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Da mesma autora publicados na Itália:

La Centesima Luna, editora Fermenti, Roma, 2009.


L’angolino di Luce, editora Coessenza, Cosenza, 2011.
Maresia, editora Coessenza, Cosenza, 2015.
Elisa Stefania Jannuzzi Tropea

MARESIA
Para vovô Gegè,
que do mar sentia a poesia.

Para vovó Pina,


melodia da minha vida.
O mar é a minha só grande paixão;
nem mesmo os pescadores de ofício ficam nele quanto eu:
Eu sinto sua poesia, o chamado
e tudo o que ele contem
sempre foi para mim objeto
de estudo, de anotação, de reflexão.

Ruggero Jannuzzi
CAPÍTULO 1

Maria caminhava à beira e inspirava profundamente, pela pri-


meira vez batera em alguém e sentia dentro de si toda a fraqueza
que segue o desabafo da violência física. Um raio de sol se infiltrava
entre as nuvens cinzentas e criava uma fenda de céu azul morno, o
quebrar das ondas produzia uma melodia consolatória, unida ao ti-
quetaque das pedrinhas debaixo dos sapatos. Viu uma gaivota fazer
reviravoltas ao redor da luz e depois voar para o sul, suspirou: ela
não podia voar, infelizmente. Pensava na reação de algumas horas
antes, um véu caíra em cima dela logo que encontrara aquela maldi-
ta porta fechada à chave. Pediu às águas do mar para levar embora,
junto com o frio Gregal, a imagem que perturbava sua mente, uma
negativa de silhuetas cinzentas e dolorosas. A salinidade se colava
nos óculos, acarinhava-lhe o rosto e se espalhava entre os cabe-
los movidos pelo vento de terra, chegado para abrandar a fúria do
Mistral do dia anterior. As ondas, ao recuar, deixaram fragmentos
de vegetação marinha, canas secas, garrafas e objetos entre os mais
diferentes. Enquanto andava para o sul, Maria refletiu sobre quanto
o mar do inverno modifica os litorais remexendo as areias e mol-
dando os arrecifes, após o fitou: – A crua verdade é que você só
reagira aos estupros!
A praia longuíssima da sua infância se encurtara à medida em
que ela crescera e, entretanto, em todo o litoral do mar Tirreno1 se
amontoavam eco-monstros abusivos com impactos desestabiliza-
dores. Maria tinha o costume de falar ao mar, aquele pedaço de Tir-
reno era o guardião dos seus mais recônditos segredos, pensamen-
tos e desejos. “Ouvir a voz do mar quer dizer ouvir a voz do próprio
destino” lhe dissera um tempo seu pai, e desde então ela procurava
seu chamado e tentava interpretar suas mensagens. Nos momentos
de solidão o invocava em voz alta e o interrogava, após perseguia as
respostas no ritmo e no som das ondas. Sua fantasia, alforriada do

1. Parte do Mar Mediterrâneo, que se estende ao longo da costa oeste da Itália.

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desencanto cotidiano, lançava-se em voo e se dirigia para além do


limite visível entre céu e mar, em países distantes onde reinventava
si mesma e imaginava histórias de encontros e despedidas.
O sol estava caindo, o mar brilhava embaixo da luz e o céu
começava a se avermelhar, a assumir uns tons índigos, sempre mais
escuros até a total escuridão. Maria pensou em se recompor antes
de voltar pra casa, senão sua mãe teria percebido algo e ela não tinha
nenhuma vontade, nem intenção, de contar o acontecido. Rosa a
advertira: – Não me convence inteiramente este Alessandro! – ex-
primira-se logo que o conhecera. Nunca vira com bons olhos a re-
lação deles, mas nada fizera para impedi-la, pois sua filha teria feito,
fosse o que fosse, o que der na telha.
Maria suspirou profundamente, enxugou os olhos e assoou o
nariz. Suspirava por causa da angústia tentando, naquele gesto, con-
tê-la, elaborá-la, transformá-la, eliminá-la inteiramente. Procurou
uma pedrinha para lançá-la na água e reparou numa entre as muitas,
mas não era uma pedra, era um azulejo polido. Olhou-o ao longo.
Quem sabe quais correntes o moveram, por quanto tempo o mar,
com seu balanço, acarinhara-lhe as quinas até lhe dar a forma de
um coração, de contornos arredondados. Perguntou-se de quanto
tempo teria precisado ela para aplanar todas as quinas do seu cora-
ção, e enfiou no bolso o fragmento, iria repô-lo na caixa prateada,
lá onde guardava os presentes do mar. Ergueu-o a símbolo de uma
promessa: não vou sucumbir a esta tristeza e a este vazio.
Às cinco e meia da tarde já estava escuro e ela decidiu subir de
volta da praia em direção de casa, no “bairro dos pescadores”, meio
quilômetro de estrada com vista para o mar, habitado por famílias
que há gerações se transmitiam a profissão da pesca.
– Oi mãe – gritou da porta de entrada.
– Por que já está em casa? – perguntou Rosa.
– Comecei mais cedo e acabei antes – mentiu.
– Oi Vovó Quinota – disse, depois, à idosa sentada numa ca-
deira de balanço. A mulher, de cabelos brancos e pele negra, não
respondeu, mas o embalo da cadeira parecia uma troca de saudação.

Era sua bisavó quase centenária, da qual se perdera a história


porque era muda. Não se conhecia exatamente a idade, na família
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capítulo 1
se dizia que a data anotada nos documentos de identificação fosse
convencional, atribuída na ausência da certidão de nascimento. Che-
gara do Brasil junto com Carmine, o bisavô emigrado, o qual, após
a crise mundial de ’29, preferira voltar à terra natal, comprar com
as poupanças um pedaço de terra e construir uma casa. Quinota era
pouco mais que uma menina, ele um homem já feito, com o dobro
da idade dela. Eles tiveram cinco filhos, um homem e quatro mu-
lheres, duas das quais morreram de pneumonia ainda crianças, uma
outra falecera durante a adolescência por causa de uma apendicite
aguda e a caçula não sobrevivera ao difícil parto de um recém-nasci-
do já morto. Único sobrevivente e herdeiro o primogênito Frances-
co, pescador como tradição, devoto do Santo de Paola2 cujo nome
levava. Apenas maior de idade casara com Anna, ela estava grávida
e as famílias impuseram um casamento reparador.
Casa Valenza fora reformada e levantado mais um andar, assim
o jovem casal se estabelecera aí. Tiveram uma menina e, um ano
depois, chegara o menino, ao qual foi dado o nome do avô.
Mariangela crescera aprendendo as tarefas domésticas, nunca
tivera vontade de estudar, sonhava só com seu vestido branco. De-
pois das núpcias se mudara para um bairro próximo, não tivera filhos
e por isso sofrera até sua morte, sucedida por um acidente de carro.
Carmine, no entanto, conseguira o diploma de contabilista e
trabalhara num cartório comercial, mas o chamado do mar era forte
demais, assim voltara ao barco do seu pai. Aos vinte anos conhecera
Rosa e após um longo noivado se casaram. Eles também ficaram
morando na casa em frente ao mar e tiveram três filhos, Francesco,
Anna e Maria, de tal modo que, por um certo período, quatro gera-
ções diferentes, dos nomes sempre iguais, encontraram-se a convi-
ver embaixo do mesmo teto.
O patriarca falecera com a idade de noventa anos, depois de
ter chorado a morte da prole inteira e de se ter alegrado com o nas-
cimento de netos e bisnetos. Quinota, ao contrário, resistia. Ficara
lá, muda, a observar o tempo passar e as gerações mudarem, de
vez em vez, ao seu redor. Chamavam-lhe de Vovó, forma infantil
do substantivo português “avó”. Recebera o apelido do marido ao
nascimento da primeira neta, numa idade em que ela teria podido
2. Município italiano da região da Calábria, província de Cosenza.

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ser ainda a mãe. Daí em diante se tornara pra todos Vovó Quinota.
Não falava, mas não era surda, e isso lhe permitia interagir, mas
não conversar. A mulher, envolta numa aura de silêncio, cutucava
a imaginação e a curiosidade de Maria, a última dos bisnetos, que
desde a terceira série se obstinava em fazer-lhe perguntas sobre suas
origens e seu passado. De vez em quando a mãe a repreendia: – Não
a atormente, coitada mulher!
A bisavó ouvia e logo respondia com uma carícia na cabeça,
sorria apenas e suas pálpebras se baixavam por um instante. Ao se
levantar, os olhos eram como encolhidos e as rugas ao seu redor
mais profundas.
Um dia, contudo, recém chegada da escola, a menina a pegara
desprevenida: – Ei Vovó Quinota, tive uma ideia, desenhe-me seu
País! Você não sabe falar, porém as mãos sabe usá-las!
Ofereceu-lhe lápis de cor, franziu os lábios e deslocou o peso
do corpo sobre as pontas dos pés, inclinando-se para frente. Então
a mulher se curvou, assim a bisneta pôde beijá-la. Quinota ergueu
as sobrancelhas em sinal de incredulidade, era a primeira vez que
alguém lhe fazia um símil pedido. Pegou na mão da menina e por ela
se deixou guiar até a mesa onde estava o bloco de desenho. Maria
sentava na frente dela, fremia à espera da primeira linha. A bisavó
hesitava entre o papel branco e as cores, indecisa sobre qual usar
por primeiro.
– Vamos lá, Vovó! – incitava-a com impaciência. – Pegue num
e acabou!
Para a menina era simplesmente escolher uma cor, para Qui-
nota, no entanto, significava escolher por onde começar. Exortada
pela tenacidade da bisneta, agarrou o amarelo, traçou uma circunfe-
rência em cima da página e a hachurou com o lápis.
– É o sol? – antecipou, ansiosa, a menina.
Quinota assentiu com um gesto de cabeça enquanto desenha-
va os raios, em seguida tingiu de azul a parte alta em redor do sol.
Contemplou a série de lápis disponíveis, mas optou por utilizar o
mesmo. Puxou uma linha bastante marcada para delimitar o papel
e colorou para baixo, até uma faixa ondulada. Estendeu o azul es-
curo na parte inferior e o esfumou com uma tonalidade mais clara,
depois tomou o marrom e delineou um “u” invertido. Colocou-lhe

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capítulo 1
ao lado outro maior e outro par, menores. Maria a olhava perplexa:
– O que é, Vovó? Não entendo bem. É um arrecife?
A bisavó virou a mão da direta para a esquerda e vice-versa, as-
sentiu, mas depois levantou e abriu os braços para fora, para enten-
der algo até maior. Ainda com o marrom encheu a última parte da
página, à esquerda desenhou uma cabana e, ao confim com o azul
escuro, um barco fino e alongado, semelhante a uma canoa. Com o
verde tracejou algumas árvores, palmeiras, cuja maior cobria a caba-
na, e enfim, com extremo cuidado, decalcou e escureceu os troncos.
Quando teve concluído pegou na mão o papel e o afastou para
o ver melhor; em seguida o mostrou à bisneta. Maria o examinou
atentamente: – Quer dizer que mesmo onde você nasceu há barcos?
E há também árvores na praia?
Quinota anuiu, sorrindo.
– E há inclusive casas na praia?
Mais o menos, respondeu oscilando a palma da mão.
– Agora você tem que assiná-lo.
Quinota contraiu os olhos e se esfregou o queixo.
– Vovó, você tem que escrever seu nome e sobrenome, como
nós fazemos na escola. Senão depois não se sabe quem fez o de-
senho! Eis, assim – mostrou-lhe escrevendo o seu num pedaço de
papel. – Você, porém, é Vovó Quinota.
Soletrando escreveu: – “Vovo Chinota Valenza”, logo depois
parou para refletir: – Mas você não tem o sobrenome de antes de
você casar com vovô Carmine?
Sim, confirmou a cabeça da bisavó.
Então a menina berrou: – Mamãe! Qual era o sobrenome de
Vovó de antes dela se casar com o vovô?
Não houve resposta, Rosa estava fora a estender a roupa, por-
tanto a chamou outra vez, com voz mais aguda. A idosa levou as
mãos para se tapar os ouvidos, após abriu uma à altura do peito e a
moveu levemente para frente, para intimar a bisneta a permanecer
parada e em silêncio. Levantou-se da mesa e se dirigiu ao seu quar-
to, pegou a carteira de identidade e a mostrou a ela: Joaquina Nunes
da Costa, nascida no Rio de Janeiro no dia 01.01.1915.
A menina se espantou ao descobrir o verdadeiro nome da bi-
savó, reescreveu-o por inteiro, assim como mostrava o documento,

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e deslocou o papel para frente, satisfeita: – Eis aí, assim se escreve


seu nome!
A mulher sacudiu a cabeça e afastou o pedaço de papel.
– Por que não? É importante! – implorava sua vozinha.
Quinota juntou as mãos à altura do peito e, em seguida, mo-
veu-as de cima para baixo, para exprimir a impossibilidade de aten-
der ao seu pedido. A menina insistia, cabeçuda, e a encorajava a
pegar a caneta na mão, mas sem resultados.
Rosa voltou pra casa e viu a filha bufar e se bulir: – O que
está acontecendo? – perguntou inquisitória. – Maria, não atormente
Vovó, bom Deus!
– Mas mamãe, ela só tem que escrever seu nome no desenho
que fez, senão depois vai se confundir com os dos outros! – cho-
ramingou. – E mais, você sabe que Quinota não é seu verdadeiro
nome?
A mãe se adocicou e sorriu: – Quinota é um diminutivo, minha
filha!
– E quem lhe disse isso, se ela não fala?
– Foi vovô Francesco – explicou. – E, aliás, Vovó não sabe
escrever, nem ler, por isso se recusa a fazê-lo.
– Sério? – espantou-se Maria. – Não lhe ensinaram isso na
escola?
– Eu acho que Vovó não foi pra escola.
– E por que não? Nem mesmo para primeira série? Você sem-
pre diz que todas as crianças vão pra escola.
– É, é assim. Porém há lugares onde os pais não têm dinheiro
para dar estudos aos seus filhos.
– E Vovó era pobre? – insistiu.
– Bom, suponho que sim – respondeu Rosa, incerta. Virou-se
para a bisavó: – Certo seria lindo se ela mesma pudesse nos contar
sobre isso.
Aproximou-se dela, apertou-a por trás num abraço e lhe beijou
a fronte. Amava-a muito, sentia um respeito reverencial e cuidava
dela com amor de filha.
E enquanto que a última dos bisnetos crescia e se tornava gran-
de, Quinota se encolhia e andava sempre mais devagar. O dia em que
morrera o marido sentara na cadeia em frente à varanda e aí ficara

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capítulo 1
até quando o sepultaram. Desde então passara sempre mais tempo
naquela posição a observar o mar, como se estivesse à espera de algo
ou alguém chegar de lá. Nos últimos anos se entorpecera a tal ponto
que parara completamente de cuidar dos afazeres domésticos e não
saía mais de casa, menos aos domingos de manhã, quando ia à beira
para espalhar umas flores no mar. Sempre o fizera, mas ninguém na
família sabia o significado do gesto. Maria, ao contrário do irmão e
da irmã, quando era criança gostava de acompanhar a bisavó no es-
tranho ritual, mas crescendo perdera o interesse e parara de segui-la.
Maria se sentou em frente à lareira, construída pelo bisavô Car-
mine junto com os muros da casa. A parte exterior era uma colagem
de azulejos coloridos, um diferente do outro, e era bastante longa e
profunda para conter um tripé e uma lata, para cozinhar e aquecer
a água. Rosa se aproximou da filha e então Maria se curvou para as
chamas, não queria cruzar o olhar dela, pelo menos os cabelos sol-
tos a ajudavam a esconder os olhos inchados.
– Está frio hoje. O vento está aumentando, vai fazer um desas-
tre no jardim – disse a mãe.
Maria não respondeu. – Papai? – perguntou ao contrário.
– Foi fazer algumas encomendas. Ele pediu para jantar um
pouco antes esta noite porque tem jogo.
– Eu vou comer algo mais tarde. Não estou com muita fome,
tenho ainda alguns trabalhos a despachar e, ademais, quero tomar
um banho quente.
– Está bem, vou deixar a mesa posta pra você – assentiu Rosa
sem parar suas tarefas. – Estou preparando umas vagens e, mais, há
a ricota fresca do tio Ciccio.
– Eu vou pro quarto – disse então Maria.
Subiu as escadas dando um suspiro de alívio, a mãe não perce-
bera nada. Abriu a porta do seu quarto, outrora da tia Mariangela e
posteriormente tornado-se refúgio dela e de sua irmã. Atirou a bolsa
no chão e se jogou na cama, no escuro. O corpo deitado se relaxara
de repente, mas uma sensação de frio a obrigou a levantar-se e vestir
uma malha, pois no andar superior não havia aquecedores. Acendeu
a luz e levantou a persiana, ligou o notebook e abriu um documento
à toa assim, se sua mãe a tivesse procurado, teria podido dizer que
estava trabalhando. Enrolou um cigarro e o acendeu aspirando pro-

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maresia

fundamente, mas a imagem daquela porta fechada à chave a perse-


guia. Deslocou o mapa-múndi do peitoril e abriu a janela, com vista
sobre o teto e para o mar. Pulou e se deitou nas telhas onde nin-
guém podia vê-la, um velho hábito, ali fumara os primeiros cigarros
e passara noites inteiras à espera das estrelas cadentes e sonhando
de olhos abertos. Segurava a cabeça entre as mãos e a melodia das
ondas seguia cada pensamento seu. Sentia-se humilhada, reduzida
a chutar uma porta para encontrar a todo custo a verdade que ele,
covarde, lhe escondia.
– Sou uma tola! Mas como eu pude ser assim tão cega?
Ligou de novo o celular, desligara-o pouco antes para não ser
achada por Alessandro, mas ele não a procurara.
– Stronzo!3 – exclamou entre os dentes. – Ele não se importa
de saber nem mesmo como estou depois de tudo o que aconteceu!
Mais de quatro anos de relacionamento e isso lhe deixara: a
imagem de uma porta fechada à chave.

Aquela manhã acordara muito cedo e pegara o trem uma hora


antes do costume a fim de levar o café da manhã para Alessandro,
na meia hora de viagem imaginara de entrar em silêncio na cama
dele, fazer amor e após correr para o escritório. Descera no ponto
de Castiglione Cosentino4 e rapidamente chegara ao pátio do pré-
dio onde morava Milena, sua amiga desde os tempos da faculdade,
para pegar a bicicleta ali estacionada. Ajeitara na cestinha anterior
café e croissants e, às sete e trinta e cinco, já pedalava em direção à
colina onde ficava a casa dele, o andar térreo de uma casinha gemi-
nada num bairro residencial para estudantes. Abrira o portão e se
aproximara da porta de entrada, como previsto não estava fechada
à chave, porque o coinquilino saía muito cedo para ir ao trabalho.
Atravessara o limiar sem fazer barulho, colocara na mesa o pacote
com o café da manhã e se dirigira ao quarto dele. Aproximando-se
percebera uns murmurinhos, seguidos por risadinhas sufocadas, que
deixavam intuir uma presença feminina. Parecera-lhe também ouvir

3. Referido à massa fecal, é um vulgar epíteto injurioso, cuja conotação ofensiva


se refere à pessoa que se comporta de maneira repreensível.
4. Município da região da Calábria, província de Cosenza.

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capítulo 1
o estalido de um beijo e, nessa altura, tentara baixar a maçaneta, mas
a porta estava trancada. O que seguira fora um turbilhão de raiva,
dor e gritos que a custo se lembrava, a imagem daquela porta fecha-
da à chave ficava a lembrança mais nítida e dolorosa.
– Quem é? – ressoara inquieta a voz de Alessandro, ele perce-
bera que alguém tentava entrar.
Maria, como resposta, empurrara a porta com o ombro e chu-
tara com brutalidade: – Abra, senão quebro tudo! – gritara. Com a
ponta das botas fizera um buraco na madeira e, com uma ombrada
mais enérgica, quebrara o vidro no centro da porta. Assim se en-
contrara na frente dele, ocupado em enfiar a calça do macacão, e de
uma rapariga magra do nariz proeminente, que vestia a camiseta do
seu pijama. Conhecia-a de vista, encontraram-se algumas vezes em
volta da cidade porque trabalhava com ele no call-center, e nunca
teria suposto uma tal coisa, não era nem mesmo incluída na para-
noica lista das mulheres farejadas como potenciais amásias.
– Não é o que você pensa – justificara-se Alessandro saindo
do quarto.
Maria ficara em silêncio, em seguida explodira de raiva, sentira
o sangue subir ao cérebro e se atirara contra ele. Chorava e soluçava
enquanto o enchia de bofetadas, arranhaduras e insultos: – Você é
um stronzo, um covarde!
Ele, em vão, tentava se proteger e pará-la. Com tom ofendido,
intimara-lhe para se acalmar: – Chega, para com isso! Agora você
está realmente exagerando, confundiu tudo!
Mais ele aludia a um equívoco, mais sua raiva aumentava.
– Ela não sabia aonde ir dormir, seus coinquilinos a expulsa-
ram de casa. Estava tarde demais, eu não podia deixá-la na rua – de-
fendera-se com os braços erguidos para proteger o rosto.
– E ela precisava dormir mesmo na sua cama? Você não podia
abrir o sofá?
– Para com isso, você é de verdade uma mulher do Oitocento
se acha que nem posso dormir com uma amiga!
– Eu uma mulher do Oitocento... – repetira em voz alta. – Que
pedaço de merda!
A pobre amiga sem teto, entretanto, vestira-se e tentara dizer
algo.

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maresia

– Cale-se! – interrompera-a Maria. – Não são seus assuntos,


você não tem nada com isso. Vá embora! E tire meu pijama!
A moça não se perturbara, seus lábios esboçavam um sorriso
descarado, sem embaraço: – Eu vou embora. A gente se vê mais
tarde no trabalho – virara-se para ele com impertinência.
Maria parara de chorar, as lágrimas deixaram lugar a uma apa-
rente remissão: – Por que você fez isso comigo? – dissera rendida.
– Desde quanto tempo essa história acontece? Nem mesmo teve a
decência de se esconder!
Alessandro respondera que ela era louca, que estava imaginan-
do tudo, que não tinha nada com aquela mulher, que se ele tivesse
querido fazer algo decerto ela não o teria descoberto, e que estava
devaneando.
Maria, no seu coração, queria acreditar nele, precisava acreditar.
Abandonara a cabeça no seu ombro e lhe beijara o pescoço, depois
a bochecha, os zigomas, os lábios: – O que há que não vai? Talvez
não lhe basto mais? Você não me deseja mais? – sussurrara inquieta.
Ele a afastara: – Não gostei de como você se comportou, não
se permita nunca mais de entrar em minha casa sem aviso!
Maria estava empalidecida: – Mas você e eu somos um casal! E,
ademais, eu sempre lhe fiz surpresas e você nunca reclamou.
– Bom, a partir de hoje as coisas vão mudar. Eu quero que
você respeite minha privacidade – decretara em tom autoritário.
– Com certeza, sua privacidade... – repetira Maria sem concluir
a frase. Em seguida disparara como uma mola, atirara-se no quarto
de dormir e ele a seguira, preocupado. Dobrada sobre um lado da
cama se virara e lhe atirara algo em cima: – Eis aqui seu veneno! –
gritara-lhe. Era uma camisinha usada, fechada com um nó, encon-
trada ao lado de lenços de papel ainda impregnados.
– Este é o nosso – defendera-se ele, – eu ainda não o tinha
jogado fora.
– Estou desgostada! Você é inconfiável e mentiroso! Como
consegue negar até a evidência?
Alessandro se aproximara, mas ela o rejeitara: – Não me encos-
te! Você é viscoso, faz-me revirar o estômago.
Não havia mais espaço para dúvidas ou interrogações no seu
coração: – Não temos relações sexuais desde a semana passada –

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capítulo 1
lembrara-lhe – ou melhor, há mais tempo, visto que a ultima vez
você não conseguiu nem mesmo ter uma ereção!
Vomitava em cima dele insultos e palavras ruins e, quando ne-
gava, jogava-se-lhe contra: – Pare de mentir! Tenha a coragem de
me olhar nos olhos e dizer a verdade. Mas não, você não, você não
o fará, porque você é um covarde!
Não teria cansado mais de transbordar rancor, nem o teria dei-
xado ir se ele não tivesse ido embora, deixando-a sozinha com seu
rancor e suas lagrimas. Já passava das nove e ela estava atrasada
para o trabalho, enviara um sms ao seu chefe declarando-se gripada
e desligara o celular. Em seguida, montada na bicicleta, dirigira-se à
casa de Milena. A amiga, ao reparar no seu estado confuso, preocu-
para-se: – O que aconteceu com você?
Maria se abandonara nos seus braços: – Encontrei-o na cama
com outra! – exclamara soluçando.
Milena colhera seu choro: – Acalme-se agora. Relaxe, respire
fundo – tentara sossegá-la. Entre choros e silêncios ficara com ela
até o início da tarde, calava enquanto procurava uma explicação
plausível para justificar seu homem, e chorava quando se dava conta
que nada podia desculpá-lo.

Maria ouviu vir do fundo da rua a voz de seu pai, que a desviou
da lembrança do dia apenas passado. Olhou para o relógio, eram
quase as oito. Desceu do telhado e se preparou para tomar um ba-
nho, encheu a banheira e ligou o termoventilador a fim de aquecer
o ambiente. Apenas se imergiu na água quente, sentiu o corpo se
derreter e finalmente encontrar paz. A mente, porém, não acabava
de moer pensamentos.
– Covarde – murmurou com voz triste e apagada, – ele não tive-
ra a coragem de dizer a verdade nem mesmo em frente da evidência!
Ele escolhera outra, não a desejava mais e Maria procurava a
razão nas imperfeições do seu corpo. Olhava suas nudezes, acaricia-
va-se e se perguntava o que faltasse nas suas linhas, nas suas formas.
Suspirou, não tinha mais nem a força pra chorar, derramara todas as
lágrimas. Deitada costas na água fumegante, sentia uma sensação de
alívio. Imergiu também a cabeça por alguns segundos e soprou com
o nariz, gostava de criar bolhas de ar na superfície. Refletia sobre
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maresia

seu presente, sua vida lhe dava nojo, ademais, desde que voltara a
morar na casa dos pais, a situação precipitara ao todo. Relembrou
com saudade de quando era estudante, das batalhas combatidas na
família a fim de se mudar para um alojamento universitário e dos
esforços feitos para se manter.
A água na banheira estava esfriando-se, Maria se envolveu no
roupão de banho, usou o secador, enfiou um pijama limpo, o mais
quente que tinha, e desceu na cozinha. Sua mãe já acabara de lavar
as louças, seu pai estava preso pelo jogo na televisão e a bisavó fi-
cava na mesma posição de sempre, sentada na cadeira de balanço.
– Leve Vovó para a cama – pediu-lhe Rosa quando a viu en-
trar. – Entretanto eu frito um ovo pra você.
Maria fez um aceno com a cabeça e se aproximou da idosa:
– Vamos para a cama, Vovó! – exclamou. Estendeu-lhe um braço
como apoio e devagar andaram até o quarto da mulher. Ajudou-a a se
despir, depois a pôr a camisola, tomando cuidado para não torcer o
colar de conchas, não o tirava nem quando ia dormir. Arregaçou-lhe
as cobertas e após lhe deu um beijo na testa: – Sonhos de ouro – de-
sejou-lhe. Apagou a luz e fechou a porta às suas costas.
Ao jantar comeu avidamente, não tocara em comida durante o
dia todo. Sua mãe lhe falava, mas ela não ouvia, tinha o pensamento
em outro lugar. Depressa deu boa noite.
– Que horas acordo você amanhã de manhã? – perguntou-lhe
Rosa.
– Não precisa, inventaram o despertador para isso, sabe? – ir-
ritou-se.
– Maria, não se volte assim contra sua mãe! – reprendeu-a Car-
mine da poltrona.
Ela não respondeu, baixou os olhos e subiu correndo para o
quarto, amaldiçoando sua vida. Enfiou-se debaixo das cobertas,
mas não conseguia dormir, os pensamentos a torturavam e a ima-
gem daquela porta fechada à chave tomava consistência. No silên-
cio da noite ouviu a voz do mar aumentar, estava de novo mudando
o vento, o frio e úmido Mistral vinha do noroeste a prever uma
piora do tempo. Adormeceu-se com a tênue aurora, os raios se in-
filtravam através da janela, e se à manhã a mãe não tivesse pousado
a xícara com o café sobre o criado-mudo, ela não teria tido a força

20
capítulo 1
para se levantar da cama.

Chegou ao trabalho com cara de sono, os vinte minutos no


trem da manhã, de costume despendidos lendo, passou-os quase
adormecida.
– Você está bem? – perguntou-lhe Giulia. – Podia ficar em casa
um dia mais, está com uma cara!
– Já sei – respondeu ela amarga. – Você não pode nem imagi-
nar o que aconteceu comigo.
– O quê? – intrigou-se a colega. – Tenho que me preocupar?
– Vamos conversar depois, preciso dar andamento a uns pro-
cessos urgentes!
Maria tinha um marcado sentido de responsabilidade e traba-
lhava com cuidado, seu pai lhe ensinara isso: “Uma coisa ou se faz
ou não se faz” sempre lhe dissera. Nos primeiros três meses de pro-
va na E&C Consulting, empresa atuante na área do planejamento e
da formação, mostrara suas qualidades: aprendia rápido, realizava as
tarefas em pouco tempo, com precisão, e tinha um ótimo domínio
do inglês. Fechara o nariz e aceitara uma posição de verdadeira ex-
ploração só porque o chefe, o Eng. Ettore Cristiano, prospectara-lhe
um contrato de projeto de mil euros por mês. Nunca tivera todo
aquele dinheiro à sua disposição, nem mesmo com os trabalhos na
temporada do verão, parecia-lhe um sonho. Teria vivido com esse
como uma rainha e talvez teria alugado um míni apartamento todo
pra si. Sentava numa escrivaninha na frente do computador por oito
horas por dia, dez com a pausa do almoço, duas horas enervantes, a
maior parte das vezes passadas a comer um sanduíche conversando
ao redor do escritório com as colegas. Pedira para fazer horário con-
tínuo, mas o chefe negara o pedido: – A pausa é obrigatória, se viesse
um inspetor poderia aplicar-lhe uma multa.
– Multar-lhe-ia mesmo sabendo que eu trabalho por um euro
e cinquenta por hora – pensara Maria no seu coração, mas não lhe
dissera nada, ainda estava confiante nas possibilidades que lhe se-
riam abertas após o termo do período de estágio. Como acordado
assinara o contrato de projeto ao final dos três meses, os mil euros
havia de verdade, mas em bruto.
– Como! – maravilhara-se seu chefe. – Você não o entendera?
21
maresia

A remuneração era de seis mil euros por trezentas horas por


cumprir em seis meses “em absoluta autonomia operativa, sem vín-
culos de horário nem de presença e sem dever sujeitar-se a nenhum
poder hierárquico e/ou disciplinar por parte do comitente”, mas na
realidade ela trabalhava de fato como uma colaboradora que bate
ponto. O pagamento não chegara o primeiro mês, nem o segundo,
e a cada solicitação de pagamento era a mesma lenga-lenga: – É di-
nheiro que deve chegar da Região5. Não depende de mim – dizia-lhe
o engenheiro, por ela apelidado de Explorador.
Até que um dia explodira: – Mas eu trabalho para você, não
para a Região! – reagira. – Encontre uma solução, porque eu não
posso mais permitir-me a paciência.
Ela o tratava por “tu”6, aliás Ettore era apenas poucos anos
mais velho, e ele gostava disso. Admirava a audácia de Maria, seu
sarcasmo, os ideais, sua inteligência. Era fascinado pelo seu jeito de
agir, sem poses e forçação, e pela sua energia impetuosa. De vez em
quando era obrigado a frear involuntários pensamentos eróticos, se
ela cruzava as pernas no branco sofá de pele do seu escritório, ou
quando examinavam um file curvados no mesmo computador.
Maria o chamava de “chefe”, mas não o tratava como tal e ele,
no fundo, apreciava que ela fosse a única entre os colaboradores
a pôr-se a par, embora sua irreverência o deixasse nervoso. O dia
após a rajada a chamara para seu escritório e lhe entregara um enve-
lope: – Já que estamos no Natal... um pequeno adiantamento. Con-
sidera-o como um empréstimo, depois, quando chegar o dinheiro
do projeto, você me os devolverá. E não diga nada aos outros, cau-
sar-me-ia embaraço.
– Assim, porém, causa embaraço a mim – dissera-lhe ela, cha-
teada. – Pego-os só por não pedir aos meus pais o dinheiro para o
trem, mas saiba que eu não gosto nada disso.
De qualquer maneira ela gostava do trabalho e era sempre ope-
racional, mas se sentia explorada, humilhada econômica e intelec-
tualmente, por isso era um conflito cotidiano entre a vontade de

5. Órgão territorial político e administrativo de um Estado partilhado com siste-


ma regional, como a Itália.
6. Pronome pessoal que, em italiano, é a maneira informal de se dirigir às pessoas
com as quais temos mais intimidade.

22
capítulo 1
aprender e aquela de fugir.
Por volta de uma hora bateu à porta de Ettore: – Ei, chefe,
acabei! Preenchi todas as fichas e as enviei aos partners do projeto.
– Disse-lhe mil vezes para não me chamar de “chefe” – adver-
tiu-a, colhia sempre um sarcasmo no epíteto.
Maria sorriu e não reagiu: – Dá-me o relatório, assim o traduzo
à tarde – exortou-o.
– Não está pronto.
– Como não está pronto? – repreendeu-o. – Tem que ser en-
viado amanha até ao meio dia e eu tenho ainda que traduzi-lo!
A empresa, como referente de um pequeno município do in-
terior, era partner num projeto europeu de informatização do terri-
tório e Ettore, como Project Manager, participava dos workshops
organizados periodicamente nos diferentes Países envolvidos, para
depois relacionar ao tutor do projeto. Porém não era capaz de es-
crever em inglês, portanto era Maria que traduzia, e muitas vezes
aprofundava, os relatórios por ele redigidos em italiano.
– Amanhã de manhã até às dez o terá na escrivaninha – asse-
gurou-lhe.
– Às dez, nem sequer às nove! – endereçou-lhe um olhar torvo.
– Duas horas são poucas.
– Agora não posso. Está vindo buscar-me Caterina para ir es-
quiar.
– Esquiar? – enervou-se ela. – Temos prazos e você vai esquiar?
– Não lhe permito usar esse tom comigo! – disse autoritário. – Há
muitas coisas que eu e você temos que esclarecer.
– Tipo? Além do salário, obviamente... – desafiou-o alusiva.
O engenheiro fingiu não ouvir: – Tipo que você vai embora
sempre antes do horário estabelecido. Ninguém dos seus colegas
faz isso.
– Eu vou embora quando acabo o que você me dá por fazer.
Se demoro um quarto do tempo dos meus colegas para cumprir o
trabalho, quer dizer que tem que comprometer-se de modo particu-
lar para encher oito horas – sorriu gozante.
Ettore estava furioso. Era verdade, ela concluía as tarefas sem-
pre rapidamente e havia umas tardes em que, resignado, não podia
impedir-lhe de ir embora. Isso, porém, enervava-o, porque compro-

23
maresia

metia sua autoridade aos olhos dos outros colaboradores.


– O horário tem que ser igual pra todo mundo – disse.
– Meu contato não fala de horários a respeitar, mas de um total
de horas que já redobrei há um tempo – especificou Maria.
Ele se ressentiu: – Você sabe bem como é a situação. De hoje
em diante temos que botar umas regras... essa sua anarquia não vai
bem!
– Anarquia não quer dizer ausência de regras, mas se você qui-
ser que eu siga suas regras, então me ponha em “regra”.
Saiu do quarto enraivecida. Raiva acumulada sobre outra raiva,
sentia-se explodir. Desabafou-se durante a pausa do almoço com as
colegas: – Me sinto humilhada!
– Olha que você não é a única nessa situação – precisou Laura.
– Eu sei – reforçou ela, angustiada. – Mas a culpa é nossa que,
em vez de recusar, aceitamos essas condições.
– É que, numa sociedade como a nossa, se você não tem um
trabalho não tem uma identidade, por isso toleramos situações avil-
tantes – interveio Giulia.
– Tanto faz, se você deixar vai chegar outra no seu lugar, a fa-
zer as mesmas coisas nas mesmas condições – decretou Laura fria.
– Bom, por algum lado é preciso, sim, começar! E por onde, se
não por si mesmos, Laura?
– Sim, mas que sentido tem se só eu faço isso? – rebateu ela.
– Tem sentido porque você defende sua dignidade, como pro-
fissional e como cidadã. E, ademais, representa um começo, um
passo que alguém enxergará. Por que devemos esperar que sejam
sempre os outros a agir?
Giulia percebeu a irritação de Maria e mudou de assunto: – Ei,
vamos, chega! Melhor, explique-me o que aconteceu com você e
por que esta manhã tinha aquela cara! – perguntou-lhe.
Então ela contou a história ruim com Alessandro e se sentiu
aliviada a dividir suas penas. As três moças não se pode dizer que
fossem amigas, mas havia entre elas uma sintonia criada pelo en-
contro cotidiano.
À tarde o chefe não estava, Maria não tinha nada pra fazer e já
às quatro se encontrava na cidadezinha. Desceu do trem, notou que
o mar se levantara de muito, a temperatura caíra e a brisa da manhã

24
capítulo 1
se tornara um forte vento. Chegou a casa com frio.
– Já aqui? – perguntou sua mãe.
– Sim, mamãe, acabei antes o trabalho todo, como sempre. O
Explorador não estava, foi esquiar, e eu vim embora.
– Maria! Já lhe disse mil vezes para não chamá-lo assim, senão
você se acostuma e pode escapar-lhe na frente dele.
– Nunca me escapará, mamãe, pode ficar tranquila. Melhor,
vou dizer-lhe por minha própria vontade, no momento oportuno.
– Não seja tola, com os tempos que correm é uma sorte este
trabalho, você tem só que agradecer!
– Quem e por qual coisa eu teria que agradecer? Para oito ho-
ras por dia presa a uma escrivaninha em troca de dois tostões?
– Minha filha, você tem a cabeça tão dura!
Ouviu-se uma buzina tocar. – É seu pai, estamos indo ao tio
Ciccio. Vou fazer as geleias com Elisa, você está a fim de vir? – con-
vidou-a.
– Não, mamãe, obrigada, prefiro que não. Vou ficar perto da
lareira com meu livro.
– Pergunto-me se todas essas suas esquisitices não sejam culpa
dessas coisas que você lê...
Maria a fitou e percebeu a própria distância do mundo ao qual
pertencia sua mãe e não lhe respondeu, parecia-lhe uma batalha
perdida. A mulher tirou o avental, calçou os sapatos e vestiu o capote.
– Está bem – disse-lhe, – então dê uma olhada em Vovó.
Geralmente, quando a bisavó ficava sozinha em casa, Rosa lhe
deixava um copo de água na mesinha ao lado da cadeira de balanço.
Na sua volta o encontrava sempre vazio, era o agradecimento de
Quinota pelo cuidado.
– Eu vou! – gritou Rosa da porta de entrada.
Maria ficou em silêncio em frente à lareira, perdida nas cha-
mas e no pipocamento da madeira. Aproximou-se da bisavó, fez-lhe
uma carícia na fronte e os olhos da mulher a fitaram. Encostou uma
cadeira e se sentou ao lado dela: – Oh, Vovó! Quanto é difícil viver!
Quinota virou a cabeça e a olhou com indulgência.
– Encontrei ele na cama com outra! – disse-lhe sem circunló-
quio. – Minha autoestima foi completamente destruída. Acho que
nunca mais vou conseguir amar, nem confiar em nenhum homem.

25
maresia

A idosa levantou as sobrancelhas e escancarou os olhos vela-


dos pelas cataratas, estava surpreendida. Moveu-se para frente e a
cadeira começou a balançar mais rapidamente.
– Minha vida é horrível! – continuou Maria. – Minha luz apa-
gou e não tenho mais tempo, nem dinheiro e nem energias por
despender em algo satisfatório, nem sequer pela minha relação, e eis
aí o resultado – concluiu triste. Bufou, sacudindo a cabeça: – Não,
eu não posso continuar assim! É uma questão de respeito por mim
mesma, pela minha inteligência e por todos os esforços que fiz até
agora. Digo isso só a você, Vovó, porque estou certa que não vai
contar nada a ninguém – sorriu, – mas eu amanhã vou pedir demis-
são e vou mandar tomar banho o Explorador e seus fingidos mil
euros por mês.
Articulava ideias confusas e passava de um assunto ao outro
de um jeito bagunçado, assim como eram seus pensamentos e suas
emoções. Pôs a mão da bisavó entre as suas e a acariciou. Era en-
carangada, magra, com as veias evidentes, preta no dorso e bran-
queada na palma, com as unhas rosas, quase violáceas. Comparou
a pele dela com a própria. Maria era clara como sua mãe, os outros
da família, ao contrário, eram todos escuros, mas ninguém herdara
a cor de Quinota, preta como breu.
– Esta mão trabalhou a vita toda, não é Vovó? E quem sabe
de onde vem.
Começou a brincar com as pulseiras no pulso da mulher, uma
de madrepérola e outras de cobre: – Que pena que você não fale,
quem sabe quantas histórias teria pra contar! Criou filhos, netos e
bisnetos com seu olhar e seus gestos, e ninguém sabe nada do seu
passado. É incrível!
O rangido da cadeira de balanço tinha um quê de tranquilizan-
te, Quinota dirigia o olhar um pouco à bisneta, um pouco ao mar.
Maria se levantou e se aproximou da varanda: – Certo é que quando
eu for velha e cansada como você, querida Vovó, acho que também
me sentarei numa cadeira de balanço em frente ao Tirreno. O mar é
a única coisa que me conforta – disse olhando através do vidro. – É
que não gosto desta sociedade. Aparecer, consumir, possuir... eu não
tenho nada a ver com essas coisas.
Quinota entrecerrou os olhos, tinha dificuldade em entender.

26
capítulo 1
– Vovó, acredita em mim – enfatizou levando a mão direita ao
coração, – lá fora há uma guerra. E eu não entendo nada disso. Sei
só que estou doente, é um período tremendo!
Caiu-lhe uma lágrima e então a bisavó moveu o dedo para ela.
Maria se acabrunhou às suas pernas e apoiou a cabeça. Quinota a
acariciava, seu calor era curativo.
– Talvez eu também teria que emigrar – suspirou. Em seguida
o silêncio envolveu a sala, arranhado só pelos gemidos do vento e
pelos rangidos da cadeira de balanço.
Quando se acalmou, levantou-se para beber algo. Na geladeira
havia um suco de laranja feito por sua mãe: – Vovó, um pouco de
laranjada? – ofereceu-lhe. Levou o copo até a bisavó e ela estendeu
um braço para pegá-lo.
Os pais voltaram a casa na hora da janta, Maria ficava na frente
da lareira, mergulhada numa leitura que lhe volvera um pouco de paz.
– Que frio está lá fora! Há um vento fortíssimo – disse sua mãe.
– Ar de borrasca! – anunciou Carmine. – Na rua há galhos
quebrados e o mar fraga7, é mais perto que nunca.
Rosa se pôs atrás dos fogões e a hora da janta passou como de
costume, com a televisão ligada a capturar a atenção e a roubar cada
pensamento a compartilhar.
A manhã seguinte chegou ao escritório com um quarto de hora
de atraso, o trem parara por algum motivo na galeria. Encontrou
um estado de agitação, Fabio, Laura e Giulia ficavam em pé e esta-
vam falando entre eles.
– O que está acontecendo? – perguntou preocupada.
– Ontem Ettore quebrou uma perna esquiando – informou-a
Fabio, o braço direito do Explorador.
– Caramba! Verdade? – disse ela. Teve um tremor, pensou em
todas as imprecações que lhe enviara o dia anterior. – E agora?
– E agora nada – respondeu ele, – temos que colocar panos
quentes por algum tempo.
Maria se sentiu afundar, chegara lá para pedir demissão e, ao
contrário, ouviu dizerem que tinha que colocar panos quentes! Es-

7. Presente indicativo do verbo “fragare”, palavra em dialeto da área marítima ao


redor da cidade de Cosenza, que se refere às cristas das ondas que quebram no
alto do mar.

27
maresia

creveu de pressa o relatório, diretamente em inglês, e o enviou no


prazo estabelecido.
Durante a pausa cedeu à tentação e ligou para Alessandro, sen-
tia sua falta, talvez só por costume, e marcaram encontro pela hora
do almoço na rotissaria onde muitas vezes comiam. Ele estava frio,
parecia ofendido pelas “insinuações” dela e por esse motivo pedia
um período de pausa. Continuava a negar o relacionamento clan-
destino, acusava-a com várias culpas e com incapacidades e, ao fim,
convencera-a que o laço deles se deteriorara por sua causa. Chamou
sua reação de “imatura e exagerada”, disse que ela superara o limite
e assim fizera precipitar a situação.
Maria saiu do encontro destruída, com certeza nunca mais teria
acolhido Alessandro entre seus braços.
Às cinco da tarde não tinha mais nada por fazer e aproveitou
para ir embora do escritório. Enquanto saía, Fabio a olhou de través
e ela previu uma ligação de Ettore dali a pouco. Encaminhou-se em
direção da Universidade de Arcavacata, uma estrutura feita de cubos
construídos aos lados de uma ponte entre as colinas, para participar
de uma iniciativa numa sala de aula ocupada. Acabado de entrar, o tri-
lo agudo do celular a forçou a sair. Como previsto era o engenheiro.
– Oi chefe – respondeu, – como vai sua perna?
– Engessada por quarenta dias. Estou preso em casa.
– Sinto muito – disse ela com frieza.
– Onde você está?
– Na universidade, na apresentação de um livro.
– Estamos ainda no horário de trabalho do escritório.
– O crescimento cultural e a satisfação de um colaborador são
valor acrescentado para uma empresa – rebateu. – Espero que você
volte logo ao escritório, preciso falar-lhe pessoalmente quanto antes.
– Por enquanto não posso mover-me, melhor, você enviou o
relatório?
– Sim, claro. Inventei um pouco, mas não garanto o resultado,
fiz o que eu pude.
– Tá bom, tá bom. O próximo workshop é aquele de Teguise,
oito e nove de fevereiro, mas eu, nessas condições, acho que não
vou poder ir.
– Então?

28
capítulo 1
– Então irá você no meu lugar.
Uma luz iluminou o rosto de Maria: – Está bem – respondeu
fria, queria mascarar a excitação.
Explicou-lhe a documentação a estudar e lhe indicou os files
a ler: – Assim você terá coisas por fazer durante os próximos dias.
Concluída a conversa, Maria levou uma mão à fronte: – Oh,
Deus – murmurou entre os dentes. Pensou que, nessa altura, seu
plano de pedir demissão pulava, não podia perder aquela ocasião:
“atrás de uma coisa feia se esconde sempre uma coisa linda”, res-
soaram-lhe na mente as palavras que sua mãe costumava repetir.
Participou da apresentação do livro, em seguida ficou beliscando
e bebendo junto com alguns amigos e voltou a casa com o último
trem, às vinte e três. A ideia de viajar a recarregara de energia nova.
Antes de se deitar parou para observar o mapa-múndi. Indi-
viduou as Ilhas Canarias no meio do oceano Atlântico, um arqui-
pélago a cerca de uma centena de quilômetros a oeste da costa de
Marrocos: – Geograficamente na Africa, mas politicamente espa-
nholas – observou consigo. Lanzarote não comparecia entre os sete
nomes citados, portanto considerou que fosse um dos pontinhos da-
dos a representar outras ilhotas menores. Apontou nele o indicador
e tamborilou com a unha: – Nós conheceremos muito cedo – disse
sorrindo, uma nova terra estava à sua espera.

