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PUBLICADO

10.06.2006
S eguindo sua boa fortuna em Pazzio, Lawrence está confiante
de estar no caminho para realizar seu sonho de se tornar um
comerciante da cidade. No entanto, um negócio mal explicado o
deixa na beira da falência e ruína! Sem nenhum bem que o ajude
— exceto a destreza de sua atraente companheira de viagem,
Holo, a Sábia Loba — Lawrence pode precisar recorrer a meios
ilícitos para pôr seus negócios em ordem. Com todos os planos
do mercador dependendo de uma bela e jovem pastora — cuja
vocação Holo não guarda nenhum afeto — as expectativas de
Lawrence, tanto pessoais quanto profissionais, parecem sombrias.
SPICE & WOLF VOL I ⊰4⊱
LAWRENCE “POSSO PERGUNTAR QUAL O
ESTAVA PARA SEU NOME, SENHORITA?”
ESTENDER SUA
MÃO, E ASSIM
SELAR O
CONTRATO,
QUANDO
PERCEBEU
QUE NÃO
“OH, UM, MINHAS DESCULPAS.”
HAVIA
PERGUNTADO
— NORAH ARENDT
À GAROTA O A PASTORA
SEU NOME.
SPICE & WOLF VOL I ⊰6⊱

“SE VOCÊ APENAS NÃO TIVESSE —” ELE GRITOU. MAS QUANDO


NOTOU O SEU ERRO, JÁ ERA TARDE.
“QUE A PROTEÇÃO DE DEUS
A MENOS QUE ATRAVESSASSEM A PASSAGEM ESTEJA CONOSCO.”
E CHEGASSEM SEGUROS EM LAMTRA, E A — MARTEN LIEBERT DA
MENOS QUE RETORNASSEM COM O OURO, COMPANHIA REMELIO
NENHUM DELES TERIA FUTURO. SEUS
OLHARES SE ENCONTRARAM, E TODOS
ASSENTIRAM EM UM ENTENDIMENTO
SILENCIOSO.
CAPÍTULO I ............................................................... 9
CAPÍTULO II ............................................................ 55
CAPÍTULO III .........................................................103
CAPÍTULO IV .........................................................138
CAPÍTULO V ..........................................................193
CAPÍTULO VI .........................................................240
EPÍLOGO ................................................................292
POSFÁCIO ..............................................................302
EXTRAS ..................................................................304
s colinas onduladas continuavam perpetuamente.
Os pedregulhos eram proeminentes; grama e árvores
eram escassas.
A estrada se estreitava por entre os montes,
frequentemente se afunilava tanto que até mesmo uma única carroça
era o suficiente para bloqueá-la completamente.
Justamente quando parecia que a subida continuaria
interminavelmente, a estrada se inclinou para baixo, e as
aparentemente intermináveis rochas nuas e arbustos secos subitamente
mudaram para uma tão ampla e aguardada vista.
Enquanto a viagem tenha sido mais interessante do que as infinitas
planícies de grama, a maioria acharia a viagem cansativa ao quinto dia.
CAPÍTULO I ⊰ 10 ⊱

Da estrada, tingida com uma solidão que sugeria o inverno


próximo, a voz soava satisfeita com as ondulações das pedras e com o
caminho ocre havia desaparecido. A detentora deste som estava agora
aparentemente muito entediada até mesmo para se sentar no banco;
ao invés disso ela estava deitada no leito da carroça, acariciando o pelo
da sua cauda.
Um jovem homem guiava a carroça, aparentemente acostumado
com tal comportamento egoísta por parte de sua companhia. O
homem, Kraft Lawrence, era facilmente identificável como um
mercador viajante. Este ano faria sete desde que começou por conta
própria, e ele parecia estar em torno de vinte e cinco anos. Como que
em reconhecimento do frio que veio com o passar do outono, ele
apertou o casaco de pele que estava enrolado em volta de seu corpo.
Ocasionalmente, o frio também o levava a acariciar seu queixo,
coberto com o tipo de barba que era comumente visto entre
mercadores viajantes, desde que se sentou, tinha ficado com um pouco
mais de frio. Deixando um sopro escapar, que se tornaria neblina uma
vez que o sol se punha, Lawrence olhou por cima do ombro para o
leito da carroça.
Normalmente cheia até a borda com várias mercadorias, a carroça
estava desfrutando de uma breve pausa. Tudo o que se destacava era a
lenha e palha que fornecia calor à noite, junto com uma única bolsa,
pequena o suficiente para uma criança carregar.
No entanto, o conteúdo deste saquinho era mais valioso do que
uma carroça inteira carregada de trigo jamais seria. O saco estava cheio
de pimenta de alta qualidade que valia cerca de mil trennis de prata. Se
pudesse ser vendido em uma cidade montanhosa, poderia conseguir
mil e setecentas moedas de prata, mas o saco estava sendo usado como
travesseiro pela companheira de Lawrence, que continuava
preguiçosamente a acariciar sua cauda.
Ela era pequena, com um rosto que era de certa forma imperioso,
apesar da sua juventude aparente, lembrando uma rainha relaxando em
seu palácio. O capuz de seu manto estava jogado para trás, expondo
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 11 ⊱

suas orelhas pontudas enquanto ela acariciava a sua cauda, com uma
expressão preguiçosa.
Dada a cauda, as orelhas pontudas, e o fato de seu status como
companheira de viagem de um mercador, alguém poderia
compreensivelmente pensar em um cão, mas infelizmente ela não era
nenhum cachorro.
Ela era aparentemente uma “loba sábia”, uma deusa loba das
florestas do distante norte — mas Lawrence tinha suas dúvidas se ela
poderia ser apropriadamente chamada de loba.
Afinal de contas, esta “loba” parecia ser uma jovem garota.
Chamá-la de loba parecia um pouco impreciso.
“Chegaremos à cidade em breve. Tenha cuidado,” ele disse.
Seria desastroso se as orelhas e cauda da garota fossem vistas por
outros. A verdade era que a sagacidade dela humilharia os instintos do
melhor comerciante, assim Lawrence não precisava avisá-la do perigo.
No entanto, ela estava tão relaxada que ele simplesmente tinha que
falar.
Lhe dirigindo um mero olhar, ela apenas deu um grande bocejo.
Concluindo o bocejo com uma exalação vaga, ela agora
mordiscava como um cachorrinho a ponta branca de sua cauda castanha
escura, como se ela coçasse. Ela não parecia ter a menor preocupação
em “tomar cuidado”.
Tendo se apresentado como uma loba e possuindo estas orelhas e
cauda, pelo menos Holo certamente relaxava despreocupadamente
como um animal.
“...Hrm.”
Uma ligeira vocalização que poderia ter sido uma resposta (ou
poderia simplesmente ter sido uma pequena declaração de vitória
sobre a coceira) chegou aos ouvidos de Lawrence. Cansado de esperar
pela resposta dela, olhou para a frente novamente.
CAPÍTULO I ⊰ 12 ⊱

Holo e Lawrence se conheceram duas semanas antes. Devido a um


evento estranho em uma das vilas em que Lawrence parou, Holo se
juntou a ele, e os dois tinham viajado juntos desde então. Com suas
orelhas e cauda, no momento ela seria considerada um espírito
maligno, e a Igreja procuraria acabar com sua vida para preservar a
ordem.
Lawrence não tinha um pingo de dúvida de que ela era de fato uma
loba e não uma simples garota, que acabou com orelhas de um lobo e
uma cauda.
Apenas nove dias antes, na cidade portuária de Pazzio, quando
uma confusão de moedas de prata estava chegando ao fim, ele tinha
visto a verdadeira forma dela.
A enorme loba marrom chamada Holo que entendia a fala humana
e possuía uma presença esmagadora que era inegavelmente uma deusa.
No entanto, Lawrence acreditava que sua relação com o Holo, a
Sábia Loba deveria ser monetária, de parceiros que emprestam e
pegam emprestado, de companheiros de viagem, e de amigos.
Ele olhou para trás novamente, Holo parecia ter pegado no sono.
Apesar de suas pernas estarem cobertas pelas calças que usava sob o
manto, este ainda estava atrelado ao redor da sua cintura por ter
acariciado sua cauda mais cedo, e não havia como negar o fato de que
a visão era um pouco libidinosa.
Sua expressão sonolenta era a própria imagem de indefesa, e
juntamente com seu pequeno corpo, Holo parecia menos como um
lobo e mais com o tipo de garota que um lobo provavelmente comeria.
No entanto, Lawrence não a subestimava.
Suas orelhas de lobo moveram de repente e ela se mexeu,
puxando o capuz sobre a cabeça e colocando o seu manto para baixo
para cobrir sua cauda.
Lawrence olhou adiante no ponto em que a estrada se aproximava
de uma colina e se dobrava. Diante deles, a figura de um único
comerciante a pé podia ser vista.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 13 ⊱

Avisar Holo tinha de fato sido desnecessário.


Holo, a Sábia Loba, tinha centenas de anos, e o jovem de 25 anos
de experiência estavam longe de se igualar a ela.
No entanto, Holo parecia ser a mais jovem entre eles, e sua
verdadeira idade era muitas vezes maior do que a que aparentava ter,
um fato que ocasionalmente irritava Lawrence.
Era a esperança de Lawrence que Holo agisse mais de acordo com
a aparência dela, obedecendo ele quando lhe fosse dito. Uma variedade
de problemas poderia ter sido evitada dessa maneira, e a loba tinha que
agradecê-lo por isso — mas infelizmente, o oposto era muito mais
comum.
Lawrence olhou para o leito da carroça mais uma vez.
Apesar da natureza furtiva da espiada de Lawrence, Holo voltou
seu olhar para onde ela estava deitada, enroscada em torno do saco de
pimenta.
Ela lançou um sorriso mesquinho, como se dissesse que sim, ela
podia ver tudo muito bem, antes de fechar os olhos mais uma vez.
Lawrence voltou a olhar para a estrada.
Talvez aproveitando o passeio da carroça, a cauda de Holo se
mexia para frente e para trás.
A cidade adiante recebia o estranho nome de Poroson.
Além da cidade, ao norte e ao leste (eles viajariam para cidades e
vilas que estavam muitos dias além dos planaltos a vista) as roupas e
alimentação das pessoas mudariam — até mesmo os deuses adorados
seriam diferentes. A dupla se encontraria em terras verdadeiramente
estrangeiras.
Lawrence ouviu que Poroson até recentemente era conhecida
como um portal para outro mundo.
Descendo para o oeste destes planaltos cobertos de rochas,
poderia se encontrar terras abundantemente férteis e florestas em
CAPÍTULO I ⊰ 14 ⊱

todas as direções. No entanto, a terra cercada como estava pelas rochas


circundantes, forneciam poucas nascentes e era difícil cultivar. A única
razão para se dar ao trabalho de fundar uma cidade aqui era a sua
posição como passagem para um outro mundo.
Eles continuaram através dos campos. Lawrence podia ouvir os
gritos fracos de cabras através da névoa da manhã enquanto contava as
muitas lápides em forma de pilares. Os pilares foram esculpidos com
os nomes de muitas gerações de sábios na longa história da Igreja e
continuavam a purificar a terra ainda hoje.
Muito antes de ser conhecida como um portal para outro mundo,
Poroson era uma terra santa para uma determinada fé pagã.
Muitos anos se passaram desde que a Igreja, seguindo a vontade
de seu deus, enviou missionários para converter os pagãos, iniciando
uma guerra para purificar esta terra contaminada por crenças impuras.
Poroson foi um ponto de virada psicológica no processo da destruição
da antiga fé. Uma vez que a Igreja estava a ponto de aniquilar a fé pagã
na região, os sacerdotes ordenaram que uma cidade fosse fundada.
Poroson logo se tornou a área de teste para os missionários e
cavaleiros em direção ao norte e ao leste atrás dos pagãos restantes, e
ela chegou a ter a reputação de ser uma encruzilhada para pessoas e
bens.
Os missionários com suas túnicas de eremita esfarrapadas e os
cavaleiros com espadas justas em mãos, prontos para recuperar a terra
em nome de seu deus, já não existiam mais.
Tudo o que passava pela cidade nestes dias eram bens, sal e ferro
do norte e do leste, grãos e couro do sul e do oeste. As guerras santas
do passado se foram há muito tempo, substituídas pelas contínuas idas
e vindas de mercadores astutos.
A presença de Holo tornou necessário para Lawrence tomar
estradas com pouco tráfego, mas ao longo de certas rotas comerciais
antigas, eles continuamente passavam por carroças carregadas com
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 15 ⊱

mercadorias raras. Muitos dos têxteis que viam eram de qualidade


particularmente elevada.
Apesar do ativo comércio, Poroson era uma cidade bastante
modesta, graças aos hábitos de seus residentes. A riqueza do comércio
provia um magnífico muro ao redor da cidade, mas as construções
dentro dela eram de humildes pedras, e seus telhados eram cobertos
de palha. É verdade que onde quer que bens e pessoas se cruzassem,
dinheiro seria deixado para trás e a área vai prosperar, mas as
circunstâncias de Poroson eram ligeiramente diferentes.
Os moradores eram todos bastante devotos e davam a maior parte
de seu dinheiro para a Igreja. Além disso, Poroson não pertencia a uma
nação em particular, mas sim a capital religiosa de Ruvinheigen ao
noroeste, assim os dízimos não ficavam em sua própria igreja, mas
fluíam para uma cidade maior. Na verdade, a Igreja também se ocupava
dos impostos sobre a terra, de modo que Poroson nem sequer
controlava suas próprias receitas fiscais.
Os moradores da cidade não tinham interesse em nada além de
suas próprias vidas humildes.
Quando o sino soava através da névoa da manhã, os trabalhadores
nos campos paravam seus trabalhos e se viravam em direção ao som,
juntando suas mãos e fechando os olhos.
A esta hora em uma típica cidade, os comerciantes com o rosto
avermelhado estariam disputando por uma posição na praça da cidade,
mas aqui não havia tal comoção grosseira.
Sem querer se intrometer com as orações dos moradores,
Lawrence parou sua carroça. Então juntou suas mãos e ofereceu uma
prece a seu próprio deus.
O sino tocou uma segunda vez, e quando o povo voltou ao seu
trabalho, Lawrence fez sua carroça andar novamente. De repente,
Holo falou.
“Oh, então você é um homem religioso agora?”
CAPÍTULO I ⊰ 16 ⊱

“Vou orar para qualquer um que possa me prometer viagens


seguras e bons lucros.”
“Eu posso te prometer uma boa colheita.”
Holo olhou para Lawrence enquanto ele olhava para ela com o
canto do olho.
“Então você quer que eu reze para você?”
Holo conhecia e odiava a solidão sentida por deuses. Lawrence
acreditava que ela não poderia estar falando sério, mas ele se aventurou
a perguntar.
Suspeitava que estava brincando com ele por estar entediada.
Como esperado, a resposta veio em voz propositalmente doce.
“Sim, certamente quero.”
“Pelo que devo orar, então?” perguntou Lawrence, até agora
acostumado com este tipo de tratamento de Holo
“O que você quiser. Posso fornecer uma colheita abundante,
naturalmente, mas também viagens seguras não são problema para
mim. Posso prever os ventos e a chuva e dizer se a água das nascentes
é boa ou ruim. E sou a pessoa perfeita para se livrar de lobos e cães
selvagens.”
Ela soava como uma jovem da vila exaltando suas virtudes para
uma guilda mercante, mas Lawrence pensou por um momento antes
de responder.
“Suponho que valeria a pena rezar por viagens seguras.”
“Valeria, não é?” respondeu Holo com um sorriso satisfatório,
inclinando levemente a cabeça.
Ver seu sorriso inocente e despreocupado fez Lawrence se
perguntar se ela não estava simplesmente tentando vangloriar suas
próprias habilidades sobre o deus da Igreja. De vez em quando, Holo
exibia uma certa infantilidade.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 17 ⊱

“Bem, então acho que vou orar por viagens seguras. Seria
reconfortante ser capaz de evitar os lobos.”
“Mm. Viagens seguras, certo?”
“Certo.”
Lawrence puxou as rédeas para evitar um jumento pastando na
grama.
A porta de entrada para as muralhas da cidade estaria diante deles
em breve. O fim de uma fila de pessoas esperando para a inspeção era
visível até mesmo na névoa da manhã.
Apesar de toda a cidade fazer parte da Igreja, muitos mercadores
chegavam de terras pagãs, então Poroson era extremamente
compreensível — a inspeção de bens era muito mais rigorosa do que a
inspeção de pessoas. Lawrence estava calculando a provável taxa que
cobrariam sobre a pimenta que ele carregava quando notou alguém o
encarando ao lado. Havia apenas Holo.
“O que, é só isso?” sua voz soava um pouco irritada.
“Hm?”
“Estou perguntando se você precisa apenas de viagens seguras.”
Olhando fixamente para Holo por alguns momentos, Lawrence
percebeu do que ela estava falando.
“O quê? Você quer que eu junte minhas mãos e ore?”
“Não seja ridículo,” disse ela com um olhar aborrecido. “Estou te
garantindo uma viagem segura — certamente você não pensa que uma
única e inútil oração é o suficiente.”
A mente de Lawrence virou como uma roda de água, quando ele
chegou à conclusão óbvia.
“Ah, você quer uma oferenda.”
“Hee-hee-hee.” Holo deu uma risada satisfeita.
“O que você quer?”
CAPÍTULO I ⊰ 18 ⊱

“Carne seca de carneiro!”


“Você se empanturrou com isso ontem! Você comeu o que
deveria ser equivalente a uma semana.”
“Eu sempre tenho espaço para a carne de carneiro.”
Nunca tímida, Holo lambeu sua mão com a lembrança da carne.
Parecia que mesmo a nobre loba era um mero cão na presença de
mantimentos secos.
“A carne cozida é boa também, mas simplesmente não consigo
resistir a textura da carne seca. Se você rezar por viagens seguras, carne
seca de carneiro é o preço.”
Os olhos de Holo brilhavam e sua cauda balançava inquieta
debaixo de seu manto.
Lawrence a ignorou completamente, em vez disso olhou para as
mercadorias carregadas no cavalo que estava sendo conduzido pelo
mercador na frente deles. O dorso do cavalo empilhava uma enorme
montanha de lã.
“E aquela lã — é boa ou ruim?”
Lã evidentemente remetia a ovelhas. Holo olhou para o monte de
lã, com os olhos cheios de expectativa, antes de responder
rapidamente.
“É muito boa — tão boa que quase posso sentir o cheiro da grama
que elas comeram.”
“Imaginei. Minha pimenta deve alcançar um bom preço aqui.”
Se a lã era de alta qualidade, a carne seria excelente também. E
enquanto a qualidade da carne subia, o seu preço também. Uma carne
cara faria com que sua pimenta, que poderia ser usada para dar sabor e
preservá-la, ainda mais valiosa, e Lawrence começou a se preparar para
vender suas mercadorias.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 19 ⊱

“Além disso, a carne seca com muito sal é boa. Pouco de sal não é
nada bom. Além disso, a carne dos flancos é a melhor, melhor do que
a carne das pernas. Ei, você está ouvindo?”
“Hm?”
“Carne salgada! Dos flancos!”
“Você tem um gosto excelente. Isso vai nos custar um bocado.”
“Hah, é uma barganha pelo dobro do preço.”
Era verdade que carne de carneiro era uma pechincha se isso
significasse que Holo garantiria viagens seguras. Afinal, sua verdadeira
forma era uma loba gigante falante. Ela provavelmente poderia até
mesmo protegê-lo de soldados hostis que dificilmente se distinguiriam
de ladrões.
No entanto, Lawrence assumiu uma expressão propositadamente
vazia ao olhar para Holo.
Seus olhos estavam ávidos pela comida imaginária. Ele não podia
deixar de provocá-la.
“Bem, então você deve ter um bocado de dinheiro. Se tem tudo
isso, talvez você deva me pagar.”
No entanto, seu oponente era uma sábia loba prudente. Ela logo
percebeu o motivo.
Seu comportamento mudou assim que olhou para ele.
“Essa abordagem não funcionará mais.”
Aparentemente, ela tinha aprendido com o incidente das maçãs.
Lawrence mordeu a língua em irritação, com o rosto taciturno.
“Você deveria ter pedido educadamente em primeiro lugar. Teria
sido muito mais charmoso.”
“Então se eu for charmosa o suficiente ao pedir, você vai comprar
um pouco para mim?” perguntou Holo sem um traço de charme.
CAPÍTULO I ⊰ 20 ⊱

Lawrence fez seu cavalo prosseguir quando a linha avançava e


respondeu categoricamente, “Claro que não. Você poderia aprender
alguma coisa com as vacas e ovelhas — tentar ruminar seu pedido,
hm?”
Ele sorriu para si mesmo, orgulhoso de sua sagacidade — mas o
rosto de Holo ficou branco de raiva, e sem uma palavra, lá no acento
da carroça, ela pisou em seu pé.
A estrada era nada mais do que terra batida, as casas simples eram
feitas de pedra rústica e palha com grama.
O povo de Poroson comprava nada além das necessidades básicas
nas tendas dos comerciantes, por isso haviam surpreendentemente tão
poucas barracas.
Um bom número de pessoas se movia na cidade, entre eles
mercadores com carroças ou com as costas totalmente carregadas, mas
a atmosfera parecia sugar a conversa de uma cidade normal como
algodão, portanto era estranhamente quieto.
Era difícil acreditar que esta cidade tranquila, simples e orgulhosa
era um nexo do comércio exterior que ganhava quantias estonteantes
de dinheiro todos os dias.
Afinal, os missionários cujos sermões de esquina eram largamente
ignorados em outras cidades podiam contar com a gratidão das
multidões atentas por aqui — então como o lucro era tão alto?
Para Lawrence, a cidade era nada menos do que um mistério.
“Que lugar tedioso,” veio a avaliação de Holo da cidade
anormalmente religiosa.
“Você só está dizendo isso porque não tem nada para comer.”
“Você fala como se eu não pensasse em mais nada.”
“Então vamos escutar um sermão?”
Pouco mais à frente deles, um missionário pregava para uma
multidão, uma mão sobre um livro de escrituras.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 21 ⊱

Os ouvintes não eram apenas pessoas da cidade — haviam vários


mercadores cujas orações normalmente se dedicavam apenas ao seu
próprio lucro.
Holo os olhou com desgosto e disse.
“Ele é jovem demais para me dar um sermão. Quem sabe daqui a
quinhentos anos.”
“Eu diria que você precisa ouvir um sermão sobre moderação.”
Brincando de braços cruzados com a faixa de seda na cintura, Holo
colocou a mão à boca e bocejou para sugestão de Lawrence. “Ainda
sou uma loba. Sermões são complicados e difíceis para nós
entendermos,” ela disse descaradamente, esfregando os olhos.
“Bem, até onde os ensinamentos de deus sobre a moderação vão,
eles são mais persuasivos aqui do que em qualquer outro lugar, eu
acho.”
“Hm?”
“Quase todo o dinheiro feito aqui flui para a sede da Igreja a
noroeste, Ruvinheigen — aquele é um lugar de onde não tenho o
menor interesse de ouvir um sermão.”
A capital da Igreja de Ruvinheigen era tão próspera que alguns
diziam que suas paredes eram de ouro. Os escalões superiores do
Concílio da Igreja que controlavam a região se envolveram no
comércio para bancar a subjugação dos pagãos, e os padres e bispos de
Ruvinheigen eram capazes de humilhar os comerciantes.
Lawrence se perguntou se era justamente por isso que as
oportunidades de lucro por aqui eram tão absurdamente abundantes.
Só então, Holo inclinou a cabeça intrigada. “Você disse
Ruvinheigen?”
“O quê, você conhece?” Lawrence deu a Holo um olhar de soslaio
enquanto conduzia a carroça para a direita uma vez que a rua se dividia.
CAPÍTULO I ⊰ 22 ⊱

“Hm, me lembro do nome, mas não como uma cidade — era o


nome de uma pessoa.”
“Ah, você não está errada. É uma cidade agora, mas era o nome
de um santo que comandou um grupo de cavaleiros contra os pagãos.
É um nome antigo — você já não ouve mais falar dele.”
“Hmph. Talvez seja dele que estou me lembrando.”
“Certamente não.”
Lawrence riu, mas logo percebeu — Holo havia viajado centenas
de anos atrás.
“Ele era um homem com cabelo vermelho flamejante e uma
grande barba espessa. Mal olhou para minhas belas orelhas e cauda
antes de mandar seus cavaleiros atrás de mim com lanças e espadas.
Me cansei, então tomei minha outra forma e arremessei os cavaleiros
ao redor dele antes de afundar meus dentes no traseiro do
Ruvinheigen. Ele era bastante magro e longe de ser saboroso.”
Holo disse com orgulho, enquanto relatava o conto galante.
Surpreso, Lawrence não tinha resposta.
Na cidade sagrada de Ruvinheigen, havia registros do Santo
Ruvinheigen ter o cabelo vermelho e a cidade em si tinha sido
originalmente uma fortaleza contra os deuses pagãos.
No entanto, em suas batalhas contra as divindades pagãs, dizia-se
que Santo Ruvinheigen perdeu seu braço esquerdo. É por isso que no
grande mural na catedral da cidade, ele era retratado sem o braço
esquerdo, com as roupas esfarrapadas, manchado de sangue,
resolutamente ordenando seus cruzados contra os pagãos, com a
proteção de Deus em suas costas.
Talvez a razão do Santo Ruvinheigen sempre ser retratado em
roupas tão rasgadas que poderia muito bem estar nu, era porque Holo
as tinha destruído. Até porque sua verdadeira forma era a de um lobo
gigante. Era fácil imaginá-la deixando alguém ensanguentado depois de
brincar um pouco.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 23 ⊱

Se Holo disse a verdade, provavelmente Santo Ruvinheigen tinha


se envergonhado de ser mordido em suas nádegas e omitiu essa parte
da história. Nesse caso, o conto do santo perder seu braço esquerdo
era uma pura invenção.
Teria Holo mordido o verdadeiro Santo Ruvinheigen?
Ouvindo a história por trás da história, Lawrence riu.
“Oh, mas espere um momento —” disse Holo.
“Hm?”
“Quero que você saiba que eu só o mordi. Não o matei,” disse
Holo rapidamente, antecipando a reação de Lawrence.
Por um momento, Lawrence não entendeu o porquê disso, mas
logo percebeu.
Deve ter assumido que ele ficaria zangado se ela matasse um de
seus companheiros humanos.
“Você é atenciosa nos momentos mais estranhos,” disse Lawrence.
“É importante,” disse Holo, com o rosto sério o suficiente para
que Lawrence não a provocasse.
“De qualquer forma, essa é de fato uma cidade tediosa. O meio da
floresta é mais animado do que aqui.”
“Eu vou vender a minha pimenta, pegar uma nova mercadoria, e
nós iremos para Ruvinheigen, então apenas aguente um pouco mais.”
“É uma grande cidade?”
"Maior até do que Pazzio — mais propriamente uma cidade do
que uma vila. É lotada de pessoas e tem muitas lojas.”
O rosto de Holo se iluminou. “Você acha que eles têm maçãs?”
“É difícil dizer se estarão frescas. Com o inverno chegando, acho
que elas serão colocadas em conserva.”
CAPÍTULO I ⊰ 24 ⊱

“...em conserva?” disse Holo, duvidosa. Nas terras do norte, o sal


era o único método de conservação, de modo que ela assumiu que as
maçãs em conserva também usariam sal.
“Eles usam mel,” disse Lawrence.
Pop! fizeram os ouvidos de Holo, se mexendo rapidamente sob a
capa que usava.
“Peras em conservas são boas também. Além disso, hmm, eles são
um pouco raros, mas já vi pêssegos em conserva. Agora isso é algo
refinado. Eles cortam os pêssegos em pedaços finos, colocam em um
barril com uma camada de amêndoas ou figos, em seguida, preenchem
os espaços com mel, e fecham o barril. Leva cerca de dois meses para
que fique pronto para comer. Só experimentei uma vez, não há nada
nesse mundo que se compare com a doçura que você sente quando
coloca um em sua boca, é tão doce que a Igreja estava considerando
bani-los... Ei, você está babando.”
Holo fechou a boca assim que Lawrence falou.
Ela deu um olhar nervoso ao redor, em seguida, olhou para
Lawrence em dúvida. “Você...você está brincando comigo, não está?”
“Você não é capaz dizer se estou mentindo?”
Holo cerrou os dentes, talvez por não ter como responder.
“Eu não estou mentindo, mas dá para saber se eles realmente têm
conservas. De qualquer modo, elas são para os nobres ricos. Não é algo
que fica na frente de uma loja.”
“Mas e se estiver?”
Swish, Swish.... a cauda de Holo balançava para frente e para trás
sob seu manto tão rapidamente que parecia ter vida própria. Seus olhos
estavam úmidos e turvos transbordando expectativa.
O rosto de Holo estava tão próximo ao de Lawrence que ela
descansou a cabeça em seu ombro.
Seus olhos estavam desesperadamente sérios.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 25 ⊱
CAPÍTULO I ⊰ 26 ⊱

“... Tudo bem, tudo bem! Vou comprar um pouco para você!”
Holo agarrou o braço de Lawrence com força. “Você tem que
comprar!”
Ele sentiu que se olhasse para ela seria mordido.
“Um pouco! Só um pouco!” disse Lawrence. Não ficou claro se
Holo estava ouvindo ou não.
“Então isso é uma promessa! Você prometeu!”
“Ok, ok!”
“Então vamos nos apressar! Depressa, agora!”
“Pare de me agarrar!”
Lawrence a afastou, mas a mente de Holo estava em outro lugar.
Seu olhar parecia se perder ao longe e murmurou enquanto mordiscava
a unha de seu dedo médio.
“Elas podem ter se esgotado. Se chegarmos a isso...”
Lawrence estava começando a se arrepender de ter falado sobre
as conservas de pêssego com mel, mas já era tarde demais para se
arrepender. Caso se atrevesse a sugerir que não compraria nada,
parecia provável que ela rasgaria sua garganta.
Não importava se a conserva de pêssego com mel eram ou não
algo que mercadores viajantes pudessem pagar.
“Não é uma questão de terem vendido tudo — eles podem nem
ter,” disse Lawrence. “Só entenda isso.”
“Estamos falando de pêssegos e mel, senhor! Não posso acreditar
até ver com meus próprios olhos. Isso demanda crença. Pêssegos e mel.”
“Você está pelo menos me ouvindo?”
“Ainda assim, é difícil abrir mão das peras,” disse Holo, voltando-
se para Lawrence e olhando para ele.
A única resposta de Lawrence foi um longo e sofrido suspiro.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 27 ⊱

Lawrence planejava vender sua pimenta para Companhia


Latparron, cujo nome era tão estranho quanto a cidade em que ela
estava localizada — Poroson.
Se fosse rastrear o nome, certamente voltaríamos para o tempo
antes de Poroson ser uma cidade e apenas os pagãos habitavam a área.
Os nomes estranhos eram tudo o que restava do passado. Afinal, todo
mundo aqui era um verdadeiro crente da Igreja, desde do topo de suas
cabeças até as pontas dos seus dedos. A Companhia Latparron logo
teria seu quinquagésimo mestre e cada um parecia mais devoto que o
anterior.
Portanto, Lawrence mal chegou na companhia — que não
visitava fazia meio ano — ele foi recebido com louvor pelo recém-
chegado sacerdote, cujos sermões ele simplesmente tinha que ouvir,
pois não precisamos salvar nossas próprias almas?
Ainda pior, o mestre da companhia Latparron parecia ter
confundido Holo em sua túnica por uma freira em peregrinação e a
incentivou a ministrar Lawrence também.
Holo aproveitou a oportunidade para repreender Lawrence,
ocasionalmente sorrindo de forma que só ele pudesse ver.
Depois de algum tempo, sua pregação terminou, e Lawrence
jurou a si mesmo que não gastaria nenhuma moeda em conservas de
pêssego com mel.
“Bem, isso foi demorado, mas vamos falar de negócios agora?”
“Eu aguardo sua boa vontade,” disse Lawrence, claramente
cansado — mas o mestre Latparron estava focado em negócios agora,
Lawrence não podia baixar a guarda.
Era possível que o longo sermão do mestre era uma tática para
abaixar a guarda de seus oponentes, os transformando em presas fáceis.
“Então, que mercadorias você me trouxe hoje?”
CAPÍTULO I ⊰ 28 ⊱

“Aqui,” disse Lawrence, recuperando a compostura e pegando o


saco lotado de pimenta.
“Oh, pimenta!”
Lawrence escondeu sua surpresa com o palpite correto do mestre
a respeito do conteúdo do saco. “Você conhece bem seus produtos,”
ele disse.
“É o cheiro!” disse o mestre, com um sorriso ardiloso — mas
Lawrence sabia que pimenta ainda por moer cheirava pouco.
Lawrence deu um olhar de soslaio para Holo, parecia que ela
estava se divertindo.
“Parece que ainda sou um novato,” disse Lawrence.
“Apenas uma questão de experiência,” disse o mestre. Até onde
Lawrence poderia dizer dos modos simples do homem, seu engano em
confundir Holo com uma freira também pode ter sido fingimento.
“Ainda assim, Sr. Lawrence, você sempre traz os melhores
produtos no momento mais oportuno. Pela graça de Deus, o feno
cresceu bem este ano, e os porcos tem engordado apenas andando
pelas ruas. A demanda de pimenta subirá por um tempo. Se você
tivesse chegado aqui mesmo uma semana mais cedo, eu seria capaz de
pegá-las da sua mão por uma mixaria!”
Lawrence só poderia oferecer um penoso sorriso em resposta ao
homem alegre. O mestre da Latparron tinha tomado o controle
completo da conversa. Agora ele poderia usar agressivas táticas de
negociação. Seria difícil para Lawrence recuperar a vantagem.
Comerciantes como estes de pequenas companhias faziam a vida
de um mercador mais dura.
“Certo, então, vamos tomar as medidas. Você tem uma balança?”
Ao contrário dos cambistas cuja reputação depende da precisão de
suas balanças, as balanças que os comerciantes traziam eram
manipuladas como se isso fosse natural. Com produtos como pimenta
ou pó de ouro, um pequeno “ajuste” na gradação de uma balança pode
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 29 ⊱

fazer uma grande diferença, por isso, o comprador e o vendedor


pesavam itens em suas próprias balanças.
No entanto, não era todo dia que Lawrence tratava com produtos
de alto preço, como pimenta, então ele não tinha nenhuma balança.
“Não, não tenho uma balança — eu confio em Deus.”
O mestre sorriu e acenou para a resposta de Lawrence. Havia dois
conjuntos de balanças em uma prateleira, e ele deliberadamente
trouxe o conjunto mais afastado.
Embora ele tomasse cuidado para não demonstrar, Lawrence
suspirou internamente em alivio.
Mesmo que ele fosse o mais devoto e fiel seguidor dos
ensinamentos da Igreja, um comerciante ainda era um comerciante.
Sem dúvidas, o primeiro conjunto de balanças havia sido adulterado.
Se a pimenta de Lawrence foi pesada em tal balança, não havia como
dizer o quanto ele iria perder. Poderia ser tão ruim quanto uma moeda
de prata para cada pimenta.
Lawrence deu a Deus os seus agradecimentos.
“Mesmo se você acreditar em um Deus justo, o homem deve ser
capaz de discernir se a escritura diante dele é verdadeira ou falsa. Um
homem justo ainda ofenderá Deus caso se comprometa a uma falsa
escritura,” disse o mestre, colocando a balança em uma mesa próxima.
Ele provavelmente estava tentando tranquilizar Lawrence dizendo
que suas balanças eram precisas.
Embora um comerciante estivesse sempre tentando ser mais
esperto que o outro, isso não significa que confiança nunca era
necessária.
“Se você me der licença por um momento,” disse Lawrence, de
modo que o mestre assentiu e deu um passo para trás.
Sobre a mesa havia um belo conjunto de balança de bronze, que
brilhava como ouro. Era o tipo de jogo que esperaria ver nos
CAPÍTULO I ⊰ 30 ⊱

escritórios de um cambista rico em uma grande cidade e parecia um


deslocado nesta loja.
A frente da loja da Companhia de Comércio Latparron era tão
comum que era facilmente confundida com uma casa simples, e os
únicos empregados eram o mestre e alguns homens. O interior da loja
também era discretamente mobiliado com duas prateleiras situadas
contra a parede, jarros que pareciam conter especiarias ou alimentos
secos e outros pacotes de retenção de documentos, papel e
pergaminho.
Embora as escalas não parecessem estar em sintonia com o resto
da loja, o equilíbrio dessas balanças estava correto.
As balanças equilibradas no centro com placas de contrapesos para
a esquerda e direita.
Elas não parecem ter sido adulteradas.
Aliviado, Lawrence olhou para cima e sorriu. “Vamos prosseguir
com a pesagem?”
Não havia nenhuma razão para não prosseguir.
“Vamos ver, precisamos de papel e tinta. Espere um momento,
por favor,” disse o mestre, caminhando para o canto da sala e pegando
um pote de tinta e papel da prateleira. Lawrence estava olhando à toa
quando sentiu um puxão em sua manga e saiu de seu devaneio. Não
havia mais ninguém lá — era Holo.
“O que foi?”
“Estou com sede.”
“Você vai ter que esperar,” disse Lawrence rapidamente — mas
imediatamente repensou.
Ela era Holo, a Sábia Loba. Ela não faria uma reclamação assim do
nada. Tinha que haver algum motivo por trás disso.
Depois de mudar de ideia, Lawrence estava prestes a pedir para
ela se explicar quando o mestre falou de novo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 31 ⊱

“Até mesmo os santos necessitam de água para viver. Gostaria de


água ou talvez vinho?”
“Água, por favor,” disse o Holo com um sorriso. Evidentemente,
ela só estava com sede.
“Só um momento, então.” O mestre saiu e deixou na mesa o papel
do contrato, a tinta e a pena e saiu da sala para buscar a água.
Neste sentido ele não parecia um comerciante, mas o modelo de
um devoto da Igreja.
No entanto, mesmo Lawrence ficou impressionado com a fé do
mestre, ele olhou para Holo.
"Eu sei que pode não parecer assim para você, mas para nós
comerciantes este é um campo de batalha. Você poderia ter a água que
quisesse mais tarde.”
“Mas estou com sede,” disse Holo, desviando o olhar teimosamente
— ela odiava ser repreendida. Apesar de sua inteligência assustadora,
ela poderia ser estranhamente infantil, às vezes. Não fazia sentido dizer
mais nada.
Lawrence suspirou, e para afastar a sua frustração com Holo,
focou sua mente em estimar quanta pimenta ele tinha.
Por fim, o mestre voltou, trazendo uma bandeja de madeira com
um jarro de ferro e copos. Lawrence estava envergonhado por ter feito
um sócio de negócios realizar uma tarefa tão servil, mas o rosto
sorridente do mestre parecia ter deixado os negócios de lado por um
momento.
“Bem, então, vamos prosseguir com a pesagem?”
“Certamente.”
Eles começaram a pesar a pimenta enquanto Holo olhava,
encostada na parede a uma curta distância, com um copo de ferro entre
as mãos.
CAPÍTULO I ⊰ 32 ⊱

A pesagem era uma tarefa bastante simples, com um peso


conjunto a ser preparado de um lado das escalas e o outro sendo
carregado com pimenta até que ficasse equilibrado.
Era simples, mas era cansativo ver o prato do contrapeso balançar,
assumir que estava bom o suficiente e avançar para a próxima carga,
um comerciante poderia involuntariamente podia causar uma perda
significativa a si mesmo.
Então tanto o mestre quanto Lawrence cuidadosamente
equilibraram cada carga até que ambos estivessem satisfeitos antes de
prosseguir para a próxima.
Por toda a sua simplicidade, a pesagem era um trabalho sensível,
levou quarenta e cinco pesagens para terminar. A pimenta variava em
função da sua origem, mas um punhado do produto de Lawrence
equilibrado aproximadamente com único contrapeso tinha o valor de
cerca de uma moeda lumione de ouro. Com base em seus
conhecimentos mais recente de taxas de câmbio, um lumione equivalia
a trinta e quatro e dois terços de trenni, a moeda de prata comumente
usada na cidade portuária de Pazzio. Quarenta e cinco pesagens nessa
proporção dariam 1.560 trenni.
Lawrence tinha comprado a pimenta por mil trenni, o que
significava um lucro de 560 peças. O comércio de especiarias era
realmente delicioso. Claro, ouro e joias — matérias-primas para
produtos de luxo — poderiam conseguir duas ou três vezes o seu
preço de compra inicial, por isso este era um ganho baixo em
comparação, mas para um mercador viajante que passava seus dias
cruzando as planícies, era lucro suficiente. Alguns mercadores
transportavam aveia de menor qualidade em suas próprias costas,
arruinando a si mesmos enquanto cruzavam as montanhas, apenas para
conseguir um lucro de 10 por cento quando vendiam na cidade.
De fato, em comparação com aquilo, conseguir mais de
quinhentas moedas de prata movendo apenas um leve saco de pimenta
era quase bom demais para acreditar.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 33 ⊱

Lawrence sorriu enquanto colocava a pimenta de volta no saco de


couro.
“Certo, isso foi equivalente a quarenta e cinco medidas. De onde
esta pimenta veio?”
“Ela foi importada de Ramapata, no reino de Leedon. Aqui está o
certificado de importação da Companhia Milone.”
“De Ramapata? Viajou um bocado, então — mal posso imaginar
o lugar,” ponderou o mestre, estreitando os olhos e sorrindo enquanto
pegava o pergaminho certificado que Lawrence lhe ofereceu.
Comerciantes da cidade, muitas vezes passam a vida inteira nas
vilas em que nasceram. Há alguns que saem em peregrinação após a
sua aposentadoria, mas não havia tempo para essas coisas quando
estavam trabalhando ativamente.
No entanto, mesmo Lawrence o mercador viajante sabia pouco
do reino de Leedon, ele sabia que era famosa por suas especiarias. Para
chegar lá a partir de Pazzio, era preciso descer o rio até alcançar a costa
e, em seguida, subir a bordo de um veleiro que viaje longas distâncias
ao sul e atravessar dois mares distintos, um percurso de cerca de dois
meses.
A linguagem era diferente, é claro, e aparentemente era quente
como o verão durante todo o ano em Leedon, e a população era
permanentemente bronzeada, quase negos, desde o momento em que
nasceram.
Parecia inacreditável, mas havia especiarias, ouro, prata, ferro que
supostamente vinham de lá, e a Companhia Milone atestou a origem
da pimenta, cujo certificado dizia ser Ramapata.
Esse país era real?
“O certificado parece autêntico,” disse o mestre.
Os tipos de notas de câmbio, notas promissórias e contratos de
que passavam por comerciantes na cidade eram enormes.
Supostamente eles poderiam até reconhecer contas assinada por
CAPÍTULO I ⊰ 34 ⊱

pequenas empresas em terras distantes para não falar de grandes


organizações que tinham suas principais filiais em um país estrangeiro.
Reconhecer o selo de uma companhia tão grande como a Milone
seria algo fácil. Assinaturas eram importantes, mas a alma de um
contrato era o selo.
“Certo, então, vai ser um lumione por medida. Pode ser?”
“Pode me dizer a cotação para o lumione?” Lawrence perguntou de
repente, mesmo que tivesse alguma ideia do valor de mercado.
Moedas de ouro geralmente eram usadas como moeda contábeis
— isso quer dizer que eram a base para o cálculo dos valores das muitas
outras moedas no mundo. Os cálculos eram realizados em moeda de
ouro e então convertidos em outras moedas mais convenientes. Claro
que, nesta situação o valor mercado da moeda em questão se tornava
um problema.
Lawrence ficou subitamente muito nervoso.
“Sr. Lawrence, se bem me lembro, você segue o caminho de São
Metrogius nos negócios, correto?”
“Sim. Talvez seja a proteção de São Metrogius que mantém
minhas viagens seguras e meus negócios também.”
“Então, presumo que queira o pagamento em trenni de prata?”
Muitos mercadores que viajam querem repetir os sucessos do
passado, e assim, em vez de se mover aleatoriamente de uma cidade
para outra, eles trilharam os caminhos dos antigos santos.
E assim a moeda que usavam em um determinado momento era
bastante previsível.
Para o mestre da Companhia de Comércio Latparron chegar a essa
conclusão tão rapidamente significava que ele era um comerciante
muito astuto, de fato.
“Em trenni de prata,” ele continuou “a taxa atual é de trinta e dois
e cinco sextos.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 35 ⊱

A taxa era menor do que Lawrence se lembrava. Mas, dada a


importância desta cidade como centro de comércio, estava dentro da
margem que ele poderia permitir.
Nos lugares onde as moedas de muitos lugares distintos
convergiam, a taxa de câmbio em relação a moedas contábeis tende a
ser menor.
Lawrence fez os cálculos em sua cabeça na velocidade da luz.
Nesta taxa ele receberia 1.477 trenni pela sua pimenta.
O valor era menor do que havia previsto, no entanto era um preço
tolerável. Seria um grande passo para realizar o sonho de abrir sua
própria loja.
Ele respirou fundo e estendeu a mão direita em direção ao mestre.
“Este preço está bom, senhor.”
O rosto do mestre abriu em um sorriso, e ele aceitou a mão de
Lawrence. O espírito de um comerciante nunca se sentia melhor do
que no momento de um contrato de sucesso.
Este era um desses momentos.
“Ughh...” Holo interrompeu com uma voz preguiçosa.
“Algum problema?” perguntou o mestre, preocupado enquanto
ele e Lawrence olhavam para Holo, que se inclinava cambaleando
contra a parede.
Naquele instante, Lawrence lembrou da venda das peles para a
Companhia Milone e ele ficou subitamente nervoso.
O mestre da Companhia Latparron era um comerciante sagaz que
administrava sua loja sozinho. Tentar vencê-lo provavelmente acabaria
mal. Tendo Holo ao seu lado não significava que tinha de tentar
enganar os seus parceiros comerciais todas as vezes.
Ao acabar de pensar nisso Lawrence, ele parou. Holo estava
agindo de forma estranha.
“U-ugh... eu, eu estou tonta...”
CAPÍTULO I ⊰ 36 ⊱

Holo segurava o copo enquanto sua instabilidade piorava, e a água


parecia que ia cair a qualquer momento.
O mestre caminhou até ela, olhando preocupado enquanto
segurava o copo e apoiava seus finos ombros.
“Você está melhor?”
“...Um pouco. Obrigada,” disse Holo fraca, finalmente ficando de
pé novamente com a ajuda do mestre.
Ela parecia cada vez mais uma freira sofrendo de uma crise de
anemia. Mesmo alguém que não era tão devoto como o mestre iria
querer ajudá-la, mas Lawrence notou algo estranho.
Debaixo do capuz de Holo, suas orelhas de loba não estavam tão
abaixadas.
“Uma longa viagem cansaria até mesmo o homem mais forte,”
declarou o mestre.
Holo assentiu levemente, em seguida, falou. “Posso estar cansada
da viagem. Minha visão parece estar turvando de repente...”
“Isso não é bom. Ah, eu tenho algo.... devo trazer um pouco de
leite de cabra? Está fresco, foi da ordenha de ontem,” disse, oferecendo
uma cadeira para ela e rapidamente foi buscar o leite, sem esperar pela
sua resposta.
Lawrence certamente foi o único que previu que Holo ia faria
outra coisa quando ela não sentou na cadeira oferecida e, em vez disso
colocou o copo de ferro sobre a mesa.
“Senhor,” disse ela ao mestre, que estava de costas. “Acredito que
ainda estou um pouco tonta.”
“Céus. Devo chamar um médico?” perguntou o mestre, olhando
por cima do ombro com o coração cheio de preocupação.
Debaixo do capuz, a expressão de Holo não demonstrava nem um
pouco a tontura que fingia.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 37 ⊱

“Olha. Ele está se inclinando diante dos meus olhos,” disse Holo,
levantando o copo e derramando algumas gotas sobre a superfície da
mesa — de onde fluíram para a direita de Holo e para da borda da
mesa, pingando no chão com um pequeno plip.
“O qu —!” Lawrence caminhou rapidamente para a mesa e pôs a
mão sobre a balança.
Era o mesmo conjunto de balança que ele tinha calibrado
cuidadosamente a precisão mais cedo. Se estivessem um pouco fora,
isso significaria uma grande perda para ele, e então ele verificou a
precisão da balança com cuidado — mas elas estavam perfeitamente
alinhadas com a direção em que a água fluía para fora da mesa.
Isto conduziu a uma única conclusão.
A pesagem tinha acabado, e as placas da balança estavam vazias,
exceto pelos contrapesos sobre elas. Lawrence pegou o conjunto de
escalas e a girou para se alinharem precisamente na direção oposta.
As balanças inclinaram devido ao movimento súbito, mas quando
colocadas de volta na mesa, seu movimento foi diminuindo até
eventualmente parar.
De acordo com os contrapesos, os pratos se equilibraram
perfeitamente — mesmo com a inclinação da mesa. Se tivesse sido
calibrada precisamente, a leitura estaria desbalanceada pela inclinação
da mesa.
As escalas claramente haviam sido adulteradas.
“Então, eu bebi água ou foi vinho?” perguntou Holo.
Ela olhou de volta para o mestre — assim como Lawrence.
A expressão do mestre congelou, e o suor apareceu em sua testa.
“O que eu bebia era vinho. Não era?” A voz de Holo soou tão
divertida que até mesmo o sorriso dela era praticamente audível.
O rosto do mestre embranqueceu com uma palidez mortal. Se o
fato de que usava balanças fraudulentas para enganar mercadores fosse
CAPÍTULO I ⊰ 38 ⊱

levado ao público em uma cidade temente a Deus como esta, todos os


seus bens estariam perdidos e teria de enfrentar a falência imediata.
“Há um ditado que diz que ninguém bebe menos do que o mestre
de uma taverna cheia — talvez seja isso que isso significa,” disse
Lawrence.
O mestre estava como uma lebre acuada, incapaz de gritar mesmo
quando as presas do predador perfurassem sua pele.
Lawrence caminhou de volta para o mestre com um sorriso.
“O segredo da prosperidade é ser o único sóbrio, eh?”
Escorria tanto suor da testa do mestre que você poderia desenhar
sua imagem.
“Parece que estou bêbado pelo mesmo vinho da minha
companheira. Duvido que nós sejamos capazes de lembrar de tudo que
vimos ou ouvimos falar aqui. Embora em troca eu possa ser um pouco
irracional.”
“O-o que você...?” o rosto do mestre tremendo de medo.
Entretanto, conseguir uma vingança fácil aqui seria falhar como
mercador.
Não havia sequer um pingo de raiva por ser enganado do ponto de
vista de Lawrence.
Tudo o que pensava eram frios cálculos de quanto lucro a mais ele
poderia extrair de medo de seu oponente.
Esta era uma oportunidade inesperada.
Lawrence se aproximou do homem, ele ainda continuava
sorrindo, seu tom ainda era de um comerciante em negociação.
“Vamos ver... acho que a quantidade que concordamos, mais a
quantidade que você ia ganhar, mais, oh... você vai nos deixar comprar
o dobro da margem.”
Lawrence estava exigindo ser autorizado a comprar mais do que
ele tinha dinheiro para investir. É evidente que quanto mais dinheiro
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 39 ⊱

um mercador pudesse investir, maior o lucro que poderia conseguir.


Se ele pudesse comprar um bem que vale “duas moedas de prata,” por
uma única moeda, ele duplicaria o seu lucro, puro e simples.
Mas comprar o valor de duas peças com uma, ele obviamente,
precisa de garantia. Uma vez que os mercadores vivem essencialmente
de empréstimos de dinheiro, o credor tem o direito de exigir garantia
de quem toma o empréstimo.
No entanto, o mestre não estava em posição de fazer tal demanda,
razão pela qual Lawrence pressionava uma posição tão irracional.
Apenas um mercador de terceira categoria não tiraria vantagem da
fraqueza.
“Eu, uh, er, eu não posso...”
“Você não pode fazer isso? Oh, que pena... eu estou me sentindo
muito mais sóbrio.”
O rosto do mestre estava tão molhado que parecia quase derreter
com o suor se misturando às lágrimas.
Seu rosto era uma máscara de desespero, ele caiu, derrotado.
“Quanto aos bens, vamos ver. Dada a quantidade, talvez algumas
armas de alta qualidade? Certamente você tem um monte de
mercadorias destinadas a Ruvinheigen.”
“...Armas, você diz?”
O mestre olhou para cima, parecendo ver uma luz de esperança.
Ele provavelmente tinha assumido que Lawrence não planejava em
pagá-lo de volta.
“Elas são sempre uma boa aposta para conseguir um lucro
garantido, e posso obter o empréstimo de volta de forma rápida. O
que me diz?”
Ruvinheigen servia como base de reabastecimento para os
esforços de subjugar os pagãos. Todos os itens que serviram na luta
voavam das prateleiras durante todo o ano. Era difícil sofrer perdas de
depreciação quando vendia esses produtos.
CAPÍTULO I ⊰ 40 ⊱

Desde que Lawrence seria capaz de comprar o dobro da


quantidade normal do empréstimo, ele teria o dobro do seguro contra
a depreciação, o que fazia das armas uma boa escolha para uma compra
de empréstimo.
O rosto do mestre mudou para o de um comerciante com astúcia
calculista. “Armas...você disse?”
“Tenho certeza que há uma companhia comercial em Ruvinheigen
com conexões com a sua, vender para eles equilibraria os registros.”
Resumindo, depois que Lawrence vendesse as armas que ele
comprasse com o dinheiro emprestado da Companhia Latparron para
outra empresa em Ruvinheigen, ele não teria que voltar todo o
caminho até Poroson para devolver o dinheiro.
Em determinadas situações, o dar e receber de dinheiro poderia
ser conseguido com nada mais do que entradas em um registro.
Esse era o grande triunfo da classe mercantil.
“O que me diz?”
Por vezes, o sorriso de negócios de um mercador poderia ser algo
intimidante. Mesmo entre esses sorrisos, o sorriso de Lawrence ao
encurralar o gerente da Companhia Latparron era excepcionalmente
intimidante, que — incapaz de recusar — finalmente concordou.
“Meu muito obrigado! Eu gostaria que preparasse os bens
imediatamente, espero partir para Ruvinheigen muito em breve.”
“E-entendo. Er, sobre o preço...”
“Vou deixar isso com você. Afinal, eu confio em Deus.”
O lábio do mestre se contorceu amargamente no que deveria ser
um sorriso penoso. Era inevitável que ele iria avaliasse as armas a preço
baixo.
“Vocês dois terminaram?” disse Holo, supondo que a “negociação”
agressiva havia acabado. O mestre deu um suspiro de desânimo.
Parecia que ainda havia uma pessoa que queria falar.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 41 ⊱

“Eu diria que minha embriaguez está acabando também,” disse


Holo, sua cabeça inclinando para o lado de maneira encantadora —
mas ela deveria parecer o diabo para o mestre.
“Um bom vinho e carne de carneiro faria muito bem para o meu
espírito. Certifique-se que seja carne dos flancos!”
O mestre apenas assentiu para a demanda casual dela.
“Faça isso rápido, agora,” disse o Holo, parcialmente em tom de
brincadeira, mas ouvir essas palavras da garota que habilmente viu
através de suas balanças adulteradas fez o mestre se virar e sair
correndo da sala como um porco chutado no traseiro.
Não se pode deixar de achar que o mestre estava exagerando um
pouco, mas se sua fraude fosse descoberta pelo público, ele estaria
arruinado. Nesse caso, um pouco de subordinação era um pequeno
preço a pagar.
Lawrence teria sofrido um enorme golpe se o truque não fosse
notado.
“Hee-hee. Pobre homem,” disse Holo com uma risada muito
contente que a fazia parecer ainda mais vil.
“Você certamente tem um olhar afiado, como de costume. Eu não
percebi nada.”
“Eu sou bela e o pelo da minha cauda é sedoso, mas meus olhos e
ouvidos também são excelentes. Notei no momento em que entramos
na sala. Suponho que tenha sido astuto o suficiente para enganar
pessoas como você,” disse Holo, suspirando e acenando com a mão em
desdém.
Lawrence teria ficado mais feliz se ela tivesse dito algo mais cedo,
mas a realidade era que ele não tinha notado a fraude e que Holo que
tinha evitado uma grande perda e a transformado em um grande ganho.
Não o mataria ser educado.
“Não tenho nada a dizer contra isso,” Lawrence admitiu. Os olhos
de Holo brilharam dada sua mansidão inesperada.
CAPÍTULO I ⊰ 42 ⊱

“Oh ho! Vejo que amadureceu um pouco.”


Lawrence — de fato não tinha nada a dizer — só podia sorrir,
envergonhado.

Há algo conhecido como “febre da primavera.”


