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Título: O Lago da Paixão.

Autora: Barbara Delinsky.

Dados da Edição: Arteplural, 2005, Lisboa.

Título original: Lake News.

Género: Romance.

Digitalização e correcção: Dores Cunha.

Estado da Obra: Corrigida.

Numeração de Página: Rodapé (não foi possível digitalizar o


número da página em virtude da sua representação gráfica)

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gratuitamente.

Copyright 1999, Barbara Delinsky

Copyright 2005, da tradução e da editoração portuguesas, arteplural


edições, Lda.

Edição Portuguesa

Direcção editorial: lone França;

Tradução: Elsa T. S. Vieira;


Revisão: Maria José Pereira e Michele Amaral;

Projecto gráfico: Marta Teixeira;

Capa: ilustração de Mónica Catalá com arranjo gráfico de Marta


Teixeira;

Paginação: Gráfica 99;

Produção gráfica: Rogério O. Moura.

- é um selo editorial da arteplural edições, Ida

Direitos para a língua portuguesa (Portugal) cedidos à


Arteplural

Cascais - Portugal

1.a edição, 2005

ISBN 989-6130-36-1
Agradecimentos

Tanta gente para agradecer. Começar por onde? Começou por um


projecto duplo - procurar uma casa no lago e fazer pesquisa para
um livro. Fui bem sucedida em ambas as coisas, graças ao zelo e à
generosidade de pessoas como o Chip e a Tina Maxfield, a Susan
Francesco e o Sid Lovett - e ao Doug e à Liz Hentz, que tornaram
isto tão divertido!

A minha irmã, Helen Dempsey, foi uma fonte incansável no que


respeita a tudo o que é católico, e por isso agradeço-Lhe do fundo
do coração. Se tomei liberdades literárias e cometi erros, a culpa
deve-se somente a mim.

Quanto à informação proveniente da imprensa, estou em dívida para


com a Maria Buckley e o Ron Duce do Needham TAB. Pela
informação sobre o fabrico da sidra agradeço à Julie, ao Andrew e à
Jo dos Pomares Honey Pot Hill. Por contributos diversos, outras
coisas e loisas, agradeço à Martha Raddatz, à Barbara Rosenberger
e à Phyllis Tickle. Também devo uma boa dose de gratidão à Robin
Mays, que morreu pouco depois de eu ter terminado este livro, mas
que está a ver-nos, tenho a certeza de que está. Robin, as casas
dos pássaros são tuas!

Como sempre, à disposição, estiveram a minha agente, Amy


Berkower, e a sua assistente, Jodi Reamer, bem como a minha
própria assistente, Wendy Page. Para os meus revisores de texto,
Michael Korda e Chuck Adams, vão os meus sinceros
agradecimentos e com promisso futuro.

Dedico O Lago da Paixão ao meu marido, Steve, que,


positivamente, mergulhou na arquitectura deste romance, e aos
nossos filhos, sempre uma fonte ilimitada de orgulho - Eric e Jodi,
Andrew, e Jeremy e Sherrie.

Por fim, à Lily, de Ellyn, aqui está!


BARBARA DELINSKY

Nada tão claro, tão puro e ao mesmo tempo tão vasto como um
lago, existe talvez à superficie da terra. Água do céu. Não carece de
comportas. As nações vão e vêm sem o conspurcar. É um espelho
que nenhuma

pedra pode quebrar, cujo estanho jamais se desgastará, cujo brilho


natural continuamente se restaura; nem as tempestades nem o pó
podem obscurecer a sua superficie, eternamente lavada; um
espelho em cuja presença toda a impureza se afunda, varrida e
limpa de pó pela escova do sol brumoso - este, o espanador de luz
que não retém nenhum sopro sobre si soprado, mas envia o seu
próprio sopro, para que flutue como as nuvens altas suspensas
sobre a sua superficie, e para o reflectir no seu pacífico seio.

Henry David Thoreau, Walden ou A Vida nos Bosques

LAKE HENRY, NEW HAMPSHIRE

Como tudo o resto no lago, o amanhecer chegava a seu tempo. O


negro carregado da noite intensificava-se lentamente num azul-
escuro que clareava a passo preguiçoso, delineando gradualmente
o espigão de uma árvore, o beiral de uma casa de campo, a língua
de uma doca de madeira desbotada - e isso num dia claro. Nesse
dia, o nevoeiro tornava lento o processo de delineação, reduzindo o
lago a uma lagoa de vidro leitoso e as margens a tons esbatidos de
laranja, dourado e verde, onde, habitualmente, surgiria uma cascata
das cores vibrantes do Outono.

Um vislumbre de azul arando ou marinho assinalava uma casa


defronte para o lago, mas os detalhes perdiam-se na neblina. Tal
como a divisão entre o reflexo e a margem. O efeito, com o ar
tranquilo e

imóvel, era o de um casulo protector.

Era um momento especial. A única coisa que John Kipling alteraria


era o frio. Não estava preparado para o fim do Verão, mas, mesmo
contra a sua vontade, os dias eram perceptivelmente mais
pequenos do que há dois meses atrás. O Sol punha-se mais cedo e
nascia mais tarde, e o gelo da noite demorava-se. Sentia-o. Os
mergulhões sentiam-no. Os quátro que observava, dois adultos e
respectivas crias, continuariam no lago por mais cinco semanas,
mas estavam cada vez mais agitados, observando ultimamente o
céu numa atitude que tinha menos a ver com os predadores do que
com as intenções de migração.

Agora, enquanto os observava, flutuavam no nevoeiro, a menos de


seis metros da sua canoa, e a três da minúscula ilha coberta de
abetos em cuja angra protegida tinham passado o Verão. A ilha era
uma das muitas que salpicavam Lake Henry. Entre a claridade da
água, a quietude do lago e a abundância de peixes diminutos, essas
ilhas atraíam o regresso dos mergulhões ano após ano - por não se
desembaraçarem bem em terra. Tinham os pés demasiado
recuados sob corpos desajeitados e volumosos. Assim, construíam
os ninhos na extremidade dessas ilhas, onde podiam entrar e sair
da água mais facilmente. Era aflitivo para John vê-los a percorrer,
aos tombos, mesmo esses poucos centímetros desde a água até ao
ninho.

Não obstante, em todos os outros aspectos, os mergulhões eram


um espectáculo digno de se ver. Desde o nascimento das crias, em
Julho, que observara a mudança da sua plumagem, do negro,
enquanto bebés, ao castanho da primeira infância, passando depois
a um castanho mais claro, acinzentado. Mas tinham os bicos
afunilados e os pescoços macios dos pais, e uma promessa de
brilho futuro. E esses pais, ah, esses pais eram deveras brilhantes,
mesmo no Outono, com a plumagem que começava a esmorecer,
mesmo nessa manhã, através do véu de uma neblina cinzenta.
Eram uma maravilha, com os seus dorsos axadrezados brancos e
pretos, colares de listas brancas em torno dos pescoços negros,
sólidas cabeças negras, inconfundíveis bicos aguçados. Como se
tudo isso não fosse suficiente! mente impressionante, tinham uns
olhos penetrantes, redondos e vermelhos. John ouvira dizer que a
cor vermelha aumentava a visão subaquática, e ele até acreditava.
A uns olhos assim pouca coisa escapava.

As aves recolhiam agora à água, nadando suavemente em volta da


enseada, girando alternadamente e contorcendo-se para se
limparem e alisarem as penas, e submergindo as cabeças para
filarem o peixe. Quando um dos adultos comprimiu o corpo e
mergulhou, uma energia palmípede impeliu-o para o fundo. John
sabia que ele podia encher a barriga com mais de quinze vairões
antes de emergir à superfície, mais adiante.

Penetrou o nevoeiro até voltar a localizá-lo. O companheiro


continuou a flutuar perto da ilha, mas ambos os adultos mantinham-
se alerta, elevando um pouco mais os bicos aguçados à medida que
iam perscrutando o nevoeiro em busca de novidades. Mais tarde,
nessa manhã, deixariam as crias, correriam penosamente ao longo
da superfície do lago e elevar-se-iam pesadamente no ar. Depois de
realizarem um ou dois círculos até ganharem altitude suficiente para
evitarem as árvores, voariam para um lago vizinho a fim de visitar
outros mergulhões. Os tempos de procriação eram tempos
solitários, e, com dois passarinhos inexperientes, aos quais fora
necessário dedicar meses de vigilância e trabalho, este casal
portara-se à altura. Agora tinham de voltar aos seus hábitos sociais,
preparar-se para passar o Inverno em grupos mais alargados, no
ambiente mais quente da costa do Atlântico.

Havia uma eternidade que os mergulhões repetiam este ritual. A


mesma inteligência que assegurara a sua sobrevivência ao longo de
tanto tempo, avisava a actual geração de aves de que Setembro já
tinha percorrido metade do seu caminho, Outubro traria dias mais
frios e a geada do princípio da noite, e Novembro traria o gelo. Já
que necessitavam de uma vastidão de águas límpidas para
partirem, teriam de deixar o lago antes que este gelasse. E
deixariam. Ao longo dos anos em que crescera no lago, tendo
voltado depois em adulto para de novo o contemplar, John nunca
vira muitos mergulhões presos no gelo. O seu instinto era bom.
Raramente erravam.

No entanto, John errava, e com frequência. E era ou não verdade


que tinha errado uma vez mais esta manhã, apresentando-se de T-
shirt e calções, querendo que ainda fosse Verão, e dando agora
consigo gelado até aos ossos? Por vezes tinha dificuldade em
aceitar que já não tinha vinte anos. Já tinha passado dos quarenta.
Sim, ainda tinha um metro e oitenta e cinco e continuava em forma,
mas o corpo já não se portava como antigamente. Doía-Lhe em
volta dos joelhos, enrugava-se em volta dos olhos, recuavam-Lhe as
têmporas e enregelava nas extremidades.

Mas, quer tivesse frio quer não, ficaria por ali. Pelo menos por
enquanto. Podia não estar ali necessariamente a génese de um
grande best-seller, mas ainda não se fartara dos mergulhões. i
Sentou-se na canoa, imóvel como uma pedra, com as mãos nos
sovacos para as aquecer e o remo recolhido. Estes mergulhões
estavam habituados à sua presença, mas, para ele, não havia
certezas absolutas. Desde que mantivesse a devida distância e
respeitasse o

seu espaço, recompensá-lo-iam com os seus requebros de limpeza


e alisamento das penas e o seu canto. Quando o mundo estava
assombrosamente silencioso, à noite, ao amanhecer, em manhãs
como esta,

quando a bruma abafava outros ruídos próprios da vida no lago, a


canção dos mergulhões vibrava e elevava-se. E chegava-Lhe agora,
cortando a respiração, um tremolo primitivo, solto com o
estremecimento de uma mandíbula, tão belo, tão misterioso, tão
selvagem que Lhe eriçava os cabelos da nuca.

Também transportava uma mensagem. O tremolo era um grito de


alerta. É certo que possuía um tom baixo, pouco mais do que um
aviso, mas John não o podia ignorar. Ergueu o remo, com o mínimo
ruído provocado pelo atrito irritante e áspero da madeira na fibra de
vidro. A água turbilhonava suavemente contra a canoa enquanto a
fazia recuar. Depois de ter recuado mais três metros, estabilizou a
posição e apoiou tranquilamente o remo. Apertando as coxas com
os cotovelos para se aquecer, sentou-se, observou, escutou,
aguardou.

A seu tempo, o mergulhão mais próximo esticou o pescoço para a


frente e soltou um longo lamento. O som não era muito diferente do
grito do coiote, mas John jamais os confundiria. O grito dos
mergulhões era ao mesmo tempo mais elementar e mais delicado.

Este era o começo de um diálogo, um adulto a chamar por outro


numa sucessão de sons obsidiantes que faziam com que a ave mais
distante se aproximasse em voo planado. Mesmo encontrando-se já
a uma distância de três metros, continuavam a falar, com os bicos
quase fechados e as goelas alongadas inchando em torno do som.

Ficou com pele de galinha. Este tinha sido o motivo pelo qual
regressara ao lago. A razão pela qual tinha voltado, aos quarenta
anos, depois de aos quinze ter jurado renunciar a New Hampshire.
Alguns disseram que o tinha feito pelo trabalho, outros pelo seu pai,
mas a verdade latente tinha a ver com estas aves. Elas significavam
algo primitivo e selvagem, mas muito simples, íntegro e seguro.

A vida de um mergulhão consistia em comer, tratar de si e procriar.


Era uma vida honesta, desprovida de pretensões, ambição e
crueldade. O mergulhão só agredia os outros quando sentia a
própria existência ameaçada. john considerava isso totalmente
reconfortante.

Assim, ficou por mais tempo, apesar de saber que devia retirar-se.
Era segunda-feira. O Lake News tinha de estar na gráfica por volta
do meio-dia de quarta-feira. já tinha o material da equipa de
correspondentes, um para cada localidade. Assumindo que as
respectivas caixas continham os artigos prometidos pelos
promotores e agitadores locais, sendo o termo "promotores e
agitadores" relativo teria uma pilha de coisas para ler e editar, muita
batida que dar no teclado, muito que cortar e montar. Se esses
artigos não estivessem nas caixas, ligaria para Lake Henry e para
as quatro localidades vizinhas servidas pelo jornal, anotaria a
informação pelo telefone, e ele mesmo redigiria o que pudesse - e,
se ainda Lhe sobrassem espaços em branco, espetar-Lhe-ia com
mais Thoreau.

"Também não há lá material para um livro", disse para consigo. Um


livro tinha de ser original. Possuía blocos de notas repletos de
ideias, pastas a abarrotar de historietas que coleccionara desde que
voltara à cidade, mas nada Lhe fazia chegar a febre da pressa, pelo
menos no que tocava a escrever um livro. Chegava-Lhe a febre da
pressa no que tocava ao Lake News, sobretudo entre o meio-dia
das terças e quartas-feiras. Era uma pessoa do género "à última da
hora". Escrevia melhor sob a pressão de uma data-limite prestes a
expirar, gostava das pressas de uma sala de redacção, repleta de
acção e algazarra, gostava da perversão de manter o director com
os nervos à flor da pele.

É claro que, agora, era ele o chefe de redacção. E o director de


produção. E o editor fotográfico, o editor de sociedade e o director
de arte. O Lake News não era o Boston Post. Nem por sombras, e
isso às vezes aborrecia-o.

Contudo, esta não era uma dessas vezes.

O seu remo estava ainda arrumado e os mergulhões continuavam a


bradar. Depois, veio uma pausa e John atreveu-se a imitar o

som. Um dos mergulhões respondeu qualquer coisa, e, nesse breve


instante arrebatado, sentiu-se parte do grupo. No momento
seguinte, com o recomeçar do dueto das aves, voltou a sentir-se
excluído, uma espécie à parte.

Mas sem frio. Apercebeu-se de que já não tinha frio. O nevoeiro


estava a dissipar-se sob um sol resplandecente. Por essa altura,
fragmentos de azul assomavam por entre a neblina. john imaginou
que seriam quase nove horas. Esticou as pernas e, espreguiçando-
se para trás, assentou os cotovelos nas bordas da canoa. Virando a
cara para o sol, fechou os olhos, respirou satisfeito e escutou o
silêncio, a água e o mergulhão.

Ao fim de algum tempo, quando o sol Lhe começou a aquecer as


pálpebras e o peso da responsabilidade se tornou demasiado para o
i gnorar, ergueu-se bruscamente. Durante os últimos minutos que
Lhe restavam continuou a observar e a absorver o que quer que
fosse que estas aves Lhe ofereciam. Depois, lenta e
silenciosamente, ainda que com relutância, voltou a retirar o remo
do fundo da embarcação e avançou para terra.

A beleza de uma barba consistia em excluir a necessidade de se


barbear. john mantinha-a curta, o que significava retoques
ocasionais, mas nada da agonia diária de arranhões e sangue que
costumava sofrer. O mesmo se passava com as gravatas. Ali não
precisava de as usar. Ou com as camisas engomadas. Ou com
qualquer coisa que não fosse ganga da cintura para baixo. Nem
sequer tinha qualquer preocupação com meias a condizer, já que,
no Verão, era pé descalço com sandálias e, no Inverno, as botas de
trabalho, e nessa altura podia usar as meias que quisesse, que
ninguém veria.

Ainda sentia a novidade do que era tomar um duche, vestir-se e


fazer-se à estrada em dez minutos certinhos, e que bela estrada.
Sem trânsito. Sem outros carros. Sem buzinas. Sem Polícia. Sem
limite de velocidade. A estrada por onde guiava agora encontrava-se
emoldurada por árvores quase no pico da sua cor outonal. Tecia-se
em zi guezague num tosco traçado do lago e estava gretada por
anos de investidas das geadas. A maior parte das outras estradas
da zona era igual. Impunham um limite de velocidade por si
próprias, e Lake Henry gostava das coisas assim. A terra não tinha
condições para acolher turistas, como tinham muitas outras em volta
do lago. Não havia pousada. Não existiam as lojinhas chiques.
Apesar de um permanente burburinho na legislatura estatal, não
havia acesso público à praia. Qualquer pessoa que se deslocasse
até ao lago, ou era residente, ou amigo de um residente, ou intruso.

Naquele momento particular, com a partida dos residentes de Verão,


tendo ficado apenas os que lá habitavam o ano inteiro, a população
era de 1721 habitantes. Esperava-se que nascessem onze bebés, o
que aumentaria a contagem. Doze cidadãos eram idosos terminais
ou doentes terminais, o que a faria decrescer. Actualmente, havia
vinte e oito jovens a estudar fora. Se voltariam ou não, era uma
incógnita. Nos tempos de John, partiam e nunca mais voltavam,
mas isso estava a começar a mudar.

Fez o que pretendia que fosse uma breve paragem no armazém


local, mas pôs-se a falar da política nacional com Charlie Owens, o
dono da loja; e depois a mulher de Charlie, Anette, disseLhe que a
filha mais nova de Stu e Amanda, Hillary, que andava na faculdade,
estava lá de passagem, depois da decisão de última hora de passar
o semestre no estrangeiro. Uma vez que Hillary estagiara para John,
há dois Verões, ele tinha um interesse particular pela sua carreira,
por isso fez um desvio até sua casa, para tomar nota dos
acontecimentos, tirar-Lhe uma fotografia e desejar-Lhe sorte.

De volta ao centro da vila, virou na estação dos correios e conti


nuou até ao alto edifício vitoriano que ficava entre os correios e o
lago. Descendo da carrinha - um Chevy Tahoe, uma das regalias do
trabalho - atravessou-se no banco para alcançar a pasta, pôs a
correia ao ombro e reuniu as edições do dia de quatro jornais
diferentes, um pacote de donuts e a sua garrafa-termo. Com o saco
preso entre os dentes, esquadrinhou-o à procura do porta-chaves
enquanto percorria o caminho de terra até à porta lateral do edifício.
Estava ainda a procurar quando empurrou com o ombro a porta de
rede. A porta por detrás desta era de mogno, profusamente
envernizada e esculpida por um artista local. Por entre as volutas na
metade inferior estava uma dúzia de ranhuras identificadas com
pequenas placas de latão. A primeira fila, respeitosamente, era
dedicada às povoações vizinhas - Ashcroft, Hedgeton, Cotter Cove,
e Center i Sayfield. As filas de baixo eram especificamente
dedicadas a Lake Henry, com ranhuras atribuídas a coisas como
Policia e Bombeiros, I greja Congregacional, Fábrica de Têxteis e
Clube de Jardinagem. Bem à vista, ao cimo da porta, sem qualquer
ranhura correspondente, alojava-se a maior placa. Nela lia-se: Lake
News.

A porta moveu-se, ainda antes de John ter introduzido a chave.


Enquanto a empurrava com o cotovelo para abri-la completamente,
o telefone começou a tocar.

- Jenny? - chamou. - Jenny?

- Na casa de banho! - chegou-Lhe o grito, em surdina. "Nada de


novo por aqui", pensou. Mas pelo menos ela tinha vindo.

Atirando com as chaves para cima da mesa da cozinha, ao passar,


subiu os degraus de dois em dois, passou pèlo primeiro andar e
continuou a subir até ao segundo. Não havia paredes divisórias lá
em cima, o que fazia da sala a maior de todas as divisões da casa.

A acrescentar a isto, o facto de estar rodeada de janelas e


clarabóias também fazia dela a mais iluminada. E o mais importante:
era a única com vista para o lago. Essa vista não era nem de perto
tão boa como a de casa do John, mas era melhor do que nada, que
era o que ofereciam as salas do prédio situadas mais abaixo. Três
salgueiros, de braço dado e mais largos do que altos, eram
responsáveis por isso.

O sótão tinha sido o seu escritório desde que voltara à cidade, três
anos antes. Era suficientemente grande para albergar o
Departamento de Vendas do jornal, o Departamento de Produção e
o Departamento Editorial. Cada departamento tinha uma secretária
e uma vista para o lago. Essa vista mantinha John concentrado e
equilibrado.

O telefone continuava a tocar. Fazendo deslizar os jornais para a


secretária do Departamento Editorial, atirou-Lhe para cima o saco
da loja de Charlie, apoiou a garrafa-termo por perto e abriu
completamente a janela. O ar do lago era agora límpido. O Sol
tombava pelos declives das montanhas a leste, puxando fogo à
folhagem na sua passagem, antes de atropelar a água. Há um mês
atrás, teria incidido sobre uma dúzia de barcos, capitaneados pelas
gentes estivais, que se agarravam aos últimos minutos preciosos no
lago antes do encerramento do parque durante o resto do ano. O
único barco actualmente na água era um dos Chris-Crafts
premiados de Marlon Dewey. O sol balouçava no convés de
carvalho polido e cintilava no rasto que se ia espalhando atrás.

Agarrou no telefone.

- Bom-dia, Armand.

- Demoraste a chegar - disse o seu director numa voz irritada. Por


onde andaste?

John seguiu o curso do elegante Chris-Craft. Marlon encontrava-se


ao leme, com dois netos que estavam de visita.

- Oh, por aí.

A voz do velho tornou-se mais suave.

- "Oh, por aí." Estás sempre a dar-me essa desculpa, John, e sabes
que isso não tem discussão. O raio do lago tem demasiados lados,
por isso não consigo ver o que se passa lá para os teus. Mas o
jornal é a minha prioridade, e estás a sair-te bem. Desde que
continue assim, podes dormir até às horas que queiras. Recebeste a
minha peça? A Liddie pô-la na ranhura.

- Está lá - disse John sem verificar, porque a mulher de Armand


Bayne era da maior confiança. Era também totalmente dedicada ao
marido. Fazia tudo o que Armand queria.

- Que mais tens? - perguntou o velho.


John prendeu o telefone entre o ombro e a orelha e tirou uma mão
cheia de papéis da pasta. Tinha esboçado as páginas semanais em
casa, na noite anterior. Agora, espalhou as folhas à sua frente.

- A notícia principal é uma reportagem sobre o projecto de lei


educativo que vai ser votado pela legislatura do Estado. É uma peça
que ocupa trinta polegadas no topo da notícia e toda a coluna da
direita, até abaixo, fotografia no canto inferior esquerdo. Prossigo -
com artigos de opinião, um do representante local, outro do director
da Escola Primária Cooper.

- O que diz o teu editorial sobre isso?

- Você sabe o que diz.

- Os nativos não vão gostar.

- Talvez não, mas, ou injectamos dinheiro nas escolas hoje, ou o


injectamos amanhã na assistência social - a fonte desse dinheiro
era o problema. Não querendo voltar a discutir o assunto com
Armand, que era um dos mais ricos proprietários de terras e que
seria sugado até ao tutano se aumentassem para o dobro os
impostos sobre a propriedade, tirou o esboço da página seguinte. -
A página três abre com uma reportagem sobre o julgamento do
Chris Diehl... alegações finais, parecer do júri, saída do veredicto,
Chris em casa. Tenho um artigo sobre a participação nos lucros da
fábrica, e outro sobre os cortes de pessoal no lar de idosos. O perfil
do recém-chegado é sobre Thomas Hook.

- Não suporto esse tipo - resmungou Armand.

John destapou a garrafa-termo.

- Isso é porque ele não tem jeito com pessoas, mas tem jeito com
computadores. Há uma razão para o negócio dele valer vinte
milhões e continuar a crescer.
- Ele é um puto - disse Armand, em tom indignado. - O que vai ele
fazer com tanto dinheiro?

John encheu a caneca de café. - Tem trinta e dois anos, mulher e


três filhos e, nos seis meses desde que chegou, já triplicou o
tamanho da casa, pavimentou a estrada de acesso, construiu uma
outra casa para Lhe servir de escritório no lugar onde havia uma
bendita vista horrivelmente chocante e, para fazer isto tudo, recorreu
a empreiteiros, carpinteiros, pedreiros, canalizadores e electricistas
locais.

- Está bem, está bem - o rugido de Armand interrompeu-o. Que


mais?

Dando golos no café, John passou à página seguinte.

- Há uma actualização vinda da academia. uma mensagem da


direcção da escola. Novo ano a começar, cento e doze crianças,
vinte e dois Estados, sete países. Depois há notícias da Polícia, dos
Bombeiros, da biblioteca - abriu o Wall Street Journal com uma
sacudidela e percorreu distraidamente os títulos. - Há a semana em
revista, de jornais de Boston, Nova Iorque e Washington. E
publicidade. Montes de publicidade esta semana - sabia que
Armand iria gostar disso -, incluindo uma página dupla das lojas em
Conway. O Outono é uma boa época para a publicidade.

- Graças a Deus - disse Armand. - Que mais?

- Notícias da escola. Notícias da Sociedade Histórica. Notícias do


futebol intercidades.

- Queres notícias frescas?

John queria sempre notícias frescas. Era uma das coisas citadinas
de que mais falta sentia. Experimentando uma pontada de
antecipação, afundou-se na cadeira da secretária, abriu um
documento em branco e preparou-se para escrever.
Armand disse:

- Acaba de ser lido o testamento de Noah Thacken, a família está


num alvoroço. Ele deixou a casa à segunda filha, por isso, a
primeira ameaça com o tribunal e a terceira ameaça ir-se embora, e
não se falam. Trata disso, John.

Mas John tinha retirado as mãos do teclado e balançava-se para


trás na cadeira.

- Isso são assuntos privados.

- Privados? Quando chegarmos ao fim do dia já toda a gente da


terra há-de saber.

- Exacto, logo, porquê publicá-lo no jornal? Além disso, publicamos


factos.

- Isto são factos. Esse testamento é um assunto de conhecimento


público.

- O testamento é. Não o trauma pessoal. Isso é especulação e


exploração. Pensei que tínhamos chegado a acordo...

- Bem, por aqui não há muitas outras notícias excitantes - disse o


velho. E desligou o telefone.

"Não", pensou John, "não há muitas outras notícias excitantes."


Nem há material fascinante para um livro numa lei sobre educação,
num magnata dos computadores, ou numa questiúncula familiar; e o
julgamento de Christopher Diehl por fraude bancária estava a milhas
dos julgamentos sobre assassinatos que ele estava habituado a
cobrir.

Desviou os olhos para a parede com fotografias emolduradas na


extremidade da sala. Havia uma fotografia sua, a entrevistar uma
fonte de informação na City Hall Plaza, em Boston, e outra a
trabalhar ao computador, com o telefone colado ao ouvido numa
sala cheia de outros repórteres que faziam a mesma coisa. Havia
fotografias suas a apertar a mão a políticos nacionais e outras na
galhofa com colegas em bares de Boston. Havia uma de uma festa
de Natal, ele e Marley na sala de redacção, com um grupo de
amigos. E havia uma ampliação do instantâneo do seu Cartão de
Imprensa do Post. Tinha o cabelo curto, o maxilar rígido, os olhos
cansados, a cara pálida. Parecia estar à beira de perder a notícia
mais importante da sua carreira ou com uma grave prisão de ventre.

As fotografias eram um aparato de uma vida anterior, tal como o


rádio da Polícia, que se encontrava desactivado num armário de
arquivo por debaixo delas. Ouvir as comunicações da Polícia ou dos
Bombeiros tinha sido, no passado, um modo de vida. Nenhuma sala
de redacção que se prezasse passava sem um desses aparelhos.
Assim, começara o exercício do seu cargo no Lake News instalando
um, mas rapidamente se fartara de ouvir estática sem vozes durante
horas a fio. Além disso, conhecia pessoalmente todos os que
estariam envolvidos em qualquer notícia de última hora. Se
acontecia alguma coisa, telefonavam-Lhe e, se não o encontrassem
junto ao telefone, Poppy Blake sabia onde ele estava. Ela era o seu
serviço de atendimento. Era o serviço de atendimento de metade da
cidade. Se não o encontrasse num local, encontrá-lo-ia em qualquer
outro. Em três anos, não falhara nenhuma emergência local.
Quantas tinham ocorrido... duas... três... quatro?

Não, nunca surgiria nenhum best-seller a partir da cobertura das


emergências em Lake Henry.

Com um suspiro, deixou cair o telefone no suporte, retirou um donut


do saco, deitou mais café na caneca e voltou a inclinar a cadeira
para trás. Mal tinha acabado de cruzar os pés na secretária, quando
Jenny Blodgett apareceu à porta. Tinha dezanove anos, era pálida e
loura, e tão magra que a grande protuberância do bebé na sua
barriga parecia duplamente descabida. Sabendo que provavelmente
ela não tinha tomado o pequeno-almoço, baixou a cadeira, levantou-
se e estendeu-Lhe o saco.
- Não é leite nem carne, mas é melhor do que nada - disse,
indicando-Lhe com um gesto que desse meia volta e voltasse para
baixo. O gabinete dela era no rés-do-chão, na sala que tinha sido
em tempos o salão de visitas. Seguiu-a até lá, deu uma vista de
olhos à secretária e pensou detectar o que seria talvez pilhas
separadas de papéis. - Que tal vai isso?

A voz dela era suave e infantil.

- Bem - apontou para as pilhas imprecisas de papelada à sua volta. -


As cartas ao editor deste ano. As do ano passado. As do ano
anterior. O que faço agora?

John tinha-Lhe dito duas vezes. Mas ela trabalhava


esporadicamente, não tinha estado presente desde a última quarta-
feira, e provavelmente vivera um pesadelo desde então, pelo menos
era o que logicamente levava a crer. Não era exactamente
competente, mal tinha conseguido terminar o liceu e não tinha
experiência de nada. Mas esperava um filho do seu primo. Queria
dar-Lhe uma hipótese.

Por isso, disseLhe com gentileza:

- Coloca-as por ordem alfabética e arquiva-as no armário.


Dactilografaste etiquetas para os ficheiros?

Ela abriu muito os olhos. Estavam orlados de vermelho, o que


significava que tinha estado levantada toda a noite ou tinha chorado
de manhã.

- Esqueci-me - confessou, num sussurro.

- Não há problema. Podes fazê-lo agora. Que tal se definirmos um


objectivo? Etiquetas dactilografadas e coladas nos dossiers de
arquivo e as cartas arquivadas nos respectivos dossiers, hoje, antes
de saíres. Parece-te razoável?

Ela concordou rapidamente.


- Come primeiro - lembrou-Lhe, enquanto saía e se dirigia à cozinha
para ir buscar o conteúdo das caixas.

De novo no seu gabinete, no piso superior, comeu os donuts junto à


janela com vista para o lago. Woody desaparecera e o seu rasto
extinguira-se, mas a água tinha perdido a lisura. Uma leve brisa
agitava a superfície, deslocando farrapos. Debaixo da sua janela, os
salgueiros rumorejavam e balançavam.

Puxando a persiana para cima, curvou de súbito a cabeça e


debruçou-se. Estavam a fritar picado de carne enlatada no
estabelecimento do Charlie. A brisa arrastou o cheiro pela rua e até
lá abaixo, à água. À sua esquerda, meia dúzia de velhos pescava na
extremidade do paredão da cidade, que se projectava de uma
estreita faixa de praia com areal. À sua direita, vidoeiros de folha
amarela inclinavam-se sobre arbustos baixos que iam ter às rochas
e depois à água. Havia casas ao longe, armadas durante todo o
ano, demasiado majestosas para Lhes chamarem acampamentos,
mas a maior parte delas estava metida em enseadas, escondida
pelas curvas, ou a sua visão tapada pelas ilhas. Conseguia ver as
pontas de algumas docas, até uma jangada batida pelas intempéries
ainda ancorada ao fundo do lago. Seria içada em breve, e as docas
desmontadas e armazenadas. O lago ficaria nu.

O telefone tocou. Deixando cair a persiana, esperou para ver se


Jenny atendia. Após ter tocado três vezes, ele mesmo atendeu.

- Lake News.

- John, fala Allison Quimby - disse uma voz vigorosa. - A minha casa
está a cair aos bocados. Preciso de um homem habilidoso de mãos.
Todos os que trabalharam antes para mim estão ainda a trabalhar
no Hook. já é muito tarde para inserir um anúncio?

- Não, mas o que pretende é o Departamento Comercial. Vou


transferi-la - deixou-a em espera, atravessou a sala a correr e
agarrou no telefone da secretária do Departamento Comercial. -
Certo. afundou-se na cadeira e começou a usar o computador. -
Estou a abrir os anúncios classificados. Aqui está. Tem alguma
coisa escrita? calculou que sim. Allison Quimby era a dona da
imobiliária local e uma profissional de primeira. É claro que
escrevera alguma coisa.

- É claro que escrevi alguma coisa - e começou a ler. Ele escre veu.
Debateu-se com o espacejamento, ajudou-a a redigir o anúncio

para torná-lo mais eficaz, sugeriu um cabeçalho, estabeleceu-Lhe


um preço, anotou o número do cartão de crédito. Assim que
desligou o telefone, fez uma chamada pessoal.

Respondeu-Lhe uma voz cansada.

- Sim.

- Sou eu. A Allison Quimby precisa de um homem hábil de mãos.


Telefona-Lhe. - Quando o ouviu a praguejar entre dentes, disse: -
Estás sóbrio, Buck, e precisas do trabalho.

- Quem és tu, a merda do meu anjo da guarda?

John manteve a voz baixa e firme.

- Sou a merda do teu primo, o teu primo mais velho, aquele que está
preocupado com a rapariga que tu engravidaste, aquele que está a
pensar que tu podes não valer o esforço, mas que a rapariga e o
bebé valem. Vá lá, Buck. És habilidoso de mãos, podes fazer o que
a Allison precisa, ela paga bem e tem a língua comprida para passar
a palavra se gostar do teu trabalho - leu o número de telefone uma
vez e repetiu-o. - Telefona-Lhe - insistiu, e desligou o telefone.

Passados alguns segundos, estava de volta à janela junto à


secretária do Departamento Editorial. Momentos depois, recuperou
a paciência. Bastou-Lhe uma boa e demorada olhadela para o lago,
e lembrar-se de que pessoas como Buck e Jenny não tinham aquilo.
Tinham apenas Ridge, onde as casas eram demasiado pequenas,
demasiado próximas e demasiado sujas para poderem levantar o
moral a alguém, muito menos a alguém a debater-se com
alcoolismo, maus-tratos físicos ou desemprego crónico. john sabia.
Também tinha Ridge no sangue. Havia de escutá-lo, senti-lo e
cheirá-lo até ao dia da sua morte.

Um movimento no lago despertou-Lhe a atenção, um clarão


vermelho numa doca distante. Concentrou-se nele. Depois, meio a
sorrir, retirou um par de binóculos da última gaveta da secretária e
focou-os. Sally Cole estava estendida numa espreguiçadeira, toda
lustrosa e oleada ao sol. Era uma mulher bem feita, tinha de o
admitir. Mas as mulheres Cole tinham tentado ao máximo os
homens de Lake Henry ao longo já de três gerações. Eram na sua
maioria criaturas carinhosas que se tornavam esposas e mães
exemplares. Sally era diferente. Regressaria à Florida dentro de
uma semana, quando o tempo por ali se tornasse demasiado frio
para exibir o bronzeado.

John não iria sentir a sua falta. Podia sentir-se tão tentado como
qual quer outro homem, mas não Lhe tocaria nem com uma vara de
três metros.

Com uma suave rotação dos binóculos, estava a olhar para Hunter's
Island*. Devendo o nome aos primeiros proprietários e não a
qualquer desporto ali praticado, era outra das pequeníssimas ilhas
que salpicavam o lago, e tinha uma casa, embora sazonal. A família
Hunter tinha passado ali o Verão durante mais de um século, antes
de a venderem aos actuais proprietários. Esses proprietários, os La
Duc, estavam a ensinar a sua terceira geração de crianças a nadar
na pequena praia coberta de seixos.

Estranha família, os LaDuc. Os escândalos urdidos através das


suas gerações eram quase tantos como os dos Hunter. Enquanto
crescia, John ouvira boatos sobre ambas as famílias. Regressando
como um adulto que sabia como meter o nariz em tudo, pesquisara,
fizera perguntas, tirara notas. Estavam agora trancadas no seu
armário de arquivo, juntamente com o resto do material privado,
mas nenhuma clamava para se transformar num livro. Talvez não as
tivesse lido com a postura mental certa. Talvez necessitasse de relê-
las. Ou de organizá-las. Ou de organizá-las cronologicamente.
Talvez qualquer coisa o impressionasse. Ao fim de três anos, já Lhe
devia ter ocorrido alguma coisa.

O telefone tocou. Agarrou-o após o primeiro toque.

- Lake News.

- Olá Kip, é Poppy.

John esboçou um sorriso aberto. Como não fazê-lo, quando se


tratava de Poppy Blake? Era uma fadinha sorridente, sempre
brilhante e optimista.

- Olá, meu anjo, como vais?

- Ocupada - disse ela, fazendo com que isso parecesse


maraviLhoso. - Tenho alguém com o nome de Terry Sullivan a ligar
para tua casa. Queres que to passe?

O olhar de John voou para a parede das fotografias, para uma onde
ele se encontrava numa festa com outros jornalistas. Terry Sullivan
era o alto, magro, moreno, o que tinha o bigode a esconder

* Hunter's Island traduzido à letra significa Ilha dos Caçadores. (N.


da T.

o sorriso sarcástico, o que estava sempre à margem do grupo para


poder ser o primeiro a chegar se rebentasse uma notícia. Era
competitivo ao máximo, demasiado egocêntrico e não reconheceria
a lealdade nem que ela Lhe batesse de chofre na cara. Tinha traído
pessoalmente John, e por mais do que uma vez.

John interrogou-se onde teria ele ido arranjar o descaramento para


Lhe telefonar. Terry Sullivan fora um dos primeiros a descartá-lo
quando decidira deixar Boston.

Curioso, disse a Poppy que estabelecesse a ligação. Depois de ela


o ter feito, disse:
- Daqui Kipling.

- Olá, Kip. É Terry Sullivan. Que tal vai isso, mano?

Mano? John tardou em responder.

- Vai bem. E contigo?

- Aaah, por aqui é a velha azáfama do costume, sabes como é.


Bem, pelo menos sabias. Deve ser um descanso, por aí. Às vezes
penso em aposentar-me e ir para o campo, depois penso duas
vezes. Esse não sou eu, não sei se sabes o que quero dizer.

- É claro que sei. As pessoas por aqui são honestas. Ias dar
demasiado nas vistas.

Fez-se uma pausa, depois um resmungo.

- Não tens papas na língua.

- As pessoas por aqui também não têm papas na língua. Então, o


que queres, Terry? Não tenho muito tempo. Aqui também temos
datas-limite.

- Está bem. Chega de conversa fiada. Estou a falar-te de jornalista


para jornalista. Há uma mulher chamada Lily Blake, nascida aí, vive
aqui. Diz-me tudo o que sabes.

John sentou-se na sua cadeira. Lily era irmã de Poppy, a mais


velha, mas pouco mais, por isso era uma mulher dos seus trinta e
quatro anos. Tinha partido de Lake Henry para a faculdade, ficando
na cidade para se formar. Em música, pensava ele. Tinha ouvido
dizer que dava aulas. E que tocava piano. E que tinha um belo
corpo.

O pessoal da cidade ainda falava da sua voz. Aos cinco anos já


cantava na igreja, mas John não era de ir à igreja e, muitos anos
antes de ela ter idade suficiente para cantar na sala dos fundos do
Charlie, às quintas-feiras à noite, já ele deixara a cidade.
Ela voltara várias vezes desde o regresso de John, uma vez para o
funeral do pai, outras vezes para passar o dia de Acção de graças
ou o Natal, mas nunca por mais do que um dia ou dois. Pelo que
ouvira dizer, ela e a mãe não se entendiam bem. john podia não
conhecer Lily, - mas conhecia Maida. Era uma senhora inflexível.
Por essa e por outras razões, estava inclinado a dar a Lily o
benefício da dúvida, quando se tratava de quem seria a culpada.

- Lily Blake? - perguntou a Terry, parecendo vago.

- Vá lá, Kip. A terra é pequena. Não te armes em parvo comigo.

- Se ela não vive aqui, porque diabo supões que eu possa saber
alguma coisa sobre ela?

- Tudo bem. Fala-me da sua família. Quem é que está vivo e quem é
que não está? O que é que eles fazem? Que género de pessoas
são ?

- Porque é que queres saber?

- Conhecia. Estou a pensar em sair com ela. Quero saber onde me


estou a meter.

"A pensar em sair com ela?" Duvidava muito. Lily Blake era gaga -
melhorara muito desde a infância, segundo sabia, mas Terry
Sullivan não saía com mulheres com problemas. Elas exigiam mais
do que aquilo que ele estava disposto a dar.

- Isto tem a ver com alguma notícia? - perguntou John, apesar de


não conseguir imaginar que papel podia desempenhar Lily numa
notícia que interessasse a Terry.

- Não! É puramente pessoal.

- E estás a telefonar-me a mim? - podiam ter sido colegas, mas


nunca tinham sido amigos.
Terry não percebeu o que ele queria dizer. Rindo entre dentes,
disse:

- Pois, eu próprio achei que tinha muita piada. Quer dizer, aí vem
ela, dessa terriola minúscula no meio do nada, e por acaso trata-se
da mesma terra onde tu estás escondido.

- Não estou escondido. Estou perfeitamente visível.

- Era uma maneira de dizer. Estamos susceptíveis, é?

- Não, Terry, estamos apertados de tempo. Diz-me qual é realmente


a razão por que queres saber coisas sobre a Lily Blake, ou desliga o
maldito telefone.

- Certo. Não sou eu. É um amigo. Ele é que quer sair com ela. john
distinguia uma mentira, quando a ouvia. Desligou o telefone, mas
não largou o auscultador. Esperando apenas o tempo suficiente
para cortar a ligação com Terry, voltou a levantá-lo e ligou a Poppy.

- Olá, Kip - disse ela uns segundos depois, na sua voz atrevida e
sorridente. - Foi rápido. O que posso fazer por ti agora?

- Duas coisas - disse John. Estava em pé, com uma mão a segurar
o telefone junto ao ouvido e a outra apoiada na anca. - Em primeiro
lugar, que não deixes esse homem falar com ninguém da cidade.
Corta-Lhe a ligação, deixa cair a chamada, faz o que for preciso. Ele
não é boa rês. Em segundo lugar, fala-me da tua irmã.

- Da Rose?

- Da Lily. Que tem ela andado a fazer com a vida?

BOSTON, MASSACHUSETTS

Nas semanas seguintes, enquanto Lily Blake tentava compreender


porque teria sido escolhida para vítima de um escândalo, lembrar-
se-ia da porcaria ensopada em que transformara o Boston Post
naquela tarde chuvosa de segunda-feira. E perguntar-se-ia se uma
irada divindade da imprensa a teria amaldiçoado, como punição pelo
seu desrespeito. Na altura, queria simplesmente manter-se seca.

Tinha esperado o mais que podia no sopé de Beacon Hill, debaixo


do alto arco de pedra do pequeno colégio particular onde dava
aulas, pensando que a chuva abrandaria dentro de um ou dois
minutos, mas ela caía copiosamente, em lençóis frios, e esses
minutos prolongavam-se. Não podia esperar para sempre. Estava
previsto tocar no clube às seis e meia e tinha de ir a casa trocar de
roupa.

- Adeus, prof. à Blake! - gritou outro dos estudantes que passou por
ela, saindo da protecção da escola a correr para um carro que o
esperava. Ela sorriu e ergueu uma mão para acenar, mas o
estudante já se tinha ido embora.

- Que belo Verão de S. Martinho - resmungou Peter Oliver, surgindo


da sua retaguarda. Professor de História, era alto, louro e adorado
por quase todas as mulheres da escola. Lançou para o céu um olhar
carrancudo. - Somos loucos, é o que nós somos, tu e eu. Loucos
dedicados. Se trabalhássemos ao mesmo ritmo da maior parte dos
professores, já nos tínhamos ido embora há duas horas. Nessa
altura estava sol - resmungou e lançou um olhar a Lily. - Para onde
vais?

- Para casa.

- Queres tomar alguma coisa primeiro?

Ela sorriu e abanou a cabeça.

- Tenho de trabalhar.

- Tens sempre de trabalhar. Que graça é que isso tem? - abriu o


guarda-chuva. - Ciao - descendo rapidamente os degraus, afastou-
se rua abaixo, parecendo perfeitamente enxuto e satisfeito. Lily
invejou-Lhe o guarda-chuva. Ocorreu-Lhe que devia ter aceite o
convite, nem que fosse apenas para se abrigar durante parte da
caminhada até casa, já para não falar na possibilidade da chuva
poder parar nessa fracção de tempo em que beberiam um copo.
Mas, para começo de conversa, ela não bebia, e, além disso, Peter
não fazia o seu género. Podia ter um ar fantástico, na sua camisola
azul-escura e calções caqui, mas sabia disso. Peter amava Peter.
Lily tinha de ouvir as suas histórias na sala de professores. O seu
egocentrismo tornava-se cansativo.

Além disso, ela não tinha mesmo tempo. Retirando o Post da pasta,
abriu-o sobre a cabeça e desceu os degraus a correr para a chuva.
Apressou-se ao longo das ruas estreitas cobertas de calçada na
parte plana da colina, depois virou para Beacon Street e continuou
em passo rápido sobre o passeio pavimentado. Apertando a pasta
contra o peito, encolheu-se o mais possível debaixo do jornal. já que
era pequena, em princípio devia até sobrar jornal, mas o Post
depressa se tornou uma porcaria ensopada em volta das suas
orelhas, e o top minúsculo e a saia curta, que tinham estado
perfeitos para o calor da manhã, deixavam demasiada pele exposta
à chuva fria.

Avançou com a cabeça baixa, virando à esquerda para a Arlington e


à direita na Commonwealth. Aí, apesar do abrigo das árvores, as
rajadas de vento sopravam directamente de oeste e o ar estava
ainda mais frio. Caminhou rapidamente contra o vento ao longo de
um quarteirão, depois de um segundo, um terceiro e um quarto.
Quando chegou ao fim do quinto quarteirão, bem podia deitar fora o
jornal. Tinha os cabelos tão molhados como tudo o resto.

Entrou no vestíbulo exterior do seu prédio e afastou para o lado o


jornal a pingar, enquanto procurava as chaves dentro da pasta.
Segundos depois, estava dentro do prédio e aquilo que Lhe
parecera abafado naquela manhã tornou-se de repente acolhedor.
Desviando da cara os cabelos molhados, passou o elevador em
direcção ao depósito do lixo e atirou o jornal encharcado para o
caixote dos papéis. Ainda não o tinha lido, mas duvidava que tivesse
muito a perder. Para além da elevação do arcebispo Rossetti a
cardeal, que tivera uma vasta cobertura no fim-de-semana anterior,
o panorama da cidade era calmo.

Virou para a sala do correio - e desejou imediatamente não o ter


feito. Peter Oliver não a intrigava, mas Tony Cohn sim. Vivia numa
das suites da cobertura, era consultor e tão moreno quanto Peter
era louro. De um ponto de vista clássico, Peter era o mais atraente
dos dois, mas havia qualquer coisa em Tony de estranho e arrojado.
Lily não era uma grande conversadora sob as melhores condições,
mas, quando Tony aparecia, ficava positivamente de língua presa.

Naturalmente que Tony nunca a convidara para sair, nem para


copos, nem para jantar. Para além do acenar da cabeça ou de uma
breve palavra a cumprimentá-la, se calhasse estarem juntos no
elevador, não falava com ela de todo.

Não obstante, olhou para ela agora. Como poderia não olhar,
quando ela estava toda encharcada e enlameada? Não era sempre
assim?

Tão discretamente quanto possível, descolou o top molhado do


peito. Era o seu melhor atributo, mas isto era embaraçoso.

Não que ele se mostrasse impressionado.

- Foi apanhada, não foi? - comentou, numa voz que era


suficientemente profunda e suficientemente divertida para cimentar
a sua humilhação.

Com um aceno afirmativo, ela concentrou-se em abrir a caixa de


correio. Perguntou a si própria onde estaria ele dali a meia hora, e
porque não haveriam de se cruzar nessa altura. Aí estaria com
óptimo aspecto. Aí estaria deslumbrante.

Mas agora? Retirou o correio da caixa e estava a tentar pensar em


qualquer coisa engraçada para dizer, sabendo que, mesmo que pen
sasse em alguma coisa, mesmo depois de anos de terapia da fala,
iria provavelmente atrapalhar-se a dizê-la e ficaria ainda mais
atrapalhada do que já estava, quando ele fechou a caixa de correio
e saiu da sala.

Soltando a respiração, ficou à espera de ouvir barulho no vestí bulo.


Um minuto depois, ouviu o barulho da porta do elevador a abrir e
depois a fechar.

Ele podia ter esperado por ela.

Graças a Deus não o fizera.

Resignada, deixou a sala do correio e, enquanto esperava que o


elevador voltasse, olhou para o que tinha nas mãos. Havia duas
contas, dois contratos para prestação de serviços e quatro
envelopes de lixo. Com alguma sorte, os contratos continham
depósitos que tratariam das contas. Com o lixo, sabia exactamente
o que fazer.

Saiu do elevador no terceiro andar, justamente quando uma das


vizinhas se preparava para entrar nele. Elizabeth Davis era
proprietária de uma conhecida agência de Relações Públicas e
tinha, a prová-lo, um estilo de vida que não Lhe deixava tempo para
respirar. Como sempre, estava muito elegante. O vestido era
encarnado e curto, o batom tinha um brilho intenso, o chapéu-de-
chuva era preto e longo. Tinha estado a usar o espelho da porta do
elevador para pôr uns grandes brincos de ouro. Enfiando-se no
elevador, para terminar o que estava a fazer ao espelho lá dentro,
aguentou a porta aberta com a ajuda de um pé.

- Lily. Mesmo em boa hora - de cabeça inclinada, olhos no espelho,


apertou o segundo brinco. - Vou dar uma festança para o Comité de
Kagan para governadora, e preciso de um pianista. Seria música de
fundo, sem muita voz, mas ouvi-te no clube e és perfeita - lançou
então a Lily um olhar rápido e consternado. Oh, céus. Estás
molhada.

- Ligeiramente - assentiu Lily.


- Bom, vai-te arranjar. já te vi a trabalhar, sempre com uma
elegância sóbria, que é o que pretendemos. A angariação de fundos
é de amanhã à noite a duas semanas. Não podemos pagar-te, o
orçamento é pateticamente baixo, mas posso quase garantir-te que
consegues arranjar mais um ou dois trabalhos a partir deste, porque
vão lá estar pessoas importantes e as pessoas importantes dão
festas, por isso não será uma perda total para ti. Além disso, Lydia
Kagan seria a melhor coisa para as mulheres deste Estado, portanto
tens todo o interesse em aceitar. O que dizes?

Lily sentiu-se lisonjeada com o convite. Era rara a semana em que o


nome de Elizabeth não aparecia no Post. Organizava sempre festas
de primeira. Lily sabia que não era a sua primeira escolha para este
evento, não tão em cima da hora, mas não fazia mal. Gostava de
tocar em eventos políticos. Quanto mais pessoas estivessem, mais
fácil era para ela soltar-se nas canções. Além disso, concordava
com as considerações de Elizabeth no que dizia respeito a Lydia
Kagan.

- Lá estarei - disse.

Elizabeth sorriu abertamente e desencostou o pé da porta.

- Vou registar por escrito, mas marca já na tua agenda. Está


combinado. Conto contigo.

A porta do elevador fechou-se.

Lily estava demasiado atrasada para poder sentir mais do que uma
satisfação passageira. Percorreu rapidamente o corredor e entrou
no seu próprio apartamento. Era um pequeno apartamento que
arrendara directamente ao proprietário, o qual adorava verde, a sua
cor preferida, e tinha bom coração, a única razão pela qual ela con
seguia pagá-lo. A sala de estar era pequena e dominada por um
piano vertical, encostado a uma parede, e uma estante a abarrotar
de livros, encostada a outra. A única mobília, além desta, era um
sofá com as costas viradas para as janelas com vista para a
alameda, e uma cadeira estofada com um tecido florido a condizer,
em tons de verde, bege e branco. Por detrás da cadeira, mais no
minúsculo vestíbulo de entrada do que na sala de estar, estava uma
mesa de vidro com um telefone, um candeeiro e o leitor de CDs que
agora, ao toque de um botão, começou a tocar a meio de uma
torrente de Chopin. A cozinha era uma parede da sala de estar e o
quarto era apenas suficientemente grande para uma cama de casal,
mas o apartamento tinha sido todo restaurado, o que significava que
tinha uma casa de banho moderna, em mármore, com um duche
envidraçado.

Foi para aí que se dirigiu, despindo a roupa molhada, aquecendo-se


debaixo do jacto quente, esfregando-se com sabonete e champô e
desligando a água muito antes de se sentir preparada para o fazer,
mas o relógio não parava. Num tempo recorde, aplicou a
maquilhagem e secou com o secador o cabelo cortado à altura do
queixo, para Lhe dar algum volume. Comeu, à pressa, uma
sanduíche de geleia e manteiga de amendoim, depois enfiou-se
num vestido cor de ameixa, que combinava com a sua pele clara e
cabelo escuro, enfiou sapatos pretos de saltos altos e colocou uns
brincos de prata que cintilavam e resplandeciam. Pegando numa
carteira e num chapéu-de- chuva, saiu.

Naturalmente, quando alcançou a entrada, Tony Cohn não se


avistava em lado nenhum, mas pelo menos a chuva tinha parado.

O próspero Essex Club funcionava num amplo prédio de tijolo


castanho do lado oposto da Commonwealth Avenue, uma
caminhada fácil, a apenas três quarteirões de distância do seu
apartamento. Era um clube privado onde se podia jantar, com uma
decoração elegante e uma gerência talentosa. Aliviada por ter
conseguido despachar-se com tempo de sobra, passou pelo
escritório, onde Daniel Curry, o dono do clube, aceitava uma reserva
de última hora.

Era um homem robusto, de quarenta e cinco anos, com as faces


permanentemente rosadas. Mostrou que a tinha visto chegar com
um movimento do queixo e terminou a conversa ao telefone. Nessa
altura, ela já tinha arrumado as suas coisas no vestiário.
Deu uma olhadela ao livro de reservas.

- Tudo bem?

- Muito bem, para uma segunda-feira. Há algumas mesas vagas por


enquanto, mas estaremos cheios daqui a uma hora. É uma clientela
fácil. Muitos velhos amigos - nomeou alguns, casais que Lily ficara a
conhecer nos três anos desde que tocava ali.

- Algum pedido especial? - perguntou.

- Um aniversário de casamento, trinta anos, Tom e Dotty Frische.


Chegam às oito, mesa seis. Ele pediu uma dúzia de rosas
vermelhas e perguntou se podias tocar "The Twelfth of Never"
quando abrissem o champanhe.

Lily adorava fazer esse tipo de coisas.

- Claro. Mais alguma coisa?

Quando ele disse que não com a cabeça, ela saiu do escritório e
subiu a escada de espiral até à sala de jantar principal. Estava
decorada com a madeira escura e pinturas a óleo do século
dezanove que eram a imagem de marca do clube. A combinação de
cores misturava o verde-caqui e o bordeaux, patentes também nas
toalhas de mesa, loiças, carpetes e tapeçaria. Evocava riqueza e
Velho Mundo, o que a fazia sentir-se parte de algo com uma história
ilustre.

Cumprimentou o maitre e sorriu aos clientes habituais com quem


trocou olhares enquanto cruzava a carpete. O piano era de meia
cauda, um Steinway, perfeitamente polido e afinado. Às vezes
sentia-se culpada por ser paga para tocar, mas não pensava em
confessar isso ao patrão. Após os descontos, o que ganhava na
Winchester School a ensinar apreciação musical, a treinar coros e a
dar aulas de piano, mal dava para pagar a renda da casa e a
comida. Sem o trabaLho ali e em festas privadas, não Lhe sobraria
dinheiro para muito mais. Além disso, tinha sido este trabalho que a
trouxera para Boston. O clube era, de longe, mais agradável do que
aquele onde tocava em Albany.

Depois de se ter instalado confortavelmente no banco, aqueceu os


dedos com arpejos suaves. Sentia as teclas frias e macias. Como o
primeiro café da manhã, aqueles poucos primeiros toques eram
sempre os melhores.

O cabelo tombou-Lhe para a frente enquanto observava as mãos.


Sacudindo-o para trás quando levantou a cabeça, começou a tocar
as mais moderadas das obras new age, variações de canções
populares às quais deu um ritmo diferente, uma cadência suave. Os
frequentadores podiam reconhecer a canção, mas mesmo os
clientes mais habituais do clube não escutariam exactamente a
mesma interpretação duas vezes: A tocar de ouvido, ela
simplesmente soltava-se e fazia o que sentia ser correcto nesse
momento. Raramente usava livros ou pautas, a não ser para
aprender os clássicos ou, ocasionalmente, as letras para uma série
de canções. Mais frequentemente, limitava-se a comprar os CDs.
Depois de conhecer uma música, podia tocar a sua própria versão,
dando-Lhe a cadência que considerasse adequada à assistência.
Algumas das festas onde tocava pediam rock suave, outras,
sucessos da Broadway, outras ainda, Brahms. Adaptar a mesma
canção a diferentes audiências era uma das coisas que Lily fazia
melhor. Mantinha-a fresca e num desafio permanente.

O piano encontrava-se numa plataforma a um canto, permitindo-Lhe


observar a sala enquanto tocava. Cumprimentou com sorrisos os
rostos familiares, sorriu de um modo genérico para as caras novas.
Dan tinha razão. O público era muito agradável. É certo que os que
jantavam cedo eram habitualmente mais idosos e mais calmos, mas
o clube tinha a sua percentagem de velhos jarretas barulhentos.
Não via nenhum naquela noite.

Atendendo às pessoas que tinha visto, prosseguiu com uma série


de melodias mais antigas e suaves, começando por "Autumn
Leaves" e "Moon River", passando para "Blue Moon" e "September".
Duas
vezes tocou pedidos transmitidos pelo chefe dos empregados.
Continuou sem parar até às sete e trinta, quando Dan Lhe levou um
copo de água.

- Alguma pergunta? - perguntou-Lhe, enquanto ela dava um gole.


Teve agora o cuidado de evitar olhar para as pessoas que jantavam.

- Davis acabou de sentar dois casais na mesa doze. Parecem


familiares, mas... são membros?

- Não. Os homens são os governadores de New Hampshire e do


Connecticut. Estão na cidade para a conferência que acaba de
terminar. Possivelmente viste as suas fotografias no jornal.

Isso explicava a familiaridade, mas levantava uma nova questão.


Lily reconhecia definitivamente o homem na mesa dezanove. Não
era possível confundir aquele bigode escuro. Era um repórter do
Post.

- Terry Sullivan veio atrás dos governadores? - perguntou. Dan


desfez-se num sorriso.

- Que eu saiba, não, ou não o teria deixado entrar - o clube protegia


os seus membros. Os jornalistas eram bem-vindos se fossem
convidados de um membro, como era o caso de Terry Sullivan.
Poucos tinham os patrocinadores, muito menos o capital necessário,
para se tornarem eles próprios membros. - Deve gostar do sítio.
Esta é, o quê, a terceira vez que vem, no espaço de outras tantas
semanas?

- Sim - confirmou Lily. Ela também as tinha contado.

- Ele gosta de ti.

- Não - mas não podia negar que podia ser mesmo ela a razão pela
qual Terry estava ali. - São negócios. Ele está a fazer uma série de
perfis de artistas de Boston e quer fazer o meu.
- Isso é giro.

Lily não pensava assim.

- Passo a vida a escorraçá-lo. Ele põe-me nervosa.

- Deve ser o bigode - gracejou Dan, e lançou um olhar à porta. Com


as faces ainda mais rosadas, esboçou um largo sorriso e endireitou-
se - Ah, lá está ele - disse, afastando-se.

Lily sorriu também quando viu Francis Rossetti. Arcebispo Rossetti.


Recentemente nomeado cardeal Rossetti. Era preciso algum tempo
para se habituarem a tratá-lo assim. Lily e o cardeal conheciam-se
havia muito. Ela não estava menos orgulhosa com a sua nomeação
do que Dan, que era casado com a sobrinha dele.

Lily não era católica. Não era praticamente nada, mas, durante
alguns instantes, enquanto ia bebendo a sua água, maravilhou-se
com o poder daquele homem. Não trajava vestes elegantes, nem
chapéu encarnado. Essas coisas viriam dentro de quatro semanas,
quando fosse a Roma para o seu primeiro consistório. Mas ele não
necessitava das vestes ou de um chapéu para ser carismático. Era
um homem alto, que se mantinha aprumado, com o seu trajo clerical
preto e bem engomado, a cruz peitoral de estanho e uma distinta
cabeleira, espessa e prateada.

Esta não era a primeira vez que Lily o via desde a sua nomeação.
Pianista assídua nos eventos arquidiocesanos, tinha tocado numa
festa ao ar livre em sua casa na noite anterior, mas esta era a
primeira vez que ele vinha ao clube depois da nomeação. Sem
intenção consciente, as suas mãos procuraram as teclas e
começaram a tocar o tema de Momentos de Glória.

Ele ouviu, lançou-Lhe um olhar e piscou o olho.

Satisfeita, Lily terminou a canção e passou para outras. Fran


Rossetti e ela tinham tocado lado a lado vezes suficientes para
saber quais eram as canções de que ele gostava. Era um homem
que apreciava a plenitude da vida. Os seus gostos musicais
reflectiam isso, dentro e fora da igreja.

Tocou "Memory" e prosseguiu para "Argentina". Tocou "Deep


Purple", o tema amoroso do Doutor Jivago, e depois "The Way We
Were".

Pontualmente, às oito horas, um casal sentou-se à mesa das rosas


vermelhas. Pouco depois, quando o criado de mesa abriu a garrafa
de champanhe, Lily ligou o microfone e tocou "Twelfth of Never",
cantando no contralto profundo tão de acordo com a decoração do
clube.

Dotty Frische inspirou visivelmente. Olhou brevemente para Lily e


depois virou-se para o marido com um sorriso positivamente
radiante. Lily sentiu que já ganhara a noite.

Houve aplausos suaves no fim da canção, por isso Lily fez uma
espécie de rapsódia com os outros sucessos de Johnny Mathis
antes de voltar a cantar mais temas da Broadway. Quando acabou,
eram oito e meia e estava na altura de fazer uma pausa.

- Quinze minutos - disse à sua assistência, e desligou o microfone


ao som de aplausos dispersos.

Dan estava a conversar com o chefe dos empregados num cubículo


logo à entrada da sala de jantar. Quando ela se aproximou, levantou
o polegar.

- Estiveste bem. Ele estava no sétimo céu.

- Não me disseste que o teu tio vinha cá hoje - repreendeu ela. Dan
olhou para trás dela.

- Estou a dizer-te agora. Aí vem ele.

Lily virou-se com um sorriso rasgado. Quando o cardeal Lhe deu um


abraço, retribuiu-o. Não interessava que o homem fosse um ícone
da igreja; provinha daquilo que ele próprio descrevia como uma
grande família muito terra-a-terra. Lily demorara algum tempo a
habituar-se a isso, mas a inocência pura da fisicalidade do cardeal
era uma delícia.

- Obrigado - disse ele.

- Porquê?

- Por ter tocado a minha canção. Por tocar todas as minhas


canções. Por ter tocado ontem à noite, e por ter voltado com aquela
música - agarrou no ombro de Dan. - Sabes o que ela fez? Depois
de ter tocado três horas seguidas, conduziu até casa e depois fez
todo o caminho de volta com um livro de música que eu queria -
voltou-se para Lily. - Fiquei acordado, a tocar, até às duas da
manhã. É uma colectânea maravilhosa.

- Que tal é a sua mesa? - perguntou Dan.

- Óptima. A comida está óptima. Nada como a que a minha mãe


costumava fazer - brincou, piscando o olho a Lily - mas um renhido
segundo lugar - apertou-Lhe o braço e voltou para a sala de jantar.

Lily subiu a escadaria curva até à casa de banho das senhoras, no


segundo andar. Saiu exactamente quando o repórter do Post estava
a sair da casa de banho dos homens. Ele vestia um blazer e calças
largas e era alto, magro e com um aspecto agradável, mas o bigode
continuava a ser a sua característica fisionómica mais irresistível.

- Tem uma voz maravilhosa - elogiou-a.

Já Lho tinha dito antes, duas vezes no clube, e outra quando Lhe
telefonou para casa. Não que ela Lhe tivesse dado o número de
telefone. Nem sequer vinha na lista. Mas a lista de contactos da
escola

tinha-o. Terry conseguira, com falinhas mansas, arrancá-lo a Mitch


Rellejik, um escritor seu amigo que fazia um biscate como consultor
para o jornal escolar. O próprio Mitch tinha-Lhe telefonado para dizer
como Terry era um tipo fantástico.

Lily não estava convencida. Relutante em encorajar a conversação,


sorriu-Lhe e agradeceu enquanto se dirigia às escadas.

Ele acompanhou-a.

- Você nunca decepciona. Quer seja aqui ou em festas, é uma boa


intérprete. Bonita, também, mas deve ouvir isso a toda a hora. A
propósito, não parecia nada nervosa.

Lily arquivou a parte do "bonita" - que não ouvia a toda a hora, e


que, sendo humana e mulher, gostava bastante de ouvir - e replicou:

- É o meu trabalho.

- Quer dizer, tocar para o cardeal... Ele é um indivíduo importante.


Não se sente um pouco insegura a tocar para ele?

Lily riu-se.

- Oh, não. Ele já me ouviu tocar demasiadas vezes para que isso
pudesse acontecer.

- Ah, é verdade. Ouvi dizer que ele gosta de música.

- Não se limita a gostar. É bom na música.

- Canta? Toca algum instrumento?

- Ambas as coisas.

- Então é um homem da Renascença?

Pensando se ele estaria a ser sarcástico, Lily parou ao cimo das


escadas para procurar ver-Lhe a expressão.

- Na verdade, é mesmo.
Ele sorriu e levantou as mãos.

- Sem ofensa. Sou tão fã dele como qualquer outra pessoa. Ele
fascina-me. Nunca conheci nenhum homem do clero assim. Inspira
devoção.

Lily relaxou um pouco.

- É verdade.

Terry semicerrou um olho.

- Metade das mulheres que conheço está apaixonada por ele. É um


homem másculo.

Lily sentia-se embaraçada só de pensar em Fran Rossetti dessa


forma.

- Não me diga que não reparou? - perguntou ele.

- De facto, não reparei. Ele é um padre.

- E você não está nem um pouquinho apaixonada por ele?

- É claro que estou. Amo-o como pessoa. Ele é compreensivo e


prestável. Ouve, escuta e responde.

- Parece que o conhece bem.

Lily tinha orgulho em admiti-lo.

- Temos um passado. Conheci-o quando ele era apenas o padre


Fran, prestes a ser nomeado bispo de Albany.

- Não me diga?

A sua descontracção tinha algo de exagerado. Fê-la recordar que


ele era um repórter. Acenou afirmativamente e olhou para o relógio.
- Tenho de voltar ao trabalho.

- Até que horas toca esta noite? - perguntou ele, caminhando ao seu
lado.

- Dez e meia.

- Sem jantar?

- Jantei antes.

- Posso convidá-la para comer qualquer coisa quando sair? Tinha-


Lhe feito um convite algo parecido quando telefonara para o seu
apartamento. Na altura, ela considerara o convite uma tentativa de
tornar a ideia de uma entrevista mais agradável. Agora, com ele ali,
em pessoa - da altura certa para ela, da idade certa, livre e
descomprometido, como dissera Mitch Rellejik -quase parecia
alguma coisa mais. Quase. Mas ainda havia aquele bigode, que era
por vezes impetuoso, por vezes impiedoso. E ele tinha uma
intensidade no olhar que, de alguma forma, Lhe desagradava.

Não estava assim tão desesperada por um romance. À entrada da


sala de jantar, sorriu e abanou a cabeça num gesto negativo.

- Obrigada, de qualquer modo - disse, e entrou.

De volta ao piano, começou a tocar o género de músicas que este


grupo mais tardio apreciaria. Cantou "Almost Paradise", "Candle in
the Wind" e "Total Eclipse of the Heart". Tocou um pouco de Carly
Simon, um pouco de James Taylor, um pouco de Harry Connick, Jr.
Gostava de cada canção que tocava. Se assim não fosse, não seria
capaz de as interpretar com sentimento, mas o sentimento vinha fa
cilmente com estas canções. Eram as preferidas da sua geração.

Tocando sem esforço, sacudindo o cabelo para trás para o tirar da


cara e debruçando-se para a frente para cantar ao microfone,
esqueceu a audiência e deixou que o coração tomasse conta de si.
Cantar tinha sido sempre a sua salvação, a única situação em que
se libertava naturalmente da gaguez. Apesar de o tempo e a terapia
já Lhe terem libertado a fala, cantar continuava a ser uma coisa
especial. Podia não ter conseguido singrar na Broadway, mas,
quando se perdia assim numa canção, era como se lá estivesse. O
sentimento de prazer, de sucesso, de libertação, era o mesmo.

A meio da segunda parte, os Frisches aproximaram-se para Lhe


agradecer por ter contribuído para tornar o seu aniversário especial.
Um pouco depois de eles terem partido, um outro cliente, Peter
Swift, sentou-se ao seu lado ao piano e cantou em harmonia com
ela. Tinha uma bela voz e juntava-se frequentemente a Lily numa ou
duas canções, quando ele e a mulher jantavam no clube. Este tipo
de espontaneidade agradava sempre às pessoas. Pouco depois de
Peter ter voltado para a mesa, o cardeal ocupou o seu lugar. Lily
estava nessa altura a tocar "I Dreamed a Dream", do musical Les
Miserables. Ele tocou com ela nos registos mais baixos, até ao final,
depois entrou também perfeitamente com os acordes mais vibrantes
de "Red and Black". Quando terminaram, ele apertou-Lhe a mão,
voltou a reunir-se com os seus convivas, que o aguardavam, e
abandonou a sala de jantar.

De uma maneira geral, foi um belo espectáculo. Lily estava cansada


mas satisfeita quando, por fim, fechou o tampo do piano. Uma meia
dúzia de convidados demorava-se na segunda ou terceira chávena
de café, mas as restantes mesas tinham sido limpas e postas de
novo. Metade dos empregados já tinha saído. O cozinheiro, George
Mendes, formado em Nova Iorque e praticamente da idade de Lily,
trocara a farda branca por umas calças de ganga e esperava-a no
escritório.

Estendeu-Lhe um saco:

- Sei que gostas de risotto. Hoje ficou óptimo.

Lily ficou comovida por ele se lembrar. Ele não estava no clube há
muito tempo, e ela era apenas uma de entre as muitas pessoas que
adoravam a sua comida.
- Obrigada - disse, sensibilizada, e agarrou no saco. - Vai ser o
jantar de amanhã. Vais a pé para casa? - ele vivia para os seus
lados.

- Ainda não. Tenho de coordenar algumas mudanças na ementa


com o Dan. Ele está lá em cima.

O segundo andar do prédio tinha salas de jantar privadas, o terceiro


tinha instalações para se passar a noite. Lily sabia, por experiência
própria, que Dan podia demorar-se bastante, e estava demasiado
cansada para esperar.

- Sendo assim, vou-me embora - disse. E agradeceu por cima do


ombro, enquanto saía: - Mais uma vez, obrigada pelo risotto.

Ia a pensar que, se George fosse heterossexual, poderia estar


sinceramente interessada nele, quando chegou à rua e encontrou
Terry Sullivan encostado a uma larga coluna de pedra. Parecia
bastante inocente sob o clarão do candeeiro a gás, mas uma parte
dela começava a sentir-se perseguida. Escorraçara-o três vezes.
Ele era fastidiosamente persistente.

Desceu apressadamente as escadas e, quando chegou ao passeio,


acelerou ao máximo o passo, na esperança de que ele percebesse
a mensagem.

- Eh, eh! - ele precipitou-se para Lhe acompanhar o passo. - Para


onde vai com tanta pressa?

- Para casa.

- Importa-se que a acompanhe?

- Depende. Não mudei de ideias quanto à sua entrevista.

- Mas isso não faz sentido. A publicidade seria óptima para si. Lily
poderia ter concordado com isso há alguns anos, mas, nessa altura,
andava a batalhar pela vida. Agora, entre as aulas e o clube, recebia
mensalmente dois ordenados fixos, a juntar àquilo que ganhava a
tocar em festas particulares, e estava satisfeita. Não precisava de
mais trabalho, portanto não necessitava de publicidade.

- Sou eu? - perguntou Terry. - Há alguma coisa em mim que a


ofende?

- É claro que não - disse ela, porque não era do seu feitio magoar as
pessoas. - Sou apenas... reservada.

- É na sua faceta pública que eu estou interessado... aquela que é


unha e carne, por assim dizer, com o cardeal Rossetti - soltou um
assobio. - Foi espantoso, os dois a tocarem juntos, esta noite -
respirou fundo. - Quero mesmo fazer esta entrevista.

Alcançaram uma esquina. Ela abanou a cabeça, esperando apenas


até o trânsito abrandar antes de atravessar rapidamente a rua.

Ele acompanhou-Lhe o passo.

- Tem a certeza de que não sou eu? Falaria com um dos meus
colegas?

- Não.

- Ah. Odeia a imprensa. Tem receio que alguém se sirva


incorrectamente das suas palavras. Mas eu sou um tipo porreiro,
Lily. Como é possível que o não seja, especialmente consigo? Sou
católico, e você é amiga íntima do cardeal Rossetti. Acha que me
atreveria a fazer algo de mau, sabendo que chegaria aos ouvidos
dele, sabendo que poderia arriscar-me à condenação eterna se o
fizesse?

Lily não acreditava na condenação eterna, mas, se Terry Sullivan


acreditava, já ajudava. Abrandou um pouco a marcha.

- Sinto que devia saber tudo sobre o homem - disse Terry num tom
familiar. - Quero dizer, o meu jornal cobriu-o praticamente dos pés à
cabeça, e o Post é bom - olhou para ela, agora com seriedade. A
sua voz era mais baixa, quase confidencial. - Ouça, o Quarto Estado
tem sido bastante criticado ultimamente. Algumas das críticas são
merecidas. A maior parte não. É como tudo. Pode haver algumas
ovelhas negras, mas não significa que todas o sejam, e uma vez
que já Lhe confessei o meu medo da condenação eterna...

Ela tinha de felicitá-lo pela frontalidade.

- O mais fascinante - continuou ele, parecendo enredado nas


palavras - é o facto de o cardeal ser tão normal. Quero dizer, ali
estava ele, sentado ao seu lado, a tocar piano. Eu estava quase à
espera que ele começasse a cantar a plenos pulmões.

Lily sorriu. Não pôde evitar.

- Oh, ele também já fez isso.

- Está a brincar.

Ela abanou a cabeça.

- Em público?

- Em privado, em grupos pequenos. Costumava fazê-lo mais


frequentemente, antes de tudo isto.

- Quer dizer, antes de ter sido nomeado cardeal?

Ela acenou de novo com a cabeça.

- Então, conheceu-o em Albany. Como era ele nessa altura? parecia


genuinamente intrigado, nada obcecado por um interrogatório
cerrado, como seria de esperar em qualquer repórter, mas envolvido
de uma forma mais pessoal, e Lily não conseguia resistir aos fãs do
seu amigo.

- Caloroso - disse. - Vibrante. Mas, na verdade conheci-o em


Manhattan.
- Que estava ele lá a fazer? - Estava lá de visita ao cardeal. Foram
ambos a uma recepção em casa do Presidente da Câmara. Eu
estava a tocar. - Você tocou em casa do Presidente da Câmara?
Estou impressionado. - Não esteja. Eu era uma aspirante à
Broadway e dava lições de piano para pagar as contas. Dava lições
aos filhos dele. Foi assim que ele me conheceu.

- Aspirante à Broadway - repetiu Terry, mostrando-se ainda


impressionado. - Só isso?

Ela acenou afirmativamente.

- Entrou em alguma coisa?

- Em alguns ensembles. Nada de importante.

- Também dança?

- Não suficientemente bem.

- Ah. Compreendo - mudou de assunto. - Então, conheceu o cardeal


Rossetti na cidade e seguiu-o para Albany?

Ela não respondeu. Ao fim de mais um minuto de caminhada, sentiu


que ele estava a observá-la. Quando os seus olhos se encontraram,
ele disse:

- Porquê esse sobrolho franzido?

- Isto parece uma entrevista.

- Não é. Sou apenas eu, interessado em si.

Se franzia agora o sobrolho, era de cepticismo.

- Nunca tinha conhecido uma fanática religiosa - troçou ele. Ela


suspirou.
- Não sou nenhuma fanática religiosa. Não segui o cardeal Rossetti
para Albany. Na realidade, segui o Presidente da Câmara - deu-se
conta da gafe. - Ops. Não era isso que queria dizer. - Sentiu uma
leve tensão na parte de trás da língua e concentrou-se em relaxar.

Inspirou uma vez, lenta e calmamente, e a tensão desapareceu.


Sem gaguejar, explicou: - A minha relação era com os seus filhos.
Eles adoravam-me e tinham ficado abalados com o divórcio.
Quando ele foi eleito governador, teve de mudar-se para Albany e
os filhos foram com ele. Achou que, se eu continuasse a dar-Lhes
aulas, pelo menos uma coisa não mudaria nas suas vidas. Quando
abriu lá uma vaga num colégio particular, o momento parecia ser o
certo.

- Então, desistiu da Broadway?

- A Broadway é que desistiu de mim - corrigiu ela e lançou-Lhe um


olhar desconfiado. - Você é subtil.

Ele inclinou a cabeça.

- Como assim?

- Está a fazer-me falar depois de eu ter dito que não falaria.

- Isto é o que se chama uma conversa social - ergueu as mãos.


Nem papel, nem caneta. Rigorosamente de improviso. Como Lhe
digo, o cardeal intriga-me. Portanto. ele era o bispo de Albany
quando você se mudou para lá?

Conversa social ou não, Lily não queria falar com Terry dela ou do
cardeal. Mas ele parecia de facto intrigado. E Mitch Rellejik punha
as mãos no fogo por ele. E a pergunta era bastante inocente.

Por isso, respondeu:

- Era.
- E foi lá que realmente se começou a relacionar com ele? Ela
acenou com a cabeça em sinal de concordância.

- Alguma vez sonhou que um dia ele seria cardeal?

Lily abanou a cabeça.

- Mas não me surpreende. O padre Fran é um homem de visão.

- Visão?

- Compreende as pessoas.

- Você constatou isso?

Tinham chegado a outra esquina e esperavam para atravessar. O


tráfego que saía da cidade passava velozmente por eles numa
névoa de luz e cromados.

- Ele compreendeu-me - disse ela. - Tenho andado a debater-me


com alguns problemas. Ele tem sido. - como descrever Fran
Rossetti numa palavra? Amigo? Conselheiro? Terapeuta? - Ele tem
sido um consolo.

- Então seguiu-o para Boston?

Lily olhou rapidamente para ele. Cá estava de novo o repórter, mais


incisivo do que casual.

Terry fez uma careta.

- Desculpe. Não quis ser inconveniente. Estou habituado a fazer


perguntas. Estava sempre a fazer perguntas em criança, por isso é

que fui para jornalismo. Mais nenhuma área me aturaria. É o tom.


Difícil de controlar, mas vou tentar.

Pareceu tão sincero que Lily cedeu.


- Segui-o para Boston apenas no sentido em que me mudei para cá
pouco depois de ele o ter feito.

Terry não disse nada. Quando o sinal mudou, atravessaram a rua e


continuaram a andar.

Ainda com um sentimento de culpa por ter reagido de forma


exagerada, Lily disse:

- O padre Fran falou-me do Essex Club. Era um degrau acima do


clube onde eu tocava em Albany, e o pianista habitual de Dan
acabara de se despedir. Quando encontrei uma vaga para dar aulas,
foi como se já estivesse destinado.

Terry parecia pensativo, enquanto caminhava com as mãos nos


bolsos e os olhos fitos nos prédios em frente.

- Belo clube, o Essex. Não é muito caro para um cardeal?

- Não, quando o dono é o sobrinho dele - disse ela.

- Isso é aceitável?

- Normalmente são as pessoas que estão com ele que pagam a


conta. Grandes doadores à Igreja.

- E isso é aceitável?

- Porque não?

- Suborno. Compra de favores.

- De um cardeal? Que tem um cardeal para vender?

- Influência política. Uma palavrinha ao governador, ou ao


presidente - agitou as sobrancelhas. - Talvez um beijo.

Ela lançou-Lhe um olhar cortante.


- Não me parece.

- Estou a brincar - ralhou ele.

Lily não estava muito certa de ter gostado da brincadeira, mas, por
outro lado, tinha tendência para levar as coisas demasiado à letra.
Pelo menos, fora isso que dissera o último tipo com quem tivera um
romance, quando se separaram. Na verdade, ele tinha usado a
palavra "austera" e, apesar de ela não acreditar ser assim tão má,
fazia agora um esforço para se mostrar o oposto.

- Um beijo? - entrou também na brincadeira. - Porque não um fim-


de-semana? Num leilão para fins caritativos.

Terry riu-se.

- Está a aquecer, Lily Blake. Isso arrastaria uma multidão para a sua
causa favorita. Digo-Lhe, haveria dúzias de mulheres a licitar.

Ela sorriu.

- Consegue imaginar alguma mulher a contar a uma amiga "eu e o


cardeal temos um caso"?

- Um caso amoroso? - perguntou Terry, imitando a voz dessa


suposta amiga alarmada.

Lily continuou a colaborar na brincadeira.

- Que outro tipo de caso podia ser? Esquece o leilão. Somos


amantes há anos.

Terry atirou a cabeça para trás e riu-se.

Ela também se riu.

- Muito engraçado. Mas isso não é para o padre Fran. Se alguém


tira algum proveito desses jantares, é a Igreja. Chegámos - disse,
parando em frente ao seu prédio. Virou-se para ele, a pensar que
tinha sido agradável rir assim.

- Você é uma pessoa interessante - disse ele, com um sorriso


rasgado. - Acha que me pode encaixar entre os seus encontros com
o cardeal ?

Ela devolveu-Lhe o sorriso.

- Não sei. Ele ocupa-me muito tempo - fingiu estar a fazer cálculos. -
Talvez possa encaixá-lo num dia da próxima semana. Tenho de ver.
- Ao passar por ele, atirou-Lhe em tom seco: - Você tem o meu
número.

Entrou no prédio sem olhar para trás e enfiou-se no elevador,


sentindo-se entusiasmada: Não sabia se gostava de Terry Sullivan,
não sabia se tinham algo mais em comum para além da admiração
pelo cardeal. Não sentira qualquer atracção imediata pelo repórter,
mas coisas como a atracção física por vezes demoravam o seu
tempo a manifestar-se. Sabia que não estava interessada em Peter
Oliver, Tony Cohn não estava interessado nela, e não estava a ir
para mais nova.

Nunca tinha saído antes com um repórter. Quanto mais não fosse,
podia desfrutar de um ou dois jantares educativos.

Nunca sonhou que a educação chegaria tão depressa, e às suas


próprias custas.

Uma vez que Lily trabalhava à noite e raramente tinha aulas cedo,
geralmente demorava a acordar. Nessa manhã, o telefone fê-la
saltar da cama às oito horas. A primeira coisa que Lhe ocorreu foi
que tinha acontecido alguma coisa à sua família.

- Está? - atendeu, sobressaltada.

- Lily Blake, por favor - disse um homem que não conhecia. A sua
voz era absolutamente profissional. O médico de Poppy? O médico
da sua mãe?

- É a própria.

- Fala George Fox. Sou do Cape Sentinel. Gostaria de saber se


poderia comentar a sua relação com o cardeal Rossetti.

- Desculpe?

- A sua relação com o cardeal Rossetti. Pode falar-me dela? Ela não
percebeu. Os jornais já tinham coberto quase tudo o que havia a
cobrir sobre o cardeal. Ela era irrelevante, apenas mais uma das
suas muitas amizades e a menos indicada para falar com a
imprensa.

- Terá de falar com a arquidiocese. Eles dir-Lhe-ão tudo o que quiser


saber.

- Tem uma relação amorosa com o cardeal?

- Uma quê? - Quando ele repetiu a pergunta, exclamou: - Deus do


céu, não! - era um telefonema a gozar, mas não inocente, já que ela
conhecia o cardeal. Prudente e curiosa, disse: - Este número não
vem na lista. Como o conseguiu? - Terry Sullivan era o único
repórter que ela conhecia, e sim, ele tinha o seu número. Nem
queria imaginar que ele andasse por aí a passá-lo.

- Teve uma relação amorosa com o cardeal Rossetti em Albany?


perguntou o repórter, ao mesmo tempo que, no seu telefone,
disparava o aviso de chamadas em espera. Lily ficara tão
perturbada pela pergunta que atendeu logo a segunda chamada.

- Sim?

- Lily Blake?

- Quem fala?
- Paul Rizzo. Cityside - o Cityside era um diário renegado que tinha
aparecido subitamente para rivalizar com a imprensa dominante de
Boston.

- Gostaria de um comentário sobre a notícia do Post. O coração


bateu mais depressa.

- Que notícia?

- A que diz que você e o cardeal estão sexualmente envolvidos.


Desligou. Ambas as chamadas. Após esperar um minuto que o sinal
de linha regressasse, levantou o auscultador e deixou-o tombar
sobre a cama. Não acreditava que houvesse qualquer notícia no
Post. Como poderia haver, sem substância? Mas, depois das duas
chamadas, tinha de ver com os seus próprios olhos. Enfiando à
pressa um casaco sobre a camisa de dormir, apanhou o elevador
até ao rés-do-chão e mal tinha pisado o átrio exterior, onde
deixavam os jornais diários, quando viu alguém à espera. Ele tinha
um gravador pendurado ao ombro e um microfone na mão. Assim
que a avistou, ganhou subitamente vida.

Ela voltou a escapulir-se para dentro do elevador uns segundos


antes da porta se fechar e pressionou rapidamente o botão do seu
andar. Como medida de protecção, para ocultar o seu destino,
pressionou, no painel, os botões de todos os andares acima do seu.
Assim que se viu de novo no interior do apartamento, ligou o portátil
à linha telefónica e acedeu à edição electrónica do Post.

Nem precisou de passar da página de abertura. Estava logo ali, em


letras garrafais: a notícia principal.

"CARDEAL LIGADO A CANTORA DE CABARÉ"

Ao lado estava uma fotografia, em cores vibrantes e bem nítidas,


aparentemente tirada na noite anterior, dela e do cardeal, sentados
ao piano, braço contra braço, coxa contra coxa, a sorrirem um para
o outro.
Horrorizada, Lily começou a ler.

Era um chorrilho de mentiras.

Continuando a passar a notícia no monitor, Lily deu um grito de


incredulidade quando viu aparecer mais três fotografias. Uma delas
era do cardeal a abraçá-la no vestíbulo do Essex Club. A outra,
tirada com uma lente nocturna, mostrava-a como uma figura isolada,
subindo a correr as escadas da residência do cardeal. A terceira,
tirada através de uma janela da residência, mostrava o cardeal com
um braço por cima dos seus ombros

Sentia-se agoniada, mas não conseguia parar de ler.

Incrédula, voltou ao princípio do artigo, mas lá estava a manchete -


"CARDEAL LIgADO A CANTORA DE CABARÉ" - maior e mais
destacada do que nunca. Desta vez, contudo, leu o nome do autor.
O artigo tinha sido escrito por Terrence Sullivan.

Sentiu-se total e absolutamente traída. E furiosa. Desligando o


portátil, retirou com brusquidão a lista telefónica da prateleira de um
armário, procurou o número do Post e marcou-o. Após várias
escolhas de menu, chegou à sala de redacção. Terry Sullivan não
estava. Disseram-Lhe que voltaria mais tarde, embora não
soubessem quando. Frustrada, pressionou o botão para desligar.
Com a mão suspensa sobre o marcador, fechou os olhos e tentou
lembrar-se do número do cardeal, mas, mesmo que costumasse
ligá-lo frequentemente, o que não era o caso, tinha a mente
demasiado conturbada. Esquadrinhando de novo as páginas da
lista, localizou a arquidiocese de Boston e correu o dedo ao longo
da lista de números até encontrar um que Lhe fosse familiar. Foi
parar ao secretário do cardeal. O padre McDonough era a pessoa
com quem Lily costumava falar, quando tocava em eventos da
Igreja.

A linha estava ocupada. Tentou de novo, mas também não


conseguiu estabelecer ligação. Sentindo-se num beco sem saída, foi
até à janela. Havia uma carrinha estacionada mesmo em frente do
prédio, com o sol a cintilar na antena de satélite no tejadilho e o
logótipo de uma estação de televisão local de lado.

Era de loucos. De loucos. Decerto um equívoco. E fácil de corri gir,


assim que ela conseguisse chegar às pessoas certas. Entretanto,
tinha de dar as suas lições, as suas aulas.

Depois de tomar duche, enquanto se vestia, colocou no leitor de


CDs uma música de Schumann, suave e calmante, mas estava
demasiado consternada para poder sentir algum consolo. Tentou
apanhar novamente o cardeal; a linha continuava ocupada. Voltou a
tentar contactar Terry; ainda não tinha chegado. Deu voltas aos
cereais na tigela até estar demasiado atrasada para poder adiar
mais tempo, mas não foi capaz de sair do elevador quando este
parou no rés-do-chão. Os painéis de latão que revestiam as portas
reflectiam o vestíbulo exterior. Mesmo dando o desconto da
distorção, parecia haver ali, agora, um aglomerado de repórteres.

Aterrada, fez descer o elevador até à garagem e saiu furtivamente

pelas traseiras, sem que ninguém a visse. Descendo


apressadamente

pela Newbury Street, atalhou pelo jardim Público e alcançou a


escola num tempo recorde. A sala dos professores estava vazia
quando chegou, mas ainda mal tinha acabado de encher uma
chávena de café quando a campainha tocou a anunciar o fim da
primeira aula. Minutos depois começaram a entrar vários membros
do corpo docente. Por serem aqueles que não conhecia bem, era
normal que cochichassem entre si. Ignorou os olhares, raciocinando
que, se não tivessem visto o Post, poderiam nunca vir a saber.

Com Peter Oliver era diferente. Estava a misturar natas em pó no


café quando ele entrou e estacou de repente.

- Uau! A mulher de quem se fala. - Aproximando-se timidamente até


ficarem ombro a ombro, estendeu a mão para uma chávena e disse,
entre dentes: - Andava preocupado por tua causa. Estava quase a
pensar que tinha perdido o jeito por continuares a rejeitar-me. Agora
faz sentido.

Lily sentiu um aperto na boca do estômago. Ficou com um nó na


língua.

- A notícia do Post? - perguntou ele. - É verdade?

Ela negou, abanando a cabeça.

Uma voz diferente chamou, em tom baixo:

- Lily.

Olhou para a porta. Michael Eddy, o director da escola, era baixo,


com uma ligeira barriga e um rosto normalmente franco e amistoso.
A parte amistosa mostrava-se agora tensa. Fez-Lhe sinal para que o
acompanhasse.

Deixando o café onde estava, atravessou a zona de recepção até ao


gabinete do director. Mal tinha acabado de fechar a porta, Michael
perguntou:

- É verdade?

Ela abanou a cabeça em sinal de negação, rápida e vigorosamente.

- Nada daquilo?

Lily engoliu em seco e forçou a garganta a relaxar.

- Nada.

- Há ali declarações suas.

- Citadas fora de contexto.

- Você disse aquelas coisas?


- Não daquela forma. E não para serem publicadas - quando
Michael fechou os olhos num gesto de derrota, a raiva de Lily
exacerbou-se. - t-t-t... - Inspirou, concentrou-se em desatar a língua
e disse mais serenamente: - Tentei telefonar ao homem que
escreveu o artigo. Ele tem de fazer um desmentido. Aquilo não é
verdade.

Michael ergueu a cabeça e suspirou.

- Bem, a partir do momento em que você nega, estarei preparado


para responder aos pais que telefonam. Vários já o fizeram. Preferia
que não tivesse dado o nome da escola ao jornal.

- Não dei!

- Então, como conseguiram saber?

- Não s-s-sei. - mais uma inspiração e o regresso do controlo.


Suponho que da mesma forma que souberam que estudei na
Universidade de Nova Iorque. Licenciei-me com distinção. Isso não
d-d-disseram. Nem que fiz uma pós-graduação na Juilliard. Ou que
a única razão pela qual ia duas vezes por semana ao Palácio do
governador era para dar lições de piano aos seus filhos. Ou que o
governador nunca estava presente quando eu lá estava - passou a
mão pelo cabelo. O gesto interrompeu-se a meio mas a mão ficou
lá. A realidade que estava a tentar ignorar criava finalmente raízes. -
Isto espaLhou-se de uma ponta a outra de Boston. Por todo o
Estado - estava a sentir o horror desse facto quando os seus olhos
se cruzaram com os de Michael. - Tenho de falar com o cardeal.

Ele apontou para a secretária, oferecendo-Lhe o telefone. Lily


marcou o número para o qual tinha tentado ligar antes. Continuava
ocupado.

- Oh, meu Deus - suspirou, assustada. - Isto pode arruiná-loolhou


para Michael. - O que hei-de fazer?

- Contrate um advogado.
- Mas isto é apenas um equívoco - não queria pensar que houvesse
alguma intenção maldosa. Não pódia acreditar que Terry Sullivan
fosse capaz de ir tão longe só porque ela se tinha recusado a ser
entrevistada; não podia crer que ele seria capaz de difamar desta
maneira o cardeal, deliberadamente.

- Contrate um advogado - repetiu Michael.

- Não posso. Não tenho dinheiro. Além disso, para que preciso eu
de um advogado? Não fiz nada de mal.

- Precisa de um porta-voz. Alguém que emita um desmentido.


Alguém que conteste o Post.

Lily respirou fundo e tentou manter a calma.

- O governador Dean negou tudo. O cardeal fez o mesmo. Voltará a


fazê-lo. O assunto ficará arrumado - levantando novamente o
telefone, tentou o Post. Desta vez, quando conseguiu contactar a
sala de redacção, teve sorte.

- Daqui, Sullivan - ouviu, e qualquer coisa na sua voz fria, qualquer


coisa na imagem que evocou, de um homem manhoso, de bigode,
que parecia tê-la seduzido com mentiras, fê-la quebrar.

Só a cólera Lhe manteve a língua fluida.

- Fala Lily Blake. A sua notícia está errada.

A voz dele manteve-se fria.

- Errada? Não, não está. Verifiquei os meus factos.

- Não há nada entre mim e o cardeal.

- Não há dúvida de que parece haver.

- Foi você que fez com que parecesse - acusou ela. - Foi você que
não parou de dizer que o cardeal era atraente para as mulheres.
Conduziu-me a uma discussão hipotética, depois utilizou as minhas
palavras fora de contexto. Isso é verdadeiramente... b-b-baixo! E
também disse que a nossa conversa era confidencial.

- Eu nunca disse isso.

- Disse, sim.

- Eu disse que era "de improviso". É diferente de "confidencial".

- Você sabia o que eu queria dizer! - Olhando de frente para Michael


Eddy, disse: - Também sabia que o meu número de telefone não
vinha na lista, por isso conseguiu-o através de Mitch Rellejik, que
não tinha qualquer direito de Lho dar. Agora, há mais dois j-j-jornais
que o têm. Isso é uma violação da minha privacidade!

- Ouça, Lily - disse ele com um suspiro -, lamento se isto a perturba,


mas a verdade, por vezes, é perturbadora. Eu vi a forma como você
olhava para ele ontem à noite no clube. E depois ofereceu-me as
suas declarações de bandeja.

Ela estava lívida.

- Você ad-d-dulterou o que eu disse! Isso é a maior ordinarice! E


mentiu-me. Mentiu-me repetidamente. E agora mentiu no jornal, e
essa mentira está a ser lida por pessoas em todo o lado. Quero uma
retractação.

Ele riu-se.

- Está a brincar? Isto é a notícia mais escaldante na cidade. Lily não


entendia a satisfação dele.

- Porque está a fazer isto?

- É o meu trabalho.

- Difamar as pessoas? Você disse que adorava o cardeal.


- Não. Foi você quem disse isso.

- Falou de condenação eterna.

Ele riu-se novamente.

- Minha querida, a condenação eterna já eu tinha como garantida


muito antes desta notícia.

Ele não podia ser tão louco como parecia.

- Tem alguma coisa contra o cardeal? - indagou Lily. Sullivan


mostrou-se de súbito impaciente.

- Oiça, no meu ofício, se somos informados de uma boa notícia,


investigamo-la. Se esbarramos numa parede, recuamos. Se não,
seguimos em frente. Eu vou seguir em frente, minha querida. Vou
seguir até ao fim.

- Mas isto é uma mentira!

- Vá dizer isso ao Papa. Olhe, tenho uma chamada na outra linha.


Fique bem.

A chamada caiu. Lily fitou o auscultador. Desconcertada, olhou para


Michael.

Este ergueu as mãos.

- Já Lhe dei o meu conselho. Não sei que mais Lhe posso dizer. A
minha preocupação é a escola.

Lily tentou de novo o número do cardeal. Ainda estava ocupado.


Cuidadosamente, voltou a pousar o auscultador.

- Isto é irreal - desabafou, mais para si própria do que para o patrão.


- Mas não faz mal. O cardeal tem poder nesta cidade. Ele vai
esclarecer tudo. Provavelmente é por isso que a linha está ocupada
- olhou para o relógio. - Tenho uma aula.
Se algum dos quinze alunos da aula de apreciação musical tinha
conhecimento do artigo do Post, nenhum o mencionou. Estavam tão
descontraídos como sempre. Quando, passados cinquenta minutos,
a campainha tocou para assinalar o fim da aula, Lily estava
convencida de que, não obstante a perfídia de Terry Sullivan, o
artigo não passava de um erro de julgamento por parte do Post, de
que o cardeal moveria o céu e a terra e conseguiria uma retractação
na imprensa, de que toda aquela questão seria rapidamente
esquecida.

Tentou ligar-Lhe de novo, mas a linha continuava ocupada. Com


cinco minutos por sua conta antes da aula de piano, foi até à cantina
para tomar uma bebida fresca. O primeiro tempo para os almoços já
tinha começado. Um passo no interior da grande sala de tectos
altos, e ouviu a súbita interrupção das conversas, sentindo a energia
de dezenas de pares de olhos.

"Não é verdade", queria dizer, mas tinha a língua rígida. Por isso,
limitou-se a abanar a cabeça num gesto de negação, tomou a sua
bebida e saiu. Quando o seu aluno entrou na sala de aulas práticas,
já se tinha recomposto, mas sabia o que significava o seu olhar
curioso.

- O artigo do Post - disseLhe - é mentira. O cardeal é um amigo,


nada mais.

- Eu acredito - disse o rapaz. Tinha dezasseis anos. Era um jogador


de lacrosse* que se esforçava por fazer a disciplina de Artes
obrigatória, recebendo aulas de piano, que detestava, mas parecia
sincero.

Assim, Lily pôs de lado a notícia do Post e tentou concentrar-se na


aula e também nas outras duas que se seguiram. Contudo, estava
sempre à espera que uma empregada da secretaria a interrompesse
com uma mensagem do cardeal a dizer que estava tudo bem, que
ele trataria do assunto, que não devia preocupar-se.
A porta permaneceu fechada, excepto para permitir a saída de um
aluno e a entrada do seguinte, e, uma vez concluídas as três aulas,
tentou novamente contactar o cardeal, mais uma vez sem sucesso.

Felizmente, não tinha fome. Não queria enfrentar uma cantina


repleta de olhares fixos antes de aparecer uma retractação, de ser
publicado um pedido de desculpas e de ver o Post cair no ridículo.
Nessa altura poderia rir-se com o resto do pessoal, mas agora não,
nem às duas e trinta, hora a que se encontrou com as alunas do
coro a cappella. Estavam as doze muito sérias e com o olhar fixo.
Era evidente que tinham conhecimento do artigo.

* Jogo canadiano, no qual a bola é jogada com uma raquete em


forma de L. (N. da T)

Ela postou-se à sua frente, consciente de ter os ombros descaídos


mas incapaz de evitá-lo. Começava a sentir-se esgotada.
Calmamente, indagou:

- Perguntas? - Ao ver que as raparigas permaneciam em silêncio,


disse: - Eu respondo àquela que não querem fazer. O cardeal é um
homem da Igreja. Seria tão impossível ele ter um caso comigo como
eu ter um caso com ele - foi fitando os rostos até ver neles um
pouco de acolhimento, depois agarrou nas letras de uma nova
canção e distribuiu a cada trio de vozes a respectiva parte.

O exercício correu bem. Noutras vezes, Lily treinava um coro misto,


maior, de caloiros e alunos do segundo ano, mas os grupos
pequenos de finalistas, um masculino, outro feminino, eram os seus
preferidos. Alguns dos estudantes tinham vozes maravilhosas. A
ideia de poder treiná-los era gratificante.

Quando a hora terminou, estava a começar a sentir-se de novo ela


própria. Nessa altura conseguiu entrar em contacto com o secretário
do cardeal.

O padre McDonough era um jovem sacerdote que conseguira


aquele excelente cargo em Brighton em resultado da sua atenção
ao pormenor e da sua eterna bonomia. O cardeal confiava
profundamente nele. Quanto a Lily, conhecia-o apenas pelo nome e
pela voz.

Depois de se ter identificado disse, aliviada:

- Graças a Deus. A vossa linha tem estado sempre ocupada. O que


é que se passa?

- Presumo que tenha visto a notícia.

- Sim. O repórter estava no clube ontem à noite. Disseme que era fã


do cardeal. Começámos na conversa. Tirou palavras daqui e dali e
fabricou a notícia.

- Bem, isto provocou uma tremenda confusão.

- Mas é tudo falso - e absurdo. - O cardeal conhece Terry Sullivan?


Talvez os seus caminhos se tivessem cruzado. Talvez existisse
alguma hostilidade pessoal.

- Conhece-o agora. Recebemos chamadas de toda a parte.

- Ele já exigiu uma retractação?

- Os nossos advogados exigiram-na - foi a resposta, e, pela primeira


vez, Lily apercebeu-se de que a sua voz estava mais fria do que
habitualmente.

- Oh. D-d-devo contratar um advogado? - queria que ele dissesse,


na sua disposição normalmente cordial, que não era necessário,
que a equipa de advogados do cardeal resolveria o assunto, que já
estava até praticamente resolvido.

Em vez disso, mostrou-se distante.

- Não posso aconselhá-la quanto a isso. A nossa preocupação é


proteger a Igreja. Estamos a fazer tudo o que podemos nesse
sentido. Mas talvez seja melhor não voltar a telefonar para aqui até
que esteja tudo esclarecido.

Lily sentiu-se como se tivesse sido esbofeteada, como se tivesse


pecado e, ao fazê-lo, fosse exclusivamente responsável por ter
causado um profundo embaraço à Igreja.

Aturdida, disse:

- Compreendo. Ah... obrigada - devagarinho, desligou o telefone.

A partir dali, as coisas foram de mal a pior. Depois do sofrimento de


mais uma aula particular, arrumou as coisas na pasta e foi
directamente para casa. Mal tinha acabado de soltar um suspiro de
alívio por as escadas da entrada da escola estarem desimpedidas,
quando chegou ao passeio e, aparentemente surgida do nada,
apareceu uma mulher com um microfone.

- Prof. a Blake, quer comentar a notícia do Post? - Lily disse que não
com a cabeça e apressou o passo, mas a repórter acompanhou-a.

- A arquidiocese emitiu um desmentido oficial. Isso não contradiz as


suas declarações ao Post?

- O Post mente - murmurou Lily entre dentes, abraçada à pasta, de


cabeça inclinada, com os olhos postos nas pedras da calçada.

Uma voz masculina disse:

- Paul Rizo, Cityside. Foi vista a sair da residência do cardeal no


domingo à noite, já tarde. Por que motivo lá estava?

Era um homem calvo, cuja pele delicada como a de um bebé


sugeria que a perda de cabelo era prematura. Os olhos não
pestanejavam. O queixo era protuberante. Lembrava a Lily o anzol
cravado na boca da primeira truta que ela própria tinha pescado no
lago. Tanto na altura como agora, sentia-se nauseada.
"Fui contratada para tocar piano", queria dizer-Lhe, mas tinha a
língua presa, e sabia que nunca conseguiria fazer com que as
palavras saíssem. Por isso baixou a cabeça e manteve os pés em
marcha rápida.

- Quando rompeu com o governador Dean?

- O cardeal tinha conhecimento da sua relação com o governador?

- Como explica os telefonemas fora de horas?

- É verdade que esteve nos braços do cardeal no Essex Club, ontem


à noite?

Quando Lily ergueu os olhos para responder um "não" colérico um


fotógrafo disparou a sua máquina. Baixando de novo a cabeça,
apressou-se mais, mas as perguntas tornaram-se mais corrosivas.

- Onde é que tiveram sexo?

- Que espécie de sexo?

- A Igreja tentou comprar o seu silêncio?

- O que pensa a sua família disto?

Lily estremeceu ao imaginar o que pensaria a sua família. Estre


meceu só de pensar que eles pudessem saber, ponto final.

