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A Mulher
Ela é Kendall Moore ― uma belle do sul de espírito tão orgulhoso quanto ela é linda,
impulsionada por uma cruel traição no leito nupcial arrisca sua vida em um jogo perigoso pela
liberdade...
O Homem
Ele é Brent McClain ― o agente confederado que conhece Kendall a bordo do navio de guerra
Jenni-Lyn, e perde seu coração em uma única ardente noite de paixão...
A Glória
Mas a guerra e traição logo os separam ― Brent na furiosa batalha, Kendall em fuga
desesperada da vingança do marido desprezado. Eles vivem somente para a promessa de um amanhã
― e um amor que vai arder para sempre em seus corações.
Prólogo
Charleston, Carolina do Sul
Dezembro de 1860
A noite era escura, o ambiente frio e úmido, e apesar disso, Charleston jamais havia vivido um 18
de dezembro com um espírito tão festivo como aquele. Os sinos das igrejas repicavam, os canhões
retumbavam, os fuzis disparavam em sinal de alegria.
Os vitoriosos entusiastas das multidões ressoavam mais à frente da Fortaleza. As pessoas haviam
enlouquecido.
Carolina do Sul acabava de declarar-se um estado independente da União.
Obviamente, havia aqueles que não celebravam a secessão, embora a maior parte deles já se havia
dado conta de que aquilo era inevitável, quando aquele granjeiro de Illinois, Lincoln, fora eleito. Já
em maio, o governador da Carolina do Sul havia enviado cartas aos líderes dos estados algodoeiros
vizinhos, falando de secessão.
Sim, a maioria dos intelectuais previa a chegada daquele dia como algo inevitável. Mas havia uma
minoria, homens leais ao sul, que se negavam a se unir àquelas multidões embriagadas, e a seus
sonhos de glória. Uns poucos sabiam que o conflito estouraria, que se produziria uma luta fratricida,
e que o sangue banharia aquela terra tão querida, antes de que qualquer declaração de independência
chegasse a ser efetivada.
Um deles estava ali de pé, apoiado contra a parede da Fortaleza, com seu rosto de rasgos duros,
fortes mãos endurecidas pelo trabalho escondidas nos bolsos da jaqueta. Era um sulista, e aquela
noite estava de luto. Havia viajado pelo mundo, era versado em política, e sabia de sobra, que
Lincoln não iria se inclinar cortesmente ante ninguém, a modo de despedida...
Todavia não era ingênuo, naturalmente. Naquele momento, Carolina do Sul estava sozinha. Mas o
Mississipi e a Flórida se dispunham a estender as alas da independência. Texas, Georgia, Arkansas,
muitos seguiriam a iniciativa do estado do Palmito e se separariam da União.
Brent McCain já havia recebido propostas de vários líderes relevantes do sul. Com toda certeza,
muitos estados iriam votar por sua secessão e se formaria uma coligação sulista, se constituiria um
exército e uma marinha de guerra, para o caso dos malditos ianques resolverem causar algum
problema. Quando isso estivesse organizado, o sul faria uma chamada a seus leais filhos para suas
defesas.
Sem afastar seu triste olhar, cinza como o aço, das águas, Brent pensava, ironicamente, que sua
reputação de capitão de navio capaz de enfrentar a qualquer tempestade, e de manobrar com destreza
entre os bancos de areia mais traiçoeiros, o colocava em cheio no assunto. As pessoas bem
informadas já sabiam que o Norte tentaria bloquear os portos do sul, e quando isso ocorresse,
necessitariam homens astutos e com coragem, para furar os bloqueios.
Brent sentiu uma aguda pontada de dor, e um estremecimento que percorreu seu corpo. Ninguém
podia prever o que estavam preparando; o tempo e o destino estavam acima de tudo. Não podia evitar
temer que a beleza e a singularidade de uma autêntica casta de homens e mulheres chegasse a seu fim.
Pensando nos mares do sul, na majestosidade de suas magnólias e nos pântanos da Flórida, ao evocar
a plantação que sua familia possuía em San Augustine, se enfureceu. Apesar de haver renunciado a
um bom número dos chamados «passatempos de cavalheiro», adorava o salão onde sua mãe tocava
espineta[1], sentia falta de um bom conhaque, depois da caça pelas colinas georgianas de linhas puras,
erguidas como diligentes sentinelas.
Havia navegado pelos mares do sul com seu pai e seu irmão. Havia trabalhado nos campos junto
com os negros e os índios. A plantação lhes havia custado sangue, suor e lágrimas, morreria antes
que...
Suspirou. Quando chegasse o momento da luta, estaria preparado. De qualquer forma, não podia
crer que esses ianques fossem uma maldita quadrilha de covardes. Se fosse assim, tudo acabaria em
poucos meses.
Havia atracado num número suficiente de portos do Norte para não se enganar com essa ideia.
Na Fortaleza fazia frio. Não tinha nem ideia do motivo pelo qual continuava ali, contemplando o
mar e encarando a gélida brisa invernal. Seria melhor se abrigar no confortável camarote principal
do Jenny-Lyn. Um bom trago de conhaque o faria esquecer todos esses presságios.
Um rápido movimento atraiu sua atenção para o lado norte da Fortaleza.
Era uma mulher, cuja silhueta se recortava contra a luz do porto e o resplendor da lua. Estava de
pé, com o olhar fixo no Forte Moultrie, um posto avançado da União; estava muito longe para que ele
pudesse tê-la ouvido, de modo que havia sido o movimento que lhe havia chamado a atenção.
Primeiro a curiosidade, e logo depois a raiva o impulsionaram a se encaminhar até ela. Era quase
meia—noite, nenhuma mulher respeitável estaria sozinha no porto a essas horas. À medida que, a
grandes passos, cortava a distância que os separava, foi descobrindo, surpreendido, que não se
tratava de uma rameira vulgar, pois vestia roupas extremamente luxuosas. Levava uma capa de
veludo negro sobre um vestido de seda reluzente de cor cinza nacarado, com reflexos prateados. O
estilo da saia, indicava que o modelo era a última moda, tal como o efeito de cascata de seu cabelo,
dourado como mel.
Portanto, se tratava de uma dama, apesar de estar sozinha na escuridão, onde até os homens de boa
índole, embriagados de bourbon, poderiam se converter em violadores e ladrões.
Se deteve, de repente, próximo a ela, que permanecia imóvel, tiritando de frio.
Exasperado, Brent proferiu uma maldição, teria que evitar cair nas armadilhas femininas.
Conhecia muitas mulheres, tanto damas como rameiras, e sabia que a maioria dos membros do
«sexo frágil» era capaz de se comportar como asquerosos gatos de rua. As táticas de salão mais
refinadas do mundo, nem sempre conseguiam ocultar as garras de algumas das componentes do sexo
feminino. De fato, pensando cruamente, preferia a companhia de uma prostituta honesta a uma dessas
belezas do sul, dispostas a levá-lo para a cama, utilizando olhares inocentes.
Mas havia sido educado no galante Sul, e não poderia abandonar uma mulher na fortaleza, com as
ruas cheias de entusiastas foliões. Ela poderia merecer qualquer coisa que pudesse lhe ocorrer, mas...
demônios, devia descobrir o que fazia ali. Se algo acontecesse a ela, teria remorsos.
―Senhora... ― parou no instante em que ela se voltou para ele e lançou um grito alarmado,
surpreza ao ver interrompida sua silenciosa vigília. Era evidente que se acreditava sozinha.
Quando se voltou, se deu conta de que era incrivelmente bela. Foi recebido por maravilhosos
olhos azuis tão escuros e turbulentos como o mar à noite, olhos cativantes, emoldurados por
sobrancelhas aveludadas, negras como a meia-noite. O nariz pequeno e reto, e as maçãs do rosto, que
se destacavam, configuravam um rosto estilizado e aristocrático. A boca, roxa como um rubi devido
ao frio, formava uma severa linha, embora fosse carnuda e apaixonada.
Era o tipo de gata com que se encantaria de topar de noite, sem se importar o quanto afiadas
fossem suas garras.
―Senhora ― repetiu. A brisa marinha, que soprava com força, inflava o volume da crinolina do
vestido dela, e antes que Brent tivesse tempo de acrescentar algo mais, se viu estendendo os braços
para sustentar o corpo da mulher, que havia desmaiado, e assim pôde evitar que caísse sobre as águas
geladas que rugiam no paredão abaixo.
Era leve como uma pluma, e em seus braços a sentia fria, muito fria. Quando a recolheu, ouviu um
som, algo entre um gemido e um suspiro. A mulher tinha o rosto branco como um pergaminho e seu
corpo havia perdido toda a rigidez.
―Deus! ― murmurou em tom severo, entre preocupado e irritado. Deveria tê-la deixado sozinha.
Sustentava nos braços uma mulher inconsciente, cuja identidade ignorava.
Permaneceu estranhamente indeciso por uns segundos, se perguntando o que fazer com aquela
beleza desmaiada. Ele não era de Charleston e não podia oferecer-lhe maior hospitalidade que a de
seu barco e, com a tripulação a bordo, não era exatamente o lugar para uma dama de boa origem. Se é
que realmente se tratava de uma dama de boa origem, como indicava sua aparência externa. Nenhuma
dama do sul teria ficado sozinha na Fortaleza durante as festividades que se viviam na cidade, naquele
momento. A maior parte de sua tripulação estaria ainda em festa. E, assim como não tinha ilusões a
respeito dos ianques, tão pouco teria grandes ilusões com as mulheres.
Havia passado mais de uma noite divertida na alcova de uma «casta viúva».
Cada vez a notava mais fria. Lançando de novo uma exclamação de raiva, deu meia volta para se
encaminar a passo rápido, com a mulher nos braços, até o Jenny―Lyn.
Graças a Deus, seus homens continuavam nas tabernas e nos prostíbulos de Charleston. Quando
subiu ao Jenny―Lyn apenas tropeçou com Charlie McPherson, mas bastou um olhar colérico do
capitão para que ele se abstivesse de fazer qualquer comentário jocoso. Quando Brent pisou no
convés para dirigir-se ao camarote principal, Charlie se afastou para um lado, observando curioso a
encantadora carga que levava seu capitão, limitando-se a lhe perguntar se necessitava de algo.
―Conhaque, Charlie ― respondeu Brent. ― E sais aromáticos.
―Não temos sais aromáticos! ― declarou Charlie, indignado.
―Então conhaque ― repetiu Brent, impaciente. ― E rápido.
―Sim, sim, capitão McCain! Sim, já vou!
Resmungando algo sobre as mulheres, Charlie se retirou para cumprir o encargo. Brent abriu a
porta de seu camarote com um pontapé e deitou delicadamente a dama na cama.
Continuava pálida e fria como se estivesse morta. Alcançou uma manta grossa e tentou cobri-la
duas vezes, sem êxito, já que o aro da crinolina devolvia voando a manta. Maldizendo em voz baixa,
enfadado, deslizou as mãos por debaixo das grossas pregas do vestido de seda até dar com os
colchetes da crinolina, desabotoou e tirou do corpo dela, aquela monstruosidade imposta pela moda.
Sem saber por qual motivo, a raiva se desvaneceu enquanto a tocava. Sentiu as curvas de seus
quadris e a firme redondeza de suas nádegas. Tinha o ventre completamente liso, e no momento de
retirar a crinolina, suas mãos roçaram músculos longos e esbeltos, perfeitamente torneados. Se
enrubeceu ante aquela intimidade que havia iniciado com tanta irritação, e essa sensação lhe deu um
grande mal-estar interior. Nem por todos os diabos tinha ideia de quem se tratava, e se maldiria
eternamente se caísse na armadilha do matrimônio, por ter sido surpreendido em uma situação
comprometedora com a filha de alguém. Havia visto, muitas vezes, homens que caíram numa
armadilha como aquela.
Seguiu manobrando com aquela armação, e ela gemeu várias vezes, sem que suas sobrancelhas,
longas e curvas, se alterassem na face. Brent a enrolou com a manta e a colou ao seu peito pelas
costas, cobrindo—a com seu próprio corpo. Charlie apareceu com o conhaque, e Brent lhe pediu com
brusquidão, que enchesse um copo.
―Onde a encontrou, capitão? ― perguntou McPherson curioso, sem deixar de estudar a moça,
mostrando cada vez mais interesse, à medida que descobria sua deslumbrante beleza.
―Na Fortaleza ― respondeu Brent, lacônico. ― Muito bem, Charlie. Agora me arranjarei
sozinho.
Charlie coçou seu rosto, relutou a renunciar à excitação provocada pela visão do capitão subindo a
bordo com aquela bela e misteriosa criatura. E com o frio que fazia fora! Charlie conseguiu apenas
sufocar uma pequena risada, morto de vontade de brincar com seu capitão. Pelo visto, o capitão Brent
McCain precisava deixar as damas sem sentido, para poder ficar a sós com elas, tão pouco seguras
deviam se sentir em sua companhia. McCain gostava das mulheres, e seu olhar cinza como o aço, as
seduzia de imediato. Tanto se escolhesse suas conquistas na rua ou nas plantações, as julgava
primeiro com seu ousado olhar, e só compartilhava seus jogos de alcova com aquelas que conheciam
bem as regras. Tinha reputação de trapaceiro temerário, e, apesar de carecer dos modos de muitos de
seus conterrâneos, pois não era adepto de adulações e lisonjas, as mulheres se sentiam atraídas para
aquele abismo que lhe conferia algo especial. Tinha as mãos cheias de calos, a musculatura forte
devido ao trabalho que ele mesmo havia escolhido, e os traços duros e firmes. Dado seu caráter, era
realmente surpreendente vê-lo exasperado socorrendo uma mulher.
Em geral, se qualquer moça houvesse caído desmaiada, Brent teria retrocedido e, adotando o
papel de mero espectador, deixaria que fossem outros que realizassem o trabalho de salvadores.
Obviamente, apesar do capitão McCain ser capaz de beber, rir às gargalhadas e maldizer como
ninguém mais, era, em geral, um homem discreto, um cavalheiro nascido e criado no sul. Era o
segundo filho da família, havia feito fortuna própria com o suor do rosto e o trabalho de seus fortes
músculos, mas havia sido educado para seguir um certo código de honra. Seduzir inocentes era
impróprio para ele.
Por essa razão, a Charlie custava crer que Brent se houvesse aproximado de uma jovem com
propósitos desonestos. Mas então, o que diabos estava fazendo com ela em seu camarote? Nenhum
homem em sã consciência seria capaz de contemplar o rosto e o corpo daquela moça sem ser
acompanhado por maus pensamentos...
―Charlie! ― grunhiu Brent.
―Sim, sim, capitão ― disse Charlie, se afastando para a porta do camarote. ― Se eu fosse você,
capitão, me livraria dessa incumbência. Em uma representação em Richmond, vi uma dama cair
redonda, e todos maldiziam essas endemoniadas armadilhas. Sim, capitão ― repetiu Charlie, ante o
olhar gelado de McCain dirigiu-se a toda pressa até a saída.― Isso faria eu, sem dúvida.
Charlie fechou a porta à suas costas. Brent examinou a dama e, resmungando indignado, bebeu um
grande gole de conhaque.
Então levou o temível líquido aos lábios dela, inclinou seu rosto e verteu o copo para dar um
pouco de conhaque a sua boca. Ela se engasgou, cuspiu e tossiu, gemeu levemente e sacudiu com
languidez a mão, abrindo pouco a pouco seus olhos de cor anil.
Num primeiro momento, Brent pensou que aqueles olhos expressavam uma dor tão profunda, que
era capaz de escurecê-los, até dotá-los de uma cor mais penetrante que a do mar, mais tempestuoso
que o de uma tormenta rasgando o oceano, mas esse olhar de dor se desvaneceu tão rápidamente, que
pensou que seus próprios olhos lhe haviam enganado.
De qualquer modo, a mulher não parecia horrorizada por estar no interior de seu camarote.
Observou o capitão por alguns segundos e depois começou a examinar com atenção tudo o que a
rodeava. Voltou a olhá-lo.
―Por favor, cavalheiro, onde me encontro?
―Está a bordo de um barco, senhora, o Jenny―Lyn.
―Foi você quem me trouxe? ― Perguntou. Suas faces adquiriam, por fim, certa cor.
Aparentemente, se havia dado conta de que não vestia a crinolina.
―Sim ― respondeu de modo terminante.
Continuou observando-o, assimilando a informação com tranquilo interesse. Brent voltou a se
inraivecer.
―A encontrei na Fortaleza ― acrescentou com rudeza. ― Você desmaiou e eu a troxe aqui.
―Então, estamos em seu barco?
―Sim, senhora, este é meu barco ― respondeu com um débil sorriso.
Ela se levantou; era muito alta para uma mulher. E muito bonita. Sem a distorção imposta pela
crinolina, se apreciava melhor a leveza e fragilidade de sua figura, e ele percebeu a delicadeza de
sua pele, de aspecto sedoso. Desaparecida a palidez, a frescura iluminava suas faces com um tom
rosado natural que armonizava à perfeição com a cor de mel de seu cabelo, a mancha de tinta escura
de suas sombrancelhas, e o profundo azul de seus impresionantes olhos.
Ela começou a perambular pelo camarote com certo desassossego.
―Lhe peço perdão, capitão. Jamais em minha vida havia desmaiado. Temo que esqueci de comer
devido à excitação do dia.
―Entendo ―replicou Brent, cruzando os braços sobre o peito, sem deixar de observar sua
misteriosa hóspede. ― Esteve muito ocupada com as celebracões?
Ela baixou a vista.
―Não, senhor, hoje não estava em festa.
―É você unionista? ― perguntou.
―Não, senhor ― murmurou. Fixou a vista na crinolina, embora o fato de não a estar vestindo não
parecia importante. Dava a impressão de que aceitava a situação com uma calma assombrosa. ― Sou
da Carolina do Sul, capitão.
De repente, levantou o olhar e esboçou um sorriso deslumbrante. Seus lábios estavam bem
perfilados, seus dentes eram pequenos, brancos e perfeitos. Quem em seu seu juízo perfeito havia
permitido que uma beleza como aquela vagasse sozinha pelas ruas?
―E você, capitão?
Brent captou de imediato o sentido implícito daquela amável pergunta, compreendeu que a mulher
desejava centrar a conversa sobre ele. Bem, pensou, franzindo o cenho. Seguiria o jogo um pouco
mais.
―E eu? ― perguntou à sua vez. Se levantou e, enlaçando as mãos nas costas, rodeou sua
convidada até alcançar o batente da porta do camarote, de onde continuou observando—a.
―Esteve na festa hoje? ― insistiu ela, dedicando-lhe outro de seus radiantes e coquetes sorrisos.
―Se estive comemorando? ― repetiu com certa amargura, como se se tratasse de uma pergunta
que tivesse que formular a si mesmo.
―Cavalheiro! ― exclamou impaciente. ― Se chegássemos a entrar em guerra, até onde se
inclinaria sua lealade?
―Até o meu estado ― respondeu.
―Qual estado? ― inquiriu com voz rouca.
Franzindo o cenho com expressão brincalhona, a olhou diretamente naqueles olhos azuis, tão azuis.
―Flórida, senhora. Sou da Flórida.
―Flórida ― repetiu, sorrindo. Voltou a baixar a vista para contemplar distraidamente as cartas de
navegação, que estavam sobre a mesa de escritório, roçando com um dedo no extremo de uma delas.
Devolveu a ele o olhar. ― Acreditava que nesse estado não havia mais que pântanos e índios, uma
zona muito afastada. Não é mesmo, cavalheiro?
Brent explodiu em uma sincera gargalhada.
―Não, senhora, ali abundam as plantações mais belas que possa imaginar. A terra é rica e fértil, a
temperatura é cálida, e o sol brilhante. O oceano está sempre azul, belíssimo.
Uma vez mais, baixou a vista. Se comportava como a mais convencional beleza sulista e,
obviamente, era distinta de qualquer outra mulher que ele houvesse conhecido jamais, até mesmo das
grandes senhoras ou rameira. Atuava com discrição, quando necessitava receber a resposta que
desejava, embora transparecesse, claramente, o engenhoso funcionamento de seu cérebro. Todas e
cada uma de suas perguntas haviam sido planejadas, estava querendo algo.
Brent tinha a impressão de que ela, sua hóspede, estava julgando-o, submetendo-o a um estranho
exame.
De repente, a ira se apoderou dele e sentiu desejos de estapeá-la. Acaso não se dava conta do
imprudente que havia sido seu comportamento? Apenas por contemplar aquele contorno cálido e
natural dos quadris da mulher, enquanto passeava pelo interior de seu camarote, já se excitava.
Notava que lhe esquentava o sangue... como batia, como lhe fervia.
―Já é suficiente, senhora ― disse bruscamente. ― Não tenho tempo de entretê-la e nem de
satisfazer sua curiosidade. Quero saber quem demônios é você, para assim poder entregá-la a seu pai
ou a seu marido.
Baixou a vista.
―Não há ninguem ― respondeu com suavidade.
―Então lhe rogo, senhora, que me diga o que quer que faça com você.
―Zarpará logo?
―Com a maré matutina.
Seus olhares se encontraram.
―Eu gostaria de partir com você.
Muito lentamente, de forma calculada, Brent percorreu com o olhar sua visitante, da cabeça aos
pés, recreando-se na luxuriosa ondulação de seus peitos e de seus quadris.
―Você não parece ser uma prostituta ― disse secamente.
A moça titubeou e baixou a vista, para levantá-la de imediato e dirigir-lhe um olhar tão veemente
que ele pensou, que a vacilação que havia acreditado perceber, havia sido somente produto de sua
imaginação.
―Não sou uma prostituta, capitão. ― Sua voz rouca lhe provocou uma nova excitação. ― O único
que desejo é descer em outro porto. E... ― Então ela baixou o tom de voz e lhe dedicou um olhar
sedutor. ― O acho bastante... atraente.
Aquelas palavras surpreenderam ao capitão, que arqueou uma sobrancelha como mostra de
ceticismo. Apesar de seus modos, havia algo nela que lhe despertava certo receio. Era
assombrosamente bonita. Suas roupas eram da melhor qualidade, e sua dicção perfeitamente
modulada.
Sentou-se à mesa, se inclinou para trás, colocou as botas em cima da mesa e acendeu um cigarro
para fumar, sem deixar de analisá-la em nenhum instante, com um olhar tão franco que faria
avermelhar a qualquer mulher.
―Senhora, me pergunto se sabe o que está pedindo. Se acaso sofreu um revés de fortuna, não sou
eu o homem que está buscando. Não sou dos que se casam.
―Não tenho nenhuma intenção de persuadi-lo para que se case comigo! ― exclamou, irritada. Ao
ver o sorriso brincalhão desenhado nos lábios do homem e de como arqueava a sobrancelha ante sua
demostração de gênio forte, voltou a baixar a vista ligeiramente, e a falar em tom sedutor. ― Apenas
desejo propor a você um acordo. De verdade, capitão. ― Deu uma olhada para a crinolina. ― Creio
que já estou comprometida. E com um cavalheiro do sul.
―Lhe antecipo que eu não sou um cavalheiro ― alertou Brent, dando uma tragada no cigarro..
Enquanto falavam, Brent não cessava de sentir como seu desejo e sua necessidade aumentavam.
Seu olhar frio e cinza percorreu de novo o corpo da moça.
Enquanto a observava, crescia a ânsia de acariciá-la, ver como seus rosados lábios se entreabriam
ante os seus, ver seus incríveis olhos azuis acesos de paixão... mas ninguém, nem homem nem mulher,
voltaria a se aproveitar jamais dele.
―Senhora, o que pretende? ― Perguntou sem rodeios. ― Se o que se propõe é ter um amante,
provocar ciúmes comigo, para que eu logo tenha que lutar em um duelo, com a única finalidade de
comprazê-la, a advirto que não estou disposto a entrar no jogo. Não vou arruinar minha vida pela
vaidade de uma louca que reclama atenção. Temo, senhora, que muito em breve morrerá a maior
parte dos galantes de nossa terra.
Ela tomou ar.
―Já lhe disse, senhor, nenhum galã virá para me defender.
Senhor! Brent se perguntava que tipo de estranho poder exercia ela sobre ele. Se continuasse
tentando-o, acabaria por perder o controle e arrancaria as roupas que ela ainda usava para possui-la
no chão... O que era? Acaso a rameira mais distinta de todas? Se não fosse assim, como era capaz de
mostrar tanta segurança? Seria, quem sabe, uma viúva, uma mulher que estava muito tempo sem
esposo? Quem quer que fosse, era evidente que não se tratava de uma donzela inocente, e se o que
queria era seduzi-lo na cama, Brent não gostaria de impedi-la, sempre e quando não pretendesse nada
mais.
―Se deseja propor-me um acordo, a advirto que o preço será alto. Explique-me suas condições
― sorriu com frieza ― e eu lhe contarei as minhas.
Parecia que, por fim, suas palavras produziam algum efeito nela, pois enrubeceu e se mostrou
vacilante.
―Desejo chegar a outro porto. ― Após um instante de indecisão, acrescentou: ― Leve-me e serei
sua.
Brent McCain arqueou ainda mais a sobrancelha e permaneceu um momento em silêncio.
―Talvez deva trazer-lhe algo para comer.
―Então, aceita minha oferta? ― Ela perguntou soltando o ar.
―Ainda não ― ele respondeu com voz cansada. ― De qualquer forma, não desejo que volte a
cair desmaiada em meus braços. Prefiro refletir uns minutos mais, antes de decidir se merece ou não
a passagem.
Por um momento ela pareceu perder a calma e o observou como se quisesse degolá-lo. Em
seguida desapareceu aquele olhar assassino e o contemplou sorrindo.
―Lhe asseguro, capitão, que merecerei a passagem.
Ele abriu a porta e chamou Charlie, que se apresentou cheio de curiosidade. Brent pediu que
servisse alguma comida e que não o incomodasse. Ficou desgostoso com McPherson, pois estava
boquiaberto, sorrindo à dama como um macaco, a ponto de saltar sobre ela, que lhe respondeu com
um daqueles encantadores sorrisos sedutores.
Enquanto esperavam, Brent se voltou para ela de forma brusca.
―Sou o capitão Brent McCain ― disse com frieza. ― Como você se chama? Se tenho que
susurrar um nome no auge da paixão, devo saber a quem me dirijo.
Ela se ruborizou de novo, sem perder a compostura.
―Kendall ― respondeu, ― Kendall Moore.
Ele sacudiu a cabeça e se aproximou da porta.
―Charlie, onde demônios está? Por que demora tanto?
Charlie apareceu a toda velocidade, lançando a seu capitão um olhar recriminatório. Em poucos
minutos se encarregou de conseguir uma bonita bandeja com frango frio, pão, manteiga e vinho.
―Está bem, Charlie, obrigado ― disse Brent, deixando o homem fora do camarote.
Brent se acomodou em sua mesa e observou a mulher, que havia se sentado em frente a ele em
silêncio, e começou a comer com apetite, sem perder, em nenhum momento, suas maneiras elegantes e
delicadas. Não se desculpou pelo fato de estar tão faminta. Consciente de que ele a olhava
discretamente, bebeu o vinho, não porque lhe apetecia, mas sim por puro nervosismo, para tentar
relaxar. O homem que tinha diante de si lhe dava medo; parecia Golias, e se movia de com a terrível
agilidade de uma pantera. Não era bonito, mas seu rosto era incrivelmente atraente. Emanava força,
caráter. Suas feições eram duras e angulosas, a mandíbula, firme e quadrada, e seu olhar, franco e
direto. Tinha aspecto de ser um homem muito exigente, sem dúvida perigoso, se ficasse furioso, se se
sentisse utilizado... e ela planejava utilizá-lo.
Tinha a sensação de que o capitão lhe queimava a alma com o olhar e se estremeceu. Deus, havia
escolhido o homem errado. Não era dos que perdiam tempo com galanterias. Mas devia fugir de
Charleston, de modo que teria que seguir adiante.
Voltou a olhá-lo furtivamente. Era alto e de costas largas, com a cintura estreita e elegante. As
calças justas e as botas altas até o joelho deixavam à mostra pernas longas, e robustas como o tronco
de uma árvore, musculosas e bem torneadas.
Pairava sobre a mesa de despacho com dedos que também eram fortes, como suas mãos, grandes e
longas.
Se estremeceu de novo. «Como uma mulher acariciaria um homem como aquele?» Se perguntou.
Mordeu um pedaço de carne para evitar que ele fosse advertido da sua perturbação. Até então, os
homens não lhe haviam proporcionado mais que tristeza.
Voltou a beber o vinho. Havia cometido um erro. Ele irradiava força masculina e virilidade. Era
de carne e osso, caminhava, respirava. Um homem como aquele podia chegar a ser impiedoso. Intuía
isso pelo pulsante olhar escrutador. «Como poderei controlá-lo? ― Se perguntou, desesperada. ― Se
falho, se descobre que sou uma embusteira, se mostrará implacável. Que Deus me ajude. Devo estar
louca; jamais conseguirei. Mas devo tentar conseguir!»
Não tinha nem ideia de como havia surgido seu plano.
Surgiu na sua mente quando o viu e o resto foi feito num impulso. Agora devia concluir o que havia
começado e, o que quer que acontecesse, valeria a pena. Teria que desaparecer antes de que os
acontecimentos que acabavam de se iniciar em Charleston a convertessem em prisioneira, em uma
terra que não era sua.
«Estou louca...»
Quando terminou de comer, se serviu de mais vinho, com a intenção de controlar o tremor de seus
dedos, e dirigiu a ele um frio olhar.
«Por que estará tão enfadado?» Se perguntou.
―Já terminou... Kendall? ― disse ele lentamente, em tom de brincadeira.
Ela assentiu com a cabeça.
―Então, pode levantar-se, por favor? ― Pediu ele com amabilidade, com demasiada
amabilidade.
A estudou detidamente, até ao ponto dela sentir-se nua. Não se tratava de uma principiante,
decidiu. Era jovem e preciosa mas já havia passado da idade em que as garotas sulistas eram
apresentadas em sociedade e se casavam. Jogaria dessa forma com frequência? Estaria acostumada a
buscar amantes? Seus olhos revelavam uma inocência misteriosa, prometendo um enigma e ao mesmo
tempo a sabedoria da sedução feminina... Sem poder evitar mostrar-se cruel, perguntou com desdém:
―O que a faz supor, senhora, que a considerarei merecedora da passagem?
Sem chegar a adquirir a cor cinza de antes, o rosto dela voltou a empalidecer. Ele não se sentia
muito orgulhoso de seu triunfo, mas era justo. Sabia que desde que havia recuperado a consciência,
ela havia estado observando-o atentamente, julgando seus atributos físicos, pensou com ironia, e ele
percebeu que ela por fim, o havia aprovado na inspeção.
Kendall comprendeu de repente como se sentiam os escravos quando eram leiloados. E pela
primeira vez esqueceu seu plano, e num ataque de ira, espetou: ―Porque supõe-se que você é um
jogador... selvagem bastardo! ― E se voltou de repente, buscando a porta do camarote.
―Oh, não, senhora! ― rugiu ele, dirigindo—se até ela rapidamente para atraila para seus braços.
― Já zombou bastante de mim com sua audaz proposição e com a promessa de seu olhar. Esta noite
será minha, Kendall Moore. O acordo está fechado.
Ela jogou a cabeça para trás, e seu olhar, profundo e misterioso, cruzou com o dele.
―Primeiro devemos chegar a outro porto! ― Insistiu ela, com frieza, ― Esta é minha oferta!
Brent apertou os lábios. Seu olhar de aço, pulsante como uma faca, percorreu o corpo da mulher.
―Sua oferta? Bem, senhora, provarei uma amostra do que está me oferecendo antes de aprovar os
termos do acordo!
Pousou seus lábios sobre os dela, acariciando-a. Assaltou sua boca, forçando-a com a sua,
colocando a língua entre seus dentes, invadindo-a de tal modo que era impossível responder com uma
negativa. Enredou os dedos em seu cabelo, estendeu as mãos sobre sua frágil costa, atraindo-a até si.
Mas então... mudou de ideia. Havia tentado abordá-la com a mesma paixão enfebrecida que o
sacudia. Comprendendo que não devia se comportar assim, separou seus lábios dos da mulher, para
acariciá-los com suavidade e delicadeza, mesclando sua respiração com a doçura da dela, que
cheirava a menta e rosas...
Se afastou de Kendall, tirou a camisa para fora das calças e desabotoou os botões de pérola.
Arqueou uma sobrancelha ao ver que ela ajudava a soltar as abotoaduras de prata dos punhos. Ele se
deteve um momento, esperando decidido.
―Agora, Kendall ― disse com voz rouca, implacável ― se quer a passagem, a possuirei agora.
Ela estremeceu, incapaz de resistir à força do homem e ao efeito que sua «amabilidade» exercia
sobre seus sentidos. Havia tocado algo em seu interior, algo que a fazia desejá-lo, por mais perigoso
e exigente que fosse.
Mas se daria conta! Descobriria que era uma embusteira e a expulsaria do barco.
―Agora! ― insistiu, e seu olhar cinza traduzia um desejo já irreprimível.
Ela observou como a camisa de Brent caía ao chão e depois fixou a vista na altura de seu peito,
nos músculos de seus ombros, na letra vê que aparecia por cima da cintura de suas calças.
―Eu... ― Levantou o queixo. Seguramente não se tratava do típico cavalheiro do sul, mas, sem
dúvida se manteria fiel a sua palavra. ― Sua promessa ― disse, procurando que sua voz soasse
firme, ― sua promessa de me levar a outro porto.
Ele apertou os lábios. Devia conseguir que o capitão assegurasse que cumpriria sua promessa,
antes que os tremores ficassem incontroláveis e fugisse devido ao pânico. Era incapaz de fazer
aquilo! Desconhecia aquela classe de jogos! Mas tinha que jogar.
Kendall lhe dedicou um sorriso sensual, puxando graciosamente as pregas de sua saia. O vestido
prateado caiu ao chão como uma cascata de seda, e ela se manteve erguida e orgulhosa, sentindo a
nudez dos seios, que assomavam por cima do espartilho.
―Prometo dar a você a passagem ― murmurou lentamente, desatando de forma sedutora os
cordões do espartilho até que este também caiu ao chão.
Brent jogou sua cabeça para trás e começou a rir.
―Senhora, agora mesmo já a mereceu. Não haverá nenhum problema em levá-la de um lugar a
outro.
Kendall fechou a cara e cruzou os lábios com o dedo indicador. Depois fechou o punho sobre seu
coração, sob os seios.
―Sua palavra, capitão ― sussurrou de forma encantadora, piscando, confiando realizar
corretamente os movimentos que correspondiam a um jogo totalmente novo para ela. ― Sua palavra...
Brent a olhou fixamente, descobrindo com um prazer que lhe rasgava o coração, que sem
espartilho, a perfeição daquele corpo era também autêntica. Tinha ante seus olhos seios firmes e
altos, de cor creme, coroados por duas rosas, abaixo dos quais quase se transpareciam as costelas,
que se estreitavam até uma cintura que cabia entre suas mãos. Com o pulso acelerado, abriu a fita de
sua calça até afrouxá-la, percorrendo com o olhar sua trajetória descendente até alcançar os pés.
Seu ventre era côncavo; suas pernas, longas e esbeltas, as escuras sombras da cintura
acrescentavam encanto à cor mel do cabelo dela, criando um contraste embriagador com a sedosa
intensidade de sua pele.
Brent retrocedeu um passo, devorando—a com o olhar, enquanto seus sentidos ardiam como lava
em fogo.
Se sentou na cadeira que ela havia ocupado antes, enquanto comia, e procedeu a tirar as botas.
Ambos continuavam observando-se, e ele não estava seguro de quem estava hipnotizando a quem.
―Sua palavra, capitão ― insistiu. Pelo amor de Deus! Não podia seguir daquela maneira muito
mais tempo.
Ele sorriu, conquistador, e encolheu os ombros.
―Minha palavra, Kendall. Como já disse, não é muito difícil dar a passagem a você.
Ela teve que morder os lábios. Merecia a passagem apenas porque seu preço era muito barato.
Permanecia de pé, nua, diante daquele estranho arrogante e tremendamente atraente, que a
atemorizava ainda mais à medida que tirava a roupa.
Deixou as botas a um lado e se levantou, para se aproximar lentamente dela. Brent cobriu seus
lábios com a boca e lhe percorreu os ombros com as mãos, acariciando sua sedosa pele, para
deslizar depois ao longo das costas, apreciando a delicadeza de sua curvatura. Ele notava a cálida
carícia dos dedos, a pressionar seu peito...
Kendall separou os lábios para que ele provasse seu sabor mentolado, se afundou cada vez mais
profundamente na boca de Brent, à medida que sua paixão aumentava.
Sua resposta era duvidosa, mas cheia de doçura.
Então, de repente, aqueles dedos pousados no peito do capitão o afastaram, e ela retirou a boca.
Assombrado, viu que o olhar dela se tornava violento. Kendall o observou durante uns instantes e
correu até a porta do camarote.
―Por todos os diabos! ― ele maldisse, a aprisionando com um passo e a segurando pela cintura.
― Está louca? Não pode sair completamente nua! ―Tomou a esbelta figura entre seus braços. ―
Além disso, não irá fugir de mim a essas alturas, senhora!
Enraivecido, a empurrou para a cama sem nenhuma delicadeza. Ela o olhou fixamente, e seus
transparentes olhos azuis pareciam estar recuperando a sanidade. Ele tirou as calças.
Quem cresceu em uma plantação sabe muito bem o que é a vida, mas Kendall não estava preparada
para um homem como Brent McCain. Tal e como havia suposto, era magnífico. Sua cintura e seus
quadris eram tensos como a corda de um chicote, os ombros e o peito musculosos, bronzeados pelo
sol em alto mar.
Kendall cravou a vista nos quadris do homem, nas poderosas colunas que eram seus músculos e no
forte e duro símbolo de desejo que habitava entre suas pernas.
Era magnífico, pensou, e com esse pensamento se apoderou dela um terrivel pânico. Não sabia o
que estava fazendo. Como se arranjaria com um homem assim? Começaria a gritar? Lhe
abandonariam as forças? De qualquer modo, sua vida até aquele momento não havia sido mais que
um inferno escuro, portanto, o que importava o que pudesse suceder naquela noite? Não haveria
humilhação nem vergonha que pudesse ser pior do que a que a vida lhe havia oferecido até então.
Pagaria qualquer preço.
Ele se colocou sobre ela, balançando-se, e sujeitou sua cabeça com as palmas das mãos. Ela
começou a tremer, e ele, de repente, sorriu afetuosamente.
―Senhora ― murmurou, ― fechamos ou não fechamos o acordo?
Mesmo naquele momento, competia a ela escolher. Ao perceber a paixão e a doçura no olhar do
capitão, ela umedeceu os lábios com a língua.
Sem titubear um instante, sussurrou: ―Fechamos o acordo.
―Então, senhora ― disse, como que acariciando-a com a voz, ― não trema desse modo. A
amarei com muita ternura.
Se inclinou sobre ela, que sentiu o peso de Brent, seu calor abrasador, e a potência de seu desejo
entre as coxas como uma tocha ardendo.
Havia prometido ternura e estava dando com generosidade. A beijou com suavidade no queixo, nas
faces, nos olhos e na testa até que sua boca alcançou a dela e, separou seus lábios com a língua, a
penetrou profundamente, saboreando-a... Em seguida pousou a mão sobre um seio para acariciá-lo,
roçando-o com os dedos, até que o cobriu com a boca. Ela notou seus lábios ardentes sobre aquele
ponto sensual e como a mão dele ia para baixo, deslizando firmemente sobre seu ventre e seus quadris
em direção às coxas para se afundar entre elas. Kendall lançou um grito sufocado e afundou os dedos
no cabelo de seu amante; aquele contato a convertia em fogo líquido e dissipava todos os seus
temores...
A boca de Brent vagava pela garganta dela, pela clavícula, pelo outro peito, sugando os mamilos
até endurecê-los, até que a respiração dela ficou tão entrecortada como a sua. Continuou percorrendo
a pele com a calidez úmida dos lábios e a língua, afastando-se de vez em quando para observar as
manifestações de paixão do corpo feminino, e deixar que aquela contemplação acendesse ainda mais
seu próprio desejo. Estava pronta para ser amada, pensou. A maneira com que reagia, tão bela e
natural, era embriagadora. Olhá-la era como uma droga; aquele leque de mel e fogo que era seu
cabelo esparramado sobre a brancura do travesseiro, os olhos azuis como o mar, grandes e
nebulosos, seus lábios úmidos e entreabertos, suas formas perfeitas.
Não necessitava nem acariciá-la para arder de paixão, mas não podia deixar de fazê-lo, de
saborear a doçura de sua pele.
Passou a ponta da língua pelas costelas da mulher e ao ouvir sua resposta em forma de gemido,
uma espécie de calafrio febril percorreu suas costas. Seus lábios amorosos a acariciavam nos seios
para descer cada vez mais, e ao mesmo tempo ele a abraçava para conter seus saltos como em
protesto. Ela se retorcia e arqueava, totalmente descontrolada, enquanto ele murmurava sobre sua
pele, incitando—a, desejando explorá-la por inteiro com seus dedos, e seguir a trajetória de suas
carícias com beijos, contemplando o efeito que ele causava, e pensando que cada centímetro de sua
pele era incrivelmente belo, sensual, entusiasta...
Quando se colocou entre suas pernas, ela as apertou levemente, e ele pôs a mão com delicadeza
sobre suas coxas e as separou com o joelho.
Ela se abriu para ele, cálida, docemente.
―É fácil ― disse ele em voz baixa. ― Sei que me deseja. Está tão quente, tão molhada, tão
provocadora...
O desejava. Senhor, o desejava de verdade, pensava sem acreditar. Podia haver intuído quando o
viu, que aquilo seria assim? Fogo líquido percorria seu interior, umidecendo—a, provocando-lhe
dor, queimando-a, porque ele a acariciava...
«Agora ― pensou, com o escasso raciocínio que lhe sobrava naquele momento, ― agora!»
Era óbvio, que a mesma febre que o dominava, fez com que ele decidisse atrasar o momento.
Percebia a docilidade da mulher debaixo de seu corpo; havia se convertido em uma criatura torturada,
requintada, eroticamente bela. Começou a beijá-la de novo, a movê-la de modo que pudesse explorar
cada centímetro daquela pele entregue, abrindo-a já sem nenhuma dificuldade, acariciando-a
apaixonadamente com os dentes, a língua, os dedos, até que ouviu que ela chamava por seu nome, o
que soou, em sua boca, incrivelmente doce e sensual...
―Acaricia-me ― ordenou com voz rouca.
O fez com os dedos trêmulos, e ele sentiu-se cheio de vida, uma sensação maravilhosa e
aterradora ao mesmo tempo. Sabia que ela necessitava dele, para satisfazer o desejo que ele havia
despertado...
Nenhum dos dois reparou no ruído de passos que se ouvia no convés. O som de seus suspiros e as
batidas de seus corações os haviam ilhado de tudo.
De repente, a porta do camarote se abriu.
―Esse maldito rebelde do McCain! ― exclamou alguém.
Brent se voltou bruscamente, disposto a lutar com o intruso. Mas logo notou a pressão da ponta de
uma pistola contra sua face e apertou os dentes, mantendo a calma.
A voz acrescentou, rouca e sonora: ―Kendall, puta ingênua, está feita à medida de um bastardo
sulista! Vou tê-la muito bem sozinha, em, Kendall?
Tudo sucedeu em questão de segundos. A porta, os gritos. Durante esses segundos, o olhar de
Brent se cruzou com o da mulher; um olhar cinza aço de assombro com aquela maliciosa traição,
cheia de ódio, condenação e fúria...
Já não importava. Brent sentia tanta raiva... Se voltou rapidamente, como uma pantera, para se
afastar dela de um salto e arrebatar a pistola do intruso ou morrer tentando. Obviamente, não foi
suficientemente rápido. Apesar de sua agilidade e destreza, seu atacante estava preparado, enquanto
que ele havia baixado a guarda nos braços de...
Kendall, Kendall Moore. E sua abundante cabeleira, loira como o mel. E todo seu mistério, suas
intrigas, sua beleza e seu poder de sedução.
Não viu o seu adversário... os adversários porque estava convencido de que eram mais de um.
Não atiraram, mas sentiu uma dor tremenda, uma explosão na cabeça, quando a culatra da pistola o
golpeou.
Tudo escureceu de repente, e sua mente se centrou num único pensamento; em efeito, se havia
comportado como um tonto, como um ingênuo renomado. Havia caído numa armadilha; se dispôs a
tudo para que o surpreendessem. Nu e inerte, se havia convertido em um alvo muito fácil. Alguém
havia pretendido livrar-se dele, um oficial ianque, um antigo sócio, alguém que sabia que, nesse
momento, quando a guerra era iminente, ele representava uma ameaça. A mulher havia sido o
instrumento, uma sereia sedutora que o havia desarmado e conduzido aqueles homens diretamente até
ele. Puta traidora! Sem dúvida, havia confiado em que seus companheiros chegariam a tempo. A
haviam chamado de puta ingênua, talvez porque essa era sua maneira de exercer o ofício. O que
haviam feito com sua tripulação? Deus, o que teriam feito? O mundo exterior se havia desvanecido
por completo. Sentia um imenso vazio em seu interior, enquanto pensava que, se sobrevivesse,
encontraria os homens que lhe haviam feito aquilo. E também encontraria a mulher, que se
arrependeria de sua traição. Ela pagaria, bem caro.
Quando o recém-chegado voltou a falar, tais pensamentos já haviam deixado de atormentá-lo;
Brent McCain havia perdido a consciência. O intruso era um homem alto, imponente, moreno, com
um grande bigode escuro e barba aparada, muito bonito, salvo por seu olhar. Seus olhos, de uma cor
azul gélida, cruéis, pareciam quase dois buracos vazios entre as perversas feições de seu rosto.
―Puta! ― espetou ele a Kendall com toda tranquilidade. ― Talvez decida matar você.
Pegou pelas axilas o inconsciente McCain e arrastou seu corpo nu pelo chão. Em seguida agarrou
Kendall pelo braço, retorcendo-o e lhe deu uma sonora bofetada na cara, com tanta força que sua
cabeça golpeou a parede do camarote.
Aquele ato brutal não arrancou da mulher nem uma palavra, nem um grito, nem uma queixa.
Levantou o rosto dolorido para olhá-lo.
―Odeio você, John ― disse por fim, com frieza. ― Algum dia fugirei de você.
O homem a levantou da cama de forma brusca e a golpeou de novo, enviando—a diretamente ao
chão desta vez. Antes que pudesse voltar a pegá-la alguém se adiantou e lhe tocou nas costas.
―John, eu o ajudei a encontrar Kendall, mas não posso suportar que bata mais nela. Vamos
embora daqui.
―Não até que tenha jogado este maldito bastardo pela borda, Travis! ― sentenciou John dando
um soco em Brent, enquanto um sorriso sarcástico se desenhava em seus lábios.
Tremendo, Travis Deland se interpos entre seu amigo de infância e a mulher, para oferecer um
lençol a Kendall. Ela lhe agradeceu num susurro e, a duras penas, conseguiu ficar em pé. Permaneceu
ali, envolta no lençol, olhando a John com a cabeça bem alta.
―Se matar este homem, John, encontrarei uma forma de levá-lo até os tribunais por assassinato, e
assistirei como o enforcam.
―John ― disse Travis, conciliador, ― seria um assassinato.
―Este bastardo é um rebelde! ― vociferou John.
―Não estamos em guerra ― objetou Travis em sinal de protesto.
―Logo estaremos! ― rugiu John. ― E este bastardo estará no comando de uma frota, se os
traidores sulistas formarem uma marinha ― dirigiu a Kendall um olhar mortífero. ― Além disso,
senhorita beleza sulista, quando acabar com você, preferirá estar morta. Vale mais que me enforquem
por dois assassinatos, que por um.
―John...
―Oh, não vou mataá-la. Se houvesse passado uns minutos a mais com ele, teria que apunhalar os
dois. De maneira que...
Kendall se voltou para Travis, olhando-o com olhos súplices.
―Travis! Como pôde intervir nisso? Como pode obrigar-me a voltar com ele?
Travis sentiu como se uma mão poderosa lhe apertasse o coração. Deu uma olhada para John e
percebeu seu olhar assassino. Depois observou Kendall; o medo e a dor se ocultavam atrás daquele
muro azul de orgulho.
De repente, o tomou tal tristeza que pensou que não poderia suportar aquela situação. Gostaria de
contar a Kendall que John Moore havia sido, muito tempo atrás, um homem amável e bom; que houve
uma época em que John ria, uma época em que a teria amado com a ternura e o carinho que ela
merecia.
Queria renegar a Deus. Desejava saber que classe de justiça permitia a um homem como John
contrair uma doença de tão insofríveis consequências como aquela, capaz de transformar a
mentalidade humana, de convertê-lo em uma besta.
Pobre Kendall! A única coisa que conhecia do homem a quem havia sido vendida em troca de um
valioso pedaço de terra, era a brutalidade. Era lógico que houvesse tentado fugir. Mas Travis
conhecia John de toda a vida, e todavia, rezava para que as coisas melhorassem. Jamais havia visto
John bater em ninguém, nunca se havia dado conta de quão malvado podia chegar a se mostrar.
Haviam descoberto Kendall com outro homem, e ela era a esposa de John...
Olhou a mulher e sacudiu a cabeça, desculpando-se.
―É seu marido, Kendall. Tem... tem que ir com ele.
John recolheu a roupa de Kendall e as jogou para ela.
―Vista-se, rápido, antes que eu mude de opinião e os apunhale, a você e a seu amante sulista.
Tremendo, Kendall se dirigiu a um canto do camarote e começou a se vestir, olhando com
desconfiança o capitão, para se assegurar de que o golpe na cabeça não tivesse sido fatal.
«Perdoe-me por havê-lo envolvido! ― rogou em silêncio. ― Perdoe-me, já que eu jamais o
esquecerei. É a única coisa bonita que aconteceu na vida, que a partir de agora será ainda mais
difícil.»
Se encolheu de medo ao ver John se inclinar e grunhir baixo pelo peso do corpo do homem que
carregava às suas costas.
―Não permita que se mova, Travis. Voltarei em seguida.
Quando John saiu do camarote, Kendall cruzou o lugar para se lançar nos braços de Travis,
aterrorizada.
―Travis! Detenha-o! Pode ser que eu mereça o que possa suceder-me, mas esse homem não.
―Cale-se, Kendall ― ordenou Travis. ― Quando voltar, aproxime-se dele, submissa. Será...
melhor para você que aja assim. Eu voltarei mais tarde para saber o que fez a esse rebelde. Há cinco
homens de John no convés. Pegou a tripulação desprevenida.
A porta do camarote se abriu de um golpe e John entrou. Retorceu o braço de Kendall com
crueldade, contemplando como chorava.
―Vem comigo, senhora Moore. ― Riu com amargura. ― Minha esposa. A grande beleza sulista.
A grande... puta sulista!
Kendall baixou a cabeça e fechou os olhos. «Deus como o odeio», pensou. Preocupada por Brent
McCain, obedeceu sem rechaçar a impiedosa ordem de seu esposo.
―Brent McCain ― disse John, mofando-se. ― Sabe bem onde escolher, verdade Travis? Talvez
até tenha feito um condenado favor à União.
―Sim, John ― disse Travis em voz baixa.
Travis permaneceu no barco, quando John Moore e sua esposa o abandonaram. Começou a buscar
no convés, desesperado. Sua respiração ia apaziguando-se. Havia alguns membros da tripulação
esparramados por ali, todos vivos. Mas onde estava McCain? Na água. Oh, por todos os diabos,
estava na água! Baixou correndo à doca e viu o homem nu na água gelada, lutando com a corda que lhe
prendia os punhos. Depois de tirar as botas, Travis se lançou na água e ao entrar em contato com ela,
quase perdeu o sentido. Alcançou o capitão e o arrastou até a doca.
―Puta ― murmurou o rebelde. ― Maldita e bela puta. Seduziu—me e me fez cair numa
armadilha. A encontrarei. ― Brent McCain entreabriu os olhos e observou, surpreendido, o estranho
que o havia salvo. ― Obrigado.
«Não me agradeça ― pensou Travis. ― Eu participei deste jogo tão triste e espantoso. E não
culpe Kendall. Você não entende.» Travis sorriu com tristeza.
―Apenas lhe peço que recorde que nem todos os ianques são maus — disse.
―Sombras cinzas ― murmurou o capitão rebelde.
Travis ouviu o revoar que se havia armado a bordo.
A tripulação estava se recuperando e não tardaria em encontrar o capitão na doca. Travis estava
aterrorizado. Permaneceu de pé, olhando ao rebelde uma vez mais, e começou a correr em direção ao
porto.
«Sombras cinzas», pensou, tratando de decifrar o sentido daquelas misteriosas palavras.
Sim, escondiam sombras cinzas. A vida jamais voltaria a ser de cor branca ou preta.
Capítulo 1
Novembro de 1861
O mar parecia muito bonito. Em alguns locais a água era cristalina, brilhava à luz do sol, como o
brilho de uma pedra preciosa. Ao penetrar nos recantos dos estreitos, seu tom azul se intensificava,
até se converter em algo tão misterioso e profundo como a noite, irresistivelmente desafiante. De
perto, era como o cristal, e na transparência de suas profundezas se distinguiam diminutos peixinhos
brilhantes, que, se forçasse a vista, a Kendall pareciam tão mágicos e cheios de cor como um arco-
íris, como a chama longínqua de uma promessa mística. Suspirou e abriu bem os olhos; a água não
guardava nenhuma promessa em seu interior, e tão pouco havia na cativante beleza dos peixes do
recife.
Todavia fazia calor, apesar de que quase havia chegado o inverno. Se encontrava a muitos
quilômetros ao sul da fronteira de Mason-Dixon, ainda em solo unionista. Se situava dentro dos
limites do terceiro estado que se havia separado, que embora continuasse pertencendo à
Confederação, Forte Taylor, e portanto toda a ilha do Oeste, formava parte da União.
Kendall sabia que bem pouco podiam fazer os cidadãos da diminuta ilha do pequeno Oeste para
combater as tropas unionistas, embora a maior parte deles se considerassem confederados. Essa
certeza a reconfortava, apesar de que nunca lhe permitiam sair, por sua conta, dos limites de Forte
Taylor.
Entretanto podia sonhar; algum dia um soldado baixaria a guarda, e ela poderia escapar. Depois,
os amáveis confederados, ao enteirar-se de que procedia da Carolina do Sul e que desejava fugir da
União, a ajudariam.
Sobretudo, quando lhes contasse como a haviam obrigado a contrair matrimônio.
Os olhos se encheram de lágrimas, que em seguida enxugou com a palma da mão. Depois do tempo
transcorrido, chorar era ridículo. Afinal, após a ultrajante proeza tentada durante o natal passado,
devia se considerado afortunada de seguir com vida.
Contemplou o mar, nublando outra vez o olhar e imaginando um arco-íris brilhante sobre a água. A
vida teria sido mais agradável... não, agradável jamais. Mas mais suportável, se John não a
detestasse tanto.
Por que se havia empenhado em tê-la consigo a todo custo se a havia desprezado desde o primeiro
momento?
Travis insistia que John a amava, afirmava que rezava noite após noite para que sua enfermidade
acabasse, para poder amá-la como um verdadeiro esposo. Mas Kendall não acreditava que isso
pudesse ocorrer. Para John, ela não era mais que uma posse, tal como seu uniforme azul, suas
espadas e seus rifles. Para ele, ela representava um símbolo; John Moore era um homem, e a
presença de Kendall servia para lembrar a todo mundo: um homem, um homem...
Se alguma vez se houvesse mostrado amável com ela, teria tratado de comprendê-lo e proclamado
com voz firme qualquer coisa que ele desejasse.
Em algumas ocasiões pensava que talvez houvesse sido ela mesma, que havia originado o ódio que
seu marido lhe professava. Mas quem podia haver suspeitado que...
Fechou os olhos, evocando aquele dia em Cresthaven, fazia já três anos, quando pela primeira vez
se fixou em John Moore.
Cresthaven... De fato, podia ter sido seu. Seu pai havia construído aquela plantação. Quando ela, e
mais tarde Lolly, deram seus primeiros passos, William Tarton costumava passear com elas aos
ombros por toda extensão de terreno, de sol a sol. Ainda recordava suas palavras.
―Filhos! ― dizia entre risos. ― Não os necessito para nada! Kendall, minha pequena, tem uma
mente tão rápida como um açoite! Cresthaven lhe pertencerá algum dia, e os homens morrerão de
vergonha ao ver que sabe fazer de tudo, desde trabalhar no algodão até cozinhar. E se casará com
quem você mesma escolher, minha preciosa filha; um homem que a ame com toda a alma. Desposará
o homem que a mereça: inteligente, correto, terno e forte. E não o fará para conseguir uma posição
privilegiada na sociedade.
As lágrimas resvalavam pelo rosto de Kendall. «Te maldigo, pai ― disse para si mesma. ―
Alimentou esse sonho durante doze anos, até sua morte e me transmitiu todo o seu conhecimento e
amor pela terra, mas jamais fez o mesmo com minha mãe.»
Kendall fez uma careta de dor. Quanto havia amado a seu pai! E apesar de tudo, também amava
sua mãe. Elizabeth Tarton havia sido educada para ser um simples adorno. Sabia tocar espineta,
organizar festas maravilhosas, mas apenas era capaz de contar o dinheiro.
E, apesar das súplicas de Kendall, Elizabeth se casou depois com George Clayton, que se
encarregou da plantação e acabou por arruiná-la.
Então John Moore, militar apaixonado, destinado ao Forte Moultrie, entrou em sua vida. Um dia,
ele e seus amigos assistiram às corridas de cavalos que se celebravam em Charleston, e ali conheceu
George Clayton, que o convidou à sua casa. E John viu Kendall.
Como os Moore, eram tremendamente ricos, o padrastro de Kendall, sem comentar com ela sua
decisão, a ofereceu ao ianque em troca de uma substancial soma de dinheiro.
A mulher estremeceu frente ao mar. O suor começava a molhar sua testa. Recordava claramente a
discussão no salão.
―Não! ― exclamou, surpreendida e horrorizada. ― Não me casarei com um ianque. Está louco,
George. Qualquer um é capaz de ver o que se avizinha! O país será dividido.
George apertou os lábios.
―Não grite comigo, senhorita «calças longas». Desde que a conheço tem se comportado sempre
como uma menina presunçosa, mas isso não me importa em absoluto. Sou seu pai e...
―Você não é meu pai! E não pode me obrigar a contrair matrimônio somente porque dilapidou a
propriedade de meu verdadeiro pai com o jogo e as putas!
―O que disse, bruxa presumida? ― George se aproximou dela desabotoando a cinta. ― A
açoitarei, até sangrar ! O que acredita ser?
A ameaça não era uma simples bravata. Já havia batido nela e em Lolly muitas vezes. Mas Kendall
não o temia, pois se havia convertido em uma garota dura e forte, e, embora George fosse um homem
robusto, a vida cheia de vícios e a bebida o haviam deteriorado fisicamente.
―Se atreva a me tocar, porco asqueroso ― espetou com frieza ― e lhe arrancarei o coração.
Ao ouvir sua voz firme e ver seu gélido olhar, George titubeou. Por fim se afastou para acender
um de seus esplêndidos e puros charutos cubanos.
―Está bem, moça, talvez já seja demasiado grandinha para receber uma surra. Deixarei que seja
seu esposo que a humilhe.
―Não penso casar-me com esse ianque amigo seu, George, nem com ninguém que você tenha
escolhido para mim. Lhe asseguro que quando contrair matrimônio, não o farei com o tipo de homem
capaz de açoitar com o cinturão a uma mulher.
George se voltou até ela, rindo.
―Se casará com ele, claro que sim, porque se não o fizer...
―Não me casarei com ele! É desagradavel e repugnante, não tem modos. Quando olha a uma
mulher é como se a despisse com a vista. Além disso é um ianque. E não estou disposta a me casar
somente para lhe agradar.
Então Kendall percorreu a sala com o olhar e viu seu convidado, John Moore, no umbral da porta.
Seus olhos azuis eram frios como o gelo e os traços de seu rosto, duros. A Kendall doeu que o homem
tivesse ouvido suas cruéis palavras, mas já não podia se retratar.
―Lhe peço desculpas, senhor Moore. Sinto muito que tenha que suportar tão lamentável exibição
de hospitalidade. Repito que não penso me casar com você.
Estava segura de que ambos os homens mudariam de opinião.
John Moore se limitou a olhar a seu padrastro com uma careta irada, postura tensa e começou a
sair. George começou a rir de forma estridente.
―Kendall, acaba de se lançar de cabeça em uma vida cheia de misérias. Se casará com ele,
pequena, pois do contrário entregarei sua preciosa irmãzinha a Matt Worton. A ele não importará se
ela consinta ou não nesse matrimônio. Já sabe que lhe encantam as jovenzinhas virgens,
especialmente as de olhos azuis e cabelo loiro como essa garotinha.
―Tem somente quatorze anos! ― exclamou Kendall, furiosa. ― Não se atreverá a fazer algo
assim. Mamãe o mataria!
George atirou as cinzas do charuto na direção do rodapé da parede.
―Já sabe que sua mãe está enferma e que jamais acreditará em nada do que você lhe diga a
respeito do velho George, carinho. Sua mãe necessita de um homem em quem se apoiar. Matt pode
obter Lolly sem que Elizabeth chegue a suspeitar nunca do sucedido.
O rosto de Kendall se incendiou. Sua irmã se parecia muito mais a sua mãe que a seu pai. Era
amável, etérea e George a intimidava. Matt Worton pegava e prendia suas escravas, as açoitava com
chicote. Suas duas esposas haviam falecido e jamais pôde se provar que não houvessem morrido
devido aos maus tratos recebidos.
―Se casará com esse ianque, senhorita repipi, e somente assim firmarei um acordo para que não
aconteça nada à preciosa Lolly. Ao que parece, é você quem tem que aprovar o esposo escolhido
para ela. E também imagino que sua irmã nunca buscará proteção demasiado longe daqui. Sabe ao
que me refiro, não Kendall?
Desde o instante em que o viu pela primeira vez, Kendall adivinhou, por seu olhar, que John
Moore a desprezava.