29
CAPÍTULO 2

Desceu no aeroporto Guacimeta de Arrecife às duas em pon-


to. Tirou o casaco enquanto seguia as indicações para a saída, fazia
calor em relação à temperatura deixada em Roma. Parou no toilete
e se lembrou do fuso horário, portanto moveu os ponteiros do re-
lógio para uma hora atrás. Estava à sua espera um homem do rosto
bronzeado com um cartaz na mão onde estava escrito “E&C Con-
sulting”, Maria se apresentou e ele lhe deu as boas vindas proferin-
do-se em mil cerimonias e agarrando seu trolley. Subiram num carro
escuro e se dirigiram ao albergue. A estrada era plana, bem asfaltada
e com pouco trânsito, com uma fileira de cicas e palmas à beira, e
o motorista pisava no acelerador com desenvoltura. A paisagem era
lávica, a terra árida e calva, preta e marrom escuro, em certos traços
ferrugentas, com esporádicas moitas de cactos de diferentes espécies.
Lá onde havia efusões lávicas de verdade, de uma intensa cor preta,
brotavam só poucos líquenes e raríssimas plantas suculentas, pare-
cia uma erupção terminada há pouco tempo. Durante o caminho o
motorista lhe apresentou a ilha, um pouco respondendo às suas per-
guntas, um pouco deixando-se guiar da vontade de falar da sua terra.
– Eu não poderia morar em nenhum outro lugar – confiou-lhe,
– aqui é a eterna primavera!
Maria estava feliz de falar em espanhol, quando tinha oportu-
nidade de usar um idioma diferente lhe parecia o mundo se apeque-
nar, cada lugar distante se tornava mais perto e cada estrangeiro se
tornava mais familiar.
– As costas são muito ventosas, sobretudo no Norte – expli-
cou o homem, – por isso a ilha é frequentada por surfistas.
Um portão com a placa “Sunshine” os conduziu a uma área
diferente da paisagem encontrada ao longo da estrada.
– Chegamos, señorita, o hotel fica no final dessa estrada. Hoje à
tarde, às cinco horas, virão uns táxis para levar você e os outros ao
congresso na cidade – informou-a o motorista.
– Aqui não estamos na cidade? – perguntou ela, desorientada.
– Oh, não! Aqui estamos no litoral, Costa Teguise pela precisão.
À recepção foi acolhida num agradável e fluente inglês, mas as

31
maresia

cinco estrelas do hotel a faziam sentir-se desconfortável, não estava


acostumada com isso, o luxo a deixava nervosa, não conseguia go-
zar. O tempo de entregar os documentos, acomodar-se no quarto
e tomar uma ducha e já estava fora passeando nas proximidades.
Encontrava-se numa área delimitada, com numerosas construções
de várias alturas cercadas por canteiros perfeitamente cuidados, do
corte da grama até a irrigação. Havia inclusive um portilho onde
estavam atracados luxuosos iates e umas piscinas em cujas bordas
descansavam perfis das tezes lácteas. Entrou num bar para beber
algo, ao balcão pediu uma caña, mas recebeu a resposta: – Sorry?
Maria repetiu o pedido, preocupando-se em soletrar as sílabas:
– Una caña por favor.
– Una cerveza – definiu constatando a relutância do balconista,
um jovem da cabeça redonda e dos olhos azuis.
– Ah! – exclamou ele explodindo numa risada. – A beer! Do you
want a lager, miss?
Num instante se esclareceu o equívoco: – Yes, I do, please – res-
pondeu ela, apurando que ali também se falava inglês. Refletindo, tudo
era muito british, as placas pelas estradinhas, as escritas nos muros do
bar, a decoração, a música, até mesmo os prados do lado de fora.
– Mas que porcaria de lugar é esse? – resmungou consigo
amargurada enquanto bebericava uma clara gelada.
Bebeu depressa para sair de lá, queria buscar o oceano, o com-
plexo hoteleiro devia mesmo ter acesso ao menos a uma praia! E,
deveras, descendo por uma longa e íngreme escadaria, o litoral lhe
apareceu de repente atrás de uma curva. Parou para observar o pa-
norama, o profundo azul escuro do oceano se insinuava entre a areia
dourada através duma enseada cercada de grandes pedras pretas, um
espetáculo cromático de rara beleza. A contragosto decidiu voltar,
faltava pouco para a hora do congresso e não queria chegar atrasada.
No hall do hotel já havia um grupo à espera, os homens em paletó e
gravata, as mulheres em sérios tailleur escuros. Sentiu-se descabida
com os tênis aos pés, mas na mala não tinha nenhum outro par, além
dos chinelos. Comiserou sua ingenuidade e seu despreparo, nem
mesmo lhe aflorara a ideia de uma roupa mais formal para as horas
de trabalho. À chegada dos táxis se enfiou no primeiro encontrado
vazio e a ela se uniram um homem com cerca de cinquenta anos dos
traços mediterrâneos e outro mais jovem, de clara origem nórdica.
O primeiro era Luke Caruana, representante do parceiro maltês, o

32
capítulo 2

outro era Gerard Van Der Zande, delegado da prefeitura de Utrecht.


Assim que Maria ouviu o nome da cidade holandesa se entusiasmou:
– Utrecht! Que maravilha! Quantas lembranças! Morei lá um ano in-
teiro, nos tempos universitários, com o projeto Erasmus1 – disse em
inglês. Relembrou-se de quando chegara lá, num lugar diferente do
próprio, e se sentira pela primeira vez uma estrangeira, uma sensação
fascinante que a tornara alma inquieta, sempre pronta a galgar os li-
mites entre céu e mar, e lhe acendera o botão da curiosidade. Come-
çou a falar dos lugares conhecidos, dos costumes, das comidas, mas
o homem parecia bastante aborrecido, assim ela se calou e a viajem
prosseguiu em silêncio até a cidade.
Teguise, distante do litoral, era cercada por uma paisagem vul-
cânica formada por antigas crateras agora já inativas, amplas pla-
nícies de escura terra vulcânica e rios de lava solidificada. Entre as
estradinhas calcetadas aflorava um grupo de casas baixas e brancas
com persianas e portas de madeira pintadas de um verde brilhante.
O carro parou nas cercanias de uma praça, onde havia dois leões
esculpidos aos lados de uma escadaria, e o motorista lhes indicou
uma construção senhoril como lugar do congresso.
– Welcome to the third meeting of the project... – ressoou uma voz
do microfone dando começo às atividades. Seguiram duas horas
de apresentação em que Maria ouviu e tomou notas, embora nada
despertasse seu interesse. Ao encerramento dos trabalhos os partici-
pantes foram acompanhados ao hotel, no restaurante o jantar já es-
tava pronto. Ela sentou na mesa redonda onde já estava acomodado
Gerard, o holandês, junto com outras pessoas e, entre um bocado
e outro, conseguiu trocar algumas palavras amistosas. Depois do
doce, porém, todo mundo se recolheu no próprio aposento. Ela,
ao contrário, não tinha nenhuma vontade de se fechar num quarto
às dez da noite, então se dirigiu ao bar. Estava desanimada com a
situação, bem longe de como ela a imaginara. Sentada no balcão,
sozinha e com ar aflito, ordenou um rum achando que lhe teria
favorecido o sono.
– Thanks – disse ao barman tomando o copo na mão.
– De nada señorita. Arehucas de Lanzarote – respondeu ele com
um sorriso cordial.

1. Acrônimo de European Region Action Scheme for the Mobility of University


Students, é um programa de intercambio para os estudantes da União Europeia.

33
maresia

Maria arremelgou os olhos, aliviada: – Ah! Finalmente alguém


que fala espanhol além dos motoristas! Tenho a impressão de ter
afundado num remoto vilarejo da Inglaterra!
O jovem riu divertido: – Bom, você não está de todo errada,
visto que estamos num resort inglês!
– Um resort? – repetiu ela.
– Sim, um resort, um complexo hoteleiro, fornecido de todos
os serviços, cujos donos são ingleses. Há outros, alemães, suíços,
suecos...
– Eu não sabia que existissem lugares desse tipo – espantou-se
Maria. Bebeu um gole, pensativa, em seguida acrescentou: – Na
prática você está me dizendo que há gente que vem de férias em
Lanzarote e passa o tempo entre os campos de golfe, as piscinas, o
cinema e os pubs, assim como faria na própria casa?
– Mais ou menos. Há mesmo quem faz umas esplêndidas ex-
cursões guiadas – acrescentou ele sarcástico.
– Mas é monstruoso!
– Na realidade é um bom compromisso se pensarem que, fora
desses muros, o território ficou sem contaminações e manteve seu
aspecto selvagem.
– Parece muito com uma gaiola pra turistas! – brincou ela.
O barman riu de coração: – Uma gaiola, sim, mas para um cer-
to tipo de turista. Para outros a ilha representa a liberdade.
– Quer dizer que há algo de maravilhoso lá fora? – piscou Maria.
– Muitas coisas maravilhosas! – anuiu o jovem.
– Deduzo que você seja da área.
– Nascido e criado em Lanzarote.
– Então saberá com certeza sugerir-me como fugir daqui e pas-
sar a noite num lugar bonitinho!
O jovem refletiu por alguns instantes: – Eu largo daqui a meia
hora, se você me aguardar eu vou levar-lhe comigo a uma festa.
– Uma festa? É que amanhã de manhã tenho que estar ponta
às oito...
– Pode pegar um táxi e voltar na hora que você preferir.
Maria avaliou a proposta, arriscar-se a se atrasar a manhã se-
guinte ou divertir-se um pouco? E ademais, aquele homem, que
nem mesmo conhecia... não teria sido irresponsável confiar num
desconhecido?
– Está bem, convenceu-me – disse enfim e continuou a beber

34
capítulo 2

seu rum, mergulhada em mil pensamentos a cada gole mais confusos.


– Señorita, vamos? – ouviu logo uma voz.
Pulou do tamborete: – Meu nome é Maria.
O jovem riu: – Eu sou Abram, encantado.
– Para mim também é um prazer, você é um vislumbre de luz
nesse tom cinzento britânico – ironizou. – É gentil de verdade por
levar-me com você.
– Oh, nada! – enrubesceu ele. – É um dever ajudar os pássaros
a fugirem da gaiola!
Enfiaram-se num carro bastante em mau estado, entretanto ele
lhe contava do seu trabalho.
– Aonde estamos indo? – perguntou Maria.
– A um bar na Caleta de Famara, na costa noroeste, há uma
festa organizada pelos surfistas.
– Ah, sim! Um motorista me falou que aqui o surf é muito
praticado, mesmo você o faz?
– É impossível crescer em Lanzarote e não botar uma prancha
aos pés, o chamado do oceano é forte demais para não ficar enfei-
tiçado por ele! Chega gente do mundo todo para montar nossas
ondas, o outro tipo de turistas aos quais acenei antes.
Estacionaram o carro na estrada asfaltada, um vento impetuo-
so puxou com violência a porta não apenas Maria a abriu. Cobriu-se
o rosto com a echarpe a proteção dos olhos, já avermelhados pelo
uso das lentes de contato mas, ao virar a esquina, as rajadas pararam
de repente, a estreita viela aonde se enfiaram era protegida pelos
muros das casas. Atrás de um par de curvas encontraram a areia
embaixo dos pés, as estradinhas do distrito eram todas assim.
– É incrível! – espantou-se Maria. – Está vindo-me uma louca
vontade de tirar sapatos...
Mais na frente perceberam o vozear da multidão: – Eis aí, che-
gamos! – avisou-a Abram.
Algumas pessoas ficavam embaixo dum alpendre feito de ma-
deira e dum entrelaçado de ramos, e do interior vinha a música de um
concerto ao vivo. Abram apertou a mão de todo mundo, responden-
do com um tapinha nas costas aos numerosos: – Hola chacho, que tal?
Maria, atrás dele, olhava-se ao redor, curiosa com os rostos e
o ambiente novo. Ao atravessar o limiar de entrada parou para não
obstruir a passagem e, ao levantar a cabeça, cruzou o olhar de um ho-
mem que lhe provocou um abalo e lhe fez abaixar os olhos. Abram

35
maresia

lhe apresentou seus amigos e para Maria começou a descoberta da


verdadeira alma de Lanzarote. Ali eram todos surfistas, mulheres e
homens, apaixonados pelo oceano mais do que qualquer amante.
Mesmo no escuro os olhos deles irradiavam luz ao contar os cut-back2
ou os off the lip3 do dia há pouco passado, ao falar das swell previstas e
dos ventos a seguir para encontrar as ondas melhores. Muitos eram
da área, outros eram estrangeiros chegados pelo chamado do oceano
e logo ficados, uns por alguns meses, uns por anos.
O tempo passou rápido e depois da meia noite Maria decidiu
ir embora aproveitando uma carona oferecida por um amigo de
Adam. No escuro da sala enfiou o casaco, quando ouviu uma voz
às suas costas: – Ya te vas?
Ao virar-se reconheceu o boné do cara com o qual cruzara à
sua chegada na porta de entrada.
Anuiu com a cabeça: – Já está tarde – respondeu em espanhol.
– Que pena! – disse ele. – Teria querido oferecer-lhe uma cerveja.
Maria se justificou: – Amanhã de manhã tenho que acordar cedo!
– Não quero insistir – definiu o homem sem tirar-lhe os olhos
de cima.
Não precisou acrescentar algo mais: – Está bem – aceitou ela,
pois notara quanto o homem era atraente. – Fazemos, porém, uma
meia cerveja – propôs, deixando entender que teria ficado só por
pouco.
Acompanhados pelo rock da banda se aproximaram do balcão,
ele pagou uma Tropical e pegou duas canecas vazias, depois se dirigiu
à saída, fazendo-lhe sinal de segui-lo. No fundo do alpendre, numa
esquina afastada, apoiaram-se a uma mesa pênsil, ele serviu a cerveja
e a passou pra ela renteando-lhe os dedos. Maria teve um frêmito ao
contato com o frio do copo e ao perceber o leve toque dele. Estava
confusa pela esquisita situação, o desconhecido ficava em silêncio,
mas não parava de fitá-la de jeito audaz e penetrante. As canecas
bateram num brinde, tacitamente voltado a celebrar seu encontro.
2. Manobra básica do surf, que consiste em retornar à parte mais íngreme da onda.
É possível realizá-la de várias formas em relação à conformação do ombro, à po-
tência da onda e ao grau de dificuldade que se quer pôr em execução. Se realiza em
velocidade no topo da onda ou, no máximo, na metade da mesma.
3. Manobra de surf que se realiza subindo de volta em vertical a parede da onda
na sua parte mais íngreme (deixando sair a prancha até as quilhas), e virando em
seguida para baixo, antes de acabar atrás da rebentação.

36
capítulo 2

– Mas quem é você? – perguntou Maria. Do tom transpareceu


seu espanto, seja pela magia do inesperado, seja pelo prazer da des-
coberta.
– É verdade – riu ele, – nem mesmo nos apresentamos! Mi
nombre es Ramón – disse estendendo-lhe a mão.
– Maria – murmurou ao responder ao aperto dele, intenso,
forte e decidido. Ele tinha a palma quente e dura, de um homem
generoso e apaixonado, com o costume ao trabalho manual.
– Encantado señorita – acrescentou em seguida. Pegou na mão
dela, aproximou-a à sua boca e roçou-lhe o dorso com a leveza de
um beija-mão de outros tempos.
O gesto do caçador varreu cada migalha de resistência da sua
presa, Maria abandonara a inicial atitude interrogativa e exibia um
olhar amoroso e uma postura de agrado, com o tronco estendido
na frente e uma mão esticada a acariciar os cabelos. Mordiscava-se o
interno dos lábios, desajeitada no papel de mulher seduzida repenti-
namente, no prazo de uma meia cerveja. Tentou dizer algo: – Che-
guei a Lanzarote só hoje, ainda não tive jeito de... – suas palavras se
estrangularam, um agradável nó na garganta e um bulício ao ventre
se tornavam sempre mais agudos com o aproximar-se do rosto dele.
Até seus lábios se roçarem, antes docemente, depois sempre com
maior intensidade.
– Próprio assim? – Tudo tão depressa? – sussurrou ela.
Ramón acenou um sorriso alusivo e levantou as costas, não sa-
bia o que responder. Cingiu-lhe a cintura com um braço, estreitou-a
contra si, entretanto com a língua seguia os contornos da boca, ia
para o pescoço, saía atrás do lóbulo e logo descia para a nuca. Maria
se rendeu, inebriada pelo respiro dele, pelo bom cheiro, pelo sabor
da sua pele escura. Anulada por tanta ousadia não se opôs aos seus
gestos passionais, mas os correspondeu desejosa. Acariciava-lhe as
costas em cima da t-shirt, de baixo para cima, apalpando com o
polegar a linha dos dorsais relevados, movendo as unhas até perder
os dedos entre seus cabelos morenos. Numa empurrada mais im-
petuosa caiu o chapéu da cabeça de Ramón e quebrou o encanto,
os corpos deles se afastaram e Maria percebeu claramente a batida
acelerada do seu coração. Tinha o rosto quente e enrubescido e se
sentia confusa, mas a brisa que passava do entrelaçado de ramos a
ajudou a recuperar a lucidez: – Preciso ir, está tardíssimo e há al-
guém à minha espera para me dar uma carona – disse.

37
maresia

– Posso acompanhá-la eu – ofereceu-se ele. – Para onde você


tem que ir?
– A uma cidadezinha inglesa a Costa Teguise – brincou, – mas
não quero incomodar.
– Parece-lhe que pra mim possa ser um incômodo?
Acariciou-lhe o rosto e a fitou intensamente nos olhos, então
Maria aceitou, consciente que a volta teria sido longa. Entrou para
se despedir de Adam e do resto da companhia, enquanto Ramón
estava à sua espera na saída, envolvido na sua felpa4 vermelha, com
as mãos no bolso e a pala do boné a cobrir o rosto.
Andaram pelas vielas de areia até a estrada asfaltada, onde es-
tava estacionada uma furgoneta verde e amarela: – Um Westfalia!
Que lindo, a van dos filhos das flores! – exaltou-se Maria. Girou ao
redor do veículo e notou, na cobertura do estepe, o disco azul com
as estrelas e a faixa branca “ordem e progresso” da bandeira brasi-
leira: – Você é apaixonado pelo Brasil? – perguntou.
– Eu sou brasileiro do Rio de Janeiro – esclareceu ele. Abriu a
porta lateral: – No Brasil, isto – e deu uma tampinha no furgão, –
chama-se kombi.
Maria não falava português, mas tinha a mente educada ao mul-
tilinguismo e não lhe foi difícil entender uma frase simples: – Ver-
dade? Não sei por que me fizera a ideia de que você fosse da ilha.
– Talvez porque falo bem espanhol. Minha mãe é madrileña.
– E o que você faz aqui em Lanzarote?
– Moro aqui. Já faz um ano quase. Eia, suba, senão o vento
vai levá-la embora – incitou-a. – Aqui é tudo aberto, não há casas a
protegê-la... e você, ao invés? Conhece bem o espanhol!
– Gracias – orgulhou-se ela entrando no habitáculo.
– Há muito não o falava... eu sou italiana. Do sul – especificou,
– mas a minha bisavó nasceu no Rio de Janeiro, sabe?
– Verdade? – espantou-se. – E você já foi ao Brasil?
–Ainda não. Na realidade nunca saí da Europa.
–Você quereria ir lá?
Maria se calou por alguns segundos: – Sim, quereria, mas na
verdade ainda não levei em conta a ideia de uma viagem interconti-
nental, parece-me algo tão distante...
Ramón a convidou a sentar no sofazinho, forrado com um te-

4. Casaco feito com este tipo de tecido, macio e internamente aveludado.

38
capítulo 2

cido das cores e do estilo africano, e acendeu um par de velas. Tirou


fora uma garrafa: – Para as ocasiões especiais – disse. Encheu dois
copinhos com um líquido esverdeado, das nuances ambarinas: – Ca-
chaça envelhecida de Minas, da melhor qualidade. Você conhece a
cachaça?
– Mais ou menos – respondeu Maria farejando o cheiro.
– É um destilado da cana de açúcar.
– Como o rum.
Ramón anuiu, mas especificou os diferentes procedimentos de
preparação. – Esta cachaça provém do Estado de Minas Gerais, é a
melhor de todo o Brasil, envelhecida dez anos em toneis de carva-
lho branco – explicou, e depois bebeu num gole só todo o líquido
do copo.
Ela a experimentou: – É forte! Mas é boa – declarou. – É aro-
mática, encorpada...
Ramón se sentou ao lado dela e começou a acariciá-la, os cabe-
los, o rosto, o pescoço. Em seguida desceu e se concentrou na blusa,
desprendeu os botões um a um, acordando-se ao ritmo dos beijos
impacientes com os quais explorava o rosto de Maria. Longe de
olhares indiscretos, envolvidos pelo silêncio da noite e pelos apitos
da brisa atlântica, seus corpos se buscavam com vivacidade, as bocas
famintas se mordiam ansiosas, os respiros se afanavam ao uníssono.
– Nessa altura acho que não posso mais ir embora – brincou
ela tirando-lhe a t-shirt, a peito nu ele era ainda mais sedutor, com o
abdômen esculpido e o ventre seco. Ramón se levantou, fechou as
cortinas e, de uma caixa, tirou uma cama meio casal onde se joga-
ram dominados pelos instintos, empurrados pela urgência do dese-
jo, acalmados só pela atenta contemplação das recíprocas nudezes.
– Oh, que delicia! Que maravilha! Você parece uma deusa, não
posso parar de lhe olhar – sussurrou-lhe Ramón num português que
a custo ela entendia. Com os dedos percorreu a curva das suas an-
cas, as redondezas dos seios e dos glúteos, a linha fina e musculosa
das coxas, como um menino à sua primeira descoberta. Maria goza-
va intensamente, lambia-lhe o pescoço como um felino e saboreava
seu gosto de sal, estreitava-o contra si para sentir em cima dela a sua
pele macia, quente, suave. Quando os sexos estavam prestes a se
juntar ela o parou: – Bota uma proteção.
– Mas na verdade...
– Nada de “mas”. É uma questão de respeito e, ademais, nos

39
maresia

conhecemos apenas.
– Está bem, você tem razão – concordou ele. – Espere aí e não
fuja! – brincou com doçura.
Não havia perigo de Maria fugir e nem mesmo esfriar, seu cor-
po ardia como possuído por um delírio febril. Quando Ramón a pe-
netrou, com a premura de um amante experto, seu corpo se livrou
e o prazer confluiu numa explosão longa e intensa que, prestes a
sopitar, reacendeu-se com maior vigor, conduzindo-a nas mais altas
esferas dos sentidos. O suor lhe descia da fronte no rosto enrubes-
cido, após os molúsculos se relaxaram, o coração voltou à normal
batida e o respiro afanoso se regularizou.
Ramón se soltou dela para lhe dar o jeito de se acalmar, mas não
parou de acariciá-la: – Gostosa! Eu gosto de ver você gozar – sussur-
rou-lhe à orelha, – eu gosto do seu sabor. Eu gosto do seu respiro.
A trégua foi breve, suas caricias se fizeram mais insistentes e
seus beijos mais intensos, até se unirem de novo, numa troca intima
que parecia cultivada em campos arados de vidas antecedentes. Em
seguida foi o respiro de Ramón a virar sempre mais arquejante e os
ritmos das suas empurradas a aumentar.
– Onde você esteve até agora? – disse-lhe entre os gemidos a
pouco a pouco se tornado cirros que, enforcados na garganta, anun-
ciaram o cume do prazer. Estremecido, caiu beato ao lado daquele
corpo até algumas horas antes desconhecido.
O silêncio da satisfação os envolveu como um manto encan-
tado, esticados sobre um lado repousavam a olhos fechados. Seus
respiros eram acordados no mesmo ritmo, as pernas e as mãos cru-
zadas e as cabeças apoiadas uma à outra, como a não querer dar fim
à confluência criada pelo seu encontro. Maria entorpeceu, mas a
boca dele a despertou pouco depois para continuar a noite de amor
e de prazer. Reparou que Ramón tinha ainda o preservativo e lhe
lembrou de trocá-lo, mas ele respondeu que não precisava.
– Mas não! – reagiu ela espantada ao dever explicar aqueles
detalhes técnicos. – Isso já está cheio, tem que ser trocado.
– É que não há esperma – explicou ele em tom natural.
Ela entrefechou os olhos, como a focar, um reflexo incondi-
cionado para exprimir a incredulidade e a dificuldade em entender:
– Mas antes... pareceu-me que você também... – balbuciou na busca
de uma explicação.
Ramón sorriu: – Chama-se “orgasmo anaejaculador”. Funcio-

40
capítulo 2

na tudo normalmente, o prazer, a sensação orgástica, mas não há


expulsão de líquido seminal.
Maria ficou pasma, nunca ouvira falar de uma coisa desse tipo:
– Qual a razão desse distúrbio?
– As causas podem ser diferentes, no meu caso se trata de uma
disfunção da testosterona, quase certamente de caráter hereditária.
Meu pai, meu vovô, o meu bisavô, todos os quatro com a mesma
anomalia.
A explicação não a convenceu: – Você está me zoando! Como
pode ser hereditária se para conceber é preciso esperma?
– Somente uma ejaculação na vida de cada um gerou um único
filho – explicou seco.
– Incrível! – exclamou ela apoiando uma mão nos lábios. Exis-
tem curas?
– Sim, mas eu parei há muito tempo, após várias tentativas
falhas. O máximo que atingi foi uma expulsão “de festim”, então
decidi conformar-me às estranhezas da mãe natureza, em vez de me
fazer bombar o corpo de hormônios. Quando era menino estava
complexado, depois aprendi a aceitar minha diversidade, no fundo
não me muda nada. Perturba-me só a ideia de não poder ter filhos.
– Eia – confortou-o Maria. – No fundo existirá também pra
você aquela única vez que lhe permitirá tornar-se pai.
Ramón se abrumou e esbouçou um sorriso triste: – Aos ho-
mens da minha família aconteceu embaixo dos trinta anos e eu já
estou fora do tempo. Em cada caso, entendi que se pode ser pais
de muitos outros jeitos. Talvez seja destinado a atender às faltas de
outra pessoa – declarou confiante.
– Señorita, está quase para alvorecer. Queria muito continuar a
sonhar antes que esta esplêndida imagem esvaeça ao meu despertar –
disse logo acariciando-lhe o corpo.
Maria lhe jogou os braços ao pescoço e o estreitou contra si,
rolou de um lado e se deslocou sobre ele mais faminta que antes,
a externação da sua fraqueza o tornara ainda mais querido pra ela:
– Um fruto da semente preciosa, eis o que você é – sussurrou-lhe
docemente antes de se perder, ainda uma vez, junto com ele.
O sol já estava alto, quando acordou de repente e olhou para
o relógio: – Está tardíssimo, tenho que ir – agitou-se sacudindo o
corpo adormecido de Ramón. Não houve nem mesmo o tempo de
passar pelo hotel para se arrumar, a kombi arrebentou na estrada

41
maresia

avançando para Teguise.


– Tranquila – ele a sossegou, – aqui em Lanzarote é tudo perto.
De fato, em pouco menos de um quarto de hora, estavam em
frente à sala dos congressos.
– Teria gostado de levá-la pela ilha, em vez de deixá-la aqui...
sinto muito que já amanhã você tenha que viajar – disse-lhe.
– É verdade! – suspirou Maria. – Porém podemos passar jun-
tos o tempo que resta – propôs. Marcaram um encontro pela hora
do almoço, em vez de aproveitar do bufê oferecido aos participan-
tes, ela teria fugido à descoberta de Lanzarote.

Durante a conferência toda lutou contra sono e impaciência,


esforçava-se para ficar atenta a seguir as várias intervenções em
inglês, mas do seu corpo ainda exalava o perfume de oceano de
Ramón que a levava a algumas horas atrás e lhe impedia de manter
a concentração. Foi um alívio o anúncio do coffee-break no meio da
manhã e uma liberação a chegada da pausa do almoço. Como de
acordo a kombi amarela e verde estava ali fora à sua espera. Ramón
preparara uns sanduíches e pusera gelar umas garrafas de Tropical:
– Quero levá-la a um lugar onde se tem a sensação de se fundir
completamente com a natureza – disse-lhe.
A kombi avançou rápida para a rodovia, no sentido noroeste.
As tonalidades morenas e avermelhadas da terra se alternavam aos
campos cultivados, nos restos de antigas efusões cresciam brotos,
protegidos do vento por muretas circulares. A paisagem lunar, pri-
mitiva e sem contaminação, criava um cenário surreal.
– Conte-me um pouco sobre você – pediu a Ramón, e ele se
esforçou para fazer uma síntese da sua vida.
– Nasci e cresci no Rio, formei-me na faculdade de arquitetura
e, quando fiz vinte e oito anos, viajei para a Europa. Morei e traba-
lhei como arquiteto em Lisboa, em Londres, em Madrid. Em segui-
da vim de férias a Lanzarote, chamado pelas ondas e pelas obras de
Manrique, e esse lugar me pediu por permanecer.
Maria, porém, não ficou satisfeita com a resposta e encalçou
com outras perguntas, procurando maiores detalhes. Descobriu que
morava em La Santa, um vilarejo de pescadores formado por um
cruzamento de casas, num apartamento compartilhado com um
francês e um espanhol. Dava aulas e consertava as pranchas numa

42
capítulo 2

surf house de Famara, construía instrumentos musicais e criava escul-


turas com materiais naturais ou reciclados.
– Quem é esse Manrique? – perguntou Maria, nunca ouvira
aquele nome antes.
Ramón a olhou atônito: – Você está aqui em Lanzarote e não
sabe quem é Manrique?
– É que me hospedo numa cidadezinha inglesa! – justificou-se
irônica.
– É o homem que encheu a ilha de obras de arte. Lanzarote
não pode ser concebida prescindindo da contribuição do grande
César Manrique!
Ramón então se lançou numa apaixonada dissertação acerca
do artista, sobre como ele interpretara a beleza e o valor do espaço e
como seu gênio conseguira formar um equilíbrio, uma simbiose, en-
tre criação humana e ambiente natural. Sua influência nas regras de
planificação urbana e na estratégia turística impedira as intervenções
destrutivas do boom dos anos ’70-’80, até que Lanzarote, em 1993,
foi declarada pela Unesco “Reserva mundial da biosfera”. Assim foi
submetida a uma particular legislação ambiental, a fim de preservar
seu patrimônio natural e cultural.
– Todas suas obras, a começar pelas pinturas, dos murais e
das esculturas, até os trabalhos de arquitetura e urbanismo, têm o
ambiente natural como protagonista principal. Ele não criava na
natureza, mas com a natureza. O lugar onde estamos pra chegar lhe
explicará melhor que qualquer palavra.
Maria o ouviu atenta, divertia-a o feito de ele, com desenvoltu-
ra, de vez em quando inserir umas palavras ou frases em português
enquanto falava em espanhol.
Passaram sem parar por um pequeno vilarejo, Haría, como
um oásis no deserto surgia no meio de um luxuriante vale colorido
com palmeiras, eucaliptos e plantas de buganvília floridas, muito
diferente do resto da paisagem da ilha. Enveredaram, em seguida,
por uma estrada secundária, que se tornava sempre mais íngreme
e seguia em espiral para o cume. A paisagem, do alto, parecia um
grande desenho de contornos e de cores bem definidas. A ilha de
La Graciosa, na frente, parecia sempre mais nítida até que, de cima,
pôde-se admirar em toda sua extensão, molhada pelas ondas do
oceano e ladeada por outras ilhotas vulcânicas.
– Chegamos – disse Ramón desligando o motor, – esse é o

43
maresia

Mirador del Rio.


O que há muito tempo atrás era um ponto de observação usa-
do pela gente local para se defender dos ataques dos piratas, fora
transformado por Manrique num observatório panorâmico, uma
estrutura de vidraças e varandas encaixadas na rocha, e um terraço
íngreme, inclinado sobre o arrecife de lava, onde rodeavam corvos e
aves de rapina. Maria atingiu a borda do pico e sentou numa das pe-
dras pretas que delineavam a borda. O vento soprava forte, mas ela
nem mesmo o sentia, perdida como estava na visão infinita. Ramón
se aproximou e a envolveu por trás, e ela sentiu uma sensação de
satisfação. Recitou uma tácita oração para que aquele momento
nunca tivesse fim, mas a triste certeza da absurdidade do desejo
a empurrou a se render completamente aos braços de Ramón e a
concentrar-se nas suas emoções, para não esquecer.
Uma olhada no relógio botou fim ao romântico silêncio da
contemplação, era hora de voltar, dali a pouco teriam recomeçados
os trabalhos do workshop.
– Obrigada por ter-me trazido nesse lugar – disse Maria subin-
do na kombi. – É como se tivesse limpado meu coração.
– Seu coração tá sujo? – perguntou Ramón apoiando-lhe uma
mão no peito.
Maria por um instante se imobilizou à pergunta que, no fundo,
ela mesma lhe sugerira: – Encrostado de decepções, falências, in-
satisfações... o problema é que não consigo limpá-lo, e isso é ainda
mais frustrante.
– Você é uma pessoa com uma energia vital muito poderosa,
Maria, tem que conseguir canalizá-la em formas positivas.
– E como você sabe que eu possuo uma energia tão forte?
Conhece-me há apenas algumas horas...
– Simplesmente a percebo, é clara, linear, autêntica. Dentro de
você há calor, há luz, por isso tem a tarefa de irradiar o que lhe rodeia.
Só assim poderá iluminar sempre com mais clareza seu caminho.
Maria ficou perplexa: – Supondo que tudo isso seja verdade, o
que eu teria que fazer?
– Só dar forma ao que você tem na mente, àquilo pelo qual
se sente inspirada, sem agir para miras pessoais. Simplesmente tem
que tirar proveito do que tem como dom, só assim você brilhará
com a sua luz.
– Mas você, por acaso, é um xamã? – brincou ela. Pela primeira

44
capítulo 2

vez parou para pensar em si como fonte de energia, mas era difícil
pra ela separar-se da percepção materialística da vida e do agir com
a qual crescera e fora educada.
– Não, eu não sou um xamã, mas minha vovó paterna era uma
índia da tribo dos Guaranis e, o que se conta, minha bisavó era filha
de mãe de santo.
– Você está me confundindo com todas estas coisas novas!
– Uma família misturada, a minha, brasileira de verdade – riu
com gosto Ramón.
Chegaram a Teguise apenas atrasados, o pouco para não se-
rem notados. Maria estava feliz. Cumprimentou o colega holandês
e tomou lugar atrás de suas costas. Sentada composta, de pernas
cruzadas e com sua prancheta e caneta nas mãos, mantinha o olhar
fixo no cara que falava ao microfone de categorias, de dados, ob-
jetivos e resultados, input e output. As imagens projetadas na tela
gigante, diagramas em pizza, de barras, percentagens e números,
tornavam-se papel branco aos seus olhos vitrados, apenas entrefe-
chados, como num estado meditativo. Seu pensamento, pois, ficara
no Mirador del Rio, na visão infinita e nos braços que lhe cingiam
as costas. Foi assim pela duração toda do meeting até as saudações
conclusivas, acolhidas com aplausos entusiastas. Os presentes tro-
caram apertos de mão com os desejos de futuras colaborações e ela
se prestou ao jogo da mesma forma, despedindo-se com excessivo
calor mesmo de quem nunca notara.
Voltou ao hotel com o primeiro carro a se mover. Tomou um
banho e arrumou suas coisas, em seguida enviou um sms a Ramón e
desceu no hall à espera dele. Alguns dos participantes do workshop
já estavam de partida, os outros teriam ido embora à noite ou no
dia seguinte.
– Mas você não tem o avião amanhã de manhã? – perguntou-lhe
Gerard reparando no seu trolley.
– Sim, mas esta noite vou ficar na casa de um amigo que mora
em La Santa. Sabe, Gerard, prefiro ficar em Lanzarote do que na
Inglaterra – riu.
O holandês a fitou espantado: – Como são sociáveis vocês ita-
lianos!
– Também você seria muito sociável se botasse uma migalha
de paixão nas suas palavras, mesmo só no tom – pensou ela, mas
não lhe disse nada para não ofendê-lo.

45
maresia

– It’s been nice to meet you – recitou, ao contrário, estendendo-lhe


a mão. Dirigiu-se em seguida ao bar para procurar Adam, naquela
hora devia já estar atrás do balcão.
– Vim para cumprimentá-lo! E agradecer-lhe – disse-lhe.
– Oh, Maria! Mas seu avião não é amanhã?
– Sim, mas vou passar a noite num outro lugar.
O homem lhe deu uma piscada e riu: – Ramón raptou você?
– Sim – enrubesceu ela. – Então conhece ele, suponho.
– Nós surfistas em Lanzarote nos conhecemos todos. E mais,
Ramón mora aqui já há um tempo, de vez em quando nos diverti-
mos em jogar capoeira.
– A capoeira? E o que é?
Abram se espantou: – Ramón ainda não lhe falou da capoeira?
– Na verdade não. Falou-me de ondas, de Manrique e de ou-
tras coisas esquisitas, mas dessa capoeira ainda não me disse nada.
– É uma arte marcial brasileira. Você nunca viu uns vídeos na
internet, na televisão, o que sei...
– Não. Nunca ouvi falar.
– A kombi já está lá fora – informou-a, vira-a através da vidra-
ça. – Desejo-lhe que passe uma esplêndida noite.
– Obrigada Adam. Se não tivesse sido por você, nesta hora
pensaria que Lanzarote é um lugar nojento.
– De nada señorita, foi um prazer conhecê-la.
Trocaram os contatos de facebook, prometendo de se encontra-
rem de novo, antes ou depois.
– Talvez a próxima vez você venha aqui de férias! – sugeriu ele.
– Talvez seja. Com certeza não ao “Sunshine” de Costa Tegui-
se – respondeu ela e o abraçou.
Ramón estava à sua espera com o motor ligado, Maria correu
para ele, jogou-lhe os braços ao pescoço e o beijou na bochecha
com alegria pueril: – Aonde você vai me levar?
– Pensei em fazer uma volta da ilha e logo após ir à minha casa.
Organizamos um churrasquinho com meus coinquilinos e alguns
amigos. Você está a fim de ir?
– Um churrasquinho?
– Um barbecue – explicou ele.
– Parece-me um programa perfeito – aceitou ela.
De Costa Teguise prosseguiram para sul percorrendo estradas
secundárias pequenas e estreitas, que presenteavam panoramas ex-

46
capítulo 2

traordinários do litoral. Costearam algumas das praias mais lindas,


das quais Ramón conhecia nomes, características dos fundos ma-
rinhos e dos ventos. Avançaram até o ponto mais extremo, Punta
del Papagayo, e logo subiram de volta para norte atravessando a
área interior da ilha, a região de La Geria, famosa pela produção de
vinho. Pararam numa taberna para um copinho, malvasia e moscato
de sabor particular graças ao picòn, a camada de cinza lávica onde
crescem as vinhas. Após pararam nas cercanias de San Bartolomè
para admirar outra joia de Manrique, erguida no centro geográfico
da ilha. Uma escultura abstrata de um branco quase irreal, apoiada
numa base de pedra bruta e rodeada por cicas, surgia no meio de
uma rotunda ao centro de uma encruzilhada.
– Parece um robot gigante! – exclamou Maria. – É surreal!
Tratava-se de uma coluna de tanques hídricos de barco, postos
um sobre o outro simbolizavam o delicado equilíbrio na gestão da
água. Era o monumento aos campesinos, os camponeses de Lan-
zarote, dedicado à tenacidade e teimosia deles ao render fértil, e
cultivar, uma terra martirizada pelos eventos sísmicos. Na visão de
Manrique o agricultor é uma espécie de sacerdote, um xamã que faz
florescer a natureza e satisfaz as necessidades do homem.
Maria sorriu, pensou no trabalho cotidiano e constante do tio
Ciccio, que cuidava da sua horta como se fosse uma criatura vivente.
– Há obras de Manrique em muitas das encruzilhadas de Lan-
zarote – informou-a Ramón.
Referia-se às esculturas cinéticas do artista, os Wind Toys, es-
tudos de espaço e movimento para desfrutar o vento constante da
ilha, obras em ferro das formas geométricas, inclusive de grandes
tamanhos, que rodeiam, giram e oscilam.
Eu gostaria de levá-la à fundação César Manrique – continuou,
– porém já está tarde. Ali há muitas das suas obras, pinturas, murais.
É um museu de arte moderna, mas antes era sua casa particular,
construída, em parte, em cavernas de origem vulcânica. Quando
você voltar a Lanzarote, iremos visitá-lo.
– Quem sabe. Tomara. Talvez... – gaguejou Maria, de repente
realizou que aquele sonho teria cedo chegado ao fim.
Agora já estava escuro, do Campesino se dirigiram a oeste em
direção de La Santa, o vilarejo onde morava Ramón.
– Eu gosto de morar aqui, é um lugar tranquilo – disse. – Há
só pescadores e surfistas. E Otilia, a dona do mercado e de todos

47
maresia

os apartamentos em aluguel, por isso a chamam de Feudatoria. Ela


empresta dinheiro a quem precisa.
– É uma agiota! – exclamou Maria horripilada.
– Na cidade onde eu moro está cheio de gente assim. E se não
devolver dentro do prazo, com os juros devidos, torturam-lhe até
você se suicidar!
– Não, uma agiota não – riu ele. – E nem mesmo um banco,
não empresta dinheiro com taxas de juros e não penhora se você
não pagar. Dá dinheiro às boas ideias ou, ao menos, àquelas que
ela acha como tal. É à sua absoluta discrição. Dependendo do caso
decide os termos da restituição, se em dinheiro, se em serviços ou
em outro que se invente! É uma mulher muito criativa.
– E se você não devolver o que vai acontecer?
– Nunca ocorreu de algum não honrar sua dívida. Na comuni-
dade de La Santa há respeito demais por Otilia.
Adentraram-se num típico aglomerado urbano, uma mancha
branca cercada pelo moreno lávico, e chegaram às casas mais próxi-
mas ao oceano. Ramón abriu um portão azul que dava num acesso
onde havia umas bicicletas e, na frente, uma escada bastante íngre-
me. Entraram pela porta lateral com acesso direto a um amplo salão.
– Fica a vontade – disse ele.
Na sala tinha confusão, roupas espalhadas um pouco aqui e um
pouco ali, pranchas de surf e skateboard apoiados às paredes e ou-
tros objetos entre os mais diferentes. Maria, desde sempre atraída pe-
los tambores, aproximou-se de um apoiado numa base de madeira.
Deu um par de batidinhas na pele escura, ainda com traços de
pelo preto, e um fleumático “tum-tum” ecoou ao redor.
– Isso foi eu que fiz, é um atabaque, o tambor usado na roda
de capoeira – explicou-lhe Ramón.
– A Capoeira! – exclamou ela.
– Você conhece a capoeira?
– Oh, não! Ouvi falar disso hoje pela primeira vez, por Abram.
Ele me disse que é uma arte marcial brasileira e que, de vez em
quando, vocês se divertem em lutar!
– A capoeira não é um combate, minha querida! Ninguém per-
de, ninguém ganha. A capoeira se joga.
– Eu, ao contrário, entendera que era uma luta!
– Pois é, mas não somente. A capoeira é mais que uma coisa só.
– Ela é luta, é dança, é jogo, é brincadeira, é percepção, é ale-

48
capítulo 2

gria, é ritmo, é harmonia, é circularidade, é dialogo e muito mais...


siga-me, vou lhe mostrar uma coisa.
Entraram num quarto com cama de casal, um pequeno armário
e uma escrivaninha, onde eram colocados um computador portátil
e uma pilha de papeis. Uma cortina azul esvoaçava sobre a janela
entrefechada, por ali entrava a voz do oceano.
– Deixe aqui suas coisas, esse é nosso quarto. Há um pouco de
bagunça – desculpou-se ele.
– Ele disse “nosso quarto” – pensou Maria e encheu-se-lhe o
coração. A doçura daquelas palavras massageou as cicatrizes que lhe
deixara seu último “nosso quarto”, ainda avermelhadas e coçando,
mas no caminho de amadurecimento e esclarecimento. Sentou na
cama, fascinada com o ambiente novo.
Ramón, entretanto, botou entre as pernas um pau de madei-
ra com a base afiada e, alavancando sobre ele com um joelho, ar-
queou-o para si puxando-o com uma mão, a partir da extremidade
superior: – Essa é a verga – explicou. Com a outra mão puxou um
fio de aço, que partia da base, e o esticou por todo o comprimento
da madeira, depois o enrolou em volta da ponta, coberta com um
pedaço de couro, e enfim o amarrou ao redor do pau, com um cor-
dão enodado às extremidade: – E esse é o arame.
– É um arco! – observou Maria.
– É, mas um arco musical. Falta ainda a caixa de ressonância –
especificou ele.
Pegou uma casca de abóbora esvaziada e aberta de um lado, a
cujo fundo um cordão passava através de dois furos, e o encaixou
quase na base inferior do arco: – Essa é a cabaça.
– E eis aqui o berimbau – exibiu satisfeito o instrumento mon-
tado. – “Uma cabaça, um arame, um pedaço de pau” – epilogou
cantando.
– É um dos instrumentos mais antigos do mundo – explicou.
– Suas origens remontam mais ou menos a quinze mil anos antes de
Cristo no continente Africano. É um instrumento sagrado.
Empunhou-o com a esquerda e o colocou na frente do peito
com a abertura da abóbora voltada para si. Segurava-o com o dedo
mínimo, debaixo do cordão da caixa de ressonância, enquanto po-
legar e indicator apertavam uma grande moeda de cobre: – Esse é
o dobrão.
A outra mão, em vez, mantinha uma baqueta de madeira com

49
maresia

polegar, indicador e médio, e o mesmo médio, junto com o anelar,


agarravam o cabo de uma pequena cestinha de vime cheia de se-
mentes, com o fundo rígido tirado da abóbora: – Afinal a baqueta e
o caxixi. Agora tá completo.
Moveu a cabaça um pouco mais pra cima para o afinamento
e explicou: – Quando o berimbau chama, a roda vai se formar. Ao
chamado do seu toque os capoeiras se agrupam num círculo ao re-
dor da bateria de instrumentos e acompanham o som com a batida
das palmas. No interior da roda, dois a dois, a gente joga ao ritmo
do toque de sua excelência, o berimbau. Ele é o primitivo mestre,
ensina pelo som. Dá vibração e ginga ao corpo da gente.
Depois uma melodia nova, que em nenhuma ocasião Maria
ouvira, espalhou-se no quarto: Tch Tch Tim Tom Tom, Tch Tch
Tim Tom Tom, era o toque do São Bento Grande de Angola. Com
um movimento de polegar e indicador o dobrão renteava, puxava
ou se afastava do arame e modificava assim o efeito da baqueta, ob-
tendo umas variações. Numa alternância de tons estridentes, fecha-
dos e abertos, o ritmo acelerava marcado pelo som indeterminado
do caxixi, os braços dobrados de Ramón iam apenas para frente e
para trás, afastavam e aproximavam a ele o instrumento, seus de-
dos apertavam com mais ou menos força a moeda: – “Na roda de
capoeira todo mundo é igual, não importa quem você seja, quem
comanda é o berimbau. Ô lê lê Ô lê lê”– cantou.
Maria captou só as palavras capoeira e berimbau na estrofe,
suficientes a entender o laço indissolúvel entre o instrumento a arco
e uma arte que é “mais de uma coisa só”.
– Ramón – ouviu-se de repente uma voz. Um jovem em ma-
cacão chegou na porta: – Você está aqui tocando? Ali fora há um
“bando” faminto que está só à sua espera! – repreendeu-o. – Que
está à espera só de vocês – corrigiu-se pousando o olhar em Maria.
– Encantado señorita. Yo soy Jérôme – adoçou-se.
– Maria, muito prazer. Você tem que ser o coinquilino francês!
– Exatamente! Eu sou um dos dois J.
– O quê? Dois quê?
– Dois J – riu. – Venha, vamos, apresento-lhe o outro, é o ter-
ceiro companheiro de casa.
Dirigiram-se ao pátio, atravessando a sala e logo a cozinha. Ao
redor duma churrasqueira umas dezenas de pessoas, entre homens
e mulheres, brincavam e bebiam cerveja.

50
capítulo 2

– Ramón! – um eco surgiu para chamar o atrasado.


– Hola a todos, yo soy Maria – cumprimentou-se ela sacudindo a mão.
Reconheceu o rosto de alguém encontrado a noite anterior, os
outros se apresentaram por suas vezes.
– Eis aqui o outro J – disse em seguida Jérôme e apontou para
um cara ocupado no lançamento de três bolinhas.
– Olá, eu sou Jávier, seja bem vinda a este antro de loucos –
disse o malabarista sem interromper a execução.
Uma moça a convidou a beber algo e ela a seguiu dentro de
casa, até a geleira. Ao redor havia bibelôs esquisitos e os utensílios
de cozinha eram pendurados a uns pregos numa vitrina, como as
ferramentas numa oficina mecânica.
– Os brinquedos de Ramón – ironizou Esther. A mulher se
movia à vontade, intuía-se fosse da casa. Era valenciana, e ela tam-
bém ficara em Lanzarote por amor ao surf.
Ali no pátio, entre o cascalho preto e marrom, apesar do escu-
ro se distinguiam esculturas espalhadas aqui e acolá.
– São todas obras construídas com materiais naturais ou reci-
clados – explicou a moça enquanto a acompanhava numa volta pelo
singular museu ao ar livre. Numa esquina estavam posicionados em
desalinho, em horizontal, uns blocos de cimento branco sobre os
quais se apoiavam outros menores e escuros. Maria riu, parecia-lhe
uma lagoa habitada por patinhos. Ao lado, rostos esculpidos na pe-
dra se erguiam sobre algumas bases de rocha lávica e, apoiadas a
uma parede, duas tábuas de madeira criavam uma figura humana
dos cabelos de ferro e dos olhos pintados. E, depois, ainda pedras,
encostadas uma à outra, a criar diferentes figuras, fragmentos de es-
pelhos transformados em relógios, lâminas que emitiam sons, e um
rinoceronte montado com recortes de madeira de diferentes formas.
Esther e Maria voltaram ao grupo, um prazeroso perfume de
assado se espalhara no ar. Na mesa havia inclusive arroz branco, fei-
jão preto e numa tigela menor a farofa, farinha de mandioca torrada
e temperada. Ramón se aproximou de Maria, deu-lhe um beijo no
pescoço e lhe sussurrou: – Comida brasileira, minha preciosa.
Ele encheu dois pratos e juntos se aproximaram da grelha,
Jérôme estava cortando a primeira carne cozida. Assim pela noite
toda, passada entre um bocado de assado ardente e um gole de
cerveja bem gelada, a falar de pranchas, de roupas de mergulho, de
ventos, de países distantes. Apesar de se fadigar ao introduzir-se

51
maresia

nos discursos, Maria se sentia à vontade. Ouviu contos de viagens


na Galizia, na Austrália, no Brasil, na Indonésia a fim de perseguir
as ondas, evasões de vidas rotineiras. De vez em quando Ramón se
aproximava dela para lhe fazer uma caricia, para se assegurar que
estivesse bem, mas ela não somente estava bem, ela estava feliz. De
repente lhe voltou à memória Alessandro e julgou duras demais suas
avaliações. No fundo ela mesma se acostumara a certas situações,
sem pestanejar, e precipitara no vórtice da cotidianidade, enraizada
nas suas inseguranças, inerme diante de seus próprios sentimentos.
Nem mesmo ela o amava mais e, como ele, não tivera a cora-
gem de abrir os olhos. Ficara cega, apoiada na bengala do costume,
sem ir além, sem alguns passos na frente. A imagem da moça do
nariz proeminente perdeu então os cabelos de Medusa para ganhar
uma angélica auréola, de inimiga a elevou a sua salvação, porque se
ela não a tivesse encontrado naquela cama, nunca teria tido a cora-
gem de acabar um relacionamento já desgastado. Posou o olhar em
Ramón e o viu como uma dádiva divina, chegada a compensar a
humilhação sofrida e a transformar aquela porta fechada à chave de
entrada em saída do inferno.
– Vamos dormir, minha preciosa – ouviu o sussurro de Ramón
às suas costas. Maria se virou, levantou levemente a cabeça e fitou
o cinza-verde dos seus olhos. Fez-lhe uma carícia, com um dedo
seguiu, a partir da fronte, a linha do nariz e parou nos lábios, uma
carência tátil, para esculpir na memória seu perfil. Estreitou-o contra
si e abandonou a cabeça no seu peito mulato, tornado ainda mais es-
curo pelo sol do oceano. Foi uma longa noite de prazer e paixão, de
caricias e suaves palavras sussurradas. Ficaram acordados para gozar
um do outro até o fim, para não perder nem um minuto das últimas
horas de amor. O sol surgiu, a luz filtrada das persianas azuis avisou
Maria do fim da noite e, junto com ela, do sonho que estava vivendo.
Ramón a acompanhou ao aeroporto, durante o caminho a
olhava e sorria. O rosto de Maria revelava o pesar de deixar a ilha e,
no momento da despedida, sentiu um nó no estômago. As mãos de-
les se apertaram, os dedos se acariciaram e um beijo suave concluiu
quase trinta e seis horas de amor.
– Não esqueça de mim, minha preciosa – gritou-lhe Ramón
enquanto ela passava o controle de segurança para o embarque.
– E você não se faça esquecer – respondeu ela do outro lado
do metal detector, com o coração cheio de um sentimento novo.

