque
após o trabalho alcançava os amigos ainda por aí.
O segundo domingo de agosto recorria a festa votiva de São
Francisco de Paola, uma das mais antigas e sentidas tradições da ci-
dadezinha. Como cada ano, a estrada principal se coloriu de barracas
e milhares de fiéis acorreram dos bairros próximos em homenagem
ao santo, protetor da gente do mar. À tarde um cortejo acompanhou
com cantos e orações o busto do franciscano, levado nas costas até
a praia. Dali foi carregado sobre um barco que, no começo de um
séquito de outras embarcações, levou-o para uma volta ao longo da
costa. Com a escuridão, clareada por uma lua cheia e luminosa, uma
multidão em festa acolheu a volta da procissão no mar e o céu se
encheu de fogos coloridos. Junto com Carmine e Rosa estava inclu-
sive Quinota, sentada numa cadeira de rodas que lhe comprara seu
neto, de segunda mão. Ela também era devota do frade taumaturgo
e, embora nunca tivesse participado de nenhuma missa católica, es-
tivera sempre ali à espera da sua volta do mar. Até que suas pernas
lhe permitiram, aguardava-o com os pés na água e, ao momento da
sua atracação, liberava flores no mar. A primeira vez que na cidade-
zinha a viram realizar o ritual, acusaram-na uns de bruxaria, uns de
67
maresia
possessão, uns de demência. Circulavam histórias de todos os tipos
ao redor daquela preta formosa dos cabelos crespos que não falava,
não ia à igreja e fazia coisas esquisitas, vinda do Brasil para excitar
as fantasias masculinas e para quebrar a monotonia de um tranquilo
vilarejo de pescadores. Quando caminhava, reta e altiva, parecia ter
a música nos quadris e seu porte parecia seguir o ritmo das ondas
do mar. Os homens se viravam à sua passagem e as mulheres deles a
olhavam hostil, compadecendo entre elas o pobre Carmine ao qual
fora feito um feitiço por uma selvagem carregadora de doenças. Em
plena propaganda colonialista e com a difusão da teoria racista sobre
a superioridade dos brancos, Quinota se achara isolada das mulheres
da cidadezinha e só com a primeira gravidez, que a transformava
de puta em mãe, tornara-se a esposa um pouco boba de Carmine
Valenza, por tolerar com caridade cristã.
À noite houve um concerto de percussões africanas na Villetta9
do Pescador, a uma quadra da praia. Maria estava trabalhando, mas
quando ouviu a voz dos tambores vibrar no ar, foi tomada pelo fre-
nesi de ver o show. Afastou-se por alguns minutos para assistir à exi-
bição, três homens de cor batiam nas peles dos tambores a uma ve-
locidade e com um ritmo tal que multiplicavam o som. Um grupo de
meninos se contorcia sob o palco, como se tivessem possuídos pelas
notas, agitavam os corpos de um jeito instintivo e libertador. Maria
teve um aceno de inveja, ela também teria querido deixar-se ir. Em
seguida, à música se adicionou o canto, gorjeios numa língua desco-
nhecida, gritos tribais semelhantes a uma invocação divina. No fim
do concerto, e com a multidão dissolvida, chegaram ao bar alguns de
seus amigos em companhia dos músicos. Ocuparam uma mesinha e,
já enquanto pegava as encomendas, Maria percebeu o olhar insisten-
te do moço com os dreadlocks, preto como Vovó Quinota, colorido
como a Africa do Senegal. Só no final da noite, quando o bar já es-
tava vazio, conseguiu sentar-se com eles para saborear uma cerveja.
Os olhos do jovem não pararam de segui-la no seu vai-e-vem entre
as mesas e ela um pouco apoiava, um pouco se retirava do jogo.
– Sente-se aqui – disse-lhe ele, Abdou. Aproximou uma cadeira
e Maria se acomodou. Na mesa se comunicava numa mistura de lín-
guas, um pouco de francês, de inglês, algumas palavras em italiano,
mas Abdou, mais do que participar da conversação coletiva, preferia
68
capítulo 3
falar com Maria. Fazia-lhe perguntas com palavras simples, próprias
de quem não conhece bem a língua e, ao momento de ir embora,
pediu-lhe para ficar, queria passar mais algum tempo com ela.
– Quero fazer amor com você – disse-lhe.
Maria ficou pasma. Abdou não usara meios termos, nem metá-
foras, nem fizera voltas de palavras, chegara direto ao ponto, since-
ro, sem embaraço algum.
– Eu gosto de você – declarou convencido.
Ela ficou em silêncio, tergiversava. Em poucos instantes no
seu cérebro se criara uma grande confusão: na perene luta entre o
certo e o errado se emaranhavam juízos e interrogações, causas e
efeitos. Desejo, pura libido, ou aquele “não está certo” como um
eco no seu pensamento?
– Você olhos bons, coração bom – continuou ele, – eu ho-
mem, você mulher. Você gosta de mim?
A pergunta elementar e direta a levou a responder sem véus,
despojada de todos os badulaques do pensamento complexo: – Sim,
mas eu não sei nem quem você é!
– Você sabe quem eu sou. Eu Abdou – afirmou levando uma
mão sobre o peito, – você Maria – e moveu a mão para o peito dela.
– Eu homem, você mulher. Lindo é amor.
A obviedade do tom fez estremecê-la, seu raciocínio lhe pa-
receu extraordinário, simples e linear, de uma delicadeza ancestral.
A ideia de quanto ela, ao contrário, fosse complicada lhe suscitou
o riso e seu corpo se liberou das rigidezes. Abdou aproveitou disso
para atraí-la para si: – Você lindíssimo rosto e lindíssimo corpo –
sussurrou-lhe. – Você branca, mas um pouco africana.
Em seguida empurrou a língua para o pescoço executando
movimentos circulares e entretanto suas mãos percorriam as linhas
das ancas e das nádegas. No mesmo instante em que Maria refletia
em que talvez não fosse mesmo o caso, juntou-se a ele num beijo
gentil e saboreou um gosto doce nos seus lábios pretos e carnudos.
Confiava nele, era afável e perfumado, sentia-se à vontade em sua
companhia. Foi ela mesma a conduzi-lo à praia, um pouco mais ao
sul, numa abertura entre alguns arrecifes.
– Eu não gosto de todas as mulheres – disse ele enquanto ca-
minhavam. – Você é a número um. Eu já vi você do palco cinco
minutos.
Deitados na areia se abraçaram e Abdou a convidou a abrir a
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maresia
boca: – Lindos dentes. Brancos – examinou.
Maria riu, aquele tipo de abordagem a divertia, ademais ne-
nhum homem nunca lhe pedira para mostrar-lhe os dentes. Era a
primeira vez que sua pele se confundia tão intimamente com uma
outra preta de verdade, e se pasmou ao descobrir quanto o efeito
cromático dos membros cruzados cutucasse seu desejo. Sobre ela
um rosto de traços estrangeiros se confundia com o escuro da noite,
só os olhos reluziam como faróis, ligavam-se e se desligavam ao rit-
mo das pálpebras e dos dreadlocks que, como uma carícia, desciam-
-lhe sobre o peito. Era bem viva a percepção táctil daquele corpo,
sólido, liso e sem pelos. Abdou foi como um relâmpago inesperado
num céu de lua cheia de um dia abençoado, um amor selvagem e
instintivo. Ele insistiu para acompanhá-la, mas ela preferiu cumpri-
mentá-lo na pracinha onde se conheceram e vê-lo desaparecer para
sempre atrás da esquina, em direção do hotel.
– No fundo se pode amar também por poucas horas – racio-
cinou Maria enquanto voltava a casa às cinco da manhã, – e ele me
deu o que eu precisava.
O resto do verão passou tranquilo sem particulares aconteci-
mentos, nem mesmo o dia do seu aniversário fora especial, embora
Rosa tivesse feito pra ela um bolo e insistido para que apagasse as
velinhas. Ao encerramento da temporada tirou um suspiro de alívio,
pelo menos o final de semana podia descansar. Nunca como na-
quele ano curtiu o mar de setembro, quente, límpido e cristalino, na
praia silenciosa havia só pescadores a lidar com os barcos e alguma
alma isolada a gozar o sol de fim verão.
Com o começo do outono chegou o dinheiro que Maria avan-
çava do Explorador e a renovação do contrato por outros seis me-
ses, nas mesmas condições. O engenheiro Cristiano convocou em
reunião a equipe para anunciar a notícia da continuação do projeto
mas, sentido, declarou que não conseguira mudar os termos con-
tratuais. Tentou justificar-se: – O projeto prevê um número total
de horas destinadas aos recursos humanos, subdivididas entre os
partners. A nós cabe um certo número e não podemos ter outras.
Nem uma palavra e nem sequer um respiro percebeu dos seus
ouvidores. Veio-lhe uma leve coceira no nariz, pouco a pouco sem-
pre mais insistente, e começou a coçar-se nervosamente. Premia nas
narinas, os músculos do rosto eram contraídos e seu olhar fugia.
– Um claro mecanismo de defesa, está descarregando a tensão.
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capítulo 3
O stronzo está nervosinho – pensou Maria consigo. Mais horas,
mais dinheiro: isso era o conceito e ela pretendia aprofundá-lo. Deu
início ao conflito de um jeito elegante e diplomático: – Eu gostaria
de estudar esse projeto – disse.
– Para o que precisa disso se já está em execução? – desencora-
jou-a Ettore. Ele se pôs prontamente na defensiva, estava prepara-
do, já sabia que teria que enfrentar as perguntas dela.
– Eu, ao contrário, acho que pode ser útil pra mim. E, além
disso, estou mesmo curiosa visto que, entre outras coisas, trabalhei
até na coleta de dados, como pedido pelo contrato.
Eis a primeira acusação velada, mas ele fingiu não ter captado e
continuou calmo, não podia ficar nervoso, caso contrário ela o teria
confundido como sempre.
– Sinto muito, mas não sendo nós o primeiro partner da fila
não temos uma cópia dele – disse.
– Parece-me estranho, porque no arquivo temos todos os pro-
jetos – respondeu Maria.
– Mas não isso – zangou-se o Explorador. – Eu sou a última
roda do carro, você quer entendê-lo ou não?
Teve um ímpeto de raiva, mas já se recompôs, não tinha ne-
nhuma intenção de cair na armadilha dela.
– Pede uma cópia a quem de direito – sugeriu ela. Fechara-o
num canto, Ettore não podia mais ir além.
– Tá bom, vou tentar – prometeu, esgotado e suado.
Mesmo que a contragosto, Maria assinou a renovação do contra-
to. Tinha intenção de voltar a morar na cidade, separara já um pouco
de dinheiro e não queria ficar com as costas nuas. A coisa fundamen-
tal, para ela, era recuperar sua autonomia, fazer uma vida um pouco
menos alienante e buscar algo melhor do que o trabalho no “porão”.
Uma tarde da semana seguinte o engenheiro Cristiano com-
pareceu ao escritório com uma cópia do projeto. Maria a examinou
cuidadosamente, faltava porém o que lhe interessava, o plano eco-
nômico-financeiro.
– Como? – espantou-se Ettore. – Possível?
– Possível, sim! – irritou-se Maria.
– Fique tranquila, faço já já um telefonema e recupero as infor-
mações – disse o chefe para evitar uma discussão. Fechou-se no seu
estúdio e, depois de dez minutos, saiu com alguns papeis na mão:
– Eis aí os dados dos recursos humanos!
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maresia
Entregou-lhe a folha com ar satisfeito, Maria leu rapidamente:
– Então você também é recompensado com vinte euros brutos por
hora? – perguntou.
– Claro! Nós da E&C Consulting somos uma equipe!
Ela o olhou com ar perplexo: – São dados escritos com caneta
por você, não têm valor oficial.
Ettore ficou com o rosto vermelho, parecia um balão prestes
a estourar.
– Tá bom, tá bom! – liquidou-o então Maria, aborrecida. Vi-
rou-lhe as costas e voltou à sua escrivaninha, e começou a buscar na
internet uma solução de aluguel adequada. Anotou os números dos
conjugados, ainda que os preços fossem altos esperava conseguir
contratar. Não excluía a economia de um lugar numa moradia com-
partilhada, mas só se encontrasse coinquilinos prazerosos.
O outono passou na busca de uma casa e finalmente, no dia
13 de dezembro, chegou a ocasião certa. Um casal que ela conhecia
só de vista lhe ofereceu um lugar na habitação deles, num prédio de
nova construção em Viale Parco. O apartamento era grande e, para
se ajudar com o rateio, o casal alugava um quarto. Maria aceitou,
Aldo e Giada lhe inspiraram confiança e, ademais, por 180 euros por
mês tinha um quarto grande com banheiro e varanda, num aparta-
mento com todos os confortos. A localização também era estratégi-
ca, nas proximidades do centro e de uma rua com ciclovia. Deixou
passar o mês de dezembro, movimentado demais pela chegada das
festas, e com o ano novo se mudou finalmente para a cidade.
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CAPÍTULO 4
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capítulo 4
ferroviárias, uma série de galpões em desuso, ocupados e postos de
novo em vida por algumas associações do território. O programa
oferecia cinco dias de eventos culturais, entre os quais uma roda de
capoeira, e a disposição de uma série de serviços postos em ação
por mais de mil voluntários pertencentes a organizações não gover-
namentais, associações culturais, centros sociais, paróquias e grupos
informais. Maria, arrastada por Aldo e Giada, na quinta-feira foi en-
volvida no serviço do refeitório. Alcançou eles na metade da tarde
e se achou catapultada numa outra dimensão, respirava-se um ar de
renascimento, havia uma atmosfera alegre e hospitaleira. O pátio se
enchera de barracas porque os dormitórios organizados não eram
suficientes, fora equipado com chuveiros e banheiros químicos e,
embaixo de lonas arranjadas, mulheres africanas cozinhavam em
grandes panelões, difundindo no ar o perfume da comida tempera-
da. Além dos serviços de base, fora preparado um guichê legal para
os imigrantes, um de assistência à saúde e um ponto de internet,
montado com velhos computadores postos novamente em funcio-
namento com o software livre.
Maria entrou no galpão das Officine Babilonia, destinado às
atividade da tarde de formação de voluntários e aos concertos no-
turnos, e ficou de boca aberta: um espaço grande, cinzento e gélido
virara um lugar luminoso e cheio de cor graças às pinturas, ao palco,
à mobília e às obras de arte construídas com materiais de descarte.
Batuque, um dos camaradas, estava entre os promotores da transfor-
mação. A atividade prevista era uma ciranda, um tipo de dança co-
munitária originária da ilha pernambucana de Itamaracá, conduzida
por Lindara, uma carioca estabelecida em Cosenza já há alguns anos
e casada com um cosentino2. Maria se colocou em círculo com outras
pessoas, mão na mão se moviam como numa brincadeira de roda e
seguiam uma coreografia de passos, marcando o tempo com uma
forte pisada do pé esquerdo na frente. Foi como sintonizar a própria
batida do coração com aquela dos outros, Maria se sentiu regenerada
e cheia de energia para enfrentar o vai-e-vem do serviço às mesas.
Deslocou-se no galpão do refeitório e pouco depois começou a dis-
tribuição das refeições, não havia muito tempo a perder, mas cada
prato era um sorriso, uma palavra, um olhar e um mundo longe.
A tarde seguinte achou outro círculo, mas era aquele da “Coessen-
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capítulo 4
sustentou. – Absorvem as negatividades porque se purificam com o
sal e o movimento das correntes e se enchem da energia do sol!
Viento lhe agradeceu com um beijo, ao qual seguiu uma noite
juntos. À manhã seguinte, bem cedinho, dividiram-se, marcando ao
final do dia nas Officine Babilonia, onde teria acontecido uma de-
monstração de capoeira e, logo depois, uma festa de música africa-
na. Ele se dirigiu à sua barraca, ela foi à academia porque tinha o es-
tágio com o professor Boneco, corda roxa coordenador do grupo de
Cosenza, mineiro emigrado em Turim. À noite, durante a exibição,
a galera se pôs à prova também numa roda de Maculelê, a dança do
pau, uma dança folclórica de origem afro-brasileira que simula uma
luta tribal usando dois paus, batidos ao ritmo dos atabaques. Quan-
do Boneco entoou o canto “No Brasil tem uma luta que também
veio de lá! Africa”, a plateia se inflamou e o coro “Africa” se tornou
um estrondo, tão intenso que provocou arrepios na pele. Aos pés
do palco uma multidão de jovens pulava e se alegrava gritando o
nome da própria terra e Maria se emocionou, pareceu-lhe uma cena
comovente. A exibição terminou entre os aplausos e o entusiasmo
do público, no meio da África, lugar mãe de cada outro lugar. Vien-
to, dos compridos cabelos loiros e o olhar de índio, foi embora no
domingo à noite com seu sabor de rua e de amor. Como última dá-
diva pelo cruzamento de vidas e de corpos lhe deixou uma pedra em
forma de coração: – Neste momento é tudo o que pode dar-lhe um
viajante solitário. Maria amarrou com um barbante a pelúcia e pedra
da mesma forma, um coração incluía o outro, como uma matrioska.