Mas sabiam. Constatou-o pouco depois de chegar a casa e de ouvir


as mensagens no gravador. Ali, entalada entre mensagens que,
para seu horror, pareciam proceder de todos os jornais importantes
e de todas as estações de televisão do país, estava a voz da sua
irmã Poppy.

- O que é que se passa, Lily? As chamadas chovem forte e feio,


ainda mais depois do noticiário do meio-dia. Tenho desviado todas
as que posso, mas a mãe está furiosa! Liga-me, está bem?
O noticiário do meio-dia? Lily sentiu o estômago às voltas. Mas é
claro que a televisão pegaria na notícia. Não seria por isso que
aquele homem estava no átrio, nessa manhã?

Então, talvez tivesse sido ingenuidade sua pensar que a notícia


seria contida. Mas seria necessário a comunicação social telefonar à
sua mãe? A relação de Lily com Maida Blake já era suficientemente
difícil. Isto não ajudaria.

Com necessidade de ouvir uma voz amiga, afundou-se na cadeira


ao lado do telefone e marcou o número de Poppy. A irmã era
apenas dois anos mais nova do que ela, e a pessoa mais doce e
optimista que Lily conhecia, apesar das circunstâncias, que
poderiam tê-la tornado tudo menos isso. Poppy Blake era
paraplégica, estava confinada a uma cadeira de rodas desde um
acidente numa mota de neve, cerca de doze anos antes. Se alguém
tinha o direito a vitimizar-se, esse alguém era ela, mas recusava-se
a desperdiçar energias nisso. Após o acidente, mal se sentira capaz,
fora para a sua casa no lago e estabelecera um serviço de
atendimento telefónico para Lake Henry e para as localidades
vizinhas. Agora, tinha equipamento ultramoderno, com sofisticadas
ligações informáticas e uma central cada vez mais extensa de
botões telefónicos. O negócio tinha crescido tão rapidamente que
tinha ainda vários colaboradores em part-time que cuidavam do
serviço quando ela saía, o que, graças a Deus, acontecia com
frequência.

Tinha serviço de identificação de chamadas, o que Lhe permitiu


dizer imediatamente, assim que atendeu:

- Lily! Graças a Deus! O que é que está a acontecer?

- Um pesadelo - disse Lily. - Um verdadeiro pesadelo. Quando é que


soubeste?

- Hoje cedo. As pessoas da cidade souberam pelo Post ou pela


Internet. Por volta do meio da manhã, começaram a chegar as
chamadas dos repórteres... Boston, Nova Iorque, Washington,
Atlanta... e depois, há a televisão. Estão a mostrar fotografias... Lily
e o cardeal, Lily e o governador.

- A mãe viu? - perguntou Lily, alarmada.

- Viu. O Kip ligou ontem, para me avisar sobre o tipo do Post, mas
não disse a razão, como poderia eu saber dos outros? Gostava que
nos tivesses dito.

- Como querias que o fizesse? Eu não sabia. Só hoje de manhã é


que vi o jornal, e fiquei tão chocada como qualquer outra pessoa. É
uma notícia falsa, Poppy.

- Eu sei disso, mas a mãe não sabe - disse Poppy, com franqueza.

- Ela está convencida de que tudo o que tem dito a vida inteira é
verdade e de que era só uma questão de tempo até que
acontecesse uma coisa do género.

- Engana-se! E não sei porque está a acontecer agora - lutou por


conter as lágrimas de frustração. - Pensei que este repórter era um
amigo. Ele atirou-se a mim, sabes, convidou-me para sair com ele.
Que est-t-túpida que fui. Estúpida - gritou, censurando-se -, mas ele
era um profissional, fez-me falar, depois juntou retalhos de frases
para criar esta coisa sórdida. Que tipo de pessoa faz uma coisa
destas? OK. Ele não me conhece. Para ele, não sou nada. Mas o
cardeal não é. Como pode ele fazer isto ao cardeal? Ou será que
não há outras coisas a acontecer no mundo? Estarão os jornais
assim tão famintos de imundície? O que é que a mãe disse? Quais
foram as suas palavras?

- As suas palavras não interessam - disse Poppy. - Ela está apenas


enervada. O que é que Lhe digo?

Lily pressionou a testa com as pontas dos dedos trémulos. Tinha-se


esforçado tanto para conquistar a confiança da mãe. A Winchester
School, onde dava aulas, tinha uma boa reputação. O Essex Club
era tão social mente requintado como um bom restaurante podia
ser. E depois havia o padre Fran - ah, a ironia! Um homem tão forte,
digno, íntegro. Sempre pensara que a sua amizade a faria ganhar
pontos com Maida.

- Diz-Lhe para não olhar para o jornal. - pediu a Poppy. - Não há


qualquer fundamento em nada disto. O assunto terá sido esquecido
dentro de um dia ou dois. - Tinha de ser. O contrário era impensável.

- Já emitiste um desmentido?

- Ainda não parei de dizer que não é verdade.

- Precisas de um advogado.

- Detesto advogados.

Poppy mostrou-se mais carinhosa.

- Eu sei, querida, mas isto é difamação. O que diz o cardeal?

- Não falei com ele - a mágoa voltou. - Liguei para lá e disseram-me


para não voltar a ligar.

- Quem te disse isso? Não vão atribuir-te as culpas de tudo isto, pois
não? Bolas, Lily, quando um não quer, dois não dançam. É ele que
está sempre a tocar nas pessoas.

- Mas é de forma inocente.

- Não aos olhos da imprensa. Tu tens um emprego... dois


empregos... a salvaguardar, e uma reputação. Só faltou rotularem-te
de prostituta. Se isso não é uma violação dos teus direitos, não sei o
que será!

- Mas, se contratar um advogado, isso dá a entender que preciso de


um advogado, que é coisa de que não preciso, já que não fiz nada
errado. Dou-te um dia para a verdade vir ao de cima. talvez dois, no
máximo - Lily fez uma pausa, alerta. - O que foi aquilo?
- O quê?

- Aquele estalido.

- Que estalido?

Pôs-se de novo à escuta, não ouviu nada, suspirou.

- Devo estar paranóica.

- Talvez devesses ligar ao governador Dean.

- Para ouvir um assessor a dizer-me para também não telefonar


para lá? Não me parece. Porque estão os repórteres a telefonar
para Lake Henry? Do que é que eles andam à procura?

- De qualquer coisa que possam apanhar e distorcer para


aumentarem as vendas. Que queres que Lhes diga?

- Que a história não é verdadeira. Que o Sullivan está a mentir. Que


eu vou processá-lo. - Fez uma pausa e perguntou baixinho: - E a
Rose?

Rose era a última das "flores Blake", como, em Lake Henry,


chamavam às três raparigas Blake. Era um ano mais nova do que
Poppy, o que significava que tinha trinta e um anos. Mais relevante,
ainda

mal tinha entrado na puberdade quando os problemas de Lily se


agravaram, demasiado jovem para ter opinião própria, demasiado

jovem para questionar o que a mãe dizia e pensava. Poppy tinha


sido de longe mais forte, até mesmo nessa altura. Conseguira
manter-se neutra nas questões entre Maida e Lily, mas Rose tinha
feito eco das opiniões da mãe desde o princípio, e as circunstâncias
da vida em nada tinham contribuído para mudar as coisas.

Rose casara e tinha três filhas. Ela e o marido, um namorado de


infância cuja família era proprietária da fábrica local, viviam na
parcela de terra que tinha sido o presente de casamento dos pais
Blake. Sempre próximas, Rose e Maida tinham-se tornado ainda
mais uni das nos três anos que se seguiram à morte do marido de
Maida, pai das raparigas.

A experiência dizia a Lily que não devia esperar o apoio de Rose.


Apesar de tudo, a esperança era a última coisa a morrer.

Aparentemente, essa esperança vivia também em Poppy, porque

- como se já tivesse tentado, e fracassado - disse, num tom


invùlgarmente irritado:

- A Rose é uma tonta. Não tem um único pensamento próprio na


cabeça. Não te preocupes com ela e, quanto ao resto das pessoas
da cidade, eu dir-Lhes-ei o que devem dizer se alguém Lhes
telefonar. Elas não aceitam de bom grado que um dos seus seja
difamado.

- Já lá vai o tempo em que me consideravam um dos seus -


lembrou-Lhe Lily. - Forçaram-me a sair daí mal fiz os dezoito anos.

- Não. A decisão de partir foi tua.

- Só porque me tornaram a vida impossível.

- A mãe é que fez isso, Lily.

Lily suspirou. Não estava capaz de discutir, não agora.

- Tenho de ir trabalhar.

- Manténs-me informada? - perguntou Poppy. - Bem sei que estás


escaldada com os Blake, Lily, mas eu estou do teu lado.

Lily recusou-se a ligar a televisão. Não queria ver se aparecia ou


não nos noticiários, preferindo pensar que a história já perdera o
interesse. Mas, quando chegou à entrada, vestida para trabalhar, a
multidão de jornalistas lá fora era maior do que nunca. Assustada,
apanhou o elevador para a garagem, mas também lá estavam
repórteres, passando a mensagem da sua chegada para os que se
encontravam na entrada principal.

Resignada, uma vez que não existia outra saída e tinha de ir


trabalhar, baixou os olhos e caminhou rapidamente. Ignorou as
perguntas que Lhe disparavam e manteve a cabeça baixa, deixando
cair os cabelos para a cara para a esconder das máquinas
fotográficas. Apesar de tudo, as perguntas aumentavam, em volume
e frequência, juntamente com o estalido e o avanço dos rolos, à
medida que crescia a falange da comunicação social. Quanto mais
ela se aproximava do clube, mais eles se apinhavam à sua volta.
Quando ficou de tal forma entalada que se Lhe tornava difícil andar,
girou sobre si própria, abrindo espaço com os cotovelos.

- Deixem-me em paz - gritou, através do zumbido dos disparos das


máquinas fotográficas. Virou-se de novo para a frente e continuou,
mas mais valia ter ficado calada. A multidão avançou com ela numa
onda, atormentando-a com as mesmas perguntas, tentando
provocá-la a explodir de novo. Tentou esquecer que ali estavam,
pensando em outras coisas, mas quase tudo na sua vida a trazia de
volta a este momento, a este trauma. Estava à beira das lágrimas
quando, finalmente, chegou ao clube.

Felizmente, Dan estava à porta, para a deixar entrar e deixar a


imprensa do lado de fora. Foi directamente para o escritório dele,
afundou-se numa cadeira e tapou a cara com as mãos. Quando o
ouviu entrar, deixou tombar as mãos sobre o colo.

- Dia difícil? - perguntou ele, carinhoso.

Sem confiar na própria voz, Lily acenou com a cabeça. Estudou-Lhe


a expressão.

Ele sorriu tristemente.

- Não precisas de perguntar. Conheço-te, e conheço o cardeal. Não


existe nada entre os dois senão a mesma amizade que ele cultiva
com pessoas por toda a cidade, por todo o país, por todo o mundo.

- Então, porque é que isto está a acontecer aqui, agora?

- Porque ele acabou de ser nomeado cardeal. Isso promove maiores


manchetes, aumenta as tiragens dos jornais.

- Isso é nojento.

- Ultimamente, é a forma como as coisas funcionam.

Lily inspirou, ainda perturbada pelo aperto da travessia por entre a


multidão de repórteres e máquinas fotográficas.

- O que vai acontecer agora? Eles conseguiram as suas manchetes


sensacionalistas. já não há mais nenhuma história para contar,
portanto, o assunto morre. Certo?

- Espero que sim - disse ele, mas sem a convicção que ela
desejava. Parecia cansado, como se também o seu dia tivesse sido
difícil. Também parecia pálido e, enquanto em Lily a palidez estava
apenas um degrau abaixo da sua cor normal, no caso de Dan
estava muito longe do seu tom normal.

Lily teve um pensamento horrível. Ocorreu-Lhe que ele não estaria a


dizer tudo o que sabia.

- Como parece estar a correr a noite, por aqui? - perguntou,


cautelosa, ponderando se o negócio teria sido afectado.

- Estamos completamente lotados.

Ela animou-se.

- Isso é bom, não é?

A resposta era relativa. Sim, a sala de jantar estava repleta de


clientes, mas na sua maioria eram caras novas, convidados dos
membros do clube, e passaram um tempo desmesurado a observar
a pianista.

Lily tentou alhear-se deles. Fazia-o frequentemente, quando


actuava, usando a música como um escape. Durante algum tempo
con seguiu-o, perdendo-se na fantasia da canção, até que o flash de
uma máquina fotográfica Lhe quebrou a concentração. Dan falou
com o agressor e Lily reatou a actuação, mas não cantou. Não
interessava que jamais tivesse gaguejado quando cantava. Estava
demasiado transtornada para arriscar sequer a mais remota
possibilidade de isso acontecer.

Dispararam mais dois flashes durante o curso da noite e, quando a


última parte chegou ao fim, ela já não conseguia fingir que as coisas
estavam normais. Voltou ao escritório de Dan sentindo-se trémula e
assustada.

- Será melhor amanhã? - estava desesperada para que as coisas


voltassem ao normal. Gostava da sua vida, gostava dela
exactamente da forma como era dantes.

- Espero bem que sim - respondeu Dan, mas, no momento seguinte,


apresentou-a a um homem corpulento, uniformizado. - Este é Jimmy
Finn. Polícia de Boston, em serviço privado. Ele vai encarregar-se
de que chegues a casa sem problemas.

Caiu-Lhe o coração aos pés.

- Eles ainda estão lá fora?

- Ainda estão lá fora - confirmoú o polícia, comendo o da palavra


"fora".

Jimmy Finn era um homem amável, um católico devoto, que estava


profundamente ofendido com o facto de a comunicação social andar
a espalhar mentiras sobre o seu cardeal. Por isso, estava
predisposto a manter os repórteres ao largo e era suficientemente
corpulento para o fazer sem dificuldade. Se era rude a abrir caminho
com os ombros, por entre a multidão, com Lily era apenas gentil.
Acompanhou-a até ao seu prédio e zelou por ela mesmo até à porta
do apartamento, mas, assim que ele se foi embora, ela desfez-se
em lágrimas.

Havia imensas mensagens telefónicas novas, um cabaz sortido.


Umas eram de amigos, unânimes no apoio que Lhe davam, mas
estavam por demais ensombradas pelas da imprensa, rapidamente
apagadas, mas não tão rapidamente esquecidas. Dormiu aos
soluços toda a noite, a acordar constantemente, e, por fim,
despertou para um dia desolador, mas recusou-se a que a sua
disposição ficasse de acordo com ele, recusou-se a olhar sequer
pela janela para ver se as carrinhas da televisão ainda lá estavam.
Tomou duche, vestiu umas calças escuras e uma blusa sóbria, de
modo a não se sentir tão exposta. Depois, esforçou-se por engolir
uma banana ao pequeno-almoço, repetindo constantemente para si
própria que as coisas tinham de melhorar. Ou o jornal de hoje traria
publicada uma retractação ou não diria absolutamente nada sobre o
assunto. Em qualquer dos casos, a história estava condenada à
morte.

Quando alguém Lhe bateu à porta um pouco depois das oito, ficou
tensa. Esperou por um segundo toque e depois aproximou-se
silenciosamente da vigia. Aliviada, abriu a porta.

- Sabia que ainda não tinhas saído - disse Elizabeth Davis sem
demoras. Vestia uma Tshirt e uns calções de ciclista e tinha os
cabelos louros apanhados com um gancho. - Mas não tinha a
certeza se abririas. Como estás?

- Horrível - disse Lily, dando uma espreitadela aos jornais dobrados


debaixo do braço de Elizabeth. - Esses jornais são de hoje?

- Dois de Boston, um de Nova Iorque. Queres ver?

- Diz-me tu - enrolou os braços em volta da cintura. - Estou à espera


de uma retractação.
- Não saiu nenhuma retractação - avisou Elizabeth. Desdobrando os
jornais, atirou-os um por um sobre a mesa. - O Post relata que
conduzes um BMW e que compraste uma data de móveis caros
quando te mudaste para aqui. O Cityside comenta que te fartas de
fazer compras na Victoria's Secret. Em Nova Iorque diz-se que tens
preferência por restaurantes chiques, como o Biba e o Mistral, e
que, no Inverno passado, passaste uma semana numa estância
para ricaços em Aruba, estada que não terias possivelmente
capacidade de financiar às tuas custas.

Lily estava demasiado chocada para se enfurecer.

- Como é que eles sabem tudo isso?

- Qualquer perito em computadores pode conseguir essa informação


em apenas cinco minutos.

- Mas são assuntos pessoais!

- Apenas cinco minutos.

- Mas trata-se de mim. Da minha vida. Da minha informação


privada. Onde faço as minhas compras não é da conta de ninguém!

- teve um pensamento que a deixou gelada. - Que mais informações


podem eles obter?

- Praticamente tudo.

Lily engoliu em seco. Tinha de acreditar que algumas coisas


estavam seguras. A cabeça começou a andar-Lhe à roda.

- Comprei o BMW em segunda mão, levei mais de dois anos a


pagar os móveis, encomendo mais coisas do L. L. Bean e de J.
Crew do que da Victoria's Secret, e reservei lugar em Aruba com
dois dias de antecedência através de uma agência de viagens com
promo ções. Estou a ser erradamente apresentada. Não é justo.
Mas Elizabeth ainda não terminara. Levou a mão ao pequeno rádio
sobre a bancada perto do fogão e, numa questão de segundos, o
tenor arrogante de Justin Barr encheu a sala.

- ... um insulto para os católicos de todo o lado! Esta mulher é um


insulto para as pessoas de todas as religiões. Católicos,
protestantes, muçulmanos, judeus. não interessa a crença, todos
deveríamos estar a pensar nos valores que nos são mais caros, nas
pessoas que os representam, e naqueles que tentam derrubá-los.
Haverá algum acto de desrespeito mais descaradamente ofensivo
do que manchar o bom-nome de um líder amado?

- Eu, a manchar um n-n-nome? - gritou Lily.

- Não, meus amigos - prosseguiu Justin Barr em tom bombástico -, a


questão é como é que uma mulher como Lily Blake conseguiu
aproximar-se o suficiente de um homem com a estatura do cardeal
Rossetti para espalhar a nódoa, mesmo indirectamente, e agora,
Deus nos ajude, ela ensina as nossas crianças. Onde irá isto
chegar? Tenho Mary, de Bridgeport, Connecticut, em linha. Diga,
Mary, estamos no ar.

Elizabeth desligou o rádio.

Lily estava paralisada.

- Não acredito nisto.

- Justin Barr é de direita.

- Justin Barr é sindicalizado. Esse programa é ouvido em toda a


Costa Leste.

- Hum, hum

- Porquê? - gritou Lily, referindo-se não só a Justin Barr, mas


também a Terry Sullivan, Paul Rizzo, e todos os outros que
mantinham viva aquela história. - Porquê isto? Porquê eu?
- Porque eles farejam a fraqueza - disse Elizabeth. - Os lobos
perseguem o veado ferido, é a natureza da fera. Tens de tomar uma
atitude, Lily. Um advogado seria uma grande ajuda.

- Não quero um advogado.

- Então, deixa-me tentar ajudar-te. Vou vestir-me e descemos as


duas, e eu serei tua porta-voz. O que dizes a isso?

Lily não disse uma palavra. Manteve-se silenciosa enquanto


Elizabeth leu uma declaração a negar de forma inequívoca o seu
envolvimento romântico, tanto com o governador Dean, de Nova
Iorque, como com o cardeal Rossetti, de Boston.

A declaração era simples. Elizabeth aconselhara-a a procurar atacar


apenas as principais alegações e a ignorar as de menor
importância, por agora, e, por mais que Lily quisesse berrar e
vociferar para se defender quanto ao resto, conteve-se. As relações
públicas eram o território de Elizabeth. Era uma formadora de
imagem experiente. Na verdade, conseguiu aliciar e persuadir a
multidão de repórteres, levando-os a recuar e a manifestar um
pouco de respeito, e, ainda que se mostrasse exageradamente
confortável no seu papel de porta-voz e exageradamente satisfeita
enquanto manipulava a multidão, Lily perdoou-Lhe. Os seus amigos,
na sua maioria pessoas ligadas aos livros ou à música, não tinham
competência para a ajudar. Graças à ascendência de Elizabeth junto
da imprensa, Lily pôde ir para a escola sem que a molestassem, a
pensar que talvez, apenas talvez, o escândalo tivesse começado a
bater em retirada.

Michael Eddy não pensava assim. Sabia exactamente quanto é que


a escola Lhe pagava e, mesmo considerando o seu trabalho no
clube, queria saber como é que ela conseguira o dinheiro para
pagar Aruba e o BMW. Ela explicou-Lhe, tal como tinha explicado a
Elizabeth, e, quando Peter Oliver a questionou quanto à Victoria's
Secret, Lily explicou que comprara lá calças de ganga, não lingerie.
Quando as pessoas a fitavam, ao passar por ela nos corredores,
limitava-se a continuar o seu caminho. Quando os outros docentes a
deixaram ficar sentada sozinha na cantina, leu um livro. Talvez
tivesse descarregado a sua frustração em Mitch Rellejik, mas ele só
entrava mais tarde. A meio da tarde, assim que acabou o trabalho,
deixou a escola, verdadeiramente contente por estar despachada
por esse dia.

Tomou alento quando viu que o contingente da imprensa continuava


menor do que no dia anterior, e, uma vez no seu apartamento,
atreveu-se a espreitar os noticiários da noite. Foi um erro. A notícia

tinha cobertura proeminente em todos os canais, que aproveitavam

partes das notícias da manhã, distorcendo-as de forma


sensacionalista. E havia mais fotografias. Numa, ela lançava para a
câmara um

olhar mal-humorado. Noutra, escondia a cara. E depois havia as


fotografias escandalosas.

Lily tirara fotografias publicitárias, cheias de classe, pouco depois

de ter chegado a Boston. Também tinha outras mais antigas, fotos

bonitas e dignas. Obviamente, a comunicação social não tinha


usado

essas. Estavam a pintar o retrato de uma mulher que vivia acima


dos

seus meios e que pagava esse estilo de vida dormindo com homens
poderosos. Assim, seleccionaram as fotografias mais
sensacionalistas

que encontraram, dos seus primeiros dias em Nova Iorque, nas


quais

Os bodys justos que usava enfatizavam as pernas magras, as ancas

estreitas e os seios generosos.


Sentiu-se nua e exposta. Sentiu-se também furiosa - envergonhada
- horrorizada!

Pior, não sabia o que fazer, e disse-o a Dan Curry logo que chegou
ao clube. Ele deu-Lhe o nome de um advogado, o que foi de fraca
consolação. Mais reconfortante, o cardeal tinha falado com ele.

- Ele está doente com isto, Lily. Nós estamos todos preocupados,

a questionar se o Papa voltará ou não atrás com a sua elevação, e o

cardeal está preocupado contigo. Do seu ponto de vista, nada


fizeste

que justifique isto, não o mereces, és uma vítima apanhada no fogo

cruzado. Os advogados aconselharam-no a não estabelecer


contacto

directo contigo, mas isso não Lhe agrada.

"Não faz mal", pensou ela. No entanto, uma chamada da sua

parte teria sido agradável. Mesmo que fosse de uma cabine


telefónica. Ou do telefone de um amigo. Apenas para fazê-la sentir-
se menos só. Mas ela compreendia. Ele estava de mãos atadas.

- Ele pensa em ti, Lily. Disseme para te dizer que sabe que tens

força para enfrentar a tempestade e sair dela ainda mais fortalecida


e

segura de ti.

Lily agarrou-se àquelas palavras ao longo de uma noite difícil,


actuando perante uma audiência que a fitava e falava e se agrupava

à sua volta. Foi para a cama a rezar para que isso fosse o pior de
tudo, e, depois de um sono irrequieto, despertou sentindo-se
cansada e tensa. Estava a ouvir uma pesada composição de
Tchaikovsky que reflectia a sua disposição quando uma Elizabeth,
de expressão sombria, apareceu à sua porta com o Post matutino. A
manchete dizia: "SURgEM DETALHES SOBRE A MULHER DO
CARDEAL. "

Com um nó na garganta, Lily agarrou no jornal e, a princípio, não


havia nada de novo, apenas uma recapitulação das alegações.
Depois, para sua consternação, Terry Sullivan virou-se para Lake
Henry.

A notícia falava da vida de Lili durante a infância, e do seu


envolvimento com um jovem que a levara à prisão.

Com um grito de horror, Lily deixou cair o jornal. Devastada, olhou


para Elizabeth. Começou a falar, mas teve de respirar fundo para se
acalmar antes que as palavras Lhe saíssem.

- Esse processo foi selado! - disse, por fim. - O juiz disse-nos que
ninguém jamais Lhe teria acesso!

Elizabeth não conseguia esconder a sua curiosidade.

- O que é que fizeste?

"O que é que ela fizera?" Fora uma idiota, era isso que tinha feito.
Fora uma idiota, era jovem e estava morta de vontade de ser
popular.

- O rapaz com quem eu andava roubou um carro. Eu não sabia que


era roubado e lá estava, entre sorrisos e gargalhadas, a divertir-me
como nunca, porque o Donny Kipling era tão duro que se tornava
fantástico. Eu tinha dezasseis anos. Nunca tinha sido beijada. Mal
tinha tido uns namoricos, por isso saí com ele naquele carro, e ele
não parava de dizer, "Não te preocupes, isto é divertido", mas
depois disse à Polícia que tinha sido eu a planear tudo, e as
testemunhas disseram que achavam que eu estava mesmo metida
naquilo. Não houve julgamento. O caso não chegou a julgamento e,
quando terminou o período de liberdade condicional, as acusações
foram abandonadas.

- Como é que eles sabem que falei com Poppy? - perguntou.


Depois, furiosa, lembrou-se. - Alguém pôs o meu telefone sob
escuta. Ouvi um estalido.

- Não me surpreenderia - disse Elizabeth. - Eles fazem tudo por uma


notícia.

Terry não tinha dito o mesmo?

- Mas o juiz selou o processo. Como poderiam tomar conhecimento


dele? - sentia-se violentada e exposta.

- Suborno.

- Isso não é justo.

De súbito, Elizabeth assumiu um tom apologético.

- Nem isto. Tenho de cancelar a tua actuação na angariação de


fundos da Kagan.

Lily fitou-a, aturdida.

- Ordens do director da campanha - justificou-se Elizabeth, apon


tando para o jornal. - Ele ligou-me quando viu isto. É demasiado
explosivo. A tua presença lá seria só por si um acontecimento.
Desviaria as atenções da candidata.

Lily sabia que havia mais do que isso.

- Ela não quer ser associada a mim.

- Não leves isto a peito. São questões políticas. Uma má associa


ção pode arruinar um candidato.
- Mas eu não sou uma má associação. A imagem que estão a
projectar é falsa.

Elizabeth suspirou.

- Na verdade, não interessa, sabes? O facto é que isto vem na


primeira página de todos os jornais do Estado. Seria um suicídio
para Kagan se actuasses na sua festa. Não posso fazer isso, Lily,
lamento - Elizabeth recuava em direcção à porta quando o telefone
tocou. Não atendas - avisou, ao sair - e não te ponhas a ouvir o
Justin Barr.

Sem que Elizabeth soubesse, as suas instruções estavam


relacionadas e revelavam uma presciência extraordinária. Mas já lá
não estava para ouvir o que Lily ouviu no gravador, a voz pomposa
de um indivíduo que se julgava maior do que os grandes.

- Lily? Está aí, Lily? Fala Justin Barr e estamos no ar. Os meus
ouvintes querem ouvir a sua versão da história.

- Não, não querem - murmurou Lily entre dentes e desligou o


gravador. Preparou-se para a escola, desceu pelas traseiras e
correu por entre a multidão que a aguardava, usando óculos de sol
para que ninguém pudesse ver se chorava - e, se chorasse, não
seria por medo ou tristeza. Tinha o maxilar rígido. Estava
absolutamente, positivamente furiosa.

Michael Eddy esperava-a junto à ampla porta de madeira da escola.


Deixou-a entrar e levantou uma mão para a imprensa, num gesto de
censura, mas a expressão de censura transferiu-se para ela quando
disse:

- Para o meu gabinete, por favor.

Colocando os óculos de sol na cabeça, Lily seguiu-o. Ele não Lhe


ofereceu uma cadeira. Ela não se sentou.
- Estou a receber chamadas de pais e membros do Conselho de
Administração - disse, com uma das mãos nas costas de uma
cadeira e a outra na nuca. Os seus olhos eram acusadores. - Eles
querem saber como pudemos nós contratar alguém com cadastro
para educar os seus filhos. DisseLhes que não tínhamos
conhecimento. Exijo que me explique porquê.

O coração de Lily batia com tanta força que praticamente Lhe fazia
tremer a blusa. Com o pouco de fôlego que Lhe restava, disse:

- Não tenho cadastro. O caso foi abandonado. O processo foi


selado. Foi-me dito que isso me salvaguardaria.

- Quem é que Lhe disse isso?

- O meu advogado. O juiz. Foi muito claro.

- Não pensou que os pais, aqui, se preocupariam com isso?

Ela pensou numa resposta possível, mas, quanto mais pensava,


mais irritada ficava.

- Que razão há para se preocuparem? Eu disse a verdade. Nunca


fui condenada por coisa nenhuma.

- Então, porquê a liberdade condicional? E porquê um processo


selado? Você educa crianças aqui, Lily. Deveria ter dito alguma
coisa.

Ela discordava. Mas Michael não estava na sua pele, nem ela na
dele. Olhou-o, sem saber o que dizer.

Ele suspirou.
- Fui eu que a contratei, e sou eu o director, portanto eu é que estou
numa posição complicada. Quero dizer, raios, Justin Barr está a
fazer de nós parvos. Está a irritar precisamente as pessoas das
quais recebemos fundos - abateu os ombros - Não vou despedi-la.
Você tem feito um trabalho muitíssimo bom. Mas peço-Lhe que
aceite voluntariamente uma licença sem vencimento.

Lily arregalou os olhos. Adorava o seu trabalho ali, precisava do


dinheiro e não tinha feito nada errado! Assustada, perguntou:

- Por quanto tempo?

- Não sei.

- Até que isto passe? Até que as pessoas esqueçam?

- Isso pode demorar algum tempo.

A forma como ele o disse, a forma como a fitou sem pestanejar,


disseLhe mais.

- Uma licença sem vencimento permanente - disse ela. já que toda a


situação era tão absurda, porque não?

- Uma licença por tempo indefinido. Até que encontre trabalho em


qualquer outro lugar.

Ela devolveu-Lhe o olhar, agora irritada com ele e sem se importar


que ele o percebesse. Podia jogar com as palavras como bem
quisesse, mas sim, estava a despedi-la. Tentou ver as coisas pelo
lado dele. Mas só via um homem que não tinha coragem de
defender alguém em quem acreditava.

A questão, claro, era que ele não acreditava nela.

Ajustando os óculos de sol no rosto, saiu do gabinete. Recusava-se


a pensar nos grupos a cappella que tinha feito chegar tão longe,
recusava-se a pensar no jogador de futebol que não tinha jeito
nenhum para tocar piano mas que estava a aprender alguma coisa
de música. Recusava-se a pensar nas dezenas de alunos que tinha
ensinado e que tantas alegrias Lhe tinham dado nos últimos três
anos, e, em vez disso, deixou que a raiva a levasse até à porta
principal; mas, apesar disso, o sentimento apoderou-se dela.

Extinguiu-se no momento em que viu os repórteres nas escadas.


Eles ganharam vida, precipitando-se para ela enquanto caminhava.

- Porque está a sair tão cedo?

- Qual a posição da Winchester School quanto a esta matéria?

- Tem estado em contacto com o Conselho de Administração?


Tentou ignorá-los por completo, mas as perguntas eram demasiado
próximas, demasiado ruidosas, demasiado humilhantes.

- A razão pela qual não nos responde é a gaguez?

- É verdade que a acusação em New Hampshire foi furto agravado?

- Tinha relações sexuais com o seu cúmplice?

Enojada, Lily disparou um olhar ao homem que Lhe tinha feito essa
pergunta, perguntando-se de que buraco teria ele surgido.

- Isso é nojento - murmurou, e prosseguiu, estugando o passo e


ignorando outra descarga de perguntas até que uma voz familiar
Lhe disse:

- Está preparada para pedir desculpa aos pais dos alunos da


Winchester? Eles sentem-se enganados.

Era Paul Rizzo, o careca com cara de bebé. Olhou-o rispidamente.

- Como é que sabe disso?

- Entrevistei-os. Eles estão a pagar bom dinheiro para educar os


filhos e pensam que não é adequado alguém com uma reputação
como a sua estar a dar aulas aqui. Quer comentar?

Ela abanou a cabeça e voltou a ignorar as perguntas, mas não pôde


evitar uma sensação de mágoa. Sim, esses pais estavam a pagar
muito dinheiro, mas, se a questão era uma boa educação, ela dera-
a - e não era assim tão bem paga, de certeza, tendo em conta o seu
salário e as horas que trabalhava. Esses pais é que tinham feito um
bom negócio.

Deveriam sabê-lo, deveriam tê-lo reconhecido, deveriam ter


mostrado, no mínimo, um pouco de lealdade. O mesmo valia para
Michael. O mesmo para o Conselho de Administração.

Além disso, as alegações eram acusações não provadas. Que


acontecera à máxima "inocente até prova em contrário"?

Quando chegou a casa, estava de novo furiosa. Entrou no prédio,


fechando imediatamente a porta na cara de Paul Rizzo, que a tinha
seguido praticamente colado a ela. Dirigiu-se ao elevador com
passo enérgico, pressionou o botão com força e ficou à espera do
som metálico e dos zumbidos que Lhe diriam que o elevador estava
em marcha. Quando os sons se tornaram mais distantes, olhou para
o painel. O elevador tinha subido até ao último andar.

Era onde vivia Tony Cohn, juntamente com outros cinco inquilinos,
mas a Lei de Murphy dizia-Lhe que seria precisamente ele que
descia para o vestíbulo, por isso, estava preparada quando a porta
finalmente se abriu.

Ele hesitou quando a viu, saiu do elevador, olhou para a porta da


rua e praguejou.

- Tem ideia do abuso que representa toda esta situação? -


perguntou, com uma voz que ela jamais ouvira. - Arrendei um
apartamento aqui pelo prestígio do prédio. Agora, isso é para
esquecer.

Ela ficou tão surpreendida que nem pensou em gaguejar.


- Não fui eu que Lhes pedi que viessem.

- Não, mas graças a si estão aqui. Sabe que tenho recebido


chamadas, Telefonemas, O Post, o Cit side até mesmo os meus
amigos querendo saber coisas sobre si - praguejou de novo, voltou
a entrar no elevador, agora com ela lá dentro, e pressionou o botão
da garagem antes que ela tivesse podido pressionar o do seu andar.
Não teve outra alternativa senão descer primeiro.

Lily encolheu-se a um canto do elevador, cruzou os braços sobre o


peito e perguntou a si própria o que teria visto antes em Tony Cohn.
Carrancudo, não era nada atraente - e, na verdade, nunca perdera
dois minutos com ela.

Ele resmungou e disse:

- Quando vim para este apartamento, solicitei à agência uma


investigação sobre os outros inquilinos. Era suposto terem a ficha
limpa.

- A ficha está limpa - então, ocorreu-Lhe que era estranho o que


acabara de ouvir. - Investigou os outros inquilinos? Por que razão
faria uma coisa desses?

A porta abriu-se.

- Alguns de nós têm uma imagem a preservar.

Saiu antes que ela conseguisse encontrar uma réplica adequada,


por isso empurrou a porta com o pé, para a manter aberta, e atirou-
Lhe:

- Só aqueles que têm alguma coisa a esconder!

Deixou a porta fechar-se, golpeou o botão para o seu andar e


carregou o sobrolho quando o elevador começou a subir, pensando
que tudo tinha um lado positivo, e, mais que não fosse, este fiasco
mostrara-Lhe como Tony Cohn não passava de um bruto arrogante
e egocêntrico.

Quando chegou ao seu andar, lamentava ter perdido até mesmo um


só minuto do seu tempo a fantasiar com o homem. Mas esqueceu-o
completamente quando abriu a porta do apartamento e ouviu o
telefone tocar. Largando a pasta, agarrou-se às costas da cadeira
até o toque parar. Ouviu a sua própria voz - depois lembrou-se de
que tinha desligado o gravador de manhã. Dez toques consecutivos
tê-lo-iam voltado a ligar, o que significava que tivera pelo menos
uma pessoa persistente a ligar-Lhe.

- Ah, sim - disse uma voz masculina, num tom ressacado. - Estou a
ligar para Lily Blake. Sou... ah, sou escritor. Escrevi... a biografia de
Brandi Forrest, ah, é a cantora do grupo de rock Dead Weight Off.
De qualquer modo, tenho a certeza de que está a receber montes
de outras chamadas, mas se você, ah, quiser que alguém escreva a
sua história, devíamos conversar. Eu, ah, já telefonei ao meu editor.
Eles gostam da ideia de sexo e religião. Conseguem pôr qualquer
coisa cá fora com imensa rapidez. Ah... é tudo uma questão de
aproveitar a altura. Por isso, se quiser, telefone-me. - Deixou um
número com um indicativo que ela não reconhecia.

Lily apagou a mensagem, depois ouviu as mensagens anteriores.


justin Barr devia ser o tal persistente, porque a sua chamada era a
primeira. Tinha telefonado mais três vezes, de vinte em vinte
minutos. Havia também chamadas de jornalistas de Chicago, St.
Louis e Los Angeles, todos deixando os nomes e os números de
telefone, como se ela fosse realmente retribuir as chamadas. Havia
mensagens de dois amigos exprimindo preocupação, e mensagens
de dois clientes a cancelar compromissos.

Também havia uma mensagem de Daniel Curry, pedindo-Lhe que


Lhe ligasse. A sua voz estava estranhamente cortante. Nervosa,
marcou o número do clube. Dan cumprimentou-a de forma bastante
gentil, mas Lily ouviu de novo o mesmo tom cortante.

- Diz - disse ela, preparando-se, e ele suspirou.


- Sabes como me sinto, Lily. Sei que não se passou nada. Acredito
em ambos. Gosto profundamente de ambos, por isso, isto parte-me
o coração, mas estou com um problema. O telefone não pára de
tocar, com queixas.

- Queixas?

- Estamos completamente lotados esta noite, mesas grandes, na


maioria grupos de seis e oito.

- E isso não é bom?

- Desta vez, não. Os clientes habituais não conseguem reservas.


Outros queixaram-se por terem tido de atravessar um mar de
jornalistas ontem à noite. O problema é que essas pessoas são a
espinha dorsal do clube. Os que reservam agora as mesas grandes
são passageiros. Não são os que continuarão a vir todas as
semanas, daqui a seis meses ou um ano. Estão somente a
aproveitar o escândalo, um membro convida cinco, seis, sete
amigos para o espectáculo, mas isso não é justo para os que são
fiéis ao clube.

Lily apertou o auscultador com força. Sabia o que vinha a seguir.

- Eu podia escolher a saída mais fácil - disse Dan. - Podia atribuir as


culpas ao dinheiro e dizer que os clientes habituais nos vão
abandonar, e depois onde é que iríamos parar. mas eles não o
farão, Lily. Não se trata de uma questão de sobrevivência financeira.
São os princípios da coisa. Eu sempre dirigi o clube de certa
maneira. Trata-se de um local tranquilo, privado. Um local com
classe. É por essa razão que adorávamos ter-te cá a tocar. Porque
tu tens classe.

Ela esperou.

- Mas toda esta história é sórdida - continuou. - Nem uma palavra


em torno dela é verdadeira, mas é sórdida. Os membros estão a
receber telefonemas de gente como Terry Sullivan e Paul Rizzo.
justin Barr está a enxovalhar-nos... não que alguma vez
deixássemos esse filho-da-mãe pôr aqui os pés, mas ele está a
criar-nos uma notoriedade que, na verdade, dispensamos. Ter
pessoas que vêm ao clube só para ver... entre aspas... a mulher que
seduziu o cardeal, não é coisa que nos interesse.

Lily manteve o silêncio, de cabeça inclinada.

- Isto mata-me - prosseguiu Dan - porque todos gostamos muito de


ti - suspirou. - Mas julgo que devias tirar algum tempo para
descansares.

- Estás a despedir-me? - dois despedimentos numa hora seria um


recorde. Talvez os jornais comprassem esta notícia.

- Não. Estou apenas a dizer-te para ficares em casa por alguns dias,
até que este assunto morra.

Mas ela estava desanimada.

- Será que vai morrer?

- Definitivamente. É como um carro. Sem combustível, não anda.

- O carro nunca teve combustível, mas andou! Se eles não o


encontrarem num sítio, encontram-no noutro - exausta, passou uma
das mãos pelos olhos. - Isto tem a ver com a história do crime?

- Qual crime?

- Não leste o jornal de hoje?

- Não.

Ela contou-Lhe, para que ele soubesse - para que ouvisse primeiro
a sua versão da história.

- O cardeal sabe de tudo - disse, antes que ele pudesse perguntar. -


Tem graça como um colarinho clerical tem o poder de induzir
confissões. A ele já o deixaram em paz, mas estão a cair em cima
de mim.

- Há mais alguma coisa que possam descobrir?

- Ontem eu também teria dito que não havia nada, ponto final!

- afundou-se na cadeira. - Esse foi o meu primeiro e único problema


com a lei. Não houve mais nada desde aí. nem uma multa por
excesso de velocidade, nem uma multa por estacionamento, nem
sequer um atraso num pagamento do cartão de crédito. O que é que
Lhes resta para escreverem?

Escreveram sobre a suspensão de Lily da Winchester School. Foi


notícia de primeira página na sexta-feira de manhã. Terry Sullivan
entrevistou Michael Eddy, cujas declarações continham a força e a
indignação suficientes para Lhe restaurar o briLho aos olhos dos
pais e dos administradores. Paul Rizzo concentrou-se nos membros
do Conselho de Administração, com uma longa série de citações a
exprimir consternação pela falsidade de Lily, pela sua imoralidade e
ausência de bom senso. justin Barr entrou em delírio feroz em volta
daquilo a que chamava o Problema Lily Blake, incitando os pais
irados a telefonarem para discutir o papel do professor como
modelo, a necessidade de professores da máxima fibra moral, as
responsabilidades das escolas para com os alunos, de modo a
protegerem-nos de pessoas de fraco carácter.

O Post citou o testemunho simbólico de um pai que elogiava o


trabalho que Lily tinha desenvolvido com o seu filho, mas era uma
citação curta e perdia-se no meio das outras, bem como todos os
desmentidos de Lily. O tom global da peça era de uma arrogância
que tinha mais a ver com uma autobajulação do próprio Post do que
com qualquer averiguação da verdade.

Ambos os jornais informavam que Lily tinha tirado uma licença para
descansar do Essex Club, mas nenhum deles forneceu detalhes
nessa perspectiva, nem citações relacionadas com o assunto. Lily
suspeitou de que Dan se tinha recusado a falar e de que pelo
menos a imprensa estava a retrair-se no que respeitava a tudo o
que envolvesse o cardeal. Não havia mais menções a uma alegada
relação sentimental, a sorrisos partilhados ou a noitadas na
residência do cardeal. Também não mencionavam o governador
Dean.

O foco centrava-se em Lily e somente em Lily. Ela transformara-se


na notícia.

Outra mulher, uma que gostasse das luzes da ribalta, poderia sentir-
se contente. Mas Lily já se tinha sentido vitimizada no passado: em
criança, ridicularizada pela sua gaguez, enquanto adolescente, sob
liberdade condicional por um crime que não cometera, enquanto
artista, perdendo um impulso para o topo depois de ter rejeitado o
assédio do director musical. As injustiças aconteciam. Devia ter
ficado calejada. Mas não. Estava tão aborrecida e perturbada que
não era capaz de tocar piano, não era capaz de ler, não era sequer
capaz de ouvir um CD, porque não possuía nada suficientemente
turbulento.

Estava tão aborrecida que pôs de lado a aversão aos advogados e


telefonou àquele que Dan Lhe tinha recomendado. Chamava-se
Maxwell Funder. Bem-falante e experiente, constava entre os mais
notáveis advogados do Estado. Ela vira-o muitas vezes nos
noticiários e, talvez cinicamente, perguntou-se se a sua promessa
de estar no seu apartamento dentro de uma hora não teria a ver
antes de mais com a publicidade ligada ao caso. Mas não podia ser
pobre e mal agradecida. Dado que apenas tinha dinheiro para Lhe
pagar uma consulta, ficou grata por ele ter concordado em ir.

Pessoalmente, não era nem de longe tão impressionante como o


tornavam as câmaras de televisão. Era mais velho. Também era
mais baixo e mais encorpado, e, sem maquilhagem, mais sardento.

Mas era agradável e paciente. Escutou, sentado no sofá, enquanto


ela desabafava. Franziu as sobrancelhas consternado, arregalou os
olhos, incrédulo, abanou a cabeça de vez em quando - e Lily não
queria saber se era apenas teatro em benefício dela. Prezava a sua
compaixão.

- Como é que isto pode acontecer? - perguntou, de novo enfurecida


após relatar todos os detalhes. - Como é que se pode publicar tanta
mentira? Como é possível exporem toda a minha vida? Como é que
um processo selado pode ser aberto? Perdi dois empregos, a
imprensa fica sentada lá fora à espera de me lançar as garras,
Justin Barr está a fazer-me em farrapos, a minha família está a ser
importunada. Quando penso em sair de casa, imagino os olhares de
pessoas que eu não conheço mas que sabem coisas pessoais a
meu respeito. Sinto-me totalmente desamparada. Como é que
posso acabar com isto?

O advogado endireitou-se no sofá.

- Para começar, podemos levar isto a tribunal, apresentamos quei xa


contra os jornais e intentamos uma acção judicial. Diga-me. Qual
deles é o pior?

- O Post - respondeu sem hesitar. Fora Terry Sullivan que dera início
àquilo tudo. Usara-a e mentira.

- O Post. Pois seja - disse Funder. - A nossa acção será o veículo


para conseguir apresentar a sua versão da história. Iremos
denunciar todas as mentiras. Conseguiremos depoimentos escritos,
sob juramento, perante um magistrado, por parte do cardeal e do
governador, a corroborar a sua versão dos acontecimentos. Vou
convocar uma conferência de imprensa e pôr tudo em pratos limpos
- a sua paixão intensificou-se - rotulando isto como a pior espécie de
jornalismo, o exemplo mais categórico de uma má imprensa. Exigirei
uma investigação ao Post por ter publicado esta calúnia e exigirei
uma retractação i mediata.

Lily agarrou-se desesperadamente a esta última hipótese.

- Uma retractação. É o que eu quero. Será que vou consegui-la?


- Agora? - a retórica arrefeceu. - Não. Eles levaram isto demasiado
longe. Irão lutar para defender a integridade básica do jornal. Talvez
daqui a alguns anos.

Anos?

- Quantos anos?

Ele pensou um pouco.

- De uma forma realista? A partir de agora até que o tribunal se


pronuncie sobre o caso? Três anos. A questão - ergueu a mão, num
gesto de aviso - é que para que você possa ser realmente vingada,
precisa de um grande veredicto. Não basta uma indemnização
simbólica. Portanto, vamos pedir, digamos, quatro milhões, mas
devo avisá-la, o Post vai lutar com unhas e dentes. Vão lutar
recorrendo à imundície e é melhor que fique a saber já o que isso
significa. Eles têm ao seu serviço alguns advogados especializados
na Primeira Emenda, dos mais duros do país. Irão esquadrinhar a
sua vida a microscópio e acusá-la sob juramento. Irão recolher
depoimentos da sua família, dos seus amigos, colegas de escola,
professores, namorados, ex-namorados, vizinhos... e isso não é
nada, comparado com aquilo que farão os investigadores privados.
Irão passar a sua vida a pente fino. Arranjarão informações de
chamadas telefónicas, informações de cartões de crédito,
informações escolares, informações de veículos automóveis,
informações médicas. Entrevistarão pessoas que você nem sabia

que conhecia, em busca de qualquer coisa, mesmo a mais ínfima


insinuação de qualquer coisa, que possa ajudar o cliente deles a
demonstrar que você é uma pessoa de má reputação. Que você tem
antecedentes que comprovam a sua má reputação. Se julga agora
que a sua privacidade foi violada, isso não é nada comparado com o
que eles farão.

- Jesus! Obrigada - disse Lily. Era um misto de sarcasmo e lágrimas.


- Não pense que estou a brincar - avisou ele, agora mais duro. Eu
conheço essa gente. São animais. Se houver alguma coisa a
descobrir, eles descobrem-na. Tentarão provar que a sua reputação
é tão má que, mesmo que tivessem cometido um erro caluniando-a,
não interessaria, porque não teriam feito mal nenhum. Tentarão
provar que a sua vida tem sido carregada de mentiras.

Lily começava a entrar em pânico.

- E quanto aos meus direitos? Porque vêm eles em último lugar?

- Eles não vêm em último lugar. Mas a Primeira Emenda garante a


liberdade de expressão.

- E quais são as minhas garantias? A imprensa não tem o direito de


me fazer isto.

- É por isso que vamos processá-los.

- Apenas quero uma retractação. Não quero dinheiro.

- Bom, mas devia. Um caso destes pode custar para cima de um


milhão de dólares.

Ela ficou praticamente sem fala.

- Custar-me um milhão de dólares?

- Entre os honorários, custas de tribunal, consultores, peritos, in


vestigadores particulares.

Lily sentiu os joelhos a fraquejar.

- Não tenho todo esse dinheiro.

- Poucas pessoas o têm. - Estudou-a, inalou ruidosamente, cruzou


os dedos. - Olhe, normalmente só aceito causas se o cliente tiver
meios adequados de pagamento... quero dizer, eu também tenho de
viver... mas o que está a acontecer-Lhe é uma vergonha. Portanto,
eis o que posso fazer. Aceitarei a causa por duzentos e cinquenta,
mais cinquenta para despesas, mais vinte e cinco por cento do valor
da indemnização que vier a conseguir.

- Duzentos e cinquenta.

- Duzentos e cinquenta mil.

Ela engasgou-se ao respirar e o ar desceu-Lhe pelo canal errado.


Seguiu-se um longo minuto a pressionar o peito e a esforçar-se para
não tossir, até conseguir dizer:

- Eu não tenho esse d-d-dinheiro todo.

- A sua família tem.

Ela recuou.

- Li que existia um negócio de família - explicou ele.

- É um negócio que depende do trabalho. Não há dinheiro vivo à


disposição.

- Há terras. Isso pode ser uma boa garantia para um empréstimo.

- Não posso pedir isso - disse Lily. Dinheiro, um empréstimo, não


interessava. Não podia pedir dinheiro à mãe. Nem tão-pouco
conseguia imaginar Maida a dar-Lho. Ela era a maior desilusão da
vida de Maida, a filha que descarrilou, aquela que brincara com o
fogo e se queimara. Não interessava que Lily levasse uma vida
verdadeiramente honesta e digna. Maida via-a com outros olhos.

O advogado inclinou-se para a frente, com as mãos ainda


entrelaçadas, agora descontraído de mais, demasiado amável.

- Compreendo a sua hesitação...

- Não, não compreende - interrompeu ela, irritada. - Trata-se da


minha vida. Não recebo um centavo da minha família desde os
meus dezoito anos e não é agora que vou fazê-lo.

- Compreendo a sua hesitação - repetiu ele, num tom, e com uma


expressão, que Lhe dizia que seria sábio da sua parte deixá-lo
terminar -, mas, se a família serve para alguma coisa, é para ajudar
em tempos difíceis. Eu li que você não se dá bem com a sua família,
mas, se eles têm o dinheiro que a pode livrar desta confusão, o meu
conselho é que o aceite. Os bons advogados não trabalham de
graça. Não conseguirá um acordo melhor do que o que estou a
propor-Lhe.

Mas, Lily não podia ir pedir dinheiro à mãe. E, mesmo que ela
tivesse esse dinheiro, não podia conceber gastá-lo todo nisto. Não
tinha feito nada errado!

Calmamente, levantou-se.

- Preciso de pensar. Obrigada por ter vindo. Agradeço o tempo que


me dispensou - encaminhou-se para a porta.

Ele seguiu-a, mas o seu rosto estava mais ruborizado quando Lily
se virou.

- Não volto a fazer-Lhe esta oferta - avisou ele. - Se as coisas


aquecerem e piorarem, serei obrigado a cobrar-Lhe mais.

Ela acenou com a cabeça, em sinal de compreensão. Com um pé


na entrada, ele virou-se para trás, novamente amável.

- Não precisa de decidir agora. A minha oferta mantém-se por mais


um dia ou dois. No entanto, permita-me avisá- la. Irá receber
chamadas de outros advogados que se oferecerão para pegar na
causa somente sob contingência, e será extremamente tentador
para si fazê-lo, mas não conseguirá a qualidade necessária. Dados
os gastos adicionais que um caso desta natureza exige se for
competentemente tratado, nenhum bom advogado trabalhará sob
contingência.
- Obrigada - voltou a dizer e, assim que ele retirou o pé, fechou a
porta.

Lily foi até à janela para ver se o advogado parava e falava com a
imprensa à saída, mas um dos elementos da horda vislumbrou-a
primeiro e, subitamente, as caras e as câmaras estavam apontadas
para cima. Num movimento brusco, recuou rapidamente e
imobilizou-se no meio da sala, com os olhos a percorrer a
Commonwealth Avenue, sem a ver -até que percebeu, horrorizada,
que uma lente de longo alcance na janela de um dos edifícios ali,
podia captá-la em qualquer lugar dentro do seu apartamento.

Fechou rapidamente as persianas na sala de estar e foi a correr


fazer o mesmo no quarto. Isso deixou-a reduzida à pequenez de um
apartamento escuro, sem emprego, sem liberdade, sem
perspectivas de uma rápida recuperação de ambas as coisas e
muito menos do seu bom-nome. Sentou-se no cadeirão, mas ainda
não conseguia concentrar-se para ler. Deslocou-se até ao piano e
deixou que os dedos percorressem as teclas, mas eles escolhiam
apenas melodias depressivas. Então, pôs Beethoven no leitor de
CDs - sombrio, talvez, mas apropriado - e pôs-se a andar do quarto
para a sala e da sala para o quarto, sem saber o que fazer da sua
vida. Por fim, acabou ao telefone.

Levantando o auscultador, começou a marcar o número da mãe,


desligou e apertou os braços contra o peito para evitar tentar voltar
a fazê-lo. E não era a questão do dinheiro. Não queria dinheiro, não
queria intentar uma acção porque o processo que Maxwell Funder
descrevera era abominável. Três anos de especulação por parte da
imprensa, de notícias a distorcer os factos da sua vida, três anos
sentindo-se usada e exposta. Não conseguiria sobreviver a isso.

Não. Não ia ligar a Maida por causa do dinheiro. Gostaria de Lhe ter
ligado pelo conforto que isso Lhe traria. Maida era sua mãe. Lily
sentia necessidade de enterrar a cabeça em algum lugar quente e
solidário até que a tempestade passasse. Sentia necessidade de um
abrigo, certamente de um ouvido compreensivo.
Contudo, Maida nada disto Lhe daria. Assim, em vez de telefonar a
Maida, Lily telefonou a Sara Markowitz. Sara era uma amiga da
Juilliard, que dava aulas no Conservatório de New England. Costu
mavam encontrar-se para almoçar uma semana por outra. Sara era
uma das autoras das mensagens deixadas no gravador.

Sentiu um alívio imediato quando Sara atendeu o telefone. Apesar


de tudo o que enchia a imprensa, Sara estava ávida por dar algum
apoio.

- Tenho andado tão preocupada. Que raio de trapalhada é esta?


Falsas acusações, uma completa distorção da verdade, está tudo
completamente descontrolado. Até me andam a telefonar,
acreditas? A fazer perguntas íntimas, sem aceitarem um não como
resposta, insistindo e tornando a insistir. O que é que se passa com
o Terry Sullivan? Onde é que acaba o repórter e começa o
coscuvilheiro? E o Justin Barr? Esse ainda é pior! Nenhum deles faz
a mais pequena ideia do que é ser um cavalheiro. Conhecias algum
deles antes de isto começar?

- Não conhecia o Justin Barr, de todo.

- Ainda bem. É um hipócrita idiota. Era demasiado feio para con


seguir vingar na televisão, com aquela cara gorda e uns olhos que
parecem feijões, por isso viroú-se para a rádio. Adora simplesmente
ouvir-se a ele próprio: o Campeão do Lar e dos Bons Costumes.
Mas, e o Sullivan?

- Tinha andado atrás de mim para me entrevistar acerca do meu


trabalho. Passei todo o tempo a rejeitá-lo, se calhar ficou chateado.

de repente, fez-se luz. - Ele não queria saber coisas sobre o meu
trabalho. A sua mira deve ter sido sempre o cardeal - sentindo-se
duplamente usada, soltou um profundo suspiro. - A minha vida está
um caos, não sei porquê, e estou presa neste apartamento sem
nenhum outro lugar para onde possa ir.

- Vai ter comigo ao Biba. ah, não.


Lily sabia a razão das reticências de Sara. O Biba era um dos
restaurantes que os jornais tinham mencionado como exemplo do
facto de Lily viver muito acima das suas possibilidades. Ela e Sara
iam lá frequentemente e comiam uma salada, o que tornava o
acontecimento num prazer divertido e barato. Mas o divertimento
acabara. Nunca mais se iria divertir.

Usando de prudência, Sara sugeriu:

- No Stephanie's dentro de trinta minutos?

O Stephanie's era um restaurante em Newbury Street. Lily não


conhecia lá ninguém. Parecia-Lhe o paraíso.

- Trinta minutos está óptimo.

Vestiu umas calças de ganga, uma blusa e um blazer. Escondendo

os cabelos debaixo de um boné de basebol, pôs uns óculos


escuros,

apanhou o elevador até à garagem e saiu para a luz do dia com


passo

animado, parecendo tão descontraída e anónima quanto possível.

A imprensa identificou-a prontamente. Os repórteres saíram em

enxame de detrás dos caixotes de lixo, dos postes telefónicos e dos

carros estacionados, empurrando-Lhe os microfones para a cara,


clamando pela sua atenção.

- Lily Blake! Lily Blake! Onde vai?

- O que disse Funder?

- Sou da CNN... Pode confirmar que Funder está a representá-la? -


Vai processar a Winchester School?
O lhando em frente, continuou a subir a viela, mas os repórteres

tropeçavam uns nos outros num esforço para colocar as suas


questões, e a matilha crescia a cada passo. Podia sentir e cheirar o
seu

calor e os encontrões, ondas de hálito quente, cheiro a corpos


rançosos. Mesmo que não fosse mais baixa e mais franzina do que
quase

todos os repórteres presentes, teria ficado assustada pela massa


uniforme.

- Anda à procura de trabalho?

- E quanto à condenação por furto?

- O Essex Club continua a pagar-Lhe?

Quando virou para a Fairfield, colidiu com vários repórteres em


passo de corrida, os que estavam na frente do prédio e que tinham
dado a volta ao quarteirão. Não conseguia prosseguir sem ter de
desviar do caminho, aos empurrões, os corpos e o equipamento,
mas, fisicamente, não era suficientemente forte para o fazer e,
quando olhou para trás, também ali tinham formado um bloco sólido.
Imagi nou-os a apertarem o cerco e a esmagá-la.

- É verdade que dormiu com Michael Crawford?

que era uma dançarina de cabaré em Times Square. - Justin Barr


disse.

desculpas ao cardeal? As perguntas surgiam velozmente,


sobrepondo-se e crescendo em espiral até ela ficar à beira do
pânico. Então, viu tudo, viu-se numa luta para abrir caminho ao
longo de Newbury Street e a tentar almoçar com Sara com a
imprensa a rondar, a interromper e a perturbar toda a gente no
restaurante. E não podia fazer isso. Nem a Sara, nem aos outros,
nem a si própria. O objectivo deste encontro era poder estar a sós
com uma amiga.

Arrepiando caminho, agitou os braços em volta num acesso de fúria


até encontrar uma amostra de caminho, e recuou aos ziguezagues
pela viela. Por um instante, quando usou a chave para abrir a porta
junto à garagem, temeu que eles entrassem à força, mas conseguiu
escapar e fechar a porta atrás de si. Trancou-a e depois pôs-se em
bicos de pés e espreitou através de uma janela pequena e suja no
alto, a tempo de ver os abutres, com ar desanimado, recuar e
retirar-se.

Agora a salvo, tremia de fúria. Atravessando a garagem, furiosa


como uma tempestade, apanhou o elevador até ao seu andar,
correu para o interior do apartamento, levantou o telefone e ligou
para o

Stephanie's. Só com grande esforço conseguiu manter a voz calma


quando disse:

- Chamo-me Lily. Combinei encontrar-me aí com uma amiga


chamada Sara, cerca de um metro e setenta, de cabelo castanho,
encaracolado e óculos. Pode dizer-me se ela já aí está? - segundo a
recepcionista, Sara não estava. - Bem, ela deve estar a chegar.
Importa-se de Lhe pedir que telefone à Lily?

Dois minutos depois, o telefone tocou.

- Meu Deus, Sara, desculpa - disse, sem qualquer apresentação.

- Não consigo chegar aí, eles não me deixam passar. Apinharam-se


à minha volta durante todo o percurso, enquanto descia a viela das
traseiras, por isso dei meia volta. Seria uma obscenidade conduzi-
los até ao restaurante, e não teríamos privacidade absolutamente
nenhuma. Lamento ter-te arrastado até aí.

- Quem é a Sara? - perguntou uma voz masculina, nasalada.


- Quem fala? - perguntou ela, aterrada.

- Tom Hardwick. Tenho andado a ler sobre ti no jornal, e, sabes,


parece-me que, já que não te podes continuar a encontrar com o
cardeal, percebes, pode ser que andes... à caça, sabes? Vinha uma
fotografia tua no Cityside, muito gira. Mesmo sexy. Tenho andado
com uma pessoa mas acabámos há pouco tempo, por isso,
percebes, estou aqui a pensar que estou livre e tu estás livre.
Consegui o número através da minha irmã. Ela é recepcionista do
teu médico. Só tenho vinte e três anos, mas adoro mulheres mais
velhas...

Lily desligou. Agoniada, olhou para o telefone, rezando para que ele
não voltasse a ligar, pensando que ele não teria o descaramento de
voltar a ligar-Lhe. Mas tivera descaramento para telefonar a primeira
vez, por isso não sabia o que esperar agora, e, além disso, o seu
sentido de expectativa tinha sido despedaçado nos últimos dias.
Tudo podia acontecer. Absolutamente tudo. Os seus juízos de valor
11 sobre as pessoas continuavam a ser tão pobres como quando
tinha dezasseis anos e andara a passear de carro com Donny
Kipling. Não havia dúvida que já o tinha demonstrado.

O telefone tocou uma, duas, três vezes. O gravador disparou. Após


terminada a sua própria mensagem de saudação, ouviu a voz de
Sara, num tom mais alto do que o habitual.

- Lily, o que é que te aconteceu?

Aliviada, Lily agarrou no telefone e contou-Lhe. À medida que


falava, a realidade da situação instalou-se.

- Sou uma prisioneira - concluiu, aturdida. - Uma prisioneira.

- Então, vou passar por aí - ofereceu-se Sara. - Conversamos em


tua casa.

Mas Lily tinha de pensar na sua situação de prisioneira. Tinha de


pensar sobre o que fazer a seguir e como, e tinha de o fazer
sozinha. Por isso agradeceu a Sara, prometeu telefonar-Lhe em
breve e desligou o telefone.

Passou o resto do dia às voltas no minúsculo apartamento,


deixando que as músicas estridentes de Wagner abafassem o toque
do telefone, sentindo-se alternadamente engaiolada, aterrorizada e
entorpecida. Também absolutamente impotente. E furiosa. Muito
muito furiosa. Furiosa com Terry Sullivan, Paul Rizzo e Justin Barr
por brincarem com a sua vida. Furiosa com o Post, o Cityside, e a
estação de rádio WROTAM, por permitirem tal coisa. Até mesmo
furiosa com o cardeal, por se livrar da confusão, deixando-a
enterrada nela até às orelhas.

Não podia ficar em Boston. Isso era evidente. Mesmo que a história
morresse no dia seguinte, seria alvo de olhares durante meses. Não
conseguia suportar isso - não conseguia suportar saber que milhões
de desconhecidos conheciam pormenores da sua vida privada, não
conseguia suportar ser alimento para os talk-shows, não conseguia
suportar a humilhação nem a sensação de injustiça. E depois havia
a questão do trabalho. Quem iria contratar uma mulher com a moral
de uma cobra? Ninguém que pudesse oferecer-Lhe o tipo de
trabalho que ela queria, disso estava certa.

A sua colega de quarto dos tempos de faculdade vivia em São


Francisco. Falavam várias vezes por ano, mas Debbie tinha um
marido e três filhos. Lily receava telefonar-Lhe agora, muito menos
Lhe apareceria à porta, temendo que a comunicação social
agarrasse com unhas e dentes este novo isco. O mesmo se
passava em relação aos seus amigos em Nova Iorque e em Albany.
Lily tinha medo de manchar as suas vidas. Se não podia estar com
um amigo, necessitava de um apartamento, mas, sem um salário?
Aquilo que tinha no banco não durava sempre. Não duraria muito
mais se não arranjasse trabalho.

Podia cortar o cabelo bem curto, pintá-lo de louro, e ir para qualquer


lugar diferente. Podia ser empregada de mesa. Tinha conseguido
pagar a universidade com um emprego de empregada de mesa.
Podia voltar a fazê-lo. Mas, sem conhecer vivalma? Sendo obrigada
a usar um nome falso e a mentir a todas as pessoas que
conhecesse? Isso não era vida.

A coisa que mais queria era justiça, mas não a via chegar nos
próximos dias. A seguir à justiça, o que mais queria era escavar um
buraco e enfiar-se nele. Estava cansada de repórteres e fotógrafos.
Estava cansada de ser espectáculo. Queria silêncio e privacidade.
Queria tornar-se invisível.

Mas os seres humanos não escavavam buracos para se enfiarem.


Iam para lugares onde pudessem esconder-se, lugares como Lake
Henry.

"Lake Henry, não", protestou; mas a ideia não Lhe saía da cabeça.
Lá, tinha um lugar para viver. Era seu, inteiramente livre de
encargos. Fora um legado da sua avó, uma pequena casa no lago,
separada do resto do mundo por um longo caminho de terra batida e
hectares de árvores.

"Lake Henry, não", gritou; mas era o mais parecido com o tal buraco
no chão que conseguiria encontrar. Era familiar. A casa estava bem
apetrechada. Pagava a uma habitante local para que fosse limpá-la
todos os meses, e era onde ficava sempre que ia de visita.

Maida não ficaria contente. Não iria querer Lily lá, não iria querer o
escândalo tão perto de casa, mas que outra hipótese tinha Lily? Das
suas opções, esconder-se no lago era a que fazia mais sentido. Lá,
podia pensar. Podia monitorizar o frenesim da imprensa, e decidir se
havia de Lhe fazer frente e como. Lá, podia respirar ar puro. Podia
passar tempo com Poppy.

O telefone tocou. Virou-se e fixou nele o olhar. Com um


surpreendente sentimento de saudade, imaginou que era Maida a
dizer-Lhe que sim, que fosse para a casa da avó. Imaginou Maida a
levar-Lhe a sua especialidade, uma fumegante carne assada em
recipiente de barro, cozinhada lentamente e temperada com louro e
salva, com cogumelos frescos e cenouras e um monte das
batatinhas vermelhas que uma amiga de Maida, MaryJoan Sweet,
cultivava no seu quintal. Imaginou Maida a ficar tão abalada quando
soubesse a verdade so bre o escândalo que insistiria para que Lily
ficasse em sua casa. Imaginou que falariam e chorariam juntas, que
se tornariam amigas.

"Sonhos", suspirou Lily, "apenas sonhos. "

Por isso não atendeu o telefone e, ao escutar a mensagem, ficou


satisfeita. Esta, tal como as anteriores, não era de ninguém que Lhe
interessasse.

Já tinha desistido de se interrogar sobre como é que o seu número


de telefone se tinha espalhado. "Confidencial" parecia ter seguido o
mesmo caminho dos "direitos civis". Podia ligar à companhia de
telefones para protestar, mas, com que fim? Podia amaldiçoar Mitch
por ter dado o seu número a Terry, e Terry por tê-lo dado a outro
qualquer, mas isso era o mesmo que pôr trancas à porta depois da
casa roubada.

Além disso, ia partir. Mais um dia e deixaria de ouvir aquele telefone.


Não tomaria duche na sua bela casa de banho com o chuveiro
envidraçado, não atravessaria o Jardim Público a caminho da
escola, nem cantaria de coração aberto para as pessoas que
adoravam a sua voz. Não faria nenhuma destas coisas, porque
Terry Sullivan, Paul Rizzo e Justin Barr tinham roubado a sua vida.

Caminhando de um lado para o outro enquanto o dia se esgotava e


os minutos se arrastavam cada vez mais lentamente, sentiu uma
raiva crua contra os três. Havia momentos de hesitação, momentos
em que voltava atrás e jurava, só por uma questão de princípio, não
deixar a cidade, mas essa bravata passava inevitavelmente,
deixando a verdade nua e crua. Não podia trabalhar, porque não
tinha emprego. Não podia ver os amigos, apanhar ar fresco ou
comprar comida, porque não podia sair do apartamento. E, ainda
que a imprensa não estivesse à sua espera para persegui-la para
onde quer que fosse, sair de casa naquele momento, naquela
cidade, significava para ela embaraço e um forte constrangimento.
Não era justo. Queria justiça. Mas não podia intentar uma acção nos
tribunais porque não tinha dinheiro. Nem tão pouco tinha ânimo para
desencadear uma guerra de três anos. Pelo menos uma guerra do
género daquela que Maxwell Funder descrevera.

A única coisa para a qual tinha ânimo agora era para fugir. Estava
farta de se sentir impotente. Precisava de retomar as rédeas da sua
vida, alguma vida, qualquer vida. Para isso, precisava de dormir.
Precisava de liberdade. Precisava de aconselhamento e, se o
espírito da sua avó fosse o único aconselhamento possível, tanto
melhor. Celia St. Marie tinha sido uma santa. Ela saberia o que fazer
a seguir. Ela saberia como procurar a justiça.

Quando a escuridão caiu, Lily encheu o carro, trancou as portas e


saiu da garagem. Estava perfeitamente à espera que restassem lá
fora alguns resistentes, até mesmo que um ou dois a seguissem de

carro, mas pensara despistá-los quando chegasse à Pike. De facto,


assim que começou a percorrer a viela surgiram figuras da
escuridão das sombras, empunhando equipamento, gritando
perguntas, fazendo-Lhe sinais para que baixasse o vidro da janela;
e, sim, um par de faróis começou a segui-la. Do que não estava à
espera, contudo, era que surgissem outros assim que virou à
esquerda, para a Cloucester. Voltando a verificar se a porta estava
trancada, fez uma rápida viragem à direita, para a Newbury. Para
seu horror, uma grande carrinha que estava estacionada à esquina,
equipada com uma antena de satélite, acelerou e juntou-se à
perseguição.

Lily acelerou, numa tentativa de desaparecer no meio do tráfego,


mas a rua era demasiado estreita. Os seus perseguidores
alcançaram-na facilmente. Na esperança de despistá-los, mudou de
direcção para a direita, na Hereford, depois novamente à direita,
passando um sinal amarelo, para a Commonwealth. julgou que os
seus perseguidores ficariam presos no vermelho. Mas a grande
carrinha passou despreocupadamente o vermelho. Quando teve de
parar noutro sinal vermelho, enquanto esperava para virar à
esquerda na Fairfield, e seguir por esse caminho em direcção à
Pike, não só a grande carrinha estava colada ao seu pára-choques,
mas também um motociclista com uma carteira de jornalista ao
pescoço começou a bater-Lhe na janela.

Quando o sinal ficou verde, meteu prego a fundo e, se não tivesse


voltado a pisar imediatamente o travão, teria atropelado o repórter

que contornava a frente do carro para se pôr ao seu lado.


Profundamente abalada, reviu o seu plano. Guiando devagar e

com cuidado, contornou completamente o quarteirão até chegar ao


lado oposto da viela da qual saíra apenas minutos antes. Desceu
lentamente a ruela estreita e virou para o seu prédio. Quando baixou
o vidro da janela para abrir a porta da garagem, o motociclista
aproximou-se e retirou o capacete. A luz de segurança accionada à
sua aproximação cintilou sobre a cabeça careca de, nem mais nem
menos, Paul Rizzo.

- Posso garantir-Lhe passagem segura - disse ele -, se me der um


exclusivo a revelar para onde ia e porquê.

Lily ficou encolerizada.

- Não há exclusivo nenhum. Vou entrar n-n-nesta garagem - lutou


contra a gaguez com todas as suas forças - e isto é propriedade
privada. Se você entrar quando esta porta se abrir, chamo a P-P-
Polícia - deu a volta à chave e subiu rapidamente o vidro da janela.
Assim que a porta da garagem se elevou o suficiente, avançou, mas
parou o carro assim que a porta ficou desimpedida e virou-se para
ver se alguém se tinha atrevido a entrar.

Não viu ninguém. A porta fechou-se. Continuou a guiar até ao seu


lugar de estacionamento.

Durante algum tempo, deixou-se ficar sentada. Não tentou sair do


carro, nem sequer destrancou a porta. Estava à espera que alguém
se aproximasse, alguém que se pudesse ter enfiado lá dentro sem
ela ver. Como ninguém veio, virou-se e olhou em redor. Não havia
dúvida, os carros formavam esconderijos perfeitos, e a garagem
estava cheia deles, mas não viu vivalma.

Saiu do carro, atestou os braços com tudo o que podia carregar e


apanhou o elevador para o terceiro andar. No entanto, em vez de se
dirigir para o seu próprio apartamento, dirigiu-se ao de Elizabeth.
Como esta não abriu a porta, sentou-se no chão com as costas
encos tadas à parede. Eram nove horas. Não sabia quando
Elizabeth apareceria, mas podia esperar. Não tinha nada melhor
para fazer.

As nove horas passaram a ser dez e Lily acabou por encostar a


cabeça ao saco e dormitar um pouco. Havia três noites que mal
dormia e estava exausta. Mas despertou ao toque de uma mão.

- Porque é que estás aqui fora? - perguntou Elizabeth.


Imediatamente alerta, Lily endireitou-se.

- Preciso da tua ajuda - explicou-Lhe o que tinha acontecido com o


carro. - Não posso continuar aqui, Elizabeth, e o problema não é
apenas o apartamento pequeno e escuro. É tudo. Ficar aqui não me
leva a lado nenhum. A imprensa não vai deixar isto morrer. O
problema é como sair daqui sem que me sigam.

Elizabeth ergueu o queixo.

- Eu sei como.

Lily devolveu o seu olhar firme.

- Eu também. Fazes isso por mim?

Na verdade, tinham dois planos diferentes. O plano de Lily era que


Elizabeth a levasse dali escondida no seu monovolume luxuoso,
apanhando depois um táxi para voltar para Boston, onde usaria o
BMW durante um dia ou dois, até que Lily pudesse arranjar maneira
de Lhe devolver o Lexus. O plano de Elizabeth começava da mesma
maneira mas passava por deixar Lily na discreta carrinha Ford que o
irmão de Elizabeth, Doug, largara na sua garagem em Cambridge,
enquanto estava a dar aulas em Bruxelas durante esse ano.

Já que o plano de Elizabeth permitia maior flexibilidade no que


respeitava a quando e como Lily devolveria o carro emprestado,
optaram por esse, e resultou sem dificuldades. Lily e os seus
pertences esconderam-se sem qualquer problema no porta-
bagagem do Lexus, debaixo de pilhas de bandeiras da campanha
de Kagan para governadora, e até Lily reconheceu nisso uma certa
poesia. No entanto, perguntou-se se Elizabeth não estaria a levar as
coisas longe de mais quando parou para barafustar com os dois
repórteres que estavam a fazer o turno da noite na viela.

Achariam eles realmente possível que Lily fosse sair àquelas horas
da noite? - perguntou Elizabeth com uma ironia perceptível. - A que
propósito? Para um rendez-vous fora de horas com o cardeal? Por
favor! Não estaria na hora de darem um pouco de sossego à
desgraçada? E onde ia ela? Beber um copo ao Lennox Lounge.
Queriam vir? Deviam aproveitar. Era ela que pagava.

Lily quase que morreu com esta última, mas Elizabeth sabia o que
estava a fazer. Os repórteres não iriam aceitar o seu convite.
julgavam que era uma armadilha para os fazer sair dali, para que a
sua presa pudesse fugir.

- Não pense que nos engana - disse um deles, e deixaram-se ficar.


Elizabeth desceu a viela e contornou o quarteirão, alcançando uma
Cambridge livre e desimpedida. Quando chegaram a casa de Doug,
entrou de imediato na garagem e apagou as luzes.

- Está velhota, mas é de confiança - garantiu, enquanto guardavam


as coisas de Lily na carrinha - O truque é o seguinte. Pisas no

acelerador duas vezes, fazes uma pausa, pisas novamente e dás à


chave. Resulta sempre.

Lily não podia dar-se ao luxo de se armar em esquisita. Sentou-se


ao volante, perdeu alguns instantes a confirmar onde ficava tudo,
depois baixou o vidro, pisou duas vezes no acelerador, fez uma
pausa, pisou mais uma vez e deu à chave. Sentiu um nó no
estômago quando o motor se engasgou. Mas, um segundo depois,
pegou e começou a roncar. Era um pouco barulhento, mas
trabalhava.

- Foste espectacular - disse a Elizabeth, à laia de agradecimento.


Elizabeth estava inclinada à janela.

- Ná. Se fosse, tinha insistido que estivesses presente na festa da


Kagan. Ou deixava-te levar o meu Lexus - deu uma palmadinha na
velha carrinha. - É o mínimo que posso fazer. Queres que te veja o
correio?

- Por acaso quero - Lily retirou a chave do correio do porta-chaves e


entregou-lha.

- Para onde queres que o envie?

- Fica com ele.

- Vais para onde?

Não tinha a certeza se o deveria dizer. Não era que não confiasse
em Elizabeth - ou melhor, até nem confiava mesmo: mais uma coisa
pela qual desprezava Terry Sullivan. Ele ensinara-Lhe que, a menos
que conhecesse alguém muito, muito bem, teria de ficar sempre de
sobreaviso.

Por isso, limitou-se a sorrir.

- Eu depois digo-te.

Fechou o vidro e acenou enquanto Elizabeth se afastava. Ao sair do


acesso, engrenou a primeira, acendeu os faróis e partiu.

A viagem demorou duas horas. Lily passou a primeira a olhar pelo


retrovisor, a fim de confirmar se estava a ser seguida.
Extremamente cuidadosa, até saiu da auto-estrada, mudou de
direcção, passou por um dos acessos, voltou a mudar de direcção e
prosseguiu para norte. Todavia, não tinha carros atrás de si.

Conseguira fugir. Batera a imprensa. Era uma pequena vitória,


tornada maior devido ao contexto em que se enquadrara. O prazer
que sentia prolongou-se até à segunda hora, tendo cruzado a
fronteira do Massachusetts com o New Hampshire e continuado
para nor1 te. Mas, a trinta minutos de distância de Lake Henry, o
entusiasmo deu lugar às preocupações. Colocou-se a hipótese de
estar a trocar uma série de problemas por outra, indo de mal a pior.
Isso, é claro, sem contar com a possibilidade de a imprensa voltar a
descobri-la. Se tal acontecesse, não fazia ideia de como proceder,
de qual seria a atitude dos nativos, do que a mãe poderia fazer.

Mas estava decidida. Quando saiu da auto-estrada olhou mais uma


vez para o retrovisor, e uma segunda vez quando passou pelo
centro de Lake Henry, mas estava tudo às escuras, tudo fechado
durante a noite, e não tinha carros atrás de si. O mesmo se passou
quando saiu da rua principal para a estrada que circundava o lago.
Ao fazer as curvas familiares, com o odor dos cedros a penetrar no
carro, sentiu a calma que o lago Lhe trazia sempre. Sim, existiam
preocupações, mas estas tinham a ver com as pessoas, não com o
lago. Nunca com o lago.

Saiu da estrada sinuosa para um caminho mais estreito que levava


até à margem, em Thissen Cove. A várias dezenas de metros da
água virou novamente, desta vez para um caminho de terra repleto
de sulcos. Seguiu-o até ao fim, desligou o motor e depois as luzes.

À primeira vista, o lago encontrava-se escuro como breu.


Gradualmente, os seus olhos adaptaram-se à ausência de faróis e
começou a distinguir as coisas. A casa era uma pequena estrutura
de madeira e pedra, à sua esquerda. À direita, árvores imponentes
recortavam-se contra um céu apenas um pouco menos escuro.

Descendo em silêncio do carro, parou e inspirou. A mata cheirava a


pinheiro, a folhas secas, a pedras cobertas de musgo e a lenha a
arder na lareira de um vizinho. Eram odores habituais em Lake
Henry, no Outono, mas em Lily evocavam visões da infância,
imagens agradáveis que tinham a ver com a avó. Atravessou a
pequena clareira entre a casa e o lago, caminhando sobre agulhas
de pinheiro, resultado da acumulação de anos, e sobre raízes
contorcidas das árvores, resultado de décadas de crescimento.
Desceu uma pequena escada de madeira e chegou à beira da água.

O lago estava plácido. Escutou o suave chapinhar da água contra a


margem, o leve restolhar da folhagem outonal sob a brisa nocturna,
o som distante de uma coruja. Distinguiu nuvens no céu mas, à
medida que olhava, estas abriram, deixando entrever as estrelas e,
mo mentos depois, a lua crescente - e depois... e depois chegou até
ela o tremolo profundo e melódico de um mergulhão.

Estavam a dar-Lhe as boas vindas a casa. Sentiu-o com a mesma


clareza com que sentiu a presença da avó. Subitamente, o contraste
entre o inferno que deixara para trás e a beleza daquela casa,
daquele lago e daquela cidade tornou-se tão forte e verdadeiro que
percebeu que tomara a decisão certa.

Sentindo-se com mais força do que nunca desde que lera o Boston
Post na terça-feira, regressou ao carro, tirou a chave da casa que
tinha na mala, subiu os degraus até ao alpendre de madeira e abriu
a porta.

John Kipling encontrava-se perfeitamente imóvel, sentado na canoa.


A mesma coisa que o mantivera acordado trouxera-o até ali de
madrugada, até à sombra de Elbow Island, em frente de Thissen
Cove. Poderia ter sido um instinto, um palpite ou um golpe de sorte.
Sorte? Que raios, nem pensar. Era simplesmente bom senso. Se a
vida dela na cidade se transformara no inferno que Kipling
imaginava, para onde mais poderia ir?

Mas só teve a certeza quando as luzes se acenderam dentro da


casa. Lá estavam elas. Murmurou, satisfeito:

- Boa!
Quando ouviu um tremolo suave característico em resposta, sorriu.
Apenas os mergulhões machos emitiam aquele som. Este não
pertencia ao casal que considerava seu, mas, de homem para
homem, percebia a satisfação sentida. Lera o artigo do Post e
conhecia na pele o quão traiçoeiro Terry Sullivan podia ser.
Conversara com Poppy, que se sentia devastada com o que a irmã
estava a passar, e falara com alguns habitantes da vila, que
possuíam opiniões divergentes sobre o assunto. Interrogou-se sobre
qual seria a verdade. Era a sua veia jornalística. Agora que Lily
Blake regressara à vila, agora que estava no terreno dele; podia
investigar.

Sorrindo com a antecipação, mergulhou o remo na água e dirigiu-se


a casa.

Lily dormiu profundamente e acordou desorientada. Precisou de um


minuto inteiro até perceber onde estava e de mais alguns segundos
para se recordar da razão. Depois veio-Lhe tudo de rajada: as
mentiras, a vergonha, a raiva, a perda. Cerrou os olhos e desejou
que as imagens desaparecessem. Mas elas faziam agora parte de
si, algo indelével que Lhe redefinira a vida de uma forma que nunca
imaginara. Sentiu-se a tremer por dentro. Tentou manter-se calma,
recordando a si própria que se encontrava em segurança. Apenas
Elizabeth sabia que ela deixara a cidade e ninguém fazia ideia de
onde estava. Todavia, o tremor persistiu.

Pensando que as imagens talvez não fossem tão nítidas se


estivesse levantada e activa a olhar para alguma coisa, saiu da
cama e dirigiu-se ao cimo da escada em espiral que descia da
espécie de águas furtadas que serviam de quarto. E resultou. O
alívio foi imediato. Claro que a magia pertencia àquelas quatro
paredes. Para Lily, a casa encontrava-se repleta de recordações
agradáveis. Quase desde que nascera que visitara ali a avó.

Celia St. Marie não era nativa de Lake Henry. Vivera os seus
primeiros cinquenta anos numa vila remota do Maine, a cerca de
cento e dez quilómetros a noroeste. Tendo ficado viúva cedo,
sustentara-se a si e a Maida fazendo a contabilidade de uma fábrica
de papel. Quando não estava a trabalhar, estava a pagar as fianças
dos irmãos, um bando de irresponsáveis. Mas Maida teve um bom
casamento. Não só George Blake possuía um bom negócio de
família que geria para o pai idoso, como também era dono de um
bom coração. Pouco depois do casamento com Maida, comprou um
lote de terreno para Celia e construiu-Lhe a casa onde passaria o
resto da vida.

Não era grande. Celia não quisera nada de muita dimensão. Como
vivera sempre em sítios apertados, sentir-se-ia sobrepujada por
muitas divisões. Chegava-Lhe ter a sua própria casa, algo que
nunca conhecera até então.

Por isso, quando George Lhe perguntou, ela pediu um chalé


simples. Pensou que, se iria tornar-se proprietária, com uma bela
vista para o lago, gozaria de espaço aberto no exterior e ficaria
confortável no interior.

Conforto era a qualidade que Lily associava à casa, a qual era feita
de madeira escura de alto a baixo, com muitas vigas expostas,
estantes embutidas e soalhos de tábuas largas. O rés-do-chão era
uma divisão única, dividida em zonas pelo mobiliário adequado. A
zona de sala de estar distinguia-se por um grande sofá forrado com
um padrão floral vermelho escuro, um par de cadeirões estofados,
com motivos florais cor-de-laranja escuro, dois candeeiros de pé alto
com quebra-luzes com motivos florais amarelos, e uma mesa de
centro quadrada em pinho, que fora bastante usada e estimada. A
zona de refeições continha uma mesa de madeira apoiada sobre
cavaletes que, de tempos a tempos, alojava meia dúzia de netos, os
de Celia e os das amigas.

A cozinha era pequena mas surpreendentemente moderna. Celia St.


Marie podia ser provinciana, mas era inteligente. Chegara a Lake
Henry com uma pequena conta poupança que foi crescendo ao
longo dos anos, o que Lhe permitiu liberdade financeira para evoluir
conforme ia precisando, adicionando comodidades que tornaram a
pequena casa absolutamente perfeita.
Mas não foi só a conta que cresceu. A própria Celia cresceu,
expandindo-se e tornando-se parte da comunidade. Fez amigos na
vila. juntou-se ao Clube de Jardinagem e à Sociedade Histórica, e
jogava bingo na igreja às segundas-feiras à noite. Com setenta anos
começou a usar bonés de basebol e ténis vermelhos,
respectivamente (segundo dizia) para cobrir o cabelo que rareava e
para a tornar visível no escuro. Mas Lily suspeitava, tal como toda a
gente que a conheceu enquanto envelhecia, que ela se limitava a
sentir-se realizada. Se assim não fosse; como explicar o robalo que
pescara durante um concurso no lago; empalhara e pendurara na
parede da cozinha? Ou a peça em macramé numa das paredes da
sala, um trabalho que era ao mesmo tempo delicado e magnífico,
pois só aprendera a fazer esse tipo de renda depois de se mudar
para Lake Henry? Ou o bengaleiro onde estavam pendurados não
só uma variedade de bonés de basebol, mas também um chapéu de
vaqueiro, um chapéu de golfe e um chapéu de passeio antiquado,
de aba larga? Como explicar, já agora, o quarto com a cama em
ferro forjado e

a profusão de casas de pássaros, algumas em tons pastel


penduradas nas vigas, um par diáfano utilizado como candeeiros no
telhado inclinado sobre a cama, uma mais vistosa com lenços de
papel e outra maior fazendo as vezes de cesto de lixo? Ou os
cartazes políticos reivindicando apoio a Teddy Kennedy, ao direito
de escolha das mulheres e a Hillary Rodham Clinton?

Celia St. Marie florescera nos seus anos dourados. Pela primeira
vez na vida, dissera o que Lhe ia na alma, o que incluía enfrentar
Maida no que dizia respeito a Lily. A pouca confiança em si própria
que Lily conseguira durante a infância viera dos braços da avó,
eternamente abertos para a receber.

Celia morrera havia seis anos, mas, sentada nos degraus na


extremidade do quarto, Lily sentia os braços em seu redor. O facto
de ter vestido uma das camisas de dormir de Celia ajudava. Era
comprida e macia e, por incrível que parecesse, dela ainda
emanava um leve odor ao óleo de banho de jasmim utilizado por
Celia.

Lily interrogou-se sobre o que pensaria a avó em relação aos


acontecimentos em Boston. Pensou no que poderia vir a acontecer
nesse dia. Não tinha ali televisão nem rádio, não por Celia não os
poder comprar, mas por ter escolhido ouvir os mergulhões em vez
da estática. E no Inverno, quando os pássaros partiam? Ouvira
discos, LPs antigos, até ao último dia da sua vida.

Lily tinha muita dessa música em CD. Estavam lá fora, trancados no


carro emprestado, juntamente com o leitor de CDs e com as roupas.
Mais tarde iria buscá-los. Não havia pressa. Estava a esconder-se

e não tinha muito mais que fazer.

Eram nove horas. A luz pálida do sol passava pelas árvores e


penetrava através da janela, banhando o soalho, um tapete
entrançado, o braço do sofá. Era uma visão calorosa e familiar,
reminiscente de uma infância de noites ali passadas. Costumava
acordar cedo e, sentada na plataforma onde ficava o quarto, com as
pernas a balouçar, cantava baixinho, depois um pouco mais alto,
subindo o tom de voz até que a avó acordava. Lily reteve a
recordação o mais que pôde, até que a lembrança de Boston se
intrometeu e fê-la arrepiar-se.

Desceu as escadas descalça, enrolou-se no xaile de croché que


estava sobre as costas do sofá e quedou-se onde um raio de sol
iluminava o chão. O calor transmitido deu-Lhe uma breve satisfação
antes de desaparecer. O Outono chegara. Assim que descarregasse
a carrinha, traria lenha do barracão.

Lá fora ouviu-se o grito de um mergulhão no lago. Agradada pelo


som familiar, Lily abriu a porta para o mundo resplandecente. Com o
sol matutino pelas costas, o lago reflectia o azul-escuro do céu
ocidental. Das árvores, cujas folhas exteriores já tinham mudado de
cor, emanava um vermelho e um dourado de fogo, tons destacados
pelos cedros de cores escuras e profundas. Notou o aroma do
bálsamo, dos pinheiros, das folhas secas de ácer, de faia e de
bétula. Estava uma manhã plácida e serena, em tudo diferente da
cidade.

O mergulhão voltou a gritar, mas não se deixava ver. Arriscando-se


a ficar com os pés ainda mais frios, percorreu o solo coberto de
pinhas, entre pedras cheias de musgo, descendo os degraus até à
margem. Gostaria de se sentar na doca, mas não queria que Lake
Henry soubesse que ali estava. Por isso, encolheu-se num dos
cubículos criados pelas raízes expostas dos pinheiros, tão
característicos de Thissen Cove, observando e aguardando nesse
local.

O lago encontrava-se sereno. Da mata atrás dela chegava o trinado


de uma felosa, e do lago o murmúrio da água nas pedras. Quando o
mergulhão voltou a gritar, dirigiu a atenção para Elbow Island,
esperou que os olhos se adaptassem e perscrutou o reflexo das
árvores na água junto à margem da ilha, até que o avistou. Ou
melhor, os avistou. Estavam ali duas aves, facilmente identificáveis
pelos bicos aguçados e pelo movimento gracioso das cabeças e dos
pescoços. Interrogou-se sobre se haveria mais algum, talvez a
ninhada do Verão, mas não conseguia ver com clareza. Animada,
deixou o abrigo, correu até à casa e regressou com os binóculos de
Celia. Chegara ao cimo dos degraus de madeira quando avistou o
pequeno barco a motor que encostara à doca.

Imobilizou-se. O homem do barco trazia óculos escuros, mas não


havia dúvida de que olhava para ela. Aqueles cabelos castanhos
desgrenhados pelo vento, o maxilar tão quadrado, cujo formato a
barba

cerrada não conseguia ocultar, a postura alerta tão semelhante à


dos abutres que deixara para trás - sabia quem era, oh, se sabia. E
também sabia que ele a conhecia, o que fazia com que correr a
esconder-se fosse inútil.

Espantada, triste, furiosa por ter sido descoberta tão depressa,


ainda por cima por um homem que odiava por dois motivos, entrou
em casa, trouxe uma cadeira da cozinha até à porta de entrada,
subiu para ela e retirou a arma de Celia dos ganchos onde estava
pendurada, por cima da entrada. Voltou a abrir a porta e saiu
intempestivamente. Por essa altura, John Kipling encontrava-se já
no relvado, a meio caminho da casa. Tirara os óculos escuros, mas
continuava imponente. Alto e elegante, caminhava como um homem
seguro de si.

Ela evitara-o sempre que vinha a casa, mas sabia onde ele estivera
e o que fizera antes de regressar a Lake Henry. Poppy contara-Lhe.

- Nem mais um passo - gritou do alpendre, com a voz a tremer de


fúria. Em Boston podia ser indefesa, mas já não se encontrava na
cidade. - Estás a invadir a minha propriedade.

John estacou. Com movimentos cuidadosos, pousou no chão um


grande saco de papel, a menos de três metros do alpendre. Quando
se endireitou, mostrou as mãos. Depois baixou-as lentamente, virou-
se e começou a dirigir-se ao barco.

Estava descalço e vestia uma camisola cinzenta e calções de ganga


cortados. Se as circunstâncias fossem outras, ela poderia ter-Lhe
apreciado as pernas, mas naquele momento nem reparou nelas.

- Alto! - ordenou Lily. Não o desejava ali mas, já que viera, queria
saber o motivo. De certeza que estava a tramar alguma. Tal como
os acontecimentos recentes Lhe haviam ensinado, os jornalistas
estavam sempre a tramar alguma coisa. - O que está dentro do
saco?

Ele parou e virou-se devagar, ostentando uma expressão prudente.

- Coisas frescas. Ovos, leite, legumes, fruta.

- Porquê?

- Porque só tens coisas enlatadas em casa.


- Como sabes?

- A mulher que trata da casa é tia da minha assistente.

- E foste perguntar-Lhe? E ela contou-te? - mais uma traição, mais


outro receio. Mas estava em Lake Henry, não podia estar à

espera que as coisas fossem diferentes. - A q-q-quem mais é que


ela contou?

- Só a mim - respondeu John, com mais gentileza - e só porque Lhe


perguntei. Estava a tentar pensar para onde iria, caso me
encontrasse na tua pele. Imaginei que viesses para aqui.

Lily procurou algum traço de presunção mas, se lá estivesse, a


barba ocultava-o.

- Como soubeste que tinha vindo?

- As luzes estavam acesas à uma da manhã. Com todas as outras


apagadas, era difícil não dar por isso.

- Mas a casa não se vê da estrada.

- Pois não. Eu moro no lago.

Mais uma coisa que Poppy Lhe contara mas, mesmo sem ela, Lily
também o saberia. Um Kipling no lago, vindo de Ridge, fora motivo
de conversa na vila. - No lago onde?

Os olhos dele não mostraram qualquer tipo de evasiva. Ainda assim,


hesitou, como se ponderasse uma outra resposta. Finalmente disse:

- Wheaton Point.

Bem, pelo menos não mentira quanto a isso. Poderia ter tentado,
mas talvez imaginasse que Lily já soubesse a verdade.
- Daí não se vê Thissen Cove - ripostou, não querendo que ele a
tomasse por tola. - Quer dizer que estavas no lago. À uma da
manhã?

- Não conseguia dormir.

- E agora vens trazer prendas - sentiu-se agoniada. O seu escon


derijo fora descoberto, e pelo pior dos inimigos. - O que queres?

- Pousa a arma e falamos.

Ela baixou o cano mas manteve-se pronta.

- O que queres? - repetiu.

John enfiou as mãos nos bolsos de trás.

- Ajudar.

Lily soltou uma gargalhada de descrença.

- Tu? Tu és da imprensa. E, ainda por cima, és o irmão mais velho


do D-d-donny.

- Pois, sabes, quanto a isso não tive grande escolha - retorquiu. Não
estava cá quando tudo aquilo aconteceu entre vocês.

- E se estivesses? Terias defendido o teu irmão, como fez o teu pai,


como fizeram as tuas tias, os teus tios e os teus primos.

- Ele era um jovem problemático. Estavam a tentar ajudá-lo. já tinha


cadastro. Teria apanhado o dobro do tempo se não dissesse que o
tinhas convencido. Foi essa a história que vendeu ao meu pai, tios,
tias e primos. E acreditaram nele. Pensaram que fosse a verdade.

- Mas não era.

John respirou fundo e endireitou-se mais.


- Eu sei. Ele contou-me. Estive com ele no hospital, no dia antes de
morrer.

Donny Kipling cumprira pena pelo alegado furto com Lily, bem como
por arrombamento, dois anos depois. Outros dois anos volvidos
tivera um acidente de carro durante uma perseguição policial.
Morrera no hospital uma semana mais tarde, com vinte e nove anos
de idade. Isso acontecera há dez anos. Na altura, Lily estava em
Nova i lorque, a acabar de formar-se. Quando Poppy Lhe contou,
sentiu uma pontada de tristeza, não por sentir alguma coisa por
Donny, mas por a humilhação da experiência que vivera com ele
parecer ter sido ainda mais inútil.

- Sinto muito - disse depois, em parte por Donny ser irmão de John,
mas também por este ter admitido a verdade, coisa por que não
esperara.

Mas John parecia imerso em pensamentos.

- Ele não passava de um desastre que só estava à espera de


acontecer. Não sei o que correu mal. Ele não tinha problemas... foi
perfeito, até aos dez anos. O mau era eu. Por isso mandaram-me
embora e Donny ficou e assumiu o meu lugar - os olhos dele
procuraram os dela. - Se servir de algum consolo, o meu pai nunca
mais foi o mesmo desde que o Donny morreu. É um homem
atormentado. Podes odiá-lo, se quiseres, mas está a ser bem
castigado.

"Ainda bem", queria Lily dizer. Mas avistara Cus Kipling na cidade,
há alguns anos. Sim, aparentara estar velho e abatido, como se
estivesse a sofrer. Para Lhe desejar ainda pior, Lily teria de possuir
o mais frio dos corações.

Mas com John era diferente.

Lançou uma olhadela à comida.

- Então isto é por te sentires culpado?


John produziu um som nasal, mais um suspiro do que uma
gargalhada.

- Isso é que é ser directa.

- Não tenho tempo para estar com rodeios. Vim para me esconder e
descobriste-me. Agora tenho de me ir embora.

Ele ficou imediatamente sério.

- Não, não tens. Não vou dizer a ninguém que aqui estás. Lily
revirou os olhos.

- Porque haveria de fazer tal coisa? - indagou John.

- Pertences à imprensa. O trabalho da imprensa é divulgar as


notícias. E isto é uma notícia.

- Isto é entre nós os dois.

- Entre nós e mais quem? O Post? O Cityside? Ou estás a pensar


em voos mais altos, como um serviço de notícias a nível nacional?
Escreves um artigo e envia-lo para dezenas de jornais.

John manteve-se firme e abanou a cabeça.

- Não vai haver um artigo no Lake News de quinta-feira? - perguntou


ela.

- Não.

Não acreditava nele e mostrou-Lho com um olhar. Sustendo-o,


enrolou-se mais no xaile, com a caçadeira sempre debaixo do
braço.

- Meu Deus - exclamou John, com um suspiro profundo. - És difícil.

Baixando as defesas por uns instantes, Lily gritou:


- Fazes ideia daquilo por que passei na última semana?

- Faço. Faço, sim - tinha os olhos sombrios e perturbados. - Já por


lá passei, Lily. Sei muito bem do que os jornalistas são capazes -
seguiu-se uma pausa. - Até eu já o fiz também.

- Foi o que me constou.

- Óptimo - agora os olhos dele pareciam subitamente desafiadores. -


Então vamos pôr as cartas todas na mesa. Aquilo que deves saber,
provavelmente o que Poppy te contou, ou Maida, ou qualquer outra
pessoa daqui; é que destruí uma família. Escrevi um artigo sobre um
político do Connecticut que entrara nas primárias para a presidência
e não revelou que, em tempos, estivera envolvido com uma mulher
casada de alguma importância. O caso terminara anos atrás,
quando ele próprio se casara, mas o fedor a adultério tinha ficado no
ar e havia o fascínio dos pormenores lascivos, algo

que é sempre uma garantia para a subida das tiragens dos jornais."
O homem tinha inimigos e eu gostava de falar com eles. Por isso a
história veio a lume e, graças a uma hipocrisia estúpida, o partido

retirou-Lhe o apoio. A carreira política do indivíduo terminou, a par


do casamento e do relacionamento com os filhos, que quiseram
afastar-se dele. A humilhação pública era demasiado penosa - fez

uma pausa e um músculo pulsou-Lhe debaixo do olho. - Não me


esqueci de nada?

- Esqueceste-te da parte sobre a assistente loura - disse Lily.

- Não me esqueci. Omiti-a. Afinal de contas, não era verdade. Não


havia qualquer caso com uma assistente loura, mas isso só se veio
a saber mais tarde. Por essa altura, já a mulher e os filhos tinham
engolido a história toda.

- Não mencionaste a parte sobre o suicídio do indivíduo -


acrescentou Lily, fazendo questão de não Lhe poupar nada.
O músculo pulsou novamente.

- Pois, sabes, é com isso que tenho de viver hoje em dia. Se pensas
que esse suicídio não me afectou a vida, estás muito enganada.
Tem vindo a assombrar-me desde o dia em que aconteceu. Depois,
quando regressei ao trabalho, sentia-me mutilado. Não era capaz de
fazer o trabalho que o jornal queria, ficava paralisado com os "e se"
e com os "e depois". Por isso, vim-me embora. E deixa-me que te
diga, ainda penso naquele suicídio, e muito. É a maior das
influências no trabalho que faço agora - contraiu os lábios e depois
relaxou-os. Susteve-Lhe o olhar. - Portanto, Lily, mais do que
ninguém nesta cidade, compre endo aquilo por que passaste.

Ela fitou-o por alguns instantes, querendo acreditar, e baixou mais


uma vez as defesas.

- Não queria vir para cá. Se tivesse outro sítio para onde ir, tinha ido.

- Foi o que imaginei. Mas não preciso de dizer nada para que as
pessoas descubram que aqui estás. Vão acabar por ver uma luz,
como eu. Ou o fumo a sair da chaminé. Ou então vêem-te no
alpendre, ou junto à água.

- Ou então vêem-te a ti a fazer compras e a trazê-las - contrapôs


Lily. Mal acabara de pronunciar estas palavras e já se assustara
com a forma como a sua mente começara a funcionar. De repente, a
mais inocente das atitudes era suspeita.

Mas ele estava a abanar a cabeça.

- Estou sempre a comprar coisas destas para o meu pai, na loja do


Charlie. Ele nem pensou duas vezes quando Lhe fiz as compras,
esta manhã. Portanto, não te preocupes comigo. Mas já sabes como
é Lake Henry. Não te consegues esconder por muito tempo.

- Não faz mal - anunciou em tom de bravata. - Não tenciono ficar


muito tempo. Assim que as coisas acalmarem regresso a Boston.
John lançou-Lhe um olhar de dúvida, arqueando ligeiramente as
sobrancelhas.

- Ou então vou para outro lado qualquer - completou ela, embora o


objectivo continuasse a ser Boston. Não era justo que
permanecesse banida para sempre. Não podia acreditar em tal
hipótese. Além do mais, não se via a passar o resto da vida em
Lake Henry. Celia morrera, Poppy era a sua única defensora
garantida e, mesmo não pensando no antigo caso com Donny, havia
por ali demasiados desgostos.

"Mas, se não aqui, onde?" interrogou-se, com um receio súbito.

- Oh, meu Deus - murmurou, começando a sentir-se mais uma vez


dominada pela sua situação complicada.

Avaliando correctamente as emoções no rosto da jovem, John


adiantou:

- Tenho o Post de hoje no barco. Não é tão mau como nos últimos
dias.

Lily não queria saber, mas não podia dar-se ao luxo de o ignorar.

- O que é que diz?

- Que estás fechada no teu apartamento - comentou, desta vez com


verdadeira presunção. - Depois a história muda para Maxwell
Funder. Citam-no até à exaustão sobre os direitos da Primeira
Emenda, a diferença entre uma pessoa pública e uma pessoa
privada, a natureza dos casos de difamação. Também há
comentários de outros advogados, que eles consideram peritos no
assunto. Especula-se sobre o processo legal que podes vir a
interpor. Contrataste o Funder?

Lily abanou a cabeça:

John coçou a sobrancelha.


- Ele dá a entender que sim. Não o diz directamente, mas deixa a
hipótese bastante em aberto. Talvez devesses fazê-lo.

- Não tenho dinheiro para isso. Além disso, eu contra o Post?

- Que tal tu contra Terry Sullivan?

Lily não abriu a boca. Não mencionara o nome a John Kipling.

- Ficas a saber mais uma coisa a meu respeito - disse ele, num tom
já isento de sarcasmo. - Eu conheço o Terry Sullivan. Fomos
colegas de curso e depois trabalhámos juntos no Post. Resolveu
encarar-me como competição e tramou-me.

