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MISTÉRIOS DO ORIENTE

Call of the Heart

Wanda Dellamere

Super Sabrina nº 12

Ele! O desconhecido que Camilla tinha visto só uma vez, vestido com as belas roupas dos
nômades das estepes do Afeganistão, estava à sua frente, próximo o suficiente para ser
tocado, beijado. O Oriente provava ser uma terra encantada, mistura de perigo, mistério e
desejo.

O magnetismo desse homem alto, forte, provocava nela uma vontade louca de acariciá-lo,
passar suas mãos por cada parte do corpo viril e confirmar que ele era mesmo real. Mesmo
que esse homem fosse um bandido, um bárbaro das montanhas, queria viver ou morrer nos
braços dele!

Digitalização: Nell e Vicky B.

Revisão: Nell
Título original: “Call of the Heart”

Copyright: © by Wanda Dellamere

Publicado originalmente em 1982 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá

Tradução: Maria Antonietta Camargo Fonseca

Copyright para a língua Portuguesa: 1983

Abril S.A. Cultural e Industrial — São Paulo

Composto e impresso em oficinas próprias

CAPÍTULO I

O avião estava prestes a aterrissar. Camilla observou a paisagem pela janela e, numa agitação
crescente, agarrou os braços da poltrona. Estirada ao longo de um rio prateado e sinuoso estava Cabul,
a capital da terra exótica e estranha, para a qual ela havia viajado de tão longe. Pequenas cabanas de
barro se espalhavam pelas colinas que rodeavam a cidade, confundindo-se com a cor da terra e
contrastando com os telhados cintilantes das mesquitas e dos palácios.

— Lá está a Mesquita Azul — disse seu companheiro de poltrona.

Olhando na direção que ele apontava, Camilla viu um grande edifício encimado por uma abóboda, que
brilhava como uma escultura de vidro.

— É tão bonito! — exclamou ela, voltando-se para o homem sentado a seu lado.
O nome dele, isso ela soubera no começo do vôo, em Roma, era Johnny Hagan, um médico americano
que tivera a paciência de aturar os medos de Camilla, marinheira de primeira viagem, respondendo a
todas as suas perguntas com um sorriso. Ele vivia em Cabul e não via a hora de chegar.

— Eu mal posso esperar para encontrar Janet. Ela está esperando um bebê, o nosso primeiro filho, e
fica muito abatida quando viajo, pobre menina. Eu também me abato. Para animá-la, trouxe-lhe cartas
da família.

— Você não sente falta do seu lar, quero dizer, dos Estados Unidos? Sua mulher não preferiria ter o
bebê num lugar com mais recursos médicos?

— Acho que não. Pelo menos ela não disse nada a respeito. Nosso filho será um verdadeiro afegão. Vai
crescer falando a língua do país, uma oportunidade que eu gostaria de ter tido. Se ficarmos bastante
tempo em Cabul, ele será aluno de Malcolm Armstrong, o que é realmente um privilégio.

Camilla estava intrigada.

— Você mencionou esse Malcolm Armstrong várias vezes. Quem é ele?

— Alguém que já faz parte da história da nação. É inglês como você, mas parece um verdadeiro afegão,
especialmente quando está vestido a caráter. Aposto que um dia o cabelo loiro dele vai ficar preto. Você
precisa conhecê-lo. Irá admirá-lo.

— Certamente você quer dizer “gostar” dele — disse Camilla, embaraçada.

— De forma alguma! — respondeu Johnny, sorrindo. — Creio que não são muitos os que realmente
gostam dele, mas todos o admiram. É muito difícil chegar perto de Malcolm para conhecê-lo e gostar
dele.

Camilla tinha entendido. Esse tal Malcolm parecia um expatriado convencido, que tentava impressionar
outras pessoas fazendo-se passar por nativo, representando o silencioso afegão, o homem misterioso.
Bem, ele poderia impressionar quem quisesse, menos a ela.

E, então, mudou de assunto, falando sobre outras coisas, sem vontade de levar adiante aquela
conversa sobre Malcolm Armstrong.

Estava cada vez mais fascinada por seu jovem amigo americano, cujo rosto, meio bronzeado e coberto
de sardas, irradiava simpatia e bom humor. Se a esposa dele fosse tão gentil quanto o marido, Camilla
poderia contar com dois amigos naquela terra desconhecida, da qual o avião se aproximava mais e
mais. E só Deus sabia o quanto ela precisava de ajuda!

Johnny inclinou-se sobre a janela, cheio de entusiasmo, e apontou para os quatro pontos cardeais,
descrevendo o que havia em cada um deles:

— O sul. Aquele é o deserto, cujas maiores cidades são Ghazni e Kandahar. Kandahar é dominada
pelos severos mulás.

— Mulás? Quem são eles?

— Sacerdotes muçulmanos. Kandahar é a zona negra do país. Quase todo mês ouvimos rumores sobre
algum apedrejamento ordenado pelos mulás.

— Apedrejamento? Que coisa horrível!

Johnny riu.

— Desde que cheguei, nunca tive confirmação de qualquer desses boatos. Mas eles demonstram que
tipo de lugar Kandahar pode ser, se até esses ridículos rumores são tidos como verdadeiros e
divulgados. Eu já estive lá e posso garantir que a pior coisa daquele lugar são as moscas, que pousam
sobre tudo, como um cobertor negro.

— Que horrível! Detesto insetos!

— Bem, mas vale a pena conhecer Kandahar. Embora eu admita que não seja lugar para uma mulher
de cultura ocidental. Especialmente uma garota frágil como você.

Camilla mordeu o lábio. Eram todos iguais, os homens! Altos, baixos, gordos, magros, amarelos, loiros,
pretos, bonitos ou feios, inteligentes, charmosos, egoístas ou misteriosos, tanto fazia: todos acreditavam
que a necessidade fundamental de uma mulher era proteção. E ela, Camilla Simpson, já estava farta
disso tudo.

A liberdade era algo novo, estranho e inebriante, e estava disposta a usufruir de suas emoções ao
máximo. Quem tinha o direito de dizer qual era e qual não era o lugar para onde poderia ir? Ninguém
iria impor limites às suas vontades. Camilla agora sabia que não era o tipo de mulher que agia sob a
tolerância de alguns machos dominadores.

— Eu não me deixarei dissuadir por alguns rumores. Irei a Kandahar, se quiser ir. Afinal, vim até aqui
sozinha.

Johnny parecia embaraçado.

— Eu não quis insinuar que você não era capaz de tomar conta de si própria. É só que... você não
conhece os afegãos. O modo de vida deles é totalmente diferente do nosso. É muito difícil explicar. A
liberdade das mulheres está crescendo um pouco em Cabul, com influências que chegam do Ocidente,
mas na maior parte do país todas elas ainda usam os chadaris, véus que as cobrem da cabeça aos pés.
Você estaria arriscando sua vida se fosse a Kandahar vestida como está.

Camilla olhou para seu vestido de algodão verde, os braços e pernas nus, os pés calçando alpargatas
brancas. A aparência de frescor do traje contrastava com o fulgor dos cabelos castanhos,
avermelhados, e a cor do vestido estava refletida na profundidade dos olhos verde-esmeralda. Aquela
roupa seria perfeitamente aceitável na Inglaterra, mas os costumes pareciam ser diferentes em Cabul.

Tenho que ser muito cautelosa, pensou ela.

— Para o leste — continuou Johnny —, está a cidade de Jalalabad, próxima à província da fronteira
noroeste do Paquistão. Você provavelmente sabe mais do que eu sobre as batalhas que têm sido
travadas nas fronteiras, já que os ingleses têm estado envolvidos em tantas guerras afegãs. Para o
nordeste, está o Nuristão, isto é, a Terra da Luz, assim chamada porque os nativos, no final do século
passado, foram convertidos ao, islamismo: você sabe, ‘viram a luz’. Antes disso o lugar era chamado
Cafiristão.

— Terra dos Cafires?

— Isso mesmo. Eles eram pagãos, antes da conversão, e muitos afegãos ainda os temem. É uma área
confinada: você precisa de um visto especial para entrar lá. Eles têm poucos escrúpulos quanto a matar
estrangeiros.

— Que lugar!

— Armstrong esteve lá uma vez, há muitos anos. É o único estrangeiro que conheço que voltou para
contar a história. E, assim mesmo, ele teve que sair às pressas. Aparentemente, um dos chefes gostou
de Malcolm e tentou vender-lhe a filha.

— Aposto que a filha do chefe sentiu-se aliviada pela negociação ter fracassado. Imagine, ser vendida
como se fosse mercadoria!
— As mulheres executam boa parte do trabalho pesado neste país, e portanto alguém tem que
compensar o pobre papai pela perda de um par de mãos extras!

Camilla sabia que esse costume existia na maioria das nações islâmicas, e por isso não disse mais
nada. Mas a história a revoltou, e o fato de ter acontecido a um compatriota tornou tudo
desagradavelmente próximo.

— Além do Nuristão, que é formado essencialmente de bosques e montanhas, está o corredor Vakhan,
que conduz à China.

— Eu não sabia que estávamos assim tão próximos da China!

Johnny aquiesceu e continuou:

— Ao norte de Cabul, estão as montanhas altas; depois vêm as estepes e os sopés, e, depois disso, a
Rússia. As montanhas são chamadas de Hindu Kush, o que significa “O Matador de Indianos”. São
conhecidas por esse nome sangrento porque, todas as vezes em que os indianos tentaram invadir o
Afeganistão, foram rechaçados pelas escarpadas montanhas. Os altos planaltos e os desertos arenosos
estão ao sul. E, para o oeste, está Bamian, onde dois gigantescos e antigos Budas foram esculpidos
nos penhascos. Bandi Amir, os Lagos do Rei, estão ali perto também. Esses cinco lagos pequenos são
famosos pelas raras colorações, que variam do branco ao verde-escuro. É o primeiro lugar que você
deve visitar, se tiver tempo.

— É um lugar seguro, eu suponho — murmurou Camilla, os pensamentos longe dali.

Através da janela, podia ver apenas o perfil das montanhas de cor escura, que Johnny tinha chamado
de “Matador de indianos”. Mas, com sua imaginação fértil, podia ver além delas, para o leste, oeste,
norte e sul, e tudo que captava da descrição dele era uma vasta expansão de solidão, deserto, estepes
ou montanhas; uma paisagem hostil, com homens violentos. Aquilo a assustou, dando-lhe a dolorosa
dimensão de seu isolamento e sua ignorância. Apertou as mãos e sentiu um frio na espinha. Tinha um
pensamento fixo:

Minha irmã, a única parente que eu tenho, está perdida naquele lugar.

Pegou no bolso os dois pedaços de papel que a tinham feito viajar meio mundo. O primeiro era um
cartão-postal. Ela não tinha necessidade de olhar para ele: as cores berrantes e retocadas estavam
gravadas em sua memória. Tratava-se de uma rua sombreada por árvores espessamente folheadas de
verde. Embaixo delas, homens vestidos com espécies de pijamas sentavam-se atrás de barracas
repletas de frutas deliciosas: melões, uvas, amoras, romãs. Foram as frutas que primeiro lhe chamaram
a atenção, quando o cartão-postal chegou a seu apartamento, em Londres, três meses atrás. No verso,
havia uma mensagem com a letra de sua irmã:

“Estivemos uma semana em Cabul, e é o lugar mais maravilhoso que você pode imaginar. Sei que o que
vou dizer não é original, mas realmente desejei que você estivesse a meu lado. Vale a pena sentir-se
sufocada nos outros países, só para chegar aqui e respirar: o ar é puro! Os Kushis, um povo nômade,
estão passando pela cidade. Eles são fascinantes, incrivelmente ricos, e as mulheres são as únicas, no
Afeganistão, que não usam véus. Eles parecem ter saído de algum filme épico, com seus camelos,
jumentos e cães. Sonho com uma vida assim. A propósito: não é nem um pouco como parece na
fotografia, mas sim frio e ainda com um pouco de neve. Um alívio, depois da índia! Vou para Kandahar
amanhã. Escreverei em breve.

Meghan”.

Meghan e o marido, Thomas, viajaram de carro pela Ásia desde Cingapura, onde Tom trabalhou durante
muitos anos. Por isso, quando Camilla recebeu o cartão-postal, não deu muita importância ao fato. Era
só mais um, que ela juntou aos outros, vindos da Tailândia, de Butão, da índia e do Paquistão, e que
estavam pendurados na parede da cozinha do apartamento. Não podia supor que aquele cartão seria a
última comunicação que receberia da irmã.

O segundo papel era uma folha timbrada, datilografada com a frieza impessoal da tinta preta e do papel
branco. Estava escrito:

“Embaixada Britânica Cabul, 30 de abril

Cara Srta. Simpson:

É com profundo pesar que lhe informamos que Thomas Cowley foi encontrado morto na manhã de 28
de março, às nove horas e trinta e cinco minutos, a dezesseis quilômetros da estrada para Kandahar, a
sudoeste da cidade de Ghazni. O relatório da polícia local informa que a causa da morte foi um golpe na
base do crânio. A investigação oficial concluiu que a morte aconteceu por homicídio acidental.

Pelo fato de o Sr. Cowley não nos ter notificado de sua chegada ao Afeganistão, e em virtude da
ausência de quaisquer documentos pessoais com o falecido, levamos muito tempo para identificá-lo.
Com a ajuda das autoridades da fronteira, soubemos que ele tinha entrado no país vindo do Paquistão,
através do desfiladeiro Khyber, acompanhado da esposa. E é também com profundo pesar que
informamos não saber do paradeiro da Sra. Cowley.

Pelo que foi declarado pelas autoridades, ela está desaparecida, presumivelmente morta. Naturalmente,
continuaremos a fazer todos os esforços no sentido de localizar sua irmã, mas devemos informá-la de
que as dificuldades que temos encontrado são enormes...”

Camilla suspirou. Nunca havia se importado com Thomas, mas não desejaria a ninguém o fim que ele
teve. Sempre o considerara um esnobe, do tipo que andava por aí com o nariz empinado. Mas tentava
acreditar que deveria haver algo de bom nele, senão Meghan não o teria escolhido para marido.

Thomas estava morto. E ela precisava achar Meghan. Foi pensando nisso que desceu do avião. Saindo
do conforto do ar condicionado, o calor atingiu-a violentamente. Ela respirou com dificuldade e
cambaleou, mas Johnny, que estava logo atrás, a amparou e evitou que caísse.

— Está muito quente, mas você logo vai se acostumar. E gostará do clima daqui quando estiver com a
pele bem bronzeada.

— Bem bronzeada? Eu descasco, como as cebolas! Johnny, você se importaria em chamar um táxi para
mim? Tenho um quarto reservado no Hotel Cabul.

— Eu a levarei. E vou achar um insulto se não permitir que a acompanhe até o hotel. Dessa forma, o
motorista não poderá cobrar o dobro da tarifa e terei certeza de que você chegou lá sem perigo.

Ainda tentando me proteger!, pensou Camilla, enquanto passavam pela alfândega. Mas estava cansada
demais para recusar, e a presença de Johnny seria muito mais alentadora do que a de um
desconhecido motorista.

— Onde está seu carro? — perguntou ela, olhando para o estacionamento quase totalmente vazio, o
que parecia estranho para um aeroporto.

— Você está pensando no quanto é diferente do aeroporto de Londres, não está? Venha comigo.

Ele a conduziu em direção a um furgão Volkswagen. Visões novas e fascinantes a rodeavam: uma fileira
de camelos passava ao longe; homens escuros montados em jumentos circulavam em meio ao tráfego;
táxis e ônibus importados rodavam pela cidade e ainda havia uma estranha figura, vestindo um manto,
que deslizava silenciosamente e a olhava através de um véu rendilhado. Ao lado do carro, estava um
homem sorridente, vestindo uma espécie de pijama branco e um boné de lã negra, lã de ovelha recém-
nascida.
— Camilla, esse é o meu motorista, Rajab. Rajab, esta é a Srta. Simpson. Ela veio conhecer o
Afeganistão.

O rosto do motorista abriu-se num sorriso de dentes irregulares, e ele estendeu a mão:

— Salaam aleikon.

Camilla apertou a mão dele.

— Muito prazer.

— Como está a memsahib, Rajab? — perguntou Johnny.

— Khubnes — disse o motorista, sacudindo a cabeça.

— Bessiar? — perguntou Johnny, ansioso. E, virando-se para Camilla: — Ele diz que Janet não está
muito bem. Nunca vou poder me perdoar se alguma coisa aconteceu a ela enquanto estive fora!

Mas Rajab o tranqüilizou:

— Ne, não tão ruim; ela não gosta senhor Hagan sai...

— Mas qual é o problema? — perguntou Camilla, preocupada.

Tinha ouvido falar tanto sobre Janet que já a considerava sua amiga, e detestava pensar que pudesse
acontecer alguma coisa ruim com ela.

— Eu não tenho parado muito por aqui, e, assim, não conheço direito o idioma. E Rajab praticamente
não fala inglês. Portanto, terei que esperar até chegar em casa para descobrir como as coisas
realmente estão. É uma pena. Eu gostaria de convidá-la para jantar esta noite. Ainda não lhe contei
metade das coisas que você teria que saber, e existem algumas que somente uma mulher poderá fazê-
lo. De qualquer forma, posso telefonar para o hotel assim que souber como estão as coisas em casa.
Tenho certeza que Janet vai adorar conhecê-la.

— É uma gentileza sua, Johnny. Mas eu terei que recusar. Estou tão cansada que mal posso manter os
olhos abertos!

Ele sorriu e se acomodou no assento do carro, examinando o rosto de Camilla, que observava, pela
janela, as imagens hipnóticas da bela cidade asiática.

— Você quer que eu lhe apresente algumas pessoas? Isso talvez ajude. Afinal, está sozinha num país
estranho...

— Você tem sido tão amável, Johnny... Obrigada. Sei que posso confiar em você. E nem sei como lhe
agradecer.

Camilla sorriu, feliz por ter como amigo alguém tão sincero e valioso como Johnny. Se não o tivesse
conhecido durante o vôo, estaria em pânico agora.

Depois de conversarem sobre assuntos variados, ele se mostrou intrigado a respeito da viagem dela e
perguntou:

— Por que, entre tantos lugares, você escolheu vir para o Afeganistão?

Então ela contou toda a história: o desaparecimento da irmã, seu sofrimento, a crença de que Meghan
não estava morta, a demissão do emprego como secretária e a necessidade de juntar todas as
economias para a viagem.

Ele admirou-se da coragem dela e ofereceu-se para ajudá-la, assegurando-lhe que Janet iria
compartilhar daquele interesse.
Pararam num farol vermelho e Camilla olhou para a frente: dois homens estavam parados num
cruzamento, vestidos com mantos e turbantes. Um deles tinha estatura média, pele ligeiramente parda,
enquanto o outro era bem mais alto, bronzeado, e mesmo a roupa solta não escondia a flexibilidade de
seu corpo. Os olhos de Camilla fixaram-se nele e, por um momento, seus olhares se encontraram. Ela
percebeu o azul dos olhos dele: um azul da cor do céu do deserto, um azul tão brilhante que a fez vibrar
de emoção. Mas o farol abriu, o carro virou a esquina e os dois homens ficaram para trás.

Voltou-se para Johnny. Numa cidade tão grande, seria possível que ele soubesse quem era aquele
afegão de olhos azuis? Mas Johnny estava recostado no assento, imerso em pensamentos, tão
cansado quanto ela e ansioso por reencontrar-se com a esposa. Camilla não o perturbou. Nem sequer
tinha certeza se os dois homens eram reais ou apenas invenção da sua mente cansada. Mesmo
assim... aquele azul... Sim, aqueles olhos a tinham perturbado. E muito.

CAPÍTULO II

O carro parou ao lado de um edifício impressionante, firme como um rochedo, construído com pedras
acinzentadas. Johnny ajudou Camilla a descer. Rajab os seguiu, levando a bagagem dela: apenas duas
pequenas malas. Pararam na mesa de recepção.

— Quer que eu fique e a acompanhe até o quarto?

— Você já fez tanto, Johnny, que acho que posso me arranjar sozinha agora. Sei o quanto está ansioso
por chegar em casa.

— Bem, se tem certeza... Nós lhe telefonaremos amanhã, para saber como está se saindo. — Abaixou
o tom de voz ao completar:

— Se você quiser um conselho de amigo, não mencione nada a ninguém a respeito de sua irmã. Não
que haja qualquer coisa suspeita, mas...

— Se você está tentando me desanimar, está se saindo muito bem!

— Não se preocupe, Camilla. É que não há razão alguma para que toda Cabul saiba por que você está
aqui. Vamos deixar isso só entre nós e as pessoas em quem podemos confiar. Para qualquer outro,
você será simplesmente mais uma turista, certo?

Camilla estava cansada demais para discutir. Sorriu.

— Certo!

— Então até breve, garota. Boa sorte!

E Johnny se foi, seguido por Rajab, deixando-a sozinha naquela terra estranha. Camilla passou os olhos
pelo saguão do hotel. Era aberto e espaçoso, com paredes altas, de pedra, e chão de mármore coberto
por tapetes em tons dourados e vermelhos. O ar condicionado fez com que ela se sentisse bem.
Sozinha no quarto, fechou as pesadas cortinas e estirou o corpo entre os lençóis limpos e macios, com
uma sensação de prazer. Esperava dormir assim que pusesse a cabeça no travesseiro, mas, quando
seu corpo descansou, sua mente começou a trabalhar. Lembrando-se de Johnny, os pensamentos a
levaram até seu último e amargo encontro com Jeff.

Fora num restaurante londrino, onde jantaram pela última vez. Ele havia agarrado o braço dela com
tanta força que lhe deixara uma grande marca. E, então, dissera:

— Parece que você tomou mesmo a tola decisão de ir.

— Seria um desperdício não ir. Com as passagens compradas, as reservas feitas, e com todas as
vacinas que tomei!

— Não acredito que você queira mesmo ir. Acho que decidiu isso num impulso e, como é orgulhosa
demais para voltar atrás, vai levar essa loucura até as últimas conseqüências.

— Não é nada disso! — exclamou Camilla, desesperada e ferida pela falta de compreensão dele. — Eu
tenho tentado, durante semanas, fazer com que você compreenda minhas razões! Mas você não liga a
mínima! Não percebe que isso está acabando com o nosso relacionamento? Será que não enxerga? Eu
não tenho escolha! Eu “tenho” que ir para o Afeganistão e encontrar Meghan! Você está certo ao dizer
que não quero ir; não pode imaginar o medo que sinto, principalmente depois do que aconteceu a ela.
Meghan é minha irmã!

— “Era” sua irmã — corrigiu Jeff friamente. — “Desaparecida, presumivelmente morta.” Esqueceu?

— Ela não está morta! — gritou Camilla, e sua voz ecoou pelo restaurante.

— Como pode afirmar isso? Por acaso é alguma adivinha ou coisa parecida?

— Se você quiser entender assim... — respondeu Camilla, desanimada com a discussão. — Mas essa é
uma maneira tola de ver as coisas. Simplesmente eu “sei” que Meghan está viva. Como saberia se ela
estivesse morta. Sinto isso de uma forma tão forte que tenho que acreditar! Meghan é minha irmã! É a
única pessoa que tenho no mundo! — E, com sofrimento, lembrou-se da trágica morte dos pais, num
acidente de carro, há dois anos.

— Você tem a mim — respondeu Jeff suavemente, segurando a mão dela. — Ou poderia ter, se
quisesse. Case-se comigo, Camilla. Então também poderei ir para Cabul. Você precisa de mim, e jamais
poderá levar essa missão a cabo sozinha. Você mesma admite que está amedrontada. Deixe-me ir, para
ajudá-la.

Por um breve momento ela sentiu-se tentada a aceitar. Como seria fácil deixar-se levar por aquela
idéia... Jeff estaria sempre a seu lado, protegendo-a, tomando conta de todos os detalhes aborrecidos e
confusos. Mas essa seria uma vida totalmente sem graça. Jeff organizaria tudo tão facilmente como
escolhia um restaurante ou um cinema, os teatros e as galerias de arte que visitavam. Seria uma vida
na qual ele a aconselharia sobre tudo, desde vestidos e perfumes até dietas e sabonetes. Jeff lhe
mostraria o Afeganistão com o mesmo esforço que fazia para mostrar-lhe um de seus museus
preferidos. Camilla não precisava de um livro de informações porque ele sabia tudo e diria aquilo que
desejasse que ela soubesse.

— Case-se comigo, Camilla. Nós já estamos juntos há três anos! Você tem razão, nosso relacionamento
está se deteriorando, mas precisamos fazer alguma coisa para salvá-lo. Eu tenho sido bom, paciente.
Há três anos espero você porque acho que vale a pena. Vamos salvar o que nos resta: case-se comigo!

Camilla se apavorou ao pensar em tudo o que o casamento implicava. Porque, no fundo, não sentia
atração alguma por Jeff. Na realidade, nunca o desejara.

— Eu não posso me casar com você.


— Por que não? Pode fazer tudo que quiser fazer.

— Então eu não quero me casar com você. — Diante do olhar de incredulidade dele, continuou: — Você
nunca pensou que eu fosse recusá-lo, não é? Mas tenho minha própria cabeça, por mais que isso
possa surpreender, e vou fazer algumas coisas e visitar alguns lugares, antes de me casar com quem
quer que seja. Como fui cega em não ver isso antes! Não preciso pedir sua permissão, nem a de
ninguém, para fazer as coisas que quero fazer! Irei para onde tiver vontade de ir e verei o que quiser ver,
sem que uma única corda me prenda. E começarei pelo Afeganistão, para achar minha irmã.

— E quando você voltar?

— Eu nunca poderia me casar com você, Jeff. Nunca houve nenhum envolvimento entre nós, nenhuma
paixão. Não, eu não me lembro de ter alguma vez sentido algum... desejo. E certamente isso tem que
existir.

— Mas eu notei desejo em você!

— Não, Jeff, eu não sentia. Eu nunca disse isso a você. No começo achei que o problema era comigo,
que eu iria superar, mas... não há nenhum desejo mesmo. Quando eu me casar, será com alguém que
ame, e acho que esse não é nosso caso. Talvez eu não tenha sido feita para o casamento.

— Você parece não perceber as ilusões que está criando para si mesma! Pensa que o amor é o começo
e o fim de tudo, na vida! Bem, pois saiba que não é. E sei que você não é o tipo de pessoa que gosta de
ter “casos” e nada mais. Você é muito orgulhosa para admitir que será melhor casar-se comigo!

— Se o casamento for isso que você parece pensar que é, então eu não me casarei nunca! Nunca
darei, a homem nenhum, permissão legal para me dar ordens sobre isso ou aquilo. Eu tenho amor-
próprio!

— Eu agora vejo isso. Mas, se pensa que será feliz, está enganada!

— Parece que você me oferece a seguinte escolha: ser uma escrava casada ou ficar sozinha, mas dona
de minha vida. Acho que posso tomar conta de mim mesma e ser feliz, também.

— Estou pagando para ver — respondeu ele, sarcástico.

Mesmo exaltada, Camilla ouviu um telefone tocar em algum lugar, e o garçom veio chamá-la.

— Telefone para a Srta. Simpson.

Ela se levantou e dirigiu-se para o telefone da mesa de recepção.

— Camilla?

— Sim?

— Sou eu, Jennifer.

Jennifer era uma amiga que trabalhava na agência de viagens onde Camilla tinha reservado as
passagens.

— Eu telefonei para sua casa — continuou ela —, mas ninguém atendeu; então, imaginei que vocês
dois poderiam estar aí no restaurante. Bem, seu vôo foi marcado para depois de amanhã. Se for
inconveniente, poderemos reservar outro vôo para a semana que vem.

— Não, não, está ótimo! Quando mais cedo melhor!

— Está tudo bem, Camilla? Você está tão estranha!

— Como assim?
— Não sei dizer. Feliz, talvez agitada.

— É, é verdade. Acabei de recusar uma proposta de casamento.

— Mesmo? Bem, espero que o Afeganistão valha a pena.

— Acho que qualquer lugar valeria! — Camilla riu e Jennifer a acompanhou.

A lembrança de tudo aquilo, de tudo que vivera naquela noite, voltou-lhe à mente. E Camilla teve a
certeza de que, por mais difícil que sua tarefa pudesse ser, havia tomado a melhor decisão. Ali, naquela
terra estranha e com a liberdade que tinha adquirido, iria começar uma nova vida, iria tomar suas
próprias decisões, aceitar ou rejeitar conselhos, procurar seus próprios amigos e encontrar seu próprio
caminho.

Eu gosto dos Hagan; quero que eles me ajudem, pensou.

Lembrou-se das palavras de Johnny, no avião: “Você vai achar este lugar estranho a princípio, mas logo
vai amá-lo. Nós todos o amamos. O Afeganistão cresce em você”.

E finalmente pegou num sono profundo, repleto de sonhos. Envolta nos lençóis brancos, ela sonhou
com dois penetrantes e belos olhos azuis.

Camilla não saiu do hotel no dia seguinte. Tinha sido avisada para tomar cuidado com a mudança de
altitude. Dessa forma, desfez as malas, arrumou os artigos de toucador, leu e telefonou para a
Embaixada, mas eles não tinham novas informações para lhe dar. Desanimada, comprou alguns
cartões-postais e os remeteu para alguns amigos. Não mandou nenhum para Jeff.

No dia seguinte, Rajab foi até o hotel com uma mensagem de Johnny:

“Camila:

Janet está meio cansada, embora diga que tem se sentido melhor desde que cheguei. Mesmo assim
vou ficar em casa com ela por mais um dia ou dois. Espero que esteja dando conta de tudo. Janet está
ansiosa por conhecê-la.

Você pode vir jantar conosco amanhã à noite? Rajab estará à sua disposição, uma vez que não
pretendo sair de casa. Vamos ver se podemos dar início àquele seu assunto amanhã. Até lá, esqueça-o
e divirta-se”.

Camilla tinha ouvido falar que os americanos eram muito amigáveis, e era verdade. Pelo menos no que
dizia respeito a Johnny.

Amanhã... Só lhe restava um dia para achar alguma coisa adequada para vestir. Constatou que
precisava de um vestido para noite, já que não tinha previsto a possibilidade de convites para jantar.
Mas onde comprar um?

— Onde quer ir hoje, memsahib?

— Preciso de um vestido, Rajab, um vestido longo. Onde posso comprar um? — Rajab não entendeu, e
ela consultou rapidamente o dicionário. — Peyran. Um vestido.

— Você gosta peyran, nós vamos bazar. Muitos, muitos peyran. Bazar, então?

— Bazar! — respondeu ela, rindo.


Enquanto rodavam pelos quentes e sombreados bulevares, Camilla se divertia com a experiência de
“ter” um chofer. Isso lhe dava uma sensação de importância, uma sensação falsa, sabia, mas muito
engraçada.

Em todo caso, não era apenas uma turista. Cada viagem, cada expedição que fizesse, teria algum valor
para sua tarefa. Mesmo esse curto passeio até o bazar. Era necessário ter um conhecimento básico do
país, se pretendia descobrir os mistérios que estavam por trás do desaparecimento da irmã.

O furgão virou uma esquina, parou e Camilla saiu do carro, encontrando-se numa rua comprida e
estreita. Ao longo dela, vendedores empurravam carroças de madeira carregadas de mercadorias.
Frutas brilhantes, que pareciam estourar de tão maduras, deram-lhe água na boca. Ela prestou atenção
no rangido das carroças, no zurro dos jumentos, no latido dos cães, em galos cantando e, misturado a
isso tudo, nos berros dos lojistas. Em meio a essa animada algazarra. Camilla sentiu-se vibrar. Era uma
pessoa livre!

— Que lugar maravilhoso!

— Vem, memsahib. Quer peyran, conheço loja cheia bom peyran.

Rajab começou a andar e ela o seguiu. Começaram a descer a rua repleta de gente, desviando aqui e
ali da horda humana, dos animais e das mercadorias. Rajab movia-se rapidamente, e ela lutava para
não ficar atrás. A sensação era de claustrofobia, e, de vez em quando, sentia que mãos a tocavam ou
puxavam-lhe o cabelo.

Rajab entrou por uma porta e ela o seguiu, feliz por se ver livre do calor, da poeira e do barulho. O
interior da loja era frio e escuro, e, assim que os olhos dela acostumaram-se à meia-luz, pôde ver uma
imensa variedade de tecidos, pendurados na parede. Eram vestidos longos, de todos os estilos, com
mangas largas ou estreitas, estampados ou lisos, feitos de seda, algodão ou lã pesada. Verificou,
surpresa, que aqueles trajes eram os mesmos vendidos em lojas selecionadas de Londres, a preços
exorbitantes. E ali estava ela, a milhares de quilômetros de Londres, na própria terra onde esses
vestidos eram costurados e estampados.

— Peyran-i Kushi — disse Rajab. — Vestidos nômades. Gosta?

A palavra Kushi já lhe era familiar, e Camilla olhou para os vestidos com interesse. Esses eram os trajes
da gente que sua irmã tinha admirado tanto. No brilho das cores, nas linhas harmoniosas e no vistoso
bordado, Camilla percebia um pouco da beleza que tinha atraído Meghan. Decidiu que teria um desses
vestidos. Escolheu um azul e branco, todo estampado com ramos floridos verdes e vermelhos, e com
um belo e multicolorido bordado na cintura, punhos e bainha.

— Gosta? — perguntou Rajab.

— Sim. Eu quero este aqui.

Num minuto o lojista estava do lado dela.

— Memsahib gostaria experimentar? Provador é logo ali.

Ela entrou no provador e fechou a cortina. Despiu-se rapidamente e sentiu com satisfação o frescor do
toque do vestido no corpo. Serviu perfeitamente, e, como havia pensado, combinou com sua aparência
tipicamente inglesa.

Voltou à sala e o vendedor aproximou-se novamente.

— Agradou?

— Sim. Quanto custa?


— Para a senhora, memsahib, porque é tão formosa, apenas oitocentos afeganes.

Camilla sorriu. Um preço fantástico para um vestido pelo qual pagaria quase o dobro em Londres. Ela já
ia concordar quando Rajab sussurrou-lhe:

— Esse homem ganancioso. Você vai, eu decido quanto.

Camilla ficou intrigada. Tinha ouvido falar do sistema de barganha nos bazares e estava interessada em
saber como Rajab conduziria a situação, embora estivesse satisfeita com o preço. Entregou o vestido a
ele e saiu, caminhando de volta ao carro.

Durante longos minutos, ficou recostada no assento, quase cochilando com o calor. Uma batida na
janela a assustou, e ela abriu os olhos: várias crianças, escuras e esfarrapadas, esticavam as mãos,
pedindo esmolas:

— Baksheesh, baksheesh, memsahib!

Ela pegou algumas moedas no bolso e abriu a porta do carro para distribuí-las. Então, alguma coisa na
rua chamou-lhe a atenção: um homem alto estava lá, parado. Alto mesmo para os padrões dos afegãos.
Um lento reconhecimento fez o corpo dela tremer: era o estranho que parecia um sonho, o estranho de
olhos azuis. Prendeu a respiração ao observar o andar dele. Era solto, leve, seguro.

Camilla sentiu uma compulsão em segui-lo. Ameaçou, e chegou a dar alguns passos na rua quando
mudou de idéia. Por que fazer uma coisa dessas? A atmosfera mágica de Cabul deveria estar afetando-
a.

— Memsahib!

Ela olhou para o rosto sorridente de Rajab, que lhe entregou o pacote do vestido. Apanhou-o e ficou
segurando, sem olhá-lo, sentindo-se meio perdida no tumulto do bazar da rua Chicken.

— Memsahib muito cansada. Vamos hotel.

Camilla acenou com a cabeça, intrigada. Como explicar a si mesma aquele momento louco, impulsivo,
em que quase seguira um desconhecido? Procurou a enigmática figura. Ele tinha desaparecido. Abanou
a cabeça mais uma vez, surpresa consigo mesma. Seria o calor do sol? Ou a altitude já estava lhe
pregando peças? De pé, no meio da rua Chicken, segurando junto ao peito um pacote e com o olhar
fixo num ponto onde um homem tinha desaparecido, ela sentiu-se uma perfeita idiota. Mas não podia
negar o magnetismo dele.

Devo estar supercansada, pensou. Voltou-se em direção ao carro. Aí lembrou-se do pacote, e o seu
entusiasmo voltou.

— Quanto custou?

— Ele diz oitocentos, eu diz quatrocentos, nós chai, ele diz quinhentos afeganes, eu diz sim — explicou
Rajab, devolvendo-lhe trezentos afeganes.

— Da próxima vez vou tentar fazer isso. Se pelo menos nós tivéssemos esse maravilhoso sistema de
argumentação com os lojistas da Inglaterra...

Mais tarde, quando ela apagou as luzes e deitou-se, seus sonhos foram agradavelmente perturbados
mais uma vez por um desconhecido de olhos azuis.
CAPÍTULO III

O dia seguinte amanheceu mais claro e mais quente. Camilla acordou tarde e pediu que lhe trouxessem
chá gelado. Lá pelas cinco horas, tomou um longo e refrescante banho e arrumou os cabelos. Colocou
o vestido azul e branco, e mais uma vez experimentou a deliciosa sensação da sensualidade que a
seda lhe provocava. O corpete ajustou-se firmemente a ela, moldando agradavelmente a forma de seus
seios pequenos e firmes, e o tecido caiu macio ao redor de seus quadris. Com um batom de cor suave e
um toque de sombra nos olhos, para salientar o bronzeado que o rosto adquiria, ela estava pronta para
sair.

Na rua quente, ficou surpresa por não conseguir um táxi. Todos que passavam pareciam estar
ocupados. Passou vinte irritantes minutos ao sol e ao barulho do tráfego, andando lentamente em
direção à casa dos Hagan. Mas ela ficava do outro lado da cidade, no subúrbio de Karte Char, e levaria
no mínimo uma hora para andar até lá.

Havia sobrado pouco da fresca e serena criatura que há instantes deixara o Hotel Cabul, quando ela
finalmente conseguiu um táxi.

— Karte Char, cinqüenta afeganes — disse o motorista.

A tarifa era exorbitante, mas Camilla não tinha disposição para discutir.

Quinze minutos depois, o carro estacionou próximo à alta parede de cimento, que, como em todas as
casas que pertenciam a estrangeiros ou aos ricos cabulis, circundava a casa dos Hagan. Ela se
aproximou da larga porta de madeira e tocou a campainha.

— Oh, Camilla! Nós já estávamos pensando que você não vinha!

Entrou e foi cumprimentada por uma mulher bonita, de expressão ansiosa, com calça comprida e uma
bata para grávidas. Ela apertou a mão da recém-chegada calorosamente, e Camilla perguntou:

— Você deve ser a Sra. Hagan. Acertei?

— Janet, querida. Por favor, chame-me de Janet. Oh! Estou contente em vê-la! Entre, por favor.

Camilla observou o andar gracioso de Janet. Ela era esbelta, e tinha um tipo muito bonito, que chamava
a atenção.

De repente, Camilla sentiu-se abraçada, pelos joelhos, por um cão grande e muito peludo, que lembrava
um urso cor de mel e que tentava lamber-lhe o rosto.

— Espero que você goste de cães, Camilla.

— Como não gostar? Qual é o nome dele?

— Elsa. A nossa cozinheira, Kayyum, deu-lhe esse nome porque achou que ela se parecia com os
filhotes de leão que viu no filme A História de Elsa.

— Ela é realmente linda! De que raça é? Eu pensei que o único tipo de cão que havia no Afeganistão
fosse aquele aristocrático Afghan Hounds.

— Ele é magnífico, não acha? Mas Elsa é uma cadela de guarda.


Conversando, chegaram a uma sala de estar espaçosa e fresca, com chão de mármore. Camilla
mergulhou novamente na glória do ar condicionado.

— Tome um refresco, Camilla — ofereceu, Janet, passando-lhe um copo com um líquido gelado e
sentando-se perto dela.

— Você parecia apressada quando cheguei aqui, Janet. Espero não ter aparecido em má hora.

— Bem, acontece que Johnny teve que sair às pressas, para ver um paciente, e eu vou me encontrar
com ele daqui a pouco. Você sabe, trabalho como enfermeira de Johnny...

— Mas... na sua condição? Não existem outras enfermeiras? Alguém que possa substituí-la esta noite?

— Sim, existem. Se o paciente fosse qualquer outra pessoa, eu não iria. Mas o caso de Brody é muito
especial. Ele já tem idade, e eu gosto muito dele. Está aqui há muitos anos, sabe? É uma pena que isso
vá arruinar a nossa noite.

— Não tem importância. Haverá outras noites... Oh!

— O que foi. Camilla?

— Eu quase me esqueci! Pedi ao motorista do táxi que viesse me apanhar às onze horas. Você não
sabe a trabalheira que tive para conseguir um.

— Infelizmente vamos precisar de Rajab, senão ele a levaria para o hotel. Mas você pode ficar aqui até
que o táxi venha buscá-la.

— Eu não poderia...

— Claro que poderia! Veja que jantar delicioso eu preparei! Seria um desperdício se ninguém o
comesse. Vou ficar muito contente em saber que alguém vai aproveitá-lo.

— É, tem razão, mas eu me sinto muito cansada. Creio que vou voltar e tomar outro banho.

— Você pode tomar banho aqui. Temos muita água quente, toalhas grandes e macias.

— Você é muito persuasiva, Janet!

Janet deu um sorriso encantador.

— Como acha que consegui meu marido? — Camilla riu. — Bom, chega de discussões. Você vai ficar
sozinha se voltar para o hotel e, já que eu estou quebrando todas as regras de hospitalidade, saindo
apressada assim, o mínimo que posso fazer é deixá-la bem à vontade. Temos livros, rádio, fitas e
discos. E Elsa.

— Está bem, você ganhou.

A campainha tocou.

— É Rajab. Tenho que ir. Não se preocupe em trancar a casa, nós nunca trancamos. Sabe, adorei seu
vestido. É da rua Chicken?

— Como você adivinhou?

— Conheço o lugar. Mas, se você pagou mais que quinhentos afeganes, foi explorada. Bom, então até
qualquer hora.

Ela se foi e tudo ficou em silêncio. A primeira coisa a fazer era tomar um banho. A casa era tão
acolhedora que Camilla não se sentiu constrangida em fazer isso. Subiu a escada, à procura do
banheiro, e achou um cômodo espaçoso, com porcelanas brancas e paredes azuis. A banheira era
enorme, como uma piscina para crianças. A perspectiva de um banho quente era maravilhosa.

Encheu a banheira, despiu-se e pendurou o vestido atrás da porta. Prendeu os cabelos no alto da
cabeça e entrou no banho. Logo acostumou-se à água quente, e seus músculos relaxaram.

Ela sequer conseguiu pensar sobre o problema da irmã: achou difícil concentrar-se em qualquer coisa.
O calor do banho era relaxante. Por um momento, Camilla sentiu-se no paraíso. Afundou o corpo no
quentinho envolvente da água, os olhos semicerrados...

De repente, teve um sobressalto. Recuou, assustada, os olhos fixos na porcelana branca: entre as
torneiras, apareceu o corpo sinistro de um grande escorpião negro.

Camilla ficou paralisada de terror. Só um metro a separava do bicho. Não ousou se mover; nem sequer
ousava respirar. Não havia ninguém na casa. Só se ouviam os latidos de Elsa, em algum lugar.

Mas, de repente, ouviu sons de passos. Talvez Janet tivesse voltado... O pensamento lhe deu coragem
suficiente para pular fora da banheira. Rapidamente, ela se embrulhou numa grande toalha e correu
para fora.

— Socorro, Janet, socorro! — gritava, desesperada.

Ninguém respondeu e, apesar do medo que sentia, ela se irritou por não obter resposta, pois sabia que
havia alguém na casa. Correu, escada abaixo.

— Janet, por favor! Janet, Eu vi...

E parou, as palavras morrendo na garganta, os lábios secos, o coração batendo forte.

Um homem alto, de cerca de um metro e noventa, estava parado à sua frente. O rosto era bronzeado;
os olhos, azuis como o céu, a estudavam demoradamente.

Ele!, pensou Camilla, mal podendo crer no que via. Não podia acreditar que ele estivesse ali, próximo o
suficiente para ser tocado. E era isso que o magnetismo daquele homem provocava nela: uma vontade
louca de tocá-lo, passar as pontas dos dedos por cada parte daquele corpo e confirmar que era real.
Mas alguma coisa a impediu, e ela, cruzando os braços sobre o peito, disse:

— Você!

Ele nada falou; apenas olhou-a de modo intimidativo. Só então Camilla lembrou-se da toalha que
moldava suas formas provocantes e de seu cabelo molhado.

— Eu... Você é a Srta. Simpson, creio — disse ele, com uma voz modulada e suave, como a de um ator.

— Sim, sou eu, e... Bem, eu estou meio aterrorizada, sabe? Tem um bicho enorme... preto e feio... está
lá parado... eu estava muito assustada... pensei que fosse... quero dizer, eu estava tomando banho... Eu
pensei que só existissem debaixo das pedras...

— Srta. Simpson, não deveria corar assim tão facilmente. Não combina com você. — A voz. dele era
sarcástica.

— Oh, eu gostaria que você o matasse...

— Srta. Simpson, do que está falando?

— Há um escorpião lá em cima, no banheiro. Ele é grande e preto, feio e peludo, e...

