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A Autora

Poeta, dramaturga, tradutora, autora de 11 romances, Hélia Correia


(1949) nasceu em Lisboa, é licenciada em Filologia Românica e tem
pós-graduação em Teatro Clássico. Em 2013 venceu o Prêmio
Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra e o Prêmio Literário Correntes
d'Escritas/Casino da Póvoa por A Terceira Miséria (2012), uma
homenagem à Grécia.

Sinopse

Lillias vê a morte. Por isso se cala. A mudez torna-a ainda mais


estranha, não fossem já estranhos os seus olhos amarelos. A
primeira visão aconteceu em 1746, na Escócia, pouco antes do pai
ser massacrado pelas tropas inglesas. Depois desse dia o mundo
deixou de ser um lugar tranquilo. Em fuga, chega a Lisboa em 1755,
ano do terramoto que destrói quase toda a cidade. Ela viu-o antes
do tempo. Mas quem acreditaria? Talvez Blimunda...
Escócia, 1746
I
Lillias salvou-se da carnificina porque, seis horas antes da
batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais
tarde. Atravessado pelas baionetas, de modo que os buracos na
barriga vertiam sangue, bílis e excrementos. Tom Fraser estava em
pé, tapando a entrada, espalhando como sempre a escuridão. Ela
pensou que aquilo que tanto o feria era o surpreendê-la adormecida
na cama de madeira, que se usava somente em três momentos de
uma vida: parir ou ser parido, acasalar pela primeira vez e falecer. O
pai mostrava o seu desgosto abrindo o corpo, falando pelas fezes
arruivadas.
Lillias queria esconder-se, mas sabia que um pecado de filha
nunca mais desaparecia da visão de um pai. Arremeteu-lhe contra as
pernas e passou pelo meio delas, tão pequena e azulada que isso
lhe dava qualidades de animal. A sua camisinha esvoaçava como
penugem ao sabor da ventania, enquanto ela corria e se afastava
cada vez mais, sem se dar conta de que, em verdade, ainda nada
sucedera.
Acabaria por acostumar-se e quando, anos depois, em Portugal,
viu abater-se uma cidade inteira, levantou-se em silêncio do
enxergão, fechou a trouxa e foi dormir para o jardim, sem avisar
ninguém daquilo que iria passar-se mais à frente, de manhã. Pensou
que, se falasse, criaria um estado tal de confusão que os acidentes
começariam a acontecer antes de o terramoto os provocar. Estava,
naquela altura, com quinze anos, mas aprendera a ser tão avisada
que a precaução já lhe cortava o meio da testa com vincos próprios
da maturidade.
Mas, por agora, vemo-la fugir na sua fuga de criança, destinada
a fazer-se sentir naqueles que devem estar, naquele momento, a
perdoar-lhe. Os seus pequenos pés irão batendo ao mesmo tempo
contra o peito da família, e aqueles que a amam já estarão
sangrando na pena de a buscar, tão esfacelados pelas neves da
encosta que hão-de gritar, pedindo o seu perdão. Lillias não sabe
exactamente onde se encontra, pisa ao acaso o gelo e os rebentos.
O vento norte investe contra os troncos e atravessa a sua camisinha,
fura-lhe a pele, como essa baioneta que vai abrir o estômago do pai.
O mês de Abril, que vai a meio, torna o frio um pouco mais difícil
de entender, é um frio de oiro, e as novas criaturas deixam-se
armadilhar pela beleza, afastam-se das mães, entontecidas com a
poalha que sobre elas cai. Esta nossa menina, Lillias Fraser, começa
aqui a sua dança do pavor, dá voltas cegas em redor das árvores,
chora em silêncio porque não se atreve a misturar a voz com a
floresta. Esquece agora a razão por que fugiu, aleija-se nas pedras,
nas raízes, fere-se, ao meio-dia, como quem atravessasse o monte
em plena noite. Por isso, quando cai e se apercebe de que o declive
a vai levando para baixo, ela produz a sua própria escuridão,
fechando os olhos, quase sem sentidos. Parece que aquele chão se
fartou dela, de observar o medo humano uma manhã inteira, porque
a empurra como se ondulasse, ferindo-a um pouco mais, mas
devolvendo-a à estrada, em baixo. E pensa que a salvou.
Há, com efeito, uma mulher que vai passando e que recolhe
Lillias nos braços. E, no entanto, o som do sofrimento ainda paira
sobre o ar, incomodando, e a natureza vê que não se trata apenas
da criança tresmalhada mas que, a nordeste, para além do lago
Ness, se mata e morre, tão intensamente como è costume de
qualquer batalha, mas com inusitada rapidez. Começa ali um fim que
há-de atingir quem se julgava à margem dessa história, como Lillias,
e o monte onde subiu, que se tornará pasto de carneiros e perderá
os sentimentos e as trevas.
A mulher a quem Lillias foi entregue não tem força sequer para
lhe pegar. Sacode-a contra a estrada, de tal modo que as pedras
picam o pequeno corpo e a criança reage. Esfrega os olhos, ergue-
se e agarra a saia à sua frente. Todo o seu peso de pessoa socorrida
se prende ao pano descorado e quase o rasga, de modo que a
mulher a esbofeteia. “Larga”, diz ela. Lillias lembra-se das bruxas
que são assim, de preto e enrugadas, e então estremece. E fica a
estremecer, de medo e frio, na sua camisinha, até que a velha tira
um biscoito da algibeira e lho oferece. Prestou pouca atenção à
rapariga, estica o pescoço e como que fareja, com o grande nariz.
Seja o que for que ela pergunta para o ar, parece achar resposta em
Lillias. “De quem és filha?” “Do Tom Fraser”, diz.
“Deus tenha piedade”, exclama a velha. E puxa pelo braço da
criança, tira-a da estrada, sem ligar aos seus queixumes. Crava os
dedos a fundo naquele pulso, pisa a folhagem sem olhar para trás,
veloz, veloz de mais para a sua idade. Como se só o braço lhe
importasse. O resto da criança vai batendo contra as raízes, contra
os espinheiros.
***

Lillias chora, encostada à chaminé. A velha deu-lhe pão e leite, mas


não deixa mais do que um ínfimo torrão de turfa aceso. Chora
também, caem-lhe as lágrimas nas rugas, mas ela limpa-as como se
quisesse livrar-se apenas duma comichão. Incomodam-na as
lágrimas e a criança, e ela dá pequenos pontapés contra o pano da
saia. Escuta, entreabre de vez em quando a porta do casebre, ao
engano do vento que parece trazer o som dos cascos de um cavalo.
Lillias não sabe como vai fazer para regressar a casa, ficou presa
pela ignorância do caminho. O seu pequeno corpo, alimentado,
reaquecido sob dura lã, depressa esquece a provação do dia.

As mãos da velha abanam-na, sem que ela consiga perceber


onde se encontra. Na escuridão, o vulto acocorado que a sacode e
murmura ao seu ouvido tem um efeito tão assustador que as
palavras embatem no seu cérebro como numa armadura. E só
depois, muito depois, quando já está sozinha, Lillias entende a
intenção dessa mulher. “Não te mexas, não fales. Não fales”, repete.
E a criança encolhe-se de horror, obedecendo às instruções, sem
querer. A mulher puxa a manta para a cobrir e deita-lhe os torrões
de turfa em cima. Ela resiste e a velha bate-lhe outra vez. Lillias
sente no rosto, na cabeça, os nós daqueles dedos que a empurram
desesperadamente para o chão.

