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Prólogo

Os grandes portões de madeira da tão aclamada Teória se abriram para deixar passar a
carroça que transportava os prisioneiros capturados no Norte. A etérea Capital do
Império Blisar, conhecida por ser a resplandecente cidade dos sonhos, se mostrou um
amontoado de construções de pedra que se espremiam uma sobre as outras em ruas
estreitas e fétidas, uma mistura do podre dos esgotos correndo nas valas com o ar
salgado do mar.
Os cidadãos curiosos observavam o espetáculo com seus olhares duros e sem
compaixão; a maioria deles tinham feições famintas e desesperadas, porém,
independentemente de suas classes, era possível sentir o ódio que nutriam pelo brasão
estampado nas fardas azuladas dos presos.
O pior veio depois, quando um xingamento isolado chamou outro, até todos em volta se
juntarem gradativamente, rugindo ofensas, ordens e zombarias, descendo o calão até
começarem a jogar frutas podres, lama, pedras e um balde de excremento sobre as
cabeças dos indefesos cativos.
A grande Fortaleza Nightsword esperava incólume na costa, com três dedos enormes
crescendo acima de qualquer outra construção na cidade; um borrão cinza e sem vida,
tal qual como a própria Teória. A grandiosíssima fortificação fora cede da corte e lar da
casa Nightsword desde que eles ainda eram somente os donos das pequenas terras
portuárias do Leste, antes de ascenderem como reis quando seu nome ainda não estava
manchado pelo sangue de milhares de inocentes que morreram naquela maldita e fútil
guerra.
As rodas de madeira estalavam no paralelepípedo e, quanto mais perto chegavam do
ponto final, mais lágrimas escorriam do rosto da mais jovem dos infortunados detentos.
Mary Sildmil não tinha mais de vinte anos e costumava ser irritantemente otimista,
porém, diante do fim de sua breve vida, com respingos de merda no seu cabelo claro,
não havia nada nos céus e na terra que pudessem fazê-la parar de gemer. Nilo Hidaris
estava mudo e imóvel, num estado de choque quase vegetativo, desde quando
arrastaram ele para um matagal afastado e seus gritos irromperam aquela madrugada de
lua cheia; seu corpo parecia estar oco, desprovido de alma, extremamente destoante do
garoto cheio de vida que um dia fora. Por último, mas totalmente diferente de seus
companheiros, Karin Heavens mantinha sua cabeça em pé, mesmo sob a enxurrada de
palavrões e banhada com aquela imundície arremessada pelos expectadores furiosos.
Sem uma gota de medo sequer, ela retribuía a multidão com um olhar de fúria selvagem
que deixava claro que ela não temia seu julgamento e a sua indubitável morte.
A fúnebre carruagem parou em frente ao enorme portão da Fortaleza e, depois dos
guardas trocarem algumas palavras, a enorme bocarra que se projetava nas pedras se
abriu para os engolir, assim como um demônio dos mais profundos níveis do Vazio
devora as almas dos pecadores. Lá dentro, construções com pés direito exageradamente
altos da mesma pedra escura dos muros externos e os imponentes estandartes da Família
Nightsword esperavam os prisioneiros.
Um grande palco fora montado no meio do pátio anterior, onde três cordas esperavam
esticadas. De frente para ele, um nobre alto e bem vestido observava tudo com olhos cor
âmbar, junto de alguns guardas pessoais, um sacerdote e o carrasco. Um dos soldados
abriu a cela e ordenou que os presos caminhassem em direção aos seus lugares. Mary
começou a se debater e chorar desesperadamente, mas foi obrigada a se calar diante de
um tapa da pesada mão de um dos guardas, então, sem opção, os três se posicionaram e
tiveram os laços passados ao redor do pescoço. O sacerdote começou a entoar um
cântico em sua língua estranha, um lamento triste e sem significado, enquanto o
carrasco subia as escadas do palco para finalizar a sentença. A cada passo do homem
mascarado em direção a alavanca da estrutura, mais alto Mary soluçava.
Karin Heavens não conseguia se importar com os amigos ao seu lado, nem entender
quem eram aqueles estranhos à sua volta, pois nada importava afinal. Fechando os
olhos, ela levou seus últimos pensamentos até sua casa nas planícies verdes de Fiore,
onde seus pais esperavam a sua volta, sentados ao redor da mesa de jantar farta com sua
comida predileta. Com aquela última imagem gravada em sua mente, estava pronta para
partir.
Antes que a morte pudesse colher as almas daqueles três pobres soldados fioreneces,
uma voz irreverentemente forte irrompeu o ambiente:
- Parem já com isso. – Ordenou o emissor, um homem de vestes, cabelo e olhos negros,
que lembraria uma sombra completa se não fosse sua pele pálida.
O estranho subiu apressadamente o tablado e retirou uma por uma as cordas que
envolviam os pescoços dos prisioneiros e ordenou que seus homens os levassem até
uma sela nas masmorras. Mary, Nilo e Karin se distanciaram, deixando uma tensa
discussão atrás de si e, mesmo compreendendo bem o idioma comum de Blisar, Karin
não fazia questão de prestar atenção em nada do que falavam, pois tudo o que importava
já estava bem claro: aquela ainda não era hora de morrer.

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Destino
Aron Walker estava a exatas 36 horas sem dormir. Todos os preparativos para a
chegada do irmão do rei Rakin Nightsword VIII se tornaram uma ótima desculpa para
se manter acordado e evitar aqueles sonhos estranhos que o assombravam todas as vezes
que pregava os olhos. Valtel Gama, o homem que o criou, o repreenderia se visse
aquelas olheiras enormes, como sempre, mas dessa vez o General estava tão ocupado
lidando com os assuntos que permeavam toda aquela movimentação gigantesca na
Fortaleza que nem sequer notara o cansaço no rosto do seu Intendente.
Valtel tinha motivo para estar agitado, pois o futuro de todo o Império se encontrava em
suas mãos. Há três gerações Blisar travava uma guerra com a União dos Estados de
Fiore, e, embora tivesse vantagem e a vitória fosse favorável, todo esse tempo de
conflito empobreceu as suas províncias, maltratou o povo e tirou o sono do General.
Todo esse tempo, o arquimago conhecido como o homem mais poderoso ainda vivo,
apoiou e serviu seu rei nas batalhas travadas contra seus inimigos, mesmo sendo
nitidamente contra o desperdício de tempo e recursos nessas investidas. O adoecimento
de Rakin fora uma tristeza para ele, mas também a saída de seus problemas e o alívio
para suas aflições. Valtel elaborara um acordo para acabar com aquela guerra e
finalmente era chegada a hora. Tudo precisava ser perfeito.
Aron estava lendo um exemplar de Províncias dos Reinos do Céu quando foi chamado
ao escritório de Valtel Gama. Depois de lavar o rosto e esfregar bem os olhos para
tentar disfarçar a insônia, o Intendente seguiu ao encontro de seu mestre no topo da
Torre Azul.
- Bom dia, Aron. – O General cumprimentou com uma voz rouca e trêmula.
- Senhor? – Aron perguntou enquanto fazia uma reverência.
O quarto de Valtel era decorado em vermelho e dourado com as tapeçarias e estofados
mais finos que existiam em todo o reino, e possuía, em frente a janela, uma escrivaninha
rústica de madeira maciça onde pergaminhos, cartas e mapas estavam espalhados por
toda parte. Atrás daquela mesa, sentado em sua grande poltrona em couro tingido, o
General era uma figura mirrada e triste, de olhos apertados, sulcos por toda a flácida
pele envelhecida e costas curvadas pelo peso dos anos. Sua cabeça era completamente
lisa à medida que sua alva barba crescia até a altura do umbigo. Ainda assim, aquele era
o homem mais temido de todos os continentes e, embora a princípio pudesse parecer
frágil, Aron sabia bem quem e o que aquele sujeito realmente representava. Ele servia

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Valtel a tempo suficiente para conhece-lo como a si mesmo, por isso, assim que colocou
os olhos na figura do General, apoiado sobre os mapas, com aquele olhar tão
característico, teve certeza que algo grande estava por acontecer.
- Quero que você, Erik e Get estejam aqui quando eu for ter com Kaleq e Léa. Eles
provavelmente chegam hoje e é de extrema importância que vocês três compareçam.
Vou explicar a vocês os meus planos e as movimentações que estive preparando em
relação a essa bagunça deixada por Rakin. – Valtel pronunciou enquanto passava a mão
por sua extensa barba.
- Assim será. – Aron assentiu rapidamente, disfarçando o máximo que podia o
descontentamento pela notícia.
- Eu admiro o modo como se mantém firme mesmo contrariado, filho, mas aqui entre
nós não é preciso toda essa formalidade. – Valtel reclinou-se sobre a mesa.
- Força do hábito, senhor. – Aron se permitiu descansar as mãos ao lado do corpo logo
depois de ajeitar seu lenço em volta do pescoço.
- Por tantos anos você tem me servido bem, meu filho. Te criei como um dos meus, mas
sinto que nada pude fazer para retribuí-lo. – As palavras de Valtel soaram
verdadeiramente pesadas.
- Tudo o que pude aprender com o senhor já foi o suficiente. – Aron abaixou os olhos –
Acredito que as vezes as coisas acontecem por algum motivo.
- Acredita mesmo nisso? – O general perguntou, como se pudesse ler, sem qualquer
esforço, todas as mínimas nuances da mentira na voz de seu Intendente.
- Acredito no que é conveniente, senhor. – O jovem Walker respondeu, voltando a
encarar seu mestre.
-Vá. – O arquimago mandou, permanecendo imóvel enquanto observava Aron sair tão
depressa como entrou.
Fora da sufocante sala do arquimago, Aron respirou fundo para ganhar as forças que
precisaria ter para enfrentar o furacão em forma de mulher que estava por chegar. Com
aqueles cabelos longos, bustos de dar inveja e uma língua afiada para qualquer um que
se colocasse em seu caminho, Léa Alves seria um problema a mais na lista de Aron.
Entretanto, nada adiantaria lamentar. Então, depois de sacudir a cabeça para pôr as
ideias no lugar, o Intendente precisava se preocupar com sua primeira e mais importante
tarefa: preparar Erik e Get para aquela reunião.
Aron foi ao quarto de Erik, percorreu o castelo e perguntou a vários criados sobre o
paradeiro de seu quase irmão Sven, mas ficou claro que ele não estava na fortaleza e

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que não havia voltado para seu quarto desde a noite passada. O Intendente revirou os
olhos e mandou que preparassem seu cavalo, pois sabia exatamente onde o encontraria.
George, o cavalariço, não demorou muito para trazer a égua, de nome Luz, pronta para
montar. Lucile, uma criada quieta e sorrateira que lembrava muito um roedor, veio logo
atrás com o pedido especial que Intendente fizera: um manto longo de lã. Com um
aceno rápido se despediu deles e seguiu para o portão, que se abriu diante das ordens
dos guardas posicionados nas ameias.
As ruas de Teória estavam movimentadas devido a iminente chegada do irmão do rei e
sua filha. Foi impossível não atrair os olhares curiosos dos cidadãos enquanto cruzava a
longa estrada que cortava a cidade, infortunadamente batizada de Lamento da Viúva. O
caminho ficava cada vez mais estreito ao sul, conforme se afastava do castelo e
adentrava as áreas mais sombrias.
Aron parou Luz em frente a um beco escuro e sujo que parecia não ter saída. Seguindo
adiante nele, era possível identificar portas pequenas que indicavam estabelecimentos
um tanto quanto duvidosos. Ele adentrou em uma delas, que ostentava uma placa com o
desenho de um rato morto logo acima. Lá dentro, encontrou o que procurava, porém,
não exatamente como queria.
O único som dentro da pocilga que o orgulhoso Senhor Rato, com seus longos bigodes,
gostava de chamar de taverna, era o assovio da canção Inverno sem fim soprada por ele
mesmo enquanto secava e guardava os copos. Aron o saudou timidamente, mas ele não
se preocupou em responder.
Sentado num banco alto e escorado sobre o balcão, Sven Erik cochilava tranquilamente,
babando sobre o braço que apoiava a cabeça e com uma caneca meio cheia pendendo da
outra mão. O Intendente se aproximou do seu alvo, suportando com dificuldade o fedor
de cerveja seca e mijo do ambiente. Com cuidado, Aron retirou o copo que repousava
na mão de seu amigo só para despejar todo o conteúdo sobre a cabeça dele, que acordou
imediatamente.
- Mas que porra foi isso? – Erik perguntou, erguendo-se e fitando Aron sem entender
nada.
- Que coisa deprimente... – Aron cruzou os braços enquanto observava a expressão
atônita de Erik. – O poderoso Mago Azul, criado como um filho do próprio General
Gama, membro importante na corte do Rei Rakin VIII e lorde da grandiosíssima casa
Sven por direito de nascença, caído de bêbado, num lugar desses...

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Erik passou as mãos nos olhos, que ardiam devido ao álcool, e penteou com os dedos
seu sujo e emaranhado cabelo de cor azul real.
- Puta que pariu, Aron! - Sor. Sven xingou, ainda mais alto, em forma de desafio.
- Isso não teria acontecido se tivesse o mínimo de responsabilidade e voltasse para casa
antes do amanhecer. – Aron se sentou ao lado de Erik – Mas esquece isso por enquanto,
preciso que volte comigo agora porque temos uma reunião mais tarde.
- Que se foda essas reuniões! Eu já disse que não quero ter nada a ver com os assuntos
do Império. Não entendo por que continuar me convocando. – Erik voltou a se sentar,
sentindo a cabeça latejar e tudo girar a sua volta.
- Erik, eu não sei em qual momento das nossas vidas nós acabamos nos tornando tão
diferentes, mas sabe que pode contar comigo para qualquer coisa, não é? Quantas vezes
até agora eu já não te ajudei e acobertei as bagunças que faz por aí desde que éramos
jovens? – O intendente perguntou, de forma mais branda.
- Por que está me dizendo isso agora? – Erik se esquivou, encarando seu amigo de
infância com desconfiança.
- Porque preciso que retribua isso. Estou te pedindo um favor como seu irmão, e não
como o intendente do general. Vamos até lá, participe da reunião, ouça o que Valtel tem
a dizer e, dependendo do que for, recuse ou aceite, eu não me importo. Devemos muito
a ele. – Aron pediu uma cerveja para o Senhor Rato, que o serviu rapidamente – Eu me
preocupo com você e com a vida que tem levado, sabe disso. Só peço que, dessa vez,
faça isso por mim.
Erik era mais novo e, embora fosse quase dois palmos mais alto que Aron, sempre que
seu irmão o repreendia, se sentia como uma criança pequena e estúpida, principalmente
porque o baixinho sempre tinha razão. Sem argumentos e com dor de cabeça demais
para continuar brigando, Erik respirou fundo e se decidiu, sorrindo para indicar seu
consentimento, esquecendo o nervosismo de antes sem dificuldade:
- O que eu não faço por você, senhor Corvo? Mas o que é tão importante assim, afinal?
- Não me chame assim. – Aron repreendeu, então depois voltou a falar, tomando um
gole de sua caneca e retomando sua seriedade - Kaleq Nightsword e Léa Alves chegam
hoje e Valtel tem algo de importante que precisa discutir com todos nós.
- Léa Alves está vindo? – Erik começou a caçoar – Agora entendi o porquê está tão
tenso.
- Cala a boca. – O intendente bebeu de uma vez o resto da cerveja e se levantou –
Vamos logo.

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Com Erik apoiado em seus ombros, o intendente saiu da Taverna do Rato em direção a
sua égua. Depois de colocar o manto de lã sobre o lorde Sven, o ajudou a montar e o
guiou Lamento acima, de volta a Fortaleza.
- Se vomitar em cima da Luz eu te deixo aqui no meio da rua. – O intendente ameaçou,
vendo a cara de náusea que Erik fazia conforme o animal balançava.
- Dá um tempo, Dante.

Quando as cornetas anunciaram a chegada de Kaleq e Léa, Aron havia acabado de


terminar as preparações das provisões e acomodações para a chegada deles. Valtel
desceu até o pátio para recebe-los pessoalmente junto de seu intendente, Sven Erik e seu
filho Get.
Ao contrário de Rakin VIII, que em seu auge fora um homem robusto, imponente e de
presença esmagadora, Kaleq era uma coisa magra, frágil e frígida. O caçula Nightsword,
conhecido por seus luxos exagerados, não desperdiçara aquela oportunidade para causar
um alvoroço, trazendo quase sua corte inteira para a capital e viajando naquela liteira
escandalosa. O primeiro a descer quando o comboio parou foi ele próprio, mais velho,
como se era esperado, mas ainda assim estranhamente igual como no dia em que partira
de Teória para cuidar do Norte. Valtel deu-lhe um beijo na costa da mão direita, como a
etiqueta exigia. O general nunca fora próximo do irmão de Rakin como era ao rei e suas
interações sempre foram um tanto quanto engessadas.
Léa Alves desceu em seguida e foi como se um monstro de longos cabelos castanhos e
lábios vermelhos saísse de dentro daquela liteira. A primeira pessoa que a senhorita fez
questão de ir saudar foi Aron Walker. O rapaz foi surpreendido com um abraço
repentino que o desequilibrou e quase o derrubou, e recebeu ainda dois beijos no rosto,
um cada em bochecha, antes da moça ir falar com os outros.
Valtel guiou todos até seu escritório no topo da maior torre da Fortaleza, a Torre Azul.
Lá, uma empregada de confiança serviu água e vinho enquanto Kaleq e Léa falavam
animados das coisas e pessoas que encontraram no caminho. Quando tudo parecia mais
calmo, o General resolveu pôr as cartas sobre a mesa para dar andamento ao que
realmente importava.
- Sei que estão cansados, mas quanto antes resolvermos o principal assunto que temos a
tratar, mais rápido poderemos dormir em paz. – O arquimago começou a falar, se

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dirigindo até atrás de sua mesa e retirando um pergaminho da primeira gaveta – A
alguns anos venho conversando através de mensagens com o conselho de Fiore e,
depois de resolvermos as condições, chegamos a um acordo de não agressão total, ou
seja, uma trégua entre as duas nações e a garantia de paz que a tantos anos nos foi
tomada pelas inconsequentes ações do nosso rei.
Um silêncio tenso tomou conta de todos, que se entreolharam confusos e incrédulos.
Quem quebrou o remanso foi Get Gama, que se aproximou de seu pai e questionou:
- Isso é sério?
- Eu nunca brincaria com algo assim, meu filho. – Valtel respondeu, entregando o
pergaminho para o comandante ler.
- Quando me escreveu que os seus planos haviam avançado não imaginei que já havia
chegado a esse ponto, Valtel. Preciso reconhecer sua perícia em toda essa questão
diplomática e te parabenizar. – Kaleq pronunciou, recebendo o pergaminho das mãos de
Get para também lê-lo.
- Como sabe, Kaleq, com Rakin debilitado, preciso da aprovação do membro mais
próximo da família real, por isso é tão importante que o senhor assine. – Valtel
continuou – Também queria adiantar que a entrega desse documento em Fiore será
minha última missão antes de... me aposentar.
Desta vez não houve tempo, pois, sem conseguir acreditar no que ouvia, Aron se
adiantou:
- O senhor vai abandonar o cargo e a regência? Mas o rei ordenou que...
- Eu sei o que Rakin ordenou..., mas ele está morrendo... e não vai se recuperar. - Valtel
sentou-se em sua poltrona e respirou fundo – Eu sirvo a Rakin Nightsword VIII a
aproximadamente 50 anos. Fui seu amigo desde criança, crescemos juntos até me tornar
seu braço direito quando assumiu o trono, mesmo sendo tão jovem. Eu o apoiei e fiquei
ao seu lado, muitas vezes contrariando minha própria moral, pois ele era meu rei e sua
palavra era lei. Também o vi adoecer e definhar em seu leito. Estou cansado e velho, e
está na hora de descansar. Acima de tudo, quando Rakin for recolhido pelos deuses,
quero estar ao lado dele, não como seu General e sua mão, não..., mas sim como o
amigo importante que um dia fui. Sendo assim, depois que voltar de Fiore, queria contar
com você, Kaleq, para assumir a regência até a morte de Rakin e, depois disso, o trono,
por completo.
- Bem, isso é repentino e muito importante para se lidar tão rapidamente, mas você
merece isso, Valtel. Já fiquei muito tempo afastado também, acho que já é tempo de

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ocupar meu lugar aqui. – Kaleq mostrou seus dentes amarelos na sua melhor tentativa
de sorriso.
- Então voltaremos para cá, papai? – Léa quis saber, sem conseguir esconder sua alegria
– Vamos morar aqui outra vez?
- Olha, tudo isso é incrível e grandioso, claro, mas porque exatamente estamos aqui
ouvindo isso, senhor? – Erik perguntou, desconfiado.
- Perspicaz como sempre, Erik. – Valtel elogiou, ajeitando a postura para continuar –
Vocês não estão aqui de enfeite. Isso já havia sido decidido com Kaleq, mas pedi que
ele mantivesse discrição para não gerar alarde desnecessário antes da hora. Em nossas
conversas a distância, decidimos que você, Erik, da casa Sven de Fiore, e lorde na corte
de Rakin Nightsword VIII, se casará assim que possível com a senhorita Léa Alves,
filha de Kaleq Nightsword e Angelic Alves, e herdeira da casa Nightsword e da
regência das províncias do Norte.
- O que?! - Léa e Erik exclamaram, abismados, em uníssono.
- Não, não... Isso não pode ser verdade, certo? – Erik sorriu desesperadamente, tentando
enxergar algo no rosto de Valtel que apontasse que aquilo não passava de uma piada.
- Pai, você não pode fazer isso comigo. Se o senhor assumir o trono eu quero estar aqui
com você! Não posso ficar no Norte! Não posso me casar! – Léa suplicou enquanto
segurava as mãos de seu pai – Se tem algum amor por mim, por favor, não pode
concordar com isso.
- Perdão, minha filha, mas essa ideia foi minha. – Kaleq revelou.
Léa se livrou das mãos do pai com violência e saiu sem dizer mais nada. Ele até tentou
chama-la, mas ela não quis ouvir e o deixou falando sozinho.
- Não se preocupe, Kaleq. Dê um tempo para ela. – Valtel aconselhou o irmão do rei,
depois virou-se para o Mago Azul – Conto com sua colaboração, Erik.
- Colaboração? – Erik expirou, indignado – Você não se deu nem ao trabalho de
perguntar o que eu queria. Está brincando com minha vida.
- Eu estou pensando no melhor para você. – Valtel se levantou, impondo sua autoridade
– Já é hora de você tomar jeito e deixar de ser uma criança birrenta. Você deveria me
agradecer.
Erik ficou sem palavras diante de Valtel. A presença do General fez um arrepio
percorrer as costas de todos na sala. Os olhos azuis de Erik cintilavam de raiva, mas a
única coisa que ele fez foi sair pisando forte, assim como Léa havia feito antes dele.
Valtel suspirou e fitou o nada por alguns instantes, tentando organizar as ideias

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enquanto Aron se deixou cair sobre uma das cadeiras, com dificuldade para assimilar
tudo o que havia presenciado.
- Pai, corrija-me se eu estiver errado. – Get se pronunciou – Léa é herdeira de Kaleq e,
por consequência, herdeira do trono, já que o senhor irmão do Rei Rakin não tem filhos
homens. Se Erik se casar com ela, automaticamente ele se torna rei por direito.
- Está certo, Get. – Valtel admitiu – Essa foi a escolha que eu e Kaleq achamos mais
apropriada.
- Mas pai, todos nós conhecemos muito bem o Erik. Acha sensato confiar a ele o futuro
de Blisar? Está praticamente entregando em suas mãos todo o Império, mesmo que a
longo prazo. – Get alvitrou, contrariado.
- Eu acredito nele e todos sabem que o menino é como um filho para mim e um irmão
para você, Get. Pode ser um pouco teimoso e irascível devido aos traumas daquela
tragédia infeliz, mas é um bom garoto. – Valtel o encarou com confiança – Ele será um
bom rei.
- Eu entendo seu ponto de vista, pai, mas acha que o nome de Erik vale alguma coisa
nos dias de hoje? Ele é um deserdado e praticamente um refém. Com todo respeito,
Kaleq, não consigo concordar com isso. Sua família merece muito mais do que um
Sven. – As palavras de Get eram duras e frias, assim como sua expressão ao se referir a
Erik.
Aron franziu o cenho, agredido pelo insulto no tom de Get e, notando como o filho de
Valtel ficara tenso, resolveu intervir a favor de seu melhor amigo:
- O Erik não é um refém, Get. E caso você não se lembre, os Svens são uma das
linhagens mais importantes de Fiore, com um alto assento ao lado direito do rei Crow.
Unir o sangue Nightsword com o deles selaria por completo a paz entre as duas nações.
Seria um voto de confiança de Blisar para com Fiore.
- Vejo que entendeu perfeitamente, Aron. – Valtel elogiou o Intendente e fechou a cara
para seu filho – O que esperava, Get? Que casasse você com Léa e te entregasse o
trono?
- Porque eu não poderia, pai? Acha que não sou capaz? Confia mais no filho do traidor
do que em mim? – Get confrontou, apoiando-se na mesa de Valtel para olha-lo nos
olhos.
- Nós somos Gama, Get, nascemos para servir. Nossa casa guia e ilumina o reino desde
as primeiras eras e continuaremos assim. – O general permaneceu imóvel e firme.
- O que quer dizer com isso, pai? – Get questionou, com uma maciez venenosa na voz.