É mais comum durante o inverno em lugares longe de rios ou
mares. Com o congelamento dos córregos, as pessoas sobrevivem com
carne salgada e pão duro todo o dia. Não que legumes não possam
sobreviver à geada, mas é que era um produto melhor para ser vendido
do que comido. Comer o produto não ajudaria no frio, mas com o
dinheiro que se ganha com sua venda, lenha poderia ser comprada e
fornos poderiam ser alimentados.
Porém, comer nada além de carne e beber nada além de vinho
tem seu preço, na primavera, muitas erupções nas peles podem ser
vistas.
Esta é a febre da primavera, a prova de negligenciar a saúde.
Naturalmente, é conhecimento geral que resistir à tentação da
carne e o conforto do vinho pouparia você deste destino. Coma
legumes e carne com moderação — como um sermão da Igreja no
domingo.
Assim que a primavera chega, as pessoas que sofrem da febre
primavera, muitas vezes, acabam terrivelmente repreendidas pelo
padre. A gula é, afinal, um dos sete pecados capitais — independente
do guloso saber ou não disso.
Lawrence deu um suspiro longo com o abuso de Holo.
Ela arrotou. “Whew... isso foi saboroso.” Ela estava de bom
humor depois de mandar para baixo a carne de carneiro junto com um
pouco de um bom vinho.
Não só era tudo de graça, mas depois de comer e beber até se
empanturrar, ela poderia se enroscar no leito da carroça para uma
soneca.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 43 ⊱

Mesmo o comerciante mais extravagante imporia limites a si


mesmo como uma questão de disciplina, mas não Holo.
Batendo os pés em deleite, ela tinha comido e bebido com alegria
e parou apenas para fazer uma pausa.
Lawrence pensava que se fosse suas provisões para a viagem, ela
não teria comido o equivalente a três semanas — e ela bebeu tanto
vinho que ele começou a se perguntar isso estava indo.
Se ela tivesse vendido a comida que extorquiu do mestre
Latparron, ela teria pagado uma grande parte da sua própria dívida
com Lawrence.
Este era só mais um motivo para a surpresa de Lawrence.
“Agora, ouso dizer vou tirar uma soneca,” disse Holo.
Lawrence não se preocupou em olhar para a fonte desta
depravação exemplar.
Além de conseguir um bom vinho e carne de carneiro do mestre
da Companhia Latparron, Lawrence tinha obtido uma grande carga de
armas a um preço muito razoável. Ele e sua companheira deixaram a
cidade de Poroson sem sequer esperar os sinos do meio-dia. Pouco
tempo se passou desde então, e o sol agora estava sobre suas cabeças.
Com o céu claro e sol quente, o tempo estava perfeito para uma
bebida ao meio-dia, seguida de um cochilo.
Devido à carga, a carroça estava em um estado de desordem, mas
com vinho suficiente dentro dela, Holo provavelmente não se
importava.
A estrada de comércio que os levaria para Ruvinheigen era cheia
de curvas acentuadas e inclinações repentinas nas proximidades de
Poroson, mas se suavizava e fornecia uma grande visão enquanto descia
lentamente.
A estrada serpenteava adiante.
CAPÍTULO I ⊰ 44 ⊱

Era bem utilizada, o que a fazia ter uma superfície sólida com
buracos que eram rapidamente preenchidos.
Mesmo que a sua “cama” estivesse repleta de espadas, Holo era
facilmente capaz de tirar um cochilo em cima delas e passar a tarde
toda assim desde que a estrada fosse suave.
E então havia Lawrence, que não tinha bebido nenhum vinho e
passou o dia olhando para as costas de um cavalo, rédeas na mão. Seu
ciúme fazia com que fosse fácil não olhar para Holo.
“Hum, eu deveria pentear a minha cauda,” disse Holo — sua
cauda, a única coisa com que ela se preocupava. Ela a puxou para fora
de suas vestes sem um pingo de preocupação.
Não que houvesse garantia, mas a vista abrangente significava que
não havia perigo de ser surpreendido por um viajante que se
aproximasse.
Holo começou a pentear a cauda, às vezes jogando uma pulga para
fora ou parando para lamber o pelo para limpá-lo.
O cuidado que ela tinha com sua cauda era visível em seu silêncio,
prestando atenção apenas no trabalho.
Ela penteou desde a base da cauda, que estava coberta de pelo
castanho escuro, até finalmente alcançar sua ponta branca e fofa, e
então de repente olhou para cima. “Oh, é mesmo.”
“...O quê?”
“Quando chegarmos à cidade seguinte, eu quero óleo.”
“...Óleo?”
“Mm. Ouvi dizer que seria bom para usar na minha cauda.”
Lawrence desviou o olhar de Holo sem palavras.
“Então você vai comprar um pouco para mim?” perguntou Holo
com um sorriso encantador, sua cabeça inclinada.
Mesmo um homem pobre seria duramente pressionado a ceder a
esse sorriso, mas Lawrence apenas olhou para ela com o canto do olho.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 45 ⊱

Números maiores que o sorriso dela dançavam diante de seus


olhos — especificamente, a dívida que ela lhe devia.
“As roupas que você está vestindo agora, mais as outras roupas, o
pente, a taxa de deslocação, o vinho e comida; — você já somou todos
eles? Também há um imposto por pessoas quando entramos numa
cidade. Certamente você não está me dizendo que não consegue
somar,” disse Lawrence, imitando o tom de Holo, mas ela ainda sorria.
“Certamente posso fazer adição, mas sou melhor em subtração,”
ela proclamou, então riu depois de um tempo.
Lawrence sabia que ela estava escondendo alguma réplica, mas
seus modos estavam estranhos. Talvez ela ainda estivesse bêbada.
Ele olhou para os cantis de vinho que estavam na carroça. Eles
haviam pegado cinco com o mestre Latparron, dois deles estavam
vazios agora.
Não era impossível de imaginar porque ela estava bêbada.
“Bem, talvez você devesse tentar somar tudo o que você já usou.
Se você é uma loba tão sábia, deve ser capaz de imaginar a minha
resposta com o resultado.”
“Tudo bem, vou somar!” disse Holo com um sorriso e um aceno
alegre.
Assim que Lawrence olhou para a frente de novo, pensando em
como seria bom se ela fosse sempre tão agradável, Holo continuou.
“Você definitivamente vai comprar para mim,” ela disse.
Lawrence lançou um olhar de soslaio para espionar ela sorrindo
para ele. Talvez ela realmente estivesse bêbada. Era um sorriso muito
charmoso.
“Olha o que acontece com a inteligência da orgulhosa loba quando
bebe vinho demais,” Lawrence murmurou para si mesmo. A cabeça de
Holo caía de um ombro para o outro.
CAPÍTULO I ⊰ 46 ⊱

Se ela caísse da carroça poderia ser ferir. Lawrence estendeu a


mão para segurá-la pelos ombros esguios, e Holo agarrou sua mão com
uma rapidez que não era brusca como a de um lobo.
Surpreso, Lawrence olhou em seus olhos. Ela não estava bêbada,
nem rindo.
“Ora é graças a mim que sua carroça está carregada com
mercadorias compradas a um preço barato. Você está tendo puro
lucro.”
Seu charme tinha desaparecido.
“C-com que base —”
“Você não deve me menosprezar. Certamente não acha que não
percebi que você estava tentando tirar vantagem do mestre da
companhia? Eu tenho uma mente afiada e olhos penetrantes, sim, mas
não se esqueça, meus ouvidos são bons, também. Eu estava prestando
atenção em sua negociação.” Holo sorriu desagradavelmente,
mostrando suas presas. “Então você vai comprar um pouco de óleo
para mim, não vai?”
Era verdade, Lawrence tinha tomado vantagem da fraqueza do
mestre durante suas negociações, e também era verdade que as coisas
foram como Lawrence esperava.
Ele se amaldiçoou por estar obviamente satisfeito ao assinar o
contrato. Uma vez que alguém sabia que ia fazer um monte de
dinheiro, eles se tornavam alvos óbvios.... era a natureza humana.
“Uh, er, bem, quanto você acha que me deve? Cento e quarenta
pratas! Tem alguma ideia de quanto dinheiro é isso? E agora acha que
vou gastar mais com você?”
“Oh? O que, quer que eu te pague de volta?” Holo olhou para
Lawrence com uma expressão de surpresa leve, como se dissesse que
ela podia pagar a qualquer hora que desejasse.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 47 ⊱

Não há ninguém neste mundo que não queira de volta o dinheiro


que emprestou. Lawrence cerrou os dentes e olhou para Holo,
enunciando a sua resposta com muito cuidado. “Mas é claro que sim.”
Se Holo pagasse de volta o que devia em uma única parcela, ele
seria capaz de preencher sua carroça com os melhores bens, o que
significaria mais lucros. Mais investimento era igual um retorno maior
— o mundo de um mercador girava em torno disso.
No entanto, a expressão de Holo mudou completamente com as
palavras de Lawrence. Ela o olhou friamente, como se dissesse: “Ah,
então é assim.”
Lawrence hesitou com a mudança completamente inesperada.
“Então é assim que você esteve pensando,” disse Holo.
“O-o que você —”
Lawrence teria terminado com quer dizer, mas a resposta rápida de
Holo o cortou.
“Bem, acho que se eu pagar minhas dívidas, serei uma loba livre.
Só preciso te pagar.... vou tentar pagar você rapidamente.”
Ouvindo estas palavras, Lawrence compreendeu o que Holo
queria dizer.
Alguns dias antes, durante a confusão em Pazzio, Lawrence tinha
visto forma de lobo de Holo e ficou com medo. Profundamente
magoada, Holo tentou deixar Lawrence, mas Lawrence a parou
dizendo que ele a seguiria todo o caminho de volta até o norte para
recolher o dinheiro que ela devia por destruir suas roupas.
“Aconteça o que acontecer, você vai me pagar,” ele tinha dito.
“Me deixar agora não vai adiantar em nada.”
Holo ficou com Lawrence baseado no raciocínio de que fazê-lo ir
até o norte por causa disso seria um incômodo, e Lawrence tinha
pensado que o negócio sobre o pagamento da dívida era apenas um
pretexto para os dois.
CAPÍTULO I ⊰ 48 ⊱

Não, ele acreditava nisso.


Ele acreditava que, mesmo que pagasse a dívida, ela ainda
desejaria viajar com ele para as florestas do norte — apesar de que sua
timidez a impediria de admitir isso.
Holo agora tinha virado o jogo contra ele. Ela usou a ideia que era
dele contra ele mesmo.
Uma única palavra apareceu em sua mente.
Injusta. Holo era realmente injusta às vezes.
“Nesse caso, quando te pagar devo viajar para o norte sozinha,
certo? Gostaria de saber como Paro e Myuri estão.”
Holo olhou para longe, propositadamente deixando um pequeno
suspiro escapar.
Lawrence, perdido em palavras, olhou amargamente para a garota
lobo que se sentava ao lado dele e se perguntou como retrucar.
Ele imaginou que, se fosse teimoso e exigisse que ela lhe pagasse
agora e continuasse na provocação, Holo realmente faria isso — o que
não era o que Lawrence queria. Era agora que deveria recuar.
Não havia realmente nada charmoso em Holo.
Lawrence olhou para ela, furiosamente tentando pensar em um
retorno, mas Holo desviou o olhar obstinadamente.
Algum tempo passou.
“...Nós não decidimos um prazo para você me pagar. Contanto
você me pague até chegarmos na floresta do norte é o bastante. Está
feliz agora?”
Uma parte de Lawrence ainda era teimoso. Ele simplesmente não
podia deixar a atrevida garota lobo ter tudo o que ela queria. Isto era
o mais longe que poderia chegar.
Holo pareceu entender isso. Ela lentamente se virou e sorriu,
satisfeita.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 49 ⊱

“É minha intenção pagá-lo quando chegarmos ao norte,” ela disse


propositadamente, se aproximando dele. “E é a minha intenção te
pagar de volta com juros, o que significa que quanto mais me
emprestar, mais lucro você terá. Então você vai fazer isso por mim,
sim?”
Os olhos de Holo encontraram os de Lawrence enquanto ela
olhou para ele.
Eram lindos olhos com íris marrom-avermelhadas.
“O óleo, você quer dizer?”
“Sim. Você pode adicionar a minha dívida, mas por favor —
compre um pouco para mim, pode ser?”
O apelo era estranhamente racional, e Lawrence não conseguia
pensar em uma boa resposta.
Tudo o que podia fazer era balançar sua cabeça para o lado como
se estivesse esgotado.
“Obrigado,” disse Holo, se acariciando no braço de Lawrence
como um gato pedindo carinho — o que não era uma sensação ruim.
Ele sabia que era isso que Holo queria, era uma parte inevitável
tanto tempo como um mercador viajante solitário.
“Ainda assim, você realmente conseguiu pechinchá-las, não?”
perguntou Holo, acariciando mais uma vez a sua cauda enquanto se
recostava em Lawrence.
Esta loba especial podia sentir mentiras, por isso, Lawrence não
se incomodou em mentir e respondeu com sinceridade. “Ao contrário,
ele se colocou em posição que não me deixou escolha a não ser
pechinchar o preço.”
No entanto, a taxa de juros sobre as armas não era boa. O método
capaz de maior lucro seria importar os materiais e, em seguida, montar
e vender as armas. Quando o negócio de venda de armas fosse
concluído, simplesmente as colocaria em algum lugar com uma
demanda constante de grandes quantidades de armas e conseguir um
CAPÍTULO I ⊰ 50 ⊱

lucro justo, o montante pelo qual a mercadoria poderia ser


pechinchada é limitado.
Lawrence ia para Ruvinheigen para conseguir esse lucro justo.
“Quanto?”
“Qual é o motivo de perguntar isso?”
Holo olhou para Lawrence da sua posição inclinada contra ele e,
em seguida, olhou rapidamente para longe.
Neste ponto Lawrence tinha mais ou menos entendido.
Apesar de estar forçando a questão do óleo, ela estava realmente
muito preocupada com seus lucros.
“O quê? Eu estava preocupada em extorquir todo o dinheiro de
um mercador viajante, que mal está sobrevivendo. Isso é tudo.”
Lawrence bateu levemente na cabeça de Holo pelo comentário
desagradável.
“As armas são o produto mais vendido em Ruvinheigen, mas
muitos comerciantes as trazem para a cidade. Assim, a taxa de juros
cai, e a quantidade que eu poderia negociar é limitada.”
“Mas você comprou muito, ainda vai conseguir um bom lucro,
certo?”
A carroça não estava cheia, mas estava bem carregada. Os bens
eram sólidos, e embora os juros fossem baixos, em comparação com o
investimento inicial de Lawrence, a quantidade real de material era
boa. O fato de que ele estava recebendo o dobro do material para seu
investimento era a cereja no topo do bolo. Como diz o ditado: “Uma
gota de chuva aumenta o mar,” e assim o ganho de Lawrence pode ser
menor apenas se comparado ao lucro da pimenta.
Na verdade, o produto seria suficiente para comprar mais maçãs
do que caberiam na carroça, para não falar do óleo, mas se Lawrence
dissesse isso para Holo, não havia como saber o que ela exigiria —
então ele segurou a língua.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 51 ⊱

Holo, alegremente ignorante, simplesmente acariciava sua cauda.


Olhando para ela, Lawrence não podia deixar de se sentir um
pouco culpado.
“Bem, eu acho que vamos ganhar o suficiente para comprar por
um pouco de óleo, não se preocupe,” disse.
Holo balançou a cabeça, aparentemente satisfeita.
“Ainda assim, agora que parei para pensar, um pouco de tempero
seria bastante bom,” Lawrence murmurou, enquanto estimava o ganho
provável contra o custo das armas.
“Você o comeu?”
“Não me confunda com você, sua gulosa. Estou falando do lucro.”
“Hmph. Bem, por que você não carrega mais tempero de novo?”
“Os preços de Ruvinheigen e Poroson não são tão diferentes. Eu
teria prejuízo depois de pagar a tarifa.”
“Então desista,” disse o Holo brevemente, mordiscando a ponta
de sua cauda.
“Se eu pudesse obter uma taxa do mesmo nível que as especiarias
ou um pouco maior, eu conseguiria o suficiente para abrir uma loja.”
Poupar dinheiro suficiente para abrir sua própria loja era o sonho
de Lawrence. Embora tivesse feito uma quantidade considerável com
o tumulto em Pazzio, o objetivo permanecia distante.
“Tenho que saber uma coisa,” disse Holo. “Diga... joias ou ouro.
São o melhor negócio, não?”
“Ruvinheigen não é um lugar lucrativo para essas coisas.”
Talvez porque um pouco de pelo entrou em seu nariz, Holo deu
um pequeno espirro enquanto ela lambia a pele da sua cauda. “...por
que não?” ela perguntou.
CAPÍTULO I ⊰ 52 ⊱

“A tarifa é muito alta. É protecionismo. Eles cobram impostos


altos em tudo, exceto para um determinado grupo de mercadores.
Não há negócios para fazer por lá.”
Cidades que enfraqueciam a base do comércio com este tipo de
protecionismo não eram incomuns.
Mas a política de Ruvinheigen visava monopolizar os lucros. O
ouro trazido para a Igreja em Ruvinheigen seria carimbado com o santo
selo da Igreja, e tal ouro traria viagens seguras, a felicidade no futuro,
ou triunfar na batalha, tudo pela graça de Deus. Havia até mesmo ouro
para garantir a felicidade na vida após a morte, e tudo era vendido por
preços exorbitantes.
O Concílio da Igreja de Ruvinheigen controlava os mercadores
sob o seu poder para preservar o monopólio, então os impostos sobre
o ouro que entrava na cidade eram terríveis e as punições para o
contrabando eram duras.
“Huh.”
“Se de alguma forma contrabandeássemos ouro, nós seríamos
capazes de vendê-lo por dez vezes o que nós pagamos. Mas o perigo
aumenta com o lucro, então não tenho escolha a não ser fazer dinheiro
pouco a pouco.”
Lawrence deu de ombros, pensando melancolicamente do fim de
seu caminho.
Em uma cidade como Ruvinheigen, havia muitos mercadores que
conseguiam em um único dia o que Lawrence tinha passado toda a sua
vida se esforçando para conseguir.
Parecia injusto — não, pior do que injusto, era totalmente
estranho.
“Oh sério?” era a resposta inesperada do Holo.
“Você teve alguma ideia?”
Ela era Holo, a Sábia Loba, afinal. Ela poderia ter pensado em um
esquema desconhecido.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 53 ⊱

Lawrence se virou para ela em expectativa. Fazendo uma pausa


em sua escovação por um momento, Holo olhou para ele.
“Por que você simplesmente não esconde o ouro?”
Se ela sempre fosse tola assim seria encantadora, pensou Lawrence
ao ouvir sua sugestão.
“Se isso fosse possível, todo mundo faria isso.”
“Ah, então você não pode fazer isso.”
“Quando as tarifas sobem, o contrabando também — é um
princípio básico. As inspeções são muito competentes.”
“Certamente uma pequena quantidade não seria encontrada.”
“Se encontrarem qualquer vestígio, eles cortarão sua mão, no
mínimo. Não vale a pena o risco. Valeria se você estivesse trazendo
uma quantidade maior... mas isso é impossível.”
Holo alisou o pelo da cauda e assentiu satisfeita com a sua
escovação.
Lawrence não podia ver muita diferença, mas aparentemente
Holo tinha seus padrões.
“Mm, é verdade,” disse. “Bem, seu negócio é estável o suficiente.
Está tudo bem desde que consiga dinheiro honestamente.”
“Você está certa, mas me parece que tenho uma certa
companheira decidida a gastar minhas economias constantemente.”
Holo bocejou, fingindo não ouvir o escárnio enquanto se
contorcia para esconder a sua cauda. Esfregou os olhos e rastejou de
volta para o seu lugar na carroça.
Lawrence não foi terrivelmente sério. Ele parou de seguir os
movimentos de Holo e olhou para a estrada à frente. Tentar falar com
ela quando decidiu ir dormir era um exercício fútil, então ele desistiu.
Por um tempo, ele podia ouvir o barulho das armas enquanto ela
as empurrava de lado para fazer um lugar para tirar uma soneca, mas
logo voltou o silêncio, e ele ouviu o suspiro contente dela.
CAPÍTULO I ⊰ 54 ⊱

Lawrence olhou para trás e a viu ela enrolado em uma bola, como
um cão ou gato. Não pôde deixar de sorrir.
Ele não poderia dizer o que pensava por muitas razões, mas queria
que ela ficasse com ele.
Enquanto Lawrence ponderava isso, Holo de repente falou.
“Esqueci de dizer isso antes, mas o vinho que recebemos do
mestre — não tenho nenhuma intenção de beber tudo sozinha. Esta
noite devemos beber juntos — e aproveitar o carneiro também.”
Ligeiramente surpreso, Lawrence se voltou para olhar, mas ela já
estava enrolada de novo.
Mas desta vez, ela estava sorrindo.
Lawrence olhou para a frente, segurando as rédeas e conduzindo
o cavalo com cuidado para não balançar a carroça mais que o
necessário.
s colinas acabaram, substituídas por ondulações na
paisagem que mal se faziam sentir, o que tornava uma
viajem fácil.
Lawrence ainda não tinha se recuperado dos efeitos do
vinho da noite anterior, portanto a estrada fácil lhe servia bem.
Com uma companheira para partilhar bom vinho e comida, ele
exagerou. Se tivesse que atravessar uma trilha de montanha em seu
estado atual, provavelmente cairia direto para o fundo do vale.
Mas aqui, não havia nada além de um rio, então era seguro
Lawrence deixar o cavalo simplesmente seguir a estrada.
Ocasionalmente ele cochilava por um breve momento, e na
carroça Holo dormia profundamente, roncando sem nenhuma
CAPÍTULO II ⊰ 56 ⊱

preocupação com o mundo. Toda vez que Lawrence despertava, ele


agradecia a Deus por tempos tão pacíficos.
Depois de passar muitas horas tranquilas dessa forma, Holo
finalmente acordou logo após o meio-dia. Ela esfregou os olhos, seu
rosto claramente ainda carregava as marcas do que quer que ela tenha
dormido por cima.
Ela se arrastou até o banco da frente e bebeu um pouco de água
de um cantil, uma expressão vazia no rosto. Felizmente, ela não
parecia ter ressaca. Caso tivesse, Lawrence poderia precisar parar a
carroça — caso contrário, ela poderia acabar vomitando na carroça,
um resultado que ele não suportava nem pensar.
“Tá um tempo bom hoje,” disse Holo.
“Está.”
Os dois trocaram gentilezas preguiçosas, então ambos deram
grandes bocejos.
A estrada em que estavam era uma das principais rotas comerciais
do norte, portanto encontraram muitos outros viajantes enquanto
prosseguiam. Entre eles estavam bandeiras mercantis esvoaçantes de
países tão distantes que Lawrence só sabia deles através de recibos de
importação. Holo viu as bandeiras e pareceu pensar que elas
simplesmente anunciavam o país dos mercadores, mas geralmente as
pequenas bandeiras eram expostas para que mercadores da mesma
nação pudessem identificar um conterrâneo pelo qual passassem.
Geralmente tais encontros acabariam em trocas de notícias do velho
país. Chegando em uma terra estrangeira, onde a língua, comida e
vestimentas eram todas diferentes, pode levar até mesmo um
mercador constantemente viajando a ter saudades de casa.
Lawrence explicou isso para Holo, que então olhou para as
pequenas bandeiras dos mercadores que passavam, imersa em
pensamentos.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 57 ⊱

Holo havia deixado sua terra natal centenas de anos atrás, e seu
desejo de falar com alguém de seu lugar de origem era mais forte do
que a saudade de qualquer mercador viajante.
“Ah, bem, eu voltarei em breve, eh?” ela declarou com um
sorriso, mas havia um toque de solidão nele.
Parecia para Lawrence que ele deveria responder de alguma
forma, mas nada veio à mente, e enquanto guiava o cavalo ao longo da
estrada, o sol da tarde afastou o pensamento.
Não havia nada melhor do que os calorosos raios de sol na estação
fria.
Mas a quietude logo foi quebrada.
Assim que Lawrence e Holo começaram a cochilar no banco da
carroça, Holo falou abruptamente.
“Ei.”
“...Mm?”
“Tem um grupo de pessoas.”
“O que disse?” Lawrence perguntou enquanto se esforçava para
agarrar as rédeas, sua sonolência desapareceu em um instante. Ele
estreitou os olhos e fitou ao longe.
Apesar das pequenas ondulações na estrada, o terreno geralmente
liso oferecia uma boa visão adiante.
Mas Lawrence não viu nada. Ele olhou para Holo, que agora estava
erguida, olhando para a frente atentamente.
“Eles certamente estão lá. Me pergunto o que aconteceu.”
“Eles carregam armas?”
Havia apenas poucas formas de explicar um grupo de pessoas em
uma estrada de comércio. Lawrence esperava ser uma grande caravana
de mercadores, um grupo de peregrinos visitando o mesmo destino,
ou membros da nobreza visitando um país estrangeiro.
CAPÍTULO II ⊰ 58 ⊱

Mas havia outras, possibilidades bem menos agradáveis.


Poderiam ser bandidos, malandros, soldados famintos voltando
para casa, ou mercenários. Encontrar soldados ou mercenários poderia
significar abrir mão de tudo o que possuía — se tivesse sorte. Sua vida
poderia muito bem ser perdida.
O que aconteceria com sua companheira fêmea não precisava ser
dito.
“Eu...eu não vejo nenhuma arma. Eles não parecem nem um
pouco com soldados irritantes.”
“Você já encontrou soldados?” perguntou Lawrence, um pouco
surpreso.
“Eles tinham lanças longas e afiadas, o que os tornava em um certo
incômodo. Embora não pudessem acompanhar minha destreza,” Holo
disse tão orgulhosamente que Lawrence não se aventurou a perguntar
o que tinha acontecido com os mercenários azarados.
“Não tem... ninguém por perto, certo?” Holo olhou ao redor
rapidamente, em seguida puxou seu capuz para trás, e expôs suas
orelhas de lobo.
Suas orelhas pontudas eram do mesmo marrom que a sua cauda,
e como esta, elas expressavam seu humor de forma tão eficaz que eles
eram uma boa maneira de dizer quando ela (por exemplo) mentia.
Essas mesmas orelhas estavam erguidas atentamente.
A atitude de Holo era exatamente a de um lobo procurando sua
presa.
Lawrence já tinha encontrado um lobo assim.
Era uma noite escura e ventosa. Lawrence vinha seguindo uma
estrada através da planície, e no momento em que ouviu o primeiro
uivo, ele já estava no território dos lobos. Uivos soaram de todas as
direções na hora que percebeu que estava cercado, e o cavalo que
puxava a carroça estava enlouquecido de medo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 59 ⊱

Só então, Lawrence avistou um único lobo.


Sua postura era destemida enquanto olhava diretamente para
Lawrence, suas orelhas tão intensamente fixas nele que tinha certeza
de que ele podia ouvi-lo respirar. Ele sabia que forçar seu caminho
através da armadilha dos lobos seria impossível, então pegou
imediatamente um saco de couro e, certificando-se que o lobo pudesse
ver, jogou toda a carne, pão e outras provisões que tinha no chão.
Então ele fez o cavalo correr adiante, o lobo o observando o tempo
todo.
Ele pôde sentir o olhar da fera em suas costas por algum tempo,
mas eventualmente os uivos pareceram se agrupar em torno da comida
que deixou, e ele escapou ileso.
Lawrence nunca esqueceria aquele lobo. E neste momento, Holo
estava exatamente como ele.
“Hmm... parece que é algum tipo de alvoroço,” disse Holo,
tirando Lawrence de seu devaneio; ele sacudiu a cabeça para clarear a
mente.
“Existe algum mercado do qual me esqueci?” disse Lawrence.
Reuniões às margens de estradas para trocar informações e antecipar
negócios não eram raras.
“Imagino. Mas não parece uma luta. Tenho certeza.”
Holo puxou o capuz de volta sobre a cabeça e se sentou.
Lawrence estava preocupado com a carroça enquanto ela o olhava
com uma expressão que dizia, “Então, o que devemos fazer?”
O comerciante estava imerso em pensamentos enquanto
visualizava um mapa da área.
Lawrence sabia que tinha que levar as armas em sua carroça para
a cidade de Ruvinheigen, sede da Igreja. Para todos os efeitos, ele havia
assinado um contrato com uma companhia em Ruvinheigen. Se
tomasse um desvio agora, teria que retroceder por uma rota muito
CAPÍTULO II ⊰ 60 ⊱

distante — as únicas outras estradas eram tão pobres a ponto de serem


transitáveis somente a pé.
“Você não farejou nenhum sangue, não é?” perguntou Lawrence.
Holo balançou a cabeça de forma decisiva.
“Então vamos prosseguir. O desvio é um pouco distante demais.”
“E mesmo se forem mercenários, você tem a mim,” disse Holo,
pegando a bolsa de couro cheia de trigo que pendia no pescoço. Uma
escolta melhor não existia.
Lawrence sorriu confiante enquanto dirigia o cavalo pela estrada.

“Então, desviar por aqui e pegar o caminho de São Lyne?”


“Não, certamente é mais rápido pegar a estrada que atravessa as
planícies para Mitzheim.”
“De qualquer forma, aquela conversa sobre o bando de
mercenário é verdade?”
“Compre este tecido, pode ser? Eu aceito sal em troca.”
“Alguém aqui fala Parcian? Acho que este sujeito está com um
problema!”
Lawrence e Holo escutavam pedaços de conversa enquanto se
aproximavam da multidão.
Algumas das pessoas paradas na estrada eram reconhecíveis à
primeira vista como mercadores. Outros eram artesãos de diferentes
terras em peregrinação para melhorar suas habilidades.
Alguns a pé; outros viajavam em carroças ou carruagens. Alguns
conduziam burros carregados com fardos de palha. Havia conversas
por toda parte, e aqueles que não partilhavam uma mesma língua
gesticulavam nervosamente em esforços para serem entendidos.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 61 ⊱

Se meter um confronto por causa de uma barreira linguística é


uma experiência terrivelmente inesquecível — ainda mais quando
acontece de você estar carregando toda a sua fortuna.
Infelizmente, Lawrence também não entendia o homem. Ele
sentiu empatia, mas não havia nada que pudesse fazer, e de qualquer
forma ele não sabia precisamente qual era o problema.
Lawrence olhou para Holo — um sinal de que ela deveria ficar
quieta sentada no banco — e pulou para fora da carroça, saudando um
mercador próximo.
“Com licença,” ele disse.
“Hm? Oh, um colega viajante. Você acabou de chegar?”
“Sim, de Poroson. Mas o que está acontecendo aqui? Certamente
o conde local não decidiu abrir um mercado aqui.”
“Hah! Nada, se fosse isso, todos teríamos tapetes espalhados no
chão e gastaríamos o dia negociando. Na verdade, há rumores sobre
um bando de mercenários seguindo a estrada para Ruvinheigen. Então,
estamos todos aqui parados.”
O mercador usava um turbante e calças soltas e largas. O homem
tinha um manto pesado enrolado em volta do pescoço e uma grande
mochila pendurada sobre suas costas. A julgar por suas roupas pesadas,
o mercador frequentava o coração das terras do norte.
A poeira da estrada permanecia em seu rosto queimado pela neve.
As muitas rugas e sua pele ao tom de couro pálido eram a prova de
uma longa vida como mercador viajante.
“Um bando de mercenário? Sei que o grupo do General Rastuille
patrulha essas áreas.”
“Não, eles estavam usando bandeiras vermelhas com o símbolo de
um falcão.”
Lawrence franziu testa. “O bando de mercenários Heinzberg?”
CAPÍTULO II ⊰ 62 ⊱

“Oh ho. Vejo que já viajou pelas terras do norte. De fato, eles
dizem que são os Falcões de Heinzberg — prefiro enfrentar bandidos
do que eles ao transportar toda uma carga de produtos.”
Dizia-se que os Falcões de Heinzberg eram tão famintos por
riquezas que onde quer que passavam, nem uma única folha de nabo
seria deixada para trás se achassem que pudesse ser vendida. Eles
fizeram seu nome nas terras do norte, e se estivessem na estrada em
frente, tentar passar seria suicídio.
Os mercenários Heinzberg tinham a fama de detectar suas presas
mais rápido do que um falcão no céu. Eles estariam em cima de um
preguiçoso mercador viajante em um instante, isso é certo.
No entanto — mercenários agiam puramente por interesse
próprio, e nesse sentido, eles não eram muito diferentes de
mercadores. Basicamente, quando eles se comportavam de forma
estranha, era comum que algo similarmente inesperado estivesse
ocorrendo no mercado.
Por exemplo, uma alta ou queda repentina no preço das
mercadorias.
Sendo um comerciante, Lawrence era naturalmente pessimista,
mas o pessimismo não o levaria a lugar nenhum, ele sabia — ele já
estava na estrada, carregado de bens. Tudo que importava agora era
como chegaria a Ruvinheigen.
“Então parece que pegar um longo desvio é o único jeito,” disse
Lawrence.
“Provavelmente. Aparentemente há um novo caminho para a
Ruvinheigen que parte da estrada de Kaslata, mas ouvi dizer que vem
sendo uma rota insegura ultimamente.”
Lawrence não esteve nesta região por meio ano, por isso, esta era
a primeira vez que ouvia falar de uma nova estrada. Ele pareceu se
lembrar que no lado norte das planícies que se estendiam, havia uma
estranha floresta que era fonte constante de rumores desagradáveis.
“Insegura?” ele perguntou. “Insegura como?”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 63 ⊱

“Bem, sempre houveram lobos nas planícies, mas tem sido


especialmente difícil ultimamente, dizem. Há uma história circulando
de que uma caravana inteira foi destruída duas semanas atrás — e os
lobos foram invocados por um feiticeiro pagão.”
Lawrence então se lembrou de que os rumores desagradáveis
eram em grande parte sobre lobos. Ele percebeu que Holo
provavelmente estava escutando essa conversa e deu uma olhada para
ela. Um sorriso dançou em torno dos cantos da boca da garota.
“Como se chega a esta nova estrada?”
“Hah, você vai tentar? Você é bem corajoso. Pegue esta estrada
direto, então vire à direita na bifurcação. Continue seguindo por um
bom tempo, então ela vai se dividir novamente, e você vira à esquerda.
Levaria apenas cinco minutos para confirmar se os mercenários de fato
estão na estrada adiante, mas no momento em que os visse, seria tarde
demais. Não tenho problema gastar pacificamente dois ou três dias
aqui. No entanto, os mercadores com peixe ou carne terão que ir para
uma cidade diferente. Não é o meu caso, vou optar pelo mais seguro.”
Lawrence assentiu e olhou para trás para o conteúdo de sua
própria carroça. Felizmente, sua carga não estava em perigo de
estragar, mas ele ainda queria vendê-la em Ruvinheigen.
Ele ponderou em silêncio por um momento, em seguida, deu seus
agradecimentos ao outro mercador e voltou para a carroça.
Holo tinha se comportado, mas uma vez que Lawrence se sentou
no banco, ela começou a rir. “Invocados, hein?”
“Então, o que Holo, a Sábia Loba vai fazer sobre isso?”
“Hm?”
“Os lobos nas planícies,” Lawrence esclareceu enquanto tomava
as rédeas e refletia sobre a questão em mãos — ir ou não ir.
“Mm,” fungou Holo, preguiçosamente mordendo a unha do dedo
mindinho com uma presa afiada. “Acho que eles seriam mais
CAPÍTULO II ⊰ 64 ⊱

interessantes do que humanos. Pelo menos, seremos capazes de


conversar.”
Era uma boa piada.
“Então está decidido.” Lawrence balançou as rédeas e girou a
carroça, descendo a estrada e se afastando dos comerciantes tagarelas.
Alguns deles os viram e levantaram suas vozes em surpresa, mas a
maioria simplesmente tirou seus chapéus ou capas e acenaram.
“Boa sorte,” seus gestos diziam.
Não havia mercador que desistiria de uma ponte perigosa — se
através daquela ponte perigosa conseguisse um lucro maior.
A notícia de um bando de mercenários viajando pelas estradas se
espalhava mais rápido do que uma praga. Tal era a ameaça que
representavam.
Mas para um mercador, tempo era uma ferramenta indispensável.
Desperdiçá-lo sempre levava ao prejuízo.
É por isso que Lawrence decidiu que com Holo ao seu lado, ele
correria o risco de viajar nas planícies, apesar dos rumores dos lobos.
Os rumores de um bando de mercenários nas proximidades
certamente teriam um impacto sobre o mercado de Ruvinheigen, e
Lawrence pretendia tirar proveito disso para embolsar umas moedas a
mais. De início, ele imediatamente assumiu que as coisas tivessem
tomado um rumo para pior, mas, na realidade, era exatamente o
oposto.
E em todo caso, os desenvolvimentos inesperados eram parte da
vida de um mercador viajante — era isso que a fazia divertida.
“Você certamente parece feliz,” mencionou uma Holo perplexa.
“Suponho que sim,” foi a curta resposta de Lawrence.
A estrada adiante leva ao lucro, o lema do mercador viajante.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 65 ⊱

Eles chegaram às tais planícies antes do meio-dia do dia seguinte.


Havia momentos em que novas rotas de comércio surgiam
naturalmente, e momentos em que questões de força maior as
criavam. Às vezes, a grama era removida para fazer a estrada, mas em
casos extremos, cascalho seria colocado e então coberto com tábuas de
madeira, permitindo que as carroças atravessassem o terreno em
velocidades relativamente altas.
Tais estradas não saiam barato, é claro, e os pedágios cobrados
para usá-las eram caros, mas como ladrões ao longo destas estradas
eram tratados com severidade, o preço era um bom valor em termos
de tempo e segurança.
O caminho pela frente, com seus rumores de aparições lobo,
estava em algum ponto entre os dois tipos de estrada.
Uma placa havia sido erguida, indicando o destino da estrada que
agora se ramificava. Na bifurcação havia uma pilha tábuas destruídas
pelo clima, como se algum dia tivessem planejado construir algo nesta
junção. Talvez os construtores tivessem a intenção de construir um
pedágio para manter a estrada em bom estado, mas agora tudo o que
restava era uma placa solitária.
A junção estava no topo de uma pequena colina, e de lá se podia
ver a estrada até onde interessava. Este parecia ser um bom local para
o almoço. Apesar do inverno se aproximando, a grama ainda estava
muito verde, e Lawrence podia que esta era uma planície que usaria
para pastar suas ovelhas caso fosse um pastor.
Tudo o que restava da estrada que atravessava a planície era um
par de rastros de carroça, a maior parte coberta de grama.
Naturalmente, não havia outros viajantes.
De acordo com o mapa mental de Lawrence, a floresta ao norte
dessa estrada era o local mais adequado para os lobos fazerem seu lar,
mas dificilmente era verdade que todos os lobos viviam em florestas.
Ao longe estavam trechos de grama alta, e isto se parecia mais e mais
com uma planície ideal para lobos.
CAPÍTULO II ⊰ 66 ⊱

Lawrence podia imaginar até esse ponto sem perguntar a Holo,


mas ele foi em frente e a consultou de qualquer modo.
“O que você acha? Algum lobo por perto?”
Holo, que estava no processo de devorar um pedaço de carneiro
seco, deu a Lawrence um olhar exasperado. “Nós lobos dificilmente
somos tão tolos a ponto de ser visto em um lugar com uma vantagem
tão óbvia,” ela disse, fungando em desdém. Suas presas ocasionalmente
apareciam enquanto mastigava a carne, revelando a sua natureza não
humana.
A declaração de Holo e suas presas trouxeram sua natureza básica
de lobo para a mente de Lawrence, e ele considerou algumas
complicações.
Caso se encontrassem com lobos, a situação seria problemática.
“Mas devemos ficar bem. Mesmo se acontecer de encontrarmos
uma matilha, vamos jogar um pouco de carne para eles. Afinal nós
lobos não entrarmos em brigas sem sentido.”
Lawrence assentiu e agarrou as rédeas para começar a cruzar as
planícies; a brisa suave cheirava levemente a animais selvagens.
Lawrence murmurou uma prece silenciosa por viagens seguras.

“Um faram de prata.”


“Nops. É uma marinne falsificada.”
“Espere, a marinne falsificada não era essa aqui?”
“Não, essa é a última versão da moeda de prata do bispo Radeon.”
“...”
Holo ficou em silêncio, segurando várias moedas de prata na mão.
Lawrence estava tentando ensinar ela os nomes de várias moedas
como forma de combater o tédio, mas mesmo Holo, a Sábia Loba, se
debatia com moedas cujo tamanho e modelo eram tão similares.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 67 ⊱

“Bem, você vai aprender na medida que for usando, sem dúvidas,”
disse Lawrence.
Holo estava tão séria que Lawrence tinha medo de provocá-la,
mas seu esforço para ser atencioso só parecia machucar ainda mais o
orgulho dela. Ela o encarou, suas orelhas se agitando raivosamente sob
seu capuz.
“Mais uma vez!” ela falou.
“Tudo bem, desde o começo.”
“Mm.”
“Trenni de prata, phiring de prata, ryut de prata, marinne de prata
falsificada, faram de prata, moeda do rei careca de Landbard de prata,
moeda do templo Mitzfing de prata, moeda do templo Mitzfing de
prata falsificada, moeda do São Mitzfing de prata, moeda Mitzfingnatal
de prata, e esta é...”
“...E-espere.”
“Hm?”
Lawrence tirou os olhos da palma de Holo, onde esteve apontando
para as várias moedas. A expressão dela era complicada — parecia ser
raiva e prestes a cair em lágrimas.
“V-você está zombando de mim, não está?” ela disse.
Lawrence se lembrou de ter acusando seu próprio professor da
mesma coisa, quando ele teve que aprender os nomes de todas as
diferentes moedas — assim, sem pensar, ele riu.
“Rrrrrr.”
Holo rosnou e mostrou suas presas, e Lawrence rapidamente se
recompôs. “A diocese Mitzfing em particular emite várias moedas.
Não estou zombando você, de verdade.”
“Então não ria,” Holo resmungou, olhando de volta para as
moedas. Lawrence não pode deixar de sorrir.
CAPÍTULO II ⊰ 68 ⊱

“De qualquer forma,” Holo continuou, “por que existem tantas


moedas? Parece um grande incômodo.”
“Elas são feitas quando uma nova nação é estabelecida — ou entra
em colapso. Um poderoso senhor da região ou igreja podem emitir
moeda e, é claro, não há limites para a falsificação. Mesmo a ryut de
prata começou como uma moeda trenni falsa, mas foi tão amplamente
utilizada que se tornou uma moeda independente.”
“Mas quando peles eram utilizadas, você sempre sabia com o que
estava lidando,” disse Holo, farejando e finalmente suspirando de
irritação. Ela poderia ser capaz discernir as moedas pelo cheiro, mas
Lawrence não sabia o quão sério ela estava levando isso.
“Ainda assim, é uma boa maneira de matar o tempo, não é?” ele
propôs.
Sem muito além de um sorriso, Holo empurrou a coleção de
moedas de volta para as mãos de Lawrence. “Hmph. Basta. Tá na hora
de tirar um cochilo.”
Holo se levantou, ignorando o sorriso sofrido de Lawrence. Ele
falou enquanto ela ia até o leito da carroça.
“Mesmo dormindo, você vai saber se os lobos se aproximarem?”
“É claro que sim.”
“Vai ser inconveniente se formos cercados.”
Ser encurralado por mercenários ou bandidos era, obviamente,
preocupante, mas pelo menos poderia argumentar com eles. Lobos,
por outro lado, pouco se importava com palavras humanas. Nunca se
sabe o que poderia levá-los a atacar.
Mesmo com Holo ao seu lado, Lawrence estava inquieto.
“Você se preocupa excessivamente,” disse Holo, se virando com
um sorriso, talvez sentindo sua ansiedade. “A maioria dos animais são
bastante conscientes, estejam eles dormindo ou não. Apenas os
humanos são indefesos durante o sono.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 69 ⊱

“Você seria mais convincente se roncasse menos.”


O rosto de Holo endureceu com as palavras de Lawrence. “Eu não
ronco!”
“...Bem, não é muito alto, eu acho,” Lawrence admitiu. Ele
achava o ronco dela bastante charmoso, mas as rugas na testa de Holo
franziram ainda mais.
“Eu não ronco.”
“Tudo bem, tudo bem,” disse Lawrence, rindo, mas Holo voltou
para o banco e se inclinou perto dele.
“Não ronco.”
“Tudo bem! Entendi!”
Holo parecia considerar isto uma questão de honra, e Lawrence
achou sua expressão penetrante irritante. Ela constantemente
conseguia sair por cima desde que se conheceram, e ele percebeu que
estava acostumado com esse tratamento.
Ela não parecia ter mais nada a dizer; com uma expressão azeda,
ela deu as costas para Lawrence sem a menor cerimônia.
“Ainda assim, realmente não parece ter ninguém por perto,”
Lawrence murmurou casualmente, sorrindo para si mesmo das
artimanhas de Holo.
De fato, não havia uma única alma na extensa planície, até onde
os olhos podem ver.
Mesmo levando em conta os rumores de lobos, Lawrence
esperava pelo menos algumas pessoas estarem pegando o atalho para
Ruvinheigen, mas quando ele olhou para trás, não havia ninguém à
vista.
“Rumores são uma força poderosa,” disse Holo.
Mesmo quando suas costas se viravam vagarosamente, sua
maneira de continuar a conversa era divertida, e Lawrence riu de si
mesmo. “É verdade,” disse ele com um aceno de cabeça.
CAPÍTULO II ⊰ 70 ⊱

“Embora não seja bem verdade que não tenha ninguém por perto,”
disse Holo, seu tom um pouco diferente e a cauda debaixo de seu
manto balançava inquieta.
Então ela suspirou, aborrecida.
Até agora, Holo escovou sua cauda sem alarmar os mercadores
pelos quais passavam na estrada. Quando Lawrence viu Holo esconder
sua cauda deliberadamente, ele se perguntou por que — e logo teve
sua resposta.
“Farejo ovelhas. Haverá um pastor à frente — odeio tanto
pastores.”
Se houvesse ovelhas nas planícies à frente, haveria pastores
também. Os pastores eram lendários por sua capacidade de detectar
lobos, e Holo devia saber isso.
Seu pequeno nariz torceu quando falou deles, fazendo seu
desgosto inteiramente evidente.
Pastores e lobos eram inimigos naturais.
Mas como mercadores e lobos também eram basicamente
opostos, Lawrence ficou quieto sobre este ponto.
“Devemos desviar?”
“Nem, são eles que devem fugir de nós. Não há nenhuma
necessidade para nós mudarmos o curso.”
Lawrence percebeu que estava rindo do desagrado de Holo. Ela o
encarou, mas ele fingiu não perceber e olhou para outro lugar.
“Bem, se você diz, vamos manter o curso. Os campos se ajustam
à nossa carroça muito bem.”
Holo assentiu em silêncio enquanto Lawrence tomava as rédeas.
A carroça viajou ao longo da estreita estrada através das planícies
e, por fim, pontos brancos que poderiam ser ovelhas se tornaram
visíveis à distância. A expressão irritada de Holo permanecia.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 71 ⊱

Lawrence percebeu quando lançou um a olhar, e a garota lobo de


olhos afiados pareceu notar.
Ela falou, torcendo o lábio. “Tenho odiado pastores antes mesmo
de você nascer. Conviver com eles agora é impossível,” ela disse,
suspirando enquanto olhava para baixo. “Tem toda essa carne deliciosa
simplesmente vagando por aí, mas imagine poder penas olhar para ela,
nunca saborear — você os odiaria também, não?”
Seu tom sombrio era divertido, mas estava claro que ela estava de
fato muito séria, então Lawrence fez um esforço para manter uma cara
séria enquanto olhava para a frente.
Eles agora tinham se aproximado o suficiente do rebanho de
ovelhas que Lawrence pudesse distinguir uma da outra.
As ovelhas estavam agrupadas bem próximas umas das outras, por
isso era difícil ter certeza do número exato que vagavam
preguiçosamente sobre a grama, mastigando calmamente.
Claro, nem tudo eram ovelhas nas planícies. A nêmese de Holo,
o pastor, também estava lá, acompanhada por um cão pastor.
O pastor usava uma túnica cor de capim seco, e ele tinha uma
corneta fixada na cintura com uma faixa cinza-névoa. Ele também
carregava um cajado que era maior que sua altura, com um sino do
tamanho da palma da mão fixado na parte superior.
Um cão pastor de pelo preto corria para lá e para cá em volta de
seu mestre, como que mantendo guarda. Seu pelo longo o fazia parecer
um lampejo de fogo negro enquanto corria através das planícies.
Dizia-se que havia duas coisas que os viajantes precisavam ter
cuidado quando se deparassem com um pastor em suas viagens.
A primeira era não ofender o pastor. A segunda era se certificar
que nas vestes pastor não se escondia um demônio.
Os pastores, que vagavam pelas vastas planícies com nada além de
cães pastores como companhia, invocavam tais avisos estranhos porque
CAPÍTULO II ⊰ 72 ⊱

suas vidas eram ainda mais solitárias do que a dos mercadores viajantes
— frequentemente eram vistos quase como inumanos.
Liderando seus rebanhos pelas planícies sozinho, controlando os
animais com nada mais do que um cajado e uma corneta na mão — era
fácil imaginar pastores como uma espécie de feiticeiros pagãos.
Alguns diziam que encontrar um pastor enquanto viajava garantia
proteção contra acidentes durante uma semana, graças aos espíritos da
terra — outros diziam que os pastores eram demônios disfarçados, e
se você baixasse a guarda, eles prenderiam sua alma dentro de uma das
ovelhas que eles cuidavam.
Da sua parte, Lawrence não achava estranho essas crenças.
Pastores eram misteriosos o suficiente para justificar tais ideias.
Ele ergueu a mão e acenou três vezes na forma que se tornou um
rito de saudação para os pastores, e ele ficou aliviado ao ver o pastor
levantar e abaixar seu cajado quatro vezes na forma tradicional. No
mínimo, este pastor não era um fantasma.
Esta primeira barreira tinha sido ultrapassada, mas o verdadeiro
teste viria quando chegasse mais perto e confirmasse que o pastor não
era um demônio disfarçado.
“Eu sou Lawrence, um mercador viajante. Esta é minha
companheira, Holo,” declarou Lawrence como forma de introdução,
uma vez que ele chegou perto o suficiente ver a costura no manto do
pastor e fez seu cavalo parar. O pastor era bastante pequeno de
estatura, apenas um pouco mais alto do que Holo. Enquanto Lawrence
falava, o cão que tinha juntado as ovelhas veio trotando até seu mestre,
sentando ao lado do pastor como um cavaleiro fiel.
Olhos cinzentos tingidos de azul constantemente avaliavam
Lawrence e Holo.
O pastor estava em silêncio.
“Eu vim por esta estrada e encontrei você pela graça de Deus, e se
você é um bom pastor e sincero, será um bom encontro.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 73 ⊱

Um verdadeiro pastor seria capaz de provar a si mesmo com o


hino e dança tradicionais de sua espécie.
O pastor assentiu lentamente e plantou seu cajado diretamente na
frente dele.
Lawrence se viu surpreendido com a pequena mão fina do pastor,
mas ele ficou ainda mais surpreso com o que veio em seguida.
“Pela bênção de Deus que está no céu...”
A voz que entoou o hino do pastor era a de uma jovem garota.
“Pela proteção dos espíritos da terra...”
Movendo seu cajado com habilidade, a pastora desenhou uma seta
no chão com facilidade e, em seguida, a partir da ponta da seta, fez um
círculo em torno de si mesma no sentido anti-horário.
“A palavra de Deus é levada pelo vento, e as bênçãos dos espíritos
da terra habita a própria grama comida pelo cordeiro.”
Uma vez que seu círculo alcançou a ponta da flecha, ela começou
a bater os pés na terra.
“Os cordeiros são guiados pelo pastor, e o pastor por Deus.”
Finalmente, ela segurou o cajado erguido, alinhado com a ponta
da seta na terra.
“Pela graça de Deus, o pastor segue o caminho dos justos.”
Não importa o país, o hino do pastor era sempre o mesmo. Não
era hábito de pastores de se associarem como fazem os artesãos ou
comerciantes, mas não era nenhum exagero dizer que seu hino e dança
eram universais.
Era o suficiente para dar credibilidade à ideia de que os pastores
poderiam conversar através de grandes distâncias, enviando suas
palavras ao vento.
“Minhas desculpas por duvidar. Você certamente é uma pastora,”
disse Lawrence quando descia da carroça. A boca da garota se curvou
CAPÍTULO II ⊰ 74 ⊱
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 75 ⊱

em um sorriso. O capuz ainda obscurecia muito seu rosto, por isso era
difícil ter certeza, mas com base no que era visível, ela era bonita.
Mesmo enquanto se mantinha como um cavalheiro, Lawrence
estava cheio de curiosidade.
Mulheres mercadoras eram raras, mas pastoras eram ainda mais
raras. Levando em conta que ela também era uma jovem moça, um
mercador curioso não poderia deixar de estar interessado.
No entanto, mercadores são completamente desajeitados em
qualquer coisa fora do mundo mercantil.
Lawrence era um bom exemplo disso. Incapaz de puxar um
assunto além do seu encontro na estrada, ele suprimiu sua curiosidade
e se prendeu apenas à saudação mais padrão.
“Tendo encontrado você pela graça de Deus, eu gostaria que você
orasse por nossas viagens seguras, pastora.”
“Com prazer.”
Ao som da voz da garota, calma como as ovelhas pastando, a
curiosidade de Lawrence cresceu mais que uma nuvem de verão. Ele
não demonstrava, mas foi só com o esforço que manteve sua
curiosidade escondida. Não era de sua natureza perguntar
descaradamente questões pessoais — tampouco era de sua natureza
lhe conceder qualquer talento para galantear. Ao se aproximar da
pastora para receber sua oração, ele lembrou de Weiz, o cambista em
Pazzio, e invejou sua facilidade em lidar com mulheres.
Além disso havia Holo que estava sentada na carroça — Holo que
odiava todos os pastores.
De alguma forma, esse último fato foi o maior motivo para sufocar
sua curiosidade.
Enquanto Lawrence considerava isto, a pastora segurou alto seu
cajado para fazer a oração por uma viagem segura de que havia sido
solicitada.
“Palti, mis, tuero. Le, spinzio, tiratto, cul.”
CAPÍTULO II ⊰ 76 ⊱

As antigas palavras da escritura, usadas por pastores em todos os


países independente da língua, mantinham sua misteriosa qualidade,
não importa quantas vezes Lawrence as ouvisse.
Pastores não sabiam o verdadeiro significado das palavras, mas
quando oravam por viagens seguras, eles sempre usavam as mesmas
palavras como se fosse um antigo acordo.
A maneira como a pastora abaixou seu cajado e soprou uma longa
nota em sua corneta também era tradição.
Lawrence deu seus agradecimentos pela a oração de segurança e
entregou uma moeda de cobre marrom. Cobre, em vez de ouro ou
prata, era costume como um símbolo de agradecimento por um
pastor, e também era tradição o pastor não recusar tal símbolo. A
garota estendeu a mão, que era apenas um pouco maior que a de Holo,
e Lawrence a agradeceu novamente enquanto colocava a moeda na
palma da mão dela.
Incapaz de encontrar qualquer razão para continuar sua conversa
com ela, Lawrence relutantemente desistiu.
“Bem, então,” ele disse, se preparando para partir — embora seus
pés demorassem para se mover enquanto tentava voltar para a carroça.
Inesperadamente, foi a pastora que falou em seguida.
“Er, por acaso seu destino é Ruvinheigen?”
Sua voz clara era diferente da de Holo, e era difícil imaginar que
ela fazia parte daqueles que escolheram a dura vida de pastor.
Lawrence espiou por cima do ombro para Holo, que desviou seu olhar
para outra direção. Ela parecia bastante entediada.
“Sim, estamos indo para lá vindo de Poroson.”
“Como você chegou a saber sobre este caminho?”
“É a trilha de peregrinação de São Metrogius. Ouvimos a respeito
dela faz pouco tempo.”
“Entendo... Er, então você já ouviu sobre os lobos?”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 77 ⊱

Com estas palavras, Lawrence entendeu por que a garota tinha se


dado ao trabalho de iniciar uma conversa.
Ela, sem dúvida, pensou que Lawrence era um simples mercador
que tinha escolhido esta estrada sem qualquer informação.
“De fato, ouvi,” ele respondeu. “Mas estou com pressa, então
decidi correr o risco.”
Não havia necessidade de explicar sobre Holo. Por lucro
suficiente, qualquer mercador se arriscaria em uma estrada infestada
de lobos, então não havia motivo para suspeitas.
Mas a reação da pastora foi estranha.
Ela parecia quase desapontada.
“Entendo...,” ela murmurou baixinho, seus ombros caídos. Ela
claramente esperava por algo — mas o quê?
Lawrence remoía a conversa — não havia muitas possibilidades.
Ou ela esperava que ele não soubesse sobre os lobos ou ela não
tinha pressa.
Isso foi tudo o que pôde adivinhar a partir das breves palavras.
“Algum problema?” ele perguntou.
Se não perguntasse à garota quais eram seus problemas, ele estaria
falhando, não como um mercador, mas como um homem. Ele se
portou do modo mais cavalheiresco que conseguiu e sorriu de negócios
para ela.
Atrás dele, Holo estava provavelmente, bastante irritada agora,
mas ele afastou o pensamento.
“Er, bem, um... é que...”
“Pode ser qualquer coisa — há algo que você precisa?”
Quando se tratava de negócios, Lawrence estava em casa. Vender
algo para ela o faria saber mais sobre essa rara pastora — até mesmo
CAPÍTULO II ⊰ 78 ⊱

fadas eram mais comuns. É claro que, por trás de seu sorriso que ele
estava tentando descobrir exatamente o que poderia vender para ela.
Mas suas próximas palavras fizeram tais pensamentos evaporaram.
“Bem, eu... eu estava pensando se você não poderia... me
contratar.”
Confrontado por esta pastora que o olhava enquanto ela segurava,
não, agarrava seu cajado, a mente de Lawrence disparou.
Quando um pastor pedia para ser contratado, era equivalente a
ser perguntado se deixaria suas ovelhas sob o cuidado deles.
Mas Lawrence não tinha ovelhas. O que ele tinha era uma única
loba inteligente, atrevida e gulosa.
“Ah, bem, como você pode ver, sou um mercador, e não trabalho
negociando ovelhas. Sinto muito, mas...”
“Oh, não, não é isso —”
Confusa, a garota acenou as mãos apressadamente, então olhou de
um lado para o outro como se para ganhar algum tempo.
Sua cabeça estava tão encoberta pelo capuz que seu olhar não era
visível, mas estava claro que procurava alguma coisa.
Talvez alguma ferramenta que a ajudaria a explicar seu pedido.
Logo pareceu que ela tinha encontrado — por debaixo de seu
capuz, ela de alguma forma comunicou uma sensação de alívio, quase
como se tivesse orelhas expressivas escondidas lá embaixo, como
Holo.
O que a garota pastora estava procurando estava sentado alerta ao
seu lado, um retrato fiel de um cavaleiro de quatro patas de pelo preto
— seu cão pastor.
“Eu sou uma pastora. Um, eu cuido do meu rebanho, mas também
posso afastar lobos.”
Enquanto ela falava, acenou um pouco com a mão direita e o cão
preto continuou atento.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 79 ⊱

“Se você me contratar, posso proteger você e sua companheira


dos lobos. Poderia considerar isto?”
Como se para pontuar discurso de vendas desajeitado de sua
mestra, o cão latiu uma vez e em seguida, correu para reunir o
rebanho, que começava a dispersar.
Embora cavaleiros ou mercenários fossem muitas vezes
contratados como proteção em estradas perigosas, Lawrence nunca
tinha ouvido falar de contratar um pastor para expulsar os lobos, mas
agora que pensava sobre isso, ter um pastor ao seu lado lhe daria um
conjunto apurado de olhos e ouvidos. Ele nunca tinha ouvido falar de
tal acordo apenas porque os pastores que propõem tal coisa eram
inexistentes.
Lawrence olhou para o cão enquanto ele rodeava as ovelhas, como
se treinando para possíveis ataques de lobos, e então se virou para a
garota.
Vivendo a solitária vida de pastora, ela provavelmente nunca teve
a oportunidade de dar um falso sorriso simpático. Sob o capuz, ela
sorria desajeitada.
Lawrence pensou por um momento, então falou.
“Espere um momento, se puder. Vou conversar com minha
companheira.”
“O-obrigado!”
Da sua parte, Lawrence estava pronto para contratar a garota sem
exigir condições, mas contratar a pastora significava pagar ela com
dinheiro, e sempre que o dinheiro estava envolvido, um mercador não
conseguia pensar em nada além dos possíveis ganhos e perdas.
Lawrence voltou para carroça e levantou a voz para Holo que
descansava ali, observando entediada. Se ele queria saber sobre a
capacidade de um pastor para repelir os lobos, pensou que sua melhor
aposta seria a perguntar para o lobo mais próximo.
“O que você acha dessa pastora?”
CAPÍTULO II ⊰ 80 ⊱

“Hm? Mm...” Holo esfregou os olhos preguiçosamente e olhou


para a garota; Lawrence fez o mesmo. A pastora não devolveu seu
olhar enquanto dava ordens para seu cão.
Ela não parecia estar tentando mostrar suas habilidades — estava
apenas reunindo as ovelhas dispersas. Ovelhas, afinal, tendem a se
dispersar quando param de pastar e chegam mais perto quando
forçadas a andar.
Holo afastou seu olhar da garota e falou irritada. “Eu sou muito
mais atraente.”
O cavalo relinchou, como se estivesse rindo.
“Isso não — quero dizer a respeito das habilidades dela.”
“Habilidades?”
“O que pode dizer dela, como uma pastora? Se ela for boa, pode
valer a pena contratá-la. Você ouviu a nossa conversa, tenho certeza.”
Holo olhou para a garota, em seguida, devolveu um olhar amargo
para Lawrence. “Você já tem a mim, não tem?”
“Claro que tenho. Mas nunca me ocorreu de contratar um pastor
para expulsar os lobos. Poderia haver uma nova oportunidade de
negócios nisso.”
Holo, a Sábia Loba, podia dizer quando uma pessoa estava
mentindo. Apesar da verdade da afirmação de Lawrence, ela ainda o
olhou com olhos desconfiados.
Lawrence logo entendeu o porquê.
“Não estou cego pelo charme dela. Você é mais atraente, no fim
das contas,” ele disse, encolhendo os ombros como se ajudasse,
“Okay?”
“Suponho que você passou no teste,” veio a resposta. Era um
pouco duro ser classificado assim, mas Holo sorriu agradavelmente,
então certamente era uma piada.
“Então, e as habilidades dela?” ele perguntou.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 81 ⊱

O rosto de Holo ficou instantaneamente tenso mais uma vez. “Não


posso dizer com certeza sem vê-la em ação, mas acho que ela ficaria na
metade mais hábil.”
“Pode ser um pouco mais concreta?”
“Eu poderia tomar uma das suas ovelhas. No entanto, ela
conseguiria lidar com lobos normais, mesmo que atacassem juntos.”
Era uma avaliação inesperadamente elevada.
“O tratamento dela com as ovelhas é muito competente. Os
piores pastores são os que têm cães inteligentes que sabem como
cooperar com eles. Ela tem ambos, ouso dizer. Sua voz sugere que ela
é jovem, o que a torna ainda pior. Antes que ela se torne ainda mais
perigosa, não me importaria de —”
“Tudo bem, tudo bem. Obrigado.”
Lawrence não tinha certeza se Holo estava brincando ou não, mas
o farfalhar de sua cauda sugeria que ela estava meio séria.
Era o suficiente para saber que a pastora era boa. Se ele a
contratasse provisoriamente, ainda custaria dinheiro, que seria
desperdiçado se ela fosse desajeitada. Lawrence se virou para falar com
a garota, mas foi interrompido por Holo falando.
“Ei.”
“Sim?”
“Você vai realmente contratar aquilo?” A voz de Holo tinha um
tom acusador.
Lawrence ouviu e lembrou que Holo não tinha nenhum apreço
por pastores.
“Aah. Você a odeia tanto assim?”
“Bem, já que está perguntando, não, eu não ligo para os pastores,
mas não é isso que quero dizer. Estou falando de você.”
Esta era a própria definição de ser pego desprevenido.
CAPÍTULO II ⊰ 82 ⊱

“...Como é que é?” perguntou Lawrence com toda a sinceridade,


não tendo ideia do que Holo queria dizer. Holo suspirou em irritação
e estreitou os olhos. Sua íris âmbar tingida de vermelho estava ansiosa,
queimando com um fogo frio.
“Se você vai contratá-la, isso significa que ela vai viajar com a gente
por um tempo. Estou perguntando a você se você não tem nenhum
problema com isso.”
Os olhos de Holo fixaram em Lawrence com frieza.
Ela se sentou na parte de trás da carroça e então olhou com
desprezo para ele.
Isto não era necessariamente o que aquilo significava, mas
Lawrence não conseguia afastar a sensação de que ela estava muito
zangada com ele.
Lawrence freneticamente pensou e remoeu sobre isso. Holo
estava furiosa com ele porque iria contratar uma pastora. Se não fosse
porque ela odiava pastores, não havia muitas outras possibilidades que
pudesse imaginar. As opções desapareceram uma após a outra,
deixando apenas uma.
Talvez Holo preferia viajar como um par, só os dois.
“Você não gosta disso?” ele perguntou.
“Eu não disse isso,” veio sua rápida e aborrecida resposta.
Meditando com carinho este lado rabugento da Holo, Lawrence
sorriu levemente enquanto falava. “É cerca de dois dias até
Ruvinheigen. É tão ruim assim?”
“...Eu também não disse isso,” ela falou, lhe atirando um olhar que
não podia deixar de achar encantador.
“Bem, nesse caso, eu sinto muito, mas vou ter que me aproveitar
da sua paciência,” ele disse. Ele sorriu abertamente, incapaz de resistir
ao charme inesperado de Holo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 83 ⊱

Holo franziu sua testa. “O que exatamente tenho que suportar?”


ela perguntou.
“Mm, bem...,” disse Lawrence, hesitante. Ele não poderia sugerir
descaradamente que ela estava com ciúmes. Uma vez despertada a
contrariedade de Holo, sua oposição era incansável.
“Eu só gostaria de ver a eficácia de um pastor contra lobos. Você
pode aguentar por dois dias, não pode?”
“...Não é impossível. Mas esta não é a questão.”
“Bem...,” Lawrence começou, preocupado com a pastora — mas
Holo aproveitou a oportunidade para continuar.
“Se viajarmos descuidadamente com outra pessoa, eles podem
descobrir a meu respeito, não podem? Eu posso lidar com os
problemas, mas e você?”
Nessas palavras, Lawrence ouviu algo que o fez enrijecer. Não era
sua imaginação, nem era uma coisa grandiosa, e até mesmo a pastora a
uma certa distância inclinou a cabeça enquanto observava.
Claro. Era isso. Essa era a outra possibilidade. Como ele tinha
esquecido disso? Ele desejava que o suor frio que repentinamente
escorria pelo corpo levasse seu erro embora.
Pensar que Holo queria viajar sozinha com ele o havia distraído do
óbvio. Ele tinha sido presunçoso.
O olhar de Holo se fazia sentir por trás da sua cabeça.
A mudança no comportamento de Lawrence era óbvia, mesmo à
distância, a antiga loba sábia sentada ao lado dele certamente discerniu
seus sentimentos internos.
“Oh ho. Agora entendi.”
Lawrence ficou vermelho.
“Você queria que eu dissesse algo assim, mm?”
Ele se virou lentamente para ela, de frente para a garota loba com
uma expressão francamente desolada.
CAPÍTULO II ⊰ 84 ⊱

Holo colocou uma mão fechada sobre a boca e falou com um tom
hesitante, modesto. “Eu...eu queria viajar apenas com você...”
Ela virou seu corpo para longe de forma atraente, desviando o
olhar com timidez simulada, por fim o olhou de repente. Nesse breve
intervalo, sua expressão mudou de reservada para fria enquanto
desferia o golpe final.
“Que piada.”
Lawrence não tinha resposta, se ele estava frustrado ou
embaraçado não importava, era questionável se ele sequer seria capaz
de se manter de pé.
Querendo pôr uma distância entre ele e Holo de qualquer
maneira, ele se virou e começou a caminhar antes que pudesse ser
parado por seu chamado.
Lawrence olhou por cima do ombro, se perguntando se ela não
tinha completado sua dose tormento, e viu Holo sorrindo lá na
carroça.
Era uma espécie de sorriso exasperado.
Ele se sentiu melhor assim que o viu.
“Honestamente,” disse com um suspiro, a entregando um triste
sorriso.
“Eu duvido que serei exposta em dois dias. Faça como quiser,”
disse Holo com um bocejo e olhou para o lado, como se dissesse, “Essa
conversa terminou.”
Lawrence assentiu, em seguida foi até a pastora.
Ele teve a sensação de que se tornou um pouco mais próximo de
Holo.
“Desculpe a demora.”
“Oh, n-não, imagina. Então —”
“Como soa quarenta trie pela viagem até Ruvinheigen? Com um
bônus se os lobos atacarem e nós escaparmos em segurança.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 85 ⊱

Lawrence se perguntou se ela iria recusar, já que a conversa com


Holo tinha gastado um certo tempo. A boca da pastora ficou aberta,
por um momento, mas eventualmente, as palavras de Lawrence
pareceram ter tido efeito e ela assentiu rapidamente.
“S-sim, por favor!”
“Negócio fechado, então,” disse Lawrence. Ele estava prestes a
estender a mão, selando assim o contrato, quando percebeu que ainda
não tinha perguntado à garota o nome dela.
“Posso perguntar seu nome, senhorita?”
“Oh, sim, minhas desculpas,” disse a garota. Ela parecia não ter
notado que ainda usava o capuz, e agora ela se apressou a puxá-lo para
trás.
Lawrence ultimamente gastava um bom tempo sendo humilhado
na frente de Holo, e isto era um colírio para olhos cansados.
O rosto que emergiu era suave e dócil, não muito diferente das
ovelhas que ela cuidava, com desbotado, e obviamente despenteados
cabelos loiros, amarrados para trás em um rabo de cavalo. Ela estava
um pouco suja e desnutrida, mas seus olhos eram de um belo castanho
escuro, e em geral ela emanava uma impressão honrosamente
empobrecida.
“É N-Norah. Norah Arendt.”
“Mais uma vez, eu sou Kraft Lawrence. Atendo por Lawrence a
trabalho.”
Ele pegou a mão tímida de Norah e notou que ela — que era
apenas um pouco maior que a mão de Holo — estava tremendo um
pouco. Logo, ela se acalmou e agarrou a mão de Lawrence levemente.
Embora sua mão fosse pequena, sua aspereza incontestavelmente a
marcava como uma pastora.
“Vou contar com você até Ruvinheigen!”
“Muito obrigado,” disse Norah.
CAPÍTULO II ⊰ 86 ⊱

Seu sorriso era como grama macia de verão.