A noite de bodas foi surpreendente. Quando o homem fechou a porta do dormitório atrás de si,
lançou sua jovem esposa ao chão de um empurrão, e lhe ordenou que tirasse a roupa.
Tremendo, dirigiu a ele um olhar de ódio e desafio, mas obedeceu. Levou o que pareceu uma
eternidade em se despir, com dedos trêmulos, do horroroso vestido de noiva de sua mãe. Ele a
observava, devorando—a com a vista. O encolerizado olhar azul dela chispava de ódio, tristeza e
desespero. Logo, John Moore deu um soco na parede e saiu com passo irado do quarto, batendo a
porta. Ao longo de seu matrimônio, aquela cena havia se repetido dezenas de vezes.
Foi Travis quem lhe contou que John havia contraído uma estranha doença na Flórida, quando
combatia contra os índios durante a segunda guerra contra os seminolas. Foi em 1856, e quase lhe
custou a vida. Apenas ela e Travis, conheciam a desgraça que havia convertido John em um meio
homem. Kendall tratara de comprender o mal que o abatia, e o transformava em um ser cruel e
violento; mas, quando ele começou a descarregar seu ódio sobre ela, foi difícil entendê-lo.
Durante o primeiro ano, suportou a situação com silenciosa dignidade. Quando se aborrecia, lhe
batia, procurando não deixar sinais. Ela aguentava qualquer mau trato físico com a cabeça erguida,
pois seu orgulho a convertia num muro incapaz de ruir. Obviamente, não podia suportar a
solidariedade. Por outro lado, a maioria dos amigos que John tinha em Nova York eram muito
agradáveis, e inclusive a cidade era fascinante e buliçosa. Os Moore se comportavam diante de todos
como qualquer casal normal.
Lolly se enamorou depois de um ano e meio, daquele dia em que ocorreu a boda de Kendall. As
cartas que recebia de sua irmã ressoavam entusiasmo e adoração, e embora Lolly contasse somente
com quinze anos, Kendall consentiu que contraísse matrimônio. O jovem de quem se havia enamorado
era filho de um dos donos de plantações mais respeitados e influentes de Charleston, e sempre havia
sido do agrado de Kendall. Gene MacIntosh tinha todas as características agradáveis de um homem
do sul, era amável, inteligente, culto, cuidaria de Lolly e a protegeria durante toda sua vida.
E daquele modo, sabendo que Lolly estava a salvo, Kendall voltou a sentir o ar da liberdade.
Prestava ávida atenção a todas as notícias que chegavam a Nova York e, depois de que enforcaram
John Brown por encabeçar um levante abolicionista, teve certeza de que estouraria a guerra civil. Se
Carolina do Sul chegasse a se separar da União, ela não permaneceria no Norte.
Com a ajuda de Travis, avisou John que devia visitar a sua mãe, apesar de que a tensão aumentava
no momento. Em certa ocasião havia tentado escapar pelas ruas de Nova York; deveria ter suposto
que seu esposo a seguiria com todos os seus amigos.
―Oh, Deus! ― gemeu, escondendo o rosto nas mãos ao recordá-lo. Que loucura! Um homem
esteve a ponto de perder a vida por sua culpa! Como podia suspeitar ela que havia topado com um
capitão sulista a quem todos os homens da marinha do Norte temiam e odiavam?
De maneira que foi descoberta em uma situação muito comprometedora, da que somente se salvou
graças a intervenção de Travis, que fez de tudo o que esteve em seu alcance para evitar que John
matasse aos dois. E Travis lhe havia assegurado depois que o homem não havia morrido... Aquele
homem era Brent McCain.
Estremeceu ao pensar nele. Quantas vezes o havia recordado sem querer, depois daquela noite
fatídica? Quantas vezes havia tremido, sentido calafrios? Era incapaz de contar as ocasiões em que
havia despertado trêmula e coberta de suor.
Por muito que se esforçasse não conseguia esquecê-lo, sua voz rouca, o cinza profundo de seus
olhos, duros como o aço quando se enraivecia, nebulosos, quase prateados, quando ardiam de
paixão...
Era um arrogante! Arrogante, seguro de si mesmo, brincalhão e magnífico, puramente primitivo e
masculino. Jamais conseguiria tirar de sua mente a imagem de seu corpo nu, de sua impressionante e,
obviamente, elegante musculatura; de suas amplas costas, dos músculos de seu estômago, tensos,
como vigas de ferro. Apesar de sua elevada estatura e seu peso, se movia com a agilidade de um gato
montês. De resto, recordava um pouco a uma formosa besta selvagem, cheio de saúde, virilidade e
força contida.
―Oh, Deus... ― sussurrou de novo. Inspirou e espirou lentamente, com uma careta de dor. Tão
pouco esqueceria jamais, o olhar de Brent quando a culatra da pistola de John o golpeou na cabeça.
Nunca em sua vida havia visto um olhar tão frio e ameaçador. Jamais o terror a havia invadido
como naquele momento, nem sequer quando se voltou para ver também o olhar de seu esposo cravado
nela...
Para o sul era uma sorte que Brent McCain houvesse sobrevivido. Nos barracões da União se
mencionava seu nome com grande respeito, pois era capaz de burlar qualquer bloqueio inimigo; se
dedicava a abastecer de qualquer coisa, das ilhas até a Flórida, Georgia e Luisiana, navegava diante
dos narizes dos soldados da União, sem que jamais o conseguissem capturar.
Kendall, que lia com voracidade todos os periódicos sulistas que Travis lhe contrabandeava, se
havia inteirado de que o presidente confederado, Jeff Davis, havia outorgado a Brent McCain um
cargo de oficial na marinha, e que havia sido condecorado duas vezes por sua valentia.
Deus, meu ― rogava Kendall em silêncio, ― não permita que o prendam. ― Para em seguida
acrescentar: ― Por favor, e também não permita que venha jamais para cá...
Voltou a tremer, apesar do calor. Embora passassem mil anos, nunca poderia esquecer seu olhar,
como um punhal de aço, quando a observou pela última vez. Se ambos se encontrassem de novo, ela
morreria de medo, embora estivesse rodeada por uma centena de soldados da União. Estava segura
de que o capitão encontraria um modo de matá-la... a menos que John o fizesse antes. Quando soube
que McCain estava vivo, ficou colérico. Ele e Travis discutiram com tanta violência, que a ferida
aberta entre eles não se fecharia jamais.
Certamente, Travis solicitou o translado a Forte Taylor para estar com John. Kendall considerava
que o havia feito para protegê-la do melhor modo que sabia. Travis... um homem tão respeitável,
apesar de ser um ianque! Não, retificou Kendall, mordendo os lábios. Não era justa ao pensar assim.
Havia muitos ianques respeitáveis. Havia aprendido que os homens eram homens, e que a cor de sua
jaqueta não determinava de nenhum modo sua honrabilidade.
A metade de suas penúrias tinha origem no fato de ela ser quem era. Seu lugar era na Carolina do
Sul, seu ambiente, os algodoeiros; a música que melhor conhecia eram os cálidos cantos que
entoavam os escravos enquanto trabalhavam. No fundo do seu coração, era leal à sua terra e jamais se
refugiaria do perigo que representava ser rebelde em um baluarte unionista. Olhava para longe ―
naquele momento observava a torre do vigia ― se topava com um uniforme azul.
―Kendall!
Ao ouvir seu nome, se voltou para a passarela do forte, sorrindo, pois quem a chamava era Travis,
não seu marido. Uma das vantagens de viver ali era que John apenas aparecia, já que passava o
tempo navegando pelas costas de Pensacola a Jacksonville, onde se desenvolviam quase todas as
escaramuças navais. Flórida, cujos antigos governadores, como o atual, haviam sido secessionistas
convencidos e totalmente leais à Confederação, que estava sendo tristemente destruída devido a
causa que seus homens defendiam de todo coração. Muitas de suas tropas eram reclamadas para lutar
na Virginia e Mississipi, onde ocorriam as batalhas mais estratégicas da guerra, com o que
quilômetros e quilômetros de costa ficavam expostos aos ataques.
―Olá, Travis ― saudou docemente.
Ele sorriu em resposta e começaram a passear juntos, olhando até onde se divisava o oceano.
Travis apenas buscava a companhia de Kendall, embora cada vez que se aproximasse dela lhe
invadia um sentimento de culpa. Estava enamorado dela. Era muito formosa, mas os sentimentos dele
iam mais além da mera atração física. Apesar de que o orgulho e a energia o camuflavam um pouco, o
acento sulista de sua voz era cálido. Sucedesse o que sucedesse, ela se mantinha altiva,
contemplando o mundo com dignidade, pois era, antes de tudo, uma dama.
Se não tivesse ajudado John a encontrá-la, ela teria desaparecido para sempre... Travis cravou as
unhas na palma da mão. Era a esposa de John, estava legalmente unida a ele. Por esse motivo o
ajudou a buscá-la e porque temia que John tentasse matá-la, aproveitando a fragilidade de Kendall.
―Quer navegar? ― perguntou Travis.
Os azuis olhos dela se iluminaram, competindo com a cor da água banhada pelo sol.
―Posso fazê-lo, Travis?
―Sim ― respondeu ele, feliz. ― Acabam de me atribuir uma pequena missão de exploração. O
capitão Brannen disse que se trata de uma excursão rotineira. Estando próximo do forte, não existe
nenhum perigo real. O capitão opina que, já que faz quatro meses que John está ausente, conviria sair
para tomar ar um pouco.
Kendall voltou a sorrir. O capitão Brannen era um bom homem. Ele ignorava a origem de sua
tristeza, mas intuía algo. Por sorte, como superior de John, tinha em suas mãos a possibilidade de
conseguir pequenos favores, que alegravam a vida dela.
―Oh, Travis! Muito obrigada! ― exclamou Kendall. ― Quando partimos?
―Agora mesmo.
―Irei buscar um xale.
Pronunciou as últimas palavras descendo já as escadas da passarela. Ao vê-la andar, Travis
suspirou. Era tão bela...
Devido ao calor que fazia na ilha, Kendall não demorou em imitar o exemplo das demais
mulheres, abandonando as anáguas volumosas assim como os espartilhos apertados, tão em moda em
terra firme.
Usava um vestido de algodão multicor, ajustado ao corpo que, sem chegar a ser voluptuoso, era
feminino, bem proporcional e agradável. O corte do vestido era mais modesto, mas nem esse detalhe
era capaz de esconder a curvatura de seus seios, jovens e firmes, erguidos em seu delgado talhe. Um
chapéu de palha amplo a protegia dos impiedosos raios do sol, e isso contribuía a incrementar sua
beleza, impondo uma sombra misteriosa sobre o incrível azul de seus olhos, que mudavam de cor
como uma corrente de águas cristalinas.
―Espero no portão! ― avisou Travis.
Ela fez um sinal com a mão como resposta e entrou a toda pressa na pequeno aposento que
compartilhava com John, quando ele se encontrava no forte e do qual desfrutava durante sua ausência.
Pegou o xale branco que estava aos pés da cama e correu até Travis, que a esperava no portão.
Desde que havia chegado a Forte Taylor, havia descoberto uma nova paixão: navegar. Amava o
oceano, o vento que lhe açoitava o cabelo, o balanço no convés, a água salgada banhando-a,
refrescando—a, infundindo-lhe o espírito de uma vida nova.
―Em qual barco zarpamos? ― perguntou com a respiração entrecortada.
―No Michelle ― respondeu Travis, com um amplo sorriso. ― É como se celebrássemos uma
pequena festa.
Iremos Seamen Jones, Lewis, Arthur e eu. O que lhe parece?
―Perfeito! ― disse Kendall, sorrindo. Os três homens discretos e educados, eram de seu agrado.
Nenhum deles faria comentários do tipo «esses malditos e ignorantes rebeldes merecem que lhes
dêem uns murros e os os enviem bem longe» em sua presença; nem murmurariam que ela era um
desses «açoitadores de escravos traidores da sagrada União». Nos barracões de Forte Taylor se
mesclavam diversas classes de indivíduos; a maior parte, rapazes decentes, presos na injusta
armadilha de uma triste guerra. Mas haviam uns fanfarrões estúpidos convencidos de que, apesar da
humilhação sofrida pela União em Bull Run, «acabariam de uma vez por todas com esses rebeldes, os
capturariam e os enforcariam a todos como aos malditos índios».
Quando se encaminhavam pela passarela até o Michelle, Travis pegou Kendall pelo braço. A
pequena escuna não levava armas, pois era uma embarcação de recreio, utilizada em missões de
exploração como aquela.
―Deixarei que se ocupe do timão ― disse Travis guiando-a. Lhe rodeou a cintura com as mãos
para ajudá-la a subir a bordo.
―Como é isso, Travis? ― replicou Kendall e riu abertamente. Saudou ao resto dos homens com
um sorriso e tomou assento perto do timão, enquanto eles levantavam a ancora e manobravam para
zarpar. Iniciaram a navegação; o vento soprava de frente, e ela se imaginou sulcando eternamente
mares cristalinos.
A forte brisa não era incômoda. Kendall observou o velame inchado pelo vento, olhou desconfiada
a Travis, sentado ao comando da embarcação, e depois fechou os olhos. Algum dia conseguiria
escapar de John.
Flórida lhe havia aberto novas fronteiras. Conhecia a existência de lugares, ilhas e riachos, onde
poderia desaparecer para sempre. Os piratas utilizavam aqueles esconderijos durante séculos. Não
necessitava mais.
Havia crescido na riqueza, mas também havia aprendido a trabalhar duro e sabia sobreviver
perfeitamente.
Se arranjaria para pagar uma casinha, compraria um barco, menor que o Michelle, um que pudesse
tripular por seus próprios meios. E navegaria toda a eternidade por mares cristalinos...
―Olha, Kendall! ― A voz de Travis rompeu seu maravilhoso sonho.
Ele havia desabotoado a camisa para estar mais cômodo, e deitado tranquilamente sobre uma
prancha de madeira, assinalava a água. Kendall, seguindo com a vista a direção do braço, viu um par
de golfinhos que brincavam atrás da esteira do Michelle, saltando por cima do nível da água para
voltar a submergir.
Kendall sorriu, mas Travis percebeu algo em seu olhar, indicando que acabava de tirá-la de uma
fantasia prazerosa para devolvê-la à crua realidade.
Seu sorriso sumiu, e Travis dirigiu a vista à popa, onde os três tripulantes se dedicavam a explorar
os riachos das diminutas ilhas situadas ao norte de Key West[2] em busca de alguma embarcação.
―Kendall... ― Se interrompeu, fez uma careta e prosseguiu: ― Kendall, nunca tive a
oportunidade de dezer que sinto muito o... o ocorrido em dezembro. Eu... eu cresci com John, como
você já sabe. Foi meu melhor amigo...
―Está bem, Travis ― disse Kendall em tom inexpressivo. Fez o que julgava oportuno.
―Não, isso não é certo de todo. ― Travis titubeou ao ver que ela revirava os olhos, como se
tratasse de se proteger de suas palavras com o elevar de suas sombrancelhas. ― Kendall, eu...
Demônios! Sempre achei que John se recuperaria algum dia. Mas me enganei. John é como um animal
ferido, Kendall. Se dispara contra um gato montês, é melhor que o mate, pois do contrário sofre pelo
resto de seus dias e morre pouco a pouco. John deveria estar morto. O sofrimento não habita em seu
corpo, mas sim em sua mente. Tem a alma envenenada e destroçada.
Kendall abriu por fim os olhos para olhar fixamente aos de Travis, castanhos e cálidos, mas
escurecidos, naquele momento, pela dor que lhe causavam ela e seu esposo. Pobre Travis!
―Travis, admiro sua lealdade para com John. Era seu amigo e o apreciava. Para mim você
também é um bom amigo. Agradeço por fazer a minha vida mais leve. Você... impediu que John me
matasse e me tem tirado da cabeça a ideia da morte.
Travis limpou a garganta e olhou para a popa para se assegurar de que os marinheiros continuavam
conversando entre si e não os observavam.
―Kendall, me parece que não entende. Creio que John se excedeu. Inclusive seus homens opinam
que está louco. Eu...gostaria de ajudá-la a fugir dele.
Kendall levantou a cabeça e o olhou com impaciência.
―Oh, Travis! Deus o bendiga! Faria qualquer coisa, iria onde fosse! Charleston, talvez! Devo ser
prudente. Me agradaria viver com Lolly, assim não estaria longe da cidade. Não, Charleston talvez
não. Se me encontrasse, meu padrastro me entregaria a John. A menos que pudesse me divorciar! Oh,
sim, Travis! É isso. Posso apresentar uma demanda no juizado de Carolina do Sul! Não me
obrigariam a regressar, meu marido é um ianque!
―Kendall, Kendall! ― avisou Travis. ― Inclusive estando em guerra, talvez especialmente
estando em guerra, não é nada fácil divorciar-se. E seu padrastro tem tanto medo por causa do
dinheiro, que a devolveria a John em seguida. Não... não conte com o divórcio, Kendall. Devemos
elaborar um plano para fazê-la desaparecer.
―Comandante! Comandante Deland!
As palavras de Travis foram interrompidas pelo agudo grito do marinheiro Jones. Travis franziu o
cenho e deixou Kendall no comando do timão.
―Desculpe-me, Kendall ― disse, e seu semblante traduzia aturdimento e preocupação.
Kendall pegou o timão e observou com as sombrancelhas arqueadas como Travis se dirigia com
agilidade à popa. Puxou o chapéu de palha para proteger os olhos dos raios do sol. O marinheiro
Jones, um jovem de uns dezoito anos, apontava excitado atrás da embarcação. Kendall olhou, e ao ver
que os perseguiam três embarcações alongadas de um só mastro, governada cada uma delas por um
único tripulante, seu coração começou a bater com força. Canoas ― pensou no mesmo instante ― de
uns cinco metros. Elas avançavam a toda velocidade...
―Que Deus nos ampare! ― Inquieta, sussurou aquele pedido no momento em que Travis
regressava rapidamente e a separava do timão.
Kendall notava os calafrios de terror que percorriam as costas.
―O que ocorre? ― perguntou em voz trêmula, quando Travis se virou para ela surpreso, e com um
medo impossível de dissimular.
―Índios ― respondeu rudemente. Se virou de novo ― Jones! Ice as velas! Devemos recolher as
amarras!
―Índios! ― repetiu Kendall, incrédula. O gélido temor estava convertendo-se em verdadeiro
pânico. ― Quais índios ? Por quê?
Travis negou com a cabeça, impaciente.
―Não... não sei por quê. Devem ser seminolas ou talvez mikasukis. Desde a última guerra têm
feito escaramuças violentas. Odeiam a União. ― Travis se voltou para observar o terreno que
ganhavam as canoas. ― No dia que decido trazê-la! Maldito seja o governo dos Estados Unidos!
Mentiram durante todos esses anos e abandonaram este reduto de pântanos aos seminolas, que agora
se dispõem a atacar meu barco. E nas ilhas, nada menos!
―Não é culpa sua que eu esteja aqui ― se apressou a dizer Kendall, sem conseguir ocultar o
medo que sentia. De pequena havia ouvido histórias terríveis sobre os índios da Flórida. Haviam
incendiado as plantações da Flórida, assassinado a seus amos e cometido verdadeiras barbaridades
com as mulheres e crianças...
―Atem os cabos! ― vociferou Travis. ― Volte a dirigir o timão, Kendall.
Kendall agarrou o timão com mãos suadas. Olhou para trás e observou que as canoas rodeavam a
embarcação. Os três marinheiros estavam preparando suas armas enquanto sustentavam entre os
dentes os paquetes de pólvora. Poderiam disparar somente um tiro, e depois teriam que utilizar as
baionetas.
Travis carregou seu rifle.
―Travis! ― suplicou Kendall, tremendo. ― Me dê uma adaga! Me dê algo!
Ele a olhou indeciso. Uma das canoas já estava muito próxima da embarcação. Um homem meio
nu, com uma faca entre os dentes, estava tentando subir a bordo do Michelle. Travis entregou a faca a
que levava atada no tornozelo a Kendall e pegou seu rifle.
Ao ouvir a primeira detonação, a mulher se acovardou. Um dos índios se precipitou para a água, e
outro com a agilidade própria de um gato, saltou no convés, prestes a atacar. Kendall deu um salto
para trás com o punhal na mão, foi a toda pressa para a popa do Michelle. A segunda canoa se
encontrava a estibordo, três guerreiros, morenos e musculosos, vestidos com tapa-sexo, saltavam
com destreza para a escuna, proferindo gritos de guerra. Kendall contemplou horrorizada como o
marinheiro Jones, após uma punhalada na garganta, afundava na espuma do mar.
Então, apesar das explosões de pólvora e dos alaridos dos homens que lutavam corpo a corpo,
ouviu uma voz que falou em um inglês impecável.
―Rendam-se, ianques! Pouparemos a vida de vocês!
Travis, tão perplexo como Kendall, cometeu o erro de permanecer imóvel, atônito. O índio que
acabava de falar lhe arrebatou o rifle e o lançou ao mar.
Kendall, aferrada ao mastro maior para não perder o equilíbrio, observou como Travis encarava o
guerreiro índio ―Quem é você? ― inquiriu Travis.
―Raposa Vermelha ― respondeu o interpelado, voltando a cabeça para a popa, onde dois
marinheiros ainda vivos, brancos como o papel, eram rodeados por quatro índios. Raposa Vermelha
fez um movimento enérgico com a cabeça, e seus guerreiros pegaram os homens com a intenção de
jogá-los pela borda.
―Espere um momento! ― exclamou Travis. ― Disse que pouparia nossas vidas.
Ao ver o olhar de Raposa Vermelha, escuro, duro e aparentemente zombeteiro, perdeu a voz.
―É valente, amigo. Disse que pouparia a vida de vocês. Estou dando uma das canoas. Agora,
valente, você também, salte pela borda e nade até a canoa. É melhor ir rápido antes que encontre um
tubarão faminto no caminho.
Travis permaneceu imóvel, e Kendall viu que tremia diante da figura daquele guerreiro tão alto,
esbelto e musculoso. Obviamente Travis não se mexeu.
―O farei depois da mulher saltar.
―A mulher fica ― anunciou Raposa Vermelha com resolução. ― Vá, senão morrerá.
―Não posso... ― Travis foi incapaz de continuar. Raposa Vermelha começou a rir, pegou Travis
como se fosse uma pluma e o jogou ao mar. Kendall ouviu um grito agudo. Demorou alguns segundos
para compreender que o grito havia brotado de sua boca.
Raposa Vermelha se aproximava dela. Aterrorizada, se soltou do mastro maior e brandiu a faca,
ameaçando-o, enquanto os demais índios deslizavam pelo convés, sigilosos como gatos à noite.
Kendall olhou à direita e esquerda, disposta, numa tentativa desesperada, a lançar a arma em
qualquer direção. Ouviu uma risada... era Raposa Vermelha, que em seguida, disse algo em sua
própria língua. Os índios retrocederam, e um deles se encarregou do timão do Michelle.
Raposa Vermelha continuava aproximando-se. E ela ficou parada. Kendall ficou quieta; o terror
que sentia, fazia com que o sangue corresse por suas veias a toda velocidade. Observou o índio
enquanto avançava para ela. O cabelo negro, macio e brilhante, chegava até os ombros, seu rosto era
como uma atraente escultura esculpida em granito. Apenas o sorriso brincalhão desenhado em seus
lábios e a chispa de mau gênio que espelhava em seus grandes olhos escuros, mostravam algo de
emoção em seu semblante. Kendall se sentia como um rato preso por um gato.
―Mulher, me dê a faca ― ordenou.
―Jamais! ― replicou Kendall. Foi o medo, mais que a valentia, o que a impulsionou a emitir essa
resposta.
Raposa Vermelha pôs as mãos na cintura e começou a rir.
―Mulher de fogo! ― exclamou com voz aguda. ― Adoraria lutar com você, mas... ― encolheu os
ombros; era evidente que estava se divertindo. ― Falcão da Noite quer que seja dele. Eu acato seus
desejos.
Kendall não tinha nem ideia do que significava aquilo. Jamais havia topado com um índio. Mas
nada importava, em absoluto, pois o bárbaro a considerava um troféu; mas estava disposta a se
defender até... Até o quê? A única via de escape era a água.
Raposa Vermelha avançou um passo, e ela começou a repartir golpes à direita e à esquerda com a
faca. Ele recuou de um salto e começou a girar ao redor de Kendall, que seguia seus passos, atacando
e retrocedendo. Se lançaram olhares desafiantes. De repente Kendall se jogou sobre ele, vingativa,
satisfeita ao ouvi-lo queixar-se e ver o ferimento sangrento, que acabava de fazer em seu peito. Ele
abriu os braços até que ela tivesse tempo de reagir e, pegou-a pelo punho, a obrigando a soltar a faca.
Ela começou a gritar, aterrorizada e enraivecida, se agitava como uma fera presa até desembaraçar-
se dele.
Seguramente a água não lhe oferecia mais saída que a morte, pois não sabia nadar. Além disso, o
comprimento de sua saia a impediria de se mover com facilidade, e estavam a mais de um quilômetro
de distância de terra firme.
Apesar disso, correu até a borda e se jogou ao mar. Começou a afundar nas profundezas
cristalinas; os pulmões lhe pesavam cada vez mais pela respiração contida. Então seus membros
reagiram, e de forma instintiva deu um forte impulso, de modo que seu corpo foi levado até a
superficie.
Elevou a cabeça por cima da água e inspirou todo o ar que conseguiu. De repente notou como se
uma garra a pegasse pelo ombro. Ao se voltar viu Raposa Vermelha, cujas formosas feições
denotavam grande irritação.
Kendall tentou golpeá-lo. Ele apoiou uma mão sobre sua cabeça e voltou a mergulhá-la, para
mantê-la debaixo d’água uns instantes, e ela forçou emergir como uma fera, pensando apenas que
precisava respirar. Logo, o índio a puxou à superfície pelo cabelo.
Já não tinha forças para enfrentá-lo. Via somente pontos escuros; era como se tivesse uma cortina
diante dos olhos. Quando ele começou a nadar, rebocando—a, estava quase inconsciente. Quando
Raposa Vermelha a soltou para subir a bordo, um dos guerreiros se ocupou dela, a deixaram no
convés, onde permaneceu alguns momentos com os olhos fechados, sentindo o calor do sol sobre seu
corpo gelado até os ossos. Por fim, sua mente começou a funcionar de novo.
Os índios conversavam tranquilamente. O Michelle navegava adquirindo velocidade.
Com os olhos bem abertos, Kendall se dispôs a levantar-se para voltar a se jogar ao mar. Quando
se levantava, um pé enorme e nu pousou em seu estômago. Enfurecida olhou fixamente Raposa
Vermelha.
―Afaste de mim esse pé sujo.
O índio grunhiu e se inclinou para pegá-la pelo braço, a virou e sem nenhuma amabilidade,
estendeu-a de bruço. Ela tentou em vão resistir. Sem nenhuma dificuldade, Raposa Vermelha a
prendeu pelos punhos com a cinta de couro que levava presa na cintura e acabou por atá-la em uma
viga, para impedir que fugisse.
Sem mais recursos, Kendall o maldisse com crueldade, chutando-o com as poucas forças que
ainda sobravam.
Ao receber o pontapé na canela, Raposa Vermelha grunhiu de novo. Apertou ainda mais o cinto, a
fim de prender as mãos dela nas costas. A dor era pulsante.
―Mulher! ― exclamou irado ― Está me criando mais problemas que esses soldados azuis, já
basta! Ou esquecerei que é para meu irmão, Falcão da Noite, e me vingarei em seu nome.
Totalmente abatida, Kendall fechou os olhos e permaneceu quieta. Ouviu que os passos se
afastavam e notou a pressão da corda, como para recordar-lhe que estava amarrada.
Kendall, molhada e triste, deitada miseravelmente sobre o duro piso do convés, procurou não
pensar na situação em que estava. Devia descansar para recuperar as forças.
O Michelle navegava para o norte. Não podia evitar de pensar, e o terror se apoderava dela. Quem
demônios seria Falcão da Noite? E por que queria se vingar dela?
Capítulo 2
O sol desapareceu antes que as roupas de Kendall tivessem secado por completo. Ao escurecer,
os calorosos dias de inverno se convertiam em noites frias. Amontoada e aturdida, Kendall se
perguntava onde os índios a levariam.
Só sabia que se dirigiam para o norte. Haviam passado por numerosas ilhas, o que nada
significava.
Era ridículo que os índios houvessem chegado tão longe, até Key West, com a única intenção de
empreender um ataque surpresa...
Seus sequestradores não a molestaram. Quando anoiteceu, començaram a conversar entre si, em
sua própria língua. Se não fosse por sua tez morena e seu cabelo comprido e escuro, poderiam ter
sido confundidos com os tripulantes de uma embarcação de recreio.
E, havia percebido a atenção que estavam prestando a ela, Kendall merecia a mesma consideração
que um pedaço de corda ou uma vela. De fato, deveria sentir-se agradecida por isso.
Realmente era surpreendente o que um ser humano podia chegar a suportar. Quando enfrentou
Raposa Vermelha com o punhal, pensou que iria morrer, seu orgulho a havia impedido de ficar de
joelhos diante dele. Mas, agora duvidava de que pudesse conservar seu orgulho por muito mais
tempo. Tinha tanto frio, estava tão molhada... O couro que prendia seus punhos estava secando e os
apertava cada vez mais, era como se estivessem cortando-a lentamente e sem pausa. Estava há horas
sem comer, sentia o sabor do sal na boca...
Pensava que a dor, contínua e persistente, podia enloquecer as pessoas, impulsionava-as a suplicar
a libertação. Ela suspirou e, devido a terrível secura de sua garganta, um grito sufocado saiu de sua
boca. Kendall sabia que havia água a bordo do Michelle, no pequeno camarote armazenavam vários
recipientes de água potável e cristalina.
Raposa Vermelha lhe havia parecido quase civilizado. Não se ajustava à imagem que ela havia
formado dos índios. Por ser um selvagem, poderia ter assassinado a todos os marinheiros do
Michelle, a sequestrado, degolado e jogado os restos aos tubarões.
Ao recordar que a havia salvo apenas porque Falcão da Noite desejava vingar-se dela,
estremeceu. Posto que a havia salvado, podia pedir a ele água e uma manta, para evitar que
contraísse uma pneumonia e morresse sem que Falcão da Noite houvesse levado a cabo sua vingança.
Quando se dispunha a chamar Raposa Vermelha, Kendall viu uma luz que brilhava na escuridão e o
rosto de outro índio que viajava em outra embarcação, a uns seis metros de distância, uma canoa se
aproximava do Michelle. Uma letania de palavras em língua indígena rompeu o silêncio da noite, e os
guerreiros que estavam a bordo do Michelle começaram a dobrar as velas. Ela ouviu o ruído da
âncora sendo jogada pela borda. Raposa Vermelha a pegou sem dizer nada e, fazendo caso omisso
dos furiosos protestos de Kendall, a carregou sobre suas costas; quando a jogou ao mar pela borda,
ela gritou, com a água escorrendo de seus braços e cabelo, e como já estava tiritando devido a
umidade, lhe pareceu que a água estava tão gelada como a dos mares árticos.
Raposa Vermelha a conduziu até a margem e a aproximou do calor de uma fogueira acesa na areia
branca. A olhou com preocupação.
―Está com frio ? ― perguntou.
Kendall só tinha forças para mover a cabeça.
O índio tirou a corda, mas não a cinta que a prendia pelos punhos. Kendall supôs que o fazia
porque considerava que não era necessário mantê-la atada por mais tempo; não podia ir a nenhuma
parte. Não se via mais que areia.... e o mar, escuro e perigoso.
Kendall cravou a vista nas chamas e depois contemplou a linha do horizonte. Quatro guerreiros
arrastavam as canoas até a margem, enquanto falavam em voz baixa, tranquilamente. Dois outros
índios conversavam com Raposa Vermelha e logo se uniram aos que rebocavam as embarcações.
Tiraram delas camisas coloridas e mantas velhas, assim como um bom número de bolsas de couro.
Kendall observou Raposa Vermelha vestindo uma camisa de manga longa, depois pegar uma bolsa,
tirar uma manta e regressar para junto dela.
Ele lhe lançou a bolsa.
―Tem roupa ― disse.
Ela o olhou atentamente, e ele se inclinou para observá-la com um sorriso brincalhão nos lábios.
―Está tremendo, mulher branca? Se assusta ao ver como diante de sua pele pálida meus
guerreiros se comportam como sementais ante uma égua no cio?
Kendall sentiu vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Esse índio não sabia nada dela, que já
havia sofrido tantas humilhações que aquilo pouco poderia afetá-la. Sorriu.
―Tremo, Raposa Vermelha, mas de frio. E se não me apresso a aceitar a roupa seca é porque
tenho as mãos atadas!
Kendall se alegrou ao comprovar que, pela primeira vez, Raposa Vermelha se mostrava
desconcertado. O índio sufocou uma risadinha, e no mesmo instante, voltou a aparecer aquela
estranha sombra de admiração em seu olhar.
Tirou a faca do cinturão, ficou atrás de Kendall e cortou o couro.
―Já está solta, mulher branca. Pode se trocar e fazer as suas necessidades atrás das árvores. Não
tente fugir, pois não chegaria muito longe. A ilha é pequena e não ha água. Está rodeada de recifes
cheios de tubarões em busca de uma presa!
Kendall se levantou a duras penas, massageando os punhos, que estavam irritados. Pegou a bolsa
de couro que ele havia entregue e sorriu com amargura a seu sequestrador.
―Não penso correr, Raposa Vermelha. Em nenhum momento me ocorreu rechaçar sua bondosa
hospitalidade. ― Começou a caminhar, mas ao chegar à fogueira, retrocedeu de repente. ― Tenho um
nome, Raposa Vermelha; não gosto que me chamem de «mulher branca». Sou a senhora Moore. De
modo que, se quiser que lhe responda quando se dirigir a mim, me chame pelo meu nome.
Raposa Vermelha cruzou os braços.
―Conheço seu nome, Kendall Moore. Vamos, se troque logo. Estou cansado e não esperarei muito
tempo para lhe dar água e comida.
Kendall se virou e foi até o local escuro, mais confusa que assustada. Como sabia seu nome
aquele índio? Era como se houvessem assaltado o Michelle com a única intenção de tomá-la como
refém.
Na ilha havia algo mais que areia. Chegou por fim a um mangue solitário e se ocultou atrás. Sua
perplexidade aumentou ainda mais, quando abriu a bolsa de couro. Esperava encontrar em seu
interior vestidos indígenas, algo semelhante às camisas de cor que acabavam de vestir os homens. A
bolsa continha um vestido, mas não era indígena, e sim de algodão, simples, não muito bonito como o
que usava, mas que tirou nervosa e atônita. O que estava ocorrendo?
Kendall se apressou a se trocar, decidida a voltar, o quanto antes, para junto do calor do fogo... e
Raposa Vermelha.
Cada vez estava mais convencida de que os índios não lhe fariam mal... não no momento. Estava
destinada a Falcão da Noite, quem, ao que parece, era muito mais poderoso que Raposa Vermelha... e
havia dado ordens de que não a molestassem. Aquela ideia lhe deu forças.
Kendall obotoou o último dos botões do vestido seco, enrolou o que estava molhado e voltou com
passo majestoso ao acampamento.
Haviam estendido as mantas em volta da fogueira. Alguns estavam comendo, mascando tiras de
carne que sustentavam com as mãos. Três dos guerreiros já estavam envoltos em suas mantas. Raposa
Vermelha estava sentado com as pernas cruzadas no lugar exato em que o havia deixado. O único
detalhe surpreendente era a cafeteira que estava no fogo, apoiada sobre um pedaço de coral.
Kendall lançou um gritinho de alegria e se sentou com as pernas cruzadas em frente a Raposa
Vermelha.
―Café! Que agradável. Mas, sem dúvida, gostaria de beber antes um pouco de água.
Raposa Vermelha, desejoso de se mostrar amável e hospitaleiro com sua prisioneira, estendeu a
ela um copo e um frasco.
Ela abriu o recipiente e se serviu uma generosa quantidade de água. Sedenta, a bebeu de um gole e
repetiu a ação.
Logo notou o calor de uma mão em seu braço.
―Não tão rápido. Assentará mal.
Seu escuro olhar era enigmático. Kendall assentiu com a cabeça e bebeu lentamente, sem deixar de
olhá-lo nos olhos. Ele grunhiu, impaciente; quando ela se saciou, serviu a ela uma xícara de café,
visivelmente incomodado. Ela tomou outra xícara, e Raposa Vermelha lhe ofereceu um pedaço de
carne, que ela aceitou e também continuou observando-o, devorando a comida com uma fome voraz.
―Obrigada ― murmurou um pouco sarcástica, depois de engolir o primeiro pedaço de carne que,
depois de tudo, não estava tão ruim. ― É muito amável. Hospitalidade sulista... índios sulistas, com
seu próprio estilo, não é mesmo?
Raposa Vermelha voltou a grunhir.
―Come, mulher branca.
―Senhora Moore.
Como única resposta, se ouviu outro grunhido.
―É um chefe Raposa Vermelha?
―Sim.
―Do que?
Seus olhos escuros a contemplavam receosos.
―Sou o chefe de minha tribo.
―Sim, sim, já entendi ― disse Kendall, impaciente. ― O que quero saber é se você é seminola.
―Sim e não. Sou filho do grande Osceola. Ele era creek e seminola, e minha mãe é mikasuki. E
você é muito curiosa. Come, mulher branca. Quero dormir.
Kendall olhou ao redor, intrigada pelo silêncio que reinava, e viu que todos os guerreiros estavam
cobertos com as mantas. Suspirou surpreendida pela atitude desses estranhos homens morenos, de
escuro olhar e expressão insondável que a ignoravam, deixando-a totalmente aos cuidados de seu
chefe.
―Não somos bestas selvagens, mulher branca. Nos comportamos como o faria qualquer homem
cuja terra é atacada.
Kendall se ruborizou e, olhando-o nos olhos, perguntou: ―Então por que nos assaltou? Por que me
raptou?
―Falcão da Noite deseja lhe ver ― respondeu Raposa Vermelha.
―Mas isso é uma loucura! ― exclamou Kendall. ― Jamais conheci um índio na Flórida! Jamais
causei dano a um índio!
Raposa Vermelha se levantou, recolheu sua manta e se cobriu com ela.
―Vá dormir sem fazer ruído e não nos apunhale durante a noite. Nós despertamos com o zumbido
de uma mosca e se me molestar, a manterei atada durante o resto da viagem.
Kendall bebeu um pouco de café enquanto o irado índio seguia ali.
―Duvido que uma mulherzinha como eu seja capaz de apunhalar a sete bravos guerreiros ―
replicou secamente, sem olhar a Raposa Vermelha, consciente de que ele a observava fixamente,
confuso e incômodo.
O índio emitiu, por fim, um de seus já habituais grunhidos de impaciência e se acomodou dando as
costas, desafiante, não muito longe dela. Kendall continuou bebendo café e ao final, também sucumbiu
ao cansaço. Raposa Vermelha tinha razão; roubar uma faca para tratar de apunhalar sete guerreiros
fornidos era um ato suicida. Além disso, não havia possibilidade alguma de escapar, pois estava
rodeada pelo escuro mar, um monte de areia e uns quantos arbustos.
Tentou se acomodar se estendendo sobre a dureza da areia, esgotada, lutando para reprimir as
lágrimas de desespero. Custaria conciliar o sono naquelas condições. Finalmente, tentou dormir.
Quando seu corpo exausto relaxou um pouco, fechou os olhos e tratou de se consolar recostando a
face contra a aspereza da manta. Quase no mesmo instante dormiu.
Os rosados raios do sol anunciaram o amanhecer. Ao sentir a luz sobre as pálpebras, Kendall
despertou, envolta num aroma muito agradável e em meio das estranhas vozes dos índios.
Se sentou com cautela e olhou ao redor, protegendo os olhos da luz solar. A fogueira seguia acesa,
e nela fervia a amassada cafeteira; além disso havia uma frigideira de ferro. O aroma de pescado
fresco que procedia dela lhe despertou o apetite. Um dos guerreiros estava cuidando da frigideira,
enquanto outro, com uma faca, cortava mais filés para colocar no fogo.
―Dormiu bem, mulher branca?
Kendall se voltou de imediato, surpreendida.
Raposa Vermelha se estava atrás dela; não o havia ouvido se aproximar. Lhe desconcertava o fato
de que pudesse se aproximar dela com tanto sigilo. O olhou com o cenho franzido.
―Não foi mal ― disse, e em tom sarcástico acrescentou:― dadas as circunstâncias, homem
moreno.
Lhe encantou ver que sua resposta provocava uma mudança na expressão do rosto do índio, que
tensionou as feições, enraivecido. Ela sorriu com doçura para falar em seguida, enfatizando seu
marcado acento de Charleston, até conseguir que sua voz adquirisse um tom mais meloso que um
torrão de açúcar.
―Estupendo! Mais café! Posso abusar de sua amabilidade, homem moreno? Adoro café pela
manhã.
Raposa Vermelha soltou um profundo grunhido de enfado.
―Está bem, Kendall Moore. Eu a chamarei por seu nome. ― Levantou o dedo em direção a
fogueira. ― Jimmy Emathla se ocupará de que não lhe falte comida. Va até ele.
Kendall sorriu e obedeceu. Jimmy Emathla devia ser o nome do guerreiro que estava cozinhando,
de modo que se encaminhou até ele. Quando o índio sorriu, ela pensou que não era de todo mal. Tal
como Raposa Vermelha, era um homem musculoso de aspecto ágil, mas naquela manhã já não era tão
imponente. Sabia que os outros guerreiros, que estavam servindo-se de café e preparando os pratos
de pescado, não afastavam a vista dela e havia comentários. Certamente, Kendall parecia ter se
resignado à sua atual situação, pois intuía que aqueles homens não representavam nenhuma ameaça
para ela. Inclusive, se perguntava o que pensariam se soubessem de que, de fato, achava aquela
situação muito mais aceitável do que a habitualmente desfrutada entre sua própria gente.
Ao ver Raposa Vermelha junto a margem, ali onde as ondas se rompiam deixando rastros de
espuma branca, a mulher acolheu um prato e um copo e começou a correr até ele. Este, ao notar que
ela se aproximava, se voltou com expressão de desagrado como se sua prisioneira fosse uma espécie
de praga que aparecia uma e outra vez. Kendall riu.
―Se me libertasse, Raposa Vermelha, já não o incomodaria mais ― disse zombeteira, como se
fosse uma sincera súplica.
Ele a olhou atentamente, impassível.
―Não pretendo libertar você, Kendall Moore!
A convicção que denotava sua voz a assustou mais que qualquer ameaça. Resolvida a evitar que
percebesse o quanto lhe haviam afetado suas palavras, pegou a taça.
―Está delicioso. Me surpreende. Ignorava que os seminolas tomassem café.
―O café é bom ― afirmou Raposa Vermelha, estoicamente. ― Procede da Colômbia. ―
Pronunciou aquela palavra como que saboreando—a, como se sentisse uma curiosidade natural por
conhecer mais coisas acerca de um lugar com um nome como aquele. Encolheu os ombros e sua
seguinte frase aterrorizou a mulher: ― Temos muito café. É um presente de Falcão da Noite.
Então se voltou para chamar a seus homens, deixando-a na margem com o estômago revolto,
enquanto as ondas rompiam a seus pés.
―Come, Kendall Moore ― disse Raposa Vermelha. Temos que partir. Nos aguarda um longo
caminho hoje.
Ela se sentou na areia e comeu o pescado. Gostou de seu sabor, deixou a espinha bem limpa.
«Esses seminolas ― pensou convencida ― sabem manejar suas facas.»
Levantaram o acampamento em questão de minutos. Dois dos homens partiram a bordo das canoas,
enquanto que Raposa Vermelha escoltou Kendall, de má vontade, até o Michelle, onde os esperavam
os demais guerreiros. Não a atou nessa ocasião, talvez porque havia decidido que ela não era o tipo
de pessoa que se suicida, pois saltar pela borda naquele momento, tão longe de qualquer território
que pudesse lhe resultar familiar, representava uma morte segura.
Naquele dia, a pior tortura foi a que lhe infligiram seus próprios pensamentos. Sozinha com os
índios presos na navegação, lhe ocorreu numerosas perguntas. Onde a levavam? Por quê? Quem era
Falcão da Noite? Por que razão se sentia um índio seminola ofendido por ela, se nunca havia
conhecido a nenhum?
Ao entardecer sulcaram uma zona repleta de pequenas ilhas cheias de mangues. De algum modo,
ela temia pela integridade do Michelle, embora os marinheiros índios parecessem conhecer bem
aquelas águas. O casco da embarcação nem sequer roçou os recifes tão sobressalentes.
Onde estavam? Se perguntava Kendall. Próximo à parte continental da Flórida? Sim, devia ser
isso, já que começavam a entrar num rio, e tanto a bordo como a estibordo se viam longos trechos de
ervas daninhas, pântanos e lama.
O pânico se apoderava dela. Devia ter optado por se jogar ao mar. Ali não havia nada, nenhum
lugar onde ir. Ao longe, entre os pantanosos bancos do rio, lhe pareceu distinguir um tronco que se
movía.
Quando se aproximaram se deu conta de que aquilo não era uma madeira. Tinha o aspecto de um
monstro enorme e grotesco de outra época. Aquela estranha criatura se introduziu na água com um
ruído surdo, seu corpo, ágil e brilhante, se movia pela água, e se via somente os olhos e a ponta do
focinho.
―Um crocodilo.
Ao ouvir a voz que lhe sussurava ao ouvido, Kendall deu um pulo e engoliu duro. Raposa
Vermelha parecia encantado por tê-la surpreendido.
―Está faminto. Está anoitecendo, saiu em busca de algo para ceiar. De uma dentada, engole uma
garça. Duas dentadas, um javali. Um homem... ou uma mulher, quatro ou cinco dentadas, talvez seis.
Kendall ficou olhando-o nos olhos escuros e insondáveis à luz crepuscular. Convencida de que
estava zombando dela, se voltou para contemplar de novo o banco do rio.
―Realmente interessante ― murmurou.
―Acha-o interessante, Kendall Moore? Não está assustada?
Erguendo-se, o olhou atentamente.
―Não ― respondeu.
―Não seja estúpida. Deveria estar.
―Pretende que eu acredite que um crocodilo me comeria?
―Não pretendo nada... salvo a entregar a Falcão da Noite. Estou tratando de dizer a você que esta
terra não gosta dos brancos. O barro a pode engolir, os crocodilos a devorar. Se uma serpente a
picar, seu veneno a mataria no mesmo instante.
Kendall não pôde evitar estremecer. Raposa Vermelha se voltou, com a intenção de regressar à
popa. Ela, de um impulso, o agarrou pelo braço, forçando-o a se virar para olhá-la.
―Por favor! O que fiz a esse Falcão da Noite? ― Perguntou. ― Juro que jamais causei nenhum
dano a um índio! Jamais estive na parte continental da Flórida.
Raposa Vermelha a observou durante alguns instantes. Kendall estava tensa, esperando, consciente
de que sua súplica devia tê-lo comovido. Finalmente ele se liberou de sua mão.
―Falcão da Noite não é um assassino de mulheres. O digo porque é valente mas, seguramente
estúpida. Não tente escapar. Seja qual for o castigo que Falcão da Noite tenha decidido impor, nunca
será pior que as presas de um crocodilo.
Quando Raposa Vermelha se encaminhou até o timão, Kendall cobriu a boca com a mão para
sofocar um grito. Senhor! Acabava de expor a ela as alternativas que tinha: a vingança de Falcão da
Noite, a picada de uma serpente, as mordidas de um crocodilo ou as areias movediças.
―O que terei feito eu? ― suspirou, patética. Ao ouvir o chiado agudo e solitário de um pássaro,
um calafrio de medo percorreu seu corpo. Estava anoitecendo com rapidez, e a escuridão criava
sombras terríveis nos pântanos. Um mosquito começou a zumbir em seu rosto, e, furiosa lhe deu um
tapa. Se ouviu o ruído de algo que caía na água próximo à margem, e o som lhe pareceu tão tenebroso
que não se atreveu a averiguar qual criatura o havia produzido. Outro crocodilo?
―Que Deus me ajude! ― sussurrou.
Correu pelo convés e, depois de passar pelos guerreiros, desceu depressa as escadas que
conduziam até o camarote. Escutou a risada de Raposa Vermelha, mas não prestou atenção.
Quando ficou sozinha, as lágrimas inundaram seus olhos. Em algum lugar muito distante existia a
beleza de que esperava desfrutar algum dia, se conseguisse sobreviver, uma casa com colunas
georgianas que se elevavam, brilhantes e brancas, até o céu; um lugar onde as refeições se serviam
em uma grande mesa de carvalho polido com cera de abelha; onde os homens liam na biblioteca e
fumavam charutos, enquanto saboreavam o conhaque, enquanto formosas mulheres conversavam e
fofocavam; onde os algodoeiros se estendiam até onde alcançava a vista e a forma de vida era
agradável... Cresthaven, enfim, seu antigo lar.
Havia homens que lutavam para defender essa forma de vida, muito longe, embora nem tanto. Se
sentira prisioneira nos barracões unionistas, e agora era arrastrada a um pântano que ficava na... na
Confederação, pensou, com tanta amargura, que quase começou a rir, histérica. Por fim se encontrava
na Confederação. Aqueles sombrios lodaçais faziam parte da Flórida, dos Estados Confederados da
América... Muitos homens morriam por um punhado de herva cortada, pelas areias movediças, pelos
crocodilos. Estavam combatendo... John! Deus! John era o culpado pelo que ocorria a ela. Sabia que
seu esposo era um homem cruel e que odiava os índios. Talvez, em alguma de suas viagens, os tivesse
enfrentado e, bem poderia ser, havia cometido alguma atrocidade contra esse Falcão da Noite. O que
teria feito? Assassinou sua familia? Seu marido opinava que todos os índios eram uns selvagens;
seria capaz de disparar contra um menino seminola com a mesma tranquilidade com que o faria
contra um lobo.
Kendall apertou os punhos, sem perceber que estava cravando as unhas com tal força, que
sangravam. As picadas de uma serpente começavam a ser mais atraentes que o trato que pudesse lhe
dispensar Falcão da Noite.
Kendall permaneceu no camarote até que ouviu gritos no convés. Pela movimentação dos
guerreiros, deduziu que estavam baixando as âncoras. Começou a subir pela escada, mas enganchou o
vestido no timão. Depois de se livrar, saiu para fora. De repente uma luz a cegou; Raposa Vermelha a
iluminava com uma lanterna.
―Vem ― disse ― Usaremos as canoas para chegar na praia.
Sem outra escolha, Kendall obedeceu. Os demais guerreiros os aguardavam nas canoas.
―Segure isso. ― Raposa Vermelha entregou a lanterna a Kendall, e se agarrou na beirada e saltou
pela borda. O salto fez com que a água salpicasse Kendall, que viu como o índio ficava em pé, pois o
rio era pouco profundo. Se ruborizou ao recordar dos crocodilos que haviam visto. Mas Raposa
Vermelha parecia não ter medo.
―Venha ― ordenou o guerreiro impaciente.
Pretendia que mergulhasse naquele rio lamacento em plena escuridão. Ela retrocedeu, negando
com a cabeça.
―Venha! ― repetiu Raposa Vermelha, com os braços abertos. ― Segure a lanterna no alto. Eu a
levarei.
Kendall mordeu os lábios e se dirigiu à grade. Se ele ficasse bravo naquele momento, talvez
mudasse de opinião, e ela seria afundada na lama.
Manteve a lanterna no alto, enquanto ele a pegava com seus poderosos braços, e a tirava da
embarcação. Kendall sustentava a lanterna com a mão esquerda e de forma instintiva lhe rodeou o
ombro e o colo com o braço direito.
Kendall enrubeceu com a proximidade daquele corpo cálido, de pele escura e suave, ao observar
de tão perto as cinzeladas feições. Se olharam diretamente aos olhos, separados por escasos
centímetros. Nervosa, Kendall disse: ―Seu inglês é excelente.
Ele grunhiu. Pelo visto, Raposa Vermelha só transmitia informação quando lhe interessava.
―Onde aprendeu a falar tão bem?
Voltou a cravar o olhar nela, como anunciando que ela não gostaria de sua resposta.
―Aprendi a língua do homem branco quando era criança. Era um bebê quando os de sua raça
estenderam ao meu pai uma armadilha, depois de haver pedido uma trégua mostrando uma bandeira
branca. Osceola morreu na prisão, quando eu tinha oito anos. Osceola nos advertiu que era
conveniente que soubéssemos o que nos dissessem em inglês, porque as palavras sempre escondiam
uma armadilha.
Raposa Vermelha continuava caminhando pela água, que lhe chegava até a cintura. Kendall
guardou silêncio.
Osceola havia morrido no Forte Moultrie, dois anos antes dela nascer, e a história do grande chefe
havia ficado muito popular entre as crianças de Charleston. Era curioso que Osceola tivesse morrido
na mesma cidade em que fizeram os primeiros disparos e que iniciara a guerra civil, que se
desenrolava naquele momento.
Ao ouvir outro grito infernal de uma daquelas aves noturnas, se aconchegou mais no colo de
Raposa Vermelha. Ao perceber que ele sorria, o soltou, aborrecida.
―Desconheço por completo os pântanos, Raposa Vermelha, mas suponho, que assim como os
índios tenham aprendido a viver neles, também podem fazê-lo os homens brancos... e as mulheres.
Ele sacudiu a cabeça e sorriu, ignorando seu comentário.
―Meu inglês melhorou nos últimos anos graças a Falcão da Noite.
Era como se estivessem numa guerra de olhares. Por fim chegaram à praia. Kendall se deu conta
de que ele havia evitado, com grande habilidade, cada citação feita para contra-atacar cada uma das
dela.
Ele a colocou bruscamente na canoa e antes de subir, fez um sinal com a mão a seus guerreiros,
para que empreendessem de novo a viagem. Eles começaram a remar através das águas pantanosas
bordeadas por juncos.
―Não estamos longe ― informou Raposa Vermelha.
Era certo, não estavam muito longe; o trajeto de canoa pareceu muito curto a Kendall. Até que
tivesse tempo de começar a se preocupar, divisou um resplendor entre as árvores. Depois de rodear
um meandro do rio, chegaram por fim ao acampamento seminola.
A primeira impressão foi a de um conjunto de estranhas construções que harmonizavam com a
paisagem. Muitas das que ocupavam a clareira estavam levantadas sobre postes, a considerável
distância do chão, e tinham o teto de palha. Outras eram cabanas com paredes de troncos de madeira,
enquanto que algumas estavam totalmente abertas ao ar da noite. Várias fogueiras ardiam em
diferentes pontos, ao redor delas mulheres e crianças, usando roupas de algodão de cores vivas,
realizavam diversas tarefas. Logo prorromperam em gritos de alegria e uma vintena de índios
começou a correr na direção do rio.
Kendall estremeceu, impressionada. Aqueles eram os seminolas. Mulheres de toda as idades,
jovens e velhas, corriam até as canoas. Algumas tinham as feições muito toscas; outras eram bonitas,
de rostos cinzelados e traços nobres como os de Raposa Vermelha.
Havia algumas crianças nuas, enquanto que outras se vestiam como seus pais, com roupas variadas
que iam desde tapa-sexo dos homens jovens até as camisas e as calças de vaqueiros. Predominavam
as camisas coloridas como as que haviam vestido os guerreiros para se proteger do frio da noite; os
vestidos e as saias que luziam nas mulheres eram muito semelhantes. Aquele povoado parecia ser
fascinante, pensou Kendall, se não fosse pelo fato de estar tão aterrorizada.
Os gritos e as exclamações aumentaram de volume. Os guerreiros ficaram em pé nas canoas,
saíram delas para arrastrar as embarcações até a margem do rio, enquanto seus familiares e amigos se
precipitavam até as águas lamacentas para abraçá-los. Kendall se fixou em Raposa Vermelha,
disposta a contemplar as boas-vindas do lugar. O índio se levantou de dentro da canoa e um amplo
sorriso iluminou seu rosto.
―Apolka! Apolka!
Kendall seguiu a direção de seu olhar. Uma encantadora e esbelta jovem, vestida com um tecido
de algodão, lançava um grito de felicidade e corria até a margem do rio. Quando chegou perto,
Kendall considerou que aquela jovem índia possuia uma exótica beleza. Em seu delicado rosto se
destacavam enormes olhos castanhos, emoldurados por esplêndidos cílios; parecia leve e ágil como
uma gazela.
―Raposa Vermelha!
Ele saltou da canoa com tal rapidez que quase a fez virar. Kendall apertou os dentes e se aferrou à
áspera prancha, numa tentativa desesperada por manter o equilíbrio. Quando, por fim, esteve segura
de que não cairia no pântano, Kendall levantou a vista e observou como Raposa Vermelha abraçava
efusivamente a mulher. Ela, que confiava que a ignorariam durante um bom tempo, sofreu uma triste
decepção, quando a moça, liberando-se do abraço do homem entre risos, se voltou para olhá-la com
curiosidade, e em seguida começou a falar com Raposa Vermelha. Ele respondeu em sua língua nativa,
e ambos contemplaram Kendall com atenção. Ela, com o queixo bem alto, lhes dedicou um olhar
inquisidor.
Raposa Vermelha sorriu.
―Parece que terá que esperar, Kendall Moore. Achávamos que Falcão da Noite estaria já aqui,
mas correm tempos difíceis. Não importa, ele virá. De momento, ficará com Apolka.
Kendall vacilou, olhando desconfiada para a moça que a observava com curiosidade.
―Kendall Moore, venha! ― A voz do guerreiro soou como um agudo grunhido.
Kendall todavia, duvidava. Havia tantos índios no acampamento... «Quantos?» se perguntou.
Pareciam estar por toda parte, e cada vez era maior o número dos que se acercavam para olhá-la; os
mais jovens, com suas carinhas de querubim, redondas; os maiores, com a pele manchada pelo sol
impiedoso. Homens, mulheres...
―Deve vir! ― insistiu Raposa Vermelha.
Apolka lhe tocou no ombro e disse algo com doçura. Raposa Vermelha, encolheu os ombros,
impaciente e retrocedeu com os braços cruzados.
A moça se adiantou e estendeu sua mão, escura, magra, maltratada pelo trabalho, com a palma
voltada para cima, em sinal amistoso. Kendall olhou aqueles cálidos olhos castanhos de gazela, que
não mostravam compaixão, mas sim simpatia. Ao final de um segundo aceitou aquela mãozinha
ossuda, mas surpreendentemente forte.
Quando seus pés se afundaram na lama da margem, Kendall fez uma careta de dor. Em seguida,
consciente de que tinha que desfilar diante de uma multidão de índios curiosos, se obrigou a manter
uma expressão tão austera como a de Raposa Vermelha, e caminhou erguida e orgulhosa.
Quando entrou na clareira, a manusearam por todos os lados; a roupa, o cabelo... Não se
acovardou, tentou conservar a dignidade e a compostura o melhor que pôde. Ouvia os contínuos
cacarejos, as risadas brincalhonas das mulheres e das crianças que zombavam dela, mas soube
reprimir o pânico e o desejo de tampar os ouvidos para, desse modo, se livrar daquela insuportável
tagarelice. Pelo menos, ninguém lhe fazia mal!
Embora não entendesse o que diziam, suspeitou que Apolka não aprovava aquelas mulheres.
Quando, por fim, chegaram a uma das cabanas, Apolka a empurrou até uma escada e se voltou para
dizer algo à multidão desordenada.
Mal-humorada, a multidão se dissolveu.
A cabana tinha apenas um cômodo, iluminado por uma lamparina colocada em cima de uma mesa
baixa.
Kendall examinou ao redor e viu duas janelas, muito elevadas, sem proteção alguma. Num canto
havia um monte de mantas coloridas e, junto à lamparina, uma vasilha de cerâmica, que esperava que
contivesse água. Além disso, no recinto não havia nada mais.
―Kendall.
Seu nome soava verdadeiramente estranho pronunciado por aquela jovem índia. Kendall se voltou
para ela, com a sensação de que Apolka era a única pessoa que lhe dispensaria um trato amável. Ela
lhe fez uns sinais, e Kendall comprendeu que se referiam a comida. Assentiu com a cabeça, ansiosa,
estava morta de fome.
Apolka caminhou graciosamente até a porta de tábuas, fechando-a às suas costas. Kendall ouviu
um ruído surdo...
Embora Apolka houvesse decidido mostrar-se amável com ela, não daria nenhuma oportunidade
para escapar. Ao que parece, a porta tinha uma tranca por fora, que sempre permaneceria fechada.
Se moveu, nervosa, pela cabana, e percebeu que o chão e as mantas que lhe haviam deixado
estavam surpreendentemente limpos, e a vasilha, cheia de água.
Se lançou desesperada até ela e começou a beber depressa e com cuidado, agradecendo encontrar
o conteúdo tão claro e fresco.
Apolka regressou antes de que houvesse soltado a vasilha. Lhe ofereceu um recipiente de madeira
com uma sopa de aveia de aspecto horrível. Kendall estava tão faminta que, sem qualquer escrúpulo,
aceitou o recipiente e sussurrou: ―Obrigada.
―Koonti ― disse Apolka.
Aquela palavra nada significava para Kendall, mas sorriu. A índia acrescentou algo mais e sacudiu
a cabeça com exasperação ao perceber que ela não a compreendia. Então juntou as mãos e inclinou a
cabeça sobre elas, dando a entender que devia dormir. Sem saber que outra coisa poderia fazer,
Kendall assentiu com a cabeça, o que pareceu satisfez sua anfitriã, que em seguida saiu da cabana,
fechando a porta com firmeza, trancando-a por fora.
Kendall exalou um longo suspiro e se sentou no chão com a vasilha de sopa de aveia. Provou
aquela mescla e estremeceu; sua textura era áspera. Deixou o recipiente de lado, se perguntando se a
haviam levado até ali com o único propósito de envenená-la.
E, com essa ideia, sua mente começou a dar voltas de novo. Devia escapar, mas seria impossível.
Se o tentasse, se perderia naqueles pântanos para sempre. Não, não para sempre; até que topasse com
uma serpente, um crocodilo ou que afundasse nas areias movediças...