- De que maneira?

- Lembras-te da assistente loura? Era um contacto do Terry. Na


altura, fiquei surpreendido que me tivesse dado o nome dela, em
vez de ser ele a usá-la, mas disse que a história era minha e que
respeitava isso. Não estou a dizer que Lhe tenha indicado o que
fazer, mas ele sabia que a mulher ia mentir. Ora isso significa que
me tramou deliberadamente. Não me interpretes mal, não estou a
culpá-lo pelos estragos que causei. A loura era só mais um peão no
meio do jogo. Se não tivesse sido tão ambicioso e a tivesse
investigado devidamente, não teria publicado a história que ela me
contou. Só estou a dizer que guardo algum rancor a Terry Sullivan.
É algo que tu e eu partilhamos - virou-se e fez menção de se
afastar.

- Não tenho rancor - explicou Lily, com sinceridade. - É pior do que


isso. Se esta espingarda estivesse carregada e tu fosses o Sullivan,
tinha-te dado um tiro assim que te vi.

John baixou a cabeça, ainda de costas para Lily. Quando se virou,


ela viu um sorriso de esguelha. E, por um instante, nada mais do
que um segundo, sentiu algo que os unia.
Depois John deu outra vez meia volta e afastou-se. já alcançara os
degraus para a praia quando gritou:

- Tenho munições! Se as quiseres, telefona-me!

John ligou o motor e deslizou pela água, mas as emoções que se


agitavam dentro de si contradiziam o ritmo lento. Três anos antes,
ao regressar a Lake Henry, trazia um plano. A edição semanal do
Lake News serviria para pagar as contas, enquanto, ao mesmo
tempo, escreveria um livro que Lhe traria fama, fortuna e a
justificação para ter abandonado Boston - e ele bem tentara.
Escrevera o início de uma dúzia de livros. O problema era que
nenhum deles o interessou o suficiente para continuar.

Mas este seria diferente. Tinha o potencial para se transformar em


alguma coisa em grande. Quanto mais pensava no assunto, maior
ele se tornava. A situação de Lily era o microcosmos de um
fenómeno maior e cada vez mais assustador. A comunicação social
estava descontrolada. Os direitos individuais, no caso dela o direito
à privacidade, estavam a ser violados. Sabendo-se culpado da sua
própria dose de violação, John conhecia a forma de pensar da
imprensa, o que fazia dele o indivíduo perfeito para escrever esse
livro. O assunto tratava de algo que preocupava, enfurecia e
cansava um sem número de pessoas.

Tratava-se da história de Lily.

Era também, ao mesmo tempo, a história de Terry. Sullivan escrevia


excepcionalmente bem; na verdade, era um mestre com as
palavras, e tinha perfeita consciência disso. Era arrogante e
ambicioso. Mas a ambição por si só não explicava a maldade que
arruinava pessoas inocentes. john conhecera jornalistas suficientes,
o que Lhe permitia separar os conscientes dos que se deixavam
levar. Regra geral, estes últimos possuíam algum motivo que
extravasava o campo do profissional.

John era o exemplo perfeito. O seu ímpeto era uma necessidade de


se afirmar que remontava à infância. Quando era pequeno, mani
festara-se em pequenos delitos na escola e em confrontos de menor
importância com a lei. Quando deixou Lake Henry, o ímpeto
enveredou pelo caminho mais positivo da competitividade no
desporto, na escola e no trabalho. Este, contudo, culminara no
resultado desastroso no Post, após o qual a sua necessidade de se
fazer notado fora silenciada.

O ímpeto regressava com a perspectiva da escrita do livro. Sim.

Queria ser conhecido, qual era o jornalista que não o almejava? Mas
agora já era dono de uma consciência. Pelo menos, imaginava que
fosse isso por detrás do autodomínio que sentia quando imaginava
Lily Blake no alpendre, com a camisa de dormir cor de marfim e o
xaile da avó. Compreendia mesmo o que ela sentia. O que poderia
ser melhor do que ajudá-la a vingar-se, ao mesmo tempo que se
redimia a si próprio, quer como escritor quer como ser humano?

John tomara as devidas precauções ao aproximar-se da casa de


Celia, vagueando ao longo da margem, fingindo procurar
mergulhões, e regressou da mesma forma, com as manobras
pachorrentas por que os residentes das margens do lago o
conheciam. Manteve o ritmo de passeio até passar por quatro
propriedades e depois acelerou em direcção ao meio do lago.

Dez minutos mais tarde, guiou o barco para a margem e prendeu-o


ao lado da sua canoa, no amontoado de remendos de madeira a
que chamava doca. Um dia arrasaria aquilo e ergueria no seu lugar
uma

doca bonita. Na extremidade ficaria um grande quadrado com uma


cobertura para dar sombra a uma secretária, uma cadeira e uma
máquina de escrever. Seria aí que redigiria o seu trabalho, com o sol
reflectido na água e os mergulhões a voar nas proximidades. Se
chovesse, era só desenrolar uma janela ou duas de plástico.

Era uma visão à Hemingway, pensou, e que não era totalmente


descabida para alguém de quem se dizia ser um primo distante de
Rudyard Kipling.
Após prender o barco, retirou um segundo saco de mercearias,
colocou-o na carrinha, sentou-se ao volante e arrancou. O ar estava
frio, mas manteve os vidros abertos. Era mais um belo dia de
Outono, outro dia para se apreciar o esplendor da folhagem, cujo
apogeu a nível de cor só chegaria dali a uma semana ou duas.
Atravessou estradas privadas que se dirigiam a Mully Point e a
Seizer Bay e, mais além, a Cemini Beach e Lemon Cove. Thissen
Cove ficava a seguir. Teve perfeita consciência de passar pelo
acesso estreito que lá ia ter e, por um momento, interrogou-se sobre
se Lily iria fugir.

Correra um risco calculado ao ir ao seu encontro. Todavia, se a


expressão no rosto dela fosse indicadora de algo, tomara a atitude
correcta. Lily não tinha para onde ir e sabia disso. Satisfeito,
continuou no seu trajecto em redor do lago. No centro de Lake
Henry vivia-se uma azáfama. Se os habitantes não estavam a ir
buscar correspondência aos correios, compravam mantimentos na
loja de Charlie, ou entravam no estacionamento das traseiras. Aí
ficava a esquadra da Polícia, a igreja e a biblioteca, da esquerda
para a direi ta. Os três edifícios eram brancos com portadas pretas e
cada um desempenhava várias funções. A esquadra era uma
estrutura comprida de piso único que também albergava o cartório,
o registo civil e os serviços sociais. A biblioteca, um edifício Federal
quadrado, cedia o generoso terceiro andar à Comissão de Lake
Henry. A Sociedade Histórica funcionava na cave da igreja, que se
erguia imponente, venerável e orgulhosa.

Naquele dia, a Sociedade Histórica ia organizar uma venda de flores


e plantas, o que significava que estariam ainda mais carros e
carrinhas alinhados contra a igreja, e não sairiam de lá tão cedo. As
vendas de flores e plantas em Lake Henry (tal como as vendas de
bolos, de arte ou de bugigangas) serviam igualmente de ponto de
confraternização. Havia sempre tantas pessoas junto dos veículos, a
falar em grupos e a acenar aos amigos, como as que compravam
flores e plantas.
John perscrutou os carros e as carrinhas, distinguindo um ou dois
que não reconhecia. "Turistas de passagem? ", pensou. "A imprensa
disfarçada?" Procurou câmaras por entre a multidão, mas não viu
nenhuma. "Hoje, não. Ainda não. "

Aliviado, saiu do centro da cidade, chegando à bifurcação onde a


estrada principal cortava para Ridge Road. Tinha o seu simbolismo,
esse corte. A partir daí, a estrada era diferente. O gelo provocara as
mesmas rachas que nas restantes vias da povoação, contudo, estas
pareciam mais fundas, e os buracos daí resultantes aparentavam
ser maiores. O solo não era mais seco do que qualquer outro de
Lake Henry, mas os pneus levantavam mais poeira, o que dava um
ar mais enfadonho a tudo o que a vista conseguia abarcar. Os
áceres eram mais queimados do que cor-de- laranja, as bétulas
mais macilentas do que amarelas. Até mesmo os ramos dos abetos
pendiam, como se o seu peso fosse demasiado.

O lago podia cheirar a Outono, no centro da vila podia sentir-se o


aroma do que estava sobre a grelha de Charlie, mas em Ridge
cheirava sempre mal. Se não fosse um problema com as
canalizações, era o lixo ou um fogo. Estava sempre qualquer coisa a
queimar, uma correia de ventoinha, um fusível, um motor
insignificante que empestava a zona, e o fedor permanecia, pois o
ar não circulava devidamente. Com o lago de um lado e a colina do
outro, os odores limitavam-se a assentar: Ridge era uma plataforma
comprida e larga, enfiada na colina a várias dezenas de metros
acima do lago. Uma estrada marcava a margem. Na encosta
encontravam-se fileiras de pequenas casas de três assoalhadas e
telhados de zinco; construídas no virar do século pelos donos da
fábrica, a fim de albergar os empregados. Na altura não fora um
mau lugar para se viver. Os Winslow, proprietários da fábrica, eram
generosos e atenciosos. Mantinham as casas sempre pintadas e em
condições, isolavam-nas, retiravam o entulho, arrancavam os fetos
para que a erva crescesse, a fim de que as crianças

tivessem um lugar seguro onde brincar. A quarta geração de


Winslow a gerir a fábrica também era generosa e atenciosa. No fim
da década de sessenta, quando a liberdade se tornou a palavra de
ordem, tinham sido uma das primeiras empresas a dar aos
empregados uma parte dos lucros. Como parte do plano,
considerado extremamente altruísta na altura, venderam as
pequenas casas aos seus moradores, por um dólar cada.

A partir daí, Ridge começou a decair. O orgulho que inicialmente


mantinha as coisas a funcionar deu lugar ao interesse e ao dinheiro.
Cada vez mais as janelas partidas eram cobertas com tábuas e
dava-se a volta às escadas quebradas. Os telhados enferrujaram, a
tinta descascou, os estores caíram, os carros deixaram de funcionar
e foram deixados onde tinham parado, e nada disso por falta de
habilidade. Depois de a automatização ter reduzido o emprego na
fábrica, as pequenas casas foram ocupadas por mão-de-obra
barata. Eram pagos para manter Lake Henry em condições mas,
quando chegavam a casa, toda a sua energia encontrava-se
exaurida. No seu lugar ficava uma mistura horrível de tédio,
frustração e raiva. Assim sendo, estes homens de mãos habilidosas
davam-Lhes um uso mais cruel nos seus lares. A maior parte dos
esforços da Polícia de Lake Henry era empregue a atender às
queixas de violência doméstica em Ridge.

Havia um livro em Ridge. john sabia-o. Entre o passado e o


presente havia vários livros, mas nenhum que ele pudesse escrever.
Estava demasiado próximo.

Ao chegar ao topo, mal conseguia avistar as fileiras de casas


arruinadas, ocultas entre as árvores, como carraças no pêlo de um
cão. Mas o cão era sarnento. E mau. Ainda mal John acabara de
passar os primeiros indivíduos sentados nos degraus partidos dos
alpendres e já começavam a fitá-lo.

Traíra Ridge ao mudar-se para o lago. Não interessava que um


deles tivesse subido na vida. Pouco importava que tentasse ajudar
os que tinham ficado para trás. De que valia utilizar o jornal como
forma de protesto em defesa deles? Vê-lo recordava-Lhes tudo o
que nunca poderiam ser. Longe da vista, longe do coração, e o
sentimento era mútuo. john implorara ao pai para que fosse morar
com ele no lago, mas Cus Kipling rejeitara a ideia com o mesmo
desdém que mostrava por tudo o que John fazia. Por isso, John
mantinha-se estóico e visitava-o duas vezes por semana, mais
amiúde se houvesse algum problema e Dulcey Hewitt Lhe
telefonasse.

Dulcey vivia ao lado de Cus. Tinha três filhos pequenos e um


exterior duro. Teria de assim ser, para suportar Cus, apesar de John
Lhe pagar pela tarefa.

Preparando-se psicologicamente, John estacionou junto da casa do


pai. Em tempos fora também a sua casa, mas as recordações eram
dolorosas. Por isso distanciava-se, tal como fazia com Ridge. Ao vê-
la agora, a casa era a cara de Cus. Nem John, nem a mãe, nem o
irmão moravam ali. john chegara ao ponto de Lhe mudar o aspecto,
pintando-a de azul-cobalto, acrescentando-Lhe um alpendre a toda
a volta e plantando arbustos resistentes no pátio, que não
morressem devido à negligência de Cus.

Com o saco das compras no braço, saiu da carrinha, cruzou o


alpendre e abriu a porta. A casa estava uma confusão, mas isso não
era novidade. O pai gostava de desordem. john ficava sempre
espantado com a forma como um homem com dificuldades na
locomoção era capaz de criar tanto caos em tão pouco tempo.
Dulcey dizia-Lhe sempre o mesmo, num tom apologético, pois Cus
fazia com que parecesse que ela nunca lá ia, embora, na verdade, a
mulher arrumasse a casa duas vezes por dia. Pelo menos debaixo
da confusão a casa estava limpa.

- Cus? - chamou. Pousando o saco na cozinha minúscula, procurou


no quarto e na casa de banho. Regressando à cozinha, abriu a porta
das traseiras e sentiu algo dentro de si a contorcer-se. O pai estava
no fundo do quintal diminuto, uma criatura esquelética, dobrada, de
cabelo grisalho, arrastando-se pela erva à altura dos joelhos,
enquanto transportava uma pedra que a ciência médica garantia
que ele já não seria capaz de erguer.
- Cristo - murmurou John, descendo os degraus e atravessando o
quintal. Em voz alta perguntou: - O que estás a fazer, pai?

Gus pousou a pedra sobre um muro irregular de rochas


semelhantes, empurrou-a e arrastou-a até a virar para um lado,
depois para o outro, conseguiu finalmente erguê-la e afastou-se
noutra direcção a arrastar os pés.

- Supostamente, estás fraco - recordou-o John. - Supostamente,


devias estar a deixar que o teu coração recuperasse.

- Para quê? - resmungou Gus com a voz incerta. Parou junto de


outra parte do muro e depositou a pedra com um baque que seria
impensável nos seus dias de outrora. - Se não posso assentar
pedra, antes quero morrer.

- Aposentaste-te há dois anos.

- Tu é que disseste isso, não fui eu. Tu é que pintaste a minha casa.
Tu é que compraste tapetes e o sofá. Tu é que compraste o
microondas e a televisão. O computador. Não quero cá nada disso -
resmungou com um aceno da mão nodosa. - Tudo o que quero é as
minhas pedras. - Com esforço, virou a que tinha transportado.
Empurrou-a para a esquerda, depois para a direita. Depois
praguejou e resmungou: - A maldita não cabe.

John observara o pai vezes suficientes para saber como construir


um muro de pedra. Duas fileiras de pedras determinavam a
profundidade do muro. A fim de providenciar estabilidade, a cada
dois metros ao longo do comprimento os pedreiros adicionavam
uma pedra maior que abrangesse a profundidade. Era essa pedra
que Gus tentava agora fazer encaixar.

- Costumava acertar à primeira - cuspiu Gus em surdina. - Agora


não consigo acertar e pronto. Nem à primeira, nem à décima -
levantou a perna e deu um pontapé no muro com a bota. O ressalto
fê-lo cair de traseiro no chão.
John apressou-se a ajudá-lo a levantar-se, mas este era um
processo lento, tão fisicamente doloroso para Gus como
emocionalmente para o filho. Lembrava-se de um homem robusto e
incansável, que trabalhava de sol a sol, escolhendo a pedra ideal
para determinada parte de um muro, posicionando-a, deslocando-a
para uma zona melhor, procurando a disposição perfeita em relação
às restantes, tanto por uma questão prática como estética. A
alvenaria de Gus Kipling era mais artística do que devia ser.

Agora era um homem encanecido, com a pele enrugada devido ao


sol, à neve e a uma vida de expressão carregada, e marcado por
anos de trabalho físico. Em tempos fora elegante, mas o rosto ficara
desfigurado com a idade, deixando um olho mais elevado e mais
aberto do que o outro. A maior parte das pessoas recuava perante a
dureza que era assim transmitida. Para John, apenas Lhe dava um
ar mais patético.

Foi preciso um minuto até Gus se equilibrar e outro até conseguir


soltar o cotovelo do apoio de John. Este dirigiu-se à pedra que não
estava bem.

- Diz-me onde a queres.

- Tu não sabes fazer isso! - bradou Gus. - Esse trabalho é meu!John


afastou-se enquanto Gus remexia na pedra, mas os empurrões que
Lhe dava eram agora mais fracos e a cabeça e os ombros
encontravam-se mais curvados. Era óbvio que se sentia infeliz, não
só em relação à pedra, mas com a vida em geral. O médico
chamava-Lhe depressão e dizia que era comum entre os idosos,
mas isso não fazia com que John o considerasse mais fácil de
presenciar. Gus estava assim já há algum tempo.

- Que tal uma cerveja? - perguntou, após algum tempo a observar


as costas do pai. O velhote encarava o muro e não parecia estar a
fazer muito mais para além de matutar.

Resmungou.
- Só bebo uma por dia. Se a beber agora, o que hei-de beber logo?

- Hoje podes beber duas - decidiu John. Entrou na casa e regressou


com duas garrafas de gargalo alto que retirou do frigorífico.
Entregou uma a Gus e sentou-se no muro.

Gus deixou-se ficar de pé na erva alta. Tinha os pés afastados, o


que minimizou o balanço quando inclinou a cabeça para trás e
bebeu um gole longo. Apontou com o fundo da garrafa para o muro.

- Podes andar ali em cima; sabes?

- Eu sei.

- Não se pode andar em cima de todos os muros. Alguns caem.

- Pois.

- É pena que nunca tenhas tido jeito para este trabalho.

John nunca aprendera a fazê-lo, pois Gus nunca Lhe ensinara.


Estava sempre muito atarefado, muito impaciente ou com muita
pressa. Por isso, John sempre o observara à distância e, mesmo
assim, conseguira aprender muito. Sabia de onde vinha cada pedra
pela cor, sabia que as melhores pedras tinham base e ângulos lisos,
que a superfície inferior era tão importante para a estabilidade como
a que ficava à vista era para a aparência, e sabia que nunca, nunca,
devia partir uma pedra.

- Isto é arte - declarou Gus. - Aquilo que tu fazes com o jornal não é
arte.

John ignorou o comentário.

- O Donny alguma vez trabalhou contigo? - perguntou. O médico


sugerira que se devia pôr o velhote a falar e o tema Donny
precisava de ser trazido a lume.

Gus produziu um som ambíguo e engoliu mais um gole da cerveja.


- Ele disse que gostava de ter aprendido o ofício contigo.

- Estava a morrer. Que querias que ele dissesse?

- Podia ter dito que te odiava. Mas disse que gostava de trabalhar
contigo. Para mim, isso é um elogio.

Gus lançou-Lhe um olhar desconfiado.

- O que andas a tramar?

- Nada.

- Nunca fizeste nada sem alguma intenção.

- Isso não é verdade.

- Sempre à procura de alguma coisa. Sempre a querer ser maior e


melhor.

John olhou para o lado. já tinham passado por aquilo. Não ia dar a
lado nenhum, pelo menos a algum sítio que interessasse a John.
Calmamente, replicou:

- Tenho andado a pensar no Donny, só isso.

- Para quê? Ele está morto.

- Pois, sinto muito por isso.

- Custa-me a crer.

- Porque eu o tiranizava? Bem, sinto muito por isso também.

Gus fungou. Isso e o choro de um bebé a várias casas de distância


eram os únicos sons da vida. Ali, os pássaros não cantavam. Era
como
se pressentissem que, antes de receberem uma côdea de pão duro,
levariam um tiro.

- Tens acompanhado o caso da Lily Blake? - perguntou John. Gus


produziu um ruído cavernoso, que pretendia ser um sinal negativo,
mas John não acreditou. Para um homem que dizia não ver
televisão, por vezes Gus descaía-se com um comentário demasiado
conhecedor.

- Lembras-te dela quando era pequena? - indagou John.

- Mesmo que me lembrasse, não te dizia.

- Porque não?

- Não sei o que podias fazer.

John suportava um ou dois ataques. Mais do que isso deixava-o


irritado.

- Tens de ser sempre tão negativo? Talvez queira ajudá-la. já


pensaste isso ?

- Ná.

- Nos três anos desde que cá estou, já usei alguém?Já maltratei


alguém?

- Burro velho não aprende línguas.

- Poupa-me.

- Estás só à espera.

- És sempre o mesmo, não é? - John desviou o olhar. Segundos


depois, pousou a garrafa numa pedra lisa e levantou-se do muro.
Um dia - disse, controlando o mau génio -, um dia gostava de poder
ter uma conversa civilizada contigo.
Afastou-se antes que Gus Lhe oferecesse mais algum comentário
ou mais silêncio, e só parou na carrinha. Manteve os maxilares
cerrados até deixar Ridge para trás, até que o ar fresco começou a
entrar pelas janelas e a raiva deu lugar à tristeza.

Gus tinha oitenta e um anos de idade. De pé na erva, sem firmeza


nos pés, com o cabelo branco espetado, o corpo dobrado e frágil
debaixo de uma camisa xadrez demasiado grande e os olhos
repletos de angústia, parecia extremamente velho.

John não queria ter de o recordar assim. Queria ver mais alguma
coisa naqueles olhos e escutar palavras diferentes a sair-Lhe da
boca. Mas não sabia como consegui-lo.

Tal como a casa de Lily, a de Poppy Blake era pequena, estava


rodeada de árvores e ficava numa parcela de terreno junto ao lago.
Mas as semelhanças terminavam aí. O terreno de Poppy ficava na
margem oeste e não na leste. Era uma faixa que pertencera à
propriedade dos pais, e que Lhe fora dada pouco depois do
acidente, na esperança de a manter perto de casa. Poppy acedera,
mas recusara-se a permitir a construção de uma estrada directa
através da propriedade, ligando a casa de Maida e George à sua.
Por isso, o único acesso partia da estrada principal, um percurso
estreito mas alcatroado.

A casa propriamente dita compreendia três alas ligadas, de piso


único. Na ala esquerda ficava o quarto, na direita a cozinha e uma
sala de musculação, mas Poppy passava a maior parte do tempo na
ala central. Esta continha uma fila de secretárias em arco, viradas
para janelas sobre o lago. Numa das extremidades ficava um
computador, no outro um espaço amplo para escrever. Ao centro,
com uma vista da doca, do lago e da folhagem de Outono, que
parecia tirada de um postal, estavam os inúmeros botões ligados ao
telefone que eram o ganha-pão de Poppy.

- Residência Boudreau - disse para o microfone do auricular, em


resposta a uma luz que começara a piscar.
- Poppy, é Vivie - Vivian Abbott, a notária. - E onde estão os
Boudreaus?

- Vão a caminho daí - informou-a Poppy. - Ainda não chegaram?

- Não, e vou sair daqui a dois minutos. Se não chegarem antes


disso, vão ter de se recensear para as eleições no sábado que vem.
Das nove às onze, foi o que eu Lhes disse. Olha, espera! Cá estão
eles! Obrigada, Poppy! - assim que desligou, mais uma luz começou
a piscar.

- Sociedade Histórica - atendeu Poppy.

- Fala Edgar Cook. A minha Peggy quer saber até que horas é a
venda.

- Até às Quatro.

- Pois. Foi o que eu Lhe disse, mas ela não acreditava em mim.
Obrigado, Poppy.

- De nada - uma terceira luz piscou, agora no telefone principal, a


sua linha privada. - Estou? - disse, ainda a sorrir de Edgar.

- Fala Poppy Blake?

O sorriso desvaneceu-se ao reconhecer a voz.

- Depende.

Terry Sullivan produziu um ruído que poderia ter sido um risinho


abafado, caso não fosse tão tenso.

- Agora também já Lhe reconheço a voz, minha querida. A sua irmã


está por aí? - perguntou, de forma despreocupada, tal como se Lily
estivesse mesmo ali ao lado, o que não era o caso. Tal como se
Poppy Lhe passasse a chamada, caso estivesse, o que não faria.
Como se Poppy soubesse onde estava a irmã, o que não acontecia
ou, pelo menos, não tinha a certeza.
- Estará? - replicou Poppy de imediato.

- Eu perguntei primeiro.

- Mas você é que é o inteligente. Segundo eu sei, ela continua em


Boston - mal acabara de pronunciar estas palavras quando teve a
confirmação do contrário, pois, apesar da semelhança física, não
era possível que a figura magra que aparecera subitamente no seu
alpendre, trajando um boné de basebol, um velho casaco de caça
aos quadrados, calções largos e sapatos de ténis de cano alto,
fosse a já falecida Celia St. Marie.

Poppy soergueu-se e acenou vigorosamente a Lily, para que esta


entrasse.

- Ontem à noite tentou ir-se embora - explicou Terry. - Não


conseguiu, ou pelo menos levou-nos a acreditar nisso. Estou só a
tentar imaginar o que faria se estivesse na pele dela.

Como Lily não se mexeu; Poppy acenou com os dois braços e


apontou para a porta do alpendre. Para o microfone junto da boca
perguntou:

- E acha que ela veio para cá? Por que razão haveria de o fazer?

- Por exclusão de partes.

- Exclusão de partes? - levou o dedo aos lábios e Lily abriu a

porta em silêncio.

- Para onde poderia ir?

- Para Manhattan? Para Albany? Eu é que não sei - retorquiu

Poppy, mas a confusão terminava-Lhe na voz. Sorrindo, estendeu


um

braço para Lily e abraçou-a com força.


- Se ela aí estivesse dizia-me? - perguntou Terry. - Não era preciso -
soletrou silenciosamente o nome dele para

Lily, cujos olhos denunciaram um terror imediato. A Terry disse: - Ia

percebê-lo na minha voz. Nós por aqui não sabemos mentir. Vai
contra a nossa natureza.

- Tenho andado a controlar os amigos dela em Manhattan, da

Universidade de Nova Iorque, de Juilliard... tenho algumas listas. Ela


não está lá.

- Já confirmou com os amigos do teatro? Ela esteve na Broadway

com pessoas de todo o país. Se estivesse na pele dela - Poppy


ecoou

as palavras de Sullivan - teria ido ter com um deles.

- Isso é uma dica?

- Não. Não sei nomes.

- Iria dar-mos se os soubesse?

- Não.

- Informa-me se ela aparecer por aí?

- Não.

O risinho tenso ouviu-se mais uma vez.

- Assim é que é, minha menina.

- Nunca na vida - garantiu Poppy e, com um movimento do

dedo, cortou a chamada. O outro braço continuava a abraçar Lily.


Abriu um sorriso rasgado. - Tive um palpite - disse, voltando a
abraçar Lily com ambos os braços, mas não gostou do que sentiu.
Poppy

sempre considerara Lily uma pessoa vulnerável, até mesmo frágil,

embora soubesse que nunca a vira nas melhores alturas. Lily


encontrava-se sempre mais enervada quando regressava a Lake
Henry. Mas

agora a fragilidade era palpável. Lily estava mais magra do que


aquilo

de que Poppy se recordava, além de estar trémula. Afastando-a um

pouco, Poppy viu sombras sob os olhos que não se encontravam ali
da última vez que se tinham encontrado, na Páscoa, cinco meses
antes.

- Não estás com muito bom aspecto - disse Poppy. - Linda - o que
era verdade - mas cansada.

Os olhos de Lily marejaram-se de lágrimas.

Poppy voltou a puxá-la para junto de si e desta vez abraçou-a


durante mais tempo, pensando que "linda" era dizer pouco. No
papel, Poppy e Lily eram muito parecidas: tinham o mesmo cabelo
escuro, o mesmo rosto oval, a mesma constituição elegante, mas,
enquanto Poppy era a melhor amiga, Lily era a sereia. Talvez isso
se devesse aos seios. Lily era mais dotada nesse campo, mas
também era mais sossegada, mais digna, mais misteriosa. As
pessoas sentiam-se seguras com Poppy. Com Lily, nunca tinham a
certeza de nada. Esse elemento de mistério vinha juntar-se ao seu
poder de atracção.

Poppy passara a infância a seguir Lily para todo o lado, sofrera com
a gaguez da irmã, orgulhara-se quando ela cantava. Nem sempre
concordara com o que a irmã fizera. Sair com Donny Kipling, por
exemplo, fora simplesmente idiota, mas sabia, com toda a certeza,
que Lily não possuía um pingo de maldade no corpo. Nunca pedira
para ser gaga, nem desejara os padrões impossíveis estabelecidos
por Maida para a primogénita. O fardo da vida de Lily tinha algo de
injusto e essa injustiça continuava.

Lily pareceu descartar o comentário com um suspiro trémulo. O


olhar arrasado que lançou a Poppy quando recuou veio juntar-se

ao ar exausto.

- Como fugiste? - quis Poppy saber.

- Uma amiga e um carro emprestado. O Terry julga que aqui estou ?

- Ainda não.

- Eles virão - comentou Lily, parecendo apavorada. - Mais tarde ou


mais cedo.

- Mais cedo - asseverou Poppy. Detestava ter de piorar as coisas,


mas Lily tinha de o saber. - As equipas de filmagem já começaram a
aparecer. E alguns jornalistas.

Lily deixou-se cair sobre uma cadeira.

- Fizeram perguntas?

- Tentaram. Ninguém falou.

- Eventualmente vão começar a falar. Mais tarde ou mais cedo.


Alguém vai oferecer dinheiro e alguém vai aceitá-lo - juntou as
mãos,

apertou-as entre as coxas e embalou-se para trás e para a frente.


Ontem à noite o John Kipling viu a minha luz acesa. Hoje de manhã
atracou lá na doca. Diz que não vai contar a ninguém. Será que
posso acreditar nele?
Poppy gostava de John. Sabia o arruaceiro que fora enquanto
crescia e o jornalista impiedoso que fora em Boston, mas só o
conhecera pessoalmente quando regressara a Lake Henry. Durante
esses três anos, só o vira a ser decente.

- Se fosse eu, acreditava nele. Além disso, não tens grande escolha.

- Pois não. Eles vão seguir-me para onde quer que eu vá. Pelo
menos aqui tenho onde ficar. O que é que eu faço em relação à
Stella? Para a semana vai lá ver como estão as coisas na casa.

- Eu trato da Stella.

- Aquela casa é um porto de abrigo. Sinto a presença da Celia.


Poppy aquiesceu. Olhou para o boné, para o casaco e para os ténis,
tudo a cara de Celia.

Lily observou-se a si própria.

- Não trouxe grande coisa, pois não sabia quanto tempo ia cá ficar -
ergueu os olhos desolados. - John contou-me sobre o jornal de hoje.
Continuam a bater na mesma tecla, Poppy. Não param. Sinto-me
tão impotente, é como se não tivesse direitos.

- Mas tens. É para isso que servem os tribunais. Tens de falar com
um advogado.

- Parece que tu não leste o jornal de hoje. Eu falei com um


advogado.

- E? Ele não concorda que podes ir para a frente com um processo


de difamação?

- Sim, mas o problema são os procedimentos, onde vão buscar tudo


e mais alguma coisa. Antes de melhorar, as coisas vão piorar
bastante. Ainda por cima, vai custar uma fortuna - a expressão de
Lily tornou-se irónica. - Ele disse para eu pedir dinheiro emprestado
à Mãe.
Poppy talvez partilhasse a ironia, caso não se tivesse sentido
culpada. Maida dera-Lhe tanto a ela, o terreno, a casa, uma carrinha
equipada com tudo aquilo de que precisava para entrar e sair e para
se deslocar, e estava sempre a enviar-Lhe roupas, flores e mais
alimentos do que Poppy era capaz de comer.

Os problemas de Poppy eram físicos e Maida era capaz de lidar


com coisas físicas. As emoções eram outro caso.

Lily tirou o boné e soltou o cabelo. Franziu o cenho para a pala do


boné.

- Ela ainda está z-z-zangada?

Poppy sentiu-se destroçada ao ouvir a irmã a gaguejar. O problema


agora só surgia em alturas de tensão, mas lembrava-se de quando
era praticamente constante, com contorções faciais difíceis de
observar. Nem imaginava a dor sentida por Lily, que o tinha de fazer
em frente dos amigos, dos colegas, dos rapazes. Poppy sabia o que
era ter pessoas a observá-la, mas era adulta. Com Lily acontecera
em criança, e não só era observada, como também troçavam dela.

Maida poderia ter ajudado, mas parecia sempre paralisada em tudo


o que dizia respeito a Lily. E Lily? Bendita fosse, vinha sempre a
casa nas férias e em ocasiões especiais, sempre com a esperança
de que as coisas mudassem. Poppy não tinha a certeza de que isso
viesse a acontecer. Maida era uma mulher difícil, e não só em
relação a Lily. Era dura para com os trabalhadores do pomar e da
sidra. Até começara a ser dura para Rose. Se Poppy pudesse usar
as pernas e tivesse altura e corpo para confrontar Maida, teria
metido juízo na cabeça da mulher.

- Desde ontem que não falo com ela - respondeu. - Devias ficar feliz
por ser altura de colheita e por ela andar ocupada com o trabaLho.
Estás a pensar em ir lá?

Lily olhou para o lago.


- Ainda não decidi. Achas que devo?

- Só se fores masoquista.

Os olhos de Lily procuraram os seus, agora com expressão


suplicante.

- Talvez se eu Lhe explicasse. se Lhe contasse a minha versão da


história.

Poppy gostaria que tudo pudesse ser assim tão simples. Maida era
uma mulher complexa, camada após camada de emoções,
acumuladas durante cinquenta e sete anos.

- Mas, e se ela descobrir por alguém? Vai ficar magoada.

- Eu não Lhe digo - prometeu Poppy.

- Mas John disse que as pessoas iam acabar por descobrir.


Eventualmente vão ver luzes, ou fumo, e ele tem razão - olhou para
os botões dos telefones. - Diz-me que não andam todos a falar de
mim.

- Quem me dera poder dizer isso. São novidades. Mas não penses
que te estão a censurar. Recusam-se a falar com a imprensa.

- O John é da imprensa e falam com ele - suspirou, mais uma vez

parecendo à beira das lágrimas. - Pensei que pudesse vir para cá e

ficar invisível durante uns tempos. Pelo menos até ver o que
acontece em Boston. Até decidir o que fazer. Mas agora ele sabe
que eu cá estou.

- Se ele disse que não contava nada, então é porque não conta -
garantiu-Lhe Poppy.

- Porquê? O que é que ele tem a ganhar com isso?


- Amor-próprio.

- Trouxe-me comida.

- Uma oferta de paz?

- Ou um cavalo de Tróia.

O comentário fez Poppy pensar.

- Não costumavas ser tão cínica.

Lily passou a mão pelo cabelo.

- É engraçado como as coisas mudam tão depressa. Poppy queria


abraçar outra vez a irmã, mas Lily parecia isolada, separada. O
melhor que Poppy conseguiu foi dizer:

- Lily, não podes ir-te embora. Neste momento não há outro lugar
tão seguro como este.

- Talvez. Acho que vou ficar perto de casa. Ver como as coisas

correm.

- Fica aqui - sugeriu Poppy, achando que era uma óptima ideia, mas
Lily suspirou e abanou a cabeça.

- Não. A casa é minha. Tiraram-me tudo o resto. Preciso disso.

- Há alguma coisa que eu possa fazer? A expressão de Lily tornou-


se decidida.

- Mais daquilo que acabaste de fazer com o Terry. Ele que tente
localizar as pessoas com quem trabalhei. Nem sequer me lembro
dos nomes delas.

- Queres que fale com a mãe?


- Não.

Quando uma luz começou a piscar, Poppy ajustou o microfone.

- Polícia de Lake Henry Este telefonema está a ser gravado.

- Daqui fala Harvey Ellman. Estou a fazer pesquisa para um artigo


para a Newsweek e preciso de informações sobre o cadastro de Lily
Blake. Pode enviar-me um resumo por fax?

Poppy susteve o olhar da irmã.

- Lily Blake não tem cadastro.

- Houve uma condenação por furto qualificado.

- Não. Não houve condenação. O caso foi investigado e depois


arquivado.

- Não foi isso que me disseram.

- Então informaram-no mal.

- E quem é a senhora? - perguntou o homem com impaciência.

- Sou a agente de despacho e sei o que estou a dizer. O senhor não


foi o primeiro a telefonar por causa disto.

- Gostaria de falar com o chefe da Polícia.

- Sinto muito. Ou fala comigo ou não fala com mais ninguém. Mais
uma vez, para que fique registado, o senhor é Harvey Cellman.

- Ellman.

Poppy soletrou o nome.

- Da parte da Newsweek. Certo. Eu digo ao chefe a razão do seu


telefonema - sorriu para Lily. - Temos uma gravação desta chamada,
mas vou manter o seu nome à mão, para sabermos quem culpar, no
caso de os factos do seu artigo estarem incorrectos. Sabe, a Lily
Blake é uma pessoa querida nesta cidade. Se publicar mentiras,
teremos de o chamar à responsabilidade. E há tribunal para isso,
ainda por cima com outros repórteres a telefonar. Afinal de contas,
temos de nos proteger uns aos outros, não acha?

Lily saiu da casa de Poppy sentindo-se um pouco melhor. A irmã era


uma aliada poderosa. Atendia os telefones dos habitantes mais
influentes de Lake Henry, o que a deixava em boa posição para
combater em nome de Lily. Também insistira para que Lily levasse o
seu telemóvel, pois não havia linha na casa de Celia.

Voltando a pôr o boné e os óculos de sol, Lily regressou à casa de


Celia pelo mesmo caminho por onde viera, contornando o lado
oposto ao centro da vila. Lake Henry tinha a tendência de reparar
em estranhos. É verdade, havia outros carros com matrícula do
Massachusetts a passar por ela, coleccionadores de folhas à
procura de folhagem,

jornalistas à procura de lama, mas imaginou que os habitantes já se

tivessem começado a interrogar sobre se ela regressaria. Quanto


menos

ela os tentasse com umas feições conhecidas, melhor.

Susteve a respiração quando cortou para o acesso a Thissen Cove,

quase à espera de ver um carro desconhecido estacionado junto à


casa. Com a mão no telefone, preparou-se para ligar a Poppy, que

por sua vez telefonaria a Willie Jake, o chefe da Polícia, que viria a

correr em redor do lago no seu veículo todo-o-terreno, a fim de

prender o indivíduo por invasão de propriedade. Mas este era um


delito menor, o que significava que o perpetrador estaria livre
passadas algumas horas, telefonando a avisar do paradeiro de Lily,
o que

traria um enxame de jornalistas a Lake Henry. E isso era a última


coisa que Lily queria.

Claro que John Kipling poderia já ter realizado esses telefonemas.

Mas não havia qualquer carro junto à casa. Olhou cuidadosamente


em seu redor. Até estacionou a carrinha virada para a estrada,

na posição ideal para uma fuga rápida. Depois saiu do carro, atenta
à

mata circundante, e correu para a porta.

Não havia ninguém por ali. Foi espreitando de janela em janela,

recomeçando então a volta, desta vez abrindo as janelas para que o

ar ameno do meio-dia entrasse. Quando teve a certeza de que


ninguém se escondia no terreno, abriu a porta para o lago. Avistava-
se

um barco, uma embarcação clássica, que deveria pertencer à


colecção premiada de Marlon Dewey, mas encontrava-se distante e
afastava-se cada vez mais. Não era uma fonte de ameaça. E não
havia

sinal de John Kipling.

Tudo estava límpido e sereno até onde a vista abarcava. Inspirou

e permitiu-se descontrair e, quando o fez, a exaustão instalou-se.

Minutos depois, estava a dormir na grande cama de ferro.

Enquanto Lily dormia, John encontrava-se ocupado, mais que não


fosse para conseguir paz de espírito. Sentia-se sempre mal quando
saía de junto de Gus. Havia sempre frustração, remorso, culpa.
Naquele dia era pior do que o habitual, pois Gus estava a decair
visivelmente, e John sabia que não devia ter partido daquela
maneira. Contudo, a par de tudo o que sentia pelo pai, também
havia a raiva. Gus sempre o mantivera à distância ao longo da
infância, tendo-o, por fim, mandado embora. Claro que, caso tivesse
ficado, John poderia ter acabado como o irmão. Mas a mágoa desse
exílio precoce ainda Lhe doía. Não que John pudesse fazer alguma
coisa quanto a isso. já pertencia ao passado. Mas manter-se
ocupado libertava-Lhe a mente da dor contínua.

Decidido a encontrar notícias para o Lake News, regressou de


Ridge pelo centro da vila, estacionou na venda de flores e plantas e
misturou-se com os habitantes. Falava-se da peça que os Lake
Henry Players haviam escolhido para a temporada de Inverno, da
venda de dois poemas por parte da bibliotecária à revista Yankee e,
com origem nessa mesma senhora, de uma ninhada de seis
gatinhos que a gata da biblio tecária parira atrás das prateleiras das
biografias. Ao aproximar-se de uma grande carroça de madeira
cheia de abóboras, John apanhou uma conversa sobre a colheita
abundante da temporada, mas não teve tempo de registar nada
sobre isso ou qualquer outra coisa, pois as pessoas começaram a
dirigir-Lhe as suas questões.

- O jornal diz que ela vai contratar aquele advogado - comentou Alf
Buzzell, o encenador do tal espectáculo de Inverno, um residente de
sessenta anos de Lake Henry e tesoureiro da Sociedade Histórica.

- Achas que vai haver alguma cobertura do julgamento na televisão?

- Não faço ideia - respondeu John.

- Pois, olha, não sei se gostaria disso - avançou o homem, deixando


John a pensar se ele se referia ao destaque que a vila teria, se à
competição com os Lake Henry Players.

- Como será que eles descobriram sobre a gaguez? - perguntou a


bibliotecária. Leila Higgins estava na casa dos trinta. Estivera um
ano

à frente de Lily na escola e, já na altura, era rato de biblioteca.


Embora fosse casada, não escondia o facto de, durante a
adolescência,

nunca ter namorado com ninguém. Quando falava sobre esses


tempos, os olhos deixavam transparecer uma expressão magoada,
o

mesmo se passando agora ao perguntar sobre Lily.

- Devem ter visto registos médicos - respondeu John.

- Mas como? Quem os teria facultado ao público?

John não tinha a certeza, mas tencionava investigar.

- As actas do julgamento deviam mencionar o caso.

- Mas quem teria facultado esses registos ao público? - insistiu

Leila. Era mais uma coisa que John tencionava investigar.

O dono da carroça de abóboras disse:

- Estou sempre a pensar se ela virá para cá - tal como os outros,

não sentia necessidade de referir quem "ela" era. Só havia uma


"ela"

de quem os habitantes falavam. John nem fingiu não compreender.

Contudo, uma vez que não havía pergunta, não era necessário

responder. Grato por ter sido poupado a evasivas, John passou com
a
mão por uma abóbora redonda.

- Mas que beleza - comentou, inspirando de forma apreciativa.

O Outono estava definitivamente no ar, por entre os aromas do


zimbro

doce, da terra rica e da abóbora madura. Valia a pena ficar por ali e

era isso que ele gostaria de fazer, mas não naquele momento.
Enfiando o bloco de notas no bolso da camisa de flanela, cruzou o
estacionamento até ao armazém, pois sabia que Charlie deveria
estar prestes

a fazer o intervalo para o almoço.

Charlie Owens era do seu tempo. Crescera numa família abastada


do lago, mas fora amigo de John durante a escola, o que era o

mesmo que dizer que Charlie também pertencera ao grupo dos

traquinas. O seu local favorito era No Man's Island, mesmo no meio

do lago. Aos doze anos iam para lá fumar charros, aos treze iam

embebedar-se e aos catorze tinham perdido aí a virgindade, um

depois do outro, com uma rapariga muito roliça e muito dada, dois
anos mais velha.

Charlie regressara ao bom caminho logo após a faculdade, graças

ao incentivo duplo de um negócio de família estagnado e ao amor


de

uma mulher cujas ideias, energia e estilo o poderiam fazer reviver.


Ele era o rosto do estabelecimento, o indivíduo que sabia como falar
com os habitantes de Lake Henry, mas Annette era a responsável
pela entrada da loja no novo milénio. Melhorara a mercearia,
introduzindo uma secção de charcutaria e uma padaria, actualizara
a secção de produtos domésticos e criara uma secção de artes, que
atraía os curiosos. Também fora o cérebro por detrás do
restaurante, uma sala iluminada e repleta de janelas ao fundo da
loja.

Era para aí que John se dirigia agora. Quando passou em frente da


abertura para a cozinha, por onde se atendiam os pedidos, baixou a
cabeça e piscou o olho a Annette, que preparava algo que cheirava
a uma maravilhosa caldeirada de peixe fresco. No restaurante,
sentou-se à sua mesa preferida, à janela, um local com vista para
um grupo de bétulas brancas. Com o Sol do meio-dia bem alto no
céu, a casca enrolada era mais branca e as folhas outonais mais
amarelas do que nunca.

Não tinha chegado há muito quando Charlie pousou um tabuleiro


com, sim, caldeirada, sanduíches e café, tudo em doses duplas.
Após ter esvaziado o tabuleiro para cima da mesa, sentou-se em
frente de John e sorriu.

- Estava a ver que nunca mais cá chegavas.

John serviu-se do café. O sabor trouxe-Lhe o alívio imediato do


gosto da cerveja que Lhe ficara na boca.

- Tiveste uma manhã comprida? - perguntou, segurando na caneca


e apreciando o seu calor.

- Atarefada, como sempre - respondeu Charlie, que não parecia de


todo cansado. O cabelo ralo ficara grisalho e já ostentava os pés de
galinha de Charlie Sénior, mas os olhos e o sorriso emanavam uma
tranquilidade que atestava uma vida agradável. A esposa adorava-o,
tal como os cinco filhos, três dos quais trabalhavam no armazém.
john podia brincar com Charlie, dizendo que os filhos deste tinham
sido os responsáveis pelos cabelos brancos, mas invejava-Lhe a
plenitude da vida.
- Nem vou perguntar do que estão as pessoas a falar, lá fora - disse
Charlie, fazendo um gesto com a colher que abarcou o restaurante.
Aqui também só falam disso. A vila está completamente obcecada.

- Do que é que te lembras dela?

Charlie comeu um grande pedaço de peixe da caldeirada. Esse


momento foi quanto bastou para se decidir.

- Da voz. Quando ela tinha sete anos cantava na igreja. Fora da i


greja, era invisível. Era uma miúda calada.

- Ela gaguejava - recordou-Lhe John. Isso explicaria o facto de


pouco falar.

- Quando cantava, não. Costumava cantar aos domingos na igreja


e, com dez, ou onze anos, começou a cantar aqui às quintas-feiras.
Eu não estava cá quando começou mas, segundo o meu pai, a casa
estava sempre cheia. já na altura usavam o salão lá atrás para
música ao vivo, apesar de não ser muito mais do que quatro
paredes de tábua, com bancos à volta de um fogão de lenha e um
estrado de lado.

- Ela cantava todas as semanas?

- Quase - disse Charlie e meteu mais uma colherada de caldeirada


na boca. Ainda mal tinha engolido quando apontou a colher para o
prato de John. - Come. Foram os meus filhos que apanharam o
peixe, perca e robalo ali do lago - abriu um pacote de tostas de ostra
e despejou-as para o prato.

John comeu. A caldeirada estava leve e amanteigada, sem ser


demasiado espessa, saborosa quanto bastasse.

Charlie prosseguiu:

- Mas havia muitas brigas por a Lily cantar aqui. O George gostava,
a Maida não. Na opinião dela, se cantar na igreja era a garantia da
salvação, cantar aqui dava-Lhe acesso directo ao Inferno.

- Então porque é que deixava?

- George insistiu. E o terapeuta da fala da Lily também. Ambos


diziam que ela precisava de alguma coisa que a fizesse sentir bem.

John tentou imaginar a situação.

- Uma miúda de dez anos a cantar é precoce e adorável. Então e


uma de catorze ou quinze anos? Ela era provocante?

- Oh, céus, não. Maida não a deixava ir tão longe. Não interessava
como estava o tempo, nem a idade que tinha, a rapariga estava
sempre tapada do pescoço aos pés.

- Isso pode ser provocante - frisou John, que estava a tentar


perceber quàl teria sido o interesse de Donny.

Charlie dedicou-se à caldeirada por alguns momentos. Depois


pousou a colher.

- Bem, Lily não era. Deixava-se ficar de pé, a cantar, sem se abanar,
sem olhares tentadores, só um sorriso gentil e despretensioso, no
fim. Fechava os olhos quando cantava palavras de amor, como se
estivesse a sonhar, ou com medo que a mãe aparecesse a qualquer
momento para a tirar do palco. Só que Maida nunca lá foi. Nunca a
foi ouvir cantar, por uma questão de princípio. Passou meses sem
vir à loja quando Lily foi para Nova Iorque. Segundo ela, tínhamos
sido nós a corrompê-la.

- E o Donny, não? - perguntou John.

Charlie limpou a boca com um guardanapo de papel.

- Isso nunca foi nada. O mesmo se passa com isto. Achas que ela
teve um caso com o cardeal?

- Não.
- Exacto. As pessoas que conheceram a Lily sabem que ela seria
incapaz de fazer alguma coisa de mal. O teu irmão. já era outra
história. Não - acrescentou Charlie, arqueando uma sobrancelha e
nasalando a voz - que eu tenha dito isso ao tipo que passou por cá
esta manhã.

John sentiu uma pontada.

- Qual tipo?

Charlie tirou um cartão de visita do bolso e mostrou-Lho.

- Disse que era um produtor de televisão de Nova Iorque. Se queres


saber, achei-o demasiado jovem.

Segundo o cartão, o indivíduo trabalhava para o Dateline NBC.

- Eles são jovens - reconheceu John. - Os programas deste género


têm meia dúzia de produtores. Grande parte do que fazem é
trabaLho sujo, como por exemplo investigar Lake Henry, para decidir
se vale a pena fazer alguma história.

- DisseLhe que não - declarou Charlie, já sem qualquer ponta de


sotaque. - DisseLhe que não havia qualquer história por cá e,
mesmo que houvesse, de nós não conseguiria nada.

Mas John sabia como funcionava a comunicação social. Mesmo


agora havia estranhos na venda de plantas. Todos partiam do
princípio que os forasteiros que passassem pela vila a um sábado
iriam parar, especialmente durante a época da folhagem. Na
ausência de uma câmara, não havia maneira de distinguir
instantaneamente um coleccionador de folhas de um jornalista.

- Como era ele?

- Como nós - comentou Charlie. Mas acrescentou: - Chamei a


atenção de todos os que aqui estavam e disse quem ele era, para
que não precisasse de se apresentar. Depois levei-o à venda e
apresentei-o a todos os que lá estavam, para que as pessoas
soubessem que tínhamos alguém do Dateline NBC na cidade.
Depois apertei-Lhe a mão desejei-Lhe sorte e deixei-o por sua
conta.

John sabia por que razão gostava de Charlie.

- Foi bem feito de tua parte.

- Bem me parecia - disse Charlie. Erguendo o prato, engoliu de um


trago o que restava da caldeirada. Depois pousou-o e recostou-se,
com um sorriso de satisfação.

John não percebia por que motivo Charlie não tinha o dobro do

tamanho. Antes que John conseguisse acabar o que tinha à frente,


Charlie já devorara um segundo prato de caldeirada e uma dose de

batatas fritas fininhas, que trouxera para a mesa juntamente com o

segundo prato. Radiante, regressou ao trabalho, deixando John


sentindo-se a abarrotar.

Como precisava de se mover para abater o que comera, John

regressou a pé por entre a multidão. Manteve-se atento a forasteiros

que pudessem ser da imprensa, avisou as pessoas que ia


encontrando de que eles poderiam andar por ali, chegou mesmo a
acercar-se

de rostos desconhecidos e locais que falavam entre eles, escutando

as conversas que poderiam ser entrevistas, mas não ouviu nada de


inconveniente.

Por isso, percorreu o estacionamento até à esquadra para falar

com o chefe, que por acaso estava sentado no banco do alpendre,


O bservando os acontecimentos com um pé em cima do corrimão e

um palito a sair-Lhe da boca. Willie Jake tinha quase setenta anos.


Era

chefe da Polícia havia vinte e cinco anos e passara outros vinte


antes

disso como subchefe. Ninguém se queixava de que ele tivesse


ficado mais lento. Havia poucos que tivessem sequer reparado.
John reparara, mas apenas por ter ficado longe durante tempo
suficiente para

notar a diferença, e talvez por as exigências de um chefe da Polícia

em Boston serem muito diferentes.

Willie Jake sempre fora alto. já não era capaz de correr muito, e

ganhara uns quantos queixos desde os dias de gazeta de John, mas


ainda caminhava erecto e com autoridade e continuava a ter a farda
impecável, o que causava uma boa impressão. O que perdera ao
longo dos anos em destreza física, compensara em agilidade
mental.

- Vê alguma coisa interessante? - perguntou John.

- Algumas - respondeu o chefe com um tom de voz grave e mudou o


palito para o outro lado, sem desviar os olhos da multidão.

- Há uns quantos desconhecidos misturados com os habitantes.


Estou a registá-los na memória. Se voltarem a aparecer por aqui, eu
lembro-me.

John não duvidava disso.

Willie Jake apoiou melhor o pé no corrimão.

- Achas que ela andou metida com o cardeal?


- Não.

O chefe concedeu-Lhe um breve olhar.

- Porque não?

- Conheço o indivíduo que deu início ao caso. Ele inventa coisas. E


o senhor? - perguntou John, pois tinha uma determinada sequência
pensada. - Acha que ela andou metida com o cardeal?

Willie Jake ia mastigando o palito enquanto mirava mais uma vez as


ruas. O palito foi chegado para o lado.
- Não sei. Não faço ideia do tipo de mulher em que ela se trans
formou, depois de se ter ido embora.

- Lembra-se do que se passou com o meu irmão?

Mais um olhar na direcção de John, desta vez mais atento.

- Fui eu que tratei do caso.

- O Donny disseme que a culpa não tinha sido dela. Foi uma
confissão às portas da morte.

- Quando as coisas aconteceram não era isso que ele dizia. Tínha
mos um caso sólido. Ela andava a gabar-se a uma amiga por andar
a sair com o Donny Kipling.

- A gabar-se?

- Bem, a comentar, e quando estavam a passear no carro, ela


parecia estar a divertir-se. Se não estivesse a gostar, podia ter saído
quando quisesse, mas não abriu a boca.

- Antes disso nunca tinha feito nada de mal.

- O que não quer dizer nada - retorquiu Willie Jake. - Ela ia acabar
por portar-se mal.

- Porquê?

- Por causa da Maida.

- O que tem a Maida?

- Era muito severa. Os miúdos revoltam-se contra pais assim.

- Mas tinha o George, e ele não era severo. A Lily não tinha um bom
relacionamento com ele? - George Blake era um habitante de
Lake Henry da quarta geração e, pelo que John pudera constatar
em

entrevistas, era um homem gentil.

- A relação que a Lily tinha com o George não interessava. Era a


Maida que estava encarregue das miúdas.

- Não gosta da Maida, pois não?

Willie Jake encolheu os ombros.

- Agora não desgosto, mas na altura não gostava. Pouca gente cá

da vila gostava. Não era má quando se casou com o George, mas

depois ficou emproada. Acho que também não gostava muito de nós

- lançou um olhar a John. - Mas não disse isto ao repórter de Rhode

Island que andou por aqui esta manhã. Não Lhe disse nada. Não

gosto de ter forasteiros a bisbilhotar na minha terra e foi isso que


Lhe

disse. DisseLhe que ia ficar de olho nele. DisseLhe que o metia


dentro se andasse a meter o nariz onde não era chamado. Esta
cidade

tem terrenos vedados. Há placas que dizem proibido caçar, proibido

pescar, proibido entrar. Acrescentei proibido incomodar. Não quero

forasteiros a tentar fazer com que pessoas boas comecem a falar

sobre os vizinhos. Falamos uns com os outros, e quanto a isso não


problema, mas não dizemos a estranhos aquilo que sabemos. Não


sei qual é o vosso problema. Pensam que podem escrever aquilo
que

querem. Vocês é que decidem o que é e o que não é notícia. Nem

interessa se é verdade.

- Eh - protestou John, levando a mão ao peito -, o mau da fita

não sou eu. Se estivesse no seu lugar, andava a tentar descobrir


quem

é que falou sobre a detenção.

Willie Jake franziu o sobrolho e tirou o palito da boca.

- Foi a Emma - Emma era a sua mulher, que muitas vezes atendia

O telefone da esquadra. - Disse que tinham telefonado dos serviços

centrais de Concord, porque queriam organizar os arquivos. Depois

falei com os serviços e eles não nos tinham telefonado. Nem sequer

estavam a organizar ficheiros, mas também Lhes telefonaram a


perguntar por Lily Blake. O funcionário que atendeu era um miúdo
que engoliu a história de estarem a ligar da parte de um psiquiatra
que precisava de informações sobre uma doente. Imagino que tenha
sido a imprensa a fazer isso.

"Imagino que tenha sido Terry Sullivan a fazer isso", pensou John.
Willie Jake baixou o pé e endireitou-se, olhando subitamente para
John como costumava fazer antigamente, como se ele se tratasse
de um verme coberto de terra.

- Porque é que vocês fazem essas coisas?

John ergueu as mãos.


- Eh, não fui eu.

O chefe levantou-se do banco.

- Pois olha, para mim isso não se faz. Este país não anda bem. As
pessoas já não sabem o que é o respeito. Uma cidade pequena
como Lake Henry, por exemplo. Aqui não há privacidade. Cada um
sabe o que o outro anda a fazer, mas não usamos isso uns contra
os outros. Agora eles? - espetou o polegar, apontando para o resto
do mundo.

- Já não há respeito - apontou para John. - Ouve o que te digo,


esquece isto. Não interessa se a Lily era culpada ou inocente. Não
interessa se a Maida era muito severa. Esses são problemas dos
Blake e de mais ninguém.

"Mas sem dúvida que daria material de leitura interessante", pensou


John, apertando a mão do chefe e afastando-se.

Lily dormiu até às quatro horas da tarde. Acordou esfomeada e


preparou uma omeleta e uma salada, que comeu

no alpendre, a olhar para o lago. Podia não confiar em John Kipling,

mas sentia-se grata pela sua comida. Os produtos frescos eram


sempre melhores do que os enlatados e tudo o que ele trouxera era

fresquinho de Lake Henry. Ovos do aviário dos Kreuger, legumes

para salada da quinta dos Strotherman, leite das vacas a três


quilómetros da vila, pasteurizado, homogeneizado, engarrafado e à
venda na loja do Charlie horas depois de ter sido recolhido. Era por
isso

que tudo sabia tão bem. Claro que o ar também produzia o seu
efeito. O aroma a Outono era um tempero1maravilhoso.

Devorou tudo, saciando o apetite, mas não o espírito. Não deixava


de pensar que John Lhe dissera que possuía munições, e
interrogava-se sobre o que isso poderia querér dizer. Não havia
sinal do barco

dele na água, facto que a deixou a1viada. Uma segunda visita


apenas serviria para a denunciar.

Será que Maida sabia que ela viera? Suspeitava? Ou, pelo menos,
imaginava?

Lily considerou a hipótese de Lhe telefonar, mas decidiu não o

fazer. Hesitou mais uma vez, e voltou a achar melhor não. De


telefone na mão, desceu até ao lago, instalou-se num cubículo de
raízes de

pinheiro, deixou-se ficar a sentir o odor da terra e ponderou mais um

pouco. Durante o tempo que ali esteve, apenas dois barcos


passaram

no lago, mas encontravam-se distantes e afastaram-se. O único


movimento na enseada provinha de um casal de patos que ia
nadando

ao longo da margem, e das tarefas apressadas dos esquilos na


mata.

O Sol foi baixando na direcção das colinas ocidentais, recortando a


silhueta dos cedros que ondulavam nos cumes, espalhando
sombras pela encosta, e ela continuou ali sentada. A terra retinha
mais

calor do que ela, mantendo-a quente quando o ar começou a


refrescar. No lusco-fusco ouviu o ronco distante de um barco,
fragmentos de vozes ao longo da margem, o grito de um mergulhão.

Ainda mal localizara a ave num reflexo púrpura ao largo de Elbow


Island quando ouviu novamente o grito. Era um som longo e
contínuo que baixava de intensidade no fim, conferindo-Lhe um ar
primitivo. Adormecera inúmeras vezes com esse som, tanto ali como
do outro lado do lago, pois o grito do mergulhão percorria grandes
distâncias. Em criança, quando dormia na casa de Celia, ficava
fascinada com a ideia de que a mãe poderia estar a ouvir o mesmo
grito.

Lily interrogou-se sobre se Maida estaria a ouvi-lo agora. Pensou


que talvez estivesse sentada no alpendre da grande casa de pedra
na colina, imaginando Lily ali sentada. De sua casa, Maida não seria
capaz de ver quaisquer luzes que Lily tivesse acesas. Elbow Island
ficava à frente e, atrás desta, Big Island, tal como Lily percebia
agora.

Durante o dia, Lily podia ver a copa das macieiras colina acima. No
Verão, as folhas eram de um verde mais claro do que as dos cedros
ou das sempre-verdes e, no Outono, eram de cor de caqui e não
flamejantes. Hectare após hectare, várias centenas, ao todo, fluíam
em ondas ao longo da encosta, muito bem tratadas e trabalhadas de
forma inteligente. Mesmo o antigo lagar de sidra, com o sol a refulgir
no telhado de zinco e história a escorrer-Lhe das paredes de pedra,
era digno de ser visto.

Maida ainda comentava a primeira vez que deparara com a herança


do marido. Na altura tinha vinte anos e ficara espantada, tanto com
a propriedade como com o homem. Até o conhecer fora empregada
de escritório na madeireira local, regressando todas as noites ao
apartamento atafulhado da mãe, numa vila em que o mais pequeno
dos prazeres era raro e fortuito. Um encontro casual quando George
Blake fora comprar equipamento antigo ao patrão dela viera a
revelar-se o passaporte para a liberdade. Era quinze anos mais
velho e herdeiro da propriedade do pai. Ofereceu-Lhe uma casa que
não só era linda de morrer, como também era grande, espaçosa, até
mesmo idílica. Como poderia não ver prazer nisso? Casar com ele
fora a escolha mais simples da sua vida.

Assim era a história, segundo Lily ouvira contar, um conto de fadas


que ia para além do casamento. Maida estivera no sétimo céu nesse
primeiro ano. Adorava poder não trabalhar, passar os dias a
provar sidra e a utilizar as melhores maçãs do marido para fazer
tartes

que eram as melhores das vendas na igreja. Nesse primeiro


Inverno,

adorara ler à lareira, ou patinar no gelo, muitas vezes com George,

que pouco tinha que fazer entre o fim da produção de sidra em

Dezembro, até às primeiras podas de Março. Adorava os pomares


na

Primavera, quando as flores das macieiras eram de um branco

esplendoroso e o zumbido das abelhas na sua tarefa de polinização

enchia o ar. Adorava ficar sentada no alpendre ao sol quente,


olhando a extensão de relva que se estendia até ao lago. Com a
chegada

de Maio, quando o solo aquecia, tratava dos lírios, das campainhas,

das rosas e dos jacintos, cuidando-os diariamente, arrancando as


ervas, regando-os e apaparicando-os, até que o jardim se tornasse
o mais belo da cidade.

O melhor jardim, a melhor tarte de maçã, os melhores filhos. Lily

aprendera muito cedo que essas coisas eram importantes para


Maida.

Ainda conseguia ver o sorriso no seu rosto enquanto descrevia a

maravilha que fora esse primeiro ano. Sendo o Clube de


Jardinagem

a sua entrada para o mundo das mulheres prósperas, Maida fizera


amigas entre a elite. Convidava-as para a casa da quinta, para
verem

Os arranjos florais, e servia-Lhes o jantar enquanto lá estavam.


Percorreu a lista de todas as pessoas importantes de Lake Henry,
desde os

donos da fábrica ao presidente da mesa de assembleia da Câmara,

passando pelo representante local no governo. Maida encontrava-se


em estado de graça.

Depois começou o segundo ano e algo correu mal. O que foi

Lily nunca soube ao certo, pois Maida parava sempre a história


nesse

ponto. Sabia, no entanto, que as fortes chuvas da Primavera tinham

reduzido a safra da maçã, o que deu azo a tensões económicas.


Também foi o ano em que Maida ficou grávida de Lily.

O que teria, então, estragado a vida a Maida, os problemas


financeiros ou a gravidez? Quando Lily atingiu a idade de ser
curiosa, Maida já tinha pouca paciência para que se arriscasse a
fazer perguntas e, quando Lily ganhou coragem para tal, tinha
demasiado medo da resposta.

Ali; sentada entre as raízes, percebeu que ainda tinha, mas agora

havia algo mais a recear. john tinha razão. Era apenas uma questão
de tempo até que alguém no lago avistasse sinais de vida na casa
de Celia. Ficar-se-ia então a saber que Lily regressara e as notícias
chegariam aos ouvidos de Maida. Lily não queria que a mãe
soubesse por terceiros. Ficaria extremamente magoada, o que não
ajudaria Lily. Nem tampouco seria bom para Poppy, que de certeza
seria interrogada e ficaria com parte das culpas.
Rapidamente, antes de perder a coragem, Lily regressou à casa,
lavou-se, mudou de roupa e deu a volta ao lago na carrinha
emprestada. A noite caíra. O luar passava por entre os ramos das
árvores de tempos a tempos, mas os seus faróis encontravam-se
sozinhos na estrada.

O coração começou a bater-Lhe com mais força quando se


aproximou do muro que assinalava a entrada dos Pomares Blake.
Abrandando, virou com cuidado e entrou na estrada de gravilha que
passava por entre hectares de macieiras grossas. Após cerca de
oitocentos metros, o terreno abria-se e a casa agigantava-se na
escuridão. Apenas um dos lados do rés-do-chão estava iluminado,
mas Lily conhecia de cor cada palmo da casa. Na sua imaginação
reviu dois andares, uma entrada de pedra, as traves protuberantes e
as janelas com beirais. Estacionando debaixo do telheiro, subiu os
degraus de pedra, abriu a portada de rede e entrou no grande átrio
principal. Ouvia-se música clássica vinda da biblioteca, sinal de que
Maida se encontrava em casa. Respirando fundo, Lily ergueu o
olhar para a escadaria, passando por pinturas a óleo de flores até se
deter na balaustrada de mogno. A passadeira sobre os degraus
parecia mais gasta do que se recordava da última Páscoa, mas nem
por isso o átrio deixava de ter uma elegância impressionante.

À sua esquerda ficava a enorme sala de jantar, sombria com a mesa


e cadeiras Chippendale. Virando-se na direcção oposta, entrou na
sala de estar. Apenas um candeeiro estava aceso, lançando a sua
luz sobre os sofás e cadeirões de estofos elegantes, as mesas de
mogno e um tapete oriental. Maida tinha bom gosto, Lily tinha de
Lhe conceder isso. Mesmo que certas pessoas de Lake Henry
pensassem que Maida decorara a casa da quinta com mais
elegância do que devia, Lily era obrigada a admitir que o fizera bem.

Quando olhou para o piano ao canto, sentiu uma pontada de


tristeza. Tinha saudades do piano de Boston e esse não possuía
uma ínfima parte das recordações daquele que via agora. Fora ali
que Lily aprendera a tocar. Sentada àquelas teclas de marfim no
banco de pé de galo, sentira-se forte e competente. Ali descobrira a
sua voz.

- Bem me parecia que tinha ouvido um carro - disse Maida,

calmamente.

Os olhos de Lily voaram para o fundo da sala. A mãe encontrava-se


à porta da biblioteca, com a luz pelas costas, as mãos ao lado do

corpo e os ombros direitos. Sem saber o que dizer, Lily permaneceu


calada.

- Imaginei que estivesses de volta - continuou Maida. - Poppy

mostrou-se evasiva quando Lhe perguntei.

- Poppy não sabia dos m-m-meus planos - disse Lily, censurando-se


por aquela hesitação mínima, mas Maida deixava-a nervosa.

O tempo não alterara isso, e a situação actual também não ajudava.

Continuando a sua defesa de Poppy, adiantou: - Não Lhe podia

dizer ao telefone. Não confiava nas linhas. O meu telefone estava


sob escuta.

- Quem faria isso? Apresentaste queixa? Não é ilegal escutar as

conversas telefónicas das outras pessoas, sem o seu


conhecimento?

Talvez tivesse sido a Polícia. Têm alguma razão para isso?

Lily abanou a cabeça. Cruzou os braços sobre o peito e tentou

dizer alguma coisa, mas só conseguia pensar que Maida estava


com muito bom aspecto. Com trinta anos, parecera a idade que
tinha.
Aos quarenta, a mesma coisa. Agora, aos cinquenta e sete, após ter
perdido o marido, três anos antes, e assumido o negócio da família,

havia algo que Lhe devia estar a fazer bem. Até parecia mais jovem.

Era magra e tinha uma postura tão imponente quanto a altura de um


metro e sessenta Lhe permitia. O cabelo era escuro, curto e
apresentava um corte elegante. Trazia calças de ganga e uma
camisola muito parecida com a de Lily.

Raramente a vira de calças de ganga.

- Estás com bom aspecto, Mãe.

Maida resmungou e retirou-se para a biblioteca. Lily observou a

mãe instalar-se na cadeira, pegar nos óculos de leitura e virar-se


para o

computador num dos lados da secretária. Estava a excluir Lily, típico

das ocasiões em que não conseguia lidar com algum assunto.

Lily ponderou a hipótese de ir-se embora. No passado, esse fora

O seu único recurso. Mas nessa altura tinha coisas para fazer e
sítios

para onde ir. Agora não tinha nada disso. Presentemente, apenas
sentia a necessidade de falar com a mãe.

Percorreu com lentidão a sala de estar, detendo-se na soleira de


onde Maida acabara de sair. A biblioteca estava repleta de estantes
de madeira de ácer, cheias de clássicos encadernados a pele, volu
mes antigos e livros mais contemporâneos com lombadas garridas.
Tudo isto fazia parte do conto de fadas de Maida; achava que dava
uma atmosfera aristocrática. Os livros eram retirados e limpos todas
as Primaveras, mas Lily sabia que poucos tinham sido abertos e
lidos. Era uma biblioteca para encher a vista.
Quanto à secretária, o caso era diferente. Lily recordava-se de ver o
pai a trabalhar ali com frequência. Era um homem robusto, mais à
vontade de fato-macaco a apanhar maçãs do que a remexer em
papéis, mas também o fazia, determinado em manter o negócio de
família lucrativo. O computador apenas surgira depois da sua morte.
Na altura, Lily ficara impressionada, pois não suspeitara que Maida
fosse virada para a informática. Mas também não imaginara que ela
passasse a gerir o negócio, e não era a única que pensava assim.
Toda a gente partia do princípio de que o simpático, afável e
saudável George viveria para sempre.

Agora, Maida ia carregando no botão do rato, analisava o ecrã,


folheava os papéis ao seu lado direito até encontrar o que queria e
digitava qualquer coisa.

- Contas - murmurou, parecendo resignada. - Ando a aprender


afazer malabarismo, pago um bocadinho aqui, outro bocadinho ali...
Pensei que as coisas fossem melhorar com a boa safra que tivemos
e com a subida da produção, mas uma produção maior é mais
desgastante para o equipamento. A prensa precisa de peças, a
tubagem, as unidades de refrigeração. estão todas a ir-se abaixo ao
mesmo tempo. É isso, depois é a retroescavadora, que anda aos
solavancos, como se fosse um cavalo velho - recostou-se e lançou
um olhar acusador a Lily. - O teu pai deixou-me com uma confusão
que me ocupa de manhã à noite, e depois há o telefone. Não param
de chover telefonemas de pessoas que querem saber de ti...
pessoas daqui, pessoas de outras localidades, pessoas de cidades
onde nunca estive, nem quero ir. Não preciso desses telefonemas,
Lily. Especialmente durante a época de colheita.

- Sinto muito - foi tudo o que Lily conseguiu dizer. - Poppy atende a
maior parte, mas ainda há algumas que conseguem passar. Sabes o
que eles perguntam? Sabes o que eles sabem?

Onde fazes compras, o que compras... foste tu que Lhes contaste

isso? - Lily mal abanara a cabeça e já Maida dizia: - A história da


gaguez, a história do imprestável do Donald Kipling... fazes ideia de

como isso é embaraçoso para mim?

Lily envolveu-se com os braços. Sentiu uma pontada de raiva,

mas o sentimento foi rapidamente atenuado pelo bom senso. Se


Maida

tivesse de explodir, mais valia que o fizesse agora para despachar o

assunto. - Fazes? - insistiu Maida. - Para mim é pior. - Beeemm -


disse a mãe, com uma gargalhada seca -, quando se

brinca com o fogo é assim. Querias pisar o palco. Querias ser


artista.

Só que o escândalo faz parte dessa vida. As pessoas vêem-te no


palco

e de repente tornaste uma figura pública. Passas a ser alvo de


boatos. Eu leio a revista People, sabes. Esta tem um caso com este,
a

outra tem um caso com aquele. Se andas nesse mundo, as pessoas

presumem que não tens qualquer sentido de decência... e tu deste-


Lhes isso de mão beijada. No que é que estavas a pensar?
Encontros

a altas horas da noite com o cardeal, beijinhos e abraços... não te

passou pela cabeça que as pessoas poderiam começar a ficar com


a

ideia errada? Pelo menos presumo que seja a ideia errada.

A voz silenciou-se, mas os olhos continuaram a interrogá-la directos


e exigindo resposta.
Agradavelmente surpreendida por receber o benefício da dúvida,

Lily respondeu rapidamente:

- É a ideia errada. Não aconteceu nada. O padre Fran é um bom

amigo. Há anos que é e sabes disso.

- Não sabia que andavas na casa dele sempre que te apetecia.

- Não era sempre que me apetecia. Nunca foi assim.

- E porque é que disseste aquelas coisas? Porque é que disseste

que gostavas dele?

- Porque é verdade. É um grande amigo. Foi isso que disse ao

jornalista. Ele retirou as minhas palavras de contexto. Fartou-se de o

fazer. Mãe, eu não pedi nada disto.

- Então porque é que aconteceu?

- Porque um jornalista qualquer, um jornal qualquer, queria aumentar


as vendas - gritou Lily. - A imprensa precisava de um escândalo, um
jornalista inventou-o e os outros aproveitaram-se. Se alguém
importante t-t-tivesse sido assassinado, eles nunca teriam inventado
isto, mas as coisas andavam calmas e o p-p-padre Fran foi elevado
a cardeal e alguém deu asas à imaginação.

- Estavas a pedi-las - declarou Maida. - Tu é que deixaste que isto


acontecesse.

Lily estava espantada.

- O que é que eu podia fazer? Neguei todas as alegações. Exigi que


se retractassem. Falei com um advogado.
- E?

- O quê?

- O advogado. Que está ele a fazer?

- Não podia contratar o advogado.

- Porque não?

- Ele queria um quarto de milhão de dólares.

Isto silenciou Maida. Os seus olhos dirigiram-se ao ecrã do com


putador e depois aos papéis. Cerrou os lábios com os cantos
virados para baixo.

Lily estava prestes a dizer que não queria o dinheiro de Maida


mesmo que esta o tivesse, quando ouviu um ruído atrás de si. Virou-
se e encarou com a filha mais velha de Rose, Hannah, a sobrinha
de dez anos de Lily, que vinha descalça na sua direcção. Uma Tshirt
enorme escondia o quão rechonchuda era. O longo cabelo
castanho, do qual pouco se aguentava num rabo-de-cavalo,
emoldurava um rosto sério e redondo.

Lily não conhecia bem as sobrinhas, mas Hannah fora a primeira e


detinha um lugar especial no seu coração. Abriu um sorriso rasgado.

- Olá, Hannah!

Hannah estacou à distância de um braço.

- Olá, Tia Lily.

Lily anulou o espaço entre elas e abraçou-a. O abraço que recebeu


em troca parecia hesitante, mas era melhor do que nada.

- Como estás? - perguntou, mantendo um braço em redor da


menina.
- Bem. Quando é que voltaste? - Ontem à noite, já tarde. Dormi
quase todo o dia. Que estás a

fazer acordada a esta hora?

- Ela veio cá passar a noite - explicou Maida, com um tom de voz


profissional. - O que aconteceu ao filme, Hannah?

- Era chato. - Pensava que tínhamos alugado dois.

Lily sentiu um encolher de ombros debaixo da mão. Hannah disse:

- Ouvi vozes.

- A tua tia e eu temos de conversar. Vai lá para cima ver o outro.

Hannah lançou um breve olhar a Lily antes de se afastar.

- Não te esqueças de rebobinar o primeiro - avisou-a Maida.

Lily observou-a até desaparecer no átrio e depois voltou-se para


Maida.

- Ela costuma dormir cá muitas vezes?

- Aos sábados à noite, quando a Rose e o Art querem sair.

- Onde estão a Emma e a Ruth? - Eram as irmãs mais novas de

Hannah, com sete e seis anos, respectivamente, decerto muito


novas para ficarem sozinhas.

- Estão com a ama. É mais fácil para ela se a Hannah ficar aqui.

- Com um tom de voz mais baixo perguntou: - Porque é que o jornal

deu a entender que ias contratar o advogado?

Receando que Hannah as pudesse ouvir, Lily também falou em


voz baixa. - Foi o advogado que o deu a entender. Mas não foi só o
dinheiro

que me preocupou. Ele disse que um processo poderia levar anos, e

que iam revirar ainda mais a minha vida.

Maida recostou-se na cadeira e levou os dedos entrelaçados aos

lábios.

Lily continuou:

- Não posso viver assim durante três anos.

Maida baixou as mãos.

- Há alguma alternativa?

- Esta história é mentira. Assim que o cardeal conseguir a


retractação todos vão ficar a sabê-lo.

- E vais recuperar o teu trabalho de professora? - indagou Maida.

- Não me parece. As calúnias persistem, mesmo depois de os factos


terem sido revelados. Colocaste-te numa posição vulnerável. Uma
mulher solteira a ter uma amizade chegada com o cardeal?

Lily sentiu-se acusada pela pessoa cuja desconfiança era mais


dolorosa. Ripostou com mais força do que alguma vez se atrevera a
mostrar a Maida, mas já era adulta, e a mãe estava errada.

- Não era assim tão chegada. Nunca o visitei por dá cá aquela


palha. Costumávamos conversar nas festas, mas havia sempre
outras pessoas junto de nós. Por vezes ficava na residência depois
das festas, a tocar piano, e ele telefonava-me para saber como
estava, se passássemos um ou dois meses sem nos vermos. Não é
diferente do que acontece com os meus outros amigos.
- Ele é padre.

- É um amigo.

- As pessoas não tocam nos padres.

- Toda a gente toca no Fran Rossetti.

- E isso. isso. que falta de respeito, a tratá-lo pelo nome próprio.

- Todos os amigos o tratam por Fran. É ele que nos pede. Nunca o
faria em público.

Maida seguiu por outra via.

- Se fosses casada, nada disto teria acontecido. Há anos que ando


a ver se te casas, e tinha razão. Um marido tinha-te dado alguma
estabilidade. Os filhos a mesma coisa. Se me tivesses dado
ouvidos, estarias mais segura.

- E isso teria feito alguma diferença? - ripostou Lily. - Se uma história


é baseada em mentiras, outra qualquer também seria. O Terry
Sullivan queria um escândalo. Tê-lo-ia criado mesmo que eu fosse
casada. Só que, nesse caso, iam chamar-me adúltera, ou mãe
incapaz.

- Quando é que te tornaste tão cínica? - teve Maida a audácia de


dizer, à laia de admoestação. Poppy fizera basicamente o mesmo,
mas em tom de observação. Maida estava a ser crítica, o que
deixou Lily furiosa.

- Quando as mentiras dos outros deram cabo da minha vida!

- Devias ter-te casado - insistiu Maida, mas a falta de expressão na


sua voz dizia que a discussão terminara. - Imagino que estejas na
casa da minha mãe?

Lily nem se deu ao trabalho de argumentar que legalmente a casa


era sua. Cansada, limitou-se a aquiescer.
- Durante quanto tempo?

- Não sei.

- Vais acabar por conduzi-los até aqui, sabes disso.

- Não, se não contares nada. Achas que a Hannah vai dizer alguma
coisa?

- Não.

- Ela vai contar à Rose - receou Lily. - A Rose vai contar ao Art. O
Art vai contar à mãe, e ela vai espalhar a notícia pela fábrica. - não
era paranóia da parte de Lily, mas a realidade. Era assim que Lake
Henry funcionava.

Mas Maida asseverou:

- A Hannah não vai contar nada à Rose. Nunca Lhe conta nada.

Se fosse a ti, preocupava-me com outras pessoas que possam


reparar que estás na casa da mãe. É assim que se vai ficar a saber,
e podes ter

a certeza de que depois a imprensa vem para aí. Achas que isso é
justo para nós?

- Para onde é que eu posso ir?

Maida levantou a mão, novamente perturbada.

- Não faço ideia. Só sei que não os quero aqui. Não queres que

eles andem a olhar para ti durante três anos? Porque haveríamos


nós de querer que eles olhem para nós durante três semanas? Vão
meter

o nariz em tudo, ainda mais do que já fizeram, e isso não é justo.


Não és tu a única envolvida, Lily. Trazê-los para cá. isso só vai
arrastar as coisas. Porque é que me estás a fazer isto? O que
queres de mim? Foi então que Lily se descontrolou e as lágrimas
afloraram-Lhe os olhos. Anos de angústia soltaram-Lhe a língua.

- Apoio - gritou. - Compreensão. Compaixão. Que me recebas bem.


Esta é a minha casa e tu és minha mãe. Porque é que não me
podes dar essas coisas? - poderia ter ficado por aí mas, após o
massacre emocional dos últimos dias, as suas defesas estavam em
baixo. O que é que eu fiz. o que é que eu fiz para te ofender assim
tanto? As pessoas gostam de mim, mãe. Sou uma pessoa s-s-
simpática. Tenho amigos que gostam de mim, colegas que gostam
de mim, alunos que gostam de mim, até um cardeal gosta de mim e
acha que m-m-mereço chamar-Lhe amigo. Porque é que tu não
gostas?

Maida parecia chocada, mas Lily foi incapaz de parar. As lágrimas


escorriam-Lhe pelas faces, mas os sentimentos há muito reprimidos
faziam com que as palavras continuassem a jorrar.

- A minha gaguez envergonhava-te. Significava que eu não era


perfeita, que uma das tuas filhas não era perfeita. Mas será que eu
pedi para g-g-gaguejar? Achas que eu gostava de o fazer? C-c-
cometi um erro. um erro com Donny Kipling. Será que te pesei
desde então?Já te pedi alguma coisa? Não. Mas agora peço-te
compreensão. Será assim tanto? Achas que eu queria que isto
acontecesse? Acordo durante a noite a tremer de fúria -
exactamente o que estava a acontecer nesse momento - porque
trabalhei tanto para construir uma boa v-v-vida, e eles tiraram-ma, e
não sei porquê! Não sei p-p-porque é que o Terry Sullivan me fez
isto, nem porque é que o Post o apoiou, e não sei porque é que a
minha própria mãe não fica do meu lado, para variar!

Dando meia volta, saiu da casa.

Lily chorou durante todo o caminho de regresso, alternando entre a


fúria pela insensibilidade de Maida e a vergonha pela sua própria
explosão. Estacionou o carro sem se preocupar em virá-lo, quase
desejando encontrar um elemento da comunicação social escondido
na mata. Se assim fosse, iria enfrentá-lo. Sentia-se pronta para
brigar. Mas ninguém a surpreendeu enquanto se dirigia ao lago. A
raiva levou-a directamente à velha doca de madeira, onde se
sentou, desafiando Lake Henry a avistá-la.

Ninguém iria fazê-lo. A noite estava escura e a água plácida. Sen


tiu-se irritada durante algum tempo e depois quase a rebentar. Mas
o ambiente era demasiado pacífico para guardar rancores e, a seu
tempo, acalmou-se. Quando o grito do mergulhão se fez ouvir,
pensou em Celia, a querida Celia, que a amara como uma mãe
deveria amar um filho. Se não fosse por ela, Lily teria sempre
acreditado que ninguém alguma vez iria gostar dela.

Fora isso que Maida Lhe ensinara ou, pelo menos, o que Lily
percebera da frustração que Maida sentia em relação à filha. O
padre Fran dizia que não era assim. Dizia que as mães amavam
sempre os filhos, embora por vezes as circunstâncias impedissem a
expressão desse amor. Tudo o que Lily sabia era que a frustração
era constante. Nunca fazia nada bem. George apoiara-a mais, mas
era ele quem escolhia as brigas em que se envolvia. Insistiu com
Maida para que a deixassem cantar no armazém, pois via aí um
tema mais abrangente. Como homem típico que era, não percebera
as pequenas necessidades emocionais que uma rapariga em
crescimento tinha, necessidades essas que iam ficando por
satisfazer.

Celia preenchera esse vazio. Dera a Lily uma confiança em si


própria que nem os aplausos da mais fascinada audiência podiam
proporcionar. Ensinara Lily a perseguir os seus sonhos.

E quais seriam os sonhos de Lily agora, sentada junto do lago


escuro, com o ar gelado, a água quase imóvel contra a margem
pedregosa e o grito primevo de um mergulhão a ecoar na noite?

Queria a sua vida de volta: trabalho, liberdade, privacidade.

Quando Lily acordou na manhã de domingo, o sonho era mais


intenso do que nunca. Reprimindo a necessidade que sentia,
aguardou até às nove e depois fez o impensável: telefonou a John
Kipling.

Ele sabia que ela ali estava, estava a par da situação, conhecia os

meandros da comunicação social. "Também me convidou a


telefonar", argumentou para consigo. Além disso, dada a forma
como fora

usada pela imprensa, não via mal em usar John.

- É a Lily. Estava a pensar se já terias visto o jornal da manhã.

- Acabei de o ir buscar.

- Traz alguma coisa?

- Um pequeno comentário na primeira página. Espera um pouco,

vou ver no interior.

Enquanto o restolhar das páginas se fazia ouvir, Lily quedava-se à

janela para o lago, enrolada no xaile de Celia e agarrando o telefone

com força. Pareceu uma eternidade até voltar a ouvir a voz dele, a

qual foi precedida de um suspiro.

- Pronto, não é muito mau. A primeira página faz uma pequena

recapitulação dos acontecimentos da semana. Grande parte do que


está no interior tem a ver com outras pessoas.

- Que outras pessoas?

- História.
- História?

- Escândalos sexuais.

Lily sentiu o estômago às voltas.

- Que queres dizer c-c-com isso?

- Falam de figuras importantes que estiveram envolvidas em casos


muito badalados. Mas acho que isso é bom. Se estão a afastar-se
de ti, significa que já não têm o que dizer.

Lily não encarava a situação de uma forma assim tão benigna.

- Mas estão a ligar-me a essas pessoas!

- Pois, mas quem tiver dois dedos de testa percebe que são coisas
diferentes. Não há comparação entre o cardeal Rossetti e um
presidente apanhado com a boca na botija, ou um diplomata de alto
gabarito apanhado na cama com uma espiã, ou um ícone de
Hollywood que não consegue manter as calças em cima.

- Talvez os leitores não t-t-tenham dois dedos de testa.

- Normalmente as pessoas são mais inteligentes do que nós


pensamos - declarou John com um tom de voz mais calmo. Até
poderia ser reconfortante, caso ele não fizesse parte da
comunicação social. A imprensa sabia como manipular e Lily
aprendera-o na pele. - Sim, é ofensivo estarem a trazer a lume
casos antigos deste género. Mas o tiro vai sair-Lhes pela culatra. As
pessoas vão ler o artigo e ver que, comparadas com estas, as
alegações contra ti e o cardeal são insignificantes.

- O problema - argumentou Lily, respirando um pouco - é que as


comparações resultam, se f-f-forem feitas vezes suficientes. As
pessoas vão esquecer-se dos pormenores das alegações contra
mim. Vão esquecer que são insignificantes. O caso vai assumir
proporções maiores.
- Então tens de ripostar.

- Como? - gritou.

Após uma breve pausa, John disse:

- Através dos tribunais, por exemplo. Os jornais vão dar por isso. Lily
baixou a cabeça, fechou os olhos e pressionou o punho contra a
têmpora.

- E o resto do mundo também. t-tenho de desligar - murmurou e


terminou a chamada.

Lily passou grande parte do domingo a odiar a impotência que


sentia. Reconsiderou a hipótese de tomar alguma acção legal e até
imaginou uma cena triunfal no exterior de uma sala de audiências,
após um júri ter deliberado a seu favor. A imagem incluía uma
vingança completa, com o tipo de acordo monumental que faria a
imprensa pensar duas vezes antes de destruir irresponsavelmente a
vida das pessoas. Imaginou um regresso vitorioso a Boston, que
incluía o director da Winchester School a ser despedido por ter
cedido ao frenesim da comunicação social e o dono do Essex Club
a implorar-Lhe que regressasse ao trabalho. Imaginou Terry Sullivan
a perder o emprego, Paul Rizzo a ter um acidente de mota e Justin
Barr a ser expulso da cidade.

Inevitavelmente, a realidade voltou assim que pensou no preço


emocional a pagar por levar o caso a tribunal. As coisas iam piorar
antes de começarem a melhorar e não estava preparada para
embarcar nessa viagem.

Que mais poderia fazer? No sábado de manhã John dissera que


tinha munições. Não o voltara a referir no domingo, mas talvez ela
tivesse desligado demasiado cedo. Interrogou-se sobre que
munições seriam e sobre se poderia confiar nele, ou se ele se
voltaria contra si e a usaria, tal como Terry Sullivan fizera.
Problemas de confiança à parte, sabia que John lia os jornais todas
as manhãs. À falta de televisão e de rádio em casa, com medo de
ligar para Boston e arriscar-se a que a chamada fosse seguida até
ao número de Poppy, e relutante em telefonar a Maida, engoliu o
orgulho e ligou novamente a John na segunda-feira de manhã.

- És o meu elo de ligação com o mundo exterior - gracejou, numa


tentativa de aligeirar as coisas. - O que se passa hoje?

- Nada na primeira página - replicou John. - A história surge na


página cinco. O Vaticano ilibou o cardeal de qualquer suspeita e
condenou a irresponsabilidade do jornal. O Post respondeu com um
pedido de desculpas ao cardeal.

A esperança surgiu tão rapidamente que Lily mal conseguia respirar.

- Eles admitiram que a história estava errada?

- Não. Mas pediram desculpa ao cardeal - a declaração ficou

suspensa no ar.

- Sim? - perguntou Lily. Tinha de haver mais alguma coisa.

- É só. Era um artigo pequeno.

A esperança vacilou.

- Fui mencionada?

- Só ao início.

Lily engoliu em seco, insegura.

- P-p-podes ler-mo?

Com um tom de voz firme, John começou a ler:


- "Após conduzir o seu próprio inquérito, o Vaticano anunciou que o
recentemente nomeado cardeal Francis Rossetti foi ilibado de todas
as alegações sobre um relacionamento impróprio com a cantora Lily
Blake. O inquérito do Vaticano incluiu extensas entrevistas com os
funcionários mais próximos do cardeal, bem como com o próprio
cardeal. Uma declaração emitida por Roma ontem à noite citava
uma ausência de provas que sugiram que qualquer das alegações
publicadas durante a semana passada seja verdadeira. A
declaração prossegue, condenando a atmosfera de jornalismo
carnavalesco que existe neste país actualmente e que ameaça
causar danos irreparáveis mesmo para homens de carácter
irrepreensível, como o cardeal Rossetti . "

Lily susteve a respiração, à espera.

- Mais? - perguntou John.

- Se não te importares.

- "Um porta-voz da Arquidiocese de Boston elogiou a celeridade e


profundidade da investigação do Vaticano. Esta acção atempada
permite que o cardeal Rossetti regresse de inìediato ao trabalho
com os pobres e os necessitados, e com todos aqueles que
precisam da arquidiocese, disse. "

John fez uma pausa.

Lily aguardou.

- "Ao ser contactado pelo Post" - continuou ele a ler -"o cardeal

reiterou essa ideia. Há muita coisa importante para ser feita,


comentou. Seria triste que esse trabalho sofresse devido a
acusações falsas

e a artigos irresponsáveis. "

John fez nova pausa.


- É só? - perguntou Lily.

- Mais uma frase. "O Post apresentou um pedido de desculpas

formal ao cardeal e à arquidiocese. "

Lily esperou que ele dissesse mais alguma coisa. Com o alongar

do silêncio a consternação aumentou.

- É só isso?

- Sim.

- Não me pedem desculpa a mim?

- Não.

Lily ficou espantada e depois irada.

- Mas eu fui quem mais sofreu no meio de tudo isto. Fui eu que

fiquei sem trabalho, sou eu q-q-que não posso andar em público

sem ser seguida como uma gata no cio. Também mereço um pedido

de desculpas. Que tal ilibarem-me a m-m-mim? - tinha o maxilar

cerrado e o coração aos saltos. Sentia-se mais zangada do que


nunca. - Quem escreveu esse artigo?

- Não foi o Terry - respondeu John. - David Hendricks. Pertence

à redacção do jornal há muito tempo.

- O Terry Sullivan é um cobarde - desabafou Lily. - Então e os

outros jornais?

- A mesma coisa. Um artigo pequeno e mais nada.


- Será que chegou ao fim?

- Possivelmente.

Devido à fúria Lily apenas conseguiu proferir um rápido "obrigada"

antes de desligar a chamada. Depois telefonou a Poppy e pediu-Lhe


que ligasse a Cassie Byrnes.

Tal como acontecia em muitas das povoações vizinhas Lake Henry


era gerida por uma assembleia-geral. Durante duas noites em
Março, a igreja enchia-se com os residentes, que se reuniam para
votar os assuntos relevantes à vida comunitária do ano seguinte. A
cada dois anos, elegia-se um moderador, que determinava a ordem
de trabaLhos da reunião, e que supostamente passaria a ser a
pessoa mais poderosa da cidade.

Em Lake Henry as coisas não eram bem assim, e a reunião geral


era mais um acontecimento social para aliviar a monotonia da época
baixa do que um corpo legislativo. Na verdade, os pormenores
diários da vida comunitária eram resolvidos, sempre que surgiam,
pelo chefe da Polícia, pelo chefe dos correios e pelo notário.
Contudo, os assuntos mais importantes do novo milénio tinham a
ver com interesses ecológicos, os quais eram geridos pelo Comité
de Lake Henry.

Este comité fora criado na década de 1920, altura em que a


crescente afluência de veraneantes deixava os moradores
permanentes tensos. Os membros do comité dedicavam-se à
preservação da beleza do lago e terrenos circundantes. Ao longo
dos anos, com o aumento de importância dos interesses ecológicos,
o poder do comité foi crescendo.

Não havia limite de dimensão para o comité e todos podiam


pertencer. O único requisito era a participação mensal obrigatória
nas
reuniões. Quando se convocava uma reunião de emergência, regra
geral, em resposta a qualquer atitude do governo que os nativos
consideravam ir contra os seus direitos, esperava-se que os
membros estivessem presentes, a não ser que tivessem uma boa
razão. O comité normalmente contava com trinta membros, mais ou
menos. Em Janeiro, o novo ano era festejado com a eleição de um
líder de entre os membros.

Cassie Byrnes encontrava-se no seu quarto ano como presidente do


Comité de Lake Henry. Fora a primeira mulher a deter o cargo e,
agora com trinta e cinco anos de idade, continuava a ser a mais
jovem de sempre, mas a escolha fora unânime. Desde sempre
residente em Lake Henry, apenas saíra da cidade para frequentar o
curso de Direito. Ainda a tinta nem secara no diploma e já
regressara a casa para abrir um escritório. Desde então, havia dez
anos, tornara-se uma espécie de activista local.

Lily estava à espera dela no alpendre. Naquele dia o lago estava


calmo, embora coberto por uma camada de nevoeiro, o que a
ajudava a controlar o nervosismo. Quando ouviu o som de um
motor, dirigiu-se à frente da casa. Aguardou aí até que Cassie
estacionasse um carro pequeno que parecia tão usado como a
velha carrinha

emprestada. No banco de trás, por entre o que pareciam ser


blusões

grossos, um taco de hóquei e um saco de comida rápida, viam-se

duas cadeiras de criança.

Cassie era uma mãe trabalhadora, mas o único pormenor de menos


aprumo no seu aspecto era o cabelo louro encaracolado. Ao sair

do carro, colocando ao ombro uma mala de pele, denotava grande

serenidade. Tinha as pernas compridas moldadas pelas calças de


ganga
e em cima trazia seda natural branca. Trazia um blazer, um lenço de
motivos florais e botas.

- Obrigada por teres vindo - cumprimentou Lily.

Cassie sorriu.

- Andávamos a imaginar se terias regressado. A especulação faz

parte da natureza dos habitantes do lago. Mas ninguém sabe que

aqui estou. O teu segredo está seguro comigo enquanto quiseres


que assim seja - estendeu-Lhe a mão. - Já lá vai algum tempo.

Lily apertou-Lhe a mão. Cassie estava um ano à sua frente na


escola

e era infinitamente mais popular. O seu aperto de mão era agora


confiante e firme. Lily esperava que a competência legal se
equiparasse.

Poderiam ter falado no alpendre, pois o nevoeiro garantia-Lhes

confidencialidade, mas estava demasiado frio e húmido para ficar

muito tempo na rua. Por isso, Lily levou-a para dentro e ofereceu-
Lhe

café. Sentaram-se na sala, Lily no cadeirão e Cassie no sofá.

- Tens acompanhado a história? - começou Lily.

- Tenho, claro. Seria difícil não acompanhar, ainda por cima com um
dos nossos envolvido.

- Viste os jornais de hoje?

- Sim. O Vaticano ilibou o cardeal e o Post pediu-Lhe desculpa,


mas a ti não - disse Cassie, com uma fluência que encorajou Lily. O
que não me surpreende, pois a imprensa tem ases legais a trabalhar
para si. Dizem aos directores aquilo que a lei exige e eles não

vão além disso. O Post apresentou um pedido de desculpas, mas


não

uma retractação. Poderá não ser oferecida, a não ser que o cardeal
a

exija. Ou pode vir a lume lá mais para o fim da semana. Há leis que

regem as retractações, onde devem surgir, qual o seu tamanho.


Teria

de dar uma vista de olhos aos estatutos do Massachusetts para


saber

como é que as coisas funcionam por lá.

Lily não estava interessada em estatutos, limitando-se ao bom

senso.

- Mas como é que eu não fui incluída no pedido de desculpas? Se


eu era uma das partes envolvidas num alegado caso sexual, e a
outra parte foi exonerada e recebeu um pedido de desculpas
público, como é que eu posso ser ignorada? Porque é que as
acusações são feitas na primeira página e as desculpas publicadas
algures no interior?

- É assim que as coisas funcionam - comentou Cassie, com um tom


de desprezo.

Furiosa, Lily baixou a cabeça. Engoliu em seco, enquanto tentava


organizar as ideias. Quando se achou pronta, ergueu o olhar.

- Aquilo que me fizeram foi moralmente errado. Nada disso vai


mudar. Mas também se violaram leis. É sobre isso que tenho de
falar contigo.

- Não estás a trabalhar com o Maxwell Funder?

- Não. Ele queria o caso pela publicidade e pelo dinheiro. - Disse a


Cassie a verba que Funder sugerira.

Cassie revirou os olhos.

- Isso também não é surpresa. Ele pertence a uma firma elegante.


Há pessoas que Lhe pagam os honorários. Por isso pode baixar
aquilo que cobra por hora, mas não deixa de ser astronómico. Ele
fez-te o discurso dos custos? - Ainda mal Lily tinha anuído quando
Cassie disse: - As despesas de tribunal não são muito elevadas
num caso destes. Pelo menos por estas bandas.

Essa era uma noção nova.

- Posso usar os tribunais do New Hampshire? - perguntou Lily.

- Porque não? Os jornais em questão encontram-se todos à venda


por aqui, o que significa que foste difamada tanto no New
Hampshire, como no Massachusetts e em Nova Iorque.

Lily ganhou coragem.

- E é de difamação que se trata. Disseram mentiras a meu respeito


e, aquilo que não disseram, insinuaram.

Cassie ergueu a mão num gesto de aviso.

- Aquilo que insinuaram vai ser mais dificil de provar. - Tirou um


bloco e uma caneta da mala. - Vamos começar com aquilo que
disseram.

- Disseram que estava a ter um caso com o cardeal. Isso não é

verdade.
Cassie começou a tirar notas.

- Muito bem. Esse é o ponto número um. Que mais?

- Disseram que estava a ter um caso com o governador de Nova

Iorque. - Isso foi dito, ou insinuado? - Insinuado, mas com


veemência.

Cassie oscilou a mão. - Isso é um talvez. Que outras acusações


directas foram feitas?

- Que eu disse que estava a ter um caso com o cardeal. Que

estava apaixonada por ele. Que o segui até Boston.

- Não disseste nada disso?

- Não da forma como foi sugerido - explicou Lily, zangada e

embaraçada ao mesmo tempo. - Estávamos a falar de uma mulher

hipotética que dizia ter um caso com o cardeal. E o Terry escreveu-o

como se fosse eu a dizê-lo. Eu disse que gostava do cardeal, tal


como

muitas outras pessoas gostam dele. Foi genérico. E segui-o para


Boston

cronologicamente, mas não com o objectivo de ir atrás dele.

Cassie franzia o sobrolho.

- Isso está tudo no campo do talvez. Disseste essas palavras e ele

retirou-as de contexto. Pode argumentar que foi um mal entendido


inocente da sua parte. O caso não vai chegar a tribunal a menos
que

consigamos provar intenção maliciosa. Conhece-lo?

- Não - respondeu Lily, frustrada. - Tinha vindo a tentar abordar-me


devido a um artigo que ia fazer sobre artistas, mas fui sempre

recusando. A primeira vez que falámos a sério foi no clube, na noite

antes de divulgar a história. Levou-me a fazer essas declarações,


Cassie.

Mas ainda há tudo o resto que publicaram - apressou o relato, pois

era tudo tão errado, tão irritante, tão humilhante. - Não Lhes disse

Onde ia às compras, nem onde passava as férias, nem Lhes contei

sobre o incidente quando tinha dezasseis anos. Essas acusações

foram retiradas. O caso devia estar arquivado.

Enquanto Lily falava, Cassie foi batendo com os nós dos dedos no

lábio. Agora apontava qualquer coisa no bloco.

- Alguém passou a informação. O Procurador-geral daqui devia

investigar o caso. O problema com o resto, onde fazes compras e


onde passas férias, é que essa informação está disponível ao
público. Não devia, mas está. Qualquer pessoa com conhecimentos
mínimos de Internet pode lá chegar.

Lily sentia-se desencorajada.

- Quer dizer que não há nada que eu possa fazer?

- Quanto a isso, não.


- Mas eles também violaram leis. Alguém andava a escutar-me o
telefone.

- Tens a certeza?

- Não, mas ouvi um estalido quando estava a falar com a minha irmã
e parte dessa conversa apareceu no jornal no outro dia.

Cassie anotou mais alguma coisa no bloco.

- Para isso apresentamos queixa no gabinete do Procurador-geral


do Massachusetts.

Lily percebeu o plural e falou de forma ainda mais hesitante.

- Não tenho muito dinheiro. Dou-te o que tiver.

- Calma com o dinheiro - disse Cassie. - Falamos nisso conforme as


despesas forem surgindo - virou uma página nova do bloco. Quero
saber tudo sobre a tua relação com o cardeal, tudo sobre a tua
conversa com o Terry Sullivan, tudo sobre o que te aconteceu desde
o surgimento da história.

Lily passou a hora seguinte a falar. Serviu-Lhe de catarse. O tom da


voz subia e descia com a emoção, mas não gaguejou uma única
vez. Embora Cassie colocasse uma questão ocasional, acima de
tudo ouviu e tirou notas. Finalmente, Lily terminou. Cassie reviu os
apon tamentos em silêncio. Quando Lily já não aguentava a
expectativa, perguntou: - O que achas?

- Acho - respondeu Cassie - que podes avançar com um caso de


difamação.

- Mas? - Lily percebera-o na voz da advogada.

- Mas existem vários pormenores. Um dos maiores é se, por


qualquer motivo, puderes ser considerada uma figura pública. Se os
precedentes legais disserem que sim, o caso de difamação torna-se
mais difícil de provar. É aí que a intenção maliciosa se transforma na
maior questão. Seja como for, o primeiro passo é pedir uma
retractação por parte do Post. A lei exige-o, antes de levantarmos
um processo. Temos de dar ao jornal a oportunidade de apresentar
uma retractação, e, no nosso caso, um pedido de desculpas, antes
de metermos os tribunais ao barulho.

- Quanto tempo é que Lhes damos? - perguntou Lily. Não se 1


esquecera do aviso de Funder sobre uma experiência longa,
cansativa e dolorosamente pessoal.

- Uma semana. Não precisam de mais. Queres que avance? Uma


semana não seria mau. Lily estava suficientemente zangada para
aguentar isso. Suspeitava que, caso o Post recusasse ou ignorasse
a sua exigência, a raiva iria levá-la mais além. E sentia-se forte com
Cassie a seu lado, conseguia pensar que talvez fosse possível
reparar o mal que fora feito. Tal como Poppy frisara, era a vida dela,
o seu trabalho e nome que estavam em jogo. Se não lutasse por
eles, ninguém mais o faria.

- Sim - disse calmamente. - Quero avançar.

Enquanto Lily e Cassie falavam, John balançava-se na cadeira do

gabinete, com os pés sobre a secretária, as mãos em redor da


caneca

de café, os olhos no lago coberto de nevoeiro e a cabeça na razão

para o Post ter ignorado Lily. Para ele, pouca diferença fazia. O livro

acabaria por resultar de qualquer forma. Mas, quanto mais pensava

no caso, mais irritado ficava. Num impulso, pegou no telefone e


marcou um número familiar.

