Em Okanom reinava o Rei Ciro, o Terceiro. Era um incorrigível sorna. Preocupava-se
pouco com a governação, deixando cair o país num desmazelo, pelo que o povo o alcunhou de Rei-Molengão. De tanto bocejar e dormitar, acabou por ficar com uma doença esquisita, que os médicos da Corte não souberam explicar nem curar. E assim morreu. A Rainha Crimilda sentiu tão profundo desgosto pela morte do seu real esposo que morreu também. Não deixaram filhos. Por isso, subiu ao trono o seu sobrinho, o príncipe Rique. E, como antes dele, nenhum rei se chamara Rique, passou a ser Rei Rique, o Primeiro. Ora, os membros da Corte – os conselheiros, embaixadores, pregadores, mordomos, as damas de honor, e o que mais por lá havia – nunca tinham achado necessário ralarem-se com o que corria bem ou mal no país. Já que o Rei Ciro, o Terceiro, passava a maior parte do tempo a descansar, tratavam de se divertir e de mexericar, mas agora, como sabiam o jovem Rei vivaz e cheio de ideias novas, ficaram assustados. Temiam poder perder as suas regalias e serem substituídos por pessoas mais do agrado do Rei. Resolveram então fazer todos os possíveis para lhe agradar. Julgam-no com vénias e rapapés; desfaziam-se em falas mansas; diziam que sim com a cabeça quando falava; gritavam “De acordo! De acordo!” sempre que emitia uma opinião; macaquear-lhe as vestes, o penteado, os gestos, a voz e a maneira de falar. O Rei, moço de bom senso e de muito saber, depressa se cansou de tão enfadonho comportamento e admirou-se que o seu tio, o Rei Ciro, o tivesse apreciado. “Lealdade”, dizia de si para si, “não se manifesta por meio de vénias e lisonjas, mas sim de franqueza e de cabeça levantada.” Aproximava-se o dia do seu aniversário. Os cavaleiros e as damas da Corte providenciaram um faustoso banquete. Enfeitaram a sala de jantar com plantas, flores, bandeiras e três enormíssimas fotografias do Rei. As bordadeiras da Corte tiveram de bordar, em ponto de cruz, centenas de minúsculas coroas reais sobre uma toalha de mesa, e o cozinheiro-chefe foi incumbido de apresentar, para além de variados petiscos e iguarias, um bolo de aniversário de dez camadas, com dez recheios diferentes e uma bandeirinha no topo, em que se liam as palavras “Parabéns ao nosso esplendoroso Rei Rique, o Primeiro” À hora marcada para o banquete, os membros da Corte, aperaltados com pompa e ordeiramente abrindo ala, esperavam o Rei, e, quando este entrou, baixaram a cabeça e em seguida exclamaram um estrondoso “Viva o nosso glorioso Rei Rique!” O Rei esboçou um leve sorriso como quem diz “Basta! Basta!” Abancaram à mesa. Comeu-se, bebeu-se, fizeram-se brindes recheados de elogios ao Rei e à sua governação. Depois, passou-se à tagarelice, comentaram-se as intrigazinhas, e tramoias de que havia notícia na Corte e em outras bandas. Todos, menos o Rei Rique, estavam satisfeitos e divertidos. Cansado com tais conversas, o Rei tirou da mão direita o seu anel de brasão e pôs-se a brincar com ele sobre a toalha, empurrando-o de coroazinha bordada em coroazinha bordada, mas, num momento de distração, e precisamente quando o cozinheiro-chefe e mais três lacaios entravam carregando o enormíssimo bolo de dez camadas, o anel rolou ao chão, para debaixo da mesa. Zelosamente, os lacaios acorreram para o procurar, mas o Rei antecipou-se-lhes. Com desembaraço, baixou-se, apanhou o anel e, erguendo-o no ar, triunfou: – Cá está ele, o meu lindo anel! Foi como se um raio tivesse caído no castelo. O quê?! Um Rei que se baixava para apanhar coisas do chão? Não havia na Corte memória de semelhante delito contra os usos e costumes dos anteriores soberanos da Corte. Durante momentos, pairou um pesado silêncio em seu redor, mas depressa os conselheiros, embaixadores, pregadores, mordomos e as damas de honor acharam oportuno imitar a estranha conduta do Rei. E, sem hesitar mais, atiraram para debaixo da mesa alfinetes, anéis, diademas, broches, colares e pérolas. Em seguida, baixaram-se para apanhar o que a cada qual pertencia. Mas não era nada fácil, porque as preciosidades ficaram baralhadas. Impossível dar com elas estando sentado na cadeira. Por isso, as damas e os cavaleiros não tiveram outro remédio senão meterem-se debaixo da mesa. De gatinhas de cá para lá e de lá para cá, esqueceram-se da sua habitual compostura. Soltaram exclamações como: “Atenção! Este é meu!” “Ora essa! É meu e bem meu!” “Tire daí as mãos, seu gatuno!” “Não toque no que não é seu!” e assim por diante. Acotovelaram-se, empurraram-se, e acabaram por se emaranhar uns nos outros de tal maneira que já não conseguiam atinar com os seus próprios braços e pernas. Uma embrulhada nunca vista. Sentado à mesa, sem mais ninguém, o rei deliciou-se calmamente com uma fatia do bolo de anos e com o cafezinho a fumegar. De repente, ouviu alguém gritar lá debaixo da mesa: – Esta perna não é sua, seu velhaco, mas é minha! O Rei Rique desatou numa gargalhada tão retumbante que as paredes da sala abanaram. Depois ergueu-se, atravessou, de passo majestoso, a sala e chegado à porta falou deste jeito: – Minhas senhoras e meus senhores, escutem! Assim que estiverem de novo na posse das vossas joias, braços e pernas, façam as malas e vão procurar serviço mais afim com os vossos talentos e ambições. Pois daqui, da minha corte, estão dispensados. E desejo-lhes boa sorte. Saiu e chamou o seu querido cão pastor: – Ronaldo, vem cá! Vamos os dois dar uma volta. Preciso urgentemente de respirar ar fresco.