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- Você ocupará meu lugar para auxiliar Kaleq e, posteriormente, Erik.
Ao ouvir tal coisa, Get adquiriu uma expressão que misturava surpresa e indignação.
Seu orgulho fora ferido como nunca, porém, ele nada disse e simplesmente também se
retirou.
- O que vamos fazer com esses nossos filhos, Kaleq? – Valtel perguntou ao mirrado
soberano.
- Eles são jovens ainda. Vai demorar para que as engrenagens de seus cérebros
funcionem como as nossas. Se não se importa, depois dessa agitação, eu gostaria de ir
para meu quarto e descansar até o banquete desta noite. – Kaleq sugeriu, passando os
indicadores no espeço bigode castanho.
- Claro, eu mesmo te acompanho. Siga-me. – Valtel guardou o precioso documento de
volta na gaveta de sua mesa e foi na frente, guiando seu amigo, mas antes de sair, virou-
se para Aron e o orientou – Vá atrás de Erik e converse com ele. É seu trabalho fazê-lo
aceitar a situação já que, por algum motivo, ele te escuta mais que a qualquer outra
pessoa. O intendente do general assentiu com a cabeça enquanto via os anciãos saírem.
Aron ainda ficou algum tempo sentado, meditando no que diria ao Mago Azul até
perceber que só saberia quando estivesse frente a frente com ele. Sendo assim, resolveu
ir logo atrás de seu velho amigo para tentar acalmá-lo e fazê-lo agir de acordo com a
conjuntura. Enquanto percorria o caminho até o quarto de Erik, a única coisa que
martelava em sua cabeça era a certeza de que seu irmão não o escutaria daquela vez,
afinal, ele mesmo havia dito que poderia recusar ou aceitar qualquer que fosse a
exigência de Valtel. Entretanto, como poderia imaginar que o pedido da vez seria um
casamento, ou melhor, um negócio tão importante?
Antes que pudesse alcançar o seu objetivo, Léa o chamou, pulando sobre seus ombros
animadamente e interrompendo suas divagações, exibindo seu comportamento habitual,
como se nada tivesse acontecido a alguns minutos antes:
- Aron, onde está indo com tanta pressa?
- Preciso encontrar o Erik. Ele deve estar... você sabe. – Aron girou e deu um passo para
trás, mantendo certa distância.
- Espera um pouco. Vamos ao meu quarto, por favor... preciso conversar com você. Mal
cheguei e recebi todas essas informações de uma vez. Prometo que não vou tomar muito
seu tempo. – Léa pediu, mudando subitamente de atitude e adquirindo uma expressão de
suplício e pesar.

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Aron não conseguiu dizer não aquela carinha de anjo caído que Léa fazia como
ninguém e, enquanto ia com ela para os aposentos que ele mesmo havia reservado mais
cedo, o Intendente já sabia que iria se arrepender.
- Levy! Vinho por favor! – Léa pediu a sua aia logo que chegaram ao seu quarto. Sem
nenhum pudor, ela se jogou na cama e começou a gargalhar – Nem acredito que estou
aqui! Este lugar me traz tantas lembranças!
- É ótimo que esteja se sentindo em casa, Léa. – Aron sentou-se na beirada da cama
enquanto Levy o servia.
- Lembra quando Get e Erik resolveram soltar os cachorros do Gregory só para poder
correr atrás deles e rir de toda a bagunça? – Léa se levantou para beber a taça que Levy
entregara em suas mãos e se aproximou exageradamente de Aron.
- Eu lembro bem, primeiro porque você ficou com medo deles e não parava de chorar e
segundo porque fui eu quem tive que ajudar a prendê-los outra vez, um por um. – Aron
sorriu, recordando aquele tempo, porém contraiu um ar melancólico logo em seguida –
Mas não somos mais crianças, certo?
- É... não somos. – Léa não soube mais o que dizer, então correu os olhos pelo ambiente
para tentar encontrar um assunto melhor e o achou naquela mulher que os servia – Me
diz, ainda te chamam de Corvo, o predecessor dos maus presságios, o arauto da
desgraça?
A aia despejou o vinho nas taças e abaixou os olhos.
Aron não soube o que era, mas algo o incomodava naquele par de íris acinzentadas que
lembravam neve sob a luz do luar, sustentados no rosto fino da nova aia de Léa. O
cabelo da moça tinha um corte estranho assimétrico que, num lado da cabeça não
passava da orelha e do outro descia até o pescoço, deixando-a com um ar exótico que
causava um desconfortável estranhamento.
- O que está olhando tanto? Não sabia que você tinha adquirido os maus hábitos do
Erik! – Léa sacudiu seu amigo para tirá-lo do transe causado pela estranha moça.
Aron desviou sua atenção de Levy para voltar a coloca-la sobre a irreverente sobrinha
do rei.
- Olha, sobre meu casamento... – Léa finalmente começou a falar, cansada de evitar o
assunto que ela obviamente queria tratar.
- Léa... – Aron tentou fugir, prevendo o que a senhorita Alves provavelmente lhe diria.

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- Você precisa me ajudar! Por favor! Esse casamento é uma loucura! Você conhece o
Erik e me conhece, sabe que isso nunca daria certo! – A garota desesperadamente pediu
enquanto segurava os ombros do intendente para que ele entendesse a urgência.
- Você sabe que, por mim, toda a garota nesse reino se casaria por amor com quem bem
quisessem, mas, infelizmente, nos dias de hoje ainda são os pais quem escolhem os
consortes de suas filhas e eu não tenho poder nenhum sobre isso. Você não pode ir
contra a ordem de Kaleq e Valtel, estaria desobedecendo a lei. – Dante tentou aclarar a
realidade para sua teimosa amiga, se esforçando para ser o mais terno possível.
- Que se foda a lei, Corvo! – Léa grunhiu, pondo-se em pé enfurecidamente – Sou eu
quem vai ter que passar o resto da vida do lado daquele... daquele... Eu não o amo!
Você sabe que a única pessoa que eu amo é...
- Já chega, Léa. – Com sua paciência esgotada, Aron também se levantou – Você sabe
que o amor que eu sinto por você é diferente. Você é como uma irmã para mim, assim
como Get e Erik, então não se torture dizendo isso em voz alta como se assim pudesse
mudar meus sentimentos.
- Como você pode ser tão frio? – A senhorita Léa encarou Aron com um olhar cortante
enquanto lágrimas escorriam por suas bochechas rosadas – Você algum dia chegou a
amar alguém nessa sua triste e miserável vida? Não, claro que não! Porque, se tivesse
amado, saberia que o dever e a honra não valem esse preço. Ah, mas eu espero que um
dia você ame... ame muito... e que sinta a mesma dor que eu, quando possuir a pessoa
que você quer passar o resto da sua vida bem na sua frente e não puder fazer nada para
alcança-la.
- Me desculpe, Léa, eu... – Aron pousou a taça vazia sobre a mesa de centro e tentou se
aproximar, mas foi rapidamente repelido.
- Vá embora. – Léa mandou, virando as costas para o Intendente do general.
Depois de sair, ele ainda permaneceu do outro lado da porta algum tempo, esperando
que Léa abrisse e o chamasse para acertar as coisas, mas ela não o fez, deixando a culpa
pelo que disse pesar em sua consciência. O Intendente não sabia desde quando havia se
tornado a pessoa que a sua amiga de infância descrevera, mas, em seu interior, tinha
ciência que as palavras dela eram verdadeiras. Infelizmente, isso não mudava o fato dele
não poder ajuda-la.
Percebendo que Léa não o desculparia tão cedo, o Aron resolveu ir logo dar
continuidade a tarefa que deveria estar realizando se não fosse aquela interrupção,
então, seguiu rumo aos aposentos do Mago Azul, esperando ter mais sorte.

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Ao se aproximar da porta do cômodo de dormir de Erik, não foi preciso bater ou chama-
lo, pois reconheceu na hora a voz dele vinda do outro lado, junto de risinhos e gracejos
femininos que, infelizmente, também sabia de quem era.
Com certa violência, Aron escancarou a pesada porta de madeira, causando um estrondo
alto, e adentrou a sala com a fúria de cem demônios. Lá dentro, ele encontrou Lucile e
Erik como vieram ao mundo, íntimos e trocando carícias enquanto se banhavam na
piscina quente que o luxuoso dormitório do lorde Sven possuía.
Assustada, a pobre criada tentou desesperadamente esconder suas partes, como se isso
pudesse poupar um pouco sua vergonha. Já Erik não fez questão alguma de se cobrir e
limitou-se em revirar os olhos.
- Saia já daí, Lucile! – Aron ordenou, apontando para a saída.
Erik abandonou as águas mornas, caminhou até criada e deu um tapa em suas nádegas
quando ela abaixou para recolher suas roupas, fazendo-a ficar totalmente vermelha,
depois, sorriu e zombou, despreocupadamente:
- Calma, Corvo, não precisa se exaltar. Nós só estávamos nos divertindo.
- Qual é o seu problema, hein? – Aron protestou e virou a cara para a visão do irmão
desnudo – Eu aqui, preocupado com seu estado depois de notícias tão difíceis, achando
que você se importava, pelo menos um pouco, e para que? Só para descobrir mais uma
vez que estou lidando com Sven Erik, e não com um ser humano normal!
- Me diga, irmão, por que está aqui? – Erik perguntou, vestindo e amarrando seu roupão
de cetim branco – É para me ajudar, me apoiar e tentar achar alguma solução, ou
simplesmente para me convencer a aceitar essa merda de casamento e fazer a vontade
do Valtel?
- Estou aqui para te ajudar, mesmo que você não acredite. – O Intendente declarou,
ofendido pela sugestão acusadora de seu amigo.
- Me ajudar? Tem certeza? – Erik se aproximou mais de Aron e pousou uma das mãos
sobre o ombro do rapaz – Vai fazer o que? Impedir o casamento? Falar com Kaleq e
Valtel para mudarem de ideia? Me ajudar a fugir? Garanto que não. Mesmo que você
quisesse, você não pode fazer essas coisas. O garotinho certinho não faz nada de errado
nem desobedece às ordens do general.
- Não vou aceitar que fale assim comigo. Não você. – Dante afastou brutamente a mão
de Erik.

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- Ah, estou morrendo de medo! Estou cagando nas calças! O temido e horrendo Corvo,
anunciador das maldições, ficou nervoso! Corram e se salvem! – Erik abriu os braços de
forma teatral e gritou para o alto.
- Quer saber, estou cansado. Se é assim que quer as coisas, vá em frente. Faça o que
quiser. – Foram as últimas palavras de Aron para Erik.
O Intendente fechou seus olhos e, num segundo, todas as velas que iluminavam o lugar
se apagaram. Erik deu um passo para trás, como uma resposta defensiva e automática,
porém, tudo o que o intendente fez foi ir embora rapidamente dali.
Sven Erik sabia que talvez tivesse cometido o maior erro da sua vida, mas o que o mais
o assustara fora o fato de que nunca sentira tanto medo quanto no instante em que
desafiou seu irmão. Algo estranho havia acontecido naquele momento, ele sabia, mas a
raiva e a impotência diante do que lhe impuseram deixaram sua mente turva e fizeram
que o seu orgulho se sobrepusesse a razão, afinal, até porque que perigo uma pessoa
qualquer sem magia podia oferecer ao talentoso e poderoso mago das chamas infinitas?
A noite chegou e com ela o fracassado banquete que Valtel ofereceu a Kaleq como sinal
de boas-vindas. Léa, Erik e Get se recusaram a ir enquanto Aron desaparecera por
completo desde a última ordem dada no escritório.
O general e o soberano receberam toda a corte, serviram a comida e deixaram a música
tocar, porém era óbvio que algo estava errado. O clima era tenso, e até mesmo quando
os músicos tentavam animar as coisas fazendo soar uma alegre e dançante melodia, ela
parecia irritante e desnecessária.
Kaleq mal tocou na comida, deixou passar pratos como pato assado, pernil com batatas
cozidas e frango preparado em ervas finas, porém, em contrapartida, bebeu dez taças de
vinho tinto doce do Sul. Valtel comeu bem pouco de cada iguaria e bebeu ainda menos,
deixando obvio que estava contando os minutos para o evento terminar.
Assim que o último prato foi recolhido, Valtel anunciou sua retirada e Kaleq aproveitou
para fazer o mesmo, obrigando os convidados a se apressarem. Juntos, eles subiram até
o escritório na Torre Azul para decidir o que fariam. Kaleq precisou se apoiar em Valtel
depois de todo aquele álcool, dando certo trabalho, mas o General não se importou.
Abaixo de uma das janelas, o arquimago e o irmão do rei sentaram-se confortavelmente.
A luz da lua atravessava o vidro, iluminando tenuamente as tapeçarias escarlates e
douradas do quarto. Valtel abriu uma caixa de onde retirou um cachimbo e um fumo
envelhecido exótico e caríssimo que ganhara de presente de Rakin a muitos anos atrás,
preparou o utensílio com uma quantidade razoável da substância e o acendeu. Depois de

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uma longa tragada, o general o passou para Kaleq, que fez o mesmo. Eles soltaram a
fumaça no ar e continuaram calados durante um tempo, apreciando o momento, até que
Kaleq quebrou o silêncio:
- Vamos seguir adiante com o plano. Lidaremos com as crianças depois.
Valtel levantou-se e trouxe para Kaleq a carta que selaria a paz com Fiore, a pena, o
tinteiro e uma vela. O Nightsword mais novo molhou a pena com cuidado e riscou seu
nome delicadamente no documento, em seguida deixou que a cera quente caísse sobre a
folha e prensou seu anel nela, deixando marcado o orgulhoso brasão real, com suas duas
espadas cruzadas.
- Agradeço sua colaboração, Kaleq. – Valtel enrolou o pergaminho e voltou a guarda-lo,
como um tesouro que ninguém pudesse profanar.
- Mesmo não sendo próximo de você como meu irmão fora, sempre o considerei muito,
Valtel. – Kaleq se levantou e apertou a mão do senhor General.
Com esse último sinal de respeito e amizade, o irmão do rei deixou o quarto de Valtel
aos cambaleios. A última coisa que ele viu foi a sombra grandiosa do senhor Gama,
projetada sobre o chão atrás de si antes de ir desmaiar em sua cama.

Aron estava na sessão reservada e praticamente secreta da biblioteca do castelo, lendo


um exemplar das Montanhas que falam, e se perguntando como Rakin tinha coragem de
manter tantos tesouros esquecidos, naquele buraco escuro e úmido que ninguém sequer
sabia que existia. Sempre a favor de que o conhecimento precisava ser exposto, o
Intendente nunca achara sensato manter uma coleção especial particular só para si, mas,
já que a doença do monarca não permitia fazer nada a respeito, ele se contentava em
fugir para lá toda vez que precisava ficar sozinho e ter um pouco de paz. Especialmente
depois dos acontecimentos daquele dia, não havia nada que ele quisesse mais do que um
pouco de tranquilidade.
Entretanto, conforme passava o tempo, mais difícil ficava se concentrar nos livros. O
sono e todo o estresse durante o dia não estavam deixando sua mente em paz. A todo
momento seus pensamentos viajavam até o Mago Azul, até Valtel e até as coisas que
ainda estavam por vir. A luz da lua estava entrando por uma pequena abertura na parede
que nem sequer podia ser chamada de janela, e as velas já estavam quase no fim. Por
um instante, Aron se perguntou o que pretendia fugindo e virando as costas para tudo,

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porém as palavras de Erik ecoaram outra vez em sua cabeça, fazendo-o acreditar que
toda aquela solidão valia a pena.
As páginas das Montanhas que falam acabaram num piscar olhos, então resolveu
começar outro, seu favorito, As aventuras do mago Neon e sua morte. Ele já havia lido
aquele exemplar mais de cinco vezes, mas nunca se cansava das histórias do cavaleiro
mais poderoso e ousado que um dia pisara sobre a Terra, que desbravara continentes
ainda desconhecidos e dominados por criaturas sombrias, até encontrar seu fim quando
tentou usurpar o trono do deus do céu, Aztafar, e foi punido virando uma estátua na
coleção da cruel divindade.
Aron calculou que, quando terminasse, já teria chegado a manhã e que isso seria
suficiente para mantê-lo entretido até a hora de voltar encarar seus problemas, porém,
quando estava praticamente no meio do livro, no trecho onde era descrito como Neon
dizimou os dragões e usou suas escamas para forjar armaduras que resistiam a fogo e
lava, o Intendente acabou finalmente adormecendo, rendido por seu próprio corpo, que
já não aguentava mais ficar desperto.
E com o sono, como sempre, veio o pesadelo. Na escuridão total, sem nada em volta a
não ser o vazio, ele ouviu aquela maldita voz começar a sussurrar: “Dante... Eu te
encontrei.... Finalmente... Sua hora está chegando... Não pode escapar do seu destino...
Dante... Você é meu...”. Aquele ser asqueroso, sem forma nem aparência, se arrastou
em sua frente, e o Corvo conseguiu sentir as garras invisíveis dele penetrando seu
cérebro, tentando varrer sua consciência. Quando tentou gritar, vomitou uma matéria
escura que fedia a podridão e caiu de joelhos, só então depois disso conseguiu abrir os
olhos e acordar, sentindo o suor molhar suas costas e seu coração bater tão forte como
se pudesse saltar de seu peito. O livro estava em sua frente, aberto na página que onde
havia parado, porém, no canto esquerdo, perto da borda, uma gota de visco escuro como
tinta havia manchado o papel. Aron imediatamente levou os dedos ao rosto e,
desesperado, viu sua luva ser manchada com aquela mesma matéria.
O Intendente correu até achar o primeiro espelho na parede e, em seu reflexo, viu aquele
líquido escorrendo de seu olho esquerdo, formando uma linha vertical, como uma
lágrima negra. Com a manga de seu casaco, ele se limpou até sua pele ficar vermelha e
não haver nenhum sinal daquela coisa repulsiva. Quem é Dante? Aron sabia. Tentava a
todo custo se lembrar, mas a memória escorria como água antes de se alcança-la.
As velas haviam queimado por completo e a claridade que vinha lá de fora já não era a
da lua, fazendo Aron se dar conta que havia dormido até o amanhecer. Atordoado com o

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sonho, com a roupa amarrotada e a face inchada por dormir sobre a mesa, ele sabia que
um banho era a única coisa que resolveria seus problemas, então, sem pensar duas
vezes, desceu os degraus da Torre Verde até seu quarto e ficou feliz quando não
encontrou nenhum criado no caminho que pudesse vê-lo naquele estado.
Quarenta minutos mergulhado até o pescoço em água quente serviu para que refletisse
sobre tudo o que havia se passado e, no fim, ele chegou a conclusão óbvia de que teria
que enfrentar Valtel e dizer que não conseguira chegar a um acordo com Erik. Mas que
culpa ele teria, afinal? Não há como obrigar um homem adulto a seguir ordens se não
pela força bruta. Talvez tivesse sido um pouco explosivo devido ao seu histórico de
insônia, ele reconhecia, mas ainda assim o Mago Azul nunca teria aceitado se submeter,
não importava o que dissesse. O que mais incomodava o Corvo, na verdade, era a culpa
por ter ficado contra seu irmão e a incerteza do altruísmo de suas ações, porque, afinal
de contas, ele também achava aquele matrimônio algo ridículo, mas preferiu seguir as
ordens acima de todo o resto. Contudo, nada daquilo importava, sua farda estava sobre a
cama, com as cores do Império Blisar e o brasão Nightsword do lado esquerdo do peito,
esperando-o. Não restava escolha se não se vestir e ir defrontar mais um dia.
Estava ajeitando seu lenço vermelho em volta do pescoço, o último detalhe antes de ir
rumo ao escritório do General dar a má notícia, quando uma batida forte na porta soou
inusitadamente, assustando-o. Ele gritou que já estava indo enquanto calçava suas luvas
brancas e recebeu como resposta mais três batidas fortes, que despertou sua curiosidade
para saber quem é que o chamava tão desesperadamente e àquela hora da manhã.
Aron se apressou, abriu, e deu de cara com Erik, mantendo uma expressão que ele
jamais vira em seu rosto antes, prestes a esmurrar a porta mais vezes se demorasse um
segundo a mais para atendê-lo.
- O que aconteceu? – Perguntou, sentindo que algo estava errado.
- Vem comigo.
Erik não esperou e começar a andar em passos largos. O Intendente não teve escolha
senão segui-lo, quase correndo, com um pressentimento horrível tomando conta de si à
medida que subiam a Torre Azul. Algo o impedia de perguntar onde estavam indo e
para que, porém, quando chegaram, já não foi mais necessário.
Todos os criados estavam reunidos do lado de fora do quarto de Valtel Gama,
carregando em seus rostos olhares aflitos, aterrorizados e desolados. Não demorou para
que começasse a juntar as peças e perceber que algo muito ruim havia acontecido.

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Passando na frente de Erik destrambelhadamente, ele avançou até a porta do cômodo,
que estava entreaberta, e ansiosamente empurrou-a.
Lá dentro, Get estava ajoelhado na beirada da cama, debruçado sobre o corpo de Valtel,
enquanto Kaleq confortava sua filha com um abraço. O médico que servia ao rei estava
em pé ao lado deles, observando tudo com uma feição distante, carregando sua maleta a
frente do corpo.
O ambiente ostentava aquela típica atmosfera densa que todo lugar adquire depois de
uma tragédia, mas Aron se recusava a acreditar no que estava acontecendo. Quando se
aproximou de Valtel, Get ergueu a cabeça e, pela primeira vez na vida, o Corvo viu
lágrimas despencando daquele par de olhos amarelados.
O rosto pálido e inexpressivo do General, deitado sobre suas colchas, não parecia nem
um pouco diferente de quando o havia visto pela última vez. Seus olhos fechados
poderiam indicar que estava somente dormindo se não fosse a certeza de que ele já não
respirava mais. Aron ajoelhou-se do lado de Get e tocou as frias mãos de seu mestre,
que estavam postas juntas o peito. Sem reação, franziu o cenho e sussurrou para si
mesmo:
- Isso está errado.
A partir dali Aron ficou surdo para tudo o que falavam e nada entrava em sua cabeça. O
choque fora tão grande que o impedira até mesmo de chorar. Seu coração palpitava com
a dor da perda, mas tudo era surreal demais, como um sonho, do qual a qualquer
momento acordaria. Onde ele estava quando o arquimago precisou dele?
Desde o momento em que levaram o corpo falecido, até a grandiosa e bela cerimônia do
velório organizada por Kaleq e seu enterro na cripta junto dos ancestrais da família
Gama, Aron Walker permaneceu mudo, absorto, como se sua mente tivesse fugido do
presente para não ter que enfrentar a realidade da despedida. E mesmo depois de selado
o jazigo e de um por um os presentes terem ido embora, ele continuou em pé em frente
a sepultura, lendo e relendo cuidadosamente as inscrições gravadas no mármore.
Somente os seus três irmãos ficaram ao seu lado no final do dia, mas Erik não demorou
a se retirar, impaciente como de costume. Get também se foi não muito tempo depois,
com os olhos vermelhos e um semblante cansado que pedia por uma longa noite de
sono. Léa foi a única que ficou ainda várias horas em sua companhia, de cabeça baixa e
em silêncio, porém, quando anoiteceu, até mesmo ela se ausentou, deixando-o com seus
pensamentos e lembranças.

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Foi fácil para o jovem Aron passar aquela noite em claro, sentado ao lado do sepulcro,
todavia, quando o sol da manhã já estava bem alto no céu, o intendente se viu pegando
no sono outra vez. Então, antes que adormecesse, levantou-se num pulo e deu alguns
tapas no próprio rosto, decidido a permanecer em pé o máximo de tempo que pudesse
aguentar, para evitar os seus estranhos sonhos. Era chegada a hora de sair e ocupar seu
cérebro com qualquer coisa que pudesse distraí-lo.
Quando deixou o local de descanso dos mortos para o pátio da Fortaleza, Aron teve
dificuldade para se adaptar a luz do dia, mas, depois que seus olhos se acostumaram a
claridade outra vez, uma visão perturbadora o atingiu como uma flecha atinge um alvo.
Uma grande forca estava montada e três soldados com uniformes fiorences aguardavam
o fim da prece de misericórdia, com as cordas já em volta dos pescoços.
Sem pensar duas vezes, avançou até lá e encontrou Get supervisionando tudo com
alguns guardas ao seu lado.
- Parem já com isso! – O Intendente ordenou, indignado.
O sacerdote se calou e o carrasco olhou confuso para Get, que acenou com a cabeça
para parar com a cerimônia enquanto Aron subia na estrutura e livrava aqueles
miseráveis dos laços.
- Levem-nos para uma cela. – O Corvo gritou para os guardas, voltando-se para Get
enquanto os pobres coitados se distanciavam – O que significa isso?
- São prisioneiros que chegaram hoje do Norte. Uma base nossa em Pontamar foi
atacada, mas conseguimos repeli-los sem problema. Estes eram alguns dos que
sobreviveram. – Get explicou, com uma estranha calma em sua voz.
- Mas por que executá-los? – Aron questionou o comandante.
- Porque eles são escória de Fiore e meu papel como líder dos exércitos de meu pai é
manter as coisas em ordem, principalmente na ausência dele. – Get insistiu, abaixando a
cabeça quando mencionou seu pai.
- Se ele estivesse aqui, com certeza não iria querer mais mortes, muito menos na
presença de Kaleq e Léa. – Aron se aproximou de Get amigavelmente – Lembre-se da
carta. Ela significa que não precisa mais haver mortes desnecessárias.
- Vamos conversar lá em cima. – Get propôs, liberando os senhores que o
acompanhavam e subindo com o intendente até a Torre Azul, ao antigo escritório de
Valtel Gama.
Ver Get Gama no lugar de Valtel foi uma paisagem estranha para Aron, mas era natural,
afinal ele foi treinado a vida inteira para assumir o lugar de seu pai. Em meio a

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decoração vermelha e dourada, Get era a representação perfeita do próprio General nos
seus anos mais gloriosos, quando seu cabelo castanho ainda cobria suas orelhas e seus
ombros ainda eram largos e altos.
- Preciso da sua ajuda mais que nunca nesse momento, irmão. – Get começou a falar,
retirando a valiosa escritura da gaveta – Como já sabe, a última missão de meu pai seria
entregar isto ao conselho de Fiore e selar um acordo de paz com eles.
- Sim, é como diz. – Aron concordou.
- Mas o que você faria se eu te dissesse que meu pai não morreu de causas naturais, mas
foi assassinado por um espião fiorence? Você viajaria até o outro lado do oceano para
entregar esse pedaço de papel e daria a mão da princesa para a família Sven, sabendo
que esses vermes tiraram a vida do homem que lutou pela paz até seu último suspiro? –
Get bateu com força com a palma da mão na madeira maciça da mesa, prensando o
documento entre elas.
- Está me dizendo que um espião matou Valtel? – O Intendente inquiriu, aturdido.
- Você me ouviu. – Get se sentou, respirou fundo e continuou – Quando estava deitado
sobre o corpo de meu pai, notei que as pontas de seus dedos estavam escurecidas. Antes
de vela-lo, chamei Cobra e o doutor para que o examinassem outra vez e eles
confirmaram o que eu já suspeitava. Entende por que aqueles porcos que você salvou
devem morrer? Entende que essa carta é uma utopia? Eles são criaturas nojentas e
provaram isso da pior forma possível, matando na calada da noite, utilizando de veneno
e sombras.
- Get, eu entendo o que está sentindo. – Aron se sentou de frente para o comandante e
olhou fixamente nos olhos dele – Mesmo assim, acho que não está certo retribuir os
esforços do General em garantir a paz com retaliações.
- Está dizendo que devemos aceitar isso calados? Que os deixaremos impunes? – Get
reclinou-se e apoiou os cotovelos sobre a escrivaninha.
- Estou dizendo que devemos valorizar os sacrifícios feitos e manter vivo o sonho do
nosso... do seu pai. E quanto ao assassino? – O Intendente perguntou.
- Nenhuma pista até agora. – Get explicou.
- Então não há certeza de que isso foi um ataque de Fiore. – Aron indigitou - Vamos até
Fiore e levemos o tratado para que eles assinem, mas antes, ouviremos o que eles têm a
dizer sobre o atentado, se acharmos que estão mentindo, voltaremos e você pode
terminar de rendê-los em campo, em todo caso a guerra já está praticamente ganha.
Vamos dar essa chance para a utopia do Valtel. Ele merece isso.