―Deus meu! ― soluçou, abraçando-se, enquanto o terror se apoderava dela. ― Não, não, não,
não. ― repetia uma e outra vez. Devia haver algum modo de escapar.
Se acalme! ― pensou, ― resista. Encontrará uma maneira. Até agora sobreviveu a todas as
desventuras que enfrentou. O que podem fazer? Ninguém será capaz de lhe arrebatar nem o
orgulho, nem a sua dignidade. Sobreviveu a John, à dura vida nos barracões da união em tempos
de guerra...
Sim, acharia uma maneira de fugir. Era uma mulher forte e sadia. Observaria com atenção tudo o
que se passava ao redor. Aprenderia e escaparia.
Voltou a pegar a vasilha e se obrigou a comer a sopa. Não podia permitir que lhe falhassem as
forças. Quando terminou, bebeu mais água, soprou para apagar a lamparina e se preparou para dormir
numa almofada com uma das mantas. Se deitou e se cobriu. Se havia proposto dormir, tal com havia
decidido comer; o mais importante era se manter alerta, tranquila e saudável.
Aquela noite custou a conciliar o sono. Com a vista fixa em uma das janelas, se perguntou, debaixo
da pálida luz da lua, quem seria Falcão da Noite. Seria um guerreiro, como Raposa Vermelha? De
fato, era ele quem a protegia de qualquer ataque.
O que ocorreria se aparecesse antes que ela pudesse escapar?
Resmungou e se virou de bruço, com os olhos fechados. Raposa Vermelha havia afirmado que
Falcão da Noite não era um assassino de mulheres. Sem dúvida, buscava vingança. O que
pretenderia? Violá-la? Mutilá-la? Não precisava matá-la para lhe para arrancar os dedos um a um, e
alimentar com eles os crocodilos.
Soltou um gemido. Basta ― se reprendeu. ― Basta. Repetiu a palavra uma e outra vez, como se
estivesse contando ovelhas. Por fim caiu num sono agitado, cheio de pesadelos, com um homem
enorme, que se aproximava dela na escuridão, enquanto falcões noturnos chiavam; ela tremia, porque
não havia escapatória...
Capítulo 3
―Maldita seja! ― resmungou Kendall, com uma careta de dor, quando o pedaço de sabão enorme,
que tinha na palma da mão, roçou a pedra contra a qual batia, energicamente, as roupas que lhe
haviam entregue para lavar.
Como era natural, em condições normais, uma dama sulista como ela jamais teria pronunciado uma
expressão tão vulgar. O certo era que nunca na vida se havia sentido tão longe de ser uma dama
sulista, como naquele instante. Agachada, observou suas mãos; tinha as unhas quebradas, e a pele
áspera.
Num acesso de raiva, lançou ao rio a camisa que estava lavando, e contemplou satisfeita, como a
corrente a levava. Suspirou; isso que acabava de fazer não melhorava sua situação em absoluto, pois
lhe aguardava um montão enorme de roupa, e se decidisse jogá-las todas rio abaixo, os seminolas
poderiam chegar a se mostrar violentos com ela, embora essa reação fosse mais que improvável. Se
sentou, disposta a descansar.
Levava uma semana inteira com os índios e estava aprendendo. A princípio, temeu que a
mantivessem todo o tempo presa na cabana, mas não foi assim.
A vida nos pântanos era muito atarefada. Descobriu que os guerreiros abandonavam o
acampamento ao amanhecer. Passavam o dia armando armadilhas para caçar veados e aves, e
explorando o território para protegê-los. Os anciãos se dedicavam a entalhar a madeira e a realizar
pequenos consertos. Enquanto trabalhavam, contavam histórias, uns aos outros, recordando os velhos
tempos. As crianças cuidavam das galinhas e dos porcos, enquanto que as mulheres se ocupavam de
cozinhar, cozer e lavar; definitivamente os trabalhos mais esgotantes e aborrecidos. Não se permitiam
nem sentar para repousar nas cabanas. Kendall, desde o primeiro dia, foi tirada ao amanhecer de sua
prisão e lhe encomendaram algum trabalho. A primeira palavra índia que aprendeu foi a tão
misteriosa koonti, aquela que escutou na noite em que chegou. Se tratava de uma raíz que constituia o
alimento principal da dieta indígena. Se utilizava para preparar pão e sopa como aquela que
finalmente conseguiu comer, devido a fome que tinha, na primeira noite de estadia no povoado. Moer
koonti todo santo dia era um trabalho dos que partiam as costas.
Kendall olhou de novo para as mãos e suspirou. Era difícil imaginar que no passado havia sido
uma deslumbrante beleza sulista, vestida com sedas, veludos, possuidora de tantas crinolinas que não
podia nem contá-las; parecia impossível que, tão só uma semana antes, havia sido a mascote mimada
dos soldados da União. Havia demorado muito tempo em perceber que na ausência de John, sua vida
havia sido mais cômoda e prazerosa. Residia nos barracões unionistas, sim, era certo, mas as notícias
que recebia sempre falavam das sensacionais vitórias do sul.
Contemplou o rio, em cujamargem havia duas canoas atracadas.
―Amanhã! ― se prometeu.
Tal e como se havia proposto, se mantinha sempre alerta. Aceitava sem reclamar, as tarefas que
lhe pediam, enquanto observava com atenção todos e cada um dos movimentos que se produziam no
acampamento. Acreditava que os índios confiavam nela; provavelmente, estavam seguros de que
jamais lhe ocorreria escapar rio abaixo. Seria um suicídio... Mas se equivocavam.
A primeira noite, se aterrorizou com a escuridão. Mas ao despontar o dia, foi capaz de refletir e
medir as possibilidades. Tudo estaria pronto quando pudesse conseguir água e comida suficientes. Se
seu plano de roubar uma canoa tivesse êxito, seguiria o canal do rio. Os crocodilos eram perigosos,
mas enquanto permanecesse no interior da embarcação, não deveria temê-los, nem as areias
movediças e as serpentes. Talvez, encontrasse mocassins que estivessem na superficie do rio, mas não
pensava estender as mãos para tentar.
Dava como feito que poderia roubar a canoa sem nenhuma dificuldade. Tão convencidos estavam
os seminolas de que acatava as regras, que a cada tarde a deixavam sozinha, lavando roupas na
margem do rio.
Os dias eram todos iguais; pela manhã, moer o koonti e à tarde, lavar. Os últimos cinco dias, antes
do anoitecer, havia descido ao rio com Apolka. Enquanto se banhava nua, havia se sentido
terrivelmente vulnerável, ao pensar nas espantosas criaturas que, sem dúvida, se ocultavam nas águas
e nas várias dezenas de jovens guerreiros que havia ali mesmo... Mas, pouco a pouco, percebeu que
os seminolas constituíam uma sociedade com um elevado sentido de moral.
Os casamentos, inclusive quando existia poligamia, eram sagrados, e as mulheres jovens estavam
estritamente protegidas. Apolka era a esposa de Raposa Vermelha, ou sua mulher ― Kendall não
sabia exatamente qual era o conceito ― e nenhum homem se atreveria a se aproximar da que era
considerada propriedade do chefe.
Kendall costumava passar um bom tempo no rio, se banhando e aprendendo a nadar com a gentil
Apolka, e isso a ajudou a não cometer mais nenhuma bobagem do que um dia, quando notava que
aquele calor tão úmido estava a ponto de fazê-la estourar num acesso de rebeldia.
Antes de tudo devia evitar arrebatamentos daquele tipo, já que sua vida dependia da docilidade e
submissão que mostrasse. O resto das mulheres, embora, em alguns momentos, perdesse a paciência
por causa da inexperiência e seus erros ante os trabalhos que lhe pediam, a tratava com amabilidade.
Apolka a havia aceito; as demais, seguiram seu exemplo. Era como se, no curto espaço de tempo de
uma semana, a houvessem adotado e a considerassem a curiosa mascote daquela tribo.
Comia com Apolka e seus dois filhos, e permanecia grande parte das tardes na cabana de Raposa
Vermelha e sua família. Noite após noite, suplicava a Raposa Vermelha que a libertasse, e noite após
noite, ele recusava. Raposa Vermelha já não lhe inspirava nenhum temor. Acreditava que por alguma
razão gostava dela e que, se não fosse pelo fato dela ser uma espécie de presente que devia entregar
ao ausente Falcão da Noite, teria decidido que merecia a liberdade. Uma vez superados os primeiros
momentos violentos, se acostumou à morada de Raposa Vermelha, Apolka e seus dois filhos.
Descobriu seu próprio instinto maternal cuidando e jogando com os pequenos seminolas, que a
observavam curiosos com seus enormes olhos escuros, e desfrutavam encarando-a, enquanto Apolka
estava atarefada cozinhando para toda a família.
Raposa Vermelha tomou a decisão de que Kendall não cozinharia jamais. Após provar as
primeiras sopas de koonti que ela havia preparado, achou que o prato era pior que o esterco.
Kendall apertou os dentes e voltou a se dedicar por completo à lavagem de roupas. Só falta uma
noite, selvagem arrogante!
Embora tivesse que morder os lábios, teve que admitir silenciosamente, que Raposa Vermelha não
tinha nada de selvagem. Era brusco e mordaz, mas apesar de todas as provocações, nunca lhe havia
feito mal. Estava totalmente enamorado de Apolka e amava os dois preciosos filhos, que ela lhe
havia dado. Era incontestável que ele era melhor esposo e pai do que muitos dos chamados homens
“civilizados” que conhecia.
Kendall interrompeu de novo seu trabalho. Devia reconhecer também, que não se importava de
conviver com os seminolas. Desejava regressar ao seu lugar, que acreditava ser Charleston,
Cresthaven e os campos de algodão, mas não era dali que a haviam tirado. Na realidade era muito
mais agradável a companhia dos índios que a de John Moore. Se não fosse pelo fato de Raposa
Vermelha dizer que Falcão da Noite apareceria qualquer dia, estaria mais que encantada de ficar ali...
rogando a Deus que os rebeldes derrotassem os ianques, para poder regressar a Charleston e
reclamar a terra que, por direito, lhe pertencia...
Kendall repreendeu-se. Melhor seria que deixasse de sonhar e se concentrasse na realidade.
Embora a população na zona dos arrecifes fosse bastante escassa, salvo em Key West, havia colonos
por perto; tinha que escapar e buscar a ajuda de alguém. Se conseguisse, poderia ir a qualquer lugar,
talvez Charleston, talvez Atlanta, ou inclusive Richmond. Dada a situação de guerra, que era cada vez
mais complicada, tinha certeza de que arranjaria algum modo de colaborar com a causa confederada.
Encontraria trabalho num hospital.
Com essa ideia na cabeça recolheu as roupas, e empreendeu o caminho de volta até o
acampamento. A última noite. Fugiria no dia seguinte à tarde, quando se dirigisse, como de costume,
para o rio.
Ao se aproximar da clareira do bosque, Kendall se deteve e acreditou que tinha ficado louca.
Havia chegado visita ao acampamento seminola. Eram uns vinte homens, que riam e zombavam,
falando com aquele tom tão lento e familiar; homens vestidos de cor cinza e bege... Confederados!
Um esquadrão de soldados confederados.
―Deus meu! ― murmurou, alegre. Já não precisarei fugir pelos pântanos! Os galantes soldados do
sul me levarão a algum porto seguro.
Apertou a roupa úmida contra seu peito e começou a correr alegremente entre as árvores em
direção à clareira. Se deteve um momento no caminho, pois Raposa Vermelha e um homem branco,
alto e de costas largas, se interpunham entre ela e o acampamento.
«E o que importa?» Se perguntou com impaciência. Pediria ajuda ao homem de cabelo dourado,
que falava com seu raptor naquele momento.
―Cavalheiro! ― Chamou, jogando ao chão a roupa e correndo até perder o fôlego. ― Oh,
cavalheiro! Por favor, deve ajudar-me. Esses índios me fizeram prisioneira e pretendem me entregar
a um selvagem chamado Falcão da Noite e...
Quando o homem se voltou, Kendall emudeceu no mesmo instante, atônita, e o seu coração deu um
salto.
O conhecia, o conhecia muito bem. Aquele homem lhe havia roubado o sono há quase um ano,
provocando-lhe tanto fantasias eróticas, como pesadelos espantosos.
Notou um olhar cinza cravado no seu, um olhar que se escurecia, tornando-se duro como o aço.
Paralisada, Kendall observou as poderosas feições daquele homem, cada vez mais tensas, seus
lábios, reduzidos a uma fina linha branca, sua mandíbula, rígida pela ira; seus músculos se
avolumavam através da camisa.
―Você... ― sussurrou consternada, incrédula. Deus, esperava não voltar a vê-lo jamais. Em seus
piores sonhos, o havia imaginado prisioneiro nos barracões ianques. Senhor, Senhor, Senhor... o
recordava perfeitamente; sua voz tranquila e imperiosa, as carícias de seus dedos... e sua
ternura...ternura? Iria matá-la!
Ele tirou o chapéu para saudá-la com toda galanteria, sem poder ocultar a tensão que estava a
ponto de estourar em seu interior.
―Sim, senhora Moore. Capitão Brent McCain, senhora, da marinha dos Estados Confederados,
melhor conhecido nestes lugares como Falcão da Noite.
Quis gritar, mas a voz não saiu. Nunca havia se sentido tão aterrorizada; não podia respirar, tinha
um nó no estômago. Jamais ninguém lhe havia inspirado tanto medo, nem John, nem sequer Raposa
Vermelha quando atacou o Michelle...
McCain, Brent McCain. Oh, Deus. Nunca esqueceria o olhar que lhe lançou naquela noite
famigerada. E aquele mesmo olhar a penetrava, a atravessava como um tição aceso e furioso, naquele
momento.
Os lábios apertados do homem mostraram um sorriso sarcástico, que realçou ainda mais seu olhar
raivoso.
Avançou um passo até ela, e então Kendall gritou de pânico. Finalmente, se voltou e começou a
correr, apavorada.
Se dirigiu a toda pressa até a pedra que usava para lavar, que jazia na margem onde as canoas
estavam atracadas. Por mais que corresse, ouvia passos se aproximando, seguindo-a. As rápidas
batidas de seu coração ressoavam em seus ouvidos, como estouros de tiros. Estava perseguindo-a, e
a força e a resistência daquele homem eram muito maior que as suas.
―Não! ― exclamou sufocada, sem deixar de correr e sem se atrever a olhar para trás. A distância
que os separava era ridícula. Se sentia como uma raposa numa caça, tinha que correr até não poder
mais.
Os galhos das árvores açoitavam seu rosto. Por fim, chegou na beira do rio onde estavam as
canoas. Se inclinou e tratou de tirar uma embarcação da lama da margem, para arrastá-la até a água.
Logo compreendeu a inutilidade de seu esforço. A proa estava afundada no barro, e ela carecia de
força suficiente para empurrá-la até o rio. Deu um rápido olhar por cima do ombro e viu que o
capitão se aproximava, com seu olhar de aço, diminuindo o passo e sorrindo com grande satisfação.
Aterrorizada, tentou de novo mover a canoa. Ela era a presa encurralada, e a besta estava
desfrutando com muito gosto, dos momentos que precediam sua morte...
Incapaz de arrastrar a canoa, Kendall olhou para trás e viu que McCain, com suas belas feições
tensas, e um sorriso desenhado nos lábios se encontrava a uns cinco metros dela. Podia perceber o
calor e a tensão de seu corpo ainda distante, as fibras de seus músculos prontos para o ataque.
―Não! ― voltou a exclamar. Olhou ao redor, recolheu o vestido e saltou dentro da canoa,
buscando, desesperada, um lugar onde se esconder. Às suas costas corria o rio, na direita estava o
acampamento indígena e à frente dela se estendia um bosque de árvores cobertas de musgo, dispostas
como um labirinto, uma teia de aranha. Meio histérica, Kendall passou a correr pela margem do rio.
―Volte! Está louca!
Ela não se deu conta de que era mais que uma ordem, que se tratava de um aviso, uma advertência,
só pensava que o homem que a perseguia parecia desejar estrangulá-la lentamente.
Continuou correndo, murmurando súplicas incoerentes, enquanto a lama da margem do rio engolia
seus sapatos. Sua respiração se havia transformado em uma série de soluços entrecortados. De
repente, o terreno mudou. As ervas altas se haviam tornado uma ameaça, pois ocultavam onde
acabava o chão firme e começava o rio. Estava num mangue cheio de enorme quantidade de raízes,
que se pareciam com grotescos tentáculos.
―Kendall! Pare!
Ao se dar conta de que tinha o pé preso em uma raiz, deixou escapar um soluço desesperado.
Tratou de avançar e cambaleou até cair no lodaçal. A erva lhe arranhou os braços nus e o rosto, como
se fosse um exército de adagas diminutas.
―Oh, Deus! ― disse, inclinada, tateando em busca de um tronco para se apoiar. Mas percebeu
que tocou algo de aspecto viscoso. Horrorizada, levantou a vista e retrocedeu espantada, ao perceber
que estivera a ponto de se segurar numa serpente.
Cada vez mais assustada, entrou no lodaçal, se perguntando que outras horríveis criaturas, se
esconderiam ali, prestes a atacar.
―Não! Não, não, não... ― Sem importar com o que lhe faziam as terríveis ervas, se aferrou a elas
e tropeçou. Diante dela havia outro manguezal; era um lugar seguro.
―Kendall!
Olhou por cima do ombro. Brent McCain, com olhos tão escuros e tormentosos como uma nuvem
negra, ganhava terreno. «Não mudou ― pensou Kendall entre soluços, cambaleando entre as ervas.
― Não mudou nada, desde aquela noite de dezembro.»
Oh, Deus! Como não lhe havia ocorrido que ele era o Falcão da Noite? Sabia que era da Flórida e
que se dedicava a atacar a frota unionista ao longo da costa, tanto a leste como a oeste... E era o
único homem que conhecia, com uma boa razão para querer mal a ela, pois estava convencido de que
havia lhe feito uma armadilha naquela noite de dezembro. Como havia sido capaz de esquecer o cruel
olhar acusador naqueles olhos de aço, a promessa de vingança daquelas feições duras como o granito,
que nem sequer se relaxaram quando ficou inconsciente?
―Pare! Está louca!
Kendall alcançou o manguezal, não sem antes comprovar cheia de escrúpulos, que não estava se
agarrando a outra serpente. Sem dúvida, não havia como se sentir segura à vista daquela nodosa raiz,
de modo que decidiu retroceder.
Ele permanecia de pé no barro, com as mãos na cintura, os dedos tensos como o arame,
contemplando—a friamente. Usava a sobrecasaca militar aberta, assim como a camisa. Notava-se
como palpitava o pulso em seu pescoço e abaixo, num veio encaracolado, que povoava profusamente
seu musculoso peito. As pernas estavas separadas em posição desafiante, que marcavam os músculos
baixos na justa calça de montar.
Tinha os lábios tão apertados, que sua boca se havia convertido em uma linha.
Kendall fechou os olhos, aturdida.
―Não faça bobagens ― advertiu McCain em tom zombador, mordaz, mortalmente tranquilo. ―
Não pode ir a nenhuma parte.
Kendall abriu os olhos; a atitude do homem e suas feições a intimidaram. Voltou o olhar para o que
havia atrás do manguezal. O rio havia desaparecido e na frente dela não havia mais que ervas, que
chegavam até a sua cintura.
―Fique onde está ― disse ele lentamente, como uma tranquila ameaça. ― Irei até você.
Kendall o ouviu dar um passo; toda aquela imundice fazia ruído debaixo do peso da bota. Furiosa,
ao vê-lo aproximar-se, começou a gemer. Preferia o perigo que se escondia entre a erva, a seu
mortífero olhar de aço.
Apenas deu um passo e descobriu que não podia andar mais. A lama a havia feito prisioneira.
Enlouquecida, desesperada, lutou para liberar o pé que afundava cada vez mais. Era como se o
terreno, a puxasse com força, pretendendo absorvê-la. Era impossível sair dali. Tentou se agarrar às
ervas mais próximas, mas só o que conseguiu foi cortar as mãos. A prisão da sucção aumentava e,
abatida, horrorizada, compreendeu que acabaria afundado completamente. O barro negro já estava
naquele momento à altura da cintura e, quanto mais se movia, mais afundava...
―Eu disse que não fizesse bobagem! ― A voz, lenta e pesada, provinha do manguezal. Brent
McCain, tranquilo, havia colocado uma bota em uma raiz e tinha o cotovelo apoiado em um ramo.
Seus olhos brilhavam divertidos. Sorria de forma encantadora, mostrando dentes brancos, que
contrastavam com suas feições bronzeadas. Mesmo assim, sua atitude era severa, irradiava chispas
de raiva ameaçadora, carregada de tensão na distância que os separava.
Kendall teve certeza de que McCain se limitaria a olhar com um cruel sorriso de satisfação nos
lábios como afundava, até que a lama a tragasse por completo.
―Sabe, senhora Moore, você parece assustada. Me pergunto se você teria me abordado com tanta
facilidade em dezembro, se a houvesse visto coberta de barro, no lugar de vestida com aquele
precioso vestido de festa... prateado. Sim, essa era a cor. Lembro muito bem... Naturalmente, também
lembro que o tirei. Se comportou como uma grande sedutora! Armou uma armadilha muito inteligente,
embora perigosa. Se eu fosse o seu marido, não teria permitido que as coisas chegassem tão longe...
embora houvesse acreditado que com um soco livrasse a Confederação do mesmíssimo general
McClellan.
Kendall se assustou com o tom amargo da voz, que indicava que McCain estava convencido de
que havia sido vítima de uma emboscada. Por um momento, se esqueceu por completo da lama que a
engolia. Estava a ponto de morrer. De modo que ele acreditava que o havia seduzido com o único
propósito de deixá-lo exposto para que o assassinassem...
Ia deixá-la morrer e não teria que se incomodar em levantar um dedo. Desfrutaria contemplando
como a natureza cumpria o que ele considerava justiça.
De repente, sentiu que a ira se avivava em seu interior. Como podia se mostrar tão
condenadamente arrogante, e ditar a sentença sem ouvir as suas explicações? Aquela noite também
demostrou ser um arrogante filho da puta.
―É você totalmente burro, capitão McCain. ― Mas se interrompeu, horrorizada, ao comprender
que ele era sua única esperança naquele momento.
No mesmo instante adocicou o tom de sua voz e viu que ao falar como uma jovem educada em
Charleston, ele arqueava uma sombrancelha, sarcástico. ― Eu não o enganei, capitão, precisava
fugir...
―De seu próprio esposo? ― perguntou, depreciativo.
Kendall inalou o ar e procurou não tremer. O lodo já chegava na altura do peito, e ao menor
movimento, podia provocar que seu corpo afundasse ainda mais rapidamente.
―Capitão McCain ― suplicou, falando de forma pausada. ― Eu juro que sou inocente. Eu...
―Não perca seu tempo, por favor! ― interronpeu ele, com calma. Seu duro olhar brilhava em seu
rosto zombador. ― Carinho, o mínimo que se pode esperar de uma mulher com um pouco de
inteligência, afundada em uma charque de areia movediça, é que proclame sua inocência. E, senhora
Moore, jamais a considerei uma estúpida!
―Bem, talvez me houvesse confundido com uma ianque! ― exclamou Kendall.
―Oh, não, senhora Moore. Está você demasiado versada nas maneiras típicas das belezas
sulistas, para induzir—me a cair em tal erro. Sem dúvida, está casada com um dos ianques mais
notáveis no sul...
Sua voz se desvanecia à medida que se despojava da sobrecasaca e arregaçava a manga da
camisa. Ao vê-lo se agachar, Kendall tomou ar, se perguntando se ele queria tirá-la dali ou afundar
sua cabeça na lama.
―O que vai fazer? ― sussurrou debilmente.
Ele sorriu, e Kendall não gostou da tensão de sua mandíbula e a frieza de seus olhos cinzas.
―Afundá-la de todo? ― perguntou tranquilamente, ― jamais, senhora Moore. Temos uma dívida
pendente. Não permitirei que um charque de areia movediça me prive da vingança!
De repente, ele saltou da raiz em que estava apoiado e cravou as botas no chão. Estendeu os braços
e colocou suas mãos sobre os antebraços de Kendall, que de forma instintiva se aferrou a ele,
agradecendo aquele momento de alívio, sem poder evitar tremer ao tocá-lo. Notava a força, e o
volume dos bíceps, o cálido e temível poder que emanava dele. Os olhos do capitão estavam tão
próximos aos seus, que mordeu os lábios para não gritar. Ele se mostrava sereno; percebendo a
violência contida e o controle que demostrava, Kendall estremeceu.
―Tire! ― ordenou, tenso.
Ela obedeceu. Ele fincou os dedos com tanta força na pele, que a dor era impossível de aguentar e
o lodo se negava a soltá-la. Com o esforço, o rosto do homem se tensionou ainda mais, apertou os
dentes e repetiu: ―Tire!
Ao sentir a sucção do terreno, cada vez mais intensa, Kendall jogou a cabeça para trás e deu um
grito de dor. Apenas podia resistir à pressão que suportava seu corpo. No instante em que se
dispunha a rogar que a deixasse morrer, sentiu como os braços dele se elevavam; e a areia movediça
liberava sua presa, jogando-a para fora.
Rodearam juntos as raízes do manguezal e os campos de ervas.
Ambos permaneceram deitados debaixo do sol abrasador, arquejando. Kendall fechou os olhos,
esquecendo os machucados e os cortes; só pensava em que, por fim, havia sido resgatada daquele
lodo negro, opressivo e escorregadio.
Coberta de barro desde o peito até os pés descalços e com o rosto e cabelo cheios de salpicos, viu
que Brent McCain se levantava ágil como um gato. Deixou de lamentar-se por seu aspecto e tentou
em vão, se levantar para ficar em pé. Ele se aproximou dela. Era inútil, Kendall não podia se
levantar. Sem se importar que ela estivesse totalmente suja de barro, Brent se inclinou, a agarrou por
um braço e resmungando, a levantou e carregou em suas costas, sem nenhuma cortesia. Kendall, com o
corpo doído, lançou um grito indignado de protesto e lhe bateu nas costas com os punhos.
―Solte-me! Deixe-me em paz! ― exclamou. ― Isso é um sequestro. Existem leis a respeito!
Ele se deteve de repente, e lhe deu um sonoro tapa no traseiro.
―Senhora Moore, neste momento não existe lei no mundo que possa lhe servir de ajuda. Sugiro
sinceramente, que de uma vez por todas, feche sua doce boca sulista, a menos que decida mudar o
tom e se mostrar mais agradável.
Começou a andar com tal energia e velocidade que a cabeça de Kendall, se balançava de um lado
a outro.
Ela apertou os dentes e fechou os olhos tratando de reprimir uma humilhante chuva de lágrimas.
―Não mereço isso! ― murmurou, desafiante.
―Não? Querida, ainda não recebeu nem a metade do que merece!
―Você é um estúpido ignorante! ― insultou, Kendall, como resposta a sua despiedosa ameaça, se
esforçando freneticamente, retorcendo-se, chutando, golpeando-o, arranhando-o. Ele a pegou pela
cintura e a deixou de pé no chão. Ela o olhou fixamente, com crueldade, e ao final de um momento,
percebeu que estavam na clareira.
Uma multidão de espectadores, composta por seminolas e confederados, os aguardava e, como se
fossem a atração principal, os rodeou.
Kendall sabia que os índios não lhe dariam nenhum apoio. E os homens de Brent McCain, os
integrantes da tripulação confederada? Sem dúvida não consentiriam que seu valoroso capitão
atacasse uma jovem branca de boa família. Girou sobre si mesma, em busca de rostos brancos.
―Ajudem-me! ― suplicou. ― Por Deus, ajudem-me Este homem ficou louco!
Se calou ao se dar conta de que os homens a observavam com severidade, imperturbáveis.
Naturalmente! ― pensou, abatida. ― Claro que estavam ao lado de McCain em Charleston, no mês
de dezembro! E foram atacados a bordo do barco, e abandonados no convés.
A mão de McCain pousou em seu ombro. Voltava a estar encurralada. Se jogou contra ele como um
animal enjaulado, arranhando-o, golpeando-o com os pés e mãos. Conseguiu fincar as unhas na cara
dele com tanta força que o sangue brotou, e correu por sua bronzeada face.
―Maldita puta! ― murmurou, com a mandíbula tensa e os olhos entornados.
Ao ouvir o insulto, Kendall se deteve, decidindo que não lhe convinha continuar agredindo-o. Se
voltou para correr e gritou, quando McCain a pegou pelo cabelo para detê-la. Ela não o sabia, mas
Brent McCain sim, se um homem se via numa situação como aquela perante os guerreiros seminolas,
devia resolvê-la com rapidez e habilidade, porque do contrário perderia toda a sua credibilidade.
Ela estava ciente de que havia conduzido o capitão a uma situação extrema, e estava tão assustada que
preferia ter afundado na areia movediça.
Apoiando um joelho no chão, o capitão voltou a puxá-la pelo cabelo com brusquidão e, fazendo
caso omisso dos lamentos dela, a deitou sobre ele. Kendall lhe deu cotoveladas, mas era inútil.
McCain a prendeu pelos punhos, e sem que percebesse como, Kendall se viu deitada na perna dele.
Continuou lutando, mesmo sabendo que era uma batalha perdida. Ele levantou com um puxão o
vestido, que caiu sobre a cabeça de Kendall, deixando-a sem ver nada. Ao notar a palma da mão de
McCain sobre suas nádegas, ela começou a gritar de humilhação e dor. O homem dava palmadas
fortes, contundentes, sobre sua carne voluptuosa, apenas protegida pelo fino tecido das calças...
Quanto duraria aquilo? Nove palmadas bem dadas? Dez? Na quinta perdeu a conta, tão ultrajada e
indignada se sentia. Mas aquilo não era o final. De forma tão repentina como havia começado,
McCain se deteve e se levantou, de forma que Kendall caiu ao chão, se enroscando com o vestido. O
cabelo embaraçado que lhe tapava os olhos, a impedia de ver o repugnante rosto do capitão rebelde,
que se levantou tal qual um ídolo pagão; só ouviu sua voz quando chamou a algumas mulheres
seminolas. Falava em inglês, e pareceram entendê-lo, já que se apressaram a se aproximar dela.
―Lavem-na! Essa nojenta.
Kendall viu como as botas militares davam meia volta e se afastavam. Quando as índias se
ajoelharam a seu lado para ajudá-la a se levantar, fechou os olhos.
Não havia escapatória.
Capítulo 4
McCain chamou da porta do chickee de seu amigo Raposa Vermelha e observou com tristeza a
palma avermelhada de sua mão. Não havia pretendido bater tão forte, mas a maldita não lhe havia
deixado outra opção; se havia comportado como uma gata selvagem.
Havia ficado aturdido ao vê-la, ao ouvir sua voz cálida e educada, seu melodioso acento sulista,
ao ver o encantador resplendor de suas mechas douradas, suas feições delicadas e aristocráticas,
seus enormes olhos inocentes. Uma explosão de fúria, como uma bala incandescente, se apoderou
dele e havia se deixado levar com a intensidade correspondente à força de sua raiva.
Talvez sua reação se explicasse porque ainda a achava belíssima. Aquela mulher parecia uma
esplêndida rosa nos pântanos. Em questão de segundos, havia percebido a perfeição de suas formas, a
voluptuosidade de seus peitos e quadris, a fragilidade de sua cintura, a beleza de suas pernas, que o
vestido de algodão marcava.
E a sua inocência, o tom cândido e suplicante de sua voz, numa tentativa de ludibriar um galante
oficial confederado! Merecia a surra. Jamais havia imaginado vingar-se daquele modo, mas ela
mereceu o castigo que lhe havia infligido. Além disso, pensou com o olhar escurecido pela
recordação, o que havia recebido não era nada comparado com a ofensa que havia cometido. Jamais
na vida, esqueceria aquela noite em que foi jogado pela borda, a ponto de morrer na água gelada do
porto de Charleston, a luta ao tentar conter a respiração, os esforços por liberar os punhos das
amarras, enquanto afundava...
Se não fosse pelo oficial ianque que se lançou ao mar e o arrastou até o porto...
Apesar do calor ali, Brent estremeceu ao recordar aquele frio terrível. Apertou os dentes. Quanto
tempo levava acariciando a ideia da vingança! Havia ansiado voltar a olhar nos olhos de Kendall
Moore, tão azuis, e desacreditar com determinação sua beleza, sua inocência... e proclamar sua
perfídia.
Indagou até descobrir quem era. Havia jurado que a encontraria ... e também a seu esposo, John
Moore.
Moore... Algum dia toparia com aquele homem, que se dedicava a percorreu a costa da Flórida de
um modo realmente perigoso, cuja periculosidade fazia a causa de Abe Lincoln maior da que se
podia esperar de um ianque normal.
O que nunca pensou foi que voltaria a ter em suas mãos a sedutora de olhos azuis, que o havia feito
cair naquela emboscada. Apesar de sua sede de vingança, não devia esquecer que, antes de tudo, era
um capitão da debilitada frota dos estados confederados. Teria sido uma loucura atacar o forte que a
União tinha em Key West. Não podia levar seus homens a uma morte segura, nem se arriscar a ser
capturado e encarcerado em uma prisão, da qual ninguém conseguia sair com vida. Por sorte, Raposa
Vermelha e seus guerreiros haviam feito uma proeza que ele jamais teria sonhado realizar. Brent
estava estupefacto com o giro dos acontecimentos. Não havia contado a Raposa Vermelha nada do
sucedido em Charleston, mas seu amigo o conhecia bem e, quando Brent chegou aos pântanos em
busca da colaboração do chefe seminola para manter coberto o fluxo de subvencões das áreas
avançadas da confederação, situadas na parte norte do estado, perguntou com grande diplomacia o
que preocupava seu irmão branco. Brent se limitou a dizer que tinha uma conta pendente com um
ianque... e outra ainda maior com a esposa desse ianque. Até aquele momento, a ânsia de vingança de
Brent não haviam sido muito concreta, pensava solucionar a questão quando acabasse a guerra.
Jamais imaginara que Raposa Vermelha se atreveria a tanto, para ajuda seu «irmão» a satisfazer seu
desejo de vingança.
Brent subiu pela escada que conduzia ao chickee de Raposa Vermelha. O chefe indígena saiu para
recebê-lo rindo, e Brent, a modo de resposta, sorriu abertamente. Não lembrava haver visto uma
expressão como aquela no rosto de Raposa Vermelha desde o dia em que, jovenzinhos, ele o
presentou com a faca de caça que havia pertencido a Osceola, e que Brent cobiçava, como apenas um
menino pode ambicionar um tesouro semelhante.
―Amigo meu ― disse Raposa Vermelha, ― ainda não ganhou a guerra com ela; mas apenas uma
batalha. Creio conhecê-la bem. É uma lutadora, como os seminolas. Se não pudermos ganhar pela
força, jamais nos daremos por vencidos.
Brent se sentou frente a Raposa Vermelha com as pernas cruzadas e sorriu a Apolka quando ela lhe
ofereceu uma taça de café fumegante. Quando a mulher se foi, disse: ―Não sabe o quanto me
assombrou seu presente. E agora que a tenho em minhas mãos, não sei o que fazer com ela.
Raposa Vermelha arqueou uma sombrancelha, cético. O supreendia que um poderoso guerreiro
branco como seu irmão não soubesse o que fazer com uma mulher de carácter difícil... especialmente,
tratando—se de uma mulher jovem, esbelta e incrivelmente bonita, inclusive para os olhos de um
seminola.
Brent começou a rir, mas quando falou empregou um tom severo.
―Não se preocupe, Raposa Vermelha. Apenas pretendia dar por terminado algo que começou um
dia. Por outro lado, adoraria retorcer o pescoço dela para ter mais juízo, mas...
Raposa Vermelha riu como deboche.
―Meu amigo, não pode fazer isso a uma mulher. Sua educação e sua cultura o impedem. Digame,
o que aconteceria se a entregasse a seus superiores?
Brent bebeu um sorvo de café, encolhendo os ombros.
―Pouca coisa, Raposa Vermelha. Há casos de mulheres espiãs de ambos os lados da fronteira de
Mason-Dixon. Segundo parece, os ianques se mostram tão galantes como os rebeldes. O pior que
poderia acontecer a uma mulher é ter que passar um curto período na prisão, o que suponho será
bastante desagradável. Tanto no Norte como no sul, os homens feridos encarcerados morrem como
moscas.
―É melhor perder a vida no campo de batalha ― observou Raposa Vermelha. Brent guardou
silêncio. Ambos se lembravam da enfermidade e, em seguida, morte de Osceola em Forte Moultrie. O
orgulhoso chefe faleceu na prisão. Depois de sua morte, Raposa Vermelha não teve a oportunidade de
se reunir com a familia de seu pai, e a não ser como filho de sua esposa legítima, o governo o
ignorou. Brent suplicou a seu pai que intercedesse por ele, mas Justin McCain não pôde fazer nada.
Naquela epoca se desconfiava dos índios. Justin fez o que pôde. Nunca esqueceu que Osceola havia
salvado a vida de seu filho e que se havia encargado dele, como se fosse um membro de sua família,
até que o devolvesse à plantação de South Seas.
Brent tão pouco esqueceria jamais Osceola. Toda sua vida lembraria das feições duras e formosas
do grande chefe. Apesar dos anos transcorridos, ainda conservava vívida a imagem de Osceola, ao se
aproximar a cavalo do lugar onde Brent estava olhando as ruínas de um estabelecimento de colonos
situado ao sul de Micanopy. O colono jazía morto no chão, e a magnífica casa havia sido totalmente
destruída pelo fogo.
Aquele dia de 1835, Brent contava com apenas cinco anos. Foi quando soube que o governo dos
Estados Unidos queria romper o tratado que estabelecera com os índios do território da Flórida. O
que ignorava era que, na realidade, os brancos jamais haviam pretendido respeitar nenhum tratado,
porque se propunham a devolver os índios às reservas criadas no distante Oeste. Também
desconhecia que tanto agentes indígenas como os homens do Departamento de Assuntos Indígenas
eram mentirosos e corruptos, e que a maioria dos colonos que se mudavam para aquele território
considerava os índios como simples troféus de caça.
A única coisa que sabia com certeza era que se aproximava um homem de olhos escuros, graves e
perspicazes, montado no lombo de um pônei. Era um homem moreno, com um cinto com penas
ajustado na cabeça, um índio. Brent tirou do bolso sua pequena navalha disposto a lutar.
Osceola se deteve diante dele, e o menino assustado e o chefe, jovem de idade mas sábio como um
ancião, se olharam fixamente nos olhos durante um bom tempo. Osceola falou, por fim.
―Guarda a navalha, filho. Tem a coragem de um guerreiro. Mas Osceola não combate com
crianças.
Brent foi conduzido ao acampamento principal dos seminolas na Flórida, montado na frente de
Osceola, que ordenou se enviar várias mensagens aos pais de Brent.
O menino viveu no acampamento indígena até que Justin MacCain o reclamou após muitos meses.
Haviam transcorrido já vinte cinco anos. A guerra para confinar os índios continuou, Osceola
havia morrido. Os seminolas e os mikasukis seguiram lutando para evitar sua reclusão nas reservas
do Oeste e foram despachados mais para o sul; naquele momento, estavam situados nos
Everglades[3]. Jamais se renderam, jamais conseguiram conquistá-los. Aprenderam a viver em terreno
pantanoso como aquele e chegaram a conhecê-lo muito melhor que qualquer homem branco.
―Como vai a guerra? ― perguntou Raposa Vermelha, tirando Brent das recordações.
Ele bebeu o café de um trago e se levantou. Começou a perambular, meditando na resposta.
―Como qualquer guerra, Raposa Vermelha, os homens morrem. As batalhas mais importantes
ocorrem na Virginia, onde perecem milhares de homens; é como o corte do milharal. Houve um
combate em massa em uma pequena colina chamada Bull Run. Os jovens de ambos os lados caíram
como moscas. Se atribuiu a vitória ao sul. As tropas da União ficaram desmanteladas e se viram
obrigadas a retroceder até Washington.
Essa batalha demonstra que a guerra não terminará tão cedo. Até o momento, o exército do sul tem
atuado com inteligência. Nossos generais pensam na situação com mais clareza. Por que não? A
maioria procede de West Point; são homens treinados na Academia Militar dos Estados Unidos.
Antes da secessão, faziam parte do exército da União. Parece que sua estratégia militar é superior.
Certamente tenho medo, Raposa Vermelha. O norte conta com muitos homens. Quando morrem, são
substituídos com facilidade. São como a maré, não retrocedem.
Brent se deteve para contemplar a paz do entardecer, e Raposa Vermelha observou o rosto de seu
amigo. A luz crepuscular dos Everglades era belíssima. O sol se punha como uma grande bola de fogo
alaranjada e carmesim, enquanto as copas das árvores, cobertas de musgo e ervas do pântano, eram
umedecidas por uma brisa que refrescava a quente umidade diurna. As escuras silhuetas das gralhas e
garças se recortavam contra o dourado telão de fundo em que se transformava o céu.
―Esta guerra não o agrada ― disse Raposa Vermelha. ― Então, por que luta?
Brent encolheu os ombros.
―St. Augustine fica muito ao Norte deste pântano, mas segue sendo parte da Flórida; este é meu
lugar, Raposa Vermelha, e também o seu. A Flórida é um estado confederado e, como tal, está
obrigado a servir a Confederação. Nossas tropas combatem e morrem em lugares distantes. Os
soldados e os marinheiros da União retornam para a costa continuamente, e nossa terra está
desprotegida. Eu luto pelo mesmo motivo que você sempre lutou, Raposa Vermelha, para defender o
que é meu. ― Ficou em silêncio e seu olhar se cruzou com o de seu amigo. ― Talvez esteja lutando
também para proteger um estilo de vida, não sei exatamente. Em algumas ocasiões me dedico a levar
medicamentos aos anciãos e aos enfermos, ou comida às crianças. Outras vezes levo armas aos
homens, para que possam continuar se destroçando uns aos outros. Nem sempre estou seguro de
minhas convenções, Raposa Vermelha. O único que sei é que um homem deve ser coerente com o que
é, decidir a qual bando apoiar, combater e se manter leal à causa com a qual se comprometeu.
Raposa Vermelha guardava silêncio, refletindo sobre aquelas palavras. Depois olhou desconfiado
a Brent.
―A escravidão dos negros não é boa coisa. Os temos visto nos portos clandestinos com as costas
em carne viva.
Brent não afastou o olhar de seu amigo.
―Eu não tenho escravos, Raposa Vermelha. Meu pai os tem, mas os trata com amabilidade. Os
veste e alimenta e inclusive os ensina a ler e escrever.
―Justin McCain é um bom homem. Mas todos os colonos são assim?
Brent encolheu os ombros.
―Não há muitos que tenham escravos, Raposa Vermelha. A metade dos soldados confederados
não tiveram, em sua vida, mais que uma pequena granja de poucos metros quadrados de extensão. Os
escravos são caros. Naturalmente, os ricos lutam pela honra, para defender sua forma de vida. Muitos
deles pagam a outros para que lutem em seu lugar, por isso a maior parte do exército é formada por
homens pobres. Por outro lado, também os índios tem praticado certas formas de escravidão.
―Sim, mas eu, tal como você, opino que os homens não são uma posse. O homem não é uma besta
que possa ser açoitada, presa e vendida.
―De fato, coincidimos nisso.
―Eu luto contra o uniforme azul, irmão de sangue, contra a cavalaria e a infantaria. Os seminolas
aprenderam a odiar o uniforme azul dos federados. Quando terminar esta guerra, decidiremos se
voltaremos a enfrentar o homem branco. ― Raposa Vermelha olhou seu amigo, que guardou silêncio.
Ambos rezavam para que, quando os brancos acabassem de uma vez por todas com aquela contenda,
deixassem os seminolas viver em paz nos Everglades. ― Por favor, explique-me o que é isso que
você chama de «marinha». Navegar em seu próprio barco e com sua própria tripulação. Isso é a
marinha?
Brent começou a rir com amargura.
―Quando se constituiu a Confederação, logo em seguida se formou um exército. Muitos homens
desertaram da União para entrar no exército confederado, que contava inclusive com alguns oficiais
da marinha. Certamente, não dispunham de barcos, de modo que chamaram os cidadãos.
―Brent encolheu os ombros. ― Foi a melhor solução. Minha escuna está em muito boas condiçõe,
é muito melhor que qualquer embarcação que pudessem me proporcionar. Posso navegar pelo oceano
a grande velocidade, entrar em qualquer rio, por mais estreito que seja. Esta guerra apenas começou,
e os alimentos e as roupas já escasseam por todo sul.
Raposa Vermelha se dispunha a falar no instante em que a cabeça de Apolka assomou pela porta.
Ela portava uma bandeja cheia de comida para seu esposo e seu hóspede, o belo guerreiro branco a
quem os índios haviam batizado como Falcão da Noite... um nome bem conhecido em todos os portos
da Confederação, onde Brent burlava com ousadia o bloqueio unionista.
―Minha mulher trouxe a ceia ― disse Raposa Vermelha. ― Falemos de temas mais agradáveis.
Brent voltou a se sentar no chão em frente a Raposa Vermelha e sorriu para Apolka, agradecendo a
ela o prato que acabava de lhe oferecer. Pelo aroma, agradável e apetitoso, Brent deduziu que se
tratava de guisado de veado. Os guerreiros haviam saído para caçar para alimentar tanto a ele como a
seus homens.
―Como sempre, Raposa Vermelha, agradeço a sua hospitalidade.
―Minha Apolka cozinha muito bem, verdade?
―É a melhor ― assentiu Brent, sorrindo à esposa do chefe.
Na verdade, nunca havia mantido uma conversa com Apolka porque, apesar de que os brancos
agrupavam todos os índios da Flórida como «seminola», a língua seminola era distinta da mikasuki.
Ambas as tribos procediam das colinas da Georgia, mas tinham as feições distintas. Brent conhecia
bem a língua muskogee, mas os mikusakis falavam o dialeto dos mitichi, e Apolka era uma mikusaki.
Os costumes das distintas tribos eram muito semelhantes, e entre as poucas centenas de índios que
ficavam livres na Flórida, faziam os intercâmbios matrimoniais. Apolka melhorava notavelmente seus
conhecimentos da língua muskogee. Apesar da ligeira barrera linguística que havia entre ela e Brent,
se sentiam muito orgulhosos um do outro e eram grandes amigos, graças à linguagem do coração.
Na sociedade tribal as mulheres e os homens comiam separados; por essa razão, Apolka, depois
de servi-los, se encaminhou até as escadas, detendo-se um momento antes de baixar. Sussurrou a
Raposa Vermelha algo ao ouvido, e o seminola começou a rir olhando Brent, com seus escuros olhos
iluminados.
―Apolka me disse que já banharam Kendall Moore, lhe deram de comer e ela já se encontra em
sua cabana.
―Obrigado ― disse Brent tranquilamente. Começou a ceiar, sem degustar de verdade daquele
manjar tão gostoso. Como ela estaria? Se perguntava.
Um ano atrás quase morreu por culpa daquela mulher. De qualquer forma, arriscava a vida sempre
que saía navegando.
Aquela mulher havia ferido seu orgulho, ao propiciar que seu barco fosse objeto de um ataque
clandestino. Certamente, o que lhe havia animado a buscá-la não havia sido apenas o desejo de
vingança, mas sim algo que havia provocado nele uma tortura ao ver como ela afundava naquela areia
movediça. A queria, e não somente para vingar-se dela, a queria porque não podia esquecê-la.
Recordava o tato sedoso de sua pele, a calidez de seu corpo, seu olhar quando fizeram amor.
Uma fraude! Pensou consigo mesmo. A missão de Kendall em toda aquela pantomima havia
consistido em entretê-lo. Oh, e claro que o fez bem. Se havia abandonado nela, na necessidade de
acariciá-la, senti-la, conhecê-la...
De qualquer forma, ela havia respondido a suas carícias, pensou. Ninguém seria capaz de simular
uma reação física como a dela. Havia notado as batidas de seu coração, seus peitos inchados ao
contato de suas mãos, a ânsia trêmula de seus lábios, o modo tão doce com que arqueava o corpo...
Ou seria apenas uma forma de sedução longamente ensaiada e praticada?
Talvez assim fosse, pensou suspirando. Em parte queria se vingar, sim. Por Deus, o havia
seduzido, e ele devia terminar o que ela iniciou naquele dia. É impossivel que um homem aguente
mais além do ponto insuportável, e depois esqueça o que ocorreu. Certamente, além dessa sede de
vingança, sentia um profundo desejo. Precisava descobrir por que razão não conseguia esquecê-la.
Possui-la seria como exorcizar aquele espírito que habitava em seu interior; um espírito de olhos
azuis e mechas douradas.
Quando Brent alçou o olhar, viu que Raposa Vermelha ainda não havia provado a comida; estava
observando-o.
―Quero sugerir algo, Falcão da Noite.
―Sim? ― Perguntou Brent com curiosidade, enrrugando a frente.
―Deixe—a aos meus cuidado.
―Kendall?
Raposa Vermelha assentiu com a cabeça.
―O que faria com ela? Devolvê-la aos ianques? ― perguntou o índio.
Brent sentiu como se as tripas se revolvessem ao ouvir aquela proposição.
―Parece que ela tem tanto êxito com os índios como com os brancos ― disse.
Raposa Vermelha encolheu os ombros.
―Devo admitir que gosto dessa mulher. É lutadora e orgulhosa. Nunca se dá por vencida. Ignoro o
que ela fez a você, mas ela é um bom troféu. Se não a quer, irmão, eu ficarei com ela.
―Melhor jogá-la aos crocodilos ― disse Brent.
Raposa Vermelha começou a rir.
―Bem, Brent McCain, domesticar uma criatura requer muito tato. Ninguém gosta de cavalgar num
corcel selvagem, e nenhum homem gosta de ter na cama uma mulher timida e acovardada. Será difícil
domar a mulher ianque, pois possui uma grande força interior e um coração de guerreiro. Quem
conseguir domesticá-la, desfrutará o que poucos homens na terra podem receber.
―Humm, uma punhalada pelas costas ― murmurou Brent.
Raposa Vermelha arqueou uma sombrancelha, sem fazer nenhum comentário. Brent mastigou o
último pedaço de carne e afastou o prato.
―É sua prisioneira, Raposa Vermelha.
―Não, agora já não. A entreguei para você, portanto é sua. Estou lhe propondo me ocupar dela,
quando você se for.
Brent meditou estas últimas palavras. Se levantou. Estava há demasiado tempo esperando,
tentando descobrir quais eram seus sentimentos. Falar de Kendall Moore o afetava mais do que se
atrevia a admitir; se acalorava e sentia náuseas. Havia chegado a hora de averiguar o que desejava,
por que a recordação daquela mulher continuava atormentando-o.
―Obrigado de novo, amigo ― disse. ― Amanhã pela manhã decidirei o que fazer com ela.
Raposa Vermelha deu uma risada zombeteira, uma gargalhada longa e intencional.
―Durma bem, Falcão da Noite. Ninguém o incomodará.
Brent desceu a escadinha. À medida que se aproximava da cabana onde ela estava trancada, seu
passo se fazia mais rápido e resolvido. A tensão lhe atingia os músculos, tinha a mandíbula
desencaixada.
Kendall estava num canto de sua pequena cabana, transtornada, à beira de uma crise histérica. Ali,
no acampamento, havia sido completamente derrotada. Nem sequer lhe importou que depois a
levaram ao rio; se havia sentido como uma inválida, como uma enferma, a quem cada movimento
representava um verdadeiro esforço. Tinha precisado de ajuda e cuidados como uma criança. Não
teve nem ânimo para queixar-se quando a banharam e lavaram seu cabelo de forma tão enérgica; de
qualquer maneira, de nada serviria protestar ou fugir das laboriosas mulheres seminolas. O que
poderia ter feito? Correr? Podia ter escapado... para ir parar em outro manguezal. Dormente como
estava, se comportou de maneira muito dócil. Inclusive quando a devolveram a sua cabana, se
mostrou submissa. Estava faminta, e quando trouxeram para ela aquele guizado de veado tão
saboroso, recobrou logo as forças.
Mas, se recuperar não lhe havia feito nenhum bem. Jamais na vida havia levado uma surra como
naquela tarde, e, embora lhe houvessem dispensado piores tratos, levar uma surra sobre os joelhos de
um homem, como se fosse uma criança, fora humilhante. Nunca havia experimentado nada semelhante,
o que fez crescer nela um sentimento de raiva que acendeu em seu interior, pelo homem que acabava
de ultrajá-la daquele modo. Naquele momento gostaria de arrancar-lhe os olhos.
Estava presa ali e estava ciente disso. Não tinha escapatória, não havia onde ir. A única coisa que
podia fazer era dar voltas e mais voltas, preocupada, cada vez mais irritada, e esperar a chegada
daquele homem, pelo qual, um dia, chegou a se sentir seduzida..
Arrogante filho da puta! Pensou, golpeando com força a parede de madeira da sua prisão. Como
ocorreu a ele suspeitar que sua morte merecia um plano tão elaborado como aquele?
Continuou perambulando pelo recinto, e um calafrio percorreu suas costas. Ia matá-la porque, por
culpa dela, o haviam jogado nu nas águas geladas. Sem dúvida, a mataria.
Certamente, já poderia tê-la assassinado apenas se limitando a olhar como o pântano realizava seu
trabalho. Não, sua cólera exigia mais. Brent havia dito que desejava saldar a conta que tinha
pendente. Significava isso que pretendia violá-la? Aquela ameaça, na boca do homem que havia
recebido dela mais que nenhum outro, era uma loucura. Uma onda de calor inundou seu interior e suas
faces se avermelharam. Desejava fazê-lo em pedaços, mas lembrava com a mais perfeita e agravante
precisão o modo com que a havia impressionado o seu esplêndido corpo bronzeado e musculoso, a
quente carícia de sua latente masculinidade, que a intimidou e excitou ao mesmo tempo. A havia
tratado com tanta delicadeza, a havia acariciado com tanta destreza e sensualidade, que havia
chegado a ansiar, completamente entregue, que aplacasse de uma vez a excitação que havia
despertado nela.
Portanto não o odiava. Tão pouco o depreciava.
Uma corrente de ar frio a invadiu como um vento de neve. Kendall intuía que aquele homem já não
se mostraria tão carinhoso. Devia pensar que ela era um lixo podre, do qual devia desembaraçar-se o
quanto antes. Seria capaz, inclusive, de ser cruel, de maltratá-la. Talvez se propusesse arrancar-lhe
as unhas dos dedos uma a uma, deixar seu rosto em carne viva...
Kendall apertou os punhos e começou a golpear a parede. Maldito! Maldito uma e mil vezes!
Aquela tortura era já sua vingança! Tremia e se estremecia de terror, enlouquecia ao pensar nele. Ao
inferno com ele! Certamente não se comportaria como um bárbaro. Então o que pretendia fazer com
ela? Golpeá-la? Humilhá-la?
Um sorriso quase histérico surgiu em seus lábios. Nada podia ser pior do que havia suportado até
então, e sempre havia sobrevivido. Sem importar o que John Moore houvesse dito ou feito, ela
sempre o enfrentara olhando-o fixamente, com a cabeça bem erguida; assim havia sobrevivido.
Mas aquele homem não era John Moore. Era jovem, viril e forte, e seus duros olhos, tão
ameaçadores, indicavam que não era dos que davam outra oportunidade, se descobrissem que haviam
sido usados. Além disso, queria dar por terminado o que ela havia iniciado. A tensão que revolvia
seu estômago aumentou até que se formou um nó de dor tão aguda, que a cabana começou a girar ao
redor dela, parecendo uma neblina acinzetada. Se apoiou contra a parede para não cair. Não, quando
ele se aproximasse dela da próxima vez, não se comportaria como um amante terno e apaixonado.
Cego por seu afã de vingança, a tomaria de um modo selvagem e impiedoso.
―Devo falar com ele! Tenho que o fazer raciocinar e convencê-lo de que nunca pretendi lhe fazer
nenhum mal ― disse.
Iria ser uma tarefa difícil. Mas não podia continuar assim, perambulando e agonizando antes do
tempo; seria melhor que se sentasse e esperasse pacientemente. Devia lembrar que não podia se dar
por vencida, que sobreviveria ao que fosse e, que mesmo que abusasse dela, jamais poderia ferir seu
coração, nem sua alma, nem sua força, se ela não o permitisse.
Kendall caiu de joelhos no chão e apertou os dentes ao sentir o efeito dos golpes em sua pele nua
sobre o duro piso. Lágrimas de dor e humilhação nublavam seus olhos.
Jamais quis lhe causar nenhum mal, McCain, mas a partir deste momento será melhor que não
volte a cruzar o meu camino. Kendall se sentou com as pernas cruzadas e o olhar fixo na porta. De
forma inconsciente, se arrumou com o vestido simples de algodão como se fosse o traje mais
elegante, um vestido de noite, e se dispusesse a dar a boas-vindas aos visitantes de Cresthaven.
Isso ainda não acabou, capitão McCain. Me julgou sem me outorgar o benefício da defesa, e me
considerou culpada. Não tremerei e nem suplicarei a seus pés. Tentarei explicar tudo do modo
mais racional possível. Jamais acreditaria nela...
Se obrigou a manter uma atitude relaxada e, entrelaçou as mãos sobre o colo.
Mas, ao ouvir os passos das botas subindo a escadinha, foi incapaz de controlar as aceleradas
batidas de seu coração e sua respiração entrecortada.
A porta da cabana não se abriu com violência, e sim lentamente, com suavidade, e Brent McCain
entrou, olhando fixo à mulher que o contemplava com tanta frieza. Com isso, o rosto dele se
encendiou de raiva. Ela o observava como se estivesse vendo um serviço de chá de prata, como se
estivesse disposta a dizer: Um ou dois torrões, capitão?
O homem a olhou atentamente durante uns segundos, e logo, sem se apressar, fechou a porta.
―Bem, senhora Moore, seu aspecto melhorou bastante.
―O aspecto que eu tinha, capitão McCain, o devo a você.
―De verdade? ― respondeu, arqueando uma de suas espessas sobrancelhas. ― Não me lembro
de a ter empurrado no barro.
A medida que se excitava, o propósito de Kendall de manter a calma evaporava.
―Estava fugindo de você. Se não me houvesse assustado daquele modo terrível...
―Assustá-la? Não havia dito nada que pudesse assustá-la, senhora Moore. De fato, foi uma
agradável surpresa encontrá-la aqui ― disse lentamente.
―Surpresa? ― replicou ela com cortesia. ― Custo crer que tenha sido uma surpresa, capitão. É
evidente que Raposa Vermelha e seus homens nos atacaram obedecendo suas ordens.
Brent lançou uma risadinha sufocada, que não mostrava nenhum indício de bom humor. Na
verdade, soava tão seca como uma lenha e pareceu crepitar naquele ambiente.
―Se equivoca, senhora Moore. Jamais me atreveria a ordenar algo a Raposa Vermelha.
―Talvez esteja me enganando.
―Ah, você sim me enganou, não é verdade, senhora Moore? ― repondeu ele com tranquilidade e
de forma tão educada, que Kendall estremeceu. Ele cruzou a cabana com dois passos e se deteve ao
lado da janela com as mãos na cintura, olhando para fora. ― Kendall seu casamento com John Moore
é apenas para cobrir as aparências?
A boca de Kendall secou de imediato, ficou incapaz de responder. Ele se voltou, afastando-se da
janela; a pergunta pretendia levantar uma tormenta mortífera.
―E então, Kendall?
Não deixe que ele a intimide! ― pensou... aguente, aguente e mantenha a dignidade.
―Legalmente sou sua esposa ― replicou com frieza. Você não o entenderia, capitão McCain...
―Oh, senhora Moore. Morro de vontade de entendê-lo ― murmurou, sarcástico. ― Imploro que
me exponha a situação.
Ficar ali sentada havia sido um erro, pensou Kendall. Ele passeava tranquilamente por trás dela e
era como um fogo que abrasava suas costas. Cada passo que ele dava lhe provocava calafrios, que
lhe faziam perder o controle que havia decidido manter. Devia resistir à tentação de voltar a olhá-lo
para evitar que McCain enxergasse seu medo. Não podia se permitir sucumbir ao magnetismo que
exercia sobre ela. Engoliu a saliva para poder falar.
―Estou esperando, senhora Moore.
Aquele sussurro roçou seu ouvido como um tição ardente.
―É muito fácil, capitão. Eu não nasci em Charleston. Quando Carolina do Sul se tornou
independente, soube que a guerra era inevitável. Não queria que me obrigassem a regressar ao Norte
quando...
―E seu marido se apressou em procurá-la? ― perguntou com desdém. ― E apareceu no momento
culminante. Poderíamos dizer assim? ― Kendall indireitou as costas. ― Mas você afirmou, senhora,
que não tinha marido.
―Eu... menti.
―Eu sei!
Quando notou que os dedos dele se enredavam em seu cabelo, forçando-a a inclinar a cabeça para
trás, dobrando o torax de forma dolorosa, Kendall começou a chorar. McCain estava atrás dela, com
as pernas longas e musculosas, separadas.
Quando a puxou daquele modo tão brusco, os ombros dela roçaram os seus músculos. Situado às
costas dela, a penetrou com seu irado olhar cinza como o aço. Sem tentar se safar, Kendall levantou o
queixo e lançou um olhar furioso para ele.
―Você não é mais que um burro egoista! Não existe no mundo ninguém mais burro que você! ― O
empurrão que recebeu provocou que suas palavras saíssem num agudo grito de dor.
―Me conte, senhora Moore, por que me jogaram pela borda para deixar-me morrer como um
rato? Senhora Moore, você acha que as areias movediças são terríveis, então imagine como é
sobreviver nua, no inverno, nas águas geladas.
Brent a empurrou, e Kendall caiu para trás. Se levantou como pode e se voltou até ele. Havia sido
uma estúpida ao dar as costas a ele. Aquilo acabou com sua paciência. Certamente devia se conter.
Tinha que o fazer raciocinar de algum modo... e superar o medo e a raiva.
Bem erguida, olhou com força, decidida a convencê-lo, apesar da tensão que se respirava no
ambiente.