52
CAPÍTULO 3

Nos dias seguintes à sua volta de Lanzarote, Maria pensava só


em Ramón. De noite e de dia a imagem dele lhe roubava sono e des-
canso e lhe invadia cada campo da sua imaginação. Não conseguia
mais ler, nem se concentrar em nenhuma atividade, cada detalhe
a arrastava a esplêndidos sonhos sem sono onde ele, protagonista
principal, chegava do mar e aproava nas margens do Tirreno em
busca dela, Maria, única mulher amada e desejada. Quando volta-
va a casa à noite, após o trabalho, perdia-se fantasiando diante das
chamas da lareira e, antes de se deitar, olhava e olhava de novo no
computador as fotos da ilha, fixava-se naquela única onde estavam
juntos e aumentava o tamanho de visualização até ter na frente só os
olhos dele, cujo cinza-verde se perdia no desfoque. Guardava no seu
coração uma satisfação que a fazia dócil. Em casa os pais a observa-
vam e trocavam entre eles olhares interrogativos, há muito tempo
não viam a filha assim tranquila. No escritório parecia tivesse per-
dido o ar gozante e combativo, falava pouco e pouco se queixava.
– Maria, o que está acontecendo com você? Tá com algum
problema? – perguntou-lhe Laura depois de um par de dias de quase
mutismo.
– Nada, estou só um pouco cansada e nervosa – respondeu.
A colega a olhou interrogativa: – Você não parece nem um
pouco nervosa considerado que, desde que voltou, não brigou nem
mesmo uma vez ao telefone com Ettore, tampouco com Fabio. Pa-
rece um cordeirinho resignado-se ao matadouro, o quê dá vontade
de rir, se tenho que ser sincera.
Maria sorriu, mas não replicou às suas provocações carinhosas.
Ainda não contara a ninguém o que acontecera em Lanzarote, que-
ria guardar a lembrança só pra si, como se falar disso pudesse, de
algum modo, roubar-lhe aqueles momentos. Quando o perfume de
Ramón, sobre sua pele e seus vestidos, dispersou-se com o passar
dos dias, também o estado de aparente quietude esvaneceu. Come-
çou a sentir de novo sede. E fome. Uma irrequietude esquizofrêni-
ca se apossou dos seus gestos, sua voz assumiu um esquisito tom
baixo, bastante lamentoso e contido, que porém se tornava agudo e

53
maresia
histérico por ninharia: uma palavra considerada a mais, uma caneta
movida da sua escrivaninha, uma malha lavada por sua mãe sem
seu consentimento. Há duas semanas entrava e saía do escritório
na hora estabelecida, Ettore, desde que ela voltara ao trabalho, con-
tara os dias. Observava sua “escrava” disciplinada e submissa, até
mesmo parara de avançar pretensões. Ruminava sobre o que tivesse
acontecido no workshop e no período em que ele faltara: – Deve-se
ter finalmente convencido de quantos problemas tem uma empresa
e que, se a gente trabalha do jeito certo, todo mundo leva benefício
disso – comentou satisfeito com Fabio. Essa mudança, porém, se
o fazia emproado na frente dos seus colaboradores, afligia-o em
outros aspectos, mantidos bem escondidos por trás da máscara do
manager chefe. Maria perdera a verve que levava cada manhã a luz
no escuro porão e que lhe fazia começar o dia de bom humor. Tor-
naram-se monótonas as horas de escritório sem dever repreendê-la,
sem suas observações e seus conselhos sobre o trabalho a fazer, sem
poder desabafar a pequena e sutil obsessão de controlar seus mo-
vimentos, que lhe presenteava um brio vital. Em alternativa Maria
aumentara as pausas, curtas, mas mais frequentes. De fato, começa-
ra a fumar como uma fumadora verdadeira, daquelas que acordam
de manhã e acendem o primeiro cigarro e fumam o último antes de
se deitar. Nunca fora uma fumadora inveterada, um cigarro de vez
em quando, alguns baseados em companhia, mas nada mais. Esse
novo hábito fez sua mãe chorar e seu pai enraivecer, mas ela ficou
inteiramente indiferente. Saía pouco e não parava mais na cidade
para algum evento ou mesmo só para a movida1 noturna nos bares.
Na verdade Maria se entediava, não pensava em outra coisa se não
em como rever Ramón e sonhava com o próximo encontro. Porém
ele não se fizera presente, nem por telefone, nem por e-mail. Revivia
na mente as situações passadas e sentia que qualquer coisa havera
entre eles, fora sincera. Mas por que ele não a procurava? Pergunta-
va-se abatida e impaciente. Mesmo só uma mensagem lhe teria sido
suficiente a entender que não passara na vida dele como qualquer
outra, e ao invés disso nada, silêncio total! Decidiu-se, então, enviar-
-lhe um sms pra saber como ele estava e para cumprimentá-lo. A
partir daquele momento não se separou mais do celular. Trepidava

1. Palavra espanhola de recente introdução no léxico italiano, para designar a in-


tensa e vivaz vida artística e cultural da noite, própria dos centros urbanos.

54
capítulo 3
a cada toque e a cada bip, mas era sempre outra pessoa. No dia
seguinte, quando perdera cada esperança, chegou a resposta tão es-
perada, num misto de português e italiano: “Seu corpo ainda está no
meu corpo. Até breve”. Depois de ter consultado google translate e
apurado o conteúdo exato do texto, Maria voou ao sétimo céu e ali
parou. Voltou-lhe a alegria e o sorriso e, ao mesmo tempo, diminu-
íram os cigarros e aumentaram as saídas.
Um domingo de manhã de final de fevereiro, em que estra-
nhamente acordara cedo, a mãe lhe pediu para acompanhar Vovó
Quinota no habitual passeio na praia, ela estava empenhada em fa-
zer os fusilli2. Eram a sua especialidade, os preparava uma vez por
mês e seu irmão Ciccio e família eram convidados fixos. Tinha uma
habilidade inata em enfiar a massa macia na agulha de tricô e uma
mestria particular em enrolá-la, Maria a olhava encantada.
– Eu não sei de verdade como temos que fazer com Vovó!
Não fala, mas é teimosa como uma mula – desabafou Rosa com
a filha. – Parece-lhe possível que uma mulher de noventa e cinco
anos, que mal consegue andar, saia com este frio pra ir à beira mar?
Tentei explicar-lhe isso, mas nada, olhe-a, já se levantou da cadeira!
Maria virou o olhar para a bisavó e sorriu. Sua tenacidade a es-
pantava: – Só não apoiá-la mais e está feito! Pois ela sozinha não sai.
A mãe a olhou divertida: – E você acredita de verdade que ela
não o faça? Acha que sou tão estúpida de não ter pensado nisso?
Tentei mesmo, sabe? Mas, minha filha, às nove em ponto de cada
domingo aquela mulher já está na porta de casa e, se ninguém a
acompanha, sai sozinha.
Rosa suspirou: – Melhor ir ao jardim e colher alguma flor, tem
que haver umas prímulas no canteiro redondo e talvez um par de
anêmonas. Pelo menos lhe poupamos esse esforço.
Maria seguiu as indicações da mãe, compôs um buquê roxo
e branco e depois voltou a casa para pegar a bisavó, que estava à
espera dela com o capote na mão, apoiada na bengala. Levantou um
braço para entrelaçá-lo com aquele da neta, acenou os primeiros
passos, pequenos e incertos, e com calma atingiram à beira. O mar,
agitado por um forte Mistral, reduzira a praia notavelmente. Quino-
ta, envolvida num xale de lã para se proteger do vento, parou onde

2. Massa fresca de ovos, tradicionalmente feita enrolando-a em forma de espiral


numa agulha de tricô.

55
maresia
chegava a espuma, desabotoou o capote e, com delicadeza cerimo-
nial, tirou o longo colar de cochas que usava sempre ao pescoço.
Colocou-o numa palma, apoiou sobre ela a outra e juntou as mãos.
Em seguida as agitou para frente e para trás em modo circular, a
fim de produzir um som modulado. A mulher, de olhos cerrados,
acompanhava o tique-taque das conchas com um canto a boca fe-
chada, suave e melodioso, um canto sem palavras que “falava” de
tristeza e de esperança, de temor e de coragem. Maria teve um frê-
mito, uma profunda comoção a permeou e os olhos se encheram de
lágrimas. Esquecera aquela melodia, há anos não participava mais
do ritual, demais, considerou. Parecia-lhe um mantra que Quinota,
como em transe, repetia sem uma desafinação, uma oração confian-
te voltada às águas do mar, um chamado desesperado em direção
ao horizonte. Maria tinha a sensação de estar dentro daquelas notas,
deixava-se transportar por elas como por uma corrente. Sentiu algo
de não captável fluir no sangue, encher-lhe a alma na sua inteireza
e uma sensação de paz a envolveu. Os pensamentos não lhe faziam
mais mal, também a ansiedade se dissolvera, como por encanto,
transportada pelo vento quem sabe onde. Quando o canto acabou,
as mãos pretas e tremulantes se aproximaram daquelas brancas e
firmes da neta, Quinota percebeu a emoção no rosto de Maria e lhe
fez uma caricia na bochecha. Agarrou uma parte das flores e com
os olhos a convidou a imitá-la. As duas mulheres, com solenidade li-
túrgica, lançaram na espuma prímulas e anêmonas e ficaram a olhar
o roxo e o branco das pétalas se confundirem entre as ondas, para
depois se dispersarem no cinzento do mar de inverno.
– Vovó, tinha esquecido tudo isso – disse Maria enquanto su-
biam a praia de volta. – E talvez nunca percebera quanto fosse bom.
Se amo menos você pudesse explicar-me o sentido!
Quinota se virou pra ela e sorriu. Estava feliz de ouvir aquelas
palavras.
– É claro que se trata de uma oferenda ao mar, mas é uma
coisa que inventou você ou pertence a uma tradição do seu país? A
propósito, sabe que em Lanzarote conheci um homem brasileiro?
Do Rio de Janeiro, como você.
A bisavó emitiu um som de espanto.
– Na verdade não apenas o conheci, nós nos amamos! – con-
fiou-lhe Maria. – E foi um amor tão lindo ao ponto de ser como-
vente! Ficamos juntos só dois dias, contudo eu sempre penso nele,

56
capítulo 3
remoo sem parar sobre como fazer para revê-lo.
Maria contava descontroladamente, como sempre com Vovó
Quinota. Eram monólogos curativos, interrompidos só pelos acenos
da sua interlocutora, muda, mas perfeitamente capaz de ouvir e cap-
tar sentimentos e emoções atrás dos gestos e das gradações da voz.
– Oh, Vovó! Ele desenhou cada curva do meu corpo, e depois
a contemplava, como fosse uma obra de arte. E ele é mesmo lindo
como o sol! Pele escura, olhos cinza-verde, corpo escultural... é um
surfista, sabe? E também arquiteto, e artista, e joga capoeira.
Quinota fez um gemido, e uma lagrima clara desceu sobre sua
pele escura.
– Vovó! – exclamou Maria. – O que está acontecendo com
você? Conhece a capoeira e essa lembrança lhe faz sofrer?
A cabeça da mulher se moveu para frente: – Sim, sim.
Conhecia a capoeira, mas desde que chegara à Itália, oitenta
anos antes, não ouvira nunca mais pronunciar aquela palavra.
Maria se virou e a apertou entre seus braços: – Não aguento
suas lágrimas!
Tirou do bolso um lenço e lhe enxugou o rosto: – Se mamãe
vir você nessas condições, quem sabe o que vai pensar! E, depois,
ela vai brigar comigo. Eia! – exortou-a. – Não faça isso, faz eu me
sentir culpada!
Chagando ao portão de casa Quinota se recompôs, mas seus
olhos eram avermelhados e ainda reluziam. Abriram a porta e res-
soou a voz de Rosa: – Tudo bem? Por que demoraram tanto assim?
– Tudo bem mamãe, só um pouco de frio – respondeu a filha
com tom chateado. Desde que voltara a morar em casa, tudo de
Rosa a aborrecia: o tom lamentoso, a resignação no olhar, as chatas
recomendações, os banais conselhos, até mesmo seu jeito de rir dos
estúpidos motejos do pai. Irritava-a que ela tentasse investigar na
sua vida, que desse ordem nas suas coisas, que cada manhã lhe per-
guntasse o que ela queria para o jantar. A maioria das vezes tenta-
va controlar-se e se arrependia quando exagerava, incubava dentro
uma cega raiva a seu respeito, mas lhe doía porque, apesar de tudo,
amava-a intensamente. Ajudou a bisavó a tirar xale e capote, en-
tretanto a mãe lhe lembrou de acompanhá-la ao banheiro antes de
acomodá-la na cadeira de balanço. Maria atendeu aos pedidos, em
seguida se colocou na frente da lareira para se aquecer um pouco,
sentia-se congelada. Pensava e repensava na reação de Quinota ao

57
maresia
ouvir a palavra “capoeira”. Por que ela chorara? Talvez, quando era
criança, ela também “jogava”, ou alguém da sua família de origem.
Quem sabe quais lembranças estavam escondidas atrás daquelas lá-
grimas! Considerou que a vida da quase centenária mulher tinha um
buraco escuro, às vezes refletira nisso, porém não descera em pro-
fundidade, nunca fora além da história transmitida em família. Sua
curiosidade se exaurira junto com sua meninez, estava concentrada
demais na sua vida, na busca da sua autonomia, da sua liberdade... e
Vovó Quinota sempre fora ali, como algo de certo: sua pele escura,
suas esquisitas joias, os olhos perscrutadores, o sorriso triste, seus
silêncios. De repente ela teve uma ideia: e se lhe tiver mostrado al-
guns vídeos no youtube? Certamente a teria deixado contente, já já
indagou: – Ei Vovó, perguntava-me se gostaria de ver alguns vídeos
de capoeira, têm muitos na internet.
A mulher anuiu com a cabeça e bateu as palmas com alegria e
então Maria, satisfeita pela intuição, subiu depressa as escadas para
pegar no quarto o computador portátil. Na tela compareceram ce-
nas de pessoas de calça branca dispostas em círculo, no meio do
qual dois jogadores se encaixavam sem nunca se tocar. Quinota era
visivelmente feliz, seguia o ritmo da música batendo as palmas e de
vez em quando seus olhos reluzentes se moviam para a neta, em
sinal de agradecimento.
– Se você quiser posso mostrar-lhe inclusive umas fotos do
Rio de Janeiro, assim, só para lhe lembrar da cidade onde você nas-
ceu – propôs-lhe Maria. Mesmo aí a mulher moveu a cabeça para
frente, o coração lhe batia forte enquanto mergulhava no seu passa-
do. Chorou já à primeira imagem, com o Cristo Redentor de costas
e o Pão de Açúcar cercado pelo azul do oceano. Estendeu os dedos
na tela para acariciar a foto, assim como fazia com aquelas dos seus
filhos mortos.
– Porém não faça assim, Vovó. Eu achava que a teria feito
feliz, não que a teria feito chorar!
Então a bisavó lhe agarrou uma mão e a apertou, implorava-a
para continuar apesar das lágrimas, não conseguia retê-las, era a pri-
meira vez que recebia um presente tão precioso.
Quinota sabia que Maria era especial, diferente de todos os ou-
tros netos e bisnetos, sempre soubera disso, desde o domingo de sol
em que nascera. Vira-a crescer, perder-se em longas contemplações
do mar, lutar contra os pais para afirmar sua autonomia e quebrar os

58
capítulo 3
esquemas da tradição familiar. Sempre reconhecera nela o gene da
rebelião, aquele que se portam atrás os descendentes dos escravos
africanos. O seu já adormecera, anulado por uma viagem distante
no tempo e no espaço, por uma vida feita de silêncios e de desejos
escondidos.
Rosa, da cozinha, reparou no pranto de Quinota: – Oh, bom
Deus, Maria! O que está fazendo? – ralhou com ela. – Por que Vovó
está chorando?
– Estou apenas mostrando-lhe umas fotos do Rio de Janeiro!
Acho que esteja comovida, são lágrimas de alegria, suponho.
– Por acaso quer provocar-lhe um infarto? Esqueceu a idade
que tem? O coração dela é fraco, certas emoções poderiam fazer-lhe
mal. Às vezes você me parece tão boba, superficial...
– Mas mamãe... – respondeu com o rosto abatido, sem arti-
cular algumas frases. Sentiu-se ofendida da repreensão, a mãe não
considerara sua boa fé e nem mesmo tentara entender seu gesto.
– Melhor, em vez de fazer besteira, venha-me ajudar! Força,
sus! Ponha a mesa – ordenou-lhe.
Pouco depois chegou o tio Ciccio com a esposa Elisa e os fi-
lhos, a pequena Mariella e Eugenio, por todos chamados de Genio,
com o qual Maria tinha uma relação especial. Brincando se definiam
“primos gémeos”, porque nasceram no mesmo ano a poucos dias
de distância. A chegada dos familiares dissolveu a tensão em casa, e
ela voltou alegre.
– Priminha querida! – exclamou Genio abraçando-a. – Entre
uma coisa e outra a gente não se vê desde sua viagem, como foi seu
final de semana em Lanzarote? Conta-me algo, vamos lá!
– Uma fábula! – respondeu ela com ar sonhante. – Depois va-
mos dar um passeio, tenho algo para lhe contar – piscou.
O almoço foi rico e prazeroso. Os fusilli com o molho simples
de tomates pelados feitos em casa, os cicoli3, o bacalhau com os pipi
arrigliati4, as conversas. Maria comeu muito e com gosto, a alegria
na mesa lhe estimulava o apetite: tudo graças ao tio Ciccio, entre

3. Ou “ciccioli”, ou “scarafuogli” em dialeto da Calábria, são as sobras da fervura


de todas as partes do porco não usadas, juntas com umas gorduras, ou seja a ba-
nha de porco, que se derrete na fervura e faz que se possam passar.
4. Dialeto da Calábria, é um prato típico, pimentões vermelhos compridos, resse-
cados e fritados em azeite quente ficando crocantes.

59
maresia
todos os irmãos da mãe era o seu preferido, capaz de fazer emergir
o lado melhor das pessoas que ficavam ao seu redor. Entre uma
zombaria e outra, o argumento principal de conversa foi o pedaço
de terra herdado por Elisa à morte do pai, cerca de dez anos antes.
Era o lugar onde ela crescera, mas o casebre estava quase em ruínas,
desgastado pelo tempo e pela falta de cuidado. A construção levava
os traços de um passado fastoso, a história de uma família de ricos
donos de terras depauperadas pouco a pouco, uma geração depois
da outra, que vira o sítio amear-se e a casa ceder um pouco por vez.
– Vale a pena pra você vender – sugeriu Carmine, – são apenas
taxas a pagar.
– É que sinto muito – abriu-se Elisa, – é como se renegasse
minha família!
– Vamos lá, sus... – inseriu-se Ciccio. – Carmine está certo.
Não temos o dinheiro para uma reforma e, mesmo querendo, acho
que nenhum dos nossos filhos esteja disposto a confinar-se ali em
cima. Seja razoável!
– Mas quem vocês querem que compre uma casa em ruína sobre
uma colina perdida entre o mar e a montanha? – perguntou Maria.
– Sempre a mesma derrotista! – comentou seu pai.
– Não é derrotismo – replicou ela, – é concretude!
– Pensando bem, a posição não é tão ruim, um quarto de hora
da cidade e um quarto de hora do mar – disse Ciccio.
– Sim, claro, um quarto de hora depois de meia hora de selva
para chegar à estrada estatal! – apontou Maria.
– Em cada caso há um panorama maravilhoso – acrescentou
Elisa, – do alto se vê o Tirreno todo!
A discussão continuou entre a alternância das diferentes opi-
niões, vender ou não vender, alugar ou reformar, sem chegar a uma
conclusão.
Após o café Genio e Maria saíram para dar um passeio. Na beira
mar, onde as intimidades afloram num jeito mais simples e natural.
– Você não vai acreditar no que aconteceu comigo em Lanza-
rote! – disse ela apenas longe de ouvidos indiscretos.
O tom e a expressão usados deixaram intuir a Genio outra das
extravagâncias da sua prima: – Diga-me, diga-me! – exortou-a entre
o curioso e o gozante.
Sem levar em conta a expressão dele, Maria se lançou num
apaixonado conto sobre Ramón e a ilha, sem negligenciar detalhe

60
capítulo 3
algum. Confidenciou-lhe estar apaixonada por ele e sua intenção de
alcançá-lo logo. O vento soprava, mas era mais calmo do que pela
manhã. Os dois andavam para sul na areia úmida e, ao passar, deixa-
vam pegadas nítidas ao lado daquelas das gaivotas. Genio ouvia com
o rosto espantado, achava-a uma situação paradoxal: – Maria – sus-
pirou com tom de repreensão, – você se deixou comer por dois dias
seguidos por um galo de um galinheiro que nem mesmo ejacula, e
que claramente não lhe procurou mais... e você? Apaixonou-se por
ele. Razoável, me parece! – concluiu sarcástico.
– Em primeiro lugar não use a expressão “deixar-se comer”,
porque eu não sofri nada, participei de jeito ativo tanto quanto ele.
Gozamos também nós mulheres, sabe? – provocou-o.
– Tá bom, tá bom – cortou ele. – É que vocês mulheres são as-
sim, apaixonam-se pelo mais gato, que antes faz com que acreditem
sabe-se lá no que e logo foge. E talvez ao lado de vocês há um ho-
mem normal que espera só amá-las, formar uma família, ter filhos.
– Quantas besteiras está dizendo! – enraiveceu ela. – Uma série
de banalidade que, entre outros, cabem só à sua vida pessoal.
Referia-se à longa história de amor de Genio com Loredana,
começada quando eram adolescentes e terminada depois de quator-
ze anos, quando ela perdera a cabeça para um colega de universida-
de, bonito e danado, o qual a deixara, em seguida, entre lágrimas de
amor e de pesar.
Discutiram animadamente por uma boa meia hora, Genio ten-
tou convencer a prima da absurdidade da coisa: – Deixa que seja
ele a procurá-la – sugeriu-lhe enfim – porque, se não o fizer entre
breve tempo, é inútil que você se martela o dia todo, será um claro
sinal de indiferença.
O primo não estava errado, pensou Maria, mas seguir suas ad-
vertências significaria renunciar ao que ela achava um grande amor,
e não queria fazê-lo.
Nos dias a seguir a história de Ramón foi repetida e ouvida
várias vezes. Milena, Anna, as colegas, os amigos da cidadezinha e
aqueles da cidade. A todo mundo Maria pedia conselho. Entretanto,
as temperaturas subiam e as primeiras flores desabrochavam nas
árvores, mas ele ainda não a procurara.

A quinta-feira Santa trouxe de volta às suas casas uma parte

61
maresia
dos filhos emigrados. Na Páscoa, ao contrário do Natal, as férias
se contavam em pouco mais de um final de semana e nem todo
mundo tinha o apego, ou a possibilidade, de enfrentar viagens lon-
gas e caras por poucos dias. Os feriados representavam, seja como
for, um momento de extrema alegria, porque as ruas e os bares da
cidadezinha se repovoavam. Entre os amigos de Maria havia quem
tinha um bom trabalho e um bom salário e não tinha nenhuma
vontade de voltar; havia quem, ao contrario, encontrava dificuldade
para chegar ao final do mês nas custosas cidades do norte. Havia
quem vivia de nostalgia em lugares e empregos odiados, quem até
mesmo fora fazer pesquisa universitária no exterior. Voltaram in-
clusive Anna e Francesco, acompanhados pelos próprios cônjuges,
e a casa se encheu de bom humor. Rosa estava eufórica, nos dias
anteriores se preocupara em limpar a fundo cada quarto, preparar
doces e cada tipo de iguarias para os filhos distantes. Carmine tam-
bém estava ansioso à espera da volta deles. Alguns dias antes de
chegarem, discutiram a partição das camas: Maria teria cedido a sua
ao marido da irmã e teria dormido no sofá da cozinha, difícil era
decidir onde colocar a nova namorada de Francesco.
– Adicionamos a caminha àquela de Fra’ – propusera Maria,
considerava-a coisa óbvia.
– Mas o que você está dizendo? – rebatera Rosa. – A menina é
a primeira vez que vem na minha casa e é sob minha responsabilida-
de e não pretendo me botar numa posição desagradável a respeito
de seus pais.
– Mamãe, quero que você repare em que a “menina” é uma
quarentona de Milão, advogada, que certamente não pede permis-
são ao seus pais para ir de férias com o namorado, que, entre outras
coisas, em junho mudará para a casa dela. Se você lhe fizer encon-
trar um quartinho com uma triste cama de solteiro, vai pensar de ter
arrumado uma sogra retrógrada de verdade.
Naquele caso Carmine também concordava com a filha, mas
apenas porque se tratava do filho macho, nunca permitira a Anna
de dormir com Guglielmo antes do casamento. Chegaram, porém, a
um acordo que contentava todo mundo e mantinha pelo menos as
aparências: sim a uma cama a mais no quarto, não à cama de casal.
Os dias de festa passaram rápidos e a terça-feira após a Pas-

62
capítulo 3
quetta5 Maria se encontrou a chorar no teto de casa, agachada numa
posição fetal que exprimia por inteiro sua fragilidade. Fora todo
mundo embora, no mesmo dia, e ela ficara ali como de costume,
sempre mais sozinha, longe da proteção do seu bando: o irmão, a
irmã, todos os afetos considerados uma certeza. E ela por sua vez?
O que diabos estava a fazer? Por que ainda não arrumara as malas?
O que a detinha? Amava sua terra, com suas contradições, contínua
fonte de irrequietude e de estímulo ao pensamento, mas ao mesmo
tempo a odiava, porque morar na Calábria era de verdade cansati-
vo. Contudo, uma dúvida a perseguia: tivera a coragem de ficar ou
lhe faltara a coragem de ir? Maria tentava responder-se, dialogando
consigo, invocando às vezes o mar.
A imagem de Ramón se materializou no horizonte, como um
holograma. No domingo de Páscoa lhe enviara uma mensagem de
parabéns, mas ele não se dignara nem mesmo a responder. Pror-
rompeu em lágrimas porque se sentia estúpida, obcecada por um
sentimento de adolescente, pouco concreto, o tormento por um
homem mal conhecido e que idealizara. Não era talvez a projeção
maníaca de uma alma carente de amor? Não era, na realidade, toda
uma sua construção? Pensou nele como à “flor que não dura mais
do que a sombra dum momento” duma poesia, há pouco lida, de
Fernando Pessoa, aquela onde invoca a flor que nunca viu se não
“onde não sou senão a terra e o céu”. Assim como um daqueles
sonhos que esvanece na madrugada e deixa crer que tenha sido, ao
contrário, realidade. Aquele pensamento poético foi como uma in-
tuição, sugeriu-lhe a ideia que, no fundo, a chave está na perspectiva
da qual se olha uma coisa. Portanto, apenas uma obsessão ou uma
maravilha destinada, que precisa de mais tempo para ser atingida?
Maria suspirou: – Seja o que for, deixará de ser o primeiro pensa-
mento ao meu acordar e o último antes de me deitar – propôs-se
enxugando-se os olhos.
Assim, a partir daquele dia, a figura de Ramón foi empurrada
lentamente numa gaveta, até que parou de procurá-la nos sonhos. Já
chegara a primavera, geradora de despertares, e mãe terra emanava
novos fluídos de energia, novas vibrações, com seus perfumes e

5. Palavra popular para indicar o dia depois da Páscoa, a Segunda-feira do Anjo,


em Itália dia de festa geralmente passado com família e amigos fazendo excursões
e piqueniques ao ar livre.

63
maresia
suas cores, intensas e vivazes.
Num domingo de sol, Maria se levantou de manhãzinha para
dar um passeio no campo junto com os amigos da cidade. Uma
amiga, de uma cidadezinha próxima, veio buscá-la de carro e juntas
se dirigiram ao encontro marcado embaixo de casa de Milena, para
depois prosseguir todo mundo junto para a Sila6. Durante o cami-
nho Maria foi raptada pela paisagem ao redor: mais uma vez ficava
inerme frente ao encanto da mãe natureza, assim generosa com a
sua terra. Do azul do Tirreno que brilhava embaixo dos quentes
raios de sol se encontrou entre as montanhas cobertas de verde,
em todas suas tonalidades e nuances. O amarelo à margem da rua,
das azedas antes e, subindo de altitude, das giestas, acompanhou a
viagem até um prado ao lado do Lago Arvo. Ali era um conjunto
de manchas de cor: o vermelho das papoulas, o roxo das violetas, o
branco e o lilás das margaridinhas. Uma pintura rara, dom especial
da biodiversidade. Maria se sentiu renascer ao respirar fundo o ar
limpo e refrescante da Sila.
A comitiva era composta por uma quinzena de pessoas, dividi-
ram as tarefas a fim de organizar a grelhada e ela se juntou à expedi-
ção no bosque para colher a lenha. Encheu os pulmões do perfume
dos pinheiros, dos abetos seculares e da resina sobre os troncos e,
depois de tanto tempo, redescobriu o prazer de fazer xixi ao ar livre,
com as folhas aciculares no terreno que espicaçam as coxas. O dia
passou em companhia de um violão, um par de pandeiros e de um
acordeão, e o vinho e a carne assada alimentavam as energias para
cantar e dançar ao ritmo da tarantella7. O pôr do sol foi um espetá-
culo de graça sublime, uma luz avermelhada ao horizonte penetrou
as nuvens e se refletiu nos franzidos do lago, cujas dóceis águas se
tornaram preciosas de quentes nuances índigo. A uma certa altura
duas silhuetas começaram a mover-se, entrelaçando-se sem nunca
se tocar, e Maria, naquele balanço, reconheceu a capoeira. Não lhe
pareceu um jogo atlético como aquele dos vídeos na internet, mas
6. É uma vasta área montanhosa da Itália meridional, na zona centro-setentrional
da região Calábria, que se estende através das províncias (divisões administrativas
de uma região italiana) de Cosenza, Crotone e Catanzaro, e que é caracterizada
pela presença de vários cumes montanhosos, planaltos, espessas zonas cobertas
de bosques e lagos artificiais. É dividida (de norte a sul) em Sila Grega, Sila Gran-
de e Sila Pequena.
7. Dança popular da Calábria.

64
capítulo 3
era quase certa de não errar. Aproximou-se para ter confirmação e
descobriu assim a existência de um grupo de capoeira em Cosenza.
Uma das duas silhuetas, Anna, convidou-a a provar o movimento
básico, a ginga, da qual se originam todos os outros movimentos
de ataque e de defesa. Seguindo as indicações, Maria posicionou a
perna esquerda flexionada na frente, a outra esticada para trás e o
braço direito dobrado e levantado.
– Leva a perna direita para frente de um lado e já desloca à
esquerda para trás e depois para frente, e assim por diante – expli-
cou-lhe Anna.
– E acompanha o movimento com os braços – acrescentou
Michelangelo, o outro jogador. – Você tem que alterná-los em opo-
sição às pernas, para proteger o rosto.
Os dois mostraram a execução, Maria os seguiu e logo após
alguns passos também seu corpo balançava de um lado para outro,
com cadência rítmica. Entusiasmou-se e aceitou o convite para um
treino de prova na terça-feira seguinte. Por toda a viagem de volta
pensou no estranho poder das coincidências e no encontro com
Ramón. Ele lhe deixara algo de muito mais importante do que uma
simples lembrança duma esplêndida história de amor: o desejo de
descobrir um mundo que lhe fluía no sangue e que, por ela, signifi-
cava a reapropriação de uma parte de si. O Brasil, o mundo de Vovó
Quinota, desde sempre ali, silente, à espera de ser explorado.
A semana seguinte, como estabelecido, ela foi à aula de capo-
eira. O grupo, formado por pessoas de várias idades, deixaram-na
imediatamente à vontade e ela entrou até na roda, mesmo conse-
guindo apenas fazer algumas desajeitadas flexões. No final do treino
estava destruída, mas feliz e cheia de energia. Anna e outras três
meninas a acompanharam para pegar o último trem, o das vinte e
três. Voltou a treinar ainda na quinta-feira, mas avaliou que estava
muito estressante para ela. Depois de um dia de trabalho tinha que
chegar à academia com os meios de transporte, vadiar até a hora
da aula e depois esperar sempre uma carona até a estação, decidiu
então adiar a inscrição no grupo até que tenha voltado a morar na
cidade. Estava maturando, na verdade, um plano para separar um
pouco de dinheiro e recuperar sua autonomia.

O ar de primavera trouxe também no porão uma euforia nova,

65
maresia
não fosse outro porque se falava de folgas e o espectro das férias
se situava entre as páginas web e as conversas nas pausas. Chegou
até mesmo a primeira parte do pagamento e se sentia o cheiro da
renovação do contrato, com aumento do salário. No final de maio
o engenheiro comunicou as datas: uma semana entre ferragosto8. Os
olhos de Maria se inflamaram, pareciam desfechar raios. Ettore, em-
baraçado, virou o olhar. Ela esteve à espera de uma palavra de dis-
sidência por parte dos colegas, mas era uma esperança vã, ninguém
se atreveu a rebater.
– Não lhe parece pouco apenas uma semana depois de um ano
de trabalho? – atacou Maria.
– Em todas as empresas as folgas são assim – enervou-se Et-
tore.
– Primeiro de tudo fale baixo, você não está autorizado a levan-
tar a voz comigo só porque trabalho no seu escritório – avisou-o.
– Desculpa, sim, eu sei, desculpa – blaterou Ettore. – É você
que me deixa nervoso... é sempre e só você a única a reclamar! –
defendeu-se. Já ficara tonto, a ideia de enfrentar uma discussão com
Maria o angustiava.
– Segundo – continuou ela, – estou certa de falar em nome de
todos.
Virou-se para os colegas para estimular um assentimento que,
tímido, intuiu-se pelo aceno das cabeças.
– Terceiro, o que fazem nas outras empresas não me cabe. Eu
só sei que para nós uma semana de descanso é pouco.
– Os contratos de vocês não contemplam folgas, esses dias são
um presente que eu lhes faço. Quem deseja descansar mais tempo,
que espere o fim do contrato em setembro – concluiu ameaçador o
engenheiro.
Maria se esforçou por manter a calma, porque era a coisa que
mais irritava seu chefe: – Eu, no entanto, lembro-lhe de que nossos
contratos não contemplam oito horas por dia de trabalho. Uma se-
mana não é suficiente – repisou com firmeza.
O embate continuou até que o engenheiro Cristiano se rendeu,

8. Festividade pagã, originariamente celebrada o dia 1° de agosto, mudada para o


dia 15 por vontade da Igreja Católica, que quis fazer coincidir a recorrência laica
com o dia litúrgico da Assunção de Maria. Na Itália é comemorado com fartos
almoços ou com excursões e piqueniques ao ar livre

66
capítulo 3
derrotado por uma língua comprida e afiada, que aduzia argumenta-
ções às quais ele não podia rebater e que o faziam sentir-se um verme.
Junho chegou num relâmpago, e com ele um calor abafado
de tirar o fôlego. Maria começou a temporada de verão no bar da
pracinha do mar e sua vida se tornou um verdadeiro tour de force.
De manhã ia ao escritório e às sete da noite iniciava ao bar. O ho-
rário coincidia com aquele de saída do “porão”, mas ela conseguira
convencer o Explorador a antecipar sua volta em uma hora, assim
podia pegar o trem das seis e cinco. Quando conseguia, esgueirava
mesmo antes e então aproveitava para tirar uma soneca, depois de
um mês dessa vida o cansaço fazia sentir-se.
O trabalho no bar não era particularmente esforçoso, havia
ainda pouca gente, e ela saía além da meia noite apenas nos final de
semana, porém não tinha nem um dia de descanso e isso a reduzira
a um autômato.
Suas folgas chegaram em coincidência com a grande lotação
das férias, a cidadezinha se repovoou dos seus filhos distantes e de
gente em fuga do afã da cidade. Os ritmos de Maria se reviraram
completamente: dormia até duas horas da tarde e nunca se deitava
antes das três. Às vezes chegava até mesmo ao amanhecer, porque
após o trabalho alcançava os amigos ainda por aí.
O segundo domingo de agosto recorria a festa votiva de São
Francisco de Paola, uma das mais antigas e sentidas tradições da ci-
dadezinha. Como cada ano, a estrada principal se coloriu de barracas
e milhares de fiéis acorreram dos bairros próximos em homenagem
ao santo, protetor da gente do mar. À tarde um cortejo acompanhou
com cantos e orações o busto do franciscano, levado nas costas até
a praia. Dali foi carregado sobre um barco que, no começo de um
séquito de outras embarcações, levou-o para uma volta ao longo da
costa. Com a escuridão, clareada por uma lua cheia e luminosa, uma
multidão em festa acolheu a volta da procissão no mar e o céu se
encheu de fogos coloridos. Junto com Carmine e Rosa estava inclu-
sive Quinota, sentada numa cadeira de rodas que lhe comprara seu
neto, de segunda mão. Ela também era devota do frade taumaturgo
e, embora nunca tivesse participado de nenhuma missa católica, es-
tivera sempre ali à espera da sua volta do mar. Até que suas pernas
lhe permitiram, aguardava-o com os pés na água e, ao momento da
sua atracação, liberava flores no mar. A primeira vez que na cidade-
zinha a viram realizar o ritual, acusaram-na uns de bruxaria, uns de

67
maresia
possessão, uns de demência. Circulavam histórias de todos os tipos
ao redor daquela preta formosa dos cabelos crespos que não falava,
não ia à igreja e fazia coisas esquisitas, vinda do Brasil para excitar
as fantasias masculinas e para quebrar a monotonia de um tranquilo
vilarejo de pescadores. Quando caminhava, reta e altiva, parecia ter
a música nos quadris e seu porte parecia seguir o ritmo das ondas
do mar. Os homens se viravam à sua passagem e as mulheres deles a
olhavam hostil, compadecendo entre elas o pobre Carmine ao qual
fora feito um feitiço por uma selvagem carregadora de doenças. Em
plena propaganda colonialista e com a difusão da teoria racista sobre
a superioridade dos brancos, Quinota se achara isolada das mulheres
da cidadezinha e só com a primeira gravidez, que a transformava
de puta em mãe, tornara-se a esposa um pouco boba de Carmine
Valenza, por tolerar com caridade cristã.
À noite houve um concerto de percussões africanas na Villetta9
do Pescador, a uma quadra da praia. Maria estava trabalhando, mas
quando ouviu a voz dos tambores vibrar no ar, foi tomada pelo fre-
nesi de ver o show. Afastou-se por alguns minutos para assistir à exi-
bição, três homens de cor batiam nas peles dos tambores a uma ve-
locidade e com um ritmo tal que multiplicavam o som. Um grupo de
meninos se contorcia sob o palco, como se tivessem possuídos pelas
notas, agitavam os corpos de um jeito instintivo e libertador. Maria
teve um aceno de inveja, ela também teria querido deixar-se ir. Em
seguida, à música se adicionou o canto, gorjeios numa língua desco-
nhecida, gritos tribais semelhantes a uma invocação divina. No fim
do concerto, e com a multidão dissolvida, chegaram ao bar alguns de
seus amigos em companhia dos músicos. Ocuparam uma mesinha e,
já enquanto pegava as encomendas, Maria percebeu o olhar insisten-
te do moço com os dreadlocks, preto como Vovó Quinota, colorido
como a Africa do Senegal. Só no final da noite, quando o bar já es-
tava vazio, conseguiu sentar-se com eles para saborear uma cerveja.
Os olhos do jovem não pararam de segui-la no seu vai-e-vem entre
as mesas e ela um pouco apoiava, um pouco se retirava do jogo.
– Sente-se aqui – disse-lhe ele, Abdou. Aproximou uma cadeira
e Maria se acomodou. Na mesa se comunicava numa mistura de lín-
guas, um pouco de francês, de inglês, algumas palavras em italiano,
mas Abdou, mais do que participar da conversação coletiva, preferia

9. Pequeno jardim público municipal.

68
capítulo 3
falar com Maria. Fazia-lhe perguntas com palavras simples, próprias
de quem não conhece bem a língua e, ao momento de ir embora,
pediu-lhe para ficar, queria passar mais algum tempo com ela.
– Quero fazer amor com você – disse-lhe.
Maria ficou pasma. Abdou não usara meios termos, nem metá-
foras, nem fizera voltas de palavras, chegara direto ao ponto, since-
ro, sem embaraço algum.
– Eu gosto de você – declarou convencido.
Ela ficou em silêncio, tergiversava. Em poucos instantes no
seu cérebro se criara uma grande confusão: na perene luta entre o
certo e o errado se emaranhavam juízos e interrogações, causas e
efeitos. Desejo, pura libido, ou aquele “não está certo” como um
eco no seu pensamento?
– Você olhos bons, coração bom – continuou ele, – eu ho-
mem, você mulher. Você gosta de mim?
A pergunta elementar e direta a levou a responder sem véus,
despojada de todos os badulaques do pensamento complexo: – Sim,
mas eu não sei nem quem você é!
– Você sabe quem eu sou. Eu Abdou – afirmou levando uma
mão sobre o peito, – você Maria – e moveu a mão para o peito dela.
– Eu homem, você mulher. Lindo é amor.
A obviedade do tom fez estremecê-la, seu raciocínio lhe pa-
receu extraordinário, simples e linear, de uma delicadeza ancestral.
A ideia de quanto ela, ao contrário, fosse complicada lhe suscitou
o riso e seu corpo se liberou das rigidezes. Abdou aproveitou disso
para atraí-la para si: – Você lindíssimo rosto e lindíssimo corpo –
sussurrou-lhe. – Você branca, mas um pouco africana.
Em seguida empurrou a língua para o pescoço executando
movimentos circulares e entretanto suas mãos percorriam as linhas
das ancas e das nádegas. No mesmo instante em que Maria refletia
em que talvez não fosse mesmo o caso, juntou-se a ele num beijo
gentil e saboreou um gosto doce nos seus lábios pretos e carnudos.
Confiava nele, era afável e perfumado, sentia-se à vontade em sua
companhia. Foi ela mesma a conduzi-lo à praia, um pouco mais ao
sul, numa abertura entre alguns arrecifes.
– Eu não gosto de todas as mulheres – disse ele enquanto ca-
minhavam. – Você é a número um. Eu já vi você do palco cinco
minutos.
Deitados na areia se abraçaram e Abdou a convidou a abrir a

69
maresia
boca: – Lindos dentes. Brancos – examinou.
Maria riu, aquele tipo de abordagem a divertia, ademais ne-
nhum homem nunca lhe pedira para mostrar-lhe os dentes. Era a
primeira vez que sua pele se confundia tão intimamente com uma
outra preta de verdade, e se pasmou ao descobrir quanto o efeito
cromático dos membros cruzados cutucasse seu desejo. Sobre ela
um rosto de traços estrangeiros se confundia com o escuro da noite,
só os olhos reluziam como faróis, ligavam-se e se desligavam ao rit-
mo das pálpebras e dos dreadlocks que, como uma carícia, desciam-
-lhe sobre o peito. Era bem viva a percepção táctil daquele corpo,
sólido, liso e sem pelos. Abdou foi como um relâmpago inesperado
num céu de lua cheia de um dia abençoado, um amor selvagem e
instintivo. Ele insistiu para acompanhá-la, mas ela preferiu cumpri-
mentá-lo na pracinha onde se conheceram e vê-lo desaparecer para
sempre atrás da esquina, em direção do hotel.
– No fundo se pode amar também por poucas horas – racio-
cinou Maria enquanto voltava a casa às cinco da manhã, – e ele me
deu o que eu precisava.
O resto do verão passou tranquilo sem particulares aconteci-
mentos, nem mesmo o dia do seu aniversário fora especial, embora
Rosa tivesse feito pra ela um bolo e insistido para que apagasse as
velinhas. Ao encerramento da temporada tirou um suspiro de alívio,
pelo menos o final de semana podia descansar. Nunca como na-
quele ano curtiu o mar de setembro, quente, límpido e cristalino, na
praia silenciosa havia só pescadores a lidar com os barcos e alguma
alma isolada a gozar o sol de fim verão.
Com o começo do outono chegou o dinheiro que Maria avan-
çava do Explorador e a renovação do contrato por outros seis me-
ses, nas mesmas condições. O engenheiro Cristiano convocou em
reunião a equipe para anunciar a notícia da continuação do projeto
mas, sentido, declarou que não conseguira mudar os termos con-
tratuais. Tentou justificar-se: – O projeto prevê um número total
de horas destinadas aos recursos humanos, subdivididas entre os
partners. A nós cabe um certo número e não podemos ter outras.
Nem uma palavra e nem sequer um respiro percebeu dos seus
ouvidores. Veio-lhe uma leve coceira no nariz, pouco a pouco sem-
pre mais insistente, e começou a coçar-se nervosamente. Premia nas
narinas, os músculos do rosto eram contraídos e seu olhar fugia.
– Um claro mecanismo de defesa, está descarregando a tensão.

70
capítulo 3
O stronzo está nervosinho – pensou Maria consigo. Mais horas,
mais dinheiro: isso era o conceito e ela pretendia aprofundá-lo. Deu
início ao conflito de um jeito elegante e diplomático: – Eu gostaria
de estudar esse projeto – disse.
– Para o que precisa disso se já está em execução? – desencora-
jou-a Ettore. Ele se pôs prontamente na defensiva, estava prepara-
do, já sabia que teria que enfrentar as perguntas dela.
– Eu, ao contrário, acho que pode ser útil pra mim. E, além
disso, estou mesmo curiosa visto que, entre outras coisas, trabalhei
até na coleta de dados, como pedido pelo contrato.
Eis a primeira acusação velada, mas ele fingiu não ter captado e
continuou calmo, não podia ficar nervoso, caso contrário ela o teria
confundido como sempre.
– Sinto muito, mas não sendo nós o primeiro partner da fila
não temos uma cópia dele – disse.
– Parece-me estranho, porque no arquivo temos todos os pro-
jetos – respondeu Maria.
– Mas não isso – zangou-se o Explorador. – Eu sou a última
roda do carro, você quer entendê-lo ou não?
Teve um ímpeto de raiva, mas já se recompôs, não tinha ne-
nhuma intenção de cair na armadilha dela.
– Pede uma cópia a quem de direito – sugeriu ela. Fechara-o
num canto, Ettore não podia mais ir além.
– Tá bom, vou tentar – prometeu, esgotado e suado.
Mesmo que a contragosto, Maria assinou a renovação do contra-
to. Tinha intenção de voltar a morar na cidade, separara já um pouco
de dinheiro e não queria ficar com as costas nuas. A coisa fundamen-
tal, para ela, era recuperar sua autonomia, fazer uma vida um pouco
menos alienante e buscar algo melhor do que o trabalho no “porão”.
Uma tarde da semana seguinte o engenheiro Cristiano com-
pareceu ao escritório com uma cópia do projeto. Maria a examinou
cuidadosamente, faltava porém o que lhe interessava, o plano eco-
nômico-financeiro.
– Como? – espantou-se Ettore. – Possível?
– Possível, sim! – irritou-se Maria.
– Fique tranquila, faço já já um telefonema e recupero as infor-
mações – disse o chefe para evitar uma discussão. Fechou-se no seu
estúdio e, depois de dez minutos, saiu com alguns papeis na mão:
– Eis aí os dados dos recursos humanos!

71
maresia
Entregou-lhe a folha com ar satisfeito, Maria leu rapidamente:
– Então você também é recompensado com vinte euros brutos por
hora? – perguntou.
– Claro! Nós da E&C Consulting somos uma equipe!
Ela o olhou com ar perplexo: – São dados escritos com caneta
por você, não têm valor oficial.
Ettore ficou com o rosto vermelho, parecia um balão prestes
a estourar.
– Tá bom, tá bom! – liquidou-o então Maria, aborrecida. Vi-
rou-lhe as costas e voltou à sua escrivaninha, e começou a buscar na
internet uma solução de aluguel adequada. Anotou os números dos
conjugados, ainda que os preços fossem altos esperava conseguir
contratar. Não excluía a economia de um lugar numa moradia com-
partilhada, mas só se encontrasse coinquilinos prazerosos.
O outono passou na busca de uma casa e finalmente, no dia
13 de dezembro, chegou a ocasião certa. Um casal que ela conhecia
só de vista lhe ofereceu um lugar na habitação deles, num prédio de
nova construção em Viale Parco. O apartamento era grande e, para
se ajudar com o rateio, o casal alugava um quarto. Maria aceitou,
Aldo e Giada lhe inspiraram confiança e, ademais, por 180 euros por
mês tinha um quarto grande com banheiro e varanda, num aparta-
mento com todos os confortos. A localização também era estratégi-
ca, nas proximidades do centro e de uma rua com ciclovia. Deixou
passar o mês de dezembro, movimentado demais pela chegada das
festas, e com o ano novo se mudou finalmente para a cidade.