Com ele desapareceram também os perfumes e as cores da feira, as
pessoas pela rua e os traços da África, e a cidade voltou às televisões.
Maria, ao contrário, ficou com a fantasia de uma vida errante rodan-
do pelo mundo em busca de aventuras, à descoberta de culturas e
pessoas novas, ao se atarefar um pouco aqui e um pouco lá, sem o
frenesi do emprego fixo e a obsessão do futuro garantido.
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capítulo 4
– Melhor assim, não é? Estará a fim mesmo de, de vez em
quando, encontrar alguma pessoa nova – incitou-o.
Não, não estou a fim disso – obstinava-se ele.
– Eia, não seja tão pesado! Asseguro-lhe que são todas pessoas
simpáticas e simples, confie em mim, não se arrependerá.
Maria estava preocupada com ele, via-o apertar-se sempre mais
entre os braços do mar e da montanha e se afastar de qualquer
forma de sociabilidade, por isso insistiu com tenacidade até que lhe
arrancou um fraco consenso. Queria a todo custo apresentá-lo às
mulheres, estava certa que, entre todas, alguma iria suscitar seu in-
teresse. No fundo ele era um cara lindo de verdade, olhos verdes
e pele bronzeada, músculos torneados pela fadiga, voz profunda e
perturbadora, e sabia até mesmo ser simpático quando queria. O dia
passou alegre entre cantos de capoeira e amigáveis zoadas e Genio
não se arrependeu de ter-se juntado à comitiva. Mesmo sendo de
poucas palavras, não foi avaro de conversas com Soninho. Encanta-
da pelo charme bucólico do jovem, ouvia seus contos de mar entre
um copo de vinho e um toque do pandeiro e à Maria não escapou
o entendimento entre os dois. Na volta no carro cutucou o primo
em busca de detalhes: – Bonita Soninho, não é mesmo? Reparei em
como você a olhava...
– Que é isso? É bonitinha, sim, mas nada demais – ficou hirto.
– Nada de quê? Tronco inclinado para frente, acariciava-se os
cabelos com uma mão... claro sinal de interesse romântico, meu
querido! Certos detalhes não me escapam. E, além disso, as risadi-
nhas, os olhos de peixe morto...
Maria riu com gosto, Genio era um livro aberto pra ela, conhe-
cia-o melhor que qualquer outra pessoa.
– Como de costume está se fazendo um filme, só fizemos ami-
zade, não era isso o que você queria?
– Vocês trocaram os números de telefone?
– Não.
– Mas você é tolo? Por que não?
– Por favor, Maria, pare com isso! Não seja pedante, deixe-me
um pouco em paz! – enraivou-se.
– É que eu quero ajudar você!
– A fazer o quê?
– A conquistar Soninho.
– E desde quando eu precisaria de você para conquistar uma
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mulher?
– Desde que você se tornou um urso! – disse resoluta. Deu-lhe
um beijo na bochecha, para significar o quanto ela lhe queria bem e
o quanto teria querido vê-lo feliz.
A questão se resolveu numa saudável risada, os dois primos
eram tão ligados que nunca nenhuma palavra errada conseguira
abalar a relação deles, feita de estima, confiança e carinho, sabiam
que podiam contar um com o outro em qualquer situação. Maria o
convidou a dormir na sua casa: – Bebemos o dia todo, melhor que
você viaje amanhã de manhã.
– E por que? Não estou bêbado de jeito nenhum... meia hora
abundante e vou chegar a casa, prefiro voltar.
– Se pararem você e fazerem o teste alcoólico está frito! Multa
e retirada da carteira de motorista! – avisou-o.
– Amém – respondeu ele, não houve jeito de convencê-lo, Ge-
nio era alérgico à cidade.
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capítulo 4
você entristeceu porque não encontrou Soninho...
– Não, não, eu sabia que ela está na África... e, ademais, não
estou triste, apenas um pouco chateado – mentiu, na realidade ele
lembrara disso só quando não a vira no meio dos outros. Maria não
acrescentou nada mais, satisfeita com a resposta, oculta admissão de
um interesse quanto à sua amiga.
Já há algum tempo o assunto principal das conversas da galera
era a organização do Festival de capoeira previsto para junho, even-
to no qual os novos alunos seriam batizados e os outros trocariam
de corda. Faltava pouco mais de um mês e faziam as contas no bol-
so: passagens e cachê para mestres e professores, o pedido para ter
academia em dias adicionais aos habituais, a recepção dos hóspedes,
a festa de fim de evento. Flor à lapela, a chegada do Rio de Janeiro
de mestre Ramos, o diretor do grupo, com seus quarenta anos de
capoeira nas costas. Os alunos tinham que estar em forma para uma
semana de aulas com ele, por isso Cofrinho se comprometeu a man-
ter ainda mais alto o nível dos treinos.
Algumas noites, após o trabalho, Maria estava tão cansada que
queria só a cama, mas logo pensava nos escravos nas plantações que,
depois de ter trabalhado o dia todo como animais de carga, à noite
se reuniam para se livrar numa roda. Então lhe retornava a força de
vestir o abadá para suar e eliminar a negatividade e, no final, nunca
se arrependia, sentia-se sempre bem melhor do que quando chegara.
Na volta da Tanzânia Soninho e Vovô Longe trouxeram um
sopro de vitalidade, a experiência os fez ainda mais motivados e os
encheu de uma energia primordial. Inevitavelmente, isso se refletiu
sobre o grupo todo.
– A África é uma experiência que cada ocidental teria que viver –
disse Soninho. – Primeiro de tudo para gozar de um bem pra nós em
extinção, a lentidão, e ademais porque põe em discussão todas nossas
superestruturas culturais e põe à prova nossa capacidade de adapta-
ção. Tudo o que nós damos por certo ali não o é. Não há a estrela
Polar, Maria, você se dá conta disso? Pulam todos os esquemas!
Maria a olhou perplexa, às vezes a amiga fazia discursos difíceis
de seguir: – Sim, mas ali há a Estrela do Sul, que tem a mesma fun-
ção de orientação, só que, em vez do Norte, indica o Sul.
– Pois é, você diz bem, é isso mesmo o ponto! Como desa-
parece a Estrela Polar, as superestruturas do nosso pensamento se
esmigalham na existência de céus onde resplendem outras estrelas,
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capítulo 4
cortou Vovô Longe, rindo. – Mas, brincadeiras à parte, e as muitas
coisas lindas – continuou, – há mesmo muitas feiuras e muita podri-
dão! A água quente é um bem raro, não há energia elétrica em todas
as casas e, de qualquer forma, é intermitente, a saúde tem níveis
baixíssimos e a corrupção é desenfreada.
– Pensem que em cada posto de controlo tínhamos que pagar
a propina ao policial para poder passar!
– As ruas não têm iluminação pública e as mulheres são sub-
metidas e estupradas – acrescentou Soninho.
– Seja como for, estamos falando de um minúsculo fragmento
de África, nossas impressões são limitadas ao que nós vimos. Eu
voltei cheia de incertezas e com muitas questões, sobretudo me per-
gunto o que seja a pobreza. Quanto há de cultural nesse conceito?
Quanto é relativo? Quanto é funcional ao poder?
Suspirou: – Eu não tenho resposta, gente.
Ninguém a tinha, um longo silêncio seguiu a série de quesitos
e uma profunda reflexão sobre os usos e as consciências do mundo
ocidental acompanhou as cervejas da noite toda.
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capítulo 4
costas, os cabelos, enquanto lhe falava com uma doçura desarman-
te: – É bela quente, não é?
Maria observou encantada a comovente cena de amor, imóvel,
como apalermada.
– Maria! Não fique aí parada, o que você está fazendo? Pedi-lhe
para me ajudar, não é? – repreendeu-a sua mãe. – Desça no quarto
de Vovó e pegue algumas roupas limpas na primeira gaveta da cô-
moda – ordenou-lhe.
Maria executou sem reclamar, murcha e com cabeça baixa des-
ceu as escadas, ao contrário de sua irmã Anna se considerava uma
falha como filha, inteiramente diferente da mulher que sua mãe teria
gostado que fosse.
No quarto da bisavó abriu distraidamente a gaveta, mas era
aquela errada, havia só papeladas e algumas caixas de vários tama-
nhos. Levada pela curiosidade abriu a mais bonita, uma caixinha
de madeira entalhada onde estavam guardadas algumas joias, nada
de precioso, simples colares de conchas, pulseiras de cobre e as
alianças de casamento de ouro amarelo. Remexendo entre os papéis
encontrou fotografias dos vários membros da família, quase todos
mortos, e uma que reproduzia a bisavó ainda jovem, com os cabelos
cacheados emaranhados e o corpo sinuoso de uma sereia. Maria se
surpreendeu com o quanto fora bonita, apesar dos vestidos pobres
parecia uma rainha, em pose régia, com as costas retas e a cabe-
ça alta. Porém o olhar era sempre o mesmo, triste e vazio, poucas
vezes vira Vovó sorrir, velha desde sempre, desde que ela pudes-
se lembrar. A seguir enxergou um envelope com a inscrição “para
Dona Quinota da Costa Valenza” e, como uma chamada, abriu-o
para o ler, nem sequer por um instante lhe passou pela mente a ideia
de invadir a privacidade da mulher. Deu tempo só de ver a última
linha, “com toda a minha alma, mesmo depois da morte, seu para
sempre e devotisimo Carmine”, os gritos da mãe a interromperam:
– Maria, mas enfim, quer apressar-se sim ou não?
Então pulou como uma mola, enfiou a carta no bolso, pegou
calcinha e camisola na gaveta, a primeira a partir de baixo, e correu
escada acima.
– Nunca que eu possa contar com você, abençoada filha, o que
estava fazendo? – repreendeu-a Rosa. – Não estava mexendo nas
coisas de Vovó, não é?
Enrubesceu, desajeitada: – Tocou o telefone e atendi, está tudo
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a noite e o dia. O minha Quinota! Lhe disse que truxe você
comigo para a Europa como uma rainha, mas você riu na
minha cara, me respondeu que você não dexava a sua tera,
que você amava outro homem e esperava um filho dele. Foi
terribil saber que você ja era deflorada, mas não me importa-
va diso, so o seu corpo queria, e sofria. Pensa, meu tesouro,
não podia lhe dar um futuro aquele negro vagabundo, be-
berrao, que ficava todo o dia no meio da rua a se esconder
da policia. Eu não tinha escolha, tinha que salvar a sua vida.
A sua voz melodiosa era uma maldisao, um encantamento,
maltratava o meu sono e não havia solusao! Por iso deci-
di que você, de qualquer jeito, tinha que vir comigo... tive
medo aquela noite, eu queria lhe fazer minha esposa e lhe
posuir mesmo se não era mais pura! Lembro ainda o grito
de dor que lansou quando no navio no alto do mar lhe tirei
a mordasa da boca, aquela foi a ultima vez que uvi a sua voz,
o seu castigo foi que você não me a fez uvir mais, uma vida
junto com o silencio. Nosos filhos foram concebido so com
o meu amor, porque você nãe se deu nunca de verdade, go-
zei do teu corpo mas não da tua alma, que ficou na beira do
oceano. Quinota o minha dileta! Pode perdoar as pancadas
de quando recusava o meu carinho? Pode perdoar todas as
vezes que lhe posui, nunca uma vez que você consentiu?
Não me fiz nunca mais uvir como você canta e a tua voz,
tua risadas, a luz dos seus olhos sumiu. E nosos filhos? Você
não lhes amou de verdade, fez eles crescer sem o amor de
uma mãe. O Quinota! Agora que dentro de pouco eu morro
com esa doensa que me consome dia depois dia tenho que
lhe pedir perdao. Porém voê tem que saber que era so amor,
um maldito amor que condanou a minha vida, e também a
sua, e me fez infeliz, e também a você e aos nosos filhos...
o Quinota! Queria uvir aquela musica que você cantava en-
quanto lavava a roupa e dizia que a sua mãe era uma sereia.
Perdao. Peso perdao para você e para o bom Deus.
Com toda a minha alma, mesmo depois da morte, seu para
sempre de devotisimo Carmine.
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burca, envolvera-a pela vida toda. Longe da sua terra, da sua família,
de todos os afetos deixados, até mesmo um filho. Que fim fizera
aquele filho? Como ter respostas a todas suas perguntas? Olhou o
relógio e se recompôs, tinha que voltar a casa e fingir que não sabia
de nada, se Rosa tivesse sabido que mexera nas coisas da bisavó te-
ria ficado enfurecida, não admitia certas faltas de respeito. Por sorte
o tio Ciccio, a tia Elisa e Mariella já haviam chegado, ao contrário
Genio fora pescar com Carmine e voltariam depois de um par de
horas. Rosa lhes deixaria a comida aquecida, como costumava fazer.
Maria almoçou de cabeça baixa, tinha pouca vontade de con-
versar, só teria querido gritar os fatos descobertos, dizer a Vovó
Quinota quanta amargura tinha por dentro, mas não podia fazê-lo.
À tarde, quando todo mundo estava fora de casa, agachou-se com
a testa sobre as pernas da bisavó e começou a chorar. Quinota a
confortava acariciando-lhe a cabeça, não precisava saber o porquê
das lágrimas, só o fazia.
– Vovó, diga-me a verdade, você me ama apesar de tudo?
A mulher a olhou incerta, levantou as sobrancelhas, não intuía
o sentido da pergunta.
– Você tem que saber que eu lhe amo realmente muito, mas
muito... que você é a pessoa mais importante pra mim, que sem
você eu não saberia nem mesmo como fazer, onde encontrar con-
forto... seus silêncios são um consolo, suas caricias são minha cura.
Maria chorava, liberava lágrimas incompreensíveis.
– Claro que amo você, minha menina – disseram os olhos da
bisavó, pequenos e entreabertos.
Numa certa altura Maria entoou uma música há pouco apren-
dida, saiu-lhe da garganta de jeito quase involuntário: “Adeus povo
bom adeus, adeus que eu já vou embora, pelas ondas do mar eu
vim, pelas ondas do mar eu vou embora”, e enquanto cantava ima-
ginou a esplêndida e formosa negra da fotografia ao lançar um grito
lancinante, dizendo adeus à sua gente, no navio transportado pelas
ondas do mar.
Quinota conhecia a cantiga, entoou a melodia com seu canto
a boca fechada seguindo as palavras da bisneta e também no seu
rosto compareceram as lágrimas. Cantavam e choravam juntas, mas
nenhuma das duas sabia que era pelo mesmo motivo. Maria foi ten-
tada a falar com a bisavó, contar-lhe tudo, mas era realmente o caso
de trazer de novo à memória só um grande sofrimento? Decretou
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que seria melhor calar-se, certo é que não queria lhe provocar um
infarto. Levantado o espírito se preocupou em recolocar a carta no
mesmo lugar onde a encontrara, mas a turbação não a abandonou e
a noite não fechou olho, torturada pelo pensamento fixo dos abu-
sos do seu bisavô, perpetrados por anos.
Na manhã seguinte foi a voz de Rosa a acordá-la e, dada a in-
quietude noturna, perguntou-se se a dureza da mãe não foi o fruto
de um tipo qualquer de violência de seu pai. Moía pensamentos es-
tranhos e quando Rosa lhe levou o café, de impulso lhe perguntou:
– Mamãe, papai sempre lhe tratou bem? Ele nunca bateu em você?
– Mas que ideias lhe dão na cabeça? – respondeu assustada.
– É que essa noite tive um sonho ruim – mentiu para justificar
a pergunta.
– Seu pai é um homem bom, nunca faltou ao respeito nem a
mim nem a vocês... ele nos ama. Não quero mais ouvir dizer-lhe se-
melhantes tolices. Levante-se, sus, que está tarde. Mais você cresce,
mais se torna preguiçosa!
– Desculpa – gaguejou Maria. – Não queria ofender nem você,
nem papai. Era só pra...
– Só pra? – olhou-a com severidade.
– Pra nada – concluiu ela, sem ter nada a dizer.
Antes de sair para pegar o trem, Maria foi cumprimentar Qui-
nota, já acordada mas ainda na cama, à espera de Rosa ir ajudá-la a
se levantar e a se lavar.
– Tchau Vovó, nos vemos no próximo domingo, foi bom pas-
sar esses dois dias com você, precisava mesmo. Eu amo você.
Dobrou-se e lhe deu um beijo na fronte, enquanto as mãos da
bisavó lhe agarraram o rosto numa carícia cheia de gratidão.
