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Sinopse
***
Recordará depois, com gratidão, o tempo que a mulher perdeu
consigo. Lamentará: “Tivesse-me explicado o perigo que eu corria...”
Eram os ossos, as falangetas dela quem explicava, quem instruía às
pressas a criança, enquanto o grito dos ingleses se tornava cada vez
mais audível. Lillias pensou no grito com que os bêbedos
esconjuravam o pavor dos funerais, pensou em como costumavam
assustá-la quando caíam, meio adormecidos, e ainda tentavam
agarrar as raparigas. Não tinha mais memória do que aquela. E foi
por medo de que a velha lhe batesse que se manteve imóvel sob a
turfa, enquanto se morria em seu redor.
II
Estive no campo da batalha de Culloden em 1999, a meio de
Abril, um dia após as comemorações, quando ainda os ramos de
narcisos, flores da morte, levemente crestados pela brisa, tremiam
junto às pedras lapidares. Velhos americanos percorriam toda a
extensão assinalada, procurando marcas do clã de onde pensavam
descender. Estavam dispostos a fantasiar, a pagar qualquer preço
por um pouco de História, que é aquilo que lhes falta.
É facto que o desastre de Culloden determinou a exportação em
massa dos escoceses para o Novo Mundo. Por certo, alguns
daqueles visitantes sabiam com rigor àquilo que vinham. O tom
geral era cerimonioso, se bem que a cor alegre dos vestidos, a mal
contida felicidade da viagem, denunciassem a origem daqueles
grupos com irremediável crueldade. Eles caminhavam sobre o chão,
buscando o sítio onde homens com um nome igual ao seu tinham
caído e sido trucidados. E o chão, pisado, não lhes respondia. Se
alguma coisa lhes dizia era somente que não se demorassem, e eles
seguiam, excitados pela extensão e pelo frio, na energia dos seus
corpos montanheiros. Sentiam pouco, não sentiam nada.
Estavam vermelhos para as fotografias, ajeitavam as golas dos
blusões, pensando mais nos netos que nos outros, nos que ali
tinham vindo procurar.
Diz-se que é um lugar de desperdício e de tristeza, aquele; e que
o absurdo, que afinal move todas as batalhas, foi levado ao extremo
em Culloden. Custa a compreender que os escoceses tenham
escolhido para campo do recontro esta pastagem pantanosa,
entrecortada por relevos de turfa, construídos para que atrás deles
se abrigassem os rebanhos. A conhecida carga dos guerreiros, que
costumavam investir em bruto, como que hipnotizando o inimigo
com o seu grito e a sua pele pintada, não achou espaço num terreno
assim.
De certo modo, prescindiam de uma arma que sempre dera
provas de eficácia. Os generais que preparavam para a guerra
naturalmente não achavam nos compêndios capítulo nenhum sobre
o pavor que a visão dos “selvagens” provocava. Eles atacavam
desordeiramente, sem formatura, sem limpeza militar. Não
combatiam à maneira dos romanos que, no seu tempo, aliás, tinham
preferido erguer uma muralha para os conter, renunciando a avançar
para norte. Já nessa altura a sua forma de lutar tinha aquele estilo
fora-da-lei, imprevisível, que enervava os soldados regulares a um
tal ponto que eles perdiam a razão.
Não há maneira de explicar Culloden senão com a vontade do
desastre a que uma extrema depressão convida. Diz-se, ainda hoje,
que os guerreiros escoceses estavam a ser usados e sabiam-no.
Charles Stuart, apoiado pelos franceses, como era tradição,
contra os reinantes no trono de Inglaterra, tinha motivações
palacianas e pouca simpatia pelos bárbaros. Fora criado com
melindre principesco durante o doce exílio de seu pai, também ele
pretendente derrotado, mimado pelas cortes inimigas. Dificilmente
confraternizava com aqueles guerreiros coloridos, arruaceiros,
bebedores de uma mistura de uísque e cerveja que acordava a mais
brutal das suas alegrias. O sistema tribal, que em certas ilhas roçava
mesmo o comunitarismo, parecia, aos europeus de Setecentos, um
arcaísmo voluntário, uma insolência. Ainda que o ódio atávico entre
os clãs há muito se tivesse confundido com causas partidárias, pró e
contra uma nação escocesa independente, o seu modo de odiar
continuava a intrigar até aqueles que disso se serviam.
