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Capítulo 1 – Os Caminhos da

Justiça
anner terminava de ajustar sua armadura. Seu treinamento ensinava que um paladino de

Valir deve estar sempre pronto para o combate, pois nunca se sabe quando a injustiça irá

atacar.

“Vamos, Tanner. Não convém fazer o rei esperar,” disse La’al.

Fazia alguns dias que Tanner acompanhava a Alta Inquisidora Theress La’al por onde quer

que ela fosse, mas ele ainda se sentia intimidado pela mulher. O que era no mínimo curioso, dado que

ela tinha praticamente metade do seu tamanho.

La’al havia chegado em Alberion do Império Alante, em missão oficial. Sendo ela um membro

de alto escalão da Primaz Inquisição, a Igreja de Valir achou por bem designar um de seus paladinos

como seu guarda-costas enquanto ela permanecesse no reino. A situação tinha algo de ridículo: de

acordo com o que Tanner havia ouvido falar, a inquisidora era uma clériga poderosa, e poderia muito

bem defender-se sozinha caso necessário. Mas quando o paladino lhe foi oferecido ela não se opôs, e

ele jamais questionaria uma ordem de seus superiores. Desde então, Tanner passara a frequentar

ambientes com que não estava acostumado.

Naquela noite, o rei havia convidado boa parte da corte para um banquete, em que

supostamente seria feito algum anúncio importante. La’al parecia excitada com a perspectiva, mas de

alguma forma o paladino suspeitava que não era a festa o que a animava, e sim o que ela poderia

observar naquela ocasião.

Tanner não sabia exatamente o que a inquisidora viera fazer em Alberion e, francamente, ele

não estava muito interessado em descobrir. Tudo o que envolvia a Primaz Inquisição lhe dava
calafrios. As histórias envolvendo fogueiras e torturas e sussurradas por todos. Claro, na Igreja de

Valir os sacerdotes ensinavam que esses relatos eram falsos, e que a verdadeira missão dos inquisidores

era caçar demônios e diabos. Mesmo que isso fosse verdade, porém, a perspectiva de lidar com

criaturas abissais não era exatamente reconfortante.

***

a’al flanava pelo corredor como se fosse a dona do castelo. Poucas pessoas com que Allisa

cruzara na vida exalavam tanta autoridade quanto a inquisidora. Alta e esguia, ela vestia

os robes imaculadamente brancos da Primaz Inquisição, e sobre os cabelos louros e curtos

usava o erin – o chapéu em formato trapezoidal que caracterizava os inquisidores de alto escalão, no

centro do qual havia um decágono vazio, indicando que a Inquisição respondia diretamente ao

Primarca, e não a uma ordem específica.

Tanner já havia percebido que ele não era o único que se sentia intimidado pela presença da

inquisidora. Ela despertava um misto de fascínio e temor por onde quer que andasse. Ao chegar no

salão em que aconteceria o banquete, não foi diferente: era fácil perceber como ela atraía os olhares

de todos, apesar de aquele ambiente estar tomado por algumas das figuras mais poderosas do reino.

La’al escolheu um lugar vago na longa mesa em “U”, não muito distante da plataforma

levemente elevada em que se sentavam os membros da família real. Tanner não se sentou: ele tinha

consciência de que seu lugar ali era o de guarda-costas, não de convidado.

No centro da plataforma, bastante régio em branco e dourado, e com uma expressão que traía

um misto de triunfo e apreensão, estava o rei Godomir III. À sua direita, o príncipe Casimir

contrastava com o pai usando trajes escuros, de corte militar; o paladino parecia notar certo

desconforto no semblante dele. Encerrando a composição da mesa, a princesa Sarena sentava-se à


esquerda do pai. Seu vestido azul-marinho com detalhes em prata – as cores de Alberion – faziam um

bonito contraste com sua pele alva e seus cachos dourados, mas a expressão em seus olhos cor de mel

era indecifrável. Aos vinte e três anos, Tanner não podia deixar de notar como ela era atraente.

Do lado oposto ao da inquisidora estava o duque Cerdic de Ergana. Como quase todos em

Alberion, o paladino sabia que aquele era um dos homens mais poderosos do reino – mais influente

que o próprio rei, diziam alguns. Apesar de já passar dos quarenta, ele tinha uma figura imponente e

musculosa. Vestia-se com seus trajes formais de Marechal de Alberion, com um uniforme militar azul

e capa vermelha.