Chegou ao escritório encolhidinha, não tinha vontade de fazer
nada. Estava cansada e sonolenta e, mais, sem bicicleta, o que a teria
forçado a pegar um ônibus. No início da tarde adormeceu com o
rosto na escrivaninha, estava quase sonhando quando a voz de Et-
tore a acordou: – Fazemos as noitadas, não dormimos e depois, no
dia seguinte, não conseguimos trabalhar, hein Maria!
Ela se abalou, meio caduca: – O que você sabe do que eu faço
à noite? Tenho que lhe responder mesmo quanto e como durmo? –
gritou, irada. Teria querido quebrar a cara daquele imbecil filho de
papai, com o prato servido desde que nascera.
– Claro que você tem que me responder se depois de dia você
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não é eficiente.
– Olha, Ettore, não é um bom dia, tenho os nervos à flor de
pele...
– Vejo-o.
– Isso mesmo, então evita de dirigir-me a palavra, porque hoje
estarei pronta a tudo.
– Está bem, hoje paramos por aqui, mas amanhã vamos voltar
ao assunto – concluiu o Explorador.
Com as lágrimas nos olhos pela tensão, Maria terminou as coi-
sas por fazer e, chegadas às sete, saiu correndo. Não esperou o ôni-
bus, fez ao contrário uma longa caminhada até em casa, precisava
esclarecer os pensamentos e largar a angústia. Certamente o Viale
Parco, ao centro de duas estradas cheias de carros, não era o lugar
mais saudável para uma caminhada, mas o cansaço físico a teria aju-
dado a dormir. E, além disso, era uma esplêndida noite de final de
maio, com um quarto de lua particularmente luminosa. Em casa não
encontrou ninguém, beliscou rápido um pedaço de pão e queijo e
mergulhou na cama.
Na manhã seguinte estava finalmente descansada e ao seu des-
pertar encontrou uma surpresa, uma mensagem inesperada no celu-
lar, em espanhol: “Hola Maria, soy Ramón. La semana que viene iré a
Italia por un trabajo y cuando termine con ello me gustaría ir a verte”.
Ficou petrificada. Naquele momento não sentiu alguma sen-
sação, nada, nem felicidade, nem surpresa, nem raiva. Ramón? E
quem pensava mais nele? Praticamente desaparecera, respondera-
-lhe a custo só a uma mensagem entre aquelas que lhe enviara e
após? Depois de mais de um ano, exatamente quinze meses, con-
tatava-a para lhe dizer que queria ir visitá-la. – Esse homem é de
verdade sem noção – pensou Maria.
Não lhe respondeu, não tinha vontade. Teria podido reagir aci-
damente: stronzo, uma única palavra teria sido suficiente, mas não
estava certa que ele teria entendido em italiano. Durante o dia pe-
diu conselho um pouco a todos seus pontos de referência os quais,
como previsível, deram opiniões discordantes.
– Não pense de jeito nenhum em responder – disse-lhe Genio
ao telefone, pronto a desencorajar a obsessão da prima.
Milena, ao contrário, achando irrenunciável cada ocasião na
vida, sugeriu-lhe exatamente o oposto: – O que lhe importa, diga-
-lhe de sim, de vir visitá-la! Talvez você vá passar os dias mais lindos
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da sua vida. Por que você não deveria fazê-lo?
– Mas ele desapareceu por mais de um ano! Nem mesmo lem-
bro mais de como é feito...
– Bom, embora que não a procurou, evidentemente não es-
queceu de você! E, além disso, não acredito que não lembre mais
de como ele é, você esqueceu em que condições voltou da viagem
em Lanzarote?
– Sim, porém...
– Eia, não seja sempre tão pesada, tão rígida, não é o homem
da sua vida, poderá até mesmo passar sobre certas coisas! Dê uma
boa foda, faz quanto tempo que você não fica com um homem?
– Eh! – exclamou desmoralizada. – Viento, desde março.
– Oh, abençoada Maria! Você tem trinta e três anos, está per-
dendo o melhor período da sua vida, liberte-se um pouco minha
amiga... quer tornar-se velha à espera do príncipe encantado? É pos-
sível que não há ninguém que lhe interesse na cidade?
– Mas eia, Mile’, para! É que não tive a oportunidade, não
acontece, não sei. Não há ninguém que me interesse nesta maldita
cidade, nem nos arredores. E, também, a verdade é que mais avança
a idade, mais todos os homens são noivos, casados, têm família... e,
afinal, onde você quer que encontre um homem se fico dez horas
por dia no escritório?
– Maria, graças a Deus me parece que sua vida não é mais só
casa e escritório. Você conheceu um monte de gente nova... e todos
os amigos de Aldo e Giada que circulam em casa? Ou aqueles dois
jovens bonitos e altos da capoeira, como se chamam? Que, vou lhe
dizer, se eu fosse você... e ademais, nem mesmo um brasileiro? Vo-
cês têm o mestre brasileiro, não é? Todo mundo o diz, os brasileiros
nunca recusam, envolvidos ou não.
– Sou eu, porém, que não quero ficar com um homem ligado
a outra mulher!
– Oh, como você complica as coisas! E, seja como for, não me
parece que Ramón tenha uma qualquer espécie de namorada, então
responda a essa porra de mensagem! – resolveu imperiosa.
Ao final Maria se convenceu, respondeu à mensagem de jeito
bastante neutro, convidando-o a telefoná-la quando for o momento.
À noite foi treinar, dali a uma semana teria começado o Festi-
val, e antes da aula Cofrinho comunicou a impossibilidade do Mes-
tre Ramos de chegar a Cosenza, retido no Rio de Janeiro por causa
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No vestiário feminino a questão foi aprofundada, a nenhuma
fugira o entendimento do abraço deles: – E então? Eia, eia, conta... –
incitou-a Panda.
Maria riu: – O que quer dizer Manuche? – perguntou desvian-
do, sentia-se em embaraço.
– Literalmente é cigano, pessoa que conduz vida errante – ex-
plicou Soninho, cuidadosa estudiosa da língua portuguesa.
– Zíngaro – precisou, – mas não na acepção negativa e estere-
otipada que nós lhe damos!
– Parece-me um apelido apropriado, por quanto eu sei ele deu
a volta ao mundo – disse Maria.
– Então você o conhece bastante bem – aludiu Sapinha. – Eia,
não se faça preciosa!
Então Maria, puxada pela insistência das amigas, em voz baixa
revelou ter vivido com ele dois intensos dias de amor e de ter re-
cebido, alguns dias anteriores, uma sua mensagem: – Mas como eu
podia pensar que ele teria vindo aqui mesmo, ao nosso batizado?
Além do mais, não me dissera que era um professor de capoeira! Eu
também estou atordoada!
A aula começou com uma bateria de instrumentos maravilho-
sa, uma poderosa energia se percebia no círculo, os três berimbaus,
gunga, médio e viola10, manejados magistralmente pelo contrames-
tre e pelos dois professores, criaram uma atmosfera antiga. Repro-
duziam o som dolente do cativeiro, nostálgica invocação das terras
da África, grito de luta pela liberdade. Quando Igor entoou o canto:
“Chama eu, chama eu, chama eu Senzala chama eu”, o coro se tor-
nou o estrondo de um trovão, Maria teve um calafrio, arrepiou-se
e, pela primeira vez, percebeu um sentido de pertencimento muito
profundo ao grupo Senzala e à tradição cultural levada em frente.
Embora Ramón estivesse aí, durante os treinos Maria não pen-
sava nele, estava concentrada demais nos exercícios, impregnada de
suor, intenta a pôr à prova sua capacidade de êxito. A galera estava
ao completo, vinte pessoas no total incluídos três hóspedes: Gior-
gio dos Palmares de Pisa, companheiro da viagem na África; Chiara
dos Cordão de Ouro, cosentina emigrada em Londres; Pierfelice
dos Soluna de Castovillari.
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ceu logo maravilhoso e a reconduzia a uma relação com o mar. Igor
lhe confessou de ter pensado naquele nome assim que a conhecera:
– Maresia é cheiro intenso do mar junto à costa, especialmente na
maré baixa – explicou.
Afinal de contas não havia nome mais apropriado, também
Ramón concordou, Maria levava consigo o perfume do mar: – Com
certeza você é filha de Iemanjá – disse-lhe.
– E quem é? – perguntou ela.
– Iemanjá é uma dos orixás, a senhora do mar, a rainha, mãe e
amante dos pescadores.
Maria ficou fascinada pelo conto sobre os orixás, na mitologia
ioruba a encarnação das forças da natureza com características hu-
manas. Eles se revelam através das emoções, têm defeitos, humo-
res, fraquezas e não são perfeitos e infalíveis. Cada orixá é rodeado
por um sistema simbólico particular feito de cores, comidas, canti-
gas, orações, ambientes, espaços e, como resultado do sincretismo,
é associado a um santo católico. Durante o período da escravidão,
deveras, por causa da imposição do catolicismo os africanos, para
manterem vivos seus orixás, foram obrigados a mascará-los sob os
despojos dos santos católicos, cujo culto era só aparente. Uma pro-
va da malícia intimamente ligada também ao jogo da capoeira, a
astúcia com a qual se engana e não se deixa enganar.
À noite, em vez de pegar o trem, Ramón pediu a Maria se po-
dia ficar mais alguns dias e ela, cheia de felicidade, consentiu. Falou
disso antes com seus coinquilinos os quais, amantes como eram da
companhia, não fizeram objeções, pelo contrário: – Pode ficar todo
tempo que ele quiser, Ramón é estupendo, estou feliz por você! –
disse-lhe Giada, eufórica.
Manuche se sentiu logo à vontade na cidade de Cosenza, de-
certo a existência do grupo de capoeira o facilitou muito porque:
– Quando há galera boa, há família – dizia.
Através dos camaradas, deveras, em menos de um mês criou
seu micro mundo, com compromissos, diversões e amizades. Deu-se
bem de jeito particular com Batuque, Gianluca Salamone, artista po-
liédrico, por ele comparado por certos aspectos ao gênio de Carybé,
por outros àquele de Manrique. Quando se encontravam nas Offici-
ne Babilonia se perdiam por horas no armazém onde ficava o mate-
rial de reciclagem recolhido, munidos de ferramentas e genialidade
se divertiam a transformar os descartes, dando assim vida a novos
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noite, só pra ficar com ela. “Por que comigo?”, vacilava a autoesti-
ma, e “por que não eu?”, respondia o amor-próprio, num furioso
combate para o equilíbrio. Ramón a agarrou pelos braços, perdeu-se
nos olhos dela e disse: – Manuche precisa só de três coisas pra ser
feliz: as ondas, um berimbau e um grande amor. Em Cosenza há
tudo isso e eu quero ficar, esta cidade tá me chamando – concluiu.
Logo concordaram um plano organizativo: ele teria voltado a
Lanzarote, carregado a kombi com todas suas coisas e teria transita-
do com ferry e viajado, quilômetros após quilômetros, até a Calábria.
– Venha comigo – pedira-lhe. – Vamos viajar sem tempo!
Porém Maria não era tão cigana quanto ele, não podia viajar
sem tempo, tinha um trabalho e devia contar as folgas: – Não pos-
so, não posso de jeito nenhum, arrisco o posto!
Ela teria gozado de mar e descanso nas duas semanas de ferra-
gosto e, entretanto, teria buscado casa à espera da volta dele, previs-
ta para os começos de setembro.
Ramón desistiu do propósito da viagem com o furgão, mas à
todo custo queria que ela também fosse em Tórino, com ele e outras
pessoas da galera, para o week-end de campismo e capoeira organi-
zado por Boneco. Dali ele prosseguiria para Lanzarote, enquanto ela
voltaria à casa com os outros. Tinha absolutamente que conhecer o
convidado especial do estágio: Mestre Sorriso, um dos fundadores
do grupo Senzala, percussionista apreciado no mundo todo, íntimo
amigo de seu pai José Francisco. Manuche o adorava e o estimava
pela sua história de vida mas, sobretudo, pela sua abordagem da vida.
– Você vai gostar – disse-lhe para convencê-la. – É uma ocasião
especial.
Maria aprovou o plano e em companhia de Sapinha, Panda e
Soninho, no dia oito de julho viajaram. Mestre Sorriso ficou feliz
de rever Manuche, não era ele a dar-lhe a corda, mas no fundo o
considerava seu aluno. Conhecia-o desde o nascimento e, desde que
se mudara para a Europa, hospedara-o várias vezes na sua casa em
Montpellier, onde morava. O mestre ria como ninguém e mostrava
seus dentes brancos, reluzentes como estrelas na pele preta: – A
vida é boa pra caralho, Manuche! – repetia.
E Ramón, vagabundo dentro, entendia perfeitamente suas
palavras, compartilhava a mesma filosofia de vida: aproveitar, só
aproveitar. Em suma, gozar a vida. Entre um gole de cachaça, um
bocado de frango e um passo de samba, Sorriso fez amizade com a
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bem como, mas se dá um jeito! – riu de gosto.
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sem se descompor demais: – O que eu posso lhe dizer? Sempre fez o
que você quis e, ademais, agora já os tempos mudaram.
Maria ficou empalidecida, não lhe parecia verdade ouvir seu
pai fazer certos discursos.
– Mas Carmine... – tentou objetar Rosa.
– Sus, eia, é inútil que nos obstinamos em pensar num certo
modo – dirigiu-se à esposa. – Agora já todos os jovens convivem,
não podemos fazer nada. Eu lhe digo só uma coisa – e se virou para
a filha, – faça-se respeitar e não se deixe ferrar.
E assim, com a sincera e simples recomendação de seu pai,
Maria recuperou a serenidade necessária para repensar sua vida,
buscar uma casa com um pequeno jardim nos arredores da cidade e
estar à espera, em setembro, da chegada da kombi amarela e verde.
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CAPÍTULO 5
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capítulo 5
Alguns dias depois, numa tarde de vagabundagem pela cidade,
arte que Ramón aprendera a amar nas histórias de rua de Jorge Ama-
do, encontrou uma pequena oficina de marcenaria num beco úmido
do centro histórico. Um velho artesão tentava apertar uma prancha de
madeira numa morsa e ele, vendo-o em dificuldade, chegou na porta
aberta e lhe perguntou se precisava de ajuda. O homem se virou com
ar carrancudo: – Chi bu mo’ tu? Ma chini si’?1 – disse em dialeto.
Ramón não entendeu as palavras dele, nem foi intimidado pelo
tom beligerante, o boné cinza na cabeça o fazia parecer mais agres-
sivo do que realmente era. Enquanto o velho blaterava, ele entre-
tanto levantara a prancha do chão e a colocara na mesa: – Tranqui-
lo, tranquilo – sossegou-o apoiando-lhe uma mão no ombro.
O homem o olhou de través: – Ia cumu parri strano tu!2
– Eu sou brasileiro – esclareceu Ramón.
– Chini? Tuni? Si’ du Brasile... daveru? ’Un sta’ fissiannu?3
– Sim, Sim, é verdade, é verdade...
– Ah! Uà, ti fazz’assaggià ’na specialità, ’na pocu i vinu ca m’ha purtato
mio nipote i’ Verbicaro, ca u vinu cumu u’ facimu nua ccà, là vua vu’ sunnate...4
Desapareceu no fundo da oficina para voltar com dois copi-
nhos de taberna: – Comunque iu signu mastru Tonino, Tonino ppe’ l’amici,
signu falegname a sessantatri’anni, fazzu voglia ’ddio u misi prossimo!5
Daquele momento em diante se inaugurou uma nova amizade
e, cada vez mais, Ramón passava as manhãs na velha oficina ajudan-
do e aprendendo com mestre Tonino. Foi ele a sugerir-lhe a madeira
de pinho para fazer os atabaques, tinha duas encomendas por entre-
gar no início do novo ano e contava também em construir outros
destinados à venda online. Aldo se oferecera para criar um web-site
pessoal, de tal modo poderia ser encontrado pela sua clientela, es-
palhada por todos os cantos da Europa. Os tambores do professor
Manuche, realmente, eram muito procurados no mundo da capoeira,
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Ramón riu: – Eu num escritório? Amada, você quer minha
escravidão?
– Mas um trabalho com garantias e salário fixo não é escravi-
dão, não! – rebateu ela pouco convencida, parecia-lhe com sua mãe
ao falar em seu lugar.
– Meu bem, pra mim oito horas fechado num escritório a tra-
balhar para outra pessoa é sim escravidão! Eu não sou escravo. O
avô do meu bisavô já foi.
– O vovô do seu bisavô era escravo? – espantou-se ela.
– É. Ele nasceu escravo em 1880 numa fazenda portuguesa de
café, um cafezal, no norte do Estado do Rio de Janeiro. Chamava-se
Munga, em língua umbundo quer dizer “justiceiro, testemunha”.
– Que nome inquietante! – considerou ela.
