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Género: Romance.
Edição Portuguesa
Cascais - Portugal
ISBN 989-6130-36-1
Agradecimentos
Nada tão claro, tão puro e ao mesmo tempo tão vasto como um
lago, existe talvez à superficie da terra. Água do céu. Não carece de
comportas. As nações vão e vêm sem o conspurcar. É um espelho
que nenhuma
Mas, quer tivesse frio quer não, ficaria por ali. Pelo menos por
enquanto. Podia não estar ali necessariamente a génese de um
grande best-seller, mas ainda não se fartara dos mergulhões. i
Sentou-se na canoa, imóvel como uma pedra, com as mãos nos
sovacos para as aquecer e o remo recolhido. Estes mergulhões
estavam habituados à sua presença, mas, para ele, não havia
certezas absolutas. Desde que mantivesse a devida distância e
respeitasse o
Ficou com pele de galinha. Este tinha sido o motivo pelo qual
regressara ao lago. A razão pela qual tinha voltado, aos quarenta
anos, depois de aos quinze ter jurado renunciar a New Hampshire.
Alguns disseram que o tinha feito pelo trabalho, outros pelo seu pai,
mas a verdade latente tinha a ver com estas aves. Elas significavam
algo primitivo e selvagem, mas muito simples, íntegro e seguro.
Assim, ficou por mais tempo, apesar de saber que devia retirar-se.
Era segunda-feira. O Lake News tinha de estar na gráfica por volta
do meio-dia de quarta-feira. já tinha o material da equipa de
correspondentes, um para cada localidade. Assumindo que as
respectivas caixas continham os artigos prometidos pelos
promotores e agitadores locais, sendo o termo "promotores e
agitadores" relativo teria uma pilha de coisas para ler e editar, muita
batida que dar no teclado, muito que cortar e montar. Se esses
artigos não estivessem nas caixas, ligaria para Lake Henry e para
as quatro localidades vizinhas servidas pelo jornal, anotaria a
informação pelo telefone, e ele mesmo redigiria o que pudesse - e,
se ainda Lhe sobrassem espaços em branco, espetar-Lhe-ia com
mais Thoreau.
O sótão tinha sido o seu escritório desde que voltara à cidade, três
anos antes. Era suficientemente grande para albergar o
Departamento de Vendas do jornal, o Departamento de Produção e
o Departamento Editorial. Cada departamento tinha uma secretária
e uma vista para o lago. Essa vista mantinha John concentrado e
equilibrado.
Agarrou no telefone.
- Bom-dia, Armand.
- "Oh, por aí." Estás sempre a dar-me essa desculpa, John, e sabes
que isso não tem discussão. O raio do lago tem demasiados lados,
por isso não consigo ver o que se passa lá para os teus. Mas o
jornal é a minha prioridade, e estás a sair-te bem. Desde que
continue assim, podes dormir até às horas que queiras. Recebeste a
minha peça? A Liddie pô-la na ranhura.
- Isso é porque ele não tem jeito com pessoas, mas tem jeito com
computadores. Há uma razão para o negócio dele valer vinte
milhões e continuar a crescer.
- Ele é um puto - disse Armand, em tom indignado. - O que vai ele
fazer com tanto dinheiro?
John queria sempre notícias frescas. Era uma das coisas citadinas
de que mais falta sentia. Experimentando uma pontada de
antecipação, afundou-se na cadeira da secretária, abriu um
documento em branco e preparou-se para escrever.
Armand disse:
- Lake News.
- John, fala Allison Quimby - disse uma voz vigorosa. - A minha casa
está a cair aos bocados. Preciso de um homem habilidoso de mãos.
Todos os que trabalharam antes para mim estão ainda a trabalhar
no Hook. já é muito tarde para inserir um anúncio?
- É claro que escrevi alguma coisa - e começou a ler. Ele escre veu.
Debateu-se com o espacejamento, ajudou-a a redigir o anúncio
- Sim.
- Sou a merda do teu primo, o teu primo mais velho, aquele que está
preocupado com a rapariga que tu engravidaste, aquele que está a
pensar que tu podes não valer o esforço, mas que a rapariga e o
bebé valem. Vá lá, Buck. És habilidoso de mãos, podes fazer o que
a Allison precisa, ela paga bem e tem a língua comprida para passar
a palavra se gostar do teu trabalho - leu o número de telefone uma
vez e repetiu-o. - Telefona-Lhe - insistiu, e desligou o telefone.
John não iria sentir a sua falta. Podia sentir-se tão tentado como
qual quer outro homem, mas não Lhe tocaria nem com uma vara de
três metros.
Com uma suave rotação dos binóculos, estava a olhar para Hunter's
Island*. Devendo o nome aos primeiros proprietários e não a
qualquer desporto ali praticado, era outra das pequeníssimas ilhas
que salpicavam o lago, e tinha uma casa, embora sazonal. A família
Hunter tinha passado ali o Verão durante mais de um século, antes
de a venderem aos actuais proprietários. Esses proprietários, os La
Duc, estavam a ensinar a sua terceira geração de crianças a nadar
na pequena praia coberta de seixos.
- Lake News.
O olhar de John voou para a parede das fotografias, para uma onde
ele se encontrava numa festa com outros jornalistas. Terry Sullivan
era o alto, magro, moreno, o que tinha o bigode a esconder
- É claro que sei. As pessoas por aqui são honestas. Ias dar
demasiado nas vistas.
- Se ela não vive aqui, porque diabo supões que eu possa saber
alguma coisa sobre ela?
- Tudo bem. Fala-me da sua família. Quem é que está vivo e quem é
que não está? O que é que eles fazem? Que género de pessoas
são ?
"A pensar em sair com ela?" Duvidava muito. Lily Blake era gaga -
melhorara muito desde a infância, segundo sabia, mas Terry
Sullivan não saía com mulheres com problemas. Elas exigiam mais
do que aquilo que ele estava disposto a dar.
- Pois, eu próprio achei que tinha muita piada. Quer dizer, aí vem
ela, dessa terriola minúscula no meio do nada, e por acaso trata-se
da mesma terra onde tu estás escondido.
- Certo. Não sou eu. É um amigo. Ele é que quer sair com ela. john
distinguia uma mentira, quando a ouvia. Desligou o telefone, mas
não largou o auscultador. Esperando apenas o tempo suficiente
para cortar a ligação com Terry, voltou a levantá-lo e ligou a Poppy.
- Olá, Kip - disse ela uns segundos depois, na sua voz atrevida e
sorridente. - Foi rápido. O que posso fazer por ti agora?
- Duas coisas - disse John. Estava em pé, com uma mão a segurar
o telefone junto ao ouvido e a outra apoiada na anca. - Em primeiro
lugar, que não deixes esse homem falar com ninguém da cidade.
Corta-Lhe a ligação, deixa cair a chamada, faz o que for preciso. Ele
não é boa rês. Em segundo lugar, fala-me da tua irmã.
- Da Rose?
BOSTON, MASSACHUSETTS
- Adeus, prof. à Blake! - gritou outro dos estudantes que passou por
ela, saindo da protecção da escola a correr para um carro que o
esperava. Ela sorriu e ergueu uma mão para acenar, mas o
estudante já se tinha ido embora.
- Para casa.
- Tenho de trabalhar.
Além disso, ela não tinha mesmo tempo. Retirando o Post da pasta,
abriu-o sobre a cabeça e desceu os degraus a correr para a chuva.
Apressou-se ao longo das ruas estreitas cobertas de calçada na
parte plana da colina, depois virou para Beacon Street e continuou
em passo rápido sobre o passeio pavimentado. Apertando a pasta
contra o peito, encolheu-se o mais possível debaixo do jornal. já que
era pequena, em princípio devia até sobrar jornal, mas o Post
depressa se tornou uma porcaria ensopada em volta das suas
orelhas, e o top minúsculo e a saia curta, que tinham estado
perfeitos para o calor da manhã, deixavam demasiada pele exposta
à chuva fria.
Não obstante, olhou para ela agora. Como poderia não olhar,
quando ela estava toda encharcada e enlameada? Não era sempre
assim?
- Lá estarei - disse.
Lily estava demasiado atrasada para poder sentir mais do que uma
satisfação passageira. Percorreu rapidamente o corredor e entrou
no seu próprio apartamento. Era um pequeno apartamento que
arrendara directamente ao proprietário, o qual adorava verde, a sua
cor preferida, e tinha bom coração, a única razão pela qual ela con
seguia pagá-lo. A sala de estar era pequena e dominada por um
piano vertical, encostado a uma parede, e uma estante a abarrotar
de livros, encostada a outra. A única mobília, além desta, era um
sofá com as costas viradas para as janelas com vista para a
alameda, e uma cadeira estofada com um tecido florido a condizer,
em tons de verde, bege e branco. Por detrás da cadeira, mais no
minúsculo vestíbulo de entrada do que na sala de estar, estava uma
mesa de vidro com um telefone, um candeeiro e o leitor de CDs que
agora, ao toque de um botão, começou a tocar a meio de uma
torrente de Chopin. A cozinha era uma parede da sala de estar e o
quarto era apenas suficientemente grande para uma cama de casal,
mas o apartamento tinha sido todo restaurado, o que significava que
tinha uma casa de banho moderna, em mármore, com um duche
envidraçado.
- Tudo bem?
Quando ele disse que não com a cabeça, ela saiu do escritório e
subiu a escada de espiral até à sala de jantar principal. Estava
decorada com a madeira escura e pinturas a óleo do século
dezanove que eram a imagem de marca do clube. A combinação de
cores misturava o verde-caqui e o bordeaux, patentes também nas
toalhas de mesa, loiças, carpetes e tapeçaria. Evocava riqueza e
Velho Mundo, o que a fazia sentir-se parte de algo com uma história
ilustre.
- Não - mas não podia negar que podia ser mesmo ela a razão pela
qual Terry estava ali. - São negócios. Ele está a fazer uma série de
perfis de artistas de Boston e quer fazer o meu.
- Isso é giro.
Lily não era católica. Não era praticamente nada, mas, durante
alguns instantes, enquanto ia bebendo a sua água, maravilhou-se
com o poder daquele homem. Não trajava vestes elegantes, nem
chapéu encarnado. Essas coisas viriam dentro de quatro semanas,
quando fosse a Roma para o seu primeiro consistório. Mas ele não
necessitava das vestes ou de um chapéu para ser carismático. Era
um homem alto, que se mantinha aprumado, com o seu trajo clerical
preto e bem engomado, a cruz peitoral de estanho e uma distinta
cabeleira, espessa e prateada.
Esta não era a primeira vez que Lily o via desde a sua nomeação.
Pianista assídua nos eventos arquidiocesanos, tinha tocado numa
festa ao ar livre em sua casa na noite anterior, mas esta era a
primeira vez que ele vinha ao clube depois da nomeação. Sem
intenção consciente, as suas mãos procuraram as teclas e
começaram a tocar o tema de Momentos de Glória.
Houve aplausos suaves no fim da canção, por isso Lily fez uma
espécie de rapsódia com os outros sucessos de Johnny Mathis
antes de voltar a cantar mais temas da Broadway. Quando acabou,
eram oito e meia e estava na altura de fazer uma pausa.
- Não me disseste que o teu tio vinha cá hoje - repreendeu ela. Dan
olhou para trás dela.
- Porquê?
Já Lho tinha dito antes, duas vezes no clube, e outra quando Lhe
telefonou para casa. Não que ela Lhe tivesse dado o número de
telefone. Nem sequer vinha na lista. Mas a lista de contactos da
escola
Ele acompanhou-a.
- É o meu trabalho.
Lily riu-se.
- Oh, não. Ele já me ouviu tocar demasiadas vezes para que isso
pudesse acontecer.
- Ambas as coisas.
- Na verdade, é mesmo.
Ele sorriu e levantou as mãos.
- Sem ofensa. Sou tão fã dele como qualquer outra pessoa. Ele
fascina-me. Nunca conheci nenhum homem do clero assim. Inspira
devoção.
- É verdade.
- Não me diga?
- Até que horas toca esta noite? - perguntou ele, caminhando ao seu
lado.
- Dez e meia.
- Sem jantar?
- Jantei antes.
Estendeu-Lhe um saco:
Lily ficou comovida por ele se lembrar. Ele não estava no clube há
muito tempo, e ela era apenas uma de entre as muitas pessoas que
adoravam a sua comida.
- Obrigada - disse, sensibilizada, e agarrou no saco. - Vai ser o
jantar de amanhã. Vais a pé para casa? - ele vivia para os seus
lados.
- Para casa.
- Mas isso não faz sentido. A publicidade seria óptima para si. Lily
poderia ter concordado com isso há alguns anos, mas, nessa altura,
andava a batalhar pela vida. Agora, entre as aulas e o clube, recebia
mensalmente dois ordenados fixos, a juntar àquilo que ganhava a
tocar em festas particulares, e estava satisfeita. Não precisava de
mais trabalho, portanto não necessitava de publicidade.
- É claro que não - disse ela, porque não era do seu feitio magoar as
pessoas. - Sou apenas... reservada.
- Tem a certeza de que não sou eu? Falaria com um dos meus
colegas?
- Não.
- Sinto que devia saber tudo sobre o homem - disse Terry num tom
familiar. - Quero dizer, o meu jornal cobriu-o praticamente dos pés à
cabeça, e o Post é bom - olhou para ela, agora com seriedade. A
sua voz era mais baixa, quase confidencial. - Ouça, o Quarto Estado
tem sido bastante criticado ultimamente. Algumas das críticas são
merecidas. A maior parte não. É como tudo. Pode haver algumas
ovelhas negras, mas não significa que todas o sejam, e uma vez
que já Lhe confessei o meu medo da condenação eterna...
- Está a brincar.
- Em público?
- Também dança?
- Como assim?
Conversa social ou não, Lily não queria falar com Terry dela ou do
cardeal. Mas ele parecia de facto intrigado. E Mitch Rellejik punha
as mãos no fogo por ele. E a pergunta era bastante inocente.
- Era.
- E foi lá que realmente se começou a relacionar com ele? Ela
acenou com a cabeça em sinal de concordância.
- Visão?
- Compreende as pessoas.
- Isso é aceitável?
- E isso é aceitável?
- Porque não?
Lily não estava muito certa de ter gostado da brincadeira, mas, por
outro lado, tinha tendência para levar as coisas demasiado à letra.
Pelo menos, fora isso que dissera o último tipo com quem tivera um
romance, quando se separaram. Na verdade, ele tinha usado a
palavra "austera" e, apesar de ela não acreditar ser assim tão má,
fazia agora um esforço para se mostrar o oposto.
Terry riu-se.
- Está a aquecer, Lily Blake. Isso arrastaria uma multidão para a sua
causa favorita. Digo-Lhe, haveria dúzias de mulheres a licitar.
Ela sorriu.
- Não sei. Ele ocupa-me muito tempo - fingiu estar a fazer cálculos. -
Talvez possa encaixá-lo num dia da próxima semana. Tenho de ver.
- Ao passar por ele, atirou-Lhe em tom seco: - Você tem o meu
número.
Nunca tinha saído antes com um repórter. Quanto mais não fosse,
podia desfrutar de um ou dois jantares educativos.
Uma vez que Lily trabalhava à noite e raramente tinha aulas cedo,
geralmente demorava a acordar. Nessa manhã, o telefone fê-la
saltar da cama às oito horas. A primeira coisa que Lhe ocorreu foi
que tinha acontecido alguma coisa à sua família.
- Lily Blake, por favor - disse um homem que não conhecia. A sua
voz era absolutamente profissional. O médico de Poppy? O médico
da sua mãe?
- É a própria.
- Desculpe?
- A sua relação com o cardeal Rossetti. Pode falar-me dela? Ela não
percebeu. Os jornais já tinham coberto quase tudo o que havia a
cobrir sobre o cardeal. Ela era irrelevante, apenas mais uma das
suas muitas amizades e a menos indicada para falar com a
imprensa.
- Sim?
- Lily Blake?
- Quem fala?
- Paul Rizzo. Cityside - o Cityside era um diário renegado que tinha
aparecido subitamente para rivalizar com a imprensa dominante de
Boston.
- Que notícia?
- Lily.
- É verdade?
- Nada daquilo?
- Nada.
- Não dei!
- Contrate um advogado.
- Mas isto é apenas um equívoco - não queria pensar que houvesse
alguma intenção maldosa. Não pódia acreditar que Terry Sullivan
fosse capaz de ir tão longe só porque ela se tinha recusado a ser
entrevistada; não podia crer que ele seria capaz de difamar desta
maneira o cardeal, deliberadamente.
- Não posso. Não tenho dinheiro. Além disso, para que preciso eu
de um advogado? Não fiz nada de mal.
- Foi você que fez com que parecesse - acusou ela. - Foi você que
não parou de dizer que o cardeal era atraente para as mulheres.
Conduziu-me a uma discussão hipotética, depois utilizou as minhas
palavras fora de contexto. Isso é verdadeiramente... b-b-baixo! E
também disse que a nossa conversa era confidencial.
- Disse, sim.
Ele riu-se.
- É o meu trabalho.
- Já Lhe dei o meu conselho. Não sei que mais Lhe posso dizer. A
minha preocupação é a escola.
"Não é verdade", queria dizer, mas tinha a língua rígida. Por isso,
limitou-se a abanar a cabeça num gesto de negação, tomou a sua
bebida e saiu. Quando o seu aluno entrou na sala de aulas práticas,
já se tinha recomposto, mas sabia o que significava o seu olhar
curioso.
Aturdida, disse:
- Prof. a Blake, quer comentar a notícia do Post? - Lily disse que não
com a cabeça e apressou o passo, mas a repórter acompanhou-a.
- Viu. O Kip ligou ontem, para me avisar sobre o tipo do Post, mas
não disse a razão, como poderia eu saber dos outros? Gostava que
nos tivesses dito.
- Eu sei disso, mas a mãe não sabe - disse Poppy, com franqueza.
- Ela está convencida de que tudo o que tem dito a vida inteira é
verdade e de que era só uma questão de tempo até que
acontecesse uma coisa do género.
- Já emitiste um desmentido?
- Precisas de um advogado.
- Detesto advogados.
- Quem te disse isso? Não vão atribuir-te as culpas de tudo isto, pois
não? Bolas, Lily, quando um não quer, dois não dançam. É ele que
está sempre a tocar nas pessoas.
- Aquele estalido.
- Que estalido?
- Tenho de ir trabalhar.
- Isso é nojento.
- Espero que sim - disse ele, mas sem a convicção que ela
desejava. Parecia cansado, como se também o seu dia tivesse sido
difícil. Também parecia pálido e, enquanto em Lily a palidez estava
apenas um degrau abaixo da sua cor normal, no caso de Dan
estava muito longe do seu tom normal.
Ela animou-se.
Quando alguém Lhe bateu à porta um pouco depois das oito, ficou
tensa. Esperou por um segundo toque e depois aproximou-se
silenciosamente da vigia. Aliviada, abriu a porta.
- Sabia que ainda não tinhas saído - disse Elizabeth Davis sem
demoras. Vestia uma Tshirt e uns calções de ciclista e tinha os
cabelos louros apanhados com um gancho. - Mas não tinha a
certeza se abririas. Como estás?
- Praticamente tudo.