Próximo dele, e em frente a La’al, estava um senhor de aparência frágil, que já devia passar

dos setenta e tremia nervosamente. Era o duque Esegar de Calerfold. Esegar pareceu reconhecer o

paladino, e fez um aceno discreto com a cabeça. O duque havia sido um amigo próximo de Lorde

Ta’rum, e ocasionalmente aparecia no castelo de seu pai adotivo, e devia lembrar-se de Tanner dessa

época.

Ao lado de Esegar estava um jovem esguio e de aparência intelectual. Se a memória do

paladino não estivesse errada, ele era Aethelwine, o filho do marquês Wynfrid Lancaster, que havia se

tornado um mago. Curiosamente, o marquês estava sentado em outro lado da mesa, próximo ao duque

de Ergana, e não trocava mais do que alguns olhares frios com o filho.

A pessoa mais estranha na mesa, contudo, estava do outro lado de Aethelwine: Idrig Naxxaros,

embaixador do Antigo Império, era um draconato – até onde Tanner sabia, o único de Ebenfeld. O

paladino ainda se impressionava toda vez que via aquele ser reptiliano coberto por escamas douradas,

e que falava o idioma alberionês sem nenhuma dificuldade e quase sem sotaque.

Aquelas observações foram interrompidas pelo duque de Calerfold, que de repente derramou

todo o conteúdo de sua taça no colo do marechal. Cerdic Farrar ameaçou reagir e até levou a mão
instintivamente ao cabo de sua espada, mas Esegar exibia uma expressão tão senil e inofensiva que ele

acabou desarmado.

Em todo caso, logo após o incidente o rei se levantou em sua plataforma, e instantaneamente

todos no salão se calaram.

“Meus amigos,” começou o monarca, “primeiramente, eu gostaria de agradecer-lhes por terem

comparecido a este jantar tendo sido avisados com tão pouca antecedência. Mas, como todos sabem,

o momento pelo qual atravessa Alberion exige urgência, e quando uma notícia feliz como a que eu

tenho hoje acontece, eu não poderia deixar de comunica-la aos pares do reino com a maior brevidade

possível.”

Os comensais se agitaram discretamente na mesa. Quando os ruídos cessaram, o rei continuou:

“Eu acredito que nosso maior trunfo na guerra é a união. Neste exato momento, os salesianos

estão mais preocupados em lutar uns contra os outros do que conosco. O Primeiro Cidadão morreu,

e agora todas as facções de Salésia se digladiam pelo posto. Em nossa monarquia, não temos este

problema. No dia em que eu deixá-los – e esse dia ainda está longe – todos já sabem que poderão

contar com meu filho, que foi preparado para isso desde o nascimento, para assumir a coroa. E os

laços entre as grandes casas de Alberion são reforçados não por alianças passageiras ou interesses

escusos, mas pelo sangue. No fundo, somos todos uma grande família. E hoje tenho o prazer de

anunciar que mais um desses laços será criado. Teremos um casamento real!”

Um silêncio tenso se abateu sobre o salão.

“Nestes dias tristes de guerra, poucos homens têm demonstrado mais valor do que nosso

marechal, o duque Cerdic de Ergana. Assim, foi com imenso prazer que eu recebi o pedido do duque

pela mão de minha filha, a princesa Sarena. Agora, mais do que nunca, Alberion lutará unida como

uma família, e nossos inimigos descobrirão a fúria do Grifo!”


Ao proferir as últimas palavras, o rei ergueu sua taça em um brinde, mas a reação certamente

ficou aquém do esperado. O duque de Ergana era uma figura mais temida que amada, e a maioria dos

convidados não parecia exatamente entusiasmada com a sua conquista, embora não tenham faltado

sicofantas para gritar vivas claramente exagerados. E, quando o marechal se levantou para agradecer

às palavras do rei, a situação se tornou ainda mais absurda, pois suas calças ainda estavam molhadas

pelo vinho derramado por Esegar.

Antes que Cerdic pudesse falar qualquer coisa, porém, o príncipe Casimir se levantou

bruscamente e se retirou por uma sala lateral, visivelmente irritado. A expressão do rei rapidamente se

transfigurou, ficando tão irada quanto a do filho. Em seguida, ele deixou sua plataforma e seguiu para

a mesma sala.