– Seus pais, Kalunga e Ekumbi, que vieram de Angola, depor-
tados, chamaram-no assim porque queriam que ele pudesse passar
a memória das suas condições de trabalho forçado, torturas e casti-
gos, e fazer justiça à cor da sua pele e às suas raízes.
– E ele fez isso de verdade?
Ramón refletiu alguns segundos: – Na realidade Munga nasceu
depois da aprovação da Lei do Ventre Livre de 1871, então livre,
mas sob tutela dos patrões até vinte e um anos. Por isso foi batizado
como Francisco dos Reis, com o sobrenome do seu patrão. Seus
pais viviam à espera dos sessenta anos, momento em que eles tam-
bém, através de uma lei de 1885, seriam livres, mas com a obrigação
de prestar outros três anos de serviço como indenização. Infeliz-
mente eles morreram antes.
– Que história triste! Pelo menos a vida de Munga tem que ter
sido diferente daquela dos seus pais – raciocinou Maria.
– Nada, meu bem! – esquentou-se ele. – Nem a Lei Áurea de
1888, que declarou extinta a escravidão, mudou sua situação. De-
pois de quatro séculos o negro ficou livre perante a lei, livre de ir,
mas ir aonde?
A legislação, deveras, garantira a liberdade para milhares de
pretos, mas sem prever nenhuma assistência socioeconômica, nem
qualquer indenização, pelos anos de trabalho forçado.
Os novos cidadãos de sobrenomes europeus eram efetivamen-
te excluídos da sociedade, não tinham acesso à terra, eram em geral
analfabetos e vítimas de todo e qualquer preconceito.
– Nunca acabou a escravidão, só mudou a forma, porque a
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lugar nenhum, a sensação de ter voltado a ser escravo como meus
antepassados me perseguia. Vovô Chico fala sempre para eu não
esquecer minhas raízes e ser orgulhoso delas.
– E você é?
Ramón empurrou o peito pra fora: – Descendente de escravo –
marcou altivo.
Maria lhe deu uma palmadinha na bochecha: – Porém você
não é muito preto – brincou.
– Porque sou um verdadeiro mestiço brasileiro, mãe branca
europeia, pai cafuzo... e alma cigana – riu. – Eu sou um artista, Ma-
resia, um artesão, capoeirista, então um vagabundo para o mundo
capitalista. Se você não gosta...
– Eu gosto sim de você, amado, mas sejamos realistas, como
podemos fazer projetos sem uma base econômica sólida? – respon-
deu misturando ela também o português.
– Como eu sempre fiz, dando um jeito no dia a dia... vendo
meus instrumentos, dou aula nos eventos de capoeira onde me con-
vidam, enquanto eu estiver com saúde não preciso de muito pra ser
feliz, não tenho nada, se não minha kombi, minhas pranchas e meus
instrumentos.
A sua mente voltou por um instante às ladeiras e às nuas es-
cadas do morro onde crescera. O sobe-e-desce cotidiano, metáfora
da vida, exercício espiritual de fortificação, ensinara-lhe a mover-se
leve, pronto a fugir durante as incursões armadas da polícia.
– Não me interessa acumular – prosseguiu. – Na caixa de mor-
to, meu bem, há lugar só para as flores! Meu mundo é hoje, não
existe amanhã pra mim... fale-me a verdade, você tem medo de que?
Maria enrubesceu: – Mas não, o que você está dizendo... não,
não é isso.
– Maresia, eu sei como funcionam as coisas, como pensam as
pessoas, mas eu quero morrer sem arrependimentos. Tenho pena
de quem rasteja no chão e engana a si mesmo para ter dinheiro ou
uma posição... eu achava que pra você fosse o mesmo.
– Pois é! – rebateu ela. – Mas é que estou sob pressão – desa-
bafou. – Todos me recomendam ter cuidado, enchem-me a cabeça
com mil advertências, meu pai me diz para não me deixar ferrar...
– Seu pai? Acho que chegou a hora de conhecê-lo.
Efetivamente, pensou Maria, chegara o momento de levar em
casa Ramón. Não o fizera ainda porque nutria uma série de temores,
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das inúmeras tatuagens no corpo dele que iriam horripilar sua mãe,
à situação de trabalho que, por sua vez, teria angustiado seu pai,
para o qual todos os artistas eram dos vadios. Em todo caso, antes
ou depois, deveria enfrentá-los, assim na mesma noite ligou pra casa
para anunciar sua chegada no domingo seguinte.
– Está bem – respondeu Rosa sem entusiasmo. Estava preo-
cupada com a filha, a ideia de que estava namorando um imigrante,
com tudo o que se sentia ao redor, amedrontava-a. Pelo menos não
era um africano, dizia a si mesma, nem um muçulmano, de qualquer
forma era uma pessoa pertencente a um mundo e a uma cultura
diferente o que, aos seus olhos, parecia um perigo. Única credencial
era a graduação em arquitetura, mas não botava um freio ao seu mau
humor, acentuado pela convivência desprovida do sagrado vínculo
matrimonial. Isso Rosa não conseguia por nada digeri-lo.
– A que horas vocês vão chegar? – perguntou à filha.
– Para o almoço, acho, talvez mesmo um pouco antes.
– Olha, queria lhe perguntar uma coisa, mas... ele é preto?
Maria se calou, a pergunta lhe provocou uma mistura de incô-
modo e resignação, porque levava dentro de si o imaginário de sua
mãe sobre o estrangeiro, nutrido por horas de televisão e conversas
de vilarejo.
– Por que, mudaria alguma coisa no final? – respondeu com
outra pergunta, não em tom agressivo, mas amargurado.
Rosa o intuiu: – Era só uma curiosidade – justificou-se e não
insistiu. Apressou-se a terminar a ligação, recomendando-lhe que
não chegassem depois da uma.
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Rosa foi ao encontro deles, já bem emocionada. Apesar dos
prejuízos, esperava que fosse a hora certa para que a filha criasse
juízo e se casasse.
– Oh, bem vindos! – exclamou. – Bem vindo – acrescentou
depois oferecendo a mão a Ramón.
Ele respondeu ao aperto e, em seguida, atraiu a mulher para
um abraço: – Estou feliz de conhecê-la, mamãe – sorriu, esforçan-
do-se por pronunciar uma frase inteiramente em italiano.
Rosa, apanhada de surpresa, ficou hirta: – Entrem, entrem, não
fiquem nas portas! – disse para se levar do embaraço. Dirigiu-se a
Maria: – Seu pai foi pescar com Genio, vão voltar no início da tarde.
Depois se virou para Ramón: – Vida de pescadores! – suspi-
rou. – Em compensação teremos meu irmão com a família, Maria
com certeza deve ter lhe falado deles.
– Sim sim – respondeu ele, – o tio Ciccio.
Pronunciou o nome com um sotaque esquisito e provocou o
riso de mãe e filha.
– Que bom, ela está rindo! – animou-se Maria. Estava certa,
no fundo, de que teria sido suficiente um só sorriso de Ramón para
conquistar o coração de Rosa.
Entraram na taberna e se dirigiram a Vovó Quinota.
– Eis aí minha bisavó – indicou Maria. – Ei Vovó – chamou-a.
Ao ouvir a voz da bisneta, a mulher virou a cabeça e sorriu.
Maria lhe beijou a fronte: – Ramón está aqui – disse-lhe feliz.
– Olá Vovó Quinota, é uma grande honra pra mim conhecê-la...
Maria só fala de você! – curvou-se sobre ela, pegou-lhe na mão e a
beijou com a galantaria de uma época passada.
Os olhos da mulher assumiram um brilho particular, era ver-
dade que a bisneta há um pouco de tempo lhe cantava as músicas
em português, mas aquela era a primeira vez, desde que deixara sua
terra, que ouvia sua língua materna.
– Ele também é do Rio de Janeiro – apresentou-o Maria, – mas
isso você já sabe.
Dirigiu-se a Ramón: – Ela sabe tudo de mim, e também de
você – riu. – Dizemos que é a minha “pedra paciente” – declarou
parafraseando um filme de Atik Rahimi, há pouco assistido juntos.
– Vovó, gostaria de saber qual o bairro do Rio de Janeiro de
onde você vem – disse-lhe Ramón. Examinou os traços e a cor dela,
puramente africana: – Você é uma autêntica negra! Por isso Maresia
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capítulo 5
corpo, os acenos das mãos, o rodear dos olhos, as inclinações da
cabeça. A chegada do tio Ciccio trouxe como sempre uma rajada
de alegria. Abraçou o namorado da sobrinha como se o conheces-
se desde sempre e o contagiou com sua risada descomposta. A tia
Elisa estava toda sorridente e bonitinha, ao contrário Mariella não
parava de fixá-lo, ficava curiosa com a mistura de feições e com a
cor da pele. Ramón, com sua afabilidade, logo se fez amar. Ajudou
a tirar a mesa e insistiu para lavar as louças, mas Rosa não aceitou a
ajuda dele, nunca iria incomodar um convidado.
No início da tarde, enquanto preparavam o café, voltaram do
mar os pescadores, satisfeitos com a pescaria. Ramón se aproximou
de Carmine e se apresentou de jeito formal, exibindo um italiano
perfeito: – Muito prazer, senhor Valenza!
Ele se mostrou cordial, mas o olho perscrutador o fixou de
través, uma mistura entre a análise e a advertência.
Genio, não obstante a aparência carrancuda, acolheu-o com
alegria: – Finalmente você tomou corpo! – disse-lhe brincando.
Os dois começaram a conversar como metralhadora e se des-
cobriram em sintonia sobre muitas coisas. Ramón gostou do “pri-
mo gêmeo” de Maria porque era o único, entre as pessoas conheci-
das até então em Calábria, que se dedicava inteiramente à natureza
e procurava a comida sozinho: – Queria sair no mar com vocês um
dia – declarou.
Ramón foi literalmente conquistado por toda a família Valen-
za, simples e genuína, unida e serena, há gerações sempre na mesma
casa. Pensou na sua, absolutamente diferente, desagregada e des-
locada. Em resposta à pergunta de Rosa, curiosa de conhecer as
origens dele, contou o complicado entrelaçamento da sua parenta-
da, caracterizada por contínuos deslocamentos, duplos casamentos,
meio-irmãos e meio-irmãs.
Quando tinha dez anos, sua mãe Ana deixara o pai Zé Francis-
co e voltara para Madrid. Ele, menino, não quisera segui-la, não que-
ria abandonar a vida livre entre as ruas da cidade maravilhosa e os
jogos selvagens na floresta ao redor do morro de Santa Marta. Ana,
entretanto, casara-se de novo e tivera outros dois filhos, mas era ela
que pagava os estudos do primogênito e, uma vez por ano, compra-
va-lhe uma passagem de avião para que fosse visitá-la. Queria que
ele se afeiçoasse aos seus irmãos e esperava que um dia ele também
a alcançasse. Ramón crescia feliz com o pai na casinha de madeira
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capítulo 5
os movimentos de gênero, aqueles para a água, os precários, os mi-
grantes. Eles dois desfilaram por um bom tempo na parte barulhen-
ta dos No Tav6, em seguida mudaram para os anarquistas, a fim de
encontrar o companheiro Oreste, um amigo com o qual viajaram.
Estavam divertindo-se, fluía tudo tranquilo quando, a certa altura,
nas cercanias da rua Labicana viram umas pessoas correrem de jeito
desarrumado. Intuíram algum pega-pega e pensaram em avançarem
na direção de praça San Giovanni para ficar longe dos embates, mas
erraram de muito. De repente se acharam no meio de canhões de
água e gases lacrimogêneos, a fugir de Digos7 e Ros8 que investiam
contra os manifestantes indiscriminadamente. Maria não imaginava
que teria topado com uma situação igual, ingênua pensava que, de-
pois da matança de Genova de 2001, as forças da ordem teriam es-
tado sob controle, por isso se sentiu livre de usufruir do seu direito
de dissidência participando do cortejo.
Ramón, ao contrário, não se perturbou muito, crescera no
morro com as incursões armadas da polícia. Ao contrário, tentou
tranquilizar Maria que, no entanto, tremia de medo. Por um instan-
te o tomou um orgulho campanilista9, certas coisas não aconteciam
somente no seu País. Considerou que o uso indiscriminado da vio-
lência, e os abusos de poder da parte das forças da ordem, são praxe
comum em todo o lugar do mundo. Ficaram bloqueados na praça
por mais de uma hora, todas as saídas estavam trancadas por blinda-
dos. Pararam embaixo do pórtico da igreja junto com um grupo de
rapazes em cadeira de rodas, mais pra lá havia uma nuvem de gás, e
pedras voavam contra cassetetes e blindados, à louca velocidade no
meio da gente. Um grupo de pessoas levantou as mãos em sinal de
paz e gritou “sem violência”, mas o coro foi apagado pelo jato de
um canhão de água lançado a meio metro de distância.
6. Movimento surgido em Val di Susa contra a realização de obras de infraestru-
turas para a alta capacidade e a alta velocidade ferroviária na linha Torino-Lion.
7. Acrônimo de “Divisione Investigazioni Generali e Operazioni Speciali”, um
corpo operativo da Polícia italiana com competências especificas, dirigido à oposi-
ção de atividades subversivas da ordem democrática (atividades antiterrorismo) e
à ilegalidade nas manifestações esportivas.
8. Acrônimo de “Raggruppamento operativo speciale dell’Arma dei Carabinieri”,
o único órgão investigativo da Arma com competência seja na criminalidade orga-
nizada, seja no terrorismo.
9. Apego cego e orgulhoso ao próprio País e às tradições locais.
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capítulo 5
pra mãe d’água...
Liberaram as flores entre as ondas do mar e ficaram a observar
seu movimento, arrebatados pela espuma se afastavam e depois se
aproximavam, num ir e vir até desaparecerem inteiramente. Foram
arrastados para o fundo do mar, junto com as orações deles, para
chegar até ela, rainha, senhora, mãe.
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maresia
Maria puxou a mãe, aquela dureza lhe pareceu mais que ade-
quada: – Anna, mamãe tem razão, Vovó Quinota não se discute.
Porém poderíamos pôr a mesa para quatorze, o que vocês acham?
– sugeriu.
Rosa estava indecisa: – Seja como for, somos treze!
– Vamos botar uma boneca, ou a foto do vovô Francesco ou
aquela do bisavô Carmine. Ou melhor, a do bisavô Carmine não –
corrigiu-se Maria, desde que encontrara a carta, a figura do homem
perdera valor aos seus olhos.
No final Rosa se convenceu, pareceu-lhe a solução mais ade-
quada e por todo o jantar, rico de iguarias saborosas, brincou-se so-
bre o décimo quarto convidado. Entre as conversas saiu de novo o
assunto do casebre herdado por Elisa, um enorme peso, porque não
conseguiam vendê-lo de jeito nenhum. Em seguida ao tio Ciccio
veio uma ideia: – Ramón, você que é arquiteto poderia ir dar uma
olhada, entender em quais condições está e se convém reformar, tal-
vez assim seja mais fácil que alguém fique interessado em comprar.
Ele aceitou e, junto com Genio e Maria, foi visitá-lo num do-
mingo de sol da metade de janeiro.
Havia uma luz clara, da ss1810 se via nítida a imagem de Strom-
boli e de Strombolicchio11 e o horizonte parecia mais perto. Depois
de um quarto de hora de subida, o pk de Genio enfiou-se à direta
numa estradinha de terra batida que, ao prosseguir, tornava-se cada
vez mais selvagem, as rodas do jipe esmagavam selvas cerradas e
ervas incultas. Estacionaram em frente a um portão de madeira bas-
tante mal posto, a partir de ambos os lados se estendia uma cerca de
arame farpado a delimitar a propriedade e, em seguida, continuaram
a pé. Atrás de um par de curvas apareceu uma velha construção, na
ponta extrema do cabo, em cujas costas se estendia o Tirreno ao
longo do campo visão. Ramón ficou fascinado: – Esse lugar se une
ao divino – decretou.
Genio abriu a porta de casa e entraram numa antecâmara vazia
com duas portas, de acesso aos armazéns, e na frente um arco fina-
lizado de tijolos cheios, acima do qual uma ampla janela estava de
10. Estrada estatal 18 Tirrena Inferiore, que percorre a costa do Tirreno da Re-
gião Calábria até a Região Campânia.
11. São ilhas que pertencem ao arquipélago das Ilhas Eólias, na Sicília; Stromboli é
um vulcão inativo, Strombolicchio é uma ilhota vulcânica apagada, acre e inabitada.
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capítulo 5
frente a um vale e depois ao mar. Enfiaram-se numa sala à esquerda
além do arco: – Aqui, faz um tempo, havia a cozinha – explicou
Genio, mas tinha sobrado apenas uma mesa de madeira maciça com
algumas cadeiras sem fundo e, na esquina, uma ampla lareira. Na
frente, outra porta introduzia um local de circulação que dava aces-
so a um banheiro arruinado e a umas escadas. Subiram a escadaria
e se acharam num corredor tão longo quanto o perímetro da casa.