―Cavalheiro ― disse com frieza, ― foi um ianque quem o tirou da água. Graças a ele está vivo.
Me é totalmente indiferente se me acredita ou não. E considero que já se vingou. Me sequestraram os
selvagens, me arrastaram aos pântanos, quase morro de susto nas areias movediças e... e você me
surrou da maneira mais humilhante. Creio que já paguei com acréscimo a minha falta capitão
McCain. Agora lhe imploro, senhor, que como confederado, como capitão ao serviço da causa do
sul, desista de uma vez por todas dessa loucura infantil e faça o possível para que me levem a um
posto sulista o quanto antes!
A olhou atentamente por alguns segundos e riu, jogando para trás a sua cabeça leonina.
―Loucura infantil, isso é o que pensa?
O tom de sua voz era suave, e Kendall sentiu-se um pouco mais relaxada.
―Capitão, o único que sei é que um oficial da marinha dos Estados Confederados deve, acima de
tudo e enquanto eu permaneça em seu território, se mostrar amável com uma desafortunada dama.
―Senhora Moore, você tem razão. ― Avançou um passo até ela, com as mãos na cintura, sorrindo
e com os olhos semicerrados, como se estivesse sonolento. ― Nós, os da marinha dos Estados
Confederados, procuramos sempre dispensar um trato galante às damas de nosso território.
Certamente, tenho descoberto que é mais difícil encontrar uma dama de verdade, que meias de seda
em Jacksonville.
Falava num tom encantador e agradável. Até mesmo para um lugar como aquele, cheirava a mar.
Seguiu se aproximando lentamente, sem deixar de falar, até se plantar diante dela. Kendall o
observou hipnotizada e apaziguada pelo tom rouco de sua voz. Seu inimigo havia mudado
drasticamente de atitude. Era óbvio! Suas palavras o haviam feito lembrar a honra do sul. Se
quisesse, poderia se comportar como um cavalheiro.
Tinha as costas amplas, estava vestido de forma impecável com seu elegante uniforme com galões
dourados de capitão confederado, suas feições duras contrastavam lindamente com seu sorriso
galhardo, ligeiramente ladeado...
O que fez em seguida a pegou de surpresa.
De repente, lhe cravou seus fortes dedos nos ombros e a sacudiu, forçando para que ela o olhasse
aos olhos. O cabelo de Kendall se soltou e caiu até as nádegas.
―Ao meu entender, senhora, você se portou comigo como teria feito uma pilantra sem vergonha,
traidora...
Suas palavras foram interrompidas pela bofetada seca e sonora que Kendall deu nele, pois ela
havia conseguido se soltar e levantar a mão com toda sua raiva, golpeando-o com tanta rapidez que
ele não teve tempo de se esquivar.
―Canalha embusteiro! Bastardo pobretão! ― Exclamou entre dentes, tentando reprimir o terror
que sentia ao ver a mandíbula do homem, cada vez mais tensa, e seus olhos, que ameaçavam se
converter em duas linhas de aço. O tabefe havia impresso uma marca vermelha em suas feições
bronzeadas. Por fim foi capaz de devolver a ele o olhar, com os lábios apertados.
De repente, ele a pegou pela cintura, como uma serpente prestes a atacar. Kendall se revolveu
violentamente; o pânico que a dominava era superior à sua resolução de manter a calma.
―Solte-me!
Arranhou a mão que a segurava, cravando as unhas na pele. Começou a dar chutes como uma
louca, obrigando-o a proferir gritos de dor, quando acertou repetidos pontapés nas canelas dele.
McCain conseguiu agarrá-la pelos pulsos, a levantou no ar e assim a manteve durante um segundo.
A sensação de estar voando não durou mais que aquele segundo, substituída, de imediato, pelo duro
golpe que recebeu ao cair de costas ao chão.
Antes que pudesse se recobrar, se viu emitindo sufocados gritos de protesto ao notar o corpo de
Brent sobre o seu e suas pernas ao redor da cintura. Não havia escapatória possível. Olhou fixamente
seus olhos impiedosos, duros como o aço, começou a forçar mais por medo que por coragem,
golpeando-o com os punhos, debatendo-se numa tentativa desesperada de se safar da férrea prisão
das pernas dele.
Com aquela demonstração de força selvagem, ele a maldisse, segurando seus punhos com uma só
mão por cima de sua cabeça, humilhando-a. Kendall voltou a se encontrar com seu olhar; McCain
estava tão perto... Ela se remexia, rogando que as lágrimas de desespero não caíssem de seus olhos.
―Senhora, no último mês de dezembro, me oferecia algo que ao final não me entregou. Bem, já
está em outro porto, e com o cavalheiro que você decidiu utilizar.
Ficou petrificada. O agitado subir e baixar, tão provocador, no peito da mulher era para ele, um
indício da luta interna com que ela estava lidando. Tal como sucedera naquela noite há tanto tempo,
Kendall despertou nele um desejo primitivo que o vencia, e ofuscava todos os seus pensamentos. Era
muito bela. Inclusive naquele momento, quando seus olhos, de azul cristalino, lhe dirigiam um olhar
cheio de aversão, não podia deixar de pensar no modo com que lhe ofereceu seus lábios, indecisos,
mas sedentos de prazer, e da forma com que seu corpo havia cobrado vida ao contato de suas mãos,
na firmeza e plenitude de seus seios contra seu peito...
Esteve a ponto de provocar sua morte, recordou. O havia enganado e conduzido a um estado de
paixão animal, com o único propósito de que baixasse a guarda por completo.
―Sinceramente, senhora Moore, não entendo por que resiste tanto esta noite. Da última vez que
nos vimos, estava mais que desejosa de abraçar-me. O que sucede? Talvez se deva ao fato de que
nesta noite não há nenhum ianque pelos arredores, que possa arrancá-la das mãos do destino?
Permanecia rígida debaixo do peso do corpo dele, olhando-o aos olhos de forma desafiante.
Deixou escapar uma risadinha.
―Capitão McCain, acredite ou não, o certo é que aborreço aos ianques tanto como a você.
Portanto, pode fazer o que queira. Não posso golpeá-lo nem penso lutar com você .
Com a vista cravada nele, Kendall rezou para que tivesse conseguido envergonhá-lo com suas
palavras. Ele a observou com um olhar enigmático e rosto inexpresivo, sem deixar entrever suas
intenções. Então levantou uma sobrancelha ligeiramente, como se estivesse burlando dela.
―Não pensa lutar contra mim? ― Perguntou com toda tranquilidade.
O rosto de Kendall se avermelhou. Envolvidos naquela espécie de duelo de desejos, as
recordações daquela noite em Charleston voltaram a sua mente, mais vivas do que nunca. Sentia a
força do corpo dele, o poder de suas mãos, que a convertiam em sua íntima prisioneira, seu calor,
uma aura predominantemente masculina. Notava o pulso em sua garganta, como mostra do quão tensa
e enfebrecida era sua emoção. Através do fino tecido de seu vestido e o grosso tecido das calças
dele, sentia o crescente palpitar do sexo dele.
Kendall engoliu saliva. Os dois o sabiam.
Ele esboçou um leve sorriso, que em nada aplacou a dureza de seu olhar de aço. De repente,
soltou os punhos e colocou a mão atrás da cabeça de Kendall enredando os dedos em seu cabelo,
enquanto com a outra lhe cobria um seio, acariciando os mamilos com o polegar. O tecido do vestido
não apresentava nenhum obstáculo. Palpava a voluptuosa plenitude, a calidez do endurecimento em
sinal da erótica resposta à carícia, e as aceleradas batidas de seu coração. Imóvel, ela não tentou
detê-lo. Seus olhos seguiam desafiando—o, mas refletiam medo...
Dele? ― Se perguntou, ― ou de mim mesma? Brent desejou acariciar-lhe a face, susurrar cálidas
palavras para dar a entender a embriagadora teia de aranha em que estava preso, a atração e a
fascinação que sobre ele exerciam sua elegância e sua esplendorosa beleza.
Mordeu os lábios com fúria até sangrar. Aquela mulher, que tão arteiramente o havia utiliza no
passado, estava seduzindo-o novamente de forma premeditada. Se enclinou sobre ela, aproximando
sua boca da dela.
―Posso fazer o que deseje, Kendall?
―Não posso impedilo ― murmurou ela.
―Repetir o de Charleston?
A Kendall custou articular as palavras.
―Não posso impedilo ― repetiu.
De repente, os lábios do homem se uniram aos seus, acariciando-os com intensidade. Ela percebeu
o sabor de sangue enquanto a língua se afundava em sua boca, invadindo-a da forma mais selvagem.
Diante de uma intrusão como aquela, lançou um grito sufocado em sinal de protesto. Seu coração
batia como louco, apenas podia respirar, e a sensação de afogamento a debilitava. Tentou se voltar
para se afastar, mas ele a mantinha presa ao chão com firmeza segurando-a pelo cabelo. Kendall lhe
arranhou as costas fincando desesperadamente os dedos em sua forte e tensa musculatura. O assalto
cessou para voltar em seguida. A crueldade, certamente, havia desaparecido. O roçar de seus lábios
se havia tornado convincente, era uma carícia de verdade, que solicitava carinho e ternura. Kendall
se abandonou naqueles beijos, estremecendo-se ao descobrir que ainda desejava aquele homem.
Por fim, ele retirou a cabeça. Com as feições tensas, falou com severidade.
―O que se iniciou em Charleston terminará aqui.
Kendall intuía que Brent estava liderando uma luta interna. Também havia comprendido
perfeitamente o significado de suas palavras.
Se suplicasse a ele com toda sinceridade, se tentasse adverti-lo de uma verdade que não tardaria
em descobrir, a situação seria bastante comprometedora... Kendall queria dizer a ele, mas não podia.
Era como se as palavras se negassem a sair de seus lábios.
Permaneceu deitada, vendo como ele se punha em pé e começava a se despir, como era alto,
imponente, enquanto seu corpo bronzeado reluzia à luz da lua que entrava pela estreita janela, e como
seus olhos cinzas se escureciam, tornando-se tormentosos.
Paralisada, observou como avançava até ela e se recostava a seu lado; seu corpo, elegante e
musculoso, era tão ágil como o de uma pantera. A atraiu até ele e desabotoou o vestido. Soltou um
grunhido de impaciência e finalmente o vestido ficou totalmente aberto.
―Brent...
Por fim foi capaz de pronunciar seu nome mas não pôde acrescentar nada mais. Fechou os olhos
quando as mãos dele lhe acariciaram a cintura, roçando a pele com o único propósito de arrancar a
calça dela, a única peça que usava naquele momento.
A cobriu com seu corpo ardente. Quando a forçou com o joelho para que separasse as pernas, ela
ficou rígida, mas nem sequer naquele momento, pôde conseguir que brotasse a voz. Ele permanecia
imóvel sobre ela, buscando seu olhar, e ela o devolveu incapaz de falar.
Quando suas bocas se uniram de novo, Kendall fechou os olhos. McCain lhe bordeou os lábios
com a língua, deslizou a boca por seu queixo, lambeu a orelha, mordiscando o lóbulo. Seus beijos
vagavam sensualmente, percorrendo sua garganta, posando levemente em sua clavícula para retornar
a seus lábios.
O tempo, a razão, a vida mesma... tudo pareceu desvanecer, era como se voltassem a estar em
Charleston. Kendall recordava com clareza e doçura daquelas carícias... Ele a havia ameaçado e
alertado de sua vingança, havia mantido suas batalhas particulares consigo mesmo, e ela havia
permanecido em silêncio, quieta; nada disso importava mais. Se o seu propósito era ofendê-la, havia
fracassado, porque ele a seduzia. Os beijos do capitão lhe arrebatavam tanto a respiração como o
desejo de protestar. A carícia de sua língua, que ao roçar, lhe parecia abarcar todo seu corpo,
provocava uma tormenta doce e volátil, de calor abrasador...
Enquanto a beijava, McCain lhe acariciava os seios, excitando-a. De repente, Kendall teve a
sensação de que seus longos dedos a percorriam por completo como se estivessem separados de seu
corpo e passeassem livremente por suas costas, enquanto ela lhe cravava as unhas na costas e os
dedos em seu cabelo... Sem luta. Não havia mais que uma sucessão de sensações. E ainda ficava
muito por vir...
Kendall ouviu um som débil, um grito sufocado, um soluço, que brotava de sua própria garganta.
Ela permanecia prisioneira daquele homem, que prosseguia com sua vingança. O roçar de sua boca
lhe abrasava a carne, a ponta de seu língua se deslizava por seus mamilos endurecidos, rodeando a
curvatura de seus peitos como se fosse fogo líquido. Tremia, se retorcia, tentava escapar das
melífluas sensações que aquelas carícias despertavam em seu interior, lutava por liberar suas mãos,
por se virar, por mover-se.
Ah, vingança! Não teria piedade dela. Os dedos de ambos estavam fortemente entrelaçados. O
cruel assalto de seus beijos se fazia cada vez mais íntimo. A longitude e a força do corpo masculino a
venciam. Suas carícias a seduzian, a derretiam, cobriam a inocência de sua carne, banhavam seu
abdômen, provocavam chispas abrasadoras em suas coxas, elevavam o fogo e o desejo que havia
entre eles. Nem sequer o grito de assombro que lançou, nem as selvagens convulsões que a
sacudiram, disuadiram o homem de seu propósito, de seu objetivo... De sua vingança.
Kendall queria morrer. Pensou que morreria. A noite estalava e se povoava de estrelas, sumia na
mais profunda escuridão para voltar a se encher de estrelas. Ela tratou de liberar sua mão, tentando
se soltar... acariciá-lo era uma magia desconhecida que brilhava muito além de seu entendimento.
Gritou, pronunciou seu nome...
E Brent continuava ali sobre ela; seus lábios, enfebrecidos, saboreavam a força de sua paixão.
Kendall se deu conta de que tinha as mãos livres e confusa, notou uma nova mudança em seu amante,
uma tensão súbita. Ela sentia os quentes embates do sexo dele no portal do seu, uma espada de aço
candente. Senhor... a havia seduzido, não podia nem pensar...
A magia desapareceu rapidamente para ser substituída por uma pasmosa sensação de dor. As
lágrimas inundaram os olhos dela, que procurou não gritar. Enquanto por instinto forçava para fugir
da invasão de seu sexo, soluçou.
Não havia escapatória. Intuía que já havia chegado muito longe. O mal estava feito. A vingança já
estava cumprida.
―Kendall, maldição. Kendall, tonta, devia ter me dito... que nunca...
Sua voz rouca, surpreendida, se quebrou. Pousando as mãos nas faces de Kendall a forçou a olhá-
lo.
Ela percebeu que ele estava realmente perplexo e que seus olhos refletiam a calma que sucede a
tormenta.
―E o que? Se eu houvesse dito, você teria me deixado ir embora? ―Disse ela em voz baixa.
―Eu...
―Teria me acreditado?
―Maldita seja! ―Exclamou. Parecia raivoso. A paixão de seu corpo havia convertido seus
músculos duros em nós que a oprimiam sem piedade. Não podiam voltar atrás, ela não podia voltar
atrás.
―Teria me libertado? ― Insistiu a mulher.
―Não! ― Exclamou. ― Mas eu...
―Haveria sido mais terno? ― Perguntou, rindo de ambos. Senhor, estava ardendo de dor... e de
algo mais. O fogo líquido que havia aceso em seu corpo ainda ardia em seu interior. Quase havia
saciado sua ânsia. ― Teria me deixado ir?
A escutou, ele tinha os olhos escuros, tormentosos, apaixonados.
―Não! ― respondeu apertando os dentes, aprisionando—a com os dedos como se fossem
argolas. ― Não, não a teria deixado ir e tão pouco posso deixar agora.
Kendall deixou escapar um soluço contido, enquanto fechava os olhos.
―Maldita seja, Kendall! Não a posso libertar! ― Repetiu, e ela não sabia como dizer que não
queria que a deixasse ir embora, que naquele momento o que desejava era que a amasse.
―Abrace-me ― sussurrou ele, docemente. ― Abrace-me, abrace-me forte... beije-me...
Voltou a beijá-la nos lábios e saboreou suas lágrimas. A acariciou nas faces para depois enredar os
dedos em seu cabelo. A acariciava com os olhos cravados nos dela. Kendall baixou o olhar e deslizou
os braços ao redor de seu corpo, estreitando-o.
Ele notava a pressão de suas unhas e sabia que não pretendia fazer-lhe nenhum dano. Começou a se
mover, reprimindo o desejo insaciável, perigoso e desesperado que ela lhe provocava. Um fogo
selvagem lhe percorria as costas. Deus, mover-se tão lentamente era uma agonia, uma deliciosa
agonia. A tensão começou a desaparecer do corpo da mulher e um suave gemido escapou de seus
lábios.
―Kendall? ― murmurou ele em seguida.
Ela baixou a cabeça afundando-a no peito de Brent, incapaz de olhá-lo na cara. De repente, seus
corpos pareceram se amoldar, arqueando-se e retorcendo-se de forma compassada. Brent sentiu seus
sedosos seios se erguendo contra os pelos de seu peito, as unhas da mulher cravando-se em suas
costas...
Compreendeu que ela lhe permitia chegar até o final. A paixão contida até aquele instante estalou
de um golpe. Deslizou as mãos pela costas de Kendall, puxando-a pelas nádegas, sustentando-a
contra ele para que encontrasse e aceitasse a crescente demanda de seu torrencial orgasmo. Ela se
movia por instinto, como se o fogo voluptuoso a queimasse, como se tudo ardesse em chamas entre os
dois, consumindo-os, fazendo desaparecer o mundo ao redor.
Naquele momento, para Kendall, não existia nada mais que o homem e as sensações. O passado se
havia esfumaçado, sua vida se havia desvanecido.
Cavalgava nos ventos da noite, na escuridão e no profundo prazer que a invadia, elevando-a cheia
de assombro, ansiando ardentemente o doce manancial quase inalcançável... desfrutando da estranha
beleza daquela tortura tão doce e prazerosa, agonizando de desejo e esperando sua culminação.
Então chegou o momento de êxtase absoluto. Não era consciente de nada exceto do doce néctar
que emanava de seu corpo e a fazia estremecer com violência, das convulsões que sacudiam seu
corpo, e pareciam arrastá-la através de um manto de nuvens brancas como a neve, o que se tornava
uma paisagem de maravilhosa delicadeza.
Brent lançou um grito de triunfo. Ela sentiu como o corpo dele ficava tenso, se relaxava e voltava a
tensionar. Sentiu de novo o calor se deslizando em seu interior, acalmando-a. Tremeu violentamente
entre seus braços...
Ele a abraço e se debilitou rapidamente.
Então, McCain se afastou dela com delicadeza e, apoiando-se num cotovelo, se dedicou a
contemplá-la; com a paixão já apaziguada, a curiosidade passou a um primeiro plano e Kendall
fechou os olhos, tratando de se separar dele. Protestou quando a obrigou a se virar para ele. Ele a
havia desejado com tanto desespero... O momento mágico havia sido belíssimo e continuava
atemorizada por aquelas sensações, que a haviam conduzido ao êxtase jamais experimentado, até
então...
Queria conservá-lo para sempre, guardá-lo em seu interior, saborear sua recordação enquanto
vivesse, convertê-lo num sonho.
Mas acima de tudo o que desejava era se arrastar pelo chão e morrer. Brent havia agido movido
pelo ódio que ela lhe inspirava, e a sede de vingança. Havia utilizado-a. Acabava de dar por
finalizado aquilo que ela havia iniciado um dia, fazia já algum tempo, em Charleston.
Ele jamais saberia quão grande havia sido sua vingança, e esse pensamento, provocava em
Kendall, um sentimento de angústia totalmente novo.
Fechou os olhos com força, necessitava desesperadamente criar aquela barreira. Não queria olhá-
lo no rosto, nem enfrentar suas perguntas, que, sem dúvida, seriam mais exigentes até que sua
explosiva paixão. Desejava aludir a humilhação que ambos sentiam, consciente de que o único que
ele lhe havia forçado nessa noite, havia sido a primeira carícia.
―Kendall...
―Não...
―Kendall...
―Já teve o que queria, sua vingança.
―Oh, não, senhora Moore ― disse com voz tranquila. Apenas acabo de começar.
―Brent.,.
―Abra os olhos, Kendall ― ordenou com determinação. ― Temos que falar.
Capítulo 5
Kendall nunca sentiu a necessidade de romper a chorar como naquele momento. E tão pouco havia
estado, jamais, tão decidida a reprimir o pranto. Fechou os olhos e permaneceu rígida nos braços de
Brent.
―Solte-me ― disse sem forças, para acrescentar depois ― por favor.
O abraço ficou mais apertado por apenas um instante. Para surpresa de Kendall, McCain
obedeceu. Ela se deitou de costas, com os braços cruzados sobre o peito e as pernas muito juntas.
Brent a observava, confuso, abatido pela cólera que havia provocado o novo engano que acabava
de padecer, e sentindo-se culpado porque aquela estranha e assombrosa mulher que parecia destinada
a marcá-lo por toda a vida, significava para ele mais do que era capaz de admitir.
Naquele instante, a luz da lua iluminava sua pele fina como uma magnólia de seda. Parecia fazer
parte de um quadro de um mestre do Renascimento; sua posição recatada e insinuante ao mesmo
tempo, era o retrato da inocência que acabava de arrebatar dela. Deitada sobre o chão, sua cabeleira
dourada era um emaranhado de fios que cobriam seus ombros e peitos, realçando ainda mais a aura
de beleza, juventude e sedutora inocência.
Suas sobrancelhas semelhavam a sutis leques que acariciavam uas maçãs do rosto. Apesar do
pudor que evidenciava aquela postura, era endemoniadamente sensual. O resplendor prateado da lua
banhava a cálida concavidade de seu ventre e iluminava a encantadora curva de sua cintura e suas
pernas, longas e esbeltas. Ansiava tocá-la, saborear a seda de sua pele prateada à luz da lua. O
desejo, acabado de saciar, irrompia novamente em seu interior.
Se levantou com um ágil movimento e se afastou alguns passos para vestir as calças. Pegou uma
manta que estava a um canto do lugar e se inclinou sobre ela para cobri-la. Logo, seus olhos azuis se
abriram, brilhantes, e o observaram surpreendidos. Ela fechou outra vez os olhos e se aferrou à manta,
murmurando agradecimentos num fio de voz.
―Não me agradeça ― disse bruscamente, ― quero que me conte toda a sua história.
―O que é que ainda não sabe? ― Perguntou com amargura.
―Está ou não está casada com aquele ianque?
―Sim estou.
―Por quê?
―Porque fui vendida ― respondeu com voz átona e os olhos fechados, temendo olhá-lo. ― Como
se fosse uma escrava.
―A obrigaram a se casar com ele?
―Sim.
Brent emitiu um grunhido de incredulidade.
―Ninguém pode forçar a alguém a dizer sim em uma cerimônia matrimonial.
Kendall abriu os olhos de repente, e lhe dirigiu um olhar enraivecido, cheio de cólera.
―Talvez não de seu ponto de vista, capitão. Por desgraça, nem todo mundo nasce forte e
musculoso, acreditando e se proclamando soberano do mundo.
―Entendo ― disse Brent, secamente. ― Lhe deram uma surra e a levaram arrastando até o altar.
―Não ― interrumpeu Kendall com pouco entusiasmo.
Fechou os olhos e tentou se virar de novo. Mas ele não tinha nenhuma intenção de deixá-la em paz.
Ela percebeu o ligeiro movimento que ele fez ao se sentar a seu lado com as pernas cruzadas e notou
sua mão sobre o ombro, por cima da manta que a cobria.
―Vire-se, Kendall. Quero saber exatamente o que pretendia fazer em meu barco no inverno
passado e por que acabo de deflorar a uma mulher virgem que está casada já há algum tempo.
Se voltou com tal rapidez, que ele ficou tenso ante a ardente virulência que chispava dos olhos da
mulher.
―Já amou alguma vez, capitão? ― perguntou com frieza. ― Não me refiro a uma mulher, por
exemplo a um irmão, um amigo, a sua mãe talvez. Se sim, capitão, deveria entendê-lo. O amor pode
se converter numa arma muito mais poderosa que qualquer artefato desenhado pelo mais inteligente
especialista militar. Quando alguém a quem ama é ameaçado, capitão, você descobre que é capaz de
fazer um sem fim de coisas que, normalmente, vão contra seus próprios princípios.
McCain a observava com os olhos entornados, e expressão severa e indiferente.
―Continua. Estou esperando.
Kendall apertou os dentes e cravou o olhar no teto.
―Esperando o que, capitão? Já escutou tudo que eu tinha para explicar. Ao falecer meu pai, minha
mãe voltou a se casar, com um tipo detestável vestido com uma elegante casaca. Em questão de
poucos anos, ele arruinou o que havia sido uma frutífera plantação. Quando terminou com todos os
objetos de valor que podia vender, recorreu aos seres de carne e osso. Suponho que a oferta que
recebeu por mim foi maior que a que fizeram por minha irmã. De qualquer forma, devia ser o
suficientemente alta para ele, porque me prometeu por escrito que ela ficaria a salvo de sua avareza
se com a minha venda saldasse suas dívidas.
Brent permaneceu tanto tempo em silêncio que ela voltou o rosto para olhá-lo.
Se senta igual a Raposa Vermelha ― pensou ― as costas retas, amplos ombros, quadrados. Com
o peito descoberto, percebia que sua pele estava tensa como a de um tambor. Tinha os punhos
apoiados nos joelhos, apenas o abrir e fechar de seus longos dedos davam mostras de alguma
emoção.
―Ainda não explicou tudo ― observou, num tom tão brutalmente frio como o que ela havia
empregado.
―Achava que você não precisasse de nenhuma explicação ― replicou Kendall, que havia
pretendido que suas palavras parecessem desdenhosas naquele momento, pois a conversa derivava
para o aspecto mais doloroso. Certamente, o rubor cobriu suas faces, e seu comentário ficou reduzido
a um simples sussurro.
―Não preciso de nenhuma explicação do que é evidente ― disse. ― Todavia, não tive o prazer
de conhecer seu marido, estando eu inconsciente; pelo que tenho ouvido, deduzo que se trata de uma
pessoa respeitável. O que não tem lógica é o fato de que um homem que comprou uma mulher a um
preço tão alto, não a tenha nem sequer tocado durante todos esses anos... suponho.
―Três anos para ser exata ― replicou Kendall com brusquidão e se deu conta de que seu ligeiro
sarcasmo não fazia mal à implacável decisão do capitão, que continuava olhando-a com severidade e
de um modo ainda mais ameaçador. Baixou a vista e se fixou em suas mão, tinha os punhos fechados
com força, e os nós dos dedos estavam brancos, contrastando com o tom bronzeado de sua pele. Ela
engoliu saliva, mordeu os lábios com nervosismo, e por fim, ofereceu a resposta que ele queria, sem
que Brent tivesse que insistir. ― John Moore pode parecer um homem normal, mas não o é. Há vários
anos contraiu uma febre, que quase acabou com ele. Jamais chegou a se recuperar de todo. Sofre
espasmos musculares e terríveis enxaquecas. E... impotência absoluta.
Brent abriu os olhos, demostrando um interesse totalmente corrosivo.
―Assim pois, abandonava esse homem devido sua enfermidade?
Aquela acusação deixou-a tão perplexa que, por um instante, o observou com a mente em branco.
Logo se encolerizou e quase enlouqueceu diante daquela injusta acusação. Se levantou decidida a
tirar aquela careta irônica das frias e arrogantes feições do homem. Com um grito irado, se jogou
sobre ele, golpeando-o no peito nu com os punhos, tentando alcançar as firmes mandíbulas de Brent.
―É um filho da puta! ― Sussurrou entre dentes.
A veemência de suas palavras se desvaneceu, junto a seu arrebatado comportamento, no instante
em que ele a rodeou com os braços, fortes como barras de ferro, atraindo-a até ele, enquanto que a
olhava com seu olhar de aço. Quando seus seios nus se apertaram contra o pelo do peito dele,
Kendall recordou com dor e tristeza a intimidade que acabava de compartilhar com aquele homem,
que depreciava a intimidade que a ele não importava repetir...
Como é possível que se trate do mesmo homem? a pergunta passou fugazmente por sua mente, o
terno amante de alguns instantes se havia convertido num estranho frio e acusador...
Começou a socá-lo de novo, gemendo debilmente, golpeando-o não para fazer-lhe dano, mas sim
para se afastar dele. Com os lábios apertados parecia mais impiedoso que nunca. Seu hálito acariciou
os lábios dela quando disse: ―Estando casada com um ianque, por que razão ficou em Charleston no
dia em que se proclamou a independência?
Kendall posou as mãos no torso de Brent para empurrá-lo, mas ele a abraçou ainda mais,
rodeando-a com uma perna, de tal modo que a proximidade resultava ainda mais insuportável. A
manta se deslizou até a cintura dela, deixando-a com aquela sensação de vulnerabilidade tão familiar
e terrível.
―Kendall!
A sacudiu ligeiramente, fazendo com que a cabeça de Kendall caísse para trás. O olhou
atentamente, tratando, em vão, de desembaraçar-se dele. Logo deixou de lutar mantendo o queixo bem
alto e enfrentando com rebeldia o olhar dele.
―Havia voltado para casa, capitão McCain. Charleston continuava sendo meu lugar. Estava
segura de que a Carolina do Sul proclamaria sua independência, se Lincoln fosse eleito. Eu devia
estar ali. Com a complicidade de um amigo, consegui convencer John de que tinha que visitar minha
mãe, se por acaso as hostilidades se iniciassem antes de que se celebrassem as eleições. Estava
resolvida a desaparecer. Não tinha nem ideia de que haviam me seguido.
Ele arqueou uma sombrancelha e sorriu, divertido.
―E foi assim, desta forma tão simples que tropeçou comigo. E decidiu me utilizar, para escapar
de um homem com quem a haviam obrigado a casar, verdade?
―Sim! Sim! ― Exclamou Kendall apaixonadamente; sem conseguir reprimir o impulso de voltar
a golpeá-lo de novo no peito, embora com tão pouca força que ele nem se incomodou, e em lugar de
soltá-la, apertou mais o abraço. ― Não foi uma emboscada.
―Continua me usando.
―Sim! ― Repetiu. ― E não se atreva a me julgar! Teria utilizado a qualquer um que houvesse
topado, até mesmo Deus, para que pudesse escapar. Você não sabe o quanto tenho sofrido, não...
não... ― Sua voz se quebrou. Em seguida, sussurrou com amargura sobre seu ombro ― Você é
indomável, capitão McCain, forte e poderoso, capaz de colocar os demais em seu lugar. Ignora o que
é sentir-se odiado e insultado, sofrer abusos pelo mero fato de ser jovem e saudável e... ter sido
comprada.
O abraço se tornou ainda mais estreito, mas Kendall não se deu conta daquele movimento
imperceptível. Tremia, sentindo apenas o calor e a certeza que lhe dava aquele corpo, a essência
masculina do ombro robusto e bronzeado em que apoiava a face. Estremecida, se negava a chorar e a
suplicar que ele acreditasse nela, que a comprendesse e a perdoasse.
De repente, ficou consciente da presença do homem, de seu contato. Enquanto uma mão
descansava em sua cintura, a ponta dos dedos da outra percorriam as costas dela com delicadeza,
lenta, suavemente, acariciando-a, reconfortando—a. Kendall não se atreveu a mover, apenas podia
respirar. As carícias de Brent a relaxavam, a excitavam. Kendall ansiava abraçar-lhe mais, encontrar
a força que havia perdido, e um porto onde se proteger daquela tormenta com que o tempo e o destino
a havia açoitado.
―Não! ― Exclamou, vitima de uma lenta agonia.
Estava casada, legalmente unida a um homem que não estava liderando uma guerra, mas sim uma
batalha contra Deus e contra si mesmo. E os braços que naquele momento lhe ofereciam uma breve
proteção pertenciam a um rebelde vingativo. O homem a quem havia utilizado, estava utilizando—a.
Frio e reservado, albergava uma fortaleza inata em seu interior. Aquele homem havia conseguido
uma vantagem justa. Se ficasse ali, se acabasse confinada em algum pântano cheio de serpentes, era
porque ele assim o havia querido. A mão poderosa que a acariciava era a mesma que um pouco antes
havia servido como instrumento do castigo mais humilhante.
Se ergueu de repente, um ato de protesto por aquelas carícias. A havia tornado sua amante sem
amá-la. E ela havia se entregado vergonhosamente, e respondido a seus desejos com um abandono
enfebrecido.
Sim! Havia respondido com doçura, paixão e prazer, a um homem que a havia humilhado e
abusado dela. As carícias do capitão haviam despertado seus sentidos, tanto tempo adormecidos e
conseguido chegar a seu coração, à sua cabeça e estraçalhar seu orgulho.
―Por favor ―murmurou cansada ― contei a verdade. Sim, o usei, mas não pretendia lhe fazer
nenhum mal. Por favor, deixe-me ir embora.
McCain deixou de acariciar-lhe as costas, enredou os dedos no cabelo de Kendall e os pegou, não
com o propósito de castigá-la, mas sim de obrigá-la a olhá-lo nos olhos. Depois a observou com
olhos inquisidores e perguntou: ―Essa é a verdade, Kendall?
―É a verdade ― sussurrou ― juro.
Nunca saberia se ele acreditava nela ou não. O cinza como o aço de seus olhos parecia estar
sempre neblinado, o que ocultava sua alma. A firmeza de sua mandíbula não perdia sua tensão. A
força de suas belas feições era, assim como sua esplêndida forma musculosa, robusta, talhada pelo
poder de sua vontade, e obstinação inquebrantável de sua mente.
Enquanto o contemplava, o coração de Kendall batia cada vez mais depressa. Apesar de serem
dois estranhos e da hostilidade que existia entre eles, estavam em uma situação ridiculamente íntima.
Por uns segundos esteve segura de que Brent voltaria a cobrir seus lábios com os dele, exigindo-lhe
de novo um beijo apaixonado. E ela não sabia bem o que queria. Que a deixasse só? Acaso
recuperaria assim sua dignidade e seu orgulho? Ou preferia voltar a gozar da beleza selvagem que
representava fundir seus corpos? Era uma tormenta torrencial e frenética, o desejo doloroso, a
plenitude da intimidade definitiva.
Fechou os olhos, recordando que a havia possuído com o único fim de satisfazer sua sede de
vingança. Qualquer outro sentimento que houvesse guiado sua exigência masculina não podia ser mais
que pura luxúria. Ela sabia que McCain poderia lhe magoar, pois ela havia aberto sua alma para ele e
permitido que a tomasse. A qualquer momento começaria a chorar, suplicando que a deixasse em
liberdade, já que era incapaz de suportar por mais tempo aquela dor, aquela confusão...
O capitão não se enclinou para beijá-la, apenas a soltou, e ela ficou estendida no chão. De forma
mecânica, pegou a manta e a apertou contra seu corpo como se fosse um escudo. Não abriu os olhos
até se afastar dele.
Havia abotoado as calças e estava calçando as botas. Em seguida vestiu a camisa, colocando—a
no interior das calças de montar sem se preocupar em abotoá-la.
―Vai... vai sair? ― Perguntou Kendall.
―Voltarei ―respondeu, inclinando—se para recolher a jaqueta.
Kendall começou a tremer pela convicção de sua resposta, o que a fazia sentir ao mesmo tempo
frio e calor, ansiedade e medo? Por acaso estava assustada ao ver que se afastava e a deixava ali,
como se já houvesse resolvido a conta pendente? Não estava segura, e a dor que provocava tal
confusão a debilitava. Umedeceu os lábios e não deixou que sua voz refletisse o medo que sentia.
―Onde vai?
―Vou me reunir com meus homens. Alguns deles são recrutas novatos. Não gostaria que algum
desses jovens loucos despertasse junto a uma serpente.
Se voltou e foi para a porta. Kendall queria crer que o fato dele sair não importava. Certamente,
não pôde evitar chamá-lo, e, em lugar de fria e desafiante como havia pretendido, sua voz soou
trêmula.
―Capitão McCain!
Ele se deteve com uma mão na porta, e se voltou para ela. Seus olhos cinzas eram como um par de
gretas que a olhavam expectantes.
―O que pretende... fazer comigo, agora?
A estudou durante um bom tempo; à pálida luz da lua, as feições dele eram inescrutáveis e sólidas
como o granito. Por fim falou, e sua resposta foi seca e cortante como uma faca.
―Ainda não sei; não decidi ainda.
Quando a porta se fechou, Kendall fez uma careta de dor e sentiu como o calor da raiva e a
rebeldia se inflamavam em seu interior.
Ouviu um ruído na porta. Embora ainda não houvesse decidido o que fazer com ela, ao que parece,
havia acreditado nela, e não estava disposto a deixá-la ir embora... ainda não. Brent McCain havia
fechado o trinco por fora. Naquele momento como nunca até então, Kendall sentiu-se sua prisioneira.
Ficou com o olhar fixo na porta durante um longo tempo. Depois pousou os olhos em seu corpo, na
manta que envolvia sua nudez e no colchão onde acabava de perder a virginidade, em meio a uma
autêntica tormenta de cólera e ternura. Começou a ser consciente de seu próprio corpo como não o
havia sido antes, quando Brent dominava seus sentidos e sua mente com sua crua e primária
virilidade. Era consciente de seu corpo dolorido, que a lembrava da agitação anterior, do
conhecimento adquirido, da inocência e o orgulho perdidos naquela batalha de desejo e vingança.
Por fim se permitiu chorar. Chorou até que seus olhos ficaram secos. E o pior de tudo era que não
sabia exatamente por que chorava...
Quando Brent baixou pela escadinha e dobrou os joelhos para saltar ao chão, não ouviu ruído no
acampamento. Se deteve um instante e seu aturdimento se desvaneceu, quando deu uma olhada ao
centro do povoado indígena, e viu que alguns de seus homens conversavam animadamente com um
grupo de guerreiros seminolas. A bordo do Jenny―Lyn armazenavam uma boa quantidade de bourbon
de Kentucky, que haviam descarregado depois de atracar a embarcação próximo da grande foz do rio.
Era evidente que tanto os rebeldes como os índios haviam bebido mais da conta.
Os homens não perceberam sua presença até que estava junto a eles, algo pouco usual, pois os
seminolas e seus espertos marinheiros sempre estavam alertas.
Com semblante sombrio e reprimindo a vontade de rir, Brent formulou uma pergunta que provocou
que a conversa se interrompesse de imediato, e que vários rostos o observasse com expressão
culpada.
―E o que é isso, homens? Até um ianque com os olhos vendados poderia ter feito picadinho de
vocês!
Os sulistas se levantaram no mesmo instante e o saudaram oficialmente. Os seminolas os imitaram.
Brent explodiu em gargalhadas.
―Descanso, homens, mas somente por esta noite; de acordo? Ao amanhecer, os guerreiros nos
acompanharão ao barco para descarregar as munições e transportá-las à milicia destacada na baía.
Nós partiremos até Gulf Coast. Ao que parece, algo está sendo tramado em Forte Pickens, e pediram
a ajuda da marinha. Será uma travessia difícil e uma dura batalha.
―Sim, às suas ordens, capitão ― replicaram, submissos, os militares.
Após entregar as garrafas vazias a seus amigos indígenas, nenhum dos homens se moveu de onde
estava. Como se estivessem esperando algo mais, ficaram olhando a Brent com a vista nublada,
curiosos, com certa sensação de triunfo e inveja, ao mesmo tempo.
―Bem? ― perguntou bruscamente.
Charlie McPherson avançou um passo.
―Estávamos falando sobre a espiã ianque, capitão. Apostamos que não voltará a emboscar um
homem desprevenido, não é mesmo, senhor?
Brent baixou a vista. A pergunta bem poderia ser considerada fora de contexto e uma torpe
insubordinação. Naquela noite em Charleston, Charlie, Lloyd, Chris Jenkins e Andrew Scott estavam
a bordo. Chris teve uma comoção cerebral devido ao golpe de culatra, que lhe acertou um ianque;
Andrew acabou com um braço quebrado; Charlie havia passado uns dias inconsciente e Lloyd
sobreviveu por milagre a um ferimento de sabre que recebeu no estômago.
Confederados convencidos, a maioria de seus homens já fazia parte de sua tripulação antes dele se
incorporar ao exército improvisado.
Constituíam um grupo reduzido, mas terrivelmente temerário, capaz de causar mais estragos que
um exército de mil homens com suas hábeis táticas militares.
Devia a eles uma explicação. Refletiu por um instante, obrigado a tomar uma rápida decisão, num
momento em que se sentia incomodado pela incerteza.
―Cavalheiros, temo que emitimos um juízo equivocado sobre essa dama.
Brent falou com calma, estudando os olhos dos que o rodeavam. A expressão de seus rostos
denotava raiva. Suas feições mostravam contrariedade, e ele adivinhava o que estavam pensando.
Todos haviam visto Kendall Moore. Os olhares de lástima que dirigiam a seu superior expressavam
mais que qualquer palavra. Era uma mulher esplêndida, suficientemente encantadora para driblar sua
falta, suficientemente atraente para convencer até mesmo Deus, e o diabo não era mais que um menino
travesso perto dela.
Uma risadinha disimulada rompeu o silêncio da noite, iluminada pela luz das fogueiras. Brent
ficou rígido, e antes que pudesse dizer uma palavra, Andrew Scott falou. O jovem artilheiro avançou
um passo.
―Estou disposto a escutar as razões que o fazem supor que emitimos um juízo errado sobre ela,
capitão. ― Se voltou rindo para o resto dos homens. ― Quando é que viram o capitão McCain
enredado pelas artimanhas de uma mulher? As mulheres revoam ao redor dele como moscas, mas
nenhuma conseguiu fisgá-lo ainda!
Se fez um breve silêncio. Os olhares lastimosos se tornaram curiosos e invejosos.
―Nos contará a história, capitão? ― Perguntou McPherson.
―É muito simples, cavalheiros. Nossa dama é uma sulista autêntica, nascida nos arredores de
Charleston. A obrigaram a contrair matrimônio e teve que se mudar para o Norte. Estava desesperada
para regressar a sua casa. Nos utilizou, isso é certo, mas não o fez com malícia.
Todos guardaram silêncio; apenas se ouvia o rumor de pés arrastando-se pelo chão.
O segundo a falar foi Robert Cutty, o dono de uma plantação situada ao sul da Georgia, que havia
se juntado a Brent depois que o presidente Davis obrigou o Jenny―Lyn a entrar no serviço.
―Então o que devemos fazer com ela, capitão? ― Robert, um cavalheiro até a médula, era um
daqueles homens que acreditava que as belas mulheres do sul constituíam um dos bens mais valiosos
da Confederação. ― Não podemos entregar uma dama de Charleston a um perverso ianque.
―Mas e se descobrirmos que nos equivocamos e a dama nos engane novamente? ― disse Charlie
com tranquilidade. ― Não podemos deixar livre uma espiã ianque em qualquer cidade do sul. Nem
dizer o que uma mulher assim seria capaz de fazer. Poderia enganar um general com seus encantos e
conseguir que lhe conte os planos de todo um regimento.
Logo, todo mundo começou a discutir, e Brent levantou a mão.
―Ordem!
Fizeram silêncio no mesmo instante, e o capitão observou seus homens.
―Vamos deixá-la aqui. Se for uma espiã, ficando no acampamento, não causará nenhum problema.
E se não for... bem, então ao menos estará longe das tropas da União até que acabe a guerra. Raposa
Vermelha me deu sua palavra de que cuidará dela, e não existe melhor garantia que sua palavra.
Agora, dispersem e durmam um pouco. E, pelos cravos de Cristo, deitem nas prataformas dos
chickees. Não posso permitir perder nenhum de vocês por causa do veneno de uma cascavel.
Brent observou, com as mãos na cintura, como seus homens se afastavam em busca da
hospitalidade dos índios. Se voltou rapidamente, ao ouvir à suas costas um suave ruído de passos.
Era Jimmy Emathla que se aproximava. Seu olhar escuro estava ligeiramente turvo por causa do
álcool que havia ingerido, ao que não estava acostumado.
―Como vai Jimmy Emathla? ― perguntou Brent, falando em muskogee. Embora o guerreiro
estivesse fazendo grandes avanços em seus conhecimentos de inglês, se dirigiu a ele em sua língua
nativa por respeito.
―Usaremos dez guerreiros para transportar a mercadoria. Eu estarei no comando. Dez homens e
cinco canoas. É suficiente?
Brent sorriu com a solenidade do índio, que, orgulhoso, ostentava seus enfeites e sua camisa
colorida de algodão.
―Perfeito, Jimmy Emathla. O agradecemos. O homem com quem deve encontrar na baía se chama
Harold Armstrong. Não usa uniforme. Lhe disse que se faça ver quando começar a anoitecer. Nós
apareceremos quando ouvirmos o canto do sinsonte[4]. Somente então saberá que não há problemas.
Jimmy Emathla assentiu com a cabeça, dando a entender que compreendia sua explicação, e
balbuciou algo. Levantou a garrafa de bourbon meio cheia que segurava, e a agitou contemplando
fascinado o líquido ambarino.
―Boa aguardente, Falcão da Noite. Etamos muito agradecidos por todos os presentes que nos
oferece e pela amizade que o une a nosso chefe.
Brent sorriu e no mesmo instante ficou surpreendido por um calafrio de receio que lhe percorreu o
corpo. Quando Jimmy Emathla lhe estendeu a garrafa de bourbon, a aceitou e bebeu um longo trago
sem poder evitar uma careta ao sentir como o líquido lhe queimava a garganta.
Olhou desconfiado a Jimmy Emathla, assombrado pelas palavras que, de repente, sairam de sua
própria boca.
―Jimmy, vou deixar a mulher branca com seu chefe. Quero pedir-lhe um favor. Raposa Vermelha
tem já muitas preocupações, gostaria que você também a vigiasse.
O índio sorriu abertamente; sua branca dentadura reluzia na escuridão da noite.
―Protegerei sua mulher, Falcão da Noite. Nenhum homem a tocará.
Brent enclinou a cabeça, agradecendo em silêncio. O índio começou a rir de pronto.
―A noite avança, amigo branco. Partirá ao amanhecer. Não o entreterei por mais tempo; desfruta
da mulher enquanto possa.
Brent encolheu os ombros e pegou a garrafa de bourbon.
―Creio que primeiro vou desfrutar um pouco do licor a sós. ― Fez de novo um gesto com a
cabeça a Jimmy Emathla e se voltou até a fogueira.
Ouviu os passos silenciosos do guerreiro seminola se afastar; os índios respeitavam a necessidade
de estar a sós de seus companheiros. Brent se sentou junto ao fogo, contemplando as chamas douradas
e alaranjadas.
Por fim podia tratar de por ordem a seus confusos pensamentos.
Devia estar preocupado pela guerra, pois, embora as tropas confederadas realizassem um bom
papel nos estados do sul, havia graves problemas na Flórida. No começo da contenda, o estado havia
estabelecido um considerável número de fortes, mas a maioria deles estava nas mãos da União, cujas
forças invadiam a costa a vontade. Embora ainda não houvessem tentado nenhuma incursão no
interior, dava a sensação de que se a guerra continuasse, chamariam as tropas da Flórida para que
lutassem no norte. Por outro lado, apesar de que os generais do exército da União pareciam atuar
como velhas assustadas quanto às estratégias de campanha, a marinha dos Estados Unidos estava
dirigida por um homem surpreendentemente competente, o secretário da marinha, Gideon Welles, que
tomava decisões corretas, com rapidez e inteligência. Afortunadamente, Brent conseguia burlar os
bloqueios da União. Mas, quanto tempo duraria essa situação?
Com esses tristes pensamentos, mordeu o lábio inferior. Jacksonville era tremendamente acessível
a um ataque unionista e ficava próximo de St. Augustine, de sua casa. Mesmo a Flórida contando com
o apoio do governo confederado de Richmond, seus homens se encontravam lutando pelos ideais
sulistas muito longe dali.
―O que nos está sucedendo, galhardos rebeldes? ― Perguntou com o olhar fixo na fogueira. ―
Somos uns loucos temerários que não podemos sequer acariciar o ideal pelo qual estamos
combatendo.
Kendall. Inclusive ela falava do sul com verdadeira adoração. Sem dúvida, ela também havia
clamado pela independência... ou, bem podia ser uma mentirosa redomada.
Não, a história que lhe havia contado não era falsa. Praticamente acabava de violar uma virgem,
pensou, mas não a havia violado. Havia decidido que, acontecesse o que acontecesse, iria possui-la
e havia concretizado seu plano. Ambos sabiam que ele não lhe iria permitir nem mais o mínimo
protesto.
Todos os seus sonhos de gozar com ela se haviam cumprido e aquela sensação tão profunda havia
sido autêntica. Ela havia estremecido ao sentir a dor que sua invasão causara, mas havia sido incapaz
de resistir à maré provocada por sua própria sensualidade, a maré que quando se retira doi, e que
quando cresce, alcança a margem em uma gloriosa inundação de prazer.
Bebeu um trago de bourbon. Os músculos se contraíam ao pensar nela. Jimmy Emathla tinha razão;
devia partir ao amanhecer e continuava sentado em frente ao fogo, com a única companhia de uma
garrafa de bourbon, enquanto Kendall descansava tão somente a uns metros de distância.
Como o estaria esperando? Com ódio e aborrecida? Ansiosa por voltar a experimentar aquela
paixão que acabava de aprender a gozar? Estaria por acaso maquinando, se perguntando se havia
conseguido enganá-lo com sua amarga história? Talvez a história do casamento fosse uma mentira,
uma treta urdida pelos homens que atacaram sua embarcação...
Fixou os olhos até que o fogo ficou convertido num contorno borroso e disforme de cor amarela.
Aquele casamento era real. Havia feito indagações em Charleston, onde explicaram que Kendall
Moore era a esposa de John Moore, da marinha dos Estados Unidos.
Brent olhou com tristeza a garrafa de bourbon e bebeu o conteúdo de um trago. Se levantou e
lançou o recipiente vazio ao fogo. Cruzou o acampamento e subiu pela escadinha que conduzia à
cabana dela. Seu corpo era como uma massa de nós tensos e quentes. Pouco importava como o
esperasse, não podia permanecer longe dela.
A cabana, com suas duas janelinhas, estava no escuro. Ficou de pé no umbral da porta, esperando
que a vista se acostumasse a falta de luz.
Por fim a viu deitada num canto, envolta na manta.
Ele descalçou as botas e atravessou a cabana na ponta dos pés, silencioso. Se ajoelhou com
cautela a seu lado, se perguntando se fingia estar dormindo para pegá-lo desprevenido. A acariciou
no ombro com delicadeza e ela deslizou ligeiramente até ele, exalando um suspiro trêmulo. Seus
longos cílios eram como leques sobre sua face. Havia caído rendida, e aquele pequeno suspiro não
era, nem mais nem menos, que a sequela de sua torrente de lágrimas.
Brent estudou pensativo o rosto dela. A rara e delicada beleza de suas feições era ainda mais
evidente à pálida luz da lua; era irresistível, o tocava na alma. Sua pele, pura e impecável, parecia
tão suave e sedutora como o alabastro. Ansiava deslizar os dedos naquela cascata brilhante de
cabelo dourado, ondulado e desordenadamente esparramado ao redor de sua cabeça. Continuou
observando o corpo banhado pela suave luz da lua. No momento em que se voltou para ela, a manta
deslizou para baixo, deixando descoberto os ombros e seus tentadores seios. Brent notou que seus
músculos se tensionavam. A suave concavidade dos ombros dela, tão esbeltos, e o cálido volume de
seu peito, jovem e firme, o faziam perder o controle. Havia decidido que era sua mente, e não seu
corpo, quem dominava a situação. Mas em seu interior se travava uma verdadeira batalha. O
surprendeu comprovar que Kendall estava nua, que não havia se vestido como defesa contra um
possível ataque. Ela se grudava à manta como se fosse uma couraça, mas, adormecida como estava,
não a tinha segurado com força. Seus dedos se viam relaxados, apenas suas belas feições
evidenciavam a tensão. O sono não havia conseguido suavizar a expressão de dor e pesar que
marcava sua face, nem as marcas já secas das lágrimas que haviam caído. Quantos anos terá? Se
perguntou Brent. Dezoito? Vinte? Vinte e dois, quando muito. Em qualquer caso, demasiadamente
jovem para mostrar tanta angústia.
Ele se levantou para tirar a roupa e deixá-la bem dobrada. O desejo se apoderava dele, que
procurava apaziguar aquele calor tão espontâneo.
Se deitou tranquilamente ao lado dela, aconchegando seu corpo com cuidado para evitar despertá-
la, e não o fez para manter distância, e sim por um assombroso sentimento de ternura.
Deitado a seu lado, com a cabeça dela apoiada no braço, a abraçou com o outro, fazendo
descansar suavemente a mão sobre seu ventre. A esbelta e longa linha das costas lhe roçava o torso.
Aquele contato acendia em seu interior um desejo semelhante a uma dolorosa tortura, mas o ignorou.
Gostava de estar assim com ela, sentir a suave calidez da pele contra a sua, as curvas de suas
nádegas contra a dureza de seu membro. O aumento instintivo que experimentava seu sexo não
representava para ela nenhum perigo naquele momento, era como se ele aceitasse aquela promessa
das coxas dela, tão involuntariamente oferecida.
Fazia muito tempo que não dormia com uma mulher, que não descansava junto a cachos de cabelo
esparramados com uma agradável fragrância, que o envolvia e acalentava.
Além disso, jamais havia dormido com uma mulher que o afetasse tanto como aquela, que
atormentasse seu corpo e sua alma com a raiva... e o desejo, uma mulher capaz de crispar seus nervos
até fazê-los estalar, e acender sua paixão até o fazer perder a razão...
Brent fechou os olhos e se moveu um pouco. Ela, como por instinto, acomodou seu corpo ao dele,
aconchegando-se mais ainda a seu abraço.
Com suavidade, a mão de Brent subiu até o profundo vale entre seus seios. Ao sentir sob os dedos
as batidas de seu coração, um doloroso calafrio lhe percorreu o corpo. A queria e a teria.
Mas podia esperar. O sono ajudaria a aplacar a febre que o dominava naquele momento. Devia
abraçá-la com tranquilidade e esperar que o ar fresco da noite lhe desse o sono e a sabedoria
necessários para ajudá-lo a descobrir se sua bela refém era um anjo, uma puta... ou a arma mais
traiçoeira que a União poderia lançar contra o sul.
Capítulo 6
Ela começou a se mexer porque tinha frio. Aquela sensação a distanciou do paraíso de agradável
calor em que havia estado mergulhada até então.
Meio adormecida, notou que uma terna carícia a percorria nas costas, se deslizava com indolência
até seus ombros, descia pela coluna vertebral e se demorava na concavidade ao final da costas. O
calafrio se converteu em ligeiro tremor. Aquela carícia agradável pareciam provocar pequenas
chamas em seu interior, estrelas de calor em luta contra o frio que sentia.
A carícia esquentou de novo a coluna até chegar na nuca, atormentando—a, e voltou a descer até
embaixo... abrasando a pele, acendendo o fogo no mais profundo de seu ser...
Ante aquela sensação tão prazerosa, não pôde evitar se arquear e gemer, meio imersa como estava
na luxúria do sono crepuscular. Um sussurro rouco e premente roçou seu ouvido calidamente.
―Desperta, Kendall. Está quase amanhecendo. Quero que volte a ser minha antes de partir...
Sua voz a trouxe de repente a um estado de total consciência. Tensa, Kendall abriu os olhos. Tinha
frio porque não estava coberta com a manta e o calor que a reconfortava procedia do homem que
estava a seu lado.
A luz da lua já não iluminava a cabana e o tênue resplendor púrpura e alaranjado lutava para
sobrepujar a escuridão. Kendall viu o rosto dele e o brilho de seu olhar cinza, que zombava da rígida
postura de desafio que adotou quando ele roçou o ombro dela com a mão, e a voltou bruscamente de
costas no colchão. Brent não dissimulava em absoluto seu desejo, e a determinação com que
pronunciou sua ordem não convidava a protestar. Enfrentando-o, Kendall fechou os olhos e engoliu,
consciente de que de nada servia se queixar. O amava. A havia excitado enquanto estava dormindo e
era demasiado tarde para tratar de ocultar o estremecimento que sacudia seu corpo, a dolorosa
resposta que já lhe tinha dado. Quanto teria gostado de poder rechaçá-lo, se mostrar passiva ante suas
carícias e desdenhar da ternura que lhe dedicava...
A excitava inclusive a forma tão pouco amável com que lhe dava ordens. Ansiava sentir de novo
aquela indescritível sensação de desejo, entregar-se, gozar.
Brent iria sair em viagem; acabava de dizer que a havia despertado porque devia partir e ainda
não lhe havia explicado o que iria fazer com ela. Não devia esquecer que a havia possuído com a
única intenção de satisfazer seu desejo de vingança.
Então sem abrir os olhos, perguntou: ―Mais vingança, capitão?
Como ele não respondia, Kendall o olhou e viu que a estava observando com curiosidade. Nesse
momento, Brent sorriu e enclinou a cabeça, susurrando-lhe na altura dos lábios: ―Não. Não é
vingança. É desejo.
A beijou nos lábios, decidido, como se a quisesse convencer, como se a estivesse provando,
examinando, explorando, de divertindo com ela. Explorou seus lábios com a língua, presionando-os,
mordiscando—os. Cobriu com sua boca a dela, obrigando-a a aceitar sua invasão, e quando
finalmente ela permitiu o veloz assalto de sua língua, ele se afastou para que também ela participasse
no jogo, para que descobrisse a intimidade de sua boca como ele acabava de fazer.
Kendall não sabia como agir. Consciente de sua excitação, ansiava com loucura que a acariciasse,
estremecia ao sentir a força de seus braços ao redor de seu corpo e ao notar seu torso nu contra seus
seios.
Se olharam nos olhos; os de Kendall estavam abertos, incapazes de ocultar as dúvidas que a
assaltavam. Brent se moveu e acariciou os lábios com as gemas dos dedos.
―Na noite passada foi bom, mas para você foi como uma mescla de prazer e dor. Esta manhã
você terá somente prazer.
Kendall não podia afastar a vista dele. A dolorosa realidade da situação em que estava parecia
haver nublado sua mente, mas sabia que devia lutar contra ela. E o fez utilizando uma suave
interrogação: ―Por quê?
Não obteve resposta. Brent lhe acariciou a face com os nós dos dedos e afastou uma mecha de
cabelo. Com todo o peso de seu corpo sobre ela, queria que o contato fosse lento, demorado. Tinham
tempo suficiente para saborear todas e cada uma das carícias, por mais sutis que fossem. Kendall
notava as pernas peludas entrelaçadas com a calidez das suas, os braços escuros e musculosos que a
rodeavam com força e entrega ao mesmo tempo. Os lábios dele percorriam suas faces, o colo, os
seios, enquanto a barba de seu rosto bronzeado lhe acariciava a pele.
Ela percebia a plenitude de seu desejo. Era como um ferro incandescente que palpitava contra
suas coxas, atormentando—a como uma espada de mercúrio, que avivava o fogo que ardia em seu
interior. Apesar de sua pouca experiência, sabia o que a aguardava e tremia de desejo. Não podia
negar-se. Ansiava que a inundasse aquela sensação de vigor, volátil e esgotadora, que a
transbordava, que quase pedia a gritos e tornava ambos num só ser.
No instante em que lhe cobriu um seio com a boca e começou a atormentar o tenso mamilo com a
língua, Kendall lançou um gemido. Convulsionou, se arqueou e afundou os dedos no cabelo de Brent.
Ele se demorava... Enquanto a deliciosa tortura prosseguia lenta, como um crescente assalto a seus
sentidos, ele deslizava a mão com total liberdade pelas costas de Kendall, acariciando-a na cintura,
desfrutando da longitude de suas coxas. Ela não percebeu a sutileza com que ele deslizava o corpo
para que suas experientes carícias tivessem um alcance maior. Voltou a beijá-la, enquanto a palma de
sua mão áspera e endurecida, suave e excitante ao mesmo tempo, desenhasse círculos em seu ventre,
recreando-se, deslizando—se até abaixo, em direção ao interior de suas coxas.
Trêmula pela intensidade daquela doce sensação, se voltou para ele, numa tentativa de se livrar da
mão e da carícia que limpavam de sua mente qualquer pensamento, convertendo-a em uma criatura
totalmente submetida a sua votade. Procurou ocultar sua perturbação enterrando a cabeça no torso
dele. Mas ele não o permitiu, levantando seu rosto, buscando seu olhar. Logo a soltou e pousou sua
mão entre os seios dela. O coração dela batia de forma atordoada. Com a respiração acelerada e
entrecortada, Kendall tremia da cabeça aos pés, desejando-o.
―Me perguntou por que ― disse ele suavemente. ― Este... este ― sua mão desceu rapidamente
até as coxas e a cintura dela ― é o porque.
Ela quis falar, mas as palavras não saíam. Ele a abraçou, fechando os olhos.
―Abrace-me, Kendall. Me acaricie. Me ame. Obediente, lhe rodeou com os braços. Ele voltou a
se inclinar sobre ela com cuidado e colocou suas pernas entre as dela, sem que ela resistisse. Kendall
o olhava com os olhos bem abertos, incapaz de rechaçá-lo. McCain continuou contemplando—a
enquanto a penetrava e ele ouviu o leve gemido que escapou de seus lábios entreabertos, o que
contribuiu para aumentar o prazer erótico provocado pelo seu abraço. A temperatura crescia,
incontrolável. Quando começou a se mover em seu interior, o desejo se transformou num ritmo
violento, selvagem e descontrolado que desatava toda a paixão contida até aquele momento. Kendall
voltou a gritar e cravou os dentes no ombro dele, enquanto que seus dedos percorriam as costas dele,
agarrando-o, soltando-o, apertando-o, acariciando-o.
―Abrace-me ― sussurrou ele, ― com todo o seu corpo.
Ela obedecia cegamente, aprisionando-o com as pernas, gemendo, sentindo que seu amante se
adentrava no mais profundo de seu ser, até converter-se em uma parte a mais dela. Ouviu Brent
susurrar como estava excitando-o e explicar as maravilhosas sensações que ela despertava nele...
―Fale, Kendall; conte-me o que sente.