Lawrence assumiu que só seria capaz de ir tão rápido quanto as


ovelhas pudessem andar, mas estava enganado.
As ovelhas eram enganosamente rápidas, e quando estavam
escalando montanhas a carroça era facilmente deixada para trás.
Seu beeeé era tão pastoral como o de costume, e o rebanho era
como um fio branco que deslizava rapidamente por sobre a terra.
Norah, é claro, acompanha sem dificuldade. No momento, as
ovelhas lideravam o caminho, seguidas por Norah, que por sua vez era
seguida pela carroça de Lawrence.
“Enek!” Norah chamou, e como um raio de chamas negras, o cão
de pelo escuro veio disparado até sua mestra, saltando no ar, incapaz
de esperar pela sua próxima ordem. Mal o sino do cajado de Norah
tocou e Enek correu para o grupo de ovelhas.
Lawrence não sabia muito sobre pastores, mas poderia dizer que
o controle de Norah sobre o cão pastor era claramente excelente. A
harmonia que ela tinha com Enek não foi ganha em um único dia.
Mas Enek não parece ser um cão jovem. Norah não poderia ter
mais do que dezessete ou dezoito anos, por isso, talvez seus pais
tenham sido pastores e o cão pastor fosse a sua herança.
Sua curiosidade de mercador era óbvia.
“Então, Norah, você...”
“Sim?”
“Você é uma pastora há muito tempo?”
Depois de ouvir a pergunta de Lawrence, Norah fez o sino dar
uma longa badalada, então diminuiu o passo e se aproximou do lado
direito da carroça.
Holo cochilava ao longo do lado esquerdo da carroça.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 87 ⊱

“Apenas por quatro anos até agora.”


Uma vez que a profissão exigia apenas que memorizasse os hinos,
danças e frases para abençoar os viajantes que solicitassem, não era raro
encontrar jovens pastores com dez anos de experiência.
Mesmo sem um cajado adequado ou cão pastor, você poderia
guiar um rebanho com um pedaço de madeira morta e ainda ser um
bom pastor.
“Então, o seu cão pastor — er, Enek, quero dizer — você o
treinou?”
“Não, eu o encontrei.”
Era uma resposta incomum. Um cão pastor competente era uma
posse valorizada — era impensável que um pastor deixaria o seu
escapar.
Lawrence só podia pensar em um cenário. O seu antigo mestre
deve ter se aposentado, deixando o cão para outro.
“Me tornei uma pastora depois que o encontrei.”
“E antes disso?” Lawrence perguntou sem pensar.
“Eu ajudava em um asilo de indigentes ligado a uma abadia e em
troca eles me deixavam viver lá.”
Não era educado bisbilhotar o passado de alguém, mas Norah
respondeu suavemente, aparentemente não estava magoada. Como ela
era uma das raras pastoras, talvez estivesse acostumada com tais
perguntas.
Se ela uma vez viveu em um asilo de pobres, isso sugeria que ela
não tinha nem pais nem herança, mas agora ela era uma bela pastora
— parece que os deuses ainda abençoam alguns com sorte.
“Quando eu estava no asilo, pensei que nunca poderia deixar
aquele trabalho. Foi uma boa sorte eu ter encontrado Enek.”
“O resultado da oração diária, certeza.”
CAPÍTULO II ⊰ 88 ⊱

“Sim, não paro de pensar que devo agradecer a Deus por nosso
encontro.”
O sino tocou novamente e Enek voltou veloz para seu lado.
Enquanto o som seco das pegadas de Enek chegavam aos ouvidos
de Lawrence, Holo mexeu, se inclinando levemente contra a lateral da
carroça. Parecia verdade, certamente, que ela poderia detectar a
aproximação de um lobo mesmo durante o sono.
“Eu o conheci depois que o asilo perdeu suas terras para um
mercador desonesto,” disse Norah.
Amargurava Lawrence ouvir falar dos malfeitos de um colega
mercador, mas o fato era que tais coisas eram comuns.
“Quando o encontrei, ele estava em um triste estado, coberto de
feridas,” continuou Norah.
“De lobos?”
Holo pareceu se mover. Talvez só estivesse fingindo dormir.
“Não, acho que foram salteadores ou mercenários... Não havia
lobos na área. Ele estava vagando na base de uma colina com este
cajado em sua boca.”
“Entendo.”
Enek latiu com prazer ao ter a cabeça acariciada.
Sem dúvida, o cachorro não foi o único vagando meio morto ao
pé da colina. A maioria dos que eram expulsos de um asilo de
indigentes provavelmente teriam morrido de fome. O vínculo entre a
garota e o cão — eles passaram por grandes dificuldades juntos — não
era algo superficial.
E a vida de um pastor era solitária e ruim. Enek era certamente
um companheiro bem-vindo.
Certamente melhor que os bens que Lawrence transportava.
Cavalos também não conversavam muito.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 89 ⊱

“Ainda assim, esta é a primeira vez que vi um pastor oferecer os


seus serviços como escolta.”
“Hm?”
“Normalmente eles recusam esse tipo de pedido, imagina se
oferecer para esse trabalho,” disse ele com uma risada. Norah parecia
frustrada e olhou às pressas para o chão.
“Um...,” ela começou.
“O que foi?”
“Eu só... queria falar com alguém...”
Aparentemente, o jeito que ela segurava seu cajado — que era
mais alto que ela — era uma espécie de hábito.
Mesmo assim, Lawrence certamente a entendia.
Tirando os habitantes da cidade, aqueles que não se viam atingidos
pela solidão eram poucos.
“Embora haja uma outra coisa,” a garota continuou. Seu
comportamento se animou quando olhou para cima. “Eu gostaria de
me tornar uma costureira.”
“Ah, então é do contrato de um membro de guilda que você
precisa.”
Norah novamente parecia embaraçada com as palavras de
Lawrence. Não sendo uma mercadora, parecia que ela não estava
acostumada a uma conversa franca sobre dinheiro.
“Eles são caros em quase todos os lugares. Apesar de não ser
necessariamente assim em uma cidade nova.”
“Sério? Isso é verdade?” seus lindos olhos castanhos se iluminaram
com sincera antecipação que era totalmente encantadora.
Era o maior desejo da maioria que vive viajando se estabelecer em
uma cidade. Tal vida era difícil, mesmo para um homem adulto, de
modo que a pastora deve ter sentido uma dificuldade ainda maior.
CAPÍTULO II ⊰ 90 ⊱

“Às vezes as taxas de membros de uma guilda são gratuitas, em


cidades recém fundadas.”
“Gr-gratuitas...,” sussurrou Norah com um semblante que traia
sua descrença.
Após dias suportando as brincadeiras de Holo, ver um rosto tão
inocente amoleceu o coração de Lawrence.
“Se encontrarmos quaisquer outros comerciantes na estrada, você
deve perguntar se eles sabem de alguma nova cidade na área. Se
souberem, provavelmente ficariam felizes em te dizer.”
Norah assentiu, seu rosto alegre, como se tivesse sido informada
do paradeiro de algum grande tesouro.
Se essas notícias a deixavam tão feliz, claramente valia a pena
informa-la.
E havia algo na garota que o fazia querer ajudá-la — algo
claramente transmitida na forma que como trabalhava tão duro com
braços tão finos.
Ele se viu desejando que a loba nas proximidades — que poderia
fazer um velho mercador astuto de tolo com uma única palavra —
pudesse se inspirar um pouco no comportamento da pastora.
Ela seria mais agradável dessa forma, ele pensou consigo mesmo
após um momento de hesitação.
“Menos cidades foram fundadas recentemente, sendo assim, você
faz bem em guardar dinheiro progressivamente, enquanto ora por
sorte, claro,” disse Lawrence.
“Sim. Deus pode ficar irritado se depender demais dele.”
Ele pensou que a garota estava séria, por isso seu tom de
brincadeira o pegou de surpresa.
Se Holo não estivesse dormindo por trás dele, teria convidado
Norah para se sentar no banco da carroça.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 91 ⊱

No momento em que o pensamento passou por sua mente, Holo


se mexeu; Lawrence falou apressadamente. “Uh, er, assim,
estritamente falando do ponto de vista de um mercador, você pode
ganhar mais dinheiro escoltando gente como eu do que cuidando de
ovelhas. Certamente, disputas territoriais são difíceis.”
“...Elas são,” disse Norah com um sorriso amargo depois de uma
pequena pausa. “Os lugares mais seguros já têm pastores os ocupando.”
“Então, tudo o que resta são campos dominados por lobos.”
“Sim.”
“Lobos certamente podem ser problemáticos — ow!”
Lawrence sentiu uma dor súbita na sua nádega e levantou
involuntariamente do assento. Norah olhou para ele, intrigada, e ele
forçou um sorriso antes de se sentar de novo.
O sono da Holo era evidentemente um fingimento. Ela o beliscou
com força.
“Tenho certeza que os lobos estão apenas à procura de comida,
mas às vezes eles matam humanos no processo... Um lugar mais seguro
seria bom,” disse Norah.
“Bem, os lobos são criaturas manhosas e traiçoeiras,” disse
Lawrence, parcialmente descontar o beliscão de Holo.
“Se eu falar mal deles, eles podem ouvir, então não direi.”
A maneira humilde de Norah era muito charmosa, mas a resposta
de Lawrence, “De fato”, era principalmente direcionada para a loba ao
atrás dele.
“Ainda assim,” ele continuou, “se você tem habilidade suficiente
para defender o seu rebanho mesmo através de campos infestados de
lobos, seus serviços não deveriam ter grande demanda e seu rebanho
enorme?”
CAPÍTULO II ⊰ 92 ⊱

“Não, não, é só pela graça de Deus que eu permaneço segura... e


eu sou grata por conseguir pelo menos algum trabalho. Um enorme
rebanho, eu simplesmente não poderia...”
Talvez ela estivesse apenas sendo modesta, mas parecia que havia
algo mais por trás do triste sorriso dela. Lawrence não poderia pensar
em muitas possibilidades. Ela estava insatisfeita com seu patrão?
Embora ele saiba que não era apropriado, a natureza inquisitiva de
Lawrence ganhou voz novamente. “Bem, creio que o seu chefe é capaz
de notar sua habilidade,” disse. “Talvez seja hora de uma mudança.”
Pastores, afinal, eram comerciantes também. Era natural que
devessem buscar condições mais favoráveis.
“Ah, eu não poderia!” engasgou Norah, pega de surpresa.
Também não parecia que ela estava negando por ter medo de ser
ouvida. Ela foi sincera.
“Minhas desculpas. Sinto muito. Como um mercador, estou
sempre pensando em ganhos e perdas.”
“N-não, está tudo bem,” disse Norah, como se surpresa com sua
própria ousadia. “...Um,” ela começou.
“Sim?”
“Eu, eu estava me perguntando... as pessoas mudam seus
empregadores... com frequência?”
Era uma pergunta estranha.
“Bem, sim, eu acho que é normal estiver insatisfeito com os
termos do emprego.”
“Entendo...”
Quando ela falava assim, soava como se estivesse de alguma forma
insatisfeita.
No entanto, o choque total da Norah com a sugestão de mudar
esses termos implicava que ela achava a ideia ultrajante. Se fosse esse o
caso, era possível deduzir a identidade de seu empregador.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 93 ⊱

Ela não tinha parentes, logo, encontrar alguém que confiasse suas
ovelhas para ela era difícil. Mesmo o pastor mais vigoroso poderia
perder duas ovelhas de cada dez que recebesse — e esta era uma perda
aceitável. Seria normal alguém se preocupar a capacidade de uma
garota aparentemente frágil trazer de volta até metade do rebanho.
Levando isso em conta, quem contratou Norah tinha que ser
alguém motivado por caridade ao invés de interesse próprio.
Em outras palavras...
“Se você não se importa que eu pergunte, o seu empregador por
acaso é a Igreja?”
A expressão de Norah era tão atordoada que Lawrence estava feliz
que por tê-la visto. “Como você —”
“Isso é segredo de um mercador,” disse Lawrence com uma risada.
Holo pisou no seu pé levemente. “Não fique arrogante,” ela parecia
estar dizendo.
“Er, bem...sim. Eu recebo meu rebanho de um padre da Igreja,
mas...”
“Se é a Igreja, não deve ter problemas com o seu trabalho. Você
encontrou um bom empregador.”
Seu patrão era provavelmente um sacerdote ligado ao asilo que ela
tinha mencionado anteriormente. Conexões pessoais eram mais úteis
do que sorte ou força.
“Sim, fui verdadeiramente abençoada,” respondeu Norah com um
sorriso.
Mas para Lawrence, cuja subsistência era simplesmente discernir
a verdade entre bajulação e mentiras, o sorriso de Norah era
obviamente falso.
Enquanto Norah virava de lado para trabalhar com Enek,
Lawrence olhou para Holo, que esteve fingindo dormir. Holo
devolveu seu olhar, então ela fungou e se virou, fechando os olhos.
CAPÍTULO II ⊰ 94 ⊱

Se tivesse falado, ela provavelmente teria dito algo como: “Eu não
sinto nenhuma simpatia.”
“Eles me confiaram este rebanho,” disse Norah “e eles me ajudam
em muitas outras maneiras.”
Ela falou como que para lembrar do fato — era lamentável de ver.
A razão para a expressão abatida de Norah era clara. A Igreja não
a estava empregando. Eles estavam observando ela.
É claro que, num primeiro momento, provavelmente parecia ser
caridade que eles confiaram a ela um rebanho — que é precisamente
o motivo dela nunca ter pensado em mudar de empregadores.
Os pastores eram muitas vezes considerados vagamente hereges.
Eles resistiam a constantes acusações de serem “mãos do diabo,”
portanto estava longe de ser estranho que a sempre suspeita Igreja viria
a duvidar de uma mulher falsamente acusada que assumiu tal trabalho
— ainda mais se ela destacava. Era apenas mais uma evidência de magia
pagã.
Mesmo a pessoa mais densa acabaria notando tais suspeitas.
Ao mesmo tempo, o salário de um pastor não era alto. Ela
trabalhava duro para receber pouco — certamente não teria o
suficiente para poupar nada. Lawrence imaginou que esta era a razão
pela qual ofereceu seus serviços como escolta.
Mas o senso de mercador de Lawrence dizia a ele para não se
envolver demais na questão.
Sua curiosidade estava saciada. Prosseguir ainda mais o faria
responsável por futuros desenvolvimentos.
“Entendo,” ele falou. “Eu ouso dizer que você não precisa se
preocupar em encontrar um empregador diferente.”
“Você acha?” perguntou Norah.
“Sim — com a insistência da Igreja em uma pobreza honrada, seu
salário será sempre um pouco baixo, mas desde que Deus não nos
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 95 ⊱

abandone, a Igreja sempre existirá. Você não vai ter que procurar por
trabalho. Contanto que tenha trabalho, você vai ter o que comer. Isso
não é algo para se agradecer?”
Tendo despertado suas preocupações e sugerido mudar de
empregadores, Lawrence sabia que a dura realidade era que ninguém
contrataria uma pastora que tinha chamado a atenção da Igreja. Ele não
faria com que suas ações roubassem o sustento de uma garota solitária.
Em todo caso, Lawrence não estava mentindo e Norah parecia
aceitar isso. Ela assentiu várias vezes, lentamente. “Suponho que sim,”
ela concordou.
Era verdade que ter um trabalho — qualquer trabalho — era
bom, mas esperança também era importante. Lawrence limpou a
garganta e falou tão animado quanto pôde.
“De qualquer forma, tenho muitos conhecidos em Ruvinheigen,
por isso vamos perguntar depois se tem qualquer mercador precisando
de proteção contra lobos. Afinal, Deus nunca disse nada sobre ter um
bom trabalho secundário, hein?”
“Sério? Oh, obrigado!”
O rosto de Norah se iluminou tão alegremente que Lawrence não
pôde deixar ser um pouco afetado.
Nessas horas, ele era incapaz de convocar seu desprezo habitual
por Weiz, o cambista mulherengo da cidade portuária de Pazzio.
Mas Norah não era uma garota da cidade, nem era uma artesã ou
uma vendedora. Ela tinha um frescor único. Parte disso era um sério
comportamento que herdou das freiras no asilo, que tinha uma forma
ligeiramente negativa de pensar, como se estivesse tentando reprimir
seus sentimentos.
Norah parecia ter tomado essa tendência desagradável e a
substituído com outra coisa.
CAPÍTULO II ⊰ 96 ⊱

Não precisava ser um mulherengo para perceber isso. Lawrence


estava disposto a apostar que Enek, que até agora abanava o rabo para
Norah, era um macho.
“No fim das contas, se estabelecer em uma cidade é o sonho de
todos os que vivem por meio de viagens.”
Estas palavras ainda eram verdadeiras.
Norah assentiu e levantou seu cajado ao alto.
Seu sino soou e Enek correu, voltando para as ovelhas ordenadas
ao longo da estrada.
Eles começaram a falar de comida para viagem, se exaltando com
as possibilidades.
Se esticando através da planície, a estrada adiante era aberta e fácil.

As noites dos pastores chegam mais cedo. Eles decidem onde


acampar bem antes do sol se pôr e já estão enrolados e dormindo no
momento em que o disco vermelho está baixo no céu e os camponeses
estão a caminho de casa. Eles, então, se levantam quando o sol já se
pôs e as estradas estão livres de trânsito e passam a noite com os seus
cães, vigiando o rebanho.
Quando a aurora começa a aparecer, os pastores dormem em
turnos alternados com seus cães. Há pouco tempo para dormir na vida
de um pastor — uma razão pela qual a profissão era tão difícil. A vida
de um mercador, que pode contar com uma boa noite de sono, é fácil
em comparação.
“Trabalho duro,” Lawrence murmurou para ninguém em
particular enquanto estava deitado na carroça, segurando um pedaço
de carne seca na boca. Ainda não estava frio o suficiente para se
preocupar em fazer uma fogueira.
Ele olhou com frequência para Norah, enrolada como uma pedra
ao lado da estrada. Ele a ofereceu a carroça, mas ela recusou, dizendo
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 97 ⊱

que isso era como ela sempre dormia, antes de se deitar no escasso
acolchoamento proporcionado pela grama.
Quando ele desviou os olhos dela, seus olhos pousaram em Holo,
que estava a sua direita. Finalmente livre dos olhos curiosos dos seres
humanos, ela pôs sua cauda para fora e começou a escovar.
Ela nunca se cansa disso, pensou Lawrence enquanto olhava para
Holo ocupada escovando sua cauda, seu perfil era a própria imagem da
seriedade. De repente, ela falou, em voz baixa.
“Cuidar diariamente da própria cauda é importante.”
Por um momento Lawrence não entendeu, mas depois se
lembrou do que tinha acabado de dizer há pouco tempo para si mesmo;
ela estava apenas respondendo. Ele riu silenciosamente e Holo o
olhou, com uma pergunta em seu olhar.
“Oh, você falava daquela criança?” ela disse.
“O nome dela é Norah Arendt,” explicou Lawrence, se divertindo
com a forma sarcástica de Holo usar a palavra criança para se referir à
garota.
Holo olhou para Norah além de Lawrence e então de volta. Assim
que Lawrence abriu a boca, ela pegou a carne que ele ia comer.
Lawrence estava calado em surpresa por um momento. Quando ele
voltou a si e tentou pegar a carne de volta, ele recebeu um olhar tão
maligno de Holo que retrocedeu sua mão.
Não era necessariamente por causa de sua provocação, mas ela
estava claramente de mau humor.
Ela tinha saído de onde estava para sentar perto de Lawrence
enquanto escovava sua cauda, então, presumivelmente, o objeto de sua
ira não era ele.
A fonte de seu mau humor era óbvia.
“Olha, eu certamente te perguntei,” disse Lawrence.
Soou como uma desculpa. Holo fungou irritada.
CAPÍTULO II ⊰ 98 ⊱

“Hmph. Não posso nem escovar minha cauda em paz.”


“Por que não faz isso no fundo da carroça?”
“Hmph. Se eu fizer isso lá...”
“Se você fizer isso lá, o quê?” Lawrence pressionou Holo que ficou
subitamente em silencio, que zombou dele, a carne ainda estava entre
os seus dentes. Evidentemente ela não queria discutir o assunto.
Lawrence queria saber o que ela ia dizer, mas se pressionasse mais,
ela ficaria verdadeiramente irritada.
Ele desviou o olhar de Holo, cujo humor de cavalo ferido a fazia
difícil demais para se lidar, e levou um frasco de couro cheio de água
aos lábios.
Lawrence tinha acabado de parar de pensar nela, e enquanto o sol
se punha, ele considerou fazer uma fogueira quando Holo disparou
para ele. “Você certamente parecia gostar da sua pequena conversa
com ela,” ela disse.
“Hm? Com Norah?”
Holo ainda tinha a carne roubada em sua boca quando enquanto
olhava para sua cauda — mas a orgulhosa cauda obviamente não era o
que estava em sua mente.
“Ela queria conversar. Eu não tinha razão para recusar, tinha?”
Aparentemente, a indulgência da sábia loba não era tão grande a
ponto de perdoar uma conversa agradável com uma pastora odiada.
Holo fingiu dormir o tempo todo. Norah tinha olhado para Holo
e parecia ter vontade de chamar a garota — que no fim das contas
parecia ser mais ou menos da mesma idade — para conversar, mas
parou depois de perguntar de seu nome. Caso Holo quisesse falar com
Norah, houveram diversas oportunidades.
“Além disso, faz tempo que não converso com uma garota
normal,” disse Lawrence brincando quando olhava de volta para Holo
— e hesitou com o que viu.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 99 ⊱

A expressão de Holo tinha mudado completamente.


Mas não era nada como as lágrimas de ciúme que ele esperava ver.
Ela olhou para ele com nada além de piedade.
“Você nem sequer notou que ela odeia falar com você?”
“Huh...?” disse Lawrence, lançando um olhar na direção de
Norah, mas parou a si mesmo depois de um momento. Como um
mercador, ele não podia continuar caindo no mesmo truque duas
vezes.
Fingindo que não tinha olhado para trás, ele se acalmou e lembrou
das palavras de um menestrel que uma vez tinha ouvido.
“Bem, se ela se apaixonasse por mim à primeira vista, ela perderia
a diversão de se apaixonar ao longo de semanas e meses, eh?” ele falou.
Lawrence não foi convencido por esta afirmação quando a ouviu
pela primeira vez, mas dizer isso agora o dava um pouco de convicção.
Talvez realmente fosse mais divertido se apaixonar gradualmente, ao
invés de uma vez.
Mas aparentemente, isso foi demais para Holo.
Sua boca se abriu em choque, e o pedaço de carne caiu no chão.
“Tenho um pouco de talento, eh?” disse Lawrence.
Ele disse isso para obter um riso de Holo, mas ele também estava
meio sério.
Assim que ela ouviu isso, a onda que atingiu Holo se tornou um
tsunami em seu caminho de volta, e ela explodiu em risos.
“Mmph... bu-ha-ha-ha! Oh, oh, isso é bom demais! Oh! Ha-ha ha-
ha!” Holo se contorcia, apertando seu estômago enquanto ria,
tentando ocasionalmente abafar o riso apenas para disparar em
gargalhadas novamente. Eventualmente, seu rosto ficou vermelho e
ela se arremessou em direção a pilha de armaduras na carroça, sua
dolorosa risada continuava.
CAPÍTULO II ⊰ 100 ⊱

Lawrence a acompanhou no início, mas quando ele viu mais da


reação de Holo, sua expressão escureceu.
Sua cauda, mais macia do que o normal, graças a sua escovação
recente, batia contra a carroça, quase como se implorando por ajuda.
“Ok, já riu demais.”
Já não era mais engraçado.
“...Ah deuses,” Lawrence murmurou, tomando outro gole do
frasco de água, como que para lavar tanto a irritação por ser
ridicularizado, bem como o constrangimento que agora sentia por citar
um menestrel dentre todas as possibilidades.
“Haah.Whew.Oh...oh ok. Isso foi divertido.”
“Já acabou?” perguntou Lawrence com um suspiro, olhando para
o sol que agora afundava no horizonte. Ele não tinha muita vontade de
olhar para Holo, seja mal compreendido ou não.
“Mm. Este era um grande trunfo que você escondia.”
Com o canto do olho, Lawrence viu Holo aninha no topo da pilha
de armadura, seu rosto fatigado com o riso voltado em sua direção.
Era como se ela estava exausta depois de correr com tudo.
“Bem, contanto que esteja feliz agora.”
Não importa o quanto ela odiasse pastores, o mau humor de Holo
era um pouco desagradável demais, Lawrence pensou. Era difícil
imaginar que ela estava realmente com ciúmes da conversa que tivera
com a menina, nem era verdade que ela não teve absolutamente
nenhuma oportunidade de pentear sua cauda.
Por um momento ele se perguntou se era simplesmente timidez,
mas então se lembrou do seu primeiro encontro com ela e decidiu que
era totalmente impossível.
“Hm? Feliz?”
As orelhas de lobo do indivíduo em questão — que se
descobriram quando ela caiu na risada — agora se mexiam
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 101 ⊱

curiosamente quando ela olhou para ele com os olhos borrados de


lágrimas, como se ele tivesse dito algo muito estranho.
“Você estava de mau humor mais cedo — porque não pôde
pentear a sua cauda, você disse.”
Ela pareceu se lembrar de algo.
“Oh, verdade,” disse ela, seu rosto calmo.
Ela se levantou da carga, em seguida desceu de volta, enxugando
as lágrimas dos cantos dos olhos.
Olhando para ela agora, Lawrence pensou que não se importava
nem um pouco se ela teve oportunidade suficiente para pentear sua
cauda ou não. Teria isto sido apenas uma desculpa para desabafar sua
irritação sobre algo totalmente diferente?
“Não pude evitar,” ela disse.
A ponta de sua cauda bateu levemente contra o chão da carroça.
“De qualquer forma, sua carta na manga me fez rir tanto que me
deixou tonta,” disse Holo, rindo com a lembrança. Ela então olhou
para fora da carroça. “Me pergunto, a criança não está com frio?”
Sua observação trouxe Lawrence de volta ao presente. O sol já
tinha se posto pela metade, e o céu era um azul escuro. Era melhor
fazer uma fogueira.
Ele tinha ouvido falar que pastores geralmente não faziam
fogueiras, no entanto, era porque eles tinham que vigiar e perseguir
suas ovelhas, não por qualquer resistência especial ao frio.
Lawrence meditou sobre isso enquanto ele olhava para Norah,
enrolada almofada insignificante da grama.
Ele sentiu um movimento repentino perto de sua boca, se virou e
encontrou Holo empurrando um pedaço de carne em sua direção.
“Aqui, seu pagamento por seus serviços como bobo da corte.”
“Apenas um pedaço de carne para uma gargalhada daquelas?”
CAPÍTULO II ⊰ 102 ⊱

“Oh, você não quer?” provocou Holo entretida. Apesar de seu


embaraço, Lawrence decidiu aceitar a oferenda.
...mas seus dentes morderam o ar. Holo tinha puxado a mão para
trás no último momento.
A loba sábia riu; Lawrence percebeu que ir contra ela era uma
missão de tolo. Se ela decidiu ser tão infantil, só poderia ignorá-la.
Se ele não fizesse uma fogueira em breve, todos estariam jantando
no frio. Lawrence se moveu para sair da carroça, mas Holo o agarrou
pela manga da camisa e se aproximou.
O coração de Lawrence acelerou.
Seus cílios ainda tinham vestígios de lágrimas, os quais pegavam a
luz vermelha do sol poente.
“Eu de fato acho que, de tempos em tempos, um pouco de carne
crua seria bom — o que acha?”
Com o triste berro das ovelhas ecoando pelo ar do crepúsculo, as
palavras de Holo — falando através de suas presas sempre afiadas —
não poderiam ter sido inteiramente uma brincadeira.
Afinal, ela era uma loba.
Lawrence afagou a cabeça de Holo como se a repreendesse por
fazer uma piada de mau gosto, em seguida, pulou para fora da carroça.
Os lábios de Holo se enrolaram em um breve rosnado, mas ela
logo sorriu levemente e passou para Lawrence o feixe de palha, carvão
e lenha.
ntrar em Ruvinheigen requeria passagem por dois postos
de inspeção separados. Um controlava a passagem pelas
muralhas da cidade, e o outro estava situada na estrada
principal, que cercava toda a expansão de Ruvinheigen.
Devido ao tráfego pesado dentro e fora de uma cidade deste
tamanho, era preciso obter um documento de passagem no posto de
inspeção externo, a fim de passar pelo posto de controle dos muros da
cidade. Viajantes legítimos usariam os caminhos legais para a cidade,
obteriam os documentos adequados e passar através das muralhas —
qualquer um que não tivesse o documento seria expulso.
Os postos de inspeção também forneciam algum grau de controle
sobre o contrabando e falsificação inevitável que as grandes cidades
atraíam.
CAPÍTULO III ⊰ 104 ⊱

A estrada que Lawrence e seus companheiros tomaram era,


evidentemente, menos usada já que seu posto — embora não seja
exatamente malfeito — era bem mais simples do que os postos de
inspeção nas rotas mais comuns, e o guarda de lá parecia conhecer
Norah. Usando algum estranho poder, ela guiou ovelhas pelo portão
propositadamente estreito, e Lawrence a seguiu depois de ter suas
mercadorias inspecionadas.
O simples posto contrastava nitidamente com as grandes e
majestosas muralhas de Ruvinheigen.
Seria completamente impossível romper as muralhas de
Ruvinheigen sem controlar as áreas circundantes. Paredes de terra e
madeira eram citadas com orgulho em outras áreas, mas aqui, uma
barreira de pedra cercando a cidade, com torres de vigia posicionadas
em intervalos regulares. Ruvinheigen estava mais perto de um castelo
do que uma cidade, e Holo soltou um suspiro involuntário de
admiração enquanto eles observavam a partir de uma colina
conveniente logo após o primeiro posto de inspeção.
Do lado de fora dos muros havia campos cultivados e, entre eles,
as estradas se esticavam radialmente para fora da cidade.
Aqui um grupo de porcos era impulsionado por um agricultor; ali
uma longa caravana mercante era visível. Mais ao longe, um tapete
branco se movia lentamente sobre o chão — provavelmente um
rebanho de ovelhas que algum pastor trouxe para pastar. Pastores com
rebanhos que passavam das centenas não eram raros, mas este pastor
estava provavelmente ganhando tempo antes de finalmente levar suas
ovelhas para Ruvinheigen para apoiar o consumo de carne da cidade.
Tudo sobre este lugar era extraordinário.
Lawrence e seus companheiros desceram o monte e tomaram uma
das estradas que corriam por entre os campos.
A cidade era tão grande que do monte parecia que ela estava
perto, mas percorrer a distância tomou algum tempo. Norah teve que
ter cuidado para que suas ovelhas não comessem as colheitas que
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 105 ⊱

cresciam em ambos os lados da estrada. Por fim, o grupo estava perto


o suficiente para ver o padrão nas paredes da cidade.
Neste ponto, Lawrence pegou cuidadosamente duas moedas de
prata e as estendeu para entregar a Norah.
“Certo, então, aqui estão seus quarenta trie.”
Trie eram moedas de cobre simples. No entanto, tantas moedas
seria um fardo pesado, e Lawrence avaliou que as duas moedas de prata
que a entregou poderiam ser trocadas por quarenta e cinco trie.
Ele pagou Norah um extra porque se sentiu endividado com ela.
Ele e Holo tiveram a sorte de não encontrar quaisquer lobos, mas
Lawrence ainda ficou impressionado com a habilidade da garota. Até
Holo admitiria isso, e era fácil para Lawrence ver Norah se destacando
no futuro. O dinheiro extra foi apenas um investimento para esse fim.
“Er, mas, se eu trocar isso, não vou conseguir mais do que...?”
“Considere isso um investimento,” disse Lawrence.
“Um...investimento...?”
“Agora que conheço uma pastora tão habilidosa, poderei ser capaz
de conseguir um lucro surpreendente com lã,” disse Lawrence em um
tom propositalmente ganancioso. Norah riu e a contragosto aceitou as
duas moedas de prata.
“Nós estaremos na Guilda Rowan de Comércio por um tempo. Se
tiver planos de levar o seu rebanho a campo novamente, passe lá
primeiro. E poderei ser capaz de apresentá-la a um comerciante com
necessidade de escolta.”
“Passarei.”
“Ah, uma última coisa. A área na qual você pode fornecer escolta
— é apenas a rota que seguimos?”
“Er, posso ir até Kaslata e Poroson. Oh, e também para Lamtra.”
Kaslata era uma remota cidade sem muitos atrativos, e Lawrence
ficou surpreso ao ouvir Norah mencionar Lamtra. Lamtra era um dos
CAPÍTULO III ⊰ 106 ⊱

poucos lugares da região que não estavam sob a influência de


Ruvinheigen, que controlava o resto da região. Não era muito longe
em direção ao norte da grande cidade — Lawrence e seu grupo
poderiam chegar lá seguindo para o norte por um ponto no meio da
estrada que acabaram de tomar. No entanto, para chegar a Lamtra era
necessário passar por uma floresta escura e misteriosa, que até mesmo
os cavaleiros temiam, por isso resistiu contra a invasão de Ruvinheigen
por tanto tempo e era a única cidade onde um número significativo de
pagãos ainda vivia.
Todas as rotas legítimas para Lamtra eram incrivelmente repletas
de desvios, então não achava que Norah deveria sugerir que pudesse
fornecer escolta ao longo delas. Ela claramente tinha confiança em sua
capacidade de cruzar a floresta.
Se ela conseguisse, havia muitos mercadores que gostariam de ir
com ela.
“Lamtra, hein? Ouso dizer que você tem alguns contratos,” disse
Lawrence.
O rosto de Norah se alegrou. “Muito obrigada!” ela disse, se
curvando como se ainda estivesse morando em um asilo de indigentes.
“O prazer é meu. Bem, então, vou entrar pelo portão sudeste,
aqui é onde nos separamos.”
“Certamente. Espero que nos encontremos de novo,” disse
Norah.
Lawrence assentiu e puxou as rédeas de seu cavalo para a esquerda
enquanto Norah tocava seu sino. Ruvinheigen era grande o suficiente
para ter nada menos que dezessete grandes portões. Entre eles haviam
portões pequenos, utilizados para grandes grupos de ovinos e outros
rebanhos, os quais Norah teria que usar.
Além disso, dada interior labiríntico da cidade, era bom senso
entrar através do portão mais próximo do seu destino — a cidade era
grande o suficiente para isso.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 107 ⊱

Quando eles se separaram, Lawrence olhou para trás por cima do


ombro e viu que Norah ainda estava os observando. Quando ela viu
Lawrence a olhando, Norah acenou saudosamente para eles.
Ele poderia muito bem acenar de volta, mas estava com medo de
ser ridicularizado por Holo. Lawrence lançou um olhar para ela, o que
a garota loba notou.
“Você acha que sou tão malcomportada?”
Lawrence sorriu, aflito, então olhou para a frente depois de
devolver o aceno de Norah.
“Hmph. Bem, agora vamos ver o gosto dessas conservas de
pêssego em mel! Certamente estou ansiosa para isso.”
“Hm. Então você se lembrou disso, não é?” disse Lawrence.
Enquanto se aproximavam do portão, ele estava considerando o
quanto perderia para o imposto de entrada com sua carga de
armaduras.
“Certamente você não está dizendo que não vai comprar!” Holo
era intimidante, apesar de seu sorriso doce e cabeça modestamente
inclinada.
Lawrence desviou os olhos e murmurou quase como se estivesse
rezando. “Não podemos comprar se eles não estiverem vendendo
nenhuma.”
“Bem, naturalmente,” disse Holo, como se tivesse total confiança
de que as conservas estariam a venda.
“Ah, você provavelmente já sabe disso, mas tentam agir um pouco
mais como freira no próximo ponto de verificação. Eles são mais
flexíveis com uma freira.”
“Hmph. Eu não sou tão tola a ponto de criar problemas em uma
cidade como esta. Mas eu realmente pareço como uma freira?”
“Não há nenhuma dificuldade com isso.”
CAPÍTULO III ⊰ 108 ⊱

Assim que ele disse isso, Lawrence se arrependeu. Holo tinha


sofrido muito nas mãos da Igreja. Dizer que ela parecia uma freira
poderia deixa-la com raiva.
“Oh, é mesmo?” disse Holo, rindo. Ela parecia feliz —
surpreendentemente.
“...O que, você não está com raiva?”
“Hm? Por que eu estaria?”
“Bem, quero dizer... a Igreja é sua inimiga, mais ou menos.”
“Não necessariamente. É o mesmo que ter alguém como você por
perto. Freiras são todas fundamentalmente gentis, e até mesmo uma
loba como eu pode dizer que a maioria delas são muito encantadoras.
Beleza transcende a espécie.”
Da sua parte, Lawrence compreendeu bem o suficiente, mas
estava principalmente feliz por ela não estar brava.
E era verdade que muitas freiras eram belas. Isso pode muito bem
ser parcialmente por elas serem tão assiduamente dóceis, puras e
ascéticas, mas havia também o fato de que as filhas ilegítimas de muitos
nobres se tornavam freiras.
Muitas mulheres formosas planejavam usar sua beleza para tornar-
se amante de um nobre rico, e muitas filhas de nobres atraentes eram
seduzidas por um libertino, que exercia a poesia e a arte como uma
arma.
Muitas vezes, os filhos resultantes de tais ligações eram mais
vigorosos e saudáveis do que os seus irmãos legítimos — muito
provavelmente porque homens e mulheres capazes de seduzir a
nobreza eram formidáveis.
Tais crianças eram a causa de uma boa parte das lutas de sucessão,
mas a maioria delas entrariam em uma abadia — assim, muitos dos
irmãos e irmãs da abadia eram bonitos, de fato.
“Contudo, não acho que poderia aguentar o jejum constante,”
disse o Holo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 109 ⊱

Lawrence riu abertamente.


À medida que avançava pela estrada que corria ao lado da grande
muralha, um grupo animado de pessoas se tornou visível ao longe.
Era a entrada sudeste.
O enorme portão se abriu, e enquanto algumas pessoas entravam
na cidade, outros saiam, partindo em suas viagens.
As inspeções de pessoas e bens eram conduzidas assim que
atravessasse a murada, e apesar do volume de viajantes, havia pouca
espera uma vez que tantos inspetores estavam a serviço.
No entanto, diferente de Poroson, nem uma única pessoa se
preocupou em formar uma fila, então a menos que estivesse
familiarizado com o protocolo, era possível acabar do lado de fora do
portão por horas. No entanto, Lawrence conhecia o procedimento,
ele guiou seu cavalo adiante, tentando o seu melhor para evitar colidir
com qualquer um; abrindo seu caminho por entre pessoas menos
experientes; e finalmente chegando à estrada que passava por sob os
arcos, esculpidos diretos da parede de pedra, que levavam para a
cidade. Em tempos de guerra, esse era um ponto importante para
defender, por isso as paredes aqui eram muito espessas. Lawrence
olhou para cima para ver um grosso portão de madeira suspenso acima
da multidão, e com um calafrio, ele se perguntou o que aconteceria se
ele acabasse caindo — embora ele nunca tinha ouvido falar de tal
acidente. Logo após o portão, havia uma abertura no telhado através
do qual óleo fervente poderia ser derramado nos inimigos invasores,
caso rompessem a muralha. A pedra em torno da abertura estava
descolorida, talvez devido ao uso frequente.
Logo após as paredes estava o posto de inspeção, e além dele,
Lawrence podia ver as ruas de Ruvinheigen.
Qualquer grande cidade cercado por muros — não apenas
Ruvinheigen — tinha que se expandir para cima, mais do que para
fora, devido ao espaço limitado. Ruvinheigen era particularmente
desafiadora a este respeito, e para a cidade que agora cumprimentava
CAPÍTULO III ⊰ 110 ⊱

Lawrence e o fazia lembrar o convés de um navio cheio de tesouros.


Várias construções pareciam prestes a transbordar a qualquer
momento. Ainda para além destas, ele podia ver o alto telhado da
grande catedral de Ruvinheigen.
“Você aí, mercador!” Uma voz gritou.
Lawrence voltou sua atenção para um guarda usando uma
armadura de couro leve que apontava para ele.
“Ficar observando a cidade vai causar um acidente!” repreendeu o
guarda.
“Minhas desculpas.”
Houve um curto riso ao lado de Lawrence.
“Próximo! Uh, você aí! O mercador que acabou de ser
repreendido!”
Era difícil de prosseguir sem uma fila adequada. Lawrence engoliu
seu embaraço e guiou seu cavalo na direção do inspetor, se curvando
em saudação.
“Papéis de passagem,” exigiu o inspetor, impaciente.
“Bem aqui.”
“Hm. Você veio de Poroson, eh? Seus bens?”
“Vinte conjuntos de armaduras.”
O comércio era proibido fora da muralha, por isso era necessário
que a carga de um mercador coincidisse com o documento de viagem.
O inspetor pestanejou rapidamente. Ele pareceu surpreso.
“Armaduras? De Poroson?”
“Ah, sim. Comprei da Companhia Latparron em Poroson. Algum
problema?”
Ruvinheigen tinha sido fundada quando as companhias dos
cavaleiros encarregadas de reprimir os pagãos criaram fortificações, e
até hoje, a cidade permanecia como um importante depósito de
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 111 ⊱

suprimentos para os soldados em direção ao norte. Armas e armaduras


das áreas circundantes eram importadas aqui e voavam das prateleiras
imediatamente.
Lawrence estava intrigado com a reação do inspetor, mas o oficial
apenas balançou a cabeça e voltou sua atenção para a carroça. Esta
continha vinte conjuntos de capacetes, luvas, couraças e grevas 1 —
tudo feito de couro e cota de malha. O vinho não era uma mercadoria
à venda, mas ainda seria tributado. No entanto, há muito havia sido
bebido.
Não havia nada suspeito e o inspetor parecia satisfeito. Ele subiu
na carroça para verificar se havia itens não tributados, como ouro ou
joias que pudessem estar escondidas dentro das armaduras; então,
apaziguado, ele desceu. Fez uma verificação superficial no feixe de
lenha, mas esconder qualquer coisa dentro dele teria sido impossível.
“Elas parecem com as armaduras de Poroson. Você estará pagando
em moeda ou bens?”
As armaduras valiam cem lumiones no total, de modo que o
imposto de 10 por cento equivaleria a dez lumiones.
Dez lumiones chegaria a mais de trezentas moedas de prata trenni,
e nenhum comerciante viajaria transportando tantas moedas. Seria
inconveniente para o inspetor contar as trezentas moedas, mesmo que
Lawrence as tivesse.
Entregar algumas armaduras como imposto resolveria todos estes
problemas.
“Bens,” disse Lawrence.
“Boa resposta,” respondeu o inspetor, o que provocou um suspiro
de alívio em Lawrence. “Leve dois conjuntos de armadura para lá,”
disse ele, gravando algo com uma pena em um pedaço de papel, que
entregou a Lawrence.

1
Componente das armaduras antigas, que se utilizava como proteção para as
canelas e topo do joelho.
CAPÍTULO III ⊰ 112 ⊱

Duas armaduras das vinte satisfaria o imposto de 10 por cento.


Lawrence assentiu depois de confirmar a exatidão do recibo.
Da parte de Holo, que parecia com uma freira em todos os
detalhes, portanto passou sem ser questionada. Esta era uma cidade da
Igreja, suspeitar de padres ou freiras provavelmente traria mais
problemas do que valeria a pena.
Em todo caso, aliviado por ter conseguido passar através do posto
de controle sem problemas, Lawrence desceu da carroça, tomou as
rédeas, e caminhou. A partir de agora só ficaria mais lotado — e claro,
perigoso.
A área em torno do posto de coleta de impostos era como uma
guerra, um cruzamento desordenado de idiomas e vestuário.
Lawrence podia ouvir o mesmo barulho de pessoas pechinchando e
implorando em qualquer local onde os impostos eram coletados.
Naturalmente, ele não se envolveria em algo tão tolo como
pechinchar sobre impostos e obedientemente entregou as necessárias
duas armaduras.
No entanto, o funcionário olhou para o recibo que Lawrence
recebeu do inspetor e franziu a testa.
Lawrence de repente ficou nervoso — será que havia algo
impróprio? Mas não, parecia que tudo estava em ordem.
Sem saber exatamente o que tinha acontecido, Lawrence
atravessou o posto de inspeção e entrou na cidade, ele subiu de volta
na carroça.
A reação do inspetor ao ver a carga de armadura era um mistério,
mas Lawrence tinha entrado na cidade, por isso, não há mais motivo
para preocupação.
Ele murmurou garantias para si mesmo, mas uma certa inquietude
permaneceu.
“Ei, mercador,” disse Holo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 113 ⊱

Lawrence foi subitamente perturbado pelo som da voz de Holo,


como se estivesse prestes a ouvir algo desagradável. “O quê?”
Holo falou lentamente em resposta à pergunta de Lawrence.
“Mm. Estou com fome.”
“...”
Lawrence olhou para a frente de novo, ignorando tanto a queixa
de Holo quanto sua própria inquietação persistente.
A grande catedral de Ruvinheigen é tão robusta que era visível a
partir de qualquer ponto da cidade. A metrópole se espalha ao redor
da catedral — o bairro mais próximo a ela é conhecido como a cidade
antiga, cercado por muralhas da cidade velha, e em cercando aquelas
paredes, por sua vez, está o resto da Ruvinheigen.
Na parte sul da cidade mais ou menos circular estava o maior
portão da cidade, e passando pela estrutura — que era grande o
suficiente para permitir que máquinas de cerco passassem — havia
uma praça tão larga a ponto de invejar qualquer rei estrangeiro, com
uma fonte criada usando a mais recente técnica disponível no sul e uma
feira permanente.
Em torno das bordas da praça estavam as grandes empresas de
comércio da região, as casas de verdadeiro poder e influência na
cidade, todas coladas. Além delas, pequenas empresas comerciais,
casas e lojas de uma grande variedade de artesãos.
A grande catedral ficava no meio de uma das outras praças de
Ruvinheigen, que eram dispostas como um grande pentágono sendo a
maior delas a do portão sul. Cada praça tinha suas próprias
características, quase como uma cidade dentro de uma cidade.
Lawrence e Holo passaram pela entrada sudeste, e embora a praça
onde se encontram dificilmente pudesse ser comparada com a grande
praça do sul, ainda era considerável.
No centro da praça estavam estátuas de cavaleiros, que haviam
realizado algum feito memorável na guerra contra os pagãos, e santos,
que fizeram alguma contribuição importante para a fé.
CAPÍTULO III ⊰ 114 ⊱

Dezenas de tendas eram alinhadas na praça com pessoas em


esteiras de palha negociando suas mercadorias dentro das estruturas.
Não havia nenhuma barraca ao redor das estátuas de bronze. Em
vez disso, um conjunto musical com um menestrel tocando uma flauta
de madeira lisa enquanto uma famosa trupe de atores cômicos
ofereciam seu serviço. Misturado com os artistas estavam sacerdotes
peregrinos, vestidos de trapos e empunhando livros esfarrapados de
escritura enquanto pregavam, os seus discípulos atentos usavam roupas
ainda piores.
Parecia que a ordem do dia no distrito era pegar um lanche em
umas das barracas, observar os artistas, e escutar um sermão depois de
se divertir.
Depois que Lawrence e Holo alugaram um quarto em uma
estalagem e pôr o cavalo no estábulo, eles partiam para a casa de
comércio para começar os seus acordos comerciais quando se viram
atraídos em direção ao tumulto de vozes felizes e deliciosos aromas.
Eles comeram algumas enguias fritas, que parecia ser um lanche
popular. A doçura do óleo mascarou o cheiro de terra dos utensílios,
e assim que terminasse um pedaço, você já queria outro, o que parecia
ser da natureza humana. Quando Lawrence percebeu, ele e Holo
pararam na frente de uma barraca de bebidas, apreciando o show de
comédia enquanto bebiam um pouco de cerveja.
“Mmm, isso é saboroso,” disse Holo depois de secar um copo, e
com espuma ainda nos cantos de sua boca, ela pediu outra rodada. O
garçom estava muito feliz em servir clientes tão rentáveis.
Comendo enguia frita e bebendo cerveja durante toda a tarde,
Holo já não parecia nem um pouco como uma freira.
As roupas que ela usava ao entrar na cidade seriam ainda menos
convincentes na presença de Lawrence — nada era mais suspeito do
que uma pessoa de fé viajando com um mercador.
Então Holo trocou o manto por uma capa de pele de coelho, mas
ainda dobrou o manto e o envolveu em sua cintura, usando como uma
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 115 ⊱

saia improvisada para esconder sua cauda. Suas orelhas problemáticas


estavam escondidas sob um lenço triangular.
Assim Holo tinha transformado de freira para uma moça da
cidade. A praça estava cheia de garotas que tinham abandonado o
trabalho para uma tarde de diversão, de forma que ela mal se
destacava. O jeito que ela bebia, sem se importar com sua bolsa de
moedas, ajudava a pensar que ela estava separando alguns comerciantes
inocentes de seu dinheiro.
Na verdade, como Lawrence pagava antecipadamente, o garçom
parecia pensar que era ele quem tinha sido desarmado por esta garota
casualmente cara.
Lawrence deu ao homem um sorriso amargurado para desviar do
assunto, mas o garçom também não estava necessariamente errado.
“O licor é bom e as pessoas animadas — é uma boa cidade, não?”
“A animação tem um preço — temos que nos cuidar,
especialmente próximo de qualquer cavaleiro ou mercenário. Uma
briga com sua laia traria mais problemas do que precisamos.”
“Você pode contar comigo,” disse o Holo.
Lawrence suspirou em vez de expressar o que achava do assunto.
“Certo, bem, nós devemos ir.”
Ele terminou sua segunda cerveja enquanto Holo tinha terminado
quatro cervejas na mesma quantidade de tempo, de modo que parecia
um momento oportuno para sair.
“Mm? Já? Eu ainda nem comecei a beber.”
“Você pode beber mais esta noite. Vamos.”
Movendo o olhar de Lawrence para seu copo, Holo, finalmente,
pareceu desistir e se afastou da tenda. O garçom falou “voltem
sempre!” e sua voz desapareceu na multidão cercando Lawrence e
Holo.
“Então, para onde vamos?”
CAPÍTULO III ⊰ 116 ⊱

“Para a casa de comércio — pelo menos limpe sua boca, hm?”