72
CAPÍTULO 4

Maria percebeu o quão pouco frequentara a cidade nos anos


em que era estudante, limitando-se às ocasiões oferecidas pelo cam-
pus e pela próxima Rende1. Começou a treinar com o grupo de
capoeira, formado por uma série de personagens um pouco bufos,
bastante extravagantes, mas muitos unidos entre eles. Cada um ti-
nha um apelido, o nome de capoeira, recebido na hora do Batizado,
quando o praticante recebe do mestre a primeira corda e se torna
oficialmente aluno do grupo. Descobriu assim que Anna era Panda
e Michelangelo era Nureyev. Ademais havia Cofrinho, Cafetão, So-
ninho, Pipa, Sapinha, De Pressa, Vovô Longe, Tagarela, Batuque e
alguns outros sem apelido.
Foi feliz de entrar no grupo, na galera, sobretudo gostava cada
dia mais da capoeira e da sua filosofia, intimamente ligada ao dua-
lismo escravidão-liberdade. Os treinos eram pesados, uma hora e
meia de esforços e suores, compensados pela felicidade de entrar e
jogar na roda. Para Maria era cada vez um teste, um pôr em discus-
são, uma metáfora da vida real.
– O jogo da capoeira é uma conversa – repetia sempre o contra-
mestre Igor, chegado do Rio de Janeiro para treinar por três meses o
grupo de Cosenza. Explicou que, como qualquer conversa, feita de
perguntas e de respostas, assim o jogo, com ataque e defesa, pode
assumir tons diferentes dependendo da situação. Graças a ele a ga-
lera absorveu o conceito de confraternização, o valor de ficar junto,
aprofundar a amizade e fortalecer as relações. Dizia que a capoeira
não é apenas treino, é também amizade: – Ficamos juntos! – con-
vidava no final dos treinos. – Uma cervejinha bem gelada, uma boa
conversa e depois vai descansar feliz!
Sob o olhar atento do contramestre, num mês Maria aprendeu
apenas a ginga e os movimentos mais simples, mas se sentia cada
vez mais à vontade na roda. Quando conseguia fazer um exercí-
cio novo, depois de tê-lo tentado dezenas e dezenas de vezes, ou
completava uma sequência de movimentos, voltava a casa feliz e

1. Município da região da Calábria, província de Cosenza.

73
maresia

satisfeita. Não era um trabalho exclusivamente para o físico e para


a capacidade de coordenação, mas sobre a autoestima e o equilíbrio
interior. O corpo era comandado pela música e pelo canto, na sua
repetitividade se tornava um mantra, uma expressão sagrada, prática
mágica de conexão com o divino. Isso fazia a capoeira especial, di-
ferente de qualquer outra disciplina, a capacidade de induzir na roda
alguns estados quase de transe através do ritmo do berimbau, da
batida do atabaque, do toque do pandeiro, do tique-taque do agogô,
da batida das palmas, da voz do coral. Um jogo, uma dança, uma
disputa, onde se liberam as energias, uma simbiose perfeita entre
força e ritmo, poesia e agilidade.
Maria começou a arranhar um pouco de português graças às
músicas de capoeira, que cantarolava pra Vovó Quinota quando vol-
tava a casa para o almoço dominical. A bisavó estava impaciente à
espera dela, à sacralidade do ritual da manhã se somou a voz da bis-
neta que acariciava suas lembranças e fazia reemergi-las do profun-
do oceano do esquecimento, sepultadas por oitenta anos de silêncio.
Se ela reconhecia a melodia, acompanhava-a com um canto a boca
fechada e sorria, às vezes deixando escorrer uma lágrima. Considera-
va, deveras, dádiva divina poder ouvir de novo sua língua nativa, me-
lodias quase esquecidas, palavras pertencidas ao seu passado. Uma
espécie de recompensa, por uma vida coagida longe da sua terra.
A partida do contramestre na metade de fevereiro deixou um
desgosto geral, não apenas pelo costume às suas aulas tecnicamente
eficazes e cheias de energia, mas sobretudo porque um amigo foi
embora. O curso voltou ao comando de Cofrinho, o mais gradua-
do, corda cinza, apoiado pelas cordas amarelas, o núcleo mais re-
sistente. Maria treinava com regularidade, participava da cerveja no
final da aula e das noitadas coletivas, e aí os camaradas se tornaram
parte essencial da sua vida. Deu-se bem de modo especial com as
meninas, as mulheres, Soninho, Panda, Pipa e Sapinha, com as quais
saía também no final de semana.

No mês de março, junto com a super centenária feira de San


Giuseppe, chegou para Maria um dom especial, uma viagem pelo
mundo a quilometro zero, a experiência ativa de Fiera Inmensa, um
happening autogerido de acolhida aos caixeiros viajantes. Aquele
ano recorria a décima edição e foi organizada na área das ex oficinas

74
capítulo 4
ferroviárias, uma série de galpões em desuso, ocupados e postos de
novo em vida por algumas associações do território. O programa
oferecia cinco dias de eventos culturais, entre os quais uma roda de
capoeira, e a disposição de uma série de serviços postos em ação
por mais de mil voluntários pertencentes a organizações não gover-
namentais, associações culturais, centros sociais, paróquias e grupos
informais. Maria, arrastada por Aldo e Giada, na quinta-feira foi en-
volvida no serviço do refeitório. Alcançou eles na metade da tarde
e se achou catapultada numa outra dimensão, respirava-se um ar de
renascimento, havia uma atmosfera alegre e hospitaleira. O pátio se
enchera de barracas porque os dormitórios organizados não eram
suficientes, fora equipado com chuveiros e banheiros químicos e,
embaixo de lonas arranjadas, mulheres africanas cozinhavam em
grandes panelões, difundindo no ar o perfume da comida tempera-
da. Além dos serviços de base, fora preparado um guichê legal para
os imigrantes, um de assistência à saúde e um ponto de internet,
montado com velhos computadores postos novamente em funcio-
namento com o software livre.
Maria entrou no galpão das Officine Babilonia, destinado às
atividade da tarde de formação de voluntários e aos concertos no-
turnos, e ficou de boca aberta: um espaço grande, cinzento e gélido
virara um lugar luminoso e cheio de cor graças às pinturas, ao palco,
à mobília e às obras de arte construídas com materiais de descarte.
Batuque, um dos camaradas, estava entre os promotores da transfor-
mação. A atividade prevista era uma ciranda, um tipo de dança co-
munitária originária da ilha pernambucana de Itamaracá, conduzida
por Lindara, uma carioca estabelecida em Cosenza já há alguns anos
e casada com um cosentino2. Maria se colocou em círculo com outras
pessoas, mão na mão se moviam como numa brincadeira de roda e
seguiam uma coreografia de passos, marcando o tempo com uma
forte pisada do pé esquerdo na frente. Foi como sintonizar a própria
batida do coração com aquela dos outros, Maria se sentiu regenerada
e cheia de energia para enfrentar o vai-e-vem do serviço às mesas.
Deslocou-se no galpão do refeitório e pouco depois começou a dis-
tribuição das refeições, não havia muito tempo a perder, mas cada
prato era um sorriso, uma palavra, um olhar e um mundo longe.
A tarde seguinte achou outro círculo, mas era aquele da “Coessen-

2. Morador da cidade de Cosenza.

75
maresia

za”, a associação com a qual colaborava sua camarada Soninho. Quan-


do a amiga a viu, chamou-a com o habitual tom exuberante: – Maria,
minha querida! Venha sentar-se você também! – convidou-a.
Tratava-se de uma oficina de escritura momentista3, dez minutos
para descrever o presente, sem digressões, concentrando-se apenas
no “aqui e agora”, simultaneamente com outras pessoas. Maria nem
mesmo se lembrava de há quanto tempo não pegava uma caneta na
mão, se não para banais notas, e se sentiu constrangida na frente
da folha branca, uma chamada à reflexão sobre a experiência. Os
pensamentos na sua cabeça se confundiam, mas clara era a ima-
gem de uma grande aldeia da solidariedade, onde cada um encontra
o próprio jeito de ser em função da harmonia coletiva. Escreveu
somente uma palavra: “descoberta”, porque, no fundo, os dias de
Fiera Inmensa estavam representando pra ela a prazerosa descober-
ta da “Cosenza bonita”, aquele conjunto de pessoas que, longe das
luzes dos holofotes, enriquece a cidade com o sonho de um mundo
melhor e um agir concreto orientado ao bem comum.
A noite conheceu Viento, um artesão colombiano pelo qual
ficou fascinada devido aos seus contos de viagens e às palavras de
poesia, declamadas sob uma lua cheia e resplandecente. Na reali-
dade já se avistaram alguns dias anteriores durante o concerto dos
mestres Pallone, Cimino e Gallina, mas o homem achou o jeito de
aproximá-la enquanto dançavam ao som da música dos Bálcãs e
da Romênia dos Muzikanti di Bal Val com o mestre Jovica Jovic.
Conversaram a noite toda numa mistura de idiomas improvável, es-
panhol, italiano, inglês, português. Viento já dera a volta ao mundo
com mochila nas costas, alicate e fios de cobre, morara nas grandes
metrópoles da Europa e do Sul América e em remotas aldeias da
Amazônia junto com as populações indígenas. No final da noitada
lhe deu como presente um pequeno coração de pelúcia vermelha: –
Achei-o no chão e pensei em você – disse-lhe.
Maria retribuiu com duas pedrinhas do Tirreno, sempre levava
no bolso algumas delas para apertá-las em momentos de desorienta-
ção: – Acredito que as pedras do mar tenham um poder curativo –
3. De “Momentismo”, método de escrita nascido em forma embrionária e forço-
samente experimental na segunda metade dos anos ’70 e inaugurado oficialmente
com o lançamento da antologia “Pomeriggio/Afernoon” (Leconte) em que 140
escritores do mundo todo contaram o que viram e viveram no mesmo dia, na
mesma hora, em lugares diferentes.

76
capítulo 4
sustentou. – Absorvem as negatividades porque se purificam com o
sal e o movimento das correntes e se enchem da energia do sol!
Viento lhe agradeceu com um beijo, ao qual seguiu uma noite
juntos. À manhã seguinte, bem cedinho, dividiram-se, marcando ao
final do dia nas Officine Babilonia, onde teria acontecido uma de-
monstração de capoeira e, logo depois, uma festa de música africa-
na. Ele se dirigiu à sua barraca, ela foi à academia porque tinha o es-
tágio com o professor Boneco, corda roxa coordenador do grupo de
Cosenza, mineiro emigrado em Turim. À noite, durante a exibição,
a galera se pôs à prova também numa roda de Maculelê, a dança do
pau, uma dança folclórica de origem afro-brasileira que simula uma
luta tribal usando dois paus, batidos ao ritmo dos atabaques. Quan-
do Boneco entoou o canto “No Brasil tem uma luta que também
veio de lá! Africa”, a plateia se inflamou e o coro “Africa” se tornou
um estrondo, tão intenso que provocou arrepios na pele. Aos pés
do palco uma multidão de jovens pulava e se alegrava gritando o
nome da própria terra e Maria se emocionou, pareceu-lhe uma cena
comovente. A exibição terminou entre os aplausos e o entusiasmo
do público, no meio da África, lugar mãe de cada outro lugar. Vien-
to, dos compridos cabelos loiros e o olhar de índio, foi embora no
domingo à noite com seu sabor de rua e de amor. Como última dá-
diva pelo cruzamento de vidas e de corpos lhe deixou uma pedra em
forma de coração: – Neste momento é tudo o que pode dar-lhe um
viajante solitário. Maria amarrou com um barbante a pelúcia e pedra
da mesma forma, um coração incluía o outro, como uma matrioska.
Com ele desapareceram também os perfumes e as cores da feira, as
pessoas pela rua e os traços da África, e a cidade voltou às televisões.
Maria, ao contrário, ficou com a fantasia de uma vida errante rodan-
do pelo mundo em busca de aventuras, à descoberta de culturas e
pessoas novas, ao se atarefar um pouco aqui e um pouco lá, sem o
frenesi do emprego fixo e a obsessão do futuro garantido.

O primeiro dia de primavera acordou enquanto estava ainda


sonhando, pensava estar num trem que saíra da estação de Pao-
la. No sonho largara tudo e começara a viagem, quem sabe para
onde, afinal, disso não se lembrava, porém era nítida a imagem de
si mesma concentrada em encher a mochila e viva era a sensação de
liberdade. Durante o curso do dia o esqueleto de base se enriqueceu

77
maresia

de detalhes sempre mais precisos, Maria visualizou o enredo com


uma minúcia tal que, à noite, estava na dúvida se não tivesse acon-
tecido realmente. Nada e ninguém, no fundo, impedia-lhe de fazer
uma escolha assim, mas ela não tinha a coragem, decretou, enfim,
enraivecida pelos seus temores e suas inseguranças. O lance era que
cada manhã, ao pôr o pé no escritório, sentia uma sensação de su-
focação, era como ficar numa cela sem barras da qual, porém, não
tinha a coragem de fugir. Antes ou depois aquela situação a teria fei-
to adoecer, estava certa disso, porque não coincidia com a sua ideia
de felicidade. No último período, pensando nas origens da capoeira,
refletia muitas vezes sobre a condição dos escravos nos canaviais
ou nos cafezais e não podia deixar de comparar sua condição com
aquela dos trabalhadores num sistema capitalista. Considerava-os
perfis diferentes de uma mesma escravidão, uma condição de abso-
luta dependência e sujeição a um dono, num caso o fazendeiro, no
outro o deus dinheiro. Os escravos, depois de um dia de trabalho
forçado nos campos, encontravam-se à noite nas senzalas e ali jo-
gavam capoeira para se divertirem e confortarem suas vidas. Como
ato de resistência e de resgate, preservavam na roda suas raízes e
cultivavam a semente da luta pela liberdade. Ao som dos berimbaus
e dos atabaques esqueciam as cadeias e voltavam à terra da África,
invocada nos cantos e nas orações, livres na expressão dos seus cor-
pos. E assim, também para Maria a roda representava um momento
de desabafo, em que corpo e mente se soltavam das coerções duma
sociedade opressiva e hipócrita para se libertar na criatividade.
No começo de abril Vovô Longe e Soninho se preparavam
para viajar à Tanzânia, onde os alcançaria também o contramestre
Igor do Brasil, para levar a capoeira a um orfanato de Buswelo, um
vilarejo perto de Mwanza. No projeto do Hisany Centre, no qual
onze participavam, Maria também teria podido agregar-se às suas
próprias custas, mas o Explorador a obstaculara: – Não é o período
adequado, coisas demais por fazer. Porém você é livre para não re-
novar o contrato – chantageara-a.
Assim ela renunciara à ideia, alimentando o desejo de uma via-
gem na África. Para se despedir dos camaradas, a galera organizou
um domingo de confraternização no jardim de Sapinha, e Maria, que
retornara o sábado à cidadezinha, convidou o primo a juntar-se à co-
mitiva, o mar estava forte e ele não podia pescar. Genio, reservado e
introvertido, recusou: – Não, não estou a fim, não conheço ninguém.

78
capítulo 4
– Melhor assim, não é? Estará a fim mesmo de, de vez em
quando, encontrar alguma pessoa nova – incitou-o.
Não, não estou a fim disso – obstinava-se ele.
– Eia, não seja tão pesado! Asseguro-lhe que são todas pessoas
simpáticas e simples, confie em mim, não se arrependerá.
Maria estava preocupada com ele, via-o apertar-se sempre mais
entre os braços do mar e da montanha e se afastar de qualquer
forma de sociabilidade, por isso insistiu com tenacidade até que lhe
arrancou um fraco consenso. Queria a todo custo apresentá-lo às
mulheres, estava certa que, entre todas, alguma iria suscitar seu in-
teresse. No fundo ele era um cara lindo de verdade, olhos verdes
e pele bronzeada, músculos torneados pela fadiga, voz profunda e
perturbadora, e sabia até mesmo ser simpático quando queria. O dia
passou alegre entre cantos de capoeira e amigáveis zoadas e Genio
não se arrependeu de ter-se juntado à comitiva. Mesmo sendo de
poucas palavras, não foi avaro de conversas com Soninho. Encanta-
da pelo charme bucólico do jovem, ouvia seus contos de mar entre
um copo de vinho e um toque do pandeiro e à Maria não escapou
o entendimento entre os dois. Na volta no carro cutucou o primo
em busca de detalhes: – Bonita Soninho, não é mesmo? Reparei em
como você a olhava...
– Que é isso? É bonitinha, sim, mas nada demais – ficou hirto.
– Nada de quê? Tronco inclinado para frente, acariciava-se os
cabelos com uma mão... claro sinal de interesse romântico, meu
querido! Certos detalhes não me escapam. E, além disso, as risadi-
nhas, os olhos de peixe morto...
Maria riu com gosto, Genio era um livro aberto pra ela, conhe-
cia-o melhor que qualquer outra pessoa.
– Como de costume está se fazendo um filme, só fizemos ami-
zade, não era isso o que você queria?
– Vocês trocaram os números de telefone?
– Não.
– Mas você é tolo? Por que não?
– Por favor, Maria, pare com isso! Não seja pedante, deixe-me
um pouco em paz! – enraivou-se.
– É que eu quero ajudar você!
– A fazer o quê?
– A conquistar Soninho.
– E desde quando eu precisaria de você para conquistar uma

79
maresia

mulher?
– Desde que você se tornou um urso! – disse resoluta. Deu-lhe
um beijo na bochecha, para significar o quanto ela lhe queria bem e
o quanto teria querido vê-lo feliz.
A questão se resolveu numa saudável risada, os dois primos
eram tão ligados que nunca nenhuma palavra errada conseguira
abalar a relação deles, feita de estima, confiança e carinho, sabiam
que podiam contar um com o outro em qualquer situação. Maria o
convidou a dormir na sua casa: – Bebemos o dia todo, melhor que
você viaje amanhã de manhã.
– E por que? Não estou bêbado de jeito nenhum... meia hora
abundante e vou chegar a casa, prefiro voltar.
– Se pararem você e fazerem o teste alcoólico está frito! Multa
e retirada da carteira de motorista! – avisou-o.
– Amém – respondeu ele, não houve jeito de convencê-lo, Ge-
nio era alérgico à cidade.

As festividades de Páscoa passaram quase inobservadas, pou-


cos os emigrantes que voltaram à cidadezinha, nem mesmo Fran-
cesco e Anna. A comitiva da infância com a qual cada ano transcor-
ria a Pasquetta era desagregada, por isso Maria decidiu passar o dia
com o grupo de capoeira. O “primo gêmeo” se agregou também,
logo aceitou a proposta, sem nenhuma resistência, e à manhã en-
traram no carro bem cedinho para alcançar os outros na cidade e
depois subir para a Sila, em Camigliatello4, à casa de Tagarela. Maria
tinha pouca intimidade com os bosques, ela era mulher de mar, mas
nutria uma sagrada reverência pelas montanhas, imponentes e ma-
jestosas, e quando respirava o ar da Sila, limpo e cheio de oxigeno,
se sentia regenerar.
Genio foi com o sorriso mas, acabado de chegar ao destino,
assombrou-se. Deixava transparecer uma sensação de insofrimento
apesar dele se esforçar por participar do brio geral, até mesmo pe-
gou o violão na mão, pondo-se à prova num repertório de fogueira
da adolescência. Maria entendeu o que passava pela cabeça do pri-
mo e logo que ficaram cara-a-cara apoquentou: – Diga a verdade,

4. É uma localidade de montanha do município de Spezzano della Sila da provín-


cia de Cosenza, na região Calábria.

80
capítulo 4
você entristeceu porque não encontrou Soninho...
– Não, não, eu sabia que ela está na África... e, ademais, não
estou triste, apenas um pouco chateado – mentiu, na realidade ele
lembrara disso só quando não a vira no meio dos outros. Maria não
acrescentou nada mais, satisfeita com a resposta, oculta admissão de
um interesse quanto à sua amiga.
Já há algum tempo o assunto principal das conversas da galera
era a organização do Festival de capoeira previsto para junho, even-
to no qual os novos alunos seriam batizados e os outros trocariam
de corda. Faltava pouco mais de um mês e faziam as contas no bol-
so: passagens e cachê para mestres e professores, o pedido para ter
academia em dias adicionais aos habituais, a recepção dos hóspedes,
a festa de fim de evento. Flor à lapela, a chegada do Rio de Janeiro
de mestre Ramos, o diretor do grupo, com seus quarenta anos de
capoeira nas costas. Os alunos tinham que estar em forma para uma
semana de aulas com ele, por isso Cofrinho se comprometeu a man-
ter ainda mais alto o nível dos treinos.
Algumas noites, após o trabalho, Maria estava tão cansada que
queria só a cama, mas logo pensava nos escravos nas plantações que,
depois de ter trabalhado o dia todo como animais de carga, à noite
se reuniam para se livrar numa roda. Então lhe retornava a força de
vestir o abadá para suar e eliminar a negatividade e, no final, nunca
se arrependia, sentia-se sempre bem melhor do que quando chegara.
Na volta da Tanzânia Soninho e Vovô Longe trouxeram um
sopro de vitalidade, a experiência os fez ainda mais motivados e os
encheu de uma energia primordial. Inevitavelmente, isso se refletiu
sobre o grupo todo.
– A África é uma experiência que cada ocidental teria que viver –
disse Soninho. – Primeiro de tudo para gozar de um bem pra nós em
extinção, a lentidão, e ademais porque põe em discussão todas nossas
superestruturas culturais e põe à prova nossa capacidade de adapta-
ção. Tudo o que nós damos por certo ali não o é. Não há a estrela
Polar, Maria, você se dá conta disso? Pulam todos os esquemas!
Maria a olhou perplexa, às vezes a amiga fazia discursos difíceis
de seguir: – Sim, mas ali há a Estrela do Sul, que tem a mesma fun-
ção de orientação, só que, em vez do Norte, indica o Sul.
– Pois é, você diz bem, é isso mesmo o ponto! Como desa-
parece a Estrela Polar, as superestruturas do nosso pensamento se
esmigalham na existência de céus onde resplendem outras estrelas,

81
maresia

que porém se nutrem da energia da mesma lua! Isso significa uma


mudança de perspectiva... acredite em mim, nunca me sentira tão
“branca” na minha vida! Uma cor que pesa como uma pedra, porque
é o símbolo de pertencimento àquela fatia de mundo rica e opulenta.
Durante a hora da cervejinha de confraternização de fim de
treino, os companheiros de viajem se lançaram numa apaixonada
descrição a duas vozes das vastas extensões de terra vermelha, do
verde selvagem, das pedras pré-históricas, das folhas de milho le-
vantadas pelo vento, das casinhas de palha e barro, da gente que
caminha ou que descansa na sombra de uma árvore, sorri, cumpri-
menta: – Uma saudação infinita na língua swahili – riu Soninho, –
porque se apuram da saúde de todos os membros da família antes
de dizer: – Jambo5.
Contaram do perfume do carvão, das espigas tostadas e das
omeletes de batatas nas esquinas de rua, sabores primitivos de co-
midas simples e gostosas; e, ademais, as estranhas picadas na pele
queimada pelo sol, as formigas gigantes, as borboletas das mil cores
e as galinhas pela rua, presas de falcões famintos. Também Maria
teria querido ouvir o eco de vozes, uivos e fretenires no silêncio das
noites estreladas e ver aquele céu tão grande que parece tão perto,
que parece quase se possa tocar, onde se enxergam os relâmpagos
chegarem de longe a anunciar a chuva.
– Se vocês quiserem dar uma só imagem a tudo isso, qual esco-
lheriam?– perguntou Cafetão.
– Os filhos nas costas das mães ou as crianças que comem com
as mãos – respondeu prontamente Soninho.
– Eu disse uma só – repicou o amigo.
– Uma não é possível, são demais! Se só penso nas crianças
do orfanato... me espantei com a educação deles, a criatividade em
construírem os brinquedos sozinhos... bolas, bonecas, carros! E, ain-
da, a curiosidade em tocarem nós mzungu6 e os pelos dos braços, os
cabelos, tão diferentes dos deles. E, além disso, o sentido do ritmo,
a capacidade imediata de gingar...
– Os dala dala7 transbordantes de gente que davam solavancos
sobre os quebra-molas, pouco maiores que aqueles de Cosenza! –

5. Literalmente “negócio, coisa”, usado para cumprimentar-se.


6. Literalmente “esquisitice, maravilha”, usado para designar o estrangeiro branco.
7. Veículo de 9/10 lugares para o transporte de pessoas, tipo van.

82
capítulo 4
cortou Vovô Longe, rindo. – Mas, brincadeiras à parte, e as muitas
coisas lindas – continuou, – há mesmo muitas feiuras e muita podri-
dão! A água quente é um bem raro, não há energia elétrica em todas
as casas e, de qualquer forma, é intermitente, a saúde tem níveis
baixíssimos e a corrupção é desenfreada.
– Pensem que em cada posto de controlo tínhamos que pagar
a propina ao policial para poder passar!
– As ruas não têm iluminação pública e as mulheres são sub-
metidas e estupradas – acrescentou Soninho.
– Seja como for, estamos falando de um minúsculo fragmento
de África, nossas impressões são limitadas ao que nós vimos. Eu
voltei cheia de incertezas e com muitas questões, sobretudo me per-
gunto o que seja a pobreza. Quanto há de cultural nesse conceito?
Quanto é relativo? Quanto é funcional ao poder?
Suspirou: – Eu não tenho resposta, gente.
Ninguém a tinha, um longo silêncio seguiu a série de quesitos
e uma profunda reflexão sobre os usos e as consciências do mundo
ocidental acompanhou as cervejas da noite toda.

Igor, outro companheiro de viagem, da Tanzânia aterrissou


com eles em Roma para depois viajar para a Europa toda, como
convidado em vários eventos. Teria voltado a Cosenza só pelo Fes-
tival de junho, que estava cada vez mais pertinho. Mas no dia 16
de maio aconteceu um fato muito desagradável: a morte do Mestre
Peixinho, Marcelo Azevedo Guimarães, um dos fundadores do gru-
po Senzala e um dos responsáveis pela modernização da capoeira.
Homem de poucas palavras e de grande sabedoria, hábil artesão na
construção de berimbaus e atabaques, ensinou muita gente a jogar
capoeira e a tocar os instrumentos. Amado e respeitado, reconhe-
cido como referência para os capoeiristas de cada lugar do mundo,
seu desaparecimento foi chorado nas comunidades de capoeira do
mundo todo com o lamento do toque de iuna8, numa roda sem jogo.
Também o grupo de Cosenza, parte do Centro Cultural Senzala de
capoeira de Mestre Peixinho, participou do luto com a suspensão
dos treinos e de todas as atividades previstas na semana. Assim foi

8. Ritmo do berimbau que imita o canto de um pássaro, Iuna, no momento do


acoplamento.

83
maresia

cancelada a exibição programada pelo sábado num agroturismo em


Belmonte Calabro9, e por isso Maria decidiu passar o fim de semana
em família. Algumas vezes sofria de nostalgia, tomava posse dela
um desejo ardente que lhe impunha a voltar ao seus pais, dormir na
sua cama de criança, deixar-se embalar pelos braços de Vovó Qui-
nota e passear na beira do seu Tirreno. Chegou a casa cantarolando,
alegre e serena como não se via faz tempo.
– Será que encontrou mesmo um namorado? – perguntou
Rosa dando uma piscada.
– Que nada! – respondeu Maria, rindo.
– Você está tão radiante!
– Não se está feliz apenas quando se está apaixonado, mãe, a
vida é feita de tantas outras coisas!
– Minha filha, ficaria muito mais tranquila se lhe visse casada,
com um homem que cuida de você...
Sempre o mesmo, pensou Maria, dois jeitos de ver completa-
mente diferentes: – Mamãe! – interrompeu-a. – Eu não quero um
homem que cuide de mim, mas que compartilhe comigo! Sou capaz
de cuidar de mim mesma sozinha!
– Mas a idade avança e depois se torna sempre mais difícil...
Bem no fundo Maria pensava que a mãe não estivesse de todo
errada, sentia a falta de um homem com quem compartilhar pen-
samentos, que a abraçasse à noite e a cercasse de atenções: – Seja
como for, certo não é minha culpa se não encontro a pessoa certa...
por enquanto está bem assim, não quero pensar nisso. Tenho meu
trabalho, minha pequena independência econômica, meus interes-
ses, minhas amizades... quando o amor chegar, chegou. Eu, com
certeza, não vou correr-lhe atrás!
Na manhã seguinte acordou em tempo para acompanhar Vovó
Quinota ao ritual na beira mar, em nenhum lugar de culto se sentia
tão próxima ao divino como quando jogava as flores nas ondas.
Desde que, ademais, interessara-se pelo universo do Brasil, o mun-
do da bisavó adquirira outro peso e a ligação entre elas se reforçara.
Voltando da praia, Rosa lhe pediu ajuda para Quinota tomar banho,
que já faz tempo não conseguia se lavar sozinha. Mãe e filha agar-
raram-na por um braço cada uma e a puseram com delicadeza na
banheira cheia de água. Rosa, com cuidado de filha, ensaboou-lhe as

9. Município italiano da região da Calábria, província de Cosenza.

84
capítulo 4
costas, os cabelos, enquanto lhe falava com uma doçura desarman-
te: – É bela quente, não é?
Maria observou encantada a comovente cena de amor, imóvel,
como apalermada.
– Maria! Não fique aí parada, o que você está fazendo? Pedi-lhe
para me ajudar, não é? – repreendeu-a sua mãe. – Desça no quarto
de Vovó e pegue algumas roupas limpas na primeira gaveta da cô-
moda – ordenou-lhe.
Maria executou sem reclamar, murcha e com cabeça baixa des-
ceu as escadas, ao contrário de sua irmã Anna se considerava uma
falha como filha, inteiramente diferente da mulher que sua mãe teria
gostado que fosse.
No quarto da bisavó abriu distraidamente a gaveta, mas era
aquela errada, havia só papeladas e algumas caixas de vários tama-
nhos. Levada pela curiosidade abriu a mais bonita, uma caixinha
de madeira entalhada onde estavam guardadas algumas joias, nada
de precioso, simples colares de conchas, pulseiras de cobre e as
alianças de casamento de ouro amarelo. Remexendo entre os papéis
encontrou fotografias dos vários membros da família, quase todos
mortos, e uma que reproduzia a bisavó ainda jovem, com os cabelos
cacheados emaranhados e o corpo sinuoso de uma sereia. Maria se
surpreendeu com o quanto fora bonita, apesar dos vestidos pobres
parecia uma rainha, em pose régia, com as costas retas e a cabe-
ça alta. Porém o olhar era sempre o mesmo, triste e vazio, poucas
vezes vira Vovó sorrir, velha desde sempre, desde que ela pudes-
se lembrar. A seguir enxergou um envelope com a inscrição “para
Dona Quinota da Costa Valenza” e, como uma chamada, abriu-o
para o ler, nem sequer por um instante lhe passou pela mente a ideia
de invadir a privacidade da mulher. Deu tempo só de ver a última
linha, “com toda a minha alma, mesmo depois da morte, seu para
sempre e devotisimo Carmine”, os gritos da mãe a interromperam:
– Maria, mas enfim, quer apressar-se sim ou não?
Então pulou como uma mola, enfiou a carta no bolso, pegou
calcinha e camisola na gaveta, a primeira a partir de baixo, e correu
escada acima.
– Nunca que eu possa contar com você, abençoada filha, o que
estava fazendo? – repreendeu-a Rosa. – Não estava mexendo nas
coisas de Vovó, não é?
Enrubesceu, desajeitada: – Tocou o telefone e atendi, está tudo

85
maresia

aqui – mentiu despudoradamente.


Sabia ter feito uma coisa errada, ter entrado com prepotência
na intimidade de Quinota mas, no fundo, que mal havia? Logo que
pudesse a recolocaria em seu lugar, nunca ninguém se daria conta,
dizia a si mesma para se desculpar.
Tiraram a idosa da banheira, enxugaram-na e a vestiram. Maria
a acompanhou a baixo ao seu lugar, na cadeira de balanço em frente
ao mar. Nessa altura fugiu, estava impaciente por ler as duas folhas
escritas com uma grafia um pouco antiga, bastante elementar e com
um primeiro erro de gramática encontrado já na assinatura.
– Mãe, vou pegar um pouco de ar – disse a Rosa.
– Sempre fugindo quando preciso de ajuda... não volte tarde, à
uma hora vão chegar o tio Ciccio e os outros.
– Sim, sim, só uma meia hora, faço uma volta na pracinha.
Não esperou nem se sentar, apenas virou a esquina de casa
abriu o envelope:

Minha amadisima Quinota, escrevo com as maõs que tre-


mem ainda se sei que você não sabe ler e eu não escrevo
perfeto, tenho so a quinta elementar, mas eu li certo livros.
Espero o faz um neto quando eu morro. Eu lhe escrevo para
mim, tenho que me livrar o coraçao, que e afligido. Peso-lhe
perdao, minha adorada, por tudo o mal que eu lhe fez. Mas
foi so para amor, so para amor, meu tesouro! Você nun-
ca corespondeu, nunca se abandonou, não obstante eu lhe
dediquei a minha vida. Nada nunca lhe fez faltar, comida,
roupas, atensoes, uma casa verdadeira, você não as podia
ter essas coisas se ficava no Brasil. Porém você nunca quis
acetar esse meu amor, imenso e puro! Por iso minha caricias
se tornavam pancadas, era demais o sufrimento pelo meu
amor não corespondido!

Maria parou a leitura, o coração começou a bater-lhe forte e


uma confusão tomou conta dela: seu bisavô, que ela amava tanto, o
mesmo que com cuidado a segurava nas pernas quando era criança,
revelava-se homem violento, réu confesso. Tremiam-lhe as mãos,
mal conseguia prosseguir, mas agora já ela tinha que ir até o fim.

A primera vez que eu vi você dansar na beira mar era vesti-


da de branco tinha rosas e rendas, e me rubou a paz. A sua
beleza selvagem, seu corpo divino, o balanso de deus qua-
dris, seu canto como aquele de uma sereia me perseguitava

86
capítulo 4
a noite e o dia. O minha Quinota! Lhe disse que truxe você
comigo para a Europa como uma rainha, mas você riu na
minha cara, me respondeu que você não dexava a sua tera,
que você amava outro homem e esperava um filho dele. Foi
terribil saber que você ja era deflorada, mas não me importa-
va diso, so o seu corpo queria, e sofria. Pensa, meu tesouro,
não podia lhe dar um futuro aquele negro vagabundo, be-
berrao, que ficava todo o dia no meio da rua a se esconder
da policia. Eu não tinha escolha, tinha que salvar a sua vida.
A sua voz melodiosa era uma maldisao, um encantamento,
maltratava o meu sono e não havia solusao! Por iso deci-
di que você, de qualquer jeito, tinha que vir comigo... tive
medo aquela noite, eu queria lhe fazer minha esposa e lhe
posuir mesmo se não era mais pura! Lembro ainda o grito
de dor que lansou quando no navio no alto do mar lhe tirei
a mordasa da boca, aquela foi a ultima vez que uvi a sua voz,
o seu castigo foi que você não me a fez uvir mais, uma vida
junto com o silencio. Nosos filhos foram concebido so com
o meu amor, porque você nãe se deu nunca de verdade, go-
zei do teu corpo mas não da tua alma, que ficou na beira do
oceano. Quinota o minha dileta! Pode perdoar as pancadas
de quando recusava o meu carinho? Pode perdoar todas as
vezes que lhe posui, nunca uma vez que você consentiu?
Não me fiz nunca mais uvir como você canta e a tua voz,
tua risadas, a luz dos seus olhos sumiu. E nosos filhos? Você
não lhes amou de verdade, fez eles crescer sem o amor de
uma mãe. O Quinota! Agora que dentro de pouco eu morro
com esa doensa que me consome dia depois dia tenho que
lhe pedir perdao. Porém voê tem que saber que era so amor,
um maldito amor que condanou a minha vida, e também a
sua, e me fez infeliz, e também a você e aos nosos filhos...
o Quinota! Queria uvir aquela musica que você cantava en-
quanto lavava a roupa e dizia que a sua mãe era uma sereia.
Perdao. Peso perdao para você e para o bom Deus.
Com toda a minha alma, mesmo depois da morte, seu para
sempre de devotisimo Carmine.

Maria chorava, trêmula, estava abalada. É possível que só ela,


em todos aqueles anos, fora tão impertinente e indiscreta que me-
xeu nas coisas da bisavó? É possível que ninguém tivesse lido aquela
carta? Vovó Quinota... então ela tinha a voz, e um tempo até mesmo
cantava! E seu marido Carmine a possuíra a vida toda sem seu con-
senso, estuprava-a, e ela, Maria, outro não era que o sangue do fruto
de uma violência. Que vida tivera que suportar Vovó? Agora enten-
dia o porquê dos olhos sombrios e o véu de tristeza que, como uma

87
maresia

burca, envolvera-a pela vida toda. Longe da sua terra, da sua família,
de todos os afetos deixados, até mesmo um filho. Que fim fizera
aquele filho? Como ter respostas a todas suas perguntas? Olhou o
relógio e se recompôs, tinha que voltar a casa e fingir que não sabia
de nada, se Rosa tivesse sabido que mexera nas coisas da bisavó te-
ria ficado enfurecida, não admitia certas faltas de respeito. Por sorte
o tio Ciccio, a tia Elisa e Mariella já haviam chegado, ao contrário
Genio fora pescar com Carmine e voltariam depois de um par de
horas. Rosa lhes deixaria a comida aquecida, como costumava fazer.
Maria almoçou de cabeça baixa, tinha pouca vontade de con-
versar, só teria querido gritar os fatos descobertos, dizer a Vovó
Quinota quanta amargura tinha por dentro, mas não podia fazê-lo.
À tarde, quando todo mundo estava fora de casa, agachou-se com
a testa sobre as pernas da bisavó e começou a chorar. Quinota a
confortava acariciando-lhe a cabeça, não precisava saber o porquê
das lágrimas, só o fazia.
– Vovó, diga-me a verdade, você me ama apesar de tudo?
A mulher a olhou incerta, levantou as sobrancelhas, não intuía
o sentido da pergunta.
– Você tem que saber que eu lhe amo realmente muito, mas
muito... que você é a pessoa mais importante pra mim, que sem
você eu não saberia nem mesmo como fazer, onde encontrar con-
forto... seus silêncios são um consolo, suas caricias são minha cura.
Maria chorava, liberava lágrimas incompreensíveis.
– Claro que amo você, minha menina – disseram os olhos da
bisavó, pequenos e entreabertos.
Numa certa altura Maria entoou uma música há pouco apren-
dida, saiu-lhe da garganta de jeito quase involuntário: “Adeus povo
bom adeus, adeus que eu já vou embora, pelas ondas do mar eu
vim, pelas ondas do mar eu vou embora”, e enquanto cantava ima-
ginou a esplêndida e formosa negra da fotografia ao lançar um grito
lancinante, dizendo adeus à sua gente, no navio transportado pelas
ondas do mar.
Quinota conhecia a cantiga, entoou a melodia com seu canto
a boca fechada seguindo as palavras da bisneta e também no seu
rosto compareceram as lágrimas. Cantavam e choravam juntas, mas
nenhuma das duas sabia que era pelo mesmo motivo. Maria foi ten-
tada a falar com a bisavó, contar-lhe tudo, mas era realmente o caso
de trazer de novo à memória só um grande sofrimento? Decretou

88
capítulo 4
que seria melhor calar-se, certo é que não queria lhe provocar um
infarto. Levantado o espírito se preocupou em recolocar a carta no
mesmo lugar onde a encontrara, mas a turbação não a abandonou e
a noite não fechou olho, torturada pelo pensamento fixo dos abu-
sos do seu bisavô, perpetrados por anos.
Na manhã seguinte foi a voz de Rosa a acordá-la e, dada a in-
quietude noturna, perguntou-se se a dureza da mãe não foi o fruto
de um tipo qualquer de violência de seu pai. Moía pensamentos es-
tranhos e quando Rosa lhe levou o café, de impulso lhe perguntou:
– Mamãe, papai sempre lhe tratou bem? Ele nunca bateu em você?
– Mas que ideias lhe dão na cabeça? – respondeu assustada.
– É que essa noite tive um sonho ruim – mentiu para justificar
a pergunta.
– Seu pai é um homem bom, nunca faltou ao respeito nem a
mim nem a vocês... ele nos ama. Não quero mais ouvir dizer-lhe se-
melhantes tolices. Levante-se, sus, que está tarde. Mais você cresce,
mais se torna preguiçosa!
– Desculpa – gaguejou Maria. – Não queria ofender nem você,
nem papai. Era só pra...
– Só pra? – olhou-a com severidade.
– Pra nada – concluiu ela, sem ter nada a dizer.
Antes de sair para pegar o trem, Maria foi cumprimentar Qui-
nota, já acordada mas ainda na cama, à espera de Rosa ir ajudá-la a
se levantar e a se lavar.
– Tchau Vovó, nos vemos no próximo domingo, foi bom pas-
sar esses dois dias com você, precisava mesmo. Eu amo você.
Dobrou-se e lhe deu um beijo na fronte, enquanto as mãos da
bisavó lhe agarraram o rosto numa carícia cheia de gratidão.
Chegou ao escritório encolhidinha, não tinha vontade de fazer
nada. Estava cansada e sonolenta e, mais, sem bicicleta, o que a teria
forçado a pegar um ônibus. No início da tarde adormeceu com o
rosto na escrivaninha, estava quase sonhando quando a voz de Et-
tore a acordou: – Fazemos as noitadas, não dormimos e depois, no
dia seguinte, não conseguimos trabalhar, hein Maria!
Ela se abalou, meio caduca: – O que você sabe do que eu faço
à noite? Tenho que lhe responder mesmo quanto e como durmo? –
gritou, irada. Teria querido quebrar a cara daquele imbecil filho de
papai, com o prato servido desde que nascera.
– Claro que você tem que me responder se depois de dia você

89
maresia

não é eficiente.
– Olha, Ettore, não é um bom dia, tenho os nervos à flor de
pele...
– Vejo-o.
– Isso mesmo, então evita de dirigir-me a palavra, porque hoje
estarei pronta a tudo.
– Está bem, hoje paramos por aqui, mas amanhã vamos voltar
ao assunto – concluiu o Explorador.
Com as lágrimas nos olhos pela tensão, Maria terminou as coi-
sas por fazer e, chegadas às sete, saiu correndo. Não esperou o ôni-
bus, fez ao contrário uma longa caminhada até em casa, precisava
esclarecer os pensamentos e largar a angústia. Certamente o Viale
Parco, ao centro de duas estradas cheias de carros, não era o lugar
mais saudável para uma caminhada, mas o cansaço físico a teria aju-
dado a dormir. E, além disso, era uma esplêndida noite de final de
maio, com um quarto de lua particularmente luminosa. Em casa não
encontrou ninguém, beliscou rápido um pedaço de pão e queijo e
mergulhou na cama.
Na manhã seguinte estava finalmente descansada e ao seu des-
pertar encontrou uma surpresa, uma mensagem inesperada no celu-
lar, em espanhol: “Hola Maria, soy Ramón. La semana que viene iré a
Italia por un trabajo y cuando termine con ello me gustaría ir a verte”.
Ficou petrificada. Naquele momento não sentiu alguma sen-
sação, nada, nem felicidade, nem surpresa, nem raiva. Ramón? E
quem pensava mais nele? Praticamente desaparecera, respondera-
-lhe a custo só a uma mensagem entre aquelas que lhe enviara e
após? Depois de mais de um ano, exatamente quinze meses, con-
tatava-a para lhe dizer que queria ir visitá-la. – Esse homem é de
verdade sem noção – pensou Maria.
Não lhe respondeu, não tinha vontade. Teria podido reagir aci-
damente: stronzo, uma única palavra teria sido suficiente, mas não
estava certa que ele teria entendido em italiano. Durante o dia pe-
diu conselho um pouco a todos seus pontos de referência os quais,
como previsível, deram opiniões discordantes.
– Não pense de jeito nenhum em responder – disse-lhe Genio
ao telefone, pronto a desencorajar a obsessão da prima.
Milena, ao contrário, achando irrenunciável cada ocasião na
vida, sugeriu-lhe exatamente o oposto: – O que lhe importa, diga-
-lhe de sim, de vir visitá-la! Talvez você vá passar os dias mais lindos

90
capítulo 4
da sua vida. Por que você não deveria fazê-lo?
– Mas ele desapareceu por mais de um ano! Nem mesmo lem-
bro mais de como é feito...
– Bom, embora que não a procurou, evidentemente não es-
queceu de você! E, além disso, não acredito que não lembre mais
de como ele é, você esqueceu em que condições voltou da viagem
em Lanzarote?
– Sim, porém...
– Eia, não seja sempre tão pesada, tão rígida, não é o homem
da sua vida, poderá até mesmo passar sobre certas coisas! Dê uma
boa foda, faz quanto tempo que você não fica com um homem?
– Eh! – exclamou desmoralizada. – Viento, desde março.
– Oh, abençoada Maria! Você tem trinta e três anos, está per-
dendo o melhor período da sua vida, liberte-se um pouco minha
amiga... quer tornar-se velha à espera do príncipe encantado? É pos-
sível que não há ninguém que lhe interesse na cidade?
– Mas eia, Mile’, para! É que não tive a oportunidade, não
acontece, não sei. Não há ninguém que me interesse nesta maldita
cidade, nem nos arredores. E, também, a verdade é que mais avança
a idade, mais todos os homens são noivos, casados, têm família... e,
afinal, onde você quer que encontre um homem se fico dez horas
por dia no escritório?
– Maria, graças a Deus me parece que sua vida não é mais só
casa e escritório. Você conheceu um monte de gente nova... e todos
os amigos de Aldo e Giada que circulam em casa? Ou aqueles dois
jovens bonitos e altos da capoeira, como se chamam? Que, vou lhe
dizer, se eu fosse você... e ademais, nem mesmo um brasileiro? Vo-
cês têm o mestre brasileiro, não é? Todo mundo o diz, os brasileiros
nunca recusam, envolvidos ou não.
– Sou eu, porém, que não quero ficar com um homem ligado
a outra mulher!
– Oh, como você complica as coisas! E, seja como for, não me
parece que Ramón tenha uma qualquer espécie de namorada, então
responda a essa porra de mensagem! – resolveu imperiosa.
Ao final Maria se convenceu, respondeu à mensagem de jeito
bastante neutro, convidando-o a telefoná-la quando for o momento.
À noite foi treinar, dali a uma semana teria começado o Festi-
val, e antes da aula Cofrinho comunicou a impossibilidade do Mes-
tre Ramos de chegar a Cosenza, retido no Rio de Janeiro por causa

91
maresia

da morte do Peixinho, seu mestre e amigo, ao qual era profunda-


mente ligado. A notícia fez baixar o humor da galera, claro, teriam
tido o contramestre Igor e o professor Boneco, mas ele era o convi-
dado especial, o mestre tão aguardado há meses, o qual, sentido por
sua vez, teria enviado em seu lugar um aluno residente na Europa,
um corda verde, o professor Manuche.
A sexta-feira, primeiro dia de evento, o encontro estava mar-
cado pelas dezenove e trinta na academia e Maria, para não fazer
as coisas demais apressadas, pediu ao Explorador para ir embora
um pouco antes. Ettore consentiu, não sem salientar o grande favor
que lhe estava fazendo. Ela o deixou falar, não queria perder tempo
atrás das suas provocações, não era o momento de fazer polêmicas,
só tinha que se apressar. Em casa teve tempo de relaxar uma meia
hora, beliscar algo, enfiar camiseta e abadá e fazer uma caminhada
até a academia. À sua chegada já estava todo mundo, emocionou-se
ao ver a mancha branca de pessoas e, nas costas, o símbolo redon-
do do Centro Cultural Senzala de Capoeira, um grande sol, com o
berimbau no meio. Aproximou-se de Igor e de Boneco para cum-
primentar e, ao lado deles, notou uma figura de costas desconhecida.
O instante em que ele se virou foi pra Maria como atravessar um rio
em cheia, transbordamento de emoções, coração em afã entre o ím-
peto da corrente: conhecia aquele homem, era Ramón. Boca aberta,
olhos escancarados e sobrancelhas curvadas para o alto exprimiam
toda a surpresa, caiu-lhe até mesmo a bolsa das mãos quando ele, ab-
sorto em tocar berimbau, suspendeu de repente e sussurrou: – Não
posso acreditar...
– Non ci posso credere, – Maria pronunciou a mesma frase em
italiano.
Ramón estourou numa risada: – A roda do destino, maliciosa-
mente à espera! – exclamou abraçando-a com força. Ela estava pe-
trificada, tensa como uma corda de violino. Igor, Boneco e o resto
da galera estavam atordoados.
– Vocês se conhecem? – perguntou Cofrinho, incrédulo.
– O mundo é pequeno, mas realmente muito pequeno... ele é o
cara que conheci o ano passado em Lanzarote e que me fez conhecer
a capoeira, como podia saber que fosse do grupo Senzala? – sorriu
ela divertida.
Ramón, por seu lado, não sabia a cidade onde morava Maria,
nem que ela tivesse começado com a capoeira.