Havia cinco quartos, com os rebocos descascados e as traves do
forro em mau estado. Os dois homens treparam numa escada peri-
clitante e, através de um alçapão, chegaram ao sótão. De lá Ramón
observou o estado de traves, tabuados e travincas: – Muitos têm
que ser trocados, mas no complexo é uma boa manufatura – disse.
– Faltam muitas telhas, mas são facilmente recuperáveis.
Fez de novo a volta de cada quarto, tomou notas e se demo-
rou particularmente nos dois banheiros, por refazer inteiramente.
No piso térreo entrou em um dos dois armazéns: – Acho que aqui
dentro há monstros e fantasmas – brincou Genio, estava cheio de
coisas não bem identificadas, amontoadas em desalinho e cobertas
com lençóis cheios de pó. No outro, por sua vez, havia a taberna já
predisposta a fazer vinho, incluindo os garrafões e toneis antigos,
em desuso quem sabe há quantos anos.
– Até onde se estende a propriedade? – perguntou Ramón.
Genio indicou com os dedos o confinamento, embaixo, mar-
cado por uma pequena torrente pouco além dos pés do cabo: – Flui
até o mar – disse.
Desceram até a margem e Ramón mergulhou as mãos na água:
– Salve mãe Oxum – sussurrou consigo. Depois levantou a voz: – É
bem gelada! – riu, sacudindo as mãos molhadas.
– Quando éramos crianças vínhamos muitas vezes tomar ba-
nho nesse riacho, fazíamos uma bagunça... – contou Maria.
– Você se lembra? – dirigiu-se ao primo.
– É verdade – respondeu ele em tom nostálgico. – Esse sítio
pertencia aos meus bisavós, havia os colonos que cultivavam a terra
e criavam vacas, depois eles foram embora e tudo isso ficou sem vi-
gilância, deixado à degradação. E minha mãe é a única herdeira.
Passearam um pouco mais e alcançaram os estábulos, um pou-
co mais embaixo. Um caíra, os outros quatro estavam mais ou me-
nos desmoronados.
– Algo disso se pode salvar também – disse Ramón observan-
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capítulo 5
grande e longe? A reformar completamente? Não, nem falar, de
jeito nenhum – decretou irremovível.
– Não só eu e você, também Genio! – argumentou ele.
Maria estourou numa risada: – Genio? Imagine, ele longe do
mar... acorda de noite para ir pescar! Conheço bem meu primo,
confie, ele nunca faria isso!
Ramón não insistiu, respeitava as razões da sua companheira e
a discussão não foi mais retomada.
Um dia, porém, aconteceu algo que mudou tudo. Eram às
quatro da tarde e Maria não tinha nada mais por fazer, até mesmo
completara o trabalho de introdução de dados para o qual era con-
tratada, enviara cartas e comunicações, e concluíra a redação final
de um projeto. Então pediu a Ettore para ir embora antes, mas ele
respondeu chateado: – O horário de saída é às sete!
– Eu sei, Ettore, mas não tenho nada por fazer, estou de bra-
ços cruzados.
– Você está sempre a embandeirar o conceito de criatividade...
invente-se algo! – instigou-a. Sabia que soprara no fogo, mas era
uma perversão, o conflito com Maria o excitava.
– Invente-se algo? Eu trabalho pra você!
A discussão continuou por algum tempo, levantaram os tons das
vozes, depois Ettore, ao cúmulo do prazer mental, disse exausto: – Te-
nho algo para você fazer! Tire o pó e ponha em ordem aquilo ali.
Indicou uma coluna de porta-cd, numa esquina da sala.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos e algo se arrebentou
no seu cérebro. Com calma se levantou da cadeira, aproximou-se
dos cd e, num lampejo de orgulho, atirou-os no chão com um ges-
to violento. Ettore ficou aturdido, não sabia o que dizer. Maria o
apontou com os olhos em chamas: – Eis aí, agora há de verdade os
cd por botar em ordem. Pode fazê-lo sozinho, ou pode encontrar
alguma outra pessoa. Não tenho intenção de voltar aqui amanhã de
manhã, nem de renovar qualquer tipo de contrato. Eu exijo ser paga
pelo trabalho que desenvolvi e, se não for pontual e correto, eu de-
nuncio você, vou abrir-lhe uma causa trabalhista. Coisa que deveria
ter feito já há muito tempo, aliás.
A raivosa calma das suas palavras persuadiu Ettore de que não
se tratava de uma briga usual, Maria estava falando sério.
– Daqui a vinte e nove dias exatos o contrato vai vencer e eu
dentro de... vejamos... dentro do dia trigésimo primeiro estarei à
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espera de uma ligação sua para retirar o cheque – dispôs ela. – Caso
contrário irei diretamente pelas vias legais. E não estou brincando.
Você é um stronzo explorador, e eu acabei de ser sua escrava!
Não lhe deu o tempo de rebater de algum modo, saiu da sala
dele batendo a porta. Recolheu rapidamente suas coisas entre o es-
panto dos colegas e, quando estava pronta para ir, Laura a chamou:
– Maria! Mas aonde você está indo, acalme-se!
– Meninas, lamento só por vocês, acreditem em mim. Por você
não – virou-se para Fabio, – que é um viscoso e vomífico bajulador.
Vamos nos ver daqui a pouco mais de um mês, quando passarei
para receber meu salário. Em todo caso, a gente se fala!
Fechou a porta às suas costas e foi embora, deixando para
sempre o porão.
Voltou a casa chorando, Ramón deixou de extrair os arames
dum pneu e foi ao seu encontro, preocupado: – O que aconteceu,
meu bem?
Maria lhe contou tudo entre lágrimas, sentia-se com o orgulho
ferido e impotente perante à injustiça, mas não estava convencida
de ter feito a coisa certa, a ideia de recomeçar a buscar trabalho a
aterrorizava.
– Minha querida, essa foi a escolha mais sábia que você poderia
fazer! – disse-lhe Ramón tentando consolá-la.
Maria, porém, não gostou disso e o olhou enraivecida: – E de
que vamos viver? Vamos viver de amor?
Ramón a acalmou: – Em toda minha vida, em cada lugar onde
eu morei nunca me faltou o necessário, não vejo porque aqui em
Cosenza teria que ser diferente... ’tamo juntos, amor, nada de mal
pode acontecer.
Maria relaxou nos braços do seu homem e percebeu inteira-
mente quanto a positividade de Ramón havia se tornado um ponto
sólido na sua existência.
No domingo desceram à cidadezinha e ela contou à família o
que lhe acontecera. O pai não se expressou, limitou-se a pergun-
tar-lhe se estava convencida da sua decisão, e aí ela vacilou, mas foi
sincera: – Não, papai, não estou certa, mas sem dúvida não quero
mais sujeitar-me aos caprichos de um homem que se sente dono do
meu tempo.
Sua mãe, ao contrário, repreendeu-a: – Você é sempre a mesma
cabeçuda orgulhosa, o que lhe custava pôr em ordem aqueles cd?
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capítulo 5
Maria tentou explicar suas razões, mas Rosa apelava à dificul-
dade de encontrar um trabalho, à necessidade de se contentar, dizia
que a vida nunca é como nós a queremos.
Entretanto Ramón e Genio caíram fora e voltaram depois de
uma horinha, entusiastas como duas crianças.
– Ramón teve uma ideia fragorosa – anunciou Genio à prima.
Ela o olhou incerta: – E seria?
– Vamos morar todos no casebre de mamãe!
Maria o olhou chocada: – Enlouqueceu você também? Vocês
todos enlouqueceram?
– Por que, desculpa? – defendeu-se o primo. – Parece-me uma
ideia genial!
– Não estou de acordo, é uma ideia absurda! O casebre está
caindo e, além disso, é muito longe, é preciso ter carro, não, não,
absolutamente não!
Intrometeu-se Ramón: – Minha querida, o casebre não está
caindo, a nível estrutural não tem grandes danos, podemos refor-
má-lo! Já pensamos em como poupar no material necessário, não
precisa muito dinheiro! Pelo menos para começar.
– Poderiam envolver alguma outra pessoa no projeto, o que
vocês acham? – sugeriu Genio.
– O quilombo da utopia real! – exclamou Ramón com ar so-
nhador.
– O quilombo da utopia real... – repetiu Maria contrariada. – Vo-
cês estão fora de si.
– Sim, Maria, um quilombo, uma comunidade resistente como
aquelas que formavam os escravos fugitivos! No meio das florestas,
em lugares impenetráveis, onde podiam preservar suas origens e
suas tradições... – explicou Genio.
– Você está preparado! – ironizou ela. – Há quanto tempo vo-
cês dois estão falando disso?
– É o único jeito de não sermos cúmplices dessa sociedade
desumana! Autonomia! – reagiu convencido o primo.
– Não sabia que estava tão empenhado em mudar o mundo.
Ramón riu e tomou partido de Genio: – Na verdade ele é a úni-
ca pessoa que eu conheço nessa terra que não depende do sistema
como os outros. Ele faz tudo sozinho e, mesmo que não use uma
linguagem política, bom... acredito que sua vida seja mais exemplar
do que qualquer palavra.
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capítulo 5
depois, com o tempo, vamos integrá-los.
– É um gasto alto demais – disse Maria. Ela tentava ficar com
os pés no chão enquanto todos os outros sonhavam com a constru-
ção do quilombo.
– É verdade, mas é uma poupança a longo prazo, além de tudo
os painéis para a água quente são facilmente produzíveis a custo
quase zero – respondeu o experto.
Mesmo a galera da capoeira apoiou o projeto deles, e todos
prometeram ajuda nos finais de semana.
Assim, a terça-feira do 20 de março, dia de equinócio, come-
çaram os trabalhos no Quilombo da utopia real. Havia assim tanto
por fazer que não sabiam por onde começar, e o primeiro dia serviu,
mais do que tudo, para planejar as fases dos trabalhos. Maria estava
desconfortada, parecia-lhe uma tarefa colossal, o único incentivo
era o entusiasmo dos outros. Ao cair da noite voltaram todos a
casa, enquanto Maria e Ramón dormiram no furgão. Deixaram o
quarto em aluguel e levaram suas coisas para casa Valenza, a ideia
era morar de imediato na propriedade e trabalhar o dia inteiro. Iam
à cidade duas vezes por semana para o treino de capoeira e, de vez
em quando, paravam para dormir na casa de Aldo e Giada, até que
o casal encontrasse um novo coinquilino, o quarto a mais ficava à
disposição deles. Genio chegava à madrugada com comida e provi-
sões preparadas por Elisa e Rosa e ia embora ao pôr do sol, a menos
que a nebulosidade não antecipasse sua volta. O cabo, pois, muitas
vezes ficava envolvido pela neblina, o que o rendia ainda mais fasci-
nante e, quando era muito densa, não se via a um palmo do nariz e
era impensável encaminhar-se pela estrada de terra batida até a ss18.
A noite, assim, pertencia só a Maria e Ramón. Jantavam à luz
de velas na minúscula mesinha da kombi, faziam suas necessidades
ao ar livre entre o úmido dos fios de erva cobertos de orvalho, la-
vavam-se com a água aquecida no fogo e se esquentavam um nos
braços do outro. Aos domingos chegavam os reforços, a casa se en-
chia de amigos e familiares e os trabalhos procediam mais rápidos.
Por volta de duas semanas consertaram o encanamento, arru-
maram o teto e construíram a cozinha.
Ramón se gabou de não ter gasto mais que alguns centavos,
como um bom marceneiro remanejou traves, travincas e tabuados
e substituiu as telhas quebradas e as faltantes por aquelas dos está-
bulos caídos, cujos tijolos serviram para construir uma cozinha em
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capítulo 5
com seu furgão laranja e junto com sua inseparável companheira
Merusca, para todos Vera, ela também artista errante, com a capaci-
dade de transformar qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.
Com a ajuda de todos no final de julho atingiram um bom
resultado e a casa estava pronta a ser habitada. Entre as coisas
amontoadas nos armazéns recuperaram um velho fogão a lenha e
a carvão e o puseram de novo em funcionamento, numa loja de
coisas usadas, por vez, compraram por um preço baixíssimo umas
redes e uns colchões. Arrumaram assim dois quartos, um pra Maria
e Ramón, outro para Genio.
Mesmo que o inverno ainda estivesse longe, a preocupação
com o frio aumentava. A única fonte de aquecimento da casa era
a lareira na cozinha, os aquecedores elétricos não podiam ser a so-
lução, seja pelo excessivo consumo, seja porque os quartos tinham
forros muitos altos, difíceis de aquecer, apesar de que o assoalho
ajudasse a não dispersar o calor. Aldo trouxe a solução: o Rocket
mass heater, um aquecedor a lenha com uma tal eficiência térmica
que obtenha a mesma quantidade de calor utilizando cinquenta por
cento a menos de madeiras do que um tradicional: – É perfeito para
os quartos – disse.
Explicou o método de construção, com latas e tijolos refratários
e imediatamente Genio e Ramón se convenceram da conveniência
do sistema. Tentaram fazer um, as medidas tinham que ser perfeitas,
pois de outra forma o sistema não teria funcionado, mas apenas de-
pois de alguns dias de luta com os erros conseguiram colocá-lo em
funcionamento. Apurada a eficácia, fabricaram um para cada quarto.
Na época do verão Batuque e Vera se tornaram uma presença
fixa tanto que, um dia, chegaram com redes e colchões e arrumaram
outro quarto: – Agora que as coisas essenciais estão em ordem, po-
demos dedicar-nos ao belo – disse Batuque.
Já tinha na cabeça toda uma série de obras por realizar ao ar
livre: – Gozamos dessa maravilhosa natureza, absorvemos sua ener-
gia, criamos em harmonia com ela... – sonhava de olhos abertos,
com o sorriso a iluminar seu olhar, um olhar atento ao mundo.
Vera trouxe uma das suas ferramentas de trabalho, a máqui-
na de costura, entre as muitas coisas era também uma figurinista,
transformava tecidos e outros materiais em vestidos e cenografias
de palco. Costurou cortinas, mantas para sofá, capas para cadeira,
travesseiros e a casa se encheu de cores.
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CAPÍTULO 6
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capítulo 6
recusara como espelho de sua mãe descobriu, ao contrário, que gos-
tava, assim como gostava da capoeira ao centro da sua vida, com os
treinos na cidade, as viagens para os eventos e o contínuo cantarolar
e tocar pela casa. Mais, a partir do novo ano, o professor Manuche
iniciou um curso para crianças numa academia de Paola e Maresia o
acompanhava tocando pandeiro.
Na primavera também Soninho se mudou para o quilombo e
sua presença enriqueceu as dinâmicas do grupo, gerando uma nova
onda de energia criativa. Construíram um forno a lenha de barro
para pão e pizzas e projetaram uma grande escultura no centro do
espaço frontal da casa. Já há algum tempo Batuque incubava a fan-
tasia de uma obra que se iluminasse desfrutando a energia cinética
e, quando falou disso com Ramón, convenceu-se de que sua visão
era transformável em algo de concreto.
– Vê que não erro quando digo que você parece com o grande
Manrique? Sua ideia é muito semelhante ao conceito que está atrás
dos Wind Toys, os brinquedos do vento dele – disse-lhe o amigo,
encorajando-o.
Desde o dia seguinte Batuque se perdeu na construção da sua
obra e, por volta de um par de meses, estava pronta e testada: um
girassol gigante, içado numa tábua muito alta, movia-se graças a
energia do vento e se iluminava, como um lampião ecológico. Para
inaugurá-lo pensaram em organizar um momento especial, reuni-
ram-se em círculo para avaliar as várias possibilidades e, no final,
optaram por um fim de semana de camping e capoeira onde a roda
final teria sido realizada à luz do lampião.
– Poderíamos perguntar a mestre Ramos se está disposto a
voltar aqui – sugeriu Ramón. – Parece-me que vai ficar na Europa
até a metade de junho.
O mestre, de fato, fora em Cosenza na semana antecedente à
ocasião do Encontro Cultural organizado pela galera e ainda estava
em Turim, a casa do professor Boneco era seu campo base, de lá se
movia pela Europa para os vários eventos onde era convidado. Ma-
nuche o achou e lhe explicou a ideia, e Ramos ficou feliz de aceitar.
Naquele final de semana de metade de junho Sorriso também estava
na área, a história de amor com Panda o fizera assíduo frequentador
de Cosenza e nunca deixava, nas suas visitas, de dar um pulo no
quilombo, considerava-o um lugar especial.