— Os escorpiões nunca são peludos — disse o homem, e subiu a escada. Ela, nervosa, sentou-se. —
Você se refere a esse pobre animal? — ele perguntou, lá de cima. — Devo matá-lo?
— Oh, por favor, depressa! — gritou Camilla, mas ele reapareceu com um pequeno aracnídeo, que
lutava para se livrar dos dedos que o prendiam. Recuando, ela não pôde evitar um grito.

— Você não precisa temer uma criatura que não lhe fará mais mal do que uma mosca. Provavelmente
ele está mais assustado que você.

— Jogue-o fora! Não vê que pode ser mortal?

— Não esse escorpião. Essa espécie é praticamente inofensiva. Uma batida da toalha e o bichinho teria
fugido para o primeiro buraco que encontrasse.

Ele abriu a janela e soltou o escorpião. Fechou-a novamente, pegou o casaco e dirigiu-se para a saída.
Camilla o observou por um momento, incapaz de pensar ou de dizer alguma coisa. Receava ser, mais
uma vez, alvo das irônicas observações dele. E ficou lá, parada, a água escorrendo do corpo para o
chão de mármore, observando o estranho de olhos azuis partir.

— Espere! — gritou, num impulso, e ele parou na porta aberta.

Que poder tem esse homem que me perturba tanto?, pensou Camilla. Mas controlou-se e disse:

— Eu não queria que você pensasse que tenho por hábito chamar estranhos para matar escorpiões.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Tenho certeza de que sempre poderá encontrar desconhecidos para fazer muitas coisas esquisitas
para você, Srta. Simpson.

Camilla corou e respondeu:

— Eu... eu pensei que você fosse outra pessoa...

— Não pensei que você estivesse me esperando, Srta. Simpson.

— Sou amiga dos Hagan. Vim para jantar, mas eles foram chamados para uma emergência. Faz pouco
tempo que estou nesse país e...

— Ah, sim, é verdade! Eu sei tudo sobre você, Srta. Simpson.

— Como sabe meu nome? E o que está fazendo nessa casa?

— Também sou amigo dos Hagan. E me preocupo muito com o bem-estar deles. Mais, parece-me, do
que outras pessoas.

— O que quer dizer com isso?

— Johnny contou-me tudo a seu respeito, Srta. Simpson. Conheceu a esposa dele?

— Janet? Sim. Ela foi muito gentil comigo.

— Eles são muito ingênuos, muito bons, acreditam demais nas pessoas. Eu detestaria que alguma
coisa lhes acontecesse.

— O que quer dizer com isso? Não entendi.

— Sei que sua história é verdadeira. Lembro-me do incidente do desaparecimento da Sra. Cowley. Mas
questiono seu caráter, Srta. Simpson. Você tanto pode ser uma pessoa sem princípios, à procura de
grandes emoções, como uma menininha inocente, perdida num lugar estranho. E sua aparência, esta
noite, indica-me a primeira possibilidade. A senhorita pode se meter em quantos perigos quiser, mas,
pelo amor de Deus, deixe os Hagan fora disso. Logo entenderá que o Afeganistão não é lugar para se
brincar de detetive. As grandes emoções deixam de ser emocionantes quando se fica face a face com
um lobo, com uma cobra venenosa, com tribos sanguinárias, com ladrões de estradas, degoladores...
Ou mesmo com a disenteria, a hepatite ou a malária. E, vendo como a senhorita reage a um inofensivo
escorpião, duvido muito que esteja habilitada a competir neste mundo. O charme feminino conta muito
pouco no deserto ou nas estepes.

Ele a enfureceu, mas, assim mesmo, provocou nela um impulso irresistível de chamá-lo de volta.

— Baamane Khoda, Srta. Simpson.

— O que isso quer dizer? Que língua é essa?

— É persa. Quer dizer: "Que Deus a proteja”.

— É muita gentileza sua. — Agora era a vez dela ser sarcástica.

— É o adeus tradicional no dialeto dari. Seria bom se você aprendesse um pouco. E agora, a não ser
que pretenda me manter em pé a noite toda ao lado da porta, eu gostaria de me despedir. — E se foi
antes que ela pudesse dizer alguma coisa.

A imensa arrogância daquele homem! Aquele irritante ar de superioridade! Como ela poderia saber
quais escorpiões eram perigosos e quais não eram? Aquele era exatamente igual ao homem que ela
conhecera em Londres, pronto para ajudar “a pobre e indefesa fêmea”, mas rindo de sua fragilidade.
Essa fragilidade, na opinião deles, os tornava indispensáveis. Como eles se atreviam?

Johnny não poderia ter falado mal dela, afinal de contas. E por que o faria? Na certa os dois homens
eram amigos, senão o estranho de olhos azuis não saberia por que ela estava ali. Fosse como fosse,
como ele se atrevera a interferir nos assuntos, nas decisões e nas amizades dela?

Camilla estava furiosa, perdida em pensamentos, quando sentiu algo roçando sua mão.

— Elsa! Como você entrou? Aquele homem deve ter deixado a porta aberta... Não se preocupe, não
vou mandá-la embora. Estou precisando de uma companhia que não exija nada de mim.

Camilla subiu para o banheiro, vestiu-se e voltou para baixo. Colocou música suave no toca-fitas e
sentou-se, deixando que os acordes invadissem seu mundo, enquanto as mãos acariciavam as orelhas
douradas de Elsa. Uma cena pacífica, calma. Exatamente o contrário do que ela sentia: estava envolta
num turbilhão de emoções, provocadas por perturbadores olhos azuis...

Às onze horas o táxi chegou. E, enquanto ela se dirigia para o hotel, começou a se sentir mais em casa,
nessa nova e exótica terra.

CAPÍTULO IV

No seu quinto dia em Cabul, Camilla decidiu aventurar-se pelos bazares. Pôs um vestido de linho rosa-
pálido, calçou sandálias de salto baixo e, pegando a bolsa, saiu.
Começou a descer a rua. Não prestava atenção por onde andava: os olhos famintos de novidade
percorriam cada nova experiência. À direita e à esquerda, podia ver os ônibus que passavam, os táxis
pretos e brancos, os cavalos e jumentos puxando carroças. Em largos gramados, no centro dos círculos
de tráfego, membros de tribos de fora da cidade sentavam-se em grupos, conversando e fumando.

Toda a sua atenção concentrava-se nessas estranhas e novas visões, e ela não percebeu que muitos
olhos escuros a observavam. Dirigiu-se ao centro do bazar, encantada com as cores das mercadorias.
Aí lembrou-se de Jeff. Pobre Jeff, com seu estreito círculo de museus, restaurantes e teatros! Ele nunca
saberia quanto uma simples viagem poderia abrir a mente a novas experiências.

Absorta em pensamentos, ela examinava, distraída, o bazar. Então, um movimento familiar chamou-lhe
a atenção. Não ficou surpresa. Já sabia que ia encontrá-lo nos lugares mais inesperados. Portanto, essa
não podia ser uma boa explicação para as batidas rápidas de seu coração. Como sempre, seu primeiro
impulso foi o de se aproximar dele, mas controlou-se e não saiu do lugar. Afinal, era um homem rude e
arrogante, que não merecia sua atenção.

Então uma idéia a assaltou. Será que ele a estava espiando? “Uma pessoa sem princípios, à procura de
grandes emoções...” Lembrou-se das palavras dele com indignação. Será que aquele estranho
perturbador decidira segui-la, para provar alguma coisa a Johnny?

De repente, houve um tumulto na multidão. Uma figura alta, vestida num manto branco, irrompeu em
sua direção, gritando e gesticulando. Camilla sentiu uma gota úmida nas faces, e depois a dor de uma
pancada violenta. Sua cabeça girou, a escuridão a envolveu, e ouviu gritos furiosos numa língua
incompreensível:

— Khaarh! Sag!

E aí, então, que alívio!

— Vão embora! Parem, seus imbecis, parem!

Sentiu a massa humana em volta dela. Mãos fortes apertaram seus braços. Uma voz firme, com
sotaque estrangeiro, gritou:

— Rápido! Venha comigo!

Camilla se deixou levar para um carro marrom, parado na estrada, que rapidamente se afastou do
bazar. Começou a tremer descontroladamente e explodiu em soluços, as lágrimas escorrendo pelo
rosto.

— Tome meu lenço, mademoiselle. Logo estará bem.

Ela fitou seu benfeitor e seus olhos encontraram-se com pequenos olhos castanhos, que brilhavam num
suave rosto bronzeado, emoldurado por cabelos escuros. O nariz era bem-feito e o lábio superior
coberto por um bigode aparado. A figura dele era magra, imaculadamente vestida num terno de três
peças, com um chapéu Panamá branco sobre a cabeça. O sorriso mostrava dentes bem cuidados. Ele
estendeu uma das mãos.

— Patrice Desmarets. E o seu nome, bela mademoiselle, qual é?

— Oh! Não faça brincadeiras! Foi horrível!

— Você foi atacada por um mulá.

— Mas... por quê? Ele me bateu! — E olhou para as contusões que estavam começando a aparecer
nos braços espancados. — Acho que ele queria me matar. Por quê?

— Por que alguém gostaria de atingir uma flor tão bela? Talvez, quem sabe, esse mulá não tenha
nenhum senso estético. Talvez seu vestido lhe tenha desagradado.

— Mas por quê? Minha roupa não é indecente!

— Aliás, mademoiselle, é très chic e lhe cai muito bem, mas não é exatamente aquilo a que eles estão
acostumados. Eu me refiro às mangas.

— Mangas?! Meu vestido não tem mangas!

— Esse é o ponto, mademoiselle. Ver braços tão bonitos pode ter levado algum dos severos
muçulmanos a uma ira incontrolável. Você já deve ter notado que a maioria das mulheres daqui
permanece coberta por véus da cabeça aos pés.

— Chadaris. Mas eu pensei que o tipo de coisa pelo qual acabo de passar só acontecesse em
Kandahar!

— Pode ter sido um mulá kandahari que a tenha atacado. De qualquer forma, agressões também
acontecem em Cabul, embora raramente.

— Quero comunicar isso às autoridades imediatamente.

— Acho melhor deixar como está. Não creio que você queira ficar famosa como criadora de casos.

— Mas... eu não...

— Se vai dizer que não foi você quem começou a confusão, está absolutamente certa. Mas a culpa será
sua, por estar usando um vestido tão provocador.

— Eu já vi roupas mais provocantes na rua Oxford!

— Em Londres. Mas, aqui, tudo é diferente. Ninguém vai achar que a culpa é daquele homem. Portanto,
é melhor não se envolver com as autoridades afegãs.

Camilla concordou. Se os costumes daquele país eram tão diferentes dos seus, não adiantava lutar
contra eles. Era melhor respeitá-los.

Olhou para o homem que a salvara do mulá enfurecido.

— Eu... eu receio não ter gravado seu nome.

— Nem eu o seu. Vamos recomeçar as apresentações? — Ele estendeu a mão a ela. — Patrice
Desmarets.

— Camilla Simpson.

— Um nome tão encantadoramente inglês! Como é agradável encontrar alguém como você aqui, nesse
lugar abandonado por Deus!

— Mas, se é isso que pensa deste país, por que está aqui?

— Negócios exigem minha presença. E a senhorita, há quanto tempo está aqui?

— Cheguei há quatro dias.

— Quatro dias! Pois vivo em Cabul há quatro anos! Diga-me, o que foi que a trouxe a este lugar?

— Bem, não sei ao certo... Necessidade de mudar, talvez — mentiu ela. — O que o senhor faz,
monsieur Desmarets?

— Eu? Sou jornalista autônomo, sempre esperando que alguma coisa importante aconteça.
— Engraçado, pensei que não acontecesse muita coisa por aqui... Mesmo assim — ela observou o
carro, o terno, o motorista —, o senhor parece ganhar o suficiente para ter uma boa vida, não?

— Bem, o suficiente, apenas o suficiente. Ou, como eles dizem aqui, khaafi.

Camilla notou que ele estava tentando mudar de assunto e apressou-se em explicar:

— Espero que você não pense que tenho o costume de andar em carros estranhos, dirigidos por
homens estranhos.

— Nem eu de levar mulheres desconhecidas, embora bonitas. De qualquer forma, desde que nós,
através de uma série de circunstâncias extraordinárias, tomamos conhecimento um do outro, espero
que me dê a honra de um drinque.

— Eu... eu não tenho o hábito de beber assim tão cedo, monsieur Desmarets.

Então, ouviu, à distância, o sonoro barulho de uma artilharia.

— O que foi isso?

— Nada com que se alarmar. É o canhão do Forte de Bala Hissar. Ele é disparado sempre ao meio-dia.
E, já que é meio-dia, que tal almoçarmos juntos?

Ela estava com fome e seu charme era irresistível.

— Aceito, muito obrigada.

Logo depois, o carro estacionou em frente a um grande e moderno edifício, todo de vidro brilhante,
cromo e concreto.

— Esse é o Hotel Bagh-i-Bala — explicou Desmarets, ajudando-a a descer.

Foram recebidos por um porteiro uniformizado.

— Boa-tarde, monsieur Desmarets.

No bar, havia pequenas rodas de homens bem vestidos e mulheres elegantes, conversando a meia voz.
Todos saudaram Patrice com silenciosos acenos de mão ou de cabeça.

Logo acharam uma mesa, e o garçom lhes entregou o cardápio, dizendo:

— Boa-tarde, monsieur Desmarets.

— Parece que todos o conhecem por aqui — comentou Camilla.

— É que a comunidade estrangeira é muito pequena. Talvez umas mil pessoas, incluindo crianças.
Quanto a Hussein, ele tem sido meu garçom desde que cheguei, há quatro anos. Bem, o que você
gostaria de pedir? Posso sugerir vitela?

— Se você sabe que é bom, eu concordo. Afinal, conhece melhor o lugar, não é?

Ah, o prazer de gozar a verdadeira sofisticação, a verdadeira cultura! Como Jeff poderia competir nesse
mundo?, pensou ela.

Conversaram sobre tudo durante a refeição. Patrice comentou com Camilla o que deveria ser visto em
Cabul. Mencionou o túmulo e os jardins de Babur, do outro lado da cidade, fora da estrada para
Kandahar.

— Gosto muito de jardins, principalmente porque são algo vivo, e não objetos presos a caixas de vidro,
como os que há nos museus.
— Se você gosta de jardins, então me ofereço para levá-la aos melhores jardins da cidade.

Camilla estava se divertindo muito. Aliás, nunca havia se sentido tão bem, desde que chegara a Cabul.
Mas, de repente, depois do excelente café turco, Patrice ficou sério.

— Eh, bien, mademoiselle, nós conversamos sobre muitas coisas, mas ainda não me contou o que a
trouxe a este país.

— Realmente, eu...

— Sabe, você me lembra muito uma pessoa que conheci aqui. Não há muito tempo, na verdade. Um
trágico fim. — E observou-a intensamente.

O rosto dela tornou-se pálido.

— Meghan Cowley! — gritou, incapaz de disfarçar a emoção. — Você a conheceu?

— Bem, na realidade, conheci Thomas Cowley, mas achei a esposa dele muito simpática. Você a
conhecia?

— Ela... ela é minha irmã.

— Eu não sabia que Meghan tinha uma irmã!

Camilla exultou. Aquele homem conhecia sua irmã! Ela não via nenhum motivo, agora, para evitar
contar a Patrice a verdade sobre sua estada no Afeganistão.

— Vim para achar minha irmã. Tenho que encontrá-la!

— Pensei que ela estivesse morta. Ouvimos dizer que ambos tinham sido assassinados. Foi algo muito
trágico. Talvez você não saiba de todas as circunstâncias, não?

— Sim, sei sim. Recebi um relatório completo da embaixada.

— E certamente não acredita que sua irmã ainda esteja viva, acredita?

— Eu “sei” que ela está viva.

— “Sabe”? Como é que sabe? Que provas tem?

— Nenhuma. Apenas algo me diz que ela não está morta. Ninguém encontrou o corpo de Meghan, e,
até que o encontrem, vou acreditar que ela está viva. Meghan é tudo que eu tenho, desde que meu pai
e a minha mãe morreram num acidente de carro... Oh, eu não posso perdê-la também!

— Não se preocupe, chère mademoiselle. Acho que tem razão. Farei o que puder para ajudá-la. Agora
conte-me tudo, desde o início. O que pretender fazer?

A tarde ia avançada quando Camilla voltou para o hotel, cansada, com calor, os braços machucados e
doendo. Mas estava com uma enorme sensação de alívio. Era como se Patrice tivesse retirado uma
carga de seus ombros, ouvindo-a, compreendendo-a e comentando tudo com muita gentileza. Com
inteligência e charme, ele a fizera sentir-se atraente e feminina. Até conhecia os Hagan, o que não a
surpreendia, pois ele parecia conhecer muita gente.

Camilla tocou a campainha da mesa de recepção, ansiosa por apenas duas coisas: um banho e uma
cama. Naquele instante, sentiu uma presença familiar a seu lado.

— Srta. Simpson!
A voz a fez corar e estremecer dos pés à cabeça. Ela nem se voltou para olhá-lo, pois queria disfarçar a
confusão que sentia.

— A senhorita tem progredido muito, não? Dois homens em três dias! Pode ser atraente, mas tamanho
sucesso é realmente fenomenal! A que você o atribui?

Isso era demais! Camilla voltou-se, as faces ardendo de raiva.

— Para sua informação, o homem que me trouxe aqui estava simplesmente se portando como um
cavalheiro. Ele me salvou de uma situação perigosa, e gentilmente levou-me para almoçar.

Ele sorriu, irônico.

— A senhorita não tem que me dar explicações. Sou apenas um humilde observador. Mas deixe-me
dizer que há poucas coisas mais perigosas que passear pela cidade com aquele francês, Patrice
Desmarets.

— Aquele francês, Patrice Desmarets, como o senhor o chama, teve a presença de espírito de salvar-
me do ataque de um mulá, que poderia muito bem ter me matado.

— E você bem que teria merecido, por usar um vestido como esse no bazar. E além disso machucou
seu braço — disse ele, tocando em suas lesões.

Camilla afastou-se e evitou o olhar dele.

— Não me toque! Deixe-me em paz! Vá espionar outra pessoa! Mesmo porque você foi mais do que um
“humilde observador” na noite passada! Fez várias acusações, além de dar conselhos que não pedi. E o
que está fazendo aqui, agora? Você me seguiu o dia inteiro! Guarde suas observações e vá embora! —
Ela notou que o recepcionista estava esperando e então disse, em voz bem alta: — A chave do meu
quarto, por favor!

— Eu lhe asseguro que sua mania de grandeza é infundada. — Falou tão perto da nuca, os lábios tão
próximos, que ela pôde sentir-lhe a respiração. — Este nosso encontro é tão indesejável para você
como para mim. Eu não a vi no bazar esta manhã. Nem fui até lá para segui-la. Mas, pelo visto, você
me viu.

A respiração dele, assim tão próxima, era perturbadora, principalmente porque era agradável, e ela se
afastou um pouco.

— Como se eu me importasse com isso! Nem sequer sei quem você é, nem estou interessada. Quem
quer que seja, eu já vi o suficiente e não quero ver mais. Passe bem.

— Eu também já vi bastante de você, mas não tudo. — O olhar dele era como uma carícia íntima. —
Quem sabe se eu...

As palavras dele foram cortadas por uma bofetada que ecoou pelo saguão do hotel.

— Como você se atreve?

Ele apanhou o pulso de Camilla ainda no ar e o torceu até que ela mordesse o lábio, de dor.

— Você vai se arrepender por ter feito isso!

— Não vou, não! Você mereceu. — Sorriu estranhamente, um falso sorriso que assustou Camilla, e
soltou-a. — Talvez você tenha razão. — Levou a mão até o rosto dela e a acariciou.

Por um momento Camilla se deixou levar pelo enlevo, numa atitude inconsciente e natural. Mas ele
acrescentou, com suavidade:
— Mantenha-se longe do francês. Será melhor para você... Pode acreditar em mim.

Ela se recobrou.

— Deixe-me em paz. O que tem a ver com quem é ou quem não é meu amigo? Quem é você para me
dar ordens ou fazer acusações? Seja quem for, estou surpresa por ninguém ter me prevenido contra
você até agora.

Ele sorriu.

— Mas irão fazer isso, não se preocupe. A propósito, meu nome é Armstrong, Malcolm Armstrong. — E
saiu.

Eu deveria ter desconfiado, pensou ela, andando num passo lento e compassado da recepção até a
escada. A partir daí, correu em direção ao quarto.

CAPÍTULO V

Camilla acordou com a campainha do telefone tocando. Atendeu, ainda morrendo de sono.

— Sim?

— Chamada da Sra. Hagan para a Srta. Simpson. A senhorita vai atender?

— Sim, por favor. Alô, Janet? Você parece estar a quilômetros de distância!

— E você parece sonolenta. Eu a acordei? Sinto muito!

— Não tem importância. Já estava mais que na hora. Como está o Sr. Brody?

— Não muito bem. Vão levá-lo de volta aos Estados Unidos. Mas o motivo do meu telefonema, querida,
foi para pedir desculpas por aquela noite.

— Imagine! Não há a mínima necessidade de pedir desculpas.

— De qualquer forma, queríamos convidá-la para jantar conosco, esta noite. Achamos que você talvez
gostasse do Afghan Room. Sabe onde fica?

— Sei: no último andar do hotel. Mas eu nunca estive lá.

— Você vai adorar. Vejo-a às nove, então. Baamane khoda.

— Espere, Janet! — disse Camilla, mas a americana já havia desligado. Ela queria mais informações
sobre o estranho que a tinha perturbado tanto, mas podia esperar até a noite. E Janet tinha dito
baamane khoda, as mesmas palavras de Malcolm Armstrong.

Camilla levantou-se e vestiu-se depressa, tendo o cuidado de colocar uma túnica de mangas compridas.
Resolveu sair para comprar um dicionário inglês-persa, alguns cadernos e uma caneta.

— Quero ir a uma livraria — disse ao recepcionista do hotel. — Uma que tenha livros em inglês. Aonde
devo ir?

— Há uma loja indiana, muito boa, em Shar-i-nau.

Camilla hesitou. Fora exatamente em Shar-i-nau que ela havia sido brutalmente atacada pelo mulá.

— Eu prefiro não ir lá. Não... não há outro lugar?

— A senhorita pode tentar outros lugares, mas o melhor é esse mesmo.

— Obrigada.

— Baamane khoda.

— Ba... baamane khoda.

Camilla sorriu e saiu para o dia fresco e agradável. Decidiu andar, já que precisava de exercício, e, além
disso, queria conhecer melhor a cidade e suas ruas. De repente, um carro parou a seu lado.

— E então, mademoiselle, encontramo-nos novamente! Fico contente ao ver que seguiu meu conselho
e mudou suas roupas.

— Bom-dia, monsieur Desmarets. Ouvi dizer que é uma boa idéia usar branco em climas quentes.

— É verdade, mademoiselle, especialmente quando se tem cabelos tão bonitos como os seus. Conheço
artista que daria muito dinheiro para poder pintá-la. Bem, vejo que está indo a algum lugar, e quero
oferecer-lhe uma carona.

— Eu não gostaria de tirá-lo do seu caminho...

— Qualquer caminho é meu caminho. Estou passeando sem destino. Seria um alívio para o meu tédio,
se me fosse permitido acompanhá-la.

Camilla novamente o achou irresistível e, com um sorriso, entrou no carro.

— Com uma condição, monsieur Desmarets: que dirija devagar. Estou tentando aprender os caminhos
dessa cidade.

— Aceito. Para onde devemos ir?

— Estou procurando uma livraria, pra comprar um dicionário inglês-persa. Sinto necessidade de
aprender o idioma desse povo, mesmo porque pretendo ser bem-sucedida na minha busca.

— O persa é uma língua muito difícil. Eu me ofereço como intérprete. Assim você poupa o trabalho de
aprendê-lo.

— Muito obrigada, mas tenho que recusar. É uma questão de amor-próprio.

Ele concordou e levou-a até a livraria indiana, a mesma que o recepcionista tinha recomendado.

— Você acha que essa é a melhor?

— Eu não iria a nenhuma outra, mademoiselle.

Entraram na loja grande e fresca e foram recebidos por um indiano com uma longa barba e um
bracelete de aço no braço.

— Mademoiselle gostaria de ver um dicionário para aprender o persa.


— Certamente, monsieur Desmarets.

Eles ficaram meia hora dentro da loja, examinando e rejeitando vários livros. Depois de comprarem um
bom dicionário, ele a levou para conhecer as lojas de tapetes. Camilla ficou fascinada com a riqueza das
cores, a variedade dos desenhos e a maciez dos tecidos.

— Preciso comprar pelo menos um!

A manhã terminou logo, e a salva do canhão do meio-dia tocou.

— Almoço, mademoiselle?

— Acho que deveria voltar para o hotel...

— Nem pensar! O segundo almoço é sempre mais importante. Hoje eu a levarei a um lugar pequeno,
meu favorito, cheio de... como é que se fala? Cheio de “cor local”.

E pararam numa espécie de café chamado Lanterna Verde, com uma sacada cheia de mesas, da qual
se via a rua.

— Podemos sentar na sacada?

— Seu desejo é uma ordem, senhorita.

— Eu realmente gostei muito. Pode-se ver tudo e todos.

— Telefonei para seu hotel à noite, mas ninguém atendeu. Fiquei desolado.

— Oh, sinto muito! Eu estava muito cansada e pedi para que não me chamassem.

— Pensei que estivesse na casa dos Hagan.

Ela hesitou e decidiu que não haveria mal algum em contar-lhe que já estivera lá.

— Eu fui jantar com eles, outro dia.

— E teve uma noite agradável?

— Infelizmente eles tiveram que sair para atender a uma emergência. Eu entendo bem esse tipo de
situação, meu pai era médico. Sei como é.

E calou-se. Não, não ia falar nada sobre Malcolm Armstrong.

— Você gostou dos Hagan, não?

— Sim, gosto deles. Mas talvez não concorde...

— Eles nunca foram muito amigáveis comigo. Mas não os culpo. Talvez eu tenha feito alguma coisa que
os ofendeu, embora não saiba o que possa ter sido.

— Bem, eles foram bons para mim.

— Mademoiselle, não... Não é nada.

— O que foi monsieur Desmarets?

— Nada. Não importa.

— Sim, importa sim. Noto que o senhor está aborrecido com alguma coisa.

— Não quero aborrecê-la.


— Mas agora me deixou curiosa. Por favor...

— Bom, é que... Sinto muito, mon Dieu, mas é assim que é. Tenho pensado muito em você, desde que a
conheci, e, por mais estranho que possa parecer, e apesar do pouco tempo que nos conhecemos, eu
me afeiçoei à senhorita. Estou preocupado. Preocupado e assustado. Pensei em tudo que pode lhe
acontecer nessa missão insensata que quer levar a cabo. Os homens, neste país, são rudes e violentos,
e qualquer mulher viajando sozinha está em perigo. Assassinato, roubo, a morte nas montanhas, nas
estepes, no deserto... Sofrer o ataque de lobos, escorpiões ou cobras, levar um tiro ou uma facada; ser
seqüestrada por traficantes de escravas brancas ou por nômades; todas essas coisas, ou talvez até ser
atirada numa cadeia imunda, por tentar levar adiante uma investigação que as autoridades, por razões
particulares, declararam encerradas.

— Que razões particulares são essas?

— Bem, não sei. É que... eu me preocupo com a senhorita. Sinto que todas essas coisas podem
acontecer, e por quê? Por um corpo que provavelmente está enterrado em algum lugar nas montanhas?

— Você disse que achava que ela estava viva! Você disse!

— Mademoiselle, minha preocupação com a senhorita é maior do que qualquer outra coisa. Tenho que
ser franco: não acredito que sua irmã esteja viva. Andei falando com alguns conhecidos e ninguém
acredita nisso, também. Inclusive ninguém sabe como o marido dela morreu.

— O relatório disse que a morte foi provocada por um golpe na cabeça, enquanto ele estava
consertando o carro.

— O relatório! Eu acho mais provável que ele tenha sido assassinado! Não há sinal algum de sua irmã,
e certamente, se ela estivesse viva, deixaria alguma pista. Quero que a senhorita entenda o que estou
dizendo: não vejo nenhuma esperança e nenhum sucesso em sua busca. Sua decisão foi insensata,
própria de uma pessoa que se deixou cegar pelo amor e pelo sofrimento. E estou lhe dizendo isso
porque quero ajudá-la. Acho que deve voltar para casa, Camilla.

Ela ficou desanimada. Então a única pessoa que havia conhecido Meghan a aconselhava a esquecer o
caso! Que fazer agora?

Desorientada, Camilla sentiu um mal-estar e foi até o toalete, jogou água fria no rosto. Estava deprimida
e assustada. Patrice Desmarets, que era tão confiante, agora a desencorajava. Desejou ver Janet e
Johnny. Talvez todos acreditassem que a situação não tinha mesmo saída e achassem que ela acabaria
vendo isso por si própria e desistindo. Talvez...

Quando voltou para a mesa, Patrice levantou-se e observou seu rosto, preocupado.

— A senhorita parece estar melhor, mas creio que é melhor irmos embora.

Quando chegaram ao carro, ele procurou por algo nos bolsos.

— Você me daria licença por um minuto? Creio ter deixado as chaves no café.

Enquanto aguardava, Camilla sentiu que alguém a tocava. Virou-se e viu um moleque maltrapilho, que
colocou um pedaço de papel em suas mãos e fugiu. Ela tentou segui-lo, mas não houve tempo. Estava
desdobrando o papel quando Patrice chegou.

— O que é isso?

— Eu ... eu não sei! Um moleque me deu... mas ele fugiu. — Ela começou a ler a mensagem. — Oh!

Patrice pegou o papel das mãos dela e leu:


“Você quer descobrir o que aconteceu à sua irmã, não é? Mas, se não quiser que lhe aconteça o
mesmo, vá embora. Agora. Deixe o país.”

— Vou levá-la para o hotel. A ameaça é séria. Alguém deve estar seguindo você, mademoiselle. Senão,
como a encontrariam aqui? Bem, só posso dizer que espero que siga o conselho.

Foram para o hotel em silêncio. Assim que Patrice a deixou, ela foi direto para a cama, pois as pernas
trêmulas mal a sustentavam.

Os Hagan chegaram às nove. Camilla os estava esperando no saguão, com o mesmo vestido azul e
branco que tinha usado há duas noites. Seu rosto ainda estava pálido.

Janet parecia cansada, e vestia uma encantadora bata estampada, Johnny usava calça jeans e uma
jaqueta leve.

— Você parece ótima — disse Johnny, beijando-a no rosto.

— Você também.

— O que tem nas mãos, Camilla? — perguntou Janet.

— Eu lhes direi tudo assim que tomarmos nosso drinque. Mas que lugar é esse aonde vamos?

— Você pode chamá-lo de cabaré. Só que não servem bebidas alcoólicas.

— A propósito, como você se deu como babá de cãezinhos naquela noite, Camilla?

— Sem problemas, Janet. Mas levei um susto! Vi um escorpião no banheiro e...

— Sim, ouvimos falar — Janet disse, rindo. — Não se sinta constrangida, Camilla. É uma história muito
engraçada!

— Para mim não foi engraçada!

— Então você vai ter que superar seu embaraço — disse Johnny, sorrindo. — Convidamos Malcolm
Armstrong para jantar conosco esta noite.

— Vocês o quê? — perguntou Camilla, mas não pôde continuar.

A porta já tinha sido aberta e dois afegãos caminhavam na direção deles.

Um deles era um pouco baixo, bem barbeado e atraente, com olhos negros e turbante. O outro era alto,
bronzeado, de cabelos dourados. Os olhos azuis dele encontraram os de Camilla.

— Salaam aleikon — cumprimentou Malcolm Armstrong, beijando Janet. — Você está mais bonita do
que nunca!

— E você, mais selvagem! Cuidado para não assustar Camilla. Ela não está acostumada com malucos.

— Sei que a Srta. Simpson não se assusta facilmente. — Ele a olhou demoradamente. — Está pálida,
senhorita. Não está se dando bem com o clima?

— É. Talvez não.

— É um prazer vê-la novamente.

Se ele pensa que eu posso perdoar seu comportamento tão facilmente, está muito enganado!, pensou
Camilla, furiosa. Mas limitou- se a dizer:
— Boa-noite, Sr. Armstrong.

— Venham, vamos nos sentar. O que vocês vão querer?

Foram feitos pedidos de café e chá.

— Não quero nada, obrigada — disse Camilla.

Olhar para Malcolm e ouvir-lhe a voz a deixaram confusa e irritada. O que será que ele pretendia,
vestido como um nativo? Todo o aspecto dele era o de um estrangeiro hostil, Janet o tinha chamado de
maluco, e talvez ele fosse mesmo.

— Pedi a Malcolm para nos ajudar — começou Johnny —, porque acho que ele será extremamente útil.
E como o ano letivo já terminou, Malcolm terá bastante tempo para investigar. Quanto a mim, já tirei
minhas férias este ano e tenho muito trabalho a fazer.

Camilla lembrou-se de como os Hagan haviam saído correndo aquela noite e sentiu uma pontada de
culpa.

— Como vai o Sr. Brody, Janet?

— Oh, ele vai se recuperar. Mas vamos sentir saudades dele.

— Só que existem muitos outros pacientes além dele — disse Johnny. — Como pode ver, Camilla, vai
ser difícil, para mim, arranjar tempo livre para sair com você. Além do mais, Malcolm conhece todo o
país muito melhor do que eu e tem carro. Poderá levá-la aonde você tiver que ir.

— Achei que seria uma boa idéia trazer Ali Shah. — Malcolm indicou o amigo moreno, que acenou com
a cabeça. — Não creio que o conheça, Srta. Simpson.

O atraente afegão estendeu a mão e Camilla a apertou. Nenhum amigo seu é amigo meu, Sr.
Armstrong, pensou ela.

— Ali Shah é meu aluno na Universidade, e me ajuda nas pesquisas, durante o verão.

— Qual é o seu trabalho, Sr. Armstrong?

— Leciono História na Escola Internacional e na Universidade. Durante as férias faço pesquisas sobre a
história afegã. No momento estou preparando uma tese sobre as conseqüências de Gêngis Khan e a
invasão mongol. Mas não creio que isso possa lhe interessar.

— Que tal se começássemos por revisar tudo que sabemos sobre as circunstâncias do
desaparecimento da irmã de Camilla? — sugeriu Janet, tentando atenuar as hostilidades.

— Foi em algum lugar entre Cabul e Kandahar — disse Camilla.

— Sei disso porque o último cartão que recebi dela foi mandado de Cabul, e dizia que eles partiriam
para Kandahar no dia seguinte. Além disso, o carro foi encontrado cerca de dezesseis quilômetros fora
da estrada para Kandahar, além de Ghazni.

— Mas por que eles teriam saído da estrada? — perguntou Johnny. — Aquela região é muito inóspita,
difícil até para os que a conhecem bem.

— Talvez eles quisessem passear um pouco — disse Janet.

— Dificilmente. Não há nada além de pedras, areia e alguns álamos entre Ghazni e Kandahar —
afirmou Malcolm.

— Talvez estivessem procurando um atalho — sugeriu Camilla.


Malcolm acenou negativamente com a cabeça.

— Existe apenas uma estrada daqui a Kandahar. Não há atalhos no Afeganistão. O carro estava a
dezesseis quilômetros da estrada, dizem. Isso quer dizer que estava perdido, num campo coberto de
pedras e poeira.

— O carro estava quebrado — acrescentou Johnny. — Talvez o tivessem tirado da estrada.

— E empurrado por dezesseis quilômetros? Duvido muito — observou Janet.

— Mas é possível que Meghan tenha deixado Tom consertando o carro enquanto ia buscar ajuda —
disse Camilla.

— Pode ser — concordou Johnny. — Neste caso, três coisas podem ter acontecido: ou ela foi raptada,
ou assassinada, ou morreu de sede.

— Espero que a primeira possibilidade seja a correta, se tem que haver uma escolha entre as três.
“Tem” que ser a primeira! Eu “sei"’ que Meghan não está morta.

— E todos nós concordamos, Camilla, ou não estaríamos aqui — disse Janet.

— Parece que houve mesmo rapto — disse Johnny. — Não há outra opção.

— Esta é a única opção, se partirmos da hipótese de que Meghan saiu para buscar ajuda — ponderou
Malcolm. — Mas há outras explicações para o desaparecimento dela.

— Quais? — perguntou Camilla.

— Posso ver o cartão-postal, Srta. Simpson? — perguntou Malcolm.

Camilla estendeu-o a ele, que leu com atenção e o passou para o quieto Ali Shah.

— Fale-me um pouco de sua irmã, Srta. Simpson. Ela gostava de aventuras, desafios?

— Sim. Sempre foi a aventureira da família. Por causa disso, a idéia de viver em Cingapura e viajar pela
Ásia a atraiu.

— Suponho que ela gostava de novas experiências, não?

— Gostava. Adorava experimentar coisas novas, mas basicamente era amante da natureza, de
ecologia, vida ao ar livre, esse tipo de coisa.

— Ela disse alguma vez que gostaria de viver em contato com a natureza, em comunidade?

— Sim. Como você sabe? Ela costumava falar o tempo todo sobre como as pessoas eram mais felizes
e mais saudáveis quando viviam naquilo que chamava de estado natural.

— E sua irmã era bem casada, Srta. Simpson?

— Como você se atreve a insinuar uma coisa dessas? O casamento dela não é da sua conta!

A risada dele foi sarcástica.

— Sua reação responde à minha pergunta. É óbvio que ela não era.

Mais uma vez Camilla teve que se esforçar para manter a calma.

Como poderia esconder alguma coisa de um homem tão perspicaz como Malcolm Armstrong?

— Aonde isso tudo vai nos levar, Malcolm? — perguntou Johnny. — O que você está tentando provar?
— Simples: seguindo a melhor tradição dos romances policiais, estou apenas tentando descobrir o
caráter de Meghan. Agora sabemos que era uma mulher jovem, idealista, vibrante, amante da natureza
e da aventura e infeliz no casamento. Um esboço correto, não acha, Srta. Simpson?

Camilla teve que admitir que ele estava certo.

— E o marido dela? — continuou Malcolm.

— Tom? Acho que nunca o conheci profundamente. Mas posso dizer que era aborrecido e
temperamental, raramente emotivo e muito preguiçoso. Ele tinha ambições, era ganancioso, mas nunca
fez nada para mudar de vida, porque não tinha energia suficiente. Estava sempre procurando caminhos
mais fáceis. Pelo menos era assim que eu o via.

— Um esboço de mestre! — disse Malcolm. — Em outras palavras, ele não compartilhava nem dos
ideais nem das aspirações de sua irmã.

— Devo admitir que nunca pude entender por que eles se casaram — disse Camilla, meio a
contragosto. — Acho que foi o emprego dele em Cingapura que persuadiu Meghan.

— É bem possível então, não acha, Ali Shah? — perguntou Malcolm.

— Eu acho mais do que provável.

— O quê? — perguntou Janet, ansiosa. — Diga-nos!

— Foi realmente a primeira coisa na qual pensei — respondeu Malcolm. — Ela fugiu com os Kushis.

Johnny riu.

— Você está louco, Malcolm! Fugir com os nômades?

— Já aconteceu antes.

— Você não pode chamar a possibilidade de remota — acrescentou Ali Shah, com voz moderada. —
Combina com o que sabemos sobre a personalidade dela, e explica o fato de o corpo não ter sido
encontrado.

— Oh! Mas isso é inacreditável! — disse Camilla.

— Por que você acha a possibilidade de sua irmã ter se juntado a um romântico bando de primitivos
viajantes inacreditável, Srta. Simpson? Por acaso conhece os Kushis?

Camilla virou-se para Malcolm e abanou negativamente a cabeça. Ela só sabia que havia um grupo de
nômades chamado Kushis e que o vestido que estava usando vinha da tribo deles.

— Eles são um povo tão antigo quanto o próprio Afeganistão — continuou Malcolm. — Ninguém tem
certeza sobre quem foram os ancestrais deles, mas sempre foram nômades, o que é essencial para sua
sobrevivência. Eles sobrevivem dos animais que têm: camelos, ovelhas, cabras, cavalos. E vão em
busca de pastagens. Passam o verão no planalto do Hindu Kush, e no inverno juntam tudo e partem
para as terras baixas. Cada tribo, cada família, tem seus próprios pastos para o verão e para o inverno,
e mantém direitos sobre eles desde tempos imemoriais. Muitos dos chefes são homens de imensa
fortuna, mas mesmo assim moram em tendas de couro, andam descalços, e têm suas riquezas
penduradas no corpo das mulheres, sob a forma de jóias. Você não pode imaginar o esplendor de uma
caravana Kushi, desfilando de maneira majestosa pelo deserto, os camelos carregados de ricos
brocados, roupas, tapetes, as mulheres nos seus vestidos da cor do arco-íris, os homens impassíveis,
montados em cavalos brilhantes. Eles são, na minha opinião, o povo mais bonito da terra, com olhos
escuros como carvão, cabelos espessos e negros, altos, com braços e pernas compridos. Para muitas
pessoas, simbolizam a existência perfeita, pois a vida deles parece ser vazia de materialismo e dos
problemas enfadonhos da civilização ocidental. Eles representam a liberdade que nossas fazendas,
fábricas e escritórios roubaram de nós.

A voz de Malcolm era suave e profunda. Camilla estava arrebatada pelas imagens que aquele professor
descrevia. Podia até visualizar a silhueta dos animais movendo-se graciosamente ao pôr-do-sol,
emoldurada pelos topos das montanhas cobertas de neve. Podia ouvir o barulho dos sinos de prata, o
latido dos cães e o chamado para o rebanho de ovelhas. Malcolm falava como se estivesse fazendo
uma conferência, e tinha a atenção de todos. Por um momento, Camilla sentiu a mesma urgente
necessidade de viajar que os nômades, os Kushis. As palavras dele eram mágicas.

— Muitos são tentados a largar tudo para experimentar essa liberdade, uma tenda sacudida pelo vento
noturno do deserto, cascatas de neve nas pastagens. Para muita gente, a vida dos Kushis é a imagem
da perfeição. E digo imagem porque a vida deles é dura, de intermináveis caminhadas no calor e na
neve. As doenças são constantes. A morte sempre paira sobre eles. Nasceram e foram criados para
essa vida, e nela florescem. O que já não acontece com os ocidentais.

Camilla sentiu que o encanto estava começando a se quebrar. Durante vários minutos estivera
escutando atentamente, mas, afinal, não tinha vindo ao Afeganistão para ouvir conferências sobre a
vida dos nômades. Lutou consigo mesma para apagar a imagem forte de Malcolm de sua mente, para
ter uma visão mais objetiva da situação. Mas ele continuava falando:

— Há três ou quatro anos, uma garota americana, aluna minha, fugiu da família e foi encontrada com os
Kushis, três meses depois, vivendo na maior miséria.

— Você está sendo ridículo — interrompeu Camilla. — Se é assim tão odioso, então minha irmã
dificilmente teria ido com eles!

A voz de Malcolm perdeu a magia e voltou ao habitual tom de arrogância e sarcasmo.

— Os Kushis vivem do jeito que gostam. Para alguns estrangeiros ignorantes, isso pode parecer
superficialmente atraente. No cartão- postal, a sua irmã disse que os admirava: “Eu sonho com uma
vida assim” foram palavras dela. Pode ser que ela goste. Alguns estrangeiros permanecem para
sempre, outros imploram para voltar. Pode ser que a princípio ela tenha gostado e depois descoberto
que não queria mais, mas eles não a deixaram sair.

— E isso é possível?

— Tudo é possível. Tão possível quanto qualquer das outras soluções que apresentamos.

De certa forma, Camilla sentia que Malcolm tinha se aproximado da verdade. Como ela odiava dar-lhe
essa satisfação!

— Se, como você diz, minha irmã está vivendo com os Kushis, não posso entender por que ela não
entrou em contato comigo. Ao menos uma palavra que fosse, para evitar que eu me preocupasse.

— Se, como sugeri, ela está lá contra sua própria vontade, eles na certa a impedem de manter contato
com qualquer pessoa que não seja da tribo. Por acaso sua irmã tem alguma aptidão que a torne valiosa
para a tribo?

— Sim. É enfermeira.

Malcolm agarrou-lhe os braços com força, e ela sentiu a carne tremer debaixo do aperto.

— Você ainda não entendeu as implicações disso tudo! É indispensável que não esconda nenhuma
informação de nós, por menor que seja. Coisas como o casamento infeliz de sua irmã, ou o fato de ela
ser enfermeira. Tudo isso sustenta minha teoria de que Meghan está vivendo com os Kushis.

— Eu sei! Eu sei! — desabafou Camilla.


— Agora, o que mais você está nos escondendo?

— Malcolm, por favor! — interrompeu Janet.

— Está tudo bem, Janet — disse Camilla, empurrando a mão de Malcolm, que a machucava. —
Existem mais duas coisas que devo dizer, embora não pretendesse. Estive conversando com um amigo,
e ele... ele conheceu muito bem minha irmã e meu cunhado, quando viveram aqui. E acredita que não
houve nenhum acidente na morte de Tom.

— Do que você está falando? — perguntou Malcolm.

— Ele acha que Tom foi assassinado.

O rosto de Malcolm ficou pálido.

— Você andou conversando com outras pessoas sobre esse assunto?

— Ele... ele disse que conhecia minha irmã!

— Quem é ele?

Assustada com a ira nos olhos de Malcolm, Camilla só pôde balbuciar:

— Patrice Desmarets.