- Hum, hum
seus meios e que pagava esse estilo de vida dormindo com homens
poderosos. Assim, seleccionaram as fotografias mais
sensacionalistas
Pior, não sabia o que fazer, e disse-o a Dan Curry logo que chegou
ao clube. Ele deu-Lhe o nome de um advogado, o que foi de fraca
consolação. Mais reconfortante, o cardeal tinha falado com ele.
- Ele está doente com isto, Lily. Nós estamos todos preocupados,
- Ele pensa em ti, Lily. Disseme para te dizer que sabe que tens
segura de ti.
à sua volta. Foi para a cama a rezar para que isso fosse o pior de
tudo, e, depois de um sono irrequieto, despertou sentindo-se
cansada e tensa. Estava a ouvir uma pesada composição de
Tchaikovsky que reflectia a sua disposição quando uma Elizabeth,
de expressão sombria, apareceu à sua porta com o Post matutino. A
manchete dizia: "SURgEM DETALHES SOBRE A MULHER DO
CARDEAL. "
- Esse processo foi selado! - disse, por fim. - O juiz disse-nos que
ninguém jamais Lhe teria acesso!
"O que é que ela fizera?" Fora uma idiota, era isso que tinha feito.
Fora uma idiota, era jovem e estava morta de vontade de ser
popular.
- Suborno.
Elizabeth suspirou.
- Lily? Está aí, Lily? Fala Justin Barr e estamos no ar. Os meus
ouvintes querem ouvir a sua versão da história.
O coração de Lily batia com tanta força que praticamente Lhe fazia
tremer a blusa. Com o pouco de fôlego que Lhe restava, disse:
Ela discordava. Mas Michael não estava na sua pele, nem ela na
dele. Olhou-o, sem saber o que dizer.
Ele suspirou.
- Fui eu que a contratei, e sou eu o director, portanto eu é que estou
numa posição complicada. Quero dizer, raios, Justin Barr está a
fazer de nós parvos. Está a irritar precisamente as pessoas das
quais recebemos fundos - abateu os ombros - Não vou despedi-la.
Você tem feito um trabalho muitíssimo bom. Mas peço-Lhe que
aceite voluntariamente uma licença sem vencimento.
- Não sei.
Enojada, Lily disparou um olhar ao homem que Lhe tinha feito essa
pergunta, perguntando-se de que buraco teria ele surgido.
Era onde vivia Tony Cohn, juntamente com outros cinco inquilinos,
mas a Lei de Murphy dizia-Lhe que seria precisamente ele que
descia para o vestíbulo, por isso, estava preparada quando a porta
finalmente se abriu.
A porta abriu-se.
- Ah, sim - disse uma voz masculina, num tom ressacado. - Estou a
ligar para Lily Blake. Sou... ah, sou escritor. Escrevi... a biografia de
Brandi Forrest, ah, é a cantora do grupo de rock Dead Weight Off.
De qualquer modo, tenho a certeza de que está a receber montes
de outras chamadas, mas se você, ah, quiser que alguém escreva a
sua história, devíamos conversar. Eu, ah, já telefonei ao meu editor.
Eles gostam da ideia de sexo e religião. Conseguem pôr qualquer
coisa cá fora com imensa rapidez. Ah... é tudo uma questão de
aproveitar a altura. Por isso, se quiser, telefone-me. - Deixou um
número com um indicativo que ela não reconhecia.
- Queixas?
Ela esperou.
- Não. Estou apenas a dizer-te para ficares em casa por alguns dias,
até que este assunto morra.
- Qual crime?
- Não.
Ela contou-Lhe, para que ele soubesse - para que ouvisse primeiro
a sua versão da história.
- Ontem eu também teria dito que não havia nada, ponto final!
Ambos os jornais informavam que Lily tinha tirado uma licença para
descansar do Essex Club, mas nenhum deles forneceu detalhes
nessa perspectiva, nem citações relacionadas com o assunto. Lily
suspeitou de que Dan se tinha recusado a falar e de que pelo
menos a imprensa estava a retrair-se no que respeitava a tudo o
que envolvesse o cardeal. Não havia mais menções a uma alegada
relação sentimental, a sorrisos partilhados ou a noitadas na
residência do cardeal. Também não mencionavam o governador
Dean.
Outra mulher, uma que gostasse das luzes da ribalta, poderia sentir-
se contente. Mas Lily já se tinha sentido vitimizada no passado: em
criança, ridicularizada pela sua gaguez, enquanto adolescente, sob
liberdade condicional por um crime que não cometera, enquanto
artista, perdendo um impulso para o topo depois de ter rejeitado o
assédio do director musical. As injustiças aconteciam. Devia ter
ficado calejada. Mas não. Estava tão aborrecida e perturbada que
não era capaz de tocar piano, não era capaz de ler, não era sequer
capaz de ouvir um CD, porque não possuía nada suficientemente
turbulento.
- O Post - respondeu sem hesitar. Fora Terry Sullivan que dera início
àquilo tudo. Usara-a e mentira.
Anos?
- Quantos anos?
- Duzentos e cinquenta.
Ela recuou.
Mas, Lily não podia ir pedir dinheiro à mãe. E, mesmo que ela
tivesse esse dinheiro, não podia conceber gastá-lo todo nisto. Não
tinha feito nada errado!
Calmamente, levantou-se.
Ele seguiu-a, mas o seu rosto estava mais ruborizado quando Lily
se virou.
Lily foi até à janela para ver se o advogado parava e falava com a
imprensa à saída, mas um dos elementos da horda vislumbrou-a
primeiro e, subitamente, as caras e as câmaras estavam apontadas
para cima. Num movimento brusco, recuou rapidamente e
imobilizou-se no meio da sala, com os olhos a percorrer a
Commonwealth Avenue, sem a ver -até que percebeu, horrorizada,
que uma lente de longo alcance na janela de um dos edifícios ali,
podia captá-la em qualquer lugar dentro do seu apartamento.
Não. Não ia ligar a Maida por causa do dinheiro. Gostaria de Lhe ter
ligado pelo conforto que isso Lhe traria. Maida era sua mãe. Lily
sentia necessidade de enterrar a cabeça em algum lugar quente e
solidário até que a tempestade passasse. Sentia necessidade de um
abrigo, certamente de um ouvido compreensivo.
Contudo, Maida nada disto Lhe daria. Assim, em vez de telefonar a
Maida, Lily telefonou a Sara Markowitz. Sara era uma amiga da
Juilliard, que dava aulas no Conservatório de New England. Costu
mavam encontrar-se para almoçar uma semana por outra. Sara era
uma das autoras das mensagens deixadas no gravador.
de repente, fez-se luz. - Ele não queria saber coisas sobre o meu
trabalho. A sua mira deve ter sido sempre o cardeal - sentindo-se
duplamente usada, soltou um profundo suspiro. - A minha vida está
um caos, não sei porquê, e estou presa neste apartamento sem
nenhum outro lugar para onde possa ir.
Lily desligou. Agoniada, olhou para o telefone, rezando para que ele
não voltasse a ligar, pensando que ele não teria o descaramento de
voltar a ligar-Lhe. Mas tivera descaramento para telefonar a primeira
vez, por isso não sabia o que esperar agora, e, além disso, o seu
sentido de expectativa tinha sido despedaçado nos últimos dias.
Tudo podia acontecer. Absolutamente tudo. Os seus juízos de valor
11 sobre as pessoas continuavam a ser tão pobres como quando
tinha dezasseis anos e andara a passear de carro com Donny
Kipling. Não havia dúvida que já o tinha demonstrado.
Não podia ficar em Boston. Isso era evidente. Mesmo que a história
morresse no dia seguinte, seria alvo de olhares durante meses. Não
conseguia suportar isso - não conseguia suportar saber que milhões
de desconhecidos conheciam pormenores da sua vida privada, não
conseguia suportar ser alimento para os talk-shows, não conseguia
suportar a humilhação nem a sensação de injustiça. E depois havia
a questão do trabalho. Quem iria contratar uma mulher com a moral
de uma cobra? Ninguém que pudesse oferecer-Lhe o tipo de
trabalho que ela queria, disso estava certa.
A coisa que mais queria era justiça, mas não a via chegar nos
próximos dias. A seguir à justiça, o que mais queria era escavar um
buraco e enfiar-se nele. Estava cansada de repórteres e fotógrafos.
Estava cansada de ser espectáculo. Queria silêncio e privacidade.
Queria tornar-se invisível.
"Lake Henry, não", protestou; mas a ideia não Lhe saía da cabeça.
Lá, tinha um lugar para viver. Era seu, inteiramente livre de
encargos. Fora um legado da sua avó, uma pequena casa no lago,
separada do resto do mundo por um longo caminho de terra batida e
hectares de árvores.
"Lake Henry, não", gritou; mas era o mais parecido com o tal buraco
no chão que conseguiria encontrar. Era familiar. A casa estava bem
apetrechada. Pagava a uma habitante local para que fosse limpá-la
todos os meses, e era onde ficava sempre que ia de visita.
Maida não ficaria contente. Não iria querer Lily lá, não iria querer o
escândalo tão perto de casa, mas que outra hipótese tinha Lily? Das
suas opções, esconder-se no lago era a que fazia mais sentido. Lá,
podia pensar. Podia monitorizar o frenesim da imprensa, e decidir se
havia de Lhe fazer frente e como. Lá, podia respirar ar puro. Podia
passar tempo com Poppy.
A única coisa para a qual tinha ânimo agora era para fugir. Estava
farta de se sentir impotente. Precisava de retomar as rédeas da sua
vida, alguma vida, qualquer vida. Para isso, precisava de dormir.
Precisava de liberdade. Precisava de aconselhamento e, se o
espírito da sua avó fosse o único aconselhamento possível, tanto
melhor. Celia St. Marie tinha sido uma santa. Ela saberia o que fazer
a seguir. Ela saberia como procurar a justiça.
- Eu sei como.
Achariam eles realmente possível que Lily fosse sair àquelas horas
da noite? - perguntou Elizabeth com uma ironia perceptível. - A que
propósito? Para um rendez-vous fora de horas com o cardeal? Por
favor! Não estaria na hora de darem um pouco de sossego à
desgraçada? E onde ia ela? Beber um copo ao Lennox Lounge.
Queriam vir? Deviam aproveitar. Era ela que pagava.
Lily quase que morreu com esta última, mas Elizabeth sabia o que
estava a fazer. Os repórteres não iriam aceitar o seu convite.
julgavam que era uma armadilha para os fazer sair dali, para que a
sua presa pudesse fugir.
Não tinha a certeza se o deveria dizer. Não era que não confiasse
em Elizabeth - ou melhor, até nem confiava mesmo: mais uma coisa
pela qual desprezava Terry Sullivan. Ele ensinara-Lhe que, a menos
que conhecesse alguém muito, muito bem, teria de ficar sempre de
sobreaviso.
- Eu depois digo-te.
Sentindo-se com mais força do que nunca desde que lera o Boston
Post na terça-feira, regressou ao carro, tirou a chave da casa que
tinha na mala, subiu os degraus até ao alpendre de madeira e abriu
a porta.
- Boa!
Quando ouviu um tremolo suave característico em resposta, sorriu.
Apenas os mergulhões machos emitiam aquele som. Este não
pertencia ao casal que considerava seu, mas, de homem para
homem, percebia a satisfação sentida. Lera o artigo do Post e
conhecia na pele o quão traiçoeiro Terry Sullivan podia ser.
Conversara com Poppy, que se sentia devastada com o que a irmã
estava a passar, e falara com alguns habitantes da vila, que
possuíam opiniões divergentes sobre o assunto. Interrogou-se sobre
qual seria a verdade. Era a sua veia jornalística. Agora que Lily
Blake regressara à vila, agora que estava no terreno dele; podia
investigar.
Celia St. Marie não era nativa de Lake Henry. Vivera os seus
primeiros cinquenta anos numa vila remota do Maine, a cerca de
cento e dez quilómetros a noroeste. Tendo ficado viúva cedo,
sustentara-se a si e a Maida fazendo a contabilidade de uma fábrica
de papel. Quando não estava a trabalhar, estava a pagar as fianças
dos irmãos, um bando de irresponsáveis. Mas Maida teve um bom
casamento. Não só George Blake possuía um bom negócio de
família que geria para o pai idoso, como também era dono de um
bom coração. Pouco depois do casamento com Maida, comprou um
lote de terreno para Celia e construiu-Lhe a casa onde passaria o
resto da vida.
Não era grande. Celia não quisera nada de muita dimensão. Como
vivera sempre em sítios apertados, sentir-se-ia sobrepujada por
muitas divisões. Chegava-Lhe ter a sua própria casa, algo que
nunca conhecera até então.
Conforto era a qualidade que Lily associava à casa, a qual era feita
de madeira escura de alto a baixo, com muitas vigas expostas,
estantes embutidas e soalhos de tábuas largas. O rés-do-chão era
uma divisão única, dividida em zonas pelo mobiliário adequado. A
zona de sala de estar distinguia-se por um grande sofá forrado com
um padrão floral vermelho escuro, um par de cadeirões estofados,
com motivos florais cor-de-laranja escuro, dois candeeiros de pé alto
com quebra-luzes com motivos florais amarelos, e uma mesa de
centro quadrada em pinho, que fora bastante usada e estimada. A
zona de refeições continha uma mesa de madeira apoiada sobre
cavaletes que, de tempos a tempos, alojava meia dúzia de netos, os
de Celia e os das amigas.
Celia St. Marie florescera nos seus anos dourados. Pela primeira
vez na vida, dissera o que Lhe ia na alma, o que incluía enfrentar
Maida no que dizia respeito a Lily. A pouca confiança em si própria
que Lily conseguira durante a infância viera dos braços da avó,
eternamente abertos para a receber.
Ela evitara-o sempre que vinha a casa, mas sabia onde ele estivera
e o que fizera antes de regressar a Lake Henry. Poppy contara-Lhe.
- Alto! - ordenou Lily. Não o desejava ali mas, já que viera, queria
saber o motivo. De certeza que estava a tramar alguma. Tal como
os acontecimentos recentes Lhe haviam ensinado, os jornalistas
estavam sempre a tramar alguma coisa. - O que está dentro do
saco?
- Porquê?
Mais uma coisa que Poppy Lhe contara mas, mesmo sem ela, Lily
também o saberia. Um Kipling no lago, vindo de Ridge, fora motivo
de conversa na vila. - No lago onde?
- Wheaton Point.
Bem, pelo menos não mentira quanto a isso. Poderia ter tentado,
mas talvez imaginasse que Lily já soubesse a verdade.
- Daí não se vê Thissen Cove - ripostou, não querendo que ele a
tomasse por tola. - Quer dizer que estavas no lago. À uma da
manhã?
- Ajudar.
- Pois, sabes, quanto a isso não tive grande escolha - retorquiu. Não
estava cá quando tudo aquilo aconteceu entre vocês.
Donny Kipling cumprira pena pelo alegado furto com Lily, bem como
por arrombamento, dois anos depois. Outros dois anos volvidos
tivera um acidente de carro durante uma perseguição policial.
Morrera no hospital uma semana mais tarde, com vinte e nove anos
de idade. Isso acontecera há dez anos. Na altura, Lily estava em
Nova i lorque, a acabar de formar-se. Quando Poppy Lhe contou,
sentiu uma pontada de tristeza, não por sentir alguma coisa por
Donny, mas por a humilhação da experiência que vivera com ele
parecer ter sido ainda mais inútil.
- Sinto muito - disse depois, em parte por Donny ser irmão de John,
mas também por este ter admitido a verdade, coisa por que não
esperara.
"Ainda bem", queria Lily dizer. Mas avistara Cus Kipling na cidade,
há alguns anos. Sim, aparentara estar velho e abatido, como se
estivesse a sofrer. Para Lhe desejar ainda pior, Lily teria de possuir
o mais frio dos corações.
- Não tenho tempo para estar com rodeios. Vim para me esconder e
descobriste-me. Agora tenho de me ir embora.
- Não, não tens. Não vou dizer a ninguém que aqui estás. Lily
revirou os olhos.
- Não.
que é sempre uma garantia para a subida das tiragens dos jornais."
O homem tinha inimigos e eu gostava de falar com eles. Por isso a
história veio a lume e, graças a uma hipocrisia estúpida, o partido
- Pois, sabes, é com isso que tenho de viver hoje em dia. Se pensas
que esse suicídio não me afectou a vida, estás muito enganada.
Tem vindo a assombrar-me desde o dia em que aconteceu. Depois,
quando regressei ao trabalho, sentia-me mutilado. Não era capaz de
fazer o trabalho que o jornal queria, ficava paralisado com os "e se"
e com os "e depois". Por isso, vim-me embora. E deixa-me que te
diga, ainda penso naquele suicídio, e muito. É a maior das
influências no trabalho que faço agora - contraiu os lábios e depois
relaxou-os. Susteve-Lhe o olhar. - Portanto, Lily, mais do que
ninguém nesta cidade, compre endo aquilo por que passaste.
- Não queria vir para cá. Se tivesse outro sítio para onde ir, tinha ido.
- Foi o que imaginei. Mas não preciso de dizer nada para que as
pessoas descubram que aqui estás. Vão acabar por ver uma luz,
como eu. Ou o fumo a sair da chaminé. Ou então vêem-te no
alpendre, ou junto à água.
- Tenho o Post de hoje no barco. Não é tão mau como nos últimos
dias.
Lily não queria saber, mas não podia dar-se ao luxo de o ignorar.
- Ficas a saber mais uma coisa a meu respeito - disse ele, num tom
já isento de sarcasmo. - Eu conheço o Terry Sullivan. Fomos
colegas de curso e depois trabalhámos juntos no Post. Resolveu
encarar-me como competição e tramou-me.
- De que maneira?
Queria ser conhecido, qual era o jornalista que não o almejava? Mas
agora já era dono de uma consciência. Pelo menos, imaginava que
fosse isso por detrás do autodomínio que sentia quando imaginava
Lily Blake no alpendre, com a camisa de dormir cor de marfim e o
xaile da avó. Compreendia mesmo o que ela sentia. O que poderia
ser melhor do que ajudá-la a vingar-se, ao mesmo tempo que se
redimia a si próprio, quer como escritor quer como ser humano?
- Tu é que disseste isso, não fui eu. Tu é que pintaste a minha casa.
Tu é que compraste tapetes e o sofá. Tu é que compraste o
microondas e a televisão. O computador. Não quero cá nada disso -
resmungou com um aceno da mão nodosa. - Tudo o que quero é as
minhas pedras. - Com esforço, virou a que tinha transportado.
Empurrou-a para a esquerda, depois para a direita. Depois
praguejou e resmungou: - A maldita não cabe.
Resmungou.
- Só bebo uma por dia. Se a beber agora, o que hei-de beber logo?
- Eu sei.
- Pois.
- Isto é arte - declarou Gus. - Aquilo que tu fazes com o jornal não é
arte.
- Podia ter dito que te odiava. Mas disse que gostava de trabalhar
contigo. Para mim, isso é um elogio.
- Nada.
John olhou para o lado. já tinham passado por aquilo. Não ia dar a
lado nenhum, pelo menos a algum sítio que interessasse a John.
Calmamente, replicou:
- Custa-me a crer.
- Porque não?
- Ná.
- Poupa-me.
- Estás só à espera.
John não queria ter de o recordar assim. Queria ver mais alguma
coisa naqueles olhos e escutar palavras diferentes a sair-Lhe da
boca. Mas não sabia como consegui-lo.
- Fala Edgar Cook. A minha Peggy quer saber até que horas é a
venda.
- Até às Quatro.
