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Os Espíritos do Deserto

O sol declinou, flamejando de vermelho no horizonte. O ar imóvel, morno e ardente


do dia deu lugar a um vento fresco, enquanto a cor azul do céu se dissolvia em cinza. E
mesmo depois de começar a escurecer, a caravana prosseguiu em sua jornada.
O deserto se descortinava à frente deles, amplo e aberto. Trechos de terra ressecada
pelo sol e polida pelo vento. Desfiladeiros de calcário alternados por imensas dunas de
areia. Um cenário que parecia ter sido criado especialmente para ajudar alguma
narrativa permeada por emoções que habitavam a periferia da consciência
Em pouco tempo, a lua se ergueu, iluminando os passos daquelas pessoas que
haviam deixado a segurança para trás e se aventurado naquela arriscada travessia. O
guia, que conhecia todas as rotas e onde havia água, era capaz de encontrar o caminho
até mesmo à noite, guiado pelas estrelas ou pelo cheiro e textura da vegetação. No
entanto, qualquer desvio na rota, por não seguirem atentamente as suas orientações,
poderia implicar na perda do próximo oásis por ele conhecido. E a água era sempre a
questão mais importante em qualquer viagem através do deserto.
Seguindo bem à frente do comboio, no alto de suas montarias, estava Imbal, um rico
comerciante, a sua filha, Alaai, o seu consorte e financiador de toda a empreitada, um
lorde chamado Ayub, além de muitos servos e de uma escolta de segurança pessoal e
outra composta por mercenários contratados para proteger toda a caravana. Pois, além
da falta de água, das tempestades de areia, das serpentes venenosas e dos escorpiões, a
coisa mais perigosa em uma travessia como aquela eram os ladrões do deserto.
- Quantos sacos de placas de sal-do-deserto nós coletamos hoje? – perguntou Imbal
para um de seus servos, ansioso por contabilizar os lucros que teria ao trocar aquele
mineral tão abundante naquele ambiente hostil e tão escasso nas cidades.
Depois de receber os informes de seus servos, Imbal voltou-se para fitar Ayub por
sobre o ombro, que seguia logo atrás dele, ao lado de Alaai, a sua prometida esposa,
com quem ele contrairia matrimônio tão logo aquela caravana chegasse ao seu destino, a
fulgurante Ofir, a famosa capital do país de mesmo nome.
- Ei, é verdade que Ofir é toda feita de ouro maciço, desde os alicerces e paredes de
suas casas até o topo dos telhados?
- Oh, sim! – respondeu Ayub, que havia nascido em Ofir, com tom de ironia. – E é
toda habitada por gigantes, devs e djins que cospem fogo pelos olhos!
Imbal riu-se daquela resposta. E continuou a conversar com Ayub sobre os lucros
que eles poderiam obter com aquela viagem, negociando os produtos que haviam
trazido para as tribos do deserto que controlavam o território do próximo oásis.
Alaai, silenciosa, tentava ao máximo se distanciar daquela conversa.
Ela apenas relembrava a vida que deixara para trás. A vida que ela havia sido forçada
a abandonar por causa daquele casamento arranjado por seu pai sem a sua concordância
ou consentimento. Pois, como era comum naquele mundo, ela havia sido vendida como
uma mercadoria, como parte de um acordo comercial. E de nada havia adiantado os
protestos enfurecidos ou as lágrimas e os pedidos desesperados por clemência. Nem
para seu pai, nem para sua mãe e tampouco para suas irmãs, que só disseram que ela
tivera sorte por ter despertado o interesse de um homem tão rico como Ayub.
Mesmo assim, Alaai guardava lembranças saudosas da sua mãe. Raja era o seu
nome. Ela crescera em uma aldeia atrasada, onde não era permitido às mulheres estudar
e nem sequer frequentar os mesmos ambientes que os homens para reverenciar os seus
deuses. Esperava-se apenas que elas cozinhassem e servissem seus irmãos e esposos. E
as meninas que porventura fossem sequestradas e tomadas à força, quando
engravidavam, acabavam depois sendo acusadas de adultério. Neste tipo de mundo,
jamais estaria no horizonte do possível escolher livremente um marido.