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Get fechou os olhos, enrugou a testa e acariciou as têmporas por alguns segundos
enquanto ponderava sobre as palavras de seu velho amigo. Quando voltou a encarar
Aron, entregou em suas mãos o custoso contrato redigido pelo General e assinado por
Kaleq Nightsword.
- Tenho sorte de ter você ao meu lado, irmão. – Get saudou, soando mais tranquilo –
Estou confiando em você.
- Você não prefere ir pessoalmente até lá? – O intendente perguntou, segurando a frágil
folha enrolada com as duas mãos.
- Não, quero ficar aqui, tentar administrar as pendências que meu pai deixou e achar o
criminoso, que ainda pode estar entre nós. Quero que vá o mais rápido possível, mas
não sozinho. Leve Oscelot, Roy, Cobra e Erik com você. – Get sugeriu, elaborando o
mandato que autorizava a expedição.
- Oscelot, Roy, Cobra e Erik? – Aron repetiu, estranhando a decisão do Comandante.
- Caso não acredite na versão de Fiore sobre o assassinato e precise sair de lá, quero que
tenha pessoas confiáveis e capazes do seu lado. – Get assinou a sua permissão e a
entregou ao Intendente.
- Vai dar tudo certo, pode ter certeza. – O Corvo assegurou, levantando-se e indo se
preparar para viagem, porém, antes de passar pela porta, resolveu parar e pedir uma
última coisa ao Comandante – Me deixe levar aqueles prisioneiros para Fiore e entrega-
los as autoridades de lá como sinal de boa vontade, assim eles veem que falamos sério
sobre manter a paz.
Get permitiu sem quaisquer objeções, então, com a derradeira e mais valiosa missão do
antigo general de Blisar em suas mãos, Aron saiu daquela sala para dar seu próximo
passo: reunir provisões e pessoal para a longa viagem até o continente das flores, Fiore.

Aron e Erik estavam no porto, observando a galeaça que atravessaria o enorme mar
leste ser preparada, sentindo a brisa do mar bater suavemente em seus rostos. Fora bem
fácil para os dois esquecerem de sua estúpida briga, mas isso não significava que Erik
deixara de se preocupar com seu futuro compromisso, por isso, ele permanecia em
silêncio, com os olhos fixos nas ondas. O intendente nunca vira o Mago Azul com um
ar tão abatido e sério, mas não sabia o que dizer para ajudá-lo, por isso também se
contentou em só permanecer ali, calado.

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Get arranjara tudo em alguns poucos dias para que pudessem ir o quanto antes. Vários
marinheiros carregavam caixas e suprimentos para dentro repetidamente enquanto o
capitão conversava com seu navegador. Cobra, Roy e Oscelot já estavam esperando
dentro do barco, ajudando em algumas tarefas simples e se acomodando da melhor
maneira possível. Erik ajeitou seus cabelos e respirou fundo, então resolveu iniciar a
conversa com o Aron:
- Não é engraçado que se precise de uma coroa para sua própria família te considerar
parte dela? Até perdi a conta de quantos anos faz desde a última vez que os vi.
- O que uma promessa não é capaz de fazer, não é? – Aron complementou, com pesar
em seu tom – Não se preocupe demais. Eu posso não ter o mesmo sangue, mas continuo
sendo seu irmão, para o que der e vier.
- Obrigado. De verdade. – Erik agradeceu sinceramente.
Interrompendo aquele comovente momento, um chamado conhecido ecoou e os obrigou
a olharem para trás:
- Aron! Erik! – Léa Alves, junto de Levy Robins, caminhou até eles, sorridente e
despreocupada.
Aron entrou em alerta para lidar com a sobrinha do rei. Durante todos os dias em que
esteve preocupado com os preparativos para a viagem, Léa não se dirigiu a palavra, por
isso a mudança repentina de atitude da garota o preocupava.
A parte de suas preocupações, Erik só tinha olhos para uma coisa: a estonteante aia da
senhorita Léa. Assim que o Mago Azul pôs os olhos na figura de Levy, sua mente foi
dominada por sua natureza maliciosa, que definiu a conquista e posse daquela dama
como sua mais nova meta, então, antes que Aron falasse qualquer coisa, ele se adiantou:
- Muito prazer, senhorita, sou Sven Erik, lorde da corte do rei Rakin. Como posso
chama-la?
Como de costume, o lorde Sven fez uma reverência um tanto quanto exagerada e
segurou a mão da moça para desferir um delicado beijo, porém, ao fazê-lo, sentiu como
se estivesse tocando seus lábios em um pedaço de gelo, afastando-os instintivamente.
- Levy Robins, senhor. As suas ordens. – A criada respondeu, retribuindo a cortesia.
Erik se recompôs rapidamente e esbanjou seu mais belo sorriso, confiante em sua
aparência, que derretia o coração de todas as donzelas do reino, porém algo na
expressão daquela mulher fez com que se sentisse desconfortável. Ele não desistira tão
fácil e estava pronto para continuar suas investidas, porém Léa o interrompeu, pondo
um fim no papel ridículo que estava fazendo:

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- Já chega, Erik! Eu te proíbo de fazer seus joguinhos de sempre com ela, me entendeu?
- Se controle, por favor. – Aron completou, virando-se em seguida para Léa – E quanto
a você, o que faz aqui?
- Eu vim avisá-los que viajarei com vocês! – A senhorita respondeu radiantemente feliz,
deixando o intendente e Erik boquiabertos.
- Léa, nós vamos tratar com diplomatas e monarcas de Fiore em nome de todo o
Império. Isso não é uma viagem de férias. – O Corvo salientou.
- Eu sei, mas depois de tudo o que houve, preciso desse tempo para pôr a mente em
ordem. Além disso, ficar aqui sozinha com Get e meu pai iria me deixar louca. – Léa
vestiu sua melhor expressão de menina indefesa e deixou que seus olhos enchessem de
lágrimas para convencer os seus queridos irmãos – Eu até já falei com Kaleq! Prometo
que não vou atrapalhar em nada!
Aron mais uma vez caíra na lábia da sobrinha do rei e deixou que seu coração mole
vencesse sua razão. Motivado pela culpa que sentia pelas duras palavras ditas a ela antes
da morte de Valtel, ele se rendeu aos caprichos de Léa e forçou um sorriso para dizer:
- Tudo bem, você pode ir, mas lembre-se dessa promessa.
Aproveitando-se da situação, Léa se jogou outra vez sobre Aron para abraça-lo e
agradecê-lo. Depois de dar ordens a Levy para que seus criados trouxessem para o barco
alguns de seus pertences, a moça permaneceu ao lado de seus irmãos, tagarelando sobre
banalidades, relembrando a época em que eram crianças, como se toda a história do
casamento tivesse sido completamente esquecida num piscar de olhos.
O clima alegre que sempre seguia Léa teria continuado até partirem se a presença das
duas prisioneiras fiorences se aproximando escoltadas por um soldado blisariano não
chamasse a atenção de todos no porto, trazendo outra vez aquela atmosfera sombria que
envolvia toda Blisar.
Vendo as duas garotas, limpas e com roupas razoavelmente decentes, as mãos
amarradas nas costas parecia um exagero. Era fácil esquecer que elas eram soldadas
magas de Fiore sem a farda azul que chamava tanto a atenção, mas ainda assim os
olhares lançados pelos pescadores, comerciantes e marujos que estavam presentes eram
os mesmos de quando chegaram prontas para ir para a forca. Era óbvio que, se não fosse
a presença dos membros reais e os outros oficiais, as infelizes seriam linchadas sem
piedade.
- Se elas não fossem nossas inimigas, eu ficaria com as duas sem pensar duas vezes. –
Erik comentou, com um sorriso de canto.

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Aron lançou um olhar reprovador para o irmão, mas logo voltou sua atenção para o
guarda:
– Eu assumo daqui. Onde está o terceiro?
- Morto. Ontem à noite, sor. – O homem avisou antes de bater continência e se retirar.

Um sopro longo no berrante indicou que a embarcação havia partido. O convés fora
tomado pelo movimento intenso dos marujos no manuseio das cordas e aparatos para
dominar e guiar o navio. Com um bom vento a favor, rapidamente o Destino avançou,
deixando o Porto Azul de Teória para trás no Oeste. O Leste era uma vastidão onde o
azul claro do céu tocava o azul escuro esverdeado do mar, mas embora o clima estivesse
ótimo, todos a bordo pareciam estar em meio a uma tempestade devido a presença das
magas. Grilhões naga que as impediam de usar magia garantiam a segurança, mas ainda
assim a tensão havia se espalhado.
- Certeza de que isso é uma boa ideia? – Erik se aproximou e perguntou.
- Melhor que deixá-las com o Get. – O Intendente respondeu.
Mesmo com toda a ansiedade, tudo indicava que a viagem seria tranquila. No final do
primeiro dia, uma noite estrelada se abriu, presenteando os tripulantes com uma bela
paisagem. O ritmo dos marinheiros também diminuiu para dar espaço a um ambiente
calmo e silencioso enquanto a maioria dos tripulantes dormiam, deixando que o som das
ondas e do ranger da madeira se tornassem a trilha sonora da madrugada.
Sven Erik, entretanto, não conseguira dormir, por mais que tentasse, então, cansado de
se revirar na cama, tomou seu alaúde e se recostou confortavelmente sobre algumas
peles no castelo de popa. Com o olhar perdido na imensidão do espaço, o Mago Azul
começou a dedilhar suavemente as cordas do instrumento. Diferentemente das músicas
alegres que costumava entoar nas noites de farra, o som que tirava daquela vez era
melancólico e profundo.
De todas as pessoas que podiam ter escutado e interrompido o lorde Erik, o acaso
escolheu Levy Robins, que, como a exímia violinista que era, não pode se aquietar
diante daquela melodia e saiu de seu beliche na área de dormir para descobrir a fonte
dela. Essa fraqueza, esse simples e pequeno deslize causado pelo único traço de sua
personalidade que não podia esconder, seria aquilo que acabaria com seus planos, mas,
ao mesmo tempo, salvaria o mundo.

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Ao perceber que quem tocava era Erik, Levy se escondeu abaixo das escadas para não
ser percebida, entretanto, era tarde demais.
- Se veio até aqui, é melhor subir de uma vez. – Erik chamou, sem precisar desviar a
atenção para saber que a criada estava ali.
Levy se aproximou devagar, um pouco receosa devido as atitudes que Erik mostrara
antes. Custasse o que fosse, precisava se manter firme e não deixar espaço para que ele
visse através dela, mas a imprevisibilidade do Mago Azul a irritava e a amedrontava.
- Perdão por interromper, sor. – A moça se desculpou, de olhos baixos, como qualquer
serviçal faria.
- Gosta de música? – Erik perguntou, parando de harpejar e encarando os congelantes
olhos de Levy.
- Quem não gosta? – Ela respondeu, tentando ser impessoal.
- Minha avó dizia que era perda de tempo, coisa para homens afeminados e vagabundos.
– Erik sorriu ao ver que aquela resposta não era a que Levy esperava.
A misteriosa criada precisou pensar em algo rápido e, usando de toda sua habilidade,
permaneceu indobrável - Sua avó deve ser uma pessoa um tanto quanto peculiar, então.
- Ela é uma megera. – Erik corrigiu, com um sorriso triste.
- Você diz coisas duras, mas seus olhos possuem... ternura. – Levy comentou,
surpreendendo o Mago Azul.
Erik ficou mudo por uns instantes, tentando achar uma boa resposta para dar, mas não
importava o quanto tentasse, não sabia o que dizer. Não houve nenhuma gracinha,
nenhuma piada, nem cantada. Depois de pensar bem, ele só resolveu mudar de assunto:
- Quero ouvir você tocar. – Disse a ela, estendendo seu alaúde.
Antes que Levy pudesse aceitar ou recusar, Léa os interrompeu:
- Acho que já te avisei para ficar longe dela.
- Só estávamos conversando. – Erik se explicou – Não que eu deva nada a você.
- Vá pra baixo, Levy. Preciso falar a sós com meu irmãozinho. – Léa lançou um olhar
fulminante para sua aia, que abaixou a cabeça e se foi.
- O que quer? – Erik perguntou, afinando uma das cordas de seu alaúde.
- O que vamos fazer em relação a essa estupidez de casamento? – Léa questionou, com
fúria nos olhos.
- Eu não sei você, mas vou aproveitar essa viagem, dormir com quantas damas
Fiorences eu puder e depois, quando eu voltar, comer e dançar no meu casamento, sorrir

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para os convidados e mentir para todos eles dizendo que seremos muito felizes. – Erik
respondeu, sorrindo sarcasticamente.
- Você não vai fazer nada?
Erik não se deu ao trabalho de responder, então Léa puxou o alaúde das mãos dele com
violência e atirou ao mar. O Mago Azul se levantou irado e avançou em cima de Léa,
que recuou para trás até encostar nos balaústres de proteção. As chamas azuis que eram
a marca do poder da família Sven incendiou os cabelos e os pulsos de Erik. O medo na
expressão de Léa era evidente, mas Sven recuou e respirou fundo, apagando aos poucos
o fogo que queimava por dentro e por fora. Com uma seriedade na voz que Léa nunca
vira em seu irmão antes, ele ameaçou:
- Saia do meu caminho, Léa.
Léa ficou paralisada por algum tempo enquanto Erik voltava para sua cabine. Porém,
assim que a tensão se passou, a raiva tomou conta de seu coração e naquele momento
ela decidiu que definitivamente ela jamais se casaria com ele e, não importava o que
fosse necessário, ela faria de Aron o seu marido, por bem ou por mal. Ao olhar cima,
Léa suspirou o ar gelado da noite e sussurrou:
- O céu está lindo hoje.

O Capitão disse que a viagem foi abençoada por Asmazer, pois nunca houve ventos tão
favoráveis quanto os que empurraram O Destino para o gigantesco continente de Fiore.
Nenhuma tempestade atingiu o navio e toda a companhia desembarcou no Porto
Akashia antes mesmo do previsto. O clima tenso de toda a situação foi sendo varrido
aos poucos pela música alegre que Erik fazia questão de tocar durante o dia e as
relaxantes notas que ele entoava durante a noite, sempre acompanhado de Levy, com
quem passava horas conversando sobre música, sobre a vida e sobre sonhos. Até mesmo
Aron relaxou um pouco enquanto recusava efusivamente as investidas de Léa.
No cais, um emissário do Governo de Fiore já estava esperando e os recebeu com todas
as formalidades exigidas se esforçando no idioma comum de Blisar.
- Não se preocupe, estamos no seu país, falaremos seu idioma. – Dante anunciou, em
sinal de respeito.

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- Muito os agradeço, senhores. Meu nome é Pedro Antônio, sou o Primeiro Servo do
senhor Sven Altair. Mas, por favor, não fiquemos mais aqui, irei acomodá-los no
castelo. – O emissário respondeu, indicando o caminho.
A comitiva seguiu devagar pelas estreitas ruas da cidade portuária. As duas prisioneiras
estavam sendo escoltadas por Oscelot e Cobra na retaguarda enquanto os membros da
Corte seguiam a frente conversando entre si. Aron deu uma olhada para a situação
precária daquele porto e da cidade em si, que parecia quase abandonada, e franziu o as
sobrancelhas:
- Esta é a Capital Akashia, certo? – O Corvo perguntou com fluência.
- Em seus dias de glória ela foi mais bonita, posso garantir. – O emissário respondeu –
A Guerra atingiu todos aqui de uma forma brutal, Sr. Aron. Se acha que Blisar está
sofrendo, é porque ainda não viu a situação de nossos campos.
Pedro foi mostrando alguns pontos importantes da cidade na caminhada até o castelo,
aconselhando os visitantes a ignorarem os pedidos dos famintos e seus olhares
sombrios. Os grandes portões da fortificação chamada Lembrança teve as portas abertas
sem anúncio, deixando todos entrarem em duas fileiras no pátio, sentindo a tensão que
só estar dentro do covil do inimigo pode causar. Aron olhou de relance para as
prisioneiras atrás dele e pensou que deveria ser desse mesmo modo que elas se sentiram
quando foram levadas para dentro do castelo em Teória.
Lá dentro, no enorme (embora não tanto quanto o da Fortaleza) pátio exterior, Sven
Altair esperava com impaciência os seus convidados, junto de alguns guardas, sua filha
Sofia e sua esposa Lisa. Erik engoliu seco perante a imagem daquela família de
conhecidos cabelos azuis, tão similares ao seu. Sofia tentou arriscar um sorriso, mas ao
olhar para o pai desistiu instantaneamente.
Ao lado de Altair, um homem alto e esguio também esperava, mas ninguém fazia ideia
de quem ele era. Oscelot e Cobra sussurraram entre eles e Aron franziu a sobrancelha.
Abaixo de um simples chapéu, cabelos brancos desciam atrás de suas orelhas e sua
idade era indecifrável, pois seu rosto ainda parecia tão jovem quanto o seu próprio.
O ambiente era um tanto quanto pesado, pois os poucos serviçais presentes estavam
calados como rochas e pouco barulho se ouvia de qualquer outra fonte. O brilho das
lâminas nas cinturas dos guardas também ajudava a deixar tudo mais hostil, mesmo que
o assunto em questão fosse a paz.
Parados uns em frente aos outros, foram feitas referências simultâneas, então, o homem
esguio e bem trajado ao lado de Altair falou primeiro:

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- Deixe que me apresente, senhores. Meu nome é Christian Ravendell e atuo como alto
conselheiro do nosso jovem rei Crow atualmente. Vocês provavelmente não escutaram
falar muito de mim, mas garanto-lhes que irão encontrar menções ao meu nome nos
arquivos de Valtel, “quo doscinco an pioco”.
- Muito prazer Sir Christian, como deve saber meu nome é Aron Walker, intendente do
general, meu companheiro e protegido do Rei Rakin, sobrinho do lorde Altair, Sven
Erik, a sobrinha do Rei Rakin, Léa Alves, herdeira das províncias do Norte, dois dos
magos de confiança do senhor Get, Cobra e Oscelot e duas das prisioneiras capturadas
no Norte e trazidas para Teória que entregamos à vocês como prova de boa vontade de
nosso intento de não agressão. Ficamos muito felizes de sermos recebidos aqui com
tanta... receptividade. – O intendente apresentou a comitiva.
- Perdão senhores, eu sei que não parecemos preparados, mas ultimamente temos que
economizar recursos. – Altair se desculpou pelo estado pobre em que o castelo se
encontrava e o ambiente poeirento que os recebeu – Mas garanto-lhes que terão um
jantar ao vosso nível.
- Seria uma honra. – Aron deixou claro, como se era esperado.
- Guardas, levem as cativas para as celas inferiores. – Christian ordenou para os
seguranças em sua companhia, que atenderam imediatamente – Devo guiar-lhes até
Crow agora para as devidas formalidades e então poderão se retirar para seus aposentos
para se acomodarem até o jantar.
O alto conselheiro guiou todos os demais pela entrada da fortificação, que teve as portas
de madeira abertas com um rangido alto. Após todos passarem, fecharam-se outra vez
com um estrondo que correu o vazio do grande salão e pelos largos corredores, Aron
lançar um último olhar para a saída selada e muito bem guardada atrás de si com um
involuntário desconforto.
Os magos enviados por Get subiram uma escada larga e passaram por um grande arco
em madeira entalhada com diversos símbolos de casas antigas para entrar no salão
principal, onde o jovem rei esperava sentado em seu trono no alto do palanque, cinco
degraus acima do nível do chão, rodeado por adornos de rubi e esmeralda cravados em
pedra esculpida, com sua coroa de prata e ouro desenhada em um círculo de asas de
corvo. Um simples menino franzino, encarando todos com uma expressão severa,
guardado por soldados com armaduras completas e insígnias da Ordem Mágica de Fiore
segurando suas capas.

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Tudo era muito alto e exageradamente largo naquele castelo de iluminação escassa,
formada por tochas dispersas e altas demais, fazendo o estandarte vermelho e preto com
o corvo desenhado ao centro e as tapeçarias que enfeitavam as paredes se tornassem
mais sombrias do que estavam acostumados na Fortaleza. Até os menores sons ecoavam
alto dentro daqueles cômodos, fazendo os passos dos convidados rumorejar entre as
vozes caladas e a respiração pesada.
Parados em frente a Crow, Christian anunciou todos, detalhando seus títulos.
- Sejam muito bem-vindos a Fiore. Saibam que aqui vocês estão sob minha proteção e
que fico muito feliz que finalmente uma negociação com Blisar esteja acontecendo. É
um momento histórico onde marcamos o fim dessa guerra travadas por gerações
anteriores e que já perdura muito mais que o necessário. – O jovem Arthur declarou,
seguido por uma batida de lanças feitas pelos soldados em afirmação.
- Obrigado por sua hospitalidade, senhor. – Aron fez uma reverência solene enquanto
agradecia.
- Ao decorrer da noite sintam-se livres para conhecer o castelo e se estabelecer da
melhor forma possível e estão convidados à mesa para o jantar em vossa homenagem. –
O pequeno rei convidou. Depois chamou Christian ao seu lado e sussurrou algo em seu
ouvido, continuando em seguida – Irei me retirar agora.
Os guardas, Christian e o menino desapareceram pela passagem à esquerda atrás do
trono enquanto Pedro e Altair continuaram ali para ajuda-los com seus quartos e
mostrar-lhes o castelo.
- Por que não vai falar com ele? – Aron murmurou à Erik, sentindo o desconforto
constante pela presença silenciosa do tio que não trocara uma palavra sequer com o
sobrinho.
- Estou tentando achar um momento melhor. – Erik respondeu baixinho – Mas acho que
não sou muito querido.
- Erro deles já que esse acordo depende de você. – O intendente lembrou-lhe.
- Isso não me anima nem um pouco. – Erik encerrou, quase engolindo em seco.
Aron, Léa e Erik ficaram com quartos ótimos um ao lado do outro enquanto os servos
inferiores que vieram juntos ficaram em quartos menores e menos luxuosos, tirando os
que foram designados para guarda ou Levy, que ficou de companhia no quarto de Léa
como ela havia pedido.

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Mais tarde naquela noite as mesas estavam fartas, música tocava e bebida era servida
sem escassez. Léa estava animada conversando com algumas amas, damas e cavalheiros
que vieram prestigiar a chegada dos notáveis Blisarianos. Ela trocou itens e
conhecimentos com aquele povo tão diferente e estava animada com tudo o que estava
aprendendo naquela viagem. Pensou que Valtel se pudesse vê-la naquele instante ficaria
muito feliz em ver dois povos que sempre estiveram em guerra interagindo tão bem.
Mas, como de costume, seus olhos sempre procuravam Aron no meio da multidão. E,
naquela noite específica, ele estava distante, mal tocara na comida, quieto e pensativo.
Pedindo licença para aqueles ao seu lado, ela foi até ele e sentou-se em sua frente na
mesa. Com um sorriso amoroso, começou a falar:
- Estou muito animada em ver como tudo está indo bem. Valtel estava certo. Não acha?
- Claro. Nunca duvidei disso. – Ele respondeu, secamente, cutucando o pedaço de pernil
em seu prato.
- O que está acontecendo? Você está mais estranho que o normal. – Léa resolveu
perguntar diretamente.
- Eu não sei. De verdade. – Aron respondeu, parecendo um tanto frustrado. – Há algo
muito estranho nesse lugar, nessa viagem, nessas pessoas. Eu sinto que tem algo muito
errado, mas porque ninguém mais nota?
- Acho que você está sendo paranoico. Você é sempre assim, com tudo. Preocupado
demais. Você odeia esse apelido, mas faz jus a ele. Corvo... – Léa opinou, tomando um
gole de vinho.
- Eu sei, mas... dessa vez... – Aron parou alguns segundos, hesitante – É como se eu
estivesse perto de me lembrar... É algo familiar, que eu já vi antes.
- Eu não entendi, do que está falando? – Léa perguntou, confusa.
- Deixa para lá. - Levantando-se bruscamente, Aron deixou sua comida ali mesmo e se
apressou em direção ao corredor como se, do nada, se recordasse de algo importante.
Léa não teve tempo nem sequer para reclamar e outra vez se sentiu abandonada por seu
antigo amigo.
Aron percorreu os corredores do castelo deslizando dois dedos pelas paredes. Com os
olhos fechados e a respiração calma, ele se concentrou para sentir as vibrações daquele
lugar. Muito brandamente e sem saber como estava fazendo isso, ele detectou uma fina
linha mágica vinda dos quartos acima. Não a magia ordinária que estava impregnada em

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todo ser vivo, mas sim aquela especial e única que, de alguma maneira, ele conhecia tão
bem. Deixou que seus pés o guiassem sozinhos. O barulho que seus passos faziam
enquanto caminhava o incomodavam muito e o cheiro daquele lugar trazia memórias
em branco que ele não conseguia identificar. Seu coração acelerava a cada passo em
direção ao lugar onde a magia se concentrava.
Uma porta entreaberta deixava um feixe de luz escapar para o corredor. Sem entender
por que, seu ar estava quase faltando. Abrindo lentamente a porta, ele sabia que quem
quer que estivesse lá já notara de sua presença. Ao ver aquela silhueta de costas,
nenhuma surpresa. Era Christian.
O alto conselheiro estava de pé em frente a janela, vestido ainda melhor do que quando
se encontraram pela primeira vez, segurando um familiar cajado de marfim onde na
ponta se encontrava uma cabeça de leão com a boca aberta. Sua cartola escondia
parcialmente seus cabelos brancos bem alinhados e seu terno exatamente sob medida
parecia que havia sido confeccionado em seu próprio corpo. Entretanto, a pedra rubra
que repousava dentro da boca do leão roubava a atenção de todo o resto, brilhando
magicamente, como sangue petrificado.
- Você demorou, Dante. – Christian falou calmamente, com uma voz suave e branda,
bonita a sua maneira, mas que carregava uma frieza aterrorizante.
- O que significa isso? – Aron perguntou, confuso.
- Ah, então você não se lembra... Queria saber exatamente até onde você se recorda... –
Christian comentou, virando-se para Aron com um sorriso incomum nos lábios. – Mas
pelo visto, não sabe nem sequer seu próprio nome.
- Do que você está falando? – Aron avançou, preparando-se para qualquer coisa que
fosse acontecer ali.
- Calma... Essa não é a forma correta de se cumprimentar alguém depois 300 anos... –
Christian circundou Aron lentamente, sem desviar seus olhos do Intendente.
Aron se sentia pequeno ao lado daquela figura, como uma criança com medo do escuro.
Algo nele era sufocante e ameaçador, mas não adiantava o quanto sua cabeça doía, ele
não conseguia se lembrar...
- Eu esperei você por tanto tempo... Finalmente, a hora chegou. – Christian parou bem
perto do rosto do jovem a quem todos chamavam de Corvo, encostou a ponta de seu
cajado no peito dele e sussurrou em seu ouvido – É hora de se lembrar.
A pedra escarlate cintilou mais forte e uma dor excruciante preencheu o coração de
Aron, que caiu de joelhos, enquanto de seus olhos, nariz e boca escorriam matéria

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negra. Seu grito ficou abafado em sua garganta pela magia de Christian, que o assistiu
se contorcer enquanto revirava os olhos num frenesi de agonia e loucura causados por
um turbilhão de memórias que haviam desaparecido de sua mente a muitos e muitos
anos atrás. Lembranças de uma vida que ele não sabia que teve, de amores, de lutas e
principalmente de muita dor. Tudo então se tornou negro e o eco de uma gargalhada
sinistra se dissipou até perder a consciência totalmente.