- Pois. Foi o que eu Lhe disse, mas ela não acreditava em mim.
Obrigado, Poppy.
- Depende.
- Eu perguntei primeiro.
- E acha que ela veio para cá? Por que razão haveria de o fazer?
porta em silêncio.
percebê-lo na minha voz. Nós por aqui não sabemos mentir. Vai
contra a nossa natureza.
- Não.
- Não.
pouco, Poppy viu sombras sob os olhos que não se encontravam ali
da última vez que se tinham encontrado, na Páscoa, cinco meses
antes.
- Não estás com muito bom aspecto - disse Poppy. - Linda - o que
era verdade - mas cansada.
Poppy passara a infância a seguir Lily para todo o lado, sofrera com
a gaguez da irmã, orgulhara-se quando ela cantava. Nem sempre
concordara com o que a irmã fizera. Sair com Donny Kipling, por
exemplo, fora simplesmente idiota, mas sabia, com toda a certeza,
que Lily não possuía um pingo de maldade no corpo. Nunca pedira
para ser gaga, nem desejara os padrões impossíveis estabelecidos
por Maida para a primogénita. O fardo da vida de Lily tinha algo de
injusto e essa injustiça continuava.
ao ar exausto.
- Ainda não.
- Fizeram perguntas?
- Se fosse eu, acreditava nele. Além disso, não tens grande escolha.
- Pois não. Eles vão seguir-me para onde quer que eu vá. Pelo
menos aqui tenho onde ficar. O que é que eu faço em relação à
Stella? Para a semana vai lá ver como estão as coisas na casa.
- Eu trato da Stella.
- Não trouxe grande coisa, pois não sabia quanto tempo ia cá ficar -
ergueu os olhos desolados. - John contou-me sobre o jornal de hoje.
Continuam a bater na mesma tecla, Poppy. Não param. Sinto-me
tão impotente, é como se não tivesse direitos.
- Mas tens. É para isso que servem os tribunais. Tens de falar com
um advogado.
- Desde ontem que não falo com ela - respondeu. - Devias ficar feliz
por ser altura de colheita e por ela andar ocupada com o trabaLho.
Estás a pensar em ir lá?
- Só se fores masoquista.
Poppy gostaria que tudo pudesse ser assim tão simples. Maida era
uma mulher complexa, camada após camada de emoções,
acumuladas durante cinquenta e sete anos.
- Quem me dera poder dizer isso. São novidades. Mas não penses
que te estão a censurar. Recusam-se a falar com a imprensa.
ficar invisível durante uns tempos. Pelo menos até ver o que
acontece em Boston. Até decidir o que fazer. Mas agora ele sabe
que eu cá estou.
- Se ele disse que não contava nada, então é porque não conta -
garantiu-Lhe Poppy.
- Trouxe-me comida.
- Ou um cavalo de Tróia.
- Lily, não podes ir-te embora. Neste momento não há outro lugar
tão seguro como este.
- Talvez. Acho que vou ficar perto de casa. Ver como as coisas
correm.
- Fica aqui - sugeriu Poppy, achando que era uma óptima ideia, mas
Lily suspirou e abanou a cabeça.
- Mais daquilo que acabaste de fazer com o Terry. Ele que tente
localizar as pessoas com quem trabalhei. Nem sequer me lembro
dos nomes delas.
- Sinto muito. Ou fala comigo ou não fala com mais ninguém. Mais
uma vez, para que fique registado, o senhor é Harvey Cellman.
- Ellman.
por sua vez telefonaria a Willie Jake, o chefe da Polícia, que viria a
na posição ideal para uma fuga rápida. Depois saiu do carro, atenta
à
- O jornal diz que ela vai contratar aquele advogado - comentou Alf
Buzzell, o encenador do tal espectáculo de Inverno, um residente de
sessenta anos de Lake Henry e tesoureiro da Sociedade Histórica.
Contudo, uma vez que não havía pergunta, não era necessário
responder. Grato por ter sido poupado a evasivas, John passou com
a
mão por uma abóbora redonda.
doce, da terra rica e da abóbora madura. Valia a pena ficar por ali e
era isso que ele gostaria de fazer, mas não naquele momento.
Enfiando o bloco de notas no bolso da camisa de flanela, cruzou o
estacionamento até ao armazém, pois sabia que Charlie deveria
estar prestes
do lago. Aos doze anos iam para lá fumar charros, aos treze iam
depois do outro, com uma rapariga muito roliça e muito dada, dois
anos mais velha.
Charlie prosseguiu:
- Mas havia muitas brigas por a Lily cantar aqui. O George gostava,
a Maida não. Na opinião dela, se cantar na igreja era a garantia da
salvação, cantar aqui dava-Lhe acesso directo ao Inferno.
- Oh, céus, não. Maida não a deixava ir tão longe. Não interessava
como estava o tempo, nem a idade que tinha, a rapariga estava
sempre tapada do pescoço aos pés.
- Bem, Lily não era. Deixava-se ficar de pé, a cantar, sem se abanar,
sem olhares tentadores, só um sorriso gentil e despretensioso, no
fim. Fechava os olhos quando cantava palavras de amor, como se
estivesse a sonhar, ou com medo que a mãe aparecesse a qualquer
momento para a tirar do palco. Só que Maida nunca lá foi. Nunca a
foi ouvir cantar, por uma questão de princípio. Passou meses sem
vir à loja quando Lily foi para Nova Iorque. Segundo ela, tínhamos
sido nós a corrompê-la.
- Isso nunca foi nada. O mesmo se passa com isto. Achas que ela
teve um caso com o cardeal?
- Não.
- Exacto. As pessoas que conheceram a Lily sabem que ela seria
incapaz de fazer alguma coisa de mal. O teu irmão. já era outra
história. Não - acrescentou Charlie, arqueando uma sobrancelha e
nasalando a voz - que eu tenha dito isso ao tipo que passou por cá
esta manhã.
- Qual tipo?
John não percebia por que motivo Charlie não tinha o dobro do
Willie Jake sempre fora alto. já não era capaz de correr muito, e
- Porque não?
- O Donny disseme que a culpa não tinha sido dela. Foi uma
confissão às portas da morte.
- Quando as coisas aconteceram não era isso que ele dizia. Tínha
mos um caso sólido. Ela andava a gabar-se a uma amiga por andar
a sair com o Donny Kipling.
- A gabar-se?
- O que não quer dizer nada - retorquiu Willie Jake. - Ela ia acabar
por portar-se mal.
- Porquê?
- Mas tinha o George, e ele não era severo. A Lily não tinha um bom
relacionamento com ele? - George Blake era um habitante de
Lake Henry da quarta geração e, pelo que John pudera constatar
em
depois ficou emproada. Acho que também não gostava muito de nós
Island que andou por aqui esta manhã. Não Lhe disse nada. Não
interessa se é verdade.
- Foi a Emma - Emma era a sua mulher, que muitas vezes atendia
falei com os serviços e eles não nos tinham telefonado. Nem sequer
"Imagino que tenha sido Terry Sullivan a fazer isso", pensou John.
Willie Jake baixou o pé e endireitou-se, olhando subitamente para
John como costumava fazer antigamente, como se ele se tratasse
de um verme coberto de terra.
- Pois olha, para mim isso não se faz. Este país não anda bem. As
pessoas já não sabem o que é o respeito. Uma cidade pequena
como Lake Henry, por exemplo. Aqui não há privacidade. Cada um
sabe o que o outro anda a fazer, mas não usamos isso uns contra
os outros. Agora eles? - espetou o polegar, apontando para o resto
do mundo.
que tudo sabia tão bem. Claro que o ar também produzia o seu
efeito. O aroma a Outono era um tempero1maravilhoso.
Será que Maida sabia que ela viera? Suspeitava? Ou, pelo menos,
imaginava?
Durante o dia, Lily podia ver a copa das macieiras colina acima. No
Verão, as folhas eram de um verde mais claro do que as dos cedros
ou das sempre-verdes e, no Outono, eram de cor de caqui e não
flamejantes. Hectare após hectare, várias centenas, ao todo, fluíam
em ondas ao longo da encosta, muito bem tratadas e trabalhadas de
forma inteligente. Mesmo o antigo lagar de sidra, com o sol a refulgir
no telhado de zinco e história a escorrer-Lhe das paredes de pedra,
era digno de ser visto.
Ali; sentada entre as raízes, percebeu que ainda tinha, mas agora
havia algo mais a recear. john tinha razão. Era apenas uma questão
de tempo até que alguém no lago avistasse sinais de vida na casa
de Celia. Ficar-se-ia então a saber que Lily regressara e as notícias
chegariam aos ouvidos de Maida. Lily não queria que a mãe
soubesse por terceiros. Ficaria extremamente magoada, o que não
ajudaria Lily. Nem tampouco seria bom para Poppy, que de certeza
seria interrogada e ficaria com parte das culpas.
Rapidamente, antes de perder a coragem, Lily regressou à casa,
lavou-se, mudou de roupa e deu a volta ao lago na carrinha
emprestada. A noite caíra. O luar passava por entre os ramos das
árvores de tempos a tempos, mas os seus faróis encontravam-se
sozinhos na estrada.
calmamente.
havia algo que Lhe devia estar a fazer bem. Até parecia mais jovem.
O seu único recurso. Mas nessa altura tinha coisas para fazer e
sítios
para onde ir. Agora não tinha nada disso. Presentemente, apenas
sentia a necessidade de falar com a mãe.
- Sinto muito - foi tudo o que Lily conseguiu dizer. - Poppy atende a
maior parte, mas ainda há algumas que conseguem passar. Sabes o
que eles perguntam? Sabes o que eles sabem?
- O quê?
- Porque não?
- Olá, Hannah!
- Ouvi vozes.
- Estão com a ama. É mais fácil para ela se a Hannah ficar aqui.
lábios.
Lily continuou:
- Há alguma alternativa?
- É um amigo.
- Todos os amigos o tratam por Fran. É ele que nos pede. Nunca o
faria em público.
- Não sei.
- Não, se não contares nada. Achas que a Hannah vai dizer alguma
coisa?
- Não.
- Ela vai contar à Rose - receou Lily. - A Rose vai contar ao Art. O
Art vai contar à mãe, e ela vai espalhar a notícia pela fábrica. - não
era paranóia da parte de Lily, mas a realidade. Era assim que Lake
Henry funcionava.
- A Hannah não vai contar nada à Rose. Nunca Lhe conta nada.
a certeza de que depois a imprensa vem para aí. Achas que isso é
justo para nós?
- Não faço ideia. Só sei que não os quero aqui. Não queres que
Fora isso que Maida Lhe ensinara ou, pelo menos, o que Lily
percebera da frustração que Maida sentia em relação à filha. O
padre Fran dizia que não era assim. Dizia que as mães amavam
sempre os filhos, embora por vezes as circunstâncias impedissem a
expressão desse amor. Tudo o que Lily sabia era que a frustração
era constante. Nunca fazia nada bem. George apoiara-a mais, mas
era ele quem escolhia as brigas em que se envolvia. Insistiu com
Maida para que a deixassem cantar no armazém, pois via aí um
tema mais abrangente. Como homem típico que era, não percebera
as pequenas necessidades emocionais que uma rapariga em
crescimento tinha, necessidades essas que iam ficando por
satisfazer.
Ele sabia que ela ali estava, estava a par da situação, conhecia os
- Acabei de o ir buscar.
com força. Pareceu uma eternidade até voltar a ouvir a voz dele, a
- História.
- História?
- Escândalos sexuais.
- Pois, mas quem tiver dois dedos de testa percebe que são coisas
diferentes. Não há comparação entre o cardeal Rossetti e um
presidente apanhado com a boca na botija, ou um diplomata de alto
gabarito apanhado na cama com uma espiã, ou um ícone de
Hollywood que não consegue manter as calças em cima.
- Como? - gritou.
- Através dos tribunais, por exemplo. Os jornais vão dar por isso. Lily
baixou a cabeça, fechou os olhos e pressionou o punho contra a
têmpora.
suspensa no ar.
A esperança vacilou.
- Fui mencionada?
- Só ao início.
- P-p-podes ler-mo?
- Se não te importares.
Lily aguardou.
- "Ao ser contactado pelo Post" - continuou ele a ler -"o cardeal
Lily esperou que ele dissesse mais alguma coisa. Com o alongar
- É só isso?
- Sim.
- Não.
- Mas eu fui quem mais sofreu no meio de tudo isto. Fui eu que
sem ser seguida como uma gata no cio. Também mereço um pedido
outros jornais?
- Possivelmente.
Cassie sorriu.
muito tempo na rua. Por isso, Lily levou-a para dentro e ofereceu-
Lhe
- Tenho, claro. Seria difícil não acompanhar, ainda por cima com um
dos nossos envolvido.
uma retractação. Poderá não ser oferecida, a não ser que o cardeal
a
exija. Ou pode vir a lume lá mais para o fim da semana. Há leis que
senso.
verdade.
Cassie começou a tirar notas.
era tudo tão errado, tão irritante, tão humilhante. - Não Lhes disse
Enquanto Lily falava, Cassie foi batendo com os nós dos dedos no
- Tens a certeza?
- Não, mas ouvi um estalido quando estava a falar com a minha irmã
e parte dessa conversa apareceu no jornal no outro dia.
para o Post ter ignorado Lily. Para ele, pouca diferença fazia. O livro
- Mas ela é daí. O Terry diz que nos tens andado a ignorar.
- A Lily Blake devia era pedir-nos desculpa a nós. Se ela não tivesse
dito aquelas coisas, não estávamos a passar por esta vergonha.
Sem querer dar a entender que conversara com Lily, John começou
a ser mais prudente.
- Achas mesmo que ela disse aquelas coisas? Ou será que o Terry
as inventou?
- Deixa-te disso, Brian. É comigo que estás a falar. Sei muito bem de
certas cenas de bastidores que aconteceram por aí. Trabalhei com o
Terry e também andei na escola com ele. Não seria a primeira vez
que fabricava uma história.
- Não.
Parecia tão seguro de si que John ficou ainda mais irritado.
que isso não significa que o Terry estava errado? - Céus, John -
ripostou Brian. - Achas mesmo que eu publicava
dúvida a Lily Blake que disse aquelas coisas. Talvez seja maluca.
Talvez tenha um fraquinho pelo homem. Talvez já fantasie com ele
há tanto tempo que agora começou a pensar que era verdade. Mas
foi
- Claro que pretendo. Mas a Lily é apenas uma das pessoas que
estou a investigar, e nem sequer foi a primeira. já comecei este
projecto
- Pois, vá dizer isso ao meu pai - foi a resposta. - E ao pai dele. Sou
o terceiro.
propositado.
- E honesto.
mais dura do que o pretendido, mas a voz grave sugeria uma maçã-
de-adão cheia de virilidade e Poppy encontrava-se na defensiva.
ah... como disse que se chamava? - Não Lhe disse o meu nome.
Está a ver, está a tentar enganar-me.
- Certo, mas estão zangados com aquilo que aconteceu à Lily ou por
terem pessoas como eu a meterem-se na vossa vida?
- As duas coisas.
perguntas mais importantes que teria de fazer. Quando viu que ela
Repetiu também que ela estava pronta, que era uma boa maneira
de
treinar e que ele sabia, tinha a certeza, que ela iria sair-se bem.
- Seguiu a Lily?
- O Terry não precisa de nada para atacar seja quem for. Quando
Lhe dá o cheiro de uma bela notícia fica selvagem. Queria cobrir a
história, mas o Brian resistiu.
- Certo. Mas o jornal diz que o trabalho do Terry foi honesto. O que é
que se diz aí na redacção?
- Ele decidiu que havia ali uma história, só que não conseguiu
encontrar nada incriminatório. Estava a ficar sem tempo e tudo o
resto batia certo, por isso escreveu um artigo em que metade era
especulação e a outra metade era imaginação. Muitos de nós
conhecemos o Rossetti. Ele é um dos homens mais decentes e
honestos que eu conheço. E olha, estou a dizer isto e nem sequer
sou católico.
- Mas a Lily Blake é citada como tendo confirmado que isso era
verdade.
- Sabes da cassete?
O tom da voz de Steve permaneceu baixo, mas a falta de entoação
era reveladora. Também se falava de uma cassete.
Ellen continuou:
- Eu não estava.
Ellen suspirou.
Jack Mabbet era um antigo agente do FBI. Dez anos antes, estivera
envolvido na investigação de um criminoso notório que operava no
South End de Boston. Terry Sullivan escrevera uma série de artigos
mordazes que criticavam a investigação de uma forma geral e Jack
Mabbet em particular. Na altura, Jack tinha quarenta e cinco anos,
era casado e pai de quatro filhos, e toda a família foi enlameada. O
criminoso acabou por ser julgado e condenado, sem que se fizesse
qualquer menção a Jack Mabbet como o agente responsável pela
condenação. O caso fora para o céu dos arquivos sem que se
voltasse a referir Jack.
- Mas ela é uma das nossas. Nós conhecemo-la. Meu Deus, John,
esta é a nossa oportunidade de ultrapassarmos os grandes. E John
levantou-se, levou a mão à anca e fitou o nevoeiro.
- Não creio.
- Porque não?
- Porque ela é uma das nossas. Isso exige uma certa dose de
compreensão. A imprensa generalista anda a denegrir-Lhe o
carácter. Não vou descer ao nível deles.
- Não te estou a pedir que faças isso, mas não podemos ignorar a
história. Nós publicamos notícias, e a rapariga é notícia.
- Está bem. Vou fazer alguma coisa numa das páginas interiores.
Vou mencionar a história e o pedido de desculpas ao cardeal - sen
tia-se confortável com isso. Quanto mais pensava no assunto, mais
Lhe parecia boa ideia. Na verdade, até começou a imaginar um
pequeno artigo sobre o pedido de desculpas na primeira página. Lily
merecia-o.
Mas Armand tinha outra coisa em mente. Com uma voz demasiado
entusiasta para ser genuína, disse:
- Tenho uma ideia melhor. Isto pode ligar-se ao teu artigo sobre a
razão por que as pessoas se estão a mudar para as pequenas
cidades. Vou dedicar a minha coluna à natureza indulgente de sítios
como Lake Henry. Vou falar sobre como o mundo exterior pode ser
tão rápido a julgar e a acusar. Vou referir que Lake Henry é mais
tolerante para com os erros e que perdoa os seus.
- Isso vai insinuar que Lily Blake é culpada. Tem a certeza de que é?
- Ela deve ser culpada de alguma coisa. Caso contrário, não teria
chegado a este ponto.
- Sinto muito, Armand, mas nós não fazemos isso aos nossos.
John atalhou.
Mas isso era na cidade. No lago não era nada assim. Mas ainda
sentia esse odor.
John suspeitava que parte do que estava a cheirar era o seu próprio
sentimento de culpa. Poderia não fazer a cobertura do caso Lily i
Blake para o jornal, mas tinha uma gaveta repleta de informação,
monte esse que crescia de dia para dia. Na véspera, não se limitara
a fazer a esquematização do jornal dessa semana. Passara horas a
anotar ideias, a organizar o raciocínio, a ponderar abordagens que
poderia seguir no seu livro.
O seu, por exemplo. Deixara Lake Henry com quinze anos e tinham-
se passado anos sem ver Gus, mas nunca se libertara do homem.
Em criança, com Gus sempre a repetir-Lhe que nunca seria
ninguém, ficara determinado a dar-Lhe razão. Em adulto, ao
recordar essas palavras, sentira-se determinado em provar-Lhe o
contrário.