***
Recordará depois, com gratidão, o tempo que a mulher perdeu
consigo. Lamentará: “Tivesse-me explicado o perigo que eu corria...”
Eram os ossos, as falangetas dela quem explicava, quem instruía às
pressas a criança, enquanto o grito dos ingleses se tornava cada vez
mais audível. Lillias pensou no grito com que os bêbedos
esconjuravam o pavor dos funerais, pensou em como costumavam
assustá-la quando caíam, meio adormecidos, e ainda tentavam
agarrar as raparigas. Não tinha mais memória do que aquela. E foi
por medo de que a velha lhe batesse que se manteve imóvel sob a
turfa, enquanto se morria em seu redor.
II
Estive no campo da batalha de Culloden em 1999, a meio de
Abril, um dia após as comemorações, quando ainda os ramos de
narcisos, flores da morte, levemente crestados pela brisa, tremiam
junto às pedras lapidares. Velhos americanos percorriam toda a
extensão assinalada, procurando marcas do clã de onde pensavam
descender. Estavam dispostos a fantasiar, a pagar qualquer preço
por um pouco de História, que é aquilo que lhes falta.
É facto que o desastre de Culloden determinou a exportação em
massa dos escoceses para o Novo Mundo. Por certo, alguns
daqueles visitantes sabiam com rigor àquilo que vinham. O tom
geral era cerimonioso, se bem que a cor alegre dos vestidos, a mal
contida felicidade da viagem, denunciassem a origem daqueles
grupos com irremediável crueldade. Eles caminhavam sobre o chão,
buscando o sítio onde homens com um nome igual ao seu tinham
caído e sido trucidados. E o chão, pisado, não lhes respondia. Se
alguma coisa lhes dizia era somente que não se demorassem, e eles
seguiam, excitados pela extensão e pelo frio, na energia dos seus
corpos montanheiros. Sentiam pouco, não sentiam nada.
Estavam vermelhos para as fotografias, ajeitavam as golas dos
blusões, pensando mais nos netos que nos outros, nos que ali
tinham vindo procurar.
Diz-se que é um lugar de desperdício e de tristeza, aquele; e que
o absurdo, que afinal move todas as batalhas, foi levado ao extremo
em Culloden. Custa a compreender que os escoceses tenham
escolhido para campo do recontro esta pastagem pantanosa,
entrecortada por relevos de turfa, construídos para que atrás deles
se abrigassem os rebanhos. A conhecida carga dos guerreiros, que
costumavam investir em bruto, como que hipnotizando o inimigo
com o seu grito e a sua pele pintada, não achou espaço num terreno
assim.
De certo modo, prescindiam de uma arma que sempre dera
provas de eficácia. Os generais que preparavam para a guerra
naturalmente não achavam nos compêndios capítulo nenhum sobre
o pavor que a visão dos “selvagens” provocava. Eles atacavam
desordeiramente, sem formatura, sem limpeza militar. Não
combatiam à maneira dos romanos que, no seu tempo, aliás, tinham
preferido erguer uma muralha para os conter, renunciando a avançar
para norte. Já nessa altura a sua forma de lutar tinha aquele estilo
fora-da-lei, imprevisível, que enervava os soldados regulares a um
tal ponto que eles perdiam a razão.
Não há maneira de explicar Culloden senão com a vontade do
desastre a que uma extrema depressão convida. Diz-se, ainda hoje,
que os guerreiros escoceses estavam a ser usados e sabiam-no.
Charles Stuart, apoiado pelos franceses, como era tradição,
contra os reinantes no trono de Inglaterra, tinha motivações
palacianas e pouca simpatia pelos bárbaros. Fora criado com
melindre principesco durante o doce exílio de seu pai, também ele
pretendente derrotado, mimado pelas cortes inimigas. Dificilmente
confraternizava com aqueles guerreiros coloridos, arruaceiros,
bebedores de uma mistura de uísque e cerveja que acordava a mais
brutal das suas alegrias. O sistema tribal, que em certas ilhas roçava
mesmo o comunitarismo, parecia, aos europeus de Setecentos, um
arcaísmo voluntário, uma insolência. Ainda que o ódio atávico entre
os clãs há muito se tivesse confundido com causas partidárias, pró e
contra uma nação escocesa independente, o seu modo de odiar
continuava a intrigar até aqueles que disso se serviam.
Charles foi belo, ainda que por pouco tempo. O seu retrato,
àquela época, permite-nos ver uma espécie de iluminação que afinal
resultava simplesmente da sua pele de rapazinho quase imberbe.
Falam do seu sucesso entre as mulheres. Mobilizou-as para a
guerra, é certo, com os seus galanteios; mas também homens lhe
cantavam a beleza, ao “Bonnie Prince”, o lindo príncipe, e isto não
teve pouca importância na fatalidade. Tudo aquilo que pudesse ser
cantado submeteria aquelas almas celtas à mais terrível das
dedicações. O bardo e o músico tinham tal prestígio que ninguém os
calava, embora os chefes se lamentassem da impertinência com que
eles se impunham aos ouvidos ensonados, atroando as aldeias
desde a aurora. Contam que o tocador, quando acabava, atirava com
a gaita-de-foles para o chão, dando ao desprezo o puro material,
esse instrumento, literalmente falando, do seu sopro que era onde a
música em verdade se formava. Levava sempre atrás um ajudante
encarregado de a recuperar.
Presidia às batalhas, provocando uma euforia quase alucinada.
Os rapazinhos do seu séquito tremiam, vendo os seus pais e os seus
irmãos mais velhos quase irreconhecíveis, diluídos na massa furiosa
dos guerreiros. E a estridência da música alcançava, como uma coisa
física, os dois lados, batendo contra o espírito dos homens,
chamando o medo ou o entusiasmo, conforme a condição dos que a
ouviam.

***

Antes do Inverno, os escoceses de Charles Stuart haviam-se atrevido


a avançar por dentro de Inglaterra. Foi uma marcha triunfal para sul.
Pouco faltou para que caíssem sobre Londres, desviando o sentido
da História a seu favor. No entanto, voltaram para trás. Tinham
saudades, é o que se diz.

Corria neles, é certo, sangue viquingue. Porém, ao que parece, o


movimento que empurra os homens para a conquista, para fora do
seu chão, incomodava-os. Não encontravam nele qualquer sentido.
Além do mais, podiam perceber, entre as altas patentes, certas
sombras, certo desviar de olhos que os levavam a dormir pouco, a
não dormir, desconfiados. Os generais da causa Stuart intrigavam,
alguns travavam mesmo com os ingleses conversações secretas,
como é praxe de qualquer guerra entre civilizados. Só os ingénuos, e
Deus sabe quão grande era a ingenuidade dos escoceses,
entenderiam estas diligências como traição. Não se atraiçoa na
política, só se atraiçoa nos romances de aventuras.
Aliás, esta guerra é toda ela um terreno propício à literatura.
Ainda hoje as crianças escocesas aprendem as baladas de Culloden
com aquela emoção pelos justiceiros que é própria das leituras
infantis. Mas nasceram depois de tudo aquilo, muito depois. Podem
olhar para trás e então vêem como tudo acabou. São exigentes com
os finais que lhes oferecem para as coisas e este está longe de as
satisfazer.
Há na internet um site sobre Culloden em que se apela aos pais
para que vigiem os seus filhos menores nessa consulta, já que
contém relatos de violência. Sabendo toda a gente que as crianças
acedem onde querem, quando querem, que sentido acharemos
nesse aviso se não o declarar-se que o assunto ainda é matéria
muito combustível? Durante o crescimento, há um instante em que o
adolescente arruma as lendas que o foram educando na infância. E
há depois o instante em que transpõe o portão sem regresso que o
conduz para o terreno da maturidade. Entre esses dois momentos,
fica o espaço em que tudo é vivido brutalmente, com uma
intensidade que parece mais de ordem química que sentimental.

***

Eu bem os vi, no dia em que lá fui. Sentime exausta por andar de


pedra em pedra sem partilhar a alegria americana. Acho que o
alarme que corria o campo era audível a gente como eu, puros
visitantes que não iam à espera de o ouvir. Por muito fundas que
tivessem as raízes, na formação das ervas não havia um átomo do
sangue derramado. Passara muito tempo. E, no entanto, alguma
coisa que rangia, um desespero, cortava o ar e cintilava à luz de
Abril.

Refugiei-me na cafetaria do pequeno museu. Fiquei virada para a


entrada principal. Então, vi-os chegar. Vi aquele bando de jovens
montanheses. Caminhavam em direcção ao sítio de batalha com tal
furor que não me admiraria se de repente levantassem os punhais.
Vinham trajados rigorosamente, com aqueles mantos coloridos que
também acharam fim com a derrota em Culloden. Tudo o que desse
identidade aos escoceses veio a ser proibido, sob pena de
expatriação, prisão ou morte. Talvez por isso o próprio tecido que os
cobria parecia carregado de intenções.
Nem mesmo a sua extrema juventude dava impressão de
especial beleza. Mas toda a gente se chegou para os lados para que
eles avançassem. Por momentos, pensei que isso não era
necessário, pois visitantes e guerreiros caberiam no mesmo espaço
exactamente ao mesmo tempo, já que os segundos não passavam
de visões.
Porém, ao levantar-me para os seguir, vi como caminhavam
apoiados no mecanismo dos seus músculos, batendo fortemente no
chão a cada passo. O ar cedia à sua volta, recolhia pedaços dos seus
cheiros masculinos, do seu resfolegar, e recompunha-se, fechava-se
de novo por trás deles, levemente alterado, porque nada, ninguém
pode cruzar-se com tal raiva e querer ficar exactamente como era.
Talvez o impulso que os tornava intimidantes se devesse ao
atraso. As cerimónias haviam decorrido um dia antes. Talvez eles
fossem simplesmente hostis por natural exibição da idade, mas
aquele traje e aquele lugar cobriam a sua hostilidade de sentido.
Ignoraram o balcão onde deviam ter comprado os bilhetes e o facto
é que os funcionários os olharam com total indiferença, como cegos.
Ainda que eu tivesse conseguido vencer a timidez e aproximar-
me, nunca franquearia essa barreira, essa espécie de fosso
incendiado dentro do qual eles se iam deslocando. Eram uns cinco
ou seis mas, ao saírem para a claridade do meio-dia, faziam sombra
como um temporal. Desembocavam sobre Culloden e, se em algum
momento aqueles campos se recordaram da batalha, foi então.
Deixei que entre eles e eu se interpusesse uma distância de
delicadeza e apressei-me depois no seu encalço. O vento e o sol
bateram-me na cara e eu defendi-me. Nunca mais os vi e, no
entanto, era impossível que eles tivessem, naqueles segundos,
alcançado o horizonte.

***

Os escoceses não tiveram, já se sabe, em grande conta o jovem


Charles Stuart. Mas, se os dados do jogo estavam postos na mão do
príncipe, o que haviam de fazer? Alguns relatos de sobreviventes,
poucos, que poucos não morreram em Culloden, evocam a imagem
do rapaz rodopiando no cavalo branco. O cheiro a perdição unia os
dois. A lenda diz que o príncipe se empenhou no corpo-a-corpo, a
ponto de ficar ensurdecido para os pedidos de prudência; que,
finalmente, uns irlandeses o arrancaram, como se arranca alguém
enlouquecido, da luta que o cobriu de sangue e pó. Alguns relatos
contam que chorava.