- Brian Wallace - resmungou uma voz distraída no outro lado da

linha. Brian fora o director de John no Post e continuava a ser o de


Terry Sullivan.
- Olá, Brian. Fala Kip.

A voz animou-se. Os dois tinham sido amigos.

- Como é que isso vai, Kip?

- Vai bem. E tu?

- Atarefado. Isto nunca abranda. Às vezes penso que tu é que

fizeste bem, quando te baldaste desta confusão. Bem, agora estás


na província. Quem podia imaginar que ia rebentar uma história


destas mesmo debaixo do teu nariz?

- Está debaixo do teu nariz. Isso aconteceu em Boston.

- Mas ela é daí. O Terry diz que nos tens andado a ignorar.

- O Terry queria informações que eu não tinha. E, mesmo que


soubesse de alguma coisa, não o diria ao Terry - admitiu John,
sabendo que Brian o iria perceber. Terry fazia inimigos a torto e a
direito.

- Ah! - replicou Brian. - Isso é que é ser directo. E então? Queres


dar-me essa informação a mim?

- E que informação é que pode haver?

- Ela não está aí?

- Se está, escondeu-se muito bem. As pessoas da cidade não a


viram - nenhuma das declarações era mentira. Enganadoras, talvez,
mas Brian Wallace ensinara-o bem. - Andamos a seguir a história.

A de hoje foi interessante. Não é habitual o jornal apresentar


pedidos de desculpa.
Brian soprou.

- A Igreja ficou lixada.

- Agora toda a gente aqui da zona também está lixada. Gostavam


de saber porque é que a Lily não recebeu também um pedido de
desculpas.

Brian produziu um som mais duro.

- A Lily Blake devia era pedir-nos desculpa a nós. Se ela não tivesse
dito aquelas coisas, não estávamos a passar por esta vergonha.

Sem querer dar a entender que conversara com Lily, John começou
a ser mais prudente.

- Achas mesmo que ela disse aquelas coisas? Ou será que o Terry
as inventou?

- Se as tivesse inventado eu não as tinha publicado.

- Tens a certeza de que não o fez?

Seguiu-se uma breve pausa e depois uma voz mais fria.

- Isso é uma acusação?

- Deixa-te disso, Brian. É comigo que estás a falar. Sei muito bem de
certas cenas de bastidores que aconteceram por aí. Trabalhei com o
Terry e também andei na escola com ele. Não seria a primeira vez
que fabricava uma história.

- Cuidado, John - e agora eram adversários. - Esse tipo de


declarações pode ser difamatório.

- E o que ele escreveu sobre a Lily Blake não é? Não te preocupa


que ela possa levantar um processo?

- Não.
Parecia tão seguro de si que John ficou ainda mais irritado.

- Porque não? A história era falsa. Tu próprio o admitiste. Será

que isso não significa que o Terry estava errado? - Céus, John -
ripostou Brian. - Achas mesmo que eu publicava

uma história daquelas se não tivesse algum motivo para acreditar

nela?Julgas mesmo que eu teria publicado isto com base apenas na


palavra do Terry? Sei muito bem o que ele já fez no passado, por
isso

tenho-o debaixo de olho. já há semanas que ele me vinha a falar

daquela relação, logo desde que se começou a dizer que o Rossetti

poderia ser elevado, e eu disseLhe que nem queria saber, a menos

que ele me trouxesse mais alguma coisa para além de provas


circunstanciais. E trouxe. Tenho uma gravação. Uma gravação,
John. Foi sem

dúvida a Lily Blake que disse aquelas coisas. Talvez seja maluca.
Talvez tenha um fraquinho pelo homem. Talvez já fantasie com ele
há tanto tempo que agora começou a pensar que era verdade. Mas
foi

ela que disse aquelas coisas. Eu próprio as ouvi.

John não esperara por isso e agora mudou de estratégia.

- Ela sabia que estava a ser gravada?

- Disseram-nos que sim. Mas estamos a ter cuidado. É por isso

que ainda não a divulgámos. Não somos estúpidos, Kip. Esta


gravação não seria aceite em tribunal, mas justifica o facto de
termos feito
a história. Ao ouvir a cassete, ficámos com razões para acreditar. Da

nossa parte não houve intenção maliciosa. A rapariga é maluca.

Poppy soubera do pedido de desculpas ao cardeal antes de Lily

ter telefonado para que a irmã a pusesse em contacto com Cassie.

Ouvira-o bastante cedo através de três amigos diferentes, os quais

tinham ficado a saber pela televisão, ficando chocados por as


desculpas não abrangerem Lily. Entre as chamadas desses amigos,
atendeu

outras da comunicação social. Os nomes de quem ligava eram


familiares e o tom das vozes ansioso. Queriam saber a reacção da
terra

natal de Lily aos últimos acontecimentos.

À pessoa que ligou à procura de Charlie Owens disse: - Sempre


acreditámos na Lily.

Redireccionou a destinada a Armand Bayne para a casa dele,

sabendo que este lidaria facilmente com o indivíduo.

Ao telefonema para Maida respondeu:

- Estamos aliviados pela exoneração da Lily - embora essa


declaração nem sequer se aproximasse da verdade. Mas Maida
encontrava-se no lagar de sidra e não atenderia a chamada, e
Poppy decidiu que, se os jornais iriam publicar comentários, mais
valia que realçassem a inocência de Lily.

Surgiu uma chamada para Willie Jake. Poppy carregou no botão e


disse para o auricular:

- Polícia de Lake Henry. Este telefonema está a ser gravado.


- Gostaria de falar com William Jacobs, por favor - declarou uma voz
que ainda não ouvira. Era maravilhosamente grave e, com toda a
certeza, masculina.

Quando Willie Jake Lhe telefonara, ia a caminho do restaurante de


Charlie para um almoço antecipado.

- Ele não está. Posso ajudá-lo?

- Isso depende - respondeu o homem, de forma bem-humorada.

- O meu nome é Griffin Hughes. Sou um escritor freelancer a


trabalhar numa história sobre privacidade para a Vanity Fair. Estou a
debruçar-me sobre o que acontece quando a privacidade é violada,
e sobre os efeitos secundários para as pessoas envolvidas. Pensei
que a situação de Lily Blake encaixava nos meus parâmetros. Lake
Henry é a cidade natal dela. Ocorreu-me que as pessoas por aí
talvez tenham alguma opinião sobre o que Lhe aconteceu.

- Pode ter a certeza de que temos - disse Poppy com sentimento. O


homem riu-se e continuou com o mesmo tom descontraído e grave.

- Pensei que devia começar pelo chefe da Polícia, mas a agente de


despacho também me parece bem. E então... O que acha?

- Acho - replicou Poppy, tentando soar tão descontraída como ele -


que seria maluca em partilhar a minha opinião consigo, pois tudo o
que eu disser pode ser distorcido e alterado. Se o que aconteceu a
Lily nos ensinou alguma coisa, foi isso. Você e os seus colegas da
imprensa não prestam para nada.

- Eh - protestou ele suavemente -, não me meta no mesmo saco dos


outros. Eu não trabalho para um jornal. Além disso, estou do lado da
Lily.

- E não pretende ser pago pelo seu artigo?

- Claro que pretendo. Mas a Lily é apenas uma das pessoas que
estou a investigar, e nem sequer foi a primeira. já comecei este
projecto

há semanas. A maioria delas sofreu devido a fugas de informação


médica, portanto a situação da Lily é diferente. Estou a redigir o
artigo sem

qualquer acordo prévio. A revista até pode rejeitá-lo quando estiver


pronto, mas creio que é importante que se escreva sobre o assunto.

Parecia muito simpático e razoável. Não havia na sua voz nada

da urgência ou da arrogância que ouvira em outros elementos da

imprensa que tinham telefonado. Imaginava-o como sendo um


homem de estatura e peso médios, com um sorriso caloroso e
alguma decência. Só podia ser um logro.

- Que tipo de nome é Griffin Hughes? - perguntou, com um tom

depreciativo. - Nem parece verdadeiro.

- Pois, vá dizer isso ao meu pai - foi a resposta. - E ao pai dele. Sou
o terceiro.

- Está a tentar enganar-me. O seu tom amigável e simpático é

propositado.

- E honesto.

- Sim, isso também, mas não acredito em si.

- Sinto muito - disse ele, parecendo sincero. Com curiosidade,

perguntou: - É natural de Lake Henry?

- O que tem isso a ver seja com o que for?


- Não tem pronúncia.

- Poucas pessoas da minha idade têm. Passámos algum tempo na

civilização. Não somos campónios - retorquiu, de forma um pouco

mais dura do que o pretendido, mas a voz grave sugeria uma maçã-
de-adão cheia de virilidade e Poppy encontrava-se na defensiva.

Ele disse, em tom gentil:

- Calma! Não é preciso tentar convencer-me. Estou do seu lado...

ah... como disse que se chamava? - Não Lhe disse o meu nome.
Está a ver, está a tentar enganar-me.

- Não - contrapôs, parecendo lamentar mais uma vez. - Estou só

a tentar imaginar que somos amigos. Você é directa. Gosto de


pessoas

assim. É bom sabermos onde estamos a pisar.

- Poppy - disse ela. - Chamo-me Poppy. Sou irmã da Lily Blake e

estou furiosa com o que Lhe aconteceu. O mesmo se passa com o

resto da cidade. Pode escrever isso.

- Ainda não vou escrever nada. Por enquanto estou só a recolher


informação. Afinal de contas, você está numa terra em que toda a
gente sabe o que é que se faz e quando. Não há grande
privacidade. Portanto, talvez não sintam a mesma necessidade de
privacidade que as pessoas da cidade.

- Apenas disse que estamos zangados.

- Certo, mas estão zangados com aquilo que aconteceu à Lily ou por
terem pessoas como eu a meterem-se na vossa vida?
- As duas coisas.

Griffin Hughes suspirou. Com uma voz grave e gentil, concluiu:

- Muito bem. já estou a incomodar. Depois volto a tentar falar com o


chefe. Fique bem, Poppy.

- Você também - respondeu ela, cortando a ligação com algum


alívio. Talvez gostasse de continuar a ouvir aquela voz. E depois,
sabe Deus o que poderia ter sido convencida a dizer.

John não conseguia deixar de pensar na gravação.

A sua existência dava uma nova vertente à história. Mas era


segunda-feira, o que significava que o Lake News da semana era a
prioridade

número um. já programara as páginas e digitalizara as fotografias.

Agora só tinha de acrescentar algum sumo.

O artigo principal era sobre três famílias que se haviam mudado

recentemente para Lake Henry, vindas de grandes cidades. Os


Taplin,

Rachel e Bill e a filha de quatro meses, Tara, tinham vindo de Nova

Iorque. Os Smith, Lynne e Cary e os filhos adolescentes, Allyson,

Robyn, Matt e Charley, eram nativos do Massachusetts. Os


Jamison,

Addie e Joe e os dois labradores cor de chocolate, mais os três


filhos

adultos, os quais vinham visitá-los durante as férias, eram


originários
de Baltimore. As idades dos três casais variavam entre os vinte e
muitos

e os sessenta e muitos, mas tinham em comum a procura de uma

melhor qualidade de vida.

Na semana anterior, John realizara entrevistas com cada família e

delineara o artigo à mão, em casa, no domingo. Instalando-se na


sua

cadeira, iniciou a composição no computador. A redacção foi


interrompida pelos telefonemas habituais, relacionados com
declarações de serviços públicos e com anúncios classificados.
Quando as interrupções se tornaram cansativas, desceu até à
recepção e pediu a Jenny que atendesse os telefones.

Explicou-Lhe duas vezes o que tinha de fazer e confirmou que ela

tinha os formulários necessários na secretária. Destacou a amarelo


as

perguntas mais importantes que teria de fazer. Quando viu que ela

parecia aterrorizada, John reviu os procedimentos uma terceira vez.

Repetiu também que ela estava pronta, que era uma boa maneira
de

treinar e que ele sabia, tinha a certeza, que ela iria sair-se bem.

Fechando a porta do gabinete, voltou ao computador mas, em

vez de escrever sobre a atracção da vida nas pequenas cidades,


deu consigo no ciberespaço, acedendo aos arquivos do Post. Era
frequente surgirem queixas quando Terry Sullivan fabricava
histórias. john rapi damente localizou e imprimiu quatro desses
artigos questionáveis que tinham sido publicados durante os últimos
anos em que ele próprio estivera no jornal. Depois telefonou a Steve
Baker, um amigo antigo

que ainda era repórter no Post.

- Então, pá! - exclamou Steve com prazer quando ouviu a voz de


John. - Deves ter as orelhas a arder. Só se fala em ti aqui na
redacção. Estamos todos a pensar naquilo que podes saber sobre a
Lily Blake.

- Pouca coisa - respondeu John. - Ela saiu de cá aos dezoito anos e


eu tinha-me ido embora dez anos antes. Ando a pensar é naquilo
que vocês todos devem saber sobre o Terry Sullivan. Isto é mais
uma das intrujices dele? O Terry inventou tudo?

- Depende da pessoa a quem perguntares - retorquiu Steve sem


hesitar. - A história oficial é que a Lily enganou o Terry. No meio de
tudo o que ele já tinha apurado, aquilo que ela Lhe contou parecia
verdadeiro.

- Essa é a história oficial. Qual é a tua?

Seguiu-se uma pausa e depois, em tom mais baixo:

- Ele anda a construir esta história há meses.

- Seguiu a Lily?

- E o Rossetti. Quando ele foi nomeado arcebispo de Boston, toda a


gente sabia que ia ser elevado. A única dúvida era quando. A
comunidade católica esperava que tivesse sido mais cedo. Assim
que se começou a dizer que a elevação deveria surgir no terceiro
aniversário da sua vinda para Boston, ou lá perto, o Terry começou
a mexer-se. Isso foi há seis meses. Ele andou à pesca, andou à
procura de qualquer coisa. Tentou focar-se noutras mulheres, só
que isso não deu em nada.

- Foi o Brian que propôs a história, ou foi tudo da autoria do Terry?


- Tudo do Terry.

- Ele tem alguma coisa contra o cardeal?

- O Terry não precisa de nada para atacar seja quem for. Quando
Lhe dá o cheiro de uma bela notícia fica selvagem. Queria cobrir a
história, mas o Brian resistiu.

Batia certo com o que Brian dissera a John.

- Certo. Mas o jornal diz que o trabalho do Terry foi honesto. O que é
que se diz aí na redacção?

- Olha, Kip, eu não sou propriamente isento. O Terry roubou-me


bons trabalhos.

- O que é que se diz? - insistiu John e depois aguardou algum


tempo. Sabia o que iria ouvir. Terry Sullivan era um jornalista
poderoso que fizera inimigos poderosos.

Steve manteve o tom de voz baixo, mas foi veemente.

- Ele decidiu que havia ali uma história, só que não conseguiu
encontrar nada incriminatório. Estava a ficar sem tempo e tudo o
resto batia certo, por isso escreveu um artigo em que metade era
especulação e a outra metade era imaginação. Muitos de nós
conhecemos o Rossetti. Ele é um dos homens mais decentes e
honestos que eu conheço. E olha, estou a dizer isto e nem sequer
sou católico.

- Mas a Lily Blake é citada como tendo confirmado que isso era
verdade.

- Pois, nós sabemos como é que isso funciona. Se fazemos a


pergunta certa, recebemos uma resposta maleável.

- Sabes da cassete?
O tom da voz de Steve permaneceu baixo, mas a falta de entoação
era reveladora. Também se falava de uma cassete.

- Qual cassete? Se houvesse alguma, terias lido sobre ela na


primeira

página. Leste alguma coisa?

- E se ele a tivesse feito sem que ela soubesse?

- Isso é crime. Se o jornal sabia do caso e não fez nada, é cúmplice.


Portanto, no que diz respeito a isso, o Post está potencialmente em
maus lençóis. - apressou-se Steve a acrescentar, baixando ainda
mais a voz - as coisas pioram se o Post publicou uma história
difamatória com base nas alegações de uma cassete

obtida ilegalmente. Por isso, o jornal não vai mencionar nenhuma

gravação. Eu diria que isso dá ao Terry Sullivan o tipo de protecção


de que ele gosta.

John concordou. O mesmo fizeram dois outros amigos da imprensa


a quem telefonou. Tirou notas das conversas. Depois ligou a

Ellen Henderson, colega sua e de Terry dos tempos de faculdade.

A escola era pequena. Os alunos conheciam-se uns aos outros e os


discentes iam ficando por lá. Todos os membros do Gabinete de
Desenvolvimento tinham sido alunos da faculdade. Foi assim que
John soube que Ellen lá estava. Esta telefonara-Lhe meses atrás, à
procura de dinheiro. Na altura, alegara a sua pobreza, mas agora
desejava não o ter feito.

- Vamos fazer um acordo - disseLhe de imediato. - Envia-me o


impresso e eu vejo o que posso fazer.

- Em troca de?... - perguntou Ellen, soando divertida, mas de uma


forma afectuosa.
- Informações sobre o Terry Sullivan.

- Ah - a voz tornou-se menos afectuosa. - O nosso colega preferido.


Queres saber o que ele disse quando Lhe telefonei a solicitar uma
contribuição para o fundo anual? Disse que tudo o que aprendera
fora antes ou depois da faculdade, por isso não nos devia nada. A
mim parece-me que anda esquecido de alguma coisa.

John pensava o mesmo.

Ellen continuou:

- Lembro-me de ele quase ter tido problemas com plágio. Pelo


menos lembro-me de termos falado sobre isso. Recordas-te do
Wicker Award ?

John recordava-se. Era um prémio concedido a um elemento do


último ano, por destaque na escrita de ficção.

- Lembro-me - prosseguiu Ellen - de alguns dos outros que também


estavam a concorrer.

- Eu não estava.

Ellen suspirou.

- Bom, eu estava. Queria aquele prémio. Mas posso dizer-te uma


série de nomes de pessoas que também o queriam e que o
mereciam mais do que eu. Muito mais do que o Terry. Quando ele
ganhou houve muitas conversas. Andava a lamber as botas do
director do Departamento de Inglês há meses. Diz-se que alguns
dos professores ficaram tão incomodados quanto os alunos quando
o Terry ganhou o prémio.

- Preciso de mais do que boatos - disse John.

Após um momento de silêncio, Ellen disse, parecendo satisfeita:


- Acho que posso arranjar-te alguma coisa. Com quanto é que
disseste que querias contribuir?

John terminou a conversa com Ellen e abriu um programa financeiro


no computador para confirmar que podia cobrir a oferta que fizera.
Não interessava que fosse por uma boa causa, pois uma grande
fatia do fundo era destinada a bolsas de estudo. Queria permane cer
solvente. Passara a infância a ouvir discussões sobre dinheiro e
decidira, quando adulto, viver de acordo com os seus meios.

A quantia que concedera não o iria levar à falência, contanto que


não se Lhe deparassem grandes despesas com mais pesquisa.
Dois motivos sugeriam que não deveria ter de gastar muito mais.
Primeiro, Terry raramente ia a algum lado sem ofender as pessoas.
Segundo, John era exactamente o oposto.

Jack Mabbet era um antigo agente do FBI. Dez anos antes, estivera
envolvido na investigação de um criminoso notório que operava no
South End de Boston. Terry Sullivan escrevera uma série de artigos
mordazes que criticavam a investigação de uma forma geral e Jack
Mabbet em particular. Na altura, Jack tinha quarenta e cinco anos,
era casado e pai de quatro filhos, e toda a família foi enlameada. O
criminoso acabou por ser julgado e condenado, sem que se fizesse
qualquer menção a Jack Mabbet como o agente responsável pela
condenação. O caso fora para o céu dos arquivos sem que se
voltasse a referir Jack.

Pouco depois, demitira-se do FBI. Não interessava que os


superiores tivessem confiança absoluta em si. jack sentia a dúvida
que existia entre os seus colegas agentes. Pior do que isso, a
família tornara-se conhecida por estar relacionada com "aquele
homem" e com "aquele caso". Por isso, tinha vendido a casa de
Revere, mudando-se para Roanoke, na Virgínia, onde se tornara
investigador privado. Possuía uma firma legítima, especializada em
fazer investigação de antecedentes para patrões em vias de
contratar novos empregados e sondagens de "responsabilidade"
para empresas que pretendiam realizar fusões e compras.
John ficara a conhecer Jack Mabbet durante a cobertura que fizera
de casos em que Jack trabalhara e nutria um grande respeito pelo
indivíduo. John discutira com Terry aquando da publicação dos
artigos incriminatórios, chegara a discutir com os directores, mas a
situação era semelhante a muitas outras que ocorriam na
comunicação social. Terry não fizera acusações difamatórias,
limitara-se a sugerir.

Citara maus elementos, que tinham adorado a ideia de arrastar


consigo um defensor da lei ou dois. Utilizara insinuações para fazer
a Jack Mabbet o mesmo que fazia agora a Lily.

John imaginou que Jack compreenderia a situação em que Lily se


encontrava.

- Pode ter a certeza de que ajudo - declarou o homem antes que

John pudesse adiantar muito mais, para além de que andava a


investigar os contornos do caso Rossetti-Blake e que precisava de
informações sobre Terry. - Do que é que precisa? - O que é que
pode arranjar-me? - Legalmente? Quase tudo. Tal como Sullivan fez
com este caso.

Trabalho regularmente com fornecedores de informação. Eles têm

bases de dados repletas de informações disponíveis ao público.


Antes de Lhes deitarem a mão, estão todas espalhadas. Eles
recolhem-nas e reúnem-nas no mesmo sítio. Depois os dados são
utilizados

por investigadores de seguros, por empresas concorrentes, pelas


partes interessadas em divórcios litigiosos. Para pessoas como eu,
são

um sonho. E então, do que é que precisa? - perguntou, obviamente

divertido com a situação. - Actividade de cartões de crédito?


Registos telefónicos? Saldos bancários? Apólices de seguros de
vida, ficheiros clínicos, registos de veículos motorizados? Posso
dizer-Lhe se ele

foi multado nos últimos dez anos. Só preciso de cinco minutos.

John sabia da existência de fornecedores de informação, mas ouvir

falar deles desta forma tão directa era assustador.

- Meu Deus. Seria de esperar que o público americano fizesse

uma revolução contra a livre circulação de informação.

- E estão a fazer. Pelo menos algumas pessoas estão a tentar.


Existem dezenas de leis para deter essa circulação no Congresso, à
espera de serem aprovadas. Estão a começar a surgir directrizes de

funcionamento. Certas empresas de bases de dados até concordam

em segui-las, seja lá o que isso venha adiantar. A informação anda

por aí e os investigadores privados podem utilizá-la quando


quiserem e fazer dela o que quiserem. Somos sessenta mil por todo
o país.

Certos Estados nem sequer exigem que tenham licença, portanto


isto

é que é assustador. Eu? Tenho as licenças todas em ordem. Tenho


os

recursos à minha disposição e não morro de amores pelo Terry

Sullivan. Se quiser informações sobre esse idiota, eu consigo-as. E


não Lhe cobro nada por isso.

Estas eram as palavras mágicas, mas John queria manter-se


envolvido. Esta história era sua e a vingança era tão pessoal quanto
por Lily. Por isso pediu para Jack Lhe ensinar a conseguir
informações sozinho. Quando Jack pareceu ficar desapontado,
acrescentou Paul Rizzo e Justin Barr à lista. jack poderia trabalhar
neles. Mas Terry era de John.

De que estava à procura? De tudo e de nada. Era surpreendente


como sabia tão pouco sobre a vida de Terry, visto que tinham sido
amigos, embora esse fosse um termo relativo, durante quase vinte e
cinco anos. Queria erros grandes e pequenos. Queria coisas que
não servissem de nada. No limite, queria uma razão para Terry
perseguir Francis Rossetti com o tipo de vingança descrita por Steve
Baker.

Steve descartara a possibilidade de Terry ter alguma quezília


pessoal com o cardeal, e John sabia que Terry o iria negar. Por isso,
pegou no telefone e ligou directamente a Rossetti, ou pelo menos
tentou. O melhor que conseguiu foi o secretário pessoal, um homem
relativamente afável, muito bem versado nas suas respostas, que
disse que o cardeal apenas conhecia Terry através de um contexto
jornalístico e que, antes do actual problema, nunca existira qualquer
contenda entre os dois.

John mal acabara de desligar o telefone quando Armand ligou a


perguntar pelo jornal da semana, mas a expectativa notória na sua

voz sugeria que tinha algo concreto em mente.

Tal como esperava, ainda mal John descrevera o artigo principal


sobre os refugiados de Lake Henry quando Armand perguntou:

- O que vais publicar sobre Lily Blake?

- Pouca coisa - respondeu John.

- Porquê? - bradou Armand. - É a nossa oportunidade. Uma história


de interesse nacional no nosso território.

- Não é no nosso território. A história passa-se em Boston.


- Tu sabes o que eu quero dizer - resmungou o velho. - Por que raio
havemos de dar o destaque a uma história sobre recém-chegados,
quando temos uma nativa cujo nome e cara são conhecidos por
todo o país, por todo o mundo?

- Já toda a gente a viu. Não precisam de vê-la aqui também.


Armand insistiu.

- Mas ela é uma das nossas. Nós conhecemo-la. Meu Deus, John,
esta é a nossa oportunidade de ultrapassarmos os grandes. E John
levantou-se, levou a mão à anca e fitou o nevoeiro.

- Não creio.

- Porque não?

- Porque ela é uma das nossas. Isso exige uma certa dose de
compreensão. A imprensa generalista anda a denegrir-Lhe o
carácter. Não vou descer ao nível deles.

- Não te estou a pedir que faças isso, mas não podemos ignorar a
história. Nós publicamos notícias, e a rapariga é notícia.

- O Post declarou que as alegações eram falsas. Isso acaba com a


história.

- Isso, por si só, já é uma história.

John cedeu um pouco.

- Está bem. Vou fazer alguma coisa numa das páginas interiores.
Vou mencionar a história e o pedido de desculpas ao cardeal - sen
tia-se confortável com isso. Quanto mais pensava no assunto, mais
Lhe parecia boa ideia. Na verdade, até começou a imaginar um
pequeno artigo sobre o pedido de desculpas na primeira página. Lily
merecia-o.

Mas Armand tinha outra coisa em mente. Com uma voz demasiado
entusiasta para ser genuína, disse:
- Tenho uma ideia melhor. Isto pode ligar-se ao teu artigo sobre a
razão por que as pessoas se estão a mudar para as pequenas
cidades. Vou dedicar a minha coluna à natureza indulgente de sítios
como Lake Henry. Vou falar sobre como o mundo exterior pode ser
tão rápido a julgar e a acusar. Vou referir que Lake Henry é mais
tolerante para com os erros e que perdoa os seus.

- Isso vai insinuar que Lily Blake é culpada. Tem a certeza de que é?

Armand ficou rabugento:

- Ela deve ser culpada de alguma coisa. Caso contrário, não teria
chegado a este ponto.

- Sinto muito, Armand, mas nós não fazemos isso aos nossos.

- Não tem de ser mau - tentou Armand seduzi-lo. - Vamos só falar


um pouco sobre a história local, comentamos aquilo que sabemos.

John atalhou.

- Não faço isso.

- Eu disse que era eu que fazia. - Se o fizer - avisou John - vou-me


embora. Se quisesse fazer coisas sujas, tinha ficado em Boston. já
tivemos as nossas diferenças, Armand, mas isto passa das marcas.
Se alimentar esta farsa com histórias sobre a Lily, despeço-me mais
depressa do que imagina - furioso, desligou o telefone.

Espantado com a força dos sentimentos, caminhou até ao fundo da


sala, depois voltou e, finalmente, abriu a janela para o lago e
colocou a cabeça de fora. As redacções dos jornais tinham alguma
coisa que fedia. O ar viciado com fumo de tabaco pertencia ao
passado, tal como o cheiro da substância branca e pastosa que se
usava para colar os diferentes elementos aquando da composição
das páginas e que deixava as solas dos sapatos repletas de
pedaços de papel. Sobrara o odor a café frio, a sanduíches de paio
e cebola devoradas à secretária em pequenos cubículos, a
transpiração e a cabelo por lavar, se uma história exigia serões e
madrugadas.

Mas isso era na cidade. No lago não era nada assim. Mas ainda
sentia esse odor.

John suspeitava que parte do que estava a cheirar era o seu próprio
sentimento de culpa. Poderia não fazer a cobertura do caso Lily i
Blake para o jornal, mas tinha uma gaveta repleta de informação,

monte esse que crescia de dia para dia. Na véspera, não se limitara
a fazer a esquematização do jornal dessa semana. Passara horas a
anotar ideias, a organizar o raciocínio, a ponderar abordagens que
poderia seguir no seu livro.

Voltando à cadeira, abriu essa gaveta e retirou os apontamentos


sobre Lily e um ficheiro que criara sobre o pai dela. George acabara
de falecer quando John regressou à vila. Nessa altura, John
considerava-o um bom exemplo das antigas famílias que ganhavam
a vida à custa da mão-de-obra local. Essa história daria um livro,
razão para o ficheiro, mas a ideia desvanecera-se bastante cedo.
Agora o potencial dessa pasta era diferente.

Era consensual que George Blake fora um homem gentil e mais


acessível, a todos os níveis, do que a esposa. E depois havia Lily,
que superara uma gaguez debilitante e alcançara uma vida bem
sucedida. Seria ela acessível como George? Impulsiva como
Maida?

O seu livro iria centrar-se no aspecto geral das coisas, o poder da


comunicação social para destruir, mas precisava de pormenores e
de profundidade para fazer passar a mensagem. Terry era como era
por uma razão. O mesmo se passava com Lily. O passado explicava
muitas coisas.

O seu, por exemplo. Deixara Lake Henry com quinze anos e tinham-
se passado anos sem ver Gus, mas nunca se libertara do homem.
Em criança, com Gus sempre a repetir-Lhe que nunca seria
ninguém, ficara determinado a dar-Lhe razão. Em adulto, ao
recordar essas palavras, sentira-se determinado em provar-Lhe o
contrário.

Era assustadora a forma como Gus Lhe afectara a vida. Terry devia
ter um Gus na sua vida. E Lily também. Tal como todos os
jornalistas, John era curioso. Queria saber como essas duas
pessoas diferentes,

com motivações completamente distintas, tinham acabado por


cruzar o seu percurso.

Decidido, ligou para Richard Jacobi. Este era director executivo de


uma editora pequena mas interessante de Nova Iorque. john
conhecera-o através de um amigo mútuo em Boston.

Richard estava em reunião, mas a assistente passou a chamada de


John para o gravador de mensagens. Receando alongar-se
demasiado num meio em que outros pudessem ouvir, John deixou
uma saudação curta e afável, seguida do seu número de telefone e
de um pedido para que Lhe ligasse de volta.

Lily passou o resto do dia de segunda-feira ora

enrolada num cadeirão junto do fogão de sala ora numa cadeira no

alpendre. Continuava furiosa mas, pela primeira vez, a raiva era


superada pela calma proveniente de ter um objectivo. Agora tinha
uma

advogada, o que significava que já não estava tão sozinha. Passada

uma hora do encontro entre as duas mulheres, Cassie telefonara e

lera a proposta de retractação a ser exigida. Pouco depois, fora

enviada por fax para o Post.


Lily imaginou o Post a receber a proposta, a convocar uma reunião
e a discuti-la. Gostava da ideia de ter um bando de egotistas

numa redacção impiedosa a serem forçados a admitir que ela era


um ser humano e não um capacho. Só precisava de uma alma mais
sensível que insistisse que se deveria publicar a retractação e o
assunto

ficaria resolvido. Sentiu um prazer perverso ao imaginar um


envergonhado Michael Eddy, um pesaroso Daniel Curry e uma
presunçosa

Elizabeth Davis. Sentiu ainda mais prazer ao visualizar Terry


Sullivan

a fazer o papel de idiota que ele tentara fazer dela.

E quando regressaria a Boston? Pensou muito no assunto, sentada


no alpendre junto ao lago, e ocorreu-Lhe que não se apressaria.

Sentia falta do Jardim Público, do piano, do apartamento, do carro e

dos amigos. Mas continuava sem emprego, sem vontade de ser o

centro das atenções da comunicação social, e um regresso rápido à

cidade voltaria a despertar tudo isso.

Seria melhor esperar alguns dias, talvez até mesmo uma semana

Ou duas. Quanto mais tempo a separasse do escândalo, melhor.


Além

disso, era agradável estar em Lake Henry. O sossego da casa de


Celia

e a serenidade do lago eram reconfortantes. E depois havia os


assuntos por resolver com Maida. Assim que o Post publicasse a
retractação, Lily queria falar com a mãe. Certas coisas tinham de ser
ditas.

O nevoeiro manteve-se sobre a água durante quase todo o dia,


deixando um odor a folhas molhadas no ar. Um bando de patos-
reais surgiu da neblina e nadou ao longo da doca. Do outro lado
apareceu um mergulhão. Ouviu-o gritar nesse momento e
novamente mais tarde, quando a humidade a fez entrar em casa e o
fogão de sala já estava alimentado com mais lenha. Imaginou que o
grito do mergulhão falava de força, pois era isso que sentia. Força e
esperança.

Acordou na terça-feira de manhã com novas energias. Esperou


apenas tempo suficiente para que John comprasse o jornal, antes
de Lhe telefonar em busca de novidades.

- Os Sox ganharam - foi a resposta.

Lily encontrara John uma vez e falara duas com ele ao telefone. Nos
três casos, parecera despachado e perspicaz. Assim sendo, ou ele
tinha um sentido de humor peculiar, ou as notícias não eram boas.

O instinto sugeria-Lhe a última situação e a esperança começou a


desvanecer-se.

- Não houve uma retractação?

- Não.

- Então dizem o quê?

- Coisas estúpidas. Nem vale a pena ler.

A esperança desvaneceu-se mais um pouco.

- Que coisas estúpidas?

- Sabes bem o que é que eles fazem, Lily. A história começou logo
errada e agora estão a tentar proteger-se.
- Estás com evasivas - disse. Ao não obter resposta, insistiu: O q-q-
que é que diz?

- Não é exactamente um artigo. - Fez uma pausa, suspirou e disse:

- É um artigo de opinião de Douglas Drake, que é um colunista


habitual.

- Sim. - Lily já lera Douglas Drake, cujas colunas eram sempre bem
escritas e posicionadas. Nem sempre concordava com ele, mas a
direcção do Post concordava, isso se o editorial anónimo que
costumava surgir alguns dias depois servisse de indicador.

- Drake apalpa o terreno - explicou John. - Tem o aval dos manda-


chuvas para dizer o que eles pensam mas não têm coragem de

publicar. Com base na resposta dos leitores a esta coluna,


apresentam então a sua própria opinião.

Lily teve um mau pressentimento e ganhou coragem.

- O que é que ele diz?

- Atribui o escândalo à tua paixoneta pelo cardeal.

Lily ficou horrorizada.

- Estão a culpar-me a mim?

- Eu avisei-te. Eles precisam de um bode expiatório.

- Mas porquê eu? - percebeu o que tinha dito. Detestava essa

expressão. - O que diz Nova Iorque?

- Que Boston está a pôr as culpas na tua paixão pelo cardeal. Ora

aí está um comentário corajoso. - E o Paul Rizzo?


John fungou. - O Rizzo continua enfiado na sarjeta, de volta de
outros escândalos sexuais. Ainda anda a tentar estabelecer uma
ligação entre esses

casos e uma coisa que já foi negada.

A energia com que Lily acordara desapareceu. Baixou a cabeça.

- Lily? - perguntou John gentilmente.

- Sim? - murmurou ela.

- Só para ficares a par de tudo, Justin Barr assumiu a posição do

Post. Estive a ouvi-lo há pouco. Está a atribuir as culpas do


escândalo

ao facto de tu seres desequilibrada. Mas teve tantas chamadas a


discordar, e em tua defesa, como as que teve a concordar com ele.

Isso servia de pouco consolo. Lily desligou o telefone com uma

sensação de derrota. Depois aconteceram duas coisas que a


animaram.

Primeiro, Cassie telefonou. já lera o jornal e encontrava-se mais

determinada do que zangada. - Não deixes que isto te abata, Lily.


Não estava à espera de uma

resposta rápida à nossa carta. Vão espremer o que resta da história

em prol das vendas, mas, quanto mais esperarem, e quanto mais

histórias como a de hoje forem publicadas, mais cresce o risco de


um

processo por difamação. E não te preocupes por aquele artigo ter


surgido na página de opinião. Isso não os livra de um processo. É
de

conhecimento geral que Doug Drake é um lacaio. Se for preciso,

também se prova isso.

Depois, recebeu uma chamada do cardeal, redireccionada por


Poppy. Sendo a primeira vez que tinha notícias do cardeal desde o
rebentar do escândalo, Lily sentiu um conflito de emoções, que iam
do alívio ao afecto, passando, de forma surpreendente, pela raiva.

- Como está, Lily? - perguntou ele com a sua voz rica. Sim, na
verdade algumas mulheres consideravam-na sensual. Lily sempre a
vira como sendo. cheia, cheia de sensibilidade e de compaixão.

O afecto prevaleceu.

- Estou melhor. Sinto-me com mais algum controlo.

- Nem sabe como lamento isto tudo. Foi apanhada num fogo
cruzado com o qual não tinha nada a ver.

- Nem o senhor.

- Mas eu estava melhor equipado para o combater. Nunca tinha tido


noção dos recursos da arquidiocese até precisar de advogados,
porta-vozes e grupos de pressão. Foi então que eles surgiram do
nada. E continuam a trabalhar, Lily. O pedido de desculpas do jornal
deveria abrangê-la também. Se eu estou inocente dessas
acusações, dita a lógica que você também esteja.

Numa questão de segundos, Lily recordou todas essas acusações e


voltou a sentir-se humilhada. As palavras surgiram-Lhe em jorro.

- Nunca disse aquelas coisas da maneira que ele as relatou. Nem


sequer queria falar de si, mas ele meteu conversa e foi introduzindo
o assunto. Não parava de dizer que as mulheres o achavam
atraente, e eu ia dizendo que isso era um absurdo, ainda por cima
sendo padre.

A voz do cardeal denotava compreensão e até algum humor.

- Eu sei, Lily, eu sei. Sempre me respeitou nesse aspecto.

- Como poderia não o fazer? O senhor é um padre.

- Vá dizer isso à ruiva que se atirou a mim no Baile do governa dor,


no ano passado - quando Lily susteve audivelmente a respira ção,
ele riu-se. - Acontece. E, sim - o humor desapareceu-Lhe da voz -,
acredito que existam padres que quebram os votos, tal como há
maridos que o fazem. Eu nunca o fiz nem nunca o farei. Sempre
senti que de sua parte era igual. Desequilibrada? Nem pensar. Há
anos que a aconselho. Sei que é uma pessoa bastante sã. Meu
Deus do céu, é você que me tem dado força. embora, se Lhes
tivesse dito i sso, as coisas tivessem sido deturpadas.

- Porque é que eles dizem estas coisas? - gritou Lily. - O que Lhes

dá esse direito? E porquê eu? - detestava essa pergunta, mas


acabou

por sair, juntamente com o resto. Fran Rossetti arrancara-a. Talvez

fosse a riqueza da sua voz que sugeria uma vasta sabedoria. Mais,

sugeria que se existia um Deus, este homem era verdadeiramente

um dos Seus mensageiros. Lily não era religiosa, mas reagia a


Rossetti,

e não era a única. O cardeal sabia como chegar ao interior das


pessoas e limpar a poeira dos cantos mais sujos sem magoar.

Por isso, a Lily que raramente falava tanto, perguntou:

- Porquê isto agora? Porquê Donny Kipling na altura? Porquê a


minha mãe e a gaguez? Será que fiz alguma coisa de mal, padre
Fran?

Porque é que estas coisas me acontecem?

- Não tenho a certeza - respondeu - mas talvez seja por Deus

saber que consegue lidar com elas. Deus sabe que pode aprender

com elas. Há pessoas que não são capazes. Certas pessoas não
têm

força suficiente. jesus tinha. E você também.

Lily queria dizer que não era Jesus, que não desejava um martírio

e que não suportava ser crucificada, um termo que julgava


adequado ao que Lhe tinha sido feito, mas isso teria sido uma falta
de respeito. Por mais franca que se tivesse tornado com o padre
Fran, nunca

ultrapassaria certos limites.

- Ora bolas - admoestou-se ele. - Lá estou eu outra vez a esquecer-


me de que não tem a certeza de nenhuma religião, quanto mais

da minha. Mas estava a ser sincero, Lily. Você é forte.

- E inocente - recordou-o, sentindo a raiva que tanto a surpreendia,


principalmente por ser dirigida a ele. Se ele fosse um verdadeiro

mensch*, para utilizar o termo de Sara, teria vindo em defesa de Lily

verbal e publicamente. Se possuísse um mínimo de cavalheirismo,


diria

a sua irmã Poppy, teria colocado a exoneração de Lily antes da sua.


- E também inteligente - disse ele agora. - Sabe que a
autocomiseração não leva a lado nenhum.

Com um longo suspiro, Lily libertou-se da raiva. Envergonhada,

sorriu.

- Já devia estar à espera dessa.

* Palavra em geral utilizada para referir uma pessoa de


características admiráveis, como força moral e firmeza de
objectivos. (N. da T. )

- Pois já. Eu sou previsível. Sabe - provocou-a -, sempre quis

aproximá-la cada vez mais de casa. Há anos que a venho a


empurrar

aos poucos. Manhattan, Albany, Boston, Lake Henry. Pouco falta. já

esteve com a sua mãe?

Lily teve de se rir.

- Também nisso é previsível. O padre não perde tempo - o sorriso

desvaneceu-se. - A minha mãe não ficou muito entusiasmada por


me ver. Pelos vistos, sou o calvário da vida dela.

- Chegaram a falar?

- Não sobre coisas importantes.

- Mas têm de o fazer.

- Eu sei. Só que é difícil.

- Consegue falar comigo.


- O senhor não é a minha mãe. Falo com amigos, mas eles também
não são. Porque é que as mães são tão duras?

- Foi Deus que as fez assim - respondeu o cardeal. - Em quem

mais é que Ele poderia confiar para depositar os fardos do mundo,


sem que se fosse abaixo sob o seu peso?

- Parece-me que sou eu que os tenho de carregar.

- Neste momento pode pensar assim. Mas espere até ser mãe.

O cardeal disse-o como se fosse apenas uma questão de tempo


algo em que Lily outrora acreditara. Mas agora já não tinha a
certeza.

Estava com trinta e quatro anos. Deus concebera as mulheres para

que estas tivessem filhos com dezanove anos, pelo menos segundo
o

seu ginecologista. O cardeal argumentava que Deus já evoluíra na

sua forma de pensar, desde que o ginecologista de Lily acabara o

curso, e que Ele acreditava que a mente feminina poderia


compensar os pequenos defeitos de um corpo ligeiramente mais
velho.

Os clérigos da velha guarda defendiam que o objectivo do


matrimónio era a procriação. Lily não, mas essa era mais uma
fronteira que ela não atravessava.

- Insista, Lily - disse o cardeal.

Lily precisou de um momento para perceber que o cardeal se

referia a Maida.
- Quero que resolva as coisas com ela. Promete que vai tentar?

- Não tenho grande escolha - admitiu ela em voz baixa. - Imagino

que ainda vá ficar por aqui durante algum tempo.

- Lake Henry deve ser lindo nesta altura do ano.

- Sim - pela janela viu o amarelo de um álamo na orla da mata.


Tinha a seu lado um ácer vermelho. Ambos encontravam-se
rodeados pelo verde luxuriante dos abetos. E tudo isto mesmo por
entre o nevoeiro.

- E tem a casa. Precisa de mais alguma coisa?

"Vingança", pensou ela, mas não o diria ao cardeal, tal como nunca
entraria numa discussão sobre a Trindade. O cardeal estava no
negócio do perdão. Nunca aceitaria pensamentos de vingança.

John Kipling talvez. Lily pensou nisso para o fim da manhã. A meio
da tarde, sentia-se inquieta e enfadada. Precisava de alguma coisa
para fazer. Mudou então de roupa, vestindo umas calças de ganga e
o tipo de camisa de flanela usado por metade dos habitantes locais,
prendeu o cabelo sob um boné dos Red Sox, passou um cachecol
de lã em volta do pescoço para esconder o queixo, colocou no nariz
os enormes óculos de sol de Celia para esconder o que mais
conseguisse e conduziu até à cidade.

O nevoeiro na estrada do lago era denso, cobrindo-a e à folhagem


envolvente, bem como às casas mais próximas no seu caminho
para o centro da vila. A humidade tornara o ar frio, vendo-se poucas
pessoas na rua. Lily percebeu que isso Lhe providenciava uma
cobertura adicional, enquanto passava em frente da loja de Charlie
pela primeira vez desde o seu regresso. Virou junto dos correios,
percorreu a rua até ao edifício vitoriano que albergava a redacção
do jornal e estacionou ao

lado da carrinha que imaginou pertencer a John.


Não havia dúvida sobre a porta utilizada pelo jornal, uma bela peça
de madeira coberta de ranhuras. Após tocar à campainha, entrou
para a cozinha. Andando em silêncio, com o boné, o cachecol e os
óculos escuros de Celia ainda postos, seguiu o som de uma voz até
à frente da casa. Aí, viu uma jovem sentada a uma secretária.
Estava ao telefone, franzindo o sobrolho e com um ar confuso,
enquanto analisava qualquer coisa sobre a secretária. Só quando se
virou é que Lily percebeu que era mais uma rapariga do que uma
mulher, e muito grávida.

Segundos depois, Lily ouviu passos nas escadas e, na porta do lado


oposto, surgiu John. Este lançou-Lhe um olhar inseguro, após o que
se inclinou sobre a secretária para ver o que a rapariga tentava
fazer. Pegando no telefone, acabou de receber a informação para
algo que pareceu a Lily um anúncio classificado.

- Pronto - declarou à rapariga após desligar. - Lidaste muito bem


com a situação.

A voz da rapariga parecia ainda mais jovem do que o aspecto.

- Foi você que teve de acabar.

- Ná. já tinhas apontado quase tudo de que precisávamos.

- Tenho de me ir embora - disse a rapariga. - O Buck chega às três.

- Pensei que tínhamos decidido que às terças-feiras trabalhavas até


às cinco.

- Ele disse que chegava às três.

John suspirou e passou a mão pela nuca.

- Está bem. Arruma as coisas e eu trato do resto. Com um único


gesto de ambas as mãos, a rapariga juntou os papéis sobre a
secretária. Depois ergueu-se da cadeira e, com uma agilidade
surpreendente, dado o volume da barriga, passou por Lily, que se
virou para a observar. O som dos passos esmoreceu, a porta bateu
e a rapariga desaparecera. Lily olhou para a pilha instável em cima
da secretária e depois para a consternação no rosto de John.
Percebeu que era um rosto atraente, com a pele bronzeada e a
barba aparada, e suficientemente curtido para sugerir bastante
tempo passado ao ar livre. Possuía apenas a mais leve das
semelhanças com Donny, embora a recordação que mantinha fosse
a de um jovem de vinte e um anos, e este homem fosse maduro.
Sentia-se particularmente atraída pelos olhos, que eram castanho-
escuros e meigos até mesmo na frustração.

- Eu tento - desabafou ele, com um tom de voz controlado. A


rapariga vai precisar de qualquer tipo de ofício depois de aquele
bebé nascer, a não ser que o Buck ganhe juízo, coisa de que eu
duvido.

Lily não saíra de Lake Henry há tempo suficiente para se esquecer


das personagens.

- Buck, o teu primo? - perguntou, enquanto desenrolava o cachecol.

John anuiu.

- Um perfeito idiota!

- O bebé é dele?

Mais um aceno, e depois resmungou:

- Coitadinha - olhou para Lily e os seus lábios estremeceram. o


disfarce não é mau. Não que precisasses dele com jenny. Ela é

demasiado nova para se lembrar de ti e quando vê televisão não é


as

notícias - olhou para o relógio.

- Venho a má hora?
- Sim - contradisse-se imediatamente a seguir. - Não. Não vens.

Regressei a Lake Henry porque não queria prazos apertados. Era


suposto o jornal estar na gráfica ao meio-dia de amanhã. Ninguém

morre se chegar um pouco mais tarde.

Ouviu-se a porta da cozinha e depois passos. Lily virou-se de um

ápice, receando que, em vez de jenny, Lhe surgisse alguém com


mais

probabilidades de a reconhecer, e John aproximou-se por detrás


dela

e tocou-Lhe no braço.

- Sobe as escadas - sussurrou. - Até ao último andar. já vou ter


contigo.

Ela deslocou-se rápida e silenciosamente, virando no patamar do

primeiro andar e continuando até ao segundo. O espaço amplo foi a

primeira coisa que a surpreendeu, seguindo-se a luminosidade,


mesmo com o tempo nublado. Havia três secretárias, cada uma com
um

computador e todas visivelmente usadas. Ainda mais interessantes

eram as paredes. Uma ostentava mapas usados do lago e fotos


antigas da vila, emolduradas a madeira e transmitindo um ar de
reverência. Noutra estavam fotografias mais recentes, de cores mais
ricas,

tiradas no próprio lago, na sua grande maioria imagens de


mergulhões.

Uma terceira exibia preto e branco e uma sensação de pressa.


Tirando os óculos escuros, aproximou-se desta última e sentiu

um arrepio. Viam-se ali repórteres em acção, em fotografias tiradas

durante o tempo que John passara em Boston, pelo menos segundo

uma primeira página ali afixada. Era difícil acreditar que uma
imagem pudesse capturar tamanho frenesim e intensidade, mas
alguns

dos rostos transmitiam o mesmo ardor que ela presenciara nos seus

pesadelos. O rosto de Terry Sullivan saltava de uma das fotografias,

Outros rostos familiares de outras imagens, embora não os


conseguisse situar. Uma delas mostrava uma mulher atraente, mas
na maioria viu John. Estava diferente de agora, e não era só devido
à barba e ao bronzeado. No preto e branco brilhante ele era igual
aos outros: tenso, assustador, definitivamente um homem a evitar.

- Mete medo, não é? - disse John da porta. Imaginava o que Lily


deveria estar a pensar, olhando para aquela parede em particular. E
o seu retrato? Um desastre, caso o objectivo fosse conquistar-Lhe a
con fiança. Se soubesse que ela viria visitá-lo, talvez tivesse
alterado a decoração.

Quando ela Lhe lançou um olhar nervoso, lamentou duplamente não


a ter alterado mesmo. Os óculos grandes tinham sido retirados,
expondo o medo nos olhos dela. Agora já estava completamente
vestida, sem camisa de dormir, mas, com o cabelo enfiado debaixo
do boné e as calças de ganga cobrindo as pernas esguias, denotava
ainda uma certa fragilidade.

Lily mirou o grande envelope castanho que ele trazia na mão. john
lançou-o para a secretária.

- Ensaios e poemas da academia. Tento sempre publicar alguns.


Tenho de Lhes dar uma vista de olhos mais logo.
Ela olhou para as outras duas secretárias.

- Onde está o resto do pessoal?

- A jenny é o pessoal.

- Então para quê três secretárias?

- Mesas diferentes para trabalhos diferentes. - Apontou


respectivamente: - Editorial, produção, vendas. Tenho um
correspondente em cada uma das vilas que abrangemos, e alguns
freelancers que me deixam material, mas nenhum deles trabalha
aqui. Não fazem o suficiente para o justificar.

Lily cruzou os braços sobre o peito, afastou-se da parede do Post e


foi ver com mais atenção as fotografias dos mergulhões.

- Foste tu que as tiraste?

- Todas - declarou ele com orgulho. Passara horas sentado para


conseguir muitas daquelas imagens, esperando que a confiança se
instalasse para depois remar para mais perto, aguardando então,
com a máquina apontada, pelo momento adequado para disparar. -
Algumas são do ano passado, mas a maior parte é recente.

- Revelaste-as sozinho?

- Sim. Uma das vantagens deste trabalho é ter um quarto escuro

na cave.

Lily foi de imagem em imagem. Eram quase uma dúzia no total,

tiradas em várias alturas do dia e em diferentes condições


atmosféricas. Com a excepção de uma fotografia de um mergulhão
no ninho, eram todas instantâneos aquáticos: um adulto a alisar as
suas próprias penas, um par deixando um rasto uniforme atrás de si,
uma família de adultos com as respectivas crias. Uma das fotos era
de uma cria com poucas horas. Outra de duas crias sobre as costas
de um dos pais.

Quando Lily pareceu absorvida, John aproximou-se para apreciar


também ele as imagens.

- É o mesmo casal de mergulhões? - perguntou Lily.

- Creio que sim - apontou para as linhas brancas e curtas que


orlavam o pescoço de uma das aves presente em duas fotografias.
Dois anos diferentes, mas tem a mesma quebra na linha, aqui.
Imagino que ele tenha uma cicatriz que impede as penas de
crescerem devidamente.

- Ele?

- Acho eu. É maior. Não há grande maneira de os distinguir, a não


ser pelo tamanho. Partilham as tarefas paternais, ficam à vez no
ninho e alternam quando vão à pesca - corrigiu a ideia. - Na
verdade, sei que esse é o macho - apontou para uma das outras
imagens.

- Esta foi tirada em Abril passado, a primeira vez que avistei um


mergulhão este ano. Estás a ver a pequena interrupção na marca do
pescoço? Normalmente, os machos regressam uma semana ou
duas antes das fêmeas. Vêm fazer o reconhecimento de locais para
o ninho. Mas não sei se a fêmea é a mesma nos dois anos. Os
mergulhões são monógamos durante uma época de acasalamento
inteira, mas não sabemos se acasalam para toda a vida.

John olhou para o topo do boné de Lily, que não Lhe chegava à
altura do seu próprio queixo. Farripas de cabelo escuro e brilhante
escapavam-se no pescoço e pelo buraco na parte de trás. A pala
impedia-o de Lhe ver os olhos, mas ouvia-Lhe perfeitamente a voz,
por mais baixa que fosse.

- Quando era pequena - disse Lily - havia alguma preocupação


quanto ao declínio do número de mergulhões.
Quando John era pequeno nunca se interessara pelas aves. Na
altura em que a preocupação começara, já tinha saído de Lake
Henry, mas desde então já lera sobre o assunto.

- O declínio continuou e a preocupação cresceu. Eventualmente, as


pessoas perceberam que os barcos grandes e as motos de água
tinham um efeito negativo. Faziam demasiado barulho para os
mergulhões, que fugiam assustados do ninho e os ovos perdiam-se.
Havia muito sedimento a ser levantado. Os mergulhões dependem
da água limpa para ver o peixe que comem. Demasiada ondulação,
e os ovos eram arrancados do ninho. Por isso proibiram-se as
motos de água e impôs-se um limite de velocidade aos barcos. E eis
senão quando a população voltou a crescer.

Quando Lily inclinou a cabeça para trás e olhou para cima, algo em
John deu uma cambalhota. Os olhos dela eram tão meigos quanto a
voz, algo de que ele não estava à espera.

Engoliu em seco.

- As soluções para os problemas da vida deviam ser sempre assim


tão simples.

- São criaturas magníficas.

- Sim - não conseguia desviar o olhar. O rosto dela era magnífico.

- As fotografias são muito bonitas - elogiou Lily.

O coração de John galopava.

- Obrigado.

Os olhos dela ficaram mais vulneráveis.

- Disseste que tinhas munições. A que te referias?

Por um instante absurdo, John sentiu-se como o rapaz que tem um


fraquinho por uma rapariga, a qual por sua vez está apaixonada por
outra pessoa e vem pedir-Lhe conselhos. Era como se tivesse sido
abatido. Não era exactamente uma traição. Era mais um
desapontamento por os negócios se intrometerem naquele
momento.

Mas era de negócios que se tratava. Por isso, corajosamente,


explicou:

- O Terry Sullivan tem um historial de inventar artigos. Nunca foi


provado, pois ele é manhoso. Conquista a confiança de alguém bem
posicionado, alguém que o possa proteger. Mas existem muitos
alguéns em posições mais baixas que sabem exactamente aquilo
que ele faz.

- E sabem porquê?

- Ambição. Crueldade. Ganância.

- Intenção maliciosa?

- Estou a trabalhar sobre isso - disse John. Sabia o que ela


pretendia. "Intenção maliciosa" eram as palavras mágicas no que
dizia respeito à lei. - É óbvio que ele criou o escândalo à laia de
vingança

pessoal. Nunca o tinhas visto mais gordo, portanto não era contra

ti. O secretário pessoal do Rossetti diz que eles também não se

conheciam, por isso tenho de analisar as coisas de outra


perspectiva. Por agora, tudo o que tenho é uma lista cada vez maior
de

O casiões em que o Terry Sullivan mostrou desprezo pela verdade,


segundo dizem.

- Teria de provar a intenção maliciosa em tribunal.

- Provavelmente.
- Posso passar por anos de agonia e acabar por perder.

- Possivelmente - suspirou. - Sabias que há uma gravação

O ar surpreendido de Lily respondeu que não sabia.

- Ele gravou a vossa conversa sem te dizer. Isso é ilegal. Mais uma
coisa a juntar ao arsenal.

Lily parecia devastada.

- Uma cassete vai mostrar que eu disse aquelas coisas, mas não

da maneira que ele as publicou.

John estava a pensar que acreditava totalmente em Lily, quando

ela disse:

- Encontrei-me com a Cassie Byrnes.

A declaração foi uma surpresa.

- A sério?

- Exigimos uma retractação. Isso foi ontem. j-j-já é hoje - John viu-a
pestanejar quando gaguejou, demorar uma fracção de segundo

para retomar o controlo - e não houve retractação. A Cassie disse

para não entrar em pânico, mas estou farta de não fazer n-n-nada.

O telefone tocou. john poderia não ter atendido, se não estivesse

em cima do prazo para a edição do jornal. Atendeu na secretária

mais próxima, que por acaso era a editorial, próxima do lago.


Era o dono de uma loja de artesanato a duas localidades de
distância, que queria fazer publicidade pré-natalícia. john pegou
numa

folha de papel e apontou a informação de que necessitava. Quando


desligou, Lily estava a observá-lo. Sentiu mais uma vez alguma
coisa às voltas dentro de si.

Olhou para o relógio.

- Farta de não fazer nada?

- Sim.

- Tens uns minutos?

- Posso dispensar alguns.

Sorrindo, John pegou no envelope da Academia de Lake Henry.


Com a mão livre, conduziu Lily em redor da secretária até à cadeira.

Virando o envelope, despejou o conteúdo.

- Escolhe três.

Ela olhou para os papéis e depois para John, que desta vez sentiu
uma pontada no peito. Imaginou que se devesse ao boné. Era
maluco pelos Red Sox.

Ao não obter reacção por parte de Lily, começou a falar.

- Deve haver aí coisas de todos os anos, desde o sétimo ao décimo


segundo, algumas dactilografadas, outras escritas à mão. Às vezes
escolho três de estilo, forma e conteúdo totalmente diferentes, como
um poema, um ensaio e uma carta ao editor. Outras vezes escolho
três que se cinjam ao mesmo tema. Por isso, podes fazer o que
quiseres, aquilo que achares mais interessante.

Lily parecia disposta a entrar no jogo.


John sorriu.

- És professora. Começa.

Sem mais demoras, ele pegou nas informações para o anúncio,


sentou-se à secretária das vendas e começou a redigi-lo. Todavia,
não era capaz de se concentrar. Estava sempre a pensar no facto
de Lily ter aparecido na redacção à procura de munições. Imaginava
que, se a ajudasse, estaria a prejudicar-se a si próprio, caso
pretendesse guardar informações para o livro. Mas sentia-se
culpado pelo que o irmão, Donny, fizera, e culpado pelo que a sua
profissão, na pessoa de Terry Sullivan, levara a cabo. E, ainda por
cima, havia a questão daqueles olhos meigos que gostava de ter
fixos nos seus.

Por isso, declarou:

- Há outra maneira.

Lily ergueu o olhar, com as sobrancelhas arqueadas.

- De combater o Terry sem ir a tribunal - explicou John. - Podemos


usar os mesmos métodos contra ele. Fazê-lo pagar na mesma
moeda.

- Como?

- Desacreditá-lo. Tornar públicas algumas alegações sobre ele, que


sozinhas não têm grande peso, mas que juntas dão uma imagem

péssima. - Não sei quais podem ser essas alegações. - Mas eu sei.
- E serias capaz de partilhá-las?

Era agora.

- Talvez.

- Em troca de quê?
John pensou por uns momentos. Não via por que razão as coisas
não poderiam funcionar para ambos.

- Da tua versão da história.

Lamentou de imediato o que disse. Notou um movimento subtil dos


ombros de Lily, um arregalar quase imperceptível dos olhos.

- Disseste que não o farias.

- Só com a tua aprovação.

Lily olhou para os papéis à sua frente. Três estavam ligeiramente


separados dos outros. Afastou-os por completo e levantou-se.

- São estes os três trabalhos - colocou os óculos de sol. John


levantou-se.

- Só com a tua aprovação - sabia que ela estava a pensar que ele
podia ser mais um Terry Sullivan. A desconfiança era óbvia. john
fora com demasiada sede ao pote, mas já não podia voltar atrás.

Com cuidado, Lily enrolou o cachecol à volta do pescoço. Começou


a dirigir-se à porta, fazendo uma pausa para olhar para a parede
com os mergulhões por uma última vez. john viu-a respirar fundo e
até acalmar-se um pouco. Mas Lily não se virou.

- Lily?

- Prefiro provar a intenção maliciosa - declarou, e saiu.

A terça-feira de Poppy foi sossegada em parte

graças ao tempo. Quando os dias estavam frios, húmidos ou caía


neve, muitos dos seus clientes ficavam em casa. Este nevoeiro
denso no final de Setembro, que mantinha a temperatura à volta dos
sete graus durante a noite e dos doze durante o dia, tinha
praticamente o mesmo efeito.
A calma também tinha a ver com um abrandamento nos
telefonemas da comunicação social, o que não surpreendia Poppy
nem um pouco. Pôr as culpas do escândalo em Lily fora uma atitude
ridícula. Toda a gente na cidade sabia disso, e um punhado de
habitantes indignados telefonara para o dizer a Poppy. Lily Blake
desequilibrada? Era a gota de água, um forte golpe nas
sensibilidades das pessoas que conheciam os Blake. Poppy
calculou que os órgãos da imprensa também o deviam saber, e,
nobres até ao fim, estavam a distanciar-se da história para se
pouparem a mais embaraços.

Oh, ainda havia ocasionalmente um ou outro telefonema pouco


convicto da comunicação social, a requisitar reacções aos últimos
desenvolvimentos da história. Mas nenhum desses pedidos vinha
dos órgãos principais e, ao final da tarde, as únicas chamadas que
poderiam estar relacionadas tinham sido a da bibliotecária de Lake
Henry, Leila Higgins, e a do chefe dos correios da cidade, Nathaniel
Roy. Ambos tinham visto uma carrinha Ford castanha, com
matrícula do Massachusetts, estacionada em frente aos escritórios
do Lake News e queriam saber de quem era.

Poppy sabia, embora não fizesse ideia do porquê de a irmã estar lá.
Assim, telefonou a Kip e disse:

- Tiveste uma visita.

Kip parecia maldisposto.

- Como é que tu sabes?

- A Leila e o Nat telefonaram-me por causa da carrinha. Não

sabiam de quem era. Porque é que ela esteve aí?

- Queria dizer-me olá - murmurou ele.

- A ti? Experimenta de novo.


- Esteve a ajudar-me com o trabalho.

E Muito bem. Era terça-feira. Ele estava apertado. Poppy quase


conseguia acreditar que fosse verdade da parte dele, mas da parte
de

Lily? - Porquê? - Estava aborrecida. - E achou que esse era o sítio


mais animado para onde podia ir? - Pergunta-Lhe a ela, Poppy. - É o
que farei - disse Poppy. Desligou, enquanto perguntava a si

própria porque estaria ele tão atravessado, e tentou ligar a Lily, mas
o

telemóvel estava desligado. Tentou mais algumas vezes, mas nessa

altura já era de noite, o nevoeiro levantara, deixando ver o pôr do

Sol sobre o lago, e as suas amigas chegaram.

Sigrid Dunn era uma artesã especializada em tecelagem industrial e


pão caseiro; trouxe um pão de azeitonas acabado de fazer,

ainda quente, e uma garrafa de Merlot. Marianne Hersey tinha uma

pequena livraria na cidade vizinha; trazia num saco térmico coq au

vin quente e uma garrafa de Chablis. Heather Malone era uma mãe
a

tempo inteiro, que se dedicava a criar duas crianças pequenas e a


cultivar vegetais; chegou com uma salada enorme, salpicada com
grãos de milho-doce local e um aveludado Pinot rosé. Cassie
Byrnes

- advogada, mãe e esposa - trouxe biscoitos de uma confeitaria


italiana

em Concord, comprados depois de uma comparência no tribunal


federal nessa tarde. Poppy forneceu jarros de sidra de maçã e uma

cafeteira de café, bem como todos os utensílios necessários para


comer o resto das iguarias.

Reuniam-se todas as terças-feiras e chamavam a si próprias o

Comité de Hospitalidade de Lake Henry, e eram, na verdade,


hospitaleiras. Quando novas famílias se mudavam para a cidade ou
famílias antigas sofriam algum trauma, elas apareciam rapidamente,
para

ver o que podiam fazer para ajudar. Mas, uma vez que Lake Henry

era uma comunidade pequena, esse tipo de eventos não acontecia

com frequência suficiente para preencher as suas reuniões


semanais.

Assim, normalmente, o Comité de Hospitalidade relaxava e divertia-


se, tratando-se apenas de cinco amigas que partilhavam novidades,
ideias e gargalhadas. Por vezes chegavam mesmo a ser
exuberantes, graças ao vinho.

Nessa noite, rapidamente chegaram a esse ponto. Poppy, para


começar, precisava desse escape depois de uma semana de
preocupação com Lily, e, apesar de não poder dizer às amigas que
Lily regressara, consolou-se em ouvi-las tomar o partido da irmã.
Isso levou a uma discussão sobre os habitantes da cidade que não
o tomavam, e porquê, o que levou a uma discussão sobre as
personagens mais empertigadas da história da cidade, o que levou
a fortes gargalhadas.

Poppy sentia a cabeça leve quando o telefone tocou. Marianne


dirigiu-se à outra sala para atender, mas voltou rapidamente.

- É para o chefe da Polícia. Quando Lhe disse que o Willie Jake não
estava disponível, ele pediu para falar contigo. Griffin Hughes.
Poppy estava a rir e engasgou-se. Tossiu, deu uma palmada no
peito, ergueu a mão e respirou fundo. Depois manobrou a cadeira
até junto do telefone.

- Griffin Hughes - disse ela, sem preâmbulos -, pensou realmente


que o chefe estaria aqui a estas horas?

- São apenas sete e meia - respondeu ele naquela voz grave,


suave, e profunda.

Poppy lembrava-se muito bem dela, e ficou suficientemente


satisfeita por ouvi-la de novo para querer assumir um tom crítico.

- Isto é Lake Henry - disse com gravidade. - Não trabalhamos doze


horas por dia, como vocês.

- Nós também não - respondeu ele em tom jovial. - Pelo menos, eu


não. Pensei que talvez conseguisse apanhar o Willie Jake depois

de jantar. Imaginei que este número estivesse reencaminhado para


casa dele, ou que o telefone da casa dele estivesse ligado à
esquadra. Não é assim que funciona em cidades pequenas?

- Não em Lake Henry - disse Poppy, desejando que ele não


parecesse tão sincero.

- O que é que você está a fazer aí tão tarde?

- Eu vivo aqui.

- Na esquadra da Polícia?

Ela riu com um à-vontade surpreendente.

- Não. Em minha casa. Sou o serviço de atendimento telefónico

de Lake Henry.

- A sério? - ele parecia encantado. - Como a actriz Lily Tomlin?


Poppy esfregou a palma da mão no braço da cadeira de rodas.

- Bom... não exactamente. Mas tem de passar por mim para chegar
a grande parte do resto da cidade, e eu não mudei de ideias.

Continuo a recusar-me a falar - era-Lhe indiferente que ele


parecesse

sincero ou não. - Principalmente depois dos últimos


desenvolvimentos - disse, e depois deixou-se levar pelo vinho. - O
que se passa por

aí? Chamar desequilibrada à minha irmã? Pôr as culpas de toda


esta

confusão nela? Isso não é apenas estúpido, é imoral. E errado!

- Concordo. Imoral e errado. É esse o objectivo do meu artigo.

Mas não posso simplesmente dizer que é errado, tenho de


demonstrar

que é. Preciso de saber como isto afectou a vida da Lily. Tenho


estado

a tentar ligar para o número dela em Boston. Ninguém atende.

- O número dela é confidencial.

- Todos os jornais o têm.

- Ah-ah! - gritou Poppy, enquanto uma explosão de riso não

relacionado com o caso soava na cozinha. - Então está a trabalhar


com eles.

- Não estou a trabalhar com eles. Estou a usá-los. Desculpe, estou a


ligar em má altura? Há alguma festa?
- Tenho algumas amigas a jantar cá em casa. Costumamos fazer

isso, por aqui. Sabe como é, o isolamento, e essas coisas. O tédio,


e

essas coisas. O convívio da província, e essas coisas.

- Não exagere, Poppy - disse ele numa voz quente e repleta de

humor, mas profunda, muito profunda e suave. - A Lily também está


aí com vocês?

- Acha que Lhe diria se estivesse?

- Teve notícias dela?

- Acha que Lhe diria se tivesse tido?

- Então o que me diria?

Poppy pensou por um minuto, depois sorriu.

- Posso falar-Lhe sobre James Everell Henry.

- Quem é?

- Quem era. Foi um magnata da madeira, que viveu neste cantinho


do mundo na viragem do século. Veio com os seus três filhos e
construiu uma aldeia a partir do nada... caminhos-de- ferro, depósito
de madeira, serração... tudo para cortar aqueles troncos e
transportá-los para o mercado. Comprou terras a torto e a direito,
até ter hectares e hectares e hectares, e derrubou árvores sem
pensar duas vezes no efeito que isso teria sobre a terra.

- James Everell Henry.

- Exactamente - disse Poppy. - Depois o efeito do que ele estava a


fazer começou a notar-se. A sua maquinaria era uma ameaça,
limpando completamente grandes áreas, depois soltando faíscas e
ateando

incêndios em campos de feno, incêndios que dizimavam as florestas

vizinhas. Sem essas árvores para sustentar o solo, as chuvas da


Primavera causavam deslizamentos de lama e inundações, e, entre
o fogo e

a água, o império de Henry começou a vacilar. Mais ou menos


nessa

altura, os habitantes locais abriram os olhos. Compraram de volta


tanta

terra quanto conseguiram, para formar fundos de conservação, e


emitiram regulamentos ambientais para salvaguardar o resto. Henry
foi

finalmente forçado a vender. Morreu tranquilamente alguns anos


mais

tarde, muito depois de a sua fortuna ter desaparecido.

Houve um silêncio, depois ele disse em tom divertido:

- Sim?

- Até aí, esta cidade chamava-se Neweston. Pouco depois da

morte dele, foi rebaptizada de Lake Henry.

- Prestaram homenagem a um tipo que vos limpou as colinas?

- Foi um indivíduo importante. Podemos dizer que ele foi o pai

do movimento ambiental local.


- Podemos dizer isso - concordou Griffin, mas parecia confuso. Há
alguma mensagem na história?

- Com certeza que sim - disse Poppy. - Da perversidade nascem

coisas positivas.

Novamente silêncio, e depois:

- E a mensagem mais profunda?

- Uma independência agressiva. O Estado do New Hampshire é

conhecido por isso. Os habitantes de Lake Henry levam-na muito a

peito. Se nos disserem para comer A, nós comemos B. Se nos


disserem para vestir C, nós vestimos D.

- Se Lhes disserem para falar de um dos vossos, fecham-se em

copas.

- Nem mais - ela estava satisfeita por ele ter percebido. Fazia
sentido que um homem com um tom de voz culto de barítono fosse
inteligente.

- Mas a questão - disse a voz culta de barítono - é que eu estou - a


tentar ajudar. Se todos se fecharem em copas, o meu caso perde a
força.

Poppy não estava disposta a deixar-se convencer, voz culta ou não.

- Tem algum diminutivo?

- Diminutivo?

- Griffin Hughes é muito formal. Não Lhe chamam Griff, ou coisa do


género?
- Griffin.

- E Júnior? Ou Trip? Não é a terceira geração de homens chamados


Griffin Hughes?

- Sim, mas o nome do meio é diferente nos três casos, por isso nem
sequer sou um Júnior.

- O que é que Lhe chamavam quando era rapaz?

- Ruivo.

- Ruivo?

- Tenho cabelo ruivo.

- Está a brincar - disse Poppy. Imaginara um cabelo escuro e sexy,


para condizer com aquela voz grave e sexy. Impunha-se uma
revisão do retrato mental que formara dele. - É comprido? -
perguntou, depois ouviu um som e virou-se. À porta estavam quatro
rostos com expressões de curiosidade.

- O meu cabelo? - perguntou Griffin. - Não. Quero dizer, é mais


comprido... muito mais... do que um corte à escovinha, mas
conseguem-se ver as minhas orelhas.

Ela enxotou as amigas com um gesto. Quando elas não se


mexeram, pensou: "Que se lixe. "

- São espetadas? - perguntou a Griffin.

- O que é isto? - perguntou Cassie.

- Não - respondeu Griffin. - Os tipos chamados Griffin Hughes têm


orelhas pequenas e bonitas. Mas ouvimos tudo. Quem é que falou?

- A minha amiga Cassie - Poppy olhou para o grupo com ar de


desafio. - Que altura tem? - perguntou a Griffin.
- Quem é ele? - perguntou Heather.

- Um metro e oitenta. Setenta e cinco quilos. Olhos azuis.

- Azuis-escuros ou azuis-claros?

- Azuis-escuros durante o sexo, azuis-claros nas outras ocasiões.


Poppy sentiu-se consternada por um segundo.

- Isso era necessário?

- Foi você que perguntou.

Ela franziu a testa.

- Não perguntei nada sobre sexo.

O grupo de mulheres à porta desatou a rir.

- Agora é a minha vez. Altura, peso, olhos?

- Não me disse a idade.

- Trinta.

- Isso quer dizer que sou mais velha do que você.

- Quanto?

Em tom afectado, ela disse:

- Uma senhora não fala da sua idade.

- Nem do seu peso. E quanto à altura e à cor dos olhos?

- Isso é informação privada.

- Espere aí! Eu disseLhe.


- Porque quis. Eu não quero. Fazemos o seguinte: vou dizer ao
Willie Jake que ligou. Até Lhe darei o seu número, para o caso de
ele querer retribuir a chamada.

- Acha que o fará? - perguntou Griffin.

- Não.

- Nesse caso, vou guardar o meu número para mim próprio.

- Ah-ah! - gritou ela. - Você pode chatear-nos a nós, mas o con trário
já não?

- Poppy - disse Griffin numa voz muito madura - disseme que ele
não me ligaria. Portanto vou tentar de novo noutra altura. Volte para
junto das suas amigas.

Ela desligou com um certo desapontamento, mas as amigas


rapidamente preencheram o vazio.

- Quem era? - perguntou Cassie.

Poppy soltou uma fungadela desdenhosa e manobrou a cadeira em


direcção a elas.

- Um escritor qualquer.

- O que é que é espetado? - perguntou Heather, desviando-se para


ela passar.

- As orelhas dele não são.

Sigrid seguiu-a, centímetros atrás da cadeira.

- Como é que a conversa foi parar às orelhas dele?

- Ele estava a tentar enganar-me - disse Poppy, virando-se para


elas. - É o que eles costumam fazer, sabem, dão-nos bocadinhos de
isco, na esperança de que nós mordamos o anzol. Meu Deus, se há
uma coisa que devíamos ter aprendido com o que aconteceu a Lily,
é a não deixar escapar nem uma palavra a estes tipos.

- Então que idade tem ele? - perguntou Marianne. Quando Poppy


Lhe lançou um olhar desesperado, disse: - Se não estás
interessada, eu estou.

- Ele diz que tem trinta.

Marianne tinha quase quarenta. Fez um ar desapontado.

- Pela voz, parecia mais velho.

Poppy cerrou o maxilar e acenou.

- Pois. Também disse que tinha um metro e oitenta, setenta e cinco


quilos, cabelo ruivo e olhos azuis. Que tipo de pessoa dá essas
informações todas a uma desconhecida? Eu não o faria.

Houve um momento de silêncio. Poppy estava a ouvir o silêncio, a


pensar que havia outras razões pelas quais não daria esse tipo de
informações, quando Marianne disse, em voz triste:

- É pena. Ele tinha uma voz fantástica.

Poppy suspirou.

- Lá isso é verdade - admitiu, e pôs o assunto de lado.

Lily estava sentada de pernas cruzadas, na sua doca, na escuridão


da noite. Tinha colocado outra vez o cachecol, mais um gorro de lã,
uma parka de penas, botas de montanha e luvas - desta vez para se
aquecer, não para se disfarçar. Sim, talvez fosse um exagero. Mas
não gostava de estar a tremer. Com a dissipação do nevoeiro, o ar
tinha secado, mas estava frio. A sua respiração formava pequenas
nuvens sob a luz da lua.

Mas não a apanhariam dentro de casa nem morta. Estava uma noite
gloriosa em Lake Henry. A superfície do lago era lisa como um
espelho, reflectindo a lua, reflectindo a Estrela do Norte, reflectindo
até o amarelo outonal de um vidoeiro na margem de Elbow Island.
Com os mergulhões em silêncio, era possível ouvir o leve som da
água contra a margem. Emprestava algo de hipnótico à serenidade
do momento.

Um movimento a oeste, sobre a água, chamou-Lhe a atenção, e ao


princípio pensou que fosse o pássaro. Susteve a respiração e
escutou, mas o som que ouviu não era o de um mergulhão. Eram os
remos de uma canoa, mais nítidos a cada movimento ritmado.

Abraçou os joelhos e ficou imóvel, observando a canoa a cortar a


água. Era uma lasca escura numa fatia de luar, crescendo à medida
que se aproximava. Quando estava a dez metros da doca, o remo
cessou o seu movimento e ficou parado, funcionando agora como
quilha, dirigindo o barco. Deslizou ao longo da doca praticamente
sem Lhe tocar.

- A percepção extra-sensorial é assim - disse John, segurando a


beira da doca. - Entra.

Percepção extra-sensorial? Não Lhe parecia. Lily estava a pensar


no lago, não em John. Mas pensar no lago acalmara-a, por isso
sentia-se segura e controlada.

Descruzou as pernas e aproximou-se da beira da doca. Baixou os


pés até ao chão da canoa e deslocou o peso do corpo, como fizera
tantas vezes enquanto crescia. Ainda mal se sentara em frente de
John e este já estava a empurrar a doca e a manejar os remos para
dar a volta à canoa.

- Onde vamos? - perguntou, enquanto ele virava para a direcção de


onde viera.

- Ver os meus mergulhões.

Ela sentiu uma pontada de excitação.


- Os das fotografias?

- Sim. Vão partir em breve. As minhas visitas estão contadas - a sua


voz assumiu um tom provocador. - Achas que estás suficientemente
agasalhada?

Ela olhou para trás: Ele vestia calças de ganga e uma camisola,
com um colete forrado a pêlo, desabotoado. Tinha as mãos e a
cabeça descobertas. Lily perguntou a si própria como estariam
dentro de vinte minutos.

- Não vou partilhar as minhas luvas - avisou. Voltada para a frente,


sentiu o ar da noite na pele enquanto a canoa cortava a

água, afastando-se da margem. Estava contente por se ter


agasalhado. Assim, o ar era revigorante e não frio. Deixou-o encher-
Lhe os

pulmões, aspirando uma grande golfada atrás de outra.

John apanhou o ritmo com o remo, impelindo o barco com um

mínimo de som e esforço, deixando Lily sem nada para fazer senão

sentir-se entusiasmada. Levantou a cabeça, respirou a noite e


sorriu.

Por mais que adorasse Boston, lá não tinha isto. Nem em Albany.
Nem,

apesar de toda a excitação, em Manhattan. As suas visitas a Lake


Henry

ao longo dos últimos dezasseis anos tinham sido breves e tensas.


Apercebeu-se agora de que sentira falta desta calmaria do lago.

O correu-Lhe também que John devia saber disso e estava apenas


a dar-Lhe graxa, noutra tentativa de obter a sua história. Se assim
era,

esperava-o uma grande desilusão - particularmente se arruinasse os

ruídos da noite com a sua voz. Isso seria um sacrilégio, um sinal


seguro de insensibilidade, o que denunciaria segundas intenções.

Mas ele não disse uma palavra. Para além do ocasional murmúrio

da sua respiração, enquanto remava, e do som do remo a deslizar


na

água, deslocaram-se em silêncio. As casas do lago, dispostas a


largos

intervalos, ofereciam pequenos vislumbres de luz ao longo da


margem. Havia o ranger ocasional de um barco contra o pontão, o
ocasional eco de um gancho contra o mastro, mas ela e John eram
as

únicas pessoas à vista. Lily sentia-se segura.

Passaram por um punhado de ilhotas antes de John parar de remar


e deixar a canoa deslizar em direcção a uma delas. Era pequena,

com cerca de doze metros de comprimento, e, a avaliar pela sua

silhueta irregular contra o céu, estava coberta de abetos e pinheiros.

A canoa abrandou. john imobilizou-a com o remo.

Ali o lago embatia quase silenciosamente contra a vegetação


rasteira da margem. john encostou a boca ao ouvido dela.

- O ninho era ali - apontou para um local, mas Lily não conseguia

distinguir muito mais do que um tufo de relva na escuridão. - A ave


maior veio reconhecer o local em finais de Abril. A companheira
chegou a meio de Maio. Em meados de Junho, já havia um ovo. No
dia

seguinte, um segundo.

- Como conseguiste tirar fotografias dos ovos sem espantar os

mergulhões do ninho? - murmurou ela. Não precisou de virar a


cabeça. Ele estava muito perto.

- Com cuidado e uma lente de longo alcance. Fiquei aqui sentado


três horas, à espera que um dos pais viesse render o outro. Se
ficarmos sentados, imóveis, durante tempo suficiente, eles pensam
que somos uma árvore. O que está no ninho pia para chamar o
outro. Não deixam os ovos expostos mais de um minuto, enquanto
trocam de lugar. É digno de se ver. O que sai de serviço desliza para
dentro da água para comer, ou para alisar as penas ou para dormir.
O que o substitui sobe para terra e dirige-se ao ninho, vira os ovos,
ajeita o material do ninho e senta-se. Depois fica sentado. Os
insectos esvoaçam à sua volta, e ele continua sentado. Podem
ribombar trovões, cair relâmpagos, e ele continua sentado. Se um
predador se aproximar, guincha e faz um grande espalhafato com as
asas, mas tirando isso parece uma estátua. Duas estátuas, na
verdade, quando o lago está límpido e o reflexo é nítido.

Lily visualizou a imagem.

- Ficam sentados durante vinte e nove dias, mais ou menos -


continuou John. - Depois um dos filhotes nasce. Um dia depois,
segue-se o outro. Os filhotes estão na água poucas horas depois,
assim que as penas secam. Podem não voltar a tocar terra durante
três anos, até eles próprios estarem a fazer ninho.

- A sério?

- Sim. Passam noventa e nove por cento das suas vidas dentro de
água.
Lily não sabia disso.

- Na água têm mobilidade - explicou ele. - Conseguem proteger-se


melhor do que em terra.

Houve um movimento no extremo mais distante da ilha. Um pássaro


deslizou num raio de luar, seguido por outro. Depois um terceiro e
um quarto.

Ela prendeu a respiração.

A voz dele baixou ainda mais.

- Os dois da frente são os pais, os outros dois os filhotes. Sempre


de olhos nas aves, ela virou a cabeça apenas o suficiente para ele
conseguir ouvir o seu murmúrio.

- Os filhotes são quase tão grandes como os pais.

- Crescem depressa.

- Já sabem voar?

- Ainda não. Dá-Lhes mais um mês. Os pais partem primeiro. Estão-


se a preparar. As suas penas já começaram a mudar. Há uma muda
de pena parcial antes da migração de Outono, e uma total antes da
migração da Primavera. Quando isso acontece, geralmente em
Março, não conseguem sequer voar. Depois nascem as penas de
acasalamento. São as brilhantes, as que estão a perder agora.
Quando partirem, estarão muito parecidos com os filhotes.

Os mergulhões estavam a nadar ao longo da ilha, deslizando entre


os raios de luar.

Lily perguntou:

- Se eles partem primeiro, quem se certifica de que os filhotes


conseguem levantar voo?
- O grande Espírito do Lago - brincou John. - Não há motivo para
preocupações. As coisas já se passam assim há mais de vinte
milhões de anos.

- Não! - ela não acreditava.

- Sim. - Mas os seres humanos não estão por cá nem há um quarto


desse tempo. - Nem os lagos, tal como os conhecemos. Talvez seja
isso o que estes pássaros têm de especial. já testemunharam
muitas mudanças no planeta.

Um dos mergulhões soltou um longo lamento.

Lily soltou uma exclamação abafada.

- Espera - murmurou John.

E, naturalmente, ouviram um chamamento em resposta, a leste. O


som era perfeitamente nítido, mas distante.

- No lago a seguir - murmurou John.

O mergulhão de Lake Henry repetiu o seu chamamento e a ave


distante respondeu de novo. O som mal acabara de se desvanecer
quando ouviram um terceiro chamamento. Este era ainda mais
distante, mais a leste, provavelmente a dois lagos dali. Mas era
distinto.

Durante quase dez minutos os três pássaros chamaram-se uns aos


outros. Lily já ouvira os coros na noite, mas nunca quando estava no
lago, e nunca tão perto de um dos participantes. Era arrepiante,
perfeitamente belo.

Quando as aves se calaram e o silêncio da noite se instalou de


novo, ela soltou a respiração. john permaneceu tão imóvel como ela,
até os mergulhões contornarem a ilha e desaparecerem.

Ainda sem uma palavra, ele levantou o remo e, com uma hábil
combinação de remadelas laterais, virou a canoa. Depois de
estarem de novo em movimento, na direcção da casa de Celia, Lily
ficou melancólica. Não sabia bem porquê. O que tinham acabado de
ver e de ouvir agradara-Lhe imenso - mas era precisamente esse o
problema. A beleza da noite, do lago e dos mergulhões, era uma
tapeçaria luxuriante e intrincada. Em contraste, a sua vida - a vida
de volta à qual John a estava a levar - era um fio isolado. Sentia-se
pequena e insignificante. Desligada. Perdida.

Encolhendo as pernas, puxou o gorro mais para baixo e apertou


melhor o cachecol e o casaco à sua volta, mas mesmo assim sentia
frio. John não disse nada. Lily sentia-se muito só.

Quando chegaram à doca, ele saiu da canoa antes que ela


conseguisse sequer levantar-se. Prendeu o barco com uma corda e
estendeu a mão. Lily não conseguia sentir essa mão através das
luvas, não sabia se era quente ou fria, áspera ou macia, mas
aceitou-a e segurou-a com força enquanto ele a ajudava a sair da
canoa. Estava prestes a agradecer-Lhe por tê-la levado quando ele
apoiou gentilmente a mão nas suas costas e começou a conduzi-la
a casa - e ela sentiu essa mão. Oh, se sentiu. Mesmo através da
parka, mesmo através da camisa de flanela e da Tshirt por debaixo
dela. Perguntou a si própria o que significaria isso. Era apenas uma
mão.

Mas sabia-Lhe bem. Era gentil e firme. Transmitia companheirismo.


Parecia-Lhe que não sentia companheirismo há séculos. Era difícil
acreditar que, há pouco mais de uma semana, ela estava a descer a
Commonwealth Avenue com Terry Sullivan, prestes a dizer-Lhe
coisas que mudariam para sempre a sua vida.

John parou no último degrau das escadas do alpendre. Ela subiu um


e voltou-se.

- O-obrigada - disse, odiando o seu nervosismo, mas não sabia o


que esperar, nem em quem confiar, não sabia se ele era
verdadeiramente amigo ou inimigo.
John fitou-a nos olhos. Sob a luz oblíqua da lua, parecia
estranhamente suplicante.

- Eu é que agradeço. Normalmente vou sozinho. Foi muito


agradável ter companhia.

Ela acenou, enfiou as mãos nos bolsos e apertou os braços contra o


corpo. "Entra, idiota", gritou uma vozinha dentro dela, mas ficou
parada, paralisada pelos olhos ao nível dos seus. Queria chamar-
Lhe um amigo, mas não sabia se ele respeitaria essa designação.

- A vida é complicada - disse, por fim.

Ele sorriu.

- Porque é que achas que eu adoro aqueles mergulhões? Eles


representam a simplicidade.

Ela acenou afirmativamente.

- Vinte milhões de anos. Tudo por instinto?

- Instinto animal. É engraçado como nos orgulhamos de estar um


passo à frente deles.

Ela acenou de novo e desviou o olhar, pensando que ele


compreendia mesmo, e como isso era gratificante. Depois ele tocou-
Lhe na face e os olhos dela voaram de novo para os dele. A mão de
John já estava a baixar e ele virara-se para partir, mas Lily sentiu
algo no rescaldo daquele toque - uma ligação, um formigueiro,
talvez uma semente de confiança.

Podia ser real. Ou engano. Ou uma ilusão. Até mesmo uma mera
fantasia.

Não saber o que era deixava-a aterrorizada.

Na quarta-feira de manhã, bem cedo, John estava de novo no lago.


A mente estava mais ocupada do que alguma vez em três anos; a
canoagem era agora mais um exercício de libertação de stress do
que de observação de mergulhões. Com a neblina da madrugada a
levantar, a vida do lago era pouco nítida, quase surreal. Deixou o
silêncio invadi-lo e concentrou-se em pôr de lado os pensamentos.

Mas estes tinham vida própria. Eram todos relacionados com Lily, e
continuavam a ser sobre Lily quando se dirigiu à cidade para
comprar os jornais. A sua primeira recordação dela, naquela camisa
de dormir comprida e larga, fora substituída pela da noite anterior,
uma imagem de Lily toda enrolada em roupa, mas inocente e
exposta. Gostava do toque da pele dela. Em fantasias mais
recentes, tocava em mais do que na sua face. Sentia-se atraído por
ela. Isso complicava as coisas.

Queria escrever um livro sobre ela, mas ela queria privacidade. Isso
colocava-os em lados opostos. O facto de se sentir fisicamente
atraído por ela só intensificava o conflito.

Não importava. Voltou para casa e estava junto do telefone, à


espera, quando o telefonema dela chegou.

- Não vem nada, hoje - disse, em resposta à pergunta inevitável.

- Nada na primeira página?

- Nada em lado nenhum, em nenhum dos jornais.

Na pausa que se seguiu, imaginou-a de testa franzida, a pensar na


retractação que pretendia, tentando decidir se a ausência de
notícias era boa ou má notícia. Por fim, num tom que parecia
esperançoso mas cauteloso, perguntou:

- Isso é bom, não é?

John disseLhe que provavelmente era, porque não viu razão para a
apoquentar. Sim, na verdade, a ausência de notícias do caso
Rossetti Blake significava provavelmente que a história perdera a
força - e sim, na verdade, se o Post tencionava publicar uma
retractação, isso seria feito da forma mais discreta possível, de
preferência quando já ninguém estivesse à procura de notícias
novas sobre o caso.

Mas John sabia como os jornais funcionavam. Os erros raramente


eram admitidos; as retractações só eram publicadas sob coacção. A
prática comum era que, quando uma história perdia o interesse, era
abandonada.

John tinha agora sentimentos divididos em relação a isso. Lily queria


a sua retractação, e ele queria-a por ela, mas era vantajoso para ele
que a história morresse. Quanto mais tempo se arrastasse, mais
profundamente um ou outro repórter podia escavar. john queria as
escavações todas para si.

Não houve escavações nesse dia. O Lake News consumiu-Lhe o


tempo todo, desde o minuto em que chegou ao escritório até ao
minuto em que transmitiu a última página à gráfica. Isso aconteceu
às duas da tarde, bem depois da data-limite do meio-dia que ele
geralmente tentava respeitar, mas não era grave. O responsável
pela gráfica era um companheiro da pesca no gelo. O atraso custou
a John apenas um jantar no restaurante de Charlie. Era um bom
negócio.

Com seis horas livres antes de o jornal acabado estar pronto para
ser recolhido em Elkland, quarenta minutos a norte de Lake Henry,
John passou pela loja de Charlie para comprar provisões e foi visitar
Gus. Sentiu o mesmo aperto na boca do estômago que sentia
sempre que se aproximava de Ridge, a mesma consternação por,
até mesmo na época da queda da folha, o local conseguir parecer
desolado; a mesma repugnância ao sentir o cheiro do lixo, em vez
de abóbora, sidra ou pinheiros. E sentiu o mesmo peso no coração
quando en trou em casa do pai.

Qualquer sinal das arrumações que Dulcey fizera nessa manhã


tinha desaparecido. A mesa em frente do sofá estava torta e o
quebra-luz do candeeiro de lado. O sofá estava escondido sob os
restos do jornal da manhã. O que podia ter sido o pequeno-almoço -
um prato com pedaços de ovo e restos de torrada - estava no chão.

- Pai? - chamou, como fazia sempre. Pegou no prato e dirigiu-se à


cozinha. Gus estava lá, sentado à mesa, uma figura curvada. Estava
a pressionar um garfo com a mão nodosa e gretada.

- O que estás a fazer? - perguntou John suavemente. O cabelo


branco e revolto de Gus estremeceu um pouco, mas ele não ergueu
os olhos.

- A endireitá-lo. Ela dobra-os.

- A Dulcey?

- Vem cá mais alguém? - retorquiu Gus.

John não achou que o garfo estivesse torto. Mas não ia discutir. Em
vez disso, pôs o prato no lava-loiça, que estava limpo e vazio.
Estranhamente vazio.

- Almoçaste alguma coisa?

- Não tinha fome.

John desconfiava que ele não tivera forças para fazer nada, e sentiu
outro aperto no coração. Pôs gelado no congelador, e leite, natas,
ovos e um frango assado, cortado em quatro, no frigorífico. Tirou
metade do pão que trouxera no fim-de-semana anterior, abriu uma
lata de atum e misturou-o com maionese. Depois de fazer três
sanduíches, pôs uma no frigorífico, para Gus comer mais tarde.
Colocou as outras duas em pratos, encheu dois copos de leite e
sentou-se para comer com o pai.

- O jornal acaba de seguir para a gráfica - disse, em tom casual. - É


uma boa edição, acho eu - deu uma grande dentada na sanduíche,
não tanto por fome, mas sim para sugerir a Gus que devia comer
também.
Gus continuou a lutar com o garfo.

- A notícia principal é sobre as novas famílias que se mudaram para


a cidade.

- Não precisamos deles.

- Mas eles precisam de nós. É esse o objectivo do artigo. - Quando


viu que Gus não respondia, John disse: - É sobre qualidade de vida.
Fala-se muito disso nos dias que correm.

Gus soltou uma fungadela desdenhosa.

- Qualidade de vida, aqui?

- Ridge é melhor do que um bairro de lata urbano - disse John, mas


era suficientemente inteligente para não insistir nessa linha de
pensamento. Inevitavelmente acabaria com Gus a chamar-Lhe um

menino convencido da cidade que pensava que sabia tudo.


Sensatamente, mudou de assunto. - Armand e eu tivemos uma
discussão em relação ao que devíamos escrever sobre a Lily Blake.

Gus pousou o garfo e olhou para a sanduíche.

- Sobre a Lily Blake e o cardeal, em Boston? - recordou-Lhe John.

- É suposto que eu me importe com isso?

- Muitas pessoas por aqui importam-se, uma vez que a Lily é de cá.

Gus ergueu os olhos lentamente, com expressão insolente. john


aguentou o seu olhar durante um minuto antes de apontar para a
sanduíche.

- Come - deu outra dentada na sua, mastigou, engoliu. Depois,


porque o pai não mordera o isco, afiou o anzol. Sabia que a
necessidade era sua, mas era forte. - Ela estava inocente naquela
história com o Donny. Sabes disso, não sabes?
Gus baixou os olhos para a sanduíche. Foi o único indício que deu
de que sim, sabia, e não, não estava orgulhoso disso. Pelo menos,
John interpretou o facto de ele desviar os olhos como um sinal. Não
queria pensar que o pai não tinha consciência.

- Interroguei-me muitas vezes se as coisas teriam sido diferentes se


eu tivesse ficado por cá - disse John.

- Achas que nos terias salvo a todos de agirmos como idiotas?


perguntou Gus.

- Não. Talvez pudesse ter salvo o Donny do que ele achava que
precisava de fazer, fosse lá o que fosse. Ele estava bem, antes de
eu partir. Quando eu era o mau da fita, ele era o bom. O que
aconteceu depois de eu partir?

Gus pegou na sanduíche. Um pedaço de atum caiu no prato. Virou o


pão e estudou o sítio vazio.

- Talvez, se eu tivesse ficado - disse John -, ele se tivesse saído


bem.

- Mas tu terias dado para o torto. Portanto salvei um.

- Porquê eu? Porque não o Donny?

- Ela tinha de ficar com um.

Ela. A mãe de John, que estava viva e de boa saúde, casada pela
segunda vez e feliz, a viver na Carolina do Norte.

- Mas porquê eu? - insistiu.

- Pergunta-Lhe a ela.

- Já perguntei. Um milhão de vezes - actualmente, dava-se bastante


bem com a mãe, mas na altura a relação entre ambos era precária.
Ele sempre desconfiara de que Dorothy teria preferido levar o mais
novo; suspeitara muitas vezes que Gus decidira o contrário
precisamente porque sabia disso. Ela chorara Donny sentidamente
e durante muito tempo. Mas nunca respondera à pergunta de John.
Ela diz-me sempre para te perguntar a ti. É o que estou a fazer.

Gus lançou-Lhe um olhar tão directo quanto conseguia, com um


olho mais baixo do que o outro.

- Foi ela que quis acabar com o casamento. Eu disseLhe, como


queiras, claro, força. Mas deixa-me o bom, e foi o que ela fez.

"O bom. "

- Não disseste realmente isso.

- Disse, sim.

John ficou suficientemente magoado para ripostar.

- Parece que não tiveste muito olho.

Gus levantou-se e cambaleou por um instante, mas esse instante foi


o suficiente para John sentir remorsos. No segundo seguinte estava
de pé, empurrando o pai de novo para a cadeira. Era
assustadoramente fácil dominá-lo.

Quando teve a certeza de que Gus não ia tentar levantar-se de


novo, voltou à sua cadeira.

- Desculpa. É um assunto muito sensível para mim. Sempre senti


que tinha sido expulso. Exilado. Castigado.

- E foste - resmungou Gus.

John deu uma dentada na sanduíche e mastigou com alguma força.


Mas, quando engoliu, já se tinha apercebido de que não estava a ir
mais longe do que era costume. Assim, mais uma vez, mudou de
assunto.

- Conhecias o George Blake bastante bem, não era?


- Não. Trabalhei para ele uma única vez.

John sabia que tinha sido muito mais do que isso. Gus trabalhara
tanto na casa grande como na de Celia. john tinha conhecimento
disso em primeira mão. Observara-o, embora à distância.

- O que pensavas dele?

- De quem?

- Do George.

- Não conhecia o George. Era a Maida que lidava comigo. Uma


presumida - murmurou, depois levantou a voz. - Está um frio de
rachar no lago, em Março - com um resmungo, voltou a cabeça e
olhou para o pátio de testa franzida. - Há qualquer coisa estranha
naquela mulher.

Em tom casual, John perguntou:

- O que achas que é?

Gus olhou para ele.

- Como raio queres que eu saiba? Não consigo perceber a minha


própria vida, quanto mais a dos outros. Mas aquela mulher teve
qualquer coisa estranha desde o dia em que chegou à cidade.
Demasiado sorridente. Demasiado arrogante. Sempre à espera de
qualquer coisa. Não admira que a filha esteja metida em sarilhos - o
maior dos seus olhos semicerrou-se quando fitou John. - Ela vai
voltar.

- A Lily? Achas que sim?

Gus imitou-o em tom de troça.

- "Achas que sim?" O que é que tu achas, espertalhão? Tu é que


foste educado na cidade grande. Devias saber. Achas que ela vai
voltar?
John queria dizer a Gus que Lily já voltara. Queria partilhar a notícia
como um gesto de boa vontade, como uma demonstração de
confiança.

Mas a confiança não existia. Três anos de visitas regulares, e John


ainda não compreendia o pai. Não sabia como podia um homem
mandar um filho embora e não querer saber do que Lhe
acontecesse, mas fora isso que Gus fizera. Não Lhe escrevera nem
telefonara uma única vez - nem em aniversários, nem no Natal.
Dorothy, que escrevia e visitava Donny, dizia que Gus era um
atrofiado emocional, e John não discutia as ideias da mãe. Mas, no
fundo, sonhava que o pai pensava muito nele.

Não percebia como um homem podia ser tão colérico e insensível


como Gus parecia ser. Calculara que tinha de haver algo mais
suave dentro dele - calculara que, se convivessem o suficiente, esse
lado viria ao de cima, calculara que, se conseguisse provar o seu
valor, Gus o confessaria.

Assim, quando Lhe chegou aos ouvidos que Gus se estava a ir


abaixo, John voltara para Lake Henry. Imaginara uma reconciliação,
um encontro de mentes, uma trégua. Imaginara ambos a
conversarem sobre Donny, e sobre Dorothy, e sobre os locais onde
Gus construíra os seus muros maiores e mais bonitos, e sobre os
artigos escritos por John que o tinham deixado mais orgulhoso.
Imaginara encontrar um pai. Mas o que encontrara fora um homem
tão duro e inflexível como aqueles compridos e bonitos muros de
pedra que construíra.

John não fazia ideia se Gus gostava dele, por pouco que fosse. Sem
afecto, não era provável que existisse respeito, e, sem respeito, se
John partilhasse o segredo do regresso de Lily, Gus podia muito
bem virar costas e contá-lo à primeira pessoa que visse. Que seria
Dulcey, que então contaria à mãe, que contaria à irmã, que contaria
ao marido, que contaria à mulher que tratava da escassa
contabilidade da sua carpintaria, bem como da contabilidade de
metade dos outros pequenos negócios da cidade - e essa mulher
era a maior mexeriqueira da zona.
John não podia fazer uma coisa dessas a Lily.

O chefe dos correios era outra história. Nathaniel Roy gostava de


John e respeitava-o. Deixara-o bem claro pouco depois de John
regressar a Lake Henry, e as conversas diárias entre ambos, na
estação dos correios, tinham crescido em profundidade e franqueza.
john sentia muitas vezes que Nat atribuía maior valor ao que ele
tinha para dizer precisamente por causa dos anos que passara
longe de Lake Henry. Uma vez que John tinha minimizado o seu
passado junto do resto da cidade, podia ser mais ele próprio quando
estava com Nat. O homem tinha setenta e cinco anos, no mínimo,
mas eram bons amigos.

A precisar agora de um rosto amigo, para preencher o vazio que


sentia sempre que saía de casa de Gus, John dirigiu-se à cidade
para ir buscar a sua correspondência.

A estação dos correios era um bonito edifício de dois andares em


tijolo. Entrar lá dentro era ser envolvido pelo cheiro a circulares
publicitárias e, mais indistintamente, embora identificável, pelo
aroma do tabaco de cachimbo que Nat abandonara anos antes.

Nat ergueu os olhos de uma revista e o seu rosto iluminou-se de


imediato - um grande feito, para um homem cujo sorriso mais aberto
era tão parco como o seu rosto. Era alto e magro, um ianque desde
o cabelo fino e grisalho aos óculos de armações metálicas,
passando pelo casaco de malha largo, pelas calças de fazenda, até
aos mocassins gastos. Roía continuamente o cachimbo apagado, e
raramente media as palavras quando falava.

- Hoje não tenho muita coisa para si - disse, sem tirar o cachimbo
dos dentes, enquanto entregava a John uma pequena pilha de
correspondência presa com um elástico. - Algumas contas,
publicidade, o novo catálogo da L. L. Bean. Veio um postal da sua
mãe. Ela e o marido estão na Florida. Parece que vão comprar uma
casa.
John sabia que eles andavam à procura de casa. Tirou o cartão do
monte e leu-o. Descrevia uma pequena casa em Naples, a quatro
quarteirões da praia.

- Parece boa.

- Ela está toda excitada. É uma senhora muito simpática. Mesmo


quando as coisas eram difíceis, foi sempre educada, tinha sempre
um sorriso. Lamento dizê-lo, mas nunca conseguimos perceber o
que ela tinha visto no Gus.

- Ele era mais alto, nessa altura - disse John. - Muito bem-parecido.

Nat tirou o cachimbo da boca.

- O bom aspecto desaparece. E depois o que resta? Ela vinha de


longe. Isso não agoirava nada de bom.

- A Maida Blake também veio de longe - observou John. - Ela e o


George estiveram casados mais de trinta anos. Acha que eram
felizes?

- Na verdade - disse Nat, depois de reflectir durante um instante -


acho. Claro, o George nunca foi tão bem-parecido como o Gus,
portanto ela não perdeu nada quando ele envelheceu e engordou.
Mas tenho de admitir, ela tomou as rédeas das coisas depois de o
George morrer. Não se atrapalhou - mordeu o cachimbo ao canto da
boca, inclinou-se para o lado, tirou uma revista People nova de uma
pilha, abriu-a numa determinada página e empurrou-a para John.

John passou os olhos pelo artigo. Era sobre o cardeal e Lily, escrito
antes do pedido de desculpas ao cardeal.