Era assustadora a forma como Gus Lhe afectara a vida. Terry devia
ter um Gus na sua vida. E Lily também. Tal como todos os
jornalistas, John era curioso. Queria saber como essas duas
pessoas diferentes,
Seria melhor esperar alguns dias, talvez até mesmo uma semana
Lily encontrara John uma vez e falara duas com ele ao telefone. Nos
três casos, parecera despachado e perspicaz. Assim sendo, ou ele
tinha um sentido de humor peculiar, ou as notícias não eram boas.
- Não.
- Sabes bem o que é que eles fazem, Lily. A história começou logo
errada e agora estão a tentar proteger-se.
- Estás com evasivas - disse. Ao não obter resposta, insistiu: O q-q-
que é que diz?
- Sim. - Lily já lera Douglas Drake, cujas colunas eram sempre bem
escritas e posicionadas. Nem sempre concordava com ele, mas a
direcção do Post concordava, isso se o editorial anónimo que
costumava surgir alguns dias depois servisse de indicador.
- Que Boston está a pôr as culpas na tua paixão pelo cardeal. Ora
- Como está, Lily? - perguntou ele com a sua voz rica. Sim, na
verdade algumas mulheres consideravam-na sensual. Lily sempre a
vira como sendo. cheia, cheia de sensibilidade e de compaixão.
O afecto prevaleceu.
- Nem sabe como lamento isto tudo. Foi apanhada num fogo
cruzado com o qual não tinha nada a ver.
- Nem o senhor.
- Porque é que eles dizem estas coisas? - gritou Lily. - O que Lhes
fosse a riqueza da sua voz que sugeria uma vasta sabedoria. Mais,
saber que consegue lidar com elas. Deus sabe que pode aprender
com elas. Há pessoas que não são capazes. Certas pessoas não
têm
Lily queria dizer que não era Jesus, que não desejava um martírio
sorriu.
- Chegaram a falar?
- Neste momento pode pensar assim. Mas espere até ser mãe.
que estas tivessem filhos com dezanove anos, pelo menos segundo
o
referia a Maida.
- Quero que resolva as coisas com ela. Promete que vai tentar?
"Vingança", pensou ela, mas não o diria ao cardeal, tal como nunca
entraria numa discussão sobre a Trindade. O cardeal estava no
negócio do perdão. Nunca aceitaria pensamentos de vingança.
John Kipling talvez. Lily pensou nisso para o fim da manhã. A meio
da tarde, sentia-se inquieta e enfadada. Precisava de alguma coisa
para fazer. Mudou então de roupa, vestindo umas calças de ganga e
o tipo de camisa de flanela usado por metade dos habitantes locais,
prendeu o cabelo sob um boné dos Red Sox, passou um cachecol
de lã em volta do pescoço para esconder o queixo, colocou no nariz
os enormes óculos de sol de Celia para esconder o que mais
conseguisse e conduziu até à cidade.
John anuiu.
- Um perfeito idiota!
- O bebé é dele?
- Venho a má hora?
- Sim - contradisse-se imediatamente a seguir. - Não. Não vens.
e tocou-Lhe no braço.
uma primeira página ali afixada. Era difícil acreditar que uma
imagem pudesse capturar tamanho frenesim e intensidade, mas
alguns
dos rostos transmitiam o mesmo ardor que ela presenciara nos seus
Lily mirou o grande envelope castanho que ele trazia na mão. john
lançou-o para a secretária.
- A jenny é o pessoal.
- Revelaste-as sozinho?
na cave.
- Ele?
John olhou para o topo do boné de Lily, que não Lhe chegava à
altura do seu próprio queixo. Farripas de cabelo escuro e brilhante
escapavam-se no pescoço e pelo buraco na parte de trás. A pala
impedia-o de Lhe ver os olhos, mas ouvia-Lhe perfeitamente a voz,
por mais baixa que fosse.
Quando Lily inclinou a cabeça para trás e olhou para cima, algo em
John deu uma cambalhota. Os olhos dela eram tão meigos quanto a
voz, algo de que ele não estava à espera.
Engoliu em seco.
- Obrigado.
- E sabem porquê?
- Intenção maliciosa?
pessoal. Nunca o tinhas visto mais gordo, portanto não era contra
- Provavelmente.
- Posso passar por anos de agonia e acabar por perder.
- Ele gravou a vossa conversa sem te dizer. Isso é ilegal. Mais uma
coisa a juntar ao arsenal.
- Uma cassete vai mostrar que eu disse aquelas coisas, mas não
ela disse:
- A sério?
- Exigimos uma retractação. Isso foi ontem. j-j-já é hoje - John viu-a
pestanejar quando gaguejou, demorar uma fracção de segundo
para não entrar em pânico, mas estou farta de não fazer n-n-nada.
- Sim.
- Escolhe três.
Ela olhou para os papéis e depois para John, que desta vez sentiu
uma pontada no peito. Imaginou que se devesse ao boné. Era
maluco pelos Red Sox.
- És professora. Começa.
- Há outra maneira.
- Como?
péssima. - Não sei quais podem ser essas alegações. - Mas eu sei.
- E serias capaz de partilhá-las?
Era agora.
- Talvez.
- Em troca de quê?
John pensou por uns momentos. Não via por que razão as coisas
não poderiam funcionar para ambos.
- Só com a tua aprovação - sabia que ela estava a pensar que ele
podia ser mais um Terry Sullivan. A desconfiança era óbvia. john
fora com demasiada sede ao pote, mas já não podia voltar atrás.
- Lily?
Poppy sabia, embora não fizesse ideia do porquê de a irmã estar lá.
Assim, telefonou a Kip e disse:
própria porque estaria ele tão atravessado, e tentou ligar a Lily, mas
o
vin quente e uma garrafa de Chablis. Heather Malone era uma mãe
a
ver o que podiam fazer para ajudar. Mas, uma vez que Lake Henry
- É para o chefe da Polícia. Quando Lhe disse que o Willie Jake não
estava disponível, ele pediu para falar contigo. Griffin Hughes.
Poppy estava a rir e engasgou-se. Tossiu, deu uma palmada no
peito, ergueu a mão e respirou fundo. Depois manobrou a cadeira
até junto do telefone.
- Eu vivo aqui.
- Na esquadra da Polícia?
de Lake Henry.
- Bom... não exactamente. Mas tem de passar por mim para chegar
a grande parte do resto da cidade, e eu não mudei de ideias.
- Quem é?
- Sim?
coisas positivas.
copas.
- Nem mais - ela estava satisfeita por ele ter percebido. Fazia
sentido que um homem com um tom de voz culto de barítono fosse
inteligente.
- Diminutivo?
- Sim, mas o nome do meio é diferente nos três casos, por isso nem
sequer sou um Júnior.
- Ruivo.
- Ruivo?
- Azuis-escuros ou azuis-claros?
- Trinta.
- Quanto?
- Não.
- Ah-ah! - gritou ela. - Você pode chatear-nos a nós, mas o con trário
já não?
- Poppy - disse Griffin numa voz muito madura - disseme que ele
não me ligaria. Portanto vou tentar de novo noutra altura. Volte para
junto das suas amigas.
- Um escritor qualquer.
Poppy suspirou.
Mas não a apanhariam dentro de casa nem morta. Estava uma noite
gloriosa em Lake Henry. A superfície do lago era lisa como um
espelho, reflectindo a lua, reflectindo a Estrela do Norte, reflectindo
até o amarelo outonal de um vidoeiro na margem de Elbow Island.
Com os mergulhões em silêncio, era possível ouvir o leve som da
água contra a margem. Emprestava algo de hipnótico à serenidade
do momento.
Ela olhou para trás: Ele vestia calças de ganga e uma camisola,
com um colete forrado a pêlo, desabotoado. Tinha as mãos e a
cabeça descobertas. Lily perguntou a si própria como estariam
dentro de vinte minutos.
mínimo de som e esforço, deixando Lily sem nada para fazer senão
Por mais que adorasse Boston, lá não tinha isto. Nem em Albany.
Nem,
Mas ele não disse uma palavra. Para além do ocasional murmúrio
- O ninho era ali - apontou para um local, mas Lily não conseguia
seguinte, um segundo.
- A sério?
- Sim. Passam noventa e nove por cento das suas vidas dentro de
água.
Lily não sabia disso.
- Crescem depressa.
- Já sabem voar?
Lily perguntou:
Ainda sem uma palavra, ele levantou o remo e, com uma hábil
combinação de remadelas laterais, virou a canoa. Depois de
estarem de novo em movimento, na direcção da casa de Celia, Lily
ficou melancólica. Não sabia bem porquê. O que tinham acabado de
ver e de ouvir agradara-Lhe imenso - mas era precisamente esse o
problema. A beleza da noite, do lago e dos mergulhões, era uma
tapeçaria luxuriante e intrincada. Em contraste, a sua vida - a vida
de volta à qual John a estava a levar - era um fio isolado. Sentia-se
pequena e insignificante. Desligada. Perdida.
Ele sorriu.
Podia ser real. Ou engano. Ou uma ilusão. Até mesmo uma mera
fantasia.
Mas estes tinham vida própria. Eram todos relacionados com Lily, e
continuavam a ser sobre Lily quando se dirigiu à cidade para
comprar os jornais. A sua primeira recordação dela, naquela camisa
de dormir comprida e larga, fora substituída pela da noite anterior,
uma imagem de Lily toda enrolada em roupa, mas inocente e
exposta. Gostava do toque da pele dela. Em fantasias mais
recentes, tocava em mais do que na sua face. Sentia-se atraído por
ela. Isso complicava as coisas.
Queria escrever um livro sobre ela, mas ela queria privacidade. Isso
colocava-os em lados opostos. O facto de se sentir fisicamente
atraído por ela só intensificava o conflito.
John disseLhe que provavelmente era, porque não viu razão para a
apoquentar. Sim, na verdade, a ausência de notícias do caso
Rossetti Blake significava provavelmente que a história perdera a
força - e sim, na verdade, se o Post tencionava publicar uma
retractação, isso seria feito da forma mais discreta possível, de
preferência quando já ninguém estivesse à procura de notícias
novas sobre o caso.
Com seis horas livres antes de o jornal acabado estar pronto para
ser recolhido em Elkland, quarenta minutos a norte de Lake Henry,
John passou pela loja de Charlie para comprar provisões e foi visitar
Gus. Sentiu o mesmo aperto na boca do estômago que sentia
sempre que se aproximava de Ridge, a mesma consternação por,
até mesmo na época da queda da folha, o local conseguir parecer
desolado; a mesma repugnância ao sentir o cheiro do lixo, em vez
de abóbora, sidra ou pinheiros. E sentiu o mesmo peso no coração
quando en trou em casa do pai.
- A Dulcey?
John não achou que o garfo estivesse torto. Mas não ia discutir. Em
vez disso, pôs o prato no lava-loiça, que estava limpo e vazio.
Estranhamente vazio.
John desconfiava que ele não tivera forças para fazer nada, e sentiu
outro aperto no coração. Pôs gelado no congelador, e leite, natas,
ovos e um frango assado, cortado em quatro, no frigorífico. Tirou
metade do pão que trouxera no fim-de-semana anterior, abriu uma
lata de atum e misturou-o com maionese. Depois de fazer três
sanduíches, pôs uma no frigorífico, para Gus comer mais tarde.
Colocou as outras duas em pratos, encheu dois copos de leite e
sentou-se para comer com o pai.
- Muitas pessoas por aqui importam-se, uma vez que a Lily é de cá.
- Não. Talvez pudesse ter salvo o Donny do que ele achava que
precisava de fazer, fosse lá o que fosse. Ele estava bem, antes de
eu partir. Quando eu era o mau da fita, ele era o bom. O que
aconteceu depois de eu partir?
Ela. A mãe de John, que estava viva e de boa saúde, casada pela
segunda vez e feliz, a viver na Carolina do Norte.
- Pergunta-Lhe a ela.
- Disse, sim.
John sabia que tinha sido muito mais do que isso. Gus trabalhara
tanto na casa grande como na de Celia. john tinha conhecimento
disso em primeira mão. Observara-o, embora à distância.
- De quem?
- Do George.
John não fazia ideia se Gus gostava dele, por pouco que fosse. Sem
afecto, não era provável que existisse respeito, e, sem respeito, se
John partilhasse o segredo do regresso de Lily, Gus podia muito
bem virar costas e contá-lo à primeira pessoa que visse. Que seria
Dulcey, que então contaria à mãe, que contaria à irmã, que contaria
ao marido, que contaria à mulher que tratava da escassa
contabilidade da sua carpintaria, bem como da contabilidade de
metade dos outros pequenos negócios da cidade - e essa mulher
era a maior mexeriqueira da zona.
John não podia fazer uma coisa dessas a Lily.
- Hoje não tenho muita coisa para si - disse, sem tirar o cachimbo
dos dentes, enquanto entregava a John uma pequena pilha de
correspondência presa com um elástico. - Algumas contas,
publicidade, o novo catálogo da L. L. Bean. Veio um postal da sua
mãe. Ela e o marido estão na Florida. Parece que vão comprar uma
casa.
John sabia que eles andavam à procura de casa. Tirou o cartão do
monte e leu-o. Descrevia uma pequena casa em Naples, a quatro
quarteirões da praia.
- Parece boa.
- Ele era mais alto, nessa altura - disse John. - Muito bem-parecido.
John passou os olhos pelo artigo. Era sobre o cardeal e Lily, escrito
antes do pedido de desculpas ao cardeal.
- Ela é famosa - disse Nat. - Não acredito que a Maida goste muito
disso. Nunca aprovou a ida da Lily para Nova Iorque. Para ela, esse
era o pior antro de perversidade à face da terra. Não que eu culpe a
rapariga por querer sair daqui. Teve um abalo terrível naquela
história com o seu irmão - inclinou-se para ele e baixou a voz, como
se houvesse mais pessoas à volta deles, que não havia. - Acha que
ela vai voltar?
- Não. Mas, por outro lado, a Maida também nunca Lhe escreve.
Não é pessoa para isso. Nunca foi. Quando se mudou para cá,
nunca trocou correspondência com ninguém na velha cidade.
- De onde é ela?
John sorriu.
O que John sabia era que a editora era um David entre Golias. Era
pequena mas ávida. Quando apontava às listas de best-sellers,
geralmente acertava no alvo, e estava na altura de conseguir mais
um. O adiantamento que estava a ser oferecido a John era
suficientemente grande para sugerir que o seu livro podia ser esse
best-seller.
Não era uma visita que Lily quisesse fazer, mas era perigoso que
Rose soubesse da sua presença em Lake Henry por outra pessoa.
Ir ali pessoalmente parecia a Lily a coisa mais decente a fazer,
enfrentar o leão no seu covil, por assim dizer.
Lily talvez não tivesse ficado surpreendida por vê-lo, mas ele ficou
claramente surpreendido ao vê-la, o que respondia a uma das suas
dúvidas. Hannah não dissera nada.
- Não, não. De certeza que ela te quer ver. E as miúdas também. Art
Winslow era um bom homem. Era bom para Rose, bom para as
filhas, bom na fábrica. Mas ninguém podia dizer que fosse
perspicaz. A possibilidade de Lily poder não querer que toda a gente
soubesse do seu regresso não Lhe passou sequer pela cabeça.
- Estou a tentar não dar nas vistas. E não queria ter de pedir às
miúdas para guardarem segredo.
- Sábado.
- Estou escondida.
- A mãe já sabe?
- Sim.
- E Poppy?
- Também.
- Obrigadinha.
- Só estive uma vez com cada uma delas - disse Lily, de modo
razoável. - Não queria obrigar as meninas a terem de mentir se
alguém lhes fizesse perguntas. Pensei que já estivessem a dormir.
Rose suspirou.
Lily abraçou-a.
- Eu devia ter percebido que tinhas voltado. A mãe tem andado com
um humor terrível. Aliás, tem andado com um humor terrível desde
que esta história toda começou. Cabeçalhos nos jornais, fotografias,
telefonemas... tem sido horrível para nós, Lily. Ela ficou aterrorizada
quando saíste daqui e foste para Nova Iorque. Sabia que isso nunca
resultaria em nada de bom, mas nunca imaginou, nem nos seus
piores pesadelos, que seria assim tão mau. Neste momento, recusa-
se a ir à cidade.
- Recusa-se?
- Com quem mais é que ela pode gritar? - continuou Rose. Não
pode gritar com a Poppy, por isso grita comigo. Sou eu quem está
sempre presente. Sou eu quem toma conta dela.
- Ela é auto-suficiente.
- Não está a ir para mais nova. Devia estar a relaxar. Devia andar
em viagem - o telefone tocou. - Devia estar a gozar a companhia
das netas.
- Porquê?
- Em breve vai ficar mais alta. Nessa altura emagrece. Tem um rosto
muito bonito.
Lily sabia que o tom cortante com que Rose falou podia ser ainda
um vestígio do tom com que gritara a Art, mas sem dúvida que Lhe
apoiado nas mãos, escutou, mas não ouviu qualquer som, quer do
ver as raparigas. Mas era um som feliz. Não havia nele qualquer
Assim que Lily entrou no lagar de sidra, foi envolvida pelo cheiro
doce de maçã. Em criança, costumava ir ali muitas vezes, intrigada
pelo funcionamento da prensa de maçãs e ansiosa por ajudar.
Quando tinha dezasseis anos e já era suficientemente crescida para
poder ajudar, estava demasiado ocupada com a música e a escola.
Além disso, o pai acreditava que os pomares eram trabalho para
homens.
- Oh, céus - disse uma voz atrás dela, e Lily virou-se para o rosto
surpreendido de Oralee Moore. Oralee era a viúva do capataz de
Nesse instante, Lily apercebeu-se do que tinha feito. Viera aqui para
trabalhar, por muitas razões, sendo a mais urgente o facto de
homens feridos.
Bub era alto, sólido, e não tinha mais de dezoito anos. Fez tanta
questão de não olhar para Lily, que ela teve a certeza de que ele
tudo o resto que ele precisasse de saber, saiu para esperar por
Maida.
Era a manhã mais fria desde que chegara a Lake Henry. A relva na
colina estava coberta por uma fina camada branca, algo entre o
orvalho e a geada. Lily encostou-se à parede de pedra coberta de
trepadeiras, puxou as mangas por cima das mãos e cruzou-as
debaixo dos
de casa, ainda era muito cedo para ligar a John. Pensou se ele já
Lily trocou o casaco por um oleado com capuz, calçou botas e luvas
de borracha e subiu para a frente de Bub, para a plataforma ao lado
da prensa. Não Lhe disse que nunca tinha feito isto, porque não era
o que sentia. Observara o processo centenas de vezes em criança,
e, apesar de os velhos panos de serapilheira terem sido substituídos
por outros de nylon, as grades e a técnica de dobragem eram
exactamente as mesmas.
O que não queria dizer que não sentisse apreensão. Mas havia
também expectativa. Esperara muito tempo para fazer isto. Na sua
mente, era tanto uma brincadeira como um trabalho. Poucos
minutos depois, a grade de baixo estava no lugar, com um pano por
cima, as pontas caídas para os lados, e as primeiras maçãs
passavam pela trituradora e caíam no grande funil por cima delas.
Bub puxou uma alavanca, apenas o suficiente para deixar cair a
quantidade certa de puré sobre o pano, o que aconteceu com um
splat que fez Lily rir, e ela deitou de imediato mãos ao trabalho.