Charles foi belo, ainda que por pouco tempo. O seu retrato,
àquela época, permite-nos ver uma espécie de iluminação que afinal
resultava simplesmente da sua pele de rapazinho quase imberbe.
Falam do seu sucesso entre as mulheres. Mobilizou-as para a
guerra, é certo, com os seus galanteios; mas também homens lhe
cantavam a beleza, ao “Bonnie Prince”, o lindo príncipe, e isto não
teve pouca importância na fatalidade. Tudo aquilo que pudesse ser
cantado submeteria aquelas almas celtas à mais terrível das
dedicações. O bardo e o músico tinham tal prestígio que ninguém os
calava, embora os chefes se lamentassem da impertinência com que
eles se impunham aos ouvidos ensonados, atroando as aldeias
desde a aurora. Contam que o tocador, quando acabava, atirava com
a gaita-de-foles para o chão, dando ao desprezo o puro material,
esse instrumento, literalmente falando, do seu sopro que era onde a
música em verdade se formava. Levava sempre atrás um ajudante
encarregado de a recuperar.
Presidia às batalhas, provocando uma euforia quase alucinada.
Os rapazinhos do seu séquito tremiam, vendo os seus pais e os seus
irmãos mais velhos quase irreconhecíveis, diluídos na massa furiosa
dos guerreiros. E a estridência da música alcançava, como uma coisa
física, os dois lados, batendo contra o espírito dos homens,
chamando o medo ou o entusiasmo, conforme a condição dos que a
ouviam.
***
***
***
Por seis meses errou, de ilha para ilha, sempre escondido pelos
escoceses, que se gabavam de indiferença quanto à soma que pela
sua cabeça era oferecida.
Quando partira para a campanha, ele tinha jurado ao pai que lhe
traria as três coroas, da Escócia, de Inglaterra e da Irlanda, “para as
pôr aos pés de Sua Majestade”. Se não, dizia, se falhasse na
empresa, o velho pretendente só tornava a ver o filho morto no
caixão. Regressou vivo.
E não gostava de lembrar que fora uma mulher quem finalmente
o fizera escapar da tropa inglesa, vestindo-o de criada. Flora
MacDonald obteve do padrasto um passaporte que lhe permitiu
viajar por barco e pôr a salvo o príncipe. A licença tornava-se
extensiva aos seus acompanhantes, um criado, uma moça irlandesa,
Betty Burke, e os seis homens da tripulação. A Betty Burke é o
Stuart disfarçado.
Não obstante havê-la regalado com o seu retrato num pequeno
medalhão, é de pensar que a rapariga lhe inspirava mais acrimónia
do que simpatia. Talvez, enquanto entrava para o barco,
embaraçado no manejo dos saiotes, surpreendesse Flora a
mordiscar o dedo indicador. Isso significaria apreensão, mas Charles
vira-a desviar os olhos e achou que ela lutava contra o riso. Quando
os ingleses acabaram por prendê-la e encarcerá-la em Londres, o
outrora “Bonnie Prince” não levantou um dedo a seu favor.
Flora impressionou os inimigos, com a sua tranquila juventude e
a sua educação.
Foi libertada. Pareceu que acabaria como o imaginário masculino
pedia que acabasse, pois casou-se e teve muitos filhos. A família
emigrou para a América. Foi destino muito comum aos escoceses,
consumada a sua condição de derrotados. Durante a Guerra da
Independência, Flora acompanhou sempre o seu marido, que se
havia tornado general. Quando ele foi preso regressou, a seu
pedido, para a Escócia natal. Os piratas franceses atacaram o barco
em que seguia. Conta a história que Flora se manteve no convés e
tomou parte activa no combate. Desembarcou, por fim, vitoriosa, e
com um braço ao peito. Morreu velha, na casa onde habitava com o
marido, e foi amortalhada no lençol que cobrira Charles Stuart na
noite que ele passou ao seu cuidado. Certamente, o vestidinho de
algodão de Betty Burke pendia já então de uma cadeira e o sono do
príncipe tardara.
Durante o julgamento, ela explicou que ajudara aquele homem
destroçado por pura caridade e que faria exactamente o mesmo a
um inglês. Mas toda a gente sabe que era apenas uma versão que a
sensatez aconselhava.
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Margaret Fraser deixa agora o filho, por quem já nada mais pode
fazer. Deixa pousadas nele as mãos, cortadas pela baioneta do
soldado inglês. Então estende para a filha as mãos de sempre, as
mãos grosseiras mas intactas que Lillias às vezes gosta de agarrar
no escuro. Vai guiá-la para que se afaste ainda mais dali.