92
capítulo 4
No vestiário feminino a questão foi aprofundada, a nenhuma
fugira o entendimento do abraço deles: – E então? Eia, eia, conta... –
incitou-a Panda.
Maria riu: – O que quer dizer Manuche? – perguntou desvian-
do, sentia-se em embaraço.
– Literalmente é cigano, pessoa que conduz vida errante – ex-
plicou Soninho, cuidadosa estudiosa da língua portuguesa.
– Zíngaro – precisou, – mas não na acepção negativa e estere-
otipada que nós lhe damos!
– Parece-me um apelido apropriado, por quanto eu sei ele deu
a volta ao mundo – disse Maria.
– Então você o conhece bastante bem – aludiu Sapinha. – Eia,
não se faça preciosa!
Então Maria, puxada pela insistência das amigas, em voz baixa
revelou ter vivido com ele dois intensos dias de amor e de ter re-
cebido, alguns dias anteriores, uma sua mensagem: – Mas como eu
podia pensar que ele teria vindo aqui mesmo, ao nosso batizado?
Além do mais, não me dissera que era um professor de capoeira! Eu
também estou atordoada!
A aula começou com uma bateria de instrumentos maravilho-
sa, uma poderosa energia se percebia no círculo, os três berimbaus,
gunga, médio e viola10, manejados magistralmente pelo contrames-
tre e pelos dois professores, criaram uma atmosfera antiga. Repro-
duziam o som dolente do cativeiro, nostálgica invocação das terras
da África, grito de luta pela liberdade. Quando Igor entoou o canto:
“Chama eu, chama eu, chama eu Senzala chama eu”, o coro se tor-
nou o estrondo de um trovão, Maria teve um calafrio, arrepiou-se
e, pela primeira vez, percebeu um sentido de pertencimento muito
profundo ao grupo Senzala e à tradição cultural levada em frente.
Embora Ramón estivesse aí, durante os treinos Maria não pen-
sava nele, estava concentrada demais nos exercícios, impregnada de
suor, intenta a pôr à prova sua capacidade de êxito. A galera estava
ao completo, vinte pessoas no total incluídos três hóspedes: Gior-
gio dos Palmares de Pisa, companheiro da viagem na África; Chiara
dos Cordão de Ouro, cosentina emigrada em Londres; Pierfelice
dos Soluna de Castovillari.

10. Os três tipos de berimbaus tocados na roda de capoeira, grande, médio e


pequeno.

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maresia

Depois da roda final todo mundo junto se dirigiu a uma trat-


toria com cozinha típica para comer e Ramón quis sentar-se perto
11

de Maria: – Tó aprendendo um pouco de italiano – disse-lhe numa


mistura de línguas – e acho que você está aprendendo um pouco de
português! Mas se fala em italiano eu posso entender tudo!
Maria riu, e depois lhe disse: – Ramón ou Manuche... como
tenho que lhe chamar?
– Como você quiser, meu bem!
– Enfim, você reaparece de repente depois de mais de um ano
de silêncio... sua mensagem me deixou perplexa.
– Não tenho uma boa relação com o telefone, mas vê que não
esqueci de você...
Os olhos deles entraram profundamente uns nos outros e uma
onda de volúpia se apossou dos seus corpos.
– Onde você mora?
– Perto da academia, tenho um quarto alugado na casa de um
casal de amigos.
– Eu teria que dormir em casa do Igor, mas se você quiser eu
poderia...
Não o fez concluir: – Claro, vem à minha casa! – disse sorrindo.
E assim, depois de mais de um ano, ainda uma vez os corpos de
Maria e Ramón se juntaram, criando uma nova esquina de mundo,
onde existiam só suspiros de prazer e ternas carícias. No meio da
noite Maria acordou e observou a silhueta ao seu lado, da fisiono-
mia tão particular, evidente fruto de uma mistura de traços e cores
de pele. Ainda incrédula com o que estava acontecendo, sentiu um
aperto no coração porque, mesmo que o destino quisera fazê-los se
encontrar de novo, ele teria ido embora. Manuche, pertencente ao
povo do vento, difícil pará-lo, obstar seu caminho cigano. Foi um
final de semana extraordinário, cheio de capoeira, festas, cervejas,
música e alegria verdadeira.
O domingo, dia de batizado e troca de cordas, a emoção era vi-
sível nos rostos de todos, sobretudo das cordas amarelas, finalmen-
te, depois de anos, viradas laranja. Maria foi batizada pelo contra-
mestre o qual, fazendo-a cair, apertou-lhe na cintura a corda branca:
– Maresia – pronunciou, – bem-vinda na grande família da Senzala!
Maria não sabia o significado do apelido, mas o som lhe pare-

11. Pequeno restaurante onde se comem pratos típicos do lugar.

94
capítulo 4
ceu logo maravilhoso e a reconduzia a uma relação com o mar. Igor
lhe confessou de ter pensado naquele nome assim que a conhecera:
– Maresia é cheiro intenso do mar junto à costa, especialmente na
maré baixa – explicou.
Afinal de contas não havia nome mais apropriado, também
Ramón concordou, Maria levava consigo o perfume do mar: – Com
certeza você é filha de Iemanjá – disse-lhe.
– E quem é? – perguntou ela.
– Iemanjá é uma dos orixás, a senhora do mar, a rainha, mãe e
amante dos pescadores.
Maria ficou fascinada pelo conto sobre os orixás, na mitologia
ioruba a encarnação das forças da natureza com características hu-
manas. Eles se revelam através das emoções, têm defeitos, humo-
res, fraquezas e não são perfeitos e infalíveis. Cada orixá é rodeado
por um sistema simbólico particular feito de cores, comidas, canti-
gas, orações, ambientes, espaços e, como resultado do sincretismo,
é associado a um santo católico. Durante o período da escravidão,
deveras, por causa da imposição do catolicismo os africanos, para
manterem vivos seus orixás, foram obrigados a mascará-los sob os
despojos dos santos católicos, cujo culto era só aparente. Uma pro-
va da malícia intimamente ligada também ao jogo da capoeira, a
astúcia com a qual se engana e não se deixa enganar.
À noite, em vez de pegar o trem, Ramón pediu a Maria se po-
dia ficar mais alguns dias e ela, cheia de felicidade, consentiu. Falou
disso antes com seus coinquilinos os quais, amantes como eram da
companhia, não fizeram objeções, pelo contrário: – Pode ficar todo
tempo que ele quiser, Ramón é estupendo, estou feliz por você! –
disse-lhe Giada, eufórica.
Manuche se sentiu logo à vontade na cidade de Cosenza, de-
certo a existência do grupo de capoeira o facilitou muito porque:
– Quando há galera boa, há família – dizia.
Através dos camaradas, deveras, em menos de um mês criou
seu micro mundo, com compromissos, diversões e amizades. Deu-se
bem de jeito particular com Batuque, Gianluca Salamone, artista po-
liédrico, por ele comparado por certos aspectos ao gênio de Carybé,
por outros àquele de Manrique. Quando se encontravam nas Offici-
ne Babilonia se perdiam por horas no armazém onde ficava o mate-
rial de reciclagem recolhido, munidos de ferramentas e genialidade
se divertiam a transformar os descartes, dando assim vida a novos

95
maresia

objetos ou a criações que se somavam à mobília do galpão. Se tinham


vontade de tocar, dirigiam-se à tenda artesanal da associação El Alma,
um minúsculo espaço compartilhado por Batuque, com telas e cores,
por Andrea o luthier, com o laboratório colocado no mezanino, e por
Tony o Punk, mestre das garrafinhas de sal colorido. Uma roda de
músicos se encontrava ali cotidianamente e não era raro, sobretudo à
noite, deparar com estranhas misturas musicais, improvisadas perfor-
mances ao comando do violão de Fernando Blues. Soninho, no en-
tanto, desvelou-lhe que mesmo na costa do Tirreno era possível sur-
far as ondas, mas somente nos dias e nos lugares certos: – Tenho que
lhe apresentar meus amigos surfistas, assim vai com eles – disse-lhe.
Ramón conheceu então Alessandro il Sindaco, Dario u Ser-
baggiu, Demarco, Dodò e Raffaele, com os quais entrou imediata-
mente em sintonia. À primeira marulhada o convidaram a juntar-se
a eles, emprestaram-lhe prancha e roupa de borracha e o levaram
para Munnizza, um spot desconhecidos aos mais, onde a beleza sel-
vagem do Tirreno aparecia em toda sua majestade. Ficaram na água
até que havia luz e Manuche voltou à casa radiante, não imaginava
encontrar ondas parecidas com àquelas do oceano.
Logo se deu conta de que já estava amando a cidade de Co-
senza, cheia de pessoas interessantes, com uma energia particular,
talvez devida à estranha conformação geográfica: no meio de sete
morros e com a confluência de dois rios. Sua alma cigana, que pela
vida toda o levara a rodar o mundo, convidava-o a parar porque, e
sobretudo, ali encontrara um maravilhoso motivo para fazê-lo, uma
preciosa flor do perfume do mar, Maria. Descobriam-se dia após
dia através do conto das suas vidas, no sonho comum de um futuro
mais humano, jogando na roda do presente. Ainda não falavam de
amor, mas seus olhos não deixavam dúvidas nem equívocos.
– E se eu vier morar aqui? – perguntou-lhe Ramón com sim-
plicidade. – Vamos morar numa casinha com um pedaço de terra,
só eu e você, meu bem.
Maria riu, feliz como não o estava há muitíssimo tempo: – Sim,
sim, seria esplêndido! – respondeu sem pensar um instante.
– Por um tempo – disse ele.
Não era uma promessa de amor eterno, mas de certo queria ela
no seu presente.
– Você tem certeza? – perguntou-lhe, parecia-lhe uma coisa
incrível que ele quisesse deixar a ilha e mudar de vida do dia para a

96
capítulo 4
noite, só pra ficar com ela. “Por que comigo?”, vacilava a autoesti-
ma, e “por que não eu?”, respondia o amor-próprio, num furioso
combate para o equilíbrio. Ramón a agarrou pelos braços, perdeu-se
nos olhos dela e disse: – Manuche precisa só de três coisas pra ser
feliz: as ondas, um berimbau e um grande amor. Em Cosenza há
tudo isso e eu quero ficar, esta cidade tá me chamando – concluiu.
Logo concordaram um plano organizativo: ele teria voltado a
Lanzarote, carregado a kombi com todas suas coisas e teria transita-
do com ferry e viajado, quilômetros após quilômetros, até a Calábria.
– Venha comigo – pedira-lhe. – Vamos viajar sem tempo!
Porém Maria não era tão cigana quanto ele, não podia viajar
sem tempo, tinha um trabalho e devia contar as folgas: – Não pos-
so, não posso de jeito nenhum, arrisco o posto!
Ela teria gozado de mar e descanso nas duas semanas de ferra-
gosto e, entretanto, teria buscado casa à espera da volta dele, previs-
ta para os começos de setembro.
Ramón desistiu do propósito da viagem com o furgão, mas à
todo custo queria que ela também fosse em Tórino, com ele e outras
pessoas da galera, para o week-end de campismo e capoeira organi-
zado por Boneco. Dali ele prosseguiria para Lanzarote, enquanto ela
voltaria à casa com os outros. Tinha absolutamente que conhecer o
convidado especial do estágio: Mestre Sorriso, um dos fundadores
do grupo Senzala, percussionista apreciado no mundo todo, íntimo
amigo de seu pai José Francisco. Manuche o adorava e o estimava
pela sua história de vida mas, sobretudo, pela sua abordagem da vida.
– Você vai gostar – disse-lhe para convencê-la. – É uma ocasião
especial.
Maria aprovou o plano e em companhia de Sapinha, Panda e
Soninho, no dia oito de julho viajaram. Mestre Sorriso ficou feliz
de rever Manuche, não era ele a dar-lhe a corda, mas no fundo o
considerava seu aluno. Conhecia-o desde o nascimento e, desde que
se mudara para a Europa, hospedara-o várias vezes na sua casa em
Montpellier, onde morava. O mestre ria como ninguém e mostrava
seus dentes brancos, reluzentes como estrelas na pele preta: – A
vida é boa pra caralho, Manuche! – repetia.
E Ramón, vagabundo dentro, entendia perfeitamente suas
palavras, compartilhava a mesma filosofia de vida: aproveitar, só
aproveitar. Em suma, gozar a vida. Entre um gole de cachaça, um
bocado de frango e um passo de samba, Sorriso fez amizade com a

97
maresia

galera de Cosenza: – Galera muito boa – disse. Ficou fascinado com


a mulherada do sul, mulheres fortes e inteligentes, afirmava, com
as quais se deu bem imediatamente. Através da figura do antigo
mestre, Maria teve uma prova da alegria carioca e, pela primeira vez
fora da casca do seu grupo, confrontou-se com capoeiras diferentes
dos seus companheiros. Das muitas coisas faladas por Sorriso, uma
frase lhe ficou impressa: – O segredo da capoeira é só um: treinar,
querida, cada dia.
Poucas palavras, que nunca teria mais esquecido.
Na segunda-feira cada um se dirigiu a um lugar diferente: Ma-
nuche pegou o avião para Lanzarote, ela para Lamezia Terme12, ao
invés as outras mulheres se enfiaram num trem com destino Pisa,
teriam continuado a viagem e encontrado os amigos do grupo Pal-
mares. Maria teria tanto querido ir com elas, mas não houvera jei-
to de convencer Ettore a ter um outro par de dias a mais. Já fora
uma árdua empresa ter a sexta e a segunda-feira: – As férias são em
agosto – respondera-lhe o Explorador. – Considera esses dois dias
uma exceção, um presente. Ademais, nem mesmo se trata de uma
exigência, você não está doente, é só por puro prazer.
Um sentimento de opressão a invadira ao ouvir aquelas pala-
vras, arrependeu-se de ter sido sincera, teria devido, ao contrário,
inventar uma gripe ruim e ficar rodando uma semana inteira. Nas
ameaças de Ettore de visita fiscal nunca acreditara, uma lenda que
circulava entre os colegas, sem credibilidade vistos os contratos de
projeto sem vínculo de horário. Maria, porém, estava feliz demais
para se enraivecer e nem mesmo se perturbara.
Acabado de voltar de Tórino se pôs em busca de casa, mobili-
zando todas suas amizades e investigando a fundo os sites de anún-
cios. Seus coinquilinos, entretanto, tentavam convencê-la a ficar
com eles, não queriam dinheiro a mais, só teriam dividido os gastos
em quatro em vez que três: – Eia, Maria, pelo menos até enquanto
Ramón não encontrar um trabalho, senão depois o peso da casa
recairia só sobre você! – disse-lhe Giada, como amiga.
– Efetivamente é assim, mas ele para trabalhar precisa de es-
paço, é um artista, você sabe! Constrói atabaques, berimbaus, faz
esculturas, pinta e além disso – suspirou, – quem sabe quais mil
coisas poderia inventar-se! Ramón é um que se arranja, não entendi

12. Município italiano da região da Calábria onde há o aeroporto.

98
capítulo 4
bem como, mas se dá um jeito! – riu de gosto.

Além da casa, Maria tinha que enfrentar outra questão, bem


mais importante e delicada: devia falar com os pais dos seus proje-
tos. Da família só Genio estava a par de tudo, realmente espanta-
do com o desenvolvimento da história. Quando Maria lhe contara
tudo, conseguira só dizer: – Eu achava que fosse morto e sepultado
esse homem.
– E o era! – respondera a prima. – Só que de repente voltou...
bum! Não entendi nada, tá bom, em suma, nos amamos, isso é certo.
Com Rosa e Carmine se preparava para a batalha em relação
a dois pontos fundamentais: de um lado a convivência sem vínculo
matrimonial, de outro a precariedade do trabalho de Ramón. En-
frentou antes sua mãe, numa fresca noite de fim de julho: – Mãe,
apaixonei-me – disse à queima-roupa. – Chama-se Ramón, estamos
ficando há um tempinho.
O rosto de Rosa se iluminou: – Oh, minha filha, estou tão feliz!
E você me fala disso só agora?
– Tá bom, não é muito, cerca de um mesinho.
– Um mesinho? E já se declara apaixonada? Mas a experiência
não lhe ensinara nada? – arguiu-a, pra ela um mês era na verdade
pouco demais.
– Quero dizer, não é mesmo assim – tentou justificar-se Ma-
ria. – Na realidade o conheci há mais de um ano, em Lanzarote,
ficaram em contato todo esse tempo e depois o acaso quis que nos
reencontrássemos.
Certo não podia dizer-lhe que ele praticamente sumira por
mais de um ano e, do dia para a noite, caíra de novo na sua vida sem
nem mesmo pedir-lhe licença.
– Ramón... então é estrangeiro, e como vocês se reencontraram?
Maria então contou a história, reescrevendo-a segundo as exi-
gências da mãe, omitindo os detalhes indecentes e dando relevo
ao título de arquiteto, regularmente entregado pela universidade do
Rio de Janeiro. Rosa considerava a graduação ainda um símbolo de
respeitabilidade e lhe se iluminou o rosto: – Oh, um arquiteto, que
maravilha! Do Rio de Janeiro, como Vovó Quinota – riu. – Quando
nós o conheceremos?
– É que agora ele voltou a Lanzarote para pegar suas coisas e

99
maresia

se mudar para Cosenza...


– Ah, que lindo! E já encontrou trabalho?
– Na verdade não, porém não é difícil pra ele, com uma gradu-
ação técnica se abrem muito mais portas – tentou apequenar.
– Vamos morar juntos – disse de um fôlego. Eis, conseguira,
dissera-o. O indizível, a indecência.
Sua mãe se petrificou: – Morar juntos? Mas está louca, Maria?
O que vão dizer na cidadezinha? E quem vai falar ao seu pai que vai
conviver com um brasileiro que à custo conhece?
– Eu mesma lhe digo, mamãe, fica tranquila. Não sinto ne-
nhum embaraço, não penso que haja nada de mal nisso – respondeu
ela com serenidade.
– Ah, sim? Você não tem vergonha de se fazer concubina? –
disse sublinhando o termo com desprezo.
Nessa altura Maria se enraivou: – São absurdos esses discursos,
ou melhor, retrógrados! Sou uma mulher de trinta e três anos, pode
parar de esperar que eu chegue virgem ao casamento, porque eu já
perdi a virgindade há uma peça, querida mamãe!
Rosa estava prestes a chorar: – Como pode dizer coisas tão
malvadas? De quem você puxou isso? Ninguém na família é assim.
Certo com a vida que fez, morar sozinha, aos vinte anos, sem ter
necessidade disso...
– Não são malvadezas, são verdades que você, porém, não
quer ver. Sim, você tem razão, sou a sua desonra. Sou uma desa-
vergonhada, uma puta. É isso o que você pensa de mim, verdade?
Diga-me, diga-me se tem a coragem – instigou-a.
Sua mãe não reagiu, debulhou-se em lágrimas e subiu correndo
pelas escadas acima. Ela, ao contrário, ficou na cozinha, calada e
triste, lamentava ter sido tão dura, mas o bigotismo de Rosa a fazia
ficar furiosa. Aproximou-se de Quinota, que do seu lugar assistira à
discussão toda: – Oh, Vovó! De verdade sou tão ruim?
A bisavó lhe acariciava a cabeça enquanto ela chorava agachada
às suas pernas, sabia quanto a falta de comunicação e os desacordos
com a mãe faziam a bisneta sofrer, desde a adolescência. Depois de
um pouco Maria saiu e encontrou Rosa apenas na manhã seguinte.
Estava enraivecida, amuava-se com ela, não lhe dirigia a palavra, con-
tava com uma posição forte do marido, com o suporte dele teria tra-
zido a filha de volta aos trilhos da decência. No entanto Carmine, ao
contrário de como esposa e filha esperavam, reagiu de jeito tranquilo,

100
capítulo 4
sem se descompor demais: – O que eu posso lhe dizer? Sempre fez o
que você quis e, ademais, agora já os tempos mudaram.
Maria ficou empalidecida, não lhe parecia verdade ouvir seu
pai fazer certos discursos.
– Mas Carmine... – tentou objetar Rosa.
– Sus, eia, é inútil que nos obstinamos em pensar num certo
modo – dirigiu-se à esposa. – Agora já todos os jovens convivem,
não podemos fazer nada. Eu lhe digo só uma coisa – e se virou para
a filha, – faça-se respeitar e não se deixe ferrar.
E assim, com a sincera e simples recomendação de seu pai,
Maria recuperou a serenidade necessária para repensar sua vida,
buscar uma casa com um pequeno jardim nos arredores da cidade e
estar à espera, em setembro, da chegada da kombi amarela e verde.

101
CAPÍTULO 5

Numa fresca noite de início setembro chegou a Cosenza a


kombi verde e amarela, sem aviso prévio. Ramón estacionou em-
baixo de casa e interfonou.
– Sim? Quem é? – respondeu Aldo.
– Ramón, abra.
Ao ouvir a voz do amigo estourou numa risada, divertia-o a
extravagância dele, aquele fazer leve, a sua imprevisibilidade.
– O que está acontecendo de tão divertido? – ficou curiosa Giada.
– Ramón – anunciou o marido. – É incrível esse homem, che-
ga assim, de repente, sem aviso prévio, às dez da noite...
O casal o acolheu no limiar de casa, estavam felizes com a sua
volta.
– Tivemos saudade de você! – disse Aldo.
Em casa se sentira sua ausência, tudo era muito mais silencioso
sem seu contínuo cantarolar e bater mesas, garrafas e qualquer ou-
tro objeto apto a emitir sons. Maria estava fora, depois do trabalho
ficara para beber algo com Milena, há muito não se encontravam
para conversar. Giada propôs chamá-la, mas Ramón recusou, que-
ria fazer-lhe uma surpresa.
Maria chegou pouco depois, por volta das onze. Acabado de
voltar de bicicleta já notou a kombi no estacionamento e seu co-
ração se encheu, por todo aquele tempo nutrira a dúvida de que
ele não voltasse mais, telefonaram-se pouco e não marcaram algum
tipo de compromisso, mas a partir daquela noite em diante, e por
muitas outras noites, teria adormecido com ele ao seu lado e es-
quentada entre seus braços. Nos intermináveis minutos de subida
no elevador imaginava morder-lhe os lábios num beijo cheio de
amor e de energia, como só eles sabiam fazer e, entrando em casa,
correu até ele lançando um grito de joia. Giada, romântica como
era, saboreava a docíssima cena e, suspirando, repetia entre os den-
tes: – Maria merece, merece de verdade.
Ramón e Maria se retiraram para seu quarto, estavam com von-
tade de se apertar, fazer amor, acarinhar-se, o período de afastamen-
to alimentara o desejo, a paixão e a vontade de ficar juntos.

103
maresia

– Eu não pensava que você teria voltado de verdade – disse-lhe


Maria.
– E por que, minha preciosa?
– Não sei, talvez porque me parece estranho que você tenha
deixado tudo pra vir morar aqui em Cosenza, no sul do sul, só pra
ficar comigo...
Ramón adoçou seu olhar: – Manuche nada deixa em lugar ne-
nhum, leva tudo dentro de si... fiquei louco por uma maravilhosa
menina do sul que mora numa cidade cheia de gente bacana e ener-
gia boa!
Fez uma pausa, depois continuou: – Maresia, eu quero cons-
truir com você! Pela primeira vez na minha vida sinto que chegou a
hora e, mais que tudo, a pessoa certa.
Maria o abraçou, ela também, no fundo do seu coração, sabia
que chegara a hora e a pessoa certa.
No dia seguinte acordaram cedo, ela para ir ao escritório, ele
pra começar uma nova vida num outro lugar ainda. Descarregou o
furgão e arrumou suas coisas, só uma mala de efeitos pessoais, mas
a casa se encheu de ferramentas, instrumentos musicais e duas pran-
chas de surf. Gastou um pouco de tempo ao telefone para avisar
aos amigos surfistas da sua volta, daquele momento em diante teria
perseguido as ondas do Tirreno junto com eles. À tarde, no entanto,
dirigiu-se às Officine Babilonia, tinha certeza de encontrar Batuque.
De fato ele estava ali, na entrada do galpão junto com dois rapazes
africanos. De longe o viu gesticular, por isso imaginou que estivesse
imerso numa conversa em mais línguas.
– Batuque! – chamou-o em voz alta. – Que língua você tá fa-
lando? – brincou.
O amigo se virou e foi ao encontro dele: – Manuche, bem-vin-
do! Tenho um monte de coisas pela cabeça das quais queria falar-lhe!
– Sim, vamos fazer muitas coisas juntos! – conveio. – Hi bro-
thers – virou em seguida para os dois jovens.
Nessa altura a conversa mudou de língua, as palavras deixaram
espaço à linguagem universal da música e o eco dos tambores se
espalhou no ar até a noite. Às oito Batuque e Manuche se dirigiram
à academia para a aula de capoeira e a notícia da mudança do pro-
fessor gerou um entusiasmo geral. Sua experiência, em apoio ao tra-
balho de Cofrinho como responsável dos treinos, teria certamente
surtido na galera uma onda de energia nova.

104
capítulo 5
Alguns dias depois, numa tarde de vagabundagem pela cidade,
arte que Ramón aprendera a amar nas histórias de rua de Jorge Ama-
do, encontrou uma pequena oficina de marcenaria num beco úmido
do centro histórico. Um velho artesão tentava apertar uma prancha de
madeira numa morsa e ele, vendo-o em dificuldade, chegou na porta
aberta e lhe perguntou se precisava de ajuda. O homem se virou com
ar carrancudo: – Chi bu mo’ tu? Ma chini si’?1 – disse em dialeto.
Ramón não entendeu as palavras dele, nem foi intimidado pelo
tom beligerante, o boné cinza na cabeça o fazia parecer mais agres-
sivo do que realmente era. Enquanto o velho blaterava, ele entre-
tanto levantara a prancha do chão e a colocara na mesa: – Tranqui-
lo, tranquilo – sossegou-o apoiando-lhe uma mão no ombro.
O homem o olhou de través: – Ia cumu parri strano tu!2
– Eu sou brasileiro – esclareceu Ramón.
– Chini? Tuni? Si’ du Brasile... daveru? ’Un sta’ fissiannu?3
– Sim, Sim, é verdade, é verdade...
– Ah! Uà, ti fazz’assaggià ’na specialità, ’na pocu i vinu ca m’ha purtato
mio nipote i’ Verbicaro, ca u vinu cumu u’ facimu nua ccà, là vua vu’ sunnate...4
Desapareceu no fundo da oficina para voltar com dois copi-
nhos de taberna: – Comunque iu signu mastru Tonino, Tonino ppe’ l’amici,
signu falegname a sessantatri’anni, fazzu voglia ’ddio u misi prossimo!5
Daquele momento em diante se inaugurou uma nova amizade
e, cada vez mais, Ramón passava as manhãs na velha oficina ajudan-
do e aprendendo com mestre Tonino. Foi ele a sugerir-lhe a madeira
de pinho para fazer os atabaques, tinha duas encomendas por entre-
gar no início do novo ano e contava também em construir outros
destinados à venda online. Aldo se oferecera para criar um web-site
pessoal, de tal modo poderia ser encontrado pela sua clientela, es-
palhada por todos os cantos da Europa. Os tambores do professor
Manuche, realmente, eram muito procurados no mundo da capoeira,

1. O que quer você agora? Quem é você?


2. Eita, como fala esquisito você!
3. Quem? Você? Você é do Brasil... sério? Você não está brincando, não?
4. Ah! Olha, vou fazer-lhe experimentar uma especialidade, um pouco do vinho
que meu neto trouxe pra mim, de Verbicaro (vilarejo na província de Cosenza,
n.d.t.), pois o vinho, como o faz a gente, ali vocês o sonham...
5. Contudo eu sou mestre Tonino, Tonino para os amigos, sou marceneiro faz
sessenta e três anos, vou fazer se Deus quiser no mês que vem!

105
maresia

aprendera a construí-los com um exímio artesão, Mestre Peixinho,


que lhe revelara todos os segredos para obter um instrumento ex-
celente: a escolha dos materiais, o tamanho e o método de afinação.
A vida de Manuche parecia aquela de um boêmio, livre, desor-
denada e inconformista, – típica de quem tem o bolso cheio demais
ou de quem, ao contrário, o tem vazio – sustentou Milena numa
tarde de conversas com Maria. Estava preocupada, nutria o temor
de que Ramón fosse um daqueles brasileiros aproveitadores, pre-
guiçosos, mantidos por suas companheiras: – Sabe quantas histórias
ouvi? A prima do Lorenzo, aquele rapaz que fez conosco o curso
de microeconomia, teve um que se estabelecera na sua casa e ficava
na frente da televisão o dia todo, depois... – e começou assim toda
uma série de exemplos para demonstrar a cientificidade da equa-
ção brasileiro igual chupista. Maria tentou defender seu homem das
insinuações, mas ficou com a pulga atrás da orelha, impulsionada
também pelas recomendações das colegas e pelas palavras de seu
pai: “não se deixe ferrar”.
Decidiu enfrentar a questão diretamente com ele e uma noite,
colhida a ocasião de um discurso sobre o trabalho na marcenaria, o
cutucou: – Mas então, à entrega mestre Tonino lhe dará uma por-
centagem?
Ramón a olhou perplexo: – Não sei, minha querida, pode ser...
mas eu não procuro dinheiro, gosto de fazer as coisas junto com ele
e fazer-lhe companhia.
– Eu sei – suspirou Maria, – e isto lhe trás honra, mas não acha
certo que a ajuda seja de qualquer jeito paga, visto que, seja como
for, os móveis depois ele os vende?
– Já é! Eu como, bebo e fumo com ele, uso sua oficina e suas
ferramentas de trabalho, o que é isso, meu bem? – respondeu cha-
teado.
Ela o olhou com ar sério: – Eu sei que é ruim, mas temos que
começar a fazer um pouco de contas no bolso se queremos uma
casa nossa, se, como você diz, queremos construir. Meu salário não
é suficiente, talvez seria o caso de você também encontrar um tra-
balho.
– Mas eu já trabalho, Maresia! – zangou-se.
– Eu falo de um trabalho verdadeiro, onde cada mês chega o
salário! Você é arquiteto, poderia exercitar a profissão num lindo
escritório. Se pagarem bem não é nada mal, acredite.

106
capítulo 5
Ramón riu: – Eu num escritório? Amada, você quer minha
escravidão?
– Mas um trabalho com garantias e salário fixo não é escravi-
dão, não! – rebateu ela pouco convencida, parecia-lhe com sua mãe
ao falar em seu lugar.
– Meu bem, pra mim oito horas fechado num escritório a tra-
balhar para outra pessoa é sim escravidão! Eu não sou escravo. O
avô do meu bisavô já foi.
– O vovô do seu bisavô era escravo? – espantou-se ela.
– É. Ele nasceu escravo em 1880 numa fazenda portuguesa de
café, um cafezal, no norte do Estado do Rio de Janeiro. Chamava-se
Munga, em língua umbundo quer dizer “justiceiro, testemunha”.
– Que nome inquietante! – considerou ela.
– Seus pais, Kalunga e Ekumbi, que vieram de Angola, depor-
tados, chamaram-no assim porque queriam que ele pudesse passar
a memória das suas condições de trabalho forçado, torturas e casti-
gos, e fazer justiça à cor da sua pele e às suas raízes.
– E ele fez isso de verdade?
Ramón refletiu alguns segundos: – Na realidade Munga nasceu
depois da aprovação da Lei do Ventre Livre de 1871, então livre,
mas sob tutela dos patrões até vinte e um anos. Por isso foi batizado
como Francisco dos Reis, com o sobrenome do seu patrão. Seus
pais viviam à espera dos sessenta anos, momento em que eles tam-
bém, através de uma lei de 1885, seriam livres, mas com a obrigação
de prestar outros três anos de serviço como indenização. Infeliz-
mente eles morreram antes.
– Que história triste! Pelo menos a vida de Munga tem que ter
sido diferente daquela dos seus pais – raciocinou Maria.
– Nada, meu bem! – esquentou-se ele. – Nem a Lei Áurea de
1888, que declarou extinta a escravidão, mudou sua situação. De-
pois de quatro séculos o negro ficou livre perante a lei, livre de ir,
mas ir aonde?
A legislação, deveras, garantira a liberdade para milhares de
pretos, mas sem prever nenhuma assistência socioeconômica, nem
qualquer indenização, pelos anos de trabalho forçado.
Os novos cidadãos de sobrenomes europeus eram efetivamen-
te excluídos da sociedade, não tinham acesso à terra, eram em geral
analfabetos e vítimas de todo e qualquer preconceito.
– Nunca acabou a escravidão, só mudou a forma, porque a

107
maresia

escravidão dos trabalhos forçados foi substituída por aquela do tra-


balho assalariado – afirmou com força.
Muitos ex-escravos, deveras, como os antepassados de Ramón,
ficaram nas fazendas vendendo seu trabalho em troca da sobrevi-
vência, e se transformaram assim em colonos. As garantias, porém,
as decidiam os proprietários de terras e, através da manipulação das
taxas, colocava-os numa posição de constante dívida, assim a mão
de obra era empregada em forma análoga ao trabalho escravo, mes-
mo sem ter a propriedade legal de um ser humano sobre outro.
– E quero lhe dizer outra coisa, querida, – prosseguiu em tom
sério, – o negro se libertou com seu sangue! A lei abolicionista não
foi um ato de bondade da princesa Isabel. Nas fazendas as rebeliões
eram cada vez mais frequentes e irreprimíveis, aconteciam muitas
fugas em massa e muitos assassinatos, dos patrões e seus capangas.
Tudo isso era uma ameaça à ordem social de fim de Império. Do
outro lado havia o movimento abolicionista, não apenas nacional, e a
princesa foi forçada a assinar a lei, não tinha escolha.
– E depois, o que aconteceu a Munga? – perguntou Maria. Es-
tava ansiosa para conhecer o prosseguimento da história.
– Ele teve um filho com a preta Maria Beatriz da Silva, Fran-
cisco João, que aos quinze anos deixou a fazenda e foi ao Rio de
Janeiro em busca de trabalho, mesmo se aos negros só restassem
subempregos e trabalhos duros. Nos primeiros tempos, Francisco
dormia na rua, em seguida aprendeu a fazer carpintaria, encontrou
trabalho no porto e se mudou para o centro da cidade para um cor-
tiço, uma habitação coletiva de famílias pobres. Ali conheceu Ana
Letícia Nascimento Mendes, uma preta curandeira e mãe de santo,
a famosa Dona Aninha de Iansã, com a qual teve um filho, Fran-
cisco José, Chico, meu bisavô, malandro como ninguém... – sorriu.
Lembrou-se do caminhar ocioso do bisavô pelas ruas do Rio de Ja-
neiro, com seu boné branco e o patuá de Oxalá no pescoço, seguro
como quem sabe que não se deixa enganar, dissimulando astúcia,
sempre pronto para um samba e para uma brincadeira. Aos olhos
de Ramón, desde criança, o homem parecia como o dono da cidade.
Fez uma pausa no conto para recolher as lembranças, depois de-
clarou: – Eis aqui, eu sou exatamente como ele, meu bem, sempre
girando, que não dura num emprego por mais de três meses. Tentei
exercer minha profissão, trabalhar num escritório, muitas vezes e
em lugares diferentes, mas Manuche não aguenta ficar fechado em

108
capítulo 5
lugar nenhum, a sensação de ter voltado a ser escravo como meus
antepassados me perseguia. Vovô Chico fala sempre para eu não
esquecer minhas raízes e ser orgulhoso delas.
– E você é?
Ramón empurrou o peito pra fora: – Descendente de escravo –
marcou altivo.
Maria lhe deu uma palmadinha na bochecha: – Porém você
não é muito preto – brincou.
– Porque sou um verdadeiro mestiço brasileiro, mãe branca
europeia, pai cafuzo... e alma cigana – riu. – Eu sou um artista, Ma-
resia, um artesão, capoeirista, então um vagabundo para o mundo
capitalista. Se você não gosta...
– Eu gosto sim de você, amado, mas sejamos realistas, como
podemos fazer projetos sem uma base econômica sólida? – respon-
deu misturando ela também o português.
– Como eu sempre fiz, dando um jeito no dia a dia... vendo
meus instrumentos, dou aula nos eventos de capoeira onde me con-
vidam, enquanto eu estiver com saúde não preciso de muito pra ser
feliz, não tenho nada, se não minha kombi, minhas pranchas e meus
instrumentos.
A sua mente voltou por um instante às ladeiras e às nuas es-
cadas do morro onde crescera. O sobe-e-desce cotidiano, metáfora
da vida, exercício espiritual de fortificação, ensinara-lhe a mover-se
leve, pronto a fugir durante as incursões armadas da polícia.
– Não me interessa acumular – prosseguiu. – Na caixa de mor-
to, meu bem, há lugar só para as flores! Meu mundo é hoje, não
existe amanhã pra mim... fale-me a verdade, você tem medo de que?
Maria enrubesceu: – Mas não, o que você está dizendo... não,
não é isso.
– Maresia, eu sei como funcionam as coisas, como pensam as
pessoas, mas eu quero morrer sem arrependimentos. Tenho pena
de quem rasteja no chão e engana a si mesmo para ter dinheiro ou
uma posição... eu achava que pra você fosse o mesmo.
– Pois é! – rebateu ela. – Mas é que estou sob pressão – desa-
bafou. – Todos me recomendam ter cuidado, enchem-me a cabeça
com mil advertências, meu pai me diz para não me deixar ferrar...
– Seu pai? Acho que chegou a hora de conhecê-lo.
Efetivamente, pensou Maria, chegara o momento de levar em
casa Ramón. Não o fizera ainda porque nutria uma série de temores,

109
maresia

das inúmeras tatuagens no corpo dele que iriam horripilar sua mãe,
à situação de trabalho que, por sua vez, teria angustiado seu pai,
para o qual todos os artistas eram dos vadios. Em todo caso, antes
ou depois, deveria enfrentá-los, assim na mesma noite ligou pra casa
para anunciar sua chegada no domingo seguinte.
– Está bem – respondeu Rosa sem entusiasmo. Estava preo-
cupada com a filha, a ideia de que estava namorando um imigrante,
com tudo o que se sentia ao redor, amedrontava-a. Pelo menos não
era um africano, dizia a si mesma, nem um muçulmano, de qualquer
forma era uma pessoa pertencente a um mundo e a uma cultura
diferente o que, aos seus olhos, parecia um perigo. Única credencial
era a graduação em arquitetura, mas não botava um freio ao seu mau
humor, acentuado pela convivência desprovida do sagrado vínculo
matrimonial. Isso Rosa não conseguia por nada digeri-lo.
– A que horas vocês vão chegar? – perguntou à filha.
– Para o almoço, acho, talvez mesmo um pouco antes.
– Olha, queria lhe perguntar uma coisa, mas... ele é preto?
Maria se calou, a pergunta lhe provocou uma mistura de incô-
modo e resignação, porque levava dentro de si o imaginário de sua
mãe sobre o estrangeiro, nutrido por horas de televisão e conversas
de vilarejo.
– Por que, mudaria alguma coisa no final? – respondeu com
outra pergunta, não em tom agressivo, mas amargurado.
Rosa o intuiu: – Era só uma curiosidade – justificou-se e não
insistiu. Apressou-se a terminar a ligação, recomendando-lhe que
não chegassem depois da uma.

No primeiro domingo de outubro, um dia quente e sem bafo,


a kombi estacionou na estrada ao lado do Tirreno, em frente à casa
Valenza. O ruído do motor atraiu Rosa à janela e, reconhecendo a
filha, acenou uma saudação com a mão. Maria estava nervosa como
nunca: desde quando, perguntava a si mesma, a opinião dos seus
pais lhe provocava uma tão forte agitação?
– Mamãe – chamou abrindo a porta de entrada, as chaves,
como de costume, ficavam do lado de fora da fechadura. Nunca
ninguém na família tivera uma cópia pessoal e, para as voltas mais
tardias, havia uma guardada embaixo do antigo sagueiro, a cycas
revoluta, plantado num barril de lata.

110
capítulo 5
Rosa foi ao encontro deles, já bem emocionada. Apesar dos
prejuízos, esperava que fosse a hora certa para que a filha criasse
juízo e se casasse.
– Oh, bem vindos! – exclamou. – Bem vindo – acrescentou
depois oferecendo a mão a Ramón.
Ele respondeu ao aperto e, em seguida, atraiu a mulher para
um abraço: – Estou feliz de conhecê-la, mamãe – sorriu, esforçan-
do-se por pronunciar uma frase inteiramente em italiano.
Rosa, apanhada de surpresa, ficou hirta: – Entrem, entrem, não
fiquem nas portas! – disse para se levar do embaraço. Dirigiu-se a
Maria: – Seu pai foi pescar com Genio, vão voltar no início da tarde.
Depois se virou para Ramón: – Vida de pescadores! – suspi-
rou. – Em compensação teremos meu irmão com a família, Maria
com certeza deve ter lhe falado deles.
– Sim sim – respondeu ele, – o tio Ciccio.
Pronunciou o nome com um sotaque esquisito e provocou o
riso de mãe e filha.
– Que bom, ela está rindo! – animou-se Maria. Estava certa,
no fundo, de que teria sido suficiente um só sorriso de Ramón para
conquistar o coração de Rosa.
Entraram na taberna e se dirigiram a Vovó Quinota.
– Eis aí minha bisavó – indicou Maria. – Ei Vovó – chamou-a.
Ao ouvir a voz da bisneta, a mulher virou a cabeça e sorriu.
Maria lhe beijou a fronte: – Ramón está aqui – disse-lhe feliz.
– Olá Vovó Quinota, é uma grande honra pra mim conhecê-la...
Maria só fala de você! – curvou-se sobre ela, pegou-lhe na mão e a
beijou com a galantaria de uma época passada.
Os olhos da mulher assumiram um brilho particular, era ver-
dade que a bisneta há um pouco de tempo lhe cantava as músicas
em português, mas aquela era a primeira vez, desde que deixara sua
terra, que ouvia sua língua materna.
– Ele também é do Rio de Janeiro – apresentou-o Maria, – mas
isso você já sabe.
Dirigiu-se a Ramón: – Ela sabe tudo de mim, e também de
você – riu. – Dizemos que é a minha “pedra paciente” – declarou
parafraseando um filme de Atik Rahimi, há pouco assistido juntos.
– Vovó, gostaria de saber qual o bairro do Rio de Janeiro de
onde você vem – disse-lhe Ramón. Examinou os traços e a cor dela,
puramente africana: – Você é uma autêntica negra! Por isso Maresia

111
maresia

tem alma negra – alegrou-se. – Corpo quente e bunda de negra –


sussurrou depois ao ouvido de Maria, alusivo.
Ela riu e, por brincadeira, atirou-lhe uma palmadinha nas cos-
tas: – Eia, vamos dar um passeio! – incitou-o. – Quero lhe fazer
conhecer meu gomo de Tirreno.
Assim que saíram de casa Ramón pediu a Maria informações
mais detalhadas sobre a bisavó da pele preta e ela lhe revelou o
conteúdo da carta descoberta: – Vovô Carmine fala claro, seja de
pancadas, seja da voz melodiosa de Vovó Quinota. Francamente,
não sei mesmo o que possa ter acontecido. É possível que tenha fi-
cado oitenta anos muda por escolha? Talvez se trate de um bloqueio
psicológico, não sei...
– Falou disso com sua mãe?
– Mas você está louco? Se aquela vem saber que mexei na ga-
veta de Vovó, vai me matar!
– Tente fazê-la cantar – sugeriu ele.
– E como? Quando canto as músicas de capoeira, se ela as co-
nhece me acompanha com um canto a boca fechada, assim como faz
durante o ritual de domingo de manhã, quando joga as flores no mar.
– Então ela é uma devota de Iemanjá – deduziu Ramón.
– O orixá do mar – lembrou-se Maria.
– Isso, meu bem. As flores no mar são uma oferenda. As mo-
dalidades são diferentes segundo a tradição a qual se faz referência,
eu não sou um experto, mas não tenho dúvidas que se trate de um
ato de devoção para a rainha do mar. Evidentemente é o orixá dela,
além de tudo leva no pescoço a guia azul claro dos filhos de Ieman-
já, aquele colarzinho de perolazinhas – explicou.
Maria se alegrou, finalmente alguém lhe revelara o mistério do
ritual de domingo. Conversavam caminhando à beira mar, com os
pés na água, e ela não parava de refletir sobre quanto era estranho
o destino e poderosas as coincidências. Soprava uma leve brisa, ela
respirava profundamente para inalar a salinidade, encher-se do per-
fume do mar, raiante como poucas vezes estivera. Parecia-lhe que
tudo corria pelo verso certo, com o amado ao seu lado, mão na
mão, envolvidos pelo encanto do Tirreno.
Na hora do almoço voltaram a casa, Maria se preocupou em
ajudar a mãe nas tarefas, Ramón, ao contrário, agachou-se ao lado
de Vovó Quinota. Logo entrara no mundo comunicativo dela, fa-
lava-lhe com voz baixa e conseguia interpretar a linguagem do seu

112
capítulo 5
corpo, os acenos das mãos, o rodear dos olhos, as inclinações da
cabeça. A chegada do tio Ciccio trouxe como sempre uma rajada
de alegria. Abraçou o namorado da sobrinha como se o conheces-
se desde sempre e o contagiou com sua risada descomposta. A tia
Elisa estava toda sorridente e bonitinha, ao contrário Mariella não
parava de fixá-lo, ficava curiosa com a mistura de feições e com a
cor da pele. Ramón, com sua afabilidade, logo se fez amar. Ajudou
a tirar a mesa e insistiu para lavar as louças, mas Rosa não aceitou a
ajuda dele, nunca iria incomodar um convidado.
No início da tarde, enquanto preparavam o café, voltaram do
mar os pescadores, satisfeitos com a pescaria. Ramón se aproximou
de Carmine e se apresentou de jeito formal, exibindo um italiano
perfeito: – Muito prazer, senhor Valenza!
Ele se mostrou cordial, mas o olho perscrutador o fixou de
través, uma mistura entre a análise e a advertência.
Genio, não obstante a aparência carrancuda, acolheu-o com
alegria: – Finalmente você tomou corpo! – disse-lhe brincando.
Os dois começaram a conversar como metralhadora e se des-
cobriram em sintonia sobre muitas coisas. Ramón gostou do “pri-
mo gêmeo” de Maria porque era o único, entre as pessoas conheci-
das até então em Calábria, que se dedicava inteiramente à natureza
e procurava a comida sozinho: – Queria sair no mar com vocês um
dia – declarou.
Ramón foi literalmente conquistado por toda a família Valen-
za, simples e genuína, unida e serena, há gerações sempre na mesma
casa. Pensou na sua, absolutamente diferente, desagregada e des-
locada. Em resposta à pergunta de Rosa, curiosa de conhecer as
origens dele, contou o complicado entrelaçamento da sua parenta-
da, caracterizada por contínuos deslocamentos, duplos casamentos,
meio-irmãos e meio-irmãs.
Quando tinha dez anos, sua mãe Ana deixara o pai Zé Francis-
co e voltara para Madrid. Ele, menino, não quisera segui-la, não que-
ria abandonar a vida livre entre as ruas da cidade maravilhosa e os
jogos selvagens na floresta ao redor do morro de Santa Marta. Ana,
entretanto, casara-se de novo e tivera outros dois filhos, mas era ela
que pagava os estudos do primogênito e, uma vez por ano, compra-
va-lhe uma passagem de avião para que fosse visitá-la. Queria que
ele se afeiçoasse aos seus irmãos e esperava que um dia ele também
a alcançasse. Ramón crescia feliz com o pai na casinha de madeira

113
maresia

e tijolos, jogava capoeira e tocava tambores nas macumbas da Nega


Vilma, mãe de santo do morro, e aprendia as artes transmitidas pelos
homens da família Dos Reis. Zé Francisco, empregado num grande
armazém com um salário humilde, sempre se privara de tudo só para
que nada faltasse ao seu filho. Periodicamente o levava a visitar os
vovôs, em Ilha Grande na casa de João Francisco, chamado de João-
zito, e a Bracuí, a cerca de vinte e cinco quilômetros de Angra dos
Reis, na aldeia Sapukai, onde morava a vovó Araci. Era uma reserva
indígena de tradição Guaranis, do subgrupo Mbya, de língua Tupi,
no topo da montanha, em plena floresta atlântica, de onde se avis-
tava o mar. Ramón, graças à vovó, descobriu o poder dos sonhos
e aprendeu a considerar a natureza como um ente sagrado, em que
pegar apenas o necessário para a sobrevivência. Aprendeu o jeito de
viver e ser Guarani, ligado aos cultivos, à caça, à pesca, à colheita e à
espiritualidade xamânica. Zé Francisco se casara de novo só depois
de muitos anos com Renata, uma preta dos olhos doces, já mãe de
uma menina, Lívia, que Ramón considerava como uma irmã.
Rosa fadigou-se ao seguir o discurso dele, os nomes estrangei-
ros a confundiam, mas entendeu perfeitamente que o rapaz nunca
gozara de uma estabilidade familiar. O abandono por parte da mãe
o tornou mais querido pra ela, não podia nem imaginar uma mulher
que deixa o próprio filho em outra parte do mundo. Uma mãe des-
naturada, pensava consigo. Daquele momento o genro entrou nas
suas graças, seu instinto maternal lhe sugeria que deveria dar-lhe
todas as atenções que lhe faltaram no crescimento, fazendo-o assim
filho seu.

