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PUBLICADO

10.02.2009
A pós o conflito em Kerube, Lawrence e seus companheiros
seguem para o Reino de Winfiel através do mar. Seu destino é o
grande mosteiro de Brondel, que dizem possuir os osso de lobo
que eles procuram. Ao chegarem no reino, ouvem dizer que o
mosteiro, normalmente próspero devido ao comércio de lã, se
encontra em uma crise financeira. Para piorar, a mais poderosa
força econômica do mundo — a Aliança Ruvik — está
procurando se expandir no reino com seus olhos sobre os ativos
do mosteiro...
SPICE & WOLF VOL I ⊰4⊱
“A INSÍGNIA DA LUA E DO
ESCUDO SEMPRE VAI
BALANÇAR AO VENTO,
ENTÃO NÃO VAMOS NOS
PREOCUPAR COM DETALHES
INSIGNIFICANTES, CERTO?”

— LAGH PIASKY.
— TOTE COL
UM MERCADOR DA ALIANÇA RUVIK
O ESTUDIOSO VIAJANTE
— HUSKINS, O PASTOR

SPICE & WOLF VOL I ⊰6⊱

“UM DELES ESTAVA NOS ENCARANDO AGORA A POUCO.”

“EU NOTEI.”
“DESCULPE. SEJA UM POUCO MAIS PACIENTE, CERTO?”
PRÓLOGO .................................................................. 9
CAPÍTULO I .............................................................11
CAPÍTULO II ............................................................61
CAPÍTULO III .........................................................123
CAPÍTULO IV .........................................................156
CAPÍTULO V ..........................................................205
EPÍLOGO ................................................................261
POSFÁCIO ..............................................................270
EXTRAS ..................................................................272
elas são um luxo.
Além de iluminarem apenas o espaço que se pode
circundar com os braços, elas acabam após um curto
período.
Assim, as velas geralmente são usadas apenas para realizar
atividades que não podem ser feitas à luz do dia — atividades como
cortar cuidadosamente as bordas de uma moeda de ouro com uma faca,
costurar uma bolsa secreta no fundo de um saco de estopa ou colocar
sal com uma tributação extremamente elevada naquela bolsa.
Quando os negócios iam particularmente bem, Lawrence podia
até esboçar a fachada da loja que esperava um dia possuir, em um papel
que não era muito barato.
PRÓLOGO ⊰ 10 ⊱

E todas essas atividades eram do tipo que faziam a pessoa sorrir


para si mesma enquanto as executava.
A Igreja às vezes pregava que sorrir consigo mesmo à noite
convidava demônios — sem dúvida isso se devia à imagem do
mercador solitário, rindo sozinho em sua mesa tarde da noite.
Há muito tempo, ele mesmo já se agitou nervosamente sob seu
cobertor depois de ter visto a forma curvada de seu mestre tarde da
noite.
Quando começou seu hábito de manter uma vela acesa, apesar de
não ter tarefas para realizar? Ele observou o pavio queimar lentamente,
olhando para o vinho em seu copo — vinho que ele não tinha intenção
de beber.
Não, ele sabia perfeitamente por que mantinha a vela acesa.
Por tanto tempo, a noite não era nada além de um obstáculo para
seus negócios, mas agora ele queria saboreá-la um pouco mais —
saborear este momento tranquilo e pacífico antes que o amanhã
chegasse com seu barulho e incômodo inevitáveis.
Ele podia ouvir os suspiros alternados dos dois adormecidos. Se
isso permitisse que ele continuasse ouvindo aquele som tranquilo, não
se importaria em acender outra vela.
Mas se ele mesmo não conseguisse dormir logo, seu corpo pagaria
o preço.
Ele sorriu silenciosamente e fez menção de apagar a vela, mas
pouco antes de fazê-lo, hesitou e olhou para a fonte das respirações
adormecidas.
Mesmo no escuro, tudo ficaria bem.
A imagem permaneceu em sua visão até o momento em que caiu
no sono.
o momento em que deixou o porto, um navio se tornava
um meio de transporte pouco confiável.
Enquanto os marinheiros consideravam que uma certa
quantidade de balanços dificilmente eram dignos de
menção, aqueles que não estavam acostumados com as viagens
marítimas evidentemente sentiam tais movimentos como se a própria
terra estivesse cedendo.
“Obviamente” — já que não era o próprio Lawrence quem se
sentia assim.
Ele tinha dois companheiros de viagem, que brincaram
alegremente no convés do navio enquanto ele esteve atracado. Assim
que zarpou, eles foram para o convés inferior com o resto da carga e
dos passageiros, Col agarrou-se a Lawrence e se recusou a soltá-lo.
CAPÍTULO I ⊰ 12 ⊱

De constituição esguia e delicada, sua forma trêmula e encurvada


dava-lhe a aparência de um gatinho. Lawrence, naturalmente, não riu,
em vez disso deixou o menino sentar, tremendo, em seu colo.
Nos últimos sete anos desde que completou dezoito e se
aventurou por conta própria como um mercador viajante, Lawrence
viajou por toda parte e teve todos os tipos de experiências. Ele se
lembrava bem de sua primeira viagem marítima e de como cada
movimento do navio o fazia querer gritar, então ele mal conseguia rir
do menino.
Tais pensamentos ocuparam sua mente enquanto ele gentilmente
acariciava as costas trêmulas do garoto.
No entanto, ele não pôde deixar de sorrir ironicamente, olhando
por cima da penumbra do bolorento porão do navio.
Embora fosse um pouco injusto com o menino trêmulo, Lawrence
desejou que fosse sua outra companhia que estivesse em tal estado.
Se ao menos Col fosse o enérgico, o estudante errante era
frequentemente confundido com uma garota e normalmente era
perspicaz e bem-comportado.
Lawrence suspirou ao avistar uma forma descendo do convés do
navio para o porão.
“É o mar! O mar!” Sua outra companheira, Holo, vinha descendo
com os olhos brilhando.
Ela estava encapuzada e usava uma túnica que chegava até os
tornozelos, vestida completamente como uma freira. Mas com ela
brincando no convés e com sua postura casual de pernas cruzadas, era
óbvio para qualquer um que ela não era uma freira.
Sua aparência era apenas por conveniência; era mais fácil para
todos se ela parecesse como tal.
Portanto, Lawrence não tinha nenhuma motivação para franzir a
testa diante de seus modos grosseiros, mas puxou para baixo a barra
de seu roupão com a mão que não estava ocupada acariciando o Col.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 13 ⊱

“Hum?” Holo olhou por cima do ombro para ele com uma
expressão questionadora.
“A cauda da qual você tanto se orgulha.”
Holo sorriu com as palavras de Lawrence, escondendo a cauda sob
o manto.
Além de identificar Holo como freira, o longo manto com capuz
que usava servia a outro propósito importante. Escondia a cauda de
loba que brotava do quadril do que parecia ser uma jovem, bem como
esconder as orelhas de loba no topo de sua cabeça.
A boca com a qual ela sorriu tinha dentes muito afiados.
Holo não era a jovem que parecia ser.
Ela era uma deusa loba secular transformada em forma humana.
“Ainda assim — o mar!”
“Eu sei eu sei. Você não poderia se acalmar um pouco? Está agindo
como um cachorro vendo neve pela primeira vez.”
“Urgh… como alguém pode permanecer calmo? É tão vasto! Mais
vasto do que a planície mais vasta que já vi! Ainda bem que chamam de
‘o profundo’!
“Você já viu o mar antes, não é?”
“Sim. Já corri pela praia, pulando nas ondas com vontade de cruzar
o oceano. Quão grandioso seria se eu pudesse correr sobre sua
superfície sem limites — quando os humanos veem os pássaros, eles
não desejam voar? Como você pode não desejar correr, vendo o mar?”
Embora ela tenha se proclamado muitas vezes como a Sábia Loba
de Yoitsu e demonstrado sua esperteza a Lawrence repetidas vezes,
naquele momento Holo parecia um cachorrinho.
Sentindo-se um pouco irritado, ele respondeu. “Eu poderia muito
bem me perguntar que terras existem do outro lado do oceano, mas
mesmo assim, dificilmente sinto vontade de atravessá-las.”
“Você é um homem inútil.”
CAPÍTULO I ⊰ 14 ⊱

Apesar de ter sido interrompido tão bruscamente, Lawrence nem


sequer estremeceu. Ele certamente entendia o que era ficar excitado
com a visão do oceano.
Enquanto ele ocasionalmente vislumbrava as tendências mais
bestiais de Holo, vê-la agir tão completamente como um cachorrinho
o deixou ansioso sobre o que poderia acontecer no futuro.
Afinal, seu navio estava indo para o reino nevado de Winfiel. Um
gato gostaria de se enroscar em frente à lareira, mas um cachorro sairia
correndo pela neve. Ele se perguntou seriamente se uma coleira seria
apropriada.
Enquanto Lawrence refletia sobre essas coisas, Holo espirrou alto.
“Aqui, fique debaixo deste cobertor. Se você continuar correndo
no frio e na umidade, vai pegar um resfriado.”
“Mmph... É uma pena que o vento do mar esteja tão úmido. O
cheiro de sal confunde meu nariz.” Sob o cobertor que ela enrolou
sobre o manto, Holo farejou, como se o cheiro do tecido familiar
pudesse limpar seu nariz. “Ah, por falar nisso —”
“Hum?”
“Vi vagamente um pedaço de terra à frente. Esse é o nosso
destino?”
“Não, é apenas outra ilha. Vamos seguir para o norte a partir daqui
e provavelmente chegaremos à noite.”
O reino de Winfiel era uma grande ilha cercada por uma dispersão
de outras menores, separada do continente por um estreito, através do
qual mal se podia distinguir a margem oposta.
Havia uma lenda de que, há muito tempo, uma guerra havia
ocorrido no estreito, e um guerreiro que era a encarnação de um deus
da guerra havia atirado uma lança através dele.
Claro que isso não fazia sentido, mas ilustrava a estreiteza do
canal.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 15 ⊱

“Hum. Bem, eu certamente espero que o vento sopre firme.”


“O vento?”
“Não faremos nenhum progresso com um vento contrário, não é?
Mas está tudo bem por enquanto, com nossas velas cheias de vento de
popa.”
Por um momento, Lawrence não teve certeza de que expressão
deveria fazer. Se ele demonstrasse seu melhor conhecimento muito
obviamente, não havia como dizer que diabos ele poderia pagar por
isso mais tarde.
Ele sorriu, embora não tão presunçoso a ponto de provocar
irritação. “De fato,” ele disse. “Mas um navio pode progredir mesmo
com vento contrário. É um pouco mais lento, claro.”
“…” Parcialmente escondida sob seu manto e cobertor, Holo
olhou para ele com desconfiança, como uma raposa espiando para fora
de sua toca.
Suas orelhas agitadas deixaram claro que ela duvidava da
veracidade de sua declaração.
“Posso entender por que você pode não acreditar sem ver. Mas
mesmo com vento contrário, um barco segue diagonalmente contra o
vento, virando para a esquerda e depois para a direita. Evidentemente,
os primeiros marinheiros a descobrir esta técnica foram acusados de
feitiçaria pela Igreja.”
“…” Holo olhou para Lawrence duvidosamente por um
momento, mas eventualmente pareceu acreditar nele.
“Ainda assim, pensar que acabaríamos atravessando o mar”, ele
murmurou com um leve sorriso, depois olhou para o teto do porão.
A cada ondulação do navio, os conveses rangiam de forma
preocupante, mas era uma canção de ninar à qual era preciso apenas se
acostumar. Na primeira vez em que esteve em um navio, Lawrence
teve um medo terrível de que ele simplesmente se desintegrasse.
CAPÍTULO I ⊰ 16 ⊱

“Suponho que seu amado cavalo esteja descansando tranquilo,


mastigando feno neste exato momento.”
“Não é como se eu quisesse deixar ele descansar — há pouco para
fazer agora. Eu o invejo.”
“Oh ho, de onde vem esta amargura?”
De um modo geral, o motivo declarado para a jornada atual de
Lawrence e seus companheiros era cumprir o desejo de Holo. Claro,
tanto Lawrence quanto Holo estavam bem cientes de que era um mero
fingimento, então Holo estava claramente apenas provocando-o um
pouco.
“Acho que é verdade que nós dois estamos em um hiato de nosso
trabalho... mas seria bom apenas relaxar, foi tudo o que quis dizer.”
Até alguns dias antes, Lawrence havia se envolvido em um
distúrbio que ameaçou dividir a cidade de Kerube — da qual eles
partiram — ao meio.
Um animal lendário, um narval, foi capturado na rede de algum
pescador, e alguns mercadores muito espertos lutaram pela criatura
tremendamente valiosa.
O objetivo original de Lawrence era obter informações sobre os
ossos da pata dianteira de um deus-lobo como Holo, mas depois de
uma série de reviravoltas, ele acabou no centro do tumulto.
Muitas vezes se considerou um comerciante sujo e faminto por
dinheiro, mas o incidente lhe ensinou a verdade do ditado de que
sempre há um peixe maior. Em Kerube, ele conheceu Kieman, o
jovem gerente da filial de uma guilda comercial, e Eve, que planejava
trair a cidade inteira e ficar com todo o lucro para si mesma.
Mas, no final, Lawrence foi a chave para resolver tudo para a
satisfação geral e conseguiu obter as informações que procurava sobre
os ossos de loba, embora não necessariamente em troca de seus
serviços. Assim ele se encontrou a bordo deste navio.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 17 ⊱

No bolso do paletó havia cartas de apresentação de Kieman e Eve


que lhe dariam pelo menos alguma vantagem moderada.
Nesta, sua primeira viagem ao reino de Winfiel, aquelas cartas
eram armas cuja presença o tranquilizava muito.
Claro, assim como as feras odiavam o cheiro de ferro, Holo odiava
o cheiro daquelas letras.
“Ainda assim, você recebeu uma recompensa por todo esse
trabalho, não recebeu? Certamente isso contará como um pouco de
economia, de qualquer modo.”
“... Ah, então você é a razão pela qual aquelas moedas de prata
desapareceram da minha bolsa, hein?”
“Sem a minha ajuda, você dificilmente teria gerenciado uma crise
dessas. Portanto, meu preço foi barato,” disse Holo facilmente,
puxando o cobertor mais confortavelmente sobre si mesma.
A loba sabia exatamente até onde ela poderia empurrar alguém
antes que eles perdessem a paciência. Embora o conteúdo da bolsa de
um mercador fosse sua força vital, Lawrence não conseguiu se irritar
e simplesmente deu um suspiro impotente.
“Certamente você deu ao menino a parte dele também, não é?”
Lawrence disse, apontando para Col, que Holo fungou e fechou os
olhos.
A inteligência de Col provou ser a chave para resolver seus
problemas em Kerube. Mas, dada a sua personalidade, ele não poderia
ter pedido nenhuma recompensa e, mesmo que lhe fosse oferecida, ele
não a aceitaria.
Ao roubar dinheiro da bolsa de moedas de Lawrence, Holo o
forçou a pegá-lo. Sem dúvida, ela fez questão de roubar enquanto
Lawrence estava fora e Col estava olhando, tornando-o assim um
cúmplice.
Lawrence deu um tapinha no corpo encolhido do menino. A cauda
de Holo balançou audivelmente.
CAPÍTULO I ⊰ 18 ⊱

“Ainda assim, a Grande Abadia de Brondel será um lugar


problemático.”
“Está cheio de velhos fanáticos?” O rosto de Holo saiu do cobertor.
Lawrence tossiu e deu um tapinha no peito, depois respondeu. “A
reputação da Grande Abadia de Brondel a precede em toda parte. Sua
grandeza divina faz tremer os deuses pagãos, e sua magnificência
sustenta incontáveis homens. A poderosa Abadia de Brondel, morada
do altíssimo Deus.”
Holo torceu o nariz com Lawrence recitando gloriosamente os
versos de uma famosa poesia. Como ela era um desses mesmos deuses
pagãos, não parecia um lugar particularmente agradável para ela.
“Claro, independentemente de quantos santos possa ter
produzido ao longo do tempo, hoje em dia pessoas como nós devem
se sentir em casa por lá.”
“Hum?”
“Sua reputação sagrada significa que ela recebe grandes doações de
terras e dízimos verdadeiramente bizarros — e, querendo ou não, eles
precisam administrar esses ativos. E sendo a morada de Deus, devem
manter tudo brilhando. Hoje em dia é praticamente uma empresa
comercial. E como é administrado por um monge arrogante, tem
todos os detalhes para ser um lugar realmente desagradável.”
Certa vez, quando o papado da principal seita da Igreja entrou em
conflito com um monarca secular, foi dito que o papa havia banido o
rei para as planícies nevadas por três dias inteiros. Um mercador
dificilmente escaparia tão facilmente. Anedotas sobre os obstáculos
irracionais que a Igreja impunha aos comerciantes eram um assunto
popular de fofoca entre eles quando tentavam fechar um negócio.
No entanto, rumores recentes eram de que os negócios da grande
Abadia de Brondel haviam diminuído, embora os únicos a sofrer
durante essas recessões fossem os plebeus — a nobreza geralmente
ficava mais confiante.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 19 ⊱

“E os ossos que procuramos estão neste lugar desagradável?” Holo


baixou a voz, dado o assunto.
Lawrence assentiu vagamente — embora tivesse recebido a
informação de Eve, não estava muito confiante nela.
“Há uma boa chance disso acontecer, mas de qualquer forma eles
estarão escondidos atrás dos grandes muros da abadia. Dizem que o
próprio Deus não sabe o que acontece lá dentro.”
“Certa vez, ouvi um sermão que dizia que nada pode ser
verdadeiramente escondido.”
“De fato, seus sentimentos transparecem em suas orelhas e cauda.”
“Sim, e os seus estão em todo o seu rosto”, disse Holo, bocejando
preguiçosamente, e Lawrence não pôde deixar de bocejar junto com
ela. Independentemente de como eram quando se conheceram, agora
conversas como essa eram meras saudações entre eles. No momento,
ele estava mais preocupado com suas conversas com Col do que com
Holo.
Lawrence gentilmente puxou para trás o cobertor em que Col
estava enrolado e viu que o menino havia adormecido. Se continuasse
dormindo, não teria que temer o balanço do barco, nem se preocupar
em ficar enjoado.
Ele recolocou o cobertor com cuidado e viu Holo recuando para
dentro de seu próprio cobertor, tendo se inclinado para espiar Col —
evidentemente ela também estava preocupada com ele.
“Acorde-me assim que chegarmos.”
Em resposta às suas palavras abafadas, Lawrence deu um tapinha
leve em suas costas curvadas, o que fez o cobertor subir e depois cair.
Tomando isso como um suspiro de satisfação, Lawrence sorriu,
deixando a mão nas costas dela.
CAPÍTULO I ⊰ 20 ⊱

O progresso do navio continuou sem intercorrências e chegou


conforme planejado na cidade portuária de Jiik, no reino de Winfiel.
Quando eles atracaram, o céu era de um cinza chumbo, mas
quando desceram do convés do navio para as docas, ele foi tingido de
vermelho escuro, e Col — que acabou dormindo o resto da viagem
— semicerrou os olhos com o brilho do céu.
Um porto no inverno muitas vezes pode te dar saudades de um
pôr do sol no verão. Talvez isso se devesse ao fato de ser um lugar onde
o nível de atividade aumentava com a temperatura, um lugar que agora
estava quieto. Parecia lânguido, impregnado de melancolia. E, no
entanto, parecia muito quieto, talvez por causa do frio.
O reino de Winfiel era a própria imagem de um país do norte, já
que as neves do inverno cobriam grande parte da terra.
À medida que o sol se punha, o ar do porto ficava terrivelmente
frio e, olhando em volta, Lawrence podia ver montes de neve nas
esquinas dos prédios e nas beiradas das ruas.
Col tinha apenas um par de sandálias de palha esfarrapadas e
arrastava os pés rapidamente, como se não pudesse mantê-los quietos
nem por um momento.
“Venha, se não encontrarmos uma pousada logo, vamos todos
congelar na hora,” disse Holo. Ela também havia dormido a maior
parte da viagem, enrolada em um cobertor e, ao acordar,
evidentemente achou o frio intolerável.
“Não nevava frequentemente em sua terra natal? Tenha um pouco
de resistência.”
“Seu tolo — devo ficar peluda aqui?” disse Holo, envolvendo os
braços em torno de Col.
Lawrence apenas inclinou a cabeça e, em seguida, mostrou a carta
de apresentação que havia recebido de Kieman e a examinou.
“Para o Sr. Deutchmann da Companhia Tyler, hein?”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 21 ⊱
CAPÍTULO I ⊰ 22 ⊱

Na carta havia um desenho cuidadoso do selo da Companhia


Tyler, e Lawrence começou a andar, com a carta na mão. As docas
estavam cheias de empresas conhecidas, algumas delas com nomes que
quase qualquer um teria conhecido.
Apesar dos invernos de Winfiel serem muito nevados, as outras
estações eram bastante amenas com muita chuva, e as planícies férteis
e gramadas se estendiam indefinidamente. Qualquer bicho criado ali,
fossem cavalos ou gado, crescia saudável e forte nessas condições —
mas as ovelhas eram particularmente famosas.
Costumava-se dizer que o reino cultivava mais lã do que grama e
exportava mais lã do que qualquer outro lugar do mundo.
As docas de carga das empresas comerciais ao longo do porto
estavam cheias de fardos de sacos de lã, e pendurada no beiral de cada
empresa havia uma placa com a marca do chifre de carneiro que
provava que o comerciante tinha a permissão da monarquia para
negociar com lã.
A Companhia Tyler ficava no final de uma fileira de lojas e sua
fachada era da mais alta qualidade. O sol se pôs e a luz das velas de
dentro do prédio se espalhou, o que era o melhor sinal de um negócio
bem-sucedido.
Lawrence bateu na porta de madeira, que logo se abriu.
Não importava a cidade ou o porto, mercadores e artesãos sempre
eram muito meticulosos quanto ao horário de trabalho.
“E quem é você?”
“Minhas mais profundas desculpas pela hora tardia. Espero ver o
Sr. Deutchmann da Companhia Tyler.”
“Deutchmann? E você é-?”
“Kraft Lawrence da Companhia de Comércio Rowen. Venho por
Lud Kieman de Kerube”, disse Lawrence, oferecendo a carta de
apresentação.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 23 ⊱

O comerciante barbudo de meia-idade olhou abertamente para o


rosto de Lawrence por um momento antes de aceitar a carta, depois
olhou de frente para trás antes de dizer: “Só um momento, por favor”
e recuar para dentro do prédio.
A porta ainda estava entreaberta e o ar quente escorria por ela.
Além disso, talvez por terem chegado no final do dia de trabalho,
aquele ar quente carregava o cheiro de leite de ovelha ou vaca com
mel. Até Lawrence achou o cheiro tentador e, para o olfato sensível
de Holo, parecia quase insuportável. Seu estômago roncou
audivelmente.
Nesse momento, o mercador voltou e abriu a porta. O ronco do
estômago foi bem alto, então ele pode muito bem ter ouvido.
“Minhas desculpas por fazer você esperar. Por favor, entre, Sr.
Lawrence.”
“Ah obrigado.” Lawrence fez uma pequena reverência ao homem
e entrou, seguido por Holo e Col.
O mercador fechou a porta e caminhou na frente deles, dizendo:
“Por aqui, por favor.”
Imediatamente dentro da casa de comércio havia um espaço para
negociação, com várias carteiras e mesas prontas. Todos os móveis
eram finamente decorados e as paredes adornadas com estandartes
com o rosto do governante do reino. Parecia mais uma mansão nobre
do que uma empresa comercial.
Alguns dos comerciantes da empresa estavam sentados ao redor
de uma mesa jogando cartas. Embora o povo de Winfiel adorasse
jogar, eles geralmente não eram vulgares e jogavam com refinamento
e graça.
Em vez de reclamar e xingar com uma bebida na mão, eles
preferiam bebidas quentes e passatempos elegantes, que apenas
aumentavam o ar de nobreza.
CAPÍTULO I ⊰ 24 ⊱

Lawrence observou o interior da empresa comercial enquanto o


mercador os conduzia ao segundo andar. “O mar estava muito
agitado?” o comerciante perguntou.
“De jeito nenhum. Talvez Deus tenha abençoado nossa jornada,
pois foi fácil.”
“Estou feliz em ouvir isso. Não faz muito tempo, ouvi dizer que
era uma travessia muito difícil um pouco ao norte daqui. Normalmente
a corrente flui do sul para o norte, o que facilita, mas a situação era tão
ruim que o fluxo se inverteu.”
Quando o mar estava agitado no canal, todos os tipos de peixes
podiam ser pescados mais perto da costa. Talvez fosse uma forma de
agradecer a captura do narval perto de Kerube.
“Os mares nesta área não costumam ser tão agitados, mas uma vez
agitados podem ser bastante persistentes. Normalmente, quando a
neve cai, fica imóvel como um lago.”
“Entendo. Talvez seja por isso que tantas pessoas aqui são tão
gentis e refinadas.”
“Ha-ha-ha! Somos apenas um bando de oportunistas coléricos, só
isso.”
Todos os que faziam do comércio seus negócios encontravam
pessoas de todas as terras nas estalagens e tabernas. Enquanto todos
tinham suas próprias personalidades e perspectivas, cada região tinha
suas características, e o povo de Winfiel era gentil e refinado. Mas,
assim como seu guia havia dito tão habilmente, eles também poderiam
ser descritos como coléricos e oportunistas.
Lawrence pensou se caso Holo passasse alguns anos aqui, ela
ficaria mais calma e obediente, assim como as ovelhas?
Mas se ela se tornasse colérica, isso pioraria ainda mais seu
temperamento.
Ele olhou para Holo, e ela devolveu o olhar com uma cabeça
erguida, curiosa.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 25 ⊱

“Por aqui”, disse o mercador, batendo em uma porta e abrindo-a


sem esperar resposta. “Entre.”
Enquanto eram conduzidos para dentro, Lawrence sentiu uma
pitada de surpresa em seu rosto.
Os olhos de Holo se arregalaram e Col fez um pequeno som de
surpresa.
A sala para a qual eles foram conduzidos tinha paredes cobertas do
chão ao teto com prateleiras, dentro das quais eram armazenados todos
os tipos de fios, tecidos, lã e teares para fiá-los.
Mas o que mais chamou a atenção foram os crânios de ovelha.
Iluminados pela luz das velas, seus olhos ocos observavam
silenciosamente os intrusos entrando em seu reino — devia haver pelo
menos vinte deles, alguns de mandíbula estreita, alguns largos, alguns
com grandes chifres e alguns com pequenos.
Um som súbito trouxe Lawrence de volta a si. Um homem que
estava sentado, escrevendo em uma mesa no canto da sala, havia se
levantado.
Se isso fosse uma negociação comercial, ser distraído pela
decoração do quarto certamente teria custado a credibilidade de
Lawrence, e o dono do quarto certamente estava tentando fazer
exatamente isso.
Ele deu um sorriso muito satisfeito.
“Estas são as ovelhas que nos trazem tanta riqueza, embora eu
dificilmente possa mostrar isso à Igreja.”
O homem de bigode parecia estar no auge da vida e, quando
sorria, seus olhos quase desapareciam nas rugas. Quando Lawrence
apertou sua mão, sua palma era dura. Ele certamente era gracioso, mas
essa era a única expressão visível — poucas pessoas podiam esconder
o resto de suas intenções dessa forma.
Lawrence sentiu-se profundamente aliviado por não estar
tentando uma negociação comercial com aquele homem. Não importa
CAPÍTULO I ⊰ 26 ⊱

o quão habilidoso fosse, haveria alguns oponentes que ele sempre


acharia difíceis.
“Sou Amn Deutchmann e sou responsável pelo comércio de lã
nesta empresa.”
“Minhas mais humildes desculpas pela visita repentina. Eu sou
Kraft Lawrence da Companhia de Comércio Rowen.”
“Bem, sente-se.”
“Obrigado.”
Terminadas as amabilidades habituais, Lawrence, Holo e Col
sentaram-se todos no sofá e, à frente deles, Deutchmann. Uma mesa
baixa os separava.
O mercador que os havia levado para dentro fez uma breve
reverência e saiu da sala.
“Então, devo dizer que mal pude esconder minha surpresa ao ver
o nome do Sr. Kieman envolvido — ele já foi chamado de ‘o Olho de
Kerube.’ Para não falar do nome Bolan. Devo me perguntar que tipo
de negócio terrível me pedirão para tomar parte?!”
Era muito típico de Winfiel fazer piadas que provocavam sorrisos
irônicos por toda parte. Lawrence entendeu a deixa e coçou o nariz
como se estivesse dando uma desculpa. “Um rei só agradece a seus
súditos em tempos de guerra. Nesses momentos, até mesmo um copo
d’água pode parecer um presente de peles raras.”
“Oh Ho. Então há algum tipo de distúrbio em Kerube, não é?”
“Tenho certeza que você vai ouvir falar disso em breve. Eu ficaria
muito feliz em lhe contar pessoalmente, embora não tenha certeza de
que acreditaria em mim.”
Surpreendentemente, as palavras pareceram despertar o interesse
de Deutchmann. Seus ombros tremeram de alegria. “Milagres
acontecem nos negócios!” Ele continuou: “Agora, sobre esta sua carta.”
“Sim senhor.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 27 ⊱

“Você diz que deseja visitar a grande Abadia de Brondel?”


“Sim. Eu esperava ajuda para visitá-los por um motivo que não
fosse comprar lã.”
“Oh Ho.”
Mercadores viajantes usavam barba, mas os comerciantes da
cidade de Winfiel pareciam preferir bigodes. Deutchmann passou os
dedos pelo magnífico bigode, torcendo-o enquanto observava
Lawrence.
“Acredito que os peregrinos da abadia sejam recebidos apenas em
um prédio separado do complexo central e não podem se aproximar
da própria abadia.”
“Isso é verdade. Mesmo entre aqueles ligados à abadia, apenas
alguns têm permissão para entrar. Como você deve saber, até mesmo
o comércio de lã é feito em uma filial especialmente designada.
Então…”
“Não é tarefa fácil bater nas portas da abadia principal.”
“Na verdade, não é, Sr. Lawrence. Claro, o ramo mercantil é a
linha de vida da abadia principal, então tem alguma conexão... mas...
certamente você não está sugerindo...”
Lawrence sabia perfeitamente bem o que os olhos estreitos do
mercador astuto estavam vendo.
A assinatura de Bolan.
Se eles não tivessem ido como peregrinos à famosa Abadia de
Brondel, nem como comerciantes em busca de lã, as possibilidades
restantes eram realmente poucas.
E quase qualquer comerciante com um negócio grande o
suficiente reconheceria o nome de Eve, o nome de uma família nobre
extinta de Winfiel — e havia apenas uma razão para isso aparecer.
“Não sou um agente político. Por favor compreenda.”
CAPÍTULO I ⊰ 28 ⊱

Mas as palavras de um comerciante nunca eram confiáveis. Não


era de surpreender que o olhar de Deutchmann saísse de olhos
estreitos como agulhas. O comprador de lã da Companhia Tyler olhou
para frente e para trás entre a carta de apresentação e o rosto de
Lawrence e finalmente olhou para Holo e Col.
Se Lawrence estivesse sozinho, ele teria sido educadamente
conduzido à porta.
Mas com dois companheiros de viagem, era improvável que ele
fosse o mensageiro secreto de alguém, Deutchmann finalmente
pareceu concluir.
“Minhas desculpas se eu te deixei desconfortável.”
“Dificilmente. É natural que você suspeite.”
“Muito obrigado. Mas este é precisamente o tipo de problema que
Abadia de Brondel está enfrentando no momento.”
“Oh?” Lawrence falou, mas nesse momento houve uma batida na
porta e uma criada entrou carregando uma bandeja.
Era a mesma coisa que os homens lá embaixo bebiam enquanto
jogavam cartas, pensou Lawrence. As xícaras fumegavam com calor,
mas não muito quente para ser possível segurar confortavelmente —
evidentemente os anfitriões foram atenciosos o bastante para fornecer
aos visitantes algo para afugentar o frio.
“Por favor, beba. É leite de ovelha com mel e gengibre. Nesta
época do ano, reis e plebeus o bebem. Vai aquecê-lo.”
“Bem, obrigado.”
O leite ainda borbulhava e Lawrence temia que seus dentes
derretessem se o bebesse. Ele não se importava com coisas doces, mas
havia um limite.
Se ele apenas tomasse um gole por educação, parecia provável que
Holo aproveitaria a oportunidade e beberia o resto.
“Então, sobre o que eu estava dizendo.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 29 ⊱

“Sim.”
“Sr. Lawrence, algo em particular chamou sua atenção quando
avistou o porto hoje?”
Mudar de assunto e fazer uma pergunta repentina era uma boa
maneira de determinar os verdadeiros motivos de alguém. Como tal,
Lawrence não parou para pensar e simplesmente respondeu o que veio
à mente.
“Do que eu supus ser resultado do frio e da hora tardia, parecia
um pouco desolado.”
“Sim, você está certo. Os negócios estão ruins recentemente — e
não estou dizendo isso apenas para fazer conversa fiada. É a verdade.”
“... Você terá que me perdoar, mas como um mercador viajante
vindo do continente, não estou muito familiarizado com as
circunstâncias daqui.”
“Entendo. Nem mesmo da proibição do Rei Sufon?”
“Infelizmente, não.”
Mercadores viajantes como Lawrence precisavam entender
quaisquer proclamações que afetassem os negócios nas terras por onde
viajavam.
Mas, ao contrário dos demais, eles podiam fugir para o interior se
as coisas corressem mal, uma empresa comercial precisava de um
porto para descarregar suas mercadorias e, para eles, tais
determinações eram como a palavra de Deus.
“Para ser claro, as importações foram proibidas. As exportações
ainda são permitidas. Mas trigo e vinho exceções. O objetivo é —”
“— impedir a saída de dinheiro, presumo.”
“Você assume corretamente. O rei Sufon está no trono há cinco
anos e seu maior objetivo é tornar sua nação rica. Mas as vendas de lã
caíram consideravelmente — os últimos anos foram realmente
terríveis. E dado que Winfiel tem pouco a oferecer para o exterior, é
CAPÍTULO I ⊰ 30 ⊱

lógico que quanto mais nossas importações excedem nossas


exportações, mais pobre nossa nação se torna. É por isso que o rei, que
não tem experiência em negócios, veio com essa solução.”
Deutchmann levantou as duas mãos em um gesto de resignação.
Se sua frustração indicasse algo, sem dúvida a proibição era
profundamente impopular na cidade.
“Nenhum comerciante se incomodará em vir aqui depois de saber
que não terá permissão para vender seus produtos. O número de
navios no porto diminuiu e as pousadas estão todas vazias. As tabernas
não vendem vinho, nem carne, nem os viajantes compram cobertores
ou mantas. Os estábulos estão à beira da ruína apenas alimentando seus
cavalos, e os cambistas não têm nada para pesar, exceto a poeira em
suas balanças.”
“É um ciclo vicioso.”
“Exatamente. Um rei que só sabe brandir uma espada fica perdido
quando se trata de usar sua mente. Dada a situação, não é surpresa que
as condições sejam tão ruins. A moeda desapareceu da cidade em um
piscar de olhos, e agora veja — aqui estamos nós.”
Enquanto falava, Deutchmann pegou uma moeda com um
movimento experiente.
O reino Winfiel foi fundado após anos de conflito com os reis das
ilhas próximas e luta com os piratas dos mares do norte. Sufon era o
terceiro da linha, e seu perfil estava gravado em relevo nesta moeda,
embora esta estivesse tão enegrecida que seus detalhes mal podiam ser
discernidos.
“Ela tem essa aparência porque eles misturaram cobre e sabe-se lá
o que mais com a prata. Ouvi dizer que é tão ruim que nem mesmo os
melhores cambistas podem dizer quanta prata sobrou. Quando uma
moeda perde sua credibilidade, ela não é mais útil para os negócios.
Ouvi dizer que alguns proprietários estão acumulando moedas de
cobre do continente para que possam pelo menos comprar um pouco
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 31 ⊱

de pão, mas isso é uma gota em um oceano. E com as coisas tão ruins,
o rei só endurece ainda mais, então…”
Holo e Col olharam para a moeda na mesa, mas se endireitaram
quando viram que Deutchmann continuava.
“E agora os comerciantes começaram a aparecer com o objetivo
de tirar vantagem da situação.”
Os negócios não passavam de um cabo de guerra. Puxando cada
fio, era fácil ver onde eles levavam. A economia era pobre e a moeda
tão corrompida que não dava nem para comprar pão, e agora? A
economia de uma nação não era um ritual secreto realizado atrás de
paredes de pedra, então certamente sua moeda seria comparada às
moedas de outras terras.
Então, o que aconteceria, uma vez que a moeda de Winfiel fosse
desvalorizada? Assim como um cervo enfraquecido seria devorado por
lobos, fortunas cujo valor fosse medido com esta moeda enfraquecida
seriam devoradas por moedas mais fortes.
“Você fala daqueles que vêm não para comprar mercadorias, mas
bens.”
“Exatamente. Assim como tubarões atacando um peixe ferido.
Então você vê por que eu estava preocupado que você um desses
homens.”
“Entendo. Parece provável que Abadia de Brondel se torne um
alvo. Possui reputação, influência e ativos em abundância.”
“De fato.”
“Aliás, quem está agindo como um tubarão?”
A essa pergunta, Deutchmann mostrou os dentes caninos com um
sorriso vulgar que não chamaria atenção em uma taverna decadente.
“A insígnia da lua e escudo.”
“…!”
CAPÍTULO I ⊰ 32 ⊱

“Exato. A Aliança Ruvik, cujo território natal engloba todo o


norte. São eles que estão por trás do tubarão.”
Era a aliança econômica mais poderosa do mundo, cujos inúmeros
navios de guerra ostentavam uma bela bandeira verde com uma
insígnia de uma lua e um escudo, e com quem nada menos que dezoito
regiões e vinte e três guildas artesanais cooperavam. Era apoiado por
trinta nobres e liderado por dez grandes companhias comerciais.
Alguém poderia dizer que em sua mesa de reunião, eles podem
decidir quem colocar no trono de uma determinada nação, mas tal
piada não pode ser facilmente ridicularizada.
Quando visadas por tal organização, as táticas comuns eram
praticamente inúteis.
“Naturalmente, estamos todos muito apavorados para fazer
qualquer coisa, então fomos reduzidos a meros espectadores. E eles
estão seguindo as regras. Eles não interferiram no comércio de lã.”
“Suponho que o objetivo deles seja a terra mantida pela abadia.”
“Sim. Meu palpite é que eles estão tentando adquirir o território
da abadia, comprando as propriedades da pequena nobreza para
pressionar a monarquia — e a pequena nobreza já está sofrendo com
o aumento dos impostos e a diminuição da receita. Dado seu vasto
tamanho, a aliança dificilmente pode agir em segredo, o que por sua
vez os motiva a seguir em frente.”
Lawrence imaginou a nobreza acreditando que, uma vez que tudo
acabasse, o rei Sufon seria reduzido a uma figura sem poder.
E quando isso acontecesse, seria como uma avalanche.
Lawrence olhou de lado para Holo. Eles pareciam encontrar
situações interessantes onde quer que fossem.
“Ainda assim, a abadia tem sido surpreendentemente teimosa,
então as negociações estão encalhadas. Aparentemente dentro da
aliança, as várias empresas comerciais estão tentando freneticamente
ser as primeiras a fechar um negócio. Então…”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 33 ⊱

Deutchmann baixou o olhar novamente para a carta de


apresentação, acariciando o bigode e inclinando a cabeça ligeiramente.
“Se você acha que vale a pena arriscar o perigo de se aventurar em
tal covil, Sr. Lawrence, suponho que posso apresentá-lo a uma das
cabeças da hidra, mas…” Então o mercador colérico e oportunista do
reino de Winfiel sorriu levemente. “Com uma condição: você nunca
falou com nossa empresa.”
Lawrence não pôde responder imediatamente, mas não porque
estivesse preocupado em mudar de ideia se tivesse mais tempo para
pensar nas coisas.
Era porque quanto mais interessante a situação, mais difícil era
acreditar que os comerciantes ao redor permaneceriam como terceiros
não envolvidos. Quando se tinha um espetáculo tão fascinante, queria-
se vê-lo de perto.
A Abadia de Brondel reservou um local dedicado ao comércio,
com mercadores que vinham buscar a lã que a abadia produzia. E no
momento, sem dúvida, estava um caos. Se ele fosse verificar e
descobrisse que estava perigoso demais, Lawrence poderia
simplesmente encontrar outra maneira.
Ele considerou isso e, sem sequer olhar para Holo, respondeu:
“Por favor, prossiga.”
Deutchmann sorriu.

O saco de lã fazia um baque quando atingia o chão, sem dúvida


seria levado para um navio e depois enviado para alguma terra distante
— ou assim Lawrence teria facilmente acreditado se alguém falasse.
Dentro do saco plano, costurado com cânhamo, havia uma grande
trouxa de colchas de lã, cada uma muito mais quente do que dez
cobertores ásperos de viagem. Dormir sob apenas um deles faria
qualquer um suar.
Três dessas colchas foram trazidas de volta para o quarto.
CAPÍTULO I ⊰ 34 ⊱

“Isso...mmph. Tem certeza de que é uma boa ideia?” perguntou


Holo, apesar de ter insistido no quarto mais refinado da estalagem, e
de ter atirado à lareira um pedaço de lenha atrás do outro para secar o
cabelo depois de o ter lavado da maresia.
Evidentemente, até Holo, que constantemente perseguia
Lawrence pela sua mesquinhez para ficar em boas pousadas, tinha
algum tipo de senso financeiro.
Eles nunca haviam ficado em uma pousada como esta, e foi o
suficiente para inspirar Holo a expressar preocupação.
“Não há um hóspede nesta estalagem há dez dias, e já se passaram
quatro semanas desde que qualquer um ocupou este quarto, e durante
esta temporada, os hóspedes são ainda mais raros. Um único ryut foi o
suficiente para nos dar o quarto e com o troco, a lenha. Claro…”
Lawrence apontou para as moedas manchadas alinhadas sobre a
mesa. “…É bastante duvidoso que possamos comprar qualquer coisa
com moedas como essas.”
“Hmph. Então você se aproveitou da fraqueza deles, não é?”
“Essa não é uma maneira muito legal de colocar isso. Quando a
demanda por algo é baixa, seu preço cai.”
“Bem, contanto que você não tenha pagado por este espaço pela
sua própria vaidade, tudo bem. Venha, Col... pegue isso aí.”
Holo começou a arrumar a cama, provocando Col enquanto ele
timidamente pegava a colcha de lã fofa.
Enquanto observava tudo isso com um sorriso irônico, os
pensamentos de Lawrence estavam em outro lugar.
Ele estava pensando sobre o que Deutchmann lhe disse sobre a
crise que esta nação enfrenta e a tentativa da Aliança Ruvik de tirar
vantagem.
Dizia-se que o destino dos fracos era ser devorado pelos fortes.
Mas o que Lawrence achou surpreendente foi que até mesmo a famosa
Abadia de Brondel poderia ser vítima do mesmo destino. Mesmo
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 35 ⊱

considerando que a influência da Igreja estava começando a diminuir,


Lawrence ainda tinha a sensação de que ela tinha reservas de poder que
ainda demorariam a declinar. Particularmente logo depois que
conheceu Holo, não foi outro senão a Igreja a responsável por ela ser
feita refém e pelos loucos eventos que se seguiram.
Claro, Lawrence não estava inclinado a aplaudir ou culpar uma
parte ou outra. Os humanos também comiam ovelhas e, por sua vez,
eram atacados por lobos.
Enquanto ele refletia sobre tais coisas, Holo lançou um olhar.
“Essa sua cara... Vejo que está planejando algo ruim de novo.”
Graças à lareira e às janelas robustas, a sala estava bastante quente.
Embora Holo tivesse tirado o roupão, ela ainda estava um pouco suada,
provavelmente por brincar com Col mais do que pela temperatura do
quarto. Col estava sentado na cama bebendo água de uma jarra,
curvado em uma postura de exaustão.
Talvez o cheiro de lã a tivesse deixado excitada.
“Não é algo bom, isso é certo. Eu simplesmente imaginava que a
Igreja duraria para sempre.”
Holo parecia cética e sentou-se em uma cadeira, levando aos
lábios a jarra de água que estava sobre a mesa.
Embora pudesse ser um jarro de água, estava cheio de vinho e não
era feito de cerâmica, ferro ou cobre. Em vez disso, foi esculpido na
casca de um coco, uma fruta de uma nação no sul cujo comércio deve
ter sido realmente próspero.
“Ah, você fala da conversa anterior.”
“Se isso te incomoda, suponho que posso me transformar
novamente em um alegre mercador e assistir a grandiosa queda de um
inimigo outrora forte.”
“…Idiota.” Depois de um momento de hesitação, ela pisou pé de
Lawrence.
CAPÍTULO I ⊰ 36 ⊱

O motivo de sua hesitação foi, sem dúvida, a lembrança da crise


do narval em Kerube. Holo era realmente bastante leal. E, no entanto,
ela não podia simplesmente estender a mão a um inimigo que lhe
causara tantos problemas no passado.
Em Kerube, eles foram ao auxílio de Eve, uma bela comerciante
conhecida como a loba do rio Roam. Mas Lawrence sabia que se ele
usasse isso para provocar Holo, ele pagaria caro por isso.
Desde que Eve o pegou desprevenido, Lawrence estava na corda
bamba. Ele não tinha vontade de repetir a experiência.
“É um sentimentalismo pobre. Apesar de meus sentimentos
contraditórios, a Igreja veio em meu socorro muitas vezes.”
“Mm. Acho que posso entender isso. Mesmo assim, aquele sujeito
da empresa comercial falou da situação com grande prazer.”
“Ele certamente está muito satisfeito. Deutchmann disse que era
responsável pela compra de lã, não é? Lidar com a abadia deve ser um
incômodo. Não é de admirar que ele esteja feliz em vê-los em
desvantagem.”
“Colérico e oportunista, hein?”
“Exatamente. Mas não acha que você ficou alegre demais desde
que trouxeram as colchas?
Holo franziu a testa, suas orelhas erguidas e suas bochechas
inchadas. Ela então pareceu se sentir constrangida e exalou o conteúdo
de suas bochechas em um suspiro.
“Vai ser difícil para mim dormir em tais colchas. O cheiro das
ovelhas me manterá acordada.”
“E o cheiro do dinheiro os manterá acordados. E provavelmente
não teremos motivos para nos envolver com a crise da abadia. Mesmo
com sua inteligência, a sabedoria de Col e minha coragem, este é um
oponente que não podemos enfrentar.”
“Que tipo de ideia é essa?” Holo olhou para Lawrence se
divertindo, o cotovelo na mesa, apoiando o queixo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 37 ⊱

“O que nós devemos fazer então?” Foi Col quem aproveitou a


oportunidade para falar enquanto verificava a lareira e colocava outra
lenha. Ele era muito bom em cuidar da lenha — um verdadeiro
nortista, pensou Lawrence.
“Eu não imagino que a Aliança Ruvik esteja atrás dos ossos de
lobo.”
Se fosse esse o caso, Eve ou Kieman teriam ouvido algo sobre.
“Então, acabamos de encontrá-los enquanto perseguíamos
diferentes presas.”
“Eu não sei se ‘encontrá-los’ é a frase certa, mas... em todo caso,
a Aliança Ruvik é um oponente de tamanho nacional. Não somos páreo
para eles. No entanto, esta pode ser uma boa oportunidade,
dependendo de como encaremos a situação.”
“Oh?”
Enquanto ouvia a conversa, Col sacudiu seu casaco diante da
lareira, provavelmente tentando usar seu calor para expulsar qualquer
inseto.
“A abadia foi tomada por mandíbulas tão persistentes quanto a de
qualquer cobra. Todo o seu patrimônio está à vista, o que nos poupa o
trabalho. Além disso, de acordo com o que Deutchmann disse, a
aliança está atrás das propriedades da abadia. Mesmo que as
propriedades incluam os ossos de lobo, é improvável que sejam vistos
como importantes.”
Mesmo a Aliança Ruvik não podia ignorar ativos no valor de
milhares de peças de ouro. Mas não importa o quão valiosos fossem os
ossos de lobo, eles eram um item que poderia ser comprado com
dinheiro.
O que era verdadeiramente valioso era aquilo que não podia ser
obtido por qualquer quantia de dinheiro.
“Eu não acho que haveria nenhum perigo real em simplesmente ir
à abadia para observar. Se houvesse perigo, suponho que seria…”
CAPÍTULO I ⊰ 38 ⊱

“O que?” Holo inclinou a cabeça curiosamente.


“Diz-se que a grande Abadia de Brondel tem rebanhos de ovelhas
totalizando cem mil cabeças. Você consegue imaginar isso?”
Ele primeiro pensou nisso como uma piada, mas dada a reação de
Holo à colcha de lã, ele não tinha certeza exatamente qual seria a
reação dela.
Esta era a estação em que os comerciantes vinham comprar lã para
a próxima primavera e, para fins de comparação, o número de ovelhas
em exibição seria enorme. E mesmo que não fosse esse o caso, bens
relacionados a ovelhas estariam por toda parte de qualquer maneira,
junto com dezenas de pastores que Holo tanto detestava.
Além disso, não havia como dizer o quão excitada Holo poderia
ficar ao ver as planícies nevadas, considerando como ela havia agido no
navio — a preocupação de Lawrence era superada apenas por sua
incerteza.
“Tudo ficará bem,” disse Holo casualmente.
Lawrence olhou para a loba despreocupado, imaginando de onde
vinha aquela confiança.
A sábia loba sorriu e continuou. “Eu só preciso comer muito
carneiro que o próprio cheiro me afugenta. Alguém pode enjoar até
mesmo de sua comida favorita — ou estou errada?”
“…”
“Então, está decidido. Vamos nos preparar! Comer até enjoar
requer alguma preparação. E olha, você não acha que o jovem Col
também quer comer carne de carneiro? Está escrito em seu rosto.”
Ela estava apenas usando Col como um pretexto, mas ele não
parecia muito descontente com isso, o que tornava as palavras de Holo
muito mais difíceis de ignorar.
Mas ele tinha que dizer algo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 39 ⊱

“Comecei a achar desagradável tratá-la constantemente com tais


banquetes. O que você acha disso, hein?”
Holo vestiu a manta, aparentemente despreocupada com o fato de
estar dura com sal marinho, puxando o capuz sobre a cabeça. “Não me
importo de ficar ressentida de vez em quando. Mas se você realmente
se cansasse de mim, isso seria realmente doloroso,” ela disse em tom
de flerte, colocando as duas mãos no peito.
Ele pareceria totalmente tolo por cair na provocação dela.
“Realmente,” ele respondeu.
Holo gargalhou e pegou a mão de Col, caminhando em direção à
porta.
Ela então girou e olhou para ele, falando inocentemente, como
uma criança. “Venha, rápido!”
Não havia nada a ser feito, Lawrence murmurou para si mesmo.
Ele pegou o sobretudo e se levantou.

Uma moeda forte é a arma mais poderosa.