Erik estava cansado de sorrisos falsos e conversas banais com os burgueses da corte
naquele jantar, então, na primeira oportunidade que teve, se esgueirou até o jardim vazio
junto de uma flauta que conseguia carregar escondida no bolso. Suas notas ecoaram
entre as cercas vivas e arbustos de rosas vermelhas que enfeitavam o espaço verde bem
cuidado, numa melodia chorosa outra vez:
- Sempre toca essa mesma música quando está sozinho. – Levy o surpreendeu saindo de
trás de um dos pilares que sustentava a varanda do piso superior.
- Essa sua habilidade de aparecer do nada é impressionante. – Erik brincou, acostumado
as maneiras sorrateiras de sua amiga.
- Desculpe, é força do hábito. – A criada se desculpou, acompanhando a brincadeira –
Vou carregar um sino comigo daqui em diante.
- Minha mãe me ensinou essa. – Erik contou, adquirindo uma expressão triste quando
tocou no assunto. – Lembro dela cantando para mim antes de dormir. Pegaria mal tocá-
la na frente de outras pessoas.
- Pois isso é muito triste. Estão perdendo o melhor de sua música, pois acredito que a
beleza da arte se encontra ainda mais presente nos sentimentos demonstrados nelas. –
Levy aproximou-se e sentou-se ao lado de Erik na mureta que circundava o jardim.
- Sabe, quando meu pai se foi, eu não sabia direito o que tinha acontecido e demorou
para alguém ter coragem de me contar que ele não ia voltar. Valtel foi o único que não
tentou amenizar a situação e dizer que tudo ia ficar bem, tentando me deixar forte para
enfrentar o julgamento das pessoas. – Erik abaixou a cabeça e respirou fundo tentando
segurar as lágrimas que brotaram em seus olhos. Num soluço abafado, ele continuou –
Ainda assim, eu estava com tanta raiva... Eu só o decepcionei, mais e mais vezes.

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Levy colocou a mão em seus ombros, hesitantemente. Era difícil se manter estável ao
lado dele naquele estado tão frágil. Somente um garoto, pensava consigo, tentando
afogar no peito todos seus sentimentos. Sentimentos que fora treinada para esconder.
- Perdão, eu não deveria estar tagarelando assim para você. Esqueça isso, eu sei que não
te interessa. – Erik enxugou os olhos com a manga de seu casaco e sorriu para a
delicada moça.
- Erik... – Levy tentou falar, esquecendo qualquer protocolo, segurando o rosto do mago
com a outra mão, porém uma fraqueza tomou conta de seu corpo quando seus olhos
encontraram os dele, imobilizando qualquer ação.
Acostumado a seguir seus instintos, Erik se aproximou devagar até encostar os seus
lábios ao de Levy, que não resistiu e se deixou levar pelo toque suave daquele beijo tão
confuso. Quando se deu conta do que estava acontecendo, a senhorita Robins levantou-
se num pulo e bradou, vermelha de raiva:
- O que é que você está fazendo?
Erik largou sua flauta de lado e se ergueu com as mãos a sua frente num sinal de defesa.
Desesperado, ele começou a se desculpar:
- Perdão, Levy, mil perdões. Eu juro que não estou brincando. Eu nem sei o que estou
fazendo! Eu fiquei meio tonto porque bebi demais lá dentro, mas prometo que não vai
acontecer de novo.
- E você acha que vou acreditar nisso? Acha que já não sei como seu tipo é? Quando
pôs os olhos em mim no porto já estava decidido! – Levy puxou uma adaga curta da
manga de seu vestido e avançou numa rapidez absurda em direção ao pescoço do mago,
prendendo-lhe no pescoço entre um dos pilares e sua lâmina. – Você não faz ideia de
com quem está lidando.
- Ei, ei, ei! – Erik ficou imóvel, de olhos arregalados enquanto aquela doce donzela o
ameaçava – O que é isso? Abaixa isso agora!
- Como é que eu quase caí nessa besteira? Por algum motivo essa sua manha quase me
convenceu, mas não vai acontecer outra vez! Se chegar perto de novo eu te mato sem
pensar duas vezes, entendeu? – Levy continuou com sua agressividade, com seu sotaque
mais forte do que nunca na voz.
- Você não precisa acreditar em mim, mas pela primeira vez na minha vida eu estou
sendo verdadeiro com uma mulher e queria algum reconhecimento, por favor! – Erik
argumentou, num tom zombeteiro. – E se alguém poderia se aproveitar aqui é você! Em
anos essa é a primeira vez que falo da minha mãe para alguém e é assim que me

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retribuem! Primeiro me seduzem num momento de fraqueza e depois colocam uma
adaga no meu pescoço e me acusam! Acho que prefiro continuar sendo um salafrário,
obrigado!
- O que?! – Levy desencostou a adaga do pescoço do mago e deu dois passos para trás,
com as bochechas vermelhas – Eu te seduzir? Me aproveitar? Eu nem sequer estava
tentando!
- Do que chama essa aproximação suspeita na sua terra? – Erik ajeitou seu colarinho e
encarou Levy com uma expressão debochada.
Levy soltou uma exclamação ofendida e na mesma hora mudou sua postura. Ela
guardou sua adaga na cintura, se aproximou lentamente de Erik até chegar bem perto de
seu rosto, desmontando toda a guarda que o mago armara anteriormente, passou seus
finos dedos na nuca do Mago Azul e sussurrou em seu ouvido:
- Se eu quisesse tê-lo, eu já teria conseguido.
- Acredito em você. – Erik respondeu, passando seus braços na cintura de Levy e
puxando-a contra seu corpo – Então acredite em mim quando digo que não importa a
vontade louca que eu esteja de te comer eu não vou fazê-lo se você não quiser.
Levy encostou seu nariz junto ao de Erik para poder olhá-lo nos olhos e perguntou com
um sorriso malicioso:
- E quem disse que não quero?
- Então sou seu. – Erik declarou, fechando seus olhos.
Levy começou a beijá-lo sem pensar duas vezes, deixando seus hormônios guia-la,
aproveitando cada segundo do calor incontrolável que o contato com o Mago Azul lhe
causava. Ela se sentia frágil, exposta, mas não conseguia dizer não ao seu corpo. Seu
cérebro pedia mais na mesma medida que gritava o quão errado eram suas atitudes e a
cada movimento que Erik fazia, seja puxando-a contra si ou tocando-a em partes
sensíveis, mais distante sua mente ficava da realidade. Enquanto estavam juntos, o resto
do mundo parecia cair até que restassem somente os dois.
Erik subitamente então se viu puxando os cordões da camisa que Levy usava, então se
afastou um pouco, pegou a mão de sua amante e puxou-a consigo, com cuidado para
que ninguém os visse:
- Aqui não. – Ele disse, indicando o caminho que levava ao seu quarto.
Como dois adolescentes, eles correram até os aposentos do Mago Azul, se escondendo a
cada passo que ouviam vindo da direção oposta, sorrindo a cada vez que escapavam por

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pouco, sentindo o coração acelerado batendo forte em seus peitos, sentindo-se, enfim,
vivos.
Quando a porta foi trancada atrás deles, satisfação tomou suas faces. Sem paciência,
Levy terminou de afrouxar os cordões que prendiam suas vestes e as deixou deslizar até
o chão. Erik tirou também suas peças, deixando-as espalhadas por todo lado.
Levy não conseguia desviar os olhos do Mago Azul. Seu corpo era perfeito e seu rosto
semelhante ao de um anjo. Os seus cabelos azuis eram lindos e brilhantes, como se
desenhados por alguma divindade pessoalmente. Ela o empurrou devagar na cama
enquanto beijava seu pescoço e sentia a respiração pesada dele em seu ombro.
Levy já tinha dormido com muitos homens em sua vida, mas nenhum era como Sven
Erik. Acostumada com brutos e velhos egoístas, o afeto e delicadeza nos movimentos
do mago era algo que jamais tinha tido em sua vida.
Durante madrugada adentro, Levy e Erik foram um só da maneira mais íntima que um
homem e uma mulher podem ser, até ficarem exaustos e saciarem o desejo carnal que
possuíam um pelo outro. E dali em diante eles sabiam que quando saíssem daquele
quarto a realidade os atingiriam como uma flecha certeira, por isso, permaneceram
deitados, abraçados, em um silêncio confortável por mais algum tempo. Entretanto,
Levy sabia que cedo ou tarde a ilusão acabaria e, por mais que doesse muito, ela tomou
uma iniciativa que mudaria toda a sua história.
Erik estava quase dormindo enquanto fazia carinho nos cabelos escuros dela quando ela
começou a falar:
- Preciso contar uma coisa para você.
- Estou ouvindo. – Erik respondeu, de olhos fechados, escutando a reconfortante
respiração lenta de Levy.
- Você precisa fugir daqui antes que seja tarde. – Levy avisou, levantando-se e
sentando-se na cama com um olhar preocupado.
- Do que está falando? – Erik perguntou, confuso, levantando-se também e despejando
um beijo no rosto da criada.
- Acho que, neste momento, já não posso esconder mais nada. – Levy sentiu lágrimas
quentes escorrerem por sua bochecha.
- O que está acontecendo? Eu fiz algo errado? – Erik perguntou, preocupado, passando
os no rosto de Levy.
- Não... Nem pensar... É exatamente por você não merecer que preciso te dizer a
verdade. – Levy abraçou seus joelhos e começou a falar com tristeza – Eu não ligo se

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você quiser fazer qualquer coisa comigo depois, mas, promete que vai embora daqui
independente do que eu te contar?
- Como posso prometer algo assim? Você sabe o motivo de eu estar aqui. – Erik
perguntou, confuso.
- Por favor, só prometa. – Levy colocou uma mecha de cabelo de Erik atrás da orelha
dele.
Preocupado ao sentir a seriedade com que Levy falava, Erik resolveu concordar, mesmo
que tivesse que contrariar sua palavra depois e assentiu com a cabeça.
- Eu não sou quem você pensa, Erik. – A senhorita Robins proferiu – Eu não sou só uma
música que a senhorita Léa comprou de um viajante, nem uma aia ou coisa assim. Eu
sou uma espiã do governo de Fiore que Christian combinou para que fosse vendida a
ela.
- Você está brincando, não está? – Erik perguntou, ainda sem entender a gravidade do
que Levy estava contando.
- Não... Quem dera eu estivesse... – Levy continuou, num soluço desolador – Eu era
uma prostituta da província de Windeast. Minha mãe é uma famosa contrabandista e
mercenária na região que tem contato antigo com Christian. Ela me enviou para fazer
esse serviço para ele, porque sou a melhor entre minhas irmãs.
- Levy... Foi você quem matou Valtel? – Erik perguntou, aterrorizado.
- Não! Não... – Levy negou – Existem outros. A corte de Rakin está corrompida.
- Quem ficou responsável por esse plano em Teória? – Erik gritou segurando os ombros
de Levy – Quem?
- Gama... Get Gama... – A prostituta desmascarada respondeu, virando o rosto. – O
especialista dos venenos, o mago Cobra... Ele assassinou o general.
Erik se levantou as pressas e começou a vestir suas roupas – E por que é que eu devo
confiar em você? Hein? Por quê? Se tudo o que eu sabia até agora é mentira!
- Porque eu não tenho nada mais a perder e não ganharia nada mentindo ainda mais. Eu
já não tenho mais nada na minha vida, então, mesmo se você me matar agora, posso
morrer sabendo que pelo menos no fim houve verdade em mim. – Levy se cobriu com
os lençóis e limpou o rosto das lágrimas.
- Você vai vir comigo. – Erik ordenou, num tom severo.
- O que? – Levy questionou, sem entender.
- Você vai me ajudar a resolver isso. – Erik jogou o vestido de Levy na cama para que
ela se vestisse. – Anda!

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A espiã então colocou sua saia, espartilho e camisa o mais rápido que pode diante das
ordens de Erik, sendo depois arrastada atrás dele até os estábulos, onde ele preparou
cavalos e provisões. Com mantos que escondiam sua identidade, o casal deixou o
castelo escondidos, sob a luz do luar.
- Onde estamos indo? – Levy perguntou para Erik.
- Para Teória.

Quando Dante abriu os olhos, demorou ainda para conseguir ver algo realmente. Ele
sentia a umidade empapar suas costas e o cheiro de mofo irritar suas narinas. Pontadas
fortes de dor em sua cabeça estavam o desnorteando.
Conforme sua vista foi se ajustando ao ambiente mal iluminado e ia se tornando mais
nítida, a primeira coisa que conseguiu identificar foi um rosto redondo um tanto quanto
familiar o encarando enquanto mãozinhas pequenas limpavam sua testa com um pano
úmido.
Ele rastejou para trás, com medo de qualquer aproximação, mas o incomodo em sua
cabeça ainda era forte demais para que conseguisse ser rápido.
- Um obrigado seria o suficiente. – A figura feminina falou, revirando os olhos para a
cena patética do intendente tentando se arrastar.
- Fique longe! – Gritou tentando em vão se levantar.
- Para de se debater! – Ela o censurou, cruzando os braços.
- Magia? Onde eu estou? – Dante perguntou, finalmente prestando atenção no cubículo
onde estava.
- Como assim? Você está nos calabouços reforçados da Lembrança, três níveis abaixo
do solo. – A jovem explicou, apontando a porta de ferro lacrada – Estamos em uma cela
enfeitiçada, nenhuma magia entra, nenhuma magia sai.
- Você é... – Dante tentou demonstrar que lembrava quem ela era, mas foi interrompido.
- Karin Heavens. Soldado de Fiore. – Ela apontou para o brasão em sua jaqueta – E
você é quem me salvou da forca em Teória e me trouxe para cá.
- Karin, meu nome é Aron... Digo... Dante... Sou intendente do antigo general... Preciso
sair daqui. – Dante balbuciou em um tom de lamento, conseguindo finalmente se sentar.
- Você me escutou? Sem magia, amigo. – Karin respondeu, estendendo a mão para
Dante.

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A luz fraca de uma simples vela que vinha de um dos cantos iluminava parcialmente o
rosto da sua companheira de cela. Dante agarrou a mão dela e se esforçou para se pôr de
pé. Aos poucos sua mente se clareava e a dor diminuía.
- O que foi que aconteceu com você? – Karin perguntou a Dante – Está um trapo
comparado com antes.
Dante reparou que o pedaço de pano que ela usava para limpar o suor de sua testa era
um pedaço rasgado de sua camisa e que ela provavelmente não tivera um tratamento
adequado desde que chegara pela maneira como estava suja. Então, de forma branda, ele
respondeu:
- É uma longa história.
- Olha, eu tenho até tenho um plano para sair daqui, mas eu preciso que você me ajude.
Sozinha não dá. – Karin contou, colocando a orelha na porta.
- O que preciso fazer? – Dante perguntou, observando a estranha garota com
curiosidade.
- Preciso que grite como se estivesse morrendo. – Karin puxou uma pequena lâmina
escondida na sola de sua bota – Se te jogaram aqui e não te mataram é porque você é
importante, mas eles não estão contando comigo.
- Tudo bem, espero que esteja certa. – Dante assentiu.
Os prisioneiros então começaram a fazer barulhos que simulavam uma briga. Dante
começou a gritar alto e Karin bateu na porta e na parede várias vezes. Não demorou
muito para os passos pesados do carcereiro se aproximarem até a porta ser aberta.
- Agora! – Karin gritou em sinal.
Dante se abaixou para que ela pulasse sobre ele e esfaqueasse a têmpora do carcereiro
com precisão até o brutamontes cair no chão, salpicando o rosto da moça com sangue
fresco. A confusão atraiu mais uma fileira de guardas que estavam em seus turnos, que
correram com espadas na mão para verificar o que estava acontecendo.
- Sai da cela! – Karin gritou para Dante, que correu para fora da sala passando por Karin
e o corpo caído.
A moça o seguiu, montando guarda costas a costas com o intendente enquanto dois
homens com fúria assassina os encurralavam pela esquerda e dois pela direita.
Dante sentiu suas mãos formigarem. Ele as encarou por alguns segundos. Ele podia
mesmo usar magia?
- Anda logo, faz alguma coisa! – Karin gritou, enquanto avançou com fúria em um dos
guardas e conseguiu esfaqueá-lo entre as costelas num ponto cego da armadura.

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Karin se concentrou e começou a sussurrar:
- E fege quoami, e fege itdo, e fege oxznedo!
A pequena garota então segurou o rosto do outro guarda que avançava em sua direção e
deixou que na palma de suas mãos acontecesse uma explosão que dilacerou a cabeça do
peão gordo que se estatelou no chão, sem vida. Karin rangeu os dentes numa expressão
agoniante pelo impacto que suas próprias mãos receberam do feitiço.
Dante, do outro lado, desviou dos socos de um dos guardas e dos golpes de espada do
outro, mas seria impossível ficar evitando os golpes para sempre, então, num
movimento defensivo ele esticou os braços para frente, de palmas abertas.
Suas mãos então foram envoltas em matéria negra e seus pés também. O chão a sua
frente perdeu a forma sólida e começou a subir pelos pés dos guardas, prendendo-os ao
que quer que fosse aquela coisa. Dante esticou suas mãos e deixou que a matéria negra
aderisse a pele dos homens, subindo por seus corpos, deixando-a invadir seus olhos,
suas bocas, seus ouvidos e seus narizes fazendo-os largarem suas armas e arranharem
suas próprias peles tentando tirá-la dali, mas era tarde demais e eles caíram mortos em
segundos.
Dante quase caiu de joelhos, porém sabia que se caísse, estaria perdido, então manteve-
se de pé a todo custo. Mais guardas estavam descendo as escadas para ir de encontro a
eles, mas Karin puxou Dante pelo braço até um ralo no final do corredor.
- Me ajuda abrir isso! – Karin instruiu Dante.
O Corvo e a prisioneira puxaram as grades enferrujadas que davam acesso a cisterna até
que ela se desprendeu, jogando-os para trás com o impulso. Antes que o resto dos
guardas os alcançassem, eles pularam nos esgotos e começaram a correr.
Mais três soldados pularam atrás deles, mas então, outra vez Dante se esforçou e evocou
suas sombras, mas ao invés de atacar os seus perseguidores, ele fez com que elas
corroessem os pilares que sustentavam o piso superior, causando um desabamento que
barrou a passagem atrás deles.
Dante sentiu sua consciência se esvair por alguns segundos, mas Karin segurou-lhe pelo
seu inseparável lenço vermelho e deu alguns tapinhas em seu rosto:
- Não cai agora! Precisamos achar um caminho que leve a superfície!
- Claro. – Dante respondeu, ofegante.
Os dois então voltaram a correr pelos túneis abaixo, às cegas, virando as curvas e indo
adiante o mais rápido possível.

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- Era esse seu plano? Correr sem rumo nos esgotos? – Dante perguntou, sem ar,
enquanto quase tropeçava.
- Você tinha algum melhor? – Karin bravejou em resposta.
Subitamente Karin parou sua corrida fazendo que Dante por pouco não esbarrasse em
suas costas. Olhando para cima, ela apontou uma pequena abertura no teto.
- Estamos fora. – Ela notou – Mas não conseguiremos subir. É muito alto.
- Vamos ficar presos aqui, então? – Dante resmungou, impaciente.
- Calado e vamos em frente. Rápido. Antes que alguém nos alcance.
Karin continuou seguindo sem perder o ritmo e Dante acompanhou com dificuldade.
Seu corpo ainda estava sofrendo os efeitos do apagão que sofreu anteriormente. Vendo a
dificuldade do mago, Karin diminuiu a velocidade. Não adiantaria nada ir rápido se ele
acabasse ficando para trás.
- Esses túneis podem parecer labirintos, mas eles sempre se encontram um lugar. E para
nossa sorte é um ótimo lugar para se transportar conteúdos ilegais. – Karin contou
enquanto arrastava as botas chafurdadas em lama e excrementos.
- O que está procurando? – Dante perguntou, ao reparar na forma em que ela analisava
cada pilar pelos quais passavam.
- As marcações deles. – A jovem explicou – Eles sempre marcam para não se perderem
quando precisam usar esse caminho. Mas é difícil reconhece-las nesse escuro!
Dante estava quase certo de que morreria ali mesmo, perdido para sempre em meio as
fezes de toda cidade de Akashia, junto com uma desconhecida que provavelmente era
meio louca. Quarenta minutos se passaram e Karin ainda parecia procurar os tais sinais
que só ela enxergava embora tudo parecesse exatamente igual todos os demais
quilômetros que percorreram.
Dante estava prestes reclamar mais uma vez com sua inusitada guia, mas uma presença
estranha foi sentida pelos dois, a alguns metros à frente, escondida nas sombras de uma
das bifurcações.
Dante se pôs na frente da Karin com um impulso protetor, já preparado para luta que
certamente ele perderia se precisasse usar magia novamente, mas o ser oculto
permaneceu imóvel. Uma tocha se acendeu onde ele a coisa permanecia prostrada,
revelando formas que não eram nem humanas, mas também não eram totalmente
animais. Lentamente ele avançou alguns passos, deixando visível seu focinho longo,
dentes proeminentes e amarelados e uma enorme cauda que se projetava debaixo de seu

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longo manto. Uma figura corcunda que se sustentava sobre duas patas traseiras. Uma
voz ríspida saída de trás de um sorriso divertido então falou:
- Ora, ora, ora! O que temos aqui?
- Quem é você e o que quer conosco? – Dante perguntou, na defensiva.
- É falta de educação perguntar o nome de alguém sem se identificar antes, sabiam? –
Ele respondeu, soltando um risinho fino.
- Somos fugitivos do castelo! Precisamos sair daqui antes que os guardas cheguem! –
Karin revelou, pondo-se a frente de novo.
- Karin! Não deveríamos contar isso assim para um estranho! – Dante repreendeu,
alarmado.
- Calma, sor. Eu sei que estou fazendo. – Karin continuou, ignorando o colega de fuga e
se dirigindo a aberração que os encarava – Meu nome é Karin, sou prisioneira de guerra
e esse é Dante, um membro muito importante da corte de Blisar, ele vale muito dinheiro
vivo e estou indo vende-lo para quem quer que tenha o dinheiro para comprar. Mas
precisamos ir embora rápido! O desabamento lá atrás não vai segurá-los por muito
tempo.
- Entendo, entendo... – A criatura exclamou, alisando os bigodes pontudos que se
projetavam de suas bochechas – Eu entendo seu desespero e o seu receio e aprecio sua
coragem por tomar a Rota dos Ratos. Mas o que te faz pensar que eu os ajudaria?
- Dinheiro, é óbvio. – Karin não escondeu – Te pagarei devidamente assim que
estivermos em segurança bem longe do castelo.
- É muito bom encontrar falantes da mesma língua. – O esquisito animal falou – Mas eu
não sou tão ingênuo. Como duas almas tão desfortunadas vão conseguir me pagar sendo
que claramente não possuem nada de valor?
Dante no mesmo instante colocou a mão dentro do bolso interno do seu casaco e tirou
um medalhão de ouro – Aqui, pegue – Ofereceu ao bicho, arremessando-o no ar e
observando-o pegar com patinhas rosadas de unhas compridas tão amarelas quanto os
dentes.
- Interessante... – O estranho reparou, abrindo o pingente que continha uma pintura de
família de um homem, uma mulher e uma criança – Muito interessante...
- Isso é minha garantia. – Dante explicou, torcendo para que o indivíduo aceitasse.
- Bem... Acho que não tenho muita coisa a perder. – A figura concordou, guardando em
sua bolsinha o artefato recém adquirido – A propósito, meu nome Rupert Atito. Sigam-
me. Vou lhes mostrar a saída.