— Oh! Camilla! — Janet suspirou antes que o punho de Malcolm descesse sobre a mesa como uma
explosão.

— Eu sabia! Eu sabia!

— E por que não deveria contar a ele? Patrice tem me ajudado tanto quanto o senhor, Sr. Armstrong.

— Não vamos discutir isso. O que está feito está feito. Eu só gostaria que não tivesse acontecido. O que
ele disse?

— Nós estávamos conversando sobre o relatório que a Embaixada me mandou. Ele não pareceu
impressionado e, para dizer a verdade, nem eu. Patrice disse qualquer coisa como: “Eles não têm
nenhuma idéia de como Tom morreu.”

Malcolm segurou as mãos de Camilla quase com ternura e ela estremeceu ao contato.

— Camilla, eu já a preveni antes. Agora você precisa me prometer uma coisa. Se quer que eu a ajude,
não deve ver esse Desmarets novamente. Nunca fale com ele, nunca o consulte e, acima de tudo, não
lhe conte nada sobre nossas descobertas.

Camilla olhou-o nos olhos e instintivamente quis confiar nele. Era uma atitude ilógica, já que ele a
insultava e a tratava com condescendência. Confiar em Malcolm Armstrong não era sensato, mas os
olhos azuis dele assim o exigiam. Ele parecia dar-lhe energia, transformando-a numa lutadora. O
instinto dizia-lhe para confiar nele, a lógica dizia o contrário. Ela estava confusa.

— Diga-me por quê! — falou Camilla, afinal. — Por que devo esquecer Patrice? Se me disser o porquê,
confiarei em você!

— Você não pode acreditar sem provas?

— Não. Patrice tem me ajudado e você sabe disso.

— Ele tem motivos secretos — disse Malcolm.

Camilla, de certa forma, concordava com isso. Tinha sentido alguma coisa errada em Patrice. Se pelo
menos Malcolm apresentasse alguma prova real que confirmasse o que estava dizendo... Resolveu
insistir:

— O que foi que ele fez?

— É melhor que você não saiba. Se souber, poderá ferir-se. Por favor, acredite em nós. Estamos
fazendo o melhor.

— É que nada faz o menor sentido! Como posso fazer uma promessa baseada em razões tão
inconsistentes? Ele realmente tem me ajudado, e isso deveria ter algum valor!

— Você não pára de repetir isso! — exclamou Janet. — Por quê? O que há de importante nisso?

— Eu simplesmente não posso prometer que não vou ver uma pessoa que talvez me aponte indícios no
caso do desaparecimento da minha irmã!

— Apontar indícios! — disse Malcolm. — Como se ele pudesse fazer isso!

— Diga-me a verdade! Por que não me conta logo?

— Camilla, por favor! — exclamou Janet. — Malcolm sabe o que faz.

— E eu não, não é mesmo?

De repente, Camilla percebeu que, se seguisse Malcolm Armstrong fazendo o que ele mandasse, indo
aonde ele fosse e acreditando no que ele dissesse sem nenhuma razão ou prova, não estaria melhor do
que em Londres, e Malcolm nada mais seria que um outro Jeff. Ela precisava começar a acreditar em
seus próprios julgamentos. Tinha o direito de cometer seus próprios erros. Caso contrário, o que mais
poderia ser, além de uma criança?

— Se não cortar essa sua amizade com Desmarets, pouco poderemos fazer por você — disse Johnny.

— Muito bem, então. Eu realmente sinto muito, mas espero que vocês entendam. Sempre lhes serei
grata, mas, por favor, digam-me por que devo aceitar as palavras de Malcolm sem questioná-las. Será
que não posso acreditar na minha integridade? Pois prefiro confiar em mim mesma. Adeus e muito
obrigada.

Levantou-se e saiu da sala. Estava em paz. A decisão havia sido tomada. Agora, tinha que afastar da
cabeça a imagem perturbadora de Malcolm Armstrong.

Por sorte, o elevador estava esperando. Ela entrou e, assim que as portas se fecharam, apertou o botão
do térreo.

O elevador parou no andar inferior, com um solavanco. As portas se abriram e um homem alto entrou,
apertando o quarto botão. Mas, entre os andares, ele tocou a emergência e o elevador parou.

— Qual era a segunda coisa que a senhorita ia nos dizer, Srta. Simpson? Acho que se esqueceu disso.

— Nós não temos mais nada a dizer, Sr. Armstrong.

— Ao contrário: ainda temos muito que conversar. Nosso relacionamento mal começou.

— Eu já o considero terminado. Por favor, deixe-me ir.

— Não enquanto eu não disser o que tenho para dizer. Você parece estar tremendamente confusa, e
espero poder clarear um pouco as suas idéias.

— Se eu precisasse disso, o senhor seria a última pessoa que eu iria procurar.

— Você é uma hipócrita pretensiosa, não é? Fazendo grandes discursos sobre integridade pessoal! O
que entende disso?
Camilla olhou para ele com dignidade.

— Talvez seja isso que eu esteja tentando descobrir.

— Meu Deus, mulher, eu realmente estou tentando ajudá-la, embora você não acredite. E não consigo
entender por que está me agredindo tanto.

Ela sentiu-se irritada.

— Isso tudo é ridículo. Deixe o elevador descer! Talvez existam pessoas esperando por ele!

— Eu preciso saber o resto da história. Você ia nos contar, lembra-se?

— Leve-me para baixo e eu lhe direi!

— Vai ser difícil. O elevador está quebrado e precisa de um pouco de tempo para ser consertado.

— Está bem! Você ganhou! — Ela tirou o papel que continha a ameaça da bolsa e o entregou a
Malcolm. — Talvez agora me deixe em paz!

Ele pegou a folha e leu duas vezes.

— Por que você não mostrou isso antes?

— Não achei importante. Deve ser apenas uma brincadeira.

— Brincadeira? Oh, Deus, o que devo fazer? Você deveria ser adulta o suficiente para saber que isso
não é uma brincadeira de esconde-esconde no quintal de sua casa! É vida ou morte, coisas com as
quais você não deveria brincar! Quantos anos tem? Dezenove?

— Vinte e um.

— Ah, sim, isso faz muita diferença! Dois anos inteiros...

— Já sou crescida o suficiente para saber cuidar de mim. Sou capaz de tomar minhas próprias
decisões. Minha irmã talvez tenha enfrentado muita coisa, e eu estou preparada para enfrentar o que for
necessário.

— Uma pequena heroína, é isso? Suas palavras impressionam, mas suas atitudes são contraditórias.
Francamente, não acho que você seja capaz de tomar conta de si mesma.

— Não consigo entender o que fiz para merecer observações como essas!

— Não pode entender mesmo? Você me chamou para defendê-la de um pequeno e inofensivo inseto,
lembra-se? E, além disso, passa o tempo fazendo coisas que não deveria fazer, como andar com
vestidos sem mangas ou contar segredos para qualquer francês simpático que encontre pelo caminho!
Espero que pelo menos vocês se dêem bem na cama!

— Você não tem motivos para dizer isso! Eu não vou para a cama com qualquer um!

— Talvez. Na realidade, seu comportamento não me interessa. Mas eu queria ver sua reação.

— Como você se atreve...

Ele a interrompeu tapando-lhe a boca com uma das mãos. Com a outra, torceu-lhe o braço; depois,
puxou-lhe a cabeça e o corpo para mais perto e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Como você se atreve! — Imitou-a com perfeição. — Minha cara Srta. Simpson, pode ser uma mulher
atraente, mas isso não a levará longe, no Afeganistão. Em breve lhe ensinarei que as leis que se
observam aqui são muito diferentes das idéias ocidentais. Aquele que se atreve vence. Esta é a lei:
Ele se aproximou ainda mais, e seus lábios quentes quase a tocaram.

— Eu, por exemplo, me atrevo a isto. — E correu os lábios pelo pescoço de Camilla, fazendo com que
ela se arrepiasse toda. — E posso me atrever a isto, também — murmurou ele, a ponta quente da
língua descrevendo deliciosos círculos de prazer no pescoço macio dela.

Soltou-lhe o braço e passeou a mão lentamente pelas costas trêmulas, alcançando os ombros e
pressionando-os de maneira sensual.

Camilla sentiu-se totalmente envolvida pelo corpo dele. Estava atordoada e feliz por não conseguir
reagir ou se afastar. Os braços de Malcolm a envolviam pela cintura, os dedos a pressionavam
gentilmente, movendo-se com uma lentidão enlouquecedora. Os movimentos eram leves, ternos, e
pararam na curva suave dos seios dela.

Camilla suspirou fundo e deixou-se levar por aquelas sensações fantásticas. Mal se lembrava de quem
ou o que ele era, ou mesmo quem era ela, e não mais importava onde estavam. Tudo que importava era
o prazer, um sublime prazer que ela estava saboreando agora e que parecia ser a primeira e deliciosa
gota de uma jarra que prometia não ter fim. Levantou o rosto e ofereceu os lábios para ele, que a beijou
com a mesma sensualidade com que fazia os carinhos.

— Bem — disse ele, afastando-a —, talvez você não seja uma menina crescida. — E sorriu. Depois,
voltou os olhos para o papel e disse: — Posso levá-lo comigo? Tenho um palpite de que há mais coisas
aqui do que podemos imaginar.

Camilla mal podia acreditar que seu êxtase tivesse acabado tão de repente. Ainda sentia a língua
quente em seu pescoço, os lábios macios nos seus. Como ele podia parar tão subitamente, como se
aquela fosse uma situação qualquer, e imediatamente começar outro assunto?

Ela tocou nos próprios lábios e cruzou os braços sobre o peito.

— Como você se atreveu e... e por que o fez?

— Bem, você pediu para que eu lhe mostrasse como me atrevia, e me atrevi. Afinal de contas, uma
jovem na sua posição tem que aprender algumas coisas, se pretende tomar conta de si mesma.

Camilla sabia que não havia lugar para lágrimas ou raiva. Controlou-se como pôde e olhou-o nos olhos.

— Eu já disse antes e vou dizer novamente, Sr. Armstrong: não preciso de sua ajuda ou de seus
conselhos. Nunca os pedi e não os quero. E acho que se propôs a ajudar por egoísmo, achando que só
o senhor pode esclarecer o mistério de minha irmã. Bem, eu posso me arranjar sem esse tipo de ajuda,
obrigada.

— Você está enganada. Eu disse que iria ajudá-la porque Johnny me pediu que o fizesse. Gosto dos
Hagan e faria qualquer coisa por eles. Por falar nisso, você tem alguma idéia de quanto os magoou esta
noite? Depois de tudo que fizeram! Eles não tinham obrigação alguma de ajudar uma estranha, sabia?

— Sinto muito. Eu estava perturbada. — Mas por que deveria justificar-se? Era ele quem a tinha
provocado primeiro, e continuava a fazê-lo agora. — Você nem sequer acredita que minha irmã esteja
viva!

— Acreditar não é importante. Meu serviço é descobrir se ela está viva e, se estiver, descobrir onde
está.

— Serviço! Você encara isso como um serviço? Se encara, então não precisa se dar a esse trabalho!

— Sabe, eu não costumo assumir responsabilidades para logo depois abandoná-las por considerá-las
difíceis, ou cansativas, ou aborrecidas.
Então ele a achava aborrecida! Então ela era só um dever! Camilla não pôde mais esconder o
desapontamento e gritou:

— Eu não quero sua ajuda! Não quero nada de você! Deixe-me em paz!

— Oh, não! Eu assumi uma responsabilidade com relação a você, e agora não consigo me desvencilhar
disso.

— Eu também não consigo me livrar de você!

— Ora vamos, Srta. Simpson, essa não foi a sua reação agora há pouco. Eu até pensei que a tinha feito
apreciar minha companhia...

E procurou o braço dela, que instintivamente se aproximou, olhando-o com olhos brilhantes e
detestando-se por isso. Tinha aprendido muito sobre si mesma nos últimos minutos, e ainda estava se
sentindo fraca.

O rosto dele estava inexpressivo, como se fosse uma máscara. Agarrou-a pelos braços e a puxou para
si. Embora Camilla se debatesse, não conseguia escapar. Malcolm segurou-a pela cintura e tentou
beijá-la. Ela se debateu violentamente.

— Solte-me!

Ele ignorou o protesto. Aproximou o rosto bronzeado do dela, os olhos com uma chama fria que, mais
do que nunca, pareciam-se com os de uma ave de rapina.

Camilla teve medo. Fechou os olhos, esperando que sua boca fosse selada pela dele, e sussurrou
debilmente:

— Solte-me...

Sentiu o toque dos lábios dele na face, e então ele a soltou. Surpresa, Camilla se recostou na parede. O
elevador recomeçou a descer:

O olhar dele era indecifrável, assim como o sorriso.

— Srta. Simpson, vou começar a investigar a origem deste bilhete. Onde o recebeu?

Camilla ficou desnorteada com aquela súbita mudança de humor e respondeu, desajeitada:

— Recebi de um moleque, na rua Chicken. Eu estava com monsieur Desmarets.

O elevador parou no térreo, mas a porta não se abriu. Malcolm segurava o botão que a mantinha
fechada.

— Por favor, não se esqueça do que falei sobre Patrice. Sei o que pensa de mim, mas aceite meu
conselho ou não poderemos ajudá-la. Ele é um homem perigoso.

Ainda confusa, Camilla só conseguiu acenar com a cabeça. Malcolm deixou a porta do elevador aberta
e completou:

— Nós devemos ser amigos, Srta. Simpson. Como pode ver, eu não mordo.

Camilla entrou no saguão e esperou um momento, sem saber para que lado ir, mas pressentindo que,
qualquer que fosse sua decisão, terminaria indo na direção errada.
CAPÍTULO VI

Depois de um sono agitado, Camilla acordou para um dia claro, quente e luminoso, e descobriu que era
dona de si mesma novamente. A primeira coisa que pensou foi que seu comportamento, na noite
anterior, tinha sido abominável. A idéia de perder a amizade dos Hagan a aborreceu. Por isso, escreveu-
lhes um longo bilhete, desculpando-se, e pediu que o entregassem a eles. Não tinha sequer coragem de
telefonar para Janet e Johnny.

Em seguida, começou a pensar em Malcolm Armstrong. Ele era extremamente atraente, tinha que
admitir. Poderia lutar contra essa atração, mas para isso precisaria separar-se dele, e Malcolm era
inestimável para sua busca. Ele conhecia a língua, a terra e o povo.

Entretanto, tinha uma personalidade insuportável. Camilla suspirou, resignada, chegando à conclusão
de que, por mais arrogante e atraente que ele pudesse ser, teria que tolerá-lo, pelo bem da irmã.

Era sábado, e ela passou a manhã na Embaixada Britânica, tentando descobrir alguma coisa. Mas nada
conseguiu, além da localização do cemitério onde Thomas estava enterrado.

Na hora do almoço, voltou ao hotel e passou a tarde como Janet havia sugerido: catalogando todas as
pistas que tinha sobre o mistério do desaparecimento da irmã. As coisas começaram a ficar mais claras.
O mais importante de tudo era descobrir por que o carro tinha sido encontrado a dezesseis quilômetros
das estradas para Kandahar. Imaginou várias respostas, mas nenhuma parecia adequada. Talvez o
carro tivesse sido levado para fora da estrada por alguma outra pessoa. Mas o corpo de Tom havia sido
encontrado embaixo do veículo, com a parte de trás da cabeça machucada. Ele ainda deveria estar vivo
quando o carro quebrou. De qualquer forma, onde estava Meghan? A não ser que Meghan...

Os pensamentos dela foram interrompidos pela campainha do telefone.

— Mademoiselle Simpson?

— Monsieur Desmarets?

— Sim. Espero que me dê a honra de jantar comigo esta noite.

As observações de Malcolm e a experiência humilhante que as acompanharam ainda estavam frescas


em sua cabeça. Mas ela não hesitou:

— Eu adoraria. A que horas?

— Mandarei meu motorista apanhá-la às oito.

— Aonde iremos?

— Ah, é uma surpresa, mademoiselle. Até mais tarde. Au revoir!

Camilla estava ansiosa por vê-lo pois sabia que, para ele, não era uma “obrigação” maçante. Ela
mostraria a Malcolm Armstrong que era capaz de tomar conta de si mesma em qualquer situação e,
acima de tudo, que Patrice Desmarets era um homem confiável.
A noite chegou logo. Camilla recusou-se a usar o vestido azul e branco porque a fazia lembrar-se das
duas ocasiões em que encontrara Malcolm. Escolheu um sofisticado traje em jérsei bege.

O carro a levou para uma zona da cidade na qual ela nunca tinha estado. As ruas e as casas criavam
uma atmosfera de coisa nova, como se não pertencessem à parte antiga de Cabul. As calçadas
estavam limpas e o mármore das casas brilhava.

Chegaram a um prédio todo iluminado. O nome “O Bezerro Dourado” brilhava acima da porta, em letras
de neon. Ela desceu do carro e entrou.

As luzes eram fracas, as conversas baixas, mas isso era compensado pelas luzes faiscantes e pelos
gritos de um grupo de rock no palco. Havia um bar com rapazes e garotas vestidos em jeans ou shorts.
Era obviamente um clube noturno, freqüentado pelos jovens da comunidade estrangeira.

Ela estava começando a indagar-se se Patrice estaria lá quando ele apareceu, um largo sorriso no
rosto.

— Reservei uma mesa para nós. Você achará mais silencioso aqui.

E a guiou para detrás do bar, onde se sentaram a uma mesa sombreada por uma palmeira. Camilla
olhou para Patrice e ficou surpresa ao ver que ele combinava com o lugar. Ela o tinha imaginado como
um homem tranqüilo, mas agora começava a sentir que não era bem assim. Grupos de jovens o
cumprimentavam quando passavam por eles.

— Gostou daqui, mademoiselle?

— Eu... eu não sei. Mas é bem movimentado.

— Eu a trouxe aqui porque achei que poderíamos conversar sem que fôssemos ouvidos.

— Por quê? O que você tem para me dizer?

— É mais uma questão do que tenho para mostrar-lhe, mademoiselle. Agora feche os olhos.

Ela os fechou, tentando imaginar o que seria todo aquele mistério.

— Agora pode abri-los.

Surpresa, viu um objeto de ouro brilhante: um relógio, um relógio muito familiar.

— Posso pegá-lo? — perguntou, e ele lhe entregou.

Camilla o examinou atentamente, temendo que fosse o que pensava ser. Silenciosamente, leu a
inscrição na parte de trás:

“Para nossa queridíssima Meghan, feliz aniversário!

Com amor, do papai e da mamãe”.

— O relógio de aniversário de Meghan! Como o conseguiu?

— Eu o vi no bazar, e lembrei-me de tê-lo visto no pulso de sua irmã. É um relógio muito distinto.

— Mas o que isso significa? Ela está viva ou morta? O que isso prova?

— Eu não sei se você já esteve no Bazar Kushi. É atrás da rua Jadi Maiwand, na cidade velha. Lá eles
vendem todos os tipos de jóias nômades. Achei isso numa das lojas.

— Isso significa que Meghan está com os nômades?

— Com os nômades? Você acha que ela está viajando com os Kushis? Mas que tribo?
— Eu não sei! Mas isso deve provar que ela está com uma delas. Depois de todo esse tempo, uma
prova definitiva! Parece um milagre!

— Bem, não fique tão animada. Isso pode provar que ela está morta.

— Morta? Não, não pode ser! Eu sei que não pode! Como você diz uma coisa dessas? Eu não acredito!

— Parece-me mais do que óbvio. Você acha que sua irmã iria querer separar-se desse relógio?

— Não. Ela o adorava. Foi presente de meus pais. Meghan quase nunca o usava, com medo de perdê-
lo.

— Eu diria que o dono da loja deve tê-lo recebido de algum ladrão que a matou e roubou o relógio, ou
então o pegou quando encontrou o cadáver dela.

A idéia era horrível demais e Camilla tapou os ouvidos, como se assim pudesse evitar o pensamento.

— Por que você está tão certo da morte de minha irmã? Por que quer me convencer disso?

— Sua vontade de rever sua irmã é tocante, mas ingênua e perigosa.

De repente, ela teve uma forte percepção de que não poderia confiar nele, que não deveria ter confiado
nele e que já tinha falado demais até agora.

Mas, se ficasse calada de repente, levantaria suspeitas. A palavra “perigosa” ecoava em sua mente, e
estava refletida nos olhos dele. Confusa, ela perguntou:

— Você conhece Malcolm Armstrong?

— Tem uns amigos muito estranhos, mademoiselle — respondeu ele, enquanto um casal de
adolescentes sentava-se na mesa ao lado.

— Não há mais privacidade aqui. Vamos dançar.

— Mas essa música não faz o meu gênero e...

Não pôde dizer mais nada. Patrice já a estava levando em direção à pista. Era um número de rock
pesado, e ela moveu-se meio desajeitadamente. Patrice, como se deveria esperar, era excelente nesse
tipo de dança.

— Então você acha que ela está com os Kushis? Que outras provas tem?

— É só que... combina, eu suponho, com tudo o que Meghan disse.

Ao ouvir isso, ele a agarrou e a arrastou para a parede com muita rudeza.

— O que ela disse? Você a tem visto? Tenho que saber tudo, se vou ajudá-la.

— Não, eu não a tenho visto. Não seja ridículo! — Lutou para livrar-se do aperto.

— Mas disse que ela falou com você!

O rosto dele ficou frio e sombrio. Camilla estava assustada demais para não dizer a verdade.

— Apenas repeti o que estava escrito num cartão que recebi antes de ela desaparecer! — Deu uma
guinada e livrou-se dele.

— Eu preciso ver isso!

Patrice tentou agarrá-la novamente, mas Camilla resolveu entregar-lhe o cartão.


— Aqui está. Leia você mesmo.

Ele o leu avidamente, e seu olhar ficou calmo. Entregou-o, visivelmente aliviado.

— Tudo bem, então. Kushis, você acha... Mas, qual tribo? Você me dá licença um minuto? Vou dar um
telefonema que poderá ajudá-la.

Ela ficou ali parada, esperando. Sentiu que alguém se aproximara e virou-se para ver o rosto de uma
jovem com cerca de quinze anos, olhos escuros e cabelos pretos.

— Oi! Meu nome é Nina. Meu pai pertence à Organização das Nações Unidas. Vejo que você é a nova
namorada de Patrice.

— Meu nome é Camilla, e não sou a nova namorada de Patrice.

— Bem, mas é amiga dele, de qualquer forma. Dê um alô a ele, meu e de Ângelo. Pergunte-lhe por que
não nos convida mais para suas festas. E venha ver-nos no próximo sábado. Diga a ele que pode trazer
o “prêmio”, se é que você entende o que quero dizer.

— Não, eu não entendo. De qualquer forma, não creio que possa ir. Mas obrigada mesmo assim.

— Ei! Você não pode fazer isso! — Os olhos dela mostravam dor e ansiedade. — Diga-lhes que
estamos desesperados. Que não pode nos abandonar! Ele é tão cruel! Veja o que fez comigo!

E Nina levantou o braço no mesmo instante em que um grito, do outro lado do salão, chamou a atenção
de Camilla. Ela desviou o olhar e viu que um jovem tinha gritado com um afegão, que acenava os
braços violentamente. A discussão foi ficando acalorada, o afegão balançou-se, o outro tropeçou e caiu
em cima de uma mesa. Um jovem, talvez sueco, o atingiu com uma garrafa.

Foi a deixa para a confusão geral. Camilla tentou fugir para os fundos do restaurante, mas a corrente
humana a forçava para o centro da luta. Um vidro foi atirado a seus pés. Além da luta e dos gritos, ela
viu Patrice, parado junto à porta, observando a batalha sem participar. Ele a tinha visto. Por que, então,
não fazia alguma coisa para livrá-la daquela situação? Seu coração batia descontroladamente. Ela
estava quase em pânico.

Ouviu um barulho a seu lado. Virou-se e viu o mesmo afegão que tinha começado a briga com uma faca
na mão. Ele estava tão próximo que ela não conseguiu se mover, e a lâmina descia em sua direção.
Camilla fechou os olhos, certa de que ia morrer.

Mas, assim que a lâmina prateada desceu, alguém a puxou para trás e a faca passou de raspão,
causando-lhe um corte raso no ombro direito. Um pouco de sangue manchou seu vestido, mas não
doía... ainda. Ela sentiu que ia desmaiar e, quando tentava manter-se em pé, Patrice apareceu e a
amparou.

Ela ficou aterrorizada e o empurrou.

— Não me toque!

Voltou-se e correu em direção ao banheiro. Debruçou-se sobre a pia, apoiando-se nos braços e
descansando a testa na fria superfície do espelho. Levantou a cabeça e olhou sua imagem refletida:
olhos brilhantes e grandes, pele tão pálida quanto o leite. Examinou o ombro machucado e sentiu que
ardia. Felizmente o corte era pequeno e já tinha parado de sangrar. Ela cortou um pedaço de papel
higiênico, ensopou-o em água quente e limpou o machucado. Então pressionou um pedaço de papel
seco, fazendo uma espécie de bandagem.

Terminados esses cuidados, suas forças pareceram-se esvair e ela deslizou para o chão, a cabeça
recostada no braço.
Ele esperou que o afegão tentasse me matar, pensava, com raiva e medo. Aí estava uma prova mais
acusadora do que qualquer outra. Mas por que Patrice teria esperado? Por quê? Aquela simples
pergunta parecia explicar tudo sobre sua situação, e ela desabou num choro alto.

Alguns minutos depois, alguém tocou-lhe o ombro. Trêmula, Camilla olhou para Nina.

— Ora, não chore. Você não está muito ferida. É só um arranhão. Não precisa se preocupar. Patrice
tomará conta de você. Ele sempre toma, desde que você não o traia. Agora, venha comigo.

— Não! Não o deixe chegar perto de mim!

— Vamos, levante-se! — Nina colocou Camilla de pé e a apoiou.

— Ele a levará para casa. Você estará segura.

No restaurante, a confusão já tinha passado. Patrice segurou-a com firmeza.

Camilla manteve-se calma, embora suas pernas estivessem trêmulas e por dentro se sentisse doente.
Patrice a apoiou, o que aumentou sua náusea.

— Você quer ir para um hospital?

— Não é necessário, foi apenas um arranhão. Mas acho que eu deveria ver Johnny, na USAID.

— Você não pode ir lá! — Havia uma nota de triunfo na voz dele.

— Ma chère, a USAID é uma organização apenas para americanos! Johnny perderia o emprego se a
deixasse entrar, e você sabe que ele não a impediria, porque é seu amigo.

Camilla sabia que era verdade, mas sentiu que Patrice estava tentando mantê-la afastada dos amigos.

— Leve-me de volta ao hotel.

— Não deveríamos procurar um médico?

— É um corte superficial. Só preciso de um pouco de mercuro-cromo. Por favor, leve-me de volta ao


hotel.

Entraram no carro e ela recostou-se no assento, atordoada, mantendo-se afastada dele.

— Aquela briga não foi um acidente, mademoiselle. Parecia algo ensaiado, como se você tivesse sido
atacada de propósito. Os Kushis são muito poderosos neste país.

Ela não se atrevia a olhar para ele.

— O que... o que quer dizer com isso?

— Que esse incidente e aquela mensagem não eram ameaças inconseqüentes.

Camilla ficou tensa e desconfiada. Será que Patrice Desmarets tinha algo a ver com o atentado e
estaria se fazendo passar por inocente, expondo os próprios planos como se pertencessem a outra
pessoa? Era ele o arquiteto ou o observador das ameaças?

— Esse incidente só comprova minha teoria sobre a morte de sua irmã, mademoiselle. E os assassinos
dela e de Tom sabem que você está na pista deles...

Camilla sentiu-se pouco à vontade. Havia muitas coisas que não se encaixavam, naquela história toda.

— Por que você diz que Tom foi assassinado? O relatório não confirma isso.
— Bien, parece lógico que o que aconteceu com um deva ter acontecido com o outro. Mas espero que
você não se envolva mais nisso, ma chère! Meghan está morta, e você pode ser a próxima vítima. Que
Deus a proteja!

As últimas palavras de Patrice só aumentaram a intranqüilidade de Camilla. Soavam quase como uma...
ameaça! No entanto, ela não queria que Patrice soubesse de suas desconfianças... ainda.

— Para quem você telefonou? — perguntou casualmente.

Ele pareceu medir as palavras cuidadosamente, ao responder:

— Conheço alguém que morou com os Kushis e voltou recentemente. Perguntei se ele ouviu dizer
alguma coisa sobre sua irmã, viva ou morta. Mas, infelizmente, não ouviu. É uma pena!

Camilla estudou-o cuidadosamente. As maneiras dele eram muito ensaiadas. O melhor a fazer, agora,
era fingir-se de boba e descobrir o que ele sabia sobre o desaparecimento de Meghan ou de que
maneira estava envolvido. Se é que estava.

A insistente campainha do telefone despertou Camilla, na manhã seguinte. Seu ombro direito estava
dolorido quando ela esticou o braço para pegar o fone.

— Sim?

— Mademoiselle? Camilla?

Ela ficou imediatamente em guarda.

— Oh, Patrice, bom-dia! Eu estava olhando o ferimento. Está cicatrizando bem. Dói só um pouquinho.

— Estive pensando se você não gostaria que eu lhe fizesse as reservas para sua volta à Inglaterra.
Tenho amigos na companhia aérea, e eles poderão achar-lhe um lugar.

— É muita gentileza sua, Patrice, mas já tenho a passagem de volta. De qualquer forma, ainda é cedo
para pensar em voltar para casa.

— Achei que você talvez quisesse voltar amanhã.

— Você não está pensando que estou com medo por causa de ontem à noite, está? Eu simplesmente
me meti no caminho da faca de algum bêbado. É culpa minha. De qualquer forma, sinto-me bem melhor
hoje.

— Aquele incidente foi um aviso, mademoiselle. Você deve voltar para casa.

— Como posso ir embora se acabo de achar minha primeira grande pista? Seja sensato. E, se Meghan
estiver... bem, se ela estiver morta, quero saber quem foi o responsável.

— Você não tem chance alguma. Seria mais prudente ir embora.

— Eu não irei, e isso é definitivo.

— Você será uma mulher muito tola se não considerar os meus avisos. — E desligou antes que ela
pudesse responder.

O telefone tocou novamente. Hesitante, Camilla atendeu.

— Srta. Simpson?

— É ela. Quem está falando?


— Apronte-se depressa! Traga um par de calças leves e camisola.

— Por quê? — Camilla reconheceu o tom ditatorial de Malcolm.

— Iremos ver o carro de Tom, em Ghazni. Esteja pronta em uma hora.

— Mas...

Ele desligou.

A maneira rude de Malcolm decidir tudo sem consultá-la deixou-a furiosa. Mas, controlando a raiva, ela
começou a arrumar a mala. Na verdade, queria ir. Afinal, era uma boa idéia examinar o que restara do
carro: isso poderia trazer mais algumas pistas.

Além disso, o passeio seria maravilhoso. Seria uma pena voltar para casa sem ter visitado o país. Eles
deveriam passar a noite num hotel, deduziu enquanto pegava a camisola que Malcolm tinha mandado
pegar.

O carro chegou em uma hora. Era um velho jipe, e Ali Shah estava sentado ao lado do motorista.
Camilla suspirou, aliviada. Gostava do afegão de fala macia e que parecia estranhamente sábio pela
pouca idade que tinha. Ele a salvaria da presença perturbadora de Malcolm que vestia jeans apertado e
desbotado e uma larga camisa cor de mostarda aberta no peito. Os cabelos loiros dele contrastavam
com a pele bronzeada, e os olhos azuis, cor do céu, a examinavam, desaprovando o vestido branco e
as sandálias.

— Desapropriado. Mas não temos tempo agora. Você poderá trocar de roupa quando chegarmos.
Espero que tenha trazido sapatos fechados.

Ela olhou para as botas que ele usava.

— Sim, trouxe.

— Muito bem. — A voz dele era sarcástica. — Infelizmente, não temos assento traseiro. Você vai ter que
se espremer junto a Ali Shah.

— Não tem importância — respondeu ela, aliviada por não ter que ficar perto dele.

Percebeu que o afegão olhava para seu braço ferido, quase sem movimento, e tentou disfarçar. Mas Ali
Shah era muito perceptivo, tocou-lhe o braço e perguntou:

— O que houve? Seu braço está duro.

— Oh, nada.

— Alguém a machucou? — perguntou Malcolm, dando partida no carro.

— Não. Eu me machuquei no guarda-roupa — mentiu ela.

Claro que agora admitia que estava errada em relação a Patrice, mas não queria dar essa satisfação a
Malcolm.

O jipe começou a ganhar velocidade e um silêncio pesado os teria incomodado se Ali Shah não
começasse a falar sobre a vida e os costumes de sua família.

— Sou o filho mais velho do homem mais velho da nossa tribo. Meu pai morreu e as outras esposas
dele não tiveram filhos. Por isso, quando eu terminar a Universidade, serei o chefe da tribo.

Ele morava numa casa fora de Cabul, na estrada para Mazar-i-Sharif.

— Como é a casa? — perguntou Camilla.


— É muito grande. O interior é de madeira, e o exterior é todo de barro. Toda a família dorme no terraço
que cobre a casa, no verão.

Eles continuaram a conversar sobre tudo, e Camilla contou histórias animadas do seu tempo de
internato. Malcolm ria das aventuras dela, que pela primeira vez sentiu que podia haver uma boa
amizade entre eles. Mas, nas várias vezes em que seus olhares se cruzaram com intensidade, ela
quase ficou sem ar.

Sorriu sem inibição quando Malcolm contou histórias sobre as escolas onde lecionava. Ele os manteve
fascinados com as anedotas sobre a Escola Internacional.

— O corpo docente é tão pequeno que nós temos que nos desdobrar numa série de disciplinas. O
professor de Ciências faz de tudo: Química, Biologia, Física, Geografia, o que for.

— Como vocês são qualificados! E como devem ser versáteis!

Camilla começou a perceber como Malcolm era inteligente e talentoso. Uma coisa era certa: se ele
conseguia manter o interesse dos alunos como mantinha o dela na viagem, então era um excelente
professor.

A viagem terminou cedo demais. Começaram a rodar por um lugar cheio de arbustos, que se estendiam
em pálidas areias e que se transformavam, a distância, em rochedos vermelhos e amarelos. Camilla viu
uma espiral de areia levantar-se no ar, rodopiar como uma figura fantasmagórica e perder a forma,
correndo para o vento e deixando os grãos caírem de volta à terra.

— Demônios da poeira — explicou Malcolm.

— Este não é ainda o deserto — disse Ali Shah. — A uns quinhentos e sessenta quilômetros para o sul
começa o verdadeiro deserto, que não é somente seco... é um inferno. Chamam-no de Dasht-e-Margow.
O Deserto da Morte. Existe um rio poderoso que corre para ele, o Helmand, que desaparece de
repente, no meio das areias. Armstrong, o que é laft kardan?

— Evaporar.

— Isso: ele evapora.

— Sonhe com as Mil e Uma Noites e Xerazade, Camilla — disse Malcolm. — Muitas dessas histórias
descrevem como é um deserto, os grandes palácios...

— Minha imaginação está voando alto! — respondeu Camilla, enquanto entravam na cidade e
passavam pelo que pareceu ser um ótimo hotel.

— Aquele lugar parece bom. Por que você não parou lá?

— Conheço coisa melhor — respondeu Malcolm.

Ghazni era um amontoado de casas e bazares de madeira, e Camilla perguntou-se onde iriam achar
outro hotel.

— Ghazni já não se parece mais com aquela que foi uma das mais gloriosas cidades da Ásia —
observou Ali Shah.

Saíram do perímetro urbano e logo encontraram-se numa estrada quase deserta. Não havia carros, só
camelos e jumentos.

— Pensei que fôssemos a Ghazni — disse ela. — Ou voltaremos depois de vermos o carro?

— É melhor chegarmos o mais próximo possível do automóvel de Tom. Ah! Aqui estamos!
Entraram numa grande aldeia. As casas eram feitas de madeira e de tijolos de barro. O jipe estacionou
ao lado de um grande edifício. Havia homens sentados em bancos, à sombra, ou em mesas, na fresca
escuridão do interior da construção. Não havia uma única mulher à vista. Camilla sentiu-se
constrangida.

Assim que estacionaram, o carro foi rodeado por um bando de crianças. As meninas ficavam atrás, mas
os meninos, mais agressivos, chegavam bem perto.

— Ei, senhor baksheesh! — gritavam, com faces ansiosas.

Malcolm entregou dez afeganes para o menino mais barulhento, dizendo, em persa:

— É para todos vocês.

O menino correu, perseguido pelos outros.

— Acho que devemos comer primeiro — disse Malcolm —, e, quando refrescar, poderemos continuar.
Seria loucura despender muita energia nessa temperatura. Pelo menos para Camilla, que não está
acostumada com esse calor.

— Eu posso suportar qualquer coisa — disse ela, orgulhosa. — Pensei que fôssemos passar a noite
fora.

— E vamos. Não poderemos voltar hoje.

— Você fez reservas no hotel?

— Não. Nós vamos ficar aqui.

— O quê? Isso é por acaso uma piada? Eles não têm quartos, ou chuveiros, ou, ou...

— Eles têm quartos, sim. Nos fundos. Você ficará num, sozinha; portanto, acalme-se. Quanto aos
chuveiros, você poderá tomar banho amanhã, quando voltarmos.

Ela continuou impaciente.

— De qualquer forma, aqui só tem homem!

— E daí?

— Eu não posso ficar num hotel cheio de homens, talvez assassinos ou ladrões, sem água corrente ou
camas adequadas, e provavelmente com pulgas!

— Você está exagerando. Olhe para esses homens: um é o merceeiro local, o outro é pastor de ovelhas,
os demais provavelmente são fazendeiros vizinhos ou devem estar aqui a negócios. Já estive nesse
lugar diversas vezes e nunca tive minha garganta cortada... Afinal, você não disse que pode suportar
tudo? E prepare-se: talvez tenha que enfrentar coisas bem piores do que essa.

Camilla estava furiosa, mas tinha que admitir que Malcolm estava certo.

— Está bem.

— Ótimo. Então vamos comer.

Sentaram-se e foram atendidos pelos hospedeiros. Camilla esperava ver um cardápio, mas Malcolm
disse:

— Naane chaast, tashakor.

— Não receberemos cardápio?


Malcolm riu.

— Você não tem escolha, aqui.

O hospedeiro logo voltou, com três pratos de arroz fumegante e vários pães, longos e chatos, com o
formato de uma sola de sandália e ligeiramente queimados nas beiradas. Camilla estava desconfiada,
mas o cheiro da comida era apetitoso e ela estava faminta. Não havia talheres. Ela olhou para Ali Shah
e para Malcolm, e os viu comendo com as mãos. Esquecendo toda uma vida de educação ocidental,
imitou-os.

— Use só a mão direita — disse Malcolm. — Usar a esquerda é falta de educação.

Camilla obedeceu, mas seu braço doía muito e ela teve que se esforçar para comer. A refeição estava
deliciosa. Ela descobriu, embaixo do arroz, uma boa quantidade de carne de carneiro condimentada. O
pão também era gostoso: quente, cheiroso e muito macio.

— Isto é delicioso!

— Você nunca tinha experimentado? — perguntou Malcolm.

— Não, nunca. Antes tivesse, é uma delícia!

— É a refeição tradicional do nosso povo — explicou Ali Shah. — O arroz é chamado de pilau: é
misturado com passas, nozes e cenoura picada. O pão é naan. Nós o cozinhamos sobre o estrume do
camelo.

Camilla engoliu em seco, sentindo-se enjoada. Malcolm riu, divertido.

— Não faz mal nenhum. Olhe para essas pessoas: são maravilhosamente saudáveis. E praticamente
vivem de naan e de chá.

— Mas estão acostumadas a isso!

Desistiu do pão e devorou o pilau. Depois experimentou uma esplêndida mistura de iogurte com gelo,
fatias de pepino e hortelã. Aquilo refrescou seu corpo acalorado.

— Eu me sinto tão bem que poderia continuar a viagem agora. E você. Ali Shah?

— Estarei pronto quando você estiver, Malcolm.

— Está bem. Vamos pegar sua mala, Camilla. Aí você poderá ir para seu quarto e se trocar.

Malcolm jogou as chaves para ela, e seus olhares se cruzaram... com aquela profunda sensualidade.
Com o rosto tão quente quanto o desejo que a invadiu, ela se virou e caminhou para o quarto.

Entrou, vestiu jeans, uma camisa de algodão e um par de botas.

— Assim está bem melhor! — disse Malcolm quando a viu, olhando-a com aprovação, o que fez com
que ela se sentisse estremecer.

Camilla estava ciente da energia que parecia pulsar entre eles.

Ali Shah conversava com o hospedeiro e Malcolm entrou para pagar-lhe. Ela ficou do lado de fora,
tentando se acalmar. Por que ele a afetava tanto assim? Não podia mergulhar nessa nova e maravilhosa
sensação. Malcolm Armstrong não devia ser levado a sério e ela não podia envolver-se com aquele
homem seguro demais, atraente demais. Era bem provável que ele fosse um mestre na arte de seduzir
uma mulher, o que poderia ser fatal para o coração vulnerável de qualquer uma que se entregasse a ele.

Depois de alguns minutos de espera, Camilla viu os homens saindo da hospedaria.


— O hospedeiro queria saber por que paramos aqui, e eu disse que queríamos examinar algumas
estranhas formações rochosas nas colinas.

— Isso o satisfez?

— Eles acham que todos os farangis, que é como chamam os estrangeiros, são loucos — respondeu Ali
Shah, e os dois homens riram. — A única coisa que ele não pôde entender foi o que um jovem
simpático como eu estava fazendo com vocês.

— Então lembre-se de trazer algumas pedras quando voltarmos — avisou Malcolm.

— Mas não devemos contar-lhes a verdade? — indagou Camilla.

— Acho melhor não. É apenas uma desconfiança minha. Aquele bilhete... pode ter sido apenas uma
brincadeira, mas, conforme disse Johnny, não há nenhuma necessidade de fazermos propaganda dos
nossos planos.

— Mas você não acha que alguns deles podem saber alguma coisa sobre Meghan?

— É bem possível. Entretanto, prefiro que ninguém saiba que estamos aqui para isso. Mas nunca
chegaremos a lugar algum se não perguntarmos nada.

Camilla sentiu uma ponta de remorso por não ter contado a eles sobre o atentado que sofrera no
restaurante, na noite anterior. Mas, assim como a dor diminuía, a lembrança do incidente se apagava.
Eles entraram na estrada, em direção às montanhas.

— Como você sabe onde está o carro de Tom?

— Consegui um mapa na Embaixada Britânica.

— Você não me contou que esteve lá!

— Acontece que tenho um amigo na embaixada, que é secretário do cônsul. Ele esteve no local do
acidente.

— Vire à esquerda — disse Ali Shah.

Eles circundaram um arvoredo já fora da estrada e dirigiram-se para o topo de um outeiro. Dali, podiam
ver as montanhas. Por perto havia baixas colinas de areia, e, aos pés delas, a carroceria de um carro,
semicoberta pelo areal e sem uma única peça: pneus, direção, assentos, tudo fora roubado.

— Que pena! — disse Malcolm. — Eu gostaria de ter dado uma olhada nos bancos. Mesmo assim,
vamos examinar o resto. Ali Shah, você fica no carro?

Malcolm e Camilla desceram. Ele retirou dois óculos de sol do bolso e entregou um para Camilla.

— Você vai precisar disso. O sol está muito forte.

Ela os colocou, imaginando se eram um presente ou um empréstimo. Notou que Malcolm usava um par
igual, e supôs que aqueles eram os óculos apropriados para o clima.

— Vou examinar o carro. Você dá uma olhada por aí e vê o que pode achar.

Sem dizer uma só palavra, ela obedeceu. A lataria do carro parecia uma antiga ruína e não havia
marcas na areia. Era como se nenhum ser humano tivesse estado lá antes. Camilla não sabia o que
fazer.

Então, olhou para baixo e viu algo que iria alegrar Malcolm: o assento traseiro do carro.

— Malcolm! Venha, depressa!


Ele correu por entre as pedras e subiu a colina, chegando ao lado dela ofegante.

— O que foi? Pensei que você tivesse tido algum problema.

— Oh, não! Encontrei um dos assentos. Veja!

— Ótimo! Poderá ser útil! Vamos!

E, segurando a mão dela, correu colina abaixo, em direção ao banco abandonado.

A mão de Camilla queimou ao contato da dele, de uma maneira que ela nunca tinha sentido antes. E,
por um momento, ela desejou ficar assim para sempre.

Quando alcançaram o assento, ele soltou sua mão tão naturalmente quanto a tinha pegado e ficou
totalmente ocupado com o assento do carro.

— Não fique parada aí! Venha me ajudar!

Ela se aproximou, tocou no couro do banco e recuou: o estofamento estava torrado ao sol, e o aço
suficientemente quente para ferver água.

— Eu trouxe luvas — disse ele, tirando-as do bolso e calçando-as. Examinou o assento


minuciosamente. — Vamos virá-lo.

Despiu a camisa, e ela não pôde afastar os olhos do peito bronzeado e forte, dos músculos esticados
pelo esforço. Fascinada, queria colocar a mão na carne firme do corpo de Malcolm. Que prazer seria
abraçá-lo, senti-lo, entregar-se à força dele, ali no deserto...