Um grande comerciante que cruzou mares e conquistou nações
com nada além de moedas disse uma vez essas palavras, e Lawrence
não se considerava particularmente sortudo por ter sido um mercador
por tempo suficiente para perceber a verdade contida nelas.
Deutchmann havia feito um convite para que ficassem em sua
empresa comercial, mas Lawrence recusou. Pelo que ele pôde
perceber, dado o que Deutchmann havia dito, a oferta só foi
apresentada porque os visitantes estrangeiros eram vistos como alvos
fáceis.
E esse palpite se confirmou no momento em que chegaram à
pousada.
Naturalmente, Lawrence atendeu ao aviso de Deutchmann para
não trocar nenhuma de suas moedas pela moeda de Winfiel.
CAPÍTULO I ⊰ 40 ⊱

Apenas como um teste, Lawrence puxou uma moeda de ryut de


prata que valia pouco menos que um trenni, e o rosto do taverneiro se
abriu em um enorme sorriso.
Uma pilha de carneiro, perfeitamente cozida e coberta por uma
camada de gordura amarela, foi colocada em um prato.
Nesta estação, quando a grama era rala, custava dinheiro alimentar
as ovelhas. Evidentemente, os pastores matavam mais do que o
número normal de ovelhas para se manterem à tona, o que aumentava
o custo do sal e do vinagre usados para conservar a carne.
Mas aqui o clima frio podia ser usado para conservar a carne,
portanto, naturalmente, era mais barato. Poder se banquetear com
uma carne tão boa que ficava uma fina camada de azeite nas taças de
vinho, o qual bebiam para ajudar a engolir, isso não era algo que
acontecia todos os dias.
No entanto, o pão era de qualidade bastante ruim.
Dizia-se que a saúde de uma nação podia ser medida pelo seu pão.
Isso porque, ao contrário da carne, grãos como o trigo e o centeio
eram fáceis de conservar e armazenar, portanto, em tempos difíceis, o
melhor grão seria reservado para uso futuro.
“E pensar que meus primeiros clientes em tanto tempo teriam um
apetite tão grande! Certamente esta é a vontade de Deus!”
As palavras do taverneiro eram um exagero óbvio, mas a taverna
estava de fato com metade da lotação, e a maioria estava apenas
bebendo.
Todos eles pareciam ser locais, provavelmente meio artesãos e
meio comerciantes e mascates de pequena escala.
Não parecia haver ninguém de empresas com sede no exterior,
provavelmente porque ostentar sua prosperidade só lhes renderia a ira
das pessoas da cidade.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 41 ⊱

Claro, para um viajante, o oposto era verdadeiro. Uma vez que


Lawrence tratou generosamente os outros clientes com carne e vinho,
a gordura e o licor se tornaram lubrificantes sociais perfeitos.
“Basta olhar para esta taverna sem vida! Ei, vocês! É assim que
você come e bebe, por Deus!”
“Ah, cala a boca, velho! Você é o único que sempre pula o vinho
e bebe a cerveja aguada que eles preparam no chão de terra!”
“Sim! Ouvi dizer que você coloca tantos feijões no pão que faz sua
esposa chorar!”
O taverneiro e seus frequentadores trocaram ofensas e
imediatamente caíram na gargalhada.
Quando os tempos eram difíceis, era fácil para os moradores da
cidade sentirem como se o próprio mundo estivesse acabando. Mas
quando um viajante próspero aparecia, isso poderia trazer-lhes a
esperança de que nem tudo estava perdido — ou pelo menos foi o que
Lawrence ouviu dos mercadores de cidades no passado.
“A propósito, de onde você veio, viajante?” perguntou o
taverneiro enquanto trazia o ensopado de repolho e carneiro em
conserva, pois Lawrence mandara quebrar a monotonia da
interminável carne assada.
O mestre não se incomodou em perguntar a Holo, não porque ela
parecia ser uma jovem, mas porque ela estava devorando carneiro a tal
velocidade que os outros clientes estavam ao seu redor, torcendo por
ela.
“De Kerube através do mar. Antes disso, estávamos mais ao sul.”
“Kerube, hein? Ouvi dizer que houve bastante burburinho lá. O
que foi mesmo...? Oi, Hans! O que foi que aconteceu em Kerube?”
“O narval, não foi? Ei, os taberneiros não deveriam ser bons com
fofocas? De qualquer forma, ouvi dizer que eles pegaram um grande
demônio em suas redes, transformado em um problema real. A última
CAPÍTULO I ⊰ 42 ⊱

vez que estive nas docas, os rapazes da Companhia Lyon estavam


falando sobre isso.”
Era realmente incrível a rapidez com que a informação podia
atravessar o mar. Fazia apenas alguns dias desde que os eventos em
questão aconteceram.
“Isso mesmo, o narval. Isso foi mesmo verdade?”
O rosto do taverneiro estava cheio de interesse. Ele nunca teria
imaginado que o responsável pela súbita reversão da situação estava
bem na frente dele.
Lawrence olhou para Holo para compartilhar um sorriso privado
com ela, mas se viu totalmente ignorado. Se tivesse olhado para Col,
tinha certeza de que o menino teria retribuído o sorriso de cúmplice
por compartilharem um segredo.
Se perguntado sobre qual de seus companheiros de viagem ele
estava mais inclinado a mostrar bondade, bem — não era difícil
decidir.
“Sim, era verdade. A crise foi tamanha que a cidade foi dividida
em duas, norte e sul. No final, uma única empresa trouxe várias caixas
de moedas de ouro para a igreja e exigiram em voz alta que o narval
fosse vendido a eles. Graças a toda a comoção, foi impossível
aproveitar a estadia na cidade.”
“Oh ho, caixotes cheios de moedas de ouro, hein?” Os clientes ao
redor reagiram fortemente a essa parte da história. Isso revelava
claramente em que estavam interessados. “E você diz que veio até aqui
do sul de Kerube? Para comércio?”
“Não, estamos em peregrinação à Abadia de Brondel.”
Dada a reação deles a qualquer notícia sobre moedas, Lawrence
evitou o assunto dinheiro. Pelo que podia supor, imaginou que a
maioria dos clientes eram mercadores ou artesãos. Se a conversa se
voltasse para os negócios, não apenas a conversa pararia de progredir,
mas eles certamente começariam a tentar vender-lhe seus produtos.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 43 ⊱

“Ah, Abadia de Brondel…”


“Por mais difícil que seja acreditar, meus dois companheiros de
viagem são fiéis. Fui levado a me arrepender e tentar expiar meus
pecados”.
“Entendo. Ainda assim, pensar que um comerciante estaria
fazendo uma peregrinação à Abadia de Brondel... que ironia”, disse o
taberneiro aos outros clientes, tendo em algum momento pegado uma
taça de vinho para si. Ele sorriu sarcasticamente, assim como seus
clientes.
Lawrence fez o possível para interpretar o viajante ignorante.
“Por que isso é irônico?”
“Bem, só porque Abadia de Brondel é mais inteligente com os
negócios do que você imagina e não trata os peregrinos adequadamente
há muitos anos. A maioria dos viajantes estrangeiros que buscam a
abadia vem por esta cidade, e vimos muitos deles voltando com rostos
desapontados.”
“Eles deveriam pagar pela manutenção de pousadas e estradas para
os peregrinos, mas a quantia que contribuem é insignificante em
comparação com o dinheiro que eles fazem com o comércio de lã. Até
uma criança pode ver para que lado a balança se inclina. Que a proteção
de Deus esteja sobre nós!”
O taberneiro parecia ser um comerciante e, ao ouvir suas
palavras, ele assentiu com firmeza.
Seja uma empresa comercial ou uma abadia, quando chegava a
hora de obter lucro, os métodos usados eram praticamente os mesmos.
Era crucial conduzir os negócios mais lucrativos com os parceiros mais
lucrativos.
Mas ao fazer isso, muito se perdeu.
“É graças às suas ações que estamos sofrendo o castigo de Deus!
Nos últimos anos, as vendas de lã em Winfiel caíram forte, e a Abadia
de Brondel foi quem mais sofreu. Mesmo os comerciantes mais mansos
CAPÍTULO I ⊰ 44 ⊱

do que ovelha pararam de vir até eles, e mesmo que comecem a pedir
dízimos agora, todos aqueles peregrinos que eles expulsaram não
voltarão.”
“E se depois de tudo isso um comerciante estrangeiro vem como
peregrino, talvez este seja sua punição. Bem-feito, é o que eu digo!”
Dado o quão profundamente as pessoas reverenciavam os locais
de culto, suas reações quando sua fé era abusada eram muito mais
violentas.
Cada um dos clientes da taverna ficava muito feliz em falar mal da
abadia.
Diante disso, Lawrence tinha certeza de que não seria difícil fazê-
los falar sobre a Aliança Ruvik.
“Então é assim... isso significa que ninguém mais visita a abadia?”
perguntou Lawrence, ao que a expressão do taverneiro se complicou,
parecendo ao mesmo tempo satisfeito e desamparado.
Mas ele não sabia dizer o que estava sentindo. Lawrence podia
notar isso.
A Abadia de Brondel ainda era um centro importante para a cidade
e para a nação — um símbolo de sua fé.
“De jeito nenhum. Mesmo agora, os comerciantes se reúnem lá.
Embora sejam de um tipo bastante diferente. Você já ouviu falar da
Aliança Ruvik?”
Holo parou de morder seu carneiro e tomou um gole de vinho
como se estivesse fazendo uma pequena pausa — embora suas ações
não fossem coincidência. Ela percebeu que a conversa animada havia
chegado ao fim.
“Essa é a maior e mais famosa aliança econômica do mundo, não
é?”
“De fato é. Evidentemente, seu povo está visitando a abadia em
grande número. A princípio eram seus líderes, andando em carruagens
pretas, mas aparentemente o inverno da abadia era demais para eles
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 45 ⊱

suportarem, e mercadores vindo a pé os substituíram. Ouvi dizer que


eles vêm e vão constantemente, cada um tentando ser o primeiro a
fechar um acordo. Este ano eles passaram direto por todas as tabernas,
com o rosto sombrio.”
“Que tipo de acordo eles estão tentando fazer?” Esse seria o resto
da história que Lawrence ouvira de Deutchmann, mas o que saiu da
boca do taverneiro em seguida foi totalmente surpreendente.
“Não ria agora, mas ouvi dizer que eles estão tentando comprar a
ovelha de ouro.”
Lawrence teve a sensação de que podia ouvir as orelhas de Holo
em posição de atenção sob o capuz.
O próprio Lawrence olhou incrédulo para o taverneiro.
“A história surge sempre que os tempos são difíceis. Os campos
da Abadia de Brondel são vastos e, quando estão cobertos de neve, a
brancura se estende até onde você pode ver. Diz a lenda que bem na
borda há uma ovelha tão dourada quanto o sol recém-nascido. A
história diz que um homem uma vez conseguiu arrancar um pouco de
lã dela, mas no momento em que a lã foi arrancada, ela se transformou
em pura luz e desapareceu.”
Era bem verdade que essas histórias circulavam.
Em nenhum lugar o terreno era mais fértil para histórias
milagrosas do que uma nação assolada por guerras ou dificuldades —
contos de estátuas da Santa Mãe chorando, sorrisos de bruxas abrindo-
se de orelha a orelha enquanto roubavam crianças, ou o símbolo da
Igreja aparecendo em uma grande bandeira no céu.
Mesmo do outro lado do mar, no continente, havia pessoas que
ouviram a história da ovelha dourada da Abadia de Brondel.
Era uma lenda bastante conveniente para se agarrar em tempos de
grande dificuldade.
“Eles provavelmente estão tentando comprar o nome da abadia,
ou suas terras...”
CAPÍTULO I ⊰ 46 ⊱

“Ouvi um boato de que a Aliança Ruvik está tentando se tornar a


nova nobreza de Winfiel.”
“Mas o Rei Sufon é neto do grande Winfiel, o Primeiro. Ele não
vai apenas ficar parado e permitir que seus próprios lacaios sejam
comprados. Uma vez um mercador que comprou para si o nome de
uma família nobre caída, e a raiva do rei foi tamanha que seus decretos
arruinaram o comércio de lã do mercador... e depois isso.” O
taberneiro passou um dedo pelo pescoço em um gesto de decapitação.
Lawrence percebeu que o mercador devia ser o antigo marido de
alguém que ele conhecia muito bem.
“Não há dinheiro, mas os impostos continuam subindo, embora
eu suponha que é porque não há dinheiro que sua reação é tão excessiva.
Vocês são bons clientes, então vou lhe dizer uma coisa. Se você está
indo para a abadia, tome cuidado. Demônios se apoderaram da casa de
Deus. O Deus que deveria vir em nosso auxílio está perdido nas vastas
planícies há muito tempo.”
Lawrence não sabia se eles estavam falando mal da abadia ou da
Aliança Ruvik. Talvez eles próprios não se conhecessem.
Talvez eles não se importassem, desde que tivessem algo para
reclamar. Mas não importa o alvo de suas reclamações, estava claro
que eles não os odiavam de verdade.
A Aliança Ruvik e a monarquia Winfiel eram entidades muito
além de suas próprias posições e, mesmo que tivesse caído, a Abadia
de Brondel ainda era vista com respeito.
Essas contradições nebulosas eram muito claras para Lawrence.
E por serem tão claras, Lawrence entendia bem como era difícil a
vida dos clientes da taverna.
“Obrigado. Seremos muito cuidadosos.”
“Sim. Fora isso, é melhor você comer e beber de forma que tenha
energia de sobra. No momento em que sair da cidade, não vai ter nada
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 47 ⊱

além de campos nevados. Sem energia suficiente, você nunca


conseguirá atravessar!”
O barulho da taverna aumentou com a fala do dono da taverna, e
Lawrence ergueu seu copo.
Col parecia estar em seu limite, embora Holo ainda estivesse
pronta para mais.
A grande Abadia de Brondel nas planícies cobertas de neve.
Na verdade, eles precisariam comer bastante enquanto pudessem.

Houve um som tik, tik.


Parecia o crepitar de lenha queimando. Mas espere, não —
nenhuma fogueira havia sido acesa na noite anterior. Ah, claro — a
lareira.
E, no entanto, apesar de reconhecer, o som era estranho.
Lawrence finalmente abriu os olhos e ergueu a cabeça. Dada a sala
ainda escura, ele sabia que ainda era cedo e, pela luz que entrava pela
janela, podia dizer se o tempo lá fora estava claro ou não.
Infelizmente o dia parecia nublado. No momento em que
organizou os pensamentos, está frio, o ar gélido que inalou pelo nariz o
despertou impiedosamente.
Fazia frio na sala, apesar do barulho da lenha crepitando.
“Neve, hein?” ele murmurou, então deu um grande bocejo e se
sentou.
Fazia muito tempo que não dormia tão profundamente, graças ao
impressionante calor proporcionado pela colcha de lã.
Holo parecia dormir profundamente, a colcha fofa subindo e
descendo com sua respiração.
E ainda estava frio.
CAPÍTULO I ⊰ 48 ⊱

Lawrence sentiu como se tivessem colocado gelo em seu rosto.


Ele olhou para Col, que assim como Holo parecia estar enrolado e
dormindo, totalmente coberto por sua colcha.
Evidentemente, Lawrence foi o único que dormiu com o rosto
exposto.
Ele esfregou o rosto gelado e exalou uma fumaça branca. Saindo
da cama, ele estremeceu e caminhou até a mesa do quarto, então pegou
o jarro de água para fazer um teste.
Ele não esperava nada diferente disso, a água na jarra de metal
estava congelada.
“Suponho que eu tenha que descer...”
Desde o início de suas viagens com Holo, ele falava muito menos
consigo mesmo, mas às vezes ainda acontecia. Acrescentou um pouco
de palha ao fogo ainda levemente bruxuleante e, assim que ele
acendeu, colocou outro pedaço de lenha.
Os tijolos da linda lareira de tijolos pareciam frios o suficiente para
apagar o fogo.
Tendo confirmado que a lenha estava realmente queimando,
Lawrence saiu da sala.
O corredor estava totalmente silencioso. Fosse por falta de
convidados ou simplesmente por causa da madrugada, o silêncio
parecia engolir todos os sons.
Ele não estava preocupado com o ranger das tábuas do assoalho
enquanto caminhava.
Esse silêncio, como se o mundo fosse envolto em algodão, era
exclusivo da neve recente.
Quando chegou ao andar térreo, viu que a porta da frente ainda
estava trancada e a estalagem ainda não estava aberta.
Então ele pensou ter ouvido o som de uma porta se abrindo vindo
do final do corredor que dava no pátio.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 49 ⊱

Quando olhou, viu o estalajadeiro, de nariz vermelho e vestindo


um lenço enrolado no pescoço e carregando um barril.
“Meu Deus, você acordou cedo.”
“Bom dia.”
“Nossa, mas está frio! Precisei fazer certo esforço para quebrar o
gelo no poço. Parece que o manto vai ser posto a partir de hoje.”
O estalajadeiro carregou o barril e depois despejou seu conteúdo
em uma jarra no final do corredor.
Manter a água líquida era um problema constante para quem vivia
em climas mais frios. Parecia irônico para Lawrence a neve caindo e
mesmo assim ter que se preocupar com a falta de água.
“O manto?”
“Oh, é o que dizemos por aqui quando estamos cobertos de neve.
Tudo fica branco de repente.”
“Entendo.”
“Então, o que deseja? Posso fazer um café da manhã para meus
convidados, embora demore um pouco.”
“Estamos servidos de café da manhã. Para ser honesto, trouxemos
para casa um pouco do que sobrou da taverna ontem à noite.”
As coisas ficaram tão barulhentas na taverna que finalmente o
guarda da cidade apareceu e Lawrence embalou as sobras para levar
com eles.
Tudo era da melhor qualidade e ao aquecer ao lado da lareira daria
um excelente café da manhã.
“Ha-ha-ha! Suponho que você tenha que comer um carneiro tão
bom enquanto tem chance, hein?”
“De fato. Ah, mas se você pudesse nos trazer um pouco de água...”
CAPÍTULO I ⊰ 50 ⊱

“Sim claro. Ah, suponho que a água em seu jarro de metal seja
sólida como uma rocha. Vou trazer uma caixa de serragem mais tarde.
Mantenha-o assim e resistirá um pouco melhor ao frio.
“Ah obrigado.”
Depois de receber uma jarra de barro com água do estalajadeiro,
Lawrence voltou para o quarto.
Pareceu-lhe que “colocar o manto” era uma frase apropriada para
nevar. Certa vez, há muito tempo, enquanto bebia um licor barato em
um alojamento pobre em uma noite fria, ele parecia se lembrar de um
mercenário dizendo algo semelhante.
O homem havia dito que se você tivesse que ir para a guerra, as
terras do norte eram o melhor lugar para isso, onde a neve cobriria
toda a dor e sofrimento.
A neve tornava as pessoas sentimentais.
Lawrence sorriu ironicamente com a ideia e então abriu a porta
de seu quarto. “Oh, você está acordada —”
Ele parou no momento em que percebeu a temperatura na sala.
Holo sentou-se na cama, olhando pela janela aberta.
Ela estava totalmente imóvel, olhando para a frente e, exceto
pelas exalações brancas de sua respiração, poderia facilmente ser
confundida com uma estátua de barro.
Lawrence entrou na sala e fechou a porta atrás de si, mas Holo
continuou a olhar para fora.
A lenha ainda estalava na lareira, mas Lawrence acrescentou outro
pedaço.
Ele colocou a jarra de água na mesa e caminhou até a cama de
Holo.
“É neve,” disse Holo, ainda sem olhar para ele.
Lawrence não respondeu imediatamente, seguindo o olhar dela
antes de dizer: “De fato” e sentar-se ao lado dela.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 51 ⊱

Holo continuou a olhar pela janela.


Suas pernas não estavam cruzadas, nem ela abraçava os joelhos
enquanto olhava silenciosamente para fora, como se tivesse em algum
momento particular.
O suspiro de Lawrence se misturou ao ar frio que entrava pela
janela aberta, e ele colocou a mão na cabeça dela.
Seu lindo cabelo parecia fios de gelo.
Lawrence sabia muito bem no que Holo devia estar pensando
enquanto olhava para a neve.
Então, em vez de abraçá-la, ele simplesmente ficou lá.
“…”
“O há de errado?”
Holo olha para ele sem palavras.
Ela não tinha mais a expressão vazia com que olhava pela janela;
seu rosto imóvel estava cheio de emoção.
Seus lábios frios e finos também haviam recuperado um pouco de
sua maciez.
“— Vejo que até você consegue ser gentil, afinal —” disse ela.
“Você vai pegar um resfriado”, disse Lawrence em vez de dar a ela
uma resposta adequada, ao que Holo assentiu.
No instante seguinte, ela espirrou e imediatamente mergulhou de
volta sob a colcha. Lawrence se levantou e fechou a janela.
“Se eu estivesse em minha verdadeira forma, poderia olhar para a
neve pelo tempo que quisesse.”
“Sem dúvida você ficaria coberta de neve enquanto observasse,”
disse Lawrence. Holo sorriu e apontou para o jarro de água.
Lawrence entregou a ela e, com a outra mão, ela pegou a dele.
CAPÍTULO I ⊰ 52 ⊱
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 53 ⊱

“Eu disse que a neve não era um grande problema, não disse?” ela
falou com um leve meio sorriso.
Para ela, a neve não era algo para brincar.
Na aldeia de Pasloe, onde ela permaneceu por séculos, não nevava
— ao contrário de sua terra natal de Yoitsu.
Lawrence segurou sua mão fria e respondeu: “Tenho minhas
dúvidas. Afinal, você não é uma donzela frágil e chorosa... pode muito
bem sair correndo feliz pela neve a qualquer momento.”
“…”
Holo sorriu sem palavras, então sentou-se e levou a jarra aos
lábios.
Imediatamente depois disso, seu sorriso se transformou em uma
carranca. “Isto não é vinho.”
“Sua tola”, disse Lawrence, imitando o tom dela, o que a fez forçar
a jarra de volta na mão dele e depois cair de mau humor na cama.
“Então você vai dormir? O café da manhã vai ser magnífico hoje.”
Neve deixava a pessoa sentimental.
E, no entanto, era verdade que uma boa comida melhorava
qualquer humor.
Talvez não isso devesse ser surpreendente, visto que estavam em
território de criação de ovelhas.
Junto com as sobras de carneiro que haviam sido embaladas para
eles, havia uma bolsa de couro desconhecida, que estava cheia de
manteiga.
Uma Holo muito satisfeita espalhou-a sobre o pão de centeio antes
de enfiar na boca, enquanto Col, com menos apetite pela manhã, só
conseguia olhar enjoado.
“Enton, o que devemos fazer a seguir?”
CAPÍTULO I ⊰ 54 ⊱

“Não fale de boca cheia. Dado que Deutchmann disse que nos
apresentaria a uma empresa comercial afiliada à Aliança Ruvik,
simplesmente esperaremos que entrem em contato conosco.”
“Mm...mmph.” Respirando fundo depois de finalmente engolir o
pão de centeio, ela então abriu a boca. Lawrence pensou que ela estava
prestes a falar, mas ela simplesmente deu outra grande mordida.
“Você está planejando hibernar em breve?”
“Isso pode não ser uma ideia tão ruim.”
Era impossível falar com Holo enquanto ela estava preocupada
com comida saborosa.
Lawrence colocou um pouco de carneiro aquecido na lareira entre
as fatias de pão e deu uma mordida.
“Mas já está tão frio, vai ser difícil viajar com a neve, não vai?”
disse Col enquanto colocava um copo de leite de ovelha quente nos
lábios depois de observar alegremente a troca de Lawrence e Holo.
“Verdade. O que você fazia quando estava viajando sozinho?”
“Quando saí de casa pela primeira vez, era uma boa estação para
viajar… e decidi evitar viajar por lugares onde parecia que iria nevar,
pois de repente ficou muito frio quando atravessei o rio Roam.”
“De fato. Com essas suas roupas, caberia à graça de Deus acordar
ou não depois de ser pego pela neve.”
Lawrence arrancou um pouco de gordura de carneiro do rosto de
Col, e o menino sorriu timidamente, embora não estivesse claro se seu
constrangimento era por causa de suas roupas ou pelo resto de comida
em seu rosto.
“Ainda assim, há uma certa preparação feita ao longo das rotas que
recebem neve. Postes de sinalização são erguidos em intervalos
definidos e há pequenas casas de passagem colocadas a distâncias onde,
mesmo na neve profunda, um viajante pode esperar alcançá-las. As
nevascas ao redor de Arohitostok são realmente terríveis, mas graças
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 55 ⊱

ao clima não há bandidos, e os ursos e lobos ficam escondidos em suas


tocas, então viajar foi surpreendentemente fácil.”
“Você já esteve em Arohitostok? Essa não é a cidade mais ao norte
de todas?”
“Apenas uma vez, para entregar as coisas pessoais de um viajante
que faleceu. Fica a noroeste até das planícies de Dolan. Eu vi a terra lá
tão lisa e plana quanto um mar calmo. Era uma vista maravilhosa.”
Dizem que a terra foi desnudada pelo grande vento causado por
um dragão que voou até os confins do céu, arrancando grama e
árvores.
Devido a toda a neve que caiu na aldeia vizinha de Arohitostok,
estava extremamente seco apesar do frio, o que tornava a paisagem
estranha.
Foi onde Lawrence aprendeu pela primeira vez o que significava
um lugar não ter realmente nada.
“Dizem que Santo Alagia passou trinta anos como asceta lá... Se
isso é verdade, então ele é um santo, não há dúvida.”
“Uau…”, suspirou Col maravilhado.
Ultimamente, o humor de Holo vinha piorando após as refeições,
mas não havia como evitar. Ela não ouviria Lawrence assim, como Col
fazia, e por isso o tratamento que ele dispensava a ela era naturalmente
diferente.
Esperava que Deus o perdoasse.
“Na escola, aprendi os nomes das cidades de todo o mundo, mas
eu mesmo estive em tão poucas…”
“Isso é verdade para pessoas em todos os lugares. Raramente me
juntei a caravanas ou viajei por rotas comerciais fixas — é por isso que
viajei tanto e vi tanto.”
“Você já esteve em alguma cidade no sul?”
CAPÍTULO I ⊰ 56 ⊱

“Acho que você está mais familiarizado com o sul do que eu. Eu
também fui para o leste...
Só então Lawrence parou, mas não porque Holo estava prestes a
começar a chorar por ter sido tão completamente deixada de fora da
conversa.
Foi porque houve uma batida na porta.
“Já vou!” disse Col energicamente, pulando da cadeira. Ele havia
se acostumado a lidar com essas tarefas.
Holo continuou tomando seu café da manhã, mas era óbvio que
ela estava de mau humor; apesar da chegada de um convidado, ela não
havia colocado o capuz.
Lawrence respeitosamente pegou seu capuz e o colocou sobre sua
cabeça.
“Quem é?” Col abriu a porta, e lá estava um homem totalmente
envolto em roupas pesadas, de uma maneira que lembrava Eve.
Um turbante cobria sua cabeça e ele usava dois casacos compridos,
cada um chegando até os tornozelos. Peles de animais que ainda
mantinham o pelo cobriam suas canelas, e ele carregava um grande
saco de aniagem sobre o ombro.
Ele parecia pronto para uma longa marcha pela neve, mas já havia
neve em sua cabeça e ombros. Parecia muito provável que ele tivesse
acabado de chegar e, depois de olhar para um lado e para o outro por
baixo do lenço em volta da cabeça, começou a desembrulhá-lo.
“Este é o quarto do Sr. Kraft Lawrence?” A voz era
surpreendentemente jovem, e o rosto sob o turbante era o rosto de
um jovem.
“Isso mesmo. Eu sou Lawrence.”
“Ah, então! Peço desculpas pela minha aparência. Recebi notícias
do Sr. Deutchmann, sabe...”
Lawrence se levantou de sua cadeira e caminhou até a porta.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 57 ⊱

Se ele veio a convite de Deutchmann, então ele era da Aliança


Ruvik.
“De jeito nenhum, não se preocupe. Somos nós que deveríamos
ter feito uma visita a você. De qualquer forma, por favor, entre.”
“Se você me permite, então.”
O homem era um pouco mais baixo que Lawrence e entrou na
sala com passos leves, apesar da carga pesada e das roupas que deveriam
impedir tal leveza.
Se ele era um mercador viajante, ele realmente viajava por climas
difíceis.
“Que quarto adorável.”
“Normalmente, não podemos nos dar ao luxo de tais regalias.”
“Ha-ha-ha, benefícios do trabalho, hein? Eu também gostei da
mesma coisa quando cheguei no início do outono.”
O homem tinha cabelo loiro cortado bem curto. Sua maneira de
falar era agradável e bem-humorada — o suficiente para surpreender
Holo, ao que parece.
“Ah, esqueci de me apresentar. Eu sou Lag Piasky da Companhia
Fias, afiliado à Aliança Ruvik.”
“E eu sou Kraft Lawrence da Companhia de Comércio Rowen.
Normalmente sou um mercador viajante no continente.”
“Ah, esta é certamente a vontade de Deus — como você pode
ver, eu também sou um mercador viajante.”
Depois de trocar cumprimentos, eles apertaram as mãos, e
Lawrence ficou aliviado ao notar que as mãos do homem eram tão
ásperas quanto as suas.
Holo tomou seu café da manhã e foi para a cama, então, depois de
convidar Piasky para se sentar, Lawrence se sentou.
“O que ouvi do Sr. Deutchmann é que você deseja visitar a Abadia
de Brondel.”
CAPÍTULO I ⊰ 58 ⊱

Essa declaração não pareceu apressada a Lawrence. Em vez disso,


ele parecia ser um tipo de homem que Lawrence raramente encontrara
recentemente — um comerciante que, se tivesse tempo para trocar
cumprimentos amigáveis com outras pessoas, preferiria usar esse
tempo para raspar as bordas de moedas de prata.
“Sim, se possível, gostaríamos de visitar a casa do comerciante que
fica mais perto do prédio principal do que a casa de peregrinação.”
Lawrence não disse nada sobre a busca pelos ossos do lobo.
Ao contrário de antes, quando eles não tinham ideia de onde os
ossos realmente estavam, eles agora possuíam a informação importante
de que os ossos provavelmente estavam dentro da abadia. Não havia
nada a ganhar em deixar escapar essa informação.
E Piasky era da Aliança Ruvik.
“... Como você foi apresentado pelo Sr. Deutchmann, não vou
perguntar sobre o seu objetivo, mas dado o que disse, presumo que
não esteja aqui para comprar lã.” Os olhos de Piasky estavam fixos em
Lawrence. A reação do jovem não surpreendeu — afinal, Lawrence
estava procurando um guia para a abadia, embora se recusasse a dizer
o motivo.
Mas Lawrence não vacilou. Ele tinha certeza de que, tendo
conquistado a confiança de Deutchmann por meio de Kieman e Eve,
poderia ganhar a de Piasky por meio de Deutchmann.
A confiança era a moeda invisível.
Piasky finalmente sorriu e continuou: “Ainda assim, eu faço alguns
negócios guiando os interessados em assistir nossa negociação com a
abadia, então não vou pressioná-lo. Além disso, sempre que as pessoas
se reúnem, isso é o suficiente para atrair ainda mais pessoas.”
Ninguém poderia fazer negócios sozinho. Nenhum lugar era mais
atraente para um comerciante do que um lugar onde muitos
comerciantes se reuniam.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 59 ⊱

E os negócios sempre eram mais lucrativos se a pessoa não


revelasse seus planos descuidadamente. Piasky certamente sabia disso.
“A insígnia da lua e o escudo sempre vai balançar ao vento, então
não vamos nos preocupar com detalhes insignificantes, certo?”
Lawrence não deixou de acrescentar internamente a afirmação
que se seguiu implicitamente a esta: Mas se você interferir em nossos
negócios, não lhe pouparemos misericórdia.
“Muito obrigado. Vou apreciar sua consideração.”
O sorriso de Piasky ao ouvir isso foi brilhante, provando que ele
era realmente um mercador de verdade.
Lawrence apertou a mão dele novamente, formalizando o
contrato.
“Então, como sou uma pessoa bastante impaciente, gostaria de
discutir nossa partida. Posso presumir que seus dois companheiros
também virão?”
“Sim. Isso nos impedirá de fingir que compramos lã?”
Col era uma coisa, mas Holo em nada se parecia com algum tipo
de mercador.
“Dificilmente. Afinal, não é incomum trazer um membro do clero
em um empreendimento comercial em prol da tranquilidade espiritual
de alguém. E as coisas no ramo mercantil da abadia estão bastante
animadas no momento, então é improvável que seus companheiros
sejam notados, não importa quem sejam. Contanto que possamos
passar pelos portões, não teremos problemas.”
“Entendo, ainda bem.” Lawrence fez questão de agir
especialmente aliviado.
Ele não estava tentando enganar Piasky, mas os modos do homem
eram tão fáceis e agradáveis que Lawrence teve o cuidado de
permanecer em guarda.
“Então, sobre a nossa partida...”
CAPÍTULO I ⊰ 60 ⊱

“Podemos sair a qualquer momento.”


“Entendo... na verdade, como eu funciono como o agente entre a
abadia e uma casa comercial no continente, estimo que é melhor partir
o mais rápido possível.”
Sua maneira levemente sarcástica de falar parecia ser uma paródia
deliberada dos modos indiretos do povo de Winfiel.
Lawrence olhou para Holo e Col.
Ambos assentiram que estavam prontos.
“Como tudo isso é a nosso pedido, estamos felizes em partir
imediatamente.”
“Obrigado. Eu gostaria de tentar embarcar perto do sino do meio-
dia.”
“E vamos viajar a pé?”
“Não, a cavalo. Embora a neve ainda seja fina aqui, em direção à
abadia ela fica bastante profunda. Eu mesma cuidarei dos cavalos, mas,
por favor, traga sua própria comida. Ah, e também...”
Piasky sorriu e acrescentou uma declaração final deliberadamente.
“— Não há necessidade de trocar sua moeda pela local.”
A primeira coisa que um mercador viajante fazia em uma nova
região era trocar seu dinheiro.
Lawrence não fez nenhuma tentativa de esconder o riso da piada
de Piasky, uma piada que só um companheiro de viagem faria.
ol sentou-se à frente e Lawrence foi mais atrás. Entre eles
estava Holo, e mesmo assim o cavalo em cujas costas
todos estavam sentados tinha força de sobra.
Os corcéis de pelo comprido que puxavam trenós pelas
planícies de Winfiel eram tão grandes quanto diziam os rumores.
“Hmph... terrivelmente arrogante para um mero cavalo.”
Essas foram as palavras que Holo deixou escapar ao ver as
montarias que Piasky havia preparado para eles em seu local de
encontro.
Claro, a verdadeira forma de Holo era muito maior do que este
cavalo.
CAPÍTULO II ⊰ 62 ⊱

O resmungo de Holo provavelmente estava enraizado em sua


frustração com sua própria ignorância — as limitações de seu próprio
conhecimento em comparação com a vastidão do mundo.
No continente, cavalos como este dificilmente eram uma visão
comum.
“Vocês estão todos preparados?” Piasky perguntou, segurando as
rédeas enquanto montava um cavalo mais comum.
Lawrence respondeu que sim. A única razão pela qual ele também
não tinha rédeas na mão era porque o cocheiro do cavalo de carga as
segurava.
Um cavalo desse tamanho seria desperdiçado se estivesse apenas
sendo montado. Mesmo uma mula que parecia sem fôlego carregando
uma criança poderia carregar a bagagem de quatro pessoas, desde que
devidamente carregada.
Lawrence olhou para trás e viu um carrinho cheio de mercadorias.
Entre eles havia comida e vinho para o ramo mercantil da abadia.
Evidentemente, uma vez que as estradas estavam cobertas de
neve, as carroças eram trocadas por trenós.
O papel de Piasky era mediar entre a abadia e as empresas
comerciais continentais, facilitando o fluxo de informações e
mercadorias como essas.
“Agora, vamos orar a Deus por viagens seguras.”
Como convinha a uma viagem a uma abadia, eles rezavam
enquanto o sino do meio-dia tocava e depois partiam.
O tempo estava ruim e as temperaturas muito baixas.
Pior ainda, a neve não cobria totalmente a cidade e, em vez disso,
se misturava à terra da estrada, tornando-se lama que sujava todos que
a percorriam.
Mas eles deixaram a cidade e continuaram pelas planícies colhidas,
que eram quase inteiramente brancas.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 63 ⊱

Era um cenário digno da “nação das planícies”, pois assim era


chamado, e não importava a direção que se olhasse, a extensão branca
se estendia sem parar, e eles seguiam um caminho de terra batida pelos
pés de humanos e cavalos que o cortava.
Todo mundo estava vestindo muitas camadas de roupas.
Lawrence e seus companheiros até usavam grossos sobretudos de
couro que haviam pegado emprestado da pousada, além de luvas.
Mas sentados ainda em cima de um cavalo enquanto viajavam por
essa terra, o frio inevitavelmente passava por seus casacos.
Eventualmente, Holo envolveu Col dentro de seu próprio casaco, e
Lawrence puxou Holo para o dele.
O silêncio reinou sobre a viagem. Os únicos sons eram o tik, tik
de flocos de neve batendo em casacos e as longas e relutantes
respirações de ar frio que eles puxavam em seus pulmões, aquele som
ampliado pelo silêncio.
As pessoas do país do norte falavam pouco, e o que falavam era
pronunciado por lábios mal entreabertos, dizia-se — e Lawrence
podia entender facilmente por quê.
E de todas as várias restrições que os monges impunham a si
mesmos durante suas peregrinações, a regra do silêncio era a mais fácil
de compreender.
Graças à neve, a escuridão caiu cedo e, embora suas viagens não
tivessem sido longas, Lawrence e seus companheiros estavam exaustos
quando chegaram à primeira estalagem.
Um monge famoso disse uma vez que a conversa fiada era um
prazer, e a verdade dessas palavras era totalmente clara.
E, no entanto, Lawrence, Col e Holo eram leigos, não clérigos.
A menos clerical deles, Holo, parecia mais afetada pelo silêncio
monótono e, ao chegar ao quarto, ela caiu direto na cama, nem mesmo
se preocupando em tirar a neve de seu capuz.
CAPÍTULO II ⊰ 64 ⊱

De sua parte, Lawrence não estava com disposição para castigá-la.


Ele tinha certeza de que seu rosto não parecia melhor do que o de Col,
que estava sentado exausto em uma cadeira.
Era o rosto de alguém cujas reservas de energia se esgotaram, mas,
se lhe dissessem para ficar de pé e andar, ele se levantaria com
dificuldade e continuaria a marchar para a frente — o rosto de alguém
cujo espírito havia cedido à frente de seu corpo.
Nas terras do norte, havia muitas histórias de mortos errantes,
sem dúvida de pessoas que avistaram viajantes em tal estado.
“Col.”
Depois que Lawrence disse o nome do menino, Col olhou para
ele com uma expressão de cadáver.
“Se você sorrir, vai se sentir melhor.”
Col tinha viajado sozinho e certamente estava ciente desse truque
em particular. Ele assentiu e forçou um sorriso.
“Agora, então, vamos jantar. Imagino que Piasky tenha
providenciado para que seja servido.
“Tudo bem”, respondeu Col, de pé.
Enquanto o menino obedientemente removia seu casaco coberto
de neve, Lawrence pegou a capa de Holo enquanto ela continuava
deitada de bruços e imóvel na cama.
“Tenho certeza que você sabe disso, mas não vai conseguir dormir
assim. Vai se sentir melhor se for a algum lugar quente e beber um
pouco de vinho.”
Sonolência e exaustão eram semelhantes, mas diferentes.
As orelhas caídas de Holo se contraíram, como se dissessem: “Eu
sei, eu sei.”
Mas, apesar de saber, ela não fez nenhum movimento para se
levantar, como uma pessoa que não quer sair de sua cama quente pela
manhã.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 65 ⊱

Sem outra opção, Lawrence a pegou e viu que a expressão em seu


rosto era a de uma garota amaldiçoada a dormir até que algum herói
viesse acordá-la com um beijo.
Lawrence, é claro, não era um herói.
Um tipo diferente de magia seria necessário para quebrar a
maldição em Holo.
“Ouvi dizer que a bebida aqui é tal que uma simples faísca pode
incendiá-la,” ele sussurrou em suas orelhas caídas, que se ergueram em
triângulos pontiagudos.
Era como se ela estivesse perguntando: “Sério?”
“O licor fraco logo congela e se torna intragável, então eles o
tornam forte o suficiente para armazenar no gelo e permanecer
descongelado. E embora seja mais frio que o gelo, beber a coisa que
está queimando vai aquecê-lo imediatamente.
Um pouco de brilho voltou aos olhos de Holo.
Ela engoliu em seco, o som de sua saliva sendo engolida
sinalizando a quebra da maldição.
Holo ficou instável, um pouco de força retornando a cauda, que
havia caído como o rabo de um cachorro de rua que não come há três
dias.
“Ainda assim, podemos ter apenas repolho em conserva para
acompanhar,”
Lawrence fez questão de dizer, esperando afastar sua raiva por
descobrir isso depois.
Holo pareceu brevemente abalada por essa qualificação, mas o
fascínio da bebida foi evidentemente suficiente para ela recuperar o
vigor.
“É melhor do que nada.”
“Esse é o espírito.”
CAPÍTULO II ⊰ 66 ⊱

A conversa deles ao saírem da sala fez Lawrence pensar em algo.


O licor forte que eles beberam em uma cidade em que pararam no
início de sua jornada lembrou Holo do vinho de sua terra natal.
Se o licor forte lembrasse Holo de casa, certamente seria um sabor
singular. Que melhor nutrição poderia haver quando alguém estava tão
exausto?
Evidentemente, levaria mais dois dias para chegar à Abadia de
Brondel.
Lawrence contou as moedas em sua bolsinha, tomando cuidado
para não deixar que Holo o notasse fazendo isso.
A comida de um posto intermediário é cara, ruim e fedorenta.
Mesmo um trecho da escritura adequado para uma criança
memorizar não era tão facilmente lembrado quanto este fato.
E como se tentasse cumprir essas palavras, o cheiro de pratos na
mesa ao lado deles flutuava, fétido e com cheiro de alho.
O cheiro de alho era sinônimo de pobreza. Apesar de Lawrence
ter certeza de que ele e seus companheiros tendiam a comer
frugalmente, era em momentos como esse que os efeitos nocivos da
extravagância eram expostos.
O único cujo estômago roncou com a perspectiva da comida na
mesa ao lado foi Col, que até recentemente viajava roendo nabos
magros.
Fazia muito tempo desde que Lawrence havia encontrado esse
cheiro, mas ele ainda não conseguia reunir muito apetite com a ideia
— para não falar da Holo de olfato aguçado.
Mas Lawrence e seus companheiros tiveram sorte, não porque
tivessem muito dinheiro e não porque a cozinha do posto de parada
tivesse acabado o alho.
Eles tiveram sorte porque Piasky previu esse acontecimento e
resolveu o problema por conta própria.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 67 ⊱

“Como viajo bastante pelas terras do norte, muitas vezes acabo


parando por causa da neve. Ajudar na cozinha me preparou bastante
para isso,” ele disse, então colocou um ensopado de carneiro simples
no centro da mesa — “simples” sendo um caldo de sal com cebola,
gengibre e nabos, junto com um pouco de carne de carneiro. carne
seca e osso, todos cozidos juntos.
Mas é claro que havia um ingrediente especial e crucial escondido
em meio a tudo isso.
Piasky baixou a voz antes de revelar o ingrediente secreto, que
acabou sendo a mesma coisa que as pessoas da mesa ao lado comiam
com tanta relutância: alho.
Evidentemente, uma pequena quantidade de alho era muito
importante para este ensopado, com sua fina camada de óleo amarelo
cobrindo a superfície do caldo.
O ensopado foi servido em uma velha tigela de madeira bem
usada, enfeitada com um pedaço de pão de aveia que por si só parecia
difícil de mastigar — mas deveria ser embebido no caldo quente do
ensopado antes de comer. Isso permitia que até mesmo o famoso pão
de aveia fosse apreciado.
Lawrence ficou profundamente grato a Piasky, não apenas porque
a comida era deliciosa, mas também porque distraiu Holo da bebida
que eles estavam discutindo.
“Em lugares onde não há rios ou lagoas, a água que você carrega
tende a ficar rançosa, mas se você a misturar com ingredientes como
estes e fervê-la, até a água suja fica boa.”
Holo comeu o carneiro com a colher de pau na mão. Ela já estava
em sua terceira tigela. Mesmo o geralmente contido Col repetiu o
prato — prova de quão saboroso o ensopado realmente era.
“Seria incrível se você pudesse fazer um ensopado tão delicioso até
com água rançosa... Mas isso só é prático quando você está viajando
em grande número. Se você fizesse isso sempre ao viajar sozinho,
certamente seria um desperdício de dinheiro.”
CAPÍTULO II ⊰ 68 ⊱

“Você está certo. Quando eu era mais jovem e viajava de um lado


para o outro com caravanas, muitas vezes me sobravam tarefas de
cozinha.”
Viajar com um grande grupo de comerciantes era bom para os
negócios e tornava a viagem mais segura. Mas o afeto de Piasky tinha a
agudeza de um homem acostumado a viajar sozinho. A impressão que
Lawrence teve imediatamente dele foi a de um mercador solitário
escalando um penhasco íngreme.
Isso era evidentemente algo que as pessoas costumavam dizer a
Piasky. Ele explicou: “Claro, isso está no passado. Afinal, um grupo de
comerciantes é apenas um grupo. Não é uma família.”
“Sempre que surge uma crise, eles só oferecem uma ajuda se
decidirem que há algum lucro envolvido.”
Os lábios de Piasky se contorceram. “Certo”, disse ele com um
encolher de ombros impotente.
Antes de começar a sentar-se sozinho no banco do motorista de
sua carroça, Lawrence ocasionalmente viajava com outros mercadores
e, quando os negócios iam bem, ele permanecia com o mesmo grupo
por um tempo.
Quanto ao motivo de ele ter parado de fazer isso —
provavelmente era exagero sugerir que relacionamentos formados
apenas para lucro estavam fadados a distorcer o ressentimento, mas
seu motivo provavelmente era o mesmo de Piasky.
Quando seu grupo foi atacado por lobos, todos fugiram, cada um
orando a Deus para que fosse um dos outros que fosse pego.
E quando um deles finalmente saiu perdendo, Lawrence se
perguntou o quanto o coração de Deus foi tocado por seus gritos
desesperados por ajuda.
“Além disso, eu estava bem ciente de que mesmo um grupo de
mercadores viajantes não tem esperança contra os mercadores de uma
cidade. Então, no final, decidi me tornar o braço direito de um desses
mercadores da cidade. Sou menos livre do que antes, mas em todas as
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 69 ⊱

cidades onde temos influência sou recebido com sorrisos. É uma


compensação digna.”
Holo começou a beber, mas certamente não porque estava cheia.
As palavras de Piasky, sem dúvida, deram a ela muito a considerar.
Qualquer um que vivesse uma vida de viagens, até mesmo Col,
poderia entender do que ele estava falando.
“Nesse sentido, se você estiver com a Aliança Ruvik, a
compensação é ótima.”
“Exatamente isso. E a escala do meu negócio também se
expandiu.”
“Entendo. Embora não pareça ter entorpecido nem um pouco suas
habilidades culinárias... ah, desculpe. Sua vida de viajante não combina
com sua grande habilidade na cozinha.”
“Ha-ha-ha. Eu ouço muito isso. A verdade é que ainda preparo
refeições para grupos de pessoas durante as viagens. Como estou
fazendo agora.”
Dizia-se que os turistas se aglomeravam na Abadia de Brondel.
Mas os modos de Piasky não sugeriam que seu negócio paralelo de
guiar visitantes à abadia fosse exatamente florescente. Ele se
apresentou como mensageiro a serviço da Aliança Ruvik.
O que significava que as possibilidades restantes eram poucas.
“Heh heh. Todo comerciante que se preza acaba me fazendo essa
pergunta, Sr. Lawrence. E eu sempre respondo da mesma maneira.”
Ele sorriu alegremente e então levou seu olhar através de Holo e
Col antes de continuar teatralmente, “Minha jornada está apenas
começando! Ainda tenho muito tempo para pensar.”
Um comerciante sem curiosidade era como um clérigo sem fé,
então tal declaração, apesar de sua trivialidade, certamente despertaria
o interesse de Lawrence.
CAPÍTULO II ⊰ 70 ⊱
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 71 ⊱

No mínimo, pensar sobre isso seria uma boa maneira de matar o


tempo montado em um cavalo no silêncio congelante.
“Aliás, não é como se eu fosse sempre para a Abadia de Brondel.”
Sem dúvida, esses jogos de adivinhação na hora das refeições
faziam parte do apelo de Piasky nas viagens longas e chatas. Sua
expressão fazia parecer que ele estava exibindo orgulhosamente uma
mercadoria, e o público certamente estava mordendo a isca.
Holo fingiu continuar comendo como se não tivesse interesse em
tal frivolidade, mas na verdade a carne em seu prato não estava
diminuindo, enquanto o mais honesto Col agarrou sua colher e olhou
atentamente para o veio na madeira da mesa.
Sem dúvida, tudo isso deixou Piasky, o artista, muito feliz.
Em contraste, parecia que apenas Lawrence estava preocupado.
Se ao menos um comerciante experiente olhasse para Piasky e
fizesse as mesmas perguntas que Lawrence fez, seria necessário o
mesmo tipo de pessoa para ser capaz de responder a essas perguntas.
E mesmo que a resposta fosse algo que provocasse um sorriso,
Piasky não saberia que parte dela o faria. Portanto, para Lawrence, a
resposta foi um pouco preocupante.
“Bem, não posso deixá-lo acordado a noite toda tentando
descobrir a resposta. Ficarei feliz em responder sempre que quiser.”
A insistência de Piasky foi mais do que suficiente para aprofundar
as rugas nas sobrancelhas dos dois companheiros de Lawrence.
Se Lawrence não dissesse alguma coisa, não havia como saber
quanto tempo os dois ficariam agonizando por causa disso.
“Além disso, pensar sobre isso só vai esvaziar seu estômago, e
encontrar a resposta não vai enchê-lo novamente.”
A perspectiva de uma jornada faminta funcionou muito bem para
tirá-los de seu devaneio, e os dois voltaram a comer.
CAPÍTULO II ⊰ 72 ⊱

Lawrence encontrou os olhos de Piasky e sorriu ligeiramente.


Afinal, uma refeição agradável era sempre bem-vinda.
“Quem dera aquela Abadia de Brondel estivesse no fim do
mundo.”
“Mesmo eu não tenho tantos enigmas.”
Naquela noite, eles riram, comeram e beberam noite adentro.

No dia seguinte, grandes nuvens de flocos de neve caíram.


Felizmente não havia vento, mas com uma forte nevasca de flocos
do tamanho de uma unha do polegar, a visibilidade era extremamente
ruim.
Com os capuzes quase cobrindo os olhos, o hálito branco
embaçava o pouco que restava de seus campos de visão.
E, no entanto, não era raro encontrar um velho comerciante
rabugento com olhos fracos que, no entanto, tinha uma compreensão
perfeita da complicada teia de rotas comerciais que ele usava. Era o
caso do cocheiro de cavalos de carga, um homem que percorreu essas
estradas por quarenta anos e para quem a pouca visibilidade atual mal
merecia menção. O cavaleiro taciturno conduziu o cavalo para fora da
estação intermediária e através das planícies brancas, seu passo firme.
Como mesmo uma breve parada resultaria em uma rápida
cobertura de neve, não houve descanso na marcha.
Mas o cenário branco era tão incessantemente monótono que
depois de um breve almoço em cima do cavalo, Col cochilou.
As costas de um cavalo ainda estavam a uma boa distância do chão.
Se Col caísse, ele corria o risco de ferimentos graves, então Lawrence
pegou uma corda de cânhamo que havia preparado para o caso e
começou a enrolá-la em torno de Holo e Col.
Holo, que ele presumiu estar dormindo há muito tempo, estava
realmente acordada e segurando Col com seus braços.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 73 ⊱

“Oh, você está acordada.”


A neve amortecia o som, além de prejudicar a visibilidade. Apesar
do silêncio, Lawrence mal conseguia ouvir a própria voz. A conversa
seria inaudível para Piasky, que estava atrás deles em outro cavalo.
“Não estou”, veio a resposta nebulosa, da qual Lawrence quase
riu.
Mas ele sabia perfeitamente que a resposta dela vinha de sua
irritação com o enigma de Piasky na noite anterior.
Não era algo que alguém pudesse simplesmente raciocinar, e
mesmo um mercador poderia não ser capaz de adivinhar, dependendo
das circunstâncias.
Col desistiu rapidamente e foi para a cama, mas Holo, a Sábia
Loba, parecia se sentir obrigada a pensar nisso por mais tempo.
No entanto, era ridículo passar a noite toda agonizando até mesmo
com um grande enigma, para não falar de um quebra-cabeça tão trivial
na hora do jantar.
E não encontrar a resposta era mais frustrante ainda.
A irritação infantil de Holo geralmente a levava a lançar olhares
significativos na direção de Lawrence, dos quais ele estava bem ciente.
“O que? Você não encontrou a resposta?” Ele ria, e uma Holo fazendo
beicinho dizia-lhe apressadamente o que era.
Essa era a rotina normal.
Mas Lawrence não tinha feito isso.
Ele esperava que Holo esquecesse completamente a questão. A
resposta do enigma o deixava um pouco ansioso.
Até Lawrence achou que ele estava se preocupando demais com
isso, mas ignorou o primeiro olhar de Holo, e depois o segundo. E o
terceiro e o quarto. Nesse ponto, Holo estava obviamente chateada
enquanto continuava a refletir sobre o assunto. Tendo chegado a esse
CAPÍTULO II ⊰ 74 ⊱

ponto, mesmo uma solução com uma reviravolta hilária serviria apenas
para irritá-la ainda mais.
Era mais difícil do que nunca dizer a ela a resposta.
E assim foi, até o momento atual.
Lawrence deveria ter dito a ela a resposta imediatamente, mas era
tarde demais para tais arrependimentos.
“Então é isso.”
Na segunda vez que Holo falou naquele dia, o que saiu de sua boca
foi um suspiro longo e irritado de um discurso longo e incoerente, que
ela encerrou com essas palavras finais.
Col escutou, com o rosto vazio de espanto, enquanto se ocupava
em pendurar as roupas de viagem para secar em um cordão de couro.
Depois do jantar, quando notaram que Holo havia desaparecido
por um tempo, ela voltou para a sala e imediatamente mergulhou em
seu discurso, então a reação de Col foi totalmente compreensível.
Da parte de Lawrence, ele estava simplesmente impressionado
por ela ter capacidade para resolver isso.
“Você está exatamente certa.”
“Seu idiota!”
Lawrence não tinha desculpa para dar e só podia responder
honestamente, o que lhe rendeu uma reclamação igualmente honesta
de Holo.
E, no entanto, ver Lawrence parecer tão tolo parecia tirar a raiva
de Holo.
Sentou-se e pediu a Col que lhe trouxesse o vinho, puxou
rudemente a rolha com os dentes e pôs o conteúdo nos lábios.
“Seu comportamento estranho me fez querer saber a resposta
ainda mais. E pensar…”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 75 ⊱

“Então você foi e perguntou?” Não muito tempo atrás, Col teria
tremido de terror com a raiva de Holo, mas agora ele era ousado o
suficiente para arriscar a pergunta.
“Sim. Eu fui e disse a ele que isso tinha me mantido acordada e fui
ridicularizada por causa disso. Eu... Holo, Sábia Loba!”
“Aprendi na escola que há coisas que não se aprende sem
perguntar. Mas qual foi a resposta?”
Col continuou pendurando suas roupas enquanto fazia a pergunta.
Holo não respondeu imediatamente, em vez disso, dirigiu seu
olhar para Lawrence.
“É muito difícil explicar. Explique você,” seu olhar parecia dizer.
O que provavelmente era verdade.
Com uma garrafa de vinho na mão, Holo mordeu um pedaço de
carne seca.
“Um homem como Piasky, acostumado a viajar sozinho, mas
também habilidoso em preparar refeições para muitas pessoas, é
bastante raro. Ele deve estar envolvido no estabelecimento de novas
cidades ou mercados. Quando falou sobre guiar grandes grupos de
pessoas, essas pessoas provavelmente estão a caminho de começar uma
nova vida em um novo lugar.”
“Ah…”
Apesar de ouvir Lawrence com uma expressão impressionada,
Col habilmente terminou de secar e então checou o fogo no meio da
sala.
Não havia lareira, nem a sala tinha boa circulação, por isso a gestão
do fogo era bastante difícil.
“Então as pessoas que ele orienta não estão acostumadas a viajar.
Portanto, sem a capacidade de equipá-los totalmente, bem como
resolver rapidamente quaisquer problemas que surjam, ele não seria
capaz de fazer seu trabalho.”
CAPÍTULO II ⊰ 76 ⊱

“Na verdade, eu mesma liderei um bando, e ele parece ser um


homem bom e confiável. Ele fala o que pensa e fala com inteligência.”
Holo olhou para Lawrence com os olhos semicerrados.
Lawrence tossiu. Col sorriu nervosamente e continuou.
“Então ele faz um trabalho bastante incomum. Mas então…”
Por que o Sr. Lawrence estava tentando esconder a resposta do enigma da
Srta. Holo?
A pergunta em seus olhos era óbvia quando olhou para Lawrence.
Não havia nada tão embaraçoso quanto ter que admitir que estava
muito preocupado. Mas se ele não aceitasse sua punição, parecia
improvável que Holo o perdoasse.
Claro, ele implorava por perdão toda vez que Holo estava com
raiva dele. Ele dificilmente poderia chamar a si mesmo de um
comerciante adequado, mas aqui nesta sala, onde o fogo tinha que ser
reduzido para não encher o espaço de fumaça, o calor da cauda de Holo
seria muito importante durante a noite.
Um comerciante tinha que ser capaz de pesar lucros e prejuízos.
“O trabalho de Piasky é ajudar os colonos. Se ele está sendo
ajudado por um rei ou pela nobreza, é para aumentar as terras que
controlam. Se ele é apoiado pela Igreja, é para espalhar sua fé. De
qualquer forma, existem muitos motivos, mas todos têm uma coisa em
comum. Se os colonos chegarem à sua nova terra e conseguirem se
estabelecer nela, ela se tornará sua nova pátria.”
“Ah…”
“O trabalho é difícil, mas lucrativo e, se bem-sucedido, merecerá
a gratidão de muitas pessoas. Eu até ouvi falar de tais líderes se
tornando nobres menores, a pedido dos aldeões ou habitantes da
cidade que eles ajudaram. Mas muitos daqueles que partiram para
novas terras perderam seus lares para a guerra, fome ou doenças.
Então —”
Lawrence olhou para Holo antes de continuar.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 77 ⊱

“— É por isso que eu esperava que você esquecesse o assunto.”