***

rei e o príncipe já haviam se retirado fazia vários minutos, e um clima de

constrangimento imperava no salão de jantar desde então. Os convidados não sabiam

como agir, se ficavam ou se saíam, e os serviçais tentavam desesperadamente manter

a impressão de normalidade trazendo mais comida e bebida para a mesa.

Ocasionalmente era possível ouvir gritos exasperados da sala para onde Godomir e seu

herdeiro haviam se dirigido, embora fosse difícil distinguir o que estava sendo dito. Eventualmente, a

princesa Sarena também se retirou em silêncio para outro aposento, deixando seu noivo sozinho para

lidar com os olhares da nobreza de Alberion.

“Pelo visto não faltará emoção em seu casamento,” conseguiu dizer o duque Esegar em um

momento em que o silêncio se tornara quase insuportável. O marechal não respondeu.


De repente, os gritos da sala ao lado cessaram por um breve momento, mas depois foram

substituídos pelos berros ainda mais altos e desesperados de Casimir. Agora era até possível entender

algumas palavras: “Papai! Não! Socorro!”

Esegar foi o primeiro a se levantar em direção à sala, mas quando ele se ergueu vários dos

convidados fizeram o mesmo. A porta não estava trancada, e ninguém estava preparado para a cena

que se revelou quando ele a abriu: o príncipe estava no chão, aos prantos, segurando o corpo

ensanguentado de seu pai. O rei, aparentemente sem vida, tinha atravessada no peito uma bonita

espada longa que Tanner lembrava de ter visto, há apenas alguns minutos, na bainha de Casimir.

Por todos os lados se viam pessoas em choque. Donzelas cobriam os olhos, senhoras

desmaiavam ou fingiam desmaiar.

O paladino sabia que precisava tentar fazer alguma coisa. Ele se colocou de joelhos junto do

rei, segurando na mão direita seu símbolo sagrado, e tocando com a esquerda o peito do monarca. Ele

fez uma prece do fundo do seu coração, pedindo que o ferimento se fechasse, e por um breve

momento o medalhão exibiu um brilho azul, mas nada mais aconteceu. Decerto, Godomir III já estava

morto, e um simples toque curativo nada poderia fazer para salvá-lo.

Com um olhar triste, Tanner sinalizou para a inquisidora que nada mais poderia ser feito. La’al,

no entanto, não pareceu se abalar, e adentrou na sala ignorando tanto o corpo quanto o príncipe. Ela

parecia estar farejando algo.

Foi então que o duque de Ergana irrompeu, de espada em punho e acompanhado por alguns

guardas reais. Era evidente que aqueles homens eram antes de tudo leais a ele, e não ao príncipe ou

mesmo ao rei.

“Eu não esperava que Vossa Alteza fosse ficar feliz com meu casamento, mas jamais poderia

imaginar uma reação tão extremada. Mas não pense que o seu sangue irá salvá-lo nesta hora: príncipe

ou não, a pena por regicídio é a morte.”


Casimir parecia ignorar as palavras do marechal, e continuava prostrado no chão, com a cabeça

do pai apoiada em suas pernas, e uma expressão de choque e tristeza no rosto. Nesse momento, a

princesa Sarena reapareceu, coberta em lágrimas, e abraçou o irmão. Aparentemente alguém já lhe

contara o que havia acontecido. Era impressionante como as notícias corriam rápido no castelo.

“Meu noivo, acabo de perder meu pai, e não seria capaz de suportar a perda do meu irmão no

mesmo dia. Eu vos suplico: não marque o dia do nosso noivado como aquele em que toda a minha

família foi destruída. Tenho certeza de que há alguma explicação para isso, Casimir não seria capaz de

matar o nosso pai. Prenda-o na mais alta torre ou na mais profunda masmorra do castelo, se achar

necessário, mas não cometa um erro que não poderá ser desfeito.”

A candura do pedido da princesa não podia ser ignorada, pelo menos ali, na frente de toda a

corte. Cerdic então ordenou a seus homens que levassem o príncipe para o Torre do Marechal, e ele,

ainda visivelmente abalado, deixou que o conduzissem sem protestos.

***

eia hora depois, Tanner permanecia sentada no chão do salão de jantar. Ele ainda

estava comovido pela lembrança do rei morto em seus braços. Era horrível não

poder fazer nada.

La’al encontrou-o ali. A inquisidora claramente não estava impressionada pelos eventos

daquela noite.

