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PUBLICADO

10.09.2008
A captura de um narval e a consequente disputa de poder entre
os distritos norte e sul de Kerube deixou Lawrence preso bem no
meio do conflito! Acuado pela sua própria guilda comercial,
poderia o mercador encontrar uma forma de se esquivar desta
situação delicada? E a questão do osso do lobo da matilha de
Holo? Poderia a Sábia Loba de Yoitsu manter sua raiva e
frustração sob controle?
Kerube é uma cidade dividida
por um rio e um delta. Os donos
das terras do lado norte do rio
são donos do delta, que é um
importante centro de comércio,
mas foi desenvolvido com
empréstimos feitos por ricos
comerciantes do lado sul. Assim,
os donos das terras do norte O Narval é uma criatura
foram forçados pelos lendária, que dizem conceder
mercadores do sul a continuar a vida longa e curar doenças. É
pagar grandes quantias de juros valioso o suficiente para
sobre seu empréstimo. derrubar o delicado equilíbrio de
poder em Kerube.

Buscando mais informações sobre os ossos do lobo, Lawrence, Holo e Col chegam
a Kerube. Com uma carta de apresentação de Eve, eles visitam a Companhia Jean,
que há rumores de estar ligada à Companhia Debau — mas Reynolds, o
proprietário da Companhia Jean, parece pensar que os ossos de lobo são uma mera
superstição.
Mais tarde, no mercado do delta, Lawrence encontra Eve e descobre a situação
entre os lados norte e sul de Kerube. Eve foi pressionada pelos donos de terra do
norte a resolver sua disputa de território e descobriu que os lucros dos negócios de
Reynolds estão sendo roubados por esses mesmos homens. Concluindo que
Reynolds ainda está procurando os ossos de lobo, Lawrence vai ver Kieman, o
chefe da filial local da Guilda Comercial Rowen — mas, tendo feito isso, ele fica
dividido entre confiar na Guilda ou em Eve.
Enquanto isso, uma lendária fera do mar é trazida para a praia — um narval. Eve
entra em contato com Lawrence e conta a ele sobre seu plano de roubar o narval
dos donos de terra do norte. Enquanto Lawrence agoniza sobre o que fazer, ele
recebe uma carta de Kieman…
VESTIDO DE FORMA IMPECÁVEL,
ERA NINGÉM MENOS
QUE LUD KIEMAN.

— LUD KIEMAN, MEMBRO SÊNIOR DA


GUILDA DE COMÉRCIO ROWAN.

“BOM DIA, SR. LAWRENCE.” VEIO “...BOM DIA.”


UMA VOZ CLARA E FIRME, QUE
CONDIZIA COM A CONFIANÇA DO
PORTADOR.

— TOTE COL, APRENDIZ


“VOCÊ REALMENTE ENTENDE?”

“EU CREIO QUE SIM.”

“TEM CERTEZA?”
“E EU DUVIDO QUE VOCÊ SIRVA PARA
SER UMA LOBA.”

“VOCÊ REALMENTE NÃO


SERVE PARA SER
MERCADOR.”

— EVE BOLAN, A MULHER


MERCADORA
INTERVALO ....................................................................... 10
CAPÍTULO IV .................................................................... 12
CAPÍTULO V ..................................................................... 40
CAPÍTULO VI .................................................................... 74
CAPÍTULO VII ................................................................. 102
CAPÍTULO VIII ............................................................... 118
CAPÍTULO IX .................................................................. 146
ATO FINAL ...................................................................... 207
POSFÁCIO ........................................................................ 214
EXTRAS ............................................................................ 216
ser humano é, de fato, uma criatura fraca.
Não tem presas, nem garras, nem asas para fugir.
Então, para se proteger, os humanos devem usar suas
mentes — tecnologia, estratégia, etc…
Cada criatura, humana ou animal, compartilha um método
comum de autodefesa.
E isso é formar grupos.
Uma única ovelha é fraca. Mas um bando de milhares não precisa
recuar diante do ataque de alguns lobos.
Ao funcionar como parte desse grupo, um único animal pode
encontrar segurança, sobrevivendo para deixar descendentes.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 11 ⊱

Os humanos são iguais; eles se reúnem para viver em grupos, e


esses grupos acabam sendo chamados de aldeias, depois cidades, à
medida que expulsam a escuridão da floresta.
Mas também faz parte de como o mundo funciona que esses
grupos formados para proteger seus membros lutem contra outros
grupos desse tipo — pois um grupo criado para autodefesa deve
necessariamente considerar os forasteiros como inimigos.
É como uma única grande fera, e para uma única criatura
impotente receber o benefício das garras e presas dessa fera, ela deve
pensar em si mesma primeiro como parte dessa criatura e não como
um único indivíduo.
Quando a besta vira à direita, eles devem virar à direita. Quando
corre para a esquerda, eles devem correr para a esquerda. E quando
deseja comer uma ave, uma ave deve caçar.
Mesmo que essa ave seja o seu amado pássaro.
O humano é uma criatura fraca, de fato.
Aqui neste mundo onde os deuses permaneceram por muito
tempo escondidos nas brumas, os humanos não podem sobreviver por
conta própria.
Então, para se proteger da escuridão da floresta, eles se tornam
uma única fera cercada por paredes de pedra e terra.
Mesmo sabendo muito bem que tendo emprestado o poder
daquela grande fera uma vez, eles nunca escaparão de seu jugo.
Traição nunca é tolerada.
Essa é a única maneira de sobreviver às tempestades do destino
que atingem o mundo — pelos laços de sangue e solidariedade.
evemos deixar este lugar,” Lawrence disse sem rodeios.
“E rápido.”
Ele entrou na sala com passos largos. Sobre a mesa
estavam as moedas, cujo quebra-cabeça Col havia
resolvido, Lawrence as recolheu em sua bolsa como se fosse um monte
de areia na praia.
A vida dos viajantes envolvia se livrar de coisas desnecessárias.
Tudo o que eles precisavam já estava embalado em um saco de
estopa no canto do quarto, e se a fuga fosse necessária, eles poderiam
simplesmente colocar o saco no ombro e correr — afinal, não era raro
serem atacados durante a noite.
“Ora, veja só.”
Lawrence olhou para a voz.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 13 ⊱

Era o rosto surpreso de sua companheira de viagem, Holo.


“O que é isso?”
Em sua mão havia uma carta escrita em um único pedaço de
pergaminho.
Inscrita nele havia uma declaração em letras curtas e sem
decoração, junto com um selo de cera vermelho-sangue no canto
inferior direito.
Estava endereçado a ninguém menos que Lawrence, e o
remetente era a Guilda Comercial Rowen. Para um comerciante
viajante como Lawrence, cujo sustento era sempre incerto, o grupo de
camaradas comerciantes era muito encorajador.
Seu selo era um escudo poderoso em qualquer cidade e poderia
ser uma arma poderosa.
A guilda havia enviado uma carta a Lawrence na estalagem onde
ele se hospedou no lado norte de Kerube.
“‘Buscamos um mercador corajoso que não teme nem bruxa nem
alquimista. Em consideração tanto à riqueza quanto ao progresso da
guilda, em todo caso, considere... assinado, Lud Kieman.’”
Holo leu o conteúdo da carta em voz alta, suavemente, e então
olhou para Lawrence com curiosidade.
Ao lado de Holo, seu outro companheiro de viagem, Col, olhou
para o documento em suas mãos.
A carta era de Lud Kieman, comerciante-chefe da filial em Kerube
da Guilda Comercial Rowen, e seu significado era claro — não havia
dúvida de que ele estava tentando obter a cooperação de Lawrence,
assim como Eve disse que faria.
Ele queria entregar o narval a Eve e receber em troca dos títulos
das terras na margem norte do rio, transformando assim o equilíbrio
de poder na cidade. O narval era uma criatura tão valiosa que tornava
essas coisas possíveis.
CAPÍTULO IV ⊰ 14 ⊱

Mas nem Kieman nem Eve podiam confiar um no outro. Cada um


deles era hipócrita demais para dar as mãos sobre um contrato.
Eles precisavam de alguém para atuar como intermediário. E, se
possível, alguém que eles pudessem controlar facilmente.
Em meio a uma competição acirrada por lucros tão grandes, a vida
de um comerciante não valia mais do que um único grão de trigo.
Lawrence podia ouvir os ossos rangendo.
A falta de preocupação de Col e Holo só agravava ainda mais seu
nervosismo. “Você não entende? Esta é uma convocação da minha
guilda,” ele disse como explicação, amarrando o saco de estopa bem
firme.
“Sua guilda?” veio a resposta de Holo, que fez Lawrence se
levantar e balançar a cabeça.
“O nome na carta, ali, é Lud Kieman, o gerente da filial local da
minha guilda. Mesmo que eu não deva nenhum favor diretamente a
Kieman, devo minha lealdade à Guilda Comercial Rowen, cuja casa no
delta ele administra. Você entende o que eu estou dizendo? Kieman
está usando as rédeas da minha obrigação com a guilda para me colocar
em uma posição terrível!”
Comerciantes tão impotentes quanto os mercadores viajantes
podiam se mover com segurança de cidade em cidade apenas por causa
de seus vínculos com a guilda. Como a guilda trabalha incansavelmente
para adquirir vários direitos e privilégios em cada cidade, seus
comerciantes poderiam visitar essas cidades e fazer negócios sem se
preocupar.
Mas ser capaz de comer as frutas colhidas pelas garras e dentes da
guilda significava que quando a cooperação de um comerciante fosse
solicitada, um membro não podia recusar.
Porque por mais absurdo que fosse o pedido, os muitos privilégios
que o mercador até então gozava vinham à custa do trabalho árduo de
seus camaradas.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 15 ⊱

No entanto, havia um limite para o quanto alguém poderia ser


forçado.
Kieman estava tramando a serviço de seu próprio interesse e
tentando atrair Lawrence para essas maquinações.
Ele alegaria que era do interesse da guilda e, enquanto seus
preparativos fossem completos, Lawrence seria incapaz de recusar
para não ser considerado um traidor pela guilda. E havia outro motivo
para Lawrence estar preocupado — a pessoa com quem ele havia
conversado recentemente em outro prédio.
Se Kieman era a cabeça de um grande gigante composto por um
exército de mercadores, então seu inimigo era uma loba de estatura
igualmente impressionante.
E aquela loba pediu inesperadamente a Lawrence para trair a
guilda.
Claro, ela estava esperando com a promessa de um lucro
estonteante, e de fato sua proposta para Lawrence era apenas uma
parte de um estratagema maior que ela já havia posto em ação.
Era quase uma conclusão inevitável que um único mercador
viajante seria facilmente varrido neste turbilhão carmesim de dinheiro
e sorte.
Entre as engrenagens do poder e da influência, o sangue de um
único humano geralmente não tinha grande valor.
“Devemos sair da cidade. O mais breve possível. Antes que não
possamos mais.”
Ainda havia tempo.
Lawrence engoliu essas palavras como uma oração. “Vocês dois,
rápido,” acrescentou.
“Você não quer se acalmar?” vieram as palavras frias de Holo,
derramando sobre o fogo escaldante em sua mente.
CAPÍTULO IV ⊰ 16 ⊱

Essas palavras eram como água em óleo fervente. Lawrence


explodiu. “Estou bem tranquilo!”
Col estava ao lado de Holo, segurando um pequeno barril de
vinho, e ele recuou quase audivelmente com o grito. Ao lado dele, a
penugem branca nas orelhas de Holo agitou por uma mera fração.
Era incrivelmente óbvio qual dos três era o menos composto na
sala.
“—”
Lawrence largou sua própria carga, olhou para o teto, depois
fechou os olhos e respirou fundo.
Ele se lembrou de que uma vez, quando estava à beira da falência
e da ruína, ele deu um tapa na mão de Holo, com raiva.
Ele se perguntou se não havia aprendido nada desde então.
Interiormente, ele se amaldiçoou.
“Bem, não há nada de errado com um macho flexível que se dobra
como um galho verde, mas dificilmente se pode confiar em um homem
assim. Um tolo é muito melhor por sua obviedade.”
A cauda de Holo abanou enquanto ela acariciava a cabeça de Col;
o menino observou os desenvolvimentos cuidadosamente.
“Apesar de possuir dois olhos, a maioria das criaturas pode ver
apenas uma coisa de cada vez. Você sabe por que machos e fêmeas se
esforçam tanto para se relacionar?”
Ela pegou o barril de vinho de Col e puxou a rolha com os dentes.
Com um leve gesto do queixo, fez sinal para que Col lhe tirasse a rolha.
Col fez o que foi instruído como se conhecesse bem o processo.
Durante esse tempo, os olhos de Holo permaneceram fixos em
Lawrence.
“Tenho certeza de que seu bom senso o levou a algum tipo de
conclusão clara.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 17 ⊱

Lawrence não precisou perguntar o que Holo teria acrescentado


a essa afirmação.
Os dois, Holo e Col, sentaram-se lado a lado e olharam para ele.
A dupla parecia um pouco frágil naquele momento, o que fez
Lawrence se sentir um vilão.
“Hmph. Das espigas retorcidas de trigo, eu testemunhei muitas
vezes esses péssimo hábito na aldeia.”
Lawrence sabia o que Holo estava tentando dizer.
Col pareceu alcançá-la um pouco mais tarde, e quando ele desviou
o olhar inquieto, Holo lhe deu uma cotovelada, como se dissesse: “Fale
logo”.
“…Meu pai… muitas vezes era assim.”
Lawrence não tinha espaço para protestar que nada disso era culpa
dele. “…Sinto muito. Mesmo assim,”
“Guarde suas desculpas. Eu não quero respostas. O que eu peço é
uma explicação. Não somos seus seguidores. Não temos obrigação de
fazer o que você nos diz. Correto?”
Ela o advertiu sem raiva, e sua declaração foi eficaz porque estava
correta.
Os dois não eram as pessoas inocentes e indefesas que pareciam
ser.
Eles eram seres independentes, perfeitamente capazes de
conceber e realizar seus próprios planos.
Decidir arbitrariamente o que fazer bem na frente deles era em si
uma espécie de traição.
“Então, o que aconteceu?” perguntou Holo, com um traço de
sorriso.
Apesar de tê-lo castigado por sua visão estreita, ela parecia
reconhecer que ele devia ter seus motivos.
E teimosia não faz parte de ser um mercador.
CAPÍTULO IV ⊰ 18 ⊱

Lawrence balançou a cabeça — não para negar suas palavras, mas


para clarear sua própria mente.
Ele se lembrou da discussão em que havia se envolvido
anteriormente.
“Eve me convidou para atuar como seu espião.”
“Oh ho,” disse Holo brevemente, levando o vinho aos lábios. Ela
queria que ele continuasse.
“E o remetente dessa carta, Kieman, quer que eu aja como seu
espião também.”
"Então você está preso."
Lawrence assentiu e continuou com o assunto que era a raiz do
problema.
“A razão de tudo isso é porque o lado sul capturou um barco de
pesca do norte. Isso é tudo o que será necessário para desencadear o
conflito entre o norte pobre e os ricos do sul. Os sulistas recorreram
a isso porque queriam a valiosa captura do barco do norte. Eva foi
encarregada de devolver o prêmio ao norte, mas aquele que lhe deu a
ordem não está fazendo isso por lealdade, mas para seu próprio lucro.
E Eve está apenas fingindo concordar com isso; ela planeja trair o norte
e me pediu para ajudar.”
O assunto não seria resolvido com meras centenas de lumiones.
E, no entanto, ela estava perfeitamente disposta a realizar esse
negócio, cujo valor se estendia a milhares de moedas de ouro.
“Mulher audaciosa,” declarou Holo com um sorriso irritado. Col
parecia ter medo de dar um passo em falso na conversa, então ele olhou
para o vazio.
“Mas desde que Eve declarou sua intenção de trair o norte, é
provável que ela esteja disposta a trair mais alguém, não é?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 19 ⊱

Teoricamente, dois negativos equivalem a um positivo, e o


inimigo do inimigo era um aliado. Mas só Eve sabia se sua traição após
traição funcionaria para seu lucro no final.
“É um pântano de dúvidas, certo. Quando até seu próprio bando
está tentando usar você para seus próprios fins, suponho que não seja
surpresa que seu rosto esteja pálido de preocupação.” Holo tomou um
gole do barril de vinho e arrotou.
Que ela pudesse dizer tais coisas e beber vinho ao mesmo tempo
era enfurecedor, mas Lawrence apenas mostrou um sorriso de dor.
Além disso, como dizia o ditado, os cavaleiros que sobreviveram
ao campo de batalha estavam sempre sorrindo, e os mercadores não
eram diferentes.
“Existe alguma solução que satisfaça todas as partes?”
“Já que Eve não está realmente trabalhando para o norte, não
deveria importar para ela de onde vem seu lucro. O que significa que
ela não deveria se importar em receber sua parte da Guilda Comercial
Rowen. É possível que Eve e a guilda possam lucrar. Então, contanto
que ela não decida trair a mim e a guilda para ficar com tudo para si
mesma, isso pode funcionar.”
“Hum.”
“Como alternativa, eu poderia agir em favor do lucro da guilda e
tentar excluir Eve completamente.”
“Mmm... Então devemos nos jogar à mercê de um vilão ou ser
cegamente otimistas, hein?”
Caso contrário, Lawrence não estaria nessa posição — essa era a
conclusão lógica.
Lawrence assentiu e colocou as mãos sobre a mesa.
“Mas tudo isso é adivinhação com base no que pude observar. Em
uma operação tão vasta, há muito que eu não sei. Se me envolvo, não
posso deixar de ser um peão para aqueles que estão acima de mim.”
CAPÍTULO IV ⊰ 20 ⊱

Se Lawrence pudesse sondar as profundezas desses esquemas,


poderia transformá-los em lucro. Mas para fazer isso, ele tinha que
entender exatamente onde estavam essas profundezas.
“Então você fica com a responsabilidade de lidar com a pior parte
do problema, hein?” disse Holo.
“Sim”, concordou Lawrence, pegando a carta das mãos de Holo.
Como um mercador errante solitário, quantas vezes o selo
daquela carta veio em seu auxílio? Era um emblema mágico, uma arma
poderosa e um escudo robusto.
Ele nunca duvidou de seu poder.
E era por isso — agora que seu poder estava voltado contra ele
— que ele não podia ver outra alternativa a não ser escapar.
“Então aquela raposa e seu bando estão brigando pelo mesmo
prêmio? O que seria isso?”
“Huh? Oh sim. É o que você diz que viu no lado sul.”
“Certamente não são os ossos?”
Lawrence e seu grupo tinham vindo para a cidade litorânea de
Kerube, longe da terra natal de Holo, de Yoitsu, em busca de um certo
item — os ossos do que se dizia ser um deus-lobo adorado nas
montanhas Roef.
Holo havia descoberto a possibilidade de que os ossos fossem
usados de maneira imperdoável pela Igreja, enquanto Col queria saber
a verdade do deus de sua terra natal.
O tom de Holo era divertido quando fez a pergunta, mas seus
olhos não estavam sorrindo.
O objeto em questão não estava tão longe dos ossos de lobo,
considerando seu valor, e era por isso que os poderes estavam em um
frenesi para adquiri-lo.
“Uma coisa similar. Uma fera dos mares do norte — uma criatura
mágica com um único chifre. Comer sua carne garante vida longa, e
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 21 ⊱

uma tintura de seu chifre cura doenças. Chama-se narval.


Evidentemente, um dos barcos de pesca do lado norte pegou um em
suas redes.”
Holo estava ouvindo Lawrence falar como se suas palavras fossem
um acompanhamento agradável para acompanhar seu vinho, mas de
repente sua orelha se contraiu.
“O que há de errado?”
“… Não é nada.”
A mentira era tão óbvia que nem valia a pena rir dela.
“Mesmo assim—”
“Sim?”
“Você tem certeza de que toda essa conversa gira em torno disso?”
“Sim.”
“Nesse caso, você ainda tem escolhas a fazer. Não é mesmo?”
Holo, divertida, dirigiu esta última pergunta a Col.
Enquanto Holo ouvia Lawrence falar, Col observava a troca do
par sem se envolver.
Ele era a pessoa óbvia para identificar uma terceira opção.
“Er, ah, hum...”
“Vamos, seja ousado!”
Holo deu um tapa em suas costas, e Col finalmente reuniu
coragem para falar.
“E-er, a senhorita Holo não poderia simplesmente... pegar o
narval...?”
“…Huh?” foi tudo o que Lawrence conseguiu fazer diante das
palavras de Col.
O pensamento simplesmente não lhe ocorreu.
CAPÍTULO IV ⊰ 22 ⊱

“Se houver uma briga por algum objeto, o conflito depende do


próprio item. Tenho certeza de que a senhorita Holo pode atravessar
o rio em um único salto, então ela deve ser capaz de roubá-lo
facilmente.”
Afinal, Col era das montanhas.
Ele falou essas palavras lisonjeiras com total sinceridade, e as
orelhas de Holo se contraíram alegremente.
Provavelmente era verdade que roubar o narval não era uma coisa
difícil para Holo.
Não importa o quão bem guardado pudesse estar, diante das
presas da verdadeira forma de Holo, a armadura dos guardas
dificilmente seria mais do que a armadura de papel na qual as crianças
se vestem para brincar. Apesar de toda a trama e planejamento de Eve,
Kieman e outros poderes monstruosos em jogo, não seria um grande
problema para ela pegar o item e fugir.
Lawrence coçou a cabeça e falou. “Olhe aqui, mesmo que façamos
isso, a questão se torna o que fazer a seguir. Mesmo que o roubo fosse
simples, você certamente seria vista. Nesse ponto, a ideia de que
alguém compraria o narval de nós é completamente absurda. Isso é...”
“Estou bem ciente disso. Mas —” Holo interrompeu, seus olhos
se estreitando com seu sorriso e sua cabeça inclinando para um lado
“— você deve ter visto como tudo isso é realmente simples. Não viu?”
“…Huh?”
“Então você não entende? O assunto que o deixou tão aterrorizado
que só consegue pensar em fugir, eu posso destruir com minhas presas
e garras. Ter meu companheiro tão desesperado é um grande
problema. E eu devo ser muito tola por ter te escolhido.”
“…”
Lawrence olhou de volta para Holo; ele estava sem palavras.
Ele tinha que admitir que ela estava certa.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 23 ⊱

Quando se tratava de engano a serviço do lucro, Holo era capaz


de astúcia descarada que faria com que até mesmo o mercador da
cidade mais cansado ficasse tonto.
De repente, as coisas que Lawrence tanto temia pareciam muito
pequenas. Ele podia sentir o sangue fluindo de volta para seu rosto
antes pálido e foi incapaz de esconder a vergonha.
“Heh-heh-heh. Veja, Col, meu rapaz? Isso é o que acontece ao
deixar uma tempestade em uma xícara de chá te derrubar.”
Col, é claro, parecia envergonhado por respeito a Lawrence, que
preferia que o menino simplesmente risse dele.
Col contemplou Lawrence com um olhar quase feminino, com
seu rosto voltado para cima, para o qual Lawrence sorriu
nervosamente. O menino devolveu o sorriso com evidente alívio.
O sangue sumiu de seu rosto, e o campo de visão apertado de
Lawrence pareceu se expandir.
“Sempre tenha suas armas prontas”, seu mestre lhe disse uma vez.
E ao lado dele estava Holo, a Sábia Loba da floresta de Yoitsu.
Havia uma certa dignidade em sua forma que balançava a cauda e
tomava vinho.
“Além disso, se você escapar dessa situação atual, não será mais
fácil investigar sobre os ossos?”
“… Eve também disse isso. Ela me falou que se eu cooperasse, ela
entregaria o que sabe sobre os ossos. Em outras palavras, está dizendo
que não se importaria em descobrir o que Ted Reynolds da Companhia
Jean supostamente sabe.
Holo ergueu uma única sobrancelha, embora não estivesse claro
se a expressão era de raiva ou diversão. “Hmph. A megera é mais fria
do que você. Ouça aqui — nossa busca pelos ossos é muito diferente
do problema em que você parece estar se metendo agora?”
Lawrence ficou sem palavras diante da analogia.
CAPÍTULO IV ⊰ 24 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 25 ⊱

Holo, é claro, não se conteve. “Quando começamos nossa busca


pelos ossos, você me alertou sobre isso. Mas agora você recua diante
da perspectiva de um desafio semelhante? Neste ritmo...” A força foi
drenada de seu rosto irritado, e ela desviou o olhar. “… vou começar
a duvidar de suas palavras.”
Estas últimas palavras foram ditas com tristeza, e ela olhou
brevemente para o mercador.
Lawrence sabia que estava sendo provocado. Mas era a maneira
de Holo tentar motivá-lo.
“Você não me disse que era aquela espécie de macho em extinção,
que faz mais do que fala?" ela agora perguntou provocativamente, sua
cabeça inclinada.
Ela sorriu para o rosto azedo de Lawrence.
A inflexibilidade não tinha utilidade nos negócios, mas isso não
significava que ele sempre pudesse ser perfeitamente racional.
Lawrence resmungou, seu olhar abatido. “Suponho que podemos
escapar independente do que ocorra.”
“Sim. Então agora você pode relaxar esses ombros.”
“Porque você estará aqui se o pior acontecer?”
Se isso fosse necessário para descobrir a verdade por trás dos ossos
de lobo, Holo desembainharia seus dentes e garras sem pensar. Mas
isso estava longe de ser uma solução ideal, por isso Lawrence estava
preocupado.
Em resposta à sua pergunta, Holo balançou a cabeça e respondeu
com um sorriso calmo. “Não, porque você não precisa se preocupar
com quem vender essa fera marinha quando ela estiver entre minhas
mandíbulas. Assim como o menino Col disse, se os filhotes começarem
a brigar por causa disso, acho que a solução mais fácil seria
simplesmente comê-lo.”
“… suponho que não é surpreendente que eu não tenha pensado
nisso.”
CAPÍTULO IV ⊰ 26 ⊱

“Isso apenas prova o quão pouco você estava me considerando,”


Holo respondeu. De pé entre eles, o olhar de Col passava de um para
o outro.
“Obviamente,” Lawrence retrucou, o que fez Col parecer
subitamente um pouco preocupado.
Lawrence teve que admitir que, olhando de fora, deveria parecer
como se eles estivessem brigando. Mas Col logo pareceu entender o
contrário. Em contraste com sua expressão, a cauda de Holo estava
abanando.
“Hmph. Você diz essas coisas e, no entanto, quantas vezes
precisou da minha ajuda? Não há grande diferença entre a terceira e a
quarta vez.”
Tanto quanto podia, Lawrence queria evitar confiar em Holo. No
entanto, apesar das suas palavras, ela o livrou do perigo muitas vezes.
Assim, embora pudesse parecer que as consequências fossem a
única coisa que importava, ultimamente Lawrence começara a
suspeitar do contrário.
E foi por isso que mesmo quando admitiu sua confiança em seu
poder, Lawrence encarou aqueles ouvidos que podiam detectar
qualquer mentira e falou.
“Você é realmente a Sábia Loba de Yoitsu, mas não é por isso que
escolhi você como minha companheira de viagem.”
Holo abaixou a cabeça e riu.
Col fingiu não estar muito atento, mas com ele ali, Lawrence não
pôde dizer mais nada. Mesmo que estivesse sozinho com Holo,
dificilmente ele diria algo mais.
"Então você vai demonstrar esperteza para impressionar até
mesmo uma sábia loba?"
“Claro”, respondeu Lawrence brevemente. "É claro."
Se estivesse sozinho, teria fugido — ou se deixado usar.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 27 ⊱

Mas havia uma razão pela qual um sorriso se insinuou em um canto


da boca de Lawrence.
Sério? Era realmente sábio ficar de pé e enfrentar essa situação
louca?
Ele não pôde evitar, mas interiormente questionou a ideia.

A estalagem na qual os três estavam hospedados era aquela à qual


Eve os apresentara originalmente, e Kieman agora também sabia seu
paradeiro. Assim, tendo decidido não fugir da cidade, a única coisa que
Lawrence podia fazer era esperar ser contatado.
Se ele fosse notado tentando coletar informações por conta
própria, seja por Kieman ou Eve, isso não deixaria uma impressão
muito favorável.
Dado que os oponentes de Lawrence detinham a vantagem tanto
em informação quanto em poder, a única estratégia disponível para ele
era observar seus movimentos e tentar enganá-los posteriormente.
Intelectualmente, ele estava bem ciente disso, então ele também
sabia que a tática de Holo de cochilar na cama com a cauda balançando
preguiçosamente para frente e para trás era muito melhor do que a
dele, que envolvia sentar em uma cadeira enquanto sua perna
balançava inquieta.
Mesmo assim, sentou-se naquela cadeira perto da janela e olhou
para fora, incapaz de se acalmar.
Nesta estação, o céu nublado escurecia até mesmo os humores
mais brilhantes — e mais ainda os que já estavam sombrios.
Lawrence sabia muito bem como era pequeno diante dos
esquemas e ganância de Eve e Kieman. Tudo o que ele podia fazer era
suspirar.
Holo o compeliu a ficar na cidade em vez de fugir, mas tendo
tomado a decisão, ele não se sentia melhor com a situação.
CAPÍTULO IV ⊰ 28 ⊱

Esta não era uma negociação individual entre comerciantes; esta


era uma batalha de muitos contra muitos.
Nunca se envolva com um negócio que você não entende, seu
mestre havia lhe ensinado, e mesmo assim Lawrence estava quebrando
essa regra. Ele suspirou novamente e examinou seu quarto na pousada.
Lá na cama, Holo estava dormindo, tendo perdido sua batalha
com o demônio sonolento.
Col se sentou no chão ao lado da cama, cuidando de seu cinto
depois de tê-lo tirado da cintura. Pouco antes, ele pegara emprestada
uma agulha do estalajadeiro, e Lawrence presumira que pretendia
consertar o cinto, mas parecia que o contrário era verdade.
Col puxou fios de seu cinto e os amarrou para formar um único
fio longo. Ele então enfiou a agulha com o resultado. Finalmente, ele
tirou seu casaco surrado e Lawrence finalmente entendeu seu objetivo.
Lawrence se levantou e caminhou até ele. “Se você vai recorrer a
isso, em breve não terá mais nenhum cinto.”
Col tinha começado a costurar com a linha improvisada, a agulha
movendo-se habilmente pelo tecido. O menino tinha prática.
Diante das palavras de Lawrence, Col ergueu os olhos com um
sorriso envergonhado, mas sem cessar seus reparos.
O fio era bastante curto, então o remendo foi rapidamente
concluído.
Do ponto de vista de um comerciante que ganhava a vida julgando
a qualidade das mercadorias, tal conserto não passava de uma oração a
Deus.
“Eu vou comprar linha para você.”
“Huh? Não... estou bem. Viu só?” Col mordeu a ponta do fio e
ergueu o casaco com orgulho.
Se Holo estivesse assistindo, ela provavelmente teria batido
levemente na cabeça dele e abanado a cauda.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 29 ⊱

Mas Lawrence não era Holo, então ele simplesmente colocou a


mão na cabeça do menino. “Ainda tenho que retribuir por me explicar
o mistério das moedas de cobre. Os estudiosos da igreja são pagos por
suas palestras, não são?”
Col parecia querer responder, mas parecendo pesar a boa vontade
de Lawrence contra sua própria modéstia, ele deve ter concluído que
aceitar a boa vontade era a melhor escolha.
Ele sorriu timidamente. “Não seria um problema?”
“De forma alguma. Vamos encontrar um alfaiate e comprar linha?
Não seria melhor poder consertar o quanto antes?”
Lawrence imaginou que o dinheiro que o fio custaria
provavelmente poderia comprar um casaco melhor do que o que está
atualmente em posse de Col, mas ele não disse isso.
O menino reunira coragem para deixar sua aldeia. O casaco que
ele havia recebido para marcar a ocasião realmente valia tão pouco?
Dificilmente seria bom saber que o item que guardava tantas
lembranças valia menos do que o fio necessário para consertá-lo.
“Bem, então, obrigado!” disse Col alegremente, apressando-se a
colocar o casaco sobre os ombros.

Lawrence pensou em convidar Holo também, mas com ela


acabando de adormecer, mesmo apertar o nariz não a acordaria, então
ele e Col saíram como um par. Além disso, se Kieman ou Eve viessem
chamar, seria melhor se houvesse alguém no quarto.
“Então, qual tipo de linha você gostaria?”
Tendo perguntado ao estalajadeiro onde encontrar um alfaiate, os
dois encontraram o local sem problemas.
Parecia que apenas algumas partes da cidade haviam sido lançadas
no caos pelo narval.
CAPÍTULO IV ⊰ 30 ⊱

Poder era poder porque não podia ser compartilhado; a maioria


das pessoas não estava preocupada com a propriedade de terras em
grande escala ou com a reputação da cidade — esses assuntos estavam
tão acima de suas cabeças quanto a lua.
Antes de conhecer Holo, o próprio Lawrence tinha sido um desses
observadores da lua. Apesar de todas as aventuras pelas quais ele
passou com Holo, essa vida tranquila era onde ele se sentia mais em
casa.
A alfaiataria em que chegaram tinha persianas abertas para uma
mesa improvisada sobre a qual estavam arrumadas roupas, além de fios
e retalhos para remendos.
O garoto de aparência entediada que cuidava da loja, segurava o
queixo nas mãos tingidas de uma cor escura, provavelmente devido
aos corantes de tecido com que trabalhava.
Ele se endireitou e sorriu assim que notou Lawrence e Col, e
vendo isso, Lawrence retribuiu o sorriso.
Este mundo parecia muito familiar.
“Então, o preço varia de acordo com a cor, mas qual você
gostaria?” perguntou Lawrence.
“Hmm... já que esta é a cor do meu casaco, eu suponho...”
O lojista interrompeu enquanto Col olhava para seu casaco. “Um
bom amarelo pálido não deve se destacar.”
Produtos tingidos de amarelo eram um item de luxo, e o sorriso
do lojista deixava claro o quanto isso era verdade.
O menino parecia ser um ou dois anos mais novo que Col, mas
provavelmente era um negociador muito mais duro. Os aprendizes de
artesãos eram frequentemente espancados e chutados. Estavam
fortalecidos de uma maneira que Col não tinha sido.
“Er, mas amarelo não pode ser…” Col pareceu entender que a cor
da tintura afetava o preço e rapidamente encontrou o olhar de
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 31 ⊱

Lawrence, mas é claro, o vendedor dificilmente admitiria isso


abertamente.
“Ah, você deve ser o mestre de uma grande loja em algum lugar!”
disse ele, deixando de lado as palavras de Col e inclinando-se sobre a
mesa. Sem dúvida, seu próprio pagamento baseava-se no valor das
mercadorias que vendia.
"É uma pena que não estamos em nossas melhores condições
hoje", disse Lawrence em resposta ao espírito mercantil do menino.
O menino endireitou a gola e estufou o peito, deixando Col ainda
calado. “Sim, sim, entendo perfeitamente o que você quis dizer! Por
favor, dê uma olhada nisso aqui,” disse o menino, tirando uma amostra
de linha.
O fio na mão do menino não era maior do que sua palma, mas se
acontecesse de voar com a brisa, ele provavelmente perderia três dias
de refeições para compensar.
O corante amarelo veio do outro lado dos sete mares, de uma flor
chamada açafrão cujas flores desciam o rio que levava a um paraíso
terrestre. Sua rica tonalidade dourada lembrava o próprio ouro.
Tintura de qualquer tipo era uma despesa, e o único propósito de
roupas finas era lisonjear o orgulho do usuário. Como os ricos
compravam esses produtos sem pensar, o preço subia muito.
De qualquer forma, Col parecia ter deduzido para onde a conversa
estava indo e agarrou a manga de Lawrence às pressas.
“S-Sr. Lawrence —”
“Hum?” Lawrence sorriu e se virou quando o jovem aprendiz
levantou a voz em um esforço para segurar seu cliente.
“Bom Senhor! Bom senhor, olhe, dê uma boa olhada nesta bela
cor dourada! Um ouro tão puro que até o próprio ouro parece gasto
ao lado dele! Este é o melhor produto do meu mestre. O que você diz,
hum?”
CAPÍTULO IV ⊰ 32 ⊱

Lawrence assentiu obedientemente à insistência do jovem


vendedor.
Atrás do menino, mais para dentro da loja, um homem que
presumivelmente era o dono da parou seu trabalho para observar.
Ele parecia estar avaliando a técnica do garoto mais do que
observando para ver se o fio vendia ou não.
Lawrence olhou para o mestre, que pareceu notá-lo, e os dois
homens trocaram um olhar. O homem deu um sorriso sem voz e
levantou a mão em saudação.
Lawrence respondeu com um aceno de cabeça e então voltou sua
atenção para o menino. “É realmente um ouro fino. Brilhante como
qualquer metal.”
“Não é? Então, por favor...”
“Ainda assim, um fio tão fino não seria desperdiçado em tal casaco?
Se é tão brilhante a ponto de fazer com que até mesmo o ouro
verdadeiro desapareça em comparação, não fará com que as costuras
se destaquem?”
Naquele instante, o sorriso desesperado de negócios do garoto
congelou.
Atrás do menino, Lawrence ouviu o mestre suspirar impotente.
“Para garantir que as costuras não fiquem muito visíveis,
pegaremos seu fio cinza mais barato.”
Talvez as visões da comissão que ele esperava ganhar com a venda
do fio de ouro estivessem dançando em sua cabeça, pois o menino
estava sem resposta. Atrás dele, o mestre se levantou e se aproximou.
“De que comprimento você vai precisar?”
O homem bateu na cabeça do menino com uma mão áspera digna
de um artesão.
Se ele não pudesse enfrentar um mercador inteligente, ele nunca
seria capaz de vender suas mercadorias por um bom preço, não
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 33 ⊱

importa o quão habilmente fossem feitas. O mestre parecia estar


tentando ensinar essa lição ao seu aprendiz.
“Quanto eu poderia conseguir por três lutes de prata?”
“Na verdade... naquele estado desgastado, talvez o suficiente para
fazer cinco costuras como essa? E já que está aqui, que tal tirar um
pouco desse fio azul das minhas mãos? A tinta está saindo dos barcos
como louca esses dias, então há bastante.”
“Você deve comprá-lo enquanto está barato e vendê-lo quando o
preço subir.”
O homem sorriu como se soubesse que tinha sido inútil desde o
início. “Três lutes, então,” ele disse, pegando um carretel do fio cinza.
Concluídas as compras, Lawrence e Col voltaram para a pousada.
Caminharam ao longo do rio e olharam para a cidade, Col
seguindo dois passos atrás de Lawrence, segurando o saquinho que
continha o fio e parecendo bastante cansado.
“O que há de errado?” Lawrence perguntou, o que fez Col desviar
o olhar como um cachorrinho repreendido.
Ele era esperto o suficiente para saber que tinha sido alvo de
brincadeira. Mas parecia tê-lo afetado mais do que Lawrence teria
previsto.
“Você está tão surpreso?”
“…N-não, é só…”
Os olhos de Col foram de um lado para o outro.
Lawrence ponderou se ele havia se acostumado demais a viajar
com uma certa loba maliciosamente espirituosa.
“A provocação de Holo é muito pior do que a minha”, disse
Lawrence, sentindo-se um pouco na defensiva.
Isso pareceu puxar algo à mente de Col, e ele assentiu,
envergonhado. “Verdade,” ele admitiu.
CAPÍTULO IV ⊰ 34 ⊱

“E eu me lembro dela dizendo para você ser mais descarado. Não


sou deus, apenas um comerciante, então não mostro misericórdia a
menos que implorem.”
Lawrence não pagara a Col pelo bálsamo, para não falar da solução
do quebra-cabeça da moeda. Ele queria recompensar o rapaz, mas a
maioria dos mercadores não diria nada. Dificilmente alguém lembraria
a um vendedor que havia esquecido de exigir o pagamento. Lawrence
agonizou sobre que tipo ele era, mas finalmente decidiu pela
honestidade.
“Claro, se você fosse realmente o tipo de pessoa que agisse
descaradamente quando mandado, suponho que não estaria viajando
com você.”
Em vez de se envergonhar, Col sorriu.
Lawrence podia ver por que Holo gostava tanto dele.
“Ainda assim, posso não ser um deus, mas não me importo de
receber orações de vez em quando.”
“Huh?”
“Se eu realmente odiasse que me pedissem isso ou aquilo, não
estaria viajando com alguém com presas.”
A estas palavras, Col sorriu e apertou o saco de estopa.
“Mas você é um futuro clérigo, então se você não vai rezar para
mim, pelo menos deixe-me dar minha confissão.”
“Eh... você quer dizer...?”
“Confesso que meu comportamento durante a troca anterior não
foi exatamente louvável”, disse Lawrence, desviando o olhar de Col.
Col ficou em silêncio apenas um momento, mas logo entendeu e
se endireitou, sua expressão ficando séria, como seria de esperar de
um padre. “O que você quer dizer com isso?”
“Quero dizer exatamente isso. Eu estava descontando minha
frustração em você.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 35 ⊱

“Descontando sua frustração?”