“Hmph.” Holo se virou irritada, jogando no fogo um pedaço de
pele que havia arrancado da carne seca. Isso lançou uma nuvem de
cinzas, que Col seguiu com os olhos como se testemunhasse algo
mágico. “Não é nossa maneira de encontrar uma nova pátria. Nossa
casa é nossa casa. O importante não é quem está lá, mas onde está a
própria terra. E, de qualquer forma, aposto que você só estava
preocupado que eu dissesse algo assim, certo?”
Eles haviam discutido inúmeras vezes.
Ela tinha visto através do pensamento de Lawrence.
“Você poderia, por favor, encontrar uma pátria para mim
também?” ela terminou, seus olhos voltados para cima.
Surpreso, Col observou toda a conversa.
Lawrence percebeu que ela estava com raiva.
Mas ele também sabia que a raiva dela era a de um gato que tinha
sido muito mimado e agora estava sendo ameaçador.
“Os machos são tão tolos!”
“... Eu não posso argumentar contra isso.”
“Honestamente,” Holo cuspiu e então bebeu seu vinho.
Perplexo, Lawrence afastou o cabelo — isso também fazia parte
da rotina.
Uma vez que Col riu, o ritual estava completo.
A cauda de Holo balançou para lá e para cá. Amanhã seria outro
dia.
“Estou ficando cansado de raiva. Vamos para a cama.”
Sua habilidade como líder de matilha era realmente
impressionante.
CAPÍTULO II ⊰ 78 ⊱

No final, eles chegaram à Abadia de Brondel por volta do meio-


dia do terceiro dia.
Talvez pela graça de Deus, apenas no segundo dia houve uma forte
nevasca. Eles passaram facilmente pelo posto de controle para o bairro
dos comerciantes, o que não era necessariamente algo para se
comemorar.
As paredes altas que cercavam o espaço eram o que se esperaria
de uma abadia, mas ao entrar pelo portão, a atmosfera era a de uma
cidade habitada apenas por mercadores.
Foi o suficiente para fazer Holo brincar: “Você deveria jogar uma
moeda de cobre e ver o que acontece”, de cima do cavalo.
Sem dúvida, atrairia imediatamente todos os olhos sobre eles,
como um espirro durante a oração em um culto na igreja.
“É bem possível que não haja nada que não possa ser comprado
aqui”, disse Piasky maliciosamente, cavalgando ao lado deles.
Lawrence sorriu, mas pensou se não poderia ser verdade.
O centro da rua tinha sido de algum modo limpo de neve, mas
estava flanqueado de ambos os lados por pilhas do material, e sem
surpresa o ar ao redor deles estava tão frio quanto uma caverna de gelo.
Havia até partes da crina do cavalo que haviam congelado.
Apesar do frio, os comerciantes estavam por toda parte, os braços
cruzados sobre o corpo enquanto cada um falava de seus negócios. De
alguma forma, eles pareciam estar se divertindo genuinamente, até
mesmo batendo os pés para se proteger do frio, incapazes de resistir a
sorrir como crianças.
“Agora, se você esperar aqui, eu vou fazer os preparativos para o
seu quarto.”
“Vou deixar isso com você.”
Piasky amarrou o cavalo de Lawrence em um estábulo público,
depois desmontou de seu próprio corcel e saiu trotando.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 79 ⊱

Montar e desmontar um cavalo exigia certa habilidade, ainda mais


quando o corpo estava rígido de frio.
Lawrence foi o primeiro a descer, e então ele pegou Holo e depois
Col em seus braços enquanto os ajudava a descer.
Uma vez que todos estavam no chão, Lawrence agradeceu ao guia
por uma viagem segura.
O homem permaneceu tão silencioso e taciturno como sempre,
mas cruzou os braços levemente sobre o peito e fez uma reverência em
um gesto educado de despedida, refletindo completamente um
nortista devoto.
“Ainda assim, este lugar é bastante grande, não é? Pelo que você
estava dizendo, pensei que seria menor e mais afastado.”
“Eu só conhecia pela reputação. Mas sei que é o lugar onde dizem
que se comercializa lã suficiente para encher o estreito de Winfiel.
Olhe lá, eles até têm janelas de vidro.”
Lá, sob um céu cinza-chumbo, do qual ocasionalmente caía um
floco de neve, havia grandes edifícios de pedra de três andares com
janelas que refletiam a cor do céu.
Nem todos os prédios tinham janelas de vidro, mas cada um deles
parecia robusto o suficiente para resistir a algumas flechas flamejantes.
Havia cinco no total de um lado da rua ou de outro, cada um com
caminhos largos partindo de suas entradas.
Mas eles não eram as únicas construções no local. Havia grandes
estábulos públicos e, em frente a eles, um grande celeiro exclusivo
para ovelhas. Parecia grande o suficiente, mas Piasky havia dito que
havia muitos mais como este.
“Mm. É uma façanha construir essas coisas aqui na neve.” Holo
sorriu corajosamente e olhou para frente.
Ali ficava o anexo comercial da grande Abadia de Brondel.
CAPÍTULO II ⊰ 80 ⊱

Embora pudesse ter sido apenas um anexo situado a um passeio a


cavalo da abadia propriamente dita, de forma alguma prejudicava a
majestade desta última.
No final da estrada que partia da entrada do anexo havia um
edifício com uma majestade que era maior do que qualquer um dos
outros próximos.
Pendurado dentro de um campanário tão alto que parecia alcançar
os próprios céus, havia um grande sino, maior do que dez cavalos
poderiam esperar mover. Este era um santuário construído para trazer
paz às almas dos mercadores. E sem dúvida fazia exatamente isso.
Embora isso venha com uma sensação de pressão avassaladora.
“Há algo que aprendi na escola.”
“Oh?”
“Que o clero das terras do norte é o melhor em interrogar os
hereges.”
Lawrence compreendia Col muito bem. Os inquisidores não
tinham piedade. Um lugar como este era realmente adequado para os
barbudos servos de Deus, com seus olhos tão frios e impiedosos quanto
os falcões.
“Ainda assim, isso foi há muito tempo, não foi?” O olhar de Holo
estava fixo em um monge envolto em mais lã do que uma ovelha,
conversando alegremente com um grupo de mercadores enquanto os
conduzia para fora do prédio.
Seu rosto estava corado e suas bochechas rechonchudas — muito
longe das virtudes da obediência, pureza e pobreza honrosa.
Holo olhou para Lawrence e falou. “Certamente, vivemos em
uma época em que até você pode vir em peregrinação.”
Holo deu um sorriso ousado e destemido que oscilou à beira do
riso total.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 81 ⊱

“... Ainda assim, estou um pouco preocupado”, disse Lawrence


enquanto olhava para a respiração que subia branca quando ele exalava,
então lançou seu olhar ao redor.
Um chute de Holo o trouxe de volta a si e, olhando para os olhos
raivosos dela, ele percebeu que havia sido mal interpretado.
“Ah, desculpe, eu deveria ter explicado melhor. Eu não estava
falando de você.” Ela continuou a considerá-lo com suspeita, assim
Lawrence elaborou. “Estou um pouco preocupado que haja muitas
pessoas aqui.”
“Er, você quer dizer...” Foi Col quem falou.
Dada a maneira como ele olhava curiosamente ao redor da cena,
era bem possível que ele tivesse chegado à mesma conclusão que
Lawrence.
“Há gente demais para terrenos desse tamanho. Não importa o
quão grandiosos sejam os edifícios, um bando de mercadores e monges
arrogantes, sem paciência para condições apertadas, nunca ficarão
satisfeitos com um espaço tão confinado.”
“Você quer dizer que pode não haver hospedagem para nós?”
Se este fosse um local para realizar negociações comerciais, teria
que ter locais para armazenar contratos, bem como locais para discutir
o conteúdo desses contratos. Isso significava espaço de escritório e
trabalhadores para manter a manutenção desse espaço.
Cozinheiros e pessoal de alimentação também seriam necessários,
e quanto maior o status dos comerciantes que os visitavam, maior seria
sua comitiva.
Lawrence duvidava que seu mau pressentimento fosse apenas
pessimismo inspirado pelo mau tempo. Era muito fácil pensar nessas
coisas diante de um mosteiro dedicado à oração a Deus.
Lawrence e seus companheiros continuaram a olhar em volta em
dúvida, e logo apareceu Piasky, trotando para fora de um dos prédios
CAPÍTULO II ⊰ 82 ⊱

— exatamente como Lawrence esperava — com uma expressão


preocupada no rosto.
Exatamente como seria de se esperar de um mercador cuja
agilidade dos pés superava sua habilidade de negociação, Piasky
imediatamente foi direto ao ponto. “Eu sinto muito. Há pessoas
demais, e não consegui garantir um quarto.”
Apesar de ter antecipado isso, Lawrence não tinha certeza de
como responder. Enquanto lutava por uma resposta, Piasky
continuou.
“Você pode dormir ao lado de outras pessoas em um dos quartos
maiores…” Suas palavras sumiram quando seu olhar caiu sobre Holo.
O que aconteceria se Holo dormisse em um quarto lotado de
mercadores? Seria como jogar carne para uma matilha de cães
selvagens.
“Como alternativa, podemos encontrar um quarto de chão de
terra para você alugar... mas em um clima como este, isso não seria
muito diferente de acampar. Ai que incômodo. Aparentemente, nos
últimos dias, houve uma onda de pessoas.”
“E os estábulos?”
“Eles estão cheios até os palheiros. Afinal, nesta época do ano, eles
são ainda mais quentes que os quartos da pousada. E nem preciso
mencionar os armazéns de lã.”
O rosto de Piasky caiu em profunda contemplação, como se
estivesse conduzindo viajantes por uma estrada que havia sido
bloqueada por um deslizamento de terra e agora estava intransitável.
Sua preocupação parecia ser genuína, e não apenas aparente.
Lawrence podia ver por que Holo o havia aprovado.
Mas isso não significava que ele seria capaz de consertar a situação
deles.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 83 ⊱

Se acabassem ficando em um prédio de pedra com piso de terra,


precisariam proteger a cama.
Lawrence estava prestes a dizer isso, mas antes que pudesse, os
arredores pareceram explodir em uma grande comoção — embora,
olhando novamente, viesse de uma direção específica.
“Ho, o Exército Branco está de volta!” gritou um dos
comerciantes entre os muitos na rua. Lawrence olhou na direção do
barulho e, quando sua linha de visão caiu sobre a entrada do anexo, ele
entendeu o que o grito significava.
Com um estrondo baixo que parecia sacudir o chão, uma onda de
ovelhas entrou. Nem mesmo um bando de mercenários totalmente
armados poderia resistir a tal inundação.
Quando as ovelhas passaram pelos portões escancarados, logo
foram conduzidas por cães e lanças para os muitos celeiros reservados
para elas.
Pouco tempo depois, ouviam-se os sinos que tantas vezes soavam
pelas planícies quando um quarteto de pastores passava pelas portas e
entrava na vila. Aqui eles não eram odiados como em Ruvinheigen, e
os mercadores que os conheciam os cumprimentavam alegremente,
acariciando as cabeças dos cães pastores e agradecendo-lhes por um dia
de trabalho bem feito.
Os pastores eram certamente um grupo desalinhado. E, no
entanto, olhando para suas formas dignas, Lawrence não pôde deixar
de pensar que, se Norah, a pastora, pudesse encontrar emprego em
um lugar como este, ela não sofreria tanto.
“É muito claro o que você está pensando.”
Com as palavras repentinas de Holo, Lawrence voltou à realidade.
Quando ele se encolheu e olhou para ela, ficou muito claro quem era
a ovelha.
Mas Holo parecia estar satisfeita com sua reação patética, então ao
invés de aproveitar sua vantagem, ela falou com uma expressão calma.
CAPÍTULO II ⊰ 84 ⊱

“O destino é realmente uma força presente no mundo. O mundo é


muito complicado para que tudo ocorra facilmente.”
“... Você está certa sobre isso.” Qualquer uma de suas aventuras
até agora servia como evidência.
Enquanto conversavam baixinho, Lawrence de repente sentiu o
olhar de alguém sobre ele e ergueu os olhos. Sua visão pousou sobre
os portões pelos quais o rebanho de ovelhas acabava de passar.
Com as ovelhas agora do lado de dentro, os portões estavam sendo
fechados e a calma começava a voltar.
Mas os pastores permaneceram.
Lawrence teve a sensação de que um deles, um velho, estava
olhando para eles.
“Quartos dos escrivães... não, não... talvez o depósito no final do
corredor... ou... hmm?” Piasky continuava a refletir sobre o problema
do alojamento de Lawrence e de seus companheiros, mas viu o olhar
curioso de Lawrence e parou.
Depois de olhar brevemente para os pastores, ele bateu palmas.
“É isso. Pode haver algumas vagas nos alojamentos dos pastores. Ouvi
dizer que eles estão menos ocupados no inverno — deixe-me
perguntar e descobrir.”
Assim que terminou de falar, Piasky saiu correndo.
Era possível que o pastor que Lawrence pensava estar olhando
para eles estivesse olhando além deles, para o santuário.
Assim que ele revisou seu pensamento, Holo olhou desconfiada
para os pastores.
“Um deles estava de olho em nós agora há pouco.”
“Eu me pensei a mesma coisa.”
Apenas Col pareceu surpreso com isso e olhou em volta com
nervosismo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 85 ⊱

Não era surpreendente que cidades ou vilarejos hostis tratassem


os viajantes com hostilidade, mas não era isso que Lawrence sentia.
“Bem, talvez ele simplesmente tenha achado você um pouco
incomum. Há muitas abadias com freiras e monges, mas não há freiras
aqui.”
“Sim... ele ficou realmente surpreso.”
“Acho que você não mostrou as orelhas nem a cauda”, disse
Lawrence brincando.
Com isso, Holo ergueu o queixo e respondeu com os olhos
semicerrados de tédio. “Não é como se houvesse algo aqui para fazer
meu coração disparar. Minhas orelhas e cauda estão sem vida sob meu
manto.”
“Isso é bom. Prefiro uma garota modesta.”
Holo pisou no pé de Lawrence e Col se virou, tentando esconder
o riso.
Piasky parecia ter negociado algo com sucesso durante o show
secundário de terceira categoria do trio. Ele se virou para eles e acenou
alegremente em sua direção.
“Você ficará bem se ficar nos aposentos dos pastores?”
Lawrence perguntou a Holo.
“Você disse que preferia uma garota modesta, não é?”
Lawrence não estava preocupado que ela murchasse na frente dos
pastores tanto quanto ele estava preocupado que sua antipatia por eles
estragasse seu humor, mas ela friamente descartou a pergunta.
E sem dúvida ela ficaria bem como prometido. Afinal, Holo não
era uma criança.
“Bem, então eu diria que é a nossa melhor escolha”, disse
Lawrence, retribuindo o aceno de Piasky.
Mas então, para surpresa de Lawrence, Piasky agitou a mão para
o mesmo velho pastor que eles estavam falando antes.
CAPÍTULO II ⊰ 86 ⊱

Evidentemente os pastores da grande Abadia de Brondel, que


ainda contavam histórias da ovelha dourada, estariam dividindo seus
aposentos com a Sábia Loba de Yoitsu, guardiã da colheita do trigo.
Talvez o mundo fosse um lugar mais pacífico do que parecia,
afinal.

“Huskins.”
Devido ao som de suas malas caindo no chão, Lawrence quase
perdeu a apresentação do homem. Uma vez que ele percebeu do que
se tratava, ele rapidamente estendeu a mão direita em saudação.
“Kraf Lawrence.”
“…”
Ao apertar a mão de Huskins, que estava parado na porta, ele
notou que as mãos do homem eram duras como cascos de ovelha.
“Esta é Holo. E esse é o Col. Circunstâncias estranhas os levaram
a viajar comigo.”
“Prazer em conhecê-lo”, disse Holo.
“E estou muito feliz em conhecê-lo também”, disse o Col.
Ao apertar a mão de cada um deles, Huskins, o pastor, não disse
nada mais do que seu próprio nome.
Seu cabelo era da cor do feno e da neve, com sobrancelhas longas
e uma barba que quase chegava ao peito. Ele tinha uma constituição
sólida, suas costas não eram curvadas nem seu corpo mal alimentado.
Os cantos de seus olhos estavam profundamente enrugados, e seus
olhos cinzentos brilhavam como se estivessem olhando para um
horizonte distante. Embora certamente tenha passado de seus anos
ágeis, seus movimentos tinham uma força peculiar e faziam pensar em
um velho carneiro astuto.
Um verdadeiro pastor que vagava pelas planícies. Um pastor de
olhos aguçados. Havia inúmeras maneiras de descrevê-lo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 87 ⊱
CAPÍTULO II ⊰ 88 ⊱

Huskins era um homem assim, um venerável pastor cuja idade lhe


dava uma certa aura.
“Muito obrigado por tudo. Você realmente nos ajudou.”
Como diria Piasky, os pastores que viviam aqui com Huskins só
voltavam uma vez em alguns anos. Contanto que Lawrence e seus
companheiros estivessem dispostos a fazer suas próprias refeições, eles
poderiam usar os quartos vagos.
Claro, não sendo uma pousada, cada quarto não tinha sua própria
lareira — havia uma lareira de tijolos rebaixada compartilhada entre
os quartos, mas mesmo isso era muito melhor do que dormir ao lado
de estranhos ou no chão de terra de um prédio de pedra.
“Vou cuidar do fogo. Além disso, você é livre para fazer o que
quiser.”
Dizia-se que depois de cuidar de seus vastos rebanhos, suportando
condições difíceis dia após dia, os pastores eram mais santos do que os
verdadeiros santos — e Huskins certamente parecia assim.
Ele não parecia inclinado a responder a conversa fiada, nem
evidentemente desejava fazê-lo.
Lawrence assentiu com o que lhe foi dito e não fez mais perguntas.
Huskins olhou silenciosamente para o trio por um momento, deu
um breve aceno de cabeça e depois voltou para a sala com a lareira.
“Ele é um estudioso da Igreja?” Col perguntou baixinho quando os
passos de Huskins desapareceram.
Não era estranho pensar assim. Até Lawrence achou fácil
imaginar-se pedindo o conselho de Huskins em tempos difíceis.
“Ele parece uma espécie de homem sábio do deserto, não é?”
“Eu sou o alvo dessa piada?” Holo colocou uma framboesa seca na
boca assim que Lawrence abriu as sacolas. Lawrence deu a ela um olhar
suave e encolheu os ombros propositadamente.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 89 ⊱

“Temos mais sobras do que eu pensava. Com tanto, estamos


abastecidos por um tempo, mesmo contando para a porção de
Huskins. E se acabarmos, estaremos cercados por mercadores, então
dificilmente será um problema.”
“Sim, só o poço não estava muito cheio, então a água pode ser um
problema.”
Esse era Col, sempre mantendo os olhos abertos.
Ao viajar sem dinheiro, encontrar água era a maior prioridade.
Mesmo um pouco de comida poderia durar uma semana, mas não
era assim com a água.
“Devemos pegar agora, talvez?” perguntou Col.
“Talvez... vá em frente e faça isso. Vamos precisar dela no jantar
e é possível que o poço congele durante a noite.”
“Certo!”
Col parecia sentir-se mais à vontade quando lhe davam uma tarefa
para cumprir. Ele deu sua resposta alegre e então pegou um balde e
um odre de água antes de voltar para o frio.
Em seguida, Lawrence dirigiu-se a Holo, que, muito diferente do
disposto Col, estava deitada em uma cama de palha, enfiando
framboesas secas na boca.
“Não faz muito tempo que eu seria saudado com seu sarcasmo e
receberia sua raiva”, disse Lawrence.
Holo também precisava se sentir útil, mas ao contrário de Col, ela
não demonstrava isso externamente. Ela fazia um trabalho tão bom em
disfarçar isso, que Lawrence às vezes esquecia que era verdade.
“... Parece que você conseguiu aprender alguma coisa.”
“Até eu aprendo eventualmente.”
“Hehe. Ainda assim, se ficarmos aqui por tempo suficiente, nossos
suprimentos de comida se tornarão uma preocupação. Isso vai
CAPÍTULO II ⊰ 90 ⊱

incomodar um pouco.” Colocando o último pedaço em sua boca, Holo


se sentou.
“Mm, sim, verdade. E se a neve se acumular demais, podemos
acabar presos aqui. Concordo com você que, se vamos ficar presos,
prefiro que seja em uma cidade.”
“Tem isso, mas eu tenho outro motivo.”
“Outro?”
“Sim. Você pode muito bem ser enterrado vivo sob a lã deixada
pelas ovelhas que devo devorar.”
“Essa é uma eventualidade que estou ansioso para evitar.”
Holo não estava necessariamente brincando. Mesmo visto de
longe, ficou claro que a lã do rebanho era muito boa. Sem dúvida, sua
carne seria da mesma forma.
“No entanto, com aquele lote lá fora preso aqui, eles não terão
nada a fazer a não ser repassar rumores. Como estamos buscando
informações, isso pode ser bastante conveniente para nós.”
“Essa é uma faca de dois gumes. Os rumores se espalham em um
piscar de olhos em um lugar como este. Precisamos descobrir sobre os
ossos do lobo chamando o mínimo de atenção possível, esse é o
problema.”
Lawrence coçou a barba enquanto pensava nisso, e não demorou
muito para ele considerar as poucas possibilidades que havia.
Era muito difícil manter a boca dos outros fechada.
O que eles precisavam era de alguém em quem pudessem confiar
com segurança e, no momento, só havia uma pessoa assim.
Mas Lawrence hesitou em confiar totalmente em Piasky.
Não havia dúvida de que ele era uma pessoa excelente — tanto
que Lawrence não queria ficar ao lado dele na frente de Holo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 91 ⊱

“Vai ficar tudo bem. Assim como um bando com duas cabeças
costuma brigar entre si, seus dois líderes também não se tornarão
amigos íntimos. Não há nada para se preocupar.”
As palavras de Holo atingiram tão perfeitamente o cerne da
preocupação de Lawrence que foi quase frustrante. Mas até ele achava
difícil admitir que hesitava em pedir a ajuda de Piasky porque estava
preocupado com o quão bem Piasky e Holo poderiam se dar.
E, no entanto, se ele permanecesse resoluto em seu orgulho,
estaria se jogando direto nas garras da loba. E sua falta de fé pode até
ser interpretada como falta de fé em Holo.
Então Lawrence blefou como se o maior negócio de sua vida
dependesse disso. “Depois de tudo o que passamos, não estou
particularmente preocupado com quem você escolhe para ser amigo”,
declarou ele.
Mesmo os ouvidos de Holo não deveriam ser capazes de captar a
mentira, ele calculou.
E, no entanto, no momento em que pensou sobre o fato, Holo fez
uma careta como se tivesse acabado de ver um coelho pular em uma
armadilha. “Oh? Você não é o líder deste bando?”
Levou apenas um breve instante.
“Você estava mantendo sua guarda alta mesmo enquanto se dava
bem com aquele outro macho? Bem, suponho que seja comum para o
novo líder de um bando se esforçar demais. Eu certamente entendo
suas preocupações...”
Lawrence pensou nas palavras de Holo. Ela era uma gênia em
distorcer o assunto de suas falas. Pior, ela entendia muito bem como
os outros as interpretariam.
“Foi o que pensei, mas... então é verdade que você estava
preocupado com isso? Você não apenas me considera a líder do bando,
mas também espera que eu não me aproxime do outro?” Holo sorriu.
“Um cachorrinho tão adorável.”
CAPÍTULO II ⊰ 92 ⊱

Ela o pegou de novo depois de todo esse tempo.


Lawrence nem sequer grunhiu.
A maneira como ela o olhou com o queixo nas mãos era
irritantemente atrevida. Ele queria agarrá-la pelo rosto, envolvê-la em
um cobertor e jogá-la para fora.
Mas se ele perdesse a paciência aqui, seria como jogar óleo no fogo
de sua vergonha. Como jogar dinheiro atrás de um ladrão.
Lawrence lembrou a si mesmo que aceitar graciosamente sua
derrota, deixando transparecer um pouco de frustração, era a melhor
resposta — a resposta mais digna de um mercador.
Ele ouviu o som de tecido farfalhando; era o som de Holo virando-
se na cama, irritada com a reação inesperadamente calma de
Lawrence.
“Hmph, olhe para você, brincando de ser um homem centrado.”
Era uma coisa terrível de se dizer, mas ele não mordeu a isca.
“É fácil se eu pensar na minha infância.”
“Ah, é?”
Lawrence ergueu o dedo indicador e colocou o outro braço atrás
da cintura, como se estivesse dando uma palestra. “Ao tentar atrair a
atenção de quem você gosta, qual é o método mais charmoso?”
Holo ficou perplexa.
“Importuná-la um pouco e fazê-la notar você.”
Portanto, não fique chateado com tudo. Lawrence caminhou até a
cama e cutucou o nariz de Holo com o dedo indicador.
Naturalmente, havia inúmeras respostas que ela poderia ter
lançado contra ele. Lawrence estava bem ciente disso, considerando
quantas vezes ele teve certeza de que a havia encurralado apenas para
que ela virasse a mesa.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 93 ⊱

Então ele estava totalmente preparado para ter o dedo mordido,


mas por algum motivo, Holo parecia achar esse fato divertido.
Enquanto Lawrence esperava, imaginando quando ela iria contra-
atacar, ela simplesmente ficou sentada olhando para ele.
Por fim, com o dedo dele ainda no nariz, ela falou num tom
ligeiramente nasal. “Não há como explicar gosto. Nem sempre se
prefere o que é objetivamente melhor. Piasky, por exemplo.”
Tal foi o sinal da rendição de Holo. Mas suas palavras foram
escolhidas especificamente para evitar bajular Lawrence.
“E-eu vou levar isso como um elogio.”
Era patético da parte dele gaguejar em um momento tão crucial,
embora a Sábia Loba parecesse satisfeita.
“Hmph.” Holo riu.
Pouco depois, Col voltou ofegante ao quarto, trazendo água
consigo.

Embora não estivessem tentando esconder suas identidades,


Lawrence e seus companheiros só entraram no santuário uma vez que
o sol tinha começado a se pôr.
Mesmo com velas, a hora parecia mais escura do que a noite real.
Enquanto a neve continuava a cair lá fora, a perspectiva de sentar
em um banco e oferecer orações começava a parecer bastante atraente.
O dia da abadia era diferente do dia útil normal em cerca de 25%,
então o sermão da noite havia acabado há muito tempo, e os únicos no
santuário eram Lawrence, seus companheiros e Piasky, junto com um
monge carregando uma bolsa de pele de carneiro de muito boa
qualidade.
Quando viu que Lawrence e os outros haviam terminado suas
orações, aproximou-se deles sem dizer nada e abriu sua bolsa.
CAPÍTULO II ⊰ 94 ⊱

Piasky, Lawrence e seus dois companheiros jogaram nele moedas


de prata do outro lado do mar.
“Que as bênçãos de Deus estejam com você”, disse o monge
rispidamente e logo se retirou.
Sem dúvida, ele tinha que se preparar para o acendimento de
velas, mas tal tratamento dificilmente inspiraria crentes comuns a
virem aqui em peregrinação.
“Então, vamos?” murmurou Piasky, e as palavras saíram de sua
boca em uma nuvem de vapor branco.
Fazia frio e já era hora de desfrutar de vinho, carne de carneiro e
folia.
Ao contrário de Lawrence, Piasky tinha muitos amigos aqui e era
a hora mais movimentada do dia.
Lawrence assentiu. Col ainda estava orando silenciosamente,
assim como Holo; Lawrence o cutucou e eles se levantarem.
O pé-direito alto do santuário, desde a entrada até ao altar, dava
ao espaço uma sensação de grandeza, a par da augusta majestade divina,
graças à riqueza acumulada ao longo dos anos. Se a cortina bordada que
pendia do teto, desbotada tanto pela fuligem das velas quanto pelos
invernos frios, fosse puxada para trás, parecia que o passado poderia
ser vislumbrado como uma terra dourada e brilhante.
“— A Abadia de Brondel... a casa de nosso Deus Todo-
Poderoso... —” murmurou Col, olhando para trás depois de terem
passado pelo claustro e por um conjunto de portas fortificadas com
grades de ferro.
Embora eles chamassem Col de pagão, ele não parecia odiar a
Igreja.
Talvez ele tenha ficado impressionado com a majestade deste
edifício que foi construído na terra da neve e decidiu deixar esses
pequenos detalhes de lado, ou talvez ele simplesmente gostasse desse
verso.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 95 ⊱

Em circunstâncias normais, Holo teria zombado dele, mas ela


continuou a segurar sua mão quando ele parou e se juntou a ele
olhando para trás. Depois de um momento como esse, os dois
seguiram Lawrence.
“Na verdade, eu gostaria de poder convidar você e seus
companheiros também, Sr. Lawrence...”
“Não se preocupe. Eu entendo perfeitamente. Embora se fosse
uma negociação comercial, eu me sentaria à mesa mesmo que tivesse
que me convidar.”
“Ha-ha-ha, eu aprecio sua fala. No entanto, vejo você amanhã.”
“Sim. Aproveite sua vitória!”
Lawrence e companhia despediram-se de Piasky ali no santuário
iluminado por tochas e seguiram para o dormitório dos pastores. A
essa hora tardia as ruas estavam vazias, mesmo as que circundavam o
santuário, e a única luz vinha das lanternas ao lado da porta de cada
edifício.
“Aposto que ele terá uma boa vitória”, disse Holo.
Eles não oraram dentro do santuário por muito tempo, mas as
pegadas que deixaram ao entrar foram enterradas sob a neve que caía.
“O vinho em nossos odres é bom o suficiente”, disse Lawrence.
“Sim, mas uma boa vitória significa boa comida e boa companhia
também.”
“Apenas onde você quer chegar...?” Lawrence imediatamente
presumiu que ela estava falando sobre ele, mas depois percebeu o
contrário.
“Olha — não diga nada disso no jantar, entendeu?”
Sob o capuz, Holo soltou um suspiro pesado. Lawrence tinha
certeza de que o som de um pisão na neve não era sua imaginação.
“Como alguém pode desfrutar de sua bebida perto de alguém tão
desalinhado e sombrio? Ele não apenas não me deu uma saudação
CAPÍTULO II ⊰ 96 ⊱

adequada, mas quando me perguntei para onde iria, ele voltou com
uma cesta cheia de carneiro cru. O que ele está pensando, secando-o
sobre a lareira assim? Ele está zombando de mim?”
Os pastores partiam de manhã cedo e voltavam apenas quando o
sol se punha, então, além do jantar, a maior parte de suas refeições era
feita ao ar livre. Para piorar as coisas, este era um lugar onde a neve
era a norma. Se a neve fosse muito forte, um pastor poderia ser forçado
a encontrar um lugar para ficar durante a noite. Certamente não havia
espaço no dormitório para todas as ovelhas. Preparar comida para seus
camaradas nos muitos estábulos aqui e ali fazia parte de seu trabalho.
Em vez de ser deliberadamente insociável, a falta de graça de
Huskins provavelmente se devia ao fato de ele estar simplesmente
ocupado com os preparativos para o dia seguinte.
Claro, era menos isso e mais o fato de ele ter a coragem de fazer
carne seca bem na frente dela que incomodava Holo. Pior ainda, ao
lado do cordão de carne seca havia pedaços de linguiça de carneiro.
“Se é carne seca que você quer, ainda deve haver um pouco na
sacola.”
“Essa coisa difícil não combina com o meu gosto,” disse Horo,
virando-se com desagrado.
Foi o suficiente para fazer Lawrence rir. Ela era como uma criança
irracional. Mas ele sabia que precisava estar preparado para quando ela
decidisse realmente pressioná-lo. Ela só lhe deu problemas porque a
carne estava bem diante de seus olhos.
“Se fizermos como Piasky fez e colocarmos no ensopado, vai ficar
bom e macio”, disse Lawrence, que Holo olhou para cima, com os
lábios curvados em um sorriso de escárnio.
“Por que você não usa a panela como travesseiro de agora em
diante, hmm?”
Lawrence respondeu com um suspiro. “Você está dizendo que vai
amolecer minha cabeça?”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 97 ⊱

Holo olhou para frente e não se dignou a responder.


Tal era a conversa quando voltaram para o dormitório, os sons de
risadas e os cheiros de comida deliciosa emanando dos quartos pelos
quais passaram. Holo não era a única lambendo os lábios com o cheiro
de carneiro.
As portas bambas de cada prédio seriam facilmente quebradas com
um chute. Holo olhou através de cada um enquanto eles passavam,
tentando ter um vislumbre do que estava sendo comido dentro.
Havia cinco quartos no dormitório, com Lawrence e seus
companheiros ocupando um dos dois quartos no segundo andar.
No total, quinze pastores foram alojados lá, e havia até um canil
dedicado aos cães pastores. Contando os celeiros que pontilhavam a
paisagem ao redor, Lawrence imaginou que houvesse cerca de trinta
pastores no total. Nem todos se conheceriam, pois alternavam dormir
nos celeiros e aqui no dormitório.
Deles, Huskins era o mais velho e supostamente sabia mais sobre
ovelhas do que sobre Deus.
“Nós voltamos.”
Não era incomum os viajantes alugarem quartos nos quartos dos
outros em casas durante a viagem. Uma boa forma de garantir um
momento agradável para todos era receber calorosamente os
ocupantes da casa.
“É um santuário magnífico que você tem aqui.”
Huskins deu apenas um aceno de cabeça, cortando
silenciosamente os tendões e a gordura da carne crua. O olhar de
prazer de Holo foi, sem dúvida, graças à remoção da gordura, sua parte
favorita.
Assim que Lawrence viu Holo e Col de volta ao quarto, ele
imediatamente começou a preparar o jantar. Eles só foram autorizados
a ficar lá com a condição de cuidarem das refeições de Huskins.
Assim que Lawrence pegou uma panela, Huskins falou de repente.
CAPÍTULO II ⊰ 98 ⊱

“…Um lugar adequado para Deus viver.”


Compreendendo que isso se referia ao santuário, Lawrence sorriu
e acenou com a cabeça.
Lawrence emprestou algumas ferramentas de Huskins para fazer
um suporte para a panela e depois a encheu com água, junto com os
ingredientes nas proporções que aprendera com Piasky.
Ele sabia que Holo gostava de um sabor um pouco mais forte,
então colocou um pouco mais de sal. Da mesma forma, ele tinha
ouvido falar que os pastores, como suas ovelhas, preferiam a comida
salgada. Ele acrescentou um pouco da carne seca dura, junto com o
pão que havia sido reduzido a migalhas em seu saco, fazendo o que seria
uma refeição muito nutritiva.
Normalmente, essa seria uma boa oportunidade para uma
conversa fiada, mas Huskins estava quieto como sempre enquanto
continuava seu trabalho. Costumava-se dizer que aqueles que passaram
seus anos com animais logo se tornariam incapazes de falar com
qualquer outra pessoa, e Lawrence podia entender por que alguém
diria isso.
“O jantar está pronto.”
Lawrence foi até o quarto ao lado para chamar Holo e Col, ao que
viu que eles haviam puxado alguns pedaços de palha da cama e estavam
jogando com eles um jogo infantil de adivinhação, tentando adivinhar
o menor.
Dado o sorriso em seu rosto, parecia provável que Col estava
ganhando.
Lawrence deu um tapinha na cabeça de Holo enquanto ele passava
por eles, e ela claramente se inclinou para ele de forma sedutora.
Ela não parecia estar de bom humor.
“Graças a Deus por esta refeição.”
Como convém a uma abadia, eles recitaram a oração tradicional
— algo que normalmente não faziam.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 99 ⊱

Com um sorriso no rosto, Col começou a comer imediatamente,


mas a expressão de Holo era amarga, como se ela realmente fosse uma
freira.
Em parte porque o ensopado só tinha carne seca, mas também
porque o vinho de uva destilado não combinava bem com o caldo
quente.
Apesar da viagem, agora que haviam chegado ao seu destino,
Lawrence não se importava se ela ficasse bêbada. Ele tinha certeza de
que ouviria as reclamações dela sobre o assunto, exceto que diante
deles estava sentado Huskins, como uma espécie de eremita.
Para manter as aparências, Lawrence decidiu que era melhor que
eles parecessem peregrinos piedosos.
O único conhecido deles aqui era Piasky, e com a Aliança Ruvik
permanecendo na área, era duvidoso quanto peso o nome da
Companhia de Comércio Rowen carregaria.
Seria melhor aproveitar a oportunidade que a permanência com
Huskins oferecia, já que, embora fosse apenas um pastor, ainda vivia
na abadia há muito tempo. Como um jarro cheio de água, a mente de
uma pessoa taciturna estava cheia de conhecimento.
O problema era descobrir como remover a tampa.
Huskins continuou a comer sua refeição, em silêncio, sem fazer
comentários ou agradecimentos.
Dado que o jantar era contratualmente obrigatório, expressar
qualquer crítica provavelmente levaria a um conflito, então seu
silêncio era sem dúvida a abordagem correta.
Infelizmente, isso também significava que Lawrence não tinha
oportunidade de começar a abrir a aproximação. Ele teria que esperar
uma chance de se apresentar.
Lawrence pensou nisso enquanto continuava a comer e,
finalmente, Huskins se levantou.
CAPÍTULO II ⊰ 100 ⊱

O conteúdo da panela estava quase acabando — tudo o que


restava era dividir o restante do caldo grosso.
Holo sorriu abertamente com a perspectiva de ter uma pessoa a
menos com quem compartilhar, mas o sorriso dela desapareceu
quando ele se sentou novamente.
Huskins casualmente pegou um pedaço de carne seca e o jogou na
panela.
“... É bom, comer com um grupo pela primeira vez.”
Sua voz era como um tronco queimado caindo em uma fogueira,
mas para Lawrence e seus companheiros, cada um dos quais costumava
comer sozinho, era uma saudação calorosa e amigável.
O humor de Holo melhorou imediatamente e ela já estava
comendo um pouco da carne, que ainda não havia fervido direito.
No momento em que ia agradecer a Huskins, Lawrence viu o
velho oferecendo-lhe uma pequena garrafa.
Tanto quanto ele podia dizer pela substância esbranquiçada ao
redor da tampa, parecia ser algum tipo de bebida feita de leite de
ovelha.
Lawrence terminou o vinho em seu próprio copo e, agradecido,
permitiu que Huskins lhe servisse um pouco da bebida oferecida.
“Há um gosto que eu não sentia há algum tempo.” Era um sabor
que alguém amava ou odiava e, de sua parte, Lawrence não gostava
muito dele.
E, no entanto, ele entendeu que este era um gesto de amizade de
Huskins, apesar de sua curta estadia.
Lawrence fez um grande show ao saborear a bebida, tanto que
Holo certamente estava rindo dele por dentro.
“Então, Sr. Huskins ...” Lawrence fingiu ter sido solicitado a falar
sobre embriaguez e parou para observar a reação de Huskins.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 101 ⊱

Huskins estava cortando um pedaço da carne cozida com uma


faca, que ele colocou na boca e engoliu com um gole do licor de leite
antes de olhar para Lawrence.
“... Você está aqui há muito tempo, não é?”
“… Algumas dezenas de anos agora. Desde o tempo do abade
antes do último.”
“Entendo. Viajo desde menino, sempre fazendo negócios. Mal
consigo imaginar como deve ser passar tanto tempo em um só lugar.”
Huskins não disse nada e, sentindo que ele ainda estava ouvindo,
Lawrence continuou.
“Aliás, ouvi dizer que há três coisas que nunca mudam no reino
Winfiel. E você, Sr. Huskins... diria que isso é verdade?”
Com essas palavras, a faca de Huskins congelou no meio da fatia
em sua tigela.
Seus olhos fitavam para longe, como qualquer um fazia quando
revirava suas memórias.
“… Os nobres arrogantes, as belas planícies…”
“E os rebanhos de ovelhas!”
Quando Lawrence terminou a frase, um leve sorriso apareceu no
rosto de Huskins.
“... Não muda muito, esta terra.”
“Parece adorável.”
“…Você acha?” A voz de Huskins era baixa, mas clara, como se
ele tivesse notado todos os elogios de Lawrence.
Lawrence podia sentir Holo olhando para ele sob o capuz, com
um pedaço de carne na boca.
Suas palavras eram claras o suficiente.
Mas Lawrence não entrou em pânico nem se encolheu. Ele era um
mercador e não tinha pouca experiência. “Eu uso as mesmas palavras
CAPÍTULO II ⊰ 102 ⊱

sempre que volto a algum lugar depois de um ano de viagens e


negócios.” Lawrence sorriu e continuou: “As coisas nunca mudam.”
“…”
Por baixo das sobrancelhas longas e grisalhas, aqueles olhos
selvagens, mas humanos, focados em Lawrence. O olhar poderoso
parecia de alguma forma que Huskins estava olhando para ele
firmemente pela primeira vez.
O velho pastor então levou o copo de leite de ovelha aos lábios e
acenou com a cabeça. “Este lugar também não muda. Acho que vai
continuar assim.”
“Sem dúvida. Afinal, esta é a Abadia de Brondel.”
Huskins assentiu; então, depois de concordar, serviu
silenciosamente mais bebida a Lawrence.
Lawrence teve a sensação de que Huskins havia gostado dele.
Ele não pôde deixar de desejar que o vinho fosse realmente
saboroso.
“Pensei que nem mesmo uma parede de pedra pudesse resistir às
mudanças dos dias que passam”, disse Lawrence.
“…Você quer dizer aqueles mercadores? Vocês são muito
diferentes?”
Essa maneira sarcástica de perguntar era peculiar à região.
Lawrence sorveu mais bebida e sorriu, desgostoso. “Eu
certamente sou um mercador, mas meu objetivo é um pouco diferente
dos outros que se reúnem aqui.”
“…Oh Ho. Vindo até aqui e trazendo os cordeirinhos de Deus
com você…”
“Estou aqui em peregrinação para perguntar sobre uma relíquia
sagrada aqui na abadia.”
Lawrence não mencionou os ossos de lobo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 103 ⊱

Uma abadia tão grande quanto Brondel certamente teria algumas


relíquias sagradas, e muitos peregrinos certamente viriam vê-las.
Huskins pareceu momentaneamente surpreso, mas logo pareceu
aceitar a história. Ele moveu a boca como se murmurasse algo e então
assentiu. “…Existem muitas razões para viajar. Isso traz cor a um
mundo monótono.”
Vindo da boca de um menestrel, tais palavras teriam sido mera
enrolação, mas de Huskins elas soaram verdadeiras.
Lawrence sorriu e acenou com a cabeça, dando a Huskins a maior
parte do delicioso e saboroso caldo que restava na tigela.

Na manhã seguinte, Huskins partiu antes do amanhecer.


Pela janela, podiam-se ouvir os latidos enérgicos dos cães
pastores, assim como as vozes humanas tagarelando, o que sugeria que
ele sempre saía por volta dessa hora.
Lawrence estremeceu com o ar gelado que penetrou sob o
cobertor e se agarrou à cauda de Holo — ela estava sob o mesmo
cobertor — tentando segurar o calor um pouco mais.
Quando ele acordou, uma boa quantidade de tempo havia se
passado. O sol já estava alto no céu e vários raios passaram pelas frestas
da janela.
Assim que refletiu sobre o quão complacente ele havia se tornado,
sem fazer nenhum negócio por um tempo, então percebeu o que o
deixava dormir tão profundamente.
Estava muito quente debaixo das cobertas — e Holo dormiu na
mesma cama a noite toda.
“Eu certamente sou útil para se ter por perto.”
E certamente era agradável acordar com uma bela donzela
dormindo sobre seu peito — embora não quando sua boca estava cheia
de carne seca.
CAPÍTULO II ⊰ 104 ⊱

E não quando seu hálito fedia a bebida.


Sem dúvida ela queria evitar ser repreendida e, além disso, odiava
a ideia de se curvar ao lado da lareira para beber sozinha. Até Lawrence
evitava beber sozinho — e também era mais quente debaixo dos
cobertores.
“... Onde está Col?”
“Eu não sei... Ele cuidou da lareira por um tempo, mas assim que
o sol nasceu, ele saiu com os pastores e seus cajados.”
Um pedaço de carne seca pendurada em sua boca tremeu
enquanto ela falava e, pela cor, Lawrence tinha certeza de que era parte
da carne que Huskins estava secando no dia anterior.
Mas criticá-la daria mais trabalho do que valeria a pena. Ele
simplesmente teria que esperar que Huskins não notasse.
“Então está ensolarado lá fora, hein...?”
O inverno muitas vezes mantinha as pessoas trancadas em casa por
um motivo ou outro.
Se estivesse bom, haveria mais gente na rua, com as conversas
mais animadas.
“Sim. Há pouco, os cachorros estavam correndo. E parece que um
certo alguém parece pensar que sou um deles.”
“Melhor do que beber vinho logo pela manhã. Venha, afaste-se.
Tenho que sair e ver o que está acontecendo.”
Ele cutucou o ombro de Holo, mas ela parecia completamente
relutante em se mexer. Ele soltou um suspiro pesado e se arrastou para
fora da cama.
Embora o sol já estivesse alto há algum tempo, o frio continuava
frio.
Ele queria voltar para a cama onde Holo continuava a mastigar sua
carne seca, mas essa era a tentação do diabo. Lawrence abriu bem a
janela.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 105 ⊱

Naquele momento, a luz do sol refletida na neve atingiu seus


olhos, tornando sua visão temporariamente ineficaz.
“… Ai. Mesmo assim, que vista.”
“Está frio.”
“Pode não ser o mesmo de quando você olhou para o oceano, mas
a vista me faz querer correr um pouco. Olha, até Col está brincando
com os cães pastores.”
O celeiro ficava um pouco além e descendo a colina do poço, e ao
lado dele estava ninguém menos que Col, em torno de quem quatro
cães pastores pulavam e brincavam.
Lawrence então percebeu seu erro com um “ah”. Holo
dificilmente poderia brincar com os cães pastores do jeito que Col
fazia.
Ele riu silenciosamente, o que lhe rendeu um olhar suspeito de
Holo.
“Ele voltará em breve, com os lábios brancos de frio. Você pode
provoca-lo o quanto quiser.”
“…”
Ela não parecia interessada, mas sua cauda abanando sugeria que
não achava a ideia totalmente desagradável.
Quando ele foi para a sala ao lado, descobriu que ainda havia
carvão na lareira e então entendeu que Col o havia preparado antes de
sair. Escusado será dizer que ele também foi buscar água.
Enquanto despejava a água sobre o pão de centeio crocante,
Lawrence olhou para a carne que havia secado durante a noite; estava
mais escura agora. Acariciando a barba, ele decidiu que não havia mal
em fazer a pergunta a Holo.
“Quer vir junto?”
Ele estava se referindo, é claro, à coleta de informações sobre os
ossos de lobo que eles estavam perseguindo a pedido de Holo.
CAPÍTULO II ⊰ 106 ⊱

Mas Holo apenas caiu na cama, sua cauda balançando


preguiçosamente para lá e para cá.
“Aproveite o seu descanso”, disse Lawrence e fechou a porta.
Ele se perguntou, porém, se a leve hesitação em sua voz o havia
delatado.
A área estava cheia de mercadores trabalhando com a Aliança
Ruvik. No processo de procurar conversas sobre os ossos de lobo, ele
certamente encontraria todo tipo de notícias.
Ele saiu, onde o reflexo do sol na neve o tornava mais brilhante
do que o dia mais claro de verão. Escondendo seu sorriso confiante
com as duas mãos, ele começou a andar.

“Assaj vermilion, arol woad, vud oak, rocatta saffron.”