O quanto sua mãe se sentiria decepcionada se soubesse que Alaai aprendera as
danças de sua aldeia com as suas amigas! Ela que considerava que dançar não era
adequado para as mulheres. Ou que aprendera a ler e a escrever com o seu avô, o
erudito Qais Zyad, em segredo! Definitivamente, elas tinham muito pouco em comum...
No entanto, Alaai a amava. E agora, talvez nunca mais a veria de novo...
Então, com a alma torturada e tomada por todas essas lembranças, Alaai vagou com
os olhos pela imensidão e vastidão do deserto. Procura por qualquer outra coisa que não
fosse a imagem do rosto de seu futuro marido, que, àquela altura da viagem, já estava
começando, lentamente, a tornar-se odiosa. Foi quando ela deteve-se, casualmente, na
figura de um jovem com longos cabelos negros esvoaçando ao vento e olhos profundos
e penetrantes, que portava uma formidável espada com punho e guarda dourada.
Era a primeira vez que ela reparava naquele mercenário. E, naquele momento, Alaai
pareceu identificar algo diferente em seu olhar. Era como se, ao fitá-lo, se lembrasse de
algo importante, antigo e que já havia se esquecido. Algo que, em algum momento da
sua vida, havia sido muito importante. Ela não sabia dizer o que era. Mas estava ali.
Quando a noite avançou, a caravana parou, formando um círculo no meio do deserto.
Sentados ao redor da fogueira, em um dos cantos, os mercenários consumiram a
pouca ração que lhes era permitida, passando de mão em mão um odre de pele de cabra
contendo alguma bebida. Alguns falavam sobre as aventuras amorosas que pretendiam
ter nos bordéis de Ofir quando lá chegassem. Outros gargalhavam enquanto contavam
piadas obscenas. E outros, ainda, contavam vantagens sobre si, narrando da forma que
lhes era mais apropriada os seus triunfos pessoais em antigas batalhas.
Um pouco afastado dali, estava o jovem que despertara o interesse de Alaai. Embora
ele também houvesse sido contratado para fazer a segurança daquela caravana, não
sentia ter nada em comum com aqueles homens. Eles eram todos ex-soldados de antigos
exércitos já dissolvidos ou derrotados. Ou então eram criminosos que haviam sido
perdoados de seus crimes em troca do juramento de fidelidade a algum lorde. E, para
dizer a verdade, não havia muita diferença entre ambos os tipos.
Quando Alaai aproximou-se, ele ergueu o olhar tomado pela surpresa. Olhou para a
tenda de seu marido. E constatou que ele e seu pai não extavam visíveis.
Alaai vestia uma túnica de lã xadrez âmbar e marrom por cima de um vestido branco
e calçava botas com bordas ovais de pelica amarradas com tiras de couro nos pés. Os
cabelos dela estavam soltos ao vento, como ele nunca os vira antes.
- Eu ouvi os outros seguranças dessa caravana dizendo que você não se junta a eles
porque é meio perturbado! Porque tem algum trauma profundo de uma antiga guerra!
- A segunda afirmativa não está de todo errada! Apenas a primeira!
Alaai ficou olhando para ele pensativa, depois de ouvir aquilo.
- Então, você já passou por muita coisa, mesmo sendo jovem! Qual é o seu nome?
- Eu me chamo Daritu! – ele respondeu.
- Que nome estranho! – ela exclamou. – E de onde você é?
- Eu nasci em um país distante chamado Dilmun!
- Eu não conheço! E esse idioma estranho é de lá? – ela apontou.
Daritu deu-se por conta que ela referia-se às palavras inscritas na lâmina da sua
espada, que ele havia desembainhado naquele momento para limpar.
- Não! Essa é uma espada do reino de Alberdi! O homem que me adotou e que me
criou como filho deixou-me como herança ao morrer! É o único bem de valor que eu
carrego nesta vida! Mas, para mim, o seu valor não pode ser medido em moedas!
- Eu também não conheço este reino! Mas o que está escrito aí?