Col tinha o mau hábito de se distrair com seus próprios
pensamentos. Assim que respondeu a Lawrence, ele olhou para cima,
tropeçou e caiu.
“Você viu como eu estava com problemas na pousada, não é?”
Lawrence não conseguiu rir do menino durante sua própria
confissão, então ele apenas estendeu a mão. Quando alguém
tropeçava, a realeza culpava, a nobreza tossia e os plebeus fingiam ter
feito isso de propósito.
Mas Col não fez nenhuma dessas coisas.
Ele ia se tornar um bom membro do clero.
“Eu vi.”
Mas com essa resposta, Lawrence não pôde deixar de soltar uma
risada dolorosa. Col tentou se recuperar apressadamente, mas
Lawrence o dispensou. “Não, não, está tudo bem. Você pode ser meu
aprendiz, mas não posso bater em seu rosto só para salvar o meu.”
Parecendo um pouco confuso, Col sorriu e então esfregou a
própria bochecha.
“Mas depois de agir tão pateticamente, eu queria recuperar um
pouco do meu orgulho, entende?”
“… Então foi por isso que você compartilhou aquele olhar com o
mestre na loja?”
O menino realmente tinha olhos aguçados.
“Isso mesmo. Passei por cima de sua cabeça só para te provocar.
Eu só queria fazer você se preocupar que eu ia comprar o fio mais
caro... e me sentir um pouco superior. Um tanto infantil da minha
parte, eu acho.”
Lawrence coçou o pescoço enquanto olhava para o rio.
Alguns mercadores estavam perto de um barco que estava sendo
descarregado.
CAPÍTULO IV ⊰ 36 ⊱

Ele podia ouvir suas vozes no vento. Eles estavam tentando subir
a bordo para que pudessem atravessar para o lado sul.
Mas a cidade regulamentava as travessias de rios em tempos de
crise.
Atravessar o rio era de fato uma conexão importante para os
proprietários de terras da cidade. Lawrence duvidava que o barqueiro
se arriscasse a levar os mercadores por um suborno insignificante, o
que os próprios certamente sabiam. No entanto, eles ainda estavam
tentando cruzar, o que mostrava quão significativos eram os eventos
que estavam acontecendo.
Dado tudo isso, Kieman ainda conseguiu de alguma forma que sua
carta fosse entregue a Lawrence, o que mais uma vez provou o quão
poderoso ele era.
“Sua confissão foi ouvida. Deus certamente o perdoou.” Não só
Col o ouviu, mas também acrescentou a frase padrão do clérigo depois
de fazê-lo.
“Obrigado”, disse Lawrence, tentando parecer o mais agradecido
que podia.
“Ainda assim, Sr. Lawrence—”
"Hum?"
“Você tinha outra razão para fazer isso, não é?”
Col olhou diretamente para Lawrence. Seu olhar não continha
nenhum traço de malícia, o que fez Lawrence se sentir ainda mais
empalado por ele.
“Você estava tentando atender às expectativas da senhorita Holo,
não estava?”
Os olhos do menino brilhavam como se ele fosse uma criança
ouvindo um conto heroico, tão intensamente que era quase doloroso
de se olhar.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 37 ⊱

Lawrence não pôde deixar de se afastar dele por vergonha. “Eu


não posso dizer que... isso não foi um dos motivos”, ele finalmente
conseguiu responder.
Confirmar sua própria capacidade de negociação era a fonte de seu
desconforto.
“Eu sei que não posso fazer muito para ajudá-lo, Sr. Lawrence,
mas por favor, continue!”
“C-certo.”
Parecia que Col estava colocando cada grama de força de seu
corpo esbelto para apoiar Lawrence. Ele tinha certeza de que, se
estivesse no lugar do menino e visse alguém mais velho do que ele agir
de maneira tão vergonhosa, sua estima pelo mais velho teria caído.
A única razão pela qual pensou em comprar o fio para Col e
brincou com o lojista foi a serviço de seu próprio senso de
superioridade.
Não só Col não se importou, ele estava na verdade torcendo por
Lawrence. Parte disso poderia ser atribuído à personalidade de Col,
mas os mistérios ainda permaneciam.
E a curiosidade de um mercador era mais profunda do que a de
qualquer gato.
“E apesar de eu parecer tão patético — um pequeno mercador
triste descontando suas frustrações naqueles abaixo dele — você ainda
me tem alguma estima? Você é um rapaz estranho”, disse Lawrence e,
como esperado, Col ficou surpreso.
Ele não pretendia bajular Lawrence; ele estava simplesmente
falando o que pensava. “Huh…? Mas... quero dizer... você está
viajando com a senhorita Holo, não está? Ela me disse que você estava
procurando por sua terra natal.”
“É verdade, mas...?”
“Então isso não significa que o problema que estamos enfrentando
agora é grande o suficiente para justificar sua preocupação?”
CAPÍTULO IV ⊰ 38 ⊱

Lawrence não entendia aonde Col queria chegar. Era verdade que
o obstáculo diante deles estava além do que um mercador viajante
poderia lidar, e mesmo com o apoio de Holo ele se sentia longe de
confiante.
Mas teve a sensação de que as palavras de Col se referiam a outra
coisa.
Ele quis dizer que simplesmente poder viajar com Holo implicava
que Lawrence era formidável por direito próprio e, portanto,
qualquer problema que o preocupasse tanto tinha que ser um assunto
sério?
Ou era algo mais?
Lawrence refletiu sobre isso e então percebeu algo.
Col continuou falando. “Quero dizer, essa jornada é a continuação
da lenda de Holo, não é? Portanto, os problemas que você enfrenta
têm que ser dignos de tal conto! Estou realmente grato por poder fazer
parte da história”, disse ele, revelando um sorriso inocente.
Contos de aventura foram passados de viajante para viajante ao
longo da estrada, em cada pousada e cidade. Mas fazia mais de dez anos
desde que Lawrence desejava um dia se envolver em tais histórias.
Até mesmo Col, que era tão inteligente e lógico que podia deixar
qualquer mercador em seu rastro, sentia o mesmo.
Certamente não havia outro menino tão inocentemente
encantador como este.
“É verdade; ela diz que falará dessa jornada grandiosamente nas
lendas que virão. Mas essa é mais uma razão pela qual preciso me
comportar adequadamente com você.”
Lawrence quis dizer isso como uma piada, e os olhos de Col se
arregalaram quando ele sorriu. “Não quero ser considerado um fardo
quando nossa história for contada!”
Foi uma resposta a uma piada que nunca poderia ter sido feita na
frente de Holo.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 39 ⊱

Lawrence balançou a cabeça levemente, suspirando e olhando


para cima.
“Bem, em todo caso, há uma coisa com a qual devemos ter muito
cuidado. Devemos cooperar para ter certeza absoluta de que nunca a
irritaremos.”
Col foi esperto o suficiente para não tomar suas palavras pelo seu
significado superficial. Ele parecia feliz, o que significava que devia ter
entendido o que Lawrence estava tentando dizer.
“Às vezes eu ajo vergonhosamente, como fiz antes. Preciso da
ajuda de alguém para me impedir de fazer isso.”
“Eu entendo!” respondeu Col. “Farei o que puder.”
Lawrence enfrentava oponentes que estavam bem acostumados a
travar batalhas em várias frentes. Ele precisava de todos os aliados que
pudesse conseguir.
O que foi que Holo disse a ele? Sua advertência de que ele deveria
se acostumar a usar as pessoas poderia significar que teria que começar
a confiar nelas. Nesta batalha de muitos contra muitos, tal conselho
certamente seria ainda mais importante.
Lawrence apertou a mão de Col, seu humor melhorou muito.
Quando se tratava de reafirmar sua fé em suas habilidades de
negociação, aquele aperto de mão foi centenas de vezes mais eficaz do
que a patética brincadeira com o alfaiate.
Holo provavelmente estava rindo na cama neste momento.
“Bem, vamos voltar?” perguntou Lawrence, voltando-se para a
estalagem.
“Sim!” Col seguiu diagonalmente atrás de Lawrence.
O tempo nublado e desagradável de repente não parecia tão ruim.
oltando para a pousada com Col, eles encontraram Holo
dormindo profundamente, enrolada em seu cobertor e
roncando baixinho.
Lawrence trocou um sorriso sem palavras com Col e,
naquele momento, o ronco de Holo parou abruptamente.
Ou ela era simplesmente tão sensível a qualquer tipo de discussão
a seu respeito, ou os cabelos delicados em suas orelhas captavam os
movimentos fracos no ar.
Holo abriu os olhos lentamente, então enterrou a cabeça sob os
cobertores, seu corpo inteiro tremendo enquanto ela bocejava.
“Então, objetivamente — o que devemos fazer?” ela perguntou.
Holo percebeu que Col tinha saído com Lawrence, e ela falou
diretamente com ele, farejando-o.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 41 ⊱

Sem dúvida, ela tinha um motivo oculto — o de exigir sua parte


sobre qualquer comida que eles pudessem ter comprado.
Col parecia ligeiramente envergonhado, encolhendo-se.
“Um mercador viajante não pode esperar sobreviver sem uma
guilda. Então, no mínimo, não posso me opor a eles.”
“‘Uma grande árvore faz um bom abrigo’, hein? Suponho que dá
um pouco de liberdade para os insetos embaixo dele — provavelmente
é a escolha certa.”
O tom de Holo era muito parecido com o de Eve quando ela
tentou convencer Lawrence a trair sua guilda, e tudo o que ele podia
fazer era sorrir com tristeza e ouvi-la.
Holo estava apontando que, como ele dificilmente era uma figura
importante na cidade, ele tinha o luxo de poder se mover com bastante
liberdade, apesar do incidente em andamento.
Chamá-lo de “inseto” parecia duro, mas Lawrence teve que
admitir que estava correto.
“Mesmo assim, o maior lucro a curto prazo seria obtido ao levar
o narval para Eve.”
“E então fazer nossa fuga, de mãos dadas? Isso pode ser bastante
divertido.”
Sem Holo, uma opção tão perigosa e aventureira estaria
disponível? Lawrence pensou sobre isso por um momento e concluiu
que, se não fosse por Holo, ele já teria se afastado completamente
dessa situação perigosa há muito tempo.
Ele desabou diante do absurdo da situação, o que fez Holo sorrir
maliciosamente, sua cauda abanando facilmente.
Se você está com tanto medo dessa possibilidade, apenas diga, mas ela
não falou isso, e nem Lawrence.
Teria sido uma pena fechar a cortina de seu pequeno drama tão
cedo. Eles tinham que ser atenciosos com seu público — Col.
CAPÍTULO V ⊰ 42 ⊱

“Então. Dado que Eve e a guilda sabem onde estamos hospedados,


não há como dizer quando seremos atraídos para o perigo. Gostaria de
ter certeza de que tenho uma compreensão completa da situação para
não reagir mal quando isso acontecer”, disse Lawrence. Holo olhou
para ele sem palavras por um tempo antes de sorrir com fraqueza.
“O que foi isso?” ele perguntou, mas ela apenas balançou a cabeça
sem responder.
No entanto, Lawrence tinha alguma ideia de porque ela estava
sorrindo.
Ela o olhou como se ele fosse uma criança pequena que havia caído
e estava tentando não chorar.
“Mm.” Holo balançou a cabeça e deu um tapinha na cabeça de Col
— ele estava sentado ao lado dela.
Col era um deles agora.
“Por favor continue!” Col respondeu a Lawrence, que começou
sua explicação.

A estalagem também era uma taverna, e já era tarde o suficiente


para que seus pedidos de vinho fossem atendidos por um estalajadeiro
bocejando.
Lawrence esperava que Kieman ou Eve fossem chamar, mas não
houve notícias de nenhum deles. Ele bebeu vinho por puro
nervosismo, mas sua preocupação era em vão.
Por outro lado, Holo deixou Col bastante bêbado, como sempre.
Uma vez que pudesse confirmar que o menino embriagado estava
dormindo, ela voltaria para sua própria cama. Holo insistiu que se ela
não o deixasse bêbado, ele dormiria no chão.
Lawrence não tinha certeza se ela estava lhe fazendo um favor ou
não.
Seus métodos eram extremos; isso era certo.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 43 ⊱

“Isso terminará bem o nosso dia.”


Dado que ele se fez de bobo duas vezes naquele dia, Lawrence
tinha ido buscar mais vinho no andar de baixo, embora soubesse que
isso não constituía um pedido de desculpas.
Holo parecia esperar por isso, mas Lawrence percebeu que ela
estava um pouco desapontada com sua obediência mansa. Ela até
parecia aborrecida com o pedido da última garrafa, pois achava
excessivo.
Normalmente ela faria uma cara de insatisfeita ao encontrar o fim
da bebedeira da noite, mas agora ela parecia aliviada.
Sua capacidade de ser tão completamente desonesta sobre seus
próprios desejos era uma coisa astuta e lupina, de fato.
E, no entanto, Holo ainda era Holo.
“Ah, bem, de minha parte eu só gostaria que você acabasse com
sua choradeira.” Ela tentou puxar a cauda debaixo da cabeça de Col no
canto da cama e pegou a garrafa da mão de Lawrence, com um sorriso
desagradável no rosto.
Ela estava sendo tão infantil que parecia provável que ela gostasse
de seu silêncio ainda mais do que uma resposta desajeitada.
Mas se ela ficasse muito feliz, sua cauda abanando certamente
acordaria o adormecido Col, então Lawrence formou uma resposta
cuidadosa.
“Mesmo que pergunte a qualquer mercenário, eles lhe dirão que
os fortes morrem primeiro. Eu diria que um gemido patético cai bem.”
“Tolo”, declarou uma Holo sem graça, olhando de volta para Col.
Ela agarrou suas orelhas e puxou sua cabeça ligeiramente para
cima, evidentemente ainda tentando soltar sua cauda. Parecia um
pouco extremo para Lawrence, até que percebeu a baba que ameaçava
cair da boca do menino na cauda. “Não posso baixar a guarda”, disse
Holo, suspirando de alívio enquanto acariciava sua cauda agora livre.
CAPÍTULO V ⊰ 44 ⊱

Lawrence a observou e enfiou um feijão assado gelado na boca


antes de abrir um pouco a janela. Um grupo de homens estava
passando e, pela instabilidade de seus passos, parecia que eles estavam
voltando para casa depois de uma noite de bebedeira. Se as coisas
estavam tão ruins que os homens estavam vagando bêbados apesar de
não haver festival, então a cidade estava realmente em um mau
caminho.
Supondo que os proprietários de terras do norte estivessem no
comando, parecia melhor supor que eles estavam perdendo sua
capacidade de manter as coisas em ordem.
O narval pode mudar tudo.
Cada vez mais, Lawrence estava começando a entender o quão
importante era a situação.
“Estou bem aqui, e ainda assim você olha pela janela?”
Holo se mudou para uma cadeira e serviu-se de um punhado de
feijões assados.
Havia uma ousadia em sua mastigação que o deixou de alguma
forma feliz.
Lawrence deu de ombros e fechou as janelas. “Ainda precisamos
estar prontos para escapar a qualquer momento.”
A resposta pareceu satisfazer Holo. Ela riu, pegou um feijão que
havia caído e comeu. “Acho que é verdade. Você não vai beber comigo
um pouco? É uma coisa triste beber sozinha.”
Holo cutucou sua taça de vinho com o dedo, causando ondulações
na superfície que ele acabara de servir.
Olhando para ela, Lawrence percebeu que não havia terminado
nem metade de sua primeira taça. “Por que não? Parece improvável
que recebamos uma mensagem a esta hora.”
“Disso não podemos ter certeza.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 45 ⊱

“Huh?” perguntou Lawrence, olhando para Holo do outro lado da


mesa.
“As raposas têm uma excelente visão noturna.”
Lawrence pensou por um momento, então deu de ombros e
respondeu: “Tanto mais importante beber agora, então.”
“Huh?”
“Se eu desmaiar de tanto beber, não há necessidade de me
preocupar em como posso ser enganado.”
Holo sorriu, revelando uma presa. “Idiota. Se você adormecer e
expor sua barriga, nossa história chegará ao fim mais cedo.”
“Não consigo imaginar que a loba deixaria a raposa roubar sua
presa tão facilmente”, respondeu Lawrence, fazendo o sorriso de Holo
se alargar, mostrando sua outra presa.
“Isso é um pouco difícil de saber. Afinal, minha presa está sempre
me mostrando sua barriga. É muito fácil tornar-se descuidado e
acreditar que não há necessidade de pressa. Tal pensamento é
perigoso.”
Tendo chegado a este ponto, Lawrence não resistiu a fazer algum
tipo de retorno. “Mas sua cauda está tão exposta quanto. Se você me
pegar de surpresa, é melhor tomar cuidado para não agarrar sua
cauda.”
“E suponho que quer que eu insista que você nunca ousaria tal
coisa, hmm?” Os cotovelos de Holo estavam sobre a mesa, suas orelhas
balançando rapidamente; Lawrence sentiu-se um pouco irritado.
Ele sabia que estava sendo provocado, mas tomou um gole e
respondeu: “E ainda assim você está escondendo algo sobre o narval de
mim.”
Imediatamente depois de dizer isso, foi ele quem acabou surpreso.
Holo sorriu e levou a taça de vinho à boca, mas então se contorceu
de surpresa.
CAPÍTULO V ⊰ 46 ⊱

Se ela estivesse atuando, Lawrence teria perdido o joguinho deles


— mas Holo estava genuinamente chocada.
Seus olhos se afastaram, percebendo que ela não conseguia
esconder que havia sido pega de surpresa. Ela mordeu o lábio e olhou
para Lawrence.
“Estou ainda mais surpreso do que você”, disse Lawrence como
desculpa.
Com isso, a testa de Holo franziu e ela respirou fundo.
Depois de um bom intervalo, ela soltou um suspiro com cheiro
de vinho.
“E é por isso que tolos como vocês são...”, ela murmurou,
engolindo o vinho que restava.
Lawrence deveria ter a vantagem, mas por algum motivo, ele
esperou que Holo falasse novamente, como uma criança esperando ser
repreendida.
“Eu não me importo com o tipo de cara que você faça, eu não vou
falar o que é. Eu não quero,” ela disse e desviou o olhar, carrancuda.
Seu comportamento raivoso, mas infantil, tinha que ser de
propósito.
Ela poderia estar tentando levá-lo a uma armadilha ou
simplesmente tentando ganhar tempo para se recompor.
Enquanto Lawrence ponderava o que era, as orelhas e a cauda de
Holo se tornaram indicadores vitais.
Assim como caçadores se comunicavam com sinais de fumaça,
Lawrence traduziu os movimentos sutis de Holo.
Ela estava tentando esconder seu constrangimento — ou algo
assim. “Ah”, ele não pôde deixar de dizer no momento em que
percebeu.
“Se você disser outra palavra, eu realmente vou ficar com raiva,”
Holo disse, ainda olhando para longe, com os olhos fechados.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 47 ⊱

Lawrence agonizou sobre rir ou não, finalmente levando sua taça


de vinho aos lábios como uma diversão — essa era a conclusão a que
ele podia chegar.
Holo sabia sobre o narval.
Se assim for, ela também deve estar ciente das lendas e rumores
que o cercam — que sua carne conferia vida longa e remédios feitos
de seu chifre curavam qualquer doença.
Então, tudo o que Lawrence podia fazer era pensar nos eventos de
suas viagens com Holo até agora.
O que era que sua longa vida a levou a temer acima de tudo?
E, no entanto, mesmo Holo não poderia saber tudo no momento
de seu nascimento. Ela deve ter sido uma criança teimosa em algum
momento — deve ter corrido como uma tola pelo menos uma ou duas
vezes em sua vida.
Mesmo agora, se ela pudesse fazer um desejo, certamente seria
este: de alguma forma superar a grande diferença de idade.
“… Eu pensei que você tinha percebido e estava apenas fingindo
não saber por minha causa — para me enganar, eu suponho.”
Ela parecia ter concluído pela expressão de Lawrence que ele
finalmente a alcançou. Ela falou como se não entendesse mais nada e
novamente levou o vinho aos lábios.
Lawrence ficou aliviado ao ver que ela não parecia nem triste nem
à beira das lágrimas, porque mostrava que, mesmo atingida por um
erro cometido no passado distante, seu rosto ainda podia sorrir.
“Não... para ser completamente honesto, eu pensei que você fosse
completamente ignorante sobre essas coisas. Eu nunca imaginei que
você soubesse sobre a lenda.”
Afinal, as histórias de imortalidade ou curas onipotentes
certamente interessavam apenas aos humanos. Ele nunca imaginou que
eles seriam de alguma preocupação para Holo e o resto de sua espécie.
CAPÍTULO V ⊰ 48 ⊱

“Tolo…” Holo limpou grosseiramente um pouco de vinho que


grudava no canto de sua boca com a manga e depois caiu sobre a mesa
como se estivesse exausta.
Dada a força com que sua mão segurava sua taça, no entanto,
poderia simplesmente ter sido vinho demais.
“Então você uma vez perseguiu um narval?” Lawrence perguntou,
e Holo assentiu.
Deve ter sido séculos atrás.
“Embora seja verdade que na época eu era um filhote ignorante,
acreditava que poderia mudar tudo sobre o mundo que achava
desagradável. Quando eu odiava ser resgatada ou ser confiável, eu
viajava, e quando não tinha amigos, eu os fazia. Eu acreditava que
momentos tão agradáveis durariam para sempre,” ela refletiu, soando
vagamente divertida, ainda deitada na mesa enquanto ela tocava alguns
dos grãos que haviam caído do prato.
Mesmo agora, Holo se impedia de ser verdadeiramente honesta.
Se foi assim que ela acabou depois de resistir a tantas eras de vento e
chuva, então ela realmente deve ter sido ainda mais afiada em seus dias
de juventude.
“Ainda assim, chorei muito também, apesar de toda a minha
arrogância. Você provavelmente teria gostado.”
Holo sorriu e moveu os olhos para focar em Lawrence.
Ela jogou feijões para ele, que ele só poderia responder fazendo
uma careta e recuando com seu vinho.
“Heh... mas, sim. Quanto mais dolorosas as memórias que se
recordam, melhores são as risadas.”
“Não posso discutir com isso.” Lawrence riu consigo mesmo
enquanto dirigia sua carroça muitas vezes, perdido em reflexões sobre
seus fracassos passados.
Mas isso não era algo que ele queria fazer com muita frequência,
e a razão era clara — ele não tinha alguém com quem compartilhar
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 49 ⊱

essas memórias. E, no entanto, ele imediatamente percebeu que tais


pensamentos não tinham lugar em sua mente.
Do outro lado da mesa, a loba de olhos aguçados o olhou e sorriu.
“Mas agora eu tenho você,” ela disse sem um traço de
constrangimento, e ele só pôde responder jogando um feijão de volta
para ela.
“Você tem Col, também.”
“Eu não posso falar assim com o Col. O rapaz — ele é o peso que
me lembra que eu sou uma sábia loba.”
O que ela quis dizer com isso? O dedo de Lawrence congelou
enquanto ele pensava sobre isso.
Col era de uma aldeia nas montanhas do norte. Ele via Holo como
a protagonista de uma lenda em andamento.
O que significava que só poderia haver uma razão pela qual ela o
consideraria um peso.
Seu dedo de repente tocou onde estava o de Lawrence.
“Col me adora como uma sábia loba. Ele foi tolo o suficiente para
querer tocar minha cauda no momento em que a viu. Faz séculos desde
que uma coisa dessas aconteceu comigo. Isso me lembrou de muito
tempo atrás e me fez feliz... Ele é um bom rapaz, e ele me lembra que
eu sou uma sábia loba.”
O dedo indicador de Holo se curvou ao redor do de Lawrence
onde os dois se tocaram.
“É verdade, você tem sido mais fácil de se dar bem recentemente.”
“Ei. Não tenho desculpas.”
Se Holo fosse levada a sério, a adoração de Col por ela como uma
sábia loba a lembrava de que ela era uma sábia loba. E quanto ao porquê
disso, a resposta era óbvia.
Era Holo, a Sábia Loba, que era digna da floresta de Yoitsu, não
uma garota ociosa passando seu tempo com um mercador viajante.
CAPÍTULO V ⊰ 50 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 51 ⊱

“Ainda assim,” Lawrence disse depois de um certo jogo de dedos,


sem palavras entre os dois. “Para você esconder isso de mim, depois
de me repreender tanto sobre consultá-la antes de decidir o que
fazer...”
Quantos problemas surgiram de cada um deles mantendo seus
corações em segredo um do outro?
Doeu para ele ter que dizer isso, é claro, mas Holo respondeu sem
rancor. “Se eu discutir assuntos de negócios abertamente, meu próprio
ganho será menor, não é?” Se ela não tivesse dito isso com um sorriso
tão travesso, teria sido difícil de aceitar mesmo com o mais triste dos
sorrisos.
Holo se sentou e se espreguiçou, suas orelhas balançando.
Ambos sabiam o quanto era importante que não ficassem muito
próximos. E, no entanto, essa mesma consciência significava que o
oposto estava acontecendo — Lawrence já havia deixado a regra de
lado antes.
Mesmo Holo deve ter chutado as pedras ao longo do caminho de
sua longa, longa vida uma ou duas vezes.
E, no entanto, nada disso mudava a realidade.
Holo tinha chamado Col de um peso que ancorava sua crença em
si mesma como uma loba sábia, e ela certamente não estava
exagerando. Embora possa ser divertido usar o garoto para provocar
Lawrence, ela também fez isso por autodefesa — para garantir que
nunca cruzasse a linha. Para esconder a terrível realidade, ela entendia,
mas não podia fazer nada. Como desculpa.
“Sim, somos todos gananciosos, sempre correndo a serviço do
nosso próprio ganho.”
“Nesse sentido, sou forçado a concordar. Claro…”, disse
Lawrence com um traço de ironia. “… Claro, se eu não fosse tão
ganancioso, eu poderia comprar comidas mais saborosas para você.”
Holo riu com a piada, então se levantou da cadeira.
CAPÍTULO V ⊰ 52 ⊱

Seu rosto estava vermelho, então ela provavelmente estava muito


quente. Como ele havia adivinhado, ela abriu um pouco a janela e
estreitou os olhos com a brisa fresca.
“Mm. Mas ver o meu prazer não é do seu interesse também?”
Holo fechou os olhos enquanto o ar frio acariciava sua bochecha,
parecendo um gato ronronando. Ela então abriu um único olho e
observou Lawrence.
Seus movimentos eram executados com tanta perfeição que era
como se ela estivesse se olhando no espelho.
“Se você fosse realmente tão facilmente subornado por comida,
poderia ser assim.”
Holo fechou o olho novamente no contra-ataque.
Sua capacidade de repetir um gesto que ela havia feito apenas
alguns segundos antes, desta vez parecendo emburrada, era incrível.
Alguns momentos depois, Holo era a nobre arrogante. “E que
outros métodos você poderia usar?”
Lawrence lembrou-se de quando uma aldeia, com a qual ele havia
negociado uma vez, lhe pediu para vender os barris de vinho que
produziam para uma abadia próxima, que possuía um grande vinhedo.
O abade ali era um homem orgulhoso e mesquinho, fazendo todo
tipo de exigências a Lawrence, que teve que trabalhar muito para
concluir a venda.
Sendo membro de uma abadia rica, o abade certamente se sentia
mais próximo de Deus do que Lawrence e, portanto, privilegiado por
desprezá-lo.
No entanto, a loba sábia diante dos olhos de Lawrence odiava ser
tratada como a deusa que ela era — então por que ela demonstraria tal
arrogância?
O abade pouco se importava com os prejuízos dos que lhe
vendiam e se preocupava apenas com seus próprios lucros.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 53 ⊱

Então, dado que as condições iniciais aqui eram opostas a isso,


então a conclusão também era oposta.
Lawrence disse o que ela queria que ele dissesse.
“Se a comida está fora de questão, então com palavras ou boas
maneiras.”
“Nenhum dos quais é confiável no seu caso.”
Ele estava tão acostumado com seu sorriso malicioso e com as
presas que tinha ainda mais charme do que um sorriso normal. E se
nem suas palavras nem suas maneiras podiam ser confiáveis, havia
apenas uma opção que restava.
A fim de mostrar completamente sua honestidade, Lawrence
deveria que se levantar de sua cadeira.
Ou talvez permanecer sentado para não fugir de Holo seria a
melhor opção.
Ambos tinham seus encantos, Lawrence sabia. Ele tomou um gole
de seu vinho e respondeu.
“Ou você pode imaginar que foi enganada e decidir confiar em
ambos. Eles podem muito bem vir a ser genuínos.”
“…”
As palavras de Eve, a loba do Rio Roam, funcionaram com um
efeito maravilhoso.
Holo olhou para Lawrence com o canto do olho, sua cauda se
contorcendo de irritação. Ela não tinha meios de contra-atacar.
Era bom ter, pelo menos uma vez, a vantagem em suas
brincadeiras — melhor ainda do que quando ele provocou o lojista na
alfaiataria. A derrota transformou a águia poderosa em uma galinha
patética e, da mesma forma, a vitória transformou o rato mais tímido
em um lobo ousado.
No entanto, os lobos verdadeiros eram sempre astutos.
CAPÍTULO V ⊰ 54 ⊱

"Isso não foi o que eu quis dizer", disse ela com raiva, sua
expressão solitária.
Onde brincadeiras lúdicas deveriam ser uma batalha de lógica e
insinuação, as armas de Holo eram injustas.
Se a troca deles até agora era semelhante a uma negociação
comercial, então o que Holo acabara de empregar tinha o poder de
transcender isso.
Então, o que foi que superou a negociação adequada?
Ali na frente daquela janela, Lawrence havia dito algo
desnecessário. “Temos que estar prontos para correr.”
O olhar de Holo foi direcionado para fora da janela, mas suas
orelhas estavam apontadas para ele.
Ela não se incomodou em dar voz à sua frustração.
Era absurdo pensar em vencer contra ela.
“Que tal tratar o perdedor gentilmente de vez em quando?”
Lawrence se levantou e caminhou até ela. Tendo feito sua
declaração ao lado dela, ele se sentou no parapeito da janela.
Holo riu silenciosamente, então se sentou em seu colo.
“O vencedor não pode dizer nada ao perdedor.”
“Dizendo isso e sempre fazendo do seu jeito, você realmente não
deve temer nada.”
Suas orelhas roçaram suas bochechas, fazendo-o sentir cócegas,
quando ela se inclinou para ele. Esta loba sábia certamente estava cheia
de desculpas.
“Ainda assim, suponho que posso confiar em você pelo menos um
pouco.”
"Oh? Os comerciantes podem parecer sinceros quando se
curvam, mas por dentro estão mostrando a língua.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 55 ⊱

Lawrence teve que admitir que as palavras pareciam bastante


artificiais, mas, de qualquer forma, Holo não lhe deu trégua.
“É verdade, homens e bestas mostram a língua quando
derrotados.”
“Guh...” Por mais frustrante que fosse, ele não tinha nada para
responder, então ele caiu de costas contra o parapeito da janela.
Holo riu e falou lentamente. “Mas também é verdade que nem
você nem eu estamos sozinhos quando derrotados.”
Dados os acontecimentos do dia, suas palavras estavam carregadas
de significado. Lawrence puxou Holo para um abraço e respondeu:
“Vou me lembrar disso.”
A cauda de Holo balançou e ela assentiu levemente.
Naquele momento de silêncio, o som mais alto foi o do ronco
embriagado de Col.
Lembrar que Holo era uma loba sábia era eficaz quando se tratava
de evitar cruzar a linha, mas se isso era bom ou ruim, Lawrence não
sabia.
No mínimo, certamente atuou como um contrapeso eficaz,
protegendo o delicado equilíbrio da balança.
Holo sorriu, seus olhos fechados; talvez ela estivesse pensando a
mesma coisa.
Lawrence colocou os braços ao redor dela para abraçar mais de
perto seu pequeno corpo, e naquele momento —
“Mmph,” ela murmurou, parecendo irritada quando olhou para
cima de repente.
“O... o que há de errado?”
Lawrence tentou manter a calma, mas o suor brotou em sua testa
mesmo assim.
Holo certamente percebeu isso e sorriu, abanando a cauda.
CAPÍTULO V ⊰ 56 ⊱

Ela então se levantou lentamente, suas orelhas ocupadas girando


para um lado e para o outro.
A razão para sua expressão repentinamente sombria logo ficou
clara.
“Ai ai. Suponho que as premonições de alguém não sejam tão
facilmente descartadas.”
Lawrence entendeu rapidamente ao que suas palavras se referiam.
Holo dirigiu seu olhar para fora da janela, e Lawrence fez o
mesmo.
“Veja, lá está o dono daquela pobre loja. Qual é o nome dele
mesmo…?”
“Reynolds, hein?”
Lawrence avistou a forma apressada de um homem corpulento
com um casaco muito pequeno, tentando manter distância dos bêbados
enquanto descia a rua. A maneira como ele cortou a beira da rua
enquanto olhava atentamente para todos ao seu redor era obviamente
antinatural.
“É uma boa oportunidade para você provar a coragem de suas
convicções.”
Sem perder tempo se perguntando por que Reynolds tinha ido à
pousada, Lawrence falou no ouvido de Holo antes que ela se
levantasse. “Certifique-se de fingir que está dormindo.”
Holo estava agindo como uma criança, mas seu sorriso
desagradável deixou claro que ela estava profundamente satisfeita.
“Enquanto estou colocando minha língua para fora, hein?”
Colocar muitos significados em uma única palavra era sua
especialidade.
Lawrence sabia que não importava como ele respondesse, ele
ficaria preso, então empurrou a cauda dela para o lado como sua única
resposta.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 57 ⊱

Quanto menos pessoas soubessem sobre um segredo, mais seguro


ele estaria, era outra história quando uma das partes aparecia para uma
reunião secreta tarde da noite.
Era a antítese da abordagem de Eve e Kieman de enviar outros
para contatar Lawrence.
“Desculpe pela hora tardia.” Apesar do frio, a barriga de Reynolds
fazia sua respiração ficar irregular e a testa suada, embora parte disso
pudesse ser atribuída ao nervosismo.
Sua voz era baixa, mas não por consideração a Holo e Col, que
estavam enroscados na cama, dormindo.
“Vamos conversar lá fora?” Lawrence perguntou, mas Reynolds
olhou por cima do ombro, depois olhou de volta e balançou a cabeça.
Era muito típico de um comerciante da cidade não querer falar de
segredos abertamente.
Por outro lado, um mercador viajante preferia ter conversas
sensíveis em um campo amplo ou em uma estrada solitária, onde um
simples olhar era suficiente para confirmar que ninguém estava
ouvindo. Dentro de casa, não havia como saber quem estava com o
ouvido encostado na parede da sala ao lado.
“Um pouco de vinho?” Lawrence perguntou, apontando para uma
cadeira.
Reynolds balançou a cabeça brevemente, mas depois
reconsiderou. “Talvez um pouco. Quando vejo que você não está
bêbado, Sr. Lawrence, me faz pensar que vir aqui não foi uma perda
de tempo.”
O quarto de um viajante em uma pousada não era luxuoso o
suficiente para entreter adequadamente um hóspede. Lawrence serviu
um pouco de vinho na taça que Col havia usado e ofereceu a Reynolds,
que sorriu insinuante.
“Você está aqui para falar sobre o narval... correto?”
CAPÍTULO V ⊰ 58 ⊱

Para Reynolds vir até a estalagem àquela hora, ele deve ter
concluído que Lawrence sabia disso.
Lawrence tinha ido à loja de Reynolds trazendo a carta de
apresentação de Eve e perguntando sobre ossos de lobo — e qualquer
pessoa formidável o suficiente para receber uma carta dessas de Eve
teria que saber sobre a origem da comoção em Kerube.
Ao mesmo tempo, não fazia sentido perguntar como Reynolds
descobriu onde eles estavam hospedados. Mesmo Kieman, do outro
lado do rio, foi capaz de descobrir isso.
Para um comerciante da cidade, as ruas de suas casas eram como
os fios de uma teia de aranha.
Lawrence refletiu sobre a situação enquanto se sentava, e
Reynolds assentiu.
Mas agora Reynolds estava na posição mais fraca. “Não tenho a
menor noção do que está acontecendo. Eu esperava que você, Sr.
Lawrence, pudesse saber de alguma coisa.”
Lawrence uma vez ouvira um comerciante bêbado há muito
tempo dizer que uma mulher podia parecer tão diferente à luz de velas
do que ao sol do meio-dia, mal se podia acreditar que era a mesma
pessoa — e isso também era verdade para os comerciantes.
Reynolds estava agindo como o proprietário em pânico de uma
lojinha triste, mas não importava o quanto estivesse em pânico, ainda
não havia razão para ele ir ao quarto de estalagem de Lawrence, um
mero mercador viajante. E certamente não a esta hora.
Muito estava sendo omitido das palavras de Reynolds.
“Infelizmente, eu não sei nenhum detalhe…”
"Você esteve na Pousada Lydon, não esteve?"
Se ele estava chegando ao ponto tão rapidamente, devia estar
ficando sem tempo — ou talvez fosse assim que Reynolds fazia
negócios.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 59 ⊱

Lawrence voltou lentamente o olhar para outro lugar, então, com


a mesma lentidão, voltou-se para Reynolds. “A Pousada Lydon?”
Ele blefava melhor agora, provavelmente resultado de ter passado
tanto tempo com Holo, do que antes.
A expressão de Reynolds congelou, provavelmente surpreso por
Lawrence estar se mostrando mais difícil de pegar desprevenido do
que havia previsto. “As mentiras não beneficiam nenhum de nós. Eu já
sei que você esteve lá.”
Reynolds pousou a xícara e abriu as mãos para Lawrence.
Era um gesto que convidava à abertura mútua, mas não tinha
nenhum significado especial entre os comerciantes.
O fato de que ele havia sido convocado para a Pousada Lydon por
Eve foi exposto, mas ainda era de seu interesse manter a natureza e o
conteúdo dessa visita em segredo.
“Suponho que se eu dissesse que fui lá para uma conversa
amigável, você não acreditaria em mim, acreditaria, Sr. Reynolds?”
questionando, Lawrence deu um pequeno suspiro cansado.
Mesmo Holo, que podia ver através de qualquer mentira, teria
problemas para determinar a verdade dessas palavras. Havia várias
maneiras de expressar coisas que as tornavam misteriosas, tanto
verdade quanto falsidade ao mesmo tempo.
Lawrence continuou. “Eu soube da situação na cidade por Eve. O
que eu disse a ela foi que ela teve muita coragem de me convocar de
uma maneira tão facilmente incompreendida para um lugar tão
facilmente incompreendido em meio a tanta agitação.”
O som de pano farfalhando veio da direção da cama.
Era Holo se virando — provavelmente para esconder o sorriso
em seu rosto.
Lawrence continuou.
CAPÍTULO V ⊰ 60 ⊱

“Eve parece estar em uma posição única nesta cidade, e apesar da


expressão plácida em seu rosto, sua mente deveria estar um turbilhão.
Mas ela não achou por bem me contar sobre eles.”
“Verdade?” respondeu Reynolds imediatamente, seus olhos se
arregalando de surpresa.
“Verdade.” Quanto mais óbvia a afirmação, mais persuasiva ela
seria.
Reynolds olhou para Lawrence, quase olhando para ele, antes de
finalmente relaxar e soltar um suspiro. “…Me desculpe.”
“De jeito nenhum. Para você estar tão preocupado, suponho que
tenha alguma conexão direta com tudo isso?”
Mudar o tom da conversa era um truque comum;
Lawrence não podia baixar a guarda só porque Reynolds parecia
ter relaxado.
“Muito pelo contrário. Estou preocupado precisamente porque
fui deixado inteiramente de fora.” Ele suspirou e se mexeu
pesadamente na cadeira.
Lawrence lembrou que a Companhia Jean estava tendo seus lucros
sugados pelos proprietários da cidade.
Nos negócios, quando as coisas vão bem, às vezes surgem
oportunidades ainda mais lucrativas — mas o oposto também é
verdadeiro.
Nesses momentos, é muito comum que os amigos o abandonem.
Tais momentos são frequentes nas viagens de comerciantes, cujas vidas
muitas vezes estão em jogo.
E Reynolds tinha conduzido um negócio de sucesso no lado norte
da cidade, que de outra forma seria mais pobre, o que certamente lhe
fez poucos amigos — e agora ele não tinha nem mesmo os fundos para
obter apoio.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 61 ⊱