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Quando o padre, escoltado por sobrinhos, a foi buscar, Lillias nem
estremeceu. Sentiu na face o pranto da viúva a quem os
sentimentos visitavam de forma arrasadora, à despedida. Ela deitara
à filha um soporífero e tinha à sua conta todo o drama da venda da
criança. Vivia intensamente aquela hora, tanto mais que, no fundo,
suspeitava que a estada de Lillias em sua casa acabaria por trazer
problemas.
***
Era perigoso andar de noite pelas ruas, pois o olhar dos tempos
divisava rebeldes, não amantes, sob as capas. Por isso, os vultos já
se destacavam quando os homens pararam à entrada da casa das
solteiras Connelly e alguns vizinhos assistiram, dos postigos, ao que
não conseguiram entender.
A história que Aileen inventou para a sobrinha parecia mal
urdida. Porém, Fanny fizera certamente as suas rezas e tomou a
menina, e o dinheiro, como uma graça que exigia dela bondade e
pouca veia para perguntas. No entanto, assustou-se quando à luz da
lamparina entreabriu a capa e deu com Lillias.
Estava muito alta para a idade e tinha um ar tão magro e
macilento que facilmente a suporiam prisioneira. A sua transparência
repugnava, como se, ao vê-la, a achassem incapaz de fechar bem as
suas imundícies, os vermes que lhe andavam na barriga, o pus de
alguma chaga nos pulmões. Era preciso um novo movimento, um
reconsiderar, para que os olhos assentassem de novo na criança e
avistassem beleza e desamparo. Fanny pegou em Lillias pela mão.
“Como te chamas?”
— Lillias Fraser — respondeu. Aileen virou-se atónita para o
padre: — Tinha-me dito que ela não falava.
O reverendo Tulloch escondia o rosto para que Fanny não o
conhecesse. Sob aquela surpresa, descobriu-se, mas não deixou de
disfarçar a voz. “A rapariga chama-se MacLean. Lillian MacLean.
É órfã e não fala.”
— Tem a certeza? — perguntou Aileen. Era provável que de
madrugada as fadas se metessem na conversa e provocassem certas
ilusões.
— Não percam os papéis — disse o reverendo. E empurrou os
sobrinhos para a saída. “Pago mais o silêncio do que o feito”,
lembrou, puxando o cachené sobre a cabeça.
Portugal, 1751
I
Lillias temeu terrivelmente o mar. No entanto, não cedeu à
tentação de se livrar do medo por palavras. Estava muito distante já
o dia em que Anne Macintosh lhe dera a ordem de não falar, para
lhe salvar a vida, ao fazê-la passar por inglesa. Mas a boca fechada
defendera-a da feia intimidade das Davidson. Dissera o nome,
aquela madrugada em que o padre a levou para Inverness, e ouvira-
os gritar à sua volta, como se um animal os atacasse. Não lhe fora
difícil regressar ao silêncio a que andava habituada, pois Aileen
Connelly e a sobrinha não queriam perguntar-lhe coisa alguma. Não
se atreviam a pensar que o padre as envolvera numa história negra,
e preferiram mostrar-se afadigadas com os preparativos da viagem.
Acreditavam na mudez da rapariga, o que as poupava a muita
informação.
Davam-na como órfã e criada de sua casa, embora Lillias fosse
tão indolente que se viam obrigadas até mesmo a vesti-la, sob pena
de ela ficar em camisinha todo o dia, aconchegada à protecção do
lume.
No barco, enquanto as Connelly jogavam whist e iam fazendo as
suas amizades, que os balanços tornavam bem mais físicas do que o
pudor, em terra, acataria, Lillias quase não podia ter-se em pé.
Fitava as ondas com extremo horror e contraía os lábios de tal
modo que a serrilha dos dentes os cortava. Parecia uma criança
maltratada, com inchaço e negrões de espancamentos. Fanny
chegou a condoer-se, mas os olhos de Lillias assustavam-na,
cravados nela tão intensamente que se sentia odiada sem razão.