Ela fechou os olhos, consciente de como se arqueava e retorcia em busca de suas poderosas
investidas, de como se estremecia mais e mais à medida que o prazer alcançava cotas insuportáveis.
Mas não encontrava palavras para explicar as sensações. Era incapaz de falar, inclusive no momento
mais íntimo daquela cópula, tão livre e bela. Só pensava em dissimular a forma desavergonhada e
voraz com que o estava aceitando.
―Kendall...
―Eu... não posso...
Uma gargalhada rouca ressoou na cabana, um som masculino, triunfal, satisfeito.
―Sim que poderia, carinho, sim que poderia com o tempo.
Ela começou a gemer, se aferrou a ele com força e por fim conseguiu falar. Pronunciou o nome de
seu amante no momento em que a doçura do mais puro prazer lhe percorria o corpo, apoderando-se
dela em forma de deliciosos calafrios acorrentados.
―Oh, Brent... Brent...
Voltou a fundir-se nela uma vez mais, duro e firme.
O corpo do homem ficou tenso, estremeceu, para relaxar um pouco depois. Ela sentiu a enchente
de liberação. Notou que a inundava uma sensação maravilhosa e embriagadora, a doce culminação do
prazer. A forma de amor que ele acabava de ensiná-la, possuía uma espécie de poder imponente. Sim,
ela havia sucumbido à vontade dele, mas sabia que ela também exercia um poder sobre ele, que o
fazia se render a ela.
Brent deslocou o peso de seu corpo sem afastar-se dela e se apoiou sobre um cotovelo, deixando
descansar, com gesto possessivo, uma mão sobre a cintura de Kendall, que, com a respiração ainda
agitada, o olhou desconfiada, rogando que aquela saciedade e aquele prazer embriagador e
narcotizante não a abandonassem.
Certamente, enquanto a grata sensação começou a se desvanecer, voltou a estar ciente das
circunstâncias em que se encontrava. Brent, a contemplava em silêncio, com uma ligera careta nos
lábios, uma mão deslizando com preguiça pelas costelas de Kendall, empurrando um ombro,
segurando de novo a cintura.
― Sinto que eu tenha que ir para a guerra... ― murmurou, sacudindo a cabeça, se desculpando,
como se fosse uma injustiça assombrosa.
Ela enrijeceu e baixou a vista um instante, para voltar em seguida para observá-lo com olhos
desafiantes, numa tentativa desesperada por ocultar seu temor.
―Pelo menos você sabe para onde vai, capitão McCain.
Ele arqueou uma sombrancelha, e seu sorriso se ampliou.
―Como ficamos formais de repente, não, senhora Moore? Embora, deva admitir, que quando
decide usar o meu nome de batismo, o faz no momento adequado. Pouco conseguiria se começasse a
sussurrar «capitão McCain» com o fim de incrementar minha paixão.
Os olhos de Kendall brilharam de um modo perigoso. Ao perceber que apertava os lábios e
tensionava a mandíbula, Brent moveu a mão com rapidez para segurar os pulsos dela antes que lhe
desse um tapa no rosto. O olhar de Kendall brilhavam de raiva. Ele riu de forma irônica, e mantendo
os punhos dela presos ao lado da cabeça, pousou um leve beijo na boca fechada de Kendall.
―Diga Kendall, o que deveria fazer com você?
―Levar-me com você ― respondeu lentamente. ― Sem dúvida irá atracar num porto confederado.
―Sim, certamente ― disse sorrindo, pela tentativa dela de se libertar.
―Então...
―Não posso levar você comigo, Kendall. Partirei diretamente até Gulf Coast, onde nos aguarda
uma dura batalha naval. Não seria seguro.
―Mas pode deixar-me antes em qualquer outro lugar. Em Tampa! Uma vez ali, logo encontraria
um meio de transporte para chegar a Jacksonville ou a Fernandina...
A fagulha de bom humor desapareceu das feições de McCain, que falou com profunda amargura.
―Não existe nenhuma cidade costeira segura. E Jacksonville menos ainda.
O surprendeu ver como o rosto dela se transformava até ficar totalmente pálido.
―Não... não pensa me enviar de novo a Forte Taylor, não é verdade?
Brent franziu o cenho.
―Não.
―Oh...
Suspirou aliviada, e no mesmo instante baixou a vista. Estava tremendo, e as batidas de seu
coração se aceleraram. Devia sentir muito desprezo pelo ianque com quem estava casada, pensou o
capitão. Mais ainda, a aterrorizava de verdade.
―Fique tranquila, Kendall. Não penso mandá-la ao Forte.
Ela mordeu o lábio inferior, e levantou o olhar cravando nele.
―Então... então o que pensa fazer?
McCain soltou uma risadinha sufocada, assombrado ao vê-la tão perplexa.
―Pode ficar aqui ― disse, sorrindo. ― Raposa Vermelha se ofereceu para cuidar de você para
mim.
―Cuidar de mim... por você! Eu não sou um maldito barco, Brent McCain! E não quero ficar aqui!
Lhe suplico como um cavalheiro que é...
―Kendall, lembro perfeitamente que na noite em que nos conhecemos em Charleston, a avisei que
não devia esperar que eu me comportasse como um cavalheiro.
Os olhos de Kendall brilharam de raiva. Mas piscou e o observou com doce inocência.
―Capitão... Brent, não compreende? Estamos em guerra! Quero viver num lugar onde possa
inteirar-me do que está acontecendo...
―Kendall... ― tentou interrompê-la.
Certamente ela continuou falando com voz doce.
―Não quero consumir-me num pântano deixado nas mãos de Deus, cheio de peles vermelhas e
crocodilos!
Brent a soltou e se sentou de cara para a janela, através da qual se viam as primeiras luzes do
amanhecer.
―Kendall, carinho ― disse com severidade, de forma lenta e incisiva, carregado de sarcasmo, ―
de nada servirá que atue como uma dama sulista ou que fique colérica. Pois ficará aqui.
Ao ver que ela guardava silêncio, Brent se voltou para olhá-la. Estava sentada e protegia sua nudez
abraçando os joelhos dobrados contra o peito. O escrutinava com olhos tormentosos, mordendo os
lábios com verdadeira fúria.
―Durante quanto tempo? ― Perguntou com um tenso sussurro.
Ele a observou detidamente. Maldição! Era capaz de prodigar a paixão selvagem para, apenas uns
instantes depois, aparecer como a mais provocadora das criaturas. Contemplando seus grandes olhos
e seu frisado cabelo, que realçavam aquela beleza que parecia imaculada, suspirou, abrandando o
tom de voz.
―Até que eu regresse, até que encontre um lugar onde tenha certeza de que não haverá guerra tão
cedo.
A sacudiu um ligeiro tremor. Deviam reconfortá-la aquelas palavras? Jogou o cabelo para trás e
olhou a Brent desafiante.
―Se vou ficar aqui, capitão McCain, quero que fique bem claro que não penso me dedicar a moer
essa maldita raiz de koonti. E que, tão pouco, lavarei mais roupa, além da minha!
Reprimindo o riso, Brent não pode resistir à tentação de acolhê-la entre seus braços e empurrá-la
ao chão.
―Brent ― protestou ela sem fôlego, acariciando-lhe as costas.
Ele a olhou implacável.
―Escute, Kendall. Quero que prometa que não será nenhum problema aos índios. O pântano é um
bom refúgio, mas pode transformar-se num verdadeiro inferno. E com a presença dos ianques, que
percorrem a costa continuamente, pode chegar a ser inclusive mais perigoso. Eu sou um confederado
que acaba de se converter em seu amante, e não estou disposto a entregá-la a um marido, cujo cruel
comportamento a forçou a fugir dele. O que garanto é que se cair nas mãos ianques, a devolverão de
imediato a John Moore. E eu não criticaria os federais por isso, pois seria o mais honroso que
poderiam fazer.
Pela vez primeira, Brent viu que os olhos dela se inundavam de lágrimas; ela pestanejou um
instante para afastá-las. Com amarga dor, ele se perguntou que tipo de vida havia levado com John
Moore.
―Quero sua palavra, Kendall ― disse.
Ela baixou a vista.
―Não tentarei escapar. Gosto de Raposa Vermelha e Apolka. Eu... ― A dor que sentia quebrou
sua voz. Quando voltou a falar, empregou um tom inexpresivo. ― Certamente, eu gostaria de
regressar a minha casa, embora suponha que jamais voltarei a ter um lugar. Também teria que fugir de
Charleston.
Não estava suplicando compaixão, mas sim expondo os fatos tal como eram. Nesse momento
Brent lhe perdoou tudo. Tomou com ternura seu rosto entre suas mãos e a olhou nos olhos.
―Kendall, a guerra não durará para sempre.
Começou a rir com amargura.
―Eu sei. Tenho ouvido isso de ambos os lados. «Enviaremos ao caralho esses malditos ianques
em menos de um mês.» «Johnny Rebs voltou para casa com o rabo entre as pernas em menos tempo
do que canta um galo.»
―Tem razão, Kendall. Não terminará logo, mas acabará. E quando me for possível, a levarei a um
porto do sul. Enquanto isso, deve admitir que não ficará mal aqui. Raposa Vermelha não é um
selvagem.
―Não, mas Falcão da Noite... ― murmurou com sarcasmo.
―Acha que sou? ― Perguntou com cortesia, fazendo caso omisso de seu tom zombador. ― Tão
selvagem sou?
―Totalmente.
Ele olhou para a janela, onde penetrava a luz púrpura do amanhecer. Depois cravou a vista nela.
―Me alegra que reconheça a natureza da besta, carinho, porque volto a sentir essa necessidade
tão selvagem, e a guerra será longa e aborrecida.
Nem passou pela cabeça dela rechaçá-lo. O abraçou, lançando um cálido suspiro, agradecendo
suas carícias e seu crescente e repentino desejo. Estava aprendendo a conhecê-lo, e quanto mais
aprendia mais aumentava a ânsia de saber e se antecipar a ele.
Já era de dia. Sua vida, ela mesma, tudo havia mudado de forma drástica em uma noite, graças
àquele homem que, por fim, se havia convertido em seu amante.
Havia descoberto a plenitude e as profundezas da paixão que podem compartilhar um homem e
uma mulher. Quando estava em seus braços, esquecia os trágicos ventos da guerra que assolavam o
país, e o tormento que era sua vida.
Desconhecia o que ele sentia por ela. Tão pouco acabava de assimilar seus próprios sentimentos,
até agora. Apenas sabia que necessitava amá-lo, que ansiava o encontro do desejo dele com o seu
próprio, imprimir sua lembrança em seu corpo e alma. Ansiava aferrar-se com força a seus sonhos de
amor das longas noites que ainda estavam por vir...
A manteve abraçada por muito tempo e finalmente se levantou. Kendall enterrou o rosto na manta,
se negando a ver como se vestia e ia embora. Tinha a sensação de que não podia se mover. Estava
exausta, tanto física como mentalmente. Havia desnudado totalmente o seu interior e seguia exposta,
vulnerável. Ele havia feito estragos em suas emoções, havia violado sua alma, e ao mesmo tempo, era
como se houvesse jogado um salva-vidas onde ela se agarrava ainda um pouco indecisa, mas com
uma esperança quase cega. Gostava da paixão com que ele fazia amor com ela, e pensar que, também
ele, parecia querer levar uma lembrança consigo, apesar do quanto incrivelmente esgotadora que
resultava a experiência. Saber que estava a ponto de partir era uma agonia.
―Falcão da Noite ― disse em voz baixa, procurando reprimir as lágrimas, sem se atrever a olhar
como vestia a camisa e as calças de montar. ―Raposa Vermelha e Apolka. Por que Raposa Vermelha
e Falcão da Noite? Não são nomes da língua indígena.
―É a influência da civilização do homem branco, querida. Quando combatiam contra os índios,
os brancos começaram a pôr apelidos aos peles vermelhas, e muitos seminolas e mikasukis os
adotaram para negociar com seus inimigos. Em muitas ocasiões os batizaram com nomes de animais
do bosque: águia, gambá, raposa. Agora, tal como os brancos, e apesar de que esta é uma sociedade
matriarcal, os índios usam os apelidos de seus pais. Raposa Vermelha era filho de Pequena Raposa,
como era chamado Osceola. Tem também um nome seminola, pois eles, como os mikasukis,
conservam seu nome de verdade, o que recebem no transcurso da cerimônia do Milho Verde. Raposa
Vermelha se chama também Asiyaholo. Os brancos eram incapazes de pronunciar o nome
corretamente.
Kendall ouviu as pisadas das botas se aproximando.
―É curioso o caso da palavra «seminola». Os primeiros colonos afirmavam que significava
«fuga» porque os índios fugiam para o sul, para escapar das guerras tribais e dos brancos. Na
realidade a palavra significa «correr em liberdade». Raposa Vermelha corre em liberdade. Não
importa os açoites o as massacre que tenha sofrido seu povo... ele sempre corre em liberdade. ― De
repente se ajoelhou a seu lado e a estreitou contra si. Ela se voltou para olhá-lo, e Brent continuou
falando, tenso, silenciando o grito de protesto que adivinhava em seus lábios. ― Correr em
liberdade, Kendall. Isso tentamos fazer todos; Raposa Vermelha , você e eu. Confia nele, Kendall. E,
se algo acontecer a meu amigo, existe um homem na baía que a ajudaria só por mencionar meu nome.
Se trata de Harold Armstrong. O encontrará na foz do rio Miami, na primera noite de lua cheia. O
grito do sinsonte indicará que não há nenhum problema. Comprendido?
Kendall, que se esforçava por reprimir as lágrimas, assentiu com a cabeça. Se perguntava,
desmotivada como McCain se havia convertido em alguém tão importante para ela, com tanta
rapidez. Uma noite, tão só uma noite juntos, uma noite que, além disso, se iniciou da forma mais
hostil.
―Comprendido ― murmurou, por fim.
Pensou que voltaria a beijá-la, a lhe dedicar um último beijo antes da partida definitiva. Em vez
disso, Brent a soltou de repente, ficou em pé e se encaminhou para a porta, onde se deteve, sem se
atrever a virar. Sentia um nó no estomago e uma dor que lhe oprimia o peito. Devia batalhar em uma
guerra, mas abandonar aquela mulher a quem tão só algumas horas atrás teria estrangulado, era a
escolha mais difícil pela que havia tido que passar em toda sua vida. Se se voltasse para olhá-la...
meio coberta com a manta, deixando descobertos seus seios, com o cabelo dourado como uma
cascata e os olhos como aqueles de sedutor anil, mais azuis que o azul...
―Procurarei solucionar o assunto da moenda de koonti ― disse bruscamente.
―Faça-o ― sussurrou ela; sua voz era quase um soluço. Mordeu os lábios e engoliu, para
conseguir falar num tom despreocupado e vencer as emoções que ameaçavam desabar tudo. ― E por
favor, capitão McCain, não permita que o matem. Talvez os pântanos sejam acolhedores, mas não
gostaria de passar muito tempo aqui... ― A voz lhe faltou.
Ele permaneceu imóvel, e ela ficou com a olhar fixo em sua cabeça eriçada e nas seus amplas
costas, ocultas pela sobrecasaca cinza do uniforme.
Então a porta se abriu para fechar-se atrás dele. Não correu a tranca. Ouviu seus passos rápidos
baixando pelos degraus da escada e um suave salto quando alcançou o chão, e por último, as vozes
dos demais homens. Ouviu também as ordens pronunciadas tanto em inglês como em muskogee.
Em seguida todos exclamavam «Dixie» em unísono. Ouvir aquilo nos primitivos Glades resultava
o mais incongruente. As vozes foram se desvanecendo, diluindo-se nos pântanos.
Não chorou. Permaneceu deitada, com o olhar cravado no telhado de palha da cabana. Após algum
tempo, os sons da natureza superaram o eco das vozes humanas. A luz brilhante do sol entrava pelas
janelinhas, e com ela a sinfonia do canto dos grilos, o grito da gralha e os grunhidos, semelhantes aos
de um porco, que emitia ao longe um crocodilo...
Mas em seus ouvidos ainda ressoava o «Dixie» que os homens haviam pronunciado. E quase via
as amplas costas, vestidas de cinza, do homem de olhos de aço. Puxou a manta, incapaz de reprimir
as lágrimas por mais tempo. Soluçou até dormir.
Despertou sobressaltada. Olhou ao redor para averiguar o que a havia despertado. A cabana
estava em silêncio e vazia.
Franziu o cenho ao comprovar que o sol já estava se pondo pelo oeste, e que a luz do entardecer
começava a banhar o acampamento. Havia dormido durante quase todo o dia. E os índios não a
haviam incomodado.
Se levantou e abraçou o corpo com os braços ao sentir um pequeno calafrio. Fechou os olhos.
Fazia horas que Brent McCain havia partido. Já estava há muitos quilômetros de distância, e não
podia se permitir pensar na solidão que a aguardava. Os fabulosos momentos de tempestuoso
resplendor que havia vivido durante a noite a haviam deixado totalmente ansiosa, aflita, triste.. E
certamente, tinha mais do que havia tido em muitos anos, tinha esperanças. Estava em liberdade...
Sorriu, tranquila.
Se vestiu a toda pressa, alisou o cabelo e se dirigiu à porta da cabana para sair à prataforma
exterior e baixar pela escadinha.
A vida no acampamento transcorria como de costume. As crianças descalças corriam acima e
abaixo. Haviam fogueiras acesas para preparar a ceia. Ouviu as vozes das mulheres que falavam
enquanto se ocupavam das tarefas domésticas, costurando pedaços de tecido de vivas cores,
preparando a ceia dos guerreiros.
―Vejo que decidiu se unir a nós, Kendall Moore.
Ela olhou desconfiada ao caminho que, bordeando a colina, conduzia ao rio salobre e aos
pântanos.
Quem se aproximava era Raposa Vermelha, que levava nos ombros um veado jovem branco, cujo
peito estava atravessado por uma flecha. O chefe havia ido caçar, vestido com todos os adornos
característicos de um chefe indígena, uma cinta cheia de plumas rodeava sua escura e abundante
cabeleira, e sua camisa estava guarnecida com meias—luas prateadas. Havia renunciado às calças do
homem branco e ao diminuto tapa-sexo que levava quando se conheceram no barco e, em seu lugar,
vestia uma saia curta de pele. Umas polainas protegiam suas panturrilhas, e na cintura levava um
cinto com acessórios cheios de pólvora, assim como o arco e flecha que ele carregava sempre
consigo.
―Estava dormindo ― murmurou, incômoda, ao notar que se ruborizava. O escuro brilho no olhar
de Raposa Vermelha indicou que sabia perfeitamente por que havia tido tanta necessidade de dormir.
Ele sorriu sem nenhuma intenção de burlar dela e a pegou pelos pulsos para que lhe acompanhasse
passeando até sua chickee.
―Nem sempre vivemos nesta classe de vivendas, Kendall Moore ― disse, iniciando a conversa.
― Quando estávamos no norte, construíamos bonitas cabanas com troncos, muito semelhantes a suas
casas. Mas as queimaram tantas vezes... fomos nos deslocando cada vez mais para o sul. E aqui, de
vez em quando, os vendavais e as chuvas torrencias destroçam tudo. Temos aprendido a renascer,
como as raízes do mangue. Não podem nos destruir, porque reconstruímos tudo rapidamente. ― De
repente se deteve, e se voltou até ela com expressão brincalhona. ― Me disseram que já não quer
moer mais raiz de koonti.
Kendall enrubeceu de novo, ao se dar conta de que as palavras que havia pronunciado para Brent
a convertiam aos olhos dos índios na típica mulher branca dona de uma plantação, preguiçosa e
consentida. Embora, na realidade, nem as esposas dos colonos mais ricos levavam uma vida fácil.
Normalmente, quanto maior era uma plantação, mais trabalho tinha a mulher da casa, sem importar o
número de escravos que possuísse o dono.
―Não me assusta o trabalho duro, Raposa Vermelha. Se ficar aqui, não me importa realizar as
tarefas que me designarem.
Raposa Vermelha sorriu e continuou a andar.
―Então decidiu ficar conosco por sua própria vontade?
―Sim ― respondeu Kendall em voz baixa, arquejando ligeiramente devido a seu empenho de
seguir o passo dele.
Este se deteve de novo, de forma tão repentina, que Kendall esteve a ponto de se chocar contra
suas costas. Quando a olhou, continuava sorrindo.
―Não quero que se dedique a moer mais raíz de koonti. Prefiro que ensine inglês aos meus filhos.
Kendall o observou pasmada.
―Mas você já fala muito bem o inglês, Raposa Vermelha.
Ele sacudiu suas enormes mãos com impaciência.
―Sou um homem muito ocupado. E também gostaria que Apolka aprendesse o idioma dos brancos.
Um homem não tem sempre paciência suficiente com sua mulher.
Kendall sorriu. Afinal, não existiam muitas diferenças entre os brancos e os peles vermelhas.
―Mas Raposa Vermelha, eu não falo sua língua!
―Poderia aprendê-la, enquanto ensina as crianças e Apolka. De fato, já fala um pouco de
muskogee, Kendall Moore... Tallahassee.
Kendall arqueou uma sombrancelha e começou a rir.
―O único que sei é que se trata da capital do estado.
―Significa «cidade antiga» ― explicou ele deixando o veado no chão em frente a sua casa para,
em seguida, passar o braço pela costas e acompanhá-la à entrada do chickee. Riu e assinalou com o
dedo a cabana dizendo divertido: ― Chuluota... toca da raposa!
Rodeando a cintura de Kendall com o braço a carregou sem nenhum esforço à plataforma do
chickee.
―E eu em troca, Kendall Moore, a ensinarei tudo sobre o pântano. Aprenderá por onde corre os
rios, quando parece que não há nada mais que ervas cortantes e árvores. Destinguirá pela cor as
serpentes que podem matar e perceberá, até o menor movimento do rabo de uma cascavel. Saberá
como escutar passos enquanto dorme e predizer os dias em que o céu trará a chuva ao cair da noite.
Kendall, observando com curiosidade as feições de Raposa Vermelha, comprendia que estava
ofecendo a ela uma amizade que muito poucos brancos poderiam jamais receber, uma amizade da
qual Brent desfrutava há muito tempo e que ele apreciava e cultivava, apesar das opiniões de sua
própria sociedade.
Quando se voltou, viu que Apolka aguardava pacientemente a seu esposo e sua hóspede com um
sorriso nos lábios e com seus filhinhos, de olhos enormes, que estavam às suas pernas, a espera de
saudar a seu pai e à mulher branca, que fazia tempo haviam aceitado.
De repente, como uma suave melodia, o riso de Kendall inundou tudo. Sorriu a Apolka e voltou a
olhar a Raposa Vermelha .
―Tentarei agradá-lo, Raposa Vermelha. Me esforçarei para ensinar... e aprender.
O homem assentiu com a cabeça, aparentemente satisfeito. Lançou a faca de caça a Apolka que a
pegou no ar, e enclinou a cabeça até o veado.
Começará suas lições agora mesmo, Kendall Moore ― disse o índio, ― enquanto Apolka nos
prepara a comida. Pelas manhãs virá comigo para aprender. ―A alegria iluminava seus olhos
escuros. ― Nos dias vindouros, apenas terá tempo de descansar. Falcão da Noite tardará em
regressar. A mulher de um guerreiro não pode permanecer ociosa, a menos que tenha passado a noite
oferecendo a ele prazer e tranquilidade.
Ao ouvir tais palavras, Kendall se ruborizou. Não estava segura se desejava lhe dar um bofetão ou
rachar de rir. Esta última opção resultou mais prática, sobretudo, tendo em conta que Raposa
Vermelha já se havia afastado.
Começou a dar voltas pelo chickee, sorrindo ao ver que Apolka ordenava às crianças que fossem
com ela. Kendall se enclinou sobre os pequenos e os atraiu para si, desfrutando dos abraços que eles
lhe devolviam. “Selvagens...” pensou com remorsos. Apenas há alguns dias havia assegurado,
ignorante, que todos os índios eram uns selvagens. E naquele momento se sentia ridiculamente bem,
com aquele par de meninos morenos que se juntaram carinhosamente a ela.
Suspirou, estreitando-os e contemplando como Apolka baixava do chickee para recolher o veado.
A noite se aproximava no pântano, aquilo era a paz personificada, o céu alaranjado como tela de
fundo, com a colina de ciprestes atrás.
Não era Charleston, nem Richmond, nem Atlanta, nem Mobile nem Nova Orleans... mas era
melhor que os barracões da União. Era, com diferença, o melhor lugar que um sulista poderia
encontrar para ilhar-se da guerra. Talvez a situação melhorasse antes do que Brent supunha. O sul
devia ganhar a guerra. Apesar das poucas informações que Kendall havia recebido, era evidente que
os generais da Confederação eram melhores, assim como sua estratégia militar.
As crianças a apertavam cada vez com mais força, reclamando sua atenção. Eram tão confiados...
Realmente não era um mal lugar. Sentiu um pequeno calafrio. Para ela, aquele era o melhor lugar do
mundo, o lugar em que Falcão da Noite regressaria para buscá-la algum dia...
Capítulo 7
13 de marzo de 1862
A ansiedade da espera era um tédio na vida rotineira, o que era mais penoso para os que ficavam
sozinhos durante a guerra.
Kendall decidiu que nas manhãs se dedicaria a ajudar Amy com a criação e no jardim, e que pelas
tardes cavalgaria pelos caminhos e as praias. O verão estava muito quente, quase insuportável. Por
sorte, a brisa marinha que soprava nos muitos riachos e na areia branca era refrescante. Gostava de
frequentar as praias da baía, pois de algum modo, assim se sentia mais próxima de Brent.
O fato de que não houvesse regressado de sua missão no golfo, representou uma decepção que a
abateu profundamente. E ficou mais amarga, ao saber que ele não havia conseguido seu objetivo.
Nova Orleans estava sofrendo assédio, e a situação piorava, e Pensacola continuava nas mãos dos
federais. Brent recebeu o encargo de transportar a tão imprescindível carga de sal da Flórida aos
pântanos mais recônditos de Luisiana, e a única esperança que ficava era que a milícia houvesse
conseguido repartir a preciosa substância entre os campos de batalha, onde poderia ser utilizado para
conservar a carne, que devia alimentar as forças combatentes do sul.
Imediatamente depois dessa missão, Brent foi enviado a Londres em busca de um carregamento de
morfina, e, assim não pôde dedicar a Kendall nenhuma tarde. A luta se tornava mais encarniçada, e as
numerosas vitórias dos confederados ficavam ensombrecidas pela premente situação dos soldados
feridos. Devido aos bloqueios, cada vez mais severos, os exércitos do sul começavam a sofrer
escassez de suprimentos. Brent enviou a Kendall uma carta em que narrava, com grande desespero, o
destino dos feridos. Quando estavam na foz do Mississipi, um projétil atravessou uma perna de um de
seus artilheiros. Quando a amputaram, não dispunham de anestesia para administrar, nem de conhaque
ou bourbon que pudesse ajudá-lo a acalmar a dor. Era terrível imaginar qual seria o destino dos
soldados que lutavam no campo de batalha. Portanto, a morfina era vital. Kendall compreendia a
situação, mas a espera era dura. Lia e relia qualquer periódico que chegasse naquele lugar por
casualidade, e celebrava com Harry as notícias que mencionavam as vitórias sulistas. A indecisão do
general McClellan havia provocado mais de um desastre em sua campanha pela península. Por sua
parte, Jackson Mão de Pedra, Jeb Stuart, o velho Jubal Early e o decoroso Robert E. Lee
continuavam comandando suas diminutas tropas com absoluta valentia e, como sempre, mostrando
uma estratégia insuperável. Harry explicou a Kendall que McClellan andava sempre com tantas vagas
conclusões, que o próprio Abe Lincoln fazia comentários jocosos às costas de seu general, como, por
exemplo: «se MacClellan não utiliza seu exército, o pedirei emprestado por um tempo.»
Ambos os lados assumiam que McClellan não demoraria em ser substituído, dado que seu exército
não conseguia grandes vitórias. À margem de quem obtivesse a vitória final, o certo era que a morte
tinha suas consequências e que uma grande quantidade de feridos de guerra agonizava de forma
espantosa.
Kendall, montada em sua égua, parou nas areias da praia onde Brent a havia feito sua fazia já tanto
tempo. Atou a égua a uma árvore, tirou as meias e os sapatos, recolheu a saia e colocou os pés na
água, ali onde as ondas rompiam na areia.
Franziu o cenho. Por muito que os exércitos estacionados na frente oriental estivessem saindo
vitoriosos da situação, os confederados que combatiam no oeste haviam sofrido mais de um revés,
entre eles a perda de Nova Orleans. Grant, general dos Estados Unidos, havia liderado batalhas no
Tennessee, Kentucky e toda a zona do Mississipi. Havia dirigido vitoriosas campanhas contra Forte
Henry e Forte Donelson, ao oeste do Tennessee, e, apesar das enormes perdas que a União havia
sofrido em Shiloh, os confederados haviam sido obrigados a se render. Uma famosa citação de
Lincoln, desta vez referindo-se a Grant, era: «Não posso prescindir deste homem... é um lutador.»
Aquela pergunta que uma vez fizera a Brent e que desde então a agoniava, voltou a sua mente: O
que ocorreria se a União ganhasse a guerra?
Kendall cobriu os olhos com as mãos. Não suportava tal ideia. Algo intangível e irreparável iria
se perder para sempre.
Retirou as mãos do rosto para contemplar o mar e franziu de novo o cenho. Em seguida, protegeu
os olhos do resplendor do sol. Então, ao ver um barco no horizonte, escorado contra o vento, o
coração lhe deu um salto.
Estava a menos de quinhentos metros de distância. Se tratava de uma escuna carregada de
armamentos, ao que parecia, muito semelhante àqueles navios que estavam atracados em Forte Taylor.
A bandeira da União ondeava no mastro.
Presa de pânico, Kendall começou a correr, afastando-se das ondas do mar. Ao cabo de um
instante se deteve para voltar a olhar a embarcação. A escuna, que não havia baixado a âncora,
navegava de forma errada, como se não houvesse ninguém no comando, como um barco fantasma
jogado pelas ondas. Não tardará em chegar à terra, supôs Kendall com perspicácia. Ao forçar ainda
mais a vista, reparou em que os mastros estavam carbonizados e as velas em farrapos.
Kendall considerou, estremecendo-se, que se tratava de um barco abandonado. Harry pensou.
Devia encontrar Harold Armstrong o quanto antes. Se deteve de novo. Embora ferida de morte, a
escuna parecia ser ainda manobrável. E não estava muito longe. De fato, virava e se aproximava cada
vez mais. Kendall mordeu os lábios e se encaminhou até a égua, que continuava tranquilamente
ocupada na busca de alguma moita de erva que pudesse crescer entre a areia. Ela se voltou de novo
para observar o barco.
A menos que a escuna virasse com rapidez até as águas mais profundas do canal, acabaria
encalhada e, com toda certeza, partindo-se contra algum banco de areia próximo da margem. Era um
navio de grande tamanho, impossível de ser governado por uma só pessoa. As condições climáticas
eram boas, pois a brisa soprava de forma suave. De entre aqueles farrapos, ficavam ainda em bom
estado algumas velas. Devo estar louca ― pensou Kendall. ― Talvez o barco somente esteja
abandonado na aparência. Se decidisse nadar até ele, poderia ver-se envolvida num tremendo
desastre. Podiam violá-la, assassiná-la ou, no mínimo, fazê-la prisioneira.
Esperou. Os segundos transcorriam. De repente, a excitação se apoderou dela com a força de uma
droga. Havia aguardado toda a sua vida e, por fim, se presentava a oportunidade de agir. Havia agido
sempre segundo o ditado de homens como John Moore, e inclusive, Travis, Raposa Vermelha ... e
Brent. Quando estava com Brent, era ele quem dava as ordens. E quando ia embora, era como se lhe
tivesse tranquilamente subtraído uma parcela de sua mente, certo de que, enquanto estava ocupado na
guerra, ela permaneceria no mesmo lugar em que a havia deixado.
Kendall deu uma rápida olhada ao redor e não esperou mais. Tirou o vestido e depositou a
crinolina na areia. Ficou de anáguas e camiseta, respirou fundo e se lançou na água.
Não era uma excelente nadadora, mas havia aprendido a se manter flutuando enquanto vivia com
os índios. Nadou pelas azuis profundezas da baía, reprimindo com energia, as pontadas de medo que
a assaltavam. Às vezes, aquelas águas estavam cheias de tubarões. Além disso havia também toda
classe de malignas criaturas marinhas: arraias, medusas, barracudas... Certamente a bordo da escuna
podia encontrar-se com seres ainda mais terríveis, homens. Enquanto saía ensopada da água, vestida
tão somente com a roupa interior de algodão, seria uma presa muito vulnerável.
Kendall nadou contra as cálidas ondas com mais força ainda. Seus braços se debatiam na água,
logo notou que lhe faltava a respiração. Estava tomada pelo pânico. Se deteve para descansar e
respirar fundo. Uma grande onda a cobriu, mas não a afundou. Quando passou, recuperou a calma. Se
surgissem problemas, os enfrentaria... mas seria uma estúpida se se afogasse tolamente, por pura
covardia.
As braçadas de Kendall se tornaram mais tranquilas e seguras. Alcançou a escuna em questão de
minutos. Uma vez ali, surgiu um problema adicional, como subir a bordo. Rodeou a escuna a nado,
esquecendo por completo que a baía devia estar repleta de tubarões famintos. Finalmente, pelo lado
de bombordo, descobriu um ponto em que o casco havia sido atingido. A madeira havia sido
arrancada quase até o nível da linha de flutuação. Se subisse por estibordo, conseguiria, sem dúvida,
alcançar o convés.
Se deteve um momento antes de subir. Notava como o sol lhe abrasava a pele cheia de salitre.
Piscou fortemente, o temor a fazendo sua presa. Estava agindo como uma idiota? O que havia
ocorrido com a tripulação da escuna? E se estivessem todos mortos por causa de alguma doença?
Se agarrou na madeira para se levantar, e sentiu dor, quando cravou uma farpa na palma da mão.
Sem pensar, levou a mão à boca e mordeu a ferida. E olhou ao redor. A escuna não era tão grande
como o Jenny―Lyn, mas parecia elegante e firme. Ao dar uma olhada no convés, Kendall reparou
num bote salva-vidas suspenso. Levava o nome da escuna pintado em negro a estibordo, «USS New
England Pride.»
―Está bem, New England Pride ― murmurou Kendall, andando lentamente pelo convés. ―
Vejamos se o conseguimos converter em CSS ou o que seja!
Se aproximou do timão sigilosamente. Estava cada vez mais convencida de que, qualquer razão
que fosse, o barco havia sido abandonado. Provavelmente fora abordado durante uma batalha, e sua
tripulação decidira abandoná-lo.
Apesar de seu estado, a escuna não afundara, e as correntes marítimas a arrastaram até aquele
lugar.
Kendall tomou o timão e tentou manobrar, arquejando. Quase o abandonava, desesperada e
frustrada, porque seu esforço não obtinha o resultado esperado, quando, no momento em que lançava
um grito de impotência e apoiava a testa suada num dos braços do timão, a direção do vento mudou de
forma repentina... e a escuna começou a obedecer.
Uma vez em seu poder, a embarcação resultou tão dócil como um cordeiro. A esfarrapada vela se
inflou com o vento, e o barco começou a navegar pela baía. Logo, quando se aproximava da foz do
rio, Kendall percebeu que se encontrava muito próxima do porto secreto, onde os barcos rebeldes iam
se refugiar... e de que seu navio hasteava a bandeira da União! Rezando para que a escuna mantivesse
o rumo, Kendall correu até o mastro e tentou baixar a corda que manejava a bandeira. Fazendo força,
com os dentes apertados, conseguiu por fim que o desgastado nó cedesse. Kendall continuou absorta
em sua tarefa, lutando com unhas e dentes, sem se importar, em absoluto, com os dedos esfolados pelo
cânhamo. Ao desatar o nó, a bandeira do norte, que orgulhosamente havia ondeado ao vento um
momento antes, caiu ao chão após um grande puxão.
A escuna havia perdido o rumo, e virava perigosamente para o pântano. Kendall começou a correr
de novo como uma louca, desta vez para voltar a manejar o timão. A embarcação respondeu às suas
ordens com a mesma doçura.
―Se pudesse estar em dois lugares ao mesmo tempo ― murmurou Kendall. ― De fato, creio que
em mar aberto, poderia ter feito bom proveito de você!
Mas não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo... Além disso, naquele instante vestia tão
somente sua camisa e anáguas molhadas e coladas ao corpo. Era como se estivesse nua.
―Maldição! ― murmurou.
Abandonou outra vez o posto de comando e começou a correr, a toda velocidade, até a desgarrada
vela. Era um trabalho muito difícil de levar a cabo, pois os aparelhos desgastados e chamuscados
eram um duro inimigo. Quando conseguiu arriar todas as velas, exceto a do guindaste, voltou a
percorrer o convés em busca da manivela da âncora. Milagrosamente, se conservava em bastante
bom estado. Quando se deu conta de que era muito mais fácil jogar a âncora que levá-la, já era muito
tarde. Apesar de todas as humilhações sofridas no transcurso de sua vida, havia sido educada sob um
estrito conceito da moral e do decoro. Não tinha se importado de se livrar da roupa para que pudesse
salvar o barco, mas era certo que não podia entrar no porto praticamente nua. Devia ter algo nos
camarotes da tripulação. Ainda não havia entrado de vez na baía, mas já estava atrás da primeira
fileira de manguezais, que a ocultavam da mira de qualquer outra embarcação, que pudesse estar
perto naquele momento.
Apesar de sua resolução de vestir algo, Kendall não pôde evitar sentir um calafrio de terror,
quando começou a descer pelas escadas que conduziam às cabines. Suas mãos tremeram ao apoiá-las
na grade. Aquilo era como adentrar no vazio, no desconhecido. Mas, quando a luz do sol entrou pelas
muitas vigias, o medo se desvaneceu. Se houvesse algum ianque a bordo da escuna fantasma, já teria
aparecido.
Queria manter tal ideia em mente, mas as dúvidas a assaltavam quando entrou no estreito corredor
que conduzia aos camarotes dos oficiais, e começou a imaginar uma multidão de cruéis desertores a
encarando, maliciosamente. Impaciente, seguiu até uma porta. Pensou que, se fosse uma covarde,
jamais haveria sido capaz de nadar até o barco. Portanto, como não o era, devia prosseguir.
Quando abriu a porta e descobriu que o camarote escuro estava vazio, exalou um prolongado
suspiro de alívio. Estava certa ao pensar que a tripulação havia desertado. O Pride estava
completamente vazio.
Aquele era o camarote do capitão. O diário de navegação jazia aberto em cima da mesa de
despacho, e sobre uma cadeira, havia uma sobrecasaca de marinheiro, com os galões de capitão.
Kendall percorreu com os dedos a última página do diário, curiosa, e leu as palavras escritas com
traço elegante e florido:
31 de maio de 1862
07.00 horas Fragata no horizonte; não asteia bandeira. Sem dúvida se trata de uma embarcação
da CSS. Somos mais velozes, mas ela é mais forte. Não realizaremos nenhum movimento de ataque.
Esperemos que passe ao longe.
11.00 horas O comandante Briggs pode ler o nome da embarcação. É um navío da CSS chamado
Okeechopee; o marinheiro Turner informa que o Piloto é um corsário com base na Flórida. Não há
nenhum barco dos nossos à vista; manobraremos a estibordo, para evitar os confederados.
13.00 horas Está realizando movimentos para entrar em batalha. Não podemos evitar seus
canhões. Acabo aqui para dirigir o enfrentamento. Deus, nosso Senhor, proteja seus filhos. Embora
estejamos cometendo um fratricídio, ainda que lutemos irmãos contra irmãos, me pergunto se
você, com sua sabedoria divina, nos concederá sua graça.
Perdoe nossos pecados.
Capitão Julian Cuspis Smith USS New England Pride.
Os olhos de Kendall se encheram de lágrimas. De fato, aquela página não parecia a de um diário
de navegação, ao menos a partir do meio dia. Estava escrita com sinceridade. Não se tratava, em
absoluto, de uma simples crônica de acontecimentos. Teria gostado de conhecer o capitão Julian
Cuspis Smith. Parecia um homem incapaz de comandar uma máquina de guerra.
Kendall olhou as páginas anteriores do diário, recitando silenciosamente uma oração, e rogando a
Deus que o capitão houvesse sobrevivido. O New England Pride havia sido posto a serviço da
Marinha dos Estados Unidos em junho de 1860, após ter estreado em Boston, no ano anterior. Havia
participado no bloqueio de Charleston, e ultimamente havia recebido ordens de se unir a uma patrulha
que operava nas águas de Mobile.
Nada importante, pensou Kendall com tristeza. Apesar disso, decidiu conservar o diário para
entregá-lo a Harry.
Após recolher a sobrecasaca azul do capitão e o diário, Kendall saiu do camarote. Vestia a
sobrecasaca, enquanto subia até o convés. Mordeu o lábio inferior, desolada. Não podia pensar em
outra coisa que não fosse na tragédia da guerra. Chegou acima com o coração encolhido. Desejava
não haver lido aquele diário, não haver conhecido Travis, pois a guerra devia ser muito mais terrível
se odiasse o inimigo sem questionar nada.
―Bem, bem, bem. O que temos aqui?
Kendall ficou petrificada, com a vista fixa no timão. Havia um homem de pé junto a ele. Vestia
uma jaqueta curta de cavaleiro, de uma cor indeterminada... porque estava suja. As calças eram azuis,
mas isso nada significava, já que havia rebeldes que usavam calças azuis sob as jaquetas cinza e bege.
De mediana estatura e rechonchudo, tinha o cabelo escuro, a barba descuidada, e salpicada de restos
de tabaco de mascar. Seu olhar era malévolo.
―Olha o que temos aqui! ― murmurou.
Kendall apertou o diário contra o peito, buscando a pouca proteção que lhe podia oferecer.
―Quem é você? ― Espetou, tentando se mostrar valente. — Como subiu neste barco?
Se deteve, evidentemente surpreendido por uma pergunta tão irada. Arqueou suas sobrancelhas e
soltou uma risada.
―A pequena rebelde busca luta, não é? Está bem, carinho, gosto das mulheres com caráter.
Kendall, fazendo caso omisso de sua insinuação, o olhou fixamente, pensando em uma forma
rápida de sair vitoriosa da situação.
―Então você é um ianque? ― Perguntou apesar da evidência de seu acento e sua indumentária.
―Rebelde... ianque, qual é a diferença? No exército não há lugar para o velho Zeb.
―É um desertor.
―Não, carinho. Tão somente um homem astuto. ― Percorreu com o olhar o corpo de Kendall. ―
Vou ficar com este barco e sair voando daqui, daminha. E sem dúvida será mais agradável se a levar
comigo, carinho. Sim, muito mais agradável.
Deu um passo até ela, e então, Kendall viu que levava um par de pistolas de alto calibre, cruzadas
na cintura. Portava também um correia de couro cruzada no peito, que tinha uma mortífera faca
Bowie. Quanto mais se aproximava, mais amarelos se viam seus dentes e mais repugnante era seu
odor.
―Este é meu barco ― sentenciou, resoluta, com sangue frio. ― E você não o levará a nenhum
lado.
―Bem! Senhorita! O velho Zeb passará muito bem com você! Agora, solte esse livro e deixe que
o velho Zeb a abrace.
Se Kendall retrocedesse, cairia pela escada dos camarotes. Se ele pusesse as mãos nela,
desmaiaria de medo. Mas ele tinha três armas, enquanto que ela não tinha mais que um livro.
Quando o homem arrancou das mãos dela o diário, a sobrecasaca que a cobria caiu ao chão, e
assim, ficou vestida unicamente com a empapada roupa interior, que pouco escondia da imaginação
dele.
―Oh, Senhor, Senhor! ― murmurou ele.
Sem pensar duas vezes, Kendall se jogou contra ele. A princípio, teve que enfrentar a náusea
inevitável provocada pelo cheiro dele e pela obscenidade com que a tocava. Devia pensar, tinha que
fazer algo... Ao sentir o roçar daquela barba tão áspera contra a pele de seu pescoço e aqueles ávidos
lábios que davam beijos babados por todo lado, se viu obrigada a tocá-lo, forçando-se a não lhe dar
um soco aleatório.
Deslizou as mãos pelas costas de seu agressor até apalpar a correia de couro, com o cabo da faca
Bowie. Quando sentiu o punhal entre suas mãos não pensou mais e se moveu com rapidez,
concentrando todas as suas forças em cravá-lo nas costas do homem.
Seu inimigo deu um bramido de dor e surpresa. Afastou Kendall de si com brutalidade para levar,
desesperado, as mãos nas costas. Tinha a cara cheia de manchas encarnadas, as, feições
descompostas e furiosas.
―Puta! Puta sulista!
Enquanto isso, Kendall, que havia caído ao chão, se levantou rapidamente e retrocedeu nervosa ao
ver que ele se aproximava de novo a grandes passadas.
Quando sua mão gorda, cheia de calo, a alcançou, ela gritou. Ele a agarrou pela cinta da camiseta e
a abriu de todo.
Kendall havia falhado em seu ataque. E aquele monstro imundo a ia fazer desejar estar morta.
Voltou a gritar de raiva e desespero, quando as mãos dele se puseram a arranhar a pele nua de seus
seios.
Certamente não chegou a tocá-la. Ele se deteve de repente, e ficou rígido, arregalou os olhos e sua
boca formou um «o» de incredulidade. Permaneceu daquele modo, como uma estátua, durante uns
segundos, para cair em seguida como um saco, aos pés de Kendall, que o olhou atônita, transtornada.
Então viu, que junto à que ela usara, o homem tinha outra faca cravada na costas.
A comoção se apoderou de Kendall lentamente, seu corpo e seu cérebro se mostravam incapazes
de reagir normalmente. Examinou o convés.
Raposa Vermelha se balançava sobre a borda do barco, silencioso e molhado. Sem ao menos olhar
a Kendall, saltou ao convés e se aproximou do homem que jazia sem vida no chão. Tirou sua faca das
costas ensanguentadas, para limpá-la nas mangas da jaqueta curta que o homem usava. O mesmo fez
com o faca Bowie, e as guardou na baínha que levava atada na perna.
Tão pasma estava Kendall com a repentina aparição do chefe seminola, que nem se lembrou de
voltar a se cobrir.
De pé diante dela, Raposa Vermelha lhe dirigiu um olhar de soslaio, antes de andar
silenciosamente, para recolher a jaqueta de marinheiro e colocá-la nos ombros de Kendall. Isso
devolveu-a ao mundo dos vivos. Balançou, tremendo, enquanto as lágrimas rolavam por suas faces.
―Raposa Vermelha ― bendito seja... como... de onde veio?
A abraçou um instante para soltá-la em seguida e se ajoelhar, dobrar os braços do cadáver e
arrastá-lo até a borda, ficar em pé e jogar o corpo pela borda. Ficou olhando como a água formava um
rodamoinho e aceitava o corpo como, num sacrifício.
Quando o cadáver afundou, já se convertera em manjar para os peixes, ― Raposa Vermelha se
voltou para Kendall.
―Estava rondando aqui por perto ― respondeu simplesmente. ― A vi nadar até o barco e depois,
o fez virar. Cheguei na praia por terra, por isso demorei tanto. Observei como esse lixo branco tirava
uma canoa de entre as árvores e se aproximava. Daí, vim nadando.
Kendall se surprendeu e se comoveu ao saber que Raposa Vermelha a vigiava de longe.
―Obrigada ― disse com serenidade.
―Agiu bem ― prosseguiu, ignorando suas palavras. ― O feriu profundamente, mas não de morte.
Ainda falta muito que aprender, Kendall.
Ela assentiu com a cabeça.
―Me ensinará Raposa Vermelha ?
Encolheu os ombros.
―Com o tempo. Não deveria ter subido a bordo do barco, Kendall.
Ela vacilou um momento e baixou a vista.
―Mas eu... nós... agora é nosso, Raposa Vermelha. Está muito maltratado, mas pode voltar a
navegar.
Raposa Vermelha levantou a sombrancelha com ironia.
―É nosso? Para quê?
―Não sei... mas é nosso ― respondeu Kendall, titubeando. E logo tomou uma decisão. A ideia
que até então não havia sido mais que uma nuvem em sua cabeça começou a se formar. ― O barco é
meu ― afirmou. ― Eu o encontrei e salvei de ir a pique. Se quiser, será nosso, mas sem dúvida
alguma é meu.
Raposa Vermelha emitiu um grunhido de enfado e impaciência.
―Repetirei a pergunta, para quê?
―Para lutar ― sussurrou Kendall.
Raposa Vermelha levantou os braços exasperado e começou a passear acima e abaixo. Por fim se
deteve, e apoiou as mãos na grua da âncora.
Kendall começou a correr pela coberta atrás dele.
―Raposa Vermelha , escute...
―Não.
―Poderíamos fazer algo, poderíamos fixar um objetivo!
Ele se voltou para olhá-la no rosto com olhos brilhantes.
―Mulher louca! Tento protegê-la, e você, ao que parece, somente deseja se arriscar e morrer.
―Raposa Vermelha, não suporto a espera.
―Falcão da Noite se enfureceria.
―Ao diabo com Falcão da Noite! ― exclamou Kendall, surprendendo a si mesma por haver se
expressado daquele modo, mas decidida a que o índio não percebesse sua indecisão. ― Raposa
Vermelha, Brent vem muito pouco. E logo em seguida parte de novo. O amo, Raposa Vermelha,
apesar dele poder me esquecer muito facilmente, quando entrega todo seu coração à guerra. Ele
arrisca sua vida diariamente, que afinal é o que se espera de um oficial confederado. Eu não sou uma
propriedade, Raposa Vermelha, não sou uma escrava. Minha vida me pertence, do mesmo modo que a
sua e a dele. Por favor, Raposa Vermelha, por favor, escute. Poderíamos fazer coisas estupendas
arriscando muito pouco, como por exemplo navegarmos de noite pela praia, em busca dos barcos
ianques menores que fazem os bloqueios. Poderíamos ...
―Sem tripulação? ― perguntou Raposa Vermelha, cético.
―Arrumaríamos uma tripulação.
Raposa Vermelha se mofou dela.
―Onde, Kendall? Nos povoados não há mais que crianças e velhos.
―Que esses homens sejam mais velhos não significa que não sirvam para nada. E você conta com
seus guerreiros, Raposa Vermelha.
―Os brancos não lutam com os índios. Se aliam conosco, isso sim, mas não combatem ao nosso
lado. Além disso, não importa. O que está propondo é...― pela primeira vez Kendall notou que
Raposa Vermelha ficava sem encontrar uma palavra em inglês ― ridículo! ― concluiu por fim.
Kendall lhe deu as costas.
―Repito, Raposa Vermelha, que este barco é meu. E estou disposta a navegar nele... com ou sem a
sua ajuda.
Ele deu um soco, e Kendall supôs que estava maldizendo.
Falava em sua própria língua, com tal rapidez e veemência que era impossível entender o que
dizia. Ao final da saraivada de palavras e ao ouvir de novo o nome de Brent, Kendall se voltou com
olhos súplices.
―Raposa Vermelha, Brent nunca saberá! Demorará meses para regressar! Podemos entrar e sair
dos portos e roubar para a Confederação todas as munições e barcos que possamos confiscar. Raposa
Vermelha, eu sei um pouco como são esses canhões. Estive...― vacilou um instante, e o brilho de seu
olhar se nublou, ― estive em Forte Taylor tempo suficiente para aprender algo de artilharia ― disse,
assinalando a linha de artilharia disposta ao longo do convés da escuna. ― E se estivermos com
sorte, pode ser que os pavios estejam ainda em bom estado. Oh, quer me escutar Raposa Vermelha?
Acaso não entende? Pintaremos o barco de novo e o batizaremos como o Rebel's Pride. Não
necessitamos mais que uma tripulação de vinte homens... dez brancos e dez índios! E...
―Uma mulher? ― perguntou Raposa Vermelha , irritado.
―Sim ― respondeu Kendall sem perder a calma. ― Sou bom marinheiro, Raposa Vermelha.
Prova disso é que cheguei aqui a bordo de um bote de remos! Agiremos com prudência. Antes de
alçar voo, experimentaremos a força de nossas asas! Raposa Vermelha , sabe que há casos de
mulheres espiãs em qualquer dos dois lados. Eu sou confederada, Raposa Vermelha. Devo participar
desta guerra!
―Você quer lutar na guerra ou buscar vingança?
―Importa isso?
―Já sabe o que pode acontecer se a pegarem.
O olhou nos olhos, sem pestanejar.
―Sim, eu sei.
―Não posso fazer isso ao único homem branco a quem posso considerar meu verdadeiro amigo
― sentenciou o chefe seminola.
―Então o farei sem você ― afirmou Kendall, encerrando assim a questão.
Raposa Vermelha suspirou, aborrecido. Nunca haviam falado da morte de Apolka, e Kendall tinha
certeza de que, naquele instante, estava pensando em sua esposa e filho, mortos.
―Os Armstrong a impedirão. Jamais aprovarão um plano tão descabelado.
Kendall baixou a cabeça para ocultar seu sorriso, havia conseguido persuadir Raposa Vermelha .
Se com seu coração e sua vontade de aço havia conseguido convencer o índio, seria capaz de
convencer a qualquer um.
O New England Pride estava a um passo de se converter no Rebel's Pride. Pintariam a escuna de
cinza e navegariam para a Confederação. Brent não gostaria daquilo se soubesse, mas Kendall
esperava que nunca chegasse a saber. Não podia se permitir pensar nele agora, assim como não podia
prantear o fato de que havia apunhalado um homem, a quem Raposa Vermelha havia acabado com
tanto sangue frio, e sobretudo, não podia questionar se desejava se encontrar novamente com John
Moore.
Nem Raposa Vermelha nem Brent compreenderiam, jamais, que precisava liderar sua própria
batalha contra o homem que havia feito de sua vida um inferno, inclusive antes de que estourasse a
guerra.
Já fazia tanto tempo que Brent havia ido... Às vezes, durante os dias intermináveis e as noites
insones, era difícil crer que algum dia, ele a houvesse tido entre seus braços.
O amor era algo inatingível, e naquela situação caótica que viviam, de carnificina entre irmãos, se
perguntava se algum dia poderia alcançá-lo e segurá-lo com força...
Capítulo 15
Setembro de 1862
O Jenny―Lyn saiu com dificuldade de Norfolk e prosseguiu logo para o rio James acima, em
direção ao porto de Richmond. Haviam cumprido cinco vezes essa missão. Certamente, apesar dos
danos ocasionados e o mal estado em que se encontrava, ainda podia navegar e levar sua preciosa
carga ao porto.
Brent, ficou feliz pela recepção que lhe dispensaram os oficiais da armada, se alegrou mais que
nunca de pisar em terra firme. Depois de ser felicitado com entusiasmo, foi informado de que o
presidente Davis e Mallory, secretário da marinha, queriam vê-lo.
Deixou Charlie na supervisão da obra de conserto do navio e deixou Chris no comando das
operações de descarga e distribuição da mercadoria. Alugou uma carruagem e percorreu as ruas da
capital da Confederação. Comparada com Londres, Richmond estava destroçada. Na Inglaterra não
faltava seda e cetim. Os bairros e comércio estavam abarrotados de mulheres sorridentes, vestidas na
última moda, seguindo os ditames da França, frívolas, que ignoravam a pobreza diante de seus
narizes... e aquela guerra de loucos que acontecia do outro lado do oceano.
Uma guerra de loucos...
Richmond era patética. As ruas estavam quase vazias, e as poucas pessoas que se via pareciam
pálidas, tensas e fracas.
Ao chegar na residência do presidente, foi recebido por um negro impecavelmente uniformizado,
que o acompanhou a um salão informal.
Brent devolveu o firme aperto de mãos que lhe dedicou Davis, sem deixar de pensar no muito que
havia envelhecido o presidente, desde a última vez que o vira, um ano atrás. Mallory tão pouco
oferecia um aspecto muito saudável, para dizer a verdade.
O mordomo negro lhe serviu conhaque e estendeu um charuto a Brent, que o aceitou, disposto a
saborear o tabaco de excelente qualidade. Na Inglaterra não sabiam nem enrolar um cigarro.
―Ouvi que lhe dispararam quando navegava até aqui ― disse Jefferson Davis, muito sério.
―Sim, senhor. Duas fragatas nos deram um bom trabalho, quando viram nossas cores.
―Mas conseguiu sair ileso. ― Davis sacudiu a cabeça, calva. ―Capitão, você é uma verdadeira
exceção. Um homem típico de nosso galante Sul ― acrescentou em voz baixa, mais para si, que com
o propósito de que Brent o ouvisse. Então esboçou um sorriso. ― Você já deve saber, capitão
McCain ― disse Davis, tomando assento em frente a Brent num pequeno canapé, ― que hoje
mostramos um aspecto um pouco informal. ― Titubeou, com expressão preocupada, ― A luta, nos
lugares onde nos encontramos neste momento, tem sido muito dura, e nós temos sido obrigados a
enviar ao sul, por causa da incerteza, muitas de nossas mulheres, incluindo minha esposa, Varina.
Brent assentiu com a cabeça, sem deixar de observar o rosto do presidente. De fato, Jeff Davis
estar ali sentado, encabeçando a Confederação, era uma ironia. No princípio, se havia declarado
contra a secessão... até que Lincoln se opôs aos estados e territórios escravocratas. Davis havia sido
membro do Senado dos Estados Unidos, e depois secretário de Guerra, sob o comando do presidente
Franklin Pierce, depois do que recuperou seu assento como senador. Era um homem solene, alto,
magro e direto, que adoecia com frequência. Vivia se enfrentando com seus generais, por causa de
seu conhecido mau gênio. A única exceção era Robert E. Lee, antigo companheiro de West Point.
―Me dei conta de que as ruas estão quase desertas, senhor ― observou Brent.
―Não é que realmente acredito que nossa capital corra um grande perigo ― assegurou com
aversão Davis. ― Não, enquanto contamos com homens como Jackson e Lee, no comando do exército
ao norte da Virginia! ― Não afastava a vista de seu convidado, e seus olhos se abriam cada vez mais.
― Bem, vamos direto ao assunto. Tem você parentes num dos regimentos do general Lee, não é certo,
filho?
―Meu pai e meu irmão, senhor, da cavalaria da Flórida. Estive muito tempo ausente. Estou
ansioso por saber algo deles, assim como dos progressos da guerra, especialmente na zona da
Flórida. Temo que não estou muito a par da situação.
Davis se levantou, inquieto, para dirigir-se à lareira apagada. A menção da Flórida o havia
desassossegado. Levantou o copo de conhaque em direção a Brent.
―Suponho que seu barco estará parado por umas duas semanas. Se lhe apetece, pode aproveitar
esse tempo livre para se unir ao exército. Encontre seu irmão e seu pai, e passe com eles alguns dias.
E quanto à guerra... considero que nunca estivemos perto da vitória. Certamente, se pudéssemos
conseguir que os suprimentos continuassem chegando...
O presidente deixou aquelas palavras suspensas. Depois, sorriu. ― Se contamos com você,
capitão, venceremos. Está se convertendo em algo habitual, que os valentes que tripulam os
torpedeiros da União o façam únicamente pelo lucro pessoa! Ah, bem...
―E o que está havendo na Flórida, senhor? ― insistiu Brent, muito tranquilo.
Jefferson Davis suspirou.
―Não temos conseguido tomar nenhum de nossos fortes dos federais, capitão McCain. Por outro
lado, tão pouco eles têm conseguido penetrar em terra firme. Seguem em St.Augustine e Fernandina, e
quanto a Jacksonville, a abandonaram e voltaram a tomar. Se lhe interessa a situação em certa baía,
senhor, muito mais ao sul, ali onde os colonos se mantém fiéis a nossa causa, lhe asseguro que tudo
vai bem ― Se interrompeu um instante. ― A senhora Moore está a salvo.
Brent se ruborizou. Acaso todo mundo estava ciente de sua relação com Kendall?
O secretário Mallory, que havia permanecido em silêncio durante toda a conversa, falou por fim, e
o fez com muito tato.
―Temos decidido interessar-nos, capitão McCain, por tudo aquilo relacionado aos homens que
servem a Confederação, sobretudo quando se veem obrigados a emprender missões perigosas, por
nossa causa.
―Obrigado ― disse Brent, violento.
Talvez não fosse negativo que o mundo inteiro estivesse a par de seus assuntos. Durante a
travessia, esteve a ponto de ficar doente de preocupação por Kendall. Havia sonhado com ela muitas
vezes, com uma intensidade tal, que despertava agitado, gemendo. E com demasiada frequência seus
sonhos se haviam convertido em verdadeiros pesadelos. Em todos eles, ele regressava para receber a
notícia de que Kendall havia sido feita prisioneira e que estava presa a bordo de uma corveta da
União. John Moore aparecia sempre em seus sonhos, burlando—se dele. «Minha esposa, rebelde!
Minha esposa. A mulher a quem ama está casada com um ianque e você a perdeu.»
Apertou a mandíbula com força e engoliu. Deus, quanto ansiava regressar à Flórida! Desejava
esquecer aquela maldita guerra e voltar para ter certeza que Kendall o estava esperando, formosa,
sorridente e livre.
Certamente não existia nem a mínima possibilidade de regressar, e seria impossível o fazer até que
seu barco estivesse reparado. A Confederação não podia assumir o risco de lhe arrumar outra
embarcação. Portanto, tinham que esperar que o Jenny―Lyn estivesse em condições. E então passaria
outra noite horrível antes de partir. Sentiu que o desespero se apoderava dele e tentou lutar contra
isso. A guerra acabaria algum dia? Voltaria a vida a recuperar sua normalidade?
Não queria pensar nas repostas. Richmond era já uma resposta em si mesma. Nada voltaria a ser
igual.
―Bem... ― disse Davis após aclarar a garganta. ― Quando seu barco estiver consertado, capitão,
partirá para as Bahamas em busca de um carregamento de armas. Daremos todos os detalhes em seu
momento. Depois terá que conduzir o carregamento pelo Mississipi.
―O Mississipi? ― perguntou Brent ― Acaso Nova Orleans já não está ocupada por...?