“Rocatta saffron é bom mesmo. Ouvi dizer que o duque de Milone
vestiu mantos amarelos magníficos em um banquete recentemente.”
“Você quer dizer o banquete que aterrorizou até o bispo de Mirah?
Graças a isso, um dos nobres que é meu frequentador começou a pedir
várias mercadorias e acabei tendo um grande lucro.”
“Oh? Deve ser legal. Se você está procurando temperos, vou
trazer alguns no próximo barco. O que você diz? Eles vêm de todos os
lugares...”
Se tudo o que ele tivesse para se basear fossem as conversas que
ele podia ouvir do outro lado da rua, Lawrence teria se perguntado
onde ele estava.
Dado que os amigos dos comerciantes também eram
comerciantes, provavelmente era possível comprar qualquer
mercadoria de qualquer lugar do mundo apenas seguindo as conexões
dos comerciantes desta cidade.
Com tanta promessa diante dele, como o coração de Lawrence
poderia deixar de bater mais rápido em seu peito?
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 107 ⊱

Ao contrário deles, ele era um mero mercador viajante e, embora


não pudesse igualá-los em conhecimento de mercadorias conhecidas e
caras, quando se tratava das especialidades obscuras de pequenas
aldeias, ele não seria superado.
Talvez ele devesse se juntar a esse círculo lá? Não, não, talvez este
aqui. A tentação o assaltou.
Mas Lawrence finalmente engoliu tudo isso e chegou a um prédio.
Acima de sua entrada pendia uma bandeira verde com uma lua e
um escudo, identificando-a como uma pousada usada pela Aliança
Ruvik.
“Não precisa bater”, disse um de um grupo de mercadores, que
estavam conversando acaloradamente sobre ferreiros.
Lawrence sorriu levemente, ao que não apenas o comerciante que
havia falado, mas todo o grupo tirou o chapéu e o cumprimentou com
uma reverência.
Este lugar é o paraíso dos mercadores, Lawrence pensou consigo
mesmo e então abriu a porta.
“Com licença, o Sr. Piasky está aqui?”
“Hmm...Piasky? Ah, você quer dizer Lag. Ele está lá atrás,
escrevendo... aquele sujeito ali.”
“Meus agradecimentos.” Lawrence acenou com a cabeça para o
homem, então se dirigiu para o canto da sala, como o que poderia ser
encontrado no primeiro andar de qualquer casa comercial ou pousada
para relaxamento e recreação.
Havia cerca de vinte mesas redondas na sala, em torno das quais
os mercadores jogavam cartas, discutiam mapas e pesavam moedas em
balanças.
Entre eles estava Piasky, que escrevia algo furiosamente.
CAPÍTULO II ⊰ 108 ⊱

Lawrence hesitou em perturbá-lo, mas o veterano mercador


viajante foi perspicaz o suficiente para localizar mercenários a dois
morros de distância.
Ele olhou para cima e fixou seu olhar em Lawrence e
imediatamente sorriu.
“Bom dia, Sr. Lawrence. Você dormiu bem noite passada?”
“Dormi sim, obrigado. Embora eu duvide que desfrutarei da
mesma experiência esta noite.”
“Oh? Por que?” A voz de Piasky aumentou em um tom
cuidadosamente interrogativo, acompanhando a declaração principal
de Lawrence.
Que jovem amável, Lawrence pensou consigo mesmo antes de
apontar para os próprios olhos. “Acho que esta é a primeira vez que
vejo um mercador viajante usando óculos. Estou com tanto ciúme que
posso perder o sono por causa disso.
“Ah, esses? Ha-ha-ha! Bem, estamos em uma abadia, a casa da
escrita, afinal. Você pode encontrar óculos descartados facilmente.
Estes não me pertencem, naturalmente.
Já era difícil o suficiente fazer vidro transparente, mas um mestre
artesão poderia polir uma lente.
Embora os óculos fossem caros e raros, eles eram praticamente
uma necessidade para os monges que tinham que transcrever letras
finamente ornamentadas apenas com a luz de velas para trabalhar.
“Então, quais são as novidades? Oh, por favor, sente-se.”
Lawrence notou uma ardósia sobre a mesa, na qual estavam
escritos com giz os nomes e as quantidades de uma variedade de
mercadorias. Piasky parecia estar fazendo uma lista de mercadorias
para trazer em sua próxima visita.
“Um único comerciante pode manter uma lista de mercadorias
para negociar em sua cabeça, mas quando você se junta a uma
organização, você precisa de uma prova de seus pedidos.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 109 ⊱

“Então, uma lista sobre memórias. Mesmo assim, em uma


empresa como essa, seu nome não será apenas registrado no registro
funerário da Igreja — você viverá nas memórias de seus camaradas.”
“É verdade, se Deus quiser.” Piasky sorriu e continuou
escrevendo, mergulhando a pena em um tinteiro. “Você terá que
desculpar minha escrita. Imagino que esteja aqui para perguntar sobre
nosso alegre progresso?”
“… Está tudo bem em falar sobre isso tão abertamente?”
“Ha-ha-ha, sim, tudo bem. Conheço todos aqui. Forasteiros são
sempre cuidadosamente observados.”
Ainda sorrindo, Lawrence não foi tão tolo a ponto de tentar olhar
em volta.
E ainda sorrindo, Piasky dirigiu um olhar surpreendentemente
penetrante para Lawrence. “De fato, a confiança de Deutchmann
comprou uma passagem para você aqui, então não se preocupe. De
minha parte, em troca de fornecer informações a você, fico tentado a
perguntar exatamente como conquistou essa confiança... mas suponho
que seja um segredo comercial.”
O sorriso de Piasky estava cheio de malícia.
Lawrence teve o cuidado de não baixar a guarda, mas seu próprio
sorriso era natural. “Infelizmente sim.”
“Eu entendo perfeitamente. Então, sobre as circunstâncias, parece
que estamos rangendo os dentes diante dos muros de uma fortaleza
que deve cair em breve. Mas nossa mandíbula está ficando cansada,
então estamos fazendo uma pausa.”
“... Eles foram capazes de suportar, apesar de serem pressionados
por tais números?”
“Tentamos entrar em negociações várias vezes. Mas nunca deu
certo, então agora eu ouvi que estamos tentando alcançar o abade-
chefe, o abade-chefe assistente, outro abade-chefe de uma abadia irmã
que já foi poderoso aqui, e até mesmo indo até o arquivista-chefe,
CAPÍTULO II ⊰ 110 ⊱

tentando conquistar alguém, qualquer um. Com tantos comerciantes,


certamente um deles conhece alguém próximo. E, no entanto, eles
rejeitaram tudo categoricamente. O abade chefe deve estar em uma
posição terrível e, no entanto... ele é bastante impressionante.”
Em vez de falar com desdém, Piasky soou genuinamente
impressionado.
Sem dúvida, da perspectiva de alguém dentro da organização, o
fato de a abadia ter continuado a resistir ao ataque da Aliança Ruvik era
quase milagroso.
“Então... Sr. Lawrence, o que exatamente você veio me
perguntar?” Ele sorriu agradavelmente.
Lawrence era um veterano de muitos debates com Holo, que era
um gênio em enganar as pessoas para que revelassem a verdade. Ele
era perfeitamente capaz de lidar com esse tipo de ataque.
No final, ele não se fez de bobo, em vez disso desviou o olhar
momentaneamente. Vangloriar-se agora não iria adiantar nada,
decidiu, já que esta pousada estava ostentando a bandeira da Aliança
Ruvik.
Mesmo se ele fosse capaz de manipular Piasky, era muito mais
provável que fosse visto como um atrevido em vez de um mercador
astuto.
“Na verdade, é um pouco embaraçoso dizer isso abertamente.”
“A maior parte da conversa que está sendo trocada aqui neste
terreno da abadia é muito embaraçosa para ser ouvida. Por favor fale
o que pensa.” Ele era como um padre ouvindo uma confissão.
“Você realmente acha isso?”
“Certamente. Eu também estou pessoalmente bastante
interessado. Não tenho a sensação de que você veio apenas para
testemunhar esse triste estado de coisas. Eu presumiria que você está
aqui para encontrar alguém, mas então você me procurou, não um
monge. Eu sou um comerciante, então não posso deixar de ser tão
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 111 ⊱

curioso quanto um gato. Quando a cortina se mexe, quero espiar por


trás dela.”
Lawrence não conhecia muitas pessoas com quem achava
divertido fazer negócios. De repente, ele desejou que suas negociações
pudessem continuar para sempre, mas este era o momento de atacar.
Ele sentiu uma pontada de arrependimento enquanto fingia um
sorriso e falava. “Eu esperava que pudéssemos ver as relíquias
sagradas.”
A expressão de Piasky mudou instantaneamente. Ele acariciou o
rosto como se tentasse se recuperar de um erro. “Desculpa. Ah... com
licença. Acho que ainda tenho muito a aprender. Certamente não
esperava que essa fosse sua resposta.”
“Você não duvida de mim?”
“Por favor, não me provoque. Este é um ramo da grande Abadia
de Brondel. Se eu ficasse mais surpreso com a ideia de você vir para
ver as relíquias sagradas do que com sua vinda para obter lucro, eu
apenas convidaria a ira de Deus.” Piasky sorriu, olhou para a ponta de
sua pena e pareceu notar que a tinta estava quase secando.
Mergulhou novamente no tinteiro e continuou a escrever. “Eu
realmente imaginei que você viria por outro motivo.”
“Outra razão?”
“Sim. Ah, mas agora entendo. Faz sentido. Você não baixa a
guarda facilmente, Sr. Lawrence. Para você ter se dado ao trabalho de
visitar o Sr. Deutchmann antes de vir para cá, seu objetivo é dar uma
olhada nos registros de ativos que preenchemos?”
Isso foi o que Lawrence discutiu com Holo na pousada do porto.
Se a Aliança Ruvik tivesse vindo para adquirir as terras da abadia,
ele tinha certeza de que eles teriam feito uma investigação completa
dos bens dela.
CAPÍTULO II ⊰ 112 ⊱

É verdade que era algo que ele havia concluído em retrospectiva,


mas não havia necessidade de se humilhar admitindo isso. Então
Lawrence não concordou nem negou, apenas continuou sorrindo.
“Dado quão famosa é a abadia, parecia provável que tivesse muitas
relíquias sagradas. Naturalmente, não gravamos todos, mas… que tipo
de relíquia você está procurando? Talvez eu possa ajudá-lo.”
E aqui estava o ponto crucial. Lawrence decidiu proteger suas
apostas com sua resposta. “Algo ligado à ovelha dourada.”
“A ovelha de ouro…”
Quando um comerciante esperto repetia palavras que acabavam
de ser ditas a ele, era praticamente certo que ele estava pensando sobre
o que ouviu. No tempo que levava para repetir essas palavras, ele pode
considerar uma centena de cenários diferentes.
Mas mesmo ganhando um pouco de tempo, Piasky não disse mais
nada. Em vez disso, ele mostrou o mesmo tipo de sorriso que Col tinha
sempre que Holo o provocava.
Sem dúvida, os comerciantes ao redor que estavam ouvindo
estavam interiormente desapontados com seu desempenho.
“No que diz respeito às relíquias transmitidas pelos santos, sei um
pouco sobre vários desses itens, mas se for a ovelha de ouro…”
“Então, é uma lenda, você está dizendo.”
“Bem, não posso ter tanta certeza”, disse Piasky, olhando para os
mercadores que estavam à mesa.
Os dois pareciam estar jogando cartas. Suas orelhas se levantaram,
mas eles apenas deram de ombros em resposta.
“A história da ovelha dourada circulou pela abadia durante
séculos. Ou em outras palavras…”
“… Isso mostra que em todos esses séculos, nunca foi
encontrado.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 113 ⊱

“Mais ou menos, sim”, disse Piasky. Sua expressão estava cheia de


arrependimento, provavelmente porque ele estava tentando evitar
olhar chocado para Lawrence indo tão longe em uma missão tola.
Não havia necessidade de Lawrence se preocupar em tentar
preservar sua dignidade agora, mas se sua reputação sofresse muito,
isso poderia se tornar um obstáculo para obter mais informações.
Havia uma linha muito tênue entre ser humilde e ser
menosprezado — e, para isso, Lawrence precisava fazer uma correção
de curso.
“Sinceramente, antes de vir para cá, muitas pessoas me disseram
que era uma ideia tola. Mas parece que pessoas como eu não são as
únicas que têm a ideia de perseguir seus sonhos — aqueles que passam
seus dias olhando para os livros às vezes sentem o mesmo. Foi assim
que fui apresentado ao Sr. Deutchmann.”
“…Isso implica?”
“A pessoa que me apresentou ao Sr. Deutchmann deve ter visto o
que eu estava perseguindo e achou interessante. Ele não poderia
perseguir tal história sozinho, então me enviou em seu lugar. Quanto
mais bem estabelecido, mais generoso pode ser com os excêntricos.”
A melhor maneira de mentir com confiança era usar a verdade
como base e deixar muito espaço para a interpretação.
O par de homens jogando cartas atrás de Piasky assentiu, como se
acreditasse na história.
Embora possa ser visto como irracional abandonar a busca pela
vida em troca de perseguir um sonho louco, não era tão raro entre os
homens ricos.
“Então é assim”, disse Piasky calmamente.
“Ah, você está pensando que aprendeu outra maneira de cair nas
boas graças dos ricos.”
“Não, no meu caso, estou falando sério.” O sorriso constrangido
de Piasky era estranhamente reconfortante.
CAPÍTULO II ⊰ 114 ⊱

Lawrence não queria que sua reputação caísse ou subisse muito.


Com isso, ele estava confiante de que havia se estabelecido como um
comerciante inofensivo que simplesmente veio para a cidade com um
objetivo ligeiramente estranho.
Assim, ele se sentiu encorajado a dar um passo à frente.
“Então é por isso que eu gostaria de aprender o máximo possível
sobre a ovelha de ouro. Há alguém na área que saiba mais?”
Qualquer comerciante que ignorasse os caprichos de um homem
rico não era comerciante.
Os mercadores ao redor que estavam ouvindo se reuniram em
volta, sorrindo secretamente com suas taças de vinho.

Lawrence perguntou não pelos ossos do lobo, mas pela ovelha de


ouro, pois sabia que lobos e ovelhas são sempre companheiros.
Se existisse uma relíquia relacionada à ovelha dourada, isso o
levaria a mais conhecimento sobre os ossos do lobo. No mínimo, ele
seria capaz de sentir o cheiro dele.
Ou assim ele pensou, mas acabou aprendendo menos do que
esperava.
Pior, como convinha ao tipo de conversa que acontecia com o
vinho em uma das mãos, quando ele finalmente voltou para o quarto
da pousada à noite, seu pé estava um tanto instável.
Holo estava sentada na cama, arrumando a cauda e, antes que
pudesse sair da frente, Lawrence desabou sobre ela.
Ela se contorceu debaixo de seu braço enquanto Col se apressava
para trazer água.
“Bem, você está em ótimo estado”, disse Holo quando finalmente
se recompôs, levando Lawrence a refletir que ela era a última pessoa
que deveria dizer isso.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 115 ⊱

Ele pegou a tigela de água que Col lhe ofereceu e bebeu, ainda
deitado de lado. Se ele não tivesse dominado esses truques, nunca teria
conseguido sobreviver em quartos de pousada baratos e lotados.
Depois de beber a tigela seca, ele a devolveu a Col.
Se fechasse os olhos agora, adormeceria ali mesmo.
“Então, quanto você foi capaz de aprender?” Holo olhou para
Lawrence com os olhos apertados, puxando sua orelha enquanto ela
perguntava.
Se ele estivesse sóbrio, seria tolerável, mas como ele estava
usando a cauda fofa e quente de Holo como travesseiro, a raiva dela
também era totalmente compreensível.
“Certamente você pode dizer se eu gostei ou não do vinho... não
pode?”
“Sim. Se você alegasse gostar de beber, eu teria mordido suas
orelhas.”
“Se eu soubesse que terminaria assim, eu teria trazido você...
infelizmente, minha senhora, a loba, já havia começado a beber.”
Sua mente encharcada de vinho não podia mais exercer qualquer
tipo de restrição. Ele falou sarcasticamente, apesar de tudo, ganhando
um tapa na cara de Holo.
Honestamente, seria mais difícil coletar informações se Holo
estivesse com ele, e Holo estava bem ciente disso, e foi por isso que
ela não se aventurou a ir junto.
A mão de Holo deu um tapa forte quando atingiu a bochecha de
Lawrence, após o que ela a beliscou levemente. “Algo mais que você
gostaria de dizer, hmm?”
O estímulo foi agradável em seu rosto entorpecido, ele fechou os
olhos e respondeu: “Deixe-me dormir”.
“Idiota. Ainda assim, ao contrário de você, sou alguém que sabe
como mostrar gratidão.”
CAPÍTULO II ⊰ 116 ⊱

Apesar de sua consciência desvanecer rapidamente, ele podia


perceber a sensação de sua bochecha sendo acariciada.
Sua próxima lembrança foi de abrir os olhos não para a penumbra
do crepúsculo, mas para a escuridão da noite.
Ele era incapaz de se sentar na cama. Tinha certeza de que havia
adormecido na posição exata que ocupava quando Holo acariciou sua
bochecha.
Ele não precisou mexer a cabeça para saber que estava doendo.
Fechando os olhos brevemente e lamentando não ter pelo menos
assumido uma posição mais confortável antes de adormecer, ele
lentamente se sentou.
Seu corpo parecia terra seca, e ele estava todo rígido e dolorido.
A única salvação era que ele ainda estava com um cobertor.
Não, não é um cobertor, ele percebeu.
Tendo se sentado, ele notou o pelo de animal marrom escuro
agarrado à sua roupa. Holo o cobriu com a cauda o tempo todo?
Ele escovou o pelo, e o cheiro doce de Holo alcançou seu nariz.
“Ai —”
Ele se endireitou, a mão em seu pescoço torcido pelo sono. Um
fraco feixe de luz passou pelas frestas da porta do quarto, que se abriu
lentamente. Graças ao licor, até a luz da lareira feria seus olhos.
“Você está acordado?”
“…Eu creio que sim.”
“O jantar ainda está quente. Aceita um pouco?”
“…Água.”
No lugar de uma resposta, Holo apenas deu de ombros e então foi
buscar uma jarra.
“Onde está Col?”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 117 ⊱

“No momento, ele está ouvindo uma palestra daquele pastor sobre
como lidar com a neve. Nosso rapaz Col é um bom ouvinte.”
Fracamente iluminado pela luz através da porta, o sorriso ousado
de Holo era bastante assustador. Col era um ouvinte tão bom que
tornava muito fácil tagarelar orgulhosamente sobre todo tipo de coisa,
o que parecia ser ainda pior para Holo do que Lawrence teria
imaginado.
Ela ficou ao lado de Lawrence, recusando-se a sentar enquanto
olhava para ele, o que corroborou sua conclusão.
“Suponho que terei que pedir a alguém para me ensinar as regras
que devo seguir quando você está com raiva de mim.”
“Alguém além de mim?”
“Você quando não está com raiva. Você é uma pessoa diferente
quando perde a paciência.”
“Mm. Afinal, esta é apenas uma forma temporária,” disse a feroz
sábia loba com um sorriso gentil. “Então, e os seus resultados?”
Ambos sabiam perfeitamente que a porta era estreita, então a
conversa deveria ser baixa e sussurrada no ouvido. Não era muito
diferente de uma fofoca, e Lawrence não pôde deixar de sorrir com a
ideia, ainda não totalmente livre da influência do vinho.
Mas a primeira razão para seu sorriso foi esta: embora Holo
quisesse desesperadamente saber os resultados de sua investigação, ela
foi atenciosa o suficiente para não o agarrar imediatamente pela camisa
e exigir respostas quando ele voltou cambaleando.
O sorriso de Lawrence mudou lentamente para um sorriso
conciliador — se ela estava perguntando sobre o que ele conseguiu,
ele só podia admitir que tinha sido muito pouco.
“Não ouvi nada que nos leve à verdade.”
A expressão de Holo mudou.
CAPÍTULO II ⊰ 118 ⊱

Lawrence se perguntou se ela não perdeu a paciência porque sabia


que os mercadores eram criaturas que simplesmente não caíam quando
eram derrubados ou porque ela havia antecipado esse resultado.
“…Então?”
Com a pergunta de Holo, a boca de Lawrence deu a ela sua
resposta de mercador. “Desde que não seja uma operação privada, com
certeza haverá registros de compras e patrimônio. Se o que estamos
procurando está aqui, deve haver vestígios disso.”
A escrita de Piasky nas terras comuns foi um bom sinal. Mesmo
que fosse um item que precisava ser escondido, deveria ter sido
anotado por escrito em algum lugar. O hábito dos comerciantes de
anotar tudo foi o que levou à reversão da sorte em Kerube.
“Hmm...” Holo deu sua aprovação com uma mão no quadril,
olhando fixamente para Lawrence. No momento em que ele desviou
o olhar e olhou para baixo, a pele de sua cauda inchou. “Você achou
que isso funcionaria em mim?”
Mesmo que estivesse sóbrio, Lawrence duvidava que pudesse
resistir ao tom baixo e frio de sua voz. Ele levantou lentamente ambas
as mãos em sinal de rendição, tentando transferir a culpa da resposta
para o vinho.
“Eu admito. Até que possamos provar que os ossos não existem,
posso simplesmente fingir que estou procurando por eles.”
E provar um negativo era essencialmente impossível.
Com suas grandes orelhas de fera, Holo ouviu, fechando os olhos
para prestar mais atenção.
Havia algo que Lawrence tinha a dizer a ela.
“Sinto muito... por fazer você suportar isso.”
Naquele momento, os ombros de Holo congelaram em surpresa.
Ela parecia uma criança que foi pega fazendo algo ruim e, ao ver isso,
Lawrence ficou tão surpreso que acabou sorrindo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 119 ⊱

“Como um mero mercador viajante, tudo o que posso fazer é


tentar reunir informações dessa maneira indireta. Mas você poderia —

Ela certamente poderia provar até mesmo a existência do diabo.
O vinho tinha um jeito de afrouxar as inibições.
Normalmente Lawrence teria falado com mais prudência, mas sua
cabeça febril estava deixando sua boca correr livremente.
Se Holo não tivesse coberto aquela boca com as duas mãos, ele
definitivamente teria continuado a falar.
“…”
Ele havia aberto uma caixa que nunca deveria ter sido aberta, era
o que dizia a expressão de Holo enquanto as mãos dela permaneciam
sobre os lábios dele.
Mas não havia muita força por trás daquelas mãos.
Lawrence ficou parado por um momento, mas como Holo ainda
não havia dito nada, ele pegou as mãos dela e lentamente as retirou.
“Você aprendeu muito em Kerube, não é? Se eu pensasse em
tentar pegar à força algo tão valioso quanto uma relíquia sagrada, seria
ruim. Seria ruim para mim, mas seria pior para você.”
As mãos de Holo eram pequenas, seus dedos finos.
Dado o tamanho de sua verdadeira forma de loba, essa deve ser
uma forma muito inconveniente para ela.
Com aquelas enormes garras e presas, ela poderia facilmente
tomar pela força quase qualquer coisa que desejasse.
“Você mesmo disse isso em Kerube. Suas garras e presas podem
consertar as coisas em um instante.”
Os altos muros da abadia, seus robustos portões com pesadas
correntes trancados com uma fechadura elaboradamente construída,
tudo isso seria destruído, seu conteúdo exposto.
CAPÍTULO II ⊰ 120 ⊱

Os guardas da abadia não representariam nenhum problema. Eles


tinham autoridade para proteger a abadia, mas isso não significava nada
para Holo.
Ela poderia vasculhar a abadia e atingir seu objetivo em um piscar
de olhos.
Mas a razão pela qual ela não fez isso era óbvia.
“Eu posso...” Holo abriu a boca. “Se você quiser ir para longe,
posso levá-lo lá nas minhas costas. Se você deseja algo, posso caçá-lo e
trazê-lo para você. Se os inimigos te atacarem, eu os afastarei e, se
houver algo que deseja proteger, posso ajudá-lo. Mas…”
Ela continuou segurando a mão direita de Lawrence, mas soltou-
o gentilmente, depois o agarrou novamente com suas próprias mãos
pequenas.
“A única vez que posso fazer algo por você é quando está em sua
forma humana.”
Quando Lawrence estava com problemas, ela poderia ajudá-lo,
mas quando ela mesma estava com problemas, seria mais rápido para
ela resolver o problema sozinha.
À primeira vista, parecia uma situação vantajosa para Lawrence,
mas tanto Lawrence quanto Holo sabiam a verdade.
A relação de uma galinha com seu pintinho só funcionava se a
galinha fosse a galinha e o pintinho o pintinho.
Agora que eles tinham uma ideia do paradeiro de Yoitsu, se Holo
apreendesse os ossos de lobo por conta própria, Lawrence não teria
mais nenhum papel a desempenhar.
Holo poderia resolver tudo sozinha. Além disso, fazê-lo seria
muito mais eficaz. Agora que chegara a esse ponto, ela certamente
estava preocupada se Lawrence permaneceria ao seu lado.
Lawrence não podia simplesmente rir e dizer que ela estava se
preocupando demais. Um bom relacionamento comercial só
funcionava quando ambas as partes se beneficiavam e, ao longo dos
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 121 ⊱

séculos passados em Pasloe, Holo já havia experimentado o colapso


que ocorria quando um relacionamento deixava de ser mutuamente
benéfico.
Ele puxou a mão direita — que Holo havia segurado — de volta
para si e então colocou o braço esquerdo em volta da parte inferior das
costas dela. Como ele ainda estava sentado, isso colocou o rosto dele
no peito dela.
Estava longe de ser uma situação na qual ele não tivesse vergonha;
na verdade, foi sua timidez que o impulsionou.
Holo pareceu um pouco surpresa, mas evidentemente entendeu
sua intenção e relaxou seu corpo. Ela então colocou a outra mão na
cabeça dele.
“Desculpe. Seja um pouco mais paciente, certo?”
Lawrence estava errado. Ele tinha que mostrar isso a ela.
“…Mm.” Holo assentiu ligeiramente, o oposto de seu
comportamento normal.
Sua mão pousou sobre a cabeça dele como se fosse um padre
ouvindo a confissão de um crente e perdoando sua fraqueza. Mas de
alguma forma parecia que Holo estava se desculpando.
“Não se desculpe. Se o fizer, todo o meu esforço terá sido em
vão.”
Os peitos modestos de Holo não era exatamente algo em que
alguém pudesse enterrar o rosto, mas talvez fosse o melhor assim, ele
refletiu, quando teve coragem de olhar para ela.
Lawrence olhou para cima e sorriu, e Holo com raiva beliscou sua
bochecha.
Sem dúvida ela estava dizendo a ele para não subestimá-la, embora
ela certamente soubesse que ele havia dito isso deliberadamente para
deixá-la com raiva.
CAPÍTULO II ⊰ 122 ⊱

Depois de continuar segurando suas bochechas por um tempo, ela


finalmente relaxou seu corpo e sua expressão, e deu um sorriso
cansado. “Se descobrirmos que eles são de fato os ossos do meu
companheiro de matilha, minha paciência pode acabar.”
“E isso é bom. Terei um trabalho importante assim que você
mostrar suas presas e fugir.”
Era fácil para ele imaginar a forma congelada de Holo enquanto
ela olhava para os ossos de seu camarada.
“Você certamente é uma pessoa confiante.”
“Como você gosta tanto de dizer, eu sou um homem tolo.”
Sempre que Holo estava realmente feliz, ela abaixava a cabeça e
sorria. Essa era toda a motivação que Lawrence precisava para buscar
a verdade sobre os ossos de lobo.
“Hehe. Se falarmos assim por muito tempo, podem suspeitar que
estamos fazendo algo.”
Lawrence pensou se seria grosseiro perguntar a que algo ela se
referia. Enquanto ele refletia sobre isso, Holo de repente se afastou
dele. Mas então ela apenas sorriu seu sorriso malicioso, como se tivesse
visto através dele.
Não adiantava tentar acompanhá-la.
Ele evidenciou um sorriso desgostoso, e Holo respondeu com um
sorriso largo o suficiente para mostrar suas presas. “Aposto que o jantar
ainda está quente.”
Lawrence cedeu e se levantou. “Eu poderia tomar uma bebida.”
“Sim, boa ideia,” veio a divertida resposta provocativa de Holo.
Ao abrir a fina porta de madeira, Lawrence se considerou sortudo
por ver Col ainda ouvindo atentamente as palestras de Huskins.
m pouco de vinho ainda permanecia na cabeça de
Lawrence, e ele o rolou de um lado para outro para se
certificar de que não cairia.
Sentindo-se como se fosse um mercador patético para ter
ressaca no dia seguinte, Lawrence deu um leve tapa no rosto e disse a
si mesmo que era por dormir pouco.
Em todo caso, ele havia acordado e não tinha tanto tempo para a
tonteira matinal quanto seria necessário para que o fogo bruxuleante
do carvão aumentasse.
Além disso, não era uma pousada ao lado de um movimentado
mercado da cidade, nem uma cabana na montanha sem uma alma por
perto. Uma certa quantidade de barulho era audível do lado de fora —
as vozes de humanos, cães e ovelhas — mas eles apenas enfatizavam a
quietude da sala e formavam uma excelente canção de ninar.
CAPÍTULO III ⊰ 124 ⊱

A lenha crepitante e as cinzas esfareladas eram ainda melhores para


isso.
Lawrence deu um grande bocejo e olhou para cima com os olhos
turvos e viu que a carne que estava secando havia endurecido e
escurecido, e acima de uma fileira de cebolas e alho, ele podia ver o
fermento preservado.
Afinal, podia-se viver sem muito dinheiro. Esta sala era um
modelo para tal vida.
Lawrence atiçou o fogo na lareira, bocejando novamente.
“Bom dia”, disse Col, sem bocejar nem uma única vez no
processo.
As roupas puídas e os cabelos despenteados do menino eram a
própria imagem da pobreza, e seus pulsos e tornozelos finos
denunciavam os muitos jantares que ele havia perdido.
Mas seus olhos brilhantes e inteligentes mostravam que ele não
era um mendigo, mas um estudante errante. Aquele olhar forte e claro
era o único atributo que o diferenciava de qualquer mendigo.
“Hoje está frio de novo, não está?”
“Se estivesse realmente frio, seria quase impossível sair da cama.”
“Então acho que está frio o suficiente para aguentar.”
Havia uma estranha sensação de camaradagem entre aqueles que
confiavam na cauda de Holo para se aquecer. Como a primeira coisa
que fizeram ao se levantar e se reunir ao redor do fogo foi escovar o
próprio pelo, era natural que uma certa afinidade florescesse.
“Holo ainda está dormindo?”
“Ela estava enrolada em uma bola, então acho que não vai acordar
por um tempo.”
Lawrence apenas riu, então deu a Col um pouco de pão e carne
seca e comeu um pouco ele mesmo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 125 ⊱

“Assim que os sinos da igreja da manhã tocarem, iremos visitar a


pousada da aliança.”
“Er... devo acordar a senhorita Holo, então?” Col olhou pensativo
pela janela, sem dúvida calculando o ângulo da luz com o dia do
calendário para estimar a hora.
“Não, não precisa. Se ela ainda não estiver acordada, vamos deixá-
la em paz.”
“... Ela não pode ficar com raiva?”
Enquanto suas palavras eram bem escolhidas e bem pronunciadas,
prova de sua boa educação, ele comia seu pão como um cachorro ou
um gato.
Ele enfiou o pedaço inteiro na boca, sem desperdiçar uma única
migalha, e acabou.
“Ela não vai. Se ela levar a sério o desejo de descobrir se os ossos
estão ou não lá, ela descobriria imediatamente.”
“Huh? Er... você quer dizer...”
Col estava naturalmente ciente da verdadeira forma e poder de
Holo, então ele teria percebido essa possibilidade há muito tempo. Ele
provavelmente se absteve de mencioná-lo por um senso de tato.
Mas depois de ficar momentaneamente surpreso com o
comentário de Lawrence, a expressão que ele mostrou e as palavras
que ele falou em seguida estavam muito além das expectativas.
“Ela deve confiar em nós. Teremos que fazer o nosso melhor”.
Agora foi a vez de Lawrence ser pego de surpresa.
“Uh-er?” Col disse, a surpresa de Lawrence sendo suficiente para
fazê-lo se perguntar se ele havia dito algo estranho.
“Nada”, disse Lawrence com um aceno de mão, enxugando o
próprio rosto com a outra mão, como se tentasse manusear argila.
O menino era incomum.
CAPÍTULO III ⊰ 126 ⊱

“Eu só estava me perguntando se eu era tão inteligente quando


tinha a sua idade.”
“Er... não, eu não quis dizer...”
“Ou talvez eu seja apenas um tolo?” O pensamento veio a ele
espontaneamente, mas o fato era que pessoas naturalmente dotadas
existiam no mundo. O importante era não ter inveja deles, mas
trabalhar para não ficar para trás. “Ah, bem, eu já mostrei a você como
posso ser patético, então é tarde demais para me preocupar com isso.”
Lawrence limpou as migalhas de pão e se levantou.
As coisas eram como eram. O que ele precisava descobrir não era
como mudar suas circunstâncias, mas como se comportar dentro delas.
“Sr. Lawrence.”
“Hum?”
Col se levantou e pegou seu casaco enquanto lançava um olhar de
reprovação a Lawrence. “Não estou nem um pouco confiante de que
algum dia serei capaz de ser como você, Sr. Lawrence.”
Esse provavelmente era o maior elogio que um homem da idade
de Lawrence poderia receber, mas a simples verdade era que
Lawrence ainda era jovem demais para aceitá-lo.
“Isso seria um problema se você fosse meu aprendiz.” Lawrence
bagunçou o cabelo do menino e continuou: “Mas na hora de viajar não
adianta ter duas pessoas iguais. Quando vocês se complementam, esse
é o melhor tipo de companheiro de viagem para se ter.”
Era o tipo de fala que provavelmente faria Holo sorrir
ironicamente debaixo das cobertas, se ela estivesse acordada. Mas o
rosto de Col se iluminou como se ele tivesse recebido as sagradas
escrituras e assentiu energicamente.
“Farei o meu melhor!”
“Estou contando com isso”, disse Lawrence, e nesse momento o
som do sino da manhã entrou pela janela.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 127 ⊱

Os dois se viraram na direção do som e, após ouvirem


atentamente, agiram.
Lawrence podia ver por que Holo gostava tanto de Col. Vendo
que para ele tinha um efeito calmante.
Lá fora estava tão claro que machucava os olhos.

“A primeira coisa a fazer é dar uma olhada na lista de relíquias


sagradas. Se foi acidentalmente listado lá, estaremos com sorte.”
“Então, vou interpretar um estudante em peregrinação?”
“E se alguém perguntar, conte-lhes sobre seu interesse na
administração da igreja. Você aprendeu alguma coisa sobre isso na
escola?”
Sob o beiral do dormitório deserto dos pastores, Lawrence fez a
pergunta a Col enquanto o menino envolvia as pernas em um pano. As
bandagens serviam para manter os pés aquecidos, apesar de ainda usar
sandálias de palha.
“Não nos ensinaram nada sobre dinheiro.”
“Entendo. Perfeito, então.”
Col segurou seus embrulhos e pareceu surpreso por um
momento, então sorriu. “Eu não aprendi nada, então se puder me
ensinar, senhor...”
“Um desempenho excelente.” Lawrence deu um tapinha na cabeça
de Col e começou a andar.
O céu estava claro e limpo, e o chão estava coberto por uma neve
tão prateada que refletia dolorosamente a luz do sol.
Os mercadores que se desviavam pelas montanhas nevadas no
inverno para ganhar alguma vantagem sobre a concorrência emergiam
bronzeados; Lawrence agora entendia por quê.
CAPÍTULO III ⊰ 128 ⊱
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 129 ⊱

Col foi logo atrás de Lawrence e estreitou os olhos com a


claridade. “Espero que possamos encontrar o que estamos procurando
nas listas.”
“Esse é o seu trabalho”, disse Lawrence, o que surpreendeu Col
por um momento.
“Huh?!” ele respondeu com grande espanto.
“Seu conhecimento da Igreja é muito maior do que o meu. Os
santos padroeiros dos pastores, os santos que outrora foram deuses
pagãos, as estranhas superstições que cercam os lobos e as ovelhas. Só
você pode diferenciá-los um do outro.”
Os modos encantadores de Col não eram a única coisa que Holo
gostava nele. Ela também respeitava sua vontade inabalável.
“…Entendido.” Apesar de sua surpresa, Col assentiu
solenemente.
Lawrence assumiu o tom de um professor. “Estou contando com
você.” Então, estufando o peito para fora, ele abriu a porta da pousada
da Aliança Ruvik.
“Hum? Bem-vindo. Foi um bom momento que tivemos ontem à
noite.”
Abrindo a porta, já havia vários comerciantes ali, conversando à
toa durante a refeição. Um deles falou, com um jarro na mão,
enquanto Lawrence abria a porta.
Ele imaginou se eles começaram a beber pela manhã, mas tal
atividade não era incomum quando alguém era retido em uma pousada
por causa da neve.
“Bom dia. Eu só queria encontrar Piasky e agradecê-lo pelo
banquete de ontem à noite.”
“Se você está procurando por Lag, ele está no santuário. Tomando
parte de uma negociação regular. Ele é um comerciante e tanto para
alguém tão jovem.”
CAPÍTULO III ⊰ 130 ⊱

Considerando o tom do homem, ficou claro que Piasky não era


um mero mensageiro. Era possível que, uma vez que a Aliança Ruvik
obtivesse as terras da abadia, eles planejassem imigrar e estabelecer
uma cidade ou mercado lá. Parecia improvável que alguém com o
trabalho incomum de ajudar os colonos fosse relegado a um mero
mensageiro.
“No santuário? Muito obrigado.”
“Claro. Vamos beber de novo algum dia. Traga seu mestre desta
vez, hein?”
O homem estava se referindo ao “mestre” fictício que Lawrence
havia inventado durante sua coleta de informações.
Foi um pouco grosseiro da parte do homem dizer isso, mas se ele
estava disposto a expor sua motivação, Lawrence poderia responder
sem se preocupar.
Na verdade, era sempre pior ser suspeito do que ter os seus planos
plenamente conhecidos, pois a dúvida e a imaginação podiam dar
origem a especulações que excediam qualquer realidade.
“Eles não deveriam estar realizando uma oração no santuário
agora?” Col perguntou enquanto deixavam a estalagem para trás.
“Duvido que a abadia seja capaz de recusar. A posição deles parece
mais fraca do que eu imaginava.”
Iluminada pela neve e pelo céu, a igreja brilhava como uma bela
joia brilhante e polida. Mas os que ofereciam suas orações e louvores a
Deus não estavam dentro do santuário, mas fora dele, o que provava o
quanto a própria autoridade da Igreja estava sendo pisoteada.
Do lado de fora das portas bem fechadas estava um grupo de
mercadores devotos em oração.
No momento em que Lawrence se perguntava o que fazer, as
portas do santuário se abriram. Surgiu uma procissão liderada pelos
mercadores de alto escalão e seus atendentes, seguidos por
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 131 ⊱

comerciantes de aparência experiente carregando pergaminhos e


maços de papel.
Piasky estava à frente desse segundo grupo. Ele notou Lawrence
parado na beira da estrada e saiu da procissão para cumprimentá-lo.
“Bom dia, Sr. Lawrence. Você se recuperou da noite passada?”
“Minha companheira gosta de bebedeira, então eu tomei um belo
puxão de orelha.”
“Ha-ha. Bem, traga-a da próxima vez, certo?”
Enquanto trocavam cumprimentos casuais, Lawrence avaliou
brevemente a posição de Piasky. Ele não parecia estar em uma posição
particularmente inferior.
“Sr. Piasky, você tem um momento?”
A convite de Lawrence, Piasky acenou para seus companheiros e
respondeu: “Se for breve, sim”.
O que surpreendeu Lawrence não foi o fato de Piasky estar
disposto a poupá-lo algum tempo — ao contrário, pelas palavras e
postura de Piasky, parecia que ele sentia que estava fazendo um
pequeno favor a Lawrence.
Nesse caso, ele esperaria que fosse devolvido.
Lawrence exibiu seu melhor sorriso de mercador. “Muito
obrigada. Então, para onde podemos ir?”
“Eu tenho trabalho a fazer, então talvez a biblioteca?”
“A biblioteca?”
“Ah, desculpe. É aquele prédio ali. Há um estudioso de teologia
que atua como uma espécie de escriturário no primeiro andar. Apenas
dê a ele meu nome.” Piasky indicou um prédio de pedra aninhado atrás
de outro prédio na rua.
Suas janelas tinham persianas de madeira em vez de vidro, e não
davam a impressão de serem muito usadas.
CAPÍTULO III ⊰ 132 ⊱

“Eu tenho que fazer um relatório, então se me der um pouco de


tempo…”
“Entendido. Vejo você na biblioteca.”
Depois que os dois homens se desculparam, Piasky dirigiu-se à
estalagem.
Não demorou muito para que uma figura familiar se aproximasse
lentamente de Lawrence e Col — era Holo.
“Eu ouso dizer que irei também,” veio sua voz suave sob o capuz.
As marcas do sono ainda estavam claras em seu rosto, então
Lawrence acabou imaginando se ela estava pensando se deveria ou não
acompanhá-lo em seus sonhos.
Claro, nem Lawrence nem Col citaram esse fato.
Eles simplesmente assentiram.
Meia hora depois, eles se dirigiram para o prédio que Piasky havia
indicado, onde de fato foram recebidos por um homem barbado e de
rosto severo, que parecia ser um estudioso da Igreja e, assim que ouviu
o nome de Piasky, conduziu-os à biblioteca.

Como seria de esperar, o local estava cheio de todos os tipos de


documentos.
Mas, estranhamente, a maioria deles parecia ser de pouca
utilidade para os comerciantes. Havia mapas, contornos toscos de
cidades, listas de guildas artesanais e até árvores genealógicas de casas
nobres.
Piasky parecia ter recebido um escritório aqui, para o qual
Lawrence e seus companheiros foram conduzidos, passando por uma
sala de documentos deserta.
Quando a porta de seu escritório foi aberta, parecia igual ao resto
da biblioteca.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 133 ⊱

“Minhas desculpas por interrompê-lo enquanto você está tão


ocupado.”
“De jeito nenhum. Afinal, meus camaradas foram tão grosseiros
ontem à noite... não que isso seja um pedido de desculpas.”
Talvez isso explicasse por que Piasky parecia estar fazendo um
favor a Lawrence.
“De jeito nenhum. Aprendi todo tipo de coisas úteis, então devo
agradecer a você. É claro...” — Lawrence continuou brincando —
“isso torna mais difícil para mim te pedir outro favor.”
Os livros de registros sempre seriam ajustados para que o saldo
chegasse a zero.
No entanto, também era verdade que uma pequena perda poderia
se tornar um grande ganho.
“Ha-ha-ha. Bem, se for um favor difícil, posso ter que pedir algum
retorno. O que poderia ser, me pergunto? Se for algo que eu possa
arranjar facilmente, apenas diga.”
“Honestamente, é sobre o que você estava falando ontem à noite.
Eu esperava que pudesse providenciar para que eu desse uma olhada
na lista de relíquias sagradas da Abadia de Brondel.”
“Oh aquilo? Eu tinha certeza que seria outra coisa. Bem, eu não
estava mentindo... olhe” — disse Piasky, pegando uma pilha de
pergaminhos de cima das outras pilhas em sua mesa e entregando-a a
Lawrence.
Ali estava de fato escrita uma lista de relíquias sagradas.
“Achei que poderia querer dar uma olhada, então preparei para
você.”
Lawrence folheou algumas páginas e ergueu os olhos com
gratidão. “Meus profundos agradecimentos a você. Se alguém como eu
batesse nas portas da abadia, tenho certeza de que seria rejeitado
imediatamente.”
CAPÍTULO III ⊰ 134 ⊱

“De jeito nenhum. Tenho certeza de que você adivinhou, dada a


facilidade com que entreguei a você, mas não há nada de útil nisso.
Quase tudo o que está escrito nele é inútil. Você vai sorrir ao vê-lo,
tenho certeza”, disse Piasky, como se estivesse recomendando um
vinho particularmente saboroso.
Quando Lawrence começou a examinar o pergaminho, ele
entendeu que Piasky estava certo. Mesmo sem saber seu valor exato
de mercado, cada entrada na longa lista de itens era uma relíquia
famosa que custaria uma quantia realmente inacreditável para ser
comprada.
Mas relíquias famosas não eram necessariamente famosas por suas
propriedades milagrosas.
Às vezes, elas eram famosos porque você podia ver versões delas
por todo o interior.
“Acho que a maioria delas foi comprada como parte de subornos.
Eram comprados de nobres ou da realeza, apesar de serem falsificações
óbvias, como forma de dar dinheiro sem perder reputação. O laço que
Santa Emela usou para se enforcar quando foi martirizada é um
exemplo perfeito. Se você amarrasse todas as cordas que deveriam ser
o laço dela, dizem que seria muito longo para impedir que seus pés
tocassem o chão, mesmo que ela encontrasse a árvore mais alta do
mundo.”
Havia também o suposto olho direito de um grande sábio que dizia
ser capaz de ver o futuro — e Lawrence conhecia quatro igrejas que
diziam abrigar esse poderoso olho.
Não era mais raro do que encontrar um artesão que afirmava fazer
lanças que poderiam perfurar qualquer armadura com uma loja ao lado
de um armeiro que afirmava que sua armadura poderia desviar
qualquer lâmina.
Essas coisas eram comuns em todo o mundo.
“Mas você pode não encontrar o que procura lá, Sr. Lawrence. A
ovelha dourada é uma lenda e não deixou nem um único artefato
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 135 ⊱

concreto para trás. No que diz respeito aos contos, há a história do


soldado que tentou arrancar um pedaço de sua lã dourada, mas…”
“Não, perseguir o que estamos procurando é como tentar pegar
uma nuvem. Mas enquanto uma nuvem pode ser impossível de pegar,
sua presença no céu ainda é um fato. Por isso —”
“— Você está procurando a evidência.”
“Precisamente. Se houver um santo padroeiro reverenciado por
pastores ou algo relacionado a eles, pode servir como prova de que a
abadia está ciente da ovelha de ouro. Assim, a ovelha de ouro poderia
existir.”
Lawrence sabia que o raciocínio era um tanto forçado, mas
ocasionalmente tais pronunciamentos eram necessários para persuadir
um cliente. Piasky, cujo trabalho era levar os colonos a uma terra
prometida fictícia que era pouco mais que um simples deserto, parecia
familiarizado com o conceito.
Ele assentiu significativamente e então deu um sorriso irônico.
“Ainda assim, como você disse, parece haver pouco a aprender
aqui.”
Lawrence examinou a lista rapidamente e depois a entregou a Col
e Holo. Ambos esperaram pacientemente, pois estavam bem cientes
dos papéis que estavam ali.
Piasky olhou para eles e depois falou com Lawrence. “Sinto muito
que não tenha sido útil para você... embora eu suponha que seja
estranho para mim estar me desculpando.”
Lawrence não pôde deixar de rir da piada de Piasky.
“Examinamos essa lista inúmeras vezes”, continuou Piasky.
“Você pode encontrar os itens listados em qualquer lugar. Alguns
deles poderiam ser vendidos imediatamente por um bom preço, mas...
para ser honesto, tenho meus próprios motivos para mostrar a lista a
você.”
CAPÍTULO III ⊰ 136 ⊱

“Você tem?” perguntou Lawrence, para o qual Piasky sorriu com


pesar.
“Sim. Eu queria saber se há algo lá que esconde um propósito mais
profundo.”
Ao ouvir as palavras de Piasky, Lawrence olhou novamente para
o pergaminho que seus dois companheiros examinavam
cuidadosamente. Parecia ser nada mais do que uma lista dos tipos de
bugigangas que qualquer abadia ou igreja rica conteria. Ele não sentia
nenhum significado particular para nenhum deles, nem nenhuma
conexão especial.
Parecia nada mais do que uma espiada em como as pessoas ricas
desperdiçavam seu dinheiro.
No entanto, ele entendeu o que Piasky quis dizer.
Piasky queria saber se algum dos itens havia sido comprado não
apenas por orgulho, mas por um verdadeiro senso de propósito ou
crença.
Seu motivo para fazer isso não era difícil de entender. A abadia
estava recusando firmemente os esforços da Aliança Ruvik, então
Piasky estava procurando uma chance de quebrar essa resistência.
Compreender o desejo do oponente era a chave para a negociação.
“Mais cedo eu estava no santuário, conduzindo uma negociação
padrão. A solidariedade da abadia foi admirável como sempre —
mesmo com suas finanças apertadas e eles implorando aos mercadores
por fundos para realizar o festival de ação de graças da primavera.”
“Suas finanças são tão ruins?”
Em resposta à pergunta de Lawrence, Piasky assentiu e suspirou.
“Despesas diárias, manutenção do prédio, velas para oração,
pergaminhos para cópia de manuscritos, papel, compra de livros,
pagamento de pastores, alimentação de gado durante o inverno… e
isso é apenas o básico. Além disso, como são uma abadia importante,
há o custo exorbitante das reuniões dos bispos que devem realizar a
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 137 ⊱

cada período, os custos de receber convidados importantes, a


manutenção de sua abadia secundária e o enorme tributo que devem
ao papa no sul. Além do mais, o rei os vê como uma fonte conveniente
de dinheiro em troca de ignorar seu poder e influência. Diante de tudo
isso, sua queda não pode estar longe.”
Mesmo uma abadia não poderia se separar completamente do
mundo exterior, e essas conexões significavam que era impossível
evitar acomodar-se aos costumes do mundo.
E a situação era pior do que Lawrence imaginara.
“Eles acumularam uma enorme fortuna graças às vendas de lã,
então têm muitos homens capazes de calcular suas finanças. E tenho
certeza de que alguns deles gostariam de chegar a um compromisso
realista. Mas mesmo assim, o conselho permanece unido em sua
rejeição às ofertas da aliança.”
“E você acredita que a solidariedade se deve a alguma convicção
peculiar?”
Sem algum tipo de apoio, eles não seriam capazes de continuar
resistindo — especialmente se seu grupo tivesse mais de uma opinião.
Se tivessem se unido em defesa da glória de Deus, Lawrence duvidava
que Piasky tivesse expressado tais dúvidas.
Embora tivesse homens que amavam o dinheiro, a abadia também
tinha aqueles cujas orações eram genuínas. E, no entanto, obter uma
decisão estava se mostrando impossível, para grande frustração da
aliança.
“Investimento pesado em uma relíquia sagrada se encaixaria nas
circunstâncias. Os devotos entre eles o aceitariam e, se pudesse ser
transformado em lucro, seria o suporte perfeito durante este período
difícil. Então, se pudermos simplesmente encontrar no que eles estão
agarrados e tirar isso deles, acredito que vão desmoronar.”
Era uma estratégia muito direta.
CAPÍTULO III ⊰ 138 ⊱

Mas quando Lawrence olhou para Holo e Col, ele viu um


vislumbre de uma ideia no fundo dos olhos da dupla, apesar de
parecerem não encontrar nada de interessante no pergaminho.
A história dos ossos do lobo — se fosse mais do que um simples
conto passado durante as conversas de bêbados em uma taverna, se
encaixaria perfeitamente na teoria de Piasky.
“Acredito que é uma boa teoria… e a ideia de que com tantas
falsificações no mundo, não serviria como um bom disfarce colocar sua
fé em uma relíquia.”
“De fato... você está certo.”
Lawrence não disse nada sobre os ossos de lobo porque, dadas as
circunstâncias, isso apenas enfraqueceria sua posição. Seu oponente era
a Aliança Ruvik, a cujo poder a cidade portuária de Kerube
dificilmente poderia se comparar.
Se ele escorregasse e se envolvesse com eles, dificilmente
escaparia ileso.
Col e Holo também pareciam entender isso.
Ele olhou para o pergaminho novamente.
“Para dizer a verdade, depois de sua visita ontem à noite, Sr.
Lawrence, fiquei tão empolgado que mal consegui dormir.” Sentado
em sua cadeira, Piasky deu um sorriso autodepreciativo. Era como se
ele finalmente mostrasse a exaustão que vinha escondendo o tempo
todo.
As palavras de Piasky momentos antes — “Olhamos essa lista
inúmeras vezes” — vieram à mente de Lawrence, embora desta vez
com um significado ligeiramente diferente. Ele imaginou Piasky
acordado tarde da noite, debruçado sobre os parágrafos à luz de velas.
“Qualquer pista que desvende esse impasse seria mais preciosa do
que qualquer evangelho para nós. Não consigo descrever para você a
sensação de futilidade que senti depois de verificar aquele pergaminho
repetidas vezes. E, no entanto, pensei que talvez... talvez você ou seus
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 139 ⊱

companheiros pudessem ajudar. Daí minha motivação em mostrá-lo a


você.”
“Sinto muito por não podermos ser úteis.”
Piasky e Lawrence riram dessas palavras.
Um padeiro pode vender pão no balcão de sua loja desde seu
nascimento até a morte, mas os comerciantes passam a vida oscilando
entre os extremos da esperança e da decepção — mas os destemidos
sempre tendem à esperança.
Mas algo incomodou Lawrence, então ele perguntou. “Esta é uma
pergunta bastante grosseira, mas…”
“Sim?”
“Se a aliança for realmente capaz de comprar as terras da abadia,
será tão lucrativo?”
A Aliança Ruvik não foi formada para perseguir os poucos lucros
de uma empresa comercial de uma pequena cidade.
Eles comandavam navios mercantes e navios de guerra, e se uma
cidade impunha tarifas para proteger seus próprios mercadores, a
aliança poderia usar a força das armas para abrir os portões daquela
cidade.
Lawrence tinha ouvido falar de muitas transações realizadas pela
aliança, cada uma tão grande que nos fazia pensar se realmente poderia
haver tanto dinheiro no mundo.
O fato de tantos mercadores virem para cá ligados a tal aliança
significava que o lucro potencial deveria ser vasto. E, no entanto, era
impossível para um mercador viajante como Lawrence imaginar
concretamente tal lucro.
Como isso seria possível?
Piasky sorriu um pouco timidamente e coçou o nariz com o dedo.
“Eu mesmo não consigo imaginar o valor exato. Mas uma coisa posso
dizer, beneficiaria muitas, muitas pessoas.”
CAPÍTULO III ⊰ 140 ⊱

Incapaz de imaginar, Lawrence repetiu as palavras de Piasky.


“Muitas pessoas?”
Era verdade que a aliança continha muitas pessoas, então isso era
verdade até certo ponto, mas ainda parecia uma estranha escolha de
palavras.
“De fato. Presumo que você esteja ciente da ideia geral do que
estamos tentando fazer aqui, certo?”
“Você está tentando comprar as terras da abadia, então usar isso
para atrair a nobreza, permitindo que participe da política do reino.”
“Exatamente. No entanto, se simplesmente entregássemos a terra
comprada à nobreza, eles apenas a desperdiçariam — em
extravagâncias diárias ou em generosas doações a igrejas ou abadias,
seja para aparências ou por senso de piedade. Ou, a longo prazo, iriam
simplesmente dividir em pedaços cada vez menores ao longo das
gerações até que caíssem em ruínas. Nem eles nem nós lucramos
assim. Então, para evitar isso, pessoas como eu foram convocadas.”
Piasky falou em um tom uniforme e paciente. Não era porque ele
estava acostumado a falar sobre isso, nem porque estava acostumado a
dar explicações, nem mesmo por suas inclinações naturais.
Era uma confiança simples — a calma singular que surge quando
alguém se orgulha de seu trabalho.
Holo notou isso e olhou para cima.
Lawrence finalmente entendeu por que estava obcecado por
Piasky. Ele tinha a firmeza de um mestre artesão incomparável, e
Lawrence não podia deixar de se sentir nervoso perto dele.
“Planejamos tomar posse da abadia, comprando suas terras não
utilizadas e permitindo que as pessoas imigrem para lá. Vamos criar
aldeias e cidades”.
Lawrence considerou as pilhas de documentos no escritório de
Piasky e na sala adjacente. Este lugar era essencialmente um ateliê para
pessoas como ele.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 141 ⊱

“Desde que a abadia deixou a terra em repouso, a maior parte da


nobreza não foi capaz de gerar ganhos adequados ou mesmo fornecer
aos agricultores terras suficientes para viver. No continente, a guerra,
a fome ou as inundações expulsaram inúmeras pessoas de suas casas.
Sem trabalho ou dinheiro, eles não têm escolha a não ser mendigar ou
roubar. Quanto mais pessoas assim tiverem, maior será a ameaça à
estabilidade.”
“Portanto, sua aliança vai levar essas pessoas a uma nova terra,
dando-lhes um lugar para viver e trabalhar, ao mesmo tempo em que
coloca em dívida com você os proprietários cujas propriedades estão
infestadas de vagabundos.”
“Sim. Vai melhorar a situação para ambos os lados. E não se trata
apenas de dinheiro. Pode parecer arrogante da minha parte dizer isso,
mas quando você experimenta dar um novo lar para alguém que
perdeu o dele…”
Falsidade e caridade estavam a um fio de cabelo de distância. O
sorriso de quem compreendia essa verdade era agradavelmente
irônico.
“…Você não consegue parar. É o suficiente para fazer você se
debruçar sobre um pergaminho, procurando a menor dica ou pista.”
A mão de Holo parou e ela ouviu atentamente Piasky.
Lawrence dificilmente poderia culpá-la.
Holo alegou não se importar com o trabalho de Piasky, mas se ela
fosse realmente tão cega, então todos os seus lamentos ao longo de
suas viagens eram mentiras.
Sob o pergaminho, Col agarrou a mão de Holo com firmeza.
“Alguns imigrantes foram expulsos de suas casas quando os piratas
arrasaram sua aldeia. Separados de suas famílias, eles pensaram que
nunca mais veriam seus entes queridos — mas ao saber da imigração,
eles viajam para a nova aldeia e se reencontram. É por isso que não
posso parar. Essas coisas acontecem.”
CAPÍTULO III ⊰ 142 ⊱

Na verdade, isso acontecia regularmente e não era nada incomum.