- Já soube do acidente.
Lily sorriu.
- Nada?
- Absolutamente nada.
- E qual é?
- Entramos com um processo por difamação de personalidade. Um
processo significava um julgamento, o que duraria para sempre. Lily
não gostara dessa ideia desde o princípio. Agora, pela primeira vez,
com o seu nome ausente dos jornais de Boston há já dois dias
seguidos, perguntou a si própria o que aconteceria se os dois dias
se tornassem três, depois cinco, depois dez. Perguntou a si própria
se as pessoas se esqueceriam. Se assim fosse, talvez o melhor que
tinha a fazer fosse deixar o assunto morrer.
Art era muito mais filho de Anna que de Phipps. Embora tivesse
apenas trinta e um anos, fora criado na fábrica e conhecia bem o
seu funcionamento. Anna confiava nele para saber quando era
preciso substituir uma máquina ou pôr de lado um design
ultrapassado. Confiava no seu jeito com os empregados e
accionistas, e acreditava que, se alguém seria capaz de salvar uma
pequena fábrica têxtil na era dos conglomerados, esse alguém era
Art. Não precisava de o supervisionar para saber que ele faria o que
era mais correcto.
- Como sabe?
Anna sorriu.
- Houve um acidente...
John era da opinião que, a cavalo dado, não se olha o dente. Anna
estava praticamente a suplicar-Lhe que perguntasse. Esperou
apenas o tempo suficiente para Charlie tomar nota do pedido, e
depois disse:
"E com muita razão", estava John a pensar, quando Anna disse:
Ele não sabia. Não sabia muito sobre a gaguez, excepto que a
pessoa que ouvia um gago a falar muitas vezes sofria tanto como o
próprio gago. Gaga, no caso.
- Sempre. Começou a falar tarde, não disse grande coisa até aos
quatro ou cinco anos, e mesmo então falava muito pouco,
provavelmente porque era difícil para ela. Por isso, ao princípio, não
se aperceberam do problema, e depois pensaram que fosse algo
que se resolveria por si próprio, mas, quanto mais a faziam falar,
pior ficava. Era de partir o coração, e quando Maida ralhava com ela
por gaguejar... - Anna suspirou e recostou-se.
- Porquê?
Anna pedira uma salada Cobb cheia de coisas boas e coberta por
uma dose generosa de molho de queijo azul. Em comparação, o
hambúrguer de queijo e bacon com batatas fritas de John parecia
insípido.
- Sobre a Lily?
- Quem os descoseu?
- Eu não fui - disse ela com orgulho. - Pensei que, já que ele
ganhava a vida a trabalhar com tecidos, bem podia tratar disso
sozinho... e foi o que ele fez, com alguma contrição. Mas
atençãoapontou para John com o garfo - se disser a alguém que eu
Lhe contei isto, falo com o Armand e ele corta-Lhe o seu bónus
anual. Esse é o homem de falinhas mais mansas que eu conheço.
- O Armand?
- Você não pode saber - disse, com um gesto largo. - Não é mulher -
espetou um pedaço de presunto. - Mas percebeu o que eu queria
dizer em relação ao outro assunto. Todos temos nódoas. Se não
tivéssemos, a palavra "segredo" não existiria... para não mencionar
que, mesmo que contássemos a alguém, não seria muito grave.
A única explicação que john via, era que Terry estava a tentar
encontrar bases para reforçar o ângulo da culpabilidade de Lily. Mas
ele estava a pisar território que John considerava seu, em particular
agora que ele e Richard Jacobi tinham um acordo. Quando voltou
ao escritório, depois de almoço, estava num estado de espírito
lutador, mas, antes de poder decidir o que fazer a esse respeito,
Armand telefonou.
- Sabias do casamento?
- Não...
- Isso ainda está para se ver - disse Terry, e John sentiu subitamente
uma forte pontada de ódio.
- Tu? - Terry riu-se. - Essa é boa. Não tens tomates para vir atrás de
mim ou seja de quem for. Estás com inveja, o teu problema é esse.
John esperou.
Ele pigarreou.
- Ah... não. Quer dizer, não sei. Ainda não vi os jornais - engoliu em
seco. - Posso entrar por um minuto?
Ela não pestanejou. A única reacção visível foi um leve tremor das
mãos que seguravam o xaile.
- Sei que não tenho nada a ver com isso... - começou ele, mas ela
interrompeu-o.
- De quem?
- Sim - disse John. - Isso dá-te qualquer coisa para contar ao Willie
Jake.
- O crime já prescreveu.
- E depois?
- Depende. Se tivermos alguma coisa contra ele, podemos
neutralizá-lo.
- Oh, não. Ele poderá dizer o que quiser. Mas ninguém Lhe dará
ouvidos. Apenas isso.
John achava que era um bom plano. Lily parecia estar a pensar no
assunto. Quando o café começou a ferver, baixou o lume e ficou
junto do fogão, de braços cruzados e cabeça inclinada, imersa em
pensamentos.
Nem sabia tão bem, decidiu cinco minutos depois, quando ela Lhe
serviu uma caneca.
- Nada - disse ele, num tom que talvez fosse de frustração. Lily ficou
aliviada por não vir nada sobre o seu casamento no jornal. Não
estava com vontade de o explicar a Maida, que ficaria zangada e
magoada. Tinham passado todo o dia anterior juntas, sem
discutirem. Era um recorde. Era verdade que o pouco que tinham
falado tinha sido sobre trabalho, mas já era qualquer coisa, e Lily
detestaria ter de agitar o barco agora.
Ela sentiu uma onda de nostalgia. Muitas vezes passara pelo clube
para receber o seu cheque e ficara sentada a beber café e a comer
scones com George e Dan.
Isso era uma boa notícia. Mas outras menos boas pairavam sobre a
conversa.
- o cardeal dissera que iam tratar disso. Deus sabia que tinham con
seguido o pedido de desculpas para ele bastante depressa.
- A cada dia que passa sem sair nada nos jornais, penso em
regressar. Achas que as pessoas se esquecerão?
Lily sempre gostara de Dan, mas não era estúpida. Sabia que uma
das razões por que ele era bom a gerir o clube era a capacidade
que tinha de conseguir dizer aos membros o que eles queriam ouvir.
E tinha a sensação que era isso que ele estava a fazer agora com
ela. A tratá-la com condescendência.
renda.
- Compreendo.
- Para que conste, eu não fiz aqueles comentários como eles foram
publicados. Nunca tive nenhuma paixão pelo cardeal. Nunca
teríamos sequer ficado amigos se ele não tivesse decidido salvar a
minha alma. Para que conste - continuou, sem tentar controlar os
sentimentos -, foi ele a força impulsionadora por detrás da nossa
amizade. Eu não sou católica! Nem sequer sou religiosa! Nunca o
teria abordado se ele não me tivesse abordado primeiro!
- Muita coisa?
- Se não te importares.
- Tony Cohn.
- Esta mera inquilina provavelmente paga mais por mês pelo direito
de aí estar do que alguns deles!
- Eu sei disso. Estou do teu lado, Lily. Não estou a dizer que eles
têm razão. Estou apenas a contar-te o que disseram. Querem saber
o que é verdade e o que não é, em que pé está o caso, se estás a
planear lutar. Sabem que não estás cá e querem saber quando
voltas.
- E perguntaram-te a ti?
Tony Cohn pensava - mas quereria ser alvo dos olhares deles? Dos
- Porque não era um bom sítio para trabalhar - disse Maida por
Maida ficou imóvel por um minuto. Depois, com voz tensa, disse:
Lily ainda não tinha pensado nas suas escolhas, depois deste novo
desenvolvimento. Saíra de Boston convencida de que voltaria. Sim,
ainda tinha um contrato de arrendamento. Podia ficar no
apartamento até ao fim de Junho, independentemente do que as
pessoas do prédio dissessem. Mas, sem emprego?
- Muito.
Ele ficou pensativo por mais um minuto, mas ela não se importou
com a demora. Sentia-se bem com ele ali, como se estivesse
finalmente a fazer alguma coisa.
- O preço é o mesmo?
- Sim.
- A minha história.
- Um exclusivo.
- Para o jornal?
Ela não podia argumentar contra isso. Um livro talvez não fosse
assim tão mau. Sugeria algo mais... ponderado.
- Ou seja, sim.
Ah, ele já falara com uma editora. Era ambicioso. Acabara de descer
na consideração de Lily. Fora sensata em não confiar demasiado,
nem com muita facilidade.
- O livro seria uma edição importante - disse ele. - Esta editora tem
um historial notável de best-sellers. Lança dezenas de milhares de
cópias, consegue críticas nos principais órgãos de comunicação
social, aparições nos principais talk-shows.
história.
- De honestidade?
- Não.
O olhar dele sugeria toda uma outra história por detrás dessa
Ele sorriu.
- É o desespero.
- Não posso comprar uma nova. Vai haver um leilão no norte. Posso
comprar uma mais barata. É uma pena. Trata-se de uma das últimas
pequenas indústrias de lacticínios. Não conseguiu aguentar-se.
- Podias ter tentado de novo - disse, num tom mais gentil. Maida
sorriu, abanou a cabeça e fechou os olhos.
- Ainda não. Porque pensas que ela veio, senão para te ver? E,
claro, Alice ainda mal tinha saído do carro e já estava a dizer:
- E cantar.
- Sim.
- Foi o que ouvi dizer. É muito simpático da tua parte, Lily. Outra
pessoa na tua situação não estaria a fazer absolutamente nada.
Outra
- Decididamente um sedutor.
- Nãoé?
- Não.
- Alice!
- Estou bem.
Lily pensou que talvez fosse mais ao contrário, e sabia bem como i
sso era.
- Na verdade - disse, estudando o rosto redondo e sério de Hannah
-, ficavas bem com uns óculos Calvin, daqueles fininhos.
- Não vou discutir contigo por causa disso. O facto é que ela não
precisa de óculos. Não me perguntes o porquê de andar a franzir os
Lily sorriu.
Maida não respondeu. Parecia espantada, mas não com Lily. Estava
a olhar para Rose.
ele devia saber que, se Willie Jake não estava no seu escritório às
sete
que Griffin não queria na realidade falar com Willie Jake, mas sim
com ela. Ou, pelo menos, era essa a sua fantasia.
Depois da última conversa entre ambos, a fantasia tinha um rosto.
Poppy imaginava cabelo ruivo, olhos azuis e orelhas pequenas e
bem feitas. Mas continuava a ser a voz o que mais a tocava. Era
grave e divina.
- Muito bem. Mas, se está à procura do Willie Jake, ele não está.
- Isso mesmo.
na verdade estava à sua procura. Consta que Lily voltou para casa.
- E vai dizer-me?
irmã e desta história falsa, não pode ser boa pessoa - disse, mas
num tom amável. Era difícil falar de outra maneira com um homem
tão encantador.
- Trinta e dois.
- Branco.
- Não é nada.
Sem dúvida que sim, mas Poppy não imaginava que ele tivesse
maneira de saber disso.
- Porque pergunta?
- Essencialmente, a primeira.
- Sim?
- Claro.
- Aaah!
- Polígamos?
- A olhar?
- Porque pergunta?
- Porque li que ela não se dá muito bem com Lily, logo é lógico que
deva estar a sofrer.
- Eu diria que uma mãe sofreria sempre numa situação destas. Ele
não respondeu imediatamente. Só um minuto depois disse devagar:
- Touché.
- Tenho uma irmã. Quatro irmãos, mas apenas uma irmã. Seria
portanto de pensar que ela e a minha mãe se dariam muito bem,
sendo as duas únicas mulheres em casa, mas não era assim.
Discutiam constantemente. A Cindy era teimosa e queria fazer as
coisas à sua maneira, e, ao fim de algum tempo, a minha mãe
começou a deixá-la. Teve de o fazer. Um filho só é menor de idade
durante algum tempo. A Cindy saiu de casa no dia em que fez
dezoito anos, e depois cometeu todos os erros possíveis e
imagináveis... meteu-se com tipos imprestáveis, engravidou, fez um
aborto, entrou para a universidade, chumbou, voltou a inscrever-se.
A minha mãe jurava que ela estava por conta própria, mas sofria
sempre que alguma coisa corria mal. Quando um de nós Lhe
recordava as diferenças entre ambas, ela acenava que sim e dizia
que nós tínhamos razão, mas víamos-Lhe a dor nos olhos.
- Elas já se dão melhor?
- Lamento.
espalhados por todo o país, mas ela costumava fazer com que
valesse
a minha mãe quando tinha vinte anos, portanto está agora a viver o
Sempre por mulheres diferentes. Faz com que não valha a pena ir a
pouco embaraçado.
- Porque estou a contar-Lhe isto? Não tem nada a ver com nada.
- O que não tem nada a ver consigo nem com a sua irmã. Não
- E sobre si?
Armand, que acabaria por Lhe dizer, mesmo que fosse apenas de
Assim, disseLhe:
- A minha casa fica junto ao lago. Estou a olhar para ele neste
momento. Está uma bela noite... não está frio de mais. O fim-de-
semana vai ser quente e soalheiro.
- Porquê?
Poppy tinha razão. Estava uma bela noite. Uma Lua grande brilhava
sobre a cidade, transformando o campanário da igreja numa
elegante mão branca, e tremeluzindo sobre o lago e as suas ilhas.
Ao longo das margens via-se uma ou outra luz por detrás de uma
janela, mas era esse o único sinal de vida.
Tinha uma ligação a este local. Não sabia se tinha a ver com o facto
de ter crescido ali, de ter ali a mãe e duas irmãs, ou de ter o pai e
muitos outros familiares enterrados ali, sob a lua, no cemitério ao
lado da igreja. Mas, naquele lugar, sentia-se em paz. Estranhamente
satisfeita.
John não estava ansioso pela chegada do Inverno, e não era por
causa do frio. Adorava esquiar, caminhar pela neve, pescar no gelo.
Adorava o calor do café de Charlie, com a neve a esvoaçar entre as
bétulas no exterior. Adorava chocolate quente com chantilly. Apesar
disso, o Inverno era uma época solitária.
Fazendo deslizar o remo pela água espelhada, recuou, virou a
canoa e dirigiu-se a Thissen Cove. Quando lá chegou, o Sol já
desaparecera por detrás das colinas a oeste e as sombras na
margem eram mais púrpura que azuis. A dez metros da margem,
recolheu o remo sobre a amurada e deixou a canoa à deriva. Depois
esperou por um sinal.
Teve três.
Em Lake Henry não era esse o caso, mas isso não constituía um
problema. Pela primeira vez na sua vida, Lily tinha a cozinha, o
tempo, e a vontade necessários para cozinhar. E não era
propriamente por tédio. Era mais por curiosidade.
A galinha com limão que ela e Poppy tinham feito era uma das
receitas de Celia. Esta noite fizera outras duas. Uma era uma
espécie de estufado de milho-doce, adequado à estação e
particularmente prático, uma vez que Poppy Lhe impingira uma
dúzia de maçarocas de milho novo, que um amigo bem intencionado
Lhe impingira a ela. A segunda era pão de milho, feito com mais
desse mesmo milho, farinha, ovos, manteiga, xarope de ácer e
nozes.
- Pensei nisso assim que bati. Desculpa. Não queria assustar-te. Ela
respirou fundo. Ainda tinha o coração acelerado, mas calculou que
isso fosse o efeito secundário de estar a olhar para um homem tão
alto e bem-parecido num sábado à noite. Não precisava de confiar
nele para ficar satisfeita com a sua presença. Cantar não era a
típica còisa de que sentia falta ultimamente. A companhia de
pessoas era outra.
- Já jantaste?
- Também eu.
Mas não podia fazer nada a esse respeito, pelo menos com John ali
e o jantar quente e pronto. Deixando-o decidir por si próprio se
queria ir ou ficar, voltou à cozinha e pôs um segundo lugar na mesa.
Um minuto depois, tinha o pão de milho cortado e arrumado num
cesto. Nessa altura, John já estava de pé na sala, a olhar à volta.
Lily serviu o estufado, bastante satisfeita consigo própria. Só quando
começou a encher os copos de vinho - enquanto ele continuava a
observar o que o rodeava - é que sentiu algumas dúvidas.
Endireitou-se lentamente.
- Casas de pássaros?
Lily avisou:
- Isto não é para o teu livro. É apenas porque passaste por cá, por
acaso, quando eu me preparava para comer.
- Não é para o livro - prometeu ele, aproximando-se da mesa com
uma expressão apreciativa. - Seria incapaz de partilhar isto com
outras pessoas. Comes sempre assim?
- Não. Não sou grande cozinheira. Isto é um aviso. Come por tua
conta e risco!
- Qualquer coisa que cheire tão bem não pode de maneira alguma
ser má. Além disso, cozinhaste para ti própria. Se tivesses
cozinhado para mim, talvez eu sentisse algum receio de que
tivesses posto qualquer coisa... um bocadinho de arsénico, uma
pitada de cicuta - ergueu as sobrancelhas e apontou para o prato do
seu lado da mesa.
- Sento-me aqui?
- Também os mergulhões.
Quando ela levantou também o seu, disse: - À tua voz. Mas John
não soava como Terry Sullivan. Seria ela uma tola por
- De trabalhar no clube?
- Tens tido mais em que pensar - disse ele, de olhos fixos nos dela. -
Não posso começar a comer enquanto tu não começares, mas o
cheirinho deste estufado está a dar cabo de mim.
tocar. Era uma noite boa para Liszt - um estado de espírito em modo
maior, para variar. Estava a pensar nisso quando voltou à mesa.
- O quê?
- Sim. Só ainda não sei o que significa - deu uma dentada no pão de
milho, mastigou, engoliu. - Está uma delícia - disse, e enfiou o resto
da fatia na boca. Depois de ter bebido um gole de vinho para o
empurrar, continuou: - Fiz mais uma busca de propriedades. O
resultado confirmou todos os apartamentos que o Terry já arrendou.
Deu-me também outras informações, como o facto de ele conduzir
um Honda com oito anos e um registo de propriedade irregular. Isso
significa que ele é preguiçoso, esquecido ou provocador. Deixa o
registo expirar, depois volta a registar o carro. Tem um problema
com multas de estacionamento. Geralmente paga uma data delas
de cada vez, o que coincide regra geral com o registo do carro. Tem
multas por excesso de velocidade e contesta-as.
- E ganha?
- É tudo?
- Mas é estranho, não achas? Sim, é verdade que ele não é muito
amigo de festas. Mantém a vida pessoal separada da vida
profissional. Mas não seria normal ter convidado amigos para o
casamento? Ou contar as boas notícias aos amigos, mesmo que
fosse apenas sobre o noivado? A maior parte dos homens gosta de
apresentar a mulher às pessoas com quem trabalha. Ou fazem
referências à sua existên cia, como "Tenho de me despachar porque
a minha mulher está à minha espera." Mas o Terry não. Dar cabo de
três casamentos é uma coisa. Mas o facto de ninguém saber nada
de nenhum dos três é outra. Eu diria que é bizarro.
- Fala-me de ti.
Ela queria saber se ele era honesto. Queria saber se, na hora da
verdade, ele poria os seus próprios interesses à frente dos dela.
Queria saber se podia confiar nele.
Mas não valia a pena fazer essas perguntas. Se não tinha a certeza
de poder confiar nele, as respostas seriam inúteis. Assim,
perguntou:
- O Terry é da tua idade e já foi casado três vezes. E tu? Ele lançou-
Lhe um sorriso irónico.