Daritu deteve-se, por um instante. Como se, ao ouvir aquela pergunta, houvesse sido
subitamente despertado de outra dimensão. Era o estado de introspecção melancólica no
qual estivera mergulhado desde o início daquela viagem. Pois era a primeira vez que
alguém vinha lhe dirigir a palavra e falar sobre qualquer coisa com ele.
- Aqui diz que o seu portador deverá desembainhá-la sempre para evitar injustiças e
para defender os oprimidos, além de nunca temer a face de nenhum inimigo!
- E você realmente acredita nisso? – Alaai perguntou. – Do fundo do seu coração?
Daritu não soube o que lhe responder. E ficaram os dois, mudos e estáticos, olhando
um para o outro, enquanto soava a música sutil composta pelo vento do deserto.
- Seu marido está olhando para cá! – disse Daritu, olhando para além dela, em
direção às tendas. - Creio que seria mais adequado que você retornasse agora!
Alaai olhou para cima, soltando um longo suspiro. E naquele único gesto, deixou
transparecer todos os seus sentimentos por Ayub.
- Ele ainda não é meu marido! – ela murmurou, enquanto se preparava para se retirar.
Mas antes de sair, deteve-se, ainda, um por um instante, e falou:
- Até mais, guerreiro de Dilmun!
Depois que Alaai se retirou, Daritu ficou avaliando o que havia acontecido ali.
Tentava entender por que a filha do dono da caravana havia se aproximado daquela
forma dele e puxado conversa. Pois ele sabia que as mulheres daquela terra não faziam
aquilo. E que, por muito menos, ele já vira ocorrerem duelos desnecessários entre
estrangeiros incautos e maridos inseguros, possessivos e exageradamente ciumentos.
Naquela noite, o guia da caravana, um homem franzino chamado Zayin, tocou o ud,
um instrumento de madeira e de cordas que produzia admiráveis sons. E aos poucos, os
servos que estavam em volta de outra fogueira, começaram a se agrupar em torno dele.
Os mercenários também cessaram o seu comportamento ruidoso habitual e ficaram
em silêncio, bebendo em silêncio, enquanto a canção do velho Zayin ecoava. E até
mesmo Daritu, ouvindo de longe o som maravilhoso da melodia que o experiente guia
do deserto entoava, aproximou-se pela primeira vez do grande grupo.
Dali a algum tempo, um dos servos apareceu com um pequeno tambor e começou a
acompanhá-lo. E as notas do ud começaram a pulsar de uma maneira mais poderosa sob
o acompanhamento daquelas batidas ritmadas.
Alaai logo veio se juntar ao grupo. E, como se tomada por alguma força exterior que
ela era incapaz de conter, por uma urgente pulsão de vida, seu corpo todo começou a se
mover. E a sua dança foi tão admirada por todos quanto a melodia do velho Zayin.
Quando tudo parecia perfeito naquela noite, sob o céu estrelado do deserto, algo
inesperado aconteceu. Pois, com um único golpe de espada, Ayud destroçou o ud,
partindo-o em dois diante do olhar espantado de Zayin, que ficou segurando os seus
dois pedaços, um em cada mão. Tudo havia acabado, repentinamente. O instrumento de
corda estava destruído. E o percussionista também havia parado de tocar. Ele estava
paralisado, como se houvesse se transformado em uma estátua.
Instintivamente, os guerreiros haviam levado as suas mãos até as suas espadas. Mas
as soltaram ao perceberem que quem desferira o golpe fora o seu próprio patrão.
Depois, sem nenhuma explicação por aquele ato, Ayub, embainhou a espada.
O motivo porque fizera aquilo só se tornou compreensível para todos quando ele foi
até Alaai e, sem nenhum aviso, lhe desferiu um violento tapa no rosto. E depois falou:
- Pare de exibir seu corpo diante de todos, como uma vagabunda!
Sem perceber, Daritu ainda estava com a mão cerrada sobre o punho da sua espada.
E naquele momento, ele a teria desembainhado se Benom, um dos mercenários, não o
houvesse impedido, colocando a mão sobre o seu pulso.