Por seis meses errou, de ilha para ilha, sempre escondido pelos
escoceses, que se gabavam de indiferença quanto à soma que pela
sua cabeça era oferecida.
Quando partira para a campanha, ele tinha jurado ao pai que lhe
traria as três coroas, da Escócia, de Inglaterra e da Irlanda, “para as
pôr aos pés de Sua Majestade”. Se não, dizia, se falhasse na
empresa, o velho pretendente só tornava a ver o filho morto no
caixão. Regressou vivo.
E não gostava de lembrar que fora uma mulher quem finalmente
o fizera escapar da tropa inglesa, vestindo-o de criada. Flora
MacDonald obteve do padrasto um passaporte que lhe permitiu
viajar por barco e pôr a salvo o príncipe. A licença tornava-se
extensiva aos seus acompanhantes, um criado, uma moça irlandesa,
Betty Burke, e os seis homens da tripulação. A Betty Burke é o
Stuart disfarçado.
Não obstante havê-la regalado com o seu retrato num pequeno
medalhão, é de pensar que a rapariga lhe inspirava mais acrimónia
do que simpatia. Talvez, enquanto entrava para o barco,
embaraçado no manejo dos saiotes, surpreendesse Flora a
mordiscar o dedo indicador. Isso significaria apreensão, mas Charles
vira-a desviar os olhos e achou que ela lutava contra o riso. Quando
os ingleses acabaram por prendê-la e encarcerá-la em Londres, o
outrora “Bonnie Prince” não levantou um dedo a seu favor.
Flora impressionou os inimigos, com a sua tranquila juventude e
a sua educação.
Foi libertada. Pareceu que acabaria como o imaginário masculino
pedia que acabasse, pois casou-se e teve muitos filhos. A família
emigrou para a América. Foi destino muito comum aos escoceses,
consumada a sua condição de derrotados. Durante a Guerra da
Independência, Flora acompanhou sempre o seu marido, que se
havia tornado general. Quando ele foi preso regressou, a seu
pedido, para a Escócia natal. Os piratas franceses atacaram o barco
em que seguia. Conta a história que Flora se manteve no convés e
tomou parte activa no combate. Desembarcou, por fim, vitoriosa, e
com um braço ao peito. Morreu velha, na casa onde habitava com o
marido, e foi amortalhada no lençol que cobrira Charles Stuart na
noite que ele passou ao seu cuidado. Certamente, o vestidinho de
algodão de Betty Burke pendia já então de uma cadeira e o sono do
príncipe tardara.
Durante o julgamento, ela explicou que ajudara aquele homem
destroçado por pura caridade e que faria exactamente o mesmo a
um inglês. Mas toda a gente sabe que era apenas uma versão que a
sensatez aconselhava.
***

Charles fez-se mais vezes retratar, ao longo do seu tempo, e não


devia. Vê-se que tudo o tinha abandonado, como se o jovem no
cavalo branco fosse uma graça que se retirou.

E, de qualquer maneira, dá ideia de que a beleza que pousou no


jovem príncipe e que levou os escoceses para a guerra não existia
na realidade senão como um produto do momento, um pó doirado
que caía sobre os olhos e provocava um encanto na visão. Porque,
afinal, já nesse entardecer se viu também a fealdade da paisagem, o
seu vermelho, a sua boca aberta. O crocitar dos corvos que
escavavam a cinza das aldeias embatia de monte em monte, ele
próprio tresloucado.
Claro que um estado de paixão como o que liga os celtas aos
espíritos do berço induz em erro. Se eles olhassem friamente, talvez
tivessem divisado a tempo os defeitos de um rosto e de uma aliança.
O senhor Horace Mann, encarregado de negócios ingleses em
Florença, escreveu ao duque de Newcastle quando Charles começou
a merecer-lhes vigilância, o que foi cedo, pois que logo aos catorze
anos se distinguiu num dos ataques a Gaeta. Na sua carta, fala de
um rapaz mal conformado de ossatura e com os lábios já descaídos
por ressentimento, da sua pele anémica e sem brilho. É como se
dissesse para casa que daquele Stuart não viria perigo.
Dado ser visto como a causa imediata para a tremenda assolação
da Escócia, Charles não tem direito a boa história e contam dele que
deu em bruto e bêbedo, o que, aliás, os retratos corroboram. Quase
tomamos por descaramento a intensidade com que envelheceu,
Nada parece haver do “Bonnie Prince”
naquela carne purulenta e flácida. É como se existisse uma moral
que o obrigasse a entregar o rosto antigo, já que não fora digno de
o usar. Mas esse rosto estava mais colado e fez mais sangue do que
conviria ao papel de vilão nesta tragédia.
É certo que ficou tão intratável que a amante lhe fugiu, levando a
filha; Miss Walkenshaw não se livrou da fama de o espiar em favor
do rei inglês.
Fizeram-no os franceses casar porque, ainda que o tenham
desertado ao sabor dos interesses do momento, queriam dispor de
um descendente Stuart como reserva nas manobras europeias.
Pagavam-lhe para isso e ele aceitou, porque se achava à beira da
ruína. Afinal, a mulher era a bonita e letrada princesa de Stolberg.
Anos volvidos, ela conheceu Alfieri, o poeta. Em plena luz do dia
começaram a viver juntos, num entendimento a que nem mesmo a
morte pôs final. Parece que ninguém a censurou por aquela ousadia.
O próprio irmão de Charles, Henry de York, que fora feito cardeal em
Roma, apoiou a cunhada sem reservas.
Quando se ouve isto, pensa-se que o príncipe caíra em abulia e
se tornara num bebedor por ócio e por despeito. Mas a verdade é
que, por várias vezes, ele tentou reatar os seus contactos e
conseguir apoios para a luta. Há notícias da sua estada em Londres,
clandestino, em, pelo menos, três ocasiões.
Os que acorriam à notícia do seu nome julgavam encontrar o
“Bonnie Prince” e deparavam com um velho informe a quem o vício
transtornava a voz. De qualquer forma, tinham aprendido a lição da
prudência. E distraíam-se, prestando ouvido às discussões na rua,
preparando os chapéus, fazendo ver como estavam servidos de
aventuras.
Fica tão bem ao nosso gosto de justiça ver este antigo sedutor
abandonado por toda a gente que lhe foi fiel e tropeçando em salas
meio vazias, com o pichel na mão, pedindo vinho, que a verdadeira
causa da doença é omitida em quase todos os relatos. Ao que
parece, foi durante aqueles meses de frio e medo em que ele errou
de casa em casa, de buraco em buraco, pela Escócia, que bebeu
muito, para se aquecer e para aligeirar as aflições.
Corre entre os escoceses uma lenda, que é uma espécie de
sebastianismo, sobre um filho varão de Charles Stuart e a sua
secreta descendência que teria chegado aos nossos dias. Mas não
há rasto dela.
Ao fim da vida, ele mandou chamar a rapariga que lhe nascera
dos amores com a Walkenshaw.
Conferiu-lhe o título de condessa de Albany, provocando a
princesa, que o usava, e com o qual, aliás, veio a entrar nos
compêndios literários, já que teve parte activa na obra de Alfieri.
Diz-se que o velho se afeiçoou à filha e foi feliz, vendo-a brilhar nos
bailes de Florença, como o seria um mercador bem sucedido.
***

Os ingleses venceram em Culloden com competência e com frieza,


em meia hora. Sujaram-se para sempre nas seguintes.

O duque de Cumberland, William Augustus, irmão do rei, fora


chamado à pressa de uma campanha com os holandeses. A imagem
que a História nos legou condiz com a imagem que ele merece: um
cavaleiro pesado e virulento, já carregado por muito ano de batalha,
de narinas abertas pela luxúria e talvez pela toma de rapé. E, no
entanto, ele fez vinte e cinco anos na véspera da batalha. Era mais
jovem do que Charles, seu primo e inimigo. Pode ver-se no campo
aquela espécie de laje solevada de onde, dizem, ele dirigiu
pessoalmente o ataque.
As suas tropas adoravam-no. Tratavam-no por Billy e havia nelas
a permanente excitação dos vencedores. Tinha a coragem de um
leão, o duque, mas trocaram-lhe o epíteto por outro, o Carniceiro,
pelo que fez na Escócia.
“Sem piedade”, disse Cumberland. “Sem piedade”, repetiram os
seus homens. E o massacre começou ali.
Começou com os feridos que jaziam no próprio campo de
Culloden, seguiu com os outros, os que se arrastavam, deixando o
sangue fresco atrás de si. Ouve-se o som da baioneta abrindo a
carne, e o sopro do que mata e do que morre. E, uma vez que a
batalha terminou, a morte admira-se de que a façam ainda trabalhar
e de que as tréguas para a recolha dos cadáveres não sejam
respeitadas por ali. Mas, na sua fadiga, avança, avança. Vai
empurrada pela soldadesca, desce a colina, espalha-se nos vales.
Está-se tornando um matador mecânico e todos os seres vivos são
tocados pela sua navalha. Levanta-se um incêndio dos seus passos.
Ardem pelo chão mulheres, crianças, velhos.
“Que vão pelas casas todas em redor em busca de rebeldes”,
ordenaram as chefias inglesas.
“Recordassem que fora achado um documento entre os vencidos
onde os chefes de clã os instigavam a exercerem toda a crueldade.”
O dito documento existiu, sim, mas essas instruções foram
forjadas, o que revela premeditação e tira a Cumberland todo o valor
de uma vitória limpa, que a tivera.
A ordem que os soldados entenderam como licença para
exterminar foi dada apenas no dia dezassete. Mas aqueleapetite que
os discursos acordam no soldado, a bebedeira do assassinato que
vem depois da náusea inicial, não teve tempo para se esgotar no
seu próprio vazio em Culloden. Qualquer batalha deve durar tanto
quanto o efeito de intoxicação que os ideais produzem nos exércitos.
Aqui, pode dizer-se que o alimento que Cumberland lhes fornecera
estava longe de parar de instigar-lhes energia. De modo que,
naquela própria tarde, eles com certeza que desceram às aldeias e,
até escurecer, continuaram a matança.
Lillias ouviu-os, sem compreender, escondida sob a turfa pela
velha.
***