— Camilla! — A voz dele a despertou da fantasia, e ela abriu os grandes olhos verdes. — Está quente
demais para você?

— Oh, não... não, eu... — gaguejou ela, aproximando-se.

— Veja! Um pequeno corte, talvez de uns três centímetros, e costurado!

Ele pegou uma faca e rasgou o estofamento. Enfiando a mão, retirou um pequeno saco plástico, com
um pó fino e branco.

Camilla não quis ver de perto. Parecia açúcar, só que mais refinado.

— O que é isso?

— Não vá me dizer que você não sabe...

— É claro que não sei! Se soubesse, não perguntaria.

— Acho melhor não lhe contar. Não acredito que você possa guardar um segredo.

— Você me enfurece! Estou cansada de ser tratada como uma criança! Quem você pensa que é? Meu
pai? Olhe para mim! Sou uma mulher!

— Sei que é uma mulher. Não pense que me esqueci do que aconteceu no elevador. Nunca me
comportei daquele jeito antes, mas... mas... Você é inocente em tantas coisas, Camilla! — Ele esticou a
mão e acariciou a pele suave do rosto dela. — É disso que eu sempre tento me lembrar, Camilla: você é
tão jovem, tão frágil... Mas continuo me esquecendo...

O olhar profundo que ele lhe lançou era intenso demais. Ela virou-se, para que ele não visse a súbita
vermelhidão de seu rosto.

— Isso é terrível! Você... você está quase fazendo com que eu goste de você.
— Assim é melhor. Vamos gostar um do outro. É sensato e adulto... e talvez nos mantenha lúcidos.

Malcolm começou a subir a colina, com o pequeno saco plástico na mão. Ela observava o andar felino
como o de uma pantera, quando ele a chamou:

— Vamos, minha pequena de cabelos vermelhos! Vamos juntar-nos a Ali Shah!

— Meus cabelos não são vermelhos! — Alcançando-o, ela lhe tocou o braço. — São castanho-
avermelhados!

Com esforço, ele retirou a mão dela de seu braço.

— Malcolm, o que há nesse saco? Por favor! Você tem que entender que eu preciso saber!

Ele se afastou um pouco, pensativo. Depois abriu o plástico e aproximou-se, segurando-o na palma da
mão.

— Aqui está. Pegue. Cuidado, não derrube! Olhe para isto. Cheire.

Mas o pó branco era tão luminoso e fino que Camilla ficou com medo de cheirar. No fundo, intuía o que
era: tóxico.

— É heroína, Camilla.

— Não!

— Você sabe que é. O que mais poderia ser? Esta cor, este pó, amarrado num saquinho apertado e
escondido onde vândalos não pudessem achá-lo.

Ouvir isso era chocante, tão chocante que a deixou sem fala por um momento. Sua irmã e Tom,
traficantes de drogas? Não!

— Eu não acredito! Não aceito que eles pudessem ter alguma coisa a ver com isso!

— Por que ambos? Que tal Tom sozinho?

Camilla estremeceu. Por mais que quisesse, não podia rejeitar a possibilidade.

Andaram, silenciosos, para onde o jipe estava, e, quando se aproximavam, ele disse:

— Lembre-se, nenhuma palavra sobre isso a ninguém. Nós podíamos ficar presos para sempre por
transportar isso, jogados em alguma prisão afegã onde ninguém mais ouviria falar em nós. Quanto
menos gente souber, menor será o perigo.

— Perigo!

— Saber que uma pessoa tem isso em seu poder, mesmo que não vá usá-lo, é quase tão criminoso
quanto possuí-lo.

— Você vai contar a Ali Shah?

— Sim, porque ele sabe o motivo pelo qual estamos aqui. Mas é imprescindível que você guarde
segredo.

— É claro que irei guardar!

— Espero que sim.

— Pode me dizer como sabia que isso estava lá? Você sabia, você tinha certeza, e não me contou.

— Espere até voltarmos a Cabul.


— Como posso esperar?

— Você não disse que podia suportar qualquer coisa?

Será que ela teria que ouvir para sempre aquelas palavras fatais?

Chegaram ao jipe e entraram silenciosamente. Ali Shah apenas os olhou, e o volume no bolso de
Malcolm pareceu satisfazê-lo. Voltaram à hospedaria sem conversar.

O jantar transcorreu em silêncio, cada um envolvido em seus próprios pensamentos. Um pouco mais
tarde, depois da refeição, composta de pilau com naan. galinha, chá e saborosos biscoitos fritos, um
velho afegão veio à mesa para contar antigas histórias, incompreensíveis para Camilla.

Depois de um certo tempo, ela saiu para o pátio, para observar o sol escondendo-se por trás das
montanhas. Enquanto estava sentada ali, o muezzim, na mesquita da aldeia, começou seu lamento,
chamando os fiéis para rezar:

— I allah illah Allah — dizia, e Camilla entendeu: “Só Alá é Deus”.

Os coros levantaram-se com Muhammad rasul Allah, que ela traduziu para “E Maomé é seu profeta”. Os
homens correram para a prece da noite. Um velho esticou seu tapete no chão sujo da rua e ajoelhou-se
lá, balançando-se para a frente e para trás, a testa tocando a terra.

De dentro da hospedaria, vieram os mesmos sons da prece noturna, e, por alguns momentos, enquanto
as grandes sombras da noite que vinham das montanhas se estendiam pelas planícies, absorvendo as
cores do dia, Camilla sentiu o poder da religião do deserto. Mas, assim que a prece terminou, o
sentimento se foi, e ela estremeceu com a brisa fria da noite.

CAPÍTULO VII

Camilla levantou-se e voltou para o interior da hospedaria. Sabia que as conversas, as histórias e as
risadas atravessariam a noite e estava cansada demais para isso. Por outro lado, tinha que acordar
cedo no dia seguinte. Então resolveu ir para o quarto, onde havia pouca mobília: um tapete no chão,
pequenos panos cobrindo as paredes, uma janela com cortinas extravagantes e uma cama rústica.

Pendurou as roupas aos pés da cama, com medo de aranhas e outros insetos, vestiu a fina camisola
cor de palha, apagou as luzes e entrou debaixo dos lençóis. Puxou os cobertores, a colcha e logo
adormeceu.

Acordou perto de meia-noite, com o barulho de Malcolm e Ali Shah no quarto ao lado. Sentiu-se
reconfortada, mas por pouco tempo: na meia-luz, notou um movimento aos pés da cama.

Camilla levantou-se e, tremendo, acendeu a luz. Tocando as cobertas, puxou a colcha e viu um
escorpião branco, não tão aterrorizante quanto o primeiro que vira. Teve vontade de gritar por socorro,
mas não sabia o que era pior: aquele escorpião assustador ou a ironia de Malcolm. Pois bem: mostraria
a ele que era corajosa e que não estava amedrontada.

Reuniu toda a sua coragem e se aproximou do escorpião. Procurou pegá-lo da maneira como tinha visto
Malcolm fazer, e surpreendeu-se ao ver que o bicho não era viscoso como imaginara. Abriu a porta com
dificuldade, os olhos fixos no bicho que, furioso, abanava o ferrão. Teve vontade de rir de triunfo: ele não
poderia fazer-lhe nenhum mal. Foi para o frio corredor e bateu à porta do quarto dos homens.

— Chi as? Quem é?

— Camilla! Abra! Tenho uma surpresa para vocês!

— Que tolice você inventou agora? — dizia Malcolm, enquanto abria a pesada porta.

Camilla segurava o escorpião na mão e sorria quando viu a expressão de Malcolm mudar do
aborrecimento para o horror.

— Largue isso! — gritou ele, e Camilla ficou tão atônita que obedeceu.

O bicho jazia, ameaçador, no chão, e, antes que corresse para o quarto. Malcolm empurrou Camilla
para trás e chutou-o para longe. Depois apanhou um grosso pedaço de pau e o atirou no inseto,
esmagando-o.

Então virou-se para Camilla, cujas faces estavam mais pálidas que a camisola que usava.

— Meu Deus! Por que você fez isso? Quer passar um mês presa a uma cama de hospital?

— O que eu fiz de errado?

— Nada! Apenas pegou um escorpião mortal!

— Mortal? Mas na casa dos Hagan você disse...

— Aquele era um tipo diferente.

— Qual é a diferença?

— Existem tipos diferentes de escorpiões. Enquanto o preto é inofensivo, o branco pode matar.

Camilla empalidecera ainda mais e começou a tremer ao pensar no perigo pelo qual tinha passado.
Notou que Malcolm também parecia perturbado e não resistiu: explodiu em soluços.

— Eu não pretendia machucar você! Só queria lhe mostrar que eu não tinha medo, depois de você ter
rido de mim!

— Ora, vamos, eu não achei que você pretendesse me machucar. — Malcolm tocou no ombro dela.

Camilla, soluçando alto, reclinou-se no travesseiro e chorou por muito tempo. Ela não chorava desse
jeito desde a morte dos pais. Nem mesmo quando recebera a notícia sobre Meghan. A tensão da vinda
para uma terra completamente estranha, a gravidade da sua missão, agravados pelo susto com o
mortífero escorpião, foram demais para ela.

Como um verdadeiro muçulmano, Ali Shah virou as costas para o espetáculo de uma mulher em
prantos.

Finalmente, ouvindo que os soluços dela diminuíam, Malcolm disse:

— Pobre Camilla, sempre corajosa nos momentos errados...

Este insulto era mais do que ela poderia suportar. Afastou-se dele, dizendo:
— Eu não preciso de sua simpatia!

Mas o movimento que fez foi muito brusco e ela gemeu de dor, pois o ferimento abriu-se novamente.

— O que é isso? Você se feriu?

O sangue começou a gotejar, molhando a camisola.

— É onde bati o braço... na porta.

— Não minta! Você disse que tinha sido no guarda-roupa! E nenhuma batida sangraria assim. — Com
um rápido movimento, ele deixou o ombro dela à mostra e olhou para o ferimento. — Que madeira
afiada o seu hotel tem! Ali Shah, venha até aqui a diga-me o que pensa disso!

Ali Shah chegou perto e olhou para o ferimento.

— Corte de faca. Na superfície, sem maiores conseqüências. Vai cicatrizar rápido, mas você ficará com
uma cicatriz como esta. — Enrolou a manga, para mostrar a ela um sinal que tinha no braço.

— Como você conseguiu isso, Ali Shah? — perguntou Malcolm.

— Meu primo e eu tivemos uma discussão.

— Mais precisamente, Camilla, foi assim que você conseguiu a sua cicatriz. E, por favor, não diga que
se chocou com uma faca porque eu não vou acreditar.

— Não há necessidade de brincar com isso. E eu não ia dizer essa mentira. Na realidade, houve uma
briga no restaurante ontem à noite e fui ferida.

Os lábios de Malcolm estavam cerrados, e ele voltou-se para Ali Shah.

— Você poderia nos deixar a sós?

O afegão saiu imediatamente, fechando a porta.

— Eu disse para você não mentir...

— Eu não menti!

— Não, mas ainda não disse a verdade. Não precisa ficar envergonhada, pois Ali Shah não está aqui.
Portanto, conte-me tudo.

Envergonhada? Que motivos tenho para estar envergonhada?

— Vamos! Conte-me tudo!

— O que é isso? A Inquisição? Não, eu não vou contar! Você não é meu tutor! Você é brutal, egoísta,
arrogante e cruel!

Malcolm levantou os braços, num gesto involuntário.

— Vamos, bata em mim! Sou uma pobre mulher indefesa, não sou? Você não gosta de bancar o
homem forte? Bem, aqui está uma mulher que não vai se submeter! Não vou me reverenciar nem me
deixar dominar por seus caprichos! Não ficarei indo e vindo conforme seus chamados, como Ali Shah e
outros servos treinados!

Ele pegou os braços dela e os apertou firmemente, até que a dor explodiu em agulhadas. Camilla não
lhe daria o prazer do choro, mas doía demais para que ela pudesse falar o que fosse.

— Eu nunca poderia agredir uma mulher! Mas, por Deus, não posso ficar parado, ouvindo insultos e
mentiras!
Entendendo o doloroso silêncio dela como intransigência, ele apertou-lhe o braço ainda mais, e ela não
pôde evitar implorar:

— Pare, por favor! Você está me machucando!

Ele relaxou o aperto, mas não a soltou.

— Violência não é minha arma preferida.

Camilla estava contra a parede, portanto não podia recuar mais. De repente sentiu medo, vendo-o
avançar, ameaçador, para ela.

Ele levantou as mãos para o pescoço dela, mas, em vez de apertá-lo, correu nele os dedos, numa
carícia suave.

O prazer que as mãos dele provocavam era tão forte que Camilla fechou os olhos, surda e cega para
qualquer outra sensação além daquela. Recostou a cabeça e deixou escapar um longo suspiro. Um
forte calor espalhou-se por todo o seu corpo, e ela curvou-se para a frente, levantando os lábios
entreabertos em direção aos dele.

Malcolm enlaçou-a pela cintura e acariciou-lhe os cabelos. Os olhos deles se encontraram antes que
seus lábios se unissem, num beijo quente e apaixonado.

Um ardor de êxtase corria pelas veias e músculos de Camilla. Suas pernas ficaram fracas e, para
sustentar-se, ela passou os braços em volta do pescoço dele, entregando-se ainda mais àquele beijo...

Os braços de Malcolm moviam-se pelas curvas do corpo dela, acariciando-a sensualmente. Camilla
gemeu de prazer. Suas últimas resistências caíram por terra. Ele poderia fazer o que bem entendesse:
ela sequer se lembrava como tinha começado tudo aquilo. Não tinha mais consciência de sua própria
vontade, só do calor do corpo.

Foi o gemido dela que despertou Malcolm. Ele a levantou e colocou-a na cama: depois dirigiu-se para
outro canto do quarto, de costas para que ela não visse como estava excitado. Camilla foi se
recompondo aos poucos. Lutava contra as lágrimas que teimavam em sair... Por alguns minutos,
nenhum dos dois falou nada.

— Então — começou Camilla —, esta é a sua arma e este o meu castigo, não?

— Camilla, eu... eu sinto muito. Perdi a cabeça.

— Aposto que isso o diverte, não é mesmo? Saber que pode brincar com o corpo de uma mulher como
se fosse uma boneca. Eu nunca fui tratada assim antes. Apanhar teria sido menos humilhante.

Ele se virou, num movimento brusco.

— É mais um truque feminino, não é? Eu ainda estou para conhecer uma mulher que recuse esse tipo
de humilhação...

— Você me forçou!

— Escute aqui! Eu já me desculpei, mas isso não quer dizer que vá aceitar suas mentiras! Você gostou
disso tanto quanto eu! Quis tanto quanto eu...

— Querer! Você deve estar brincando! Se fosse o último homem da Terra, Sr. Malcolm Armstrong, eu
me mudaria para outro planeta!

— Sabe, estou cansado de brigar. Pode falar o que quiser. Mas diga a verdade sobre o corte.

— Está bem, você venceu. Eu vou contar, mas peça a Ali Shah para entrar. Não quero ficar sozinha com
você.

Malcolm foi até a porta e chamou Ali Shah.

— Muito bem, Camilla. Ele já está aqui. Fale!

— Ontem à noite fui ao Bezerro Dourado com Patrice. Conversamos, dançamos, e ele foi dar um
telefonema quando uma briga começou, do outro lado do restaurante e... eu fui, de certa forma, levada
para ela pela multidão. Então... bem, um homem quase me apunhalou, mas fui empurrada, e a faca só
me fez esse corte.

— Quase foi apunhalada! Por motivo nenhum?

— Isso mesmo. Foi uma briga, entende? Todos foram envolvidos.

— O homem era estrangeiro?

— Não. Acho que era afegão.

— Afegãos não apunhalam mulheres sem motivo — disse Ali Shah, ofendido. — As mulheres existem
para serem acariciadas.

— Talvez ele não fosse afegão. Tinha olhos horríveis e pequenos.

— Você reparou nos olhos dele?

— Sim.

— Ele olhava para você?

— Sim! Sim! Sim!

— Olhe, não há nenhuma razão para ficar de mau humor. Não haveria necessidade de nada disso se
você tivesse nos contado a verdade. Então, esse homem que a apunhalou olhou-a por tempo suficiente
para que você possa descrevê-lo: pequenos olhos brilhantes!

— Está bem! Está bem! Vou dizer-lhes o que penso. Acho que ele fez de propósito. Eu vi que me olhava
de soslaio quando me atacou. E a pontaria dele era certeira: poderia ter me matado, se quisesse. Acho
que errou de propósito.

Malcolm levantou-se e andou pelo quarto, tentando acalmar a ira e o aborrecimento que sentia. Mas
não conseguiu.

— Já lhe disse para não esconder nenhuma informação. Como espera que a ajudemos se fica se
envolvendo com pessoas de caráter duvidoso? Não sei por que perco meu tempo com você! — Ele
parou e continuou, mais sarcástico:

— Onde estava seu bom amigo Desmarets durante todo esse tempo?

Completamente desmoralizada, Camilla respondeu:

— Ele observava... de longe.

— Observava você ser esfaqueada?

— Bem, quando fui atacada, ele se aproximou e evitou que eu caísse... Na realidade, tive sorte em sair
com ele ontem, apesar de tudo. Fiquei sabendo que Patrice achou o relógio de minha irmã no Bazar
Kushi.

— Ele disse em qual loja o encontrou?


— Bem... não. Não houve tempo.

— Acho melhor você voltar para a cama, Camilla, enquanto eu penso um pouco sobre o assunto.

— Você não pode me mandar embora assim! Nós temos que discutir isso juntos!

— Mas acontece que já passa de meia-noite e meia. A mente dificilmente fica clara a essa hora.

— Mas eu estou sem sono!

— Nós não. — O rosto de Malcolm e o de Ali Shah estavam cansados, — A cama é o melhor lugar para
você, agora. Pense um pouco sobre seu querido Patrice e todo o incidente. Talvez chegue à conclusão
de que não sou tão egoísta quanto pareço ser. Boa-noite. — E a porta foi fechada no rosto dela.

Apagando as luzes e deitando-se na cama, Camilla não parava de pensar em Malcolm: o toque, a voz,
a força, a autoconfiança. De certa forma, ele estava começando a afetá-la profundamente. Isso a
perturbava, pois não sabia o que ele sentia por ela, além de atração sexual. Mas não dava muita
importância a isso, pois sabia que Malcolm tinha reagido, essa noite, como qualquer homem de sangue
quente faria na mesma situação: sozinho num quarto, com uma mulher provocadoramente vestida.

E então, como que para confirmar seus pensamentos, ouviu a voz de Malcolm dizer, na porta ao lado:

— Talvez você tenha razão, Ali Shah. Mas, se eu não a tivesse empurrado porta afora, teria sido tentado
a fazer uma coisa que nós dois lamentaríamos.

CAPÍTULO VIII

— Vamos, Camilla! Levante-se! Está na hora de se arrumar, tomar o café da manhã e partir!

As fortes pancadas na porta e a voz de Malcolm interromperam o sono de Camilla. Eram sete horas.
Ela se arrastou para fora da cama e, com as pálpebras semicerradas, vestiu-se.

O sol feriu-lhe os olhos, e ela colocou os óculos escuros. Ali Shah estava esperando para acompanhá-
la.

— Espero que tenha dormido bem.

— Ah, sim! Como um bebezinho!

Para Camilla, dormir sempre fora a grande fuga dos problemas, e ultimamente tinha muito o que
esquecer.

Ela cruzou o jardim, ao lado de Ali Shah, e juntos entraram no restaurante. Malcolm estava lá, com
naan, café preto e ovos quentes sobre a mesa.

Às sete e meia já estavam na estrada, sob um sol forte. Viajaram quase que em silêncio absoluto.
Camilla tinha decidido apagar da mente os acontecimentos da noite anterior, e não permitiu a si mesma
ficar embaraçada à lembrança deles. Estava aliviada por não ter havido nenhuma menção ao incidente.

Não tinham viajado muito quando um solavanco do carro a fez abrir os olhos. Notou que estavam
parados nos arredores de Cabul e perguntou, curiosa:

— O que aconteceu?

— Você dormiu — respondeu Malcolm, olhando pela janela.

Dois policiais afegãos, em uniformes cinzentos e botas marrons, estavam se aproximando.

— Vamos, vamos descer do carro — ordenou Malcolm. — Mas, pelo amor de Deus, não nos entregue!

Camilla sentiu-se fraca. Ela nunca havia tido contato com a polícia antes e não tinha idéia das táticas
que eles usavam. A perspectiva de passar anos e anos encarcerada numa prisão asiática a assustou.
Observando Ali Shah e Malcolm, cuja calma fazia supor que não tinham feito nada além de um inocente
piquenique, ela decidiu imitá-los. Lutando contra uma imensa vontade de fugir, tentou recompor-se, mas
não pôde evitar a palidez do rosto.

— Salaam aleikom — disse o policial mais alto.

Malcolm e Ali Shah o cumprimentaram amigavelmente, mas Camilla não conseguiu dizer nada. O
policial a observou por um minuto, e depois falou:

— Nós temos um mandado de busca para o seu carro.

— Vá em frente! — respondeu Malcolm, e isso desarmou o policial.

— O senhor não quer saber por quê?

— Se quiser nos dizer...

O desinteresse pareceu perturbar o policial, que disse:

— Temos razões para crer que o senhor está carregando heroína.

Malcolm não demonstrou o menor sinal de culpa ou de contrariedade. Simplesmente riu.

— Reviste tudo que quiser. A bagagem está no porta-malas. Tudo o que o senhor vai encontrar serão
alguns espécimes de rochas.

Camilla engoliu em seco. Sentiu gotas de suor escorrerem-lhe pelo corpo e pensou que não conseguiria
manter-se em pé por muito tempo.

O policial começou a examinar o carro. Malcolm virou-se para ela e murmurou:

— Não fique tão assustada. Ele não vai achar nada.

— Mas você não...

— Quieta!

Uma multidão tinha se formado para observar a cena. Todos conversavam e riam. Camilla sentia-se
como num show.

Ela e Malcolm esperavam em silêncio, observando o policial conduzir a investigação. Mas ele não foi
muito longe na tarefa. Por um motivo ou por outro, resolveu desistir da busca.

— Bem, desculpem-nos. Parece que fomos mal informados!

— Mas o senhor só examinou a metade! — exclamou Malcolm.


— Já terminei. Dou-me por satisfeito.

— Não quer que o acompanhemos à delegacia?

— Desculpe, não entendi.

— O senhor não tem perguntas a nos fazer?

O policial pensou por um momento; depois decidiu consultar o colega. Foi até ele e ambos trocaram
algumas palavras. Então voltou até Camilla e Malcolm.

— O que estavam fazendo em Ghazni?

— Passeando. A Srta. Simpson, minha prima, está aqui em férias. Ela é geóloga e quis ir procurar
pedras. A área é especialmente rica em alguns minerais muito raros. Mostre a ele, Camilla.

Obediente, ela puxou um pedaço de mica do bolso.

— Numa rara e bela amostra, o senhor não acha?

O policial concordou, mas não desistiu.

— Mas... vocês não viram um carro?

— Sim, vimos. Vimos a carroceria de um carro. Coisa estranha, lá no meio dos arbustos.

Diante disso, o policial desistiu de vez. Parecia não haver nenhuma forma de contestar a história deles.

— Vocês estão dispensados. Podem ir.

— Ora, obrigado. Ali Shah, esse senhor está nos liberando. Vamos?

E continuaram, deixando os dois policiais discutindo e a multidão se dispersando.

— Você deixou o pacote de heroína na hospedaria? — perguntou Camilla.

— Não. Costurei-o dentro do chapéu de Ali Shah.

Então os dois homens caíram na gargalhada. Ali Shah tirou o chapéu e mostrou a Camilla uma pequena
protuberância no forro.

— Vocês parecem achar tudo muito divertido! — gritou ela, possuída pelo medo e pela raiva. — Nós
todos poderíamos ter sido presos!

— Ah, mas não fomos!

A raiva de Camilla não se devia apenas ao susto que levara. Afinal, eles tinham planejado tudo.
deixando-a de fora! Haviam escondido a heroína, arrumado um álibi e agora riam juntos. Ela sentiu
inveja. Rir com eles daquele jeito, dividir segredos e piadas...

Algumas lágrimas começaram a aparecer em seus olhos quando ela viu, com alívio, que estavam na
rua que levava ao hotel. Assim que chegaram, disse um rápido obrigado a Malcolm e pulou fora do
carro.

Subiu os degraus rapidamente e já estava perto da porta quando sentiu a mão dele em seu braço.

— Por que tanta pressa?

Livrando-se dele, Camilla entrou e, a um passo do saguão, entendeu o que Malcolm tinha querido dizer:
ele achava que ela ia se encontrar com alguém importante. Mas dessa vez estava enganado, embora lá
dentro, reclinado num sofá, estivesse Patrice, que se levantou e caminhou na direção de Camilla,
esticando a mão delgada e abrindo um sorriso resplandecente. Ela recuou um passo e encostou-se no
peito de Malcolm. Aquilo a fez sentir-se melhor.

— Srta. Simpson...

O tom suave de Patrice a fez estremecer. Malcolm pareceu perceber, pois colocou a mão protetora no
ombro dela. O outro viu isto e adiantou-se, falando:

— Estou feliz por tê-la encontrado!

— Você esperou muito? — perguntou Camilla friamente.

— Não. Terá valido a pena se a senhorita me der a honra de almoçar comigo.

— Sinto, Desmarets, mas Camilla já está comprometida. Não é verdade, querida?

Ela fitou os escuros olhos de Patrice, que não revelavam nenhuma emoção, e sentiu o olhar quente de
Malcolm. Quando notou que Patrice ia se aproximar mais, respondeu:

— Sim, o Sr. Armstrong e eu vamos almoçar. Antes, vou pegar minha correspondência.

O ar estava carregado de tensão. Camilla dirigiu-se para a recepcionista. Não havia recados para ela,
mas de lá pôde ouvir a conversa dos dois homens.

— Então, Armstrong, você não perde tempo no que se refere a essa jovem inglesa, hein? E quem pode
culpá-lo? Ela é mesmo deliciosa...

— Pare com isso! Sei do que você está atrás, e não é de um par de olhos verdes. Não é do seu feitio
ser tão pouco sutil, Desmarets, porém você se aproximou da Srta. Simpson como um abutre!

— Ou como um jornalista que pressente uma boa matéria...

— Você pode até enganar uma garota inocente com essa história, mas não a mim. Nem à maioria das
pessoas dessa cidade.

— Se tem acusações a fazer, sugiro que o faça perante uma corte, com testemunhas e evidências.

— Não se preocupe, desta vez o farei. Eu poderia derrubá-lo com um soco, agora, mas a punição que a
corte afegã vai lhe dar fará muito mais efeito que isso. Dessa vez você foi longe demais. Já pegou uma
adolescente e acabou com ela, e isso não fez nenhuma diferença para você. Mas, por Deus,
Desmarets, não vou deixá-lo enganar Camilla. Eu o teria matado se achasse que isso ajudaria Theresa,
mas já era tarde demais. Mas lembre-se: se chegar perto de Camilla novamente, vou fazê-lo em
pedaços. Devo isso a Theresa.

Ao olhar para o rosto de Malcolm. Camilla ficou assustada. Ele estava vermelho de raiva. Os dois
precisavam ser separados, antes que alguma coisa horrível acontecesse. Aproximando-se rapidamente
e colocando-se entre ambos, ela pegou o braço de Malcolm.

— Vamos, ou perderemos aquela reserva para o almoço, “querido”.

— Sim, temos que ir.

Sem outra palavra, eles se dirigiram para o jipe.

— Obrigado — foi tudo o que Malcolm disse quando entraram no carro.

Ela queria perguntar quem era Theresa, mas a expressão do rosto dele a desencorajou.

Ali Shah, que estava esperando no carro, pediu que o deixassem na Universidade. Logo viram-se
rodeados por edifícios de aço e vidro, altos e brilhantes, que ficavam nos enormes jardins e avenidas
que compunham a Universidade de Cabul.

— Às vezes, no verão dou aulas aqui — disse Malcolm.

— Sim, eu sei. Oh, mas tudo isso é um encanto! Não poderíamos descer e andar um pouco? Estes
jardins são lindos!

— Nunca imaginei que você se interessasse por jardins.

— Mas me interesso! Quando eu era criança, morava numa casa com jardins enormes, e no meu
apartamento tenho várias plantas. Embora, é claro, não seja a mesma coisa. — Ela sorriu e encontrou
os olhos azuis de Malcolm. Seu coração bateu forte.

Malcolm estacionou o jipe. Eles desceram e passearam pelos jardins da Universidade.

— Sabe, as Universidades sempre me lembram meu pai — disse Camilla. — Ele lecionava numa. Gosto
do ar de atividade e de importância que elas têm. Trazem-me... trazem lembranças de minha infância.

— O que seu pai lecionava?

— Medicina. Bem, na realidade, ele era um especialista em patologia. Morávamos numa casa velha,
próxima ao campus da Universidade. A casa era coberta por heras e tinha um estilo inglês bem
tradicional.

— Seu pai então era médico...

— Minha mãe também. Era clínica geral.

— Então deve ser por isso que Meghan decidiu ser enfermeira.

— Você já sabe bastante sobre a minha vida, não? Mas eu não sei quase nada sobre a sua...

— Não há muito que saber. Eu já lhe disse: leciono na Escola Internacional, na Universidade, e faço
pesquisas.

— Onde você estudou?

— Em Cambridge. Estudei História.

— E foi um aluno brilhante, não foi?

— Acertou. Mas por que pensa assim?

— Você sabe que é inteligente e demonstra isso. Já escreveu alguma coisa, além de livros de História?

— Sim, já. Engraçado você perguntar isso. Escrevi um romance. Um Cântaro de Vinho era o nome. O
que foi? Você parece surpresa!

— Você... mas você não é... Jacob Manling, é?

— Sim. Era um pseudônimo. Uma espécie de afetação literária, eu acho. Mas como você conhece esse
nome?

— Meghan era louca por esse livro! Ela o levou junto quando partiu. Sempre disse que um dos seus
maiores desejos era conhecer o autor desse livro. Que engraçado!

— O quê?

— Que eu o tenha conhecido, e não ela.

— Você não leu o livro?


— Li. Você é realmente um bom escritor, mas prefiro ficção romântica ou histórias policiais. Se Meghan
estivesse aqui, que discussão vocês teriam! Você iria gostar dela, tenho certeza!

— Ora, eu não estou reclamando da minha companhia do momento! Você não é tão ruim quando se
controla...

— E você, quando está de bom humor, é quase simpático.

Ele a observou por um momento. A profundidade daquele olhar fez com que Camilla sentisse os já
familiares tremores no corpo, e o pulsar do desejo dizia-lhe que “simpático” era uma palavra muito
ingênua para descrevê-lo.

— Vamos sentar um pouco? — sugeriu ele, dirigindo-se a um banco sombreado pelos galhos de uma
árvore.

Camilla sentou-se e estudou-lhe os olhos, que pareciam enevoados de preocupação. Ele continuou em
pé.

— Não sei por que não lhe contei isso antes, mas... Bem, para dizer-lhe a verdade, mais pessoas estão
interessadas em encontrar sua irmã, além de mim, de você, dos Hagan e de Ali Shah.

— Tais como?

— Patrice Desmarets. E ele tem lá suas razões. Na verdade, tem motivos de sobra para querer
encontrar Meghan.

— Oh, mas eu...

— Deixe-me terminar. Por favor, acredite em mim. Estou tentando ajudá-la.

— Sei disso, mas eu nunca...

— Ora, não vamos entrar nisso novamente. Suspeitei desde o começo, quando ele começou a
demonstrar um interesse inexplicável por você.

— Não mais inexplicável, naquela época, do que o seu interesse ou o de Johnny.

— Julgue como quiser. Johnny tem o costume de ajudar qualquer pessoa que cruze o caminho dele e
precise de auxílio. Faz parte da natureza dele. Mas conheço a natureza de Desmarets também, e sei
que ele não costuma ajudar ninguém... a não ser que sirva para seus escusos fins.

— Mas... mas no que eu poderia ajudá-lo?

Ao invés de responder, Malcolm pegou-lhe as mãos e inclinou-se na direção dela.

— Camilla... — A voz dele era baixa e sensual. — Diga-me: hoje, no hotel...

— Sim?

— Você sentiu medo de Patrice, não sentiu?

— Sim...

— Pois está certa em sentir medo. Ele foi longe demais. Ouça: Patrice está envolvido no tráfico de
drogas... Heroína e haxixe.

Camilla entendeu tudo num minuto. A heroína encontrada no carro de Tom era prova suficiente.

Então seu cunhado também era um traficante! Era horrível descobrir isso e saber que ele havia exposto
Meghan a um perigo imenso, levando-a junto na rota das drogas e mantendo-a na ignorância.
— Não há como negar o envolvimento de Tom, Camilla.

— Meghan... minha irmã... ela sabia?

— Você acha que ela seria capaz disso?

— Não, não seria. Eu já disse, ela era amante da natureza, queria viver em comunidade, nunca usou
drogas...

— Se ela tivesse sabido, e concordado, creio que ambos ainda poderiam estar vivos. Minha opinião é de
que ela provavelmente abandonou Tom, quando descobriu quem ele era. Afinal, eles não eram felizes.

— É verdade. Você ainda acha que ela está com os Kushis?

— As respostas possíveis ainda permanecem as mesmas: assassinada, morta, raptada ou viajando


com os Kushis. Prefiro a última hipótese, pela inexistência de um corpo ou de um bilhete de resgate.

Aquilo, para Camilla, era encorajador.

— Acredito em você. E ainda temos o relógio que Patrice achou no bazar... É mais uma evidência.

— Sim, e estive pensando nisso. Você disse que achava que sua irmã estava com os Kushis antes ou
depois de ele ter mencionado que tinha achado o relógio no bazar?

Camilla pensou por um momento.

— Depois... tenho certeza de que foi depois. Eu disse qualquer coisa como: “Então, ela está com os
nômades.”

— E o que ele fez?

— Nada. Não! Espere... ele repetiu a palavra “nômades”, e perguntou se eu sabia qual tribo. Respondi
que não.

Malcolm ficou sentado, pensando. Camilla o observou, com medo de interrompê-lo. Mas não se
conteve:

— Em que você está pensando?

— Temo que Desmarets tenha mentido novamente. Acho que ele não pegou aquele relógio no Bazar
Kushi. Na certa o tinha consigo o tempo todo. Talvez o tenha recebido de Tom. Disse que o conhecia,
não disse? — Ela concordou, e Malcolm continuou: — Tom pode ter usado o relógio para pagar a
heroína...

— Mas, então, por que Patrice mencionou o Bazar Kushi? Ele não sabia das nossas cogitações!

— É verdade, mas isso traz de volta a minha teoria: ele pode suspeitar que Meghan está com os Kushis.
Não sabemos quanto Patrice sabe, mas temo que seja quase tudo. Acho que estava tentando descobrir
o que você sabia, com a desculpa de ajudá-la.

— Tenho sido uma tola! Mas por que ele quer Meghan? Como ela poderia ajudá-lo?

— Sua irmã deve saber toda a verdade, e Patrice quer certificar-se de que ela nunca contará o que
sabe. Ele não acha que Meghan esteja morta.

— Pelo menos isso é animador. Mas Patrice não pode saber muito mais do que nós. Suspeitamos que
ela esteja com os nômades, mas ninguém tem certeza. Eu ainda acho difícil acreditar! Patrice parecia
tão boa pessoa...
— Os rapazes simpáticos nem sempre são bons. Pense nisso. Cada incidente foi arranjado. O ataque
do mulá, a nota ameaçadora, a briga no restaurante. Estranho como ele esteve presente em cada um
desses acontecimentos... E, hoje, alguém deu dinheiro à polícia, dizendo que iríamos ver o carro e
teríamos conosco um pouco do cobiçado pó branco!

— Mas como ele poderia saber? Não dissemos a ninguém... Espere um pouco!

— O que foi?

— Ontem, no carro, vi uma espécie de vidro brilhando a distância. Pensei que fosse mica, mas... Patrice
está me seguindo! Observando todos os meus movimentos!

— Ele teme que você descubra a verdade. A princípio só queria assustá-la, mas agora suspeita que
você esteja na trilha certa...

— Não diga isso!

Camilla abafou um grito com as mãos. Teve a noção exata do perigo que ela e a irmã corriam. Sempre
achara o medo uma emoção irracional, mas o temor que agora sentia era real e incontrolável. Tremia
dos pés à cabeça. Malcolm aproximou-se e a pegou nos braços. Ela sentiu que a força dele lhe
espantava o medo. O calor daquele corpo relaxou-lhe os músculos e afastou o frio que sentia.

Malcolm colocou a mão livre sobre o peito dela, perto do coração, que batia descompassado, e a
acalmou:

— Camilla, não se preocupe. Não deixarei que Patrice a machuque. Desta vez serei cuidadoso. Desta
vez vencerei. — Para selar a promessa, beijou-a na testa com ternura.

Camilla não queria nada além de deixar-se ficar naqueles braços, mergulhar na coragem e na força
dele, encontrando assim a paz. Mas a gentileza daquele gesto estava se tornando insuportável. O que
ela sentia por ele a tornava muito vulnerável. Então se afastou, ficou em pé e tentou falar, com voz
trêmula:

— Estou bem, agora. E... eu não tenho medo. Talvez estejamos sendo precipitados.

Ele ficou muito pálido, deu um murro no banco, e exclamou, com voz alterada:

— Inferno! Nunca diga isso! Sei que não estamos sendo precipitados. Eu conheço Patrice! Camilla,
você não tem idéia do que ele já fez. Minha irmã, minha brilhante, adorável e alegre irmã de catorze
anos... ele a matou! Matou Theresa, minha doce irmãzinha! E o fez de maneira discreta! Ele consegue
localizá-las à distância: as aventureiras, ricas, mimadas, mas inocentes adolescentes com muito
dinheiro para gastar... Talvez tenha sido culpa minha, mas eu a amava. E estava fora do país, não sabia
de nada até que ela estivesse... Bem, voltei para casa por causa de um telegrama urgente, e, no lugar
da minha pequena e loira irmã, sempre dançando e cantando, no lugar de Theresa estava o rosto
sombrio de uma viciada! Ela morreu pouco depois, de pneumonia, mas foi Desmarets quem a matou! E
todos nós sabíamos: eu, os amigos dela, os professores... Mas o que podíamos fazer? Como
poderíamos prendê-lo? Ele tem amigos em altos cargos, fez subornos aqui e ali. Meu Deus, Camilla,
que tipo de prova se deve apresentar para condenar um homem que vende heroína para crianças de
catorze anos? Eu poderia tê-lo matado naquela época, mas, em vez disso, deixei o país. Theresa não
significava nada para Patrice além de lucros! E isso aconteceu há muito tempo, mas esse homem ainda
está aí, fazendo sempre as mesmas coisas. Se isso acontecer de novo...

“Se isso acontecer de novo”...

Camilla lembrou-se da garota Nina, com o rosto já marcado, como se a beleza dela tivesse sido
estragada antes de florescer. Uma trêmula e desesperada menina de quinze anos! Patrice tinha feito
aquilo, tinha feito aquilo também com a irmã de Malcolm, faria de novo...
— Eu não tenho medo! — Ela estava dominada pela dor. Era melhor enfrentar o desafio. — Não tenho
medo do que possa acontecer comigo. Mas devemos chegar até Meghan antes que ele o faça.

— Você entende que esse homem é totalmente desumano? Que ele não hesita em matar?

— Eu não tenho medo! Só sinto ter sido tão tola, embora nada possa mudar o que já fiz. Estou disposta
a continuar, se você estiver.

— É claro que estou! Meghan é a prova de que precisamos para condenar Desmarets,
independentemente do fato de eu fazer tudo que puder para evitar que outra pessoa se transforme
numa vítima desse demônio. Camilla, os meus motivos talvez sejam diferentes dos seus, mas o fim
acaba sendo o mesmo. Ajudando um ao outro, estaremos ajudando a nós mesmos.

— Está bem.

Ela estendeu a mão para que ele a apertasse, selando o acordo.

— Talvez você saiba ser corajosa no momento certo! Vamos! Mas, Camilla, eu... lá no hotel... espero
que você não tenha se aborrecido com o que fiz.

— Oh... — Ela sabia que ele estava se referindo a tê-la chamado de querida, e respondeu: — Não, não
me aborreci. E, se entendi bem... esta é uma espécie de código, não é?

— Vejo que você entendeu.

Chegaram ao carro e ele abriu a porta.

— Vai me levar de volta para o hotel?

— Não, vou levá-la a um ótimo restaurante. Conheço um lugar na cidade velha: o Marco Polo.

Camilla ficou confusa por um momento.

— Mas eu... eu pensei que o convite fizesse parte do código.

— E admito que fazia. Mas está na hora do almoço e estamos com fome. Deixe-me convidá-la
novamente: você gostaria de almoçar comigo?

— Bom... aceito! — respondeu Camilla, tão indiferente quanto conseguiu.

CAPÍTULO IX

No começo da noite, Camilla estava conversando com Janet, enquanto tomava chá na grande sala de
estar dos Hagan. A cabeça dourada de Elsa descansava em seu joelho.

— Você quer um menino ou uma menina, Janet?


— Esta é a primeira pergunta que todo mundo faz. Tento não ter preferências. Talvez prefira um menino.

— Acho que vai ser mesmo um menino. Posso até imaginar como ele será: alto, forte, cabelos
vermelhos, musculoso... e muito bonito, é claro!

— É claro! — A futura mamãe riu. — Falando em homens altos e fortes, como você está se dando com
Malcolm?

Camilla sentiu que corava.

— Ora vamos, Camilla! Não precisa ficar embaraçada. Eu não me importo com isso. Sei como você
estava chateada naquela noite, e, se quer saber, Malcolm parecia estar aborrecendo-a de propósito!

— Não, não! Foi culpa minha. Nunca tenho vergonha de admitir meus erros. Na verdade, fui rude com
ele, e mereci o que recebi.

— Sei que não é da minha conta, mas gostaria de saber o que ele lhe disse, depois que você saiu.

— Disse para eu não me comportar como uma garotinha tola. — E as mãos dela tremeram à lembrança
dos contratempos no elevador.

— Mas que impertinência! — Janet fez uma expressão tão séria que Camilla teve que rir.

— Oh, Janet, essas coisas já fazem parte do passado. Pareciam importantes, mas agora...

— Sim? Agora... Continue!

— Eu costumava pensar que ele era apenas um homem egoísta, que só se importava consigo mesmo e
com sua reputação. Mas agora acho exatamente o contrário... As pessoas que conheci aqui são as
menos egoístas que eu conheci em toda a minha vida: você, Johnny, Malcolm, Ali Shah...

— É isso que dá viver numa pequena comunidade. O problema de um passa a ser de todos, e todo
mundo se ajuda.

— Sei que é assim. Eu costumava me sentir magoada com ele, mas agora me sinto... grata. — Não era
a palavra correta para descrever as emoções que ele provocava nela, mas Camilla deixou por isso
mesmo. — Você sabe que ele passou estes dois últimos dias perto de Ghazni comigo e com Ali Shah?
Eles me levaram para ver os restos do carro de Tom.

— Ouvi falar, mas isso não me surpreende. Malcolm disse que iria ajudá-la. Você não esperava que ele
voltasse atrás com a palavra dada, esperava?

— Não, é claro que não! Sabe, Janet, hoje levamos Ali Shah para a Universidade. Depois passeamos
pelos jardins, e ele me contou sobre a irmã...

— Ah, sim! Ouvi falar nisso, mas não através de Malcolm. Isso foi há muito tempo, antes de chegarmos
aqui.

— Fui uma tola ao duvidar de Malcolm. Mas eu não tinha idéia de quem Patrice era. E me arrepio ao
pensar no quanto fui envolvida. Agora sei que me enganei também sobre Malcolm. Aprendi muito, hoje:
ele tem mesmo uma personalidade incrível, com inúmeras facetas.

— É verdade.

— Descobri, também, que ele escreveu um romance, que por acaso li e do qual gostei muito. Talvez
agora eu entenda por que ele está me ajudando. Antes me perguntava por que esse homem brilhante,
esse estranho, estava perdendo tempo comigo e meus problemas, e não conseguia encontrar a
resposta. Não sabia que ele acreditava que minha irmã estivesse viva. Achava que ele encarava isso
tudo apenas como um quebra-cabeça e o odiava por isso. Mas você sabe, Janet, quando ele quer, pode
ser tão bom, tão atencioso e compreensivo... Ninguém pensaria isso, vendo-o pela primeira vez.

— Camilla, como você mudou desde o último sábado! Posso detectar uma nota de humildade...

— Sim, agora tenho que ser humilde. Foi minha culpa termos começado errado.

— Malcolm pode ser bem duro quando encontra alguém muito teimoso...

— Bem, eu fui teimosa mesmo. Na verdade, fui uma idiota... Tudo o que ele dizia para eu fazer, eu fazia
o contrário. Não ficarei surpresa se ele não gostar de mim. Entretanto, nosso trabalho não depende de
afeição mútua. O que foi mesmo que ele disse? Qualquer coisa como “ajudando um ao outro,
estaremos ajudando a nós mesmos.”

— Camilla, agora você está sendo tola. O que a faz pensar que ele não gosta de você?

— A gente sempre sabe essas coisas. Eu sinto isso. De qualquer forma, ele nunca age como se
gostasse do que está fazendo.