- Ela é famosa - disse Nat. - Não acredito que a Maida goste muito
disso. Nunca aprovou a ida da Lily para Nova Iorque. Para ela, esse
era o pior antro de perversidade à face da terra. Não que eu culpe a
rapariga por querer sair daqui. Teve um abalo terrível naquela
história com o seu irmão - inclinou-se para ele e baixou a voz, como
se houvesse mais pessoas à volta deles, que não havia. - Acha que
ela vai voltar?

John sentiu-se tentado a contar-Lhe, mas controlou-se, e não era


por uma questão de confiança. john já testara Nat uma ou duas
vezes. Ele era capaz de guardar um segredo, se Lhe pedissem. Mas
ha via outra coisa a puxar John do outro lado.

- Talvez - viu uma oportunidade. - Ela costuma escrever à Maida?

- Não. Mas, por outro lado, a Maida também nunca Lhe escreve.
Não é pessoa para isso. Nunca foi. Quando se mudou para cá,
nunca trocou correspondência com ninguém na velha cidade.

- De onde é ela?

- Linsworth, Maine. É uma pequena cidade madeireira a nordeste


daqui. A Celia costumava escrever e receber cartas, mas não tantas
como seria de esperar e, passado algum tempo, isso também
acabou. Elas cortaram os laços - franziu a testa. - Talvez tenham
deixado algum dissabor para trás. Talvez quisessem começar de
novo.

- Não deixaram lá família?

- Se deixaram, eles não Lhes escreviam. Na altura eu era novo


neste trabalho, e as pessoas tinham curiosidade sobre elas, sobre a

Maida e a Celia, por isso eu andava atento. Mas não chegava


correio de ninguém com o apelido St. Marie - a sua voz assumiu um
tom mais cortante. - Não que eu tenha tocado nesse assunto com o
indivíduo que andou por aqui ontem a meter o nariz. Um
reporterzinho de terceira categoria de Worcester, a tentar fazer-se
passar por um de nós, a tentar soar como um de nós, a tentar
insinuar que estava do lado da Lily, mas não estava. Eu bem vi a
manha dele, a fazer perguntas atrás de perguntas. Fartei-me de
pensar por que raio terá vindo ter comigo. Porque eu trato do
correio? Como se eu Lhe fosse dizer o que vejo! Isso ficaria mal.
Seria uma violação da confiança que o governo deposita em mim.
Quase um crime federal, como violar a correspondência.

John sorriu.

Nat tirou o cachimbo da boca e apontou-o a John.

- Você é diferente. Você preocupa-se. Uma coisa é nós sabermos


quem somos e de onde viemos. Outra coisa completamente
diferente é eles saberem. Nós gostamos uns dos outros e, mesmo
que não gostemos, reconhecemos que estamos nisto todos juntos.
As pessoas de fora não o compreendem. Não sabem nada de nada
sobre comu nidade.

Se John não tivesse deixado passar a data-limite do meio-dia,


estaria a caminho de Elkland quando Richard Jacobs ligou. Mas
assim, com duas horas livres para matar, voltara ao escritório e
estava a reler documentos, a tomar apontamentos para si próprio, a
pensar em possibilidades e probabilidades, quando o telefone tocou.

Richard mostrou-se interessado. Várias perguntas mais tarde,


mostrou-se muito interessado. Mais algumas perguntas e mostrou-
se tão interessado que ofereceu a John uma grande quantia em
dinheiro para firmarem o acordo ali mesmo. "Não havia necessidade
de agente", disse. "A questão é rapidez e surpresa", disse. "Posso
pôr o livro cá fora em seis meses, posso publicá-lo bem, você
conhece a reputação desta editora", disse.

O que John sabia era que a editora era um David entre Golias. Era
pequena mas ávida. Quando apontava às listas de best-sellers,
geralmente acertava no alvo, e estava na altura de conseguir mais
um. O adiantamento que estava a ser oferecido a John era
suficientemente grande para sugerir que o seu livro podia ser esse
best-seller.

Desligou o telefone, dez minutos depois, sentindo-se sem fôlego.


Richard queria um resumo e os capítulos introdutórios o mais
depressa possível. Isso significava que tinha de organizar
rapidamente os seus pensamentos.

Ao mesmo tempo que John estava a ponderar as suas opções de


enredo literário, Lily saiu de casa e conduziu até ao extremo mais
sossegado do lago. Passou pela estrada estreita que levava a casa
de Poppy, entrou noutra mais larga que subia a colina até à casa de
Maida, mas antes de lá chegar desviou-se para um caminho lateral.
Rose vivia ao fundo deste, com o marido, Art Winslow, e as três
filhas.

A casa tinha apenas uma dúzia de anos, construída como prenda de


casamento pelos pais de Art para complementar a oferta do terreno
feita pelos pais de Rose. O facto de ter sido Rose a escolher o estilo
da casa era óbvio para qualquer pessoa que soubesse que Rose
era um clone de Maida, ou seja, para qualquer pessoa que
conhecesse Rose minimamente. Esta casa era uma versão mais
pequena da casa da colina - a mesma pedra, o mesmo alpendre, os
mesmos beirais. Independentemente das implicações desse facto,
Lily achava a casa muito bonita. E em especial agora, com
candeeiros a gás de ambos os lados do caminho e a iluminar o
alpendre.

Lily calculara a sua visita de modo a chegar depois de as crianças


estarem na cama. Não sabia se Rose sabia que ela voltara, se
Hannah Lhe contara, ou Maida. Em qualquer dos casos, não sabia
se haveria uma cena. Rose nunca tinha sido grande diplomata, e
sempre fizera eco dos pensamentos mais negativos de Maida.

Não era uma visita que Lily quisesse fazer, mas era perigoso que
Rose soubesse da sua presença em Lake Henry por outra pessoa.
Ir ali pessoalmente parecia a Lily a coisa mais decente a fazer,
enfrentar o leão no seu covil, por assim dizer.

Bateu suavemente na porta da frente. Os passos que ouviu um


minuto depois eram pesados. Não ficou surpreendida quando a
pesada porta de carvalho foi aberta pelo cunhado.
Art Winslow afirmava ter-se apaixonado por Rose no primeiro dia de
aulas, na primeira classe. Ele era nessa altura um rapazinho muito
doce, que crescera e se transformara num homem doce. O facto de
ser uma pessoa muito mais gentil do que Rose talvez tivesse sido
um problema, se ele não fosse um Winslow, mas a sua família era
proprietária da fábrica, o que Lhe dava um veículo para a
autoridade. Isso significava que podia deixar Rose assumir o papel
principal em casa, a única razão que Lily conseguia ver para que o
casamento deles resultasse. Art era o típico bom gigante.

Lily talvez não tivesse ficado surpreendida por vê-lo, mas ele ficou
claramente surpreendido ao vê-la, o que respondia a uma das suas
dúvidas. Hannah não dissera nada.

Sorriu, levantou a mão e acenou.

- Já tínhamos pensado se voltarias - disse ele, em voz afável. Entra.


Rosie? - gritou por cima do ombro. Depois explicou a Lily: - Ela está
com as miúdas.

- Pensei que já estivessem a dormir. Ta-talvez eu deva voltar noutra


altura.

- Não, não. De certeza que ela te quer ver. E as miúdas também. Art
Winslow era um bom homem. Era bom para Rose, bom para as
filhas, bom na fábrica. Mas ninguém podia dizer que fosse
perspicaz. A possibilidade de Lily poder não querer que toda a gente
soubesse do seu regresso não Lhe passou sequer pela cabeça.

Assim, Lily tentou dar-Lho a entender:

- Estou a tentar não dar nas vistas. E não queria ter de pedir às
miúdas para guardarem segredo.

- Elas adoram guardar segredos - insistiu Art, e Lily sabia que


Hannah, pelo menos, sabia guardá-los.
A luz do vestíbulo acendeu-se de repente. Rose estava na outra
ponta, com a mão no interruptor. Assim que viu Lily ficou
perfeitamente imóvel, e Lily ficou igualmente paralisada. O mesmo
cabelo escuro, a mesma pele pálida, as mesmas ancas estreitas e
seios generosos - olhar para Rose era como olhar para si própria ao
espelho. O cabelo de Rose era mais comprido, com um corte
simples e preso atrás das orelhas, e as suas ancas estavam
cobertas por calças feitas à medida, a indumentária de noite típica
dos jovens mais abastados de Lake Henry. Apesar disso, a
semelhança era notável.

- Bem, bem, olá - disse Rose, aproximando-se e parando ao lado do


marido. - A filha pródiga regressa. A cidade inteira não tem feito
outra coisa senão especular. Quando voltaste?

Lily pensou em mentir. Depois lembrou-se de Hannah, até mesmo


de Maida, e disse:

- Sábado.

- Sábado, e só hoje vens cá? É quarta-feira. Quem mais sabe que


regressaste?

- Estou escondida.

- A mãe já sabe?

- Sim.

- E Poppy?

- Também.

Rose suspirou e disse num tom magoado:

- Obrigadinha.

- Só estive uma vez com cada uma delas - disse Lily, de modo
razoável. - Não queria obrigar as meninas a terem de mentir se
alguém lhes fizesse perguntas. Pensei que já estivessem a dormir.

- Pensaste mal - murmurou Rose, e virou-se. E, claro, lá estavam os


três rostos à porta. - Venham dizer olá à vossa tia Lily.

As raparigas endireitaram-se e correram em frente - primeiro Ruth,


de seis anos, com Emma, de sete, nos seus calcanhares. Eram
duas rapariguinhas adoráveis, com cabelo escuro e encaracolado e
bonitas camisas de dormir compridas, às flores, que só deixavam
ver os dedos dos pés minúsculos. Hannah, com o mesmo tipo de
Tshirt larga com que Lily a vira em casa de Maida, parecia gorducha
e vulgar ao lado delas. Ficou para trás, mesmo depois de os
abraços estarem dados, e só se aproximou quando Lily Lhe
estendeu a mão.

- É bom ver-te, Hannah. Gosto muito da tua Tshirt - olhou para o


gato estampado na parte da frente. - Não tens nenhum gato, pois
não?

Hannah abanou a cabeça.

- Deus nos livre - interveio Rose. - Já tenho bastante trabalho a


tratar dela. Nem pensar em gatos.

- Os gatos tratam de si próprios - disse Hannah.

- Os gatos largam pêlo. Queres andar sempre cheia de pêlos?

Hannah não disse nada. Lily arrependeu-se de ter mencionado o


assunto.

Art disse às mais pequenas:

- Mostrem os dentes à tia Lily.

Elas abriram as bocas para mostrar os espaços vazios, à frente no


caso de Ruthie, de lado, no de Emma.
- Impressionante - disse Lily. Apertou a mão de Hannah. - Mas
aborrecido para ti, imagino. já passaste por isto.

Rose suspirou.

- Os dentes dela nasceram tortos. Vai pôr um aparelho dentro de


pouco tempo.

- Eu usei aparelho - disse Lily a Hannah, que ergueu as


sobrancelhas numa expressão interessada.

- Eu não - disse Rose. - Nem o Art. Por falar em dentes... - olhou

para as mais pequenas e apontou para a escada. - Vão lavar os


dentes. O papá vai com vocês, para ver se ficam bem lavados.
Preciso de

falar com a tia Lily.

- E a Hannah? - gritou Ruth.

- A Hannah tem dentes grandes para lavar - gritou Emma.

- A Hannah não precisa que vá ninguém com ela - disse Rose. Já


tem dez anos. Não posso estar a gritar com ela para fazer tudo. Os

dentes são responsabilidade dela. Se quiser ter dentes podres, é


com ela.

- Eu lavo sempre os dentes - disse Hannah, mas bem podia ter

poupado o fôlego, porque Rose estava a olhar para Art, transmitindo

Ordens silenciosas que tinham a ver com as duas mais pequenas.

No instante seguinte Art estava a juntá-las e a conduzi-las pelas

escadas. Hannah ficou ao lado de Lily. - Já acabaste os trabalhos de


casa? - perguntou Rose. Quando
ela fez que sim com a cabeça, disse: - Então vai lá para cima ler.

Tenho de conversar com a tua tia.

Lily abraçou-a.

- Vai - disse, em voz suave. - Conversamos melhor para a próxima -


viu a rapariga subir as escadas e pressentiu a existência de uma

dor. Perguntou a si própria se mais alguém se apercebia ou se


importava com isso.

Rose encostou-se à parede, ali mesmo no vestíbulo.

- Eu devia ter percebido que tinhas voltado. A mãe tem andado com
um humor terrível. Aliás, tem andado com um humor terrível desde
que esta história toda começou. Cabeçalhos nos jornais, fotografias,
telefonemas... tem sido horrível para nós, Lily. Ela ficou aterrorizada
quando saíste daqui e foste para Nova Iorque. Sabia que isso nunca
resultaria em nada de bom, mas nunca imaginou, nem nos seus
piores pesadelos, que seria assim tão mau. Neste momento, recusa-
se a ir à cidade.

- Recusa-se?

- Bom, só vai quando não pode evitá-lo. Está convencida de que


toda a gente fala e olha para ela, e isso deixa-a nervosa e, quando
está nervosa, descarrega em cima de mim.

Lily tinha dificuldade em acreditar nisso. Rose sempre fora o orgulho


e a alegria de Maida.

- Com quem mais é que ela pode gritar? - continuou Rose. Não
pode gritar com a Poppy, por isso grita comigo. Sou eu quem está
sempre presente. Sou eu quem toma conta dela.

- Ela é auto-suficiente.

Rose soltou uma risada amarga.


- Não tanto quanto pensa. Estou sempre a levar-Lhe comida ou a ir
à cidade buscar-Lhe coisas. Sim, é verdade que trata do negócio,
mas não foi criada para isso.

- Pelo menos está ocupada.

- Não está a ir para mais nova. Devia estar a relaxar. Devia andar
em viagem - o telefone tocou. - Devia estar a gozar a companhia
das netas.

- A Hannah não ficou com ela na outra noite?

Rose lançou-Lhe um olhar cortante.

- A Hannah não é uma criança cuja companhia dê muito gozo. Ainda


vai ser a minha morte.

- Porquê?

- Mau feitio - o telefone tocou de novo. - Teimosa. Gorda.

- Ela não é gorda.

- Está a caminho disso.

- Em breve vai ficar mais alta. Nessa altura emagrece. Tem um rosto
muito bonito.

O telefone tocou de novo.

- Podes atender, Art? - gritou Rose, depois olhou novamente para

Lily. - Porque voltaste?

Lily sabia que o tom cortante com que Rose falou podia ser ainda

um vestígio do tom com que gritara a Art, mas sem dúvida que Lhe

soava a indignação. No mesmo tom indignado, respondeu:


- Tenho uma casa aqui.

- Quanto tempo vais ficar?

- O tempo que for preciso.

- E se a imprensa te seguir até aqui? A mãe perde a cabeça.

- Não fiz nada de mal, Rose.

- Se ela perder a cabeça, quem sofre sou eu - olhou em volta

quando o marido desceu as escadas.

- Era a Maida - disse ele. - Dois dos trabalhadores estavam a

fazer trabalho nocturno no pomar quando a retroescavadora se


virou. Ela já chamou uma ambulância. É melhor eu ir até lá.

- Estão muito mal? - perguntoú Rose.

Art já estava a tirar o casaco do armário.

- Um deles, talvez. Mas ela está assustada.

- Também quero ir - disse Rose em voz baixa, e, pela primeira

vez, Lily viu preocupação.

- Eu fico com as meninas - ofereceu-se.

- Elas estão na cama - disse Art, estendendo a camisola a Rose. -


Nem sequer vão dar pela nossa falta. - Não se preocupem - disse
Lily, e fechou suavemente a porta

atrás deles. Sentindo-se pouco à vontade, demasiado forasteira


para

andar de um lado para o outro na casa da irmã, atravessou o


vestíbulo até às escadas e sentou-se no último degrau. Com o
queixo

apoiado nas mãos, escutou, mas não ouviu qualquer som, quer do

andar de cima quer do exterior. Não estava à espera de sirenes,


claro, ali não era preciso abrir passagem em estradas que já
estavam

vazias. Imaginou que a tripulação da ambulância devia estar nesse

momento a ser alertada e a subir para o veículo.

Ao ouvir um risinho distante, pensou em subir as escadas para ir

ver as raparigas. Mas era um som feliz. Não havia nele qualquer

conhecimento de acidentes. A sua presença, em vez de Rose ou de

Art, podia perturbá-las. Era melhor deixá-las em paz.

As escadas rangeram e Lily olhou para trás. Hannah estava no


degrau de cima, parecendo hesitante e insegura. Quando Lily a
chamou com um gesto, a sua hesitação desapareceu. Com passos
rápidos e ligeiros, correu pelas escadas e sentou-se ao lado de Lily.

Ao princípio, nenhuma delas falou. Finalmente, num murmúrio


suave e com um sorriso muito tímido, Hannah disse:

- Ainda bem que vieste.


Por uma fracção de segundo, ao olhar para aquele rosto - sim, um
rosto bonito - Lily sentiu-se também muito contente por ter vindo.

Em termos de acidentes, este ficava a meio da escala. Nenhum dos


trabalhadores estava gravemente ferido, embora ambos tivessem
sofrido fracturas e contusões suficientes para ficarem afastados do
resto da colheita. Uma vez que o pomar fazia dois terços do seu
rendimento anual durante os meses de Outubro e Novembro, a
perda era grave. Para piorar o problema, um dos trabalhadores
feridos já fazia parte da mobília do lagar.

Foi por esta razão que Lily se levantou de madrugada, no dia


seguinte, vestiu as calças de ganga e as suas roupas mais quentes,
e conduziu de novo à volta do lago. Desta vez subiu a larga estrada
até ao cimo, virou à direita depois da casa grande e seguiu a curva
do caminho.

O lagar de sidra era um edifício baixo de pedra, coberto de hera e


rodeado de abetos, na verdade bastante bonito, tendo em conta que
era um local de trabalho duro. O interior tinha sido esvaziado e
reconstruído vinte anos antes, para escorar a estrutura e permitir a
adição de equipamento novo. No entanto, para além de uma
unidade de refrigeração maior e mais eficiente, e de um sistema de
engarrafamento mais rápido, o processo de fabrico de sidra não
mudara muito desde que a família Blake engarrafara o primeiro litro,
naquele preciso local, quatro gerações antes.

Assim que Lily entrou no lagar de sidra, foi envolvida pelo cheiro
doce de maçã. Em criança, costumava ir ali muitas vezes, intrigada
pelo funcionamento da prensa de maçãs e ansiosa por ajudar.
Quando tinha dezasseis anos e já era suficientemente crescida para
poder ajudar, estava demasiado ocupada com a música e a escola.
Além disso, o pai acreditava que os pomares eram trabalho para
homens.

Visualizou-o, inesquecível no seu comprido avental de borracha e


botas de borracha de cano alto, a pescar uma maçã de qualidade
inferior da tina de lavagem e a atirá-la para o lado, conduzindo as
restantes através da água em direcção ao elevador que as levaria
até à máquina trituradora. Outro trabalhador, de pé numa plataforma
a um metro e meio do solo, conduzia-as ao longo do tapete rolante,
para dentro da trituradora. Dois outros homens estavam de pé em
plataformas semelhantes, dispondo camadas de grades, panos e
puré de maçã, umas por cima das outras, até haver onze camadas
no total - sempre onze, ela lembrava-se disso.

- Oh, céus - disse uma voz atrás dela, e Lily virou-se para o rosto
surpreendido de Oralee Moore. Oralee era a viúva do capataz de

George. Era irónico, tendo em conta a opinião que George tinha


sobre as mulheres, que Oralee fosse agora a capataz de Maida. Alta
e robusta, com pele pálida e cabelo grisalho e crespo, ela devia
estar perto dos setenta anos, mas estava vestida da mesma
maneira do que Lily, pronta para trabalhar.

Lily gostava de Oralee. Mesmo nos piores momentos dos velhos


tempos, ela sempre tivera um sorriso amável para Lily, um olhar
compreensivo. Lançou-Lhe agora ambas as coisas - mas o olhar de
Lily desviou-se rapidamente para o jovem que estava a entrar no
lagar atrás dela.

Nesse instante, Lily apercebeu-se do que tinha feito. Viera aqui para
trabalhar, por muitas razões, sendo a mais urgente o facto de

Maida precisar de ajuda, mas fora uma reacção instintiva, com


pouco tempo para ponderar ou hesitar. Oralee não era motivo de
preocupação; era leal e discreta. Mas o jovem atrás dela era apenas
um entre os muitos que veriam Lily no decorrer de um dia de
trabalho.

Alguns viviam no dormitório. Outros viviam na cidade. Esses


voltariam para casa depois do trabalho e espalhariam a notícia. O
segredo dela deixaria de o ser.

Depois de um momento de pânico inicial, relaxou de súbito, um


pouco surpreendida ao perceber que não estava arrependida. Ainda
sentia um aperto no estômago quando recordava a perseguição da

imprensa, mas em Boston tivera de a enfrentar sozinha. já não


estava em Boston. Estava em Lake Henry. Nascera e fora criada ali
e, se a cidade a tratara mal uma vez, agora era altura de a
compensarem disso. Estava farta de se esconder.

Além disso, já não havia nada a fazer.

- Como estão o André e o Jacques? - perguntou, referindo-se aos

homens feridos.

Oralee fez uma careta.

- Estarão em casa dentro de dois dias, sentadinhos no dormitório,


todos contentes por estarem de folga e a receber - fez sinal ao

jovem para entrar no lagar. - Este é o Bub. É de Ridge.

Bub era alto, sólido, e não tinha mais de dezoito anos. Fez tanta

questão de não olhar para Lily, que ela teve a certeza de que ele

sabia precisamente quem ela era. Confiando em que Oralee Lhe


diria

tudo o resto que ele precisasse de saber, saiu para esperar por
Maida.

Era a manhã mais fria desde que chegara a Lake Henry. A relva na

colina estava coberta por uma fina camada branca, algo entre o
orvalho e a geada. Lily encostou-se à parede de pedra coberta de
trepadeiras, puxou as mangas por cima das mãos e cruzou-as
debaixo dos

braços. Cada inalação trazia uma lembrança tonificante do Outono.


Cada exalação era uma leve nuvem branca.

Interrogou-se sobre o que traria o Post naquele dia. Quando saíra

de casa, ainda era muito cedo para ligar a John. Pensou se ele já

estaria acordado, se estaria no lago ou a caminho da cidade. "A


caminho da cidade", decidiu. A deliciar-se com o Lake News da
semana.

Teria ele publicado os trabalhos que ela escolhera? Fora divertido

seleccioná-los, pensar no prazer que três estudantes teriam ao ver o

seu trabalho em letra de imprensa. Supunha que este era o lado


bom

do emprego de John, uma coisa positiva, para variar.

Maida apareceu nessa altura, vinda da casa grande, e fez a curva

do caminho de cabeça baixa. Lily endireitou-se, mas a mãe parecia

perdida nos seus pensamentos. Estava quase junto dela quando


finalmente ergueu os olhos. Surpreendida, parou.

- Tens um homem a menos - disse Lily. Quando Maida não


respondeu, acrescentou: - Eu posso ajudar.

Maida continuou calada, e Lily temeu que ela pudesse recusar a

sua ajuda. Essa seria a derradeira punição, o derradeiro insulto.

O veredicto continuou em dúvida quando Maida recomeçou a

andar. Só quando abriu a porta e se desviou para Lily passar é que

esta teve a sua resposta.


As máquinas já estavam a aquecer - o redemoinho de lavagem, o
tapete rolante, a trituradora, a prensa - os motores trabalhando no
velho ritmo familiar. Lily pensou novamente no pai. Era difícil evitá-
lo, ele era uma parte tão indelével da cena... Agora era Maida que
vestia o avental de borracha, mas a presença dela era quase
chocante. No entanto, parecia perfeitamente à vontade no seu papel
de comando.

Lily trocou o casaco por um oleado com capuz, calçou botas e luvas
de borracha e subiu para a frente de Bub, para a plataforma ao lado
da prensa. Não Lhe disse que nunca tinha feito isto, porque não era
o que sentia. Observara o processo centenas de vezes em criança,
e, apesar de os velhos panos de serapilheira terem sido substituídos
por outros de nylon, as grades e a técnica de dobragem eram
exactamente as mesmas.

O que não queria dizer que não sentisse apreensão. Mas havia
também expectativa. Esperara muito tempo para fazer isto. Na sua
mente, era tanto uma brincadeira como um trabalho. Poucos
minutos depois, a grade de baixo estava no lugar, com um pano por
cima, as pontas caídas para os lados, e as primeiras maçãs
passavam pela trituradora e caíam no grande funil por cima delas.
Bub puxou uma alavanca, apenas o suficiente para deixar cair a
quantidade certa de puré sobre o pano, o que aconteceu com um
splat que fez Lily rir, e ela deitou de imediato mãos ao trabalho.

Dobrou o canto esquerdo do pano sobre o puré, esperou que Bub


dobrasse o canto esquerdo do seu lado; depois dobrou o canto
direito e esperou que Bub dobrasse o seu canto direito. Enquanto
ele endireitava e alisava

o pano, ela pegou noutra grade, uma estrutura quadrada idêntica,


com um metro de lado. Depois de a ter colocado por cima da
primeira, agora completamente embrulhada, Bub esticou um
segundo pano sobre ela, puxou a alavanca, e a próxima porção de
puré caiu. Dobraram alternadamente os quatro cantos do pano,
endireitaram tudo, acrescentaram outra grade e outro pano, e
deixaram cair mais puré.
A pilha de grades e panos cresceu. Quando eram onze, no total,
encimados por uma grade extra, empurraram toda a pilha para o
lado, sobre uma calha, até estar centrada sob a grande prensa
metálica. Bub acrescentou blocos de madeira entre a grade no topo
e a prensa, para firmá-la melhor, Maida puxou a alavanca que
elevava as pilhas, e o que fora antes um ruído surdo, em segundo
plano, tornou-se num som rítmico. Pouco depois, o sumo pingava do
pano, escorrendo

pelos lados da pilha para o reservatório por debaixo desta. Lily


endireitou-se então, olhou em volta com surpresa e satisfação, e
suspirou. Conseguira! Sentia-se verdadeiramente excitada.

Maida estava voltada para o outro lado, a seleccionar de novo as

maçãs estragadas da tina de lavagem, mas Oralee estava a


observá-la.

Lançou-Lhe um sorriso compreensivo, depois fez-Lhe sinal para


voltar

ao trabalho e o processo recomeçou. Desta vez, antes que a pilha


de

Onze pudesse ser empurrada para debaixo da prensa, a pilha


anterior

teve de ser removida - as borras de maçã atiradas para a


retroescavadora

na porta lateral, os panos colocados numa pilha para reutilizar, as


grades encostadas à parede.

Lily perdeu a conta ao número de pilhas que construíram,


prensaram e desmontaram. A dada altura, Maida ligou a bomba que
transportava a sidra, do reservatório para a grande unidade de
refrigeração no lado mais distante da sala. Mais tarde, usou o
walkie-talkie para pedir mais maçãs, depois conduziu a pequena
empilhadora para erguer os caixotes até à tina de lavagem. Noutra
altura, ligou uma mangueira e lavou os pedacinhos de maçã e sumo
espalhados pelo chão de cimento, empurrando-os para um
escoadouro central.

O lagar de sidra era um local limpo. George era rigoroso em relação


a isso, e Maida dera continuidade ao hábito. No entanto, não

havia lavagem que conseguisse eliminar o cheiro a maçãs frescas e


a

sumo doce. Este impregnava as paredes, o chão, as máquinas. Lily

inspirou-o profundamente. Era um aroma embriagante, que trazia à

memória coisas boas - o que era admirável, quando pensava bem

nisso. Na sua maioria, as recordações de Lake Henry que trazia


consigo desde que partira eram negativas. Mas agora estava a
recordar

coisas como estar sentada naquela mesma sala, com Poppy e


Rose,

encolhidas no canto perto do frigorífico, a mastigar maçãs que


George Lhes dava às escondidas.

Quando Maida fez uma pausa a meio da manhã, Lily estava


demasiado entusiasmada para se sentir cansada. Lavou o oleado,
pendurou tudo e dirigiu-se à casa grande. Podia ter utilizado a casa
de

banho do lagar, mas o jornal da manhã não estava lá.

Estava muito bem dobrado em cima da grande mesa de madeira na


cozinha de Maida, como uma cobra enrolada e silenciosa, sem
chocalho que avisasse se era venenosa ou não. Sentindo o princípio
de um aperto na boca do estômago, Lily passou os olhos pela
metade de cima da primeira página. Não havia nada, nem, quando
virou o jornal, na metade inferior. E por dentro?

Em vez de abrir o jornal para verificar, dirigiu-se ao telefone e, por


um minuto, a sua mão pairou sobre o aparelho. "Telefona à Cassie",
ordenava o seu cérebro. Cassie é que era a sua conselheira
jurídica. Fora ela quem enviara o pedido de retractação e seria ela
quem estaria certamente à espera de uma resposta.

Mas não sabia de cor o número de Cassie. E sabia o de John.


Tentou apanhá-lo primeiro em casa, desligando depois de três
toques para não deixar que fosse Poppy a atender. Depois marcou
rapidamente o número dos escritórios do Lake News. O telefone
tocou também três vezes. Desapontada, estava prestes a desistir
quando ele atendeu, num tom muito profissional.

- Lake News, fala Kipling.

- Olá - disse ela, um pouco ofegante.

A voz dele tornou-se mais calorosa.

- Olá. Estranhei a falta do teu telefonema esta manhã.

- Saí cedo. A minha mãe precisa de ajuda. Faltava-Lhe um homem


no lagar.

- Já soube do acidente.

Lily sorriu.

- Nem quero saber como. - Depois, cautelosamente, disse: - Ainda


não folheei o jornal.

- Não vale a pena. Também não traz nada hoje.

Ela sentiu desilusão.

- Nada?
- Absolutamente nada.

- Ainda me devem um pedido de desculpas.

- A Cassie vai ter de o arrancar a ferros. - Achas que já deixaram o


meu apartamento?

- Provavelmente. Houve um homicídio ontem à noite. Um activista


do Partido Republicano local foi encontrado apunhalado na sua casa
em Back Bay. As acusações estão descontroladas, apontando
alternadamente para duas ex-mulheres, uma amante, um sócio
ressentido e a máfia. É muito terreno para cobrir. Os jornais vão
precisar de todas as suas tropas.

- Então, se eu regressar a Boston, serei outra vez um zé- ninguém?


- perguntou ela, tentando brincar com o assunto, mas ele percebeu.
- É difícil dizer. Estás com pressa para voltar?

- A minha vida está lá - disse ela. - O meu apartamento, as minhas


roupas, o meu piano, o meu carro... - mas essas coisas pareciam-
Lhe distantes naquele momento, mais palavras do que
necessidades, prin cipalmente quando Maida entrou na cozinha.
Parecia ostentar uma expressão de desaprovação, o que não era
nada de novo. Lily não duvidava de que a mãe sabia com quem ela
estava a falar, só não sabia se ela já estava a ouvir a conversa há
muito tempo.

- É melhor eu ligar à Cassie - disse a John. Desligou e pediu a


Poppy para estabelecer essa ligação, enquanto Maida enchia a
chaleira.

Foi o estagiário de Cassie que atendeu, mas ela veio logo de


seguida ao telefone.

- Vamos dar-Lhes uma semana - disse, antes que Lily pudesse


perguntar. - Uma semana. Depois damos o passo seguinte.

- E qual é?
- Entramos com um processo por difamação de personalidade. Um
processo significava um julgamento, o que duraria para sempre. Lily
não gostara dessa ideia desde o princípio. Agora, pela primeira vez,
com o seu nome ausente dos jornais de Boston há já dois dias
seguidos, perguntou a si própria o que aconteceria se os dois dias
se tornassem três, depois cinco, depois dez. Perguntou a si própria
se as pessoas se esqueceriam. Se assim fosse, talvez o melhor que
tinha a fazer fosse deixar o assunto morrer.

Por outro lado, se estava destinada a ser alvo de olhares de cada


vez que saísse de casa, ou seguida de cada vez que fosse
trabalhar, ou impedida até de encontrar emprego, não podia
regressar a Boston. As suas alternativas seriam entrar com o
processo, ou começar uma nova vida, incógnita, algures, ou ficar ali.

Assim, até era bom que os trabalhadores do pomar a vissem e


espalhassem a notícia do seu regresso. Precisava de saber com o
que podia contar.

Anna Winslow era a matriarca da família têxtil local. Há muito que


passara a gestão diária da fábrica ao filho, Art, mas mantinha um
lugar na Direcção e um pequeno gabinete ao lado do dele. Os
Têxteis Winslow eram a sua vida há mais anos do que ela gostava
de contar. Envolvera-se pela primeira vez com o funcionamento da
fábrica quando o marido, Phipps, começara a envolver-se com as
bonitas jovens tecelãs no horário de trabalho, e mantivera-se
envolvida por amor à fábrica. Não tinha qualquer ego. Não se
importava que Phipps recebesse os louvores pelas ideias
progressivas, apesar de ser ela a principal força por detrás das
mesmas.

Phipps estava agora reformado. De vez em quando, passeava-se


pela fábrica e barafustava para fingir que ainda mandava. Mas, na
maior parte do tempo, passava os seus dias a trabalhar com telas e
óleos, produzindo quadros monstruosos de que só ele gostava e
que enchiam agora um celeiro enorme atrás da casa. Anna estava a
pen sar em construir um segundo celeiro para o excesso. Não
esperava que ele alguma vez vendesse alguma pintura, mas era
melhor Phipps pintar do que andar na má vida.

Art era muito mais filho de Anna que de Phipps. Embora tivesse
apenas trinta e um anos, fora criado na fábrica e conhecia bem o
seu funcionamento. Anna confiava nele para saber quando era
preciso substituir uma máquina ou pôr de lado um design
ultrapassado. Confiava no seu jeito com os empregados e
accionistas, e acreditava que, se alguém seria capaz de salvar uma
pequena fábrica têxtil na era dos conglomerados, esse alguém era
Art. Não precisava de o supervisionar para saber que ele faria o que
era mais correcto.

Isso deixava-a livre para apreciar os sons do tear, o cheiro da lã, a


luz reflectida através das clarabóias do tecto, a água que corria sob
a pedra envelhecida. Raramente se passava um dia sem que ela
fosse vista a passear entre os teares, a conversar com os tecelões,
ou debruçada sobre o ombro de um desenhador, num
companheirismo agradável. Ela própria já concebera muitas peças
de tecido, e até aprendera a fazê-lo por computador.

Anna era uma mulher rechonchuda, com um bom gosto para se


vestir que conseguia anular o seu tamanho. Com as suas túnicas de
fios únicos, lenços de padrões vistosos, saias largas das melhores
fibras, ela servia de montra móvel para os produtos da fábrica. Art
falava de números, com organigramas e balanços; Anna falava de
estilo sem dizer uma palavra. Tinha aquele tipo de charme que
fechava negócios, frequentemente durante almoços, pois Anna apre
ciava muito as suas refeições. Com Phipps encafuado no celeiro,
andava sempre à procura de companhia para almoçar. Duas vezes
por semana, podia haver compradores na cidade; noutro dia seria
um funcionário que fazia anos. Naquela quinta-feira, não havia
ninguém. Foi por isso que, quando John telefonou a convidá-la,
aceitou com todo o prazer.

- As quintas-feiras são os dias de que menos gosto - disseLhe,


assim que se sentaram na mesa junto à janela, no restaurante de
Charlie.
- É um dia morto, não é excitante como o princípio da semana, nem
conclusivo como o final da semana. Estou tão contente por me ter
telefonado - os seus olhos brilharam. Inclinou-se para a frente,
borbulhando de excitação contida. - Soube da novidade mesmo
antes de sair do escritório - baixou a voz. - A Lily Blake está de
volta.

John ficou surpreendido. Avisara Lily de que a notícia acabaria por


se saber, mas não ouvira falar de nenhuma fuga de informação.

- Como sabe?

Anna sorriu.

- O marido de uma das nossas tecelãs, a Minna DuMont, trabalha


no pomar. Viu a Lily no lagar de sidra esta manhã. Ela estava a
trabalhar com a Maida. A trabalhar com a Maida - repetiu,
maravilhada. - Telefonei à minha nora para confirmar, e ela disseme
que é verdade. A trabalhar com Maida? Está a imaginar?

- Houve um acidente...

- Eu sei, e Maida precisava de ajuda, mas ela e a Lily nunca foram


pessoas de trabalhar lado a lado. Não conversaram uma única vez
durante a festa de casamento do Art e da Rose. Os problemas entre
elas já são muito antigos.

John era da opinião que, a cavalo dado, não se olha o dente. Anna
estava praticamente a suplicar-Lhe que perguntasse. Esperou
apenas o tempo suficiente para Charlie tomar nota do pedido, e
depois disse:

- Já conhecia bem os Blake, antes de o Art casar com a Rose?

- Há anos que nos deslocamos nos mesmos círculos... embora só


Deus saiba porquê - acrescentou Anna entre dentes - uma vez que
o Phipps e o George, que Deus o tenha, eram muito diferentes. Mas
Lake Henry é uma cidade pequena, eles tinham o pomar e nós
tínhamos a fábrica. A Maida dava muitas recepções, nos velhos
tempos. A casa era linda, a comida deliciosa. Mas não víamos a Lily
muitas vezes. Ela estava sempre em segundo plano, excepto na
igreja. Quando cantava, tinha uma voz de anjo. Mas a falar?
Pobrezinha, gaguejava tanto! A Maida ficava horrorizada.

- Horrorizada pela Lily, ou por ela própria?

As faces rechonchudas de Anna coraram.

- Ambas as coisas, infelizmente - murmurou. - Ela estava


convencida de que as pessoas a culpavam pela gaguez da Lily.

"E com muita razão", estava John a pensar, quando Anna disse:

- É completamente físico. Sabia?

Ele não sabia. Não sabia muito sobre a gaguez, excepto que a
pessoa que ouvia um gago a falar muitas vezes sofria tanto como o
próprio gago. Gaga, no caso.

- Tem a ver com a coordenação dos músculos da fala - prosseguiu


Anna. - Não quer dizer que não haja emoções envolvidas. A tensão
piora o problema. A pessoa fica distraída, e não consegue
concentrar-se em tentar controlá-lo. Mas a raiz do problema é física.

- A Lily sempre gaguejou?

- Sempre. Começou a falar tarde, não disse grande coisa até aos
quatro ou cinco anos, e mesmo então falava muito pouco,
provavelmente porque era difícil para ela. Por isso, ao princípio, não
se aperceberam do problema, e depois pensaram que fosse algo
que se resolveria por si próprio, mas, quanto mais a faziam falar,
pior ficava. Era de partir o coração, e quando Maida ralhava com ela
por gaguejar... - Anna suspirou e recostou-se.

- Ralhava com ela?

- Ralhava, abanava o dedo, pedia desculpa a toda a gente que a


ouvia. John estremeceu.

- Porque não procuraram ajuda?

- Acabaram por procurar - Anna fitou-o nos olhos. - A Maida também


não gostou muito disso.

- Porquê?

- Porque confirmava a existência de um problema.

- Mas se toda a gente já sabia...

- A terapia dava-Lhe um cunho oficial. A terapia tornava o problema


grave. A Maida queria que as flores Blake fossem perfeitas e, de
repente, havia uma delas que não era, de uma forma muito pública
e óbvia. Não admira que ela tenha ficado tão perturbada com esta
história de Boston. A mesma flor Blake revela-se outra vez
imperfeita, de uma forma muito pública e óbvia... Não - acrescentou
em tom cortante - que eu tenha dito isso àquele repórter - ergueu os
olhos e sorriu quando Charlie chegou com a comida.

Anna pedira uma salada Cobb cheia de coisas boas e coberta por
uma dose generosa de molho de queijo azul. Em comparação, o
hambúrguer de queijo e bacon com batatas fritas de John parecia
insípido.

Ofereceu-Lhe uma batata frita, que ela aceitou graciosamente.

- Que repórter? - perguntou.

Ela acabou de mastigar a batata e limpou os dedos ao guardanapo.

- O Sullivan. Tem telefonado quase todos os dias desde que isto


rebentou.

- Ainda continua a telefonar? - John estava estupefacto, e


vagamente alarmado. Terry devia ter largado a história assim que o
jornal publicara o pedido de desculpas ao cardeal. Se continuava a
telefonar, isso significava que andava atrás de alguma coisa.

- Ainda - confirmou Anna. - Põe-me a falar de outras coisas, como


se me achasse tão fascinante, que não conseguisse afastar-se do
assunto. Conduz a conversa para a fábrica, e sugere que aí há
potencial suficiente para três artigos, mas eu conheço esse tipo de
homem. Vivi com um homem de falinhas mansas anos suficientes
para conhecer a falsidade quando a oiço. Ele está a tentar penetrar
nas minhas defesas, apanhar-me desprevenida. Está a tentar levar-
me a trair um dos nossos - agitou delicadamente o garfo. - Tenta
introduzir perguntas disfarçadamente.

- Sobre a Lily?

- E sobre a Maida. Anda à procura de vermes debaixo das pedras,


mas, meu Deus, não há ninguém que não tenha feito alguma coisa
na vida de que não se orgulhe, não há ninguém que não tenha
alguma pequena nódoa - pousou o garfo, apoiou os cotovelos na
mesa e sorriu. - Qual é a sua?

John tinha muitas pequenas nódoas, e algumas bem grandes, mas


nesse instante, quando pôs de lado a sua preocupação com Terry,
houve uma que Lhe veio de imediato à cabeça.

- Chamar filho-da-mãe ao meu pai. Tinha doze anos. Ele chamou-


me menina, porque a minha voz ainda não tinha mudado. Não há
muita coisa pior que se possa chamar a um rapaz de doze anos.

Por isso eu chamei-Lhe filho-da-mãe. Ele ficou muito calado e saiu


de casa. Esteve três dias fora. O que eu não sabia na altura era
que, primeiro, ele era de facto um filho-da-mãe, e segundo, a minha
mãe tinha-Lhe chamado o mesmo numa discussão no dia anterior.

- E você tinha-a ouvido?

- Não. Foi pura coincidência, mas calhou numa altura péssima -


sorriu para Anna. - E qual é a sua nódoa?
Os olhos dela cintilaram.

- Cosi os fechos das calças do Phipps. De todos os pares que ele


tinha no guarda-roupa. Foi digno de se ver, ele a debater-se com um
par de calças atrás do outro.

John não precisava de perguntar porquê.

- Quem os descoseu?

- Eu não fui - disse ela com orgulho. - Pensei que, já que ele
ganhava a vida a trabalhar com tecidos, bem podia tratar disso
sozinho... e foi o que ele fez, com alguma contrição. Mas
atençãoapontou para John com o garfo - se disser a alguém que eu
Lhe contei isto, falo com o Armand e ele corta-Lhe o seu bónus
anual. Esse é o homem de falinhas mais mansas que eu conheço.

- O Armand?

- Você não pode saber - disse, com um gesto largo. - Não é mulher -
espetou um pedaço de presunto. - Mas percebeu o que eu queria
dizer em relação ao outro assunto. Todos temos nódoas. Se não
tivéssemos, a palavra "segredo" não existiria... para não mencionar
que, mesmo que contássemos a alguém, não seria muito grave.

Gostamos uns dos outros. Respeitamo-nos uns aos outros. Mas


aquele repórter? - pôs o presunto na boca e abanou lentamente a
cabeça.

A única explicação que john via, era que Terry estava a tentar
encontrar bases para reforçar o ângulo da culpabilidade de Lily. Mas
ele estava a pisar território que John considerava seu, em particular
agora que ele e Richard Jacobi tinham um acordo. Quando voltou
ao escritório, depois de almoço, estava num estado de espírito
lutador, mas, antes de poder decidir o que fazer a esse respeito,
Armand telefonou.

A sua voz estava animada pela excitação.


- A Lily Blake está na cidade. Acho que devias pôr-te a caminho
para conseguir um exclusivo.

John pensou rapidamente.

- O jornal acaba de sair. Só haverá outra edição para a semana.

- Sim, bom, lançámos um suplemento especial quando esta cidade


Republicana se tornou Democrata, nas últimas eleições. Podemos
fazer um suplemento especial agora.

- Não me parece que esta história seja a mesma coisa.

- Que se passa? Estou a dizer que pagarei as despesas.

- Mas sou eu o responsável pelo controlo de qualidade - insistiu


John. - O que quer que eu ponha no suplemento especial? Quer que
faça uma nova versão de tudo o que já todos os jornais publicaram
na última semana? O que há de novo na história?

- Não ouviste o que eu disse? - berrou Armand. - Ela voltou. Isso é


notícia. Por amor de Deus, John, isto é jornalismo básico. As
pessoas da cidade vão querer saber porquê, por quanto tempo, o
que ela está a fazer, onde está instalada.

- Toda a gente da cidade saberá tudo isso antes do final do dia


respondeu John calmamente. - A única coisa que esse suplemento
conseguirá é marcar pontos junto da imprensa dominante.

- E o que há de errado com isso? Se tu não a entrevistares, alguém


a entrevistará. Vá lá, John - suplicou. - Qual é o teu problema? Ela é
a nossa rapariga. Esta é a nossa história.

- Certo. Ela é a nossa rapariga, e nós protegemos os nossos. A


nossa história deve ser que não há história nenhuma, porque era
assim que as coisas estavam da última vez que ouvi.

John desligou o telefone sentindo-se traiçoeiro em dois aspectos. O


primeiro envolvia Armand e aquilo que podia, de facto, ter dado uma
boa história para o Lake News. O segundo envolvia Lily e tinha mais
a ver com as intenções futuras de John do que com qualquer coisa
que pudesse escrever no futuro imediato. Gostava de Lily. Quanto
mais sabia sobre ela, mais a admirava. Quanto mais a admirava,
pior se sentia em relação ao seu livro. Alguns diriam que ele estava
a explorá- la. Ele preferia pensar que estava apenas a estudá- la,
mas achava ambas as hipóteses vagamente perturbadoras.

Assim, recorreu ao estado de espírito lutador, que ainda não tinha


desaparecido completamente, e concentrou-se em Terry Sullivan.
Num lado do computador pôs a lista de dicas que Jack Mabbet Lhe
dera. No outro, o seu ficheiro, que estava cada vez maior. Vários
cliques e uma dúzia de respostas depois, estava ligado a uma base
de dados que, através da morada actual de Terry, Lhe devolveu o
seu número de Segurança Social, a renda que pagava
mensalmente, dois números de contas bancárias, quatro números
de cartões de crédito, e dez outros locais de residência, num total de
quatro Estados, ao longo de um período de vinte e três anos.

John estudou estas dez moradas. As três mais recentes eram na


área de Boston, perfazendo um total de quatro mudanças nos doze
anos desde que Terry trabalhava para o jornal. john não sabia se ele
teria sido capaz de empacotar todas as suas coisas e mudar tantas
vezes de casa, mas quatro mudanças em doze anos não
despertavam grandes suspeitas. Sete mudanças nos onze anos
anteriores já era um pouco mais estranho. Estudou-as, uma de cada
vez.

As primeiras duas moradas eram residências universitárias. john


reconheceu a morada da Pensilvânia. Isso explicava dois anos,
ficando nove por resolver.

Os dois apartamentos seguintes tinham sido no Connecticutum em


Hartford, outro num subúrbio próximo. Estas cobriam os quatro anos
imediatamente após a universidade, quando Terry fizera trabaLho de
freelancer para vários jornais locais.
Mudara-se para Rhode Island quando Lhe ofereceram a sua
primeira posição estável. Durante os cinco anos em que lá esteve,
viveu em três moradas diferentes, todas a curta distância de
Providence.

John girou a cadeira e olhou para o lago. Recostou-se, passou os


dedos pelos lábios, tentando pensar em todas as razões que
podiam levar um homem a mudar-se com tanta frequência.
Conhecendo Terry, provavelmente não conseguira dar-se bem com
senhorios, vizinhos, companheiros de casa. O homem podia passar
de encantador a cáustico de um momento para o outro.

Psicótico? Possivelmente. Esquizofrénico? Possivelmente. Também


era possível que fosse mentalmente são, apenas motivado pelos
seus demónios privados.

John estava a pensar quais poderiam ser esses demónios, e como


encaixar onze apartamentos em vinte e três anos com o ódio pelo
cardeal, quando o telefone tocou.

- Lake News. Fala Kipling.

- Kip! - era Poppy. - Não tinha a certeza se já terias voltado. O Terry


Sullivan está a ligar para ti. Queres atender?

Por uma fracção de segundo, John sentiu-se culpado - como um


rapazinho apanhado em flagrante, como se Terry soubesse
exactamente o que ele estivera a fazer e a pensar. Depois percebeu
que isso era impossível e que, mesmo que não fosse, Terry fizera
praticamente o mesmo em relação a Lily.

Com esse pensamento, a raiva voltou.

- Eu atendo - disse a Poppy. Segundos depois, num tom mais frio,


disse: - Que se passa, Terry?

- Ouvi dizer que ela voltou.


John escolheu as palavras com cuidado. Calculando que seria
demasiado óbvio perguntar quem era "ela", disse:

- Não ouvi dizer nada. Quem é a tua fonte?

- Tenho dúzias de fontes, algumas pessoas aqui, algumas pessoas


ali: Podes confirmá-lo, sim ou não?

- Não posso confirmar nada - disse John, porque era verdade.


Estaria a trair Lily se o fizesse. - Porque perguntas? A história
acabou. já se provou que estavas errado.

- Não. O jornal cedeu às pressões da Igreja. Eu continuo a manter a


minha história.

John estava incrédulo.

- A manter o quê? Tudo o que tinhas eram provas circunstanciais, e


fracas, para dizer o mínimo. Há alguma razão para isto? Tens algum
ressentimento contra o Rossetti?

- Não preciso de ter nenhum ressentimento para perceber que


alguma coisa cheira mal. Ele é um sedutor. Ele e a Lily Blake eram
demasiado íntimos para que a relação entre ambos fosse inocente.

- Encontraste de repente alguma testemunha ocular que te dissesse


que não era?

- Não, mas estou à procura.

- Estás é a aborrecer pessoas como a Anna Winslow, mas ela não


te vai dizer que a Lily Blake estava a ter um caso com o cardeal
Rossetti.

- Sabias do casamento?

- Claro. O filho dela é casado com a irmã da Lily.

- Não estou a falar da Anna - disse Terry. - A Lily foi casada.


John nunca ouvira falar disso. Nem qualquer outra pessoa da
cidade, incluindo - seria capaz de o apostar - a família de Lily. já
tinham sido publicados demasiados segredos. Se Lily tivesse sido
casada, Poppy ter-Lhe-ia contado.

Ficou em silêncio um segundo a mais do que devia.

- Não sabias - vangloriou-se Terry. - Aí estás tu, na cidade natal


dela, e não sabias. Foi uma coisa rápida, no Verão antes de ela ir
para a universidade. O tipo era finalista, estavam ambos a estudar
no México. Um mês depois de regressarem ela anulou o casamento.
Desta vez tenho provas, John.

- E o que vais fazer com elas? - perguntou John, revoltado. O jornal


vai publicá-las?

- Não...

- Porque a história acabou - interrompeu. - Porque tu já


embaraçaste o jornal uma vez e não vão deixar que o faças de
novo. Porque um casamento anulado há uma data de anos não tem
absolutamente qualquer relevância para nada nem para ninguém
agora!

- Isso ainda está para se ver - disse Terry, e John sentiu subitamente
uma forte pontada de ódio.

- Nem... penses... em tentar - avisou, sentado na beira da cadeira. -


Já Lhe fizeste mal suficiente. Foi um erro da primeira vez,
possivelmente até difamação. Se voltares a fazê- lo, eu próprio vou
atrás de ti.

- Tu? - Terry riu-se. - Essa é boa. Não tens tomates para vir atrás de
mim ou seja de quem for. Estás com inveja, o teu problema é esse.

Eu escrevo melhor do que tu alguma vez conseguirás escrever. Eu


escavo e tu não te mexes. Eu encontro e tu babas-te. Eu estou aqui
e tu estás aí. Sabes uma coisa? Acho que ela podia estar aí mesmo,
na tua cidade, e nem sequer saberias!Já tiveste o que é preciso
para ser um bom jornalista, John, mas perdeste-o. Perdeste-o para
sempre.

John esperou.

- Mais alguma coisa?

- Não, era só isso. - Quase para si próprio, mas num tom


consternado e aborrecido, Terry murmurou: - Isto é uma perda de
tempo. Uma perda de dinheiro - e desligou.

John passou a noite a pensar em Lily. Ao nascer do dia, sentiu


necessidade de a ver. Sabendo que ela se levantaria bem cedo se
fosse novamente trabalhar com Maida, enfiou as roupas que tinha
mais à mão, agarrou num colete de penas e ligou o Tahoe. Cinco
minutos depois estava a entrar na estrada que levava a Thissen
Cove. Ficou aliviado ao ver a carrinha castanha ao lado da casa.

O Sol ainda não súbira o suficiente para proporcionar grande calor.


Enfiou o colete e dirigiu-se ao alpendre, caminhando por cima das
agulhas de pinheiro. Subiu os degraus com um único passo largo e,
segundos depois, estava a bater à porta. Houve um movimento na
janela lateral, e depois a porta abriu-se.

Por um minuto, ficou sem palavras. Lily parecia assustada e pálida -


e suficientemente despenteada e ensonada para sugerir que ele a
acordara. Vestia uma camisa de dormir e tinha a mão no peito. Bom,
não exactamente no peito. Mais na garganta. Não havia espaço
para uma mão no seu peito, com aqueles... com aquelas... com
aqueles seios.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou ela num murmúrio


assustado.

Ele pigarreou.
- Ah... não. Quer dizer, não sei. Ainda não vi os jornais - engoliu em
seco. - Posso entrar por um minuto?

Ela desapareceu por um segundo e voltou enrolada num xaile.


Depois de ele entrar, fechou a porta e dirigiu-se à bancada da
cozinha. Pôs uma antiga cafeteira debaixo da torneira, encheu-a de
água, colocou o saco lá dentro e começou a pôr colheres de café.

A visão dos seus pés nus por debaixo da comprida camisa de


dormir fazia com que parecesse ainda mais frágil.

Sentindo-se estranhamente desajeitado, John ficou de pé, com as


mãos nas costas de uma das quatro cadeiras junto da mesa da
cozinha, cada uma pintada de sua cor. Aquela era verde-escura.

- Desculpa. Não queria acordar-te. Pensei que fosses novamente


para o lagar de sidra. Queria apanhar-te antes de saíres de casa.

Ela continuou a despejar colheradas de café.

- A Oralee tem de ir ao dentista, por isso hoje só começamos às


nove.

- Até que horas trabalhaste ontem?

- Até às quatro - disse ela, enquanto tapava a lata de café.

- Deves estar cansada.

- Sim, mas é um cansaço bom - pôs a cafeteira no fogão e acendeu


o lume. Apertou o xaile à volta do corpo e virou-se finalmente para
ele. - Mantém-me a mente ocupada - os seus olhos fitaram os dele.
- O que aconteceu?

- O Terry Sullivan telefonou-me ontem. Disseme que já foste casada.

Ela não pestanejou. A única reacção visível foi um leve tremor das
mãos que seguravam o xaile.
- Sei que não tenho nada a ver com isso... - começou ele, mas ela
interrompeu-o.

- Ele vai publicar isso?

- Duvido. Não me parece que o jornal queira, depois do que


aconteceu à história principal. Pensei em telefonar ao editor dele,
mas, se eu me desse ao trabalho de Lhe ligar para dizer que não
era verdade, isso podia deixá-lo com a pulga atrás da orelha.

- É verdade - disse ela. Ainda de olhos fixos nos dele, sentou-se na


cadeira mais próxima, pintada de lilás. john viu-a inspirar, depois
erguer ligeiramente o queixo. - Eu estava a estudar Arte no México,
no Verão a seguir ao meu primeiro ano na universidade. O Brad era
finalista. Pensei que estava apaixonada. Sentira-me tão sozinha
naquele primeiro ano que me pareceu perfeito. Divertimo-nos muito
durante essas seis semanas. Casar foi parte da piada. Mas a
diversão acabou no dia em que voltámos. Ele acordou e disseme
que não podia estar casado comigo porque estava apaixonado por
outra.

John viu a mágoa, bem como um embaraço mais genérico. Com


necessidade de saber mais, disse:

- Então pediu a anulação.

- Paguei a um advogado para isso, mas não havia necessidade. A


cerimónia não tinha sido legal. O Brad sempre soubera disso.
Sentime uma perfeita idiota.

- Alguém aqui sabe?

Ela abanou a cabeça num gesto negativo. Quando uma fina


madeixa de cabelo ficou colada aos seus lábios, afastou-a.

- Casámos dois dias antes de o semestre de Verão acabar. Ele


disse que devíamos manter a coisa em segredo durante algum
tempo, e eu achei bem. Estava com medo do que os meus pais
diriam sobre a nossa precipitação. E depois deixou de ter
importância.

Parou, parecendo suster a respiração, à espera. Não era preciso ser


um génio para perceber qual era a pergunta que ela estava a fazer.

- Eu não direi nada - prometeu, mas ela não pareceu ficar


descansada. Assim, sem orgulho, John continuou: - O Donny não foi
o único Kipling que roubou um carro... mas foi o único que o fez
mais de uma vez, e o único que foi apanhado. Quando eu tinha
catorze anos, queria um meio de transporte. O meu pai nem sequer
me deixava conduzir a carrinha com ele ao lado. Por isso roubei um
carro no centro da cidade.

Lily pareceu cautelosamente curiosa.

- De quem?

- Do Willie Jake - quando ela arregalou os olhos, ele riu-se. Era em


parte um riso de prazer, em parte de alívio. Ela era adorável. É
verdade. A menina dos olhos dele era um pequeno Mustang
desportivo. Costumava deixá-lo estacionado em frente do escritório
quando andava com o carro-patrulha.

- Em frente? Como é que conseguiste roubá-lo sem ninguém ver?

- Lembras-te do incêndio na academia? Não, provavelmente eras


muito pequena, mas houve um grande incêndio num dos
dormitórios... alguém que estava a fumar e tentou esconder o
cigarro quando a responsável pelo dormitório sentiu o cheiro. O
cigarro não ficou bem apagado, o dormitório ficava numa velha casa
de madeira, todas as pessoas que podiam ter sentido o cheiro a
fumo estavam num andar inferior ou nos eventos desportivos da
tarde. Ardeu como um fósforo. O centro da cidade esvaziou-se...
estava toda a gente lá em cima, a certificar-se de que os rapazes
estavam todos sãos e salvos. E ali estava o Mustang, com as
chaves na ignição. Contornei todo o lago com ele, depois subi até à
fábrica.
- E lá em cima ninguém te viu?

- Esperei na esquina dos escritórios até não haver ninguém junto


dos outros carros. Depois conduzi até ao parque de
estacionamento, tranquei o carro e vim-me embora a pé - ela olhou
para ele como se fosse louco. - Bom, qual seria o desafio se o
tivesse deixado do outro lado do lago? Um psiquiatra talvez
dissesse que eu queria ser apanhado, e se calhar queria, mas não
fui. O Willie Jake ficou furioso. Interrogou dezenas de pessoas, mas
nunca descobriu quem Lhe roubou o carro. Uma noite, entrei
sorrateiramente e escondi as chaves no velho muro de pedra nas
traseiras da casa dele. Tanto quanto sei, ele nunca as encontrou.
Daqui a cem anos, um caçador de tesouros à procura de relíquias
vai reparar naquela rocha ligeiramente fora do sítio e usar um
detector de metais.

Com ar sério, Lily disse:

- Então roubaste um carro e não foste apanhado, e eu não roubei


um carro e fui apanhada.

- Sim - disse John. - Isso dá-te qualquer coisa para contar ao Willie
Jake.

- O crime já prescreveu.

- Mas a minha credibilidade seria prejudicada se isso se soubesse.


Portanto, se eu falar a alguém do teu casamento, podes usar esta
informação como prova de que eu não sou uma pessoa credível.

- E o Terry? Ele falará?

- Não, pelo menos tão pouco tempo depois do pedido de desculpas.


Tentará não levantar ondas durante algum tempo.

- E depois?
- Depende. Se tivermos alguma coisa contra ele, podemos
neutralizá-lo.

- Isso soa-me a chantagem.

- Oh, não. Ele poderá dizer o que quiser. Mas ninguém Lhe dará
ouvidos. Apenas isso.

John achava que era um bom plano. Lily parecia estar a pensar no
assunto. Quando o café começou a ferver, baixou o lume e ficou
junto do fogão, de braços cruzados e cabeça inclinada, imersa em
pensamentos.

John não se precipitou a quebrar o silêncio, uma vez que a cafeteira


fervente estava a tratar muito bem disso. Poucos minutos depois, o
cheiro a café começou a invadir a casa. john tinha uma máquina de
café moderna, que enchia com grãos moídos na altura, mas o seu
café nunca cheirava tão bem.

Nem sabia tão bem, decidiu cinco minutos depois, quando ela Lhe
serviu uma caneca.

Passados mais cinco minutos, pediu uma segunda dose. Quando


saiu de casa de Lily para se dirigir à cidade, sentia-se bem desperto
mas em paz. O espírito de Celia era realmente muito tranquilizador.

Só depois de estar de novo na carrinha, percorrendo o resto do


caminho à volta do lago, é que o sentimento de culpa se instalou. O
casamento precoce de Lily falava de uma ânsia de amor e afecto
possivelmente a mesma que tornara a sua amizade com o cardeal
Rossetti tão forte, e certamente a mesma necessidade que a fizera
regressar a Lake Henry e a levava agora a tentar remediar as coisas
com a mãe. Esse casamento ajudava a dar corpo à imagem de
quem ela era.

Mas, se John incluísse Lily num livro sobre invasão de privacidade,


estaria a invadir ainda mais a privacidade dela.
Lily não confiava em John. já cometera demasiados erros de
julgamento no que dizia respeito a homens para conseguir confiar
nele agora. Gostava do seu aspecto, e da maneira como falava.
Gostava que ele Lhe contasse coisas sobre si próprio que mais
ninguém sabia. Gostava do conhecimento que ele tinha sobre os
mergulhões e da forma como apreciava o facto de ela também
gostar das aves, mas não estava disposta a correr riscos. Quando
Lhe telefonou, meia hora depois de ele ter saído de sua casa, foi
apenas para saber as notícias.

- Nada - disse ele, num tom que talvez fosse de frustração. Lily ficou
aliviada por não vir nada sobre o seu casamento no jornal. Não
estava com vontade de o explicar a Maida, que ficaria zangada e
magoada. Tinham passado todo o dia anterior juntas, sem
discutirem. Era um recorde. Era verdade que o pouco que tinham
falado tinha sido sobre trabalho, mas já era qualquer coisa, e Lily
detestaria ter de agitar o barco agora.

Infelizmente, a ausência de notícias significava também que não


havia qualquer pedido de desculpas ou retractação.

- Em lado nenhum? - perguntou a John.

- Não, em lado nenhum.

- Vão abandonar a história e deixar-me ficar como a má da fita.


depois de três dias, já havia poucas dúvidas a esse respeito.

- Estão a tentar. Na verdade, há duas cartas ao editor a acusá-los


de estarem a fazer precisamente isso, o que é sinal de que sempre
tens alguns fãs. O jornal publica estas cartas para aliviar o
sentimento de culpa... para mostrarem como são justos.

Lily não achava que fossem justos, de maneira nenhuma. Depois de


agradecer a John e de se despedir dele, pensou em telefonar a
Cassie. Mas Cassie não podia fazer mais nada durante os próximos
dias. Além disso, Lily tinha de ir para casa de Maida. Assim, tentou
esquecer o caso, dirigiu-se ao lagar e deixou que o cheiro a puré de
maçã, as exigências do trabalho e o ritmo das má quinas
mantivessem o assunto trancado no respectivo compartimento
mental. Mas depressa o caso voltou a apoderar-se da sua mente
quando Maida fez uma pausa no trabalho ao final da manhã. Desta
vez, quando chegou à casa grande, telefonou a Dan Curry.

- Lily - disse ele, parecendo satisfeito por ouvir a sua voz -,


estávamos precisamente a falar de ti, o George e eu. Como estás?

Ela sentiu uma onda de nostalgia. Muitas vezes passara pelo clube
para receber o seu cheque e ficara sentada a beber café e a comer
scones com George e Dan.

- Estou bem. E vocês os dois?

- Também - disse ele num tom animado. - Temos estado cheios


todas as noites, mesmo depois de o espectáculo do escândalo ter
desaparecido. Quando vejo os clientes habituais a olharem com ar
melancólico para o piano, sei que estão com saudades tuas. A
pessoa que contratámos para te substituir não resultou. Tivemos de
o mandar embora ao fim de duas noites. Não sabia as canções. É
difícil preencher o teu lugar, Lily Blake.

Isso era uma boa notícia. Mas outras menos boas pairavam sobre a
conversa.

- Não parece que os jornais me vão pedir desculpa, como pediram


ao cardeal. Ele... as pessoas dele ainda estão a trabalhar no caso?

- o cardeal dissera que iam tratar disso. Deus sabia que tinham con
seguido o pedido de desculpas para ele bastante depressa.

- Não sei - disse Dan.

- Enquanto não me pedirem desculpa, eu continuo mal vista.

- Não - disse ele em tom jovial. - Todas as pessoas que te


conhecem sabem que nunca estiveste mal vista.
- Talvez não em termos musicais ou físicos, mas, e em termos
mentais? As pessoas não pensam que eu provoquei o escândalo ao
dizer aquelas coisas?

- Na verdade, não converso com ninguém sobre esse assunto. Toda


a gente sabe o que eu penso.

E era verdade. Dan estava do lado dela, o que significava que a


maioria dos clientes habituais do clube podia estar a culpá-lo por tê-
la contratado.

Para apalpar terreno, disse:

- A cada dia que passa sem sair nada nos jornais, penso em
regressar. Achas que as pessoas se esquecerão?

- As pessoas que importam já se esqueceram. É passado. Ponto


final.

Lily sempre gostara de Dan, mas não era estúpida. Sabia que uma
das razões por que ele era bom a gerir o clube era a capacidade
que tinha de conseguir dizer aos membros o que eles queriam ouvir.
E tinha a sensação que era isso que ele estava a fazer agora com
ela. A tratá-la com condescendência.

Assim, refez a pergunta de modo mais concreto:

- Quando achas que posso voltar ao trabalho?

- Aqui? - perguntou ele, em tom tão surpreendido, como se o


pensamento nunca Lhe tivesse ocorrido, que ela sentiu um aperto
no coração. - Oh, ainda é prematuro falar nisso. Só estás fora há
uma semana.

- Mas, se as alegações são falsas...

- Não são apenas essas alegações. São também as outras.

- Mas são mentiras.


- Temos de deixar o assunto morrer, Lily. Não adiantará nada
precipitarmos as coisas.

Em voz baixa, ela disse:

- Este é o m-meu trabalho, Dan. É com esse dinheiro que pago a

renda.

Dan suspirou. De súbito, a sua voz parecia fria. - Eu sei. Mas a


verdade é que, se voltares, isso irá fazer reviver toda a história. Não
posso fazer uma coisa dessas aos membros. Contratei outro
substituto. Este é bastante bom.

Lily sentiu o golpe. As palavras dele tinham um tom de finalidade


que Lhe disse que seria uma perda de tempo discutir mais. Ele era o
dono do clube. E estava decidido.

- Compreendo.

- Mandei um cheque com o que te devo para o teu apartamento,


mas, se não estás lá...

- Eu arranjo maneira de o receber. Obrigada.

- Tenho muita pena, Lily. É uma decisão puramente comercial. Sinto-


me mal por isso. Tu não tinhas intenção de provocar nada disto com
os teus comentários.

As palavras dele caíram-Lhe mal. De repente, sentiu-se furiosa.


Pronunciando cada palavra lentamente, não tanto para controlar a
gaguez mas sim para ser bem clara com alguém que ela esperara
que fosse mais leal, disse:

- Para que conste, eu não fiz aqueles comentários como eles foram
publicados. Nunca tive nenhuma paixão pelo cardeal. Nunca
teríamos sequer ficado amigos se ele não tivesse decidido salvar a
minha alma. Para que conste - continuou, sem tentar controlar os
sentimentos -, foi ele a força impulsionadora por detrás da nossa
amizade. Eu não sou católica! Nem sequer sou religiosa! Nunca o
teria abordado se ele não me tivesse abordado primeiro!

Desligou antes que Dan pudesse pedir desculpa e, de coração aos


saltos, marcou o número de Elizabeth Davis. Presumia que a vizinha
ainda devia estar em casa, pois costumava deitar-se tarde e dormir
também até tarde. E, como esperava, a voz que atendeu do outro
lado parecia ensonada.

- Olá, Elizabeth. É a Lily.

O sono desapareceu, dando lugar ao que parecia ser uma animação


genuína.

- Lily, que bom ouvir a tua voz. Está tudo bem?

- Estou furiosa - disse ela, com necessidade de desabafar. - Os


jornais abandonaram-me, o meu emprego no Essex Club está
perdido para sempre, e quero o meu carro! - Suspirou e perguntou,
num tom mais calmo: - Como estão as coisas por aí?

- Tens correio! - exclamou Elizabeth. O seu tom de voz era trocista,


mas a mensagem não.

- Muita coisa?

- Um saco de supermercado cheio. Na maioria é lixo... publicidade e


catálogos. Um monte de contas. Há uma coisa do Justin Barr.
Queres que abra?

- Sim - ouviu o som de papel a rasgar, depois um momento de


silêncio.

- Vejam bem! Ele está a oferecer-te dinheiro para ires ao programa


dele.

- Esse hipócrita! Diz sempre que não paga a ninguém!


- Pois, enfim, não é de espantar - murmurou Elizabeth. - Tens
também algumas cartas, Lily - começou a ler os remetentes.
Algumas eram de amigos, outras de desconhecidos. - Queres que
as leia?

- Se não te importares.

Sara Markowitz escrevera-Lhe uma carta reconfortante a dizer que


estava a pensar nela. O mesmo tinham feito a sua colega de quarto
da universidade, vários professores e estudantes da Winchester
School, e amigos de Nova Iorque. Lily estava a sentir-se animada,
quando começaram a aparecer as cartas negativas. Essas
magoavam.

Elizabeth acabara de ler uma particularmente desagradável quando


Lhe disse:

- Já que estamos a falar de coisas más, acho que é melhor saberes


que o condomínio se reuniu ontem à noite. A imprensa continua a
andar por aqui, para tentar descobrir onde estás. É certo que já não
são os principais órgãos de comunicação, apenas pequenas pestes
locais, e não há ninguém acampado vinte e quatro horas por dia,
aparecem apenas à hora de ponta, quando acham que podem
apanhar-te a entrar ou a sair. Infelizmente, é a hora em que a maior
parte dos residentes está também a entrar ou a sair. E eles
detestam a má fama.

- Tony Cohn.

- Esse é o mais activo, mas há outros. Eu, pessoalmente, acho que


toda a publicidade é boa publicidade, mas pertenço à minoria.
Aquele grupinho... bolas! Cambada de conservadores. Levaram
muito a peito a má publicidade e estão em pé de guerra. Não acham
bem que uma inquilina... uma mera inquilina Lhes esteja a causar
problemas.

- Esta mera inquilina provavelmente paga mais por mês pelo direito
de aí estar do que alguns deles!
- Eu sei disso. Estou do teu lado, Lily. Não estou a dizer que eles
têm razão. Estou apenas a contar-te o que disseram. Querem saber
o que é verdade e o que não é, em que pé está o caso, se estás a
planear lutar. Sabem que não estás cá e querem saber quando
voltas.

- E perguntaram-te a ti?

- Receio que sim - admitiu Elizabeth. - Cometi o erro de falar um


pouco energicamente de mais em tua defesa, portanto eles acham
que eu sei alguma coisa. Bom, sei e não sei, se é que me faço
entender.

Lily percebeu, mas não importava. O que importava era a sensação


que tinha de que, se regressasse, não seria bem recebida. Era

verdade que não via muito os vizinhos - e já não queria saber do


que

Tony Cohn pensava - mas quereria ser alvo dos olhares deles? Dos

seus olhares furiosos? Estaria preparada para ser falada pelas


costas?

Para sentir o rancor deles? Se processasse os jornais e vencesse,


talvez as coisas fossem diferentes. Mas um veredicto demoraria
anos e

envolveria uma publicidade negativa que esses vizinhos haviam de

detestar. Perguntou a si própria se uma retractação pública mais


imediata faria alguma diferença, ou se todas as alegações que Dan
Curry

mencionara seriam uma nódoa permanente.

Maida entrou na cozinha e pôs a chaleira ao lume. Atarefada


com a caixa de saquinhos de chá, manteve as costas voltadas para
Lily, dando todas as indicações de estar a ignorar o seu dilema. Mas
Lily precisava de ajuda. Magoada, enfiou as mãos nos bolsos de
trás das calças de ganga.

- O Essex Club contratou outra pessoa. Não posso voltar.

Maida abriu a máquina de lavar loiça, deixando sair uma corrente de


ar quente. Começou a tirar os pratos quentes e a colocá-los

numa pilha em cima da bancada.

- Deus escreve direito por linhas tortas.

- Porque dizes isso? - perguntou Lily, magoada pela farpa. Sabia

exactamente o que Maida queria dizer e pensou porque não poderia

ela, por uma vez, mostrar-se mais compreensiva.

- Porque não era um bom sítio para trabalhar - disse Maida por

cima do barulho da loiça a ser arrumada. - Portanto, ainda bem que

perdeste o emprego. Não me interessa o que tu dizes, um clube é

um clube. Os jornais chamaram-te cantora de cabaré, por amor de

Deus! Não é uma imagem muito bonita.

- Os jornais também me chamaram "a amante do cardeal", coisa

que eu não sou - não sabia como fazer Maida compreender. - Eu

tinha uma vida boa, mãe. Passava os dias a ensinar crianças e as


noites a fazer o que gosto, que é tocar piano e cantar. Não era uma
vida

ordinária. Não era imoral. Nunca fiz n-n-nada de mal.


Maida soltou uma gargalhada amarga.

- Famosas últimas palavras. Quantos de nós já dissemos isso na

vida? - acabou de arrumar os pratos e começou a retirar canecas


quentes da máquina.

- Quando é que tu as disseste? - perguntou Lily.

Maida ficou imóvel por um minuto. Depois, com voz tensa, disse:

- Quando o teu pai morreu, eu mergulhei na autocomiseração.


finalmente virou-se para Lily. - Não sabia o que fazer com o negócio.
Era o nosso ganha-pão. Tinha duas hipóteses, aprender a trabalhar
ou vendê-lo. Decidi aprender. Quais são as tuas hipóteses?

Lily ainda não tinha pensado nas suas escolhas, depois deste novo
desenvolvimento. Saíra de Boston convencida de que voltaria. Sim,
ainda tinha um contrato de arrendamento. Podia ficar no
apartamento até ao fim de Junho, independentemente do que as
pessoas do prédio dissessem. Mas, sem emprego?

Terry Sullivan tinha emprego. O nome dele estava ali mesmo, no


jornal do dia, por cima de um artigo sobre o homicídio de Back Bay,
que capturara de modo tão conveniente a atenção do público. Ele
cometera erros muito mais graves do que ela alguma vez cometera,
mas não fora despedido. Não era justo.

A chaleira começou a assobiar. Lily talvez tivesse virado costas e


saído da cozinha, se Maida não estivesse a colocar ostensivamente
duas chávenas, duas colheres e dois pãezinhos na mesa - e,
mesmo assim, estava tão zangada que quase saiu na mesma.
Precisava de compreensão. Precisava de encorajamento. Maida
sempre tivera o hábito de Lhe negar essas coisas.

Uma chávena de chá e um pãozinho doce não eram compreensão e


encorajamento. Mas eram melhor do que nada. Por isso, deixou-se
ficar.
Lily adorava o trabalho no lagar de sidra. Embora rotineiro, exigia
atenção, o que significava que o resto da manhã passou a correr.
Mal soou a hora de almoço, contudo, ela estava na carrinha
castanha, a caminho da cidade. Desta vez não se incomodou em
pôr chapéu, cachecol e óculos escuros. Não havia necessidade de
disfarces. A cidade sabia que ela voltara. Na verdade, fez virar
cabeças enquanto descia a rua principal. Irritada, sorriu e acenou,
numa atitude de desafio.

Depois de passar pelo estabelecimento de Charlie, virou na estação


dos correios e conduziu até ao edifício vitoriano amarelo. Estava a
puxar o travão de mão quando viu John a sair. De cabeça baixa, ele

remexia num molho de chaves. Ergueu os olhos, surpreendido por


vê- la, e olhou rapidamente para a estrada.

Lily baixou a janela e disse:

- Eles sabem - quando ele se aproximou, baixou um pouco a voz. -


Preciso de ajuda. Podemos falar?

Ele contornou a carrinha, entrou para o lugar do passageiro e


fechou a porta. Depois virou-se para ela, com um braço sobre as
costas do banco.

- Sou todo teu.

Ela talvez tivesse sorrido, se não estivesse tão aborrecida.

- Quero lutar. Como posso fazê-lo?

Ele esfregou o queixo, onde a barba formava uma linha fina.

- Lutar contra o Terry? De maneira suja?

- Bom, a Cassie já está a lutar da maneira limpa, mas isso vai


demorar tempo. Preciso de fazer alguma coisa agora, ou pelo
menos de sentir que estou a fazer alguma coisa. Estou farta de ficar
sentada à espera. Quais são as minhas opções?
Ele pensou no assunto por um minuto, estudando-a com um olhar
surpreendentemente caloroso.

- Depende. Estás a falar de vingança?

- Vamos chamar-Lhe justiça.

Ele fez um sorriso de esguelha.

- É mais ou menos a mesma coisa.

- Justiça soa melhor.

- E queres mesmo fazer isto?

- Muito.

Ele ficou pensativo por mais um minuto, mas ela não se importou
com a demora. Sentia-se bem com ele ali, como se estivesse
finalmente a fazer alguma coisa.

- A questão é esta - disse ele. - Quer Lhe chamemos justiça ou


vingança, não deixa de haver uma maneira certa e uma maneira
errada de o fazer. Queres satisfação instantânea? Posso dar-te uma
lista de artigos duvidosos que o Terry escreveu para o jornal, tu
convocas uma conferência de imprensa, fazes uma exposição dos
mesmos e bingo, embaraço público.

- Era isso que tu farias?

Ele abanou a cabeça.

- Eu acho que fabricar histórias é apenas a ponta do icebergue.


Houve quatro casos distintos de alegado plágio, na universidade.

Foram investigados, mas nunca provados. A minha fonte tem


relatórios que o afirmam. Outras fontes podem arranjar outros
exemplos. É evidente que, quanto mais escavarmos, mais forte é o
nosso caso. Mas as escavações demoram o seu tempo. Tens de
decidir se queres uma satisfação imediata ou se estás disposta a
esperar.

- Não tem de ser instantâneo. Mas também não pode demorar


muito. Isto é... humilhante - a humilhação era o menos importante,
no grande esquema das coisas, mas era o que ela sentia nesse
momento. - O Terry enganou-me, levou-me a confiar nele. De
certeza que não fui a única pessoa que caiu na armadilha dele.

- Não. Seria capaz de apostar que há mais. Também seria capaz de


apostar que há alguma coisa errada na sua vida pessoal. Ele mudou
de casa mais vezes do que qualquer outra pessoa que eu conheça.
Talvez seja apenas por não pagar a renda e ser despejado. Talvez
dê cabo das casas e perca o direito ao arrendamento. Talvez ande a
dormir com as vizinhas, desculpa a franqueza, e desapareça antes
que as coisas fiquem negras. Quero descobrir por que razão se
muda tantas vezes. - Eu quero saber por que razão ele veio atrás de
mim - disse Lily.

- E eu quero saber por que razão foi atrás do cardeal - acrescentou


John, e Lily percebeu que estavam ambos a pensar da mesma
maneira. Sim, o objectivo dela era desacreditar Terry, tal como ele a

desacreditara, mas compreender o porquê também Lhe parecia o


caminho certo a seguir.

Estaria a fazer um acordo com o Diabo?

Se assim era, este Diabo era muito atraente - maxilar quadrado,


bigode e barba bem aparados, cabelo que Lhe caía sobre a testa,
muito bonito apesar de Lhe começarem a aparecer entradas nas
têm poras. Quando a visitara de madrugada, estava menos
arranjado, mas igualmente atraente. Lily perguntou a si própria se
ele estaria consciente disso.

Os olhos dele eram cor de cacau quente. Não eram sedutores.


Apenas calorosos. Solicitavam confiança. Enganadores? Ela estava
a pedir-lhe ajuda, a pedir à imprensa que castigasse a imprensa. Da
última vez, ele oferecera-se para ajudar em troca da história dela, e
ela recusara de imediato. Parecia-Lhe ter sido há um século.

- O preço é o mesmo?

Ele baixou o braço e inspeccionou as mãos. Tinha dedos finos e


compridos, antebraços cobertos por uma penugem fina, a camisa de
flanela arregaçada até aos cotovelos, por fora das calças de ganga
coçadas.

Olhou para ela.

- Sim.

De muito adiantavam os olhos calorosos.

- A minha história.

Ele acenou afirmativamente.

- Um exclusivo.

- Para o jornal?

- Não. Quero escrever um livro sobre a comunicação social versus o


direito dos indivíduos à privacidade. O que te aconteceu é um
exemplo de como as coisas podem ultrapassar todos os limites.

Ela não podia argumentar contra isso. Um livro talvez não fosse
assim tão mau. Sugeria algo mais... ponderado.

- Eu serei o único exemplo no teu livro?

- Acho que a tua experiência ilustra bem um problema amplamente


disseminado.

- Ou seja, sim.

Depois de uma pausa, ele admitiu.


- Sim. O teu caso seria o núcleo do livro. A disfunção dos meios de
comunicação social é um tema quente hoje em dia. Podia ter o livro
publicado antes do Verão.

- Tens a certeza disso?

- Tenho uma editora que quer publicá-lo.

Ah, ele já falara com uma editora. Era ambicioso. Acabara de descer
na consideração de Lily. Fora sensata em não confiar demasiado,
nem com muita facilidade.

Por outro lado, assim haveria movimento, pelo menos. Faltavam


nove meses para o Verão. Nove meses era melhor do que os trinta
e seis que o sistema legal podia demorar.

- O livro seria uma edição importante - disse ele. - Esta editora tem
um historial notável de best-sellers. Lança dezenas de milhares de
cópias, consegue críticas nos principais órgãos de comunicação
social, aparições nos principais talk-shows.

- Recuso-me a aparecer num talk-show.

- Mas eu não. É mais uma forma de mostrar o teu lado da

história.

Bom, isso soava bem, mas ainda havia a questão da confiança.

- Como sei que estás realmente do meu lado?

Ele olhou de novo para as mãos. Quando ergueu o rosto, este

ostentava uma expressão grave.

- Já te disse que estou.

- Já fui enganada antes, John.


- Mas não por mim. Além disso, sabes quais são os meus
sentimentos em relação ao Terry, e estarei concentrado nele, tanto
quanto em ti. Um é o bom da fita e outro é o mau da fita. Não é
difícil

perceber quem é quem.

Ela achou que era verdade.

- Tens um interesse pessoal em sujar o nome do Terry. Vais


mencionar isso?

- Ainda não decidi.

Mas ela já decidira.

- É a única coisa honesta a fazer. Se eu cooperar, preciso disso.

- De honestidade?

- E de poder de veto - acrescentou, porque não fazia mal nenhum


pedir. Se trabalhasse com ele, estaria a comprometer a pouca
privacidade que Lhe restava.

- Não queres que a história do casamento venha à luz do dia?

- Não.

- Mais alguma coisa? - perguntou ele.

Como ele parecia bastante bem disposto, Lily disse:

- Não sei. Veremos à medida que formos avançando.

- Isso dá-te a vantagem.

Ela encolheu os ombros.

- É o máximo que te posso oferecer. Queres esse best-seller ou


não?

O olhar dele sugeria toda uma outra história por detrás dessa

questão. Virou o rosto para a fitar nos olhos.

- Não podes falar com mais ninguém.

- Nem tinha intenções de o fazer. Não sou muito faladora.

Ele sorriu.

- Mas sabes falar muito bem quando pretendes chegar a um acordo.

Ela retribuiu o sorriso.

- É o desespero.

- Queres assim tanto que se faça justiça?

Ela pensou na mortificação, no embaraço, na humilhação, na perda.


Terry Sullivan não trabalhara num vácuo; outros jornais tinham
pegado na sua história e tinham-na perpetuado. Mas a mentira em
que se tinham baseado era dele. Fossem quais fossem as suas
razões ele semeara o caos na vida dela.

- Quero - respondeu, solenemente.

Lily sentia-se revigorada. Depois de regressar ao lagar e de se


esconder de novo sob as protecções de borracha, trabalhou
habilmente a colocar grades, a dobrar panos, a posicionar as pilhas,
a dobrar panos. O seu coração batia ao ritmo das engrenagens da
prensa, firme e compassado, agora com um objectivo.

Maida orientou o trabalho até à pausa do meio da tarde, mas,


quando chegou a altura de transferir a sidra da unidade de
refrigeração para a central de engarrafamento, deixou Oralee
encarregue das operações. Depois de novecentos litros de sidra
fresca terem sido engarrafados e enviados para o armazém, de a
maquinaria estar limpa e o lagar lavado à mangueirada, Lily dirigiu-
se à casa grande. Encontrou Maida sentada no alpendre, numa
cadeira de baloiço, com o rosto pálido.

- Sentes-te bem? - perguntou. Maida deu balanço à cadeira.

- Cansada. Os acidentes deixaram a sua marca.

- Como estão os homens?

- Bem. Mas a retroescavadora não. já a reparámos demasiadas


vezes. Tem de ser substituída.

- E uma nova é muito cara?

Maida lançou-Lhe um olhar reprovador.

- Não farias essa pergunta se fizesses a mais pequena ideia.


"Obviamente", pensou Lily.

Maida suspirou e olhou para os pomares que ladeavam o caminho


de cascalho.

- Não posso comprar uma nova. Vai haver um leilão no norte. Posso
comprar uma mais barata. É uma pena. Trata-se de uma das últimas
pequenas indústrias de lacticínios. Não conseguiu aguentar-se.

Lily encostou-se a um poste e seguiu o olhar dela. As macieiras


eram de um verde seco, sem brilho em comparação com a folhagem
de cores mais vibrantes junto do lago, mas ainda havia nelas uma
certa opulência. Eram árvores baixas e largas. Debaixo de uma
estava um velho caixote de madeira. Perto deste, uma picareta
caída no chão.

- As árvores eram maiores quando vim para cá - disse Maida em


tom pensativo, com uma expressão distante. - Era assim que se
fazia na altura... menos árvores, mas maiores. Depois a maneira de
pensar mudou e começámos a plantar quatro árvores pequenas por
cada grande. Assim, a produção é maior.
Lily lembrava-se da insegurança que acompanhara a transição.

Depois de gerações a fazer as coisas de uma determinada forma, o


seu pai assumira a responsabilidade da mudança, e essa mudança
fora gradual. Penosamente gradual.

- Como está a produção este ano?

- Oh, está boa. Vamos ter um ano recorde. Mas, se me perguntares


se isso se vai traduzir em mais dinheiro, a resposta é não. Os custos
sobem mais do que os lucros. Por vezes, fico preocupada. Não que
alguma de vocês as três queira o negócio para alguma coisa. Às
vezes pergunto-me por que raio ando a matar-me a trabalhar. Vou
morrer durante o sono, como o teu pai, e o negócio será vendido.

Devia ter tido um filho rapaz.

Lily já ouvira essa conversa antes. Desde a parte do "não que


alguma de vocês as três", já ouvira todo o discurso. Sempre a fizera
sentir duplamente culpada por quem era e por aquilo que era. Mas,
Deus do céu, estava farta de se sentir assim. Portanto, em tom
cortante, perguntou: - E porque não tiveste?

Maida virou a cabeça, encostada à cadeira, e olhou para Lily.

- Fiz a encomenda, mas chegou trocada.

Era uma afirmação típica de Maida - mas diferente. Havia


efectivamente humor na sua voz, nos seus olhos.

Lily não sabia bem o que pensar disso.

- Podias ter tentado de novo - disse, num tom mais gentil. Maida
sorriu, abanou a cabeça e fechou os olhos.

- Não podia. Tive problemas durante a gravidez da Rose. Os médi


cos sugeriram que eu fechasse a loja. Fiquei só com as miúdas.
Lily sentiu um vestígio de carinho. Não nas palavras, mas na forma
como Maida as dissera. Havia no seu tom satisfação, até mesmo
paz. Era algo completamente invulgar em Maida, e muito bem-vindo.

Nessa altura ouviram o som de um carro que se aproximava e


Maida endireitou-se.

- É a Alice - Alice Bayburr era uma das suas melhores amigas.


Levantou-se e aproximou-se da beira do alpendre.

- Vou-me embora - disse Lily.

- Ainda não. Porque pensas que ela veio, senão para te ver? E,
claro, Alice ainda mal tinha saído do carro e já estava a dizer:

- Estavam a falar nisso na cidade, mas eu tinha de vir ver com os


meus próprios olhos! Lily Blake! És uma celebridade!

- Foi o que sempre quiseste - disse Maida pelo canto da boca.

- Não. O que eu sempre quis foi tocar piano.

- E cantar.

- Sim.

Alice era uma morena de estatura e constituição médias, que


combatia a mediocridade vestindo-se de cor-de-rosa. Lily só
soubera que existiam calças de ganga cor-de-rosa quando vira Alice
com umas, num ano que viera a casa na Páscoa, e a cor não
combinava nada com o feriado religioso. Naquele dia, Alice vestia
calças cor-de-rosa, uma blusa cor-de-rosa, e um blazer cor-de-rosa
que esvoaçou quando se aproximou.

- Meu Deus, pregaste-me um susto, és tal e qual Celia - disse,


segurando em Lily com os braços esticados para a inspeccionar. Um
pouco mais alta, um pouco mais magra. Mas cheiras a maçãs, tal
como a tua mãe.
- Ela tem estado a ajudar no lagar - disse Maida.

- Foi o que ouvi dizer. É muito simpático da tua parte, Lily. Outra
pessoa na tua situação não estaria a fazer absolutamente nada.
Outra

pessoa na tua situação teria medo de mostrar sequer a cara, depois


de Lhe terem chamado ordinária - calou-se bruscamente. - Oh,
céus, isto soou mal. O que eu queria dizer era que, depois de ter
passado pelo que tu passaste, outra mulher, uma mulher inferior,
estaria sentada em casa completamente paralisada - era uma gafe
atrás da outra. - O que eu queria dizer...

- Nós sabemos o que querias dizer - interrompeu Maida, e Lily


lembrou-se de outra coisa a respeito de Alice: era famosa por estar

sempre a meter a pata na poça.

- Estou sempre a fazer o mesmo - disse ela a Maida, num tom de


desculpa. Depois virou-se para Lily. - Quando voltaste?

- No fim-de-semana passado - faria uma semana essa noite.


Custava a acreditar. Boston parecia-Lhe a pelo menos um ano de
distância.

- E só agora é que descobrimos? Bom, talvez tenha sido melhor.


Tem havido muita preocupação por aqui, principalmente entre as
beatas que se recordam do incidente com aquele rapaz. Não sabía1
mos bem no que havíamos de acreditar quando esta história
rebentou. Lily Blake a corromper um homem da Igreja? Algumas
pessoas na cidade dizem que não ficaram surpreendidas, outras
dizem que ficaram. Mas não havia dúvida de que o conhecias.
Todos vimos aquelas fotografias. Ali estavas tu, uma bonita rapariga
na cidade grande, sentada lado a lado com o cardeal. O cardeal -
baixou a voz, assu mindo agora um tom conspirador. - Como é ele?

- Alice - protestou Maida.


Mas Alice insistiu:

- Quero saber - e repetiu a pergunta.

- É um bom homem - disse Lily.

- Tão atraente como nas fotografias?

- Suponho que sim.

- Decididamente um sedutor.

- Alice - protestou Maida de novo.

Alice mandou-a calar e voltou-se para Lily.

- Nãoé?

- Não.

- Achas que ele nunca... ?

- Alice!

- Ora, Maida, por amor de Deus, é uma pergunta natural - depois


voltou-se de novo para Lily. - Há todo o enredo à volta do caso,
sabes. Será que ele o fez, ou não? Depois da sua elevação a
cardeal, os jornais encheram-se de informações a respeito dele. Era
apenas uma questão de tempo antes de chegarem a isto. Tu, minha
querida, simplesmente tiveste o azar de estar por perto na altura
errada.

Um clamor soou do outro lado da esquina, passos no cascalho,


gargalhadas ofegantes. As filhas mais novas de Rose apareceram,
correndo sobre a relva. Rose vinha atrás, a um passo mais razoável.
Ao olhar para ela, Lily maravilhou-se com a força de certos genes.
Ela e as irmãs - as três - eram todas parecidas com Maida. O que
distinguia Rose era a cor natural nas suas faces e a forma como se
vestia. Maida e Lily vestiam calças de ganga, o mais apropriado
para trabalhar no lagar. Rose usava sempre saias compridas ou
calças de bom corte, roupas apropriadas para fazer compras,
conduzir e conviver pela cidade.

Subiu os degraus do alpendre, pousou um grande tacho no corrimão


e deu um abraço a Alice.

- Vieste ver as vistas?

- Antes eu do que todos os outros que estão mortos por fazer o


mesmo. Desde que a notícia do regresso da tua irmã se espalhou, o
telefone não tem parado de tocar. Oiçam bem o que Lhes digo, este

é um caso para o livro da história de Lake Henry. Não há uma agita


ção destas desde... desde...

- Desde os polígamos - interveio Rose em tom seco.

- Isso foi antes do nosso tempo, mas tens razão. Desde os


polígamos. Tem tudo a ver com moralidade e com a postura desta
cidade. Digo-vos, teriam aqui meia dúzia de senhoras neste
momento, se eu não tivesse dito que vinha. Mas já vi o que queria
ver, por isso vou andando.

- Não queres um chá? - perguntou Maida.

- Hoje não. Lily, não te importes se as pessoas olharem para ti.


Neste momento és um espectáculo, só isso. Espera, isto soou mal.
És diferente dos outros, neste momento, mais nada. Eles hão-de
habitu ar-se novamente a ti - desceu as escadas e entrou no carro,
antes que Lily pudesse dizer que não tencionava ficar na cidade
tempo suficiente para isso.

Mas o seu emprego no clube estava perdido. Perdido.

- Não se mexam, meninas! - gritou Rose, erguendo a mão aberta


enquanto Alice dava a volta ao carro e passava ao lado delas.
Depois fechou os dedos para descongelar as crianças, soltou a
respiração e voltou-se para Maida. - Fiz galinha guisada. Deve
chegar para vários dias. Como te sentes?

- Estou bem.

- Estavas doente? - perguntou Lily.

- Ela tem enxaquecas - respondeu Rose. - Por causa da tensão.

- Não - disse Maida. - É por causa dos olhos. Preciso de óculos


novos.

- O Percy DeVille morreu o Verão passado - disse Rose a Lily -, por


isso ela não sabe onde há-de ir, mas eu sei. Há um optometrista
muito bom em Concord. Tive de lá levar a Hannah ainda o mês
passado.

- Onde está a Hannah? - perguntou Lily.

- Hannah? - chamou Rose.

Hannah subiu silenciosamente os degraus.

- Pensámos que ela precisasse de óculos. A professora ligou para


nos dizer que ela franzia os olhos. Graças a Deus, era falso alarme.
- Eu não me importava - disse Hannah.

- Ficarias horrível de óculos.

- As estrelas de cinema usam óculos. Algumas ficam giras.

- Mas tu não ficarias - disseLhe Rose, depois voltou-se para Maida


com uma expressão consternada. - Acreditas nisto? É o que tenho
de aturar agora. Ela discute com tudo o que eu digo.

Lily pensou que talvez fosse mais ao contrário, e sabia bem como i
sso era.
- Na verdade - disse, estudando o rosto redondo e sério de Hannah
-, ficavas bem com uns óculos Calvin, daqueles fininhos.

- Lily - queixou-se Rose -, porque estás a dizer uma coisa dessas?

- Porque é verdade. E um dia ela pode precisar de óculos. E, se


precisar, vai ficar encantadora.

Rose agitou a mão.

- Não vou discutir contigo por causa disso. O facto é que ela não
precisa de óculos. Não me perguntes o porquê de andar a franzir os

olhos, mas não tem problema nenhum na vista. Graças a Deus. Só


tem dez anos.

- Quase onze - disse Hannah. - Faço anos de terça-feira a uma


semana.

Lily sorriu.

- Vais fazer festa?

Rose levou a mão à testa.

- Esse é outro motivo de discussão. Ela quer uma festa. Não me


perguntes porquê. Não é rapariga de festas. Eu nem sequer saberia
quem convidar.

- Mas eu sei - disse Hannah.

- Quem? A Melissa e a Heather? - virou-se para Maida. - São os


únicos nomes que a oiço mencionar. Não é uma miúda com um
grande círculo de amigos. Não vejo que sentido tem dar uma festa
só para três raparigas.

- Eu vejo - disse Lily. Sentia o coração partido por Hannah. já era


suficientemente mau que Rose pensasse aquelas coisas, pior ainda
que as dissesse, mas o mais grave era dizê-las em frente da
criança.

Rose virou-se para ela e sorriu.

- Muito bem. Trata tu da festa.

Lily aceitou o desafio e retribuiu o sorriso.

- Gostaria muito - estendeu a mão a Hannah. - Vem comigo até ao


carro. Preciso de saber que tipo de festa queres.

Nos poucos segundos antes de Hannah se juntar a ela, Lily pensou


que talvez estivesse a piorar a situação entre Hannah e Rose, mas
não podia fechar os olhos e deixar a pobre criança sentir-se tão mal
em relação a si própria. Alguém tinha de tentar animá-la. Lily tivera
Celia para fazer isso, mas Hannah não parecia ter ninguém.

Fechou a mão sobre a de Hannah. Quando passou por Maida, disse


em voz baixa:

- Estarei cá na segunda-feira de manhã.

Maida não respondeu. Parecia espantada, mas não com Lily. Estava
a olhar para Rose.

Griffin Hughes, o homem da voz sexy de barítono, tentou ligar de


novo para o chefe da Polícia na sexta-feira, exactamente à mesma
hora em que ligara na terça-feira, mas Poppy não o

tinha na conta de uma pessoa esquecida ou estúpida. Calculou que

ele devia saber que, se Willie Jake não estava no seu escritório às
sete

e meia de terça-feira, também não estaria lá agora. Isso significava

que Griffin não queria na realidade falar com Willie Jake, mas sim
com ela. Ou, pelo menos, era essa a sua fantasia.
Depois da última conversa entre ambos, a fantasia tinha um rosto.
Poppy imaginava cabelo ruivo, olhos azuis e orelhas pequenas e

bem feitas. Mas continuava a ser a voz o que mais a tocava. Era
grave e divina.

- Olá, olá! - disse ela num tom animado.

- Olá, Poppy. Como está?

- Muito bem. Mas, se está à procura do Willie Jake, ele não está.

- Em casa, novamente, não?

- Isso mesmo.

- Não faz mal - disse Griffin, com uma honestidade admirável -

na verdade estava à sua procura. Consta que Lily voltou para casa.

Pensei que talvez fosse a pessoa certa para saber disso.

Poppy era realmente a pessoa certa, mas, em relação a este


assunto, não interessava o quanto a voz de Griffin era sexy.

- Saber é uma coisa, dizer é outra.

- E vai dizer-me?

- Não. Não mudou nada, nesse aspecto.

A voz dele tornou-se mais grave.

- Eu não sou o inimigo.

- Qualquer pessoa que queira ganhar dinheiro à conta da minha

irmã e desta história falsa, não pode ser boa pessoa - disse, mas
num tom amável. Era difícil falar de outra maneira com um homem
tão encantador.

- Eu estou a tentar redimi-la - argumentou Griffin. Mas, antes que ela


pudesse responder, perguntou: - As suas amigas estão aí hoje?

Poppy piscou o olho a Lily, que estava encostada à ombreira da


porta. Tinham acabado de jantar - frango com limão, uma receita
que Lily trouxera. Estava delicioso.

Griffin estava, claro, a referir-se ao grupo das terças-feiras.

- Não - respondeu, dizendo a verdade. - Hoje não estão cá.

- Então diga-me que idade tem.

Ela relaxou na cadeira.

- Trinta e dois.

- Ai, ai, ai. Que velha. De que cor é o seu cabelo?

- Branco.

- Não é nada.

- Pois não. É castanho. E curto. Provavelmente mais curto do que o


seu.

- Por alguma razão especial?

Sem dúvida que sim, mas Poppy não imaginava que ele tivesse
maneira de saber disso.

- Porque pergunta?

- É uma das rasteiras que nós, jornalistas, utilizamos. Talvez pareça


uma pergunta simples, à primeira vista, mas pode ser muito
reveladora. Se usa o cabelo curto porque é mais prático, isso diz-me
que provavelmente é uma mulher que não gosta de mariquices, uma
pessoa descontraída e livre, não sei se me faço entender. Se o usa
curto por uma questão de estilo, é moderna. Se o usa curto para
exibir uma cabeça bonita, é vaidosa. Se o usa curto apenas porque
é... diferente, por assim dizer, então é uma pessoa confiante. Qual
das i póteses?

Poppy pensou por um minuto.

- Essencialmente, a primeira.

- Descontraída e livre? Nunca o imaginaria. É demasiado reservada.


Mas talvez seja qualquer coisa contagiosa, que se apanha quando
se vive aí. Estou farto de pensar na história que me contou da última
vez. Sabe, sobre o James Everell Henry. Sobre a independência
feroz. Tenho uma pergunta em relação a isso.

Ele lembrava-se do nome completo do magnata da madeira. Poppy


ficou impressionada.

- Sim?

- Disseme que, quanto mais os forasteiros insistem, mais a cidade


se fecha em copas. Isso significa que a cidade acredita na história
de Lily? Ou fecham-se em copas apenas por uma questão de
princípios?

Poppy olhou para a irmã.

- Significa que a cidade acredita na história de Lily - não o sabia com


toda a certeza, mas recusava-se a dizer outra coisa. E não era por
Lily estar ali. Era por aquilo que Griffin Hughes poderia dizer a
algum amigo. - Tenho outra história. Quer ouvir?

- Claro.

- Há muito, muito tempo - começou Poppy -, quando Lake Henry


ainda era Neweston... disseLhe que era assim que se chamava, não
disse?
- Sim.

- Chamava-se Neweston por causa do porto de Weston, de onde


vieram os colonos britânicos originais.

- Aaah!

- Portanto, quando Lake Henry ainda era Neweston, havia uma


colónia de polígamos que andava à procura de um lugar onde se
instalar.

- Polígamos?

- Polígamos. Gostaram do nosso lago, por isso compraram algumas


casas e começaram a mudar-se para cá. Bom, demorou algum
tempo até os habitantes da cidade se aperceberem do que estava a
acontecer dentro daquelas paredes, mas, deixe-me que Lhe diga,
quando finalmente perceberam, não gostaram nem um bocadinho.
Quero dizer, foi unânime... ricos, pobres, habitantes permanentes,
habitantes de Verão, baptistas, episcopais, congregacionalistas...
uniram-se todos como nunca tinha acontecido antes. Formaram
uma associação, juntaram dinheiro e tentaram comprar as casas
aos polígamos, mas eles não estavam dispostos a vendê-las. Então
começaram a olhar.

- A olhar?

- A olhar fixamente para aqueles colonos, nos correios, na escola,


na loja. Foram implacáveis. Chegavam mesmo a alinhar os barcos
no lago e a fitá-los da água. Tornaram o ambiente hostil para os
colonos sem dizerem uma única palavra.

- Eles acabaram por vender?

- Pode ter a certeza de que sim.

- E a mensagem para mim é...

Poppy olhou para Lily.


- Elevados padrões morais. Lake Henry foi fundada pelo tipo de
pessoas que coloca certos valores num pedestal. Se os habitantes
da cidade pensassem, por um segundo, que Lily tinha mesmo feito o
que os seus colegas afirmam, toda a minha família seria condenada
ao ostracismo, mas isso não aconteceu.

- Isto não está a ser complicado para a sua mãe?

A desconfiança invadiu-a de novo. Era uma pergunta que fazia


lembrar demasiado entrevistas. Ficou de sobreaviso.

- Porque pergunta?

- Porque li que ela não se dá muito bem com Lily, logo é lógico que
deva estar a sofrer.

- Eu diria que uma mãe sofreria sempre numa situação destas. Ele
não respondeu imediatamente. Só um minuto depois disse devagar:

- Touché.

Ele estava a pensar em alguma coisa. Poppy esperou. Ainda mais


devagar, Griffin disse:

- Tenho uma irmã. Quatro irmãos, mas apenas uma irmã. Seria
portanto de pensar que ela e a minha mãe se dariam muito bem,
sendo as duas únicas mulheres em casa, mas não era assim.
Discutiam constantemente. A Cindy era teimosa e queria fazer as
coisas à sua maneira, e, ao fim de algum tempo, a minha mãe
começou a deixá-la. Teve de o fazer. Um filho só é menor de idade
durante algum tempo. A Cindy saiu de casa no dia em que fez
dezoito anos, e depois cometeu todos os erros possíveis e
imagináveis... meteu-se com tipos imprestáveis, engravidou, fez um
aborto, entrou para a universidade, chumbou, voltou a inscrever-se.
A minha mãe jurava que ela estava por conta própria, mas sofria
sempre que alguma coisa corria mal. Quando um de nós Lhe
recordava as diferenças entre ambas, ela acenava que sim e dizia
que nós tínhamos razão, mas víamos-Lhe a dor nos olhos.
- Elas já se dão melhor?

- A minha mãe já morreu.

- Lamento.