Estava claro que quando as coisas chegassem ao auge, ele seria


deixado sozinho.
“Ainda assim, tenho certeza de que você ouviu, não ouviu? Tenho
uma boa conexão com os homens poderosos desta cidade,” disse
Reynolds.
Teria sido melhor para ele se pretendesse que essa observação
simplesmente o tornava importante. Mas a declaração estava carregada
de implicações. Reynolds concluiu que Lawrence havia aprendido
bastante sobre a situação da cidade com Eve.
Dado que, se ele tivesse ido tão longe a ponto de se esgueirar até
aqui no meio da noite para falar sobre o narval, então Lawrence podia
adivinhar o que ele estava pensando — basicamente, ou Eve seria uma
figura importante no tumulto em torno do narval ou pelo menos estava
em posição de reunir informações sobre isso.
E muitas das coisas que Eve havia revelado em seu resmungo
unilateral para Lawrence no início do dia agora ganhavam um tom de
verdade.
“Dado que você está no comércio de cobre, eu entendo.”
“Ei.” Reynolds não pôde deixar de rir da declaração indireta de
Lawrence, coçando o nariz.
Lawrence não tinha nada a acrescentar e então tomou um gole de
vinho. Por fim, Reynolds ergueu os olhos e continuou.
“Assim como quando todos vocês vieram perguntar sobre os ossos
de lobo, pensei que talvez pudesse virar a mesa”, disse ele, esfregando
o rosto.
Nada é menos confiável do que o sorriso amigável de um
comerciante, mas o sorriso de Reynolds parecia desnudar seu coração.
A Companhia Jean ainda estava em apuros, e Reynolds certamente
queria se libertar do jugo do lado norte.
CAPÍTULO V ⊰ 62 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 63 ⊱

“Eu vim com a escassa esperança de me conectar com a loba do


Roam, mas... heh, parece que eu só causei confusão,” disse Reynolds
com um sorriso patético, suas bochechas relaxando.
Lawrence não tinha nada a dizer e só podia sorrir em
solidariedade.
O silêncio então caiu, que foi finalmente quebrado pelo murmúrio
quieto do sono de Holo.
“Ah... suponho que seja tarde. Mais uma vez, sinto muito”,
Reynolds se desculpou e então se levantou.
Lawrence não queria admitir, mas para Reynolds ter vindo até a
estalagem àquela hora, ele deve ter esgotado todas as outras opções e
chegado ao fim de sua vida.
A furtividade de sua visita não era porque ele precisava manter seu
encontro em segredo, mas sim porque ele não queria que ninguém o
visse reduzido a pedir ajuda a um estranho.
Quando isso ocorreu a Lawrence, as bochechas caídas de Reynolds
pareciam de alguma forma muito tristes.
“De jeito nenhum. Lamento não poder ajudar em nada.”
“E eu também sinto muito, que eu não pude lhe dar boas respostas
às suas perguntas”
Cada um deles sorriu como se estivesse tentando ser atencioso um
com o outro enquanto trocavam palavras na mesa.
Seus sorrisos ficaram tímidos com o silêncio repentino que
desceu. Eles apertaram as mãos.
“Se você encontrar a loba novamente, diga a ela que Reynolds tem
um osso para partilhar com ela.”
“Sim... certamente. Eu farei isso”, Lawrence respondeu, forçando
o sorriso em seu rosto.
“Mais uma vez, eu realmente sinto muito pela hora tardia,” disse
Reynolds, fazendo um último pedido de desculpas enquanto se dirigia
CAPÍTULO V ⊰ 64 ⊱

para a porta da sala, seus passos muito mais pesados do que quando ele
chegou. “Tenha uma boa noite.”
No corredor escuro, Lawrence o observou colocar o casaco de
volta. “Boa noite”, respondeu ele.
Reynolds desceu as escadas e desapareceu na escuridão.
Apesar de sua loja na cidade e de seu monopólio sobre o comércio
de cobre, que proporcionaria uma vida inteira de segurança, havia algo
em ver Reynolds recuar que fazia o homem parecer um homem
derrotado, um cachorro abandonado. Foi muito triste.
Lawrence voltou para a sala, suspirando baixinho e recostando-se
na cadeira. Com o cotovelo na mesa, ele tomou um gole de vinho e
revisou a conversa em sua mente. O peso da situação se abateu sobre
ele mais uma vez.
Até mesmo Reynolds, um mercador com bastante poder, estava
desesperado em sua busca pelo narval.
Ou não, talvez houvesse uma maneira melhor de colocar isso.
Ele estava tão desesperado por isso.
“Bem... hora de dormir, eu suponho,” Lawrence murmurou para
si mesmo, soprando a vela e indo para sua cama.
Passou primeiro pela cama em que Col e Holo dormiam e depois
pôs a mão na própria cama. Ele se enrolou em um cobertor, suspirando
impotente.
Seus olhos ainda não haviam se ajustado ao escuro, mas ele podia
ver os olhos abertos de Holo na cama ao lado dele.
“Então ele se foi?” ela disse, parecendo desaparecer por um
momento, provavelmente porque ela virou na direção oposta.
Lawrence fechou os olhos brevemente. “Desculpe por fazer você
passar por tudo isso,” disse ele.
“Ainda assim, fiquei aliviado por você não ter falado comigo
imediatamente depois”, disse uma Holo divertida, sentada na cama.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 65 ⊱

Como Lawrence havia adivinhado, Reynolds provavelmente havia


se esgueirado silenciosamente de volta pelas escadas e encostado o
ouvido na porta, para o caso de Lawrence contar a verdade da situação
para Holo ou Col.
“Acho que não estou surpreso”, disse Lawrence, sorrindo. “Acho
que me saí bem, então.”
“Heh heh. Ele estava agindo tão triste que eu mesma quase me
apaixonei. Eu não teria pensado que ele fosse capaz de tal astúcia!”
“Os comerciantes carregam itens quentes e frios em suas bolsas.
Embora seus sentimentos possam ter sido verdadeiros, ele não
desistirá ainda.”
“Os mercadores são criaturas bastante teimosas, não são?”
“Eles certamente são.” Lawrence sorriu. “Mas” — ele acrescentou
— “qual você acha que era o verdadeiro objetivo de Reynolds?” Ele se
aventurou a colocar a questão para Holo, já que ele havia descoberto
por si mesmo.
A resposta de Holo foi imediata. “Ele deseja entrar em contato
com a raposa. Ele vai fazer qualquer coisa para conseguir isso.”
“Então é isso mesmo…”
“O que você está pensando?” Holo sorriu maliciosamente
enquanto se empurrava para fora da cama com as mãos. Apesar de sua
pergunta, seu rosto deixou claro que ela já sabia a resposta.
“Nada. Eu só pensei que foi uma conversa interessante.”
Holo continuou a sorrir enquanto mexia as orelhas, obviamente
capaz de distinguir a meia verdade da meia mentira.
Os comerciantes colocam tanto coisas quentes quanto frias em
suas bolsas.
Sem pensar em mais nada, Lawrence colocou as mãos atrás da
cabeça.
CAPÍTULO V ⊰ 66 ⊱

Esperava que a postura transmitisse que, apesar de sua apreensão,


sua curiosidade havia superado seu medo e agora ele estava interessado
em se envolver.
Não importa o quão facilmente Holo pudesse ver através dele, ele
ainda tinha seu orgulho como homem — mas Holo sem dúvida já podia
dizer que era exatamente o que ele estava pensando.
Ela se sentou ao lado dele na cama, um sorriso cheio e brilhante.
Se ele concordasse com ela, sem dúvida a sábia loba ficaria muito
satisfeita. Mas isso era apenas enquanto sua curiosidade fosse maior que
seu medo.
Holo tinha apenas que puxar a fachada de brincadeira e ele cairia.
Era muito miserável para imaginar.
Se chegasse a isso, esse sentimento de jogo cuidadosamente
equilibrado seria destruído.
“Vou dormir”, disse Lawrence, virando as costas para Holo e se
deitando.
Se o clima ficasse azedo, ele seria capaz de sentir.
Mas Holo apenas balançou a cauda uma vez e disse um baixinho
“Boa noite”.
O som dela farfalhando sob as cobertas era estranhamente alto.
Holo não quebraria seu brinquedo favorito.
O que significava que o curso de ação de Lawrence estava claro.
Ele adorava vê-la feliz, então ele seria o brinquedo mais resistente
que pudesse.

A manhã seguinte.
Lawrence não era Holo, mas às vezes tinha suas próprias
premonições.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 67 ⊱

Uma aconteceu quando Holo colocou um pedaço extra grande de


queijo em cima do pão de centeio, que sobrou das provisões que eles
haviam preparado para a viagem no rio; ela justificou dizendo que
estava terminando com as sobras.
Mesmo Col teve que rir dela devorando o pão, até que o rosto de
Holo ficou pálido e seu sorriso desapareceu.
Lawrence se perguntou se ela havia mordido a língua, mas
felizmente antes que pudesse dizer isso, ele entendeu a verdadeira
causa.
O estalajadeiro, que deveria estar ocupado atendendo os clientes
saíam ou cuidando do serviço do café da manhã, veio visitar o quarto
deles.
Se fosse apenas isso, Holo teria se contentado em se cobrir com o
manto.
Mas Lawrence captou um súbito e significativo olhar dela, e
quando Col abriu a porta, o estalajadeiro estava ali, acompanhado de
outra pessoa.
“Bom dia, Sr. Lawrence” veio uma voz firme e clara combinando
com a confiança do portador.
Vestido impecavelmente, não era outro senão Lud Kieman.
“…Bom dia”, respondeu Lawrence, quando o estalajadeiro já
havia aceitado algumas moedas de prata de Kieman.
Eles não eram nada para Kieman, que os ofereceu como um vago
pedido de desculpas por incomodar o estalajadeiro durante sua
movimentada manhã. E embora ele fizesse parecer bastante natural,
estava propositalmente permitindo que Lawrence testemunhasse essa
exibição.
“Vejo que você está tomando café da manhã. Minhas desculpas
pela interrupção.”
Lawrence teve a nítida sensação de que Kieman estava pensando,
você é um mero comerciante e ainda assim toma café da manhã como um nobre?
CAPÍTULO V ⊰ 68 ⊱

mas decidiu que estava sendo paranoico. Do ponto de vista das pessoas
que moravam em uma cidade que não tinha a tradição de tomar café
da manhã, ele sabia que eles achavam bizarra a ideia de comer logo
depois de acordar.
“Nem um pouco — estamos quase terminando. O que posso fazer
por você?"
Havia um número limitado de razões pelas quais Kieman se daria
ao trabalho de visitar depois de enviar aquela carta.
Dado que Lawrence não havia fugido, era razoável concluir que
ele iria cooperar. Mas, do ponto de vista de Kieman, sua localização
atual era um antro de tentações traiçoeiras, e por isso Lawrence tinha
certeza de que seriam levados para o lado sul.
Kieman olhou abertamente para o outro lado da sala e, com a voz
de uma criança satisfeita por poder dar uma resposta inteligente,
respondeu:
“Podemos resolver isso lá fora? Sinto como se um rato pudesse
aparecer aqui a qualquer momento.”
Lawrence não precisava se perguntar com o que ele queria dizer
com isso.
Enquanto os ratos podem ser companheiros agradáveis para um
viajante que faz uma refeição solitária na estrada, para aqueles que
armazenam mercadorias na cidade, eles eram praticamente demônios.
Kieman estava preocupado com bisbilhoteiros ou sinceramente
odiava ratos.
“Se possível, gostaria de deixar a pousada. Quanto às suas coisas...
ah, elas parecem estar prontas.”
Lawrence sabia perfeitamente que o “se possível” era apenas por
educação. Ele tinha aceitado isso. Ele estava, no entanto, um pouco
preocupado que suas malas estivessem arrumadas demais ali no canto.
Quem as visse poderia muito bem sentir o cheiro de fuga iminente
sobre eles.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 69 ⊱

“Eu vou esperar você lá embaixo.” Independentemente de Kieman


ter notado ou não o que as malas indicavam, ele deu meia-volta e saiu
da sala.
A chegada de um nobre era pomposa e sua partida era rápida — e
Lawrence sentiu como se tivesse acabado de testemunhar um exemplo
perfeito disso.
“Hmph. Ele parece algo que você detestaria”, disse Holo.
“Não parece?”
Holo sacudiu as orelhas enquanto colocava o último pedaço de pão
na boca — talvez Kieman também a tivesse impressionado da maneira
errada.
“Huh…? Achei ele meio bonito…”, disse Col.
Lawrence e Holo se entreolharam e então avançaram juntos
contra o menino, falando em uníssono: “Você não deve crescer para
ser como ele.”
Col piscou rapidamente antes de dar um aceno incerto.
Descendo ao primeiro andar, encontraram Kieman, que parecia
estar discutindo algo com o estalajadeiro.
“Venham, devemos sair pela porta dos fundos e embarcar na
carruagem?”
Ele parecia saber que Lawrence havia entrado na pousada pela
porta dos fundos depois de receber a carta de Eve.
Dado que Lawrence havia falado de seu conhecimento com Eve,
Kieman deve ter considerado a possibilidade de estar espionando para
ela. No entanto, ele parecia considerar Lawrence útil.
“Não consegui preparar uma carruagem coberta — minhas
desculpas. Ah, por favor, entre.”
A carruagem que esperava ao lado da estalagem tinha capacidade
para seis pessoas e estava muito bem.
CAPÍTULO V ⊰ 70 ⊱

O guia era um homem velho, barbudo e caolho, e deu a Lawrence


um breve olhar antes de silenciosamente se voltar para frente
novamente.
Não era incomum para os marinheiros que se interessavam pela
pirataria encontrarem trabalho em cidades portuárias depois que lesões
ou velhice encerravam suas carreiras na vela.
A mão esquerda do guia não tinha o dedo mindinho e o anelar, e
o dorso da mão estava coberto de cicatrizes.
Ele parecia útil em silêncio.
A carruagem tinha assentos voltados para frente e para trás, então
Lawrence e companhia enfrentaram a direção de sua viagem enquanto
Kieman sentou-se em frente a eles.
“Agora, para o porto,” disse Kieman, e o motorista deu um aceno
silencioso. A carruagem começou a se mover. “Então, quanto ao meu
motivo para vir aqui esta manhã.”
“As melhores trocas são feitas em território inimigo, eu assumi.”
O rosto de Kieman congelou em um sorriso com a interrupção de
Lawrence, e ele assentiu, impressionado.
Ele claramente não levou Lawrence a sério e ficou igualmente
surpreso com tal resposta — Lawrence deveria estar completamente
intimidado agora.
E, naturalmente, se Holo não estivesse lá, Lawrence realmente
estaria murchando.
“Ah, sim, apenas isso. Quando há problemas na cidade, pessoas
como nós são proibidas de atravessar o rio para evitar que o problema
aumente. A comunicação adicional geralmente é feita por meio de
notas anexadas a flechas, mas desta vez ambos os lados exigem pressa.
Foi decidido resolver a disputa no delta. Nós, os jovens, somos apenas
os arautos, entenda. Neste momento, os outros estão consultando os
proprietários para decidir um cronograma para o processo.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 71 ⊱

Muito provavelmente a laia de Kieman, que tanto gostava da


atenção, estaria se reunindo no lado norte da cidade, cada um deles
tentando tirar vantagem da situação para melhorar a reputação de seu
próprio nome ou o nome de sua empresa.
A única razão pela qual o próprio Kieman não estava lá era sua
confiança de que estava acima de todos eles e que só ele possuía os
meios para se encontrar com Eve.
“Posso presumir que a fonte de toda essa comoção é o narval?”
Lawrence perguntou, ao que Kieman não pareceu surpreso.
Muito pelo contrário, ele parecia satisfeito por não ter que
explicar a situação. “Sim, exatamente. Dizem que o chifre de um
narval é ainda melhor para a gota do que o sangue do coração de uma
ave. Você pode imaginar o quanto a nobreza gostaria de algo assim.”
“De fato, dado que a gota é o castigo pela gula, um dos sete
pecados capitais da Igreja.” Lawrence estava relaxado o suficiente para
apontar algumas palavras para Holo.
Ele ainda estava cauteloso, sabendo que as palavras de Kieman não
eram confiáveis, mas o medo irracional que sentira antes havia
desaparecido.
“Os mercadores da nobreza que moram na cidade certamente
mandaram recados a seus senhores em cavalos velozes. Claro, já
podemos listar aqueles que mais querem o narval.”
"Então você está preparado para a batalha?"
Os olhos de Kieman se estreitaram enquanto ele sorria.
“Certamente.”
A carruagem saiu de uma rua estreita para uma avenida larga que
corria ao longo do rio.
Não tinha passado tanto tempo, mas começava a aparecer um
grande número de pessoas incomodadas pela proibição de travessia do
rio. Lawrence se perguntou se a proibição havia sido suspensa, pois da
CAPÍTULO V ⊰ 72 ⊱

bela vista do rio que a avenida oferecia, ele podia ver balsas cheias de
pessoas atravessando.
“Aliás,” disse Kieman enquanto a brisa com cheiro de sal
despenteava seu cabelo loiro fino, “o quanto você discutiu com a Srta.
Eve?”
Lawrence teve a sensação de que este era o limiar. Ele fingiu um
sorriso aberto. “Er, com a senhorita Eve...?”
Ele dificilmente deixaria de notar a contração na têmpora de
Kieman.
“Ah, me desculpe. Erro meu” — disse Kieman, ficando em
silêncio e voltando sua atenção para o rio.
Dada a região da cidade onde Lawrence estava hospedado, era
óbvio com quem ele se encontrou. Kieman estava tentando descobrir
a verdade e, assim, colocar uma coleira no pescoço de Lawrence.
O silêncio repentino de Kieman foi porque ele havia subestimado
Lawrence.
Ou talvez estivesse considerando um uso diferente para
Lawrence, que era mais esperto do que Kieman imaginara.
Lawrence falou em seguida, mas não porque pensou que poderia
subitamente dominar Kieman. “Falando na senhorita Eve, conversei
um pouco com ela na fonte de ouro.”
“…Connversou?” Kieman olhou para Lawrence casualmente.
Seus olhos eram os olhos frios e calculistas de um mercador que podia
olhar para outro humano e ver apenas o que esperava ganhar.
“Ela disse que não havia nada tão problemático quanto vender algo
que não pode ser comprado com dinheiro.”
Pela primeira vez, Kieman pareceu surpreso. “Aposto que sim,”
disse ele com um sorriso.
Lawrence não tinha intenção de se opor a Kieman.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 73 ⊱

A razão pela qual ele insinuou que Eve estava sendo perseguida
pelo filho do senhorio foi para esconder o verdadeiro assunto da
conversa, já que ele não podia disfarçar que a conversa havia ocorrido.
Agora tudo dependia do que Kieman fizesse. Lawrence estava
confiante de que tinha entendido isso.
Kieman ficou em silêncio depois disso, o que por si só foi uma
resposta suficiente.
Se ele tivesse subestimado a importância de Lawrence, teria que
mudar seus planos.
Todos embarcaram em uma balsa e atravessaram para o lado sul
do rio.
Enquanto esperavam que Kieman pagasse ao barqueiro, Holo
pisou no pé de Lawrence brincando, como se o lembrasse de não ficar
muito cheio de si.
Ele sabia que ela estava confiante nele, mas não queria que ele
fosse confiante demais.
Ele havia tomado o melhor curso de ação que podia pensar, mas
suas palmas ainda estavam suadas.
Enquanto no lado sul os prédios eram uniformemente construídos
e alinhados e as pedras do calçamento limpas e retas, o cenário aqui era
muito diferente, e pela primeira vez Lawrence percebeu que não
estava mais em terreno amigável.
“Bem, vamos?”
Liderados por Kieman, Lawrence e seus companheiros avançaram
para o território inimigo.
rometo não causar nenhum inconveniente.”
Eles foram levados a uma pousada de cinco andares não
muito longe da Guilda Comercial Rowen. Sua entrada e
interior eram muito familiares, então provavelmente era
comumente usada por membros da guilda.
Lawrence e companhia foram conduzidos a um quarto no terceiro
andar, que dava para o pátio da pousada.
Não houve reclamações sobre o quarto, e comparado com a
pousada no lado norte que Eve havia recomendado, a atmosfera do
lugar — onde eles evidentemente teriam permissão para ficar
gratuitamente — era muito melhor.
Mas as palavras de Kieman não podiam ser tomadas pelo seu valor
nominal.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 75 ⊱

Ele provavelmente quis dizer que não os manteria sob vigilância


de uma forma que lhes causaria inconveniência.
“Se você precisar de alguma coisa, por favor, diga ao estalajadeiro.
E se você fizer a gentileza de nos informar de seu destino se sair da
pousada, evitará encontros infelizes.”
Lawrence esperava não ter permissão para sair, então essas
palavras foram uma surpresa.
Claro, o reverso de tal graciosidade era que eles estavam
obviamente confiantes de que seriam capazes de segui-lo, não
importando com quem ele tentasse se encontrar.
E essa confiança provavelmente era justificada.
Lawrence escondeu esses pensamentos por trás de sua máscara de
mercador e respondeu com um simples “Entendido”.
“Bem, então, por favor, fique à vontade e aproveite sua estadia,”
disse Kieman com um sorriso; então ele se virou antes que alguém
pudesse responder e fechou a porta atrás dele.
Lawrence, surpreso, olhou para a porta por alguns momentos.
Ele havia presumido que Kieman explicaria que papel ele esperava
que Lawrence desempenhasse em sua visão e na de Eve, mas em vez
disso a questão foi completamente evitada.
“…Sobre o que foi tudo isso?” Lawrence coçou a cabeça e
suspirou, então percebeu que Holo estava rolando alegremente na
cama. Enquanto isso, Col estava com a mão naquela mesma cama e
uma expressão de surpresa no rosto.
“O que você está fazendo?” Lawrence perguntou, e Col se virou
para ele, os olhos brilhando.
“Algodão! Está cheio de algodão!”
“Algodão?”
“Venha, deite-se sobre isso! É macio, como uma nuvem.”
CAPÍTULO VI ⊰ 76 ⊱

Se as camas fossem de algodão, então o quarto teria custado


bastante se Lawrence estivesse pagando por ele.
Dado o entusiasmo de Kieman e os princípios básicos de retorno
do investimento, isso significava que ele esperava usar Lawrence de
uma forma que lhe rendesse mais do que este quarto estava custando.
O tamanho dessa negociação estava se tornando cada vez mais
concreta.
Agora que tinha sido apontado, Lawrence notou que o quarto em
si era muito bom. Aproximou-se da janela e viu que as juntas estavam
muito apertadas para bloquear as correntes de ar. Ao abri-la, viu um
lindo pátio onde muitas flores desabrochavam apesar da estação.
“…”
Levando tudo isso em conta, a comida servida nesta pousada
provavelmente também seria bastante luxuosa.
Lawrence não estava familiarizado com esses métodos. Se alguém
compensasse o outro tão bem quanto sua posição exigia, ele faria
apenas o que se esperava deles. Mas se ele fosse regado com uma
generosidade avassaladora, seu constrangimento o tornaria fácil de
controlar, e isso o forçaria a fazer um esforço extraordinário.
O medo que Lawrence havia reprimido começou a se infiltrar em
sua visão.
No mínimo, ele deveria ter pedido uma explicação a Kieman?
Ele refletiu sobre isso enquanto voltava seu olhar para a sala do
pátio, quando...
“Tolo”, disse Holo, assustando Lawrence tão completamente que
ele quase caiu da janela.
“O-o que—”
“Isso é o que eu deveria estar perguntando a você! O que você está
fazendo com essa sua expressão séria? Você está hospedado aqui em
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 77 ⊱

um quarto muito além do que sua bolsa permite, mas não pode
apreciá-lo?” exigiu Holo, parecendo irritada.
Atrás dela, Col olhava nervoso enquanto se sentava na cama
estofada de algodão.
“Bem, eu...”
Lawrence tropeçou em suas palavras, e Holo apunhalou o dedo
indicador em seu peito, continuando a falar.
“Você realmente é um fraco quando se trata dessas coisas. Por que
acha que aquele filhotinho nojento deixou você aqui sem explicar nada?
Também não haverá nada como o bisbilhoteiro da noite passada. Nosso
filhote é um pouco mais interessante do que isso.”
Holo se virou para a porta, continuando a mostrar suas presas.
“Se a explicação que você me deu estiver correta, ele ainda
desconfia de você. E é um fato que você tem uma conexão com aquela
raposa. Então, isso significa que ele te trouxe para o território dele e
está tentando fazer de você um de seus peões? Naturalmente, ele deve
se certificar de que você não tenha nenhum compromisso.”
Tudo fazia todo o sentido, mas nada explicava por que não havia
explicação de nenhum tipo. “E ele só não explicou nada porque não
pode confiar em mim?” Lawrence perguntou, o que fez Holo dar um
sorriso hostil.
Essa não era a resposta.
Seu castigo era ter sua barba arrancada.
“No mínimo, você foi levado ao território de alguém que você não
pode ter certeza de que é amigo ou inimigo, e foi deixado por conta
própria — então o que faria normalmente? Você não tem o hábito de
coletar informações quando chega a uma nova cidade?”
Ainda atrás de Holo, Col escutou sua palestra, fascinado.
Tinha que ser por isso que ela estava fazendo isso, se ele não queria
ser humilhado na frente de Col, ele teria que pensar muito, e rápido.
CAPÍTULO VI ⊰ 78 ⊱

Ele pensou.
Mas nada vinha à mente.
Enquanto gaguejava, a loba sábia soltou a barba e cruzou os braços,
continuando.
“Nesse sentido, humanos e lobos não são diferentes. Você busca o
conselho daqueles que conhece ou daqueles em quem confia. Em
outras palavras, você navega em território desconhecido usando o
mapa em sua mente. As mentes de humanos e animais não podem ser
vistas, mas quando eles se movem, esses movimentos deixam bem
claro que tipo de mapa eles possuem. Assim como minhas orelhas e
cauda, ou sua barba.”
A parte da barba era uma piada, mas ele não pôde deixar de
acariciá-la em pensamento.
“Então, em essência—” Holo disse.
Se ele não pudesse encontrar uma resposta aqui, ele tinha certeza
de que Holo pegaria Col na mão e iria direto para Yoitsu.
Na brecha que Holo deixou depois de suas palavras, Lawrence
entrou e aproveitou a oportunidade. “Ele está tentando ver o que vou
fazer quando colocado em uma situação incerta.”
“…”
Holo ficou em silêncio por um momento, talvez tendo engolido
sua repreensão por sua lentidão em responder. “Até que enfim...
Honestamente, a única razão para nos colocar em um quarto tão bom
é —”
“— Para nos fazer suar.”
Os ombros de Holo afrouxaram, e ela sacudiu as orelhas e olhou
por cima do ombro.
Col, um estudante sério, deu um aceno lento e de olhos
arregalados.
“Então, o que devemos fazer?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 79 ⊱

Col ficou momentaneamente atordoado em silêncio pela pergunta


repentina.
Ele imediatamente e furiosamente começou a pensar em como
responder, enquanto o conto de Holo deixou claro que ela esperava
Lawrence falar.
Era como jogar um osso na frente de um cachorro.
Mesmo sabendo que estava sendo enganado, não pôde evitar.
Ela tinha dois machos na palma de sua mão e os fazia competir um
com o outro por pura diversão.
“Devemos agir como de costume e aproveitar o bom tratamento.”
As palavras de Lawrence foram apenas um instante mais rápidas
— embora preocupantemente, Col havia aberto a boca e parecia quase
pronto para responder a si mesmo.
Holo olhou para Col por um momento, então lentamente se virou
para olhar Lawrence, um sorriso dançando nos cantos de sua boca
como se dissesse: “Nada mal”.
“Se realmente pretendemos apoiar Kieman por completo, então
este não é território inimigo — é nossa base, e não há nada a temer”,
continuou ele. Holo assentiu com satisfação, suas orelhas batendo,
como se ela tivesse encontrado o tesouro que ela estava procurando.
Lawrence olhou além de Holo para Col e perguntou: “Era isso que
você ia dizer?” o que fez o menino sorrir, assentindo com apenas um
toque de timidez.
“Além disso, o que você faria se a pessoa em quem você colocou
um dever importante parecesse prestes a cair sob o peso? Você poderia
continuar calmamente e deixá-los trabalhar, hein?” Holo cutucou.
Até agora, Lawrence sempre comprara e vendera por conta
própria, assumindo todos os riscos e preocupações, de modo que o
assunto nunca lhe ocorrera. A própria noção de usar outra pessoa
estava tão longe de sua mente que tais pensamentos foram
imediatamente abandonados.
CAPÍTULO VI ⊰ 80 ⊱

Enquanto estivesse ao seu alcance, Lawrence estava mais ou


menos confiante em sua capacidade de lutar. Mas havia aqueles no
mundo que usavam lanças mais compridas do que seus braços — para
não falar de arcos e flechas. E as batalhas foram vencidas por generais
que nunca tiveram que colocar as mãos em uma espada.
Holo era uma líder há muito tempo.
“Quando eu mesmo fiz essas coisas, nunca usei métodos tão
indiretos e incômodos.” Ela sorriu, mostrando suas presas brancas
puras. “Eu sou Holo. Holo, a Sábia Loba de Yoitsu!” ela disse, mãos
nos quadris, peito estufado orgulhosamente para fora.
Fazia algum tempo desde que ela se gabava assim, mas ser
orgulhosa era de fato familiar para Holo. E dada a admiração com que
Col a olhava, certamente era o que se pedia, já que se ela fosse uma
loba muito sábia, não seria capaz de se entregar a essa fanfarronice
infantil.
“Agora. O que você sugere que façamos?”
Aqui estava o verdadeiro objetivo de Holo.
Lawrence encontrou as palavras arrancadas dele. “Nós saímos e
nos divertimos.”
“Mm. Tão grandiosamente quanto pudermos.” Holo olhou para
ele com o canto do olho, como se tivesse certeza de que ele entendia
o significado por trás das palavras dela.
Talvez tenha sido um pouco patológico da parte de Lawrence
decidir fingir não perceber isso. “Nesse caso, vamos ver o narval na
igreja, certo?”
Ele falou em tom de brincadeira, como se quisesse enfatizar que
era sua proposta.
Col parecia um pouco surpreso, embora a surpresa de Holo fosse
fingida.
Ela realmente era um gênio em transformar as circunstâncias em
sua própria vantagem.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 81 ⊱

“Afinal, havia uma multidão a caminho. Se pedirmos, aposto que


teremos permissão para vê-lo.”
Lawrence duvidava que ir ver o narval fosse visto como um sinal
de traição, independentemente de sua conexão com Eve. Se ele
estivesse realmente pensando em trair Kieman, então não haveria
razão para tomar ações que atraíssem a atenção da guilda.
Claro, tudo isso era hipotético — era possível imaginar qualquer
número de camadas de motivações ocultas.
“O que você me diz? Não seria chato sair para comer e beber?”
Holo era uma loba sábia orgulhosa, e a proposta de Lawrence
deveria ser digna de sua posição; no entanto, sua forma ainda continha
uma certa inocência infantil — dois aspectos opostos.
Como uma loba sábia, Holo tinha confiança para ficar diante do
narval. No entanto, como uma criança, ela certamente estava
interessada em apenas vê-lo.
Pelo menos, essa era a ideia.
A julgar pelo prazer dela, ele parecia ter acertado no alvo.
“Não é uma má ideia, vindo de você.”
Da língua chicoteante de Holo, tal afirmação era como tirar nota
máxima em um teste.
Col levantou-se da cama e começou a preparar-se atarefadamente
para sair.
Eles eram um trio estranho, mas aqui e agora, Lawrence mal podia
imaginar algo mais reconfortante.

Como esperado, quando informaram ao estalajadeiro que


desejavam ver o narval, ele lhes disse para simplesmente mencionar o
nome de Kieman na igreja.
Kieman inquestionavelmente esperava isso.
CAPÍTULO VI ⊰ 82 ⊱

Lawrence não se importou o suficiente para perguntar a Holo para


ter certeza, mas uma vez que eles saíssem da pousada, eles
provavelmente teriam várias pessoas os seguindo.
A igreja dava para uma avenida proeminente no lado sul de
Kerube e era o edifício mais grandioso de lá.
Ao contrário dos prédios do lado norte, a arquitetura do lado sul
tinha uma altura fixa e foi construída para não se destacar ou ser
excessivamente vistosa — e entre tais prédios, a beleza e a imponência
da igreja eram realmente impressionantes.
Sua torre se erguia acima de qualquer outro edifício, e seu topo
abrigava um sino polido para brilhar tanto que era facilmente visível
mesmo do chão. O grande portão que dava para a avenida tinha grossas
portas de madeira que devem ter exigido grande esforço para abrir e
fechar e era reforçada com inúmeras faixas de ferro.
Certamente poderia repelir até mesmo o maior exército de
demônios.
O edifício em si era feito de grandes pedras, com uma passagem
das escrituras esculpida no topo da entrada. Um anjo benevolente
olhava para todos que passavam.
Era uma visão profunda.
Se alguém se aventurasse fundo o suficiente na floresta, poderia
ver uma grande árvore que parecia alta o suficiente para alcançar os
céus. Essas árvores eram geralmente as residências sagradas de deuses
ou espíritos locais, e ficar diante de uma delas era uma experiência
inspiradora.
Mas diante deles agora não havia uma grande árvore cuidada por
algum poder insondável, mas sim uma igreja construída por mãos
humanas em terra humana.
E dentro dele não havia um deus de presas afiadas, mas um
benevolente Deus em forma humana.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 83 ⊱

Era verdade, em comparação com isso, que os pagãos que rezavam


em cachoeiras e nascentes, adoravam sapos e temiam os gritos de
animais, pois as palavras dos deuses pareciam assustadoramente
bárbaras.
Mesmo com uma loba sábia ali ao lado dele, Lawrence não pôde
deixar de pensar assim.
Se ele não tivesse se visto sendo arrastado pela orelha por uma
Holo irritada, Lawrence teria continuado parado ali, estupefato.
“Venha, vamos nos apressar.”
Uma multidão havia se reunido em frente à igreja e, ouvindo-os,
o grupo percebeu que eles estavam agitados com a conversa sobre o
narval. Parecia que a notícia havia se espalhado — na verdade,
nenhuma porta poderia conter uma língua abanando.
Mas entre a multidão e seu objetivo de prestar homenagem ao
narval havia guardas armados com lanças.
Lawrence e Col se viram arrastados até a entrada por Holo, mas
onde começariam a subir as escadas que levavam à igreja, foram
parados pelos guardas.
“A igreja está atualmente conduzindo negócios oficiais. Ninguém
pode entrar.”
A influência era de fato um poder estranho e invisível.
“Nós somos da Guilda Comercial Rowen. Temos permissão do
Sr. Kieman.”
A essas palavras, os guardas trocaram um olhar, entendendo que
haveria problemas se eles mandassem Lawrence embora.
Relutantemente, eles baixaram suas lanças e acenaram para entrar.
“Meus agradecimentos,” disse Lawrence com um sorriso,
puxando a ainda irritada Holo enquanto ele entrava na igreja.
Col parecia bastante nervoso e agarrou a manga do manto de Holo
enquanto os seguia.
CAPÍTULO VI ⊰ 84 ⊱

“Está quieto.”
Embora fosse uma igreja, ser construída nessa escala fazia com que
parecesse mais um castelo.
E enquanto os castelos nas montanhas eram pequenos, escuros e
miseráveis, com ovelhas e porcos vagando pela fortaleza, este era um
castelo adequado de uma cidade.
Passando pela entrada, eles viram um teto redondo pintado com
uma cena colorida das escrituras, e colunas esculpidas nas formas de
estranhas criaturas mitológicas deixavam claro que aquele lugar não
era do mundo secular.
Havia poucas janelas e tantas velas — velas caras de cera de abelha
que soltavam pouca fumaça para não danificar as pinturas com fuligem.
Lawrence olhou para trás e viu a multidão do lado de fora se
esforçando para ver além dos guardas, que ainda bloqueavam a
entrada.
Se eles recebiam tratamento especial assim o tempo todo, não era
de admirar que a elite da Igreja fosse tão nobre e poderosa.
“Deve estar mais longe,” disse Holo, seu nariz se contorcendo.
Por mais grandiosa que fosse sua construção, todas as igrejas
compartilhavam o mesmo plano básico.
O santuário deve ficar bem à frente, e quaisquer objetos sagrados
ou especiais devem estar embaixo ou atrás do altar.
Antes que Lawrence pudesse dizer qualquer coisa, Holo seguiu
em frente. Seus passos faziam parecer que ela estava sendo atraída por
algo. Então, no momento em que ela estendeu a mão para a porta
aberta e intrincadamente esculpida para o santuário...
“Quem vem lá?” uma voz alta soou, e até mesmo Holo se encolheu
de surpresa.
Mas não era típico de Holo ser pega de surpresa. Ela estava
simplesmente muito, muito focada no que estava por vir — a lendária
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 85 ⊱

besta cuja carne concedia vida longa e que ela mesma perseguira há
muito tempo.
“Quem vem lá? Guardas!”
Era um homem alto e magro, de nariz empinado, vestindo uma
túnica creme.
Um olhar para seu rosto nervoso deixaria claro para qualquer um
que ele era um homem da Igreja, e sua voz aguda soava como uma
galinha estrangulando.
“Minhas humildes desculpas. Fomos encaminhados aqui por Lud
Kieman, da Guilda Comercial Rowen.” Lawrence fez questão de
mencionar o nome de Kieman antes de falar o seu. “Parece que houve
algum engano.”
Nenhuma organização estava tão preocupada com regras e
regulamentos quanto a Igreja. Mas as conexões humanas substituíram
as regras escritas.
“O que? A Rowen...? Ah, desculpe-me.” O homem se acalmou
tão rápido quanto se enfureceu e acenou para os guardas que se
aproximavam do salão.
Os guardas da entrada mal se importaram. Talvez esse tipo de
coisa acontecesse com frequência.
“Aham. Eu sou o sacerdote assistente desta igreja, Sean Natole.”
“Sou Kraft Lawrence, da Guilda Comercial Rowen.”
“Eu sou Holo.”
“Eu sou Tote Col.”
Holo se apresentou com sua atenção ainda no que estava além da
porta, enquanto Col foi cuidadosamente educado.
Um comerciante, uma menina vestida como uma freira e um
menino em roupas esfarrapadas — era uma combinação estranha, mas
para alguém que viveu quase toda a sua vida dentro da Igreja, quase
tudo do mundo secular era estranho.
CAPÍTULO VI ⊰ 86 ⊱

O padre não parecia particularmente perplexo.