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Karin e Dante não tiveram escolha se não começar ir atrás do desconhecido de nome
Atito, guiados pela luz da tocha que ele carregava em uma das patas. Durante mais de
uma hora eles vagaram nos canais abaixo da terra e era impossível não sentir o
desconforto naquele silêncio tenso. Os olhares trocados entre Karin e o Corvo deixavam
claro que ambos começaram a duvidar se teria sido uma boa escolha.
Entretanto, quando estavam quase perdendo de vez a esperança, eles chegaram a mais
um ponto onde a luz da lua adentrava o túnel vindo de um bueiro a metros acima,
porém, dessa vez, uma escada de madeira malfeita e parcialmente apodrecida estava lá,
pendurada. Um alívio percorreu o corpo dos foragidos, que subiram atrás de Atito.
Quando finalmente puderam respirar o ar relativamente puro da cidade outra vez,
perceberam que acabaram saindo em um beco estreito e sujo de uma grande favela.
- Muito obrigado... senhor... – Karin agradeceu, sem saber muito bem que título atribuir
a Rupert.
- Não se incomode em me agradecer ainda. Vão precisar de um lugar para passar a
noite, não vão? – Ele perguntou com um brilho interesseiro nos olhos esverdeados.
- Não sei se é uma boa ideia. Precisamos sair da cidade. – Dante os relembrou.
- Paciência amigos, garanto que estarão seguros comigo. – O estranho insistiu.
- Certo, mas, onde iremos? – Dante indagou, contrariado.
Atito respondeu começando a andar mais fundo naquela viela. Eles passaram por vários
outros seres semelhantes a ele. Vários deles possuíam verrugas e feridas causadas por
doenças sobre a pele coberta por pelos das mais variadas cores e alguns outros cobriam
completamente seus corpos para esconder as características animalescas.
- O que são vocês? – Karin finalmente perguntou, com medo da resposta.
Atito riu baixinho e então respondeu:
- Se quer saber se nos ofendemos ao sermos chamados de ratos? A resposta é não,
afinal, essa é inegavelmente uma parte nossa. Mas se perguntar se a maioria se
envergonha... A resposta será sim.
- Vocês não estão em boas condições pelo visto. – Dante notou.
- Sempre foi assim, desde meu pai e do pai dele antes dele. – Rupert explicou –
Anomalias da natureza que são desprezadas pelos humanos. É o que somos. Nos
obrigam a viver nas sarjetas, vagando pelo subterrâneo, comendo e se aproveitando do
lixo e então nos chamam de monstros nojentos. Ah... A doce hipocrisia humana.

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- Houve em tempo que não era assim... – Dante comentou, distraído por uma dessas
criaturas que estava sentada no chão ao lado de um pote de esmolas, carregando um
pequeno filhote no colo – Um tempo antes dos Nightswords...
- Mas isso foi a mais de 200 anos. – Rupert estranhou, olhando de forma suspeita para o
mago, mas deixando quieto o assunto quando parou na frente de uma parede. A olho nu,
ela parecia totalmente comum. Porém, com um leve toque, os tijolos vermelhos
começaram a ficar translúcidos para revelar uma passagem escondida magicamente.
Quando o grupo passou, o Rato repetiu o gesto para fechar a abertura.
Os fugitivos e Atito passaram por várias casas de madeira fina construídas uma ao lado
da outra sem o menor cuidado, sobre um chão de cascalho que se misturava com lama.
Um choro de bebê distante era a única coisa que cortava o silêncio daquela escura
madrugada e, das janelas, era possível vislumbrar chamas de lampiões acesas e
pequenos olhinhos que espreitavam entre os vãos.
Cinco casas a fundo, Atito parou e abriu uma pequena porta de um sobrado meio torto
que parecia prestes a cair a qualquer momento. Espiando cuidadosamente ao redor uma
última vez, ele a fechou atrás de si depois que o Corvo e a garota entraram.
- Esta é minha casa. – Rupert mostrou, indicando os arredores com as mãos – Sintam-se
à vontade.
- Encantadora. – Elogiou Dante, depois de precisar abaixar a cabeça para passar no
batente.
- Pelo menos por hoje estarão seguros. Vou preparar um banho, os quartos e alguma
comida para vocês. – A criatura comentou, subindo as escadas para acomodar os seus
hóspedes enquanto eles aguardavam embaixo.
Pela primeira vez a sós com Karin, Dante finalmente então parou para reparar na figura
magrela e descabelada que acabara de lhe tirar da prisão. E só aí percebeu que não tinha
agradecido até o momento.
- Ei, obrigado. – Ele falou em tom quase inaudível.
- Não agradeça ainda. Se você morrer ao amanhecer, nada disso terá adiantado. – Karin
respondeu, olhando para as palmas de suas mãos queimadas pela explosão que fizera
anteriormente.
- Você se machucou muito? – Dante perguntou, se ajoelhando e puxando as mãos da
moça para verificar.
Karin esquivou seus pulsos com rispidez e os escondeu atrás das costas, bradando
enfurecidamente:

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- Eu estou bem, não preciso da sua ajuda!
- Tá bem! – Dante retrucou, se afastando outra vez.
Estariam dispostos a ficarem calados a noite toda outra vez se Atito não voltasse para
dizer que a água que reservou estava quente.
O tal banho se revelou ser somente uma bacia média com um pouco de água onde eles
poderiam lavar o rosto e as partes mais importantes, porém era suficiente. Em cima da
cama, Rupert deixou roupas simples, mas limpas, o que já era mais do que o esperado.
Dante colocou o conjunto leve que Atito preparara, reservando os mantos longos com
capuz para usar na manhã seguinte enquanto saíssem escondidos.
Higienizados e com a barriga saciada com pão e vinho seco que Rupert estocara, eles se
reuniram para repassar os próximos passos.
- Não podemos utilizar magia enquanto estivermos na cidade se quisermos sair sem
sermos vistos e amanhã de manhã precisaremos ter partido. – Dante esclareceu,
cruzando os braços.
- Eu tenho alguns contatos que podem arranjar dois bons cavalos que estariam
esperando vocês na vila saindo da cidade pelo Oeste. – Rupert informou, alisando seus
bigodes com a ponta dos dedos.
- Mas não seria melhor irmos para Teória diretamente pelo porto? – Karin questionou,
relembrando que Akashia continha navios partindo o tempo inteiro.
- Eu prefiro evitar esse risco. – Dante ponderou – Estariam nos esperando, certamente.
Um deslize sequer e teremos um exército atrás de nós. Se contornássemos por terra até
alguma cidade mais ao sul sem gritar por aí que somos magos conseguiríamos nos
esconder entre o povo comum e embarcaríamos assim que possível. Muito obrigado
pelos cavalos, Rupert. Não esquecerei dos seus favores.
Decidido o destino que tomariam, Atito saiu para tratar logo de arranjar as provisões
necessárias, desejando um boa noite silencioso com um aceno de cabeça.
Dante e Karin se deitaram na dura cama de madeira e feno forrado, de costas um para o
outro, mas ambos sabiam que aquela noite nenhum deles dormiria. Cansado do silêncio,
Dante resolveu finalmente deixar o orgulho de lado:
- Porque está fazendo tudo isso? Poderia ter me deixado lá. Eles não te matariam, nem
fariam nada com você se não fugisse.
- Uma vida por outra. – Karin respondeu, diretamente – Você também poderia ter me
deixado morrer na forca. Seria só mais um número nessa guerra.

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Dante então ficou mudo durante uns instantes, até resolver levantar, pegar um kit de
ataduras e unguento que Rupert havia lhe entregado, sentar-se no chão a beira da cama e
pedir para Karin virar-se. A jovem se moveu lentamente, com lágrimas nos olhos
causadas pela dor excruciante que sentia nos dedos e então estendeu as mãos para que
Dante fizesse os curativos.

A Jornada Começa
Faltava somente uma hora para o amanhecer. Dante sentou-se no chão e recostou sua
cabeça na parede, fechando seus olhos, e pensando finalmente em todas as memórias
que em um instante invadiram sua mente. Toda a dor e angústia, espremiam seu peito e
reviravam seu estômago. Ele sabia agora que todas as imagens que visualizava em seus
sonhos distantes eram reais, que seus maiores pesadelos estavam vivos e a poucos
quilômetros de distância, farejando-o incansavelmente, caçando-o como um animal. Ele
estava prestes gritar com toda a força de seus pulmões quando a voz aguda de Karin o
tirou de seu transe:
- Aquilo que utilizou lá nos túneis... O que era?
- É difícil explicar... – Dante se esquivou para evitar o assunto.
- Eu vi que havia magia em você quando te jogaram na cela, mas aquilo... eu nunca vi
nada igual. Você não precisa da minha ajuda. – Karin complementou, sentando-se com
os joelhos dobrados na cama.
- Eu não posso usar isso de novo. – Dante revelou, respirando fundo – Essa magia não é
como a sua. Ele nos encontraria.
- Quem? – Karin perguntou, sem entender.
- Christian Katesblake, ou Ravendell... Ele já usou muitos nomes... – Dante contou, com
uma expressão de puro ódio ao citar o antigo conhecido.
- O alto conselheiro? Ele é um mago? – Karin ligou os pontos.
- Mais ou menos... Ele é um cientista louco e praticante de certas artes que até hoje não
compreendo. – Dante cerrou os punhos, sentindo seus nervos se contraírem com as
lembranças amargas. Ele mesmo só sabia disso a algumas horas, então explicar se
tornava algo um tanto quanto complicado.
Karin ficou em silêncio ao sentir que aquele assunto não sairia dali, então, resolveu
perguntar o que já estava planejando a um tempo:
- Por que resolveu me ajudar quando eu estava prestes a morrer?

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- Havia um tratado que Valtel vinha combinando com Fiore a um tempo para acabar
com toda a matança de ambos os lados. Aquela altura já não fazia sentido matar simples
soldados, mas Get não é frio o suficiente para relevar seu ódio pessoal. – O olhar de
Dante então ficou distante e imensamente triste – Agora nada disso importa mais. Está
tudo arruinado.
- Você é um membro importante da corte. Como se fala? O intendente. Eles vão
acreditar em você quando explicar que há algo errado. – Karin pontuou, tentando
amenizar a situação.
- Eu já não sei o que pode acontecer e eu odeio essa imprevisibilidade. – Dante se
levantou conforme ouviu os passos de Atito se aproximando.
O rato entrou e então declarou:
- Tudo pronto.
Sem mais nada a dizer, Dante e Karin cobriram suas feições o máximo que conseguiram
com os panos dados por Atito e o seguiram pela direção oposta pela qual entraram no
cortiço. Numa parede que parecia um beco sem saída, Rupert repetiu o mesmo gesto de
quando entraram para que saíssem, de ouvidos e olhos atentos, prontos para qualquer
imprevisto. Parado ao lado da passagem mágica, Rupert se despediu:
- É aqui que deixo vocês.
- Obrigada, Rupert. – Karin agradeceu, encostando o punho direito na palma da mão
esquerda, demonstrando gratidão imensa com aquele gesto típico de Fiore.
- Não agradeça. Entenda meus favores como mercadorias. – Atito alisou o bigode – Até
a próxima, amigos...
Desaparecendo atrás do muro encantado, como nunca tivesse existido, Rupert deixou
que Karin e Dante seguissem adiante pelas vielas com cuidado, em passos ligeiros e
silenciosos.
Algumas vezes eles eram obrigados a parar e se esconderem nas esquinas para esperar
um guarda ou dois passarem para então seguirem adiante. A cidade portuária estava
acordando e os comerciantes já montavam suas barracas pelas ruas de pedra que
contornavam a costa, e, no mar, era possível ver os navios chegando com especiarias
frescas, pequenos pontos minúsculos no horizonte.
Ao chegarem no portão leste da cidade, os soldados nas ameias estavam a postos com
suas lanças ao lado do corpo, atentos a qualquer movimentação estranha. Sem ter ideia
de como passar por ali sem serem notados, Dante e Karin ficaram presos em um canto
escuro de onde observavam o ambiente.

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- E agora? – Dante sussurrou.
Karin não respondeu, pois ela estava analisando cada detalhe da situação para tentar
achar alguma saída. No limite do desespero, ela quase desistiu, mas então uma ideia
arriscada surgiu quando ela viu uma guarda mulher se aproximando para vir render um
dos seus companheiros. Sem pensar duas vezes, antes que ela chegasse no campo de
visão dos peões ali plantados, ela saltou por trás da moça, tampando a boca dela para
que não gritasse, arrastando-a para aquele ponto cego onde estavam abaixados.
- Você tá maluca?! – Dante agonizou num cochicho desesperado, instintivamente
ajudando Karin a imobilizar a vítima.
Karin apertou a garganta da moça por trás, que se debateu e esperneou sem parar até
desmaiar. Depois que a mulher estava caída inconsciente, ela explicou:
- Vou roubar a armadura dela.
- Será que tem como avisar antes de fazer algo assim de novo? – Dante protestou,
revoltado.
Karin tirou peça por peça das placas que cobriam a soldado e as vestiu, colocando o
capacete que cobria metade de seu rosto. Depois, compartilhou com Dante o seu plano
improvisado:
- Cobre bem o rosto e finja ser um ladrão maltrapilho, eu vou insinuar que estou te
arrastando para ser levado na cidade vizinha.
- Mas estamos sendo procurados, se eles desconfiarem... – Dante alertou, negativo.
- Se souber de outro jeito, é a hora para dizer. – Sua parceira de fuga retrucou,
impaciente.
Então, sem alternativa, ele entrou no teatro planejado por Karin, se escondendo atrás das
vestes simples que Rupert emprestara. Ela amarrou os punhos de Dante com uma corda
também roubada da pobre mulher que entrara no caminho na hora e local errado, para
assim, guia-lo como um preso até os portões.
Quando os guardas os viram se aproximar, entreolharam-se confusos até que o capitão
do posto que estava plantado ao lado esquerdo tomou a frente:
- O que é isso? Esperávamos uma rendição.
- Peguei esse verme se esgueirando para entrar em uma casa e me foi ordenado sua
prisão na cidade de Altamirante. – Karin bradou em resposta, após uma saudação
militar.
O capitão da guarda franziu o cenho, desconfiado, o que fez Karin engolir em seco.
Alto, com os músculos dos braços a mostra e um cabelo loiro brilhante, a imagem

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daquele homem fez Karin pensar o quanto aquele posto não combinava com ele. O
grandalhão então se aproximou, a lança batendo no chão a cada um de seus pesados
passos.
- Eu conheço você... – Ele revelou, com o esforço da memória estampado no rosto.
Dante estava prestes a saltar em cima do homem, mas antes de tomar o impulso, o
homem tirou o seu elmo e arregalou os olhos, abrindo um sorriso que ia quase de orelha
a orelha:
- Karin! – Ele festejou, como quem encontrava uma antiga conhecida.
- Léo? É você mesmo? – Karin respondeu, abaixando sua guarda e sorrindo em
retribuição.
Leonard Yampke, um garoto mirrado e magrelo que conhecera a muitos anos, agora era
um homem adulto e formado, com braços e pernas que pareciam toras, porém seus
olhos azuis ainda carregavam aquela inocência doce que Karin tanto admirava nele
quando eram apenas adolescentes recebendo seus treinamentos em um dos muitos
acampamentos pelo qual passara.
Antes que Karin pudesse pensar, ele olhou para os lados de forma alarmada perguntou
em tom baixo para que o resto dos homens não escutassem:
- O que você está fazendo aqui e porque está no meio dessa bagunça?
- Qual a informação que te passaram? – Karin foi direto ao ponto.
- Você não soube ainda? – Léo falou ainda mais baixo, olhando para os lados de modo
suspeito – O Rei, o menino Crow, foi morto esta madrugada num atentado terrorista
feito pelos enviados de Blisar! Disseram que você ajudou um deles a fugir, Karin!
- A situação é pior do que eu imaginava. – Karin mordeu o lábio inferior com força. –
Eles não mataram o Rei, eu tenho certeza disso, mas a parte em que ajudei ele a fugir –
Ela apontou para Dante – É verdade.
- Pelos Nove, Karin! Como você se envolveu nisso? – Leonard questionou, com
preocupação verdadeira em sua face.
- Ele me salvou da forca em Blisar. A guerra estava prestes a acabar, mas alguma coisa
aconteceu naquela noite. Léo, algo sombrio está acontecendo agora por trás de tudo
isso. Eles me prenderam e provavelmente me deixariam morrer de fome nas celas se eu
não saísse de lá. Eu só quero ir para casa. – Karin explicou, com uma voz embargada.
- Eu acredito em você, Karin. – Léo cerrou os punhos caídos ao lado do quadril. – Sinto
tanto que nosso reencontro tenha sido nessa situação.

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- Eu também sinto... – Karin mentiu, se sentindo agradecida pela sorte ter sorrido á ela
pelo menos uma vez em sua miserável vida. – Você pode me ajudar a sair?
- Claro, sem problemas, mas somente se prometer que vai tomar cuidado. – O senhor
Yampke pediu, sorrindo esperançosamente.
- Eu vou tomar. Sobrevivi até agora, não? – Karin fez o melhor que podia para retribuir
o sorriso, lembrando-se amargamente como conseguia odiar aquela expressão
inconvenientemente alegre quando ele tentava abordar o estilo protetor.
Leonard pigarreou para dar vida ao personagem de soldado intimidador para que
continuassem a interpretar seus papéis:
- Levem esse imundo para o buraco de onde ele veio. Rápido.
Dante não se atreveu a abrir a boca enquanto ouvia a conversa e observava tudo em
volta, pronto para qualquer coisa que desse errado, embora estivesse a ponto de explodir
de impaciência. Karin voltou a sua postura de escolta e fingiu incentivar Dante com
brutalidade rumo aos portões, que abriram rapidamente ao comando do chefe da
Guarda. Karin acenou com a cabeça antes de partir, sentindo um alívio muito grande ao
finalmente colocar os pés para fora daquele lugar asqueroso.

Christian estava sozinho em seu quarto, de olhos fechados, recostado na cadeira de


mogno que fora posta em frente a sua gigantesca coleção pessoal de livros. Seus cabelos
acinzentados brilhantes caídos, penteados todos para trás, suas mãos relaxadas caídas
sobre os apoios e respiração suave que mal podia ser percebida. Um soldado negro, com
medo evidente nas mãos trêmulas, adentrou o recinto sem bater e fez sua saudação em
frente ao corpo inerte do chanceler.
- Não conseguimos encontra-lo, senhor. – Declarou, tentando esconder o pavor em sua
voz.
- Certo. – Christian respondeu, abrindo pouco os lábios. – Me deixe sozinho.
Quando o soldado saiu, o conselheiro mestre do rei Crow abriu seus olhos e fitou o nada
a sua frente, com um desanimo que muito pouco era percebido pelas pessoas ao seu
redor. Somente o pensamento de ter que fazer aquele ritual amaldiçoado outra vez
deixava seus nervos tensos, porém era necessário. Ele teria de ir falar com seu Mestre.
Com um movimento delicado, ele se levantou e ajeitou as vestes, caminhou até a frente
do pedestal onde seu cajado repousava e suspirou. Mesmo depois de centenas de anos,

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ele ainda achava aquele objeto tão lindo como no primeiro dia em que pusera os olhos
ele. Finalmente retirando-o de seu descanso, Christian o tocou brandamente, e sentiu o
seu poder fluir através dele.
Ao tocar suavemente o chão sobre a fina tapeçaria que ficava aos pés da cama, as pedras
que formavam a estrutura do piso e o próprio tecido que ostentava um bordado
ricamente trabalhado com uma cena de guerra acima dele começaram se mover
sozinhos, abrindo um buraco que revelava uma longa escadaria que desaparecia
escuridão á dentro nas profundezas da terra.
Christian começou a descer lentamente os degraus, mergulhando cada vez mais naquele
poço sem luz. Não importava quantas vezes ele já tivesse repetido aqueles passos, os
calafrios que percorriam seu corpo continuavam os mesmos desde a primeira vez em
que fora se encontrar com o seu Mestre.
Mesmo sem enxergar um palmo em frente ao nariz, o Chanceler sabia exatamente onde
estava cada degrau. Conforme avançava cada vez mais fundo, mais úmido e frio o ar se
tornava, a mesma medida que o cheiro forte de algo que lembrava mofo e carvão
também tomava conta de seu olfato.
Quando finalmente chegou ao final da escadaria, o conselheiro do rei Crow suspirou e
esperou alguns segundos, até que as chamas esverdeadas começassem a se acender
sozinhas nos braseiros que circundavam aquele local, revelando a sua frente o
gigantesco cômodo em forma poligonal, com espelhos cravados entre as colunas em
toda as direções. No centro da sala, havia um pilar baixo que sustentava uma salva
côncava de mármore em sua extremidade, cheia de um líquido transparente que era
idêntico a água.
Christian se aproximou do pilar até olhar para baixo e ver seu reflexo no líquido em
completo repouso, então, puxou uma pequena lâmina escondida em sua manga e abriu
um corte na palma de sua própria mão, deixando que seu sangue escorresse e pingasse
no recipiente, misturando o vermelho vivo de seu fluído vital a misteriosa água.
As estranhas chamas ao redor começaram a crepitar mais violentamente, como se um
vento as agitasse, embora não fosse possível senti-lo na pele e o estranho material
misturado ao sangue começou a flutuar numa bolha que subiu até um pouco acima da
cabeça de Christian, que observou o turbilhão vermelho dentro daquela esfera suspensa
em sua frente começar a se enegrecer, até tornar totalmente escuro o que segundos antes
era incolor. E muito mais do que simplesmente preta, aquela cor parecia absorver toda a

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luz do fogo que iluminava ao redor. Fitar aquela esfera era como encarar o próprio
abismo e, mesmo assim, Christian mantinha os olhos fixos nela.
Vindo de dentro do completo vazio que levitava magicamente, uma voz de sons
distorcidos e inumanos soou tempestuosamente num idioma desconhecido:
- Zuqbx i tokusi ltyazdaus.
Christian não se preocupou em responder na mesma linguagem, pois sabia seu Mestre
conhecia todos os idiomas:
- Mestre. – Christian começou a falar, fazendo uma exagerada saudação em respeito. –
Trago notícias desse mundo que serão de seu interesse e peço sua orientação.
- Prossiga... – Aquela voz que parecia uma mistura de ondas se chocando contra rochas
e trovões gritantes, ordenou.
- Ele fugiu, com a ajuda de uma humana. – A vergonha na voz de Christian era
evidente.
- Faça o que for necessário... Obrigue-o a se mostrar... – Aquela presença esmagadora
continuou – Preciso dele...
- Senhor, se vossa majestade pudesse sair... Por favor, utilize um dos meus, eu se que
vão lhe servir... Se não for insolência da minha parte... – Christian sugeriu, com
urgência em seu tom.
- Ainda não..., mas é quase chegada a hora... Continue a trazer o caos para este mundo
em meu nome para que eu me alimente da desesperança e da dor. Fira aqueles que se
puserem no seu caminho direto em seus corações e deixe que minha escuridão se
fortaleça. A única coisa realmente necessária, é manter aquele que detém parte de mim,
vivo... – A voz inferiu com alegria quando mencionou a destruição.
- Assim o farei, Mestre. – Christian concordou, obediente.
A estranha esfera negra afundou até preencher a salva novamente, se tornando
transparente como era inicialmente e Christian respirou aliviado longe da presença da
entidade a qual devotara sua vida, deixando finalmente transparecer o descontentamento
perante a inutilidade daquela conversa.
Quando emergiu daquele poço novamente e fechou a entrada atrás de si, assobiou alto e
aguardou um de seus servos se aproximar.
- Encontre Cobra e avise-o para dar continuidade no plano. – Ordenou ao lacaio, que
perguntou em seguida:
- Qual será o procedimento assim que a notícia se espalhar?

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- Prenda todos os Blisarianos que estiverem em Fiore, espalhe a notícia em todas as
províncias, faça cartazes com os rostos de qualquer um que tiver desaparecido ou fugido
e prepare nosso exército. Iremos queimar Blisar até não restar uma última casa em pé. –
Christian explicou, deixando o homem sair apressado para cumprir as ordens.
O chanceler olhou pela janela de seu quarto para a madrugada escura e sem estrelas lá
fora e falou para si mesmo:
- No dia de hoje, se começa o fim.

Levy estava apoiada nas cordas da embarcação que deslizava pelo mar rumo a Blisar,
fitando com um olhar triste a imensidão escura a sua frente. Estar em alto mar de
madrugada era desolador e solitário, principalmente enquanto a maior parte dos homens
dormiam, e os únicos acordados estavam focados em manter o barco seguindo a todo
vento, sem prestar atenção em nada além do trabalho de suas vidas. Logo amanheceria e
já fazia algumas horas que Akashia havia se tornado um ponto distante que estava quase
desaparecendo por completo enquanto se afastavam.
Erik saiu de dentro de sua cabine e subiu os degraus para trocar algumas palavras com o
timoneiro, mas não sem antes lança-la um relance de seu olhar azul que ainda carregava
um ressentimento evidente. Quando terminou, ele simplesmente adentrou outra vez em
seu acomodamento, deixando-a sozinha sob a noite. Doía muito ser tão cruelmente
ignorada e seu orgulho fazia seu sangue ferver de raiva. “Maldita hora em que me
conheci esse homem”, ela pensava constantemente, porém, mais forte ainda que a
frustração e revolta, era a sua preocupação, porque, no fundo, ele havia sido doce,
aberto seu coração, e recebido uma facada nele em troca, por isso, já não podia mais
aguentar a culpa e precisava de alguma forma, tentar se aproximar, certificar-se de que
ele estava bem, mesmo que a odiasse pelo resto da vida.
E foi esse sentimento que a fez bater na porta dele mais uma vez, porém, nenhuma
resposta veio. Tentou novamente, mas sem sucesso. Cansada então do silêncio, ela
começou a falar:
- Espero que saiba que verdadeiramente eu sinto muito, mas que eu preferia ser xingada,
abandonada, feita prisioneira, do que isso...
Cabisbaixa, ela já havia se virado para se retirar, mas então a fechadura estalou atrás de
si e a porta dele se abriu.