―Os ianques, sim. Pretendem nos partir pela metade, capitão, tomando o rio, e não podemos
permiti-lo. Deve você iludi-los e transportar as munições a Vicksburg. Temo que essa cidade será o
próximo objetivo dos federais. ― Davis passou por alto que estava pedindo a Brent o impossível. ―
Até que chegue o momento de partir, capitão, por que você não vai em busca de sua família? Lhe
daremos uma montaria decente e um mapa com as rotas que consideramos seguras. Lee iniciou uma
ofensiva. Enviou Jackson para tomar Harpers Ferry. Depois se reunirão em Maryland. Lhe
agradecemos de todo coração, capitão. Não é necessário que mencione o alívio que a morfina e o
láudano, que você trouxe, proporcionarão aos homens feridos.
Brent pensou que realmente não tinha por que mencioná-lo. Permaneceu em seu lugar, estreitou a
mão do presidente e escutou com atenção o que o secretário Mallory tinha que dizer a ele.
Seus homens se alegraram ao saber que desfrutariam de duas semanas livres em Richmond. Os
engenheiros navais asseguraram que o Jenny―Lyn estaria como novo no prazo de quatorze dias.
Brent, que sabia que, tanto as tabernas como os prostíbulos da capital da Confederação estariam
muito animados à noite, e que sua tripulação merecia um bom descanso, estava ansioso por partir.
Fazia mais de um ano que não via seu pai e irmão, e com a oportunidade que tinha, não queria, em
absoluto, perder tempo com diversões.
Seguir ao exército de Virginia não resultava tarefa fácil, nem sequer sabendo dos movimentos que
realizavam as tropas. Viajando pela Virginia, cheia de beleza nos finais do verão, compreendeu
perfeitamente por que aos generais federais lhes custava tanto seguir a pista de Lee.
O entristeceu pensar no sangue que se havia derramado ali. Os cantos dos pássaros animavam os
caminhos cheios de vegetação exuberante. As árvores começavam a adquirir os primeiros tons das
cores típicas do outono, tudo irradiava beleza... e vida.
Mas Brent não podia se permitir respirar. Virginia se havia convertido num campo de batalha,
podia encontrar tropas da União ao sair de Richmond, por isso se manteve alerta durante todo o
trajeto ao redor de Washington, e depois até o oeste.
Viajou durante três dias totalmente só, evitando granjas e cidades. As noites passadas com o céu
como único teto, foram de paz e tranquilidade. Viver sob o amparo da natureza o fazia evocar suas
temporadas nos manguezais, junto com Raposa Vermelha. Suspirava pelo estado virgem e selvagem
da Virginia, que tanto lhe lembrava seu próprio lar.
Então sentia vontade de voltar para casa, mas logo lembrava que ela havia desaparecido.
Certamente na maioria das noites transcorridas sob as estrelas, com a sela fazendo as vezes de
travesseiro, pouco lhe importava aquilo. Poderia compartilhar a beleza do céu noturno com uma
determinada mulher, e onde quer que ela estivesse, ali seria o seu lar.
No quarto dia, encontrou com um batedor de reconhecimento que, por sorte, era confederado.
Quase se chocaram num pequeno bosque, quando teriam acabado disparando um no outro, pela
velocidade com que pegaram as armas. Brent soube que Jackson Muro de Pedra estava no comando
de seis divisões do exército da Virginia, de Lee, e que havia conquistado Harpers Ferry. Lee
aguardava que as divisões de Jackson se incorporassem de novo ao exército principal na cidade de
Sharpsburg, onde deviam chegar seguindo o percurso do riacho chamado Antietam Creek. Se
mantivesse a mesma velocidade, Brent terminaria, sem dúvida, por encontrar o exército a qualquer
momento.
―Eu o aviso, capitão ― disse o esquálido batedor, ― que Lee já se encontrou com as forças de
McClellan. Mas ainda há uma grande batalha por liderar. Não são bons tempos esses, para realizar
visitas. Vocês, colegas do mar, estão pouco acostumados a combater terra adentro, me engano?
Brent encolheu os ombros.
―Se a cavalaria da Flórida entra em batalha, me unirei a ela na luta.
O batedor olhou Brent com os olhos arregalados e sacudiu a cabeça.
―Isso é mais, capitão. Tem você parentes na cavalaria?
―Sim, sob as ordens de Smart ― respondeu Brent. ― Meu pai e meu irmão.
―A cavalaria de Stuart cobre a parte que vai desde Longstreet a South Mountain. Quase todos os
generais mais importantes já estão reunidos. Pode encontrar a cavalaria de Jeb em Sharpsburg, bom,
se for isso o que deseja.
―Sim.
―É tudo o que sei. Bem, Lee estabeleceu o quartel general próximo a rota de Shepherdstown, à
direita de Sharpsburg. Não me importa dizer que esperava alguma mostra de simpatia de Maryland,
boas-vindas, algo agradável. Mas não foi assim. Bem, não quero retê-lo por mais tempo, pois
suponho que você tenha muita vontade de se reunir com seus parentes, enquanto estão vivos. Chegará
aos quarteis generais de Lee em duas horas.
O batedor o saudou com o chapéu e Brent prosseguiu seu caminho. Ao final de duas horas já se
encontrava em frente aos três homens que faziam parte do coração das forças confederadas: Robert E.
Lee, Thomas Jonathan Jackson e James Ewell Brown Stuart. Lee se mostrou surpreso e divertido,
enquanto recebia em seu quartel general um capitão da marinha, mas a alegria durou pouco. A
situação de seus exércitos era demasiado tensa para frivolidades. Brent, que nunca havia encontrado
Lee, percebeu que o que se dizia desse homem tão brilhante, tranquilo e digno, era a pura verdade.
Fosse qual fosse a situação, Lee se comportava como um cavalheiro. Dissimulou de imediato seu
assombro e diversão, e o apresentou a Jackson Muro de Pedra e Jeb Stuart.
―Nós estamos em plena batalha, capitão McCain. A primeira troca de disparos terá lugar nesta
mesma tarde. Não estamos no mar, senhor, não está você sob minhas ordens e, portanto, o que posso
fazer é alertá-lo que a luta será dura. Os federais nos superam em número, como é habitual.
―Sim, senhor, o compreendo ― respondeu Brent com calma e firmeza. ― O que sucede é que o
senhor comanda uma companhia da cavalaria da Flórida, em que estão homens com quem cresci, meu
pai, meu irmão e uma dezena mais de cavalheiros de Jacksonville. Cavalguei junto a eles em tempos
de paz e posso voltar a fazê-lo na guerra. Sou um tirador certeiro, senhor. Não penso permanecer à
margem.
―Jeb? ― Lee, com planos estratégicos na mente, dirigiu o olhar a Stuart. ― A cavalaria é sua.
Sabe algo da família deste jovem?
―É claro que sei ― respondeu Stuart. ― O capitão Justin McCain e o tenente Stirling McCain
ficam acampados a meio quilômetro daqui, nas tendas mais afastadas.
Brent o saudou e se voltou com a intenção de sair da tenda dos oficiais de comando. Lee o chamou
de novo. Seus olhos azuis brilharam um instante.
―Não deixe que o matem, jovem. Tenho sabido que você é de um valor insubstituível para nossa
marinha.
Antes de localizar os homens do Segundo Comando da Cavalaria da Flórida, divisou os cavalos
que, com o anoitecer, estavam já atados. O aspecto dos animais era estarrecedor, tão esquálidos e
maltratados estavam, que custava crer que fossem capazes de levar no lombo, com certo orgulho, a
um cavaleiro.
Ao se aproximar do grupo de homens reunidos ao redor de uma fogueira, sob o céu escuro que
ameaçava chuva, seu coração se encolheu. Os soldados pareciam ainda mais castigados que os
cavalos. Alguns nem sequer tinham botas, protegiam seus pés com pedaços de qualquer material. Os
uniformes estavam em farrapos de tão desgastados, e os homens, igual ao batedor do exército com
quem se havia encontrado no caminho, cansados.
Antes de chegar à fogueira, um desses homens se pôs em pé.
―Brent! Por Deus, Stirling! É Brent!
O esquálido soldado começou a correr até ele e quase caiu, extenuado após o tremendo esforço.
Brent se aferrou ao homem tão feliz, fazendo caso omisso das batidas no peito. Por fim o homem se
separou, e Brent olhou fixamente seus profundos olhos cinzas, assombrosamente semelhantes aos
dele.
―Papá! Diabos, que alegria encontrá-lo! Temia...
―Temia que houvesse recebido uma bala e que não houvesse sabido? ― perguntou Justin McCain
com ironia. ― Ainda não, filho. Pode ser que meus velhos ossos estejam um pouco quebradiços e que
tenha alguns cabelos brancos na cabeça, mas este soldado segue vivo!
―Brent!
O interpelado se afastou de seu pai para abraçar seu irmão, outro espantalho magro. Se separou
um pouco de Stirling e sorriu um pouco incômodo.
―Não considerem uma ofensa, mas os dois têm um aspecto infernal.
Stirling encolheu os ombros.
―Esse é um dos motivos pelo qual nos encaminhamos a Maryland. Virginia está arruinada, Brent.
Lee não pode nos dar roupa e nem comida, já que o território foi selvagemente arrasado, saqueado e
convertido em pasto das chamas. Esperamos poder interceptar alguma coisa dos ianques.
―Você em troca, tem bom aspecto, filho ― disse Justin com orgulho.
Brent fez uma careta.
―Acabo de chegar de Londres.
―Esteve em casa? ― perguntou Justin, ansioso. ― Não vou ali desde a primavera passada.
Recebi cartas de sua irmã, mas não deixo de me preocupar por ela. Explica que as coisas vão bem,
que os ianques entram e saem, mas que não molestam as pessoas da cidade.
Brent sentiu que a angústia lhe oprimia a garganta. Era evidente que Jennifer não lhes havia
contado que South Seas se havia convertido numa recordação da glória do passado.
―Quando vi Jennifer estava bem, papá, muito bonita.
Não encontrava nenhuma razão convincente para contar a seu pai e seu irmão o ocorrido com South
Seas, e menos ainda, estando a ponto de entrar em batalha, ―O que diabos faz aqui, irmãozinho? ―
perguntou Stirling com um amplo sorriso. ― Não há muito movimento nos mares, é? E em Londres?
Não rompe todos os esquemas, papá? Estamos partindo as costas aqui, enquanto Brent está em festa,
em Londres. Deveríamos nos ter alistado na marinha, papá, em lugar da cavalaria!
Stirling soltou uma gargalhada e deu um tapinha nas costas de Brent. ― Bem, irmão, se está
buscando um pouco de ação, espera amanhã. McClellan preparou todo o seu maldito exército para se
enfrentar conosco.
―Segundo me disseram ― interrompeu Justin, mostrando tão bom humor como seu filho mais
velho, ― é o Brent quem está enfrentando algo de ação nos mares. Mas é certo, o que faz aqui?
Brent encolheu os ombros.
―O Jenny―Lyn foi bombardeado e está sendo reparado em Richmond. Disponho de duas
semanas. Foi o mesmo Jeff Davis quem me sugeriu que viesse vê-los.
―É muito amável de sua parte ― aprovou Stirling. ― Bem, Brent, venha saudar os rapazes. Já
conhece Cliff Deeferfirl, Craig Hampton e alguns dos outros. O velho Reilly morreu em Manassas,
mas ainda somos uma tropa endiabradamente boa.
Abraçados os três McCain, com Justin no meio, se uniram ao resto dos homens sentados junto à
fogueira.
As chamas foram morrendo, todo o acampamento, exceto os soldados de guarda, já se haviam
deitado, dispostos a passar mais uma noite cheia de incerteza.
Stirling McCain, com a vista cravada na entrada de sua tenda, deu uma cotovelada em seu irmão.
―Brent.
―Sim? ― replicou em voz baixa para não romper o silêncio da noite.
―O que há de certo no rumor que corre de que raptou a mulher de um ianque?
Brent ficou rígido e se pôs em guarda.
―O rumor não é infundado, Stirling, é mais ou menos certo. Não fui eu quem a raptou, mas sim
Raposa Vermelha. Depois o ianque se apresentou para resgatá-la, e ela fugiu dele para voltar para
mim. Stirling suspirou.
―Tantos anos sem que nenhuma moça significasse nada para você! E agora se liga a uma mulher
casada.
―Seu marido é um bruto, Stirling, ― Brent guardou silêncio uns instantes. ― Tê-la ao meu lado
representa muito para mim, irmão. Me casarei com ela quando conseguir o divórcio. ―Brent vacilou
incômodo, —Se você ouviu falar, Stirling, suponho que papá estará também sabendo.
―Sim.
―Stirling, não há nada desonroso neste assunto. A amo, e não me importa que falem de nós, nem
aqui nem no céu. Tão somente desejo que o orgulho de papá não seja ofendido.
De repente uma voz os interrompeu na escuridão.
―O orgulho de seu pai não está ferido, filho. Confío em seu sentido de honra. Deve se limitar a
fazer o mais conveniente para essa moça, ouviu?
Brent sorriu na escuridão da noite.
―Sim, papá, o ouvi.
―E agora, vocês dois, façam o favor de se calar e deixar dormir a este velho. Ou juro que são
piores que um montão de senhoritas reunidas para merendar. ― Após titubear, acrescentou
solenemente: ― Amanhã não assistiremos precisamente a uma merenda, filhos. Durmam um pouco.
O dia 17 de setembro amanheceu cinza e chuvoso. A cavalaria de Jeb Stuart recebeu ordens de
cobrir o flanco de Jackson e os dois quilômetros que separavam a cidade de Potomac. Os artilheiros
a cavalo deviam se manter em formação e atirar para criar a ilusão de que a linha estava solidamente
constituída, por posições de disparo móveis.
Ao redor das sete, a batalha estava em pleno apogeu. Os cadáveres jaziam por todo lado. A luta
ocorreu numa plantação de espigas douradas, prontas para a colheita, mas já não ficava nem uma
planta em pé. A artilharia de ambos os lados havia assolado a plantação de tal maneira, que os talos
de milho não sobressaíam nem um palmo do chão.
Tão somente se via um mar de corpos imóveis, um acúmulo de cadáveres vestidos de azul e cinza.
A cavalaria impediu o general da União Doubleday de implantar um corredor de Hagerstown,
arrasando os campos a seu passo. Jackson Muro de Pedra manteve tenazmente sua formação, apesar
de que as baixas entre aqueles que continuaram combatendo foi devastadora. Brent ajudou a seu pai e
seu irmão a transportar um canhão Parrott. Precisaram de seis homens para movê-lo e carregá-lo, e se
um deles era chamado para incorporar-se ao avanço, outro homem ocupava seu posto. Foram
intercambiando posições continuamente, sob as ordens de Justin.
Apesar de que a batalha que acontecia era cada vez mais feroz, Stirling tentou cantar e fazer piada,
enquanto tantos corpos inertes se amontoavam na vasta extensão do milharal. Azul e cinza. Azul e
cinza.
Brent tinha as mãos enegrecidas pela pólvora e a musculatura tensa. Esse dia aprendeu que o
exército da Virginia jamais se dava por vencido. Constituído por soldados tão combativos como seus
generais, sobrevivia graças à tenacidade e ousadia de seus homens, que, embora o inimigo os
superasse em unidades, continuavam lutando movidos por sua força de vontade.
Era difícil discernir quem estava ganhando a batalha. Ao redor do meio-dia, a luta intensa se
deslocou do milharal até a pequena igreja de Dunkard, e os informes contabilizavam uns seis mil
mortos no lado dos confederados e uns sete mil no dos unionistas, uma estatística desesperadora.
Mas eram algo mais que estatísticas. Eram montes de cadáveres, jogados num arrasado campo de
milho.
―O que estamos fazendo aqui , Brent? ― perguntou Stirling com voz cansada, secando o suor da
testa e sujando sua cara de pólvora.
―Estamos lutando pela Confederação ― replicou Brent com voz monótona.
Stirling começou a rir sem vontade.
―A Confederação, Brent. Iniciamos a guerra movidos sobretudo pelo desejo de preservar o
direito dos estados. De fato, defendíamos a escravidão, mas todos clamávamos os direitos dos
estados. E aqui estou, em Maryland, vendo como os homens caem ao meu lado, enquanto meu lar é
invadido e eu sou incapaz de protegê-lo por estar longe dele.
―Cuidado, Stirling! ― exclamou Brent em tom de urgência, no momento em que uma bala de
canhão passava silvando por cima de suas cabeças e impactava atrás deles.
Brent teve a impressão de que mãos fortes e ardentes o jogavam voando pelos ares, como uma
tocha. Caiu ao chão e permaneceu imóvel uns segundos, tratando de respirar naquela atmosfera úmida
e quente. Começou a se mover e viu que não tinha nada queimado. Havia tanta fumaça no ar que não
podia ver nada. Se ajoelhou e começou a engatinhar às cegas. Os gritos agonizantes dos feridos se
ouvia por toda parte.
―Stirling? Papá?
Encontrou seu irmão quando a fumaça começou a se dissipar. Da boca de Stirling brotava um fio
de sangue. Não foi isso o que aterrorizou Brent, mas sim o ferimento que havia no estômago de seu
irmão, e que ele tentava tapar com as mãos.
―Brent?
―Estou aqui, Stirling. Não tente falar. Vou tirá-lo daqui.
Stirling começou a rir, embora se engasgasse.
―Se lembra das magnólias, Brent? De como invadiam o caminho? Sempre gostei de cavalgar por
esse caminho, correr até divisar South Seas, que assomava entre as árvores... Se lembra, Brent?
―Sim, Stirling, me lembro. Não fale. Vou fazer um curativo provisório.
Quando Brent se levantou para enrolar com força sua jaqueta entorno da cintura, Stirling gritou.
Tinha que tirar seu irmão do campo de batalha, encontrar um cirurgião. Senhor, onde podia encontrar
um cirurgião entre aquele mar de cadáveres vestidos de cinza e azul?
Às suas costas ficavam os West Woods, e mais além dos bosques, a batalha seguia feroz, junto da
igreja de Dunkard. Quem estaria na igreja? Se perguntou. Poderia conseguir ajuda ali?
Arrastou seu irmão para afastá-lo do alcance do fogo da artilharia até uma clareira no bosque.
Stirling abriu os olhos.
―Cuida de South Seas, Brent. E de Patricia e Patrick...
―Cale-se, Stirling ― ordenou Brent, procurando ocultar sua ansiedade. ― Fique quieto e respire
lentamente.
―Camilla!
Brent se voltou ao ouvir a voz vinda de algum lugar muito próximo, usando a palavra que era o
código para pedir socorro médico. Era difícil ver algo com a fumaça que havia no bosque.
―Camilla! ― Exclamou também. Afinal, parecia existir alguma forma de ajuda médica nas
proximidades.
―Já vou... Volte a gritar para que possa localizá-lo ― replicou uma voz tranquila, pausada, cheia
de alentadora autoridade.
Brent se pôs em pé para tratar de distinguir algo através da fumaça e da vegetação. Ficou gelado
ao ver o homem que se aproximava.
Vestia azul, e pelas insígnias douradas que luzia nas mangas, Brent deduziu que se tratava de um
capitão ianque. Tinha o cabelo loiro, muito curto, e grandes e inteligentes olhos castanhos. O homem,
de aproximadamente sua idade, o observou também surpreendido.
Ambos permaneceram se olhando um bom tempo. A vista do capitão ianque se pousou em Stirling.
―Um disparo no abdômen, verdade?
―Acredito que sim ― respondeu Brent.
O capitão da União se ajoelhou junto ao ferido para retirar a bandagem improvisada que Brent
havia colocado.
―Não está tão mal ― murmurou, tirando a jaqueta e a camisa de Stirling.
―Preciso tirá-lo daqui ― disse Brent com um fio de voz. Era evidente que os federais
controlavam a igreja de Dunkard e os bosques nas colinas.
O capitão ianque se voltou para Brent.
―Não poderá movê-lo sem ajuda. Causaria sua morte.
Brent engoliu, para desfazer o nó que tinha na garganta.
―Não posso abandoná-lo ― sussurrou.
O capitão ianque se levantou, mordendo o lábio inferior.
―Escute, rebelde. O que tem ouvido sobre os cirugiões ianques que matam mais rebelde que
nossa própria artilharia não é correto. Sou médico, senhor, e acredito no “Juramento de Hipócrates”[7]
que formulei, de salvar vidas. E em meu juramento não pronunciei nem uma maldita palavra acerca
de salvar somente as vidas de quem se veste de azul. Deixe-o comigo. É sua única chance. Esta terra
está coberta de morte. Já morreram milhares de homens, e ainda morrerão mais. Não permita que ele
seja mais um.
Stirling gritou de repente, estava agonizando. Brent se ajoelhou a seu lado.
―Stirling, pode me ouvir? Este é o capitão...
―Capitão Durbin, do corpo médico ― disse o ianque, enquanto se ajoelhava junto dele.
―Conheci Durbin em Nova York, antes da guerra ― mentiu Brent. ― Cuidará de você.
―Não... não, não me deixe morrer nas mãos dos ianques...
―Não irá morrer, Stirling. Nunca tive a intenção de me ocupar de South Seas. Deve viver para
fazê-lo você, Stirling! Os ianques são os únicos que dispõem do equipamento adequado, os únicos
que...
Brent notou uma mão no braço e se voltou para o capitão do exército inimigo.
―Ele perdeu a consciência. Não é necessário continuar falando. Talvez morra, mas dou a minha
palavra de que farei tudo que esteja em minhas mãos para salvá-lo. E o melhor que poderia fazer você
é se afastar daqui o quanto antes. O cárcere não é precisamente o melhor lugar do mundo. Díga-me
onde poderei encontrá-lo. Escreverei para explicar como está, quando me for possível.
Brent vacilou um segundo.
―Jennifer McCain, Jacksonville. Se morrer, será nossa irmã quem deve notificar a sua esposa... e
seu filho.
O ianque assentiu com a cabeça.
―Vá rebelde. Siga antes de que me veja submetido a um conselho de guerra por sua culpa.
Brent se levantou e começou a correr pelo bosque.
A batalha prosseguiu pela tarde. O general Hood continuou falando de manter com toda valentia
uma formação na parte inferior de uma das laterais do campo, mas havia demasiados federais. Até
três e quatro corpos, um em cima do outro, se empilhavam a ambos os lados do caminho. Os soldados
o já o chamavam de «caminho sangrento».
Lee tomou a decisão de se instalar no Potomac e dirigir-se ao leste da Virginia e McClellan não
realizou o menor movimento para evitar sua retirada.
A batalha de um só dia de duração, mais sangrenta de toda a guerra civil, havia terminado.
Brent passou a noite ouvindo os lamentos dos feridos e procurando seu pai.
O capitão Justin McCain, do Segundo Exército da Cavalaria da Flórida, contava entre os
desaparecidos.
Ao amanhecer, Brent abandonou o exército de Virginia e seguiu a cavalo até Richmond. Rodeou os
edifícios da capital e se dirigiu até seu barco. Seus homens não estavam a bordo, pois continuavam de
folga. De qualquer forma, Brent não tinha vontade de companhia. Passou os quatro dias seguintes em
completa solidão, deitado em sua cama, com a vista cravada no teto e ouvindo as marteladas dos
carpinteiros que reparavam o navio.
O primeiro a regressar foi Charlie McPherson. Soube do ocorrido com o pai e o irmão do capitão
e respeitou sua intimidade. Mas quando o resto da tripulação voltou, Charlie apareceu na porta de
Brent.
―Não queria incomodá-lo até o momento de partir, capitão, mas temos ouvido estranhos rumores
nas tabernas e considerei que deveria saber.
―Do que se trata, Charlie? ― Perguntou Brent, com desagrado.
―Ao que parece, uma escuna confederada, surgida do nada e comandada por oficiais sem
graduação, se dedica, como nós, a burlar os bloqueios. Os ianques dizem que um índio... e uma
mulher a dirigem. Afundaram quatro corvetas da União, três escunas e duas fragatas. Tudo isso
ocorreu nas águas da parte norte da Flórida. A conhecem como o Rebel's Pride.
Brent, que havia permanecido deitado na cama, colocou os pés no chão como um raio.
―O quê? ― rugiu.
―O rumor parece ser verdadeiro, capitão. Os velhos marinheiros da taberna haviam lido a notícia
nos periódicos ianques, que eles têm um temor reverencial a essa embarcação, e devem estar muito
enraivecidos. Oferecem uma recompensa de mil demônios para quem capturar esse barco. Quase tão
alta como a da nossa!
―Filha da puta! ― gritou Brent. ― Essa pequena idiota! Não posso crer! Não tem nem ideia da
arte da guerra ― De onde diabos terá tirado o barco? E a tripulação? Um índio? Maldito Raposa
Vermelha! Charlie retrocedeu em silêncio, lamentando haver sido o portador de tais notícias. Brent
McCain quando perdia a razão, ficava encolerizado, e o mundo tremia.
O capitão começou a perambular pelo camarote. A frieza de seu olhar cinza era como um fogo
arrasador. Se deteve de repente, atrás de sua mesa.
―Estamos já em condições de navegar?
―Sim, senhor. Toda a tripulação já embarcou. Se supõe que devemos partir ao amanhecer...
Brent deu um decidido passo em direção a Charlie.
―Zarparemos agora mesmo. O anoitecer é um bom momento para nos esquivar dos bloqueios. ―
Brent se deteve antes de chegar na porta e deu um murro na parede. ― A matarei. Condenada... vou
estrangulá-la. Deve aprender que não é invencível e que não pode agir como uma louca... Me verei
obrigado a prendê-la para o provar!
Brent saiu como uma fúria ao convés, vociferando ordens.
Charlie o seguia sem poder evitar pensar que também Brent estava louco. Unir-se ao exército da
Virginia em uma batalha mortal, para depois se enfrentar com o bloqueio federal como se fosse uma
corrida de iates, era uma boa mostra de quem era ele. Loucos, pensou Charlie. Heróis e loucos, mais
ou menos era o mesmo.
Capítulo 16
Outubro de 1862
Queridíssima Amy, Ignoro como e quando chegará esta carta a você, mas a escrevo com a
esperança de que a receba. Aqui, no hospital, estamos tão atarefados que temos tempo apenas de
fazer verdadeiras amizades, de modo que precisa ter paciência, ao perceber que nesta carta deposito
todos os meus pensamentos. A situação aqui é cada dia mais precária ― O melhor qualificativo que
pode aplicar-se a um estado de ânimo como o que estamos padecendo é «devastador». E, querida
Amy, não pretendo reprovar nada com estas palavras! Ninguém sabia o que nos aguardava quando me
ajudou a partir da Flórida, para colaborar com o irmão de Harry no hospital. De qualquer forma, e
por estranho que lhe resulte, me sinto bem. É certo que sofro terrivelmente ao ver os homens que nos
trazem, destroçados e vestidos com farrapos, mas me satisfaz poder ajudar. Me sinto útil, Amy, e
para mim isso é muito importante. Estou ocupada desde que amanhece até que o sol se põe, o que me
impede de pensar em Brent, chorar e...
Kendall se sobressaltou ao ouvir o demolidor estrondo provocado pela explosão de uma granada
muito próxima de onde ela se encontrava. Afastou a mão do papel e conteve a respiração. A lâmpada
de azeite que descansava sobre a pequena mesa tosca de madeira se balançou. Dava a impressão de
que todas as paredes estremeciam.
Logo tudo isso passou. Exalou um longo e trêmulo suspiro. Vicksburg estava há dois meses em
estado de sítio, e ela continuava sem acostumar-se aos estalidos das granadas, que continuamente
retumbavam na cidade. Em geral o hospital, situado longe do rio, permanecia a salvo, embora várias
granadas tivessem conseguido alcançar duas salas, matando a todos os ocupantes.
Kendall permaneceu um tempo imóvel , aguçando o ouvido. O fogo havia cessado. Releu a carta
que estava escrevendo e a fez em pedaços.
Era uma loucura referir-se a Brent, pensar nele. Fazia nove meses que não o via nem tinha notícias,
desde que a abandonara sem nem sequer sussurrar—lhe um adeus.
Evidentemente, havia ouvido falar dele. O capitão Brent McCain continuava sendo um herói dos
confederados. Os periódicos do sul afirmavam que ele só proporcionava ajuda a cinco exércitos
rebeldes, e havia um rumor de que já havia tomado e destruído uns cinco barcos federais.
Onde estaria naquele momento? Kendall golpeava distraidamente a mesa com a pluma. Havia
voltado alguma vez à baía? Se perguntado sequer se ela estava bem? Tão pouco sabia de Amy, desde
que se mudou para Vicksburg, em fevereiro.
Após a partida de Brent, havia sido insuportável permanecer por mais tempo na baía. Além disso,
haviam levado o Rebel's Pride, e tinha certeza de que Brent não regressaria jamais, ao menos com a
intenção de vê-la.
Não se atreveu a voltar a Charleston, pois jamais poderia confiar em seu padrastro. Além disso, a
inquietava saber que John Moore estava destinado em algum lugar nas margens do Mississipi, sob as
ordens de Farragut.
Ninguém acreditava que os ianques fossem capazes de obrigar os exércitos rebeldes a retroceder,
pois eles continuavam lutando na frente ocidental. Rodeada de montanhas e cortada por um rio,
Vicksburg era inexpugnável. No mês de fevereiro, quando Kendall decidiu partir para ajudar David
Armstrong no hospital, ninguém imaginou que a cidade seria assediada, ao menos, ninguém do sul.
Desde o princípio da guerra, as armas com que contavam os confederados eram sua coragem e sua
valentia, e era com a sua força de vontade que ainda estavam lutando com os ianques, sem importar
seu número ou as armas de que dispunham para isso.
Kendall se levantou para se esticar, apoiando as mãos nas doloridas costas. Estava tão cansada!
Por mais que se empenhasse, não conseguia esquecer Brent. Quando pensava que viria algum dia, a
espera era mais suportável... dura, mas suportável. Ao menos podia se dar o luxo de sonhar em
compartilhar o futuro com ele. Certamente, aquela fantasia estava tão morta como o lugar
maravilhoso que já havia sido Vicksburg.
As lembranças não desapareciam. Pelo contrário, a assaltavam diariamente. Apesar do tempo
transcorrido, quando tentava conciliar o sono seguia vendo seu rosto. Acordava pensando ter ouvido
sua risada, seu sorriso gentil, que com tanta elegância iluminava a dureza de suas feições, de seus
olhos cinzas capazes de se converter em algo tão ardente como a força do sol no auge do verão.
Kendall fez uma careta de dor e mordeu o lábio inferior. Posto que não podia evitar recordar-se de
Brent, considerou que seria inteligente recordar também seu mau gênio, picante como um chicote, sua
insolência e arrogância, capazes de irritar a qualquer um. Era um louco decidido a que o matassem.
Por que me é impossível ― se perguntava com amargura ― deixar de estar apaixonada? Raposa
Vermelha previu que nunca o conseguiria... e o tempo estava lhe dando razão. O chefe indígena havia
tentado dissuadi-la de seu propósito de se mudar. A havia acusado, sem paciência, de que ela se
comportava como uma criança... exatamente o mesmo que havia dito Brent a ela, Raposa Vermelha
augurou que Brent acabaria regressando com a esperança de encontrá-la ali. Ela, ao inverso, não
acreditava que o capitão quisesse voltar a vê-la...
Kendall sentia falta de Raposa Vermelha, o melhor amigo que havia tido em seu vida. Ansiava por
suas serenas palavras, sua presença, seu espírito sossegado e estoicamente bonito. E sobretudo,
sentia sua falta porque representava o vínculo mais tangível com Brent... Devia se esquecer de Brent,
trabalhar até que o esgotamento a vencesse. Afastou os sonhos de sua mente. Trabalhava de sol a sol.
A consequência do cerco a que estava submetida a cidade é que o hospital se abarrotava de soldados
feridos, em algumas ocasiões era até difícil se mover entre tantas camas.
John Pembenon, o general confederado tentava, com audácia e valentia, conservar a cidade, mas o
general unionista, Grant, era um homem teimoso. Os habitantes da velha cidade sulista demostravam
sua fortaleza e resolução ao adotar, de forma assombrosa, a vida dura.
As semanas passavam e a coragem e galhardia foram se desvanecendo, de forma diretamente
proporcional à falta de alimentos. Cavalos, gatos e cães se converteram em manjares habituais, e
quando esses animais começaram a escasser, houve estômagos que não rechaçaram os ratos assados.
Alguém chamou à porta de seu pequeno quarto.
―Sim? ― se apressou a responder Kendall, contente de que a tirassem de seu estado de
abatimento.
―Kendall, eu a necessito. A granada feriu vários homens. Estão sendo trazidos para cá.
―Já vou, doutor Armstrong! ― exclamou Kendall rapidamente.
Alisou a saia com as mãos e se olhou no espelho opaco, preso sobre um simples aparador.
Apreciou algo em sua imagem que chamou sua atenção e a fez se deter um momento. Percorreu com os
dedos as olheiras que se haviam formado sob seus olhos. Seu aspecto era horrível. Tinha os olhos
fundos e parecia um esqueleto... era toda olhos e ossos. Suspirando, recolheu uma mecha que havia
escapado do coque e deu as costas ao espelho, resoluta. Provavelmente, aos moribundos pouco
importava seu aspecto, enquanto pudesse continuar infundindo neles ânimo e dando água às secas
gargantas.
David Armstrong se parecia muito com seu irmão. Forte e encantador, era um trabalhador
infatigável.
Kendall se sentia cada vez mais unida a ele, tal como esteve com Amy e Harry. O encontrou no
corredor se arrumando, disposta a lavar as mãos.
―Desça para a entrada, Kendall. Faremos três amputações.
Kendall empalideceu e assentiu com a cabeça. Aquela era a parte que mais odiava de seu trabalho.
Os homens gritavam, se debatiam, choravam e suplicavam piedade. A gangrena era uma das maiores
inimigas que enfrentavam ambos os lados. A infecção podia chegar a matar onde as balas não haviam
feito seu trabalho.
―Temos anestesia?
O doutor Armstrong a olhou se desculpando.
―Não.
Kendall sacudiu a cabeça. Sentia náuseas.
―Vamos ― disse o doutor Armstrong.
Kendall o seguiu.
Era inevitável que o pobre soldado jovem perdesse a perna, e sabia que sua ajuda era
imprescindível ao doutor Armstrong. A maioria dos homens do sul capacitados para a luta estavam na
frente, defendendo a cidade, e não podiam desperdiçar seus esforços trabalhando no hospital.
Kendall havia chegado a conhecer bem o doutor Armstrong. Tinha os bisturis e os demais
instrumentos preparados antes de que os pedissem, e tudo organizado para fechar ferimentos. E
sempre dedicava uma palavra de ânimo e uma gentil carícia aos pacientes. Mas cada vez que devia
assistir uma operação, pensava que acabaria desmaiando, e com isso, conseguiria que o paciente se
sentisse ainda pior.
O doutor Armstrong trabalhava com rapidez, com mãos experientes e de forma metódica. Por fim,
levaram o terceiro homem, e os ecos de seus alaridos se desvaneceram pelos corredores. Ficou com
uma assistente envolta naquele desespero de lágrimas e carne atormentada, e quase se retirou dali.
Kendall contemplou a ação com olhar perdido.
O doutor Armstrong lhe rodeou o ombro com o braço.
―Ja sabe ― murmurou calidamente ― que para mim o pior de tudo são os pássaros. Toda esta
carnificina prossegue, e os pássaros somente se preocupam com o passar da primavera para o verão.
E as flores...continuam crescendo. Bem, a vida continua, Kendall. Há a época de semear e a época de
colheita.
Kendall o olhava de soslaio, assombrada com aquela insólita fantasia. Estava sempre tão ocupado
― era amável, mas direto. Ele sorriu.
―Kendall, deveria vestir preciosos trajes de seda e musselina e estar coqueteando com todos os
jovens do baile. Imagino, pequena, como estaria encantadora, despreocupada, sem ansiedade. Temo
que este não é o melhor lugar para uma bela dama.
Kendall bufou.
―Doutor Armstrong, não estou muito segura de haver sido alguma vez uma bela dama.
Ele sacudiu sua calva cabeça, adotando uma expressão de sabedoria.
―Minha menina, você será sempre a mais bela das damas. É forte e sobreviverá a todo este
sofrimento, algo que nem todos conseguem.
O coração de Kendall descompassou.
―O senhor acredita que... que vamos perder Vicksburg?
―Kendall, não se trata de acreditar ou não. Olhe ao redor. Estamos todos mortos de fome.
Vicksburg é uma bomba. Seus habitantes correm para se esconder nas covas e refúgios que podem
proporcionar os cimentos das casas que ainda estão em pé. Cada dia chegam mais feridos e mais
federais. O general Pemberton está defendendo esta área com valentia, mas quanto tempo poderá
aguentar um exército tão pequeno, descalço e faminto, contra esses homens bem alimentados, bem
armados, e que além disso os dobram em número? Sim, Vicksburg cairá, a menos que ocorra um
milagre. Quanto ao sul... ― Se interrompeu ao ver a expressão aflita dela. ― Não me faça caso,
Kendall. Não sou mais que uma velha e esgotada mula de carga, que está ficando inútil antes do
tempo! ― Ela continuava compungida e vulnerável. O doutor David Armstrong tentou animá-la. ―
Amanhã receberemos morfina ― acrescentou carinhosamente. ― Enviamos um homem ao outro lado
do rio, em busca de um contato entre as linhas da União. Amanhã à noite será o encontro.
Kendall esboçou um fugaz sorriso.
―Morfina ― murmurou. ― Será estupendo. ― A partir do dia seguinte, quando tivermos que
desmembrar homens, conseguiremos diminuir o volume dos alaridos. Uma patética benção.
―Agora, descanse, Kendall. Durma um pouco, Ela se retirou a seu quarto, e se afundou num sonho
povoado de terríveis pesadelos. Um homem vestido de cinza gritava sobre a mesa de operação.
Quando viu o rosto, era Brent. Despertou tremendo, mas se obrigou a dormir de novo. Ao conciliar o
sono, voltou a aparecer a mesa de operação. Havia outro homem. Sua pele era de cor bronze escuro,
e suas numerosas feridas sangravam em abundância. Se voltou para ela e seussurrou: Vingança!
Era Raposa Vermelha .
Então saltou subitamente da mesa, com a intenção de persegui-la. Ela começou a correr, e logo
Brent se interpôs em seu caminho coberto de sangue, com sua preciosa jaqueta cinza feita em farrapos
e os pés descalços. A olhava com olhos acusadores. Estava presa entre os dois. Cobriu o rosto com as
mãos e caiu de joelhos, chorando. Eram os homens que a haviam amado e cuidado, e a quem ela havia
conduzido à maior agonia imaginável. Em seu sonho se sentia atormentada.
Voltou a despertar. Seus soluços ficaram afogados pelo estalido de uma granada. Já era dia.
Kendall se levantou e lavou o rosto. Quando levantou a vista para se olhar no espelho, adivinhou que
as sombras que tinha sob os olhos pareciam mais escuras. Lembrou novamente que os feridos pouco
se importariam com quem os atendia ou o aspecto que tinham, enquanto lhes cuidasse como era
devido.
Parecia que aquele dia não acabaria nunca. Grant os bombardeava por terra, e o almirante Porter
do rio. Junto com os soldados feridos, chegavam civis ― idosos, mulheres e crianças ― que haviam
sido surpreendidos em plena linha de fogo. A visão daquelas crianças era o que mais afetava
Kendall. Esquálidos, piolhentos, pareciam espantalhos, incapazes de comprender o significado da
guerra, somente sabiam que haviam ficado feridos.
O bombardeio cessou por fim. Os médicos que dormiam durante o dia se levantaram para iniciar o
turno da noite. Kendall se retirou a seu quarto e tratou de fazer desaparecer de seu corpo os rastros de
morte e decadência.
―Kendall!
O doutor Armstrong chamava a sua porta.
―Sim?
―Me acompanha?
―Oh! a morfina, sim! ― Como anteriormente, havia pedido que o acompanhasse. ― Sim, sim,
vou agora mesmo!
Depois de vestir a toda pressa o saiote e um simples vestido de algodão, abriu a porta. O doutor
Armstrong lhe ofereceu o braço galantemente.
―Vamos, querida ― disse, piscando o olho. ― A escoltarei pelas ruas!
Andar por aquelas fantasmagóricas ruas, e observar no que as granadas haviam transformado o
que, em outra época, eram preciosos lugares, podia ser deprimente. O doutor Armstrong falou durante
todo o percurso em meio a escuridão e o silêncio, apontando as casas e contando divertidas anedotas
sobre as pessoas que as haviam habitado.
O verão flutuava no ambiente. A sensação de frescor que produzia a brisa procedente do rio era
uma mudança muito agradável, em comparação com o odor da morte que inundava o hospital.
Viraram à esquerda, afastando-se da cidade e dos postos de guarda dos rebeldes. Ao ouvir um
silvo, o doutor se deteve, pegando-a pelo braço com força. Um jovem saiu a seu encontro de entre o
matagal.
―Doutor Armstrong, não sei o que combinou. Vi o bote, mas não se aproxime. Olhe lá ao longe.
Não parece que vai a deriva? Agora que as nuvens se afastam da lua, o vê? Ali. Por que não se
aproxima da margem? Billy deveria haver atravessado as linhas!
O médico contemplava o rio em silêncio.
―O ignoro ― murmurou por fim. ― A corrente arrastrará o bote de remos. Me pergunto se haverá
de fato morfina ali.
Kendall olhava para o menino que não devia ter mais de treze anos, e logo ao doutor. Como se
houvesse lido seus pensamentos, o garoto começou a falar algo com voz entrecortada.
―Tentaria me aproximar, mas não sei nadar, doutor Armstrong. Mamãe sempre dizia antes da
guerra, que nos torceria o pescoço se nos pegasse no rio ou na praia.
―Posso ir eu ― se ofereceu Kendall.
O doutor Armstrong a olhou como se houvesse ficado louca.
―Não, Kendall, não posso enviar uma mulher...
―É claro que pode! ― replicou Kendall, aborrecida. ― O garoto não sabe nadar e, perdoe que
lhe diga, doutor Armstrong, você é demasiado velho para fazê-lo. Além disso, os feridos do hospital
nao podem permitir-se o luxo de prescindir de você.
Kendall começou a tirar o vestido. Não se atrevia a reconhecer que estava morta de medo. Não
era muito boa nadadora. Tentou se convencer de que tudo sairia bem, se não se deixasse dominar pelo
pânico. O bote não estava muito longe, mas a corrente era intensa.
―Kendall, iremos buscar outra pessoa.
―Não há tempo. A corrente arrastará a morfina até os ianques, e estou segura de que não fariam a
gentileza de devolvê-la!
Quando se descalçou viu que o menino a observava. Começou a rir, nervosa.
―Escute ― murmurou, pousando a vista em sua combinação e seu corpete, ― sou consciente de
que este não é o último modelito de Godey´s, mas poderíamos considerá-lo como uma roupa de
banho de senhora.
―Kendall, por favor.
O doutor Armstrong tentou, em vão, a dissuadir.
Ela atravessou, resolvida, as altas ervas até alcançar a margem do rio. Apertou os dentes com
força, preparando—se mentalmente para enfrentar as frias águas e as horríveis criaturas que as
povoavam.
Estendeu os braços para començar a nadar, procurando pôr os pés no fundo enlodado o menos
possível. Avançou pela água dando braçadas, e se deteve um momento para buscar com a olhar o
pequeno bote de remos. Quando viu que se encontrava ainda bastante longe, sentiu-se desfalecer.
Podia dar meia—volta e...
A recordação dos homens gritando na sala de cirurgia a animou a continuar. Respirou fundo e
começou a nadar de novo, tentado que suas braçadas fossem mais pausadas e cômodas. Se deteve
para voltar a observar seu objetivo. Estava tão longe! Tomou ar outra vez, recordando—se que era
melhor seguir antes de que seus membros congelassem. Voltou a nadar, devia ser tão metódica como
o doutor Armstrong. Deu outra olhada. Um pouco mais, somente um pouco mais.
Por fim chegou na pequena embarcação de remos. Segurou nas bordas, apoiou a face contra o
casco de madeira e respirou fundo, tratando de descansar um momento, antes de sair da água para
subir no bote. Se sentia feliz e orgulhosa de si mesma. Estava assustada, mas havia conseguido
alcançar seu objetivo. E graças à sua ação conseguiram aplacar a dor de muitos homens.
De repente, sufocou um grito, ao notar que mãos ásperas e fortes apertavam as suas.
―Suba a bordo, espiã! ― a convidou melosamente uma voz.
―Não! ― exclamou Kendall amedrontada, forçando para se liberar daquelas mãos. Certamente
foi tirada da água e se encontrou na bancada do bote.
―Que me matem, meu sargento! É uma mulher.
―Não vou discutir com você, soldado Walker ― respondeu calmamente uma agradável voz
masculina. ― Já vi que é uma mulher.
Com os olhos arregalados, Kendall olhou a cada um dos dois homens vestidos de azul a bordo,
enquanto um deles começou a caminhar ao redor da recém chegada, tranquilamente.
―Espere! ― suplicou, já que pelo agradável tom de sua voz deduziu que o sargento era uma boa
pessoa. ― Espere, por favor! Necessitamos da morfina!
―Que morfina? ― perguntou o suboficial, cujo rosto rajado mostrava milhões de rugas. ― Jamais
houve morfina a bordo deste bote, senhora. Tão somente armamento de pequeno tamanho. Tomamos
de um homem que tratava de introduzi-lo em Vicksburg.
―Mas não o entendo... ― disse Kendall.
O sargento soltou uma gargalhada.
―Sinto muito, senhora, seu homem não é um filantropo. Seguramente decidiu que obteria mais
dinheiro com a venda das armas, que com a dos medicamentos. De todo modo não se preocupe,
senhora, pois passará o resto do que falta para acabar a guerra em um cárcere da União.
Cárcere... Deus, pensou Kendall, já era demasiado tarde. Aquele par de ianques a levariam à
fronteira da União. Estava sentada, em roupas íntimas molhadas, ante dois ianques que pensavam em
levá-la para a fronteira da União.
Ficou em pé, fazendo o bote se balançar, e antes que pudesse se jogar de cabeça na água, o
sargento a agarrou pelas pernas e a lançou sobre a bancada.
―Sinto muito, senhora ― murmurou, ― mas já deve saber que nós encontramos muitas espiãs
bonitas. Nos acompanhará para ver o tenente.
Kendall nem sequer reparou nas contusões que tinha nas costelas em consequência da queda.
Fechou os olhos, incapaz de pensar, tão aterrorizada estava.
Jamais poderia dizer que não se mostraram amáveis com ela. Quando chegaram na margem, os
soldados lhe entregaram uma manta para que se cobrisse. Qualquer homem que se atrevia a dirigir a
ela um olhar licencioso, recebia uma boa reprimenda.
A levaram a um lugar repleto de tendas, há aproximadamente um quilômetro da margem. Havia
milhões de homens vestidos de azul, sentados ao redor das fogueiras, e que interromperam sua ceia
para contemplar o grupo composto por Kendall e seus captores.
Se detiveram, por fim, diante de uma tenda muito grande. O sargento entrou rapidamente, passando
por debaixo da lona da porta, para reaparecer em seguida levantando o pano, indicando a ela que
devia entrar. A mulher obedeceu.
Kendall permaneceu imóvel, com o cabelo cobrindo o rosto molhado, olhando fixamente ao jovem
tenente, sentado atrás da mesa de despacho.
A surpreendeu que o homem se apressasse a levantar-se. Sorriu, e ela percebeu que ele era ainda
mais jovem do que aparentava, e que suas feições haviam envelhecido devido a dureza da guerra.
Seus olhos espertos de cor avelã, moostravam cansaço, e seus gestos pareciam pouco autoritários.
―Assim pois, se trata de uma espiã confederada ― murmurou.
―Não sou uma espiã ― replicou Kendall, mais esgotada que nervosa. Seu olhar era ousado,
desafiante ― precisamos de morfina. Nadei para consegui-la.
―Nós encontramos o bote cheio de armas.
―Isso foi o que me disseram.
―Então também lhe devem ter informado que estavamos utilizando o bote para descobrir quem se
havia infiltrado em nossas fileiras para roubar armas.
―Não.
―Como se chama, senhora?
―Kendall ― sussurrou após vacilar, ― Kendall... Armstrong.
―Já comeu algo, senhora Armstrong?
―Eu...
―Pergunta tonta. Faz bastante tempo que ninguém come em Vicksburg.
O tenente passou junto a ela para a entrada da tenda.
―Soldado Greene. Traga algo para nossa convidada rebelde comer, rápido!
―Sim, senhor!
Quando entrou de novo na tenda, voltou a sorrir a Kendall, indicando educadamente com a mão
que podia tomar assento na cadeira baixa, situada em frente a sua mesa de despacho. Ela obedeceu.
―Tenente ― murmurou Kendall, ― lhe asseguro que não sou uma espiã. De fato, o senhor crê que
eu possa ser de alguma serventia aqui? Vicksburg se encontra em uma situação desesperada. Portanto,
não existe informação alguma que pudesse salvar a a cidade, verdade?
―Salvá-la, não ― respondeu o tenente, ― mas podemos prolongar a agonia. Consta que os
traficantes de armas têm contatos na costa. Ah, aqui está sua comida. Coma, por favor.
Ela teria se encantado em rechaçar os alimentos, mas não podia fazê-lo. Havia carne de boi fresca,
pão, e milho com manteiga cremosa...
―Obrigada ― disse com voz trêmula, atacando literalmente a comida, ao aspirar seu delicioso
aroma.
―Coma logo ― aconselhou amavelmente o tenente ianque, enquanto regressava a sua cadeira sem
deixar de observá-la. Tirou uma garrafa que continha uma bebida de cor escura e a depositou sobre a
mesa. ― Podem as mulheres sulistas aceitar um trago de whisky? ― perguntou.
―A que tem à sua frente, sim ― respondeu Kendall em voz baixa. Procurou no armário até
encontrar um copo.
Kendall bebeu de um gole do whisky que foi oferecido a ela. A bebida lhe queimou a garganta,
mas lhe trouxe o calor de volta. Voltou a atenção à comida mais deliciosa que havia saboreado em
sua vida. Apenas percebia que o tenente a contemplava em silêncio.
―Não estou muito seguro do que devo fazer com você ― disse por fim. ― Esta noite a alojaremos
em uma tenda contígua à minha, sob estrita vigilância, naturalmente. Amanhã de manhã, meus homens
terão conseguido roupa. E falarei com o general.
Kendall deixou o prato e acomodou as mão no colo, sem levantar a vista. Não valia a pena discutir
com aquele homem. Duvidava que ele acreditasse que era uma espiã, e suspeitava que acabaria
deixando-a ir embora.
O tenente voltou a chamar o soldado Green, que a acompanhou até outra tenda onde havia uma
cama com lençóis limpos, mas ásperos.
Achou que passaria a noite toda dando voltas, nervosa, mas não foi assim. Surpreendentemente, o
sono pôde mais que seu medo e sua ansiedade. Dormiu profundamente e sem pesadelos.
Despertou com as cornetas que tocavam a diana, e o estrondo de ruídos metálicos e barulhos
produzidos por tantos soldados ao formar filas.
Ao ouvir os sons típicos do acampamento ianque, se cobriu com o lençol, e fechou os olhos com
força uma vez mais, rezando. «Senhor, por favor! Faça com que essa gente me liberte antes que
descubram que sou a esposa desaparecida de um tenente da marinha federal.»
―Senhora Armstrong, trouxe a você um vestido. Por favor, vista-se imediatamente. O soldado
Green estará esperando—a para acompanhá-la a minha tenda.
Kendall conteve a respiração ao ver aquele vestido de algodão de cor rosada que deixavam na
tenda.
Era o tenente quem acabava de falar, tão educado como na noite anterior. Mas apreciou algo
distinto.«Brent McCain! ― se lamentou em silêncio, com uma irada reprovação. ― Foi você quem
me arrebatou o barco e me pediu que fizesse um papel cômodo nesta guerra, um papel de mulher. No
barco poderia ter lutado, aqui não. Estou indefesa. Arrogante bastardo! Foi você quem provocou
isso!»
Mas isso não era totalmente certo. O que ele havia querido era que permanecesse na Flórida, no
lugar seguro, e havia sido ela quem havia resolvido ir para Vicksburg, e ingenuamente, havia
decidido alcançar a nado aquele bote de remos.
Suspirando, pensou que não havia tido outra alternativa. Se obrigou a levantar-se e vestir a roupa.
Quando entrou na tenda do jovem tenente, sua suspeita de que algo havia mudado no transcursso da
noite ficou confirmada. Não se encontrava só. Sentados junto a ele estavam dois oficiais mais velhos,
de aparência muito severa.
O tenente não se levantou nem indicou que ela tomasse assento. A olhava com olhos frios e
acusadores.
―À minha esquerda, senhora, o comissário Jordan, da Marinha dos Estados Unidos. Estou seguro
de que sabe que nosso assalto a Vicksburg foi o resultado de uma combinação de esforços da marinha
e do exército em terra. O comissário Jordan acaba de ser trazido a nossa frente com um pequeno
destacamento situado em Key West. A viu chegar na noite passada, e acredita tê-la reconhecido.
Afirma que você estava a bordo de uma escuna confederada que mandou ao inferno um barco da
União. O que diz você contra essa acusação, senhora?
―Eu nego, naturalmente ― murmurou Kendall, tentando falar com convicção, apesar do tremor
que a tomava.
―Além disso ― prosseguiu o tenente, como se ela não houvesse dito nada, ― me informou de que
correm rumores de que a mulher que se dedicava a afundar barcos federais era a esposa de um
companheiro, oficial da marinha. Você se chama Kendall Moore, senhora, não Armstrong.
A haviam descoberto. Sentiu como se o mundo inteiro desaparecia sob seus pés, mas estava
decidida a que eles não o percebessem. Endireitou as costas, pôs os ombros retos e levantou
ligeiramente o queixo. O tenente empurrou sua cadeira para trás, se levantou e se aproximou dela.
―você é a culpada, senhora, de atos de sabotagem contra as forças armadas dos Estados Unidos.
As acusações são graves, senhora Moore. Em circunstâncias normais nos veríamos obrigados a
enviá-la a um campo de prisioneiros de guerra. Eu em seu lugar, senhora Moore, daria graças a Deus
por estar casada com um oficial da marinha. A deixaremos sob a custódia de seu marido...
―Não! ― interrompeu Kendall, cortante como o gelo.
―O quê? ― O jovem oficial parecia perplexo.
―Disse que não. Não quero estar sob a custódia de meu marido.
―Temo que não a entendo. A alternativa é o cárcere.
―Entendo perfeitamente ― replicou Kendall com fria dignidade. ― Prefiro o cárcere.
O jovem militar a olhou fixamente, percebendo a determinação e firmeza em seus olhos. Os
segundos passavam.
Levantou os braços, exasperado. Se sentou na cadeira atrás da mesa de despacho e rasgou pela
metade um pedaço de papel.
―Compadeço de você ― disse com voz rouca. ― Jamais pensei que chegaria a condenar uma
mulher a tal destino. Senhora Moore, você quer, por favor, reconsiderar sua opção? Seu esposo
estará, sem dúvida descontente, mas já que você é sua mulher aos olhos de Deus...
―Não, tenente ― atalhou Kendall com firmeza. ― Não vou reconsiderar.
O jovem fez uma careta de dor e estampou sua assinatura num documento oficial.
―Soldado Green! ― chamou, sem afastar a vista de Kendall.
O soldado apareceu rapidamente na tenda e saudou. O tenente deu a ordem para entregá-la a seu
subordinado.
―Prepare uma escolta. O sargento Matling estará no comando. A senhora Moore será transladada
para o Campo Douglas, em Moçago, onde permanecerá até que finalize a guerra.
Campo Douglas! O coração de Kendall se encolheu. Se comentava que era o Andersonville do
norte, um lugar assolado por piolhos, doenças, fome...
Os lábios dela começaram a tremer, mas os apertou com força, mantendo a cabeça bem erguida.
Era melhor Campo Douglas que John Moore... Ao menos isso era o que pensava, até que, quatro dias
depois, chegou à prisão de Campo Douglas. Nem o inferno podia ser pior que aquele lugar.
Capítulo 18
Kendall pensou que jamais esqueceria o mal cheiro de Campo Douglas enquanto vivesse — nem,
talvez, depois de morta.
Os jovens que se encarregaram de seu translado a avisaram que o comandante do acampamento
era um tirano, que achava que os rebeldes dissidentes mereciam sofrer. E as condições do
acampamento garantiam o sofrimento.
Quando viu o lugar, com paredes intermináveis e severas fileiras de edifícios, sentiu-se doente.
Chegou na metade da tarde. As velhas portas se abriram para franquear a entrada, e a primeira coisa
que viu foi um grupo de prisioneiros que faziam exercício na enorme parte central do acampamento.
Magros como palitos, andrajosos, sujos, patéticos, ofereciam um aspecto lamentável.
Não viu nada mais, pois em seguida foi conduzida ao gabinete do comandante, que apenas levantou
a vista para olhá-la enquanto estudava o informe.
―Mande-a com os da Georgia ― ordenou.
―Senhor — protestou o soldado Green após aclarar a garganta, nervoso, ― a prisioneira é a
senhora Moore!
―Se empenhou em lutar com seus amigos rebeldes. Mande-a com eles. ― Por fim levantou a
vista, e uma careta brincalhona apareceu em seu rosto, extremadamente velhaco. ― Me parece que
prefere a companhia desse lixo rebelde a de um marido ianque. Vamos, leve-a. Deixe que descubra
por si mesma o quão educada pode ser essa turba confederada. Deve fazer quase um ano que a
maioria dos homens não vê algo com pinta de mulher. Vejamos o fervor rebelde depois de passar
umas quantas noites com essa cavalheiresca imundície.
Não foi o soldado Green quem tomou o braço para acompanhá-la, mas sim um ajudante do
comandante ianque. Kendall se soltou para voltar para o homem sentado atrás da mesa.
―Capitão? ― disse com doçura.
―O que? ― levantou a vista e a olhou lentamente.
Kendall cuspiu no chão.
―Preferiria que me violassem mil rebeldes a que me tocasse um só ianque.
―Tire-a daqui ― vociferou o comandante. ― Logo mudará de opinião.
Talvez fosse assim, pensou Kendall, apenas uns instantes depois.
Após passar diante de uma longa fileira de edifícios idênticos entre si, abriram uma das portas
com chave e empurraram Kendall ao interior.
Custou um tempo para ela acostumar a vista na profunda escuridão que reinava no recinto ―
Quando conseguiu, se encolheu de horror. Aquele pequeno barracão albergava ao redor de três
dezenas de homens sujos, piolhentos, marcados, imundos. O fedor dos baldes que faziam as vezes de
urinol era insuportável. Em um canto havia uma poça de água estancada, de uma goteira do teto.
Os homens que devolviam seu olhar escrutinador não tinham aspecto de haver pertencido ao
grande exército confederado. Os uniformes, convertidos em farrapos, eram irreconhecíveis.
Kendall sentia todos os olhos fixos nela, como se fossem os de milhares de vorazes roedores. Um
soldado que parecia um monte de ossos descojuntados se levantou do chão para dirigir-se até ela.
―Meu Deus! É uma mulher!
Continuou se aproximando, rodeando-a, seus olhos amarelados e sem vida pareciam despertar, a
medida que a observava. Kendall retrocedeu até a porta que acabavam de fechar com chave e se
apegou a ela, incapaz de suportar aquele olhar de assombro e desejo. Pensou, com amargura, que
aquele homem devia ter aproximadamente sua idade. Talvez antes de converterse num esqueleto
houvesse sido bonito, sobretudo sem aquela porcaria que levava incrustada desde seu cabelo sem
brilho até seus pés descalços.
―Oh carinho — suspirou o prisioneiro, levantando os braços para colocá-los em ambos os lados
da cabeça dela, apoiando-se na pesada porta de nogueira, — faz muito tempo que não vejo ninguém
agradável e com curvas...
Se moveu com intenção de tocá-la, e Kendall deixou de sentir a compaixão que lhe havia
inspirado, ao perceber o tom melancólico de sua voz. Gritou e caiu ao chão, cobrindo o rosto com as
mãos.
―Por favor, por favor... não, não...
Sua voz se desvaneceu, e um silêncio sepulcral reinou no local. Então, ouviu novos passos que se
arrastavam e agitavam o fétido ambiente, se aproximava outro homem. Este se ajoelhou e afastou o
cabelo do rosto dela com delicadeza. Logo se levantou e se voltou para seus companhairos. Sua
figura parecia orgulhosa e desafiante, apesar do ferimento que tinha nos pés, seu aspecto demarcado e
suas andrajosas roupas.
―Somos — disse com autoridade e dignidade — ainda soldados do exército dos Estados
Confederados. Continuamos cavalheiros, orgulhosos e gentis. Não somos um bando de violadores
licenciosos! Seguramente, esta dama lutou contra o inimigo como nós, e por isso a jogaram nesta
prisão. Não, senhores, ― remarcou, ― não vamos ajudar o inimigo inflingindo ainda mais dor a esta
pobre moça. Demostraremos que continuamos sendo os últimos cavalheiros... cavalheiros, amigos
meus, até o final.
Voltou a inclinar-se até Kendall, que viu um par de cálidos e sensíveis olhos castanhos num rosto
avantajado, envelhecido, mas tremendamente agradável.
―Sou o major Beau Randall, da tropa regular número vinte e dois da Georgia. Pouco posso
oferecer-lhe, senhora, mas estou a seu serviço.
Sua amabilidade era tão nobre, que Kendall não pôde reprimir o pranto. O major a tomou entre
seus braços para consolá-la.
Desde o primeiro dia, Beau Randall estabeleceu as normas de comportamento de seus
companheiros para com Kendall. Ela gostava de pensar que, de um modo ou de outro, sua presença ali
contribuía para fazer mais agradável a monótona existência daqueles prisioneiros. Os trinta homens
suspiravam por uma amante e, embora ela não pudesse ser a amante de ninguém, podia brindá-los
com sua amizade. E a conduta dos integrantes da tropa regular número vinte e dois da Georgia a
ajudava a recuperar sua fé nos seres humanos. Descobriu que, no referente a emoções, os homens não
eram tão diferentes das mulheres. Os que estavam casados falavam com melancolia de suas esposas e
filhos, os solteiros, de seus sonhos, suas noivas e das amizades femininas que haviam deixado para
trás.