- Vá para dentro! – ordenou Ayub para Alaai.
E, sem nenhuma outra escolha, entre lágrimas e com o rosto ainda ardendo pelo ato
de violência, Alaai retirou-se e foi para dentro da sua tenda.
Ainda antes de se retirar, Ayub ainda lançou um olhar de solsaio para Daritu.
Depois daquilo, o grupo inteiro se dispersou. Um por um, todos foram saindo, em
silêncio, do entorno daquela fogueira. E o silêncio absoluto do deserto voltou a imperar
onde antes espíritos enlevados sentiam-se confortados de todas as dores e dificuldades
de suas vidas através de um único instante de transcendência.
Naquela noite, Daritu foi dormir tomado por inconformidade.
Já fazia cinco anos que Daritu havia chegado naquela terra. Ele já havia entendido
que aquele podia ser um mundo brutal, em muitos sentidos, para aqueles que, assim
como ele, possuíam poucos bens ou riquezas. No seu caso, no entanto, a habilidade
marcial que adquirira desde a mais remota infância o mantinha em uma zona de grande
segurança. Sempre haveria príncipes ou lordes que lhe pagariam muito bem para ele
utilizá-la. Antes de trabalhar fazendo a segurança das caravanas através do deserto, ele
recebera outras oportunidades, algumas das quais tivera que recusar para benefício da
sua consciência. E, de uma maneira geral, ele sempre havia conseguido manter um
equilíbrio entre os seus valores morais e as tarefas que tinha que executar.
Porém, naquela noite, ele compreendeu que existiam diferentes tipos de brutalidade.
E que, em alguns casos, o desembainhar de sua espada não poderia resolver nada. Não
quando havia toda uma cultura e um conjunto de valores que precisavam, antes, ser
mudados. E a constatação de tal realidade lhe despertou um sentimento de impotência.
No dia seguinte, no entanto, Daritu aprendeu uma lição: que nem todos naquele
mundo concordavam com tudo o que já estava instituído como hábito ou regra. Pois, ao
despertar, ele percebeu uma intensa agitação no acampamento. E quando foi ver o que
estava acontecendo, alguém logo lhe respondeu:
- Zayin, junto com dois servos que eram seus amigos, foram embora!
- O que? – Daritu perguntou, julgando não ter ouvido muito bem.
- É isso mesmo! A caravana está sem um guia! Zayin nos abandonou!
- Foi por causa do ud! – falou alguém.
- O instrumento musical? – perguntou outra voz.
- Ele era herança do tataravô de Zayin! – respondeu outra.
Outras teorias e especulações começaram a ser elaboradas, na tentativa de explicar
porque um guia havia abandonado a sua caravana. Alguns não acreditavam que havia
sido apenas por causa da destruição de uma herança familiar. Houve quem sugerisse que
Zayin estava em conluio com os bandidos do deserto. E que queria que eles vagassem
perdidos, sem conseguir encontrar o próximo oásis, até que se tornassem tão sedentos,
fracos e cansados que não conseguiriam resistir a nenhum ataque.
Daritu não estava interessado naquelas teorias. Não quando percebeu que havia uma
discussão no interior de uma tenda, entre Ayub, Alaai e seu pai, Imbal.
Aproximando-se, Daritu começou a ouvir algumas falas:
- Não é permitido que mulheres estudem! – gritava Ayub. – Você sabe disso!
- Mas isso agora é o que pode nos salvar da morte! – Alaai elevou a sua voz.
- É mentira que você consegue ler esses mapas! – bradou seu pai. – Nenhuma mulher
conseguiria! E é isso que você é! Você é apenas uma mulher!
Daritu hesitou na entrada da tenda por longos instantes.
Por fim, afastou-se dali, sem que ninguém percebesse que ele lá estivera.
- Zayin deixou os mapas! E a filha de Imbal, que é uma pessoa estudada, acha que
consegue lê-los! – anunciou Daritu no círculo onde estavam reunidos servos e guardas,
de forma indistinta. – Mas o marido não quer que ela os leia, apenas porque ela é uma
mulher e ele diz que não convém a uma mulher estudar!