Não soube que aos terrores da menina se juntava o seu rosto de
afogada de onde se suspendiam, mordiscando, peixes de prata que
pareciam filigrana. O grande corpo balançava-se nas águas, redondo
e verde, entre os rasgões da saia. Era preciso um esforço violento
para que ele se endireitasse e encolhesse, para que o gosto a
sangue quente dispersasse os pequenos necrófagos, e Fanny a
estivesse de novo sacudindo, exasperada com o sofrimento que
atravessava os olhos de Lillias. “Que tens tu? É
enjoo? É só enjoo?”, foi perguntando, até que se calou. “Só
temos de a levar e deixar lá”, disse-lhe a tia. “Bem sei que é uma
criança, mas não parece precisar de nós.”
Seria na viagem de regresso que Frances Connelly se afogaria,
por se deixar cair da amurada, a um sacão mais pérfido do mar.
Isso, porém, ninguém sabia ainda, e aqueles dias de navegação
pareceram tão propícios que somente nas orações da noite os
passageiros se lembravam dos perigos de um naufrágio. Era noite
cerrada quando enfim aportaram ao Tejo. Deitada sobre a capa,
ouvindo os remos dos pequenos batéis de encontro ao casco e as
imprecações em língua estranha, Lillias esfregava os olhos, receando
sofrer de alguma espécie de cegueira, pois tanta actividade
pressupunha que as coisas se mostrassem sob a luz. Fanny rugia de
furor contra a paciência da tia, que parecia dormitar. Mas realmente
não desembarcaram. E quando a luz do dia regressou, achavam-se
outra vez longe da costa.
Aileen, temendo os nervos da sobrinha, adiantou-se a conseguir
informações. O capitão estava passando à pressa boletins de saúde,
com a data falsificada para um mês atrás. E o barco rumava ao Sul,
para o porto chamado Saint Tubes. “Mas quanto tempo mais?”,
perguntou Fanny.
“Não muito”, disse Aileen. Porém, os ventos barravam o caminho,
como um touro.
Lillias sentia a frouxidão das águas, aquela espécie de
desassossego, um rastejar de cobra sob os pés.
***
Só pelo fim do dia Fanny veio arrancá-la do chão. Estava feliz e não
admitia que ninguém, nem mesmo Lillias, se alheasse do momento
em que viam o porto ao seu alcance. A perspectiva de voltar a terra
levava toda a gente a comover-se.
Ao largo, sobre barcos que pareciam fazerem um só corpo com
as águas, os pescadores estavam cantando as vésperas. Cantavam
como mortos, abatidos pela paz daquela hora e, ainda que olhassem
para as igrejas, a sua voz caía sobre o mar e ardia levemente, como
um óleo, tocada pelo sol que se enganava e se acercava a receber
aquilo que lhe parecia uma oração pagã.
Estava-se em Abril mas, apesar da luz esplendorosa do
crepúsculo, a negridão das almas aparecia. A imobilidade e a tristeza
empurravam para baixo, para o lodo. Isto viu Lillias, como viu a hera
comendo as pedras de um palácio que, em verdade, só oito anos
mais tarde cairia, partido a malho, como as pernas do seu dono.
Todos os outros, passageiros e marujos, tremiam do desejo de
descer, imaginando as mesas postas, as maçãs doiradas, as selhas
que entornavam água morna. Os pescadores calaram-se e, com
eles, calou-se o vento. Era outra a luta agora, a das pequenas luzes
contra a noite. Os barcos avançavam pelo mar e pareciam fugir da
escuridão, pondo a salvo o clarão das suas tochas.
A gente debruçada na amurada estendia os braços, como a
implorar. “Só poderiam, disse o capitão, dar por finda a viagem de
manhã, após visita das autoridades. Viriam funcionários da
alfândega. E o delegado da Inquisição.”
A palavra voou pelo convés como uma faca que cortasse as
línguas. Ou porque a noite se adensasse, ou pelo medo, os altos
vultos dos britânicos a bordo perdiam de repente o seu volume. As
mulheres tinham frio e Aileen esfregava nervosamente as costas da
sobrinha. Lillias riria se não fosse perceber que havia que passar
mais uma noite nas agonias da ondulação.
E depois o murmúrio começou: “As Bíblias! As Bíblias!”, diziam.
Era preciso que buscassem nas bagagens e escondessem as Bíblias
cujo texto estava não em latim, mas em inglês.
Os dedos cegos empurravam a criança como empurravam tudo à
sua frente. O navio sacudia-se, julgando que o atacavam ratos
aturdidos. As tábuas, descoradas pelo sal, fosforesciam
enganosamente e toda a gente se perdia no caminho.
Ainda que em Portugal os ingleses fossem alvo de má opinião,
tinham tal importância que ninguém os perseguia por antipapistas.