Kendall estava convencida de que ela os ajudava a manter a forma, e que a eles era estupendo para
o orgulho, pois assim recordavam que continuavam sendo homens, não animais enjaulados.
No entanto, existiam ocasiões que nem ela mesma era capaz de deixar de lado a miséria que
levava implícita a vida na prisão. A metade dos homens padeciam de disenteria e escorbuto. As
rações eram tão escassas que, quando adoeciam, poucos tinham forças suficientes para poder
sobreviver. A mortalidade era terrível.
A cada manhã, às seis horas, as cornetas tocavam. Os prisioneiros tinham que ir para o meio do
campo e passavam pela contagem. Ninguém se atrevia a romper filas. Os prisioneiros mais fracos e
os doentes, se sustentavam em pé graças a ajuda de seus companheiros. O descumprimento das regras
era castigado com severidade. Uma simples palavra fora de lugar bastava para sentenciar um homem
a se sentar a cavalo sobre a «mula de Morgan», um enorme cavalete instalado atrás dos barracões.
Outro castigo utilizado pelos guardas era o isolamento, o que podia ser fatal.
O comandante do Campo Douglas tinha fama de ser um homem cruel. Em troca, a maioria dos
guardas ianques não o eram. Embora estivessem obrigados a trabalhar segundo as normas ditadas por
seu comandante, o certo era que não tentavam aumentar as penas dos prisioneiros exercendo a
brutalidade. As verdadeiras penúrias eram as que provocava o racionamento, a fome e as doenças.
Em geral, depois de passar pela revista, deixavam a sós os prisioneiros. Em certas ocasiões os
carcereiros mais amáveis entregavam aos prisioneiro os periódicos, e de vez em quando, cartas de
seus familiares. Kendall passava os dias lendo e relendo periódicos em voz alta, para os homens da
Georgia que eram analfabetos, que ficavam ao redor dela. Após um mês, havia se convertido na
leitora oficial.
Nos finais de julho chegaram más noticias. Quando Kendall leu a seus companheiros a lamentável
queda de Vicksburg, o fez com voz trêmula. Pemberton havia se rendido oficialmente a Grant em 4 de
Julho, data que marcou o fim de outra batalha, a que se havia lutado em Gettysburg, uma pequena
cidade situada na parte central da Pensilvânia. O general Robert E. Lee se havia visto obrigado a
desistir. Tanto rebeldes como ianques haviam sofrido grandes perdas durante os combates, que se
desenvolveram durante quatro dias.
Um irônico dia da Independência para as duas nações...
Quando, por fim, a voz de Kendall se apagou depois de haver lido até a última palavra impressa,
todos mostravam expressões sombrias. Ficaram em silêncio e se perderam em diferentes
pensamentos, com a intenção de refletir em solidão sobre o ocorrido.
Kendall se sentou contra a parede, apertando os joelhos contra seu corpo. Repousou a cabeça no
braço, tratando de compreender a indiferença com que havia aceitado a notícia. Queria sofrer, sentir-
se dolorida por aqueles milhares de mortos caídos em Gettysburg. Era incapaz de sentir. A guerra
estava dessensibilizando seu coração com a tragédia.
Notou uma presença próxima e, quando Beau Randall se ajoelhou a seu lado, levantou a cabeça.
―Está bem? ― perguntou ele, amável. Ela riu balançando a cabeça, ― Tem certeza?
Kendall fez uma careta.
―Acredito que tenho piolhos.
Beau começou a rir.
―Provavelmente. Seria um milagre que não os tivesse vivendo com todos nós. Estamos todos
infectados!
Kendall sorriu um instante e franziu o cenho.
―Beau, continuam os dois lados trocando prisioneiros? Existe alguma esperança de sair daqui?
O homem suspirou.
―Suspeito que haja poucas esperanças. O general Grant teme que, se regressarmos, nos
incorporaremos todos na primera linha. Crê que para vencer terá que aniquilar a todos os habitantes
do sul. Sabe que seus rapazes também sofrem em nossos cárceres e que muitos deles morrem lá. Mas
ele conta com a possibilidade de reforçar suas tropas sem necessidade de liberar prisioneiros de seu
lado, o que Robert E. Lee não pode permitir-se.
―Então, não há esperança ― sussurrou Kendall.
―Sempre há esperança, Kendall. Muitos desses ianques são seres humanos que não se orgulham
de nos ver enfermos e mortos de fome. Estou seguro de que poderíamos subornar a muitos deles, se
algum de nós tivesse com o que fazê-lo. Eu...Beau interrompeu seu discurso e os dois voltaram a
cabeça até a porta de seu barracão ao ouvir o barulho da chave na fechadura. Ficaram olhando com
curiosidade ao soldado da União que apareceu na entrada.
―Senhora Moore! ― Percorreu com o olhar os prisioneiros até localizar Kendall. ― Carta para
você, senhora Moore.
Ela se levantou franzindo o cenho, e pegou a carta estendida pelo guarda, que se foi logo após a
entrega.
Beau ficou em pé e se aproximou.
―Do que se trata?
―Não... não sei ―murmurou abrindo o lacre.
Sentiu náuseas ao distinguir a perfeita caligrafía de seu marido.
O inferno acaba de começar. Em 1 de setembro chegarei a Moçago para a levar sob a minha
custódia. Nosso amável presidente, o senhor Lincoln, ficou horrorizado ao saber de que havia uma
dama prisioneira no Campo Douglas. Dedique uma oração ao senhor Lincoln, Kendall.
Seu devoto esposo, john.
―Do que se trata? ― perguntou de novo Beau ao ver que Kendall empalidecia.
Ela se jogou sobre ele, que arrancou o papel das mãos dela e se apressou a ler a carta.
―Kendall, sairá daqui. Isso é maravilhoso.
Ela sacudiu a cabeça. Não conseguia nem falar.
―Não... não entende ― murmurou por fim. ― Ele... ele me matará!
―Não, Kendall, nenhum homem pode chegar a estar tão enraivecido com você para que a queira
matar! Seu caso não é único. Nesta guerra há irmãos lutando contra irmãos, filhos contra seus pais.
―John não é um homem normal. Desconhece o significado da palavra piedade.
De repente, começou a chorar sobre o ombro de Beau, que tentou consolá-la, e sem se dar conta,
Kendall se viu explicando a ele a história de sua vida. Falou de sua vida em Charleston, fazia tanto
tempo já! De Raposa Vermelha e dos índios e lhe contou tudo sobre Brent.
―Brent McCain? ― perguntou Beau.
Kendall, sem perceber a incredulidade de seu interlocutor, assentiu com a cabeça.
―Tem reputação ― murmurou Beau ― de ser um homem íntegro. E ―disse, baixando o tom de
voz ― Parece que está muito apaixonado por você.
Kendall riu com amargura.
―Não está tão enamorado, Beau. Me deixou plantada.
―Kendall, ele é um oficial da marinha. Tem que obedecer ordens. ― Beau vacilou um instante,
franzindo o cenho. ― McCain... Aqui há um McCain, o tenente Stirling McCain.
―Deve ser seu irmão ― sussurrou Kendall, alegrando-se de saber que seguia com vida ― No ano
passado ficou ferido gravemente em Sharpsburg.
―Bem, tem bom aspecto... tão bom aspecto como possa ter qualquer um de nós ― acrescentou
Beau, fazendo uma careta. ― Falei com ele algumas vezes. Às vezes, os homens de Georgia e Flórida
fazem exercício juntos.
―Me alegro de que esteja bem ―sussurrou Kendall. ― Uma... uma amiga me contou que o
feriram... e me explicou também que seu pai havia sido dado por desaparecido. Suponho que esteja
morto. Me alegro muito de que Stirling tenha se recuperado.
Beau colocou as mãos nos ombros dela e a olhou fixamente.
―Kendall, acaba de me explicar que Brent a abandonou pouco tempo depois de regressar de
Sharpsburg. Carinho, acaso não compreende como devia sentir-se naqueles dias? Eu poderia dizer
exatamente o que passava por sua mente.
―O que? ― perguntou Kendall com indiferença.
―Brent acabava de perder seu pai e seu irmão. Não podia suportar a ideia de que também o
matassem, ou que o fizessem prisioneiro, como o que ocorreu com você. Sharpsburg foi uma batalha
terrível e sangrenta, Kendall. Não me estranha que ele tenha ficado irado ao saber que você se
arriscava daquele modo. Não conseguiria suportar perder você também. Ele se foi porque a amava, e
temia que voltasse a se envolver em problemas com a guerra.
Kendall encolheu os ombros.
―Duvido. Não o vejo há quase um ano. Duvido, inclusive, de que se lembre de mim, de que
pudesse reconhecer-me. Bem, nem minha mãe poderia me reconhecer neste momento. ― Assoou o
nariz e, chorando, acrescentou: ― Não voltará jamais... Além disso, eu não pensava voltar a
participar na guerra. Trabalhava como enfermeira na retaguarda, o que se supõe que deve fazer uma
mulher. Caí nas mãos dos ianques por pura casualidade. Oh, e o que importa isso agora? ― disse,
suspirando com apatia. O pranto a havia esgotado até tal ponto que tudo lhe parecia indiferente. Se
recostou sobre o ombro de Beau e fechou os olhos. ― Suponho ― suspirou ― que agora compreende
por que temo que John me mate.
―Não perca a esperança, Kendall ― sussurrou, com o olhar perdido. ― Jamais perca a
esperança. Nos ocorrerá algo, eu prometo.
―Já não importa ― disse. E se abraçou a ele, desesperada. Já não importava. A guerra, a fome e
as doenças eram sua única realidade. Não havia nada mais. Houve um dia, em uma época dourada de
esperanças e felicidade... Brent. Lembrava-o com tanta nitidez, de uma forma tão dolorosamente
vívida... Ainda o amava com toda sua alma, embora estivesse convencida de que jamais voltaria a
vê-lo.
John Moore iria buscá-la. De repente, se viu rezando para que sua estadia em Campo Douglas não
acabasse nunca.
―Estou tão cansada, Beau, tão cansada.
―Descanse ― aconselhou Beau com carinho.
Beau Randall guardou silêncio, e deixou que ela dormisse apoiada em seu ombro.
Quando Kendall caiu num sono mais profundo, ele depositou com cuidado sua cabeça sobre o
chão. Encontrou a carta e, pediu, em voz baixa a seus companheiros um lápis. Como dispunha de
pouco espaço para escrever, tratou de escolher as palavras justas e adequadas.
Uma vez terminado seu trabalho, se deu por satisfeito, apalpou a camisa até encontrar sua última
peça de ouro. A levava oculta na costura de um pequeno bolsinho. Escondeu no punho, apertando com
força, se sentou e cravou o olhar na porta, a espera de que aparecesse o sentinela do turno da noite.
Era o carcereiro mais amável de todos, pai de seis filhos, sempre necessitando de dinheiro. Beau
suspeitava que, se lhe prometesse algo mais em troca do favor, a carta que havia escrito chegaria a
seu destino. Somente lhe restava rezar para que fosse recebida a tempo. Mas, embora assim fosse de
que serviria? Brent MacCain era um gênio nos mares, mas não um Deus. Como demônios Brent
poderia conseguir tirar Kendall de uma prisão da União? Os ianques o matariam assim que o vissem.
Os Recifes da Flórida.
18 de agosto de 1863.
A escuna navegava com o vento a favor, escorando a estibordo até desaparecer a toda pressa atrás
da ilha. Contemplando a zona onde havia estado o barco, Travis Deland maldizia a sorte que sofria.
Se sentia preso em uma emboscada. Não havia tempo de distinguir o nome do barco, que além disso
não levava bandeira. Se tivesse usado a cabeça, teria dado meia volta.
Suspirou. As ordens haviam sido terminantes, deter a quem furasse os bloqueios, custasse o que
custasse.
Se conseguissem atrasar o fluxo de alimentos que continuavam chegando ao faminto Sul, o norte
ganharia a guerra. Tanto nas centenas de ilhas, como ao longo da costa da Flórida, muitos capitães
intrépidos se dedicavam a iludir os navios da União. E era a Flórida que naquele momento abastecia
de carne e sal os exércitos confederados.
―Comandante? ― perguntou o tenente Hanson, que estava no timão.
Travis fez um movimento com a cabeça e voltou a suspirar profundamente.
―Persiga a escuna, tenente. Mas que diabos! O pior que pode nos susceder é que acabemos todos
mortos. Não nos perdoarão jamais se deixarmos escapar o inimigo.
Enquanto o barco virava depois das rochas, Travis permanecia tenso. Recordava perfeitamente
outro dia como aquee, o dia em que caiu na emboscada de Brent McCain...
Rodearam o extremo da ilha, e imediatamente a escuna se pôs a atirar. Nesse instante Travis sentiu
o tremor da quilha! Encalharam num recife de coral. «Maldição!» pensou, encolerizado. Acabava de
morder a isca do capitão inimigo. Vociferou para a tripulação que mantivesse a calma, e ficou olhando
a esquiva escuna situada ao longe.
Travis franziu o cenho ao ver a bandeira branca que ondeava na escuna, fechando os olhos devido
ao resplendor do sol. O nome da embarcação não estava claramente escrito, e exibia tão somente a
bandeira branca, sem dúvida, sem a intenção de se render! Uma trégua? Escrutinou a silhueta do
barco e sentiu como o coração retumbava com força. Tinha que ser o Jenny―Lyn, o navio de McCain.
―Baixe um bote ― vociferou.
―Sim, senhor ― O acompanho, senhor? ― perguntou Hanson.
―Não. Irei sozinho.
―Senhor, poderia tratar-se de um corsário perigoso.
Travis começou a rir friamente.
―O capitão desse barco é o homem mais perigoso que conheço, tenente, mas não para mim, ao
menos neste momento.
Quinze minutos depois estava em frente a Brent McCain, que, com o torso nu, parecia bronzeado,
magro e musculoso. Os únicos sinais da guerra de que participava eram as profundas rugas que
rodeavam seus olhos cinzas como o aço. Ele permaneceu em silêncio enquanto Travis subia a bordo
da embarcação e lhe estendeu a mão quando chegou ao convés. Por mais ridículo que parecesse,
Travis teve a sensação de que estava saudando um velho amigo.
―Acompanhe-me ao meu camarote ― disse Brent, e se apressou a seguir, apenas capaz de
controlar o tremor repentino que se havia apoderado dele.
Havia estado muito inquieto, temendo não chegar a tempo de se encontrar com Deland. Havia
recebido a mensagem procedente de Campo Douglas em 10 de agosto. Por sorte, acabava de atracar
em Richmond. Deus! O que teria acontecido se houvesse ficado em Londres, nas Bahamas ou em
qualquer outro lugar afastado da zona do golfo? Não queria nem pensar nisso. Havia percorrido a
rota dos recifes em três dias se esquivando continuamente dos federais. Demorou cinco dias a mais,
quase à beira do pânico, na busca por Travis Deland... e aquilo não era mais que o começo. Não
podia deixar-se devorar pelos nervos. Tudo devia funcionar com a precisão de um relógio.
Abriu a porta do camarote com tanta força que saltaram as dobradiças. Então se forçou a respirar
fundo, e passou ao interior.
Enquanto se sentavam, Brent surprendeu Travis entregando a ele uma nota enrugada, desgastada
por ele a haver lido repetidas vezes. O ianque franziu o cenho e tentou decifrar os garranchos da letra
da carta. Quando reconheceu a assinatura de John e leu o conteúdo ficou gelado. E ao ler a mensagem
que seguia, escrita a lápis e com outra caligrafia, enrugou a testa.
Kendall está aqui… Também Stirling McCain.
Situação desesperada. Moore chega no dia 1 de setembro. Se você tem algum amigo ianque,
utilize-o.
B. randall, Campo Douglas.
Brent não regressou a Richmond de imediato. Kendall se sentia infeliz por isso, mas não supresa.
Começava a conhecer bem Brent e, sabendo de que os informes do serviço de inteligência sulista
anunciava planos de uma invasão ianque do interior de Jacksonville, na Flórida, até a capital do
estado, para conquistá-la, a Kendall pareceu normal que Brent, capitão da marinha confederada,
decidisse abandonar seu navio e se dirigir ao sul com Stirling, para participar da batalha terrestre.
Se não o amasse tanto, e não se preocupasse continuamente, que uma bala pudesse atravessar seu
valente coração, teria entendido o que o levava a lutar, sem que nenhum compromisso o obrigasse a
isso. Brent estava ao redor de três anos envolvido naquela guerra, e até então, nunca havia tido a
oportunidade de ajudar seu próprio e debilitado estado. Tanto Stirling como ele obtiveram uma
permissão especial para combater na batalha de Olustee, e Kendall se alegrou por eles, quando se
soube da vitória rebelde pelos periódicos. Haviam salvado Tallahassee e, enquanto as forças
confederadas estavam sendo obrigadas a entrar em fila em muitos lugares, as da Flórida acabavam de
conseguir um triunfo sensacional. Suspeitava que Brent devia sentir-se tremendamente satisfeito,
porque sabia o que significava para ele a luta.
Tinha também as suas cartas. De fato sua posição não era pior que a de qualquer mulher da
confederação. Algumas não viam os esposos desde o princípio da guerra, e outras não voltariam a vê-
los jamais.
E pelo menos estava em Richmond. Varina Davis, a primeira dama da Confederação, a havia
tratado sempre com amabilidade. A tomou sob a sua tutela na mesma noite que chegou à cidade.
Kendall desfrutou de um longuíssimo banho quente e depois se deleitou comendo pescado, ao calor
do fogo. Terminou com um copo de conhaque de reserva. Varina, que havia disposto para Kendall um
quarto numa velha pousada próxima, sempre a convidava para comer, ou simplesmente para tomar o
chá, de modo que a mantinha informada do progresso da guerra e do capitão Brent McCain.
Kendall adorava muitíssimo a Varina Davis. Todos os comentários sobre a primeira dama do sul
endossavam sua dignidade. Havia perdido um filho queridíssimo no transcurso da guerra. Não se
tratava de um soldado, mas sim de um menino que começava a dar seus primeiros passos. O pequeno
havia caído da sacada de seu lar de Richmond, a Casa Branca da Confederação. Kendall ouvira
muitas histórias que relatavam o acontecido naquele dia, de como o menino morreu nos braços de seu
pai, e de como sua mãe teve que cuidar de cartas de guerra e decisões que tomar, embora somente
fosse por algumas horas... o único tempo de que dispuseram os pais para lamentar a perda. Pensar no
filho de Varina a fazia recordar de outra pequena vitima, o filho de Raposa Vermelha. Sabia que nem
o chefe índio e nem Varina poderiam esquecer, jamais, do horror que haviam testemunhado, e que, até
o fim de seus dias, carregariam uma sensação de angústia pelas crianças.
Certamente Varina não se permitia chorar por seu pesar. Tinha outros filhos para cuidar, e Kendall
estava encantada com a abundante prole dos Davis. Se assombrou com o muitíssimo que gostava das
crianças, e de desejar ter um. Não estava em posição de ser mãe, sabia disso. Era uma mulher
marcada, a esposa desprezada de um homem e amante de outro. Mas mesmo assim...
Sua governanta era uma mulher viúva, mãe de duas filhas, uma de cinco e outra de quatorze anos, e
Kendall passava o tempo livre em sua companhia, costurando, lendo e jogando... e desejando que o
mundo lá fora fosse diferente. Sentia falta de Brent e sonhava com uma autêntica vida no campo. E
temia não poder ter filhos, não poder desfrutar de uma vida em família com Brent. Certamente, nem
tudo era tão mau como parecia.
Kendall percebia que, muito longe de ser condenada ao ostracismo pelos homens de seu país, tal
como achava que ocorreria, havia granjeado uma pequena reputação de heroína, porque fugira de um
esposo ianque para regressar a sua terra natal, tomara um navio federal, que depois cedera ao sul,
fora feita prisioneira em Vicksburg, ao tentar conseguir medicamento para um hospital rebelde, e tudo
isso havia criado um halo de lenda em torno dela. O fato de que soubessem que era a amante do
famoso e idolatrado capitão McCain contribuía, com encanto e romantismo, para propagar a história,
especialmente entre as damas jovens de Richmond.
Kendall achava tudo aquilo um pouco irônico, porque sabia que sua posição era precária. Embora
mais de setecentos mil soldados houvessem morrido em ambos os lados, John Moore estava vivo e
ileso, e a União a considerava uma espiã. Apesar de nunca ter manifestado em público suas ideias a
respeito do futuro do sul, sabia que aquela guerra somente podia ter um final. E então, quando os
federais estivessem no poder... Devia planejar uma fuga. Fazia mais ou menos dois anos que não via
seu esposo. Conhecia John Moore tão bem como Brent, e sabia que, quando pudesse, a encontraria,
mesmo que a guerra durasse cinco anos ou dez mais.
Devia desaparecer, escapar para a Europa, talvez. Mas não agora, não enquanto estivesse
esperando por Brent. E sabia que seu amado seguiria batalhando até o amargo final. Assim, se
dedicou a passar os dias trabalhando no hospital de Richmond, ajudando os soldados feridos, sem
evitar jamais, nem o mau cheiro e nem sua dor. A guerra a havia endurecido, e o hospital de
Vicksburg lhe havia proporcionado a experiência necessária. Os médicos apreciavam a sua
colaboração. Nunca desmaiava nem empalidecia, com a visão de uma ferida cheia de pus ou diante
de uma amputação. Sua ajuda era de um valor incalculável.
O trabalho minava suas forças, mas o contato com os feridos lhe dava ânimo. Em algumas ocasiões
encontrava rostos familiares, homens que haviam crescido junto com ela em Charleston. Ajudá-los,
aliviar sua dor, escrever para eles as cartas, era como recuperar parte de sua vida que considerava
perdida. Os velhos do lugar lhe falavam de seu pai, os pacientes mais jovens evocavam com
melancolia as brincadeiras, as caças, os bailes, e ela recordava que ainda era jovem.
Ao final de março, Varina entregou a ela uma carta de Brent. Escrita no fim de fevereir, onde ele
mostrava sua euforia e sensação de triunfo, por haver contribuido para a expulsão dos ianques das
terras da Flórida, durante a batalha de Olustee. Dizia que tanto ele corno Stirling iriam para
Jacksonville para ver a irmã, e que depois partiriam para Richmond. Stirling esperava visitar sua
esposa e seu filho, que não via desde o inverno de 1861. Stirling devia reincorporar-se na cavalaria
de Jeb Stuart no final de abril. Brent soube que Charlie McPherson, fora à Inglaterra com o
Jenny―Lyn, em busca de suprimentos, e que atracaria em algum porto confederado até abril ou maio.
Não era uma carta muito eloquente. Era curta e descritiva, estava escrita no verso de um velho
impresso de pedido de suprimentos ― as palavras com que concluía: "Com todo meu amor, Brent”,
infundiam forças em Kendall.
De qualquer forma, havia algo naquela carta que a importunava e não soube o que era até várias
semanas depois, quando descobriu outro rosto conhecido no hospital de Richmond. No momento em
que dava água a um soldado com febre muito alta, Kendall notou que ele puxava seu vestido. Retirou
uma mecha de cabelo que caía sobre a testa e se voltou, para encontrar com um semblante que lhe era
estranhamente familiar. O soldado tinha a cara suja e a barba crescida e descuidada. Ao contemplar
aqueles agradáveis olhos de cor avelã, Kendall se deu conta de que era seu cunhado.
―Gene! Gene Mcintosh! Oh, meu Deus, como está? Oh, que estúpida sou! Estava no hospital e...
―Eu me recuperarei, Kendall. Na semana passada, enquanto realizava uma missão de
reconhecimento, um piquete ianque disparou no meu ombro. Conseguiram extrair a bala limpamente.
Suponho que estarei fora daqui em dois dias. Kendall, faz anos que estamos muito preocupados com
você. Lolly conta, em todas as suas cartas, que está sempre rezando para que esteja bem.
Kendall baixou a vista e mordeu os lábios.
―Oh Gene! Deveria ter escrito a mamãe e a Lolly, mas ainda me aterroriza o que meu padrastro
possa tramar!
―Kendall ― interrompeu, assombrado, ― seu padrastro morreu.
―O mataram na guerra? ― perguntou Kendall, surpreendida.
―Não. ― Gene riu. ― O tacanho George bateu as botas comendo toda a carne de boi de que
dispunha, antes que nosso exército a reclamasse. Morreu disso.
Kendall sabia que não era correto alegrar-se com a morte de alguém, mas não pôde evitar sentir-se
satisfeita de que ainda havia justiça no mundo.
―Como estão Lolly e minha mãe? ― perguntou Kendall.― As tem visto?
―Me concederam uma noite de folga pouco antes do Natal ― explicou Gene. ― Nem sequer sabe
que já é tia, não é, Kendall? Lolly e eu tivemos uma menina. Nasceu no verão passado. É linda,
Kendall. Tem os olhos azuis como o céu e o cabelo tão loiro como a luz do sol.
―É maravilhoso, Gene! Sou tia! E Lolly, o bebê e mamãe... estão bem?
―Perfeitamente, Kendall. Às vezes me inquieto pensando nelas. Há rumores de que os ianques
invadirão a Carolina do Sul, se conseguirem entrar ali, porque consideram que fomos nós que
iniciamos a guerra.
―Oh, meu Deus...
―Não tema, Kendall. Não deveria ter dito isso. Contamos com os soldados e generais melhores
do mundo. Os ianques não chegarão jamais a Charleston. Sim, claro que sim, pensou Kendall, que no
fundo não compartilhava da opinião de Gene.
―Kendall, por que não as visita?
A pergunta de Gene a fez comprender o que a preocupava na carta de Brent: família. Ele tinha
obrigações com sua irmã e seu irmão, enquanto que ela não havia visto sua mãe desde o dia em que
Charleston decidiu ser independente da União.
―O farei, Gene. Será uma visita rápida, mas voltarei para casa. ―Deu a seu cunhado um beijo na
testa e virou, decidida a falar, o quanto antes, com o cirugião chefe. Mas se voltou e acrescentou: ―
Gene, é certo que se recuperará?
―Seguro ― respondeu o soldado com um amplo sorriso.
Lolly soube da morte dele na mesma tarde que Kendall chegou a Charleston.
As irmãs levavam um par de horas desfrutando do feliz reencontro, quando um soldado a chamou à
porta. Portava uma carta do oficial comandante de Gene. Ele havia morrido em consequência de uma
infecção pós-operatoria.
A guerra havia fortalecido Lolly. Seu casamento havia sido por amor, e naquele dia, uma parte
dela morreu ao saber da notícia. Kendall se alegrou de estar ali para estreitá-la entre os braços e
ajudá-la a suportar os primeiros momentos traumáticos e de amarga dor.
Havia ansiado passar uns dias falando com sua irmã, rindo e se divertindo com as gracinhas que
fazia sua encantadora sobrinha. Em vez disso, Kendall teve que se encarregar de preparar o velório e
sustentar como pôde uma Lolly chorosa e triste, enquanto enterravam Gene no panteão familiar, com
todas as honras militares que lhe correspondiam.
Sua mãe estava de cama, convalecente de um resfriado mal curado. A abraçou e a beijou, fazendo
caso omisso do medo de que a contagiaria.
―Não me importaria estar enferma durante um mês, mãe! Poder beijá-la vale isso e muito mais.
Sua mãe começou a chorar e a abraçou. Não via a filha mais velha há muitíssimo tempo.
―Temo por mamãe ― reconheceu Lolly falando com Kendall. Enquanto amamentava sua bebê,
que jamais conheceria seu pai, Lolly tentava enxugar as lágrimas. ― Se resfria com demasiada
frequência. Está débil e tenho a sensação de que terei que me dividir em duas. Não me vejo capaz de
me ocupar das duas plantações ao mesmo tempo. Kendall, você não poderia ficar aqui? Cresthaven
será seu, sabe disso.
―Não, Lolly ― repos Kendall penalizada. ― Devo regressar a Richmond. Acharei uma
enfermeira para mamãe e contratarei gente competente para que a ajude.
―A quem? ― perguntou Lolly com amargura. ― Todos os homens que pudessem ser úteis estão
no exército.
―Alguns já voltaram para casa ― assegurou Kendall.
No transcurso da semana seguinte contratou uma mulher livre, de cor, que tinha muito boa mão com
sua mãe, e mais dois homens de confiança, capazes de trabalhar como capatazes nas plantações.
Quando Lolly viu que ambos haviam sido devolvidos para casa, pelo exército, porque haviam
sofrido amputações, se mostrou algo desanimada para logo encolher os ombros com apatia. Kendall
sabia que sua irmã não demoraria muito tempo para recuperar o ânimo.
Apesar da ajuda que representavam os homens que acabavam de empregar, Kendall falou a Lolly
com franqueza, antes de partir.
―Lolly, Charleston não será lugar seguro se...
―Se os ianques ganharem a guerra? ― perguntou sua irmã com secura.
―Sim ―respondeu Kendall em voz baixa.
―O que sugere? ― perguntou Lolly, sem nenhum entusiasmo.
―Ainda não estou segura de todo, mas acredito que sei de um lugar onde há poucas chances de
que haja repercussão da guerra. Logo receberá notícias minhas.
Kendall se interrompeu ao ver o irônico sorriso de seu irmã.
―Kendall, não soubemos nada de você desde que se iniciou a luta. Quando diz logo...
―Oh, não seja injusta! Sabe perfeitamente que me era impossível regressar a Charleston.
―Poderia me ter escrito. Kendall, está ressentida pelo fato de haver sido você e não eu, que foi
vendida a John Moore?
―Não! ― exclamou Kendall, horrorizada, sacudindo a cabeça com veemência. ― Lolly, jamais
estive ressentida com você, em nenhum sentido. Eu era mais velha e mais forte. Nosso padrastro
considerou que poderia me vender por um preço melhor.
Lolly soltou uma gargalhada, e sua loira beleza resplandeceu por um instante, apesar da recente
tragédia que acabava de sofrer.
―Kendall, eu ainda não adquiri força suficiente. Não sirvo para nada. Jamais poderia suportar o
que você teve que enfrentar, seu casamento com John, a estadia num campo de prisioneiros, percorrer
o país inteiro a pé... morro de vontade de conhecer o seu capitão McCain. Os dois protagonizam a
história mais romântica de toda a guerra!
―Não se poderá falar de “os dois” se eu não regressar a Richmond ― murmurou Kendall.
Chegada a hora de partir, sua mãe rompeu a chorar. Estava convencida de que sua filha mais velha
se ocuparia delas e que regressaria quando pudesse. Como a doente se encontrava demasiado débil
para levantar-se da cama, foi Lolly quem dirigiu a Kendall as últimas palavras de despedida. E
ambas as irmãs descobriram que a guerra não havia feito mais que reforçar os laços que as uniam, e
se deram num grande abraço. Kendall beijou a bebê, maravilhada com a perfeição de uma nova vida,
e se despediu dela com palavras carinhosas.
―Kendall ― murmurou Lolly.
―Sim?
―É uma verdadeira ironia que fosse Gene que morresse no lugar de John.
―Sim, é uma ironia, Lolly. Logo voltaremos a nos ver ― acrescentou Kendall.
Lolly sorriu e disse adeus a ela.
Quando tomou o trem com destino a Richmond, Kendall estava tão absorta em seus pensamentos
que nem sequer reparou na presença de nervosos soldados em diversos pontos.
Apesar de seu lúcido pessimismo a respeito do final da guerra, não compreendeu que tudo estava
perdido até que chegou na pousada e soube que Varina Davis havia tentado contactar com ela. Se
refrescou um pouco e saiu a toda pressa para se reunir com a primeira dama da Confederação.
Foi recebida por um mordomo negro que a acompanhou a sala de música onde aguardou enquanto
tomava um chá de menta.
―Oh, Kendall, querida ― exclamou Varina entrando como uma exalação na sala. Como sempre,
sua voz era cálida e modulada. Varina empregava o mesmo tom tanto para dizer que fazia um dia
lindo como para comunicar que os ianques acabavam de tomar Richmond. Era uma mulher bela de
verdade, graciosa, cortês, amável e sempre digna.
―O que sucede, Varina? ― perguntou Kendall.
A primera dama sorriu e se aproximou dela. A crinolina, que se abria sob a cintura de seu vestido
cinza perolado, fazia frufru.
―Em primeiro lugar, querida, vou abandonar a cidade de novo. Esse terrível general Grant está
cada vez mais próximo. E devo dizer algo que sem dúvida, causará uma grande dor. O capitão
McCain esteve aqui durante a sua ausência. Esperava encontrá-la para a levar com ele em seu barco,
mas o tenente McPherson não regressou ainda com a embarcação. O enviaram de novo a Londres. Oh,
oxalá os britânicos decidissem nos oferecer abertamente sua ajuda! Mas temo que não o farão. O
capitão McCain partiu para unir-se ao exército de seu irmão. Acredito que o melhor que poderia fazer
é fugir de Richmond comigo.
―Oh, não! ― lamentou Kendall, com expressão transtornada. ― Oh, não! Brent esteve aqui, e eu
estava fora...
―Tudo bem, querida. Visitou o hospital e soube que você havia ido visitar sua familia...
Varina se interrompeu ao ver Kendall tão abatida.
―Não entende! Eu prometi que permaneceria aqui.
―Kendall, estamos em guerra. Estou certa de que o capitão compreende.
Kendall fez um enérgico gesto de negação.
―Tenho que encontrá-lo. Sabe para onde se dirigia?
―Até o norte, para se incorporar ao exército do general Lee. Não pode segui-lo, Kendall, o
campo está cheio de inimigos.
―Devo ir! Devo ir! Por favor, Varina! Se pode ajudar-me, o faça. Devo alcançá-lo, de uma forma
ou de outra.
Varina suaspirou.
―O presidente Davis não gostará! Está bem, vou descobrir quando parte o próximo correio e
farei os arranjos pertinentes para que vá com ele. Saiba, Kendall, que terá que percorrer caminhos
infernais, a toda velocidade. É imprescindível que as cartas de meu marido cheguem ao general Lee,
o quanto antes.
―Acredite-me, senhora Davis. Estou acostumada aos caminhos infernais e a viajar em condições
adversas!
Kendall e o capitão Melbourne, o mensageiro encarregado de entregar a correspondência do
presidente do sul a seu general mais destacado, chegaram ao acampamento do exército em dois dias.
Kendall voltou a se emocionar com o aspecto esfarrapado dos famintos soldados.
Mas, não era o aspecto dos homens o que mais a preocupava. Seu coração havia batido a ritmo
acelerado durante toda a viagem. No trajeto, seu ânimo passava do medo ao pavor.
Brent havia pedido que ela permanecesse em Richmond e, fosse ou não justo, a promessa que lhe
fez naquele dia tornava sua ausência numa especie de traição. E o tempo que compartilhavam era
sempre tão breve... e tão precioso. Ansiava vê-lo e ao mesmo tempo temia a reação dele. Ensaiou
umas mil vezes as palavras que devia dizer a ele...
Foi ela quem o viu primeiro. Relaxadamente sentado junto a um cavalo que pastava, Brent bebia
café numa xícara, atento às conversas que mantinham seus companheiros. Ao escutar um comentário
em voz baixa, seu olhar cinza pareceu intensificar-se de forma repentina. Então soltou uma
gargalhada e deu um sorriso brincalhão.
Havia mudado muito desde a última vez que o viu. Usava agora barba e bigode bem cuidados, e o
cabelo estava quase na altura do peito, bem arrumado e na moda. Embora vestisse um uniforme tão
andrajoso como o resto dos homens que estavam com ele, mesmo assim ainda representava a perfeita
estampa de um oficial sulista, viril e correto, orgulhoso e galante.
Quis chamá-lo, mas parecia haver emudecido.
De repente, se ouviu um assobio. Um dos soldados a havia visto e expressava daquele modo, sua
surpresa e admiração.
Brent se voltou e arregalou os olhos ao vê-la. À espera de sua reação, o coração de Kendall
parecia ter parado de bater. Seria de enfado, de rechaço?
Brent sorriu, e ela temeu desmaiar de alegria. Ele se aproximou, cortando a distância que os
separava rapidamente, e então, ela estremeceu ao sentir-se abraçada por seus braços, e notar que seus
dedos se afundavam em seu cabelo. Estreitando-a com ternura, a beijou diante de todos os seus
camaradas, com amor, apaixonadamente. Ao sentir a doce carícia de sua boca, seu aroma, sua
presença, as lágrimas rolaram pelas faces dela, que se esqueceu da guerra por um instante, se
esqueceu do mundo, da terra que pisava e do sol que brilhava no céu.
Ele começou a sussurrar palavras confusas em tom angustiado.
―Kendall, ― o que está fazendo aqui?
―Tinha... tinha que o ver. Eu prometi que estaria em Richmond e...
―Kendall, estamos a ponto de enfrentar o exército de Grant!
―Mas eu...
―Espere ― murmurou Brent, separando-se dela e acolhendo suas mãos. Em seus olhos cinzas
brilhavam faíscas de fogo ardente. Assinalando o público de entusiastas rebeldes atrás deles,
acrescentou: ― Acredito que deveríamos buscar um pouco de privacidade.
Alguém tossiu para aclarar a garganta e logo riu.
―Há uma pequena taverna, não muito longe daqui, irmão. Acredito que o acampamento não é
lugar muito adequado para uma dama.
Kendall se voltou até quem havia falado.
―Stirling! ― exclamou com alegria, abraçando-o.
Ele a abraçou, ignorando o seu ciumento irmão.
―Kendall, está preciosa! Todos esses pobres soldados devem pensar que estão vendo um anjo!
Este não é um lugar seguro para você. E voltando-se para o irmão, ― deve tirá-la daqui.
―Ja sei. Mas...
―O desculparei com Stuart. Por todos os diabos, Brent, você é um marinheiro. De fato, nem
deveria estar aqui.
―Regressarei ao amanhecer ― prometeu Brent. E então percebeu que todo o regimento os
observava. Tomou a mão de sua amada. ― Kendall, cumprimente os rapazes da Segunda Cavalaria
da Flórida. Rapazes, esta é Kendall Moore. Diga olá e se despeça, carinho.
Kendall se ruborizou ao ver como a saudavam os homens, mas a embaraçosa situação não durou
muito tempo, já que em seguida Brent a puxou para montá-la, diante dele, no lombo de seu cavalo.
Começaram a cavalgar e saíram do acampamento a trote. Os detiveram várias vezes, e ao explicar
Brent que estava conduzindo a dama a um lugar seguro, permitiram passar.
Não trocaram nenhuma palavra até chegar na desmazelada taverna. Depois de atar o cavalo, Brent
a ajudou a descer e entraram juntos, de mãos dadas. O capitão falou com o dono da pousada, que ao
ver o uniforme de Brent se interessou pelo que estava acontecendo no campo de batalha.
Brent não mentiu.
―O enfrentamento ocorrerá de um momento para outro, cavalheiro. E sim, é verdade, será muito
perto daqui.
―Não seria você um desertor, capitão?
―Não, senhor. O único que quero é passar umas horas com minha... mulher. Logo regressarei ao
fronte.
Pouco depois, entravam, finalmente, no quarto humilde. Brent deu uma olhada ao seu redor,
encolheu os ombros e tomou Kendall nos braços.
―Lamento não poder conseguir algo melhor.
Ela sorriu.
―Deveria recordar, cavalheiro, que já pernoitei mais de uma vez em uma cova. Isso aqui é muito
encantador... enquanto você estiver comigo.
―Estou com você ― murmurou com voz rouca.
―Brent ― disse Kendall, ― sinto muito não estar em Richmond. Dei minha palavra, mas não o
esperava e...
―Me explicará isso depois, Kendall... ―Se interrompeu para pousar seus úmidos e cálidos
lábios nos dela, em seu pescoço, no lóbulo da orelha e na nuca. Ela sentiu como se fossem chamas
ardentes e o abraçou, levantando o peito para depositar a brilhante centelha de seus olhos azuis nos
dele, cinzas como o aço.
―Depois ― repetiu, mostrando estar de acordo ― muito depois...
E, efetivamente, foi muito depois, quando já se havia posto o sol e a lua começava a despontar,
quando, abraçados, saciados e felizes, conversaram.
Brent tinha a vista fixa no teto e o braço sob a cabeça. Kendall repousava a face contra seu peito
nu, enquanto ele passava os dedos em seu cabelo.
―Kendall, não estava chateado. Me alegrei muito ao vê-la, mas teria preferido que não tivesse
vindo. Amanhã este lugar cobrará vida de um modo atroz. Lee planeja o encontro com Grant em
Wilderness, com a esperança de tirar vantagem do fato de estar em plena natureza. Somos
tremendamente inferiores em número.
Os dedos de Kendall o acariciavam no torso.
―Brent, não deveria estar aqui. Abandone esta batalha, por favor. Tenho medo.
Ele guardou silêncio por uns segundos.
―Kendall, reprimi o impulso de a estrangular ao menos meia dezena de vezes. Estes últimos
meses me serviram para refletir sobre sua conduta. Em certo sentido me comportei de forma injusta.
A amo, Kendall, a amo de verdade e a tento compreender. Não posso evitar lhe amar, Kendall. Nem a
guerra, nem o tempo, nem a distância são capazes de modificar meus sentimentos. E sei que não
posso fazê-la mudar. O único que posso conseguir é a domar um pouco, ao preço que for. Kendall,
devo participar desta batalha. A Confederação precisa de todos e de cada um dos homens
disponíveis.
Ela procurava não chorar, mas não pôde evitar que tremesse a voz.
―Não o entendo, Brent. Não há razão...
Ele a interrompeu amavelmente.
―Existem todas as razões, Kendall: o sul, você, eu, ... nós.
―A sorte do sul acabou, Brent.
―Não diga isso, Kendall ― espetou.
―É verdade, e você sabe disso, Brent. Sabia já na noite em que nos conhecemos, na noite em que
Carolina do Sul se proclamou independente da União. Naquele tempo, a única sonhadora era eu.
―Kendall, eu não sei nada, exceto que amanhã terei que combater. E que os confederados
possuem espírito de luta e tenacidade. ― De repente se colocou sobre ela, tomando suas mãos entre
as dele. ― Kendall, é impossível distinguir perfeitamente o que está bem do que está mal, porque o
mundo não é branco ou negro, existem sombras cinzas. Devemos lutar pelo que nós consideramos
correto. Você é uma mulher casada, Kendall, mas nosso amor é bom, não importa onde nos leve. E,
recordando agora o ocorrido em Kentucky, quando arremetemos contra aquela velha, digo que sua
ação poderia ter acarretado consequências realmente terriveis. Mas você fez o que julgava correto,
Kendall. Acredito que agora comprendo seu comportamento. Ah, Kendall... sempre será como uma
dor nas tripas.
―Brent!
―Mas eu a amo por esse motivo. A amo por seu orgulho e decisão. Não existe homem capaz de a
fazer mudar, nem sequer eu. Eu peço, por favor, que compreenda por que devo participar desta
batalha. Além disso, suplico que me prometa algo.
―O que? ― perguntou ela, duvidando entre dar a ele um bofetão por dizer que era como uma dor
nas tripas, ou abraçá-lo, para impedir que se fosse de novo.
―Quero que volte para casa, o quanto antes possível, quando digo "a casa”, me refiro a de Harold
e Amy Armstrong. Richmond não é um lugar seguro. Kendall se dispunha a protestar, mas ele a calou
com um cálido beijo.
―Assim que puder, a irei buscar ― assegurou ele. ― E agora, prometa que me esperará ali.
Incapaz de falar, Kendall assentiu com um gesto de cabeça.
As lágrimas empanavam os olhos dela, e umedeciam suas faces enquanto faziam amor de novo,
inclusive no momento mais doce de êxtase. Com as sequelas de sua paixão, Brent a encheu de beijos,
abraçando-a. Antes de dormir, ela ouviu um cálido sussurro.
―Irei buscá-la, Kendall, eu prometo.
Quando despertou, antes do amanhecer, ele já havia ido. Se ouvia os estampidos dos canhões e o
estrondo das granadas. A campanha de Wilderness acabava de começar.
Nunca, em toda sua vida, Brent havia presenciado algo tão imponente como a campanha de
Wilderness. Partiram a cavalo e foram uma das primeiras unidades que começaram a lutar. No
bosque, sob um céu claro e fresco, reinava calma. Se ouvia o canto dos pássaros e se respirava o
doce aroma do verde das árvores.
Na metade do caminho foram obrigados a entrar em ação pela primeira vez, ao receber uma chuva
de balas vindas das árvores que estavam à esquerda. Os cavalos se espantaram, e os cavaleiros
tiveram que abandoná-los e cruzar o caminho a pé para se protegerem.
Então começaram os canhões, que transformaram as árvores em uma fogueira.
Brent ouviu Stirling ordenar a seus homens que se reordenassem. Inclusive ele mesmo se batia em
retirada quando viu Billy Christian, um jovem de Tallahassee. Se supunha que muitos jovens como
ele não deviam combater em uma guerra como aquela. Mas Billy estava ali desde o primeiro dia, ou
ao menos isso era o que Stirling havia contado a Brent. Havia completado treze anos fazia tão
somente uma semana, e dava a impressão de que levava toda a vida obrigando aos homens a marcar o
passo. Era órfão, e seu velho tio Josh, o único parente que lhe restava, havia se incorporado a
unidade e falecido pouco depois.
Naquele momento, Billy estava deitado no chão, no meio do fogo, rodeado de homens mortos e
cavalos agonizantes, árvores que ardiam e fumaça sufocante. Haviam lhe atirado na perna.
Brent ouviu o garoto gritar e retrocedeu até a mata incendiada, sem afastar a vista dos ramos das
árvores. Ao ouvir o crepitar e a queda de um deles a sua frente, se afastou. As chamas eram muito
altas e sentia o calor do fogo na cara. Encontrou Billy e estudou a ferida. O garoto abriu os olhos,
cheios de dor, e o viu.
―Capitão, será melhor que a partir de agora não se afaste da água, em? ― disse, tentando brincar.
Voltou a gritar e Brent rasgou a perna de suas calças para realizar um torniquete que amarrou debaixo
do joelho. O mais provável era que Billy perdesse a perna. Brent tão somente pretendia que não
perdesse também a vida.
―Capitão, saia daqui. O bosque arderá por inteiro ―lhe avisou Billy.
―Bem, isto já está acontecendo.
Brent se levantou como pôde e acolheu Billy nos braços como se fosse um bebê, tentando enxergar
algo entre a espessa fumaça e a pólvora negra. O peso de Billy o fazia cambalear, mas estava
decidido a não perder o sentido de orientação, estavam sós no bosque, no meio aquele inferno.
Uma árvore crepitou e caiu a suas costas. Brent acelerou a marcha. Acreditou ter ouvido passos
um pouco mais adiante e começou a correr.
Logo viu um cavalo montado por um soldado com um ferimento no braço e outro no estômago. Ao
ver Brent e o garoto, o cavaleiro se deteve.
―Senhor, posso dar o cavalo ― disse o ferido com uma careta de dor.
―Estou ileso e você necessita de assistência urgente. Não me ofereça o cavalo, soldado.
―Pode subir alguém mais, sem que este animal derrube, senhor! ―exclamou o homem do braço
ensanguentado.
―Está bem. Montará o garoto. Eu irei andando ― disse Brent. ― Tire o Billy daqui.
―Sim, capitão! ― disse o soldado saudando-o.
Brent subiu Billy no cavalo. Aquele esquálido animal não parecia capaz de carregar dois homens.
Mas quando o soldado o esporeou, o cavalo começou a galopar, se afastando a uma velocidade
assombrosa do campo de fogo e morte.
Brent seguiu tão depressa quanto pôde. O calor era insuportável e quase o impedia de respirar.
Voltou sobre seus passos, mas se perdeu em seguida.. Então, entre a fumaça, acreditou divisar uma
casinha de campo. Se deteve. Nesse instante, o fogo atingiu uma árvore a suas costas. Ouviu o crepitar
das chamas e a queda da madeira. Se voltou, disposto a sair o quanto antes dali. Conseguiu que
aquela árvore não caísse sobre ele. Um dos ramos que começavam a arder se desprendeu. Brent
levantou os braços, mas não com a rapidez suficiente para se esquivar do golpe. O galho bateu em sua
cabeça. A paisagem cinza e o fogo vermelho que o salpicava desapareceram. Lutou para se manter
consciente, mas perdeu os sentidos...
Momentos depois pensou que ainda seguia com vida. Ou que havia morrido e que estava no
inferno, porque o calor era agoniante. Tentou se levantar. Não podia sucumbir naquela escuridão.
Quando levantou a cabeça, despencou de novo.
Não podia morrer. Havia prometido a Kendall que não morreria. As vezes, ao fechar os olhos, a
via correr pela praia, enquanto a água de cor turquesa salpicava seus pés nus, e os raios do sol
iluminavam seu cabelo. Ele ia a seu encontro...
Depois voltava, de repente, à realidade do campo de batalha. Se levantou como pôde. Havia
prometido a Kendall que seguiria com vida.
―Kendall! ― Sussurrou seu nome, o repetiu em voz alta na solidão do bosque em chamas e
desmaiou.
Alguém o observava. Brent via uma cabeleira abundante. Kendall, ali... Não, não era Kendall. O
cabelo era de cor cinza. Tentou ficar em pé de novo e viu uma anciã de rosto triste e magro que havia
surgido do nada.
―Senhora, tenho que sair daqui ― disse.
―Voce está meio morto, cavalheiro ― afirmou.
Tentou brincar.
―Somente meio?
Ela sorriu. Alguma vez foi jovem. Obviamente, antes da guerra.
O rosto desapareceu. Notou que o agarravam pelos ombros. Ao ser arrastado, golpeou a cabeça
contra o chão.
Kendall... Lhe havia dado sua palavra. Senhor, a amava tanto... Tinha que se reunir com ela. Se
reuniria com ela. Maldita seja, devia sobreviver! Parecia que o fogo, estava cada vez mais vivo,
fazia brilhar o bosque. Logo o calor e a dor desapareceram, e o mundo se converteu em uma doce
sombra escura...
Até o meio dia começou a se fazer evidente que a pousada não tardaria em se converter em frente
de batalha. Kendall e o resto dos civis que ali se encontravam se refugiaram na adega.
Com o passar das horas, a intensidade do bombardeio aumentou. Pela tarde, a pousada fazia parte
do fronte rebelde. Soldados feridos invadiam a estância, assim como os homens que os carregavam
para aquele lugar com o propósito de afastá-los do alcance do fogo inimigo.
Kendall, incapaz de suportar a espera por mais tempo, subiu pela escadinha da adega. Os rebeldes
se surpreenderam ao vê-la e não protestaram ao compreender que podia ser de utilidade. Ajudou a
vendar os feridos e oferecia água a quem continuava lutando, enquanto escutava com avidez a
informação que chegava à taverna sobre as tropas de infantaria. Estavam rodeadas pela cavalaria de
Jeb Stuart, que mantinha a linha de frente com tenacidade.
Curiosamente, o estrondo dos canhões foi se apagando. Explicaram a Kendall que, devido ao
incêndio que havia estalado no bosque, a fumaça era tão espessa que nenhum dos lados se atrevia a
utilizar a artilharia pesada, já que as balas poderiam destroçar as próprias tropas de quem disparava.
Naquele momento, o combate ocorria corpo a corpo.
Com o sol se pondo, chegou um intervalo de calma. Os soldados da cavalaria se precipitaram na
pousada para respirar, antes de se unirem de novo a seus esgotados e dispersos companheiros.
Kendall rezava para ver entrar Brent. O coração lhe deu um salto quando reconheceu os uniformes
do Segundo batalhão de Cavalaria da Flórida. Então viu Stirling McCain. Esteve a ponto de chamá-lo
a gritos, quando percebeu que ele a buscava com o olhar por todo o local.
―Kendall, Meu Deus! Continua aqui! Deveria ter regressado a Richmond. Vá no carroção dos
feridos.
―Onde está Brent? ― se apressou a perguntar Kendall.
Stirling vacilou.
―Não o sei.
―Estavam juntos. O que ocorreu, Stirling?
Este a acolheu pelos ombros.
―O bosque está em chamas! Os homens de ambos os lados morrem, tanto por causa do fogo,
como abatidos pelas balas inimigas. É impossível saber se quem está a sua frente é amigo ou inimigo,
a menos que se encontre a um palmo de distância.
Kendall se afastou, quase histérica.
―Vou sair, Stirling. Talvez esteja ferido.
Passou correndo por a Stirling, disposta a ir ao bosque.
―Kendall, espere! ― exclamou Stirling, seguindo-a. ― Há fogo por toda parte!
Sabia que Stirling corria atrás dela, mas o ignorou. Entrou no bosque a toda velocidade e se deteve
ao cabo de um tempo para olhar ao redor, tossindo e meio asfixiada com a densa fumaça que a
rodeava. Stirling tinha razão. Entre a escuridão da noite e a fumaça cinza, era impossível ver algo.
―Brent! ― chamou. Um silêncio sepulcral foi a resposta, com somente o barulho do súbito
crepitar de uma gigantesca árvore ao cair sob a fúria do fogo. Ao vê-la cair, gritou e saltou para trás a
fim de evitar que caísse em cima dela. Era difícil para ela respirar. Logo tropeçou em um monte de
cadáveres. Sentiu que uma mão a agarrava pelo tornozelo.
―Me ajude, senhora, pelo amor de Deus, me ajude.
Kendall baixou a vista e descobriu um rosto cheio de dor e sujo de cinzas que a olhava fixamente.
Era um homem jovem, vestido de azul, que se retorcia de medo e de dor.
―Por Deus, ao menos dispare em mim, senhora. Não permita que me queime. Por favor, tenha
compaixão.
―Pode se apoiar em mim? ― perguntou Kendall, sufocada.
―Sim, mas tenho uma perna destroçada.
Kendall se agachou e levantou o homem pela cintura ― Se reunisse forças suficientes, poderia
arrastá-lo.
O soldado gritou uma vez, e, ao vê-la se deter, lhe pediu que seguisse.
―Deus a bendiga, senhora. Você é uma santa.
―Sou uma rebelde ― replicou Kendall.
―Uma santa rebelde...
A fumaça começava a clarear. Kendall avistou gente que se arrastava com lentidão não muito longe
dali. Semelhavam a sombras fantasmagóricas, que vagavam por aquela noite fatal e horripilante.
―Ajudem-me! ― gritou.
Um homem se aproximou de Kendall, que ficou aterrorizada ao ver que também vestia azul.
―Senhora ― disse ele, descarregando-a daquele fardo humano, ― tem que sair daqui. O bosque
inteiro arde como um pavio!
―Devo... devo encontrar um homem ― afirmou.
O ianque titubeou um instante.
―Um rebelde?
Kendall mordeu os lábios e assentiu com a cabeça. Logo um resplendor alaranjado iluminou a
noite e um estrondo ameaçador invadiu o ambiente. Uma árvore que estava a suas costas se havia
convertido em uma imensa chama, que se elevava até o céu.
―Nao pode retroceder, senhora, não encontrará ninguém com vida naquela direção. Acompanhe
—me. A levarei ao tenente Bauer.
A Kendall não lhe importou que a pegasse pelo braço.
Estava coberta de cinzas, abatida e desesperada. Brent havia se perdido entre as chamas. Nada
mais importava.
Nada.
Tinha a impressão de que levava horas vagando com aquele grupo formado por uma vintena de
homens, que recolhiam durante a caminhada todos os feridos que encontravam para transportá-los em
macas.
Avançavam em zig zag para evitar o fogo. Por fim saíram do bosque e chegaram a um
acampamento do norte.
A conduziram à tenda que constituía o quartel general, onde a recebeu um ancião bigodudo e de
aspecto fatigado. Sem dúvida, havia estado combatendo. Seu uniforme, que não era azul, mas sim
negro, estava completamente chamuscado e cheirava a fumaça, como, pensou Kendall, também ela
deveria estar cheirando.
―Encontramos esta bonita rebelde, tenente Bauer ― disse o jovem ianque. ― O que fazemos com
ela?
Os olhos verdes do ancião a observavam com surpresa e compaixão. Coberta de negrume do fogo,
com o cabelo desgrenhado e os ombros caídos de abatimento, devia oferecer um aspecto deplorável .
―Como chegou a este inferno? ― perguntou o tenente, sacudindo a cabeça. ― Não importa. ― Se
voltou até seu subordinado. ― Se esta dama é rebelde, a entregaremos a seu pessoal. Prepare um
meio de transporte.
As lágrimas encheram os olhos dela, comovida por sua amabilidade.
―Obrigado, senhor ― foi apenas o que conseguiu sussurrar.
―Já temos o suficiente com a dor e o horror que nos rodeia ― replicou ele, encerrando assim o
assunto.
A devolveram ao fronte rebelde a cavalo e foi entregue a um emissário de Robert E. Lee. Não
pôde ver o general sulista. Jeb Stuart havia sido ferido de morte, e Lee se ocupava nesse em ordenar
os preparativos pertinentes para enviar o grande comandante da cavalaria a Richmond.
A Kendall nada importava mais. Permaneceu de pé, tremendo diante de uma fogueira e deixando a
decisão sobre seu futuro imediato nas mãos dos oficiais.
Alguém tocou em seu braço. Era Stirling. A abraçou com força.
―Kendall, graças a Deus. ― Guardou silêncio um instante, para logo a contemplar nos olhos sem
vida. ― Estão a ponto de partir para Richmond com alguns dos feridos, Kendall. Deve ir com eles.
Ela negou com a cabeça, cega pelas lágrimas.
―Não posso ir.
―Kendall, não ajudará em nada a Brent se volta a correr até os ianques... ou se morrer queimada
no bosque. Me mantenrei em contato com você. Se de verdade ama o meu irmão, cuide-se. Regresse à
Flórida enquanto pode. ― Stirling se interrompeu de novo para abraçá-la. ― Poderia estar levando
em seu ventre um filho dele, Kendall.
Kendall albergava sérias duvidas a respeito, mas não as manifestou. Se haviam deitado juntos em
muitas ocasiões, haviam transcorrido muitos meses... e já poderia haver tido um filho dele. Mesmo
isso lhe havia sido negado.
―Kendall, deve ir embora daqui ― insistiu Stirling.
―Esperarei em Richmond.
Stirling abriu a boca com intenção de protestar, mas mudou de opinião e disse: ―Estarei em
contato com você, Kendall. Eu prometo.
Stirling cumpriu sua palavra. Kendall recebia carta dele pelo menos uma vez por mês. Não havia
nem rastro de Brent, escrevia Stirling, nem haviam encontrado seu corpo. As cartas eram, certamente
esperançosas. Stirling resistia a crer que seu irmão houvesse morrido. Tal como Kendall.
Apesar de que em suas cartas a apressava para sair rapidamente de Richmond, ela se negava.
Inclusive rechaçou o convite de Charlie McPherson para levá-la até o lar de Amy a bordo do
Jenny―Lyn.
―Regressarei dentro de dois meses, senhorita ― afirmou Charlie. ― Então virá comigo. Assim
teria querido o capitão.
Kendall sorriu sem vontade. Sabia que não o acompanharia.
Meses depois, já entrado outubro, Brent continuava incluído na lista de desaparecidos. E, segundo
o prometido, Charlie voltou para buscá-la.
―Não, Charlie. Não irei até que saiba o que ocorreu a... ― Se interrompeu ante a visão de outro
homem que, situado atrás de Charlie, resultava totalmente fora de contexto num salão civilizado
como aquele. ― Raposa Vermelha — sussurrou, assombrada.
Se aproximou dela, com seu olhar escuro, severo e insondável, para tomá-la entre seus fortes
braços, que infundiram certeza a ela.
―Virá, Kendall. Quando puder, Falcão da Noite irá buscá-la na baía.
―Eu...
―Conheço o meu amigo ― sentenciou Raposa Vermelha. ― E vou levar a sua mulher ao lugar
onde ele desejaria que estivesse.
Kendall claudicou ante o poder de convicção do seminola e recordou as palavras de Brent, de que
quando pudesse, iria buscá-la na praia, onde ela o esperaria... Richmond estava se convertendo num
lugar cada vez mais perigoso. O cerco que os ianques haviam estendido a capital se estreitava mais a
cada dia.
―Os acompanharei ―sussurrou.
Burlaram o bloqueio de Richmond muito fácilmente. Charlie era um aluno avançado de seu
capitão. Kendall não se afastou de Raposa Vermelha durante toda a viagem ― Confiava nele, e sua
proximidade a reconfortava. Certamente, a conversa que mantiveram uma noite estrelada e de céu
aveludado a afastou dele.
―Kendall Moore, aprecio Falcão da Noite. Pressinto que segue com vida. E sou de carne e osso,
embora minha pele seja vermelha. Você é uma mulher muito bonita e eu a amo ― Permanece ao meu
lado com toda a sua inocência , mas não pode evitar que sinta tentação de trair a meu irmão.
Kendall o olhou surpreendida, com os olhos arregalados. Então compreendeu que ele a amava, e
que estava tão só como ela. E suspeitou que se Brent McCain não houvesse existido, teria amado
Raposa Vermelha. Era um dos homens mais fortes que havia conhecido, tanto por seu caráter, como
por sua personalidade.
E os dois amavam Brent, e estavam seguros de que regressaria.
―Sinto muito ― sussurrou, afastando-se dele.
A acolheu pela mão.
―Não, não vá. Ele é meu irmão, você é minha irmã. Não devemos perder nossos laços de
amizade.
―Não ― disse Kendall, mostrando estar de acordo com ele, estudando a sabedoria ancestral de
seu profundo olhar escuro. ― Não vamos fazê-lo.
Chegaram à baía em novembro. No princípio do ano, a situação era desesperadora para o sul.
Sherman pôs fogo em toda a Georgia, utilizando táticas devastadoras, destruindo tudo a seu passo.
Kendall começou a temer por sua familia e por esse motivo, quando Charlie fez escala na baía em
fevereiro, suplicou a ele que tentasse se aproximar de Charleston para trazer sua irmã, sua mãe e sua
sobrinha até o sul. Lolly e sua pequena chegaram na baía num dia ventoso do mês de março, e Kendall
soube então do falecimento de sua mãe. O fato não a afetou em demasiado. Fazia muito tempo que
havia perdido a sensibilidade. Além disso, talvez fosse melhor assim, pois sua mãe não teria forças
suficientes para ver como o sul se rompia em mil pedaços.