Depois que ele anunciou isso, um sentimento de indignação coletiva começou a se
formar entre todos. Um sentimento formado pelo desespero e pelo medo da morte.
Em determinado momento, alguém exclamou:
- Um mapa não vai ajudar! Pois as rotas mudam, conforme as areias do deserto!
- Mas não os locais dos oásis! – atalhou outro.
- Se ela sabe ler os mapas, é a nossa única chance! Eu não vejo outra! – falou, ainda,
um terceiro. – Ou alguém tem uma solução melhor?
Em pouco tempo, o assunto não era mais porque o guia Zayin havia abandonado a
caravana. Mas sim sobre a única solução para a sobrevivência de todos ali.
E assim, iniciou-se uma acalorada discussão.
Quando Imbal e Ayub se deram por conta, uma turba revoltada se dirigia até a tenda
deles. E bradava para que eles saíssem. Imediatamente, os soldados da guarda pessoal
de Ayub fizeram uma parede, com as mãos prontamente posicionadas sob os cabos de
suas cimitarras. Até que, por fim, o próprio Ayub surgiu, saindo de dentro da tenda.
. – O guia nos abandonou por sua culpa! Mas ele deixou os mapas! E Alaai tem
capacidade para lê-lo! Então, deixe-a tornar-se a guia desta caravana! – bradou um dos
mercenários, dando dois passos à frente e desembainhando a sua espada.
- Alaai não pode ler os mapas! – bradou Ayub, em resposta.
- Então, deixe-a dizer isso para nós! – falou Dartitu.
- Sim! Queremos vê-la pessoalmente! – falou outro.
- Eu consigo ler os mapas! – Alaai ergueu, então, a voz, saindo da tenda.
Logo atrás dela, vinha caminhando o seu pai. Andava com atitude envergonhada,
olhando mais para o chão do que para frente. Como se, no fundo, ele quisesse pedir
desculpas para todos por tudo o que estava acontecendo ali.
– Eu sei ler desde os dez anos de idade! – disse Alaai, olhando para Ayub e depois
para todos os outros. - E passei muito tempo na biblioteca do velho Naronda, onde havia
muitos papiros sobre os códigos usados pelos viajantes do deserto!
Ayub lançou um olhar fulminante em direção a ela.
Ele não poderia estar preparado para o que acontecia ali. O deserto levava as pessoas
a confrontar-se com a morte. E isto conduzia ao âmago da mais antiga condição
humana: a do desejo pela sobrevivência. Algo que estava acima de qualquer regra ou
norma social. No entanto, Ayub, um nobre educado na firme crença de que a obediência
e a submissão dos servos aos seus senhores era uma lei da natureza, fora condicionado a
sua vida inteira a mandar e nunca a obedecer. E, além disso, ele acreditava que uma
mulher nunca deveria confrontar o seu noivo como Alaai agora fazia.
E assim, ignorando as reivindicações, ele ordenou que sua guarda desembainhasse as
cimitarras. E ordenou aos mercenários que todos eles entregassem as armas.
Até aquele momento, alguns daqueles mercenários ainda não haviam tomado partido
de nenhum dos lados daquela contenda, embora houvesse caminhado até ali junto com a
turba inquieta. Porém, quando Ayub, com medo de que eles se rebelassem, deu aquela
ordem, foi como se subitamente declarasse a todos eles seus inimigos.
Então Daritu deu um passo à frente e falou para Ayub:
- Nós aceitamos esse trabalho arriscado quando ninguém mais o quis! E fizemos isso
porque confiamos em nossa habilidade em manejar nossas espadas! Mas toda a nossa
habilidade e a nossa coragem de nada adiantarão, se este você nos deixar morrer de sede
neste deserto! Esta não é uma morte honrada para nenhum guerreiro!
E depois, voltando-se para os mercenários atrás dele, bradou:
- E se nós permitirmos que ele faça isso, com a solução bem diante de nós, então,
meu companheiros, onde está a nossa coragem?
Os mercenários ergueram as suas espadas, um por um, depois de Daritu dizer isso.