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- Você não tem ideia do que tudo isso significa, não é? Você é uma inimiga,
praticamente fez parte do assassinato do meu pai, o senhor general e ainda me fez... –
Erik se segurou no meio de sua sentença.
- Eu sei! Mas então porque me trazer! Por que me levar para longe de casa outra vez?
Eu jamais pedi por isso, era para ser só mais uma missão. – Levy saltou com os dois
punhos fechados sobre o peito de Erik, mas ele os segurou antes que eles o atingissem.
- Você se envolveu nisso, então agora arque com as consequências! – Erik ralhou,
sentindo Levy perder a força enquanto ele segurava seus pulsos com certo cuidado para
não a machucar.
A moça então sentiu o peso do seu corpo desabar enquanto ela deslizava até se agachar
no chão. Erik a soltou devagar enquanto a observava ali, prostrada em sua frente. De
coração quente e desacostumado a antipatia, Erik não conseguiu esconder mais a sua
consternação atrás de sua máscara de decepção e rancor, deixando de vez de se conter
para abaixar-se também.
- Levy, olha... – Ele havia começado a falar quando ela se aproveitou desse momento de
fraqueza para levantar seu rosto e revelar seus brilhantes olhos cinza irradiando magia.
Com um movimento rápido a não tão indefesa espiã fechou seu punho e acertou o chão
com força, criando uma explosão gélida que fez brotar várias estalagmites e voar vários
estilhaços de gelo puro. Se não fosse o reflexo rápido do Mago Azul em se jogar para
trás, elas a teriam acertado em cheio e causado ferimentos graves.
- Mas que inferno você tá fazendo? – Ele gritou em protesto.
- Eu não vou ser usada dessa forma. Pode me odiar para sempre se quiser, mas não vou
morrer em um país estranho! – Levy retrucou, entrando em guarda para qualquer
investida de Erik – Se vai me tratar como uma inimiga, então que assim seja!
Erik olhou para o buraco aberto no assoalho de madeira feito pelo poder de Levy e
depois encarou-a com um sorriso divertido.
- Sabe, gosto cada vez mais de você. – Ele revelou, levantando-se.
Envolvendo suas mãos em chamas azuis, símbolo da tão famosa casa Sven, Erik
avançou alguns passos devagar na direção de Levy, que recuou em resposta. Então o
Mago Azul correu em uma investida para acertar sua oponente, mas Levy abaixou
tocando com as mãos o chão, criando uma parede de gelo grossa que absorveu todo o
impacto do soco de Erik no momento exato.
Com uma expressão frustrada, Erik viu que suas chamas não conseguiam tomar o gelo
mágico que Levy criava. Era muito raro encontrar materiais mágicos que resistissem as

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chamas azuis da família Sven. Aquele poder, dito por eles próprios serem um tipo de
benção divina dado aos seus ancestrais diretamente pelos deuses, era um tipo muito
peculiar de magia, que consumia tudo o que tocava sem se dissipar a não ser que os que
o causaram assim o quisessem, podendo ser ou não destrutivo também dependente da
vontade de seu invocador. Entretanto, o gelo que Levy usava era resistente e nem
mesmo aquele truque tão poderoso conseguia danificá-lo.
- Eu conheço a fama da família Sven. – Levy disse, sem conter o sorriso ao observar a
surpresa no rosto de Erik. – Aristocratas mimados que pensam que são o centro do
mundo, falando sobre tradição a todo momento e se escondendo atrás de acordos com
governos corruptos.
- Você não sabe nada sobre mim. – Erik gritou, furioso ao ouvir seu sobrenome citado.
- Talvez eu estivesse enganada todo esse tempo e você seja só mais um deles. – Levy
criou uma lança pontiaguda de gelo com dois metros de comprimento e a segurou firme
com as duas mãos – Só mais um garoto riquinho que tem medo de encarar a realidade.
Erik grunhiu em resposta, deixando suas chamas aumentarem. Seus cabelos azuis se
misturaram as labaredas de fogo, crepitando sobre sua cabeça. Com uma aproximação
brusca, Erik tentou agarrá-la de qualquer jeito, cego pela emoção. Levy estava
preparada, esperando o momento certo para estocar o centro do peito de Erik, mas, antes
que o Mago Azul chagasse perto o suficiente, o timoneiro agarrou a moça por trás,
imobilizando-a e forçando-a largar a lança.
Levy gritou e esperneou, mas o homem grandalhão que a segurava tinha uma força
estranhamente sobre-humana que parecia drenar toda a sua resistência. Erik então
percebeu o quão estava exaltado, parou em frente a maga gélida e deixou que seu poder
aos poucos se apagasse, fitando-a com um olhar triste. Após um longo suspiro, ele
buscou algemas naga que estavam penduradas ali perto e prendeu os pulsos dela, que
relutou bastante, mas nada pode fazer.
- Yeu via ziy whir yeu osri dealg re mo! – Levy gritou no idioma fiorence.
- Leve-a para baixo e quando voltar continue seguindo o ritmo. Temos que... – Erik
começou a instruir o timoneiro até ser interrompido por uma explosão enorme.
Uma bala de canhão que parecia ter vindo do nada atingiu uma das velas em cheio,
derrubando o mastro sobre o próprio navio e abrindo uma enorme fenda no assoalho. O
capitão, Levy, Erik e alguns subordinados que estavam naquele turno foram
arremessados com o impacto.

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A estibordo uma nau gigantesca, antes escondida por uma mágica que a deixava
invisível, se revelou, imponente, com velas vermelhas e cinza. Após o primeiro tiro, o
convés se tornou uma confusão de homens correndo para lá e para cá, preparando as
pressas as armas para revidar, mas infelizmente já era tarde e eles não teriam chance
alguma. Erik ainda tentou se levantar antes do segundo tiro, mas não conseguiu. Depois
da segunda explosão, sua vista ficou turva e todos os sons a sua volta desapareceram.
Ele ainda sentiu o frio cortante da água envolver seu corpo enquanto era arrastado para
as profundezas antes de apagar completamente.

Dante e Karin seguiram por três quilômetros na estrada principal que seguia a leste de
Akashia, cortando as fazendas que giravam a economia da capital. Elas estavam aradas
e prontas para o plantio, mas poucos tinham o que realmente cultivar no solo. Tudo o
que possuíam foi distribuído para as últimas forças do exército Fiorence e para o
abastecimento do castelo, o que praticamente esgotou os campos e obrigou-os a racionar
o pouco que sobrou. A visão era triste e, enquanto ele interpretava o papel de
prisioneiro sendo levado, Dante não conseguiu deixar de notar toda aquela desolação.
Não havia quase ninguém na estrada, embora o sol já estivesse alto no céu aquele
momento. Um velho ou outro passava carregando suas tralhas, uma mãe transportando
água num balde ou uma criança suja caçando sapos, mas não havia nenhum jovem, nem
homens, nem mulheres. Karin ficou séria demais enquanto caminhavam rumo a vila de
Altaguarda, fitando tristemente o horizonte daquelas terras. Dante não se conteve em
perguntar:
- O que está pensando?
- Na minha casa. – Ela respondeu, vagamente.
Dante pensou sobre isso por um tempo e percebeu que nada sabia sobre aquela garota
que o ajudava. Ele tinha conhecimento de que ela era uma soldada do exército de Fiore
que foi feita prisioneira e condenada a forca, como qualquer outro inimigo de guerra, e
que tinha algum conhecimento de magia, embora desastroso, porém, nada mais. Ele não
conseguia sentir perigo vindo dela e nem achava que ela o trairia, mas era estranho
depender da ajuda de alguém completamente desconhecido. Ele entendia também que
ela estivesse o ajudando por que ele a salvara da morte, mas ela não estaria indo longe
demais? Talvez ela esperasse algum pagamento visto que ele era membro importante da

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corte. Havia muitas dúvidas rondando sua cabeça quando finalmente avistaram
Altaguarda ao longe.
Conforme se aproximavam e as silhuetas dos casebres simples de madeira iam ficando
maiores, Dante percebeu que tudo estava silencioso demais e nenhuma alma viva
vagava na região.
- Karin, acho que tem algo estranho aqui. – Ele falou baixo.
Karin na hora percebeu ao que ele se referia e redobrou a atenção em tudo.
Passando pelo portão de madeira que os aguardava escancarado, eles visualizaram no
final da única rua, um templo da deusa Urah, onde Atito disse que os cavalos estariam
aguardando, então foram direto para lá. Um arrepio percorreu as costas de Dante, que
sentia o perigo presente.
A porta do templo estava entreaberta e a fechadura arrombada. Antes de entrar, Dante
estendeu as mãos para que Karin desamarrasse, só então prosseguindo, preparado para
qualquer coisa que fosse necessário enfrentar.
No chão, espalhados debaixo dos assentos ou jogados de qualquer jeito nos cantos, sete
corpos jaziam, sem cabeça. O chão estava lavado de sangue ainda quente. Dante franziu
o rosto, desolado e enjoado, e Karin levou uma mão a boca para conter o choque. O
intendente olhou para ela e fez sinal para que não abrisse a boca.
Dando a volta na estrutura e seguindo para os fundos, eles encontraram as cocheiras,
mas os cavalos prometidos não estavam lá. Dante sentiu um impulso enorme de chutar
qualquer coisa que viu em sua frente, mas antes que pudesse fazê-lo, ele avistou uma
mulher alta, de cabelos brancos como neve e o rosto com bochechas secas chamou a em
cima do telhado da casa vizinha:
Ela estava sentada casualmente na beirada, encarando-os com olhos brancos como suas
madeixas. Sua boca parecia esboçar um sorriso, mas não era possível saber ao certo.
Passando por cima dos seus olhos, correndo da testa até seu queixo, um par de listras
pretas era tatuado na sua face.
Dante cerrou os dentes e perguntou:
- O que foi que você fez?
- Matei todos na vila. Eles estavam dormindo tão tranquilamente quando cheguei... – A
misteriosa mulher respondeu friamente – Estava entediada, vocês demoraram demais.

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- Quem é você? – Karin perguntou, cerrando os punhos e se colocando na frente de
Dante.
- Karin! Se afasta! – Dante tentou alertá-la, mas era tarde demais.
A estranha mulher desapareceu de onde estava num piscar de olhos. Uma neblina densa
começou a invadir a vila, saindo dos becos e inundando o ar. Um cheiro pútrido
começou a tomar conta de tudo e já não podia se enxergar mais de um palmo a frente do
nariz.
- Que porra ta acontecendo? – Karin reclamou, entrando em guarda, costas-à-costas com
Dante, preparada para a qualquer momento usar magia.
- Quieta! – Dante mandou, tentando ouvir qualquer coisa.
Gemidos de dor agoniantes começaram a ecoar de dentro das casas e, um a um, os
moradores da vila começaram a se arrastar até eles, meio mortos, meio vivos. Alguns
pularam as janelas, outros se juntaram na porta, tropeçando uns sobre os outros, com
olhos vazios, membros faltando e entranhas para fora. Eles iam se aglomerando e
chegando cada vez mais perto, circundando-os de todos os lados e, vindos de dentro do
templo, os sete sacerdotes caminhavam lentamente, sem cabeça, de mãos estendidas
para alcança-los.
Karin e Dante torceram o nariz para a horrenda visão, sem saber o que fazer. Um dos
mortos se jogou contra Karin ela se esquivou para o lado para não deixar aquela coisa
tocá-la com um gemido de nojo.
- São muitos! – Karin notou, desesperada, desviando de outro que se adiantou na frente
da horda que avançava.
- Mas são lentos. Não deixe que te alcancem. – Dante completou, chutando mais um dos
magrelas alguns metros de distância.
Eles investiram de novo, mas Karin e Dante começaram a correr, sem ver direito aonde
iam. Quando Dante visualizou o portão de madeira gasto pelo qual passaram para
entrar, tocou o braço de Karin e indicou o caminho, avançando freneticamente, porém,
antes que o alcançassem, a assassina apareceu em sua frente com a mesma rapidez que
desaparecera anteriormente. Dante derrapou um pouco suas botas na terra antes de parar
a centímetros dela. A senhorita Heavens pelo contrário, não parou e, desviando de
Dante num impulso repentino, pulou contra o rosto da mulher pela direita, com as duas
mãos segurando firme a sua mini adaga. Infelizmente seu esforço foi inútil, pois a bruxa
simplesmente ergueu uma das mãos a tempo de segurá-la pelo pescoço com uma força
anormal que parecia impossível vir de alguém com sua altura e peso. Karin se debateu

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um pouco antes de fincar a lâmina com toda força que lhe restava no pescoço exposto
daquela louca.
- Isso me lembra uma picada de formiga. – A assassina revelou, sorrindo, enquanto
sangue escorria do seu ferimento, embora nada sentisse. Em seguida, ela encarou Dante
com suas írises pálidas – Você vai vir comigo, ou essa atrevida morre.
Dante sentiu seu corpo tenso e seu coração batendo tão rápido que mal podia respirar.
Não havia escolha se não usar sua magia. Seu cérebro gritava para que corresse na
direção oposta e simplesmente deixasse Karin lá para que ganhasse tempo e fugisse,
mas não importava o quanto odiasse lutar e usar aquele poder imundo, aquela garota
não podia pagar por isso com a vida depois de ter ido tão longe para ajudá-lo. Foda-se
se ela estiver me enganando, resolveu de vez, apoiando todo seu peso nas pernas e se
concentrando. Tão fácil como respirar, o poder sombrio dentro de si fluiu pelo seu
corpo. Seus globos oculares ficaram totalmente negros e um viscoso líquido preto
escorreu como lágrimas por suas bochechas, pelas suas narinas e pelos cantos de sua
boca. Algo escuro e sem forma, começou a tomar conta do solo partindo do ponto onde
estava, se expandindo até envolver as pernas da Bruxa Branca e da multidão de mortos
atrás de si, prendendo-os todos onde estavam.
Pela primeira vez uma expressão verdadeira pareceu tomar o rosto da assassina,
enquanto o poder de Dante deslizava e subia até a altura de suas coxas, uma raiva insana
a inundou. Ela largou Karin ao chão, que caiu quase desmaiada e arfava, sem ar. Dante
olhou Karin ao chão e um sorriso meio louco surgiu em seu rosto. Ele avançou na
direção da assassina com as palmas das mãos viradas para frente, arrastando no ar uma
corrente de matéria negra que passava entre seus dedos, caindo como água, mas
voltando a subir em forma gasosa e densa para o ar outra vez antes de tocar o solo.
Os cadáveres que estavam às suas costas deram um impulso energizado, como se
recebessem uma carga elétrica e começaram a soltar suas pernas do material escuro que
banhava seus pés. Alguns não conseguiam caminhar então simplesmente arrancavam as
próprias pernas no esforço e caíam, se arrastando com os braços, de modo que pareciam
nadar em piche.
A legião de pobres almas revividas pela bruxa estava o alcançando outra vez, mas, antes
que eles conseguissem chegar, Dante tocou o rosto da Bruxa Branca e começou inundar
todos os orifícios da face pálida dela com sua sombra. Ela deu um grito de dor, mas não
se rendeu. Suas írises brancas cintilaram magicamente enquanto ela rangia os dentes no
esforço de trazer os seus mortos rapidamente. Dante então aproximou seu rosto a

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milímetros do da assassina, colocou o dedão em sua boca e forçou-a até abri-la, então,
separou seus lábios para deixar que uma nuvem negra saísse e inundasse o corpo de sua
inimiga.
Nesse momento, a bruxa arregalou os olhos, percebendo o que ele estava prestes a fazer
e, numa medida desesperada, usou toda sua força para se jogar para trás e desparecer na
neblina, fugindo para longe.
Karin estava paralisada enquanto encarava aquela figura que pouco se assemelhava com
o gentil cavalheiro que estava ao lado dela todo esse tempo. Os trapos que Dante vestia
esvoaçavam pela estática da poderosa magia que ele fazia emanar de si mesmo. Numa
língua estranha que ela não conseguiu identificar, Dante começou sussurrar algumas
coisas guturalmente. O medo que a invadia era tão grande que parecia puxar sua alma
de dentro do corpo, revirando seu estômago.
Os mortos controlados pela Bruxa caíram um a um, voltando ao estado inerte que um
morto deveria ter, mas ela nem sequer prestou atenção nisso, pois na mesma hora, a voz
normal de Dante irrompeu aqueles urros bizarros que saíam de sua boca e dessa vez ela
entendeu bem o que ele falou: “Saia da minha cabeça agora”!
Aos poucos toda a escuridão invocada por ele começou a voltar para dentro de seu
corpo, até que a última gota negra lacrimejou e secou no mesmo instante sobre sua pele.
Dante passou os dedos nos olhos, secando agora lágrimas humanas.
Aquela pressão que esmagava o peito de Karin passou instantaneamente e só então ela
conseguiu se colocar de pé, ainda com dificuldade.
Dante olhou para ela e perguntou, com a voz embargada:
- Você... você está bem?
Ao invés de responder, Karin desatou a correr. Dante a perseguiu e, mais rápido,
agarrou-a pelo pulso. Ela guinchou e tentou se livrar, mas ele a evolveu pela cintura,
pedindo calma, enquanto ela se curvava e tentava desesperadamente sair. Porém, tudo o
que passou a tinha desgastado a ponto que ela não conseguiu mais lutar e simplesmente,
rendeu-se, virando-se, ainda presa pela cintura. Com uma feição raivosa e ela mandou:
- Já pode me soltar! Não vou correr!
Dante a soltou devagar e deixou que ela desse alguns passos para trás. Com o rosto
vermelho, ela finalmente perguntou:
- Mas que inferno foi esse?!
Dante suspirou fundo e olhou para o céu claro revelado depois que a neblina se
dissipou, encarando-a tristemente, ele questionou a si mesmo:

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- Por onde começo?

Um passado sombrio...
- Saia de perto da Janela e volte para cá, ainda não terminamos o cronograma de hoje. –
Madame Ágata mandou, com sua voz áspera.
Dante suspirou, queimando de inveja dos filhos dos criados que brincavam felizes no
jardim lá embaixo. Todos eles tinham a sua idade e talvez eles pudessem ser ótimos
amigos, se pelo menos pudesse participar do esconde-esconde, do pega-pega, das
amarelinhas, mas, suas muletas, os tubos de oxigenação e seu quarto adaptado para que
ele não precisasse gastar energia com as tarefas mais simples como levantar da cama o
lembravam todo segundo o quão debilitado ele era. Quebrado, foi o que ouviu um dos
meninos da cozinheira dizer uma vez.
E como se não bastasse toda aquela parafernália que insistiam que tornava sua vida
melhor, as empregadas de sua família e até mesmo sua mãe o tratando vinte quatro
horas por dia como um boneco de porcelana que a qualquer mínimo toque poderia ser
danificado também não ajudavam em nada o seu ânimo em estudar mais uma vez A
história dos reinos, A linhagem real e O Legado dos Deuses.
Sua sorte foi o súbito aparecimento de seu pai à sua porta. O único que, na maior parte
do tempo, o tratava como um garoto de 11 anos e enxergava, mesmo que um pouco, a
dor que era ter um coração jovem e cheio de vida num corpo tão fraco.
- Deixe-o em paz por um momento, Ágata, garanto que ele já sabe de cor e salteado
toda essa baboseira. – O rechonchudo Herlon Diamont ordenou a professora.
O pai caminhou até o filho e o deu um abraço carinhoso, que foi retribuído com o
máximo de força que o pequeno Dante conseguia.
- Por que está aqui? E os negócios em Haminton? - Dante perguntou ao pai, com um
sorriso genuíno no rosto.
- Ah, deu tudo certo, um preço pequeno por tecidos de qualidade excelente. – O
patriarca Diamont piscou para o filho e sentou-se na beirada da cama. – Mas me conte,
não estão pegando muito pesado com você, estão?
- Está tudo bem, eu sei que preciso compensar. – Dante falou, abaixando a cabeça e
fazendo desaparecer a alegria que estampada em seu rosto.
- Mas é verão! As outras crianças estão de férias agora e brincando por aí e o seu ritmo
durante a primavera foi excelente! Não concordo com isso! – Herlon então levantou-se

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da cama num pulo e direcionou-se para a professora. – Prepare uma cadeira e peça a
Juan que venha ajudar a levá-lo para baixo. Iremos caminhar pelo jardim e, se você
estiver disposto, até damos uma volta na praça da cidade.
Dante não poderia ter ficado mais feliz. Se ele fosse capaz, teria dado pulos de alegria.
Com seu pai era sempre assim, mas, dessa vez, parecia que Herlon lera seus
pensamentos instantaneamente.
E como foi ordenado foi feito. Juan desceu as escadas com Dante nos braços levou-o
para fora, acomodando-o na cadeira assim que saíram para fora da mansão dos
Diamont.
O pequeno Dante sentiu o sol cobrir sua pele com um manto aconchegante de calor,
então fechou os olhos por alguns segundos para poder aproveitar aquele momento.
Herlon o observou, compadecido. Com tudo pronto, eles começaram a caminhar, com
Juan empurrando a cadeira de Dante no caminho de pedras que passava entre as
diversas flores e arbustos do jardim.
Quando chegaram perto das crianças que Dante havia visto pela janela, elas pararam a
brincadeira na hora para cumprimentar o senhor Diamont em uníssono e ficaram
paradas como se esperassem alguma ordem.
- Continuem a brincar, crianças. – Ele falou, admirando-as, contentemente, então, virou-
se para Dante – Um dia você também poderá brincar como elas, tenho certeza disso.
As palavras de esperança de seu pai eram muito animadoras, embora ele soubesse que
seria muito difícil que algum dia levasse uma vida normal. Ele era inteligente suficiente
para saber qual era a sua real situação.
Diversos especialistas já vieram até eles e foram embora sem solução definitiva para sua
frágil saúde. A maioria dizia que Dante simplesmente nascera assim e que isso não
mudaria e que a única coisa que restava era cuidar o máximo possível para melhorar sua
situação. Alguns ofereciam terapias e métodos alternativos, remédios novos e faziam
experiências estranhas, mas noventa por cento era somente charlatanismo e os outros
dez simplesmente não funcionavam. Ainda assim, os Diamont juraram nunca desistir e
fazer o máximo para proporcionar a melhor vida para seu único filho.
Dante começara a ficar farto disso tudo e de como todos olhavam para ele com pena,
afinal, ele nunca melhoraria, porém, era melhor substituir a tristeza por raiva, pois se
deixasse o desgosto tomar conta, sabia que acabaria morrendo deitado na cama, sem
forças sequer para respirar.

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Então, o jovem Dante observou as crianças de perto, se permitindo sonhar por um
segundo com a sensação de correr junto com elas, até que seu pai tocou seu ombro e
indicou:
- Vamos a praça comprar um sorvete.

Dante olhava para todos os lados, com os olhos brilhando, admirando as pessoas, as
lojas, os feirantes e todo o movimento que a pequena cidade de Caládia possuía. Ela era
pequena, com gente simples, mas tinha a maior mina de ferro do Oeste de Blisar, da
qual os Diamont eram donos. Eles empregavam muitos na cidade e faziam a economia
girar, eram respeitados por todos e houve até mesmo uma proposta de que a cidade se
chamasse Diamont em homenagem a eles certa vez, mas Herlon recusou e brincou
dizendo que achava Diamont um sobrenome horrivelmente feio.
Embora simples, Caládia tinha a afabilidade que encantava Dante. Todos que passavam
por eles os cumprimentavam, com sorrisos no rosto, apertos de mão energéticos,
reverências solenes e levantamentos de chapéus respeitosos. Os moradores pareciam
felizes com suas vidas e pouco se criticava do governo provinciano dos Harrington, que
era justo com os impostos.
Mas com certeza a melhor parte de ir até a cidade, era comprar os doces da padaria do
senhor Inácio e comê-los juntos de seu pai, que não negava que seu maior prazer na
vida era a comer. E nessa tranquila harmonia, eles conversaram sobre os estudos, sobre
as novidades da vida dos criados e até mesmo de como iam os negócios com a mina,
embora Dante entendesse só o básico, tudo isso enquanto degustavam deliciosas
tortinhas de amora fresquinhas.
Quando a tarde se adiantou até às cinco sem ser percebida, Juan alertou o Sr. Herlon e
eles tiveram que voltar para casa, porém, estavam satisfeitos de terem passado aquela
tarde juntos. Entretanto, havia uma pessoa que não gostara nada ao chegar em casa e
saber que Dante havia saído e o nome dela era Charlotte Diamont, ninguém menos que
a mãe de Dante. Dante e Herlon a encontrou plantada ao lado da porta assim que
chegaram, dando um de seus longos sermões para Ágata, que permitira que levassem
Dante para sair e ainda os ajudaram. Ao vê-los se aproximando, ela voltou sua ira para
os criminosos apanhados no flagra e começou a despejar sua indignação:

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- Finalmente chegaram! Sabem quanto tempo eu esperei aqui? Vocês têm ideia do quão
perigoso é expor Dante desse jeito? Ele pode entrar em contato com alguma bactéria!
Vocês comeram alguma coisa, não comeram? Estou sentindo o cheiro daqui! Ele
poderia ter tido uma convulsão e vocês nem sequer levaram a Kleida para caso isso
acontecesse!
Herlon tentou acalmar sua esposa, mostrando o quão feliz seu menino estava, porém
quando se tratava da saúde de Dante, Kleida era totalmente o oposto de Herlon e
defendia com todas as forças de que seu filho não era uma criança comum e por isso
precisava de toda a proteção possível, e isso incluía uma dieta estreitamente regrada, um
quarto totalmente higienizado, enfermeiras ao lado dele até para ajuda-lo ir no banheiro
e assim por diante. Ágata ficara do lado da mãe e acusara Juan que não questionou o pai
do menino ao leva-lo e Juan ficou ao lado do pai que tentava se defender a todo custo.
Dante sabia que todas aquelas discussões nunca levavam a nada, então só suspirou e
ficou assistindo, como parte de um entretenimento pessoal, sem se importar muito,
entretanto, antes que pudesse perceber, uma das convulsões citadas por Charlotte
começaram. Dante caiu da cadeira, debatendo-se e babando horrivelmente e só assim
todos pararam para prestar atenção nele e se juntaram para socorre-lo.
Dante acabou ficando num estado letárgico por dois dias, abrindo os olhos somente por
alguns instantes e voltando a fechá-los logo em seguida devido aos efeitos arrasadores
dos remédios, porém, ele não ficava completamente adormecido, o que lhe fazia ouvir o
choro incessante de sua mãe ao lado do leito, as conversas penosas das enfermeiras
sobre a sua saúde e as conversas entre seus pais, crua e sem rodeios, sobre como tudo
era muito difícil. No final do segundo dia, quando já estava recobrando as forças, ele
resolveu fingir que estava dormindo por um tempo, por medo de ter que lidar mais uma
vez com as adulações que vinham após alguma crise. Enquanto fingia, escutou Kleida
falar à Ágata:
- Pobre menino. Não consigo nem imaginar como seria viver nesse estado. Pior ainda
deve ser para os pais, que vão precisar cuidar dele pelo resto da vida. Nesses casos, acho
que só a morte pode aliviar a dor.
Assim que Kleida terminou de falar, Charlotte adentrou o quarto como uma fera em
direção a enfermeira e a esbofeteou no rosto. Com um grito agudo a mandou sair e
bateu com força a porta assim que a mulher correu através dela aos prantos.
- Calma senhora Charlotte! Dante ainda está dormindo! – Ágata lembrou a matriarca.