Por volta de pouquíssimo tempo espalharam a voz por meio
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capítulo 6
em Ipanema, para treinar um par de meses com Ramos na academia
do Leme, e quando falava da sua iminente viagem ele se abrumava,
às vezes até mesmo largava a conversa. Maria entendeu o que pas-
sava no coração do primo, conhecia-o melhor que qualquer outra
pessoa, e um dia o repreendeu: – Por que não lhe diz que a ama?
– Porque tenho medo da sua recusa – respondeu sincero.
– Como você pode estar certo da sua recusa?
– Eia, Maria, não nos enganemos! – enraivou-se.
– Daqui a uns dias ela vai viajar, e talvez nem mesmo vá voltar...
– Fica tranquilo, ela vai voltar. Ama demais sua terra para dei-
xar um vazio que, ela sabe muito bem, de outra forma se encheria
de merda.
– Você acha isso de verdade?
– Claro. Mas você tem que ousar, é preciso ter coragem para
ser feliz!
Genio refletiu sobre as palavras da prima e contou falar com a
moça, mas só depois da volta da viagem dela.
Antes da partida de Soninho para o Rio, à qual seguiria também
aquela de Nureyev e Panda, organizaram uma festa de despedida e
convidaram os amigos da cidade, aqueles da Coessenza e a galera da
capoeira por completo. Bem no meio da confusão, quando estava já
no pico da embriaguez pelo vinho, cervejas e cachaça, Ramón pu-
xou Maria de lado: – Tenho que lhe dizer uma coisa em particular.
Nunca Maria o vira com um ar tão sério: – O que aconteceu
meu amor?
– Tenho uma coisa pra você, um presente – disse, emocionado.
– Um presente? – espantou-se ela, até então nunca ele lhe fize-
ra um presente.
– Sim, um presente! – repetiu. Entregou-lhe um envelope
branco: – Abra-o! – apressou-a, não se continha pela joia.
Maria o abriu e ficou de boca aberta, conseguiu só gaguejar:
– Mas quando, o que... como você fez? Onde arranjou o dinheiro?
Tem certeza? Mas... não podemos...
Ramón se alegrou: – Meu bem, você tem que conhecer minha
família! A hora é essa!
Ela estava perplexa: – Como vão fazer aqui sem a gente?
– Já está tudo combinado, amor, tranquila.
Maria se calou, depois estourou numa risada: – Agora entendo
porque você me pressionou tanto para eu fazer o passaporte!
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Apertou-o forte contra seu peito e sentiu todo o amor que sen-
tia para ele, considerava-o um dom do céu na sua vida tão normal.
Uma viagem no Rio de Janeiro nunca ousara nem mesmo sonhá-la,
pensou no poder das coincidências e demorou na passagem: – Des-
de o dia 20 de agosto até o 15 de outubro... ali vai começar a prima-
vera! – entusiasmou-se. Correu para Panda e Soninho e as moças
estouraram numa risada, não só estavam a par, mas guardaram o
segredo durante meses, só ela não sabia nada de nada.
Um par de dias depois levou a notícia à casa dos seus pais, os
quais foram entusiastas. Rosa apreciou de tal maneira o gesto de
Ramón, que gastou em profusão uma série de elogios sobre o genro
como nunca fizera. Quando o contou a Vovó Quinota os olhos dela
escancararam e, cheia de comoção, pegou a mão da bisneta entre
as suas. Poucas vezes Maria vira nela um sorriso tão doce: – Vou
trazer pra você um belíssimo colar de conchas como esse que tem
no pescoço! – prometeu-lhe.
Rosa se dirigiu à filha: – Tenho a sensação de que se esteja fe-
chando um círculo. O fato de você ir ao Brasil, e mesmo ao Rio de
Janeiro, um pouco me toca... penso no que tem que sentir no seu
coração, Vovó, neste momento!
Maria olhou para a bisavó e demorou no seu balançar: – Quem
sabe se ficaram alguns parentes dela lá... você acha possível, mamãe?
– Não sei o que lhe dizer, minha filha. Certo é que Vovó não
será nascida do nada, mas quem sabe, quando chegou aqui ela tinha
só quinze anos!
– É incrível o fato de ninguém saber nada! – encalçou Maria.
– Para demonstrar sua proveniência temos só um cartão de identi-
dade e o estéril conto do bisavô Carmine.
Aproveitou a ocasião certa para indagar e pôr a pulga atrás da
orelha da mãe, no fundo, nem mesmo ela pusera nunca em discus-
são a história da mulher até que encontrara a carta.
– Uma vez eu fiz algumas perguntas ao bisavô – contou Rosa,
– mas ele me liquidou dizendo que a família de Quinota éramos nós!
E eu não insisti mais.
– Não lhe parece um pouco estranha toda essa história, ma-
mãe? Todo esse mistério...
Rosa refletiu por alguns segundos, sua mente voltou a quando,
faz vinte anos, casara e fora morar em casa Valenza. Como se tives-
se lido aquelas lembranças nos seus pensamentos, Maria lhe pediu:
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capítulo 6
– Conte-me como era o bisavô Carmine! Eu era só uma menina,
não tenho bem clara sua imagem.
– Bom, ele era um homem de uma peça só, de poucas palavras.
Tinha o olhar duro... eu acho que estava triste, sabe? Às vezes pare-
cia perder-se num outro mundo, talvez tentasse chegar naquele da
sua esposa... lembro de como ele a olhava, com os olhos cheios de...
não sei, minha filha, não sei.
Fez uma pausa para rearrumar a memória: – Ela vivia como se
seu marido não existisse, nunca lhe dirigia o olhar, nem um gesto, só
quando era solicitada! Eu acho que ele sempre sofreu com a frieza
de Vovó.
– Mas você nunca encontrara nada entre as coisas dela? Não
digo voluntariamente, porém, talvez limpando, seu olho caiu em
algum lugar, não sei...
– Que Deus me afaste e me libere, Maria! Nunca faltarei ao
respeito a Vovó Quinota! Nunca me permiti abrir uma gaveta sem
ela! Quando um dia não estiver mais aqui, queira Deus o mais tarde
possível – e se fez o sinal da cruz, – poremos em ordem as coisas
suas e as do vovô e, se de verdade houver algo por descobrir, então
o descobriremos.
Depois olhou a filha de soslaio: – Tire da cabeça certas ideias!
– Mas não, mamãe, o que você está dizendo! – enrubesceu
Maria. – Nunca o faria!
A partir daquele momento começou a contagem regressiva até
o dia 20 de agosto, quando Ramón e Maria subiram no avião para
o Rio de Janeiro.
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capítulo 6
queiro, seus troncos se fundiam e se tornavam uma coisa só. Já de-
pois de outra curva, no pico mais alto, onde quase era só floresta, eis
aparecer a casa de Zé Francisco: – Já chegamos! – disse emocionado
Ramón. Observou por alguns segundos as íngremes escadinhas de
cimento antes de subi-las, depois chamou em voz alta: – Pai!
Quando a porta se abriu e Zé Francisco viu o filho, debulhou-se
em lágrimas e o apertou entre seus braços: – Quanto tempo, meu
filho, quanto tempo! Quase morri de saudade!
Depois saiu Lívia: – Manuche! – gritou feliz.
– Oh, minha irmã! Quase não lhe reconhecia! – exclamou ele.
Deixara a meia-irmã quando era uma menina e a reencontrava
mulher, com as formas redondas e abundantes.
Ramón apresentou Maria e Zé a acolheu como se a conhecesse
desde sempre: – Bem vinda, minha filha, bem vinda à nossa família –
recitou.
Enfim apareceu Renata e ela também se juntou às boas vin-
das. Foi uma sucessão de abraços, beijos, risos, olhos molhados e
de frases que Maria a custo entendia, mas sabia serem palavras de
acolhimento e amor.
Entraram em casa, numa primeira sala com dois pequenos
sofás, uma mesinha baixa e uns quadros representando a cidade
do Rio. Virando a cabeça Maria reparou numa coisa extraordinária:
uma parede era formada por um grosso tronco de uma figueira,
nem mesmo entre as fantasias arquitetônicas do campo Rom2 nunca
vira uma árvore no lugar de um muro! Logo de lado havia um pe-
queno terraço coberto de lâmina, onde estava adaptada a cozinha, e
a vista que se enxergava dessa altura, com o Cristo ao lado, parecia
uma recompensa para todas as faltas estruturais. Renata mostrou a
Maria o quarto reservado pra ela e Ramón, poucos metros quadra-
dos com uma cama e um armário: – Só isso – disse desculpando-se,
– pode ser a cama muito pequena pra os dois.
Ela, em vez, não se importava com a dimensão da cama, me-
lhor, lamentava que Lívia teria dormido no sofá. Entretanto se es-
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comunidade. Pois a um certo ponto Araci se cansou de morar no
morro e voltou para às riquezas da sua aldeia de origem, casou-se
de novo e teve outros sete filhos. Depois de alguns anos também
Joãozito foi embora para ser pescador em Ilha Grande, assim ele,
com quinze anos, ficou com o vovô Chico, apesar de ele continu-
ar a desaparecer periodicamente, inquieto desde sempre. Se bem
que as ocasiões não lhe fossem faltadas, Zé nunca tivera nada a ver
com roubos e tráficos, queria conquistar tudo sozinho e desafiar o
mundo com sua pele preta e seus traços de índio. De dia lustrava os
sapatos dos brancos e de noite estudava para um diploma de escola
que, uma vez obtido, permitiu-lhe a contratação numa loja de eletro-
domésticos em Copacabana. Na idade de vinte e três anos conheceu
Ana, uma espanhola de férias no Rio, e os dois se apaixonaram. Ela
ficou gravida de Ramón e, contra a opinião dos seus pais, casou com
Zé e ficou com ele no Brasil. Resistiu por dez anos, depois escolheu
voltar para o bem-estar que deixara em Madrid, mas não houve jeito
de convencer o filho a ir com ela. Ramón queria ficar no morro, a
puxar pipas, a surfar as ondas do oceano e a jogar capoeira.
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capítulo 6
mavam churrascos, sambas, excursões e Maria ficava confusa com
todas aquelas palavras, mas ao mesmo tempo estava aberta para ab-
sorver o mais possível. Pela primeira vez saíra da Europa e se achara
numa realidade diferente e estranha. Kadão, filosofando sobre o
mundo das favelas, afirmou que não existe “o” Rio de Janeiro, mas
“os” Rio de Janeiro e que qualquer pessoa que não fosse do morro,
mesmo se brasileira, era, seja como for, gringa.
– Mas você é bem como Soninho, ela não é uma gringa qual-
quer! – acrescentou divertido, referindo-se à amiga em comum.
Pelo dia todo não saíram do morro, porque se subseguiram
uma série de encontros e situações até tarde. A noite estendeu sobre
o Pico um manto encantado, as luzes da cidade baixa se refletiam
no alto e contornavam as curvas dos morros e da Lagoa. Maria e
Ramón chegaram no terraço íngreme, embaixo de casa, para admi-
rar a extensão luminosa.
– Sabe essa vista? – disse ele.
– Maravilhosa.
– Por esse panorama querem nos tirarem daqui.
– Querem construir hotéis e vilas de luxo? – supôs ela.
– Isso – anuiu Ramón. – Pra mim, ao contrário, é como se
fosse uma recompensa para os moradores da comunidade.
Ramón lhe contou de quando era uma criança e ia à escola, e
muitos dos seus amigos acordavam de manhã pensando só em como
arranjar comida: – Minha mãe é gringa, Maresia, gringa e rica. Isso
fez a diferença na minha vida e me permitiu ter um destino diferente
dos outros meninos do morro. Eu tenho outra história.
Maria não entendeu bem o sentido das suas palavras, não sabia
como era morar numa favela, ainda menos na época do tráfico. Para
ela tudo era uma contínua descoberta, de novos rostos, ruídos, co-
res, perfumes, sabores. Nos dias seguintes, teve a oportunidade de
conhecer a cidade não como uma simples turista, mas vagueando
com Ramón e Kadão pelas ruas do centro, de Botafogo e das Laran-
jeiras. De vez em quando aparecia também Fabio Nélio a completar
o trio da infância, amigos unidos no profundo, mas marcados por
vidas completamente diferentes. Ele era o único, entre os três, que
se dera ao tráfico de droga dentro da comunidade e, aos quinze anos,
pegara o primeiro fuzil na mão. Fora preso um par de vezes, passan-
do dias e dias trancado numa cela acomodado como um animal, e
escapara da morte em várias ocasiões graças aos cuidados da Nega
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capítulo 6
lhado com outros fotógrafos, e havia sempre um novo amigo para
encontrar, um atelier para visitar, mostras, exposições, sambas e ro-
das de capoeira nos vários núcleos da Senzala, em Bangu, no Méier,
em Duque de Caxias.
Nos primeiros vinte dias Maria gozou da presença da sua ami-
ga Soninho, Nureyev e Panda já voltaram para a Itália. Treinavam
juntas com mestre Ramos e mestre Toni Vargas e depois, no final da
aula, paravam nos bares do Leme com Igor e com outros camaradas
da galera, tomavam banho de sol na praia e iam aos sambas aonde
Sorriso as convidava. O primeiro foi organizado na casa do mestre
Gato, um dos fundadores do grupo Senzala, na colina de Santa Te-
resa, onde havia uma das vistas mais belas da cidade. Aquela noite
Maria captou inteiramente o espírito carioca do qual sempre lhe
falaram, o típico jeitinho brasileiro de improvisar, no samba como
na vida e, pela primeira vez, achou-se numa roda entre as cordas
de um violão e um cavaquinho, e as percussões de pandeiro, surdo
e tamborim. Desde então as ocasiões de festa se repetiram mais
vezes, de Santa Teresa até Santa Marta à quadra do Guararapes, no
Rio de Janeiro cada evento, embora insignificante, era objeto de
comemoração com música e churrasco.
Depois de quinze dias passados na confusão da cidade, Ramón
propôs a Maria irem em Ilha Grande para fazer visita ao vovô João-
zito e ao bisavô Carmine. Ela aceitou animada e após um par de
dias viajaram. Acordaram às três da manhã para chegar a tempo à
rodoviária e pegar, às seis horas, o ônibus para Angra dos Reis, e
depois de mais ou menos três horas de viagem, mais deslocamentos
internos, chegaram ao embarque para a ilha. Pegaram o barco lento
e econômico, mas durante a travessia puderam admirar algumas das
mais belas paisagens que Maria pudesse lembrar. Ao surgir da ilha
arregalou os olhos pela maravilha: uma enorme massa verde emer-
gia das águas do oceano e, pouco a pouco mais próximos, enxer-
gavam-se os primeiros sinais de presença humana. Ancoradouros
para os barcos, casinhas semi escondidas pela vegetação e faixas
de areia no litoral jogavam manchas de cor no quadro pintado pela
mãe natureza. Desembarcaram na praia de Abraão, no homônimo
vilarejo onde estava concentrado o turismo da ilha, mas o caminho
não tinha acabado. Ramón disse a Maria para esperá-lo, enquanto
ele ia em busca de uma pessoa. Voltou cerca de meia hora depois: –
Resolvi, vamos, meu amor!
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capítulo 6
– Tá ali sentado na cadeira de balanço, ele quase não anda
mais... tem 98 anos!
Ramón o alcançou correndo: – Biso! Vovô Chico! Ramón tá
aqui! Manuche!
O homem, preto de pele e dos cabelos branquíssimos, dobra-
do sobre as costas, antes o perscrutou, depois estourou ele também
numa risada trovejante e se levantou da cadeira: – Oh! Que saudade
de você! Que bom te ver!
Ramón lhe apresentou Maria, Chico lhe examinou os olhos
por alguns segundos, com o olhar carrancudo, depois abriu os lá-
bios num sorriso: – Você é bonita, sim, bonita demais! – começou
de novo a rir.
– Sente-se, biso, sente-se! – convidou-o o bisneto a sentar-se,
atento a não fazê-lo cansar. Deu uma olhada no vovô, como a in-
formar-se da saúde do idoso. Joãozito referiu sobre como nos últi-
mos anos desacelerara notavelmente seus ritmos, só descia na praia
para deixar oferendas a Iemanjá, ou se adentrava até o limite da
sua propriedade, onde uma minúscula cachoeira caía numa poça
natural e depois se tornava uma torrente, a mesma a desaguar na
praia das Palmas. Ali, na beira do riacho, homenageava mãe Oxum.
Enfim acrescentou: – Na verdade ele nunca para, veja-o ainda tocar
pandeiro... que nem um mágico! – afirmou divertido. – Vão dar um
mergulho! – convidou-os a tomar um banho de mar, entretanto te-
ria voltado Paula, sua parceira, e prepararia comida para todos.
Na praia Maria encheu Ramón de perguntas sobre vovô Chico,
a figura do homem, temperada do pouco que ouvira sobre ele, fas-
cinou-a mais do que qualquer outra da família.