— Eu não consigo imaginar por que ele não gostaria de você. Não consigo imaginar por que alguém
não gostaria.

— Fui muito rude com ele, e não acho que ele seja o tipo de homem que perdoe e esqueça facilmente.
Não é como você e Johnny.

— Devo dizer-lhe Camilla, que, quando Johnny e eu pedimos a Malcolm que a ajudasse, ele não aceitou
de imediato. Queria vê-la antes. Só concordou depois daquele encontro no Afghan Room. Você deve ter
lhe causado boa impressão.

— Sim, e que impressão! Talvez ele tenha pensado que eu seria um desafio interessante, ou que
tivesse que me salvar. Isso para não mencionar monsieur Patrice Desmarets! Eu poderia dar um
pontapé em mim mesma por aquela primeira noite! Acho que Malcolm nunca saberá realmente como
sou.

— E isso é tão importante? Afinal de contas, o trabalho de vocês não depende de afeição mútua, não é
mesmo?

Camilla estava ciente da insinuação de Janet, mas respondeu tão casualmente quanto possível!

— Quem pode deixar de respeitar um homem como ele e querer ser respeitada em troca? Com aquela
imaginação, inteligência, honestidade, coragem, bondade...

— Você faz isso soar como uma lista das qualidades de um escoteiro! — Janet riu.

— Bem, isso sem considerar a aparência dele. Você tem que admitir que é devastadora! Aqueles
cabelos... Nunca vi nada parecido! E aqueles olhos...

— É, acredito que ele já deva ter atraído muitas mulheres...

— Bem, ele é uma pessoa bastante atraente. O homem mais atraente que conheci. É claro que estou
sendo objetiva. Na minha opinião, o importante são as qualidades que o capacitarão a encontrar minha
irmã.

— Sim, é claro. Eu entendo...

Camilla não gostou do tom provocador de Janet e tentou agir friamente, mas foi incapaz de manter uma
conversa sem mencionar Malcolm. “Há quanto tempo Malcolm vive no Afeganistão?”, “Quantos anos
você acha que ele tem?”, “Ele já foi atleta amador?”, ou “Onde é a escola em que Malcolm trabalha?”
eram perguntas constantes.
Esse interesse não escapou a Janet, que evitou respostas diretas. Mas, estranhamente, Camilla não se
importou, pois sabia que tinha encontrado nela uma verdadeira amiga e confidente.

Pouco depois, Camilla decidiu ir embora, pois Janet apresentava sinais de cansaço. Voltou a pé para o
hotel. Era uma grande distância, mas a tarde estava agradável e ela desejava fazer um pouco de
exercício.

Estava contente porque o caminho de volta para o hotel passava por um atalho entre os gramados da
Universidade. Seus passos tornaram o ritmo acelerado de seus pensamentos. Malcolm os tinha
dominado o dia todo, e ela havia descoberto que não conhecia o caráter dele. Tinha que repensar tudo
em relação a ele.

Mas repensar o quê? Afinal, não entendia muito bem seus sentimentos. Já não se tratava de uma
simples atração física. Tudo tinha piorado quando ela tomara consciência de que não mais o encarava
como um homem arrogante, egoísta, odioso... Sabia que devia respeitá-lo, admirá-lo, ele merecia isso...
Mas como iria limitar esse respeito, essa admiração, essa paixão que estava começando a sentir?

Pôs a mão na testa. Em que essa viagem tinha se transformado!

— Srta. Simpson! — A voz familiar a fez levantar a cabeça, e ela ficou contente ao ver o rosto amigo de
Ali Shah. — Não é tarde para estar andando sozinha na rua?

— Veja, Ali Shah, ainda está claro!

— Mas não é certo a senhorita andar desacompanhada. Estou surpreso de que Malcolm tenha
permitido isso.

— Ele não tem nada a ver com isso! De qualquer forma, eu não estava com ele. Estive visitando Janet
Hagan.

— Ah, sim, a esposa do doutor. Espero que ela dê à luz muitos filhos.

— Mas por quê? O que há de errado com filhas?

— As mulheres sempre querem filhas. Mas um homem precisa de filhos. Eles carregam o nome da
família e trazem as mulheres para casa, para ajudar no trabalho. Uma filha custa dinheiro para criar, e o
dote, que é muito caro, ela leva para a família de outro homem.

— Você não pensa assim de verdade, pensa?

— No país ainda é assim. Vamos, eu a acompanharei.

— Como foi a aula?

— Não muito interessante. Mas senti que tenho que assistir a todas. Eu não gostaria de perder uma
parte vital de informações por causa da preguiça. Nossos exames finais são muito rigorosos.

— Quando você os fará?

— No outono.

— E depois? Pretende seguir alguma carreira?

— Seria interessante continuar auxiliando Malcolm na pesquisa, mas minha família insiste em que eu
procure um cargo no governo, e um homem na minha posição tem responsabilidades a cumprir.

Ela estava para perguntar que responsabilidades eram essas quando, numa nuvem de poeira, um carro
parou ao lado deles. Era o jipe dirigido por Malcolm.
— Mas que coisa mais encantadora ver vocês em compenetrada conversa! Posso interrompê-los para
oferecer uma carona?

— Minha casa fica fora do seu caminho, Malcolm. Mas a Srta. Simpson está voltando para o hotel.
Estava indo a pé, e achei que não deveria andar desacompanhada.

— Que sorte vocês terem se encontrado por acaso, então! Eu concordo com você, Ali Shah: Camilla
precisa de proteção. Ou serão os protetores dela que precisam de proteção? O que você acha?

— Como eu não entendo o que você quer dizer — respondeu o afegão —, não penso nada.

— Bem, talvez você tenha sorte. Sempre achei Camilla provocadora.

Ela não se conteve.

— Eu é que acho você provocador!

Assim que disse isso, Camilla arrependeu-se e ficou zangada consigo mesma. O progresso que tinham
feito no relacionamento mútuo agora parecia ir por água abaixo, por causa dessa agressão inexplicável.

— Eu acho — disse ele, num tom baixo e sensual — que “provocante” é a palavra que eu deveria ter
usado, Camilla. Mesmo porque, não duvido que outros homens já tenham usado essa palavra com
você. — Voltou-se para Ali Shah. — Entre. Eu lhe darei uma carona. Não está muito fora do meu
caminho. E, já que não queremos ver Camilla circulando pelas ruas sem companhia, nós a deixaremos
no hotel.

— Não, obrigada. Está uma tarde agradável. Eu já tinha decidido voltar a pé e pretendo fazê-lo. Você
não irá me impedir.

— Como você quiser. A propósito: vamos jantar amanhã. Irei pegá-la às oito.

Ela estava atônita demais para fazer qualquer comentário. Ficou ali, parada, enquanto ele saía,
levantando uma nuvem de poeira.

Nas duas semanas seguintes, ninguém procurou Meghan. Malcolm estava em fim de ano letivo, na
Universidade, e tinha todo o tempo tomado para escrever, revisar e testar.

Os dias passavam relativamente felizes. Camilla ia aos bazares ou passeava pela cidade. Quando não
estava ocupada, sonhava de olhos abertos com coisas que nada tinham a ver com a irmã.
Emocionalmente, sentia que tinha alcançado um certo equilíbrio, já aceitara o fato de achar Malcolm
extremamente atraente, e isso explicava o antagonismo que sentia por ele. Resolveu, então, mudar de
comportamento, lançando mão de atitudes que encorajassem amizade e respeito mútuo.

Tinha que admitir também que, apesar da demora no prosseguimento da busca, não sentia que
estivessem perdendo tempo. Malcolm passava todos os momentos livres com ela. Talvez fosse para
mantê-la ocupada, longe de Patrice, ou para evitar que fizesse novas e indesejáveis amizades. Ela só
podia dizer que as tardes e noites passadas com Malcolm tinham sido as mais agradáveis de sua vida.

Jantavam fora quase todas as noites, e freqüentemente os Hagan ou Ali Shah iam junto. Sempre a
levavam a restaurantes diferentes. Camilla estava fascinada com a variedade de decoração e de
cardápios.

Uma noite, foram a uma pequena aldeia ao sopé das montanhas, chamadas Istalif, famosa pelo
artesanato em cerâmica. Jantaram no hotel, o único restaurante da aldeia. Durante o jantar, Camilla
ouviu Malcolm contar histórias sobre a região. No vale onde Istalif estava localizada viveram os
descendentes das tropas de Alexandre, o Grande, que tinha marchado vitoriosamente através do Hindu
Kush para a índia. Alexandre havia conquistado impérios aos vinte e um anos, e, no Afeganistão,
conhecera sua noiva, a linda princesa Roxana.

Camilla ouviu tudo isso, fascinada, e para ela as noites teriam sido perfeitas, não fora por uma coisa:
não conseguia convencer-se de que Malcolm estivesse se divertindo. Achava que ele ainda a encarava
como um dever, uma dívida que tinha para com Johnny. O modo como ele se envolvia nas histórias que
contava mostrava que estava ansioso por voltar ao trabalho. Camilla sentia-se constrangida e achava-se
uma carga. Dessa forma, arranjava discussões com ele e depois sentia remorso.

Tudo que quero é que ele goste de mim, pensava. Seria pedir muito?

Uma tarde, quando voltava de um passeio pelos bazares, ela encontrou um bilhete de Malcolm:

“Tive que passar a tarde com uma aluna, portanto não poderei jantar com você. Não marque nenhum
compromisso para amanhã.”

Assim é ele, sem dúvida. Não dá explicações; diz apenas: “Você vai fazei isso” ou “Você vai fazer
aquilo”!, disse a si mesma, tentando sorrir. Mas não conseguiu evitar o desapontamento.

Sabia que não era justo exigir que Malcolm passasse todo o tempo livre com ela só porque fizera isso
nas onze últimas noites. Camilla indagou-se por que deveria se importar tanto por não ver, por uma
noite apenas, o homem que a fazia sentir-se tão vulnerável...

Decidiu que não ficaria triste só porque o todo-poderoso Sr. Armstrong não poderia levá-la para jantar.
Sairia sozinha! Colocou um vestido que a fazia sentir-se bonita e decidiu jantar naquele pequeno
restaurante, meio escondido, a que Malcolm a tinha levado: o Marco Polo.

Uma hora depois, um táxi a deixou lá. Com os cabelos presos no alto da cabeça, um pouco de ruge no
rosto e uma sombra leve nos olhos, Camilla sabia que estava bonita. E isso era gratificante.

O restaurante estava lotado, pois, embora fosse pequeno e de difícil acesso, era popular entre a
comunidade estrangeira. O garçom a conduziu para uma mesa no pátio, a última mesa vazia do lugar.
Ela gostava daquele burburinho e tentava não pensar que alguma coisa, ou melhor, alguém estava
faltando.

De repente, foi surpreendida por um movimento familiar, do outro lado do pátio. Conheceria aquela
figura em qualquer lugar: os cabelos, o contorno do rosto. Malcolm estava lá, com uma garrafa na mão,
o corpo iluminado pela luz da lanterna, e, à sua frente, estava sentada uma linda jovem, de perfil
clássico, olhos escuros, e afegã. Eles riam e pareciam felizes.

Camilla estremeceu. Eles não poderiam tê-la visto, pois pareciam alheios a tudo. Sentiu uma pontada
de angústia no coração.

— Memsahib. — O garçom tossiu, mas ela não lhe deu atenção.

Malcolm estava despejando vinho em dois copos. Depois eles brindaram. A mulher tomou um gole e,
sorrindo, atirou os braços em volta do pescoço dele, beijando-lhe o rosto. Então, os braços másculos a
envolveram...

— Memsahib?

Camilla empurrou a cadeira para trás, os olhos cheios de lágrimas.

— Nada, nada — disse, e correu para o portão, chorando na rua deserta e empoeirada.

Cansada, com fome, ela ainda soluçava quando chegou a seu quarto. Não importava quem era aquela
jovem ou por que eles estavam lá. Camilla só sabia que, naquele momento, teria dado tudo só para
poder fazer o que a afegã fizera: atirar os braços em volta do pescoço de Malcolm e beijá-lo.
Lembrou-se das vezes em que ele a abraçara e a beijara... aquela vez no elevador, a outra em Ghazni...
e a outra, tão diferente, nos jardins da Universidade. E de todas as outras vezes em que ele tinha
roçado sua pele com aquela respiração quente e sensual. Ela havia, então, flutuado no paraíso.

Agora tudo estava perdido. Desde que voltaram de Ghazni, nem uma só vez, em todas aquelas noites,
eles se haviam tocado, mesmo que fosse por acidente.

E agora sabia que toda a intimidade que tanto desejara estava reservada para aquela jovem, que podia
atirar os braços para ele, num restaurante, sem medo e com amor. O que tinha pensado? Que Malcolm
fosse um frade? O próprio timbre da voz dele, que sempre a fazia arrepiar-se, confirmava que essa
seria a última coisa que ele seria. Ela mesma tinha esperado amizade e exigido respeito.

Por que está chorando por coisas que não pode ter?, perguntava-se, arrependida, apertando o
travesseiro contra o peito. Sabia que não poderia ser diferente, mas soluçou até dormir, desejando que
tudo pudesse ser bonito e cor-de-rosa.

CAPÍTULO X

Na manhã seguinte Camilla já tinha recuperado o autocontrole. A luz clara e quente do dia dava uma
perspectiva diferente a tudo, e ela sentiu-se até capaz de enfrentar Malcolm. Pôs um vestido branco
simples, com um cinto largo, e prendeu os cabelos num rabo-de-cavalo que lhe roçava a nuca e
revelava seus lindos traços. Não achou necessário usar maquilagem: sua cor dourada era realçada pelo
branco do vestido.

Mas não estava preparada para a disparada que o seu coração deu quando Malcolm chegou.
Sentando-se no carro ao lado dele, cumprimentou-o com exagerada afetação.

— Manhã adorável, não acha?

— Você parece cansada. Dormiu bem?

— Sim, dormi. E você? Divertiu-se ontem à noite?

— Sim, acho que sim. Uma de minhas alunas ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade. A
confirmação chegou ontem, e por isso fomos celebrar.

— É mesmo? Que bom!

Por que será que ele estava mentindo? Por que não dizia logo a verdade? Camilla teria que ser muito
cuidadosa para não ter que suportar a humilhação de ver descobertos seus verdadeiros sentimentos.

— Na realidade, eu estava pensando em convidá-la para ir junto, mas, como vocês duas não se
conhecem, achei melhor não fazê-lo. Mas irão se conhecer em breve, tenho certeza — disse, e olhou
para Camilla com ar preocupado. — Você não me parece bem. Está sentindo alguma coisa?

— Oh, estou bem, sim. Sinto-me ótima. Por que você não pára de me importunar?
— Calma, calma!

E continuaram em silêncio. Malcolm concentrou-se no tráfego, e ela esperou que ele não percebesse o
quanto estava agitada.

Finalmente, ele retomou a conversa.

— Como foi sua noite? Espero que eu não a tenha deixado na mão.

— Minha noite foi ótima. Você acha que eu não tenho mais nada a fazer além de ficar esperando-o para
jantar? Tive uma noite calma e agradável no hotel. Jantei com um dos cavalheiros de lá. Uma boa
pausa nesse esquema dos últimos quinze dias.

Ele pisou mais fundo no acelerador e o carro quase voou. Camilla ficou furiosa consigo mesma.
Acordara com a firme intenção de não provocar discussão e agora, quando teria um dia inteiro junto
com ele, arruinara tudo com seu temperamento.

— Aonde... aonde estamos indo?

— Para um campo de esportes chamado Jeshn — resmungou ele.

— E o que há lá?

— Buzkashi.

— E o quê...

— Aqui estamos.

O carro parou levantando uma nuvem de poeira, e Malcolm desceu, dirigindo-se para alguns prédios de
cimento. Camilla correu atrás dele e olhou para o que chamava de “Campo de Esporte Jeshn”.

Era uma vasta área, grande e plana como três campos de futebol. Em dois cantos havia mastros
enterrados no chão. O campo estava cercado por uma multidão de afegãos, vestidos com turbantes e
mantos. Havia gente de todas as idades, uma multidão colorida que ria, gritava, conversava,
gesticulava. Mas, acima de tudo, havia vários cavalos.

Camilla olhou na direção de Malcolm e viu que ele tinha desaparecido. Correu até lá, tentando encontrá-
lo.

Malcolm estava com Ali Shah, escovando um par de esplêndidos cavalos. O de Ali Shah era baio, de
crina preta. O de Malcolm era maior e mais bonito; imponente.

Camilla sempre tivera um pouco de medo de cavalos, mas não podia passar por covarde aos olhos de
Malcolm. Então pousou a palma da mão no pescoço do garanhão cinzento.

— Como é bonito! Qual é o nome dele?

— Ajdahaar — respondeu Malcolm, colocando a sela em cima do forro feito de tapete afegão,
estampado em vermelho e dourado. — Quer dizer Dragão.

— E o nome do meu cavalo é Malakh — disse Ali Shah. — Quer dizer Gafanhoto.

— Gafanhoto? — Camilla riu. — Pois não se parece com um!

— Você deveria tê-lo visto quando era um potro — disse Malcolm.

— O filhote mais raquítico que eu já vi. As pernas pareciam palitos de fósforo. Eles são do mesmo
plantel, e por isso estão no mesmo time.
— Time? Que time? O que é esse buzkashi?

— O esporte nacional do Afeganistão, a que agora você terá o privilégio de assistir. Parecido com o
pólo, só que tão selvagem quanto um tigre, enquanto o pólo é manso como um gato.

Ele a levou para o campo e, levantando as mãos, disse:

— O jogo é relativamente simples. Dez minutos para aprender, dizem, e uma vida inteira para tornar-se
um perito. Você consegue ver um círculo de cal no centro do campo?

— Não muito bem, por causa do sol.

— Ele circunda uma vala rasa, onde é jogado um bezerro decapitado. O objetivo do jogo é pegar o
bezerro, carregá-lo em volta de um mastro, e depois do outro...

— Espere, espere! Você disse um bezerro decapitado?

— Sim. Bem, às vezes usam uma cabra, mas hoje é um bezerro.

— Que revoltante!

Ele cruzou os braços e sorriu.

— De todas as coisas que você irá ver nesse país, é o buzkashi que a fará entender melhor os afegãos.
O nome quer dizer Arrasto da Cabra, e é isso que significa, em essência. Você arrasta a cabra morta,
ou o bezerro morto, em volta dos dois mastros paralelos, e depois o joga de volta no círculo de cal.
Essas são as regras do jogo.

— Bem, não me parece nada interessante. Deverá terminar em poucos minutos, não?

— Vou explicar melhor. Tente imaginar vinte, trinta cavalos e cavaleiros num poeirento corpo a corpo
naquele campo. Um homem passa a grande velocidade, o chicote preso entre os dentes, o corpo do
bezerro pendurado na sela. Os outros jogadores de buzkashi, chamados chapandazi, correm atrás dele,
gritando, e golpeiam-se com os chicotes... Ouvem-se gritos de dor e de prazer. Um outro chapandazi
abalroa o primeiro. A carcaça cai, ele a apanha e a deixa cair novamente, os cavalos já estão molhados
de suor. Um homem de turbante verde cavalga a meio galope, pendurado na beirada da sela, um pé
fora do estribo, até estar em posição horizontal, o nível da cabeça ao nível da barriga do garanhão. Com
um movimento rápido, ele arrebata o bezerro e o joga nas costas do cavalo. Eles correm para cima e
para baixo, para a frente e para trás. Esse jogo pode durar duas, três horas, uma tarde toda até. O
bezerro pode se tornar apenas um pedaço de couro, mas ainda assim é precioso. Os homens e os
cavalos quase sempre se ferem, e às vezes até morrem na luta. Esse campo, embora enorme, não é
grande o suficiente para a competição, e seus limites geralmente são ultrapassados. Às vezes os
espectadores são machucados. É um jogo violento, mas, ao mesmo tempo, uma arte. Alguns dizem que
é a alma do Afeganistão.

— Malcolm! — disse Ali Shah, juntando-se a eles. — Acabo de ver Nurjan numa das arquibancadas
provisórias. Ela está com a família, e eu ainda não a tinha encontrado desde que as novidades
chegaram. Você se importa em segurar os cavalos enquanto dou um pulo lá? — E passou as rédeas ao
amigo.

— Vá até Nurjam, sim! Ela merece ser cumprimentada. E não se esqueça de que deve muito a você,
também.

Ali Shah sorriu e desapareceu na multidão.

— Então, esse é o jogo que você e Ali Shah vão jogar?

— O quê? Desculpe, nós estávamos falando sobre o buzkashi, não estávamos? Bom, o jogo vai
começar logo. Você pode ficar nas laterais ou sentar-se aqui. — E indicou os assentos de madeira. —
Isso, se achar um lugar vago.

— Pois prefiro ficar num local seguro, de onde eu possa escapar rapidamente, caso haja algum
problema...

Ele parecia não ouvi-la. Olhava fixamente para as arquibancadas. Camilla viu Ali Shah emergir da
multidão e dirigir-se a uma jovem, cumprimentando-a com um beijo. Reconheceu-a imediatamente, e
percebeu que Malcolm também olhava para ela.

— Eu a levaria para conhecê-la, mas nosso cavalariço ainda não chegou e não posso deixar os cavalos
sozinhos. Mas eu gostaria de dar um pulo lá antes que o jogo começasse. Você acha que pode segurar
as rédeas por alguns minutos? Os cavalos são bem treinados e ficarão quietos.

— Sim, é claro! Você não vai demorar, vai?

— Só alguns minutos. Acho que já está quase tudo pronto para começar.

Camilla olhou para o campo e viu que alguns cavaleiros já estavam montados. Malcolm estava se
afastando, quando ela resolveu fazer-lhe uma pergunta:

— Por que você disse que ela devia muito a Ali Shah?

— Oh! Porque foi ele que nos colocou juntos. Foi idéia dele, inclusive.

Malcolm saiu. Camilla não tinha vontade nenhuma de olhar para as arquibancadas onde Nurjan estava.
Enterrou o rosto na crina branca do cavalo de Malcolm, tentando controlar as lágrimas.

Ela nunca poderia imaginar que sentir ciúmes fosse tão doloroso. Como permitira que suas emoções
fossem assim tão longe? Isso iria destruir os planos de trabalho com Malcolm e arruinar as chances de
encontrar Meghan. Mas tudo que importava, no momento, era aquela sensação de desamparo, de
infelicidade, que tomava conta dela.

Nunca tinha sentido emoção tão intensa e tão amarga. Fechou os olhos, que arderam com as lágrimas
reprimidas.

Eu não me permitirei sentir ciúmes, repetiu para si mesma, diversas vezes, e isso a acalmou. Mas ainda
tinha a face enterrada na crina do cavalo quando Malcolm voltou com Ali Shah.

— Não vá dormir, Camilla. O jogo já vai começar.

Ela o viu montar, as costas e os quadris moldando-se ao movimento do cavalo.

— Seus olhos estão vermelhos... — disse ele, observando-a — Você não é alérgica a cavalos, é?

Ela quase gritou:

— Não!

— Ótimo!

Ele tocou nos flancos do cavalo com o salto da bota e o animal começou a correr para o meio do
campo. Mas, de repente, correu de volta, na direção dela, e Camilla, surpresa, não conseguiu se mover.

Malcolm inclinou-se na sela e passou o braço pela cintura dela, levantando-a no ar. O cavalo já corria
novamente, com Camilla atravessada na sela, as pernas no ar, pendurada no pescoço de Malcolm para
evitar desequilibrar-se.

O cavalo corria, com a crina balançando, as narinas abertas. Malcolm afastou o cabelo que voava no
rosto de Camilla, levantou-lhe o queixo e eles se beijaram febrilmente, as bocas tão quentes quanto a
areia embaixo dos cascos do cavalo.
Camilla pensou que estava voando. De repente Malcolm fez o garanhão parar e lançou-a gentilmente ao
solo. O cavalo girava em círculos, com olhos selvagens. O homem montado nele, igualmente selvagem,
levou o chicote à testa e a saudou:

— Um beijo para dar sorte!

E correu em direção a um grupo de mais ou menos trinta homens. A multidão de espectadores pôs-se
em pé, saudando os competidores. O jogo tinha começado.

Camilla estava confusa, mas mesmo assim prestou atenção ao jogo. O juiz jogou o bezerro no círculo
de cal. Houve um violento tumulto, e então um dos chapandazi pegou a carcaça.

O jogo era violento e cruel, mas os afegãos, acostumados a ele, não o viam assim. Camilla não
aprovava aquela violência toda, e preocupava-se com os ferimentos que homens e cavalos iriam sofrer.
Mas assim mesmo estava entusiasmada, gritando com a multidão:

— Namani! Begeer! Agarre-o! Pegue-o!

Ela gritava como qualquer outro espectador, mas suas palavras eram dirigidas apenas a um alto
chapandazi...

— Malcolm! Malcolm!

Malcolm já estava circundando o mastro, o chicote numa das mãos, espantando os rivais, enquanto
que, com a outra, levava a carcaça no alto. Dragão, o cavalo, foi em direção ao mastro, com Ali Shah ao
lado e uma multidão correndo atrás deles. De repente, Dragão empinou. Malcolm tentou passar a
carcaça a Ali Shah, mas outro chapandazi o interceptou, e logo todos estavam atrás dele.

Malcolm tirou Dragão de campo e estava andando com ele em direção às linhas laterais. Camilla correu
para junto dele.

— O que aconteceu? Você estava indo tão bem!

— Acho que o Dragão distendeu um músculo. Segure-o um pouco, sim? — Ela tomou as rédeas,
enquanto ele passava a mão pela perna traseira do cavalo. — Aqui está! Não é nada grave, e ele está
desesperado para voltar ao jogo, mas não quero arriscar. Vamos!

Eles chegaram ao estábulo, onde Malcolm retirou a sela e as cobertas do animal. Deixou que o
cavalariço o levasse e disse:

— Ele vai ficar bom. Um pouco de descanso lhe fará bem. Estou feliz por tê-lo tirado do jogo na hora
certa.

Nesse instante, ouviram um burburinho na multidão.

— Venha! — exclamou ele. — Alguma coisa aconteceu! Vamos voltar!

As pessoas estavam aplaudindo. Um dos companheiros do time de Ali Shah tinha marcado um ponto.

— Ganhamos, Malcolm?

— Não, apenas marcamos um ponto.

Mais uma vez o juiz deu início à partida. Camilla estava excitadíssima mas resolveu se acalmar porque
Malcolm estava a seu lado. O que ele teria pretendido com aquele beijo antes do jogo? Fora perigoso,
mas excitante. Olhou-o de soslaio, notando sua animação. Toda vez que um de seus companheiros de
time procurava a carcaça, Malcolm apertava-lhe o braço.

— Você tinha razão, Malcolm!


— Sobre o quê?

— Buzkashi. Eu adoro isso. É tão envolvente!

— É o símbolo do Afeganistão, sem sombra de dúvidas. Os guerreiros da coragem! Escute...

Ela só pôde ouvir um velho senhor que, perto deles, cantava uma melodia afegã.

— É melhor voltar para casa coberto de sangue do que são e salvo como um covarde — traduziu
Malcolm.

— Acho que entendo — replicou Camilla.

Algum dia, de alguma forma, iria mostrar a Malcolm que também tinha adquirido parte do espírito do
Afeganistão. Que também podia arriscar-se. Que não era covarde.

— Oh, não! — A exclamação dele assustou Camilla, que viu os cavalos fora de controle dirigindo-se
para as arquibancadas.

— Corram, corram! — gritavam todos.

Os espectadores já estavam de pé, e a estrutura de madeira balançava sob o peso deles. As mulheres,
cobertas por véus da cabeça aos pés, tinham dificuldade para correr, e gritavam.

— Nurjan! — gritou Malcolm, e saiu correndo para a área de perigo, antes que Camilla pudesse impedi-
lo.

O campo estava coberto pela multidão em pânico. Camilla gritou, colocando as mãos nos ouvidos e
fechando os olhos.

Um segundo depois, ela os reabriu, percebendo que, ao correr para salvar Nurjan, Malcolm tinha posto
a própria vida em perigo. Esse pensamento a deixou arrasada. Correu à procura dele.

— Eu não posso suportar isso! Não posso!

As nuvens de poeira abaixaram-se, revelando arquibancadas vazias mas intactas. Muitas pessoas
estavam no chão, mas não pareciam machucadas. A multidão ainda gesticulava e gritava, mas a
maioria ria. Muitos cavaleiros tinham desmontado e estavam examinando os cavalos, como Malcolm
havia feito, para ver se estavam feridos.

— Nada como um pouco de agitação para apimentar o jogo.

Camilla virou-se e viu Ali Shah montado no cavalo baio, limpando a testa com as costas da mão.

— É esse o nome que você dá a isso? — perguntou ela, olhando em volta e notando que nenhum dos
participantes parecia amedrontado.

Pelas expressões deles, tinham apreciado aquela confusão toda. Camilla sentiu que nunca entenderia a
personalidade do povo afegão.

— Onde está... Malcolm?

— Com Nurjan.

Ela virou-se e viu Malcolm sentado no chão, ao lado da jovem afegã; eles pareciam contentes e
descontraídos. Camilla hesitou em aproximar-se deles, mas Ali Shah cavalgava naquela direção e ela o
seguiu. Malcolm levantou-se e sorriu.

— Nenhum ferimento. Todos tiveram a sorte de escapar. Mas olhe para essa moça aqui. — E dirigiu a
Nurjan um olhar tão cheio de admiração que Camilla sentiu-se aflita. — Eu acho que ela apreciou cada
minuto. Olhe para esse sorriso.

— Eu sou muito rápida, sabia que poderia escapar. Um gostinho de perigo é sempre emocionante,
vocês não acham?

— Bem, mas você me assustou por um momento, Ali Shah — disse Malcolm. — Pensei que fosse
correr para cima das arquibancadas.

— Você deveria conhecer melhor a destreza desse seu colega. De qualquer forma, quando Amanullah
conseguir recapturar o cavalo dele, o jogo deve continuar. Você quer cavalgar meu cavalo um pouco?
Ou vai ficar com Nurjan?

— Continuar? — Camilla ficou surpresa. — Você quer dizer que vão continuar jogando... depois de tudo
o que aconteceu?

— É claro... — Nurjan começou a dizer, mas Malcolm levantou a mão, interrompendo-a.

Ele tinha notado a extrema palidez de Camilla e a maneira como as mãos dela tremiam.

— Acho que nossa convidada já teve muita emoção por hoje — disse firmemente, e apresentou as duas
mulheres, acrescentando:

— Eu não vou ficar mais, Ali Shah. Você pode providenciar para que Dragão seja medicado? Ele
distendeu um músculo na perna traseira. Vou levar Camilla.

Ela sentiu-se grata por esse ato de consideração. Com isso, tomou consciência de uma coisa que a
surpreendeu e agradou: a alegria e o alívio por Malcolm estar são e salvo sobrepujavam os ciúmes que
sentia toda vez que o via com Nurjan.

Depois daquele dia, Camilla pouco viu Malcolm. Ficou grata por isso, podia esquecer um pouco a
tristeza. Mas, quando o via, a dor tornava-se insuportável.

O fiel Ali Shah visitava os bazares todo dia, à procura de novidades. Interrogava todo chofer de
caminhão que chegava do norte, na esperança de que pudessem ter encontrado uma tribo Kushi com
uma mulher estrangeira. Era melhor não ter envolvimento nenhum com a polícia, especialmente depois
daquele episódio com a heroína. Aliás, Camilla nunca soubera o que Malcolm havia feito com a droga.

Eles faziam perguntas aos habitantes de aldeias afastadas e, também, àqueles que viviam perto dos
acampamentos Kushis em Cabul. Mas conseguiram pouca informação; esses aldeões eram muito
desconfiados.

A primeira quebra nessa rotina aconteceu quando souberam que uma tribo Kushi tinha chegado a
Cabul. Imediatamente dirigiram-se ao local.

Os Kushis eram muito hospitaleiros. Malcolm e Ali Shah foram tomar chá com o chefe da tribo, mas
Camilla ficou com as mulheres. Elas eram muito bonitas e gozavam de uma liberdade incomum naquele
país. Não usavam véus, mas vestiam túnicas compridas, no mesmo estilo daquela que Camilla tinha
comprado na rua Chicken, em cores surpreendentes: preto, azul, vermelho. Ostentavam muitas jóias e
os narizes, perfurados como as orelhas, eram enfeitados com moedas. Nas mãos, usavam múltiplos
anéis, ligados, dedo a dedo, por finas correntes de prata, e os braços eram cobertos por sólidos
braceletes que iam do pulso ao cotovelo. Eram altas, escuras, exóticas, de traços marcantes.

Camilla estava ao mesmo tempo intrigada e assustada com os Kushis. Ao contrário de Meghan, não
sentia nenhuma atração por eles. Aquele povo era elementar, muito próximo à terra. Ela era inglesa,
bem-educada, acostumada a todos os modernos confortos da vida ocidental e, para viver com essa
gente, teria que se privar de todos os seus hábitos.
Elas sentaram-se no interior de uma tenda escura, para tomar chá.

— Estou procurando a minha irmã — começou Camilla. — Ela é enfermeira. Parastaar... Minha irmã é
enfermeira.

Assim que a palavra parastaar foi pronunciada, Camilla tornou-se alvo de um bombardeio de perguntas
sobre doenças.

— Eu quero ver o meu amigo — disse, em persa.

Uma mulher foi buscar Ali Shah.

— Ali Shah, por favor, explique a elas que não tenho nenhum remédio comigo.

— Por que iriam pensar que você tem?

— Bem... uma das poucas palavras que sei em persa é parastaar. Tentei dizer que minha irmã é
enfermeira, mas creio que não me fiz entender. Creio que elas acham que eu é que sou.

Ali Shah riu.

— Esse foi o seu erro número um.

— Eu não conseguia pensar em mais nada para dizer. Não conte para Malcolm, está bem?

Rapidamente, Ali Shah explicou para as mulheres que a farangi de cabelos avermelhados não era
enfermeira. Elas ficaram desapontadas e perderam o interesse.

— E eu que achei que nós estávamos nos dando tão bem...

— Não tem importância, Srta. Simpson. Temos que ir, agora. Já descobrimos tudo que eles sabem, e
não é muito.

Ele a conduziu para fora da tenda. Malcolm os esperava dentro do carro.

— Existe uma coisa importante que eles sabem. Admitiram que ouviram falar que havia uma estrangeira
de cabelos claros numa tribo do norte. Mas não souberam dizer que tribo é ou onde está. Não sei se
esconderam alguma coisa. Se sua irmã está mesmo com uma tribo, provavelmente não querem perder
alguém que tenha conhecimentos de medicina. De qualquer forma, acho que fizemos algum progresso.

— Mas só pode ser ela! Quem mais poderia ser? Tudo que temos a fazer é procurar em cada uma das
tribos...

— Não! Acho que você não faz idéia de quanto isso é impossível, ou não teria sugerido. Esse país é
imenso e a maior parte dele é selvagem: não conseguiríamos localizar todas as tribos. Além disso, não
temos tempo nem dinheiro para tanto. Estou notando seu ar de contrariedade, Camilla. Mas não pense
que vou deixá-la fugir e procurar sozinha em cada tribo. Você vai esperar até que consigamos alguma
informação mais definida, certo?

Ela gostaria de mostrar que era capaz de raciocinar tão bem quanto argumentar, de cooperar tão bem
quando discordar, mas calou-se.

— Não há necessidade de ficar de mau humor, Camilla.

— Não estou de mau humor.

— Deve me perdoar se eu estiver errado, mas você costuma ficar de mau humor nesses casos. As
primeiras impressões sempre permanecem, não é mesmo?

Era isso que ela temia.


Passou-se mais uma semana antes que uma nova pista surgisse, e, para satisfação de Camilla, ela a
descobriu sozinha.

Janet tinha o hábito de freqüentar o bazar de roupas usadas, atrás da rua principal, na cidade velha, e
muitas vezes Camilla a acompanhava. Lá, podia-se ir de loja em loja e encontrar as mais incríveis
pechinchas: um lenço Gucci, jeans quase novos, um vestido de seda, sapatos e camisas em perfeitas
condições, suéteres pouco usados e saias esfarrapadas. O comércio de roupas importadas da América
ou da Europa era uma das atividades mais lucrativas do Afeganistão.

Um dia, não tendo nada que fazer à tarde, Camilla resolveu ir ao bazar de roupas usadas. Examinava
tudo com muita calma, pois o lugar era tão agradável e a atmosfera tão relaxante que ela achou uma
pena apressar-se.

“O Afeganistão cresce em você” tinham sido as palavras que Johnny dissera a ela no dia em que
chegara. Na época, Camilla não levara a sério, mas agora acreditava: o país tinha se tornado parte
dela. O melodioso som do persa tornara-se mais atraente, aos seus ouvidos, do que o inglês. Era a
Inglaterra que parecia estranha agora.

Pensou em Malcolm. Ele também amava esse país, e isso lhes permitia ter alguma coisa em comum.
Podia entendê-lo um pouco melhor agora. Talvez também pudesse fazer com que ele gostasse um
pouco mais dela.

Ao virar uma esquina, viu alguma coisa que lhe chamou a atenção. Teve a forte sensação de que
alguma coisa pessoal, familiar, estava próxima a ela. Virou-se e viu uma loja onde havia uma
combinação de cores muito familiar.

— Sim, memsahib? — perguntou o lojista.

— Nada. Só estou olhando.

Um menino de olhos grandes e escuros, que trabalhava ali, a observava com curiosidade. Ela sorriu e
os olhos dele brilharam. Depois examinou atentamente a loja, mas não encontrou nada. Sentindo-se um
pouco tola, resolveu ir embora. Quando saía, o lojista a chamou:

— Não “ver” nada que gosta?

— Não, não estou encontrando nada. Obrigada.

Virou-se para sair, mas a voz insistente a chamou de volta.

— Talvez você “gosta” essa bonita túnica?

Camilla estremeceu. Era aquilo que seus olhos tinham visto e que lhe parecera familiar. Era uma
enorme coincidência!

— É um vestido muito bonito. Deixe-me vê-lo, por favor.

Na realidade, o vestido não era muito bonito. As cores não combinavam com o tipo de Camilla e o corte
era sério demais. Mas, para Meghan, que o tinha feito, era ideal: ela era muito magra e tinha cabelos
loiros que Camilla sempre invejara.

Camilla queria pegar o vestido e correr, sentar-se e tocá-lo, sonhar com o que ele significava. Mas tinha
que fazer perguntas, chegar às raízes do mistério, ou Malcolm nunca a perdoaria. Ela o segurou com
firmeza e perguntou casualmente:

— É realmente um vestido muito bonito. Onde o conseguiu?


— A maioria de minhas roupas vem da América.

Isso não queria dizer muita coisa. Era necessário mais. Ela insistiu:

— É um vestido tão bom que eu não posso acreditar que tenha vindo da América. Acho que foi feito
aqui mesmo, em Cabul. Não é verdade?

— Sim, memsahib.

Camilla tentou de novo.

— Se é assim, você tem que me dizer o nome da loja, para que eu possa ir lá e comprar outro vestido.

O homem ficou confuso. Viu-se apanhado numa mentira e, ao mesmo tempo, perdendo uma freguesa.

— Loja muito cara. Melhor comprar aqui.

— Ah, sim, mas estou querendo comprar um vestido que ninguém tenha usado.

— Não existe loja.

— Mas você acabou de me dizer que há uma. Uma loja muito cara.

O orgulho lutava contra a ganância; ela podia sentir a batalha que ele travava consigo mesmo. A
ganância venceu.

— Eu “pensando” em outra loja. Esse eu “comprar” Kushis.

— Isso o faz extremamente valioso — disse ela, quase tremendo. — Há quanto tempo o comprou?

Percebendo que dizer a verdade lhe traria lucros, ele respondeu:

— Quase uma semana.

Ela exultou.

— Seiscentos afeganes — arriscou ele, e Camilla não pechinchou. Deu-lhe o dinheiro alegremente,
apertou-lhe a mão e saiu, feliz, com o vestido embaixo do braço. Num momento de generosidade, deu
ao menino algumas moedas e, pela expressão do rosto dele, deduziu que tinha feito um amigo.

Não podia acreditar na sua sorte. Na verdade, não acreditava que fosse sorte. O incidente reforçava sua
fé a respeito de destino e predestinação. Certamente ela estava destinada a achar Meghan! Naquele
momento, experimentou uma sensação maravilhosa.

Então, viu uma sombra, sentiu que alguém a seguia e virou-se para ver quem era. Mas não viu nada
mais que homens, mulheres e cachorros passeando na poeira. Do lado de fora de uma loja, na esquina
próxima, roupas coloridas balançavam para frente e para trás, como se fossem movidas por uma forte
brisa. A sombra já tinha desaparecido.
CAPÍTULO XI

Camilla pensou em fugir, mas não o fez. Continuou a caminhar, procurando na esquina por alguma
explicação, e viu um homem alto forçando caminho pela alameda cheia de gente. Em poucos segundos
ele desapareceu. Talvez fosse um batedor de carteiras. Camilla remexeu na bolsa: sim, todo o dinheiro
estava lá. Tentou esquecer a sensação de mau agouro. Afinal de contas, o lugar estava cheio de
sombras que se movimentavam.

Chamou um táxi. Tinha que contar a alguém sobre sua recente descoberta. Contar a Malcolm. Mas não
sabia onde encontrá-lo e não tinha o número do telefone de Ali Shah.

— Karte Char — disse ela ao chofer. Visitaria Janet. Esperava que ela estivesse em casa.

O táxi parou ao lado da agora familiar parede de cimento. Camilla foi saudada por Elsa, que latia e
abanava o rabo, e, logo em seguida, pelo rosto sorridente e cheio de sardas de Janet.

— Camilla, é ótimo ver você! Aqui está tudo na maior desordem, eu não estava esperando visitas. Mas
entre, eu estava mesmo precisando de um papo.

— Eu tenho uma novidade incrível para lhe contar! — exclamou Camilla, beijando-a no rosto.

— Sim, posso perceber que tem! Você e Malcolm ficaram noivos?

Ela corou e não pôde pensar numa resposta. Seguiu Janet para a sala de jantar.

— Espero que você não se importe em sentar-se no meio dessa confusão toda. É dia de faxina, sabe?

Camilla olhou com preocupação para a amiga.

— Você acha que é bom para você? Quero dizer, com esse calor...

— Oh, um pouco de exercício não faz mal a ninguém, e fico tão entediada quando Johnny está fora e
não estou trabalhando! Além disso, Abdulah nunca faria isso de maneira adequada. Mas, vamos! As
novidades primeiro!

— Achei isto no bazar de roupas usadas — disse Camilla, segurando o precioso vestido.

— Eu pensei mesmo que você estaria fazendo compras. Bazar de roupas usadas, hein? Está se
tornando uma viciada! Espero que não se aborreça com o que vou dizer, mas cor-de-rosa não lhe cai
bem.

— Não, não cai. Esse vestido pertencia à minha irmã.

Janet ficou sentada por um momento, os olhos arregalados. De repente levantou-se e abraçou a amiga.

— Oh, Camilla!

Camilla quase chorou de felicidade. Então Janet perguntou:

— E o que isso significa?

Camilla contou-lhe todo o episódio.

— Bem, você está se tornando uma boa detetive!


— Uma detetive eficiente — acrescentou Camilla, e ambas riram.

— Posso ver que Malcolm ensinou-lhe muitas coisas — continuou Janet, observando a reação da
amiga, que corou novamente.

— Malcolm! Eu queria contar a ele, mas não tenho o número do telefone.

— Quer que eu pegue para você?

— Oh, sim, por favor. Eu esperava...

— Sim?

— Que você o tivesse — terminou Camilla.

Janet foi até o hall para pegar a caderneta de telefones. Camilla a seguiu.

— Você poderia... quero dizer, você se importaria de... de telefonar para Malcolm por mim?

— Para quê? — perguntou Janet.

— Eu não quero... Eu me sinto tão tola... tão agitada! Ele vai receber a notícia com calma. Talvez até
não seja importante... Talvez...

— Não seja tola! Não posso entender essa sua relutância. Essa é a descoberta mais importante que
vocês fizeram até agora. Vá em frente! Aqui está o número. Disque.

Janet entregou a caderneta a Camilla e foi para a cozinha, onde pegou o aparelho. E se fosse sem
importância, ou irrelevante, ou se ela tivesse feito algo errado... Como podia estar tão orgulhosa diante
de uma coisa tão insignificante? Não suportaria se estivesse errada de novo.

— Alô? O Sr. Armstrong está? Não? Quem está falando? Você é a cozinheira dele? Por favor, fale mais
alto... Onde ele está? Na escola? Não, eu não tenho o número. Não, obrigada. Quando ele vai voltar?
Eu telefono novamente... Camilla Simpson... Sim, até logo.

Desligou, suspirando.

— Ele está na escola, Janet — disse, enquanto entrava na cozinha.

— Sim, eu ouvi.

— Por que ele estaria lá agora? Eu pensei que estivessem em férias.

— Ele está orientando uma de suas alunas. Uma jovem brilhante.

— Você acha que eu deveria ligar para a escola?

— Eu não me daria ao trabalho — respondeu Janet. — Ele não atenderia. Não gosta de ser
interrompido no trabalho.

— Não tem importância. Eu telefono mais tarde. Qual é a nacionalidade dessa aluna? Americana?

— Não. Afegã.