Só agora ciente da espuma nos cantos da boca, Holo trouxe sua
manga perto dos seus lábios, como que para limpá-los.
No entanto, pensando melhor no último segundo, em vez disso
ela agarrou a manga da camisa de Lawrence e limpou sua boca.
“Quê, você — vou me lembrar disso.”
“E ainda assim você já me acertou,” disse Holo, segurando sua
cabeça com uma mão e olhando para ele, a outra mão segurando
firmemente a de Lawrence. Sua raiva durou apenas um momento.
“Ainda assim,” continuou ela.
“Hm?”
“Por que você tem que me arrastar para esta casa de comércio?
Prefiro mil vezes ficar bebendo cerveja na praça.”
“É muito perigoso deixar você sozinha,” alertou Lawrence.
Holo olhou surpresa por um momento, depois riu timidamente,
talvez ela tenha entendido errado o que ele quis dizer.
“Mm, é verdade. Eu sou encantadora demais para ser deixada
sozinha!”
Era verdade que Holo, com seus cabelos castanho-avermelhados
balançando, ela tendia a atrair atenção, e alguns daqueles que
observavam devem ter invejado Lawrence, que segurava sua mão.
Não que ele não tivesse um pouco de orgulho em andar por aí com
Holo, mas o fato é que não havia como dizer em que problema que ela
iria se meter caso a deixasse por conta própria.
A praça era um lugar divertido e animado, mas lugares divertidos
e animados pareciam mais problemas do que poderiam lidar. Se por
acaso sua verdadeira forma fosse exposta lá, seria desastroso.
“Nenhum charme vai impedir os guardas da Igreja ou cavaleiros
do templo de perseguirem a sua cauda,” disse Lawrence. “E se você
ficar bêbada e mostrar suas orelhas ou cauda?”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 117 ⊱

“Quê? Apenas me transformaria, te agarraria com a minha boca, e


nós fugiríamos da cidade. Certamente posso saltar por cima daquelas
muralhas. Não existe alguma velha história sobre um cavaleiro e uma
princesa parecida com isso?”
“Qual, aquela em que o cavaleiro resgata a princesa prisioneira?”
“Essa mesma!” disse Holo, se divertindo. Para Lawrence, não
havia um traço de romance na ideia de Holo assumindo sua forma de
loba e fugindo com ele entre os dentes.
Muito pelo contrário, apenas imaginar ser preso entre aquelas
grandes mandíbulas fazia Lawrence querer tremer.
“Bem, não faça isso,” disse Lawrence.
“Mm. Se você fosse o prisioneiro, haveria pouco ganho em
resgatá-lo.”
Lawrence fez uma expressão angustiada e olhou para Holo que o
olhava maliciosamente.
Os dois passaram por todo um turbilhão de pessoas e se dirigiram
para o norte em uma travessa estreita, onde vitrines se alinhavam sob
seus beirais brilhantes e iluminados pelos raios de sol. Não havia
companhias de comércio aqui, mas sim construções com uniões
mercantis e casas de comércio. Alguns eram associações econômicas
criadas por grupos mistos de mercadores de diferentes áreas; outros
eram construções para associações de artesanato criadas por
comerciantes têxteis que se ajudavam independentemente da sua
origem.
O mundo não oferecia proteção para mercadores que se
encontravam com perigo ou acidentes. Assim como os cavaleiros
usavam elmos e couraças, os mercadores se uniam para garantir a sua
própria segurança. As maiores alianças econômicas eram páreas até
mesmo para o pior inimigo de um comerciante: uma nação empenhada
em abusar de seu poder.
Uma história famosa falava de dezoito regiões e vinte e três guildas
se unindo na mais poderosa aliança econômica já criada, combinando
CAPÍTULO III ⊰ 118 ⊱

forças equivalente a um exército de quatorze mil soldados e


reivindicando a vitória quase que instantaneamente. A união que se
formou para preservar os lucros transcendia fronteiras era um bom
exemplo da solidariedade a qual esses grupos poderiam dar origem.
Por essa razão, as construções que estes sindicatos e associações
usavam eram bastante ordenados, e aqueles que os frequentavam se
comportaram educadamente.
Sem civilidade, longas rivalidades entre (por exemplo) um
peixeiro e um açougueiro pode acabar em violência e envolver a
cidade.
Tais ocorrências geralmente mancham o bom nome de uma
organização, mas elas ainda eram muito importantes para os
mercadores. Afinal, o comércio depende da confiança e reputação.
“Certo, eu tenho negócios a tratar, então é só me espere aqui,”
instruiu Lawrence assim que eles chegaram à casa de comércio com a
qual ele era associado. Ele viu o edifício pintado no estilo local e não
pôde deixar de sentir uma certa nostalgia. Ele guardou essa sensação
para si, por consideração a Holo, cuja terra natal ainda estava distante.
Holo o observou enquanto ele demostrava indiferença. “O quê?
Você não vai me levar para dentro e me mostrar aos seus antigos
conhecidos?”
Parecia que ela tinha notado o pouco de orgulho que ele reuniu ao
longo do curso, mas isso não era mais o suficiente para incomodá-lo.
“Isso seria basicamente equivalente a um anúncio de casamento.
As cerimônias de casamento da minha cidade são bastante turbulentas,
tem certeza que está pronta para isso?”
Esse tipo de coisa era bastante universal. O conhecimento de Holo
do mundo humano pareceu lhe dar alguma ideia.
Ela balançou a cabeça em desgosto.
“Eu serei breve. Se você esperar comportada, vou te pão doce,”
disse Lawrence.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 119 ⊱

“Não me trate como uma criança.”


“Oh, você não quer?”
“Quero.”
Lawrence não pôde deixar de rir da resposta séria da Holo, e a
deixando lá, ele subiu os degraus do edifício e bateu na porta da
empresa comercial. A porta não tinha nenhuma aldrava, que era um
sinal de que apenas os membros devem bater.
Depois de esperar algum tempo, no entanto, não houve resposta.
Lawrence se aventurou a abrir a porta sozinho. Dada a hora do
dia, era possível que todos estivessem no mercado — e como ele
esperava, o interior estava em silêncio. O primeiro andar era um
amplo hall de entrada configurado como um salão de bebidas onde os
membros poderiam relaxar, mas as cadeiras estavam em cima das
mesas redondas e um esfregão estava inclinado em uma parede.
Evidentemente, o lugar estava sendo limpo.
Nada havia mudado durante o ano em que Lawrence esteve fora,
bom, com a exceção do cabelo do mestre da guilda que cuidava do
balcão da frente — que tinha diminuído. Ele suspeitou que a grande
barriga do mestre tinha crescido ainda mais, mas infelizmente, o
homem parecia ter dificuldade para ficar de pé, então Lawrence não
podia ter certeza.
O mestre ergueu o olhar do balcão e com um sorriso amigável e
começou som suas brincadeiras habituais. “Veja só, que mercador
pobre é este! Vagando em torno de uma casa de comércio a esta hora
— não se importa nem um pouco em ganhar dinheiro. Você estaria
melhor em roupas de ladrão e indo a uma cervejaria!”
“Os maiores mercadores ganham dinheiro sem sujar os sapatos
com poeira; a sua única mancha é a tinta em seus dedos. Correr pelo
mercado durante todo o dia é sinal de um mercador e de terceira
categoria. Estou errado?”
Toda vez que se encontravam assim, Lawrence costumava ficar
irritado recordando o hábito inexplicável do mestre de zombar dele
CAPÍTULO III ⊰ 120 ⊱

quando ainda era um jovem aprendiz. Em algum lugar ao longo do


tempo, ele tinha aprendido a rebater sem se perturbar.
Lawrence rebateu facilmente brincadeira do mestre, em seguida,
se endireitou e se aproximou do balcão.
O homem instalado atrás do balcão bateu sua mão na testa com a
resposta de Lawrence, rindo. “Você se tornou inteligente, rapaz. Bem-
vindo de volta, meu filho!”
“Pare com esse negócio de ‘meu filho’.”
“O que você está dizendo? Todos na Guilda Rowen de Comércio
são como meus filhos e filhas.”
Os dois apertaram as mãos depois das conhecidas formalidades.
“E mesmo assim eu sei de todas as vezes que você molhou o seu
saco de dormir depois que acampávamos — e não é um dos
ensinamentos de Deus que um bom pai conhece bem seu filho? Ou
devo mencionar a vez que você roubou a caixa de dinheiro e escapou
com seus amigos, tremendo, para o bordel?”
“Tudo bem, tudo bem. Então sou Kraft Lawrence, filho do grande
Jakob Tarantino.”
“Então, Kraft meu rapaz. Você está de volta em Ruvinheigen
depois de um ano. Como vai a nossa família em outras cidades?”
Os modos de Jakob eram arrogantes como sempre, e ele acertou
Lawrence com toda a aspereza e intensidade do licor. A casa de
comércio era verdadeiramente sua terra natal em uma cidade
estrangeira.
Este era o tipo de dura hospitalidade que só se provava em casa.
“Eles estão todos bem com a graça dos santos.”
“Bom, muito bom. Bem, agora, se você está visitando nossa
família por aí, deve estar conseguindo muito lucro! Se sua bolsa está
pesada, sua calça vai cair. Se sua calça cair, as moças não vão gostar de
você. E você, rapaz, é um convencido. Estou errado?”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 121 ⊱
CAPÍTULO III ⊰ 122 ⊱

Lawrence não tinha resposta. Rindo da maneira desajeitada do


mestre de buscar sua contribuição, ele respondeu: “Ouvi dizer que a
capacidade de lidar com números fica ruim com a idade, mas vejo que
os olhos do velho Jakob ainda estão afiados.”
Lawrence perfeitamente retirou dez moedas de prata da bolsa
fixada em sua cintura e as pôs no balcão.
Se ele tivesse entregado duas ou três moedas de cobre, ele teria
conseguido um sermão.
Ele queria mostrar ao velho, em todo caso, como seu lucro com
as especiarias tinha sido considerável. A generosa doação era o relato
de que agora estava fazendo negócios nesta escala — e com isso Jakob
abriu um largo sorriso.
“Ha-ha-ha, o pequeno molha cama agora está me entregando
moedas de prata de verdade! Como é lindo.”
“Pare de me chamar de molha cama.”
“Você ainda é um para mim, rapaz.”
Lawrence deu de ombros, e a risada de Jakob foi ouvida
novamente.
“Bem, então, você veio até aqui no meio do dia, por isso deve
estar aqui a negócios. Precisa de um certificado?”
“Sim.”
“Certamente estou ansioso pelo o dia em que você se tornar um
mercador famoso o suficiente para que as pessoas tremam com a
menção de seu nome,” disse Jakob.
“Você que está dizendo,” Lawrence concordou — então se
lembrou que ainda tinha alguma coisa para falar. “Ah, verdade. Você
sabe se tem alguém da guilda que está indo para Lamtra?”
Jakob colocou um pote de caneta e tinta sobre a mesa, em seguida,
olhou para cima, e levantou as sobrancelhas para Lawrence. “Agora,
isso é uma pergunta estranha,” ele mencionou.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 123 ⊱

“Eu estava apenas pensando em oferecer um atalho para Lamtra


em troca de uma consideração...”
O olhar de Jakob oscilou por um momento antes de se parar
novamente em Lawrence. Ele tinha um largo sorriso.
“Oh ho. Você se encontrou com uma jovem pastora?”
Lawrence foi pego com a guarda tão baixa que sua respiração ficou
presa momentaneamente em sua garganta, mas quando parou para
considerar, ele pensou que estava longe de ser uma surpresa que os
mercadores em Ruvinheigen soubessem de Norah, uma pastora fêmea.
O que significava que outros já haviam pensado naquela ideia
radical de Lawrence.
“Você está longe de ser o primeiro a ter essa ideia, rapaz.
Especialmente depois de que a estrada por onde ela anda ter sido
fechada. Mas agora ninguém mais liga para isso, e ninguém pede uma
escolta para aquela garota. Você sabe por quê?” Jakob falou
suavemente enquanto escrevia o certificado.
Lawrence respondeu com um suspiro, “Porque não há ganho
nisso?”
Jakob acenou com a cabeça e olhou para cima. “Essa garota é a
única que anda nessa área ilesa. Claro que Norah, a Ninfa, é muito
popular com seu charme e habilidade, mas não tenho que te dizer o
que a Igreja pensa sobre isso. Ninguém quer se meter com aqueles
filhos da puta.”
Ele mergulhou a ponta de sua pena no tinteiro e continuou, com
um sorriso malicioso no rosto. “Eu sei que Norah, a Ninfa, é o tipo de
garota que você gosta, mas aqui vai um conselho: Desista.”
Era uma conversa normal que acontecia todos os dias, mas foi
encerrada um pouco rápida demais, e Lawrence só poderia oferecer
uma espécie de sorriso angustiado como resposta.
“Então, para quem é o certificado? Ou devo deixá-lo em branco?”
“Não, é para a Companhia Remelio, por favor.”
CAPÍTULO III ⊰ 124 ⊱

Jakob fez outra pausa por um momento.


Ele olhou para Lawrence com os olhos calculistas de um
mercador.
“Remelio, eh? Se você já sabe para quem está vendendo..., você
deve estar vendendo na margem, hmm...”
“Sim. Vindo de Poroson. Há algo que eu deveria saber?”
perguntou Lawrence, apenas para ser atingido por um súbito e severo
olhar, que surgiu como um peixe das profundezas de um lago.
“Mm. Bem, você vai ver quando chegar lá. Aqui o seu certificado.”
Quando um mercador vendia primeiramente seus bens para uma
casa de comércio, o pior problema que pode acontecer é um mercador
rival forçar abaixar seus preços. Essas coisas não acontecem com muita
frequência em cidades pequenas como Pazzio e Poroson, mas
Ruvinheigen era grande, e por causa das conexões entre as muitas
empresas de comércio e associações, isso acontecia muitas vezes.
Ruvinheigen era um lugar óbvio para grandes transações, e as
transações menores de mercadores individuais eram como grãos de
areia.
Portanto, Lawrence diria a qual guilda ele estava associado e
deixaria claro que seria levado a sério. Com o nome de uma guilda em
suas costas, ele não seria tratado com desprezo.
“A Guilda Rowen de Comércio está sob a proteção de São
Lambardos. Vou rezar por sua boa fortuna,” disse Jakob.
“Obrigado...”
Lawrence levou o certificado que provava sua afiliação com a
Guilda Rowen de Comércio, agradecendo Jakob vagamente, este
claramente sabia mais do que estava dizendo.
Lawrence sabia por experiência própria que, se pedisse mais
informações, não iria obtê-las.
No entanto, em tais situações, era provável que descobrisse a
resposta após uma maior reflexão ou investigação.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 125 ⊱

‘O que poderia ser?’ ele imaginou.


“Sim, sim, você vai ver quando chegar. É de você que estamos
falando, então tenho certeza que vai conseguir tirar vantagem.” As
palavras de Jakob só serviram para confundir Lawrence ainda mais,
mas se ir à casa de comércio levasse a compreensão, ele não tinha
escolha, senão avançar. Provavelmente, o preço de alguma mercadoria
tinha desestabilizado, e a Companhia Remelio estava em algum tipo de
caos.
Lawrence tirou a ideia da sua cabeça, deu a Jakob seus
agradecimentos e se virou para ir embora. Ele veio aqui para vender
os seus bens, e se distrair antes de fazer isso não iria ajudar em nada.
No momento em que colocou a mão para a porta, ele foi parado
pela voz de Jakob.
Lawrence olhou para trás e viu Jakob sorrindo agradavelmente.
“Ah, e tenha calma antes de se envolver com alguma garota,
ouviu? Mesmo uma meiga como Norah é demais para você lidar —
uma garota da cidade gastaria todo o seu dinheiro antes de você notar!”
Havia janelas nas paredes da casa de comercio, mas elas não eram
feitas de vidro como nas grandes empresas de comércio — em vez
disso, eram faixas de pano de linho embebidas em óleo que serviam
como painéis. Isso permitia que um pouco de luz pudesse entrar, mas
dificilmente se podia ver através deles.
No entanto, parecia que Jakob conseguia ver Holo do outro lado.
Era a prova de que o homem possuía a astúcia para comandar uma
guilda de comércio em uma terra estrangeira, ele estava muito além
de uma pessoa normal.
“Você não pode investir sem capital.”
“Ha-ha! Falou bem molha cama!”
Lawrence sorriu timidamente e abriu a porta; Jakob ainda estava
sorrindo quando a fechou atrás dele.
CAPÍTULO III ⊰ 126 ⊱

Ele se lembrou de seus dias como um aprendiz. Quando


confrontava pessoas como Jakob, ele tinha tanta pressa para crescer,
para superá-los. Era nostálgico, mas amargo ao mesmo tempo.
Lawrence refletiu sobre o quão jovem ele ainda era enquanto
olhava em direção a base dos degraus de pedra. Apenas nesse
momento, Holo olhou por cima do ombro para ele.
“Oh, aí está ele. Esse é o meu companheiro,” disse Holo.
Ela estava sentada na base dos degraus enquanto apontava
alegremente para ele. À sua frente estavam dois garotos,
provavelmente aprendizes de algum mercador. Eles pareciam estar em
torno de quinze ou dezesseis anos, a mesma idade que Holo
aparentava. Eles estavam transportando pacotes, talvez em uma
encomenda para os seus pais.
Os garotos, com idade quase o suficiente para fazer a barba,
olharam para Lawrence com animosidade depois de ouvir as palavras
de Holo. Lidar com eles poderia ser um aborrecimento, mas se
encolheram um pouco quando Lawrence suspirou.
Havia um mundo de diferença na posição social de um aprendiz
de artesão e um mercador que pertence a uma guilda. Os garotos
provavelmente se aproximaram de uma Holo obviamente entediada,
mas agora, confrontando Lawrence, eles perceberam que não havia
nada que pudessem fazer, então, olhando para o outro, os dois
aprendizes saíram correndo.
Holo riu. “Eles eram tão bonitos. Me disseram que eu era uma
linda rosa,” ela disse rindo, enquanto observava os garotos saírem
correndo, mas o rosto de Lawrence mostrava seu desconforto.
“Não mexa com eles. Aprendizes são como cães famintos. Você
poderia ser sequestrada.”
“Bom se isso acontecesse, você viria me resgatar novamente.
Estou enganada?”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 127 ⊱

Confrontado com a resposta inesperadamente sincera dela,


Lawrence não podia deixar de se sentir um pouco feliz, mas seu rosto
permaneceu calmo. “Claro, eu resgataria você.”
Holo sorriu e se levantou. “É claro que, no final, sempre sou eu
que acabo te salvando.”
Ela tinha pegado ele.
Lawrence cobriu os olhos irritado e desceu os degraus. Ela pegou
seu braço direito, rindo.
“Eu não sei que tipo de retorno você está esperando, mas quero
que você invista em mim,” disse.
“...Você ouviu tudo aquilo?”
“Minhas pequenas e preciosas orelhinhas podem perceber até
mesmo quando você contraiu uma sobrancelha. Então... você tem uma
queda por loiras, não é?”
Lawrence só expressou um confuso “Huh?” com o raciocínio
absolutamente inexplicável de Holo antes dela continuar.
“Pelas magricelas também. Ou você gosta de uma aparência
cansada? Ou você simplesmente tem uma queda por pastoras?”
Seu interrogatório rápido fez Lawrence pensar em uma ponte
suspensa com suas cordas sendo cortadas, uma após a outra. Ele
encarou Holo, alarmado, mas ela apenas sorriu de volta.
Seu sorriso era a coisa mais assustadora até aqui.
“Espere um minuto — isso é apenas a forma do Mestre Jakob
dizer oi. Se ele tiver a oportunidade, é como um jogo para ele dizer
coisas desse tipo. Eu não —”
“Não o quê?” Lawrence viu nos olhos de Holo que ela não toleraria
uma mentira.
Ele não tinha escolha a não ser dizer a verdade. “B-bem, claro,
achei Norah legal. Não posso dizer que não gostei da nossa conversa.
CAPÍTULO III ⊰ 128 ⊱

Mas... não quer dizer que eu não penso em você, ou... bem, não é isso
que significa.”
Ele se envergonhou na metade, e de repente ficou muito difícil
encarar Holo. Ele nunca tinha dito algo assim em toda sua vida.
Tendo deixado isso escapar, ele respirou fundo. Depois de se
recompor um pouco, ele olhou para sua companheira, que olhava para
ele com uma expressão surpresa em seu rosto.
“Eu só estava provocando...”
O constrangimento e a raiva que Lawrence sentiu com essas
palavras foram descartados com o sorriso que Holo lhe deu.
“Não pensei que me levaria a sério, aquilo... foi legal.”
Ela olhou para baixo e apertou o braço dele levemente.
Para Lawrence, isto não foi algo dissimulado ou falso como uma
negociação comercial, mas uma maneira de ver o quão próximo eles
poderiam se tornar.
Em grande parte, inconsciente e despreocupado com como isso
poderia parecer, Lawrence se mexeu para pôr o braço esquerdo ao
redor de Holo, mas abraçou apenas o ar.
Ela silenciosamente escorregou de suas mãos.
“Mesmo assim, machos são sempre assim. Eles vão dizer o que for
preciso.”
Olhando para forma triste e séria dela, até mesmo Lawrence
poderia facilmente imaginar que em algum momento no passado de
Holo, alguém tivesse dito algo descuidado e doloroso para ela, algo
que ela ainda ressentia.
Mas Lawrence era um mercador. Ele sempre foi cuidadoso com
suas palavras.
“Então — você vai precisar me mostrar algo. Por acaso os
cavaleiros não entregam as suas espadas e escudos como prova de sua
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 129 ⊱

boa-fé? Você é um mercador, então o que vai me mostrar como prova


de sua sinceridade?”
Lawrence também tinha ouvido os contos de cavaleiros que
entregavam suas espadas e escudos — dizem que até suas próprias
almas — quando juram sua lealdade.
Então, o que um comerciante entregaria? A resposta era óbvia:
dinheiro.
Lawrence podia imaginar a expressão aborrecida de Holo se ele a
entregasse uma bolsa cheia de moedas.
Ele precisava comprar algo para ela, algo que servisse para ambas
as coisas: a fazer muito feliz e representar o dinheiro — sua alma de
mercador — que usaria sem hesitação para o bem dela.
O item que veio imediatamente à memória era o absoluto luxo:
Conservas de pêssego em mel.
“Tudo bem,” disse Lawrence. “Vou te mostrar que não digo essas
coisas sem pensar.”
Os olhos dela se encheram com uma mistura de desconfiança e
expectativa. Se ele pudesse de alguma forma, responder à pergunta
naqueles olhos vermelho-marrons, bem... as conservas de pêssego em
mel seriam uma pechincha.
“Vou te comprar conservas de pêss...”
Isso foi o mais longe que Lawrence conseguiu antes que um
sentimento estranho o dominasse, mais especificamente sobre o lenço
triangular na cabeça de Holo.
Holo inclinou a cabeça intrigada com o Lawrence congelado.
Então, com um rápido “Oh,” ela rapidamente colocou as mãos na
cabeça.
“Não me diga que você —” Lawrence começou.
“O-o quê? Qual o problema? Você estava prestes a dizer que iria
me comprar alguma coisa?”
CAPÍTULO III ⊰ 130 ⊱

Ele tinha que dar ela o crédito por não se envergonhar o tempo
todo, mas Lawrence não ia simplesmente rir desta vez.
Olhar para o lenço na cabeça dela deixava óbvio. Sobre dele, suas
orelhas estavam se contraindo estranhamente, vigorosamente. Essa era
a prova.
Era tudo parte do seu plano.
“Sabe, há coisas que você simplesmente não pode fazer!” ele disse.
Holo pareceu perceber que seu plano havia falhado, e agora, de
repente chateada, dobrou seu lábio inferior para fora consternada.
“Você disse que eu deveria pedir de forma mais encantadora!”
Por um momento, Lawrence não a acompanhou, mas então se
lembrou de sua conversa nas proximidades de Poroson. Exasperado,
ele olhou para os céus.
“Não, eu disse que você deveria pedir educadamente. Eu nunca
disse nada sobre truques femininos!”
“Mas eu estava encantadora, não?”
Lawrence odiava a si mesmo por não responder de imediato, e
odiava a si mesmo ainda mais por não ficar mais irritado com ela.
“Ainda assim... eu devo dizer,” continuou Holo “você estava duas
vezes mais encantador. Isso foi muito mais excitante do que se o meu
plano tivesse ocorrido como eu queria.”
Finalmente sem palavras, Lawrence simplesmente caminhou pela
estrada.
Holo riu e o acompanhou.
“Ora vamos, não fique com raiva!”
Quando ele deu a ela um olhar que dizia “de quem é a culpa?” ela
apenas riu dele com mais vontade.
“Eu estava feliz, de verdade. Você ainda está com raiva?”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 131 ⊱

Lawrence sentiu sua expressão se suavizar ao ver os cabelos


castanhos de Holo balançarem, complementado seu sorriso.
De repente, ele queria muito compartilhar uma bebida com seu
silencioso e confiável cavalo — que era macho.
“Tudo bem, não estou com raiva. Não estou com raiva — okay?”
Holo deixou escapar um sorriso como se desfrutando de sua
vitória, exalando antes de falar novamente.
“Não devemos nos separar. Posso pegar sua mão?”
Para voltar para os seus alojamentos, eles teriam que entrar
novamente nas ruas lotadas, mas mesmo separada de Lawrence, Holo
não teria nenhuma dificuldade em encontrar seu caminho.
Era um pretexto óbvio.
Ela era uma velha loba sagaz, de fato. Lawrence cedeu. “Sim, não
devemos nos separar,” ele concordou.
Holo sorriu e sua mão segurou a dele.
Tudo o que Lawrence podia fazer era estreitar seu aperto sempre
tão fraco nessa mão.
“Então, e as minhas conservas de pêssego em mel?”
Os sinos da catedral soaram para sinalizar o meio-dia — e o início
de uma nova batalha.
A Companhia Remelio era um atacado que operava uma loja na
cidade Santa de Ruvinheigen.
Lawrence, apostando que seria capaz de obter lucro, tinha
ameaçado a Companhia Latparron a deixá-lo comprar mais armadura
do que possuía garantias. Para pagá-los de volta, ele planejava vender
para a Companhia Remelio, com a qual a Companhia Latparron
frequentemente fazia negócios — e não haveria necessidade de voltar
todo o caminho até Poroson para pagar sua dívida. Eles tinham apenas
que gravar nos seus livros e estava feito.
CAPÍTULO III ⊰ 132 ⊱

Ele entrou em uma rua um quarteirão afastado da lotada estrada


principal e chegaram na Companhia Remelio.
Era a porta dos fundos, onde uma grande área era reservada para
carga e descarga de produtos.
Em uma cidade do tamanho de Ruvinheigen, tentar descarregar
mercadorias por meio da entrada da frente de uma loja era considerado
grosseiro. Se tentar fazer isso em uma rua com tráfego intenso, você
seria ridicularizado, na melhor das hipóteses, e na pior, você não seria
capaz de vender seus produtos. De fato, em muitos lugares, os
comerciantes não deveriam levar suas carroças para as ruas por causa
do tráfego pesado.
Era por isso que, nas ruas laterais paralelas à principal, cavalos
puxando carroças muitas vezes estavam em maior número do que os
pedestres. Lawrence franziu as sobrancelhas.
A área em torno da Companhia Remelio parecia estranhamente
calma.
“Esta empresa é dirigida por monges?” perguntou Holo.
“Com monges, eu pelo menos esperaria ouvir orações. Mas não
ouço nada.”
Holo, mastigando um pão, levemente tirou o lenço e começou a
mexer suas orelhas, mas Lawrence não tinha tempo para tais métodos.
Ele saiu do banco do motorista, atravessou a inclinação dos vagões e
entrou na plataforma de carregamento.
Os edifícios eram densamente compactados, e manter uma
plataforma de carga em Ruvinheigen — uma cidade onde as pessoas
constantemente brincavam que os edifícios eram tão juntos que “os
pobres podem dormir em pé entre as construções” — não era fácil.
No entanto, a plataforma da Companhia Remelio poderia acomodar
pelo menos três vagões com espaço de sobra para uma centena de sacos
de trigo. Havia uma mesa para a realização de negociações e uma
barraca de troca no canto, e as paredes eram decoradas com
pergaminhos onde bênçãos para o bom comércio eram escritas.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 133 ⊱

Era uma plataforma magnífica.


Mas ração estava espalhada por toda parte, junto com montes de
esterco de cavalo e restos de carga. Claramente, ninguém estava
cuidando de sua manutenção e não havia um mestre de carga à vista.
Negócios vêm e vão, por isso não seria estranho ter momentos em
que simplesmente não existiam clientes. Mas ainda era senso comum
manter sua loja limpa e arrumada.
Era como se a companhia tivesse sido destruída. Lawrence se
retirou e voltou para o banco da carroça. Holo parecia ter terminado
o seu pão e agora vasculhava por sua torta de carne, que se Lawrence
lembra corretamente, era dele.
“Se você comer muito, o som da sua mastigação vai destruir sua
habilidade de ouvir da qual é tão orgulhosa.”
“Muito bem colocado — mas para o bem da minha reputação,
devo dizer que posso ouvir o som de alguém no prédio.”
Holo então mordeu com entusiasmo a torta de carne. Ela
claramente não ia comer só um pedaço.
“Tem alguém lá?”
“Mm...mmph...mrgh. Mas parece perigoso. Pelo menos, posso
dizer que não é nada agradável.”
Ouvindo isso, os cinco andares de madeira da Companhia
Remelio, dado o estado da sua plataforma de carga, começaram a
parecer bastante sinistros. Nada era tão amaldiçoado como uma
empresa comercial que tinha ido à falência. Quando isso acontecia, a
igreja local geralmente ficava ocupada com a realização de funerais para
o recém-falecido.
“Bem, não faz sentido ficar vagando por aqui. Não podemos
ganhar dinheiro se não vendermos os bens.”
“Uma torta de carne não é boa até que você a coma,” concordou
Holo.
CAPÍTULO III ⊰ 134 ⊱

“Eu estava guardando ela!”


Lawrence lançou um olhar para Holo antes de mover a carroça e
recebeu um olhar igualmente azedo por isso.
Mas talvez comer a torta inteira seria acarretar culpa demais —
Holo dividiu a torta em duas e ofereceu uma parte para Lawrence. Era
cerca de um quarto do ele que tinha originalmente planejado comer,
mas se queixar poderia lhe custar o pouco que restou, ele engoliu o
pedaço.
Normalmente tortas de carne eram feitas com carne moída que se
aproximava a data de validade estabelecida pela aliança de açougueiros,
mas aqui em Ruvinheigen, as tortas de carne eram tão nobres como a
própria cidade. A carne era totalmente saborosa e Lawrence comeu
sua torta em duas mordidas enquanto conduzia a carroça até a doca de
carregamento deserta.
Os cascos do cavalo batiam contra o chão e parecia que seu som
familiar chegou aos ouvidos das pessoas dentro do local. Lawrence
parou a carroça, descendo do assento, quando o mestre de doca
finalmente emergiu.
“Ouso dizer que falta algumas horas até o Sabah1 — então qual é
o problema?” disse Lawrence.
“Er, bem, é que... o senhor chegou na cidade hoje...?” o mestre
de cargas de meia idade arrastava suas palavras inicialmente, mas sua
aptidão parecia voltar a ele enquanto avaliava Lawrence.
Aqueles olhos eram como os de um ladrão de olho na bolsa de
moedas de seu alvo, e o instinto de mercador de Lawrence sentiu
perigo. O mestre de cargas parecia irregular, agora que Lawrence o
observava. Este era um lugar de trabalho pesado, então ele dificilmente
se prostraria reto, mas mesmo assim, Lawrence poderia dizer se
alguém estava cheio de vigor.
Isso não era bom. Isto claramente não era bom.

1
Dia de descanso semanal no judaísmo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 135 ⊱

“Não, cheguei há poucos dias. Você sabe como é. Bem, você


parece ocupado, então vou passar aqui um pouco mais tarde. Não
tenho pressa.”
Lawrence evitou fazer contato visual, e sem esperar pela resposta
do mestre de cargas, ele voltou para a carroça.
Holo também pareceu sentir algo estranho. Ela olhou para
Lawrence questionando, mas logo assentiu. Apesar de sua aparência
como uma garota normal da cidade, sua inteligência era
extraordinária. Ela não se orgulhava de ser uma sábia loba à toa.
Mas o mestre de cargas não desistiria tão facilmente.
“Bem, agora, espere um momento, senhor. Posso dizer que o
senhor é um mercador de renome. Seria rude da minha parte deixar
senhor sair de mãos vazias.”
Se Lawrence apenas recusasse o homem, não havia como dizer
como sua reputação poderia ser falada ao redor da cidade.
Mas o sangue de mercador borbulhava em suas veias.
Corra, ele dizia. Isso é perigoso.
“De forma alguma,” respondeu Lawrence. “Sou um mercador
com quase nada além de reclamações para vender.”
Apenas um mercador de terceira categoria seria tão desajeitado a
ponto de se depreciar quando negociando. Humildade era uma virtude
para os clérigos, mas para mercadores, era como enfiar a cabeça em
uma forca.
Mas Lawrence tinha julgado que fugir era o melhor plano. E a
postura congelada de Holo reforçava essa decisão.
“O senhor não deve ser tão modesto! Mesmo um mendigo cego
poderia dizer senhor é um homem de poder!”
“Bajulação não vai levar você a lugar nenhum,” disse Lawrence,
sentado no banco da carroça e agarrando as rédeas. O mestre de cargas
parecia ser capaz de dizer que era hora de ceder. Ele havia se inclinado
CAPÍTULO III ⊰ 136 ⊱

para a frente tão sinceramente que quase tropeçou, mas agora ele se
endireitou.
Parecia que Lawrence estava escapando da armadilha, então falou
brevemente com o mestre de cargas. “Bem então vou me retirar...”
“Sim... que infelicidade. Aguardarei o seu retorno,” disse o mestre
da com um sorriso insinuante. Lawrence tomou isso como sua deixa
para sair, então ele começou a mover a carroça.
O mestre de cargas, no entanto, aproveitou esse pequeno espaço
de tempo que Lawrence baixou a guarda. “Creio que esqueci de
perguntar o nome do senhor,” disse.
“Lawrence. Da Guilda Rowen de Comércio.”
Lawrence entregou o seu nome sem pensar, então, de repente,
ele se perguntou se dar o seu nome a alguém que não conhecia, em
uma situação que não entendia, era um erro — mas ele não conseguia
pensar em nenhuma razão para se preocupar.
Muito provavelmente, o mestre de cargas simplesmente não sabia
o que Lawrence veio fazer aqui.
Contudo —
“Lawrence, você disse. De fato. Da Companhia Latparron.”
O mestre da doca sorriu desagradavelmente.
O choque que percorreu a espinha de Lawrence era impossível de
descrever.
Não havia nenhum motivo que pudesse pensar que explicasse
porque o mestre de cargas saberia o seu nome.
“Você trazia algumas armaduras para a nossa companhia, certo?”
Lawrence ficou subitamente nauseado enquanto sentiu que tinha
caído em algum tipo de armadilha. Seu instinto gritava para ele.
Ele olhou lentamente para o mestre de cargas.
Não pode ser. Não pode ser. Não pode ser.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 137 ⊱

“Na verdade, ontem à noite um mensageiro em um cavalo rápido


veio até nós. A Companhia Latparron mandou suas obrigações
atribuídas a nossa empresa. Então você tem uma dívida conosco, Sr.
Lawrence.”
Com essas palavras, tudo mudou.
Normalmente, as transferências de encargo não ocorriam através
de um mensageiro a cavalo. Mas a anormalidade deu ainda mais
credibilidade à transferência — por exemplo, se duas empresas
estavam envolvidas na fraude.
Se Lawrence não estivesse sentado na carroça, ele teria um
colapso.
Mesmo sentado, ele pendeu para frente com a força das palavras.
Holo, surpresa, pegou Lawrence quando ele caia para a frente.
“O que há de errado?” ela perguntou.
Ele não queria considerar isso.
O mestre de cargas respondeu por ele.
“O mercador ao seu lado faliu — assim como nós.” Sua felicidade
era claramente a desgraça alheia.
“O quê?” perguntou Holo.
Lawrence queria desesperadamente pensar que tudo isso era um
sonho.
“O preço da armadura deve ter caído há algum tempo. A raposa
velha em Latparron percebeu isso e empurrou um estoque morto para
nós.”
O futuro era obscuro.
“Nós fomos...”
A voz rouca de Lawrence era tudo que o prendia a realidade.
ós dois vivemos desses acordos. Você entende, não é?”
Estas eram as palavras que todos os mercadores temiam.
E cada mercador lamentaria o seu destino diante de tal
colapso.
“Claro que sim. Sou um mercador afinal.” Foi tudo o que
Lawrence pôde dizer.
“É simples. Do valor exato de cem lumiones de armadura que você
comprou da Companhia Latparron, você terá que nos remeter o valor
registrado na escritura de obrigação, ou seja — quarenta e sete e três
quartos lumiones. Você está ciente disso, correto?”
Remelio parecia tão arrasado quanto Lawrence.
Os olhos e bochechas do homem estavam afundadas, a camisa não
tinha sido trocada por vários dias, e seus olhos brilhavam
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 139 ⊱

estranhamente. Ele não era um homem grande para começar, mas os


traços finos e cansados de Remelio o faziam parecer um filhote de urso
ferido.
Não apenas parecia ferido — ele estava ferido, quase fatalmente.
Hans Remelio, o dono da Companhia Remelio, passou a mão
inconscientemente pelos cabelos levemente grisalhos enquanto
continuava a pressionar Lawrence.
“Nós gostaríamos que você quitasse seu débito imediatamente.
Caso contrário...”
Lawrence pensou sobre o quanto ele preferiria ser ameaçado com
a ponta de uma faca do que ouvir isso.
“...Nós teremos que exigir que a Guilda Rowen de Comércio
assuma a dívida em seu lugar.”
Era a ameaça que todos os mercadores que eram filiados a uma
casa de comércio temiam.
A guilda era a segunda casa de um comerciante, mas poderia se
transformar em um cobrador raivoso em um piscar de olhos.
Neste ponto, mercadores que vivem para o trabalho, preparados
para abandonar parcialmente suas casas, não teriam para onde ir em
busca de descanso.
“Bem, o prazo do empréstimo vai até o dia de depois de amanhã,
isso me dá dois dias. Vou pagar os quarenta e sete e três quartos de
lumione até lá,” disse Lawrence.
Não era uma quantia que ele poderia esperar coletar em dois dias.
Mesmo se reunisse todas as fontes de crédito que tinha na cidade, o
dinheiro não somaria nem metade do que devia.
Uma pessoa poderia viver por três meses com um único lumione.
Até mesmo uma criança sabia que quarenta e sete lumiones era uma
enorme quantidade de dinheiro.
Remelio, o mestre da companhia, também sabia.
CAPÍTULO IV ⊰ 140 ⊱

Ruína.
A palavra parecia pairar diante dos olhos de Lawrence.
“O que você deseja fazer com a armadura que trouxe, Sr.
Lawrence? Será vendida por uma ninharia mesmo que venda toda elas,
independentemente de onde vá.”
O magro sorriso de escárnio de Remelio não era para zombar de
Lawrence.
Afinal, o próprio Remelio estava à beira da ruína pelo mesma
queda nos preços de armadura que agora ameaçavam Lawrence.
Ruvinheigen servia como um depósito de suprimentos para
cavaleiros, mercenários e missionários rumo ao norte para suprimir os
pagãos. Assim, armaduras e escrituras eram fontes confiáveis de lucro.
Todo inverno, havia uma grande caravana. A marcha era
programada para coincidir com o aniversário do Santo Ruvinheigen, e
a fim de equipar os mercenários e brigadas de cavaleiro que se
acumulava das nações vizinhas, os bens como armaduras, escrituras,
rações, roupas de frio, cavalos e remédios, todos voavam das
prateleiras.
Este ano, a marcha tinha sido precipitadamente cancelada. Houve
uma agitação política no país que se estendia entre os territórios pagãos
e a terra controlada por Ruvinheigen, onde as batalhas normalmente
ocorriam, e a diplomacia daquela nação para com Ruvinheigen de
repente se encerrou. Se fosse uma nação normal teria sido uma coisa,
mas esta nação em particular fazia fronteira com as terras pagãs, e até
mesmo dentro de suas fronteiras, haviam aqui e ali, aldeias pagãs. Uma
das mais próximas era Lamtra. Aqueles que tiveram que lutar contra
os pagãos tinham que atravessar a outra nação, mas se eles saíssem em
marcha como faziam como qualquer outro ano, não havia como dizer
quando os pagãos, que silenciosamente os observavam, poderiam
atacar. O arcebispo, que controlava a grande diocese, estava na região,
assim como os membros da família imperial do sul. Eles não poderiam
deixar o impensável acontecer.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 141 ⊱

Portanto, a campanha foi cancelada.


Para saber como os mercadores da cidade foram afetados por
causa dessa decisão, era preciso olhar além da situação da Companhia
Remelio que operou em Ruvinheigen por muitos anos. Mesmo assim,
Lawrence deveria ter percebido que algo estava errado quando estava
viajando — se os mercenários que lutavam nos campos de batalha do
norte estavam vagando em volta de Ruvinheigen, claramente algum
tipo de mudança havia acontecido no campo de batalha.
Além do mais, dada a queda dos preços de armadura e a forma
como Lawrence tomou conhecimento disso, ele tinha que assumir que
quando ele comprou as armaduras em Poroson, o dono da Companhia
Latparron já sabia.
Em outras palavras, quando ele pensava que estava tomando
vantagem de uma fraqueza para forçar os termos a serem favoráveis
para ele, na verdade ele tinha sido usado.
Tendo vendido armadura desvalorizada para Lawrence a tal
preço, o mestre da Companhia Latparron estava provavelmente rindo
agora. E porque o preço da armadura caiu tanto, ele sabia que seria
impossível para Lawrence paga-lo de volta ou seria necessário um
esforço significativo. Assim, ele tinha vendido a obrigação para
Companhia Remelio, talvez julgando que isso salvaria a sua posição.
No meio de tudo isto, Lawrence tinha ficado com a pior parte.
Era um fracasso que fazia Lawrence querer rasgar seus próprios
membros.
E, no entanto, Lawrence encontrou um pouco de força.
“Tentarei vendê-las em algum lugar. Você vai ver. Vamos pagar a
dívida em dois dias. Isso basta?”
“Sim, estaremos esperando.”
Você poderia apagar um fogo com o suor frio que escorria de
ambos os homens tinham, mas de alguma forma eles conseguiram
preservar a decência de uma negociação comercial.
CAPÍTULO IV ⊰ 142 ⊱
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 143 ⊱

Afinal, ambos eram pessoas.


No entanto, eles também eram mercadores.
Lawrence se levantou e deu a Remelio algumas palavras em
despedida.
“Eu deveria dizer,” ele começou “que as nossas barracas estão
perto dos portões da cidade. Se você pretender usá-los, nos avise.”
Em outras palavras, não tente fugir.
“Estarei ocupado com negociações, por isso, embora eu aprecie
você ter me informado, duvido que eu venha a utilizá-los.” Se Holo
estivesse aqui, Lawrence teria que rir da batalha de determinação, mas
como ele e Remelio estavam no limite, ele tinha que ser honesto.
Falência significava morte na sociedade. Seria melhor ser um
mendigo, tremendo de dor e fome. Se credores te pegassem, eles
venderiam tudo aquilo que você possuísse. Até mesmo seu cabelo seria
cortado e vendido para fazer perucas — e se tivesse bons dentes, eles
seriam arrancados e usados para fazer dentaduras. Sua própria
liberdade poderia ser vendida, você poderia ser forçado a trabalhar
como escravo em uma mina ou a bordo de um navio. E até mesmo isso
não era o pior que poderia acontecer. Se um nobre ou pessoa abastada
exigissem, você poderia até mesmo pagar com a própria vida — mas
não haveria nenhum funeral e ninguém lamentaria a sua partida.
Essa era a realidade inevitável da falência.
“Vou me retirar, então,” disse Lawrence.
“Estamos ansiosos para vê-lo em dois dias. Que a proteção de
Deus esteja contigo.”
O fraco devora o ainda mais fraco; era a regra do mundo.
No entanto, Lawrence cerrou os punhos até os nós dos dedos
ficarem brancos da raiva que sentia.
Mas metade da raiva era consigo mesmo. Ele não podia desfazer
esse erro.
CAPÍTULO IV ⊰ 144 ⊱

Desacompanhado, ele desceu da sala de negociação no terceiro


andar para a plataforma de carregamento no primeiro.
Holo estava vestida como uma garota da cidade, e por isso não
pode estar presente na negociação; ela esperou no banco da carroça,
vigiada por alguém da companhia. No momento em que Lawrence
surgiu na plataforma, Holo se virou com um sobressalto.
Lawrence se perguntou o quão terrível ele deveria parecer.
“Desculpe te fazer esperar,” ele disse, subindo na carroça. Holo
assentiu vagamente, olhando para Lawrence curiosa.
“Vamos.”
Lawrence tomou as rédeas e ignorou o mestre de cargas, dirigindo
o cavalo para longe da plataforma de carregamento. O mestre de
cargas, aparentemente, foi informado da situação com antecedência,
então ele silenciosamente assistiu Lawrence e Holo partirem.
Enquanto desciam a ladeira da plataforma para a rua de
paralelepípedos, Lawrence deixou escapar um grande suspiro.
Ele escapou com toda a raiva, frustração e arrependimento
acumulados dentro dele.
Havia tanta derrota em seu suspiro que se um coelho estivesse por
perto, ele poderia ter morrido no local.
Mas não era como se o suspiro tivesse tirado os sentidos de
mercador dele.
Esta não era hora para o desespero. Sua mente rodopiava em fúria
enquanto começava a calcular onde poderia levantar os fundos.
“... Hey.”
Uma voz tímida cortou seu transe.
“Hm?”
“O quê... o que aconteceu?” Holo perguntou com um sorriso
ansioso e desajeitado — Holo, cuja forma de lobo Lawrence tinha
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 145 ⊱

aceitado. Ela certamente ouviu a conversa com Remelio, por isso a


pergunta devia ter alguma outra intenção.
Lawrence imaginou como Holo o estava vendo.
A imagem era a vida de um comerciante. Ele tirou as mãos das
rédeas e se obrigou a relaxar seus músculos faciais tensos.
“Se quer saber o que aconteceu, a carga aí atrás não vale nada.”
“Mmph. Então acho que não ouvi errado.”
“Aliás, isso pode significar a falência para mim.”
O rosto de Holo se torceu, de forma amargurada... talvez ela
entendia o triste destino de quem aguardava a falência, como um
cordeiro sendo levado ao matadouro. Então sua expressão mudou.
Os olhos frios de lobo dela olharam para Lawrence igualmente.
“Pretende fugir?”
“Se eu fugir uma vez, vou fugir para sempre. As redes de
informação das guildas e companhias são como os olhos de Deus. Não
importa onde eu for, se tentar fazer algum negócio, eu seria
encontrado imediatamente. Nunca seria capaz de voltar a ser um
comerciante.”
“Mas o comum para um animal machucado de libertar é roer seus
próprios membros? Você vai se contentar com isso?”
“Não... de jeito nenhum,” respondeu Lawrence categoricamente.
Holo se virou, como se estivesse pensando.
“Se eu pagar o equivalente quarenta e sete moedas lumione de
ouro, vai ser o suficiente. Ainda tenho os meus bens em mãos. Posso
pagar minhas dívidas aqui e vender a armadura em algum lugar distante
onde ele vai conseguir um preço decente. Não é impossível,” disse
Lawrence, como se fosse simples. Na realidade, a facilidade com que
ele explica era equivalente à impossibilidade da tarefa.
CAPÍTULO IV ⊰ 146 ⊱

Mas ele não tinha outra escolha. Seu espírito de mercador era
parte dele, se tentasse correr, sua vida como comerciante teria
acabado. Sua única opção era lutar até o fim.
Depois de evitar o olhar por um tempo, Holo se virou para
Lawrence.
Como se cansado de olhar para o rosto entristecido dele, ela sorriu
levemente. “Eu sou Holo, a Sábia Loba. Tenho certeza de que posso
ser de alguma ajuda.”
“Isto é bem diferente de compensar por suas refeições.”
Holo socou o lado de Lawrence com seu punho. “Eu disse que
pagaria minha própria comida.”
“Eu sei, eu sei,” respondeu Lawrence enquanto afastava o punho
dela.
As sobrancelhas de Holo se levantaram enquanto ela fungava um
pouco, sua raiva se dissolveu.
Ela olhou sem expressão para o cavalo. Quando falou, foi como
se estivesse proferindo um juramento solene.
“Se for necessário, juro pela minha honra que irei salvá-lo —
mesmo que eu tenha que usar o poder dentro deste trigo.”
Dentro da bolsa que ficava no pescoço de Holo estava o trigo que
continha sua essência. Se ela o usasse, poderia facilmente voltar para
sua verdadeira forma.
No entanto, Holo detestava acima de tudo os olhares
aterrorizados de quem via sua verdadeira forma. Essas reações eram
uma prisão que a condenavam à solidão. Ela já havia retornado a sua
forma verdadeira nas profundezas dos canais subterrâneos da cidade
portuária de Pazzio, mas só porque a própria Holo estava em perigo.
Isto era diferente. O perigo agora confrontava apenas Lawrence.
Estava grato que Holo estava pronta para ir tão longe por ele.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 147 ⊱

“Você prometeu que me acompanharia de volta para as terras do


norte. Não posso deixar você ficar preso aqui.”
“Eu vou manter essa promessa, e —”
Lawrence fechou os olhos e respirou fundo.
“— se chegarmos a esse ponto, pedirei a sua ajuda.”
Lawrence sentiu uma nova sensação de alívio ao saber que havia
alguém quem pudesse confiar.
Holo sorriu. “Conte comigo,” ela disse.

Holo viria para seu socorro.


Essa opção de fato existia.
Mas não era algo que ele gostaria de recorrer. Se a situação ficasse
tão ruim, significava que o lugar de Lawrence no mundo tinha deixado
completamente de existir.
Era isso que significava ter que deixar sua casa, desertar de sua
terra natal. O fracasso não deixava nada para trás.
“Então, o que você vai fazer agora?” perguntou Holo em frente à
estalagem, depois de terem deixado a carroça com o dono do
estabelecimento.
Isso era exatamente o que o próprio Lawrence queria perguntar,
mas ele não tinha tempo para tal fraqueza.
A pousada tinha sido paga com antecedência, então não teriam que
se preocupar de imediato sobre onde dormir e guardar o cavalo. Ele
tinha uma boa quantidade de dinheiro na mão. Era uma sorte em meio
a tanto azar que não faltaria imediatamente comida e abrigo.
Mas as opções restantes eram poucas e o tempo era escasso.
“Iremos para a guilda primeiro. Isso é tudo que podemos fazer.”
“Mm. Se são realmente seus companheiros, virão em seu auxílio.”
CAPÍTULO IV ⊰ 148 ⊱

Ela quis dizer isso como um incentivo, mas Lawrence sabia muito
bem que o mundo não era tão simples. Em seus dez anos no mundo
dos mercadores, ele tinha visto um grande número de pessoas cujo
apoio desaparecia assim que se encontrassem em uma situação difícil.
“Certo, vou sair por um momento, você aguarda aqui —”
Holo pisou no pé dele antes que ele pudesse terminar a frase.
“Por acaso pareço uma loba ingrata que permite que seu
companheiro enfrente uma crise sozinho?”
“Não, mas —”
“Pareço?!”
Ela olhou para ele, com seu pé plantado sobre o de Lawrence.
“Claro que não, mas não é essa a questão.”
“Então qual é a questão?”
Ela se afastou por um momento, mas o olhar em seus olhos deixou
claro que ela iria impedi-lo novamente dependendo da resposta.
“A guilda é como uma segunda casa para mercadores como eu.
Você entende o que trazer garota para casa significa, certo?”
“Já estou levando isso em consideração.”
“Explicar a nossa situação é impossível! Como é que vou explicar
meu relacionamento com você?”
Holo seria queimada na fogueira como um demônio se a Igreja a
encontrasse. Apesar de Jakob, que dirigia a guilda nesta cidade, ser
um homem ainda mais compreensivo do que ele, Lawrence sabia que
seria um desastre se, por algum motivo, ele decidisse entregar Holo
para Igreja. E além disso, muitos mercadores da área de Rowen iam
para guilda — e nem todos eram tão compreensivos. Ele não podia
arriscar.
Lawrence teria que pelo menos alterar um pouco a história a fim
de explicar a sua ligação com Holo. Mas ele conseguiria mentir? Jakob
podia detectar uma mentira a cem léguas de distância.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 149 ⊱

“Então diga que somos amantes. É bem melhor do que ser deixada
aqui,” disse Holo.
Estava claro que ela estava preocupada com ele.
Lawrence sabia que, se suas posições fossem invertidas, ficaria
zangado se ela tentasse sair e resolver seus problemas sozinha. Sabia
que se sentiria traído se ela lhe dissesse “fique na estalagem.”
Holo desviou seu olhar.
Ele só poderia rezar.
“Tudo bem. Me acompanhe. Você é a sábia, afinal.”
“Mm. Pode depender em mim.”
“No entanto —” Lawrence se afastou para permitir que um
viajante entrasse na estalagem “— esta é uma reunião de negócios. Não
faça nenhuma loucura. Aqueles caras sabem dar umas boas-vindas
grosseiras.” Lawrence disse isso com um tom que deixou claro que não
admitiria discussão sobre o assunto — a ideia de seus colegas de uma
recepção poderia ser um verdadeiro batismo de fogo.
Mas Holo parecia feliz contanto que a levasse com ele. Ela assentiu
concordando.
“Certo, então vamos lá.”
“Vamos!”
Os dois caminharam apressados e logo sumiram na multidão.

Assim que Lawrence estava prestes a bater na porta da guilda,


alguém saiu.
Era óbvio à primeira vista se tratava de um mercador da cidade,
mas no momento em que, surpreso, avistou Lawrence, seu rosto de
fechou e ele desviou o olhar — claramente era um mensageiro da
Companhia Remelio. O cenário mais provável era que veio para
informar da posição de Lawrence e a possibilidade de que a Companhia
Remelio recorreria a eles como garantia da dívida de Lawrence.
CAPÍTULO IV ⊰ 150 ⊱

Lawrence não disse nada, simplesmente abriu caminho para o


homem como se ele não fosse ninguém em particular.
O próprio mercador provavelmente nunca se prestaria a assumir
esse papel se sua própria companhia não estivesse em situação tão
precária. Sendo assim, mesmo com a Companhia Remelio tentando
forçar Lawrence a pagar, o homem praticamente se esquivou dele.
Uma pessoa que gostava de levar os outros à ruína era, na verdade,
rara entre os mercadores, que passavam seus dias tentando superar
seus concorrentes. Destruição e competição eram coisas totalmente
diferentes.
“Ouso dizer que pensei que ele iria acenar para você.” Holo
parecia ter notado que o homem era da Companhia Remelio, mas
Lawrence apenas deu um sorriso amargurado para sua piada.
“Pelo menos ele nos poupou o trabalho de explicar a pior das
notícias. Eu devia agradecê-lo.”
“Suponho que seja questão de perspectiva.”
Finalmente capaz de sorrir, Lawrence entrou na guilda.
Os mercadores que lidavam com peixe, legumes e outros
produtos perecíveis, tinham praticamente concluído seu trabalho no
dia. Ao contrário da manhã, quando Lawrence veio, a guilda agora
estava cheia de homens sentados nas mesas, bebendo vinho, e tendo
um bom momento. Lawrence podia dar um nome a cada rosto. Alguns
levantaram a mão em saudação assim que notaram ele.
No entanto, quando Holo entrou logo atrás dele, a atividade
parou de repente, e uma comoção estranha percorreu o local. Era
como um suspiro. E o olhar — chama-lo de “inveja” ou “ciúme” não
era o suficiente. Holo era totalmente indiferente à situação, mas
Lawrence achou quase doloroso.
“Oh ho, esta deve ser a vontade de Deus.”
Jakob foi o primeiro a falar — o sorriso que ele mostrou falhou
em chegar a seus olhos.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 151 ⊱

“Você capturou uma joia rara, Lawrence.”