Um par de semanas depois, Maria e Ramón decidiram ir à ma-


nifestação do dia 15 de outubro em Roma, dia em que cidadãos
de todos os continentes teriam se mobilizado para resgatar direi-
tos e politicas sociais ameaçadas pela crise do sistema capitalista.
Pensaram que fosse uma ocasião boa para dizer publicamente que
também eles queriam um mundo diferente. Juntaram-se logo ao
ônibus em partida de Cosenza e chegaram bem a tempo para o iní-
cio do cortejo, na praça da República. Havia centenas de milhares
de pessoas de todas as idades, o dia estava lindo e as ruas, cheias
de música, eram coloridas por bandeiras, cartazes e disfarces. As
faixas citavam nomes ou siglas do tecido vivo da sociedade italiana,

114
capítulo 5
os movimentos de gênero, aqueles para a água, os precários, os mi-
grantes. Eles dois desfilaram por um bom tempo na parte barulhen-
ta dos No Tav6, em seguida mudaram para os anarquistas, a fim de
encontrar o companheiro Oreste, um amigo com o qual viajaram.
Estavam divertindo-se, fluía tudo tranquilo quando, a certa altura,
nas cercanias da rua Labicana viram umas pessoas correrem de jeito
desarrumado. Intuíram algum pega-pega e pensaram em avançarem
na direção de praça San Giovanni para ficar longe dos embates, mas
erraram de muito. De repente se acharam no meio de canhões de
água e gases lacrimogêneos, a fugir de Digos7 e Ros8 que investiam
contra os manifestantes indiscriminadamente. Maria não imaginava
que teria topado com uma situação igual, ingênua pensava que, de-
pois da matança de Genova de 2001, as forças da ordem teriam es-
tado sob controle, por isso se sentiu livre de usufruir do seu direito
de dissidência participando do cortejo.
Ramón, ao contrário, não se perturbou muito, crescera no
morro com as incursões armadas da polícia. Ao contrário, tentou
tranquilizar Maria que, no entanto, tremia de medo. Por um instan-
te o tomou um orgulho campanilista9, certas coisas não aconteciam
somente no seu País. Considerou que o uso indiscriminado da vio-
lência, e os abusos de poder da parte das forças da ordem, são praxe
comum em todo o lugar do mundo. Ficaram bloqueados na praça
por mais de uma hora, todas as saídas estavam trancadas por blinda-
dos. Pararam embaixo do pórtico da igreja junto com um grupo de
rapazes em cadeira de rodas, mais pra lá havia uma nuvem de gás, e
pedras voavam contra cassetetes e blindados, à louca velocidade no
meio da gente. Um grupo de pessoas levantou as mãos em sinal de
paz e gritou “sem violência”, mas o coro foi apagado pelo jato de
um canhão de água lançado a meio metro de distância.
6. Movimento surgido em Val di Susa contra a realização de obras de infraestru-
turas para a alta capacidade e a alta velocidade ferroviária na linha Torino-Lion.
7. Acrônimo de “Divisione Investigazioni Generali e Operazioni Speciali”, um
corpo operativo da Polícia italiana com competências especificas, dirigido à oposi-
ção de atividades subversivas da ordem democrática (atividades antiterrorismo) e
à ilegalidade nas manifestações esportivas.
8. Acrônimo de “Raggruppamento operativo speciale dell’Arma dei Carabinieri”,
o único órgão investigativo da Arma com competência seja na criminalidade orga-
nizada, seja no terrorismo.
9. Apego cego e orgulhoso ao próprio País e às tradições locais.

115
maresia

Maria se pegou a chorar terrorizada, voltou em si só quando


encontraram uma escapatória e se refugiaram na casa de Luigi, um
amigo da cidadezinha. Estava em estado de choque, achar-se nos
embates ao vivo era bem diferente que ter noticia deles. Na televisão
não se falava de outro assunto, os canais transmitiam cenas violen-
tas alternadas com as opiniões de políticos e politiqueiros variados,
em todo caso gerava mais indignação a vitrine rachada de um banco
que o ataque generalizado sobre um povo na maioria pacífico.
– Essa é a demonstração de que a democracia faliu – disse
Ramón. – Aqui como no mundo todo. Se a dissidência é censurada
com a violência, como pode um país definir-se democrático e nós
cidadãos livres?
Decidiram passar alguns dias em Roma e Maria, previdente,
já no domingo ligou para seu chefe e se declarou gripada. Voltou à
Calábria na quarta-feira, enquanto Ramón prosseguiu para o Norte.
Passou por Florença para visitar uns amigos, depois foi em Torino
e enfim em Montpellier, convidado para a décima quinta edição do
Festival organizado por Mestre Sorriso. Desde que estava na Euro-
pa, Manuche ia lá todos os anos, e o mestre lhe dava a oportunidade
de dar aulas e ganhar algo. Voltou a casa no início de novembro,
Maria estava à espera dele com impaciência. Quando ele ficava lon-
ge ela sofria de ciúme, mas tentava elaborar a ansiedade da posse.
Começava a captar o sentido pleno do apelido dele e estava cons-
ciente de não poder obstacular seu caminho errante.
No final do mês, em ocasião do aniversário de Carmine, Maria
e Ramón passaram o fim de semana na casa Valenza. Rosa lhe fez
encontrar as camas prontas, mas em quartos separados. Ele foi co-
locado no de Francesco, mas à noite, quando todo mundo dormia,
Maria o alcançou para fazer amor e só na madrugada voltou ao seu
lugar. Na manhã seguinte acordaram cedo e acompanharam Vovó
Quinota no seu ritual. Na praia a mulher entoou um canto a boca
fechada e o musicou com o colar de conchas entre as mãos.
Ramón reconheceu na melodia um dos pontos de Iemanjá
cantados na Umbanda e se inseriu no refrão, acompanhando-a com
as palavras: – Iê Iemanjá, Iê Iemanjá, rainha das ondas sereia do
mar, rainha das ondas sereia do mar...
Vovó Quinota teve um tremor, no seu rosto compareceram
lágrimas quentes, desciam como um rio ansioso de se confundir
com as águas do mar. Ramón se dirigiu a Maria: – Faz um pedido

116
capítulo 5
pra mãe d’água...
Liberaram as flores entre as ondas do mar e ficaram a observar
seu movimento, arrebatados pela espuma se afastavam e depois se
aproximavam, num ir e vir até desaparecerem inteiramente. Foram
arrastados para o fundo do mar, junto com as orações deles, para
chegar até ela, rainha, senhora, mãe.

As festividades de Natal chegaram rápido e a família se reuniu


por completo. Maria chegou na tarde da vigília para ajudar nos pre-
parativos e passar um pouco de tempo com a irmã, a volta dela era
sempre uma alegria. Porém, desde que Anna emigrara e se casara, a
relação delas não era mais a mesma, esforçavam-se nas confidências
e se procuravam menos também por telefone. Aquele dia, porém,
pareciam voltadas à adolescência. Rosa estava felicíssima de ter as
filhas do lado, alegres e unidas, que a ajudavam a limpar o peixe, a
fazer doces e que zombavam dela. As duas irmãs puseram a mesa
com o serviço para os dias especiais e cuidaram de cada detalhe, dos
guardanapos aos apoios de talheres. Quando Rosa percebeu que os
talheres eram treze, se preocupou: – Não vai bem – disse às filhas,
– treze à mesa é má sorte.
– E o que vamos fazer? Enviamos alguém para o jardim? –
brincou Maria.
– Pomos duas mesas – decretou Rosa.
– Duas mesas? Não há espaço! Eia, mamãe, pare com essas
superstições – suplicou Anna.
– Nunca esquecer os ditados dos antigos! – repreendeu-a Rosa.
Percebeu que o sotaque da filha não era mais o mesmo, já estava
contaminado por inflexões milanesas.
– Está bem, então deixamos Vovó na sua cadeira de balanço,
de qualquer maneira já não entende nada mais.
Rosa olhou a filha de mau jeito: – Mas o que você está dizen-
do? Nem mesmo pensar! A grande cidade lhe fizera perder o respei-
to pelas pessoas idosas?
Levantou a voz, estava visivelmente irritada: – O lugar de Vovó
Quinota é à cabeceira da mesa, porque nessa casa é ela a pessoa
mais importante. Além disso, não é verdade que não entende nada,
pelo contrário, sobre algumas coisas é muito mais lúcida que você e,
se você não o notou, é porque perdeu a sensibilidade!

117
maresia

Maria puxou a mãe, aquela dureza lhe pareceu mais que ade-
quada: – Anna, mamãe tem razão, Vovó Quinota não se discute.
Porém poderíamos pôr a mesa para quatorze, o que vocês acham?
– sugeriu.
Rosa estava indecisa: – Seja como for, somos treze!
– Vamos botar uma boneca, ou a foto do vovô Francesco ou
aquela do bisavô Carmine. Ou melhor, a do bisavô Carmine não –
corrigiu-se Maria, desde que encontrara a carta, a figura do homem
perdera valor aos seus olhos.
No final Rosa se convenceu, pareceu-lhe a solução mais ade-
quada e por todo o jantar, rico de iguarias saborosas, brincou-se so-
bre o décimo quarto convidado. Entre as conversas saiu de novo o
assunto do casebre herdado por Elisa, um enorme peso, porque não
conseguiam vendê-lo de jeito nenhum. Em seguida ao tio Ciccio
veio uma ideia: – Ramón, você que é arquiteto poderia ir dar uma
olhada, entender em quais condições está e se convém reformar, tal-
vez assim seja mais fácil que alguém fique interessado em comprar.
Ele aceitou e, junto com Genio e Maria, foi visitá-lo num do-
mingo de sol da metade de janeiro.
Havia uma luz clara, da ss1810 se via nítida a imagem de Strom-
boli e de Strombolicchio11 e o horizonte parecia mais perto. Depois
de um quarto de hora de subida, o pk de Genio enfiou-se à direta
numa estradinha de terra batida que, ao prosseguir, tornava-se cada
vez mais selvagem, as rodas do jipe esmagavam selvas cerradas e
ervas incultas. Estacionaram em frente a um portão de madeira bas-
tante mal posto, a partir de ambos os lados se estendia uma cerca de
arame farpado a delimitar a propriedade e, em seguida, continuaram
a pé. Atrás de um par de curvas apareceu uma velha construção, na
ponta extrema do cabo, em cujas costas se estendia o Tirreno ao
longo do campo visão. Ramón ficou fascinado: – Esse lugar se une
ao divino – decretou.
Genio abriu a porta de casa e entraram numa antecâmara vazia
com duas portas, de acesso aos armazéns, e na frente um arco fina-
lizado de tijolos cheios, acima do qual uma ampla janela estava de

10. Estrada estatal 18 Tirrena Inferiore, que percorre a costa do Tirreno da Re-
gião Calábria até a Região Campânia.
11. São ilhas que pertencem ao arquipélago das Ilhas Eólias, na Sicília; Stromboli é
um vulcão inativo, Strombolicchio é uma ilhota vulcânica apagada, acre e inabitada.

118
capítulo 5
frente a um vale e depois ao mar. Enfiaram-se numa sala à esquerda
além do arco: – Aqui, faz um tempo, havia a cozinha – explicou
Genio, mas tinha sobrado apenas uma mesa de madeira maciça com
algumas cadeiras sem fundo e, na esquina, uma ampla lareira. Na
frente, outra porta introduzia um local de circulação que dava aces-
so a um banheiro arruinado e a umas escadas. Subiram a escadaria
e se acharam num corredor tão longo quanto o perímetro da casa.
Havia cinco quartos, com os rebocos descascados e as traves do
forro em mau estado. Os dois homens treparam numa escada peri-
clitante e, através de um alçapão, chegaram ao sótão. De lá Ramón
observou o estado de traves, tabuados e travincas: – Muitos têm
que ser trocados, mas no complexo é uma boa manufatura – disse.
– Faltam muitas telhas, mas são facilmente recuperáveis.
Fez de novo a volta de cada quarto, tomou notas e se demo-
rou particularmente nos dois banheiros, por refazer inteiramente.
No piso térreo entrou em um dos dois armazéns: – Acho que aqui
dentro há monstros e fantasmas – brincou Genio, estava cheio de
coisas não bem identificadas, amontoadas em desalinho e cobertas
com lençóis cheios de pó. No outro, por sua vez, havia a taberna já
predisposta a fazer vinho, incluindo os garrafões e toneis antigos,
em desuso quem sabe há quantos anos.
– Até onde se estende a propriedade? – perguntou Ramón.
Genio indicou com os dedos o confinamento, embaixo, mar-
cado por uma pequena torrente pouco além dos pés do cabo: – Flui
até o mar – disse.
Desceram até a margem e Ramón mergulhou as mãos na água:
– Salve mãe Oxum – sussurrou consigo. Depois levantou a voz: – É
bem gelada! – riu, sacudindo as mãos molhadas.
– Quando éramos crianças vínhamos muitas vezes tomar ba-
nho nesse riacho, fazíamos uma bagunça... – contou Maria.
– Você se lembra? – dirigiu-se ao primo.
– É verdade – respondeu ele em tom nostálgico. – Esse sítio
pertencia aos meus bisavós, havia os colonos que cultivavam a terra
e criavam vacas, depois eles foram embora e tudo isso ficou sem vi-
gilância, deixado à degradação. E minha mãe é a única herdeira.
Passearam um pouco mais e alcançaram os estábulos, um pou-
co mais embaixo. Um caíra, os outros quatro estavam mais ou me-
nos desmoronados.
– Algo disso se pode salvar também – disse Ramón observan-

119
maresia

do com atenção as ruínas. – Podem-se transformar, tenho uma ideia


de como fazer.
– Quanto dinheiro acha que seja preciso para uma reforma? –
perguntou Maria.
– Dinheiro não sei... mas o prédio não tem nenhum dano es-
trutural – respondeu Ramón. – É fácil pôr de novo em ordem, mas
com muito trabalho!
– Preciso saber se convém reformar e depois vender, ou liqui-
dá-lo a pouco preço assim como é... – chegou ao ponto Genio.
– Vender? – espantou-se Ramón. – Vocês estão loucos?
– O que ele disse? – virou-se Genio para Maria em busca de
ajuda.
– Ele disse que vender é coisa de loucos – repetiu ela.
– Sim, de loucos – reforçou Ramón. Pegou um torrão e o chei-
rou: – Terra boa pra cultivar, água de fonte, vista para o mar... é
um paraíso, um lugar abençoado pela natureza! É uma pena! Não,
vender não...
– É verdade – disse Genio, – eu também lamento, mas o que
fazer? É um fardo para a família.
Relatou aos seus pais as avaliações feitas e a mãe encarregou o
filho de seguir a tarefa, desde o orçamento para uma reforma, até a
colocação à venda em agência. No entanto, no cérebro de Ramón,
começaram a remoer algumas estranhas ideias, mas ainda não ousa-
ra falar disso. Uma noite, enquanto conversava com Maria, lançou
a proposta: – O que acha de nós irmos morar no casebre? Poucos a
poucos o colocamos de novo em ordem.
– Você enlouqueceu? – reagiu ela. – Não posso morar na selva,
como faço para eu ir trabalhar? E os treinos de capoeira? E toda a
obra que é preciso?
– Maresia, meu amor, deixe aquele trabalho escravista! O futu-
ro é a terra, a volta à terra e à natureza, não oito horas fechada num
escritório!
– Olha Ramón – ficou séria, – eu provenho de uma família de
trabalhadores, pescadores e agricultores, gente que se queimou a
pele embaixo do sol e envelheceu cedo para que os próprios filhos
tivessem um destino diferente da fadiga, e eu não posso, à minha
idade, depois de todos os sacrifícios feitos para estudar e pegar uma
graduação... me parece como voltar atrás! – sufocou-se a voz. Fez
uma pausa: – E, além disso, eu e você, sozinhos, numa casa tão

120
capítulo 5
grande e longe? A reformar completamente? Não, nem falar, de
jeito nenhum – decretou irremovível.
– Não só eu e você, também Genio! – argumentou ele.
Maria estourou numa risada: – Genio? Imagine, ele longe do
mar... acorda de noite para ir pescar! Conheço bem meu primo,
confie, ele nunca faria isso!
Ramón não insistiu, respeitava as razões da sua companheira e
a discussão não foi mais retomada.
Um dia, porém, aconteceu algo que mudou tudo. Eram às
quatro da tarde e Maria não tinha nada mais por fazer, até mesmo
completara o trabalho de introdução de dados para o qual era con-
tratada, enviara cartas e comunicações, e concluíra a redação final
de um projeto. Então pediu a Ettore para ir embora antes, mas ele
respondeu chateado: – O horário de saída é às sete!
– Eu sei, Ettore, mas não tenho nada por fazer, estou de bra-
ços cruzados.
– Você está sempre a embandeirar o conceito de criatividade...
invente-se algo! – instigou-a. Sabia que soprara no fogo, mas era
uma perversão, o conflito com Maria o excitava.
– Invente-se algo? Eu trabalho pra você!
A discussão continuou por algum tempo, levantaram os tons das
vozes, depois Ettore, ao cúmulo do prazer mental, disse exausto: – Te-
nho algo para você fazer! Tire o pó e ponha em ordem aquilo ali.
Indicou uma coluna de porta-cd, numa esquina da sala.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos e algo se arrebentou
no seu cérebro. Com calma se levantou da cadeira, aproximou-se
dos cd e, num lampejo de orgulho, atirou-os no chão com um ges-
to violento. Ettore ficou aturdido, não sabia o que dizer. Maria o
apontou com os olhos em chamas: – Eis aí, agora há de verdade os
cd por botar em ordem. Pode fazê-lo sozinho, ou pode encontrar
alguma outra pessoa. Não tenho intenção de voltar aqui amanhã de
manhã, nem de renovar qualquer tipo de contrato. Eu exijo ser paga
pelo trabalho que desenvolvi e, se não for pontual e correto, eu de-
nuncio você, vou abrir-lhe uma causa trabalhista. Coisa que deveria
ter feito já há muito tempo, aliás.
A raivosa calma das suas palavras persuadiu Ettore de que não
se tratava de uma briga usual, Maria estava falando sério.
– Daqui a vinte e nove dias exatos o contrato vai vencer e eu
dentro de... vejamos... dentro do dia trigésimo primeiro estarei à

121
maresia

espera de uma ligação sua para retirar o cheque – dispôs ela. – Caso
contrário irei diretamente pelas vias legais. E não estou brincando.
Você é um stronzo explorador, e eu acabei de ser sua escrava!
Não lhe deu o tempo de rebater de algum modo, saiu da sala
dele batendo a porta. Recolheu rapidamente suas coisas entre o es-
panto dos colegas e, quando estava pronta para ir, Laura a chamou:
– Maria! Mas aonde você está indo, acalme-se!
– Meninas, lamento só por vocês, acreditem em mim. Por você
não – virou-se para Fabio, – que é um viscoso e vomífico bajulador.
Vamos nos ver daqui a pouco mais de um mês, quando passarei
para receber meu salário. Em todo caso, a gente se fala!
Fechou a porta às suas costas e foi embora, deixando para
sempre o porão.
Voltou a casa chorando, Ramón deixou de extrair os arames
dum pneu e foi ao seu encontro, preocupado: – O que aconteceu,
meu bem?
Maria lhe contou tudo entre lágrimas, sentia-se com o orgulho
ferido e impotente perante à injustiça, mas não estava convencida
de ter feito a coisa certa, a ideia de recomeçar a buscar trabalho a
aterrorizava.
– Minha querida, essa foi a escolha mais sábia que você poderia
fazer! – disse-lhe Ramón tentando consolá-la.
Maria, porém, não gostou disso e o olhou enraivecida: – E de
que vamos viver? Vamos viver de amor?
Ramón a acalmou: – Em toda minha vida, em cada lugar onde
eu morei nunca me faltou o necessário, não vejo porque aqui em
Cosenza teria que ser diferente... ’tamo juntos, amor, nada de mal
pode acontecer.
Maria relaxou nos braços do seu homem e percebeu inteira-
mente quanto a positividade de Ramón havia se tornado um ponto
sólido na sua existência.
No domingo desceram à cidadezinha e ela contou à família o
que lhe acontecera. O pai não se expressou, limitou-se a pergun-
tar-lhe se estava convencida da sua decisão, e aí ela vacilou, mas foi
sincera: – Não, papai, não estou certa, mas sem dúvida não quero
mais sujeitar-me aos caprichos de um homem que se sente dono do
meu tempo.
Sua mãe, ao contrário, repreendeu-a: – Você é sempre a mesma
cabeçuda orgulhosa, o que lhe custava pôr em ordem aqueles cd?

122
capítulo 5
Maria tentou explicar suas razões, mas Rosa apelava à dificul-
dade de encontrar um trabalho, à necessidade de se contentar, dizia
que a vida nunca é como nós a queremos.
Entretanto Ramón e Genio caíram fora e voltaram depois de
uma horinha, entusiastas como duas crianças.
– Ramón teve uma ideia fragorosa – anunciou Genio à prima.
Ela o olhou incerta: – E seria?
– Vamos morar todos no casebre de mamãe!
Maria o olhou chocada: – Enlouqueceu você também? Vocês
todos enlouqueceram?
– Por que, desculpa? – defendeu-se o primo. – Parece-me uma
ideia genial!
– Não estou de acordo, é uma ideia absurda! O casebre está
caindo e, além disso, é muito longe, é preciso ter carro, não, não,
absolutamente não!
Intrometeu-se Ramón: – Minha querida, o casebre não está
caindo, a nível estrutural não tem grandes danos, podemos refor-
má-lo! Já pensamos em como poupar no material necessário, não
precisa muito dinheiro! Pelo menos para começar.
– Poderiam envolver alguma outra pessoa no projeto, o que
vocês acham? – sugeriu Genio.
– O quilombo da utopia real! – exclamou Ramón com ar so-
nhador.
– O quilombo da utopia real... – repetiu Maria contrariada. – Vo-
cês estão fora de si.
– Sim, Maria, um quilombo, uma comunidade resistente como
aquelas que formavam os escravos fugitivos! No meio das florestas,
em lugares impenetráveis, onde podiam preservar suas origens e
suas tradições... – explicou Genio.
– Você está preparado! – ironizou ela. – Há quanto tempo vo-
cês dois estão falando disso?
– É o único jeito de não sermos cúmplices dessa sociedade
desumana! Autonomia! – reagiu convencido o primo.
– Não sabia que estava tão empenhado em mudar o mundo.
Ramón riu e tomou partido de Genio: – Na verdade ele é a úni-
ca pessoa que eu conheço nessa terra que não depende do sistema
como os outros. Ele faz tudo sozinho e, mesmo que não use uma
linguagem política, bom... acredito que sua vida seja mais exemplar
do que qualquer palavra.

123
maresia

– Mas Ramón – contestou ela, – seria uma bagunça locomo-


ver-se, ir trabalhar, temos só a kombi...
– Maresia, meu bem, você não precisa mais ser escravizada por
ninguém! A gente vai trabalhar junto! Com a terra, o mar, a capoei-
ra. Iremos construir nossa economia, em contato com a natureza...
vamos tentar! Essa é a hora certa!
Maria vacilou: – Vocês já falaram com tia Elisa disso?
– Ainda não – respondeu Genio, – mas acredito que não estará
em desacordo. Ela ama aquele lugar, vê-lo viver de novo não pode-
ria que dar-lhe alegria.
– E a reforma? O dinheiro, os materiais, a mão de obra... o
trabalho é muito!
– A gente já pensou – explicou Ramón, o qual já tinha um
plano de trabalho, baseado na reutilização das telhas, traves e tijolos
cheios dos estábulos para consertar o telhado e construir a cozinha.
– E ainda, para o mobiliário?
– Tudo usado, como o povo cigano... Maresia! – exortou-a
com gesto teatral. – Manuche fala que essa é a sua ocasião por fazer
a revolução... na nossa casa, no nosso jeito de viver, não como mo-
delo por exportar, mas como hábito por fazer conhecer.
– E quanto dinheiro precisaria?
– Bom, segundo nossas contas cinco mil euros seriam suficien-
tes para começar – respondeu o primo.
– E vocês dois conseguem trabalharem sozinhos?
– Nós três, meu amor – abraçou-a Ramón, – a gente vai tra-
balhar junto!
Depois de apenas poucos dias Genio ligou para dar a notícia
de que sua mãe aceitara a proposta e estava mesmo intencionada a
arrumar um pouco de dinheiro. A ideia de Ramón entusiasmou a
família toda e Carmine e Ciccio se colocaram à disposição como tra-
balhadores braçais. Começaram de repente a recolher e a comprar o
material necessário e entretanto, no circuito dos seus amigos, espa-
lhou-se a notícia do projeto. Alguém os achou loucos sonhadores,
outros, ao contrário, sustentaram plenamente a ideia e se oferece-
ram para colaborar.
Aldo, engenheiro ambiental do campo das energias renováveis,
propôs colocar os painéis solares para a água quente e para a energia
elétrica: – Há espaço, eu faço projeto e instalação e os painéis os
recuperamos a preço de custo. Vamos começar com uma dezena

124
capítulo 5
depois, com o tempo, vamos integrá-los.
– É um gasto alto demais – disse Maria. Ela tentava ficar com
os pés no chão enquanto todos os outros sonhavam com a constru-
ção do quilombo.
– É verdade, mas é uma poupança a longo prazo, além de tudo
os painéis para a água quente são facilmente produzíveis a custo
quase zero – respondeu o experto.
Mesmo a galera da capoeira apoiou o projeto deles, e todos
prometeram ajuda nos finais de semana.
Assim, a terça-feira do 20 de março, dia de equinócio, come-
çaram os trabalhos no Quilombo da utopia real. Havia assim tanto
por fazer que não sabiam por onde começar, e o primeiro dia serviu,
mais do que tudo, para planejar as fases dos trabalhos. Maria estava
desconfortada, parecia-lhe uma tarefa colossal, o único incentivo
era o entusiasmo dos outros. Ao cair da noite voltaram todos a
casa, enquanto Maria e Ramón dormiram no furgão. Deixaram o
quarto em aluguel e levaram suas coisas para casa Valenza, a ideia
era morar de imediato na propriedade e trabalhar o dia inteiro. Iam
à cidade duas vezes por semana para o treino de capoeira e, de vez
em quando, paravam para dormir na casa de Aldo e Giada, até que
o casal encontrasse um novo coinquilino, o quarto a mais ficava à
disposição deles. Genio chegava à madrugada com comida e provi-
sões preparadas por Elisa e Rosa e ia embora ao pôr do sol, a menos
que a nebulosidade não antecipasse sua volta. O cabo, pois, muitas
vezes ficava envolvido pela neblina, o que o rendia ainda mais fasci-
nante e, quando era muito densa, não se via a um palmo do nariz e
era impensável encaminhar-se pela estrada de terra batida até a ss18.
A noite, assim, pertencia só a Maria e Ramón. Jantavam à luz
de velas na minúscula mesinha da kombi, faziam suas necessidades
ao ar livre entre o úmido dos fios de erva cobertos de orvalho, la-
vavam-se com a água aquecida no fogo e se esquentavam um nos
braços do outro. Aos domingos chegavam os reforços, a casa se en-
chia de amigos e familiares e os trabalhos procediam mais rápidos.
Por volta de duas semanas consertaram o encanamento, arru-
maram o teto e construíram a cozinha.
Ramón se gabou de não ter gasto mais que alguns centavos,
como um bom marceneiro remanejou traves, travincas e tabuados
e substituiu as telhas quebradas e as faltantes por aquelas dos está-
bulos caídos, cujos tijolos serviram para construir uma cozinha em

125
maresia

alvenaria. Esvaziaram os armazéns, selecionaram as coisas pra jogar


fora e aquelas para restaurar, e lustraram e lavaram a fundo os anti-
gos pisos de granilita.
Com a ajuda de Batuque substituíram as instalações sanitárias,
arrumaram o encanamento e puseram em funcionamento os ba-
nheiros, em vez o companheiro Oreste foi indispensável para refa-
zer completamente a rede elétrica. O tio Ciccio delimitou e depois
lavrou o terreno, plantou tomates e outros vegetais de estação e Ge-
nio, cotidianamente, ocupava-se de irrigar e tirar as ervas daninhas.
Mesmo Maria se apaixonou por cuidar da horta, seguindo as
instruções do tio e do primo em pouco tempo aprendeu a gerenciá-la,
assim Genio podia ir pescar sem pensamentos.
Ramón era incansável, desde manhã tomava as ferramentas na
mão e se dava aos reparos. Ajeitou os degraus das escadas, desmon-
tou cada porta, substituiu as dobradiças e as repintou, depois trocou
os vidros quebrados e consertou as esquadrias de varandas e janelas,
um trabalho constante e minucioso que tinha pressa de concluir o
mais rápido possível, a ideia de passar o inverno entre as corrente-
zas de ar não o entusiasmava por nada.
A seguir começaram a colheita dos móveis usados, lixeira por
lixeira, tomando exemplo do povo Rom, do qual Maria admirava
a capacidade de reciclar e reutilizar. A primeira vez em que entrara
num barraco do campo, na margem esquerda do rio Crati, espanta-
ra-se com a mobília arranjada, mas limpa, criativa nas combinações
e na utilização de objetos e mobília.
Com o avançar da alta temporada os finais de semana no qui-
lombo começaram a tornarem-se uma verdadeira festa, subia sem-
pre algum amigo armado de barraca e boa vontade. Era o momento
de refazer reboco e tinta e à noite, depois do trabalho, acendiam
uma grande fogueira no espaço aberto à frente do casebre. Assavam
carne, peixe e legumes e depois, ao redor do fogo, levantava-se o
som dos tambores, às vezes até o nascer do sol, como uma espécie
de invocação divina.
Um sábado Batuque chegou com um presente: umas madeiras
aptas a consertar o portão de entrada e uma grande chapa de ma-
deira para ser fixada acima, onde estava gravado o nome do espaço,
“Quilombo da utopia real”.
– Assim agora somos oficiais – disse mostrando a placa. Sentia-
-se ele também parte daquele grande projeto, cada vez mais aparecia

126
capítulo 5
com seu furgão laranja e junto com sua inseparável companheira
Merusca, para todos Vera, ela também artista errante, com a capaci-
dade de transformar qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.
Com a ajuda de todos no final de julho atingiram um bom
resultado e a casa estava pronta a ser habitada. Entre as coisas
amontoadas nos armazéns recuperaram um velho fogão a lenha e
a carvão e o puseram de novo em funcionamento, numa loja de
coisas usadas, por vez, compraram por um preço baixíssimo umas
redes e uns colchões. Arrumaram assim dois quartos, um pra Maria
e Ramón, outro para Genio.
Mesmo que o inverno ainda estivesse longe, a preocupação
com o frio aumentava. A única fonte de aquecimento da casa era
a lareira na cozinha, os aquecedores elétricos não podiam ser a so-
lução, seja pelo excessivo consumo, seja porque os quartos tinham
forros muitos altos, difíceis de aquecer, apesar de que o assoalho
ajudasse a não dispersar o calor. Aldo trouxe a solução: o Rocket
mass heater, um aquecedor a lenha com uma tal eficiência térmica
que obtenha a mesma quantidade de calor utilizando cinquenta por
cento a menos de madeiras do que um tradicional: – É perfeito para
os quartos – disse.
Explicou o método de construção, com latas e tijolos refratários
e imediatamente Genio e Ramón se convenceram da conveniência
do sistema. Tentaram fazer um, as medidas tinham que ser perfeitas,
pois de outra forma o sistema não teria funcionado, mas apenas de-
pois de alguns dias de luta com os erros conseguiram colocá-lo em
funcionamento. Apurada a eficácia, fabricaram um para cada quarto.
Na época do verão Batuque e Vera se tornaram uma presença
fixa tanto que, um dia, chegaram com redes e colchões e arrumaram
outro quarto: – Agora que as coisas essenciais estão em ordem, po-
demos dedicar-nos ao belo – disse Batuque.
Já tinha na cabeça toda uma série de obras por realizar ao ar
livre: – Gozamos dessa maravilhosa natureza, absorvemos sua ener-
gia, criamos em harmonia com ela... – sonhava de olhos abertos,
com o sorriso a iluminar seu olhar, um olhar atento ao mundo.
Vera trouxe uma das suas ferramentas de trabalho, a máqui-
na de costura, entre as muitas coisas era também uma figurinista,
transformava tecidos e outros materiais em vestidos e cenografias
de palco. Costurou cortinas, mantas para sofá, capas para cadeira,
travesseiros e a casa se encheu de cores.

127
maresia

A festa oficial de inauguração do Quilombo da utopia real foi


organizada em coincidência ao equinócio de outono, quando dia e
noite são iguais, para abençoar uma nova fase de compartilhamento.
Desde a tarde se juntaram todos os amigos e aqueles que ajudaram
na reforma do casebre, cantaram, dançaram, jogaram capoeira entre
um bocado e outro, cervejas e tabaco pra enrolar. Estava também
mestre Sorriso, chegado em Cosenza para visitar Panda, durante o
verão no Rio de Janeiro os dois se apaixonaram.
Ao cair da noite acenderam uma fogueira no espaço frontal
da casa e Ramón e Sorriso entoaram com os atabaques o toque
barravento em homenagem a Xangô, orixá dono do fogo, dos re-
lâmpagos e dos raios.
Uma energia intensa levantou-se no ar e estimulou os corpos
a liberar-se no ritmo sagrado e antigo do tambor. Uma noite de lua
nova, celebração simbólica do matrimônio entre masculino e femi-
nino, entre o arquétipo da noite e aquele da luz, sancionava um mo-
mento de forte transformação, um novo começo, e uma sútil faixa
de neblina fazia a atmosfera encantada. Não cobria o esplendor das
estrelas, nem envolvia como uma nuvem densa, melhor, parecia que-
rer participar da festa, sem ser volumosa. O alvorecer trouxe o sono,
o silêncio e a sensação de que, no fundo, outro mundo é possível.

128
CAPÍTULO 6

No mês de outubro no quilombo fizeram a vindima e o dia da


espremedura virou uma verdadeira festa, digna da tradição campo-
nesa. De manhãzinha chegaram as famílias de Genio e Maria, alguns
amigos da cidade e começou o trabalho. Descarregaram as caixas
de uva comprada e colheram outra no pequeno vinhedo deles, era
o primeiro ano, depois quem sabe quantos outros, que voltou de
novo a dar frutos. No pátio frontal colocaram duas balsas, em cujo
interior as mulheres pisavam a uva à pés descalços, o rádio transmi-
tia tarantelle a todo volume e, entre um bocado e outro, consumia-
-se o vinho do tio Ciccio da safra precedente. Cascas e espremedura
ficaram em fermentação por alguns dias, depois foram passadas na
prensa de lagar e, enfim, transvasadas para os tonéis de madeira.
Como tradição esperaram o dia 11 de novembro, dia de são Martín,
para experimentar o vinho e apurar o sabor. Para a ocasião subiu
para o almoço o companheiro Oreste o qual, ainda uma vez, rebi-
tou a oportunidade de se aproximar das outras realidades econômi-
cas alternativas do território: – Poderiam inserir-se no circuito dos
grupos de compras solidárias, os Gas1 – sugeriu. – Os produtores
da rede se encontram uma vez por semana na feira do sábado de
manhã, na área das ex-oficinas ferroviárias, e vendem seus produtos
diretamente ao consumidor – explicou.
Na realidade eles já faziam isso com os amigos da capoeira,
mas participar de uma experiência coletiva teria sido um jeito de
pôr em comum seu percurso de autonomia. A ideia de Oreste foi
acolhida e posta em prática já a partir da semana seguinte, foi ele
mesmo a assumir o compromisso.
Chegava ao quilombo na sexta-feira de tarde, passava a noite
com eles e na manhã voltava à cidade e montava a barraca com
legumes, vinho e sobretudo ovos, as galinhas do galinheiro, que foi

1. Acrônimo de “Gruppo di acquisto solidale”, grupos de compra solidária orga-


nizados espontaneamente, que partem de uma abordagem crítica ao consumo e
que querem aplicar os princípios de equidade, solidariedade e sustentabilidade de
suas compras (principalmente produtos alimentares ou de largo consumo).

129
maresia

arranjado por Rosa, eram particularmente generosas. Vera e Maria


se especializaram na colheita e no uso das ervas para fins curativos,
aprenderam a reconhecê-las no meio das ervas daninhas e começa-
ram a preparar os primeiros chás de ervas, das mais diversas pro-
priedades, e os primeiros oleólitos e óleos essenciais. O proveito da
venda desses produtos era destinado ao fundo comum para as ne-
cessidades cotidianas, na maioria gasolina e contas da casa, ao qual se
adicionava o ganho do pescado de Genio e aquele dos instrumentos
de Ramón, atabaques e berimbaus, esses últimos construídos com as
abóboras da horta e a madeira de aveleira em substituição da biriba.
Manuche periodicamente viajava, convidado em algum evento
de capoeira e, quando as condições o permitiam, Maresia o seguia.
Por mais que confiasse no seu homem, a ideia de sabê-lo no meio
de alunas de todas as idades e nações a deixava com ciúme, temia
que ele pudesse amar outra mulher.
Também Vera e Batuque de vez em quando se afastavam, cha-
mados por alguns trabalhos, mas quando ficavam no quilombo de-
sabafavam sua irrefreável criatividade no espaço exterior. Pouco a
pouco deram vida a um verdadeiro jardim de arte, com canteiros fei-
tos de pedras e bancos e mesas decoradas a mosaico, com peças de
vidro e cerâmica recicladas. Aldo, que se preocupava com a questão
das energias renováveis, como prometido se ocupou do projeto de
instalação dos conectores solares para a água quente. Chegou um dia
com um manual de autoconstrução e, junto com Ramón, Batuque e
com o companheiro Oreste, fecharam-se uma tarde para estudar o
projeto e o jeito de conseguir, economizando, o material necessário.
Não precisaram de muito tempo, por volta de um mês tinham o
necessário e construíram tudo. O sistema dos painéis solares para a
energia elétrica, ao contrário, deveria esperar, porque ainda não dis-
punham da quantia necessária. Em geral, no quilombo cada um iden-
tificara seu papel de jeito natural, seguindo as próprias inclinações,
e se sentia responsável pelo bem-estar de todos. Havia harmonia e
apoio recíproco e o som dos tambores, dirigido ao céu como a in-
vocar o universo, nutria suas almas de uma espiritualidade ancestral.
Um dia, contemplando o Tirreno do alto do promontório,
Maria refletiu sobre as mudanças dos últimos dois anos, sobretudo
desde que foram morar ali. Percebeu o quanto estava feliz, sua vida
não era mais monótona, aprendera a fazer muitíssimas coisas, desde
cuidar da terra até desenfornar uma rosca. De tudo o que sempre

130
capítulo 6
recusara como espelho de sua mãe descobriu, ao contrário, que gos-
tava, assim como gostava da capoeira ao centro da sua vida, com os
treinos na cidade, as viagens para os eventos e o contínuo cantarolar
e tocar pela casa. Mais, a partir do novo ano, o professor Manuche
iniciou um curso para crianças numa academia de Paola e Maresia o
acompanhava tocando pandeiro.
Na primavera também Soninho se mudou para o quilombo e
sua presença enriqueceu as dinâmicas do grupo, gerando uma nova
onda de energia criativa. Construíram um forno a lenha de barro
para pão e pizzas e projetaram uma grande escultura no centro do
espaço frontal da casa. Já há algum tempo Batuque incubava a fan-
tasia de uma obra que se iluminasse desfrutando a energia cinética
e, quando falou disso com Ramón, convenceu-se de que sua visão
era transformável em algo de concreto.
– Vê que não erro quando digo que você parece com o grande
Manrique? Sua ideia é muito semelhante ao conceito que está atrás
dos Wind Toys, os brinquedos do vento dele – disse-lhe o amigo,
encorajando-o.
Desde o dia seguinte Batuque se perdeu na construção da sua
obra e, por volta de um par de meses, estava pronta e testada: um
girassol gigante, içado numa tábua muito alta, movia-se graças a
energia do vento e se iluminava, como um lampião ecológico. Para
inaugurá-lo pensaram em organizar um momento especial, reuni-
ram-se em círculo para avaliar as várias possibilidades e, no final,
optaram por um fim de semana de camping e capoeira onde a roda
final teria sido realizada à luz do lampião.
– Poderíamos perguntar a mestre Ramos se está disposto a
voltar aqui – sugeriu Ramón. – Parece-me que vai ficar na Europa
até a metade de junho.
O mestre, de fato, fora em Cosenza na semana antecedente à
ocasião do Encontro Cultural organizado pela galera e ainda estava
em Turim, a casa do professor Boneco era seu campo base, de lá se
movia pela Europa para os vários eventos onde era convidado. Ma-
nuche o achou e lhe explicou a ideia, e Ramos ficou feliz de aceitar.
Naquele final de semana de metade de junho Sorriso também estava
na área, a história de amor com Panda o fizera assíduo frequentador
de Cosenza e nunca deixava, nas suas visitas, de dar um pulo no
quilombo, considerava-o um lugar especial.
Por volta de pouquíssimo tempo espalharam a voz por meio

131
maresia

das redes sociais, e já desde a quinta-feira de manhã começaram a


se juntarem os capoeiras da Senzala Cosenza e alguns camaradas de
outros grupos, provenientes da Sicília e da Apúlia. Chegaram cerca
de umas quarenta pessoas, montaram as barracas na área posterior
da casa e à tarde houve a roda de abertura no espaço em frente. Nos
dois dias seguintes os treinos foram divididos entre os dois mestres e
o professor Manuche e às noites, depois do revigoramento de ducha
e comida, o interior da casa virava uma sala com música ao vivo: o
cavaquinho de Ramón sacudia entre as notas dos sambas cariocas
acompanhado pelo pandeiro, brinquedo mágico nas mãos de Sorri-
so, e pelo santo toque de Ramos no atabaque, instrumento sagrado
por excelência, que vibrava como um eco do além-mundo. O do-
mingo de manhã foi dedicado ao Maculelê e Maria provou a sensa-
ção de ter voltado num mundo ancestral. O ritmo dos três tambores,
tocados por Sorriso, Ramos e Manuche, criaram um campo magné-
tico muito forte e os pés nus, a contato com a terra, faziam senti-la
um todo com o universo. A uma certa altura lhe pareceu perder o
controle do próprio corpo nos quatros passos do Maculelê, e a cada
quarto passo, quando os paus batem um contra o outro, num dar e
receber golpe ao ritmo de música, percorria-lhe um calafrio.
A obra de Batuque foi inaugurada durante a roda de fechamen-
to, quando vibrou o coro “chama eu, senzala chama eu” o girassol
gigante foi acionado e a luz se espalhou iluminando a bateria de ins-
trumentos, a roda e os jogadores. Foi um momento emocionante, o
som dos três berimbaus, junto com o toque do atabaque, fez Maria
arrepiar, era como se esticasse um fio sútil com algo diferente.
Antes de viajar mestre Sorriso e mestre Ramos recusaram seus
cachês, mas em troca da promessa de reinvestir aquele dinheiro no
arranjo de uma sala para a música. Manuche e Batuque se alegraram
como duas crianças, era seu sonho, já há tempo determinaram o es-
tábulo por transformar, mas até então ainda não conseguiram juntar
nem mesmo o mínimo para o material de reforma.
Naquele período Genio e Soninho se aproximaram muito,
criaram entre eles um laço particular, feito de um profundo enten-
dimento, poucas palavras e muitas sensações. Era um amor que não
conseguia desabrochar, um pouco por timidez, um pouco por me-
dos que ambos traziam dentro de si. Genio, tímido como era, uma
noite se excedeu até pegar-lhe na mão, acariciou-a, mas ela se afas-
tou. Dali a pouco ela teria viajado, hóspede de uma distante prima

132
capítulo 6
em Ipanema, para treinar um par de meses com Ramos na academia
do Leme, e quando falava da sua iminente viagem ele se abrumava,
às vezes até mesmo largava a conversa. Maria entendeu o que pas-
sava no coração do primo, conhecia-o melhor que qualquer outra
pessoa, e um dia o repreendeu: – Por que não lhe diz que a ama?
– Porque tenho medo da sua recusa – respondeu sincero.
– Como você pode estar certo da sua recusa?
– Eia, Maria, não nos enganemos! – enraivou-se.
– Daqui a uns dias ela vai viajar, e talvez nem mesmo vá voltar...
– Fica tranquilo, ela vai voltar. Ama demais sua terra para dei-
xar um vazio que, ela sabe muito bem, de outra forma se encheria
de merda.
– Você acha isso de verdade?
– Claro. Mas você tem que ousar, é preciso ter coragem para
ser feliz!
Genio refletiu sobre as palavras da prima e contou falar com a
moça, mas só depois da volta da viagem dela.
Antes da partida de Soninho para o Rio, à qual seguiria também
aquela de Nureyev e Panda, organizaram uma festa de despedida e
convidaram os amigos da cidade, aqueles da Coessenza e a galera da
capoeira por completo. Bem no meio da confusão, quando estava já
no pico da embriaguez pelo vinho, cervejas e cachaça, Ramón pu-
xou Maria de lado: – Tenho que lhe dizer uma coisa em particular.
Nunca Maria o vira com um ar tão sério: – O que aconteceu
meu amor?
– Tenho uma coisa pra você, um presente – disse, emocionado.
– Um presente? – espantou-se ela, até então nunca ele lhe fize-
ra um presente.
– Sim, um presente! – repetiu. Entregou-lhe um envelope
branco: – Abra-o! – apressou-a, não se continha pela joia.
Maria o abriu e ficou de boca aberta, conseguiu só gaguejar:
– Mas quando, o que... como você fez? Onde arranjou o dinheiro?
Tem certeza? Mas... não podemos...
Ramón se alegrou: – Meu bem, você tem que conhecer minha
família! A hora é essa!
Ela estava perplexa: – Como vão fazer aqui sem a gente?
– Já está tudo combinado, amor, tranquila.
Maria se calou, depois estourou numa risada: – Agora entendo
porque você me pressionou tanto para eu fazer o passaporte!

133
maresia

Apertou-o forte contra seu peito e sentiu todo o amor que sen-
tia para ele, considerava-o um dom do céu na sua vida tão normal.
Uma viagem no Rio de Janeiro nunca ousara nem mesmo sonhá-la,
pensou no poder das coincidências e demorou na passagem: – Des-
de o dia 20 de agosto até o 15 de outubro... ali vai começar a prima-
vera! – entusiasmou-se. Correu para Panda e Soninho e as moças
estouraram numa risada, não só estavam a par, mas guardaram o
segredo durante meses, só ela não sabia nada de nada.
Um par de dias depois levou a notícia à casa dos seus pais, os
quais foram entusiastas. Rosa apreciou de tal maneira o gesto de
Ramón, que gastou em profusão uma série de elogios sobre o genro
como nunca fizera. Quando o contou a Vovó Quinota os olhos dela
escancararam e, cheia de comoção, pegou a mão da bisneta entre
as suas. Poucas vezes Maria vira nela um sorriso tão doce: – Vou
trazer pra você um belíssimo colar de conchas como esse que tem
no pescoço! – prometeu-lhe.
Rosa se dirigiu à filha: – Tenho a sensação de que se esteja fe-
chando um círculo. O fato de você ir ao Brasil, e mesmo ao Rio de
Janeiro, um pouco me toca... penso no que tem que sentir no seu
coração, Vovó, neste momento!
Maria olhou para a bisavó e demorou no seu balançar: – Quem
sabe se ficaram alguns parentes dela lá... você acha possível, mamãe?
– Não sei o que lhe dizer, minha filha. Certo é que Vovó não
será nascida do nada, mas quem sabe, quando chegou aqui ela tinha
só quinze anos!
– É incrível o fato de ninguém saber nada! – encalçou Maria.
– Para demonstrar sua proveniência temos só um cartão de identi-
dade e o estéril conto do bisavô Carmine.
Aproveitou a ocasião certa para indagar e pôr a pulga atrás da
orelha da mãe, no fundo, nem mesmo ela pusera nunca em discus-
são a história da mulher até que encontrara a carta.
– Uma vez eu fiz algumas perguntas ao bisavô – contou Rosa,
– mas ele me liquidou dizendo que a família de Quinota éramos nós!
E eu não insisti mais.
– Não lhe parece um pouco estranha toda essa história, ma-
mãe? Todo esse mistério...
Rosa refletiu por alguns segundos, sua mente voltou a quando,
faz vinte anos, casara e fora morar em casa Valenza. Como se tives-
se lido aquelas lembranças nos seus pensamentos, Maria lhe pediu:

134
capítulo 6
– Conte-me como era o bisavô Carmine! Eu era só uma menina,
não tenho bem clara sua imagem.
– Bom, ele era um homem de uma peça só, de poucas palavras.
Tinha o olhar duro... eu acho que estava triste, sabe? Às vezes pare-
cia perder-se num outro mundo, talvez tentasse chegar naquele da
sua esposa... lembro de como ele a olhava, com os olhos cheios de...
não sei, minha filha, não sei.
Fez uma pausa para rearrumar a memória: – Ela vivia como se
seu marido não existisse, nunca lhe dirigia o olhar, nem um gesto, só
quando era solicitada! Eu acho que ele sempre sofreu com a frieza
de Vovó.
– Mas você nunca encontrara nada entre as coisas dela? Não
digo voluntariamente, porém, talvez limpando, seu olho caiu em
algum lugar, não sei...
– Que Deus me afaste e me libere, Maria! Nunca faltarei ao
respeito a Vovó Quinota! Nunca me permiti abrir uma gaveta sem
ela! Quando um dia não estiver mais aqui, queira Deus o mais tarde
possível – e se fez o sinal da cruz, – poremos em ordem as coisas
suas e as do vovô e, se de verdade houver algo por descobrir, então
o descobriremos.
Depois olhou a filha de soslaio: – Tire da cabeça certas ideias!
– Mas não, mamãe, o que você está dizendo! – enrubesceu
Maria. – Nunca o faria!
A partir daquele momento começou a contagem regressiva até
o dia 20 de agosto, quando Ramón e Maria subiram no avião para
o Rio de Janeiro.

Chegaram às seis da manhã com um fuso horário de cinco


horas a menos e no aeroporto encontraram Kadão à espera deles.
Uma voz os alcançou do fundo: – ’Tó aqui mano!
Ramón se virou e viu seu amigo mais querido, correram um
para o outro e se abraçaram, rindo e gritando como duas crianças.
Estavam visivelmente felizes, davam-se tapinhas nas costas e di-
ziam coisas que Maria não conseguia entender, tanto a fala deles
era rápida. Apresentou-se a Kadão e ele fez uma reverência: – Seja
bem-vinda na cidade maravilhosa! – disse-lhe.
Ramón se surpreendeu que o amigo tivesse ido buscá-los de
carro: – Você comprou um carro, então tá indo bem o trabalho.

135
maresia

Ele riu: – Tá de fora, mano, o carro é da Pollyanna!


