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Justiça
anner terminava de ajustar sua armadura. Seu treinamento ensinava que um paladino de
Valir deve estar sempre pronto para o combate, pois nunca se sabe quando a injustiça irá
atacar.
Fazia alguns dias que Tanner acompanhava a Alta Inquisidora Theress La’al por onde quer
que ela fosse, mas ele ainda se sentia intimidado pela mulher. O que era no mínimo curioso, dado que
La’al havia chegado em Alberion do Império Alante, em missão oficial. Sendo ela um membro
de alto escalão da Primaz Inquisição, a Igreja de Valir achou por bem designar um de seus paladinos
como seu guarda-costas enquanto ela permanecesse no reino. A situação tinha algo de ridículo: de
acordo com o que Tanner havia ouvido falar, a inquisidora era uma clériga poderosa, e poderia muito
bem defender-se sozinha caso necessário. Mas quando o paladino lhe foi oferecido ela não se opôs, e
ele jamais questionaria uma ordem de seus superiores. Desde então, Tanner passara a frequentar
Naquela noite, o rei havia convidado boa parte da corte para um banquete, em que
supostamente seria feito algum anúncio importante. La’al parecia excitada com a perspectiva, mas de
alguma forma o paladino suspeitava que não era a festa o que a animava, e sim o que ela poderia
Tanner não sabia exatamente o que a inquisidora viera fazer em Alberion e, francamente, ele
não estava muito interessado em descobrir. Tudo o que envolvia a Primaz Inquisição lhe dava
calafrios. As histórias envolvendo fogueiras e torturas e sussurradas por todos. Claro, na Igreja de
Valir os sacerdotes ensinavam que esses relatos eram falsos, e que a verdadeira missão dos inquisidores
era caçar demônios e diabos. Mesmo que isso fosse verdade, porém, a perspectiva de lidar com
***
a’al flanava pelo corredor como se fosse a dona do castelo. Poucas pessoas com que Allisa
cruzara na vida exalavam tanta autoridade quanto a inquisidora. Alta e esguia, ela vestia
usava o erin – o chapéu em formato trapezoidal que caracterizava os inquisidores de alto escalão, no
centro do qual havia um decágono vazio, indicando que a Inquisição respondia diretamente ao
Tanner já havia percebido que ele não era o único que se sentia intimidado pela presença da
inquisidora. Ela despertava um misto de fascínio e temor por onde quer que andasse. Ao chegar no
salão em que aconteceria o banquete, não foi diferente: era fácil perceber como ela atraía os olhares
de todos, apesar de aquele ambiente estar tomado por algumas das figuras mais poderosas do reino.
La’al escolheu um lugar vago na longa mesa em “U”, não muito distante da plataforma
levemente elevada em que se sentavam os membros da família real. Tanner não se sentou: ele tinha
No centro da plataforma, bastante régio em branco e dourado, e com uma expressão que traía
um misto de triunfo e apreensão, estava o rei Godomir III. À sua direita, o príncipe Casimir
contrastava com o pai usando trajes escuros, de corte militar; o paladino parecia notar certo
bonito contraste com sua pele alva e seus cachos dourados, mas a expressão em seus olhos cor de mel
era indecifrável. Aos vinte e três anos, Tanner não podia deixar de notar como ela era atraente.
Do lado oposto ao da inquisidora estava o duque Cerdic de Ergana. Como quase todos em
Alberion, o paladino sabia que aquele era um dos homens mais poderosos do reino – mais influente
que o próprio rei, diziam alguns. Apesar de já passar dos quarenta, ele tinha uma figura imponente e
musculosa. Vestia-se com seus trajes formais de Marechal de Alberion, com um uniforme militar azul
e capa vermelha.
Próximo dele, e em frente a La’al, estava um senhor de aparência frágil, que já devia passar
dos setenta e tremia nervosamente. Era o duque Esegar de Calerfold. Esegar pareceu reconhecer o
paladino, e fez um aceno discreto com a cabeça. O duque havia sido um amigo próximo de Lorde
Ta’rum, e ocasionalmente aparecia no castelo de seu pai adotivo, e devia lembrar-se de Tanner dessa
época.
paladino não estivesse errada, ele era Aethelwine, o filho do marquês Wynfrid Lancaster, que havia se
tornado um mago. Curiosamente, o marquês estava sentado em outro lado da mesa, próximo ao duque
de Ergana, e não trocava mais do que alguns olhares frios com o filho.
A pessoa mais estranha na mesa, contudo, estava do outro lado de Aethelwine: Idrig Naxxaros,
embaixador do Antigo Império, era um draconato – até onde Tanner sabia, o único de Ebenfeld. O
paladino ainda se impressionava toda vez que via aquele ser reptiliano coberto por escamas douradas,
e que falava o idioma alberionês sem nenhuma dificuldade e quase sem sotaque.