Mas aqueles que chegavam estremeciam como se não houvesse
protecção.
Lillias acocorou-se nos cordames. A febre que saía das pessoas
batia-lhe na testa, entorpecendo-a. O futuro parecia assustador mas
a menina, mesmo assim, adormeceu.
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Talvez que Frances Connelly adivinhasse que não mais tornaria a ver
a Escócia. Para desgosto da tia, não parava de buscar semelhanças
na paisagem. “Deixou os olhos lá”, pensava Aileen. Isso faria com
que não prestasse verdadeira atenção aos pretendentes, caso
viessem a surgir alguns.
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Ela sabia que algo terrível ia acontecer. Mas aceitou que a santa lhe
pedia que a levasse para longe, de maneira que não se trataria de
uma fuga mas de uma espécie de missão sagrada.
Ignorava as horas. Preparou a sua trouxa, adivinhando as coisas,
tacteando debaixo dos lençóis.
Passou pela cozinha onde dormiam algumas velhas sempre
enregeladas. Depois saiu. Guiada pelo cheiro das avencas e pelo
som da água que caía, procurou a pereira onde ainda vira frutos
serôdios e encheu o avental. Um cão ladrou quando ela abriu o
portãozinho que dava para o beco das traseiras.
IV
Lillias começou a caminhar. Seguiu para norte sem que, no
entanto, buscasse direcção. A vista não servia para muito enquanto
a noite não desaparecesse. Ia cosida com os muros, escorregava no
caldo dos detritos, receosa de que os bichos das casas a sentissem e
lhe denunciassem a presença.
Atravessou o lamaçal do Rato. Os aguadeiros dormiam,
resguardados por lonas enceradas.
Marcavam vez perto do chafariz. Eram galegos, dados a sonhar,
por isso facilmente acreditaram que o vulto branco que os fizera
abrir os olhos não tinha consistência material.
Lillias sempre gostara de escutar os visitantes do convento que
contavam episódios de sangue, os muitos perigos que ao abrigo da
noite aconteciam. Emboscadas, punhais e fidalgotes deixados nus, a
soluçar, nalgum recesso, desejando e temendo a madrugada. As
freirinhas esfregavam o nariz, contendo o riso, enquanto ouviam os
relatos que os ingleses, quase todos protestantes, vinham trazer, a
troco de algum mimo. Nas histórias havia uma pragmática. Quem
saía de casa a horas mortas era devidamente castigado. A noite não
servia para os cristãos.
Devia ter-se camuflado, posto aos ombros uma manta cinzenta,
pensou Lillias. Mas não havia nada que pudesse fazer então; e a sua
cabeleira, a sua saia de riscado cor de grão, recolhiam o brilho das
estrelas invulgarmente forte para a época. Porém, ninguém seguiu
no seu encalço. Aquela hora adiantada, os meliantes contavam o
produto dos seus roubos junto aos nichos dos santos que pareciam
tremer de medo sobre a luz das lamparinas.
Lillias foi-se afastando da cidade, seguindo as azinhagas entre as
quintas, a caminho das terras-de-ninguém. Se alguém a visse, o
mais provável era que se benzesse em vez de a assaltar.
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Uma extraordinária solidão ressoava nas salas do palácio. Não por
causa do número restrito dos que haviam ficado, mas porque aquela
transitória multidão nunca deixava o mínimo calor. Eram como
fantasmas, apesar do trabalho que os corpos exigiam. Um sopro os
punha, um sopro os apagava.
***
Seguimos com Tomás, Lillias, Cilicia, que agora sente a falta das
ceroulas, o que quase lhe tolhe o andamento. E, confiando na
destreza do mendigo, descemos uma estreita escadaria, quase sem
luz.
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A senhora Cilicia achou o sítio e a matéria da casa, não a casa.
Ao contrário de muitas, em redor, que conservavam trechos de
paredes e até pedaços de soalho ainda habitável, a dela fora
inteiramente destruída. Estava perto do Tejo, ao lado oeste do
centro de Lisboa, e não escapara, primeiro ao rio, depois às
labaredas. A cinza e um lodo espesso como breu recobriam a pedra
e o carvão. Porém, havia bocados muito limpos, depressões
escavadas por mãos nuas no entulho. Pois, nem que fosse apenas
umas horas antes da forca, eles tinham feito o seu trabalho, os que
viam cair os edifícios e nem tratavam de se proteger, intoxicados
pela ocasião que os chamava a roubar, que se oferecia.