"Sendo assim, então você veio aqui para orar?”
Quando se tratava de falar o que pensava, os clérigos eram
inigualáveis.
Lawrence pigarreou baixinho. “Não, viemos aqui na esperança de
poder ver o narval…”
“Ah...” O sacerdote assistente, que se apresentara como Natole,
os examinou avaliando, sem dúvida tentando adivinhar quanto de
dízimo eles deixariam. “Mesmo tendo declarado seu objetivo”,
continuou Natole, interrompendo a tentativa de Lawrence de
responder, “ainda temos que determinar se a coisa que foi trazida para
esta igreja é boa ou má. Embora seja verdade que Deus fez tudo o que
existe, essa criatura em particular é tão estranha que o sacerdote
principal está atualmente buscando a ajuda de Deus para determinar
sua natureza. Embora, representantes do Sr. Kieman da Guilda
Comercial Rowen não seja pouca coisa…”
O padre assistente parecia estar acostumado a divagar, mas a
paciência de Holo estava no fim.
Não tendo outra escolha, Lawrence sorriu e se aproximou de
Natole, enfiando a mão dentro do casaco ao fazê-lo. “Na verdade, o
Sr. Kieman me instruiu a dar seus cumprimentos ao padre Natole, o
fiel servo de Deus.” Ele então pegou a mão de Natole e, no mesmo
movimento, passou um bilhete ao padre.
“… Esteja certo de que a mensagem foi recebida,” disse Natole
casualmente, limpando a garganta novamente. “A criatura em questão
está sendo identificada no santuário, mas suponho que posso permitir
que você a veja.”
“Você tem minha sincera gratidão”, disse Lawrence como um
agradecimento exagerado.
Natole assentiu, nem um pouco descontente, então se aproximou
da porta pela qual Holo ainda estava parada, destrancando e abrindo-
a.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 87 ⊱

“Como minha caminhada sagrada ainda está incompleta, estou


proibido de contemplá-la eu mesmo.” Resumindo, ele tinha muito
medo de qualquer coisa pagã para olhar para ela. Ou isso, ou ele
hesitou em entrar no santuário imediatamente após ter recebido um
suborno.
Independentemente disso, Lawrence seguiu Holo para o
santuário, um sorriso irônico no rosto.
No entanto, o sorriso não era por causa do padre desagradável.
Ele era direcionado para Holo, que estava tão ansiosa para passar
pela porta enquanto ela estava fechada, mas agora hesitava quando
estava aberta.
“Vá em frente”, pediu Lawrence baixinho, empurrando-a por
trás.
Se ela havia tentado encontrar o narval há muito tempo, isso
significava que devia haver alguém a quem ela queria dá-lo como
alimento.
Seria o aldeão que ela conheceu em Pasloe durante os séculos que
passou lá? Ou era outra pessoa, alguém que ela conheceu em suas
viagens?
Mas ela não conseguiu obter a carne, e a quem ela queria dar
morreu.
Ela estava lá quando ele morreu? Ou ele morreu enquanto ela
estava viajando? Lawrence não sabia, mas tinha certeza de que ela não
se despedira com um sorriso.
Mas talvez a outra parte tivesse.
E agora Holo se deparava com isso novamente, daí sua expressão.
“… Isto é…”, murmurou Col.
Uma passarela de pedra levava diretamente a uma sala cheia de
centenas e centenas de bancos de madeira longos.
CAPÍTULO VI ⊰ 88 ⊱

No topo da passarela havia um tapete desbotado como se


conduzisse aos próprios céus.
No final do caminho, situado na parede alta e distante, havia uma
representação gigante de Deus em vitrais, ladeada por anjos cantando
seus louvores.
E embaixo dele havia um altar onde o representante de Deus
ficaria e lideraria a congregação, e embaixo dele havia um grande
caixão.
Eles ainda estavam longe, mas podiam vislumbrar a forma
estranha dentro.
O grande caixão parecia estar cheio de água, e a lenda viva dentro
dele se moveu como se os tivesse notado, fazendo com que a água
espirrasse.
Ao mesmo tempo, veio o som do chifre da criatura batendo na
madeira do recipiente.
“Está realmente lá.”
Nenhum dos três conseguiu dar outro passo.
A curiosidade matou o gato, mas a curiosidade de um mercador
poderia matar os deuses.
No entanto, era difícil de se aproximar.
Lawrence sentiu como se entendesse como a lenda de que comer
a carne da criatura dava vida longa tinha começado.
“Vamos nos aproximar?”
Lawrence colocou a mão no ombro de Holo, e ela olhou para ele
com surpresa.
“…”
Ela então balançou a cabeça sem palavras, virando-se para frente
novamente.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 89 ⊱

Enquanto ela estava lá olhando fixamente para o narval, parecia


que estava dizendo adeus ao seu passado.
“I-isso é um deus, também?” perguntou Col em voz baixa. Ele
estava segurando a manga de Holo o tempo todo e em algum momento
agarrou o casaco de Lawrence também.
“Eu me pergunto. O que você acha?” Lawrence questionou,
entregando a dúvida para Holo, que parecia extremamente irritada
com isso.
Talvez ela não quisesse que tais perguntas fossem feitas a ela, mas
quem mais poderia respondê-las?
“Certamente está dentro do reino dos animais normais. Qualquer
coisa além disso tem um cheiro especial. Mas não sinto isso aqui.”
Col e Lawrence fungaram deliberadamente, e Holo se virou para
encará-los, um olhar solitário em seus olhos. Col pareceu entender seu
significado e se apressou a pensar em algo para dizer, mas não
conseguiu encontrar as palavras.
Lawrence colocou a mão na cabeça do menino. “Apenas uma piada
de mau gosto,” disse ele, olhando para Holo, que se virou sem uma
pitada de autorreflexão.
“Bem, considerando seu tamanho e a quantidade de guardas que
eles colocaram…”, Holo meditou com uma voz ainda mais suave
enquanto olhava ao redor da sala.
Evidentemente sobre sua proposta de simplesmente pegar o
narval e escapar — o que ela originalmente encorajou Lawrence a
fazer — não tinha sido inteiramente teórico.
“Isso não era apenas um plano hipotético?”
Holo sorriu maliciosamente e inclinou a cabeça. “Se seu medo
sempre pudesse ser contido por noções hipotéticas, isso facilitaria as
coisas para mim.”
“…”
CAPÍTULO VI ⊰ 90 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 91 ⊱

Era verdade que não havia nada de errado em saber que podiam
roubar o narval quando quisessem.
“O problema é por onde entrar.”
“Que tal arrombar a porta da frente?”
“Poderia ser difícil se aquela porta estivesse bem fechada.”
Lawrence pensou naquelas portas reforçadas com ferro.
Na verdade, a igreja abrigava muitos itens valiosos e, durante a
guerra, seria o primeiro local atacado e o último onde os habitantes da
cidade poderiam se posicionar.
A entrada da frente certamente fora construída para resistir a
armas de cerco.
Mesmo para Holo, seria difícil violar.
“E através disso?” Col apontou para o vitral posicionado acima do
narval. Uma parede de vidro colorido.
Foi construído para deixar entrar luz, mas dado o grande tamanho
de Holo, ela precisaria de uma entrada tão grande quanto.
“Seríamos amaldiçoados por tentar”, disse Lawrence, o que fez a
garganta de Holo roncar em diversão.
“Heh heh. Pode ser muito bom quebrar isso e pular por ali.”
Não havia nenhum indício de brincadeira em sua voz.
“Essa pode ser a única maneira de entrar, mas esse vidro é
construído dessa maneira para evitar que a parede desmorone. Se
apenas destruí-lo, podemos estar em apuros.”
“Hum?” Holo e Col, que estavam rindo conspirativamente,
ergueram os olhos em uníssono.
“Quando um edifício fica tão grande, você não pode fazê-lo
inteiramente de pedra. O peso é demais e a estrutura não consegue se
sustentar; vai desmoronar. Então você faz parte de vidro, que é mais
leve, para evitar isso. Se você olhar com atenção, poderá ver as barras
CAPÍTULO VI ⊰ 92 ⊱

de ferro que sustentam as vigas. Se quebrarmos, as coisas podem ficar


ruins.”
O fato de todos os santuários terem vitrais por pura necessidade
foi bastante decepcionante — parecia um pouco triste que mesmo os
edifícios da Igreja não estivessem isentos das regras do mundo.
“Vamos nos preocupar com isso quando chegar a hora”, disse
Holo, suspirando impacientemente antes de continuar. “Se você
trabalhasse um pouco mais, eu não teria que suportar tanto perigo.”
Era verdade.
Lawrence só conseguia desviar o olhar de vergonha. Col sorriu
levemente e disse: “Eu sei que você pode fazer isso, Sr. Lawrence,” o
que Holo achou divertido.
“Bem, vamos nos apressar em voltar. O padre Natole vai ficar
desconfiado.”
“Mm.”
“Tudo bem!”
Os dois responderam simultaneamente, mas Lawrence,
preocupado, voltou a fazer a pergunta. “Você realmente não quer dar
uma olhada mais de perto?”
“Estou bem”, disse Col, parecendo um pouco assustado.
Uma Holo perturbada respondeu: “Eu não me importo.”
Ambos pareciam assustados em mais de uma forma.
E até Lawrence sentiu algo que tornava difícil se aproximar da
estranha besta com chifre.
Ele não podia dizer que não entendia por que Natole teria
implorado para entrar no santuário. O narval era uma criatura
mencionada apenas em mitos que proclamavam que sua carne dava
vida longa e que o remédio feito de seu chifre curava doenças. Mas
aqui estava, real. E uma coisa era certa: as lendas eram bem merecidas.
Eles teriam que se preparar.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 93 ⊱

Mas agora que eles sabiam que Holo era capaz de invadir a igreja,
ela nunca deixaria Lawrence virar as costas.
Eles expressaram seus agradecimentos a Natole, e assim que ele
fechou as portas da igreja atrás de si, Lawrence não pôde deixar de
falar.
“Certamente tinha uma aura condizente com as lendas. Não é de
admirar que tenha capturado a mente de tantas pessoas.”
Natole fechou a barra da porta com um baque alto e então se virou
com o rosto cheio de medo. “É uma coisa aterrorizante, realmente.”
Não havia dúvida de que a presença do narval colocava a Igreja em
má posição.
O povo da Igreja reivindicava Deus como seu aliado e, portanto,
era temido por muitos. Mas certamente havia pessoas no mundo que
não temiam a Deus.
Transformar uma lenda viva como o narval em dinheiro significava
tratá-la de maneira não diferente dos muitos outros bens com os quais
negociavam.
Para ter coragem suficiente para fazer uma coisa dessas, era como
se eles vivessem em outro mundo.
Assim que voltaram para a avenida lotada, Lawrence finalmente
se sentiu capaz de respirar fundo.
“Mesmo assim,” Lawrence disse, levantando-se orgulhosamente e
olhando para Holo ao lado dele. “Suponho que usei você para
barganhar comigo mesmo.”
Dado que ela era incapaz de realmente ler mentes, Holo
provavelmente não veria a conexão que as palavras de Lawrence
estavam traçando.
Mas a loba sábia pareceu entender rapidamente o conflito ao qual
Lawrence estava aludindo. Ela sorriu apesar da surpresa de olhos
arregalados de Col com a confissão de que Lawrence havia colocado
Holo à venda.
CAPÍTULO VI ⊰ 94 ⊱

“Então não temos nada a temer, temos?” ela disse, aproximando


seu corpo enquanto eles passavam pela multidão. Ela deslizou a mão
na dele e, de fato, não havia nada mais inspirador de medo do que isso.
Lawrence sorriu, olhando para Col com um suspiro. “Parece que
nossa sábia loba fala a verdade.”
Col assentiu, olhou para frente e para trás entre Holo e Lawrence
e — divertidamente — assentiu novamente.

Era noite quando Kieman voltou a bater à sua porta, e Lawrence


e companhia estavam no meio do jantar.
Assim como esperado, a refeição que a estalagem havia
providenciado era grandiosa, e Holo estava propriamente alegre
enquanto Col ocasionalmente engasgava com sua comida.
Mas o fato de Kieman visitá-los à noite era prova de que ele não
os considerava meros tolos, porque a melhor hora de abordar um
oponente problemático é acordá-lo ou interromper a refeição.
“Você gostaria de se juntar a nós?” ofereceu Lawrence enquanto
limpava as migalhas de pão de suas mãos. Kieman ergueu as duas mãos
com um sorriso.
“Vou passar”, respondeu. “Se possível, gostaria de falar com você
lá fora, Sr. Lawrence.”
Lawrence não tinha intenção de recusar tal oferta.
Ele deu a Col e Holo um olhar, então se levantou e foi com
Kieman para o corredor.
Simplesmente ter Col lá para que Holo não ficasse sozinha durante
a refeição era uma grande ajuda, embora se Lawrence fosse dizer isso,
ela realmente o encararia impiedosamente.
“Então, sobre o assunto em questão,” começou Kieman assim que
eles entraram em outra sala. Lawrence inicialmente se perguntou se
era um depósito, mas parecia que era um espaço que Kieman havia
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 95 ⊱

reservado para contemplação privada. Estava à luz de velas e havia


pilhas de mapas enrolados, todos com letras que Lawrence nunca tinha
visto antes.
“Gostaríamos de lhe pedir, Sr. Lawrence, para atuar como nosso
mensageiro.”
Ele estava usando a primeira pessoa do plural simplesmente para
intimidar, ou havia realmente várias partes?
Lawrence decidiu conduzir suas negociações de pé, como um
mercador viajante faria. “Posso perguntar o motivo disso?”
“Naturalmente. Para ser franco, originalmente esse dever não era
seu.”
Claro que não era.
“Inicialmente, pretendíamos usar Ted Reynolds, mestre da
Companhia Jean — você está familiarizado com ela, sim? — para
transmitir nossas intenções. O motivo era... ele queria escapar das
manipulações do norte.”
Kieman assentiu e continuou. “Ele entrou em contato conosco e
usá-lo nos permitiria lucrar no comércio de cobre. Então ele foi a nossa
primeira escolha. Além disso, suas conexões com a família Bolan são
bastante fortes. Ele controla todo o comércio de importação e
exportação no rio Roam, provavelmente devido a seus laços com a
loba.”
Lawrence imediatamente se lembrou do comércio de sal.
Se a Companhia Jean estivesse enviando moedas de cobre para o
reino de Winfiel, não seria surpreendente se ele estivesse recebendo
estátuas de sal em troca. Nesse caso, havia outra maneira de interpretar
A visita nervosa de Reynolds na noite anterior. Ele estava se
preocupando com a fonte de seu maior lucro.
Muito provavelmente esperava que Kieman e os outros do lado
sul o chamassem, mas estava enganado. E quando ele perguntou por
que, ele logo percebeu que eles haviam encontrado um indivíduo mais
CAPÍTULO VI ⊰ 96 ⊱

conveniente. Ele deve ter tentado jogar o conflito entre o norte e o sul
para tirar vantagem de sua própria bolsa de moedas. Nesse caso, era
possível que seu ato vergonhoso e nervoso na noite anterior tivesse
acabado de fazer parte de seu plano.
Sua triste forma recuada provavelmente era a prova de quão
patético ele se achava por recorrer a tais estratagemas.
“Nosso objetivo é este: ao usar o narval, desejamos obter a
propriedade total do distrito norte.”
“Mas sem permitir que eles usem o lucro resultante para controlar
toda a cidade.”
Kieman assentiu.
Parecia que ele estava pensando em algo muito parecido com o
que Eve tinha proposto.
Mas isso não significava que Eve fosse particularmente incrível ou
que faltasse a imaginação de Kieman.
Em circunstâncias em que não se podia confiar absolutamente no
parceiro, mas ainda tinha que se sentar à mesa e negociar com ele,
seguir esse plano era o curso de ação mais razoável.
Diante disso, Lawrence finalmente sentiu que entendia por que
Eve o havia visitado.
Nesta situação particular, alguém que não entendesse as ligações
entre o lado norte e o lado sul seria inadequado.
A única maneira de as duas partes negociarem em um nível igual
seria se seu mediador tivesse a mesma probabilidade de trair qualquer
um dos lados. Depois disso, era simplesmente uma luta para
influenciar aquele mediador.
“Um homem de uma das famílias de proprietários de terras do
norte está apaixonado pela chefe da casa Bolan. Devemos usar isso.
Contanto que a chefe da família Bolan não nos traia, podemos garantir
um bom resultado tanto para ela quanto para nós...”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 97 ⊱

Lawrence estava bem ciente de que a situação de Eve era


complicada. Não havia como saber o que ela poderia empregar. Ela era
como a chaleira de um alquimista.
“O mensageiro pode muito bem ser nosso aliado ou, dependendo
das circunstâncias, pode mudar sua lealdade ao outro lado. Esse é o
tipo de pessoa que precisamos. Caso contrário, a loba do Rio Roam
será cautelosa demais para se aproximar de nós. Claro, devemos
garantir que triunfemos, então nossa estratégia deve ser infalível… e,
infelizmente, os produtos em questão se estragam facilmente.”
Afinal, era um narval vivo.
“O que você quer que eu faça especificamente?”
Kieman limpou a garganta. Ele fechou os olhos como se revisasse
todo o plano.
“Nós literalmente desejamos que você transmita mensagens para
nós. Não confiamos nela, nem a loba confia em nós. Mas nós confiamos
em você, e ela também. Você só precisa levar nossa proposta para ela:
A condição do narval. O preço. A forma de entrega. A Hora. Ou
possivelmente as contingências de fuga. Você levará essa informação
para ela e depois trará suas respostas de volta para nós.”
“E o lucro?”
Kieman sorriu, seus caninos estranhamente proeminentes atrás de
seus lábios finos. “Eu gostaria que isso resultasse na Guilda Comercial
Rowen se tornando a guilda proeminente no lado sul. O atual chefe da
guilda, Jeeta, tornou-se complacente — vou substituí-lo. E o lucro
resultante...” Ele fez uma pausa para efeito como um ator. “…Vou
deixar isso para sua imaginação.”
Em vez de transportar mercadorias sozinho, vendê-las
pessoalmente com suas próprias palavras, esse trabalho foi deixado
para outros e os lucros simplesmente empilhados no livro-de registros.
Era como um outro mundo. Uma transformação de comerciante
para algo completamente diferente.
CAPÍTULO VI ⊰ 98 ⊱

Ao receber uma pequena parte disso, o lucro que cairia do céu


seria assombroso.
“Claro, esta é uma mera promessa verbal, o que significa que a
loba tem a chance de influenciar você para o lado dela.”
“De fato. E ela poderia me oferecer um lucro concreto, sem
dúvida.”
Ou seja, ela conseguiu enganar a todos de forma tão espetacular
que ganhou o narval para si mesma. Eve, a ex-nobre, poderia então
vendê-la pelo maior lance. Era bem possível que ela pudesse então
oferecer-lhe um mar de moedas de ouro como compensação.
“Eu preferiria não ter que lidar com a loba, mas sem isso, não há
chance de sucesso. Ela é simplesmente muito poderosa.”
As palavras de Kieman estavam carregadas de significado.
Já estava claro que o filho do senhorio que estava tão apaixonado
por Eve não trairia sua família apenas para seu próprio lucro.
Mas se fosse por Eve, isso era outra história.
Desculpas eram coisas muito poderosas.
E quando o motivo era o amor, até um anão podia derrotar um
dragão.
“Entendido, então. Acredito que entendo meu papel em tudo
isso.”
Lawrence sorriu, e Kieman retribuiu a expressão.
Uma troca de sorrisos significava a conclusão de um acordo
secreto.
Era assim em todas as lendas de negócios clandestinos e nervosos
— comerciantes barbudos rindo uns dos outros sobre seus sucessos.
“Fico feliz em ouvir isso. No entanto…”
“No entanto?” perguntou Lawrence, o que fez Kieman sorrir
como um menino inocente.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 99 ⊱

“No entanto, eu realmente pensei que tinha você completamente


sob meu controle. Como... como você recuperou o equilíbrio?”
Com essas palavras, Lawrence sorriu e olhou para o chão.
Afinal, era verdade.
Na filial do delta, Lawrence tinha sido completamente
encurralado por Kieman — total e perfeitamente, como uma
marionete.
E, no entanto, depois de pouco tempo, o boneco recuperou sua
alma. Não é à toa que o mestre de marionetes ficou surpreso.
Claro, o próprio Kieman deveria ter alguma noção do porquê.
Então, vendo Lawrence sorrir silenciosamente, Kieman falou.
“Peço desculpas por fazer uma pergunta tão tola. Nem mercadores,
cavaleiros ou reis podem realizar tanto por conta própria. Os padres
não são diferentes.”
Lawrence entendia mercadores, cavaleiros e reis — mas não
sacerdotes. Todo grande mercador, cavaleiro ou rei tinha uma grande
amante para se tornar sua esposa e apoiá-lo.
Mas e os sacerdotes?
“Eles têm seu Deus,” Lawrence não pôde deixar de murmurar
para si mesmo por trás de seu sorriso.
Então, com Holo o apoiando, até onde ele seria capaz de ir?
“Bem, nós dois estamos andando em gelo fino, solidificado apenas
com mentiras — então vamos cada um fazer o nosso melhor, hein?
Ainda sentado, Kieman estendeu a mão.”
Lawrence pegou-a e agarrou com uma força óbvia.
“Agora, eu não posso muito bem fazer negócios paralelos o dia
todo. Se precisar entrar em contato comigo, basta falar com o
estalajadeiro. Além disso, não faremos nada tão insípido quanto
bisbilhotar você, então faça a gentileza de retribuir o favor.”
CAPÍTULO VI ⊰ 100 ⊱

“De fato. A dúvida e o mal-entendido levam sempre ao


infortúnio.”
Kieman assentiu e se levantou.
Ao contrário de sua reunião inicial em seu escritório, ele escoltou
Lawrence para fora da sala. “Isso tudo deve ser resolvido até a noite
depois de amanhã.”
Ele escondeu a palavra desesperadamente atrás de um sorriso
malicioso.
“Nesse caso, mesmo que não consigamos dormir de nervos,
devemos ser capazes de ver o fim disso”, disse Lawrence, o que fez
Kieman sorrir, e ele começou a andar.
Seus passos eram fáceis e casuais, e se alguém tivesse por acaso
naquele corredor, ele nunca teria suspeitado que Kieman e Lawrence
se conheciam.
Sozinho no corredor, Lawrence sorriu ironicamente. “Ele não
disse nada sobre o que vai acontecer se falharmos”, ele murmurou.
Ele próprio havia feito algo semelhante na Igreja da cidade de
Ruvinheigen — enganando uma pobre pastora falando apenas dos
lucros possíveis.
Naquela época, ele se sentiu quase esmagado pela culpa por isso.
Mas e daí?
Kieman agiu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Lawrence não tinha confiança de que pudesse ser ou agir assim.
Graças a Holo, ele tinha uma maneira de se recuperar se a situação
se tornasse realmente insustentável.
Mas esse era absolutamente um método de último recurso para
sua própria segurança. O que ela realmente queria era que ele extraísse
sua própria parte desses negócios, não apenas completasse suas tarefas
com segurança.
Ele poderia realmente enganar tais oponentes?
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 101 ⊱

Ele não tinha escolha a não ser tentar, e tendo chegado tão longe,
ele queria muito.
Lawrence coçou a testa e começou a andar.
Na escuridão, ele mostrou os dentes em um sorriso.
Sentiu vontade de ler um épico.
aquela noite, Lawrence não conseguiu dormir e não
apenas porque havia declarado que poderia ser assim.
Kieman provavelmente passaria a noite imerso em
planejamento e preparação, mas Lawrence precisava se
preocupar em executar esses planos.
Ele sabia que não era particularmente habilidoso.
Quase qualquer comerciante estaria buscando mais informações
para tentar ganhar vantagem. Mas desta vez, Lawrence teve que ficar
passivo. E enganar seu oponente sob tais restrições exigia habilidade
significativa.
Ele tinha pouco tempo para formular um plano, e suas
informações eram limitadas. Não estava nem mesmo claro se ele seria
capaz de proteger sua própria posição.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 103 ⊱

Sem Holo, ele teria inquestionavelmente escolhido em


autopreservação e agido como peão de Kieman. Nesse caso, ele
provavelmente teria sido usado e depois abandonado.
Lawrence sorriu de forma autodepreciativa e rolou.
Sua cama ficava ao lado do parapeito frio da janela, então, se ele
levantasse um pouco a cabeça, poderia ver o fraco luar azul deslizando
pelas frestas da janela.
Lawrence percebeu quão grande era a distância entre sua própria
habilidade como mercador e a de Eve; ele teve que tirar o chapéu.
Contra ela, um homem como Kieman estava se esforçando ao
máximo. E Lawrence tinha caído no meio de sua batalha.
Lawrence rolou de novo e suspirou.
Ele não tinha intenção de voltar agora, mas ainda estava nervoso.
Quanto mais ele se obrigava a dormir, mais seus olhos permaneciam
teimosamente abertos.
Sorrindo ironicamente para si mesmo, Lawrence saiu da cama,
compelido pela sede, e decidiu sentir um pouco da brisa noturna.
Devido ao ar frio, o jarro de água de cobre estava frio, quase como
gelo. Girando-o suavemente, ele caminhou pela estalagem silenciosa.
A pousada foi construída em torno de um pátio fechado, e no pátio
havia um poço. Mais ao sul, a maioria dos edifícios foi construída ao
longo dessas linhas. Naturalmente, era bastante fácil diferenciar os
prédios de diferentes empresas comerciais, mas o layout básico era o
mesmo. Isso não ocorria porque as pessoas em todos os lugares
decidiram de alguma forma, mas sim porque os carpinteiros e
pedreiros que faziam a construção tendiam a viajar de um local de
trabalho para outro.
Antes que suas viagens o levassem para o exterior, Lawrence
presumira que tais edifícios eram comuns em todo o mundo. Ele ainda
conseguia se lembrar do choque que sentiu pela primeira vez quando
descobriu que não era o caso. Quanto mais viajava, mais ele percebia
CAPÍTULO VII ⊰ 104 ⊱

quão estreitas suas noções preconcebidas tinham sido. Com o passar


dos anos, ele percebeu o quão grande e complicado era o mundo e
quão pequeno ele era em comparação. Havia infinitos acima dele e
infinitos abaixo.
Alguém sempre pode fazer o que ele pode fazer, e não importa o
que ele possa pensar, alguém percebeu isso mais cedo.
Ali, sob o pálido luar azul, Lawrence baixou o balde na boca do
poço voltada para o céu.
As coisas geralmente não aconteciam como se esperava, e
geralmente eram decididas pelas circunstâncias circundantes.
Lawrence se envolveu com Eve durante o processo de coleta de
informações sobre os ossos de lobo, mas o verdadeiro começo foi o
encontro em Lenos. E a razão pela qual eles chegaram a Lenos não era
outra senão Holo.
Lawrence tinha certeza de que estava nadando em direção ao seu
objetivo, mas não estava em uma lagoa; ele estava em um rio que flui
rapidamente.
Ele puxou o balde e olhou para o reflexo da lua na água dentro
dele.
Ele se perguntou se era uma consequência de sua antipatia por não
ser nada além de um personagem menor na história que ele enfrentava
que o fez pensar na época delicada em que ele estava começando como
comerciante.
Se Lawrence fosse um historiador, ele não seria capaz de se
classificar como o personagem central nisso. Não, isso seria Kieman
— ou Eve, talvez.
Ele sorriu tristemente com o pensamento, e o reflexo da lua no
balde distorceu assim como seu rosto.
Decidindo que isso era muito bobo, ele olhou para cima, e lá
estava Holo. De alguma forma, ele a esperava.
“É uma noite adorável, não é?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 105 ⊱

Suas mãos estavam cruzadas atrás das costas, e ela sorriu tão
docemente quanto uma garota da cidade em um dia ensolarado.
Lawrence devolveu o sorriso e concordou. “Isso é.”
“À medida que a lua aumenta e diminui, o mesmo acontece com
meu humor”, disse Holo, mergulhando o dedo no balde, sua respiração
saindo em leves baforadas brancas. “Você saiu do quarto tão
sugestivamente, eu não pude deixar de segui-lo.”
"Eu parecia tão desesperado assim?"
No lugar de uma resposta, Holo sorriu.
“…suponho que sim.” Certamente foi um progresso para ele ser
capaz de se render graciosamente.
“Mesmo assim”, disse Holo, pegando o jarro que ele havia deixado
na beira do poço e brincando com ele com as duas mãos. “Eu queria
falar um pouco com você.”
“Comigo?”
“Sim.”
“Você vai me ensinar alguma técnica secreta para controlar a
natureza humana?” Lawrence perguntou, o que fez Holo rir baixinho.
Ela então se sentou na beira do poço, ainda segurando a jarra fria.
“Se fosse assim, eu não precisaria dizer a você. Afinal, venho
controlando sua natureza há algum tempo, não é? Você já deve saber
como fazer isso sozinho.”
“Suponho que você queira que eu responda: ‘Acho que você está
certa’.”
“É uma boa atitude.”
Holo sorriu, revelando suas presas, e o sorriso então retrocedeu
como uma maré.
Ela era uma loba de muitas faces. Como as ondas do mar vistas de
longe, não havia como saber se havia rochas perigosas abaixo da
superfície. Quando a maré recuou e a verdade foi revelada, não havia
CAPÍTULO VII ⊰ 106 ⊱

como dizer que coisas extraordinárias poderiam acontecer. Lawrence


acariciou a cabeça dela, se perguntando quantas vezes ele quase foi
afundado naquelas rochas.
“Eu…”
“Hum?”
“Eu... estou me arrependendo de ter empurrado você para isso.”
Lawrence sentou-se ao lado de Holo.
Ela agarrou o jarro de cobre como se estivesse aquecendo-a,
embora provavelmente estivesse ainda mais frio do que a água.
“Bem, eu estou grato. É graças a você que eu posso resistir à
Kieman.”
Isso não era mentira. E, no entanto, os ouvidos de Holo se
moviam ativamente como se tentassem verificar a verdade das
palavras. Finalmente ela olhou para baixo e assentiu.
“É disso que me arrependo.”
“O quê? Bem... supondo que você tivesse deixado passar,
então...”
“Não é isso que eu quero dizer.” Holo balançou a cabeça e respirou
fundo.
Ela então olhou diretamente para Lawrence e continuou falando.
“Uma pessoa tão inteligente quanto você pode realizar quase
qualquer coisa, desde que tenha um conhecimento claro de seus
arredores. Mas todo mundo tem seus pontos fortes e fracos. Eu insisti
para você, apesar de saber que o que estava por vir não era algo para o
qual você era adequado. Eu sabia que não era algo que você desejava.”
Era verdade que Lawrence estava indo direto para um conflito
entre os mercadores da cidade, todos eles muito habilidosos e astutos.
Mas se ele fosse abrir uma loja em uma cidade em algum lugar,
esse seria o mundo que ele enfrentaria, então isso não parecia algo com
o qual Holo deveria se preocupar.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 107 ⊱

Antes que ele pudesse dizer isso, porém, Holo o afastou.


“De qualquer forma, se você tivesse a força para cruzar espadas
com eles, você já estaria usando minhas habilidades em toda a sua
extensão.”
Certamente Eve ou Kieman teriam feito isso.
Eles teriam usado o Holo desde o início. De uma perspectiva
lógica, ela era a arma mais forte.
“Você parece desejar um curso de eventos estável e confiável, e
posso ver que isso combina com você. Mas o que eu te empurrei é
exatamente o oposto disso. Não é?”
Era verdade.
Bastava olhar para os lucros de Lawrence antes de conhecer Holo
para ver. Eles aumentaram gradualmente, e nessa medida ele ficou
satisfeito com o negócio estável que vinha fazendo. Por que ele queria
ter uma loja em primeiro lugar? Dificilmente era como se ele quisesse
segurar o mundo na palma de suas mãos. Não era nada tão grandioso
— ele simplesmente queria fazer parte de um mundo menor, uma
cidade, e ter um lugar nessa cidade.
“Mesmo assim,” Lawrence disse, “Mesmo assim, dói um pouco
ouvir que você não me considera adequado para essas coisas.”
As orelhas de Holo sacudiram sob o capuz. Ela lentamente olhou
para cima.
“Mas você não é, é?”
“Quando você diz isso tão claramente, eu não consigo ficar com
raiva.”
Lawrence deu um sorriso aflito.
Mas quando olhou para cima, sua respiração subiu para o céu em
direção à lua, e a dor naquele sorriso parecia ir com ela, dissipando-se
como fumaça.
“Mas não vou desistir dessa história”, declarou.
CAPÍTULO VII ⊰ 108 ⊱

Quando Lawrence olhou para baixo, viu Holo fazendo uma careta
como se tivesse respirado um pouco da amargura que ele exalara.
“Especialmente quando você faz caretas assim.”
“Ugh...” Ela não tentou esconder sua ansiedade quando ele
cutucou sua testa.
Ao olhar para ela, Holo honestamente parecia se arrepender de
tê-lo empurrado nessa direção. Embora toda vez que eles
encontrassem algum incidente ou outro, ela brincava que estaria em
apuros se ele fosse um comerciante desajeitado, Holo parecia estar
genuinamente preocupado com ele.
Mas Lawrence teve a sensação de que não era apenas porque ele
não era adequado para esse problema específico.
"Se você está tão arrependida, deve significar que você está
esperando que eu encontre algo extraordinário."
Holo odiava quando Lawrence agonizava sozinho e tirava suas
próprias conclusões, mas a verdade era que ela fazia exatamente a
mesma coisa. No entanto, a inteligente Holo parecia pensar que o
silêncio era mais eficaz do que levantar a voz para apontar isso.
“Parece que você planeja escrever sobre suas viagens comigo.”
“Huh?” Ele se lembrava de ter dito algo assim, mas não conseguiu
ver nenhuma conexão.
Holo olhou para ele com um pouco de raiva, evidentemente
esperando que ele entendesse. Mas talvez decidindo que Lawrence
estava no limite de seu intelecto, ela fez beicinho e continuou.
“E se sim, isso não faria de você o protagonista? Eu queria que meu
protagonista agisse como um. Talvez ... talvez ajude eu ser apenas um
personagem secundário.”
No conto da destruição de suas terras natais pelo Urso que Caça a
Lua, Holo nem era um personagem secundário — ela estava
completamente fora da história.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 109 ⊱

Enquanto ela se sentava na beira do poço, as pernas penduradas de


Holo a faziam parecer muito infantil. E era verdade, o desejo de ser
protagonista da história do mundo era muito infantil.
“Mas isso não é nada além do meu próprio egoísmo. Se esse desejo
colocar você em perigo ou fazer você vagar tão tristemente em um
pátio à noite como esta, isso me dói”, admitiu Holo, colocando a mão
no peito e estremecendo de dor.
Lawrence beliscou sua bochecha direita levemente e respondeu:
“Eu entendo o que você está tentando dizer, mas…” Enquanto Holo
esfregava sua bochecha com irritação, ele não teve escolha a não ser
fortalecer seu tom e continuar. “Quanto mais você diz essas coisas,
mais incapaz eu sou de recuar.”
Isso porque ela tinha expectativas sobre ele.
Quando Holo tinha expectativas em Lawrence, ele tinha que
corresponder a essas expectativas.
“Sim, e é por isso que eu não queria te dizer...”
“Porque eu seria teimoso?” ele atirou de volta, sorrindo e
ganhando um soco nas costelas.
Holo então o encarou com um olhar tão sério que dificilmente
poderia ser uma piada. “Certamente você entende o quão caro seria
ignorar meus cuidados.”
“…”
Ele estava totalmente ciente, e Holo dizendo isso equivalia a ela
dizer a ele que tinha grandes expectativas.
Lawrence parou por um intervalo apropriado antes de assentir
com firmeza. Naturalmente, ele levou isso muito a sério.
Mas Holo o observou duvidosamente. “Você realmente entende?”
“Acredito que sim.”
"Certeza?"
Em sua persistência excessiva, ele finalmente percebeu.
CAPÍTULO VII ⊰ 110 ⊱

Se ela desejava que ele fosse o protagonista dessa história, o que


isso fazia dela? Se ela pudesse obter tudo o que queria simplesmente
desejando e se preocupando, era um papel e tanto.
O problema era que, ao longo dos tempos, os homens foram
fracos contra tais oponentes.
“Claro,” Lawrence respondeu novamente, segurando seu corpo
quente perto do luar.
A cauda de Holo balançou sob seu roupão.
O mundo era um palco onde todos desejavam ser protagonistas,
mas nem sempre as coisas aconteciam como gostariam. Em tal lugar,
tornar-se o protagonista não era tarefa fácil, até mesmo Lawrence
sabia.
Mas isso mudava quando alguém colocava sua confiança em você.
Holo se contorceu para fora de seus braços e se levantou, e parecia
que o peso em seu peito havia sido removido.
Só de ver isso, Lawrence não se arrependeu.
“Venha, encha a jarra e vamos voltar. Está frio.” Certamente não
era sua imaginação que ela parecia estar tentando esconder alguma
timidez.
Lawrence pegou a jarra de Holo com a mão direita e a encheu com
a água que havia tirado. Holo segurou sua mão esquerda e riu com
cócegas.
Mesmo que Lawrence estivesse sendo manipulado por ela, não
havia dúvida de que o assunto em questão tinha alguma conexão com
os ossos do lobo — e com o desejo de Holo.
No dia seguinte, no início da tarde, Lawrence foi chamado por
Kieman.
Ao sair da sala, notou-se que o rosto mais ansioso era o de Col.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 111 ⊱

A casa comercial da Guilda Comercial Rowen em Kerube


representava os interesses da guilda neste importante elo entre as
regiões pagãs e controladas pela Igreja. Muitos mercadores astutos e
experientes eram empregados lá, assim como os homens que os
supervisionavam.
Teria sido realmente uma grande façanha enganar todos eles, e
daquele ponto em diante, Lawrence receberia as ordens de Kieman e
tentaria enganar os proprietários do norte.
Enquanto Eve não o traísse, tudo estaria bem. Essa fora a
conclusão de sua discussão com Kieman na noite anterior, Kieman sem
dúvida já tendo feito o trabalho de fundo necessário.
O que estava sendo pedido a Lawrence não era uma coisa tão
difícil.
Ele simplesmente tinha que manter a confiança da solitária Eve e
garantir que as coisas prosseguissem sem problemas.
Isso era tudo.
“Você realmente não se importa em deixar sus companheira para
trás?”
“Não, está tudo bem.”
A casa de comércio esteve ocupada a manhã toda, então Lawrence
teve apenas alguns momentos para falar com Kieman antes de sair.
Como chefe do ramo, Kieman usava roupas finas com gola
engomada.
Dado que as negociações entre os proprietários do norte e os
comerciantes do sul estavam acontecendo no delta, deixar Holo e Col
para trás faria parecer que eles haviam sido feitos reféns, o que pode
ter sido o motivo pelo qual Kieman se deu ao trabalho de perguntar se
eles iriam junto com Lawrence.
“Então, você só tem que explicar para a senhorita Bolan o que eu
disse antes. Meus próprios preparativos se tornaram bastante
complicados, então qualquer ação independente de sua parte pode
CAPÍTULO VII ⊰ 112 ⊱

facilmente criar pequenos buracos, que rapidamente se tornarão


grandes problemas”, disse Kieman, olhando firmemente nos olhos de
Lawrence.
Lawrence assentiu calmamente em resposta. Mesmo que lhe
tivessem contado o plano completo, tinha certeza de que não o teria
entendido.
Até Holo e Col podiam circular em torno dele, politicamente.
Assim como Kieman dificilmente poderia passar duas semanas em
estradas irregulares nas montanhas enquanto subsistia com nada além
de pão de centeio e água da chuva, Lawrence não conseguia manobrar
como Kieman.
Quanto mais ele fizesse o que lhe diziam, mais seguro ele estaria.
A única decisão que ele tomaria independentemente seria a
última, no momento em que os acontecimentos tivessem progredido
a tal ponto que ele pudesse julgar por si mesmo se cooperaria ou
desertaria.
Kieman parecia querer dizer mais, mas uma batida na porta do
quarto o interrompeu. A delegação mercante havia se reunido e estava
pronta para partir.
Já era tempo.
“Bem então. Estarei contando com você.”
Tendo recebido totalmente as ordens de Kieman, Lawrence saiu
da sala assim que os outros entraram. O refeitório da casa comercial
tinha uma atmosfera tensa, como se uma batalha estivesse se
aproximando.
Claro, as tropas deste lado sentiram o estranho nervosismo da
vitória iminente. Eles não precisavam da deusa da vitória — eles
tinham o narval.
Era como se estivessem apenas discutindo qual vitória seria a
maior.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 113 ⊱

No início, parecia que a guilda que capturasse o navio do norte


que originalmente havia capturado o narval seria o vencedor final. Até
membros da Guilda Comercial Rowen sussurravam que seria difícil
ganhar a iniciativa nas negociações.
Claro, isso não era motivo para desistir, e o grupo de mercadores
desleixados no canto, que fingiam remar ou adormeciam nas mesas, já
tinham experimentado o sabor do conflito como parte do
acampamento sul.
Cavaleiros e mercenários eram do tipo prático e tendiam a não se
debruçar sobre partes de riquezas ainda não conquistadas. Por outro
lado, os comerciantes adoravam contar as galinhas antes de chocarem,
e não havia dúvida de que a noite anterior havia visto muitas discussões
sobre as participações nos lucros. Eles provavelmente estavam em
andamento.
Várias carruagens esperavam na frente da casa da guilda pelo
Chefe Jeeta e Kieman, e um fluxo constante de mendigos esfarrapados
— espiões para seus mestres mercadores — constantemente passavam
entre eles.
Lawrence lembrou-se do termo que Eve usara em Lenos, a cidade
de madeira e peles.
Uma guerra comercial.
O fato de que a atmosfera fazia o coração de Lawrence bater mais
rápido não era porque ele estava à beira de uma negociação
importante.
Era porque ele havia nascido homem e, para um homem, essa
atmosfera era inerentemente atraente.
“Companheiros!”
Com essa voz repentinamente elevada, toda a conversa silenciou.
Todos os olhos estavam agora no chefe Jeeta, um velho magro e
calvo.
CAPÍTULO VII ⊰ 114 ⊱