Aquelas observações foram interrompidas pelo duque de Calerfold, que de repente derramou
todo o conteúdo de sua taça no colo do marechal. Cerdic Farrar ameaçou reagir e até levou a mão
instintivamente ao cabo de sua espada, mas Esegar exibia uma expressão tão senil e inofensiva que ele
acabou desarmado.
Em todo caso, logo após o incidente o rei se levantou em sua plataforma, e instantaneamente
comparecido a este jantar tendo sido avisados com tão pouca antecedência. Mas, como todos sabem,
o momento pelo qual atravessa Alberion exige urgência, e quando uma notícia feliz como a que eu
tenho hoje acontece, eu não poderia deixar de comunica-la aos pares do reino com a maior brevidade
possível.”
“Eu acredito que nosso maior trunfo na guerra é a união. Neste exato momento, os salesianos
estão mais preocupados em lutar uns contra os outros do que conosco. O Primeiro Cidadão morreu,
e agora todas as facções de Salésia se digladiam pelo posto. Em nossa monarquia, não temos este
problema. No dia em que eu deixá-los – e esse dia ainda está longe – todos já sabem que poderão
contar com meu filho, que foi preparado para isso desde o nascimento, para assumir a coroa. E os
laços entre as grandes casas de Alberion são reforçados não por alianças passageiras ou interesses
escusos, mas pelo sangue. No fundo, somos todos uma grande família. E hoje tenho o prazer de
anunciar que mais um desses laços será criado. Teremos um casamento real!”
“Nestes dias tristes de guerra, poucos homens têm demonstrado mais valor do que nosso
marechal, o duque Cerdic de Ergana. Assim, foi com imenso prazer que eu recebi o pedido do duque
pela mão de minha filha, a princesa Sarena. Agora, mais do que nunca, Alberion lutará unida como
ficou aquém do esperado. O duque de Ergana era uma figura mais temida que amada, e a maioria dos
convidados não parecia exatamente entusiasmada com a sua conquista, embora não tenham faltado
sicofantas para gritar vivas claramente exagerados. E, quando o marechal se levantou para agradecer
às palavras do rei, a situação se tornou ainda mais absurda, pois suas calças ainda estavam molhadas
Antes que Cerdic pudesse falar qualquer coisa, porém, o príncipe Casimir se levantou
bruscamente e se retirou por uma sala lateral, visivelmente irritado. A expressão do rei rapidamente se
transfigurou, ficando tão irada quanto a do filho. Em seguida, ele deixou sua plataforma e seguiu para
a mesma sala.
***
Ocasionalmente era possível ouvir gritos exasperados da sala para onde Godomir e seu
herdeiro haviam se dirigido, embora fosse difícil distinguir o que estava sendo dito. Eventualmente, a
princesa Sarena também se retirou em silêncio para outro aposento, deixando seu noivo sozinho para
“Pelo visto não faltará emoção em seu casamento,” conseguiu dizer o duque Esegar em um
substituídos pelos berros ainda mais altos e desesperados de Casimir. Agora era até possível entender
Esegar foi o primeiro a se levantar em direção à sala, mas quando ele se ergueu vários dos
convidados fizeram o mesmo. A porta não estava trancada, e ninguém estava preparado para a cena
que se revelou quando ele a abriu: o príncipe estava no chão, aos prantos, segurando o corpo
ensanguentado de seu pai. O rei, aparentemente sem vida, tinha atravessada no peito uma bonita
espada longa que Tanner lembrava de ter visto, há apenas alguns minutos, na bainha de Casimir.
Por todos os lados se viam pessoas em choque. Donzelas cobriam os olhos, senhoras
O paladino sabia que precisava tentar fazer alguma coisa. Ele se colocou de joelhos junto do
rei, segurando na mão direita seu símbolo sagrado, e tocando com a esquerda o peito do monarca. Ele
fez uma prece do fundo do seu coração, pedindo que o ferimento se fechasse, e por um breve
momento o medalhão exibiu um brilho azul, mas nada mais aconteceu. Decerto, Godomir III já estava
Com um olhar triste, Tanner sinalizou para a inquisidora que nada mais poderia ser feito. La’al,
no entanto, não pareceu se abalar, e adentrou na sala ignorando tanto o corpo quanto o príncipe. Ela
Foi então que o duque de Ergana irrompeu, de espada em punho e acompanhado por alguns
guardas reais. Era evidente que aqueles homens eram antes de tudo leais a ele, e não ao príncipe ou
mesmo ao rei.