- Também eu. A vida não é a mesma sem ela. Os irmãos estão

espalhados por todo o país, mas ela costumava fazer com que
valesse

a pena ir a casa nas ocasiões festivas. - O seu pai ainda é vivo? -


Sim. Está vivo, bem de saúde e a aproveitar a vida. Casou com

a minha mãe quando tinha vinte anos, portanto está agora a viver o

que não viveu na altura. já se apaixonou cinco vezes em cinco anos.

Sempre por mulheres diferentes. Faz com que não valha a pena ir a

casa nas ocasiões festivas.

- Mas, se ele é feliz...

- Nenhuma delas é a minha mãe.

Poppy não podia responder a uma afirmação dessas, mas também


não era preciso. Ele continuou rapidamente, parecendo um

pouco embaraçado.

- Porque estou a contar-Lhe isto? Não tem nada a ver com nada.

- Tem a ver consigo.

- O que não tem nada a ver consigo nem com a sua irmã. Não

me vai dizer nada?


- Sobre a Lily? Não.

- E sobre si?

- Já Lhe disse coisas sobre mim.

- Mais uma coisa. Diga-me mais uma coisa. O que quiser.

Ela pensou em dizer-Lhe que fizera metade do curso de Silvicultura,


mas temeu que ele Lhe perguntasse então porque trabalhava

dentro de casa. Podia dizer-Lhe que gostava da vida ao ar livre, mas

depois ele podia fazer-Lhe perguntas sobre desportos. Pensou em


dizer-Lhe que Armand Bayne, que patrocinava o Lake News e
conhecia

toda a gente que valia a pena conhecer na imprensa, trataria de


Griffin

Hughes se ele tentasse enganar Poppy para a levar a dizer qualquer

coisa demasiado reveladora. Mas mencionar o nome dele era uma

faca de dois gumes. Griffin podia ter o descaramento de telefonar a

Armand, que acabaria por Lhe dizer, mesmo que fosse apenas de

passagem, que Poppy Blake não podia andar.

Assim, disseLhe:

- A minha casa fica junto ao lago. Estou a olhar para ele neste
momento. Está uma bela noite... não está frio de mais. O fim-de-
semana vai ser quente e soalheiro.

- Estava a pensar em pegar no carro e ir até aí. Estou em New


Jersey. Não seria muito complicado.
O coração dela começou a bater mais depressa.

- Não é boa ideia.

- Porquê?

- Multidões. Trânsito. Estamos quase no pico da época da queda da


folha. Vai haver autocarros por todo o lado. E carrinhas, e
motorizadas. Basta um acidente para as auto-estradas ficarem
congestionadas ao longo de quilómetros. Isto aqui parece um jardim
zoológico nesta altura do ano. Além disso, eu não vou estar cá e
mais ninguém falará consigo, portanto não Lhe adianta nada vir.

- Para onde vai?

- Para fora - disse Poppy. Era a mentira mais pequena de que


conseguia lembrar-se.

- É pena - disse Griffin. - Talvez fosse agradável.

"Sim", pensou Poppy, momentos depois de ele desligar. "Talvez


fosse agradável." Mas os "talvezes" não Lhe serviam de nada,
portanto tentou esquecer o assunto.

Mas a fantasia não a abandonou.

Lily estava livre de fantasias nessa noite, novamente sentada no


cubículo de raízes de pinheiro à beira do lago. Estar com Poppy era
divertido mas dava que pensar. Ao ouvi-la falar ao telefone - ao ouvi-
la namoriscar - Lily vira vislumbres fugazes de uma mágoa que
Poppy tentava manter afastada da voz. Não conseguia sequer
imaginar a intensidade dessa mágoa. Fazia com que olhasse para a
sua própria vida com outros olhos.

Ou talvez fosse o trabalho no lagar de sidra. Ou o facto de estar a


planear a festa de aniversário com Hannah: Ou de ter contratado
Cassie. Ou o seu acordo com John.
Talvez fosse simplesmente a passagem do tempo. O choque
passara. A convulsão que a sua vida sofrera já não era tão nova
nem tão

abrupta. Oh, continuava zangada. Mas não se sentia tão perdida


como se sentira ao início.

Poppy tinha razão. Estava uma bela noite. Uma Lua grande brilhava
sobre a cidade, transformando o campanário da igreja numa
elegante mão branca, e tremeluzindo sobre o lago e as suas ilhas.
Ao longo das margens via-se uma ou outra luz por detrás de uma
janela, mas era esse o único sinal de vida.

Suavemente, o lago acariciava a margem. A terra debaixo dos


dedos dela era rica. O ar cheirava a fumo de lenha e estava
confortavelmente fresco. O blusão de basebol de Celia mantinha-a
tão quente quanto precisava de estar.

Lily adorava Manhattan à noite, em particular no fim do ano, quando


a cidade cintilava sob as luzes festivas. Adorava as noites de
Boston, mais no Verão, quando as cores tinham a ver com as
multidões em Newbury Street e os cheiros eram antigos e europeus.
Mas as noites de Lake Henry eram... eram primitivas.

Esperou e escutou atentamente, mas esta noite não ouviu nenhum


mergulhão. Assim, começou a cantarolar ela própria uma canção,
na verdade, um cântico de origem celta. Simples em termos
melódicos, capturava a natureza perturbadora do lago à noite, e foi
ganhando vida própria, evoluindo em palavras suaves cujo
significado ela desconhecia. Pôs os braços à volta dos joelhos e
baloiçou-se gentilmente, sentindo uma profunda reverência
enquanto cantava. Pelos seus pensamentos passaram memórias
antigas, dos domingos de infância em que cantara na igreja. A
sensação era mais ou menos a mesma.

Tinha uma ligação a este local. Não sabia se tinha a ver com o facto
de ter crescido ali, de ter ali a mãe e duas irmãs, ou de ter o pai e
muitos outros familiares enterrados ali, sob a lua, no cemitério ao
lado da igreja. Mas, naquele lugar, sentia-se em paz. Estranhamente
satisfeita.

Por outro lado, talvez a paz e a satisfação tivessem a ver apenas


com a canção. Nove dias sem cantar era muito tempo, mas não Lhe
ocorrera cantar antes. Tinha a mente demasiado ocupada com
coisas dissonantes para sequer pensar nisso.

Mas, agora que esse pensamento se enraizara de novo na sua


mente, estava para ficar.

John passou uma boa parte do sábado no escritório. De vez em


quando fazia uma pausa e caminhava até à estação dos correios,
ou até ao café de Charlie, ou até à feira de artesanato montada no
centro da cidade. Havia bancas com cestos, grinaldas perfumadas,
velas feitas à mão, cachecóis tecidos na zona, e bancas com
esculturas em madeira, pequenos quadros, criaturas de pedra -
muita coisa para ver, mas John estava mais interessado nas
pessoas à sua volta. Conhecia a maioria delas. Outras eram os
maníacos da queda da folha, que compravam recordações do
passeio.

Depois havia os duvidosos. Reconheceu um jornalista de Concord e


pensou reconhecer outro de Springfield. Estava disposto a apostar
que outro par de desconhecidos pertencia à televisão. Estavam
demasiado coordenados, nas suas indumentárias L. L. Bean, para
serem reais, e os locais estavam a tratá-los com frieza.

Convencido de que Lily estava a ser protegida, voltou ao escritório


com as poucas notícias que recolhera e adicionou-as aos ficheiros
da próxima edição do jornal. Trabalhou durante algum tempo na
história de capa, que era a de uma criança de três anos
acidentalmente alvejada em Ashcroft, no dia anterior, e, em termos
legislativos, o uso e o abuso de armas de fogo. Mas,
essencialmente, investigou Terry Sullivan. Queria descobrir por que
razão ele mudava tanto de casa.
Com as janelas todas abertas, o escritório cheirava às maçãs
caramelizadas que o Clube de Jardinagem estava a fazer num
grande caldeirão em cima de uma fogueira, na praia da cidade. O
tempo estava perfeito para isso - suficientemente frio para
endurecer a cobertura de caramelo, suficientemente quente para
que as pessoas se demorassem para uma segunda dose. Talvez
tivesse ido também até lá, se não estivesse tão intrigado com a
informação que Lhe estava a aparecer no ecrã.

Saltou de ligação em ligação e fez alguns telefonemas nos


intervalos. Às sete saiu e conduziu até casa, com intenção de fazer
alguns apontamentos sobre as suas ideias. No entanto, à medida
que o Sol baixava e adquiria uma tonalidade cor de âmbar por cima
dos bosques, sentiu o lago a chamá-lo. Enfiou uma velha camisola
por cima da Tshirt e dos calções e soltou a canoa. Entrou, pegou no
remo e começou a remar.

Mal tinha chegado à ilha onde os seus mergulhões viviam, quando


os viu emergir entre as sombras. Viu os dois mais novos, mas
apenas um dos pais. Calculou que o outro devia ter ido dar um
passeio e voltaria, um comportamento normal para os mergulhões
adultos em finais de Setembro. Não importava que o tempo esta
noite estivesse mais quente do que no princípio da semana; o
Outono aproximava-se. O adulto que ficara tinha uma tonalidade
mais baça do que apenas dois dias antes.

Quanto mais vibrante a cor das folhas, menos vibrante a dos


mergulhões. Era um dos tristes caprichos da natureza. Outro - não
tanto um capricho, mas um simples facto - era que em breve as
folhas murchariam, cairiam e morreriam, e os mergulhões partiriam.

John não estava ansioso pela chegada do Inverno, e não era por
causa do frio. Adorava esquiar, caminhar pela neve, pescar no gelo.
Adorava o calor do café de Charlie, com a neve a esvoaçar entre as
bétulas no exterior. Adorava chocolate quente com chantilly. Apesar
disso, o Inverno era uma época solitária.
Fazendo deslizar o remo pela água espelhada, recuou, virou a
canoa e dirigiu-se a Thissen Cove. Quando lá chegou, o Sol já
desaparecera por detrás das colinas a oeste e as sombras na
margem eram mais púrpura que azuis. A dez metros da margem,
recolheu o remo sobre a amurada e deixou a canoa à deriva. Depois
esperou por um sinal.

Teve três.

Primeiro, uma luz que se acendeu na janela da casa de Celia.


Depois, o grito de um mergulhão do lado mais distante do lago. E,
em terceiro lugar, uma canção. Ao princípio pensou que fosse outro
mergulhão a responder ao primeiro, mas este som era mais doce e
duradouro. Só um minuto depois percebeu o que era.

Lily nunca fora grande cozinheira. Em criança, costumava manter-se


longe da cozinha para evitar Maida. Quando andava a estudar,
nunca tivera tempo para aprender. Em adulta, com um emprego,
nunca dera importância suficiente à comida para preparar mais do
que refeições básicas. Além disso, na cidade grande havia um take-
away em cada esquina.

Em Lake Henry não era esse o caso, mas isso não constituía um
problema. Pela primeira vez na sua vida, Lily tinha a cozinha, o
tempo, e a vontade necessários para cozinhar. E não era
propriamente por tédio. Era mais por curiosidade.

Celia deixara um caderno cheio de receitas. Estava encadernado


com um tecido acolchoado, na verdade era mais uma capa para
pequenos papéis escritos à mão do que um caderno, mas servia o
seu objectivo. Independentemente de Lily recordar Celia com o
caderno nas mãos enrugadas, quando Lhe pegou agora, sentiu-se
rica.

A galinha com limão que ela e Poppy tinham feito era uma das
receitas de Celia. Esta noite fizera outras duas. Uma era uma
espécie de estufado de milho-doce, adequado à estação e
particularmente prático, uma vez que Poppy Lhe impingira uma
dúzia de maçarocas de milho novo, que um amigo bem intencionado
Lhe impingira a ela. A segunda era pão de milho, feito com mais
desse mesmo milho, farinha, ovos, manteiga, xarope de ácer e
nozes.

Entre o estufado e o pão, o cheiro da pequena casa nessa noite de


sábado era divinal. Lily até abrira um pouco as janelas, para poder
ouvir os sons do exterior, mas os aromas praticamente não se
diluíram. Quando ouviu a canção distante de um mergulhão,
ocorreu-Lhe que, bem vistas as coisas, podia estar muito pior num
sábado à noite. Sem pensar conscientemente no que estava a fazer,
começou a cantar em resposta.

Cantou enquanto mexia a sopa e enquanto tirava o pão de milho do


forno. Cantarolando, pôs a mesa com uma bonita toalha, pegou na
tigela da sopa e num dos seus pratos preferidos da colecção
diversificada de Celia, recolheu três velas de diferentes alturas e
feitios de outros pontos da casa e acendeu-as. Cantarolando
baixinho, abriu uma garrafa de vinho, outro presente de Poppy.
Estava a encher um copo fino quando ouviu bater à porta.

Parou abruptamente de cantar e prendeu a respiração. Segundos


depois, de coração aos pulos, suspirou com resignação. A cidade
sabia que ela estava ali: Tinha de ser apenas uma questão de
tempo antes de o resto do mundo também descobrir.

Mas a voz que entrou pela janela entreaberta e o rosto que


espreitou através da porta de rede não pertenciam ao resto do
mundo.

- Sou só eu - disse John.

Tão aliviada que se sentia tonta, abriu a porta.

- Nem imaginas o que me passou pela cabeça.

- Pensei nisso assim que bati. Desculpa. Não queria assustar-te. Ela
respirou fundo. Ainda tinha o coração acelerado, mas calculou que
isso fosse o efeito secundário de estar a olhar para um homem tão
alto e bem-parecido num sábado à noite. Não precisava de confiar
nele para ficar satisfeita com a sua presença. Cantar não era a
típica còisa de que sentia falta ultimamente. A companhia de
pessoas era outra.

Enfiou as mãos nos bolsos de trás das calças de ganga.

- Que há de novo? - perguntou, mas ele estava a olhar para a mesa


que ela acabara de pôr.

- Oh, vim em má altura.

Ela riu-se. Não fazia sentido armar-se em pudica.

- Nem por isso. É um festim só para um.

- Que belo festim - disse ele, inspirando profundamente. - Seja o


que for, cheira deliciosamente.

- Já jantaste?

- Não. Mas não gosto de me fazer convidado.

Com um olhar de censura, ela afastou-se e indicou-Lhe que


entrasse com um gesto.

John passou a mão pela barba e pela camisola.

- Estou com péssimo aspecto.

Era verdade que a camisola estava larga, os calções desfiados e os


ténis eram velhos, mas ele estava limpo - o que era mais do que Lily
podia dizer de si própria. Sacudindo a farinha da Tshirt e das calças
de ganga, disse:

- Também eu.
Mas não podia fazer nada a esse respeito, pelo menos com John ali
e o jantar quente e pronto. Deixando-o decidir por si próprio se
queria ir ou ficar, voltou à cozinha e pôs um segundo lugar na mesa.
Um minuto depois, tinha o pão de milho cortado e arrumado num
cesto. Nessa altura, John já estava de pé na sala, a olhar à volta.
Lily serviu o estufado, bastante satisfeita consigo própria. Só quando
começou a encher os copos de vinho - enquanto ele continuava a
observar o que o rodeava - é que sentiu algumas dúvidas.

Sim, a companhia era bem-vinda. Sim, podia até dizer que se


tratava de negócios. Sim, queria que John descobrisse tudo o que
pudesse sobre Terry Sullivan. Mas ainda não estava pronta para
cumprir a sua parte do acordo.

Endireitou-se lentamente.

- Vais tomar apontamentos?

John estava a olhar para o sótão. Sorriu.

- Casas de pássaros?

Ela seguiu o olhar dele.

- São obra de Celia. Tudo isto é obra de Celia.

Ele deu um passo em direcção às escadas em espiral e parecia


estar prestes a subi-las quando parou.

- Ela era uma personagem - depois viu a mesa pronta, a comida


servida, o vinho nos copos. A sua boca abriu-se num "uau"
silencioso.

Lily avisou:

- Isto não é para o teu livro. É apenas porque passaste por cá, por
acaso, quando eu me preparava para comer.
- Não é para o livro - prometeu ele, aproximando-se da mesa com
uma expressão apreciativa. - Seria incapaz de partilhar isto com
outras pessoas. Comes sempre assim?

- Não. Não sou grande cozinheira. Isto é um aviso. Come por tua
conta e risco!

John não parecia preocupado.

- Qualquer coisa que cheire tão bem não pode de maneira alguma
ser má. Além disso, cozinhaste para ti própria. Se tivesses
cozinhado para mim, talvez eu sentisse algum receio de que
tivesses posto qualquer coisa... um bocadinho de arsénico, uma
pitada de cicuta - ergueu as sobrancelhas e apontou para o prato do
seu lado da mesa.

- Sento-me aqui?

Ela ainda estava a acenar afirmativamente quando ele correu à volta


da mesa para puxar a cadeira dela. Lily ficou impressionada.
Olhando para a excitação dele, era de pensar quando teria comido a
sua última refeição decente.

- Obrigada - disse, enquanto ele empurrava a cadeira. john


contornou a mesa até ao seu lugar, sentou-se e abriu o guardanapo
no colo. Depois olhou para a sua tigela cheia, para a tigela meio
cheia dela, e para o fogão.

- Nem te perguntei se tinhas que chegasse.

Ela sorriu. - Tenho que chegue para mais dez. Simplesmente


calculei que deves comer mais do que eu. - Provavelmente
calculaste bem - disse ele com um sorriso. O sorriso tornou-se então
menos brincalhão, mais sério e sincero. - Muito obrigado. Não
estava à espera disto quando decidi passar por cá.

- Estavas à espera de quê?


- Não sei. Estava no lago, tinha ido ver os meus mergulhões, e
quando dei por mim estava a ouvir-te cantar. Tens uma voz linda.

Terry Sullivan tinha-Lhe dito precisamente a mesma coisa.

- Também os mergulhões.

- A tua é melhor. Faz mais do que eles conseguem.

- Não se projecta tanto como a deles.

- Talvez não. Mas é encantadora - ergueu o copo, num brinde.

Quando ela levantou também o seu, disse: - À tua voz. Mas John
não soava como Terry Sullivan. Seria ela uma tola por

achar que ele era sincero?

O vinho aqueceu-Lhe a garganta.

- Obrigada - disse, quando pousou o copo. - Tenho sentido falta.

- De trabalhar no clube?

- De cantar. Ontem à noite é que me apercebi de há quanto tempo


não cantava. Nem tinha dado por isso.

- Tens tido mais em que pensar - disse ele, de olhos fixos nos dela. -
Não posso começar a comer enquanto tu não começares, mas o
cheirinho deste estufado está a dar cabo de mim.

Ela provou o estufado. Na sua opinião, totalmente parcial, sabia tão


bem como cheirava.

- Sabe melhor do que cheira - disse John, servindo-se de um


pedaço de pão de milho quando ela Lhe ofereceu o cesto.

Durante vários minutos, comeram em silêncio. Uma vez que os


mergulhões tinham parado de cantar, Lily levantou-se e pôs um CD
a

tocar. Era uma noite boa para Liszt - um estado de espírito em modo
maior, para variar. Estava a pensar nisso quando voltou à mesa.

- Esta casa é fantástica - disse ele.

Ela olhou em volta.

- Falta um piano. Tenho um em Boston. Também tenho um BMW.

- Ahh - murmurou ele. - O famigerado BMW.

Ela sorriu da forma como ele o dissera, mas ficou instintivamente na


defensiva.

- Fazes alguma ideia do que eu tive de trabalhar até encontrar um


que pudesse pagar? E o mesmo em relação ao piano. Sinto a falta
de ambos. Podes chamar-me materialista, mas não sou. Não
comprei aquele carro para impressionar ninguém. Simplesmente
representava algo para mim.

- O quê?

Ela retribuiu o olhar dele com uma expressão de desafio.

- Independência. Capacidade de tomar conta de mim própria - podia


ter sido arrasada pela imprensa, despedida de dois empregos e
condenada ao ostracismo pelos vizinhos, mas não era nenhuma
menina indefesa. Sabia tomar conta de si própria. Queria que ele
soubesse disso.

- E o piano? - perguntou ele.

Lily sorriu, mesmo contra vontade.

- É como um braço ou uma perna - endireitou-se mais na cadeira.


- Então quando é que posso tê-lo de volta? - a resposta, claro, tinha
a ver com o restabelecimento do seu bom-nome.

- Estamos a falar de negócios?

- Suponho que sim - ela pousou a colher. - Já descobriste alguma


coisa?

- Sim. Só ainda não sei o que significa - deu uma dentada no pão de
milho, mastigou, engoliu. - Está uma delícia - disse, e enfiou o resto
da fatia na boca. Depois de ter bebido um gole de vinho para o
empurrar, continuou: - Fiz mais uma busca de propriedades. O
resultado confirmou todos os apartamentos que o Terry já arrendou.
Deu-me também outras informações, como o facto de ele conduzir
um Honda com oito anos e um registo de propriedade irregular. Isso
significa que ele é preguiçoso, esquecido ou provocador. Deixa o
registo expirar, depois volta a registar o carro. Tem um problema
com multas de estacionamento. Geralmente paga uma data delas
de cada vez, o que coincide regra geral com o registo do carro. Tem
multas por excesso de velocidade e contesta-as.

- E ganha?

- Sim. O Terry sabe muito. Tem conversa suficiente para se safar às


situações mais complicadas.

Lily sabia disso. Ao recordar como ele a enganara, e sabendo que


problemas com automóveis não eram algo que valesse a pena
publicitar, sentiu-se desencorajada.

- É tudo?

- Mais uma coisa - disse John, de olhos postos nos dela. - Um


pequeno facto muito interessante. Talvez comece a explicar o
porquê de ele mudar tantas vezes de casa. já foi casado três vezes.

- Que idade tem ele?


- A mesma que eu. Quarenta e três. Sei o que estás a pensar, e tens
razão. Há muitos homens da minha idade que já casaram três
vezes.

Não. Lily estava a pensar - a perguntar-se - se John alguma vez


teria sido casado.

- O que é estranho neste caso - continuou ele, com uma expressão


profunda nos olhos castanhos - é que ninguém sabe que ele já foi
casado. Ninguém mesmo. O primeiro casamento foi quando andava
na universidade. O Terry e eu éramos colegas, mas eu nunca soube
nada a respeito do casamento. Telefonei a outras duas pessoas que
o conheciam na altura, e nenhuma delas sabia que ele tinha mulher.
Casou pela segunda vez quando esteve em Providence. Conheço
um fotógrafo de lá que fez muitas vezes equipa com Terry, e ele
também nunca conheceu a sua mulher, muito menos ouviu falar
dela. O terceiro casamento foi em Boston. Telefonei a três pessoas,
incluindo o editor dele, e todos acharam que eu estava a inventar.
Não sabiam nada de um casamento, quanto mais de três.

- Talvez ele seja uma pessoa muito reservada.

- Mas é estranho, não achas? Sim, é verdade que ele não é muito
amigo de festas. Mantém a vida pessoal separada da vida
profissional. Mas não seria normal ter convidado amigos para o
casamento? Ou contar as boas notícias aos amigos, mesmo que
fosse apenas sobre o noivado? A maior parte dos homens gosta de
apresentar a mulher às pessoas com quem trabalha. Ou fazem
referências à sua existên cia, como "Tenho de me despachar porque
a minha mulher está à minha espera." Mas o Terry não. Dar cabo de
três casamentos é uma coisa. Mas o facto de ninguém saber nada
de nenhum dos três é outra. Eu diria que é bizarro.

Quanto mais Lily pensava nisso, mais concordava com John.

- Tens os nomes das mulheres?

Ele acenou afirmativamente.


- Encontrei-os nos contratos de arrendamento. O meu próximo
passo é entrar em contacto com elas.

- Porque achas que ele guardaria segredo disso?

As possibilidades iam das mais inocentes às mais condenadoras


mas não passavam de especulação. Quando John acabou a
segunda dose de estufado e pão de milho, Lilyjá estava farta das
especulações sobre Terry Sullivan, e curiosa sobre John. Aqueceu
sidra de maçã, encheu duas canecas e levaram-nas para o
alpendre, mas a noite estava demasiado calma e o lago demasiado
tranquilo para dizerem alguma coisa. Ficaram sentados durante
algum tempo nos degraus, a olhar para a paisagem, a beber a sidra
- e Lily estava consciente da presença dele, das mãos dele a
segurar a caneca, dos seus joelhos nus, das pernas salpicadas de
pêlos. Deixou o silêncio prolongar-se.

- Tens frio? - perguntou ele.

Ela abanou a cabeça.

- Fala-me de ti.

- O que queres saber?

Ela queria saber se ele era honesto. Queria saber se, na hora da
verdade, ele poria os seus próprios interesses à frente dos dela.
Queria saber se podia confiar nele.

Mas não valia a pena fazer essas perguntas. Se não tinha a certeza
de poder confiar nele, as respostas seriam inúteis. Assim,
perguntou:

- O Terry é da tua idade e já foi casado três vezes. E tu? Ele lançou-
Lhe um sorriso irónico.

- O que é que ouviste dizer? Não estou a dizer que andaste a fazer
perguntas, mas as pessoas falam. A Poppy dissete onde eu moro? -
a sua voz tinha uma inflexão interrogativa, que indicava que ele
estava apenas a dar um palpite.

Lily não negou.

- Ela disseme que nunca casaste. Mas também diria o mesmo a


meu respeito.

Ele inclinou a cabeça, admitindo a validade do argumento dela.

- No meu caso, é verdade. Em tempos estive envolvido numa


relação mais duradoura. Eu e a Marley estivemos juntos oito anos.
Ela diria que estivemos perto de casar. Mas eu não.

- Porquê?

- Ela não gostava dos meus horários.

- Ela não trabalhava?

- Claro que sim. Era executiva de publicidade. Os horários dela


eram muito piores do que os meus, mas queria que eu estivesse
livre quando ela estava. E, regra geral, não era assim que a coisa
funcionava. Provavelmente foi por isso que ficámos juntos tanto
tempo.

- Porque não se viam muito? Ele fez um aceno afirmativo.

- Éramos pessoas muito diferentes. Ela era uma tagarela, se


percebes o que quero dizer.

Lily percebia. Sara Markowitz telefonava-Lhe muitas vezes só para


tagarelar. Ou costumava telefonar. Naquele momento, Sara não
sabia onde Lily estava.

John disse:

- Marley não teria gostado dos sábados de manhã no centro da


cidade. Não teria gostado dos mergulhões. Não era uma pessoa
que gostasse de relaxar. Eu sou.

Querendo ter uma imagem do sítio onde ele o fazia, Lily perguntou:

- Como é a tua casa?

- Em Wheaton Point? Modesta, mas em crescimento. Quando a


comprei, era uma típica cabana do lago. Pequena e a cheirar a
bafio. E fria. A primeira coisa que pus foi um fogão a lenha, mas não
se pode fazer grande coisa sem isolamento. Quase morri congelado
no primeiro Inverno. Os meus canos congelaram. Foi uma
experiência interessante. Mas mandei-a arranjar e instalei
isolamento e canalizações novas nessa Primavera, um quarto extra
no piso térreo nesse Verão, e dois quartos no andar de cima no
Verão seguinte.

- Voltaste por causa do teu pai?

Ele olhou para a escuridão.

- Não. A oferta de trabalho era boa.

Lily estava a pensar que ele devia ter tido também ofertas boas de
outros lados, e que era preciso ser um determinado tipo de pessoa
para viver em Lake Henry, quando ele voltou atrás.

- Sim - disse, em voz baixa. - Na verdade, foi por causa dele. Temos
assuntos por resolver, eu e o Gus.

- E estão a resolvê-los?

- Ainda não. Ele é um osso duro de roer.

Lily sabia o que ele queria dizer. Maida também era assim.

- Foi difícil, quando voltaste?

- Foi. Não me encaixava em lado nenhum. Depois de algumas


edições do Lake News, as pessoas da cidade começaram a quebrar
o gelo - virou a cabeça e olhou para ela. - Recebi algumas cartas ao
editor relativas ao teu caso.

Cartas ao editor? Lily encostou a testa aos joelhos e estremeceu.


Era inevitável, claro, principalmente agora que as pessoas sabiam
que ela estava de volta.

Ouviu um ruído mas só percebeu o que era quando sentiu o peso da


camisola de John nos seus ombros. Talvez tivesse protestado, se o
calor não Lhe estivesse a saber tão bem. Puxou os braços da
camisola para a frente, enrolou as mãos na lã e ergueu os olhos.

- São boas ou más?

- Boas, na maioria.

- Na maioria.

- Uma delas exprimia a preocupação de que a imprensa viesse


meter o nariz quando descobrisse que voltaste. As outras iam da
aceitação às boas-vindas. Queres que as publique?

Ela ficou estupefacta.

- Estás a perguntar-me a mim?

- Sim.

Lily não estava à espera disso.

- Se eu te pedisse que não as publicasses, não o farias?

- Exactamente. A escolha é tua.

Ela apertou mais a camisola à sua volta. Cheirava a John, uma


combinação tranquilizante de asseio e aroma masculino. Sem
qualquer razão em particular, sorriu.
- Isso é por seres boa pessoa ou porque queres cair nas minhas
boas graças?

- As duas coisas. Não comia um jantar assim há anos.

- Sopa e pão? Quase nem se pode considerar um jantar.

- Estufado espesso, pão de milho-doce, vinho suave e uma muLher


bonita... foi um jantar, sem dúvida.

Lily virou a cabeça. As feições dele estavam ocultas pela escuridão,


mas percebeu que estava a sorrir. Fê-la sentir-se quente por dentro.
Talvez ele fosse um sedutor natural, mas nesse momento isso
agradava-Lhe.

Um novo som ecoou na noite.

Ela ergueu a cabeça para ouvir. Era distante, um gritinho, depois

outro. Não eram mergulhões. Pareciam mais guinchos. Risos?

- O que foi aquilo? - murmurou ela.

John riu-se e respondeu, também num murmúrio:

- É a última noite de sábado de Setembro.

- Oh, meu Deus. Ainda?

- É uma tradição de Lake Henry.

Na noite do último sábado de Setembro, um grupo das almas

mais corajosas de Lake Henry ia tomar banho no lago, em pêlo.

O local escolhido era uma enseada escondida por uma curva do

lago. Os participantes eram geralmente adolescentes e jovens de


vinte e poucos anos. Por vezes, o tempo estava positivamente
gelado.

O mesmo não era verdade em relação aos corpos que participavam


no ritual, nem a Lily nesse momento. Sentada com John, a pensar
naqueles corpos nus a alguma distância ao longo da margem

sentiu um frémito dentro de si.

John aproximou-se mais. - Alguma vez participaste? - perguntou


num tom íntimo.

A coxa dele estava a centímetros da sua. Lily encostou os olhos

aos joelhos e abanou a cabeça num gesto negativo.

- E tu?

- Oh, sim. Todos os anos, a partir dos onze. Foi onde toquei pela

primeira vez nos seios de uma mulher.

Lilytentou imaginar, mas não conseguia visualizar John como pré-


adolescente. No entanto, imaginava facilmente John como
adolescente. Era muito parecido com o homem agora sentado ao
seu lado, mas estava nu.

- Quero dizer - murmurou ele -, uma pessoa está ali, no meio de


todos aqueles braços e pernas e corpos, e ninguém sabe quem está
a tocar em quem. Era o sonho de um pequeno terrorista curioso
tornado realidade.

Ela não conseguiu conter-se.

- De quem eram os seios em que tocaste?

- Não sei, mas pareceram-me fantásticos.

Ela riu-se, com o rosto escondido na camisola que tinha o cheiro


dele, deliciosamente embaraçada. Com a respiração trémula,
percebeu que estava também excitada. Já passara tanto tempo
desde que sentira calor naquele sítio específico. Era uma das
surpresas da noite, e não se podia dizer que fosse uma surpresa
má.

Mas nessa altura, precisamente quando Lily estava a pensar no que


John poderia fazer para alimentar esse calor, ele disse:

- É melhor ir andando.

Antes que ela conseguisse protestar, ele já se levantara e dirigia-se


ao lago com passos decididos.

Pensou em chamá-lo - "a tua camisola", ou "obrigada por teres


vindo" ou "não vás já"! Mas não se mexeu, não disse nada. Ficou ali
sentada, envolta no cheiro dele, e viu a canoa iluminada pelo luar
afastar-se da sua doca.

Como dormir com aqueles pensamentos? Como dormir com todo


um novo reino de possibilidades subitamente aberto à sua frente?
Uma coisa era admirar pernas compridas, musculadas, ligeiramente
peludas, e outra coisa era querer tocar-Lhes.

Mas foi isso que imaginou fazer - isso e muito mais, deitada na
cama durante as longas horas de escuridão, sentindo-se sozinha e
carente. A maldita camisola não ajudava nada. Estava numa
cadeira, a cheirar a John. Adormeceu frustrada e acordou confusa.
Não sabia se devia confiar em John. Não sabia se devia misturar
negócios com prazer. Não sabia se devia acrescentar mais uma
complicação à sua vida, numa altura em que já tinha tantas.

Ironicamente, elementos sexuais à parte, este era o tipo de coisa


que ela poderia ter discutido com o cardeal. Fizera-o quando estava
a tentar decidir se devia mudar-se de Albany para Boston. Na altura
tinha um namorado em Albany, e ele tinha potencial. Era excitante,
romântico e estava muito interessado. Também tinha um problema
de jogo - e não se deu o caso de o padre Fran a ter aconselhado a
abandoná-lo. Ele nunca Lhe dizia o que fazer ou o que pensar,
funcionando mais como um bom ouvinte. Fazia perguntas. Ao
pensar nelas, Lily geralmente conseguia ver o panorama geral.

Queria ver o panorama geral agora, mas a sua mente estava cheia
de pensamentos pequenos e contraditórios. O padre Fran poderia
tê-la ajudado a organizá-los. Poderia tê-la ajudado a alcançar
alguma paz emocional.

Mas o padre Fran já não estava disponível. Assim, uma vez que era
domingo de manhã, decidiu ir à igreja.

Procurar alguma paz - parecia simples, mas as coisas boas


raramente o são. Aparecer na Primeira Igreja Congregacional de
Lake Henry a um domingo de manhã significava ser vista. Parte de
Lily não estava ainda preparada para isso. A outra parte estava farta
de estar escondida como uma rãzinha tímida. Essa parte dizia-Lhe
que estava na altura de quebrar o gelo.

Tomou um duche, recordando o seu armário cheio de roupas em


Boston, e vestiu o único fato de calças e casaco que trouxera
consigo. Pôs rímel e blush, secou cuidadosamente o cabelo, e
depois tomou um café, de olhos postos no relógio. Quando calculou
que seria a altura certa, de modo a poder esgueirar-se para o fundo
da igreja discretamente, depois de toda a gente já lá estar dentro e a
missa prestes a começar, entrou para a carrinha emprestada,
satisfez os seus caprichos até o motor pegar e contornou o lago.

A manhã estava fresca, mas não fria. O ar estava límpido, a


folhagem gloriosa. Era uma manhã para passear, mas Lily estava
demasiado apreensiva para sentir mais do que um vago sentimento
de prazer. Ao ver que o parque de estacionamento da igreja estava
cheio, estacionou junto da biblioteca e fez o resto do trajecto a pé.
Duas adolescentes estavam a subir apressadamente os largos
degraus brancos quando ela chegou. Não as reconheceu, mas
percebeu que elas a tinham reconhecido pela forma como a fitaram
durante alguns segun dos antes de desaparecerem no interior da
igreja.
"Dá meia volta e vai para casa", gritou a parte cobarde dela, mas
Lily precisava de mais do que uma vida trancada dentro de casa.
Além disso, agora que as duas adolescentes sabiam que ela estava
ali, se não entrasse haveria mesmo falatório.

Nervosa mas decidida, entrou. O vestíbulo estava vazio de pessoas


mas não de som. Ouviu acordes de órgão, depois o coro a cantar
"Faith of Our Fathers", e de súbito um mundo de memórias

abriu-se, imagens de domingo após domingo, quando ela própria


cantava no coro. Adorava fazê-lo. Maida aprovava, o que fazia
dessas ocasiões uma das poucas em que todos os elementos da
sua vida encaixavam.

Respirando fundo, um pouco trémula, atravessou o vestíbulo e

parou à porta do salão principal. A sala estava cheia, fila após fila,

mas viu um pequeno espaço junto à coxia, na penúltima fila.


Sentou-se, lançando um olhar de desculpas ao irmão mais novo de
Charlie

O wens, que sem dúvida deixara o espaço vazio para estar mais à

vontade, cruzou os dedos no colo e baixou a cabeça. Não precisava

de olhar para saber que a mãe estava com Rose e os Winslow na

quarta fila do lado direito, ou que as outras famílias proeminentes de

Lake Henry estavam nas filas imediatamente antes e depois.


Pensou

que devia conhecer também muitas das pessoas sentadas mais


para

trás, mas não ergueu os olhos. Conseguia sentir os olhares voltados


para ela - conseguia senti-los tão distintamente como o frio nos seus
dedos - e não queria ver.

Assim, concentrou-se nos sons do órgão, nos hinos, no coro.


Seguiu-se "Blessed Assurance", depois "Sweet Hour of Prayer". Não

cantou, nem participou nas leituras que se seguiram, mas ouviu


atentamente cada palavra. No púlpito falava-se de caridade, perdão
e

amor. Concentrou-se na força da voz do pastor e das suas palavras,

afastando da mente a frustração e a confusão, pelo menos durante

este bocadinho. Concentrou-se em absorver o carácter santificado

do local, usando-o para aliviar as partes dela que se sentiam feridas


e

maltratadas. E resultou. Quando o último hino soou, Lily respirava


calma e profundamente.

Saiu da igreja antes da bênção, com medo de arruinar a sensação

de bem-estar que conseguira alcançar se tivesse de conviver com


as

pessoas. E a sensação de calma permanecia. A esta juntou-se outra

coisa, algo inesperado, a sensação de que, por aqueles poucos


instantes, sentada em silêncio com o resto dos habitantes de Lake
Henry, ela pertencera a uma comunidade.

Não se lembrava da última vez em que tivera essa sensação.

Mesmo antes de os murmúrios chegarem até John, ele soube que


Lily estava na igreja. Por algum sexto sentido, erguera os olhos no
preciso instante em que ela entrara. Estava na extremidade oposta
do banco à frente do dela. Não sendo ele próprio um frequentador
habitual da igreja, chegara apenas poucos minutos antes.

E porque estava ele ali? Depois de passar a noite com uma erecção
que se recusava a desaparecer, sentira a necessidade de elevar os
seus pensamentos. No entanto, bastou um olhar para Lily para as
suas boas intenções irem por água abaixo. Assim, dedicou-se a
cantar cada hino a plenos pulmões e a ouvir o sermão do pastor,
escutando atentamente cada palavra. Quando a missa acabou,
estava completamente controlado.

Nessa altura, a consciência física tornou-se consciência intelectual,


e tirou o chapéu a Lily em outros aspectos. Ela mostrara coragem
ao vir à igreja, desafiando murmúrios e olhares. Sim, saíra mais
cedo, mas ele também já saíra mais cedo de alguns eventos da
cidade, pouco depois de regressar ao lago. A diferença era que ele
merecera completamente a desconfiança das pessoas. Lily não. Ela
devia poder percorrer a coxia central e sentar-se junto da família.
Incomodava-o saber que não podia fazê-lo.

Estava a pensar nisso, no exterior da igreja, enquanto via os


habitantes da cidade descerem os degraus banhados pelo sol
quente, quando avistou Cassie Byrnes. Ela estava de pé, com o
marido, e tinha um dos filhos ao colo. Os outros dois estavam
agarrados às suas saias.

Quando o marido se afastou para falar com o pastor e Cassie


começou a dirigir-se ao carro, John cortou caminho para ir ao seu
encontro. Pôs às cavalitas a mais pequena das crianças, um rapaz
de quatro anos, chamado Ethan, e caminhou ao lado de Cassie com
o rapazinho agarrado ao queixo dele.

- Viste a Lily na igreja? - conseguiu perguntar de forma audível,


apesar da pressão no queixo.

Ela lançou-Lhe um olhar brincalhão.

- Como podia deixar de a ver?


- Ela disseme que estás a representá-la. Como vão as coisas?

- Se estás a perguntar para o jornal, não faço comentários.

- Estou a perguntar como amigo - era uma meia verdade, pelo

menos.

- Da Lily?

- Sim.

Cassie parou e estudou-Lhe os olhos. john não sabia o que ela

tinha visto, mas, um minuto depois, ela recomeçou a andar. - A


resposta é que as coisas estão na mesma. Mandei um fax para

o jornal, na sexta-feira, a recordar-Lhes que têm uma semana para


publicar a retractação antes de avançarmos com o processo. O
prazo expira amanhã.

- Achas que eles a publicarão?

- E tu, achas que sim? - retorquiu ela. - Conheces esta gente melhor
do que eu.

Era verdade.

- Eles vão deixá-las avançar com o processo. Continuarão a manter


a história que publicaram. Têm uma cassete.

- A Lily disseme. Isso é uma vantagem e uma desvantagem.

- Ela não sabia que estava a ser gravada.

- Essa é a vantagem para nós - disse Cassie, enquanto chegavam


junto do carro. - É ilegal - enfiou a criança que trazia ao colo numa
cadeirinha, no banco de trás. john pegou no rapaz que tinha às
cavalitas e passou-o a Cassie, que o instalou também. Quando a
terceira criança entrou sozinha para o carro, Cassie endireitou-se e
voltou-se para John. - Este caso é uma porcaria. Mesmo que Lily
não fosse minha cliente, mesmo que ela não fosse a vítima, eu teria
pena dela. Lembro-me dela, de quando éramos miúdas. Ela sofreu
muito.

- Por causa da gaguez? - perguntou John. Lily não gaguejara uma


única vez na noite anterior. Queria pensar que isso significava que
se sentia confortável ao lado dele.

- Por causa da Maida - disse Cassie. Estavam suficientemente


distantes dos ouvidos indiscretos mais próximos; mesmo assim, ela
baixou a voz. - Ouve, eu também tive problemas com a minha mãe.
Todas as raparigas os têm. Eu e a minha mãe não passámos
propriamente na paz dos anjos os anos da minha adolescência. Mas
lembro-me de me sentir muito grata... e mais do que uma vez... por
a Maida não ser minha mãe.

- Ela era assim tão má? Cassie revirou os olhos.

- Uma perfeccionista. As coisas tinham de ser todas feitas à maneira


dela.

- Porquê?

- Não sei bem. Sei apenas o que a minha mãe dizia.

- E o que era?

- Que a Maida sempre fora assim, desde que veio para cá e casou
com o George.

- Então a vida dela era perfeita nessa altura, antes de a Lily nascer?

- Era essa a imagem que ela cultivava. Quem pode saber a


verdade?

Mas John estava interessado na verdade. As pessoas faziam as


coisas por uma razão. A sua mãe fora criada numa família muito
social, o que tornara a vida com Gus uma provação. Gus nunca vira
um marido normal, pelo que não fazia a mínima ideia de como o ser.
Enquanto crescera, John nunca tivera a aprovação de Gus, e
continu ava à procura dela, com quarenta e três anos. E Maida?
Maida Blake queria perfeição. Perguntou a si próprio porquê.

- Quem pode saber? - perguntou a Cassie.

- Eu não, nem a minha mãe - disse ela, estendendo as chaves do


carro ao marido, que se aproximava. - Experimenta falar com a Mary
Joan Sweet. Ela conheceu a Maida nessa altura.

Mary Joan era a presidente do Clube de Jardinagem. Uma agência


de casting não poderia ter escolhido melhor. Era uma mulher
pequena e delicada, com cabelo grisalho a emoldurar o rosto, um
leve toque de sombra azul nas pálpebras e uma tonalidade rosada
nas faces, que fazia recordar a John os amores-perfeitos que o
clube plantava nos canteiros da cidade todas as Primaveras. Era
uma pessoa reservada, de quem se dizia que falava mais com as
plantas do que com os seres humanos. Na verdade, quando John a
encontrou, depois da missa, estava a murmurar palavras de louvor
ao arbusto de evónimo vermelho em frente do café de Charlie. John
viu-a do parque de estacionamento e atravessou a estrada.

- Já nos conhecemos há muito tempo - admitiu ela quando ele falou


no nome de Maida. - Eu já fazia parte do clube quando ela se juntou
a nós. Era mais velha do que ela, mas ficámos logo amigas. Quando
a Lily entrou na igreja... - lançou ùm olhar triste a John. Pobre
Maida.

- Pobre Lily - corrigiu John.

- Pobre Maida - insistiu Mary Joan. - Ela tentou tudo, com a Lily.

Este era o seu grande medo.

- Acredita no que os jornais dizem?


- Não - respondeu ela lentamente. - Mas o estrago está feito.

Esta é mais uma coisa na vida da Maida. Primeiro, a gaguez de Lily.

Depois as pernas da Poppy. Depois a morte do George. Agora


novamente a Lily - abanou a cabeça e, segurando carinhosamente
um

ramo de folhas vermelho-vivo na mão, murmurou algo ao arbusto.

- Desculpe? - disse John.

Ela endireitou-se.

- Eu disse que a Maida veio para cá à procura de algo melhor.

- Melhor do que o quê?

- Do que aquilo que tinha tido.

- E o que foi?

Mary Joan sorriu. Curvou-se, pegou com cuidado nalguns ramos

do arbusto e afastou-os. Apontou para o solo que deixara


descoberto.

- Está a ver aqueles pequenos rebentos a sair do chão? São do

sistema de raízes desta planta - soltou a planta com cuidado e fitou-


o

nos olhos. - Eles são indefesos. Eu não. Está a fazer muitas


perguntas,

John Kipling. Começa a parecer-se com o Terry Sullivan.

- Ele ligou para si?


- Ele, entre muitos outros. É natural, suponho... uma vez que eu

sou presidente do clube e a Maida se dedica à jardinagem. Mas ele


tem sido o mais persistente.

- O que Lhe disse?

- Apenas o que Lhe vou dizer a si - virou o rosto de amor-perfeito

para cima, de lábios firmemente cerrados. - Nada.

- Ah - disse John. Depois tentou mais uma vez: - Mas eu não

estou a escrever um artigo para o jornal.

- Talvez não. Mas a Maida é minha amiga. Não Lhe vou revelar

coisas privadas.

- E sabe coisas privadas?

- Claro que sim. Conheço a Maida há trinta e cinco anos.

Mais uma vez a postura provocadora da cabeça, os lábios


firmemente cerrados. Olhou para John durante um longo minuto,
enquanto

ele tentava encontrar outra abordagem. Quando viu que não


conseguia arranjar nenhuma com que a sua consciência
conseguisse viver, ela lançou-Lhe um sorriso presumido e afastou-
se.

John tentou imaginar os segredos de Maida enquanto conduzia até


Ridge, mas as coisas que Lhe ocorreram eram todas vistas e
batidas. De qualquer maneira, o exercício mantinha-o distraído,
afastava o estado de espírito sombrio que se abatia sobre ele à
medida que se aproximava. Levantou a mão para cumprimentar
algumas pessoas nos alpendres, mas não cruzou olhares com
ninguém nem ficou à espera de acenos em resposta. Estacionou em
frente da casa de Gus, pegou no saco de mercearias e entrou.

Gus estava no sofá, meio sentado, meio deitado. Vestia um par de


calças verdes amarrotadas e uma camisa cor de laranja mal
abotoada. john dera instruções a Dulcey para o barbear dia sim, dia
não,

mas ele devia ter resistido, porque a barba cinzenta que ostentava
tinha mais de dois dias. Com os olhos tortos e o cabelo branco
desgrenhado, era a figura mais triste que John alguma vez vira. E
tinha as meias rotas.

Isso irritou John. Apertando o saco de mercearias, aproximou-se do


sofá.

- O que aconteceu às meias novas?

- Quais meias novas? - resmungou Gus sem olhar para ele.

- Uma dúzia de pares de meias que pus na tua gaveta o mês


passado.

- Não te pedi nada.

- Pois não, mas eu comprei-as na mesma. Eram um presente.

- Gosto mais das minhas.

- As tuas estão rotas.

Gus ergueu os olhos. Tinha o olho esquerdo meio fechado. - O que


tens a ver com isso? Se eu quiser usar meias rotas, o

problema é meu. E podes dizer à Dulcey Hewitt que não ponha cá


mais os pés. Estou farto que as pessoas me digam o que devo
fazer. Deixem-me em paz.
Parecia tão infeliz que John ficou sem saber o que fazer. Por isso
dirigiu-se à cozinha, que estava surpreendentemente limpa e arru
mada. Se Lhe pedissem um palpite, diria que Gus estava sentado
no sofá desde que Dulcey saíra, nessa manhã.

- Já almoçaste? - perguntou.

Quando Gus não respondeu, espreitou para a sala. Gus estava a


olhar para o chão. Em vez de correr o risco de provocar outra
discussão, John arrumou as mercearias, fez uma omeleta e torradas
com manteiga e trouxe a comida para a sala.

Gus levantou o olhar do chão para o prato.

- Tem tudo o que tu gostas - disse John. - Fiambre, queijo e


pimentos verdes. A torrada é de pão de aveia, feito hoje de manhã
pelo Charlie.

- Detesto pimentos verdes.

John não acreditou nem por um segundo. Este era o homem que
costumava esmagar um pimento verde na mão, parti-lo aos pedaços
e comê-los um a um. Mas não ia discutir. Não valia a pena.

- Pode ser, mas fazem-te bem.

Gus soltou uma fungadela desdenhosa.

- Fazem-me forte? Fazem-me voltar a ser jovem? Ah! - mas pegou


no prato.

Calculando que ele comeria melhor se o orgulho não estivesse a


atrapalhar, John deixou-o sozinho. De pé, junto ao fogão, comeu o
resto da omeleta directamente da frigideira e lavou a loiça. Com
vontade de fazer mais qualquer coisa, limpou as prateleiras do
frigorífico. A maior parte da comida que trouxera da última vez
desaparecera, embora não tivesse forma de saber se Gus a comera
ou se Dulcey acabara por a deitar fora.
Depois de uns bons vinte minutos, atreveu-se a voltar à sala. Gus
estava a dormir. Parecia que não tinha movido um músculo. Mas o
prato estava vazio.

Satisfeito, arrumou-o. Depois ficou algum tempo sentado na velha


poltrona, a olhar para o pai, como costumava fazer quarenta anos
antes. Gus parecia-Lhe na altura enorme, um homem grande com
olhos grandes, que viam tudo, e uma voz forte e brusca. john
lembrava-se de estudar as veias salientes nos antebraços do pai, as
cicatrizes nos seus dedos, os pêlos na curva das orelhas. Na altura,
para ele, todas essas características eram sinais de força.

Admirava Gus. Mas dizer-Lho era outra história.

John não conhecia os segredos de Maida, mas conhecia os de Gus.


Havia o facto de ser filho ilegítimo, e o casamento fracassado.

Havia uma vida inteira a assentar pedra e o silêncio desse trabalho


solitário.

Gus era um homem reservado. Mas parte de John também o era.


Essa parte ficava feliz por poder sentar-se a escrever. Escrever
também era um trabalho solitário. Implicava mesmo - apesar do que
Gus dizia - uma certa arte.

Não que Gus alguma vez concordasse. Gus não tinha em grande
conta aquilo que John fazia. Rudyard Kipling escrevia ficção. Isso
era criativo. Mas não-ficção? Para Gus, os jornalistas escreviam
sobre as notícias porque não tinham inteligência para criar as
notícias. John podia discutir até perder a voz, mas nada que ele
dissesse convenceria Gus. Talvez um livro com sucesso comercial o
conseguisse.

O fax que estava à sua espera no escritório, quando passou por lá


no regresso de Ridge, animou-o um pouco. Era de Jack Mabbet, e
muito informativo em duas frentes.
Paul Rizzo lançara a sua carreira com base num currículo falso.
Afirmava ter o bacharelato em Inglês pela Universidade de Duke e
ser licenciado em Jornalismo pela Universidade de Nova Iorque. Na
verdade, começara em Duke, chumbara, transferira-se para a Uni
versidade de Miami e desistira. Portanto não havia bacharelato
nenhum. Quanto à Universidade de Nova Iorque, nunca concorrera
a nenhum curso, muito menos se chegara a matricular. Enganara
tanto os seus patrões como os seus leitores.

E Justin Barr, o defensor dos valores do lar, família e castidade?


Tinha uma predilecção por sexo bizarro, conforme afirmava um
pequeno círculo de prostitutas especializadas em fazer coisas a
homens casados que as respectivas mulheres se recusavam a
fazer. Tinham uma clientela privilegiada, que pagava bem pela
privacidade. Mas havia registos. Havia fotografias. Não restava
qualquer dúvida. Tinham Justin Barr na mão.

Se John fosse Terry, teria começado imediatamente a planear a


forma mais chocante e prejudicial de utilizar estas informações. Mas
John queria ser melhor do que Terry. Queria ser mais decente.
Portanto não o fez. Em vez disso; arquivou a informação,
simplesmente satisfeito por saber que ela estava ali, para o caso de
algum dia poder vir a ser útil.

Antes de sair para o lagar de sidra, na segunda-feira de manhã, Lily


telefonou a Cassie. Não saíra qualquer retractação no jornal do dia,
e a semana de prazo chegara ao fim. Cassie prometeu que teria a
acção registada antes do final do dia, mas Lily estava
profundamente desapontada. Estivera a rezar por uma resolução
mais rápida. A sua vida estava no limbo. Precisava de resolver as
coisas para poder seguir em frente.

O ritmo da prensa de sidra era mais reconfortante que nunca.


Vestida de borracha dos pés à cabeça, deitou mãos ao trabalho.
Levantou, empurrou, puxou e dobrou, e até lavou o chão com a
mangueira quando Maida saiu para ir buscar mais maçãs. Quando
os outros pararam para beber café, ela própria conduziu a
empilhadora. Foram precisas várias tentativas para conseguir
manobrar a máquina de modo a posicionar o grande caixote de fruta
no local exacto, à beira da tina de lavagem, mas conseguiu - com
bastante satisfação. Assim que os outros voltaram, subiu de novo
para a plataforma junto da prensa, dispondo camadas de grades,
panos e puré.

Quando chegou a hora de almoço, ela sabia do que estava a


precisar. Lavou-se rapidamente e correu para a casa grande, mas
desta vez não se dirigiu à cozinha. Dirigiu-se ao bonito piano de
meia cauda na sala de estar, sentou-se no banco de mogno e
levantou a tampa.

Sentiu alívio quando tocou na primeira tecla. Ali estavam as suas


velhas e queridas amigas. Roçou as pontas dos dedos nelas e
inspirou o seu cheiro antigo de marfim. Depois posicionou as mãos
e começou a tocar. Não pensou em canções, deixando os dedos
moverem-se como se tivessem vida própria, e eles conheciam o seu
coração. Criaram sons doces e melancólicos, como as suas
emoções - um pouco solitária, um pouco confusa, mas satisfeita,
muito satisfeita por estar ali.

Fechando os olhos, deixou-se arrebatar pela beleza dos acordes. A


tensão no seu estômago começou a dissolver-se. Os seus pensa
mentos acalmaram. Quando sentiu a força regressar, as suas mãos
imobilizaram-se. Respirou fundo, endireitou as costas e abriu os
olhos.

Maida estava de pé no meio da sala. Com uma mão na nuca e a


cabeça inclinada, parecia tão envolvida como Lily. Baixou a mão e
endireitou a cabeça com um suspiro.

- Mais ninguém consegue tirar sons assim dessas teclas - disse,


num tom melancólico. Depois respirou fundo e disse num tom mais
natural: - Queres almoçar?

Lily sentiu-se reconfortada pelo elogio e sim, de repente estava


cheia de fome. Começou a levantar-se.
Mas Maida já ia a sair.

- Deixa-te ficar aqui e toca. Eu trago-te qualquer coisa. Um segundo


elogio? Maida a servi-la?

E assim Lily tocou, escolhendo canções de que a mãe gostava, em


parte para Lhe agradecer, em parte porque presentear as pessoas
era o que fazia melhor. Continuou a tocar quando Maida voltou com
um grande tabuleiro de prata. A julgar pela forma como Maida Lhe
apresentou as sanduíches de queijo e fiambre e Lhe serviu o chá
aromático, mais parecia que ela era uma visita.

- Obrigada - disse, quando estavam sentadas no sofá. Maida estava


a espremer limão para o seu chá.

- É o mínimo que posso fazer. Tens sido uma grande ajuda no lagar.

- Gosto do trabalho.

- Devia pagar-te.

Lily pegara numa metade de sanduíche, mas pousou-a de imediato.

- Não faças isso.

- Também pago aos outros.

- Os outros não são da família. Não me importo de ajudar. Que mais


tenho para fazer?

- Podias estar com a Cassie - disse Maida, sacudindo migalhas do


colo. - Vais mesmo avançar com um processo?

- Não tenho grande escolha.

Maida deu uma dentada na sanduíche. Depois pousou-a e sorriu.

- Lembras-te da Jennifer Hauke? Andava na escola contigo. Agora é


Jennifer Ellison, casou com o Darby Ellison, aquele rapazinho de
cabelo escuro. Acaba de ter um bebé. É o terceiro. Outra rapariga.

Lily não sabia qual era a ligação entre o novo bebé de Jennifer

Hauke e a acção que ela ia pôr contra o jornal, mas o bebé era sem
dúvida um tema de conversa mais neutro.

- Que giro. Eles vivem por aqui?

- Não. Têm uma casa em Center Sayfield. A Anita Ellison morreu o


mês passado.

- A avó de Darby? Que pena.

- Era uma das boas amigas de Celia.

Lily lembrava-se disso. Passava tempo suficiente em casa de Celia


para conhecer as suas amigas, porque Celia adorava recebê-las.
Convidava-as aos grupos, parecendo um peixe na água quando
tinha a casa cheia. Lily lembrava-se de se enroscar na cama, no
sótão, enquanto as senhoras riam como loucas de coisas que ela
não compreendia. Geralmente essas coisas tinham a ver com
homens. Lily gostaria de poder ouvi-las agora.

- Sinto a falta da Celia - disse Maida, surpreendendo-a.

- Eu também.

- Ela era boa pessoa.

- Pois era.

- Tinha um grande coração.

- E umas grandes orelhas - recordou Lily. - Eu podia falar com ela


sobre quase tudo.

Isso trouxe Maida de volta ao presente. Endireitou-se no sofá.


- Pois podias. Mas a tua geração é diferente, nesse aspecto. A
minha geração nunca teve permissão para falar sobre certas coisas.
- Não é preciso permissão. Basta dizeres o que pensas. Maida
soltou uma gargalhada.

- Não é assim tão fácil.

- É, sim.

Ela olhou para Lily, agora com uma expressão de desafio.

- O que querias que eu dissesse?

Lily recuou. Ela e a mãe tinham partilhado tão poucos momentos de


companheirismo que não queria estragar as coisas.

- Estava apenas a falar hipoteticamente.

- E eu estou a falar a sério. O que querias que eu dissesse? Lily


sentiu a velha rigidez ao fundo da língua. Concentrou-se em
descontrai-la, depois disse:

- Como foi a tua infância. Não faço a mínima ideia.

- E que importância tem isso? Que diferença faz? A minha vida


começou quando casei com o teu pai. E tu não tens moral para me
dizeres que eu devia falar mais. E os teus pensamentos? Contava-
los a Celia, mas nunca a mim.

Lily recusou-se a desviar os olhos.

- Tinha medo de gaguejar.

- Não te oiço gaguejar agora.

Não. Estava a pensar claramente. Estava controlada. Do outro lado


da casa, ouviram um grito:

- Mamã ?
- Estou aqui - gritou Maida em resposta. - É a Rose. Lily sabia. A
voz de Rose era diferente da de Poppy, e mais ninguém chamava
mamã a Maida.

Rose apareceu à entrada e lançou um olhar espantado ao tabuleiro


de prata, com as sanduíches, o bule e as chávenas.

- Muito bem - disse. - Elegância a meio de um dia de trabalho.

- Tínhamos de comer - explicou Maida, oferecendo o prato de


sanduíches. Ainda havia uma metade. - É para ti, se quiseres.

Rose abanou a cabeça.

- Não tenho tempo. Deixei-te um peito de peru no frigorífico. já está


feito. Basta aquecer. A escola hoje acabou mais cedo. Tenho as
miúdas no carro.

- Só a Emma e a Ruthie - disse Hannah, passando por ela. - Olá,


avó. Olá, tia Lily.

- Eu dissete para esperares no carro - disse Rose.

- Elas estavam a beliscar-me - encostou-se ao braço do sofá mais


perto de Lily. Lily acariciou-Lhe o ombro e foi recompensada por um
sorriso radiante. - Elas podem vir. As quatro.

- Fantástico! - disse Lily.

O combinado era um filme e um jantar. Hannah pedira para convidar


três amigas. Quando Lily concordara, perguntara cautelosamente se
podia convidar uma quarta.

- Para o caso de alguma não vir. Podem não querer.

- Vão querer - dissera Lily, rezando para que assim fosse. Ela e
Hannah tinham escrito os convites no bonito papel de carta de
cornucópias de Maida. Hannah tinha obrigado o pai a levá-la à
estação dos correios na sexta-feira à noite, para os enviar. Lily
soubera disto através de Poppy, que o soubera através de Rose,
que segundo parecia ficara ligeiramente aborrecida.

- Puro sentimento de culpa - dissera Poppy a Lily. - Ela sabe que


devia estar ela a tratar da festa, mas, depois de ter dito que era
contra, não levantará um dedo para ajudar.

- Ela está a dar comigo em doida com esta história da festa - disse
Rose agora, a Lily e Maida.

- Não estou nada - disse Hannah, mas o seu brilho desvanecera-se.


Agora num tom nervoso, murmurou a Lily: - É que não sei o que hei-
de vestir.

- Tem um armário cheio de roupas - interveio Rose. - A culpa não é


minha se nada Lhe serve.

- Compraste-as muito pequenas.

- Tu é que cresceste muito depressa.

- Não posso evitar.

- Oh, podes sim!

As palavras eram diferentes, mas o tom de voz era precisamente o


mesmo. Lily recordava-se de demasiadas discussões como esta na
sua própria infância para conseguir suportar outra.

- Acho - disse, rapidamente - que temos de ir às compras. Não


trouxe muitas roupas comigo. Não s-s-sabia quanto tempo ia ficar.
Não tenho nada adequado para esta festa.

- É só um filme - disse Rose. - O que tens vestido serve muito bem.

- É uma festa de aniversário - retorquiu Lily de imediato. O momento


de gaguez passara. Sabia o que queria fazer. - A Hannah pode

vir comigo às compras. Compraremos qualquer coisa nova para as


duas. Sou eu que ofereço.

- Quando? - perguntou Hannah, novamente radiante, e, de

repente, Lily sentiu-se tão excitada como ela.

Foram na tarde do dia seguinte. Lily estava a acabar de se lavar,


depois do trabalho no lagar, quando Hannah apareceu a correr. A
Tshirt

demasiado grande e as calças de ganga largas favoreciam-na tão


pouco como sempre, e tinha o cabelo preso num rabo-de-cavalo
que realçava as faces rechonchudas, mas essas faces estavam
rosadas e os olhos cheios de vida. A parte de Lily que se
identificava tanto com Hannah ficou satisfeita - a promessa estava
decididamente presente.

Dirigiram-se a sul, à cidade de Concord. Poppy dera a Lily uma lista


de lojas, por ordem de preferência, mas não precisaram de ir longe.
Na primeira loja da lista, Hannah apaixonou-se por um vestido. Era
um vestido axadrezado, de corte Império, num tecido macio que
caía muito bem. Hannah não conseguia tirar os olhos do seu reflexo
no espelho, e Lily sabia porquê. O vestido fazia-a parecer crescida -
e notavelmente esguia.

Compraram uma fita para o cabelo a combinar, um par de colãs


verdes para combinar com o verde do axadrezado, e um par de
sapatos com uma pequena cunha.

Depois de guardarem as coisas, seguiram para a parte da loja que


tinha as roupas para Lily e, mais uma vez, Hannah apaixonou-se.
Momentos depois de Lhes tocar, Lily estava a experimentar uma
saia comprida, um colete e uma blusa. A saia e a blusa eram de
uma suave seda azul-seco; o colete era tecido numa dúzia de cores
a combinar. Lily podia ter procurado durante dias e não ter
encontrado nada melhor.
- Sapatos também? - perguntou Hannah, agora completamente
envolvida nas compras.

- Obrigada - disse Lily -, mas eu tenho sapatos.

- Então uns brincos - disse Hannah, apontando para um expositor.

- Obrigada - disse Lily, no mesmo tom de censura fingida -, mas eu


tenho brincos - pegou na carteira. - Não podemos abusar do meu
cartão de crédito - tirou-o e entregou-o à vendedora, que começou a
registar a venda.

Lily só se apercebeu do que fizera quando a rapariga ficou muito


parada. Uma jovem moderna e encantadora, talvez com vinte e
poucos anos, olhou para o cartão de crédito, depois para Lily, depois
de novo para o cartão de crédito. Arregalou os olhos.

- Você é a Lily Blake? - perguntou por fim, num tom estupefacto.

- A Lily Blake?

O coração de Lily começou a bater mais depressa. "Nega", disse


uma voz dentro dela. "Há mais Lilys Blakes no mundo. "

- Eu sabia que a sua cara me era familiar - gritou a rapariga com um


sorriso excitado. - Não aparecem muitas pessoas famosas por aqui -
abriu a boca, num O de espanto. - Oh, meu Deus, espere até eu
dizer à minha patroa. Vai ficar danada por não ter estado aqui.

Lily sentiu a língua ficar tensa. Ergueu a mão e abanou a cabeça,


enquanto se forçava a relaxar. Assim que conseguiu, disse:

- Não faça isso. Estou escondida.

- Só à minha patroa - prometeu a rapariga. - Ela vai morrer.

De súbito, Hannah estava ao lado de Lily. Muito direita, no tom de


uma fedelha arrogante, disse:
- Se disser a alguém, vai dar cabo do meu aniversário. Se disser a
alguém, nunca mais voltaremos a esta loja. Nem eu, nem a minha
mãe, nem ninguém da minha família, nem ninguém da minha
cidade.

Fedelha arrogante? Soava igualzinha a Rose! Nesse momento, Lily


nem sequer se importou. A única coisa que conseguia pensar,
enquanto assinava rapidamente o talão e saíam da loja com os
sacos, era que devia ter pago em dinheiro.

O telefone de Poppy tocou bem cedo, na quarta-feira de manhã.

Não era o primeiro telefonema, e não seria o último, mas era aquele
que Lhe interessava mais.

- Olá, Poppy - disse Griffin Hughes. - Como está a minha

menina?

Ela adorava a voz dele, oh, como a adorava.

- Bem. Mas... onde está o Willie Jake? - a chamada chegara através


da linha do Departamento de Polícia; mas Willie Jake não dissera a
Poppy que ia sair.

- Está na secretária dele. Pedi-Lhe que transferisse a chamada para


si quando ele se recusou a falar comigo. Ele disseme que você
também não diria nada, mas eu tinha de tentar.

- Eu falo sempre consigo.

- Mas não sobre a Lily.

Poppy soltou a respiração.

- Aaah! E eu a começar a pensar que estava interessado em mim.

- E estou!
- Mas está sempre a fazer perguntas sobre a Lily! Toda a gente faz
perguntas sobre a Lily!Já recebi quatro telefonemas esta manhã de
pessoas da imprensa a perguntar pela Lily!

- Isso é porque o mundo já sabe que ela está de volta. Desta vez é
mais do que um rumor. Ela foi vista. Então, o que pensa?

- Sobre o quê?

- Sobre o facto de ela ter voltado.

Poppy suspirou.

- Griffin, Griffin, Griffin. A imprensa foi cruel com a minha irmã. Que
tipo de pessoa seria eu se Lhe dissesse alguma coisa?

- Eu não sou da imprensa. Sou um escritor. É diferente. Uma pessoa


da imprensa trabalha para alguém. Tudo o que escreve está sujeito
a um trabalho de edição. Trabalha com um prazo, tem de levar em
linha de conta o potencial de vendas e as políticas de gestão.

- E você não?

- Não. Sou patrão de mim próprio. Escrevo um artigo como quero,


depois ponho-o à venda. já fiz outros artigos para a Vanity Fair. Eles
gostam de mim. Gostam do meu trabalho.

- Não estão interessados nas vendas? - perguntou Poppy. - Não


acredito.

- Estão. Mas o que eu escrevo é aquilo que o seu público-alvo quer


ler. Encaixamos bem, por assim dizer.

- E eles não querem este artigo para ontem?

- Querem. Uma boa parte já está feita. Comecei a escrevê-lo muito


antes de isto acontecer à Lily. Mas a experiência dela acrescenta
alguma coisa. Vá lá, Poppy - implorou. - Diga-me qualquer coisa.
Ela sentia-se muito tentada, tal era o poder da voz dele.

- Porque é que telefona para mim? Porque não liga para outra
pessoa qualquer?

- Já tentei. Telefonei para, ah... - ela ouviu o som de papéis a serem


remexidos - um agente imobiliário chamado Allison Quimby, um
velhote chamado Alf Buzzell, e o dono da loja e do café.

- Algum deles Lhe disse que Lily está cá?

- Não disseram que sim nem que não. Nunca conheci pessoas mais
evasivas.

Poppy sorriu.

- Ser evasivo não é um crime. Protegemos os nossos, mais nada. já


Lhe contei a história da cabaça sagrada?

Houve uma pausa, e depois Griffin disse num tom divertido:

- Não me parece.

- Bom, em tempos houve uma cabaça sagrada. Uma cabaça é uma


espécie de abóbora de casca dura.

Ele pigarreou.

- Creio que aprendi isso algures.

- Bom, esta cabaça cresceu, um certo Verão, numa quinta na


extremidade sul do lago, e era uma beleza, toda verde e púrpura,
quase sumptuosa. Havia nela qualquer coisa invulgar, qualquer
coisa edificante. Uma pessoa podia estar ali no campo a olhar para
ela, e, passado algum tempo, sentia-se melhor do que quando tinha
chegado. Se tivéssemos uma dor de cabeça, ela melhorava. Se
tivéssemos um dilema, encontrávamos soluções.

- O que é que a cabaça fez por si?


Poppy prendeu a respiração.

- Como assim?

- Com que problemas é que a cabaça a ajudou? Uma pergunta


inocente. Ela soltou a respiração.

- Isto aconteceu no princípio dos anos cinquenta. Eu ainda não era


nascida.

- Oh. Está bem, continue.

- Então - disse ela, relaxando -, as pessoas sentiam qualquer coisa


depois de visitarem esta cabaça. Iam para casa e contavam aos
amigos das cidades vizinhas e essas pessoas vinham para a ver. A
notícia chegou à cidade grande e, assim que lá chegou, bem, você
sabe como as notícias se espalham por aí. Bastou um pequeno
artigo no jornal, e começaram a vir pessoas de todo o Estado de
New England para a ver.

- Devia ser um quintal muito concorrido.

- Nunca subestime os ianques - disse Poppy. - São organizados e


astutos. Controlaram a multidão, montando bancas a vender
produtos locais no perímetro do campo. Assim, as pessoas que
vinham ver a cabaça tinham com que se entreter enquanto
esperavam.

- Assim - disse Griffin - os habitantes locais ganhavam alguma


coisa.

- Isso também - admitiu ela -, mas quem pode culpá-los? Era a


época da colheita. Eles tinham quilos de milho-doce e maçãs, e
litros de sidra, mesmo ali à mão de semear.

- Então, se eu aí fosse, visse essa cabaça, e comprasse essa sidra


e voltasse para casa a sentir-me melhor, nunca saberia se era por
causa da cabaça, da sidra, ou do passeio ao campo.
- Oh, não era a cabaça - garantiu-Lhe ela. - Era apenas uma velha
cabaça normal que, por acaso, tinha uma coloração invulgar. Os
locais excluíram desde logo que a cabaça tivesse alguma
propriedade miraculosa.

- Então foi tudo apenas um truque de marketing?

- Brilhante, não Lhe parece?

Griffin não disse nada durante a curta pausa que se seguiu, mas
Poppy conseguiu ouvir um sorriso na sua voz profunda quando ele
perguntou:

- O que aconteceu à cabaça?

- Um porco comeu-a no final da estação. Consta - disse, carregando


no sotaque - que aquele porco deu um bacon soberbo.

Ele riu-se.

- E a moral desta história é que os habitantes de Lake Henry são


matreiros quando se trata de cuidarem dos seus próprios interesses.

- Exactamente - disse ela.

- Parece-me um sítio de que eu havia de gostar. Devia mesmo ir aí


dar uma vista de olhos.

Mas a fantasia de Poppy era que ele era o seu príncipe, e que ela
podia caminhar até aos braços dele. Se ele viesse visitar Lake
Henry, a fantasia iria por água abaixo.

- Não seria bem-vindo aqui - avisou. - Pelo menos da maneira que


as coisas estão.

- Com a Lily aí, é o que quer dizer?

- Não - disse ela cuidadosamente. - Não era isso que eu queria


dizer. Nunca disse que a Lily estava cá. Mas não sou a única que
está farta de telefonemas a perguntar por ela.

- Diga-me que ela não está aí, e eu paro de telefonar.

Por um instante, Poppy viu-se encurralada. Mas uma das coisas


boas de ter perdido o uso das pernas era que a sua mente se
tornara mais ágil, para compensar. A sua voz assumiu um tom mais
gentil. A fantasia renasceu.

- Mas eu quero que volte a telefonar. Gosto de falar consigo. Por i


sso telefone mais vezes, Griffin Hughes. Quando quiser.

Na quarta-feira de manhã, John sentia-se pressionado. Estava a


esforçar-se para acabar a edição semanal do Lake News, mas jenny
ficara em casa com uma constipação e o telefone não parava de
tocar. Os telefonemas dos meios de comunicação exteriores eram
despachados rapidamente; dizia não saber onde Lily estava, o que
tecnicamente era verdade, nesse preciso momento. O telefonema
de Richard Jacobi foi mais complicado.

Richard ouvira dizer que Lily estava na cidade e estava preocupado,


com receio de que John não conseguisse qualquer coisa
rapidamente e de que alguém se antecipasse a ele. john disseLhe
que não havia mais ninguém em cena que fosse de Lake Henry.
Richard recordou-Lhe que o acordo era para uma história exclusiva
que seria publicada em forma de livro antes do Verão. john disse
que compreendia, mas contrapôs que sabia com toda a certeza que
as editoras podiam transformar um manuscrito num livro no espaço
de um mês, se quisessem. Richard argumentou que isso tornava as
coisas mais difíceis - principalmente tratando-se de um livro tão
sensível em termos legais, escrito, se John Lhe permitia a
observação, por alguém sem qualquer experiência anterior - e que
já se arriscara muito ao oferecer-Lhe o acordo que Lhe oferecera.
john recordou-Lhe que ainda não tinha nenhum contrato. Richard
disse que estava a tratar disso.

Acabaram a conversa numa nota amigável, mas John desligou com


uma sensação de aperto no estômago, uma sensação que não tinha
desde que era o jornalista stressado da fotografia pendurada na
parede. Parte do problema era o tempo; os bons livros não se
escreviam em meia dúzia de dias: E, claro, parte tinha a ver com
Lily; ele gostava demasiado dela para a pressionar por informações
que ela não estava preparada para dar. Sentiu-se mesmo culpado
quando pensou em bisbilhotar a história de Maida naquela pequena
cidade madeireira do Maine rural.

Mas, na verdade, parte do problema era também o Lake News. Este


ainda era o seu emprego. Podia ser apenas um semanário regional,
mas dava muito trabalho e era uma grande responsabilidade - e ele
orgulhava-se disso. Uma vez que o seu nome aparecia em destaque
no cabeçalho, queria que cada edição fosse boa.

Assim, afastou da mente o resto e concentrou-se em inserir


anúncios de serviços comunitários entregues depois do prazo, em
reler uma última vez os artigos principais, em reescrever um artigo
menos bom proveniente de Center Sayfield, e em finalizar a
colocação das fotos relativas às notícias locais e desportivas.
Enviou a última página para a gráfica pouco antes da uma hora, e
depois recostou-se na cadeira, fechou os olhos e beliscou a cana do
nariz, tentando aliviar a sensação de pressão na cabeça.

Ainda tinha o estômago às voltas, e ficou ali sentado a pensar que


voltara para Lake Henry precisamente para fugir a esta sensação.
Estava a pensar que, afinal de contas, talvez não fosse talhado para
escrever livros, quando Terry Sullivan telefonou, portanto não foi
com o melhor dos humores que John o atendeu. Térry também não
ajudou nada quando disse em tom presumido: - A tua rapariga foi
vista com a sobrinha numa loja em Concord, ontem. Ainda estás a
fazer-te de parvo em relação ao paradeiro dela?

Irritado, John inclinou-se para a frente.

- Porque estás a ligar para mim? Por que raio estás sequer a pensar
na Lily Blake? A história morreu. já te disse isso da última vez que
ligaste, e continua morta - estava revoltado. - Tudo não passou de
um balão de ar quente que não deu em nada. Meteste água, Terry.
- Eu não. A minha história mantém-se.

- Por causa da cassete? - atacou John. - A Lily não sabia que estava
a ser gravada. Isso é ilegal.

- Ah, então falaste com ela. Isso quer dizer que ela está de volta.

- Ilegal, Terry. Se eu fosse a ti, estaria preocupado com isso, não


com o paradeiro dela. O que te importa, de qualquer maneira?

- Estou a escrever um artigo de seguimento.

John não podia acreditar - e isso não tinha nada a ver com o seu
lado mais competitivo.

- Para que jornal? Caso não tenhas reparado, o Post largou a


história. Além disso, um seguimento sobre o quê?Jornalistas que
criam escândalos falsos?

- Experimenta antes cantoras de cabaré que se deixam levar pela


imaginação e confundem as fronteiras entre fantasia e realidade.

- Sim, claro. E vais provar isso com uma cassete ilegal? - de súbito,
lembrou-se de uma coisa. - Uma cassete manipulada?

Houve uma pausa, e Terry disse em voz fria:

- Tens um grande descaramento.

- Eu não - disse John. Conseguia sentir um músculo a pulsar


debaixo do olho. - É preciso descaramento para perseguir algo que
já foi desacreditado. Mas aqui estás tu, a telefonar-me de novo.
Estou apenas a dizer-te que esta história tem outro lado. Da última
vez que falámos, disseste que eu tinha perdido o jeito. Nem sonhes.
Para começar, sei quem telefonou para a mulher do chefe da Polícia
local, sob falsos pretextos, e enganou uma inocente senhora de
idade para a levar a mencionar um caso cujo ficheiro foi selado há
dezoito anos. Sabes como sei? Há uma cassete. Irónico, não é? Cá
se fazem, cá se pagam. Mas esta cassete é legítima, porque se
trata de uma linha oficial da Polícia, e tem a tua voz gravada. Se não
acreditas que eu a reconheço, podemos levá-la a um especialista.
Também tenho uma colecção cada vez maior de artigos que podes
ter plagiado durante a universidade.

- Estás a investigar-me a mim?

John não tencionava defender-se. Não ia comportar-se como Terry


Sullivan, nem por sombras. Não tencionava levar as suas alegações
a público, denegrir pelo mero prazer de denegrir. Tal como as
informações sobre Rizzo e Barr, era apenas algo que era bom ter.

- Que tipo de escritor faz plágio?

- Na universidade? A universidade é história antiga. Além disso, não


tens provas.

- A questão é que acho que não deves estar interessado no debate.


Podia prejudicar a tua carreira. E depois - John estava lançado - há
as coisas pessoais estranhas, como as três mulheres. Na altura eu
pensava que éramos amigos, Terry, mas nunca soube que tinhas
sido casado uma vez, quanto mais três vezes. Andámos juntos na
universidade. Nenhum dos nossos amigos era casado. Ninguém
soube que tu eras. Nem dessa vez, nem das outras duas vezes.
Porquê tanto segredo? Três vezes... porquê tanto segredo? O que é
que Lhes fazes, Terry? Manténs as pobres amarradas e
amordaçadas? Há qualquer coisa que cheira mal em relação a
essas mulheres... aposto que elas têm histórias para contar. E
depois, temos o cardeal. Que raio te fez o cardeal Rossetti? - tinha
de haver alguma coisa, tinha de haver alguma coisa. - Guardas
algum rancor pessoal contra ele? Ou contra a Igreja? És mais um
sacristão que foi molestado pelo padre?

A voz de Terry era gelada.

- Nunca fui sacristão.


- Talvez um menino do coro, então? Tem de haver uma razão para
arruinares uma mulher inocente na tentativa de derrubar o cardeal.

- O que te é ela a ti? - retorquiu Terry. -Andas a dormir com ela,


Kipling? A tentar deixar-me mal visto para poderes ficar tu bem
visto?

John levantou-se da cadeira.

- Não faço ninguém parecer aquilo que não é, mas estou a avisar-te.
Se remexeres na vida dela, ela vai remexer na tua.

- Ela, ou tu?

- É a mesma coisa - disse John, e bateu com o auscultador.


Segundos depois, pegou-Lhe de novo e telefonou para Brian
Wallace, no Post.

- Uma pergunta rápida - disse, ao perceber que Brian não parecia


encantado por ouvir a sua voz. - Aquela cassete que Terry gravou

com a sua conversa com a Lily Blake...

- Se estás a pensar em fazer queixa, não podes afectar-nos. Não


temos provas de que ela não tinha conhecimento. Publicámos a
história na convicção de que tinha. já falei com os nossos
advogados em relação a isso. O jornal está juridicamente protegido.
Se alguém levantar um processo contra nós, não conseguirá nada.

Ele parecia excessivamente defensivo, pensou John - e nem sequer


era por isso que Lhe estava a telefonar.

- Verificaste a autenticidade da cassete?

- O que queres dizer?

John achava que tinha sido perfeitamente claro.

- Verificaste a autenticidade da cassete? - repetiu.


- Autenticidade, como? Se é de facto a voz da Lily?

- Não estava sequer a pensar nisso, mas é uma boa questão. O que
eu queria dizer é se a cassete não foi artificialmente manipulada.

- Que raio queres dizer com isso?

- Cortada e montada, Brian. Sabes como se faz. As palavras podem


ser deslocadas ou completamente eliminadas. A televisão está
sempre a fazer isso. Chama-se editar uma entrevista... só que o
resultado final muitas vezes transmite uma mensagem diferente do
original. Achas que o Terry poderá ter feito isso? Qualquer pessoa
com conhecimentos rudimentares de uma máquina de edição podia
tê- lo ajudado. Raios, o Terry é um tipo esperto. Ele próprio o podia
ter feito.

- Porque pensas isso?

- Porque a mulher em questão nega ter dito as coisas que ele cita
no jornal como sendo afirmações dela. Estou a partir do princípio
que, se ouviste a cassete, ela deve ser mais ou menos como o que
ele escreveu, caso contrário não o terias publicado dessa forma.

- Falaste com ela?

- A questão não é essa - disse John, com a paciência a esgotar-se.

- A questão é se o Terry adulterou a cassete.

Brian gemeu.

- E quando é que sugeres que ele tenha feito isso? Não teve tempo,
Kip. Esqueceste depressa. Era tarde, e ele estava a trabalhar em
cima do prazo para acabar o artigo.

- Aposto que tinha o texto todo escrito dias antes, à excepção das
citações.
- Sim, e saiu de junto de Lily, correu para aqui, e às onze horas
estava ao telefone comigo, a mostrar-me a cassete. Quando é que
achas que ele teve tempo para a editar?

- Ouviste tudo?

- Ouvi as partes incriminatórias.

- Mas como sabes que ele não omitiu outras? Como sabes que não
tirou essas partes do contexto, um contexto que mostraria que eram
apenas uma piada?

- Porque eu próprio a ouvi toda no dia seguinte.

- Quando? De manhã? À tarde? Ele podia ter passado alguns


excertos ao telefone nessa noite, e depois editado a cassete antes
de tu ouvires pessoalmente a versão integral. Achas que o fez?

Brian resmungou:

- Como raio queres que eu saiba?

- Podias mandar verificar a autenticidade da cassete.

- E por que raio havia de querer fazer isso?

- Para protegeres a tua pele - sugeriu John. - A história que o Terry


escreveu não bate certo com aquilo que a Lily afirma ter dito.

- Ela está a mentir.

- Ou então é ele que está a mentir. A história dele já caiu por terra.
Estás a defender um jornalismo de terceira?

Brian suspirou.

- Não vou levar isso a peito. Vou recordar a mim próprio que o Terry
não se portou muito bem contigo e que talvez, apenas talvez, tu
queiras vê-lo em maus lençóis. Mas o meu interesse é este jornal, e
esse não vai cair. Confia em mim, John. A cassete é verdadeira.

Normalmente, às quartas-feiras à tarde, John visitava Gus, mas


nessa quarta-feira não o fez. A conversa com Sullivan enfurecera-o.
Passou a tarde a fazer telefonemas. Seguindo um rasto de contratos
de arrendamento, localizou duas das ex-mulheres de Terry com uma
rapidez assustadora. A mais recente ainda vivia em Boston.
Chamava-se Maddie Johnson, e já estava avisada.

- Ele disseme que você me ia ligar. Não tenho nada a dizer.

- Porque não?

- Não tenho nada a dizer - repetiu ela.

- Ele ameaçou-a?

- Avisou-me de que me iria pressionar.

- Pressioná-la em relação a quê? - perguntou John, mantendo um


tom de voz baixo e razoável. - Oiça, não quero saber nada sobre si.
Estou interessado apenas no Terry.

- Sim, bom, fomos casados - resmungou ela.

- Mas já não são. Porque quer protegê- lo?

- Porque ele é perigoso! Se eu disser alguma coisa sobre ele, ele diz
alguma coisa sobre mim. Tenho os meus segredos, como toda a
gente. E você é da comunicação social, como o Terry. Sabe
exactamente o que quero dizer. Vocês são todos perigosos.

John estava à espera que ela Lhe desligasse o telefone na cara. Ao


ver que isso não acontecia, falou de modo mais gentil.

- Não sei o que o Terry Lhe fez enquanto estiveram casados... e,


sinceramente, não quero saber... mas ele arruinou uma mulher
inocente com esta história da Lily Blake. Estou apenas a tentar
perceber porquê.

- Ego. Ele quer manchetes. Sempre quis manchetes.

- E é só isso? Não há um motivo mais profundo? Algum


ressentimento contra a Igreja Católica?

- Porque me pergunta a mim? - gritou ela. - Pensa que ele só mente


no trabalho? Estive casada com ele durante quatro anos e só soube
que ele já tinha sido casado antes quando apanhei a ex-muLher
dele ao telefone. Então ele disseme que o casamento fora tão mau,
que tinha de fingir que nunca acontecera, caso contrário
enlouqueceria, mas depois telefonei para o jornal e ninguém sabia
da minha existência. Como pensa que me senti? Fartei-me de
perguntar ao Terry por que raio nunca saíamos com ninguém. Ele
queria que eu estivesse sempre em casa. Não queria que eu
trabalhasse, nada. Ficava furioso quando eu me encontrava com
amigas, e eu já vivia aqui antes de ele vir para a cidade. Dizia que
queria ter filhos. Ah! Eu caí na história dele, "vamos esperar até
termos algum dinheiro de lado", mas não estávamos a poupar
grande coisa. Ele mandava o dinheiro todo para a mãe... uma
mulher que eu nunca conheci porque ele dizia que ela era louca e
que estava completamente fora da vida dele. Mas afinal estava
morta. Soube disso durante o divórcio. Quer dizer, ao fim de algum
tempo, uma pessoa começa a questionar o que é real e o que não
é!

No silêncio súbito que se seguiu, ela deve ter percebido o que tinha
dito.

- Merda. Ele vai matar-me.

- Não, não vai - tranquilizou-a John. - Nunca saberá que falou


comigo.

- Você vai publicar o que eu disse.


- Não vou. já Lhe disse, é o Terry que eu quero. O meu palpite é que
qualquer uma das outras ex-mulheres me diria mais ou menos o
mesmo que você me disse.

- Só houve outra antes de mim.

- Houve duas.

Ela praguejou de novo.

- O Terry é louco.

- Eu diria que sim, mas não sou psiquiatra. Sou apenas um escritor
que está curioso sobre os motivos que o levaram a perseguir o
cardeal Rossetti. Tem alguma ideia?

Ela soltou uma gargalhada sarcástica.

- Eu sou a última pessoa que poderia saber. Uma semana depois de


nos conhecermos, casámos, numa cidadezinha sem nome, a meio
da noite, e a cerimónia foi celebrada por um juiz de paz com um
parafuso a menos. Nos quatro anos que estivemos juntos, o Terry
insistiu sempre que não sabia nada de religião. Tendo em conta as
outras mentiras todas, eu diria que provavelmente ele também
mentiu a esse respeito. Se há alguma resposta à sua pergunta,
estaria muito interessada em saber qual é.

John desligou com uma sensação de que, aos poucos, se estava a


aproximar das respostas. Aproximou-se ainda mais com a primeira
mulher de Terry. Rebecca Hooper parecia, pela voz, uma pessoa
ainda mais reservada e simples. Também ela reconheceu o nome
de John.

- Ele disse que me ligaria - disse, com voz tímida. Com base na
altura em que tinham estado casados, John calculou que ela devia
ter pelo menos quarenta anos, mas pela voz parecia ter metade
disso.
Gentilmente, perguntou:

- E disseLhe porquê?

- Disseme que faria chantagem comigo para me obrigar a contar


coisas sobre nós. Mas não há nada para contar - disse,
rapidamente.

- A sério.

John não ia insistir com ela nesse aspecto, tal como não insistira
com Maddie.

- Ele disseLhe que eu fui colega dele na universidade?

- Sim.

- Deve reconhecer o meu nome dessa altura.

- Não. Ele nunca falava da escola quando estava em casa.

- Porque não?

Ela demorou a responder, e depois disse:

- Não quero falar consigo.

- Não vou prejudicá-la. Estou apenas a tentar compreender melhor o


Terry.

- Boa sorte.

John riu-se.

- Pois. Ele é um enigma. Só deixa as pessoas aproximarem-se até


um certo ponto. Imagino que Lhe deve ter acontecido alguma coisa
em criança que o deixou assim.

- Sabe onde ele cresceu?


- Não - ninguém sabia, nem mesmo Ellen Henderson, que verificara
a ficha da universidade de Terry a pedido de John. Esta mostrava
apenas uma morada de Dallas relativa aos dois últimos anos de
liceu. Telefonara para o liceu, mas era muito grande. O seu
telefonema fora transferido de gabinete em gabinete, sem resultado.

- E você, sabe? - perguntou a Rebecca.

- Meadville.

- Pensilvânia? - perguntou John.

- Sim.

Já era um princípio.

- Agradeço muito ter-me dito isso.

- Eu só o conheci em Lancaster - era onde ficava a universidade.

- Mas tem razão.

- Em relação a quê?

- A ter acontecido qualquer coisa em Meadville.

- Faz alguma ideia do que terá sido?

- Não. Tenho de desligar.

Desligou o telefone, mas não fazia mal. john virou-se para o com
putador e começou à procura. Meadville era um ponto de partida
praticável. Tinha uma fracção do tamanho de Dallas.

Pouco tempo depois tinha o número de telefone do director-adjunto


do liceu de Meadville. O homem pareceu ficar encantado por John
Lhe ter ligado, e falou com todo o prazer.
- O Terry saiu daqui muito antes de eu chegar, mas pode ter a
certeza de que agora todos sabemos quem ele é. O director actual
chegou mesmo a dar-Lhe aulas quando ele cá esteve. Foi ele que
nos disse que era o Terry que estava por detrás daquela história.
Quero dizer, o que é que nós sabemos de decifrar fichas técnicas,
ainda por cima em jornais de Boston? Eu não saberia de nada se a
irmã do director não vivesse em Boston e não tivesse reconhecido o
nome, de ouvir o pAI falar dele há muitos anos.

- Ele foi assim tão memorável? - perguntou John. já passara muito


tempo desde os dias de liceu de Terry.

- Para um professor de Inglês, sim - respondeu o director-adjunto. -


Ele era uma anomalia no meio dos outros rapazes de dezasseis
anos. Sabia escrever. O irmão dele não. Esse era uma perda total
no Departamento Literário, embora fosse inteligente em termos de
relações, o tipo mais simpático do mundo.

John não sabia que havia um irmão, tal como não soubera da
existência das ex-mulheres.

- Quantos anos tinham de diferença?

- Oh, uns bons quatro ou cinco. Talvez mais. Como já disse, eu


ainda não estava cá nessa altura. Alguém falou no irmão no outro
dia, mas, essencialmente, o tema de conversa é o Terry. O pAI foi
professor de Inglês dele no primeiro e no segundo ano. Ele
destacava-se, estava anos-luz à frente dos outros. Está a escrever
uma história sobre ele?

- Estou - admitiu John. - Ele tinha amigos?

- Bom, quanto a isso, não sei dizer-Lhe, uma vez que ainda não
estava cá. Só temos falado dos trabalhos dele. Escreveu alguns
artigos maravilhosos para a revista da escola. Um dos que escreveu
no segundo ano ganhou uma data de prémios. Até foi publicado no
Tribune.
- O Meadville Tribune?

- Esse mesmo. Tenho um exemplar aqui mesmo à minha frente.


Pusemos cópias a circular quando soubemos do papel de Terry na
exposição do caso Rossetti-Blake. Tenho todo o prazer em enviar-
Lhe uma cópia por fax, se quiser.

Cinco minutos depois, John estava a ler uma cópia do artigo. Era
sobre a vida no bairro italiano de Pittsburgh, no rescaldo da
Segunda guerra Mundial. O artigo não era longo. Ao lê-lo, John viu
os germes do actual estilo e capacidades de Terry. Mesmo nessa
altura, ele não usava três adjectivos quando um único adjectivo
potente bastava, e os adjectivos que escolhia eram de facto
potentes. Descrevia as personalidades locais de uma forma que
Lhes dava vida. Não que John quisesse cruzar-se com alguma
delas. O artigo não era muito lisonjeador. O vilão era a Igreja
Católica local.

Era uma posição extraordinariamente sombria, para ter sido escrita


por um rapaz de dezasseis anos. Mas não era surpreendente, se
esse rapaz de dezasseis anos tivesse alguma razão de queixa.

John estava no caminho certo. Conseguia senti-lo nas entranhas.


Precisava de saber qual era essa razão de queixa.

Mas teria de ficar para depois. O Lake News estava pronto para
recolha. Satisfeito por pôr a questão de Terry de lado num ponto tão
optimista, dirigiu-se a Elkland, carregou as três mil cópias do jornal
no Tahoe, depois distribuiu-as pelas estações dos correios de
Elkland, Hedgeton, Cotter Cove e Center Sayfield. Todas as
cidades, à excepção da última, tinham uma loja de conveniência
central, nas quais entregou também alguns exemplares, bem como
no pequeno restaurante familiar em Center Sayfield; e,
inevitavelmente, encontrou pessoas que conhecia e parou para
conversar, acabando por jantar com um amigo em Cotter Cove. já
era tarde quando voltou a Lake Henry. Deixou um fardo de jornais
nos correios, outro na loja de Charlie, e finalmente outro em casa de
Armand, e, com tudo isto, esteve suficientemente distraído para só
voltar a pensar em Terry quando conduzia pela estrada do lago em
direcção a Wheaton Point.

Nessa altura, ocorreu-Lhe.

Lily estava sentada na doca, com as pernas cruzadas e os cotovelos


nos joelhos. Havia um mergulhão no lago esta noite. Ouvira um
único grito, depois nada. Espreitou para a escuridão, tentando
localizá-lo, mas o lago era uma massa negra de sombras e água. O
murmúrio de um remo quebrou o silêncio, a aproximação de uma
canoa. Susteve a respiração, pensando que poderia ser John, mas
a canoa passou pela doca dela sem parar.

Um remador nocturno? Um curioso? Talvez se tivesse preocupado,


agora que a notícia da sua presença ali chegara ao mundo exterior,
se não soubesse que o mundo exterior não conseguiria entrar no
lago. Notara que, ultimamente, havia um número maior do que o
normal de habitantes locais a passar pela casa, mas, se esperavam
avistá-la, demonstravam também respeito suficiente para não parar.

E também esta canoa rapidamente desapareceu e deixou de se


ouvir. Não era John, portanto. Ele teria parado. Talvez ela tivesse
gostado disso. Ele não era mau de todo.

Mas estar sem ele também era bom. Estava uma noite muito
agradável, para princípios de Outubro. Ela vestia calças de ganga e
a camisola de John, que era de longe demasiado grande para ela,
mas

um substituto confortável para as camisolas que deixara em Boston.


A margem do lago cheirava a pinho. O aroma fundia-se com o óleo
de jasmim - o óleo de jasmim de Celia - que ela deitara no banho, I
depois do trabalho. Sentia-se limpa e fresca, cansada de um modo
confortável, estranhamente satisfeita.

Começou a cantar baixinho, na esperança de levar um mergulhão a


cantar também, mas a noite permaneceu silenciosa. Algum tempo
depois, voltou para casa, pôs um CD e sentou-se no alpendre a
ouvir. Estava uma noite boa para Harry Connick, Jr. calma e rítmica,
um pouco indolente, talvez até sexy. Estava a cantarolar "Where or
When" quando ouviu pneus na gravilha. Parou, virou a cabeça,
prendeu a respiração.

Teria sido descoberta?

O motor parou. Uma porta abriu-se e fechou-se. Era um som


pesado, de uma carrinha ou de um jipe.

- Lily? - chamou John.

Aliviada mas cautelosa, levantou-se e aproximou-se do corrimão do


alpendre. Ele viu-a assim que contornou a casa.

- Boas notícias - disse, quase a cantar, subindo os dois primeiros


degraus com um só passo.

Lily estava com medo de ter esperança.

Ele pousou os pulsos nos ombros dela. O rosto dele estava quase
ao nível do seu, iluminado pela luz da janela atrás de Lily, que
conferia aos olhos dele um brilho excitado e adicionava calor à sua
boca.

Em tom triunfante, ele disse:

- O Terry Sullivan cresceu em Meadville, Pensilvânia. A família


mudou-se antes de ele ir para o último ano do liceu, mas, até essa
altura, ele escrevia para a revista literária da escola. O seu artigo
mais famoso é sobre um bairro italiano em Pittsburgh, no final dos
anos quarenta - fez uma pausa, nitidamente à espera que ela
reagisse.

Ela não estava a compreender.

- Sim?
- Não te soa familiar? Não te parece familiar?

Espantada, ela abanou a cabeça.

Ele abriu um grande sorriso.

- O cardeal Rossetti cresceu num bairro italiano em Pittsburgh. Era


um dos factos enterrados no meio de tudo o que se escreveu

sobre ele, depois da sua elevação a cardeal. Quantos bairros


italianos haveria em Pittsburgh nessa altura? - ergueu um único
dedo, em resposta à sua própria pergunta. - Então, será
coincidência? Pode ser.

Lily percebia o entusiasmo dele.

- Mas não achas que seja.

Ele abanou a cabeça.

- O mesmo Terry Sullivan que tão recentemente tentou arruinar a


reputação de Francis Rossetti escreveu... com a tenra idade de
dezasseis anos... um ensaio vívido e pormenorizado sobre a cidade
natal do cardeal. Não era a cidade natal de Terry. Como é que ele
sabia tantos pormenores?

- Talvez a tenha visitado? Ou passado lá os Verões? Talvez alguém


que ele conhecia fosse de lá? - estava a ficar contagiada pelo entusi
asmo de John. - Alguém que conhecia o padre Fran?

- Não sei. O ensaio não fala nele.

- Ele ter-me-ia dito, se conhecesse o Terry.

- Não precisam de se conhecer pessoalmente para existir uma


ligação - disse John, e Lily acreditou. Como podia não acreditar,
quando ele parecia tão seguro? Os olhos dele brilhavam. Lily sentiu
esse brilho aquecê-la por dentro, até a fazer abrir também um
sorriso. Se conseguissem provar uma ligação pessoal entre Terry e
o cardeal, haveria um caso sólido de intenção maliciosa, e um caso
sólido de intenção maliciosa deitaria por terra as acusações contra
ela num abrir e fechar de olhos.

Não conseguia parar de sorrir. Precisando ainda de mais um


escape, passou as mãos em torno do pescoço de John.

- Isto é bom.

Ele estava a sorrir também, os dentes brancos e direitos formando


uma meia-lua no meio da barba curta.

- Pois é.

Antes que ela conseguisse perceber o que ele estava a fazer, John
passou os braços à volta da cintura dela, arrebatou-a do alpendre e
fê- la rodopiar num círculo jubilante. Quando a pousou, puxou-a
para si num abraço.

Lily adorou. Não se lembrava da última vèz que alguma coisa Lhe
soubera tão bem. Nem mesmo aquele banho quente com o óleo de
jasmim de Celia fora tão bom. E ainda não acabara. Quando Harry

Connick, Jr. começou a cantar "It Had To Be You", John começou a


dançar com ela sobre as agulhas de pinheiro. Com a escuridão da
noite, o ar fresco, e o corpo dele encostado ao seu, firme e solidário,
Lily estava extasiada.

Deixar-se ir era fácil, porque ele estava a conduzi-la. Lily já


encontrara de tudo, na sua área de trabalho, mas John estava à
altura dos melhores. Sentia o ritmo e movia-se com ele, segurando
a mão dela sobre o coração, depois prendendo-a junto à coxa. Por
algum tempo ela sentiu o roçar da sua barba macia quando ele Lhe
cantou ao ouvido. Depois ele enterrou a boca no cabelo dela e
também isso era maravilhoso. Percorreram o terreno de modo
suave e indolente
ora no alpendre ora no lago, e a única coisa que Lhe ocorreu por
entre o arrebatamento era que todos os passos estavam
coordenados, o corpo dele contra o seu.

Depois ele beijou-a. Foi entre duas canções e fez parte do


momento, um beijo suave e indolente, nada que causasse alarme.
Mas delicioso. Ela teria aceite de bom grado um segundo e um
terceiro, talvez até considerasse a hipótese de um quarto, porque
ele sabia beijar tão bem quanto sabia dançar. Mas John estava a
dançar de novo.

Agora, porém, era diferente. Ela estava consciente do seu corpo de


forma mais íntima, das suas pernas, do seu peito, do seu ventre. E o
dela? Ardia com um desejo súbito.

Ele também sentia o mesmo. Mesmo que o seu corpo não o tivesse
traído de forma tão viril, ela tê-lo-ia percebido pelo beijo que ele Lhe
deu quando a canção terminou. Era mais profundo e mais ávido.
Com os braços à volta do pescoço dele, Lily deixou-se levar.
Entregou-se à sensação e flutuou.

Depois algo se intrometeu. Primeiro pensou que fosse a respiração


irregular dele no seu ouvido. Só um minuto depois percebeu que era
um carro. Segundos depois, os faróis abriram uma faixa de luz ao
lado deles.

Ela soltou uma exclamação abafada e tentou libertar-se de John,


mas ele segurou-a imóvel contra si.

- Espera - murmurou em voz rouca. - Espera.

O carro parou. Uma voz familiar chamou da janela:

- Lily?

- É a Poppy - murmurou Lily, e, subitamente assustada, ergueu os


olhos para John. - É muito tarde. Aconteceu alguma coisa.
Quando se afastou desta vez, John deixou-a ir, mas manteve-se ao
lado dela, correndo também até ao local, atrás do Tahoe, onde
Poppy estacionara. Ela tinha a porta aberta, pelo que o interior da
carrinha estava iluminado. Lily estava a pensar em Maida, mas
Poppy estava a olhar para John.

- Tive um palpite, quando não atendeste o telefone - disseLhe. A Lily


não tinha o telemóvel ligado, por isso aqui estou eu.

- Que se passa? - perguntou John.

- O Gus teve um ataque cardíaco.

O hospital ficava em North Hedgeton, a uns bons

trinta minutos de Lake Henry. john conduziu mais depressa do que

os limites de segurança aconselhavam, mas estava a imaginar Gus


a

morrer antes de ele lá chegar - a morrer por puro despeito. Não

podia deixar que isso acontecesse. Ele e Gus tinham de falar. Se o

velho morresse, isso reduziria grande parte dos últimos três anos a
uma farsa.

Se estivesse sozinho, teria conduzido ainda mais depressa, mas

Lily insistira em vir também, e ele não estava com disposição para

discutir. Tinha uma sensação de déjà vu - sentia-se perturbado, um

pouco como se sentira aos quinze anos, quando ele e a mãe tinham

deixado o lago. Nessa altura, escondera o seu medo por detrás de

uma fachada de fanfarronice, mas isso era coisa que os miúdos de


quinze anos faziam, não os homens de quarenta e tal.

Lily obrigava-o a recordar-se do aqui e do agora. Ancorava-o, de


alguma maneira.

- Eu estou bem - dizia ele de vez em quando, e ela acenava, ou

tocava-Lhe no braço, ou respondia suavemente "eu sei". Isso


funcionava, fazendo com que ele se sentisse mais controlado.

Quando chegou ao hospital, John sentiu-se grato pelas pequenas

mercês. Se estivesse em Boston, teria perdido um tempo precioso à

procura de lugar. Ali, deixou o Tahoe na entrada das Urgências, deu

a mão a Lily e apressou-se a entrar. Assim que disse o seu nome a

uma enfermeira que passava, foi-Lhe indicado que subisse ao


segundo andar, onde se dirigiu de imediato ao trio de médicos que
estava

a conferenciar à porta de um dos quartos.

Gus estava nesse quarto, mas quase oculto no meio das máquinas.
Uma dava-Lhe oxigénio, outra medicamentos; uma monitorizava

O seu coração, outra o nível de oxigénio. Duas outras aguardavam

silenciosamente, de prontidão. Gus estava muito pálido, era apenas


uma silhueta comprida, magra e completamente imóvel por debaixo
dos lençóis - a dormir ou inconsciente.

Sem tirar os olhos do pai, John perguntou aos médicos:

- Como está ele?