Ainda não tinham método, no modo como iam trespassando os


moribundos e devassando as casas que encontravam. Cuspiam para
o lado, a convencer-se de que havia peçonha no inimigo.
Embebedaram-se e perderam eficácia. Por isso, e porque
começava a anoitecer, não repararam no veio de ouro que escorria
de um montículo junto à chaminé da choupana onde tinham
penetrado. Uma madeixa do cabelo de Lillias chegava à urze que
cobria o chão. Mas os soldados tropeçavam nas banquetas, já viam
mal. Um deles aproximou-se e arrancou de um puxão a chaminé
que, em casas destas, era feita de madeira. Os pobres costumavam
transportá-la, para onde quer que se mudassem, como um bem. Ela
caiu e pareceu que suspirava, ao desmanchar-se aos pés do
agressor. Tombaram escudelas e candeias, e os homens soluçavam,
insaciados.
Depois, Lillias ouviu que se afastavam e, no seu medo de criança,
desejou que a não deixassem só.
Imaginava que eles fossem como os outros, que gostavam de
apavorar os mais pequenos, mas no fim os erguiam nas mãos e os
sacudiam, para os aliviar e fazer rir.
O fogo começou a crepitar e ela espreitou, julgando conhecer
naquele estalido os passos de um duende. Estava de tal maneira
entorpecida ou precisada de consolação que ficou muito quieta,
olhando as chamas e a sua ondulação familiar. Se não tivesse
começado a chover e o incêndio não se tivesse convertido em fumo,
talvez Lillias ficasse encurralada. Assim, correu para fora e pôde
ainda, na pouca luz que lhe restava, orientar-se, se bem que não
soubesse o que buscar.
O terreiro para o qual abria a casa parecia estranhamente
acolhedor, tornado um lamaçal macio e quente. No crepúsculo, as
pequenas construções de pau e erva, de onde fugira, com certeza, a
criação, abrigavam da água que caía, focos de incêndio. Gritavam
contra a chuva, resistindo, e o vapor da sua combustão atingia a
garganta da menina. Então, viu a mulher que a socorrera.
À distância, era apenas um volume, um destaque mais escuro,
como se a treva estivesse nela antes de se espalhar. Achava-se
sentada, com as costas meio derrubadas contra as traves de um
telheiro.
Agora Lillias confiava nela, contava-a na memória entre aquele
número dos que lhe davam alimento e a vestiam. A velha olhava-a
fixamente, sem falar. Lillias aproximou-se e percebeu como ela tinha
a saia malcheirosa, encharcada pelos sumos da lixeira que iam
escorrendo por debaixo dela. Os farrapos do dia, ainda vivos, caíam
por aqui e por ali e revelavam tons acobreados por dentro dos
riachos de imundícies. O mundo da menina só dispunha, naquele
instante, da mulher como seu centro e ela foi enroscar-se-lhe no
colo.
Olhou-a e viu como ela consentia que puxasse uma ponta do seu
manto, pois nada disse para a censurar. Alguma vez criara um filho,
porque as ancas imediatamente se ajeitaram para que a criança
nelas se encaixasse. Pouco calor deitava. Lillias sentiu que alguma
coisa a magoava e, palpando, encontrou uma algibeira onde a velha
guardava os seus biscoitos. Foi-os comendo devagar. Pensava
apenas em não chamar a atenção. E adormeceu.

***

Acordou à primeira claridade, como que estrangulada pelo frio. A


velha estava gelada e Lillias viu-se presa no seu abraço de cadáver.
Ainda a mordeu para se libertar, como é tão instintivo nas crianças.

Mas naqueles pulsos não havia dor e, das pequenas feridas da


dentada, saíram duas gotas cor-de-rosa.
Lillias gritou e as aves assustaram-se. Depois forçou-se a deslizar,
ao longo do vestido rasgado e enrijecido. Deitou a mão aos dois
biscoitos que restavam. Não percebeu que o sangue da mulher é
que lhes dava alguma maciez.

***

Margaret Fraser apareceu à porta, riu e estendeu os braços para a


filha.

Lillias correu na sua direcção. Porém, a casa, a mãe e tudo em


volta iam fugindo para trás, voavam rente ao chão nevado da
floresta e Lillias nunca mais os alcançava. Não se lembrou, no
entanto, de parar e também isso lhe salvou a vida. Os próprios pés
perderam o azulado e os arranhões brilhavam, no calor que aquela
velocidade produzia.
Estava enraivecida com a mãe e era essa raiva que a alimentava.
“Espere, espere”, gritou. Margaret queria dar-lhe um sinal para que
se calasse, mas só tinha direito a uma imagem e escolhera a da mãe
que estende os braços, para que Lillias visse o seu perdão.
Sorria e deslizava para trás, no que parecia a direcção do perigo,
afastando-a mais da sua aldeia, levando-a para perto da montanha,
para as encostas de gelo que a prenderiam nas suas belas garras
prateadas. “Espere por mim”, gritava-lhe a menina. Mas a mãe não
afrouxava a sua caminhada. Já não havia piedade no amor pela filha
perdida. Era preciso que ela andasse, e depressa, até ao fim.
Margaret Fraser não descuraria os assuntos da terra até que a filha
estivesse entregue à castelã de Moy.
Àquela hora, os dois soldados que a mataram, por acidente, é
certo, aborrecidos com o furor com que ela lançou mãos à baioneta
que descia sobre o filho, ainda discutiam entre si o que fora melhor
ter feito aos corpos. Nenhum deles se lembrava de instruções.
As missões punitivas desse dia eram um pouco mais criteriosas.
Procuravam-se os feridos pelas casas e não se via já aquela fome do
animal que espuma pela boca, mas a frieza do executor. Muitas
vezes entraram de bons modos, pedindo aos homens que jaziam
pelo chão para se levantarem e os seguirem. Prometiam levá-los ao
hospital.
E afinal matavam-nos ao pé do primeiro buraco no caminho.
Margaret Fraser estava como louca. Nem sequer se lembrava de
rezar pelo único filho que voltara do campo de batalha. Ela não tinha
sido muito fértil, concebera espaçadamente e, na primeira gravidez,
tivera uma menina que morreu. Entre o mais velho, Tom, e este,
Eavan, mediavam oito anos. Margaret cuidara dele com excesso de
atenção. Ninguém esperava que nascesse Lillias.
O pai amou-a de tal modo que se via forçado a vigiar-se para não
enfraquecer aos olhos dos vizinhos. A mãe pensava na primeira filha
que lhe nascera e que, a ser viva ainda, naturalmente cuidaria da
pequena. Estava cansada, Margaret, e não somente da sua meia-
idade. O medo tinha feito ninhada no seu corpo, mamara dela mais
que qualquer filho. Via os homens da casa, tão iguais, ambos
chamados Tom, pai e rapaz, desatentos das coisas, preparados para
uma guerra que tardava em aparecer. E, às vezes, nos enganos do
crepúsculo, julgava que os seus rostos exibiam as antigas pinturas
de combate. Margaret via como aqueles dois iam roubando a alma
do mais novo, como os olhos doirados de Eavan se desviavam para
lhes lerem os segredos. Até que, um dia, o braço de Tom Fraser se
abriu e acenou, chamando o filho, e Eavan transpôs aquilo que o
separava do espaço masculino e que era apenas a transitória
protecção da mãe.
A dezasseis de Abril, Margaret deu pela falta da filha e procurou-
a por todo o lado, como se essa fosse a única paixão dessa manhã.
Pois onde estavam Tom e os rapazes, isso sabia-o ela bem de mais.
Todo o corpo de Eavan lhe havia dito que partiria com o pai e o
irmão, com os homens fiéis à causa Stuart que, nos seus corações,
se confundia com a independência dos escoceses. Falara o corpo de
Eavan, não com a voz, mas justamente com o seu silêncio, deitando
a mãe para fora daquele mundo, furtando o peito às suas investidas.
Nem a si mesma ela o confessaria, mas o ódio que tinha na barriga
visava muito mais o seu marido que os militares trazidos de
Inglaterra.
Todo esse dia andou chamando Lillias e o seu grito evitou que a
alcançasse o troar dos canhões de Cumberland. Estava à beira da
estrada quando viu uns aldeões de Urquhart que regressavam, mais
queixosos da alma que de feridas. “Como correu aquilo?”
“Mal para o príncipe”, disseram. E deitaram a correr.
Margaret Fraser regressou a casa e não achou maneira de rezar.
Ouviu clamores e o pranto das vizinhas que se agarravam
certamente umas às outras, fechando assim o seu rosário de
mulheres. Mas ela estava empedernida, como morta, e sem chorar.
Mantinha-se de pé. Por isso, quando Eavan rastejou pelas urzes
molhadas da entrada, ela ainda o olhou sem sentimentos durante
um longo instante, antes de ver que era o filho que havia
regressado.
Estava a aquecer água para o lavar logo ao início da manhã
quando os soldados lhe entraram pela casa. Madrugavam. Traziam o
vermelho com as suas casacas e os seus olhos inflamados de
insónia.
Margaret virou a cara para o lado para que o filho não se
envergonhasse caso mostrasse medo. Mas a idade abandonara
Eavan e ele chorou, gritando pela mãe. Margaret tentou deitar sobre
os soldados a água que aquecera, porém eles tiveram tempo de
escapar e riram, seguros já da sua crueldade.
Arrastaram Eavan para o terreiro e o sangue dele iluminou a
geada.
Um deles disparara um tiro somente e o cabelo loiro do rapaz
flutuou sobre a densa hemorragia.
Quando o outro apontou a baioneta, Margaret agarrou-a com as
mãos. Isso enervou-o a ponto de a matar.
***