Em suas viagens, Lawrence era frequentemente questionado por
pessoas nas cidades se ele tinha visto fulano de tal ou se essa ou aquela
vila ainda existia depois de uma guerra na área. Às vezes, ele até
encontrava ex-escravos que haviam sido levados de suas terras
distantes antes de finalmente economizarem dinheiro suficiente para
comprar sua liberdade. Quando pediram notícias de sua cidade natal,
era tão longe que Lawrence mal podia acreditar.
E essas histórias não se limitavam aos humanos.
Holo também era um desses andarilhos; naquele momento, seu
rosto parecia uma estátua, e se Lawrence tivesse tocado sua bochecha,
ele tinha certeza de que as lágrimas teriam corrido livremente.
“Como envolve tantas pessoas, naturalmente há lucro a ser
obtido. Qualquer pessoa afiliada à aliança é bem tratada quando chega
às cidades fundadas pela mesma. Mas não é só isso. Qualquer pessoa
que tenha viajado para fazer negócios é especialmente sensível à palavra
terra natal. Há uma razão sentimental pela qual perseguimos tão
obstinadamente a abadia. Se fosse apenas por nós mesmos, dificilmente
poderíamos perseverar tão poderosamente. É porque queremos ajudar
os outros.”
Essas últimas palavras soaram quase dolorosamente verdadeiras
para Lawrence.
Foi por causa de Holo que ele conseguiu chegar tão longe.
“Ha-ha-eu te entediei com minha tagarelice.”
“De jeito nenhum”, disse Lawrence em resposta ao sorriso
autodepreciativo de Piasky. “De jeito nenhum. Eu entendo. Eu sou do
mesmo jeito.”
No instante em que Lawrence disse isso, Piasky pareceu entender
por que ele estava viajando com aquele pequeno trio estranho. Piasky
olhou para Holo e Col por sua vez, os quais sorriram timidamente de
volta.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 143 ⊱

Piasky assentiu, falando devagar. “Se você não se importa que eu


pergunte, posso saber sobre sua terra natal?”
“Ambos são do norte. Do continente. Mas de lugares diferentes.”
Piasky não arregalou os olhos em surpresa nem fez qualquer
expressão de simpatia. Em vez disso, ele fez uma pergunta sincera, de
um mercador para outro.
“Então você está atrás dos tesouros de sua casa?”
Com a guerra vinha a pilhagem, e a repressão da Igreja. Com os
pagãos não era diferente de qualquer outra guerra. Não era pequeno o
número de itens pagãos que, uma vez levados, passaram a ser
altamente valorizados como relíquias sagradas. Com efeito, foi devido
à grande probabilidade de recuperar tal pilhagem que a Igreja
continuou a enviar forças para reprimir os pagãos.
“Essencialmente, sim. Eles estão procurando por vestígios de suas
terras natais, e eu preciso de seu conhecimento. É uma espécie de
milagre que eu os tenha encontrado.”
“Entendo... Então, você encontrou um patrono para financiar sua
investigação, e os dois encontraram um guia. O destino certamente é
uma coisa misteriosa.”
“Embora seja difícil saber se devo agradecer aos céus por isso ou
não.”
Piasky forçou um sorriso com a piada, que pelo menos não era
adequada para uma abadia. Esse humor proibido era ainda mais
divertido por ser inapropriado.
“Me desculpe. Mesmo assim... se for esse o caso, não hesitarei em
ajudá-lo. Por favor, sinta-se à vontade para perguntar qualquer coisa.”
“Nos mostrar o que você tem já é mais do que suficiente. Mais
uma vez agradeço.”
Piasky não estava sendo tão complacente simplesmente porque
era um excelente mercador. Era porque, Lawrence tinha certeza, ele
era uma pessoa genuinamente gentil.
CAPÍTULO III ⊰ 144 ⊱

“Espero que você encontre o que procura”, disse Piasky, como se


não pudesse deixar de desejar boa sorte.
Ficou claro para Lawrence que Piasky tinha seu emprego atual não
por amor ao lucro, nem mesmo pelo desejo de ser agradecido pelos
outros.
Embora lhe custasse admitir, Lawrence não era páreo para o
homem. E ele notou que Holo percebeu isso no momento em que o
conheceu.
E se ela o tivesse conhecido primeiro?
Lawrence não confiava o suficiente em si mesmo para descartar a
ideia.
Houve uma batida na porta e, quando Piasky abriu, parecia ser um
mensageiro da aliança. Embora Lawrence não pretendesse ouvir, a
conversa chegou a seus ouvidos mesmo assim — parecia que Piasky
estava sendo convocado.
Piasky deu ao mensageiro sua resposta e então se virou.
“Você vai ter que me desculpar. Parece que estou sendo
chamado.”
No que diz respeito às negociações da aliança com a abadia, este
edifício era o ponto mais importante. Lawrence e seus companheiros
dificilmente poderiam permanecer ali sem Piasky para acompanhá-los.
Lawrence cuidadosamente pegou o pergaminho de Holo e Col e
depois o devolveu a Piasky com uma reverência. “Você tem sido uma
grande ajuda para nós.”
“De jeito nenhum. Isso é o mínimo que posso fazer, e ficarei feliz
em fazê-lo novamente.”
Simplesmente ver seu sorriso inocente valeu a pena.
Lawrence, Holo e Col saíram da sala, seguidos por Piasky, que
trancou a porta. Foi uma sensação estranha, saber que neste local
estavam sendo planejadas as futuras moradias de muita gente. A
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 145 ⊱

expressão vagamente sonhadora de Holo certamente se devia ao


mesmo sentimento.
“Nós vamos indo.” Lawrence e companhia despediram-se de
Piasky, que imediatamente se dirigiu para a pousada com a bandeira
verde enquanto caminhavam na direção oposta.
O tempo estava agradável e, olhando para o céu, era fácil esquecer
que o chão ainda estava coberto de neve.
O trio ficou em silêncio, cada um deles perdido em seus próprios
pensamentos.
Mas pouco antes de Lawrence estar prestes a quebrar o silêncio,
Holo parou no meio do caminho.
“O que está errado?” Lawrence e Col pararam e se viraram depois
de dar mais alguns passos.
Holo olhou para baixo, seu capuz escondendo sua expressão facial.
Estava claro pela curvatura de seus ombros magros que ela não estava
se sentindo bem.
“Vá em frente. Eu gostaria de caminhar um pouco.”
Sua boca parecia sorrir, mas quantas vezes Lawrence desejou que
ela guardasse seus sorrisos apenas para os momentos em que sentisse
felicidade?
Col parecia quase incapaz de se conter para não correr para o lado
dela, mas Lawrence o deteve.
“Apenas tome cuidado para não pegar um resfriado. Ficar doente
aqui vai exigir muita oração.”
“Tolo.” Apesar da resposta concisa, um grande sopro de vapor
branco saiu da boca de Holo. Então, sem mais nem menos, ela deu
meia-volta e foi embora.
Col agarrou seu peito enquanto a observava recuar, então olhou
para Lawrence. Não era como se não conseguisse entender por que ela
estaria agindo dessa maneira.
CAPÍTULO III ⊰ 146 ⊱

Assim como uma imagem vale mais que mil palavras, havia uma
grande diferença entre ouvir que um tipo de trabalho existia e ver ele
de perto. Portanto, o impacto de ouvir que o trabalho de Piasky era a
criação de novas cidades e novos lares e realmente ver o local onde
esse trabalho acontecia era igualmente diferente.
E para começar, Piasky era uma boa pessoa. Ele agia não por amor
ao dinheiro, mas também não era naturalmente altruísta.
No meio de sua caminhada, Holo começou a trotar, então dobrou
uma esquina e desapareceu de vista, o que fez o coração de Lawrence
doer.
Holo pode muito bem estar se perguntando a mesma coisa que
ele... e se ela tivesse conhecido Piasky primeiro.
“Eu deveria ter ido atrás dela?” Lawrence respirou o ar frio e
depois exalou com força.
Embora estivessem no meio da rua, eles não se destacavam,
devido aos muitos outros mercadores que estavam conversando na
área.
Lawrence respirou fundo e começou a andar.
“Não sei o que seria melhor. Mas acho que a senhorita Holo teria
ficado feliz.”
Era uma resposta exemplar, e Lawrence sentiu vontade de dar um
tapinha na cabeça de Col por isso. Mas as respostas exemplares nem
sempre eram corretas.
“Mesmo que minha própria pátria ainda exista?”
Col respirou fundo e se deteve. Lawrence não parou, e Col logo
o alcançou.
“Às vezes, Deus parece nos confortar, embora viva nos céus livre
de envelhecimento ou doença.”
Se Holo era uma gênia da provocação, Col era um especialista em
persuasão. Como seus próprios sentimentos eram inabaláveis, suas
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 147 ⊱

palavras sempre soavam verdadeiras. E, graças aos seus estudos sobre


as leis da Igreja, ele podia facilmente citar as escrituras a seu favor.
Mas Lawrence era um mercador viajante que mentia até para si
mesmo e não podia aceitar um raciocínio tão direto.
“Desculpe. Se há uma coisa que conheço muito bem é a minha
própria falta de coragem. Tenho medo de que, se ficar ao lado dela,
serei rejeitado.”
“Eu duvido disso.”
Lawrence parou e notou que Col era ainda um pouco mais baixo
que Holo. A diferença de altura era suficiente para fazê-lo parecer
imponente para Col, sem dúvida, fosse essa sua intenção ou não.
A expressão de Lawrence era dura, mas não por causa do
atrevimento de Col, nem por causa do frio. Ele começou a andar
novamente e esperou os poucos segundos que levou para o hesitante
Col alcançá-lo antes de falar.
“Mas não é como se eu me importasse tão pouco com ela. Não
acho que ela esteja triste ou solitária, mas imagino que seu coração
esteja um pouco perturbado. Ela sempre se perguntou se sua terra
natal ainda existe ou não — a ideia de criar uma nova nunca lhe
ocorreu. Então, quero acreditar que ela não tem certeza de como
administrar os sentimentos que está tendo agora.”
Eles chegaram ao dormitório dos pastores e Lawrence pôs a mão
na maçaneta da porta. Os dois entraram e ele continuou.
“Eu dificilmente posso estar envolvido em todos os assuntos
referentes a Holo, nem posso esperar resolver todos os problemas que
ela enfrenta. A única coisa que posso fazer é me dedicar a fazer por ela
o que eu puder.”
Como Holo gostaria. Das melhores maneiras que ele conseguia.
Ele acrescentou um pouco de palha ao fogo moribundo da lareira;
que rapidamente ganhou vida, lançando faíscas dançantes.
CAPÍTULO III ⊰ 148 ⊱

“Tenho certeza que você e ela notaram a menção dos ossos de


lobo.”
“…Você quer dizer a pista que o Sr. Piasky está procurando?”
“Sim. Assim como vimos em Kerube, todas as relíquias sagradas
são altamente valorizadas e, dependendo de como são usadas, podem
ajudar a sustentar uma fé — como tentar pegar a ovelha de ouro,
pensando que foi enviada por Deus. Pode-se dizer que é exatamente o
tipo de coisa que Piasky está procurando.”
Se a abadia realmente comprou os ossos, mesmo sabendo que
eram de um deus pagão, era difícil imaginar algo que pudesse provar
mais profundamente a intensidade de sua convicção. Uniria o conselho
da abadia, a salvando como um todo, tanto prática quanto
religiosamente.
Mas era uma verdade irônica que quanto mais inteligente era uma
conclusão, mais fácil era encontrar buracos nela.
Uma mentira era sempre mais difícil de expor quando era simples.
Lawrence absteve-se de dar qualquer informação a Piasky porque
não achava que fosse uma decisão que deveria tomar sozinho.
“Sr. Lawrence, por que... Lá atrás, por que você não...?
Holo provavelmente notou a cautela de Lawrence, e até mesmo
Col provavelmente entendeu a maior parte do motivo. Afinal, ele só
precisava pensar no que aconteceu na cidade portuária de Kerube.
“Porque essa informação seria suficiente para eles tomarem uma
decisão importante. É bastante óbvio o quanto poderíamos ter nos
complicado com eles naquele momento — e a aliança também
dificilmente deseja basear suas ações em boatos de pessoas sobre as
quais nada sabe. Uma vez que eles exigissem garantias de mim, eu
poderia acabar sendo forçado a assumir a responsabilidade por
qualquer falha ou arcar com o peso do ataque caso ocorresse um
confronto direto com a abadia”.
“Está dizendo que não seria capaz de sair ileso?”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 149 ⊱

“Sim. O poder deles é muito grande. Se contarmos a eles o que


sabemos, e eles considerarem relevante, isso acabaria não apenas com
a lista de relíquias sagradas, mas toda a investigação que eles fizeram
sobre os negócios e propriedades da abadia. E se os ossos realmente
existirem, eles certamente encontrarão evidências em breve. Esse é o
tipo de organização com quem estamos lidando. E aqui nas planícies
nevadas, ninguém virá em nosso auxílio.”
Pelo menos em Kerube havia muitas pessoas por perto. Mas aqui,
até mesmo o nome da Companhia de Comércio Rowen era fraco.
“É verdade que podemos correr o risco e escapar nas costas de
Holo se as coisas ficarem perigosas, mas se vamos fazer isso, Holo
poderia muito bem ter mostrado suas presas desde o início. Mas ela
gostaria de evitar isso tanto quanto possível. Além do mais, ela tende
a se preocupar.
“…”
Holo costumava falar com Lawrence de uma maneira complicada
e indireta, raramente explicando seus verdadeiros sentimentos, o que
tornava inevitáveis os mal-entendidos — mas ela parecia ser mais clara
ao falar com Col.
Como Col parecia entender o que Lawrence queria dizer, apesar
de sua explicação concisa, a conjectura do menino provavelmente era
precisa. Não apenas precisa, de fato — dada sua expressão de tristeza,
havia uma boa possibilidade de que ele tivesse ouvido os verdadeiros
sentimentos de Holo.
Se sim, ele provavelmente estava se perguntando como dois
supostos adultos podiam agir de forma tão infantil. Holo certamente
teria rido se uma pergunta tão sincera tivesse sido feita a ela.
Por que simplesmente não ser honesto?
“Enquanto ela quiser, continuarei a correr riscos. É o mínimo que
posso fazer.” Ele fez uma pausa e observou a palha queimando
transformar-se em cinzas, a fumaça subindo preguiçosamente.
CAPÍTULO III ⊰ 150 ⊱

Parecia que ele estava olhando para si mesmo, por mais


pretensiosa que fosse essa ideia.
“Você disse antes que eu ainda poderia servir de conforto para
Holo, mesmo que minha própria terra natal ainda exista.”
“S-sim!”
“Eu ainda acho isso difícil. E se ela me pedir para criar um novo
lar para ela? Isso me colocaria em uma situação complicada. E, no
entanto…”
O canto direito do lábio de Lawrence se curvou contra sua
vontade pela mesma razão que o deixava disposto a correr tantos riscos
por Holo.
“E, no entanto, não suporto vê-la pedir essas coisas a mais
ninguém.”
Ele nunca poderia admitir isso na frente de Holo, mas era a
verdade nua e crua.
O rosto de Col estava congelado sem surpresa. Ele certamente
não queria ouvir uma declaração tão dolorosamente embaraçosa de um
adulto.
Mas Lawrence sentiu uma estranha sensação de alegria e um certo
orgulho, e ele estufou o peito e continuou brincando: “Então, suponho
que terei que encontrar outra maneira de seduzi-la, hein? Algo que a
faça esquecer tudo sobre Piasky e seu trabalho.”
Era uma maneira calculista e egoísta de pensar, mas claramente
tirada de um lugar diferente da sua antiga inclinação de trabalhar
arduamente por cada peça de prata.
Naquela época, nem mesmo se confessar em uma igreja deixava
seu coração limpo. Na verdade, isso só ocorria se fosse parte de seus
cálculos — agora vou ficar bem por um tempo.
Claro, tudo isso era apenas sobre Lawrence, e sua audiência sem
dúvida achava isso insuportável.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 151 ⊱

Mas Col se comportou bem, simplesmente se virando como se


estivesse engolindo seu constrangimento.
“Mas é claro que não posso dizer isso a ela e, honestamente, você
leva a pior, sendo submetido às nossas brigas o tempo todo.”
Com essas palavras, Col finalmente ergueu os olhos e pareceu
prestes a dizer algo. Ele abriu a boca como se fosse falar, mas no final
simplesmente olhou para baixo novamente.
Lawrence achou isso estranho. “Qual é o problema?”
Os ombros de Col se encolheram. Embora ele sempre desse
respostas honestas, desta vez ele simplesmente desviou o olhar. E
então, ele falou com uma voz bem baixinha. “Desculpe.”
“Por quê? Que possível motivo você poderia ter para se
desculpar?”
Algo na lareira cedeu com um pequeno som, e uma nuvem de
cinzas flutuou.
Talvez tenha sido o som de alguma epifania passando pela mente
do menino ou talvez fosse simplesmente o som de seu rosto travando.
Col se encolheu, com uma expressão de extremo remorso no
rosto.
Estava acabado.
Lawrence cobriu o rosto com a mão, os ombros caídos.
Ele agora tinha certeza de que ela tinha ouvido tudo.
Em algum momento durante sua estadia no escritório de Piasky,
Holo deu instruções secretas a Col, e ele cooperou para deixá-la ver
qual seria sua reação quando ela dissesse que queria ficar sozinha.
Cada palavra que ele havia proferido voltou contra ele. Mas, por
causa de seu último resquício de orgulho, ele decidiu não negar.
Ele se levantou e deu um tapinha leve na cabeça do aterrorizado
Col, então passou por ele e foi em direção à porta.
CAPÍTULO III ⊰ 152 ⊱

A madeira fina da porta não era uma grande barreira ao som —


não que fizesse diferença para Holo, que estava parada do outro lado
da porta sem se importar.
“É impressionante que você não pense em mim como uma mulher
honestamente triste, mas sinceramente, foi insuportável ouvir coisas
tão embaraçosas.” Holo sorriu maliciosamente.
Seu sorriso atrevido o fez querer revidar e intimidá-la até que ela
clamasse por misericórdia. Quantas vezes esse rosto ganhava dele?
E Lawrence ficava furioso cada vez que isso acontecia, já que as
piadas de Holo sempre eram construídas para enfatizar sua própria
estupidez.
“Então você não quer me ver suplicar ajuda a outro?” ela disse.
“Você é simplesmente adorável demais para...”
Suas presas brilharam enquanto ela falava, e ela estendeu o dedo
indicador para cutucar Lawrence no peito, mas então...
“…! Nngh…!”
Embora seja verdade que a raiva mantida reprimida finalmente
explodia, neste caso foi mais como um rato encurralado mordendo o
gato que o caçou.
A princípio, Holo ficou surpresa e se encolheu, mas logo
recuperou a compostura e começou a lutar, tentando escapar apesar
de sua óbvia preocupação com a reação de Col.
Mas enquanto ela permanecesse nesta forma, a diferença entre sua
força e a de Lawrence era óbvia.
Algum tempo se passou antes que Lawrence soltasse a mão dela
— e no instante em que ele o fez, Holo respirou fundo e deu um tapa
forte em sua bochecha.
Lawrence cambaleou, pensando que realmente não era páreo para
ela, mas não foi a rapidez de sua mão que o fez pensar assim.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 153 ⊱

Apesar de tê-lo esbofeteado, o rosto de Holo não estava com


raiva. Longe disso, sua expressão era gentil; ela até sorriu levemente.
“Isso nos deixa quites.”
Qual de vocês que armou isso? Se o sorriso dela não fosse genuíno, ele
tinha certeza de que gostaria de fazer essa pergunta. Mas não importa
o quanto quisesse se opor, as palavras não vinham — porque o sorriso
dela era real.
“Isso nos deixa quites.”
“…Sim,” ele respondeu, e com isso Holo deu um aceno de cabeça
satisfeita e passou por ele para dentro do quarto.
“Col, rapaz, por um dever bem executado, você terá sua
recompensa”, disse ela, pressionando sua bochecha contra a bochecha
do atônito Col e acariciando suavemente sua cabeça.
Lawrence viu o rosto de Col ficar vermelho e pensou que ele ainda
era uma criança — mas se ele deixasse o sentimento transparecer em
seu rosto, não havia como dizer que armadilha Holo poderia preparar
para ele.
Ele fechou a porta e voltou para a lareira.
Holo abraçou Col por trás e olhou para o fogo enquanto falava.
“Estou pensando em ir embora hoje ou talvez amanhã.”
“O qu-?” Col exclamou, começando a olhar para trás. Mas como
o rosto de Holo firme, ele pareceu pensar melhor.
Holo sorriu e continuou: “Com vocês dois, é claro. Voltaremos
àquela cidade portuária — Yiku ou o que quer que seja — e
encontraremos uma comida saborosa, beberemos nosso vinho e
dormiremos. Vocês dois devem descansar um pouco, já que levaremos
três dias na neve para voltarmos.”
Col parecia pensar que esta era uma maneira estranha para ela
falar. Seu rosto traiu sua confusão, mas Lawrence não achou isso
estranho.
CAPÍTULO III ⊰ 154 ⊱

Ele tinha mais ou menos antecipado isso, e se era o que Holo


queria fazer, ele não se importava.
“Você vai dormir até o meio-dia graças ao vinho. E quando você
acordar, nós três nos reuniremos e comeremos enquanto discutimos
vagarosamente se devemos ou não atravessar o mar de volta. Afinal…”
Holo tossiu para esconder sua risada, então limpou o canto da
boca antes de continuar, “Se algo tivesse acontecido na noite anterior
em alguma abadia distante — digamos que um ataque de um grande
lobo — você não saberia nada sobre isso. E certamente ninguém
pensaria em conectá-lo a tal evento. Você estaria tendo um dia
tranquilo e pacífico, sem nenhum risco.”
Quando ela terminou de falar, Holo olhou para Lawrence. “O que
acha?” disse a expressão em seu rosto, que parecia prestes a abrir um
sorriso a qualquer momento.
Holo decidiu que não podia deixar Lawrence se colocar em perigo
por ela. No entanto, ela não estava preparada para recuar de mãos
vazias.
Então ela escolheu o método mais prático e fácil — isso era tudo.
“Se é isso que você quer, então eu não me importo. Afinal, eu já
disse isso.”
“Sim. E eu tenho certeza sobre seus sentimentos. Duvidar deles
agora faria de mim uma tola.”
Se o sorriso dela fosse tímido, teria sido encantador, mas o rosto
de Holo estava cheio de malícia, como sempre. Mas claro, era por isso
que ela era Holo.
Uma Holo mansa seria como carne seca sem sal.
“Eu sou Holo, a Sábia Loba de Yoitsu. Quando os humanos me
veem, eles me temem e me servem. Mas se eu mesma tivesse medo,
que tipo de tola eu seria?”
Ela empregaria o poder de sua verdadeira forma. Mas mesmo
quando ela o fazia para proteger aqueles com quem se importava, as
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 155 ⊱

pessoas que ela protegia ainda podiam olhar para ela com medo. Quão
mais temerosos eles poderiam ficar quando ela se transformasse para
realizar seus próprios feitos?
Lawrence certamente entendia os medos de Holo, mas ainda
queria que ela mostrasse alguma fé nele.
“Não podemos sair hoje. Amanhã ou depois de amanhã, talvez.”
“O que você diz, Col, meu rapaz?” Ela perguntou por malícia ou
em um esforço para esconder seu próprio embaraço.
Parecia que Col estava surpreso por ter sua opinião perguntada;
depois que ele superou sua surpresa, ele concordou apressadamente.
“Bem, então, está decidido. Isso significa que você acabará
ouvindo nada que possa beneficiá-lo, embora eu não esteja disposta a
me desculpar por isso” ela falou, apoiando o queixo no ombro de Col,
o que não fez Lawrence sentir vontade de levá-la muito a sério.
Dependendo de como eram usados, os ossos de lobo poderiam
potencialmente trazer grandes lucros a Lawrence, mas o infortúnio
tendia a seguir aqueles que tentavam ganhar mais moedas do que suas
bolsas de moedas podiam conter.
Uma bolsa de moedas era como um estômago — a gula podia
fazê-lo explodir trazendo a morte.
“Se você está arrependido, então por que não tentar um pedido de
desculpas?”
Sua provocação foi retribuída com outra, Holo sorriu. “Então
poderia gentilmente me perdoar, por favor?”
Lawrence riu do absurdo da situação e então suspirou, rendendo-
se à pacífica camaradagem.
Ao mesmo tempo, ele deixou escapar mais algumas palavras.
“Acho que isso não é tão ruim de vez em quando.”
Era uma tarde clara e agradável.
Não havia mais necessidade de fogo na lareira.
viagem de volta pela neve exigiria uma certa preparação.
Era por isso que os mercadores costumavam hospedar-se
em estalagens por semanas durante o inverno. Mesmo a
estrada mais familiar e bem percorrida tornava-se um país
estrangeiro quando nevava. Pior ainda, um local traiçoeiro não parecia
diferente de um campo inofensivo quando coberto de neve.
A viagem no inverno exigia muitas coisas — um guia, um cavalo
robusto que não se incomodasse com a neve profunda, conhecimento
de alojamentos e cabanas para passar a noite. A viagem levava mais
tempo, então as rações de comida e água tinham que ser calculadas
apropriadamente.
Mas, felizmente, enquanto houvesse demanda, haveria oferta. E
não era exagero dizer que o bairro comercial da grande Abadia de
Brondel estava cheio de viajantes até onde a vista alcançava. Lawrence
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 157 ⊱

foi até Piasky para perguntar sobre os serviços do condutor do cavalo


de carga que os havia guiado na chegada.
Piasky estava ocupado com documentos na pousada da aliança e
ficou momentaneamente surpreso com o anúncio de Lawrence de que
eles partiriam. Mas como as viagens de inverno exigiam uma resolução
mais rápida do que as viagens de verão, e como Lawrence o havia
compensado generosamente por seus serviços, Piasky prontamente
concordou em ajudar.
Quando uma busca por conhecimento não dava resultado, era
necessário um rápido recuo. Se alguém tivesse tempo para
desperdiçar, era melhor gastá-lo correndo para o próximo objetivo.
Enquanto os mercadores se cumprimentavam com sorrisos felizes e
apertos de mão, eles se despediam com a mesma felicidade.
Era uma maneira bastante solitária de sobreviver, mas tinha suas
vantagens.
“Isso deve colocar tudo em ordem.”
“Eu aprecio muito sua ajuda.”
“Não se preocupe. Não fiz praticamente nada.”
Eles trocaram gentilezas de mercadores sem sentido, embora não
parecesse certo ignorá-las.
No entanto, o aperto de mão que eles compartilharam em seguida
foi tudo menos sem sentido.
Assim como as qualidades de uma pessoa podiam ser vistas em seu
porte, sua história transparecia em seu aperto de mão.
O momento do aperto de mão era o que decidia quanto tempo o
rosto de uma pessoa permaneceria na memória.
Lawrence pegou a mão de Piasky com firmeza e fixou seu rosto
solidamente em sua mente. Ele esperava que Piasky se lembrasse dele
igualmente bem.
“Acho que poderemos partir amanhã. Embora…”
CAPÍTULO IV ⊰ 158 ⊱

“Embora?”
“Acabou de chegar uma entrega regular da capital do oeste e,
evidentemente, o clima lá está terrível. Um mensageiro que deve
chegar hoje ainda não foi visto. Sem dúvida, esse mesmo clima chegará
aqui em breve.”
Uma nevasca poderia transformar o mundo inteiro literalmente
em branco puro. O cavaleiro mais capaz do mundo não lhes serviria de
nada.
“Naturalmente, não tenho intenção para perseverar diante de uma
nevasca. Há três coisas que você não desafia: a Igreja, uma criança e o
clima.”
Piasky sorriu e assentiu. “Com sorte, vai virar para o norte. E
como os pastores devem voltar logo, vou pedir o conselho deles. Eles
terão o melhor conhecimento das condições externas... Ah, Sr.
Lawrence, você não está hospedado no mesmo alojamento que eles?”
“Estamos. É o melhor lugar para coletar essas informações.”
Lawrence fez uma rápida reverência depois dessa piada e então
deixou a pousada da aliança para trás.
Lá fora, o crepúsculo que se aproximava dava um tom melancólico
ao ar, e o céu estava realmente nublado, com um pouco de vento.
Os mercadores na rua tinham passos rápidos, suas cabeças
ocupadas pela primeira vez com pensamentos de um jantar quente em
vez de dinheiro. De sua parte, Lawrence não tinha apenas sua promessa
de preparar o jantar para Huskins, mas também havia Holo em que
pensar.
“Uma nevasca?”
Depois de jogar os últimos ingredientes na panela, Lawrence
entregou a concha a Col e foi se sentar na cama ao lado de Holo, que
estava alisando a cauda.
“O tempo pode ficar ruim. Se isso acontecer, nossa partida pode
ser adiada. Dois dias, até três…”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 159 ⊱

“Mm... agora que você mencionou isso, pode estar certo. Meu
nariz está dormente por não sentir nada além de ovelha.” Holo fungou
duas vezes e depois espirrou. Uma vez acostumados a viajar, havia até
alguns humanos que podiam prever o tempo com o nariz. “Ah, bem,
acho que é tarde demais para reclamar de alguns dias de atraso, não é?”
Ela sorriu maliciosamente e mastigou a ponta da cauda.
Lawrence ergueu as duas mãos em sua habitual exibição de
rendição.
Holo riu, dando um golpe final em sua cauda antes de cair na
cama. “Então, que tal jantar?”
“Ainda não acabou de ferver. E estamos esperando o retorno de
Huskins.”
Holo escondeu sua cauda fofa sob as vestes com bastante
habilidade, mas ela ainda não havia puxado o capuz sobre a cabeça.
Lawrence a seguiu enquanto ela avançava e, quando ela parou
rudemente para pegar um pedaço de carne seca da panela, ele cobriu
as orelhas dela com o capuz.
“Então, quando ele volta?”
“Logo eu imagino. Não há lua esta noite e faz frio.”
Col estava envolto em uma manta enquanto se sentava junto à
lareira e cuidava da panela, e sempre que alguém falava na sala, sua
respiração se transformava em vapor branco. Do lado de fora das
janelas, o vento estava ficando cada vez mais forte, e o tempo lá fora
parecia estar ficando ruim.
“Mmph... bem, estou com fome.”
“E ele está lá fora cuidando aquele carneiro. Você deveria prestar
algum respeito a ele.”
“Sim, mas quando você me respeitou?”
Foi difícil para Lawrence não responder imediatamente com: “E
quando você cuidou de mim, hmm?”. Mas tudo o que ele pôde fazer para
expressar sua frustração foi um reservado “Honestamente”.
CAPÍTULO IV ⊰ 160 ⊱

Holo sorriu para Col, e o Col, de coração mole, apenas deu um


sorriso desgostoso.
Nesse momento, o olhar de Holo se voltou para a porta e
Lawrence soube que a companhia deles havia chegado. E pela
expressão cautelosa dela, ele também sabia que não era Huskins.
Talvez fosse Piasky? Lawrence se perguntou, assim que houve
uma batida na porta. Col, que estava acostumado a fazer tarefas tão
servis, abriu a porta e lá estava um pastor com sua bengala.
“Ooh, que cheiro adorável. Huskins está hospedando bons
viajantes, de fato.” Ele pareceu reconhecer Col, acariciando a cabeça
do menino antes de pigarrear. “Desculpa. Parece que Huskins vai
passar a noite no celeiro de ovelhas. A neve já começou a cair, entende.
Meus dois companheiros e eu mal conseguimos voltar com vida.”
“Entendo... Lamentamos fazer você vir até aqui.”
“De jeito nenhum. Não há nada mais difícil do que esperar que um
camarada volte, sem saber quando ou se ele virá.”
Vindo de um pastor dessas terras nevadas, essa declaração
carregava um peso especial. Quando a escuridão e a neve caíam do céu,
tudo o que as pessoas podiam fazer era se amontoar em torno de suas
fogueiras, imaginando se seus companheiros estavam vivos ou mortos.
“Ainda mais quando há um saboroso jantar esperando!” disse o
pastor com um sorriso enorme e então levantou a mão. “Isso é tudo!”
ele falou, então foi embora.
Um comerciante teria pedido uma xícara de sopa antes de partir,
mas os pastores não eram criaturas tão gananciosas. Tudo o que eles
contavam nas planícies abertas eram seus cajados e seus cães pastores.
Talvez seu grande orgulho viesse desse espírito independente —
e, de qualquer modo, aquele orgulho deles lembrava muito a
Lawrence uma certa loba. Embora ele tivesse certeza de que, se
dissesse isso a Holo, ele realmente ganharia a ira dela.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 161 ⊱

“Então isso significa que teremos que esperar até pelo menos
depois de amanhã. Esperemos que o porto não congele” disse
Lawrence, fechando a porta e virando-se.
Holo roubou a concha de Col. “Sim. Esperemos que a nossa sopa
fique descongelada também, hein?” Ela parecia bastante satisfeita, visto
que parecia não pensar com muito carinho em Huskins. É claro que
grande parte disso era, sem dúvida, devido à parcela de carne de
Huskins sendo poupada.
“Ainda nem acabou de cozinhar”, disse Lawrence enquanto
colocava um pedaço de lenha nada barato na lareira.

Aquela noite…
Col adormeceu rapidamente, seguido não muito depois por Holo.
Do lado de fora da janela, o vento uivava. A janela de seu quarto
não era a única que batia forte, misturando-se com o ocasional latido
de um cão pastor — talvez eles também estivessem sendo afetados pela
atmosfera desagradável.
A noite anterior a uma nevasca era sempre assim.
Desta vez, porém, havia uma diferença. Normalmente, Lawrence
não conseguia se manter aquecido, não importa quantos cobertores ele
enrolasse em si mesmo, mas desta vez ele estava quase quente demais.
A cauda de Holo estava lá, e nada melhor do que outro corpo
quente para afastar o frio. Por falar nisso, o de Holo era sempre um
pouco mais quente, como a de uma criança, e com vinho ela ficava
ainda mais quente.
Fora dos cobertores fazia um frio quase doloroso, mas dentro
deles era quente como a primavera.
No entanto, havia uma razão pela qual ele não conseguir dormir.
CAPÍTULO IV ⊰ 162 ⊱

O episódio atual estava mostrando claramente que ele não poderia


esperar resolver todos os problemas de Holo. E o que o assombrava
ainda mais era a questão do que fazer a seguir.
Se Holo mostrasse suas presas e resolvesse a questão dos ossos de
lobo, este capítulo chegaria ao fim, não importando o resultado.
Se eles existissem, a história estaria acabada, mas poderia terminar
mesmo que não existissem. Lawrence não conseguia imaginar nenhum
monge capaz de mentir enquanto sua cabeça estava entre as mandíbulas
de Holo em sua verdadeira forma.
Se a resposta fosse que a abadia não havia comprado os ossos ou já
os havia revendido, eles continuariam a persegui-los?
E se os ossos tivessem ido para o sul? Viajar para lá era possível,
mas, além da despesa, significaria jogar fora todos os negócios que
havia construído ao longo de sua rota comercial. E se demorasse
muito, seus clientes não conseguiriam receber os produtos com os
quais contavam, e a confiança que ele havia trabalhado tanto para
cultivar desapareceria.
Havia um limite para os desvios que Lawrence podia permitir.
Embora ele pudesse querer considerar suas viagens dramáticas e
cheias de aventura com Holo, assim como a abadia era incapaz de
escapar de seus problemas financeiros, Lawrence também tinha que
ganhar a vida.
A verdade simples e óbvia era que ele só a acompanharia enquanto
pudesse.
Holo certamente entendia isso, mas assim que Lawrence
começava a considerar simplesmente ir direto para Yoitsu, o sono
tranquilo tornava-se nada mais do que uma memória.
Se eles fossem para Yoitsu, por quanto tempo ele seria capaz de
ficar com Holo?
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 163 ⊱

E o maior problema era o que aconteceria quando eles chegassem


lá. Os problemas que vinham adiando estavam se expandindo agora,
como fermento no pão.
O que Holo pensava disso? Pelo menos agora ele sabia que ela o
considerava com algum carinho.
Mas ela não era uma criança, e o mundo não iria simplesmente
acomodar suas preferências. Eles teriam que estar preparados.
Holo era a Sábia Loba de Yoitsu, e ele era um simples mercador
viajante. Um relacionamento que cruzava classes sociais já era motivo
de preocupação suficiente, e isso quando era entre dois humanos.
Então, quão preparados eles precisariam estar?
Holo estava deitada ao lado dele; ele alisou o cabelo castanho e
colocou a mão na cabeça dela. Quando ela adormecia depois de beber,
não acordava mesmo que ele beliscasse suas bochechas. Ao carregar
seu corpo bêbado para a cama, ele ganhou a pequena recompensa de
acariciar sua cabeça.
“…”
O cabelo de Holo escorregou pelos espaços entre seus dedos
como seda.
Ela é tão querida para mim, pensou.
Ele queria ficar com ela enquanto pudesse, mesmo que fosse
absurdo, mesmo que o deixasse infeliz. Não importa o quão tolo isso
parecesse.
Mas assim que o pensamento lhe ocorreu, ele ouviu uma resposta
silenciosa. Você está realmente preparado para tomar tal decisão?
Lawrence suspirou e parou sua mão.
Embora ele pudesse querer pegar emprestado a sabedoria de uma
loba sábia, ele sabia que era um problema que ele tinha que resolver
sozinho.
CAPÍTULO IV ⊰ 164 ⊱

Resistindo ao desejo de xingar, ele olhou novamente para Holo ao


lado dele. Tinha certeza de que nunca havia feito uma expressão tão
patética em toda a sua vida.
“—!”
Ele congelou, mas não porque a respiração profunda e adormecida
de Holo havia parado, nem porque ele a notou tentando esconder o
riso.
Ele pensou ter ouvido algo — o som de algo sendo arrastado.
“…?”
Holo parecia ainda estar dormindo como antes, o som de sua
respiração alegremente ignorante quase inaudível de onde seu rosto
estava enterrado no cobertor.
Lawrence escutou com atenção, mas ouviu apenas o som das
persianas batendo e o vento uivando.
Talvez um pouco de neve tenha escorregado do telhado, ele
pensou, relaxando... mas assim que fez isso, ele ouviu o som
novamente. Desta vez definitivamente não era sua imaginação.
Ele ergueu a cabeça, escutou atentamente e ouviu de novo.
Não havia dúvida.
Lawrence inalou lentamente, deixando o ar gelado entrar em seus
pulmões. Ele então emergiu rapidamente de dentro dos cobertores,
colocou os pés na tábua rangente do piso e ficou ali parado no frio
cortante.
Ele desembainhou a faca, abrindo e fechando a mão direita em
volta do cabo. Ladrões eram surpreendentemente comuns em lugares
como este. Eles evidentemente exploraram a guarda baixa que vinha
ao ver apenas rostos familiares.
Continuando até a sala com a lareira e abrindo a porta, Lawrence
pôde ouvir claramente o som arrastado.
O som de uma equipe.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 165 ⊱

Se fosse um ladrão, ele estava dando uma péssima impressão de si


mesmo, e Lawrence não era tão tolo a ponto de confundir o som com
passos furtivos. Mas quem poderia ser a tal hora?
“Nn...mph...”
Holo rolou na cama, parecendo notar que Lawrence não estava
mais lá.
Ela se sentou, esfregou os olhos e olhou interrogativamente na
direção de Lawrence.
Mas seu ato de menina sonolenta terminou aí, e ela logo percebeu
os passos, seus olhos se tornando olhos de loba.
Com movimentos tão rápidos que era difícil imaginar que ainda
estava bêbada, ela jogou os cobertores para longe, mas não conseguiu
vencer o frio e estremeceu uma vez.
Os passos estavam muito próximos agora.
Shfff…tup…tokk.
Holo olhou para trás e para frente entre Lawrence e a porta. Ela
parecia querer perguntar quem estava ali, mas Lawrence não sabia.
O som parou na porta. Lentamente, a maçaneta foi girada e a
porta se abriu...
“… Hu—” Lawrence começou, mas não teve tempo de terminar
antes de correr em direção à figura, que começou a desmaiar.
E então Lawrence ficou sem palavras. Na frente dele estava um
homem coberto de neve, uma forma quase viva que parecia muito com
Huskins, mas dificilmente era humano.
Lawrence se viu totalmente incapaz de formar palavras.
“…”
Gotas de gelo pendiam das sobrancelhas da figura, e era impossível
dizer se a barba que contornava sua boca era gelo ou cabelo. A mão
que segurava o cajado estava coberta de neve incrustada, e era
impossível dizer onde terminava a mão e começava o cajado.
CAPÍTULO IV ⊰ 166 ⊱

Sua respiração estava tranquila. Estranhamente quieto — e sob a


neve e o gelo, apenas seus olhos se moviam, olhando para um lado e
para o outro.
Ninguém falou.
As costas do visitante demoníaco tinham uma forma estranha —
de sua cabeça brotavam chifres de carneiro enrolados e seus joelhos
eram articulados para trás, como os de uma ovelha.
“... Oh, Deus,” murmurou Lawrence, quase inconscientemente.
Naquele instante, o gelo que cobria o rosto do demônio se partiu
com um pequeno krak.
Quando ele percebeu que o demônio estava sorrindo, Holo estava
bem ao seu lado.
“… Uma loba, eh…” Enquanto ele falava, os pingentes de gelo
pendurados em sua barba batiam um contra o outro.
A voz pertencia a Huskins.
“Você não teve tempo de se disfarçar?”
“…” Huskins sorriu sem palavras e lentamente enxugou o rosto
com a mão que não segurava o cajado.
Ele parecia ter sofrido algo que há muito teria matado um homem
normal.
“Você está aqui para zombar de mim, então?” A voz de Holo era
mais fria que o ar da sala.
O demônio meio homem, meio besta chamado Huskins estreitou
os olhos, como se estivesse olhando para uma luz brilhante,
cambaleando enquanto tentava se levantar. Lawrence tentou
reflexivamente apoiar seu ombro.
Ele era um demônio. Era isso, ele era um demônio.
Mas Lawrence tinha um motivo para lhe emprestar um ombro
para se apoiar — Holo não tentara esconder as orelhas e a cauda.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 167 ⊱

“… Não é natural… que uma ovelha se esconda diante de uma


loba?”
O som de gelo quebrando acompanhou seus movimentos.
Lawrence levou Huskins até a lareira, onde ele se sentou.
Pouco depois veio um pequeno grito — o som do suspiro de Col
ao acordar.
“O melhor lugar para esconder uma árvore é na floresta, né? Eu
nunca notei.”
“…Eu não sou como você.” Huskins fixou Holo em um olho.
Lawrence percebeu pelas orelhas e pela cauda de Holo que as
palavras de Huskins a haviam perturbado.
Mas ela ainda tinha a capacidade de admitir a realidade. Ela
assentiu.
“E?” ela disse a contragosto.
Huskins era um ser semelhante a Holo. Por si só, isso não
incomodava Lawrence. Suas viagens até agora o ensinaram que tais
criaturas se escondiam na civilização humana — em florestas sinistras,
próximo a cidades, em distritos segregados onde os habitantes temiam
pisar, ou em campos de trigo, muito depois dos aldeões terem perdido
a fé neles.
Portanto, Lawrence estava mais calmo do que Holo enquanto
esperavam que Huskins falasse.
“Eu tenho um favor para pedir.”
“Um favor?”
O gelo derretido voltou a congelar na sala fria.
Huskins assentiu novamente enfaticamente, suspirando enquanto
cuspia as palavras. “É uma calamidade... muito além do meu poder.”
“Então você quer o meu emprestado?”
CAPÍTULO IV ⊰ 168 ⊱

À pergunta de Holo, Huskins pareceu acenar com a cabeça — mas


quando Lawrence percebeu que Huskins não estava balançando a
cabeça, mas sim tremendo de alegria, Huskins levou a mão trêmula ao
peito e tirou uma carta.
“Seu poder são suas presas e garras... mas a era em que essas coisas
governavam já passou. Eu te dou isso…” Ele dirigiu seu olhar para
Lawrence.
“Para mim?”
“Sim… para o homem que viaja com a loba. Eu deixei você ficar
aqui porque... eu queria observá-lo. Mas acredito que foi a vontade
dos deuses.”
“Hah, você fala em deuses?” Holo mostrou suas presas e riu
zombeteiramente, mas sua expressão intimidadora e desdenhosa
provocou apenas um sorriso frio de Huskins.
“Assim como você se apega a este humano estranho e gentil... eu
também me apego aos deuses. Isso é tudo.”
“E-eu não... eu dificilmente...!” Holo rebateu fortemente, em
uma rara ausência de palavras.
A diferença entre Huskins e Holo era como a de um velho e uma
criança, e não era simplesmente devido à disparidade em suas
aparências. Por exemplo, Huskins observou a Holo trêmula, mas não
deu um sorriso triunfante e arrogante. Muito pelo contrário, seu rosto
inexpressivo parecia ser de alguma forma terno e gentil.
“Você é um comerciante, não é? Pegue isso.”
“O que é…?”
“Encontrei um pastor perdido na neve. Essas coisas acontecem
com frequência... meu cão pastor o encontrou. Ele parecia ainda estar
orando, embora a vida já o tivesse deixado.”
Era uma única carta selada. Escrito em pergaminho de pele de
carneiro ainda com pelos, foi selado com cera vermelha.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 169 ⊱

Se o homem morreu na neve, deve ter sido um mensageiro de


alguma outra cidade com destino a esta e se perdeu no caminho.
A menos que os viajantes se apressassem, seriam apanhados pela
neve, pelo vento e pela noite, mas a pressa esgotava rapidamente suas
reservas de força. Era uma ocorrência tão comum que havia até ladrões
especializados em encontrar seus cadáveres assim que a neve derretia
e levar seus pertences.
“No final, sou uma mera ovelha. Você entende, não é, jovem
loba?” Huskins dirigiu suas palavras a Holo. Holo apertou o peito,
como se um segredo que ela guardasse tivesse sido revelado.
“Diante desta carta, nossa força não significa nada”, finalizou
Huskins, dando um suspiro pesado. Ele fechou os olhos.
A lenha agora tomada totalmente pelas chamas da lareira,
queimava muito forte. O gelo no corpo de Huskins estava finalmente
começando a derreter, e Col havia se recuperado o suficiente para se
ocupar cuidando de Huskins, que parecia achar a atenção agradável.
Em algum momento, seu corpo voltou à forma humana e parecia
que sua forma monstruosa era algo saído de um sonho.
Mas enquanto ela continuava de pé e olhando para Huskins, as
orelhas de Holo permaneceram descobertas, sua cauda ocasionalmente
visível.
Lawrence olhou para o conteúdo da carta que Huskins lhe dera. E
então ele entendeu o que Huskins queria dizer.
“Sr. Huskins. Para que você precisa da minha ajuda?”
“A abadia…” Huskins parou por um momento, então fechou os
olhos e sorriu levemente. “... Eu quero que você a proteja.”
“Er, me desculpe, mas — por quê?”
Huskins abriu um olho cinza e fitou Lawrence.
Seu olhar era firme e digno, o olhar de uma ovelha selvagem que
vagava passo a passo pelas vastas planícies.
CAPÍTULO IV ⊰ 170 ⊱

Era diferente do de Holo.