O confronto que teria se seguido, entre a guarda pessoal de Ayub e os mercenários
que ele próprio havia contratado para a segurança da caravana, teria sido brutal, se algo
inesperado não se sucedesse. Pois eis que, subitamente, uma grande nuvem de areia
começou a se fazer visível logo depois de uma grande duna.
- Vejam! – apontou um dos servos. – É uma tempestade de areia!
O homem estava correto. Era uma tempestade gigantesca que estivera invisível até o
último instante, oculta pela duna. E que em breve estaria em cima deles.
Por um momento que pareceu congelado no tempo, todos eles ficaram paralisados,
olhando para o alto da duna. Em um segundo, eles estavam prestes a digladiarem-se e a
se trucidarem entre si e, no instante seguinte, deparavam-se com uma ameaça comum a
todos eles. Era como se a natureza estivesse querendo lhes dizer que não deveriam ir até
o fim com aquela contenda. E, de fato, essa foi a interpretação de Benom, que disse:
- Os espíritos do deserto se manifestam! Este confronto é um erro!
- Sim! – bradou outro homem. – Vamos! Precisamos nos proteger!
Imediatamente, todos embainharam novamente as espadas. Até mesmo a guarda
pessoal de Ayub, mesmo que ele não lhes houvesse dado essa ordem.
No instante seguinte, todos estavam correndo. Alguns retiravam tecidos da bagagem
que aquela caravana transportava para proteger as montarias e, agachados ao lado delas,
protegerem-se. Outros apenas pensavam em se salvar e corriam para as tendas.
No meio a toda aquela confusão, Daritu percebeu que Alaai correu na sua direção.
Por algum motivo, o instinto de sobrevivência daquela garota a levara a fazer aquilo,
naquele momento crucial no qual todos lutavam pela sobrevivência.
Ayub, percebendo aquilo, desembainhou a espada e avançou na direção de Daritu.
Tudo o que houve em seguida aconteceu muito rápido.
Com uma sequência muito bem coordenada de passos e movimentos, Daritu sacou a
sua espada de cabo dourado e salvou a vida de Alaai daquilo que teria sido um golpe
fatal. Porém, para conseguir isso, ele teve que dar cabo da vida de Ayub.
Quando tudo terminou, Daritu olhava para o homem caído de joelhos diante dele,
com a lâmina da sua espada gotejando sangue. E, ao seu lado, o rosto assustado de Alaai
a fitá-lo. Ela olhou para Daritu e depois para Ayub.
Contra todas as leis que ele julgava regerem o mundo, naquele dia, seus servos
haviam se rebelado contra o seu senhor. E ele, em seu momento de ira irrefletida contra
aquela que deseja como sua futura esposa, havia sido punido como se fosse um mero
servo. Assim, a última coisa que eles viram nos olhos de Ayub foi a confusão misturada
com a dor e a descrença. E depois disso, ele tombou sob a areia inconsciente.
- Você salvou a minha vida! – Alaai murmurou para Daritu.
Daritu assentiu, em resposta.
Ele sabia que aquela ação teria suas consequências.
Depois disso, ele falou:
- Vamos! Precisamos nos proteger!
Depois disso a nuvem de areia os alcançou. Os grãos de areia arremessados contra
eles feriam como se fossem minúsculas lâminas cortantes. E eles tiveram que fechar os
olhos enquanto corriam para o interior da tenda onde, horrorizado, o pai de Alaai a
aguardava, depois de ter presenciado a breve contenda.
O mundo inteiro mergulhou em um turbulento caos.
E depois de algum tempo, tudo cessou.
Com o vento inclemente, todas as tendas haviam sido derrubadas. Então, quando as
pessoas começaram a sair de dentro delas, foi como se surgissem debaixo da terra. O
mesmo se deu com quem havia se protegido debaixo dos tecidos. E todos, pouco a
pouco, brindaram a superfície como se um novo dia houvesse começado.
Agora, todos fitavam o corpo sem vida de Ayub, agrupando-se, um por um, em um
grande círculo ao seu redor. Poucas partes dele eram visíveis, pois estava quase
totalmente encoberto pela areia. Mas a cor da túnica roxa, amarela e escarlate cujos
pedaços apareciam aqui e ali era inconfundível.