- O que é que ouviste dizer? Não estou a dizer que andaste a fazer
perguntas, mas as pessoas falam. A Poppy dissete onde eu moro? -
a sua voz tinha uma inflexão interrogativa, que indicava que ele
estava apenas a dar um palpite.
- Porquê?
John disse:
Querendo ter uma imagem do sítio onde ele o fazia, Lily perguntou:
Lily estava a pensar que ele devia ter tido também ofertas boas de
outros lados, e que era preciso ser um determinado tipo de pessoa
para viver em Lake Henry, quando ele voltou atrás.
- Sim - disse, em voz baixa. - Na verdade, foi por causa dele. Temos
assuntos por resolver, eu e o Gus.
- E estão a resolvê-los?
Lily sabia o que ele queria dizer. Maida também era assim.
- Boas, na maioria.
- Na maioria.
- Sim.
- E tu?
- Oh, sim. Todos os anos, a partir dos onze. Foi onde toquei pela
- É melhor ir andando.
Mas foi isso que imaginou fazer - isso e muito mais, deitada na
cama durante as longas horas de escuridão, sentindo-se sozinha e
carente. A maldita camisola não ajudava nada. Estava numa
cadeira, a cheirar a John. Adormeceu frustrada e acordou confusa.
Não sabia se devia confiar em John. Não sabia se devia misturar
negócios com prazer. Não sabia se devia acrescentar mais uma
complicação à sua vida, numa altura em que já tinha tantas.
Queria ver o panorama geral agora, mas a sua mente estava cheia
de pensamentos pequenos e contraditórios. O padre Fran poderia
tê-la ajudado a organizá-los. Poderia tê-la ajudado a alcançar
alguma paz emocional.
Mas o padre Fran já não estava disponível. Assim, uma vez que era
domingo de manhã, decidiu ir à igreja.
parou à porta do salão principal. A sala estava cheia, fila após fila,
O wens, que sem dúvida deixara o espaço vazio para estar mais à
E porque estava ele ali? Depois de passar a noite com uma erecção
que se recusava a desaparecer, sentira a necessidade de elevar os
seus pensamentos. No entanto, bastou um olhar para Lily para as
suas boas intenções irem por água abaixo. Assim, dedicou-se a
cantar cada hino a plenos pulmões e a ouvir o sermão do pastor,
escutando atentamente cada palavra. Quando a missa acabou,
estava completamente controlado.
menos.
- Da Lily?
- Sim.
- E tu, achas que sim? - retorquiu ela. - Conheces esta gente melhor
do que eu.
Era verdade.
- Porquê?
- E o que era?
- Que a Maida sempre fora assim, desde que veio para cá e casou
com o George.
- Então a vida dela era perfeita nessa altura, antes de a Lily nascer?
- Pobre Maida - insistiu Mary Joan. - Ela tentou tudo, com a Lily.
Ela endireitou-se.
- E o que foi?
- Talvez não. Mas a Maida é minha amiga. Não Lhe vou revelar
coisas privadas.
mas ele devia ter resistido, porque a barba cinzenta que ostentava
tinha mais de dois dias. Com os olhos tortos e o cabelo branco
desgrenhado, era a figura mais triste que John alguma vez vira. E
tinha as meias rotas.
- Já almoçaste? - perguntou.
John não acreditou nem por um segundo. Este era o homem que
costumava esmagar um pimento verde na mão, parti-lo aos pedaços
e comê-los um a um. Mas não ia discutir. Não valia a pena.
Não que Gus alguma vez concordasse. Gus não tinha em grande
conta aquilo que John fazia. Rudyard Kipling escrevia ficção. Isso
era criativo. Mas não-ficção? Para Gus, os jornalistas escreviam
sobre as notícias porque não tinham inteligência para criar as
notícias. John podia discutir até perder a voz, mas nada que ele
dissesse convenceria Gus. Talvez um livro com sucesso comercial o
conseguisse.
- É o mínimo que posso fazer. Tens sido uma grande ajuda no lagar.
- Gosto do trabalho.
- Devia pagar-te.
Lily não sabia qual era a ligação entre o novo bebé de Jennifer
Hauke e a acção que ela ia pôr contra o jornal, mas o bebé era sem
dúvida um tema de conversa mais neutro.
- Eu também.
- Pois era.
- É, sim.
- Mamã ?
- Estou aqui - gritou Maida em resposta. - É a Rose. Lily sabia. A
voz de Rose era diferente da de Poppy, e mais ninguém chamava
mamã a Maida.
- Vão querer - dissera Lily, rezando para que assim fosse. Ela e
Hannah tinham escrito os convites no bonito papel de carta de
cornucópias de Maida. Hannah tinha obrigado o pai a levá-la à
estação dos correios na sexta-feira à noite, para os enviar. Lily
soubera disto através de Poppy, que o soubera através de Rose,
que segundo parecia ficara ligeiramente aborrecida.
- Ela está a dar comigo em doida com esta história da festa - disse
Rose agora, a Lily e Maida.
- A Lily Blake?
Não era o primeiro telefonema, e não seria o último, mas era aquele
que Lhe interessava mais.
menina?
- E estou!
- Mas está sempre a fazer perguntas sobre a Lily! Toda a gente faz
perguntas sobre a Lily!Já recebi quatro telefonemas esta manhã de
pessoas da imprensa a perguntar pela Lily!
- Isso é porque o mundo já sabe que ela está de volta. Desta vez é
mais do que um rumor. Ela foi vista. Então, o que pensa?
- Sobre o quê?
Poppy suspirou.
- Griffin, Griffin, Griffin. A imprensa foi cruel com a minha irmã. Que
tipo de pessoa seria eu se Lhe dissesse alguma coisa?
- E você não?
- Porque é que telefona para mim? Porque não liga para outra
pessoa qualquer?
- Não disseram que sim nem que não. Nunca conheci pessoas mais
evasivas.
Poppy sorriu.
- Não me parece.
Ele pigarreou.
- Como assim?
Griffin não disse nada durante a curta pausa que se seguiu, mas
Poppy conseguiu ouvir um sorriso na sua voz profunda quando ele
perguntou:
Ele riu-se.
Mas a fantasia de Poppy era que ele era o seu príncipe, e que ela
podia caminhar até aos braços dele. Se ele viesse visitar Lake
Henry, a fantasia iria por água abaixo.
- Porque estás a ligar para mim? Por que raio estás sequer a pensar
na Lily Blake? A história morreu. já te disse isso da última vez que
ligaste, e continua morta - estava revoltado. - Tudo não passou de
um balão de ar quente que não deu em nada. Meteste água, Terry.
- Eu não. A minha história mantém-se.
- Por causa da cassete? - atacou John. - A Lily não sabia que estava
a ser gravada. Isso é ilegal.
- Ah, então falaste com ela. Isso quer dizer que ela está de volta.
John não podia acreditar - e isso não tinha nada a ver com o seu
lado mais competitivo.
- Sim, claro. E vais provar isso com uma cassete ilegal? - de súbito,
lembrou-se de uma coisa. - Uma cassete manipulada?
- Não faço ninguém parecer aquilo que não é, mas estou a avisar-te.
Se remexeres na vida dela, ela vai remexer na tua.
- Ela, ou tu?
- Não estava sequer a pensar nisso, mas é uma boa questão. O que
eu queria dizer é se a cassete não foi artificialmente manipulada.
- Porque a mulher em questão nega ter dito as coisas que ele cita
no jornal como sendo afirmações dela. Estou a partir do princípio
que, se ouviste a cassete, ela deve ser mais ou menos como o que
ele escreveu, caso contrário não o terias publicado dessa forma.
Brian gemeu.
- E quando é que sugeres que ele tenha feito isso? Não teve tempo,
Kip. Esqueceste depressa. Era tarde, e ele estava a trabalhar em
cima do prazo para acabar o artigo.
- Aposto que tinha o texto todo escrito dias antes, à excepção das
citações.
- Sim, e saiu de junto de Lily, correu para aqui, e às onze horas
estava ao telefone comigo, a mostrar-me a cassete. Quando é que
achas que ele teve tempo para a editar?
- Ouviste tudo?
- Mas como sabes que ele não omitiu outras? Como sabes que não
tirou essas partes do contexto, um contexto que mostraria que eram
apenas uma piada?
Brian resmungou:
- Ou então é ele que está a mentir. A história dele já caiu por terra.
Estás a defender um jornalismo de terceira?
Brian suspirou.
- Não vou levar isso a peito. Vou recordar a mim próprio que o Terry
não se portou muito bem contigo e que talvez, apenas talvez, tu
queiras vê-lo em maus lençóis. Mas o meu interesse é este jornal, e
esse não vai cair. Confia em mim, John. A cassete é verdadeira.
- Porque não?
- Ele ameaçou-a?
- Porque ele é perigoso! Se eu disser alguma coisa sobre ele, ele diz
alguma coisa sobre mim. Tenho os meus segredos, como toda a
gente. E você é da comunicação social, como o Terry. Sabe
exactamente o que quero dizer. Vocês são todos perigosos.
No silêncio súbito que se seguiu, ela deve ter percebido o que tinha
dito.
- Houve duas.
- O Terry é louco.
- Eu diria que sim, mas não sou psiquiatra. Sou apenas um escritor
que está curioso sobre os motivos que o levaram a perseguir o
cardeal Rossetti. Tem alguma ideia?
- Ele disse que me ligaria - disse, com voz tímida. Com base na
altura em que tinham estado casados, John calculou que ela devia
ter pelo menos quarenta anos, mas pela voz parecia ter metade
disso.
Gentilmente, perguntou:
- E disseLhe porquê?
- A sério.
John não ia insistir com ela nesse aspecto, tal como não insistira
com Maddie.
- Sim.
- Porque não?
- Boa sorte.
John riu-se.
- Meadville.
- Sim.
Já era um princípio.
- Em relação a quê?
Desligou o telefone, mas não fazia mal. john virou-se para o com
putador e começou à procura. Meadville era um ponto de partida
praticável. Tinha uma fracção do tamanho de Dallas.
John não sabia que havia um irmão, tal como não soubera da
existência das ex-mulheres.
- Bom, quanto a isso, não sei dizer-Lhe, uma vez que ainda não
estava cá. Só temos falado dos trabalhos dele. Escreveu alguns
artigos maravilhosos para a revista da escola. Um dos que escreveu
no segundo ano ganhou uma data de prémios. Até foi publicado no
Tribune.
- O Meadville Tribune?
Cinco minutos depois, John estava a ler uma cópia do artigo. Era
sobre a vida no bairro italiano de Pittsburgh, no rescaldo da
Segunda guerra Mundial. O artigo não era longo. Ao lê-lo, John viu
os germes do actual estilo e capacidades de Terry. Mesmo nessa
altura, ele não usava três adjectivos quando um único adjectivo
potente bastava, e os adjectivos que escolhia eram de facto
potentes. Descrevia as personalidades locais de uma forma que
Lhes dava vida. Não que John quisesse cruzar-se com alguma
delas. O artigo não era muito lisonjeador. O vilão era a Igreja
Católica local.
Mas teria de ficar para depois. O Lake News estava pronto para
recolha. Satisfeito por pôr a questão de Terry de lado num ponto tão
optimista, dirigiu-se a Elkland, carregou as três mil cópias do jornal
no Tahoe, depois distribuiu-as pelas estações dos correios de
Elkland, Hedgeton, Cotter Cove e Center Sayfield. Todas as
cidades, à excepção da última, tinham uma loja de conveniência
central, nas quais entregou também alguns exemplares, bem como
no pequeno restaurante familiar em Center Sayfield; e,
inevitavelmente, encontrou pessoas que conhecia e parou para
conversar, acabando por jantar com um amigo em Cotter Cove. já
era tarde quando voltou a Lake Henry. Deixou um fardo de jornais
nos correios, outro na loja de Charlie, e finalmente outro em casa de
Armand, e, com tudo isto, esteve suficientemente distraído para só
voltar a pensar em Terry quando conduzia pela estrada do lago em
direcção a Wheaton Point.
Mas estar sem ele também era bom. Estava uma noite muito
agradável, para princípios de Outubro. Ela vestia calças de ganga e
a camisola de John, que era de longe demasiado grande para ela,
mas
Ele pousou os pulsos nos ombros dela. O rosto dele estava quase
ao nível do seu, iluminado pela luz da janela atrás de Lily, que
conferia aos olhos dele um brilho excitado e adicionava calor à sua
boca.
- Sim?
- Não te soa familiar? Não te parece familiar?
- Isto é bom.
- Pois é.
Antes que ela conseguisse perceber o que ele estava a fazer, John
passou os braços à volta da cintura dela, arrebatou-a do alpendre e
fê- la rodopiar num círculo jubilante. Quando a pousou, puxou-a
para si num abraço.
Lily adorou. Não se lembrava da última vèz que alguma coisa Lhe
soubera tão bem. Nem mesmo aquele banho quente com o óleo de
jasmim de Celia fora tão bom. E ainda não acabara. Quando Harry
Ele também sentia o mesmo. Mesmo que o seu corpo não o tivesse
traído de forma tão viril, ela tê-lo-ia percebido pelo beijo que ele Lhe
deu quando a canção terminou. Era mais profundo e mais ávido.
Com os braços à volta do pescoço dele, Lily deixou-se levar.
Entregou-se à sensação e flutuou.
- Lily?
velho morresse, isso reduziria grande parte dos últimos três anos a
uma farsa.
Lily insistira em vir também, e ele não estava com disposição para
pouco como se sentira aos quinze anos, quando ele e a mãe tinham
Gus estava nesse quarto, mas quase oculto no meio das máquinas.
Uma dava-Lhe oxigénio, outra medicamentos; uma monitorizava
- Não está muito bem - respondeu Harold Webber. Gus estava sob
os cuidados dele desde que tivera o primeiro ataque, pouco antes
de John ter voltado. Desde então, John e Harold tinham trabalhado
juntos para tentar que Gus vivesse uma vida mais tranquila, mas
fora um esforço em vão. A parte física do estilo de vida de Gus era a
menos grave. Apesar de terem conseguido aliviar o stress físico,
obrigando-o a reformar-se, isso servira apenas para agravar as suas
emoções.
- Desta vez o ataque foi maior do que o último - disse Harold em voz
baixa. - As perspectivas não são boas.
- A Dulcey viu luzes acesas, mais tarde do que o normal, e foi ver se
estava tudo bem. Foi ela que chamou a ambulância. Podia ter sido
muito pior. O cérebro dele não esteve privado de oxigénio. Ainda
funciona. Ele está apenas muito, muito fraco.
- Está consciente?
- Podemos entrar?
- Não vejo que isso possa prejudicá-lo - disse Harold. - Ele é uma
pessoa agitada por natureza. Não o perturbarão mais do que
- Vem comigo. Por favor - pediu, e ela foi, como ele sabia que iria.
Lily era um ser humano mais decente do que qualquer Kipling, sem
dúvida nenhuma.
- Pedras?
- No teu aniversário?
- Têm o quê?
- Tu e a Maida?
- Principalmente.
- Tens sorte por ela estar bem de saúde. Ainda há tempo - mas o
tempo estava a esgotar-se para Gus. john sentia-o mais
intensamente do que alguma vez sentira alguma coisa. Quando
olhava para trás, via que os sinais já lá estavam. Raios, das últimas
vezes que John o vira, Gus não se mexera do sofá.
E ela tinha razão. Gus era seu pai. john não estava por perto
quando aconteceram coisas más a Donny, e arrepender-se-ia disso
- Estou bem.
- Leva o Tahoe e vai para casa dormir. Eu não posso sair daqui.
Lily dormitou.
John também tinha sono, mas não se deixou adormecer. Estavam a
meio da noite, o quarto estava na obscuridade, e o bip do monitor
cardíaco era hipnótico. Sentia os olhos secos e a arder, um músculo
a pulsar debaixo de um deles, mas recusou-se a adormecer.
Quando um anjo com farda de enfermeira Lhe trouxe um café
quente, bebeu-o até à última gota. Continuou a olhar para as
máquinas e para o que as enfermeiras faziam, porém Gus não
acordou.
John olhou de novo para Gus. Quando pensou ter visto uma
pálpebra a estremecer, levantou-se e aproximou-se da cama.
Estendeu o braço para pegar na mão do pai, mas retirou-o antes de
Lhe tocar. A relação deles não era física. Mas, quando falou, a sua
voz tinha um tom de urgência: - Gus? Fala comigo, Gus.
- Não consigo.
- Porquê?
- Sobre o Gus?
coisa.
John queria pensar que sim, mas escrever era diferente de construir
muros de pedra. Os muros de pedra eram funcionais e estéticos.
Não tinham o poder de arruinar pessoas. A escrita tinha. Essa era a
parte que John tinha atravessada na garganta. Talvez Terry tivesse
razão. Talvez ele não fosse suficientemente duro, se isso significava
manejar uma caneta venenosa.
Sim, orgulhava-se daquilo que escrevia. Deixara Boston quando
essa sensação desaparecera. Orgulhava-se do Lake News. Era
bem escrito e servia um objectivo positivo - era funcional e estético.
- Pai ?
Gus tinha o olhar perdido no nada, depois focou-o em John, mas ele
não conseguiu perceber se havia alguma consciência ou
pensamento. Quando os olhos do pai se fecharam de novo, John
olhou para o monitor cardíaco. O ritmo pareceu errático por um
segundo, depois normalizou.
John suspirou.
John ficou grato pelo calor da caneca nas mãos. Ter Lily ao seu lado
ajudava, mas os ventos da sua história com Gus eram frios. Oh,
sim, uma vida inteira de "devia ter feito".
Queria estar com ele. Era tão simples - e fácil e natural - como i sso.
- Mas por que raio estás tu aí? - perguntou Maida. A sua voz era
cortante o suficiente para despertar uma reacção condicionada em
Lily. Uma onda de ruído surdo começou a crescer dentro dela.
sugerir vida. john ergueu os olhos e viu Gus a olhar para ele. A sua
voz era rouca e irregular, mas John ouviu cada abençoada palavra.
que... nunca fui suficientemente bom... nem para a tua mãe... nem
Mas algo o puxou de novo para junto da cama. E assim ficou mais
algum tempo com Gus, e foram momentos de paz. Quando teve a
certeza de que a alma do pai passara para onde quer que estava
destinada, tocou pela última vez no ombro de Gus e saiu do quarto.
Ela pousou os dedos nos lábios dele e abanou a cabeça para Lhe
indicar que não dissesse mais nada. Sentindo aquela mesma
incrível sensação de ter o coração cheio, saiu do carro e ficou a vê-
lo fazer inversão de marcha e afastar-se. Quando o Tahoe
desapareceu, contornou lentamente a casa.
Eram quase cinco da tarde. O lago reflectia a Elbow Island, a
margem oposta e o céu, e tudo parecia calmo e reverente na
sequência da morte de Gus. Sentindo necessidade de comungar -
com Celia, com um mergulhão ou dois - caminhou sobre as agulhas
de pinheiro, desceu os degraus e dirigiu-se à ponta da doca, sempre
a pensar se seria louca por sentir aquilo que sentia.
Mas, por mais que pensasse, isso não impedia os sentimentos, nem
ela queria realmente que impedisse.
Também era a sua casa. Mas teria alguma vez sido realmente o seu
levou-a ao peito.