– Um malandro vagabundo! – riu ele. O bisavô ficava sempre
fora de casa, crescera de pequenos roubos pelas ruas do Rio de Ja-
neiro, jogava capoeira e compunha sambas. Não durava mais que
três meses num emprego, alguns períodos embarcava num navio,
outros era guarda-costas de alguma autoridade, a maioria das vezes
ganhava dinheiro com as apostas ou com o baralho. Quando volta-
va ao morro, com seu boné e seu pandeiro, era sempre uma festa,
um novo samba a cantar e um presente para o pequeno Ramón,
seu único bisneto. Foi ele a dar-lhe o apelido, Manuche, aquele que
leva vida errante, porque, desde criança, sumia longos períodos do
morro para ir à Europa em casa da sua mãe ou para se refugiar na
aldeia da vovó Araci.
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de poder beber da fonte. Já depois de dez minutos em subida, po-
rém, tinha as costas suadas por causa da mochila, os pés ferviam e
estava desacelerada.
– Tire os sapatos! – intimou-lhe Ramón, e assim finalmente se
convenceu.
O chão estava macio e não havia folhas aciculares ou espinho-
sas, a planta do pé aderia perfeitamente ao terreno e aos degraus
naturais formados pelas raízes das árvores. Sentiu-se aliviada, efe-
tivamente caminhava melhor e mais rápida. Percorrendo a trilha
passaram por pedreiras e bambuzais e pararam para observarem
as árvores mais estranhas, mais “expressivas”, sustentou Ramón.
Plantas de formas diferentes se enrolavam entre elas e adquiriam
semblantes humanos, nas pedras apareciam rostos com traços dis-
torcidos, encantaram-se em frente da fantasia de mãe natureza. De
vez em quando percebiam um ruído: – Macacos – explicou Ramón.
Em algumas partes do caminho tiveram que escalar, ao me-
nos havia em ajuda uns cabos e, nos pontos mais íngremes, umas
escadas em corda. Depois de mais ou menos três horas chegaram
num espaço plano, Maria achou fosse o topo, ao contrário havia
um último breve trecho que os levou até a ponta, de onde se avis-
tava o contorno todo da ilha, a 360 graus. Era o Pico do Papagaio.
Maria percebeu sua nulidade em frente à majestade da Grande Mãe,
a mesma sensação a sentira mais de um ano antes assomando-se
do Mirador del Rio e, como então, Ramón se aproximou e a cin-
giu por trás, porém seus braços não eram mais desconhecidos. No
aperto do seu homem lhe aflorou o pensamento de um filho, mas
o afastou, como fizera muitas outras vezes. Sabia bem que escolher
Ramón significava, quase com certeza, renunciar à maternidade, ela
não acreditava na única expulsão, além do mais, essa deveria coinci-
dir também com seus dias férteis, e nem mesmo ela tinha mais vinte
anos. Apertou-se contra ele mais forte, no fundo era seu defeito a
torná-lo um homem diferente dos outros, porque o forçara a pôr
em discussão constantemente sua virilidade, em cada idade, em cada
lugar, com cada mulher que amara.
Ramón tirou umas fotos, empenhou-se com zoom e com confi-
gurações panorâmicas, depois disse: – Não dá, meu bem! Nenhuma
foto pode expressar essa maravilha, feche os olhos e grave na cabeça!
Um dia, quando precisar, lembre-se dessa paisagem, dar-lhe-á força.
– Nós lembraremos juntos, um dia, quando nós precisarmos –
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pegou-lhe na mão.
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capítulo 6
– Eu acho que saiu algo – riu.
Ele a olhou estonteado: – O quê?
– Está coando, olha – mostrou-lhe o líquido brancacento na
coxa. Pegou um pouquinho com os dedos e o cheirou. Depois o
experimentou: – Parece-me aquele mesmo.
Ramón entendeu o que Maria estava dizendo e pulou como
um grilo, abaixou-se até o baixo ventre dela e lhe pegou entre as
mãos a coxa molhada. Observou atentamente o líquido, farejou-o e
o lambeu com a ponta da língua: – Pode ser – disse com voz trêmu-
la. – Pode ser – repetiu.
Riu e se agarrou à perna de Maria, estava incrédulo, porque ele
não reparara nada.
Chegaram no terraço em frente da casa, o Rio de Janeiro se
estendia luminoso aos seus olhos, e em silêncio invocaram o Uni-
verso por que a semente não tivesse saído em vão. Trocaram pala-
vras de amor e se acarinhavam, brincavam com os dedos, apoiavam
os rostos um contra o outro e as línguas apenas se afloravam. Não
puderam mais dormir e, daquele momento, a possibilidade de uma
gravidez se tornou pensamento fixo. Maria, porém, tinha apenas
acabado de ter as menstruações, então não estava no período fértil,
e já o comunicou a Ramón: – Não nos iludamos! – disse-lhe.
Tentou mantê-lo com os pés no chão, ele já começara a viajar
em fantasia e a fazer mil projetos.
Por volta de meio-dia Ramón lhe pediu para segui-lo até a ca-
choeira, a uma meia hora de caminho, mas ela recusou: – Não há
tempo! Temos ainda que fechar as malas e às oito temos que estar
no aeroporto!
Ele a olhou duro: – Não é um pedido, é uma ordem.
Maria se sobressaltou, quando fora que ele usara um tom as-
sim? Quando fora que ele se permitira dar-lhe uma ordem?
– Você está bem? – perguntou-lhe, em vez de se enraivar.
– Não, não estou bem, por isso quero que você venha comigo,
sem perguntas – respondeu entregando-lhe uma mochilinha a levar.
Ele, no entanto, carregou um atabaque nas costas e partiram em
subida, no meio da floresta, até chegar a uma pequena cachoeira.
Quase escondida pela vegetação, a água caia numa poça e após se
tornava um ribeiro que, logo depois, desaparecia no salto de um
degrau mais embaixo.
Na beira Ramón colocou uma vela, umas flores brancas e ama-
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patriarcal das mulheres sem filhos.
– Mudam as línguas, muda a latitude, mas a alternativa seca
entre mãe e puta não conhece confins2 – concluiu Soninho.
Desabafar foi pra Maria um santo remédio, sentiu-se aliviada,
mais forte e mais aberta a entender o mal-estar de Ramón. À noite,
no quarto, foi ela a aproximar-se dele, atraiu-o para si, olharam-se
nos olhos e choraram juntos. Houve uma troca de desculpas, inú-
teis, porque um conseguira enxergar a tensão do outro. Escolheram
o silêncio para enfrentar a ansiedade da espera, não porque tivesse
mais lógica, mas porque a palavra é um mecanismo sofisticado de-
mais para exprimir os medos mais atávicos.
À manhã do décimo dia, Ramón já estava acordado quando
Maria abriu os olhos. Deu-lhe um beijo suave nos lábios: – Bom
dia, amada!
Abraçaram-se, finalmente chegara o momento. Foram ao ba-
nheiro juntos, ela fez xixi sobre a fita do teste e esperaram passarem
os três minutos previstos. Um tempo infinito em que, mão na mão,
imaginaram o filho que teriam amado mais que eles mesmos, ao
qual teriam ensinado o respeito da diversidade e da natureza, a força
do ritual e as oferendas ao divino, a sacralidade do tambor e o poder
dos sonhos. Teriam-no criado como um ser humano, protegendo-o
da desumanização da sociedade do consumo e do espetáculo. Ao
expirar o tempo a linha azul não apareceu e, de repente, cada sonho
desvaneceu.
– É negativo – disse seca Maria.
Ramón ficou em silêncio, depois pegou a cabeça entre as mãos:
– Sinto muito, meu amor, mas é isso que fala mãe natureza. A pa-
lavra dela é lei. Vamos trabalhar, meu bem, o sol está chamando.
Estava triste, triste como Maria nunca o vira. Descarregou a
decepção arrancando as ervas daninhas da horta, até que às dez ho-
ras foram buscá-lo Dario, Dodò e Alessandro para ir surfar, só as
ondas teriam podido embalar sua alma perturbada e combater a tris-
teza. Maria, ao contrário, ficou no quilombo e, apenas ele se afastou,
correu contar para Soninho do teste negativo. A amiga acreditava
profundamente no poder das coincidências e pôs em discussão o re-
sultado: – Não que eu queira alimentar falsas esperanças, mas você
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está certa de que o teste seja fiável? Talvez o tenha feito cedo demais.
– O teste urinário tem uma fiabilidade de 99 por cento.
– Sim, mas no sentido de que não lhe indica uma gravidez que
não há... ouça-me, é simples: vai ao médico e peça-lhe para prescre-
ver o teste sanguíneo, que é certo ao 100 por cento!
Maria não estava convencida disso, não nutria nenhuma es-
perança, mas no fundo não lhe custava nada seguir o conselho de
Soninho. Pensou em fazer tudo sozinha, sem envolver Ramón, para
evitar outros estados de tensão, e já na manhã seguinte aproveitou
uma carona dos surfistas para ir na cidadezinha. Com a desculpa de
visitar sua mãe, foi pedir a prescrição e à tarde Ramón foi buscá-la
para ir à aula das crianças. Na volta ela lhe pediu para deixá-la em
casa dos seus pais.
– E por que meu bem? Aconteceu alguma coisa? – perguntou
Ramón, espantado com o pedido.
– Não, é que eu queria buscar algumas coisas com mamãe – in-
ventou na hora. – E, além disso, estou com saudade de Vovó Qui-
nota, tenho vontade de passar um pouco de tempo com ela, nunca
estive fora durante tanto tempo!
À mãe, ao contrário, contou a verdade.
– O atraso é muito? – perguntou Rosa.
– Na verdade, ainda nenhum atraso.
– E então?
– É que tivemos uma relação não protegida.
– Tá bom, minha filha, mas não é que a cada relação não prote-
gida se pode fazer um teste de gravidez! Espera pelo menos alguns
dias de atraso!
– Não, mamãe, não quero esperar, por que esperar?
Rosa não entendia sua obstinação, mas não insistiu, finalmente
a filha desejava tornar-se mãe.
Maria passou a noite ao lado da bisavó, falou-lhe dos seus so-
nhos, das suas esperanças, dos seus medos: – Sabe, Vovó, queria
que fosse uma menina... em todo caso será o Universo a decidir, e a
mim cabe só estar à espera.
Deitou-se na sua cama de menina, lá fora o vento assoviava.
Chegou na janela sobre o teto para respirar a salinidade, a umi-
dade no rosto a fazia sentir-se viva, parte de algo maravilhosamente
maior que ela. Na manhã seguinte acordou muito cedo e efetuou
a coleta de sangue, depois subiu de novo ao quilombo no final da
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capítulo 7
tarde junto com Genio. No carro ele disse à prima: – Tenho que lhe
dizer uma coisa.
Depois se calou e Maria o olhou curiosa: – Então?
– Eu e Soninho estamos aproximando-nos.
– O que você quer dizer? Ela não me disse nada, não é que está
se construindo um filme?
– Não, não, todo esse tempo, desde quando ela voltou do Bra-
sil... está diferente comigo.
– Mas houve algo entre vocês?
– Mais ou menos.
– O que quer dizer com mais ou menos? Houve algo ou não?
Um beijo, uma carícia, o que eu sei... vocês foderam?
Genio se enraivou: – Não seja tão vulgar!
– E você pode ser um pouco mais explícito e menos puritano
por favor? Tem medo de falar de amor?
– Houve um beijo.
– Bom, e então?
– Então talvez... é que somos tímidos demais todos os dois.
Maria olhou o primo com doçura, homens como ele era difícil
de encontrar: – Tá bom, se deem um tempo, no final, tudo acontece
como deseja o Universo.
– Como se tornou fatalista!
– Eia, no fundo sempre fui!
– Mas somos nós que fazemos nossas escolhas, não esqueça!
– Sim – reforçou ela, – mas há forças por trás das nossas de-
cisões, vibrações que guiam nossas escolhas, levam-nos em certos
lugares... pensa em hoje, por exemplo: eu e você moramos na mes-
ma casa da infância de sua mãe graças a um brasileiro conhecido
em Lanzarote numa viagem improvável. Não acha extraordinário
tudo isso?
– Sim, acho que seja – concordou Genio.
– A vida é uma magia.
– Sim, a vida é uma magia.
Estouraram a rir, felizes.
Chegaram à casa carregados de comida, entre Elisa e Rosa
nunca acontecia de voltar de mãos vazias. Ramón estava atrás da
casa, sentado no penhasco, ocupado em tocar berimbau. Maria não
o perturbou, saboreou sua imagem iluminada por um quarto de
lua crescente, dali à alguns dias teria sido cheia e quem sabe, talvez
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– A mãe d’água doce, deusa da fertilidade, dona do ouro e do
leite.
Quinota anuiu, satisfeita que a bisneta fosse capaz de entender.
Maria encontrou Ramón à tarde durante a aula para crianças: –
Você está reluzente, meu amor, a companhia de Vovó lhe fez bem!
– beijou-a levemente nos lábios.
– Ou será a lua cheia? – piscou ela.
– Pode ser meu amor, a lua cheia é magia...
Antes de voltar a casa lhe propôs que dessem um passeio na
praia, o ar estava brando e o céu cheio de estrelas. Na beira mar, sem
se perder em voltas de palavras, exclamou: – Estou grávida.
Ele se virou de arranco, incrédulo: – Mas como, o teste deu
negativo!
– Acho que o fiz cedo demais e, além disso, estava nervosa. Fiz
aquele do sangue, que é certo ao 100 por cento, mas preferi não lhe
dizer nada para lhe evitar outra decepção e ao invés...
Ramón necessitou de alguns segundos para entender a notícia,
depois lançou um grito, pegou-a pela cintura, levantou-a e a fez ro-
dar, ria e depois chorava e a apertava contra si.
O mar, a lua e as estrelas participavam da sua felicidade, ce-
nário de um sonho realizado, de um prodígio que continua com o
tempo e se transmite de geração em geração.
– Eu sabia, eu sabia que devia ser você a mãe do meu filho! Te
amo, Maria, te amo! – sussurrou-lhe com doçura.
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capítulo 7
experiência do parto e das dores. Ramón frequentou o curso junto
com ela, atencioso como era, às vezes até mesmo obsessivo, e então
Maria ficava com raiva: – Estou apenas grávida, o que pertence à
natureza da mulher, sabe?
– Isso é o problema! – desabafou ele. – Você traz nosso filho
no ventre e sente a vida dele dentro de você, eu não! Por isso estou
tão ansioso e às vezes sou exagerado, meu amor! Desculpe!
O término da quadragésima semana estava previsto para o dia
primeiro de julho, mas já um mês antes a bolsa para o hospital esta-
va pronta em caso de algum adiantamento: – Nunca se sabe – disse
Rosa, prevenida.
Maria, por volta do fim da gestação, começou a sentir o peso
da barriga, sofria de dor nas costas e estava cansada de estar grávi-
da. Não via a hora de parir, mas ainda tinha que esperar. Seguindo
a tradição, entre as onze e a meia-noite do dia 24 de junho, acom-
panhadas por um pedaço de lua minguante, Maria, Vera e Soninho
foram em expedição para colher o hipérico numa área um pouco
mais embaixo, onde crescia abundante, selvagem e livre. Colheram
uma cesta cada uma e depois expuseram as flores à luz da lua, es-
palhados sobre um lenço esticado no chão. Uma parte era destina-
da às infusões e outra à maceração para obter o óleo, antigamente
considerado o óleo mágico das bruxas. Essas últimas consideravam
sagrado o 24 de junho, dia de São João, porque correspondia ao
solstício de verão, momento em que o sol atinge sua máxima decli-
nação positiva em relação ao equador celeste, daí o outro nome com
o qual é conhecido o hipérico, “erva de São João”. Na Idade Média,
ademais, a planta era utilizada para criar amuletos capazes de afastar
os espíritos malignos e era chamada de erva “expulsa diabos” pela
sua eficácia contra as depressões endógenas e psicogênicas, na épo-
ca consideradas possessões de demônios.
No quilombo aprenderam a usar o óleo de hipérico, assim
como o gel da planta de áloe vera, para todos os pequenos distúrbios
cotidianos: queimaduras, picadas de insetos, contusões, dores articu-
lares e muitos outros, mas para aproveitar melhor de seus princípios
ativos, as flores tinham que ser postas a macerar já depois do banho
de lua. Por esse motivo as mulheres acordaram antes do nascer do
sol, arranjaram a erva por secar e depois passaram à seleção das flo-
res por imergirem no azeite de oliva, onde teriam ficados por uma lu-
nação completa, antes de serem filtradas. Enquanto fazia esse traba-
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capítulo 7
to do pequeno: Francisco João Valenza Dos Reis. Aos familiares à
espera, deram notícia de um lindo menino saudável, de três quilos e
quatrocentas gramas, e quando Ramón saiu da sala de parto, encon-
trou uma multidão à sua espera. Transtornado, deixou-se envolver
pelo calor e pelo amor de amigos e família, mas naquele momento
tão importante sentiu a falta dos seus afetos distantes. Ligou para o
pai, o avô, Kadão e depois para sua mãe a qual, sem perder tempo,
comprou uma passagem pela Calábria.