Elas voltaram à sala de estar, tomaram café, conversaram, mas sempre voltavam a dois assuntos:
Malcolm e a busca.

— Parece que você está bem próxima da solução do caso Meghan. Tão logo a encontre, suponho que
volte logo para a Inglaterra. Vamos sentir sua falta, sabe?
Camilla pensava muito nas palavras de Janet enquanto andava de um lado para o outro em seu quarto
de hotel, indagando-se se deveria ligar para Malcolm novamente. Voltar para a Inglaterra... Antes, ela
teria dito “voltar para casa”, mas agora não. Será que a Inglaterra tinha sido seu lar alguma vez? Não.
Tinha sido o lar de Camilla criança, quando seus pais eram vivos, quando tudo era diferente: havia uma
família, emprego, amigos, o agora esquecido Jeff. Aquelas coisas não existiam mais. O que restava
agora? Sua independência, seu orgulho, sua liberdade — coisas que nasceram com a vinda para o
Afeganistão. E Malcolm estava ali, o querido Malcolm. Havia tanta coisa naquele país que ela amava: o
céu, a terra, as montanhas, os desertos, as florestas, os camelos, o povo, a claridade da luz... Tudo que
ela amava estava ali.

E Meghan? Camilla sempre acreditara que a irmã estivesse ansiosa para voltar para a Inglaterra. Mas o
que seria para ela a Inglaterra, hoje? A infância perdida, a carreira de enfermagem interrompida, um
casamento terminado com a morte do marido? Será que Meghan iria querer voltar?

E se Meghan não voltasse, ela, Camilla, retornaria sozinha para um apartamento vazio e um futuro sem
amor? As coisas seriam as mesmas depois de Malcolm? Como poderia voltar?

Sua mão estava tremendo, enquanto segurava o papel onde o número do telefone de Malcolm estava
escrito. O papel voou para o chão e ela inclinou-se para apanhá-lo. Então, ouviu um estampido, um
barulho de vidros se quebrando, um forte assobio no ouvido e atirou-se ao chão. A bala foi cravar-se na
parede.

Camilla ficou estirada no tapete, os dedos dos pés e das mãos apertados, o ritmo do coração
descontrolado. Esperou por um segundo tiro e ouviu gritos e tumulto na rua, o disparo de um rifle ao
longe, batidas de portas de carros e motores arrancando.

Levantou-se devagar. Estranho, mas não se sentia assustada quando abriu disfarçadamente as
cortinas. O vidro da janela estava quebrado e ela pôde ver um carro marrom. Reconheceu Patrice, que
nesse instante mandava o motorista seguir. O carro começou a se mover lentamente.

Camilla estava assombrada com sua presença de espírito. Pensou calmamente na situação em que se
encontrava.

Em breve a polícia estaria ali. Ela deveria fugir antes disso, pois a situação iria se complicar.
Principalmente porque ainda estava sob suspeita de porte de drogas. Teria que sair do hotel, pegar um
táxi e encontrar-se com Malcolm. Não havia tempo para telefonar.

Pegou o vestido, colocou-o numa sacola, agarrou a bolsa e saiu do quarto.

O saguão do hotel estava cheio de gente. Ela pôde escapulir sem ser notada. Passou pelo meio das
pessoas e, vendo um americano que conhecia de vista, perguntou:

— O que está acontecendo?

— Srta. Simpson? Então a senhorita está bem?

Ela engoliu em seco. Agora teria que representar.

— Bem? É claro que estou bem! Por que não estaria? O que está acontecendo?

— A senhorita não ouviu? Um homem atirou em sua janela... Pensávamos que a senhorita estivesse
morta.

— Morta? Tiro? — Ela forçou uma risada. — Bem, posso lhe garantir que não estou. O senhor deve
estar enganado. Não ouvi nada, a não ser esse tumulto. E as outras pessoas não parecem muito
preocupadas. Ninguém foi ver se eu estava mesmo morta. Deve ter sido em outro quarto.

— Eles estavam com medo de encontrar um cadáver.


— Que homens corajosos! Mas, enfim, quem poderia querer atirar em mim?

Ela alcançou a porta e finalmente viu-se na calçada, livre da multidão.

De repente, viu dois policiais vindo em sua direção, os olhos fixos nela. Ficou surpresa com a
tranqüilidade que estava conseguindo simular, apesar da vontade de sair correndo e se esconder. Uma
voz interior parecia lhe dizer: “Calma, calma! Ande devagar, sorria, isso! Eles somente a olharam,
passaram por você... Vire a esquina. Boa menina...”

A calçada parecia ter cem quilômetros. Atravessá-la foi a coisa mais difícil que ela já tinha feito, e seu
coração batia descompassadamente.

Pelo canto do olho, viu um táxi se aproximar e acenou para ele. Escorregou para o assento de trás.

— Para a escola.

— Que escola, khanum?

Ela pensou um minuto.

— Para a Escola Americana.

— Ah, Darulaman.

O táxi afastou-se e Camilla sentiu uma vontade incontrolável de olhar para trás. Poderia ter dado uma
gargalhada: os mesmos policiais circundavam a mesmíssima esquina por onde ela havia passado há
pouco, e, enquanto esquadrinhavam a rua à sua procura, ela fugia.

A corrida até a escola foi longa. Tudo tão estranho! Camilla sentia-se como se estivesse atuando num
palco ou em algum filme, com o cenário projetado numa tela atrás dela. Aquela bala, que bala? Que
arma? Patrice, quem era ele?

O táxi deixou-a num lugar que se parecia mais com uma fazenda do que com uma escola. À esquerda,
estava uma ala do edifício pintado de amarelo, com grandes janelas de vidro e cortinas verdes. À direita,
estava a outra ala, com um portão na frente. Um terreno separava as duas alas.

Então era ali que Malcolm trabalhava, onde ele generosamente empregava seu talento! Aquele gênio
estava se dedicando a uma vida de trabalho naquele barracão modesto! Será que ele amava a escola
amarela da mesma maneira como amava o país dourado? Realmente, era um lugar medonho, mas,
mesmo assim, ela queria conhecer cada parte dele.

Camilla virou à esquerda. A primeira coisa que viu foi uma parede alta de cimento, pintada de azul e
descascando. Por cima, havia fileiras de plantas que pareciam repolhos. Um jardim! Andando por trás
da ala esquerda da escola, passou por um grande galinheiro. Depois, olhando pelas janelas do prédio,
viu posters de paisagens nas paredes, com letras vermelhas, brancas e azuis: “USA”. Talvez todas as
escolas americanas fossem assim. Uma cabra pastava por perto, ruminando pacificamente, e galinhas
corriam dentro do galinheiro. Um macaco fazia acrobacias nas barras, aos gritos. Um coelho aqui, outro
ali. Talvez fosse um zoológico.

O lugar não combinava com a imagem que tinha de Malcolm. Ele era grande e bronzeado, e a escola
era pequena e desbotada. Ele era notável, e a escola tão humilde. Malcolm merecia coisa melhor. Por
que não queria?

— Desculpe. Está procurando alguém?

Camilla teve um sobressalto e virou-se, trêmula, os olhos arregalados.

— Srta. Simpson!
— Nurjan!

À luz da tarde, Nurjan parecia mais adorável do que nunca, olhos cor de carvão, cílios espessos,
cabelos negros, longos e pesados, e dentes brancos perfeitos.

— Desculpe tê-la assustado. Vejo que não está bem. Posso ajudá-la?

Nurjan estendeu a mão para Camilla, que não pôde evitar encolher-se ao toque da jovem. Não aceitaria
a compaixão dela.

— Seu rosto está pálido. Você deve ter passado por algum choque — continuou Nurjan, preocupada.

Inútil pensar em ver Malcolm agora; não com Nurjan por perto. Não suportava sequer pensar nos dois
juntos. Virou-se, afastando-se da moça. Vacilou e quase caiu.

Nurjan estendeu o braço para segurá-la, mas, mudando de idéia, recuou, dizendo em voz suave:

— Mas que tolice, a minha! Você veio para ver Malcolm, não é mesmo? Pode vir comigo. Sei onde ele
está.

Camilla sentiu que não tinha outra escolha senão segui-la. Nurjan levou-a até uma porta, também
amarela, e, abrindo-a, disse:

— Pode sentar-se aqui. É a sala dos professores.

Camilla ainda estava em pé, embora trêmula. Balbuciou:

— Quero ver... Malcolm.

— Você precisa sentar-se. Está tremendo tanto que mal pode ficar em pé.

— Por favor... deixe-me vê-lo.

Nurjan pegou-a pelo braço e a fez sentar-se no sofá.

— Trarei Malcolm até aqui para você — disse, e saiu, fechando a porta.

Camilla olhou, desesperada, pela sala. Era mobiliada com uma profusão de mesas quebradas e
poltronas sem molas. Por que estava ali? Por que tinha vindo? Outras perguntas lhe vieram a mente, tão
confusas que não conseguia fixar nenhuma delas na memória.

Então, a porta se abriu e Malcolm entrou. Ficou parado no batente, e uma luz iluminava-lhe os cabelos
cor de ouro e sombreava-lhe os olhos azuis.

— Camilla! Por que você está aqui? O que aconteceu? Nurjan disse que a encontrou vagando aí fora...
Camilla? Camilla!

Ela começou a chorar. Soluços fortes subiam-lhe ao peito; lágrimas de terror saíam de seus olhos.

Malcolm aproximou-se e envolveu-a nos braços, dando-lhe o conforto e o calor de que ela precisava.
Camilla escondeu o rosto no ombro dele, chorando alto. Ele lhe acariciou os cabelos, beijou a testa e o
pescoço, tentando acalmá-la.

— Camilla, minha querida, está tudo bem. Eu estou aqui. Veja, está tudo bem.

A certeza de que ele realmente estava ali, abraçando-a com firmeza, acabou com suas resistências, e
ela caiu num pranto sem fim. Agora, não tinha mais que controlar as emoções.

Malcolm fez uso da única maneira que conhecia para acalmá-la. O toque dos lábios dele interrompeu-
lhe os tremores e a histeria e trouxe-lhe de volta o autocontrole.
Sentindo que os músculos tensos dela relaxavam, Malcolm beijou-a nas faces molhadas de lágrimas e
recuou.

Ela o olhou com expressão de gratidão. Diversas vezes tentou falar, mas não conseguiu. Finalmente
disse, com voz trêmula:

— Tentaram me matar...

— Conte-me.

— Atiraram em mim através da janela. Teriam acertado, se eu não tivesse me inclinado para pegar um
papel. Teriam atirado na minha cabeça! — E começou a chorar novamente.

Não soube quanto tempo ele a manteve nos braços, mas, finalmente, suas lágrimas secaram e ela
tomou consciência de que estava salva. Embaraçada, afastou-se dele.

— Sentindo-se melhor?

— Sim. Sinto muito.

— Por quê?

— Sua camisa está ensopada.

Ele riu alto.

— Essa é a coisa menos importante em que posso pensar! Você pode me contar tudo agora?

— Sim.

Vagarosamente, ela contou todos os acontecimentos, fingindo para si mesma que era uma história sem
importância, talvez o enredo de um espetáculo que ela tivesse visto na televisão. Malcolm ouviu sem
interromper, mas seu ar era de preocupação.

— Patrice Desmarets! — disse finalmente, pronunciando o nome com ódio. — Não há desculpas para
aquele homem! Nenhuma desculpa! Não duvido de que é ele o responsável! Não conheço mais
ninguém que seja capaz de matar uma mulher a sangue-frio como ele!

— Talvez ele não pretendesse matar-me e só quisesse me assustar, como nas outras tentativas.

— Camilla, nunca mais tente justificá-lo diante de mim!

Ela encolheu-se toda, e não olhou para ele. Malcolm estaria zangado novamente? Se estivesse, ela não
seria capaz de enfrentar essa ira. Não poderia discutir, nem mesmo chorar, somente morrer, se ele lhe
dissesse alguma palavra de crítica.

— Vou levar você para casa.

— Não, não! A polícia...

— Não vou levá-la para o hotel. Você nunca mais vai voltar para lá. Nós temos duas coisas com que nos
preocupar: a polícia e Patrice. Portanto, você vem para a minha casa. Para ficar.

Ela concordou, feliz. Finalmente iria para um lugar onde estaria em segurança.

— Nurjan! Nurjan! — chamou ele no corredor. A linda morena apareceu. — Você quer uma carona para
casa?

— Não, obrigada. Está uma tarde muito bonita. Prefiro andar.


Nada conversaram enquanto se dirigiam para a casa. Malcolm fizera Camilla deitar-se no banco de trás,
sobre uma pilha de cobertores e a cobrira com outro. Era um longo caminho, mas o percurso pareceu
durar pouco. Ela sentiu que, com ele a seu lado, era impossível ter medo.

Entraram, logo depois, num grande saguão escuro e quente. Camilla sentiu a presença de uma mulher.

— Olga, a Srta. Simpson não está bem. Por favor, conduza-a ao quarto de hóspedes.

A mulher concordou, falando com um forte sotaque escandinavo. Camilla quis chorar quando o braço
protetor de Malcolm abandonou seus ombros e foi substituído por um cobertor. Mas controlou-se. Olga a
levou escada acima e a fez deitar-se e descansar a cabeça em travesseiros macios, coberta por
cobertas quentes. Por um hábito antigo, costume de criança, ela pensou que ainda não estava escuro,
mas o sono a envolveu.

Em algum momento, no meio de seus sonhos nebulosos, Camilla sentiu que alguém entrava no quarto.
Lutou para sair do sono profundo e abrir os olhos para ver quem era, o que estava fazendo e por quê. O
esforço durou apenas alguns segundos. A presença permaneceu e aos poucos ela se sentiu calma e
feliz com aquela proximidade. Continuou a dormir profundamente, enquanto uma caneca com um
líquido fumegante era colocada em sua mesa de cabeceira.

A luz batendo em seu rosto acordou-a, e, enquanto seus olhos se acostumavam a ela, Camilla olhou ao
redor. Sentiu a cabeça girar, mas lembrou-se de todos os acontecimentos do dia anterior. Aí deu um
grito.

A porta se abriu e uma pequena mulher, bronzeada e enrugada, correu para perto dela.

— Srta. Simpson! Finalmente acordou!

— Foi a senhora que me colocou na cama ontem à noite, não? Olga, não é mesmo?

— Sim, isso mesmo.

— A senhora é sueca?

— Não. Norueguesa. Muitas pessoas cometem esse mesmo erro. Pensam que só existe a Suécia na
Escandinávia. Mas a senhorita deve estar com muita fome, pois não jantou. Vou preparar-lhe um café da
manhã tão delicioso que vai sentir água na boca sempre que se lembrar dele.

— A senhora estava esperando que eu acordasse?

— Eu estava tricotando, do lado de fora do quarto.

Camilla gostou da velha senhora. Recostou-se na cama e contemplou o quarto. O chão era coberto por
um requintado tapete de lã de cinco centímetros de espessura, amarelo, sombreado de bege. As
paredes eram de um marrom cor de terra e o teto marfim, tudo complementado com cortinas de seda
verde-esmeralda. Nas paredes, quadros europeus emoldurados com gosto e brilhantes tapeçarias
chinesas com cores de pavão. Uma caixa de vidro na parede mais distante chamou-lhe a atenção:
abrigava uma aquarela chinesa de rara simplicidade, que retratava dois homens velhos numa montanha
nebulosa. Havia uma lareira vazia com uma grelha e acessórios de ferro lavrado, encimada por uma
cornija de mármore; e uma outra peça de artesanato oriental, um biombo com um dragão de ferro
bordado. Na cornija da lareira havia um leopardo de jade e um relógio de ouro. Existiam poucas peças
de mobiliário: uma estante de nogueira, um guarda-roupa, uma escrivaninha de linhas retas, uma cama
de álamo e uma mesa de cabeceira.

O que esse quarto tinha a ver com o jipe e essa casa com a humilde escola amarela? Como teria a
norueguesa Olga vindo tomar conta da casa de um homem que freqüentemente se vestia como um
afegão? Isso a fez pensar novamente em sua própria situação: uma jovem desconhecida na vida dele.
Malcolm era um intelectual, um escritor, um professor, e, além disso, como só agora percebia, também
um homem rico. E, com sua fortuna e seu talento, estava escondido no Afeganistão, fazendo palestras
numa Universidade menor e lecionando numa escola modesta. Quanto havia ainda para saber sobre
esse homem! Cheio de contradições, isso ele era: às vezes amigável, às vezes frio e taciturno,
temperamental. Ela sentiu um certo desespero ao pensar que nunca o entenderia, nunca. E ele
entendia tão facilmente cada pensamento seu...

Essas cogitações foram interrompidas pelo retorno de Olga, que carregava uma bandeja contendo uma
comida de cheiro delicioso. Olga sentou-se ao pé da cama, preparada para um bate-papo
aconchegante.

Na realidade, a conversa da velha senhora não exigia do ouvinte nada mais do que um ouvido atento.
Ela tagarelou alegremente sobre a noite anterior. Camilla ficou sabendo que tinha passado uma noite
agitada, virando-se e gemendo, e uma vez até gritara. Apesar de essa agitação não ter impedido que
ela dormisse, os outros ocupantes da casa ficaram acordados.

— O Sr. Armstrong estava muito preocupado. Ele lhe trouxe uma bebida quente no meio da noite. Aí
está! Você nem tocou nela!

— Você quer dizer isto aqui? — perguntou Camilla, pegando a caneca que estava sobre a mesa.

— Sim, mas agora está gelada. Deixe-me levá-la.

Camilla devorou a comida e, surpresa, percebeu que era uma hora da tarde.

— Mas por que você me deixou dormir até tão tarde?

— Era impossível acordá-la.

— Onde está o Sr. Armstrong?

— Foi à escola. Esperou bastante tempo, mas tem muito trabalho. Vai voltar à noite.

— Oh, não! Eu não posso esperar! Diga a ele para me telefonar no hotel.

— Por quê?

Camilla foi tomada de surpresa pela pergunta e perdeu vários segundos pensando. Olga entendeu sua
intenção, riu e disse:

— Vejo que a senhorita acha que deve voltar ao hotel. Mas nem pense nisso. Não é seguro. O Sr.
Armstrong disse que a senhorita não deve ir. Que deve ficar aqui.

— Mas... mas minhas roupas estão no hotel...

— Ali Shah as trouxe — respondeu Olga, entregando a Camilla uma de suas malas.

Abrindo-a, ela retirou os shorts de algodão branco e procurou uma camiseta amarela sem mangas.
Calçando sandálias, deixou o quarto, decidida a achar o jardim que tinha visto da janela.

A escada parecia interminável. A casa era imensa, maior do que qualquer outra que Camilla já tinha
visto em Cabul, e ela se perguntou se os jardins seriam grandes, também. Finalmente encontrou três
pequenos degraus, desceu-os e, empurrando uma porta, viu-se sob a gloriosa luz do sol.
CAPÍTULO XII

Essa porta quase não deve ser usada, pensou Camilla, pois a parte do jardim na qual ela se encontrava
estava coberta de espessa vegetação, e as plantas obstruíam o caminho. Apanhando uma braçada de
madressilvas, ela parou na orla de uma clareira selvagem.

Na realidade, parecia mais uma clareira de floresta de fadas e duendes do que um típico jardim
doméstico. Verde era a cor predominante, em todas as nuanças e tons: ervilha, musgo, esmeralda... A
grama era espessa e o terreno irregular, em alguns lugares pedregoso e amarelado, como se outrora ali
tivesse existido um jardim de pedras. Uma profusão de rosas coloridas e outras flores que ela não
conhecia pontilhavam o jardim. Atrás delas, as árvores formavam um anel que circundava os arbustos e
as paredes.

Um riacho corria através desse imenso jardim e Camilla sentou-se à sombra fresca que alguns
salgueiros ofereciam, ouvindo o cantar dos pássaros. As borboletas voavam de flor em flor e as abelhas
zumbiam no ar perfumado. Um pombo empoleirou-se numa tamargueira.

Camilla mal podia acreditar naquilo. Sentia-se como Alice no País das Maravilhas, como se tivesse
caído em um poço escuro e chegado a um lugar onde tudo era às avessas. Será que esse jardim
selvagem também refletia a personalidade de Malcolm? De repente, um filhote de macaco, com orelhas
e olhos enormes, aninhou-se nela, como se lhe desejasse boas-vindas.

Certamente, alguma fada madrinha a tinha confundido com Cinderela e, usando uma varinha de
condão, transportara-a, durante o sono, da realidade desse mundo para um parque encantado, do
barulho à paz, do medo ao descanso. Ela prendeu a respiração e esperou que o relógio batesse meia-
noite...

Decidiu explorar o jardim, com o macaquinho ao lado. Apanhando outra braçada de madressilvas,
encontrou um caminho calçado com lajes. Seguindo-o, não muito longe dali, chegou a um pequeno
quiosque de madeira, mobiliado com mesa e duas cadeiras. Entrou e sentou-se, pensativa.

Seria um lugar encantador para tomar o chá da tarde, especialmente na primavera. Precisava de muitos
consertos, mas paciência e talento poderiam restaurá-lo. Talvez Malcolm lesse ali ou trabalhasse,
colocando a máquina de escrever sobre a mesa. Ou talvez tivesse encontros ali. Com quem? Johnny e
Janet? Ali Shah? Nurjan?

A inexplicável tristeza que sentiu a esse pensamento foi dissipada pela voz de Olga.

— Srta. Simpson! Por que não me disse que viria para o jardim? Tive que correr até aqui para dizer-lhe
que a chamam ao telefone!

— Eu realmente sinto muito. Quem é?

— O Sr. Hagan, e parecia preocupado.

— Oh, Johnny! Ele ainda está ao telefone?

— Sim. Vá rápido.

Camilla correu para a casa, as pernas esguias como as de uma gazela. Não tinha a menor idéia de
onde ficava o telefone mas, felizmente, achou-o depois de alguns minutos de procura.

— Johnny, alô! Desculpe tê-lo feito esperar!

— Tudo bem, menina. Eu lhe mando a conta no Natal.

— Johnny, é tão bom ouvir sua voz novamente!

— Faz só dois dias! Menina, você tem memória curta!

— Dois dias! Parecem dois anos! Uma outra vida!

— Poderia ter sido, se Alá não tivesse providencialmente feito você se inclinar naquele momento.
Desculpe-me. Talvez não devesse brincar com isso.

— Não, está tudo bem. Eu não quero lembrar mas, se for preciso, é melhor que seja assim, rindo. Como
você soube?

— Malcolm me telefonou.

— Telefonou? Quando?

— A noite passada, menina! Você não se lembra? Eu fiquei com medo de que você pudesse ter um
choque. Malcolm pediu-me para ir aí. Não se lembra de ter falado comigo?

— Não, eu não me lembro de nada, exceto de que Malcolm me levou uma bebida.

— Sim, fui eu quem o aconselhou a dá-la a você, para fazê-la dormir bem. Você a tomou?

— Não, ele não me acordou. Só deixou na mesa. Johnny eu poderia ir até sua casa, para visitá-lo? —
perguntou, e ficou surpresa com a recusa imediata.

— Não vá a lugar nenhum, Camilla. O hotel está cheio de policiais. Você não vai querer cair nas mãos
deles, vai? A Embaixada também está interessada. E nunca se sabe se aquele franco-atirador irá atacar
de novo. Você sabe por que ele fez aquilo?

— Não — mentiu ela, estremecendo —, eu não sei. Se alguém perguntar a você, diga que não havia
nenhuma razão. — Tentou brincar com o assunto. — Eu devo ser a mulher mais procurada de Cabul.
Você ou Janet podem vir aqui?

— Penso que não: sinto muito. Estou sem tempo livre e Janet não está se sentindo muito bem. Quero
que ela descanse. Além disso, podemos ser seguidos. Ontem, quando descobriram que você tinha
desaparecido, eles pensaram que estivesse conosco; a polícia e todo mundo.

— Por que eles não pensariam que eu estava aqui? Todo mundo sabe que Malcolm tem me ajudado
muito.

— Eu não sei por quê... Houve um rumor de que você teria fugido com os Kushis.

De repente, ela sentiu-se cansada. Embora gostasse dele, não queria mais conversar.

— Obrigada por telefonar, Johnny. Suponho que tenha que voltar ao trabalho.

— Isso é uma despedida?

— A minha cabeça dói.

— Está bem. Deixei alguns comprimidos na cozinha. Está escrito “comprimidos para Camilla”. Deve ser
fácil encontrá-los.

— Sim, obrigada, Johnny. Mande um beijo para Janet.


Olga apareceu

— A senhorita não me parece nada bem!

— Sim, acho que vou me deitar.

Camilla foi para o quarto e deitou-se. Como não queria dormir à custa de comprimidos, não os tomou,
mas a cabeça lhe doía muito. Depois de um cochilo, acordou sobressaltada, ouvindo uma voz masculina
no andar debaixo.

Malcolm!, pensou, exaltada. Pulou da cama e correu para a porta.

Graças a Deus ele está aqui!, disse a si mesma. Talvez agora possa me explicar o que está
acontecendo e conseguir um lugar em outro hotel. Tenho certeza de que ele entenderá que não posso
ficar aqui, sob nenhuma hipótese...

Ela desceu um lance da escada e suas esperanças se desvaneceram. Reconheceu o sotaque musical
da voz, mas não era aquela que tanto esperava e desejava ouvir.

Finalmente chegou a uma plataforma entre dois lances e olhou para baixo, para um chão de mármore
branco e preto. Ali Shah, de chapéu na mão, discutia com Olga.

— Salaam aleikon. Espero que a senhorita esteja bem.

— Sim, estou. E você?

— A Srta. Larssen me dizia que você estava dormindo e não deveria ser incomodada.

— Bem, eu estava mesmo, mas agora já acordei. A melhor maneira de acordar uma pessoa é discutir
em voz alta sobre se isso deve ser feito.

Olga afastou-se, aborrecida.

Camilla olhou na direção que a velha senhora tinha tomado, para certificar-se de que ela havia mesmo
ido, e, então, chegou mais perto de Ali Shah.

— Escute, Ali Shah, a Srta. Larssen não vai me deixar sair dessa casa. Acha que não estarei segura se
for para outro hotel. Diz que Malcolm quer que eu fique aqui. É claro que isso é ridículo!

Não podia dizer-lhe que se sentia perturbada por viver debaixo do mesmo teto do homem que tanto
desejava. Um homem que estava envolvido com outra mulher... Era melhor arriscar ir para outro lugar
do que submeter seu coração a tanto sofrimento.

— Malcolm está na escola, agora. Eu trouxe sua bagagem.

— Sim, eu sei. Foi muita gentileza de sua parte, mas não era necessário. O que quero que você faça é
que me leve até a escola, para ver Malcolm. Então poderei explicar-lhe toda essa confusão. Ou, se você
achar que estará muito ocupado, talvez possa levar-me de volta à cidade. Ainda não me sinto forte o
suficiente para pegar um táxi.

Ela notou que Ali Shah apertava o chapéu nas mãos, com uma expressão preocupada, e se dirigia à
porta.

— Ali Shah... — começou ela, mas ele a interrompeu.

— Venha aqui e sente-se, sim?

Ele já tinha aberto a porta dupla de madeira e ela correu atrás dele, aborrecida.

— Ali Shah? Ali Shah!


Parou ao ver o aposento onde entrara. Já tinha visto muitas coisas bonitas na casa de Malcolm e muitas
coisas surpreendentes, mas nada igual àquela sala. As portas maciças abriam-se para um espaçoso e
quase suntuoso salão, e dos umbrais a visão era esplêndida. Paredes creme, com longas cortinas,
mobília de couro marrom-escuro, com almofadas bordadas. A lareira e sua luxuosa cornija eram duas
vezes maiores que as de seu quarto, de um mármore luminoso. Uma legião de estatuetas de mármore
representando animais povoava a borda da janela e papoulas vicejavam num vaso de porcelana de
Sèvres. Só havia quadros em uma parede; as outras eram cobertas do teto ao chão com prateleiras de
livros de todos os tipos: de bolso, de capa dura, encadernados com couro, pequenos e grandes, finos e
grossos. Todos pareciam ter sido lidos e alguns estavam um pouco desalinhados dos lugares, com
papéis brancos saindo dos topos. Essa era, definitivamente, a sala de Malcolm.

— Malcolm é uma pessoa rica, não é? — perguntou ela, com um traço de admiração na voz. — Nunca
vi nada parecido com esta sala e esta casa!

— Sim, ele é extremamente rico. Tão rico que não precisa trabalhar para viver.

Camilla se surpreendia cada vez mais com todas as novas informações sobre Malcolm. Quanta coisa
haveria ainda para saber sobre o homem que ocupava sua mente todo o tempo? Quanta coisa ainda iria
surpreendê-la?

Ali estava a pessoa certa para responder a suas perguntas. Certamente Ali Shah seria capaz de
esclarecer o enigma para ela.

— Há quanto tempo Malcolm vive no Afeganistão?

— Ele sempre viveu aqui. Você não sabia disso? Ele esteve na Universidade na Inglaterra por oito, nove
anos, e, é claro, foi mandado para o internato lá...

— Você quer dizer que ele nasceu aqui? Eu pensei que Malcolm fosse inglês...

— E é. Você não sabe nada da história dele? Eu pensei que...

— Malcolm quase não fala sobre si mesmo. Tenho certeza de que nem mesmo os Hagan conhecem o
passado dele. Quanto a mim, sempre pensei que ele fosse um professor inglês culto mas pobre, que
tinha vindo para cá divulgar seus conhecimentos e em busca de aventuras. Nunca imaginei nada como
essa casa tão valiosa. Estou totalmente perdida!

Ali Shah notou a ansiedade no olhar de Camilla, a sede de saber mais sobre Malcolm, e sorriu.

— A história dele é muito interessante. Queira sentar-se.

Camilla sentou-se. Estava ávida por saber de tudo.

— Para começar, temos que voltar no tempo, por várias gerações, para o pai do pai do pai. Espere, eu
me enganei, temos que voltar atrás quatro gerações; para o tataravô de Malcolm, o tenente Armstrong,
o honrável tenente Charles Armstrong. Ele era um oficial do Exército Britânico na Índia. Você sabe que
esse exército invadiu o Afeganistão em 1838, capturou Cabul e recolocou no poder o rei que tínhamos
deposto, o xá Shoja; mas, quatro anos depois, nós nos rebelamos e expulsamos os britânicos da nossa
terra. Quase todo o exército foi destruído pelas armas das nossas tribos e pela intensidade do inverno
nas altas montanhas. Muitos oficiais estavam com suas mulheres e crianças. Assim foi com o tenente
Charles. A mulher dele se chamava Jemimah, você pode vê-la ali. — E apontou para a cornija.

Camilla levantou-se e pegou o porta-retratos; nele, numa fotografia já amarelada pelo tempo, viu um
rosto feminino, de cabelos dourados e com olhos azuis, como os de Malcolm.

— Você pode notar que a beleza dela era do tipo que fascina um afegão. Quando seu marido morreu,
foi capturada por um chefe de tribo, um príncipe Pathan, que foi bom para ela e para seu filho. Esse
príncipe era um homem esclarecido e, quando o tratado com a rainha Vitória foi assinado, insistiu que o
filho adotivo fosse estudar numa Universidade britânica e aprendesse a ser inglês.

— Vejo que os traços fisionômicos permaneceram na família. Traços bem impressionantes, não?

— Sim. É porque os Armstrong sempre se casam com mulheres inglesas. Estranha, essa vida em dois
mundos. Os filhos vão para a Inglaterra, para serem educados, e se casam com mulheres inglesas, mas
sempre voltam para casa, quero dizer, para o Afeganistão. Sabe, acho que o sangue deles é inglês, mas
o coração é afegão.

— Continue a história do bisavô de Malcolm.

— Ele foi para a Índia e fez uma fortuna em ouro, marfim e especiarias. Então casou-se com uma jovem
missionária inglesa, que tinha conhecido em Karachi, e voltou para cá, onde construiu esta casa. Ele
nunca mais deixou Cabul, mas, mais tarde, já em idade avançada, teve um filho...

— O avô de Malcolm.

— Sim. O avô de Malcolm foi para o internato e para a Universidade na Inglaterra e se tornou um
arqueólogo famoso. Casou-se com sua jovem assistente e retornaram a Cabul, para esta casa, onde
esse Armstrong escreveu todos os seus livros. O filho deles também estudou na Inglaterra e, na
Segunda Guerra Mundial, juntou-se à força aérea e recebeu treinamento como piloto de combate.
Segundo Malcolm, ele voou mais que qualquer outro e, perto do fim da guerra, foi promovido ao cargo
de coronel.

— Um homem de coragem.

— A mulher dele também era corajosa. A mãe de Malcolm foi uma enfermeira voluntária na guerra e
serviu durante algum tempo na frente de batalha. Quando eles se casaram e voltaram a Cabul, o
coronel Armstrong tornou-se conselheiro do Exército Afegão.

— E agora, Malcolm. Ele é o próximo da história! Continue, Ali Shah.

— Ah, mas você conhece a história dele. A mesma educação, o romance que escreveu, a história que
ensina. Ele não precisa trabalhar para viver, como você pode perceber, mas adora ensinar e adora o
Afeganistão. Por isso voltou para cá, para ensinar na Universidade.

— Eu o admiro por isso. E admiro toda a família dele. Nunca pensei que fosse tão interessante. Explica
muito sobre ele. Da tataravó Jemimah ele herdou os traços, do bisavô, a riqueza, do avô, a inteligência e
do pai, a coragem. Talvez a arrogância também.

Ali Shah tossiu. Ela viu que ele estava querendo dizer alguma coisa, mas parecia ter dificuldade em
fazê-lo.

— O que é, Ali Shah?

— Você o ama muito, não ama?

A resposta veio clara, doce, fácil, quatro palavrinhas perfeitas em sua simplicidade.

— Sim, eu o amo.

— Eu pensei durante muito tempo que era assim, mas, quando a observei hoje, tive certeza.

Isso era tudo que Ali Shah se aventuraria a dizer sobre o assunto e Camilla se sentia grata por isso. Ele
não lhe desejaria felicidades, pois sabia que seu amor por Malcolm era sem esperanças.

Pela primeira vez ela pôde enfrentar a verdade e admitir isso para si mesma. Não estava surpresa por
ter revelado seu amor com tanta facilidade; já sabia que, se alguém fizesse alguma pergunta a esse
respeito, não seria capaz de negar. Afinal, amava Malcolm.

— Você sabe que Malcolm ainda não cumpriu a última parte da tradição dos Armstrong?

O rosto forte e bronzeado de Malcolm, o maxilar quadrado e masculino, os lábios sensuais, duros e
deliciosos, os olhos às vezes brilhantes como o dia claro, às vezes enevoados e tempestuosos, os
vastos cabelos loiros, isso tudo estava nos olhos dela quando se virou para Ali Shah.

— Como assim?

— Quero dizer que ele ainda não trouxe para casa uma noiva inglesa.

Uma noiva inglesa! Que maravilha seria casar-se com Malcolm! Era um sonho perigoso, e ela sabia que
tinha que pô-lo de lado imediatamente.

— Eu não acho que haja muita chance para isso, você acha? Ele está aqui para ficar. Achará sua noiva
no Afeganistão. Ele... ele está na escola hoje, não está? Trabalhando, como sempre.

— Sim, geralmente fica lá quando não está escrevendo ou dando palestras. Malcolm orienta os alunos
no verão. Acho que está orientando Nurjan, hoje. Ele honra nossa família com isso. Você sabia que
Nurjan é minha prima, não sabia?

— Não, não sabia. Mas não me surpreendo. Malcolm gosta muito de você, e sem dúvida a conheceu
por seu intermédio, não?

— Sim. Talvez ele não lhe tenha dito que Nurjan e eu estávamos noivos.

— O quê?

— Mas Nurjan mudou de idéia. Eu admito que vai contra as tradições de nossa terra, mas, embora ela e
eu sejamos afegãos, temos consciência de que existe outro mundo além de nossa pátria e que
precisamos mudar. Eu me senti obrigado a desistir de nosso noivado. Quando soube quais eram os
desejos de Nurjan, lutei por eles. Só quero que ela seja feliz. Assim, eu a encorajei.

— Você a encorajou? Você é muito nobre, Ali Shah, mas... não a amava?

— Os casamentos aqui são arranjados dentro de princípios muito diferentes do que os do Ocidente. O
amor não é levado em consideração. Espera-se que venha depois do casamento. Você deveria entender
os motivos de Nurjan, porque, afinal de contas, vem de um país onde as mulheres já são liberadas.
Entretanto, devo confessar que gosto muito mais de minha prima do que de qualquer outra mulher que
tenha conhecido.

Camilla compreendeu que ele devia ter feito um grande sacrifício para desistir de Nurjan, de quem
gostava muito. Tentou conter as lágrimas. Se pelo menos conseguisse ser tão altruísta quanto Ali Shah!
Mas só conseguia sentir dor e amargura. Não podia mais falar sobre o assunto. Levantou a mão, num
gesto desesperado, e Ali Shah ficou quieto.

Mas não adiantou. Um nome ressoava em seus ouvidos como o eco das batidas de seu coração:
Malcolm, Malcolm... Malcolm, que agora estava com Nurjan, ensinando-a, abraçando-a, beijando-a,
acariciando-a do mesmo modo que tinha abraçado e beijado ela própria. A visão era insuportável e uma
lágrima desceu pelo rosto de Camilla, depois outra, mais outra, até que ela começou a soluçar.

— Por favor, por favor, não chore!

Ela tentou se controlar.

— Ali Shah, você tem que me levar de volta ao centro da cidade, para que eu possa achar um hotel
onde ficar! Sabe que não posso ficar aqui. É impossível! É... impróprio! Por favor, leve-me de volta!
— Não, não posso.

— Por favor, Ali Shah! Eu não posso mais ficar aqui!

— Por que não? Não é impróprio. Olga está aqui. Ela tomará conta de você. De qualquer forma, você
tem que ficar aqui. Eu sinto muito.

— Por quê? Por que tenho que ficar aqui? Porque Malcolm decidiu assim? Todo mundo só faz o que ele
manda! Todos se submetem aos desejos dele! Eu tenho que achar outro hotel!

— Não. Quando Malcolm diz que uma coisa tem que ser feita, nós a fazemos, porque geralmente ele
está certo. Você não pode voltar para a cidade porque é muito perigoso. A polícia a está procurando.

— Eu sei. Johnny me contou.

— E também há esse homem que atirou. Ele vai tentar de novo. Aqui você estará a salvo.

— Por que eu estaria mais segura aqui do que em qualquer outro lugar? Considerando que Malcolm
tem estado sempre comigo, este seria um dos primeiros lugares a ser investigado por alguém que
quisesse me encontrar. Você mesmo, Ali Shah, poderia enfrentar muitos problemas, se soubessem que
veio me ver.

— Meu primo é o segundo comandante da força policial de Cabul.

— Parece que todo mundo é seu parente, Ali Shah.

— Existem guardas da polícia em volta desta casa. Meu primo mandou-me aqui. Entenda, não para
tomar conta de você, mas para proteger seu amigo Armstrong do homem que a atacou, porque é fato
sabido que você e Malcolm estão juntos nessa história. Entretanto, enquanto meu primo for o segundo
comandante da força policial de Cabul, você estará segura aqui.

Então era isso que Johnny tinha relutado em lhe contar! Camilla foi ate a janela e vislumbrou dois
oficiais em uniforme cinzento, além do muro. Ela estava presa numa armadilha.

— Não pense mais nisso. Inshallah! Deixe isso com Alá. Eu tenho que ir para casa agora. — Estendeu
a mão, que envolvia alguma coisa bem pequena. — I az shumas.

— Para mim? O que é?

— Tohfa ast. Um presente para memsahib.

— O quê? Um presente para mim. É muito gentil, mas...

— No nosso país é considerado um ato de inimizade recusar um presente.

— Você sabe que eu não sou sua inimiga, Ali Shah.

— É o presente de um amigo. De um bom amigo para uma mulher corajosa.

— Oh, eu...

— Quando Malcolm me contou o que havia acontecido, eu fiquei muito perturbado, pensando que você
poderia ter sido morta. Mas Alá sabe que é corajosa, eu desejo honrar a coragem dessa mulher, que
também é minha amiga.

Camilla estava profundamente emocionada com a homenagem.

— Então eu saí e comprei este presente para ela, e espero que ela o aceite.

Camilla viu que não havia como recusar um presente oferecido tão galantemente.
— Eu o aceitarei com satisfação.

Pegando a pequena caixa, ela a abriu.

De um ninho de algodão, puxou uma comprida corrente de prata, no fim da qual havia uma pequena
figura de escorpião azul, trabalhada em fina lazurita, engastada em prata, com dois olhos de rubi. Era
algo gracioso e delicado.

— Muito obrigada! Muito obrigada mesmo, Ali Shah! Não poderia ser mais perfeito! Será a melhor
lembrança que levarei daqui.

Num impulso de pura afeição, ela se inclinou e beijou o embaraçado Ali Shah no rosto.

Naquele momento, percebeu que alguém abrira a porta silenciosamente e os observava. Terminou o
beijo mecanicamente. Ali Shah também percebeu e recuou rápido.

A porta estava fechada atrás de olhos azuis flamejantes e lábios lívidos. Versos de um poeta há muito
tempo esquecido vieram à mente de Camilla, e ela os disse, quase sem querer:

— “Ele entrou, mas entrou cheio de cólera.

Régia a sua figura majestosa, uma vasta sombra

Em meio ao seu próprio resplendor”.

— Citar Keats, Camilla, não adianta nada, embora eu ache que não era poesia o que você tinha em
mente. A não ser, talvez, alguma demonstração prática da Arte de Amar, de Ovídio.

— Como você se atreve a fazer essas insinuações?

— Eu só constatei o óbvio.

De que adiantaria discutir? Desanimada, ela se retirou da sala.

Já estava no meio da escada quando percebeu que esta súbita saída era uma declaração de culpa,
culpa de algo que ela não podia admitir. Como ele se atrevia a interpretar de forma errada um inocente
beijo de agradecimento? E se fosse mais do que isso, o que significaria para ele? Raiva e ciúmes
tomaram conta dela e lhe deram coragem para voltar.

Mas, bem antes de chegar à biblioteca, Camilla ouviu uma discussão em altos brados. Podia adivinhar o
motivo. Sentiu-se sem forças para suportar aquela cena e resolveu esperar.

Ficou numa saleta próxima, mas nada pôde ouvir. Muito tempo depois, olhou pela janela e viu que o
carro esporte de Ali Shah não estava mais lá. Decidiu, então, voltar para a biblioteca.

Malcolm estava sentado à mesa, de costas para ela, com uma pilha de livros à frente. Ela entrou.

— Malcolm?

Ele não se virou, mas disse:

— Já não lhe disseram que não gosto de ser perturbado quando estou trabalhando?

— Sinto muito, mas acho importante que conversemos. Quero que explique o que aconteceu.

— Você não está em posição de me dizer o que é importante e o que não é.

— Acho importante que você não fique com uma impressão errada sobre o que viu.

— É um pouco tarde para isso, não acha?


Ela virou-se e foi para seu quarto, com lágrimas nos olhos. Ele estava certo; era tarde demais.

Quanto tempo vou ter que ficar ainda na casa desse homem?, perguntou-se. Ele não me quer aqui. Mas
por que tenho que ficar? Se Ali Shah se recusa a me levar, posso pegar um táxi. Tenho dinheiro
suficiente e não preciso ficar aqui como prisioneira.

A decisão parecia excelente. Camilla jogou algumas roupas na mala e se preparou para partir. Parou
para olhar a paisagem da janela, perdida em pensamentos, absorvendo o encanto selvagem daquele
jardim.

Seu devaneio foi interrompido por Olga, que entrou no quarto.

— O Sr. Armstrong pede sua presença no jantar.

— Devo me vestir a rigor? — respondeu Camilla, irritada com o tom de crítica na voz de Olga, mas a
mulher já tinha saído.

Hesitou por um momento, decidindo se deveria ir ou não. Estava com fome e não poderia fugir agora,
pois ele a esperava para jantar. Com dor no coração, pensou que aquela seria a última oportunidade de
vê-lo. Quando deixasse a casa, à noite, nunca mais o veria.

O pensamento era assustador e triste. Durante todo aquele dia, havia esquecido o motivo pelo qual
viera ao Afeganistão. Não tivera mais nada na mente, a não ser Malcolm, a casa dele, seu amor por ele.

Bem, essa é a minha última oportunidade de acertar as coisas antes de partir... para sempre, pensou, e
dirigiu-se para a sala de jantar.

A grandiosidade do aposento a deixou atônita. O chão também era de mármore branco e preto, coberto
por um enorme tapete vermelho. Paredes creme, cortinas vermelhas, uma mesa comprida e cadeiras de
madeira polida completavam a decoração. Malcolm estava sentado a uma das pontas da mesa e um
lugar à sua direita estava arrumado. Ela sentou-se, com toda a graça que pôde simular.

— Fico contente por você ter vindo — disse ele friamente.

— Eu sempre janto a esta hora — disse.

Não queria que a última noite deles fosse assim. Estavam quietos, como se fossem estranhos. Ele
estava de mau humor e ela sentia-se mal ao pensar que poderia ser a causadora disso. Perdendo o
apetite, afastou o prato.

— Coma! — ordenou ele, e ela obedeceu. Mas a comida embrulhava-lhe o estômago.