- Não está muito bem - respondeu Harold Webber. Gus estava sob
os cuidados dele desde que tivera o primeiro ataque, pouco antes
de John ter voltado. Desde então, John e Harold tinham trabalhado
juntos para tentar que Gus vivesse uma vida mais tranquila, mas
fora um esforço em vão. A parte física do estilo de vida de Gus era a
menos grave. Apesar de terem conseguido aliviar o stress físico,
obrigando-o a reformar-se, isso servira apenas para agravar as suas
emoções.

- Desta vez o ataque foi maior do que o último - disse Harold em voz
baixa. - As perspectivas não são boas.

- Não podem operá-lo?

- Agora não. Está demasiado fraco. Temos de esperar até ele


estabilizar. Nessa altura, se ele concordar... - a cirurgia de bypass
estava a tornar-se vulgar, mas isso não queria dizer que não
envolvesse alguns riscos. Da última vez que Harold o sugerira, Gus
recusara terminantemente. Isso fora quatro meses antes.

- O que é que aconteceu? - perguntou John.

- A Dulcey viu luzes acesas, mais tarde do que o normal, e foi ver se
estava tudo bem. Foi ela que chamou a ambulância. Podia ter sido
muito pior. O cérebro dele não esteve privado de oxigénio. Ainda
funciona. Ele está apenas muito, muito fraco.

- Está consciente?

- Com alguma intermitência.

John apertou mais a mão de Lily.

- Podemos entrar?

- Não vejo que isso possa prejudicá-lo - disse Harold. - Ele é uma
pessoa agitada por natureza. Não o perturbarão mais do que

seria normal, de qualquer maneira.


John avançou. Estava à porta quando Lily o puxou. A apreensão era
bem visível no rosto dela. john lembrou-se de que ver Gus devia ser
complicado para ela - e que ter pena dele devia ser ainda mais
difícil.

- Talvez seja melhor eu esperar aqui - murmurou ela.

- Provavelmente ele é a última pessoa à face da terra que queres


ver.

- Estava a pensar no Gus. Ele é que não deve querer ver-me. Eu


devo recordar-Lhe o Donny.

Era uma possibilidade. Mas, embora de modo egoísta, John


precisava dela a seu lado. Sentia-se vazio, ao pensar em Gus. As
perspectivas não são boas. Nunca tinham chegado a esse ponto
antes.

- Vem comigo. Por favor - pediu, e ela foi, como ele sabia que iria.
Lily era um ser humano mais decente do que qualquer Kipling, sem
dúvida nenhuma.

Sentindo um medo profundo, a par da sensação de vazio, John


aproximou-se da cama. Deixou Lily ficar um pouco para trás, mas
não Lhe largou a mão.

- Gus? - chamou baixinho.

Gus não reagiu. As suas pálpebras estavam perfeitamente imóveis.

- Pai? É o John. Consegues ouvir-me? - Quando ele continuou sem


mostrar sinais de consciência, John disse: - Vou sempre vê-lo às
quartas-feiras. Hoje não fui. Pensei em ir amanhã. Devia ter ido.
Devia ter ido - soltou uma risada amargurada. - Aí tens. A minha
relação com o Gus em poucas palavras. Quarenta e três anos de
"devia ter feito".
Lily acariciou-Lhe o braço e isso acalmou-o um pouco. Apoiou os
cotovelos na grade de protecção da cama e estudou o rosto do pai.
Parecia paralisado numa expressão de raiva"como se aquilo que o
estava a corroer por dentro estivesse tão profundamente entranhado
que conseguia moldar até mesmo o subconsciente.

- Não tenho a mínima ideia - disse ele, baixinho.

- Sobre o quê? - perguntou Lily.

- Sobre a raiva que Lhe dá esta expressão. Costumava pensar que


era por minha causa. Sabes, só me consigo lembrar de um único
momento, em toda a minha vida, em que o vi sorrir em resposta a
alguma coisa que eu tenha feito.

- O que foi? - murmurou ela.

- Levei uma pedra comigo para a cama. Ele costumava esculpi-las.

- Pedras?

- Esculpia pequenas caras... olhos e narizes e bocas. Deu-me uma


quando eu tinha seis anos.

- No teu aniversário?

- Não. Ele não ligava a aniversários. Simplesmente deu-ma porque


Lhe apeteceu, acho eu. Nunca soube porquê - John suspirou. Mais
uma dessas coisas que nunca percebi - puxou duas cadeiras que
estavam encostadas à parede para junto da cama. - Importas-te que
nos sentemos um pouco?

Passou uma hora. Entrou e saiu um número surpreendente de


médicos e enfermeiras, para um hospital tão pequeno, mas por
outro lado Gus era o único paciente em condição crítica. Enquanto o
observavam, John ficava de vigia, alternadamente recostado na
cadeira, depois inclinado para a frente com as mãos nos joelhos,
depois de pé. Gus não se mexeu, não pestanejou, não emitiu
qualquer som.

A dada altura, quando estavam sozinhos, aparentemente do nada,


Lily disse:

- Todas as famílias as têm.

- Têm o quê?

- Essas coisas que nunca percebemos porquê.

- Tu e a Maida?

- Principalmente.

- Tens sorte por ela estar bem de saúde. Ainda há tempo - mas o
tempo estava a esgotar-se para Gus. john sentia-o mais
intensamente do que alguma vez sentira alguma coisa. Quando
olhava para trás, via que os sinais já lá estavam. Raios, das últimas
vezes que John o vira, Gus não se mexera do sofá.

Ele devia ter percebido.

John estava invadido por uma sensação de futilidade, enquanto a


quarta-feira se transformava em quinta-feira. Lily estava enroscada
na cadeira ao seu lado. Fechava os olhos de vez em quando mas,
assim que ele desconfiava que ela adormecera, abria-os e dava-Lhe
um sorriso encorajador. Não dizia uma palavra, nem era preciso.
Limitava-se a sorrir de uma maneira que Lhe dizia que ele estava
sem dúvida onde devia estar.

E ela tinha razão. Gus era seu pai. john não estava por perto
quando aconteceram coisas más a Donny, e arrepender-se-ia disso

para o resto da sua vida. Agora estavam a acontecer coisas más a


Gus. Não podia estar ausente.
Mas Lily não tinha de estar com ele. Obrigá-la a passar ali a noite
era extremamente egoísta.

Assim, quando ela fechou os olhos, tocou-Lhe na mão. Ela abriu-os


imediatamente.

- Não precisas de ficar - murmurou ele. - Estás exausta.

- Estou bem.

- Leva o Tahoe e vai para casa dormir. Eu não posso sair daqui.

- Preferes ficar sozinho? - perguntou ela gentilmente. Não, não


preferia. Abanou a cabeça.

Ela sorriu. Encolheu as pernas e instalou-se na cadeira. john olhou


para ela e sentiu o coração incrivelmente cheio. Foi nesse momento
que percebeu que estava apaixonado.

Lily dormitou.
John também tinha sono, mas não se deixou adormecer. Estavam a
meio da noite, o quarto estava na obscuridade, e o bip do monitor
cardíaco era hipnótico. Sentia os olhos secos e a arder, um músculo
a pulsar debaixo de um deles, mas recusou-se a adormecer.
Quando um anjo com farda de enfermeira Lhe trouxe um café
quente, bebeu-o até à última gota. Continuou a olhar para as
máquinas e para o que as enfermeiras faziam, porém Gus não
acordou.

Mas Lily sim. Estava a dormir há menos de uma hora quando


acordou sobressaltada. Olhou para John, depois, alarmada, para
Gus.

- Está na mesma - disse John.

Ela soltou a respiração.

- Desculpa. Sonhei que era a minha mãe - inclinou-se para a frente


e encostou a testa aos joelhos, depois virou a cabeça, com a face
encostada às pernas e os olhos postos em John.

- Ela fala quando estão a trabalhar juntas? - perguntou ele.

- Não sobre o que precisamos de discutir.

- Quer dizer que falam, mas não dizem nada?

Lily fez um aceno afirmativo.

John olhou de novo para Gus. Quando pensou ter visto uma
pálpebra a estremecer, levantou-se e aproximou-se da cama.
Estendeu o braço para pegar na mão do pai, mas retirou-o antes de
Lhe tocar. A relação deles não era física. Mas, quando falou, a sua
voz tinha um tom de urgência: - Gus? Fala comigo, Gus.

Lily apareceu ao lado dele.


- Talvez devas falar tu com ele - sugeriu numa voz suave. john abriu
a boca para falar, procurou as palavras, não as encontrou, e voltou a
fechá-la. Era novamente aquele rapazinho de quinze

anos. Só com esforço conseguiu não se encolher.

- Não consigo.

- Porquê?

Era como o contacto físico.

- Simplesmente não o fazemos.

- Então fala comigo.

- Sobre o Gus?

- Sim. Do que é que gostas nele?

"De absolutamente nada", foi a primeira coisa que Lhe veio à


cabeça. Seria mais fácil dizer o que detestava nele. Ou aquilo de
que se ressentia. Ou o que não compreendia. Havia listas
intermináveis de todas essas coisas.

Mas tinha de haver também mais algum sentimento. Caso contrário,


John não sentiria o medo que sentia agora. Não teria esta sensação
de frustração e vazio. Não estaria aqui sequer, mas sim em casa, a
dormir, até o hospital telefonar para dizer que acabara tudo. Raios,
se não houvesse algum sentimento, ele nem sequer estaria em
Lake Henry.

O que havia para amar em Gus ?

- Ele constrói muros de pedra lindos - disse John. - Provavelmente


construiu centenas deles. Ainda estarão de pé muito depois de tu e
eu termos desaparecido. Sempre admirei aqueles muros.

- É um artista - disse Lily.


John fez um aceno afirmativo. Imaginou que a expressão contraída
de Gus aliviara um pouco, e isso deu-Lhe ânimo.

- Passou a vida inteira a trabalhar com pedra. Nunca fez outra

coisa.

- Como é que aprendeu?

- Nunca me contou. Dizia à minha mãe que o bosque era o único


sítio onde fazia as coisas bem feitas. Deixou a escola com catorze
anos. Durante meses ninguém soube onde ele passava os dias.
Depois encontraram-no a ajudar um velho pedreiro. Parecia bem,
não se metia em sarilhos e estava a aprender uma profissão, por
isso ninguém o arrastou de volta à escola. Ah! Se eu faltasse à
escola um dia que fosse, ele perdia a cabeça!

- Queria algo melhor para ti.

- Melhor do que ser um artista? - perguntou John. Não conseguia


imaginá-lo. - Eu teria sido perfeitamente feliz a trabalhar com ele,
mas ele nem queria ouvir falar disso. Nem em relação a mim nem
ao Donny. Dizia que nós estragaríamos tudo. Ele era um
perfeccionista. Orgulhava-se do que construía.

- Não te orgulhas daquilo que escreves?

- Sim, suponho que sim.

- Então és como ele, nesse aspecto.

John queria pensar que sim, mas escrever era diferente de construir
muros de pedra. Os muros de pedra eram funcionais e estéticos.
Não tinham o poder de arruinar pessoas. A escrita tinha. Essa era a
parte que John tinha atravessada na garganta. Talvez Terry tivesse
razão. Talvez ele não fosse suficientemente duro, se isso significava
manejar uma caneta venenosa.
Sim, orgulhava-se daquilo que escrevia. Deixara Boston quando
essa sensação desaparecera. Orgulhava-se do Lake News. Era
bem escrito e servia um objectivo positivo - era funcional e estético.

Era - sim - como os muros de pedra de Gus.

Pouco antes do nascer do dia, as pálpebras de Gus estremeceram e


abriram-se. john levantou-se rapidamente e inclinou-se sobre a
cama.

- Pai ?

Gus tinha o olhar perdido no nada, depois focou-o em John, mas ele
não conseguiu perceber se havia alguma consciência ou
pensamento. Quando os olhos do pai se fecharam de novo, John
olhou para o monitor cardíaco. O ritmo pareceu errático por um
segundo, depois normalizou.

Recuou quando uma enfermeira entrou. Ela verificou Gus, verificou


os monitores e saiu.

John não sabia se devia tentar acordar Gus de novo ou não.


Acordar era um bom sinal, decididamente um motivo para ter
esperança, mas, se causava uma actividade cardíaca errática,
preferia que ele não acordasse por enquanto. As linhas eram agora
mais regulares. Mais tranquilas.

Assim, ficou parado durante algum tempo, a estudar o rosto de Gus.


Muitas noites, em criança, fizera o mesmo enquanto Gus dormia na
grande poltrona junto ao fogão de lenha. Ele era menos ameaçador
a dormir do que acordado. Dorothy também ficava mais calma, até
mesmo afectuosa, enquanto observava Gus e avisava John para
não fazer barulho.

A madrugada trazia consigo uma luz suave e lisonjeira que favorecia


as recordações. Quando Lily se levantou e se aproximou da cama,
John disse:
- Ele era mesmo um homem atraente. Ainda é possível vê-lo -
recordou o cabelo forte e bem cortado, a barba feita, ombros
direitos, mãos fortes. - A minha mãe ainda fala nisso. Ele era anti-
social mas atraente.

- Como é que eles se conheceram?

- Por causa de um pneu furado. Ela ia de carro pelas colinas com


uma amiga, a ver a folhagem, mais ou menos naquela altura do ano.
Ele era um trabalhador bem-parecido, que saiu do bosque para
Lhes dar uma ajuda quando elas ficaram encalhadas. Um mês
depois ela voltou, à procura dele, com três latas de bolo de café feito
pela mãe. Estava apaixonada. Ficou por ali, a vê-lo trabalhar e a
cozinhar para ele, até que ele percebeu que ela era a sua melhor
hipótese para assentar. já tinha quase quarenta anos. Ela era mais
nova, bonita e entusiástica.

John suspirou.

- Nunca me atrevi a mencionar o nome dela, das poucas vezes que


o vi depois de se terem separado.

- Costumavas vir cá?

- Quando andava na universidade. Pensava que ele ficaria


orguLhoso de eu ter chegado tão longe. Não ficou: Não queria olhar
para mim. Por isso eu nunca ficava muito tempo. Ia-me embora, e
depois ficava a remoer tudo o que queria dizer-Lhe e nunca dizia.

Uma enfermeira apareceu com duas canecas de café. Examinou


Gus, ajustou a velocidade do soro e voltou a sair.

John ficou grato pelo calor da caneca nas mãos. Ter Lily ao seu lado
ajudava, mas os ventos da sua história com Gus eram frios. Oh,
sim, uma vida inteira de "devia ter feito".

- Queria dizer-Lhe - continuou em voz baixa - que compreendia o


que acontecera entre ele e a minha mãe. Que não fora tudo por
culpa dele. Ela fez dele uma pessoa que ele não era. Foi ela que
veio atrás dele e que depois não aguentou quando percebeu que a
vida em Ridge não era romântica. Ele nunca Lhe prometeu nada.
Era ela que tinha expectativas, por isso ela é que ficou desiludida.
Não posso culpá-lo. Nem pelo casamento, nem pelo divórcio. Queria
dizer-Lhe isso.

Estava à espera que Lily respondesse "E já disseste", mas ela


simplesmente acenou e ficou perto dele.

Lily nunca tinha estado de vigília a um moribundo. Um mês antes,


se alguém Lhe tivesse dito que o faria por Gus Kipling, teria
estremecido. Mas, naquele momento, não se conseguia imaginar
noutro lado. Um psiquiatra talvez dissesse que ela estava a
compensar o facto de não ter estado presente quando o seu próprio
pai morrera, mas não achava que fosse isso. O facto de estar ali
não tinha nada a ver com Gus, e tudo a ver com John.

Queria estar com ele. Era tão simples - e fácil e natural - como i sso.

No entanto, foi difícil explicar à mãe, quando Lhe telefonou pouco


depois das sete.

- Mas por que raio estás tu aí? - perguntou Maida. A sua voz era
cortante o suficiente para despertar uma reacção condicionada em
Lily. Uma onda de ruído surdo começou a crescer dentro dela.

Lily combateu-a. Fechou os olhos e fez um esforço para pensar


claramente.

- Porque o John está aqui. Ele está a passar um mau bocado. - O


Gus Kipling não te vai agradecer.

- Não estou aqui por ele. O John e eu estávamos a conversar ontem


à noite, quando ele soube do Gus. Não p-p-podia deixá- lo vir
sozinho.
- Os Kipling têm um historial de abusar de ti. Primeiro o Donny,
agora o John. Isto soa-me familiar, Lily.

- É diferente - disse ela, e recordou a si própria que era uma mulher


feita. Não precisava de pedir autorização a Maida. - Só estou

a telefonar para ver se um dos trabalhadores do pomar me pode


substituir no lagar, para eu poder ficar aqui.

? - Tens a certeza de que queres fazer isso? - perguntou Maida. As


notícias correm depressa. Queres que toda a cidade saiba que
estás aí ?

De repente, Lily sentiu-se exasperada. - Bom, porque não? -


perguntou, num tom audacioso. - Sempre é mais um pormenor
interessante para a história, não achas?

A manhã avançou. Harold Webber apareceu, bem como outros


médicos. A reacção geral ao estado de Gus era de surpresa, mas
não chegava a ser de optimismo. Todos os sinais apontavam para
um en fraquecimento crescente. Embora concordassem que Gus se
estava a aguentar melhor do que eles tinham esperado, previam
que as próxi mas horas fossem cruciais.

John permitiu a si próprio um raio de esperança. Visualizou Gus a


acordar, mais compreensivo depois do seu encontro imediato com a
morte. Imaginou que ambos teriam ainda alguns meses de tempo de
qualidade juntos, talvez até mais do que uns meses. john dar-se-ia
por satisfeito com isso.

À medida que a manhã se transformava em tarde, Gus acordou


algumas vezes. Abria sempre os olhos com um ar desorientado até
se concentrar em John - e reconhecia-o. john tinha a certeza. Mas
não sabia se esse reconhecimento estava a ajudá-lo ou a prejudicá-
lo.

Depois, a meio da tarde, o ritmo do monitor cardíaco mudou.


Médicos e enfermeiras entraram a correr e, depois de uma alteração
na medicação, o coração de Gus acalmou, mas não era bom sinal.
Falou-se de um ataque secundário, de um agravamento na cor, de
fluido nos pulmões.

John esperou no corredor com Lily enquanto os médicos


trabalhavam, mas, assim que a cabeceira de Gus ficou livre,
colocou-se de novo ao lado da cama: Suficientemente desesperado
para fazer qualquer coisa, ao ver que Gus estava agora macilento,
pegou na mão do pai. A sensação de a segurar era estranha -
parecia-Lhe inerte e friamas não podia largá-la, agora que a ligação
estava feita.

- Vá lá, Gus - murmurou. - Vá lá. Não me deixes pendurado.

Não te atrevas a deixar-me pendurado. - Quando Gus não


respondeu, disse: - Estou a tentar ajudar. Por amor de Deus, estou a
tentar

ajudar - quando continuou sem obter reacção, irritou-se. - Tu


consegues ouvir-me, Gus. Sei que consegues. Sempre conseguiste,
simplesmente preferias virar costas e fazer de conta que não valia a
pena

perderes tempo a ouvir o que eu dizia, e talvez tivesses razão, na

altura. Eu desiludi-te. Lamento muito. Desiludi-te, e desiludi o


Donny,

e se pudesse voltar atrás e mudar isso, voltaria. Mas estou aqui


agora, e quero uma oportunidade.

A sua raiva desvaneceu-se. Como mantê-la, sem o sorriso

escarninho de Gus a alimentá-la?

Derrotado, abriu a mão e estudou aqueles dedos velhos e


cicatrizados. Pareciam vulneráveis, como Gus nunca parecera. Mais
para si
mesmo do que para Lily ou Gus, murmurou:

- Como pedir perdão a um homem que não nos ouve?

Os dedos mexeram-se então - não muito, mas o suficiente para

sugerir vida. john ergueu os olhos e viu Gus a olhar para ele. A sua

voz era rouca e irregular, mas John ouviu cada abençoada palavra.

- Percebeste tudo ao contrário - disse ele. Fechou os olhos, depois

voltou a abri-los. - Fui eu quem te desiludiu... fui eu que falhei... fui


eu

que... nunca fui suficientemente bom... nem para a tua mãe... nem

para Don... nem para ti...

John demorou um minuto a perceber o que ele queria dizer.

- Isso não é verdade - disse, mas Gus fechara os olhos e, desta

vez, havia algo diferente. Só quando Lily Lhe tocou no braço e o

quarto se encheu de médicos e enfermeiras é que percebeu que a

linha no monitor era agora horizontal.

Tentaram ressuscitá-lo. Deram-Lhe um choque. Quando isso não

resultou, tentaram uma segunda vez, e uma terceira. Houve um


momento de pausa, depois uma troca de olhares relutantes. No
instante

seguinte, a pouca esperança que houvera desvaneceu-se, como ar


libertado por pulmões que finalmente tinham deixado de trabalhar.

Os médicos e as enfermeiras saíram.


- Ele disse o que precisava de dizer - murmurou Lily, e depois

saiu também, e John não tentou impedi-la. Por alguns últimos


minutos, precisava de estar a sós com o pai.

Não disse nada. Nem sequer pensou em nada. Ficou simplesmente


ali, segurando a mão de Gus nas suas, estudando aquele rosto que
ao mesmo tempo odiara e amara. Quando a altura Lhe pareceu
certa, pousou gentilmente a mão de Gus no lençol. Inclinou-se,
beijou a face do pai e dirigiu-se à porta.

Mas algo o puxou de novo para junto da cama. E assim ficou mais
algum tempo com Gus, e foram momentos de paz. Quando teve a
certeza de que a alma do pai passara para onde quer que estava
destinada, tocou pela última vez no ombro de Gus e saiu do quarto.

Lily esperara e observara do corredor. Endireitou-se quando John se


dirigiu a ela. Ele parecia exausto, mas conseguiu sorrir, um sorriso
triste. Sem uma palavra, abraçou-a e apertou-a com tanta força que
os braços Lhe tremeram, mas ela não se teria queixado por nada
neste mundo. Confortá-lo dava-Lhe mais prazer do que alguma vez
teria imaginado.

Quando ele finalmente se afastou, tinha os olhos húmidos. Ergueu-


os para o tecto e respirou fundo. Depois olhou para ela e disse:

- Eu deixo-te em casa. Tenho de ir a Ridge.

Voltaram para Lake Henry em silêncio. Quando ele parou junto da


casa dela, agradeceu-Lhe.

- Significou muito para mim estares comigo.

Ela pousou os dedos nos lábios dele e abanou a cabeça para Lhe
indicar que não dissesse mais nada. Sentindo aquela mesma
incrível sensação de ter o coração cheio, saiu do carro e ficou a vê-
lo fazer inversão de marcha e afastar-se. Quando o Tahoe
desapareceu, contornou lentamente a casa.
Eram quase cinco da tarde. O lago reflectia a Elbow Island, a
margem oposta e o céu, e tudo parecia calmo e reverente na
sequência da morte de Gus. Sentindo necessidade de comungar -
com Celia, com um mergulhão ou dois - caminhou sobre as agulhas
de pinheiro, desceu os degraus e dirigiu-se à ponta da doca, sempre
a pensar se seria louca por sentir aquilo que sentia.

Mas, por mais que pensasse, isso não impedia os sentimentos, nem
ela queria realmente que impedisse.

John sentiu-se perdido assim que deixou Lily, mas

a necessidade de ir a casa de Gus era premente. A casa de Gus

Também era a sua casa. Mas teria alguma vez sido realmente o seu

lar? Ele crescera ali. Não havia pinturas, alterações no jardim ou


mobílias novas que pudessem alterar esse facto. Ao conduzir agora
pela

estrada de Ridge, com Gus morto e desaparecido, tinha de


reconhecer a ligação.

Estacionou atrás da casa e entrou, como fizera milhares de vezes

em criança. A pequena sala de estar era o quarto que ele e Donny

partilhavam. Ao deixar-se cair no sofá, ouviu os sons desses anos


de gritos, mas também risos. Gus não era uma pessoa feliz por
natureza,

mas a mãe de John era. E Donny. Ele e Donny tinham passado


tempos divertidos.

John encostou a cabeça e fechou os olhos. Sentia-se cansado de

formas que iam para além do cansaço físico - cansado de formas


que
tinham a ver com o facto de ser o único homem sobrevivente desta

casa, o chefe da família, por assim dizer. Possivelmente, já


carregava

O peso dessa responsabilidade há três anos. Mas trazer comida,


pagar

a uma empregada e pintar a casa eram coisas físicas. O que sentia


agora era emocional.

Era um peso demasiado grande, depois de uma noite sem dormir.


Em menos de nada estava a dormitar, ali mesmo, sentado no

sofá, como Gus fizera tantas vezes ultimamente. Um grito abafado

fê-lo acordar sobressaltado.

Dulcey Hewitt estava à porta da casa com a mão na boca. Depois

levou-a ao peito.

- Assustou-me - murmurou ela. - Acabei de saber da morte do

Gus, e vinha dar um jeitinho para você não encontrar a casa numa

confusão, e encontro-o aí, sentado, tal e qual como ele costumava


sentar-se.

John estava tão ensonado que, por um minuto, ficou confuso.


Depois lembrou-se de que Gus estava morto e sentiu um aperto no
estômago. Com esforço, levantou-se.

A luz estava acesa. Dulcey devia tê-la acendido. Estava escuro lá


fora.

Passou a mão pela barba e pelo cabelo.

- Que horas são?


- Oito. Lamento muito pela morte de Gus.

John acenou.

- Obrigado por ter vindo cá ontem à noite. Não gostaria que ele
tivesse morrido aqui sozinho.

- Estava com ele quando morreu?

John acenou mais uma vez afirmativamente. Olhou em redor.

- Não está muito desarrumada. Para o fim, ele já não tinha forças.
Vá para casa, Dulcey, para junto dos seus filhos.

John ficou a vê-la sair. Independentemente do sono, sentia-se


confuso sobre coisas que não conseguia definir. Queria estar
sozinho.

No entanto, mal Dulcey acabara de sair, apareceu uma vizinha do


outro lado da estrada para oferecer as suas condolências. Não
entrou. Tal como nenhum dos outros que apareceram a seguir.
Limitavam-se a parar à porta, diziam a John que lamentavam a
morte de Gus, e iam-se embora.

John estava comovido. Gus não era mais simpático com os vizinhos
do que fora com a família, e no entanto estas pessoas tinham
sentido a necessidade de marcar a sua presença. Faziam-no sentir-
se culpado por todos os pensamentos negativos que tivera sobre
Ridge, o que só serviu para aumentar a sua confusão.

Sentindo necessidade de fazer alguma coisa, sabendo que tinha de


planear o funeral e que queria que Gus tivesse bom aspecto, dirigiu-
se ao roupeiro do quarto. Estava uma confusão total. Ou Dulcey
traçara ali os seus limites, ou Gus proibira-a de Lhe tocar. Havia um
sobretudo que John recordava da infância, e apenas uma ou duas
camisas que não eram de flanela ou de lã axadrezada. Havia -
incrivelmente - alguns vestidos que tinham pertencido à mãe de
John. E havia um fato. john tirou-o, pensando que talvez enterrasse
Gus com ele. Apesar de precisar de ser engomado, estava em bom
estado. Sacudiu um sítio onde o casaco formava um bojo.

Sentindo qualquer coisa lá dentro, afastou a lapela. Pendurado no


cabide, com um cordel, estava um saco de plástico opaco. Pousou o
fato na cama, retirou o saco e abriu-o. Lá dentro estava uma
colecção de recortes. Alguns eram velhos e amarelecidos, outros
mais recentes. Estavam arrumados cronologicamente e muito
direitos, como se uma mão os tivesse alisado cuidadosamente antes
de os arquivar.

John olhou para os recortes, um após o outro, até a dor ser


demasiado grande para conseguir suportar. Ali estava uma colecção
do seu trabalho, preservada por um pai que nunca, nem uma única
vez, dissera a John que o amava.

Sentindo uma mágoa intensa, John endireitou-se, arqueou as costas


e levou as mãos aos olhos. Gemeu, mas isso não o aliviou muito.
Passou a mão pela nuca, olhou para os papéis, gemeu de novo.

Incapaz de ficar parado, saiu pela porta das traseiras e começou a


percorrer o quintal, na escuridão. Caminhou ao longo do muro de
pedra com o qual Gus estivera ocupado até há tão pouco tempo,
depois voltou para trás enquanto tentava organizar os pensamentos.
Do nada, ocorreu-Lhe a imagem de Gus a cair sobre o traseiro, de
John a tentar ajudá-lo e a ser enxotado.

Depois ouviu uma voz fraca e rouca. "Fui eu quem te desiludiu. Fui
eu que falhei. Fui eu que nunca fui suficientemente bom. Nem para
a tua mãe. Nem para Don. Nem para ti. "

Compreendendo então - sentindo uma mágoa lancinante por um


homem que sofrera, um filho ilegítimo nascido numa época em que
os filhos ilegítimos eram marcados, um homem que crescera
considerando-se indigno, um homem que John amara por nenhuma
outra razão para além do facto de ser seu pai - caiu de joelhos na
relva. Curvando os ombros, consternado mas incapaz de parar,
chorou baixinho por tudo o que não vira, o que não soubera, o que
não fizera.

Não se lembrava da última vez que chorara, não se lembrava da


última vez que se libertara desta maneira. Após algum tempo, talvez
tivesse conseguido parar, mas a libertação estava a saber-Lhe bem.
Assim, deixou as lágrimas brotarem até se esgotarem.

Lentamente, levantou-se da relva. Limpou os olhos à manga, entrou


e molhou o rosto com água fria. Quando se endireitou, já conseguia
pensar claramente.

Com muito cuidado, arrumou o pacote de recortes no saco onde

Gus os guardava e voltou a prendê-lo no cabide, para ser sepultado


juntamente com o fato e com Gus. Escolheu uma camisa lavada,

uma gravata, roupa interior, meias e sapatos, e levou tudo para a

carrinha. Depois conduziu até casa, pendurou as roupas de Gus no


seu roupeiro e tomou o duche de que precisava, ao fim de um dia e
meio.

O seu corpo ainda estava húmido quando entrou para a canoa, e

O ar estava frio, mas depois de remar rapidamente durante um


bocado começou a aquecer. Quando chegou aos seus mergulhões,
recolheu o remo. As quatro aves estavam lá esta noite,
mergulhando de

vez em quando, erguendo as vozes na noite, num som tão primitivo

que o sentia directamente na alma.

Ali não havia tempo, apenas uma sensação de que a morte não

era mais do que um prosseguimento da vida. Ali havia história, um


regresso de estação para estação, e sobrevivência - dois filhotes
criados com sucesso para perpetuar a espécie. Sim, os anos tinham
assistido a perdas, quando os ninhos eram levados pelas
inundações ou as

crias perdidas para os predadores. Mas havia razão, ordem e


sentido.

Respirando tudo isso, sentindo ao mesmo tempo perda e ganho,

John pôs o remo na água e começou a remar. O chamamento dos

seus mergulhões seguiu-o, ecoando suavemente sobre a água e as

curvas do lago, até Thissen Cove.

Lily estava sentada na ponta da doca. Levantou-se quando ele se

aproximou, como se estivesse à sua espera. Quando a canoa


deslizou

ao lado da doca, apanhou a corda que ele Lhe estendia e prendeu-a


a um gancho.

Segundos depois John estava em cima da doca, abraçado a Lily, e

era a coisa mais natural e certa que alguma vez fizera. Não estava a

pensar em escrever um livro. Não estava a sentir-se falso ou


explorador. A sua mente e o seu coração estavam em total sintonia.

Apertou-a contra si; depois mais ainda, enquanto o lago ondulava à


volta deles e os mergulhões gritavam. Beijou-a, depois beijou-a

de novo - um beijo primeiro doce, depois profundo. Quando


chegaram ao terceiro beijo, este encerrava também uma fome.

Por insistência de Lily entraram em casa, subiram as escadas até à


cama no sótão, e novamente foi a coisa mais natural e certa - despir

roupas, tocar em pontos íntimos, a precipitação para a consumação.


Os sonhos de John tinham estado dominados pelo corpo de Lily, e
achou-o ainda mais belo do que imaginara, toda aquela extensão de
pele quente e curvas suaves. Sentiu o conforto que ela transmitia, o
consolo, a esperança, e o seu corpo sentiu-se vivo como nunca
antes. Penetrou bem fundo nela, e ainda mais fundo, sentindo a
satisfação enquanto ansiava ao mesmo tempo por mais.

Ela prendeu a respiração e soltou um gemido suave quando atingiu


o clímax.

Ele demorou-se, com relutância em deixá- la. Por fim, deslizou para
o lado e puxou-a para si, mas não falou. Beijou-a suavemente e
aninhou-a contra o seu corpo, pensando que seria perfeitamente
feliz se ficasse assim deitado, imóvel, ao lado de Lily Blake, para o
resto da sua vida, mas depois pensou melhor quando, momentos
depois, o seu pénis endureceu. E ela estava pronta. Recebeu com
prazer tudo o que ele fez, nesse momento e nas horas que se
seguiram, e a iniciativa estava longe de ser só dele. As mãos dela
não eram experientes, mas aprenderam. A sua crescente ousadia
era, por si só, um afrodisíaco que alimentava a excitação dele.

Eventualmente, a exaustão levou a melhor, e John deixou-a. Seguro


na cama de Lily, aquecido pelo calor dos seus corpos e pelo aroma
do sexo, mergulhou num sono tão profundo que não ouviu nada.

Estou no lagar de sidra até às quatro horas.

Lily pôs o bilhete na almofada, depois tirou-o de novo e desenhou a


inicial do seu nome dentro de um rabisco que podia ser um coração,
se John acordasse com um estado de espírito de ver corações. Não
estava acostumada à manhã seguinte. Não fazia ideia de como ele
acordaria, ou quando. Mas prometera a Maida que iria trabalhar e,
além disso, precisava de espaço.
E foi isso que conseguiu, protegida por uma gabardina com capuz,
botas de borracha e luvas. Pensou sobre a noite que tivera e a noite
antes dessa. Pensou na semana que tivera e na semana antes
dessa, e tentou reconciliar tudo, mas parecia que tinha passado por
eventos e emoções suficientes para uma vida inteira. Tantas
questões por resolver. Como organizá-las? Como lidar com elas?

Maida fez sanduíches para o almoço e serviu-as no alpendre. Não


fez perguntas sobre o dia anterior, nem sobre Gus, John ou Terry,
mas a hora do meio-dia estava enevoada e calma, como um gato
com as garras recolhidas, e Lily sentiu-se grata pela pausa. Voltou
ao lagar para uma tarde de trabalho, sentindo agora o corpo como
nunca sentira antes, e trabalhando arduamente para aquecer.

A hora da saída aproximava-se. Tirara já as protecções de borracha,


e estava a lavar o chão do lagar, quando John apareceu à porta. Ele
parecia inseguro. Partilhando o mesmo sentimento, sem saber bem
o que dizer e o que fazer depois da noite que tinham passado, ela
acabou rapidamente o que estava a fazer, lavou-se e foi ao encontro
dele no exterior do lagar.

John tinha as mãos nos bolsos das calças de ganga e a mesma


expressão hesitante.

Mas agora eram amantes. A dada altura, durante o dia, Lily acei
tara-o. Podia debater-se quanto quisesse, questionar se seria louca
por Lhe confiar as suas emoções, mas isso não alterava o facto de
que gostava muito dele.

- Vamos caminhar um pouco? - perguntou ela, com um sorriso. As


feições dele relaxaram tão depressa, que foi quase cómico. Quase,
mas não completamente. Na verdade, era bastante encantador,
pensou Lily enquanto apontava para o pomar. Minutos depois
percorriam um caminho de terra batida, passando por fila após fila
de macieiras. Ela escolheu uma fila que parecia menos batida e
conduziu-o para a relva. Mesmo sem o sol, que ainda estava oculto
pela neblina, as maçãs emitiam um aroma doce.
- De que espécie são estas? - perguntou ele enquanto caminhavam.

Ela apontou.

- Cortland. Macoun. Cravenstein. Mclntosh.

- Misturadas?

- Tem de ser. Os botões têm de receber pólen de variedades


diferentes para ficarem fertilizados. Cortland não pode polinizar
Cortland, nem Mac polinizar Mac. Infelizmente, as abelhas não
sabem disso. Mas voam de árvore para árvore. Por isso misturamos
as variedades.

- Qual é a variedade de que é feita a sidra?

- Variedades, no plural. É uma mistura. Cada pomar tem a sua


própria receita.

- Qual é a vossa?

- Não sei. A minha mãe é que sabe. Transformou-a numa ciência.


Mas sei que as maçãs Delicious fazem uma sidra rala.

- Não é tão boa?

- Não - aproximou-se de uma árvore, estudou as maçãs que


estavam ao seu alcance e apanhou duas, segurando-as na palma
da mão, com o pé intacto, como tinha aprendido muitos anos antes.
Passou uma a John e olhou em volta. Havia escadotes de madeira
encostados a algumas árvores, caixotes debaixo de outras. - Mais
duas semanas e a colheita estará terminada. As maçãs que vão
para o mercado ficam no enfardador. As que vão para fabricar sidra
ficam nos nossos armazéns, com o oxigénio reduzido para impedir
que se estraguem. Tiramos apenas a quantidade necessária para
produzir uma certa quantidade de litros de sidra por semana.
Quanto mais frescas, melhor.
Apontou para uma das árvores maiores e mais antigas e dirigiram-
se a ela. Lily deslizou pelo tronco e sentou-se no chão, encostada a
ele. john juntou-se a ela.

Por um momento, mastigaram em silêncio. Depois, baixinho, John


disse:

- Senti a tua falta quando acordei.

Ela olhou para ele, mas John estava a estudar as árvores.

- Quando foi isso?

- Ao meio-dia.

- O que fizeste depois?

- Fui à cidade. Tratar dos preparativos do funeral.

- Quando é?

- Amanhã de manhã.

Ela inspeccionou o rosto dele. Mesmo na dor, era forte. Ela beijara
aqueles olhos fechados e aquela boca aberta como ele Lhe tinha
mostrado.

John olhou para ela.

- Foi muito estranho. Eu sempre pensara que ele se sentia


indesejado. E afinal sentia-se indigno.

- Ainda bem que ele te disse. Isso ajuda.

- Ajuda-me a mim. A ele não.

- Tens a certeza?
Ele olhou para ela, depois inclinou a cabeça para trás e estudou a
árvore. Ficou calado tanto tempo, que ela desistiu de esperar.
Depois ele baixou a cabeça e sorriu.

- Muito esperta, para uma cantora de cabaré - brincou. Passou o


braço à volta do pescoço dela e puxou-a para si.

Lily não sabia se era do sorriso, do elogio ou da proximidade, mas


sentia-se quente, da cabeça aos pés.

E mais ainda.

Oh, sim.

E mais ainda. Pousou a mão no peito dele, agora coberto por uma
camisa, como não estivera na noite anterior. Ele não era tão peludo
como certos homens. Uma pele macia, sobre músculos secos. Tinha
alguns pêlos na parte superior do peito, uma mancha maior por cima
do umbigo, outra mais densa no ventre.

Ele levantou-se, ajudou-a a pôr-se de pé e caminharam juntos

até aos carros.

- Vou atrás de ti até casa - foi tudo o que ele disse, mas havia nas
palavras uma intimidade, uma promessa.

Depois de contornarem o lago e estacionarem junto da casa de Lily,


ela estava tão excitada como da primeira vez que John a levara
para o sótão. Não - ainda mais. Conhecia agora a sensação da
barba dele contra os seus seios, a forma como os seus músculos
ficavam tensos e o seu corpo estremecia. Sabia ao que a pele dele
cheirava depois de um duche, e depois do sexo. Tocara-Lhe quando
ele estava no máximo da excitação.

Desta vez não chegaram à cama, e fizeram amor no cimo das


escadas, tirando apenas o mínimo de roupa necessário para que
fosse possível. A seguir, ele apertou-a contra si até os corpos de
ambos acalmarem. Depois encostou a testa à dela.

Não falou. A voz que ela ouvia estava dentro da sua cabeça.
Oferecia-Lhe uma vasta gama de possibilidades - a necessidade de
vida em face da morte, a necessidade de um amigo em tempos de
inimizade, até pura e simplesmente luxúria. Podia também ser amor
- um pensamento interessante, um pensamento assustador. Por isso
afastou-o da mente.

Ele segurou-a assim, no colo, até a escuridão se instalar à volta da


casa, e passou a noite com ela. Mas, quando Lily acordou na manhã
seguinte, John já saíra.

A missa do funeral foi na igreja no centro da cidade. Foi uma

cerimónia breve, uma despedida simples para um homem


complicado, mas a casa estava cheia. A maior parte dos habitantes
de Ridge estava lá, para sepultar um dos seus, mas havia muitos
outros, o que sugeria que tinham vindo por respeito a John.

Tal como fizera na missa do domingo anterior, Lily entrou


discretamente e sentou-se num banco ao fundo da igreja, de cabeça
baixa enquanto o sacerdote falava. Teria tentado passar
despercebida também no cemitério, se John não Lhe tivesse
pegado na mão e não a tivesse puxado para caminhar ao seu lado
atrás do caixão, quando saíram da igreja.

Estava encurralada. Não podia afastar-se sem o magoar e sem


fazer uma cena, portanto deixou-se levar. Ele segurava-Lhe na mão
como antes, como se ela fosse um porto seguro, a única coisa que o
mantinha firme. Mas agora era diferente. Agora era em público.

Sem saber bem como isso cairia aos olhos de Lake Henry, Lily
manteve o rosto baixo. Depois de algumas orações, o caixão baixou
à terra. Ela conseguiu sentir a tensão de John nessa altura, e não
Lhe passaria pela cabeça afastar-se dele, mas estava mais uma vez
encurralada, desejando uma privacidade que Lhe era negada. As
pessoas passaram depois por John, com uma palavra breve, um
aperto de mão, um toque no braço, e os seus olhos voltavam-se
sempre para Lily. Havia rostos com nomes - Cassie; Charlie Owens,
pai e filho; Willie Jake e a sua Emma; Allison Quimby; Liddie Bayne -
e rostos sem nome. Lily acenava, embaraçada, engolia em seco, e
agradecia à sua estrela da sorte por não ter de falar. Estava longe
dali, em quase todos os aspectos.

Mas só se afastou quando John o fez, o que aconteceu apenas


depois de os coveiros terem acabado de encher a campa de terra.

Nessa altura os habitantes da cidade já se tinham ido embora, e não


havia ninguém para exprimir curiosidade ou desaprovação.

O que servia de pouco consolo a Lily. Não conseguia deixar de


sentir que ela e John tinham arranjado um problema novo.

John não pensava o mesmo. Gostava da ideia de poder estender a


sua protecção a Lily. Se o respeito que os habitantes locais sentiam
por ele se alargasse a ela, isso ajudaria. Quanto melhor eles a
tratassem, mais bem-vinda ela se sentiria; e, quanto mais bem-vinda
se sentisse em Lake Henry, maiores as probabilidades de pensar
em ficar.

Ele não estava a pensar no livro. Sentia-se desconfortável quando


pensava nisso - como se esse pensamento depreciasse o que
tinham partilhado. O facto de querer que ela ficasse era totalmente
independente do livro.

Mas Lily não ficaria a menos que as coisas estivessem resolvidas. O


escândalo deixara-a num limbo; estava ali, mas as coisas da sua
vida - apartamento, roupas, piano, carro - estavam em Boston. O
jornal não ia imprimir a retractação e, depois de fazer tudo o que a
lei permitia, Cassie tinha de esperar por uma resposta. Prometia ser
um processo lento e penoso.

John tinha apenas de recordar Lily como a vira naquele primeiro


sábado de manhã - toda enervada, de camisa de dormir e xaile, com
uma arma apontada ao coração dele - para saber que ela tinha o
seu orgulho. Não ficaria em Lake Henry por não ter outra alternativa,
não ficaria simplesmente por não ter outro sítio para onde ir. Tinha
de querer efectivamente ficar, e isso não aconteceria se não
conseguisse resolver as suas questões com Maida. Ele queria
ajudá-la a fazer isso. Mas remexer nos segredos de Maida parecia-
Lhe uma intrusão, sendo a sua relação com Lily ainda tão recente.

Terry era outra coisa. Para Lily, Terry era caça aberta. john gostava
da ideia de poder ajudá-la a provar intenção maliciosa da parte dele.
Podia fazê-lo sem qualquer conflito de interesses.

Assim, depois de passar o domingo com os preliminares da edição


do Lake News, alimentado por comida entregue em quantidades
industriais pelo Comité de Hospitalidade de Poppy, chegou ao
escritório bem cedo na segunda-feira de manhã e recomeçou onde
parara quando Gus adoecera. Para começar, contactou uma igreja
na secção italiana de Pittsburgh e falou com dois padres, antes de
encontrar um com idade suficiente para poder ter conhecido Terry
Sullivan. Na verdade, este padre conhecia o nome, mas apenas
graças ao escândalo recente. Informou John, em termos muito
claros, que Terry Sullivan nunca passara tempo nenhum na sua
paróquia.

Portanto Terry não fora um católico praticante em Pittsburgh, pelo


menos no bairro sobre o qual escrevera.

Recuando um passo, John regressou a Meadville, mas a igreja aí


também se revelou um beco sem saída. Ninguém na reitoria se
recordava da família, e, embora pudesse ter tentado junto dos
líderes laicos da paróquia, John voltou a contactar o mesmo
director-adjunto com quem falara antes. Ainda ansioso por ajudar, o
homem pô-lo em contacto com uma professora preparatória, que o
pôs em contacto com uma professora primária. Ambas
corroboraram a história uma da outra. Ambas estavam encantadas
com o sucesso de Terry, tendo em conta as dificuldades da sua
infância.
- Dificuldades? - perguntou John a cada uma delas.

- Ele era diferente dos colegas - confidenciou uma delas. - Sempre


um pouco à parte.

A segunda foi um passo mais além.

- Posso dizer isto agora, porque o vi num programa de televisão


ainda o fim-de-semana passado e sei que é hoje um homem sólido
e bem-parecido, mas ele era um rapazinho franzino.

- Franzino?

- Pequeno. Magricela. Extraordinariamente defensivo. Pobrezinho, a


ter de seguir as passadas de um irmão daqueles.

- Como era o irmão?

- O Neil? Era uma criança bonita. Doce, sociável, amigável. Era um


líder natural, mesmo na altura. O Terry era melhor aluno, mas as
crianças dessa idade não dão importância à inteligência se o resto
não funcionar. Com o Terry, o facto de ser inteligente virou-se contra
ele. Os miúdos troçavam dele por saber sempre as respostas. E a
vida também não era fácil em casa. O pai dele era um homem difícil.

A primeira professora também falara nisso.

- Quando vemos crianças como o Terry, hoje em dia, participamos


às autoridades a possibilidade de serem vítimas de violência
doméstica. Mas, na altura, olhávamos para o outro lado.

- O que via? - perguntou John.

- Nódoas negras. O Terry era espancado. O pai tinha mau feitio e


um cinto.

- Também batia ao irmão?

- Céus, não. Não se atreveria.


- Porquê?

- A mulher tê-lo-ia deixado de certeza se ele pusesse a mão naquele


rapaz. Ela venerava o Neil. Tinha-o destinado para o sacerdócio
desde o primeiro dia.

O coração de John começou a bater mais depressa.

- E ele tornou-se padre?

- Certamente que sim. Ficámos todos muito orgulhosos dele por


isso.

Seria uma ligação suficiente? Poderia o facto de estar sempre em


segundo lugar perante um irmão mais velho e eclesiástico ter
despertado em Terry um ódio à Igreja suficiente para justificar as
suas acções contra o cardeal Rossetti?

John pensava que não. Tinha de haver um elo mais directo.

- O irmão não conseguia impedir que o pai batesse no Terry?

- Ninguém conseguia deter aquele homem. Era grande, forte e


colérico.

- E a mãe do Terry?

- Oh, já morreu. Morreu num acidente de automóvel há dez anos.


john sabia disso, e sabia que o pai de Terry também já não era vivo.

- Mas onde estava ela, enquanto o marido brandia o cinto?

- À frente dele, suponho. Ela era a primeira a levar. Mesmo contra


vontade, John sentiu compaixão. Apesar de toda a violência verbal
que os seus pais tinham arremessado um ao outro, nunca houvera
violência física.

- Qual era o problema? - perguntou. - Ele bebia?


Nenhuma das professoras sabia ao certo, mas uma delas deu-Lhe o
nome da mulher que vivera ao lado dos Sullivan durante os anos
que eles tinham passado em Meadville. Ela ainda lá vivia e não teve
quaisquer problemas em dizer o que pensava.

- Se o James Sullivan bebia? Sim, bebia. Bebia porque tinha uns


ciúmes doentios. A Jean mal podia levantar os olhos em público
sem que ele a acusasse de estar a olhar para um homem qualquer.
Ele até tinha ciúmes do próprio filho. Digo-Lhe, aquele James
Sullivan era má rês.

- Porque é que ela casou com ele, nesse caso?

- Ela não sabia que ele era tão mau. As mulheres nunca sabem. Os
homens só mostram como são quando é tarde de mais para voltar
atrás. Bom, este não esperou muito tempo. Virou-se contra ela na
noite de núpcias, contou-me ela mais tarde. Levantou um dedo e
disseLhe para nem sequer pensar no passado. Ela jurou que não
pensava, mas ele não acreditava.

- Havia algum homem no passado dela?

- Oh, sim. Um namorado de muitos anos, durante o liceu e a


universidade. O amor da vida dela, a julgar pela expressão do seu
rosto. Oh, essa expressão ia e vinha, mas eu vi-a.

- O que aconteceu? Porque se separaram?

- Não sei. Perguntei-Lhe uma vez, mas ela parecia arrependida por
já ter falado de mais.

- Onde é que ela cresceu?

- Não sei. Nunca me disse. Suponho que tinha medo.

- Por causa desse outro homem?

- É um palpite razoável.
A imaginação de John estava a trabalhar furiosamente. Precisava
de mais.

- Sabe qual era o nome de solteira dela?

- Bocce. Como o jogo. Lembro-me disso do obituário. Na altura,


pensei que era irónico; ela podia muito bem ter sido uma daquelas
pequenas bolas, atiradas de um lado para o outro.

John conhecia o suficiente sobre o bocce para perceber o que ela


queria dizer. Bocce, como o jogo. Como o jogo que se costuma
jogar nos bairros italianos. Bairros italianos como aquele onde
Francis Rossetti vivera.

Sentado na beira da cadeira, agora seguindo um palpite, acabou o


telefonema e voltou-se para o computador, mas estava ainda a ligar-
se à Internet quando Richard Jacobi ligou. Voltara de fim-de-semana
e descobrira que Terry Sullivan estava a tentar vender um artigo de
seguimento da história Rossetti-Blake à revista People. John
disseLhe que duvidava que eles o comprassem, uma vez que Terry

* Bocce é uma espécie de boliche de origem italiana, jogado com


bolas de madeira numa pista estreita coberta de gravilha. N. da T.

estava prestes a ser completamente desacreditado como jornalista.


Richard observou que isso não prejudicaria necessariamente as
vendas da revista em questão - uma observação válida, John tinha
de admitir. Richard disse que estava a pensar em adiantar a data de
publicação do livro de John, porque era inevitável que houvesse
outras histórias, outros Terrys, e queria que a deles fosse a primeira
a rebentar. Sugeriu que, se John metesse mãos à obra, podiam ter
qualquer coisa nas prateleiras em Março, e que desacreditar Terry
no seu livro ainda o tornaria mais oportuno.

John não gostava da expressão "meter mãos à obra". Não gostava


do som de Março. Mas gostava muito da ideia de desacreditar Terry.
"Rápido, minucioso e exclusivo", recordou-Lhe Richard. john
perguntou onde estava o seu contrato. Richard disse que estava a
ser redigido. john recordou-Lhe que dissera o mesmo uma semana
antes, e perguntou-Lhe como esperava Richard que ele fizesse um
livro em menos tempo do que ele demorava a fazer um contrato; e
que talvez a história valesse mais se incluíssem no acordo o
desacreditar de Terry. Richard disse que já tinham chegado a acordo
quanto ao valor. john disse que nada era definitivo enquanto o
contrato não estivesse assinado. Richard perguntou-Lhe se estava a
perder a coragem. john respondeu que não.

E não estava, disse a si próprio, enquanto desligava o telefone.


Precisava apenas de pensar. Sentia um aperto no estômago de
cada vez que pensava no livro. Tinha de haver uma maneira de
conciliar a sua necessidade de escrever com os seus sentimentos
por Lily. Tinha de haver uma maneira de ficarem ambos satisfeitos.

Enquanto pensava, trabalhou. Após vários cliques, tinha o nome do


liceu que o cardeal frequentara. Com mais alguns cliques, tinha o
número de telefone.

Cumprimentou com voz animada a mulher que atendeu.

- Olá, estou a tentar localizar uma velha amiga. Penso que ela
andou aí. Chama-se - disse, pronunciando claramente as palavras -
Jean Bocce. Se a minha informação está correcta, ela andou aí com
Fran Rossetti.

A mulher riu-se.

- Que coincidência. Temos o livro de curso dele aqui mesmo.

- Têm recebido alguns telefonemas ultimamente, não? - brincou


John.

- Pode-se dizer que sim. Bocce, foi o que disse? Ele soletrou o
nome.
- Alexander... Azziza... Buford - leu ela. - Lamento. Não há nenhuma
Bocce.

- Talvez ela andasse um ano atrás. Ou estivesse num clube com o


Fran. Música? Debate? Francês? - a memória de John não Lhe
falhou. O cardeal pertencera a todos esses clubes. - Eles tinham de
se conhecer de algum lado.

- Talvez da igreja?

- Talvez - mas John não se estava a ver a fazer perguntas aos


padres da Imaculada Conceição sobre uma amiga do cardeal. - Mas
estava convencido que era daí.

- Talvez tenha razão - a voz da mulher parecia subitamente distante,


pensativa. john ouviu o som de páginas a serem viradas. Depois a
voz dela soou de novo, mais animada. - Ah, aqui está. Foi no coro.
Aqui está ela, segunda fila a contar de cima, terceira a contar da
esquerda. Muito bonita. Na verdade - pareceu de novo distante -,
parece-me familiar. Espere um momento.

John não tencionava ir a lado nenhum.

A voz dela voltou, com um sorriso.

- Ora vejam. Aqui está ela outra vez. Posso estar enganada. Não há
nomes, apenas uma fotografia de três casais, mas o rosto, o cabelo
e o sorriso são exactamente iguais. Parece que ela foi a
acompanhante de Fran Rossetti no baile de finalistas.

John podia ter dado um salto de alegria. Mas não estava disposto a
correr riscos.

- Tem a certeza?

A mulher ficou levemente na defensiva.

- Sou boa com rostos. O nome dela está na fotografia do coro.


Posso mandar-Lhe fotocópias das duas, se quiser.
John deu-Lhe a sua morada.

- Não é que não confie em si - brincou -, mas, com tudo o que se


tem passado ultimamente, seria um insulto se eu abordasse o
cardeal e depois descobrisse que era a mulher errada.

- Compreendo. Mas, espere. Deixe-me ver se tenho alguma


informação actual sobre a Jean Bocce.

John mal se conseguiu controlar o tempo suficiente para levar a


charada até ao fim. Agora de pé, saltitou de um pé para o outro

enquanto esperava, e teve de fingir desilusão quando ela Lhe disse

que a escola não tinha nenhuma morada actual. Foi um pouco


rápido de mais a agradecer e a desligar, mas pensou que sempre
era melhor do que dar um grito de alegria. E foi o que fez assim que
pousou o auscultador.

Segundos depois estava na Internet, à procura de informações

sobre o celibato e os votos sacerdotais. Não demorou muito a


encontrar o que procurava. Depois telefonou a Brian Wallace e
disse:

- Acabo de descobrir uma coisa que penso que deves saber.

Brian suspirou.

- Porque é que tenho a sensação de que não vou querer ouvir isto?

- Porque os teus instintos são bons, mas foste levado, amigo.

O Terry Sullivan tinha uma boa causa para querer denegrir o


Rossetti.

Sabias que ele foi vítima de violência doméstica em criança?

- Ah, céus. Isso é uma história antiga, Kip. Se me vais dizer que
ele foi mais um dos meninos de altar...

John interrompeu-o.

- É melhor do que isso. O pai do Terry batia-Lhe, geralmente ao

mesmo tempo que batia na mulher. Parece que o tipo tinha uns
ciúmes doentios do verdadeiro amor da vida dela, alguém com
quem

ela esteve durante anos, antes de casar com ele. Tens três
hipóteses

para adivinhar quem era.

Seguiu-se um longo silêncio.

- Há uma fotografia dos dois juntos no baile de finalistas de Rossetti

- disse John. - Vem no livro de curso.

- Não há provas de que tenha sido ele o amor da vida dela.

- Uma vizinha que a conhecia disse que ela tinha andado com o

mesmo tipo durante o liceu e a universidade. A fotografia foi tirada

mais ou menos a meio desse período.

Brian parecia céptico, até mesmo trocista.

- Disseste que ela "esteve" com ele. O que é que isso quer dizer?

- Quer dizer o mesmo que para os miúdos hoje em dia.

- Pensas que tiveram sexo? Esquece, Kip. O Rossetti é padre.

- Sim, foi isso que eu pensei, ao princípio, mas estive a fazer


alguma pesquisa. Os padres não têm de ser virgens. Depois de
serem

ordenados, têm de manter o celibato. Há uma diferença.


Aparentemente, há por aí muitos padres que sabem como é estar
com uma mulher, e esses são alguns dos melhores padres.
Compreendem os seus paroquianos. São melhores em orientação
conjugal.

- Estás a ir longe de mais, John.

- Estarei? Não consegues imaginar o Rossetti como um garanhão?


Vá lá, Brian. As peças encaixam. O Terry é repetidamente
espancado, provavelmente ao tentar defender a mãe, que é
espancada porque está apaixonada pelo Fran Rossetti, que
provavelmente é um fantasma vivo no leito conjugal. Assim, o Terry
cresce a odiar o Rossetti, escreve ensaios a condenar a Igreja
nesse bairro italiano onde a mãe cresceu, que por acaso é o mesmo
onde o Rossetti cresceu. O Rossetti é elevado a cardeal... uma
elevação que é antecipada com tempo suficiente para o Terry poder
fermentar. Procura podres legítimos, não encontra nenhum, portanto
cria-os ele próprio.

- A mãe dele confirmou isso?

- Já morreu.

- Então não passa de especulações. Ainda tenho a tal cassete.

- Verifica-a.

John podia ter ficado por aí. Mas ainda nem sequer mencionara o
irmão - Neil Sullivan, o padre.

Se esse irmão era mais favorecido do que Terry - se era mais


amado do que Terry, menos espancado do que Terry, e apontado a
Terry, até à exaustão, como exemplo de tudo o que ele não era -
então o ressentimento de Terry seria compreensível. Não era
preciso ser um génio para perceber que Terry podia equiparar o
irmão à Igreja e odiar os dois. Nem era preciso ser um génio para
questionar se a adoração da mãe pelo primeiro filho, esta criança
destinada ao sacerdócio, teria alguma coisa a ver com o facto de
Fran Rossetti se ter tornado padre.

Tudo somado, John achava que tinha um bom caso. Mas o jornalista
que havia nele não queria um bom caso. Queria o melhor caso.

Assim, dedicou-se a tentar localizar o irmão de Terry.

O aniversário de Hannah era na terça-feira. LilY

preparara as coisas de modo a poder sair mais cedo do lagar, ir a


casa tomar um duche e mudar de roupa, antes de se dirigir a casa
da irmã para ajudar Hannah a vestir-se. Iam buscar as amigas dela
às quatro horas, seguindo depois para o cinema e jantar.

Lily ficou espantada ao encontrar Hannah sozinha. Ao que parecia,


Rose tinha-a deixado em casa depois da escola e saído com as
filhas mais pequenas.

- Eu disseLhe para ir - disse Hannah. - A Emma e a Ruthie têm


ginástica, eu disseLhe que as levasse. Não preciso da ajuda dela
para me vestir.

Lily sabia disso, mas teria sido simpático se Rose tivesse preferido
ficar. Mais uma vez, receou ter piorado ainda mais as coisas entre
mãe e filha. Mas agora já não havia nada a fazer.

Hannah tinha acabado de tomar banho e estava enrolada numa


toalha enorme, presa sobre o peito liso e segura pela pressão dos
braços rechonchudos de Hannah. O cabelo molhado escorria-Lhe
sobre as costas em madeixas desalinhadas. Mas estava à espera
dela com o rosto repleto de excitação.

"Isso já é qualquer coisa", pensou Lily, pondo de lado as suas


apreensões em relação a Rose. Assumindo o papel de cabeleireira,
sentou Hannah num banco na casa de banho e secou-Lhe o cabelo
com o secador até estar brilhante e macio, com uma ligeira
ondulação nas pontas, conforme Hannah queria. Descobrindo uma
franja que nem sabia que existia, secou-a e cortou mais um pouco
para formar um penteado mais cheio e lisonjeiro. Ajudou Hannah a
vestir os colãs verdes, pulverizou-Lhe um pouco da sua água de
toilete atrás das orelhas, depois ajudou-a a vestir o vestido
axadrezado. Quando este estava abotoado e direito, Lily pôs a fita
no cabelo de Hannah, puxando-o para trás, e deixou as pontas do
laço caírem graciosamente sobre os ombros. Virou Hannah para
ela, pensando em esfregar-Lhe as faces para Lhes dar um pouco de
cor, mas a cor já lá estava, um leve tom rosado numa pele de
marfim perfeita. Hannah era, de facto, filha de Rose.

- Estás - disse Lily com um suspiro satisfeito, enquanto voltava a


sobrinha para o espelho - absolutamente maravilhosa.

Hannah pareceu crescer alguns centímetros, perante os seus olhos,


e a altura parecia torná-la ainda mais magra. Era um começo
auspicioso

para um evento auspicioso, e a parte mais surpreendente de tudo,

para Lily, foram as amigas de Hannah. Eram encantadoras. Tímidas


ao princípio, mesmo com Hannah, rapidamente perderam a
vergonha. Abrir os presentes no carro foi a desculpa perfeita para
quebrar o gelo. Depois de estarem a caminho, Lily, atrás do volante
da carrinha dos Pomares Blake, ouviu vários comentários sobre o
vestido fantástico de Hannah, o penteado fantástico, os sapatos
fantásticos, tudo no meio de uma conversa que fluía cada vez com
maior facilidade.

Hannah estava linda e aprumada, não se ficando atrás das outras


raparigas em aspecto e sociabilidade. Mais do que uma vez, Lily
desejou que Rose, Art e Maida a pudessem ver agora. Na ausência
deles, sentiu orgulho suficiente pelos quatro.
Uma vez que Hannah se divertiu imenso, Lily também se divertiu.
Desconfiava que já estava predisposta a isso, uma vez que ela
própria estava de excelente humor. O que John descobrira sobre
Terry alterava tudo. O jornal ainda não concordara em verificar a
autenticidade da cassete, mas também não recusara. Cassie
achava que isso era bom sinal. Tinha esperança de que, se a
cassete fosse considerada suspeita após análise, se seguisse
rapidamente um acordo.

Lily não queria dinheiro. Queria um pedido de desculpas público, e


queria-o com tanta fanfarra como houvera quando a história
rebentara. Nunca esqueceria a humilhação de ver a sua vida
privada exposta aos olhos de todo o mundo. Nada que acontecesse
em Lake Henry podia compensar essa injustiça. A dor que sentira
invadia-a de novo de cada vez que pensava em voltar para Boston.

Apesar disso, quaisquer medos que tivesse de ser reconhecida com


Hannah e as amigas revelaram-se infundados. Não sabia se as
pessoas se tinham esquecido, ou se menos gente do que ela
pensava tinham visto a sua fotografia, ou se o facto de trazer
consigo 6 crianças servia de disfarce, mas não viu ninguém que
reconhecesse, e ninguém que a reconhecesse a ela.

Todo o programa correu na perfeição e, depois de terem deixado a


última das convidadas em casa, Hannah gatinhou para o banco da
frente e, de joelhos, inclinou-se sobre a alavanca das mudanças e
passou um braço à volta do pescoço de Lily.

- A minha festa foi maravilhosa, não foi? - perguntou, com a alegria


própria de uma criança.

Lily sorriu.

- Foi mesmo.

- Os meus presentes são giríssimos, não são? - perguntou Hannah,


acrescentando um comentário entusiástico sobre cada um deles.
Depois falou sobre o filme durante algum tempo. Por fim, disse: O
que gostei mais foi do jantar... e não foi por causa da comida -
acrescentou rapidamente - mas porque o meu vestido era bonito e
estava com as minhas amigas.

- O teu vestido é bonito, mas a menina dentro dele estava linda.

- Elas fartaram-se de dizer isso, não foi? - perguntou Hannah, com


um sorriso radiante.

- Pois foi.

- Oh, olha, tia Lily, deixaste passar a entrada da minha casa.

- Não queres passar primeiro pela avó? Para Lhe contar como foi a
festa ?

- Sim!

Mas Maida não estava sozinha. Rose estava lá, com Emma e Ruth,
ambas de pijama e prontas para a cama. Hannah achou que era
fantástico, a mãe estar lá quando ela saísse em triunfo da carrinha.
Lily só conseguia pensar que, se não tivesse decidido passar por
aqui primeiro, Hannah teria chegado e encontrado a casa vazia.

Vazia não. Art provavelmente estava lá. Mas Art não era Rose.
Hannah precisava que a mãe a visse. Precisava que Rose Lhe
dissesse como estava bonita, precisava que Rose visse que ela não
era assim tão má.

Mas foi Maida que avançou primeiro, de olhos arregalados com


surpresa e satisfação.

- Olhem bem para ti - disse, com genuíno entusiasmo. Segurou nos


ombros de Hannah e mirou-a de cima a baixo. - Estás maravilhosa.
Mas onde está a minha menina pequena? Esta é tão crescida!

- Sou eu - disse Hannah com um sorriso tímido. Os seus olhos

viraram-se para a mãe.


- Como correu a festa? - perguntou Rose, e, por um minuto, o
silêncio da noite foi quebrado apenas pelo canto de um grilo que o
sol do dia reanimara.

Maida olhou para Rose.

- Correu bem - disse Hannah à mãe. Depois voltou-se para as


irmãs. - Recebi presentes - e elas correram para ver.

Com receio de dizer alguma coisa desagradável a Rose, Lily entrou


em casa. Instalou-se atrás do piano, levantou a tampa e acariciou as
teclas. Não foi preciso muito para a sua raiva esmorecer. Bastaram
uns simples arpejos. Depois passou para algo mais clássico e lento.
À medida que relaxava, tocou canções mais actuais. Eram suaves e
lentas, descontraídas, doces. Cantou quando havia palavras,
trauteou quando não havia. Foi ficando cada vez mais envolvida na
música, absorvida por ela, de tal modo que não ouviu Maida entrar.
Só percebeu que ela estava ali quando acabou uma canção, rodou
a cabeça para esticar os músculos do pescoço e, por acaso, passou
com os olhos pela porta.

Parou e endireitou a cabeça.

- Elas já se foram embora?

Maida acenou afirmativamente. Estava de pé na ombreira da porta,


com as mãos enfiadas nos bolsos de um par de calças macias e
lisas. Apesar da pose, parecia tensa.

- Sentes falta de tocar?

Lily acenou. Moveu as mãos sobre as teclas mas não sabia que
canção tocar.

- Serias muito útil na academia - disse Maida.

- Aqui?

- Podias fazer o mesmo que fazias em Boston.


- Não têm já alguém?

- Sim, mas ele não é muito bom. A directora da escola é minha


amiga. Eu podia falar com ela.

Lily não sabia o que dizer. Era um grande elogio. Mas não sabia
quanto tempo ia ficar - e, de súbito, viu que Maida estava de testa
franzida.

- A história está a repetir-se? - perguntou ela, abruptamente. Lily


não percebeu.

- O quê?

A expressão de Maida tornou-se mais sombria. Lily teria dito que ela
estava zangada, mas a palavra "atormentada" ocorreu-Lhe primeiro.

- A atitude de Rose, ainda agora - disse Maida. - Foi isto que eu te


fiz a ti?

O coração de Lily começou a bater com mais força. Sem querer


discutir, baixou os olhos para as teclas.

- Diz-me, Lily.

Ela levantou a cabeça.

- As circunstâncias eram diferentes...

- Mas o efeito era o mesmo.

Lily fez uma pausa, depois acenou afirmativamente. Maida cruzou


os braços sobre o peito. Levantou os olhos para o tecto.
Surpreendentemente, estavam cheios de lágrimas.

Lily sentiu-se embaraçada. Não conhecia esta faceta da mãe. Pôs


as mãos no colo e tentou controlar o coração acelerado.

Algum tempo depois, Maida olhou de novo para ela.


- Desculpa - disse, e engoliu em seco. - Foi errado da minha

parte.

- Não faz mal - respondeu Lily rapidamente. - Tinhas outras coisas


em que p-p-pensar. Estavas muito ocupada com o papá e os clubes,
e três filhas; e, de qualquer maneira, eu tinha a Celia.

- Foi errado da minha parte - repetiu, agora num tom de desafio,


num tom exigente; e a sua voz era suficientemente cortante para
catapultar Lily para o passado.

De repente, a mágoa renovou-se.

- Então porque o fizeste? - atormentada. Sim, sem dúvida, era essa


a expressão de Maida, mas Lily prosseguiu. - Por causa da minha
gaguez? Eu não gaguejava de propósito.

- Eu sei.

- Era assim tão difícil gostar de mim?

Maida arregalou os olhos.

- Mas eu gostava de ti. E gosto.

- Nunca o disseste. Nunca o mostraste. Ficaste contente quando eu


me fui embora.

Ela ergueu o ombro.

- Parecia a coisa mais correcta depois... daquele incidente.

- Eu não roubei carro nenhum.

- Eu sei.

- Mas quiseste ver-me pelas costas.


Maida abanou a cabeça, depois parou, parecendo aperceber-se de
que se estava a contradizer. Enfiou mais as mãos nos bolsos e
apertou os braços contra o corpo.

- Porquê? - perguntou Lily.

Maida abanou a cabeça.

Lily queria perguntar-Lhe o que isso significava, mas, de súbito,


havia outra coisa que queria ainda mais. Maida não precisava de
responder. Tudo o que tinha de fazer era atravessar a sala e abraçar
Lily. Se ela o tivesse feito, Lily ter-Lhe-ia perdoado fosse o que
fosse.

Mas Maida não se mexeu. Ficou parada à porta, com a mesma


expressão atormentada. Algum tempo depois, desviou os olhos, bai
xou a cabeça e saiu.

- Sou capaz de não ir trabalhar amanhã - disse Lily a John, nessa


noite. Estavam deitados na cama dela, voltados um para o outro,
sob a luz reflectida de uma lua cheia. Um par de mergulhões
cantava em coro no lago. Isso devia tê-la acalmado, mas havia uma
pequena chama de fúria dentro dela que não queria desaparecer.

- Porquê? - perguntou ele.

- A minha mãe toma-me por certa.

- Discutiram?

- Não - respondeu ela secamente.

- Então tiveram uma diferença de opiniões bem-educada? - brincou


ele.

Mal-humorada, ela puxou-Lhe a barba.

- Não te digo. Depois pões tudo no livro.


- Nem pensar. O acordo é que só posso usar aquilo que me disseres
quando estiveres toda vestida.

Sim. Era esse o acordo. E ela confiava que ele o respeitaria.

- Ela pediu-me desculpa.

- Porquê?

- Pelo passado.

John levantou a cabeça.

- Bom, isso já é qualquer coisa, não é?

Lily sentiu outra pontada de raiva.

- Sim.

- Mas?

- Não chega.

Ele acariciou-Lhe o cabelo, o que a acalmou um pouco.


Gentilmente, disse:

- És muito exigente.

- Pois sou - um mês antes, um pedido de desculpas teria sido


suficiente. Mas, um mês antes, Lily estava em Boston. Não tinha
qualquer interesse em viver em Lake Henry. Mas agora, aqui, de
súbito... precisava de mais. - Ela foi horrível comigo. Fez-me s-s-
sentir indesejada e mal amada e feia.

- Nunca foste feia.

- Feia por dentro. Como se houvesse algo errado comigo. Sabes


quem conseguiu finalmente fazer-me sentir bem comigo própria?
- O cardeal.

- Ele ensinou-me que todos cometemos erros. Bom, o mundo inteiro


conhece os meus. Eu quero conhecer os dela. Quero que ela fale
sobre o que sentia por mim e sobre a razão por que se sentia assim.
Preciso que ela diga que a culpa não era minha.

Lily acabou por ir trabalhar na quarta-feira. Depois de ter


desabafado com John, dormiu bem. Estava tranquila e repousada
quando a manhã chegou.

Maida não. Parecia cansada. Pela primeira vez, Lily pensou na


viuvez e no que isso significaria para uma mulher como a sua mãe.
Maida vivera com George durante quase trinta e três anos, cuidando
da casa enquanto ele supervisionava o negócio. Agora ela tinha de
fazer ambas as coisas, e fazia-o sozinha. Não havia ninguém para
quem se virar à noite, ninguém que Lhe desse o tipo de conforto que
John dera a Lily.

Mas Maida tinha um negócio. Pelo que Lily podia ver, para além da
retroescavadora que era preciso substituir e de dois trabalhadores
com ossos partidos, ela estava a geri-lo bastante bem.

Lily não podia deixar de a admirar por isso - e de sentir alguma


compaixão quando Maida fez uma pausa na escolha das maçãs
para esfregar as costas. Quando pararam para almoçar, Lily
esperou por ela. Caminharam juntas até à casa grande.

- As costas estão a incomodar-te? - perguntou Lily.

- Um bocadinho. É um músculo. Nada de grave.

- Não podes descansar?

- Em Janeiro. Não há muito que fazer por aqui em Janeiro.

- Pegas em pesos muito grandes, quando pões aqueles caixotes no


elevador.
- Alguém tem de o fazer.

- A Oralee podia tratar disso.

- A Oralee é demasiado velha.

- Ou então eu.

- Tu és demasiado nova.

Lily não disse nada.

Estavam quase em casa quando Maida disse, com hesitação.

- Mas talvez possas.

Trocaram de lugar à tarde - apenas para experimentar, concordaram


ambas - mas a experiência correu bem. Maida dispunha as grades e
os panos e deixava Bob puxar e empurrar. Lily punha os caixotes no
elevador, despejava maçãs na tina de lavagem, seleccionava as que
não prestavam, ajustava roldanas e levantava e baixava a prensa.
Conduziu a empilhadora quando foi preciso trazer mais maçãs,
enfiou-se debaixo da prensa quando um dos tubos de drenagem
teve uma fuga, e adorou cada instante, porque conseguia fazer
tudo. Não tinha uma sensação de realização assim desde... nem se
lembrava desde quando. E satisfação. Isso também. Havia qualquer
coisa especial em trabalhar um dia inteiro num local com o nome da
família no logóti po.

O padre Neil Sullivan, o irmão de Terry, vivia em Burlington,


Vermont. Quando não estava na Igreja de Cristo Rei, dava
aconselhamento a estudantes universitários num centro de
orientação na cidade, ou aulas na escola da paróquia. john teria
poupado a viagem e simplesmente telefonado se achasse que ele
falaria, mas o mais lógico era que não falasse. Terry não o traíra; ele
não ia trair Terry.
No entanto, John telefonou para a igreja para se certificar de que o
padre Sullivan estava na cidade e não noutra parte qualquer do
país. O secretário da reitoria disseLhe que ele estava na
Universidade de St. Michael, a dar um curso. A universidade ficava
em Colchester, a cidade contígua a Burlington. Era tudo o que John
precisava de saber.

Depois de ter combinado com um dos seus correspondentes a


distribuição do Lake News, saiu de Lake Henry assim que acabou
de enviar o jornal para a gráfica. Burlington ficava a cinco horas de
caminho. Presumindo, com algum optimismo, que passaria algumas
horas com o padre, seria já tarde quando estivesse despachado. A
menos que acontecesse algo tão desagradável que o pusesse mais
cedo a caminho, calculou que teria de passar lá a noite.

John conhecia Burlington. Durante cinco anos seguidos, na época


em que ainda estava no Post, participara num seminário de
jornalismo na Universidade de Vermont. Gostava da cidade -
gostava da forma como se erguia numa colina voltada para o lago
Champlain, gostava da aura de energia e excitação proveniente de
seis universidades e dos seus dezasseis mil estudantes. Embora o
Outono já tivesse ultrapassado o seu pico por aqui, o sol do final da
tarde mais do que compensava em cor, tanto no lago como no céu.

Na Igreja de Cristo Rei, John soube que o padre Sullivan estava no


centro de orientação, para o qual se dirigiu de imediato. Ficava

no segundo andar de um dos edifícios de estilo federal voltados


para

o lago, e consistia numa área de recepção confortavelmente


mobilada, embora com revistas e copos de café espalhados, e
vários escritórios ao longo de um corredor comprido.

A recepção estava vazia. As portas de dois dos gabinetes estavam

fechadas, embora as luzes fluorescentes por detrás dos painéis de


vidro rentes ao tecto sugerissem que estavam a ser utilizados.

John percorreu o corredor até ao terceiro gabinete, que estava

vazio por detrás da porta entreaberta. Estava prestes a regressar à

recepção, preparado para esperar, quando apareceu uma mulher na

outra ponta do corredor, à porta do que parecia ser uma pequena

cozinha. Era de altura e constituição média, cabelo comprido, com

risco ao meio e óculos de armações metálicas. john calculou que

devia estar no final da casa dos trinta. Por isso, e pelo bom corte da

sua camisola e calças, calculou que não fosse uma das estudantes.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou ela com voz autoritária.

- Estou à procura do padre Neil Sullivan.

Ela dirigiu-se à recepção e apontou para uma das portas fechadas


quando passou.

- Ele deve estar quase despachado. Tem marcação?

- Não. Pensei em apanhá-lo ao fim do dia.

- Para?...

- Apenas para conversar.

- Sobre?...

John considerou a hipótese de mentir. Se esta mulher fosse tão

controladora como parecia - e se soubesse alguma coisa sobre a


vida pessoal do padre - podia correr com ele. Mas o padre estava
perto.

John podia esperar dentro do centro, ou podia esperar lá fora. Não


ia

a lado nenhum enquanto não falasse com ele.

Ser evasivo parecia não fazer sentido. - Sobre o irmão dele.

A mudança de expressão foi subtil, mas John estava atento. Oh,

sim. Ela sabia quem era Terry.

Enfiando as mãos nos bolsos das calças, ela encostou-se à parede.

- Porquê?

Ele encolheu os ombros, ergueu as mãos e depois estendeu uma

para cumprimentá-la.

- John Kipling.

Ela tirou a mão do bolso apenas o tempo suficiente para apertar a


dele.

- Anita Monroe. Sou a directora do centro - a mão voltou ao bolso.


Estava a manter a distância. - Trabalha para algum jornal?

- Um pequeno jornal regional em New Hampshire. Mas já trabaLhei


com Terry em Boston.

- Que bom para si - disse ela, com mais uma leve alteração de
expressão, mas, antes que John pudesse explorá-la, uma porta
abriu-se atrás dela. Primeiro saiu um jovem. A sua idade e a mochila
gasta diziam que era um estudante. De olhos baixos, passou por
eles e dirigiu-se apressadamente à saída.
John olhou para o homem de cabeção que o observava à porta do
gabinete. Havia alguma semelhança de família, embora John não
conseguisse especificar onde. Neil era claramente mais velho do
que Terry, com cabelo meio grisalho e rugas na testa e nas faces.
Não era tão alto nem tão magro como Terry, embora mantivesse
uma postura igualmente direita. A boca talvez fosse a mesma. Mas
a de Neil estava descoberta e era mais gentil. O mesmo em relação
aos olhos. Neil parecia muito mais amável e caloroso do que Terry
alguma vez parecera. Era uma pessoa acessível. A sorrir, era
mesmo convidativo. john conseguia facilmente acreditar em todas
as coisas que ouvira dizer sobre ele.

Anita foi directa ao assunto.

- Padre Neil, este é John Kipling. Quer falar consigo sobre o Terry. O
padre Neil inspirou abruptamente e inclinou a cabeça para trás,
como quem diz "fui descoberto". Quando endireitou a cabeça, o seu
sorriso era vacilante, mas o seu aperto de mão foi caloroso.

- Há muitos Sullivan no mundo. Estava a pensar quando é que


alguém estabeleceria a ligação. Como conseguiu?

- Uma antiga vizinha de Meadville disseme que o senhor estava em


Vermont. A diocese local fez o resto. Conheço o Terry há muitos
anos. Fomos colegas na universidade.

- E colegas de trabalho - interveio Anita.

O padre sorriu tristemente.

- Nesse caso, receio que o conheça melhor do que eu. Temos uma
diferença de sete anos. Nunca fomos muito íntimos.

- Não mantém qualquer tipo de contacto com ele?

- Não. Seguimos caminhos diferentes. Portanto, não sei bem do que


anda à procura, e, se veio de muito longe, lamento. Mas na
realidade não tenho nada a dizer.
John podia ter sido astucioso. Podia ter levado o padre a falar de
outras coisas e conquistar assim a sua confiança. Mas -
independentemente do facto de Anita continuar de guarda - isso não
Lhe parecia correcto. Assim, explicou o que pretendia, falando da
sua amizade com Lily e das perdas que ela sofrera desde a sua
implicação no escândalo.

- Ela está a tentar defender-se. Quero ajudá-la. Estamos a tentar


compreender por que razão o Terry odiava o Fran Rossetti o
suficiente para querer arruiná-lo, destruindo pelo caminho uma
mulher ino cente. Sei que a sua mãe e o Rossetti foram namorados,
que o seu pai tinha ciúmes disso, e que o Terry sofria maus-tratos
físicos. E sei também que o senhor estava imune à maior parte
dessas coisas.

Havia dor. john conseguia vê-la nos olhos de Neil. Com a voz calma,
o padre disse:

- Se sabe isso tudo, porque precisa de mim?

- O senhor é o único que pode ajudar-me a encaixar todas as peças.


Podemos especular sobre os motivos dele, mas precisamos que
alguém o confirme.

- Para publicação - com o mesmo sorriso triste, o padre abanou a


cabeça. - Lamento. Não posso fazer isso. Ele é meu irmão.

- Ele caluniou um cardeal. Arruinou uma mulher inocente.

- Não deixa de ser meu irmão. Conseguirá as suas informações de


uma maneira ou de outra, mas não através de mim.

- Quero que as informações sejam correctas. O senhor é o único


que estava presente.

- Mas não estava, na verdade. Como já Lhe disse, sou sete anos
mais velho. Quando somos crianças, isso é uma vida.
- O Rossetti estava na raiz dos vossos problemas familiares? Neil
inspirou de novo com a cabeça inclinada para trás. Pareceu ser o
suficiente para fortalecer a sua determinação.

- Teria de o perguntar aos meus pais.

- Eles estão mortos.

- Sim - respondeu, e ficou em silêncio.

O silêncio prolongou-se.

- Ficou surpreendido por ter sido o Terry a trazer a público a história


Rossetti-Blake? - tentou John.

Mais um sorriso e uma expressão paciente.

- Não vou responder a essa pergunta.

- Incomoda-o que o Terry tenha causado tanto mal? O padre pensou


um pouco. Ainda paciente, ainda triste, disse:

- Incomoda-me que a imprensa tenha poder para causar tanto mal.

- Tem de parar em algum lado - disse John, pensando em Terry. Mas


Neil estava claramente a pensar em John.

- Tem razão. E essa é uma das razões pelas quais não vou falar

consigo.

Era um argumento válido. john sentiu uma pontada de sentimento


de culpa. Este rapidamente se transformou em inveja. Neil era um
homem muito seguro de si mesmo, mas sem qualquer arrogância.
Transmitia calma, e o tipo de confiança que derivava de acreditar
muito em alguma coisa.

Depois de se aperceber disso, John duvidava que Neil pudesse ser


persuadido. Mas fez uma última tentativa.
- E se eu Lhe prometer total confidencialidade? - estava disposto a
isso. Parecia-Lhe correcto.

- É indiferente - disse o padre Sullivan no mesmo tom calmo. Ele é o


meu irmão mais novo. Não me cabe a mim traí-lo.

- Mesmo sabendo o mal que ele fez?

- O meu trabalho não é julgar. Isso cabe a Deus - mais uma vez,
ficou em silêncio. Mais uma vez, o silêncio prolongou-se.

John procurou a ajuda de Anita.

- Não consegue ver isto do ponto de vista da Lily? Anita


surpreendeu-o quando respondeu:

- Consigo. Se eu fosse a ela, também quereria descobrir tudo o que


pudesse. Mas não se trata do meu irmão.

- Não consegue convencê-lo? - perguntou John, indicando Neil com


um gesto de cabeça.

- Não - disse Neil em tom peremptório. - Não consegue. john sabia


quando devia desistir.

- Muito bem - disse. - Agradeço a honestidade. Vamos fazer o


seguinte: vou deixá-los agora, mas vou passar a noite na estalagem

em Maple. Se mudar de ideias, telefona-me? Amanhã à tarde já


estarei de novo em Lake Henry - tirou um cartão de visita da
carteira. - Aqui tem o meu número de casa.

O padre guardou o cartão no bolso sem olhar para ele.

John estava desencorajado. Sabia que conseguir fazer o padre

falar era uma possibilidade remota, mas, depois de o conhecer,


desejava-o mais do que nunca - na verdade, desejava-o a um nível
pessoal que não tinha nada a ver com Lily. Neil Sullivan era uma

pessoa perspicaz. Tinha de ser, tendo em conta a área em que


trabalhava. john queria saber como ele conseguia viver sabendo
que não

estivera presente para ajudar o irmão mais novo.

Mas Neil não revelara um único instante de dúvida. Ele não ia

falar. john estava tão certo disso que ainda pensou em voltar a Lake

Henry nessa mesma noite. Mas a viagem era longa, ele estava
exausto, e - mesmo que a esperança fosse vã - dissera ao padre
que ficaria na estalagem.

Assim, jantou na marginal e passeou pelos animados quarteirões

da baixa, desejando que Lily estivesse com ele. Convencido de que


o

padre não telefonaria, ficou na rua até tarde e voltou à estalagem

suficientemente cansado para adormecer de imediato. Dormiu


profundamente e até tarde, e acordou mesmo a tempo de ainda
chegar

a horas ao pequeno-almoço. Não recebera quaisquer telefonemas

ou mensagens.

Quando entrou na sala de refeições da estalagem, estava a pensar


que podia viver sem a ajuda do padre e que sentia a falta de Lily

e queria ir para casa - quando viu Anita Monroe. Estava sentada,

com um café, na mais reservada das três pequenas mesas.


Devolveu
o olhar dele sem vacilar.

John serviu-se de café de uma cafeteira que estava no aparador,

encheu um pequeno prato de bolinhos e juntou-se a ela. Pousou o

café perto de si e pôs o prato de bolinhos no meio da mesa.

- Pensava que não se tratava do seu irmão - recordou-Lhe John.

A voz dela estava mais suave do que no dia anterior, mas


igualmente segura.

- Pois não. Mas fui eu que vi como o irmão dele tem sofrido com

sentimento de culpa e remorsos.

Culpa e remorsos. Eram palavras fortes.

- Ele sabe que está aqui?

- Sim. Conversámos sobre o assunto ontem à noite.

- Foi ele que a mandou?

- Não explicitamente. Mas ele sabia que eu viria, e não me pediu


que não o fizesse. Eu assumi o lado da Lily na discussão - sorriu.
Você conseguiu tocar-me no ponto fraco. Se isto pode ajudá-la,
então ele tem de o fazer. A questão é que preciso de uma garantia
de confidencialidade. O Neil precisa de manter o anonimato. Não
quer ver a imprensa a correr para cá. E não quer magoar o Terry
com as próprias mãos.

- Não seriam as mãos dele, mas as suas - recordou John, depois


estendeu o braço e segurou-Lhe rapidamente no pulso quando,
ferida pela franqueza dele ou por o que ela pensava ser presunção
da sua parte, Anita fez menção de se levantar. - Por favor - disse
humildemente, desesperado. - Nada do que me disser é para
consumo público. Nada aparecerá em letra de imprensa. Preciso
apenas de algo que apoie as minhas conclusões.

- Pela Lily.

- Sim.

Lentamente, ela sentou-se de novo. Estudou-o, parecendo dividida.

- E por mim - admitiu John com honestidade. - Preciso de


compreender.

Ela baixou os olhos para a chávena e permaneceu assim mais um


minuto. Por fim, ergueu-os.

- O Neil era o filho privilegiado. Não estava a mentir quando disse


que ele e o Terry não eram chegados. Ele apercebia-se apenas de
forma marginal do que se passava naquela casa.

- Como era possível que não visse? - ele, John, tinha a desculpa da
distância. Estava fisicamente distante quando as coisas tinham corri
do mal com Donny.

Anita adoptou a sua postura de terapeuta, perceptiva e paciente.

- O Neil via o que conseguia suportar. O resto passava-Lhe ao lado.


Tem-se apercebido de mais coisas em retrospectiva, nos últimos
anos, e mais ainda desde que o escândalo Rossetti rebentou.

- O Rossetti era o problema no casamento dos Sullivan?

- Sim. A Jean... a mãe do Neil... sabia que o Rossetti tinha intenções


de entrar para o seminário, mas pensou que conseguiria fazê-lo
mudar de ideias. Obviamente, não conseguiu. Estiveram juntos mais
de oito anos, e depois ele partiu. Foi como se tivesse enviuvado, ou
sido abandonada. Muitas emoções contraditórias. Tudo muito
perturbador. A Jean deu meia volta e casou com o primeiro tipo que
Lhe apareceu à frente.
- Para se consolar.

- Segundo parece. Havia pouco amor entre eles. O James tinha um


problema com a bebida e, sim, um problema de ciúmes. Pior ainda,
era um católico devoto.

- Porquê pior? Isso não podia ter ajudado? Dando-Lhes qualquer


coisa em comum?

Anita abanou a cabeça.

- Aumentava o conflito dentro dele. Odiava o Rossetti com todas as


suas forças, mas não conseguia levantar a mão contra o Neil. O Neil
ia ser padre. Isso tornava-o intocável. Assim, o James tinha
quantidades imensas de energia negativa que não tinham por onde
escapar, e, de cada vez que olhava para o Neil, pensava no
Rossetti.

- Por causa da perspectiva de ele ir ser padre?

- E por uma questão de tempo. O Neil nasceu precisamente nove


meses depois do casamento. O James estava convencido de que
ele era filho do Rossetti.

"Uau! ", pensou John. Aqui estava um desenvolvimento


interessante.

- E é?

- Não. Decididamente não. O Rossetti saíra da vida de Jean dois


meses antes de ela casar com o pai do Neil. O Neil pesava pouco
mais de três quilos quando nasceu. Não era de certeza um bebé de
onze meses.

- Então, porquê o problema?

- Os ciúmes nem sempre são racionais. O James convenceu-se de


que o bebé era do Rossetti. Chegou mesmo a dar queixa às
autoridades eclesiásticas. Há cinquenta anos ainda não se faziam
testes de ADN; mas a matemática falava por si. A Igreja ignorou o
assunto, mas o James não. E a Jean? Umas vezes admitia, outras
vezes negava.

- Admitia? Por que raio faria uma coisa dessas?

- Por desejo de que fosse verdade. Pelo que percebo, segundo o


que o Neil me contou, ela começou a ficar delirante, à medida que
se ia apercebendo da realidade da sua vida e do seu casamento.
Parte dela queria pensar que o Neil era filho do Rossetti... queria
acreditar que tinha um bocadinho dele para sempre consigo.
Portanto, aí temos o Neil, cuja presença irritava o pai, e temos o pai,
que não podia descarregar em cima dele mas que descarregava na
Jean.

- E no Terry.

- E no Terry - admitiu Anita, parecendo resignada. - O Neil lidava


com a situação concentrando-se na vida fora de casa. Estava cons
tantemente a fazer coisas na escola, ou passava o tempo com os
amigos. Quando saiu de casa para ir para a universidade, foi para
nunca mais voltar.

Isso soava familiar. john também partira para nunca mais voltar pelo
menos assim pensara na altura.

- Ele nunca tentou ajudar o Terry? Ou a mãe? Não podia ter pedido
ajuda a alguém? Queixar-se a alguém na escola? Exigir que o pai
os deixasse em paz? Colocar-se fisicamente entre eles e o pai?

- Ele era um miúdo - disse ela com convicção. - Não era Deus nem
nenhum santo, por mais que a Jean quisesse pensar que sim. Era
um miúdo, cuja vida em casa também não era tão perfeita como
pode parecer.

John suspirou. Conseguia identificar-se com isso. Sentiu-se con


solado por ouvir Anita dizê-lo.
Mas ela ainda não acabara.

- Você é um homem. Imagine que tem uma mãe que fez de si o


substituto de um amor perdido. Imagine a responsabilidade. Imagine
o excesso de cuidados e de amor. Imagine o sufoco. Não havia
nada de sexual na relação, mas era opressiva. Ela idolatrava-o. E o
que podia ele fazer? Sabia que era doentio. Queria rebelar-se. Mas
ela tinha tão poucas alegrias na vida, e levava com o cinto por ele.
Era sua mãe e ele amava-a. Portanto tentava agradar-Lhe. Tentava
ser perfeito. Tentava estar à altura do Rossetti - ela respirou fundo e
endireitou-se. - Se acha que ele próprio não se ressente também um
pouco do Rossetti, está enganado.

Depois de ela o explicar desta maneira, John pensou que fazia


sentido.

- Nesse caso, não ficou incomodado quando o Terry trouxe o


escândalo a público.

- Ao princípio, não. Conseguia acreditar facilmente na ideia do


Rossetti ter uma mulher. Enfurecia-o que o Rossetti se tivesse
envolvido com outra mulher depois de ter partido o coração da Jean,
mas acreditava que fosse possível. Mas ele é um padre; estava a
duvidar de um cardeal e sentia-se culpado por isso. Depois
apareceu o pedido de desculpas oficial, e seguiram-se horas de
introspecção e oração para o Neil. Gradualmente, sentiu
arrependimento, depois vergonha.

- Mas não a suficiente para falar, quando os jornais continuaram a


perseguir a Lily - acusou John, porque a sua compaixão por Neil
tinha limites. Neil levava uma vida protegida.

Mas Anita ficou subitamente irritada.

- Espere aí! E o cardeal? Ele falou? Não, não falou. Não quis abrir-
se a especulações sobre amantes e filhos ilegítimos, e com boas
razões. Imagina a festa que a imprensa faria com isso? Imagina o
caos? Seria refutado, mas o fedor permaneceria, e Neil estaria
mesmo no meio da tempestade.

John não podia discutir com isso. Por mais zangado que estivesse
com Rossetti por ter abandonado Lily, Anita tinha uma certa razão.

A voz dela tornou-se suplicante.

- Agora já sabe. Isso dá-Lhe poder sobre nós. Pode sair daqui e
usar o que eu Lhe disse - ergueu a mão - apesar de ter prometido
não o fazer, ou pode respeitar a privacidade do Neil e a privacidade
da família dele. O Neil é um bom homem. Pode não ter estado
presente para o Terry, e carregará essa culpa para a cova, mas
ajudou inúmeros outros miúdos que passaram pelos seus próprios
pesadelos.

Recostou-se e pegou na chávena de café.

"Isso dá-Lhe poder sobre nós." John não conseguia deixar de ouvir
essa frase. Fazia com que se sentisse sujo. Não que preferisse que
Anita não Lhe tivesse contado o que Lhe contara. Ali tinha os
motivos reforçados que procurava. Mal podia esperar para contar a
Lily. E não publicaria nada. Isso sim, seria sujo. Seria contra tudo o
que ele estava a tentar fazer com a sua vida. Mas Anita não sabia
disso.

- Porque me contou tudo isto? - perguntou.

Ela pousou a chávena e suspirou. A terapeuta desapareceu.

- Porque o tenho visto sofrer. Tenho visto o segredo crescer,


atravessado na garganta dele, até quase sufocá-lo. Gosto dele...
está bem, amo-o. Se ele não fosse padre, talvez eu fizesse alguma
coisa a esse respeito. Uma vez que é, durmo sozinha. Mas quero
vê-lo feliz. Se isto servir para que a Lily Blake possa compreender
melhor o porquê de o Terry ter feito o que fez, parte do fardo será
retirada dos ombros do Neil. É tudo. É só isso. É apenas isso que eu
quero.
Lily tinha sentido os músculos doridos na noite anterior, mas, depois
de um banho quente na altura e outro de ma nhã, estava pronta
para mais um dia. Maida estava bem disposta. Oralee não
pestanejou quando se apercebeu da troca. Bub rapidamente se
submeteu às ordens dela. Os apanhadores de maçãs que
chegavam do pomar davam-Lhe as suas contagens, uma vez que
era ela a única que se encontrava no pátio.

Quando Maida saiu, nessa tarde, para tentar adquirir uma


retroescavadora no leilão, Lily ficou no comando. Tratou das coisas
no lagar e, quando o trabalho do dia chegou ao fim, usou o telefone
no escritório de Maida para tentar localizar um carregamento de
cápsulas de plástico que estava atrasado.

De uma maneira geral, foi uma tarde esplêndida e repleta de


orgulho. Não importava que a cor da folhagem já tivesse atingido o
auge e estivesse a perder o brilho; o Sol poente reflectia-se nas
copas dos resistentes áceres e vidoeiros, lançando faíscas.
Conduziu até casa com o rádio aos berros e uma sensação de
satisfação nos ossos. O seu prazer duplicou quando viu a carrinha
de John estacionada junto da casa. Sentira a falta dele.

John estava sentado no pára-choques traseiro e levantou-se quando


ela parou.

- Estás atrasada - disse, com um sorriso.

Ela retribuiu o sorriso.

- Muito que fazer na velha herdade. E então? - tinha de saber. Como


correu?

- Correu... muito bem - enquanto caminhavam na direcção do


alpendre, contou-Lhe tudo sobre o padre Sullivan, a terapeuta Anita
Monroe, e mais do que ela alguma vez sonhara vir a saber sobre
Francis Rossetti.

- Pensavam que o Neil era filho dele? - perguntou.


- O pai do Terry pensava. A mãe também, às vezes. Mais ninguém
acreditava seriamente nisso, mas Anita tem razão. Seria um inferno
se isto chegasse aos ouvidos da imprensa. Assim, apesar de ele
não ter sido correcto contigo, quase consigo compreender o porquê
de o Rossetti ter ficado nos bastidores depois de o Post publicar o
pedido de desculpas. Ele não queria chamar mais atenções sobre si
próprio.

"Mais atenções", pensou Lily. Era espantoso, na verdade.

- Mas ele foi investigado tão pormenorizadamente depois da sua


elevação a cardeal. Como é possível que não tenham descoberto
isto?

- É fácil. Quem mais sabia? O James e a Jean Sullivan já morreram.


O Neil não disse nada. O Terry não disse nada. Os funcionários da
Igreja com quem o James terá falado em tempos já morreram, ou
mantiveram o silêncio.

Lily olhou para o lago, tentando digerir todas estas informações.

- Pelo menos há uma razão para ele ter ficado tão calado. john?

- Hum?

- Não podemos dizer nada.

- Eu sei.

- Lamento. Não quero estragar o teu entusiasmo. Mas não podemos


publicar nada disto.

- Eu sei. Além disso, não é entusiasmo.

Ela estudou o seu rosto.

- Então o que é?
Ele franziu a testa, mas por pouco tempo. O seu rosto suavizou-se
de novo. Quando olhou para ela, a sua expressão era de uma calma
surpreendente.

- Alívio. Paz.

- Compreensão - acrescentou ela.

Ele acenou afirmativamente.

- Não quer dizer que não possamos utilizar o resto. Nada disso tem
a ver com o Neil ou com o Rossetti. Apenas com o Terry. Pobre
coitado. Não vai ficar nada satisfeito.

- Pois não - disse Lily, sentindo uma pequena semente de remorsos.


- Ele quer fama. Quer construir um nome para si próprio.

- É manipulador e possessivo.

- Controlador. Como o pai, talvez?

- Provavelmente.

- Consigo compreendê-lo - disse ela. Quando John pareceu


perplexo, explicou: - Precisar do amor da mãe e ter de crescer sem

ele... Eu, pelo menos, tinha o meu pai. O Terry não tinha nenhum

dos dois. Por isso já teve três mulheres. Está desesperado por
amor,

mas não consegue manter uma relação.

- Não estás a ter dúvidas em relação a expô-lo, pois não?

- Não - disse ela sem hesitar. Numa fracção de segundo,


concentrou-se de novo no que Terry Lhe fizera. - Preciso do meu
bom-nome
restaurado. Preciso da minha liberdade.

John abraçou-a então, e ela sorriu. Sentira falta disto na noite

anterior - da proximidade, tanto como do sexo. Tinha muito mais do

que Terry Sullivan alguma vez teria. Tudo somado, podia considerar-
se uma mulher de sorte.

- Tens fome? - perguntou John.

Ela acenou com a cabeça encostada ao peito dele. Estava pronta

para frivolidades. Depois de um longo dia de trabalho, a comida

seria um bom princípio.

- Vamos ao Charlie's.

Ela parou de sorrir, afastou-se, olhou para ele.

- Nós os dois?

John olhou em redor. Não, não estava mais ninguém presente.

- Ah... não sei - disse ela, nervosa.

- Sobreviveste ao funeral do Gus.

- Isso foi diferente. Não tive hipótese de escolha.

- Agora tens - disse ele, e esperou.

As noites de quinta-feira eram muito animadas no estabelecimento

de Charlie, ficando apenas atrás dos sábados em termos de


clientela.

A primeira vez que Lily cantara em público, sem ser na igreja, fora
numa quinta-feira à noite na sala dos fundos de Charlie. Não
entrava

lá desde os dezasseis anos, cinco dias antes de ter entrado num


carro com Donny Kipling.

- Está na mesma? - perguntou a John. Na altura, era Charlie Sénior

que geria o estabelecimento. Às quintas-feiras à noite, o palco


estava

sempre reservado para os novos, os mais jovens, as promessas.

- Praticamente - disse John.

Curiosa, mesmo sem querer, ela perguntou num tom cauteloso:

- Quem é que vai tocar?

- Um grupo de Middlebury. Duas guitarras, um violino e um


violoncelo. Música tradicional com um toque de pop.

Lily gostava de música tradicional. Gostava de pop. Se tivesse


algum anonimato, não teria pensado duas vezes. Mas estavam em
Lake Henry. Independentemente do escândalo, anonimato era coisa
que não existia por ali.

- As pessoas vão falar - disse ela.

- Isso incomoda-te?

A pergunta era absurda. Para além de Poppy, que era sua irmã e
não contava, John era o seu melhor amigo em Lake Henry. Ela via-o
todos os dias, dormira com ele seis das últimas sete noites. Ele era
inteligente, bem-parecido e atraente. À excepção da sua profissão,
Lily adorava tudo nele. Se se importava de ser vista com ele?

Devolveu a pergunta a John.


- Incomoda-te a ti?

Ele nem pestanejou:

- Nem um bocadinho!

A sala dos fundos não mudara muito nos dezoito anos desde que
Lily lá entrara pela última vez. Mesas de café e cadeiras tinham
subs tituído os bancos corridos, e parecia haver um novo sistema de
som, com colunas instaladas nas vigas do tecto. Mas o pequeno
palco elevado era o mesmo, bem como o fogão de lenha e o
ambiente, que era discreto e descontraído. Não que houvesse muita
coisa em Lake Henry que não o fosse. Mas as noites de quinta-feira
na sala dos fundos de Charlie levavam a palma. Ninguém se
apressava. Ninguém falava de trabalho. Ninguém vestia nada mais
elegante do que calças de ganga. E perfume? Nem pensar. A sala
cheirava a tábuas de celeiro, café fresco, chocolate derretido e
diversão.

Era tudo instantaneamente familiar, mas Lily não sabia o que es


perar. Não havia ali forasteiros. A assistência era exclusivamente
com posta pelos habitantes de Lake Henry. Ela temia ser alvo de
murmúrios e olhares, tal como acontecera naquele primeiro domingo
na igreja.

Mas Poppy estava lá, por isso passou algum tempo a conversar
com ela e com Marianne Hersey, que parou junto delas, e com
Charlie

Owens. As regras mantinham-se. Ninguém falava de negócios, nem


mesmo Cassie, que chegou com o marido e puxou uma cadeira. O
café chegou, juntamente com as bolachas de chocolate que se

derretiam na boca, as mesmas bolachas que a família Owens servia


na sala dos fundos há três gerações. Entretanto o local enchera e a

banda começara a tocar, dando às pessoas alguma coisa para olhar


além de Lily.
Lentamente, ela relaxou. Não estava deste lado do palco há anos, e
a energia que a banda gerava era contagiosa. Depois de várias
canções estava a bater o pé com o resto dos espectadores; mais
algumas e cantarolava a acompanhar. Se as pessoas se
apercebiam da sua presença, não Lhe ligaram grande importância.
Para todos os efeitos, ela era apenas outra natural de Lake Henry, a
relaxar numa noite de quinta-feira.

Para o final da noite, a banda começou a aceitar pedidos. A maioria


era de canções dos anos setenta e oitenta, e o estado de espírito
ficou nostálgico. Em particular para Lily, que passara grande parte
da sua carreira a cantar Simon e Carfunkel, Eagles, Carole King,
Van Morrison, até os Beatles, e que de repente sentiu vontade de
cantá-las de novo.

A combinação de guitarra, violino e violoncelo era perfeita para


canções como "Yesterday" e "Desperado", e não era ela a única a
pensar assim. Aplausos calorosos trouxeram repetição após
repetição, a que se seguiram "Bridge Over Troubled Water" e "Into
the Mystic".

Ela estava a divertir-se quando, de súbito, Charlie se agachou ao


lado da cadeira dela.

- Eles tocam muito bem "Tapestry" - estendeu-Lhe um microfone


sem fios. Não havia dúvidas do que tinha em mente.