Maria e o menino receberam alta um par de dias depois, Rosa
insistiu para que ficassem com ela, pelo menos os primeiros tem-
pos, mas a filha recusou categórica, queria voltar ao quilombo, onde
estavam já prontos para acolher o recém-nascido: mesa para trocar
fralda, banheira para o bebe, berço e carrinho, todos objetos recu-
perados de segunda mão graças a uma rede de mulheres solidárias.
– Está bem, quer dizer que serei eu a ficar com você, não vou
lhe deixar sozinha. Tenho só que orientar Elisa e Carmine com a
gestão de Vovó Quinota – resolveu Rosa, sem discutir.
Maria fez cara torta, parecia-lhe uma invasão, mas a ajuda e a
presença da mãe se revelaram fundamentais e até mesmo lamentou
quando ela foi embora depois de três dias. Ficou o tempo necessá-
rio para apurar que os neo pais fossem suficientemente responsá-
veis, depois voltou às suas tarefas de sempre.
No quilombo, no entanto, nos dias a seguir a partida de Rosa,
experimentou-se uma forma coletiva de cuidado do recém-nascido:
Maria o amamentava, os outros em rotação se ocupavam do banho
do bebe, de fazê-lo dormir, aplacar os choros e trocar as fraldas.
Por decisão comum escolheram usar aquelas de tecidos, por isso
lavavam e estendiam em continuação.
Quinota conheceu o recém-nascido depois de mais ou menos
uma semana, Maria o pôs nas pernas dela: – Vovó, agora você já é
tataravó! Ele é Chico Junior... não entendi bem de qual cor ele é –
riu, – mas certamente é o neto que mais se aproxima da sua!
A idosa contraiu as sobrancelhas, acariciou a cabeça do menino
e o abençoou com os dedos, ainda uma geração a mais nascera sob
seus olhos. Ele, porém, era especial porque tinha um nome que a
levava de volta à sua terra de origem.
– Eu queria levá-lo à praia para conhecer o mar e queria que você
viesse também! Tem forças para se levantar e caminhar? Não agora,
mais tarde, quando estar mais fresco – propôs-lhe Maria com doçura.
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gostado, entendeu perfeitamente seus sentimentos e não conseguiu
reprová-la.
– Eis aqui o inconfundível sinal dos Dos Reis – disse Ana indi-
cando os dois pintas ao redor do mamilo do pequeno Chico.
– Sim, e acho mesmo que não seja o único – disse Maria re-
signada.
– É uma família especial a deles... a nossa – corrigiu-se. – E
o meu Ramón não é menos. Estou feliz que ele tenha encontrado
uma mulher como você, espero que continue a amá-lo sempre, ape-
sar de tudo.
As duas mulheres se abraçaram e Maria descobriu sentir ca-
rinho por ela. Quando viajou, depois de cerca de um mês, todos
lamentaram muito e Ana prometeu voltar logo.
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é a marca dos Dos Reis.
– É – afirmou de jeito carioca, estava confuso.
– O que ela está dizendo? O que está acontecendo? – inseriu-se
Maria, ansiosa.
– Calma! – intimou-lhe Ramón. – Entendo bem pouco eu tam-
bém!
Vovó Quinota, então, pôs-se a explicar com voz rouca, num por-
tuguês elementar: – Eu tinha quinze anos, amava um malandro cha-
mado Chico e tive um filho com ele, João Francisco Costa Dos Reis.
Ramón e Maria estremeceram, seus olhares se encontraram:
“como é possível?”, perguntavam-se em silêncio.
– Fazia seis meses que o menino nasceu, quando fui raptada
pelo amigo do dono da casa onde eu trabalhava como lavadeira.
Eis, pensou Maria, aqui o círculo se fecha, entendera bem, en-
tão, ao ler a carta, o bisavô Carmine a raptara.
– Ele sempre me olhava, tentou pegar-me mais de uma vez à
força, mas eu fugia...
Parou para retomar fôlego, falar a fatigava: – ...mas aquela noi-
te eu não consegui fugir.
O homem lhe dera um golpe na cabeça e, ao acordar, achara-se
num navio, em pleno alto mar, com um lenço na boca: – Naquele
momento achei que ia morrer e aí fiz um pedido a mãe Iemanjá, às
águas do oceano...
Pedira-lhe por rever Chico e Joãozito e, em troca, teria deixado
sua voz no fundo do oceano. Contou a história com uma lucidez
surpreendente, parecia uma fita gravada por uma vida toda à espera
de ser transmitida e que, finalmente, estava sendo escutada.
Maria chorou atrás das palavras da bisavó, Ramón estava como
apalermado, o resto da família não entendera nada.
– Hoje, aqui em frente, tenho o fruto daquela semente, a única
semente que deixei lá na minha terra – concluiu Quinota.
– E aí, você é aquela mulher... vovô Chico ainda guarda uma
foto de você, ele sempre achou que você tivesse fugido, mas não foi
assim, não posso acreditar... ele tem que saber!
A mulher se iluminou: – Chico está vivo...
– É.
– E Joãozito? – a voz dela se sufocou.
– Tá vivo. Também Zé Francisco, seu neto. E eu. E Chico Ju-
nior... daquela única semente, Vovó!
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nião, ou melhor, um desejo. Tornara-se um sujeito, não era mais só
um lugar na mesa.
– Não é uma coisa fácil – disse-lhe Maria com doçura.
– Io voglio morire nella mia terra! – repetiu em italiano.
– Não sabemos se autorizam você a subir num avião, assim
tantas horas... esqueceu que tem noventa e oito anos? E, ademais,
você nunca pegou um avião! – acrescentou Rosa.
– Eu quero morrer na minha terra! – insistiu Quinota, tranquila.
Maria suspirou: – Precisa-se de muito dinheiro, mesmo porque
alguém teria que acompanhá-la, você não pode ir sozinha.
– Eu quero morrer na minha terra! – concluiu com firmeza.
– Maria, venha comigo! – ordenou-lhe. Levantou-se da cadeira e, li-
gada ao braço da bisneta, dirigiu-se ao seu quarto, abriu uma gaveta
da cômoda, mexeu entre as cartas e pegou um pacote. Entregou-o à
neta: – O dinheiro de uma vida, guardado para a passagem.
– Dinheiro? – espantou-se Maria.
– Eu sabia que talvez um dia eu iria precisar...
Maria o contou, sobras de setenta anos de compras – subtra-
ídas com astúcia ao olhar atento do marido – mais outro dinheiro
encontrado no armário de Carmine após sua morte.
– Dá pra a passagem? – perguntou à bisneta.
– Claro que “dá”, Vovó – respondeu ela italianizando o portu-
guês, – e mesmo para ficar bem confortáveis, na verdade. Mas você
não tem medo de morrer numa viagem tão longa? – perguntou-lhe
aflita, o pensamento de perdê-la a angustiava.
Quinota riu: – Medo? O que é isso, minha filha! Não tenho
medo, não. Aquela que não tem que ter medo é você!
Na mesa Quinota voltou com uma aliada a mais, Maria tomou
o partido da bisavó: – Aqui há quase dez mil euros – exordiou, – e
ela quer morrer na sua terra, já o deixou bem claro. Demorou uma
vida para colher esse dinheiro para voltar pra casa, nós não lhe po-
demos impedir isso, devemos só ajudá-la.
– Não lhe importa de deixar-nos? – ressentiu-se Carmine, des-
cobrir de ser descendente de uma violência do vovô o levava a pôr
em discussão o carinho da vovó.
– Não seja idiota! – repreendeu-o Rosa. – Tá certo que ela vol-
te ao filho do qual foi rasgada – comoveu-se, achava-a uma história
extremamente romântica.
– Ramón, preparemo-nos para viajar – disse Maria. – Nós três.
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cartas e outras lembranças, destinou-a a Maria: – Para quando ela
voltar do Brasil – dispôs.
Na hora decisiva todo mundo chorava.
– Eu sei... eu sei que é certo assim – desabafou Rosa com o ma-
rido, – é exatamente assim que tem que ser, mas como não sentir sua
falta? E sua voz... agora já aprendera a deliciar-me com seus cantos!
Carmine também estava aflito e não conseguiu consolar a es-
posa, limitou-se a apertá-la entre seus braços.
– Vou sentir saudade de vocês – disse Quinota antes de ir.
Abraçou o neto, deu-lhe um beijo na fronte e o olhou nos olhos:
– Você é diferente – sussurrou-lhe. Sossegou-o, fazendo-o diferente
do avô violento do qual levava o nome. Depois se virou para Rosa:
– Obrigada, minha filha, que Deus lhe abençoe. Vou lembrar-me da
sua luz, da sua ajuda o do seu cuidado – concluiu em italiano.
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ça a ouvira nomear várias vezes e não tinha uma boa lembrança, a
ilha era famosa para ter sido, antigamente, lugar de contrabando dos
escravos e depois lazareto para os imigrados portadores de cólera.
Perguntou-se porque o malandro de Chico escolhera aquele lugar
mesmo, cuja terra absorvera assim tanto sangue, e sorriu lembrando
da sua figura, com a calça à zuava e o boné na cabeça, apenas com
quinze anos, jovem apaixonado, capoeira de rua e sambista de noite.
Teria reencontrado ele velho, mesmo como era ela, mas com certe-
za teria bastado só um olhar para se reconhecerem, porque certos
olhares não se podem esquecer.
Ao porto de Vila Abraão ficava Diogo à espera deles, com o
barco pronto a içar para a praia das Palmas. O breve tempo da tra-
vessia pareceu a Maria infinito, estava ansiosa por chegar, ao con-
trário de Vovó Quinota. A mulher se deliciava com o verde e o azul
dos quais estava cercada, fixava serena o aproximar-se da praia rica
de palmeiras de coco e se espantava com a maravilha da ilha, lugar
sinistro no seu imaginário. Chegados à beira, desceu do barco entre
os braços de Ramón, enquanto Diogo se preocupou com as baga-
gens e Zé Francisco ajudou Maria com o filho adormecido entre os
braços. Ficara tranquilo a viagem toda, como se tivesse percebido a
sacralidade daquele momento. O velho Chico estava à espera deles
junto com Joãozito embaixo da sombra duma aroeira, demorara-se
ao toalete diária e usava o vestido dos dias de festa, de um branco
que reluzia na sua pele preta. Lentamente foi ao encontro deles e,
finalmente na frente de Quinota, pegou-lhe nas mãos e beijou-as,
como quando era um garoto: – O tempo demorou muito pra deixar
nos encontrarmos de novo – disse.
– Chico, meu Chico... – sufocou-se a voz pela emoção. Depois
se virou para o homem ali do lado: – Joãozito, meu filho... nem um
dia da minha vida passou sem eu pensar em você – sussurrou.
– Sou eu, mamãe – respondeu ele como um menino obediente.
Aproximou-se temeroso, nunca usara a palavra “mamãe”, crescera
achando que aquela mulher o tivesse abandonado, até a odiara, e
agora de velho, descobria a verdade. Achou-se finalmente entre seus
braços, cujo calor sempre sonhara.
Na praia das Palmas pela primeira vez se encontraram todos os
homens dos Reis, cinco gerações diferentes, com a mesma profun-
didade do olhar, iguais sinais no corpo e uma disfunção hereditária
que os fazia únicos. Subiram de volta para casa, Paola estava à espe-
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– Por que Vovó? – perguntou-lhe em seguida.
– Estou curiosa. Queria aprender a ler e a escrever, pelo menos
meu nome, mas agora já é tarde demais – suspirou.
– Mas o que você está dizendo? – replicou a bisneta. – Agora
lhe faço ver, eia, tentamos – exortou-a.
Com letras de forma escreveu o nome da bisavó por extenso,
assim como fizera quando era uma menina, só que desta vez Quino-
ta não afastou a folha, nem recusou a caneta, deixou-se, ao contrá-
rio, guiar pela mão dela e reproduziu os traços das letras.
Daquele momento em diante, a brincadeira se tornou um
exercício cotidiano na mesa embaixo do pórtico e um caderno ia
enchendo-se de nomes próprios, comuns, substantivos, adjetivos,
verbos e palavras entre as mais díspares, tanto italianas como por-
tuguesas. Quando escreveram o nome “Iemanjá”, Quinota lhe per-
guntou: – Você sabe a lenda?
– Não – respondeu ela, e então a bisavó a contou.
Iemanjá teve um filho com Aganju, deus da terra firme, e o
chamaram Orungã. Fizeram-no deus de tudo o que está entre o
céu e a terra e morava rodando no ar, mas na sua mente tinha só a
imagem de sua mãe, a mais bela de todas. Um dia ele não resistiu
e a violentou, Iemanjá fugiu e, na fuga, quebraram-se seus seios e
se criaram as águas. Do seu ventre, fecundado pelo filho, nasceram
os orixás mais temidos. Por isso ela é mãe e esposa dos homens do
mar, ela os ama até quando viverem e sofrerem, mas no dia da mor-
te deles é como se fossem seu filho Orungã, cheio de desejo, cobi-
çando seu corpo. Disse que por esse motivo para amá-la é preciso
morrer, assim para viajar junto com ela pelas terras do sem-Fim, as
terras de Aiocá, sua moradia: – Por isso é doce morrer no mar.
– Ela tem cinco nomes – continuou. Explicou que os canoeiros
a chamam Dona Janaína e os pretos, seus filhos diletos, que dançam
para ela e mais que todos a temem, chamam-na Inaê ou fazem sú-
plicas à princesa de Aiocá, as terras misteriosas, escondidas na linha
azul que as separa das outras terras. As mulheres do cais, enfim, cha-
mam-na Dona Maria, porque: – Maria é um nome bonito, é mesmo
o mais bonito de todos – concluiu acariciando o rosto da neta4.
4. J. Amado, Mar morto, Círculo Do Livro, São Paulo, Brasil 1987, pp. 66-67;
70-71.
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encontrou nenhuma pista. Voltada à casa, notou na mesa a caixi-
nha de costura e o caderno de exercícios de escritura, folheou-o e
reparou que estava rasgado em diferentes partes. Baixou os olhos
e, na cadeira, viu o pandeiro do bisavô, em cima desse estava apoia-
da uma folha. Era uma mensagem formada por diferentes pedaços
de papel, costurados entre eles, até construir uma frase de sentido
cumprido: “Francisco João, meu tataraneto, que sempre seja aben-
çoado pelo pai Oxalá. Axé e luz. Vovô Chico”.
Maria ficou de boca aberta, uma onda de terror a permeou,
quem fim levaram aqueles dois? De certo estavam na praia, pensou,
mas não teve a força de ir sozinha. Correu para acordar Ramón, aten-
ta a não fazer barulho: – Levante-se, apresse-se, estão sumidos! –
pôs-lhe pressa.
Ele estalou: – Quem? O quê? – perguntou estonteado pelo sono.
Mostrou-lhe a mensagem: – Não estão em casa e os procurei
por todo o quintal... – sua voz tremou. De pressa se dirigiram à sa-
ída e encontraram o portão aberto: – Aonde terão ido? Meu Deus,
faça que não tenha acontecido nada de mal! – rezou Maria com o
olhar voltado ao céu.
Correram pela trilha até o mar e, chegando à praia, viram duas
figuras vestidas de branco, um homem e uma mulher, que mão na
mão caminhavam adágio no oceano e seguiam a luz da lua. Estavam
imersos até a cintura.
– Mas o que estão fazendo? – perguntou ela. – Temos que
pará-los, não podem ficar na água nessa hora, está frio... – suas pa-
lavras se sufocaram, nem mesmo ela acreditou.
– Deixa lá, meu amor – disse Ramón, ele, ao contrário, já en-
tendera tudo.
Ao lado de um coqueiro havia o boné branco do bisavô e, ao
seu interior, o colar de conchas e as pulseiras de madrepérola e de
cobre de Vovó Quinota. Havia também dois bilhetes, realizados
com o mesmo método do outro. Um desses continha uma men-
sagem para Ramón: “Manuche, meu bisneto, pra você. Axé e luz.
Vovô Chico”, o outro era pra Maria: “Maresia, meu sangue amado,
obrigada. Você é luz e me encontrará sempre no perfume do mar.
Com todo meu amor. Vovó Quinota”.
Maria entendeu o que estava acontecendo e se debulhou em
soluços. Ela e Ramón sentaram na sombra do coqueiro, um entre
os braços do outro derramavam quentes lágrimas silenciosas e olha-
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