“Finalmente o meu alvo deu as caras.”, disse ela.

“Seu alvo?”
“A razão pela qual fui mandada até aqui foram denúncias de atividade diabólica no castelo de

Ebenhold. O Primarca não podia tolerar que alguém invocasse Devires no coração de uma das nações

do Cântico, e por isso ele me enviou. Hoje, naquela biblioteca em que o rei foi morto, eu confirmei

esses rumores. Se meu faro não está errado, e ele raramente está, um diabo esteve ali por volta da hora

em que o assassinato aconteceu. Dificilmente as duas coisas não estão relacionadas.”

“Então você acha que o príncipe…”

“Não, ele parece estar limpo. Alguém deve ter planejado isso para eliminar o rei e seu filho

com um único golpe.”

“Então quem?”

“No momento, o principal suspeito parece ser o tal duque de Ergana, pois ele aparentemente

é quem mais tem a ganhar com essa história. Afinal, com Godomir e Casimir mortos, a princesa Sarena

será a herdeira do trono, e nada mais natural do que o seu noivo ser nomeado o regente. E, como

regente e marechal de Alberion, ele se tornaria o homem mais poderoso do reino. Mas eu preciso

investigar e encontrar provas concretas. A Primaz Inquisição não pode acusar um nobre dessa estatura

levianamente.”

“E como eu posso ajudar?”

“Na verdade, preciso que você cuide de um assunto mais urgente. Temo que o príncipe

Casimir não sobreviva ao cativeiro por muito tempo. Se não o executarem formalmente, em respeito

aos apelos da princesa, inventarão algum acidente ou suicídio. E, se as minhas suspeitas estiverem

corretas, será uma grande injustiça caso isso aconteça, e também um desastre para Alberion. Preciso

que você o resgate de lá e o mantenha a salvo, pelo menos até que a minha investigação seja concluída.”

“Inquisidora, eu compartilho de sua preocupação, mas não creio que esteja dentro das minhas

capacidades resgatar sozinho um cativo na Torre do Marechal. Deve haver dezenas de guardas por

lá.”
“Você não fará isso sozinho. Procure o duque de Calerfold, o embaixador draconato ou o

jovem franzino que conversava com eles. Eu entreouvi uma conversa entre os três, e aparentemente

eles também não acreditam que o príncipe tenha sido o culpado, e estão reunindo um grupo que

tentará resgatá-lo.”

“Farei isso, inquisidora.”

“Mais uma coisa: se possível, evitem um assalto direto. Eu não gostaria de implicar a Primaz

Inquisição ou a Ordem de Valir nesse episódio, então as coisas devem ser feitas de forma furtiva,

idealmente. E se sua consciência não estiver em paz com esta missão, lembre-se, meu caro: ‘os

caminhos da justiça nem sempre são os caminhos da lei’.”

“Acho que já ouvi isso antes.”

“Espero que sim. O Cântico da Justiça, livro dois. Da próxima vez que nos encontrarmos, espero

que você o saiba de cor”.

Relações com Outros Personagens

 Casimir: Tanner nunca foi próximo de Casimir, mas sempre admirou o jovem príncipe.

Casimir exibe as virtudes que o paladino espera encontrar em um governante: é corajoso, leal e

caridoso, além de ser também um grande guerreiro. Tanner não hesitaria em ajuda-lo se ele for vítima

de uma injustiça.

 Aethelwine: como dois jovens de origem aristocrática e aproximadamente a mesma idade,

Tanner e Aethelwine se conhecem, mas nunca foram próximos. Ao contrário do paladino, o mago

sempre foi um intelectual. No entanto, Tanner sabe que ele é um amigo próximo de Casimir, então

deve ser uma boa pessoa.


 Alana: Tanner não é um homem de se envolver com fofocas, mas quase todos na corte já

ouviram os boatos de que o príncipe vem mantendo um relacionamento amoroso com a estranha

monja que chegou em Ebenfeld há alguns para lhe ensinar artes marciais. A monja por acaso é uma

elfa extremamente bela. Mas seria Casimir capaz disso? Infelizmente, Tanner nunca teve um contato

maior com Alana para confirmar ou descartar essas histórias.

 Liarieth: não conhece.

 Nicolai: Tanner sabe que o pequeno halfling faz parte do grupo de amigos mais próximos

de Casimir, mas seu conhecimento sobre o bardo se encerra aí.

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