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- Me desculpe, Ágata... Eu... me descontrolei. – A senhora Diamont pediu, jogando-se
na cadeira ao lado da cama e puxando um lenço para secar as lágrimas que começaram a
rolar.
- Eu entendo, senhora. – Ágata a consolou.
Charlotte acariciou os cabelos negros de Dante, colocando de lado alguns fios que
cobriam a testa. Era doloroso até mesmo olhar para seu filho naquele estado. Seu rosto
era fundo, quase não tinha carne entre a pele e os ossos, e sua pele era pálida, deixando
quase todos os vasos sanguíneos a mostra. Porém, mesmo tão frágil, ele tinha uma força
dentro de si que não o deixava desistir.
- Ele é parecido comigo, ele nunca se renderá tão facilmente. – Charlotte falou para
Ágata.

Duas semanas depois, a crise que Dante tivera fora só mais uma entre as muitas que já
enfrentara e toda tensão se desfez gradativamente. Seu pai fora viajar outra vez e sua
prisão particular no quarto voltara ser exatamente como antes. Sua rotina de estudos
retornou: história, matemática, ciência, arte...
Enquanto Eleonora, a professora de música, assistia encantada as notas perfeitas que
Dante retirava com o violino, seu pai e sua mãe adentraram o quarto ao lado de um
homem alto, de cabelos brancos e sorriso pacífico no rosto.
Herlon abraçou seu filho como sempre fazia quando regressava para casa e então
indicou com uma das mãos o convidado parado ao lado de Charlotte para apresentá-lo:
- Este é o Doutor Christian Katesblake. O conheci na fronteira com as províncias do
norte numa cidade chamada Ellenhood. Ele foi homenageado por sua campanha contra
uma peste que ninguém mais sabia como controlar.
- Mais um médico... – Dante comentou, como se ninguém mais pudesse ouvi-lo.
- Eu entendo que esteja cansado disso tudo, Dante, mas eu não estou aqui para fazer
experimentos ou testar remédios milagrosos. Quero estudar seu caso e entender a sua
deficiência. – Christian revelou, se aproximando da cama. – Aliás, você é um ótimo
músico.
No começo, Dante achara que Christian era somente mais um dos charlatões que
queriam se aproveitar de seu pai, mas ele realmente parecia interessado em entender
melhor sobre o que acontecia com seu corpo antes de tentar alguma solução. Christian

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observou a dieta de Dante, tirou amostras de sangue e fazia um relatório completo da
sua rotina, de quando saía, quando ficava em casa e até mesmo quantas vezes ia ao
banheiro. Conforme foi se passando o tempo, foi ficando difícil não se deixar levar pelo
carisma que o Dr. Christian possuía e, o melhor de tudo, ele não detinha aquele ar
arrogante dos professores, nem a pena descarada das enfermeiras. No fim, Dante achou
bom poder conversar com ele e fazer perguntas sobre a sua própria saúde; coisa que
seus pais evitavam de falar diretamente com ele.
Quando já completavam alguns meses desde que Christian começara a estudar a
situação de Dante na casa dos Diamont, Herlon resolveu anunciar quando estavam todos
dispostos à mesa de jantar:
- Dante, Christian, precisarei viajar até Fiore pois tenho um negócio importante para
fechar. Dessa vez, Charlotte vai vir comigo.
- Vocês vão demorar quanto tempo? – Dante perguntou.
- No máximo um mês. – Charlotte respondeu – Não se preocupe, filho, Ágata vai ficar
encarregada de cuidar de você e assegurar que todos aqui vão estar à postos para
qualquer coisa que você precise.
- Você é um homenzinho, Dante, sabemos que vai se cuidar muito bem. – Herlon sorriu
para seu filho, tentando animá-lo.
- Para falar a verdade, eu não queria ir, Dante, odeio ter que pensar que você vai ficar
sozinho, mas infelizmente seu pai vai precisar de ajuda dessa vez. – Charlotte contou,
com um suspiro desanimado.
- Tudo bem, mãe, vou ficar bem. – Dante respondeu, tentando parecer o mais
responsável e maduro possível, o que arrancou um sorriso de Charlotte.
Na manhã seguinte ele se despedira dos pais em sua cama, pois se sentia indisposto
demais para descer e ver a carruagem partindo, mas mal dera importância aquele breve
momento, pois esperava ansiosamente as lembrancinhas que eles trariam de Fiore. Sua
rotina seguiu-se tranquila entre seus estudos, consultas com Christian e jogos de xadrez
com os adultos, os quais ele sempre derrotava.
Dante não conseguia se lembrar direito quanto tempo exatamente seus pais já estavam
fora quando uma carta vinda de Fiore chegou nas mãos de Ágata durante aquela manhã
chuvosa. Como de costume, ela abriu a correspondência e começara a ler antes de
entrega-las a Dante, porém, ao ler as palavras que estavam naquele pequeno pedaço de
papel, sua face se contorceu em agonia com uma expressão que Dante guardaria em sua
mente até seus últimos dias. Ágata se sentou as pressas sentindo o corpo gelar e levou

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uma mão a boca enquanto relia várias vezes as letras dispostas com tinta preta e
caligrafia rebuscada. Lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto e Dante ficou atônito
sem a menor ideia do que estava acontecendo.
- O que você tem Ágata? O que aconteceu? – Ele perguntou, frenético.
Ágata não conseguiu responder e quanto desviou seu olhar para o pequeno Dante
sentado na cama com o café da manhã ainda no colo, ela levantou-se às pressas e se
retirou. Dante chamou por ela ou por algum outro criado para que pudesse ajuda-lo, mas
ninguém respondeu. Demorou uma meia hora para que Christian adentrasse o quarto e
fizesse companhia a ele pelo resto da tarde, o que deixou tudo ainda mais confuso.
Ainda demorariam dois dias para que os todos os servos da família Diamont entrassem
em um consenso para dizer a Dante o que havia ocorrido. E a verdade era dolorosa.
Ágata mal conseguia falar enquanto dava a terrível notícia para o seu jovem senhor.
Seus soluços e a voz embargada quase deixaram a mensagem inaudível, porém Dante só
precisava de meias palavras para entender quando ela começou a falar sobre uma
tempestade, sobre o barco, sobre os pais...
Naquele instante Dante entendeu que a carta trouxera palavras de morte. Todos olhavam
para ele com uma expressão feia que só o luto é capaz de esculpir. A realidade atingiu
Dante como mil facas perfurando seu coração. O choque fora tanto que a voz
desapareceu de sua garganta e a sua própria alma saiu de seu corpo, deixando ali
presente, deitado em sua cama, somente uma casca vazia.
Empurraram-no de um lado para o outro, fizeram-no assistir o funeral simbólico que
fora organizado e tentaram durante várias semanas, sem sucesso, reanima-lo para que
desse qualquer sinal de sua mente não fora totalmente fragmentada, mas no fundo,
poucos tinham sequer coragem de olhar em seus olhos. Dante até preferia assim, pois
assim podia fugir para um lugar dentro de sua própria cabeça onde tudo aquilo era uma
mentira, onde seus pais estavam ao seu lado e ele acordaria logo em seguida e daria
risada daquele maldito pesadelo. Mas os dias se passaram e voaram rápido, e ele
continuara sonhando.
Christian, vendo que Dante mal se alimentava ou sequer se levantava da cama, fora, em
sua última tentativa, arriscar falar com o jovem Diamont. Sentando-se do lado do
garoto, ainda mais pálido e magro que antes, ele ficou em silêncio por um bom tempo.
No fim, não havia muito o que se dizer para um menino de 11 anos que acabara de
perder os pais tragicamente, porém, para sua surpresa, fora Dante quem falara pela
primeira vez:

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- Doutor, me responda... – Dante soprou, muito baixo.
- Sim, fale Dante. – Christian respondeu, prestando atenção.
- Por que ainda estou vivo?
A chuva lá fora deixava os céus acinzentados e alguns trovões irrompiam vez ou outra.
Os céus choravam a morte dos Diamont junto ao seu filho. O quarto de Dante nunca
fora tão sufocante, com suas cortinas semiabertas de cor bege e roupa de cama cinza:
Herlon odiava, dizia que um quarto de criança deveria ser mais feliz, mas Charlotte era
severa em relação aos detalhes. Dante sentia que a qualquer momento sua respiração iria
falhar. Assim seria melhor, não seria? Para que pudesse descansar, finalmente, ao lado
dos pais.
- Há pessoas que acreditam em destino, Dante. Geralmente elas dizem que há um
propósito maior para todos os seres vivos e que nada acontece por acaso. Talvez sua
vida seja prova disso. – Christian respondeu.
- Espero que elas estejam certas. – Dante opinou, deixando, naquele dia, a última
lágrima que deixara cair pelos seus pais rolar por sua bochecha.

Um ano se passou e a morte dos Diamont ainda doía. Dante não sabia muito bem de
onde havia tirado forças para continuar vivo, mas de alguma forma, ele continuava ali,
respirando, se empoleirando nas muletas, andando pela casa na sua cadeira. Uma vida
triste, mas ainda assim, uma vida. Ele havia se tornado, depois da morte dos pais, o
senhor da mansão Diamont e de todas as terras e negócios que pertenciam a sua família.
Alguns papéis redigidos pelo advogado de confiança do pai asseguraram que tudo
ficasse muito claro e que a lei fosse cumprida, tornando Ágata, a funcionária mais leal e
antiga, a tutora legal do menino até que ele tivesse idade suficiente, fazendo-a
consequentemente a guardiã de toda propriedade dos Diamont.
Com Ágata cuidando de tudo, Dante achou paz na sua solidão. Sua rotina de estudos
retornara, agora mais severas visto que fizera doze anos. Absorto em livros, arte e
música, ele foi se fechando cada vez mais, afastando tudo e todos, escondendo seus
sentimentos e sua dor.
Mesmo assim, maior ainda do que a dor dentro dele, era o tamanho do coração de
Dante, que olhava para as pessoas sem maldade nenhuma. Talvez, se ele tivesse sido um
pouco mais malicioso, se seus pelo menos seus pais tivessem tido tempo de ensiná-lo

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sobre a podridão que reside dentro dos seres humanos ou se ele simplesmente tivesse
saído para bisbilhotar atrás da porta como sempre fazia quando seus pais estavam vivos,
somente então, talvez, ele tivesse reparado que Christian tinha um caso com Ágata.
Christian e Ágata eram muito bem vistos pelos moradores da cidade. Por fora, eles eram
os perfeitos bons samaritanos que, depois de uma tragédia tão grande envolvendo a
família Diamont, estavam conseguindo com muito esforço manter tudo em paz e em
ordem. Depois que Christian instaurou seu próprio laboratório e começara a investir em
seu próprio projeto pessoal, acolhendo e adotando diversos órfãos, os abrigando e
oferecendo tutela, ele caíra nas graças do prefeito, que fizera uma festa exclusiva para
brindar a ciência mágica que ele estudava com tanta paixão e todas as suas. Dante
ouvira falar muito pelas suas professoras e criados de como ele e Ágata conseguiam ser
fortes e ainda sim gentis e calorosos. Nada podia ser feito, mas Dante não conseguia
deixar de sentir uma pontada de dor perante a sensação de que os pais seriam
esquecidos iminentemente.
Contudo, as suas preocupações com esses assuntos foram amenizadas quando a primeira
menina que o Dr. Katesblake trouxera irrompeu pela porta naquela manhã chuvosa. Seu
nome, como Christian já havia instruído, era Tristian Mei. Seus cabelos eram formados
por fios de um dourado intenso postos delicadamente sobre um rosto redondo e
angelical que era adornado com os olhos mais azuis que Dante já vira em toda sua vida,
embora ele não tivesse conhecido muitas pessoas até então.
Ela foi recepcionada com sorrisos e adulação intensa, pois todos queriam dar a pobre
menina a sensação de estar finalmente em um lar acolhedor. Cada um fazia chover
perguntas e elogios a beleza dela, exclamações e boas vindas, exceto Dante. Ele ficara
encantado e atordoado pela presença da garota, sim, e quando ela sorrira em sua
direção, não conseguira esconder a consternação, porém, traduzira aquela sensação
estranha de ter agora uma menina somente dois anos mais velha convivendo tão perto
em uma carranca fechada e indecifrável que ele adquirira o costume de carregar para
qualquer coisa que o incomodasse.
Sua preocupação não era infundada, pois ele se lembrava muito bem de como foram
incômodos os comentários dos filhos da cozinheira e do cavalariço até que conseguisse
se habituar ao quão difícil era para simples crianças aceitarem coisas que eram
diferentes daquilo que conheciam. Seu pai dissera que quando elas crescessem iam ver
que perderam uma oportunidade de ter um ótimo amigo, mas que, naquela altura, elas
não conseguiriam enxerga-lo como nada além do filho doente do senhor Diamont.

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A rotina de Dante agora já não era mais solitária, suas aulas, suas refeições e agora até
mesmo nos dias chuvosos o seu tempo de lazer era invadido por aquela presença
feminina com a qual ele evitava todo o tipo de contato. Porém, Mei era naturalmente o
tipo de pessoa difícil de se ignorar. Certo dia, ela cansou-se do gelo absurdo por parte
dele e resolveu confrontá-lo:
- Porque não gosta de mim, sor.?
- Por que acha que não gosto? – Dante retrucou, na defensiva.
- Ora, você não troca uma palavra comigo desde que cheguei! Achei que ficando aqui
sozinho o tempo todo quisesse pelo menos brincar. – Mei revelou, com uma expressão
ofendida.
- Eu não posso brincar como as outras crianças lá fora, como pode perceber. – Dante
respondeu, ainda mais ofendido.
- Mas nós podíamos brincar aqui! Tem muitas coisas que podemos fazer e você nem vai
precisar se mexer! – Mei contou, juntando os dedinhos, ansiosa para mostrar um mundo
que Dante não conhecia.
- Eu não vou brincar de boneca se é isso que está pensando. – Dante cruzou os braços,
indignado.
O sorriso iluminado no rosto de Mei sumiu para dar lugar a um bico frustrado, mas que
desapareceu com a mesma rapidez que surgiu conforme ela começou explicar as
inúmeras coisas que podiam fazer juntos. Antes que pudesse perceber, Dante estava
sentado no chão, com bonecas em volta de si, mini xícaras de chá espalhadas entre eles
enquanto Mei chamava cada uma das imóveis amigas pelos seus próprios nomes,
contanto notícias de um mundo que só existia dentro da sua própria cabeça. Ele nunca
contara com a personalidade de Mei e em como ela simplesmente tinha uma presença
forte demais para que ele se mantivesse afastado. E como coisas entre crianças são
milhões de vezes mais simples de se resolver, a partir dali ele ganhou sua mais fiel
amiga.
Durante aquele ano, com intervalos de alguns meses, mais cinco crianças chegaram,
sendo Alan Trowell, de Cunningham, dois anos mais velho, Joel McRiven, o mais novo,
com apenas sete anos, Ian Yellow e sua irmã gêmea Janna de dez e Quenyan, sem
sobrenome, com treze.
Com Mei ao seu lado, as outras crianças eram atraídas, tornando-se impossível não criar
certo vínculo e Dante agora dividia seu quarto com mais três deles, Ian, Quenyan e
Alan. Mei e as outras duas meninas ficavam em quartos separados. Ágata e Christian

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mantinham uma rotina rigorosa e, com dieta regulada e horários muito bem estipulados.
Christian também impusera um toque de recolher que impedia as crianças de
perambularem durante a noite após às oito horas.
Dante, certa noite, teve um pesadelo horrível onde via um barco desaparecendo em
ondas de tempestades que pareciam ser capazes de engolir uma cidade Inteira, então
acordou chorando com memórias dos pais, mas Mei e o resto das crianças não tardaram
a correr até ele para confortá-lo, ficando ao lado de sua cama conversando, escondidos,
até uma hora da manhã. Naquele instante Dante se sentira grato, pois, depois de tanto
tempo, era muito bom ter amigos.
Infelizmente, como percebera muito cedo, nada bom em sua vida parecia durar tempo
suficiente para que pudesse relaxar, pois o primeiro desaparecimento veio logo em
seguida, numa noite escura que ele jamais poderia esquecer.

O aniversário de treze anos de Diamont Dante havia chegado. A cozinheira preparou um


bolo a pedido de Ágata e enviara ao quarto dos meninos, junto de diversos petiscos e
suco. Lá dentro, eles foram autorizados a ficarem até às 22:00 horas acordados,
incluindo também as meninas. A tarde fora recheada de conversas. Dante tocou violino
para as meninas dançarem desajeitadamente ao som de uma melodia alegre. Ele também
tentou ensinar de toda forma Quenyan a jogar xadrez, mas as regras complicadas não
entravam na cabeça do menino, que logo cedeu seu espaço a Alan, o único oponente
verdadeiramente digno de Dante, mas que, ainda assim, ganhara 1 partida das 5 que
jogaram. Quando as meninas começaram a brincar com algumas bonecas, os meninos
sentaram-se para jogar um outro jogo de tabuleiro mais fácil a pedido de Quenyan. Foi
nesse momento então que Dante reparou que os três meninos estavam com hematomas
na parte interna dos braços na altura das juntas. Inocentemente, ele perguntou a
Quenyan:
- O que são essas marcas?
- Não são nada. – O menino respondeu, um pouco timidamente.
- Acho que não tem problema falar para ele, Que. – Ian tentou argumentar.
- São marcas de injeções, Dante, dos estudos de Christian. – Alan revelou, calmamente.
- Ah, entendi. Porque estava evitando falar, Que? – Dante quis saber.
- Christian diz que tenho que ter cuidado, só isso. – O garoto se esquivou.

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- Mas comigo? Que mal eu poderia fazer ao saber? – Dante questionou, mais para si
mesmo do que para os demais.
A expressão no rosto de Alan ficara um pouco severa perante esse assunto e o olhar
imperceptível trocado com Mei do outro lado da sala passou imperceptível, então ele
mudou de assunto rapidamente ao Chamar todos para comerem quando o relógio
indicou seis horas. Os saborosos sanduíches de pasta de atum e patê de frango desfiado
junto de um suco de morango feito com as frutas frescas do pomar dos Diamont
encheram as barrigas de todos, mas não suficiente para tirar o apetite com que todos
caíram em cima do bolo de chocolate recheado com coco, o preferido de Dante. Ele
tinha certeza de que aquele fora o seu melhor aniversário em toda vida.
Era quase dez horas quando as meninas começaram a juntar suas coisas para voltar ao
próprio quarto quando, mais uma vez, aquela sensação horrível tomou conta de Dante e,
pela primeira vez desde a morte dos pais ele teve uma de suas convulsões. As crianças
ficaram desesperadas. Ian e Janna começaram a chorar desesperadamente enquanto
Alan, Mei e Quenyan se juntaram em volta dele para tentar evitar que se machucasse
muito em seus movimentos involuntários. Quenyan desceu correndo as escadas e
chamou Ágata, que veio correndo com Juan e desceu Dante até o subsolo onde ficava o
laboratório de Christian. Todos se entreolharam de coração acelerado quando viram a
porta se fechar e o desafortunado herdeiro Diamont desaparecer atrás dela. Era a
primeira vez que as crianças presenciavam um daqueles quadros horrendos que Dante
era obrigado a enfrentar vez ou outra. Aquilo conseguia ser ainda mais assustador do
que os estranhos experimentos e testes que Christian estava sempre fazendo em seu
laboratório.
Era a primeira vez que Dante entrara naquele cômodo. Cinza e escuro demais para um
laboratório médico comum, mas ele não percebera isso no início, em meio ao seu
ataque. Christian aplicou um calmante intravenoso no garoto o observou relaxar até seu
corpo parar de ter espasmos e sua expressão voltar ao normal. Dante, como sempre,
entrara naquele estado entorpecido. Ele sentia as mãos envolta em luvas do Dr.
Katesblake abrir suas pálpebras para examiná-las, aplicarem alguma infusão
desconhecida além do remédio que sempre lhe deram para seus recorrentes surtos e seu
suspiro estranho quando se apoiou na maca, aparentemente fitando-o de maneira
curiosa.
Ágata entrou na sala, com pressa, e começou a falar:
- O que fez com ele? Você não...

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- Não, fique calma, só apliquei uma dose de soro de raiz de niz com catalizador mágico,
vai dar energia para ele durante alguns dias, fazê-lo caminhar talvez. – Christian
respondeu – Mas o resultado, não foi bem como eu esperava.
- A reação disso, Christian... Ele podia morrer. – Ágata comentou, mas com uma
preocupação pouco profunda na voz.
- Sim, por isso disse que a reação não foi a esperada. – o Dr. Apontou para Dante sobre
o leito de pedra frio – Ele não esboçou nada.
- Como isso é possível? – Ágata perguntou, deixando transparecer o entusiasmo na voz.
- Eu não sei... Pode ter algo nele que não sabemos. – Christian comentou – Vou tirar
mais uma amostra de sangue. Devo ter deixado algo passar.
- E quanto Quenyan? – Ágata perguntou.
- Leve Dante para o quarto e traga Quenyan. Vão ser os últimos testes. – Christian se
virou e se absorveu totalmente em seu caderno, começando a fazer anotações num ritmo
frenético. Ágata sabia que aquela era a hora de sair e fazer o que ele mandava.
Na tarde do dia seguinte, quando Dante finalmente acordou totalmente, aquela conversa
no laboratório de Christian não saiu de sua cabeça. Na primeira oportunidade que teve
de se levantar, Dante ficou de pé, primeiro se apoiando nos baluartes da cama até ter
confiança suficiente para se equilibrar sozinho e dar alguns passos. Depois de testar a
força de suas pernas, estranhamente fortes, ele andou normalmente pela primeira vez
desde que se conhecia por gente. Não conseguiu conter o sorriso, porém uma sensação
ruim se apoderava dele quando pensava o quanto essa situação era anormal. Decidido,
ele caminhou pelo corredor até em frente a segunda porta a esquerda, onde ele bateu e
foi recebido por uma Mei constrangida e envergonhada enquanto atendia Dante do lado
de fora. Ela arregalou os olhos e deu um passo para trás com a surpresa. Era muito
estranho ver Dante daquele modo, com uma postura ereta. Ele ficava tanto tempo
deitado, sentado ou apoiado sobre as muletas que ela mal havia percebido o quão alto
ele era de verdade, passando já vários centímetros a sua própria estatura.
- O que aconteceu, Dante?
- Estou bem, na verdade, bem até demais... É sobre isso que vim falar.
- Como assim? – Mei perguntou, atônita.
- Eu ouvi umas coisas muito bizarras enquanto estava lá embaixo. – Dante revelou,
olhando para os lados para ter certeza que ninguém os via. – Será que posso entrar?
Mei fechou a porta atrás de si com cautela e sugeriu, sem a confiança que geralmente
possuía na voz:

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- Será que... podemos ir para seu quarto?
- Claro. – Dante seguiu na frente, entrou no quarto e a esperou para fechar a porta atrás
deles.
Lá dentro, Mei ainda fitava Dante, incrédula, quando ele começou a explicar:
- Mei, quando tenho essas... essas coisas, você sabe, eu não apago completamente.
Nisso acabei ouvindo Christian conversar com Ágata. Aparentemente, ele aplicou
alguma coisa em mim além do calmante habitual. Tinha algo mágico nisso que me fez
ficar mais forte, mas acho que não é permanente.
- Deuses, ele aplicou raiz de Niz em você? – Mei deixou escapar, tapando a boca
quando notou que falara demais.
- Então você sabe o que é isso? – Dante questionou, totalmente surpreso.
- Bem, só o que acabei ouvindo por cima de Christian. – Ela respondeu – É uma
fórmula, embutido com algo mágico. É uma solução muito forte que prepara o corpo
para receber algo que pode causar mais estragos... Pelo menos foi isso que ele me disse
uma vez. O problema é...
- A reação? – Dante se adiantou.
- Isso! – Mei afirmou – Como sabe?
- Foi outra coisa que ouvi na conversa. Eles disseram que eu não esbocei a reação
esperada. – Dante relembrou – Qual era para ser a reação?
- Dor. Agoniante. Mágica não é algo que se deva forçar... Minha mãe dizia isso. – Mei
contou, com um olhar triste. – Mas pelo visto...
- Comigo não aconteceu nada. – Dante terminou.
Um silêncio apreensivo parou no ar por alguns instantes até que Dante resolveu voltar a
atenção para outra coisa que também ouvira.
- Mei, ele disse que ia realizar algum teste final em Quenyan. O que é que ele anda
fazendo com vocês?
- Não... – Disse Mei, com a voz falhada pela primeira vez, corrigindo-se logo em
seguida com mais firmeza – Claro que não. Mas olha, é melhor você não ficar muito em
cima dele sobre isso. Preciso ir para o meu quarto. Vejo você no jantar.
Ela saiu rápido do quarto, mas um gosto amargo de insatisfação grudou no céu da boca
de Dante e ele não conseguiria ficar tranquilo enquanto não tivesse certeza do que
estava acontecendo. Ele nunca questionara Christian antes, mas ele nunca tivera algum
motivo antes para duvidar do médico que a essa altura era quase um membro da família,
que passara tanto tempo com ele, que o vira no luto pelos pais. Era de se notar que ele