Kieman o havia denunciado como mero oportunista, mas o


mesmo poderia ser dito de qualquer um que tentasse evitar a
calamidade.
E enquanto Kieman se vestia como um nobre, Jeeta usava roupas
folgadas, que lhe conferiam a inconfundível gravidade da velhice.
Ele examinou a assembleia com olhos que pareciam capazes de
contemplar um século no futuro.
“Em nome de nosso patrono, São Lambardos, que nossa guilda
seja triunfante!”
“Triunfante!”
Animados pelos mercadores, Jeeta e seus acompanhantes
deixaram a casa da guilda. Kieman nem uma vez olhou para Lawrence,
trocando palavras com os outros antes de embarcar na carruagem que
estava partindo da casa da guilda.
Diante dessa visão, Lawrence sentiu a mão subir espontaneamente
ao peito — como era estranho que, com tal espetáculo diante de si,
ele fosse parte crucial de um plano que reverteria a situação por
completo.
Se Holo estivesse ao lado dele, ela certamente teria zombado
desse súbito aumento de coragem de um mercador viajante. Ela teria
rido — até ele certamente estava rindo de si mesmo.
As travessias de rios não eram mais proibidas, então, seguindo a
procissão do chefe da guilda, vinham os mercadores, alguns dos quais
apenas observavam os procedimentos e outros que, como Lawrence,
tinham tarefas a cumprir.
Lawrence se misturou na retaguarda do grupo e dirigiu-se para o
rio Roam.
Em meio a todas as pessoas que emergiam das casas das guildas e
das empresas comerciais alinhadas ao longo dela, a avenida assumiu
uma atmosfera peculiar. Os negócios estavam sendo conduzidos como
de costume, e dificilmente todos na cidade eram comerciantes.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 115 ⊱

No entanto, o fluxo de mercadores em direção ao norte trouxe à


mente as campanhas do norte. O sino da igreja tocou, seu som ecoando
estranhamente.
Os barqueiros estavam tratando seus passageiros com uma
estranha deferência, totalmente diferente de sua habitual grosseria. As
margens do rio estavam repletas de espectadores ao lado de soldados
armados com lanças e machados para garantir que nada acontecesse.
Um mercador particularmente desanimado ficou impressionado
com o espetáculo, e seus joelhos começaram a bater quando um barco
que balançava levemente o empurrou para o píer.
Mas ninguém riu dele. Todos ficaram em silêncio enquanto
convergiam para o delta.
Não era imaginação de Lawrence que aqueles não relacionados ao
comércio estivessem assistindo como se testemunhassem algo muito
estranho se desenrolando. Antigamente, as disputas por terras eram
resolvidas pela espada e eram fáceis de entender. Mas agora eles eram
combatidos com pergaminho e tinta, então não era de admirar que
para os de fora parecesse muita feitiçaria.
O próprio Lawrence teve a mesma impressão.
A maneira como o dinheiro aparecia após uma negociação não era
diferente de um feiticeiro convocando um demônio com um círculo
mágico. Não admira que a Igreja fosse tão rigorosa com os
comerciantes e sua busca incansável por dinheiro — todo o negócio
parecia ter que ser ajudado por algum tipo de diabo.
Sem ninguém em particular na liderança, a multidão
simplesmente fluiu. Eles foram para a fonte de ouro, onde os itens
mais caros do delta mudavam de mãos. Nas mesas havia pergaminhos
descrevendo um item tão valioso que não poderia ser trocado por
moedas. E talvez não por influência, prestígio ou orgulho.
Aqueles como Lawrence — pequenos comerciantes de batatas
fritas — viram-se parados em seu caminho, com apenas comerciantes
de status mais alto e mais ricos autorizados a prosseguir. Grupos
CAPÍTULO VII ⊰ 116 ⊱

igualmente vindos do norte estavam sentados. Os homens de ambos


os grupos pareciam bem acostumados a dar ordens com meros
movimentos do queixo, como se fosse uma reunião de antigos sábios.
Mas aqui e agora, eram os sulistas que claramente estavam em
vantagem. Suas roupas, seus retentores e seu porte falavam de riqueza
e poder. Em contraste, tudo o que os nortistas tinham era sua
dignidade. E mesmo isso era trêmulo, sustentado apenas por seus
gritos.
Os assentos dos sulistas foram todos atribuídos, e o chefe Jeeta
sentou-se três assentos à direita do velho bem vestido no centro.
Sem dúvida, a ordem dos assentos foi determinada pelo acordo de
participação nos lucros. Os nortistas tinham que estar cientes disso, e
Lawrence se perguntou como seria sentar na frente de homens cujo
propósito era dividir sua fortuna entre si.
Mas dada esta situação, não era óbvio quais seriam os lucros da
Guilda Comercial Rowen. Tudo o que Lawrence podia dizer era que,
nesse ritmo, as recompensas iriam para Jeeta, e aqueles abaixo dele
receberiam comparativamente pouco. Lawrence imaginou os lucros
contornando inteiramente as guildas e sendo divididos igualmente, e
não pôde deixar de sorrir com o pensamento.
Isso era o quão absurda era a ideia.
Por fim, todos os nortistas encontraram seus lugares à mesa. Atrás
deles sentavam-se homens que presumivelmente eram seus
mercadores retentores, que sussurravam nos ouvidos de seus
senhores. Esta parecia ser uma conferência de estratégia de última
hora, e seus rostos estavam uniformemente graves.
Entre eles, atrás do homem mais bem vestido na mesa do nortista,
estava um rosto que Lawrence reconheceu.
Era ninguém menos que Ted Reynolds da Companhia Jean.
Ele usava o que todo mundo estava vestindo, o que deve ter sido
um traje formal pelos padrões locais — um chapéu alto e fino. E se as
circunstâncias fossem diferentes, ele teria sido o mediador cujo
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 117 ⊱

objetivo era sufocar os nortistas para sempre, então ver a verdade aqui
era realmente assustador.
Se Kieman tivesse chamado Reynolds afinal, ele teria traído
Lawrence? Lawrence não sabia a verdade, mas enquanto olhava para o
distante Reynolds, de repente teve a sensação de que Reynolds estava
olhando de volta para ele. O homem estava sendo observado por
inúmeros outros comerciantes, entretanto, então era difícil imaginar
que ele havia escolhido Lawrence.
A sensação de Lawrence de que seus olhos se encontraram só
provou como ele estava nervoso e constrangido.
E ele estava realmente muito nervoso.
Eve estava longe de ser vista.
De acordo com a explicação de Kieman, ela não estaria no centro
da atividade — e parecia ser assim.
O trabalho de Eve era gerenciar os negócios por baixo da mesa.
Talvez mesmo neste momento ela estivesse se afogando em cartas
de amor dos homens desesperados para enganar aqueles ao seu redor
e obter todo o lucro.
Lawrence também tinha um buquê para presenteá-la, então deu
meia-volta e se afastou da multidão.
Não muito tempo depois, ele ouviu uma voz alta declarar o início
das negociações. Foi uma voz sulista que fez a declaração, que não
deixou dúvidas quanto à natureza inteiramente cerimonial dos
procedimentos.
Mas os rituais eram usados para rezar aos deuses.
Enquanto pensava sobre o que os homens naquela mesa poderiam
estar rezando, Lawrence afrouxou o colarinho, terrivelmente
amedrontado.
ssim como existem vários caminhos para chegar ao cume
de uma montanha, havia muitas maneiras de entrar em
contato com Eve. Contudo, Lawrence foi instruído a
encontrá-la na mesma estalagem simples onde Holo
trouxe Col para passear enquanto estava bêbada.
Não havia clientes no térreo, mas o estalajadeiro parecia
despreocupado, pois alguém do norte havia alugado a pousada inteira.
Todas as pousadas e tavernas do delta estariam assim hoje.
Lawrence entregou uma moeda de cobre desgastada com o rosto
de um rei falecido há muito tempo e, em troca, o estalajadeiro colocou
um copo vazio no balcão e indicou a escada. “Aí está.”
Ele estava sendo instruído a levar o copo para cima.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 119 ⊱

Lawrence fez o que lhe foi dito, subindo a escada e, no final do


corredor, viu a silhueta de um mercador falando com alguém. Ele teria
ignorado a pessoa exceto pelo fato de que nenhum bom mercador
jamais esquece um rosto.
Apesar da barba falsa e do algodão com que ele havia enchido suas
roupas para mudar sua forma, um dos homens era claramente um dos
vigias de Eve.
Lawrence o encarou mais uma vez, o que lhe rendeu um olhar
penetrante.
“Como estão os negócios?”
Lawrence parou por um momento, mas superou sua apreensão e
caminhou até os homens, cumprimentando aquele que ele não
conhecia.
Ele percebeu que estava sendo solicitado algum tipo de senha,
então calmamente virou seu copo de cabeça para baixo. “Tão ruim que
eu não consigo nem beber,” ele respondeu.
Seu questionador sorriu e indicou a porta ao lado dele.
Os nós de sua mão estavam torcidos e deformados,
provavelmente porque ele estava acostumado a trabalhos físicos
árduos.
Lawrence deu um sorriso amigável e bateu na porta, entrando
apenas quando obteve resposta. Ao entrar, ele descobriu que o cheiro
de tinta era quase avassalador e se misturava com o cheiro de algo mais
forte.
O cheiro vinha de um velho em um dos cantos do cômodo, que
estava derretendo cera de vela para usar em selos.
“Tem ideia do quanto me entristece ver você aqui?”
A exaustão física e mental não eram a mesma coisa. O rosto de
Eve estava exausto por ter lido demais, e ela sorriu, apoiando o rosto
na mão, que estava apoiada pelo cotovelo em uma mesa que
transbordava de cartas e documentos.
CAPÍTULO VIII ⊰ 120 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 121 ⊱

“Já estava na hora da sua soneca?”


“Exatamente. Veja o quanto eu tenho falado enquanto durmo.”
Lawrence estava na entrada, mas havia papéis espalhados até aos
seus pés.
Ele deu uma olhada casual — os que ele podia ver facilmente
incluíam duas ameaças, três acusações não verificáveis de que essa ou
aquela pessoa no norte estava secretamente ligada a fulano de tal no
sul, três convites de aliança e um convite para fugir para um país
estrangeiro.
Lawrence pegou o último — parecia o mais divertido — e o levou
para Eve.
“Uma vez eu estava cruzando o mar, e por acaso estava em um
navio com um grupo de peregrinos. Tivemos a má sorte de ser
atacados por piratas.” Enquanto Lawrence se perguntava o que o
discurso repentino tinha a ver com alguma coisa, Eve pegou a carta
dele e começou a dobrá-la cuidadosamente. “No início, os peregrinos
encolhidos oravam a Deus, mas uma vez que vários marinheiros foram
mortos e parecia que toda a esperança estava perdida, o que você acha
que eles começaram a fazer?”
“Tenho certeza de que não sei,” disse Lawrence, e Eve continuou,
achando graça.
“Aqueles peregrinos simplesmente começaram a fazer ‘aquilo’! Eu
os observei e pensei comigo mesma que criaturas estranhas e poderosas
os humanos são.”
Um poeta disse uma vez que o medo pela vida era o maior
afrodisíaco.
Mas restava uma pergunta.
“Então o que você fez, senhorita Eve?”
Eve jogou a carta cuidadosamente dobrada na lareira. “Eu
vasculhei seus pertences para coletar o dinheiro que precisaria para
CAPÍTULO VIII ⊰ 122 ⊱

comprar minha própria vida de volta.” Seus lábios secos não se


moveram, mas seus olhos se enrugaram em um sorriso.
Lawrence deu de ombros e tirou um pedaço de pergaminho do
bolso do paletó. “Disseram-me para dar isto a você.”
“Não há necessidade de me mostrar”, disse Eve, o que fez o velho
que estava mexendo a cera derretida olhar para eles.
Eve se virou para ele e fez um gesto com o dedo, e o velho voltou
sua atenção para a cera.
Parecia que o velho era surdo. Ou isso ou eles queriam Lawrence
acreditasse que fosse, para então se sentir à vontade para falar.
“Tudo o que me interessa é se você é meu aliado ou não.”
“Ou mais precisamente, se eu vou fazer o que você mandar ou
não.”
Eve realmente sorriu com os olhos, não com os lábios. Não
respondendo a declaração de Lawrence, ela estendeu a mão. Lawrence
entregou-lhe o pergaminho, que ela leu como se fosse uma carta sem
importância.
“Hmm… está tão perto das minhas expectativas que é um pouco
irritante. Quase como se você tivesse contado a eles sobre nosso
encontro secreto.
“Você está brincando,” Lawrence respondeu com seu melhor
sorriso de mercador, e uma Eve de aparência entediada colocou o
pergaminho sobre a mesa.
“Então, ele finalmente se moveu, não é...?” ela murmurou,
fechando os olhos.
No mínimo, ela parecia estar ponderando sobre o pergaminho que
Lawrence trouxe por mais tempo.
“O que você acha?” Eve perguntou, seus olhos ainda fechados.
Ainda era muito cedo para negociar.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 123 ⊱

“Dado que você recebeu minha mensagem, meu trabalho foi


concluído sem incidentes.”
“Os proprietários do norte trocam uma nota de transferência de
escritura de suas terras pelo narval. Eu divido os lucros com o traidor
do norte, e sua guilda obtém o lucro por ter superado seus
concorrentes.”
“Todo mundo está satisfeito,” disse Lawrence, o que fez Eve
suspirar e esfregar os cantos dos olhos.
“É uma coisa difícil, não ser capaz de ver o coração dos outros com
seus próprios olhos.”
As únicas pessoas que podiam confiar em seus parceiros e ter
certeza de que um negócio iria correr bem eram aquelas que nunca
tinham encarado a traição. E aqueles que planejavam enganar os outros
— também poderiam se gabar de que seus próprios negócios iriam
bem?
“Você sabe com quem Kieman está conectado?” Eve não estava
testando Lawrence. Era uma pergunta simples.
“Não.”
“Parece realisticamente possível roubar secretamente o narval?”
“Talvez subornando os guardas.”
“A transferência da escritura será feita pelo filho do proprietário,
que não tem autoridade real. Pode não ter nenhuma validade reak. O
que Kieman planeja fazer sobre isso?”
“O chefe da terceira geração já prestou seus respeitos aos
proprietários próximos, e a jurisdição da cidade é compartilhada pelo
conselho, pela Igreja e pelos proprietários. Enquanto eles tiverem
motivos para reivindicar seus direitos, as coisas devem dar certo.”
“Entendo. E você acredita no que Kieman diz?” De sua posição,
Eve olhou para Lawrence como uma nobre olhando para um plebeu
lamentável. Ela falou como se tivesse certeza de que Kieman esperava
para armar uma armadilha.
CAPÍTULO VIII ⊰ 124 ⊱

“Não acredito nas palavras dele, mas estou com ele.”


Eve desviou o olhar de Lawrence. “Uma resposta perfeita. Mas
não o suficiente para superar a distância que nos separa.”
Isso significava que ela não poderia aceitar a proposta de Kieman?
Lawrence mal acreditou na totalidade do plano do homem, mas
não parecia uma troca tão ruim para Eve.
Lawrence fez uma pergunta a ela. “Qual seria a melhor escolha
para você, senhorita Eve?”
“Eu te disse, não disse? Trair a todos e levar todo o lucro comigo.”
“Você não poderia —” Lawrence deixou escapar.
Eve sorriu, divertida. Ela parecia querer que ele continuasse.
“Por que você seria tão infantilmente egoísta?”
Se Eve propusesse a Kieman o mesmo, ele certamente aceitaria na
hora. Ele teria ficado encantado.
Então, por que Eve insistiu em ser tão teimosamente persistente?
Qualquer que fosse o motivo, ainda parecia estranho para
Lawrence.
Ou era tão simples assim — que ela absolutamente não queria
compartilhar nenhum de seus ganhos? Era realmente algo tão
irracional quanto isso?
“Infantil? Isso mesmo, é infantil”. Eve riu e respirou fundo.
Quando ela exalou, sua respiração era forte o suficiente para mover
alguns dos papéis na superfície de sua mesa. “Quando uma criança se
queima em uma lareira, ela teme mesmo quando o fogo está apagado.”
“…Se fosse assim, então os mercadores não teriam escolha a não
ser sentar sozinhos em quartos vazios, trêmulos e com medo.”
Comerciantes eram queimados, enganados — depois saíram em
busca de lucro novamente. E a própria Eva não era o exemplo desse
ideal?
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 125 ⊱

Ela ser o eixo central dos eventos que determinariam quem


controlaria uma importante cidade portuária como Kerube a prova
disso?
Lawrence avançou para Eve, meio zangado, e encontrou seu olhar
cauteloso dirigido diretamente para ele.
“Eu nem sempre fui uma comerciante.”
“—”
Lawrence estremeceu com sua voz subitamente mansa e patética.
Eve deu um rápido sorriso com a reação de Lawrence, então se
jogou na mesa. O papel saiu voando.
O velho surdo apressou-se a ficar de pé, mas Eve, ainda deitada
na mesa, deu-lhe um leve sorriso. “Você não acha ridículo? Que
trocando alguns pedaços de papel e algumas das palavras sem forma
que saem de nossas bocas, podemos ganhar tanto dinheiro que pode
comprar uma vida humana.”
Eve pegou uma folha de papel e a deixou cair. Ela então
lentamente dirigiu seu olhar para Lawrence. “Você já foi traído por
alguém em quem confiava completamente? Em quem você pode
confiar então? O único em quem confio sou eu mesma quando estou
traindo outra pessoa.”
As presas de uma fera podem ser usadas para atacar, mas também
para se defender. Então essa era a razão pela qual Eve manteve suas
presas tão afiadas, porque ela sentiu que precisava se defender?
“Quando sua própria vida estava em jogo, você me perguntou,
não foi? O que está no final do meu caminho de ganância? E eu
respondi, não foi? O que eu estou esperando...” Eve lentamente
fechou os olhos e então lentamente os abriu. “… Será que um dia
estarei satisfeita e poderei alcançar um mundo sem preocupações e
sem sofrimento.”
Lawrence deu um passo para trás porque estava realmente
assustado.
CAPÍTULO VIII ⊰ 126 ⊱

Visando um mundo sem preocupações e sofrimento, mas


tentando alcançá-lo através de traição constante — era como ver a
fonte do pecado humano.
Isso não era fingimento.
Não era uma armadilha.
Eve lentamente se sentou, relutantemente se recostando na
cadeira.
“Tudo bem. Aceito a proposta de Kieman. Diga isso a ele por
mim.” Ela parou por um momento, sorrindo como uma cobra. “Diga
isso a ele.”
Eve era um gênio.
Como suas palavras poderiam ser confiáveis? O que ele deveria
relatar a Kieman?
Seu desgosto aumentou com as possibilidades e dúvidas, mas ele
engoliu e lentamente se endireitou. Ela lhe disse para passar a
mensagem adiante, e ele não teve escolha a não ser fazê-lo.
“…Entendido.”
Ele curvou-se educadamente, então se virou para sair.
Por um momento, Eve pareceu a Lawrence como os monstros
vermelhos cheio de tentáculos das profundezas que ocasionalmente
devoravam navios e assombravam os sonhos dos marinheiros.
Eve realmente não confiava em ninguém. Não era de surpreender
então que ela estivesse disposta a trair alguém para seu próprio ganho.
Mas também era verdade que sem confiar em alguém, em algum lugar,
os negócios não poderiam ser concluídos e, portanto, nenhum lucro
poderia ser obtido.
Então, em quem ela confiaria no final? E depois de tudo dito e
feito, quem seria traído?
Quando Lawrence colocou a mão na porta, Eve falou como se
quisesse detê-lo. “Ei, por que não se juntar a mim?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 127 ⊱

Ela olhou para ele sem expressão. Ela parecia ser ao mesmo tempo
sincera e enganadora.
“O que, me juntar a você mesmo sabendo que fui enganado?”
“Exatamente.”
“Não quero acreditar que fui enganado”, respondeu Lawrence.
Eve sorriu. “Suponho que não.”
Lawrence não teve resposta para continuar. Se respondesse,
estaria perdido. Os humanos eram facilmente enganados pela canção
da sereia.
Ele rapidamente saiu do quarto e desceu as escadas. Durante todo
o caminho, sentiu como se Eve o estivesse observando partir.

Kieman deveria ser contatado através de um mensageiro.


O local designado era uma pequena rua movimentada cheia de
barracas, a dois quarteirões de distância da fonte de ouro. Afinal, o
melhor lugar para esconder uma árvore era na floresta.
Ele enviou a nota via um mensageiro não apenas porque era difícil
encontrar Kieman pessoalmente, mas também por outro motivo.
Lawrence estava sob ordens estritas de contar a Eve apenas as
coisas que ele tinha especificamente dito para dizer a ela. Isso
provavelmente foi para impedi-la de usar Lawrence para entregar
informações erradas a Kieman.
Lawrence teve que admitir que a precaução também o protegia.
Era impossível dizer quais partes de sua recente troca com Eve tinham
sido precisas.
Qual era a verdade e onde estavam as mentiras? Ele sentiu sua
própria confiança nas pessoas vacilar.
“O chefe falou: ‘Entendido’.” Era um homem pequeno e corcunda
que entregou a mensagem de Lawrence e trouxe de volta esta resposta.
CAPÍTULO VIII ⊰ 128 ⊱

“O que devo fazer?”


“A reunião entrará em recesso em breve. Você receberá suas
instruções depois disso.”
“Entendo.”
“Certo, você vai pegar sua próxima mensagem no local
combinado.”
Assim que o mensageiro disse isso, ele saiu, provavelmente para
pegar outras informações de outros lugares.
Eles certamente estavam tomando todas as precauções, mas
Lawrence ainda não sabia o quão eficaz isso seria.
O delta estava sempre cheio de mercadores indo e vindo, então
um rosto desconhecido vagando pela cidade não era uma visão estranha
— mas tudo tinha seus limites.
Nesse momento em particular, um mercador vagando à toa ou
parado sob o beiral de uma barraca, olhando de um lado para outro
como se esperasse por alguém, pareceria extremamente suspeito.
E a suspeita gerava mais suspeita.
Se Holo estivesse ali, ele estaria à vontade, mas tendo se
acostumado com a presença dela, era assustador não tê-la por perto.
Lawrence sorriu contra sua vontade e dirigiu-se à taverna onde lhe
haviam dito para receber sua próxima resposta.
“Me desculpe senhor. Não temos mais vagas! Tudo bem?”
Havia poucas tavernas no delta, e a maioria delas havia sido
alugada, então as coisas estavam especialmente lotadas.
Como resultado, Lawrence foi informado antes que pudesse
entrar no local.
Ele podia dizer só de olhar que o lugar estava lotado de pessoas.
Era óbvio que eles ficariam sem vinho se não começassem a diluí-lo
com água, e antecipando isso, Lawrence pediu um licor mais forte.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 129 ⊱

Embora ele fosse reduzido a encostar-se a uma parede para beber,


o posicionamento era perfeito para lhe dar uma boa visão do interior
da taverna. Ele não havia participado da reunião, mas não seria difícil
saber o que aconteceu lá, e ele nem precisaria fazer nada em particular
para isso.
No tempo que levou para receber sua bebida e tomar três goles
— ele foi capaz de entender os contornos do que havia acontecido.
Os nortistas acusaram os sulistas de roubar seu navio, mas os
sulistas alegaram que esse era o desejo do pescador a bordo.
As linhas de raciocínio eram paralelas e obviamente não levariam
a qualquer tipo de resolução.
De acordo com os comerciantes mais barulhentos da taverna, as
probabilidades eram de que os nortistas se retirassem durante a noite
e renunciassem ao narval em troca de uma parte dos lucros de sua
venda. Lawrence concordou com a ideia.
Se os anciãos do sul quisessem destruir os do norte, eles tinham
apenas que vender o narval a um dos proprietários e, depois de tomar
o poder militar, ameaçar todos eles com a pena de morte.
Como eles não tinham feito isso, significava que ainda esperavam
uma resolução pacífica. Se esperavam continuar a segurar as rédeas dos
nortistas, eles teriam que fazer uma oferta razoavelmente generosa, o
que deixaria os nortistas satisfeitos. A resistência dos proprietários veio
de seu desejo de proteger sua própria influência, bem como seu
simples desejo de poder barganhar alguns dos lucros da expansão do
mercado delta.
E mesmo isso não seria decidido nesta reunião, mas sim em
negociações a portas fechadas.
Mas essas negociações ocorreriam sem o conhecimento de
Lawrence, e as únicas pessoas que tinham uma compreensão completa
da situação eram os personagens principais da farsa.
Por estar entre duas pessoas — Kieman e Eve — cujo poder na
cidade era extraordinariamente profundo, com o narval no centro dos
CAPÍTULO VIII ⊰ 130 ⊱

acontecimentos, Lawrence teve a falsa sensação de que ele era de


alguma forma crucial para tudo isso. Mas na verdade ele era um mero
afluente.
Quando considerou que seu único papel era transmitir
informações, ele só conseguia sorrir. E Eve o teve sob seu controle o
tempo todo.
Mesmo o poder da bebida não foi suficiente para deixá-lo
considerar calmamente sua última troca. Ele sentiu muito bem como
era realmente simples negociar na troca de mercadorias por dinheiro.
Se tivesse passado seus dias nesse tipo de ambiente, não havia
como dizer que tipo de monstro ele poderia ter se tornado. Quando
se tratava de arrependimentos e ambições, ele vivia em um mundo
diferente.
Ele só podia sorrir com o quão sortudo era que Holo não estava
aqui para vê-lo agora.
“Senhor,” uma voz chamou Lawrence enquanto estava perdido em
pensamentos, com seu copo em seus lábios.
Qualquer comerciante que esquecesse um rosto ou uma voz era
um fracasso. Claro, o mensageiro de Kieman tinha um rosto bastante
memorável.
“Você é bem ágil.”
“Certamente. O trabalho do chefe precisa de solução rápida.” O
rosto do mensageiro se enrugou em um sorriso orgulhoso.
Quanto mais informações se tivesse, mais preciso poderia ser, mas
isso exigia alcance. Era com isso que negociavam os mercadores
viajantes. Por outro lado, Kieman lidava com mercadorias que levavam
meses para serem transportadas por navio. A distâncias como essa, não
havia como saber se a informação que se tinha era confiável e, de fato,
muitas vezes era impossível ter qualquer informação. Em tais
situações, ainda era preciso tomar decisões comerciais sobre bens de
valor incrível e, para isso, era necessária uma pequena dose de
determinação.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 131 ⊱

Para não falar da coragem necessária para esperar os meses que


levava para chegar a dita mercadoria.
Foi assim que Kieman teve coragem de bolar um plano para trocar
um narval pelo controle do delta, mudando assim o equilíbrio de poder
na cidade.
E foi por isso que seu mensageiro sorriu com tanto orgulho.
“Então aqui.” Lawrence encontrou um pedaço de papel em sua
mão, como se estivesse lá o tempo todo.
E se o próprio Lawrence quase foi enganado, não havia chance de
qualquer espectador ter notado que a mensagem mudou de mãos.
“De fato,” Lawrence murmurou, e o mensageiro desapareceu
assim que chegou.
O que ele havia recebido não estava nem em um envelope.
Eles não achavam que ele iria ler? Ou eles não se importavam?
De qualquer forma, Lawrence não olhou para o papel. Se o tivesse
feito, poderia se ver enganado pela informação que continha e,
portanto, mais fácil para Eve capturá-la. Mesmo o gato de garras mais
afiadas não conseguia encontrar apoio em uma pedra lisa. Quanto
menos ele soubesse, mais difícil seria para ele ser atraído.
Havia uma enorme diferença na quantidade de informações que
cada um deles tinha, então essa era a melhor maneira de se proteger.
Ele precisava resistir a agir antes que as coisas estivessem
realmente ao seu alcance e evitar expor seus verdadeiros pensamentos
a alguém.
Era uma contradição em termos, é claro — estar plenamente
consciente de que estava tentando agir naturalmente. Mas apenas
aqueles que conseguiam manter suas mentes abertas e suas emoções
totalmente sob controle poderiam realmente se chamar de
mercadores.
CAPÍTULO VIII ⊰ 132 ⊱

Lawrence se lembrou disso, como se fosse um menino se


aventurando em uma floresta escura, dizendo a si mesmo que os
demônios não existiam de verdade.
Seguindo a mesma sequência que ele havia realizado não muito
antes, Lawrence entregou novamente a carta a Eve e recebeu sua
resposta. Dessa vez ela não disse nada, apenas lançando a Lawrence um
olhar que parecia convidar sua piedade.
Mas se ele podia agir normalmente, Eve certamente poderia fazer
o mesmo, então não havia como saber o quanto de sua expressão era
um ato. No entanto, a bagunça cansada de seu cabelo e as rugas aqui e
ali em seu rosto eram claras o suficiente, e ainda mais papéis estavam
espalhados em sua mesa.
Quando ele saiu da sala, a imagem de Eve lidando com todas
aquelas cartas sozinha em sua mesa de alguma forma permaneceu em
sua mente.
Lawrence tinha Holo.
Ele a tinha tanto como uma fonte de apoio simples, mas também
como um trunfo — se a situação ficasse ruim, ela poderia resolver
tudo.
Mas Eve estava sozinha e enfrentava esse conflito sem ninguém
que pudesse chamar de aliado. Sua situação era inquestionavelmente
perigosa, e se descobrissem que ela estava se comunicando com
Kieman, imaginar que tipo de vingança os proprietários do norte
exigiriam era profundamente preocupante para Lawrence, embora o
risco não fosse dele.
Ele sentiu sua determinação começando a se desgastar.
“Qual é o problema?” perguntou o mensageiro de Kieman,
quando ele veio entregar a resposta.
“Não é nada”, disse Lawrence, balançando a cabeça, e o
mensageiro não perguntou mais nada.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 133 ⊱

Lawrence se misturou à multidão em seu caminho de volta para a


casa de Eve e percebeu que estava correndo. Algo o estava fazendo se
sentir apressado.
Ele estava carregando meros pedaços de papel e lembrou a si
mesmo que nada mais era exigido dele, mas ainda assim sua ansiedade
aumentou.
Ele não podia dar desculpas.
As mensagens que ele carregava poderiam facilmente decidir o
destino de vidas humanas.
“Por favor, espere aqui.” Era sua quarta visita?
Quando Lawrence chegou para entregar a carta, o guarda apenas
confirmou a senha e aceitou a carta. Ele não encaminhou Lawrence
para dentro do quarto.
Qualquer tortura perderia sua eficácia uma vez que fosse repetida
o suficiente, mas Lawrence percebeu que sua preocupação piorava de
repente.
O guarda, é claro, não explicou nada a Lawrence, e depois de
entregar a carta para Eve na sala, ele voltou a ficar em silêncio.
Os dois guardas não trocaram palavras e nem se olharam. O
tempo passou rastejando, e os sons da comoção lá fora só serviam para
enfatizar o silêncio na pousada.
Parecia que as respostas de Eve estavam demorando cada vez mais
para ela escrever, e Lawrence se perguntou se ela precisava considerar
suas respostas com mais cuidado.
Ela estava pensando antes de colocar a caneta no papel? Não havia
nenhum documento que lhe dissesse a resposta correta e ninguém por
perto que soubesse o que era. E, no entanto, ela precisava encontrar
uma solução para esse problema, do qual dependia todo o seu destino.
Não foi pouca coisa. Lawrence se lembrou de uma vez em que foi
perseguido por ladrões em uma floresta escura e encontrou uma
bifurcação no caminho.
CAPÍTULO VIII ⊰ 134 ⊱

Uma das bifurcações levaria mais profundamente à floresta e,


eventualmente, a um beco sem saída. Não havia tempo para escolher
e ninguém para ouvir seus gritos de ajuda, então sua única escolha era
seguir em frente.
A pena na mão de Eve devia parecer ser feita de chumbo.
A porta finalmente se abriu e o velho possivelmente surdo
emergiu da sala trazendo uma carta. Ele examinou Lawrence, então
lentamente entregou a ele.
A própria carta estava levemente enrugada e tinha gotas de suor
aqui e ali. As dores de Eve eram bastante óbvias.
Lawrence entregou a carta ao mensageiro de Kieman e recebeu a
resposta.
“O chefe está ficando impaciente”, disse o homem. “Ele diz que a
corrente está ficando mais forte. E que devemos remar mais rápido
para acompanhá-lo.”
Eve certamente não era a única pessoa com quem Kieman estava
lidando. A corrente sobre a qual ele estava falando certamente envolvia
negociações secretas com dezenas de mercadores, com Kieman
segurando o leme.
Era um princípio básico do comércio que quanto mais rápido você
pudesse entregar informações, melhor. Talvez a razão pela qual as
cartas mais recentes tivessem sido abertas fosse que elas não podiam
esperar a cera endurecer.
Lawrence assentiu e correu para Eve.
Mais uma vez, o guarda na porta passou apenas a carta para dentro
da sala, e Lawrence não conseguiu ver Eve, o que significava que ele
não podia convencê-la a se apressar.
Embora incentivá-la não fosse garantia de que ela realmente
escreveria sua resposta mais rapidamente.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 135 ⊱

Eve não era estúpida; ela deve ter notado as mudanças no fluxo e
tinha que saber que, independentemente de quaisquer planos que ela
pudesse ter, a lentidão para agir seria apenas um convite à perda.
Se a corrente era rápida o bastante para deixar Kieman nervoso,
então o volume das cartas que fluíam em direção a Eve também devia
estar aumentando. Não importa quão grande seja o potencial do plano
de Kieman para reverter a situação, Eve não estava em uma posição
fácil o suficiente para que ela pudesse simplesmente assinar. Pelo
contrário, os negócios secretos tinham que ser cuidadosamente
escondidos entre os legítimos.
Eve certamente estava tão desesperada quanto todos os outros.
Lawrence se lembrou disso várias vezes, enquanto esperava no
corredor e fingia estar calmo.
Se fosse para seu próprio lucro, os bons comerciantes esperariam
dois ou três dias até que suas balanças se equilibrassem. Mas esperar
também pode significar oportunidades perdidas.
Quando o velho finalmente voltou com a resposta, Lawrence deu
um agradecimento superficial e saiu imediatamente. Já não sabia de
que lado estava. Ele estava correndo para ajudar Kieman ou para
ganhar um pouco mais de tempo para Eve pensar? Ou ele estava
simplesmente preso no momento? Ele não tinha ideia.
O mensageiro de Kieman estava começando a parecer sombrio,
com suor brotando em sua testa. No pouco tempo que o mensageiro
levou para entregar o bilhete a Kieman, Lawrence ouviu dos
comerciantes que passavam na rua e na taverna que havia progresso na
reunião.
Parecia que haveria uma conclusão mais rapidamente do que o
previsto.
No momento em que o consenso fosse alcançado, a grande
reversão que Kieman estava planejando se transformaria em muito
barulho.
E Lawrence duvidava que tal oportunidade voltasse.
CAPÍTULO VIII ⊰ 136 ⊱

O mensageiro começou a usar uma linguagem mais forte para


acelerar Lawrence, e repetidamente Lawrence cutucava a guarda de
Eve.
Mas as respostas de Eve continuaram a demorar mais para vir, e
pelo que ele podia vislumbrar de sua caligrafia, parecia estar ficando
confusa, quase bêbada. Em meio à tensão de revirar o estômago das
conversas, Lawrence visitou a estalagem várias vezes, várias vezes.
Ao entregar mais uma carta ao guarda da porta, sentiu um
estranho desconforto e congelou.
“…?”
O guarda olhou para ele com cautela.
Lawrence olhou para o guarda, estupefato, mas tentou sorrir
apressadamente.
Seu coração estava martelando em seu peito.
Não poderia ser.
As palavras dançavam loucamente em sua cabeça.
O guarda levou a carta para o quarto com Eve.
“… Não pode ser,” Lawrence sussurrou para si mesmo.
Por que as respostas de Eve estavam demorando tanto? Kieman
estava participando da reunião e provavelmente ainda mais ocupado do
que ela, mas suas decisões e respostas vinham rapidamente todas as
vezes.
Certamente não era tão simples quanto uma diferença em suas
personalidades. Eve era o tipo de pessoa que poderia apontar uma faca
para alguém sem uma única hesitação se ela precisasse. Ela não era o
tipo de pessoa que se veria assaltada pela indecisão.
Foi quando ele começou a se perguntar se Eve era de alguma
forma ainda mais ocupada do que Kieman que Lawrence sentiu uma
pontada de desconforto.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 137 ⊱

Quando ele foi autorizado a entrar no quarto de Eve, havia cartas


espalhadas por toda parte. E toda vez que ele a visitava desde então,
parecia haver mais, de modo que até mesmo ler todas seria uma tarefa
árdua.
Mas ele havia esquecido algo importante.
Cada vez que ele entregava uma carta, era obrigado a esperar do
lado de fora da sala por algum tempo.
E durante esse tempo, o que ele tinha visto?
Alguém mais trouxe uma única carta para a sala?
Depois de esperar um bom tempo, Lawrence finalmente recebeu
sua resposta. Ele era capaz de olhar ao redor com olhos tão claros
quanto os céus depois de uma tempestade. Quando o velho abriu a
porta, ele vislumbrou novamente a sala, cheia de cartas como sempre.
Mas então ele parou para pensar em tudo isso.
Que necessidade havia de espalhá-los assim depois de lê-los? E se
havia uma razão para fazer isso, qual era?
Lawrence guardou a resposta de Eve no bolso do paletó e saiu
correndo da pousada.
Essa troca teve aspectos inescrutáveis desde o início. O mais
estranho foi a insistência infantil de Eve de que ela simplesmente tinha
que monopolizar todo o lucro. E, no entanto, as palavras que trocou
com ela e o clima do lugar fizeram parecer que era razoável dizer uma
coisa tão ridícula.
Não era como se ela sempre tivesse sido uma comerciante e
pronta para saltar para este mundo de traição — Lawrence podia
imaginar as dificuldades que enfrentou para chegar a este lugar. Não
seria de surpreender se ela escolhesse trilhar o caminho maligno da
traição se pensasse que isso levaria ao seu mundo sem sofrimento.
Não seria surpreendente, mas onde estava a necessidade? Escolher
o caminho que lhe permitia ferir os outros simplesmente porque
também estava com dor era uma mera desculpa.
CAPÍTULO VIII ⊰ 138 ⊱

Mas e se realmente fosse tudo uma encenação?