- Oh, n-n-não - murmurou Lily, horrorizada. - Seria incapaz. Mas


ouviu um assobio súbito e familiar - Poppy a incentivá-la - e o início
de aplausos ritmados provenientes de outros lados. O som cresceu
de intensidade. Lily olhou para John, que parecia quase tão aflito
como ela se sentia. Estranhamente, foi isso que a decidiu. Ela era
uma artista de profissão. já cantara dezenas de vezes em frente de
desconhecidos, muitas vezes em números muito superiores. Se fora
capaz então, também seria capaz agora - se não por ela, então por
John.
Aceitou o microfone das mãos de Charlie e dirigiu-se ao banco alto
que tinha sido colocado no palco. Inclinando a cabeça, bloqueou a
assistência. Das canções de Carole King, "Tapestry" era uma das
suas preferidas. Fechou os olhos quando as guitarras começaram, e
concentrou-se no som quando o violino e o violoncelo entraram.
Quando a introdução se aproximou do fim, respirou fundo e levantou
o microfone. Ainda de olhos fechados, agora pensando na letra,
começou a cantar.

As palavras fluíram através dela, uma após a outra, e era fácil. já


fizera isto demasiadas vezes para que não fosse, mas não estava à
espera do alívio que sentiu. Era como respirar depois de dias
debaixo de água, como voltar a ver depois de dias na escuridão. A
sua voz era uma velha amiga que surgia suavemente, sem falhas.
Deixou-se levar por ela enquanto o tempo da música crescia, um
verso levando ao outro, a melodia tornando-se mais completa,
embora mais triste, a história de uma vida no seu fim, mas, quando
cantou as últimas palavras, Lily sentia-se mais forte. De olhos
abertos, olhou para a banda mais do que para a assistência.
Prosseguir com "You've got a Friend" era mais do que natural.

Lily estava no seu elemento. Sempre adorara Carole King, e a


banda conhecia bem as suas músicas. "You've got a Friend" fundiu-
se com "So Far Away", que se fundiu com "Will You Love Me
Tomorrow". Ela sentia-se tão confortável, tão esquecida do público,
que era como se estivesse sozinha num pequeno estúdio com
quatro músicos que partilhassem a sua paixão. Encostou o
microfone ao queixo e sorriu-Lhes quando tocaram os acordes de
abertura de "A Natural Woman". Quando cantou o último coro,
estava praticamente a tremer com o ritmo.

As cordas prolongaram o som, num minuto de conclusão.


Revigorada, excitada, momentaneamente saciada, Lily pousou o
microfone e sorriu aos músicos, mas eles estavam a fazer-Lhe
sinais para ela agradecer ao público. Só nessa altura é que ouviu os
aplausos estrondosos. Com um sorriso tímido, voltou-se e fez uma
vénia.
Poppy parou em frente da sua casa pouco depois das dez. Demorou
alguns minutos a transferir-se para a cadeira de rodas e a sair da
carrinha, e mais alguns para entrar em casa. Annie Johnson, que
ficara a tomar conta dos telefones, veio ter com ela ao vestíbulo.

- Bem me parecia que tinha ouvido a carrinha - disse, tirando as


chaves do carro do bolso. - Ligou alguém para si agora mesmo,
ainda está em linha. Um tipo com uma voz fantástica.

Griffin Hughes. Poppy manteve a calma.

- Mais alguma coisa? - perguntou, mas Annie já estava à porta.

- Não - respondeu. - Foi uma noite calma - a porta fechou-se atrás


dela.

Poppy dirigiu-se à central telefónica e, deixando os auriculares em


cima da secretária, pegou no telefone.

- O Willie Jake está a dormir. O homem tem setenta anos. Pensou


mesmo que ele estivesse disponível a esta hora?

- Não - foi a resposta, num tom bem-humorado. - Por isso é que


liguei directamente para si.

Poppy olhou para a central e corou quando viu qual era a luz verde
que estava acesa.

- Onde arranjou o meu número?

Ia matar o Willie Jake - ou a Emma, se fosse o caso - se algum


deles Lho tivesse dado.

- Serviço de informações - respondeu Griffin, no mesmo tom bem-


humorado.

- Oh.

- Estou a ligar em má altura?


- Não.

- Tinha saído?

- Sim. É quinta-feira.

- Sim?

- Estive no Charlie's.

- Quem é ele?

- Não é um ele. É um local. Uma loja. Na verdade, a sala dos fundos


de uma loja. Há música ao vivo às quintas-feiras à noite - falou-Lhe
sobre a banda que tocara nessa noite, sem mencionar o
desempenho de Lily na parte final.

- Parece divertido - disse Griffin.

- Não, é muito provinciano. Você é de New Jersey. Está habituado a


Nova Iorque. Ia achar chato.

- Ora aí está uma generalização como nunca ouvi outra, Poppy


Blake, e ainda por cima errada. Vivo em Princeton. Não é uma

cidade muito grande, mas escolhi viver aqui porque tem um espírito
de cidadezinha pequena. Não vou a Nova Iorque há meses. Não
tenho necessidade.

- Nem mesmo em trabalho?

- Não. Com o telefone, o e-mail e o fax, não é preciso.

- Dá aulas na universidade?

- Não. Só escrevo.

- E ainda me está a telefonar para tentar conseguir informações


sobre a Lily? Não está ansioso por acabar esse seu artigo? Não
precisa do dinheiro?

Num tom calmo mas sincero, ele disse:

- Não. Tenho rendimentos independentes. Como você. E não estou


a telefonar para pedir informações sobre a Lily.

Isso apanhou-a de surpresa e fê-la perder a fala. Quando viu que


ela não dizia nada, Griffin riu-se.

- Apanhei-a, não foi?

- Então porque está a ligar? Deve haver muitas universitárias


bonitas aí em Princeton.

- As universitárias são muito novas.

- Então estagiárias.

- Gosto de mulheres mais velhas.

Poppy sorriu.

- A lisonja não o leva a lado nenhum. Não me deixo enganar por


vozes profundas, sombrias e sexy. Geralmente estão associadas a
sapos.

- Não sou nenhum sapo.

Não, ela também não achava que fosse.

- Quer ver em pessoa?

- Ah! Não gostava que eu dissesse que sim? Teria um convite


genuíno como desculpa para vir até aqui e passar o tempo a
escavar material para o seu artigo. Conheço o seu tipo, Griffin. Não
vou convidá-lo a vir cá. Não tenho tempo para Lhe andar a mostrar
as vistas.
- Porque não? O que faz, para além do trabalho?

- Tenho amigos. Fazemos coisas.

- E eu não podia acompanhá-los?

Ela suspirou. Numa voz calma, disse:

- Não vou convidá-lo.

- Há mais alguém?

Ela pensou em mentir. Seria a coisa mais fácil. Acabar com isto já.
Um corte limpo e simples. Mas gostava de sonhar com Griffin
Hughes. E se os sonhos eram tudo o que tinha...

- Não - disse. - Não há mais ninguém - assumiu um tom suplicante. -


Gosto de falar consigo. Parece-me um tipo simpático. Isto é
divertido. Mas não insista. Está bem?

John estava de cabeça tão perdida por Lily que já não sabia o que
fazer. Já se apaixonara por Lily a cozinheira, Lily a amiga, Lily a
pistoleira, até mesmo Lily a que cantava com os mergulhões. Ao vê-
la no Charlie's, na quinta-feira à noite, apaixonou-se por Lily a
sedutora, e muito. Ela vestia calças de ganga simples e uma
camisola de gola alta, praticamente não usava maquilhagem, e
estava perdida no seu próprio mundo ou no mundo da banda, mas
John sentiu o coração apertado de admiração. Nunca sentira nada
assim com Marley, nunca sentira nada assim ao ver Meg Ryan em
cada um dos seus filmes - três vezes cada. Sentia-se mesmo tímido
quando Lily voltou para a mesa, e ficou absurdamente satisfeito
quando ela passou toda a viagem de regresso a Thissen Cove
aninhada contra ele no banco da carrinha. Mas foi o que ela fez.
Apesar das aparências, ela também parecia estar de cabeça
perdida por ele. Pelo menos, foi essa a mensagem que pareceu
passar-Lhe nos minutos antes de adormecerem.
Quando John acordou, Lily já saíra para o lagar, mas sentiu a sua
presença na casa, bem como aquele mesmo aperto no coração.
Desta vez tinha a ver com uma visão mais geral da sua vida - com
desejos e necessidades, até mesmo sonhos, de maior alcance.
Pensou nestes, sentado na doca, estremecendo sob o chuvisco de
Outubro. A humidade tamborilava ao pingar por entre as folhas
secas na margem do lago. Não havia barcos à vista. A maioria deles
estava já fora de água, embrulhados em plástico para o Inverno. Daí
a poucas semanas a doca de Lily teria também de ser retirada. Se
as estacas ficassem presas no gelo, podiam estalar devido à
pressão.

O Inverno já tinha o pé na porta. O ar era cortante, o céu parecia


aço. Não havia mergulhões à vista. john não sabia se eles ainda
estavam pela zona, mas, se estivessem, era apenas uma questão
de dias até partirem: O frio e a humidade diziam-Lhes que estava na
altura de avançar.

Era também tempo de ele fazer o mesmo. Tempo de agir ou de


desistir. O próximo passo da sua vida estava à espera. Se
tencionava escrever um livro, tinha de meter mãos à obra.

Assim, chegou ao escritório na sexta-feira de manhã com uma


sensação de determinação. Não estava lá há mais de cinco minutos
quando Brian Wallace ligou.

- Pensei que gostarias de saber - disse ele, num tom neutro - que já
temos o relatório. A cassete Blake foi montada. Terry foi despedido.

John esperou pelo resto.

- Não era isso que querias? - perguntou Brian. - Odeias o Terry há


anos. E, a bem da verdade, não és o único. Esta noite vai haver
festa na sala da redacção.

Um mês antes, John teria ficado feliz. Mas, um mês antes, não
estava empenhado na causa de Lily.
- E?... - perguntou.

- Ele está a arrumar a secretária neste preciso momento. Afirma que


tem muito trabalho e que não precisa de se matar a trabalhar para
nós, mas isso é treta. A carreira dele por aqui acabou.

Não era isso que John queria ouvir.

- Esquece o Terry. E a Lily?

- O que tem a Lily?

- O jornal vai publicar alguma coisa?

- Não. O despedimento do Terry é um pós-escrito. É irrelevante.

- Desculpa? - John estava incrédulo. - Uma mulher inocente foi


chacinada pelo teu jornal, com base numa cassete que te recusaste
a mandar autenticar enquanto eu não te dei motivos que provassem
a intenção maliciosa por parte do Terry. e achas que não Lhe deves
nada?

- O que querias que fizéssemos? - perguntou Brian, parecendo


aborrecido.

- A advogada dela exigiu uma retractação.

- Oh, por favor. Poupa-me. Nós não fizemos nada errado. Agimos de
boa-fé. Acreditámos que a história era legítima, com base em
investigação...

- Com base numa cassete adulterada.

- Com base numa cassete que julgávamos ser real. Cristo, Kip, o
que queres que façamos? Que verifiquemos a autenticidade de
cada maldita cassete?

- Não - disse John lentamente. - Conheço repórteres da tua equipa


que estão acima desse tipo de suspeitas, mas o Terry não é um
deles, e tu sabias disso. Tu sabias, Brian, e sabias que esta história
tinha potencial para fazer mal. Admite. Publicaste-a porque sabias
que venderia, e vendeu. Canharam dinheiro como loucos. Depois
passaram para o sangue e a carnificina de Back Bay. Qual é o
problema de publicar uma retractação neste caso?

- O problema - disse Brian com uma sinceridade surpreendente

- é que nos orgulhamos de ser bons jornalistas. Pedir desculpa ao


cardeal já foi mau. Porquê insistir no assunto? Toda a gente sabe
que metemos água. Pedir desculpa à Lily Blake é um exagero.

- Exagero? - repetiu John, agora a defender os interesses de Lily.


Uma retractação talvez tirasse algum impacto ao seu livro, tornando
Lily menos injustiçada, mas queria-a por ela. - Uma mulher inocente
é arruinada e corrigir as coisas é exagero?

- Exagero, em termos de nós reconhecermos que errámos. Porque


é que me estás a chatear com isto? O vilão aqui é o Terry.

- Foste tu que o permitiste. Deixaste o caso arrastar-se indefini


damente. Se tivesses agido mais cedo, terias conseguido uma
história com os pecados do Terry. Terias agido correctamente com a
Lily o mundo da imprensa pensaria melhor de ti e isto já estaria tudo
acabado.

Brian gritou:

- Isto está tudo acabado! Ouve bem, John! Não vamos rastejar!

John estava lívido de fúria quando desligou o telefone, mas sabia


ver quando não valia a pena insistir. Brian era apenas um editor.
Havia níveis de gestão acima dele, pessoas mais bem posicionadas
para ordenar a publicação de uma retractação. john pensou em
telefonar a uma dessas pessoas. Depois pensou melhor.

Lily precisava de paz de espírito. Precisava de um pedido de


desculpas público e da restauração do seu bom-nome que isso
acarretaria. Precisava de justiça.

O despedimento discreto de Terry não era justiça. Era uma ínfima


admissão de erro. Ninguém, a não ser quem estivesse por dentro no
Post, saberia sequer o que tinha acontecido. john seria mesmo
capaz de apostar que o Post estava a contar que Terry dissesse que
se tinha despedido. Encontraria outro emprego e começaria de
novo, com a carreira praticamente incólume. Isso não era justiça.

John podia ameaçar fazer do despedimento a notícia principal do


Lake News se o Post não publicasse um pedido de desculpas.
Armand ficaria nas suas sete quintas. Telefonaria a toda a gente que
conhecia em Nova Iorque e as repercussões seriam garantidas.

Oh, sim, John podia ameaçar fazer isso. E o Post talvez publicasse
uma retractação. Mas estaria enterrada no meio do jornal, o mais
escondida possível. Ninguém a veria.

Lily fora destruída na primeira página. Merecia ser ilibada na


primeira página.

Infelizmente, uma defesa na primeira página não era no melhor


interesse de John. Se a história fosse revivida nos principais órgãos
de comunicação social, principalmente tratando-se de uma história
tão centrada em Terry, isso levantava o risco de que outro repórter
curioso acabasse por descobrir o que John descobrira. Se tal
acontecesse - se outro escritor Lhe roubasse a sua bomba depois
de ele ter feito o trabalho mais difícil - John podia dizer adeus ao
acordo do seu livro.

E isso seria assim tão terrível?

Tinha quatro razões para querer escrever um livro: fama, dinheiro, a


aprovação de Gus e a justificação para levar esta vida provinciana.

Merda para a fama. Não precisava disso. Lily fazia-o sentir-se

importante.
Merda para o dinheiro. Também podia passar sem ele. A Lily não
era uma interesseira. Ela fazia-o sentir-se um milionário.

E o seu estilo de vida? Se não se importava com a fama e com o


dinheiro, o seu estilo de vida estava óptimo.

Isso deixava apenas a aprovação de Gus, que ainda Lhe faltava,


mesmo depois da morte dele. Resumia-se a uma questão de
consciência e auto-estima.

Então, queria escrever o livro ou não? Tinha de decidir, e decidir


depressa.

Lily passou o fim-de-semana tão perturbada como John. Com a


recusa do Post em publicar a retractação, mesmo depois dos
resultados das análises à cassete, ela tinha de enfrentar a realidade
de um caso em tribunal que seria longo e arrastado. Os advogados
do jornal já tinham pedido sessenta dias a Cassie para analisar a
acção inicial.

- É uma estratégia dilatória típica - disse Cassie.

- Não podemos recusar? - perguntou Lily.

- Podemos, mas, em termos estratégicos, não é prudente fazê-lo.


Se Lhes recusarmos esse tempo, se exigirmos uma resposta
imediata, eles podem ficar suficientemente irritados para
apresentarem uma petição de recusa da acção no tribunal estatal.
Não há dúvida de que seria decidida a nosso favor, mas o problema
é o tempo. Se eles apresentarem uma petição de recusa agora, a
data da audiência pode não ser marcada para antes de Fevereiro.

- E o que nos garante que eles não apresentam a petição na mesma


daqui a sessenta dias? - perguntou Lily.

- Nada - admitiu Cassie. - Se quiserem ser filhos da mãe, é


precisamente isso que eles farão.
- E parecem-te ser filhos da mãe?

- Não. Mas também não seria estrategicamente sensato para eles


parecerem-no. O advogado que me ligou foi humilde e cortês. Falso
como Judas, mas humilde e cortês. Recomendo que sejamos
boazinhas e Lhes demos trinta dias. Isso não nos atrasará muito, de
uma maneira geral.

Lily acedeu, mas não ficou satisfeita. Trinta dias significavam mais
um mês inteiro no limbo. Sentia uma urgência que ia para além das
pontas soltas que deixara em Boston. Estava a começar a construir
uma vida em Lake Henry. Ainda havia coisas a resolver com Maida,
caso quisesse ficar, e estava com medo de pensar a longo prazo em
relação a John, mas uma resolução do escândalo era condição
essen cial. Nenhuma das outras peças encaixaria no devido sítio até
isso estar resolvido.

John levou Lily à igreja no domingo de manhã. Depois levou-a a


almoçar no restaurante de Charlie e a dar um passeio de carro pelas
colinas. Levou-a aos escritórios do Lake News, deu-Lhe o pacote de
artigos da academia e, depois de ela ter escolhido três, ligou-Lhe o
computador e deixou-a tratar da dezena de pequenos cheques que
eram enviados todos os meses para os correspondentes locais,
para freelancers vários e para jenny Blodgett.

Lily ficou encantada por poder ajudar, o que o deixou imensamente


satisfeito. Estar ligada ao jornal era como estar ligada a ele - para
não mencionar que esta ajuda era muito necessária. Ele não estava
a conseguir adiantar grande coisa do seu próprio trabalho.

Não se tratava do livro. O Lake News tinha de ser feito. Mas estava
com dificuldade em encontrar entusiasmo para falar do iminente
torneio de futebol intercidades, quanto mais para compor as páginas
da semana. Um layout parecia-Lhe mal, o outro ainda pior. Pura e
simplesmente não estava concentrado.

Depois de algum tempo, afirmando precisar de arejar as ideias,


deixou Lily ao computador, passou pela estação dos correios,
atravessou a estrada e dirigiu-se ao cemitério atrás da igreja. Parou
primeiro no talhão onde Donny estava sepultado, e sentiu a dor que
sentia sempre. Tal como Neil Sullivan, levaria os seus remorsos
para a cova, mas as palavras de Anita tinham ajudado. "Ele era um
miúdo" dissera ela em defesa de Neil. "Não era Deus nem nenhum
santo. Era um miúdo, cuja vida em casa também não era tão
perfeita como pode parecer." Palavras que poderiam facilmente
referir-se a John. Não Lhe limpavam a consciência em relação a
Donny, mas tornavam o peso do sentimento de culpa um pouco
menor.

Virou-se para o pedaço de terra ao lado de Donny. A sepultura de


Gus. Ainda não tinha relva. A relva teria de esperar pela Primavera.
Mas havia as folhas que tinham caído das árvores e sido
empurradas pelo vento, uma camada de amarelos claros, vermelhos
esbatidos, castanhos suaves.

E havia uma calma - uma paz, como na eternidade - porque John


acreditava, de facto, que o pai estava no céu. Um homem que

sofrera tanto merecia pelo menos isso.

"Fui eu que te desiludi. Fui eu que falhei. Fui eu que nunca fui
suficientemente bom. Nem para a tua mãe. Nem para Don. Nem
para ti. "

Era triste que esse tivesse sido o seu último pensamento. Triste que
o seu valor tivesse sido tão importante para ele. Um homem sem
consciência tinha a vida facilitada, decidiu John. Um homem sem
consciência não tinha uma única preocupação neste mundo.

Gus tivera consciência. E John também tinha. Gus quisera ter


mérito. E John também queria.

Gus construía belos muros de pedra. John escrevia belos artigos.


Mas nem uma coisa nem outra eram suficientes para garantir o valor
de um homem.
Era simples, na verdade. Construir muros e escrever artigos estava
muito bem. Mas a essência do valor de cada um tinha a ver com
pessoas.

Não, Lily não queria pensar no que sentia por John, mas esses
sentimentos não iam desaparecer. O ideal seria resolver o
escândalo, depois resolver os seus assuntos com Maida, e só então
pensar nele. Mas a vida nunca era ideal. O seu coração insistia em
bater mais depressa sempre que pensava nele.

Naquele domingo, sentiu a preocupação de John e temeu que ele


estivesse com dúvidas sobre a relação. Incapaz de Lhe perguntar,
com medo que ele admitisse que era verdade, ajudou-o no escritório
o melhor que pôde e fez o jantar quando voltaram para casa dela,
tentando agradar-Lhe assim. Ele sorriu, comeu tudo e agradeceu-
Lhe mais do que uma vez. Mas, depois de lavar a loiça, ela saiu da
cozinha e encontrou-o lá fora, na doca. Vestindo a camisola dele, e
um casaco por cima, foi ter com ele.

Estava muito frio. O vento soprava, fazendo ondular a água como


raramente acontecera no mês anterior. Outubro estava instalado.
Novembro traria neve.

Os ténis dela rangeram sobre as tábuas. john ergueu os olhos e


sorriu. Pegou-Lhe na mão e ajudou-a a sentar-se entre as pernas
dele, voltada para o lago, com a face dele encostada ao cabelo dela
e os seus braços apertando-a contra si.

Esses braços não pareciam estar com dúvidas. Lily sentiu-se


momentaneamente tranquilizada.

- Ouve a água - murmurou ela.

- Hum, hum. Está agitada. Tenho estado a tentar ouvir os


mergulhões.

- Ouviste algum?
- Não. Mas podem andar por aí. Ouviremos, se eles piarem. É difícil
vê-los com a água agitada e sem lua - beijou-a suavemente na
têmpora, e ela sentiu o roçar da sua barba macia. - Não tens frio?

- Não.

- Amo-te, sabes.

O coração dela deu um salto.

- Será mútuo? - perguntou ele, com uma insegurança encantadora.

Ela era totalmente louca. Desde quando é que podia confiar num
jornalista?

- Muito.

Sentiu-o relaxar um pouco.

- Quero o que for melhor para ti - disse ele, e ela acreditou. Mais,
acreditou naquilo que adivinhara na súbita disposição sombria de
John. A causa da perturbação dele não era a relação de ambos. Era
a outra complicação.

Sentiu-se aliviada, assustada.

- Quais são as minhas opções?

Ele suspirou, o suspiro de alguém que examinara profundamente


cada uma dessas opções.

- Tens três - disse, ainda quente e encostado a ela. - Primeira,


podes seguir o rumo legal. Ter calma, deixar a Cassie avançar com
a acção, apanhares o que puderes dessa forma.

"Ter calma" eram as palavras-chave. Essa opção demoraria muito

tempo.
- Segunda - disse ele -, podes contar tudo no meu livro. O Jacobi
quer lançá-lo em Março. Eu preferia ter mais alguns meses para o
escrever bem, mas consigo tê- lo pronto em Março. Isso daria
resultados mais rapidamente do que o caminho legal.

"Podes contar tudo no meu livro." E não "Eu posso contar tudo no
meu livro." Como se fosse um empreendimento conjunto. já era
qualquer coisa.

- Terceira - concluiu ele -, podemos aparecer nas manchetes ainda


esta semana. Eu posso dedicar a edição semanal do Lake News ao
escândalo. Pôr tudo em pratos limpos. O Armand arranjará maneira
de os principais órgãos de comunicação social pegarem na história.
Terias o teu fórum.

Ela engoliu em seco. Teria o seu fórum, de facto. Teria também


exposição, que detestava. Mas desta vez haveria cabeçalhos,
defesa garantida, a vingança final.

- Se eu fizer isso - observou - ficarás sem nada para o teu livro. Ele
ficou calado durante longos momentos. Quando falou, as suas
palavras encerravam alguma resignação.

- Talvez tu precises mais disto do que eu preciso do meu livro. Lily


sentiu-se tão sensibilizada, que nem quis acreditar.

- A escolha é tua - disse ele.

- Mas tu querias muito esse livro - Lily sabia-o. Tinham conversado


sobre os sonhos dele. Ela já nem sequer se sentia tão ameaçada
com essa perspectiva como no início. Era uma questão de
confiança.

- Posso escrever o livro na mesma.

- Mas não teria tanto impacto.


- Talvez não. Mas neste momento tu precisas de manchetes.
Precisas das luzes da ribalta.

- Detesto estar na ribalta.

Ele virou-a para si e fitou-a nos olhos.

- Talvez detestes, mas, raios, resulta. Foi isso que te roubou os teus
empregos, a tua casa, a tua reputação. Não queres recuperá-los?

Ela recordou-se do orgulho que sentia na Winchester School


quando os seus grupos de alunos actuavam, e do prazer de tocar as
suas canções preferidas no Essex Club para pessoas como Tom e
Dotty Frische. Lembrou-se da satisfação de caminhar pelo jardim
público e pela Commonwealth Avenue até ao local onde construíra o
seu lar, graças apenas ao seu trabalho árduo e à sua determinação.
A sua reputação tivera um papel chave em todas essas coisas.

- Não queres? - repetiu John.

- Sim.

- Não queres limpar o teu nome?

Não queria que o mundo soubesse que nunca tivera um caso com
Francis Rossetti? Não queria um reconhecimento do horror em que
tinham transformado a sua vida em Boston? Não queria um pedido
de desculpas por ter sido escolhida para ser humilhada e
ridicularizada?

- Sim!

- Não queres punir as pessoas que te fizeram isto?

Tantas pessoas que deviam ter vergonha, tantas pessoas nos


bastidores que tinham deixado que tudo acontecesse - por onde
começar? HaviaJustin Barr, cuja língua mentirosa a fizera passar
porJezebel
nas ondas hertzianas, e Paul Rizzo, que a seguira e assediara e que
nunca, por uma única vez, Lhe dera o benefício da dúvida. Mas
Terry Sullivan era o pior de todos. Fora ele que inventara a história,
que começara tudo. Não queria vê-lo punido?

Oh, se queria.

John passou a noite em casa de Lily, mas de manhã saiu primeiro


do que ela. Parou no Charlie's para beber café e comprar os jornais
e seguiu directamente para o escritório.

Não chegou a abrir os jornais. Tinha muito para escrever sem


precisar de recorrer a eles, e as palavras fluíram-Lhe do cérebro
sem esforço, passando para o monitor através dos seus dedos. De
vez em quando pensava em omitir alguma coisa. Havia ali material
mais do que suficiente; ainda podia ter o seu livro.

Mas havia Lily, a trabalhar no lagar de sidra porque fora considerada


incompetente para ensinar crianças, e Gus, paralisado pela
convicção do seu próprio desmerecimento.

Seria John merecedor, ou não? Seria ele decente, ou não?

O Lake News assumiu uma importância cada vez maior, à medida


que as horas passavam. john queria que esta edição fosse a melhor
que alguma vez fizera. Omitir coisas estava fora de questão. Estas

eram notícias bombásticas. Em termos jornalísticos, este era o


sonho

de John. Os pensamentos sobre o livro passaram para segundo


plano, atrás da ideia de conseguir justiça para Lily.

Gus dissera uma vez, num momento que John sabia agora ser de

cinismo nascido da frustração, que os jornalistas relatavam as


notícias
porque não tinham inteligência para criar as notícias. Pois bem,
John

tinha inteligência. Seguira um palpite, fizera os trabalhos de casa e

encontrara novas informações para reformular uma história antiga.

Não, o trabalho de um jornalista não era criar as notícias. Ele

aprendera-o anos antes. Mas nada do que fizera ou pensara ou


imaginara Lhe dizia agora para virar costas. Ele descobrira a
verdade e

estava a revelá-la. Não havia nada errado nisso.

Na terça-feira de manhã, quando Liddie Baynes chegou com a


coluna de Armand, John estava à porta para a receber.

- Para a sua cara-metade - disse, entregando-Lhe um grande


envelope enquanto recebia o outro mais pequeno. - Como vai o
patrão?

- Chato - disse Liddie, mas num tom afectuoso. - A anca nova não
está a funcionar como se ele tivesse outra vez vinte anos.

John sorriu e apontou para o envelope que Lhe dera.

- Acho que isto o vai animar.

Liddie demorou cinco minutos a chegar a casa, e Armand demorou


outros cinco a reagir ao que John Lhe enviara. O telefonema dele
chegou pouco depois de John ter pousado a caneta, à espera.

- Que raio é isto? - gritou-Lhe Armand ao ouvido. - De onde é que


isto apareceu? Há quanto tempo andas a investigar? Sabes quais
são as implicações envolvidas? Céus, John, porque não me
disseste nada? Eu sou o editor. Quando é que tencionavas informar-
me?
- Foi uma decisão de última hora - disse John, sabendo que Armand
estava mais excitado do que zangado. - Há algum tempo que ando
a investigar, mas não tinha a certeza do que encontraria. E então, o
que acha?

- O que achas que eu acho? Estou... estou de boca aberta!John


sorriu.

- Ainda há tempo de alterar a edição, se não quiser ir para a frente -


provocou.

- Quero ir para a frente, garanto-te. A questão é, o que fazemos


depois de isto sair?

John pigarreou.

- Tenho algumas ideias. Mas vou precisar da sua ajuda.

- Ainda bem. Se me deixares de fora daqui para a frente, despeço-


te.

O tempo era tudo. O truque era despertar a curiosidade das


pessoas, sem Lhes permitir que elas próprias tivessem tempo para
investigar a história. Tratando-se de jornalistas, isso era complicado.
Os jornalistas são muito dedicados. Basta um cheirinho de qualquer
coisa nova para ninguém conseguir pará-los.

John e Armand fizeram listas separadas e compararam-nas para


eliminar duplicações. O plano era passar a tarde e noite de terça-
feira a fazer telefonemas para os repórteres que precisassem de
mais tempo para a viagem, e a manhã de quarta-feira a ligar para os
que estavam mais perto.

Para John, era como um jogo, ligar para velhos amigos na


comunicação social, fazendo perguntas suficientes sobre a validade
da história Blake-Rossetti - e a forma como fora contada nas
respectivas áreas - para despertar suspeitas, depois confidenciando
que Lily Blake voltara de facto para Lake Henry, que o Lake News
tinha um exclusivo, que sim, provavelmente haveria uma
conferência de imprensa, e sim, ele supunha que os manda-chuvas
estariam presentes.

"Supunha" era uma palavra justa. Ele sabia como as pessoas da


imprensa funcionavam. Não correriam o risco de ignorar uma dica,
não fosse um rival segui-la e encontrar um filão. Não apontou
directamente para Terry; não era preciso. As pessoas a quem ligara
estavam dentro deste mundo e sabiam da ligação de Terry com a
história. O facto de respeitarem John também ajudou. Um
telefonema após outro, ouviu murmúrios e o som de canetas a
tomar apontamentos quando disse que, se houvesse de facto uma
conferência de imprensa, esta teria lugar na igreja no centro de Lake
Henry às cinco horas.

Era o mais cedo que John pensava conseguir ir buscar o Lake News
à gráfica. Significava que Lily podia acabar o trabalho no lagar, fazer
o que tinha a fazer em casa, e vir ter com ele à cidade. Significava
também que a história rebentaria a tempo de aparecer nos no
ticiários da noite.

John não passou a noite de terça-feira em casa de Lily. Ficou no


escritório a fazer telefonemas até à meia-noite, depois trabalhou no
resto do Lake News, nas notícias locais que tinha negligenciado,
coisas que não tinham nada a ver com o escândalo mas que eram
importantes, muito importantes, para os seus leitores.

Às oito da manhã já estava de novo ao telefone. Fez o último


telefonema por volta das onze, deu os retoques finais no jornal e
enviou-o para a gráfica poucos minutos antes do meio-dia. Foi
nessa altura que Richard Jacobi ligou. A rede de rumores estava
activa. Richard ouvira as palavras "exclusivo" e "conferência de
imprensa". Não estava nada satisfeito.

- O que vai revelar? - perguntou.

- Não muito. Apenas uma peça do puzzle.


- Deve ser uma peça importante, porque os jornais estão todos a
caminho daí. Oiça, John, tenho o seu contrato aqui na minha
secretária, pronto a ser enviado, mas se vai contar tudo agora, o
que fica para contar depois?

- Detalhes - disse John. - Profundidade.

- Isso estaria muito bem se você fosse David Halberstram, mas não
é. É um jornalista cujo forte são as notícias choque. Eu estava a
contar que este livro fosse bombástico. É por isso que Lhe vamos
pagar.

- Pensei que me iam pagar pela história vista por dentro. A história
por detrás da história. Nada mudou em relação a isso.

- O acordo era para um exclusivo. Se publicar a história no seu


semanário, está a violar o acordo. Raios, John, isto é um negócio.
Detalhes e profundidade são coisas muito bonitas, mas não têm
metade do potencial de vendas que o choque tem. Era por isso que
nós íamos pagar. Imaginei uma promoção pré-publicitária que
deixaria as livrarias e os leitores com água na boca. O
Departamento de Marketingjá está a tratar disso. Bem como o
Departamento de Publicidade e Arte. O pacote de imprensa ia ser
fantástico, e depois é que íamos dar uma conferência de imprensa.
Se o fizer agora, o acordo fica sem efeito. Raios, talvez isto nunca
tivesse sido muito boa ideia.

- Talvez não - concordou John, porque o que Richard estava a


descrever não coincidia com o seu sonho. Ele podia não ser David
Halberstram. Mas o objectivo por detrás da sua vontade de escrever
este livro era provar o seu valor como escritor.

Pelo menos, fora esse o sonho, em tempos. já não o era. Agora ele
queria provar o seu valor como pessoa. E estava a sair-se muito
bem sem o livro.

- Vamos fazer o seguinte - disse Richard, num tom que devia


pretender que fosse conciliatório. - Vou guardar este contrato.
Telefone-me depois da sua conferência de imprensa e veremos em
que pé estamos.

John desligou, com sérias dúvidas de que alguma vez fizesse esse
telefonema, e não se sentindo minimamente desapontado por isso.

Lily passou a manhã de quarta-feira tão nervosa como nos últimos


dias que passara em Boston. Procurando alívio na rotina, dedicou-
se ao fabrico da sidra, empilhando febrilmente grades e panos, mas
a sensação de expectativa nunca a abandonava durante muito
tempo. E, de cada vez que ela regressava, as suas emoções
oscilavam loucamente - entre a excitação, o medo, a satisfação, o
embaraço, a raiva. Uma coisa, no entanto, permanecia constante:
ela queria justiça.

A ironia era que Terry Sullivan Lhe dera o instrumento para a


conseguir. Fora ele que pusera o nome dela no mapa. john tivera
apenas de fazer uma leve sugestão aos seus amigos da imprensa
para eles se porem a caminho de New Hampshire. Depois de
estarem todos em Lake Henry, os holofotes passariam a incidir
sobre Terry. Como dizia o ditado, o feitiço voltar-se-ia contra o
feiticeiro.

Pensar nisso dava-Lhe uma satisfação tremenda.

Pensar nas multidões, nas outras perguntas que podiam surgir, na


renovação do interesse da comunicação social por ela, mesmo que
fosse apenas por pouco tempo, deixava-a enjoada. Mas não podia
conseguir uma coisa sem a outra.

- Estás preocupada com qualquer coisa - observou Maida. lam a


caminho de casa, para almoçar. O dia estava limpo mas frio. Lily
tinha as mãos enfiadas dentro das mangas do casaco. Escondeu-as
debaixo dos braços.

Maida tinha de saber. A imprensa podia chegar em massa nessa


mesma tarde. Ou podia não aparecer ninguém. john dissera que
existia essa possibilidade. Não era provável, mas era possível.
Nesse caso, Maida não tinha de saber.

De uma maneira ou de outra, haveria uma reunião na igreja. Lily


queria contar a Maida, e explicar-Lhe o raciocínio por detrás das
suas acções. Queria que Maida dissesse que ela estava a fazer o
mais correcto. Mas Maida não diria tal coisa. Ela não queria a
imprensa por perto. Deixara-o bem claro quando Lily regressara.

- Tem alguma coisa a ver com o John Kipling? - perguntou Maida,


abrindo a porta. O telefone estava a tocar, mas, como sabia que
Poppy atenderia, Maida não correu para ele.

Lily entrou na cozinha atrás dela, perguntando desesperadamente a


si própria se Maida teria ouvido ou adivinhado alguma coisa e,
nesse caso, o que saberia.

- Porque perguntas?

O telefone tocou de novo. Continuando a ignorá-lo, Maida pôs o


casaco nas costas de uma cadeira. Com a mão na porta do
frigorífico, lançou um olhar incrédulo a Lily.

- Não sou estúpida, Lily. Nem surda. Mesmo que eu conseguisse


não ouvir os telefonemas que fazes, mesmo que não me tivesses
dito tu própria que estiveste com ele enquanto Gus morria, e de
novo no funeral, mesmo que não te tivesse visto com ele na igreja,
já teria sabido através dos amigos. Disseram-me que fizeste um
grande sucesso no Charlie's, na quinta-feira à noite.

- Isso não foi planeado - disse Lily rapidamente. - Foi uma c-c- coisa
espontânea. O Charlie veio ter comigo e pediu-me que cantasse.
Foram só algumas canções.

Maida tirou uma panela de sopa do frigorífico. Pousou-a no fogão e


acendeu o lume.

- Isso com o John, é sério?


Numa escala de seriedade de um a dez, as juras de amor ficavam
perto do topo. Mas Lily não sabia para onde as coisas iriam a partir
daqui, e não estava a conseguir perceber quais eram os
sentimentos de Maida em relação a John. Portanto, disse: - Não
tenho a certeza.

- Ele é um Kipling.

- Ele não teve nada a ver com aquela história do carro. E o Donny e
o Gus já cá não estão, nenhum deles.

Maida levantou a tampa e mexeu a sopa com força excessiva.

- Tinhas mesmo de ir ao funeral?

Ali estava. Desaprovação. Mas, pelo menos, não estava a condenar


John directamente. Lily ficou grata por isso, mas não se acobardou.
Respondeu calmamente:

- Sim, tinha.

Quando Maida não respondeu, continuando a cuidar da sopa, Lily


foi buscar pratos ao armário. A mesa estava quase posta quando

o telefone recomeçou a tocar. Os seus olhos voaram para o


aparelho, mas Maida já lá estava.

- Sim - disse ela, secamente, quando atendeu.

Lily ouviu fragmentos de uma voz excitada do outro lado da linha.


Maida lançou-Lhe um olhar cortante. Pôs a mão livre na cintura e
olhou para a parede. À medida que ouvia, os seus ombros ficavam
cada vez mais tensos.

Lily sentiu um aperto no estômago. Quando Maida desligou e se


virou para ela, preparou-se para a enfrentar.

- Era a Alice - disse Maida, pálida e de voz trémula. - Diz que os


telefones não param de tocar em toda a cidade. Qualquer coisa
sobre uma conferência de imprensa.

- Sim.

- Qualquer coisa sobre ti e sobre o John. Sobre repórteres que vão


chegar hoje.

O que podia Lily dizer?

- Sim.

- Porquê?

- Porque temos informações sobre o Terry Sullivan que provam...

- Não quero saber do Terry Sullivan - gritou Maida, com expressão


traída. - Quero saber é de nós. já estava tudo mais calmo. A
imprensa tinha perdido o interesse. Estava acabado e esquecido - a
sua voz adquiriu um tom suplicante. - Estávamos a dar-nos bem, tu
e eu. Não estávamos?

Se Lily pudesse ter voltado atrás no tempo nesse instante e vetado


a ideia da conferência de imprensa, talvez o tivesse feito. Maida
tinha razão. Elas estavam a dar-se bem.

Mas a vida era mais do que isso.

Suavemente, disse:

- Isto não tem nada a ver connosco.

- Tem - retorquiu Maida. Pôs as mãos nas ancas, depois apoiou-as


na bancada atrás dela. - Tem a ver com respeito - disse, levando
ambas as mãos à nuca. - Tem a ver com respeito, coisa que tu
nunca mostraste ter por mim. Cantar na igreja não te chegava.
Tinhas de cantar no Charlie's. Tinhas de cantar e dançar na
Broadway. Sabias que eu ia detestar, mas fizeste-o de qualquer
maneira.
- Era o que eu fazia bem.

- E depois esta história em Boston - tinha de novo as mãos nas


ancas. - Bom, isso estava acabado e esquecido, e agora foste
ressuscitar tudo. Não podias ter deixado as coisas em paz?

Lily fizera essa pergunta a si mesma várias vezes. Suspirou.

- Não. Não podia. Ele t-t-tirou-me algo. Preciso de tentar recuperá-


lo.

- O que é que ele te tirou? Um apartamento que, de qualquer


maneira, era demasiado caro? Um clube nocturno?

- O meu nome.

- O teu nome é perfeitamente bom aqui. Não ficou provado na


quinta-feira à noite, no Charlie's? Porque precisas sempre de mais
coisas?

- Não se trata de mais coisas, mãe, mas de coisas diferentes.

- Mas tu não és diferente - gritou Maida. Agarrou num pano da loiça


e começou a limpar as mãos que estavam perfeitamente limpas e
secas. - Não és nada diferente. Deixas as pessoas aproveitarem-se
de ti, tal como eu deixei... deixas as pessoas usarem-te, como eu
deixei. O Donald Kipling... O Terry Sullivan... e agora o John Kipling.
Ele não está a fazer isto por ti - gritou, com desdém. - Está a fazer
isto por ele. Portanto não estejas aí com esses ares de
superioridade a dizer-me que somos diferentes. Não és melhor do
que eu. Se há alguma diferença, é que eu tive o bom senso de pôr
tudo para trás das costas de uma vez por todas.

Com uma exclamação de consternação, atirou o pano da loiça para


cima do balcão e saiu intempestivamente de casa.

Lily não almoçou. Apagou o lume por debaixo da panela de sopa e


esperou na cozinha que Maida regressasse, mas ainda não havia
sinais dela quando chegou a hora de voltar ao trabalho. Por isso Lily
voltou sozinha para o lagar. À medida que se aproximava, a sua
apreensão aumentava, mas não precisava de se ter preocupado.
Maida não apareceu para o turno da tarde.

Lily chamou um dos apanhadores para tratar das grades e dos


panos com Bub, enquanto ela ficava com o trabalho de Maida, mas
desta vez não sentiu qualquer entusiasmo ou orgulho. Fez o que
tinha de fazer, e estava perturbada, mas não com a perspectiva de a
imprensa estar a chegar à cidade. Sentia o coração pesado ao
pensar onde estaria Maida, o que estaria ela a pensar, se haveria
forma de remediarem as coisas entre ambas. Não sabia por que
razão Maida continuava tão afectada por coisas que tinham
acontecido há tanto tempo. Não sabia porque havia de se preocupar
tanto com o que a

mãe pensava. Mas preocupava-se.

Os seus olhos deviam ter-se enchido de lágrimas mais do que uma


vez, pois mal tinham começado o turno da tarde quando Oralee

a mandou embora. Faltavam ainda três horas para a conferência de


imprensa, e Lily estava indecisa entre ir a casa ou seguir
directamente para os escritórios do jornal. Maida acabaria por se
acalmar, com o tempo. Era o que acontecia sempre.

Sim. Era o que acontecia sempre. Ela acalmava-se, a agitação


passava, e as coisas nunca eram discutidas nem resolvidas.

Mas desta vez era diferente. A conferência de imprensa estava


iminente. Lily já estava suficientemente preocupada com isso para
não querer deixar coisas no ar entre ela e a mãe. Tinha de falar com
Maida. Não Lhe explicara os seus sentimentos tão bem como podia
ter explicado, e queria experimentar outra vez.

A cozinha estava vazia. O escritório também. Lily calculou que


Maida devia estar no andar de cima, mas não podia subir aquelas
escadas. Há muito tempo que não vivia naquela casa, há muito
tempo que não tinha motivo para subir aqueles degraus. E entrar no
quarto de Maida? Parecia-Lhe uma invasão da privacidade dela.

Assim, sentou-se ao piano e começou a tocar. Um étude de Chopin,


uma sonata de Liszt - passou de uma peça para a outra sem acabar
nenhuma. Nesse momento, as coisas inacabadas pareciam a
história da sua vida.

E quando não fora assim? Quando é que se sentira mais tranquila?


Pensou nisso por um minuto, antes de Lhe vir à mente a imagem de
si própria a cantar na igreja, com dez anos de idade. A vida era mais
simples nessa altura. Maida tinha orgulho dela.

Sem qualquer pensamento consciente, começou a tocar os hinos


que costumava cantar. Tocou "Onward Christian Soldiers" e "Faith of
Our Fathers" - ambos do princípio ao fim, porque realmente
conseguiam acalmá-la. Ia a meio de "Amazing Crace" quando Maida
apareceu à porta. Parecia cansada, mais velha do que era, quase
derrotada. Lily parou de tocar.

- Achas que eu estou errada - disse Maida com voz fraca. - Não
compreendes porque gosto de viver a minha vida tranquila aqui e
por que razão toda esta história do cardeal é tão perturbadora para
mim, mas há coisas que tu não sabes - apertou os braços à volta do
corpo.

Lily começou a tremer. Era um tremor subtil, interior, mas de mau


agouro.

- Que coisas?

- Coisas que eu fiz antes de conhecer o teu pai.

O coração de Lily começou a bater mais depressa enquanto


esperava que Maida prosseguisse.

- Nunca estranhaste que eu não falasse da minha infância? -


perguntou Maida por fim.
- Sempre. Fiz-te perguntas. Nunca me quiseste dizer. Não havia
fotografias, nada. Quando perguntei a Celia, ela sorriu e disse que
não era nada que valesse a pena repetir.

- E não era, até agora. Mas, se eles vierem e nos virem e


começarem a escavar de novo no passado... - calou-se
abruptamente e passou a mão trémula pelo cabelo.

Lily fez menção de se levantar, mas mudou de ideias e ficou onde


estava. O piano era uma protecção entre ambas. Tornava o
desconhecido menos assustador.

- O meu pai morreu cedo - disse Maida. - Havia outra família em


Linsworth. A Celia tinha quatro irmãos.

Lily pensava que eram três - e sabia disso apenas por causa de
algumas fotografias que encontrara numa gaveta, depois de Celia
morrer. Enquanto crescia, sempre partira do princípio que não havia
ninguém para contactar em Linsworth. Depois de encontrar essas
fotografias, tentara recordar se vira alguém desconhecido no funeral
de Celia, mas na altura estava demasiado envolvida na sua própria
dor para reparar.

Maida falou suavemente. O seu olhar era distante, ferido.

- Os irmãos eram todos mais novos do que Celia, o último tinha


menos vinte anos. Era mais da minha geração do que da dela.
Cuidou de mim, foi um amigo, um irmão, um amante.

Lily mal conseguia respirar.

Os olhos de Maida encheram-se de lágrimas.

- Ele costumava esgueirar-se para o meu quarto à noite, quando

estavam todos a dormir. Ensinou-me coisas sobre o meu corpo e


sobre o amor. Ele era bonito e doce e inteligente - limpou as
lágrimas
com as costas da mão e desviou os olhos. - Quando eu tinha
dezasseis

anos, descobriram o que se passava entre nós e expulsaram-no.

Dezasseis era a idade que Lily tinha quando fora apanhada com

Donny Kipling num carro roubado. Lily começava a imaginar a


sensação de déjà vu que Maida devia ter sentido.

Mas Maida não estava a pensar nisso agora. A luz suave do


candeeiro do piano reflectiu-se nas lágrimas nas suas faces, mas
ela estava a olhar directamente para Lily, desafiando-a a mostrar
repulsa.

- Disseram que a culpa era dele, que eu era demasiado nova

para compreender, mas eu compreendia. Eu queria aquilo que


acontecia entre nós. Até hoje, é a única recordação alegre que
tenho

desses anos. Podes chamar-me imoral ou depravada, mas tu não


vivias lá. Não sabes como era. Vivíamos todos juntos numa casa
pequena. Na altura era normal que as famílias vivessem assim. O
meu pai

trabalhava com os irmãos da Celia, e a Celia sempre fora uma mãe

para eles, portanto fazia ainda mais sentido. Éramos pobres. Assim,

uníamos os nossos recursos. Quando os homens caçavam, não era

por desporto mas para arranjar comida. Eu era a única rapariga, por

isso tinha um quarto só para mim. Tinha um colchão duro no chão e

um bocadinho de espaço onde podia estar de pé. Mais nada. Era

escuro e frio. Phillip era o meu calor e a minha luz - o seu queixo
tremeu. - Eu amava-o. O que ele me fazia sabia-me bem. Ele era o
único luxo que eu tinha.

- E a Celia não era um luxo? - perguntou Lily, mais ofendida por

isso do que pelo resto.

- Tu não a conhecias na altura - disse Maida desdenhosamente.

- Ela era diferente da pessoa que conheceste. Estava sempre muito

ocupada, e era uma mulher dura. Depois de o meu pai morrer, ficou

com a responsabilidade dos irmãos e de mim. Ela governava a casa


e

ganhava o dinheiro.

- Os irmãos não trabalhavam?

- Não ganhavam muito, e a maior parte do que ganhavam gastavam


em bebida. O Phillip acompanhava-os, mas nem sempre. Conseguiu
amealhar o suficiente para me dar quando eu tivesse de partir.
Deixou um bilhete a dizer onde estava o dinheiro e para que era.
Tinha-o na mão quando morreu.

Lily prendeu a respiração.

- Ele suicidou-se - disse Maida. - Dois meses depois de o


escorraçarem. Hoje em dia estaria na cadeia, mas as autoridades
nunca souberam nada dele. Vagueou de um lado para o outro, sem
saber o que fazer da sua vida. Houve pessoas amigas que o viram
noutras cidades, algumas a cinquenta quilómetros de distância, mas
o seu corpo foi encontrado nos bosques a pouco mais de um
quilómetro de nós.

Levou a mão ao peito, aparentemente em sofrimento. Lily levantou-


se de imediato do piano, mas Maida ergueu a mão para mantê-la à
distância. Tinha os lábios franzidos, relaxando-os apenas o
suficiente para conseguir falar.

- Há mais - recompôs-se. - Já que querias saber, bem podes ouvir


tudo.

Lily sentiu dor e confusão. Sentiu choque e dor suficientes para Lhe
trazer lágrimas aos olhos. Mas Maida não a deixava aproximar-se,
por isso encostou-se ao piano.

- Enterrámos o Phillip no talhão da família. O povo de Linsworth


disse que ele não devia ficar perto das pessoas decentes, mas a
Celia recusou-se a sepultá-lo noutro lado. Ela também o amara.
Culpava-se a si própria por aquilo que acontecera. Continuava a ser
responsável por todos nós, e agora ainda tinha mais este peso. Ela
e eu aproximámo-nos, porque partilhávamos o sofrimento e porque
eu queria ajudá-la. Assim, deixei a escola e fui trabalhar no
escritório de madeireiros onde ela trabalhava.

Os seus olhos e a sua voz ficaram de novo distantes.

- Não foi fácil. Toda a gente na cidade sabia o que tinha acontecido.
À excepção da Celia e de mim, os trabalhadores eram todos
homens. Sempre que eu saía do escritório, os homens ficavam a
olhar para mim. Alguns faziam comentários. Tocavam-me sempre
que podiam, como se fosse um jogo para ver até onde eu os
deixava ir. Convidavam-me para sair, e eu recusava sempre; mas
isso só piorava as coisas. Se me tivesse encostado a um deles,
talvez tivesse tido alguma protecção. Mas eu estava a tentar agir da
forma correcta, i portanto era caça aberta.

Encolheu-se um pouco. - Tornou-se evidente para nós que eu não


podia ficar ali. Nem naquele escritório, nem naquela cidade.
Estávamos a tentar decidir para onde ir e o que fazer quando o
George apareceu, um dia, para comprar equipamento ao meu
patrão. Passou algum tempo a falar comigo, o suficiente para
percebermos que ele não era casado, mas pensámos que, se ele
ficasse muito tempo na cidade, em breve descobriria tudo e decidiria
que afinal não queria nada comigo. Assim, a Celia e eu saímos e
comprámos roupas bonitas para mim com o dinheiro que Phillip
deixara - a sua voz tremeu ao mencionar o nome dele - e a Celia
conseguiu mandar-me para Lake Henry com a entrega do material.
Voltei para entregar uma conta, e de novo para entregar um recibo.
Era uma longa viagem, por mais estradas secundárias do que
alguma vez viste na vida. Levava quase um dia inteiro.

A recordação animou-a um pouco, e a sua expressão revelou


orgulho.

- Nessa altura eu representei um papel, melhor do que tu alguma


vez representaste, porque a minha vida dependia disso. Criei uma
mulher que era inteligente e aprumada, que sabia como cuidar de
uma casa e como fazer contabilidade, e sim, como agradar a um
homem. Era uma mulher com um passado limpo, e fazia as coisas
como deve ser. Fazia sempre as coisas como deve ser. O teu pai
apaixonou-se por essa mulher. E tenho sido essa mulher desde
então.

De maxilares contraídos, olhou para Lily.

- Eu sabia como era ser alvo de olhares, e de repente ali estavas tu,
a cantar em público, satisfeita com aqueles olhares lúbricos. Como
achas que me senti quando foste apanhada com o Donny Kipling?
Não achas que uma parte de mim receou que estivesses a meter-te
na mesma situação em que eu estivera? Mas tu não encontraste o
teu George. Foste para Nova Iorque, e isso foi ainda pior. Mas pelo
menos eu não tinha de ver, até acontecer isto. Como achas que me
senti quando os jornais começaram a desenterrar todas as
pequenas coisas do teu passado? Como achas que me senti, sem
saber quando é que escavariam um pouco mais fundo, apenas um
pouco mais, e descobririam o meu passado? Aqui, ninguém sabe.
Quando a Celia se mudou para cá, também ela começou de novo.
Nunca mais falámos sobre o passado. Simplesmente arrancámos
essa página.

- Ninguém vai descobrir - prometeu Lily.


- Tenho a minha vida aqui. Tenho uma boa vida. Tenho amigos e um
negócio. Tenho um nome.

- Ninguém vai descobrir - repetiu Lily.

- Como sabes?

- Porque isto já não tem a ver comigo. Tem a ver apenas com o
Terry Sullivan.

Maida ia continuar a discutir. Abriu a boca, fechou-a, depois levou a


mão aos lábios para a manter fechada. Primeiro Lily pensou que ela
ficara paralisada ao pensar no que a cidade podia vir a descobrir.
Mas o que a sua expressão revelava era horror, não medo. Horror.

Porque a sua filha agora sabia.

- Está tudo bem - murmurou Lily, fazendo menção de se aproximar,


mas Maida recuou enquanto abanava febrilmente a cabeça.

Lily sentia mais necessidade de Lhe tocar do que nunca. Dando


mais um passo, disse:

- Isto não altera em nada os meus sentimentos...

Mas Maida tinha voltado costas e, com a mão na nuca e a cabeça


inclinada, subia rapidamente as escadas.

Lily seguiu-a até ao início das escadas, com vontade de subir atrás
dela mas com medo de o fazer.

- Já foi há muito tempo - disse. - Já o c-c-compensaste dez vezes.


Foste uma boa mulher para o papá, e uma boa mãe para nós, e
olha para ti a-a-agora. Estás a tomar conta do negócio do papá
quase melhor do que ele.

Mas Maida desaparecera.


Lily sabia que nunca mais esqueceria a expressão horrorizada de
Maida. Ela assinalava o momento em que mãe e filha tinham
trocado de lugares no jogo da aprovação, o momento em que, como
seres humanos, se tinham tornado iguais. Era o momento chocante
em que compreendera que a mãe não tinha mais respostas do que
ela para algumas coisas.

Ficou encostada ao corrimão cerca de vinte minutos, depois sentou-


se no primeiro degrau. Queria subir, queria agradecer a Maida por
ter partilhado o que partilhara com ela, porque explicava muita
coisa. Queria agradecer-Lhe por ter confiado nela, queria garantir-
Lhe que era digna dessa confiança, que ninguém para além dela
alguma vez viria a saber que se certificaria de que nada,
absolutamente nada, chegaria sequer remotamente perto disto na
conferência de imprensa desta tarde. Queria subir mas não se
atrevia, e odiava-se a si própria por isso. Ainda havia aquele medo -
sempre aquele medo da rejeição.

Mas o relógio não parava. Eram quase quatro horas. Tinha de tomar
um duche, mudar de roupa e ir ter com John ao escritório.

Voltou para casa de Celia com o coração nas mãos, a sofrer por
Maida, com medo do que ia acontecer - e depois positivamente
aterrorizada quando Lhe ocorreu que John podia saber o segredo
de Maida. Lily não vira o Lake News. Confiara que ele ia escrever
apenas sobre Terry. Confiara nele.

Tentou telefonar-Lhe, mas foi Poppy quem atendeu, e não sabia


onde ele estava. Assim, tomou rapidamente duche e tentou apanhá-
lo de novo no escritório - apenas para perceber que não se atrevia a
dizer nada ao telefone. Os telemóveis estavam longe de serem
seguros, e não estivera a linha dela em Boston, à partida uma linha
segura, sob escuta ainda há bem pouco tempo? Só Deus sabia se a
de John estaria ou não.

Despachou-se com a maquilhagem e o cabelo, enfiou o seu único


fato de calças e casaco, e conduziu a velha carrinha Ford o mais
depressa que se atrevia até ao centro da cidade.
Havia carros na cidade. Carros e carrinhas. Carrinhas com antenas
de satélite no tejadilho, os nomes de estações locais e nacionais
pintados em grandes letras, e repórteres ao lado delas a testar
câmaras e microfones.

O estômago de Lily começou às voltas.

Esforçando-se ao máximo para parecer anónima, virou na estação


dos correios, mas teve de estacionar na relva ao lado do velho
edifício vitoriano, porque também ali havia carros - e repórteres. Mal
saíra da carrinha quando eles a viram e, de repente, a sensação de
ser perseguida voltou, tão forte como fora em Boston.

Correu para a porta lateral. Eles seguiram-na.

- Há quanto tempo está aqui?

- Já falou com o cardeal?

- Quer fazer algum comentário sobre a acção?

John abriu a porta quando ela se aproximou e fechou-a assim que


ela entrou. Lily estava a tremer. john abraçou-a, mas os tremores
não pararam.

- Está a começar tudo de novo - murmurou ela, em pânico.

Mas a voz de John era calma.

- Apenas porque eles não têm mais ninguém para perseguir. Espera
quinze minutos. Nessa altura as coisas serão completamente
diferentes.

Ela ergueu os olhos para ele.

- Onde está o jornal?

- Do outro lado da estrada, na igreja. O Willie Jake estâ a guardá-lo.


- Escreveste alguma coisa sobre a Maida? - perguntou,
inspeccionando o rosto dele em busca de indícios de traição, mas
John parecia mais perplexo do que outra coisa.

- Não. Falo apenas sobre aquilo que tiveste de suportar em Boston.


A maior parte é sobre o Terry.

Ela sentiu-se fraquejar de alívio.

- Estiveste a conversar com ela? - perguntou John.

Lily acenou afirmativamente. Queria contar-Lhe. Queria muito


contar-Lhe. Queria, mas não podia. A confiança que sentia nele era
demasiado recente.

Ele afastou-a e olhou para ela. Os seus olhos eram do castanho


profundo que ela adorava, mas agora sem máscaras, despidos e
honestos.

- Segui o rasto da Maida até Linsworth, mas depois não consegui


forçar-me a bisbilhotar. Se alguma coisa aconteceu por lá, é
problema dela. Se ela decidiu contar-te, fico contente, mas não tens
de me dizer o que é. Não há nada que eu precise de saber que não
saiba já - acariciou-Lhe a face com as pontas dos dedos. - Há
coisas de que eu não gosto em relação à Maida, a forma como ela
te tratou enquanto crescias, até mesmo a forma como olha para
mim agora, mas ela é boa pessoa, Lily. É uma pessoa decente. Deu
muitos anos de felicidade ao teu pai, e manteve o negócio em
funcionamento.

O que quer que tenha acontecido em Linsworth, não tem


importância. No que me diz respeito, ela é quem é hoje. Ponto final.

Nos minutos em que os olhos dele prenderam os seus, Lily amou-o


tanto por respeitar Maida como por não a obrigar a traí-la.

Ele olhou para o relógio.


- Estás pronta? - perguntou num tom suave.

Ela demorou um minuto a fazer a transição mental, mas a resposta


surgiu-Lhe rapidamente. Se estava pronta? Não estava. Imaginou
John a expor o seu caso e a imprensa a unir-se para defender Terry
como um dos seus, e nesse caso todos os seus esforços se
voltariam contra eles.

Mas, por outro lado, talvez não.

Se estava pronta? Acenou afirmativamente.

- Queres ir?

Ela não queria. Queria ir para casa e esconder-se no pequeno


casulo seguro que criara para si própria. Mas, mais do que isso,
queria ser vingada.

Acenou de novo.

John endireitou-se e respirou fundo. Lily pensou que naquele


momento, com o seu blazer, camisa e gravata por cima das calças
de ganga, ele tinha de ser o homem mais bonito do mundo. Depois
John abriu a porta.

A sala estava cheia. Lily apercebeu-se disso assim que John a


introduziu por uma porta lateral. Todos os bancos estavam
ocupados, muitos deles por pessoas que seguravam equipamentos
vários. Holofotes, montados em altos postes, incidiam sobre os
repórteres de televisão que estavam de pé nas coxias a ajustar os
auriculares e a transmitir informações preliminares às respectivas
estações. Os habitantes da cidade enchiam o fundo da sala e o
pequeno balcão. O murmúrio abafado das conversas era
acompanhado pelos estalidos e zumbidos das câmaras, evocando
memórias suficientes para acelerar o coração de Lily.

Tinha sido preparada uma mesa comprida na parte da frente da


sala. Nesta estava já montada uma fila de microfones, presos com
fita adesiva, com rolos de cabos a serpentear pelo chão.

Lily sentou-se no lugar que John Lhe indicou. Ele estava a sentar-se
ao seu lado direito quando Cassie entrou, sentou-se à sua
esquerda, inclinou-se para ela e explicou a sua presença com um
murmúrio:

- Para o caso de alguém tentar pregar-te uma rasteira. John


inclinou-se também para ela, do outro lado. - O casal de idade na
fila da frente é o Armand e a Liddie. Conhece-los, não é verdade?

Lily conhecia, mas não os via há anos. Armand parecia


assustadoramente frágil, embora houvesse cor nas suas faces e um
brilho de excitação inconfundível nos seus olhos.

- O Armand raramente sai de casa - prosseguiu John. - O grupo à


direita dele veio de Nova Iorque; à esquerda, de Washington. Os

dois indivíduos atrás dele são de Springfield. Vejo pessoas de


Chicago, Kansas City, Filadélfia, Hartford e Albany, e isto só nas
primeiras

filas. A comunicação social de New England está atrás deles...


Concord, Manchester, Burlin on, Portland, Providence.

Lily avistou o rosto de bebé de Paul Rizzo várias filas mais para trás.

- Convidaste o Rizzo?

John abanou a cabeça, mas os seus olhos cintilaram. Era evidente


que estava encantado por Rizzo ter vindo.

Lily viu outros rostos que recordava da matilha que a seguira em


Boston, e rostos familiares que eram mais amistosos - Charlie e
Annette Owens, Leila Higgins, Alice Bayburr e a sua família. As
amigas de Poppy enchiam uma fila, com Poppy na sua cadeira de
rodas ao lado do banco. Quando os seus olhares se cruzaram, ela
levantou o polegar e sorriu a Lily. Isso acalmou-a um pouco.
- Estás a ver aquele tipo de aspecto grosseiro, mais ou menos a
meio, do lado esquerdo? - murmurou Cassie.

Lily procurou, encontrou, acenou.

- Justin Barr.

- Oh, meu Deus.

John falou de novo, num tom ainda suave mas agora cheio de
excitação mal contida.

- Olha quem está ali, do lado direito, ao fundo.

Desta vez, Lily prendeu a respiração. Não havia como confundir


aquele bigode. Sentiu repulsa, depois uma grande satisfação. Olhou
para John e murmurou:

- O que está ele a fazer aqui?

- Deve pensar que vai recolher material para o seu artigo.

- Mas ele não sabe?

John sorriu.

- Eu não disse nada - o sorriso desvaneceu-se. - Pronta?

John não podia ter ficado mais satisfeito com o resultado. Estava à
espera do contingente de New England e de um punhado de outros,
e partira do princípio de que a sala estaria razoavelmente composta.
O facto de estar apinhada era um bónus. O facto de Sullivan, Rizzo
e Barr estarem presentes era um triplo bónus. Embora não tivesse
convidado nenhum dos três, não estava surpreendido por vê-los.
Tinham vindo para o desafiar. As pessoas arrogantes eram muito
previsívèis.

Pigarreou, inclinou-se para os microfones e, numa voz que teria


chegado a todos os cantos da sala mesmo sem amplificação,
começou por agradecer a presença de todos. Fez um pequeno
resumo da história do Lake News - um pouco de autopromoção, já
agora - e atribuiu o sucesso da publicação a Armand. Depois pegou
na última edição do jornal.

Depois de ter revisto o discurso na sua mente dezenas de vezes,


falou sem precisar de recorrer a notas.

- No mês passado, acompanhei com interesse a história da alegada


relação entre o cardeal Rossetti e Lily Blake, em parte porque Lily
Blake é de Lake Henry, em parte porque já tinha trabalhado com o
repórter que revelou a história, Terry Sullivan. Tive dúvidas sobre a
veracidade da história desde o início, por isso não fiquei
surpreendido quando o Vaticano ilibou o cardeal Rossetti e o Boston
Post teve de publicar um pedido de desculpas ao mesmo. Mas
depois tive de assistir de braços cruzados, tal como Lily Blake e a
sua família, enquanto os jornais a culpavam pelo escândalo.

Sentiu a perna de Lily tremer e encostou a coxa à dela para a


apoiar. Não a censurava por estar agitada. Os rostos à frente deles
pareciam esfomeados. Se acrescentássemos a isso o zumbido das
câmaras de vídeo, os estalidos das máquinas fotográficas e o ruído
de canetas a escrevinhar, o cenário era muito diferente dos
espectáculos que ela estava habituada a dar. E o que estava em
jogo também.

Sentindo o peso dessa responsabilidade, prosseguiu em voz clara.

- Todas as pessoas que conheciam Lily Blake respondiam pela sua


moderação, pela sua competência e pela sua estabilidade. Não
houve uma única pessoa que a acusasse de algo sequer
remotamente condicente com o tipo de pessoa desequilibrada cujo
retrato os jornais pintaram. Todos nós desconfiámos de que o Post
estava a tentar justificar o facto de ter publicado uma história falsa.
A questão

era perceber o porquê de essa história ter chegado sequer a ser es


crita - ergueu o Lake News. - Esta edição aborda essa questão.
Todos receberão um exemplar, onde poderão ler os pormenores.
Gostava apenas de fazer um pequeno resumo.

Era tudo o que ele queria - resumir as suas descobertas perante


uma assistência atenta. Convocar uma conferência de
imprensafazer com que os repórteres e os jornalistas se
deslocassem - criava um evento. Isso maximizava as probabilidades
de a história ter uma boa cobertura. Olhou para a assistência, que
estava de facto atenta, e sentiu-se bem. Olhou para Terry, e sentiu-
se ainda melhor.

Terry parecia muito satisfeito consigo próprio. Sem o fixar


directamente, John tentou ir controlando a expressão dele. Queria
vê-la no minuto em que ela se alterasse. E isso ia acontecer. Oh,
sem dúvida.

- Desde o início, esta história foi do Terry Sullivan. Depois de sair


para a rua, houve outros que se aproveitaram dela, mas foi ele que
a imaginou e a trouxe a público. Fez pressão por ela, mesmo
quando os editores do Post demonstraram alguma prudência. Estes
resistiram à publicação, até que ele apresentou uma cassete na qual
a voz da própria Lily Blake confirmava ter um caso amoroso com o
cardeal Rossetti.

Preocupado, com receio que Lily se sentisse apreensiva com estas


palavras, encostou de novo a perna à dela. "Espera", pensou.
"Espera mais um pouco. "

- Essa cassete era ilegal - disse. - Lily Blake não sabia que estava a
ser gravada. A semana passada, provou-se também que essa
cassete era falsa - um murmúrio percorreu a assistência.

As feições de Terry ficaram tensas, mas continuou composto. john


admirou a presunção que o impedia de se agitar, a arrogância que o
tornava tão cego, que não conseguia ver - nem imaginar, nem

sonhar - para onde John se dirigia.


John continuou.

- Aqueles de nós que conhecem a forma como o sr. Sullivan


trabalha, solicitaram ao Post que verificasse a autenticidade da
cassete, mas eles recusaram-se a fazê-lo. Só depois de surgirem
evidências que apontavam para intenção maliciosa por parte do sr.
Sullivan é que se decidiram a agir. Os especialistas do próprio jornal
descobriram que a cassete tinha sido cortada e montada, o que
coincide com a versão de Lily Blake. Ela sempre dissera que o sr.
Sullivan a conduzira a um diálogo hipotético, e depois retirara as
suas palavras do contexto para as citar.

Terry estava a abanar lentamente a cabeça, sugerindo que a


tentativa de John para o desacreditar era patética.

- Na sexta-feira passada - disse John -, o Post despediu o sr.


Sullivan.

Terry revirou os olhos. Mas John viu surpresa num ou dois rostos.

- Foi tudo tratado rápida e discretamente - continuou ele -, o lixo foi


varrido para debaixo do tapete e Lily Blake continuou com o papel
de má da fita. A edição desta semana do Lake News revela quem foi
o verdadeiro vilão da história. O sr. Sullivan foi a força
impulsionadora por detrás deste escândalo. Ele insistiu na história
mesmo quando os seus superiores o desencorajaram. Chegou ao
extremo de falsificar provas para a levar para a frente. O senso
comum dizia que ele tinha de ter uma razão para o fazer. O Lake
News revela essa razão.

Lily observou e esperou. Era este o momento. Terry ficara muito


quieto.

Mas algo atraiu o seu olhar mais para o fundo da sala - algo,
alguém. Maida estava ali. Parecia perdida, com um grande casaco
preto, mas estava sem dúvida presente. Lily tentou captar o seu
olhar, mas Maida estava de olhos postos em John, enquanto ele
continuava a falar.
- O sr. Sullivan cresceu em Meadville, na Pensilvânia. Um ensaio
escrito por ele, e publicado no jornal local quando era ainda
adolescente, sugere que já na altura ele guardava algum rancor
contra a Igreja Católica, o que não é de admirar. Fontes contactadas
em Meadville confirmam que o seu pai costumava bater nele e na
mãe. Porquê? Ciúmes. A mãe de Terry viera para este casamento
apaixonada por outra pessoa, alguém com quem namorara durante
o liceu e a universidade, mas que a deixara para entrar para o
seminário. Esse homem era Fran Rossetti.

Ergueu-se um murmúrio. Terry levantou-se e tentou esgueirar-se


para a porta, mas a muralha de habitantes da cidade era compacta
e não o deixou passar. As cabeças na assistência voltaram-se para
trás, à procura dele enquanto tentava escapar-se. As câmaras
fixaram-se nele. Os flashs dispararam.

"Olho por olho", pensou Lily num momento de raiva perversa.


"Quem tem telhados de vidro... Não faças aos outros... "

Incapaz de passar, Terry voltou-se e endireitou-se. Olhando


directamente para Lily, disse em voz alta:

- Este é um caso clássico de matar o mensageiro quando não se


gosta da mensagem.

John levantou-se tão depressa que Lily nem se apercebeu. A sua


voz ribombou pela sala.

- Errado. É um caso clássico de abuso de poder.

- Exactamente - gritou Terry em resposta. - Estás a tentar virar

esta história ao contrário por causa do teu livro. Vamos falar sobre

esse contrato chorudo que fizeste.

- Não há contrato nenhum - disse John. - Não há livro nenhum.


Tudo o que eu poderia ter escrito nesse livro - ergueu o Lake News -
está aq i.

- Esse jornal está cheio de calúnias - acusou Terry. - Espero que

estejas preparado para uma acção judicial, porque é isso que vais

conseguir - indignado, ergueu os braços e abriu passagem à força

entre a multidão.

Lily lembrava-se de ter feito mais ou menos a mesma coisa em

Boston, quando tivera de lutar para abrir caminho pelas ruas.


Esperava que Terry estivesse a sentir nem que fosse uma fracção
da mesma

humilhação, da mesma sensação de impotência, frustração e medo.

Queria que ele pensasse duas vezes antes de infligir de novo este

tipo de sofrimento a outras pessoas. Queria que os colegas dele


aprendessem com o seu exemplo.

Dois fotógrafos, um repórter e um operador de câmara seguiram-no,


mas os restantes voltaram-se de novo para John.

Maida estava mais direita no seu banco. Lily não sabia se era

raiva ou orgulho. Rezou para que a mãe estivesse a compreender

melhor a situação agora, para que estivesse a sentir alguma


satisfação por ela.

Novamente composto, John sentou-se.

- É tudo o que tenho a dizer. Se houver perguntas, teremos todo o


prazer em responder.
Ergueram-se mãos, ecoaram vozes.

- O cardeal esteve envolvido na sua investigação?

- Não.

- Tem provas da relação entre a mãe do sr. Sullivan e o cardeal?

- Sim. Há uma fotografia do baile de finalistas no livro de curso do


cardeal, e inúmeras pessoas que podem comprová-lo - não ia
mencionar o irmão de Terry. Não era sua intenção atiçar a imprensa
contra o padre. Nem queria causar problemas ao cardeal. Uma
relação de liceu era perfeitamente aceitável, e seria fácil de explicar
por parte de Rossetti. john disse apenas o que tinha de dizer para
conso lidar o caso de Lily. O que pretendiam era limpar o nome dela.

- O cardeal sabe da sua ligação ao sr. Sullivan?

- Não sei.

- O Post publicou algum pedido de desculpas à sr.a Blake?

- Não.

- Vai exigi-lo? - perguntou um repórter a Lily.

Cassie inclinou-se para os microfones.

- Já demos entrada de uma acção judicial. A sr.a Blake não tem


qualquer comentário a fazer de momento.

A pergunta seguinte foi para John.

- Parece já ter julgado e condenado o sr. Sullivan. Não acha que


está a abusar do seu próprio poder?

John nem queria acreditar na estupidez do outro homem.


- Desculpe - disse ao repórter que fizera a pergunta. - Não se
importa de se identificar?

- Paul Rizzo, Cityside.

- Paul Rizzo. Aaah - perfeita estupidez. john ficou encantado. Não


podia ter desejado melhor, nem que tivesse escrito ele próprio o
guião da cena. Paul Rizzo acabara de se colocar no banco das
testemunhas. Agora, estava nas mãos dele. - Quais são as suas
qualificações para estar nesta sala?

Houve alguns olhares confusos entre a assistência, e o de Paul era


um deles.

- Faço parte da equipa do Cityside há sete anos.

- E antes disso? - perguntou John. O Lake News não cobrira este


aspecto. Concentrara-se na intenção maliciosa de Terry e nos
prejuízos causados a Lily. Mas não podia desperdiçar esta
oportunidade de ouro. - Quais são as suas habilitações
académicas?

Rizzo olhou em redor, constrangido. Com voz tensa, disse:

- Isso é irrelevante.

- Será? O senhor orgulha-se de dizer que tem um bacharelato da


Duke e uma licenciatura da Universidade de Nova Iorque. É o que
diz a sua biografia do Cityside. Presumo que foi isso que Lhes disse
quando se candidatou ao lugar. Eu próprio já o ouvi referir-se a
esses diplomas. O problema é que eles não existem. Segundo os
registos da Duke, chumbou ao fim de dois anos. A Universidade de
Nova Iorque nem sequer tem registos de a ter frequentado. Isso é
apresentação de factos falsos. Se mente sobre estas coisas, como
podemos confiar naquilo que escreve?

Lily sentiu pena dele. Ser humilhado publicamente não tinha graça
nenhuma, e não se paga o mal com o mal. Mas John não era um
homem cruel. Se tivesse havido outro caminho, ele tê-lo-ia seguido.

Além disso, por mais penosa que a lição pudesse ser para Paul
Rizzo, havia uma moral nesta história. Lily ergueu o queixo. Seria
capaz de jurar que Maida sorrira.

"Justiça" era a palavra-chave. john repetiu isso para si próprio


enquanto Rizzo balbuciava:

- As suas informações estão erradas. Além disso, a escola que eu


frequentei só a mim diz respeito.

- Exactamente - disse John. - Tal como as lojas onde Lily Blake faz
compras só a ela dizem respeito. Tal como os restaurantes onde
come e os locais para onde vai de férias só a ela dizem respeito.

- Está a fugir à pergunta.

- Uma vez que o senhor não é um repórter válido, a sua pergunta


também não o é - disse John, e apontou para outro repórter. - Sim?

- A questão de Rizzo é justa - disse este. - Puxou os seus


cordelinhos para nos trazer aqui para uma conferência de imprensa.
Isso não é um abuso de poder?

John podia ter sido culpado de usar pessoas em fases anteriores da


sua carreira, mas agora não. Não havia o mais ligeiro pulsar do
músculo debaixo do seu olho. Estava confiante.

- Não forcei ninguém a vir. Não usei qualquer falso pretexto. Disse
que tinha informações novas. Convidei-vos a vir, e vocês vieram. E
acabo de vos dar essas novas informações.

Outro repórter perguntou: - E em relação à questão de já ter julgado


e condenado o sr.

Sullivan? - Isto não é um julgamento. É jornalismo de investigação.


Limitei-me a imprimir os resultados dessa investigação no meu
jornal.
- Em que é que isso difere do que ele fez a Lily Blake?

- Ele fabricou. Ele falsificou. Ele inventou. O que está no Lake News
são factos.

- Não precisava de convocar uma conferência de imprensa para


isso.

- Precisava, sim. Isto é um novo desenvolvimento, num caso que


vos alimentou a todos durante vários dias, mas agora já estão fartos
dele. Passaram para outras coisas. Não publicariam nada do que eu
publiquei no Lake News se não os tivesse chamado aqui.

- E como sabe que o publicaremos agora?

Ele sorriu. Este era terreno seguro. Sabia como funcionava a mente
da comunicação social. Raios, não pertencia também ele a

esse mundo?

- Olhe à sua volta. Temos aqui alguns dos grandes órgãos de


comunicação social. Está disposto a correr o risco de que um ou
mais dos outros façam uma manchete e ganhem a corrida,
enquanto o senhor fica para trás? A sr.a Blake foi difamada na
primeira página. Merece ser exonerada da mesma forma.

- O Sullivan também será difamado nesse processo. Mas ele já foi


despedido. Não é castigo suficiente?

- Seria. Mas o Post quer manter o assunto enterrado. Não


tencionam dizer às pessoas que ele foi despedido, porque isso
implica um erro de julgamento da parte deles. Vão ficar muito bem
caladinhos, e olhar para o lado quando outro jornal o contratar... e,
por mim, não há qualquer problema. Ele tem direito a ganhar a vida.
Simplesmente acho que o público deve ser avisado. A credibilidade
dele deve ser vista por aquilo que é - apontou para outra mão
levantada.
- Sr. Blake, a senhora é uma artista. Espera que esta notoriedade dê
um impulso à sua carreira?

Lily sentiu novamente o coração acelerado. john já falara. Cassie já


falara. Agora era a sua vez.

Esperou um minuto, para ter a certeza de que a sua língua estava


relaxada, mas não foi preciso um grande esforço. Sentia-se
surpreen dentemente forte quando se inclinou para o microfone. -
Sou professora. Perdi o emprego por causa das acusações feitas no
Post. Sou também pianista. Também perdi esse emprego, porque
a... notoriedade... estava a trazer o tipo errado de pessoas para me

verem - fez uma pausa para se recompor. - Esta foi uma experiência
muito negativa. Não sei se alguma vez quero voltar a estar sob as
luzes da ribalta desta maneira.

- Quer comentar o caso do roubo do carro? Cassie falou antes que


ela pudesse responder.

- Eu posso responder, uma vez que vi o processo no tribunal. Não


houve qualquer condenação. A sr.a Blake não sabia que estava num
carro roubado. Uma vez que era menor e não tinha qualquer
cadastro anterior, o juiz arquivou o caso. As acusações foram
subsequentemente retiradas e o processo foi selado. Os direitos
civis de Lily Blake foram violados quando o sr. Sullivan publicou
informações retiradas desse processo. Ele terá de responder por
isso.

Um homem de aspecto grosseiro a meio da sala, no lado esquerdo,


levantou-se. Lily sentiu uma pontada de apreensão quando ele se
dirigiu a John.

- É ou não é verdade - perguntou Justin Barr num tom arrogante

- que o senhor tem um ressentimento contra Terry Sullivan?


- Isso é dizer pouco - declarou John, encorajado. Não pedira a
Justin Barr que se pusesse na ribalta, tal como não o pedira a Paul
Rizzo. Era outra dádiva. Lily Blake ia ser recordada por muito mais
do que uma relação forjada com o cardeal.

Sentiu um instante de dúvida quando olhou para Lily e viu a sua


expressão aflita. Ela sabia o que aí vinha e lamentava-o. Raios, ele
também lamentava. Mas Justin Barr não era nenhum inocente.
Usava as pessoas. Fazia críticas gratuitas só pela piada. Ser por
sua vez alvo de críticas era o preço que tinha de pagar por isso.

Rezando para que Lily compreendesse e Lhe perdoasse o que


estava prestes a fazer, olhou para Barr. Sentia John algum
ressentimento contra Terry Sullivan?

- Eu desprezo aquele homem.

- Nesse caso, tem razões para o difamar, tal como ele tinha razões
para difamar o cardeal Rossetti.

- Não estou a difamá-lo. Estou simplesmente a apresentar factos


sobre a sua família e a sua infância que lançam alguma luz sobre o
que ele fez à sr. Blake.

- O que é para si a sr.a Blake? - perguntou Barr presumidamente.


john nem pestanejou.

- Uma vítima inocente. Agora é a minha vez, sr. Barr. Há uma


prostituta cara em Boston chamada Tiffany Coupe. O que é ela para
si?

- Não conheço ninguém com esse nome - disse Barr.

- Pois não. Mas Jason Weidermeyer conhece. Há cheques


assinados por ele, passados em nome da sr.a Coupe. O nome dele
está em livros de registo que cobrem um período de oito anos. jason
Weidermeyer. Não é esse o seu verdadeiro nome?
- Há mais Jasons Weidermeyers no mundo - disse Barr, mas
ouviram-se risos entre a assistência. Durante o processo de fazer de
si próprio uma celebridade, Justin Barr deliciara-se a dar entrevistas.
O seu lema, proclamado altivamente, era que a determinação, a
dedicação e um impecável sentido de moralidade tinham
transformado Jason Weidermeyer, de um zé-ninguém, no célebre e
respeitado Justin Barr. jason Weidermeyer. jason Weidermeyer.
jason

Weidermeyer. Toda a gente que conhecia Justin Barr conhecia


Jason Weidermeyer.

Os risos continuaram. Barr tinha poucos amigos ali. Ao lado de


John, Lily pareceu soltar a respiração e relaxar. john sentiu a
compreensão e o perdão dela, sentiu-a libertar-se dos últimos
vestígios de raiva, e, nesse instante, mais do que em qualquer
outro, soube que o dia fora um sucesso.

Barr levantou a voz, mais uma vez o rei do bombástico.

- Quem é você para me acusar disso? E quem é você para pôr em


causa as credenciais do sr. Rizzo? Não conseguiu ter sucesso em
Boston, por isso está aqui, a editar um jornaleco de província. Quem

é você para bisbilhotar as vidas das pessoas?

John levantou-se de novo.

- Sou um cidadão preocupado. A vida da Lily Blake foi destruída


para vender jornais... ou, no seu caso, para fazer disparar as
audiências. O senhor esfolou-a viva no seu programa, sr. Barr. Fê-
la parecer perversa e depravada. Portanto vamos falar de
perversidade e de depravação. Onde é que chicotes e cabedal
encaixam nesses conceitos? Ou algemas e correntes? Se quer
apontar o dedo às pessoas, sr. Barr, é melhor certificar-se primeiro
de que elas não têm nada que Lhe apontar a si - desviou o olhar. -
Há mais perguntas?
Lily sentiu o silêncio atordoado e estava meio à espera que ninguém
se atrevesse a falar, com receio que John tivesse alguma coisa

contra eles. Uma repórter finalmente levantou-se. Era uma mulher

de voz tímida, que talvez não tivesse conseguido fazer-se ouvir se


os

outros não estivessem em silêncio.

- A sr.a Blake tenciona escrever um livro? - perguntou.

- Não - disse Lily, tremendo só de pensar nisso.

Seguiu-se um breve silêncio. Depois, algures na sala, uma voz


disse:

- Não somos todos maus.

Ela sabia que não. john ensinara-Lhe isso. Queria pensar que havia
mais do que um punhado de boas pessoas ali. Ao pensar nisso,
sentiu um novo ânimo por dentro. Era tão bom, tão bom, conseguir
confiar de novo.

John falou num tom mais calmo, mas igualmente impressionante.

- Eu sei. É por isso que estou a contar convosco para cobrirem

esta história da mesma forma que cobriram o escândalo original.

Repórteres que inventam factos sujam o nome de todos nós, os que

não o fazemos. Temos de calar os comentadores que dizem o que

querem apenas para se auto-engrandecerem. Esses dão mau nome


a

todos nós. Não sei o que vocês pensam, mas eu estou cansado
disso.
Parecia de facto cansado. Inclinando-se sobre os microfones,

dirigiu-se a toda a assistência:

- É tudo. Obrigado por terem vindo.

Virou-se para Lily, inclinou-se e disse suavemente:

- Era capaz de te dar um abraço aqui e agora, mas não tenho a

certeza se não falariam apenas disso amanhã. Assim, considera-te


abraçada.

Lily sentiu-se abraçada. Incrivelmente. Sentiu-se também submersa

pela emoção - alívio, triunfo, satisfação, amor. Extraordinariamente,

sentiu os olhos cheios de lágrimas.

Olhou para onde Maida estava sentada, mas teve de pestanejar

para conseguir ver com clareza, e depois viu-se de súbito rodeada


de

pessoas - técnicos a retirarem os microfones, fotógrafos a


dispararem

as suas máquinas, repórteres a fazerem as últimas perguntas.


Outros

repórteres estavam voltados para as câmaras, alguns a transmitir


em

directo. Esticou o pescoço, numa tentativa de encontrar Maida, mas

havia sempre gente à sua frente.

- Vai voltar para Boston?


- Vai tentar recuperar o seu emprego no Essex Club?

- O cardeal telefonou-Lhe?

Depois de se ter exposto o suficiente para o resto da vida, Lily


levantou a mão e virou costas.

- É tudo - disse Cassie à multidão. Com o braço sobre os ombros de


Lily, afastou-a da multidão que rodeava John.

Quando conseguiram privacidade suficiente, Lily perguntou:

- O que achaste?

- John esteve muito bem. Eles vão publicar o que ele disse. Se não
conseguires a primeira página, não ficará muito longe disso.

- E isto afectará a nossa acção? - Lily queria ver isso resolvido. As


outras pontas soltas estavam a ser eliminadas. Queria esta
despachada também.

Cassie sorriu.

- Sem dúvida que eleva a parada. O Procurador-geral vai procurar


Terry assim que ler sobre a cassete, e imagino que, assim que os
advogados do Post olharem para o seu próprio caso com base
nessa cassete, vão querer chegar rapidamente a um acordo - riu-se.
- Max Funder, rói-te de inveja!

- Não se trata de dinheiro - disse Lily. Não queria dinheiro nenhum.

- Se o ganhares, podes doá-lo a alguma instituição. Mas, se não


houvesse uma penalidade para a difamação, o que impediria as
pessoas de a cometer?

Lily mal ouviu a pergunta. Agora que a multidão estava a diminuir,


vira Poppy, que olhava para ela com tanto orgulho, que os seus
olhos se encheram novamente de lágrimas.
No entanto, mesmo atravês das lágrimas, viu Maida. Estava mais
perto da frente da sala do que antes, mas parou de caminhar
quando o seu olhar se cruzou com o de Lily.

- Com licença - murmurou Lily a Cassie.

Com uma sensação reconfortante de liberdade, passou pelos


repórteres que continuavam à volta de John. Maida estava a cerca
de um terço da coxia, com a mão nas costas de um dos bancos.
Parecia que queria fugir mas não conseguia, que queria chorar mas
não conseguia, que queria desaparecer mas não conseguia.

Lily dirigiu-se a ela. Oh, sim, havia o medo da rejeição, mas a


necessidade que sentia sobrepunha-se a ele. Percorreu o resto da
distância, abrandando à medida que se aproximava, e parou a
menos de um braço de Maida.

O que dizer? O que pedir? Ou implorar?

Maida respirou fundo, um suspiro trémulo. Levantou a mão com


hesitação, até ao rosto de Lily. Antes de Lhe tocar, pousou-a no seu
ombro. Era um toque leve, embaraçado, hesitante.

- Perdoas-me? - murmurou ela.

Lily não sabia se Maida queria perdão pelas coisas que fizera na
sua própria infância, ou na infância de Lily, ou mais recentemente,
mas não houve qualquer dúvida na sua mente. No que dizia respeito
aos Sullivan, Rizzo e Barr deste mundo, Lily precisava de justiça. No
que dizia respeito à mãe, precisava... precisava...

Os braços de Maida estavam pouco firmes, mas estendeu-os na


direcção certa. Lily deixou-se envolver por eles com uma sensação
de alívio tão grande que, de repente, deu por si a soluçar perdida
mente, agarrada a Maida com todas as suas forças, procurando o
conforto que desejara tanto quando estava sozinha em Boston.
Já não estava sozinha. Agora tinha amigos. Até tinha alguém que
amava. Mas Maida era sua mãe, o que tornava muito especial
aquilo que ela Lhe estava a oferecer.

Poppy não era muito chorona, mas, ao ver Lily abraçada a Maida,
quase se desfez em lágrimas. Sabia demasiado bem que havia
coisas na vida que não era possível mudar. Mas havia outras que
era. Grata por esta ser uma delas, virou a cadeira de rodas e dirigiu-
se ao fundo da sala. Estava a pensar nas melhorias que isto traria à
vida de Maida, a pensar em como Lily se sentiria melhor, e como as
reuniões de família seriam mais felizes, a pensar que Lily devia
mesmo ficar em Lake Henry e casar com John, e como seria bom
tê-la por perto, a pensar em tudo menos para onde ia, quando virou
a esquina ao fundo do salão e se viu cara a cara com um homem
que nunca conhecera - pelo menos, em pessoa.

Mas sabia quem ele era. Vestia calças de ganga, uma camisola e
um blusão de pêlo. O blusão era de um azul que combinava com o
azul dos seus olhos e fazia um contraste perfeito com um cabelo
espesso, bem cortado e ruivo.

Para onde ir? "Volta para trás!" Onde se esconder? Mas era tarde
de mais. "Ele sabia." Conseguia percebê-lo nos seus olhos.

Nos poucos segundos que ele demorou a aproximar-se dela, sentiu-


se culpada por não Lhe ter contado, desapontada por a sua fantasia
ter de chegar ao fim, consternada por ser aquilo que era quando
queria ser algo tão diferente.

Ele agachou-se, para os seus olhos ficarem ao nível dos dela.

- Pensaste sinceramente que eu me importaria? - perguntou, tão


gentilmente que, pela segunda vez em poucos minutos, Poppy
quase chorou.

Mas Poppy Blake não chorava. Chorar não servia para nada.
Decidira-o doze anos antes.
Assim, ripostou contra a gentileza dele com a triste verdade.

- Não posso correr. Não posso fazer esqui nem caminhadas. Não
posso trabalhar na floresta, como fui ensinada a fazer, porque não
consigo deslocar-me sobre solo irregular numa cadeira de rodas.
Não posso dançar. Não posso conduzir um carro a menos que
esteja es pecialmente adaptado. Não posso apanhar maçãs nem
trabalhar com a prensa de sidra. Nem sequer posso tomar duche de
pé.

- Podes comer?

Num tom rude, ela respondeu:

- Claro que posso comer.

- Posso convidar-te para jantar?

O coração dela deu um salto. Combateu a excitação.

- Podes, mas se pensas que vou falar sobre a minha irmã, a


resposta continua a ser não.

- Não quero saber da tua irmã. Quero saber de ti - levantou-se,


estudou brevemente os manípulos da cadeira dela, depois olhou
para Poppy com uma expressão impotente tão encantadora que ela
ficou enternecida.

- Sou rápido a aprender - disse. - Diz-me o que devo fazer.

Poppy tinha braços fortes. Estava habituada a manejar sozinha a


cadeira em praticamente todas as áreas acessíveis a cadeiras de
rodas, e a igreja tinha uma rampa muito boa.

Orgulhava-se de ser independente.

Mas os amigos costumavam empurrar-Lhe a cadeira quando saíam


juntos. Diziam que Lhes dava a sensação de estarem a caminhar a
par dela.
Querendo caminhar a par de Griffin Hughes, Poppy disse:

- Eu guio, tu empurras.

Ela guiou, ele empurrou, e afastaram-se juntos.

A celebração foi espontânea, uma reunião de amigos - depois

mais amigos, depois mais amigos - na sala dos fundos de Charlie.

Quando os repórteres tentaram entrar, Charlie não permitiu.

- Lamento, é uma festa particular - disse, e ele e os filhos entraram,


carregados com tabuleiros das melhores coisas que a cozinha

tinha para oferecer.

Lily não cantou. Foi ainda melhor do que isso. Conversou, e riu - se
e participou em algo que não sabia até então que Lhe fizera falta

mas de que não teria prescindido agora por nada neste mundo.
Pensou que conseguia imaginar como se sentia alguém que
ganhava a

lotaria. Misturado com a alegria, havia o medo de que uma coisa tão

maravilhosa não pudesse ser real.

Mas era. john era real; raramente saiu do seu lado. Maida era

real; sorria de cada vez que o seu olhar se cruzava com o de Lily.

Lake Henry era real; erguera-se em sua defesa quando ela mais
precisava. Não se lembrava de outro dia em que tivesse sentido
todos os

elementos da sua vida numa sintonia tão perfeita.


Depois o cardeal telefonou. Ela acabara de entrar em casa quando
o telemóvel tocou. Pensou que fosse Poppy.

- Olá - disse, um pouco ofegante -, não foi divertido?

- Olá para si também - disse ele, num tom de seriedade fingida.

Ela prendeu a respiração.

- Padre Fran!

- A sua irmã deu-me este número. Vou para Roma amanhã, mas

queria falar consigo primeiro. É a única ponta solta que ainda não
resolvi.

- Não é preciso...

- É, sim - a voz dele era pesada, como ela nunca a ouvira. Devo-Lhe
um pedido de desculpas, Lily. Eu sabia quem o Terry Sullivan

era. Não o conheço pessoalmente, mas conhecia o nome. Quando

ele apareceu com aquela história, que era evidentemente tão


errada, calculei que ele soubesse do passado da mãe e que
estivesse a vingar-se de mim por tê-la magoado. Só soube das
tareias ontem à noite, quando chegou o primeiro telefonema depois
da vossa conferência de imprensa.

- Eles telefonaram-Lhe? - claro que o fariam. - Lamento muito...

- Não é preciso - interrompeu ele gentilmente. - Podemos lidar


facilmente com o caso. Não tenho qualquer problema em confirmar
aquela relação. A Jean e eu fomos namorados, mas eu nunca Lhe
escondi o facto de que queria ser padre. Tenho a consciência limpa
nesse aspecto, mas não em relação ao que Terry sofreu por causa
disso, nem em relação a si. Se eu tivesse admitido desde logo a
ligação, tudo isto podia ter acabado mais depressa, e você não teria
perdido tanto. Lamento, Lily. Foi errado da minha parte. Merecia que
a tivesse tratado melhor.

Sim. Merecia. Podia estar zangada com o cardeal por isso, até
mesmo por simplificar a história da sua relação com Jean. No
entanto, sabendo o que ele deixara de fora, Lily compreendia.
Conhecendo a natureza predatória da comunicação social,
compreendia duplamente. Outra pessoa na sua situação talvez
tivesse dito que as desculpas do cardeal vinham demasiado tarde.
Mas Lily não era outra pessoa. Era gentil, e tinha a capacidade de
perdoar.

- Se adianta alguma coisa - disse ele -, de todas as dúvidas que


tenho tido sobre o meu merecimento desde que fui nomeado
cardeal, grande parte delas está relacionada com esta confusão.

- Oh, não. Não deve tê-las.

- No meu trabalho, não há lugar para orgulho. Nem para


desonestidade por omissão.

- Mas o mundo precisa de líderes como o senhor.

- O meu trabalho não é causar sofrimento.

- Mas eu estou em casa - insistiu Lily. Como sentir ressentimento


por alguém quando a sua vida estava tão preenchida? - Portanto
talvez o sofrimento tivesse tido um objectivo.

Ele fez uma pausa. A maré da conversa pareceu mudar.

- As coisas estão a correr-Lhe bem por aí?

- Muito. Acho que me encontrei a mim própria.

- Aaahh - disse ele. Pelo som da sua voz, parecia estar finalmente a
sorrir. - Isso faz-me bem ao coração. Não desculpa o meu
egoísmo... terá de ser Deus a perdoar-me por isso... mas deixa-me
feliz. Mas não surpreendido, atenção. Eu sempre disse que a Lily
era forte.

Agora ela estava também a sorrir.

- É verdade.

- Então finalmente acredita?

- Estou... a caminho disso.

- Promete manter-me informado sobre os progressos?

- Isso depende - disse ela. - Se o padre McDonough Lhe passar as


minhas chamadas...

O cardeal riu-se.

- Pode estar descansada. A paz esteja consigo, Lily.

- E consigo - disse ela e, terminando o telefonema com uma


sensação de bem-estar, percebeu que mais uma ponta solta se
resolvera também para ela.

Deviam ser loucos por saírem assim para o lago. A noite estava
agitada e, na terceira semana de Outubro, o ar era demasiado frio
para andar de canoa, mas Lily não escolheria estar em mais lado
nenhum. As últimas horas tinham sido repletas de tantas emoções
diferentes que ela estava em sobrecarga. Naquele momento, ali -
apesar da brisa gelada - as coisas eram mais simples.

Não havia lua. O local onde ela estaria estava encoberto por
grandes nuvens. Mais a oeste, as nuvens eram mais pequenas.
Estavam a deslocar-se rapidamente; a julgar pela velocidade a que
as estrelas apareciam e desapareciam.

- O Inverno vem aí - disse John. - Consigo cheirá-lo. Lily sentia o


cheiro a fumo de lenha de uma chaminé junto da margem, e o
aroma limpo a pinho de John, contra quem estava aninhada, mas as
folhas estavam demasiado secas e frias para emanar qualquer
cheiro, e a aura predominante no lago era de outra coisa.

- Neve? - perguntou ela.

- Em breve. Depois vem o gelo. Daqui a um mês, haverá uma


camada fina. Um mês depois disso, terá mais de trinta centímetros
de espessura. Esta é uma massa de água pequena. Quando gela,
gela depressa.

A canoa subia e baixava com a ondulação causada pelo vento no


lago. Estavam a dez metros da ilha em cujos baixios viviam os
mergulhões de John. Lily perscrutou a escuridão em busca dos
pássaros.

- Não consigo vê-los.

Gentilmente, ele segurou-Lhe na cabeça, por cima do gorro de lã, e


virou-a para a esquerda.

- Ali. Aquelas coisas a mexer.

Ela demorou um minuto a separar os reflexos das ondas dos


mergulhões. Depois viu-os, mas apenas dois. Flutuavam juntos,
procurando conforto um no outro, imaginou ela. No instante
seguinte, compreendeu.

- A mãe e o pai já partiram - confirmou John. - Foram para sul.

- Estes dois alguma vez voltarão a vê- los?

- Não, pelo menos nos próximos três anos. É nessa altura que
regressam aqui para acasalar. Mas resta saber se voltarão ao nosso
lago ou a outro na zona. E ninguém pode dizer se reconhecerão os
pais, ou vice-versa.

- É triste - disse Lily. Estava a pensar em Maida, em como se


sentia... rica, agora que tinham ultrapassado o abismo entre ambas.
- Vamos ser honestos - disse John. - Estes bichos podem ser génios
em termos de sobrevivência. Têm de ser, para terem conseguido
sobreviver tantos milhões de anos. Mas sensíveis? Sentimentais?
Não

me parece.

- Não? Não foste tu que disseste que eles saíam para te ver?

John soltou uma risada, troçando de si mesmo.

- Bom, sim, eu gostava de pensar que sim, mas a verdade é que, se


esperarmos tempo suficiente, e nos mantivermos quase invisíveis,
eles simplesmente acabam por aparecer.

Ela inclinou a cabeça para trás. Mesmo na escuridão, vendo apenas


a silhueta do cabelo soprado pelo vento sobre a testa, o nariz direito
e o maxilar quadrado, suavizado pela barba curta que o cobria, o
rosto dele era atraente. Com cuidado para não virar a canoa, ela
virou-se de lado, de modo a ficar encaixada no braço dele e a poder
olhar para cima de modo mais confortável.

- Gosto mais da outra explicação. E acho que tu também. És


sensível. És emotivo. - Depois, porque estava a pensar nisso há
várias horas, perguntou: - Estavas a falar a sério quando disseste
que não ias escrever o livro?

John não precisou de pensar muito. Era uma resposta fácil. Sentiu-
se perfeitamente confortável e totalmente confiante quando disse:

- Estava a falar a sério.

- Livro nenhum?

- Pelo menos sobre este tema. A história Blake já foi praticamente


toda contada como eu queria contá-la.

- E a história do Terry?
- O Lake News já tratou disso.

- Outra pessoa qualquer fará um trabalho mais aprofundado.

- Não tenho problema nenhum em relação a isso.

- E o dinheiro e a fama?

Olhando para ela, tão abandonada nos seus braços, John nem
conseguia dizer as palavras, muito menos desejar qualquer uma
dessas coisas.

- Tem piada, o dinheiro e a fama não podem andar de canoa comigo


numa noite gelada, nem aquecer-me a cama depois disso. Não
podem falar. Não podem cantar. Não podem ter filhos.

Ela arregalou um pouco os olhos. A escuridão não conseguia


escondê-lo. john não tencionara falar nisso tão cedo, mas agora já
estava. O pensamento não devia estar enterrado tão profundamente
como ele pensava.

- Eu posso ter filhos - disse ela.

- Eu sei que podes, mas é preciso que os queiras.

- Porque não havia de querer?

- Podias não querer, se ainda estivesses a pensar regressar a


Boston; pelo menos, podias não querer tê-los comigo, porque não
me parece que eu queira sair daqui. E então? Queres?

- O quê?

- Voltar para Boston?

Lily ainda não tomara uma decisão consciente, mas isso não
significava que a decisão não estivesse tomada. Estava tomada. Era
fácil.
- O que é que existe lá para mim? - perguntou, incapaz de pensar
numa única coisa que tivesse mais importância do que aquilo que
tinhaali.

- O teu carro. O teu piano. As tuas roupas.

- Tem piada - disse ela. - Um carro não pode andar de canoa comigo
numa noite gelada. Um piano não pode aquecer-me a cama depois
disso. As roupas não podem falar, nem cantar nem ter filhos.

- Mas são as tuas coisas, precisas delas.

Ela não desviou os olhos dos dele, nem por um segundo.

- Sabias que existem empresas de mudanças? Além disso, como


poderia estar contigo em Boston, se tu não queres sair daqui?

- Mas eu não devia ser a razão para decidires ficar.

- Porque não?

Boa pergunta. john abriu e fechou a boca várias vezes, depois


desistiu e limitou-se a sorrir. Esse sorriso aqueceu Lily por dentro.

- Antes que o teu ego inche de mais - avisou ela -, há outras coisas
que me prendem aqui. Há Maida - quebrou o contacto visual com
ele para olhar para a parte do lago onde ficavam os pomares. Ela
nunca tinha trabalhado um único dia, em toda a sua vida, antes do
meu pai morrer. E agora olha.

- Ela não gosta de mim.

Lily olhou de novo para ele.

- Não te conhece. Mas tem uma mente aberta. Provou-o hoje. Por
isso há a Maida, e a Poppy. E a Hannah. A Maida está do lado dela,
agora, mas, se a Rose não cair em si, eu também quero estar por
perto.
- Se ficares, o que farás?

- Posso dar aulas - Maida dissera que a academia precisava de


alguém. - Podia trabalhar para o Lake News, para que o editor-chefe
tivesse mais tempo livre - gostava da ideia de trabalhar com John.
Podia ver se há algum grupo de música de câmara em Concord a
precisar de uma pianista - havia opções.

- Não sentirás falta de Boston?

- O que tenho aqui é melhor. já te disse como foste fantástico hoje?

John não se importava de o ouvir de novo. Era humano, e era


homem.

- Fui?

Ela sorriu.

- Magistral.

- Acho que consegui passar a minha mensagem.

- Completamente - Lily levou a mão enluvada ao rosto dele.


Obrigada por teres feito isto por mim.

- Fi-lo também por mim. Soube-me bem dizer aquelas coisas. Há


anos que me estavam atravessadas na garganta.

- O Gus teria ficado orgulhoso.

Joh-n queria pensar que sim, embora não pudesse ter a certeza.

- É difícil dizer, tratando-se do Gus. Mas hoje estivemos do lado


certo, Lily. Podemos não ter alterado nada. O mais provável é que
aqueles repórteres continuem a fazer o que sempre fizeram.

- Nem todos.
- Não importa. Neste momento, sinto-me melhor comigo próprio.

Lily estava a olhar para o céu.

- Já há estrelas. Ele está lá em cima. Ele sabe. Ele concorda.

- Deus?

- Gus.

John queria pôr essa possibilidade de lado com uma gargalhada,


mas não conseguiu rir. Ao olhar para Lily, ao sentir a sua bondade e
o seu amor, suspeitou de que ela podia muito bem estar certa.
Fim

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