Gus, e vinha dar um jeitinho para você não encontrar a casa numa
John acenou.
- Obrigado por ter vindo cá ontem à noite. Não gostaria que ele
tivesse morrido aqui sozinho.
- Não está muito desarrumada. Para o fim, ele já não tinha forças.
Vá para casa, Dulcey, para junto dos seus filhos.
John estava comovido. Gus não era mais simpático com os vizinhos
do que fora com a família, e no entanto estas pessoas tinham
sentido a necessidade de marcar a sua presença. Faziam-no sentir-
se culpado por todos os pensamentos negativos que tivera sobre
Ridge, o que só serviu para aumentar a sua confusão.
Depois ouviu uma voz fraca e rouca. "Fui eu quem te desiludiu. Fui
eu que falhei. Fui eu que nunca fui suficientemente bom. Nem para
a tua mãe. Nem para Don. Nem para ti. "
Ali não havia tempo, apenas uma sensação de que a morte não
era a coisa mais natural e certa que alguma vez fizera. Não estava a
Ele demorou-se, com relutância em deixá- la. Por fim, deslizou para
o lado e puxou-a para si, mas não falou. Beijou-a suavemente e
aninhou-a contra o seu corpo, pensando que seria perfeitamente
feliz se ficasse assim deitado, imóvel, ao lado de Lily Blake, para o
resto da sua vida, mas depois pensou melhor quando, momentos
depois, o seu pénis endureceu. E ela estava pronta. Recebeu com
prazer tudo o que ele fez, nesse momento e nas horas que se
seguiram, e a iniciativa estava longe de ser só dele. As mãos dela
não eram experientes, mas aprenderam. A sua crescente ousadia
era, por si só, um afrodisíaco que alimentava a excitação dele.
Mas agora eram amantes. A dada altura, durante o dia, Lily acei
tara-o. Podia debater-se quanto quisesse, questionar se seria louca
por Lhe confiar as suas emoções, mas isso não alterava o facto de
que gostava muito dele.
Ela apontou.
- Misturadas?
- Qual é a vossa?
- Ao meio-dia.
- Quando é?
- Amanhã de manhã.
Ela inspeccionou o rosto dele. Mesmo na dor, era forte. Ela beijara
aqueles olhos fechados e aquela boca aberta como ele Lhe tinha
mostrado.
- Tens a certeza?
Ele olhou para ela, depois inclinou a cabeça para trás e estudou a
árvore. Ficou calado tanto tempo, que ela desistiu de esperar.
Depois ele baixou a cabeça e sorriu.
E mais ainda.
Oh, sim.
E mais ainda. Pousou a mão no peito dele, agora coberto por uma
camisa, como não estivera na noite anterior. Ele não era tão peludo
como certos homens. Uma pele macia, sobre músculos secos. Tinha
alguns pêlos na parte superior do peito, uma mancha maior por cima
do umbigo, outra mais densa no ventre.
- Vou atrás de ti até casa - foi tudo o que ele disse, mas havia nas
palavras uma intimidade, uma promessa.
Não falou. A voz que ela ouvia estava dentro da sua cabeça.
Oferecia-Lhe uma vasta gama de possibilidades - a necessidade de
vida em face da morte, a necessidade de um amigo em tempos de
inimizade, até pura e simplesmente luxúria. Podia também ser amor
- um pensamento interessante, um pensamento assustador. Por isso
afastou-o da mente.
Sem saber bem como isso cairia aos olhos de Lake Henry, Lily
manteve o rosto baixo. Depois de algumas orações, o caixão baixou
à terra. Ela conseguiu sentir a tensão de John nessa altura, e não
Lhe passaria pela cabeça afastar-se dele, mas estava mais uma vez
encurralada, desejando uma privacidade que Lhe era negada. As
pessoas passaram depois por John, com uma palavra breve, um
aperto de mão, um toque no braço, e os seus olhos voltavam-se
sempre para Lily. Havia rostos com nomes - Cassie; Charlie Owens,
pai e filho; Willie Jake e a sua Emma; Allison Quimby; Liddie Bayne -
e rostos sem nome. Lily acenava, embaraçada, engolia em seco, e
agradecia à sua estrela da sorte por não ter de falar. Estava longe
dali, em quase todos os aspectos.
Terry era outra coisa. Para Lily, Terry era caça aberta. john gostava
da ideia de poder ajudá-la a provar intenção maliciosa da parte dele.
Podia fazê-lo sem qualquer conflito de interesses.
- Franzino?
- E a mãe do Terry?
- Ela não sabia que ele era tão mau. As mulheres nunca sabem. Os
homens só mostram como são quando é tarde de mais para voltar
atrás. Bom, este não esperou muito tempo. Virou-se contra ela na
noite de núpcias, contou-me ela mais tarde. Levantou um dedo e
disseLhe para nem sequer pensar no passado. Ela jurou que não
pensava, mas ele não acreditava.
- Não sei. Perguntei-Lhe uma vez, mas ela parecia arrependida por
já ter falado de mais.
- É um palpite razoável.
A imaginação de John estava a trabalhar furiosamente. Precisava
de mais.
- Olá, estou a tentar localizar uma velha amiga. Penso que ela
andou aí. Chama-se - disse, pronunciando claramente as palavras -
Jean Bocce. Se a minha informação está correcta, ela andou aí com
Fran Rossetti.
A mulher riu-se.
- Pode-se dizer que sim. Bocce, foi o que disse? Ele soletrou o
nome.
- Alexander... Azziza... Buford - leu ela. - Lamento. Não há nenhuma
Bocce.
- Talvez da igreja?
- Ora vejam. Aqui está ela outra vez. Posso estar enganada. Não há
nomes, apenas uma fotografia de três casais, mas o rosto, o cabelo
e o sorriso são exactamente iguais. Parece que ela foi a
acompanhante de Fran Rossetti no baile de finalistas.
John podia ter dado um salto de alegria. Mas não estava disposto a
correr riscos.
- Tem a certeza?
Brian suspirou.
- Porque é que tenho a sensação de que não vou querer ouvir isto?
- Ah, céus. Isso é uma história antiga, Kip. Se me vais dizer que
ele foi mais um dos meninos de altar...
John interrompeu-o.
mesmo tempo que batia na mulher. Parece que o tipo tinha uns
ciúmes doentios do verdadeiro amor da vida dela, alguém com
quem
ela esteve durante anos, antes de casar com ele. Tens três
hipóteses
- Uma vizinha que a conhecia disse que ela tinha andado com o
- Disseste que ela "esteve" com ele. O que é que isso quer dizer?
- Já morreu.
- Verifica-a.
John podia ter ficado por aí. Mas ainda nem sequer mencionara o
irmão - Neil Sullivan, o padre.
Tudo somado, John achava que tinha um bom caso. Mas o jornalista
que havia nele não queria um bom caso. Queria o melhor caso.
Lily sabia disso, mas teria sido simpático se Rose tivesse preferido
ficar. Mais uma vez, receou ter piorado ainda mais as coisas entre
mãe e filha. Mas agora já não havia nada a fazer.
Lily sorriu.
- Foi mesmo.
- Pois foi.
- Não queres passar primeiro pela avó? Para Lhe contar como foi a
festa ?
- Sim!
Mas Maida não estava sozinha. Rose estava lá, com Emma e Ruth,
ambas de pijama e prontas para a cama. Hannah achou que era
fantástico, a mãe estar lá quando ela saísse em triunfo da carrinha.
Lily só conseguia pensar que, se não tivesse decidido passar por
aqui primeiro, Hannah teria chegado e encontrado a casa vazia.
Vazia não. Art provavelmente estava lá. Mas Art não era Rose.
Hannah precisava que a mãe a visse. Precisava que Rose Lhe
dissesse como estava bonita, precisava que Rose visse que ela não
era assim tão má.
Lily acenou. Moveu as mãos sobre as teclas mas não sabia que
canção tocar.
- Aqui?
Lily não sabia o que dizer. Era um grande elogio. Mas não sabia
quanto tempo ia ficar - e, de súbito, viu que Maida estava de testa
franzida.
- O quê?
A expressão de Maida tornou-se mais sombria. Lily teria dito que ela
estava zangada, mas a palavra "atormentada" ocorreu-Lhe primeiro.
- Diz-me, Lily.
parte.
- Eu sei.
- Eu sei.
- Discutiram?
- Porquê?
- Pelo passado.
- Sim.
- Mas?
- Não chega.
- És muito exigente.
Mas Maida tinha um negócio. Pelo que Lily podia ver, para além da
retroescavadora que era preciso substituir e de dois trabalhadores
com ossos partidos, ela estava a geri-lo bastante bem.
- Ou então eu.
- Tu és demasiado nova.
devia estar no final da casa dos trinta. Por isso, e pelo bom corte da
sua camisola e calças, calculou que não fosse uma das estudantes.
- Para?...
- Sobre?...
- Porquê?
para cumprimentá-la.
- John Kipling.
- Que bom para si - disse ela, com mais uma leve alteração de
expressão, mas, antes que John pudesse explorá-la, uma porta
abriu-se atrás dela. Primeiro saiu um jovem. A sua idade e a mochila
gasta diziam que era um estudante. De olhos baixos, passou por
eles e dirigiu-se apressadamente à saída.
John olhou para o homem de cabeção que o observava à porta do
gabinete. Havia alguma semelhança de família, embora John não
conseguisse especificar onde. Neil era claramente mais velho do
que Terry, com cabelo meio grisalho e rugas na testa e nas faces.
Não era tão alto nem tão magro como Terry, embora mantivesse
uma postura igualmente direita. A boca talvez fosse a mesma. Mas
a de Neil estava descoberta e era mais gentil. O mesmo em relação
aos olhos. Neil parecia muito mais amável e caloroso do que Terry
alguma vez parecera. Era uma pessoa acessível. A sorrir, era
mesmo convidativo. john conseguia facilmente acreditar em todas
as coisas que ouvira dizer sobre ele.
- Padre Neil, este é John Kipling. Quer falar consigo sobre o Terry. O
padre Neil inspirou abruptamente e inclinou a cabeça para trás,
como quem diz "fui descoberto". Quando endireitou a cabeça, o seu
sorriso era vacilante, mas o seu aperto de mão foi caloroso.
- Nesse caso, receio que o conheça melhor do que eu. Temos uma
diferença de sete anos. Nunca fomos muito íntimos.
Havia dor. john conseguia vê-la nos olhos de Neil. Com a voz calma,
o padre disse:
- Mas não estava, na verdade. Como já Lhe disse, sou sete anos
mais velho. Quando somos crianças, isso é uma vida.
- O Rossetti estava na raiz dos vossos problemas familiares? Neil
inspirou de novo com a cabeça inclinada para trás. Pareceu ser o
suficiente para fortalecer a sua determinação.
O silêncio prolongou-se.
- Tem razão. E essa é uma das razões pelas quais não vou falar
consigo.
- O meu trabalho não é julgar. Isso cabe a Deus - mais uma vez,
ficou em silêncio. Mais uma vez, o silêncio prolongou-se.
falar. john estava tão certo disso que ainda pensou em voltar a Lake
Henry nessa mesma noite. Mas a viagem era longa, ele estava
exausto, e - mesmo que a esperança fosse vã - dissera ao padre
que ficaria na estalagem.
ou mensagens.
- Pois não. Mas fui eu que vi como o irmão dele tem sofrido com
- Pela Lily.
- Sim.
- Como era possível que não visse? - ele, John, tinha a desculpa da
distância. Estava fisicamente distante quando as coisas tinham corri
do mal com Donny.
- E é?
- E no Terry.
Isso soava familiar. john também partira para nunca mais voltar pelo
menos assim pensara na altura.
- Ele nunca tentou ajudar o Terry? Ou a mãe? Não podia ter pedido
ajuda a alguém? Queixar-se a alguém na escola? Exigir que o pai
os deixasse em paz? Colocar-se fisicamente entre eles e o pai?
- Ele era um miúdo - disse ela com convicção. - Não era Deus nem
nenhum santo, por mais que a Jean quisesse pensar que sim. Era
um miúdo, cuja vida em casa também não era tão perfeita como
pode parecer.
- Espere aí! E o cardeal? Ele falou? Não, não falou. Não quis abrir-
se a especulações sobre amantes e filhos ilegítimos, e com boas
razões. Imagina a festa que a imprensa faria com isso? Imagina o
caos? Seria refutado, mas o fedor permaneceria, e Neil estaria
mesmo no meio da tempestade.
John não podia discutir com isso. Por mais zangado que estivesse
com Rossetti por ter abandonado Lily, Anita tinha uma certa razão.
- Agora já sabe. Isso dá-Lhe poder sobre nós. Pode sair daqui e
usar o que eu Lhe disse - ergueu a mão - apesar de ter prometido
não o fazer, ou pode respeitar a privacidade do Neil e a privacidade
da família dele. O Neil é um bom homem. Pode não ter estado
presente para o Terry, e carregará essa culpa para a cova, mas
ajudou inúmeros outros miúdos que passaram pelos seus próprios
pesadelos.
"Isso dá-Lhe poder sobre nós." John não conseguia deixar de ouvir
essa frase. Fazia com que se sentisse sujo. Não que preferisse que
Anita não Lhe tivesse contado o que Lhe contara. Ali tinha os
motivos reforçados que procurava. Mal podia esperar para contar a
Lily. E não publicaria nada. Isso sim, seria sujo. Seria contra tudo o
que ele estava a tentar fazer com a sua vida. Mas Anita não sabia
disso.
- Pelo menos há uma razão para ele ter ficado tão calado. john?
- Hum?
- Eu sei.
- Então o que é?
Ele franziu a testa, mas por pouco tempo. O seu rosto suavizou-se
de novo. Quando olhou para ela, a sua expressão era de uma calma
surpreendente.
- Alívio. Paz.
- Não quer dizer que não possamos utilizar o resto. Nada disso tem
a ver com o Neil ou com o Rossetti. Apenas com o Terry. Pobre
coitado. Não vai ficar nada satisfeito.
- É manipulador e possessivo.
- Provavelmente.
ele... Eu, pelo menos, tinha o meu pai. O Terry não tinha nenhum
dos dois. Por isso já teve três mulheres. Está desesperado por
amor,
que Terry Sullivan alguma vez teria. Tudo somado, podia considerar-
se uma mulher de sorte.
- Vamos ao Charlie's.
- Nós os dois?
A primeira vez que Lily cantara em público, sem ser na igreja, fora
numa quinta-feira à noite na sala dos fundos de Charlie. Não
entrava
- Isso incomoda-te?
A pergunta era absurda. Para além de Poppy, que era sua irmã e
não contava, John era o seu melhor amigo em Lake Henry. Ela via-o
todos os dias, dormira com ele seis das últimas sete noites. Ele era
inteligente, bem-parecido e atraente. À excepção da sua profissão,
Lily adorava tudo nele. Se se importava de ser vista com ele?
- Nem um bocadinho!
A sala dos fundos não mudara muito nos dezoito anos desde que
Lily lá entrara pela última vez. Mesas de café e cadeiras tinham
subs tituído os bancos corridos, e parecia haver um novo sistema de
som, com colunas instaladas nas vigas do tecto. Mas o pequeno
palco elevado era o mesmo, bem como o fogão de lenha e o
ambiente, que era discreto e descontraído. Não que houvesse muita
coisa em Lake Henry que não o fosse. Mas as noites de quinta-feira
na sala dos fundos de Charlie levavam a palma. Ninguém se
apressava. Ninguém falava de trabalho. Ninguém vestia nada mais
elegante do que calças de ganga. E perfume? Nem pensar. A sala
cheirava a tábuas de celeiro, café fresco, chocolate derretido e
diversão.
Mas Poppy estava lá, por isso passou algum tempo a conversar
com ela e com Marianne Hersey, que parou junto delas, e com
Charlie
Poppy olhou para a central e corou quando viu qual era a luz verde
que estava acesa.
- Oh.
- Tinha saído?
- Sim. É quinta-feira.
- Sim?
- Estive no Charlie's.
- Quem é ele?
cidade muito grande, mas escolhi viver aqui porque tem um espírito
de cidadezinha pequena. Não vou a Nova Iorque há meses. Não
tenho necessidade.
- Dá aulas na universidade?
- Não. Só escrevo.
- Então estagiárias.
Poppy sorriu.
- Há mais alguém?
Ela pensou em mentir. Seria a coisa mais fácil. Acabar com isto já.
Um corte limpo e simples. Mas gostava de sonhar com Griffin
Hughes. E se os sonhos eram tudo o que tinha...
John estava de cabeça tão perdida por Lily que já não sabia o que
fazer. Já se apaixonara por Lily a cozinheira, Lily a amiga, Lily a
pistoleira, até mesmo Lily a que cantava com os mergulhões. Ao vê-
la no Charlie's, na quinta-feira à noite, apaixonou-se por Lily a
sedutora, e muito. Ela vestia calças de ganga simples e uma
camisola de gola alta, praticamente não usava maquilhagem, e
estava perdida no seu próprio mundo ou no mundo da banda, mas
John sentiu o coração apertado de admiração. Nunca sentira nada
assim com Marley, nunca sentira nada assim ao ver Meg Ryan em
cada um dos seus filmes - três vezes cada. Sentia-se mesmo tímido
quando Lily voltou para a mesa, e ficou absurdamente satisfeito
quando ela passou toda a viagem de regresso a Thissen Cove
aninhada contra ele no banco da carrinha. Mas foi o que ela fez.
Apesar das aparências, ela também parecia estar de cabeça
perdida por ele. Pelo menos, foi essa a mensagem que pareceu
passar-Lhe nos minutos antes de adormecerem.
Quando John acordou, Lily já saíra para o lagar, mas sentiu a sua
presença na casa, bem como aquele mesmo aperto no coração.
Desta vez tinha a ver com uma visão mais geral da sua vida - com
desejos e necessidades, até mesmo sonhos, de maior alcance.
Pensou nestes, sentado na doca, estremecendo sob o chuvisco de
Outubro. A humidade tamborilava ao pingar por entre as folhas
secas na margem do lago. Não havia barcos à vista. A maioria deles
estava já fora de água, embrulhados em plástico para o Inverno. Daí
a poucas semanas a doca de Lily teria também de ser retirada. Se
as estacas ficassem presas no gelo, podiam estalar devido à
pressão.
- Pensei que gostarias de saber - disse ele, num tom neutro - que já
temos o relatório. A cassete Blake foi montada. Terry foi despedido.
Um mês antes, John teria ficado feliz. Mas, um mês antes, não
estava empenhado na causa de Lily.
- E?... - perguntou.
- Oh, por favor. Poupa-me. Nós não fizemos nada errado. Agimos de
boa-fé. Acreditámos que a história era legítima, com base em
investigação...
- Com base numa cassete que julgávamos ser real. Cristo, Kip, o
que queres que façamos? Que verifiquemos a autenticidade de
cada maldita cassete?
Brian gritou:
- Isto está tudo acabado! Ouve bem, John! Não vamos rastejar!
Oh, sim, John podia ameaçar fazer isso. E o Post talvez publicasse
uma retractação. Mas estaria enterrada no meio do jornal, o mais
escondida possível. Ninguém a veria.
importante.
Merda para o dinheiro. Também podia passar sem ele. A Lily não
era uma interesseira. Ela fazia-o sentir-se um milionário.