A mente de Lawrence disparou e o sangue fugiu de sua cabeça.
Às vezes a espera levava a um ganho maior, mas às vezes a ação
rápida trazia o maior lucro. E esse negócio provavelmente caia na
última categoria. Uma vez que um acordo fosse alcançado na reunião,
o plano de Kieman não seria mais viável.
Se Eve não estivesse trabalhando para seu próprio lucro, mas para
o de outra pessoa, isso explicaria por que suas respostas estavam
demorando tanto.
Ela estava tentando ganhar tempo.
Em mais ou menos qualquer cidade, havia homens como Kieman,
que sempre tentavam enganar seus rivais se tivessem alguma chance.
Como os anciãos, que ganharam toda a sua experiência naquela
mesma estrada, podem deixar de ser lembrados de seus próprios dias
de juventude?
Eles estavam usando Eve como uma ferramenta para frustrar o
plano louco de Kieman?
Deixando-o perder seu tempo com um parceiro ocioso, os anciões
habilmente evitariam a ponta de lança desse inevitável conflito
intergeracional.
Tudo estava começando a fazer sentido.
As letras espalharam-se de forma não natural por todo o chão.
E a existência de tantas cartas, apesar de Lawrence nunca ter visto
ninguém carregando.
E Eve nunca deu a impressão de que vacilaria diante de qualquer
dificuldade.
Lawrence entregou a carta ao mensageiro. Quando o homem se
virou para voltar correndo e terminar a entrega, Lawrence agarrou seu
ombro e falou.
“Uma mensagem para o Sr. Kieman.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 139 ⊱

O mensageiro franziu a testa, mas Lawrence não se importou e


continuou.
“Existe a possibilidade de que o lobo seja uma isca.”
Essa dica seria mais do que suficiente para um homem como
Kieman entender.
Era até possível que o chefe Jeeta tivesse preparado uma armadilha
para ensinar uma lição ao novato. Afinal, dado que Kieman não tinha
escrúpulos em tratar Lawrence como um peão, dificilmente seria
surpreendente se os poderes acima dele aproveitassem uma
oportunidade semelhante para esmagar legalmente um subordinado
problemático.
Mas se chegasse a isso, Lawrence sofreria também, e se ele
pudesse ou não pegar emprestado o poder de Holo para escapar, seu
lugar na guilda desapareceria.
O mensageiro apenas fez uma careta de dor com as palavras
desesperadas de Lawrence e saiu correndo sem responder. Ele
provavelmente recebeu ordens para não aceitar nada além de cartas de
Lawrence, a fim de evitar que Lawrence tomasse qualquer decisão por
conta própria.
Mas a situação exigia ação imediata.
Se Eve estava realmente tentando prendê-los, quanto mais cedo
eles recuassem, melhor. Enquanto esta ainda fosse a entrada da
armadilha, eles ainda poderiam escapar. Mas uma vez que a porta se
fechasse, seria tarde demais.
Lawrence esperou ansiosamente na taverna.
Como as respostas de Kieman foram muito mais rápidas do que as
de Eve, esta foi a primeira vez que Lawrence se sentiu impaciente por
ter que esperar por uma. E, na verdade, não parecia que ele tivesse
que esperar tanto tempo, mas não conseguia deixar de pensar:
Finalmente! para si mesmo após o retorno do mensageiro.
CAPÍTULO VIII ⊰ 140 ⊱

O mensageiro trouxe a mesma coisa que ele havia trazido antes


— apenas uma carta.
“Por favor, entregue isso.”
“—”
Lawrence ficou atordoado em silêncio e, por um momento, não
soube o que dizer. — “Você não contou a ele?” falou, agarrando o
homem pelos ombros.
O homem olhou para o lado, a boca fechada.
Ele não havia contado.
Mas, em vez de ficar com raiva, Lawrence sentiu apenas urgência.
“Não estou dizendo isso sem motivo. E eu sei por que suas ordens
são tão rígidas. Mas eles não são deuses oniscientes, e nenhum humano
pode desenhar uma cidade onde nunca estiveram. Dizem que ver para
crer, e essa é a verdade. Ainda há tempo. Você tem que dizer a eles —

“Basta!” disse o homenzinho, que estava perfeitamente adaptado
ao seu trabalho. Sua voz era baixa e grossa.
Lawrence soltou os ombros contra sua vontade. Esta não era a voz
de alguém que percorreu o caminho reto e estreito.
Sua pronúncia tinha um cheiro de sangue e sujeira.
Não era de surpreender que Kieman empregasse um ex-
criminoso.
“Nós apenas temos que fazer o que nos dizem, você e eu.”
Pela primeira vez, Lawrence entendeu o significado da palavra
lealdade — uma palavra que não tinha lugar no mundo do mercador
viajante.
Era um conceito tolo, e havia inúmeras histórias em que causou a
morte de muitos cavaleiros e mercenários. Os comerciantes estavam
entre as poucas pessoas que deveriam ser capazes de evitar tais
problemas usando lógica e raciocínio.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 141 ⊱

Sem medo, Lawrence respondeu: “Todo mundo comete erros. Às


vezes, há coisas que você precisa estar lá para ver. É dever das pessoas
de baixo corrigir esses erros, não é?”
O mensageiro franziu a testa com as palavras de Lawrence e olhou
para baixo. Certamente, mesmo esse homem leal lamentaria essa
lealdade se causasse a morte de seu mestre.
Lawrence tinha que convencê-lo. Ele precisava.
No momento em que encontrou coragem para continuar, o
homem ergueu os olhos e fingiu cuspir. “Você se esqueceu, mercador.
Somos apenas ferramentas. Nós não pensamos. Braços e pernas não
têm cabeça própria. Você entende isso?”
A voz calma do homem ainda era áspera, o tom áspero de alguém
acostumado a ameaçar os outros das sombras.
Mas não foi isso que roubou o fôlego de Lawrence.
Foram as palavras do homem que detiveram Lawrence.
“Se você entende, então pegue esta carta. Tenho ordens do chefe.
E você também”, disse o homem, dando um tapa no ombro de
Lawrence, depois fugindo como se tentasse recuperar o tempo
perdido.
Nem uma única pessoa nas proximidades deu qualquer evidência
de ter notado sua discussão — a conversa parecia breve e sem
importância, e de fato não era importante.
Lawrence era a ferramenta de Kieman. Isso era certo e, como tal,
pensar sobre a situação ou chegar a conclusões não era seu dever.
Ele sabia disso, e sabia que tinha que tolerar isso até que chegasse
a chance certa. Mas como um mercador viajante solitário e
independente, ele tinha seu orgulho, então tal tolerância era terrível
de suportar.
Embora soubesse que era insignificante, não podia admitir para si
mesmo que era uma mera engrenagem.
CAPÍTULO VIII ⊰ 142 ⊱

Embora pequeno, ele tinha seu próprio nome, seus próprios


pensamentos e era um mercador que podia fazer suas próprias ações.
Quanto mais ele pensava sobre isso, mais agonizante se tornava negar
a si mesmo dessa maneira.
Ele sabia que era apenas uma pequena parte de uma máquina
complicada.
Mas a realidade disso parecia um golpe físico em sua cabeça. Mas
então, no momento que as chamas da raiva brotaram em seu peito e
ele se sentiu quase compelido a gritar, de repente entendeu — ele
entendeu a razão pela qual Eve insistia em agir tão infantilmente
egoísta, porque apesar da situação que se apresentava, para ela, ela
ainda queria ficar com todo o lucro.
Eve não estava tentando ganhar tempo, nem estava planejando
nada.
Lawrence tinha certeza disso.
Se isso fosse uma armadilha, ele poderia muito bem levantar a mão
e se render na hora.
Não havia lógica na convicção de Lawrence; era totalmente
emocional.
Quando chegou ao quarto de Eve novamente, por algum motivo
ele foi autorizado a entrar e se viu encarando-a bem no rosto.
Era possível conhecer os planos de uma pessoa pelas ações que
realizava e pelas expressões que usava.
Eve tinha um cotovelo em sua mesa e um sorriso agradável e
inocente em seu rosto.
“Você parece satisfeita”, disse Lawrence.
Mas os lobos que viviam ao longo do rio Roam não sorriam com
seus rostos.
Lawrence tirou a carta do bolso do paletó e falou. “Você
realmente está planejando ficar com todo o lucro do narval, não é?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 143 ⊱

O sorriso de Eve desapareceu, e os cantos de seus olhos se


estreitaram levemente. Parecia uma espécie de carranca.
Mas para um lobo que podia rir do mundo inteiro, era o sorriso
perfeito.
Sua família foi vendida por dinheiro, seu destino jogado ao vento,
e ela teve que usar tudo o que tinha apenas para nadar em um mar de
enxofre e ácido. E o tempo todo ela sem dúvida tinha sido usada de
outras maneiras também.
Quando foi reconhecida pelos outros, foi porque era a chefe da
família Bolan, ou simplesmente porque ela era uma mulher bonita?
Certamente não havia ninguém que diria o nome dela com qualquer
tipo de afeto ou familiaridade.
Talvez esse tenha sido o verdadeiro motivo pelo qual ela não usou
mais o nome “Fleur Bolan”. Se aqueles ao seu redor pudessem vê-la
apenas como uma ferramenta a ser usada, ela criaria uma máscara para
proteger seu verdadeiro eu.
Mesmo que fosse uma noção sentimental, Lawrence achou que
não estava longe da verdade.
Eve olhou para o papel que Lawrence deu a ela e lentamente
fechou os olhos. Ela então sorriu levemente e falou.
“Você realmente não foi feito para ser um comerciante.”
“E eu duvido que você seja feita para ser uma loba.”
A conversa abreviada parecia algo entre um padre e seu Deus.
Eve voltou seu olhar para a lareira e estreitou os olhos antes de
continuar. “Eu planejei sobreviver, não importa quem eu tivesse que
usar para isso, mas parece que não serei capaz de ignorar a realidade
por muito mais tempo.” Ela colocou o dedo no canto esquerdo da
boca, como se estivesse prestes a fazer uma piada. “Quando o
problema nesta cidade começou, as peles em que eu tinha colocado a
maior parte do meu valor foram confiscadas. Arold, que fugiu de
CAPÍTULO VIII ⊰ 144 ⊱

Lenos comigo, foi preso. Em circunstâncias como essas, não tenho


mais coragem de ser uma loba.”
Ficou claro que os nortistas estavam tendo uma negociação difícil.
Quando encurraladas, as pessoas tentariam transferir a ameaça para os
mais fracos do que elas. Parecia muito provável, Lawrence pensou
consigo mesmo.
Eve provavelmente tinha sido usada assim o tempo todo. Mas
desta vez eles estavam cometendo um erro, pois sua paciência estava
chegando ao limite.
“Meu nome sempre foi uma ferramenta conveniente. Apenas meu
avô e alguns excêntricos já me chamaram por ele. Deles,
provavelmente o único ainda vivo é Arold.”
Lawrence não conseguia nem começar a imaginar como seria
viver a vida inteira como uma ferramenta, valiosa apenas enquanto
fosse útil. Isso o fez sentir como se as pessoas fossem mais complicadas
do que ele imaginava, mas também mais simples.
Com apenas alguns sinais, uma pessoa que viveu uma vida que mal
podia imaginar seria capaz de saber exatamente a que colina ela havia
chegado.
Lawrence falou lentamente. “Então você está dizendo que deseja
ser chamado pelo seu nome?”
A colina era solitária e cercada de inimigos.
“… Quando você coloca isso tão diretamente, é embaraçoso.
Não, por favor, não fique com raiva. Eu estou feliz. Estou satisfeita por
sermos amigáveis o suficiente agora que não temos que lutar com facas
e machados. Estou surpresa comigo mesma, de verdade. Eu pensei que
não seria tão difícil manipulá-lo. Afinal, você é terrivelmente suave. E
mesmo assim…”
Havia muitos detalhes nas brincadeiras rápidas de Eve que
Lawrence não queria perdoar, mas para os mercadores a língua podia
trazer tanto riqueza quanto calamidade.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 145 ⊱

Se ela estava sendo tão casualmente insultante, tinha que significar


que ela não estava falando como uma mercadora.
“Mas eu não poderia suportar você continuar sem saber. Claro,
não me importo se não acreditar em mim.”
Lawrence não sabia como responder. Parecia que não importava
como respondesse, Eve acabaria sendo ferida.
“Quando tudo isso acabar, vou deixar este lugar podre. Então,
finalmente…,” ela disse, sorrindo um sorriso incrível.
Lawrence queria guardar para sempre a lembrança de quão bonito
ele achou o sorriso em seu coração.
“Finalmente, você vai garantir que eles digam seu nome. É isso?”
Os lábios de Eve se curvaram. Assim como os de um lobo. Suas
presas à mostra, ela sorriu um sorriso triste. “Isso mesmo. No final,
vou traí-los magnificamente e vou fazê-los chamar pelo meu nome.
Lawrence só pôde responder no tom suave de quem vê um
cavaleiro indo para um campo de batalha onde ele certamente
morreria. “Mesmo se eles gritarem ‘Eve Bolan’ de raiva?”
“Mesmo assim.” Naquele momento, o rosto de Eve voltou a ser o
da mulher que ele conhecia. “Agora, deixe-me perguntar isso a Kraft
Lawrence, que tão gentilmente me chama pelo nome.”
Os reis falam a apenas algumas pessoas escolhidas dentro de seus
palácios, mas não porque foram escolhidos por Deus para governar
nações com apenas algumas palavras. É porque eles também são meros
humanos e podem confiar apenas naqueles próximos a eles.
Quando ela conheceu Col, Eve lhe disse que era uma espécie de
destino ser apreciado pelos outros. E isso certamente era o que ela
queria dizer.
“Você vai traí-los comigo?”
Eve tinha uma contusão de aparência dolorosa no canto da boca,
e naquele momento seu rosto era digno de uma loba.
awrence esperou na taverna depois de passar a mensagem
de Eve para o mensageiro de Kieman. A resposta
demorou a chegar.
Havia menos mercadores na taverna e o lugar estava
muito menos animado do que antes. Examinando os que restaram,
Lawrence calculou que eram todos comerciantes que haviam recebido
deveres semelhantes aos dele, e quando por acaso os olhava nos olhos,
eles desviavam o olhar desconfortavelmente.
Era fim de tarde, com o pôr do sol não muito distante, mas pela
tagarelice dos mercadores já corados e bêbados, a conclusão da reunião
estava quase solidificada, as negociações do dia haviam chegado ao fim.
Evidentemente, o resultado foi o mais direto e chato possível —
os proprietários do norte desistiriam de recapturar o narval e os sulistas
os compensariam com uma quantia apropriada de dinheiro.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 147 ⊱

Dado que os sulistas poderiam usar sua imensa riqueza para


comprar os pescadores do norte, ganhando assim a posse do narval, os
nortistas não teriam escolha a não ser fazer concessões.
Se eles quisessem recuperá-lo, suas únicas opções eram tomá-lo à
força das armas ou comprá-lo — o que seria extremamente caro.
Se a cidade estivesse mergulhada na guerra, não seria
simplesmente uma questão de negócios; os únicos que podiam ganhar
alguma coisa eram as pessoas de outras cidades. Todo o povo de
Kerube perderia. E eles simplesmente não tinham dinheiro para
comprar o narval imediatamente.
Era fácil sentir simpatia pelos nortistas, que estariam desarmados
se o irracional acontecesse e a luta realmente começasse. Mas situações
irracionais eram como seixos espalhados pela estrada. Se você
tropeçasse e caísse em um, dificilmente alguém o ajudaria a se levantar.
“Desculpe por deixá-lo esperando.”
O mensageiro finalmente chegou com a resposta quando os
odores pungentes de vinho e carne começaram a se infiltrar no corpo
de Lawrence. Lawrence não tinha visto a última mensagem de Eve para
Kieman, mas ele podia dizer que essa demora era significativa.
A resposta que ele acabara de receber estava lacrada com cera
vermelha.
“Esta é a última, mas você deve trazer a resposta dela.”
Teria sido fácil supor que o mensageiro de pequeno porte tinha o
coração fraco, mas na verdade ele era o tipo de homem que poderia
estar carregando uma adaga envenenada no bolso do peito.
Lawrence estava bem ciente de que o “deve” não era apenas para
enfatizar.
O selo era para assegurar que Eva não precisasse duvidar de seu
conteúdo. Fosse o que fosse, continha a conclusão final de Kieman.
“Entendido. Estou indo.”
CAPÍTULO IX ⊰ 148 ⊱

Uma ferramenta era uma ferramenta. Não havia necessidade de


pensar.
O homem assentiu satisfeito com a resposta. Lawrence começou
a andar, e o homem o observou partir. Com esta reunião concluída,
seu trabalho também deve ter sido concluído.
Ou talvez, Lawrence pensou consigo mesmo enquanto se dirigia
novamente para as ruas sempre lotadas, olhando para o céu, a única
coisa clara que podia ver.
Talvez eles duvidassem dele.
Por alguma razão, a ideia fez Lawrence sorrir.
“Amanhã cedo, vamos fazer um show para transportar
formalmente o narval. No rio trocaremos o narval e o navio em que
está pela escritura de terra. Depois disso, desapareça. Assinado, Lud
Kieman.”
Lawrence tinha certeza de que a última frase era uma piada. Assim
que Eve terminou de ler a carta em voz alta, ela não hesitou em
entregá-la. Mostrava exatamente o que ela havia lido, com a assinatura
de Kieman na parte inferior.
Se Eve levasse isso para uma casa comercial, a posição de Kieman
rapidamente se tornaria ruim. O fato de ele ter achado adequado dar-
lhe tal documento significava que havia decidido que era seguro fazê-
lo.
Não havia como dizer o que isso significava.
Ele não poderia ter decidido confiar incondicionalmente em Eve,
então tinha que ter algum tipo de contingência pronta se ela decidisse
expô-lo publicamente.
“É uma troca simples e ingênua. O que você acha?”
“Se as coisas correrem mal, sempre podemos afundar o barco para
ocultar a verdade, então não parece uma ideia tão ruim.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 149 ⊱

O plano não diferia muito do que Holo havia proposto para


Lawrence, e Eve ergueu uma sobrancelha. “Entendo,” ela murmurou,
divertida. “Então talvez eu deva escrever algo assim, hein?”
Enquanto falava, ela brincava escrevendo com a caneta em uma
folha de pergaminho. Dificilmente era o tipo de papel que um mero
comerciante rabiscaria por diversão. Era mais adequado ter a sabedoria
de Deus gravada nela por um monge de rosto sombrio em um mosteiro
de pedra em algum lugar, mas a caligrafia de Eva era tão bonita quanto
a de qualquer monge.
“Entendido. Eu, Eve Bolan, irei no barco para realizar a troca. A
bordo de seu barco estará a criatura lendária, assim como...”
Ela olhou para Lawrence.
“— Kraft Lawrence.”
Lawrence não reagiu a isso, mas Eve não pareceu se importar.
Ela suavemente assinou a carta e casualmente a jogou para o velho
que ainda estava mexendo a cera. Uma vez selado e amarrado com um
fio de crina, estava pronto.
E agora Lawrence teria que estar no barco para a troca.
“Eu não lhe dei minha resposta.”
Atrás dele, do outro lado da porta, Lawrence ouviu o som fraco
dos dois guardas rindo.
Ele tinha ouvido que eles tinham sido poupados de suas sentenças
de morte por pouco. Surpreendentemente, ela ganhou a confiança
deles contando-lhes seus planos e convencendo-os a cooperar. Tudo
para que Lawrence chegasse aqui.
Por mais rudes que fossem, não eram tolos.
“Resposta? Você diz as coisas mais estranhas às vezes. De que valor
têm as palavras para mercadores mentirosos como nós?” disse Eve,
divertida.
CAPÍTULO IX ⊰ 150 ⊱

Lawrence não conseguiu esconder seu sorriso irônico. É claro que


as expressões faciais não tinham grande significado para os
comerciantes. Ele segurou o sorriso, sem fazer nenhum outro
movimento.
“O comércio é um negócio perigoso. Somente Deus pode ver a
mente do outro, mas Deus não tem desejos. Apenas humanos
manchados por sua ganância, comércio, e nada é mais perigoso do que
confiar nos gananciosos. Eu escrevi minha resposta para Kieman, e
você vai levar para ele. Quanto ao resultado, podemos orar ou
ameaçar, mas tudo o que faremos é esperar. Joguei todas as minhas
cartas. Então, tudo o que posso fazer é lhe entregar esta aqui.”
Pegando a carta do velho, ela imediatamente a empurrou para
Lawrence. Com que facilidade ela a entregou — não era exagero dizer
que a carta decidiria seu próprio destino. Parecia menos por coragem
do que por pura falta de valor para sua própria vida.
Se as coisas corressem mal, seu valor desapareceria, e qualquer
coisa tão sem valor também era inútil.
Lawrence pegou a carta e lembrou-se das palavras de um herói
famoso e imprudente.
“Kieman fará como esta carta instrui. Se ele desafiasse e colocasse
mais uma pessoa no barco, teríamos que adicionar outra pessoa ao
nosso, e com cada lado desconfiando do outro, não há como dizer até
onde iria a corrida armamentista. Então —”
Ela fez uma pausa, colocou a mão com a qual havia dado a carta a
Lawrence em sua mesa, olhou para baixo e respirou fundo. Ela tinha
que estar nervosa.
Ela continuou, enfatizando suas palavras.
“Então, quando nos encontrarmos, será naquele rio solitário em
meio às brumas da manhã.”
Como a loba do Rio Roam, Eve de fato compartilhava algumas
qualidades com Holo.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 151 ⊱

Lawrence observou a mão dela sobre a mesa. Era como se ela


quisesse ser abraçada, mas não pudesse deixar isso transparecer —
como se ela quisesse confiar nos outros, mas não conseguisse.
“Posso perguntar uma coisa?” Lawrence perguntou, o que fez a
mão de Eve se contorcer levemente.
“O que?”
“Eu tenho meus companheiros.”
Se Lawrence traísse sua guilda durante a troca no rio, então ele e
Eve teriam que mover o narval para outro barco e de lá seguir para o
mar aberto. Mas isso deixaria Holo e Col em terra, o que complicava
as coisas.
Essa deve ser uma das razões pelas quais Kieman escolheu esse
plano simples. Holo e Col funcionaram como reféns.
Sua expressão imutável, Eve removeu sua mão da mesa. “Sim, e
eu tenho Arold.”
O nome perfurou o coração de Lawrence.
“Já dei minha resposta. Vá,” Eve terminou, parecendo irritada e
acenando para Lawrence com desdém.
Lawrence teve a sensação de que se ele a contradissesse, ela
começaria a gritar.
E eu tenho Arold.
As palavras de Eve estavam carregadas de implicação. Se eles
pudessem ser confiáveis, Arold era uma das poucas coisas que ela
considerava mais do que o dinheiro.
Claro, Lawrence estava ciente do poder da verdadeira forma de
Holo, então não havia nada a temer. Ela certamente poderia mantê-los
seguros e salvar Arold também.
O problema era a prontidão de Eve em convidar ao perigo. Ela
não sabia nada do poder de Holo.
CAPÍTULO IX ⊰ 152 ⊱

Ela confiou em Arold o suficiente para trazê-lo junto com a pele


de Lenos e até pagar suas despesas de viagem, mas agora ela estava
preparada para deixá-lo para trás.
Lawrence queria imaginar que isso era porque ela agora confiava
nele ainda mais do que em Arold, mas ele sabia o quão tola era essa
ideia.
Fazia muito mais sentido supor que Eve estava simplesmente
disposta a abandonar tudo para seu próprio benefício, como se tivesse
jurado transformar em ouro tudo o que tocava.
Infelizmente, como na velha lenda, o tolo que queria transformar
tudo em ouro não conseguia comer e, assim, morria de fome.
Foi isso que Lawrence achou tão chocante nas palavras dela.
Ele se perguntou se poderia descartá-la tão facilmente se ela
escolhesse um caminho do qual ele não pudesse ver salvação.
Se ela pudesse descartar Arold, então ela poderia facilmente matar
Lawrence no barco ou traí-lo novamente mais tarde.
E se ele pudesse imaginar que ela se divertiria com isso, seria uma
coisa. Mas ele não achava que ela o faria.
Eu sinto simpatia por ela? Lawrence perguntou a si mesmo e não
soube responder.
Isso era apenas especulação vazia? A probabilidade era muito alta.
Mas havia pouca coisa no mundo que não fosse especulação.
Houve até quem duvidasse da existência de Deus.
Então o que ele deveria fazer?
Como ele poderia segurar seu próprio lucro com uma mão
enquanto segurava a mão de Eve com a outra? Lawrence agonizou com
a pergunta enquanto entregava a carta ao mensageiro na taverna.
“…Obrigado por todo o seu trabalho duro. O chefe vai contar o
resto quando você voltar para a pousada”, disse o mensageiro, dando
um tapinha no ombro de Lawrence antes de sair. Não houve nem
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 153 ⊱

tempo para imaginar que tipo de mal-entendido poderia ter


acontecido.
A reunião parecia ter terminado sem muita evidência de
problemas, e quando Lawrence perambulou pela fonte de ouro, ele
viu muitos grupos de pessoas conversando animadamente. Uma
fogueira havia sido acesa em antecipação ao anoitecer, e soldados
estavam orgulhosos ao redor da mesa de reunião, tentando parecer que
estavam guardando um trono sagrado.
Basta dizer que era uma festa de dinheiro, poder e honra.
E, no entanto, os participantes eram um grupo mesquinho e
miserável.
Talvez houvesse uma razão pela qual se dizia que Deus não se
importava com os mercadores.
O céu estava começando a avermelhar, e os contornos de corvos
- ou possivelmente gaivotas — podiam ser vistos à distância.
Lawrence pensara que negociar e ganhar dinheiro era uma
atividade mais elegante e nobre.
Ele observou as luzes da cidade acenderem-se uma a uma
enquanto ele balançava na balsa do delta para o lado sul do rio.
Eve certamente não recuaria agora, nem Kieman teria proposto
um plano descuidado. O que seu lado mais temia seria perder o narval
em troca de uma ação falsa. Isso seria um resultado ainda mais
desastroso do que seu plano sendo revelado.
E se Lawrence desistisse, a situação não melhoraria. O plano era
como pão amassado que cresceu e foi colocado no forno. Tudo o que
podiam fazer era esperar que assassem.
As opções de Lawrence eram orar ou correr. Não havia mais nada.
Se persuadir Eve ou Kieman fosse impossível, então o que ele poderia
fazer para garantir um bom resultado?
CAPÍTULO IX ⊰ 154 ⊱

A balsa chegou ao cais, e Lawrence se misturou à multidão e


desembarcou. A maioria das pessoas eram comerciantes que assistiam
à reunião no delta e conversavam livre e alegremente.
Lawrence achou intensamente irritante, mas sabia que a multidão
não era o verdadeiro problema.
E, no entanto, ele sentiu um desejo nauseante de gritar e insultar,
como se estivesse perseguindo uma nuvem que não poderia agarrar.
Um comerciante bêbado tropeçou nele. Lawrence cerrou os
punhos e estava prestes a voar na direção do homem quando algo mais
chamou sua atenção.
“Ei... não vá esbarrar em mim...”, balbuciou o bêbado com olhos
desconfiados, mas ele estava literalmente fora da vista de Lawrence.
Porque além dele —
Em meio à multidão de pessoas que desembarcavam do fluxo
constante de barcos que chegavam ao cais estava uma figura que ele
conhecia bem. Ela o encarou, e por baixo do lenço que estava enrolado
em sua cabeça, ela olhou para ele com olhos que nunca tinha visto
antes.
“Ei, você está ouvindo—”
“Com licença.” Seu olhar fixado na silhueta, Lawrence colocou
uma moeda de prata manchada na mão do bêbado e começou a andar.
O que ele não entendia era por que ela estaria aqui no lado sul da
cidade agora que a reunião havia terminado.
E algo sobre o jeito que ela estava ali de pé a fez parecer
encurralada.
O que tinha acontecido? Lawrence nem sabia se deveria
perguntar, mas ela resolveu a questão para ele.
“As coisas ficaram ruins.” Por baixo do lenço, sua voz era
francamente rouca. “É tarde demais para mim... mas eu queria pelo
menos...”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 155 ⊱

“—”
Eve cambaleou como se sua última força tivesse se esgotado.
Lawrence a segurou, mas logo a puxou de volta. Isso não era
brincadeira.
Ela estava estranhamente leve, e seu corpo estava quente.
Sob o cachecol, sua respiração era superficial e um suor oleoso
brotou em sua testa. Em sua mão direita ela segurou firme em um
único pedaço de pergaminho.
“O que aconteceu?”
Eve era apoiada principalmente por Lawrence agora, e ela mordeu
o lábio e olhou para ele desesperadamente.
O que quer que tenha acontecido, não foi bom.
Ele olhou para a mão direita dela e para o pergaminho segurava.
Tinha que ser algo importante.
“A gente se destaca muito aqui. Devemos encontrar um beco em
algum lugar —” Lawrence disse para Eve e começou a puxá-la.
Nesse momento, o sino da igreja tocou alto, as pessoas que iam e
vinham ao redor do cais pararam, e cada uma delas olhou para a torre
do sino da igreja, antes de juntar as mãos e oferecer orações.
Ding-dong. O sino continuou a soar enquanto Lawrence ajudava
Eve através da multidão. Deve ter sido a vontade de Deus.
Saindo da multidão, não demorou muito para eles encontrarem
um beco. No momento exato em que pararam, o toque do sino
terminou, com nada além de seus ecos persistentes — como se a
proteção de Deus sobre eles terminasse naquele momento.
“Onde vocês estão indo?”
Não era impossível. Este era um porto lotado.
A reunião tinha acabado e as pessoas estavam deixando o delta.
CAPÍTULO IX ⊰ 156 ⊱

Mas não poderia ser uma coincidência, já que bem ao lado de


Kieman estava aquele pequeno mensageiro. Se ele tivesse olhos afiados
o suficiente para transmitir as mensagens de seu mestre, não importa
o quão selvagem fosse a multidão, ele certamente poderia localizar
Eve.
Antes que a mente de Lawrence pudesse começar a fraquejar, sua
visão escureceu.
Não seria possível escapar com Eve.
“Dado o estado em que minha amiga se encontra, eu a estava
levando para a pousada.”
“É isso mesmo?” Kieman sorriu, como se eles realmente
estivessem apenas batendo papo. Mas o mensageiro — junto com
outro homem que parecia ser um subordinado — deu um passo
tranquilo à frente.
“Que sorte a nossa encontrar você aqui.”
Lawrence moveu-se para proteger Eve, e os dois homens se
aproximaram.
Ser atacado por bandidos não era incomum. E tanto humanos
quanto bestas mudariam suas posições pouco antes de atacar.
Então, o que eu deveria fazer? Lawrence perguntou a si mesmo.
Não era do seu interesse deixar Kieman saber que ele se aliou a
Eve e, de qualquer forma, Kieman pode não ter percebido isso ainda.
Nesse caso, ele poderia apostar nessa chance e entregá-la.
Isso era certamente possível, mas ele poderia realmente fazer isso?
Agora que ela estava suando e fraca e parecia desesperada para lhe dizer
alguma coisa? Ele poderia abandoná-la, mesmo quando ela se encolheu
com as palavras de Kieman?
“Não, eu—”
“…Você realmente parece estar carregando uma carta. Posso
presumir que o remetente é Ted Reynolds?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 157 ⊱

Eve balançou a cabeça fracamente.


O tom de Kieman mudou de um comerciante para algo como um
nobre tímido. Mas a mente de Lawrence estava em outros assuntos.
Uma carta de Reynolds?
“Bem, vamos ouvir tudo sobre isso. Embora não tenhamos muito
tempo.” Enquanto falava, Kieman deu um leve aceno de mão, e os dois
homens afastaram Eve de Lawrence com facilidade.
Lawrence estendeu a mão para ela sem pensar, quase por reflexo,
mas congelou quando o pequeno mensageiro apontou uma adaga ao
seu lado.
“A loba tentou armar para cima de nós. Audaciosamente, devo
acrescentar.”
Às vezes, um sorriso revelava raiva. Quando um mercador de
longa carreira como Kieman sorria assim, qual seria o destino daqueles
que eram levados por seus capangas?
Kieman olhou para Eve enquanto ela era levada e falou como se
estivesse se dirigindo a um adversário digno. “A possibilidade me
ocorreu, é claro, mas o método — meu Deus.”
“Você está errado... eu não tinha intenção de vender o narval para
Reynolds —”
Os sequestradores tinham maneiras estranhas de conter as
pessoas. Eve estava claramente tentando se libertar de suas garras, mas
um transeunte veria apenas um bêbado que precisasse de ajuda para
ficar de pé. Sua boca estava coberta, mas seus olhos se moviam de um
lado para outro descontroladamente.
Eve foi arrastada pelos dois homens e, pouco antes de
desaparecerem na multidão, Kieman falou com Lawrence. “Senhor
Lawrence, se você falar disso com mais alguém, vai se arrepender.”
Era uma piada da parte de Kieman, mas suas próximas palavras
foram terrivelmente frias.
CAPÍTULO IX ⊰ 158 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 159 ⊱

“Eu também estou bastante desesperado, entenda.”


Então, como se estivesse seguindo Eve, que havia se fundido na
multidão e sido arrastada, Kieman desapareceu.
Lawrence percebeu que o mensageiro não estava mais segurando
uma faca nas costelas. Ele tinha sido deixado sozinho.
Por um tempo ele foi incapaz de se mover, a pós-imagem do que
ele tinha acabado de testemunhar queimava em sua mente.
De dentro do horrível organismo contorcido que era a multidão,
uma mão se estendeu, compelida por uma única esperança
desesperada.
E Lawrence não conseguira alcançá-la.
Cem moedas podem afundar sob as ondas em um único momento.
Então, nesse turbilhão de mercadorias como o narval, cujo valor
realmente desafiava a imaginação, onde um passo em falso o levaria?
Certamente um padre ficaria pálido ao pensar sobre isso.
E Eve já tinha dado um passo em falso.
Depois de atravessar tantas pontes perigosas, ela finalmente
perdeu o equilíbrio.
As palavras de Kieman ecoaram em seus ouvidos. “… Se você falar
disso com mais alguém, você vai se arrepender. Eu mesmo estou bastante
desesperado, entenda.”
O plano deles falhou completamente em algum lugar. O nome de
Ted Reynolds surgiu, e Eve disse que não tinha intenção de vender o
narval para ele.
E então havia Lawrence, deixado para trás intocado. Seria porque
Kieman havia determinado que não tinha nenhuma informação de
valor? Ou porque ele decidiu que Lawrence estava simplesmente
sendo usado por Eve? De qualquer forma, parecia que Kieman e o
resto realmente consideravam Lawrence nada mais que um
mensageiro.
CAPÍTULO IX ⊰ 160 ⊱

Lawrence suspirou, depois sentiu-se subitamente nauseado. Ele se


agachou apressadamente no beco esvaziar o conteúdo de seu
estômago.
Não era a sensação de impotência que ele não suportava — era
essa inacreditável sensação de aversão para congo mesmo.
Lawrence ficou aliviado.
Ele ficou tão aliviado que Kieman não o levou embora.
Ele tinha tanta certeza de que poderia provar sua força para Holo
e derrotar Kieman, e depois de suas conversas com Eve, ele acreditou
que ainda havia uma chance de recuperar a situação de alguma forma.
E agora isso.
Se ele se sentisse impotente, pelo menos haveria alguma chance
de se recuperar. Afinal, os comerciantes estavam sempre perseguindo
o que não tinham.
Lawrence continuou a vomitar muito, mesmo depois de não haver
mais nada para sair. Finalmente ele cuspiu.
Ele conseguiu salvar Holo e escapar de muitas situações perigosas.
Se isso tivesse apenas lhe dado uma falsa sensação de superioridade,
isso seria uma coisa, mas agora que sua pele fina foi arrancada,
revelando que suas entranhas estavam ainda mais podres do que antes.
Sua visão estava embaçada, e não era apenas por causa do vômito.
As ações de Eve não faziam sentido.
A carta de Reynolds levou ao fracasso de seu plano, mas ela veio
ao lado sul para avisá-lo, independentemente do perigo que
representava para ela.
O que significava que Eve não estava pensando nele como um
mero peão.
Talvez quando ela pediu para se juntar em sua traição, ela estava
tentando ganhar algo mais, algo além do narval.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 161 ⊱

E apesar de tudo isso, ele ficou aliviado que Eve foi a única a ser
levada.
Ele não era um protagonista corajoso. Que melhor prova disso
poderia haver?
“Merda!” Lawrence praguejou e deu um soco na parede.
Se isso fosse apenas uma questão de lucro, ele poderia ter aceitado
ou desistido. Mas isso não era verdade quando a vida de uma pessoa
estava envolvida. Era verdade que a vida de um mercador viajante era
muito solitária, mas ter que se preocupar apenas consigo mesmo tinha
suas vantagens, ele entendia.
A verdade era que até os mercadores viajantes podiam se
estabelecer em uma cidade que visitassem, se realmente quisessem. A
razão pela qual ele não o fez — a razão pela qual ele não podia fazer —
era porque ele sabia que era um covarde e gentil demais para seu
próprio bem.
A vida de um mercador viajante era de constantes encontros e
despedidas. Como eles poderiam ficar satisfeitos com as mercadorias à
sua frente quando a próxima cidade poderia ter mercadorias melhores?
Era verdade que ele pensava nessas coisas, mas também era
verdade que havia investido uma quantia considerável de dinheiro no
item de luxo conhecido como Holo.
Mas isso não significava que ele não se importava com nada, desde
que Holo estivesse segura.
A maldição do mercador viajante era uma espécie de desculpa.
Não se pode medir o valor das relações humanas com o dinheiro. Se
tudo pudesse ser decidido dessa forma, então ele não estaria tão
dividido entre Eve e Kieman, porque a quantidade de dinheiro
envolvida com o narval fazia com que seus ganhos ao longo da vida
parecessem insignificantes em comparação.
Assim, ao pensar em seus relacionamentos com os outros como
sendo mais valiosos do que dinheiro, ele poderia mantê-los à distância,
como uma flor preciosa de grande valor.
CAPÍTULO IX ⊰ 162 ⊱

Mas assim como sua carroça não podia carregar mercadorias


demais, o mesmo acontecia com seu coração. E ele sabia disso.
Lawrence se endireitou, o punho ainda contra a parede de pedra,
e olhou para o céu roxo, enxugando as lágrimas.
As coisas eram muito mais simples quando Holo estava com ele.
Coisas novas estavam sempre entrando no carrinho, deixando de
lado até mesmo coisas preciosas. Esse era um estado perfeitamente
saudável para aquelas figuras curiosas chamadas mercadores, mas sem
a vontade férrea de um monge, as pessoas normais dificilmente
poderiam lidar com isso.
E, no entanto, agora que seu carrinho estava tão cheio que ele
constantemente tinha que tomar cuidado para não deixar nada
importante para trás, suas viagens eram muito mais agradáveis do que
quando ele era um comerciante solitário. Ele já não percorria as
estradas sozinho, com apenas a traseira de seu cavalo para observar.
Lawrence cuspiu os últimos resquícios azedos de bile, depois
enxugou os cantos da boca.
Um mercador viajante sempre levava sua carga para a próxima
cidade, embora pudesse ter que rastejar na lama para isso.
Ele não deixaria nenhuma carga para trás.
“Então,” Lawrence murmurou, forçando sua mente congelada a
se mover.
Ele tinha que admitir que teve a sorte de ver Eve sendo levada
diante de seus olhos. Se eles estavam recorrendo a tal violência, então
tinham que estar genuinamente encurralados e não conseguiram criar
um enredo mais sutil e complicado.
Mesmo não acostumado a fazer planos de longo prazo, manipular
as pessoas nos bastidores e evitar os perigos que pudesse prever,
Lawrence era muito bom em comprar e vender mercadorias bem na
frente dele.
Havia uma chance de ganhar.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 163 ⊱

“Tem que haver,” Lawrence murmurou para si mesmo.