Amy Armstrong estava encantada com o bebê. Se ocupava da pequena Eugenia com muita
frequência, o que resultava um beneficio para a menina, já que Lolly havia ficado tão insensível como
Kendall. Harry ajudou a sua esposa a acondicionar uma velha cabana abandonada, situada na parte
de trás da propriedade, e Lolly passava ali a maior parte do tempo, mantendo a calma, totalmente
alheia ao que acontecia ao redor.
O telégrafo e as conexões ferroviárias foram cortadas em todo sul. As notícias chegavam
esporadicamente e quando o faziam, transmitiam a sensação de que a sorte estava acabada. Charlie
partiu de novo no final de março, e Kendall se perguntou se voltaria a vê-lo alguma vez.
Chegou a primavera. Apesar de sua exuberante beleza e os nítidos céus azuis, os dias transcorriam
como uma sombra cinzenta.
Capítulo 22
Primavera de 1865
Kendall passava todo o tempo que podia na praia. Era consciente de que a medida que o tempo
passava, inspirava cada vez mais pena aos demais, que pensavam que ela havia ficado louca por
continuar esperando daquela maneira.
Mas a vida sem esperança era desencorajadora e insuportável. Passavam os meses, e sabia que as
chances de ver Brent com vida diminuía a cada dia. Seu coração acreditava que ele era invencível e
que estava vivo.
E que viria para buscá-la.
Algumas vezes, Kendall procurava se comportar da forma mais racional possível. Ajudava Amy
no jardim, costurava, cozinhava e se encarregava da maior parte das tarefas domésticas. Sabia que
Amy estava preocupada com ela, que estava convencida de que Brent havia morrido e considerava
que não era bom que Kendall mantivesse viva a chama da esperança e se aferrasse ao passado. Lolly,
por sua parte, se dedicava a limpar a cabana que Harry lhe havia dado, para convertê-la num lugar
confortável tanto para ela como para sua pequena.
Tão somente Raposa Vermelha parecia comprendê-la. Kendall sabia que ele estava sempre
próximo à praia para vigiá-la e desaparecia depois, sigilosamente. A comovia que se preocupasse
por ela e agradecia sua compreensão. De vez em quando ele lhe pedia que o acompanhasse aos
Glades, e ela aceitava, feliz de poder escapar dos comentários ou conselhos acerca da solidão que
vivia. Raposa Vermelha queria a Brent como a um irmão de sangue. Quando estava em companhia de
Kendall se sentia mais unido a Brent.
Desde aquele dia de confissões a bordo do Jenny―Lyn, não se haviam mais tocado, mas seus
laços de amizade se haviam tornado tão fortes que nada poderia rompê-los, jamais. Assim, sem se
importar com o que falassem, ela continuava esperando. Se sentava na margem contemplando o mar,
com as mãos nos joelhos e o queixo apoiado nos nós dos dedos. O mês de abril estava sendo
encantador. Soprava uma brisa agradável, e o resplendor do sol se refletia na água. Era como se as
ondas do mar, com seu contínuo ir e vir, amortizassem a dor de seu coração. Fechou os olhos para
concentrar-se melhor nos sons que a rodeavam, o fluxo e o refluxo da água, o rumor das folhas das
palmeiras, o ocasional canto dos pássaros.
Logo percebeu algo. De fato não se ouvia nada, simplesmente percebeu um movimento. E sorriu,
abrindo os olhos para contemplar de novo o mar.
―Raposa Vermelha, não é necessário que me vigie. Me conhece o suficiente para saber que não
me jogarei na água para me afogar.
Não obteve resposta. Um estranho formigamento a percorreu pelas costas, e como que alertada por
um sexto sentido, voltou a cabeça. Então foi como se o coração deixasse de bater para começar
depois a martelar o seu peito.
Podia ter ficado pasma, mas não foi assim, porque sempre havia estado segura de que seguia com
vida... e iria buscá-la ali, naquela praia.
E ali estava, vivo, mais alto, formoso e bronzeado do que nunca, com seu uniforme cinza com
adornos dourados todo desgastado. A cor de seus olhos era um cinza escuro. A contemplava em
silêncio. A dor e o desejo de seu melancólico olhar cinza era muito mais eloquente que qualquer
palavra que pudesse sair de sua boca.
―Brent... ― sussurrou, ficando em pé sem afastar a vista dele, como para se assegurar de que
estava ali. E começou a correr até ele para abraçar, acariciar e beijar-lhe, chorando de alegria pelo
reencontro.
Estiveram durante um bom tempo enlaçados. Kendall pensou que a vida era maravilhosa. Ele
estava ali, e a força inteira do mundo se concentrava em seu abraço. Sentia ao redor a agradável brisa
primaveril, o calor do sol, ouvia a canção das ondas, que os envolvia com seu som. Permaneceram
em silêncio durante muito, muito tempo, juntos, saboreando aquele abraço, aquela carícia de ternura e
amor.
Foi Kendall quem finalmente se afastou para, enxugar as lágrimas que rolavam por suas faces, e
interrogou a ele.
―Onde esteve? Por que não me escreveu? Depois da batalha de Wilderness quase enloqueci...
―Eu enviei uma mensagem ― explicou, estudando suas feições e acariciando os cachos que
caíam sobre sua testa. ― Mas parece que cortaram a maioria das linhas de telégrafo. Pelo que sei,
nada tem chegado a seu destino.
―O que ocorreu? Onde esteve?
Encolheu os ombros e a estreitou nos braços.
―Me feriram e me vi cercado pelas chamas. Permaneci ali uma eternidade, tempo suficiente para
cair num terrível estado febril. Uma mulher me encontrou e me levou para sua casa. Mais tarde, me
contou que havia estado muito tempo delirando, e que depois fiquei tão débil que somente dizia
incoerências. Fui incapaz de me levantar até o mês de agosto e não pude regressar a Richmond até
novembro. O primeiro que fiz foi lhe enviar uma mensagem. Charlie acaba de dizer-me que nunca a
recebeu.
Kendall afundou o rosto na cálida pele de seu pescoço.
―Já não importa... Está aqui. Sempre soube que viria, Brent... ― Se interrompeu ao notar sua
rigidez e se afastou para olhar aos seus olhos, temerosa e confusa. ― O que sucede, Brent? O que...?
―Kendall, seguimos em guerra.
O olhou com incredulidade e retrocedeu, afastando-se de seus braços.
―Não! ― exclamou Kendall. ― Não permitirei que volte à guerra! Além disso, como pensa ir?
Charlie levou o Jenny―Lyn às Bahamas.
―Vim no Rebel's Pride ― respondeu ele com toda tranquilidade.
Kendall não acreditou no que ouvia. O barco que ela havia feito seu, seu barco o levaria para
longe dela.
―Não! ― repetiu e de repente começou a correr pela areia, se balançou sobre ele e começou a
dar socos no peito dele. ― Não! A Confederação me arrebatou tudo que eu possuía! Não irá. Você,
não! A acolheu pelos punhos e a trouxe até si, sem conseguir, certamente, deter a frenética atitude
dela.
―Kendall, vim para estar com a mulher que amo, não para receber ordens de uma harpia histérica!
―Por que? Leva quase quatro anos me dando ordens! ― vociferou Kendall enloquecida, sem
amenizar a briga. Aquilo era a gota que transbordava do copo. Não suportaria perdê-lo outra vez, se
romperia em mil pedaços. — Não, não, não! ― exclamou. Estava tão encolerizada que conseguiu se
separar dele para seguir golpeando-lhe o peito.
―Kendall! Basta! ― pediu ele. Voltou a arremeter contra ela e desta vez, a sujeitou pelos punhos,
e travou os tornozelos dela entre suas botas até fazê-la cair sobre a areia. Com grande agilidade se
colocou sobre ela e, com os quadris imobilizou seu corpo trêmulo, segurando-a pelos braços, e
conseguiu dominá-la. ― Kendall, se não obedeço as ordens, serei condenado por deserção. E se não
ganhamos a guerra, não nos sobrará nada. Soube que John Moore segue com vida. Se os ianques
vencem, ficará quase impossível encontrar um juiz que lhe conceda o divórcio. Kendall, escute,
nosso destino está unido ao da Confederação.
―E o que me importa não obter o divórcio ! ― murmurou Kendall. ― Se morrer, não o
necessitarei para nada. Brent, por favor! Poderíamos ir no barco, nos refugiar na Inglaterra ou nas
Bahamas.
―Kendall, nem você e nem eu pode ir, já sabe disso!
―Não sei do que fala! — As lágrimas assomavam por seus olhos, e para evitar que ele as visse
tratou de se libertar de seu abraço, apartando-o para o lado. Com o movimento se desabotoaram os
dois botões superiores do vestido, que deixaram em descoberto os dois montículos de marfim que
faziam seus seios. Notou como o corpo de Brent se tornava rígido de imediato, e descobriu em seu
olhar aquela paixão latente que tão bem conhecia. Se sentira morrer de felicidade ao vê-lo tão
somente uns momentos antes. Teria se desnudado despreocupadamente para receber suas carícias.
Jamais havia esquecido o ardor da paixão que compartilhavam. A mera presença dequele homem
parecia despertar a ânsia e o desejo que dormiam em seu interior. Era consciente de que, inclusive em
uma situação como na que se encontrava, seu corpo a trairia, apesar de sua determinação de impor
sua vontade.
Inspirou profundamente.
―Brent, não se atreva...
Se atreveu. Sua boca reclamava os lábios dela com uma fome voraz, calando com maestria
qualquer protesto ou rechaço. Possuía a força de um temporal capaz de desafiar qualquer obstáculo.
Sua língua bebia o néctar de sua boca, invadindo-a, explorando—a, solicitando ansiosamente uma
resposta.
Ela manteve distância até que ficou sem respiração, e sua mente foi varrida totalmente pela energia
daquela tormenta avassaladora. Seu próprio desejo era demasiado intenso ― Lhe devolveu o beijo
com uma paixão quase colérica, desesperada por saber-se incapaz de rechaçá-lo. Então, o fogo que a
abrasava brotou, para debater-se primeiro e fundir-se com o de Brent depois.
Ele introduziu a mão pelo decote de seu vestido, até colocá-la sobre um seio, abarcando-o em sua
totalidade, como se quisesse capturá-lo, a rugosidade da pele de sua mão lhe endureceu os mamilos,
excitando-a. Começou a sentir um ardor que a queimava em seu interior. Tremia, estava enraivecida,
mas não podia evitar reagir com as carícias. Enquanto ele a levantava, para com dedos trêmulos tirá-
la daquele vestido, baixou a vista. Em seguida, enquanto ele retirava as anáguas dela, sentiu como a
areia roçava suas costas nuas. Brent tomou ar ao vê-la daquele modo. O tempo e a baía lhe haviam
feito bem. Seus seios haviam alcançado de novo sua plenitude, e suas curvas se mostravam
voluptuosas. Sua cintura era um convite para as enormes mãos de um homem.
Quando ele começou a tirar a roupa dela, Kendall abriu os olhos para observá-lo, mas quando o
viu nu diante dela, voltou a fechá-los, a cabeça lhe dando voltas.
Parecia duro e esplendidamente musculoso. Era robusto, mas esbelto, e sua virilidade se mostrava
tão implacável como seus olhos cinzas como o aço.
O amava, o adorava, o necessitava... e o desejava. Durante os longos meses de espera havia
descoberto que, se ele chegasse a morrer, a vida perderia todo seu sentido.
―Não! ―exclamou Kendall de repente, pondo-se em pé.
―Que demônios... ― balbuciou ele, seguindo-a, quando começou a correr, nua, em direção aos
arbustos. ― Kendall! ― chamou enraivecido, sem poder acreditar.
Ela desapareceu entre as plantações de uvas e palmitos. Ele não demorou a alcançá-la e,
agarrando—a pelo cabelo, a obrigou a se deter. A fez girar e a atraiu para si.
―Kendall!
Ela começou a socá-lo, cega por seu amargo delírio. Brent a rodeou com os braços para
imobilizá-la, e ambos caíram sobre um monte de folhas. Kendall voltou a cabeça, se negando a
enfrentar seu olhar.
―Não permitirei que o matem. Não...
―Kendall, não vou morrer!
―Não o faça. Por favor. Brent, não! Tentei por todos os meios aprender a viver sem você. E agora
que regressou pretende ir de novo. Tenho vivido à base de esperanças, totalmente sozinha. Oh, Deus,
não o posso suportar perder outra vez, não posso!
Seus protestos de nada serviram. Ele a havia rodeado o pescoço com os braços e buscava seus
lábios com a paixão acesa. Ela afundou os dedos em seu cabelo, iludindo seus lábios para, abraçada
a ele, beijar-lhe os ombros. Não, nunca poderia aprender a viver sem ele e, naquele momento, com o
esplendoroso sol sobre eles, deitados sob o calor que acariciava seus corpos nus, o desejava.
Quando estava a seu lado, o queria todo para ela e permaneceria unida a ele tanto tempo quanto lhe
fosse possível.
―Brent.
―Kendall, oh, meu Deus, Kendall. Eu a amo, a amo. Tenho sonhado com você dia e noite, vivido
com a esperança de voltar a abraçar você, a acariciar... a amar.
Com um ágil e decidido movimento de joelhos, Brent separou as coxas de Kendall com a intenção
de consumar sua busca e seu ataque. Ela sentia o sol em seu interior, aquecendo-a, elevando-a ao
nível de um vento de tempestade, a beleza da tormenta, e gritou de desejo. O som do nome de seu
amante se uniu à amargura das lágrimas que ela vertia, e o casal mergulhou nas ondas de
estremecedora paixão.
Kendall era consciente de tudo quanto sucedia ao redor, do ambiente primaveril, da carícia das
folhas, do calor do sol que os envolvia como se fosse um brilhante fogo dourado. Reconhecia o
aroma dele, a maravilhosa pressão de seus músculos, o roçar de sua barba, sua poderosa e segura
virilidade em seu interior, possuindo—a, acalmando-a, ameaçando-a parti-la em dois. Então sentiu
como aquela beleza que tinha dentro dela vinha a tona, alcançando o ápice, lavando-a de novo com
aquele calor líquido, e a resposta de seu corpo, o êxtase.
E o mundo inteiro deixou de dar voltas. Kendall recuperou a consciência do céu, da terra e das
folhas que haviam feito seu leito. Ele, estava ao seu lado, a acariciou com ternura na face. Kendall o
rechaçou. O havia desejado desesperadamente, sim, mas ele voltaria a ir embora.
―Abandona-me ― sussurrou, ocultando os olhos com o braço.
―Kendall, por favor, seja sensata.
―Estou sendo sensata! ― Se pôs em pé, e ele se levantou por sua vez. No momento em que ia
tocá-la, ela retirou a mão dele. ― Não penso correr nua por aí, outra vez. Recolherei minha roupa, e
serei sensata.
―Maldita seja, Kendall! Não irei agora! Disponho de três dias.
―Você fala como se fossem quatro semanas!
―O melhor que poderia fazer é se dar um bom banho e refrescar as ideias! ― vociferou seguindo
seus passos, ― E não pense que poderia escapar. Esta noite esclareceremos a situação!
Kendall encontrou sua roupa e se vestiu a toda pressa. Viu as calças e a jaqueta cinza e as botas de
meio cano de cor negra. ― Raivosa, pegou a jaqueta e a jogou ao mar. Quando a maré a devolveu
começou a chorar. Deu meia volta para encaminar—se até o matagal, afim de evitar o caminho para
Brent.
Não regressou diretamente à casa de Amy, mas sim vagou durante horas. Necessitava refletir,
embora se sentisse completamente incapaz disso. E quando conseguiu fazê-lo, começou a maquinar
uma vingança.
Devo impedir que se vá. Continuou perambulando, repetindo aquela frase até se fartar. Sem se dar
conta, se encontrou próxima da ponta do mar. Se sentou num banco de areia e lodo, e contemplou o
mar com o olhar perdido, O Rebel's Pride estava ancorado ali e se perguntou se existiria uma maneira
de afundar o barco. Entornou os olhos sem afastar o olhar da embarcação e então, desviou a vista até a
baía na foz do rio.
O coração se acelerou ao ver no horizonte um barco que virava a toda velocidade para a. Ondeava
a bandeira federal. Se levantou, piscando. O barco seguia no horizonte. O observou boquiaberta e
começou a correr, Chegou a casa de Amy arquejando.
A amiga trabalhava tranquilamente no jardim. Ao advertir que Kendall se aproximava, levantou a
vista.
Seus olhos trasluziam alegria.
Kendall, não é maravilhoso? Tinha razão a respeito de Brent! Onde está?
Kendall se deteve em seco.
―Não está aqui?
―Não. Foi buscar você.
―Oh, Deus, Amy! Um barco federal navega para a baía!
Amy jogou no chão o ramo de flores que sustentava nas mãos.
―Oh, Senhor! Rápido Kendall. Sobe ao bote de remos e vá rio acima, até os pântanos. Se
esconda.
―Não o farei até que saiba onde está Brent.
―Brent estará bem, embora preocupado por você. Não quis lhe contar ontem que Harry soube que
seu marido regressou a Fort Taylor. Talvez a esteja procurando. Tem que sair daqui de imediato!
Kendall notou que tudo lhe dava voltas, o dia pareceu escurecer de repente.
―John...
Amy lhe deu um empurrão.
―Vá logo, Kendall!
―Espera! Tenho que levar Lolly e o bebê. Deus sabe o que poderia fazer-lhes por minha culpa!
―Vá ao bote, Kendall. Eu me encarregarei de sua irmã e da pequena. Busca um lugar onde possa
se esconder, Kendall. Conhece os pântanos. E não volte até que algum de nós vá procurá-la.
―Mas os ianques...
―Não nos farão nenhum dano, querida. Não lhes interessa nada do que temos ― Vá até em casa,
pegue algumas provisões, suba o quanto antes ao bote. Eu me ocuparei da sua irmã.
Kendall mordeu os lábios com tanta força que sangrou. Não queria ir sem Brent, mas Amy tinha
razão. Se ele soubesse que ela estava a salvo, não arriscaria sua própria vida. Amy se pôs a caminho
para avisar Lolly. Kendall entrou correndo na cabana e pegou a toda pressa um recipiente com água
fresca. Com um trapo da cozinha, preparou uma trouxa na qual guardou pão recém assado, fruta e
carne defumada. Não deixou de rezar para que Brent aparecesse. Finalmente compreendeu que não
podia perder mais tempo.
Se encaminhou depressa até o rio. Depois de deixar as provisões no bote de remos, viu que sua
irmã se aproximava entre as árvores. Lolly saltou ao interior da embarcação, enquanto a pequena
Eugenia berrava devido a forma que sua mãe a segurava. O olhar de Lolly se cruzou com o de
Kendall, sem nenhuma reprovação, e a irmã mais velha começou a remar em direção aos pântanos.
Não falaram até que Kendall rodeou o primeiro meandro do rio e descobriu uma estreita via aberta
no pântano que as conduziria longe do Rebel's Príde e do navio ianque, que se aproximava a toda
velocidade.
―Lolly, eu lamento ― sussurrou Kendall. ― Achei que aqui estaria mais segura. Jamais pensei
que John pudesse vir. É tão vingativo, Lolly. Não tenho nem ideia do que é capaz de fazer.
―Kendall, você fez o que considerava ser o melhor ― respondeu Lolly tranquila.
Kendall umedeceu os lábios e continuou remando com todas as suas forças.
―Perto daqui há uma colina onde estaremos a salvo. Somente os índios a conhecem.
Lolly sorriu.
―Confio em você, Kendall.
―Não confie tanto em mim! Parece que os desastres me perseguem.
Lolly voltou a sorrir.
―Conheci o seu capitão, Kendall. Não tem o aspecto de ser um desastre! Estou segura de que nos
ajudará.
Chegaram à colina ao anoitecer. Enquanto Kendall se esforçava por construir uma espécie de
refúgio, Lolly batalhava com a pequena Eugenia, que tratava de comer todas as folhas que
encontrava. Após uma hora de tentativas falhas, Kendall conseguiu acender uma pequena fogueira que
as esquentaria na fria noite primaveril.
―Sei que nos arriscamos a que vejam o fogo, Lolly ― disse à sua irmã, ― mas servirá para
afugentar as serpentes e os insetos.
―Estou quase segura de que preferiria tropeçar com uma cascavel que com um ianque ―
murmurou Lolly. ― De todo modo, faça o que achar conveniente.
O bebê dormiu nos braços de Lolly. As duas irmãs estavam tão tensas, que foi impossível conciliar
o sono. Conversaram durante horas. A situação parecia haver dado um giro de noventa graus, a forte
era agora Lolly. Kendall abriu seu coração, admitindo que a paixão que sentia por Brent vencia sua
vontade, e Lolly insistiu que cometia um erro ao se enfrentar com ele.
―É impossível mudar a um homem que luta por seus ideais, Kendall. Tão somente cabe rezar para
que siga com vida. ― De repente, começou a rir. ― Parece que estiveram juntos! Olha o seu vestido!
Kendall se enrubeceu ao perceber que faltavam dois botões.
―Kendall, não se deu conta? Chegou o momento decisivo, o momento em que um dos dois fique
com você. Brent... ou John.
Ao ouvir aquelas palavras, Kendall sentiu um calafrio. Olhou a sua irmã, que naquele momento
tinha a vista fixa nos arbustos. Kendall se voltou para seguir o percurso de seu olhar. Então,
aterrorizada, Lolly disse: ―Um índio nos observa.
―Raposa Vermelha ! ― sussurrou Kendall com alegria.
Correu até ele, se jogando em seus braços para sentir a certeza de seu poderoso peito.
―O que está fazendo aqui? ― perguntou com voz rouca o seminola.
―Os... os ianques voltaram ― disse, escrutinando seu escuro olhar. ― E Brent...
―Eu sei. Foi a bordo do Rebel's Pride.
―Como sabe? ― perguntou Kendall, assombrada.
―Porque andou me buscando esta tarde. Neste momento deve estar na foz do rio.
―Sozinho? ― perguntou Kendall, horrorizada. Acabaria por cair numa emboscada. ― Oh, Meu
Deus! Tenho que encontrá-lo!
―Ou ficar aqui, Kendall ― ordenou Raposa Vermelha com determinação. ― Eu me ocuparei de
Brent. ― Levantou a vista para pousá-la em Lolly, que o contemplava abobada. ― Quem é?
―Minha irmã.
Raposa Vermelha assentiu com a cabeça de forma imperiosa.
―Ficará com você. Tem minha faca. Sabe como utilizá-la.
―Sim ― respondeu Kendall, e antes que o som de sua voz se houvesse desvanecido, o índio já
havia desaparecido.
―Um índio! ― exclamou Lolly, tremendo, ― Oh, Kendall, como pode confiar num selvagem?
―Não é um selvagem, Lolly. Mas é uma longa história.
Lolly estremeceu.
―Conte-me, Kendall. Me fale. Algo devemos fazer para suportar esta longa espera. Estiveram
falando toda a noite e, quando a pequena despertou chorando, faminta, ainda continuavam
conversando. Não haviam dormido nada, e estava amanhecendo.
Pela tarde, Kendall se dedicou a entreter a pequena Eugenia ensinando-a a jogar com um montinho
de pedras que colocava e tirava de um recipiente vazio. A assombrava a beleza da criança. Tinha os
olhos tão azuis como um claro céu de primavera e o cabelo, que havia herdado de sua mãe, dourado
como o sol.
Lolly, estava deitada no chão, meio adormecida, e com o olhar perdido, disse sorrindo: ―Será
uma mãe maravilhosa.
Kendall encolheu os ombros.
―Eu... não acredito que possa ter filhos, Lolly.
Sua irmã começou a rir, o que surprendeu a Kendall.
―Diz isso porque esteve com seu capitão um monte de vezes nos últimos anos e não ficou
grávida? Não seja tonta, Kendall. Quando viverem juntos, será mãe.
―Isso se voltar a vê-lo de novo ―sussurrou Kendall.
Lolly não respondeu.
Ao cair a noite Kendall decidiu acender outra fogueira. Lolly e a menina dormiram em seguida,
abraçadas. Ela, em troca, era impossível, não conseguia descansar. Se dedicou a buscar ramos secos
para alimentar a fogueira. Estava tão concentrada em sua tarefa que nem sequer ouviu o barulho de um
ramo, e demorou em se dar conta de que havia alguém de pé junto a ela.
Levantou a vista lentamente com o coração disparado. O horror tomou conta dela. Ali estava John
Moore.
A guerra não o havia mudado em nada. Seguia igual a última vez que o viu nos pântanos. Era o
mesmo homem que um dia, e muito a seu pesar, chegou a conhecer perfeitamente.
Se levantou com cautela, sem afastar a vista dele e sem pronunciar palavra. O temor se havia
apoderado dela junto com mil sentimentos mais, principalmente a raiva e o ódio. Era como se o
tempo houvesse parado. Recordava o dia do massacre de inocentes, ali mesmo, nos pântanos. As
imagens daquela tragédia continuavam a acossando, apesar do tempo transcorrido. Tão pouco havia
esquecido aquela noite, quando se vingou dela de um modo tão perverso...
―Kendall! ― Pronunciou seu nome com a mesma calma e amabilidade com que teria feito para
convida-la a tomar o chá. Sorriu, tranquilo. ― Sabia que a localizaria, se a continuasse procurando.
Ela parecia haver emudecido. A medida que ele se aproximava, Kendall retrocedia, olhando-o
fixamente, tinha medo até de pestanejar.
―Tudo tem seu fim! — afirmou ele, num tom cálido e agradável. ― Acreditou que me esqueceria
de você? Se for assim, demostra que não me conhece muito bem. Achei que me conhecia melhor!
Afinal, é a minha esposa. E agora voltamos a estar juntos! Este é um dia glorioso. Volta a ser minha,
Kendall, virá comigo. Temos que recuperar o tempo perdido!
O rechaço a ele e o horror fizeram que o coração dela acelerasse. Jamais. Jamais, depois do
quanto havia sofrido e chegado a suportar.
―Por quê? ― Perguntou Kendall com voz seca, ladeando ligeiramente a cabeça. Lhe custava crer
que estivesse ali, na frente dela.
Devia admitir que ele era um homem muito atraente. A jaqueta azul de marinheiro ressaltava ainda
mais sua elegante figura. O formato de seu bigode era arrogante, a profunda cor azul de seus olhos
contrastava maravilhosamente com seu escuro cabelo ondulado. Poderia ter encontrado uma mulher
que o amasse, talvez pudesse ter sido feliz e... normal. Talvez...
Houve uma época em que Travis acreditou que tudo aquilo era possível. Inclusive Travis, que
conhecia John por toda a vida, lhe havia dado as costas nos últimos anos, horrorizado pela mudança
que acontecera com ele. Kendall queria se compadecer dele, um homem perdido por culpa de seu
orgulho ferido. Certamente havia cometido atos imperdoáveis contra ela, mas o único que lhe
inspirava era medo e repugnância.
―Por quê? ― Ele repetiu a pergunta e sorriu. ― Não o sei, Kendall. Soube que a amava desde o
primeiro instante em que a vi. Rezei para que conseguisse me curar. Jamais havia conhecido uma
mulher tão bela. ― Encolheu os ombros. ― Teria pago qualquer preço, de fato paguei por você uma
quantia enorme! Mas demostrou o ódio que sentia por mim desde o primeiro momento, se sentia
superior, igual esse bando de fanfarrões a quem infligimos uma sangrenta derrota. Os grandes
soldados do sul! Não me curou, Kendall, mas sim que me cravou um punhal pela segunda vez. A
situação mudou desde a última vez que nos vimos. Descobri que o que me provocou aquela febre não
foi mais que um problema nervoso. E como qualquer outro ferimento, o tempo se encarregou de
cicatrizá-lo. ― Se interrompeu e se enclinou para observar a Lolly e a menina, que continuavam
dormindo. ― É sua esta mucosa, ou é dela?
―Não! ― exclamou Kendall, sacudindo a cabeça com veemência, temerosa de que fizesse
represália contra os demais para se vingar dela ― O bebê é da minha irmã. Poderia adivinhá-lo
somente de olhá-la. Tem o cabelo dourado, como o de Lolly.
―Tanto você como sua irmã são loiras ― a recordou, ― e também o seu rebelde. Ou talvez
deveria dizer que seu rebelde era loiro?
―Do que está falando? ― perguntou Kendall, tensa, aterrorizada com a possível resposta.
Ela olhou discretamente por cima do ombro do ianque para averiguar como havia chegado até ali e
se o havia feito sozinho. Quando ele percebeu, sorriu de um modo ainda mais irônico.
―Ah, um brilho de temor iluminando seus maravilhosos olhos azuis! ― disse em tom zombador.
― Gosto de vê-la assustada, Kendall. Não, não me encontrei com o famoso capitão McCain, ainda
não. Por certo, Kendall, sabe que a guerra terminou? Faz dois dias o seu general Robert E. Lee
ofereceu sua rendição a Grant. Jeff Davis desapareceu de Richmond e Milton, o governador da
Flórida, um rebelde convicto, se suicidou. ― John a olhava atentamente, impassível, deixando que
assimilasse, pouco a pouco, a informação. Para ele resultava um prazer relatar a ela uma tragédia
como aquela. ― Acabou, Kendall. Seu magnífico Sul, seu paraíso, não é mais que um monte de pó e
cinzas. E se meus homens não encontrarem o capitão McCain para matá-lo, serei eu quem o fará. Com
o tempo farei com que se esqueça dele. Quando me enviaram ao Mississipi e estive em Nova Orleans,
tive a oportunidade de conhecer muitas senhoritas sulistas atraentes. ― Me assombrou que se
mostrassem tão desejosas de distrair os soldados da União... Suponho que sabiam perfeitamente que
éramos os únicos com dinheiro suficiente para comprar meias de seda. Certamente sabe, não é
Kendall? Embora soubesse que estava completamente curado, que era um homem de verdade,
somente desejava você. Você, com seus ares de superioridade, sua paixão, sua fúria e inclusive, seu
aborrecimento. Nunca quis ter nada comigo, mas isso mudará, Kendall. Está em dívida comigo, meu
amor, esposa minha. Agora tudo está no lugar a que corresponde. A todos nós chegou o momento de
saldar nossas dívidas. Tudo mudará a partir de agora. Conseguirei que esqueça de tudo.
―As coisas não mudarão nunca! ― sussurrou debilmente. ― E jamais esquecerei. Por Deus, John!
Eu não desejava me casar com você, mas não o odiei, até que descobri o quão cruel você podia ser.
Talvez tenha mudado, mas nunca poderei esquecer o passado. E não me refiro ao que me fez... mas ao
que fez aos demais. Não muito longe daqui, John, massacrou pessoas que eu amava. ― Mulheres,
crianças, bebês! Meus sentimentos não mudarão jamais, John. Tanto faz se perdemos a guerra ou não,
amo Brent McCain.
―Kendall, isso não tem importância. A encontrei e agora virá comigo.
―Não! ― murmurou colérica.
―Kendall, há uma vintena de homens armados até os dentes, a bordo de meu barco. Se
apresentariam aqui num minuto. ― Não pode lutar contra mim, Kendall. É minha esposa... uma
confederada derrotada, e uma espiã rebelde que escapou da prisão. Tenho a lei do meu lado.
A lei... Jamais.
Raposa Vermelha havia entregado sua faca tempos atrás e a havia ensinado a usar. Se conseguisse
alcançar a baínha que levava atada na perna... Sorrindo, se agachou, dando a entender, assim, que se
negava a se mover daquele lugar.
―John ― disse com calma, ― estou há quase quatro anos lutando. Não há nenhuma maldita
diferença...
Kendall colocou a mão por debaixo da saia e tirou a faca com um rápido movimento. Talvez ele
tenha intuido sua ação, talvez soubesse o quão desesperada estava. O caso foi que, antes que ela se
jogasse sobre ele, John se ajoelhou junto a sua irmã, ameaçando com sua própria faca o pescoço de
Lolly, que continuava dormindo, alheia, vulnerável, como um anjo.
―Jogue a faca aos meus pés, agora ― ordenou John.
Kendall engoliu seco.
―Não irá matá-la, John. Maldito seja, não...
―Atire a faca. Agora mesmo!
Não estava muito claro até onde se atreveria a chegar, e não queria se arriscar pondo-o a prova
naquele momento. Derrotada, lançou a faca no chão, baixou os ombros e começou a chorar. Havia
levado as coisas demasiado longe! Pensou em Brent e recordou como a havia abraçado depois de
uma espera tão longa, cheia de solidão, lutas e incertezas, a guerra os havia mantido separados, mas
jamais havia conseguido apagar o amor que se professavam. E quando, depois de tanto tempo, pôde
por fim, acariciar-lhe, ela fugiu correndo, aborrecida.
Naquele momento não lhe ocorreu pensar que não voltaria a vê-lo, que tudo terminaria daquela
maneira, depois de tanta espera, tanta luta, tanta esperança e tantas orações.
John sorriu e guardou a faca. Ficou em pé, e após recolher a faca que Kendall havia empunhado,
avançou para ela, brandindo-a.
―Talvez consiga fazer desaparecer sua arrogância, se a marcar com um «A» de adúltera na testa.
Ou talvez fosse melhor na face.
A obrigou a levantar-se e lhe roçou a face esquerda com o fio da faca. Ela o olhou fixamente, sem
se acovardar. John deslizou o gélido aço por sua garganta de forma ameaçadora, roçando a pele
apenas, e o fez descer até alcançar o profundo vale formado entre seus peitos.
―Acredito que haja outros lugares em que poderia marcar essa letra como sinal de advertência!
Talvez o peito fosse o lugar adequado. Não gostaria que fosse o assunto dos vizinhos, e desse modo
você pensaria duas vezes, antes de ficar nua para outro homem...
Ao notar que a pressão da faca se incrementava, Kendall apertou os dentes, trêmula. Moore cravou
a ponta, fazendo brotar um fio de sangue. Ela não se atreveu a emitir nenhum grito. Ao comprender
que John não brincava, que estava indefesa, o pânico se apoderou dela. Estava só, sem mais
companhia que a de uma mulher adormecida e esgotada com uma pequena.
―John, não...
―Tem que pagar, Kendall. Já sabe muito bem. Se ajoelhe, como fez sua preciosa e moribunda
terra. Vamos, Kendall ― Suplique-me que a perdõe. Seu olhar, duro e frio como o gelo, dava a
entender o quão pouco lhe importava que ela rogasse compaixão. Lhe havia posto duas vezes em
ridículo: uma, por outro homem, outra, em uma prisão ianque. Pretendia fazer-lhe pagar por isso.
Kendall tentou se livrar valentemente dele. As lágrimas lhe empapavam os olhos. Viu de soslaio
que se aproximava outro homem procedente do pequeno bote que supostamente havia utilizado John.
Mas vestia azul, e portanto não cabia esperar ajuda alguma de sua parte. Seus homens se haviam
convertido em seres tão cruéis como ele. Sem dúvida, considerariam também que ela devia pagar por
seus atos.
De pronto, a ira de John estalou num potente arranque de fúria.
―Kendall, que Deus me ajude, eu a matarei, puta!
Pressionou ainda com mais força a ponta da faca sobre seu peito. Ela se dispunha a suplicar a ele
quando, de repente, seus olhares se cruzaram. O dele, em lugar de oferecer um brilho de triunfo e
deleite como ela esperava, era estranho e distante.
A faca caiu de sua mão e John Moore também, quase a arrastando na queda. Assombrada, Kendall
observou o corpo com os olhos arregalados e viu que tinha uma faca cravada nas costas. Levantou a
vista.
O homem de uniforme azul se aproximava dela. Seu rosto mostrava tortura, pesar e preocupação.
Travis Deland se deteve um momento diante de Kendall, para se assegurar de que seu ferimento não
tinha gravidade. Depois se ajoelhou junto de John, e observou como se convulsionava e apertava os
punhos até que os nós dos dedos ficaram brancos. De repente, ressoou um grito estremecedor.
―Maldito ianque! Deixei sozinha minha irmã! Eu o matarei, o partirei em dois com minhas
próprias mãos!
―Lolly! ―exclamou Kendall. ― Espera!
Demasiado tarde. Lolly e Travis já rolavam pelo chão. Sua loira e delicada irmãzinha estava
envolta em uma luta titânica, como se o seu ataque a Travis fosse exorcizar a dor, o ódio e a cólera
que a guerra lhe havia causado.
Travis se defendia procurando não fazer-lhe dano, o que não era fácil.
―Detenha-se, ferinha! ― vociferou, pegando-a pelos ombros e balançando-a vigorosamente, com
a intenção de acalmá-la.
―Parados os dois! ― ordenou Kendall, intervindo. ― Travis! Lolly!
Instantes depois de unir-se à luta, notou que a tiravam com violência para afastá-la dali.
Conhecia muito bem aquela forma de tocá-la. Fosse rude ou amável, sempre a distinguiria. Brent.
Brent, que ao saber que era Travis quem atacava, golpeava a este com o fim de separá-lo de Lolly.
Ambos os homens terminaram caindo no chão, envolvidos em uma luta de morte.
―Graças a Deus! ― exclamou Lolly. ― Mate-o, capitão McCain, acabe com o ianque!
―Não! ― exclamou Kendall. Olhou ao redor e viu Raposa Vermelha, que observava a luta a certa
distância. ― Raposa Vermelha ! Detenha Brent! Detenha-o! Travis me salvou!
O índio encolheu os ombros.
―Não se matarão...
―Travis me salvou a vida e é meu amigo! ― declarou com firmeza enquanto se aproximava dos
dois homens. ― Basta! Malditos sejam os dois! Basta!
Os punhos voavam e, pelos dolorosos golpes que se ouvia, com toda certeza, atingiam o vazio.
Kendall, desesperada, encontrou um balde nos botes de remos. Encheu-o com água gelada do
pântano e regressou à cena da luta para derramar o conteúdo do balde sobre os dois.
Com a surpresa, disseram uma lista de palavras ininteligíveis e ficaram deitados no chão,
contemplando-a com cólera e incredulidade.
―Fique de fora dessa briga, Kendall! ― murmurou Brent. ― Jesus, este homem atacou a você e a
sua irmã...
―É um corno! ― protestou Travis.
―Ele não nos atacou! ― insistiu Kendall. E não posso me manter à margem. Travis me salvou a
vida, e você tenta dar a ele uma tremenda surra!
―Perdoe, Kendall ― exclamou Travis indignado, — mas eu me ocupo de minhas próprias
batalhas. E ele o estava fazendo condenadamente bem!
―Tem razão! Estava fazendo-o muito bem! ― Uma voz fria interrompeu o diálogo. Ao tentar se
voltar para averiguar quem havia falado, Kendall descobriu que não podia se mover. Uma mão
ensanguentada a segurava pela cintura com força, e a folha de uma faca, afiada como uma navalha,
tremia contra sua garganta. Apenas podia engolir. John! Com a refrega todos haviam se esquecido
dele. O haviam dado por morto. «Oxalá houvesse morrido! ― pensou Kendall. ― Oh, Deus, será que
não morrerá nunca este homem?»
A briga entre Travis e Brent se havia concluído. Ambos se levantaram em silêncio. Lolly, branca
como o papel, permanecia imóvel atrás deles. Raposa Vermelha estava a seu lado, tão paralizado
como os demais. Todos achavam que John havia morrido, mas estava ali, de pé, talvez meio morto,
mas com vitalidade suficiente para ameaçar a vida de Kendall.
―Bastardos condenados! ― murmurou John, percorrendo-os com a vista. Seus olhos se
iluminaram, furiosos, ao ver Travis. ― Todos vocês são uns condenados bastardos!
Brent avançou um passo, com olhar nebuloso e a tensão refletida em seu rosto.
―Soltea agora mesmo!
―Ah, aqui o temos por fim, o valente, o temerário, o ousado, o magnífico capitão McCain! ―
exclamou John em tom zombador. ― O sedutor de esposas alheias! Bem, cavalheiro, pouco valerá a
minha quando acabar com ela, eu o asseguro! Minha, maldito rebelde! E agora, ela virá comigo.
A faca tremia em suas mãos. Kendall não se atrevia nem a respirar.
―John ― interveio Travis,― pelo amor de Deus, solte-a! Sou eu...
―Ah, sim! Aqui está ele, meu amigo de toda a vida! O que me deu a punhalada pelas costas! Irá
chegar também o momento de ajustar contas com você, Travis. No momento, dedicarei toda a minha
atenção a Kendall. Não penso matá-la, a menos que me forcem a fazê-lo. Assim pois, mantenham a
distância. Minha esposa voltará para casa. Em meus braços ternos e amorosos! Jamais voltará a ser a
mesma, rebelde, eu prometo. Gosta do rosto dela, não é verdade? Olhe—a bem agora! Seus peitos
são belíssimos, eu também o sei... mas tão pouco voltarão a ser os mesmos. Talvez eu permita que a
veja algum dia, rebelde. Talvez nos encontremos de novo... no inferno!
Girou com a intenção de regressar aos botes, arrastando Kendall com ele, que não opôs
resistência. Quando John começou a avançar, se ouviu um som muito semelhante a um grunhido
profundo, que retumbou como um trovão em toda colina.
Brent começou a correr até eles como um raio. Se jogava, cortando a distância que os separava,
com a força e o ímpeto de um tigre.
Acertou com precisão seu ataque, temerário e desesperado, lançando-se sobre John e o jogando no
chão, obrigando-o a soltar Kendall. John Moore rugiu como uma fera, tratando por todos os meios
cravar a faca no peito de Brent. Kendall, ao vê-los, gritou. Brent segurou seu adversário pelos pulsos,
e se jogou contra ele no chão. A faca saiu disparada e caiu no meio das folhagens. Brent levantou o
braço e acertou um murro na cara dele. Após olhar para John Moore com um olhar vítreo, com as
feições tensas e duras como uma pedra, o golpeou de novo.
Kendall voltou a gritar horrorizada. Correu até ele e se ajoelhou no chão.
―Brent, Brent!
Desejava que John Moore morresse. Ela mesma havia querido acabar com ele em numerosas
ocasiões.
Certamente não suportaria ver Brent golpeá-lo até a morte. Se o fizesse, algo morreria também
entre eles dois.
―Brent, basta, ele já não representa mais nenhum perigo, Brent...
Não conseguia nem expressar o que queria dizer. Era a mesma sensação que experimentara no dia
que viu Brent e os demais perseguindo a mulher que lhes deu o pastel envenenado. Era muito
provável que John merecesse a morte pelo mal que havia causado, como provavelmente também a
mereceria a mulher. Mas não desejava que Brent tivesse que ser julgado e condenado.
Brent a olhou fixamente. Pareceu passar uma eternidade. Era como se todos os demais tivessem
morrido, inclusive como se a brisa houvesse deixado de soprar.
Então soube que ele compreendia o que ela era incapaz de expressar. Brent suspirou.
―Meu Deus, quanto eu a amo ― murmurou. Ficou em pé, pegou a mão de Kendall e a atraiu para
si. E juntos se afastaram do homem que tanta dor lhes havia provocado. Logo se detiveram em seco,
paralizados ao ver um repentino e violento brilho prateado passar junto a eles a toda velocidade,
roçando-os.
Ouviram um grito sufocado e se voltaram.
John havia se levantado... e recolhido a faca do chão. Tinha os olhos e a boca ensanguentados e
inchados. Não se importava, se havia proposto matar a um dos dois... a Kendall ou a Brent. Nunca
conseguiu lançar a faca. Tinha a empunhadura de outra incrustada no centro do peito. Uma mancha de
cor púrpura havia aparecido em seu uniforme.
Raposa Vermelha passou diante de Lolly, Travis, Brent e Kendall e se deteve junto ao homem.
John havia morrido, por fim. Raposa Vermelha se ajoelhou e retirou a faca de seu coração para
afundá-la de novo no cadáver.
―A primeira foi por Apolka, minha esposa, minha vida. A segunda, por meu filho, meu sangue.
Então se levantou.
Brent se aproximou de Travis.
―Deland ― disse com voz rouca, ― Eu peço o seu perdão. Agora, cavalheiro, saia de uma vez
de nossos territórios antes...
―Brent! ― exclamou Kendall em seguida. ― Já não são nossos territórios, Brent. A guerra
terminou.
A olhou, incrédulo e piscou. Logo fixou a vista em Travis, sacudindo a cabeça.
―Kendall...
―O general Lee se rendeu! ― insistiu ela. ― Travis, conte a ele, convença-o!
O ianque apenas assentiu.
―Juro que é verdade, McCain ― disse Travis. ― Lee se rendeu em frente do palácio de justiça
de Appomattox no último dia 10.
Brent respirou fundo, soltou o ar e largou Kendall. Cravava os dedos nas palmas de suas próprias
mãos, os nós brancos.
―Lee não é o único general. Estou seguro de que Kirby Smith continua lutando no flanco
ocidental. Não terminou, não pode haver terminado. Maldita seja, não pode haver acabado! Foram
demasiados anos, demasiadas vidas, demasiado sangue!
―Demasiado sangue, demasiadas vidas! ― repetiu Kendall e, com voz suplicante, acrescentou ―
Brent, por favor, terminou!
A colina ficou em silêncio. E então o bebê de Lolly começou a chorar.
Brent permaneceu imóvel uns segundos e se dirigiu aos botes, caminhando como se estivesse cego.
―McCain! ― exclamou Travis. ― Tenho a permissão de perdoar a qualquer rebelde que me
ofereça a sua rendição!
Kendall fez um gesto de correr atrás dele, mas Raposa Vermelha a deteve segurando—a pelo
braço.
―Deixe-o ― disse com voz serena. ― Ele a ama. Teria morrido por você. E com o tempo, viverá
por você. Mas somente quando tiver aceito que a batalha acabou, a escutará.
Kendall contemplou com o coração destroçado como Brent se afastava remando. Apenas prestou
atenção em Lolly, que após consolar a pequena, encarou Travis com franca hostilidade.
―E bem, ianque, o que fizeram seus amigos com o povo da baía?
―Nada! ― respondeu bruscamente. ― Já expliquei que a guerra terminou. Ordenei a meus
homens que retrocedessem.
Lolly foi até o bote de remos que lhes havia levado até ali.
―Um índio e um ianque ― murmurou. ― Kendall, deveríamos voltar para casa... se realmente
esse ianque diz a verdade, ainda temos uma casa, ―Não minto ― insistiu Travis, que, bastante
irritado, havia abandonado sua habitual galanteria.
―Kendall? ― disse Lolly.
―Ainda não ― sussurrou sua irmã. ― A morte de John não lhe causava nenhuma dor, mas ela e
Travis tinham que enterrá-lo.
―Bem ―murmurou Lolly. ― Parece que não poderei tirar o índio de cima de mim.
Raposa Vermelha soltou uma gargalhada.
―Deveria ter mais respeito com os selvagens, Mulher de Ouro ― replicou com toda a
tranquilidade. ― Mas mesmo assim a acompanharei, em atenção a sua irmã.
Kendall observou como os dois subiam ao bote, junto com a pequena Eugenia. Logo se dirigiu a
Travis.
―Veio para salvar a minha vida, e sei o que isso lhe custou.
Travis encolheu os ombros e baixou a vista.
―John deveria ter morrido há muito tempo. De fato, era um cadáver durante os últimos anos. Mas
foi meu amigo. Rogo a Deus que, por fim, descanse em paz.
―Sim ― sussurrou Kendall.
Colocaram mãos à obra, cavando com a ajuda de um remo e um balde. Enterraram John e com ele
todo o passado.
Subiram ao único bote que ali estava, depois de haverem feito uma cruz de madeira e pô-la sobre a
tumba. Durante a volta, falaram do futuro.
Tal e como esperava, Kendall encontrou Brent na praia. Estava contemplando o mar. Apesar dele
não ter se mexido, ela sabia que a havia ouvido chegar.
Ela se sentou a seu lado. Não a olhou nem falou nada. Após um tempo, ela recostou a cabeça sobre
seu ombro, para contemplar o mar e a noite junto com ele.
―Eu o amo ― sussurrou ela.
Um calafrio percorreu o corpo de Brent, que finalmente a abraçou.
―O sul está perdido, Kendall. A guerra foi inútil. Não nos sobrou nada.
Ao perceber o desespero em sua voz, Kendall começou a tremer. Pondo as mãos em seus ombros,
se ajoelhou na areia na frente dele, obrigando-o a olhá-la com seus olhos duros como o aço.
―Brent, já temos tudo.
―Tudo! ― exclamou, ― Kendall, eu não tenho nada! South Seas foi destruído e não tenho um
dólar. Não nos resta mais que um monte de papel moeda da Confederação, que não serve mais que
para acender fogo. A antiga forma de vida desapareceu também. O sul já não existe.
―Sim, existe! ― protestou Kendall. ― A terra continua em seu lugar, Brent. Sim, devemos
reconstruir o destroçado. E nós estamos aqui, Brent. Oh, Brent, perdemos, mas também ganhamos.
Estamos aqui, juntos. E o amo, Brent. Me abrace, Brent! Estou viva e o necessito. E temos algo por
fim, algo de verdade, algo para sempre. ― Estreitou a mão dele e a levou ao peito, ali onde seu
coração batia cheio de vida. ― Por Deus, Brent, terminou, mas nós podemos recomeçar! Por favor,
por favor...
Ficou sobre ele chorando. O havia perdido com a guerra. Brent era incapaz de aceitar a derrota.
Voltaria a abandoná-la, partiria para o oeste junto com os rebeldes que continuavam lutando.
Após um bom tempo notou que Brent a acariciava no cabelo suavemente.
―Kendall, neste momento não tenho nada que oferecer a você, nem sequer um lar. E ignoro onde
se encontra o Jenny―Lyn.
―Eu nunca tive nada até que tive você ― sussurrou Kendall. ― Podemos construir um lar aqui
mesmo. Travis disse que poucas coisas poderiam acontecer neste canto do mundo. A ninguém
importa o que aconteça num pequeno povoado, situado na parte mais retirada dos pântanos. ―
Vacilou um instante e, ao perceber que ele a acariciava de um modo possessivo, prosseguiu com
maior entusiasmo ―Travis está interessado em construir um porto aqui e dedicar-se aos negócios
navais.
―Está me pedindo que trabalhe com um ianque? ― perguntou Brent feito uma fera.
Após titubear, Kendall replicou: ―Não, eu peço que considere a proposta de alguém que,
ultrapassou todos os obstáculos e demostrou ser nosso amigo.
Ela percebeu a rigidez do corpo de Brent, que em seguida se relaxou ligeiramente. Olhando-o aos
olhos, enxugou com as mãos as lágrimas que rolavam por suas faces. Ele franziu o cenho, com os
olhos cinzas como o aço, e se levantou para lhe levantar o queixo.
―Está bem, eu pensarei.
―Oh! Brent! ― suspirou Kendall, feliz, abraçando-o de modo que ambos caíssem sobre a areia.
O beijou antes que pudesse esgrimir algum protesto ou rechaçá-la. Num primeiro momento, os lábios
dele permaneceram frios e rígidos, mas, quando a abraçou, suas bocas se amoldaram à perfeição. A
vida, o calor e o desejo tomaram forma em Brent, que acariciou seus lábios, saboreando-os com
delicadeza. Quando ela se retirou, no rosto, onde antes havia uma cara feia, se havia desenhado uma
careta brincalhona.
―Eu a amo, pequena rebelde ― murmurou com voz rouca, estreitando-a. ― Talvez já tenhamos
tudo, afinal. Enquanto eu tiver você, possuirei sempre a coragem e a beleza do sul.
―Oh, Brent ―sussurrou Kendall, apoiando a face contra seu peito, sentindo seu calor e vigor sob
a ponta dos dedos.
Permaneceram deitados sob os vinhedos e as palmeiras, desfrutando da paz e beleza da noite.
―Brent, Travis me fez outra oferta.
―Sim?
Notou que os músculos do homem se tensionavam e se viu incapaz de reprimir tanto uma risadinha
de cumplicidade como a necessidade de prolongar a situação.
―Sim...
―Kendall! ― A abraçou com mais força ainda, apertando—a.
―Se ofereceu para nos casar em seu barco. Tem poder legal para fazê-lo.
Brent começou a rir, e Kendall teve a certeza de que todas as suas batalhas haviam terminado.
Demoraria algum tempo para reconstruir sua terra e suas almas, mas havia chegado a hora de sua
verdadeira paz.
―A proposta parece interessante ― murmurou, atraindo-a para ele. Ela lhe permitiu um único
beijo, antes de tentar escapar.
―Brent, nos casará esta noite se assim o desejar.
―Sim, eu desejo.
―E bem? ― perguntou ela.
A espreitou, penetrando-a com seu poderoso e sensual olhar cinza.
―Logo ― murmurou. ― Mas antes de me converter num homem casado gostaria de passar uma
última hora à luz da lua com essa maria—macho que não deixou de criar—me dificuldades nos
últimos anos.
Kendall apertou os lábios, mas sorriu em seguida, sucumbindo sob a pressão de seus braços. A lua
estava belíssima, e necessitavam estar juntos, gozar de um tempo agradável. Um tempo para começar
a cicatrizar as feridas...
Duas horas mais tarde Brent havia se convertido em um homem casado. Tanto rebeldes como
ianques assistiram a cerimônia, seus respectivos comandantes lhes havia ordenado que se
comportassem de forma civilizada. Assim pois, se mesclaram jaquetas azuis e farrapos cinzas.
A tensão que reinou naquele primeiro encontro, após a declaração de paz foi enorme. Os ianques
maldiziam aos rebeldes por todos aqueles anos de privações. Os rebeldes, por sua parte, se
mostravam reticentes em aceitar o fato de que tudo havia acabado, de que a morte, o derramamento
de sangue e a destruição não haviam servido para nada...
Então, no momento em que se proclamou o nome de Deus para bendizer o casamento, surgiu algo
intangível, que transformou o ambiente e que, sem chegar a unir os azuis e os cinzas, provocou que
todos ficassem plenamente conscientes de que a guerra havia terminado de verdade. Inclusive a
mesma terra começava a se renovar, porque era primavera. Já não tinham necessidade alguma de
seguir matando estranhos. Podiam regressar a seus lares.
E, quando a cerimônia terminou, os homens começaram a se mesclar. A hostilidade era ainda
latente, mas conversavam sobre como seriam suas vidas sem a guerra. E quanto mais falavam, mais
ansiosos se mostravam para que se iniciasse o tempo de paz.
Brent e Kendall saíram ao convés do barco de Travis. A brisa primaveril lhes refrescava, o aroma
fresco e forte do mar os envolvia. Satisfeita, recostando—se contra Brent, Kendall assinalou a foz do
rio.
―Olha, Brent.
O Rebel's Pride acabava de jogar a âncora e se escorava gracioso seguindo a corrente. Pela
esteira que deixava a seu passo, dava a sensação de que o navio era uma orgulhosa dama, uma bela
silhueta que se recortava contra o céu da noite, com seus mastros apontados até a lua. Kendall
pensou, sossegada, que a estampa do barco tentava recordar a ela que nem tudo estava perdido. O
orgulho, a honra e a coragem eram virtudes de homens e mulheres, não de uma nação em luta. O
orgulho, a honra e a coragem eram atributos imutáveis, que ela e Brent podiam conservar, assim como
manteriam seu amor.
Ele descansou o queixo sobre sua cabeça, e Kendall percebeu que ele estava sorrindo. Iriam seus
pensamentos pelos mesmos caminho? Estava segura de que sim.
―Conservarei esse barco a qualquer preço ― disse a Kendall.
Ela estava convencida de que, de um modo ou outro, o faria.
Epílogo
Dezembro de 1865.
A noite era escura, o ambiente era frio e úmido. O espírito festivo que reinava em Charleston era
realmente desanimador. As leis de reconstrução açoitavam a cidade com dureza. Aquele foi o lugar
onde o primeiro estado declarou sua independência e onde estalaram os primeiros disparos da
guerra.
Homens e mulheres pesarosos começavam a deixar a guerra para trás. Desafiavam, abertamente,
as repercusões que pudessem empreender-se contra o sul e que, além disso, haviam se incrementado,
em grande medida, desde o assassinato de Abraham Lincoln. Muitos dos incondicionais que
formaram parte das forças mais tenazes e lutadoras, se dedicavam a buscar novas formas de encarar
suas vidas.
Um deles se encontrava ali, apoiado contra a parede da Fortaleza. Se tratava de um homem de
duras feições, que contemplava o mar com as mãos, fortes, endurecidas pelo trabalho, metidas nos
bolsos de sua jaqueta. Era um sulista, sempre o seria. Certamente havia superado a derrota, estava
seguro de que o sul se levantaria sobre suas cinzas. Seria diferente. A nostalgia tentava se apoderar
dele. Mas trabalhava pelo futuro, e lhe daria forma com suas próprias mãos. Refletia sobre os anos
transcorridos com o olhar, cinza como o aço, perdido na imensidade do mar. A guerra havia se
iniciado naquele lugar.
Também a derrota... e o melhor que lhe havia sucedido na vida, o melhor. Seu futuro. Sorriu, se
perguntando se ela chegaria algum dia a compreender, que para ele, representava toda sua força. Ela o
considerava um ser indômito, e não o era. Sempre que havia estado a ponto de sumir no desespero,
ela havia estado presente, brindando aquele ideal de orgulho e honra necessários para sobreviver.
Na Fortaleza fazia frio. Não tinha nem ideia de por que permanecia ali, contemplando o mar,
encarando a gélida brisa invernal. Melhor faria cubrindo-se no confortável camarote principal do
Pride. E um bom trago de bourbon o faria entrar em calor...
Um ligeiro movimento atraiu sua atenção até o lado norte da Fortaleza.
Era uma mulher, cuja silhueta se recortava contra a luz do porto e o resplendor da lua. De fato, se
encontrava demasiado longe para poder ter ouvido a ela, de modo que havia sido o movimento que
havia chamado a sua atenção.
De pé, imóvel, a mulher contemplava o mar.
Sorrindo, correu até ela.
―Senhora ― disse, e ela se voltou de repente, com um esplêndido sorriso em seus delicados
lábios rosados.
A rodeou com os braços e pensou, pela milésima vez, que era incrivelmente bela. O recebeu, uns
maravilhosos olhos azuis, tão escuros e turbulentos como o mar da noite, uns olhos cativantes,
marcados por sobrancelhas aveludadas, negras como a meia—noite.
―O que faz aqui ? ― perguntou com voz rouca, acompanhando-a até o barco.
―Oh, não sei ― murmurou, ― meditando, suponho. Oh, Brent! Charleston está tão mudado! É tão
triste!
A estreitou nos braços.
―As feridas abertas levam tempo para cicatrizar, Kendall.
―Eu sei. Gostaria que Lolly não houvesse decidido regressar.
―Foi decisão dela, Kendall. Como está?
―Amargurada e louca para se empenhar em manter sua propriedade, com a ajuda de Travis. Se
trata de minha irmã, Brent, eu a quero, mas se eu fosse Travis a teria mandado ao inferno!
―Kendall!
―Sim, é verdade. Se comporta com ele, como um gato raivoso.
―Bem, é sua irmã...
―E o que quer dizer com isso?
―Nada, meu amor, nada. ― Brent começou a rir. ― Já são adultos. Terão que solucionar seus
próprios problemas.
Ao chegar à plataforma do barco, ele se deteve um momento, mantendo as mãos dela entre as suas.
―Não tem nada para contar? ― perguntou, entornando seus olhos cinzas.
Ela baixou a vista com malícia, e pestanejou com ingenuidade.
―Sobre o que? ― perguntou docemente.
―Kendall ― avisou, apertando com força suas estilizadas mãos, ― não se dedique agora a jogar
comigo como a senhorita sulista, amor. Quero a resposta.
Ela riu, encantada ante a situação.
―Setembro.
― Setembro?
―Sim. O doutor Lassiter disse que o menino nascerá até meados de set...
Não pôde acabar a palavra. Ele a levantou do chão, a tomou nos braços e, com um ágil salto, subiu
a prataforma e depois ao convés do Pride.
―Brent! ― exclamou Kendall com voz entrecortada, rodeando o pescoço dele com os braços,
quase não conseguindo respirar ― Por que essa pressa toda?
―Vou ser pai! ― respondeu, dando voltas com ela nos braços. ― Naturalment o sabia, mas
necessitava a confirmação do doutor Lassiter...
Entrou no camarote principal e a deixou sobre a cama. Então, se voltou e se encaminhou até a
porta.
―Brent? Onde vai? ― exclamou ela, perplexa, seguindo-o com os olhos.
Ele esboçou um sorriso brincalhão.
―Vou dar a ordem de zarpar. Quero fazer amor com minha esposa grávida. Deus, não posso
esperar mais para abraçá-la!
―Não é necessário que zarpemos!
―Ah, acredito que me sinto algo receoso diante da ideia de fazer amor no porto de Charleston.
―Brent... ― protestou.
Antes que pudesse acrescentar algo mais, ele havia se esfumado ― Regressou uns minutos depois.
Jogou sua jaqueta ao chão e se apressou a tirar a roupa e deixar Kendall nua.
―Brent! ― Ante sua precipitação, ria e protestava.
Calou-a com um doce beijo.
―Querida, que eu saiba, não existe lei no mundo que me proíba de fazer amor em alto mar.
Kendall suspirou e o olhou aos olhos, satisfeita.
―Eu tão pouco, capitão. Eu tão pouco.
[1] Instrumento de corda e teclado muito utilizado nos séculos XVI e XVII
[2] Key West é uma cidade situada no extremo sul da Flórida
[3] Nome dado a uma ampla região situada ao sul da Flórida
[4] Pássaro americano parecido ao canário, de canto muito variado e melodioso. (N. del T.)
[5] Baile típico da Virginia. (N. T.)
[6] Zênite é o ponto máximo do sol no céu (meio-dia).
[7] Juramento de Hipócrates é feito pelo médico no momento em que recebe o diploma, quando jura agir pelo bem de todo e qualquer
doente, e se compromete a cumprir o sigilo médico-paciente. É a lei pela qual que se rege o médico.
[8] Pederneira é uma pedra, um sílex capaz de produzir faísca quando atritado por metal.