Pollyanna era sua decenal parceira, cantora do grupo Fala Bra-
sil onde ele, por sua vez, tocava as percussões.
No caminho pra casa Maria se encheu os olhos com a realidade
contraditória da cidade. De um lado da rua o enorme complexo da
Maré, um monte de cimento numa extensão sem verde, estendia-se até
onde a vista podia chegar. Eram muitas construções de tijolos brutos,
uma colada à outra, pela primeira vez estava na frente de uma favela.
Prosseguindo para a zona sul, a uma certa altura apareceu o
morro do Pão de Açúcar, uma imagem vista muitas vezes em foto-
grafia. Erguia-se majestoso ao lado do morro da Urca, na entrada
da baia de Guanabara, e Maria ficou fascinada por tanta grandeza.
No Bairro de Laranjeiras o carro de Kadão dobrou numa la-
deira e em certos trechos, entre os buracos da vegetação, apareciam
nesgas da zona sul, as curvas sinuosas dos morros e da Lagoa pare-
ciam quadros pintados por um pincel experto. Chegaram ao topo,
no pico do morro de Santa Marta, onde Ramón crescera. Um grupo
de adolescentes ficou curioso ao notar uma gringa, aproximaram-se
e reconheceram Kadão: – E aí, tudo bem? – recitou aquele que pa-
recia o maior.
– Oi moleques! – cumprimentou Ramón. Os meninos o obser-
varam melhor e depois exultaram: – Manuche!
Encheram-no de perguntas, não o viam faz anos, e se formou
uma procissão para acompanhá-lo até a casa do seu pai. Descendo
e subindo as escadas, encastoadas entre as construções de tijolos
sem reboco, Ramón sentiu o coração pulsar forte. Relembrou de
todas as noites em que sonhara em fazer aquele caminho, o cheiro
de umidade das ruas, o fedor de esgoto a céu aberto e de mijo de
gato. Percebeu o quanto tinha sentido falta dos ruídos do morro,
da falação da gente, do perfume do churrasco, do samba em alto
volume nos botecos e nas casas.
Maria estava suada, apesar de ter chovido o calor era particu-
larmente intenso e ela se fadigava para manter o passo dos dois que,
ao contrário, iam rápidos fazendo ziguezague entre os cocôs dos
cachorros.
– Tudo bem, meu amor? – virava-se de vez em quando Ramón
para se assegurar que ela não ficasse muito para trás. Antes de chegar
ao destino pararam na sombra de uma árvore: – Essa aqui é a arvore
do amor! – explicou-lhe Kadão. Era uma figueira abraçada a um co-

136
capítulo 6
queiro, seus troncos se fundiam e se tornavam uma coisa só. Já de-
pois de outra curva, no pico mais alto, onde quase era só floresta, eis
aparecer a casa de Zé Francisco: – Já chegamos! – disse emocionado
Ramón. Observou por alguns segundos as íngremes escadinhas de
cimento antes de subi-las, depois chamou em voz alta: – Pai!
Quando a porta se abriu e Zé Francisco viu o filho, debulhou-se
em lágrimas e o apertou entre seus braços: – Quanto tempo, meu
filho, quanto tempo! Quase morri de saudade!
Depois saiu Lívia: – Manuche! – gritou feliz.
– Oh, minha irmã! Quase não lhe reconhecia! – exclamou ele.
Deixara a meia-irmã quando era uma menina e a reencontrava
mulher, com as formas redondas e abundantes.
Ramón apresentou Maria e Zé a acolheu como se a conhecesse
desde sempre: – Bem vinda, minha filha, bem vinda à nossa família –
recitou.
Enfim apareceu Renata e ela também se juntou às boas vin-
das. Foi uma sucessão de abraços, beijos, risos, olhos molhados e
de frases que Maria a custo entendia, mas sabia serem palavras de
acolhimento e amor.
Entraram em casa, numa primeira sala com dois pequenos
sofás, uma mesinha baixa e uns quadros representando a cidade
do Rio. Virando a cabeça Maria reparou numa coisa extraordinária:
uma parede era formada por um grosso tronco de uma figueira,
nem mesmo entre as fantasias arquitetônicas do campo Rom2 nunca
vira uma árvore no lugar de um muro! Logo de lado havia um pe-
queno terraço coberto de lâmina, onde estava adaptada a cozinha, e
a vista que se enxergava dessa altura, com o Cristo ao lado, parecia
uma recompensa para todas as faltas estruturais. Renata mostrou a
Maria o quarto reservado pra ela e Ramón, poucos metros quadra-
dos com uma cama e um armário: – Só isso – disse desculpando-se,
– pode ser a cama muito pequena pra os dois.
Ela, em vez, não se importava com a dimensão da cama, me-
lhor, lamentava que Lívia teria dormido no sofá. Entretanto se es-

2. Ao plural roma, em português “homem”, é o endônimo adotado pela “União


Romani Internacional” (em romani: Romano Internacionalno Jekhetanipe) e pela
Organização das Nações Unidas, que designa um conjunto de populações nô-
mades que têm, em comum, a origem indiana e uma língua (o romani) originária
do noroeste do subcontinente indiano. Essas populações constituem minorias
étnicas em numerosos países e são conhecidas por vários exônimos.

137
maresia

palhara a notícia da volta de Manuche e a casa se encheu pouco


a pouco de familiares e amigos. Maria se achou a ouvir horas de
lembranças, brincadeiras no morro e na mata, os tempos duros do
tráfico, a capoeira com Sorriso e Garrincha e depois os treinos com
Peixinho nos espaços da Travessa Angrense em Copacabana. Sen-
tia-se transtornada, um pouco pelo fuso horário, um pouco pela
novidade, um pouco pelo esforço para acompanhar a conversa em
português. Tinha dificuldade em falar, mas conseguia entender o
sentido das frases, se bem que lhe escapassem muitas palavras.
Durante o primeiro dia no pico do Santa Marta, Maria apren-
deu muitas mais coisas sobre Ramón do que num ano de relação,
Zé Francisco era o grande orador, escandindo as palavras contou à
nora a história da família e da chegada deles no morro.

Quando os bisavós morreram, vovô Chico e o pai Joãozito, já


casado com a índia Araci, perderam o direito de morar na sala do
cortiço no centro da cidade e então começaram a vagabundar de
floresta em floresta até chegarem ao morro do Sossego, no Parque
Lage. Ali conheceram Dona Geralda, mineira de origem, a qual se
recusara a vender a recém-nascida Vilma, fruto de um abuso do
irmão maior, e fugira com ela. A mulher, guerreira, transformou a
dor em resistência e solidariedade, mãe de santo e curandeira, numa
cabana de madeira e barro, deu à luz outros dois filhos, Walmir e
Waldir, depois chamado de Sorriso, os quais se tornaram bem cedo
os irmãos adotivos do pequeno Zé Francisco. Quando chegou a
voz do plano de remoção dos barracos do morro, previsto pela au-
toridades, as duas famílias decidiram mudar-se juntas para o Pico
do Santa Marta onde já existia uma comunidade, formada nos anos
trinta por operários que trabalhavam no bairro de Botafogo. Loca-
lizaram o espaço a ocuparem e construíram ali suas habitações, no
mesmo beco. Chico e Joãozito escolheram ficar um pouco mais no
alto, fabricaram uns degraus e desfrutaram o tronco de uma figueira
como muro do barraco de madeira. Dona Geralda, em vez, optou
para um espaço um pouco além, mais amplo, que se tornou uma
verdadeira extensão africana na zona sul da cidade: samba, capoeira,
feijoada e religião dos escravos. A mulher, ao longo do tempo, teve
outros cinco filhos e, mãe de leite, acabou por ser bem cedo a mãe
de muitos, mesmo aquela de Zé Francisco, quando a dele deixara a

138
capítulo 6
comunidade. Pois a um certo ponto Araci se cansou de morar no
morro e voltou para às riquezas da sua aldeia de origem, casou-se
de novo e teve outros sete filhos. Depois de alguns anos também
Joãozito foi embora para ser pescador em Ilha Grande, assim ele,
com quinze anos, ficou com o vovô Chico, apesar de ele continu-
ar a desaparecer periodicamente, inquieto desde sempre. Se bem
que as ocasiões não lhe fossem faltadas, Zé nunca tivera nada a ver
com roubos e tráficos, queria conquistar tudo sozinho e desafiar o
mundo com sua pele preta e seus traços de índio. De dia lustrava os
sapatos dos brancos e de noite estudava para um diploma de escola
que, uma vez obtido, permitiu-lhe a contratação numa loja de eletro-
domésticos em Copacabana. Na idade de vinte e três anos conheceu
Ana, uma espanhola de férias no Rio, e os dois se apaixonaram. Ela
ficou gravida de Ramón e, contra a opinião dos seus pais, casou com
Zé e ficou com ele no Brasil. Resistiu por dez anos, depois escolheu
voltar para o bem-estar que deixara em Madrid, mas não houve jeito
de convencer o filho a ir com ela. Ramón queria ficar no morro, a
puxar pipas, a surfar as ondas do oceano e a jogar capoeira.

Renata, entretanto, botara a feijoada no fogo e, à espera do


cozimento, Kadão propôs de visitar o Ecomuseo Nega Vilma, ao
número três, casa dois, da mesma estrada, a rua da Tranquilidade,
no quintal fundado por dona Geralda e depois passado aos cuida-
dos da sua primeira filha. A Nega Vilma, de fato, era uma extensão
da mãe e, com a morte dela, assumira a responsabilidade de conti-
nuar o trabalho. Herdara, na prática, todas as ações de reciprocidade
com a comunidade, o conhecimento da ecologia, da botânica e a
assistência através da oração, os chás e os banhos de ervas. Nunca
entrara numa escola, mas conhecia pelo nome cada planta da flores-
ta do Santa Marta, e isso atraia ao seu quintal inúmeras pessoas, não
apenas do morro, mas da cidade baixa também.
– O ecomuseu Nega Vilma é um museu comunitário, um mu-
seu da favela – explicou Kadão.
A história de Geralda e da filha Vilma, deveras, levava em si
aquela de todas as mulheres que com o tempo guardaram a própria
cultura e fora diretamente ligada ao serviço para a comunidade, em
todos seus desenvolvimentos, desde o tráfico até a pacificação. En-
tre o arquivo do ecomuseo, Maria pôde enxergar os símbolos da

139
maresia

memória do morro e os elementos centrais da cultura brasileira,


penduradas na parede da única sala, um tempo a cozinha da Nega
Vilma, havia fotografias do ritual do banho de ervas, das orações,
do cotidiano da comunidade, das paisagens e da arquitetura. Na
época do tráfico a favela, tão perto do céu, “pertinho do céu” na
versão idealizada do sambista Zé Kéti, era um verdadeiro inferno e
foi a primeira da zona sul, em dezembro de 2008, aonde fora insta-
lada a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Tratava-se, em substância, da ocupação militar permanente nas
áreas dominadas pelo tráfico de droga, ação logo depois denominada
pelo governo “política de pacificação”, que validava o fim do tráfico
propriamente dito e se diferenciava da política de segurança públi-
ca no resto da cidade. Desde então muitas coisas mudaram e San-
ta Marta se tornara destino das visitas guiadas, milhares de gringos
pagavam para rodar incólumes entre os becos, admirar a beleza e a
criatividade arquitetônica dos barracos e farejar o cheiro da pobreza.
Depois de ter visitado o ecomuseu, fizeram um passeio pelo
morro. Primeira parada foi a casa da Tia Lourdes, aquela que cuidara
de Kadão depois da morte da mãe dele, e a mulher, assim que reco-
nheceu Manuche, comoveu-se, vira-o crescer junto com o sobrinho.
Depois desceram e chegaram no centro da favela, na laje chamada de
“Espaço Michael Jackson”, porque o artista americano, nos anos ’90,
gravara o videoclipe da música They don’t care about us, uma denúncia
contra a pobreza. O espaço lhe fora intitulado à sua morte, foi insta-
lada uma estátua dele e pintado um mural em sua homenagem.
Voltaram à casa, depois de tantas escadas e informações Ma-
ria estava cansada. Lívia ligara o rádio a todo volume: – Você sabe
sambar? – perguntou-lhe.
– Oh, não, não sei não! – respondeu ela, como se a pergunta
não tivesse sentido.
– E aí! Vamos aprender!
– Eu queria, sim! – entusiasmou-se Maria, e lhe perguntou se
ela conhecia uma escola de samba onde pegar umas aulas.
Lívia se espantou: – Escola? A escola é a rua!
Disse-lhe que seria suficiente uma roda de samba para apren-
der e solicitou Kadão a organizar uma com a música do Fala Brasil
e a voz de anjo de Pollyanna: – Claro! – respondeu ele. – Vamos
organizar, sim!
Em casa Dos Reis estavam extremamente excitados, progra-

140
capítulo 6
mavam churrascos, sambas, excursões e Maria ficava confusa com
todas aquelas palavras, mas ao mesmo tempo estava aberta para ab-
sorver o mais possível. Pela primeira vez saíra da Europa e se achara
numa realidade diferente e estranha. Kadão, filosofando sobre o
mundo das favelas, afirmou que não existe “o” Rio de Janeiro, mas
“os” Rio de Janeiro e que qualquer pessoa que não fosse do morro,
mesmo se brasileira, era, seja como for, gringa.
– Mas você é bem como Soninho, ela não é uma gringa qual-
quer! – acrescentou divertido, referindo-se à amiga em comum.
Pelo dia todo não saíram do morro, porque se subseguiram
uma série de encontros e situações até tarde. A noite estendeu sobre
o Pico um manto encantado, as luzes da cidade baixa se refletiam
no alto e contornavam as curvas dos morros e da Lagoa. Maria e
Ramón chegaram no terraço íngreme, embaixo de casa, para admi-
rar a extensão luminosa.
– Sabe essa vista? – disse ele.
– Maravilhosa.
– Por esse panorama querem nos tirarem daqui.
– Querem construir hotéis e vilas de luxo? – supôs ela.
– Isso – anuiu Ramón. – Pra mim, ao contrário, é como se
fosse uma recompensa para os moradores da comunidade.
Ramón lhe contou de quando era uma criança e ia à escola, e
muitos dos seus amigos acordavam de manhã pensando só em como
arranjar comida: – Minha mãe é gringa, Maresia, gringa e rica. Isso
fez a diferença na minha vida e me permitiu ter um destino diferente
dos outros meninos do morro. Eu tenho outra história.
Maria não entendeu bem o sentido das suas palavras, não sabia
como era morar numa favela, ainda menos na época do tráfico. Para
ela tudo era uma contínua descoberta, de novos rostos, ruídos, co-
res, perfumes, sabores. Nos dias seguintes, teve a oportunidade de
conhecer a cidade não como uma simples turista, mas vagueando
com Ramón e Kadão pelas ruas do centro, de Botafogo e das Laran-
jeiras. De vez em quando aparecia também Fabio Nélio a completar
o trio da infância, amigos unidos no profundo, mas marcados por
vidas completamente diferentes. Ele era o único, entre os três, que
se dera ao tráfico de droga dentro da comunidade e, aos quinze anos,
pegara o primeiro fuzil na mão. Fora preso um par de vezes, passan-
do dias e dias trancado numa cela acomodado como um animal, e
escapara da morte em várias ocasiões graças aos cuidados da Nega

141
maresia

Vilma, a qual assistia os traficantes feridos que não podiam ir ao hos-


pital. Com a pacificação, Fabio largou as armas e começou uma vida
normal. Ramón e Kadão o consideravam um miraculado porque
saíra vivo de toda aquela história enquanto os outros da quadrilha
morreram sob os tiros da polícia, e porque, ao contrário dos pou-
cos ex-traficantes restados em vida, não era nem deprimido, nem
depravado, ao invés encontrara na arte o desabafo para elaborar a
violência onde vivera. Como autodidata, Fabio começou a desenhar
com lápis e grafite, narrava a cotidianidade do Santa Marta na época
da violência, quando as quadrilhas se matavam entre si, a polícia en-
trava metralhando sem critério e a morte estava sempre ali, mesmo
se você não a procurar, mesmo se você for inocente. Maria não con-
seguia imaginar o homem com um fuzil na mão, sua educação e sua
doçura chocavam com a imagem de um traficante, só as cicatrizes
no rosto deixavam supor circunstâncias desagradáveis, que, porém,
os três amigos lembravam rindo, como se fossem inocentes brin-
cadeiras de infância. As palavras deles deixavam intuir um hábito à
violência, assim como eram costume as maravilhas naturais ao redor
da cidade, na frente das quais ela, ao contrário, ficava de boca aberta.
Nos dias de sol Ramón e Maria iam à praia, Arpoador, Ipane-
ma, Praia do Leme, justo embaixo da academia do mestre Peixinho,
mas quando eram previstas ondas bonitas avançavam para Norte
até a Praia da Macumba, a Prainha ou Grumari, lugares selvagens,
prediletos pelos surfistas cariocas. Observando o oceano, Maria
observou quanto era diferente do seu Tirreno, muito maior, ain-
da mais imponente. Ao primeiro mergulho foi atropelada por uma
série de ondas, seguidas uma atrás da outras a distância de poucos
segundos, e bebeu uma notável quantidade de água. Quando era
criança e mergulhava no mar agitado, pegando as ondas para baixo
e para cima, seu pai lhe dizia: “Nunca dar as costas ao mar!”, mas ela
aquele dia não seguiu o conselho e se sentiu uma tola. Desde então
amadureceu um temor reverencial pelo oceano e, a cada imersão,
advertia o dever de pedir licença à sua dona, mãe Iemanjá, para en-
trar e se purificar nas suas águas. O tempo passado na praia era ma-
ravilhoso para Maria, deliciava-se com o perfume do queijo coalho
assado na hora, bebia mate com limão, escutava o fragor das ondas
e o vozear dos ambulantes, a criatividade deles ao vender a divertia.
Nos dias cinzas, ao contrário, vagabundeavam pela cidade,
passavam pela Lapa para visitar Kadão no seu escritório, comparti-

142
capítulo 6
lhado com outros fotógrafos, e havia sempre um novo amigo para
encontrar, um atelier para visitar, mostras, exposições, sambas e ro-
das de capoeira nos vários núcleos da Senzala, em Bangu, no Méier,
em Duque de Caxias.
Nos primeiros vinte dias Maria gozou da presença da sua ami-
ga Soninho, Nureyev e Panda já voltaram para a Itália. Treinavam
juntas com mestre Ramos e mestre Toni Vargas e depois, no final da
aula, paravam nos bares do Leme com Igor e com outros camaradas
da galera, tomavam banho de sol na praia e iam aos sambas aonde
Sorriso as convidava. O primeiro foi organizado na casa do mestre
Gato, um dos fundadores do grupo Senzala, na colina de Santa Te-
resa, onde havia uma das vistas mais belas da cidade. Aquela noite
Maria captou inteiramente o espírito carioca do qual sempre lhe
falaram, o típico jeitinho brasileiro de improvisar, no samba como
na vida e, pela primeira vez, achou-se numa roda entre as cordas
de um violão e um cavaquinho, e as percussões de pandeiro, surdo
e tamborim. Desde então as ocasiões de festa se repetiram mais
vezes, de Santa Teresa até Santa Marta à quadra do Guararapes, no
Rio de Janeiro cada evento, embora insignificante, era objeto de
comemoração com música e churrasco.
Depois de quinze dias passados na confusão da cidade, Ramón
propôs a Maria irem em Ilha Grande para fazer visita ao vovô João-
zito e ao bisavô Carmine. Ela aceitou animada e após um par de
dias viajaram. Acordaram às três da manhã para chegar a tempo à
rodoviária e pegar, às seis horas, o ônibus para Angra dos Reis, e
depois de mais ou menos três horas de viagem, mais deslocamentos
internos, chegaram ao embarque para a ilha. Pegaram o barco lento
e econômico, mas durante a travessia puderam admirar algumas das
mais belas paisagens que Maria pudesse lembrar. Ao surgir da ilha
arregalou os olhos pela maravilha: uma enorme massa verde emer-
gia das águas do oceano e, pouco a pouco mais próximos, enxer-
gavam-se os primeiros sinais de presença humana. Ancoradouros
para os barcos, casinhas semi escondidas pela vegetação e faixas
de areia no litoral jogavam manchas de cor no quadro pintado pela
mãe natureza. Desembarcaram na praia de Abraão, no homônimo
vilarejo onde estava concentrado o turismo da ilha, mas o caminho
não tinha acabado. Ramón disse a Maria para esperá-lo, enquanto
ele ia em busca de uma pessoa. Voltou cerca de meia hora depois: –
Resolvi, vamos, meu amor!

143
maresia

Ela deu um suspiro de alívio, estava acalorada e ansiosa para


mergulhar no mar transparente. Aproximaram-se de um barco de
madeira bastante pequeno, daqueles usados para os passeios turísti-
cos ao redor da ilha.
– Ele é Diogo – apresentou-lhe o barqueiro, – amigo de família.
O homem se desmanchou em mil cerimônias, feliz de ver o ve-
lho amigo acompanhado por uma gringa “tão bonita”. Desde Vila
Abraão circunavegaram a ponta da Praia Grande e chegaram à Praia
das Palmas, assim chamada pelo grande número de coqueiros cur-
vados por toda sua borda.
– Olha a jangada do vovô – disse Ramón a Maria e lhe indicou
uma embarcação, formada por duas espécies de canoas ligadas en-
tre elas. Apesar de haver alguns camping ali perto, a pesca resistira
ao turismo e alguns, entre os quais seu vovô Joãozito, ainda conti-
nuavam a pescar com o método tradicional: deixavam embaixo da
água uma cerca feita de faixas de bambu, chamada de covo, e ao
seu interior colocavam umas pedras para fixá-lo ao fundo e umas
iscas para atrair o peixe que, uma vez entrado por uma abertura, não
conseguia mais sair.
Depois de ter atracado o barco na praia, adentraram-se no in-
terior, no meio da vegetação, até um portão verde de madeira, mi-
metizado entre as árvores.
– Já chegamos! – exclamou Ramón, emocionado. Forçaram a
abertura, ervas e raízes impediam sua fluidez, e entraram numa flo-
resta, só adiantando-se um pouco mais pra frente entreviram uma
construção azul retangular.
– Vovô! Biso! Manuche ’tá aqui! – gritou avançando em velo-
cidade para a casa, batia-lhe forte o coração.
Apareceu de um canto um velho preto dos cabelos brancos
que, ao reconhecê-lo, emitiu uma estrondeante risada de alegria e
abriu os braços. Os dois pulavam, gritavam e riam como duas crian-
ças, uma cena que em outro lugar teria sido considerada sem reserva,
mas naquele instante de felicidade não havia palavras a trocar porque
as emoções, se fortes demais, anulam frases e silêncios, e só o corpo,
não podendo contê-las, consegue liberá-las com sons e movimentos.
– Maresia, venha aqui! – chamou-a Ramón. – eis aqui meu vovô.
Joãozito a abraçou como se já a conhecesse: – Bem vinda, fi-
lha, bem vinda!
– Cadê o biso? – perguntou-lhe o neto.

144
capítulo 6
– Tá ali sentado na cadeira de balanço, ele quase não anda
mais... tem 98 anos!
Ramón o alcançou correndo: – Biso! Vovô Chico! Ramón tá
aqui! Manuche!
O homem, preto de pele e dos cabelos branquíssimos, dobra-
do sobre as costas, antes o perscrutou, depois estourou ele também
numa risada trovejante e se levantou da cadeira: – Oh! Que saudade
de você! Que bom te ver!
Ramón lhe apresentou Maria, Chico lhe examinou os olhos
por alguns segundos, com o olhar carrancudo, depois abriu os lá-
bios num sorriso: – Você é bonita, sim, bonita demais! – começou
de novo a rir.
– Sente-se, biso, sente-se! – convidou-o o bisneto a sentar-se,
atento a não fazê-lo cansar. Deu uma olhada no vovô, como a in-
formar-se da saúde do idoso. Joãozito referiu sobre como nos últi-
mos anos desacelerara notavelmente seus ritmos, só descia na praia
para deixar oferendas a Iemanjá, ou se adentrava até o limite da
sua propriedade, onde uma minúscula cachoeira caía numa poça
natural e depois se tornava uma torrente, a mesma a desaguar na
praia das Palmas. Ali, na beira do riacho, homenageava mãe Oxum.
Enfim acrescentou: – Na verdade ele nunca para, veja-o ainda tocar
pandeiro... que nem um mágico! – afirmou divertido. – Vão dar um
mergulho! – convidou-os a tomar um banho de mar, entretanto te-
ria voltado Paula, sua parceira, e prepararia comida para todos.
Na praia Maria encheu Ramón de perguntas sobre vovô Chico,
a figura do homem, temperada do pouco que ouvira sobre ele, fas-
cinou-a mais do que qualquer outra da família.
– Um malandro vagabundo! – riu ele. O bisavô ficava sempre
fora de casa, crescera de pequenos roubos pelas ruas do Rio de Ja-
neiro, jogava capoeira e compunha sambas. Não durava mais que
três meses num emprego, alguns períodos embarcava num navio,
outros era guarda-costas de alguma autoridade, a maioria das vezes
ganhava dinheiro com as apostas ou com o baralho. Quando volta-
va ao morro, com seu boné e seu pandeiro, era sempre uma festa,
um novo samba a cantar e um presente para o pequeno Ramón,
seu único bisneto. Foi ele a dar-lhe o apelido, Manuche, aquele que
leva vida errante, porque, desde criança, sumia longos períodos do
morro para ir à Europa em casa da sua mãe ou para se refugiar na
aldeia da vovó Araci.

145
maresia

– E a mãe do seu vovô? Quem era?


– Não sei! – respondeu ele. – Chico nunca casou. Joãozito foi
criado pelos vovós, porque ele periodicamente desaparecia.
– Sim, mas a mãe? – insistiu ela.
– Ninguém sabe nada, sumiu sem deixar nenhuma pista quan-
do o filho tinha só seis meses. Vovô Chico não fala disso de bom
grado, acho que nunca tenha aceitado a ideia de ter sido abandona-
do daquele jeito.
Depois de um mergulho refrescante subiram de volta pra casa
e encontraram uma barafunda embaixo do pátio dos Dos Reis,
onde se reuniram Diogo com seus pais, a esposa e os filhos, e vol-
tara também Paula, já há vinte anos parceira do Joãozito. A mulher,
dos traços índios, era originária da ilha e era ela a segurar o leme
da família e, cada manhã, colhia a fruta das árvores do quintal e a
vendia às numerosas pousadas de vila Abraão. Colada ao tronco e
aos galhos da jabuticabeira crescia jabuticaba em abundância, e ade-
mais goiaba, pitanga, caju e outros frutos típicos da Mata Atlântica
menos conhecidos, como o cambuci ou o cambucá. Joãozito, com a
idade de oitenta e três anos, não saía mais ao mar, porém consertava
as redes dos outros pescadores e passava seus dias com a agulha
para rede na mão, era um trabalho de paciência e arte.
A casa deles era muito pequena, um simples retângulo, cujas
paredes divisórias eram umas pesadas cortinas de fio de coco, e
tinha o banheiro do lado de fora. O jardim, ao contrário, era bem
extenso e rico de plantas como as majestosas buganvílias, as orquí-
deas e as coloridas bromélias.
Maria e Ramón, nos dias na ilha, dedicaram-se às excursões na
floresta, fizeram as trilhas passando de uma praia para outra e avan-
çaram até o ponto mais alto, o Pico do Papagaio, um cocuruto que,
desde baixo, parecia um grande totem pra venerar. Ela, pronta para
a exploração, vestia os tênis, uma mochilinha com duas garrafinhas
de água e uma felpa, mas quando Ramón a viu estourou numa risa-
da: – O que é isso, meu bem?
– Isso o quê? – olhou-o perplexa.
– Tamo indo na mata, amor... você não precisa de sapatos.
– Mas com as havaianas é pior! – rebateu ela.
– Não, meu amor, a pés nus! Na mata é preciso só uma faca,
um isqueiro e a maconha! Deixe tudo!
Maria não lhe deu crédito e deixou apenas a água, convencida

146
capítulo 6
de poder beber da fonte. Já depois de dez minutos em subida, po-
rém, tinha as costas suadas por causa da mochila, os pés ferviam e
estava desacelerada.
– Tire os sapatos! – intimou-lhe Ramón, e assim finalmente se
convenceu.
O chão estava macio e não havia folhas aciculares ou espinho-
sas, a planta do pé aderia perfeitamente ao terreno e aos degraus
naturais formados pelas raízes das árvores. Sentiu-se aliviada, efe-
tivamente caminhava melhor e mais rápida. Percorrendo a trilha
passaram por pedreiras e bambuzais e pararam para observarem
as árvores mais estranhas, mais “expressivas”, sustentou Ramón.
Plantas de formas diferentes se enrolavam entre elas e adquiriam
semblantes humanos, nas pedras apareciam rostos com traços dis-
torcidos, encantaram-se em frente da fantasia de mãe natureza. De
vez em quando percebiam um ruído: – Macacos – explicou Ramón.
Em algumas partes do caminho tiveram que escalar, ao me-
nos havia em ajuda uns cabos e, nos pontos mais íngremes, umas
escadas em corda. Depois de mais ou menos três horas chegaram
num espaço plano, Maria achou fosse o topo, ao contrário havia
um último breve trecho que os levou até a ponta, de onde se avis-
tava o contorno todo da ilha, a 360 graus. Era o Pico do Papagaio.
Maria percebeu sua nulidade em frente à majestade da Grande Mãe,
a mesma sensação a sentira mais de um ano antes assomando-se
do Mirador del Rio e, como então, Ramón se aproximou e a cin-
giu por trás, porém seus braços não eram mais desconhecidos. No
aperto do seu homem lhe aflorou o pensamento de um filho, mas
o afastou, como fizera muitas outras vezes. Sabia bem que escolher
Ramón significava, quase com certeza, renunciar à maternidade, ela
não acreditava na única expulsão, além do mais, essa deveria coinci-
dir também com seus dias férteis, e nem mesmo ela tinha mais vinte
anos. Apertou-se contra ele mais forte, no fundo era seu defeito a
torná-lo um homem diferente dos outros, porque o forçara a pôr
em discussão constantemente sua virilidade, em cada idade, em cada
lugar, com cada mulher que amara.
Ramón tirou umas fotos, empenhou-se com zoom e com confi-
gurações panorâmicas, depois disse: – Não dá, meu bem! Nenhuma
foto pode expressar essa maravilha, feche os olhos e grave na cabeça!
Um dia, quando precisar, lembre-se dessa paisagem, dar-lhe-á força.
– Nós lembraremos juntos, um dia, quando nós precisarmos –

147
maresia

pegou-lhe na mão.

Antes da partida deles, no quintal organizaram um churrasco de


despedida, chegaram alguns amigos e partiu a música. Joãozito pe-
gou o cavaquinho e entoou os sambas mais lindos da tradição do Rio
de Janeiro, que falam de amor e rebeldia, de escravidão e de fome,
de história e liberdade. Ramón o acompanhava com o tamborim e
Chico com o pandeiro, parecia um moço, as expressões do rosto
dele seguiam o ritmo dos toques, era como se interpretasse a música.
O dia seguinte, quando Ramón cumprimentou o vovô e o bi-
savô, sentiu um aperto no coração, viria eles de novo? Encontra-
ria eles vivos à sua próxima volta? Deixaria passar outros quatro
anos? Não, nunca mais tudo aquele tempo. Invocou mãe Oxum e
pai Oxóssi, o senhor da floresta, e rezou a eles para que aquela não
fosse a última vez.
Depois de uma semana de silêncio na ilha voltaram ao caos da
cidade, ali no morro estavam impacientes à espera deles, faltavam
apenas alguns dias para a volta à Itália. A última noite a passaram
em Botafogo na laje do Atelier Arte Rio, coberta por um chapéu de
uma mangueira que nascia no baixo, passava dentro da casa e de-
pois emergia no teto. Dessa altura se viam a colina de Santa Marta
e o Cristo, sempre ali, de braços abertos, visível de toda a zona sul.
Chegaram os amigos da comunidade e da galera do Leme e o sam-
ba, alimentado por carne, cerveja e cachaça, durou até o alvorecer,
o brilho das estrelas deixara lugar à primeira luz do sol. A quem
lamentava a sua partida, Ramón respondia: – Tranquilo, mano, o
marinheiro volta sempre ao seu cais!
Ele era um marinheiro, e seu cais era Santa Marta.
Quando subiram de novo o morro era dia cheio e Ramón con-
vidou Maria a deitar-se com ele na rede atrás da casa: – Este dia é
lindo demais pra dormir num quarto – disse.
O ar estava fresco, então ela se apertou contra seu homem
para se aquecer. Seus corpos, colados, juntaram-se e se amaram, o
movimento da rede embalava seu prazer. Depois do orgasmo Maria
se levantou para ir ao banheiro e, caminhando, sentiu um fluido
descer para baixo ao longo da coxa. Parou para se olhar entre as
pernas e lhe pareceu que houvesse algo mais além das habituais se-
creções. Voltou atrás e acordou Ramón que, entretanto, cochilara:

148
capítulo 6
– Eu acho que saiu algo – riu.
Ele a olhou estonteado: – O quê?
– Está coando, olha – mostrou-lhe o líquido brancacento na
coxa. Pegou um pouquinho com os dedos e o cheirou. Depois o
experimentou: – Parece-me aquele mesmo.
Ramón entendeu o que Maria estava dizendo e pulou como
um grilo, abaixou-se até o baixo ventre dela e lhe pegou entre as
mãos a coxa molhada. Observou atentamente o líquido, farejou-o e
o lambeu com a ponta da língua: – Pode ser – disse com voz trêmu-
la. – Pode ser – repetiu.
Riu e se agarrou à perna de Maria, estava incrédulo, porque ele
não reparara nada.
Chegaram no terraço em frente da casa, o Rio de Janeiro se
estendia luminoso aos seus olhos, e em silêncio invocaram o Uni-
verso por que a semente não tivesse saído em vão. Trocaram pala-
vras de amor e se acarinhavam, brincavam com os dedos, apoiavam
os rostos um contra o outro e as línguas apenas se afloravam. Não
puderam mais dormir e, daquele momento, a possibilidade de uma
gravidez se tornou pensamento fixo. Maria, porém, tinha apenas
acabado de ter as menstruações, então não estava no período fértil,
e já o comunicou a Ramón: – Não nos iludamos! – disse-lhe.
Tentou mantê-lo com os pés no chão, ele já começara a viajar
em fantasia e a fazer mil projetos.
Por volta de meio-dia Ramón lhe pediu para segui-lo até a ca-
choeira, a uma meia hora de caminho, mas ela recusou: – Não há
tempo! Temos ainda que fechar as malas e às oito temos que estar
no aeroporto!
Ele a olhou duro: – Não é um pedido, é uma ordem.
Maria se sobressaltou, quando fora que ele usara um tom as-
sim? Quando fora que ele se permitira dar-lhe uma ordem?
– Você está bem? – perguntou-lhe, em vez de se enraivar.
– Não, não estou bem, por isso quero que você venha comigo,
sem perguntas – respondeu entregando-lhe uma mochilinha a levar.
Ele, no entanto, carregou um atabaque nas costas e partiram em
subida, no meio da floresta, até chegar a uma pequena cachoeira.
Quase escondida pela vegetação, a água caia numa poça e após se
tornava um ribeiro que, logo depois, desaparecia no salto de um
degrau mais embaixo.
Na beira Ramón colocou uma vela, umas flores brancas e ama-

149
maresia

relas, ovo e bananas, um espelho e acendeu um incenso: – Ora Iê


Ô! – recitou.
Maria o seguiu na oração: – Ora Iê Ô! – repetiu.
– Faça um pedido de maternidade pra mãe Oxum, meu amor –
convidou-a Ramón e entoou um canto em língua ioruba.
Maria se aproximou, acendeu uma vela, depois um incenso e
o rodeou ao redor do seu ventre. O frescor da água, a completa
imersão no verde, a música da cachoeira e as vibrações do ritmo
ijexá a deixaram em êxtase e com todas as suas forças pediu à mãe
Oxum, rainha das águas doces, dona do ouro e do leite, orixá da
fertilidade, pelo dom de se tornar mãe. No pedido, um pensamento
sem palavras, concentrou cada parte de si mesma, deixou toda sua
energia até debulhar-se num choro a cântaros: – Faça que seja aque-
la possibilidade, mãe Oxum! – disse, e se juntou ao canto de Ramón.
Ficaram até que o incenso se consumisse e desceram em silên-
cio, antes do cair da noite, continuando a saborear a sensação de
fusão com a natureza.
Todo mundo estava em casa, ninguém fora trabalhar naquela
terça-feira, dia de partida. Apressaram-se para arrumar suas coisas à
espera de Kadão, o qual os levaria para o aeroporto, e o momento
da despedida foi uma troca de abraços, beijos e promessas de vol-
tarem cedo.
Por último Maria cumprimentou Zé Francisco, que sussurrou:
– Cuida dele, minha filha, cuida de vocês, ele é um rapaz especial.
Ela sorriu: – Eu sei, pai.
– Vão com Deus, meus filhos! E façam boa viagem! – disse aos
dois, mas quando abraçou o filho não conseguiu segurar as lágrimas.
Ramón e Maria se dirigiram às escadas e subiram até o estacio-
namento no topo, onde Kadão estava à espera deles. No caminho
os dois amigos conversavam como se estivessem indo beber uma
cerveja numa tarde comum, ao contrário ela observava tudo o que
lhe passava do lado como se fosse a última vez, tentando capturar
cada detalhe, para gravá-lo na mente e não esquecê-lo.
– Até, meu amado Rio – sussurrou em baixa voz, enquanto o
Cristo desaparecia em direção à zona norte.

150
CAPÍTULO 7

Depois de trinta horas de viagem finalmente chegaram à Ca-


lábria, Maria tinha a sensação de que passara um ano, de tantas ex-
periências novas. Genio estava à espera deles na estação de Paola
com seu velho pk e logo que ela enxergou o primo percebeu quanto
estava feliz de ter voltado aos seus afetos. Não via a hora de encon-
trar Vovó Quinota para contar-lhe tudo e cantar para ela os sambas
que aprendera, mas quando chegaram ela já dormia há um pedaço.
Rosa e Carmine, ao contrário, estavam ainda de pé e à espera deles.
A mãe agradeceu ao bom Deus por tê-los trazido de volta a casa
sãos e salvos, apertou-os num abraço depois perguntou: – Faço algo
para vocês comerem?
Na pergunta, aparentemente banal, estavam guardados uma
maré de significados simbólicos, outra forma de dizer “eu amo vo-
cês, senti sua falta, estou feliz que tenham voltado”, em todo caso a
comida já estava pronta na mesa.
Destruídos pela viagem e pelo fuso horário, apenas beliscaram
algo. Ramón nem mesmo falou, ao contrário Maria se esforçou por
satisfazer as curiosidades dos pais, mas nem pra ela era o momento
de contar. Deitaram-se logo depois, sem nem tomar ducha. Maria
acordou com o pensamento na bisavó, desceu ainda de pijama até
ela, sentada na sua cadeira de balanço em frente ao mar. Observou-a
por trás, o balanço da cadeira, o braço preto e enrugado estendido
naquele da cadeira, depois gritou: – Vovó! Ou melhor, Bisa! – cor-
rigiu-se sorridente.
A idosa não se espantou ao ouvir a voz da bisneta, um dia
antes Rosa lhe dissera da volta dela, todavia lhe se umedeceram os
olhos ao acariciar as mãos jovens e frescas de Maria, que entretanto
lhe sussurrava palavras em português: – Vovó, vamos falar na sua
língua agora? Pode ser?
Tentou extorquir pelo menos uma sílaba da boca de Quinota,
esperava que tomara, ao ouvi-la falar na sua língua, convencesse-se.
Refletira muito sobre a carta e concluíra que ela não era muda, só
parara de falar. Colocou um travesseiro no chão na frente dela, sen-
tou-se e lhe contou sobre a capoeira, os sambas de rua, o Pico de

151
maresia

Santa Marta, Ilha Grande, a esquisita família de Ramón. Tentou fa-


lar em português, mas as palavras lhe faltavam e começou a misturar
as línguas, um vício ruim que ela repreendia em Ramón, daí acabou
usando apenas o italiano.
– Sabe que o bisavô de Ramón também usa uma cadeira de ba-
lanço? Mas ele se levanta, caminha sozinho, canta e toca pandeiro –
disse entre tantas coisas.
Quinota, pedra paciente, seguia a narração e interagia com ace-
nos de cabeça, expressões do rosto, gestos. Estava feliz de ouvir a
voz de Maria, uma voz a iluminar o escuro do seu coração. Ramón
acordou no início da tarde e, quando Genio voltou da pescaria com
o tio, retornaram ao quilombo com o jantar, peixes para assar. No
caminho lhes referiu da horta, da iminente vindima, do galinheiro,
dos trabalhos na sala de ensaio e das melhorias feitas na ausência
deles. Gianluca, Vera e Soninho estavam esperando-lhes em casa
com a brasa ardente, foi uma joia encontrar-se de novo e recomeçar
a planejar juntos.
Maria não esquecia a preciosa semente de Ramón dentro dela,
esperava passarem os dez dias necessários para fazer o teste de gra-
videz, já comprado na farmácia. Entre eles não faziam palavra disso,
fingiam que nada havia acontecido, mas estavam ansiosos e agita-
dos, cada um do seu próprio jeito.
Cada manhã, ao acordar, ele lhe perguntava: – Como você
está? Novidades? – aludindo a um assunto a não mencionar, até que
um dia ficou brava, as perguntas dele a enervavam. Pela primeira vez
brigaram seriamente, não se dirigiam a palavra e até mesmo se evita-
vam, impossível passarem despercebidos, mas ninguém se permitiu
abrir boca. Apenas no final da tarde Soninho, quando se achou a
limpar uns cogumelos porcino1 junto com Maria, arriscou-se a per-
guntar à queima-roupa, como era seu costume: – O que aconteceu?
O tom acolhedor e imparcial a convidava a liberar-se da mágoa,
Maria não era capaz de esconder seu mal-estar, debulhou-se em lá-
grimas e se abriu com ela: o defeito de Ramón, a única ejaculação, o
medo da falta de maternidade. As duas amigas falaram muitíssimo,
refletiram juntas sobre o conceito de mãe, sobre quanto a cultura
e a sociedade influenciam o desejo de sê-lo, sobre a deslegitimação

1. É o nome comum de algumas espécies de cogumelos (fungos) comestíveis do


gênero Boletus.

152
capítulo 7
patriarcal das mulheres sem filhos.
– Mudam as línguas, muda a latitude, mas a alternativa seca
entre mãe e puta não conhece confins2 – concluiu Soninho.
Desabafar foi pra Maria um santo remédio, sentiu-se aliviada,
mais forte e mais aberta a entender o mal-estar de Ramón. À noite,
no quarto, foi ela a aproximar-se dele, atraiu-o para si, olharam-se
nos olhos e choraram juntos. Houve uma troca de desculpas, inú-
teis, porque um conseguira enxergar a tensão do outro. Escolheram
o silêncio para enfrentar a ansiedade da espera, não porque tivesse
mais lógica, mas porque a palavra é um mecanismo sofisticado de-
mais para exprimir os medos mais atávicos.
À manhã do décimo dia, Ramón já estava acordado quando
Maria abriu os olhos. Deu-lhe um beijo suave nos lábios: – Bom
dia, amada!
Abraçaram-se, finalmente chegara o momento. Foram ao ba-
nheiro juntos, ela fez xixi sobre a fita do teste e esperaram passarem
os três minutos previstos. Um tempo infinito em que, mão na mão,
imaginaram o filho que teriam amado mais que eles mesmos, ao
qual teriam ensinado o respeito da diversidade e da natureza, a força
do ritual e as oferendas ao divino, a sacralidade do tambor e o poder
dos sonhos. Teriam-no criado como um ser humano, protegendo-o
da desumanização da sociedade do consumo e do espetáculo. Ao
expirar o tempo a linha azul não apareceu e, de repente, cada sonho
desvaneceu.
– É negativo – disse seca Maria.
Ramón ficou em silêncio, depois pegou a cabeça entre as mãos:
– Sinto muito, meu amor, mas é isso que fala mãe natureza. A pa-
lavra dela é lei. Vamos trabalhar, meu bem, o sol está chamando.
Estava triste, triste como Maria nunca o vira. Descarregou a
decepção arrancando as ervas daninhas da horta, até que às dez ho-
ras foram buscá-lo Dario, Dodò e Alessandro para ir surfar, só as
ondas teriam podido embalar sua alma perturbada e combater a tris-
teza. Maria, ao contrário, ficou no quilombo e, apenas ele se afastou,
correu contar para Soninho do teste negativo. A amiga acreditava
profundamente no poder das coincidências e pôs em discussão o re-
sultado: – Não que eu queira alimentar falsas esperanças, mas você

2. Palavras de Timira, protagonista real do homônimo romance de Wu Ming 2 e


Antar Mohamed, Einaudi, 2012.

153
maresia

está certa de que o teste seja fiável? Talvez o tenha feito cedo demais.
– O teste urinário tem uma fiabilidade de 99 por cento.
– Sim, mas no sentido de que não lhe indica uma gravidez que
não há... ouça-me, é simples: vai ao médico e peça-lhe para prescre-
ver o teste sanguíneo, que é certo ao 100 por cento!
Maria não estava convencida disso, não nutria nenhuma es-
perança, mas no fundo não lhe custava nada seguir o conselho de
Soninho. Pensou em fazer tudo sozinha, sem envolver Ramón, para
evitar outros estados de tensão, e já na manhã seguinte aproveitou
uma carona dos surfistas para ir na cidadezinha. Com a desculpa de
visitar sua mãe, foi pedir a prescrição e à tarde Ramón foi buscá-la
para ir à aula das crianças. Na volta ela lhe pediu para deixá-la em
casa dos seus pais.
– E por que meu bem? Aconteceu alguma coisa? – perguntou
Ramón, espantado com o pedido.
– Não, é que eu queria buscar algumas coisas com mamãe – in-
ventou na hora. – E, além disso, estou com saudade de Vovó Qui-
nota, tenho vontade de passar um pouco de tempo com ela, nunca
estive fora durante tanto tempo!
À mãe, ao contrário, contou a verdade.
– O atraso é muito? – perguntou Rosa.
– Na verdade, ainda nenhum atraso.
– E então?
– É que tivemos uma relação não protegida.
– Tá bom, minha filha, mas não é que a cada relação não prote-
gida se pode fazer um teste de gravidez! Espera pelo menos alguns
dias de atraso!
– Não, mamãe, não quero esperar, por que esperar?
Rosa não entendia sua obstinação, mas não insistiu, finalmente
a filha desejava tornar-se mãe.
Maria passou a noite ao lado da bisavó, falou-lhe dos seus so-
nhos, das suas esperanças, dos seus medos: – Sabe, Vovó, queria
que fosse uma menina... em todo caso será o Universo a decidir, e a
mim cabe só estar à espera.
Deitou-se na sua cama de menina, lá fora o vento assoviava.
Chegou na janela sobre o teto para respirar a salinidade, a umi-
dade no rosto a fazia sentir-se viva, parte de algo maravilhosamente
maior que ela. Na manhã seguinte acordou muito cedo e efetuou
a coleta de sangue, depois subiu de novo ao quilombo no final da

154
capítulo 7
tarde junto com Genio. No carro ele disse à prima: – Tenho que lhe
dizer uma coisa.
Depois se calou e Maria o olhou curiosa: – Então?
– Eu e Soninho estamos aproximando-nos.
– O que você quer dizer? Ela não me disse nada, não é que está
se construindo um filme?
– Não, não, todo esse tempo, desde quando ela voltou do Bra-
sil... está diferente comigo.
– Mas houve algo entre vocês?
– Mais ou menos.
– O que quer dizer com mais ou menos? Houve algo ou não?
Um beijo, uma carícia, o que eu sei... vocês foderam?
Genio se enraivou: – Não seja tão vulgar!
– E você pode ser um pouco mais explícito e menos puritano
por favor? Tem medo de falar de amor?
– Houve um beijo.
– Bom, e então?
– Então talvez... é que somos tímidos demais todos os dois.
Maria olhou o primo com doçura, homens como ele era difícil
de encontrar: – Tá bom, se deem um tempo, no final, tudo acontece
como deseja o Universo.
– Como se tornou fatalista!
– Eia, no fundo sempre fui!
– Mas somos nós que fazemos nossas escolhas, não esqueça!
– Sim – reforçou ela, – mas há forças por trás das nossas de-
cisões, vibrações que guiam nossas escolhas, levam-nos em certos
lugares... pensa em hoje, por exemplo: eu e você moramos na mes-
ma casa da infância de sua mãe graças a um brasileiro conhecido
em Lanzarote numa viagem improvável. Não acha extraordinário
tudo isso?
– Sim, acho que seja – concordou Genio.
– A vida é uma magia.
– Sim, a vida é uma magia.
Estouraram a rir, felizes.
Chegaram à casa carregados de comida, entre Elisa e Rosa
nunca acontecia de voltar de mãos vazias. Ramón estava atrás da
casa, sentado no penhasco, ocupado em tocar berimbau. Maria não
o perturbou, saboreou sua imagem iluminada por um quarto de
lua crescente, dali à alguns dias teria sido cheia e quem sabe, talvez

155
maresia

teria levado consigo o princípio de uma nova vida. E exatamente o


primeiro dia de lua cheia, uma sexta-feira consagrada a Oxalá, o pai,
o Orixá maior, o amor universal, Maria foi retirar os resultados das
análises. Rosa estava ao lado dela quando as leu, o sorriso da filha
era a resposta e a abraçou comovida. Maria, na realidade, não foi tão
surpreendida, bem no fundo sabia que Soninho tinha razão: era algo
especial demais para que não acontecesse.
– Bom Deus! Vovó Quinota vai se tornar tataravó! A ela temos
que dizê-lo já, também a Anna, os outros terão que esperar que pas-
se o terceiro mês! – entusiasmou-se Rosa.
Maria riu, nunca vira a mãe tão alegre: – Será que o dizemos
mesmo ao pai?
– Sim, com certeza, também ao pai – respondeu divertida pela
gafe. Depois acrescentou: – Minha filha, desde hoje sua vida vai
mudar!
– Também a sua, mamãe, vai se tornar vovó, mesmo você vai
ter novas responsabilidades!
Voltaram à casa cheias de alegria, era um quente dia da metade
de outubro e havia um ar maravilhoso, que ainda convidava a ba-
nhar-se de sol e de sal. Rosa foi direto a Quinota: – Vovó, há uma
grande novidade!
– Mamãe, permite que seja eu a contar-lhe? – irritou-se Maria.
– Sim, desculpa, tem razão – estava excitada demais, não se
continha.
Maria se aproximou da bisavó e apoiou a cabeça nas suas per-
nas: – Vovó, espero por um menino! – disse radiante.
Quinota lhe pegou o rosto entre as mãos e lhe deu um beijo na
fronte, ela tão parca nas demonstrações de afeto, com Maria nunca
o fora. Levantou-se da cadeira e lhe fez sinal para acompanhá-la
até seu quarto, abriu a primeira gaveta da cômoda e tirou fora uma
caixa de madeira entalhada. Pegou um colar de pérolinhas amare-
lo-ouro, envolveu-o no pescoço dela, traçou alguns sinais com os
dedos sobre fronte, coração e ventre da bisneta e a atirou para si
para apertá-la entre os braços.
Maria se espantou com o aperto, onde pegara toda aquela força
Vovó Quinota?
– É uma guia de mãe Oxum? – perguntou, agora já aprendera
a reconhecer algumas coisas.
Sim, fez a cabeça da idosa.