Algo que ele podia ver, algo visível apenas para ele como um
observador externo vendo o fluxo de mercadorias no mercado.
E ele não estava sozinho.
Lawrence não se incomodou em se perguntar quando ela havia
chegado ou por que estava ali. Ele sabia muito bem que ela não poderia
ficar sentada na estalagem, e quando não se sabia o que estava
acontecendo, a abordagem mais básica era ir a algum lugar com muitas
pessoas e ouvir com atenção — e por isso, o porto era o melhor lugar.
E sua companheira de viagem tinha ouvidos de sensibilidade
inigualável.
Com suas orelhas de lobo capazes de ouvir um alfinete cair a meio
mundo de distância, ela ficou a uma curta distância dele, encostada na
parede, os braços cruzados em desagrado.
Ela provavelmente tinha visto tudo. E mesmo que não tivesse,
seria fácil para ela adivinhar o que havia acontecido.
Lawrence deu um sorriso de dor e deu de ombros, como se agir
como de costume fosse algum tipo de charme.
“Se você precisar de sabedoria, eu empresto”, disse Holo, seu
queixo pequeno era a única coisa visível sob o capuz.
“Isso seria bom.”
“No entanto, eu me pergunto quantas vezes você vai usar minha
sabedoria para salvar outra mulher.”
Lawrence se perguntou se ela estava sendo tão direta porque não
havia tempo para suas brincadeiras indiretas normais. Ou talvez sua
paciência simplesmente se esgotou.
Ele sorriu naturalmente e respondeu: “No entanto, você é a única
com quem viajo”.
Holo não respondeu, mas com um pequeno pulo se afastou da
parede, estalando o pescoço audivelmente. Estava claro que ela
CAPÍTULO IX ⊰ 164 ⊱

também estava cansada dessas conversas delicadas, mas se ele falasse


isso, ela provavelmente arrancaria sua cabeça com uma mordida.
“Enviei Col para segui-los.”
“O que você descobriu no porto?”
“Eu não sei. Mas antes de você desembarcar, eu vi um grupo de
pessoas ficando com raiva. Eu me instalei no terceiro andar da padaria
ali. Era tão fácil de ver, era ridículo.”
O que significava que Kieman e Eve não eram o único grupo que
se sentia pressionado a agir abertamente. Em uma corrente tão forte,
o navio de contrabando de Kieman também poderia ser afetado.
Antes de ser levada, Eve havia dito que não tinha intenção de
vender o narval para Reynolds. Isso sugeria que a carta que ela segurava
tinha sido uma proposta dele. Se houvesse mais do que um acordo
secreto entre Eve e Kieman, o que aconteceria se uma perspectiva mais
ampla fosse adotada?
Reynolds estava do lado dos proprietários do norte, o que
significava que havia um número limitado de possibilidades.
Reynolds estava tentando aberta e secretamente comprar o
narval?
“Imagino que seja provavelmente porque os nortistas estão
tentando encontrar uma maneira de comprar o narval.”
“Hum…”
“Mas se isso fosse tudo, Kieman teria entrado em pânico e Eve não
teria corrido o risco de vir me ver. Algo totalmente fora de suas
expectativas deve ter acontecido para causar isso.”
Holo pegou a mão de Lawrence e começou a andar. “É uma cidade
pobre, não se pode negar. Não parece ter muito dinheiro.”
“Isso mesmo. E Reynolds deveria estar no centro disso.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 165 ⊱

Reynolds poderia usar truques de empacotar caixas para ganhar


um pouco de dinheiro, mas isso não lhe renderia nenhuma grande
riqueza.
“Se ele não tem, teria que pedir emprestado.”
“Exatamente. Se Reynolds realmente pretende comprar o narval,
isso significa que ele terá que coletar o capital para fazê-lo em algum
lugar. Ah, então é por isso que Kieman e Eve ficaram tão chateados.”
Debaixo do capuz, Holo finalmente mostrou seus olhos.
Lawrence podia ver os tênues resquícios de sua testa anteriormente
franzida. Se ela tivesse visto toda a sequência de eventos, desde quando
ele chegou em terra até seu encontro com Eve, até seu encontro com
Kieman e o que aconteceu depois, ela provavelmente estava franzindo
a testa o tempo todo.
Assim como Holo fez por Col, Lawrence sabia que, uma vez que
tudo acabasse, ele teria que fazer algo para apagar esses vincos.
“Dinheiro e poder são parceiros próximos. Se o comércio de
narvais estiver ligado a alguém rico e poderoso, a questão fica muito
mais complicada. Entende?”
Essas coisas sempre foram assim.
Holo zombou, como se estivesse avisando Lawrence para não
testá-la. “… Se a comida que você pediu nunca chegar, só precisa
exigir que seu dinheiro seja devolvido.”
A mente dela estava mais rápida do que nunca.
Lawrence recordou a visão de Eve sendo arrastada à força. Isso
aconteceu porque as coisas não podiam mais ser resolvidas pelo
registro de lucros e perdas em um livro.
“Se a refeição não chega, é prática deles exigir uma compensação
em dinheiro ou sangue. O que significa... se essa especulação estiver
correta, há apenas um lugar para onde Kieman levaria Eve.”
Ele lutaria contra o poder com poder.
CAPÍTULO IX ⊰ 166 ⊱

Reynolds procurou Eve pedindo para comprar o narval porque


suspeitava do acordo secreto que ela tinha com Kieman. O que
significava que não havia como saber a força que estava pronta para
atacar Kieman.
Quando chegasse a hora, ter um ou dois bandidos ao redor de
Kieman não o ajudaria.
Lawrence puxou a mão de Holo e começou a andar na direção
oposta. Holo provavelmente tinha combinado de se encontrar com
Col em algum lugar, mas se Lawrence estivesse certo, sabia
exatamente onde era.
Eles foram, através da multidão, e em pouco tempo chegaram lá.
O número de guardas aumentou desde que estiveram lá no dia
anterior.
“A Igreja?” Holo murmurou, mas então seus olhos foram
imediatamente atraídos para algo, e lá no canto da visão estava o rosto
surpreso de Col.
“Uh, er, por que você está aqui?” — perguntou Col, cobrindo-se
com um casaco surrado para posar de mendigo.
Lawrence agora tinha certeza de que seu palpite estava certo.
“Kieman está lá, hein? Bem, se eu vou salvá-la, vou ter que entrar
e falar com ele cara a cara. Então, como você acha que devemos
atacar?” disse Lawrence.
Holo mostrou suas presas e sorriu.
“Qual é a sua ideia?”
Ao subirem os degraus de pedra e chegarem à entrada da igreja,
dois guardas cruzaram as lanças para barrar o caminho.
Lawrence trouxe Holo e Col (que havia trocado de roupa) junto
com ele e sorriu. “Temos negócios com Lud Kieman da Guilda
Comercial Rowen.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 167 ⊱

Aquelas eram dádivas de Deus, as palavras mágicas, mas não havia


garantia de que o mesmo Deus ainda estava sentado no trono. Ao
contrário do dia anterior, um dos soldados carrancudos abriu a porta
e entrou, enquanto o outro ficou para trás, sua lança apontada sem
hesitação para Lawrence.
O plano que Holo havia proposto era a própria simplicidade, e a
única coisa incomum nele era que Col, não Holo, estaria ao lado de
Lawrence.
“… Para dentro”, disse o soldado, que havia entrado na igreja,
assim que ressurgiu.
Lawrence sorriu para os soldados quando eles rapidamente
puxaram suas lanças para o lado e deslizaram pela porta apenas
ligeiramente aberta.
Uma vez que Col o seguiu, a porta foi fechada, e eles foram
novamente recebidos com lanças.
“…”
Para a frente, eles queriam dizer.
Lawrence começou a andar e, motivados pela ponta de lança,
continuaram pelo corredor que circundava o santuário.
O interior da igreja era tão silencioso que era assustador, e ele
sentiu como se pudesse ouvir até as chamas das velas. O teto era alto
e os entalhes na parede eram intrincados, todos lindos. Mas cada um
deles era um demônio de outro mundo projetado para transmitir o
medo e o terror, o que parecia uma espécie de presságio.
No meio do corredor, os soldados ordenaram que parassem em
frente a uma porta.
Parecia ser algum tipo de depósito, e um dos soldados bateu na
porta simples de madeira, que foi então aberta silenciosamente.
Apareceu o rosto do mensageiro de Kieman. Procurando
Lawrence, ele claramente não estava satisfeito.
CAPÍTULO IX ⊰ 168 ⊱

“Eu gostaria de falar com o Sr. Kieman.” Lawrence abriu seu


melhor sorriso.
Ele estava bem ciente de que isso seria descartado como charme
de mercadores vazios, então seu objetivo era irritar o homem. Para o
plano simples de Holo, essa era a abordagem mais eficaz.
“Você não entende que você foi deliberadamente poupado?”
Ameaças eram melhor empregadas de repente, como uma cobra
saindo do mato. Lawrence estava preparado, seu contra-ataque
pronto.
“Nós, comerciantes, adoramos arrancar castanhas do fogo.”
No instante em que Lawrence respondeu, o homem ficou
vermelho e pegou o colarinho de Lawrence. Mas Lawrence sabia que
ele viria e, portanto, não se surpreendeu.
Quando o homem veio até ele, Lawrence deu um passo para trás
e aproveitou a oportunidade para agarrar seu oponente pelo colarinho,
puxando-o de volta para fora da sala. “E você não entende que estou
aqui deliberadamente para negociar?”
O sorriso de Lawrence era impassível. O soldado apressadamente
tentou separá-los, mas então outra voz ecoou.
“Há algum problema?”
Com isso Lawrence imediatamente soltou o colar do homem, e o
outro fez o mesmo.
A voz calma e elegante de Kieman era irritantemente adequada à
atmosfera majestosa da igreja. E ainda assim seu cabelo estava um
pouco despenteado enquanto ele estava na entrada da sala.
“Gostaria de falar com meu conhecido.”
“Isso é muito direto de sua parte. Acha que eu vou permitir isso?”
O mensageiro de Kieman estava ao lado dele, seus olhos escuros
observando Lawrence.
Ao lado de Lawrence, Col se endireitou e ficou ereto.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 169 ⊱

Lawrence não sabia se isso era uma resposta à postura do


mensageiro ou não, mas mesmo assim deu-lhe um pouco de coragem.
“Não espero que seja fácil.”
“Que tal agora? Não tenho o luxo de perder tempo com você.
Felizmente, esta igreja tem muitas outras salas.” Ele olhou para
Lawrence com olhos frios. Ele tinha a vantagem dos números.
Mas o fato de estar recorrendo a ameaças provava que não tinha
margem de manobra.
“Claro que você tem. Mas estou surpreso que você suponha que
eu vim aqui despreparado.”
“Oh?”
“Não, talvez eu devesse colocar desta forma — eu realmente
pensei que você me poupou porque seria muito trabalho me arrastar
até aqui.”
O rosto bonito de Kieman se transformou em uma carranca.
Lawrence continuou rapidamente. “Senhorita Eve tentou todos os
tipos de artimanhas para me trazer para o lado dela. Ela até me ajudou
a garantir minha própria segurança. Por exemplo...” Ele tossiu
deliberadamente. “Ela me vendeu vários pergaminhos com sua
assinatura neles.”
O mensageiro de Kieman começou a se mover, mas Kieman o
deteve. Seus lábios se curvaram em um meio sorriso desagradável.
“Percebi que sua companheira não é aquela garota.”
“Ela é a mais rápida, afinal. E até uma garota pode carregar alguns
papéis no bolso do peito.”
“…”
Se suas relações com Eve fossem expostas, Kieman sofreria.
Independentemente de quais ações ele tomasse, dada a
volatilidade da situação, não havia como dizer se seriam eficazes ou
não.
CAPÍTULO IX ⊰ 170 ⊱

Ele certamente não queria arriscar mais. E que mal poderia haver
em deixar Lawrence se encontrar com Eve? Provavelmente nenhum,
ele concluiu.
“Entendido.” Com essas palavras, o mensageiro de Kieman olhou
para o rosto de seu mestre. “Acompanhe-os para dentro.”
O fiel mensageiro mordeu o lábio em frustração, mas fez o que
lhe foi dito com admirável lealdade. Ele lançou a Lawrence um olhar
ressentido, mas Lawrence sabia que era o vira-lata sem dono que
deveria ser temido, não o cão de guarda treinado.
“Se você tiver alguma coisa que eu precise, pagarei um preço justo
por isso.” Afinal, Kieman era um mercador. Lawrence olhou para ele
por cima do ombro e assentiu com um sorriso.
“De acordo.” O mensageiro os conduziu a uma escada que levava
ao subsolo do corredor para o que poderia ter sido um cofre, ou talvez
um calabouço dos dias em que isso estava na linha de frente das guerras
com os pagãos.
Ao descerem as escadas escuras e úmidas, encontraram uma porta
de ferro. O mensageiro bateu em um ritmo estranho, e a porta foi
destrancada por dentro.
“Nem pense em tentar escapar.”
“Claro que não”, respondeu Lawrence educadamente, o que fez o
homem ranger os dentes.
Lawrence empurrou a porta e entrou no quarto. Col o seguiu, e
quando a porta se fechou atrás deles, Lawrence teve uma noção dos
indivíduos e das circunstâncias do quarto.
Iluminado pela luz bruxuleante de velas e sentado em um tufo de
feno estava Eve, como uma espécie de princesa capturada. Ela sorriu
como se tivesse ouvido uma grande piada. Depois de alguns
momentos, ela pareceu recuperar a compostura. O enorme sorriso
certamente tinha sido sua própria maneira de esconder seu
constrangimento.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 171 ⊱

“Vim falar com você.”


“E que... piada você gostaria de ouvir?”
Lawrence entregou sua adaga ao guarda, que verificou se nem ele
nem Col estavam carregando armas. Enquanto isso, Lawrence olhava
abertamente ao redor da sala, que de fato parecia ser algum tipo de
porão. Havia mercadorias empilhadas aqui e ali, com os lugares abertos
no chão cobertos por cobertores ou feno. Restaram comida e água, e
as mãos de Eve não estavam amarradas.
Ele havia se preparado para circunstâncias piores, então, nesse
sentido, ele estava genuinamente aliviado.
Eve estava em boa forma. Mas chicotes e porretes não eram as
únicas maneiras de fazer alguém falar.
“A primeira coisa que um comerciante faz em uma nova cidade é
coletar informações.”
“De fato. Estou surpreso que ele tenha deixado você entrar... Ah,
o garoto está com você. Entendo.” Eva ganhou sabedoria prática
suficiente para adivinhar como Lawrence havia entrado. “Flores não
serão um presente suficiente para dar a essa garota agora que você a
fez esperar sozinha pelo seu retorno.”
“… Eu levei um soco no rosto da última vez.”
“Ha-ha. Ela é forte, é verdade.”
Essa conversa teria sido um belo dia de ócio se estivesse
acontecendo sob beirais salpicados de sol. Infelizmente, havia um
guarda observando-os com uma espada no cinto. Do lado de fora da
porta estava o mensageiro, e era até possível que o próprio Kieman
estivesse ouvindo.
“Bem, estou aliviado por você não ter se reduzido a rasgar seu pão
em pedacinhos para comê-lo.”
“Hmph. Kieman não tem coragem de me machucar. Reynolds é
muito pobre, então ele deve ter encontrado algum rico patrocinador
do norte. E por aqui, há apenas alguns homens ricos. E eles não têm
CAPÍTULO IX ⊰ 172 ⊱

ideia de como estou conectada a isso. Praticamente tudo o que eles


podem fazer é gritar comigo.”
Não havia dúvida de que sua ira estava direcionada ao guarda
armado com espada.
Mas dado o estilo de Eve, se ele estivesse realmente abaixo de seu
desprezo, ela nem se incomodaria em insultá-lo, então provavelmente
estava sendo atenciosa com ele por ter trazido comida e água para ela.
“Eu contei tudo isso para Kieman, mas a carta de Reynolds poderia
muito bem ter me dado uma rasteira. Se ele está tentando usar meu
acordo com Kieman para me controlar... é porque sou útil.”
Seu tom de voz não mudou, mas o humor sim. Lawrence podia
jurar que ouviu Col engolir em seco.
“Então é verdade que ele tem um patrocinador rico e poderoso?”
“Kieman suspeita disso, mas olhe para a situação de Reynolds —
ele é o comerciante mais bem-sucedido do lado norte, e isso é tudo o
que consegue. É difícil pensar em uma figura familiar que tenha tanto
dinheiro. Claro, é possível que Reynolds esteja usando o
conhecimento de alguém para fazer um pedido de compra sem
realmente ter o dinheiro.”
“Qual é o objetivo dele?”
Eve sorriu um sorriso cheio de dentes. “Para tirar dinheiro de
pessoas como nós, que estão envolvidas em um negócio secreto de
narvais.”
Lawrence se viu sorrindo; Eve foi quem o ensinou que havia
pessoas no mundo que podiam pensar em qualquer coisa.
“Dizendo: ‘Se você não quer que interfiramos em sua aposta única
e cuidadosamente organizada, pague’.”
“Os nortistas estão travando uma batalha perdida. Não é de
surpreender que alguns deles estejam começando a sugerir que
agarrem o lucro que pode ser obtido. Provavelmente há outros que
são loucos o suficiente para tentar convencer as pessoas ao seu redor
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 173 ⊱

disso, e se eles insistirem, funcionará. Eles entrarão em pânico e


pagarão. Claro, provavelmente somos os únicos ousados o suficiente
para vender o próprio narval.”
Como Kieman tinha acesso à igreja e estava a ponto de aprisionar
Eve, Lawrence teve uma noção do cuidado com que esse plano ousado
demais havia sido construído. A quantidade de dinheiro gasto tinha que
ser considerável.
Se tudo fosse virar fumaça, Kieman poderia pagar Reynolds e
tentar desistir da compra, em vez de perder tudo.
“Claro, dado que Kieman está me segurando aqui, isso significa
que as chances de Reynolds ter feito uma ordem de compra, apesar de
não ter dinheiro, são baixas. Kieman teme que eu seja enganado pelos
nortistas mais do que qualquer outra coisa, então ele me mantendo
aqui significa que decidiu que Reynolds tem um patrocinador
poderoso. E quanto a mim... é por isso que vim vê-lo, já que havia
muitas pistas nesse sentido.”
Eve era de uma antiga nobreza do reino de Winfiel, uma jornada
de meio dia através do canal. Para fazer um gráfico de todas as figuras
poderosas com as quais ela já esteve conectada, o pergaminho ficaria
preto de tanta tinta.
Tais figuras não podiam agir sem uma boa causa, mas uma vez que
tivessem essa causa, poderiam realizar quase qualquer coisa. Um
acordo secreto para o narval seria um alvo fácil.
Além disso, se eles fizessem de Eve a vilã, eles poderiam aumentar
seus lucros e matar dois coelhos com uma cajadada só. Não seria mais
uma questão de saber se ela sobreviveria ao tumulto — ela poderia
nem ser reconhecível como humana até lá.
Pegar o narval e fugir para o sul era provavelmente o maior desejo
de Eve.
“Eu não achei que chegaria a isso,” disse Eve impotente, apoiando
o cotovelo em um cobertor enrolado e se inclinando para trás. “Se você
descobriu isso, deve ser capaz de aprender o resto observando a cidade
CAPÍTULO IX ⊰ 174 ⊱

por alguns dias. Mas se Reynolds tem o dinheiro ou não, ou conseguiu


angariar de alguma forma, esta provavelmente será a última vez que
nos encontraremos.”
Sua fala repentina deve ter sido uma reação à tensão quebrada.
Mas agora ela estava cansada ou simplesmente satisfeita com suas
palavras, enquanto cobria os olhos e bocejava.
Ela ainda emanava uma aura de alguma forma imperturbável e
régia. A única razão pela qual não parecia genuinamente divino para
Lawrence era por causa da curta declaração que ela proferiu em
seguida.
“Eles são todos muito habilidosos aqui. Ficarei feliz se puder
morrer sem muita dor.”
Col gritou um pouco, e Eve olhou para ele com um pequeno
sorriso.
“V-você quer dizer que eles vão destruir as evidências?”
“Eu tenho uma boca, afinal.”
Quantas pessoas no mundo poderiam dar de ombros tão
casualmente ao dizer essas coisas?
Lawrence começou a dizer algo, mas Eve sorriu como uma jovem
donzela e continuou. “E no final, você concordou com meu egoísmo
infantil. Tão divertido…”
Ela se virou para o lado, os olhos fixos em algum ponto distante.
Seu perfil era realmente adorável.
“Não importa quão terrível seja o banquete, se o último prato for
saboroso, não foi à toa”, disse ela.
Lawrence sentiu uma pontada no coração, mas não por pena de
Eve.
Esse raciocínio foi precisamente o motivo pelo qual ele decidiu
continuar viajando com Holo. Contanto que pudesse continuar rindo
com ela, isso era tudo que importava.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 175 ⊱

Mas se pudesse ignorar todo o resto, então ele não estaria nesta
situação.
“O que posso fazer para salvá-la?” Lawrence perguntou. O guarda
ao lado dele ficou chocado, mas não tanto quanto a própria Eve.
“Ele está falando sério?” disse Eve, olhando não para Lawrence,
mas para o guarda.
“…Não faço ideia. Infelizmente, não sou comerciante.”
Se as coisas corressem mal, ela perderia a cabeça e seria ele quem
a cortaria, mas lá estavam eles, conversando como velhos amigos.
“Mas posso dizer uma coisa...”
“Você não precisa. Ele já sabe,” disse Eve, interrompendo o
guarda.
O homem olhou para Eve por alguns momentos, então fez o que
lhe foi dito e ficou em silêncio.
Lawrence realmente sabia o que ia dizer.
O desespero total trouxe consigo uma certa calma. Mas se um
único raio de esperança perfurasse aquela calma, poderia trazer
consigo um sofrimento insuportável.
“Se há uma chance para minha salvação, só pode ser essa”, disse
Eve, sua expressão calma, mas não porque ela tinha um coração de
ferro.
“Que Reynolds levantou o dinheiro por conta própria”, disse ela,
fechando os olhos. “Estou cansada de falar. Não durmo há dois dias.”
Dizia-se que as boas notícias esperavam enquanto se dormia, mas
quando Eve acordasse de seu sono profundo, ela poderia muito bem
estar enfrentando o sono mais longo de todos.
E, no entanto, ela se deitou, como se realmente pretendesse
dormir.
Ela parecia não querer mais falar, e Lawrence já tinha ouvido o
suficiente.
CAPÍTULO IX ⊰ 176 ⊱

Fosse o guarda fosse um dos homens de Kieman ou recém-


contratado, ele parecia ter um forte senso de profissionalismo e, com
um aceno rápido, deu um tapinha em Lawrence.
Enquanto Lawrence recebia sua adaga do homem, Col olhou
fixamente para Lawrence, incapaz ou sem vontade de entender a
conversa que tinham acabado de ter.
Lawrence colocou a mão na cabeça do menino e não disse nada.
Então, quando eles saíram da sala, se virou e deixou Eve com uma
declaração final.
“Durma bem.”
Eve levantou a mão casualmente em resposta, mas o gesto foi
estranhamente memorável.
Quando emergiram do subsolo, Lawrence e Col se encontraram
com o olhar do mensageiro. Ele provavelmente tinha ouvido toda a
conversa e relataria tudo a Kieman, mas Lawrence duvidava que nada
disso fosse de alguma utilidade para ele.
Tanto Eve quanto Lawrence eram comerciantes, e nada era menos
confiável do que as palavras dos mercadores.
Os comerciantes não precisavam de palavras para transmitir suas
verdadeiras intenções.
“Você teve uma conversa que valeu a pena?” Kieman perguntou
ao retornarem ao seu quarto, onde não ergueu os olhos do pergaminho
sobre o qual se debruçou. Sua bochecha tinha traços de tinta.
“Ah, de fato. A senhorita Eve é muito tagarela.”
Kieman assinou o papel com uma rapidez audível, depois o passou
para seu subordinado e passou para o próximo. Os papeis certamente
variaram de coleta de informações a negociações, ameaças e súplicas.
Quanto maior a escala de uma trama, maior o seu poder. Mas isso
não era nada para o estrago que poderia ser causado quando mudasse
de direção.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 177 ⊱

“A negociação que eu mediei será cancelada?”


Kieman estava no limite máximo de sua habilidade enquanto lia
cartas e preparava suas respostas, mas sua atividade cessou com a
pergunta de Lawrence. A pergunta parecia exigir que ele usasse um
pouco a cabeça.
“Suponha que você tranque um padeiro em sua própria loja, mas
depois vá até ele para comprar pão. Você consideraria isso um
problema de teologia?”
“Enquanto houver dinheiro e bens, você não precisa de outra
pessoa para fazer negócios.”
“É verdade, mas precisamos descobrir se realmente há pão
esperando para ser comprado. Sempre podemos deixar o padeiro
voltar para sua padaria, mas a essa altura não há como ter certeza de
que ele não guarda rancor. Ouvimos dizer que ele comprou veneno de
outra loja, sabe, então, em pânico, o trancamos e…”
“E você saberá se o veneno foi comprado para matar ratos ou
misturado com o pão apenas quando você comer.”
A mão de Kieman arranhou o pergaminho novamente, e ele
finalmente olhou para Lawrence. “Ou quando os ratos morrem.”
Ele havia trancado um indivíduo perigoso para evitar que uma
situação difícil piorasse. Esse era o tipo de ideia que apenas Kieman,
que controlava tantas pessoas, poderia ter.
Ele não podia tentar tirar a verdade de Eve com tortura, porque
dependendo das circunstâncias, feri-la poderia significar perigo para
ele. Mas em situações complicadas, até mesmo Holo concordaria que
eliminar a fonte do problema era a escolha certa.
“De qualquer forma, a loba parece gostar de você, então, por
favor, cuide de sua própria segurança. Você parece ter tomado certas
precauções, pelo menos.” Ele parecia estar ironicamente fazendo
referência às ameaças que Lawrence tinha feito para ver Eve.
CAPÍTULO IX ⊰ 178 ⊱

Ele se perguntou que tipo de cara Kieman faria se descobrisse que


Holo não possuía nenhum documento inconveniente. A ideia o fez
sorrir. “Obrigado por sua consideração,” ele respondeu.
“Agora, se você levar nossos convidados”, disse Kieman ao seu
mensageiro, encerrando a conversa e colocando sua caneta em
movimento mais uma vez.
O homem curvou-se educadamente e levou Lawrence e Col de
volta para a entrada principal. Todos os convidados que entravam
tiveram que sair visivelmente. Se os números não batessem,
significava, sem dúvida, que algo estranho estava acontecendo.
“Lembre-se disso, mercador,” cuspiu o mensageiro pelo espaço
aberto na porta assim que Lawrence passou por ela. Antes que
Lawrence pudesse responder, a porta se fechou com uma batida forte.
Os dois guardas olharam furtivamente para Lawrence pelo canto
dos olhos.
Lawrence fingiu endireitar o colarinho. “Obrigado por seu belo
trabalho.”
Depois de deixar a igreja para trás, Lawrence e Col não voltaram
para a pousada, em vez disso, fizeram uma esquina em uma rua do
bairro de ferreiros, onde ferreiros faziam punhais e ferraduras. A loja
produzia quarenta ou cinquenta punhais por semana e, mesmo em
cidades distantes, era comum ver lâminas com seu nome nelas.
Lawrence e Col entraram na loja sem dizer uma palavra.
Lawrence estava imerso em pensamentos, e Col parecia não querer
falar.
Para viajantes sem dinheiro, a morte infelizmente era uma
ocorrência comum — por doença, fome, idade ou até mesmo
ferimentos acidentais. Seja qual for o motivo, não era raro que eles
embarcassem na jornada final e eterna.
No entanto o rosto endurecido de Col falava de sua incapacidade
de aceitar que tal jornada aguardava Eve.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 179 ⊱

“Isso te irrita?” Lawrence perguntou, o que fez Col hesitar, depois


sacudir a cabeça — mas depois de alguns momentos, ele assentiu.
“É apenas por causa do meu egoísmo e de Holo que você está nessa
situação. Ninguém vai culpá-lo se você sair.” Lawrence explicou o
perigo que eles estavam correndo.
Mas desta vez Col sacudiu a cabeça decididamente. “Se fechar os
olhos fizesse as coisas injustas desaparecerem, eu faria isso.”
Ele representou um terceiro ponto de vista, diferente de
Lawrence ou Holo.
Lawrence assentiu e olhou para frente, e Col fez o mesmo.
E, no entanto, o menino ainda parecia ter problemas para
confrontar a realidade.
“Senhorita Eve, ela... ela ainda pode ser salva, não pode?”
Muitos comerciantes adoravam contar suas galinhas antes de
chocarem, mas ainda achavam difícil fazer promessas precipitadas.
“Talvez, é por isso que espero e estou trabalhando.”
Lawrence não ficaria surpreso se suas palavras soassem como uma
esquiva, mas continha muitos significados.
Eve havia dito que havia apenas uma maneira de sobreviver, e que
era Reynolds reunir fundos suficientes para comprar o narval, para ele
ou para os nortistas.
Só nessa situação, o negócio desmoronaria em uma simples troca
de mercadorias e, como um ladrão assustado em silêncio repentino por
um som, Kieman gradualmente começaria o trabalho de ocultação.
Mas aquele caminho não era iluminado por uma lâmpada sequer,
e estava envolto em escuridão.
O estado da loja de Reynolds era a prova disso, e não era preciso
ser de Kerube para adivinhar o estado de sua bolsa de moedas.
As chances eram de uma em mil. Talvez uma em dez mil.
CAPÍTULO IX ⊰ 180 ⊱

“Então o esquema dele com as caixas de moedas de cobre... não


será suficiente?”
Foi Col quem descobriu a manipulação de Reynolds dos caixotes
que transportavam as moedas de cobre enviadas pelo Rio Roam. O
número que ele recebeu era diferente do número que ele enviou.
“Tudo o que podemos imaginar é que ele está evitando pagar
impostos sobre o número de caixas que importa. Não será suficiente
comprar o narval.”
“…”
Col olhou para baixo, como se estivesse fervendo em um mar de
pensamentos.
Lawrence sabia que se fixar em uma coisa excluindo todas as
outras era um mau hábito dele, então quando ele viu um exemplo tão
perfeito desse mesmo traço bem na frente dele, ficou mais difícil de
corrigir.
“É importante pensar muito sobre essas coisas, mas…”
“Huh?”
“Primeiro temos que nos proteger. Essa é a situação em que
estamos agora.”
Lawrence empurrou Col para frente, incitando-o, e uma vez que
Col compreendeu, começou a correr.
O menino era honesto demais. Se Lawrence tivesse explicado
tudo para ele, sua apreensão ao vir a este lugar teria sido muito óbvia.
Para um bairro artesanal, as ruas do bairro dos ferreiros eram
bastante largas e, sendo frequentemente utilizadas para o transporte de
materiais pesados, o seu pavimento era de boa qualidade. Nas ruas
tortuosas e lotadas de outros lugares, os habitantes locais podiam
navegar muito mais rapidamente. Mas em pavimentos finos e ruas de
fácil circulação, eram os próprios viajantes que eram mais rápidos.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 181 ⊱

Levantando a bainha de seu manto, Col correu com admirável


rapidez.
“Espere! Seus malditos!”
Era bastante comum ver um mercador perseguindo um ladrão —
mas muito raro ver um bandido perseguindo um comerciante.
Os ferreiros que faziam facas, colheres, limas, pregos, colheres e
tigelas ergueram os olhos de seus polimentos e marteladas com
curiosidade.
Um sequestro dificilmente poderia ocorrer enquanto outros
assistiam.
Quando Lawrence e Col saíram correndo do distrito de ferraria,
exalando baforadas brancas, seus perseguidores de repente não
estavam em lugar nenhum.
Mas isso não significa que eles desistiram. Eles certamente
estavam usando seu conhecimento da cidade para dar a volta em
Lawrence.
Col olhou para Lawrence como um leal cão pastor esperando uma
ordem, mas é claro, ele também antecipou o que estava por vir.
“Em breve.”
E assim que Lawrence falou, um mendigo baixo e magro apareceu
de um beco à frente deles.
“Ah —”
Assim que Col pronunciou o som, ele e Lawrence correram atrás
do mendigo. Sem dizer nada, o mendigo desapareceu de volta no beco.
Ao contrário das ruas em que haviam acabado de passar, estas
eram complicadas e sinuosas e bastante difíceis de navegar para aqueles
que não estavam familiarizados com elas. O mendigo era veloz, e
Lawrence e Col eram pressionados apenas para acompanhar.
Eles pareciam seguir eternamente, e assim que Lawrence
começou a suar, o mendigo parou e olhou para eles.
CAPÍTULO IX ⊰ 182 ⊱

“É longe o suficiente?” A respiração de Holo estava curta, mas sob


o casaco esfarrapado que pegou emprestado de Col, seu rosto estava
feliz. Sem dúvida, essas perseguições fizeram seu sangue de loba
acelerar. “Então, suponho que você conseguiu ver a raposa?”
“Ela parecia melhor do que eu imaginava.”
“Ah é? Mesmo assim —” disse Holo, olhando para Col, que pegou
seu casaco e prontamente cobriu a cabeça com ele. “Quando você diz
que ela estava bem, ela estava como essa aqui?”
Um nó emaranhado que era impossível de desatar poderia causar
problemas, e não havia como dizer a que seus fios poderiam estar
ligados. Fazia sentido simplesmente ignorar.
Holo beliscou a bochecha direita de Col, e ele sorriu.
“Ela estava determinada, mas de alguma forma honesta, aposto.”
“… Você não parece odiar Eve tanto quanto afirma.”
Com essas palavras, Holo sorriu significativamente e gesticulou
para o norte com o queixo. “Estava um tumulto no porto, como se
uma fogueira tivesse sido acesa.”
“Alguém fez um movimento?” Foi Col quem fez a pergunta, sua
bochecha ainda doendo.
Lawrence se sentiu mal por pensar nisso, mas ter alguém por
perto que estava mais nervoso do que ele o fez se sentir mais calmo. A
situação era fluida e, por mais cautelosos que fossem, se simplesmente
esperassem, sua chance de obter o melhor resultado desapareceria.
Mas se eles vissem sua chance, teriam que agarrá-la.
Lawrence assentiu, levando Holo a continuar.
“Reynolds parecia tão humilde na outra noite, mas ele é um ótimo
ator. Agora ele está cheio de ostentação. O oprimido pode ser forte
— eles desejam retribuir integralmente aqueles que os fizeram sofrer,
afinal.”
“Ele estava negociando? Com os sulistas?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 183 ⊱

“Ele ficava reclamando que era um cliente, exigia que lhe


mostrassem o que estava comprando. Não tenho nenhum ódio especial
pelas pessoas deste lado, mas tive que rir do nervosismo deles.”
Lawrence e Col trocaram um olhar. Se Reynolds quisesse ver as
mercadorias, estava claro para onde ele iria em seguida.
“Ah, suponho que seus ouvidos não podem ouvi-los. Eles estão a
três quarteirões de distância de nós.”
“Mas isso significa que ele realmente levantou o dinheiro para
comprá-lo?” perguntou Lawrence.
Holo inclinou a cabeça e, apesar do que ela estava fazendo, o olhar
de Col estava longe. Assim que seu rosto se enrugou em pensamento,
algo ocorreu a Lawrence.
“E-ele tem o dinheiro?” Col foi o primeiro a falar.
No beco escuro, as orelhas de Holo giraram quando ela
respondeu. “Foi uma guerra de palavras. Ele exigia ver as mercadorias,
enquanto eles exigiam ver o dinheiro. Eles estavam de pé com raiva, e
esse tal de Reynolds revidava todas as vezes.”
“Senhor. Lawrence —”
“Sim, mas por quê? O que isso pode significar?”
Os ombros de Holo tremeram de tanto rir. Ela abandonou a ideia,
aparentemente dizendo que era dever de um homem descobrir.
“Seria estranho para ele ter a quantia. Não importa a rapidez com
que ele conseguiu reunir apoio, ainda leva tempo para transformar isso
em dinheiro. Então ele o escondeu todo esse tempo?”
Nesse caso, não havia razão para esperar até que as coisas saíssem
do controle. Do jeito que estava, havia risco suficiente de alguém como
Kieman tomar algum tipo de ação independente irreparável.
E então havia um problema que Lawrence havia considerado há
muito tempo desde que começaram a perseguir os ossos de lobo —
CAPÍTULO IX ⊰ 184 ⊱

mover uma grande quantidade de dinheiro era como mover um


gigante. Alguém sempre notava.
Então, como ele poderia ter juntado dinheiro suficiente para
comprar o narval sem que ninguém percebesse?
Lawrence estava bem ciente de quão inteligentes os comerciantes
da cidade podiam ser. Eles vigiavam os portos, sempre atentos para
observar quem estava negociando qual quantidade de mercadorias. Os
bens eram coisas físicas, e as coisas físicas podiam ser observadas. O
que significava que, se Kieman determinasse que Reynolds não tinha o
dinheiro, isso tinha que ser verdade.
“Não sei como. Mas será bastante simples descobrir a verdade.”
Holo se espreguiçou e respirou fundo.
Seus olhos se estreitaram e ela olhou para longe como se estivesse
relembrando, embora Lawrence tivesse certeza que Reynolds estava
na mesma direção.
“Nós sabemos do movimento deles. Eles vão para a igreja”.
“Por que? Como ele tem o dinheiro? De quem é esse dinheiro?”
Kieman estava na igreja; assim como Eve.
Que tipo de farsa aconteceria quando o grupo de Reynolds
chegasse com força, arrastando caixotes de dinheiro com eles?
Dinheiro era dinheiro, não importa o quê — dizia o ditado —,
mas isso simplesmente não era verdade. Que tipo de dinheiro era, de
quem era, sua proveniência — todas essas coisas eram de grande
importância.
Kieman e os outros deviam estar aterrorizados.
Já ocupados em destruir provas, agora seus subordinados
provavelmente estavam fugindo com documentos importantes como
ratos de um navio afundando. E quando se soubesse que Eva estava
presa no porão da igreja, quem estaria na pior posição?
Naturalmente, esse seria o superior de Kieman, o Chefe Jeeta.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 185 ⊱

Era impossível para Reynolds não ter percebido o acordo secreto


entre Eve e Kieman. E como a espinha dorsal do apoio dos
proprietários do norte, ele teria sabido do súbito desaparecimento de
Eve. Um pouco de raciocínio deixaria clara sua localização, e nesse
ponto tudo o que ele tinha que decidir era em que tipo de buraco jogar
todos eles.
Estando completamente na defensiva, Kieman e o resto não
podiam fazer nada além de correr. Lawrence se perguntou se já havia
arrastado Eve para fora do porão e começado a correr com ela pelos
becos.
Mas Kieman não era o único com espiões e vigias por toda a
cidade. E quantos deles foram tolos o suficiente para ignorar figuras
importantes como Kieman e Eve se fossem expostos? Se fossem
descobertos fugindo, as desculpas seriam cada vez menos eficazes.
Isso era o que significava estar de costas contra a parede.
“Senhor. Lawrence, nesse ritmo, a senhorita Eve vai...” — gritou
Col, agarrando o ombro de Lawrence.
Kieman e seus companheiros estavam sem tempo. Eles não tinham
como descobrir de quem era o dinheiro que Reynolds tinha. Então,
que ação ele poderia tomar para se proteger?
A resposta era simples. Ele se cercaria apenas daqueles que
concordassem com ele.
Não havia chance de Eve estar entre aquele grupo.
“Eu vejo três caminhos.”
A loba transformada que vivia dentro do trigo, mas se recusava a
ser chamada de deus, estreitou os olhos para a alfinetada de luz da tocha
que iluminava o final do beco.
“Um, você pode desistir. Dois, me pedir ajuda. Três —”
“— Ver com nossos próprios olhos.”
Holo sorriu um sorriso hostil. “Ir até lá... e fazer o quê?”
CAPÍTULO IX ⊰ 186 ⊱

“As coisas vão funcionar de uma forma ou de outra. Quando você


está encurralado, nada é mais poderoso do que um pouco de direção
errada. Sem ter como ter certeza da verdade de uma forma ou de
outra, quem fizer o argumento mais irrefutável vence.”
“Se você conseguir convencer Kieman, a raposa ainda pode ser
salva.”
Os olhos de Col se moviam sem piscar entre Holo e Lawrence,
como se estivesse sendo forçado a assistir a um drama que não queria
ver.
“Então você tem certeza?”
Lawrence não conseguia olhar Col nos olhos. Crescer significava
aprender a enganar a si mesmo acima de todos os outros.
“Mesmo que não, temos que fazer algo”, disse Lawrence.
“Mas isso é —”
“Nem todo problema tem uma solução satisfatória.”
Com as palavras de Holo, os olhos de Col se encheram de
lágrimas. “Mas, mas então, Senhorita Holo, você poderia —”
“Se você invadisse um lugar com tantas pessoas, você poderia ter
certeza de que todas elas sairiam ilesas?” Lawrence perguntou a Holo,
abaixando cuidadosamente a voz.
Com sua pergunta, ela coçou a bochecha e inclinou a cabeça.
“Se o prédio não desmoronar quando eu quebrar o vitral, sim.
Senão…”
Lawrence lembrou-se do grande campanário da igreja. Qualquer
coisa tão alta, sejam blocos de brinquedo ou tijolos, sacrificava a
estabilidade pela altura. Se o prédio caísse, mesmo Holo poderia não
escapar com segurança, e muitas pessoas certamente ficariam presas
nos escombros.
Dito isso, atacar a entrada da frente da igreja os colocaria na frente
de inúmeras lanças.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 187 ⊱

Holo não era um deus.