Holo ignorou os vários olhares fixos nela e caminhou sem
problemas até Jakob, levando Lawrence pela mão.
O fato de que Jakob o havia chamado de Lawrence em vez de Kraft
o atingiu.
Isso significava que Jakob já não o trataria mais como um membro
da guilda, apenas como um mercador como qualquer outro.
“Eu não a capturei — fui capturado por ela, Chefe Tarantino.”
Jakob sorriu tão amplamente que seu rosto foi distorcido, então
se levantou com dificuldade e bateu pesadamente no ombro de
Lawrence, apontando para dentro. “Vamos conversar.”
Os mercadores de olhos aguçados na sala haviam notado a
estranheza na conversa. Ninguém falou.
Depois do lobby havia um pátio fechado. Olhando para o pátio
com a sua decoração esparsa enquanto os conduzia, o gigante Jakob
falou.
“Você não passou pelo companheiro da Companhia Remelio?”
“Sim. Na porta da frente.”
“Ah. Achei que você teria sorte e não o veria.”
“...Por quê?” Lawrence não entendia qual era o ponto de Jakob,
mas ele podia ver seus ombros tremendo de júbilo.
“Porque não houve nenhum ruído quando saímos na porrada.”
Holo sorriu levemente e Lawrence relaxou.
Jakob abriu a porta para um quarto no lado direito do corredor
que estavam e fez sinal para os dois para entrarem.
“É aqui onde eu trabalho. Ninguém pode ouvir a nossa conversa
aqui, você pode relaxar,” disse Jakob.
Não era uma sala grande, mas dava a impressão de abrigar
conhecimento ilimitado.
CAPÍTULO IV ⊰ 152 ⊱

Olhando através da porta aberta, eles podiam ver que as paredes


estavam quase inteiramente cobertas com prateleiras, sobre as quais
descansavam descuidadamente maços de documentos empilhados.
Havia uma pequena mesa no meio da sala, encravada entre dois
sofás simples de madeira e couro.
Também de frente para a porta estava uma mesa entulhada com
uma montanha de documentos. Embora o papel ficasse menos caro
com o passar dos anos, ainda haviam luxuosas variedade à venda. Era a
prova de que Jakob não poupava gastos na preservação do
conhecimento. Até mesmo um teólogo renomado não poderia ter uma
coleção dessas.
“Bem, então, por onde devemos começar?”
Jakob olhou para mesa e se sentou em um dos sofás, que rangeu
sob o seu peso significativo. Normalmente essa era a semente da qual
uma conversa amigável iria florescer, mas nestas circunstâncias, só a
autoridade se abateu sobre Lawrence.
Lawrence estava grato que Holo estava ao lado dele.
Se estivesse sozinho, sua mente poderia simplesmente ter ficado
em branco.
“Primeiro, eu com certeza gostaria de saber quem é essa belezinha
ao seu lado e o que ela representa, Lawrence.” O olhar de Jakob fixou
firmemente em Lawrence.
Era obviamente um absurdo para um mercador à beira da falência
estar andando por aí com uma garota da cidade. Se Jakob fosse um
homem com pouca paciência, ele teria chutado Lawrence para fora
assim que tivesse aparecido com Holo.
“Ela é uma parceira de negócios. Estamos viajando juntos.”
“Oh, uma parceira de negócios?” Jakob olhou Holo, pela primeira
vez, parecendo que esta era uma grande piada. Holo sorriu e inclinou
a cabeça.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 153 ⊱

“A Companhia Milone em Pazzio me ofereceu cento e quarenta


moedas trenni de prata pelas peles que eu estava vendendo, mas no
final, as compraram por um total de duzentos e dez trenni de prata. Foi
ela que fez isso acontecer.”
O rosto de Holo entregava uma certa quantidade de orgulho em
oposição à expressão duvidosa de Jakob.
Sua dúvida era compreensível. Se alguém dissesse a Lawrence uma
história semelhante, ele assumiria que fosse uma mentira. A
Companhia Milone era conhecida em muitas nações, e aqueles que
trabalhavam com eles eram mercadores de primeira linha, e barganhar
com eles não era algo que acontecia facilmente.
“Eu disse esta manhã, quando vim aqui. ‘Não se pode investir sem
capital.’” Já que a história das peles era verdade, Lawrence falou sem
medo.
Ele não parou para pensar se Holo ficaria zangada com ele por falar
sobre isso, mas ela parecia entender que era por causa da ocasião.
Jakob fechou os olhos e, estranhamente, sua expressão mudou.
“Eu não preciso saber dos detalhes. Gente assim aparece uma vez
ou outra.”
“Huh?”
“Um dia, eles simplesmente apareceram na guilda, com uma
beleza deslumbrante como companhia, tudo indo bem nos negócios e
na vida. E eles nunca querem dar detalhes sobre a mulher. Então, eu
não pergunto mais. E as escrituras dizem para não abrir caixas
misteriosas mesmo.”
Lawrence se perguntava se era um truque para fazê-lo dizer a
verdade, mas ele não sabia de que adiantaria. Ele tentou repensar sua
posição.
Talvez a história do cavalo da carroça se transformando em uma
deusa da fortuna e que viajaria com um mercador fosse verdade.
CAPÍTULO IV ⊰ 154 ⊱

O próprio Lawrence estava viajando com um espírito de lobo que


tomou a forma de uma garota. Mercadores como ele eram muito
realistas em assumir que eram especiais de alguma forma.
“É uma decisão prudente,” disse Holo, que provocou uma
gargalhada em Jakob.
“Bem, então vamos direto ao ponto, podemos? Se vocês dois
fossem um casal, eu tentaria convencê-lo a ir direto para a igreja e
tornar isso oficial. Mas já que vocês estão juntos por negócios, bem,
isso é diferente. Vocês serão enforcados juntos ou separadamente —
a queda do seu parceiro é seu próprio infortúnio. Os laços de ouro são
mais fortes que os de sangue!”
O sofá de Jakob rangeu.
“Deixe-me entender a história direito. O companheiro da
Remelio que acabou de sair disse isso: Kraft Lawrence, ligado a Guilda
Rowen de Comércio, comprou armaduras equivalentes a cem moedas
lumione de ouro da Companhia Latparron em Poroson. Temos direito
a quase metade. Agora a Companhia Remelio detém a dívida. É isso?”
Lawrence assentiu dolorosamente.
“Não me disseram que tipo de armadura elas eram, mas as
armaduras estão valendo cerca de um décimo do que valiam
anteriormente, por isso, mesmo que você as venda por esse preço,
ainda terá que conseguir cerca de quarenta lumiones. Isso é cerca de mil
e quinhentos trennis de prata.”
Depois de repassar os fatos, Lawrence tinha conseguido cerca de
mil moedas de prata com o negócio em Pazzio. Mesmo que fosse capaz
de repetir a façanha, ainda faltaria uma parte da dívida.
“Parece que você estava completamente enrolado pela Companhia
Latparron. Não vou perguntar os detalhes. Pelo que ouvi isso não vai
mudar a situação. Não importa o que diga, você foi ganancioso e
cometeu um erro. É isso mesmo?”
“É, exatamente.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 155 ⊱

Lawrence não tentou dar desculpas. Dizer que ele foi ganancioso
e falhou resumia sua situação com precisão.
“Se você entende isso, então esta conversa será simples. Você
deverá pagar por conta própria a dívida que a guilda, provavelmente,
vai arcar. Quando você é vítima de fraude ou extorsão, quando fica
doente ou ferido e sofre perdas, nós da guilda de comércio
colocaríamos nosso dinheiro em risco para te salvar. Mas não desta vez.
Os únicos que virão em seu auxílio agora são os deuses —”
Jakob apontou o dedo para Holo, que olhou para Lawrence.
“— ou esta beldade aí.”
“Entendo.”
Ao contrário de corporações de ofício, uma guilda comercial
regional era construída em torno de garantias de assistência mútua. Era
sustentada por contribuições de seus membros e, como Jakob falou,
eles ajudavam mercadores que sofreram infortúnio e que não
superariam as dificuldades de outra forma. Os membros também se
reuniriam em terras estrangeiras para protestar contra tratamento
injusto.
A guilda não foi criada para garantir as dívidas de mercadores cuja
cobiça os levaram à ruína.
Nesses casos, mesmo que a guilda assumisse temporariamente a
responsabilidade, ela buscaria implacavelmente o reembolso. Os
outros membros da guilda não arcariam com a perda, isso servia como
uma lição para conter a ganância.
Os olhos de Jakob eram como arcos prontos para atirar.
“Infelizmente, não estou em posição de te mostrar qualquer
compaixão — e o s motivos para ser tão rigoroso só existem lá fora no
salão. É a lei da guilda. Se falarem por aí que essa guilda pega leve com
seus membros, seria alvo de canalhas por todos os lados.”
“Claro. Eu mesmo ficaria zangado se ouvisse que algum outro
membro foi poupado das consequências do seu próprio fracasso.”
CAPÍTULO IV ⊰ 156 ⊱

Lawrence tomou uma postura valente, pois se não o fizesse, teria


um colapso.
“Além disso, você certamente já sabe, mas membros da guilda são
proibidos de emprestar dinheiro uns aos outros. Nem a guilda pode te
emprestar dinheiro. Seria um mau exemplo.”
“Eu entendo.”
A segunda casa de Lawrence estava fechando suas portas para ele.
“Baseado no que o mensageiro da Companhia Remelio me disse,
sua dívida deve ser paga em dois dias. Os investimentos que eles
mesmo fizeram em armaduras falharam, eles também estão sentindo a
pressão. Não hesitarão em exigir reembolso. Em outras palavras, seu
fracasso vai à público depois de amanhã, e eu vou ter que te prender.
O que você concluiu com isso?”
“Se eu não juntar quarenta e sete lumione em dois dias e pagar a
Companhia Remelio, não há futuro para mim,” disse Lawrence.
Jakob balançou a cabeça lentamente, em seguida, olhou para a
mesa. “Isso não é exatamente verdade.”
Houve um ligeiro farfalhar ao lado de Lawrence, provavelmente
era a cauda de Holo.
“Você terá um futuro,” continuou Jakob. “Mas vai ser escuro,
amargo e pesado.”
A mensagem implícita era que suicídio diante dessa falência não
seria aceitável.
“Quarenta e sete lumiones poderiam ser pagos em dez anos se você
remasse em um navio mercante — ou trabalhasse em uma mina.
Claro, se você evitar lesões e doenças.”
Qualquer um que já tinha visto a correspondência entre um
capitão de navio e seu dono sabia que isso era pura fantasia. Nove de
dez cartas eram dedicadas ao capitão solicitando novos remadores e o
proprietário tentando fazê-los durar um pouco mais.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 157 ⊱

Cerca de 80 por cento dos remadores em navios de longas viagens


eram inúteis depois de dois anos, outros 10 por cento após mais dois
anos, e o restante 10 por cento — homens incrivelmente fortes —
acabavam em navios piratas e nunca mais voltavam. E até isso era
melhor do que o trabalho nas minas. A maioria dos mineiros morria
de doença pulmonar dentro de um ano, e os poucos sortudos que
evitavam esse destino morriam em desmoronamento nos túneis.
Em contraste, a guilda de comércio poderia cobrir a dívida de
quem fosse vítima de fraude e depois, gradualmente, estes pagariam
seus credores a juros baixos — um tratamento muito melhor.
Aqueles que falharam em consequência da própria ganância
tinham que entender a gravidade de seu crime.
“Mas não é como se eu desejasse a sua morte. Não se esqueça
disso. Um pecado deve ser punido — e é meu dever fazer valer esse
simples princípio.”
“Eu entendo.”
Lawrence olhou nos olhos de Jakob. Pela primeira vez, havia um
lampejo de empatia.
“Não há nada que eu possa fazer além de desejar boa sorte ao longo
dos próximos dois dias, mas se houver alguma coisa que eu possa fazer,
eu farei. Assistência empresarial comum não é um problema. Além
disso, eu confio em você. Eu deveria te prender pelos próximos dois
dias, mas você pode seguir livre.”
A palavra confiança pesou nos ombros de Lawrence.
Holo prometeu resgatá-lo se chegasse a esse ponto.
Mas aceitar a oferta dela agora significava trair a confiança que
Jakob demonstrava ter nele.
Lawrence se perguntou se conseguiria fazer isso.
Ele murmurou inconscientemente o problema para si mesmo
antes de se manifestar.
CAPÍTULO IV ⊰ 158 ⊱

“Agradeço pela consideração. Vou tentar conseguir o dinheiro nos


próximos dois dias, de alguma forma.”
“Sempre há possibilidades de negócios — e algumas você só pode
ver quando está em perigo real.”
O coração de Lawrence bateu ao ouvir as palavras de Jakob. Isso
poderia ser interpretado como sugestão de atividade ilegal.
Como o mestre da filial da Guilda Rowen de Comércio em
Ruvinheigen, Jakob tinha que fazer Lawrence enfrentar a dura
realidade, mas ele também estava preocupado com o jovem mercador.
Uma pessoa que fosse capaz apenas de punir seria imprópria como
mestre do segundo lar dos mercadores.
“Tem alguma coisa que você queira perguntar ou dizer?”
Lawrence balançou a cabeça, mas depois falou quando algo de
repente lhe ocorreu.
“Quero que você pense no que vai dizer quando eu devolver o
dinheiro.”
Jakob piscou os olhos, então riu alto. O momento inapropriado
da piada a tornou ainda mais engraçada.
“Vou pensar em alguma coisa, não se preocupe! E você, querida,
você tem algo a dizer?”
Lawrence tinha certeza que ela diria algo, mas Holo —
surpreendentemente — balançou a cabeça em silêncio.
“Certo, isso deve encerrar as coisas por aqui. Não devemos falar
por muito tempo. Eles são muito desconfiados lá fora, você sabe. Se
os rumores se espalharem, vai ser mais difícil para você agir.”
Jakob se levantou do sofá, que rangeu novamente. Lawrence e
Holo fizeram o mesmo.
Jakob e Lawrence sabiam que era uma má ideia para os
mercadores terem expressões taciturnas, então eles fizeram todo o
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 159 ⊱

esforço para parecerem normal, como se a conversa que acabaram de


ter não fosse nada além do que um pouco de conversa fiada.
Quando chegaram no saguão, Jakob voltou ao seu lugar habitual e
acenou para Lawrence levemente.
Mesmo assim, as pessoas que bebiam vinho no salão não disseram
nada para eles, como se sentissem que algo estava errado.
Lawrence sentiu o peso dos olhares em suas costas; ele fechou a
porta atrás dele e Holo como que para selar os membros da guilda.
Eles podem até ter pensado em o coibirem. Ele não podia deixar
de se sentir grato pela generosidade de Jakob em deixá-lo livre.
“Bem, nós temos dois dias de liberdade. Não temos escolha a não
decidir o que fazer com esse tempo,” murmurou Lawrence para si
mesmo, mas a ideia de levantar quarenta e sete lumiones sem qualquer
capital era delírio na melhor das hipóteses.
Se houvesse tal método, os mendigos do mundo seriam todos os
homens ricos.
No entanto, ele teria que pensar em algo.
Caso contrário, não valeria a pena pensar no seu futuro.
Seu sonho de ter uma loja desmoronaria; não haveria esperança na
sua recuperação como um mercador; e sua vida acabaria ou na
penumbra de uma mina ou nas entranhas de um navio, onde se dizia
que os gritos de angústia abafavam o quebrar das ondas.
Ele tentou se animar, mas quanto mais ele tentava se tranquilizar,
mais a inevitabilidade de sua situação o assombrava.
Jakob confiou em Lawrence o suficiente para lhe dar a liberdade
por dois dias.
Mas agora Lawrence se perguntava se ele estava apenas dando a
um homem condenado seus últimos dias de liberdade. Enquanto ele
pensava sobre isso de forma realista, conseguir quarenta e sete lumiones
em dois dias parecia impossível.
CAPÍTULO IV ⊰ 160 ⊱

Ele percebeu que sua mão estava tremendo.


Envergonhado, Lawrence fechou o punho para tentar parar de
tremer. Em seguida, uma pequena mão repousou em cima da sua.
Era a mão de Holo — de repente se lembrou que ela estava ali.
Ele não estava sozinho.
Perceber isso, Lawrence encontrou a compostura para tomar um
profundo respiro.
Neste ritmo, ele quebraria sua promessa de acompanhar Holo até
as terras do norte.
Sua mente congelada começou a se mover. Holo notou e falou.
“Então. Que você vai fazer?”
“Primeiro, antes de continuarmos pensando, temos que testar
uma coisa.”
“E isso seria?” Holo perguntou, olhando para Lawrence.
“Dívida por dívida.”

Ninguém se sente à vontade ao emprestar grandes quantidades de


dinheiro, a menos que seja muito rico ou verdadeiramente generoso.
Por outro lado, ninguém se incomoda em receber de volta um
empréstimo trivial a menos que seja especialmente mesquinho ou
particularmente necessitado.
Dívidas são como um logo crescente. Mesmo que seja impossível
impedir, se alguém conseguisse desviá-lo para outros rios, poderia ser
suportável.
Uma maneira de administrar uma dívida de quarenta e sete
lumiones seria emprestar pequenas quantias de muitas pessoas
diferentes para quitá-la e depois, gradualmente pagar a cada credor.
Porém.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 161 ⊱

“Ora, ora, Lawrence! Há quanto tempo. Qual o negócio hoje?”


Cada mercador que Lawrence conhecia o cumprimentou
praticamente do mesmo modo quando via seu rosto novamente, mas
quando a conversa chegava na parte de emprestar, suas expressões
ficavam austeras.
“Cinco lumiones. Desculpe amigo, os tempos estão difíceis para
mim no momento. É o fim do ano, os preços do trigo e da carne estão
em alta, e tenho que fazer um estoque para a primavera. Desculpe, eu
só...”
Cada um dava a mesma resposta, como se tivessem sido
previamente combinadas. Eles eram mercadores como ele, sensíveis a
essas tentativas. Se mercadores viajantes pudessem ir a uma companhia
pegar dinheiro emprestado ao invés de pegar de sua guilda, isso
colocaria as companhias mercantis na mesma posição que forçava as
guildas a colocarem regras contra o empréstimo.
E ninguém queria carregar suas mercadorias a bordo de um navio
afundando.
Quando Lawrence os pressionavam por até mesmo um único
lumione, eles o viam como se estivesse fedendo.
Sem ter em que se agarrar, ele era muitas vezes expulso do lugar.
Aquele que não viesse para fazer comércio ou uma negociação,
mas simplesmente pedir dinheiro era praticamente um ladrão.
Isso era senso comum no mundo dos mercadores.
“Tentaremos outro.”
Depois que Lawrence se encontrar com Holo, que esperava do
lado de fora das casas e mansões, ele não se incomodava com a quinta
repetição dessa mesma frase.
Ele só tentou enfrentar bravamente a situação nas três primeiras
paradas, e Holo parou de perguntar como tinha ido depois da quarta.
CAPÍTULO IV ⊰ 162 ⊱

Continuando seu pedido de um empréstimo de curto prazo com


um “a propósito”, Lawrence tinha pedido por quaisquer oportunidades
de lucro, mas isso também não ajudou. Afinal de contas, os
mercadores usavam capital para conseguir lucro. Era óbvio que sem o
dinheiro na mão, não havia nada que pudesse ser feito.
Lawrence inconscientemente apertou o passo, enquanto
caminhava, abriu um pouco a distância entre ele e Holo.
Quando percebeu, disse a si mesmo para se acalmar, mas as
palavras simplesmente ecoaram em sua mente vazia, e ele começou a
achar as palavras de encorajamento de Holo irritantes.
Ele estava estressado.
Apesar do ar frio que surgia quando a noite se aproximava, a testa
e o pescoço de Lawrence estavam escorregadios de suor.
Embora tivesse pensado que estava preparado para isso, a
realidade de suas circunstâncias o afetou mais do que tinha previsto. A
gravidade da situação parecia transbordar como a água em um copo de
cerâmica sobrecarregado.
Por que ele fez aquele negócio em Poroson? A sensação de
arrependimento guerreava com a inutilidade de tais recriminações em
sua mente.
Mais uma vez, a voz de Holo alertou Lawrence que ele havia
colocado uma distância muito grande entre eles. Ele foi assaltado por
uma exaustão que o fez se perguntar se seria capaz de andar novamente
caso parasse.
Mas ele não tinha tempo para exaustão.
“Com licença,” Lawrence chamou em outra porta.
O sino que sinalizava o fechamento do mercado tocou; todas as
companhias estariam fechando suas portas em breve.
O nono local que Lawrence visitou já estava organizando sua
plataforma de carregamento, e uma placa de madeira foi posta na
entrada, indicando que as negociações do dia tinham acabado.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 163 ⊱

Uma companhia comercial é a casa do mestre e dos homens que


trabalham lá, por isso não era como se o local estivesse vazio.
Lawrence bateu na porta e respirou fundo.
Ele não tinha muitos conhecidos sobrando. O mercador tinha que
arranjar alguém para lhe emprestar dinheiro.
“Quem é?” perguntou a mulher que abriu a porta. Ela era bem
refinada e Lawrence se lembrava do rosto dela.
Assim que Lawrence se preparou para perguntar a respeito do
mestre, a mulher olhou para trás por cima do ombro. Nervosa, ela
voltou para a casa.
Em seu lugar apareceu o dono da companhia.
“Há quanto tempo, Sr. Lawrence.”
“Pois é. Sinto muito incomodá-lo depois que o mercado fechou,
mas tenho um favor a pedir...”
As primeiras paradas que Lawrence fez, ele teve o luxo de
começar com conversa fiada, fingindo um negócio normal.
Mas ele já não possuía tal luxo. Assim que falou do seu pedido, o
mestre o olhou com desdém.
“Acabei ouvindo que você andou fazendo várias visitas sobre o seu
pedido.”
“Er, sim... embora me envergonhe de dizer isso...”
Os laços entre as empresas mercantis de uma cidade eram fortes.
O mestre certamente tinha ouvido de alguma empresa que Lawrence
visitou anteriormente.
“É uma quantia considerável. Isso é por causa da queda nos preços
de armadura, estou certo?”
“Sim. Fui ingênuo e cometi um erro.”
Mesmo se tivesse que rastejar e implorar misericórdia dos outros,
Lawrence tinha que pedir dinheiro emprestado. Começando sem um
CAPÍTULO IV ⊰ 164 ⊱

tostão e conseguir quarenta e sete lumiones em dois dias era


simplesmente impossível.
E se ele fosse recusado aqui, seria recusado na porta em qualquer
outro lugar.
Se pelo menos uma das empresas o emprestasse dinheiro,
Lawrence sentiu que outros teriam de emprestar também. Mas o fato
de que nenhum lhe ofereceu ajuda o fez se perguntar se todos
pensavam que a recuperação era tão impossível que não se
incomodaram em dar um empréstimo.
Empresas mercantes estavam intimamente ligadas. Uma vez que
uma informação escapasse, a notícia estaria por toda a cidade em um
instante.
O tom do mestre continuava frio, sem mudanças.
“Um erro ingênuo? Suponho que tenha sido isso mesmo.”
Isso era algo fácil de compreender sem precisar da habilidade de
um mercador para discernir os sentimentos dos outros.
Este não era o tom de um homem preparado para emprestar
dinheiro.
O mestre franziu a testa e deixou escapar um suspiro exasperado.
Era como se ele soubesse que Lawrence tinha ficado ganancioso e
acumulou uma dívida opressiva comprando armadura na margem.
Confiabilidade era a vida de um mercador. Se não se podia confiar
em você, ninguém estenderia a mão para ajudá-lo.
E a sua dívida era de sua própria responsabilidade — se não
pudesse quitá-la, era sua própria culpa.
Lawrence abaixou a cabeça, sentindo sua força sendo drenada.
O mestre continuou falando.
“No entanto, só os deuses podem prever uma queda repentina no
preço. É injusto repreende-lo por ser incapaz de prever isso.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 165 ⊱

Lawrence olhou para cima. Ele viu um lampejo de esperança. Se


pudesse obter um empréstimo aqui, seria mais fácil obter empréstimos
dos outros, e sua habilidade como mercador viajante seria reconhecida
até certo ponto. Se ele prometesse pagar de volta com juros, ele
poderia se salvar.
Esperança, ele pensou, estava agora diante dos seus olhos.
Mas quando olhou para o mestre, o rosto que o cumprimentou
tinha apenas desdém em seus olhos.
“Se está em apuros, Sr. Lawrence, pensei que eu poderia ser capaz
de ajudá-lo em algo. Você me ajudou a lucrar muitas vezes. Mas
enquanto mercador, eu também vivo pelos ensinamentos de Deus e
preciso saber a sua sinceridade.”
Lawrence não entendia o que estava ouvindo, mas mesmo assim,
começou freneticamente a formular uma desculpa quando foi cortado
pelo discurso particularmente mercantil do mestre.
“Leva uma mulher com você mesmo durante as visitas,
dependendo da compaixão dos outros para lhe emprestar dinheiro?
Absurdo. Quão baixo caiu a Guilda Rowen de Comércio!”
As palavras congelaram Lawrence quando o mestre bateu a porta
na cara dele.
Ele não conseguia se mover nem para frente nem para trás.
Era como se tivesse esquecido de respirar.
A porta fechada estava tão quieta que parecia pintada em pedra.
Certamente era fria e pesada como pedra. A porta não abriria
novamente; as conexões de Lawrence com os mercadores da cidade
foram cortadas.
Eles não iriam lhe emprestar dinheiro.
Ele se afastou cambaleando da porta, não por vontade própria,
mas sim porque seu corpo parecia se mover por conta própria. Quando
finalmente se deu conta dos seus arredores, ele estava de pé no meio
da rua.
CAPÍTULO IV ⊰ 166 ⊱

“Não fique parado no meio da estrada!” um condutor de carroça


gritou com ele, e como um vira-lata, Lawrence se moveu para o lado
da rua.
O que devo fazer? O que devo fazer? O que devo fazer?
As palavras passavam sem parar diante de seus olhos.
“Hey. Você está bem?”
Ao som da voz, Lawrence se espantou.
“Seu rosto está muito pálido. Vamos voltar logo para a pousada
—”
Holo estendeu sua mão como forma de conforto, mas Lawrence
a rebateu.
“Se você apenas não tivesse —,” ele gritou. Mas quando notou seu
erro, já era tarde.
Holo olhava para ele como se a tivessem esfaqueado o coração.
Sem ter para onde ir, a mão dela pairava lá no ar por um momento
antes dela a abaixar vagarosamente.
Ela baixou o olhar, seu rosto estava branco, sem carregar raiva ou
tristeza.
“Me... desculpe...,” ela conseguiu falar com uma voz
estrangulada, mas não ofereceu sua mão novamente.
Lawrence não podia fazer nada além de amaldiçoar a si mesmo.
A lembrança da coisa terrível que tinha feito pesava sobre ele.
“...Eu vou voltar para a estalagem,” anunciou Holo
tranquilamente, andando sem olhar uma segunda vez para Lawrence.
Holo podia ouvir conversas no prédio ao lado, então ela
certamente ouviu a conversa de Lawrence com o mestre.
Claro, ela se sentiria responsável e procuraria se afastar — afinal,
ela estava preocupada o suficiente com ele a pondo de acompanhá-lo.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 167 ⊱

No entanto, só porque suas ações tinham provocado o efeito


oposto, ela não se desculpou despreocupadamente ou agiu como se
estivesse confusa; em vez disso, ela estava genuinamente preocupada
com Lawrence. Ele sabia que era a resposta mais apropriada. Ele sabia
disso, o que tornava seu tratamento para com ela ainda mais
repreensível.
Ele não conseguia encontrar as palavras para falar com Holo, cujas
costas estavam desaparecendo na multidão — e ele não tinha coragem,
também.
Lawrence se amaldiçoou novamente.
Se a deusa da fortuna existia, Lawrence queria dar um soco nela
direto no rosto.
Lawrence só voltou para a estalagem depois que as barracas que
tinham permissão para realizar negócios após o pôr do sol tinham
fechados suas portas.
Ele queria se afogar em vinho, mas não tinha dinheiro e sentiu que
isso seria um tipo de traição.
Ficar bêbado diante de Holo — era algo que simplesmente não
podia fazer.
Foram suas visitas a diversas companhias comerciais que o
mantiveram até tarde nas ruas.
Se abandonasse orgulho e dignidade por completo, ele pensou que
as pessoas lhe dariam um pouco de dinheiro simplesmente para se
livrar dele.
No fim, ele tinha conseguido três lumiones de quatro pessoas. Três
deles lhe disseram para não se incomodar em devolvê-lo. Afinal, eles
sabiam a quem estavam emprestando.
Seu objetivo de quarenta e sete lumiones ainda estava obviamente
distante. Ele tinha que pegar essa pequena quantidade e multiplicá-la
significativamente no pouco tempo que restava. Não era como se sua
situação tivesse melhorado. As relações que tinha destruído a fim de
CAPÍTULO IV ⊰ 168 ⊱

conseguir até mesmo essa quantia de dinheiro eram importantes, até


mesmo necessárias, para fazer negócios.
Não sobrou essencialmente nenhuma oportunidade legítima para
fazer mais dinheiro.
E, em todo caso, havia algo que devia ser considerado antes disso
— algo que devia ser recuperado antes que pudesse sequer pensar em
ganhar mais dinheiro — e era por isso que tinha ido para lá e cá
pedindo por empréstimos sem se importar com as consequências.
A lembrança de como a mão de Holo ficou quando ele
inconscientemente a rejeitou voltava para ele. Dor rodopiava em seu
peito, parecendo perfurar seu próprio coração.
Quando Lawrence entrou no salão da estalagem, o estalajadeiro
sonolento estava atrás de seu balcão, soltando um grande bocejo. A
cidade exigia que o estalajadeiro permanecesse acordado até que todos
os hóspedes tivessem retornado para a estalagem. Se um cliente não
retornasse até o dia seguinte, a guarda da cidade deveria ser notificada.
Era uma precaução contra ladrões e criminosos que entravam na
cidade e cometiam atos infames.
“Bem, você voltou cedo,” foi a saudação sarcástica do
estalajadeiro. Lawrence acenou e se dirigiu para o seu quarto.
Era um quarto individual no terceiro andar. Lawrence não
considerava a possibilidade de que Holo simplesmente tivesse ido para
algum outro lugar.
Pela segunda vez naquele dia, ele respirou fundo e abriu a porta.
Não importa se ele abrisse a porta devagar ou rapidamente, o
ranger teria sido o mesmo, por isso abriu rapidamente e entrou.
Entre as condições terríveis do prédio e do enorme número de
viajantes que passavam por Ruvinheigen, um quarto com uma cama já
era bastante luxuoso. Este quarto, com uma cama dura no centro e
uma mesa simples debaixo da janela, ainda custava um bom dinheiro.
Mas agora Lawrence era grato por ser tão pequeno.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 169 ⊱

Se fosse um pouco maior, ele provavelmente hesitaria em falar.


Holo estava enrolada na cama, iluminada fracamente pela luz da
lua que entrava por uma fresta da janela fechada.
“Holo.”
O breve pronunciamento se dissipou no pequeno quarto escuro,
e Lawrence foi tomado pela ilusão de que nunca falou absolutamente
nada.
Na cama, Holo não chegou a se mexer.
Se ela nunca mais quisesse ver seu rosto novamente, não teria
voltado para a estalagem. O fato de que ela estava ali, enrolada na
cama, o deixava feliz.
“Eu sinto muito.”
Aquelas eram as únicas palavras que ele tinha, as únicas que
conseguia pensar em dizer, mas Holo ainda permanecia parada.
Ele não podia imaginar que ela estivesse dormindo, então ele deu
um passo em direção à cama e engoliu seco.
Instantaneamente, ele sentiu uma sensação aguda a seus pés. Deu
um passo para trás rapidamente enquanto um arrepio corria por sua
espinha, e a sensação assustadora desapareceu.
Ele olhou ao redor com Holo em seus pés.
Quando alguém está verdadeiramente irritado, Lawrence pensou,
apenas ficar perto dessas pessoas te faz sentir quase como se fosse
queimado. Incrédulo, ele aproximou sua mão devagar; que foi
recebida por uma aura esmagadora. A raiva dela era literalmente
palpável. Havia uma camada distinta de ar que era estranhamente
quente e fria ao mesmo tempo.
Lawrence se preparou e estendeu a mão novamente. Parecia
como se estivesse mergulhando o punho na areia ardente ornamentada
com lâminas. Seus sentidos lhe diziam que sua carne estava sendo
carbonizada e cortada em pedaços.
CAPÍTULO IV ⊰ 170 ⊱

Ele se lembrou da primeira vez que viu a verdadeira forma de


Holo nas passagens subterrâneas.
Ele se forçou a dar um passo em frente.
E nesse momento.
“— !”
Houve um farfalhar e assim que Lawrence pensou ter visto o
cobertor de Holo se mover ligeiramente, sua mão foi desviada por algo
duro. Ele viu que a cauda eriçada dela tinha se mexido, a dor persistiu
em sua mão, de modo suficientemente claro para que não tivesse
tempo de se perguntar se era ilusão ou não.
Então percebeu que Holo sentiu a mesma dor quando ele rebateu
sua mão. Lawrence estava preparado para essa reação, enquanto a sua
rejeição da mão de Holo veio totalmente sem aviso. Só a surpresa já
deveria tê-la machucado.
Mais uma vez, ele amaldiçoou o seu próprio erro.
Lawrence pegou a bolsa de couro debaixo de sua camisa e a jogou
sobre a cama.
Era todo o dinheiro que gastou o dia construindo pontes para
conseguir.
Ele converteu todas as relações que ele construiu nesta cidade em
dinheiro.
“Este é todo o dinheiro que fui capaz de conseguir por conta
própria. Três lumiones. Ainda tenho que conseguir mais quarenta, mas
não tenho como conseguir isso. Não consigo pensar em nenhuma
forma de usar isso como capital para levantar o que preciso.”
Era como se estivesse falando com uma pedra na calçada, dada a
completa falta de reação de Holo. Mesmo assim, Lawrence pigarreou
e continuou.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 171 ⊱

“Tudo o que posso pensar é em pegar o dinheiro e ir para uma casa


de jogos de azar e rezar para ter sorte. Mas se eu der à pessoa que
realmente merece, elas podem ser úteis. Então as entrego para você.”
Bêbados cantando podiam ser ouvidos na rua além da janela.
“E se tudo for mal, bem, retirar três lumiones da minha dívida não
vão fazer diferença de qualquer maneira.”
Lawrence sacrificou a possibilidade de embolsar metade na
esperança de que Holo seria capaz de usar sua inteligência para
encontrar uma maneira de aumentar os seus fundos, e também porque
queria deixá-la com um pouco de dinheiro no caso de o pior acontecer.
Apesar de ter sido apenas um contrato verbal, Lawrence tinha
prometido levá-la para as terras ao norte, e se despedirem em
condições tão ruins deixaria um gosto amargo.
Ele sentiu que o mínimo que poderia fazer para Holo, como um
mercador, era lhe dar algumas moedas.
Ainda assim, não houve resposta.
Ele recuou um passo, então se virou, e abriu a porta indo para o
salão.
Ele não podia ficar no quarto enquanto estivessem assim.
Lawrence desceu as escadas escuras e saiu para as ruas, ignorando
a voz repreensiva do estalajadeiro.
À sua direita, ele ouviu o canto bêbado que anteriormente tinha
entrado pela janela do quarto.
A guarda da cidade logo estaria fazendo as rondas. Não tendo
nenhum lugar em específico para ir, Lawrence pensou em ir ver Jakob,
que estava bastante envolvido com seu problema no momento. Já que
Lawrence foi por aí praticamente forçando seu pedido em cada
mercador nas proximidades, sem dúvidas Jakob recebeu uma
enxurrada de reclamações.
Mas ele parou depois de dar um passo.
CAPÍTULO IV ⊰ 172 ⊱

A ideia de que esta noite poderia muito bem ser a sua última
oportunidade de andar por aí como um homem livre apertou seu
coração.
Ele olhou para cima inconscientemente. Ele começou a direcionar
seu olhar para o quarto no terceiro andar onde Holo estava. Holo, que
certamente tinha algum conhecimento terrível que poderia ajudá-lo
agora; Holo, a quem ele não poderia pedir nem um favor agora.
Seu olhar nem sequer chegou ao terceiro andar antes que ele
parasse e o baixasse.
Assim que ele se conformou em ir para a guilda, algo o atingiu na
cabeça.
O campo de visão de Lawrence balançou com o choque súbito e
ele caiu de joelhos. A palavra assalto veio à mente, e ele procurou o
punhal em sua cintura, mas não havia nenhum assaltante. Em vez disso,
veio o tilintar de moedas se batendo uma contra a outra...
Ele procurou em volta e viu o saco contendo os três preciosos
lumiones que havia deixado sobre a cama.
“Seu tolo,” vieram as palavras sobre sua cabeça.
Ele olhou para cima para ser recebido com a repreensão de Holo,
tão fria quanto o luar.
“Trate de voltar para cá,” ela disse, e imediatamente desapareceu
dentro do quarto. Assim que ela desapareceu, o estalajadeiro surgiu na
porta.
Se um viajante hóspede estava para cometer qualquer ato ilegal, o
estalajadeiro também poderia ser responsabilizado. Como alguém
saindo no meio da noite não poderia estar fazendo algo correto, o
estalajadeiro veio para trazer Lawrence de volta para dentro.
Mas Lawrence já não tinha qualquer motivo para sair.
Ele se acalmou, pegou a bolsa e falou para o estalajadeiro.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 173 ⊱

“Minha companheira atirou isso pela janela, entende?” ele disse


com um sorriso triste.
O estalajadeiro fechou a cara. “Tentem se controlar,” ele
repreendeu, abrindo a porta.
Lawrence assentiu superficialmente e voltou a subir as escadas
para o quarto.
Em sua mão estava a bolsa com os três lumiones.
Ele parou diante da porta do primeiro quarto no terceiro andar e
a abriu sem muita hesitação.
Holo tinha tirado sua capa e estava sentada de pernas cruzadas em
uma cadeira perto da janela.
“Seu tolo,” foi a primeira coisa que ela disse.
“Desculpe.”
Lawrence não poderia pensar em uma resposta melhor. Isso
refletia com precisão o que sentia, mas era muito breve.
No entanto, não havia outras palavras a serem ditas.
“O dinheiro...,” Holo falou com palavras igualmente curtas, como
uma expressão insatisfeita em seu rosto. “Como você coletou?”
“Você quer saber?”
Holo desviou o olhar, como que diante da comida que menos
gostava. “O eu deveria fazer, fugir com seu precioso dinheiro?”
“Essa foi metade da razão para eu coletar o dinheiro. Se o meu
fracasso significar que não posso cumprir a minha parte do acordo, o
mínimo que posso fazer é te deixar algum dinheiro para viajar —”
Ele engoliu o resto da sentença.
Holo ainda desviava o olhar, com os lábios estreitos — mas
lágrimas brotaram em seus olhos.
Era como se as emoções dentro dela estivessem transbordando e
ela tentasse desesperadamente segurar.
CAPÍTULO IV ⊰ 174 ⊱

E então uma única lágrima brilhou ao cair. A represa se rompeu.


“Dinheiro...para viajar...?”
“Bem, sim...”
“De todos os absurdos...”
Desafiadoramente, Holo enxugou as lágrimas com ambas as
mangas, em seguida, se levantou olhando para Lawrence, seus olhos
ainda embaçados.
“A culpa é minha, não é? Se eu não estivesse aqui, você não teria
nenhuma dívida! Por que não está bravo? Se eu...se eu...!”
Seus pequenos punhos tremiam enquanto as palavras dentro dela
se tornavam lágrimas, transbordando e caindo.
Mas Lawrence não entendeu.
Holo foi com Lawrence até a guilda porque estava preocupada
com ele. Ela certamente não sabia que não emprestariam dinheiro
porque ela estava com ele.
E pensar que foi no calor do momento, ele tinha rebatido sua mão.
Não importa como ponderasse, ele era o único culpado. Não
conseguia encontrar uma razão para estar zangado com Holo.
“Mas eu sou o único culpado. Você veio junto porque estava
preocupada comigo. Não posso ficar com raiva de você por —”
Ela olhou para ele rispidamente. No momento em que ele
começou a falar, Holo virou e agarrou a parte de trás da cadeira.
“Seu —”
Ela levantou a cadeira —
“ — tolo!”
Alarmado, Lawrence estremeceu, mas Holo não jogou a grande
cadeira.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 175 ⊱

Logo percebeu que ela precisou usar toda sua força para levantar
a cadeira, e não conseguiria jogá-la.
“Urgh... porcaria...,” ela disse, talvez amaldiçoando a cadeira
mais pesada do que o esperado — ou talvez Lawrence.
Mas havia uma coisa que ele sabia. Os braços finos de Holo não
conseguiriam arremessar a cadeira só com a força da emoção. Seu
corpo ao luar se inclinou em direção à janela, com as mãos ainda na
cadeira, os olhos ainda encarando Lawrence.
“Cuidado!”
Assim que a perna da cadeira bateu contra a moldura da janela,
Lawrence saltou para a frente, agarrando a cadeira com a mão esquerda
e o pulso fino do Holo com a mão direita.
Apesar do fato de que ela tinha quase caído para fora da janela,
com a cadeira e tudo, Holo continuava encarando Lawrence.
Incapaz de suportar, ele desviou o olhar.
Não sabendo mais o que dizer, ele afastou a cadeira para longe
dela para colocá-la de volta no chão e Holo desistiu inesperadamente
rápido.
Então, como se aquela cadeira contivesse toda a sua raiva, a força
foi drenada de seu corpo pequeno.
“...Você...”
Seus olhos baixaram quando lágrimas caíram no chão, sua voz era
baixa.
“Você é tão ingênuo...”
Lawrence colocou a cadeira no chão enquanto ela dizia isso.
“Eu sou... ingênuo?” questionou reflexivamente, dada sua tão
inesperada declaração.
Holo assentiu de modo infantil, as mãos ainda fechadas em punho.
CAPÍTULO IV ⊰ 176 ⊱

“Mas... você é... não é? Ninguém te emprestou dinheiro porque


eu estava com você, mas... ainda...”
“Eu rejeitei a sua mão! Eu estava com raiva de você — uma raiva
injustificada!
Holo balançou a cabeça e bateu no peito de Lawrence com sua
mão livre.
Seu rosto parecia querer ter raiva, mas tinha esquecido como.
“Eu...eu....eu segui você porque fui egoísta. Quando as coisas dão
errado, é racional ficar com raiva. Mas nunca pensei que você iria bater
na minha mão daquele jeito, então eu queria ficar com raiva — eu
queria, mas...”
Lawrence começou a entender.
“C-como eu poderia ficar com raiva de você quando me olhou
daquele jeito?”
Holo enxugou novamente as lágrimas com a mão livre.
“Eu fiquei tão estupidamente contrariada...”
Ela ficou com raiva quando ele bateu na mão dela, mas olhando
para o rosto de Lawrence quando ele percebeu o que tinha feito, fez a
sua raiva diminuir.
Lawrence pensou que deve ter parecido bastante patético.
Mas isso não significa que a raiva dentro de Holo tinha
desaparecido inteiramente. Ela ainda estava irritada por ter recebido
um tapa em sua mão.
E querendo ficar furiosa, mas não sendo capaz — isto tornava
tudo ainda mais frustrante.
Ela não respondeu quando ele voltou para a estalagem porque não
sabia o que dizer. Sua mente trabalhava muito mais rápido que a de
Lawrence, no entanto, ela ficou confusa por não ter um objeto claro
para sua raiva.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 177 ⊱

Então, interpretando ela de forma completamente errada,


Lawrence a deixou na estalagem com os três preciosos lumiones.
Isso era como jogar óleo no fogo.
Holo já estava chateada consigo mesma por não ser capaz de ficar
propriamente indignada, e ele deixando as moedas com ela só fez ficar
ainda mais difícil ter raiva.
“Eu sinto muito... Não, o que quero dizer é que, quando bati na
sua mão, pensei que tinha feito algo que nunca seria capaz de ser
perdoado, não importasse o quanto me desculpasse,” disse Lawrence
lentamente.
Holo olhou para ele com olhos que pareciam cansados de lutar.
Ela provavelmente estava cansada. Apesar de sua mente rápida e
língua mais rápida ainda, ela esteve com raiva o suficiente para tentar
pegar e arremessar uma cadeira pesada. Apesar da sua forma lupina,
Lawrence não achava que seu pequeno corpo poderia sustentar tal
ferocidade por muito tempo.
“De qualquer forma, eu... eu só queria desfazer o que tinha feito.
E se não fui claro, bem... eu sinto muito.”
Lawrence se amaldiçoou por sua eloquência limitada. Holo mais
uma vez bateu levemente em seu peito com a mão direita estendida.
“...Você.”
“Hm?”
“Só me responda uma coisa.”
Lawrence não tinha razão para recusar, então ele concordou com
Holo, cuja mão segurava sua camisa.
Mas Holo não disse nada de imediato. Ela hesitou várias vezes
antes de finalmente falar.
“Por que... por que você é tão...”
Ela o encarou só por um momento.
CAPÍTULO IV ⊰ 178 ⊱
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 179 ⊱

“... bondoso?” ela terminou e, em seguida, desviou o olhar


imediatamente para longe, como que para escapar.
No entanto, toda a sua atenção estava voltada para Lawrence,
somente em Lawrence.
Parecia que ela estava esperando algo.
Suas orelhas de lobo, que há pouco estavam caídas e desanimadas,
agora se levantavam ligeiramente para cima, e sua cauda balançava um
pouco.
Seu pequeno corpo estava iluminado pela luz da lua que entrava
pela janela aberta.
A verdade é que o motivo pelo qual ele estava tão amargurado por
sua própria atitude quando bateu na mão dela e o motivo pelo qual ele
tão desesperadamente reuniu dinheiro para ela viajar era por um: Holo
era muito especial para ele.
E esta era certamente a resposta que ela queria ouvir.
Lawrence a olhou e tentou responder.
Quando abriu a boca para falar, percebeu que o que saiu foi algo
diferente do que estava em seu coração.
“É a minha personalidade, eu acho...”
Estava com medo da reação que receberia se respondesse
sinceramente.
Não havia como dizer como resultaria um ataque frontal na
inatacável Holo.
Ele temia a reação dela, por isso a sua resposta. Parecia injusto.
Parecia uma consequência de sua própria fraqueza.
Porém.
“S-seu...”
CAPÍTULO IV ⊰ 180 ⊱

Assim que percebeu que a mão dela estava tremendo, Holo


suavemente soltou sua mão, acertando um soco no estômago enquanto
ela falava.
“...Tolo!”
Cambaleando com o impacto surpreendentemente forte, viu
Holo olhando para ele, ainda segurando suas roupas como que para
impedir sua fuga.
“S-sua personalidade? Sua personalidade? Pelo menos seja um
homem e diga uma mentira que vale a pena acreditar, seu burro!”
Lawrence estremeceu. Holo pôde ver através de tudo aquilo.
“D-desculpe. A verdade é —”
Mas só conseguiu ir até aí.
Ainda agarrando a gola da camiseta dele, Holo riu.
“Você, me escute. Há momentos em que quero que você me diga
algo mesmo que seja uma mentira, e momentos em que se você mentir
para mim, me faz querer te dar uma surra memorável. Em qual desses
você acha que estamos agora?”
Ele estava tão atordoado com o sorriso malicioso dela que mal
conseguiu dizer: “O último,” ao que Holo deu um longo suspiro
sofrido e o afastou.
Suas orelhas e cauda contraíram em desagrado. Sua raiva era fácil
de entender.
“Oh, você é uma espécie rara de burro, de fato! Quantos machos
você acha que existem no mundo que não teriam conseguido dizer ‘Eu
estou apaixonado por você’, ou ‘Você é preciosa para mim’, ou
qualquer outra frase que faça uma fêmea se apaixonar por ele? Posso
ver claramente o que você está pensando, mas simplesmente não posso
acreditar — eu não posso acreditar que você seja tão estúpido!”
Seus olhos tinham ido de espanto para desprezo, mas ela não
parecia muito irritada.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 181 ⊱

Pensando nisso de outra forma, Holo queria ouvir essas palavras


saindo da boca dele.
“Mas acho que esta é a mesma característica que me permite viajar
com você tão facilmente. Afinal, uma pessoa não pode ter tudo o que
quer.”
Seus comentários eram dispersos, mas Lawrence não como
refutar.
O que Holo realmente queria que ele sentisse quando escutasse
este comentário?
Ela estava apenas agindo de forma mimada, provocando ele? Ou
talvez...
Assim que a terceira possibilidade veio à mente de Lawrence,
Holo estendeu a mão suavemente para aproxima-lo.
Lawrence ficou imediatamente em guarda para o que ela estava
planejando, mas ela logo deixou claro seu motivo.
“Mesmo assim, eu realmente queria tê-lo ouvido dizer. Então
vamos, tente de novo.”
Tudo que ele podia pensar em dizer agora era “Me dá um tempo,
por favor,” mas sabia que isso iria invocar uma ira ardente sobre ele.
Holo deu uma leve tossida e olhou para ele com total expectativa;
Lawrence respirou fundo, se preparando. O jeito que ela o olhou não
poderia ser fingimento.
“Por que você é tão bondoso?” ela perguntou novamente.
Ela parecia ainda mais séria do que antes, seus tristes olhos
brilhando e os lábios tremendo ligeiramente.
Ele podia sentir o sangue subindo ao rosto, mas Lawrence se
preparou e falou mesmo assim.
“Porque você é muito especial para mim.”
Ela parecia feliz — tão feliz que não poderia ser fingimento — e
baixou sua cabeça, se apoiando contra o peito dele.
CAPÍTULO IV ⊰ 182 ⊱

O gesto inesperado pegou Lawrence de surpresa. Holo o olhou,


rosto mimado, então colocou seus braços em volta dela.
Aparentemente, ela queria que ele a abraçasse.
Era tão absurdo e estranhamente cativante que ficou atordoado
por um momento. A cauda de Holo balançava enquanto ele abraçava
o pequeno corpo dela. Isso o fez tão feliz, ele se atreveu a apertar um
pouco mais.
O não demorou muito, mas de alguma forma o momento pareceu
durar.
Holo se moveu em seus braços, o que trouxe Lawrence volta a si
— e nesse ponto, ela começou a rir.
“Ha-ha-ha, o que estamos fazendo?”
“Você me disso pra fazer isso!” Lawrence falou, a soltando.
“Hee-hee. Acho que foi um bom ensaio para você,” Holo disse
maliciosamente.
Lawrence não estava disposto para devolver uma resposta séria.
Quando ele desistiu, ela riu bastante.
“Ainda assim, devo dizer —,” ela falou, aparentemente não tinha
terminado. “Da próxima vez só me deixe com raiva, ok? Foi legal você
ser tão atencioso, mas às vezes é mais rápido ter uma boa e grande
briga e resolver nossos problemas assim.”
Era uma coisa estranha a se dizer, mas Lawrence não podia
discordar.
Era uma ideia que ele jamais iria sugerir. Mas parecia uma ideia
refrescante e, de alguma forma, calorosa para ele.
“Certo. Olhando para seu rosto posso imaginar como conseguiu
juntar o dinheiro — quanto?”
“Três lumiones e dois sétimos.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 183 ⊱

Suas orelhas se mexeram, Holo novamente colocou a testa no


peito de Lawrence. Se ela tentasse assoar o nariz, ele iria afastá-la, mas
como ela estava apenas enxugando as lágrimas, ele não fez nada.
Quando ela finalmente olhou para cima, já tinha voltado ao
normal.
Com um sorriso orgulhoso, ela começou a falar.
“Fez bem em contar com a minha inteligência. Tenho um plano
astuto.”
“Qu...qual é?”
Lawrence se inclinou para frente inconscientemente, com uma
mistura de curiosidade e surpresa; Holo fez uma careta e se afastou.
“Não se anime tanto com isso, ou então vou me preocupar caso
não consiga executa-lo,” Holo falou, e então ela começou uma breve
descrição de seu esquema.
Era puramente simples e direto. De fato, era tão simples que os
olhos de Lawrence se arregalaram.
“O que você acha? Pode ser feito?”
“Tenho certeza que todo mundo já pensou a mesma coisa, mas na
verdade é impossível. Tenho certeza de que aqueles que tentaram
foram pegos.”
“Oh, com certeza, se não tiver um grupo variado de pessoas para
te ajudar. Você nunca passará do primeiro portão.”
Holo sugeriu fazer contrabando de ouro, usando um método
extremamente simples e direto.
Lawrence nunca imaginou que Holo, a Sábia Loba, poderia fazer
uma proposta tão perigosa e sem esperança.
Sem surpresa, ela então explicou o por que seu plano era, de fato,
possível.
“Eu juro pelas minhas orelhas e cauda, acontece que eu sei
exatamente com quem podemos contar para fazer este plano
CAPÍTULO IV ⊰ 184 ⊱

funcionar. Pelo que eu vi certamente, ela pode nos ajudar. Na verdade,


estou relutante em pedir. Eu posso saltar sobre as muralhas da cidade
se for necessário. Mas com o seu problema, não temos esse luxo.”
Lawrence, claro, logo entendeu de quem Holo estava falando.
Holo estava totalmente certa sobre a habilidade dessa pessoa.
Mas contrabandear ouro para Ruvinheigen não era simplesmente
uma questão de conseguir passar através dos postos de inspeção. Ser
apanhado significava a morte, então todos os envolvidos tinham que
compreender os riscos e estarem dispostos a confiar uns nos outros
com suas próprias vidas.
Haviam muitos outros problemas. Não havia dúvida de que
persuadir o transportador era uma tarefa intimidante. Não importa
quão grande a recompensa em potencial, você ainda estava colocando
sua vida nas mãos dos outros.
No entanto, se contrabandear ouro era uma possibilidade,
Lawrence não podia se dar ao luxo de ignorá-lo. Essa oportunidade
não poderia ser descartada.
“Então, se conseguirmos ajuda, você acha que é possível?”
perguntou Lawrence.
“Acho que sim, desde que nada de extraordinário aconteça.”
“Entendo...”
A mente de Lawrence já estava pensando sobre o que seria
necessário para contrabandear o ouro.
Para sequer cogitarem fazer a proposta, ele e Holo precisariam
oferecer o dinheiro suficiente a quem transportasse o ouro para
compensar o perigo e garantir o seu silêncio. A quantidade que
conseguiriam com o contrabando comprado em alguma outra cidade
com os três lumiones que tinham não seria o suficiente. Eles perderiam
todo o lucro potencial apenas compensando seu parceiro. E deixando
a compensação de lado, era duvidoso que o ganho feito com três
lumiones poderia se aproximar do valor da dívida de Lawrence. Eles
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 185 ⊱

precisavam investir mais capital. Holo, que disse que conseguiria


passar por cada ponto de inspeção, percebeu isso e sugeriu um plano
alternativo. Mesmo que propusessem esse plano para um potencial
investidor, explicar a parte do contrabando seria um problema. E
mais, teriam que confiar que a pessoa que emprestaria o dinheiro e os
auxiliaria no contrabando não os trairia. E estes nem eram os maiores
problemas. O maior problema de todos era que Lawrence não tinha
tempo.
Ele estava imerso em pensamentos quando sentiu um puxão em
sua mão, o trazendo do seu devaneio.
Ele logo percebeu que não havia sido puxado — foi Holo livrando
seus dedos entrelaçados com a mão dele e retirou sua mão.
“Certo, vou deixar você trabalhar nos pequenos detalhes,” ela
disse. “Eu vou dormir.”
Ela bocejou, em seguida sua cauda se mexeu uma vez em uma
espécie de suspiro enquanto ela caminhava lentamente até a cama.
“O quê, agora?” Lawrence tinha planejado pegar a inteligência dela
emprestado mais uma vez, mas ela se arrastou para debaixo do
cobertor e retirou apenas sua cabeça para olhá-lo.
“Não sei nada sobre cidade. Não tenho nada a oferecer a não ser o
fato de que é possível entrar na cidade com o ouro.”
Lawrence concordou internamente, com isso Holo sorriu.
“Ou o quê, você quer que eu fique ao seu lado aí?”
Imperturbável, Lawrence se lembrou do “ensaio.” “Claro que
quero.”
“Está frio, então não.”
A cabeça de Holo desapareceu sob o cobertor, mas sua cauda —
que parecia muito mais quente do que o cobertor — acenou
alegremente.
CAPÍTULO IV ⊰ 186 ⊱

Lawrence respirou fundo, sorrindo com isso, o tipo de conversa


agradável que nunca acontecia quando se viajava sozinho.
Se ele não resolvesse alguma coisa entre o nascer e o pôr de
amanhã, tudo de agradável em sua vida acabaria sacrificado como
oferenda aos pés dos deuses.
No entanto, havia esperança. Ele não tinha escolha a não ser fazer
essa semente de esperança florescer em uma flor de sucesso.
Ele se sentou na cadeira que Holo tinha levantado mais cedo e
pegou a bolsa de couro com moedas do chão.
O som familiar de moedas tilintando ecoou no quarto silencioso.

Uma carroça vagava barulhenta ao longo da estrada de pedra, e


Lawrence olhou para fora da janela para ver o leito da carroça cheio de
produtos de alta qualidade — provavelmente um comerciante
seguindo para o mercado no período da manhã. Outras pessoas
também começaram a surgir aqui e ali.
Assim que Lawrence pensou que também já era hora para o sino
do sermão da manhã, os grandes sinos da catedral ecoaram pelo céu
matinal. Apesar da distância considerável, era possível ouvir o som
muito bem.
Então, antes que o eco dos grandes sinos desaparecesse, os sinos
de muitas igrejas menores que ficavam espalhadas pela cidade
responderam ao chamado; uma pequena confusão de sons dava início
à manhã.
Os moradores da cidade estavam acostumados com isso, mas para
os viajantes que costumavam amanhecer com nada além do canto dos
pássaros, era um pouco barulhento. E para uma loba cuja audição
ultrapassa e muito a de qualquer humano, o barulho era mais do que
um pouco barulhento. Ela gemeu em desagrado antes de rolar para
fora da cama.
“...”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 187 ⊱

“Bom dia.”
Holo não disse nada, apenas acenou tristemente.
“Estou com fome,” foram as primeiras palavras a finalmente
saírem de sua boca.
“Se formos para a praça, as barracas devem abrir em breve.”
“Mm,” Holo disse, se esticando quase como gato, em seguida,
começou a pentear seu cabelo sedoso. “Então, tendo pensado nisso por
uma noite, o que você acha?”
“Podemos fazer isso.”
Foi uma resposta tão curta e brusca que Holo, que havia
terminado com seu cabelo e agora estava penteando sua tão importante
cauda, levantou os olhos surpresa.
“Essa é uma resposta absurdamente direta vinda de você,” ela
disse.
“O que quer dizer?”
Holo desviou seu olhar propositadamente. Lawrence continuou,
ignorando ela.
“Embora, em todo caso, existem duas barreiras que temos que
superar.”
“Duas?”
“Além de quem quer que leve o ouro, temos que encontrar um
investidor que vai nos ajudar a comprar o ouro. Os três lumiones que
tenho na mão não serão o suficiente para compensar quem vai levar o
ouro.”
Holo pensou por um momento, depois olhou para Lawrence em
dúvida. “Tem mais um problema, não tem? Você só tem hoje.
Podemos trazer o ouro para a cidade tão rápido?”
O raciocínio da autoproclamada sábia loba era rápido como de
costume.
CAPÍTULO IV ⊰ 188 ⊱

Mas ele teve a noite toda para pensar, e sua mente tinha chegado
a uma resposta que a sábia loba ainda estava por obter.
“Naturalmente, considerei isso. Também parecia ser o maior
problema para mim. Pode chamar de milagre, mas há uma chave para
resolver todos esses problemas.”
“Oh ho.”
Lawrence sorriu orgulhosamente para Holo, que o olhava como
um mestre que iria testar um estudante.
“Vamos fazer a Companhia Remelio bancar o investimento.”
Holo inclinou a cabeça ligeiramente.
A Companhia Remelio estava em processo de falência, assim
como Lawrence. Mas era difícil imaginar que eles estivessem tão
quebrados a ponto de ir ingenuamente de porta em porta pedindo
dinheiro como Lawrence. Eles provavelmente teriam capital suficiente
para financiar uma última grande tentativa de retorno, e estes últimos
recursos preciosos apoiariam o contrabando de ouro. Desde que a
própria Companhia Remelio estivesse à beira da ruína, eles teriam
todos os motivos para se interessarem em um plano confiável para
conseguir ouro.
Tal contrabando era extremamente suscetível a traição. Em outras
palavras, uma vez que o contrabando fosse proposto para eles e eles
estivessem a bordo, seria ruim para eles se Lawrence fosse
imediatamente para o caminho da ruína. Não havia necessidade de
discrição por parte daqueles que se dirigiam para a morte. Lawrence
deveria apenas dizer: “A Companhia Remelio está planejando
contrabandear ouro,” e seus planos para um retorno seriam destruídos.
Assim, eles não teriam escolha senão adiar o pagamento da dívida
de Lawrence, e de modo a se proteger contra a traição, Lawrence não
tinha escolha a não ser se tornar seu cúmplice.
Esta foi a sua conclusão na noite anterior.
“Mas, em todo caso, ainda nos falta tempo.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 189 ⊱

Este era o maior problema que eles enfrentavam.


“Mm. Então devemos ir direto depois do café da manhã?”
“Café da manhã?”
“Dificilmente se pode lutar com o estômago vazio.”
Agora que Holo mencionou, Lawrence pensou e percebeu que ele
não tinha comido nada desde o almoço do dia anterior, mas talvez por
ter passado toda a noite em claro ou por causa do intenso trabalho que
ainda havia por fazer, ele não estava com muito apetite.
Mas Holo estava totalmente animada quando pulou da cama,
vestiu sua túnica e saia confortavelmente em torno de sua cintura e
colocou o lenço na cabeça.
“Um pouco de carne seria bom!”
Mesmo que ele tivesse em forma, Lawrence achava a ideia de ter
carne como a primeira refeição na manhã totalmente desagradável.