Se o olhar de Holo era uma adaga afiada, o de Huskins era um
grande martelo.
“Não é nenhuma surpresa que você pergunte. Por que eu,
considerando o que sou, me curvaria diante de Deus? Veja, eu também
confiei nos humanos para viver. Assim como a jovem loba.”
Instantaneamente, Holo parecia pronta para refutá-lo, mas ela foi
interrompida por um olhar de Huskins.
Ele a estava tratando como uma criança.
“Eu não quero irritá-la. Assumi a forma humana e vivo uma vida
humana. Não é nenhuma surpresa que eu busque a força humana.”
“Hmph. Então, o que você fez com essa força que pegou dos
humanos?”
“Um lar.”
“Eh?” Holo respondeu, seus olhos se arregalando.
Huskins continuou, sua voz e modos ainda calmos e claros.
“Fiz uma casa. Nesta terra. Uma casa só nossa.”
A lenha estalou.
Os olhos de Holo eram como luas cheias.
“Nada escapa ao alcance dos humanos. Nem as montanhas, as
florestas ou as planícies. Então, a fim de criar um lugar que duraria por
séculos, não tivemos escolha a não ser usar o poder deles. No começo,
eu não tinha certeza se poderia ter sucesso... mas tivemos. Um lar
vasto e tranquilo era nosso. E não importa quem vem ou quando, eles
sempre dizem a mesma coisa.”
“... Este lugar não mudou.”
Huskins sorriu como um avô gentil e respirou fundo. “É o nosso
maior desejo. Fomos expulsos de nossa casa há muito tempo e
dispersos. Alguns para desertos desolados, outros se escondendo entre
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 171 ⊱

os humanos em suas cidades. E alguns vagaram sem parar... Este é um


lugar onde todos nós podemos nos encontrar novamente. Um lugar
para o qual todos podem retornar, não importa o quão longe vivam.
Esse lugar.”
“Aquilo que te dispersou... poderia ter sido, foi o Caçador da
Lua...?”
“Ha-ha... ha. Então você sabe sobre isso, não é? Isso tornará as
coisas mais simples de explicar. Sim, foi o Urso Caçador da Lua que
tirou nossa casa. Irawa Weir Muheddhunde na língua antiga.”
Eles tinham visto muitas histórias do urso, que havia sido coletado
por um certo padre, em uma pequena e pobre cidade que adorava um
deus cobra.
Holo respirou fundo, como uma criança com um jeito estranho
de chorar.
“Quando veio a calamidade, estávamos impotentes e não havia
nada que pudéssemos fazer. E agora os tempos mudaram, e para
proteger este lugar, precisamos de um novo tipo de poder. Os
dispositivos dos humanos são bons demais para os meus cascos.”
Ao buscar um favor, era muito difícil manter um pé de igualdade,
nem se rebaixar nem ser muito exigente — nem muito orgulhoso.
Mas Huskins aceitou o mundo como ele era e, dentro dele, fez o
que pôde. E não havia dúvida de que o fizera durante séculos. Então
tinha que ser possível.
“Tivemos muitos problemas até agora. Mas desta vez, finalmente,
eles podem ser mais do que podemos lidar.”
Lawrence olhou para a carta, depois de volta para Huskins.
“...Este é um aviso real de tributação, não é?”
“Era mais fácil quando os senhores ainda estavam em guerra. A
razão de nossa própria era foi suficiente para ganhar uma pequena
medida de estabilidade. Mas as longas guerras devastaram a terra. Se a
CAPÍTULO IV ⊰ 172 ⊱

abadia caísse, tudo estaria perdido. Então, secretamente ajudei


Winfiel, o Primeiro a unificar a nação. E foi aí que eu errei.”
Eles eram mais fortes que os humanos, e mais sábios, e
governaram a terra antes que os humanos a dominassem. A virada das
eras era um assunto comum para eles, com certeza.
“Mas os filhos nunca se lembram da dívida que têm com os pais,
para não falar dos netos. Não posso mais subir ao palco público. Tudo
o que posso fazer é mostrar-me ocasionalmente para adicionar um
pouco de legitimidade ao governo deles.”
“A lenda... da ovelha de ouro.”
“É verdade. Claro, alguns desses momentos foram devidos ao meu
próprio descuido ao cumprimentar um amigo que não via há anos.”
As piadas eram ainda mais divertidas quando contadas em local e
hora inapropriados. Mas uma vez que a onda de riso que se seguiu
acabou, deixou para trás uma sensação agora óbvia de nervosismo.
“Não tenho cabeça para contar moedas, mas até eu posso dizer que
a abadia está à beira da ruína. A cada rodada de impostos, o pagamento
que devemos fica maior. Nossos amigos nos disseram que a abadia
pode não aguentar mais uma rodada.”
“Mas isso é…”
“Não sei mais o que fazer. Se eu pudesse pisar nele com meus
cascos ou triturá-lo com meus dentes, eu o faria... mas você é um
mercador, não é? Quando os humanos expulsaram nossa espécie das
florestas e montanhas, sempre havia mercadores nas sombras. Ver um
mercador rindo com uma loba...” Ele soltou um longo suspiro. “Você
é o único em quem podemos confiar.”
“Mas —”
“Eu te imploro.”
Lawrence viajou sozinho por sete anos. Muitas vezes ele entregou
a última carta de um camarada morto para uma família. Confrontado
com uma cena que não queria recordar, faltou-lhe as palavras.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 173 ⊱

Se fosse uma simples carta, ele aceitaria. Mas o que Lawrence


tinha nas mãos era um aviso real de tributação.
“Não.” Enquanto Lawrence continuava lutando para encontrar as
palavras, foi Holo quem falou. “Não. Não podemos correr esse risco”.
“Holo…”
“Se você não pode fazer isso, você deve recusar. E você mesmo
disse que se envolver nesse negócio era perigoso. Partiremos amanhã.
Se não amanhã, depois de amanhã. Somos viajantes. Isso não tem nada
a ver conosco.”
Depois dessa enxurrada de palavras, as respirações rápidas e curtas
de Holo foram tudo o que restou.
Se ela parecesse apenas séria, Lawrence teria ficado com raiva,
mas em vez disso, ficou lá sem expressão, deixando Col para cuidar de
Huskins. Quando Holo voltou a si e olhou para Lawrence, ela se
encolheu.
Sua expressão era difícil de descrever.
Seus lábios tensos a faziam parecer zangada, mas ela tremia como
se estivesse profundamente triste. Seus ombros caíram, seus punhos
cerrados e seu rosto estava muito pálido.
Lawrence mal conseguia olhar para ela.
Foi o ciúme dela que a deixou assim.
“Certamente é o caso, não é? Você mesmo disse isso. Você disse
que era perigoso. É por isso que eu disse que deveríamos sair. E ainda
— e ainda assim você está considerando o pedido dele...!”
“Holo”, disse Lawrence, pegando a mão dela. Ela se afastou uma
vez, depois de novo, depois uma terceira vez, e então ficou dócil.
Lágrimas caíram de seu rosto.
Ela sabia perfeitamente que o que estava dizendo era infantil.
Ela foi capaz de suportar ouvir Piasky porque seu trabalho era feito
para humanos. Mas Huskins era outra questão.
CAPÍTULO IV ⊰ 174 ⊱

Pior ainda, Huskins havia perdido sua terra natal para o Urso
Caçador da Lua, que também destruiu Yoitsu.
Huskins falou. “Jovem loba, sua casa foi destruída por ele
também?”
Holo olhou para Huskins com olhos cheios de ciúme, inveja e
agitação.
“Não ganhamos um novo lar facilmente. Assumimos a forma
humana, nos tornamos pastores e vivemos nossas vidas em silêncio e
discretamente. E estávamos preparados para fazer o que fosse
necessário para defender esta terra.”
“Eu poderia —!” A voz rouca de Holo era de alguma forma
pequena, mesmo quando gritou. “Se fosse para trazer de volta minha
terra natal… minha Yoitsu… Eu também poderia…”
“Não posso deixar de pensar que você nunca lutou contra o urso,
não é? Você está preparada para arriscar sua vida lutando contra isso?”
O rosto de Holo se encheu de raiva. Ela certamente pensou que
Huskins estava zombando dela. No entanto, Huskins silenciosamente
e firmemente olhou em seus olhos âmbar furiosos e tingidos de
vermelho.
“Quando ele veio para minha terra natal, eu corri. Eu corri,
entende, porque havia muitos que eu sabia que precisavam da minha
proteção. Eu os levei embora e nós escapamos. Ainda me lembro do
momento. Havia uma grande lua cheia no céu naquela noite. Eu podia
ver a cordilheira das montanhas através das vastas planícies, e acima
dela brilhava a lua. E fugimos das planícies — aquelas férteis planícies
cujas ervas há muito pastamos.”
O corpo de Huskin estava visivelmente enfraquecido. Como
Holo, assumir a forma humana certamente o sujeitava às limitações
humanas.
E ainda assim ele continuou, as palavras caindo como se as chamas
da lareira estivessem derretendo suas memórias congeladas.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 175 ⊱

“Olhei na direção da minha casa e vi. A sombra de um grande urso


tão grande que parecia que poderia se sentar no cume das montanhas.
Era magnífico — mesmo agora, creio que sim. Ele rugiu, levantou
uma pata como se fosse caçar a lua, e aquele momento ainda…”
A história era de um passado distante, quando a mão dos humanos
ainda não havia se estendido — uma época em que o mundo ainda
pertencia às trevas e aos espíritos.
“Mesmo agora, penso nisso com carinho. Foi o último grande
governante do nosso mundo. Era uma época em que o poder e a força
governavam tudo. Toda a minha raiva me deixou. Tudo o que resta
agora é a minha nostalgia…”
Holo havia perdido a luta por sua terra natal e só soube de sua
destruição séculos depois — então forçar um sorriso infantil
provavelmente foi tudo o que ela conseguiu. “P-para você, que correu
como um covarde, falar em preparação... é algo a se rir.”
Era teimosia infantil, e o astuto e velho Huskins rebateu com
facilidade.
“Para viver entre os humanos em seu mundo, comecei a comer
carne. Já se passaram séculos.”
“…!” Os olhos de Holo imediatamente foram para a carne seca
pendurada em tiras de couro. Que tipo de carne era? E que tipo de
carne havia no ensopado que comeram com Huskins?
Depois de algumas respirações ofegantes, Holo vomitou.
Lawrence não sabia se ela havia se imaginado fazendo a mesma
coisa que Huskins havia feito ou se simplesmente era propensa às
lágrimas.
Huskins estava disposto a comer carne de ovelha para se passar
por pastor.
Holo poderia fazer a mesma coisa?
CAPÍTULO IV ⊰ 176 ⊱

“Para manter esta minha pátria, abdicamos de muito. Cruzamos


linhas que nunca deveriam ter sido cruzadas. E se a perdermos, talvez
nunca encontremos outra terra onde possamos viver em paz.”
Ele não disse essas palavras para atacar Holo. Ele estava
simplesmente tentando ser o mais claro possível ao defender seus
motivos para pedir a ajuda de Lawrence.
Mesmo assim, Holo tinha inveja de como Huskins havia criado um
lar aqui.
Ela mesma sabia muito bem como era tolo invejar alguém que
lutou para recriar algo que havia perdido. E não apenas isso — ela
queria virar as costas para eles, abandonar alguém que havia criado um
lar.
Se ela estava interpretando as palavras de Huskins como um
ataque, era por causa de sua própria culpa. Holo foi pega entre a razão
e a emoção e finalmente escolheu correr.
Ela começou a chorar como uma criança, e Lawrence a pegou
quando ela desmaiou.
Huskins esperou que Lawrence colocasse o braço em volta de
Holo antes de falar lentamente.
“… Estou bem ciente de que sua jovem loba sofreu muito neste
mundo. E por alguma sorte insondável, ela veio a viajar com um
humano de bom coração. Eu entendo que ela não deseja se separar
disso. Eu entendo que ela deseja protegê-lo. Mas…”, disse Huskins,
fechando lentamente os olhos. “Eu também não desejo me separar
desta terra. Nosso refúgio duramente conquistado…”
Suas palavras sumiram e Col rapidamente colocou a mão no peito
largo de Huskins. Vendo o óbvio alívio de Col, ficou claro que Huskins
havia apenas se esgotado.
Lawrence ouviu o crepitar da lenha e os soluços de Holo enquanto
examinava o aviso de tributação que Huskins lhe dera. A ordem de
tributação ali escrita seria extremamente difícil de recusar.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 177 ⊱
CAPÍTULO IV ⊰ 178 ⊱

A melhor maneira de evitar o pagamento de impostos era


protestar por não ter bens com os quais pagar, mas o rei havia
escolhido uma solução que tornaria tais protestos sem sentido.
A determinação do rei era clara e não haveria como fugir dela. Se
houvesse alguma hesitação, seria enfrentada com força militar. Esse
pode até ter sido o objetivo real.
Um único bando não pode ser liderado por duas cabeças — Holo
havia dito isso a ele, mas também era verdade para uma nação. A
abadia, com sua grande influência e enormes extensões de terra,
certamente era uma dor de cabeça para o rei.
Arruinar-se por pagarem o imposto. Arruinar-se caso não o
fizessem.
A partir desta situação impossível, a abadia precisava de salvação
— com a ajuda de Lawrence, um mero mercador viajante.
“É... é impossível,” Lawrence murmurou sem pensar.
Captando suas palavras, foi Col quem olhou para cima. “É
impossível?”
Col se aventurou no mundo para proteger sua própria cidade.
Seus olhos estavam profundamente sérios, quase acusando
Lawrence.
“…Uma vez durante minhas viagens, houve um acidente. A
estrada estava lamacenta por causa da chuva do dia anterior.”
Com a súbita mudança de assunto, o rosto de Col mostrou um
raro lampejo de raiva. Lawrence era um mercador, e os mercadores
costumavam usar de esperteza para despistá-lo — e Col sabia disso.
“A carroça principal afundou na lama. Corremos até lá e
descobrimos que o comerciante que conduzia a carroça tinha a sorte
de estar vivo. Ele estava deitado de costas e parecia bastante
envergonhado. Ele parecia estar ferido, mas pensamos que ele
sobreviveria. Nós pensamos assim, e ele também…”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 179 ⊱

Lawrence continuou a acariciar as costas de Holo enquanto falava


com Col.
“Mas sua barriga havia sido aberta. Um galho de árvore o pegou,
talvez. Ele nem percebeu até ver nossas expressões. Ele sorriu
rigidamente e nos pediu para salvá-lo. Mas não éramos deuses. Tudo
o que podíamos fazer era ficar com ele até o fim.”
Às vezes não havia nada a ser feito. Assim era o mundo. Não havia
misericórdia divina, nem fortuna celestial, e o tempo não podia voltar
atrás.
Lawrence suspirou e continuou.
“Não é que eu não tivesse piedade. Mas também sei que o Deus
que deveria nos libertar parece frequentemente ausente. Tudo o que
posso fazer é ficar feliz por não ter sido eu.”
“Isso não é—!”
“Isso é tudo o que havia para fazer. E depois de me despedir do
infeliz amigo, levantei-me e continuei minha jornada, depois de tirar
o máximo que pude de sua carroça.” Um canto da boca de Lawrence
se curvou. “Foi um bom lucro”, acrescentou.
O rosto de Col se distorceu e ele parecia prestes a gritar com
Lawrence, mas no final não o fez. Ele olhou para baixo e retomou seu
trabalho de secar o cabelo molhado e a barba de Huskins.
Quando confrontado com circunstâncias inevitavelmente difíceis,
a imersão no trabalho pode trazer a salvação. Lawrence se perguntou
há quanto tempo ele aprendeu isso. Ele pensou enquanto pegava Holo.
Ela estava quieta em seus braços quando ele a levou para o quarto ao
lado, embora não estivesse claro se ela havia chorado até a exaustão ou
simplesmente desmaiado de estresse.
A tempestade de neve rugia lá fora, mas como a neve havia se
acumulado há muito tempo nas rachaduras das paredes e janelas, não
estava muito frio.
CAPÍTULO IV ⊰ 180 ⊱

A respiração de Holo era rápida e superficial, como se ela estivesse


com febre. Ela provavelmente estava tendo um pesadelo ou então sua
consciência culpada continuava a assaltá-la.
Ele deitou Holo na cama e se virou para cuidar de Huskins, mas
ela puxou sua manga. Seus olhos se abriram ligeiramente. Aqueles
olhos abandonaram a vergonha e o orgulho e simplesmente
imploraram para que ele ficasse ao seu lado.
Não estava claro o quão consciente ela estava, mas Lawrence
acariciou sua cabeça com a outra mão, e Holo fechou os olhos como se
estivesse tranquilizada. Lentamente, um dedo de cada vez, a mão dela
soltou a manga dele.
Na sala ao lado, iluminada pelo fogo vermelho da lareira, Col
lutou para trocar a camada externa da roupa de Huskins. Além da
diferença de tamanho entre os dois, Col não era muito forte.
Lawrence silenciosamente começou a ajudar e, embora Col não o
agradecesse, ele também não recusou a ajuda.
“Não há perigo em pelo menos pensar no caso.”
O rosto de Col mostrou surpresa e ele não disse nada em resposta.
Ele olhou para cima e fez uma pausa.
“Puxe aí, por favor.”
“Ah, s-sim!”
“Não há perigo em considerar a possibilidade. Afinal, no
momento, provavelmente somos as únicas pessoas que sabem sobre o
conteúdo desta carta.”
As coisas de Huskins foram arrumadas em um canto da sala e,
entre elas, encontraram roupas para ele e retiraram seus sapatos
encharcados.
“Dada a importância da mensagem, não consigo imaginar que eles
enviariam apenas uma cópia. Assim que a nevasca passar, tenho certeza
de que alguém chegará trazendo a notícia. O que significa que temos
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 181 ⊱

algumas opções. Se deve ou não contar a mais alguém sobre a carta. E


se sim, a quem.”
“Você... você acha que alguma coisa pode ser feita?”
“Isso é difícil dizer. Mas podemos fazer algumas previsões. A
abadia está encurralada e o rei também. Se supusermos que cada um
deles está empregando suas estratégias como último recurso, não há
muitos resultados possíveis. Além do mais, a Aliança Ruvik também
está envolvida.”
Col engoliu em seco e fez outra pergunta hesitante. “A senhorita
Holo vai ficar bem?”
Isso foi direto ao ponto; era como uma ferida — quando tocados,
alguns gemiam de dor e outros urravam de raiva.
Lawrence era do primeiro tipo. “... Isso é insuportável para ela, e
ela não consegue aceitar as coisas como elas são, então é por isso que
ela falou daquela maneira. Mas enquanto a situação permitir, ela
oferecerá sua ajuda. Apesar de sua aparência, ela é bastante gentil. O
que você deve achar surpreendente, a propósito.”
Col enrolou os pés de Huskins em um pano para evitar
queimaduras de frio, depois colocou outro pedaço de lenha no fogo.
Finalmente, ele deu um sorriso cansado.
“Ela sabe perfeitamente bem como seu ciúme é desagradável.
Diante da determinação de Huskins, ela deve ter se sentido como uma
criança. Seu orgulho como uma sábia loba foi terrivelmente ferido.
O orgulho e a vaidade de Holo eram incomparáveis, mas ela
também sabia quando brincar e quando agir com seriedade. E quando
ela falava sério, até Lawrence tinha que reconhecer sua excelência.
“Uma vez eu disse algo a Holo.”
“O que?”
“Que existem muitas maneiras diferentes de se resolver um
problema. Mas uma vez resolvido, devemos viver nossas vidas. O que
CAPÍTULO IV ⊰ 182 ⊱

significa que devemos escolher não a solução mais simples, mas aquela
que nos permitirá sentir mais paz quando estiver tudo acabado.”
Huskins estava enrolado em um cobertor para que nem mesmo
uma corrente de ar pudesse alcançá-lo. No lugar de um travesseiro,
enrolaram um pedaço de lenha em outro cobertor e colocaram sob sua
cabeça.
“E quando eu disse isso a ela, ela me chamou de idiota. Como se
desistisse de mim. Mas eu me pergunto se ela realmente poderia
abandonar Huskins e seguir em frente com tanta facilidade.”
Sem dúvida, Col imaginou Holo simplesmente comendo,
bebendo e se enrolando como um cachorro ou gato. Mas Lawrence
achou difícil acreditar que ela abandonaria alguém que havia passado
por tantas dificuldades para criar um segundo lar.
Col balançou a cabeça uma vez, depois uma segunda vez, com
mais força.
“Quanto à sua posição, nem vale a pena dizer.” Lawrence sorriu,
e o rosto de Col ficou rígido como se um grande segredo dele tivesse
sido revelado. Ele olhou para baixo, envergonhado.
Mesmo que Lawrence e Holo tivessem decidido abandonar
Huskins, Col não o teria feito, Lawrence tinha certeza.
“De qualquer forma, até aqui é uma discussão emocional.”
“Até aqui?” Os olhos de Col ergueram-se sem compreender, e até
Lawrence sentiu vontade de abraçá-lo. Ter Col por perto certamente
era bom para seu orgulho e vaidade.
“Afinal, sou um comerciante. Eu não atuo a menos que haja algum
lucro nisso.”
“…Que significa…?”
“Este aviso de tributação. Se as palavras de Huskins e as suposições
de Piasky forem verdadeiras, isso destruirá totalmente a abadia. O que
significa que esta é uma oportunidade perfeita para nós. Dizem que
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 183 ⊱

antes de uma grande onda chegar, o mar recua e deixa o fundo do


oceano descoberto. Por isso…”
Col respondeu imediatamente. “Você seria capaz de ver todo o
tesouro que costumava estar debaixo d’água.”
“Exatamente. Se houver alguma coisa lá, eles não serão capazes de
esconder.”
No que diz respeito ao objetivo original de Holo, isso dificilmente
seria inútil. Embora se ela escolher tomá-lo à força, caberá a ela.
Col assentiu e logo se curvou como se estivesse aliviado. “Só não
sou tão inteligente quanto você, Sr. Lawrence.”
Col provavelmente estava pensando na capacidade de Lawrence
de ver as coisas de muitas perspectivas. O sorriso sem palavras de
Lawrence e o encolher de ombros não eram fingimento. Se Holo
estivesse lá, ela saberia.
Afinal, não são muitos os humanos que conseguem mentir para si
mesmos.
“A noite é longa e temos uma fogueira. Col —”
“Sim!”
“Empreste-me sua sabedoria.”
“Claro!” Col gritou e logo cobriu a boca apressadamente.
Lawrence preparou papel e caneta e começou a traçar um plano.
Os movimentos das asas de um inseto são difíceis de ver, mas as
batidas das asas de um grande falcão são facilmente contadas. Assim,
as ações de uma grande organização eram mais fáceis de prever do que
as de uma menor. Ainda mais quando estavam encurralados.
Mas boa informação era escassa.
Eles sabiam que a abadia estava no meio de uma crise financeira.
Que as políticas fracassadas do rei esvaziaram os cofres do reino.
CAPÍTULO IV ⊰ 184 ⊱

E que o rei havia decretado um imposto que iria (e isso era uma
suposição) arruinar a abadia.
O que eles não sabiam era que forma tomariam os bens finais da
abadia. Ele tinha — como previu Lawrence — uma valiosa relíquia
sagrada como os ossos de lobo, ou seus ativos eram em moeda?
Lawrence escreveu cuidadosamente os fatos que eles tinham na
metade superior do papel. A metade restante listou as opções
disponíveis para ele e seus companheiros de viagem.
Por exemplo, quem deve ser informado sobre o aviso de
tributação?
A aliança? A abadia? Ou não deveriam contar a ninguém?
Em seguida, houve um número semelhante de escolhas sobre
como lidar com a história dos ossos do lobo.
Suas opções pareciam ao mesmo tempo poucas e muitas; os
elementos desconhecidos restantes também o eram. A abadia estava
em crise financeira e, mesmo que os líderes não conseguissem
sobreviver a outra rodada de impostos, não havia como saber se eles
desafiariam obstinadamente o reino ou obedeceriam humildemente,
submetendo-se à ameaça de força militar, como ovelhas.
Falando de forma realista, não havia opções que Lawrence e
companhia pudessem buscar por conta própria.
Talvez sua única escolha real fosse ir para a aliança com o que eles
sabiam, trocando cuidadosamente pequenos pedaços de informação
para expandir seus conhecimentos, então forçar seu caminho de
alguma forma.
Claro, havia riscos. Mas a vitória não era impossível.
Afinal, mesmo que a aliança tivesse a abadia pela garganta e
estivesse tentando de alguma forma conquistá-la, eles não eram um
bando de mercenários desajeitados que devorariam a carcaça até os
ossos.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 185 ⊱

Assim como sabiam colher o trigo, sabiam aumentar sua colheita.


Eles estavam perfeitamente cientes de que um fluxo constante de
pequenos lucros era melhor do que um único grande ganho.
E como uma colheita bem-sucedida exigia terras estáveis, a
continuidade da existência da abadia seria uma alta prioridade para a
aliança. Eles certamente estavam procurando uma solução que
garantisse a continuidade da abadia.
Lawrence e Col passaram a noite pensando no problema, de cima
a baixo. Eles consideraram todas as possibilidades, decidindo se valia a
pena o risco. A forte nevasca e o frio antes do amanhecer mantiveram
seus pensamentos afiados — ou talvez fosse a compreensão de
Lawrence sobre a maneira como o mundo funcionava, combinado com
ter Col ao seu lado.
Na hora em que o fogo da lareira estava silenciosamente se
transformando em cinzas, Lawrence e Col encontraram uma
possibilidade milagrosa e a escreveram no papel.
O rosto feliz de Holo e os olhos surpresos de Huskins os
cumprimentaram quando ele revelou o plano a ser...
“…—”
Ele apresentou triunfalmente suas conclusões a Holo. E naquele
exato momento, ele acordou.
O fogo do carvão e a neve caindo soavam muito semelhantes entre
si. Lawrence tentou estimar pelo som crepitante quanto tempo ele
dormiu.
A única coisa que ele não conseguia lembrar eram os detalhes do
plano milagroso. Não, ele entendeu agora.
Tinha sido um sonho, e pior, que ele teve exatamente esse tipo de
sonho estava escrito em seu rosto.
“Tolo.”
Ele estava caído sobre o caixote em que estivera escrevendo;
quando ele se sentou, Holo estava agachada perto da lareira.
CAPÍTULO IV ⊰ 186 ⊱

A palavra ecoou mais agradavelmente em seus ouvidos do que


qualquer sino de igreja.
Ele bocejou. Seu pescoço doía terrivelmente, provavelmente pela
estranha posição de dormir.
“Seu idiota…”
Dois cobertores o cobriam.
Holo se afastou quando o chamou de tolo; ao lado dela estava Col,
enrolado e aparentemente agarrado à cauda de Holo.
Seu rosto estava encovado, provavelmente porque ela havia
chorado não muito tempo atrás. Ou talvez ela estivesse apenas com
frio; ela não estava usando seu roupão.
Lawrence finalmente percebeu que não era sua aparência, mas a
atmosfera geral que a fazia parecer mal, e então Holo suspirou e falou.
“Sim, que sorte a minha.” Suas palavras e expressões não tinham
nenhuma relação e, no entanto, ela parecia falar ainda mais
verdadeiramente do que quando elogiava um pedaço de carneiro
gorduroso. “Este mundo muitas vezes não funciona como se deseja, e
mesmo assim.”
Com a boca entreaberta e a respiração totalmente silenciosa, Col
quase parecia morto à primeira vista. Mas quando Holo gentilmente
acariciou sua cabeça, ele se encolheu com cócegas.
“Nosso Deus nos diz para compartilhar o que temos com os
outros”, disse Lawrence.
“Mesmo nossa boa sorte?” Holo perguntou, entediada.
Se ele errasse em sua resposta, tinha certeza de que receberia um
suspiro frio em resposta, junto com uma relutância da parte de Holo
em ouvi-lo.
“Até nossa boa sorte. Acho que coloquei isso em prática muito
bem.”
“…”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 187 ⊱

“Eu até deixei Col usar essa sua cauda,” ele disse muito sério.
Holo apenas deu um sorriso derrotado, então moveu suavemente
seu olhar para a janela.
“Meu corpo parecia estar em chamas.”
“Foi —”
“—por causa do que eu disse?” Lawrence estava prestes a terminar a
brincadeira, mas não conseguiu.
Mas Holo percebeu como sua piada terminaria e parecia
surpreendentemente feliz com isso. Suas orelhas estalaram e, embora
ela ainda estivesse de costas, seus ombros tremeram de tanto rir. “Ah,
bem, todas as criaturas são iguais porque tendem ao egoísmo. Faz
muito tempo que não sinto tanta inveja dos pertences alheios. É quase
reconfortante.”
Lawrence fez uma pausa antes de responder, para deixar claro que
o que ele estava prestes a dizer era uma brincadeira. “Bem, é claro que
foi reconfortante — é sempre um conforto ser tão infantilmente
egoísta.”
Holo não era do tipo que chutava alguém que estava implorando
a seus pés. Era da natureza dela tentar conceder qualquer favor que lhe
pedissem, não importava se isso não lhe fizesse bem, não importava se
a irritasse... foi por isso que ela permaneceu em Pasloe por tantos
séculos.
“Humanos e ovelhas pensam da mesma maneira.”
“O suficiente para você e eu discutirmos sobre isso, certamente.”
“Mm. A menos que briguemos pela mesma coisa, xinguemos um
ao outro com as mesmas palavras e olhemos um para o outro da mesma
altura, não é uma luta verdadeira.”
Ela se sentou e acariciou a cabeça de Col, ocasionalmente rindo
enquanto falava, a respiração subindo em baforadas brancas de sua
boca. Lawrence podia imaginá-la como a deusa de alguma floresta, tão
elegante e gentil em sua forma.
CAPÍTULO IV ⊰ 188 ⊱

Ao contrário de quando ela estava enrolada em camadas de


roupas, seu corpo esguio parecia não estar relacionado a qualquer
ociosidade ou devassidão.
Lawrence não considerava uma garota fraca que precisava de sua
proteção, mas a antiga sábia loba Holo, deusa da colheita que vivia no
trigo.
“Tenho um pouco de sabedoria e experiência. Col tem intelecto
e imaginação.”
“E o que eu tenho?”
“Você tem uma responsabilidade”, disse Lawrence. “A
responsabilidade de transformar nossas viagens em uma história que
será contada por muito tempo. Não é perfeito, o conto de uma loba
vindo em auxílio de ovelhas?”
Para que a autoridade existisse, ela precisava do apoio de um
sistema robusto de valores. Assumir a responsabilidade pelas próprias
palavras era exatamente isso.
Holo abriu a boca e, entre suas presas, emitiu outro grande sopro
de vapor. Ela sorriu, se divertindo.
Era o sorriso infantil da brincalhona ardilosa. Se alguém estivesse
perdido na floresta e sendo atacado por bandidos, se houvesse alguém
a quem pedir ajuda além de Deus, seria alguém com esse mesmo
sorriso.
“Existe alguma chance de vitória?”
Lawrence não respondeu, apenas encolheu os ombros e entregou
a Holo o papel sobre o qual ele estava dormindo. Holo olhou para esse
rosto e riu — sem dúvida estava manchado de tinta.
“Tenho certa confiança em minha própria inteligência... mas esse
tipo de situação não é minha especialidade.” Ela deve estar se referindo
a modos de pensar amplos e abrangentes. Se alguém sempre pudesse
confiar na força para resolver seus problemas, não havia necessidade
de considerar os detalhes de uma situação. “Claro, um velho general
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 189 ⊱

mercenário disse uma vez que não se pode continuar ganhando batalhas
com uma única estratégia. Táticas em constante mudança são a melhor
maneira de derrotar o oponente. E —”
“E?”
“Só os deuses são capazes disso.”
Era uma piada maliciosa.
“Lembre-se disso,” a expressão de Holo parecia dizer, mas ela não
parecia nada descontente.
“A questão é se a abadia possui de fato os ossos. E isso parece
muito provável.”
“Sim. Nada mais se encaixa na história que Piasky nos contou tão
perfeitamente.”
“Você deveria se aliar ao bando que já conhece, não à abadia, não
acha? Nada é tão assustador quanto um aliado cujos pensamentos você
não pode adivinhar.” Enquanto ela falava, os olhos de Holo
percorreram a escrita rabiscada no papel, onde Lawrence havia escrito
os resultados de sua conversa com Col, lendo-o com grande
velocidade.
Eles já haviam brigado ferozmente quando Holo fingia ser
analfabeta, mas agora Lawrence se perguntava se ela era uma leitora
mais rápida do que ele.
“Sim. Os homens da aliança não são tolos e, tendo homens como
Piasky a seu serviço, eles querem estabilidade para esta terra. Huskins
e seu pessoal podem achar seu território um pouco menor, mas seus
objetivos são semelhantes.”
Holo estreitou os olhos, como uma nobre rica avaliando uma joia
preciosa, mas seu olhar estava direcionado para Huskins, que ainda
dormia perto do fogo.
Mas quando ela percebeu que Lawrence a estava observando, ela
olhou para ele e sorriu envergonhada.
CAPÍTULO IV ⊰ 190 ⊱

Lawrence estava muito assustado para ter certeza, mas imaginou


que havia mais anos separando Huskins e Holo do que suas aparências
sugeriam. O senso de dever de Holo e sua estranha integridade
provavelmente a levaram a dar a Huskins uma certa quantidade de
respeito por sua maior experiência, mesmo que ele fosse uma ovelha.
Para Holo, estender a mão para ajudar o outro pode não ser uma
boa ideia, mesmo que ela se orgulhe disso.
“Então, o que Kraft Lawrence, um mero mercador viajante,
espera fazer aqui?”
Ela raramente o chamava pelo nome que, para Lawrence, ouvi-lo
parecia uma espécie de recompensa por si só, o que ele tinha de admitir
que era estranhamente patético.
Lawrence deu um sorriso destemido, como um homem desafiado
a beber um copo de bebida forte de uma só vez. Ele respirou fundo e
respondeu lentamente. “Os ossos de lobo devem ser de importância
crucial para o outro lado. Nossas informações apontam para eles como
sendo a única possibilidade real. Assim a informação será levada muito
a sério, e quanto maior for o seu potencial para quebrar o impasse,
mais a sério ela será levada. E é aí que mercadores viajantes como eu
têm espaço para manobrar.”
“É assim mesmo? Tem certeza de que isso está correto? Será que
tudo ficará realmente bem? Verdadeiramente? Com certeza? Eu
acredito em você... eu confio em você, eu confio.” Holo riu enquanto
fazia suas perguntas infantis.
Lawrence examinou cada uma delas, o cotovelo apoiado no
caixote, com a postura de um comerciante adequado. “Em troca da
prova, vou pedir que você também ouça algumas das minhas
perguntas.”
“O aviso de tributação ou o que quer que seja chamado os deixará
famintos por tempo.”
“Acho que eles não vão conseguir evitar a mesa de negociações.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 191 ⊱

Assim que um mensageiro chegar com o aviso, restará muito


pouco tempo. Se eles demorarem, o lucro desaparecerá. Melhor a
bolsa de moedas morrer de fome do que a barriga, dizem.
“Hmph.” Holo fungou como se zombasse de sua previsão otimista
e se virou, sem graça. “Está bem, suponho.”
Ela empurrou o papel de volta para ele, e Lawrence recebeu o
decreto real educadamente, enrolando-o como um nobre recebendo
uma ordem do rei. “Bem, então que assim seja.”
E com essas palavras, Lawrence voltou a ser um mercador —
escravo de contratos, servo da moeda.
E um dos reis ocultos que controlavam o mundo das sombras.
“Agora, então.” Lawrence ajeitou a barba, penteou o cabelo e
endireitou o colarinho.
Tudo tinha que estar perfeitamente em ordem antes de iniciar um
plano de negócios, embora ele estivesse bem ciente de que nada
acontecia de acordo com o planejado.
O primeiro problema seria encontrar uma maneira de fazer a
Aliança Ruvik morder a isca da história dos ossos de lobo. Se ele não
conseguisse fazer isso, nada mais poderia acontecer.
“Acho que está na minha hora.”
Visto por um estranho, ele pareceria um anão prestes a entrar no
covil de um gigante, mas quando começou, todo mercador parecia um
gigante para ele. Ele conseguiu sobreviver entre os demais, então
conseguiria lidar com isso também. Holo e Col o acompanharam e ele
deixou o dormitório dos pastores para trás.
Ainda sofrendo com os efeitos de sua marcha pela nevasca,
Huskins ainda não estava recuperado, mas sua cor melhorou
visivelmente quando Lawrence o informou que planejava cooperar.
Huskins sempre apoiou a abadia em segredo, então, no que dizia
respeito à esta, ele era um pastor como qualquer outro.
CAPÍTULO IV ⊰ 192 ⊱

Portanto, provavelmente era verdade que a única pessoa com


quem Lawrence podia contar era ele mesmo.
As condições lá fora ainda eram terríveis, com os prédios cobertos
de neve. Apenas alguns beirais ainda eram visíveis com pequenos
pedaços de pedra ou madeira conseguindo espreitar.
Mas mesmo nessas condições, nenhum comerciante poderia
simplesmente ficar parado e esperar. Quando Lawrence finalmente
chegou à pousada da aliança, outro homem estava voltando do prédio
do outro lado da rua.
“Ah! E pensar que teríamos um cliente tão cedo, mesmo com este
tempo.”
“Claro. Quanto pior o clima, maior o ganho.”
“Ha-ha-ha. Isso é certo!”
Talvez ele fosse um membro da Aliança Ruvik e não hesitou em
abrir a porta e entrar correndo.
Lawrence o seguiu. Um dos comerciantes logo na entrada
perguntou: “Procurando por Lag?”
Evidentemente, eles já se lembravam dele. “Está escrito tão
obviamente no meu rosto?” Lawrence perguntou, esfregando o rosto
em questão.
O homem riu. “Você vai encontrá-lo no escritório.” Dado que o
homem que cuidava da porta da frente parecia um estudioso de
teologia, sem dúvida a palavra estudo era apropriada.
“Meus agradecimentos.”
“Veio a negócios?” Era a saudação padrão do mercador.
Lawrence sorriu agradavelmente. “De fato. Grande negócio.”
Então ele estava na neve novamente, indo para o local de trabalho
de Piasky.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 193 ⊱

Lawrence disse ao homem que parecia um estudioso de teologia


na recepção que queria ver Piasky, e o homem desapareceu sem nem
mesmo perguntar o nome de Lawrence.
Seu trabalho provavelmente era vigiar os espiões vindos de
alianças rivais. Enquanto Lawrence considerava a possibilidade, o
homem voltou e gesticulou para dentro sem dizer nada.
Lawrence fez uma reverência e entrou.
Ao se aproximar, Piasky abriu a porta e esperou por ele.
“Bom dia.”
“Bom dia. O que te traz aqui?” disse Piasky, fechando a porta atrás
de Lawrence quando eles entraram na sala privada.
Piasky certamente sabia que Lawrence não enfrentaria o clima
terrível para bater papo.
Lawrence limpou a neve que ainda restava nele, pigarreou para
esconder o nervosismo que sentia e deu seu melhor sorriso de
mercador. “Na verdade, aconteceu uma coisa ontem à noite que me
incomodou.”
“Que te incomodou? Por favor sente-se.” Piasky ofereceu uma
cadeira, na qual Lawrence se sentou e esfregou o nariz. Ele abriu e
fechou a mão, baixando o olhar para ela. Era uma gesticulação óbvia,
mas provavelmente apropriada.
“Sim. Foi tão extraordinário que não consegui dormir pensando
nisso”, disse Lawrence, apontando para as olheiras.
Um comerciante que entrava em uma negociação com os olhos
cansados não podia deixar de ser encarado com uma saudável
desconfiança. Mas Piasky simplesmente riu. “Oh?”
A nevasca lá fora aumentou e o impasse continuou. Um conto
extraordinário era o companheiro perfeito para um pouco de vinho.
“O que pode ser? Não me diga que encontrou uma maneira de
quebrar a resistência da abadia.”
CAPÍTULO IV ⊰ 194 ⊱

Este era o momento de atacar. “Sim, é exatamente isso.”


O sorriso no rosto de cada homem congelou, e Lawrence não
sabia quanto tempo ficou assim.
Piasky esfregou as mãos várias vezes, sua expressão imutável,
depois levantou-se silenciosamente e abriu a porta.
“E?” ele perguntou, uma fração de segundo depois de fechar a
porta novamente.
Evidentemente, Piasky também era uma espécie de ator.
“Você conhece a cidade portuária de Kerube, do outro lado do
Estreito de Winfiel?”
“Estou ciente dela. É um ponto de comércio entre o norte e o sul.
Nunca fiz negócios lá, mas o delta ali é um ótimo lugar.”
“É verdade. Essa é a cidade. Você está familiarizado com um boato
bobo que chegou lá cerca de dois anos atrás?”
Piasky era um comerciante que morava na estrada, então ele pode
não ter ouvido falar disso — ou assim pensou Lawrence — mas Piasky
fez uma careta como se algo tivesse acabado de passar em sua mente e
então colocou um dedo nos lábios. Ele ia falar o que pensava?
“Pelo que me lembro... algo sobre os ossos de um deus pagão?”
“De fato. Os ossos de um lobo.”
Piasky olhou para longe, como se pensasse em algo. Quando
voltou a olhar para Lawrence, seu olhar tornou-se cauteloso, como se
estivesse genuinamente surpreso por ter levantado algo tão
improvável.
“E o que tem esses ossos?”
Se Lawrence tivesse que adivinhar, os modos bem-humorados de
Piasky significava que ele estava tirando sarro de Lawrence ou
simplesmente achava a situação completamente absurda.
Lawrence, no entanto, reuniu forças para responder. “Suponha
que a abadia comprou os ossos.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 195 ⊱

“A abadia...?”
“Sim. Mesmo que sejam os ossos de um deus pagão, eles podem
ser usados para reforçar a autoridade do Deus da Igreja. Eles poderiam
ser usados para pregar a todos os que se reúnem no santuário para orar
pela salvação, e poderiam ser tratados pela abadia como um
investimento, tornando-se algo para aqueles que procuram uma
maneira prática de quebrar o impasse ao qual se agarram.”
Piasky deixou Lawrence terminar, depois fechou os olhos, com
uma expressão amarga — e não porque estivesse levando as
declarações de Lawrence a sério. Ele certamente estava pensando em
como rejeitar gentilmente a ideia.
“Acho que mesmo que as vendas de lã tenham caído ao longo dos
anos, levaria um certo tempo para que a situação se tornasse tão
terrível. A abadia teria escolhido uma maneira de proteger seus ativos
anos atrás porque a moeda do país vem caindo de valor o tempo todo.
Por um lado, eles comprariam mercadorias com aquela moeda — se
possível, mercadorias que poderiam ser vendidas em qualquer lugar do
mundo por quase o mesmo preço que foram compradas. Dessa forma,
se a moeda local realmente quebrasse anos depois, a abadia poderia
vender os ossos por moeda estrangeira e depois trazer essa moeda de
volta para este reino.”
E assim como pudemos ficar naquela bela pousada em Kerube,
eles seriam tratados como os homens mais ricos do país.
Piasky parecia sinceramente perturbado com a explicação
empolgada de Lawrence.
“O que me diz?” Lawrence perguntou.
Pressionado por Lawrence, Piasky ergueu a palma da mão como
se dissesse:
“Espere, estou chocado demais para falar.”
Quando Piasky finalmente falou, foi depois de pigarrear três
vezes. “Sr. Lawrence.”
CAPÍTULO IV ⊰ 196 ⊱

“Sim.”
“É verdade que o que você está dizendo parece plausível.”
“Sim”, disse Lawrence com um sorriso feliz. Ele estava bem ciente
do suor brotando em sua testa.
“Mas nós somos a Aliança Ruvik. Isso é... Isso é difícil de dizer,
mas...”
“O que é?”
Se Holo estivesse lá, Lawrence tinha certeza de que os olhos dela
teriam se arregalado com a atuação dele.
“Bem, er, vou ser franco. Há muito tempo consideramos essa
possibilidade.”
“…Huh?”
“É um boato bem conhecido. E bem...” Piasky suspirou como se
simplesmente não pudesse mais se conter. “Verdadeiramente, muitas
pessoas, muitos de nossos camaradas mais brilhantes colocaram suas
mentes neste problema.”
Lawrence ficou em silêncio, ainda inclinado para a frente.
Piasky abriu as palmas das mãos e olhou para Lawrence com o
canto do olho.
Lawrence desviou o olhar, depois voltou a olhar para Piasky e
depois desviou os olhos novamente.
Uma rajada de vento sacudiu as venezianas das janelas.
“Concluímos que tal relíquia não existia. Quando a história
apareceu pela primeira vez, um de nossos homens estava em Kerube
na época e ele investigou por meio de uma empresa com a qual estamos
conectados lá. O que ele descobriu foi que apenas uma única outra
empresa estava procurando pelos ossos, e isso era meio que uma piada
até para eles. Eles não tinham tamanho para comprar uma verdadeira
relíquia sagrada, nem tinham tais fundos. Era apenas para melhorar sua
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 197 ⊱

reputação. Essas coisas acontecem, você sabe, depois de se gabar com


bêbados em tavernas.”
Sua prolixidade vinha da raiva, ao que parecia. Raiva por ter
perdido seu tempo.
Ou raiva por ter esperado mais e ter sido feito de bobo.
Lawrence não tinha resposta. Ele se mexeu na cadeira, esfregando
as mãos inquieto. Um silêncio constrangedor tomou conta.
“É apenas um conto de fadas”, Piasky finalmente cuspiu com
desdém.
Lawrence atacou.
“E se não for apenas um conto de fadas?” Se ele não conseguisse
sorrir ao dizer isso, Lawrence seria um mercador de terceira categoria.
Ele sorriu, encolheu o queixo e olhou para Piasky com o rosto
voltado para cima.
“... Certamente você está brincando.” Piasky ficou em silêncio por
um tempo antes de responder e, embora sua expressão fingisse
placidez, Lawrence não deixou de notar a maneira como ele enxugou
casualmente as palmas das mãos.
“Vou deixar para você decidir se estou falando sério ou não.”
“Não, Sr. Lawrence, você deve parar com isso. Se minha resposta
foi injusta, peço desculpas. Mas todos nós pensamos nisso muito bem
— é por isso que perdi a paciência. Então por favor —”
“Então, por favor, não se chateie dizendo essas coisas sem
fundamento?”
As persianas bateram e a neve soprada pelo vento as atingiu de
forma audível. Parecia um navio sendo batido pelas ondas, e o rosto
de Piasky estava começando a parecer nitidamente enjoado.
Ele mordeu o lábio inferior e arregalou os olhos, o rosto
empalidecendo.
“Mil e quinhentas moedas.”
CAPÍTULO IV ⊰ 198 ⊱

“O que?”
“Quantas caixas você acha que são necessárias para conter mil e
quinhentas peças de ouro lumione?”
Lawrence ainda se lembrava claramente da imagem da Companhia
Jean carregando orgulhosamente uma montanha de caixotes para a
igreja.
O rosto de Piasky se contorceu em um sorriso rígido. “S-Sr.
Lawrence.” Uma gota de suor saiu de sua têmpora e rolou por sua
bochecha.
A expressão facial, o tom de voz e até lágrimas — tudo isso
poderia ser fingido por um ator habilidoso.
Mas o suor não era tão fácil de fingir.
“O que você diz, Sr. Piasky?” Lawrence inclinou-se para a frente
na cadeira, aproximando o rosto o suficiente de Piasky que era possível
discernir o que havia comido no jantar na noite anterior.
Este era o momento da verdade.
Se Lawrence não pudesse prender Piasky aqui, suas garras nunca
alcançariam sua próxima presa.
“Gostaria de continuar a usá-lo para todos os contatos com a
aliança.” Piasky certamente entendia o que ele quis dizer. Ele olhou
para Lawrence com medo, como um peregrino com uma lâmina na
garganta.
“Podemos quebrar esse impasse. Eu gostaria que você assumisse
esse papel crítico. Não é uma proposta tão ruim, é?”
“M-mas…” Quando Piasky finalmente falou, suas palavras
cheiravam a um bom vinho. “Mas você tem alguma prova?”
“A confiança é sempre invisível.” Lawrence sorriu e recuou.
Assim ridicularizado, Piasky começou a ficar vermelho, mas
Lawrence rapidamente continuou e o afastou.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 199 ⊱

“A abadia não seria tão tola a ponto de escrever ‘ossos de lobo’ em


seus registros. Eles inventariam algum outro termo e o registrariam.
Mas nada pode ficar escondido para sempre. Se você ler os registros
esperando não encontrar nada, nada é exatamente o que você
encontrará — mas se você suspeitar que algo está escondido e olhar
novamente, as coisas podem ser diferentes. O que me diz, hein?”
Piasky não respondeu. Ele parecia incapaz.
“Para ser totalmente honesto, eu tenho algo que dar algum crédito
à história dos ossos de lobo. Mas, sinceramente, é uma história muito
grande para um mercador viajante como eu. Se eu contasse isso
diretamente aos oficiais da aliança, não há como dizer se eles
confiariam em mim ou não. Eu preciso de alguém para falar por mim.”
Lawrence trouxe mercadorias de terras distantes para muitas
cidades e adquiriu alguma experiência com tais situações.
Ter alguém local da cidade ou vila concordando com seu discurso
de vendas pode fazer uma tremenda diferença.
Lawrence não era tão ingênuo a ponto de acreditar que
simplesmente dizer a verdade era suficiente para ganhar a confiança.
Uma única pessoa pode não ser capaz de vender nem mesmo os
melhores produtos, mas duas pessoas podem fazer uma matança
vendendo nada além de lixo.
Essa era a verdade e era o segredo do comércio.
“Mas…”
“Por favor, pense bem. Consegui ganhar a confiança do Sr.
Deutchmann na cidade portuária. Eu, um simples mercador viajante.”
Piasky soltou uma risada dolorida e então fechou os olhos.
Lawrence tinha ouvido esse ditado particular na capital do grande
reino do sul, cuja rede de comércio cresceu ao longo das décadas em
uma rede que cobria a terra, como uma grande teia de aranha.
Lawrence nunca havia visitado a cidade, mas podia sentir a verdade
daquelas palavras: a confiança é invisível.
CAPÍTULO IV ⊰ 200 ⊱

Era invisível, sim, mas não podia ser ignorada.


“Sr. Piasky.”
Piasky tremeu quando Lawrence falou, e algumas gotas de suor
caíram de seu queixo.
Se os ossos do lobo fossem reais e não um conto de fadas, ajudar
Lawrence seria uma boa maneira de Piasky ser promovido. Mas se
fossem os delírios de um mercador viajante louco e Piasky se
permitisse acreditar neles, seriam sua ruína.
Paraíso ou inferno — se a soma fosse zero, a única coisa a ganhar
ao se envolver era a emoção da aposta. Quando o preço do fracasso era
a ruína, qualquer um hesitaria, se tivesse tempo suficiente para fazê-
lo.
E a hesitação frequentemente dava origem ao medo.
“... eu só... eu simplesmente não posso...” Piasky forçou
agonizantemente as palavras de sua boca, mesmo enquanto avaliava se
o que Lawrence havia dito era verdade.
Ele estava fugindo!
Lawrence não teve escolha a não ser bloquear seu caminho.
“E se...” disse Lawrence com uma voz aguda como uma agulha,
mas depois hesitou. Se ele dissesse o que estava prestes a dizer, não
haveria como voltar atrás no caminho adiante.
Lawrence engoliu em seco e continuou: “E se eu dissesse que o rei
está agindo?”
“O que... hein? O que... que tipo de...?”
“Um imposto.”
Ele havia dito isso.
O rosto de Piasky ficou branco e ele olhou para Lawrence. Mas ao
contrário de seu rosto estupefato, sua mente certamente estava
calculando em velocidades inacreditáveis.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 201 ⊱

Piasky levantou-se rapidamente da cadeira. Mas Lawrence não o


deixaria escapar. “De que adianta contar a eles agora?”
Ao sacudir o braço para tentar libertá-lo das mãos de Lawrence,
ficou claro para onde Piasky estava indo.
Não importa o grupo, a lealdade transformava seus membros em
cachorros. Era natural presumir que Piasky estava correndo para
entregar a informação crucial a seus superiores.
“Que bom—? Devo informá-los imediatamente!”
“Informá-los? E então fazer um plano?”
“Isso não tem nada a ver com você!”
“Mesmo que você tenha perdido sua carta na manga há muito
tempo?”
“…!”
A resistência de Piasky cessou. A expressão de dor em seu rosto
mostrou que ele sabia que Lawrence estava certo.
“Por favor, acalme-se. Mesmo se você contasse isso à aliança, só
os preocuparia desnecessariamente. Se vier um novo imposto, a abadia
será arruinada. E quando isso acontecer, eles escolherão entre cair de
joelhos diante do rei e implorar por misericórdia ou morrer
corajosamente. Mas se alguém revelar que a abadia tem um item pagão
como os ossos de lobo, o que você acha que vai acontecer com ela?”
A abadia não poderia escapar de sua própria terra, e a terra não
poderia escapar da autoridade secular. Então, o que aconteceria se,
para pagar impostos, pedisse ajuda à Aliança Ruvik, que trabalhava
abertamente contra o governo?
O rei chamaria isso de traição e enviaria os militares.
E mesmo que chegasse a isso, a abadia ainda tinha uma esperança
final — ainda fazia parte da Igreja. Mas se a verdade sobre os ossos do
lobo fosse revelada, essa última esperança seria feita como refém.
CAPÍTULO IV ⊰ 202 ⊱

Se perguntassem a um clérigo qual escolha era a pior para o rei ou


para o papa, como qualquer pessoa afiliada à Igreja, ele responderia a
última.
E esse seria o momento que daria à aliança uma chance de atacar.
“Sr. Piasky, o tempo que nos resta está diminuindo e só teremos
uma oportunidade. Antes que tudo vire caos, devemos oferecer essa
ideia loucamente atraente para os poderes presentes. E mesmo que não
tenhamos a concordância deles, teremos sua atenção, então, quando o
caos acontecer, seremos mais fáceis de notar. Afinal, um homem que
está se afogando alcançará o que estiver mais próximo. Estou otimista
o suficiente para pensar que isso terá sucesso. Você ent-”
Lawrence deu a volta na mesa e parou diante de Piasky.
“—Tenho certeza de que a história dos ossos de lobo é
verdadeira.”
Os olhos de Piasky se fixaram em Lawrence. Ele não estava
olhando — era como se seu olhar tivesse sido pregado ali.
Sua respiração era irregular e seus ombros subiam e desciam
violentamente.
“Sr. Piasky.”
Piasky fechou os olhos. Parecia um gesto de derrota, como se
estivesse dizendo a Lawrence para fazer o que quisesse, mas quando
seus olhos se fecharam, sua boca se abriu e ele falou.
“Que prova você tem de que esse imposto é real?”
Ele havia mordido a isca. Mas o gancho ainda não estava
totalmente preso.
Suprimindo sua vontade de atacar, Lawrence respondeu
lentamente.
“Estou morando com os pastores no momento. Quando algo cai
do lado de fora, posso ser o primeiro a saber.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 203 ⊱

Piasky fechou os olhos com força e respirou fundo pelo nariz. Ele
provavelmente estava tentando esfriar a cabeça. Aqueles gestos eram
toda a prova que Lawrence precisava para saber que suas palavras
estavam tendo o efeito desejado.
“Quando isto aconteceu?” Piasky perguntou.
“Ontem à noite. Essa é uma das razões pelas quais eu não consegui
dormir.”
Piasky cerrou os dentes com tanta força que Lawrence teve
certeza de ouvir o rangido. Se a tributação fosse real, a cidade se
transformaria instantaneamente em um ninho de vespas assim que a
notícia fosse divulgada. E nesse ponto, nenhuma outra proposta seria
ouvida.
Em outras palavras, não haveria mais nada que alguém pudesse
fazer.
Lawrence tinha certeza de que Piasky sabia disso, então não disse
mais nada. Um comerciante poderia esperar a noite toda até que uma
balança caísse se isso lhe desse lucro.
Ali, no silêncio da nevasca, o tempo passou.
O suor escorria na testa de Lawrence.
Piasky lentamente abriu os olhos e falou. “Mil e quinhentas peças.”
“Huh?”
“Mil e quinhentas peças de ouro lumione. Isso dá quantas caixas?”
Apesar de tudo, Lawrence relaxou sua expressão tensa, mas não
porque achava que a pergunta de Piasky era tola. Era a prova de que
haviam feito um contrato.
“Não vou deixar você se arrepender disso”, disse Lawrence.
Piasky começou a rir, olhando para cima momentaneamente
como se estivesse rezando, depois enxugando o rosto encharcado de
suor com as duas mãos. “Mil e quinhentas moedas de ouro. Eu gostaria
de ver isso apenas uma vez na minha vida.”
CAPÍTULO IV ⊰ 204 ⊱

Lawrence estendeu a mão. Ele não podia deixar de dizer “Você


irá. Se tudo correr bem.”
“Espero que sim!”
A primeira barreira havia sido ultrapassada.
epois de apertarem as mãos, Piasky agiu rapidamente.
Se as circunstâncias permitissem, seu trabalho era reunir
pessoas de aldeias e cidades diferentes em um único
grupo, para que ele tivesse uma ideia melhor do que
Lawrence para saber como motivar um grupo dentro desse grupo.
Mas ele não fez nada tão tolo quanto correr para contar a seus
mestres que a história dos ossos de lobo era verdadeira. A primeira
declaração de Piasky foi que eles precisavam de aliados.
“Precisa ser alguém curioso, mas em quem se pode confiar um
segredo. Alguém perspicaz, mas com tempo de sobra, o tipo de pessoa
que você procuraria mesmo que não fosse o chefe de uma grande
empresa comercial — e talvez Deus esteja conosco, porque há muitas
pessoas assim na cidade agora.”
CAPÍTULO V ⊰ 206 ⊱

Se eles trouxessem a história dos ossos de lobo para a liderança da


aliança sem primeiro fazer uma investigação completa, seriam
descartados como loucos e expulsos.
E tal investigação não poderia ser concluída sem aliados confiáveis.
“Posso contar com você para encontrá-los, então?”
“Sim. Levaremos um ou dois dias para revisar todos os registros
novamente. Agora que sabemos que há algo para encontrar, não deve
ser difícil encontrá-lo.” O sorriso ousado de Piasky o fazia parecer
ainda mais confiável.
“Isso é encorajador.”
“Gostaria de terminar a preparação inicial antes que a nevasca
pare. Só conseguiremos que os outros nos ouçam se tiverem tempo de
sobra. E vamos precisar de... algo... persuasivo o suficiente para trazê-
los.”
Sem Lawrence por perto, seria quase impossível para Piasky
vender de forma persuasiva a história dos ossos de lobo, porque se
houvesse algum vestígio óbvio deles nos registros da abadia, eles já
teriam sido encontrados.
“Não vou decepcioná-lo nessa. Deixe comigo.”
Piasky assentiu. “A propósito…”, continuou ele.
“Sim?”
“Gostaria de falar sobre como vamos dividir o lucro.”
O objetivo de um mercador sempre era o lucro. Sempre que as
participações nos lucros não eram discutidas, geralmente era porque
seu verdadeiro objetivo era outro.
O olhar de Piasky estava fixo com firmeza em Lawrence.
Lawrence olhou para outro lugar enquanto respondia.
“Se as coisas correrem bem, não acho que faremos uma quantia
pequena o suficiente para que valha a pena falar sobre a divisão.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 207 ⊱

“…” Piasky sorriu com admiração, como se estivesse se


desculpando por ter duvidado de Lawrence. “Não posso dizer que às
vezes não gostaria de estar no simples negócio de comprar e vender
alguma coisa.”
A única razão para suspeitar constantemente de seus parceiros
comerciais é se o negócio em si for frustrantemente complicado.
“Muitas vezes desejei poder negociar apenas comigo mesmo”,
disse Lawrence em resposta à fala autodepreciativa de Piasky.
“Isso seria bom ou ruim?”
Lawrence endireitou o colarinho e se viu olhando em volta à
procura de Holo enquanto Piasky abria a porta para ele.
“No mínimo, não seria tão cansativo.”
Piasky sorriu e inclinou a cabeça, suspirando com simpatia.
“Certamente. É aí que começam os desastres.”
Se estivessem bebendo, dariam tapinhas nas costas um do outro
— mas os mercadores são um pouco mais reservados do que isso,
então eles apenas trocaram um olhar.
“Vamos nos armar com pergaminho e tinta. E quanto a você, Sr.
Lawrence?”
“Meu testemunho. E um pouco de pergaminho também.”
Insistir que tinha provas físicas era um risco perigoso, visto que
não tinha aliados naquele lugar isolado. Havia uma boa possibilidade
de que a prova fosse tirada dele à força.
Mas se ele estivesse no lugar de Piasky, tinha certeza de que apenas
o testemunho o deixaria bastante inquieto. Depois de pesar as duas
opções uma contra a outra, Lawrence falou, e parecia ter sido a escolha
certa.
O rosto de Piasky relaxou de alívio. “De qualquer forma, toda a
minha aposta será em você, Sr. Lawrence.”
“Estou bem ciente do que isso significa.”
CAPÍTULO V ⊰ 208 ⊱

“Vou encontrar alguns aliados, então. O que fará a seguir, Sr.