Outra mulher, que não Cilicia, entenderia que aquele abatimento
do seu lar fora causado pela própria fuga. O que sustenta um
interior não é somente a compressão de vigas e argamassa. O ar
expirado, as brasas na lareira, a pele ruborizada, ou pela cólera ou
pela indecência, humores e gases, tudo aquece e dá conforto às
coisas construídas. Por isso é que, no extremo da ruína, ainda o
tecto alberga a sua gente, curvado e carcomido, como as mãos de
um velho a defender a descendência, conforme pode, até cair
também. A senhora Cilicia, porém, nada conseguia torná-la numa ré.
Fugira, aliás, porque voltara cedo da missa matinal. Estava a tirar a
touca quando o chão estalou, literalmente, sob os pés. Não colhera
sequer uma moeda, um castiçal de prata, uma camisa. Se aquele
desprendimento era punido, uma vez mais ficava comprovada a
pequena valia da virtude.
O facto de Cilicia se indignar, em lugar de fazer a contrição, deu-
lhe um assomo de vitalidade.
Trepava para os montículos, chamando o nome dos vizinhos,
numa voz que indiciava genes de peixeira. E, como se o apelo as
revelasse, as pessoas da rua destacavam-se das zonas de cinzento
onde viviam numa espécie de limbo, sem ousarem nem afastar-se
nem entrar em casa. Eram os sofredores das famílias, os que, por
choque ou por temperamento, não tinham jeito para sobreviver. Para
além dos muitos que desapareceram, ou esmagados por escombros,
ou fugidos, não contando, tão-pouco com os homens recrutados, à
força, para as obras, é bem de ver que os feridos mais ligeiros e as
mulheres com pequena descendência haviam recolhido o que
podiam e tentado juntar-se à multidão. Não se sabia como, mas
havia melancias à venda em toda a parte.
Com sorte, algumas ainda acudiriam a fidalgas que haviam
tresloucado e andavam pelas ruas, coxeando, ou iriam levar bilhas
com água a quem tivesse meios de a pagar. O certo é que ninguém
no seu juízo, salvo se paralítico, que os cegos não deixariam de se
orientar, ninguém ficou sentado na soleira. Aliás, os abalos
sucediam-se e aquilo que não caíra ao primeiro dia bem poderia
desabar ao sexto ou décimo.
É de reconhecer que houve momentos de inesperada
generosidade, estranhos que se ajudavam sem que algum
pensamento interesseiro os corrompesse. Mas, a julgar pela rua de
Cilicia, o abandono táctico dos fracos, tão praticado pelos animais,
tivera a sua, e não pequena, parte. Os que, àquele chamamento, se
acercaram, velhos ou estropiados, sem contar uma jovem mulher
embranquecida, levaram tempo para se lembrarem de que estavam
a ver uma vizinha. Olhavam, com a boca entreaberta, inexpressivos
como os imbecis. E o que os fez finalmente reagir foi o que havia de
intrigante naquele grupo. O rosto, que a memória pouco a pouco
lhes ia colocando na janela de um andar que deixara de existir,
aparecia enquadrado por dois outros de tal modo suspeitos que o
receio, em vez de atenuado por Cilicia, a tornava também
assustadora.
“Estes são meus criados”, explicou ela. Mas temia que a falta das
ceroulas sob a saia fosse notada e lhes contasse uma outra história.
Além disso, os cabelos de Tomás, de tão compridos, não se
confundiam com o tamanho normal nos servidores. Ainda que,
depois do terramoto, ninguém pensasse em colocar postiços, o
passado de um homem estava ali, vicioso ou respeitável, na cabeça.
Ele, tentando dar mostras de humildade, curvava-se, inclinado sobre
a ama. E não deixava de parecer que trataria de estrangulá-la, mal
se achassem sós.
“Cuidámos que estaria além debaixo”, disse um dos velhos. Não
erguia os olhos e apontava com o queixo para as ruínas. Se Cilicia
sabia quem ele era, isso não lhe passava para as maneiras. Mostrava
uma frieza de juíza. A sua boca, ainda perfeita, ressequira, pedindo
economia de palavras.
“São Paulo ardeu também?” “Isso não sei”, disse-lhe o mesmo
velho. Os outros já se sentavam de novo sobre as pedras,
lamentando aquele gasto de energia. Não fora a única a voltar,
Cilicia, e por aquela altura eles deveriam ter aprendido a não se
levantar.