156
capítulo 7
– A mãe d’água doce, deusa da fertilidade, dona do ouro e do
leite.
Quinota anuiu, satisfeita que a bisneta fosse capaz de entender.
Maria encontrou Ramón à tarde durante a aula para crianças: –
Você está reluzente, meu amor, a companhia de Vovó lhe fez bem!
– beijou-a levemente nos lábios.
– Ou será a lua cheia? – piscou ela.
– Pode ser meu amor, a lua cheia é magia...
Antes de voltar a casa lhe propôs que dessem um passeio na
praia, o ar estava brando e o céu cheio de estrelas. Na beira mar, sem
se perder em voltas de palavras, exclamou: – Estou grávida.
Ele se virou de arranco, incrédulo: – Mas como, o teste deu
negativo!
– Acho que o fiz cedo demais e, além disso, estava nervosa. Fiz
aquele do sangue, que é certo ao 100 por cento, mas preferi não lhe
dizer nada para lhe evitar outra decepção e ao invés...
Ramón necessitou de alguns segundos para entender a notícia,
depois lançou um grito, pegou-a pela cintura, levantou-a e a fez ro-
dar, ria e depois chorava e a apertava contra si.
O mar, a lua e as estrelas participavam da sua felicidade, ce-
nário de um sonho realizado, de um prodígio que continua com o
tempo e se transmite de geração em geração.
– Eu sabia, eu sabia que devia ser você a mãe do meu filho! Te
amo, Maria, te amo! – sussurrou-lhe com doçura.

A promessa feita a Rosa, de não divulgar a notícia antes dos


três meses, não foi mantida, comunicaram-no quando acabaram de
chegar ao quilombo e, por volta de uma semana, estavam informa-
dos disso a família e os amigos por completo.
Começou pra Maria um período em que cada atenção era
apontada para ela: “não se esforce, descanse, não fique embaixo
do sol, não coma isto ou aquilo” e uma infinidade de outras re-
comendações. A falta de evidentes mudanças externas lhe impedia
de perceber seu menino com características reais, vivia-o como um
sonho, contudo, dentro dela, silente, junto com as mudanças do
equilíbrio hormonal, começara um complexo trabalho de transfor-
mação da sua identidade e da imagem do seu corpo. Coexistiam nela
sentimentos e humores contrastantes, aceitação e recusa, coragem

157
maresia

e medo. Procurava momentos de solidão e tendia a dormir mais,


pensava muitas vezes na sua infância, em sua mãe, perguntava-se o
quanto teria sido diferente dela. Sua atenção estava apontada prin-
cipalmente sobre si mesma, sobre seu corpo e seu próprio vivido,
ademais tinha que deixar uma parte de si para fazer espaço a outro
ser. Não sofria de náuseas e vômitos, só estava um pouco pálida e
com pouco apetite, mas estava bem. Todavia nos primeiros meses
se cuidou, evitou os treinos e os esforços excessivos.
Desde o quarto mês em diante, com o consentimento do gi-
necologista, retomou suas normais atividades e também a jogar ca-
poeira com moderação. O apetite voltou, a barriga começou a ser
visível e ela a perceber os movimentos fetais. Cada vez que sentia
um toque leve, um rastejar ou umas bolhinhas parava, fascinada por
reconhecer os sinais de uma nova vida dentro dela. Gostava de se
espelhar nua a observar as mudanças do seu corpo, via-se mais linda
e luminosa, com os seios flóridos e as formas bem arredondadas.
O inverno gerou um estado de agitação geral, como podia Ma-
ria, grávida, passar a gravidez no gélido casebre? E, em caso de
emergência, como teriam feito?
Rosa tentou convencê-la a mudar pra casa dela, pelo menos
nos dias mais frios, mas a filha não quis ouvir razões: – Estou ape-
nas grávida, não doente! – rebateu, suas recomendações lhe pare-
ciam exageradas.
A gravidez procedia da melhor forma, o menino – confirmado
macho pela ecografia morfológica feita em fevereiro, – desenvol-
via-se na normalidade e ela se sentia sana e vigorosa. Ramón seguia
cada seu movimento, atento para que não sofresse solavancos e não
se fatigasse, mas ela sabia quando parar, sentia-o.
A barriga crescia, sempre mais fora do seu corpo, não mais parte
dela, mas levada por ela, e isso a fazia sentir um pouco si mesma e um
pouco diferente de si. Seus pensamentos se moveram para o parto: às
vezes o sentia como uma ameaça, pensava na dor e na fadiga, tinha
medo de morrer, ela ou o menino; outras, ao contrário, serenava-se,
dizia a si mesma que era uma das poucas manifestações totalmente
instintuais permanecidas na espécie humana e que, por isso, ter-lhe-ia
sido suficiente deixar-se ir à natural atividade do seu corpo.
Para superar ansiedade, medo e preocupação, ao sétimo mês se
inscreveu ao curso pré-parto. Liberou-se do sentimento de desco-
nhecido que a invadia e aprendeu as técnicas de relaxamento, uteis à

158
capítulo 7
experiência do parto e das dores. Ramón frequentou o curso junto
com ela, atencioso como era, às vezes até mesmo obsessivo, e então
Maria ficava com raiva: – Estou apenas grávida, o que pertence à
natureza da mulher, sabe?
– Isso é o problema! – desabafou ele. – Você traz nosso filho
no ventre e sente a vida dele dentro de você, eu não! Por isso estou
tão ansioso e às vezes sou exagerado, meu amor! Desculpe!
O término da quadragésima semana estava previsto para o dia
primeiro de julho, mas já um mês antes a bolsa para o hospital esta-
va pronta em caso de algum adiantamento: – Nunca se sabe – disse
Rosa, prevenida.
Maria, por volta do fim da gestação, começou a sentir o peso
da barriga, sofria de dor nas costas e estava cansada de estar grávi-
da. Não via a hora de parir, mas ainda tinha que esperar. Seguindo
a tradição, entre as onze e a meia-noite do dia 24 de junho, acom-
panhadas por um pedaço de lua minguante, Maria, Vera e Soninho
foram em expedição para colher o hipérico numa área um pouco
mais embaixo, onde crescia abundante, selvagem e livre. Colheram
uma cesta cada uma e depois expuseram as flores à luz da lua, es-
palhados sobre um lenço esticado no chão. Uma parte era destina-
da às infusões e outra à maceração para obter o óleo, antigamente
considerado o óleo mágico das bruxas. Essas últimas consideravam
sagrado o 24 de junho, dia de São João, porque correspondia ao
solstício de verão, momento em que o sol atinge sua máxima decli-
nação positiva em relação ao equador celeste, daí o outro nome com
o qual é conhecido o hipérico, “erva de São João”. Na Idade Média,
ademais, a planta era utilizada para criar amuletos capazes de afastar
os espíritos malignos e era chamada de erva “expulsa diabos” pela
sua eficácia contra as depressões endógenas e psicogênicas, na épo-
ca consideradas possessões de demônios.
No quilombo aprenderam a usar o óleo de hipérico, assim
como o gel da planta de áloe vera, para todos os pequenos distúrbios
cotidianos: queimaduras, picadas de insetos, contusões, dores articu-
lares e muitos outros, mas para aproveitar melhor de seus princípios
ativos, as flores tinham que ser postas a macerar já depois do banho
de lua. Por esse motivo as mulheres acordaram antes do nascer do
sol, arranjaram a erva por secar e depois passaram à seleção das flo-
res por imergirem no azeite de oliva, onde teriam ficados por uma lu-
nação completa, antes de serem filtradas. Enquanto fazia esse traba-

159
maresia

lho, Maria percebeu umas dores, no começo imperceptíveis, depois


sempre mais insistentes, até que captou que se tratava de contrações.
– Acho que chegou a hora – disse à queima-roupa às suas ami-
gas.
– O quê? – exclamou Vera. – Você tem certeza?
– Não, de verdade não, mas me parece que sim...
– Não há tempo a perder – disse resoluta Soninho.
Ramón fora surfar, ligaram para seu celular, mas não respon-
deu. Entretanto os lamentos da parturiente aumentaram, daí de-
cidiram colocar-se no carro e partir para o hospital de Cosenza.
Soninho dirigia como uma louca na ss18, ao lado dela Batuque e
atrás Vera com Maria, sempre mais agitada. Ramón ligou de novo,
preocupado, logo que viu as inúmeras ligações sem resposta, nem
mesmo leu o sms que lhe enviaram. Depressa mobilizou os amigos
e, em cinco minutos, Dario já estava pronto a correr para a cidade.
Chegaram com cerca de uma hora de diferença, Maria já entrara
na sala de parto, a família fora avisada e estava prestes a alcançá-los.
Ramón, reconhecido como o pai, foi deixado entrar para assistir ao
parto e Maria, logo que o viu, teve um impulso de coragem, deu um
empurrão ainda mais forte e, entre suas pernas, apareceu uma mi-
núscula cabecinha. Em seguida, um pedaço depois do outro, saiu in-
teiro e são o pequeno Francisco João, e seu grito de guerra substituiu
os gritos de guerreira da mãe. Venceram todos os dois, houve dois
nascimentos: dela como mãe e do menino como filho. O pequeno
guerreiro berrava pela vitória, atravessara o confim para chegar à
vida e esperara o tempo necessário para estar pronto a atravessar o
limiar com uma velocidade adequada, ao ritmo certo para não pena-
rem demais nem ele, nem a mãe: era o ritmo do são Bento Grande,
com o qual o berimbau, por nove meses, fizera vibrar a placenta.
Quando Maria pegou aquele floco escuro entre as mãos, ainda sujo e
cheio de cabelos, provou a maior felicidade da sua vida, incompará-
vel a nenhuma outra. Chorou, pela tensão e pela joia de ter feito isso.
Ramón lhe beijou a fronte, a ponta do nariz, os lábios, e agradeceu
em baixa voz ao pai Oxalá pelo milagre da vida e pela graça recebida
ao tornar-se pai, depois entoou um canto de gratidão a mãe Oxum
por ter protegido a gravidez e o parto. Quando a enfermeira lhe co-
locou o filho entre os braços, ele o levantou ao céu, como faziam os
homens da tribo da sua vovó Araci, e entoou um canto numa língua
desconhecida para Maria, da qual decifrou apenas o nome comple-

160
capítulo 7
to do pequeno: Francisco João Valenza Dos Reis. Aos familiares à
espera, deram notícia de um lindo menino saudável, de três quilos e
quatrocentas gramas, e quando Ramón saiu da sala de parto, encon-
trou uma multidão à sua espera. Transtornado, deixou-se envolver
pelo calor e pelo amor de amigos e família, mas naquele momento
tão importante sentiu a falta dos seus afetos distantes. Ligou para o
pai, o avô, Kadão e depois para sua mãe a qual, sem perder tempo,
comprou uma passagem pela Calábria.
Maria e o menino receberam alta um par de dias depois, Rosa
insistiu para que ficassem com ela, pelo menos os primeiros tem-
pos, mas a filha recusou categórica, queria voltar ao quilombo, onde
estavam já prontos para acolher o recém-nascido: mesa para trocar
fralda, banheira para o bebe, berço e carrinho, todos objetos recu-
perados de segunda mão graças a uma rede de mulheres solidárias.
– Está bem, quer dizer que serei eu a ficar com você, não vou
lhe deixar sozinha. Tenho só que orientar Elisa e Carmine com a
gestão de Vovó Quinota – resolveu Rosa, sem discutir.
Maria fez cara torta, parecia-lhe uma invasão, mas a ajuda e a
presença da mãe se revelaram fundamentais e até mesmo lamentou
quando ela foi embora depois de três dias. Ficou o tempo necessá-
rio para apurar que os neo pais fossem suficientemente responsá-
veis, depois voltou às suas tarefas de sempre.
No quilombo, no entanto, nos dias a seguir a partida de Rosa,
experimentou-se uma forma coletiva de cuidado do recém-nascido:
Maria o amamentava, os outros em rotação se ocupavam do banho
do bebe, de fazê-lo dormir, aplacar os choros e trocar as fraldas.
Por decisão comum escolheram usar aquelas de tecidos, por isso
lavavam e estendiam em continuação.
Quinota conheceu o recém-nascido depois de mais ou menos
uma semana, Maria o pôs nas pernas dela: – Vovó, agora você já é
tataravó! Ele é Chico Junior... não entendi bem de qual cor ele é –
riu, – mas certamente é o neto que mais se aproxima da sua!
A idosa contraiu as sobrancelhas, acariciou a cabeça do menino
e o abençoou com os dedos, ainda uma geração a mais nascera sob
seus olhos. Ele, porém, era especial porque tinha um nome que a
levava de volta à sua terra de origem.
– Eu queria levá-lo à praia para conhecer o mar e queria que você
viesse também! Tem forças para se levantar e caminhar? Não agora,
mais tarde, quando estar mais fresco – propôs-lhe Maria com doçura.

161
maresia

Quinota anuiu com um aceno de cabeça, não podia receber


convite melhor, e ao pôr do sol desceram para a beira do Tirreno.
Maria, com o pequeno colado ao peito, molhou-se até as panturri-
lhas, imergiu uma mão no mar e depois a passou no rosto do filho.
Chico não chorou ao contato com a água fria, emitiu apenas alguns
gemidos: – Você acha que ele gosta? – perguntou à bisavó. Olhou
o filho com ar perplexo, às vezes ainda se espantava com que fosse
seu, que tivesse sido ela mesmo a pari-lo: quem era realmente aquele
bichinho que a fixava? Que a mantinha acordada de noite e lhe chu-
pava em continuação as mamas? Com quem parecia?
– Sim, ele gosta – respondeu-se. – Se é filho meu e de Ramón
não pode haver dúvidas.
Voltando da praia encontraram a mesa já posta, dali a pouco
teria chegado uma hospede especial, a sogra de Maria, pela primeira
vez em casa de Rosa, que a acolheu com um banquete real.
Ana, com a idade de sessenta e quatro anos, ainda era atraen-
te, bem cuidada e bem vestida. A primeira impressão foi de uma
mulher pretensiosa, apresentou-se de jeito formal e depois abra-
çou a nora e o neto. Maria não conseguia imaginá-la suada entre
as escadas do morro, mas presumia o porquê tivesse ido embora.
Na realidade, apesar das dificuldades com o italiano, a mulher se
revelou diferente da aparência, demonstrando uma alta capacidade
de adaptação. Recusou-se a ficar em casa dos consogros, mesmo se
fosse mais confortável, e preferiu ficar junto do netinho, para go-
zá-lo quanto mais possível. Ali no quilombo tirou tailleur e scarpin
e se envolveu nas atividades cotidianas, prestando-se a cada gênero
de trabalho. Desde já procurou uma cumplicidade com a nora, mas
só num momento em que se acharam cara a cara, enquanto davam
banho ao pequeno, disse-lhe: – Só nós que amamos um homem
Dos Reis podemos entender quanto valor tem um filho deles – e
beijou o neto. Numa mistura de espanhol e português lhe contou de
quando conhecera Zé Francisco, de como se apaixonaram, os anos
vividos na favela no tempo do tráfico e depois a escolha de voltar
para Madrid: – Você não sabe quanto me custou deixar Ramón! Já
com dez anos tinha a cabeça tão dura... mas o que fazer? Eu estava
deprimida demais – fez uma pausa. – Depois achei que era melhor
uma mãe distante do que uma morta por dentro.
Maria percebeu uma amargura nas suas palavras, um secreto
sentimento de culpa por não ter visto o filho crescer como teria

162
capítulo 7
gostado, entendeu perfeitamente seus sentimentos e não conseguiu
reprová-la.
– Eis aqui o inconfundível sinal dos Dos Reis – disse Ana indi-
cando os dois pintas ao redor do mamilo do pequeno Chico.
– Sim, e acho mesmo que não seja o único – disse Maria re-
signada.
– É uma família especial a deles... a nossa – corrigiu-se. – E
o meu Ramón não é menos. Estou feliz que ele tenha encontrado
uma mulher como você, espero que continue a amá-lo sempre, ape-
sar de tudo.
As duas mulheres se abraçaram e Maria descobriu sentir ca-
rinho por ela. Quando viajou, depois de cerca de um mês, todos
lamentaram muito e Ana prometeu voltar logo.

Com a chegada do calor abafado, Maria ia mais frequentemente


na cidadezinha para se refrescar nas águas do Tirreno. Geralmente
descia à noite, dormia na casa dos pais e acordava com o nascer do
sol, para levar Chico na praia. Quando passou por lá num domingo,
participaram do ritual de Vovó Quinota. Maria desceu à praia com
o pequeno ligado ao peito, à guisa das mulheres africanas, e a bisavó
apoiada ao seu braço. Pensou nos cem anos de diferença entre as
vidas deles e que era ela mesma o anel de conjunção entre aquelas
duas criaturas, testemunha entre o velho e o novo, o passado e o
futuro. Sentiu uma comoção estranha ao liberar as flores no mar, o
canto a boca fechada de Quinota lhe pareceu ainda mais expressivo
e profundo. Veio-lhe de chorar, o calor de seu filho e a leve brisa da
manhã a emocionaram.
– Será que me tornar mãe me deixou mais sensível? – per-
guntou-se. Eram lágrimas de alegria, porque pela primeira vez na
sua vida se sentia completamente realizada. Sabia que não teria sido
sempre assim, que a vida é um contínuo devenir, mudar, transfor-
mar-se, por isso gozava plenamente o presente, feliz. Agradeceu ao
mar, seu eterno protetor, confessor e amigo, e à dona dele, mãe Ie-
manjá. Quando o sol se tornou forte demais subiram de novo para
casa, o pequeno Chico adormeceu e Maria o pôs no berço. Rosa lhe
pediu pra ir fazer umas compras enquanto ela começava a preparar
o almoço, o domingo era sempre especial. Ramón acordou, alcan-
çou Genio e Carmine no quintal e ele também se pôs a consertar os

163
maresia

buracos das redes, aprendera a arte com seu avô.


A uma certa altura se ouviu Rosa gritar: – Que venha alguém!
O telefone está tocando, o menino chorando, as batatas estão quei-
mando e tenho que levar Quinota ao banheiro!
Quem voltou em casa foi Ramón, apagou o fogão e pegou o
filho do berço, o pequeno estava muito suado, por isso se queixava.
Levou-o ao banheiro no andar de cima, tirou-lhe a regata, enxa-
guou-o e Chico parou de chorar, com caretas de aprovação. Dei-
xou-o a peito nu, assim como ele mesmo estava, fazia muito calor,
pegou-o nos braços e, cantarolando, desceu as escadas até a varanda
da taberna. Ajoelhou-se depois ao lado de Vovó Quinota, levantou
a voz e articulou um canto em youruba: “Olóomi máà, olóomi máà
iyo, Olóomi máà iyo enyin ayaba odò. Ó yéyé ó”, e ela juntou à
melodia o seu a boca fechada, brilhavam-lhe os olhos. A uma certa
altura se fixou no peito de Chico, depois naquele de Ramón e, então,
inclinou-se para a frente, como para olhar melhor. Estendeu a mão
trêmula sobre o mamilo do menino, renteou as duas pintas ao redor
da aréola e uma lágrima clara desceu sobre sua pele escura. Virou o
olhar para Ramón, estendeu os braços para ele e com os dedos lhe
acariciou os traços do rosto, até que seu choro se transformou em
gemido, depois num agudo, um “A”. Tirou do pescoço o colar de
conchas e o agitou entre as mãos, era a música do mar, à qual ela deu
palavra transformando-a no mais doce canto de agradecimento que
mãe Iemanjá tivesse recebido.
Ramón, calado, não entendia, ainda menos Rosa que, atordoa-
da, assistia à cena da cozinha. A música se espalhou no ar, fez acor-
rer até mesmo Carmine e Genio, curiosos pelo melodioso canto de
sereia. Voltando, também Maria o ouviu, precipitou-se na taberna e
se bloqueou no limiar, tanto o espanto.
Quando Quinota parou, na sala seguiu um profundo silêncio.
Foi ela mesma a rompê-lo, virando-se para Chico: – Axé meu filho,
que você seja abençoado por Deus e por mãe Iemanjá, que deu gra-
ça ao pedido desta pobre devota de reencontrar sua semente.
A voz, entorpecida, pareceu chegar de outro mundo, e talvez
fosse assim de verdade, chegava do lugar onde fora sepultada por
mais de oitenta anos.
– Qual pedido você fez a Iemanjá? – perguntou audacioso
Ramón.
Ela não respondeu, fixou-o e indicou o peito dele: – Essa aqui

164
capítulo 7
é a marca dos Dos Reis.
– É – afirmou de jeito carioca, estava confuso.
– O que ela está dizendo? O que está acontecendo? – inseriu-se
Maria, ansiosa.
– Calma! – intimou-lhe Ramón. – Entendo bem pouco eu tam-
bém!
Vovó Quinota, então, pôs-se a explicar com voz rouca, num por-
tuguês elementar: – Eu tinha quinze anos, amava um malandro cha-
mado Chico e tive um filho com ele, João Francisco Costa Dos Reis.
Ramón e Maria estremeceram, seus olhares se encontraram:
“como é possível?”, perguntavam-se em silêncio.
– Fazia seis meses que o menino nasceu, quando fui raptada
pelo amigo do dono da casa onde eu trabalhava como lavadeira.
Eis, pensou Maria, aqui o círculo se fecha, entendera bem, en-
tão, ao ler a carta, o bisavô Carmine a raptara.
– Ele sempre me olhava, tentou pegar-me mais de uma vez à
força, mas eu fugia...
Parou para retomar fôlego, falar a fatigava: – ...mas aquela noi-
te eu não consegui fugir.
O homem lhe dera um golpe na cabeça e, ao acordar, achara-se
num navio, em pleno alto mar, com um lenço na boca: – Naquele
momento achei que ia morrer e aí fiz um pedido a mãe Iemanjá, às
águas do oceano...
Pedira-lhe por rever Chico e Joãozito e, em troca, teria deixado
sua voz no fundo do oceano. Contou a história com uma lucidez
surpreendente, parecia uma fita gravada por uma vida toda à espera
de ser transmitida e que, finalmente, estava sendo escutada.
Maria chorou atrás das palavras da bisavó, Ramón estava como
apalermado, o resto da família não entendera nada.
– Hoje, aqui em frente, tenho o fruto daquela semente, a única
semente que deixei lá na minha terra – concluiu Quinota.
– E aí, você é aquela mulher... vovô Chico ainda guarda uma
foto de você, ele sempre achou que você tivesse fugido, mas não foi
assim, não posso acreditar... ele tem que saber!
A mulher se iluminou: – Chico está vivo...
– É.
– E Joãozito? – a voz dela se sufocou.
– Tá vivo. Também Zé Francisco, seu neto. E eu. E Chico Ju-
nior... daquela única semente, Vovó!

165
maresia

Nem mesmo Ramón conseguiu conter a comoção, mãe Ieman-


já atendera ao pedido de Quinota, tudo se movera para que os even-
tos se subseguissem de jeito perfeito para fechar o círculo do destino.
Maria explicou ao resto da família a história contata pela bi-
savó, enriquecendo-a dos detalhes lidos na carta mais de um ano
antes, e ficaram chocados.
Genio estava sem palavras, Carmine, ao descobrir o vovô como
um homem violento, pegou a cabeça entre as mãos: – Meu Deus!
Era um homem carrancudo, sim, contudo, nunca teria pensado que
podia chegar a tanto!
Os olhos de Rosa se encheram de lágrimas: – Eu sabia que sua
dureza escondia algo! Quanto sofrimento carregara nas costas pela
vida toda? Pobre Vovó...
Chegaram Ciccio e Elisa para o almoço e por todo tempo não se
falou de outro assunto, Quinota, no entanto, voltou ao seu silêncio.
– Você consegue falar em italiano? – perguntou-lhe Carmine,
preocupado com que a vovó falasse apenas português.
– Io non so – respondeu, – mai ho parlato italiano, sempre
solo ho ascoltato3.
Depois riu e se tampou a boca, como se tivesse dito uma pa-
lhaçada.
– Olha, Vovó... você conseguiu! Falou italiano! – afervorou-se
o neto.
Ramón remoía o que fazer, como teriam reagido o vovô e o
bisavô àquela notícia?
– Estamos falando de um encontro de depois de mais de oiten-
ta anos, de duas pessoas com quase cem anos de vida, como lidar
com isso? – raciocinava.
– Não se brinca com isso! – exclamou Ciccio. – Os corações
deles poderiam não resistir à emoção! Nem mesmo aquele do filho,
diria, visto que tem... quanto?
– Oitenta e quatro anos, o tempo exato que os dois não se
veem – respondeu Ramón.
Enquanto todos estavam empenhados a entender o que fosse
melhor para ela, Quinota tomou palavra: – Eu quero morrer na
minha terra!
Pela primeira vez se inseria numa discussão, exprimia uma opi-

3. Não sei – respondeu, – nunca falei italiano, sempre só ouvi.

166
capítulo 7
nião, ou melhor, um desejo. Tornara-se um sujeito, não era mais só
um lugar na mesa.
– Não é uma coisa fácil – disse-lhe Maria com doçura.
– Io voglio morire nella mia terra! – repetiu em italiano.
– Não sabemos se autorizam você a subir num avião, assim
tantas horas... esqueceu que tem noventa e oito anos? E, ademais,
você nunca pegou um avião! – acrescentou Rosa.
– Eu quero morrer na minha terra! – insistiu Quinota, tranquila.
Maria suspirou: – Precisa-se de muito dinheiro, mesmo porque
alguém teria que acompanhá-la, você não pode ir sozinha.
– Eu quero morrer na minha terra! – concluiu com firmeza.
– Maria, venha comigo! – ordenou-lhe. Levantou-se da cadeira e, li-
gada ao braço da bisneta, dirigiu-se ao seu quarto, abriu uma gaveta
da cômoda, mexeu entre as cartas e pegou um pacote. Entregou-o à
neta: – O dinheiro de uma vida, guardado para a passagem.
– Dinheiro? – espantou-se Maria.
– Eu sabia que talvez um dia eu iria precisar...
Maria o contou, sobras de setenta anos de compras – subtra-
ídas com astúcia ao olhar atento do marido – mais outro dinheiro
encontrado no armário de Carmine após sua morte.
– Dá pra a passagem? – perguntou à bisneta.
– Claro que “dá”, Vovó – respondeu ela italianizando o portu-
guês, – e mesmo para ficar bem confortáveis, na verdade. Mas você
não tem medo de morrer numa viagem tão longa? – perguntou-lhe
aflita, o pensamento de perdê-la a angustiava.
Quinota riu: – Medo? O que é isso, minha filha! Não tenho
medo, não. Aquela que não tem que ter medo é você!
Na mesa Quinota voltou com uma aliada a mais, Maria tomou
o partido da bisavó: – Aqui há quase dez mil euros – exordiou, – e
ela quer morrer na sua terra, já o deixou bem claro. Demorou uma
vida para colher esse dinheiro para voltar pra casa, nós não lhe po-
demos impedir isso, devemos só ajudá-la.
– Não lhe importa de deixar-nos? – ressentiu-se Carmine, des-
cobrir de ser descendente de uma violência do vovô o levava a pôr
em discussão o carinho da vovó.
– Não seja idiota! – repreendeu-o Rosa. – Tá certo que ela vol-
te ao filho do qual foi rasgada – comoveu-se, achava-a uma história
extremamente romântica.
– Ramón, preparemo-nos para viajar – disse Maria. – Nós três.

167
maresia

Nós quatro – corrigiu-se.


Depois de ter discutido as coisas por fazer, cada um se empe-
nhou do seu jeito para realizar o sonho de Vovó Quinota. Ramón
falou ao skipe quase uma hora com Paula que, por sua vez, teria
preparado os dois idosos para a notícia. Rosa e Carmine se ocupa-
ram da documentação necessária, passaporte e certificados médicos
e, depois de cerca de um mês, compraram as passagens para o dia
26 de setembro.
Anna e Francesco voltaram uma semana entre ferragosto,
aquele ano não era apenas o mar a chamá-los a casa. A história de
Vovó estranhou todos, principalmente eles dois, emigrados agora
já faz diversos anos. Cumprimentar a bisavó, com a consciência de
que nunca mais a viriam, deu-lhes um efeito esquisito, mais de que
ouvir a voz dela. Não foi muito o tempo para aproveitar de verdade
da sua palavra reencontrada, uma semana é um pulo de gato de um
teto a outro, mas ambos se alegraram de haver tido a possibilidade
de abraçá-la uma última vez. Para Rosa e Carmine foi ainda mais
difícil separar-se da idosa, os dias antes da partida foram um martí-
rio. Ela se sentia como se lhe estivessem rasgando uma parte de si,
Vovó Quinota, desde tantos anos, era seu pensamento cotidiano.
Imaginou sua cadeira vazia, já decidira que a tiraria dali. Enquanto a
ajudava a fazer as malas lhe disse: – Agora mesmo você vai embora,
Vovó, que poderia contar-me um monte de coisas! Parece-me tudo
tão estranho, é como se você estivesse se preparando para morrer...
– Minha filha, estou só voltando à minha terra!
– Sim, mas eu nunca mais vou reencontrá-la, então pra mim é
como se você morresse!
– Todo mundo vai morrer, antes ou depois... Deus já fora bas-
tante bom e generoso comigo.
Olhou-a nos olhos, tirou do pescoço um colar com as contas
azuis e o colocou no de Rosa: – Pra você.
– Mas não, Vovó – replicou ela, – este não... sempre foi seu!
– Leva-o sempre no pescoço, é abençoado. Mãe Iemanjá vai
lhe proteger no seu caminho de mãe e de vovó.
Os olhos de Rosa se encheram de lágrimas, aquele era um dom
especial, sabia disso perfeitamente. Quinota botou na mala o míni-
mo necessário, o resto o deixou pra ela, para fazer do que sobrara o
que achava melhor. Escolheu uma pulseira de conchas para Anna,
enquanto a caixinha de madeira entalhada, que continha fotografias,

168
capítulo 7
cartas e outras lembranças, destinou-a a Maria: – Para quando ela
voltar do Brasil – dispôs.
Na hora decisiva todo mundo chorava.
– Eu sei... eu sei que é certo assim – desabafou Rosa com o ma-
rido, – é exatamente assim que tem que ser, mas como não sentir sua
falta? E sua voz... agora já aprendera a deliciar-me com seus cantos!
Carmine também estava aflito e não conseguiu consolar a es-
posa, limitou-se a apertá-la entre seus braços.
– Vou sentir saudade de vocês – disse Quinota antes de ir.
Abraçou o neto, deu-lhe um beijo na fronte e o olhou nos olhos:
– Você é diferente – sussurrou-lhe. Sossegou-o, fazendo-o diferente
do avô violento do qual levava o nome. Depois se virou para Rosa:
– Obrigada, minha filha, que Deus lhe abençoe. Vou lembrar-me da
sua luz, da sua ajuda o do seu cuidado – concluiu em italiano.

Aterrissaram no aeroporto do Rio às seis da manhã e pega-


ram um táxi, uma claridade avermelhada, com esfumaturas índigos,
contornava os morros da cidade recém acordada. Quinota estava
perplexa, tudo era mudado. Arregalou os olhos em frente do Pão
de Açúcar, pelo menos ele continuava ali, pensou, mas os enormes
prédios transformaram a arquitetura que ela lembrava, de plena bel-
le époque. O Cristo Redentor, ao contrário, era uma novidade pra
ela, lembrava-o em construção, tinha onze anos quando a obra foi
iniciada, ela brincava na floresta da Tijuca e seguia os movimentos
dos trabalhos ao longo do pico do morro do Corcovado. Infeliz-
mente nunca pôde vê-lo ao vivo porque foi inaugurado em 1931,
quando ela já fora embora. Onde uma vez havia o mar encontrou,
ao contrário, cimento, não conhecia nem mesmo o Aterro do Fla-
mengo, remontante a um período ainda seguinte. Ramón parou em
Botafogo para subir no Santa Marta, enquanto eles prosseguiram. A
bisavó pedira para se alojar perto do mar, queria admirar as curvas
dos morros emergirem da água e as ondas que a levaram embora,
há muito tempo, sem seu consentimento. Os grandes prédios de
Copacabana não a surpreenderam, vira algumas imagens na tele-
visão, o fascínio do litoral estava inalterado e o morro do Leme,
imponente, ficava exatamente onde o lembrava, no começo da rua
a beira-mar, assim como o Arpoador, os Dois Irmãos em Ipane-
ma e, ainda mais ao longe, a pedra plana e horizontal da Gávea.

169
maresia

Chegaram ao hotel na avenida Atlântica, acomodaram-se no quarto


e desceram para dar um passeio na rua a beira-mar. Quinota teve
a sensação de ter voltado no tempo, saboreou de novo um gosto
antigo, aquele da sua terra, de salinidade e flora molhada na boca e
na pele. Sustentava-se com o braço de Maria, olhava ao seu redor e
ria como uma menina, respirava fundo e depois emitia uns sons de
prazer: – Oh! O meu Rio de Janeiro! – exclamou feliz.
Alcançou-as Soninho, ali já há um par de meses, e pararam
num quiosque à sombra de um coqueiro para descansar com uma
água de coco. Maria lhe contou tudo, no chat lhe explicara pouco, e
a amiga ficou fascinada com a história: – O destino é espantoso de
verdade! – disse. – Mas você nunca teria acreditado nisso? – virou-
-se depois para a idosa protagonista.
Ela respondeu com orgulho: – Dádiva de Iemanjá, prêmio para
uma vida de devoção, minha filha.
– Está impaciente por rever Chico? – perguntou-lhe a bisneta.
– É um lindo velhinho, garanto-lhe! – brincou.
Riram todas as três e Quinota piscou: – Mais de oitenta anos
de espera me fizeram paciente! Não tenho pressa, não! Cada coisa
tem seu tempo.
Não tinha pressa de ir ao encontro do seu destino, nem de re-
compor o quebra-cabeça de um passado ainda vivo na sua memória,
parecia-lhe, melhor, uma vida anterior, tão longe estava no tempo.
À tarde se agregou outra peça, Ramón chegou ao hall do hotel
em companhia de seu pai. Quinota se comoveu: – Meu neto... seja
abençoado! – disse-lhe.
Zé Francisco a apertou num abraço tímido, era difícil para ele
reconhecer aquela estranha como família: – Prazer, vovó – e fez
uma pausa. – Não posso acreditar – acrescentou depois.
– Cadê Maria e Chico Junior? – perguntou ao filho, estava an-
sioso por conhecer o neto. – Eu também vou encontrar meu neto
pela primeira vez – dirigiu-se depois à vovó, sorridente.
Naquele momento apareceram mãe e filho e o homem se
iluminou, pegou o pequeno entre os braços e lhe beijou a fronte.
Observou-lhe o rosto com atenção, procurava nas suas feições os
traços dos Dos Reis, e lhe levantou a regata para examinar os dois
pintas ao redor do mamilo: – O ciclo continua – afirmou feliz.
Planejaram a viagem para Ilha Grande, dali a dois dias, aonde
iriam todos juntos. Quinota nunca fora a ilha, mas quando era crian-

170
capítulo 7
ça a ouvira nomear várias vezes e não tinha uma boa lembrança, a
ilha era famosa para ter sido, antigamente, lugar de contrabando dos
escravos e depois lazareto para os imigrados portadores de cólera.
Perguntou-se porque o malandro de Chico escolhera aquele lugar
mesmo, cuja terra absorvera assim tanto sangue, e sorriu lembrando
da sua figura, com a calça à zuava e o boné na cabeça, apenas com
quinze anos, jovem apaixonado, capoeira de rua e sambista de noite.
Teria reencontrado ele velho, mesmo como era ela, mas com certe-
za teria bastado só um olhar para se reconhecerem, porque certos
olhares não se podem esquecer.
Ao porto de Vila Abraão ficava Diogo à espera deles, com o
barco pronto a içar para a praia das Palmas. O breve tempo da tra-
vessia pareceu a Maria infinito, estava ansiosa por chegar, ao con-
trário de Vovó Quinota. A mulher se deliciava com o verde e o azul
dos quais estava cercada, fixava serena o aproximar-se da praia rica
de palmeiras de coco e se espantava com a maravilha da ilha, lugar
sinistro no seu imaginário. Chegados à beira, desceu do barco entre
os braços de Ramón, enquanto Diogo se preocupou com as baga-
gens e Zé Francisco ajudou Maria com o filho adormecido entre os
braços. Ficara tranquilo a viagem toda, como se tivesse percebido a
sacralidade daquele momento. O velho Chico estava à espera deles
junto com Joãozito embaixo da sombra duma aroeira, demorara-se
ao toalete diária e usava o vestido dos dias de festa, de um branco
que reluzia na sua pele preta. Lentamente foi ao encontro deles e,
finalmente na frente de Quinota, pegou-lhe nas mãos e beijou-as,
como quando era um garoto: – O tempo demorou muito pra deixar
nos encontrarmos de novo – disse.
– Chico, meu Chico... – sufocou-se a voz pela emoção. Depois
se virou para o homem ali do lado: – Joãozito, meu filho... nem um
dia da minha vida passou sem eu pensar em você – sussurrou.
– Sou eu, mamãe – respondeu ele como um menino obediente.
Aproximou-se temeroso, nunca usara a palavra “mamãe”, crescera
achando que aquela mulher o tivesse abandonado, até a odiara, e
agora de velho, descobria a verdade. Achou-se finalmente entre seus
braços, cujo calor sempre sonhara.
Na praia das Palmas pela primeira vez se encontraram todos os
homens dos Reis, cinco gerações diferentes, com a mesma profun-
didade do olhar, iguais sinais no corpo e uma disfunção hereditária
que os fazia únicos. Subiram de volta para casa, Paola estava à espe-

171
maresia

ra deles com a feijoada dos dias de festa. A atenção se concentrou


no menino, competiam para quem tinha que segurá-lo nos braços e
se divertiam a encontrar as semelhanças com os pais, e então Qui-
nota e Chico se afastaram, queriam ficar um pouco sozinhos, ti-
nham uma vida para se contar.
– Vagabundei a vida toda procurando-lhe – disse ele. – E você?
Aparece depois de 84 anos...
Referiu-lhe das lendas nascidas ao redor do seu sumiço, alguns
diziam que fora raptada por Exu por uma oferenda faltada, outros
que caíra no rio enquanto lavava as roupas e fora derrubada por ele.
Chico a procurara em vão por todo o lado, amara muitíssimas mu-
lheres, mas nos olhos delas buscava só ela, e nenhuma conseguira se-
gurá-lo ligado. Procurava a sua voz no vento, era ela a musa de todos
os sambas de amor que compusera, invocara seu nome nas noites
de lua cheia e em cada bebedeira voltava a dor pelo seu abandono.
– Meu coração sempre foi fiel ao nosso amor – sossegou-o
Quinota. Declarou de não tê-lo nunca esquecido, seu corpo nunca
fora de verdade de outro homem. Contou-lhe do rapto, do voto a
Iemanjá, das violências do marido, das filhas mortas, dos anos de
silêncio passados a sonhar e a estar a espera de reencontrar-se com
ele e Joãozito. Estava certa que as águas do mar, mais cedo ou mais
tarde, teriam atendido ao seu pedido.

Depois de mais de uma hora os dois idosos ainda não voltaram


e então Maria foi em busca deles. Encontrou-os perto da cachoeira
do quintal, sentavam sobre um tronco de uma árvore no frescor da
mata, pegavam-se nas mãos e se trocavam beijos suaves, pareciam
dois adolescentes ao primeiro amor, prestes a recuperar o tempo
perdido. Observou a cena de longe, não queria incomodá-los, e
com uma tácita oração agradeceu a mãe Iemanjá por ter atendido
ao desejo da bisavó.
Chico e Quinota à noite se deitaram na mesma cama e à manhã
acordaram juntos, e assim por todos os dias a seguir. De manhã iam
passear na beira mar ou na borda da cachoeira, descansavam à sombra
do alpendre de casa e gozavam da presença de netos e bisnetos.
Uma tarde Quinota pediu a Maria para mostrar-lhe como se
escrevia seu nome e ela imediatamente se pôs à procura de uma
folha e uma caneta para satisfazer seu pedido.

172
capítulo 7
– Por que Vovó? – perguntou-lhe em seguida.
– Estou curiosa. Queria aprender a ler e a escrever, pelo menos
meu nome, mas agora já é tarde demais – suspirou.
– Mas o que você está dizendo? – replicou a bisneta. – Agora
lhe faço ver, eia, tentamos – exortou-a.
Com letras de forma escreveu o nome da bisavó por extenso,
assim como fizera quando era uma menina, só que desta vez Quino-
ta não afastou a folha, nem recusou a caneta, deixou-se, ao contrá-
rio, guiar pela mão dela e reproduziu os traços das letras.
Daquele momento em diante, a brincadeira se tornou um
exercício cotidiano na mesa embaixo do pórtico e um caderno ia
enchendo-se de nomes próprios, comuns, substantivos, adjetivos,
verbos e palavras entre as mais díspares, tanto italianas como por-
tuguesas. Quando escreveram o nome “Iemanjá”, Quinota lhe per-
guntou: – Você sabe a lenda?
– Não – respondeu ela, e então a bisavó a contou.
Iemanjá teve um filho com Aganju, deus da terra firme, e o
chamaram Orungã. Fizeram-no deus de tudo o que está entre o
céu e a terra e morava rodando no ar, mas na sua mente tinha só a
imagem de sua mãe, a mais bela de todas. Um dia ele não resistiu
e a violentou, Iemanjá fugiu e, na fuga, quebraram-se seus seios e
se criaram as águas. Do seu ventre, fecundado pelo filho, nasceram
os orixás mais temidos. Por isso ela é mãe e esposa dos homens do
mar, ela os ama até quando viverem e sofrerem, mas no dia da mor-
te deles é como se fossem seu filho Orungã, cheio de desejo, cobi-
çando seu corpo. Disse que por esse motivo para amá-la é preciso
morrer, assim para viajar junto com ela pelas terras do sem-Fim, as
terras de Aiocá, sua moradia: – Por isso é doce morrer no mar.
– Ela tem cinco nomes – continuou. Explicou que os canoeiros
a chamam Dona Janaína e os pretos, seus filhos diletos, que dançam
para ela e mais que todos a temem, chamam-na Inaê ou fazem sú-
plicas à princesa de Aiocá, as terras misteriosas, escondidas na linha
azul que as separa das outras terras. As mulheres do cais, enfim, cha-
mam-na Dona Maria, porque: – Maria é um nome bonito, é mesmo
o mais bonito de todos – concluiu acariciando o rosto da neta4.

4. J. Amado, Mar morto, Círculo Do Livro, São Paulo, Brasil 1987, pp. 66-67;
70-71.

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maresia

Depois de duas semanas Zé Francisco voltou à cidade, mas o


momento do retorno se aproximava também para Ramón, Maria e o
pequeno Chico. Ela não encontrava paz na ideia de deixar a bisavó,
reencontraria ela na sua próxima viagem ao Brasil? E como seria sua
vida de agora em diante, sem sua pedra paciente? Vovó Quinota,
envolvida no silêncio, sempre fora seu ponto de referência, a ligação
delas nunca precisara de palavras, era especial. Também o destino
o reconhecera e escolhera mesmo ela para levá-la de volta à terra à
qual fora brutalmente rasgada. Sofria com a ideia de perdê-la, mas
a via feliz, ria, seu olhar mudara e ganhara uma luz diferente. Sua
voz trêmula se tornava segura cantando a música do cavaquinho de
Joãozito e do pandeiro de Chico, e suas pernas apenas se moviam
nos passos de um samba miudinho, e suas ancas balançavam como
dominada por uma possessão.
Na noite do dia 8 de outubro apareceu no céu a lua cheia, gran-
de e luminosa ao ponto de ofuscar as estrelas. Seus raios no mar o
faziam prateado e Chico declarou que no mundo não havia nada de
mais lindo da cor criada pela mistura dos cabelos de Iemanjá com
o mar. Pois sustentava que na realidade os reflexos eram os cabelos
da mãe d’água, chegada das misteriosas terras de Aiocá a gozar do
espetáculo: – Ela adora a lua cheia.
No quintal acenderam um fogo e o tambor de Ramón vibrou
sob sua luz, num ritmo ancestral que os juntou ao astro mãe. Na
hora de ir dormir, Chico e Quinota preferiram ficar um pouco a
mais e sentaram no banco ao lado da porta de entrada, envolvidos
pelo xale dela. Maria insistiu para eles reentrarem, a noite estava
fresca, mas eles não quiseram ouvir razões: – Não dá pra dormir
numa noite assim! – replicou a bisavó. Pediu-lhe para lhe aproximar
o pequeno Chico: – Quero beijá-lo.
– Seja sempre abençoado, meu filho – disse-lhe. Deu um beijo
também à neta: – Boa noite, amada, nunca esqueça que a lua cheia
é magia – recitou.
No curso da noite Maria acordou para ir ao banheiro e notou
a cama vazia dos bisavós, a cortina que protegia a intimidade deles
ainda estava aberta. Enfiou uma camisa e chegou no alpendre para
controlar se ficavam ali onde os deixara, mas o banco estava vazio.
– Vovó Quinota! Vovô Chico! – chamou-os em voz alta, sem
receber resposta. Preocupada, saiu buscá-los pelo quintal, fez a vol-
ta da horta, do jardim e chegou até a cachoeira, mas dos dois não

174
capítulo 7
encontrou nenhuma pista. Voltada à casa, notou na mesa a caixi-
nha de costura e o caderno de exercícios de escritura, folheou-o e
reparou que estava rasgado em diferentes partes. Baixou os olhos
e, na cadeira, viu o pandeiro do bisavô, em cima desse estava apoia-
da uma folha. Era uma mensagem formada por diferentes pedaços
de papel, costurados entre eles, até construir uma frase de sentido
cumprido: “Francisco João, meu tataraneto, que sempre seja aben-
çoado pelo pai Oxalá. Axé e luz. Vovô Chico”.
Maria ficou de boca aberta, uma onda de terror a permeou,
quem fim levaram aqueles dois? De certo estavam na praia, pensou,
mas não teve a força de ir sozinha. Correu para acordar Ramón, aten-
ta a não fazer barulho: – Levante-se, apresse-se, estão sumidos! –
pôs-lhe pressa.
Ele estalou: – Quem? O quê? – perguntou estonteado pelo sono.
Mostrou-lhe a mensagem: – Não estão em casa e os procurei
por todo o quintal... – sua voz tremou. De pressa se dirigiram à sa-
ída e encontraram o portão aberto: – Aonde terão ido? Meu Deus,
faça que não tenha acontecido nada de mal! – rezou Maria com o
olhar voltado ao céu.
Correram pela trilha até o mar e, chegando à praia, viram duas
figuras vestidas de branco, um homem e uma mulher, que mão na
mão caminhavam adágio no oceano e seguiam a luz da lua. Estavam
imersos até a cintura.
– Mas o que estão fazendo? – perguntou ela. – Temos que
pará-los, não podem ficar na água nessa hora, está frio... – suas pa-
lavras se sufocaram, nem mesmo ela acreditou.
– Deixa lá, meu amor – disse Ramón, ele, ao contrário, já en-
tendera tudo.
Ao lado de um coqueiro havia o boné branco do bisavô e, ao
seu interior, o colar de conchas e as pulseiras de madrepérola e de
cobre de Vovó Quinota. Havia também dois bilhetes, realizados
com o mesmo método do outro. Um desses continha uma men-
sagem para Ramón: “Manuche, meu bisneto, pra você. Axé e luz.
Vovô Chico”, o outro era pra Maria: “Maresia, meu sangue amado,
obrigada. Você é luz e me encontrará sempre no perfume do mar.
Com todo meu amor. Vovó Quinota”.
Maria entendeu o que estava acontecendo e se debulhou em
soluços. Ela e Ramón sentaram na sombra do coqueiro, um entre
os braços do outro derramavam quentes lágrimas silenciosas e olha-

175
maresia

vam os corpos dos bisavós que se afastavam devagarzinho, seguin-


do a direção dos raios da lua. Vovó Quinota e Vovô Chico, imergi-
dos até o pescoço, abandonaram seus corpos à corrente e, rápidos,
avançaram para o largo. Suas cabeças desapareceram no horizonte e
o céu presenteou o fulgor de um novo dia, milagre da Grande Mãe,
magia do Universo, a anunciar a transformação. Esperava-os uma
longa viagem, mas teria sido rápida, e depois teriam se reunido a ela,
senhora dos oceanos, Iemanjá dos cinco nomes. Com ela e o povo
do mar para sempre teriam ficado, nas misteriosas terras de Aiocá,
em algum lugar no fundo do mar.

Porque ninguém pode nascer ou morar no mar


sem o amar como amante ou amigo.
Pode-se amar o oceano com amargura.
Pode esse amor ser medo ou ódio.
mas é um amor que não se pode trair,
que nunca se abandona.
Porque o mar é amigo, é doce amigo.
E talvez seja o próprio mar a terra de Aiocá
que é a pátria dos marítimos.

(Jorge Amado, Mar Morto)


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