“Eu não esperava que Vossa Alteza fosse ficar feliz com meu casamento, mas jamais poderia
imaginar uma reação tão extremada. Mas não pense que o seu sangue irá salvá-lo nesta hora: príncipe
do pai apoiada em suas pernas, e uma expressão de choque e tristeza no rosto. Nesse momento, a
princesa Sarena reapareceu, coberta em lágrimas, e abraçou o irmão. Aparentemente alguém já lhe
contara o que havia acontecido. Era impressionante como as notícias corriam rápido no castelo.
“Meu noivo, acabo de perder meu pai, e não seria capaz de suportar a perda do meu irmão no
mesmo dia. Eu vos suplico: não marque o dia do nosso noivado como aquele em que toda a minha
família foi destruída. Tenho certeza de que há alguma explicação para isso, Casimir não seria capaz de
matar o nosso pai. Prenda-o na mais alta torre ou na mais profunda masmorra do castelo, se achar
necessário, mas não cometa um erro que não poderá ser desfeito.”
A candura do pedido da princesa não podia ser ignorada, pelo menos ali, na frente de toda a
corte. Cerdic então ordenou a seus homens que levassem o príncipe para o Torre do Marechal, e ele,
***
eia hora depois, Tanner permanecia sentada no chão do salão de jantar. Ele ainda
estava comovido pela lembrança do rei morto em seus braços. Era horrível não
La’al encontrou-o ali. A inquisidora claramente não estava impressionada pelos eventos
daquela noite.
“Seu alvo?”
“A razão pela qual fui mandada até aqui foram denúncias de atividade diabólica no castelo de
Ebenhold. O Primarca não podia tolerar que alguém invocasse Devires no coração de uma das nações
do Cântico, e por isso ele me enviou. Hoje, naquela biblioteca em que o rei foi morto, eu confirmei
esses rumores. Se meu faro não está errado, e ele raramente está, um diabo esteve ali por volta da hora
“Não, ele parece estar limpo. Alguém deve ter planejado isso para eliminar o rei e seu filho
“Então quem?”
“No momento, o principal suspeito parece ser o tal duque de Ergana, pois ele aparentemente
é quem mais tem a ganhar com essa história. Afinal, com Godomir e Casimir mortos, a princesa Sarena
será a herdeira do trono, e nada mais natural do que o seu noivo ser nomeado o regente. E, como
regente e marechal de Alberion, ele se tornaria o homem mais poderoso do reino. Mas eu preciso
investigar e encontrar provas concretas. A Primaz Inquisição não pode acusar um nobre dessa estatura
levianamente.”
“Na verdade, preciso que você cuide de um assunto mais urgente. Temo que o príncipe
Casimir não sobreviva ao cativeiro por muito tempo. Se não o executarem formalmente, em respeito
aos apelos da princesa, inventarão algum acidente ou suicídio. E, se as minhas suspeitas estiverem
corretas, será uma grande injustiça caso isso aconteça, e também um desastre para Alberion. Preciso
que você o resgate de lá e o mantenha a salvo, pelo menos até que a minha investigação seja concluída.”
“Inquisidora, eu compartilho de sua preocupação, mas não creio que esteja dentro das minhas
capacidades resgatar sozinho um cativo na Torre do Marechal. Deve haver dezenas de guardas por
lá.”
“Você não fará isso sozinho. Procure o duque de Calerfold, o embaixador draconato ou o
jovem franzino que conversava com eles. Eu entreouvi uma conversa entre os três, e aparentemente
eles também não acreditam que o príncipe tenha sido o culpado, e estão reunindo um grupo que
tentará resgatá-lo.”
“Mais uma coisa: se possível, evitem um assalto direto. Eu não gostaria de implicar a Primaz
Inquisição ou a Ordem de Valir nesse episódio, então as coisas devem ser feitas de forma furtiva,
idealmente. E se sua consciência não estiver em paz com esta missão, lembre-se, meu caro: ‘os
“Espero que sim. O Cântico da Justiça, livro dois. Da próxima vez que nos encontrarmos, espero
Casimir: Tanner nunca foi próximo de Casimir, mas sempre admirou o jovem príncipe.
Casimir exibe as virtudes que o paladino espera encontrar em um governante: é corajoso, leal e
caridoso, além de ser também um grande guerreiro. Tanner não hesitaria em ajuda-lo se ele for vítima
de uma injustiça.
Tanner e Aethelwine se conhecem, mas nunca foram próximos. Ao contrário do paladino, o mago
sempre foi um intelectual. No entanto, Tanner sabe que ele é um amigo próximo de Casimir, então
ouviram os boatos de que o príncipe vem mantendo um relacionamento amoroso com a estranha
monja que chegou em Ebenfeld há alguns para lhe ensinar artes marciais. A monja por acaso é uma
elfa extremamente bela. Mas seria Casimir capaz disso? Infelizmente, Tanner nunca teve um contato
Nicolai: Tanner sabe que o pequeno halfling faz parte do grupo de amigos mais próximos