Margaret Fraser deixa agora o filho, por quem já nada mais pode
fazer. Deixa pousadas nele as mãos, cortadas pela baioneta do
soldado inglês. Então estende para a filha as mãos de sempre, as
mãos grosseiras mas intactas que Lillias às vezes gosta de agarrar
no escuro. Vai guiá-la para que se afaste ainda mais dali.

Será esse o seu último trabalho, levá-la para Moy e confiá-la ao


cuidado de Lady Macintosh.
III
Charles chamava a Anne Macintosh a sua belle rebelle. E, na
verdade, a esposa de Lord Angus fazia-se notar pela beleza tanto
quanto pelo gosto à luta armada.
Ninguém compreendeu inteiramente a qualidade desse
casamento entre uma Farquharson, que ainda não fizera vinte anos,
e o chefe do clã dos Macintosh, um quarentão, quase sempre leal ao
rei inglês.
Garantem as histórias que Anne amou fielmente o marido. E é de
crer que o sobressalto em que o mantinha lhe estimulasse o
erotismo muito além do mero cumprimento conjugal.
Ele gostava de vê-la cavalgar, tanto mais que Anne nunca
descurou os pormenores da feminilidade.
A eficácia com que recrutava homens para as tropas do seu
“Bonnie” Charles devia-se ao dinheiro com que os comprava e às
pistolas que era lesta em apontar. Mas não tinha importância de
somenos a sua cabeleira acobreada sob a pequena boina de
combate. Os seus vestidos, feitos no padrão dos Macintosh, em que
o vermelho dominava, não dispensavam atavios de rendas.
Depois do esmagamento em Culloden, o traje de escocês foi
proibido. Anne manteve as alusões às cores do clã. Anos mais tarde,
em Londres, convidaram os Macintosh para um baile onde estaria o
duque de Cumberland. Ela levou um vestido vermelho, debruado a
preto e a azul. Recuperara o seu sorriso e o seu descaramento. O
duque foi buscá-la para dançar e Anne achou-se nos braços daquele
homem que a tentou humilhar com galanteios. A orquestra tocava
uma canção que celebrava Willie, o Carniceiro.
Quando acabaram, Lady Macintosh exigiu a desforra, fazendo
uso das graciosidades dos salões.
Tinha direito a escolher ela a música. Os circunstantes
empalideceram e quase não ousaram respirar enquanto Anne ia
ensinando ao duque os passos de Auld Stewart’s back again. Nunca
cruzou o olhar com o do marido, porque os ingleses não perdoariam
toda a felicidade desse encontro. “Não tocar num felino sem pôr
luvas”, é o lema da casa Macintosh.
***

Margaret Fraser conduziu a filha à vista de Moy Hall.

A memória de Lillias evocou aquele mesmo lugar, onde chegara,


tempos atrás, aos ombros do seu pai. Era aquela mansão
acastelada, com a pequena torre de vigia que guardava a entrada
pelo mar.
Lillias associava a alegria dessa visita ao esplendor do Inverno.
Porque as paredes de Moy Hall luziam sob os efeitos dos cristais de
gelo e o sol doirava a pedra a intervalos. “Olha”, dissera o pai.
Naquele momento, a multidão onde eles seguiam tinha feito silêncio
e detivera-se, apreciando a violência do arco-íris. Depois, saudara o
céu, erguendo as mãos, e os punhais dos homens cintilaram. Então,
Anne aparecera entre as ameias e acenara com o lenço azul e
branco. O seu vestido e a sua cabeleira estremeciam como
labaredas.
Depois a porta de Moy Hall abriu-se e a guarnição saiu ao seu
encontro. O tio de Lillias, Donald, encarregado dos trabalhos de
forja, arrancou-a dos ombros do irmão. Tomou por uma estrada para
a torre e foi depô-la, como um cachorrinho, aos pés de Lady Anne.
Lillias viu-a chorar. Estava ao seu colo e percorriam um caminho
assustador. Então gritou e a visão desapareceu. “Faço-te medo?”,
perguntava Anne. Levantou-a nos braços e dançou com a criança,
contra as cores do horizonte. “Como te chamas?”
“Lillias”, respondeu. O terraço da torre andava à roda e ela
agarrava-se ao pescoço da senhora, metia a cara pelo seu cabelo.
Sentiu que os olhos de Tom Fraser a seguiam, do pátio onde ele
ficara, e acenou-lhe. O pai tinha parado para a ver. A emoção que o
imobilizava era mais forte do que os empurrões.
“Tens grandes homens na família”, disse-lhe Anne. “Heróis.
Tu tens de ser uma heroína. Vais ser uma heroína, Lillias?” “Vou
sim, minha senhora”, prometeu.
Mas disse aquilo por delicadeza. Anne tirou a sua bracelete de
couro e prata e colocou-lha no pescoço.
Beijou-a e, a seguir, esqueceu-se dela. Os gaiteiros chamavam
para o baile. A castelã de Moy desceu, correndo, e convidou Donald
Fraser para dançar.
***

Margaret Fraser estava arrependida por ter tirado a bracelete à filha.


Talvez, se ainda a usasse, Anne a pudesse reconhecer mais
facilmente agora. Porém, argumentara com o marido que era
perigoso para uma criança trazer um nó tão apertado no pescoço.
Tom aceitou. Ambos sabiam que não era essa a autêntica razão. A
maior parte das mulheres odiava a figura de Lady Macintosh. Com a
sua beleza e os seus ideais, com o seu nome e com o seu dinheiro,
queria roubar os homens e levá-los consigo, não para a cama, mas
para a morte.

Em verdade, ao contrário de mulheres como Joan Cameron,


Anne jamais assentou pé numa batalha.
A Jenny Cameron, essa, podemos vê-la impressa nos papéis de
propaganda, de cabelo curto e calças montanhesas, sustendo o
escudo no seu braço esquerdo e empunhando a espada e o punhal.
Tinha o comando de trezentos homens e estivera presente em
Glenfinnan, quando a bandeira do partido fora erguida ao som das
vozes que aclamavam rei o velho pretendente, pai de Charles.
E, no entanto, a mais graciosa das vitórias deveu-se ao génio de
Anne Macintosh. Ficou chamada “a debandada de Moy Hall”.
Na sua rota para Inverness, o príncipe quisera descansar.
Acompanhava-o um pequeno séquito. Anne abriu-lhes a casa.
Charles teve de restabelecer aquelas artes de corte, que julgava já
esquecidas, para fazer corar essa mulher cuja estridência tanto o
assustava. Não soube que Anne não corava por pudor, mas pelo
esforço de conter a cólera e, de certa maneira, a decepção. Era
outra espécie de virilidade que ela esperava do príncipe. Ele parecia
uma bela criança mal dormida.
***
Charles ignorou que Angus Macintosh mandou aviso de que as
tropas de Lord Loudon, ao serviço de quem ele se encontrava, se
preparavam para tomar Moy Hall. Lord Macintosh fazia destas coisas
quando a sua mulher corria perigo.

Anne só dispunha de setenta homens contra os mil e quinhentos


que avançavam.
A noite caiu cedo e os sitiantes, que supunham ser fácil a
empresa, paralisaram, interditos, ao ouvirem do outro lado uma
resposta atroadora. Clarões e tiros, vários clãs lançando os seus
gritos de guerra, uma tremenda multidão, toda a força do príncipe
ali estava.
Lord Loudon sentiu-se atraiçoado. Alguém o informara
erradamente. Não dispunha de força suficiente para enfrentar o
exército inimigo. Foi obrigado a retirar dali e, desorientado, deixou
mesmo desguarnecida a cidade de Inverness, até que o duque de
Cumberland chegou. Ao outro dia, duzentos dos seus homens
desertaram, apavorados com a experiência.
Foi Donald Fraser quem levou o pânico à tropa de Lord Loudon e
a fez fugir das cercanias de Moy Hall. Tinha consigo apenas quatro
homens. Acobertados pela escuridão, escondidos numa vala de
turfeira, eles provocaram memorável alarido, disparando espingardas
rente ao chão, gritando ordens a supostos reforços, imitando o som
de ataque dos diversos clãs. A natureza deu a sua ajuda com a luz e
o estrondo de uma trovoada. Tão bem andaram que Moy Hall foi
salvo como que por magia.
Charles entrou triunfante em Inverness, sem que um só tiro se
fizesse ouvir.