Depois de tomar o café da manhã em uma barraca, Lawrence e


Holo se dirigiram a pé para a Companhia Remelio. Como não estavam
indo para lá em uma carroça, desta vez, eles foram para a entrada da
frente.
Como se poderia esperar, uma vez que a entrada dava para a rua,
ela não parecia muito diferente do normal, mas uma vez que abriram
a porta, que não tinha qualquer sinal de ABERTO ou FECHADO, o odor
inconfundível de problemas financeiros chegou ao nariz de Lawrence.
Era uma atmosfera claramente diferente do lado de fora, onde a
esperança florescia no ar da manhã. Aqui, o desespero se escondia em
cada canto e recanto, e havia uma impaciência faminta, uma aura febril
espalhada por todo o lugar. A simples presença ou ausência de dinheiro
poderia mudar a própria atmosfera.
“Er, posso perguntar quem está aí?”
CAPÍTULO IV ⊰ 190 ⊱

O homem de meia-idade que os cumprimentou carregava uma


expressão dura; era cedo para uma visita repentina. No entanto, ele
foi relativamente calmo e com uma voz educada. Ele era magro e
provavelmente sempre foi assim.
“Meu nome é Lawrence. Vim aqui ontem. Há algo que eu gostaria
muito de falar a respeito com Sr. Remelio...”
“É mesmo? Por aqui, por favor... Oh, eu sinto muito, a sua
companheira...”
“Ela é minha aprendiz. É conveniente para ela se vestir como uma
garota da cidade no momento, mas estou ansioso para que ela se torne
uma perfeita mercadora em um futuro próximo. Gostaria que ela me
acompanhasse nessa reunião.”
Lawrence soltou a grande mentira sem qualquer hesitação, e o
homem pareceu aceitar. Mulheres mercadoras eram incomuns, e as
garotas com o objetivo de tornar uma eram ainda mais.
“Se puder me seguir, então...”
Lawrence seguiu o homem para dentro do prédio, Holo atrás
dele. Os trabalhadores no escritório do primeiro andar estavam com
os olhos cansados e vermelhos. Assim como Lawrence no dia anterior,
eles trabalharam freneticamente pelas noites em busca de maneiras de
conseguir dinheiro.
“Por favor, esperem aqui.”
Eles foram levados a uma sala no terceiro andar. Esta era
provavelmente a sala normalmente utilizada para negociações de joias,
especiarias e outros itens de alto preço. Lawrence não se sentou em
uma simples cadeira de tecido, mas em um sofá estofado com
almofadas de couro.
“Posso transmitir qual o seu negócio conosco hoje, Sr. Lawrence?”
“Eu gostaria de discutir uma forma de quitar minha dívida com
essa companhia, e possivelmente uma forma para que essa companhia
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 191 ⊱

possa quitar suas próprias dívidas também,” disse Lawrence de forma


suave e uniforme, olhando diretamente nos olhos do homem.
O homem se endireitou como se fosse atingido por um raio,
arregalando os olhos. Ele olhou para Lawrence com olhos obviamente
duvidosos, provavelmente se perguntando se esta visita a uma empresa
em agonia era o último esforço de um ladrão.
“Sua dúvida é totalmente compreensível. É por isso que gostaria
de falar com o Sr. Remelio o mais rápido possível.”
O homem pareceu frustrado por ter sido lido como um livro
aberto. “Levarei a mensagem ao mestre,” ele disse ao sair.
Oitenta ou noventa por cento de chance de que Remelio morderia
a isca — nada o que Lawrence disse era uma mentira. As únicas pessoas
que chamariam uma companhia perto da falência eram aquelas
propondo acordos de liquidação. Mercadores tentando poupar tanto
dinheiro quanto possível a partir de um navio afundando surgiam como
fantasmas devoradores. Eles não poderiam ignorar alguém que trazia
mesmo com a menor possibilidade de mudar sua sorte.
A proposta de contrabando de ouro de Holo poderia
potencialmente produzir lucro suficiente para quitar a vasta dívida da
Companhia Remelio, para não falar relativamente pequena pendência
de Lawrence.
No entanto, o plano nunca teria sucesso a menos que a Companhia
Remelio estivesse totalmente envolvida.
Adicionalmente, se as pessoas da companhia fossem pegas, eles
não seriam poupados da execução. Os funcionários da Companhia
Remelio e suas famílias nunca seriam capazes de viver nesta cidade
novamente. O perigo era palpável.
No entanto, sentar e esperar traria praticamente o mesmo
resultado. Considerando isso, a companhia certamente aproveitaria
essa oportunidade. Então, uma vez que Lawrence pagasse sua dívida,
eles seriam capazes de fazer empréstimos a uma escala absurda.
Quanto maior o risco, maior o ganho potencial.
CAPÍTULO IV ⊰ 192 ⊱

Era o mesmo que em Poroson, quando Lawrence viu através da


fraude do mestre da Companhia Latparron e forçou um acordo para
ele.
Lawrence riu amargamente de si mesmo com a lembrança, mas o
passado já estava acabado; agora havia apenas o futuro.
Ele teria que convencer a Companhia Remelio a assumir o risco.
Essa era a primeira montanha a ser superada. Ele respirou fundo e se
endireitou, e então sentiu que havia olhos sobre ele. Não havia mais
ninguém na sala; era Holo.
“Estou aqui com você. Não se preocupe,” Holo lhe deu um sorriso
torto, expondo uma presa afiada. Era um sorriso sem medo.
“Yeah.”
A resposta de Lawrence foi curta. Sua brevidade era proporcional
à sua confiança nela. Quanto mais forte um relacionamento, menor a
necessidade de alongar contratos; um simples aperto de mão basta.
Houve uma batida na porta.
Ela se abriu, e lá estava Hans Remelio, parecendo tão aflito quanto
Lawrence.
“Você disse que tem algo importante para discutir?”
O primeiro passo do plano foi dado.
ão havia necessidade de truques elaborados. Primeiro,
Lawrence explicou o objetivo.
Sem surpresa, Remelio arregalou os olhos. “Você não
quer dizer —,” ele disse.
“Eu quis dizer exatamente isso,” disse Lawrence, mas logo o bom
senso que ele esperava de um mercador que gerenciava uma empresa
mercantil em Ruvinheigen se mostrou no rosto de Remelio. Se tornou
um rosto de desprezo assim como o mestre que sentava na cadeira.
“Eu entendo que a sua dívida é uma difícil para pagar, mas não vou
tolerar essa conversa ridícula.”
Ele começou a se levantar, como se não quisesse perder mais
tempo, quando Lawrence o parou.
CAPÍTULO V ⊰ 194 ⊱

“Tenho certeza que houveram aqueles que tentaram


contrabandear ouro desta maneira antes e foram pegos.”
“Bom, se você entende isso, então será rápido. É fácil para alguém
à beira da ruína confundir um plano imprudente com um plano
perfeito.”
Lawrence pensou que esta declaração era meio direcionada para o
próprio Remelio, mas ele continuou destemido.
“E se você pudesse confiar em alguém especialmente talentoso em
contrabando?”
Remelio olhou para Lawrence seriamente e voltou a se sentar. “O
que você propõe não é possível. Uma pessoa tão hábil a ponto de ser
capaz de contrabandear ouro já estaria fazendo muito dinheiro por
conta própria. Ele não iria cooperar. Se você pretende trazer alguém
de fora, pode muito bem desistir agora. Sua teoria é vazia. Não há fim
para planos de contrabando como esses, logo inspeções de qualquer
um que não seja registrado na cidade são extremamente rigorosas.”
As objeções de Remelio eram exatamente os argumentos que
Lawrence estava esperando.
“E se houvesse alguém que é imensamente habilidoso, mas não
está recebendo muito dinheiro?”
“Se ele é tão habilidoso, encontrar trabalho nesta cidade não é
difícil. Já há uma escassez de mão de obra.”
Remelio sentou e esperou pela resposta de Lawrence.
Sua expressão era vagamente parecida com a de Holo na noite
anterior.
Ele tinha dado a sua objeção e esperava a contra objeção de
Lawrence. Ele queria desistir, mas não podia.
Lawrence respirou fundo.
“E se essa pessoa é imensamente habilidosa estiver fazendo apenas
trabalho mal remunerado na cidade e está precisando de dinheiro? Mais
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 195 ⊱

importante, e se o atual empregador dessa pessoa deixa algo a desejar?


Estou me referindo à Igreja. Importar ouro diretamente na cara da
Igreja. Não vamos oferecer apenas o lucro, mas também uma pequena
vingança contra a Igreja — devido a um justo descontentamento com
o empregador, a proposta seria irresistível e a probabilidade de traição
bem baixa.”
“Es-essa é uma história conveniente demais.”
“Negócios mais rentáveis são assim. Estou errado?”
Demanda de produtos quando a safra é ruim, a compra de roupas
que saem de moda só para encontrá-las na tendência em outra cidade
— os maiores lucros são realizados a partir das coincidências mais
improváveis.
O rosto de Remelio se contorceu.
Ele queria acreditar, mas meio que não conseguia.
“Se eu te disser o nome dessa pessoa, eu acho que você vai ser
capaz de aceitar nossa proposta.”
“N-nesse é caso, por que vocês se deram ao trabalho de vir aqui e
me explicar o seu plano e ter que dividir os lucros com outra parte?”
Tendo estabelecido o contrabando como uma alternativa,
Lawrence prosseguiu para esse problema secundário, deixando para
trás questões de possibilidade ou impossibilidade.
“Há duas razões. A primeira é que a dívida que tenho com esta
companhia vence hoje, e ao entardecer eu certamente serei preso
como garantia de pagamento. A segunda é que isso é tudo de dinheiro
que tenho em mãos.”
Lawrence pegou a bolsa de moedas, desatou a sua corda e esvaziou
o conteúdo sobre a mesa.
Era uma mistura de moedas de prata e cobre totalizando três
lumiones.
CAPÍTULO V ⊰ 196 ⊱

As moedas brilhavam aos olhos de Remelio — Remelio, que


enfrentava falência assim como Lawrence.
“São três lumiones. Se você quiser saber como eu consegui, basta
perguntar por aí entre as casas comerciais que você logo vai descobrir.”
Ouvindo isso, Remelio respirou fundo.
Dada a situação, ele certamente sabia como Lawrence tinha
conseguindo o dinheiro.
“Isto é realmente tudo o que tenho. Quero que você tome isso
como garantia e confie no que estou dizendo.”
Lawrence se inclinou para frente e olhou diretamente nos olhos
de Remelio.
“Eu também quero que você suspenda o pagamento da minha
dívida e que sua companhia providencie os fundos necessários para
compra do ouro que vamos contrabandear.”
O rosto abatido de Remelio estava coberto em suor frio, as rugas
se reunindo em seu queixo.
A única razão pela qual ele não rejeitou Lawrence e Holo
imediatamente era porque tinha fundos suficientes para financiar o
plano.
— E esperança o suficiente para querer acreditar neles.
Tudo que precisava era de mais um empurrão, mas se Lawrence
empurrasse forte demais, isso só faria Remelio ficar mais duvidoso.
Contrabando de ouro poderia render lucros enormes, mas isso
vinha com um risco terrível. E dada a condição atual da Companhia
Remelio, o acordo para financiar o contrabando poderia muito bem
ser visto como fraude.
Havia muitas pessoas dispostas a destruir uma empresa agonizando
a fim de fazer um lucro rápido, portanto essas dúvidas raramente eram
estranhas.
Lawrence tinha que escolher suas palavras cuidadosamente.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 197 ⊱

Mas antes que ele pudesse —


“Escuta aqui,” disse Holo.
Surpreso, Remelio olhou para Holo, piscando como se só agora
percebesse que havia outra pessoa.
Lawrence também se virou para Holo. A própria Holo estava
olhando para o chão.
“Você acha que pode ter o luxo de hesitar?”
“O q — ” Remelio estava com a língua presa dada a provocante e
ameaçadora questão.
Pensando que isso era uma abordagem imprudente, Lawrence
estava prestes a detê-la. Porém —
“Outra pessoa acabou de sair. Acha que pode continuar
desperdiçando o seu tempo assim?”
Paralisado pelo olhar afiado do Holo, Remelio congelou, como se
tivesse engolido uma pedra. “E-er...”
“Eu tenho uma audição excelente. Devo te dizer sobre seus
trabalhadores e os planos que são arquitetados lá embaixo agora? Os
planos para escapar enquanto ainda podem?”
“Uh —”
“Whoops, lá vai se vai mais um. Nesse ritmo esta loja vai —”
“Pare!” gritou Remelio, segurando sua cabeça.
Holo olhou para o homem, sua expressão totalmente
imperturbável.
Lawrence meio que concordava com ela. Uma empresa era como
um barco. Se há um buraco no casco sem esperança de remendo, a
tripulação ignoraria o capitão e abandonaria o navio.
Mas estava claro o suficiente que Holo escolheu essa linha de
ataque por uma razão. Ela sabia melhor do que ninguém o significado
da palavra solidão.
CAPÍTULO V ⊰ 198 ⊱

Ela certamente compreendia a angústia de Remelio.


“Sr. Remelio,” começou Lawrence calmamente, tendo
compreendido a abordagem de Holo. “Proponho que você pegue esses
três lumiones — tudo o que tenho — como um depósito e invista em
ouro. Nós conhecemos alguém que vai tornar o contrabando possível.
Se essa pessoa for paga bem o suficiente, a confiança está garantida. E
dada sua companhia, tenho certeza que você tem meios de repassar o
ouro contrabandeado. O que você diz? Se você adiar minha dívida e
me der uma parte justa, quero conduzir esta operação sem condições
desfavoráveis para você.”
Um momento se passou.
“O que me diz?”
Remelio olhou para baixo, a cabeça entre as mãos.
As palavras de Lawrence, mais sedutoras que vinho, estavam
certamente dominando a mente do homem. Ele ainda não tinha olhado
para cima.
Tempo passou em silêncio.
Estava quieto, como se toda a companhia estivesse focada na
decisão de Remelio.
Assim que Lawrence começou a dizer “Sr. Remelio,” o mestre
finalmente falou.
“Tudo bem.” Ele levantou a cabeça, o rosto exausto, uma chama
ardendo em seus olhos. “Vamos fazer isso.”
Lawrence se levantou sem pensar e estendeu a mão.
Os dois homens, ambos enfrentando falência, apertaram as mãos.
“Que Deus nos perdoe.”
Depois de estabelecerem as condições do acordo com a
Companhia Remelio, Lawrence e Holo se encontravam em frente a
uma pequena igreja na parte oriental de Ruvinheigen. O nível de
ornamentação, o tamanho dos sinos e assim por diante, eram decididos
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 199 ⊱

com base na importância da capela na organização da Igreja — o


raciocínio era que quanto mais alta a abadia, mais perto de Deus ela
estava.
A igreja que Lawrence e Holo visitavam estava na metade de baixo
dessa hierarquia. Seus adornos não eram de todo ruins, mas para
Ruvinheigen, a igreja era bastante modesta.
Era logo depois do almoço, e a missa do meio-dia estava em
andamento dentro da paróquia.
“E agora,” disse o Holo abruptamente, sentada nos degraus de
pedra enquanto um hino louvando a santa Mãe ecoava para fora da
capela. “Acha que pode realmente enganar a garota?”
“Você diz cada coisa.”
“Por acaso estou errada?” perguntou Holo, interessada.
Lawrence fez uma cara séria e olhou para a frente quando
respondeu. “Você não muda.”
Ele e Holo esperavam na entrada desta casa de adoração porque
tinham negócios com Norah, a pastora. Eles não sabiam a qual igreja
em particular ela estava afiliada, mas não havia muitas que abrigavam
uma pastora mulher. A busca foi rápida.
E tendo se dado ao trabalho de procurar, eles não estavam aqui
para conversas inúteis.
Eles vieram pedir para ela para fazer um papel crucial na operação
de contrabando de ouro — o transportador.
No entanto, Norah não estava enfrentando a ruína financeira da
forma que Lawrence e a Companhia Remelio estavam. Ainda assim,
propor o plano de contrabandear ouro certamente envolveria engano,
porque teriam que fazer com que o lucro parecesse equivalente ao
perigo.
Qualquer um que contrabandeia ouro aposta sua vida nisso — e
nada poderia compensar a perda da vida. Sim, alguns detalhes
precisaram ser alterados.
CAPÍTULO V ⊰ 200 ⊱

No entanto, tanto a habilidade de Norah como pastora e sua


posição na cidade eram indispensáveis para o esquema.
E o mercador tinha fé de que ela seria sua cúmplice.
Lawrence sentiu uma dor na consciência por tratar o coração de
alguém como uma mercadoria na praça. Se Norah fosse uma
comerciante ele não teria esse remorso, mas ela era uma pastora
inocente. No entanto, esse fato não era problema para a perspicaz visão
mercantil de Lawrence.
Além de ser uma pastora — portanto já considerada vagamente
como uma herege — ela era uma mulher, o que a tornava ainda mais
provável de ser uma ferramenta dos demônios. Era simples concluir
que a Igreja não a estava protegendo por senso de caridade, mas sim
mantendo um olho nela. Essa era provavelmente a raiz da inquietação
dela, que ele notou enquanto falava com ela sobre o trabalho de
pastoreio que fazia para a Igreja.
Além disso, embora Norah tenha expressado seu desejo de
economizar dinheiro suficiente para se tornar uma costureira, não fazia
parte da personalidade da garota ser avarenta — e a renda extra
proporcionada por fazer escoltas não lhe dava esse luxo. Ele podia
entender se ela não quisesse ser exposta a um ambiente de trabalho tão
severo.
Labutando o dia inteiro com o difícil trabalho de uma pastora, e
mesmo assim nunca exatamente fechando as contas o fim do mês —
isso tornava impossível saudar o dia com qualquer alegria. O futuro se
estenderia indefinidamente, contendo apenas amargura e sofrimento.
Em contraste a isso, Lawrence iria propor o estratagema do
contrabando de ouro para ela: em vez de conseguir pequenas
quantidades de dinheiro, ela conseguiria o suficiente de uma só vez,
não só para pagar a taxa de entrada na guilda, que é no máximo um
lumione, mas também para acabar com qualquer preocupação no final
do mês. Claro, havia perigo, mas como ela poderia deixar esta
oportunidade passar? Era assim que iria convencê-la.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 201 ⊱

Dificilmente Lawrence iria forçá-la, de modo que, nesse sentido,


ele não estava fazendo nada de errado, mas ainda tinha dúvidas sobre
usar as circunstâncias desfavoráveis dela a seu favor.
No entanto, tinha que ser Norah.
O fato de que ela era uma pastora habilidosa que podia levar seu
pequeno rebanho através de áreas infestadas por lobos, por onde
poucos humanos se aventuravam; o fato de que ela estava insatisfeita
com o seu empregador, a Igreja; o fato de que ela precisava de dinheiro
para realizar seu sonho — realmente parecia que cada condição foi
divinamente organizada especificamente para ajudar Lawrence a ter
sucesso no contrabando de ouro em Ruvinheigen. Era impossível
imaginar alguém em melhor posição para ajuda-los.
Mesmo assim, Lawrence suspirou. Convencê-la ainda seria difícil
para ele.
Enquanto ele estava absorvido pensando sobre isso, Lawrence
notou que os olhos de Holo o estavam observando. Ele olhou e viu o
sorriso dela.
“Você realmente é bondoso demais.”
Era o que ela tinha dito ontem. Era verdade que Lawrence era um
tanto quanto sentimental para um mercador. Havia muitos
comerciantes que alegremente trariam desgraça para suas famílias se
isso significasse lucrar no processo.
“Ainda assim,” disse Holo de pé e olhando para a sempre animada
rua. “É graças a essa bondade que pude viajar tão facilmente,” ela
anunciou casualmente, descendo alguns degraus de pedra para ficar ao
lado de Lawrence. “Suponho que terei que convencê-la. Preciso ser de
alguma utilidade, afinal.”
Ela deu um leve sorriso, mas suas palavras careciam de um certo
brilho, Lawrence pensou.
Ele a observou e com toda certeza, ela estava cabisbaixa. Talvez
fosse porque ele e Holo estivessem perto da turbulenta e ocupada rua,
mas ela parecia menor que o habitual.
CAPÍTULO V ⊰ 202 ⊱

“O quê, você ainda está pensando sobre ontem?” ele perguntou.


Holo balançou a cabeça, mas não disse nada. Era uma mentira fácil
de perceber.
“Não há como dizer o que teria acontecido lá atrás se você não
tivesse pressionado Remelio. Eu diria que você foi muito útil.”
Holo assentiu; talvez ela tenha aceitado a verdade da afirmação,
mas seu rosto permaneceu cabisbaixo.
Lawrence afagou a cabeça dela levemente. “Vou falar com ela eu
mesmo. Afinal foram meus olhos cegos pela ganância e nos trouxe para
esta confusão. Seria absurdo deixar toda a conversa para você por causa
da minha relutância.”
Embora ele estivesse em parte tentando animar Holo e em parte
se depreciando, tudo o que disse certamente era verdade.
“E de qualquer forma, se eu deixar você me ajudar demais, não há
como saber o quanto serei explorado mais tarde,” ele disse dando de
ombros.
Depois de um momento, Holo levantou o olhar e sorriu com um
suspiro suave. “E aqui estava eu pensando que poderia cobrar alguns
favores mais tarde.”
“Eu certamente acabei de evitar uma bela armadilha,” brincou
Lawrence.
Holo casualmente colocou o braço na testa. “Sim, você escapou,
mas está caindo em uma armadilha ainda maior. Eu não caço um coelho
preso em uma armadilha. Ele estaria muito fraco.”
“Você conhece o tipo de armadilha para lobos que usam um coelho
como isca?”
“Certifique-se de notar os uivos dos lobos quando você colocar a
armadilha. Você vai capturar a presa errada.”
Era uma brincadeira familiar vazia.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 203 ⊱

Lawrence balançou a cabeça para o quão ridículo era a conversa.


Holo não se conteve e começou a rir.
“De qualquer forma, mercadores são como sabres — não prestam
se não estiverem firmes. Caso contrário quebramos com facilidade,”
disse Lawrence, em parte para si mesmo, e em seguida lançou os olhos
para o céu, como se procurasse o badalar dos sinos.
Era um lindo céu azul com nuvens dispersas. Ele desviou o olhar
para o leste e viu mais algumas nuvens brancas.
Era um belo dia — e tempo bom significava bons negócios.
Enquanto Lawrence pensava isso, ouviu um som tranquilo atrás
dele, as portas da capela estavam se abrindo. Lawrence e Holo foram
para a lateral dos degraus de pedra. Logo a congregação começou a sair
da igreja, seus rostos cheios de serenidade enquanto desciam as escadas
depois da oração. A multidão se dividia em grupos menores quando se
dispersava para terminar o dia de trabalho — uma cena que se repetia
diariamente.
Por fim, o êxodo diminuiu.
Houve um tempo em que se acreditava que quanto mais tempo
alguém permanecesse na igreja, mais profunda era a fé dessa pessoa —
até que os padres começaram a com quem permanecia na capela.
Agora, essas coisas não mais aconteciam.
Dito isto, não era bom deixar uma igreja muito rapidamente, para
que não parecessem está tentando escapar.
Como resultado, açougueiros, curtidores e outros artesãos que
pudessem atrair a atenção funesta da Igreja tendiam a deixar o
santuário mais lentamente.
Como pastores eram contados entre essas profissões suspeitas, a
pastora foi a última a sair. Seus olhos baixos e postura reservada eram,
sem dúvida, devido ao fato de que a igreja não era um lugar de descanso
para ela.
CAPÍTULO V ⊰ 204 ⊱

“Bom dia,” declarou Lawrence quando parou na frente de Norah,


sorrindo tão agradavelmente quanto conseguia. Um bom sorriso era
uma parte importante da negociação.
“Er, L-Lawrence e... Holo, não é?” Norah falou, um pouco
envergonhada, olhando para Holo e então voltando a olhar para
Lawrence.
“Está claro que nos encontramos na frente de uma igreja é a
vontade de Deus,” disse Lawrence com um gesto um pouco grandioso.
Norah pareceu notar alguma coisa e riu se divertindo.
“Eu não serei enganada, Sr. Lawrence.”
“Agradeço aos céus por isso. Ouvi dizer que ultimamente há
aqueles em serviço que beberam um pouco demais o sangue sagrado.”
Lawrence estava se referindo ao vinho. Se ela estivesse bêbada,
ele poderia ser capaz de convencê-la a se juntar a ele, mas ela também
pode perder a paciência ou recusá-los. Ele estava feliz por sua
sobriedade.
“Não posso beber muito vinho, então o evito na maioria das
vezes,” ela disse com um sorriso tímido, depois olhou em volta
nervosamente. Talvez tivesse sido contratada para trabalhar como
escolta.
Lawrence não hesitou em usar essa ansiedade. “Na verdade, eu
estou aqui para tratar de um trabalho com você.”
O rosto de Norah se levantou tão rapidamente que você quase
poderia ouvir.
“Este lugar sendo o que é, talvez devamos nos afastar para uma
barraca em algum lugar...”
A razão pela qual Lawrence não sugeriu um bar foi porque nada
seria mais evidente a esta hora. Negociações secretas eram melhor
conduzidas em espaços públicos movimentados.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 205 ⊱

Norah concordou agradavelmente. Lawrence começou a


caminhar com Holo à sua direita e Norah à sua esquerda, os seguindo
um pouco atrasada.
Os três caminhavam ao longo da movimentada e barulhenta
alameda até que passaram através da multidão e chegaram à praça.
A praça era tão barulhenta e festiva como sempre, mas a sorte lhes
sorria pois logo o trio encontrou uma mesa perto de uma barraca de
cerveja onde Lawrence ordenou cerveja para os três. Ale 1 era mais
barata, mas como Norah estava com eles, não poderiam simplesmente
pedir qualquer cerveja.
O serviço foi rápido, mas grosseiro assim que os três canecos
chegaram; Lawrence pagou uma ninharia de prata por eles, em seguida
colocou a mão no seu caneco.
“Pela nossa reunião.”
Os canecos bateram barulhentamente.
“Então, Norah, você disse que era capaz de ir até Lamtra?”
Tomada de surpresa pela repentina abordagem sobre trabalho,
Norah, que não havia tocado na cerveja, olhou Lawrence cautelosa.
Holo observava os dois, enquanto segurava sua cerveja.
“S-sim, eu posso ir até lá.”
“Mesmo trazendo seu rebanho?”
“Desde que não seja um rebanho muito grande.”
Ela respondeu de forma tão direta que Lawrence se perguntou
quantas vezes ela cruzou os campos e florestas a caminho de Lamtra.
Mas só para ter certeza, Lawrence olhou para Holo a fim de
verificar a veracidade da declaração. Holo assentiu tão
imperceptivelmente que só Lawrence percebeu.

1
Ale é um tipo de cerveja produzida a partir de cevada maltada usando uma
levedura que trabalha melhor em temperaturas mais elevadas.
CAPÍTULO V ⊰ 206 ⊱

Evidentemente Norah não estava mentindo.


Lawrence respirou fundo para evitar levantar as suspeitas de
Norah. Ficar enrolando excessivamente poderia prejudicar a
determinação dela. Melhor perguntar diretamente
“Eu quero contratá-la para um determinado trabalho. A
remuneração será de vinte lumiones. Não em uma mera declaração,
claro — será em moedas.”
Norah olhou para ele sem expressão, como se ele estivesse falando
em uma língua estrangeira. De fato, demorou um pouco para que as
palavras dele penetrassem na mente dela — era como se a notícia fosse
escrita em alguma terra distante e enviada para ela.
Para algumas pessoas, vinte lumiones era muito dinheiro.
“No entanto, há riscos, e a remuneração é só se tivermos sucesso.
Fracasso não nos trará nenhum ganho.”
Olhar para o dedo de alguém enquanto ele traça círculos ou
marcas de x em uma mesa era uma maneira de dizer se ele ou ela era
real e não um sonho ou alucinação.
Norah acompanhou os movimentos do dedo de Lawrence, e
parecia que ele era bastante real.
Mesmo assim, parecia que ela ainda tinha dificuldade em
acreditar.
“O trabalho será levar as ovelhas — então trazê-las de volta da
forma mais segura possível. Isso é tudo que precisamos de suas
habilidades como pastora.”
Norah finalmente pareceu focar na proposta de Lawrence, e
percebeu que o trabalho e a remuneração que havia oferecido estavam
longe de ser equivalentes, ela começou a expressar seu ceticismo.
Lawrence parecia estar esperando por isso e a cortou.
“No entanto, o trabalho em si envolve perigo significativo —
proporcional ao risco.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 207 ⊱

Tendo explicado o lucro inimaginável, ele agora explicaria o


risco. Ambos poderiam levar ao choque, mas o primeiro deixaria uma
impressão mais forte.
“De qualquer forma, o pagamento é de vinte lumiones. Mesmo as
mais altas taxas das guildas são de um único lumione. Você poderia
alugar uma casa e cuidar de suas despesas diárias, trabalhando sem se
preocupar. Com essa quantia, você poderia facilmente adquirir o seu
próprio negócio. Você seria a mestra da Alfaiataria Norah.”
O rosto de Norah estava perturbado e à beira das lágrimas. A
enormidade da quantia de dinheiro parecia estar sendo compreendida
— e com ele, sem dúvida, a preocupação com o perigo.
Ela tinha mordido a isca. Agora, o verdadeiro desafio começava.
Caso se atrapalhasse com suas declarações, ela iria levantar uma
carapaça ao redor dela, como um molusco.
“Oh, certo — você planejou se juntar a guilda de alfaiates nesta
cidade, Norah?”
Ela estava esperando, preparada para ouvir as más notícias, mas
Lawrence parecia ter tirado ela da trilha. Dentro da cabeça dela,
Lawrence sabia que os pensamentos giravam em torno da quantidade
ridícula de dinheiro e do fato de que ainda não tinha ouvido o risco.
Não havia muito espaço para refletir sobre outras coisas, por isso a sua
resposta deveria ser bastante honesta, Lawrence pensou.
“N-não, eu estava pensando em uma cidade diferente.”
“Entendo! Você não gosta do tamanho exagerado desta cidade em
comparação às outras? Pode ser bastante difícil de viver em uma cidade
desconhecida sem amigos, eu acho.”
Enquanto sua mente estava ocupada com outros assuntos, ela não
poderia expressar seus pensamentos facilmente — como planejado.
Norah assentiu, parecendo perturbada, sem dizer nada.
Isto era o suficiente para Lawrence, cuja intuição mercantil lhe
dizia o estado de uma pessoa com base na expressão em seu rosto.
CAPÍTULO V ⊰ 208 ⊱

A mente da pastora era como o vidro para ele.


“Bem, suponho que você queira ficar longe desta cidade e suas
igrejas, não é?”
A armadilha foi colocada.
Holo deu a Lawrence um olhar óbvio, mas o resultado foi
instantâneo.
“N-não, quero dizer, não é isso... Bem, mas...”
“Quanto mais você trabalha para eles, quanto mais você protege
as ovelhas que confiaram a você, mais eles vão suspeitar que você
pratica feitiçaria. Estou errado?”
Ela congelou, sua cabeça não se movia nem para cima nem para
baixo, nem para a esquerda nem para a direita — Lawrence acertou a
ferida.
“E enquanto tentam te expor, você tem que se aventurar por
lugares onde outros pastores nunca ousaram ir — porque as outras
terras já estão tomadas por esses mesmos pastores, foi o que você
disse.”
Nesse instante, os olhos de Norah se abriram, e ela olhou para
Lawrence. Talvez fosse algo que ela tinha considerado vagamente
antes, já que como os outros pastores já tinham seus territórios, se ela
estivesse disposta a viajar longe o suficiente, ainda haveria lugares
seguros sobrando.
“Os padres vão continuar te empurrando cada vez mais longe até
que você seja atacada por lobos ou mercenários. E a cada dia que isso
não ocorre, eles vão suspeitar que você seja uma pagã.”
Lawrence cerrou o punho embaixo da mesa, como se quisesse
esmagar sua consciência pesada.
Ele ateou fogo sob a pequena dúvida de que sempre tinha
permaneceu no coração de Norah. Não havia maneira de voltar atrás.
Se isso era verdade ou não, era irrelevante.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 209 ⊱

Comerciantes são como sabres — inúteis se não forem firmes.


“Eu mesmo já estive em uma situação similar. Me deixe dizer
claramente.”
Ele olhou diretamente para Norah e falou em voz baixa o
suficiente apenas para as pessoas ao redor não ouvirem.
“A Igreja aqui é mais imunda do que os porcos.”
Falar mal da Igreja era um crime grave. A Norah chocada olhou
ao redor, as chamas de sua dúvida de repente se dispersaram.
Lawrence colocou os cotovelos sobre a mesa e se inclinou para frente.
“Mas nós temos um plano. Vamos dar alguns problemas à Igreja,
fazer algum dinheiro, e seguir para uma cidade diferente — esse tipo
de plano.”
As chamas de sua dúvida se transformaram em raiva que
queimaram mais forte, mas uma vez que acabassem de queimar,
deixariam para trás cinzas de confiança. Dentro de Norah, a semente
da rebeldia justificada começaria a florir.
Lentamente, Lawrence articulava o centro da questão.
“Nós vamos contrabandear ouro.”
Os olhos de Norah se arregalaram, mas ela logo se acalmou.
Surpresa podia, na melhor das hipóteses, ser sentido apenas como um
vento um pouco forte.
Ela finalmente falou, sua mente voltou a trabalhar.
“Mas... o que é que posso fazer?”
Era uma boa pergunta. Sua habilidade como uma pastora não era
seu único mérito.
“Como tenho certeza que você sabe, o ouro vindo para a cidade é
fortemente regulado. Cada estrada que entra em Ruvinheigen tem
postos de controle e duas etapas de inspeção. Se você ocultar algo em
suas mangas ou entre sua bagagem, eles vão encontrar de imediato. Se
tentar trazer uma carga, é ainda mais difícil.”
CAPÍTULO V ⊰ 210 ⊱

Norah assentiu fervorosamente com a explicação simples de


Lawrence, como se ela fosse uma devota ouvindo um sermão.
“Pretendemos passar com o ouro pelos postos de controle
escondido nos estômagos das ovelhas.”
O olhar no rosto de Norah era tão atônito que Lawrence
praticamente podia ouvi-la dizer, “Impossível,” mas a noção
gradualmente passou por sua mente, como água penetrando em barro
duro.
Muitos animais que comem grama durante todo o ano, incluindo
ovelhas, tendem a engolir pedras no processo. Não havia razão para
não espalhar os grãos de ouro entre a grama e os fazerem engolir,
embora pudessem tossir ouro durante o longo processo de inspeção. E
então havia Norah, que apesar de sua habilidade como uma pastora,
tinha apenas um pequeno rebanho que levava para muito longe,
vagando por lugares onde poucos humanos viajavam. Quando vieram
de Poroson, o primeiro posto de controle era um modesto; tráfego
mais pesado significaria um posto de controle maior.
Norah assentiu lentamente. “Entendo,” ela murmurou.
“Mas os preços do ouro são absurdamente altos em qualquer
cidade afetada pela política de Ruvinheigen. Isso faz da cidade pagã de
Lamtra o lugar mais conveniente para começar. Se você vem através
das rotas mais seguras de Lamtra, há uma grande quantidade de
tráfego, e muitos desses territórios foram reivindicados por outros
pastores. Isto é o que a torna perfeita para o trabalho. Ninguém vai
desconfiar de você levando suas ovelhas por uma rota com pouco
tráfego — e esse caminho é o mais rápido até Lamtra.”
Lawrence fez uma pausa, limpando a garganta um pouco e
olhando atentamente para Norah antes de continuar.
“Você já sofreu nas mãos da Igreja nessa cidade, Norah,” ele disse
rispidamente. “Esta é a sua melhor chance de virar o jogo contra eles.
Afinal, as duas maiores fontes de renda da Igreja são os dízimos e
comércio de ouro. Mas se formos pegos, as punições serão duras, e se
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 211 ⊱

o trabalho for um sucesso, teremos que deixar a cidade para nossa


segurança. E dependendo das circunstâncias, podemos ter que te pedir
para abater as ovelhas.”
Haviam poucos pastores que nunca tiveram a necessidade de
matar um animal — e ainda menos os que não achavam o trabalho
doloroso. Era uma boa maneira de medir a determinação dela.
“Por outro lado, são vinte lumiones,” disse Lawrence.
Você está sendo injusto, disse a si mesmo, mas quanto mais injusta a
situação dela parecia, mais eficaz seria o resultado.
Finalmente, a garota do outro lado da mesa — que aturou o calor
e o frio, olhares suspeitos e tratamento terrível, tudo isso enquanto
cuidava silenciosamente de seu rebanho — ponderou o lucro, o risco
e a natureza do trabalho e pareceu chegar a uma conclusão.
Lawrence pôde ver os olhos dela ficando calmos.
Palavras fortes foram proferidas daquela boca pequena.
“Por favor, me deixe fazer isso.”
Naquele momento, Lawrence convenceu outra pessoa a fazer uma
aposta com a própria vida.
Mesmo tendo rapidamente se alinhado com Norah e estendido sua
mão — foi a outra mão que o alcançou para agarrar o seu próprio
futuro.
“Eu contarei com você.”
“...E eu com você.”
Agora a promessa estava firmada. Norah e Holo também
apertaram as mãos e agora o destino dos três estava intrinsecamente
ligado. Todos os três ririam juntos ou todos os três iriam chorar.
“Certo, agora para os detalhes.”
Lawrence então perguntou para Norah sobre quando ela pegaria
as ovelhas, quantas ela pegaria, as especificidades da paisagem ao redor
de Lamtra e quanto ouro que ela achava que conseguiria obrigar as
CAPÍTULO V ⊰ 212 ⊱

ovelhas a engolirem. Ele levaria essas informações para Companhia


Remelio.
Meio dia passou em um piscar de olhos, e pela hora que
terminaram de conversar, os negócios estavam fechando e os
mercadores e artesãos apareceram nas ruas a caminho de casa. Tendo
deixado sua cerveja intocada, Norah se levantou. Ela havia absorvido
tudo enquanto estava inteiramente sóbria e tomou sua decisão.
Se a posição de Lawrence fosse outra, ele teria seguido Norah
quando ela saiu após se despedir agradecendo ao homem que a deu essa
extraordinária oportunidade. Ele teria tentado convencê-la a repensar
sua posição.
Lawrence bebeu a cerveja morna do caneco de uma só vez. Era
amarga e desagradável.
“Vamos lá, você não deveria estar mais feliz? Tudo correu bem
apesar dos pesares!” Holo falou para Lawrence com um sorriso
irônico.
Mas Lawrence não poderia ficar feliz sem preocupações. Ele tinha
persuadido Norah a escolher um caminho perigoso.
“Eu não me importo o quão grande seja o lucro; não há nada que
possa compensar a vida de uma pessoa,” ele disse.
“Suponho que seja verdade.”
“E engrandecer o lucro dessa forma é o mesmo que uma fraude.
Mercadores sempre dizem que é um tolo quem se limita a um contrato
injusto. Mas o que ela é? Ela é apenas uma pastora!”
Apesar de tudo o que ele fez foi levantar a voz, o arrependimento
corroía por dentro do seu peito.
Se tudo com que ele se importava era a sobrevivência, ele poderia
ter aceitado a ajuda de Holo, abandonado sua vida como mercador e
todas as pessoas nela.
Mas para Lawrence, isso não era muito diferente da morte.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 213 ⊱

Então ele se agarrou a chance de transformar o esquema de Holo


em realidade, e para isso, enganou Norah para ajudá-lo.
Ele estava ciente do que tinha feito, mas não podia deixar de se
arrepender.
“Vamos lá,” repreendeu Holo depois de um tempo, girando a
cerveja restante em torno do caneco enquanto olhava para o seu
conteúdo.
Lawrence levantou o olhar; ela manteve sua atenção voltada para
o caneco.
“Você já ouviu o grito terrível que uma ovelha faz quando você
arranca sua garganta?”
A respiração de Lawrence ficou presa com a pergunta repentina.
Holo finalmente o encarou.
“Ovelhas não têm presas, não tem garras, não são rápidas ao tentar
fugir quando os lobos vêm voando pelos campos como flechas com
garras, dentes e velocidade para rasgar suas gargantas. O que você acha
disso?”
Holo falou como se fosse uma conversa trivial — e na verdade,
para ela era verdade.
O que ela falou acontecia frequentemente — não, mais do que
com frequência.
Quem caça sua comida usa todos os métodos disponíveis. Era
simples, óbvio.
“O grito de morte de um cordeiro é indescritível, mas o meu
estômago vazio reclama constantemente. Se eu tiver que dar ouvidos
a um deles, vou ouvir o mais alto dos dois, não vou?”
Lawrence concordou.
Se ter que sacrificar algo para sobreviver era um pecado, então o
único caminho restante era morrer em jejum como um santo.
Mas isso não era desculpa para qualquer comportamento.
CAPÍTULO V ⊰ 214 ⊱

Precisava que outra pessoa dissesse o que ele precisava ouvir para
poder se libertar do conflito.
“Você não é tão ruim.”
Lawrence viu Holo sorrir para ele impotente, e sentiu sua culpa
derreter.
Ele queria muito ouvir essas palavras.
“Hmph. Que menino mimado.”
Lawrence fez uma cara triste por ter sido lido com tanta
facilidade, mas Holo apenas terminou sua cerveja e se levantou.
“Ainda assim, nem humanos nem lobos podem viver sozinhos. Às
vezes é preciso um companheiro de matilha para se aquecer. Estou
errada?”
Certamente esta era uma definição forte e flexível.
Lawrence assentiu aceitando o sorriso de Holo e se levantou.
“Ainda assim, você é bem perigoso,” ela disse.
Ela provavelmente estava falando sobre sua hábil manipulação de
Norah — mas que tipo de mercador ele seria se não pudesse fazer ao
menos isso.
“É melhor que acredite nisso. Cuidado para mim não te enganar
também.”
Holo riu. “Vou esperar por isso.” Ela riu como se realmente
estivesse na expectativa, o que fez Lawrence se perguntar se não era
ele que estava sendo enrolado. Ele não disse isso, mas enquanto Holo
deixava escapar um sorriso quando começaram a andar, parecia
melhor assumir que ela podia ver direto através dele.
“Em todo caso, nós não temos escolha a não ser procurar ter
certeza que todos nós possamos rir no final,” disse Lawrence.
“Esse é o espírito. Ainda assim...”
Lawrence olhou para Holo, que parou no meio da frase.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 215 ⊱

“...Não seria melhor se nós dois fôssemos os últimos a rir?”


Era uma ideia sedutora, mas não — era melhor que todos fossem
felizes.
“Você realmente é simplesmente muito bondoso”.
“Isso é tão ruim assim?”
“Longe disso.”
Os dois sorriram levemente enquanto caminhavam pela cidade.
O caminho adiante estava longe de ser brilhante, mas cada um
sentia no rosto do outro que o futuro estava claro o suficiente.
O contrabando seria bem-sucedido.
A ideia era infundada, mas Lawrence acreditava de qualquer
maneira.

“Meu nome é Marten Liebert, da Companhia Remelio.”


“Lawrence. E esta é a minha companheira, Holo.”
“Um, eu sou N-Norah. Norah Arendt.”
A cidade santa de Ruvinheigen tinha muitas entradas e saídas, e foi
em uma praça pouco antes do portão nordeste que as três
apresentações foram feitas.
O ar da manhã antes do sino do mercado tocar era fresco e
agradável, e a praça, embora ainda coberta com restos da comoção da
noite anterior, era de alguma forma bonita.
Entre as pessoas que reunidas ali, só Holo teve o luxo de olhar
para a cidade.
O rosto dos outros três estavam contorcidos e nervosos.
O crime de contrabando de ouro em Ruvinheigen carregava
punições pesadas, incluindo ser arrastado e esquartejado. Em
circunstâncias normais, eles teriam se encontrado muitas vezes para
CAPÍTULO V ⊰ 216 ⊱

garantir que não houvessem surpresas desagradáveis, mas


infelizmente, a situação não permitia isso.
Havia muitos credores que queriam esmagar e devorar a
Companhia Remelio. —Mesmo uma empresa à beira da falência tinha
terras, casas e contas a receber — todas as quais poderiam ser
convertidas em dinheiro.
Esses credores dificilmente podiam esperar o final dos prazos de
empréstimos, então a Companhia Remelio estava sob pressão para
terminar o contrabando de ouro rapidamente e transformar os
resultados em moedas.
Assim, Norah pegou as ovelhas da igreja logo após os serviços da
manhã, em seguida se dirigiu imediatamente para se reunir com os
outros. Evidentemente, ela não esperava que ninguém além de
Lawrence e Holo estivessem envolvidos e ficou surpresa ao ouvir o
nome da Companhia Remelio, mas manteve as dúvidas para si mesma.
Ela parecia preparada para desempenhar seu papel.
“Então vamos. Negócios são como peixe fresco na cozinha,”
declarou Liebert. Se estragam rápido se não forem ágeis, era a
conclusão não dita.
Liebert era o homem que Hans Remelio confiou o papel de
contrabando de ouro. Lawrence não teve nenhuma objeção, e claro,
nem Norah ou Holo pareciam se opor.
Despertando apenas a mínima curiosidade dos guardas sonolentos
no portão, eles deixaram a cidade de Ruvinheigen sem incidentes.
Lawrence vestia roupas habituais de mercador; Liebert se vestia
com o tipo de roupa que um comerciante da cidade usaria em uma
viagem de caça. Holo voltou para as suas roupas de freira, e Norah
tinha a aparência de sempre.
No entanto, nem Lawrence nem Liebert usavam uma carroça.
Liebert estava a cavalo, e Lawrence tinha colocado Holo em cima de
outro cavalo, que ele guiaria pelas rédeas enquanto andasse. A estrada
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 217 ⊱

provavelmente seria ruim, e viajar sem uma carroça era


significativamente mais rápido.
Com Norah liderando o caminho enquanto guiava suas sete
ovelhas e seu cão pastor Enek, o grupo se dirigia a nordeste para a
cidade de Lamtra.

Era como a estrada de Poroson — a rota era pouco popular entre


os viajantes, e o grupo passou o dia inteiro sem encontrar sequer uma
pessoa.
Não havia nada que valesse a pena conversar, e os únicos sons eram
o sino do bastão de Norah e o balir das suas ovelhas.
A primeira interação que se parecia com uma conversa surgiu ao
pôr do sol, quando Norah parou e começou a fazer acampamento, o
que incomodou Liebert. Com seus olhos amendoados e cabelos loiros
lisos, ele parecia por completo com um jovem empregado encarregado
de um trabalho importante. Ele insistiu, de forma bastante tensa, em
fazer mais progresso antes de parar para acampar.
Mas Liebert não tinha experiência de viagem. Quando Lawrence
explicou como pastores trabalhavam e os riscos de viajar à noite,
Liebert surpreendentemente compreensível. Ele poderia estar tenso,
mas não era de forma alguma irracional.
Longe disso, na verdade, Lawrence percebeu que Liebert era,
provavelmente, um homem de boa índole sob circunstâncias normais,
uma vez que ele ofereceu desculpas sinceras.
“Eu sinto muito. A pressão está me dominando, eu acho.”
Liebert foi confiado com a futura existência da Companhia
Remelio. Selado de forma segura no interior de seu casaco estava a
nota da compra de ouro — no valor de seiscentos lumiones. Mesmo seu
mestre, Remelio, provavelmente estaria de mãos juntas orando lá em
Ruvinheigen.
CAPÍTULO V ⊰ 218 ⊱

“Bem, ao contrário de mim, você está carregando uma companhia


inteira nas costas. É de se esperar,” disse Lawrence. Liebert pareceu
um pouco aliviado e sorriu.
A noite passou em silêncio, e logo era de manhã.
Entre as pessoas da cidade, o café da manhã é frequentemente
considerado como um luxo e muitos não o têm — mas para aqueles
que vivem viajando, é senso comum.
Assim, eles partiram enquanto Liebert ainda mastigava um pão
com carne seca.
Eles pararam novamente, pouco antes do meio-dia.
Era apenas a crista de uma pequena colina; a estrada sob seus pés
ia direto ao leste, dobrando ao sul no cume da próxima colina. Em
torno deles crescia grama ideal para pastagem; ela se estendia em todas
as direções.
Mas a estrada agora se afastava de seu destino. Fracamente visível
ao norte estava o verde escuro da floresta, e traçando uma linha a
oeste, eles podiam ver os topos íngremes das colinas à distância.
Eles iam se dirigir por entre as montanhas e a floresta, através de
áreas que nenhuma carroça passou e o pé de nenhum viajante jamais
pisou.
Os campos que dividem as colinas íngremes, que eram tão
rochosas que era impossível transitar até mesmo a pé, a partir da
floresta densa e misteriosa (que até mesmo os cavaleiros hesitavam em
entrar) era o caminho mais curto para Lamtra.
Ninguém no seu juízo perfeito tomaria esse caminho, que apesar
de sua aparência totalmente comum era indescritivelmente
aterrorizante. Embora Holo debochasse de rumores de feiticeiros
pagãos invocando lobos, era difícil não os imaginar.
A menos que seguissem esse caminho e chegassem com segurança
em Lamtra, e a menos que retornassem com ouro, nenhum deles tinha
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 219 ⊱

futuro. Seus rostos se encontraram e todos concordaram com uma


silenciosa compreensão.
“Se encontrarmos lobos, não entrem em pânico. Vamos chegar
em segurança,” disse Norah com uma determinação surpreendente —
isso era reconfortante, embora Holo não achasse isso tão interessante.
Sem dúvida Holo, a Sábia Loba, tinha algo a dizer. Quando
Lawrence encontrou os seus olhos, ela o desprezou levemente, mas
logo ela recuperou sua compostura.
“Que a proteção de Deus esteja conosco,” disse Liebert.
O restante seguiu o exemplo.

O tempo estava bom.


Havia ventos ocasionais que agitavam o ar frio, que acertava as
bochechas dos viajantes, mas como eles estavam andando, era
facilmente ignorado.
Norah liderava o grupo, juntamente com Liebert a cavalo; atrás
deles vinham as sete ovelhas, e à direita das ovelhas estava Lawrence,
levando o cavalo em que Holo montava.
Quanto mais ao norte através dos campos eles se dirigiam, mais
perto as colinas ficavam, os empurrando para a borda da floresta. Eles
se mantiveram o mais próximo da floresta quanto possível, uma vez
que os cavalos podiam se ferir em terreno rochoso. No entanto, assim
que eles chegaram perto o suficiente para ver a forma sombria da
floresta, suas preocupações cresciam.
Era difícil dizer, mas Lawrence pensou que poderia ter acabado
de ouvir o uivo de um lobo.
“Hey.”
“Hm?”
“Você acha que os lobos serão um problema?” ele perguntou,
baixando sua voz.
CAPÍTULO V ⊰ 220 ⊱

“Não está nada bom. Nós já estamos cercados.”


Mesmo essa piada óbvia prendeu a respiração de Lawrence em sua
garganta por um momento.
Holo riu silenciosamente. “Eu posso garantir a sua segurança. Já a
dos outros eu não sei.”
“Estar em apuros a não ser que todos estejam bem.”
“Eu realmente não sei. A floresta está na direção do vento; se
existem lobos nessa floresta, eles já nos notaram faz tempo e já
começaram a afiar suas presas.”
Lawrence de repente teve a sensação de que algo na floresta estava
o observando.
Ele ouviu o barulho repentino de passos de um animal, e surpreso,
se virou em direção ao som, vendo Enek correr por ele como um
borrão de pelo negro.
Enek perseguiu duas ovelhas desgarradas.
“Cão inteligente,” disse Lawrence.
Ele não quis dizer nada com isso, mas Holo ainda fungou com
irritação.
“Ser meio-inteligente só convida a morte” ela disse.
“...O que você quer dizer?” ele perguntou. Seria complicado se
Liebert ou Norah, à frente deles, ouvissem a conversa, então Lawrence
falou em voz baixa.
Acima do cavalo, Holo tinha uma expressão azeda.
“Aquele cão, ele sabe o que eu sou.”
“Sabe?”
“Ocultar minhas orelhas e cauda engana os humanos, mas não um
cão. Desde que nos conhecemos, ele fica olhando para mim de forma
irritante.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 221 ⊱

Lawrence podia dizer que Enek ficava olhando para eles, mas não
tinha percebido o porquê.
“Mas, o que realmente me irrita,” — Holo moveu as orelhas
debaixo do capuz; ela estava bastante irritada — “são os olhos do cão.
Aqueles olhos, eles dizem 'Se atreva tocar nas ovelhas e eu vou rasgar
sua garganta.’”
Lawrence sorriu desajeitado, como se dissesse “certamente não.”
O olhar irritado que recebeu de Holo o fez estremecer.
“Nada me deixa tão brava como um cão que não sabe o seu lugar,”
Holo falou, desviando o olhar.
Talvez cães e lobos fossem inimigos da mesma maneira que os
corvos e as pombas.
“E de toda forma, eu sou Holo, a Sábia Loba. Eu não vou me
deixar levar pela mera provocação de um cão,” ela reclamou
carrancuda. Era quase impossível não rir.
Mas como seria um problema se Holo ficasse com raiva, Lawrence
sufocou sua risada. “De fato, esse cão não é páreo para você. Você é
mais forte, mais inteligente, e o pelo da sua cauda é melhor.”
Era uma bajulação óbvia, e o último elogio parecia ter funcionado.
As orelhas de Holo se mexeram sob o capuz, seu rosto abriu um
sorriso orgulhoso que nenhuma máscara de compostura poderia sonhar
em esconder.
Ela riu. “Bom, vejo que você entende como são as coisas.”
Era verdade — Lawrence agora entendia como lidar com Holo,
mas é claro, ele não disse isso, apenas inclinou sua cabeça vagamente.
Eventualmente, a grama se tornou escassa e o solo ocre era mais
proeminente.
As colinas que se espalhavam a oeste estavam mais próximas do
que nunca e pareciam um mar revolto.
CAPÍTULO V ⊰ 222 ⊱

O grupo continuou pela estrada, embora isso mal pudesse ser


chamado de estrada, onde tinham que atravessar grandes raízes de
árvores que ocasionalmente atrasavam o progresso.
Logo o som do vento por entre as árvores atingiu seus ouvidos.
Mesmo assim continuaram em frente, passando a segunda noite
da viagem sem incidentes.
De acordo com Norah, se partissem de madrugada da manhã
seguinte, chegariam em Lamtra ao meio-dia. Assim, eles gastariam
menos da metade do tempo de viagem que normalmente levaria se
usassem a rota comum. A rota que usaram era um terço ou um quarto
da distância. Se esse caminho fosse estabelecido, o comércio com
Lamtra seria simples. Olhando para a distância que tinham percorrido
até agora, Lawrence percebeu que os lobos não tinham sido um
problema. Era fácil de imaginar a existência uma estrada apropriada.
Claro, a estrada também tornaria Lamtra muito mais suscetível a
ataques. Ruvinheigen acharia difícil tolerar uma cidade pagã situada tão
perto. Isso ainda não tinha acontecido, o que tornava fácil suspeitar
que Lamtra secretamente pagava Ruvinheigen especificamente para
impedir a construção de tal estrada. Onde quer que haja poder,
também há suborno.
Depois de um jantar agradável, Lawrence se sentou imerso em
pensamentos enquanto bebia um pouco do vinho trago por Liebert.
Sem ninguém para conversar, ele foi deixado a sós com sua mente.
Holo tinha rapidamente terminado seu próprio vinho e agora
estava embrulhada em um cobertor, encostada em Lawrence,
dormindo. Liebert, cansado e sem costume de viajar, cochilou perto
da fogueira.
Lawrence olhou em volta e viu Norah um pouco mais longe da
fogueira, acariciando Enek no colo. Evidentemente, se ela ficasse
muito perto do fogo, seus olhos se acostumariam à luz, o que poderia
causar problemas se algo viesse a acontecer.
Norah pareceu notar o olhar de Lawrence sobre ela; ela o olhou.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 223 ⊱

Ela olhou para suas mãos, e então olhou de volta para ele, sorrindo
agradavelmente.
Por um momento, Lawrence não entendeu por que ela estava
sorrindo, mas depois olhou para suas próprias mãos e entendeu.
Holo estava dormindo no colo de Lawrence — “o mesmo que
eu,” dizia o sorriso de Norah.
Lawrence, no entanto, estava com bastante medo de acariciar o
cabelo de Holo. A loba em seu colo era muito mais temível do que
Enek.
Quando olhou para Holo, pacífica e inocente em seu colo, a
tentação de acariciá-la cresceu mais forte. Certamente não haveria
problema se imitasse Norah e Enek.
Liebert estava dormindo, e Norah estava focada suas ovelhas
enquanto acariciava Enek.
Lawrence colocou seu copo de madeira desgastado no chão e
lentamente moveu sua mão na direção de Holo.
Ele já tinha acariciado sua cabeça muitas vezes, mas de repente,
isso agora parecia sagrado de certa forma.
Sua mão tremeu. Então, naquele momento —
“ — !”
Holo levantou a cabeça.
Lawrence apressadamente afastou sua mão; Holo o olhou com
cautela, mas logo voltou sua atenção para outro lugar. Lawrence se
perguntou o que estava acontecendo quando percebeu que Norah
estava de pé, assim como Enek que rangia os dentes.
Para todo lado que olhasse veria o mesmo — floresta totalmente
negra.
“Sr. Lawrence, se afaste!” gritou Norah com urgência, e
principalmente por reflexo, o mercador tentou fazer como lhe foi
dito, mas foi pego por alguma coisa e não conseguiu ficar de pé.
CAPÍTULO V ⊰ 224 ⊱

Ele se virou apenas para descobrir que era Holo, segurando firme
as suas roupas, mantendo as mãos dele nas costas. Ele estava prestes a
protestar quando um olhar de advertência de Holo o perfurou. Se
tivesse que adivinhar, o olhar significava algo como “ignore a garota e
fique atrás de mim.”
Holo parecia carregar uma intensa hostilidade para com Norah, e
com medo de se opor, quando Holo se levantou, Lawrence ficou atrás
dela.
Norah estava absorvida em seu próprio trabalho, tocando o sino
em seu bastão e guiando Enek, juntando as ovelhas sonolentas e as
trazendo para mais perto da fogueira, e então tocou no ombro de
Liebert adormecido. Finalmente, ela lançou vários pedaços de lenha
na fogueira.
Os movimentos de Norah eram hábeis e calmos, e sua maneira
desajeitada em torno de outras pessoas fez Lawrence se lembrar do seu
próprio desajeito ao lidar com pessoas de fora dos negócios.
Liebert finalmente acordou e, sentindo o clima tenso, seguiu os
olhares de Norah e Holo, procurando por lobos.
Ele recuou, a mão apertando o peito — sem dúvida segurando a
nota de seiscentos lumiones que estava escondida ali — enquanto
buscava ficar atrás de Enek, cuja a pele da cauda estava em pé enquanto
ele mostrava suas presas.
Completando a linha de defesa do acampamento, os únicos sons
que permaneciam eram os inquietos bées das ovelhas, a respiração
irregular de Enek e o crepitar da fogueira.
Não havia nenhum som dentre as madeiras de ébano. A lua estava
visível e não havia vento. Sendo naturalmente um mero mercador,
Lawrence dificilmente poderia sentir qualquer presença na floresta.
Mas Norah, Enek e Holo estavam totalmente imóveis enquanto
olhavam para o breu.
Pelo que ele podia perceber, eles podiam estar olhando para um
peixe-gato nadando em um lago negro.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 225 ⊱

Estranhamente, ele não ouvia nem sequer um uivo de um lobo.


Lawrence já foi atacado por lobos muitas vezes em suas viagens, e tais
ataques sempre vinham com uivos. E mesmo assim, ele não tinha
escutado nenhum.
Ele se perguntou se realmente havia lobos.
O tempo se arrastava com uma lentidão agonizante.
Não havia nenhum latido. A única razão pela qual Lawrence pode
manter sua guarda era Holo — ele confiava nela implicitamente, e ela
ainda era a própria imagem da seriedade.
Liebert era um caso à parte, vendo Norah e Holo como simples
garotas.
A cor parecia voltar ao seu rosto anteriormente pálido e assustado,
e ele começou a lançar olhares duvidosos aqui e ali.
Houve movimentação no instante em que abriu a boca.
Norah segurou seu bastão com o braço direito e com a mão
esquerda pegou a corneta afixada em sua cintura. Holo viu o gesto com
desprezo — talvez porque os lobos e as cornetas de caça estivessem
sempre em conflito.
Assim como os lobos uivavam e ursos arranhavam as árvores,
pastores anunciavam a sua presença com um sopro em sua corneta.
Nenhum animal podia reproduzir por tanto tempo, essa nota longa,
que inequivocamente entregava a presença de um pastor.
A nota soou no meio da noite e foi engolida pela floresta. Se
houvesse de fato lobos por perto, eles agora sabiam que uma pastora
habilidosa estava entre eles.
Mas, ainda assim, nenhum uivo ecoou. O grupo se manteve em
silêncio absoluto.
“...Por acaso os afastamos?” perguntou Liebert incerto.
“Não tenho certeza... No mínimo, eles parecem ter recuado.”
Liebert franziu a testa para resposta vaga de Norah, mas vendo Enek
CAPÍTULO V ⊰ 226 ⊱

parar de rosnar e voltar ao trabalho de reunir as ovelhas, ele aceitou


que o perigo imediato havia passado.
Talvez ele tivesse decidido que animais entendiam outros animais.
“Os lobos nesta área são sempre assim. Eu quase nunca os ouço
uivar, e eles não parecem querer atacar — eles apenas observam...”
O jovem empregado da Companhia Remelio empalideceu com as
palavras de Norah, como se ela tivesse falado sobre cadáveres voltando
à vida e levantando de seus túmulos. Liebert era mais tímido do que
parecia.
“É um pouco estranho que eles nem sequer uivem,” murmurou
Holo, ainda olhando para a floresta. Liebert a entregou um olhar cético
— essa garota da cidade que nem sequer é uma pastora, o que ela sabe
de lobos?
Não era como se Liebert fosse especialmente ruim — muitas
pessoas da cidade eram assim, mas suas suposições ainda irritavam
Holo.
“Pode ser qualquer coisa além de lobos. Por exemplo, o espírito
de um viajante que morrera aqui.”
O rosto de Liebert ficou branco como um lençol. A sábia loba
havia exposto sua covardia.
“Ainda assim —”
Holo puxou a manga de Lawrence uma vez que ela tinha
terminado de provocar o pobre cordeiro. Sua voz era baixa, então
Lawrence se inclinou para aproximar seu ouvido.
“Eu estava meio séria. Tenho um mau pressentimento.”
Esta viagem não era uma viagem qualquer. Eles tinham que ir e
voltar de Lamtra em segurança. Se o grupo falhasse, se eles fugissem
ou encarassem seus destinos, a vida de Lawrence como mercador
estaria encerrada.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 227 ⊱

Ele deu um olhar maligno para Holo como se dissesse, “Não tente
me assustar com suas histórias tolas,” mas ela apenas observou a
floresta vagamente.
Aparentemente, ela não estava brincando.
“Hmm, parece que a lenha acabou,” disse Norah alegremente,
talvez para dissipar o clima ainda tenso. Lawrence concordou, e Holo
finalmente desviou o olhar da floresta e assentiu. Liebert assentiu
também, provavelmente, talvez em grande parte por se sentir
obrigado.
“Devo recolher um pouco mais, certo?” disse Norah, talvez
confiante com sua visão noturna.
Lawrence se sentiu mal por deixar a tarefa só para ela. “Eu
também vou.”
Holo se intrometeu. “Eu também devo ir.”
Sem saber nada sobre como iniciar uma fogueira, Liebert não
tinha levantado um dedo para ajudar a mantê-la, mas agora deve ter se
sentido totalmente desconcertado.
“E-eu vou ajudar também!” ele disse, limpando a garganta, com
medo de ser deixado sozinho.
Holo sorriu desagradavelmente para ele.
Eles entraram na floresta para recolher lenha, e Lawrence se
perguntou se a aura bestial que sentia era apenas sua imaginação.
No entanto, não houve mais incidentes e a noite passou
tranquilamente.