Vizinhos que subiam os degraus e entravam nas cozinhas uns
dos outros, que iam aos quartos dos doentes levar caldos e
emprestavam criados para as festas, tinham agora um tal carrego de
ódio que se encaravam como um perigo mútuo.
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Lisboa ia-se erguendo devagar, tão devagar que vinte anos depois
ainda muito relato de viajante dizia haver entulho em toda a parte.
Também a vida de Cilicia se arranjava, peça por peça, e,
comparando, velozmente.
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Lillias gritou e o padre olhou para ela.
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Lillias prendeu-se a Jayme assim que o viu. Ele era, com efeito,
muito belo, como que amado pela claridade que lhe dourava os
olhos e os cabelos. Não se parecia com o pai nem com o irmão,
baixos, escuros e de grandes bocas, directamente consanguíneos da
mourama. Da senhora Cilicia já sabemos que ele poderia herdar
boas feições, porém nenhuma traça de nobreza. Numa observação
mais demorada, conseguiria imaginar-se a mãe iluminada pelo
interior e muito levantada no seu porte, como quem descendesse
dos cruzados que se tinham ficado por Lisboa.
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Chovia já, naquela madrugada, mas Tomás fez questão de vir à rua,
com um pano oleado sobre o coto. Era preciso que a cerimónia se
cumprisse, que todos fossem testemunhas do abraço pelo qual o
poder se transmitia de homem a homem. A senhora Cilicia soluçava
e Ana agitava as mãos, lutando contra as emoções, como se luta
contra insectos. O recoveiro carregava a mula, Jayme pôs o tricórnio
na cabeça. Escorria-lhe água pela cara, mas os olhos mostravam-se
irritados e enxutos. Se perguntou por Lillias, foi com voz tão
apagada que ninguém ouviu.
***
Cilicia conservou a rapariga como uma corda que prendesse o filho e
o trouxesse de volta a qualquer hora. Sempre lhe atribuiu esse
poder e nunca suspeitou do verdadeiro que, aliás, de poder bem
pouco tinha.
***
***
Londres enviou Lord Tyrawley para a chefia directa dos ingleses. Ele
conhecia bem este país, onde já tinha estado duas vezes,
desempenhando cargos diplomáticos.
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“É preciso que ele venha e que aqui fique”, dizia para consigo.
Nem rezava. As ausências do filho não deixaram que ela lhe
acompanhasse o crescimento e, enfim, olhasse e visse um homem
tão alheio que julgaria nunca o ter parido. Guardava o instinto de
amamentadora, confiando somente nela própria para manter com
vida a sua cria. Escreveu, chamando-o com lamentações. Receava
que a guerra o alcançasse, estando mais perto dele do que o seu
colo. E, na sua impaciência, que a velhice, longe de moderar,
tornava feia, fazendo-a espumejar e descompor-se, decidiu que não
ia esperar mais.
Viu aparecer outra manhã e indignou-se pelas horas de insónia
que sofrera. Parecia-lhe que o mundo empedernira e que nada o
faria comover. Teria de travar um corpo-a-corpo para que Jayme
regressasse a casa. “Vou eu por ele”, disse. E levantou-se. Gritou
alegremente, de maneira que as raparigas a julgaram louca.
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Lillias entrou na sala baixa onde o lajedo mantinha um simulacro de
frescura. O sol entrava pelas frestas da janela, cortando o ar. De
modo que a princípio, entre as duas mulheres e o coronel, se
atravessava um ferro incandescente. MacLean mandou chamar o seu
intérprete, antevendo um diálogo intrincado.
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Nessa guerra que não acontecia e em que os ingleses os faziam
comportar-se como os efeminados dos salões, vestindo-se a preceito
e chapinhando em água fria assim que despertavam, o
aborrecimento regressava. No entanto, eles olhavam para cima e
avistavam Lillias à varanda. Vestia-se de escuro, pelo respeito, mas
isso apenas dava mais fulgor aos seus pedaços de ouro a
descoberto. Estava, enfim, arrumada no seu sítio, e poderiam
mesmo pensar nela na solidão das suas camaratas, quando todas as
vozes se calavam, ou evocar a sua imagem no momento em que
descarregavam no bordel. Sempre o faziam com as mulheres dos
superiores.