Ela não era.
“Ainda podemos fugir, se desejarmos. Há bons e maus em seu
bando, e nem todos são seus inimigos, certo?”
Apostar nessa possibilidade certamente era uma opção.
Quando os planos de Kieman se tornassem públicos, ele
certamente seria considerado o líder. Lawrence era apenas um pobre
mercador viajante que ele usou. Lawrence certamente tinha
companheiros que o apoiariam como tal.
“…”
Murchando de desespero, Col nem se deu ao trabalho de enxugar
as lágrimas.
O menino viajou para o sul na tentativa de salvar sua própria
aldeia. Fazer isso exigiria não apenas firme determinação e força, mas
também maior bondade.
Eve tinha olhado para Col como se ele brilhasse, e foi essa luz que
a fez tratá-lo tão gentilmente.
“Há muitas opções que podemos escolher, mas apenas um
caminho pode dar frutos.”
“Não deveríamos então decidir o resultado que queremos e fazer
nossas escolhas?”
Os viajantes às vezes tinham que deixar para trás pertences e
oportunidades e até amigos ou feridos que encontravam à beira da
estrada. Às vezes, eles puxavam o cabelo de alguém ou se agarravam
às roupas.
Então e Eve?
Lawrence lembrou-se de sua estranha honestidade — ela havia
dito que estava cansada e dormiria, deitada ali mesmo.
Ele podia adivinhar o que aconteceria.
CAPÍTULO IX ⊰ 188 ⊱

Sempre havia escolhas infinitas, mas só poderia haver um único


resultado. As reviravoltas dramáticas eram incomuns, porque a
progressão natural dos eventos era uma força difícil de resistir.
“Se Reynolds estivesse lidando com carregamentos de moedas de
ouro…”
“Hum?”
“…Usando o método que Col descobriu, ele poderia ter
economizado bastante capital.”
Lawrence já havia sido atacado por uma matilha de lobos em uma
montanha nevada. Ele e seu grupo tiveram que deixar um amigo com
uma perna quebrada para trás e fugir para a cabana de um lenhador.
Incapaz de ficar quieto, eles conversaram a noite toda, rostos corados
como se estivessem bebendo, mas não havia vinho.
“Os impostos não ultrapassam vinte ou trinta por cento do valor
das mercadorias. Ainda assim, vinte por cento de uma caixa de moedas
de ouro é uma enorme quantidade de dinheiro. Claro, a contagem de
moedas é muito mais rigorosa para o ouro, então ele não poderia ter
usado o mesmo método, não creio.”
Lawrence segurou os ombros de Col, e com os olhos gesticulou
para Holo para começar a andar. Se fossem fugir, precisariam
aproveitar o caos.
“Hum. O esquema que Col notou — funcionaria melhor de outra
forma, eu acho.”
“que outra forma?” Lawrence perguntou.
Holo passou por cima de uma vara que estava encostada na parede.
“Sim,” ela respondeu. “Ele traz sessenta caixotes, depois envia
cinquenta e oito. Se ele mantiver dois caixotes cheios de moedas de
cobre, isso é um pouco de lucro, não é?
“Sim, verdade. Ou ele poderia receber sessenta e enviar sessenta.”
“Mas isso equivaleria apenas a empatar, não?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 189 ⊱

“Oh? Os caixotes que ele enviaria simplesmente conteriam menos


moedas do que os que ele recebe rio abaixo, e ele embolsaria a
diferença. Nesse ritmo, aposto que ele poderia guardar um pouco mais
do que duas caixas de cada vez. Claro que, ao fazê-lo, a Companhia
Debau teria prejuízo.”
Então, como isso funcionaria? Lawrence perguntou a si mesmo.
“Huh?” Col disse apressadamente, olhando para eles.
A única razão pela qual Lawrence não ficou surpreso com isso foi
porque ele estava muito preocupado com o buraco que acabara de
descobrir em seu raciocínio.
“Eu acabei de dizer algo estranho, não disse?”
Holo olhou de um lado para o outro entre Col e Lawrence com
curiosidade.
Lawrence pensou em suas próprias palavras. Freneticamente.
O esquema de importação de moedas de cobre de Reynolds
renderia apenas um pequeno lucro. Para obter um grande lucro, ele
teria que atingir a Companhia Debau ou o reino Winfiel com uma
perda significativa.
“O número absoluto de moedas de cobre não mudará. O que
muda é o número de caixas, o imposto e... e?” A última palavra ficou
presa na garganta de Lawrence por pura frustração, pois ele sabia que
estava perdendo algo óbvio.
Col estava quase engasgando, como se tivesse uma espinha de
peixe presa na garganta. Quando Lawrence percebeu que era o puro
nervosismo de Col que o impedia de falar, a resposta explodiu em sua
cabeça com um clarão.
“O pagamento! Se ele não puder reverter o dinheiro que está
negociando, ele apenas o faz com o próprio pagamento! A Companhia
Debau não se incomodaria em nada! Porque —”
“— Se todas as contas se equilibrarem no final, não há problema.
Não há problema nenhum! Eu me pergunto que instruções vieram rio
CAPÍTULO IX ⊰ 190 ⊱

abaixo para Reynolds? Isso explicaria por que ele poderia ter uma
enorme quantidade de dinheiro em algum lugar e hesitar em usá-lo! É
isso!”
Tudo o que ele tinha visto e ouvido em Kerube finalmente se
conectava como por um único fio. Explicava como Reynolds
conseguira juntar dinheiro suficiente para comprar o narval, bem
como todas as incongruências que Lawrence sentira.
O dinheiro era de Reynolds.
Mesmo que ele tivesse alguém o apoiando, eles estavam muito,
muito longe. Eles não teriam uma única noção do que estava
acontecendo em Kerube. Quando a notícia chegasse a eles, tudo estaria
acabado, e era exatamente por isso que Reynolds estava colocando seus
peões na igreja.
Se ele pudesse ganhar justa causa, tudo seria perdoado.
Não foi divertido, mas Lawrence não conseguiu conter o sorriso
que se espalhou por seu rosto. Ele não ia deixar Reynolds arrebatar
todo o lucro diante de seus olhos.
Tudo estava ao seu alcance. E a hora de entender isso era agora!
“Vamos,” disse Lawrence e começou a correr. “Venha, o que você
está —” Ele olhou por cima do ombro e gritou.
“Eu não vou”, disse Holo, de pé e sorrindo.
“Agora? Está bem! Não estou tirando conclusões precipitadas —
o raciocínio é verdadeiro.”
Holo balançou a cabeça. “Não é isso que eu quero dizer,” ela disse.
“E daí?” Lawrence não terminou sua frase.
“Não quero ver você desfilando na frente de outras mulheres”,
disse Holo como uma donzela tímida, mostrando a língua enquanto
sorria.
Onde ela aprendeu a agir assim?
Lawrence só conseguia sorrir, como ela queria.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 191 ⊱
CAPÍTULO IX ⊰ 192 ⊱

“Acho que não posso dizer que estou chocado.”


“Mm. Você pode me deixar para trás e fugir, não pode?”
Lawrence fechou os olhos e respirou fundo. As palavras de Eve
tinham sido pesadas com cuidado.
Meras flores não seriam um presente suficiente para Holo.
“Col.”
“Sim! Deixe comigo!” O sorriso raiado de lágrimas de Col era
genuíno. Se ele tivesse que deixar Holo aos cuidados de outra pessoa e
sentir segurança ao invés de ciúmes, Col era a única pessoa que ele
tinha.
“Ei. Suponho que não seja um arranjo tão ruim.” Holo sorriu e
exalou um suspiro curto. “Agora, você deve ir. Eles podem estar se
pavoneando como se fosse um dia de festival, mas chegarão em breve.
Compreendendo o que ela queria dizer, Lawrence deu meia-volta
e correu, embora soubesse que era perigoso dar as costas a alguém em
um beco. Ele olhou por cima do ombro.
Lá estavam Holo e Col, acenando para ele.
Um olhar momentâneo foi suficiente. Lawrence correu. Ele
correu para a igreja.

Saindo de um beco em frente à igreja, Lawrence achou que estava


estranhamente movimentado.
Assim que a cortina da noite caísse, os cidadãos comuns estariam
em suas casas, estalando os lábios durante o jantar. Os únicos que
sabiam do que estava acontecendo aqui eram os mercadores,
compelidos por sua curiosidade a assistir, mas rodopiando a uma
distância segura, com medo das possíveis consequências.
O que significava que o espaço em frente à igreja estava livre,
enquanto a multidão esperava a chegada de Reynolds e seus
companheiros.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 193 ⊱

Era de fato a calmaria antes da tempestade.


E nessa calma, Lawrence caminhou direto pelo caminho aberto e
foi direto para a igreja.
“…”
A princípio, nem os guardas nem os espectadores entenderam o
que estava acontecendo. Eles pareciam pensar que ele era algum tipo
de mensageiro formal.
Todos os olhos estavam em Lawrence, mas ninguém se mexeu, e
foi só quando ele entrou na igreja que um único guarda finalmente
gritou com ele por trás.
Mas Lawrence não parou, é claro.
A porta já estava escancarada em antecipação à chegada de
Reynolds e, uma vez dentro dela, ele virou imediatamente à direita,
seguindo pelo corredor.
Mais adiante, ele viu o que pensou serem cartas caídas no meio do
transporte, iluminadas pelas velas nas paredes.
A porta do quarto de Kieman estava entreaberta. Lawrence passou
por ela sem hesitar e entrou, mas não havia ninguém lá.
Subitamente atacado por uma onda de vertigem, Lawrence
percebeu a rapidez com que os eventos estavam acontecendo. Por favor,
deixe-me chegar a tempo, ele gritou em sua mente, correndo para as
escadas que levavam ao porão.
Ele viu uma luz fraca de mais longe.
Alguém tinha que estar lá, mas o silêncio o preocupava. Ele
começou a descer as escadas, ansioso.
Então, talvez tendo ouvido seus passos, um homem surgiu e
começou a subir. Suas roupas tinham sangue nelas, cuja visão fez os
pelos do corpo de Lawrence se arrepiarem.
“V-você”
CAPÍTULO IX ⊰ 194 ⊱

O homem era mais baixo do que Lawrence e as escadas eram


íngremes, e Lawrence usou as duas coisas a seu favor. Ele cravou as
unhas no rosto do homem, então com um baque surdo bateu a cabeça
dele contra a parede. O homem então deslizou para o chão.
Em sua mão estava uma adaga de prata, que Lawrence não havia
notado antes.
Lawrence continuou correndo, empurrando a porta de ferro do
porão e entrando.
Com a visão que o recebeu, ele gritou com todas as suas forças.
“Por favor pare!”
Todos menos um se encolheram de surpresa.
Kieman foi o primeiro a se virar, depois o homem que guardava a
sala. A cabeça de Eve estava presa pelos braços grossos do homem,
uma expressão vazia em seu rosto.
Seus braços estavam amarrados atrás dela, suas pernas amarradas;
talvez quisessem evitar uma luta. Talvez eles tivessem escolhido não
cortar sua garganta por causa da confusão sangrenta que resultaria.
“Por favor, espere! Não há necessidade disso!”
Os olhos do guarda foram para Kieman, e Lawrence percebeu que
seu aperto afrouxou um pouco.
Eve ainda não estava morta.
Assim que Lawrence chegou a essa conclusão, Kieman veio até
ele, seu rosto em branco e seu cabelo selvagem. “Quem te colocou
nisso?! Quem te pagou?! Diga-me, comerciante!”
A compostura de Kieman se foi, e quando ele agarrou a gola de
Lawrence, ele viu que sua unha do polegar estava roída e rasgada. Mas
Kieman não era seu inimigo, não agora.
Lawrence abaixou sua postura e deixou a energia de Kieman
dominá-lo, agarrando sua cintura e virando-o de ponta a ponta.
Kieman viu o piso e o teto trocarem de lugar em um instante.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 195 ⊱

“Guh...” ele grasnou como um sapo, lutando sob o peso de


Lawrence.
“Você tem que liberar Eve! Imediatamente!” Lawrence disse,
montando Kieman e segurando uma adaga em sua garganta.
O guarda não tinha rancor de Eve, mas provavelmente não estava
familiarizado com o terrível negócio em questão. Agora Lawrence só
tinha que esperar que ele decidisse o que faria. Lawrence não tirou os
olhos de Kieman nem por um momento, e por fim o guarda decidiu
que uma reviravolta era impossível.
No canto de sua visão, Lawrence viu o homem soltar Eve,
levantando ambas as mãos levemente.
“Ela está respirando?” Lawrence perguntou.
“Ela deveria estar inconsciente”, veio a resposta.
Não era difícil para alguém experiente em estrangulamento deixar
um oponente inconsciente antes de tirar sua vida.
Quanto tempo a chama da vida de uma pessoa permanecia acesa
dependia do indivíduo.
“Mer... cador... você...” Se ele estava finalmente voltando à
realidade ou a dificuldade que estava tendo para respirar devido ao
peso nas costas o acalmava, a voz de Kieman estava tensa, e ele olhou
para Lawrence do canto da sala.
“Se Eve estiver viva, tenho boas notícias para você.”
“O que você quer dizer?” O guarda deu um tapa no rosto de Eve,
e ela imediatamente soltou um gemido curto.
Ela não estava morta. Lawrence ficou genuinamente surpreso com
o alívio que sentiu ao saber que alguém que uma vez tentou matá-lo
ainda estava vivo.
Kieman parecia ainda estar sofrendo, provavelmente porque
podia ouvir o som de um grande número de pessoas entrando na igreja.
CAPÍTULO IX ⊰ 196 ⊱

Era apenas uma questão de tempo antes que eles fossem


encontrados e Eve fosse trazida para Reynolds.
“O Sr. Reynolds conseguiu levantar o dinheiro por conta própria.”
“Isso não pode ser!” Kieman quase tentou ficar de pé, apesar da
faca em sua garganta — a notícia foi chocante para ele.
E ainda assim era verdade. Era a única possibilidade.
“Sou um mero mercador viajante, então estou ocupado tentando
obter meu próprio lucro. Meus interesses se opõem a Reynolds, então
não posso deixá-lo levar tudo.
Kieman tinha uma expressão dúbia, o que não era surpreendente
— ele não entendia.
Lawrence desviou o olhar de Kieman e o dirigiu para a raposa.
“...O que... você encontrou...?”
Foi a voz rouca de Eve que falou, enquanto ela se endireitava com
a ajuda do guarda. Apesar de ter estado à beira da morte, essa foi sua
primeira pergunta.
“Eu vim aqui em busca dos ossos de lobo, entende.”
E Lawrence contou-lhes tudo o que sabia. Tanto Kieman quanto
Eve eram ainda mais capazes do que Lawrence em dizer mentiras sobre
a verdade. E então —
“Por favor, saia de cima de mim, Sr. Lawrence”, disse Kieman
calmamente, olhando para o teto.
Eve sorriu levemente.
Lawrence fez o que lhe foi pedido, já que ambos eram mercadores
de status mais elevado que ele.
“Isso pode ser feito?” Lawrence embainhou sua adaga quando
Kieman tossiu e se sentou, arrumando o cabelo e endireitando o
colarinho.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 197 ⊱

“Deve ser. Claro...” O olhar de Kieman fixou-se na pessoa cuja


vida ele quase tirou, e ele continuou suavemente.
“Isso supondo que ela não nos traia.”
“Bem, há uma chance de ganhar algum dinheiro.”
Eve abriu e fechou a mão, esfregando o pescoço.
“O rosto de Deus parecia um pouco com o do velho. Vou ter que
ter certeza da próxima vez que o vir.”
“Teremos que ganhar o suficiente para pagar a viagem para o céu.”
Uma vez que eles começassem a se mover, eles trabalhariam
rapidamente. Lawrence sabia que podia depender de suas habilidades,
pois ainda se lembrava de como ficava apavorado quando essas mesmas
habilidades eram direcionadas a ele.
Eva falou com uma voz reverente, condizente com alguém que
voltou à vida em uma igreja. “Ah, é verdade, nós, mercadores, somos
um bando de loucos e pecadores.”

O grupo que entrou na igreja era estranho. Reynolds estava à


frente, seguido por uma série de retentores que carregavam com
deferência pequenas caixas, que provavelmente estavam cheias de
moedas de ouro.
Parecia quase uma noiva acompanhada de seu dote, mas o que ele
trouxera para o santuário sagrado eram moedas de ouro cujo brilho
desafiava a glória de Deus.
Pelo tamanho, as caixas pareciam conter talvez cem moedas. E
havia quinze caixas. Eles foram empilhados ostensivamente na frente
do narval, que por sua vez estava na frente do altar, e diante de tudo
estava um orgulhoso e arrogante Reynolds. Ele havia se colocado onde
normalmente apenas um padre ou bispo ficaria, e nos bancos da fiel
congregação os poderosos sulistas estavam reunidos.
CAPÍTULO IX ⊰ 198 ⊱
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 199 ⊱

Para comerciantes tão bem-sucedidos quanto Reynolds, não eram


raros os negócios que valorizavam milhares de moedas de ouro. Mas
quando eles eram conduzidos pelo movimento de moedas, isso era
outra questão.
Os comerciantes faziam negócios com contratos verbais e escritos
porque a moeda forte era tão rara e valiosa quanto qualquer tesouro.
E quando uma grande quantidade de moedas era coletada em um lugar,
a notícia sempre se espalhava. E quando essas moedas eram de ouro,
elas sempre acabavam registradas nos livros dos cambistas. Portanto,
não era surpreendente ver tantas figuras orando nos bancos, levemente
iluminadas pela fraca luz das velas.
O ataque de Reynolds foi perfeitamente executado.
“Venha! Em resposta ao seu pedido, trouxe meu ouro para este
lugar sagrado! Você deve cumprir sua parte do contrato!”
Sua barriga era grande, suas bochechas, queixo. De volta à sua
miserável casa comercial, aquelas feições o faziam parecer igualmente
maltrapilho, mas agora eram símbolos de dignidade e poder. Sua voz
era alta e firme, como um artista de palco dando a performance de sua
vida.
“Como segundo mestre da Companhia Jean, venho registrar um
negócio que ficará na nossa história!”
Com um respingo, o narval se mexeu, talvez reagindo à sua voz
ou ao ar tenso no santuário. E então a sala ficou em silêncio, como se
água tivesse sido derramada sobre ela.
Lawrence afastou-se de onde estivera assistindo os procedimentos
por uma porta entreaberta no corredor e voltou para a sala iluminada
por velas.
Imediatamente depois que Reynolds conduziu sua procissão até a
igreja, um homem que dizia ser um dos subordinados do chefe Jeeta
veio atrás de Kieman, mas Kieman o despachou sem um momento de
hesitação. Se o plano deu certo ou não, ele seria responsabilizado e, se
desse certo, o chefe Jeeta teria que ficar em silêncio.
CAPÍTULO IX ⊰ 200 ⊱

Claro, Lawrence não estava nem um pouco preocupado. Kieman


e Eve tinham preparado uma arma afiada para empalar Reynolds.
Lawrence se perguntou se havia um mercador no mundo que
pudesse enfrentar sua raiva combinada e sair ileso.
Ele pensou em Reynolds, desfilando orgulhosamente pelo altar, e
não pôde deixar de se sentir um pouco mal por ele.
“Isso é tudo em que posso pensar, suponho.”
“Com impostos, taxas de envio e dinheiro de suborno, suponho
que isso seja suficiente. Eu vi a Companhia Debau, e eles devem ser
capazes de esconder algo dessa escala.”
Entre a caneta de Kieman dançando sobre pergaminhos e
calculando números e o conhecimento de cima a baixo de Eve sobre
rotas comerciais, era fácil para eles descobrir os negócios de uma única
empresa comercial. Para um mercador viajante que andava com sua
carroça e cavalo comprando e vendendo mercadorias, era uma visão
aterrorizante.
“Senhor. Lawrence, como é o santuário?”
“Como esperávamos. Reynolds está sendo implacável, mas
naturalmente os sulistas não podem responder imediatamente. Isso
deve nos dar algum tempo.”
Lawrence não estava participando do planejamento operacional da
dupla, apenas relatando suas observações. No entanto,
misteriosamente, isso não o incomodava.
“Bem, vamos nos mover?” Kieman perguntou, ao que Eve
assentiu, assim como Lawrence.
O plano de monopolizar o narval não era mais viável, mas isso não
significava que ainda não havia lucro a ser obtido.
Simplificando, Reynolds agora figurava na discussão de Eve e
Kieman sobre como dividir os lucros do narval. Claro, se isso era
voluntário ou compulsório não era uma questão de debate.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 201 ⊱

“Aqui. Seu último emprego.” Eve mal podia esperar para a tinta
secar, então ela espalhou areia no pergaminho antes de enrolá-lo e
enfiá-lo em Lawrence. Seu tom de brincadeira arrancou um sorriso de
desculpas de Kieman.
Lawrence achou que entendia por que a própria Eve não estava
sorrindo. Ao pegar o pergaminho de Eve, ele não esperava que ela
dissesse isso em voz alta.
“Eu esperava encontrar você no rio,” ela disse.
“É melhor para mim ver você em suas viagens sob o sol. Afinal,
eu sou o comerciante que você enganou.”
Os olhos de Eve se estreitaram, mas ela não disse mais nada.
De sua parte, Kieman parecia ter adivinhado, a partir dessa
conversa, como seu plano original teria se desenrolado. Ele sorriu
cansado e balançou a cabeça.
“Agora, então, se você fizer a gentileza de esperar aqui.” Lawrence
deixou a dupla com essas palavras e, ao sair da sala e passar pelo
corredor, recebeu o mesmo velho olhar do mensageiro de Kieman,
que estava postado lá.
Evidentemente, o sangue em sua roupa era por ter sido chutado
no nariz ao tentar conter Eve. Lawrence lançou ao homem um sorriso
de mercador apesar de tudo, provavelmente porque ele simplesmente
não gostava muito do homem. Satisfeito com isso, ele seguiu pelo
corredor.
Aqui e ali havia grupos de pessoas reunidas em torno da luz fraca
das velas, sussurrando umas para as outras. Eles ainda estavam
tentando bolar algum tipo de esquema, ou eles estavam simplesmente
debatendo sobre o que poderia acontecer a seguir?
De qualquer forma, Lawrence segurava na mão a carta que
derrubaria a cerimônia que estava ocorrendo no majestoso santuário
da igreja. Ele naturalmente andou com um pouco mais de arrogância.
CAPÍTULO IX ⊰ 202 ⊱

Agora ele era o protagonista. Armado com esse conhecimento, se


aproximou dos guardas postados na porta do santuário e falou com
eles, então entrou com a cabeça erguida e uma expressão séria no
rosto.
Um estranho murmúrio percorreu o santuário, e Reynolds era o
único que ainda exibia um sorriso corajoso e arrogante.
“Senhor. Reynolds”, murmurou Lawrence, tendo aberto caminho
pela multidão e agora parado na frente do altar.
Ele não era desconhecido para o homem.
Reynolds o encarou e o cumprimentou com um prazer exagerado,
como se encontrasse um velho amigo. “Ora ora! O que temos aqui?”
Foi um belo ato. De fato, Reynolds não era um mercador com
quem devesse brincar.
“Sim, na verdade, uma certa mulher me pediu para entregar isso.”
Não demorou muito para Reynolds entender que isso se referia a
Eve. “Oh ho.” Por apenas um instante, um olhar de avareza revoltante
brilhou em seu rosto; era bem adequado à luz bruxuleante das velas.
Ele certamente estava pensando que juntar seu capital ao dela por
conveniência poderia poupar algum esforço.
“Parece ser um pedido de negociação.” Lawrence tirou a carta do
bolso do paletó, o que fez o sorriso de Reynolds só aumentar. Dadas
as circunstâncias, ele obviamente estava pensando que poderia usá-la
como quisesse.
Ele abriu a carta com entusiasmo, como um jovem abrindo um
bilhete de amor.
Lawrence se congratulou por não rir da cara que ele fez em
seguida.
“Dado que você comercializa um grande volume de mercadorias,
Sr. Reynolds, ela pede uma inspeção aos seus livros. A referida
inspeção será conduzida por um representante atento da minha guilda
comercial.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 203 ⊱

“…Ah…er…”
“Temos evidências sobre seu comércio de moedas de cobre,
mostrando que você recebeu cinquenta e oito caixas da Companhia
Debau, mas enviou sessenta para o reino Winfiel — embora a
princípio tenhamos presumido que você estava apenas fugindo das
tarifas.”
O suor escorria do rosto de Reynolds enquanto Lawrence
murmurava em seu ouvido. Era como se a respiração de Lawrence
estivesse muito quente, e Reynolds era uma estatueta de cera.
“Mas você não estava manipulando tarifas para ganhar um pouco
de dinheiro. Você estava cooperando com a Companhia Debau para
transferir grandes quantidades de capital rio abaixo.”
Dependendo do método de embalagem, o número de moedas em
uma caixa pode diferir. Usando esse pequeno truque, eles poderiam
transferir o dinheiro secretamente.
“Você recebeu o pagamento de sessenta caixotes de Winfiel, então
pagou Debau por cinquenta e oito. Contanto que você observe cada
transação separadamente, elas parecem bater no livro. Mas se o
número de moedas nos caixotes corresponde ao valor pago, isso não
está claro.”
O rosto de Reynolds ficou pálido, e seus olhos se moviam
loucamente para frente e para trás.
“Mas se compararmos importações e exportações, fica claro que a
diferença de dois caixotes sempre permanece na Companhia Jean, não
é? E você pode usar esse método para todo tipo de coisa.”
Foi o que Lawrence disse quando ouviu a resposta de Col ao
enigma. A razão pela qual ele começou a se perguntar se o truque
poderia estar sendo mais útil era porque havia tantos tipos de
mercadorias onde ele se aplicaria.
Assim como havia gente demais no mundo para acreditar que era
o protagonista.
CAPÍTULO IX ⊰ 204 ⊱

“Minério de cobre, chumbo, estanho, latão e produtos derivados.


Desde que eles tenham uma forma padrão e sejam redondos, você
pode fazer isso. As minas Roef são ricas em metais, não são?”
“N-não... mas...”
“Você está sugerindo que isso é simplesmente uma transferência
secreta de capital? Receio que simplesmente não seja assim. Vamos
enviar meu pessoal para visitar a Companhia Debau? Quando notei sua
desonestidade pela primeira vez, a primeira coisa que presumi foi que
você estava tentando evitar tarifas. Mas os impostos são importantes.
O que aconteceria se a Companhia Debau não estivesse disposta a
pagar a parte deles?”
O rosto de Reynolds começou a se contorcer e balançar como o
de uma criança trêmula.
Dois pássaros, uma pedra.
Isso é o que quase qualquer um diria se tivesse notado esse plano.
“Seu método permite que a Companhia Debau também sonegue
impostos. Cada vez que eles trocam moedas de cobre com a
Companhia Jean, eles perdem duas caixas de moedas de seus livros. E
se não houver lucro, eles não precisam pagar impostos. Então —”
Lawrence fez uma pausa para limpar a garganta e Reynolds
aproveitou a oportunidade.
“O que você quer? Quantos? Qual é o seu objetivo? Diga-me!”
Mesmo pego de surpresa, Reynolds conseguiu se controlar o
suficiente para não levantar a voz.
Lawrence colocou a mão em seu ombro como se quisesse acalmá-
lo, sorriu e continuou.
“Sou um mero mensageiro. Tais negociações...” Ele olhou por
cima do ombro para a multidão no corredor. “… Precisará ser
discutido com meus associados.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 205 ⊱

O que restava do orgulho de Reynolds o impediu de cair de


joelhos no local. Uma coisa seria lidar com mercadores que podiam ser
bajulados ou subornados.
Mas as pessoas esperando no corredor na entrada por Reynolds
eram tão avarentos que cometeriam assassinatos de bom grado.
“Agora, se me der licença. Afinal, sou um mero mercador viajante
tentando encontrar alguns ossos de lobo —” disse Lawrence, virando-
se e indo embora.
Ao passar por Kieman e Eve, ele brevemente apertou suas mãos.
Os dois eram bem capazes de cozinhar o ganso Reynolds — disso
ele não tinha dúvidas.
Ele caminhou pelo corredor, passando pelos mercadores de rostos
sombrios.
Ele não era o herói.
Ele não era um grande comerciante.
Ele não foi feito para um grande palco, nem tinha cordas que
pudesse puxar à vontade.
Quando ele saiu pela porta da frente da igreja, o sol estava se
pondo, e as tochas atrás dele lançavam longas sombras pela noite.
Quando olhou para trás, a grande estrutura tinha uma presença
estranhamente sinistra, sendo iluminada por baixo pela luz das tochas.
Ele desceu os degraus de pedra, passou pela multidão reunida para
assistir à comoção na igreja e continuou.
Não que ele estivesse particularmente confiante. Havia
simplesmente um lugar que ele tinha que ir. Uma cena familiar em um
edifício familiar.
Ele entrou pela porta que ele mesmo havia deixado aberta,
subindo as escadas rangentes até o terceiro andar. Seus olhos ainda não
haviam se ajustado à escuridão, então o corredor estava um pouco
escuro, mas ele podia dizer onde estava a porta.
CAPÍTULO IX ⊰ 206 ⊱

Ele parou na frente dela e bateu duas vezes, devagar.


Uma presença do outro lado da porta se moveu, e a porta logo foi
aberta.
Da porta aberta vazava a luz das velas e o cheiro de comida.
Foram dias complicados. Mesmo assim, Lawrence sorriu e falou.
“Voltei.”
Holo e Col responderam: “Bem-vindo de volta”.
A porta se fechou suavemente atrás dele.
o final, eles nunca descobriram que tipo de negócio
absurdo Kieman e Eve forçaram goela abaixo em
Reynolds. Mas, partindo do fato de que o comércio de
narvais entre Reynolds e os sulistas — que quase
terminou em desastre — correu sem problemas, ele deve ter aceitado
o envolvimento da Guilda Comercial Rowen.
Reynolds ainda comprou tecnicamente o narval, mas em troca de
silêncio sobre sua desonestidade e a evasão fiscal da Companhia Debau,
os lucros iriam para os sulistas através da Guilda Comercial Rowen.
Ou algo mais ou menos nesse sentido.
A fim de acalmar os proprietários do norte, Eve provavelmente
agiu como mediadora e distribuiu diretamente a eles uma parte dos
lucros.
ATO FINAL ⊰ 208 ⊱

Isso foi o que Lawrence pôde deduzir do estado da cidade, e ele


não tinha nenhum desejo especial de saber toda a verdade.
Ele foi libertado de agir como ferramenta de Kieman, bem como
da conspiração com Eve, então eram águas passadas.
E no dia seguinte eles foram servidos com uma refeição ao meio-
dia que transbordava da mesa. Lawrence nem se deu ao trabalho de
perguntar quem pagou a conta.
“Então, onde é o nosso próximo destino?” perguntou Holo
enquanto devorava um pedaço de carne tão macio que não precisava
de faca nem dente para cortá-lo.
A comida estava tão saborosa que Col estava tendo dificuldade
para engolir.
“Boa pergunta... Mmm, isso é delicioso. Que carne é essa?”
Lawrence estava completamente absorto na refeição requintada,
e sua resposta superficial lhe rendeu um olhar desagradável de Holo.
“Eve vai enviar alguém para nos dizer o que eles conseguiram
aprender com Reynolds sobre os ossos de lobo, então você não precisa
se preocupar.”
“Mm. É um mero contrato verbal”, disse Holo, devorando uma
cabeça de peixe frita.
Como seria de esperar de uma cidade portuária costeira, havia
uma tigela cheia de sal marinho na mesa, e Holo o polvilhara
generosamente no bife, e parecia ser realmente delicioso.
Ela deu mordida após mordida e rapidamente terminou.
“Você está bem ciente de como os contratos verbais são
importantes, não é?”
Holo não disse nada em resposta à pergunta de Lawrence, em vez
disso, lambeu os dedos como um gato.
“De qualquer forma, meu palpite é que vamos acabar cruzando o
canal…”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 209 ⊱

“O mar?” Col ergueu os olhos de suas intensas análises sobre


comer ou não a cabeça de camarão à sua frente ou deixá-la no prato.
“Eles são uma nação insular que importa moeda estrangeira, então
estão cheios de pessoas que se destacam em comprar todo tipo de
coisa.”
Não ficou claro se Col entendeu, mas no momento em que olhou
de volta para a cabeça de camarão, Holo a pegou e colocou na boca.
Que estalou audivelmente enquanto ela mastigava.
Col parecia mais surpreso por Holo comer o camarão do que por
tê-lo roubado dele.
“Você pode comer cabeças de camarão. São bem gostosas.”
“O qu…?”
Holo teria ficado satisfeita se ele tivesse uma expressão de inveja,
mas mesmo a sábia loba era fraca contra esses rostos tristes.
“Hmph,” ela murmurou, recuando a mão que estava pegando o
resto do camarão.
“Vocês dois comem bem”, disse Lawrence. Era uma piada óbvia,
mas ele ainda se viu arrancando uma erva de seu rosto que havia sido
arremessada lá por Holo. “Honestamente,” ele suspirou, e então houve
uma batida hesitante na porta.
Col começou a se levantar, mas Lawrence estava esperando por
isso, então acabou ele mesmo indo até a porta.
“Provavelmente é o mensageiro de Eve”, disse ele, abrindo uma
fresta da porta.
Apenas os descarados ou os arrogantes escancaravam a porta
durante uma refeição. Quando ele viu o rosto de seu hóspede além da
porta entreaberta, ficou feliz por não tê-la aberto.
“Nossa, talvez eu devesse ter entrado,” disse Eve maliciosamente
enquanto Lawrence saiu para o corredor e fechou a porta atrás de si.
ATO FINAL ⊰ 210 ⊱

Holo ainda seria capaz de ouvi-los perfeitamente, mas isso era


melhor do que uma briga.
“Não brinque. Mas eu não esperava que você viesse.”
“Você me ofende. Não sou do tipo que esquece uma dívida, e devo
minha vida a você.”
Ela estreitou os olhos sob o cachecol, nunca deixando ninguém
saber se ela estava brincando ou não. E, no entanto, se perguntassem
a Lawrence se estava infeliz por ela ter vindo pessoalmente, a verdade
é que ele não estava.
“Então, sobre o que você me perguntou.”
“Tem novidades?”
“Acontece que Reynolds tinha alguma noção de para onde os ossos
foram.”
Preocupado com sua escolha de palavras, Lawrence a pressionou.
“Alguma noção?”
“Quero dizer, ele sabia menos que eu.” Ela inclinou a cabeça,
obviamente dificultando o momento.
Eve tinha a informação que Lawrence e Holo mais queriam o
tempo todo.
“Não fique bravo. Eu não pensei que as coisas acabariam assim.”
“E?”
“Ei. Ontem você não ficou tão sério quanto agora.”
Ela cutucou seu queixo com o dedo, o que o fez franzir o cenho.
Ela poderia ter bebido um pouco de vinho, para estar de bom humor.
“Vou só dizer — está no reino Winfiel, minha terra natal, no Grande
Mosteiro Brondel. Você conhece?”
“Bron... Espere, não é o mesmo da ovelha de ouro?”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 211 ⊱

“Oh ho, então você conhece a história. Aqui no continente, apenas


a geração mais velha parece saber disso. Mas é ele mesmo, o grande
mosteiro com a lenda da ovelha de ouro.”
Nas grandes planícies que se estendiam até onde se podia ver,
havia um mosteiro que cuidava de um rebanho tão vasto que nem Deus
podia contar seu número. Havia uma lenda de que a cada poucas
centenas de anos, aparecia uma ovelha com lã dourada no meio daquele
grande rebanho.
Era o mosteiro mais rico do reino Winfiel, seu poder era tão
formidável quanto a maior companhia comercial.
“Evidentemente, o mosteiro comprou os ossos, mas não sei quem
poderá afirmar que isso é verdade.”
“Não, obrigado, de verdade. Com certeza vou retribuir...”
O sorriso de Eve cortou as palavras de Lawrence imediatamente.
“Não seja rude agora. O fato é que estou em dívida com você.
Recuperei Arold e minha pele. Eu preparei um navio indo para o sul.
Então veja...” ela disse, estendendo lentamente a mão.
Ela olhou direto para Lawrence, sorrindo um sorriso genuíno.
“Espero que você me perdoe.”
Lawrence sorriu e olhou para baixo para apertar sua mão
estendida — foi quando aconteceu.
“…—!”
Ele não podia começar a adivinhar se ele poderia ter previsto que
tal coisa acontecesse. Sua mente ficou branca com a surpresa.
“…Este perfume, é folha de abi? Kieman deve ter lhe dado um
grande banquete.” Eve sorriu casualmente, recolocando o cachecol
como se nada tivesse acontecido. “Você me ensinou que o negócio é
mais lucrativo quando pega seu oponente de surpresa. Isso foi o
pagamento da aula.”
A mente de Lawrence ainda não tinha entendido quando ela
colocou a mão em seu ombro e se aproximou de seu rosto.
ATO FINAL ⊰ 212 ⊱

“Meu nome pode ser de alguma utilidade em Winfiel. Fleur von


Eiterzental Bolan. Esse é meu nome formal, mas há outro nome
conhecido apenas por pessoas próximas a mim. Fleur von Eiterzental
Mariel Bolana. Gosto bastante do som de Mariel —” disse ela, com um
sorriso inocente que Lawrence gostaria de ver.
“Espero que seja de alguma utilidade para você, Lawrence.”
O uso repentino do nome dela o surpreendeu por um momento,
mas ele rapidamente respondeu: “Talvez”.
“Kraft Lawrence... estou feliz por ter conhecido você.”
Eram suas palavras como uma mercadora veterana, cujas roupas
de viagem lhe caíam bem. Seu lenço estava enrolado confortavelmente
em torno de sua cabeça, e ela estava vestida completamente preparada
para viagem.
Ela tirou as mãos dos ombros de Lawrence, endireitou-se e
calmamente estendeu a mão novamente.
Ela era uma perfeita mercadora viajante, o que era quase
frustrante.
“Eu nunca vou esquecer o nome Eve Bolan.”
“Ei. Onde quer que você encontre dinheiro, você me encontrará.
Tenho certeza de que nos veremos novamente.”
Ela puxou a mão bruscamente e girou nos calcanhares, indo
embora sem um único arrependimento.
Lawrence voltou-se para a porta atrás dele e estava prestes a abri-
la, quando sua mão parou.
“Huh? O que há de errado?” A porta estava aberta, e lá estava Col.
Por alguma razão ele estava segurando um prato cheio de comida e
com uma expressão preocupada. “Hum, ela me disse para sair e
observar.”
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 213 ⊱

Devido ao ângulo da porta, Lawrence não conseguia ver Holo de


onde estava. Mas pelas palavras de Col e sua aparência, ele poderia
juntar as peças. Ele deu um tapinha na cabeça de Col.
“Espere aqui no corredor um pouco”, disse ele.
Lawrence não tinha certeza se conseguira dar o sorriso certo, mas
deveria sorrir, ele sabia.
Col assentiu obedientemente e passou por Lawrence e entrou no
corredor. Enquanto entrava, Lawrence arrancou um pedaço de seu
prato.
Era uma erva de cheiro amargo, abi. O que Eve tinha nomeado.
A mesma erva que Holo jogou em seu rosto.
Ele colocou na boca, entrando no quarto enquanto mastigava e
fechando a porta atrás dele.
“Não quero me lembrar do que aconteceu depois.” Se Lawrence estivesse
escrevendo sua biografia, é assim que ele teria terminado o capítulo.
Ele murmurou isso para si mesmo em um esforço para escapar da
realidade.
á faz algum tempo. Aqui é Isuna Hasekura. Agora você
segura o segundo volume de uma peça de dois volumes.
Este foi tão difícil que me deixou nostálgico pelos dias em
que pensei que seria capaz de terminá-lo rapidamente.
Apesar de até agora poder terminar o desenvolvimento e a conclusão
de minhas histórias em um único volume, tendo terminado o volume
anterior em um gancho, eu sabia que tinha que encaixar a conclusão
neste volume, e foi por isso que foi tão difícil.
Além disso, não saber quanto material resultaria da adição de um
certo número de desenvolvimentos de enredo me deixava
constantemente nervoso sobre estar ficando muito longo ou muito
curto.
Foi certamente uma boa experiência para mim e estou aliviado
por tê-la concluído.
SPICE & WOLF VOL IX ⊰ 215 ⊱

Naturalmente, devo me desculpar por tê-los feito esperar quatro


meses. Vou escrever como um louco daqui em diante! Eu vou
escrever, eu juro!
Aliás, como já falei em outros lugares, me mudei. Por muito
tempo eu morei em uma casa com a qual eu não reclamava, apesar de
inconvenientes como janelas que não trancam e uma ocasional falta de
água quente, então eu presumi que viveria nela por um bom tempo
ainda.
E, no entanto, no dia em que descobri que não cabia mais livros
nas estantes, não aguentei mais. A partir desse momento, não
demorou muito para que eu não pudesse fazer nada sobre a limpeza
dos quartos. Assustador, de fato.
E então me mudei para um lugar um pouco maior, e a vida aqui é
agradável.
Espaço na sala é espaço na mente! Eu nem fico bravo quando meu
PC atualiza automaticamente e reinicia no meio de um jogo.
Os quartos são tão agradáveis que começo a me perguntar se não
deveria ter um aquário bonitinho para colocar em algum lugar. Eu
sinto que poderia cuidar de um pequeno baiacu, digamos, e para uma
betta eu poderia simplesmente colocar um pouco de água em uma
garrafa de geleia — e dado que eu comprei um livro sobre peixes
tropicais apenas alguns dias antes de escrever este posfácio, pode ser
apenas uma questão de tempo.
No entanto, fora da sala de estar, estou o mais distante possível de
qualquer coisa que se aproxime remotamente de uma biblioteca ou
estudo…
Mas como espero ter o lugar arrumado a tempo para a próxima
jogada, me encontro enterrado em páginas, então — vejo todos vocês
novamente no próximo volume!

— Isuna Hasekura
XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 218 ⊱
OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/

Billionaire Magdala de Shoujo wa World End


Isuna Hasekura Girl Nemure Shoka no Economica
História Umi de
Nemuru

Nascido em 27 de dezembro de 1982, Isuna Hasekura é um estudante de física e


gasta seus dias lamentando a cruel natureza do mundo desde que estudar
harmônicas de superfície esférica falhou em dar a ele o resultado correto da
restituição do imposto de renda. Entretanto, devido a situações atenuantes, ele é
incapaz de prover uma explicação satisfatória sobre harmônicas de superfície
esférica.

Gelatin Risou no Uchi no Maid Witch Hunt


Juu Ayakura Himo wa Futeikei Curtain Call
Arte Seikatsu

Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.

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