Lawrence?”
“Preciso me encontrar com meus companheiros. Dada a situação,
a palavra daqueles cujas mãos estão escondidas sob suas vestes pode ser
mais confiável do que a palavra daqueles cujas mãos estão manchadas
de tinta.”
Piasky assentiu e abriu a porta. “Espero que a nevasca continue
por um tempo”, disse ele, “pois parece que nosso tempo pode ser
bastante limitado”.
Se suas negociações não fossem concluídas antes que a aliança ou
a abadia soubessem do decreto tributário, suas vidas se tornariam
muito mais difíceis. Embora o tempo parecesse improvável de mudar
no momento, um mensageiro com um aviso real no bolso da camisa
poderia abrir caminho destemidamente.
“Por favor, venha diretamente ao meu escritório da próxima vez.
Posso... visitá-lo em seus aposentos, Sr. Lawrence?”
“Certamente. Estarei contando com você.”
Eles trocaram um aperto de mão e depois se afastaram.
Quando Lawrence se aventurou de volta na neve, descobriu que
as pegadas que havia deixado não muito antes estavam desaparecendo,
mesmo enquanto as seguia de volta ao dormitório dos pastores. Ele se
perguntou se suas ações pelos outros desapareceriam com o tempo,
assim como suas pegadas. Mesmo que ele tivesse um corpo tão grande
quanto o de Holo, suas pegadas ainda desapareceriam no passado.
Mesmo uma nação não era eterna — nem mesmo se estivesse
cheia de camaradas, nem mesmo se desse a ilusão de permanência.
Mas quando as pegadas desapareciam, a pessoa simplesmente
continuava andando. O mesmo acontecia com as casas.
Esse foi outro motivo para Lawrence vir em auxílio de Huskins.
Era possível criar um novo lar. Quando o perigo chegou, os amigos
estavam lá para ajudar. O mundo não era necessariamente um lugar
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 209 ⊱

cruel ou sem esperança — ele seria capaz de dizer essas coisas para
Holo.
Quando voltou para o dormitório, encontrou Huskins e Holo
sentados um de frente para o outro com a lareira entre eles,
conversando baixinho. Mais precisamente, parecia que Huskins estava
falando do passado enquanto Holo ouvia em silêncio.
“No momento, parece que nossa primeira isca foi mordida.”
Huskins assentiu profunda e silenciosamente, expressando seus
agradecimentos, embora incapaz de se curvar.
“Vou dormir um pouco. Os competentes amigos de Piasky estarão
se debruçando sobre os registros da abadia, então tenho certeza de que
encontrarão algo errado em breve.”
A dificuldade estaria no que viria depois de convencer a aliança de
que os ossos do lobo existiam. Assim que soubessem que os ossos
deveriam estar lá, a aliança começaria a pressionar poderosamente suas
próprias demandas.
O quanto eles pressionavam dependeria de quanto eles
acreditavam.
Lawrence não estava nem um pouco confiante em sua capacidade
de segurar as rédeas. Ele não era tão grande quanto um cavalo ou um
touro.
Se não dormisse logo, sua resistência iria falhar.
Holo não conseguiu encontrar os olhos de Lawrence, talvez
devido à presença de Huskins, mas quando ele passou por ela, suas
mãos se tocaram levemente.
Entrando no quarto seguinte, Lawrence encontrou Col dormindo
na cama. Embora ele tivesse que admitir que era bom que a cama não
estivesse tão fria como estaria de outra forma, algo ainda estava
faltando.
Lawrence sorriu ironicamente enquanto se cobria com o
cobertor.
CAPÍTULO V ⊰ 210 ⊱

As janelas estavam fechadas e a neve obstruía as frestas, então era


difícil dizer que horas eram. Quando Lawrence acordou, imaginou que
já passava do meio-dia. Uma estranha sensação de mal-estar anulou sua
sonolência.
Estava muito quieto.
Ele se sentou imediatamente e levantou da cama para abrir uma
janela. A neve endureceu até a veneziana e as paredes caíram com um
baque audível, e deixando a janela aberta, um vento frio entrou.
Estava tão gelado que machucava seu rosto; o mundo lá fora era
branco.
O vento, porém, havia se acalmado bastante e, embora a neve
ainda caísse, dificilmente se qualificava como uma nevasca.
O silêncio de uma paisagem nevada havia retornado tão
profundamente que Lawrence pensou ter ouvido suas orelhas zunindo.
Talvez tenha sido o próprio silêncio que o acordou; o silêncio
muitas vezes o despertava com mais eficácia do que o ruído — porque
o silêncio sempre acompanhava desenvolvimentos desfavoráveis.
“... Sozinha, hein?” Quando Lawrence entrou na sala com a
lareira, encontrou Holo ali, cuidando do fogo sozinha.
“Eu estava tentando decidir se deveria acordá-lo ou não.”
“Você se sentiu mal por mim, vendo como eu estava cansado?”
Como Huskins se foi, Lawrence se sentou ao lado de Holo.
A resposta de Holo foi curta enquanto ela cutucava as brasas com
um atiçador de ferro. “Seu rosto era tão tolo que perdi completamente
o desejo de despertá-lo.”
“Aconteceu alguma coisa?” Algo deve ter acontecido, dado que o
exausto Huskins estava fora — para não falar da ausência de Col.
E a nevasca que havia parado temporariamente o tempo havia
cessado.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 211 ⊱

Holo largou o atiçador e encostou-se em Lawrence. “Quando a


neve começou a baixar, alguns homens da abadia vieram. O
mensageiro que deveria chegar hoje ou amanhã ainda não chegou, e
eles queriam saber se os pastores sabem alguma coisa a respeito”.
“O que o Sr. Huskins disse a eles?”
“O homem morto que ele encontrou definitivamente era o
mensageiro que eles procuravam, mas ele fingiu ignorância por
enquanto. O mensageiro estava longe o suficiente para que nenhum
pastor comum o encontrasse, foi o que falou. Col foi junto com ele.”
Levando isso em conta, um mensageiro diferente trazendo a
mesma mensagem chegaria, no mínimo, no dia seguinte ou no
próximo.
“O que devemos fazer?”
“No momento, tudo o que podemos fazer é esperar. Assim que
Piasky encontrar algo que possamos usar como prova, tentaremos
conseguir uma audiência com as autoridades da aliança.
“Mm…”
Diante da resposta apática de Holo, Lawrence olhou do perfil dela
e a cauda, no momento em que ela agarrou a orelha dele.
“Você poderia apenas uma vez tomar uma decisão sem verificar
minha cauda, hmm?”
“Alguém sempre precisa de provas antes de tomar uma ação
importante!”
“Tolo.” Holo liberou sua orelha e depois desviou o olhar
taciturno.
Ela havia puxado sua orelha com certa força, e ainda doía — mas
isso deixou Lawrence saber quão irritada ela realmente estava. O
coração de uma donzela era uma coisa sutil — ou talvez era o coração
de uma fera. Ela provavelmente sentiu que quando suas orelhas e cauda
fossem checadas para adivinhar seus verdadeiros sentimentos,
qualquer resposta que ela desse com a boca seria ignorada.
CAPÍTULO V ⊰ 212 ⊱

“Claro, você também terá um papel a desempenhar,” disse


Lawrence, para o qual Horo olhou para cima, seus ouvidos atentos.
Ela era tão fácil de ler que ele queria dar um tapinha na cabeça
dela.
Ou pelo menos foi o que pensou até que a resposta de Holo o
alcançou.
“Você quer que eu arranque essas orelhas da sua cabeça?”
Lawrence gostava muito de seus próprios ouvidos, então se
apressou em balançar a cabeça. “A aliança é uma grande organização.
Os membros que estão aqui nesta cidade agora são apenas uma parte
dela. Imagino que os verdadeiros líderes estejam em algum lugar
agradável e quente, longe de toda essa neve. Mas a realidade
permanece a mesma — para estimular um grande grupo a agir, você
precisa de persuasão igual à escala. Às vezes, algo além de meros fatos
e provas é necessário.”
Holo olhou para ele, extremamente duvidosa. Ela provavelmente
estava sendo intencionalmente mal-humorada porque sabia o quanto
ele gostava disso.
“Fico muito nervoso quando tenho que me apresentar diante de
um grupo, mas você é uma atriz nata”, disse ele, abordando a dúvida
dela.
Holo fungou como se sua diversão tivesse sido arruinada, mas sua
cauda balançou alegremente, traindo seu bom humor.
“Para seu conhecimento temos o Col. Eu me encarregarei de
colocá-lo em prática.”
“E quanto a mim?” Holo perguntou, mas Lawrence teve
dificuldade em encontrar as palavras.
“Você vai cuidar da ambientação.”
Holo começou a rir como se não pudesse evitar e depois suspirou
enquanto se agarrava ao braço de Lawrence.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 213 ⊱

“É verdade, sou sempre eu quem cria a situação. E é você quem


sempre estraga tudo” — disse ela, com a boca bem perto do ouvido
dele.
“…” É claro que Lawrence tinha muitas coisas que queria dizer,
mas limpou a garganta e continuou: “A ambientação e o humor são
muito importantes, pois é impossível exibir provas concretas. É muito
importante fazê-los pensar que esta aposta vale a pena. Brincadeiras à
parte…” Ele encarou Holo antes de terminar. “Isso determinará o
sucesso ou o fracasso.”
Ele foi observado pelas pupilas vermelho-âmbar de seus grandes
olhos redondos.
Apesar de ter testemunhado tanto do mundo, ela ainda tinha os
olhos grandes e inocentes de uma jovem.
Eles piscaram uma vez. E em um momento, seu humor mudou
completamente.
“Você pode confiar em mim. O velho me disse uma coisa, sabe.”
“O que ele disse?”
“Ele disse que, se tivéssemos sucesso, me daria a ovelha mais gorda
do ano.”
Era exatamente o tipo de promessa que Lawrence esperaria de um
sábio e velho espírito de ovelha que se disfarçou de humano, comeu
carneiro e trabalhou duro tanto nas sombras quanto ao ar livre para
criar um segundo lar.
Holo deve ter ficado sem palavras quando a oferta inteligente foi
feita a ela. E ela deve ter percebido que precisava ajudá-lo.
“Ele me contou muito de seus problemas — ao criar um novo lar
e protegê-lo.”
Seu perfil mostrava uma mistura de raiva silenciosa e seriedade.
Holo tinha um forte senso de honra e podia ser surpreendentemente
humilde.
CAPÍTULO V ⊰ 214 ⊱

“Foi útil?”
A cauda de Holo balançou audivelmente. “…Sim.”
“Entendo.”
Se Holo naquele momento tivesse aberto a boca e pedido a ele
para fazer um lar para ela como Huskins havia feito para si mesmo,
Lawrence não teria sido capaz de responder afirmativamente.
Ambos sabiam disso, mas como nenhum deles realmente confiava
no outro para evitar completamente o assunto, partes da conversa
foram cortadas.
Lawrence poderia dizer que Holo estava tranquila, no entanto.
Ele colocou o braço em volta dos ombros dela e estava prestes a puxá-
la para mais perto quando...
“Agora”, disse ela, agarrando a mão dele. “O tempo está
acabando.”
“…”
“Vamos, não faça essa cara. Ou você quer discutir de novo?”
Além de seu sorriso travesso, Lawrence ouviu o som baixo de um
bastão e passos. Col e Huskins devem ter retornado.
Holo se levantou e se espreguiçou. Suas juntas estalaram e o pelo
de sua cauda inchou agradavelmente. Lawrence só teve um momento
para apreciar. Não porque ela beliscou a bochecha dele por olhar para
a cauda, mas porque ela a estava cobrindo e com as orelhas para cima.
Não havia necessidade de escondê-los de Huskins agora.
O que significava que os ouvidos de Holo captaram o mesmo som
que Lawrence ouviu, mas ela percebeu que não era Col e Huskins.
Certamente não—
O cabelo de Lawrence se arrepiou e, embora soubesse que era
inútil, sua mão foi ao peito, onde ainda estava o decreto real de que
Huskins havia recuperado do mensageiro morto.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 215 ⊱

Mesmo que jogasse o pergaminho de pele de carneiro no fogo, ele


não queimaria imediatamente como papel. Holo olhou para ele,
chocada, como se estivesse se perguntando qual era o problema.
Lawrence só podia orar a Deus.
“Desculpe.” Era uma voz calma e que não admitia discussão. Seu
dono era um homem vestindo uma túnica — diferente da de Holo —
que falava como se estivesse acostumado a ter suas ordens obedecidas.
Huskins ficou entre os dois homens.
“Você vai ter que nos desculpar por um momento. Você...” disse
o mais velho.
“Sim!” O monge mais jovem entrou na sala e olhou em volta,
pegando imediatamente os pertences de Huskins. Huskins observou
calmamente, sua expressão ascética escondendo completamente
qualquer emoção.
O problema era Col, que não tinha experiência nem barba.
Lawrence encontrou seus olhos e percebeu que Col poderia
começar a tremer de medo a qualquer momento.
“Um mercador viajante?” perguntou o monge mais velho e gordo,
ainda parado na porta. Talvez ele considerasse impura a casa de um
pastor.
“Isso mesmo. Ficamos aqui porque não conseguimos encontrar
um quarto em outro lugar.”
“Entendo. Então você está com os Ruviks?”
“Não. Estou ligado à Companhia de Comércio Rowen.”
“Hn.” O monge assentiu e fungou. Era possível que a expressão
fosse apenas o som do ar sendo expelido pela carne gordurosa em volta
do pescoço enquanto ele assentia; em todo caso, a impressão não foi
boa.
“Posso perguntar qual é o problema?”
CAPÍTULO V ⊰ 216 ⊱

A atmosfera estava tensa demais para conversa fiada. Afinal o


monge atrás de Lawrence ainda estava vasculhando bolsas, cobertores
e lenha.
Havia poucas possibilidades. Em primeiro lugar, Huskins era
suspeito de ter encontrado um mensageiro enquanto procurava por
ovelhas perdidas. Sem dúvida, eles pensaram que ele havia ficado
ganancioso e roubado alguma coisa. Tais ocorrências eram bastante
comuns.
“Oh, nada muito fora do comum... Você disse que estava com a
Companhia de Comércio Rowen?”
Lawrence não teve escolha a não ser responder. “Sim.”
“Não me lembro de nossa abadia ter feito qualquer negócio com
essa organização.”
Se ele entrasse em pânico aqui, não teria motivos para reclamar
quando Holo enterrasse o pé em seu traseiro mais tarde.
“De fato. Na verdade, não estamos aqui a negócios.”
“Oh?” disse o monge, estreitando os olhos.
“O Col e eu viemos para a grande Abadia de Brondel na esperança
de receber suas bênçãos.”
“... Você está em peregrinação?”
“Sim.”
Fazia muito tempo que a abadia não recebia peregrinos. Era difícil
acreditar que um mercador viria aqui com uma jovem freira e um
menino em peregrinação.
O monge sorriu, mas não com os olhos. “Falando em Rowen,
parece que me lembro de ter ouvido esse nome do outro lado do
estreito. Existem algumas igrejas e abadias famosas por lá, não é?
Abadia do Santo Liebert, Abadia Kieak, a Igreja de Gibralta. Ou
Ruvinheigen.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 217 ⊱

Dado o outro monge vasculhando o dormitório atrás deles, as


perguntas eram um interrogatório óbvio.
“Ouvimos falar de uma relíquia sagrada.”
“Uma relíquia sagrada,” o monge repetiu categoricamente.
“Sim. Ouvi dizer que este lugar tem amor pelas ovelhas, assim
como por Deus. Talvez parecesse mais adequado do que os outros
lugares que você acabou de citar, para um mercador como eu.”
O monge riu em resposta à leviandade, mas seu olhar permaneceu
fixo em Lawrence. O outro monge foi para a próxima sala.
Os pertences de Lawrence estavam lá, mas como a maioria dos
mercadores, ele tinha o hábito de manter itens perigosos consigo. Eles
poderiam virar a sala de cabeça para baixo, e ainda não teria nada a
temer.
“Entendo... Bem, você parece um comerciante bem viajado. Que
as bênçãos de Deus estejam com você!”
O monge certamente estava sendo sarcástico, mas Lawrence
assentiu humildemente de qualquer maneira.
“Marcos!” o monge mais velho gritou, e o mais novo saiu correndo
do quarto, como um cachorro chamado por seu dono.
Esses monges dificilmente pareciam passar seus dias rezando
silenciosamente; pareciam mais mercenários bem treinados.
“Você encontrou algo?”
“Nada.”
“Entendo.”
Lawrence se perguntou se os monges estavam tendo essa conversa
abertamente na frente dele, Col e Holo para intimidá-los. Ou talvez
eles estivessem apenas tentando limpar um pouco sua barra, não tendo
encontrado nada.
Em todo caso, o perigo parecia ter passado.
CAPÍTULO V ⊰ 218 ⊱

Ou então pensou Lawrence.


“O cuco põe seus ovos nos ninhos de outras aves. Procure nestes
dois.”
Um ex-comerciante — mas quando Lawrence percebeu a
verdadeira natureza do monge mais velho, já era tarde demais.
O monge chamado Marco olhou para trás e para frente entre
Lawrence e Holo, um olhar lascivo passando por seu rosto. Ele passou
por Lawrence e se aproximou de Holo.
“Em nome de Deus, por favor, aceite isso.” Suas palavras foram
educadas, mas isso só o fez parecer mais com uma cobra.
Sob o manto de Holo estava sua cauda, e sob seu capuz estavam
suas orelhas de loba. Seu rosto estava sereno como o de uma santa
diante do martírio, mas Lawrence não se sentia tão calmo.
Marco deveria ter verificado as mangas primeiro, mas ele desceu
direto dos ombros ao longo do seu perfil.
Holo se encolheu quando suas mãos alcançaram o peito dela.
“O que é isso?” ele disse. Observando a bolsa de trigo pendurada
em seu pescoço deixava claro que tipo de método sua busca usava.
“Trigo?”
“É um amuleto…”, Holo respondeu com uma voz trêmula, o que
trouxe um sorriso sadicamente obsceno ao rosto de Marco. Lawrence
sentiu os punhos cerrados, mas se conteve.
Se Holo podia suportar isso, ele também suportaria, para que todo
o esforço deles não fosse em vão.
Enquanto sua mão continuava deslizando pelos flancos de Holo, a
diferença em suas alturas forçou Marco a se agachar. Se ele movesse as
mãos atrás dela, a cauda dela estaria bem ali.
Holo seria capaz de enganá-lo?
A única coisa que permitiu a Lawrence conter sua raiva foi essa
incerteza.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 219 ⊱

Então, quando as mãos de Marco começaram a se curvar ao redor


da cintura de Holo—
“O qu... uuh...”
Um pequeno soluço foi ouvido. O rosto de Holo estava abatido
enquanto Marco acariciava sua cintura descaradamente. Ele olhou para
cima e estalou a língua.
Lágrimas caíram dos olhos de Holo. Ela segurou a bolsa de trigo
como se estivesse agarrando sua alma.
Parecendo decidir que a diversão havia acabado, Marco tirou as
mãos de Holo, verificando rapidamente as mangas antes de se levantar.
“Deus provou sua inocência.”
Holo assentiu humildemente.
Lawrence tinha certeza de que ela não estava chorando de fato,
mas ela fingiu de forma magnífica. Mas esse alívio durou pouco.
Com Holo revistada, ele certamente seria o próximo.
“Se você me der licença.” A expressão nos olhos de Marco era
diferente agora. Ele não tinha motivos para se conter ao revistar
Lawrence, e ele era o maior suspeito.
Ele tinha várias cartas no bolso da camisa. Se o pergaminho com o
aviso de tributação fosse encontrado, tudo estaria perdido.
Se ao menos ele tivesse uma chance de se livrar dele.
No momento em que a mão de Marco estendeu a mão para
Lawrence, Lawrence encontrou os olhos de Holo.
“Cuidado!” Lawrence gritou, passando por Marco para chegar ao
lado de Holo. Quando ele trocou olhares com ela, Holo assentiu
minuciosamente, então agarrou a bolsa chorando como se estivesse
rezando para Deus, então cambaleou instável, seu estresse
aparentemente fazendo com que ela desmaiasse — e ela começou a
cair na direção da lareira.
CAPÍTULO V ⊰ 220 ⊱
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 221 ⊱

Lawrence jogou os braços em volta dela e os dois caíram no chão.


Eles ganharam um momento.
Mas o que fazer a seguir? O que poderia ser feito? Lawrence
pensou freneticamente enquanto segurava Holo em seus braços.
Passos se aproximaram e alguém parou imediatamente atrás dele.
Ele não seria capaz de enganá-los por muito mais tempo.
“Ela está machucada?” Marco teve a ousadia de perguntar, como
se estivesse preocupado.
Mas é claro que Lawrence não podia se permitir ficar com raiva.
“Ela está segura”, disse Lawrence, sentando-se. Holo estava fingindo
inconsciência, com os olhos fechados.
Os passos atrás dele eram de Col. Ele ajudou Lawrence a sustentar
Holo.
“Vamos levá-la para o outro quarto.”
Com a ajuda de Col, Lawrence carregou Holo para o quarto ao
lado e a deitou na cama. Marco os observou cuidadosamente o tempo
todo, e não houve oportunidade para Lawrence remover a carta e
escondê-la em outro lugar.
O estômago de Lawrence se revirou enquanto tentava
freneticamente pensar no que fazer.
“Você já terminou?” Marco perguntou impiedosamente, e
Lawrence não teve escolha a não ser obedecer, como uma ovelha.
“Certo, tire o casaco.”
Lawrence lentamente tirou o casaco e o entregou a Marco.
Marco o sacudiu, verificou os bolsos e procurou no forro qualquer
coisa que pudesse estar escondida ali. Ele não era um amador nisso.
“Próximo.”
Querido Deus! Lawrence gritou em seu coração, tentando manter
a compostura enquanto removia a roupa que continha a carta, e
então...
CAPÍTULO V ⊰ 222 ⊱

“Tudo bem.” Marco terminou de revistar a peça da mesma forma


e depois a devolveu a Lawrence. “Deus revelou a verdade.”
Com essas palavras, ele se virou para enfrentar o monge mais
velho com seus resultados.
“Lamentamos tê-lo incomodado. Deus certamente recompensará
a fé que você demonstrou em sua peregrinação.”
Com essas palavras vazias, os dois monges partiram. Huskins os
viu sair do corredor e depois voltou, e Col fechou a porta atrás de si.
Todos os três deram um suspiro de alívio.
“Sinceramente, nunca notei”, disse Lawrence para uma Holo
sorridente enquanto se aproximava do quarto e se encostava no
batente da porta.
“Então você pensou que eu estava apenas chorando o tempo todo?
Engraçado —”
Holo tirou as cartas do bolso da camisa e as soltou no ar enquanto
se aproximava de Lawrence. “Eu tinha certeza que você havia notado.”
Essa foi a razão pela qual Holo agarrou sua bolsa de trigo e
manteve as mãos no peito como se fingisse rezar.
Lawrence deu um sorriso forçado; se era ou não o plano de Holo,
se ele não a tivesse olhado naquele instante, não havia como dizer o
que poderia ter acontecido. A percepção fez com que outra onda de
medo o atingisse.
“Ah, bem, nós nos safamos, então suponho que isso não importa.
E também pude ver sua cara de idiota.”
Holo cutucou seu peito e, surpreendentemente, foi Huskins quem
riu baixinho. Parecia uma tosse quando ele se sentou perto da lareira.
“Desculpa”, disse ele. O breve pedido de desculpas era apenas
mais embaraçoso.
Holo não pareceu se importar, mas Lawrence ficou vermelho.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 223 ⊱

“Mesmo assim, a abadia agora pode enviar homens para encontrar


os mensageiros.” Somente quando Huskins voltou ao assunto em
questão, Lawrence conseguiu recuperar a compostura.
“Eles vão voltar amanhã?”
“Há uma grande distância envolvida, e o sol logo estará se pondo.
Será amanhã à noite ou possivelmente no dia seguinte... então o que
acha? As coisas vão correr bem?”
“Não posso garantir isso. Mas eu tenho fé no homem que eu pedi
ajuda.”
“Entendo… Mesmo assim…” Lawrence estava prestes a
perguntar a que Huskins estava se referindo, mas Huskins balançou a
cabeça e olhou para baixo, continuando. “Eu não deveria ter duvidado
de você. Os humanos são muito espertos. Eu só não queria admitir isso
por orgulho. Ou inveja”, disse Huskins, se divertindo.
Nesse momento, o som de passos chegou aos ouvidos de
Lawrence — passos fortes, que se dirigiam em sua direção com certa
pressa.
Lawrence muitas vezes prendia a respiração e ouvia atentamente
os passos de bandidos ou lobos, então ele geralmente sabia se eram
amigos ou inimigos. E este era um amigo.
Houve uma batida na porta e, quando Col a abriu, Piasky estava
lá.
“Sr. Lawrence.” Suas bochechas estavam rosadas como as de uma
criança. “Eu encontrei.”
Lawrence trocou um olhar com Holo e Col e, de pé, olhou para
Huskins.
Mas Huskins apenas apontou para a equipe ao lado dele e balançou
a cabeça, como se dissesse: “Pedi sua ajuda, então confio em você”.
Lawrence assentiu e falou com Piasky. “Posso trazer meus
companheiros?”
CAPÍTULO V ⊰ 224 ⊱

“Eu não me importo. Muito pelo contrário, por favor. Eu vi


monges da abadia aqui há pouco?”
“Sim. Eles foram extremamente desagradáveis.”
O sorriso de Piasky tinha uma inocência infantil. “Foram? Mesmo
assim, presumo pelo que você disse que o resultado foi agradável.
Estou encorajado por eles já estarem aqui. Ou talvez seja o oposto.”
Quando Lawrence e seus companheiros começaram a andar, Piasky
continuou: “Se vamos atacar, devemos fazê-lo agora”.
O sol estava prestes a se pôr.
Quando saíram, a neve havia parado completamente.
O escritório de Piasky estava lotado de comerciantes excêntricos.
Não parecia ser por falta de parceiros comerciais, mas alguns deles
tinham barbas enormes, e um deles deixara o cabelo crescer como um
cavaleiro vaidoso.
Seguindo Piasky, Lawrence trouxe Holo e Col para a sala, onde
um leve apito os saudou.
“Os dois monges que o visitaram são especialmente odiados na
pousada da aliança”, Piasky explicou por cima do ombro para
Lawrence, apoiando a mão em uma mesa no canto da sala.
“Perguntando constantemente se seus mensageiros chegaram ou se
recebemos suas cartas. Eles até tentaram mexer nas nossas coisas.
Suponho que isso mostre como eles estão desesperados. A abadia deve
estar preocupada que, se o rei planeja decretar um imposto, ele o fará
em breve.”
“Entendo. Então eles acham que o perigo é iminente.”
Piasky olhou brevemente para baixo para indicar concordância,
um gesto que fez Lawrence sentir como se estivessem comunicando
seus pensamentos mutuamente em um lugar escuro onde nenhum som
poderia ser feito.
“Então, o que você encontrou?”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 225 ⊱

“Como estávamos desconfiados desta vez, não foi difícil. Afinal,


quando algo caro é comprado, a única maneira de escondê-lo é com
uma venda igualmente cara. No entanto, isso é apenas uma suposição
— parece que o encontramos. Não podemos ter certeza.”
Confirmar as suspeitas de Piasky sobre o que estava escrito no
livro exigiria a ajuda de Lawrence.
“Em particular, seus gastos regulares são menos distintos e mais
fáceis de esconder. Tentar esconder um custo único é muito mais
evidente. Concretamente falando, tais coisas são mantos e outros
objetos para os monges, materiais de construção, custos de alvenaria e
temperos para os banquetes periódicos de boas-vindas que eles têm.”
Enquanto falava, Piasky retirou as seções relevantes e as entregou
a Lawrence.
Lawrence olhou para eles e teve que admitir que não poderia
acompanhar. Eles pareciam livros perfeitamente comuns.
“Nossa vantagem é ter muitos comerciantes. Com tantos olhos e
ouvidos, podemos reunir informações de lugares separados por
grandes distâncias. A especiaria vinha de duas cidades diferentes e essa
era a chave.”
“O que significa?”
“Na hora da compra, não era só o açafrão que chegava à cidade.
Um camarada meu estava lá na hora, sabe. O navio em que estava foi
atrasado por uma tempestade. Os mercadores reais que lidavam com
importações e exportações sabiam qual era o objetivo do mosteiro e
conseguiram transformá-lo em vantagem. Se eles pagassem dinheiro
por caixotes vazios, isso poderia ser usado para cobrir uma despesa
maior em algum lugar. Mas isso acabou sendo sua ruína.”
Uma vez que uma única mentira era descoberta, todas as outras
mentiras podiam ser vistas.
Simplesmente descobrindo que uma remessa havia sido ocultada
em um pagamento indevido, tudo o que era necessário era aplicar um
raciocínio inteligente.
CAPÍTULO V ⊰ 226 ⊱

“Os gastos com esses itens ficaram acima do valor de mercado.


Então as caixas realmente estavam vazias. Havia itens lá que nem nós
entendíamos. Mesmo assim —”
“— Isso é mais do que suficiente,” concluiu Lawrence,
devolvendo o pergaminho a Piasky. “Então, hoje à noite?”
“Se a abadia principal está se dando ao trabalho de enviar monges,
eles devem estar em estado desesperador. E podem até ter enviado
pastores para encontrar os mensageiros.”
Huskins havia dito isso.
A expressão de Piasky era tensa. “Se estiver pronto, Sr. Lawrence,
os encarregados estão todos reunidos.”
Lawrence olhou para Holo e Col, que o flanqueavam. Os dois
assentiram lentamente. “Está bem.”
“Bem, então”, disse Piasky, levantando-se da mesa em que estava
apoiado. “Vamos.”

Entrando na pousada da aliança, a atmosfera havia mudado.


Um calor estranho o inundou, como se muitos troncos tivessem
sido jogados na lareira. Talvez tenha sido um efeito colateral daqueles
dois monges vindo causar problemas. Sempre que os monges agiam de
forma tão arrogante, até mesmo o mercador mais sonolento buscava
sangue, como um lobo — porque agir de forma tão imprudente
exalava injúria e fraqueza.
Dado que a cidade estava cheia de pessoas procurando a ferida da
abadia — para melhor agarrá-la em suas mandíbulas — ou
simplesmente esperando ver o show, a atmosfera aquecida não era
surpreendente.
Então, quando Piasky levou Lawrence e seus companheiros para a
sala, os olhares de todos os presentes caíram sobre eles.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 227 ⊱

Um mercador estrangeiro, uma garota vestida de freira e um


garotinho parecendo estar perdido — todos foram conduzidos por
Piasky até a pousada e subindo as escadas e, enquanto avançavam,
todos os presentes na pousada não puderam deixar de se perguntar:
Será que eles encontraram algo?
Os olhares ciumentos pareciam queimaduras de frio. Lawrence se
coçava sob eles; não havia como dizer o quanto Holo era afetado. E
não era surpreendente que Col não se atrevesse a olhar para cima.
“Aqui estamos.” Piasky parou em frente a uma sala bem no centro
do terceiro andar. O jovem mercador endireitou o colarinho e bateu.
“Com licença.”
Entrando na sala, os aromas de mel e leite misturados com
especiarias chegaram ao nariz de Lawrence.
Era o cheiro de homens que insistiam que comida sem temperos
como pimenta e açafrão não era comida para humanos.
Sentados ao redor da grande mesa redonda, no meio da espaçosa
sala, estavam quatro homens de meia-idade. Cada um deles tinha a
aparência de um homem que possuía sua própria grande loja, e todos
pareciam bastante cansados da vida nesta abadia coberta de neve.
No entanto, o fato de nenhum deles sequer ter olhado para Piasky
ou Lawrence não tinha nada a ver com isso.
“Eu, Lag Piasky, me apresento humildemente.”
“Não há tempo. Poupe-nos de suas apresentações.” Um homem
atarracado e bem alimentado, cujo cabelo estava enrolado em volta das
orelhas, fez um gesto para que Piasky parasse, depois estreitou os olhos
e olhou para Lawrence. “Então você é da Rowen, hein?”
“Sim.”
“Hum.” O homem perguntou o que queria, mas não deu resposta.
Os outros homens à mesa ficaram sentados observando Lawrence,
nem sequer pegaram suas bebidas.
CAPÍTULO V ⊰ 228 ⊱

“Posso falar?” disse Piasky, destemido, ao que o homem levantou


a mão como se lhe dissesse para continuar. “Obrigado por nos poupar
um pouco do seu tempo para nos ouvir. Primeiro, isto...” ele disse,
tirando um maço de pergaminho de debaixo do braço, ao que um servo
encostado na parede veio recebê-lo.
Foi colocado como um prato na mesa redonda, onde cada homem
estendeu a mão preguiçosamente para pegar um pergaminho, seus
olhos se estreitando enquanto olhavam para os caracteres.
“Cópias do livro deles, hein? E daí?” disse outro homem, este
magro e de aparência nervosa, parecendo já entediado. Seus olhos
estavam fundos e as rugas ao redor deles pareciam quase escamosas.
Os outros homens tiveram uma reação semelhante e, depois de
dar uma olhada nos pergaminhos, eles os jogaram de volta na mesa.
“Houve um pagamento por caixotes vazios. Também descobrimos
pagamentos de vários itens acima do valor de mercado.”
Os quatro homens não se incomodaram em olhar. Um deles falou
com Piasky, evidentemente agindo como representante de seu
consenso. “Essa não é uma ocorrência tão rara em lugares incapazes de
escapar do jugo da tributação.”
“Sim, claro.”
“Então, qual é o significado de nos mostrar isso agora?”
Piasky respirou fundo, perfurado pelo olhar do homem. Agora era
a hora de Lawrence falar.
“Acreditamos que a abadia está tentando esconder não seus
ganhos, mas suas despesas.”
Os olhares dos quatro homens se fixaram no estranho que falou
— embora fosse muito cedo para dizer se por interesse ou raiva.
“Despesas?”
“Sim”, respondeu Lawrence, ao que outro homem falou.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 229 ⊱

“Você disse que era da Rowen. Você fala em nome de Lord


Goldens?”
Esse era o nome do homem que controlava a Companhia de
Comércio Rowen de um assento em sua própria mesa redonda. Ele
estava muito, muito acima de Lawrence, possivelmente até páreo para
os homens sentados ao redor desta mesa.
“Não, não estou.”
“Então, por quem?” Talvez suspeitando de outra organização
tentando meter o nariz, o tom do homem foi extremamente duro.
Deles era a bandeira da lua e escudo. Nenhum membro da guilda
teria permissão para desafiar esse estandarte.
“Permita-me corrigir. Sou um mercador ambulante desgarrado.”
“E como vamos acreditar nisso?”
Claro.
“Perdoe-me”, disse Lawrence, pegando a adaga em sua cintura.
Ele puxou-a da bainha e sem hesitar colocou a ponta na palma da mão
esquerda. “Se você me der um pergaminho, ficarei feliz em assinar com
sangue.”
Se um mercador viajante deixasse sua guilda, ele não teria para
onde ir.
Três dos quatro homens se viraram com desdém imediato.
“Você aí.” O quarto fez um gesto com o queixo para o criado
encostado na parede, que imediatamente saiu da sala.
Talvez ele tenha sido enviado para buscar um curativo.
“Às vezes você deve correr riscos enquanto é jovem o suficiente
para fazê-lo. Vou ouvir sua história por respeito ao seu nome, não à
Rowen.”
Se Lawrence não tivesse sorrido, estaria mentindo. “Meu nome é
Kraft Lawrence.”
CAPÍTULO V ⊰ 230 ⊱

Quando o servo voltou com a bandagem, Holo puxou a mão de


Lawrence e começou a enfaixá-la, e ele sabia que ela não teria feito
isso a menos que estivesse avaliando bem o seu desempenho.
“Kraft Lawrence, o que você e nosso próprio Lag Piasky
concluíram? Você disse que a abadia está escondendo suas próprias
despesas. Tanto quanto pagar por caixotes vazios ou pagar acima do
valor de mercado, essas coisas não são tão incomuns no contexto do
pagamento de impostos reais. Não merece nenhuma atenção especial.”
“Verdade, se eles estivessem apenas fugindo da tributação.”
“E o que mais eles podem estar escondendo?”
Tendo terminado de atar sua mão, Holo deu um tapinha leve,
como se o encorajasse. Animado, ele respondeu.
“A compra de um item caro. Algo cuja existência tinha que ser
mantida em segredo.”
Os quatro homens trocaram um breve olhar. “Um item? Que tipo
de item seria esse?”
O interesse deles foi despertado.
Lawrence apertou a mão esquerda agora que Holo a enfaixara.
“Os ossos de um lobo. Os restos mortais de uma criatura conhecida
como deus pelos pagãos que infestam as terras do norte.”
Ele havia dito.
Lawrence respirou fundo. Se não insistisse no assunto, suas
palavras seriam descartadas como uma piada.
“Este não é um rumor infundado. Do outro lado do estreito fica a
cidade portuária de Kerube, onde a Companhia Jean administra uma
loja. Suspeito que você já deve ter ouvido falar disso, mas não faz muito
tempo houve um grande clamor sobre um narval e nesse redemoinho
a Companhia Jean ofertou mil e quinhentos lumione.”
Os quatro homens ficaram em silêncio.
Lawrence respirou fundo e continuou.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 231 ⊱

“Eles receberam apoio da Companhia Debau na cidade de Lesko,


acima do rio Roef, um afluente do rio Roam. O objetivo deles era nada
menos que a compra desses mesmos ossos de lobo.”
A única preocupação de Lawrence era que ele estava falando
rápido demais.
Tirando isso, estava confiante.
Ele tinha certeza de que os superiores da Aliança Ruvik ouviram
falar dos rumores sobre os ossos de lobo e, sem dúvida, estavam
cientes da Companhia Debau, que controlava as minas do norte.
Mesmo que não acreditassem nele imediatamente, teriam de
admitir que Lawrence estava incluindo muitos detalhes para que sua
história fosse simplesmente inventada. Disso ele tinha certeza.
“Então, o que você conclui sobre isso?”
Mas não houve resposta. A sala estava impregnada de uma
preguiça que parecia quase cansaço.
Piasky olhou para ele. Não havia mais nada a dizer? Se eles não
conseguissem convencer esses homens, nenhum outro progresso seria
possível.
Lawrence estava prestes a abrir a boca nervosamente, mas foi
interrompido por Holo.
“Se você tiver alguma ideia, por favor, diga-nos.”
Todos os quatro olharam para Holo, chocados. Mas a sábia loba
não se intimidou.
“Deus nos disse para nunca fingir desinteresse.”
Só um bobo da corte ou um tolo faria uma piada em um lugar
como este. Os quatro homens sentados ao redor da mesa não eram
falsamente orgulhosos — sua confiança era totalmente justificada.
Mas isso só era verdade no mundo secular, e havia um fato
impiedoso que se aplicava à situação atual. Esta era uma abadia, e os
CAPÍTULO V ⊰ 232 ⊱

monges aqui rezavam para um ser acima até mesmo de criaturas como
Holo e Huskins — o único Deus verdadeiro!
“Senhorita... não, com licença, irmã devota que vive de suas
orações diárias — o que você quer dizer?”
“Deus é um ser cujos poderes superam em muito os do homem.
Embora meus olhos estejam escondidos pelo capuz que uso e embora
minha cabeça esteja sempre abaixada, confiar no poder de Deus torna
simples ver através de tudo isso”.
A estranheza tinha seu próprio poder.
Até mesmo a aura avassaladora que emanava invisível dos quatro
sentados à mesa vinha não apenas do respeito de Lawrence e Piasky,
mas também de sua própria crença em seu valor.
Para alguém simplesmente não reconhecer isso, ela era uma tola
atrofiada ou — ou alguém que vivia de acordo com uma filosofia
totalmente diferente.
“Bem... obrigado por suas considerações, irmã.”
Quando um homem poderoso se deparava com um rapaz imberbe
que falava descaradamente, era bastante simples colocá-lo de volta em
seu lugar com uma ou duas palavras duras. Mas quando era uma
menina, palavras duras podiam fazer alguém parecer pior.
Uma mera garota precisava ser tratada com um sorriso indulgente
e uma risada condescendente antes de colocá-la no canto como uma
flor em um vaso.
O próprio Lawrence até recentemente trabalhara sob tais
equívocos, mas não podia se permitir rir desses homens que agora
estavam presos no mesmo lugar com seus sorrisos rígidos.
“Então, devo perguntar de novo?”
Quatro rostos rígidos ficaram vermelhos e, como estavam todos
muito pálidos para começar, isso era ainda mais perceptível.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 233 ⊱
CAPÍTULO V ⊰ 234 ⊱

Eles estavam presos entre sua estatura, bom senso e sua própria
dignidade.
Mesmo um cobertor pobre esquentaria quando esfregado.
Holo estava planejando irritá-los e então esperar até que
explodissem antes de derrubá-los e forçá-los a ouvir?
Isso funcionaria em muitas situações e, se funcionasse aqui, teria
sido uma façanha.
Mas essa não era uma briga de criança. Lawrence estava prestes a
falar quando...
“Não”, disse um dos homens de rosto vermelho com os lábios
cerrados. “Está tudo bem.”
Ele levantou a mão direita até a altura do ombro, ao que o servo
estacionado contra a parede rapidamente lhe entregou um lenço
branco.
Depois de uma rápida assoada no nariz, seu rosto quase
magicamente recuperou sua cor anterior. “Vai ficar tudo bem.
Simplesmente me lembrei de algo de vinte e dois anos atrás.”
Outro homem sentado ao redor da mesa levantou uma
sobrancelha.
“Isso me lembrou de minha esposa quando ela e seu dote se
juntaram à minha casa. A lógica não é o único caminho para a verdade.”
Um estrondo forte chegou aos ouvidos de Lawrence, e ele
percebeu que eram os quatro homens rindo.
“E, de fato, as decisões de negócios comuns muitas vezes superam
a mera lógica. Cavalheiros,” ele disse como se estivesse fazendo uma
proclamação em uma mesa redonda. “Posso fazer a pergunta final?”
“Sem objeções”, disseram os outros três homens depois de
chegarem a um consenso.
O homem voltou seu olhar para Lawrence. “Em relação a tudo
isso, Kraft Lawrence, gostaria de lhe perguntar uma coisa.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 235 ⊱

“Sim?” Suas mãos estavam úmidas de sangue e suor.


“Por favor, diga, o que você descobriu que lhe dá tanta confiança
nesta história?”
Lawrence imediatamente enfiou a mão no bolso da camisa e tirou
uma única carta. Era o trunfo que mostrava que a história dos ossos de
loba não era um mero conto de fadas.
Em sua mão estavam as assinaturas de Kieman e Eve, ambos
nomes bem conhecidos no Estreito de Winfiel. Eve era até uma ex-
nobre desta terra.
Ele tinha essas assinaturas e a palavra de Eve de que ela tinha
ouvido falar da abadia comprando os ossos de lobo. E para encerrar
tudo isso, ele tinha um nome.
“Esta carta me foi dada por Fleur von Eiterzental Mariel Bolan.”
Um nome longo era a prova de nobreza, mas apenas para aqueles
que podiam entender o significado que ele tinha.
As sobrancelhas de dois dos homens à mesa se ergueram, e
Lawrence olhou para a folha de pergaminho que estava sobre a mesa.
Saber que tipo de comerciante Eve era deveria ser de
conhecimento comum para qualquer um que fizesse negócios em
Winfiel. E ali estava um mercador viajante a quem ela dera seu nome
completo.
Dois dos homens na mesa trocaram um olhar, e então três deles
assentiram ligeiramente.
No momento em que Lawrence ousou pensar que havia vencido...
“Algo mais?”
“—?” Lawrence quase repetiu a pergunta, mas conseguiu se
conter com uma tosse curta.
Ele limpou a garganta várias vezes antes de apontar para a mesa
com a mão vazia para se desculpar, hábitos inconscientes que lhe foram
inculcados ao longo de anos de negociações.
CAPÍTULO V ⊰ 236 ⊱

A mente de Lawrence era como uma folha de papel em branco.


“Algo mais?” perguntou o homem aparentemente mais importante
da mesa.
Isso não foi o suficiente?
Lawrence jogou seu trunfo — e no melhor momento possível,
nas melhores circunstâncias possíveis. Se isso não bastasse, não havia
mais nada que ele pudesse fazer.
Olhares penetrantes o observaram da mesa redonda.
“A Loba e o Olho de Águia — é verdade que os nomes de dois
desses mercadores famosos têm algum peso. Mas se devemos basear
nossas decisões nos pesos dos nomes, há outros a quem devemos
prestar atenção. Mesmo agora.”
As negociações eram o campo de batalha dos mercadores.
Assim como um momento de desatenção de um soldado pode
convidar a morte; da mesma forma, se um comerciante se distraísse
durante uma negociação, o contrato poderia ser perdido.
Os olhos de Lawrence estavam olhando para outro lugar no
momento em que os homens responderam, e assim ele foi morto por
aqueles que estavam sentados à mesa redonda. Sua confiança em si
mesmo se foi, e as palavras de outro o fizeram parecer um tolo.
Suspiros eram audíveis da mesa redonda. Lawrence podia ver
Piasky abrindo a boca para falar. Parecia que o horizonte estava
mudando loucamente e o tempo estava acabando.
Se os nomes de Kieman e Eve não pudessem ganhar a confiança
deles, não havia nada a ser feito.
Eles falharam.
Então, quando Lawrence estava murmurando mentalmente tudo
isso para si mesmo —
“Lawrence.”
Era uma voz familiar, dizendo uma coisa muito estranha.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 237 ⊱

Ele olhou, e era Holo ao lado dele.


Holo fixou Lawrence firmemente em seu olhar, seus olhos
exasperados.
Ele podia ouvir o som de vários itens sendo retirados da mesa e o
som da porta da sala abrindo e fechando.
Mas Lawrence continuou olhando para os olhos de Holo — para
aqueles olhos âmbar exasperados e tingidos de vermelho.
Sempre que aqueles olhos fitavam Lawrence, eles sempre tinham
a resposta. Lawrence simplesmente não havia percebido ainda, mas a
resposta simples, quase completa, estava sempre ali.
Essa luta não acabou. Ele só tinha que acreditar nisso.
Tome a iniciativa! Pense na conversa!
Lawrence usou seu cérebro. Não havia tempo — mas os
comerciantes são notoriamente ruins em desistir.
“Espere...!” ele gritou tão alto quanto sua voz conseguia.
Todos os presentes se encolheram e olharam para ele. Eles
pareciam tão surpresos quanto ficariam se um homem morto tivesse
voltado à vida — o que não estava muito longe da verdade. Um
mercador viajante cujo olhar vacila no meio de uma negociação era um
cadáver em decomposição.
Após a explosão de Lawrence, nenhuma outra palavra surgiu,
então os olhos e ouvidos reunidos foram tratados com silêncio.
Mas sua mão esquerda latejando nervosamente era a prova de que
ele ainda estava vivo. E a mão que segurou a sua o lembrou de que ele
não estava sozinho.
“Eu vi um lobo.”
Foi apenas um momento, mas o silêncio pareceu durar uma
eternidade.
“Um lobo?”
CAPÍTULO V ⊰ 238 ⊱

“Um lobo gigante.”


Lawrence não tinha muita certeza de porque escolheu essas
palavras. Ele só tinha certeza de que eram as palavras certas, e foi por
isso que conseguiu dizê-las.
Essa era a resposta desde o início. O que os homens ao redor da
mesa disseram quando decidiram ouvi-lo pela primeira vez? Disseram
que respeitariam seu nome.
Não é de admirar que Holo tenha ficado exasperada com ele
revelando um pergaminho com nomes de outras pessoas. Eles não
queriam que ele apresentasse provas; em vez disso, eles queriam ouvir
a razão pela qual ele pessoalmente tinha tal convicção.
“Esse lobo é o motivo de eu estar viajando. Aquele lobo gigante.”
Ele se perguntou se eles pensariam que havia enlouquecido de
nervosismo. Ou se pensariam que ele estava tentando chamar a
atenção com uma afirmação absurda.
Em circunstâncias normais, sua incerteza teria aparecido em seu
rosto. Mas como ele não estava mentindo, não havia necessidade de
incerteza.
“... Você nasceu no norte?” um dos homens perguntou.
“Esses dois sim.” Lawrence indicou Holo e Col, e os quatro
homens estreitaram os olhos como se olhassem para algo distante.
Como se Holo e Col estivessem realmente nas distantes terras do
norte.
Piasky parecia estar agonizando sobre quando falar.
O próprio Lawrence sentiu como se estivesse pisando em gelo
fino sem olhar para os pés, então não é de admirar que fosse assustador
demais para qualquer outra pessoa assistir.
Os quatro homens fecharam os olhos e ficaram em silêncio.
Lawrence ficou lá, de pé. Não havia lógica no que ele estava
fazendo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 239 ⊱

“Entendo”, disse um brevemente, quebrando o silêncio.


“Entendo. Suponho que isso também seja o destino.”
“Que as bênçãos de Deus estejam sobre nós!”
Lawrence tinha certeza de que não era o único que achava essa
resposta sinistra.
Quatro homens sentaram-se à mesa redonda, homens cujas roupas
estavam impregnadas com o cheiro de pimenta e açafrão, seus tons
refinados e fluidos.
“A verdade sempre será revelada. Não importa quão
extraordinária possa ser.”
“…O qu-?”
“Estávamos esperando. Ou talvez não seja bem isso, talvez seja
melhor dizer que não conseguimos nos decidir.”
“O que você quer dizer…?” Lawrence e Piasky murmuraram e se
entreolharam.
Eles podem ter vacilado um pouco com a idade, mas as orelhas
dos homens ao redor da mesa ainda estavam em bom estado.
“Fomos informados de que a Abadia de Brondel comprou os ossos
de um lobo. Mas a decisão de agir trouxe consequências pesadas
demais para nós quatro suportarmos. Não podíamos nos comprometer
com a decisão. Veja...” O homem olhou para Lawrence, mas, embora
seu olhar fosse severo, também era gentil. “... Estamos velhos e
desenterramos as informações com ferramentas enferrujadas e não
podíamos confiar nelas. Mas se alguém mais jovem chegasse à mesma
conclusão sem depender apenas da lógica, poderíamos acreditar.”
“E-então…”
“Sim. Sabemos que Abadia de Brondel está encurralada. Não há
mais tempo. Mas se eles realmente compraram os ossos de lobo, há
uma ação que podemos tomar.”
Os quatro homens sorriram com sorrisos cansados.
CAPÍTULO V ⊰ 240 ⊱

“A guerra tem sido difícil para velhos como nós. Quando você
chega nessa idade, você luta com truques sujos”.
“É verdade! Nosso oponente não tem falhas, mas esta informação
será um veneno fatal para a abadia.”
Os homens à mesa de repente começaram a falar como homens
de sua idade fariam.
Piasky olhou para baixo e Lawrence se viu fazendo o mesmo. Holo
inclinou a cabeça para um lado e, embora Col não parecesse entender
muito bem, ele parecia aliviado.
Lawrence sentiu uma amargura ao ter de dizer essas palavras a
alguém que não fosse Holo. Os homens à mesa possuíam astúcia para
apoiá-lo, e bolsos fundos o suficiente.
“Bem, então”, Lawrence e seus companheiros não tiveram escolha
a não ser dizer. “Por favor, deixe isso conosco.”
Os velhos estavam agindo por interesse próprio e praticidade.
Eles poderiam usar Lawrence e seus companheiros para agir em
seu lugar. E Lawrence, por sua vez, estava no caminho do sucesso. A
relação não era tão simples como agressor e vítima.
Lawrence foi atraído por Holo apenas por esse motivo perverso
— ela não era tão fácil de lidar.
E Lawrence por fim falou.
“Aliás, eu também tenho isso.” Ele tirou outra carta do bolso da
camisa.
Este trazia o selo do rei de Winfiel e era uma declaração de
impostos.
“Isso é... mas... como você...?”
Foi a vez de Lawrence sorrir e responder à pergunta com silêncio.
Limpando a garganta, ele continuou: “Acredito que este decreto de
tributação pode levar a um dos seguintes resultados.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 241 ⊱

Quando Lawrence assumiu o centro do palco e começou a falar,


os quatro homens não puderam deixar de lhe dar toda a atenção.