***
***
***
Toda a família de Donald Fraser fora dada por extinta no final das
represálias aos vencidos de Culloden. Thomas morrera ainda na
batalha, assim como o seu filho e outros parentes. Se conseguiu
pensar sensatamente no reencontro com o filho de Lord Lovat, o
que fugira quando ele o tinha por refém em Inverness, dando
motivo de risada aos jacobitas, nunca a mente de Loudon aceitou
recordar Donald Fraser, nem em sonhos, nem no mais sanguinário
pesadelo. Se a fuga de Inverness o humilhara a ponto de andar,
quase vinte anos decorridos, a discutir com as suas próprias mãos, o
episódio de Moy Hall, se o não tomasse imediatamente inacessível,
tê-lo-Ía matado de rancor. Menos de meia dúzia de lacaios, sob a
perícia de Donald Fraser, o ferreiro de Lady Macintosh, tinham
levado ao pânico o exército de muitos homens que Lord Loudon
comandava. Muitos fugiram na manhã seguinte.
Bateu as palmas. Era ao fim da tarde, uma tarde tão curta que,
no frio, certas coisas nem tinham despertado. Toda a maldade do
Inverno a assaltou naqueles minutos de silêncio. Certamente, a
vizinhança espreitaria nos postigos, sem a reconhecer. Ela insistiu.
Ana, de dentro, perguntou-lhe o nome. Depois disse-lhe, baixo: “Vai-
te embora.”
Esperava, talvez, uma palavra, um ai que Lillias não pronunciou.
Então, abriu somente um fio de porta. O rosto, reduzido a uma
estreita nesga na escuridão, mostrava logo a palidez, toda a cautela
de uma velha rapariga. “Andam atrás de ti. Já cá vieram.”
— Quem? — perguntava Lillias.
— Não sei. Era por ordem de um coronel escocês. Ana acabou
por se sentir desafiada pelo silêncio mortal da visitante. Escancarou
a entrada para poder pôr a cabeça toda para fora, mas viu somente
a sombra de uma saia a faiscar, dobrando o fim da rua.
O sangue que faltara apareceu, encharcando-lhe as pernas de
repente. Ela encostou-se sob um lampião, junto de uns muros altos.
O crepúsculo enxotava as pessoas para casa e o que parecia um
canto tranquilo brevemente se encheu de transeuntes. Alguns
olharam para a rapariga como para uma produção das trevas, fosse
mulher perdida ou animal. Logo depois, uma mulher gritou, vendo-a
perder as forças que a sustinham e ajoelhar sobre o seu próprio
escorrimento.
XVIII
A mulher riu. Tinha um tão claro riso que Lillias julgou, por um
momento, achar-se rodeada de crianças. No entanto, apesar do seu
cabelo, ainda muito escuro, e do seu rosto, liso e moreno, onde
brilhava a leve sugestão de emulsões orientais, vinha dela uma
esplêndida velhice. Atravessara o tempo e convencera-o a separar-se
dela para sempre. Olhava para Lillias com firmeza, como quem dá o
último retoque numa obra que honrou a expectativa.
O quarto era pequeno e abafado, de tectos muito baixos, em
abóbada. A luz esvoaçava entre as paredes, desenhando arabescos
com as asas. Lillias soergueu-se do enxergão, levantada pelos olhos
da mulher. Alguém tirara a sua roupa e lhe vestira uma camisa
esfiapada das lavagens.
A mulher disse: — Comes e descansas, porque essa fuga não
acaba aqui. E levantou-se. Usava trapos grossos e sobrepostos. Isso
não lhe dava o ar de uma mendiga. Olhava o lume. Lillias viu o sinal
manchar-lhe a face, que era a face direita, a do poder.
— Como te chamas?
— Lillias Fraser, madam.
A mulher acercou-se novamente. A sua voz cantada enchia o ar
como se ressoasse numa igreja.
“Perdeste muito sangue. Amanhã vejo se a criança está viva na
barriga.”
Lillias extinguia dentro de si mesma a vigilância de que precisara
para fazer o caminho até ali. E aquela fraqueza que a tomava, em
vez de a assustar, trazia o embalo da sua infância ao colo de
Margaret. “Que nome tem vossemecê?”
— Blimunda — disse a mulher. — Blimunda Sete-Luas.
— É um bonito nome — disse Lillias. Quis pegar-lhe na mão,
porém Blimunda já não estava a seu lado.
O próprio fogo se tornava invisível, devagar.
***
Lillias sentiu os olhos de Blimunda e acordou. Ela sorria-lhe outra
vez. “A criança está bem. De hoje em diante, eu tomo conta de
vocês as duas.”