Quando Lamtra finalmente ficou à vista, Lawrence deu um


suspiro genuíno de alívio.
Com a profunda floresta à sua direita e as colinas rochosas à
esquerda, sua travessia foi semelhante a seguir por um beco sem fim.
CAPÍTULO V ⊰ 228 ⊱

Mas o suspiro de alívio não veio por chegar ao final desse beco.
Ele tinha experimentado várias trilhas muito piores no passado. Não,
o alívio veio do fato de que o estranho olhar que sentiu sobre ele na
noite anterior tinha ido embora.
Lawrence sabia que não era simplesmente a sua imaginação já que
Holo e Norah também ficaram continuamente em guarda. Havia
definitivamente algo dentro da floresta que separava Ruvinheigen e
Lamtra — algo que até mesmo uma brigada de cavaleiros temia.
Mesmo assim, eles fizeram a viagem com sucesso, portanto a
viagem de volta também deveria ser possível. Lawrence ainda estava
inquieto sobre isso, mas Norah estava com eles, e ela tinha feito esse
caminho muitas vezes e nunca foi atacada nem uma vez. Confiando que
as habilidades da pastora — assim como em Holo — conseguiria leva-
los de volta de alguma forma.
Então tudo o que tinham a fazer era trazer o ouro.
Lawrence estava imerso em pensamentos enquanto observava
Liebert entrar na cidade para fazer a compra — não havia motivo para
todo o grupo entrar em Lamtra.
“Espero que tudo corra bem,” disse Norah, sem dúvida se
referindo a tarefa de Liebert.
Até agora, tudo o que fizeram era perfeitamente legal, por isso
havia pouco com o que se preocupar, mas falar isso parecia exagero.
“Concordo,” respondeu Lawrence.
Havia um motivo pelo qual usou o seu melhor sorriso de
mercador quando disse isso.
Norah estava simplesmente jogando conversa fora.
Mas no coração de Lawrence, receio se misturava com
arrependimento.
Ele temia que Norah não compreendesse verdadeiramente as
consequências que os aguardava caso falhassem. A pastora diante dele
era quem estaria em maior perigo quando contrabandeassem o ouro.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 229 ⊱

O ouro seria escondido no estômago de suas ovelhas enquanto


passassem pelos postos de controle. Se acontecesse de uma das ovelhas
tossir o ouro, o pastor responsável enfrentaria punição imediata.
Em contraste, se Liebert e Lawrence ficassem em silêncio, eles
poderiam ser capazes de passar pelo ponto de inspeção.
Havia uma enorme diferença em seus riscos. Ele se perguntou se
Norah entendia isso.
Lawrence observou enquanto Norah cuidava do seu rebanho
como sempre fez, acariciando Enek quando ele retornava para o seu
lado depois de realizar esta ou aquela tarefa. O mercador sentia que
precisava averiguar o quão ciente do perigo Norah estava.
Simplesmente não parecia que ela compreendia a diferença entre
o que poderia acontecer com ela em relação às consequências para as
pessoas ao seu redor.
Sendo assim, tomar proveito da sua ignorância não estava longe
de ser uma fraude. Lawrence ponderou sobre isso e concluiu que sua
consciência estava definitivamente em algum lugar perto do estômago.
Se Norah descobrisse que teria que carregar a culpa caso
falhassem, ela pode se recusar a cooperar, dando as costas para eles.
Isso tinha que ser evitado. Portanto, Lawrence ficou em silêncio.
“Agora que penso sobre isso...,” Norah falou, tirando Lawrence
do seu devaneio.
No entanto, quando ele levantou a cabeça, viu que ela não estava
falando com ele.
Norah olhava para Holo, que tinha arrancado um único talo de
grama alta e agora estava vagando sem rumo.
“Senhorita... Holo, quero dizer...” Norah hesitou depois de dizer
o nome de Holo, talvez precisando reunir mais coragem para falar.
Lawrence notou as tentativas de Norah de se aproximar de sua
companheira feminina várias vezes, mas a indelicadeza de Holo a fazia
hesitar.
CAPÍTULO V ⊰ 230 ⊱

Em sua mente, ele a encorajava, mas ele ficou realmente surpreso


com as próximas palavras a saírem da boca da garota.
“Você... você sabe muito sobre lobos?”
Lawrence ficou chocado por um momento, mas Holo — a Sábia
Loba sempre sagaz — não se alterou nem um pouco. Ela finalmente
inclinou a cabeça com curiosidade para Norah.
“Uh, quero dizer... eu só, ontem à noite você notou os lobos tão
rapidamente, então eu...”
Ela parou ali, talvez porque se perguntava se Holo também tinha
experiência como pastora. Se fosse o caso, seria como um corvo
branco encontrar outro — uma rara pastora se encontrar com outra
poderia acabar em uma conversa animada.
No entanto, a atitude insociável de Holo dava poucas
oportunidades para conversar.
“O quê? Eu simplesmente os notei, só isso.”
“Oh, entendo...”
“Quero dizer, os homens geralmente são inúteis no fim das
contas,” Holo disse com um sorriso travesso, olhando para Lawrence,
que levemente deu os ombros em resposta. “Não acha?” Ela terminou.
“Um, eu, eu não...”
“Hmph. Então você acha que pode contar com aquilo?” Holo
cutucou, apontando bruscamente. Norah olhou para onde Holo
indicava —
— só para encontrar os olhos de Lawrence.
Neste momento, Norah parecia genuinamente desconcertada
enquanto desviava o olhar. Holo perguntou de novo, e Norah olhou
para Lawrence se desculpando enquanto sussurrava algo para Holo,
que se aproximava da pastora.
Dado o sorriso atrevido da loba, ele imaginava a resposta.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 231 ⊱

Lawrence assistiu e percebeu que a conversa estava prestes a virar


uma farsa.
Ele acenou com a mão como que para admitir a derrota, enquanto
Holo e Nora riam.
“Em primeiro lugar, não é estranho perguntar se alguém como eu,
viajando sozinha com um homem, se sei muito sobre os lobos?”
Julgando só pela aparência, Norah parecia ser a mais velha das
duas, mas assim que Holo falou, ela saiu por cima. Ela colocou uma
mão no quadril e levantou o dedo indicador parecendo por tudo nesse
mundo como um teólogo dando uma palestra.
“Veja só, a resposta é completamente evidente! Porque —”
Por quê? Norah se inclinou como se falasse.
“Porque! Quando a noite cai, um lobo sempre vai aparecer —
tentado por este desamparado e indefeso coelhinho. Certamente você
concorda que um coelho que é devorado por um lobo toda noite não
poderia deixar de saber algo sobre os lobos!”
Norah olhou atordoada por um momento, mas logo compreendeu
o que Holo queria dizer. Seu rosto ficou vermelho enquanto olhava de
Holo para Lawrence; então, envergonhada, ela olhou para seus pés.
Holo riu. “Ah, esta foi uma reação agradável. Mas não — minha
primeira resposta é a verdadeira,” ela disse alegremente, para a qual
Norah corou até as orelhas e desviou o olhar quando pareceu se
lembrar de algo.
Em seguida, pareceu que ela levantou a voz em um tranquilo
“Oh.”
“Na verdade, é o meu companheiro que é mais parecido com um
coelho. Se eu o deixar por conta própria, ele provavelmente morreria
de solidão.”
Holo sussurrou no ouvido de Norah, mas sua voz era alta o
suficiente para chegar aos ouvidos de Lawrence. Ele deu um sorriso
CAPÍTULO V ⊰ 232 ⊱

amargo para Holo, mas foi a crédula concordância de Norah que doeu
mais.
Como se ele realmente parecesse ser assim.
“Mas, de qualquer forma, foi um acaso eu notar os lobos na noite
passada.”
Na verdade, não era uma conclusão óbvia, mas Norah foi
suficientemente confundida por Holo até este ponto que ela pareceu
simplesmente aceitar. Ela colocou as mãos na bochecha (agora estava
ficando menos vermelha) e assentiu.
Então respirou fundo, ela falou, seu nervosismo evidentemente
tinha dissipado.
“Na verdade, eu pensei que talvez você fosse uma pastora,
senhorita Holo.”
“Oh, porque fui rápida em notar os lobos?”
“Bem, isso também,” admitiu Norah, parando para olhar para seu
companheiro de pelos negros, que estava contente por fazer uma pausa
no seu trabalho enquanto sua mestra estava conversando. “Na verdade,
foi porque Enek parecia prestar muita atenção em você.”
“Mm, é mesmo?” Holo — que tinha nervos o suficiente para
expor sua cauda sem problemas quando sabia que não seria descoberta
— sorriu, totalmente calma enquanto cruzava os braços e olhava para
Enek. “É difícil dizer na frente de um cachorro de estimação, mas ouso
dizer que ele está apaixonado por mim.”
Como se tivesse entendido, Enek olhou para trás em direção à
Holo e então correu mais uma vez para cuidar do rebanho.
Sua mestra, por outro lado, ficou muda com as palavras de Holo.
“O-o quê? Er, você quer dizer, Enek está?”
“Meu Deus, isso não é motivo para se entristecer. Qualquer
macho vai ficar confiante demais se for mimado. Tenho certeza que ele
é muito importante para você, mas isso só o faz se sentir seguro de que
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 233 ⊱

possui sua afeição. Não há erro; ele vai procurar outras para se divertir.
Não importa o quão delicioso seja o pão, às vezes você quer sopa.”
Talvez sentindo alguma simpatia com o argumento de Holo,
Norah assentiu, aparentemente impressionada.
“Pondo de outra forma, algumas vezes você tem que ser frio com
ele. É uma boa forma de por ele na linha.”
Norah assentiu com firmeza, como se a tivessem dito uma grande
verdade, mas em seguida chamou o Enek e se agachou para pega-lo.
Ela o pegou quando ele pulou nela, em seguida, olhou para o Holo
e sorriu.
“Se ele algum dia tiver um caso, vou manter isso em mente.”
“É bom.”
O Enek acusado injustamente latiu uma vez, mas Norah colocou
os braços em volta e ele logo se acalmou.
“Mas acho que gostaria de continuar mimando ele enquanto eu
puder,” disse Norah, beijando levemente Enek atrás das orelhas.
Holo os olhava, com um leve sorriso brincando em seus lábios.
Era um sorriso de certa forma incômodo, inapropriado para a
ocasião, Lawrence percebeu isso quando Holo olhou para ele.
“Porque... se este trabalho terminar bem ou não, eu estarei
desistindo do meu trabalho como pastora,” disse Norah calmamente
enquanto ela segurava Enek em seus braços. Era evidente que ela tinha
entendido completamente a sua situação e estava preparada para agir
de acordo com esse entendimento.
Ela entendia tanto a posição onde tinha sido colocada e os
prováveis resultados.
A preocupação de Lawrence era desnecessária.
Embora Norah pudesse parecer frágil, ela sobreviveu a expulsão
de um asilo e seguiu em frente superando inúmeras dificuldades. Ela
não era a filha mimada de nenhum nobre.
CAPÍTULO V ⊰ 234 ⊱
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 235 ⊱

Ao mesmo tempo, Lawrence tinha renovado seu respeito por


Holo.
Ela havia percebido os receios de Lawrence e, depois de tomar a
iniciativa de conversar com Norah, casualmente conseguiu evidências
do quão preparada a garota estava.
Isso explicava sorriso incômodo da Holo mais cedo.
O mercador se perguntou se o pronunciamento de Holo sobre os
homens serem geralmente inúteis estava necessariamente errado.
Lawrence cobriu os olhos em derrota e então se esparramou no
chão para descansar.
A paisagem de outono estava fria com o inverno se aproximando,
mas as nuvens espalhadas no céu pareciam quentes.
O contrabando seria um sucesso.
Lawrence murmurou algumas palavras de encorajamento para si
mesmo enquanto uma ovelha que vagava por ali olhava para ele.
Depois de algum tempo, Liebert retornou, montado no seu cavalo
em um passo calmo.
Quando se carrega uma grande quantidade de dinheiro, ele vai ver
todos ao seu redor como ladrões, mas fiel à sua posição como
empregado de confiança de uma empresa mercantil em uma cidade
grande, Liebert parecia imperturbável.
Ele mostrou um saco de grãos de ouro apenas grande o suficiente
para ser segurado em uma mão, e depois de todos os presentes terem
confirmado o conteúdo do saco, Liebert o colocou dentro de sua
jaqueta, apalpando levemente.
“Agora tudo o que temos que fazer é voltar em segurança com isto
e alimentar as ovelhas em um momento oportuno,” ele disse, como se
para enfatizar que todos os principais problemas viriam de agora em
diante. “Então, uma vez que tivermos passado através dos portões, as
ovelhas serão recolhidas como discutido anteriormente. Estamos de
acordo?”
CAPÍTULO V ⊰ 236 ⊱

“Estamos,” disse Norah com um aceno.


Liebert olhou adiante. “Então vamos. Um amanhã dourado nos
espera.”
O pequeno bando voltou para o caminho estreito entre a floresta
e as montanhas.

Na manhã seguinte, Lawrence abriu os olhos quando sentiu algo


frio em seu rosto.
Uma ovelha está me lambendo de novo? Ele imaginou, mas ele viu
apenas o céu cor de chumbo. Evidentemente haveria uma rara chuva
de outono.
E estava frio. Lawrence levantou a cabeça da raiz da árvore que
estava usando como travesseiro e viu que o fogo havia se apagado. Para
se ter uma pequena diferença entre o tempo em que Norah foi dormir
e a hora em que todo mundo acordasse, uma pessoa era encarregada
de ser acordada por Norah mais cedo para cuidar do fogo. Essa pessoa
deveria ser Liebert, mas ele estava dormindo com a lenha em seus
braços.
Era tão tolo que Lawrence nem conseguia ficar zangado com ele.
“...Mmph.”
Lawrence se sentou, aparentemente despertando Holo, com
quem tinha partilhado um cobertor.
Sem sequer um “bom dia”, ela o atirou um olhar verdadeiramente
fulminante e puxou todo o cobertor.
“Se você está acordado, não precisa dele” parecia ser a sua lógica.
Se argumentasse, ela provavelmente ficaria genuinamente com
raiva, por isso, embora fosse um pouco cedo para ele, Lawrence se
forçou a levantar. Ele tinha que atirar mais lenha na fogueira. As
ovelhas estavam todas amontoadas por causa do frio, e sem nenhum
trabalho a fazer, Enek dormia — aninhado com sua amada mestra, é
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 237 ⊱

claro. Lawrence ficou de pé, as juntas estalando, e jogou uma tora no


fogo, olhando cansado para Enek dormindo de confortavelmente.
Enquanto a madeira seca começava a crepitar no fogo, Enek
bocejou contente. Lawrence sorriu; isso o lembrava de Holo.
Ainda assim, estava frio. Era como se o inverno tivesse chegado
de repente.
A causa era óbvia para Lawrence, olhando para o tempo, mas
como estariam chegando em Ruvinheigen ao meio-dia do dia seguinte,
ele queria que o clima esperasse até lá.
Mas o céu não parecia que ia esperar. Lawrence fungou
amargamente. A chuva provavelmente cairia de tarde, certamente até
o anoitecer.
As árvores eram grossas o suficiente na floresta para o grupo
provavelmente poder se abrigar sob elas, mas com as ovelhas, isso
dificilmente seria uma opção. A floresta também era sinistra.
Lawrence não estava aterrorizado com ela, mas também não estava
ansioso para passar a noite lá. Usar a borda das árvores como abrigo
seria o suficiente.
Lawrence pensou sobre isso enquanto olhava para a fogueira
crescente, e então algo de repente pairou sobre suas costas.
Ele não teve tempo de se virar antes de um rosto familiar aparecer
diretamente ao lado dele.
Era Holo com a textura da raiz da árvore sobre a qual tinha
dormido ainda impressa em seu rosto.
“É mais quente aqui.”
Lawrence não era tão modesto a ponto de tomar essas palavras
literalmente.
Holo enrolou o cobertor em torno de Lawrence e
deliberadamente se amontoou junto com ele novamente. Roubar o
cobertor era bom, mas talvez ela tenha decidido que era um exagero.
Afinal, a fome e o frio eram companheiros de todos os viajantes.
CAPÍTULO V ⊰ 238 ⊱

Mas Holo não disse nada para se desculpar, Lawrence não disse
nada que a perdoasse.
Ele mexeu as brasas com uma vara, em seguida a jogou no fogo.
“Oh, é verdade,” ele disse casualmente. “Você não disse que podia
prever o clima?”
“Certamente. Vai chover depois do meio-dia,” ela respondeu,
sonolenta.
“Qualquer um poderia dizer isso, olhando para este céu,” brincou
Lawrence.
Em vez de repreender, Holo bateu a cabeça levemente em no
ombro dele.
“Gostaria que pudéssemos pegar cavalos rápidos e voltar para a
cidade antes da chuva. Enfim, o que me diz sobre uma sopa de batatas?
Vai nos aquecer junto ao fogo.”
“Não tenho do que reclamar. E também —”
“Você quer acariciar a sua cauda, certo?” disse Lawrence,
baixando ainda mais a voz.
Holo suspirou e assentiu. “Quero voltar para a estalagem o mais
rápido possível. Embora...”
Seu rosto estava melancólico quando olhou para o céu.
Um vento frio soprou sua franja, e ela estreitou os olhos como se
isso tivesse tocado seus longos cílios.
“A chuva está vindo, embora eu também não desejasse isso.”
Foi então que Lawrence se lembrou. Quando ele conheceu Holo,
ela tinha sido a deusa da colheita de uma área de abundante. Os
agricultores odiavam a chuva fria durante os meses de colheita no
outono, mesmo que agora estivesse longe dos campos de trigo, tal
clima não era algo que receberia bem.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 239 ⊱

Embora a própria Holo quase não tivesse boas memórias dos


campos de trigo devido a tudo que aconteceu por lá, ela ainda foi a
deusa da colheita.
Não precisava de uma deusa da colheita para não gostar da chuva
fria. No pior dos casos, a chuva poderia se transformar em granizo.
Lawrence ficou com mais frio só de pensar nisso, e ele
bruscamente jogou mais lenha na fogueira.
Havia um pouco mais de tempo antes que todo mundo acordasse.
No entanto, ele ainda não tinha percebido uma coisa.
Holo nunca disse nada sem um motivo.
fumaça branca da respiração se arrastava atrás deles
enquanto caminhavam. A exalação aquecia suas bochechas
momentaneamente, mas cada respiração logo se
transformava em um doloroso calafrio.
O céu escurecido finalmente perdeu sua paciência, e logo após o
meio-dia, uma garoa fina começou a cair como se raspassem algum
bloco gigante de gelo. Assim, o rosto de Lawrence estava tão frio que
ele se perguntou se não tinha realmente congelado, mas sempre que
um pouco de ar abria caminho dentro de sua roupa, a sensação era
agradavelmente fresca.
Eles correram — as pessoas, os cavalos, as ovelhas e o cachorro.
Haviam olhos sobre eles, muitos olhos. Haviam presenças
também.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 241 ⊱

Mas não importa o quão vigilante o grupo estivesse, nem um único


uivo foi ouvido nem um único tufo de pelo foi visto, e eventualmente,
o tempo e o esforço lhes roubaram a capacidade de se preocupar com
os lobos.
Era como se algo tivesse esperando por essa lacuna.
Quando Holo percebeu isso, eles já estavam cercados pelos lobos.
“Enek!”
A voz de Norah ecoou, e Enek correu para a parte de trás do
rebanho em um borrão de pelo preto, conduzindo um cordeiro
atrasado.
O cordeiro correu desesperadamente, mas ele era incapaz de
diferenciar cachorro de logo, e o uivo de um lobo ecoou como que
para zombar dele.
A situação era clara. O uivo veio de um lobo no topo das colinas
rochosas à direita, uma vez que tentava atacar as ovelhas. Em
contraste, pequenos uivos podiam ser ouvidos na floresta à esquerda
— o que se podiam ser ouvidos eram os passos de pessoas e lobos.
Distante das samambaias e arbustos sob as árvores, Lawrence e os
outros corriam lado a lado. Lawrence e Holo montavam um cavalo; da
mesma forma, Liebert montava o dele. A testa de Norah estava cheia
de suor enquanto usava tanto Enek quanto seu bastão para controlar as
ovelhas.
Se tratando dos lobos — bem, se fossem cercados, isso seria o
fim. Os lobos caçavam com muito cuidado, se certificando de nenhum
de sua matilha fosse ferido no processo. Não haveria nenhum plano
onde usassem um único lobo como isca, nem um único membro faria
um ataque heroico por conta própria. Os lobos eram cautelosos até o
fim e sempre se comportavam com astúcia.
Assim, se o grupo pudesse se colocar em posição de matar apenas
um lobo quando a matilha tentasse apertar o cerco, eles poderiam se
libertar de qualquer futuro ataque.
CAPÍTULO VI ⊰ 242 ⊱

Lawrence ouviu a explicação apressada de Holo e viu que Norah


se moveu para fazer exatamente isso.
Um único lobo era visível a curtos intervalos, tentando se adiantar
e fechar a rota deles, mas seria imediatamente interrompido tanto por
Enek ao ser enviado à vanguarda ou pelo próprio Lawrence apressando
o cavalo.
Quando os lobos se movessem para fechar lentamente o cerco, as
ovelhas correriam em alguma direção aleatória, quebrando a linha.
Para um pastor, as ovelhas não são pobres crianças pobres a serem
protegidas, mas um escudo — uma arma a ser usada como qualquer
outra.
Não era hora de Lawrence ou Liebert agirem. Liebert estava
totalmente focado em segurar as rédeas em uma mão e manter o ouro
seguro dentro de sua jaqueta com a outra.
Da sua parte, Lawrence só poderia perguntar a Holo o que deveria
fazer.
“O que fazer, eh?”
A estrada estava terrível e muito pior do lombo de um cavalo
trotando. Impactos eram constantes, e parecia que a cabeça estava
prestes a se separar do corpo. Impedir Holo, que estava sentada em
frente a ele, de ser arremessada era trabalhoso o suficiente.
“O que fazer, de fato.”
Sua enunciação era ruim, e não apenas porque a viagem turbulenta
tornava fácil de morder a língua enquanto falava.
“Escuta —”
“O quê?”
“Sobre a minha explicação anterior — eu retiro o que disse.”
“Explicação anterior?” Lawrence estava prestes a perguntar
quando a grama na floresta por trás deles se mexeu, e imediatamente
veio o som de garras cavando o chão.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 243 ⊱

Lawrence sentiu um intenso calafrio descendo pelas suas costas,


como se asas estivessem prestes a brotar ali. Não era um calafrio que
poderia ser descrito simplesmente como quente ou a frio. Era uma
mensagem de perigo vinda do próprio túmulo.
“Enek!”
Com intuição quase sobre-humana, Norah sentiu o ataque
enquanto corria bem à frente com as ovelhas. Ela rapidamente
levantou seu cajado para convocar seu cavaleiro de pelo negro, mas a
última esperança deles era a colina que estava por vir.
Naturalmente, os lobos perceberam isso também.
Um turbilhão marrom veio como um raio nas pernas do cavalo de
Lawrence.
Era agora ou nunca. Lawrence estava prestes a puxar as rédeas
com tudo o que tinha, mas Holo estendeu sua mão e o impediu.
Então, olhando por cima do ombro, ela falou.
“Sumam daqui.”
A razão pela qual Lawrence entendeu que ela tinha falado com
ninguém menos do que o lobo foi porque este de repente virou de lado
e parou, como se atingido por flechas.
Norah, Lawrence, e os outros não eram os únicos surpresos. A
perplexidade dos próprios lobos parados era óbvia só de olhar para
eles.
No entanto, Lawrence não podia nem elogiar o feito nem dar seus
agradecimentos a Holo por salvá-los.
Os olhos normalmente vermelho-marrons de Holo brilhavam
como rubis.
Olhar para ela era sentir medo; Holo, a Sábia Loba, estava entre
eles.
“Os humanos também devem sair daqui.”
CAPÍTULO VI ⊰ 244 ⊱

Sua voz fria lembrava Lawrence de quando tinha visto pela


primeira vez sua verdadeira forma.
“Os jovens de hoje em dia, suponho que seja um deles.”
Lawrence se perguntou por um momento do que ela estava
falando, quando de repente percebeu o que ela queria dizer.
Embora o perigo imediato tenha passado, mas Norah não entendia
como isso foi possível; a dúvida estava estampada em seu rosto. Mas
não havia tempo para pensar. Se preparando para enfrentar qualquer
crise que viesse em seguida, Enek constantemente realizava as ordens
disparadas por sua mestra.
Liebert se agarrava desesperadamente em seu cavalo, tentando
apenas evitar deixar o ouro cair.
Se eles continuassem a esta velocidade, seriam capazes de deixar
a floresta para trás ao pôr do sol.
E para deixar esse perigo para trás, eles não tinham escolha a não
ser tentar.
Em seguida, algo vibrou.
No início parecia ser o vento — houve uma lufada como se a garoa
gelada fosse soprada momentaneamente de volta para o céu.
Mas logo ficou claro que se tratava de um vento estranho.
Uma ventania normal não congelaria a espinha de uma pessoa
desta forma.
O vento foi imediatamente seguido por um som.
Um tremendo rugido vindo de dentro da floresta golpeou seus
tímpanos.
“...!”
A explosão avassaladora era o suficiente para congelar a respiração
de uma pessoa.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 245 ⊱

Os cavalos pararam. As ovelhas pararam. Mesmo o valente cão


pastor ficou congelado.
O rugido violento parecia ter pregado todos no chão.
Eles ficaram como estátuas, olhando para a floresta.
“Escuta —” Holo disse baixinho para Lawrence. Tudo ainda estava
parado; o único ruído vinha da garoa que caía sobre a terra. “Este é um
problema que eu devo resolver. Quando eu mandar a garota e o
moleque embora, você deve se afastar por um tempo também.”
“O qu — por quê?”
No silêncio, Norah e Liebert pareceram não prestar atenção na
conversa de Holo com Lawrence enquanto olhavam atentos para a
floresta.
Mas não é como se não tivessem notado.
Era o mesmo que um pássaro encurralado por um cão — mesmo
quando o caçador movesse sua mão para atacar, a ave não conseguia
fugir voando.
Eles não eram capazes de tirar os olhos da floresta.
“Porque o que está nesta floresta não é um lobo comum. Você
entendeu, certo?”
Holo lentamente tirou os olhos da floresta, se voltando para
Lawrence.
As pernas dele ficaram fracas com aquele olhar.
A expressão dela estava longe de ser descontentamento; seus
olhos brilhavam com tanta fúria que Lawrence se perguntou se ela não
iria descontar esse ódio no calçamento da estrada.
Sua respiração era lenta, como a respiração de um cavalo
demoníaco no inferno.
“Se eu fizer o jogo deles, a matilha não vai mais perseguir as
ovelhas. Afinal, as ovelhas não são o alvo deles.”
CAPÍTULO VI ⊰ 246 ⊱

Ela se voltou para a floresta.


“Quanta teimosia. Que orgulho idiota. Ambos valorizados pelos
jovens, suponho.”
Holo estava em grande parte por entre os braços de Lawrence, e
ela quase parecia crescer enquanto falava.
Demorou um pouco para Lawrence perceber que se tratava da
cauda de Holo, farfalhando debaixo de seu manto.
“Vá! Eles não vão se mover até que você diga. Você é meu parceiro
— e parceiros se ajudam, não é?”
A expressão de Holo ficou subitamente mais suave, e Lawrence se
viu concordando.
Ele era um mercador e, geralmente, inútil em qualquer coisa com
exceção dos negócios.
Do ponto de vista de Holo, não havia ninguém que soubesse mais
de lobos do que ela.
“Nós vamos tomar conta das coisas por aqui. Vocês dois peguem
o ouro e continuem como planejado!” Lawrence não tinha planejado
gritar, mas só assim Norah e Liebert sairiam de seus devaneios como
se tivessem ouvido vozes no meio de a noite.
Não houve objeções. Em situações como esta, deixar o
aparentemente mais fraco para trás como um sacrifício para que os
mais fortes pudessem viver era uma tática bem utilizada.
Mas ainda olharam para ele questionando — “Isso está mesmo
certo?” era o que seus olhos perguntavam.
Não importa o quão estabelecida fosse a tática, o que era possível
para um bando de mercenários não era possível para um viajante
regular.
“Nós devemos nos encontrar nas muralhas de Ruvinheigen. E
seremos todos ricos.” Claro, Holo não tinha intenção nenhuma de se
tornar um sacrifício, mas não havia como os outros saberem disso. Ao
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 247 ⊱

mesmo tempo, ela não podia se explicar muito bem, então ela apenas
sorriu levemente enquanto falava.
Ela estava se aproveitando da natureza humana. As pessoas não
desperdiçariam o sacrifício de alguém que enfrenta uma morte quase
certa com um sorriso e uma frágil esperança. Um lobo inteligente
saberia como usar esse fato.
Liebert foi o primeiro a concordar, seguido por Norah.
Norah acenou com seu cajado, e o tempo pareceu voltar a se
mover.
“Que a sorte da guerra esteja com vocês,” disse Liebert. Norah
dirigiu a Holo um olhar mais eloquente do que palavras e logo se
afastou. Assim que ouviu o som das ovelhas começando a correr,
Liebert seguiu atrás delas.
Holo assistiu a tudo isso, então se virou para Lawrence.
“Você precisa se afastar. Se chegar perto, as coisas podem dar
errado. Você entendeu que eu sei.”
Em vez de responder, Lawrence pegou a mão de Holo antes dela
saltar do cavalo.
“Eu não vou deixar você perder,” ele disse.
A mão dela estava surpreendentemente quente, e ela devolveu o
aperto.
“Se você fosse um macho decente, eu ganharia pelo menos um
beijo por todo esse trabalho.” Holo sorriu por um momento antes de
sua expressão endurecer, e então pulou do cavalo.
“Oh, claro. Aqui, guarde isso para mim,” ela disse, desfazendo a
faixa na cintura e retirando o manto rapidamente.
Seu cabelo castanho esvoaçando, suas orelhas pontudas de lobo e
sua cauda macia estavam expostas.
A bolsa de couro cheia de trigo em torno de seu pescoço balançava
levemente.
CAPÍTULO VI ⊰ 248 ⊱

“Espero que tudo isso termine pacificamente, mas eu não sei como
vai ser. Quando nos encontrarmos de novo, vou sentir frio se eu
estiver nua, e um pouco problemático para você também, eu acho,”
ela disse com um sorriso e em seguida olhou para floresta, imóvel.
Sua cauda estava eriçada como que atingida por um raio.
Lawrence hesitou sobre o que dizer.
O que finalmente falou foi curto: “Vamos nos encontrar de novo.”
Ele não esperou por uma resposta antes de fazer o cavalo correr.
Dizer que ele não queria continuar ali teria sido uma mentira.
Mas o que conseguiria fazer se ficasse? Lawrence conhecia a
verdadeira forma de Holo. Mesmo se ela fosse encurralada por
mercenários ou bandidos, ela poderia fugir.
Lawrence apressou o cavalo. O granizo ficou mais pesado.
Seu rosto estava tenso e não apenas por causa do frio.
Pela primeira vez em sua vida, ele se amaldiçoou por não ter
nascido um cavaleiro.

Parecia que Norah e Liebert tinham viajado uma boa distância à


frente em um curto espaço de tempo. Lawrence fez o que lhe foi dito
e correu com o cavalo, a fim de aumentar a distância entre ele e Holo,
mas mesmo correndo em um ritmo considerável, ele ainda não tinha
avistado Norah e Liebert.
Ele já não sentia aqueles olhares desagradáveis, por isso essa era
provavelmente uma boa oportunidade para acelerar o passo. Isso
certamente era verdade do ponto de vista de Norah e Liebert — eles
não queriam desperdiçar as mortes de Lawrence e Holo.
Lawrence sorriu tristemente para si mesmo com a ideia, e a
preocupação em se perder no caminho rodava pela sua mente.
No entanto, isso logo desapareceu. Ele não estava especialmente
familiarizado com o território, mas uma vez que o sol se punha, ele
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 249 ⊱

teria que parar, e não poderia sair do caminho enquanto estivesse


parado.
Contanto que mantivesse as colinas a sua direita e a floresta a sua
esquerda, ele não sairia do percurso.
Além disso, um pouco mais adiante a grama era cortada mais baixa
formando uma estrada, e se a seguisse, ela a levaria direto para
Ruvinheigen. Mesmo que nunca se encontrasse com Norah e Liebert,
havia pouco com o que se preocupar.
Lawrence estava mais preocupado com a possibilidade do seu
cavalo tropeçar em uma pedra e cair, então ele puxou as rédeas para
reduzir a velocidade do animal e então olhou para trás por cima do
ombro.
Holo já tinha desaparecido atrás dele faz tempo, mas se os lobos
mudassem de ideia e viessem atrás dele, eles o alcançariam
rapidamente.
Ele lutou contra a tentação de esperar e se virou para a frente
novamente, fazendo o cavalo andar.
Ele estava com o manto de Holo; ainda estava quente. Parecia um
mau presságio deixar roupas para trás como uma promessa. Lawrence
se viu agarrando o manto com mais força.
Mas se Holo achasse necessário tomar a forma de lobo, ela estaria
em apuros se ela não tivesse roupas para vestir.
Ela era ainda mais racional do que o mercador Lawrence.
Lawrence suspirou profundamente, sacudindo o manto, que tinha
uma boa dose de pelo sobre ele, provavelmente da cauda de Holo. Ele
dobrou o manto e o colocou dentro de seu próprio casaco, que já
estava bastante molhado, mas era melhor do que segurá-lo debaixo do
braço. Holo tinha tomado o papel mais perigoso de todos, então o
mínimo que podia fazer era se certificar de que suas roupas não
estariam molhadas quando ela voltasse.
CAPÍTULO VI ⊰ 250 ⊱

A garoa estava ficando mais grossa; seria uma chuva forte ao


anoitecer.
Lawrence continuou a cavalo um pouco mais, em seguida parou
no meio do caminho, decidindo que tinha ido longe o bastante. Mesmo
que não tivesse colocado uma grande distância entre eles, seria
necessário algum esforço para Holo alcançá-lo — supondo que ela
estaria em forma humana.
No entanto, ficar parado ali no meio da estrada era equivalente a
suicídio. O frio já tinha entorpecido as mãos de Lawrence enquanto
agarrava as rédeas. Seria melhor se abrigar na floresta e se manter
atento para ver se Holo apareceria na estrada. Ele estava preocupado
em congelar até a morte antes que ela pudesse encontra-lo.
Lawrence desmontou do cavalo sob as árvores na borda da
floresta, olhando a estrada lá atrás. O espaço entre a floresta e as
montanhas era bastante aberto. Norah e Liebert provavelmente já
tinham chegado a borda da floresta e estariam seguindo seu caminho
direto para Ruvinheigen.
Eles estavam se movendo mais rápido que o normal, logo isso era
perfeitamente plausível.
Sendo assim, a única coisa que realmente restava a ser feita era
alimentar as ovelhas com o ouro e entrar na cidade.
Contanto que isso corresse bem, o contrabando de ouro quitaria
sua dívida e renderia um grande lucro para ele.
A quantidade prometida a Lawrence quitaria a sua dívida e o
deixaria com 150 lumiones. Essa era uma quantidade impressionante de
dinheiro, mas ainda pequena em comparação com o lucro total que o
contrabando geraria. Eles haviam comprado cerca de seiscentos
lumiones de ouro e, evitando os impostos, significava que isso seria
multiplicado por dez. Se ele fosse mais ganancioso, provavelmente
obteria uma fatia maior. Afinal, ele era cúmplice do contrabando, um
fato que o resto dificilmente poderia ignorar.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 251 ⊱

Ele se controlou. Ser ganancioso trazia o infortúnio. Era a lei do


mundo.
Lawrence tentou se distrair do frio enquanto reunia qualquer
madeira seca que pudesse encontrar, tirando cuidadosamente um
material inflamável de um saco a prova d'água no cavalo para iniciar
uma fogueira.
Não havia nada à sua volta. Tudo estava tranquilo sem um sinal
sequer de animais na área.
Enquanto secava suas roupas, Lawrence imaginou se Holo estava
bem ao olhar para o manto que ela deixou para trás.
Ele sabia que tais pensamentos não o fariam bem, mas não
conseguia evitar. Sentiu que era a personificação da impotência.
Ele vigiou as planícies enquanto a garoa continuou a cair.
Por quanto tempo encarou a paisagem imóvel? Suas roupas
estavam quase secas. A primeira lenha que tinha jogado para fazer a
fogueira agora era cinzas.
Talvez ele devesse procurar por ela.
O pensamento sedutor começou a tomar conta da sua mente.
Houve um movimento dentro do seu campo de visão. Ele
esfregou os olhos. Não havia dúvidas. Era uma pessoa.
“Holo!” ele gritou, e ficou de pé e agarrando as roupas secas dela
e começando a correr. Ele provavelmente não encontraria mais
alguém em um lugar como este.
Mas enquanto ele corria pela chuva, logo percebeu que não era
Holo.
Haviam três formas humanas, e eles estavam a cavalo.
“Sr. Lawrence, é você?”
Aparentemente, eles ouviram a voz de Lawrence enquanto ele
gritava.
CAPÍTULO VI ⊰ 252 ⊱

E, quando eles chamaram o seu nome, Lawrence percebeu que


eles eram da Companhia Remelio.
Mas o que eles estavam fazendo aqui?
“Sr. Lawrence, você está bem?”
Ele não tinha nenhuma lembrança de qualquer um dos seus rostos.
Um tinha um arco em suas costas, o outro uma espada pendurada no
cinto, e o terceiro uma longa lança. Seus rostos e posturas mostravam
que eles estavam mais acostumados a viajar do que um mercador da
cidade como Liebert, e eles usavam capas de chuva como se estivessem
acostumados com isso e estavam prontos para lutar a qualquer
momento.
“O senhor Liebert nos informou — não podíamos simplesmente
ficar na empresa parados — por isso viemos esperar na borda da
floresta. Graças a Deus você está —”
As palavras acabaram aí.
Os homens, talvez um pouco mais velhos do que Lawrence,
notaram o manto que ele segurava.
Era o manto de Holo e por causa do tamanho pequeno, era
obviamente para uma mulher.
A conclusão óbvia não era agradável.
Eles devem estar pensando que ele manteve o manto como última
lembrança, e ela havia encontrado seu fim. Eles certamente o ouviram
chamar o nome de Holo.
Como Lawrence esperava, eles o olharam com empatia.
Ele tentou pensar em como poderia esclarecer o mal-entendido
quando notou algo estranho.
Os três homens simultaneamente respiraram profundamente, e
Lawrence vislumbrou algo como alívio em seus rostos.
Certamente nenhum deles pensou que deixaram transparecer tal
reação, mas seus olhos de mercador notaram isso. Eles provavelmente
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 253 ⊱

estavam felizes que Lawrence não tinha sucumbido ao desespero se


descontrolado.
“E as suas coisas?”
Se eles sentiram pena deste pobre homem cuja amada
companheira foi morta por lobos, o momento de abordar o assunto já
tinha passado. Se eles remoessem o assunto por muito tempo, não
havia como prever quando suas emoções explodiriam. Muitas vezes
eram os que ficavam estranhamente calmos que acabavam sendo os
mais perigosos.
Sabendo que seria tolice tentar explicar o mal-entendido,
Lawrence apenas gesticulou apontando.
“Acolá. O cavalo também.”
“Certo. Vamos nos abrigar por um tempo.”
O tom de voz era casual, mas as expressões dos três homens
estavam tensas assim que desmontaram dos cavalos.
Eles provavelmente estavam se perguntando se encontrariam o
corpo da garota retalhado por lobos.
Lawrence se virou para levá-los até seu cavalo.
Alguns instantes depois, sua mente ficou em branco do choque.
“Não vou pedir que não pense mal de nós,” veio uma voz calma.
O braço esquerdo de Lawrence foi torcido para trás, e uma lança
apontada para o seu flanco. Havia uma espada em sua garganta.
As gotas que corriam pelo seu rosto não eram apenas da chuva.
“...Então, a Companhia Remelio está me traindo?” Lawrence de
alguma forma conseguiu perguntar, sufocando o grito quando sentiu o
ombro torcer.
Foi apenas sorte que o impediu de soltar o manto de Holo.
“Isso é uma garantia.”
CAPÍTULO VI ⊰ 254 ⊱

A espada em sua garganta foi removida para que ele pudesse ser
amarrado.
Os homens confiscaram o manto de Holo e amarraram Lawrence
como se fosse bagagem.
“Pesava em nossos corações pensar que você estaria com uma
garota, parece que no fim tivermos sorte.”
A expressão de alívio mais cedo era porque Holo não estava lá.
Os homens sabiam que se alguém tentasse bancar o herói, não
terminariam o dia sem ver sangue.
“Sei que isso vai soar como uma desculpa, mas estamos no limite
aqui. Temos que eliminar qualquer risco que pudermos.”
A Companhia Remelio certamente assumiu que Lawrence
planejava chantageá-los. Mesmo que eles conseguissem escapar da
beira da falência com contrabando de ouro, qualquer um que soubesse
disso seria como uma faca na garganta da companhia.
Eu nunca faria algo tão estúpido, Lawrence pensou consigo, mas
logo percebeu que estava pensando nisso apenas alguns minutos atrás.
Uma quantidade grande de dinheiro poderia cegar qualquer um.
Aqueles que escolheram o caminho do comércio sabiam disso.
“Você pode ficar com o manto.”
O manto de Holo foi jogado para as mãos amarradas de Lawrence.
Lawrence agarrou o manto com toda sua força, de alguma forma
selando sua raiva pela traição.
O fato de que eles o tinham amarrado significava que ele não seria
empalado por uma lâmina imediatamente. Ele não podia se matar por
resistência inútil. No entanto, era fácil ver que os homens também não
tinham nenhuma intenção de deixá-lo viver.
Eles provavelmente estavam se perguntando se simplesmente o
deixariam no frio ou na floresta, onde os lobos poderiam vir. Era uma
pergunta sensata, dada a situação.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 255 ⊱

Mas havia algo importante que os homens haviam deixado passar.


Eles pensavam que Holo estava morta.
Se Lawrence pudesse se reunir com ela, todos os tipos de vingança
seriam possíveis.
Ele não podia morrer aqui. Ele tinha que devolver essa traição.
A raiva era uma pedra fria em suas entranhas enquanto Lawrence
fingia desistência.
“Não pense que não me machuca saber que não poderei mais dizer
que nos encontraremos de novo.”
A cabeça de Lawrence queimava com a fala despreocupada do
homem, mas ele suportou em silêncio, sem olhar por cima do ombro.
“É deprimente pensar sobre o que vai acontecer em seguida.”
“Hey,” interrompeu outro homem da Companhia Remelio, como
que para evitar conversas desnecessárias.
O que poderia ser mais deprimente agora depois de tudo isso?
Era algo que Lawrence aparentemente não deveria ouvir, mesmo
que estivesse prestes a morrer.
“Vamos lá, nos deixe conversar. Eu não posso simplesmente ficar
quieto. Você também, certo?”
O outro ficou sem palavras por um momento. Lawrence ignorou
sua própria raiva para poder ouvir.
Do que eles estavam falando?
“Mas é a garota que esse cara trouxe com ele. Quem se importa
se ele ouvir —”
Não pode ser, seu coração gritou dentro dele.
“Olha para isso —”
O homem na frente de Lawrence deu um perverso chute nele ao
mesmo tempo em que um outro socou seu rosto.
CAPÍTULO VI ⊰ 256 ⊱

A cabeça de Lawrence apagou com o choque brutal, quando


voltou a si estava de cara no chão.
Ele não conseguia dizer se o que ele sentia em seu nariz era lama
ou sangue. Tudo o que sentia era uma terrível fúria que corria dentro
ele.
Sua visão estava turva com o choque e não tinha nem certeza do
que tinha acontecido ao seu corpo.
Mas ele ouviu cada palavra que era dita.
“E se nós apenas a amarrássemos como este pobre coitado? Os
lobos vão acabar com eles para nós.”
“Não seja estúpido. Quem sabe que tipo de magia pagã que ela usa
para passar com as ovelhas através dessa floresta ilesa. Nós poderíamos
cegá-la, amarrar as duas mãos e deixá-la aqui que eles ainda
sobreviveriam. E então nós é que teremos problemas. Mas... é
deprimente, admito. Não serei capaz de comer por um tempo se eu
tiver que lidar com agarota, isso é certo.”
Eles estavam claramente falando de Norah.
Eles estavam falando sobre matá-la.
Se a solução da Companhia Remelio para o risco de chantagem era
assassinato, eles também não poderiam deixar Norah viva.
Provavelmente passariam pelo posto de inspeção no caminho para
Ruvinheigen e então a matariam depois de entregar as ovelhas para
outro pastor. Norah era a única pastora cuja presença nesta área não
levantava suspeitas, então não poderiam matá-la antes do posto de
inspeção.
“Não deveríamos apagar esse cara?”
“O quê, você quer fazer isso?”
“Hey, quanto menos matança melhor, até onde eu sei.”
“Concordo.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 257 ⊱

“Nós pegamos o cavalo, vamos. Se não nos apressarmos, o Sr.


Liebert vai implicar com a gente.”
Seus passos se afastaram apenas para serem seguidos pelo som dos
cascos dos cavalos.
Depois disso, tudo Lawrence podia ouvir era o som da garoa.
Pateticamente, ele começou a chorar.
Seu pecado era a impotência.
Lawrence fechou seus olhos.
Se ao menos ele fosse tão forte quanto Holo, ele não teria que
deixá-la para enfrentar o perigo sozinha, e ele não teria que aceitar essa
traição, sem falar sobre ter que ouvir seus inimigos planejando o
assassinato da garota que ele mesmo havia contratado.
Norah não era como Holo. Ela não possuía magia pagã ou
quaisquer poderes especiais. Se a cortassem com uma espada, sua pele
iria se dividir e seu sangue fluiria.
Enek poderia ser de alguma ajuda, mas era uma tênue esperança.
Não importa o quão valente fosse o cão, ele seria inútil diante de um
ataque surpresa.
Lawrence queria pelo menos poupar Norah disso.
Ele lembrou dela quando estavam na colina com vista para
Lamtra.
Ela era mais esperta e mais forte do que parecia, ela sabia que seus
dias de pastoreio tinham acabado. Ela depositou suas esperanças neste
trabalho incomum.
Ela queria se tornar uma costureira após a severa vida de pastora.
Deve ter parecido um sonho quase impossível.
A possibilidade de que este sonho poderia morrer deve ter
aterrorizado tanto o seu coração!
CAPÍTULO VI ⊰ 258 ⊱

Naturalmente, era algo tolo deixar o coração se excitar com uma


mera esperança, mas a própria morte ser fruto da traição — isso era
outra questão.
Norah faria o trabalho dado a ela. Ela tinha que receber sua
compensação.
Isso se aplicava ao próprio Lawrence, claro, e uma vez que se
reunisse com Holo, ele exigiria tanta retribuição quanto quisesse.
No entanto, a jornada de Norah acabaria na ponta de uma espada.
Usando sua frustração enlouquecedora como combustível,
Lawrence forçou seu corpo prostrado a se mover. Suas mãos ainda
estavam atadas atrás das suas costas, mas colocando seu rosto contra o
chão, ele trouxe os joelhos para debaixo do seu peito, e em um
movimento, ele levantou a cabeça e se endireitou.
Aparentemente, uma narina estava bloqueada com lama e a outra
com o sangue. Ele fungou com violência para limpar o nariz e depois
inalou o ar frio para esfriar a cabeça — não que sua cabeça fosse ficar
mais fria.
Ele se levantou e começou a andar cambaleando. Não percebeu
que suas mãos atadas ainda seguravam as roupas de Holo até que
chegou ao local onde seu cavalo foi roubado.
O fogo havia sido apagado a chutes, mas ainda havia algumas brasas
vermelhas.
Lawrence deixou a roupa do Holo onde não molharia e respirou
fundo.
Em seguida, se sentou com cuidado ao lado da maior brasa,
verificando a sua orientação várias vezes.
Ele fez uma pausa para se preparar.
Se atirando para baixo, Lawrence pressionou os pulsos amarrados
contra o carvão quente.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 259 ⊱

A corda estalou enquanto queimava, e um calor terrível dominou


seus pulsos. Ele fechou os olhos e cerrou a mandíbula para suportar a
dor.
No momento seguinte, suas mãos subitamente livres.
As amarras se soltaram.
Lawrence imediatamente ficou de pé e olhou para seus pulsos.
Havia algumas queimaduras, mas nada sério.
Ele não era tão estúpido a ponto de pegar o graveto mais próximo
e ir perseguir seus traidores.
Ele sabia que esperar por Holo era sua melhor e única opção. Um
simples mercador viajante era impotente sozinho.
Um mercador não tinha orgulho do mesmo jeito que um cavaleiro
ou uma pessoa da cidade. Ele estava preparado para lamber as botas de
alguém se isso significasse conseguir lucro.
Então de onde vinha este sentimento de humilhação?
Lawrence não se moveu e olhou para o céu.
As folhas das árvores o protegiam da chuva e o faziam pensar em
qual força cósmica o permitiu rastejar na lama; ele não conseguiu
suportar e baixou o olhar.
Seus olhos pousaram sobre o manto que Holo tinha usado.
Mais uma vez, ele derramou lágrimas por sua própria inutilidade.

“Uma reunião emocionante, eh?”


Eventualmente incapaz de se conter, Lawrence tinha corrido pela
chuva e encontrou Holo no momento em que estava ficando sem
fôlego.
Holo estava em sua forma humana, sem ferimentos e
aparentemente do mesmo jeito que quando se separaram. Os joelhos
CAPÍTULO VI ⊰ 260 ⊱

de suas calças estavam sujos; talvez ela tivesse tropeçado em algum


lugar ao longo do caminho.
“Você parece horrível,” ela disse com um sorriso divertido.
“Fomos traídos.”
“Não sou tão ingênua a ponto de ver seu estado e pensar que você
caiu,” disse Holo com um suspiro. “Não posso dizer que não cheguei a
pensar nisso. Eles eram da companhia, não eram?”
Sua falta de surpresa ou choque sugeria que ela vagamente
antecipou a traição, mas como todo o plano era baseado na confiança
mútua, ela não poderia simplesmente sugerir a possibilidade. Da parte
de Lawrence, mesmo que fosse informado com antecedência, ele não
necessariamente saberia o que fazer. Era uma realidade absoluta que
nada poderia acontecer sem a cooperação da Companhia Remelio.
Holo sorriu brevemente e se aproximou de Lawrence, farejando
enquanto pegava as mãos dele. Ela pareceu notar as queimaduras.
“Honestamente, eu já ia te encontrar. Você não tinha que fazer isso.”
Ela torceu o nariz de novo e então enfiou a mão no casaco de
Lawrence, puxando seu manto.
Holo pareceu surpresa e enxugou seu rosto com a roupa.
Melhorou muito do rosto encharcado com a garoa.
Ela deu riu. “Você é bem estranho, protegendo minhas roupas
com a sua vida.”
A cauda de Holo se eriçou contrastando com sua expressão de
deleite ao ver o manto dobrado.
Quando olhou de volta para Lawrence, ela ainda sorria, e ele
poderia ter derretido em seus ardentes olhos vermelhos.
“Há algo que preciso dizer. Devo ser completamente franca,” ela
falou, mostrando suas presas quando abriu um sorriso. “Talvez eu
tenha que matar alguém,” ela falou, em seguida continuou antes
Lawrence pudesse interromper.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 261 ⊱

“Pensei que se este plano não acabasse bem, eu já não seria capaz
de viajar com você. A ideia me deixou terrivelmente solitária. Ainda
assim, suportei. Deixei as coisas fluírem pacificamente, te dei meu
apoio rapidamente e me conformei com as decisões porque pensei que
em breve estaríamos tomando sopa de batata quente em frente à
lareira. Eu sou a Sábia Loba de Yoitsu, Holo. Posso esquecer o orgulho
de um jovem arrogante, se necessário...”
Lawrence olhou para a lama nos joelhos de Holo.
Não era um lobo normal na floresta, e ele não estava atrás das
ovelhas. Haviam poucas possibilidades.
Disputa territorial.
Levando isso em conta, as ações que Holo tomou para “deixar as
coisas seguirem em paz” se tornavam cada vez mais claras.
Uma loba sábia nunca tropeçaria desajeitadamente sobre uma
pedra, sujando os joelhos.
“Agora, escute. Não me importo com isso. Eu sou Holo, a Sábia
Loba. Se me fizerem agir como um mero cão, eu — eu ainda não
ficarei com raiva. Mas o que é isso? Este rato molhado em minha
frente, com o rosto inchado, coberto de lama? Meu companheiro foi
tão tolo a ponto de tropeçar e cair? E com queimaduras em seus pulsos!
Oh, é verdade. Diante de mim está um belo idiota, que não pensa duas
vezes em sua própria aparência, mas protege meu manto da chuva com
sua vida. De fato, um burro! Eu não tenho nenhuma ideia do que fazer
com um coração tão inacreditavelmente mole.”
Holo falou todo o seu longo discurso de uma só vez, então
respirou profundamente enquanto esfregava os olhos. “Bem. Imagino
que nós vamos para Ruvinheigen?” ela disse, voltando repentinamente
ao seu estado normal.
Seus braços e pernas estavam cobertos de arranhões e estavam
tremendo. Lawrence não achava que era por causa do frio. Esta era
Holo quando estava realmente com raiva.
CAPÍTULO VI ⊰ 262 ⊱

“Se formos agora, podemos entrar na cidade protegidos pela


escuridão. O mestre sempre deve assumir a responsabilidade pela
traição. Esta é a lei do mundo.”
Holo devolveu o manto para a proteção de Lawrence, então abriu
a bolsa de couro em torno de seu pescoço e colocou alguns grãos de
trigo em sua boca. Não houve hesitação.
“Espere, tem Liebert e Norah,” interrompeu Lawrence, agora que
finalmente teve a oportunidade de falar.
As sobrancelhas de Holo se levantaram. “Pense direito. Traição
demanda vingança. Pecados devem ser punidos. Mas se agirmos sem
pensar direito, isso não nos trará nenhuma satisfação. Não podemos
ficar satisfeitos até que tenhamos levado tudo deles. Não concorda?
Considere. Se atacarmos as pessoas que atacaram você, lidar com o
ouro mais tarde vai ser trabalhoso. Mas iremos primeiro para a casa do
mestre, o faremos pagar pelo que fez, e então atacaremos aqueles que
alegremente te traíram. Então, mataremos as ovelhas, pegaremos o
ouro, e iremos para onde for do nosso agrado. Ouso dizer que este é
o melhor plano.”
Apesar de sua raiva, a mente de Holo era clara e ágil como
sempre. Seu plano quase esmagou totalmente o de Lawrence.
No entanto, havia um motivo pelo qual teria que abandonar este
plano excelente.
“Penso da mesma foram, mas primeiro precisamos alcançar
Liebert — e rápido.”
“Você tem um plano melhor?” Holo perguntou depois de engolir
os grãos de trigo.
Sua expressão era ilegível, e Lawrence teve a sensação de que se
falasse algo errado agora, ele sentiria com toda a força o que quer que
estivesse por trás dessa máscara.
No entanto, ele não podia abandonar Norah.
“A Companhia Remelio planeja matar Norah.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 263 ⊱

Holo sorriu levemente. “Sim, e aqueles tolos planejaram matar


você também, e ainda assim você está vivo. Ela também pode
sobreviver, não acha?”
“Se você for salvá-la, teremos certeza que ela estará segura.”
“É mesmo?”
Lawrence se viu levemente irritado com olhar malicioso do Holo.
Por que ela estava agindo assim?
O tempo era curto. Se Norah e Liebert correram durante a noite,
eles poderiam alcançar o ponto de inspeção em Ruvinheigen antes do
amanhecer. E se chegassem lá, Norah seria morta logo em seguida.
A probabilidade era alta.
“Você poderia derrotar uma centena de homens armados em um
instante, não poderia?” Lawrence perguntou impaciente, mas Holo
apenas balançou a cabeça lentamente.
“Esse não é o problema.”
Então qual é o problema, Lawrence queria dizer.
“Eu sou uma loba. A garota é uma pastora. Somos eternas
inimigas.”
Por apenas um momento, Lawrence se perguntou por que Holo
estava trazendo de volta agora, mas então percebeu algo importante.
Se Holo atacasse Liebert e os outros em sua forma de loba, era
bem provável que Norah tentasse protegê-los.
Nesse caso, havia o risco de Liebert matar Norah, então como
Holo poderia explicar que ela estava lá apenas para caçar os homens da
Companhia? Será que Norah pelo menos aceitaria isso?
Se não, Holo acabaria sendo visto como a vilã.
Mesmo na melhor das hipóteses, Holo odiava pastores. Era óbvio
que ela não queria ir tão longe apenas para salvar Norah, e Lawrence
não poderia forçá-la.
CAPÍTULO VI ⊰ 264 ⊱

“Eu sei que não há nenhum benefício para você — na verdade é o


contrário. Mas eu não pedir isso a você? Uma pessoa inocente está
prestes a morrer, e eu não posso simplesmente ignorar isso.”
Holo olhou irritada de soslaio enquanto Lawrence tentava
convencê-la. Ela era a única que poderia salvar Norah.
“Vou te dever uma, é claro.”
Holo mexeu uma orelha e olhou para ele.
“...Que tipo de dívida?”
“Desde que você não diga algo como ‘Em troca da vida dela,’ vou
te dar o que eu puder,” Lawrence falou, tentando evitar a possibilidade
de Holo fazer tal demanda.
Ao ouvir suas palavras, o rosto dela ficou sério; ela provavelmente
estava planejando fazer exatamente isso.
“Por favor. Você é a única a quem posso pedir.”
O rosto de Holo continuava irritado do mesmo modo enquanto
ela agitava sua cauda encharcada preguiçosamente em
descontentamento. Ela segurou sua bolsa de couro com trigo na mão
e cruzou os braços, exalando vapor no ar frio.
“Holo...”
Lawrence sabia que havia um limite para o que poderia fazer. Mais
ainda, Holo tinha aturado humilhação para que seu contrabando de
ouro pudesse prosseguir. Ela havia sujado seus joelhos e, segundo ela,
teve que agir como um cão — ele podia imaginar inúmeras situações
horríveis em que pudessem tê-la forçado.
Então, depois de ter sofrido essa humilhação, descobre que seu
companheiro foi traído e feito de tolo.
Ele não podia criticá-la e já estava grato que ela estava disposta a
assumir sua forma de loba e atacar a Companhia Remelio. Pedir mais
era o cúmulo do egoísmo.
Holo exalou uma baforada de ar.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 265 ⊱

Ela sorriu, parecendo quase resignada.