***

Pouco tempo depois, Charles derrotou as tropas de Lord Loudon que


se achavam acantonadas em Dornoch, a sul. Lord Macintosh era um
dos prisioneiros. O príncipe mandou-o para Moy Hall, confiando-o a
Anne.
Contam que, quando o lord entrou em casa, Anne lhe fez uma
reverência e disse: “Estou às suas ordens, capitão.”
“Eu é que estou às suas, meu coronel”, respondeu-lhe o marido.
Anne de bom grado se deitou com o seu cativo.
***

Lillias escutou a história do cerco de Moy Hall sentada ao colo do


protagonista no segundo domingo de Fevereiro, quando o tio Donald
lhes entrou em casa e até mesmo Margaret o beijou. Os dois Tom,
pai e filho, embebedaram-se, porque rir e bater com o punho no
joelho não lhes pareceu festividade que bastasse. Eavan bebeu
também, mas nem por isso deixava de parecer um rapazinho. E foi
talvez esse relato que o matou, foi porque a guerra, como o tio lha
mostrava, não era mais do que uma brincadeira que punha toda a
gente à gargalhada. Na manhã de Culloden, Eavan seguiu
furtivamente atrás do pai e do irmão.

Em certos textos atribui-se o grau de desumanidade dos ingleses


à exasperação em que se achavam por não terem vencido um só
recontro desde que tudo havia começado. Nessa mesma cidade de
Falkirk, onde William Walace fora derrotado séculos antes, Charles
triunfara, embora não soubesse tirar todo o partido do triunfo.
Com o embuste que sofreram em Moy Hall, as tropas do governo
enlouqueceram. Cumberland apôs a lei nessa loucura.
Os Fraser tinham especial deleite em relembrar o que ficou
chamado “a debandada de Moy Hall”, já que Donald saiu do feito
recoberto de prestígio. Mas toda a gente dedicava àquela história
um ouvido feliz e o ar do Inverno não conseguia retrair os corações.
Nunca o amor a Charles foi tão fácil. Anne chamou os aldeões para a
festa, mas Margaret sentiu acanhamento. Mandou Lillias com o pai e
com os irmãos.
E agora manda-a outra vez para as mãos da belle rebelle, dita
coronel Anne, pois julga que, se há esperança para alguém, é para a
esposa de Lord Macintosh. Está morta, Margaret, e não se pense
que os mortos sabem muito mais que nós. Ela não vê o que o
destino reservou para a filha. Aquilo que resta do seu calor de mãe
leva-a para Moy e extingue-se ao portão.
IV
Anne esteve longe de se enternecer quando a criada fez entrar
Lillias.
Quase ninguém ficara no castelo. O velho aio que, com a mulher,
Georgina, se mudara da casa Farquharson para a casa Macintosh,
jazia sobre as palhas, moribundo, desgostoso de um corpo que
perdera qualquer utilidade para o combate. Notícias do desastre iam
chegando, não se sabia como, pois ninguém ousaria acercar-se de
Moy Hall. O costumeiro atrevimento de Anne não encontrava agora a
quem visar, e ela atendeu ao pranto de Georgina que lhe pedia para
não sair. Nem tinha quem pudesse aparelhar o seu cavalo. Resignou-
se a esperar, se é que devemos chamar resignação ao modo como
uma leoa deixa de se atirar às grades de uma jaula e só percorre o
espaço disponível. O seu próprio cabelo a irritava e atara-o sobre a
nuca. Isso avivava o famoso fulgor do seu olhar. Passou a noite na
cozinha com Georgina onde o doente tiritava, mais vencido pelo
desgosto do que pela febre. Na crueza da sua juventude, não
suportou uma vigília e adormeceu.
A manhã era escura e Anne pensou, ao acordar, que tinha um
morto junto a si. O velho ergueu o rosto para ela. O suor e as
lágrimas brilhavam sobre uma pele que se colara aos ossos. Ela
pensou nos feridos e afastou-se, novamente incapaz de se apiedar.
Foi espreitar pelas estreitas aberturas da sala de armas, mas
achava-se tão cega que nada viu da camisinha branca de uma
criança que se aproximava.
Georgina, que perdera os filhos em pequenos, é que sentiu o
arranhar contra a madeira, um som ligeiro, um som que não se
ouvia. Estava tão ansiosa por que as coisas acontecessem, por que o
tempo se soltasse daquela bolha de terror em que caíra, que
esqueceu a prudência e foi abrir. Lillias, tremendo, perguntou-lhe
pela mãe.
***
Anne não a conheceu. O ódio andava por dentro dela como um
animal e visou a pequena criatura que Georgina arrastava pela mão.
“Quem é, de onde saiu a rapariga?”, exclamou. Ia de um lado para o
outro e a urze seca que forrava as lajes prendia-se à bainha do
vestido. O sangue que secara sobre as pernas e sobre a camisinha
de Lillias não lhe falava a única linguagem que ela queria escutar, a
da batalha, e olhou para as manchas já acastanhadas sem que o seu
coração se comovesse. Era como se alguma das criadas se tivesse
lembrado de parir naquela hora.

Georgina levou Lillias para a cozinha. O marido gemia e a palidez


das suas mãos parecia deitar luz.
Mas, na manhã seguinte a Culloden, este conforto indignava toda
a gente, e isso incluía o próprio moribundo. Mesmo Georgina
sussurrou uma cantiga enquanto dava leite a Lillias e improvisava
um fato sem costuras. Tinha as fontes grisalhas e cheirava a fumo e
a sebo como Margaret, e a menina dormiu no seu calor.
***

“É a sobrinha do Donald Fraser”, disse Georgina. Só então Anne se


recordou dessa menina com quem rodopiara entre as ameias. “Diz
que veio com a mãe até aqui.” Mas da cunhada do ferreiro não
acharam o mínimo sinal. Anne perguntou: “Que viste pelo
caminho?)*, mas a criada censurou-a com o olhar. Lillias escondia-se
atrás dela, apavorada, sem entender o mau humor da castelã.

Quando os soldados ingleses, comandados pelo coronel Cockeen,


que veio depois a confessar o desagrado pela missão, irromperam
pelo pátio, sem acharem ninguém que lhes pusesse resistência, é
que o choro da criança atravessou a indiferença de Anne.
Georgina estava arrastando o marido para fora. E aquela morte,
que não vinha pelas feridas, que não era um assunto masculino,
intimidou um pouco os militares, ainda que em Inverness
assassinassem nas suas camas os que tinham chegado de mais
longe para oferecer combate a Cumberland e ficaram retidos pela
gripe.
O coronel Cockeen deu a Anne ordem para que o acompanhasse.
Ela foi recolher as suas coisas.
Percebeu que o destino do castelo era ser saqueado e arrasado,
embora os homens poupassem, por pudor, essas palavras, pois Moy
Hall pertencia aos Macintosh. Anne achou Lillias a um canto,
acocorada, e nesse instante é que ela viu que uma criança lhe fora
entregue e a não podia abandonar.
“Fica calada, ouviste? Nunca fales. Não digas nada.” “Nunca
fales”, repetiu. E obrigou-a a levantar, puxando-a por um braço. O
oficial que a tinha acompanhado e que guardava uma distância
respeitosa, aproximou-se, ouvindo o seu murmúrio. Anne trazia
Lillias nos braços e encarou com firmeza o militar: “Traz o meu
saco.” Ele acatou a ordem. Cockeen levava instruções claras e, no
entanto, o enigma de Lady Macintosh viera-o enervando pelo
caminho. “Ninguém falou da sua filha”, resmungou.
“Não é minha”, disse Anne. “O meu marido achou-a a pedir
esmola em Londres, gostou dela.
Achou-lhe graça. É tão inglesa como o vosso maldito
Cumberland.” “Não fale dessa maneira, por favor”, pediu o oficial.
Estava antevendo uma viagem muito trabalhosa. “Não sei o que
fazer com a garota.” “Lord Macintosh ficava muito aborrecido se eu
não levasse a sua protegida.”
O homem espreitava para Lillias, mas ela tinha a cara
comprimida contra o pescoço de Anne.
“Inglesa, hã? Como se chama?”
“É muda. Nunca soubemos nada a seu respeito. Chamámos-lhe
Georgina.”
Ele hesitou.
“Bem vê que não a deixo”, disse Anne. O militar receou mais a
determinação com que a mulher fazia um corpo só com a criança
que as agressões da coronel Anne, contra as quais fora devidamente
preparado. “Pergunte a meu marido se Georgina deve em alguma
circunstância ser levada para longe de mim.”
“Perguntarei.”
Pôs as mãos enluvadas na cintura de Lady Macintosh para que
ela subisse para o cavalo e depois entregou-lhe Lillias.
Os soldados faziam-se esperar, e os seus gritos de
deslumbramento embaraçavam o oficial. Eles abriam as arcas e
troçavam dos panos escoceses. Anne olhava para longe, para as
turfeiras onde a autêntica Georgina se inclinava sobre o seu velho
homem que morria. A sua touca flutuava contra o céu. “Vamos
andando. Não receie, que eu não fujo. Não tenho para onde”, pediu
Anne. Mas não sabia falar com humildade. E picou o cavalo para a
frente, de maneira que ele teve de a seguir.
Achavam-se à distância quando o fogo espreitou pelas janelas de
Moy Hall e depois lhe subiu pelas paredes. Os soldados desciam a
encosta, tropeçando no saque, enegrecidos de fumo e congestão.
Anne olhou para trás, durante o tempo de que a sua memória
precisou. Depois fez o cavalo galopar, o que assustou terrivelmente a
escolta.
O choro de Lillias obrigou-a a refrear-se. Os braços dela em volta
do pescoço quase não a deixavam respirar. Anne irritou-se uma vez
mais com o seu fardo. Mas entravam na zona onde os massacres
haviam começado e os cadáveres pareciam estranhos marcos no
caminho. Velhos, mulheres, crianças, misturavam, com a lama, a
carne que ia apodrecendo. Achavam-se agrupados por famílias, mas
separados pela solidão da morte. Estava cada um deles olhando
ainda para a boca da arma, para a lâmina, estavam a vê-las
destacadas contra o fundo vermelho das casacas, A crueldade há
tanto tempo insatisfeita saltara como um tigre e parecia romper o
peito dos soldados para atacar. Na última expressão dos que
morriam ficara um ricto de incompreensão. Nenhum passante, se o
houvera, se atrevera a fechar-lhes as pálpebras. Só os torrões
molhados deslizavam e os recobriam preguiçosamente.
Felizmente choveu, porque a coronel Anne Macintosh não
conteve as lágrimas que se apressou a disfarçar na chuva. Virou o
rosto de Lillias contra o seu peito, mas chegaram à boca da menina
o sal e o calor daquelas gotas.
Nos arredores de Inverness, os enforcados, negros e nus,
pareciam já tão leves que a mais pequena aragem os movia.
O esqueleto que havia dentro deles demoraria vários dias para
romper. Os pássaros olhavam-nos de longe, ainda intimidados. Não
sabiam em que momento começava a ser seguro pousar naquela
carne que os chamava. Apesar do ar gelado, o cheiro entrava na
boca das viajantes.