A forma tradicional de evitar impostos era simplesmente alegar


não ter o dinheiro.
O imposto não podia ser cobrado quando não havia nada para
coletar, e uma nação onde casas e bens eram constantemente
apreendidos era uma nação que ninguém visitaria.
Mas dado isso, as pessoas usariam todos os métodos possíveis para
esconder seu dinheiro, iniciando assim a batalha de inteligência entre
o cobrador de impostos e o cidadão.
O dinheiro estava escondido em vasos e enterrado sob as tábuas
do assoalho.
Estátuas de ouro foram envoltas em chumbo. Havia todos os tipos
de métodos, e a riqueza permanecia escondida.
Mover grandes quantias de dinheiro tornaria óbvio, mas mover
pequenas quantias de cada vez para as montanhas, quem saberia? E
sempre havia muito mais contribuintes do que cobradores de
impostos.
Mas o rei, o conselho de anciãos ou a Igreja desistiram da
tributação? Deus sempre abriu outra porta. Não importa quão poucos
coletores de impostos ou quantas moedas fossem enterradas, eles
sempre estavam criando novas maneiras de forçar a tributação.
Claro, usar força bruta era uma faca de dois gumes.
Se você batesse em alguém com um cajado, sua mão doeria onde
você segurava o mesmo cajado. Sempre houve limitações e, com base
nisso, o reino de Winfiel podia se considerar afortunado.
O rei Sufon só cobrava impostos à força quando era absolutamente
necessário — isto é, quando tinha de juntar moedas velhas e cunhar
novas.
CAPÍTULO V ⊰ 242 ⊱

Nessas condições, era proibida a circulação de moedas antigas, o


que significava que as moedas escondidas em garrafas ou enterradas sob
as tábuas do assoalho se tornavam completamente inúteis.
Embora desenterrar essas moedas e derretê-las para obter seus
metais básicos renderia uma certa quantidade de valor, o derretimento
de moedas não era gratuito e os fornos da cidade eram observados de
perto.
Assim, todos traziam suas moedas antigas para a casa da moeda. O
rei então trocava moedas velhas por novas à taxa que quisesse, o que
lhe permitia cobrar um imposto.
“Tradicionalmente, a abadia terá dinheiro. O rei sabe disso, e é
por isso que escolheu esse método. Mesmo um comerciante terá um
pé-de-meia em dinheiro ou bens reais. Duvido muito que eles tenham
certificados.”
“O rei provavelmente está pensando em aproveitar esta
oportunidade para destruir a abadia, que detém tanta influência nesta
área, enquanto simultaneamente nos expulsa de sua nação. Ele vai se
apoderar das terras da abadia em vez de pagar os impostos e depois se
livrar de nós convenientemente eliminando nosso objetivo.
“Ele provavelmente também está pensando em monopolizar o
comércio de lã.”
“Isso é bem possível. Em nenhum outro lugar se negocia tanta lã.
Ele poderia definir os preços como quisesse.”
Lawrence, Holo e Col estavam ao redor da mesa redonda, com
Piasky oposto a Lawrence. No centro da mesa havia um diagrama
ramificado que Lawrence e Col trabalharam a noite toda para
construir.
Mesmo que a pessoa não fosse inteligente o suficiente para
improvisar tais deduções na hora, com tempo e reflexão cuidadosa,
um plano razoável poderia ser formulado.
“Se a abadia não comprou os ossos de lobo, eles poderiam juntar
as moedas para pagar o imposto. Mas se eles não têm dinheiro...”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 243 ⊱

“…Eles vão simplesmente fingir que pagam”, disse Piasky,


concluindo o pensamento de Lawrence. “Eles poderiam simplesmente
encher caixotes com pedras, jogá-los em um vale em algum lugar e
alegar que houve um acidente durante a viagem. Os pastores sem
dúvida conhecem lugares onde tal incidente pode ser encenado, e se
não houver um vale à mão, então um pântano congelado serviria.”
Todos assentiram, e então um dos homens na mesa falou. “Então,
quanto dinheiro eles serão instruídos a mover?”
Por mais brilhantes que fossem, um simples número não seria
suficiente para um grupo de antigos comerciantes que estavam fora do
campo há tanto tempo para realmente entender a quantia.
“Provavelmente não serão exatamente moedas de ouro, então...
hmm. Provavelmente dez ou quinze caixotes, cada um mais ou menos
desse tamanho.”
“Mesmo que eles os coloquem em um trenó, dada a neve, haverá
um limite. Eles vão ter que fazer uma caravana.”
Quando os dois comerciantes viajantes trocavam pontos de vista,
ninguém mais ousava contradizer seus palpites sobre os planos de
viagem.
Lawrence continuou. “Não será um grupo pequeno o suficiente
para se esconder.”
“Entendo. Portanto, se revelarmos nosso conhecimento do
decreto fiscal, haverá muito pouco que eles possam fazer. E se nos
oferecermos para cooperar com eles em sua evasão fiscal, podemos
conseguir um lugar na mesa de negociações.”
Era como se estivessem discutindo para que lado fugiria um rato
encurralado.
Lawrence lembrou-se de ter sido tratado como um mero
figurante na cidade portuária de Kerube. Comparada a isso, sua antiga
vida de compra e venda parecia pacífica e bucólica.
CAPÍTULO V ⊰ 244 ⊱

Não era como se ele preferisse um ao outro. Mas esse era um tipo
de risco totalmente diferente do que ele havia experimentado antes, o
que de alguma forma tornava mais fácil para ele pensar com clareza.
“Se vamos agir, devemos agir logo. Se os induzirmos ao pânico,
eles podem fazer algo precipitado e perder tudo. Afinal, não importa
o quão desesperados eles fiquem, ainda são servos de Deus. Eles
poderiam decidir morrer como mártires em vez de viver na vergonha”.
“E alguns deles são dignos de uma medida de respeito. Não somos
ladrões. Devemos agir com cuidado.”
Havia um provérbio: “O castelo na colina é visto por todos”. Isso
significava que uma pessoa de status tinha que agir de maneira
condizente com sua posição. Não parecia que os homens ao redor da
mesa precisassem lembrar disso.
“Bem, então vamos revelar a verdade aos monges aqui no anexo.
O par desagradável de antes ainda está vagando por algum lugar?”
“Vou verificar. Se eles não puderem ser encontrados, devemos
contar aos outros?”
“Não, não diga a eles. Esses dois são os arruaceiros do santuário.
Diga ao Prior Lloyd. Ele deveria estar cumprindo suas obrigações
diárias no momento e, acima de tudo, ainda pode andar a cavalo.”
Isso provocou uma onda de risadas, já que muitos dos monges da
área eram gordos demais para cavalgar.
“Muito bem”, respondeu Piasky educadamente enquanto inclinava
a cabeça.
“Vamos colocar homens em todas as tabernas e alojamentos, só
para garantir. Embora eu duvide que o lento conselho do santuário seja
capaz de chegar a uma decisão rápida o suficiente para começar a
mover as caixas.
“Existem alguns parentes de sangue de alguns dos monges de alto
escalão da corte real. Dadas essas conexões, o mosteiro pode estar
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 245 ⊱

antecipando as coisas até certo ponto, então não podemos ser muito
cuidadosos.”
“É verdade. No entanto, acho que tudo funcionará a nosso favor.”
“Que as bênçãos de Deus estejam sobre nós.”
E com essas palavras, a reunião foi encerrada.

Era como se o anexo tivesse pegado fogo. Na verdade, a comoção


foi tão grande que a figura de linguagem parecia mais uma descrição da
realidade.
O prior, um monge chamado Lloyd, ficou tão perturbado que
acidentalmente deixou cair o livro de escrituras que estava segurando
piedosamente enquanto ouvia as notícias do decreto do rei; então,
quando ele foi pegá-lo, em vez disso derrubou um castiçal.
A neve e o vento pararam, então ele imediatamente providenciou
cavalos, junto com cinco cavaleiros para conduzi-los, e levou o notório
par de monges com ele em um passeio à luz de tochas na estrada nevada
até a abadia principal.
Visto que passavam seus dias lidando com o comércio de lã, os
monges do anexo mercantil da abadia tinham as mentes calculistas que
se esperaria, e eles correram para os quartos da estalagem dos oficiais
da aliança para cair nas boas graças, só por precaução.
Piasky apressadamente colocou em ordem uma lista de demandas
para a abadia, trabalhando com seus camaradas para definir a escala da
aldeia que esperava criar e as coisas que eles precisariam para fazê-lo.
Parecia a Lawrence que todos estavam trabalhando em direção a
um objetivo comum.
Falando em Lawrence, ele foi exaustivamente questionado sobre
tudo o que sabia sobre os ossos de lobo e manteve-se muito ocupado
lidando com a avaliação dessas informações — a conexão da
Companhia Jean e da Companhia Debau, o fluxo de moedas, o
tratamento das mercadorias, a recepção da história dos ossos de lobo
CAPÍTULO V ⊰ 246 ⊱

em Kerube — tudo. Até Holo e Col acrescentaram o que aprenderam


ao longo de sua jornada.
Com toda a preparação, a abadia seria derrotada. Uma estranha
sensação de excitação encheu o ar.
No meio de tudo isso, Holo saiu para atualizar Huskins sobre a
situação e depois voltou.
Já era tarde e Lawrence estava completamente cansado quando
Holo voltou com a mensagem de Huskins, mas quando soube o que
Huskins havia dito — “Sinto muito, não posso mais ajudar” — ele não
conseguiu dormir muito bem.
“É verdade, não possuímos mais nenhum poder real.”
O amanhecer estava surgindo quando Holo pronunciou aquelas
palavras recriminatórias, no momento em que todos haviam
desempenhado seus respectivos papéis, cristalizando conhecimento e
sabedoria e entregando os resultados àqueles nas melhores posições
para utilizá-los.
Era triste, mas também de alguma forma revigorante.
Nem mesmo suas garras e presas poderiam parar o poder que
tantos humanos poderiam reunir. E certamente nenhum animal
poderia igualar a força demonstrada pelos humanos quando
trabalhavam juntos em tais números.
Vários membros da aliança dormiam aqui e ali pelo quarto,
exaustos. Holo sorriu enquanto os examinava. Ela pode até estar
sentindo um pouco de ciúmes.
“Huh. Quando eu fico cansado, veja como fico romântico.”
Col estava encolhido contra a parede, completamente esgotado.
Lawrence colocou o braço em volta dos ombros de Holo e puxou-
a para perto como se estivesse apoiando sua cabeça.
O céu era visível através da janela, tão claro e azul que parecia que
alguém estava sendo puxado para ele.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 247 ⊱

Se alguma vez pudesse haver um dia em que tudo correria


conforme o planejado, certamente seria um dia como este.
Holo logo cochilou e Lawrence percebeu que ele também devia
ter adormecido.
Houve um grito de alguém correndo pelos portões. A princípio,
Lawrence pensou que era parte de um sonho que estava tendo.
“Eles estão aqui! Os homens da abadia principal estão aqui!”
A abadia propriamente dita foi construída em uma planície
gramada perfeita para construção. Isso significava que qualquer um que
se aproximasse daquela direção poderia ser naturalmente identificado
como um mensageiro do edifício central.
Imediatamente depois que Lawrence levantou a cabeça e percebeu
que não estava sonhando, ele se levantou e correu para a entrada.
Mercadores se alinhavam na estrada, seus olhares todos direcionados
para os portões que se abriam para as vastas planícies além.
“Eles ainda não estão aqui?”
“Silêncio!”
Muitas dessas conversas podiam ser ouvidas aqui e ali antes que
todos ficassem completamente em silêncio.
Então... o silêncio foi quebrado pelos passos pesados de um
cavalo, ao qual os líderes da aliança saíram da hospedaria, como se
estivessem esperando.
Lawrence e o resto se afastaram para deixá-los passar, mas ainda
estavam cercados por mercadores curiosos.
O som dos cascos dos cavalos se aproximou e depois parou.
Eles estavam em frente à pousada.
Havia um único cavalo grande liderado por dois lacaios.
“Eu sou um mensageiro do abade,” disse o homem grande que
estava montado no cavalo. Ele estava usando um longo manto forrado
CAPÍTULO V ⊰ 248 ⊱

de pele que escondia até seus pés, e seu capuz estava tão baixo que era
difícil ver seu rosto.
Mas o problema não era sua roupa.
O que todos acharam estranho foi que ele veio com apenas dois
cavaleiros e falou de maneira tão ameaçadora do alto de seu cavalo.
Todos, incluindo Lawrence, esperavam que todos os líderes da
abadia, incluindo o próprio abade, chegassem pálidos.
“Obrigado por ter vindo. Talvez devêssemos entrar primeiro.”
Em contraste com os mercadores circulando pela área, um
homem bem-vestido se dirigiu ao mensageiro com uma polidez que
revelava anos de prática.
Aliás, a pousada já se preparava para receber os hóspedes. O
cheiro de comida exalava, atormentando o estômago de todos que
passaram uma noite sem comer.
“Não há necessidade”, respondeu o homem.
Então, diante dos espectadores atordoados, o homem montado
tirou uma carta lacrada do bolso do paletó, afixou-a na ponta de seu
chicote e a entregou ao membro da aliança como se fosse o portador
de uma ordem real.
“Esta é a resposta do abade: ‘Como servos de Deus, nunca nos
submeteremos a estrangeiros infiéis. Nunca! Pagaremos ao rei seus
impostos e continuaremos a oferecer nossas orações a Deus’.”
No instante em que o confuso representante da aliança pegou a
carta, o homem montado atingiu o traseiro de seu cavalo com o
chicote. Sua montaria girou, seu motorista freneticamente segurando
as rédeas.
O homem não se deu ao trabalho de se despedir.
O único som que chegou aos ouvidos de Lawrence e do resto da
multidão reunida foi o trote das patas do cavalo.
Tudo o que viram foi sua retaguarda.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 249 ⊱

Atordoados, todos ficaram em silêncio.


“Qual o significado disso?” alguém murmurou; não importava
quem — era o que todos estavam pensando.
A carta foi passada aos quatro homens que estavam sentados à
mesa redonda, e eles a abriram na hora. Depois que cada homem leu,
ele passou para o próximo. A carta deixou para trás rostos pálidos e
confusos em seu rastro.
“É impossível… eles alegam que vai sobrar dinheiro, mesmo
depois de pagarem os impostos?”
Essa afirmação era tudo o que era necessário para adivinhar o
conteúdo da carta.
Uma comoção começou a surgir quando cada pessoa começou a
conversar com seu vizinho. Mas não havia nenhuma conclusão a ser
tirada dessas conversas. Que a abadia estava em apuros era um fato
quase incontestável.
“Isso não pode ser... O que eles estão pensando? Eles acreditam
que podem obter a proteção do rei pagando seu imposto? Eles
deveriam saber melhor do que ninguém que tal coisa não vai
acontecer…”
O rei estava constantemente extorquindo a abadia, embora não
especificamente em antecipação a esse imposto. Era difícil imaginar a
abadia de repente confiando nele agora.
A confusão estava se espalhando como uma gota de óleo na água.
Parecia que agora havia uma possibilidade real de a abadia não ter
comprado os ossos de lobo e, de fato, ter fundos suficientes reservados
para pagar o imposto.
Mas, mesmo assim, não havia razão para eles se comportarem de
forma tão otimista em relação à aliança. Era sempre melhor ter mais
parceiros para fornecer fundos de emergência, apenas por precaução.
Então, eles inventaram algum estratagema inteligente? Eles
haviam de alguma forma extraído algum tipo de garantia do rei?
CAPÍTULO V ⊰ 250 ⊱

Em meio a toda a discussão, um comerciante observando o


tumulto à distância de repente levantou a voz. “Se eles falaram que vão
pagar o imposto, isso não significa que vão ter que transportar o
dinheiro? Então só temos que confirmar isso! Se for descoberto que
eles realmente não podem pagar...”
A opinião da maioria parecia ser que a abadia era realmente
incapaz de pagar, mas mesmo que o fizesse, era óbvio que enfrentaria
imediatamente mais dificuldades.
Então fazia sentido concluir que a abadia estaria enchendo caixotes
com pedrinhas, e se havia uma aposta a ser feita, essa era a mais sensata.
“Ou talvez eles planejem fingir um acidente enquanto ainda
estamos confusos!” disse outro comerciante.
“Pode ser. Talvez seja por isso que eles chegaram à sua decisão tão
rapidamente. Eles não querem nos dar tempo para pensar.
Vozes se levantaram em apoio a essa noção. “Sim é isso!”
Lawrence olhou para os líderes parados à margem da multidão;
eles não pareciam concordar. Nem Lawrence.
“A carta dizia quando eles iam pagar o imposto?”
Se a abadia estava realmente planejando forçar a confusão sobre a
aliança ao fazer seu contra-ataque, poderia muito bem ter sido
confiante o suficiente para escrever a data exata na carta. E isso de fato
parecia ser o caso.
Lawrence sabia por que o líder que segurava a carta tinha uma
expressão tão amarga no rosto. A abadia queria que eles lessem a data
em voz alta. E agora a situação estava fora de controle; não havia como
os líderes da aliança esconderem isso.
“Hoje ao meio-dia, seguindo o caminho que São Hiuronius fez
pelas planícies nevadas.”
“Eu sabia! Eles estão praticamente nos desafiando a vir!”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 251 ⊱

“Se eles saem ao meio-dia, não há tempo a perder. A área ao redor


da Colina Sulieri é formada principalmente por pântanos, o lugar
perfeito para simular um acidente.”
“Vamos! O lucro exige coragem!”
A maioria dos homens estava tonta por causa da longa noite de
trabalho, e o grito de guerra que clamavam tinha uma energia estranha.
Holo chegou ao lado de Lawrence e ela puxou sua manga, mas ele
não sabia o que fazer. Os próprios líderes da aliança consideraram um
prejuízo, e por que não?
Lawrence, não sendo membro da aliança, conseguiu ser um pouco
mais objetivo e, ao pensar nisso, chegou a outra conclusão.
Havia a possibilidade de que fosse uma armadilha da abadia.
Se a estranha energia da multidão os levasse a confundir coragem
com lucro, eles poderiam atacar a procissão que carregava os caixotes.
Se esses caixotes estivessem cheios de pedras, tudo estaria bem.
Mas se eles realmente tivessem moedas, o que aconteceria?
A aliança seria imediatamente encurralada.
A abadia não tinha obrigação de mostrar-lhes o conteúdo de seus
caixotes, o que a turba da aliança contestaria, e a discussão seria
acalorada. Seria fácil para a abadia alegar que a aliança estava tentando
cometer o crime imperdoável de tentar roubar os fundos dos
impostos.
Ou eles poderiam simplesmente alegar que a aliança havia
roubado os fundos a caminho do rei, e o conflito pioraria à medida que
cada lado se apegasse à sua própria história. Seria uma disputa
completamente infrutífera que poderia terminar em derramamento de
sangue, o que simplesmente fortaleceria as reivindicações da abadia.
Se o rei resolvesse a disputa, ele a veria como uma chance de se
livrar de uma aliança que tentava tomar o controle da economia de sua
nação e certamente decidiria em favor da abadia.
CAPÍTULO V ⊰ 252 ⊱

Nesse ponto, a aliança seria encurralada pela abadia e não teria


escolha a não ser fazer o que lhes foi dito.
Eles seriam forçados a pagar os impostos da abadia e comprar sua
lã por um preço alto? De qualquer forma, a abadia tentaria extorquir
o máximo de dinheiro possível.
Mas os líderes da aliança não podiam dizer isso em voz alta, e
Lawrence sabia por quê.
Sem abrir os caixotes, não havia como saber se continham pedras
ou moedas. Os líderes temiam que se opor à vontade de seus membros
sem provas serviria apenas para romper a aliança.
Assim como eles haviam encurralado a abadia e procurado uma
fratura para explorar, agora eles próprios estavam presos da mesma
maneira. Mas os líderes da aliança tiveram que permanecer neutros
porque eles também eram membros de sua aliança. O objetivo deles
era o mesmo e eles temiam a divisão.
E quanto a Lawrence, que não era membro e não compartilhava o
mesmo objetivo?
Lawrence tinha boas razões para querer evitar que a aliança caísse
em uma armadilha. Se a abadia estivesse tentando usar a aliança e
tivesse preparado essa armadilha para eles, e a aliança realmente caísse
nessa armadilha, isso colocaria Lawrence em uma posição
extremamente ruim.
A abadia pode estar pensando que, se explorasse a fraqueza da
aliança, poderia liderá-los à vontade, mas a aliança era um grupo de
mercadores, e os mercadores valorizavam o lucro acima de tudo.
Assim que eles determinassem que a recompensa não merecia o
problema, eles simplesmente se retirariam.
Lawrence percebeu que esses não eram os negócios mais
importantes da aliança, visto que os líderes de alto escalão, aqueles que
andavam em carruagens pretas, haviam desaparecido há muito tempo.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 253 ⊱

O que significava que, no momento em que ficasse claro que a


aliança havia caído em uma armadilha, havia uma boa chance de que
eles simplesmente acertassem as coisas e recuassem. E provavelmente
nunca mais voltariam.
Quem protegeria a abadia então?
A abadia poderia ganhar uma estabilidade temporária, mas sem a
aliança, tudo o que teria seria ovelhas produzindo lã para a qual não
havia mais comprador. Se o preço da lã subisse, Lawrence poderia
entender esse tipo de otimismo. Qualquer um gostaria de acreditar
que um preço outrora alto voltaria a subir, ainda mais quando se
tratava de algo que sempre vendeu bem no passado.
A abadia não duraria muito antes de desabar.
O que os esperava depois disso era a anexação real de suas terras
e a dissolução da abadia. A terra seria dividida entre vários nobres para
comprar seu sustento, e Lawrence podia ver muito claramente a luta
que irromperia sobre o tamanho dessas parcelas.
Quando a guerra estourava, aqueles que viviam lá sempre eram
expulsos da região — o que significava pessoas como Huskins.
Ao lado de Lawrence, Holo e Col também exibiam expressões
desconfortáveis.
Holo poderia derrotar qualquer um com seus dentes e garras. Mas
a natureza desse poder não era tal que pudesse mudar esses eventos.
Lawrence tinha boas razões para falar com os homens que agora
se preparavam para se formar e marchar pelas planícies nevadas.
“A abadia pode ter armado uma armadilha.” Os rostos mais
nervosos de todos eram os daqueles que estavam pensando a mesma
coisa, mas se calaram. “Se formos, estaremos fazendo o jogo deles.”
Quando ele acrescentou esta segunda declaração, os outros
mercadores pararam e olharam para ele. “Por que?”
“Se abrirmos os caixotes e eles estiverem cheios de moedas, isso
não adianta nada para a aliança.”
CAPÍTULO V ⊰ 254 ⊱

“Talvez. Mas é provável que façamos o jogo deles não abrindo as


caixas. Fizemos todo esse trabalho e não deu em nada. Então agora
temos essa chance, e é uma boa. O que poderia ser senão a vontade de
Deus? Se deixarmos essa chance escapar, tudo isso terá sido
desperdiçado!”
Um grito de concordância da multidão seguiu-se a essas palavras.
Ficou totalmente claro quem eles achavam que era o covarde e quem
eles achavam que era corajoso. Afinal, quase nunca se viam filósofos
saudados como heróis.
“E se cairmos em uma armadilha, o que acontecerá? Vamos apenas
escapar. Íamos embora se não pudéssemos comprar o terreno de
qualquer maneira, então isso pouco importa. Então, por que deixar
escapar essa chance de lucro?”
“Isso mesmo!”
A multidão avançou, forçando Lawrence, Holo e Col contra uma
parede. Lawrence vislumbrou os líderes, que continuaram a evitar
controlar os furiosos mercadores da aliança.
“Espere... você nem está com a aliança, está?”
Lawrence sentiu um frio na barriga, mas não por causa da
temperatura.
Para alguém que vivia de viagens, essas palavras inspiravam mais
terror do que o uivo de qualquer lobo. Ele olhou em volta e viu apenas
homens que respondiam a uma autoridade diferente da dele.
“Você está apenas tentando nos dividir e ganhar algum tempo para
eles.”
Quando acusado de espionagem, era quase impossível limpar o
nome. A única declaração que eles aceitariam de Lawrence seria ele
admitindo que era realmente um espião.
“E aí?”
Uma gota de suor escorreu pela bochecha de Lawrence e sua visão
turvou. Sua adaga estava presa ao cinto, mas isso não fazia sentido em
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 255 ⊱

um grande grupo de pessoas como este. E no instante em que a


desembainhasse, qualquer chance de provar sua inocência
desapareceria.
O que ele poderia fazer? Sua mente disparou.
Huskins havia deixado tudo para ele, porque a velha ovelha sentiu
que seus cascos não encontrariam abrigo no complicado mundo
humano. E agora Lawrence e seus companheiros estavam prestes a ser
esmagados entre os dentes das engrenagens que giravam na direção
errada.
A multidão se aproximou. Não havia para onde correr.
Não havia realmente nada? Nenhuma alternativa? Nem mesmo um
paradoxo ou uma brecha?
Lawrence forçou a mente enquanto tentava proteger Holo e Col.
Se ele não pudesse reverter essa situação e impedir que a aliança
seguisse esse curso de ação, a ruína da abadia seria quase certa.
Huskins perderia o segundo lar que trabalhou tanto para criar, e
Holo aprenderia mais uma vez que não havia lugar para sua espécie
neste mundo.
Lawrence não podia ficar de braços cruzados e deixar isso
acontecer.
Se um único comerciante levantasse a mão, a turba interpretaria
isso como um sinal e atacaria.
Estava acabado.
Holo colocou a mão no peito como se estivesse desistindo.
Este era o único lugar onde os seres adorados como deuses ainda
podiam empregar seu poder surpreendente? Lawrence se odiou por
colocar Holo neste lugar doloroso; ele queria gritar.
Huskins também certamente deixaria esta terra para trás —
levando suas ovelhas, suas incontáveis ovelhas com ele.
“Huh—?”
CAPÍTULO V ⊰ 256 ⊱

No momento em que a avalanche estava prestes a cair sobre eles,


a imagem de um enorme rebanho de ovelhas se movendo pela
paisagem encheu sua visão.
“Espere, por favor!” gritou Lawrence. “Espere! Existe uma
maneira de descobrir o que há nas caixas!”
Um instante antes da explosão, o silêncio caiu. Ele havia
empurrado sua sorte no último segundo.
“O que você disse?”
Esta era a única chance que ele teria de acalmar a multidão
enfurecida. Um dos líderes pareceu perceber isso e aproveitou para
falar. “Espere! Vamos ouvi-lo!”
Não era exagero dizer que eles estavam à beira do derramamento
de sangue. Lawrence respirou fundo, exalou e depois respirou fundo
outra vez.
“Uma armadilha é inútil se você não conseguir o que está
procurando.”
“O que você quer dizer?” perguntou outro dos líderes.
“Se eles estão atrás da aliança, tudo o que temos a fazer é deixar
outra pessoa cair na armadilha. Será inútil.”
“Hmph... então, você está dizendo que irá em nosso lugar?”
Essa linha de pensamento era inútil. Assim como provar para a
aliança que ele não era um espião era impossível, da mesma forma,
provar para a abadia que ele não era um membro da aliança seria
impossível.
Então Lawrence balançou a cabeça.
“Bem, então, quem assumirá esse dever?”
Lawrence não estava totalmente confiante na ideia que teve.
Mas foi Holo e seu aperto em sua mão que o ajudou a recuperar
sua coragem e compostura. Ele nunca teria corrido esse risco se
estivesse apenas agindo por conta própria.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 257 ⊱

“As ovelhas.”
Todos congelaram com a breve resposta de Lawrence.
Então —
“Ah, claro!”
E as engrenagens começaram a girar na outra direção.

Não será necessário dizer que as ovelhas são herbívoros e um belo


exemplo de uma criatura gentil. No entanto, assim como Norah, a
pastora, disse uma vez, as ovelhas não conheciam o significado de
contenção.
Isso era verdade até para Huskins, a ovelha de ouro. Uma vez que
ele se decidia sobre algo, não poderia ser dissuadido. Ele estava
inabalável comendo a carne de sua própria espécie para se misturar ao
mundo humano.
Se assim fosse conduzido por seu pastor, um rebanho de ovelhas
não pararia nem mesmo na beira de um penhasco. Não era incomum
que as pessoas ficassem gravemente feridas se fossem arrastadas por tal
rebanho.
A abadia armou uma armadilha e, dependendo das circunstâncias,
estava preparada para derramar o sangue da aliança quando eles
caíssem nela, alegando essa justificativa. Mas diante de uma onda de
ovelhas, nem mesmo um bando de mercenários grisalhos poderia
resistir.
E Lawrence tinha visto o tamanho dos rebanhos do anexo
mercante por si mesmo e sabia em primeira mão como seus pastores
eram habilidosos.
Portanto, ninguém se opôs à sua proposta.
“Então é assim.”
CAPÍTULO V ⊰ 258 ⊱

Huskins sentou-se perto da lareira como uma rocha acumulando


musgo e, quando Lawrence terminou de explicar a situação e o plano,
moveu-se muito lentamente.
“Você quer que eu use ovelhas... para atacar humanos?”
“Para simplificar, sim.” Holo ficou desinteressada na entrada. Col
permaneceu na pousada da aliança como uma espécie de refém. “Você
pode nos emprestar sua força, Sr. Huskins?”
Para um plano envolvendo ovelhas, não existia um indivíduo mais
adequado.
Se houvesse algum problema, seria em seu orgulho como a ovelha
dourada — seu orgulho como alguém que já foi chamado de deus.
Esses podem ser obstáculos.
Pensando nisso, Lawrence percebeu que Huskins não podia mais
agir abertamente ou em segredo, e ele tinha que usar seu antigo poder
de uma maneira que fosse compatível com os costumes dos humanos.
Ele não era nem mesmo uma influência sombria; ele havia sido
reduzido a nada além de um peão.
Lawrence percebeu que se ele compreendesse isso
verdadeiramente em seu coração, o peso seria diferente do que
compreendendo apenas com a mente.
O próprio Lawrence achou difícil na primeira vez que alguém
ignorou seu nome, apenas para mudar completamente de atitude
quando ouviu o nome de sua guilda. Momentos assim que o fizeram
sentir verdadeiramente o quão insignificante ele era e que o mundo era
um lugar muito grande.
Huskins jogou outra lenha no fogo e as chamas tremeluziram
intensamente.
“Hah-hah... então finalmente chegamos a esse ponto, hein?”
Suas palavras davam a impressão de que ele gostava de ter caído a
tal ponto, e eram palavras claras e refrescantemente.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 259 ⊱

Tendo assumido a forma humana e cruzado uma linha além da qual


nunca poderia voltar, ele ainda tinha alguma dignidade. Assistir suas
últimas defesas finalmente desmoronarem era de alguma forma
doloroso e ao mesmo tempo lindo.
Mas ouvindo as palavras de Huskins, foi Holo quem interveio e
entrou na sala. “Você esqueceu quem foi que pediu a ajuda do meu
companheiro?”
Huskins virou seu pescoço grosso, olhando para Holo enquanto os
cantos de sua boca se curvavam.
“Holo”, disse Lawrence, o que fez Huskins olhar de volta para ele
e falar, sua voz alegre.
“Eu não me importo. Afinal, só um homem pode entender a
beleza do declínio.”
Uma vez ele conduziu ovelhas selvagens por planícies gramadas;
agora ele tentava proteger o minúsculo refúgio restante de seus
camaradas. Seu senso de responsabilidade e propósito o cobria como
uma armadura, escondendo suas verdadeiras emoções. Amargura,
tristeza, raiva, recusa — ele teve que engolir tudo e seguir em frente.
Huskins era seu rebanho de ovelhas.
E com essa única frase, o pastor erudito mostrou que o sangue
corria em suas veias, que ele era capaz de apreciar a inteligência.
Foi o suficiente para interromper Holo, que parecia pensar que
ela estava sendo ridicularizada e queria fazer uma réplica.
Lawrence se levantou e deu uma mãozinha a Huskins. “Então você
vai nos ajudar?”
Huskins era um pouco mais baixo que Lawrence, mas sua
estrutura robusta dava um ar imponente. Ele era um homem a ser
respeitado.
Os cabelos prateados e a barba tremeram como se um raio tivesse
atingido. Naquele breve instante, Lawrence teve um vislumbre da
verdadeira forma de Huskins.
CAPÍTULO V ⊰ 260 ⊱

“Claro. Quem além de mim poderia fazer isso?” Ele pegou seu
cajado de pastor, que tilintava. “Agradeço gentilmente. Com isso,
sinto que finalmente encontrei um lugar neste novo mundo.”
Mesmo Lawrence não pôde evitar um sorriso dolorido com essas
palavras.
Huskins então olhou para Holo e continuou: “Não podemos agir
com a liberdade que já tivemos. Mas...” Ele olhou para sua mão, então
finalmente para o fogo que finalmente pegou a nova lenha.
“Mas ainda temos lares e ainda temos papéis a desempenhar. Você
ainda não viu sua terra natal, então ainda não comece a chorar. Você
vai tornar a vida deste pobre jovem muito difícil.”
Os olhos de Holo se arregalaram e, mesmo através do capuz, ficou
claro que suas orelhas se eriçaram de irritação. Sem dúvida, sua cauda
estava balançando rapidamente também. E, no entanto, tudo o que ela
conseguiu fazer quando Huskins saiu da sala foi dar um murmúrio
baixo.
“Uma mera ovelha, e ainda assim —”
Havia coisas que apenas Holo e Huskins podiam compreender.
Eles trocaram apenas um breve olhar, mas daí chegaram a um
entendimento mútuo, Lawrence percebeu.
Lawrence levou Huskins para a pousada da aliança, com Holo logo
atrás. Todos os que trabalharam no anexo dos mercadores
concordaram que Huskins era a escolha certa.
As coisas correram bem e, em pouco tempo, um rebanho de
ovelhas foi preparado.
Os monges que permaneceram no anexo pareciam confusos sobre
porque o rebanho estava sendo levado naquela hora. O som dos cascos
das ovelhas saindo do curral ecoou como o estrondo de um terremoto.
Lawrence e Holo deram as mãos enquanto observavam a forma
solitária de Huskins recuar. Com o cajado na mão, ele conduziu o
rebanho para fora.
m grupo de cavalos chutou a neve enquanto desapareciam
no horizonte.
Seu destino era a abadia principal, onde testemunhariam
a batalha final.
O cavaleiro da frente guardava no peito uma arma poderosa,
construída durante a noite. Era mais nítido do que qualquer outro,
graças à informação crucial que Huskins havia fornecido.
Resolver as coisas agora não levaria muito tempo ou esforço.
Imaginar os líderes da abadia enquanto caminhavam pela neve
compactada da estrada, tendo sido expulsos da abadia — bem, não se
pode deixar de sentir um pouco de pena por eles.
Sua tomada de decisão foi exemplar e eles certamente escolheram
a melhor opção entre os que restaram.
EPÍLOGO ⊰ 262 ⊱

Se Lawrence não tivesse apontado a armadilha para a aliança,


então um dos líderes teria que fazê-lo. Isso teria dividido a aliança,
deixando-a incapaz de funcionar adequadamente.
Portanto, mesmo que um grupo saísse para confirmar o conteúdo
dos caixotes, não seria um grupo muito grande. E esse sempre foi o
objetivo, Lawrence tinha certeza.
Piasky foi o primeiro a desaparecer no horizonte e agora estava
certamente nos grandes salões da abadia principal, entregando a
proposta da aliança.
Os caixotes estavam cheios de pedras.
O que significava que era muito provável que a abadia tivesse uma
reserva secreta de moedas escondidas, ou então a possibilidade de que
tivesse os ossos de lobo era muito alta. Ambos eram segredos que a
abadia mal podia se dar ao luxo de revelar ao rei.
Mas os líderes da abadia não eram tolos e sabiam quando era hora
de se render. Sem opções, tudo o que eles podiam fazer agora era
encontrar uma maneira de se render com tanta dignidade quanto
pudessem, encontrando uma maneira de enfrentar a adversidade e
sobreviver teimosamente como no passado.
Lawrence inalou uma longa e fina lufada de ar, depois exalou. As
planícies nevadas pareciam um mar congelado no tempo, e caminhar
sob o céu azul claro não era nada desagradável.
Lawrence estava sozinho.
Ele não ficou surpreso quando Holo pegou seu casaco e pulou em
um cavalo com o primeiro grupo sem sequer um “com licença”. Dado
que a abadia, uma vez confrontada, não teria escolha a não ser revelar
seus tesouros, a cauda de Holo provavelmente estava balançando
animadamente neste exato momento.
O caminho nevado que Lawrence percorreu foi pisado por
inúmeras ovelhas e era tão fácil de percorrer quanto uma rua
pavimentada. Ele alcançou o lugar chamado Monte Sulieri sem muito
esforço.
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 263 ⊱

Dali, podia-se contornar a crista do morro e ver com muita clareza


o caminho da estrada que contornava a partir do nordeste. Não havia
melhor ponto de vista para testemunhar o fracasso total dos esquemas
da abadia.
“Espadas e arcos teriam sido inúteis.”
Aqui e ali havia manchas vermelhas no caminho, prova dos poucos
que usaram suas armas em pânico.
Mas, assim como quaisquer poderes que Holo ou Huskins
pudessem possuir eram inúteis diante da humanidade, as armas
também tinham pouco efeito em um rebanho tão vasto de ovelhas.
Cercados pelo rebanho e pisoteados até a inconsciência, os
monges foram todos carregados em um trenó e levados embora. Eles
deviam estar esperando que os homens da aliança viessem e exigissem
ver as moedas, o que os tornaria alvos fáceis para a culpa que os monges
colocariam sobre eles.
Eles carregavam armas e armaduras demais para qualquer outra
coisa, mesmo que estivessem transportando dinheiro real. Se tivesse
ocorrido uma batalha, não havia dúvida de que as baixas teriam sido
significativas.
Lawrence examinou a cena quando Huskins, que estava reunindo
seu rebanho, o notou e começou a se aproximar.
“Está quente aqui.” Uma saudação tão despreocupada.
“Estou feliz em ver você ileso.”
“Hah... bem, claro. Nunca teria pensado que seria capaz de acabar
com isso com minhas próprias mãos.”
“Foi o golpe decisivo.”
“Suponho que sim... Minha espécie está acima dos humanos. E os
humanos estão acima das ovelhas. Mas os tempos mudam. É natural
que essa ordem seja invertida.”
EPÍLOGO ⊰ 264 ⊱

A abadia nunca imaginou que a aliança usaria um rebanho de


ovelhas. Mesmo Lawrence, se não tivesse Huskins ao seu lado, nunca
teria concebido um plano como esse.
“Ah, a propósito, para onde foi aquela jovem loba?”
“Ah, Holo? Imagino que ela esteja no cofre do tesouro da abadia
enquanto conversamos.”
“Ah! Hah. É mesmo?” Huskins riu por um momento e depois
baixou o olhar.
“Há algo de errado?”
“Hum? Ah, não, não é nada. Tratei aquela loba como uma criança,
mas parece que o infantil sou eu.” Ele estreitou os olhos e olhou para
longe. Sob sua barba havia um sorriso feliz.
“A dificuldade forja amizades fortes. Tenho a sensação de que me
descobri membro de um rebanho totalmente diferente.”
“…Você quer dizer-?”
“Vejo que você entende o que quero dizer. Afinal lobos e ovelhas
serão sempre lobos e ovelhas. Essa é apenas a ordem natural das
coisas.”
Huskins exalou um grande suspiro. Ele então inalou e tocou o sino
de sua equipe.
Seu cão pastor saiu correndo, reunindo rapidamente as ovelhas
que começavam a se desviar em várias direções. Huskins observou isso
por um tempo, então se virou para Lawrence e falou novamente.
“Por quanto tempo você planeja ignorar a ordem natural?”
Lawrence olhou para ele com o canto do olho e viu Huskins
observando seu cão pastor com olhos semicerrados. Ele coçou a cabeça
e não respondeu imediatamente.
“Sou um mercador, então farei isso enquanto houver mais lucro a
ser obtido.”
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 265 ⊱

Respostas práticas muitas vezes soavam como piadas. Após um


momento de silêncio, Huskins riu alto. “Foi uma pergunta tola. Eu não
sou diferente — sou uma ovelha, mas me afeiçoei muito ao meu cão
pastor.”
“Por que você me perguntaria uma coisa dessas?”
Huskins deu um sorriso deliberado. Seu perfil o fazia parecer um
velho soldado que havia presenciado muitas batalhas.
“Não consigo decidir de que lado ficar.”
“Como assim?”
“Este é um lugar onde as pessoas se reúnem, então as informações
também são coletadas naturalmente.”
Huskins era uma ovelha. Ele havia dito a Lawrence que seus
companheiros ainda estavam espalhados pela paisagem, o que
significava que informações de uma vasta área seriam coletadas aqui.
Ele olhou Lawrence diretamente nos olhos, seu olhar
desmentindo uma profundidade de experiência que só alguém como
ele poderia ter.
“A loba me disse que você está indo para um lugar antigo chamado
Yoitsu, certo?”
“C-certo.”
“Também ouvi esse nome e recentemente.”
Lawrence não respondeu, mas com os olhos pediu a Huskins para
continuar. Huskins sabia que Holo estava procurando por sua terra
natal, então ele dificilmente poderia ignorar a importância dessa
informação.
E, no entanto, se ele hesitou em dar essa informação a Holo,
deveria haver uma boa razão para tal.
“Isso surgiu entre algumas notícias perturbadoras que meus
camaradas trouxeram para mim.”
EPÍLOGO ⊰ 266 ⊱

O coração de Lawrence acelerou. Ele podia adivinhar quais seriam


as novidades.
“O imposto do nosso rei e os ossos de lobo que você deduziu que
Abadia de Brondel comprou, eles podem ter uma conexão com esta
notícia. Você entende —”
Enquanto Huskins falava, uma rajada de vento aumentou,
soprando a neve caída e obscurecendo brevemente seu rosto. Naquele
momento, Lawrence não conseguiu ver que tipo de expressão ele havia
feito.
Mas dada a notícia, ele poderia adivinhar.
Quando Huskins terminou de falar, ele começou a descer a colina
para recuperar seu rebanho, mas parou o tempo suficiente para se virar
e dizer uma última coisa.
“Boa sorte.” Seu rosto estava quieto e calmo enquanto olhava para
Lawrence como se estivesse vendo algo muito brilhante. Seu olhar
então se desviou em outra direção, sua expressão tardiamente
mostrando um sorriso. “E meus agradecimentos.”
Ele então começou a andar novamente. O velho pastor começou
a cuidar de seu rebanho como se Lawrence não estivesse ali.
Lawrence observou a forma de Huskins diminuir e soltou um
suspiro profundo. Então, girando nos calcanhares, ele também
começou a andar.
“Boa sorte.” Era uma despedida que se dava a um amigo que se
preparava para uma viagem. As palavras de Huskins eram mais do que
suficientes para fazer Lawrence recuar, e ele não ficaria surpreso ao
saber que a notícia que Huskins lhe dera era verdadeira.
Essas coisas aconteciam, afinal, mas geralmente em terras
distantes, e as notícias sobre elas eram tratadas como sendo boas apenas
para fofocas de taberna.
O que ele deveria pensar da ideia de que alguém tão importante
para ele estivesse envolvido em tal coisa?
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 267 ⊱

A luz do sol refletida na neve era muito brilhante, e Lawrence não


pôde deixar de estreitar os olhos — mas havia outro motivo para isso.
Havia duas figuras caminhando de volta na direção do anexo, um
pouco afastadas do caminho pisoteado por ovelhas.
“Encontraram algo?”
Diante da pergunta de Lawrence, as duas figuras pararam em sua
difícil caminhada pela neve, depois começaram a se mover novamente.
Eles ficaram fora do caminho mais fácil de trilhar, chutando a neve
infantilmente enquanto avançavam, o que explicava seu progresso
lento.
Ao se aproximarem de Lawrence, ele pôde ver que as bochechas
de Holo e Col estavam vermelhas por causa do frio.
“Então, como foi?”
Holo chutou neve no ar enquanto dava grandes passos arrastados
com Col atrás dela. Ela parou por um momento e então respondeu:
“O que você acha?”
“Eram falsos,” Lawrence respondeu — rápido demais, dado o
olhar irritado que Holo deu a ele.
“O que te faz pensar isso?”
“Porque eu não posso deixar você chorar de novo.”
Os lábios de Holo se curvaram em um sorriso quando ela deu de
ombros propositalmente, então chutou a neve para o alto. “De
qualquer forma, isso não me incomodaria tanto. Afinal, sou Holo, a
Sábia Loba.”
Ela finalmente se moveu para o caminho trilhado por ovelhas e se
aproximou de Lawrence, tendo satisfeito seus desejos de chutar a neve
ou cansada de molhar a bainha de seu manto. Enquanto Holo se
ajoelhava e batia na neve que grudava, Lawrence rapidamente puxou
o capuz para trás e tocou seu pescoço exposto.
EPÍLOGO ⊰ 268 ⊱

“Sua roupas. Eles estão ao avesso.” Ele estava se referindo às


roupas que ela usava por baixo do manto.
Lawrence suspirou e segurou a mão de Col, que estava ao lado
deles. Estava fria como gelo, e Lawrence sabia perfeitamente que eles
estariam dormentes e formigando.
“Eles eram falsos, não eram?”
Se as roupas de Holo estavam do avesso, ela deve ter retornado da
abadia em sua forma de loba. Se ela estivesse triste, suas orelhas e cauda
teriam traído seus verdadeiros sentimentos.
Ela estava chateada o suficiente para assumir sua forma de loba e
correr pelo frio com Col em suas costas.
Lawrence percebeu que toda a sua preocupação era em vão. Ele
havia sido enganado.
“Eles eram falsos”, disse Holo, olhando para o céu.
Por mais atencioso que fosse um rapaz, era estranho que Col não
estivesse zangado por ter sido posto em perigo de congelamento.
Sem dúvida, Holo ficou igualmente apavorada até que eles
descobriram a verdade sobre os ossos.
“Eles provavelmente eram de um cervo, da parte mais grossa da
pata traseira. Certamente ficou enterrado por muito tempo.”
“Eu gostaria de estar ao seu lado quando abriram a caixa”, disse
Lawrence, arrancando uma risada de Col e um pisão de Holo.
O momento era muito tranquilo. Não se podia deixar de desejar
que durasse.
“Do que você pensa que está rindo? Que vulgar.”
“Não é nada. Venha, vamos voltar logo. Precisamos por fogo na
lareira.”
Holo tinha uma expressão duvidosa, mas quando viu Lawrence
começar a andar, não insistiu na pergunta. Em vez disso, ela pegou a
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 269 ⊱

mão de Col e gritou em voz alta: “Sim, para fazer ensopado com
bastante sal e carne!”
Sorrindo de seu interesse, Lawrence não viu o que seu olhar
apontava. Ele estava preocupado com o que Huskins havia lhe contado.
Se for verdade, Lawrence vislumbrou algo realmente assustador.
E, no entanto, Huskins escolheu contar a ele e não a Holo.
Este era o lugar que Huskins havia escolhido proteger.
Então, o que dizer de Lawrence?
Uma imagem surgiu na mente de Lawrence — Huskins liderando
seu rebanho, cajado na mão, enquanto protegia sua terra e a terra de
sua espécie.
O céu se estendia, vasto, claro e azul.
Lawrence pegou as mãos de seus dois preciosos companheiros
enquanto eles começavam a caminhada de volta ao dormitório.
lá de novo. Aqui quem fala é Isuna Hasekura. E de alguma
forma, este é o décimo volume.
O primeiro volume de Spice & Wolf foi colocado à venda
em fevereiro de 2006, então isso faz três anos. Parece de
alguma forma um período curto e longo, mas suponho que realmente
não seja muito tempo. Passou num piscar de olhos.
Mas quando pego lentamente o primeiro volume e o abro, vejo
uma montanha de erros que quero pegar uma caneta vermelha e
começar a consertar, então talvez eu tenha crescido um pouco.
Embora eu não tenha ideia do que vai mudar daqui a três anos…
Falando nisso, uma coisa que não mudou nos últimos três anos é
que gosto muito de jogos online. Não um novo, mas voltando para um
antigo. Fazia muito tempo que não jogava, mas quando estava
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 271 ⊱

terminando este décimo volume, tive um pouco de tempo, então tive


a sorte de jogar um pouco. O tempo em que eu podia passar dias
inteiros sem me importar com o mundo já se foi, e hoje em dia cada
minuto, cada segundo que estou conectado é precioso.
(Incidentalmente, comecei a escrever este posfácio quando tentei fazer
login e os servidores do jogo estavam em manutenção.)
Vários jogadores aposentados da guilda em que jogo voltaram, e
eu estava vendo nomes de jogadores famosos enquanto vagava pela
cidade do jogo pela primeira vez em anos, então parecia que o passado
havia voltado a vida.
Alguns dias atrás, tive a chance de comer alguma coisa com alguns
amigos que jogam o mesmo jogo e, embora supostamente tenham
desistido por causa de seus empregos, todos voltaram recentemente
ao jogo por algum motivo.
Mas o que realmente me fez pensar sobre a passagem do tempo
foi que, embora depois da meia-noite fosse a hora que eu começava a
entrar no jogo, hoje em dia, quando passa dessa hora, o número de
jogadores cai muito. Acho que a maioria dos jogadores deixou de ser
estudantes para se tornarem empregados. Mesmo quando temos
encontros na vida real, paramos de ir a lugares voltados para estudantes
e começamos a ir a bares que atendem a um público um pouco mais
velho. É meio interessante.
Vai ser divertido ver como as coisas vão estar daqui a três anos.
E com isso acho que acabei de preencher o espaço que tenho,
então vamos ficar por aqui.
Vejo vocês no próximo volume.

— Isuna Hasekura
XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 274 ⊱
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 275 ⊱
POSFÁCIO ⊰ 276 ⊱
SPICE & WOLF VOL X ⊰ 277 ⊱

ENTREVISTA COM ISUNA HASESEKURA


Para Green Tea Graffiti

Entrevista por Darren Kwok (2015)

Ao longo da entrevista com Isuna


Hasekura, falamos sobre o adorado Spice &
Wolf.

Darren: Para a primeira pergunta, decidi que


deveria começar com perguntas fáceis e mais
relaxantes — portanto, poderia compartilhar
sua programação diária?

Hasekura: “Acordo às 11h, 12h ou 13h e


verifico meu e-mail por cerca de 30 minutos.
Então leio livros de referência por cerca de
uma hora antes de ir para o meu local de
trabalho e almoçar. Depois começo a
trabalhar, o que também me faz desviar para
a leitura de livros e quadrinhos e jantar às
20h ou 21h, às vezes com meus amigos, às
vezes não. Então vou para casa às 21h ou 23h,
navego na internet e, continuo navegando mais um pouco na
internet… perdendo tempo e depois vou para a cama às 4 ou 5h.”

Darren: Pessoalmente, como aspirante a autor, fiquei curioso — qual


foi a inspiração para a história e qual foi o processo? Você passou por
um extenso planejamento ou já estava claro em sua mente como
queria escrever a história?
POSFÁCIO ⊰ 278 ⊱

Hasekura: “Spice & Wolf foi inspirado em dois livros. O primeiro


sendo O Ramo de Ouro, onde descobri o mito do “Lobo do Trigo”,
assim como Ouro e Especiarias onde se discute o surgimento do
comércio na Idade Média. Aprendi o processo de comércio na Idade
Média através deste livro. Eu amo economia, no entanto, o espírito
do lobo não combina com uma história moderna e, portanto,
selecionei a Idade Média como cenário da história.”

Darren: Ah, ganhar inspiração ao ler as obras dos outros. Eu acho


que é algo com o qual muitos escritores podem se familiarizar. Haveria
uma terceira temporada de Spice & Wolf, o anime?

Hasekura: “Infelizmente... não.”

Darren: Você planeja escrever outra série no universo Spice & Wolf,
ou talvez escrever outro livro da série, mesmo que a série esteja
‘finalizada’?

Hasekura: “Talvez? Fiquem de olho nos meus trabalhos —”


SPICE & WOLF VOL X ⊰ 279 ⊱

OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/

Billionaire Magdala de Shoujo wa World End


Isuna Hasekura Girl Nemure Shoka no Economica
História Umi de
Nemuru

Nascido em 27 de dezembro de 1982, Isuna Hasekura é um estudante de física e


gasta seus dias lamentando a cruel natureza do mundo desde que estudar
harmônicas de superfície esférica falhou em dar a ele o resultado correto da
restituição do imposto de renda. Entretanto, devido a situações atenuantes, ele é
incapaz de prover uma explicação satisfatória sobre harmônicas de superfície
esférica.

Gelatin Risou no Uchi no Maid Witch Hunt


Juu Ayakura Himo wa Futeikei Curtain Call
Arte Seikatsu

Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.

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