A sobremesa e o café foram servidos e Camilla ainda não tinha dito uma só palavra. Seria aquela
alguma forma de punição? Finalmente, ele se recostou na cadeira e disse:

— Há uma coisa que quero lhe dizer. Não gosto que seduzam meus amigos em minha própria casa.

— Seduzir!!!

— Eu não posso acreditar no seu desconhecimento do caráter afegão, pois está aqui há tempo
suficiente para conhecê-lo. Portanto, suas explicações de nada adiantarão. Não sei o que você tinha em
mente ao usar uma roupa tão... tão provocante. Felizmente, parece que interrompi a cena em minha
sala bem a tempo.

— Ali Shah me deu um presente! E eu estava agradecendo a ele por isso! Além do mais, sempre uso
shorts em dias quentes, na Inglaterra.

— Você sabe que ele não está acostumado a isso.


— Era como eu estava vestida quando ele chegou. Pensei que ele fosse... — Interrompeu-se. Malcolm
não estava disposto a ouvi-la. Mas que direito tinha ele de questionar suas ações? Ela praticamente
gritou: — Você não tem nada a ver com isso! Se havia alguma coisa naquilo, e não havia, nós somos
dois adultos e sabemos o que fazemos. O que você tem a ver com isso?

— Mas é claro que eu tenho! Ele é meu melhor amigo! Como você acha que eu me sinto? De qualquer
forma, não quero mais discutir esse assunto.

— Oh, não! Você não pode me dispensar assim! Nós vamos continuar discutindo, sim! Vamos
desvendar sua hipocrisia até as raízes! Como se atreve a ficar aí e me criticar por um inocente beijo de
agradecimento, quando fez coisas muito piores? Como pode ficar aí de cara limpa e chamar Ali Shah de
seu melhor amigo? Como pode? Você, que o enganou da pior maneira possível? Você, que roubou a
noiva dele?

— Quem lhe disse isso?

— O próprio Ali Shah, seu melhor amigo!

— Eu não acredito. Você deve ter entendido mal o que ele disse.

— Mas é claro como água! Ele amava Nurjan e queria se casar, mas você apareceu e ela o abandonou.
E ele foi altruísta o suficiente para colocar a felicidade dela na frente de qualquer sentimento, costume
ou tradição!

— Acho que posso imaginar como sua imaginação fértil desenvolveu toda essa história ridícula. É bem
óbvio o que você sente por Ali Shah e por mim. Então decidiu reescrever a história, colocando-o como o
herói sacrificado e a mim como o vilão. Deixe-me colocar as coisas em seus devidos lugares, minha
cara. É verdade que Ali Shah e Nurjan foram noivos. Mas Nurjan é uma jovem brilhante, que teve um
aproveitamento excelente na escola e queria continuar os estudos. O casamento iria pôr fim a esses
sonhos. Então ela teve o bom senso de confiar em Ali Shah. E ele, como você disse, gostava demais
dela para impedi-la de seguir em frente. Nessa época eu estava começando a lecionar na Universidade
e ele era meu aluno; trouxe-a até mim e concordei em orientá-la, se ela conseguisse a permissão dos
pais. Foi uma grande batalha que os dois enfrentaram, mas finalmente as famílias cederam, embora não
gostassem e ainda não gostem da situação. Mesmo assim, orientei Nurjan por dois anos e ela foi
recompensada com uma bolsa de estudos para a Universidade. Eu pensei que você soubesse disso. —
Como ela não dissesse nada, Malcolm continuou: — É essa a história, em resumo. Ao longo dos anos,
meus sentimentos em relação a Nurjan de fato mudaram! Agora não sou apenas o tutor dela; também
sou seu amigo e, espero, confidente. Pelo menos acho que fiz você entender uma coisa: não pretendo
me casar com Nurjan.

Camilla olhava fixamente para ele, os pensamentos voando. Sim, agora percebia que tinha tirado
conclusões, precipitadas. Mas não podia esquecer que os vira juntos, beijando-se com a familiaridade
de amantes. Seria incrivelmente ingênua se acreditasse que eles eram apenas “amigos”, como Malcolm
tentava fazer com que ela acreditasse. Talvez ele e Nurjan fossem obrigados a manter sua intimidade
em segredo, para poupar Ali Shah. Camilla só podia fazer suposições. Mas o assunto era importante
demais para que ela engolisse assim tão facilmente a versão de Malcolm.

— Se você não pensa em se casar com Nurjan, suas intenções são ainda menos louváveis do que eu
pensava. Como posso acreditar em sua explicação, quando sei que você nada mais é do que um
mentiroso, um hipócrita?

— Devo fazer a mesma pergunta. Espera mesmo que eu acredite na sua explicação, quando sei que
você é apenas uma sedutora vulgar?

Nenhuma outra acusação estaria mais longe da verdade. Mas, se ele pensava assim, que chances teria
ela de provar o contrário? Mesmo em outras ocasiões, quando ele a chamara de muitas outras coisas,
não a ofendera tanto quanto agora.

Camilla sentiu-se tão desesperada que tudo que queria fazer era revidar a ofensa e feri-lo. Seu coração
batia tão furiosamente que mal podia ouvir sua própria voz. O que foi bom porque, mais tarde, no
escuro, não conseguia imaginar como tinha sido capaz de dizer tais coisas a ele.

— Sim, sim, você está certo! O que posso fazer se gosto de fazer amor?

Malcolm afastou-se dela. Camilla o seguiu, colocando as mãos no braço dele e acariciando-o.
Estranhamente, ele não se moveu, só fixou os olhos nela.

— Não há nada que eu possa fazer. Somos todos escravos dos nossos desejos físicos, não somos?
Mas eu admito isso, Malcolm. É inútil continuar negando. — E aproximou seu corpo do dele, sentindo o
calor que havia entre eles. — Eu já tive tantos homens, Malcolm! Mas você é diferente. O jeito como me
abraça. O jeito como me beija. Você é tão forte, tão atraente!

Estava sendo sincera e isso tornava tudo ainda mais doloroso, pois usava seus sentimentos como se
fossem mentiras. Queria feri-lo tanto quanto ele a tinha ferido.

— Eu quero você, Malcolm — sussurrou, usando todos os truques que ele lhe ensinara: correu a língua
pelo pescoço dele e a ponta dos dedos pela nuca sensível. E sentiu-se amargamente recompensada
pela pronta resposta.

A provocação o tinha excitado e ele a apertou, sussurrando em resposta:

— Eu também a quero, Camilla. Meu Deus, se você soubesse o quanto a desejo! Mas vai saber. Você
vai saber!

Camilla não precisava mais usar nenhum truque. Malcolm não precisava mais de encorajamento. Sua
boca e suas mãos percorriam todos os lugares: o pescoço, as costas, os quadris, os seios sensíveis, os
duros mamilos. A boca ávida de Camilla levantou-se para os lábios dele, enquanto a mãos acariciavam
os loiros cabelos. Flutuando nos braços fortes, embalada pelo êxtase hipnótico dos muitos beijos, por
um momento ela sentiu que tudo era perfeito. De repente, não estava mais representando.

Malcolm a puxava cada vez mais para perto e, com mãos apressadas, abria os botões da blusa. Ela o
ajudou, tão ansiosa quanto ele. A blusa caiu ao chão, revelando-lhe os braços, as costas e o peito nus.
Seu coração batia loucamente quando ele colocou a mão nela, para que o quente prazer desse toque
fluísse por todo o seu corpo.

— Linda, linda — ele murmurava. — Você é tão perfeita, Camilla!

O olhar que ele lhe lançou era de admiração. Os lábios dele percorreram seu pescoço; depois
afundaram-se nos seios dela, enquanto Camilla acariciava a cabeça dourada, suspirando e
murmurando:

— Sim, Malcolm, sim. Eu quero você, muito!

E, quando disse essas palavras, sentiu que nunca tinha desejado qualquer outra coisa no mundo com
tanta intensidade.

O impetuoso puxão que ele deu nos botões do shorts trouxe-a de volta à realidade. Seus olhos abriram-
se com horror quando o viram de joelhos, a cabeça na altura de seus quadris. Então ela compreendeu a
situação: não era mais a sedutora; tinha se transformado na seduzida. E não podia ceder a ele! Oh, ela
o desejava desesperadamente, mas não podia fazer amor agora, com raiva e com uma amarga sede de
vingança. Não; ela o amava demais para concordar com uma vitória tão vazia, uma pseudo-satisfação.
Se não podia ter o amor dele, não iria querer apenas o corpo.

— Não! — gritou veementemente, empurrando-o.


Antes que ele pudesse levantar-se, Camilla já tinha apanhado a blusa, colocando-a em frente ao peito,
e corrido para longe dele.

— Meu Deus, Camilla, o que você quer dizer com “não”? Venha aqui, venha aqui, Camilla! Vamos
terminar o que começamos.

— Fique longe de mim! — A voz dela estava trêmula.

— Mas, querida, foi você quem começou isso! Você me convidou. O que pode tê-la feito mudar de
idéia? — Malcolm chegou mais perto. — Não há necessidade de ficar preocupada ou tímida. Estava
bom... muito bom. Você é tudo o que eu esperava que fosse. E vai me deixar ver o resto, não vai?

Como podia continuar a amá-lo, se ele a tratava assim? Ela só queria se atirar aos pés dele, pedir
perdão e confessar-lhe tudo. Em vez disso, respondeu, com sarcasmo.

— Sim, foi uma boa atuação, não foi? Consegui iludi-lo bem, não é mesmo. Acho que você realmente
acreditou que eu o queria, que eu o amava! — Ela quase engasgou com essas palavras cruéis, que
transformavam seus sentimentos mais profundos numa arma de punição. — Nós todos somos escravos
dos nossos desejos físicos, não somos Malcolm? Eu mal pude acreditar na velocidade com que você se
derreteu em meus braços! E é a mim que você pretende condenar! — Camilla explodiu em lágrimas
quentes, e nem sequer tentou escondê-las. — Você pensou que eu o queria, não pensou? Como é fácil
enganá-lo!

Finalmente, tinha a satisfação de ver no rosto dele uma expressão de surpresa e de amor-próprio ferido.
Era a sua vingança. Assim mesmo, a dor dele a feria mais do que todos os insultos e as falsas
acusações, mais ainda do que os ciúmes. Dirigiu-se a ele, estendendo as mãos. Não queria deixar a
situação como estava.

— Sinto muito! Oh, Malcolm, eu sinto muito. Eu... eu queria ferir você, do mesmo modo como você me
feriu. Está tudo errado. Sinto muito.

Ele virou-se para ela, uma máscara sem emoção.

— Nós fomos dois tolos. Vista-se. Não falaremos novamente sobre isso.

Camilla vestiu a blusa e o observou, com medo até de tossir. Ele estava com o olhar distante.

— Por favor, agora deixe-me.

— Você quer que eu me vá? Eu... eu irei alegremente, porque não posso mais ficar aqui.

— Como quiser. Fique onde quiser, na casa.

— Eu não quis dizer isso! Quero ir para outro hotel!

— Você já deveria ter entendido que isso é impossível. A polícia está de olho em todos os que entram
na casa dos Hagan. Ali Shah e eu fomos seguidos e já fui interrogado duas vezes, até que o primo de
Ali Shah...

— O segundo comandante da força policial...

— O primo de Ali Shah está bloqueando todas as tentativas de expedição de mandado de busca e
colocou guardas para me proteger daquele franco-atirador. Com muito tato, ele não perguntou se você
estava aqui. Os Hagan também já foram procurados, assim como seu querido amigo francês. O atirador
ainda não foi apanhado, e existem outros de igual habilidade pelas redondezas. Dois dos seus amigos
do hotel foram interrogados pela polícia. A Embaixada tem telefonado para cá todos os dias. Acho que
está bem crescidinha para tomar suas próprias decisões. Se quiser ir embora, ou se acha que não
estamos fazendo muito por você, pode ir agora. Eu não a impedirei.
Ela pensou um pouco, mas não tinha escolha.

— Você sabe que eu não posso.

— Sim, eu sei. Estará a salvo aqui, Camilla, a salvo de tudo. Eu prometo.

Camilla sabia o que ele queria dizer com isso. Não haveria repetição do fiasco daquela noite.

— Então... boa-noite — disse ela, e silenciosamente subiu a escada em direção ao quarto.

Sua última tentativa de ganhar um pouco da estima dele tinha resultado em total fracasso. Devia ter
caído ainda mais no conceito daquele homem e agora era forçada a viver na casa dele... Poderia ter
sido um paraíso estar sob o mesmo teto com alguém que ela amava tanto.

Deitada na cama, Camilla analisava os acontecimentos. Será que não haveria fim para seus erros?
Sentia-se como uma atleta, que vacilava e caía pouco antes de atingir a linha de chegada. Toda vez que
estava prestes a atingir o prêmio e conseguir e aprovação dele, seu temperamento a traía. E, cada vez
que ela caía, ficava mais remota a possibilidade de vir a vencer a corrida algum dia.

CAPÍTULO XIII

Camilla passou as duas semanas seguintes trancada nas altas paredes de cimento da casa de Malcolm
e, durante aquele tempo, pôde conhecer melhor o homem que era em parte seu carcereiro e em parte
seu salvador. Na realidade, ela devorava as informações sobre ele e, aos poucos, conseguiu de volta a
confiança de Olga.

O macaquinho Ulysses não a abandonava, e ela adotou o hábito de alimentá-lo. Descobriu, ainda, outro
passatempo: ler. De manhã, ao acordar, encontrava uma pilha de livros colocados ao lado da cama por
Olga ou por Malcolm. E lia todos, encontrando neles grande prazer. Lia-os no jardim. Aliás, era ali que
passava a maior parte do tempo.

Praticamente, só encontrava Malcolm no jantar. Ele estava sempre trabalhando no museu, no estúdio,
na escola ou na Universidade.

Camilla adquiriu o hábito de ignorar as campainhas da porta e do telefone, desde que não tinha
permissão para atendê-las. A princípio elas tocavam continuamente, mesmo durante a noite, até que
Malcolm resolveu desligá-las.

Ela não viu ninguém mais naquelas duas semanas, além de Olga, o macaco Ulysses e, mais raramente,
Malcolm. Estranhamente, estava absorvida no prazer da solidão. Decidiu aproveitá-la ao máximo, já que
sua missão estava adiada até que os ânimos se acalmassem.

E teve um choque quando uma noite, durante o jantar, Malcolm anunciou:

— Amanhã nós vamos ao bazar de roupas usadas, para ver aquele lojista que lhe vendeu o vestido de
Meghan. Ele disse que o havia comprado dos Kushis, não é mesmo? De qual tribo?
— Eu... eu não sei.

— Não se lembra?

— Não é isso. Eu não perguntei.

Ele ficou irritado.

— Você perguntou de onde o Kushi tinha vindo? De que parte do Afeganistão? Por que ele estava
vendendo o vestido? E quem o vendeu? Um homem ou uma mulher? Meu Deus, Camilla, você não
perguntou nada a ele? — Viu lágrimas nos olhos dela. — Não há necessidade de sentir pena de si
mesma. Nós só temos que ir até lá e conversar novamente com ele.

Ela falhara mais uma vez. Malcolm tinha sido frio, seco, e Camilla não o odiava por isso, mas estava
magoada.

O dia seguinte amanheceu ensolarado, quente e sem nuvens, como sempre. Eles se dirigiram para a
cidade em silêncio. Vinte minutos depois, chegavam aos bazares.

— Leve-me à loja onde você encontrou o vestido de sua irmã — pediu Malcolm.

Andaram bastante, passando por várias lojas, até que chegaram a uma esquina onde devia estar a
barraca de vestidos. Mas não estava.

— Eu não entendo! O homem ficava aqui neste local!

— Você tem certeza de que é esse o lugar?

— Sim, tenho.

— Onde estava a barraca?

— Ali. Eu disse a você.

— Mas há uma loja ali.

— Não é a mesma. A outra vendia vestidos. Essa vende sapatos.

— Vou falar com o lojista; talvez ele tenha mudado de ramo. Fique aqui.

Ela o seguiu até os degraus da loja e ficou esperando, ansiosa.

— Salaam aleikom — disse Malcolm, e conversou em persa com o lojista.

Camilla escutava, incapaz de entender o que conversavam. Então Malcolm voltou-se e lhe disse:

— Tudo que ele pôde dizer foi que comprou essa barraca há uma semana. Disse que não sabe por que
o dono a vendeu.

Camilla lutava contra o choro. Viu Malcolm voltar para o carro sem olhar para trás, quando sentiu um
toque no braço. Olhando para baixo, reconheceu o menino que servia na barraca onde tinha comprado
o vestido da irmã.

— Khanum, você procura meu patrão?

— Sim — respondeu ela, surpresa. — Mas por que você está aqui? Como me reconheceu?

— Eu trabalho novo patrão. E nunca esqueço bonita khanum tão generosa.


— Onde está seu antigo patrão? Ele está aqui?

— Não. Foi para Herat.

— Por quê?

— Alguns homens ricos "ofereceu ele" muito dinheiro.

— Que homens ricos?

— Farangi, num carro marrom.

— Você se lembra do vestido que eu comprei? — O menino fez que sim com a cabeça, e ela continuou:
— Sei que ele veio dos Kushis, mas preciso saber de qual tribo. Você sabe? — E pôs uma nota de vinte
afeganes na mão dele.

— Obrigado, khanum. Eu lembro, sim. Era a tribo de Sher Muhammad, perto Bandi Amir. Nós
compramos muito deles. Muitos bonitos!

Camilla lhe ofereceu outra nota de vinte afeganes.

— Você é um bom menino — disse ela, mas a expressão dele tinha mudado e, deixando a nota, ele
fugiu correndo.

Os olhos dele voltavam-se para alguma coisa atrás dela. Quando Camilla se virou, viu um homem
desaparecendo na esquina. Um homem inconfundível: o mesmo que a tinha apunhalado no restaurante
e seguido nesse mesmo bazar, duas semanas antes.

Tremendo, ela voltou para o carro onde Malcolm a esperava. Ele parecia irritado e sequer a olhou.

— Você viu alguma coisa de que gostou? — perguntou, sarcástico.

— Leve-me para casa. — A urgência na voz dela fez com que ele a olhasse, os olhos bem abertos.

— Camilla! O que aconteceu?

— Um dos empregados de Patrice esteve me seguindo. Ele desapareceu quando percebeu que eu o vi,
mas antes dei uma boa olhada nele.

— Como você sabe que é um dos homens de Patrice?

— É o mesmo que me apunhalou no restaurante. — E contou a ele sobre a conversa com o menino.

— Você acha que a informação do garoto é autêntica?

— Por que não deveria ser?

— Bem, ele pode ter sido pago por Patrice para atraí-la para Bandi Amir.

— Não acho. Patrice poderia me matar tanto aqui como lá. De qualquer forma, o menino não teria
fugido apavorado ao ver aquele homem, se tivesse sido contratado por Patrice Desmarets. Acho até que
ele sabe menos do paradeiro de Meghan do que nós, e está esperando que o levemos a ela.

— Mas por que, Camilla? — Malcolm estudava o rosto dela com franca admiração. — Por quê?

— Pensei que ele quisesse me tirar fora do caminho do tráfico de drogas, evitar que eu descobrisse a
verdade a respeito dele. Mas por que iria querer Meghan? — De repente a resposta chegou, clara. —
Porque ela deve ser a única pessoa que sabe a verdade sobre a morte de Tom!
Camilla estava deitada em sua cama, no quarto escuro. Sentia muito calor, mas não afastou as
cobertas. Precisava de proteção. Inquieta, ficou virando-se na cama, esperando, antecipando o barulho
do vidro quebrado e o zumbido da bala. Não conseguia esquecer aqueles momentos vividos no hotel.
Malcolm não achava que eles fossem tentar de novo. Acreditava que ela estava perfeitamente segura,
até que achasse a irmã.

Até onde Camilla tinha chegado para encontrar alguém que poderia ter mudado, que talvez não
quisesse voltar... Além disso, já não era a mesma pessoa que tinha descido do avião, há dois meses.
Amava a irmã, faria qualquer coisa por ela, mas e quanto a si própria? O que faria de sua vida?

Seu coração pedia por Malcolm. Seu profundo amor explicava mil outros sentimentos: a depressão, o
desejo de agradá-lo, a angústia... E o amor que sentia por aquele país... o que era isso, a não ser uma
extensão de seu amor por Malcolm? Amava o que ele amava; o povo dele era o seu povo. No
Afeganistão, os céus eram mais azuis porque os olhos de Malcolm estavam lá; o sol mais brilhante
devido à luz dos cabelos dele; as nuvens mais brancas, a grama mais verde, a água mais doce.

Como posso voltar para casa?, pensou, angustiada.

Malcolm era sua casa, seu lar. Ela o seguiria até o fim do mundo. Seu orgulho tinha desaparecido e tudo
que desejava era mostrar a ele quanto o amava.

Ao mesmo tempo, sabia que essa era a última coisa que poderia fazer. Não teria o amor dele, mas iria
tentar melhorar aquele relacionamento cheio de conflitos e, quando tivesse de partir, ao menos não
deixaria a impressão de ser uma tola sentimental. Se ele não podia amá-la, pelo menos não iria
desprezá-la.

Amanhã ele iria descobrir nela uma mulher diferente: amanhã, se já não fosse tarde demais, ela poderia
começar a corrigir um relacionamento que fora errado desde o início. Uma tarefa difícil, mas não
impossível.

Mais calma, Camilla adormeceu. Em seus sonhos, viu-se vestida de shorts e sendo levada para o avião.
Tentou se libertar das inúmeras mãos que a empurravam para a aeronave. Alguém deu uma ordem. O
avião era amarelo e descascava. Todos juntos a jogaram lá dentro e... e ela se viu no quarto do hotel. O
chão estava coberto de escorpiões de todas as cores!

E então aconteceu; o estrondo de vidros quebrados, a bala voando. Camilla caiu ao chão, junto aos
escorpiões, e gritou. De repente estava em pé, a bala vindo e ela caindo. Várias vezes ficou em pé e
caiu, as balas sibilando e a cabeça doendo. Novamente caiu e, de repente, o chão era quente, forte e a
estava sacudindo.

— Camilla! Camilla!

A voz familiar dizia-lhe que era apenas um sonho. Ela acordou na escuridão do quarto. Todo o terror foi-
se embora quando sentiu os braços de Malcolm. Abraçou-o desesperadamente, precisando de sua
força. Ele pareceu compreender, pois a deixou ficar assim e nada disse.

— Está melhor agora?

Em resposta, Camilla levantou a boca, procurando a dele e, por um momento, foi recompensada com
um beijo exigente, que prometia e oferecia êxtase. Ela o desfrutou profundamente, entreabrindo os
lábios e soltando um suspiro langoroso. Sentiu-se absolutamente convencida de que era isso que a
mantinha viva. Essa sensação era a consumação última, a recompensa por ser feita de carne e sangue.

Ele se afastou, mas continuou a segurá-la firmemente.

— Camilla... — A voz era tão sensual quanto uma carícia, e as mãos fortes a acarinhavam desde a raiz
do cabelo até a base da espinha. — Nós estávamos mentindo um para o outro naquela noite, não
estávamos? Dissemos parte da verdade, mas tentamos fazer dela uma mentira.

Ela sentia paixão na voz dele. Estava cansada de lutar, cansada de esperar. Agora, queria pegá-lo pela
mão, deitar-se em meio aos lençóis com ele e deixá-lo ensinar-lhe todos os mistérios do amor que
enfeitiçam a espécie humana. Se agora eles se desejavam desesperadamente, o que importava o
amanhã?

— Meu Deus. Camilla, não olhe para mim desse jeito! — Com um gesto brusco, ele se afastou.

— Sinto muito, Malcolm. O que foi que fiz?

Ele respirou fundo.

— Não se desculpe, Camilla. Não é sua culpa. Você tem vinte e um anos e eu... eu sou maduro
bastante para poder me controlar e saber o que é melhor.

— Melhor? — A voz dela tremia. — Melhor? O que você quer dizer? O que pode ser melhor do que isso
que sentimos?

— Uma porção de coisas. E eu... eu estava errado e quero me desculpar.

— Desculpar! Mas você não estava enganado, Malcolm! Era...

— Eu sei o que era. Mas não o farei. Não com você. Meu Deus, como posso esperar que confie em
mim, se eu mesmo já não posso confiar? — Chegou perto dela e ajoelhou-se, mas sem tocá-la. —
Camilla, eu a tenho tratado muito mal. Mas, por favor, tente entender. Eu acho... que não devo ficar aqui
com você.

— Oh, Malcolm, Malcolm, por favor! — choramingou ela. — Não vá! Por favor, estou com muito medo!
Não me trate assim. Eu... eu não queria fazer o que fiz. Estava meio adormecida e com tanto medo...
Você foi como alguém... alguma coisa a que eu pudesse me apegar.

— Minha pobre Camilla! Volte para a cama. Sei que temos que achar alguma maneira de viver juntos
nessa casa. Mas, se você continuar tendo pesadelos, vou mudar Olga para o quarto ao lado do seu,
para que ela possa tomar conta de você.

— Obrigada.

— Não estarei sendo apenas altruísta — replicou ele enigmaticamente. — Você acha que pode dormir
agora?

Malcolm havia se afastado novamente e tinha o olhar frio, duro e impenetrável. Ela sabia que a
diferença de idade que ele mencionara era apenas uma desculpa. Se realmente a amasse, isso não
teria importância. Malcolm simplesmente estava saturado, estava cansado dos medos dela, e apenas
tolerava suas fraquezas.

Eles eram tão somente um homem e uma mulher, jogados um contra o outro por força das
circunstâncias, e, portanto, a paixão que havia entre eles não poderia ter maior significado. No máximo
havia se transformado numa arma de vingança. Porque sua feminilidade era a única coisa que o tinha
afetado. Era isso que ele mais detestava e ela o desprezava por isso. Incapaz de suportar esse
pensamento, virou o rosto para a parede.

Malcolm supôs que Camilla tivesse dormido, e ela, sentindo que ele se levantava da cama, virou-se
involuntariamente e murmurou:

— Por favor, não me deixe...

O rosto dele tinha uma expressão cansada.


— Eu vou ficar, mas você precisa dormir. Está muito pálida. Vou arrumar as cobertas. — E arrumou os
lençóis, o travesseiro e cobriu-a com os cobertores.

Camilla pensou que seu coração fosse estourar, tamanha a vontade de se jogar nos braços dele. Teria
sido melhor ficar na escuridão. Virou o rosto para que ele não visse seus olhos cheios de lágrimas: mas
não conseguiu dormir.

Era esse o verdadeiro pesadelo: ele estar tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe. Ela ficou deitada
como uma criança, enrolada, sem dormir e, finalmente, ouviu-o levantar-se e sair.

Camilla acordou bem cedo. Percebeu que devia ter dormido umas duas ou três horas, no máximo.
Levantou-se e se vestiu, temendo o momento em que tivesse que descer e rever Malcolm.

Viu-o antes do que esperava, pois ele estava do lado de fora do quarto. Ficou chocada com a aparência
dele: pálido, os cabelos despenteados, a barba por fazer, a aparência de quem não tinha dormido. Antes
que ela dissesse alguma coisa, ele ordenou:

— Arrume as malas. Agasalhos, roupas e sapatos resistentes. Nós vamos a Bamian. Eu explico no
carro. — E saiu.

Sem discutir, ela trocou o leve vestido de algodão por calça rústica de brim e uma camisa de algodão.
Com a mala na mão, foi para a garagem.

Ele a esperava dentro do carro, com o motor ligado. Vestindo sua camisa e calça afegãs, usando
turbante na cabeça, ele parecia selvagem, quase assustador.

Assim que ela entrou no carro, o muezzim da mesquita de Hajji Jacob começou a chamada para a
prece da manhã. Cinco horas. Eles passaram pelas ruas vazias. Malcolm estava com os olhos fixos no
caminho. Camilla não se atreveu a fazer nenhuma pergunta.

Logo estavam fora da cidade, na estrada para Istalif e Charikar. Malcolm relaxou e falou:

— Ali Shah telefonou ontem à noite. Eu pensei que a polícia já tivesse esquecido o caso, mas eles
estavam apenas procurando usar uma nova tática. Estão tentando conseguir um mandado para me
prender. — Antes que ela pudesse expressar seu choque e seu medo, ele continuou: — E também um
mandado para dar uma busca na casa. Dizem que estou dando abrigo a uma pessoa procurada pela
polícia.

— E o primo de Ali Shah?

— Ele faz o melhor que pode, mas alguém com dinheiro está forçando a situação.

Camilla leu os pensamentos dele: Patrice Desmarets.

— Por isso estamos indo para Bamian, e depois para Bandi Amir: para encontrar sua irmã antes que as
autoridades interessadas ponham um ponto final à nossa busca. Eu esperava por mais informações,
mas não há mais tempo, agora.

O coração de Camilla estava cheio de emoção, gratidão, admiração e amor.

— O que foi que você fez com a heroína?

— Queimei.

Vários quilômetros depois, Malcolm virou em direção a uma grande construção de adobe, que parecia
um gigantesco castelo de areia. Os altos portões de madeira estavam abertos e ele entrou, parando ao
lado de uma porta larga. Cortinas tingidas com cores brilhantes enfeitavam as pequenas janelas. O
prédio era monumental, com no mínimo quatro andares, e parecia frio e misterioso.

Camilla desejou entrar. Tinha certeza de que iria descobrir escadas secretas, corredores escuros,
portas escondidas, rostos cobertos de véus e comida estranhamente temperada. Enfim, todos os
mistérios do Oriente.

— Que lugar fantástico! Como aqueles das Mil e Uma Noites. O que é?

Ele a olhou estranhamente.

— A casa de Ali Shah. Você nunca esteve aqui?

— Não, nunca. Ele vai conosco?

— Sim. Nós vamos precisar dele.

— Será que teremos tempo para ficar um pouco aqui? Eu queria conhecer a casa.

— Não.

Malcolm se afastou, bateu a porta e Ali Shah apareceu, vestido do mesmo modo que ele. Camilla
reparou em quanto eles pareciam selvagens e masculinos naquelas roupas e sentiu que estaria a salvo
com eles. Ali Shah carregava um pacote e, quando entrou no carro, deu a ela um pedaço de naan.

— Minha irmã acabou de assá-lo — explicou, e continuaram a viagem.

O caminho era familiar para Camilla. Estavam subindo em direção a um vale situado nos contrafortes do
Hindu Kush. À frente, erguiam-se as montanhas. Depois que passaram a cidade de Charikar, ela não
conhecia mais o território. Cruzaram uma grande ponte sobre um rio turbulento e a estrada passou a ser
margeada por uma série de casas de pedras cinzentas e por uma rede de canais de irrigação. Era um
excelente trabalho de engenharia.

— Os chineses construíram aquilo — contou Ali Shah. — E os russos construíram essa estrada
recentemente.

Uma hora mais tarde, Malcolm mudou de direção. Logo estavam viajando ao longo de uma estrada
muito ruim, que serpenteava nas montanhas que cercavam o vale fértil. Aos poucos, foram descendo
para o vale e cruzaram várias aldeias. Numa delas, Malcolm parou para que Ali Shah comprasse
algumas amoras.

Continuaram a viagem, subindo novamente pelas montanhas. Os contrafortes da cordilheira e os


penhascos eram muito rochosos. Nos campos próximos, cobertos de trigo e capim, pastavam rebanhos
de vacas e de carneiros. Camilla nunca havia feito uma viagem tão maravilhosa!

Chegaram afinal ao lugar mais surpreendente. Levantando-se acima da vegetação, sobre uma enorme
plataforma de terra e pedras, estava o perfil de um castelo outrora poderoso, talhado na pedra e com
ruínas ainda impressionantes.

— Aquele é o Castelo Vermelho — disse Ali Shah. — O último príncipe resistiu ao xá do Afeganistão,
mas foi traído pela própria filha. Só havia uma forma de atravessar suas paredes, e ela revelou o
segredo a seu amante, que pertencia ao exército do xá. Dizem que o pai dela tinha duas serpentes, que
lhe saíam do pescoço e que precisavam ser alimentadas diariamente com uma donzela, senão
devorariam a cabeça dele.

Camilla riu e sentiu um arrepio.

— Ninguém acredita nisso, não é?


— Eu soube que no Ocidente vocês têm uma superstição a respeito de passar por baixo de escadas,
não é verdade? — perguntou Ali Shah.

— Mas ninguém acredita realmente que isso vá trazer azar!

— Pode ser. Mas ainda estou para ver um europeu passar por baixo de uma escada se puder evitá-lo.
Com o Castelo Vermelho também acontece coisa semelhante: apesar de as pessoas não acreditarem
inteiramente, não podem evitar de pensar que talvez suas histórias sejam verdadeiras.

— Compreendo. Mas, de qualquer forma, é uma lenda bastante desagradável.

— Existem muitas coisas na vida que não são agradáveis — disse Malcolm.

Ela ficou surpresa. Aquelas eram as primeiras palavras que ele dizia, depois de muito tempo.

Eles chegaram a Bamian perto de meio-dia. Malcolm apontou a estrada para o acampamento Kushi,
mas decidiu que precisavam descansar antes de prosseguir. Foram para o Hotel Kushi.

Todos os quartos davam para um pátio interno. A sala de jantar ficava no meio do pátio. Havia também
várias tendas parecidas com as dos índios norte-americanos, que eram chamadas yurts, construídas
com galhos de álamos cobertos de feltro e couro. Cada uma tinha duas camas e era muito grande por
dentro.

— Eu vou querer ficar numa yurt — disse Camilla. Felizmente havia três: uma para cada um.

Almoçaram galinha assada e naan e encontraram um casal alemão que falava inglês. Camilla e Ali
Shah conversaram bastante com eles, mas Malcolm permaneceu indiferente.

Camilla estava aflita por saber o que o aborrecia. Tinha a desagradável sensação de que era ela. Não
importava o que fizesse ou dissesse: ele a desprezava tanto que sua simples presença era suficiente
para irritá-lo. Ela não conseguia ficar à vontade, e tentou pensar em alguma coisa que pudesse agradá-
lo.

Depois do almoço, sugeriu um passeio pela cidade. Malcolm disse que preferia dormir, mas que Ali
Shah iria. Camilla ficou muito desapontada e, quando caminhavam pela rua principal, decidiu comprar-
lhe um presente.

— O que você acha que ele gostaria, Ali Shah?

Ali Shah deu-lhe algumas idéias e ela finalmente comprou um suéter marrom e bege.

Depois, Ali Shah levou-a para conhecer as ruínas do monastério budista. Havia ali duas colossais
estátuas de Buda em pé, esculpidas num penhasco. A maior delas devia ter uns sessenta metros de
altura e era majestosa. A boca de Buda era tudo que tinha restado do rosto, destruído pelos mesmos
invasores muçulmanos que tinham arruinado o monastério, há mais de mil anos.

— É possível subir até o topo da cabeça do Buda e de lá ver toda Bamian. Você gostaria de fazer isso?

Eles pagaram um guia para conduzi-los através de um labirinto negro de degraus e corredores. Camilla
engoliu em seco quando chegaram lá em cima.

Uma enorme porta abria-se para o ponto onde os ombros de Buda eram ligados à parede rochosa. A
cabeça estava ligada ao penhasco por um istmo de pedra de uns trinta centímetros de largura e talvez
quinze ou vinte centímetros de comprimento. Era preciso pular da beirada da porta para o topo nivelado
da cabeça do Buda.

— Não existem corrimões? — perguntou Camilla, as mãos suando.

— É claro que não! — respondeu Ali Shah alegremente. — É muito fácil pular.
— Você pula primeiro.

Ele pulou; ela respirou fundo e, segurando a mão dele, saltou.

Surpresa, viu-se do outro lado. A vista era de tirar o fôlego. Acima de sua cabeça, no arco que encimava
o nicho do Buda, estavam os vestígios de antigas pinturas sagradas — festins e dançarinas, que ela
achou assuntos muito estranhos para monges. Depois de ter pulado, não queria mais ir embora. Olhava
tudo sem parar, tentando registrar na memória.

— Malcolm já esteve aqui?

— Sim, eu o trouxe diversas vezes.

— Suponho que ele tenha encontrado muitas coisas que o interessaram. Especialmente aquelas
bailarinas.

— Elas são muito antigas.

— É uma pena que ele não tenha vindo conosco essa tarde. Ele sabe tanto sobre essas coisas!

— Eu também — retrucou Ali Shah secamente.

Camilla notou que ele e Malcolm ainda não tinham resolvido suas diferenças.

Ela chegou faminta ao hotel, surpresa em ver como a tarde passara depressa.

— Divertiram-se? — perguntou Malcolm, quando eles entraram no restaurante, e mal falou durante o
jantar.

Camilla sentiu-se infeliz com isso. Finalmente, ele pediu licença, levantou-se e saiu. O que ela teria feito
para que a detestasse tanto?

— Srta. Simpson? — Camilla olhou para Ali Shah através das lágrimas. — O que está acontecendo
entre a senhorita e Malcolm?

— O... o que você quer dizer?

— Você sabe. Antes... antes vocês tinham começado a se dar tão bem, e agora...

— Ele me odeia.

— Não, não! É a mim que ele não perdoou. Você se lembra da minha conversa com ele em Cabul?

— Ali Shah, você não contou a ele, contou?

— Não, ele não sabe. Não é muito perspicaz para essas coisas. Mas eu gostaria que ele percebesse.

— Você nunca deve dizer-lhe! — pediu ela, agarrando-lhe o braço. — Prometa.

— É claro que prometo! — Ali Shah pegou a mão dela e a segurou. — Talvez possa dar certo, mas não
sei... Ele nunca confia uma segunda vez. Eu fui o melhor amigo dele e me senti honrado por isso. Mas
agora...

— Oh, Ali Shah! É tão injusto que ele o trate assim! O que está fazendo com você... Você é o melhor
amigo que alguém poderia desejar. Será que ele não percebe isso? Às vezes eu me pergunto se
Malcolm merece um amigo assim. Acho que ele ficou muito mais zangado comigo do que com você,
aquele dia. É a mim que culpa. Ele gosta de proteger as pessoas de quem gosta... e tenho certeza de
que não o teria convidado para vir conosco, se não gostasse de você. Ele só está fazendo o papel de
teimoso, só isso. Sabe, não é por minha causa que ele está aqui. É por Theresa.
— Malcolm falou sobre a irmã dele para você? É extraordinário! Ele nunca menciona o nome dela. Já
faz anos...

— ... que aconteceu, eu sei. Ele não esqueceu. Você conseguiria esquecer?

— Mas, Camilla...

— Eu não espero mais a atenção dele. De qualquer maneira, Malcolm nunca me levou muito a sério e
eu cometi tantos erros que é fácil me culpar por qualquer coisa. Além disso... também há Nurjan, é
claro...

— Nurjan? O que ela tem a ver com isso?

— Como assim, Ali Shah? É claro que Nurjan tem tudo a ver com isso!

Ali Shah parecia tão perplexo que Camilla percebeu que tinha cometido um grave erro ao mencionar o
nome da moça. O amor dele por Nurjan ainda era forte, e ela respeitaria os sentimentos dele.

Sorriu tristemente, balançou a cabeça e levantou-se. Sua vontade de permanecer ali e se divertir foi
prejudicada pela simples menção de Nurjan.

CAPÍTULO XIV

A manhã estava fria e clara. Ainda não eram cinco horas e Camille pensou que seria agradável fazer
uma caminhada pelas ruas desertas.

Passou pelo portão do Hotel Kushi e saiu. Depois de andar bastante, virou uma rua que se perdia de
vista. Parou por um momento, admirando a beleza da paisagem montanhosa, e decidiu voltar antes que
alguém começasse a se preocupar com ela.

Mas dois homens vieram galopando em sua direção. Um estava montado num camelo adornado de
prata, madeira e tecidos finos e o outro montava um cavalo cinzento. Ela os observava, fascinada,
quando subitamente eles pararam e a examinaram, também com admiração. Camilla ficou tensa e
pensou que talvez não tivesse sido uma boa idéia fazer aquela caminhada. Uma forte intuição lhe dizia
que os homens eram Kushis e teve medo de ser raptada. Queria fugir, mas sabia que era inútil correr,
agora. Então ficou firme e os encarou, tentando demonstrar coragem.

Eles pareceram satisfeitos com isso, pois olharam-se sorrindo e falaram algo na estranha língua deles.
Então, um dos homens enfiou a mão no bolso do casaco, puxando dele um pedaço de papel branco.
Depois inclinou-se e falou, com um sotaque bem forte:

— Srta. Simpson?

Ela olhava de um lado para outro e só pôde acenar que sim com a cabeça. Ele lhe entregou o papel,
que ela pegou, com os olhos fixos nos atraentes rostos morenos. O homem a cavalo observou-a mais
um pouco, riu e ambos se afastaram rapidamente.
Até então, ela não tinha percebido a extensão do seu medo, mas o alívio que sentiu mostrou-lhe o
quanto estava nervosa. Então, olhou para o papel e, sentando-se, abriu-o e leu:

"Minha queridíssima Camilla: Eu não consigo expressar o que sinto! Só mesmo conversando com você.
Nós estamos em Bandi Amir. Tente vir hoje ou amanhã, pois não estaremos aqui por muito mais tempo.
Ahmad e Djalani levam-lhe esse bilhete; eles são boas pessoas. Apresse-se, por favor! Eu amo você.

Meghan."

Meghan! Finalmente, depois de tanto tempo, tinha notícias da irmã! E, afinal, havia sido tão fácil!

Camilla levantou-se e correu para o hotel, tão rápido quanto pôde. Instintivamente, dirigiu-se primeiro
para o yurt de Malcolm. Mas ele não estava lá.

— Camilla! — chamou Ali Shah. — Nós estávamos tão preocupados!

— Ali Shah! Aconteceu! Eu a encontrei! Encontrei de verdade!

— O quê? Sua irmã?

— Sim, ou melhor, ela me encontrou! Veja!

E entregou o bilhete a ele, que o pegou e leu. Então o devolveu, o rosto brilhando de felicidade.

— Aqueles dois Kushis, Ahmad e Djalani... Eu os encontrei no lado oeste da cidade. Se não tivesse
saído, talvez nunca os encontrasse!

— Allah wh'akbar. Alá é grande. Foi pela vontade de Alá que você encontrou sua irmã.

— Eu tenho que achar Malcolm! Nós precisamos partir imediatamente! Onde está ele?

— Saímos para procurar você. Ele estava muito preocupado, sabe? Nós dois estávamos.

— Para que lado ele foi? Tenho que encontrá-lo logo, ou ele vai ficar zangado.

— Não quando você contar as novidades.

— Oh, sim! Estou tão feliz! — E, numa explosão de alegria, atirou os braços em volta do pescoço de Ali
Shah e o beijou no rosto. Então, virou-se e entrou no yurt.

Um braço bronzeado e forte a alcançou e agarrou.

— Largue-me! Você está me machucando! — exclamou ela, fitando os olhos azuis de Malcolm. — O
que é? O que há de errado?

— O que há de errado? Ora, Camilla, não seja ridícula! Então acha que eu não sei? Cheguei a tempo
de ouvir: "Quando você contar as novidades". Portanto, vamos lá, diga-me! — Ele estava furioso e a
olhava de modo cruel, implacável. — Qual é o problema, Camilla? O gato comeu sua língua? Você corre
de mim para Ali Shah e daí volta novamente como um pêndulo. Ou já se decidiu agora? Diga a Malcolm,
ao pobre e iludido Malcolm, quais são as novidades. Eu posso ter sido um otário, mas não sou cego
nem surdo.

— Você é! — gritou Camilla. — Cego, surdo e pensa que sabe de tudo! Mas não sabe! — E caiu em
altas gargalhadas histéricas, que pareciam soluços.

Uma fria bofetada trouxe-a de volta a si.

— Agora não é hora para histerismos!


— Vocês são dois tolos. Não podem ver o que é claro para todas as outras pessoas — disse Ali Shah,
da porta. — Solte-a, Malcolm!

Malcolm empurrou-a com tanta força que a machucou.

— Vamos, machuque-me — gritou Camilla. — Isso é tudo que você tem feito até agora, me machucar!
Por que fui tão idiota a ponto de me apaixonar por você?

Ela virou-se, correndo e tropeçando, com um zumbido forte nos ouvidos. Cega de lágrimas, quase caiu
em cima do jipe. Impulsivamente, abriu-o e atirou-se no assento do motorista.

Quando viu que as chaves estavam no contato, deu partida e saiu voando para fora do portão, os pneus
cantando, a poeira levantando, deixando atrás de si o homem furioso que tanto amava.

Enquanto dirigia pela rua suja, onde tinha encontrado os dois Kushis, um pensamento não lhe saía da
cabeça: por que havia confessado seu amor por ele? Como poderia voltar e olhá-lo de frente?

Então, levantou a cabeça com orgulho. Por que se envergonhar? Amar alguém não era crime. Ele que
se sentisse envergonhado, pelo modo como a tratara e por sua cegueira.

Mas será que ele iria sentir-se envergonhado? Ou iria pensar que ela era uma tola por amar alguém que
não poderia sequer gostar dela?

Mas isso não importava mais. O relacionamento mais importante da vida dela parecia ter se
transformado em pesadelo. Tudo que lhe restava agora era encontrar Meghan.

O percurso para o campo Kushi, fora de Bandi Amir, era mais distante do que ela esperava. Uma solidão
dolorosa a invadiu. Enquanto dirigia, o incidente nos yurts parecia cada vez mais um pesadelo e ela
teve a sensação de que era o último ser vivo na face da Terra.