***

Anne não chegou a ser julgada, muito menos transferida para


Londres. Acabaram por confiá-la à sogra, a velha Eva Macintosh,
Lady “Viúva”, que a recebeu com toda a honraria. Eva assinou um
documento de custódia e olhou com simpatia os militares que
conduziram Anne aos seus domínios.

“Óptimo”, disse. “Agora só lhe resta uma maneira de lutar. Ter


filhos.”
A velha lady era miúda de estatura, o que a forçava a encarar a
nora de baixo para cima, isso apesar de passar os seus dias sobre
um estrado. Atribuía as atitudes de Anne à má educação que o pai
lhe dera, criando-a livre como um rapazinho. Eva ainda se lembrava
de a avistar, nas grandes festas do Primeiro de Maio, como um
bichinho de algodão doirado, esvoaçando entre os homens do seu
clã. As suas mãos minúsculas já estavam habituadas a bater, e todos
riam do modo como os queria intimidar. Vendo-a de longe, o jovem
Angus riu também.
“Só com aquela é que me casarei.” Tinha vinte e dois anos. Nem
ele próprio pensou que havia de cumprir essa promessa.

***

A castelã não deu muita atenção à presença de Lillias junto à nora.

Lillias não a deixava um só momento, enroscava-se nela como se


não soubesse aquecer-se de outro modo. Anne parecera habituar-se
a ela, estendia a mão como que por automatismo para que Lillias lhe
tocasse. E, na verdade, a criança vivia concentrada naquele
chamamento. Só falava com Anne e em voz baixa, durante a noite.
Anne levava-a para a cama e embalava-a distraidamente.
A Lady “Viúva” receou por um momento que a nora fosse estéril
e estivesse jogando um jogo maternal com a rapariga.
Mas, atendendo a certos pormenores, viu como o sangue dos
Farquharson se mantinha na devida distância da pedinte que Anne
lhe tinha dito Lillias ser.
Só quando Lord Macintosh as visitou e Anne expulsou Lillias do
seu quarto é que Eva conheceu a sua origem. Observou com
curiosidade a sobrinhita do defunto Donald Fraser. “Tem os olhos
doirados”, reparou. “Sinal de que houve bruxas na família. Quem era
a tua mãe?”
Embora Anne a beliscasse sem delicadeza, Lillias não respondeu.
A sua boca estava firmemente contraída. E, visto que a chegada de
Lord Angus roubara Anne à sua intimidade, deixou completamente
de falar.
V
Durante meses, o duque de Cumberland enviou para Londres
relatórios do seu metódico trabalho de extinção do modo de viver
dos escoceses. Mas o medo e a astúcia dos vencidos tinham criado
uma combinação que desorientava os vencedores.
“Os que nós queremos ver executados são sempre tios ou primos
do carrasco”, escrevia Cumberland. “Isso complica terrivelmente as
coisas.”
O Parlamento inglês pô-lo à vontade: “Não se perdia nada”,
responderam, “se todos eles desaparecessem de uma vez.”
Apesar do apoio que recebia, o duque foi perdendo a paciência.
O próprio Charles andava ainda por ali, de casa em casa. Os chefes
escapavam como areia entre os dedos das milícias. Um deles cruzou-
se com os seus perseguidores e deu informações sobre si mesmo.
Tudo isto mantinha aquele triunfo sobre o fio da navalha. A
soldadesca ouvia gargalhar nas suas costas. Isso impedia a
crueldade de baixar.

***

A relação entre Anne e o marido não conheceu bons dias nessa


altura. Nem um nem outro conseguia rir e a vida de família
desfeava-os.

No fim do Outono, a Lady “Viúva” confirmou que a nora estava à


espera de criança. Angus tinha partido uma vez mais. E se, como
seria natural, Lillias não veio a achar-se na cozinha, fazendo a sua
educação com os criados, foi porque pouco reparavam nela. O seu
vulto doirado e silencioso ia-se desdobrando pelas sombras, tão
persistente e fugidio que, às vezes, a confundiam com os galgos de
Eva. Teria feito a sua vida no castelo, meio adoptada, como tantos
serviçais, se o terror que a tomou não assustasse profundamente
Anne Macintosh e as cunhadas. Isso coincidiu com a mistura de
encanto e inveja entre as mulheres da casa por essa gravidez que as
afastava de um papel principal na sucessão.
Lillias dormia no tapete da lareira e, até nisso, causava a
impressão de um animal que apreciasse o cativeiro. Houve então
uma noite em que chorou. Deram com ela ao outro dia,
ensimesmada, como era seu costume, nos degraus de um torreão
aberto à ventania. As lágrimas secavam no seu rosto, como fios
negros que o aprisionassem. Quando a levaram à presença das
mulheres, Anne encarou-a com severidade. Estava suficientemente
perturbada com o seu novo estado para que a pouca paciência que
tivera com a criança se encontrasse exaurida. Não opôs grande
resistência à sogra que detestava os olhos da menina e aproveitou
aquele momento para o dizer.
A partir desse dia, Lillias foi uma presença incómoda para todos.
Chorava à vista de Anne, chorava quando todos dormiam. Os
soluços gelavam como o queixume de um fantasma e ninguém
queria atravessar a noite para ir aconchegar a rapariga. Não se
imagine que Lillias sentia medo de perder Anne para o filho
anunciado. Nesse tempo, as crianças de uma casa nada sabiam
sobre gestação. Mesmo vivendo muito próximas dos bichos e
assistindo a cobrições e partos, não ligavam as causas aos efeitos,
como se a ansiedade dos adultos sobre a sua inocência conseguisse
torná-las cegas e evitasse as evidências. Percebia-se mais a gravidez
no súbito silêncio das mulheres quando as crianças delas se
acercavam que na dilatação de uma barriga. é, pois, de crer que
Lillias ignorasse o estado de Anne. E, na verdade, quando, em certa
fase da sua própria vida, ganhou experiência para interpretar as
crises de terror daquele Outono, esquecera já. Pensava em Lady
Macintosh com frieza, ainda um pouco intrigada, como todos os que
pensavam nela. Mas a memória do seu riso, do seu colo, do sacudir
da sua mão, essa sofria como um deslocamento de vingança e ia
colar-se sobre Margaret. Certa justiça havia nisso, porque foi, de
facto, a mãe quem a salvou da morte.
***
Anne por longo tempo se lembrou da criatura que se atravessara no
seu caminho como um desperdício, um fragmento de guerra
distorcido pela beleza de uns cabelos infantis. Pois, quando ela
abortou e muito pano de linho foi necessário para lhe ensopar o
sangue, a sogra e o seu próprio desgosto lhe diziam que Lillias lhe
deitara mau olhado. A raiva de Eva à rapariga Fraser agira, sem o
esperar, em favor dela, afastando-a da casa Macintosh semanas
antes de o aborto acontecer.