Lily acedeu, mas não ficou satisfeita. Trinta dias significavam mais
um mês inteiro no limbo. Sentia uma urgência que ia para além das
pontas soltas que deixara em Boston. Estava a começar a construir
uma vida em Lake Henry. Ainda havia coisas a resolver com Maida,
caso quisesse ficar, e estava com medo de pensar a longo prazo em
relação a John, mas uma resolução do escândalo era condição
essen cial. Nenhuma das outras peças encaixaria no devido sítio até
isso estar resolvido.
Não se tratava do livro. O Lake News tinha de ser feito. Mas estava
com dificuldade em encontrar entusiasmo para falar do iminente
torneio de futebol intercidades, quanto mais para compor as páginas
da semana. Um layout parecia-Lhe mal, o outro ainda pior. Pura e
simplesmente não estava concentrado.
"Fui eu que te desiludi. Fui eu que falhei. Fui eu que nunca fui
suficientemente bom. Nem para a tua mãe. Nem para Don. Nem
para ti. "
Era triste que esse tivesse sido o seu último pensamento. Triste que
o seu valor tivesse sido tão importante para ele. Um homem sem
consciência tinha a vida facilitada, decidiu John. Um homem sem
consciência não tinha uma única preocupação neste mundo.
Não, Lily não queria pensar no que sentia por John, mas esses
sentimentos não iam desaparecer. O ideal seria resolver o
escândalo, depois resolver os seus assuntos com Maida, e só então
pensar nele. Mas a vida nunca era ideal. O seu coração insistia em
bater mais depressa sempre que pensava nele.
- Ouviste algum?
- Não. Mas podem andar por aí. Ouviremos, se eles piarem. É difícil
vê-los com a água agitada e sem lua - beijou-a suavemente na
têmpora, e ela sentiu o roçar da sua barba macia. - Não tens frio?
- Não.
- Amo-te, sabes.
Ela era totalmente louca. Desde quando é que podia confiar num
jornalista?
- Muito.
- Quero o que for melhor para ti - disse ele, e ela acreditou. Mais,
acreditou naquilo que adivinhara na súbita disposição sombria de
John. A causa da perturbação dele não era a relação de ambos. Era
a outra complicação.
tempo.
- Segunda - disse ele -, podes contar tudo no meu livro. O Jacobi
quer lançá-lo em Março. Eu preferia ter mais alguns meses para o
escrever bem, mas consigo tê- lo pronto em Março. Isso daria
resultados mais rapidamente do que o caminho legal.
"Podes contar tudo no meu livro." E não "Eu posso contar tudo no
meu livro." Como se fosse um empreendimento conjunto. já era
qualquer coisa.
- Se eu fizer isso - observou - ficarás sem nada para o teu livro. Ele
ficou calado durante longos momentos. Quando falou, as suas
palavras encerravam alguma resignação.
- Talvez detestes, mas, raios, resulta. Foi isso que te roubou os teus
empregos, a tua casa, a tua reputação. Não queres recuperá-los?
- Sim.
Não queria que o mundo soubesse que nunca tivera um caso com
Francis Rossetti? Não queria um reconhecimento do horror em que
tinham transformado a sua vida em Boston? Não queria um pedido
de desculpas por ter sido escolhida para ser humilhada e
ridicularizada?
- Sim!
Oh, se queria.
Gus dissera uma vez, num momento que John sabia agora ser de
- Chato - disse Liddie, mas num tom afectuoso. - A anca nova não
está a funcionar como se ele tivesse outra vez vinte anos.
John pigarreou.
Era o mais cedo que John pensava conseguir ir buscar o Lake News
à gráfica. Significava que Lily podia acabar o trabalho no lagar, fazer
o que tinha a fazer em casa, e vir ter com ele à cidade. Significava
também que a história rebentaria a tempo de aparecer nos no
ticiários da noite.
- Isso estaria muito bem se você fosse David Halberstram, mas não
é. É um jornalista cujo forte são as notícias choque. Eu estava a
contar que este livro fosse bombástico. É por isso que Lhe vamos
pagar.
- Pensei que me iam pagar pela história vista por dentro. A história
por detrás da história. Nada mudou em relação a isso.
Pelo menos, fora esse o sonho, em tempos. já não o era. Agora ele
queria provar o seu valor como pessoa. E estava a sair-se muito
bem sem o livro.
John desligou, com sérias dúvidas de que alguma vez fizesse esse
telefonema, e não se sentindo minimamente desapontado por isso.
- Porque perguntas?
- Isso não foi planeado - disse Lily rapidamente. - Foi uma c-c- coisa
espontânea. O Charlie veio ter comigo e pediu-me que cantasse.
Foram só algumas canções.
- Ele é um Kipling.
- Ele não teve nada a ver com aquela história do carro. E o Donny e
o Gus já cá não estão, nenhum deles.
- Sim, tinha.
- Sim.
- Sim.
- Porquê?
Suavemente, disse:
- O meu nome.
- Achas que eu estou errada - disse Maida com voz fraca. - Não
compreendes porque gosto de viver a minha vida tranquila aqui e
por que razão toda esta história do cardeal é tão perturbadora para
mim, mas há coisas que tu não sabes - apertou os braços à volta do
corpo.
- Que coisas?
Lily pensava que eram três - e sabia disso apenas por causa de
algumas fotografias que encontrara numa gaveta, depois de Celia
morrer. Enquanto crescia, sempre partira do princípio que não havia
ninguém para contactar em Linsworth. Depois de encontrar essas
fotografias, tentara recordar se vira alguém desconhecido no funeral
de Celia, mas na altura estava demasiado envolvida na sua própria
dor para reparar.
Dezasseis era a idade que Lily tinha quando fora apanhada com
para eles, portanto fazia ainda mais sentido. Éramos pobres. Assim,
por desporto mas para arranjar comida. Eu era a única rapariga, por
escuro e frio. Phillip era o meu calor e a minha luz - o seu queixo
tremeu. - Eu amava-o. O que ele me fazia sabia-me bem. Ele era o
único luxo que eu tinha.
ocupada, e era uma mulher dura. Depois de o meu pai morrer, ficou
ganhava o dinheiro.
Lily sentiu dor e confusão. Sentiu choque e dor suficientes para Lhe
trazer lágrimas aos olhos. Mas Maida não a deixava aproximar-se,
por isso encostou-se ao piano.
- Não foi fácil. Toda a gente na cidade sabia o que tinha acontecido.
À excepção da Celia e de mim, os trabalhadores eram todos
homens. Sempre que eu saía do escritório, os homens ficavam a
olhar para mim. Alguns faziam comentários. Tocavam-me sempre
que podiam, como se fosse um jogo para ver até onde eu os
deixava ir. Convidavam-me para sair, e eu recusava sempre; mas
isso só piorava as coisas. Se me tivesse encostado a um deles,
talvez tivesse tido alguma protecção. Mas eu estava a tentar agir da
forma correcta, i portanto era caça aberta.
- Eu sabia como era ser alvo de olhares, e de repente ali estavas tu,
a cantar em público, satisfeita com aqueles olhares lúbricos. Como
achas que me senti quando foste apanhada com o Donny Kipling?
Não achas que uma parte de mim receou que estivesses a meter-te
na mesma situação em que eu estivera? Mas tu não encontraste o
teu George. Foste para Nova Iorque, e isso foi ainda pior. Mas pelo
menos eu não tinha de ver, até acontecer isto. Como achas que me
senti quando os jornais começaram a desenterrar todas as
pequenas coisas do teu passado? Como achas que me senti, sem
saber quando é que escavariam um pouco mais fundo, apenas um
pouco mais, e descobririam o meu passado? Aqui, ninguém sabe.
Quando a Celia se mudou para cá, também ela começou de novo.
Nunca mais falámos sobre o passado. Simplesmente arrancámos
essa página.
- Como sabes?
- Porque isto já não tem a ver comigo. Tem a ver apenas com o
Terry Sullivan.
Lily seguiu-a até ao início das escadas, com vontade de subir atrás
dela mas com medo de o fazer.
Mas o relógio não parava. Eram quase quatro horas. Tinha de tomar
um duche, mudar de roupa e ir ter com John ao escritório.
Voltou para casa de Celia com o coração nas mãos, a sofrer por
Maida, com medo do que ia acontecer - e depois positivamente
aterrorizada quando Lhe ocorreu que John podia saber o segredo
de Maida. Lily não vira o Lake News. Confiara que ele ia escrever
apenas sobre Terry. Confiara nele.
- Apenas porque eles não têm mais ninguém para perseguir. Espera
quinze minutos. Nessa altura as coisas serão completamente
diferentes.
- Queres ir?
Acenou de novo.
Lily sentou-se no lugar que John Lhe indicou. Ele estava a sentar-se
ao seu lado direito quando Cassie entrou, sentou-se à sua
esquerda, inclinou-se para ela e explicou a sua presença com um
murmúrio:
Lily avistou o rosto de bebé de Paul Rizzo várias filas mais para trás.
- Convidaste o Rizzo?
- Justin Barr.
John falou de novo, num tom ainda suave mas agora cheio de
excitação mal contida.
John sorriu.
John não podia ter ficado mais satisfeito com o resultado. Estava à
espera do contingente de New England e de um punhado de outros,
e partira do princípio de que a sala estaria razoavelmente composta.
O facto de estar apinhada era um bónus. O facto de Sullivan, Rizzo
e Barr estarem presentes era um triplo bónus. Embora não tivesse
convidado nenhum dos três, não estava surpreendido por vê-los.
Tinham vindo para o desafiar. As pessoas arrogantes eram muito
previsívèis.
- Essa cassete era ilegal - disse. - Lily Blake não sabia que estava a
ser gravada. A semana passada, provou-se também que essa
cassete era falsa - um murmúrio percorreu a assistência.
Terry revirou os olhos. Mas John viu surpresa num ou dois rostos.
Mas algo atraiu o seu olhar mais para o fundo da sala - algo,
alguém. Maida estava ali. Parecia perdida, com um grande casaco
preto, mas estava sem dúvida presente. Lily tentou captar o seu
olhar, mas Maida estava de olhos postos em John, enquanto ele
continuava a falar.
- O sr. Sullivan cresceu em Meadville, na Pensilvânia. Um ensaio
escrito por ele, e publicado no jornal local quando era ainda
adolescente, sugere que já na altura ele guardava algum rancor
contra a Igreja Católica, o que não é de admirar. Fontes contactadas
em Meadville confirmam que o seu pai costumava bater nele e na
mãe. Porquê? Ciúmes. A mãe de Terry viera para este casamento
apaixonada por outra pessoa, alguém com quem namorara durante
o liceu e a universidade, mas que a deixara para entrar para o
seminário. Esse homem era Fran Rossetti.
esta história ao contrário por causa do teu livro. Vamos falar sobre
estejas preparado para uma acção judicial, porque é isso que vais
entre a multidão.
Queria que ele pensasse duas vezes antes de infligir de novo este
Maida estava mais direita no seu banco. Lily não sabia se era
- Não.
- Não sei.
- Não.
- Isso é irrelevante.
Lily sentiu pena dele. Ser humilhado publicamente não tinha graça
nenhuma, e não se paga o mal com o mal. Mas John não era um
homem cruel. Se tivesse havido outro caminho, ele tê-lo-ia seguido.
Além disso, por mais penosa que a lição pudesse ser para Paul
Rizzo, havia uma moral nesta história. Lily ergueu o queixo. Seria
capaz de jurar que Maida sorrira.
- Exactamente - disse John. - Tal como as lojas onde Lily Blake faz
compras só a ela dizem respeito. Tal como os restaurantes onde
come e os locais para onde vai de férias só a ela dizem respeito.
- Não forcei ninguém a vir. Não usei qualquer falso pretexto. Disse
que tinha informações novas. Convidei-vos a vir, e vocês vieram. E
acabo de vos dar essas novas informações.
- Ele fabricou. Ele falsificou. Ele inventou. O que está no Lake News
são factos.
Ele sorriu. Este era terreno seguro. Sabia como funcionava a mente
da comunicação social. Raios, não pertencia também ele a
esse mundo?
verem - fez uma pausa para se recompor. - Esta foi uma experiência
muito negativa. Não sei se alguma vez quero voltar a estar sob as
luzes da ribalta desta maneira.
- Nesse caso, tem razões para o difamar, tal como ele tinha razões
para difamar o cardeal Rossetti.
Ela sabia que não. john ensinara-Lhe isso. Queria pensar que havia
mais do que um punhado de boas pessoas ali. Ao pensar nisso,
sentiu um novo ânimo por dentro. Era tão bom, tão bom, conseguir
confiar de novo.
todos nós. Não sei o que vocês pensam, mas eu estou cansado
disso.
Parecia de facto cansado. Inclinando-se sobre os microfones,
- O cardeal telefonou-Lhe?
- O que achaste?
- John esteve muito bem. Eles vão publicar o que ele disse. Se não
conseguires a primeira página, não ficará muito longe disso.
Cassie sorriu.
Lily não sabia se Maida queria perdão pelas coisas que fizera na
sua própria infância, ou na infância de Lily, ou mais recentemente,
mas não houve qualquer dúvida na sua mente. No que dizia respeito
aos Sullivan, Rizzo e Barr deste mundo, Lily precisava de justiça. No
que dizia respeito à mãe, precisava... precisava...
Poppy não era muito chorona, mas, ao ver Lily abraçada a Maida,
quase se desfez em lágrimas. Sabia demasiado bem que havia
coisas na vida que não era possível mudar. Mas havia outras que
era. Grata por esta ser uma delas, virou a cadeira de rodas e dirigiu-
se ao fundo da sala. Estava a pensar nas melhorias que isto traria à
vida de Maida, a pensar em como Lily se sentiria melhor, e como as
reuniões de família seriam mais felizes, a pensar que Lily devia
mesmo ficar em Lake Henry e casar com John, e como seria bom
tê-la por perto, a pensar em tudo menos para onde ia, quando virou
a esquina ao fundo do salão e se viu cara a cara com um homem
que nunca conhecera - pelo menos, em pessoa.
Mas sabia quem ele era. Vestia calças de ganga, uma camisola e
um blusão de pêlo. O blusão era de um azul que combinava com o
azul dos seus olhos e fazia um contraste perfeito com um cabelo
espesso, bem cortado e ruivo.
Para onde ir? "Volta para trás!" Onde se esconder? Mas era tarde
de mais. "Ele sabia." Conseguia percebê-lo nos seus olhos.
Mas Poppy Blake não chorava. Chorar não servia para nada.
Decidira-o doze anos antes.
Assim, ripostou contra a gentileza dele com a triste verdade.
- Não posso correr. Não posso fazer esqui nem caminhadas. Não
posso trabalhar na floresta, como fui ensinada a fazer, porque não
consigo deslocar-me sobre solo irregular numa cadeira de rodas.
Não posso dançar. Não posso conduzir um carro a menos que
esteja es pecialmente adaptado. Não posso apanhar maçãs nem
trabalhar com a prensa de sidra. Nem sequer posso tomar duche de
pé.
- Podes comer?
- Eu guio, tu empurras.
Lily não cantou. Foi ainda melhor do que isso. Conversou, e riu - se
e participou em algo que não sabia até então que Lhe fizera falta
mas de que não teria prescindido agora por nada neste mundo.
Pensou que conseguia imaginar como se sentia alguém que
ganhava a
lotaria. Misturado com a alegria, havia o medo de que uma coisa tão
Mas era. john era real; raramente saiu do seu lado. Maida era
real; sorria de cada vez que o seu olhar se cruzava com o de Lily.
Lake Henry era real; erguera-se em sua defesa quando ela mais
precisava. Não se lembrava de outro dia em que tivesse sentido
todos os
- Padre Fran!
- A sua irmã deu-me este número. Vou para Roma amanhã, mas
queria falar consigo primeiro. É a única ponta solta que ainda não
resolvi.
- Não é preciso...
- É, sim - a voz dele era pesada, como ela nunca a ouvira. Devo-Lhe
um pedido de desculpas, Lily. Eu sabia quem o Terry Sullivan
Sim. Merecia. Podia estar zangada com o cardeal por isso, até
mesmo por simplificar a história da sua relação com Jean. No
entanto, sabendo o que ele deixara de fora, Lily compreendia.
Conhecendo a natureza predatória da comunicação social,
compreendia duplamente. Outra pessoa na sua situação talvez
tivesse dito que as desculpas do cardeal vinham demasiado tarde.
Mas Lily não era outra pessoa. Era gentil, e tinha a capacidade de
perdoar.
- Aaahh - disse ele. Pelo som da sua voz, parecia estar finalmente a
sorrir. - Isso faz-me bem ao coração. Não desculpa o meu
egoísmo... terá de ser Deus a perdoar-me por isso... mas deixa-me
feliz. Mas não surpreendido, atenção. Eu sempre disse que a Lily
era forte.
- É verdade.
O cardeal riu-se.
Deviam ser loucos por saírem assim para o lago. A noite estava
agitada e, na terceira semana de Outubro, o ar era demasiado frio
para andar de canoa, mas Lily não escolheria estar em mais lado
nenhum. As últimas horas tinham sido repletas de tantas emoções
diferentes que ela estava em sobrecarga. Naquele momento, ali -
apesar da brisa gelada - as coisas eram mais simples.
Não havia lua. O local onde ela estaria estava encoberto por
grandes nuvens. Mais a oeste, as nuvens eram mais pequenas.
Estavam a deslocar-se rapidamente; a julgar pela velocidade a que
as estrelas apareciam e desapareciam.
- Não, pelo menos nos próximos três anos. É nessa altura que
regressam aqui para acasalar. Mas resta saber se voltarão ao nosso
lago ou a outro na zona. E ninguém pode dizer se reconhecerão os
pais, ou vice-versa.
me parece.
- Não? Não foste tu que disseste que eles saíam para te ver?
John não precisou de pensar muito. Era uma resposta fácil. Sentiu-
se perfeitamente confortável e totalmente confiante quando disse:
- Livro nenhum?
- E a história do Terry?
- O Lake News já tratou disso.
- E o dinheiro e a fama?
Olhando para ela, tão abandonada nos seus braços, John nem
conseguia dizer as palavras, muito menos desejar qualquer uma
dessas coisas.
- O quê?
Lily ainda não tomara uma decisão consciente, mas isso não
significava que a decisão não estivesse tomada. Estava tomada. Era
fácil.
- O que é que existe lá para mim? - perguntou, incapaz de pensar
numa única coisa que tivesse mais importância do que aquilo que
tinhaali.
- Tem piada - disse ela. - Um carro não pode andar de canoa comigo
numa noite gelada. Um piano não pode aquecer-me a cama depois
disso. As roupas não podem falar, nem cantar nem ter filhos.
- Porque não?
- Antes que o teu ego inche de mais - avisou ela -, há outras coisas
que me prendem aqui. Há Maida - quebrou o contacto visual com
ele para olhar para a parte do lago onde ficavam os pomares. Ela
nunca tinha trabalhado um único dia, em toda a sua vida, antes do
meu pai morrer. E agora olha.
- Não te conhece. Mas tem uma mente aberta. Provou-o hoje. Por
isso há a Maida, e a Poppy. E a Hannah. A Maida está do lado dela,
agora, mas, se a Rose não cair em si, eu também quero estar por
perto.
- Se ficares, o que farás?
- Fui?
Ela sorriu.
- Magistral.
Joh-n queria pensar que sim, embora não pudesse ter a certeza.
- Nem todos.
- Não importa. Neste momento, sinto-me melhor comigo próprio.
- Deus?
- Gus.