O carro começou a subir uma montanha muito alta. A vista que se espelhava à sua frente era de tirar o
fôlego. O Afeganistão possuía muitas surpresas, mas nenhuma mais bonita do que essa: Bandi Amir, os
lagos do rei. Eram como jóias: safiras, esmeraldas, turquesas, e brilhavam na terra. Uma vez no vale,
ela descobriu que os lagos formavam uma espécie de plataforma. O velho jipe subia outra montanha e
Camilla calculou que logo deveria estar no acampamento Kushi.

Não se enganou. Lá, do outro lado da montanha, estavam as familiares tendas negras, camelos, cabras
e pessoas com roupas brilhantes e coloridas. Seu coração bateu rápido de entusiasmo, suas mãos
estavam brancas e trêmulas. Parou o carro e andou até a aldeia Kushi.

Sentiu um cheiro delicioso de café e pão quando entrou, e lembrou-se de que ainda não havia comido
nada naquela manhã. Mas isso não tinha importância. Importante era que Meghan estava a apenas
alguns metros dali.

Uma mulher e uma criança a viram, correram para um homem parado ao lado de um camelo. Ele se
virou e Camilla o reconheceu: era um dos cavaleiros que lhe havia dado o bilhete, naquela manhã.

Caminhou até ele e o saudou à maneira afegã. Salaam aleikom. Ele retribuiu o cumprimento e fez sinais
para que ela o seguisse. Andaram por um campo imenso, um dos maiores que Camilla já tinha visto, e
aproximaram-se de um grupo de mulheres, todas vestidas em combinações extravagantes de vermelho
e azul, com lenços brilhantes cobrindo os cabelos.

Camilla teria passado direto se uma delas não tivesse se levantado e, jogando para trás o lenço,
revelado uma vasta cabeleira loira, que descia pelas costas em duas grossas tranças. Os olhos verdes
brilhavam no rosto bronzeado.

— Você veio mesmo! — disse a voz familiar e querida de Meghan. E Camilla, em soluços, a abraçou.
— Afinal, foi tão fácil! — disse Camilla, sentada sob uma das tendas pretas, tomando chá e comendo
biscoitos e cevadas.

— Foi fácil me achar? — perguntou Meghan, sorrindo.

Depois do primeiro impacto, das lágrimas e dos abraços, as duas não paravam mais de falar.

— Não, de jeito nenhum... Quero dizer, desde que recebi seu bilhete, essa manhã, tudo pareceu se
resolver tão rapidamente... Foi como bater à porta da frente por horas, para descobrir que a porta de
trás estava aberta o tempo todo.

— Você não recebeu a carta que eu lhe mandei há algumas semanas, explicando tudo?

— Não. E tenho estado em Cabul há semanas! Oh, Meghan! Por que você não escreveu antes?

— Você veio para o Afeganistão por conta própria? Eu pensei que fosse por causa da minha carta! Oh,
sinto muito... Tenho pensado em escrever, mas o tempo parece voar. Tudo é tão novo, tão diferente...

— Não importa, agora. Estou contente por você estar feliz e... viva. Não que eu tenha acreditado que
estivesse morta, mas todo mundo vivia me dizendo que...

— Todo mundo? Todo mundo quem?

— Patrice Desmarets, por exemplo. O que você sabe sobre ele?

— Oh, Camilla! Como foi se envolver com ele? Quanto você sabe?

— Sabemos sobre o tráfico de drogas. Achamos um pacote de heroína no assento do carro. Mas... eu
tenho que saber, Meghan, embora nem por um minuto tenha acreditado... Até que ponto você estava
envolvida?

— Eu nunca estive envolvida — respondeu Meghan. — Vou lhe contar toda a história... Você sabia que
Tom e eu já estávamos nos desentendendo há algum tempo; acho que sempre soube que não fomos
feitos um para o outro. A princípio me senti atraída pelo trabalho dele. O fascínio, você sabe, é coisa
passageira, como eu logo descobri. Quando chegamos a Cingapura, a verdadeira personalidade dele
veio à tona: preguiçoso, ganancioso e desonesto. Era tudo de que eu precisava para voltar-me contra
uma sociedade inteira, que tinha produzido um verme como ele.

— Eu até posso compreender isso, Meghan. Você sempre foi a rebelde da família, a que lutava contra o
sistema.

— Comecei achar que nada estava certo e que a vida que levávamos na Inglaterra não era boa para
mim. E ficava frustrada e infeliz porque achava também que não havia outra maneira de viver. Mas
agora... — A alegria e a realização refletidas no rosto de Meghan diziam a Camilla tudo que ela
precisava saber. — Eu estou tão feliz!

— Sei que está! — Controlando as lágrimas, Camilla lembrou a irmã: — Você estava me contando
sobre Tom.

— Quando deixamos Cingapura, eu estava pronta para abandonar Tom, e teria feito isso se tivéssemos
voltado para a Inglaterra. Mas decidi ficar com ele na viagem pela Ásia porque achava que era minha
última aventura, antes de voltar para a vida da qual eu tinha desistido ao me casar com aquele... aquele
monstro. Mas eu também via nessa viagem uma última chance de provar que em algum lugar desse
mundo haveria um modo de ser feliz. Nós viajamos todo o sudeste da Ásia, a índia e o Paquistão, e eu
me senti desesperada porque me pareceu que em todo lugar estava se espalhando o micróbio da
ocidentalização. Então chegamos ao Afeganistão. Você pode notar a diferença quando cruza a fronteira.
É... oh, eu não sei... limpo, refrescante, real. Nós chegamos e logo vimos uma tribo Kushi. Resolvi
conhecê-los, só para conhecer o modo como viviam. E foi isso aí. Fui fisgada.

— Como teve certeza de que era isso que desejava, se os conhecia há apenas algumas horas?

— Eu simplesmente sabia. — Era uma resposta vaga, mas Camilla a entendeu. Meghan continuou: —
Conheci Desmarets no dia seguinte à nossa chegada e o detestei à primeira vista. Ele finge o tempo
todo. É exatamente o tipo que detesto.

— Eu sei...

— Bem, para encurtar a história, fomos para Ghazni depois de alguns dias e lá dei por falta de meu
relógio. Estava procurando por ele na bagagem e encontrei um saco daquela coisa branca: heroína. Eu
já tinha visto aquela droga em ação, nos meus tempos de enfermeira. O choque de saber que meu
marido estava envolvido com aquilo foi demais para mim. Caminhei para um campo fora da cidade,
onde essa tribo estava acampada, disse-lhes que era enfermeira e pedi para juntar-me a eles. E nunca
mais vi Tom.

— Você sabe que ele está morto, não sabe?

— Sim, sei.

Elas ficaram quietas por um momento.

— Mas como você conheceu Patrice, Camilla?

Camilla procurou uma posição mais confortável e contou à irmã a história inteira, desde o momento em
que chegara a Cabul: a ajuda que os Hagan lhe deram, o charme de Patrice e a amizade que ele tinha
demonstrado no começo. Contou sobre o ataque do mulá, a perseguição das cartas, a punhalada no
restaurante e a tentativa de assassinato no quarto do hotel.

Contou também sobre Malcolm. Sentiu-se relutante, a princípio, em mencionar o nome dele. Mas depois
não conseguiu mantê-lo fora de cada frase que falava.

— E você sabe quem é ele? Jacob Manling, o escritor de quem você gostava tanto!

Meghan concordou que era uma coincidência extraordinária. E observou que os olhos de Camilla
brilhavam quando ela mencionava o nome dele.

— Malcolm estava zangado comigo esta manhã porque saí para um passeio — contou, entendendo a
extensão da raiva dele e sentindo remorso. — Então, resolvi vir sozinha.

Meghan aproximou-se e a abraçou carinhosamente.

— Você é muito corajosa, e tem pensado nos outros o tempo todo. Eu não tenho pensado em ninguém
além de mim mesma.

Camilla sentiu-se culpada e preferiu não mencionar os inúmeros dias e as muitas noites em que seus
pensamentos tinham sido ocupados por Malcolm e seu amor por ele. Então, apertou a mão de Meghan.

— Você nunca deve deixar que Patrice a encontre. Ele vai matá-la, se puder.

— Meu povo me protegerá.

O coração de Camilla disparou ao ouvir o modo como Meghan se referia aos nômades como "seu
povo".

— É com você que devemos nos preocupar, Camilla. Sabe que pode colocar Patrice Desmarets atrás
das grades pelo resto da vida? Ele já tentou matá-la!
— Não preciso que me lembrem disso. Tomarei cuidado.

— E sobre Jeff?

— Jeff? Quem é Jeff?

Meghan riu, a velha risada calorosa.

— Minha querida irmãzinha, você não pode esconder nada de mim. Desde quando está apaixonada por
esse Malcolm?

— Desde sempre — admitiu ela, com seriedade.

— E... e ele?

— Meghan, não é assim tão simples. Existem tantos componentes no amor... ternura, compreensão,
admiração, proteção, desejo... Quantos deles você tem que possuir, antes de dizer que está
apaixonada? Por favor, não vamos falar nisso, levaríamos anos... Existem algumas coisas que eu queria
esclarecer. Como Patrice conseguiu seu relógio?

— Eu acho que Tom o vendeu a ele, para pagar parte da heroína.

— E como o lojista conseguiu seu vestido?

— Eu mandei Djalani para Cabul com ele e algumas outras coisas, para levantar algum dinheiro e
comprar remédios. Foi quando ele esteve lá que ouviu o rumor de que farangis procuravam por mim.
Então comecei a fazer algumas investigações. Suspeitava que pudessem ser Patrice e seus homens,
por razões óbvias, e naturalmente não queria que me encontrassem. Com a ajuda de Djalani, um
verdadeiro amigo, eu descobri que Patrice estava realmente à minha procura, mas que uma mocinha
inglesa também estava... isso me confundiu, porque eu pensava que você viria diretamente a mim e a
Bandi Amir. De qualquer forma, dei a Djalani sua descrição, mas você havia desaparecido.

— Eu estava escondida na casa de Malcolm, por razões de segurança, depois do atentado.

— Camilla! Se eu soubesse que você corria tanto perigo! Mas felizmente está aqui, sã e salva. Sabe,
fiquei preocupada ao ver que você não aparecia, porque pensei que tivesse recebido minha carta. Nós
iríamos partir logo, e eu já estava ficando nervosa, com medo de perdê-la de vista. Mas, então, na noite
passada, Djalani vislumbrou você, seus cabelos vermelhos...

— Não são vermelhos, são castanho-avermelhados! — protestou Camilla, sorrindo.

— Mil perdões, castanho-avermelhados... Ele estava no Hotel Kushi. entregando leite de cabra. Quando
falou que a viu, mal pude acreditar. Mas tenho certeza de que Alá nos queria juntas novamente. — Os
olhos dela brilhavam e ela apertava a mão da irmã. — Então mandei o bilhete esta manhã! Eles
deveriam dá-lo só a você, tão discretamente quanto possível, no caso de Patrice estar por perto.

— Eles pareciam ter saído do nada, como mensageiros dos céus, sabe? Cheguei a ficar assustada! E
Tom, o que aconteceu com ele?

— Meu povo o matou.

— Você... Você... — Ela estava chocada.

— Não, eu não pedi que o matassem. Mas, quando disse a eles por que tinha deixado meu marido,
vários homens mais jovens, incluindo Ahmad, dirigiram-se para o sul e voltaram dois dias depois. Então
me disseram o que tinham feito, longe da estrada principal, para que ficasse o mais escondido possível.
Eu não senti. Ele mereceu. Teria matado muito mais gente com aquele veneno que carregava. É a
justiça de meu povo.
— E o que eles fizeram com a heroína?

— Espalharam-na ao vento.

Camilla e Meghan continuaram conversando quase que a tarde toda. Mais ou menos às três horas,
Camilla decidiu ir embora, pois poderia chegar ao hotel às seis. Mesmo sentindo deixar a irmã,
levantou-se para sair.

— Você não está indo, está? Eu esperava que fosse passar a noite aqui...

— Oh, eu adoraria, Meghan — disse Camilla, abraçando a irmã —, mas tenho que voltar. Malcolm e Ali
Shah não têm a menor idéia de onde estou, e eu trouxe o carro. Mas voltarei amanhã e talvez... talvez
Malcolm venha. Sei que você gostaria de conhecer o autor de Um Cântaro de Vinho.

— Eu adoraria ver o "seu" Malcolm.

— Ele não é o "meu" Malcolm.

Meghan colocou a mão no braço de Camilla.

— O que vai fazer agora? Voltar para casa?

— Casa? Onde é isso? Eu não sei. — O coração dela se apertou com a consciência de que realmente
não pertencia a lugar nenhum.

— Você sabe.

As duas palavras eram uma profunda afirmação. Meghan percebeu que Camilla conhecia as mesmas
forças que a tinham levado a viver com os Kushis. Sabia que a irmã nunca poderia voltar, não depois de
amar Malcolm e aquela terra.

Mas Camilla temia não ter outra escolha, além de retornar.

— Tudo que quero é que você seja feliz. Tão feliz quanto eu sou Camilla.

Quando elas estavam andando em direção ao carro, dois jovens vieram na direção delas. Timidamente,
um deles entregou a Camilla um pacote que tinha nas mãos. Ela o abriu e sorriu quando viu um lindo
par de brincos de ouro, trabalhados à mão. Murmurou, polidamente:

— Obrigada, muito obrigada.

— Ahmad e eu vamos nos casar na próxima primavera — disse Meghan quando Camilla entrou no
carro, tão calmamente como se estivesse anunciando uma ida ao supermercado.

— Qual deles é Ahmad?

— Aquele que lhe deu os brincos.

— Você o ama?

— Oh, sim, eu o amo! Ele é tão honesto, tão bom... Sei que soa tolo, mas ele é selvagem e nobre.

— Não é tolo, não quando se aplica a esse povo. E ele, ama você?

— Não me interprete mal, mas todos eles me amam. Acho que tem mais a ver com a minha profissão
do que com minha personalidade. Mas com Ahmad é diferente.

— Sei que você é feliz — disse Camilla, dando partida no carro, — Fico feliz com isso. Vejo-a amanhã!

Crianças e cachorros correram ao lado do carro, enquanto Camilla o dirigia para a montanha. Lá,
ganhando velocidade, ela passou pelos lagos translúcidos, cujas cores variavam do branco-pérola ao
verde-esmeralda. Passou também por uma pequena aldeia, com casas de paredes de barro. Ela estava
se afastando do coração do Afeganistão, em direção à estrada que levava a Bamian, a Cabul e,
finalmente, ao avião de volta à Inglaterra.

Meghan estava perdida para sempre, agora. Camilla precisava pôr de lado qualquer esperança de que
a irmã voltasse para a Inglaterra. Era tarde demais! Meghan descobrira seu verdadeiro lar e ela nunca
seria capaz, nem tentaria, tirá-la dele. "Tudo que eu quero é que você seja feliz. Tão feliz quanto eu
sou". Não havia como interpretar errado essas palavras: Camilla também tinha de construir a sua
felicidade, achar o seu caminho. A irmã amadurecera sozinha, seguindo seu próprio caminho e as
coisas jamais poderiam ser as mesmas.

Quanto a Camilla, tinha apenas começado a procura. Não seria Malcolm seu caminho? Não, ele era
apenas uma parte disso. Mas ela jamais poderia tê-lo. Então sua longa procura iria consistir em
construir uma vida na qual pudesse ser feliz sem ele.

Camilla sentiu-se desesperada, tentada a virar o carro por cima dos rochedos. Mas seria fácil demais,
muito covarde.

A viagem de volta era muito curta para que ela pudesse organizar todos os pensamentos confusos que
lhe ocorriam. Esperava estar de volta ao hotel antes do escurecer.

Fazendo uma curva, levou um susto. Viu um pequeno carro esporte quebrado, bloqueando a estrada.
Assim que se aproximou, diminuiu a marcha, parou, desceu e correu até o automóvel.

O motorista tinha a cabeça caída sobre o volante. Alarmada com isso, Camilla chegou bem perto do
carro, debruçou-se e perguntou:

— Posso ajudar?

Para seu horror, um afegão alto e amedrontador levantou-se e olhou para ela. Era seu perseguidor, o
esfaqueador do restaurante, aquele que a tinha seguido ao bazar de roupas usadas. Ela ficou
paralisada de terror, sem ação, desprotegida. Com o coração aos pulos, percebeu que aquilo era uma
armadilha.

Antes que pudesse se mover, ele já havia saído do carro e a amarrara pelos braços com brutalidade,
provocando muita dor. Ela se debateu e ouviu atrás de si uma risada seca e familiar.

— E então, minha bela rosa inglesa, ainda lutando?

Era Patrice Desmarets!

CAPÍTULO XV

Patrice estava de pé em frente a ela, a figura elegante vestida impecavelmente num conjunto de linho,
camisa cáqui e chapéu panamá. Ele levantou uma das mãos e tocou o rosto dela.

Com os braços presos, Camilla sacudiu a cabeça para trás.


— Antes não era assim! Ah, ma chère, acredito que houve um tempo em que você simpatizava bastante
comigo.

— Nunca! Eu me enganei a seu respeito, só isso!

— Não tenho tempo para discussões agora, minha cara.

— Você vai me matar?

— Matar não, ma chère. É tão vulgar... Eu prefiro fair emourir. Cada qual com seu gosto, não é?

— Você vai me matar agora?

— Não, não por enquanto. Vou levar você para uma pequena viagem. — E fez um movimento para o
homem que a segurava, que começou a empurrá-la.

Camilla precisava escapar, e rápido. Esperou um momento de descuido e lhe deu um pontapé com
força. Quando o homem se dobrou de dor, escapou de suas garras, rápida como uma lebre.

O zumbido de uma bala ecoou no ar e ela se atirou ao chão. Antes que pudesse se levantar e fugir de
novo, eles estavam a seu lado. Patrice com uma pistola em uma das mãos e um pedaço de corda na
outra, e o outro homem segurando-a por trás.

— Você não deveria fazer isso com Khodim. Ele não gosta.

Camilla não respondeu. O homem amarrou-lhe os pés e as mãos e amordaçou-a rudemente. Ela foi
levada então para o carro marrom de Patrice, que estava escondido atrás do morro.

Um outro afegão pegou as chaves que Patrice lhe entregava e dirigiu-se para o carro esporte. Camilla
presumiu que ele fosse tirá-lo da estrada, para que ninguém o associasse com seu carro abandonado.
Patrice era bem esperto: tinha pensado em todos os detalhes.

O porta-malas foi aberto e Camilla empurrada para dentro. Medo do escuro de lugares fechados e de
sufocação, tudo isso ela sentiu assim que a fecharam lá. Mas pensou que, por enquanto, estava segura.
Pelo menos ninguém a estava tocando e, uma vez que Patrice ainda não a tinha matado, talvez a
quisesse viva.

E assim seguiram. Camilla foi atirada de um lado para outro, até que a estrada ficou mais lisa e ela
percebeu que estavam em Bamian. Tentou soltar as amarras, para abrir o porta-malas e gritar por
socorro. Pensou na estrada cheia de gente, talvez observando o carro elegante, pessoas que não
poderiam adivinhar que uma jovem estava aprisionada naquele compartimento pequeno e quente.

Se tivesse que morrer, ela gostaria que fosse depressa. Não queria brincar de gato e rato, e sabia que,
com Patrice, um final como esse era mais que provável. Ele não tinha escrúpulos.

De repente, o carro parou. Camilla começou a suar frio. Seria agora, em algum vale solitário, que a
tirariam do porta-malas e baleariam? Mas Patrice faria perguntas primeiro. Ele queria alguma coisa, ela
podia pressentir. Cerrou os dentes. Aquele homem não conseguiria nada.

A luz inundou o local, cegando-a, e, antes que percebesse onde estava, uma venda foi colocada em
seus olhos. Nenhuma palavra foi dita. Então, ela sentiu-se levantada do porta-malas e jogada sobre
ombros musculosos.

Começaram a subir o que parecia ser uma colina. Era um caminho sinuoso, pois o esforço os fazia
ofegar. De repente, entraram no que poderia ser uma caverna ou um túnel. Camilla podia sentir a
atmosfera opressiva e úmida. Eles ainda estavam subindo, e, pelos movimentos, pareciam estar
galgando degraus.
Então chegaram à luz do sol, e o ar fresco a atingiu no rosto. Atiraram-na ao chão, tirando as amarras.
Ela tentou tirar a venda dos olhos.

— Antes que você faça isso, devo lembrá-la de que um movimento, um grito, uma tentativa de atrair a
atenção e você estará morta.

Camilla obedeceu e tirou a venda. Observou a rocha lisa, as paredes altas, o teto abaulado, as cores —
e soube onde se encontrava.

A boca da arma de fogo a seu lado não poderia tê-la assustado mais. Estavam sentados na cabeça do
Buda. Camilla era prisioneira numa gaiola com sessenta metros de altura em três lados e, no quarto, a
única saída, tinha apenas trinta centímetros de largura e era guardada pelo afegão armado.

— Eu a avisei. Nenhum movimento rápido.

— Você não pode me manter aqui para sempre. Os turistas vão voltar amanhã. Talvez esta noite.

— Não, esta noite não. E não planejo tê-la aqui para sempre. Até amanhã de madrugada será
suficiente.

— Se acha que pode me assustar, para que eu lhe diga onde está Meghan, engana-se. Você pode me
torturar que nunca lhe direi nada.

— Não costumo torturar as pessoas. E não preciso que você fale. Sei onde sua irmã está.

— É mentira!

— É verdade. Ela está com a tribo Kushi de Suer Muhammad, no lado noroeste de Bandi Amir.

— Então por que não me mata de uma vez?

— Preciso de uma carta.

— O quê? Uma carta de agradecimentos?

Patrice ignorou o comentário.

— Sabe, é impossível aproximar-se de sua irmã, por causa do anel de proteção que a tribo estabeleceu
em torno dela. Então preciso que você peça a ela para vir a Bamian, e sozinha. Convide-a para jantar,
se preferir. Ela irá conhecer sua caligrafia.

— Por que eu deveria ajudá-lo a matar a minha irmã, se você vai me matar de qualquer forma?

— Mademoiselle tem maneira grosseira e vulgar de colocar as coisas, não? É simples: se você nos
ajudar, ninguém mais será prejudicado. Caso contrário, terei que matar Malcolm Armstrong.

— Malcolm não! — gritou ela, avançando na direção dele, mas o cano da arma foi colocado em sua
frente.

— É uma questão de prioridades.

— Você jamais poderia fazer isso! Jamais conseguiria matá-lo!

— Eu poderia matá-la agora, onde você está.

— Mas eu não sou Malcolm!

— Minha paciência é interminável, ma chère. Sua recusa não quer dizer que sua irmã vai sobreviver.
Um dia terei minha oportunidade, e esteja certa de que não a perderei. Uma curta caminhada pelas
colinas, sozinha, uma visita à capital, e ela não voltará jamais. E Armstrong também. Talvez um tiro
através da janela do quarto dele, ou cianureto nos figos do jardim. Dessa forma, é simplesmente uma
questão de qual morte você prefere provocar.

Ela engoliu em seco e percebeu que estava encurralada.

— Mas que garantias posso ter de que você não vai matar Malcolm?

— Nenhuma.

Camilla ficou quieta. Era impossível argumentar. Patrice estava em posição de superioridade, e tinha
uma arma na mão. Ela olhou para o vale: aquele talvez fosse o último pôr-do-sol a que assistiria. Fez
um sinal para o afegão, para que a deixasse a sós com Patrice, e o homem obedeceu. O francês tirou
do bolso um pequeno pedaço de papel e uma caneta de ouro, colocou-os aos pés dela, moveu-se
através da pequena passagem e sentou-se na beirada da porta.

— Estamos sozinhos, agora. Ninguém, além de mim, saberá que você vai escrever.

— Eu saberei! Você pensa que minha própria vida vale mais do que a de minha irmã?

— Não estou pedindo que troque sua vida pela de sua irmã. Eu peço que salve a vida de Armstrong,
ajudando-me a capturar uma pessoa que irá morrer mais cedo ou mais tarde.

Os argumentos dele eram persuasivos e Camilla virou o rosto para outro lado. O silêncio e a noite
caíram sobre eles.

Sentada sobre a cabeça do colossal Buda, ela pensava em por que não pulava e acabava com tudo de
uma vez. Afinal, que motivos tinha para viver? Nem Meghan nem Malcolm precisavam dela; pular
significava livrar-se dos problemas e enganar Patrice. Mas também significava seu próprio fim, e esse
pensamento a apavorava. Era tão impossível matar a si mesma como matar outra pessoa.

As horas passavam. Patrice estava quieto. Ela virou-se e o observou: sentado, encostado ao batente da
porta, o cano do revólver brilhando à luz da lua. Talvez estivesse adormecido. A esperança a inundou:
talvez pudesse passar por ele nas pontas dos pés e fugir. Começou a caminhar na direção dele.

— Eu estou acordado, ma chère.

Então ela gritou. Até agora tudo tinha parecido ficção, algum filme de suspense que ela poderia
interromper mudando de canal quando quisesse. Mas o nascer do dia estava cada vez mais próximo, e
em poucas horas seu corpo cairia nas pedras lá embaixo. Não havia nada que ela pudesse fazer para
mudar a situação.

A realidade subjugou-a. A noite estava escura e ela queria alguém ali para abraçá-la, passar a mão em
seus cabelos, esquentá-la, dizer que tudo não passava de um pesadelo. Queria Malcolm, só Malcolm.
Agora, quando já era tarde demais, pensava em todas as coisas que poderia ter dito, em tudo que
queria que ele soubesse. Mas havia uma coisa, uma última coisa que poderia fazer por ele: escrever a
carta. Mas não antes que visse as cores rosa e laranja surgindo no horizonte. Quando visse o sol mais
uma vez, quando ouvisse o lamento do muezzim, iria escrever. E morrer.

Tomada a decisão, começou a andar pela cabeça do Buda. Pelo canto do olho, viu uma figura de branco
e a esperança inundou-lhe o coração. Por um momento pensou que seus olhos lhe estavam pregando
uma peça. Então o branco se moveu: era uma pessoa! E parecia um homem. Camilla tinha certeza de
que ele a tinha visto, pois um braço minúsculo, a distância, abanara fracamente.

Sua mente trabalhava rápido. Como poderia atrair a atenção dele? Como poderia atraí-lo para cima?

— O que você está fazendo tão perto da beirada, ma petite?

Ela virou a cabeça, olhando para Patrice, torcendo as mãos enquanto tentava arquitetar um plano.
— Não fique aí. Eu não gostaria que você caísse.

Camilla voltou para o centro da cabeça do Buda e sentou-se, as pernas cruzadas. A palma de sua mão
tocou em alguma coisa solta e dura. Uma pedra. Ela teve uma idéia.

— Toda essa espera... Eu estou entediada — disse, em voz alta, a voz ecoando na abóbada. — Quisera
que tudo já estivesse acabado.

— Esperar pode ser aborrecido — concordou ele, bocejando. Se pelo menos você pegasse aquela
caneta.

Ela pegou a pedra e a atirou.

— O que está fazendo?

— Apenas atirando pedras — respondeu ela, esperando que, quem quer que estivesse lá embaixo,
percebesse o pedido de socorro.

Atirou outra pedra, e outra e outra, e esperava que isso significasse uma mensagem.

— Pare com isso! Está me aborrecendo!

Camilla não respondeu. Atirou outra.

— Ouça, ma chère, já fiz muito em deixar você ver o nascer do sol. Portanto, não me provoque: pare de
jogar essas pedras.

Ela não queria provocá-lo. Parou. Calculou que o estranho de branco deveria levar uns quinze minutos
para chegar à cabeça do Buda. Sabia que tinha que manter Patrice distraído até lá.

— Patrice?

— Eu pensei que você não quisesse conversar.

— Pois quero. É a nossa última conversa, afinal. Por favor, fale comigo.

— O que você gostaria que eu falasse?

— Você já foi casado?

— Que engraçado! — Ele riu. — "Você" já foi casada?

— Eu perguntei primeiro.

— Você ainda é capaz de fazer humor! Boa menina! Eu gosto disso! Se não soubesse tantas coisas, eu
a manteria comigo. O que acha?

— Acho que seria melhor estar morta.

Patrice riu novamente.

— Não, ma chère. Não me referia a isso. Teria sido melhor perguntar: você acha que fui casado?

— Acho que você foi vil. E acho que só se tornou repugnante depois que ela morreu.

— O que faz você pensar que ela morreu?

— Você se divorciou dela?

— Não.

— Ah, então aí está! Você foi casado!


— Não, você está enganada. Nunca fui. Mas, chère mademoiselle, não deve me julgar tão severamente.
Não sou assim tão odioso. E, embora não possa me igualar ao seu Malcolm, eu me interessei por você
uma vez, à minha maneira.

— Não posso acreditar nisso.

— Mas é verdade. Veja, você está querendo pôr toda a culpa em mim. Mas sou inocente. Eu realmente
tentei fazê-la ir embora. Tentei salvá-la. Mas você foi tão teimosa... Sinto muito que tenha que terminar
assim.

— Suponho que você vai me dizer que não quer realmente me matar...

Patrice levantou a mão esquerda.

— Matar, matar, matar! Sempre essa palavra! É claro que eu não quero. Mas um homem de negócios
nem sempre faz o que quer.

Naquele momento, Camilla ouviu o eco distante de uma pedra, atirada dentro dos corredores. Olhou,
assustada, para Patrice, mas ele parecia não ter ouvido: estava imerso em pensamentos.

— O que não entendo — começou ela, tentando distrair a atenção dele — é como você sabia quem eu
era e quais os meus objetivos aqui, mesmo antes de me conhecer. Foi você quem arranjou aqueles
"acidentes", não foi? O ataque do mulá, o esfaqueamento no restaurante, as cartas, o tiro...

— Eu já disse: foi tudo para diverti-la. Mas, já que me pergunta, vou dizer como aconteceu. Você nunca
poderá contar a ninguém. — Ele levantou-se e, atravessando o estreito istmo, sentou-se, pegando a
arma que repousava em seus joelhos. — Eu sabia que as estranhas circunstâncias do desaparecimento
da Sra. Cowley provavelmente trariam algum membro da família até aqui, para procurá-la. Sabia
também que essas investigações iriam levar a descobertas sobre as minhas atividades, e que a Sra.
Cowley, se encontrada, poderia depor contra mim. Então comecei a trabalhar. Num país como este, um
homem rico e "generoso" pode encontrar muitos amigos... Descobri o nome de solteira de sua irmã
através da ajuda de alguns conhecidos na Embaixada, e pedi que meus amigos no aeroporto me
informassem sobre quaisquer Cowley ou Simpson que chegassem da Inglaterra. Foi minha boa sorte
que trouxe você, uma linda mas inocente garota. Não foi difícil seguir seus passos ou ganhar sua
confiança. Difícil foi tirá-la do caminho. Isso a trouxe para esse beco sem saída. Se pelo menos você
tivesse me ouvido...

— Meghan não está interessada em você ou nos seus negócios, sabia?

— Mas não posso correr esse ou qualquer outro risco. Sei que não preciso me justificar perante você,
mas talvez isso torne tudo mais fácil. Sabe, ma chère, você tem interferido no que não é de sua conta. E
me condena de imediato, sem fazer nenhum esforço para me entender. É sempre assim. Aqueles que
fazem alguma tentativa para trazer satisfação para as pessoas são perseguidos e condenados, até
serem levados a certos atos... É o meu caso. Eu não forço ninguém a comprar heroína; eu não poderia
vendê-la se ninguém quisesse comprá-la. E quero que saiba que não matei Tom.

— Eu sei. Os Kushis o mataram. Ele mereceu.

— Lá vem você novamente! — disse ele, esfregando o cano da arma na camisa. — Condenando uma
coisa sobre a qual nada sabe. Um exemplo típico de preconceito. É por causa disso que você tem que
morrer. Ninguém entende. Eu não quero machucar as pessoas, mas elas me forçam a me defender.

Ele interrompeu a conversa e deu um pulo, rodopiando e atirando a esmo. O som ecoou pelo vale. Uma
sombra emergiu na escuridão, arremessando-o contra o solo, de forma que a pistola foi mandada para
longe, deslizando pelas pedras. Uma voz soou, firme e forte:

— Camilla! A arma!
Quanto ela conhecia aquela voz. E quem mais ela desejaria que a salvasse, além de seu amado?
Obedecendo instantaneamente, correu, mas, na afobação, esbarrou o pé na arma e a fez cair lá
embaixo, nas pedras.

Patrice e Malcolm já haviam começado uma batalha mortal. Lutavam e se equilibravam como podiam
na cabeça da estátua. Malcolm dominou Patrice e colocou os joelhos no peito dele, Camille queria
correr para ajudá-lo, mas as pernas não lhe obedeciam, mantendo-a presa ao chão.

— Entre na caverna! — disse Malcolm.

Ela correu para o escuro interior da caverna. Não podia suportar ver os dois homens lutando à beira do
precipício, mas também não poderia esperar pelo resultado. O bom senso dizia-lhe para correr, mas
havia uma coisa maior em jogo: o conhecimento de que sua vida estava tão ligada à de Malcolm que
não poderia continuar vivendo se ele morresse. Portanto, tinha que esperar, o coração na garganta,
apertado, dolorido. Sabia que aquela era uma luta de vida ou morte.

De repente, percebeu que os contornos dos combatentes estavam ficando mais claros. Pôde distinguir
os cabelos dourados de Malcolm e os cabelos castanhos de Patrice. A manhã começava a raiar no céu,
acima das montanhas.

A luta terminou de repente. Eles tinham rolado até o limite do grande rochedo, e Patrice, com a última
gota de energia que lhe restava, mantinha a cabeça e os ombros de Malcolm sobre o precipício. Camilla
viu o corpo dele relaxar e, por um momento negro, pensou que seu amado estivesse morto. Então, com
uma determinação poderosa, Malcolm voou como uma seta e empurrou o francês no ar. As mãos bem
tratadas de Patrice fecharam-se no vazio e ele desapareceu nas sombras. Fez-se silêncio.

Camilla correu para Malcolm, que já estava em pé. O coração dela doía de amor e de orgulho, ao vê-lo
cansado e sujo, mas vivo. Ela queria olhar para baixo, para ver onde Patrice tinha caído, mas Malcolm
agarrou-lhe o braço e a impediu.

Camilla não se controlou mais. Enterrou o rosto no peito largo e forte e chorou de alegria, alívio e amor.

— Poderia ter sido você! Poderia ter sido você!

E caíram, exaustos, na pedra. Ficaram sentados lá por alguns minutos, um nos braços do outro. Então,
ele lhe levantou o rosto pálido e manchado de lágrimas, e, tremendo de emoção, a olhou
profundamente.

— Seu rosto é o mais querido do mundo, sabia? — disse ele, num tom que ela nunca tinha ouvido
antes. Havia amor naquela voz. — Camilla... — Malcolm segurava o queixo dela com dedos trêmulos.

— Ontem de manhã, quando estávamos brigando, antes de fugir, minha querida tola, você disse: "Por
que fui tão idiota a ponto de me apaixonar por você?" — Ela corou, mas ele continuou: — Quando
percebi que Patrice a tinha apanhado, quase me destruí, pensando em todas as vezes que poderia ter
lhe contado, mas nunca o fiz. Eu me amaldiçoei por não ter corrido atrás de você ontem de manhã,
forçando-a a dizer de novo que me amava, e dizer-lhe que eu a amava. Nós perdemos vinte e quatro
horas de felicidade porque eu fui um idiota! Fui teimoso, ciumento e insensível. Mas, por favor, perdoe-
me, minha querida, porque eu a amo muito.

O sorriso dela encheu o ar de alegria.

— Malcolm, você não tem idéia de quantas vezes e por quanto tempo eu sonhei em ouvir essas
palavras! — A adoração estampada nos olhos azuis dele era a coisa mais linda que ela já tinha visto.

— Eu te amo, querido, eu te amo!

Ele enterrou o rosto nos cabelos dela, respirando-lhe o perfume.


— Mal posso acreditar! E pensar que eu tinha medo de que você amasse Ali Shah!

— Ali Shah! Oh, Malcolm, você não poderia estar mais errado! Você é o único homem que eu amo!

— Ele sentiu-se atraído por você...

Camilla suspirou. Sabia disso.

— Eu era apenas uma novidade para ele. Ali Shah vai esquecer com o tempo. E eu nunca o encorajei,
porque sabia que você era o único homem para mim.

Então ele a beijou, um beijo de pura ternura. Acariciou-lhe depois o pescoço, o rosto e os lábios, numa
promessa de amor mútuo. As mãos dos dois moviam-se sobre os corpos, na primeira e orgulhosa
exploração. Várias vezes aquelas mãos se encontraram e se apertaram, prometendo nunca mais se
separarem.

Quando finalmente eles se afastaram, Camilla tocou-lhe os lábios com os dedos e murmurou:

— Este foi um beijo verdadeiro... o primeiro beijo verdadeiro que você já me deu. E espero que não seja
o último...

Abraçados, eles se encostaram na rocha e observaram o lento romper do dia. Em algum lugar, um
pássaro começou a cantar.

— Há quanto tempo você me ama? — murmurou ele.

— Desde sempre. E poderá ser para sempre. Eternamente.

— Eu não saberia dizer o dia exato em que me apaixonei por você. Mas posso dizer-lhe o dia em que
soube disso. Foi quando você veio à escola e eu a encontrei lá, na sala dos professores, pálida e
trêmula. Naquele momento soube que você era mais querida para mim do que minha própria vida, a
qual eu daria para protegê-la de qualquer perigo. E você era tão jovem e ingênua que eu tentei, sem
sucesso às vezes, não tocá-la até estar certo de seus sentimentos. Mas nunca tive essa certeza e isso
me deixava louco, fazia-me dizer coisas totalmente sem propósito, especialmente quando pensava que
estivesse interessada em Ali Shah.

— Oh, querido, querido, querido! — Era tudo que Camilla conseguia dizer. Então seus olhos brilharam e
ela o provocou: — Você não gostou de mim quando nos encontramos pela primeira vez...

— Você também não gostou de mim; portanto, estamos empatados.

A lembrança do antagonismo daqueles primeiros dias foi dissipada assim que os lábios deles se uniram
num beijo apaixonado.

— Como você me encontrou?

— Esperei que você voltasse, pensei que estivesse apenas acalmando a raiva em algum lugar. Admito
ter sido injusto. Nunca suspeitei que você fosse sozinha para Bandi Amir. E, se eu fosse procurá-la,
talvez nos desencontrássemos e eu a perdesse. Mas quase fiquei maluco. Cinco horas e nenhum sinal
seu! Você pode imaginar meu pânico? Finalmente emprestaram-me um carro, parti para Bandi Amir e
achei o jipe. Minha primeira reação foi de desespero, por você não estar lá. Não sei como alguém pode
imaginar tantas coisas horríveis num segundo, mas eu o fiz. Então notei que havia várias marcas de
pegadas em volta do carro e que outro veículo havia feito manobras e se dirigido para o leste. Eu tinha
notado as mesmas marcas do lado do morro, antes. Alguma coisa estava acontecendo.

Camilla acenou com a cabeça e ele continuou:

— Comecei a procurar por pistas. Vi os brincos Kushi jogados no carro abandonado, então deduzi que
você tinha ido para Bandi Amir, ver sua irmã. Mesmo porque, o carro estava apontando para aquela
direção. — Ele balançou a cabeça dourada. — Desmarets foi muito descuidado. Deixou alguns
daqueles extravagantes cigarros caídos em volta. Então parti para Bamian e logo descobri que várias
pessoas tinham visto aquele notável carro marrom vindo nessa direção. Eu mesmo o descobri,
estacionado não muito longe daqui, mas estava escuro e eu não tinha idéia de para onde ele a levara.
Então vasculhei essas cavernas. Levei quase a noite toda fazendo isso. Foi pura sorte ter visto você.

— Não foi sorte, foi o destino. Você já salvou minha vida três vezes, provavelmente mais. Já perdi a
conta. Minha vida é sua.

Malcolm pegou a mão dela com carinho.

— Vamos nos casar?

— Casar! — Camilla nunca tinha pensado em escutar aquelas palavras ditas pelos lábios dele.

Afastou-se dele, meio assustada. Como poderia ter esquecido algo tão importante?

Ele tentou alcançá-la, mas ela recuou.

— Camila, o que há de errado?

— Oh, Malcolm. Você é tão cruel em me pedir em casamento quando sabe que não é completamente
livre...

— Não sou livre? — Confusão e um pouco de impaciência apareciam na voz dele.

— E Nurjan?

— Nurjan! Sua tola, tola querida! Eu lhe disse há muito tempo, quando você me acusou de roubar a
noiva de Ali Shah, qual era a verdadeira situação. Que eu estava apenas orientando a moça, que estava
fazendo um favor a ele!

— Foi isso que Ali Shah disse. Mas não pude acreditar em você. Eu vi você e Nurjan juntos num
restaurante, uma vez. Rindo e se beijando...

— Ganhar a bolsa de estudos significou muito para Nurjan. Eu estava feliz por ela. O beijo... não foi
como os nossos, acredite. Além do mais, Ali Shah e Nurjan se dão muito bem. Eles se amam à maneira
deles. Acho que se casarão, mas não agora. A educação de Nurjan vem primeiro.

Camilla viu como tinha estado errada sobre tudo. Prometeu a si mesma acreditar sempre nele, dali por
diante Tinha muito o que aprender sobre amor, mas a base estava sólida agora e, juntos, eles iriam
construir o resto. Tinham a vida inteira pela frente.

— Eu acredito em você, Malcolm...

Num só movimento, eles se ajoelharam. A paixão que a envolvia a fez suplicar por beijos, mas mesmo
esses não podiam extinguir o fogo que a consumia. O coração batia descompassado. Sensualmente, os
dedos dela moveram-se livremente pelas costas musculosas de Malcolm. As mãos dele responderam,
acariciando cada parte do corpo feminino, como que procurando memorizar a maciez de cada contorno,
de cada linha.

— Seus cabelos são tão bonitos — murmurou ele, acariciando-os. — Têm o brilho do cetim. E a pele é
tão bonita como as pétalas de uma flor.

Malcolm correu as pontas dos dedos na pele nua dos braços dela, até que Camilla gemeu de desejo.

— Eu sei, meu amor, eu sei — disse ele, com voz trêmula, entre beijos. E moldou seu corpo ao dela até
Camilla sentir que tinham quase se tornado uma só pessoa.
E era isso mesmo que ela queria: ser parte dele. Porque então nunca poderiam ser divididos. O corpo
dela pediu por aquela satisfação completa, uma exigência que gritava em suas veias e ouvidos e em
cada pulsação de seus músculos.

— Agora. Malcolm, agora — ela o estimulava com a voz e as mãos, sem controle, alisando as costas
dele.

A resposta foi intensa e imediata. Camilla exultou com seu poder de excitá-lo e agradá-lo, mas ele se
afastou. Ela sufocou um grito de angústia e o viu sentar-se.

— É tão difícil para você como é para mim, Camilla — disse ele, com voz apaixonada e trêmula. — Você
é um anjinho cativante e eu a amo por isso. Mas já esperei tanto que posso suportar mais um pouco.

— Eu não posso esperar! — gemeu ela, proclamando todo o desejo reprimido.

— São só três dias. Para quem já esperou três meses... — Vendo o olhar de espanto dela, ele
acrescentou: — Eu não acho que precisaremos de muito mais tempo para providenciar o casamento.
Ele pode ser realizado na minha casa. Convidaremos poucas pessoas os Hagan, Ali Shah. Olga pode
organizar a recepção. E, com relação à lua-de-mel, poderemos pensar nisso mais tarde.

Tomada de surpresa, mas com o coração transbordando de alegria, ela só pôde pensar numa pergunta
fútil:

— Mas... mas o que devo vestir?

— Acho que o vestido de casamento de minha mãe vai servir perfeitamente. Ainda o tenho. Ela era
mais ou menos do seu tamanho.

— Oh, Malcolm... Malcolm! — Camilla atirou os braços em volta do pescoço dele. — É verdade mesmo?
Você pensou em tudo!

— Planejar nosso casamento — confessou ele ternamente — era uma das poucas fantasias que eu me
permitia, quando pensava em nós. Oh, Camilla, sou o homem mais feliz do mundo! Eu sabia, mesmo
nos meus sonhos, que o casamento teria que ser arranjado bem depressa, porque nós não poderíamos
esperar... E jurei que só depois de me casar com você iria fazê-la minha mulher. E serei o melhor, o mais
paciente, o mais gentil professor que você já teve.

— E eu sua mais ansiosa aluna! — Ela riu e corou delicadamente. — Faminta por conhecimentos.

O canto solitário do muezzim estava ecoando acima das sombras do vale. O sol vermelho dispersava as
últimas e nebulosas nuvens. Longe, na aldeia, as pessoas começavam a se mover: os cães latiam, os
homens gritavam e cumprimentavam-se, enquanto Bamian acordava. Um camaleão correu numa pedra,
perto deles.

Malcolm levantou-se de um salto e puxou Camilla, abraçando-a com seu corpo forte e bronzeado. Os
olhos deles brilharam.

— Que tal irmos tomar o café da manhã, minha querida e adorável futura esposa?

Deram uma última olhada no panorama que se descortinava à frente, do alto do antigo Buda, e, então,
começaram a descer de mãos dadas, sabendo que, juntos, iriam alçar vôo para alturas ainda maiores.

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