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se afastara bastante depois da morte dos Diamont, mas Dante não achava que a relação
entre eles precisava ser mais estreita do que vinha sendo. O herdeiro sentiu as pernas
fraquejarem, então voltou a agarrar-se nas muletas.
Certamente ele tinha uma boa justificativa, Dante pensara, enquanto descia as escadas
com seus apoios. Entretanto, isso fora antes das notícias do final do dia, quando, no
jantar, um clima soturno rondava a mesa posta com pratos finos: pernil, ensopado de
frango, legumes assados, pão, empanados de carne com abóbora, e vários outros
alimentos ricos, que contrastavam absurdamente com as porções mal tocadas dos pratos
e os rostos angustiados dos presentes. Quenyan não estava a mesa. Dante perguntou,
ainda inocentemente, sobre a ausência do amigo, mas a reposta que obteve não era o
que esperava ouvir.
- Quenyan desapareceu, Dante. Não o encontramos em lugar nenhum. Suspeitamos que
tenha fugido. – Christian revelou, com ar aparentemente desolado.
- Quenyan? Fugir? – Dante repetiu, como se as palavras não fizessem sentido nenhum.
- Ele deixou uma carta. – Mei revelou. – Disse que sentia falta de sua terra e iria tentar
voltar para lá.
- Já estamos realizando as buscas atrás dele desde que vimos o bilhete, mas até agora
não tivemos notícias. – Ágata completou.
Dante não conseguia acreditar no que ouvia, como se eles estivessem falando um outro
idioma.
O Jantar continuou triste até seu fim, onde todos se retiraram com poucas palavras, com
pressa para que aquele dia passasse logo, ansiosos por qualquer notícia do pequeno
Quenyan. Entretanto, Dante fora para cama com pensamentos um pouco diferentes.
Diferente de Ian e Alan, Quenyan era mais aberto, gostava de falar do que lhe agradava,
das diferenças entre sua nova vida e aquela que levava em sua terra depois que fora
abandonado pelos pais ainda tão novo. Seus olhos de um castanho escuro cintilavam ao
falar de Christian e Ágata, como seus salvadores e, embora a saudade de sua terra natal
fosse imensa, ele confessara a Dante certa vez que a melhor coisa que acontecera fora
ser acolhido por aquela família. Então, impregnado com essa controvérsia, para Dante
não tinha qualquer fundamento uma fuga. Ele jamais mencionara insatisfação e nunca
dera sinais de que sofria em sua casa.
As semanas foram seguindo, correndo rápidas adiante, sem notícias. Uma atmosfera
tensa se instalou na casa enquanto o tempo se arrastava e ninguém ousava falar muito
sobre qualquer coisa. Dante estava perplexo com aquele silêncio, porém, mais uma vez,

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sua saúde tirou o foco da situação uma vez mais quando, durante o café da tarde, outro
ataque o tomara.
Outra vez, as escadas, o laboratório, a raiz de Niz. Dessa vez, Christian estava sozinho.
Não houve revelações. Só um riscar de caneta incessante no papel.
Dante acordara no dia seguinte se sentindo disposto, como se pudesse correr a cidade
inteira sem o mínimo esforço. Até o ar em seus pulmões pareciam circular dentro de si
com mais intensidade, seus sentidos pareciam mais apurados e a sua mente clara como a
água límpida das fontes que brotavam no Norte. Entretanto, ele achara melhor não
demonstrar que estava se sentindo tão bem devido ao estranho composto mágico que
Christian lhe dera, por alguma intuição que não sabia dizer de onde vinha.
O segundo desaparecimento se deu no natal daquele mesmo ano, mas, aos olhos de
quem via, não fora, de fato, um desaparecimento. Aparentemente, Ian e Janna
receberam uma carta meses antes que os convidavam para passar o Feriado de Todos os
Deuses no final do ano junto de seus tios distantes que moravam na cidade de
Livinground, no extremo oeste. Eles ficaram tão animados com a notícia que
simplesmente aceitaram na hora. Quando chegou o dia de partir, todos se despediram
deles na plataforma de trem, sob uma neve rala que não cessara durante toda a semana.
Somente um mês depois é que todos ficaram cientes da carta que os gêmeos mandaram,
despedindo-se definitivamente, explicando que permaneceriam com os tios para ajuda-
los em casa com o negócio da família, devido a situação precária em que se
encontravam.
Houve uma comoção muito grande e Mei até se escondeu em seu quarto para chorar,
entretanto, nem se comparava com a perda de Quenyan, já que supostamente Janna e
Ian estavam praticando uma boa ação por vontade própria. Mas aquele gosto amargo
reapareceu na garganta de Dante e ele teve que se conter muito para não sair despejando
seus pensamentos conspiratórios. Ele sabia que pareceria louco. O que duas crianças
iriam poder fazer por uma família com necessidades? Ele se perguntou, porém, isso não
o convinha. Deixou-se ficar triste pela falta que os irmãos fariam no xadrez e nas
conversas as tardes, mas tudo bem, eles estavam vivos ainda em algum lugar e
provavelmente mandariam notícias, ele também poderia escrevê-los. Uma viagem sem
volta... Por algum motivo lembrou-se de seus pais.
A mansão Diamont estava e voltando a parecer miseravelmente vazia. Alan e Mei
estavam muito distantes de Dante. Eles já não iam ao seu quarto passar as tardes juntos,
nem jogavam xadrez e, até mesmo no jantar, pareciam evitar encarar Dante. Algo

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parecia errado, mas Dante tinha medo de que estivesse imaginando coisas. Contudo,
ficar em silêncio e voltar a ficar sozinho causava um incomodo ainda maior do que
aquele que provavelmente enfrentaria ao o repreenderem por sua fértil imaginação
quanto o paradeiro dos “desaparecidos”. Alan como sempre devia estar estudando na
biblioteca da mansão até o toque de recolher, então aproveitou aquele momento sozinho
para se esgueirar com sua cadeira pelo corredor até em frente a porta do quarto de Mei
mais uma vez, fazendo o mínimo de barulho que conseguia.
Ele bateu na porta e Mei atendeu um tanto quanto assustada. Ela o recebeu como se
estivesse escondendo algo atrás de si. Um déjà vu nada bem-vindo.
- Preciso conversar com você. Posso entrar? – Dante perguntou, prestes a matar dois
coelhos com uma cajadada.
- Será que... – Mei estava prestes a dar uma desculpa, mas antes que pudesse Dante se
adiantou com a cadeira em direção ao quarto, forçando-a para trás e invadindo o recinto.
Lá dentro, encontrou Alan deitado abaixo dos lençóis da cama de Mei, visivelmente nu.
Acordado pela movimentação, Alan corou até parecer um tomate maduro e tentou
esconder-se o máximo que podia embaixo da roupa de cama. Dante ficou boquiaberto
por algum tempo, mas então uma Mei desesperada começou a soltar tudo de uma vez:
- Dante, você não pode contar isso para ninguém, por favor! Nós... Nós estamos juntos,
sabe..., mas nós... Se Christian souber... Por favor, não fale para ninguém! Eu estava me
sentindo sozinha o tempo inteiro e Alan... Perdão por ver isso... Deuses, como posso...
A voz de Mei se tornou um zumbido estressante no ouvido de Dante. O sentimento que
o dominava naquele momento não era simplesmente surpresa, mas sim o mais doce e
venenoso ciúme que já sentira em toda sua vida. Por tantas noites ele sonhou com o dia
em que se declararia para sua melhor amiga e ela o aceitaria, mesmo tão doente, tão
quebrado... Ela nunca se importara com isso, então por que seria um problema? Mas ali,
na sua frente, o seu sonho, o único que ele ousava manter vivo, enclausurado dentro de
seu coração, destruído, definhando à medida que ela tentava se explicar. Nem era
preciso, na verdade, ele entendia muito bem. Pensou em tanta coisa para dizê-la, tantas
palavras que poderiam machucá-la e tanta raiva que queria por para fora, mas, como o
lorde que fora ensinado a ser desde que nascera, ele se manteve impassível, controlado,
acalmando-se a cada profunda inspiração. Um homem feito, dentro do corpo de um
garoto que completaria quatorze anos em poucos meses.
- Está tudo bem, Mei. Eu entendo. – Dante compassou, de olhos fixos no chão.

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- Obrigada, Dante, muito obrigada! Você... você é um anjo! – Mei celebrou, eufórica,
dando um beijo na bochecha do amigo e, em seguida, perguntou-lhe, preocupada – O
que precisava me dizer?
- Não era nada. – Dante mentiu, abalado demais para pensar em qualquer coisa naquele
instante. – Desculpe por sempre aparecer nos momentos errados... Eu...
- Está tudo bem, você não tem que me pedir perdão, por favor! – Mei esclareceu, com
convicção, colocando as mãos na cintura.
- Eu vou... Vou vol... – Antes que Dante pudesse terminar, outra vez, espasmos, dor e
inconsciência.
Daquela vez, algo estava diferente. Dante foi levado ao laboratório de Christian e o
calmante fora aplicado, porém, algo no corpo de Dante estava errado. Seu coração não
aguentara o choque, pela primeira vez, havia parado em resposta a convulsão. Ao
contrário do que se espera nessa situação, o Dr. Katesblake estava calmo como as águas
de um pântano. Seus olhos também eram turvos como elas. Ágata irrompeu pela porta,
em seu rosto um tipo de raiva estranha pairava em suas pestanas.
- Ele não pode morrer ainda, Chris. – Ela ralhou enquanto o médico fazia massagem
cardíaca incessantemente.
Christian não respondeu e continuou o procedimento até que, de súbito, ele parou.
- Traga a matéria. – Christian instruiu, muito sério.
- Chris, tem certeza? Nenhum dos outros conseguiu aguentar isso por muito tempo, se
ele morrer... se ele morrer agora... – Ágata retrucou, com uma careta sombria.
- Eu sei o que estou fazendo.
Com o ultimato, Ágata se virou e, girando a senha num cofre refrigerado na parede,
abriu a portinhola de chumbo fortificado, deixando um vapor gélido se chocar com o ar
quente de fora. Lá de dentro, ela retirou com extremo cuidado um frasco de vidro oculto
por um tecido cor púrpura. Ao retirar com cuidado o invólucro, dentro camada
transparente do recipiente, algo negro que parecia absorver toda a luz que o tocava,
ondulava suavemente. Todas os archotes da parede se apagaram conforme Ágata
caminhava em direção a Christian com aquela coisa em mãos. O Dr. Katesblake tomou
cuidado de colocar as luvas para segurar o frasco. Com um cuidado extremo, ele o
abriu, tirando a rolha lacrada com um tipo de cola. Com uma seringa grossa munida de
uma agulha equivalente, ele puxou a substância espessa com dificuldade e ela pareceu
se moldar para encaixar-se dentro do tubo cilíndrico. A respiração de Christian ficou
pesada, como se carregar aquilo em suas mãos tirasse toda a sua energia. Até mesmo

77
fitar a negridão vinda dali causava náuseas. Ágata correu para um lixo e acabou
despejando todo o conteúdo da sua janta ali.
Com uma destreza cirúrgica, Christian não se demorou mais nenhum segundo e injetou
o material nas veias de Dante até esvaziar totalmente a seringa. Durante alguns
segundos, Ágata e o doutor prenderam a respiração, esperando, ansiosos, pela reação,
até que ela veio, assustadora, voraz, queimando de dentro para fora.
As veias do braço do herdeiro Diamont Dante pulsaram, levando a contagiosa
substância através de seu corpo até seu coração já inerte, sem vida. Com um solavanco,
Dante irrompeu num grito de agonia que pode ser ouvido pela casa inteira quando a
matéria escura fez seu músculo cardíaco voltar a funcionar, num frenesi vindo do
inferno, transformando suas entranhas em lava conforme o órgão bombeava seu sangue
contaminado para seus braços, pernas, sistema digestivo e respiratório. Todos os
orifícios da face de Dante fumegavam aquele ar denso sem cor, sem luz, sem vida, se
juntando, unindo-se numa esfera acima das cabeças dos presentes.
Aquela fora a primeira vez que Dante escutou a voz profana que passara a habitar seu
corpo:
- Finalmente... não durará muito... consumir... pedaço, por pedaço...
O medo incompreensível dominou a mente do menino como se o próprio mal estivesse
o engolindo vivo. Dante não conseguia ver nada a sua frente a não ser o vazio. Uma
desolação infinita formada por inexistência. Nada abaixo de seus pés ou acima de sua
cabeça. Ele sentia frio, mas seu peito queimava. Quem era ele, o que estava fazendo e o
que era real já não faziam mais sentido ali. Perdido, sozinho, completamente sozinho...
Não. Havia alguém, embora alguém talvez fosse um pronome complexo demais para
defini-lo. Dante tentou gritar, tentou falar, tentou respirar, mas ele nem mesmo sabia se
estava vivo. Seu corpo não o obedecia. A coisa se arrastou em sua direção, disforme,
enfraquecida, mas ainda assim, medonha, perigosa. Concebido de pura maldade, sua
voz ecoava em toda aquela existência miserável:
- Você é meu... meu...
Então, como se dedos divinos o puxassem de volta, suaves mãos delicadas como
veludos tocaram seu rosto, acariciando, tirando uma mecha rebelde de frente de seus
olhos. Uma voz familiar soou como um canto angelical em seus tímpanos: “...ele nunca
se renderá tão facilmente...”.

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Sua alma então foi puxada de volta para o plano material, violentamente. A nuvem de
fumaça que se formara no meio da sala descera de uma vez por sua boca, ouvidos e
olhos, penetrando e desaparecendo dentro de seu corpo. Então, silencio absoluto.
Christian se aproximou, devagar, com medo de algo invisível, olhando fascinado para
Dante.
- Ágata... Ágata, funcionou! – Exclamou, extasiado.
Dante estava vivo, deitado ainda sobre o duro e frio leito de pedra do laboratório de
Christian. Sua respiração era um sopro fraco e mesmo dormindo ele parecia ter uma
expressão perturbada, mas, ainda assim, estava vivo.
Enfim o jovem Diamont abrira os olhos, mas quase não conseguira mantê-los assim,
cegado pela luminosidade do dia. Ao seu lado, Mei se jogara num pulo sobre seu peito,
chorando:
- Finalmente... Finalmente! Achei que jamais acordaria.
Dante tentou mexer os dedos, mas eles responderam devagar demais. Seu corpo estava
amortecido e todos seus músculos doíam.
- Quanto... tempo... – Uma voz que Dante mal reconheceu como a sua própria sussurrou
entre seus dentes, ou pelo menos imaginou, pois Mei não respondeu. A verdade: seus
lábios mal se deslocaram.
Sentindo-se paralisado, Dante deixou os esforços de lado e se permitiu somente
aproveitar o calor do corpo de Mei contra o seu, naquele abraço reconfortante.

Laços
Karin encarava Dante com uma expressão de incredulidade no rosto que estava
deixando Dante desconfortável. Com certa dificuldade ela finalmente abriu a boca e
começou a falar:
- Então, você está dizendo, que tem alguma coisa dentro de você? É isso?
- Resumidamente, sim. – Dante respondeu, sentando-se nos degraus de madeira da
entrada de um dos casebres que agora estava totalmente vazio.
- E você não faz ideia do que é isso? – Karin repetiu as palavras que ouvira na
explicação de Dante sobre como adquirira aqueles poderes pavorosos.
- Exato. Para falar a verdade, me lembrei a pouco tempo como os consegui. Antes de vir
para cá, eu sabia que ele existia e estava ali, mais fraco, adormecido, mas achava que eu

79
era um mago como qualquer outro. Agora, tudo voltou de uma vez eu... estou meio
confuso. – Dante contou, com o olhar fixo nas próprias mãos. Erguendo os olhos para
Karin, ele continuou – Vou entender se quiser tomar um rumo diferente, seja lá para
onde quiser ir.
- Olha, eu não vou mentir, você me dá um pouco de medo e o fato de que só descobriu
que se chamava Dante ontem, também... – Karin revelou, sentando-se ao lado de Dante
– Eu não achei que... Não achei que esse seu poder fosse... Desse jeito. Mas, acima
disso, você é um homem bom e é intendente do general na corte. Me salvou sem ganhar
nada em troca duas vezes, por isso, qualquer coisa que tenham feito com você, não te
mudou até agora. Eu ouvi que te chamavam de Corvo as vezes no navio... para mim,
com essa pele branca, você não parece um. Acho que você me lembra mais um pinguim.
Dante não conseguiu esconder um sorriso aliviado ao ouvir isso, embora, no fundo de
sua mente, a parte que ele escondera de Karin ainda retumbasse como um sino de mau
agouro.
- Temos que sair daqui logo. Sabem onde estamos. – Dante se levantou, passou os olhos
pelo ambiente até se fixar na estrada à frente.
- Vamos. Iremos demorar mais a pé, mas, principalmente agora, não poderemos ficar
parados. – Karin completou, começando a caminhar na frente.
Deixando a pilha de corpos dos cidadãos da pequena cidade atrás de si, Dante e Karin
continuaram seguindo em frente para alcançar o porto enquanto contornavam Akashia.
Aquela sensação de perigo eminente fazia qualquer som ou animal parecer uma ameaça
enquanto tentavam desesperadamente percorrer a maior distância possível antes de
escurecer e antes da fome e da sede começarem a incomodar. A única fonte de
segurança que possuíam era a presença um do outro.

- Me diz uma coisa, Aron... – Karin perguntou, irrompendo o silêncio durante a


caminhada – Prefere que eu te chame de Aron, ou Dante?
- Acho que me sinto mais confortável com Dante. – Ele respondeu – Embora tenha sido
chamado de Aron desde que fui acolhido, agora que sei qual meu nome verdadeiro
parece que durante esse tempo todo estive vivendo uma mentira.
- Você nunca tentou descobrir quem era sua família, de onde você tinha vindo? – Karin
continuou interrogando.
80
- Tentei sim, com a ajuda de Valtel. – Dante explicou – Como general, ele tinha
bastante influência. Antes de me deixar conviver na corte ele tentou de toda maneira
achar alguma pista que revelasse meu passado, como uma forma de segurança e para me
ajudar também. Infelizmente, nunca encontramos nada. Fui achado muito ferido em
meio a ruínas de uma velha mansão e isso era tudo o que sabíamos. Valtel supôs que eu
deveria ser um lorde, devido as minhas roupas, mas não havia registros que indicassem
uma família com meus traços... bem, pelo menos não nos dias de hoje.
- O que quer dizer com isso?
Dante parou um pouco, olhou para Karin e tentou imaginar qual seria a reação dela se
contasse que na realidade, ele não pertencia aquela época. Ela acreditaria nele, mesmo
conhecendo-o a tão pouco tempo? Pareceria loucura demais para qualquer pessoa
normal aceitar logo de cara. No fim, nem ele mesmo sabia direito o que havia
acontecido. Como explicar para alguém algo que estava fora da compreensão de
qualquer ser humano? Aqueles olhos verdes o encarando de volta com aquela faísca
brilhante de curiosidade se tornaram difíceis de encarar.
- O que aconteceu com sua família, afinal? – Karin quis saber, esperando ansiosamente
por essa parte da história.
- Escuta, Karin... – Dante havia começado a falar, quando o galopar de cavalos vindo na
direção oposta chamou a atenção de ambos.
Sem tempo para correr e se esconder, eles se encontraram frente a frente com um grupo
de guardas, que os cercaram e os rodearam, levando poeira com o trotar. O mais alto
deles, provavelmente o líder, desmontou, retirou seu capacete e o entregou a um de seus
companheiros. De uma bolsa de couro pendurada à sela, ele retirou, segurando pelos
cabelos loiros agora manchados de sangue, uma cabeça familiar que havia sido recém
separada do corpo, e a levantou para exibir aos fugitivos.
O coração de Karin ardeu em fúria, pois a cabeça de Leonard Yampke pendia em sua
frente entre os dedos daquele guarda, com a última expressão de horror que ficara
gravada nos músculos de sua face. O guarda sorriu ao ver o brilho de ódio cintilar nos
olhos verdes da garota e, ainda não satisfeito, ele a atirou ao chão como se fosse um
simples objeto desinteressante que não merecia mais sua atenção.
Dante não teve tempo para reagir antes de Karin se jogar contra aquele homem com
toda sua fúria.

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- Valre’mo! – Karin evocou, fazendo rajadas de vento cortante percorrerem o ar em
direção ao seu inimigo junto do movimento de suas mãos, porém, o homem não
precisou se esforçar muito para desviar do ataque.
Os demais soldados desceram de seus corcéis, com suas espadas desembainhadas.
Karin, cega pelo desespero de ver a barbárie feita com seu antigo colega, desferia golpes
e tentava a todo custo acertar o líder do grupo, que simplesmente a evitava sem
dificuldade. Cansado das investidas, ele concentrou magia em sua espada e se preparou
para atingi-la nas aberturas que a jovem maga descuidadamente deixava exposta.
Dante parecia que conseguia ver tudo em câmera lenta, e não pensou antes de agir.
Agachou-se, tocou o chão com as mãos e fez suas sombras deslizarem sob os pés do
grupo inteiro. Tentáculos sombrios surgiram então por baixo dos inimigos e se
agarraram a seus corpos.

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A primeira coisa que Erik sentiu ao acordar foi a dor excruciante em sua cabeça. Aos
poucos suas memórias voltaram, trazendo as imagens horríveis do ataque que sofrera e a
principal dúvida surgiu: onde estava?
Esquecendo-se completamente de sua condição, Erik se jogou para frente tentando se
levantar as pressas, sendo impedido somente por uma pontada cortante no abdome.
Quando tirou a coberta de cima de seu corpo, viu as ataduras enrolas por todo seu
tronco, manchadas de sangue. Ao olhar em volta, percebeu que uma tenda o cobria e
que sons de pássaros quebravam o silêncio lá fora, enquanto também era possível
reconhecer um rio corrente distante.
Com um esforço dolorido, Erik conseguiu se arrastar para fora, segurando a barriga na
parte onde sentia a pele repuxar embaixo das faixas. Seus olhos lutaram contra a
luminosidade até se acostumarem e conseguirem visualizar o pequeno acampamento ali
montada. Uma segunda tenda estava erguida do outro lado da fogueira apagado ao
centro da clareira. Árvores altas circundavam o local até a margem de um riacho calmo
que corria ao leste. Neste riacho, Levy estava agachada com os pés na água, esfregando
uma pilha de bandagens que estavam totalmente vermelhas. Quando ela olhou na
direção de Erik, se levantou apressada, deixando o seu serviço de lado e foi até ele com
uma expressão severa.
- Volte a deitar ou abrirá os ferimentos. – Ela alertou, tentando leva-lo pelo braço de
volta a tenda.
- Espera aí! – Erik retrucou, se livrando dela. – O que foi que aconteceu, onde estamos?
- Estamos em Blisar, está satisfeito? – A maga de gelo contou, com a voz pesada.
- Como... Como viemos para cá? Fomos... atacados... E eu... – Erik gaguejou, tentando
entender.
- Sim, fomos, por sua estúpida imprudência! Um mago prepotente que não prestou
atenção e não percebeu um grupo de piratas como aquele se aproximando! – Levy virou
as costas e tentou voltar para sua tarefa anterior.
- Ei, isso não foi minha culpa! – Erik segurou o braço de Levy, impedindo-a.
A careta de horror de Levy ao ser tocada foi o suficiente para que Erik percebesse que
algo estava errado. Levantando a manga da camisa da maga, ele viu os pulsos dela
arranhados e cortados e diversos hematomas ao longo dos braços que subiam até o
pescoço, onde eles ficavam mais escuros. O lábio inferior dela tinha um corte vertical
ainda bem vermelho e os dedos de suas mãos estavam repletos de marcas.

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- O que foi que aconteceu? – Erik perguntou outra vez, de forma branda.
Levy puxou seu pulso com força para baixo e deu dois passos para longe.
- Não estrague o trabalho que tive e descanse para que os ferimentos se curem. – Ela
mandou, sem explicar.
Um silêncio perpetuou-se entre os dois enquanto comiam os peixes fritos que Levy
havia pescado numa área mais funda do riacho a mais ou menos um quilometro de
distância dali. Erik estava se esforçando para manter-se sentado em frente a tenda,
sentindo as dores que ainda flagelavam seu corpo. Cansado, resolveu quebrar os tabus
estabelecidos ali e pressionar Levy:
- Como foi exatamente que chegamos aqui?
- Nos capturaram e pretendiam nos levar com vida de volta para Fiore. Há algum tipo de
recompensa envolvida, mas... – Levy respondeu, franzindo o cenho e engolindo seco
quando estava prestes a terminar a sentença.
- Mas? – Erik apressou.
- Eu os convenci a nos deixarem em Blisar. – A maga sussurrou dizendo cada palavra
com desdém incalculável.
- Como? – Erik questionou, mesmo imaginando a resposta.
Levy respondeu-o com silêncio. Ela não queria falar disso. Era muito vergonhoso. Erik
sentiu um ódio incontrolável subir por sua nuca e seu rosto ficou quente como brasa. Ele
não percebera, mas seus cabelos cintilavam com chamas azuis enquanto seus olhos
eram iluminados pela magia ancestral da família Sven.
- Agora de nada adianta ficar com raiva. – Levy aconselhou – Essa sou eu. É disso que
vivi até agora. E, além disso, eles deram a palavra deles que nos deixariam vivos... Se
aguentássemos chegar até aqui.
- Como pode confiar em piratas desse jeito? Eles poderiam simplesmente ter te matado
e te jogado ao mar. Bandidos não tem palavra alguma. – Erik protestou, apagando-se
aos poucos.
- Por causa disso. – Levy levantou seu cabelo e virou-se de costas.
Em sua nuca, o símbolo de uma Águia da Neve estava tatuado em vermelho, já bem
desgastado.
- É da guilda dos ladrões. Minha mãe tem parceria de longa data com eles e eu tenho
isso desde que era criança, para evitar que me fizessem muito mal. – Levy explicou,
com um olhar triste.

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- Ótimo presente vindo de uma mãe. Isso praticamente te torna propriedade deles. E eu
sei que eles não fazem favores sem exigir algo em troca. – Erik comentou, com uma
careta de dor quando uma pontada repentina fez seus músculos se contraírem.
- Bem, tanto faz, isso te salvou. – Levy terminou de comer e olhou para o alto – Temos
que ir embora daqui logo, antes que alguém apareça. Descanse para se curar rápido.
- Em que lugar de Blisar estamos? – Erik perguntou.
- Algum lugar no Norte, acho. – Levy opinou.
- Acho que sei onde podemos ir.

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