Para Alaai, aquele momento era estranho.
Ela sentia como se houvesse praticado algum tipo de crime. Como se ela mesma, ao
desobedecer as normas tradicionais nas quais havia sido educada, houvesse desferido a
estocada fatal em Ayub. Mas, ao mesmo tempo, ela sentia como se, por toda a sua
existência, ela houvesse estado fora do movimento da vida e somente naquele instante,
depois daquele trágico desfecho, ela houvesse começado a viver de verdade.
Ao seu lado, o seu pai, uma vez mais, apenas fitava o chão, sem dizer nada.
Todos sabiam exatamente o que havia acontecido ali. Mas ninguém disse nenhuma
palavra. Ao invés disso, olhavam com respeito para Daritu.
Até que Benom, finalmente perguntou a Alaai:
- Você tem certeza de que consegue mesmo nos tirar daqui e nos levar para o
próximo oásis, onde poderemos procurar por um novo guia?
Ela assentiu vagamente com a cabeça.
- Mas agora as areias mudaram! – falou alguém.
Então, Alaai, como se desperta de um sonho, olhou para os olhos de todos ao seu
redor. E, com energia renovada na voz, ela lhes explicou:
- Eu não sou uma guia! Mas eu lhes prometo que farei de tudo! Além de entender os
sinais grafados nos mapas, o velho Naronda também me ensinou como um nômade do
deserto usa a inclinação do sol e da lua, a configuração da terra, das montanhas e do
horizonte, as sombras das dunas, a direção do vento, o borrifo de areia soprado dos
picos das dunas e a distribuição de rochas e seixos, para buscar a orientação para a
jornada! Então, eu lhes peço que tenham paciência e confiança!
Benom sorriu ao ouvir aquilo e fez-lhe uma espécie de reverência, dizendo:
- Então Al-Qaum, o guardião das caravanas, junto com os demais deuses antigos que
vivem no deserto, zela por todos nós!
- E o que diremos que aconteceu aqui? – um dos soldados da guarda pessoal de Ayub
apontou para o seu corpo e olhou para Imbal, o pai de Ramiba.
Naquele momento, todos os olhares se voltaram para Imbal.
Erguendo o olhar, ele fitou Daritu, o jovem guerreiro que dera cabo de Ayub. E a
quem, em condições normais, o peso da lei recairia por ter assassinado o seu senhor.
Depois, Imbal fitou demoradamente a sua filha.
Se não fosse pela habilidade de Daritu com a espada, Alaai não estaria mais ali. Ela
teria sido apenas mais uma dentre tantas mulheres assassinadas por seus pretendentes ou
pelos seus maridos ciumentos e descontrolados, como já acontecia há gerações.
E então, foi o seu coração de pai que deu a resposta para todos:
- Quando chegarmos na cidade de Ofir, todos vocês responderão que ele foi seduzido
por Ahuar, o demônio dos desejos, que atrai os viajantes incautos no deserto para
devorá-los! Que a cobiça subiu à sua cabeça e, assim, Ayub sucumbiu à tentação,
acreditando que poderia ir atrás de um grande tesouro! E que então, afastando-se da
caravana e da rota, ele desapareceu para sempre! E nunca mais foi visto!
Depois que Imbal falou aquilo, todos ficaram se entreolhando.
Dartitu chegou a acreditar que ninguém aceitaria contar aquela versão da história.
Especialmente os soldados da guarda pessoal de Ayub. No entanto, ao olhar para eles,
percebeu, pelos seus semblantes, que pareciam ser os primeiros a concordar.
- Sim! – concordou Benom. – Foi isso o que aconteceu! Ayub partiu atrás do tesouro
e sucumbiu! Foi vítima do guardião do tesouro, que habita este deserto!
E depois, voltando o seu olhar para todos, não encontrou nenhuma objeção.
Daritu respirou fundo, aliviado por sua vida ter sido salva pelo inesperado pacto.
Então, pensou ele, era assim que as lendas do deserto eram inventadas.

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