“Ora vamos, não use esse tom de voz comigo,” ela disse com um
suspiro. “Aqui, pegue. Além disso, acho que é melhor tirar minhas
roupas. Seria problemático providenciar novas.”
“Você vai fazer isso?”
“Com uma condição,” disse Holo enquanto desabotoava o cinto
que segurava suas calças. Sua expressão era ilegível.
Lawrence engoliu em seco e esperou.
“Você deve entender que não garantirei a vida daqueles que me
incomodarem.”
Em outras palavras, se Norah visse Holo como uma inimiga e
protegesse Liebert e a companhia, ela não seria poupada.
Ele não conseguia dizer se ela estava brincando ou não.
Não — ela certamente estava séria.
Holo falou sem olhar particularmente para Lawrence. Sua
respiração não era rápida nem lenta.
Lawrence reuniu toda a sua habilidade mercantil para responder.
“Muito bem. Eu confio em você.”
Um vapor branco apareceu enquanto Holo ria como se desistisse.
“Você se tornou bastante inteligente. Exatamente com que tipo de
sujeito problemático estou viajando?”
Ela balançou a cabeça levemente e rapidamente tirou a blusa e
calça. Ela, então, tirou bruscamente os sapatos e, depois de pegá-los,
os atirou para Lawrence.
“O quê, nenhuma palavra de admiração?” ela disse, colocando a
mão em seu quadril, se virando e olhando por cima do ombro.
Era um pequeno preço a pagar.
“Sim...é uma cauda magnífica,” disse Lawrence.
“Mm, foi um pouco chato, mas suponho que isso basta.”
CAPÍTULO VI ⊰ 266 ⊱
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 267 ⊱

Holo se virou para encará-lo. “Agora, seja gentil e feche os olhos.”


Ela não tinha problemas com a nudez, mas evidentemente não
queria que ele testemunhasse sua transformação.
Lawrence não desejava se opor Holo aqui. Seus sentimentos sobre
o assunto eram complicados como ele bem sabia desde o incidente em
Pazzio.
Ele fechou os olhos e esperou.
Logo houve uma espécie de ronco abafado, como um grande
aglomerado de ratos correndo, e isso foi seguido pelo som de algo
ficando cada vez maior. Então ele ouviu algo enorme balançando para
lá e para cá no ar e então finalmente ouviu os passos pesados de um
grande animal.
Lawrence sentiu hálito quente em seu rosto.
Quando abriu os olhos, havia uma boca gigantesca diretamente na
frente dele.
“Se você tremesse, eu estava pensando em comer sua cabeça primeiro.”
“Bem, isso é bastante assustador,” Lawrence respondeu
honestamente enquanto as pupilas vermelhas de Holo pareciam olhar
através dele.
Ele confiava nela, afinal de contas.
Talvez ela tenha sorrido um pouco com a boca cheia de presas.
Houve um ligeiro grunhido.
“Devo carregá-lo na minha boca ou nas costas?”
“Me poupe da sua boca, por favor.”
“Você poderia acha-la surpreendentemente confortável.”
“Eu poderia ser tentado pelo calor e acabar em seu estômago.”
“Hee-hee-hee. Vamos, para as minhas costas. Se agarre no meu pelo; não
dói. Segure com toda a sua força.”
CAPÍTULO VI ⊰ 268 ⊱

O corpo de Holo tinha um calor misterioso, era como estar perto


de uma fogueira.
Lawrence hesitou um pouco com sua aura intimidadora, que
parecia fazer até mesmo a chuva desviar, mas uma vez que ele amarrou
as roupas dela e as colocou debaixo do braço, fez o que lhe foi dito e,
se agarrando no pelo dela, subiu na grande loba.
Ela tinha um cheiro animalesco, diferente de um humano, mas
nitidamente era Holo.
“Se você cair, vou carregar você na minha boca.”
“Vou me assegurar de não cair.”
Ele podia dizer que ela sorriu.
“Você sabe —”
“O quê?”
“Eu realmente odeio pastores.”
Por um momento, Lawrence não entendeu por que ela se
preocupou em repetir isso, mas quando percebeu que isso era
simplesmente seus verdadeiros sentimentos, ele falou para lembra-la
de algo.
“Norah sabe que se esse trabalho for bem-sucedido ou não, ela
terá que desistir de ser uma pastora.”
Lawrence sentiu um estrondo baixo; Holo estava rosnando.
“Como forma de agradecimento, é melhor você comprar mais pêssegos em
conserva do que posso comer.”
Em seguida, Lawrence foi atacado pela terrível sensação de que
estava prestes a escorregar, embaixo dele, o corpo enorme do Holo
começou a correr.
Ele se agarrou no pelo dela pela sua vida, se pressionando para
baixo, desesperado para não cair da sábia loba, que corria com uma
velocidade absurda. O vento em seus ouvidos soava como um rio veloz
transbordando.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 269 ⊱

Mas ele também sentiu algo a mais do corpo enorme que o deixou
tão aterrorizado quando viu pela primeira vez — ele o preenchia com
um calor indescritível.

A resistência de Holo era infinita e ela podia correr mais rápido


do que qualquer cavalo, mas, mesmo assim, não foram capazes de
deixar a floresta antes do sol começar a se pôr.
Seus pés afundavam a terra e a paisagem escurecia, como velas
sendo apagadas uma atrás de outra. A chuva era implacável e a
respiração de Holo deixava um rastro como uma nuvem.
Logo encontraram a estrada para Ruvinheigen. Holo virou à
direita, sem hesitação e pôs ainda mais velocidade.
Ocasionalmente, enquanto estava em suas costas, Lawrence podia
ouvir um som diferente da respiração, talvez era o seu rosnado.
Ela disse que poderia acabar matando alguém.
Naquela hora, Lawrence pensou que ela planejava parar pouco
antes de matar alguém.
Se não, não havia “talvez” sobre o assunto. Não havia um humano
que pudesse sobreviver às garras e presas de Holo.
“Hey,” veio a voz repentina do Holo. Havia muita tensão em sua
voz para que fosse apenas conversa fiada. “Alcançaremos eles em breve. Eu
não me importo nem um pouco se ficar nas minhas costas, mas você pode não
gostar. Vou saltar diretamente sobre eles, então vou abaixar, assim você pode
descer.”
“Entendido.”
“Se você demorar, vou simplesmente te arremessar.”
Lawrence não pôde responder, e Holo se lançou à frente,
acelerando a uma velocidade assustadora.
Ele se perguntava se isso era como montar uma flecha atirada de
um arco quando Holo respirou fundo.
CAPÍTULO VI ⊰ 270 ⊱

E então um uivo trovejante ecoou.


De repente, o barulho dos passos constantes de Holo cessou.
Eles estavam voando.
A única maneira de chegar perto da sensação seria saltar com um
cavalo de um penhasco — mas assustadoramente, a sensação durou.
Lawrence se agarrou ao corpo de Holo enquanto caíam por um longo
e doloroso tempo. É agora? É agora? É agora? A mente de Lawrence
gritava, se perguntando quando o pouso viria.
Quando ele finalmente sentiu o impacto dos pés de Holo batendo
no chão, Lawrence não tinha certeza se ainda estava vivo.
Ele estava com medo de ser arremessado com a desaceleração
súbita quando Holo repentinamente se virou e se agachou.
“Desça,” ela disse em voz baixa.
Lawrence se lembrou do que tinha lhe foi dito antes. O terror do
salto não havia desaparecido, mas ele conseguiu descer das costas de
Holo e pisar no chão sem cair. Houve um pequeno momento de alívio,
então Holo se levantou.
“Deixe o resto comigo,” ela falou e saiu correndo, Lawrence lutou
para segui-la.
Holo pulou para o seu campo de caça em um piscar de olhos, e
apesar escuridão crescente, Lawrence podia ver claramente a confusão
causada pela aparição da loba gigante diante de sua presa.
Havia cerca de vinte pessoas. Os homens da Companhia Remelio
deram um grito, e de alguma forma Lawrence viu que Norah estava
entre eles. Eles tinham chegado a tempo.
Holo estava no meio do turbilhão. Alguns dos homens brandiam
longas lanças, mas poderiam muito bem balançar bandeiras brancas
que não faria diferença. Com a pontas das lanças apontadas para o alto,
eles brandiam as armas inutilmente para frente e para trás; a extensão
de sua confusão era evidente.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 271 ⊱

No meio de tudo isso, algo que parecia uma bola de lama podia
ser visto voando ocasionalmente. Era difícil dizer no escuro, mas
pareciam ser pessoas — Lawrence podia ver suas mãos se movendo
descontroladamente enquanto procuravam pelo chão que desapareceu
de repente.
Se Holo estivesse atacando seriamente as pessoas com suas patas,
certamente estariam mortos, então talvez ela os estivesse jogando de
lado de propósito.
Um homem foi arremessado no ar — agora dois — e as longas
espadas que eram lançadas na Holo em pânico faziam um som agudo
ao serem rebatidas para longe.
Com a escuridão começando a tomar conta, as espadas que eram
jogadas em Holo eram arremessadas para tão longe e com tanta força
que os olhos de Lawrence não conseguiam acompanhar. Ele chegou
tão perto de Holo que podia ouvir sua respiração e as espadas caíam na
terra perto dele.
Lawrence podia dizer que elas foram arremessadas bastante alto,
pois as espadas caíam com tanta força que elas se enterravam até o
punho no chão.
A Companhia Remelio apostou tudo nesta operação e despachou
muitas pessoas para matar Lawrence e Norah.
No entanto, a maioria deles agora estava inconsciente, espalhados
no chão como sapos atordoados, ocasionalmente pisoteados pelas
ovelhas em pânico que corriam em círculos.
“Protejam as ovelhas e a pastora!”
Lawrence cortou a respiração ao ouvir essa voz.
Era Liebert.
Ele olhou e viu que o jovem gerente era um dos poucos a tomar
uma ação racional.
Mantendo o seu cavalo em pânico sob controle, Liebert brandia
uma lança e gritava ordens para uma inútil retirada.
CAPÍTULO VI ⊰ 272 ⊱

Sua natureza tímida enquanto viaja com Lawrence e os outros


aparentemente era fingimento para fazê-los baixar a guarda.
Se o homem era esperto e cuidadoso o suficiente para executar
essa traição complicada, ele certamente era capaz de algo assim.
“Protejam a pastora! Corram! Corram!” Liebert gritou
novamente. Mesmo que planejasse matar Norah eventualmente, ela
ainda era fundamental para passar o ouro através do ponto de inspeção.
Apesar das ordens firmes e as tentativas corajosas de alguns
homens da Companhia Remelio para realizá-las, diante de um ataque
de Holo que era obviamente concebido para esmagar suas esperanças,
muitos dos homens choravam e fugiam. Holo ignorou os poucos que
ainda brandiam suas espadas ou lanças e perseguiu os que entraram em
pânico.
Era uma tática diabólica.
Quando Holo acertou um deles pelas costas, ela o fez rolar, e
então fez os outros pobres companheiros que estavam encolhidos
saírem voando com o seu nariz.
Isso tudo aconteceu tão rápido que parecia que não iria durar por
muito mais tempo.
O número de homens ainda de pé era reduzido constantemente.
Agora era apenas Liebert em seu cavalo, Norah petrificada, e Enek
tentando protegê-la valentemente.
Holo balançou sua grande cabeça.
Algo se esparramou — chuva, suor ou sangue.
“Pas-pas-pastora! Me proteja! Me proteja!” Liebert gritou,
apertando o peito, mas era difícil dizer se isso era porque seu coração
estava quase parando, ou se era para proteger o ouro em seu casaco.
Liebert gritou, parecendo exatamente como as estátuas de
pecadores que sofriam no inferno que decoravam as igrejas, mas por
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 273 ⊱

algum milagre, ele controlou seu cavalo e ficou atrás de Norah junto
com seu rebanho.
Ela podia ser uma pastora, mas Norah era uma garota delicada.
A cena fez Lawrence deixou Lawrence enojado — e Liebert havia
planejado matar tanto ele quanto a garota.
Assim que Norah estava prestes a desabar de medo, a pastora
pareceu se lembrar do seu dever.
Com uma mão incerta, ela levantou o bastão para o alto, tocando
o sino na sua ponta, e Enek se abaixou, como se estivesse pronto para
receber ordens.
Holo olhou para Norah de cabeça erguida, baixando o seu corpo
enorme como uma catapulta carregada.
A respiração de Lawrence parou. Holo estava séria. Neste ritmo,
Norah poderia ser morta.
Entre a escuridão e a confusão súbita causada pela aparição de
Holo, ninguém notou à uma pequena distância Lawrence.
Ele pensou se caso se identificasse, pelo menos Norah
reconheceria a loba gigante como Holo.
Havia o risco de ajudar Liebert, mas Lawrence estava tentando
pensar de forma realista.
Não havia nenhuma maneira de Holo deixá-lo sair ileso.
Lawrence tinha que fazer sua presença ser notada.
Ele estava prestes a gritar quando —
“Pastora! Vou te pagar trezentos lumiones se me proteger!”
No meio de seu pavor, depois de ter levantado seu cajado
praticamente por reflexo, a expressão de Norah mudou de repente.
Trezentos lumiones poderiam fazer isso com uma pessoa.
Norah silenciou seu sino. Seu rosto começou a se encher de
determinação.
CAPÍTULO VI ⊰ 274 ⊱

Liebert, com a astúcia de uma serpente, pareceu perceber isso.


Ele virou seu cavalo para o lado oposto e começou a galopar para
longe a toda velocidade.
Lawrence gritou com uma voz estrangulada.
Norah, fiel à sua profissão, balançou seu cajado.
Era tarde demais.
A ideia explodiu na cabeça de Lawrence enquanto o tempo parecia
desacelerar.
Enek e Holo, embora seus tamanhos fossem muito diferentes,
assumiram a mesma postura, como flechas em um arco momentos
antes de serem disparadas.
O bastão de Norah ainda erguido, apontado diretamente para
Holo.
Lawrence pensou ter ouvido um sino tocar, calmamente — ting!
“— !”
Lawrence gritou algo, mas se foi o nome de Holo ou de Norah,
ele não sabia — se isso sequer era um nome.
Seus olhos tensos vigiavam o menor sinal de ataque de Enek e
Holo.
E então, ele viu o momento em que o valente cão pastor e a
enorme loba divina se atacaram.
Ele estava certo de que no instante seguinte veria o corpo de Enek
ser rasgado pelas enormes garras de Holo antes dessas mesmas garras
se voltassem contra sua mestra.
Então aquelas patas se esticariam mais para aplicar a sentença de
outra existência indigna, transformando-o em uma massa de carne que
nem serviria para o abate.
Arrependimento.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 275 ⊱

Lawrence nem sabia do que ou como se arrependia, apenas sabia


que lamento preenchia sua alma.
E então —
“Enek, espere!”
Aquelas palavras eram como um sinal mágico, restaurando o
tempo ao seu fluxo normal.
A forma enorme de Holo saltou pelo ar como uma pedra atirada
de uma catapulta, passando por cima do cão e sua mestra e aterrissando
entre as ovelhas, que se espalharam caoticamente.
Imediatamente após pousar, Holo correu atrás do fugitivo
Liebert, cujo desejo por dinheiro o reduziu ele a um mero suíno.
Quando ele se virou e viu a loba perseguindo ele, Lawrence teve
um vislumbre de seu rosto patético.
Um curto grito rasgou o ar, mas foi logo silenciado.
Holo correu mais alguns passos, depois parou.
Norah ainda segurava Enek.
No entanto, Lawrence podia dizer que não era de medo que ela
se agarrava a ele.
De alguma forma, Norah sabia. Ou ela sabia que a loba gigante era
Holo ou que não estava tentando atacá-la, mas em ambos os casos, ela
sabia que não deveria deixar Enek atacar.
Ela havia descartado seu cajado — algo que nenhum pastor faria
— e desesperadamente segurava Enek para detê-lo.
Isso não era medo.
“Norah!” Lawrence gritou e correu em direção a ela, ainda
preocupado se ela estava ferida.
Ainda restringindo Enek, Norah olhou para cima, duplamente
chocada ao ver Lawrence. Então se virou lentamente para Holo, desta
vez sem surpresa.
CAPÍTULO VI ⊰ 276 ⊱

Seu aspecto sugeria que ela tanto tinha como não tinha entendido.
A emoção no peito de Lawrence praticamente explodiu por sua
boca. “Estou tão feliz que você está bem!”
Norah pôde ver que a loba gigante responsável por tudo isso ainda
estava ilesa, então ela não tinha ideia de como reagir a estas palavras.
Ela olhou para Lawrence com uma expressão atordoada no rosto,
confusa.
“Essa loba é Holo. Quero dizer, minha companheira.”
Norah sorriu sem jeito; provavelmente pensou que era algum tipo
de piada.
Ela respirou rapidamente enquanto Holo vinha saltitando até eles.
Um par de pernas balançava na boca de Holo.
“Você não o matou?”
Lawrence sentiu um certo impulso homicida quando viu Liebert
usar Norah como escudo. Se dependesse de Lawrence, ele teria
matado o homem.
Considerando as pernas balançando na boca de Holo, a questão
parece estar resolvida, mas em vez de responder, Holo balançou a
cabeça um pouco e deixou o homem cair no chão. Ensopado em saliva,
Liebert caiu com um desagradável splash.
“Pensei em engolir ele, admito.” Holo parecia sorrir. “Mas ouro não faz
bem para o meu estômago.”
Ela fungou levemente e inclinou o focinho em direção Liebert.
“Pegue o ouro,” ela parecia estar dizendo.
“Acho que estava em seu casaco... Ugh, ele está encharcado,”
Lawrence reclamou, quando um enorme focinho o cutucou. Ele
mexeu com raiva nas roupas quentes e molhadas da Liebert e
facilmente encontrou o saco de ouro.
“Aqui está. Ouro puro,” ele falou ao abrir o saquinho e ver os
grãos de ouro no interior.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 277 ⊱

“Norah,” ele disse, jogando o saco para a pastora.


Holo deu um olhar de provocação para Lawrence, que ele
ignorou.
“O trabalho ainda não acabou. Você tem que levar o ouro para
dentro da cidade.”
A loba colossal soltou um enorme suspiro. Surpresa, Norah olhou
para Holo, mas então se voltou para Lawrence. “M-mas... como você
ainda está vivo?”
Lawrence fez uma expressão amargurada. Depois de se reunir
com seus companheiros, Liebert mandou homens de volta para a
floresta para “salvar” Lawrence.
Mas esses mesmos homens retornaram sem ele, o que significava
que Lawrence e Holo tinham certamente morrido.
Lawrence tentou pensar por onde começar sua explicação dos
acontecimentos quando sentiu uma agitação do ar e, olhando por cima
do ombro, viu Holo levantar a pata da frente e abaixá-la com força.
“— Urghyaaaaa!”
Houve um forte estalo, como um grosso galho de árvore sendo
quebrado, seguido de um grito ensurdecedor que ecoou na escuridão.
Parecia exagero para Lawrence, mas também merecido.
Após seu grito ser abafado, Liebert — cuja perna esquerda acabou
de ser quebrada pela pata dianteira de Holo — mexeu sem palavras,
os olhos abertos.
“Boa noite, senhor Liebert! Como você está hoje?”
“O-o que.... Uh? C-como você estáaaaagghghh!”
“Holo. As conservas de pêssego com mel.”
Como que por magia, essas palavras dissiparam a raiva revigorada
de Holo, e ela relutantemente tirou sua pata da perna quebrada do
homem.
CAPÍTULO VI ⊰ 278 ⊱

“Sr. Liebert. Sr. Liebert! Faria a gentileza de explicar para Norah


como enquanto você se vestia, digamos, abotoou os botões errados,
por favor?”
Liebert limpou o suor da testa e, por um minuto, seu senso de
mercador apareceu por trás do terror e da dor — era o rosto sagaz de
um comerciante que entendia a situação e estava tentando identificar
uma forma de salvar sua própria vida.
“Sr. Liebert!”
“N — não fui eu! Foi ordens de Remelio. Eu disse a ele para não
fazer isso. Disse que traição provocaria a ira de Deus. Eu juro, eu fui
contra isso —”
“Como você pode ver, esta não é uma loba qualquer. Pense nela
como uma representante do Deus todo poderoso. Em outras palavras,
mentiras não vão te salvar,” disse Lawrence.
A boca de Liebert se fechou, ele olhou para Holo com desespero
nos seus olhos.
Lentamente, muito lentamente, o hálito branco de Holo emergiu
entre seus dentes.
“Eu-eu-eu pensei, eu pensei que nós estávamos pagando muita
para vocês. Remelio também. Nesse ritmo usaríamos todo o lu-lucro
para pagar as nossas dívidas e não sobraria nada. Remelio me disse para
fazer algo sobre isso. Eu ti-tinha que fazer algo. Eu não tive escolha.
Vo-você entende, não é? Afinal de contas, nós dois somos merca —”
Ele foi cortado quando Lawrence deu um soco no nariz.
“Eu não sou como você.”
“Ha-ha-ha-ha!” Holo riu com vontade, tirando a pata de cima de
Liebert, que estava mais uma vez inconsciente.
“É assim que as coisas são. A Companhia Remelio planejava matar
você, Norah. Juro isso para você — eles nos traíram.”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 279 ⊱

O rosto de Norah branco, mas de algum modo a situação parecia


estar entrando lentamente em sua cabeça.
Ela olhou lentamente para Lawrence.
“M-mas, e os lobos na floresta...?”
“Isso foi outra coisa,” interrompeu Holo, fazendo Norah dar um
pequeno grito de surpresa. Afinal, a voz de Holo era bastante clara.
“Eu sou Holo, a Sábia Loba de Yoitsu. O que estava naquela floresta era
nada mais do que um moleque cuja única qualidade era o seu senso de território.
Sou prudente o suficiente para evitar uma luta sem sentido sobre algo assim.”
Norah ouviu Holo com uma expressão meio-crédula, e depois
sorriu impotente enquanto lentamente soltava Enek. “Eu não sei por
que, senhorita Holo, mas de alguma forma, quando você diz isso eu
meio que acredito em você.”
“E por sinal, seu cão nunca esteve apaixonado por mim. Ele simplesmente
notou a minha verdadeira forma. Achei que deveria informá-la.”
“O qu —?” Norah falou surpresa, nesse ponto Enek deu um único
latido bravo.
“Agora, Norah, voltando ao assunto em questão,” disse Lawrence.
Ele se sentiu mal em mudar de assunto mais uma vez, mas o caso
ainda não foi resolvido.
O ouro ainda estava em trânsito, e a dívida de Lawrence ainda
estava por pagar. Também havia também a questão do que fazer com
a Companhia Remelio.
“Estamos no meio de uma espécie de tempestade no momento.
No entanto, pela graça de Deus, de alguma forma recuperamos o ouro.
Se acreditarmos em Liebert, isso vale seiscentos lumiones. Contudo, se
pudermos entrar em Ruvinheigen e vender para um corretor,
devemos conseguir cerca de dez vezes esse valor — seis mil lumiones.”
CAPÍTULO VI ⊰ 280 ⊱

Norah pareceu vacilar ao tamanha quantia, que era tão grande que
até mesmo Lawrence teve problemas em fazer sua mente aceitar o
valor.
“Seis mil é muito mais do que poderíamos receber, e mesmo sem
enfrentar esse perigo, temos seiscentos na mão agora. No entanto...”
“No...entanto?”
“No entanto, embora seja verdade que a culpa é da Companhia
Remelio que este plano foi mais turbulento do que qualquer um
gostaria que fosse, também é verdade que sem o investimento deles,
nunca seríamos capazes de comprar o ouro. E se pegarmos o ouro e
fugir, eles serão deixados à ruína, falência imediata. Então —”
Holo cutucou o lado do rosto de Lawrence com o focinho e de
não foi brincando.
Lawrence compreendia o que ela estava tentando fazer.
“Então, proponho o seguinte.”
“Agora, espere aí —,” Holo começou em tom de desagrado, mas
Lawrence não iria ceder.
“Holo. Nós não vivemos em um mundo de fantasia. Não podemos
simplesmente nos vingarmos daqueles que nos traíram e dizer ‘Fim,’
Temos que seguir com a vida depois disso. E se vingar por traição só
atrai mais a vingança.”
“Bem, então —”
“Vai me dizer que mataria todos da companhia falida?”
“Hum —”
“No fim, não quero que o pão que comprarei amanhã seja pago
com sangue. Há muitas maneiras de acabar com isso, mas se quisermos
ter uma vida amanhã, temos que escolher um caminho que permita
isso.”
Os olhos âmbar de Holo se fecharam.
Ela desviou o olhar.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 281 ⊱

“Se não fosse por você, eu estaria morrendo de frio na floresta


agora. Estou plenamente ciente que se você não estivesse aqui, tudo
estaria perdido, e eu agradeço por ouvir o meu apelo. Mas —”
“Chega. Já chega. Ah, meu companheiro de viagem é indescritivelmente
cansativo!” disse Holo, acertando a cabeça de Lawrence levemente com
o focinho. Doeu, mas se isso satisfazia seu egoísmo, era um pequeno
preço a pagar.
“Então, aqui está o que preciso que você faça.”
“Diga de uma vez! Deixe-me apenas dizer isso — eu vou fazer qualquer
tarefa que seu plano cansativo exija de mim, então fale logo.”
Lawrence sorriu, indescritivelmente agradecido, e respirou fundo
antes de se voltar para Norah.
“Desculpe te manter esperando. Aqui está o que proponho que
façamos.”
Tendo ouvido a estranha conversa entre Holo e Lawrence, Norah
se endireitou e olhou em frente.
“Eu gostaria que você decidisse se devemos ou não levar o ouro
para Ruvinheigen.”
“O qu —?”
Era uma pergunta óbvia. Sem correr mais riscos, ela tinha
seiscentos lumiones em mãos. Claro, seis mil era um ganho inimaginável
sobre o que eles tinham, mas isso significaria arriscar sua vida de novo.
“No entanto, se você levar o ouro para Ruvinheigen, o enorme
lucro vai salvar tanto nós quanto a Companhia Remelio.”
Com isso, Norah deixou escapar um pequeno “Oh.”
“Por outro lado, se você decidir ficar com o ouro, então todos
esses homens aqui caídos, junto com suas famílias em Ruvinheigen e
outros remanescentes da companhia, terão que enfrentar o inferno.
Alguns deles não se livrarão de sua ira. Mas em seus corações, eles vão
CAPÍTULO VI ⊰ 282 ⊱

guardar rancor contra três demônios — estes são eu, Holo e você,
Norah.”
Mesmo para alguém que vivia de viagens, ser objeto de tais
sentimentos vindos tantas pessoas poderia tornar a vida muito mais
perigosa. Negócios consistiam de trocas entre as pessoas. A localização
de Lawrence, Holo e Norah acabaria por ser revelada e espadas
colocadas em suas gargantas.
Havia um outro ponto importante para falar.
“É claro que, se fugirmos para algum país estrangeiro com uma
língua estrangeira, podemos viver como se nada tivesse acontecido.
Mas mesmo vivendo sem temer a vingança, suponha que você cruze
caminho com um escravo com um rosto familiar, sendo chicoteado
como um burro de carga. Será que seria capaz de dormir à noite?”
Lawrence fez uma pausa, permitindo que as suas palavras
surtissem efeito.
“No entanto, vou exigir retratação com a Companhia Remelio.”
Holo riu em desagrado.
“Iremos para lá em seguida. Da sua parte, Norah, por favor, faça
sua decisão até amanhã de manhã. Se você decidir levar o ouro até
Ruvinheigen, vamos nos encontrar na mesma praça onde discutimos
isso pela primeira vez. Vou para a cidade agora, conseguir um
açougueiro de confiança, e esperar no portão oriental por um dia. Se
você decidir não levar o ouro...Hm. Vamos nos reunir em Poroson.”
Este plano, é claro, dava espaço para outra traição.
Norah poderia pegar todo o ouro e fugir para outra cidade.
Para todos viverem sem arrependimentos, no entanto, seria
melhor que ela levasse o ouro para Ruvinheigen, assim a Companhia
Remelio poderia ser salva e o dinheiro dividido de forma justa.
No entanto, Lawrence tinha que considerar o que fazer se Norah
fosse pega no posto de controle. Sem exceção, contrabandistas de ouro
eram executados na praça, então ele teria apenas que pedir para Holo
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 283 ⊱

resgatá-la, se necessário. Holo prometeu fazer o que ele pedisse, não


importa o quão cansativo fosse a tarefa.
Lawrence não estava particularmente tentando dar tempo para
Norah pensar, mas em todo caso, enquanto aguardava sua resposta, ele
foi até os homens inconscientes da Companhia Remelio e os amarrou.
Ele não tinha corda, então usou as mangas de seus casacos. Mesmo que
os homens cooperassem para desfazer os nós, nenhum deles parecia
em condições de fazer qualquer coisa extenuante.
“Então, Norah. Nos encontraremos novamente,” Lawrence falou
uma vez que terminou de amarrar os homens e fez Holo nocautear os
poucos que estavam recuperando a consciência.
Ele não disse isso para tentar persuadi-la de algo em particular.
Era apenas para ganhar a confiança dela e trazer um resultado
favorável para todos.
A lua brilhava vagando através das nuvens grossas.
“S-Sr. Lawrence!”
Ele parou quando ela chamou seu nome.
“No-nos encontraremos novamente!”
Ele olhou por cima do ombro para vê-la segurando seu cajado.
“Iremos,” disse. “E seremos ricos.”
Norah sorriu e assentiu.
Enek latiu e começou a reunir as ovelhas.

“Bem, agora.”
Depois deles caminharam por um tempo, Lawrence começou a
pensar em montar nas costas de Holo, mas ela aparentemente já
antecipou isso e falou a tempo de interrompê-lo.
“O quê?” ele disse, um pouco irritado. Ele tinha certeza que ela
tinha escolhido aquele exato momento de propósito.
CAPÍTULO VI ⊰ 284 ⊱

“Posso ouvir a verdade agora?”


Holo o olhou diretamente com seus grandes olhos. Mentiras não
o salvariam — ele tinha dito a mesma coisa para Liebert.
Lawrence estava ciente da expressão aflita que distorcia seu rosto.
“Me deixe continuar com a farsa um pouco mais.”
“Heh-heh. Não.”
Olhando para sua cauda abanando alegremente, Lawrence sabia
que ela continuaria perguntando até que ele cedesse.
Ele rapidamente desistiu da enganação.
“Aquilo não é ouro o suficiente.”
“Oh ho.”
“De jeito nenhum tem seiscentos lumiones naquele saquinho. Tem
no máximo cem lumiones.”
“Sua parte seria usada apenas para pagar a sua dívida. Se ela não
contrabandear o ouro, não haverá nenhum lucro.”
A ponta de sua grande cauda roçava a parte de trás do seu pescoço.
Ele a afastou; ela rosnou brincando.
“A Companhia Remelio deve estar contra a parede. Eles devem
ter lutado para conseguir cem lumiones esperando se virar com isso.
Claro, eles sabiam desde o início que teriam que nos pagar o suficiente
para manter nossas bocas fechadas, mas é exatamente por isso que
aceitaram o nosso plano primeiramente.”
E mesmo assim, a posição de Lawrence era tal que não tinha
escolha a não ser confiar nessa mesma companhia.
“Hmph. Ainda assim, aquela certamente foi uma hábil desculpa que você
deu para ela. Você é como a um santo.”
“Fui em grande parte sincero.”
“...”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 285 ⊱

Holo riu com o nariz, depois parou e se agachou.


“Suba.”
“O quê, sem mais interrogatórios?”
“Estou cansada das suas tolices.”
Estreitando seus olhos âmbar, ela o cutucou com o focinho.
Era apenas um leve toque, mas Lawrence quase tropeçou e caiu,
mas seu medo da forma de lobo de Holo tinha quase completamente
desaparecido.
“Ainda assim, não estamos salvando a Companhia Remelio
simplesmente por caridade.”
“Oh?”
Lawrence agarrou o pelo de Holo e levantou suas pernas.
“Não. Estamos fazendo isso para conseguirmos mais dinheiro para
nós.”
Ele passou as pernas rapidamente sobre as costas dela.
“Mais dinheiro, eh? Não posso dizer que acompanho.”
“Mercadores podem converter todo tipo de coisa em dinheiro.
Tenho que ser de alguma utilidade de vez em quando.”
No início, pensou que ela estava brincando com ele, mas o riso de
Holo era verdadeiro.
“Estou ansiosa para observar suas habilidades, senhor!”
Holo ficou de pé e começou a andar, logo começou a correr.
A lua dourada ocasionalmente ficava visível no céu escuro.

Talvez devido à chuva que caía desde o meio-dia, a noite em


Ruvinheigen estava excepcionalmente tranquila.
“...De-deve ter algum tipo de problema. Certo? Como quando
você esquece de colocar sal na sopa.”
CAPÍTULO VI ⊰ 286 ⊱

Lawrence sabia muito bem que mercadores eram pessoas que, não
importa a circunstância, viviam dizendo mentiras.
No entanto, a confiança era importante, mesmo entre os
mentirosos — mercadores eram criaturas estranhas, de fato.
Lawrence ponderou isso.
“E-eu não sei o que Liebert disse. Tenho certeza de que soou como
a verdade divina, como se estivesse confessando diante de um altar.
Mas foi uma mentira! Ele mente sobre tudo! Estive pensando em
demiti-lo — eu juro!”
A voz do homem era rouca e difícil de ouvir estando tão exaltado,
mas isso não era uma negociação delicada. Desde que Lawrence
pudesse entender o essencial, isso seria o bastante.
“Sr. Remelio.”
“Y-y-yaaagh!”
Remelio deu um grito curto pois sua cabeça estava firmemente
presa entre as mandíbulas de Holo, e ele a sentiu aumentar a pressão
só um pouco.
Lawrence e Holo tiveram a sorte de encontra-lo sozinho no
escritório, esperando seus funcionários retornarem.
Instantes atrás, Holo saltou sobre as muralhas da cidade com uma
facilidade inacreditável. Lawrence tinha planejado entrar na cidade
com Holo em forma humana e simplesmente alegar que foram
assaltados por bandidos, mas Holo, que podia sentir qualquer presença
do outro lado da muralha, simplesmente disse, “Está seguro,” e
atravessou com um único salto. Foi tão fácil que Lawrence se
perguntou se poderiam ter evitado todo este problema e
contrabandeado o ouro eles mesmos.
Eles entraram na cidade sem serem vistos e, uma vez que Holo
voltou temporariamente a sua forma humana, se infiltraram
silenciosamente na Companhia Remelio.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 287 ⊱

Remelio estava esperando o retorno de seus homens, então


quando viu Holo e Lawrence, ele tomou um belo susto.
Ele agora estava amarrado e no chão, com a cabeça presa entre os
dentes terríveis de Holo, parecendo como se fosse morrer de pavor.
Parecia imprudente deixar Remelio ver forma de lobo de Holo,
mas ele e Lawrence compartilhavam o segredo do contrabando de
ouro. Se Remelio quiser ir à Igreja com essa revelação, deixe ele ir —
havia uma montanha de provas circunstanciais contra ele.
Nenhum mercador falaria da fraqueza de seu oponente quando
este poderia facilmente fazer o mesmo com ele.
Além disso, deixar Holo aterrorizar Remelio a faria se sentir
melhor, e o terror avassalador desencorajaria o mestre de tentar se
vingar mais tarde.
Sem surpresa, os resultados foram imensos.
“A mandíbula que agora segura sua cabeça entre os dentes é a
mandíbula da verdade, meu amigo. Se você mentir, elas saberão. Além
disso, ouvi que esta loba está com fome depois de ter que correr a noite
toda. Se você mentir, sua cabeça pode simplesmente ser devorada.”
As presas de Holo fecharam um pouco mais contra as têmporas de
Remelio.
Ele não conseguia mais nem gritar.
“Tudo bem, Sr. Remelio. Saiba que não retornei para me vingar
de sua traição. Vim para fazer negócios.”
Um pouco de luz voltou aos olhos de Remelio com a palavra
negócios, talvez percebendo que negócios eram sobre fazer acordos, e
se um acordo poderia ser feito havia a possibilidade de não morrer
aqui.
“Nossas negociações começam agora. Sinta-se livre para mentir a
seu favor tanto quanto desejar. No entanto, a loba aqui é muito mais
esperta do que eu e pode ver o significado oculto por trás de cada
CAPÍTULO VI ⊰ 288 ⊱

palavra sua. Se cometer qualquer deslize, você pode acabar sem uma
cabeça. Fui claro?”
Com a cabeça presa nas mandíbulas de Holo, Remelio não podia
assentir apropriadamente, mas ele tentou, e isso era bom o suficiente.
“Então vamos começar,” disse Lawrence francamente. “No caso
de termos sucesso com o contrabando de ouro, eu poderia lhe pedir
para comprá-lo de nós por quinhentos lumiones?”
Os olhos de Remelio estavam absurdamente abertos.
“Nós ainda somos cúmplices de contrabando. Certamente você
não acha que voltaríamos para nos vingar depois de pegar o ouro.”
Remelio assentiu como uma criança castigada, o que fez Lawrence
sorrir amargamente. “Bem, não vou dizer que não há nenhuma chance
disso acontecer, mas não, não acho que vai ser assim. Mas se não
falarmos sobre o que fazer quando tivermos sucesso — bem, podemos
acabar discordando, não podemos?”
Holo riu no fundo de sua garganta, fazendo com que a cabeça de
Remelio tremesse junto com sua boca; seu rosto ficou tenso com um
sorriso nervoso.
“Então, vou dizer outra vez. Posso pedir para comprar o ouro de
nós por quinhentos lumiones?”
O rosto de Remelio se distorceu com o desespero — ele sabia o
quanto o ouro comprado em Lamtra realmente valia.
“Não posso concor —”
“Claro, não espero que pague tudo agora. Vamos ver. Talvez você
pudesse fazer uma dívida escrita?”
Nesse momento, o dono da Companhia Remelio mostrou a
inteligência que o fez chegar nessa posição.
Ele fez uma expressão dolorosa quando entendeu o que Lawrence
estava dizendo e implorou por misericórdia. “Qui-quinhentos, é
simplesmente —”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 289 ⊱

“Demais? Bem, hmm. Nesse caso, vou apenas levar tudo o que
você tem escondido por aqui e vender o ouro para outra pessoa.”
Lawrence trocou um olhar com Holo e acrescentou, “Além disso, vou
deixar que esse demônio ficar com a sua vida.”
Holo odiava ser chamada de deusa, mas aparentemente não se
importa em ser chamada de demônio.
Sua cauda balançava no ar e ela ofegou dramaticamente.
Todas as expressões drenaram rapidamente do rosto de Remelio.
Se o palpite de Lawrence estivesse correto, isso significava que
agora Remelio faria tudo o que eles pedissem.
“Entenda, Sr. Remelio, não acho que seja justo perder tudo por
causa de um único erro. Não podemos prever perfeitamente cada
queda de preço, podemos? Então quero te dar outra chance. Mas quero
você seja grato por isso, e quero que essa gratidão assuma a forma de
quinhentos lumiones. Você construiu uma empresa maravilhosa com
uma magnífica plataforma de carga em uma cidade como esta. Se você
pensar em termos de décadas, quinhentos certamente é uma
barganha.”
Os olhos de Remelio se arregalaram, e depois de um momento,
começou a chorar.
Se pudesse reconstruir sua companhia pagando quinhentos
lumiones ao longo de dez anos, estava longe de ser uma proposta
irracional. Um mercador viajante não era páreo para uma empresa
comercial nesse quesito.
Talvez essas lágrimas fossem da ideia de gerenciar uma empresa
revivida.
“Então você vai escrever a nota? Holo —”
Ao ouvir seu nome, Holo suspirou e relutantemente liberou
Remelio, cutucando a cabeça dele com a ponta do seu nariz.
CAPÍTULO VI ⊰ 290 ⊱

Lawrence desamarrou a corda que prendia Remelio e continuou.


“Os termos serão parcelas anuais ao longo de dez anos. A primeira será
de dez lumiones. A última será de cem. Você entendeu, não é?”
Isso significava que o débito aumentaria a cada ano. Somando
chegaria a cerca de 550 lumiones, mas ainda era uma excelente taxa de
juros.
Se Remelio pudesse fazer sua empresa funcionar mais uma vez,
não seria uma quantia difícil de pagar.
“Você pode escrever naquela mesa.”
Remelio assentiu e aceitou a mão de Lawrence para ficar de pé.
Seus pés ainda estavam amarrados, então ele cambaleou até a mesa e
se sentou.
“C-certo então isso deve ser pago no nome de...,” começou
Remelio, se virando.
Lawrence sorriu e respondeu, “Da Guilda Rowen de Comércio.”
Remelio riu quase com tristeza, percebendo que nunca seria capaz
de fugir desta dívida.
Se Lawrence mantivesse o empréstimo a nível pessoal, então
quando os anos passassem e Remelio ganhasse força, este poderia se
vingar ou desfazer o reembolso. Além disso, Lawrence temia a ideia
de ter que voltar todos os anos para lidar com as pessoas que o fizeram
mal a fim de exigir o seu dinheiro.
E o mais importante ainda era a atual falta de ativos da Companhia
Remelio. Não importa quantas dívidas de obrigação tivesse, Lawrence
não veria este dinheiro por um ano. Mesmo que a dívida que tinha
originalmente com essa empresa tivesse acabado, seu lucro do
contrabando de ouro poderia ser usado para compensar Norah e pagar
dívidas para reerguer a Companhia Remelio. No pior dos casos, Norah
pode até nem receber sua compensação.
Mas todos esses problemas eram resolvidos ao pôr a guilda
mercantil com a qual Lawrence estava ligado para segurar o
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 291 ⊱

empréstimo. Ao vender a dívida para a Guilda Rowen de Comércio


por um preço relativamente barato, ele poderia cortar seus laços com
a Companhia Remelio e converter dez anos de reembolso em dinheiro
imediato.
Além disso, não pagar um empréstimo mantido por uma guilda
comercial era como declarar guerra à outra cidade. A Companhia
Remelio nunca se atreveria a fazer isso.
“Você é um homem formidável.”
“Não tão formidável quanto a loba,” Lawrence respondeu
suavemente.
A loba achou a piada mais engraçada do que qualquer um.
“Agora, tudo o que precisamos fazer é rezar que o contrabando
seja um sucesso.”
epois disso, as coisas foram agitadas.
Primeiro, Lawrence e Holo tiveram que pedir uma roupa
emprestadas da Companhia Remelio enquanto a sujeira e
o sangue eram lavados de suas próprias roupas. Enquanto
estas secavam, Lawrence levou a dívida de obrigação para a Guilda
Rowen de Comércio, deixando Holo (que disse estar com fome) em
uma taverna que não fechava durante a noite. Aparentemente, era o
trabalho de Lawrence cuidar dos detalhes.
Lawrence foi recebido calorosamente pelos membros da guilda de
comércio, que se reuniram para beber depois do dia de trabalho. Ele
aturou muitas perguntas vulgares sobre o machucado em seu rosto
antes de finalmente chegar em Jakob.
Não teria sido de todo estranho se as pessoas da Companhia
Remelio viessem bater na porta exigindo o pagamento, mas nem eles
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 293 ⊱

nem Lawrence tinham aparecido. Jakob provavelmente estava morto


de preocupação desde que a dívida de Lawrence venceu.
Sem surpresa, a primeira reação de Jakob ao ver o rosto de
Lawrence foi raivosamente acertar o crânio dele com um soco.
Mas então seu rosto se abriu em um sorriso emocionado e abriu
os braços, aliviado que Lawrence estava bem.
Lawrence entregou a dívida de obrigação para Jakob, que
provavelmente conseguiu imaginar, de uma maneira geral, o que tinha
acontecido. Ele trouxe uma bolsa cheia das raramente vistas moedas
de ouro lumione do interior da guilda e comprou a dívida de obrigação
na hora.
É claro, agora ele era um mercador que veio para fazer negócios.
Era inteiramente possível que o contrabando de ouro não teria sucesso,
nesse caso os ativos físicos e contas que a Companhia Remelio tinha
para receber seriam vendidos para pagar suas dívidas. Normalmente,
quando uma companhia falia, seus ativos eram liquidados e divididos
proporcionalmente entre os credores, então uma nota de quinhentos
lumiones da Companhia Remelio não era absolutamente sem valor,
mesmo que o contrabando fosse um fracasso. Em suma, Jakob
comprou a dívida em um montante correspondente à aposta do
contrabando.
Levando todas essas possibilidades em consideração, Jakob
avaliou a dívida em aproximadamente trinta lumiones.
Se o contrabando fosse bem-sucedido, havia a promessa adicional
de cem lumiones. Isso era um valor significativamente menor que o
valor da dívida, mas havia uma grande probabilidade de que a
Companhia Remelio ainda iria à falência em dez anos. Era um preço
razoável.
Lawrence deu vinte lumiones para Jakob, como forma de
compensar o dano causado ao bom nome da Guilda Rowen de
Comércio. Ele pretendia usar o resto que Jakob pagou como um
EPÍLOGO ⊰ 294 ⊱

suborno para manter os açougueiros quietos depois de abater as


ovelhas.
Com mais cem lumiones que poderia conseguir com o sucesso do
contrabando, Lawrence tinha que pagar a Norah os vinte lumiones por
sua participação, e ele planejava usar um pouco mais como meio de
desculpas para as diversas empresas comerciais às quais havia
implorado por empréstimos. Se isso chegasse a trinta lumiones, ainda
sobrava cinquenta lumiones para si.
De alguma forma, voltaria para a quantia que possuía depois de
vender sua pimenta em Poroson.
Levando em conta que ele chegou a se conformar em morrer
como escravo a bordo de um navio, isso poderia ser chamado de um
milagre.
Em seguida, Lawrence usou suas conexões da guilda para ser
introduzido a um açougueiro cuja discrição poderia ser confiável. Ele
garantiu um acordo com o açougueiro de receber as ovelhas de Norah
e as abater, sem perguntas, por dez lumiones. Ele estava pagando o
açougueiro muito bem e tinha toda a certeza de que as coisas
prosseguiriam sem problemas.
Depois de fazer as várias preparações, Lawrence voltou à
Companhia Remelio para recuperar suas roupas e, em seguida, deixou
Remelio a se preparar para recontratar seus antigos empregados, que
provavelmente estavam todos os amontoados, tremendo com o clima
frio. Lawrence também ordenou Remelio a devolver sua carroça e
cavalo, dos quais tinha se esquecido completamente. Ele foi um pouco
duro ao falar, pois esperava que suas ordens fossem realizadas
rapidamente.
Pela hora que Lawrence terminou todos os preparativos, o céu
noturno começava a empalidecer com o amanhecer.
Ele caminhou ao longo da rua silenciosamente no início da manhã,
ainda havia uma brisa congelante no ar da chuva do dia anterior.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 295 ⊱

Seu destino era uma taverna que não fechava durante a noite,
cortesia de propinas pagas às autoridades apropriadas.
O distinto céu azul pálido da madrugada pairava sobre a cidade.
Um lampião inadequado, ainda em chamas, marcava a taverna.
“Bem-vindo.”
A voz que o cumprimentou estava desinteressada — não
necessariamente por causa da ilegalidade, mas sim da exaustão de ficar
acordado a noite toda.
A taverna estava meio cheia, embora surpreendentemente
tranquila; os fregueses bebiam seu vinho em silêncio, talvez
lamentando o amanhecer inevitável.
“Hey aqui.”
Lawrence se virou para encarar a voz e encontrou Holo, que
apareceu ao seu lado segurando um pequeno barril e um pouco de pão.
Se um padre visse Holo (que estava novamente vestida como uma
garota da cidade) na taverna noturna, poderia haver alguns problemas
complicados — mas ninguém parecia se importar com a presença dela.
Holo chamou a atenção do mestre da taverna atrás do balcão e este
acenou para ela de forma sonolenta. Holo provavelmente conseguiu os
bens que ela carregava conquistando o mestre com alguma conversa
mole.
“Venha, vamos embora.”
Na verdade Lawrence queria se sentar e descansar por um
momento, mas Holo pegou sua mão e não ia tolerar discussão.
“Volte sempre,” disse o mestre enquanto saiam da taverna.
Os dois não tinham nenhum destino em particular e, por
enquanto, se contentavam em andar.
Estava frio lá fora. Graças à umidade, a respiração deles pairava
no ar.
EPÍLOGO ⊰ 296 ⊱

“Aqui, coma esse pão,” Holo falou e o estômago de Lawrence


gemeu quando percebeu que não tinha comido nada desde o meio-dia
do dia anterior. Lawrence pegou o pão — na verdade era um
sanduíche de bacon e legumes — da mão de uma feliz e sorridente
Holo, e o mordeu sem hesitação.
“E isso.” Holo estendeu o pequeno barril.
Uma vez que ele tirou a rolha e colocou o barril nos lábios, ele
continha uma mistura morna de hidromel e leite.
“É bom para quando algo te incomoda.”
O licor doce e morno era perfeito.
“Agora,” disse Holo. Ela provavelmente não tinha a intenção de
deixar ele comer e beber em paz, mas quando terminou de comer ela
começou a falar.
“Tenho duas perguntas para você.”
Lawrence se preparou para o pior.
Holo parou por um momento.
“Até que ponto você confia naquela garota?” ela perguntou sem
olhar para ele.
Era uma pergunta que ele tinha tanto esperado como não. O fato
de que Holo tinha deixado o tempo, lugar e circunstâncias pouco claras
significava que provavelmente havia alguma vaga dúvida em sua
própria mente.
Lawrence tomou outro gole do barril. “Não sei até onde confio
nela,” ele disse sem olhar para Holo. “No entanto, sei que se Norah
pegar o ouro e desaparecer para algum lugar, ela seria facilmente
seguida. Eu não confio nela o suficiente para pensar que isso iria
acontecer e ainda entregar o ouro.”
Holo ficou em silêncio.
“A menos que ela percorra uma distância significativa, ninguém
vai comprar o ouro a um preço razoável, e rumores de uma pastora
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 297 ⊱

vendendo ouro são raros o suficiente para se espalharem até lugares


longínquos. Seria fácil de segui-la.”
Era verdade que não confiava em Norah absolutamente. Como
um mercador, Lawrence estava sempre pensando em alternativas.
“Entendo. Eu supus que fosse assim.”
“E a outra questão?” Lawrence perguntou.
Holo o encarou com uma expressão impossível de discernir.
Não era raiva. Era, talvez, hesitação.
Mas a hesitação sobre o quê? Lawrence se perguntou.
Ele achou difícil imaginar que ela estava hesitando sobre se deveria
ou não fazer a pergunta.
“Seja o que for, eu vou responder. Te devo um enorme favor,
afinal de contas.”
Ele deu uma mordida no sanduíche agora frio, engolindo com o
licor.
A luz dourada do amanhecer começou a refletir nas pedras do
calçamento das ruas.
“Você não vai perguntar?” indagou Lawrence.
Holo respirou fundo. Ela agarrou sua manga. Sua mão tremia —
por causa do frio ou por alguma outra coisa.
“Hm?”
“Você — você se lembra...” Holo olhou para ele com os olhos
incertos. “Quando eu estava de enfrentando o cão e a garota..., qual
nome você chamou?”
Ela não parecia estar brincando.
Seus olhos eram a própria seriedade.
EPÍLOGO ⊰ 298 ⊱

“O sangue corria em minha cabeça, e eu não pude ouvir. Mas


esteve me incomodando. Tenho certeza que você chamou o nome de
alguém. Você se lembra?”
Lawrence hesitou enquanto caminhava lentamente pelas ruas da
cidade, o sol começando a subir.
Como ele deveria responder? A verdade era que não se lembrava.
Mas e se Holo realmente se lembrava e ela só estava tentando
confirmar?
Se tivesse chamado o nome de Holo, estaria tudo bem. O
problema seria se tivesse chamado por Norah.
Nesse caso, dizer que não sabia significava que deixou escapar o
nome de Norah sem realmente saber ou lembrar o que estava dizendo.
E nesse caso, Holo certamente ficaria com raiva. Seria melhor que
admitir honestamente que tinha chamado o nome de Norah e chegar a
algum motivo vago quanto ao porquê.
Havia outra possibilidade, é claro — que Holo realmente não
tinha ouvido nada.
Nesse caso, seria melhor dizer que tinha chamado o seu nome.
Tendo pensado sobre isso tão profundamente, Lawrence
percebeu a extensão de sua própria estupidez.
A garota ao lado dele era a Sábia Loba Holo. Ela veria através de
qualquer mentira.
Em qual caso, a resposta correta era —
“Eu chamei seu nome.”
Depois de olhar por um momento com os olhos de um
cachorrinho abandonado, os olhos de Holo brilharam de ódio.
“Isso é uma mentira.”
Ela apertou a manga dele e Lawrence respondeu imediatamente.
“Sim. A verdade é que não me lembro. No entanto —”
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 299 ⊱

As orelhas de Holo se mexeram debaixo do lenço mais rápido que


sua expressão facial poderia mudar.
Ela deveria saber que o que acabou de dizer que não era uma
mentira.
“— Nestas circunstâncias, certamente acho que eu teria chamado
o seu nome,” ele disse olhando firmemente para ela.
Tão rápido quanto seus olhos brilharam com ódio, Holo agora o
olhava com uma pitada de dúvida.
Não havia como dizer se isso era ou não verdade; ela teria que
decidir.
Da sua parte, Lawrence usou o argumento mais persuasivo que
pôde pensar.
“Em uma hora como aquela, tenho certeza de que teria
inconscientemente escolhido chamar seu nome. Afinal —”
O aperto de Holo se estreitou.
“Afinal de contas, seu nome é uma letra mais curto.”
Ele quase podia sentir a expressão no rosto dela mudar.
“Além disso, se eu tivesse gritado 'Norah', mesmo às pressas, você
seria capaz de dizer. Mas Holo leva apenas um instante para dizer —
seria fácil deixar passar com o sangue fervendo em sua cabeça. O que
você acha? Um argumento bastante persuasivo —”
Ele não terminou a frase porque Holo acertou sua boca.
“Cale a boca.”
Mesmo a mão pequena e macia machucou um pouco o lábio de
Lawrence, ela acertou onde a Companhia Remelio o havia ferido.
“Então você chamou meu nome porque era mais curto? Burro!
Tolo!” ela disse, o puxando pela manga. “É o cúmulo da idiotice você
sequer ter pensado nisso!” Ela olhou para o lado oposto a ele como que
o mandando embora.
EPÍLOGO ⊰ 300 ⊱

Lawrence se perguntou se teria sido melhor apenas dizer uma


mentira óbvia, mas sentiu que Holo teria ficado com raiva de qualquer
maneira.
Enquanto caminhavam, se aproximaram do portão leste; agora
havia mais pessoas ao redor ocupadas se preparando para o dia.
Holo andou um pouco a frente, sozinha.
Logo que se perguntou o que ela ia fazer, ela parou.
“Apenas —” ela estava parada —
“— diga um nome,” Holo falou de costas para Lawrence.
Além dela, Lawrence viu um sino na ponta de um longo cajado.
Ele ouviu o balir das ovelhas atrás de uma silhueta.
O que ele viu além de Holo era uma pastora conduzindo um cão
pastor preto.
No mesmo instante, ele soube que o contrabando foi um sucesso.
Ele não podia deixar de estar feliz. Ele poderia facilmente ter chamado
o nome de Norah.
Lawrence sorriu para ação sagaz e descarada de Holo.
No momento em que abriu a boca para chamar o nome, ele
espirrou.
“Achoo!”
Agora, a verdade sobre o nome ele chamou permaneceria
eternamente um mistério.
Holo olhou por cima do ombro, envergonhada. Ele tinha ganhado
dela.
Lawrence a ignorou e acenou avidamente três vezes, assim como
quando encontrou Norah na estrada.
Norah notou e devolveu o aceno.
Holo olhou para Norah por cima do ombro.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 301 ⊱

Esse era o momento que Lawrence estava esperando.


“Holo.”
Suas orelhas de lobo mexeram.
“Holo realmente é mais fácil de chamar.”
Uma nuvem de vapor saiu da boca do Holo enquanto ela exalava,
admitindo a derrota.
“Seu bobo.”
Lawrence amava mais o sorriso contrariado dela do que o calor do
sol no final do outono.
á quanto tempo! Aqui é Isuna Hasekura. Bom, este é o
volume 2. Eu sei; também estou chocado.
Mas se você quer saber o que é mais chocante, quando eu
comecei a escrever este segundo volume, esqueci
completamente a personalidade dos dois protagonistas.
Sei que isso parece inacreditável, mas é verdade, embora até eu
tenho dificuldade para acreditar. Você sempre ouve falar de pessoas
com cérebro de passarinho que esquecem tudo depois de três passos,
e isso definitivamente se encaixa com um covarde que ler uma história
de terror na Net e fica com tanto medo que não consegue nem mesmo
ir no banheiro, certo?
Agora que penso sobre isso, tem mais uma coisa surpreendente.
Quer saber o que é? Bom, eu comprei ações. Como venci um prêmio
por escrever uma novel com um mercador como protagonista, investi
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 303 ⊱

metade do prêmio em ações. Também escrevi sobre isso no posfácio


do primeiro volume, e eu fiquei com esse sorriso maléfico no rosto
quando pensei em multiplicar meu dinheiro no mercado de ações.
Dessa vez meus devaneios ficaram mais descontrolados, mas talvez
como consequência da armadilha de algum grupo sombrio, minhas
ações caíram constantemente por duas semanas. Caiu até mesmo no
dia em 90% das ações no mercado subiram. Logo além da janela onde
estou escrevendo esse posfácio, está uma ferramenta que monitora as
ações a cada minuto e informa mudanças no seu preço, e hoje ela
parece estar sendo vendida de forma bem restrita. No entanto, ela
ainda está caindo. Parece que não está indo bem, assim como a novel.
Que estranho...
Sou um trabalhador triste, mas espero que você se divirta com
este livro.
Mais uma vez Juu Ayakura forneceu ilustrações maravilhosas; elas
se encaixam com a imagem em minha mente perfeitamente. Muito
obrigado. Além disso, ao meu editor — eu sinto muito por todos os
erros de japonês. Da próxima vez — da próxima vez eu prometo! —
vou tentar escrever a novel de forma que só vamos precisar de uma
única reunião.
E é claro, a todos que seguram este livro em suas mãos, meus mais
sinceros agradecimentos.
Espero ver todos vocês no volume 3.

— Isuna Hasekura
XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 306 ⊱
Chloe, a garota de tranças, é uma personagem única do anime. O papel dela no anime corresponde ao de Yarei na light novel.
SPICE & WOLF VOL II ⊰ 309 ⊱
OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/

Billionaire Magdala de Shoujo wa World End


Isuna Hasekura Girl Nemure Shoka no Economica
História Umi de
Nemuru

Nascido em 27 de dezembro de 1982, Isuna Hasekura é um estudante de física e


gasta seus dias lamentando a cruel natureza do mundo desde que estudar
harmônicas de superfície esférica falhou em dar a ele o resultado correto da
restituição do imposto de renda. Entretanto, devido a situações atenuantes, ele é
incapaz de prover uma explicação satisfatória sobre harmônicas de superfície
esférica.

Gelatin Risou no Uchi no Maid Witch Hunt


Juu Ayakura Himo wa Futeikei Curtain Call
Arte Seikatsu

Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.

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