Muitas mais vezes Lillias viu mulheres que pareciam dissolver-se


num líquido vermelho, perdendo todo o corpo devagar, até que delas
nada mais ficava senão um nó de vermes sobre o chão. A
sangradura começava-lhes no sexo, e a substância da vida ia
escorrendo, ao longo dessa tripa, ia chamada pelo que já jazia e
tinha o aspecto de um coração meio devorado pelas feras. Lillias
olhava para a mulher que lhe sorria na iluminação da gravidez e
nada lhe dizia, sabedora da inutilidade do aviso. Baixava o rosto e
prosseguia o seu caminho, cada vez menos dada à compaixão.
Porém, naquelas noites de criança, em que parecia que Anne a
acordava, segurando uma pequena vela na mão esquerda, e nela
começava uma alegria que era a da filha protegida pela mãe, Lillias
ainda não compreendia que aquilo não estava realmente a
acontecer. Anne começava a desfazer-se, como se a gordura da vela
se pegasse e ela ardesse também e se extinguisse. Mas o
deslumbramento desse fogo desaparecia; e o horror de um ventre
sugado para fora de si, espalhando as vísceras, empurrava a criança
para a fuga.
Fugia como já fugira do seu pai, mas não sabia dar razões à
zanga que tanto feria Lady Macintosh.
Chorava entre as paredes do castelo, incapaz de enfrentar aquele
Inverno.

***

Anne passava mal com a gravidez e o seu carácter cedeu


ligeiramente. As cunhadas temiam Lillias e o momento parecia-lhes
propício para livrarem a casa da menina. Eva sabia que, apesar da
indiferença que parecia votar-lhe, a nora nunca consentiria em pô-la
ao abandono. Era a sobrinha de Donald Fraser.

“Com o nome que tem, a rapariga não vai poder andar em


liberdade”, disse a Lady “Viúva”
Macintosh, para começar a preparar as coisas. “E os olhos
amarelos não ajudam.”
“Já não queimam as bruxas, mãe”, respondeu Anne. O bom
humor, que nela andava a par de uma constante exaltação colérica,
reincidia. Mas os mortos de Culloden puxavam-lhe o sorriso para
baixo.
Num clima impróprio para viagens, em Dezembro, é que Eva se
desfez de Lillias.
Ela própria invocara tantas vezes a condição perigosa da menina,
filha, irmã e sobrinha de rebeldes, que não a queria ver
desaparecida, mas posta a salvo de prováveis represálias. Assim que
a caridade recobriu os sentimentos anteriores, a Lady “Viúva” tratou
de agir com determinação.
Aproveitando a velha história de Lillias, mandou-a ao filho que se
achava em Edimburgo, recordando que se tratava da pequena
inglesa recolhida por ele. Recomendava a Lord Macintosh que lhe
achasse uma casa em que ela fosse aceite com papel bem definido,
de órfã e de criada, mais não era capaz decerto do que de acartar
carvão e de limpar a lama do calçado.
Lillias partiu numa das raras carruagens que circulavam por
aqueles lugares. Anne explicou-lhe que ela deveria crescer longe dali
e ofereceu-lhe uma manta de lã para a viagem. “Não me vais dizer
nada?”, perguntou. Lillias temia vê-la novamente a desfazer-se em
sangue a meio da noite. Deixara de falar e não podia recomeçar,
agora que essa imagem lhe enchia inteiramente o pensamento.
As mulheres confiaram-na ao notário cujos assuntos não podiam
aguardar que a neve e as tempestades amainassem. Ele sentou a
criança nos joelhos. Lillias olhava para além da janela, mas não viu
mais que o aceno das criadas. Depois o homem fez descer o couro
que os separou da chuva e do castelo.
Anne Macintosh concebeu de novo e deu à luz a sua
descendência. Esta notícia, que nos alivia, ainda que a História diga
que nenhum desses filhos herdou o título dos pais, pesa, no entanto,
sobre os olhos de Lillias. A Lady “Viúva” e as duas filhas que viviam
ainda com ela, sempre atribuíram aquele desastre na primeira
concepção a certo dom maligno da menina. Mas entre elas e Anne
nunca mais se falou da rapariga Fraser. Fora um mau ano para toda
a gente.
VI
Lord Macintosh supôs que se tratava de uma partida da mulher e
riu. O notário entregava-lhe a criança com maneiras estranhamente
formais para um escocês.
Ao longo do trajecto, a bonomia com que a tinha acolhido
transformou-se, por via da mudez da rapariga, num misto de
suspeita e sedução. Lillias vivera tão abandonada de um colo
humano que o calor do companheiro depressa a fez adormecer. E o
notário, vendo goradas todas as perguntas, preso, como ficou, nas
teias de ouro que o sono da criança lhe lançava, nada pôde fazer
senão pensar.
Quando chegaram perto da cidade, ele já estava seguro de que
Lillias era filha bastarda. A velha lady devolvia-a ao pai, visto que a
nora era obrigada a residir com ela. Imaginava a coronel Anne em
fúria, correndo a pequenita à chibatada.
Sentiu-se arrependido por se haver envolvido em assuntos de
família e, apesar do frio, transpirava na sua pressa de se retirar da
saleta onde o lord os recebia. De modo que Angus já não foi a
tempo de mandar a menina de regresso porque, ao primeiro desvio
dos seus olhos, o notário escapou-se para a rua. Na precipitação,
não se lembrou da carta enviada pela mãe do lord.
Só na manhã seguinte, na taberna onde falava com os seus
clientes, viu a folha lacrada entre os papéis que tinha retirado do
malão. A força dos negócios ou, quem sabe, a falta de vontade,
alguma coisa de que ele não quis tomar conhecimento, o levou a
esquecer-se novamente daquele ingrediente da missão.
Quando, ao fazer a mala para o regresso, deu com a carta entre
as dobras da camisa, deitou-a ao fogo, resistindo a lê-la. Discrição
era um traço de carácter que ele cultivava com esforçado afinco.
***

Angus ficou a olhar para a criança com um sorriso de perplexidade.


Na casa que habitava em Edimburgo não existia uma única mulher.
Os seus oficiais e os criados asseguravam os labores domésticos na
rotina do laird. Ele condenava o excesso de conforto e de atavios, e
até de higiene, como sintomas de efeminação. Não lhe parecia
próprio que a menina pernoitasse sequer entre aqueles homens, que
seriam capazes de a mimar, numa cedência às saudades dos cães ou
das irmãs, mas que de modo algum conseguiriam privar-se dos seus
cheiros, dos seus sons, da obscena estridência dos seus corpos. O
criado de quarto, que o seguia para todo o lado, com certeza vira
Lillias durante o tempo que passaram no castelo, quando ela se
cosia com as sombras no encalço de Lady Macintosh que tinha
apenas olhos para o marido.

Era uma Fraser. Isso não explicava que só então, quando as


perseguições às famílias culposas serenavam, a enviassem para
longe de Inverness. “Que te disseram lá? Quem te mandou?”,
perguntou em inglês. Viu-a tremer e moderou a rispidez. Baixou-se
junto dela e murmurou-lhe no seu áspero escocês das Terras Altas:
“Podes falar comigo. Eu sei que falas.” Estava tão perto dela que
Lillias lhe encontrou semelhanças com o pai e isso a levou a
desfazer-se em lágrimas.
Queria estender as mãos para aquele homem, porém guardava-
lhe rancor. Associava-o ao desafecto de Anne e com razão. Soluçava,
esquecida de falar. A complacência de Angus resistiu enquanto olhou
Lillias como um enigma. Finalmente, agarrou-a pelos braços.
Compreendeu que a estava a magoar e isso ainda mais o irritou. Se
ele soubesse que a mulher esperava um filho, talvez a infância da
rapariguinha lhe aparecesse como uma aprendizagem desse amor.
Mas essas coisas só se revelavam de viva voz e no recato de uma
alcova. Aliás, a primeira gravidez e a perda da criança nunca foram
do seu conhecimento. Lillias assustou-se de tal modo que a urina lhe
corria pelas pernas. Apavorado, Lord Macintosh procurou o cordão
da campainha e, não o encontrando, bateu palmas. A sua voz de
montanhês correu os quartos e chegou à cozinha. Toda a gente que
estava ao seu serviço foi acudir à sala da entrada.
Se o seu criado pessoal reconheceu naquela criatura em
desespero o pequenino vulto do castelo, bem o escondeu. A
confusão do amo estendia-se para ele, imperiosa, e o rapaz viu que
devia encarregar-se de Lillias, como noutras alturas arranjava um
uísque ou mulher limpa para o lord. A prudência levou-o a
perguntar: “Deverei pô-la fora?” Mas sabia, ou porque se lembrasse,
ou pela óbvia composição dramática do encontro, que não era
daquilo que se tratava.
Atravessou a rua com a criança e entregou-a à viúva Davidson,
que ganhava o seu pão de alugar quartos e cuja filha ele tinha
andado a requestar. “Mas, senhor Gilbert”, objectou a viúva. “Sabe o
que come uma fedelha desta idade?”
As moedas de Lord Macintosh escreveram o romance da menina.
Gilbert levava-as desde a bolsa do seu amo até à mão sempre
estendida da hospedeira. E em nome da verdade seja dito que se
mantinha honesto no transporte. Que um homem de tamanha
posição pagasse a criação da rapariga, embora às vezes levantasse
as sobrancelhas ante a frequência com que Gilbert lho lembrava, não
poderia significar senão um laço de paternidade, que o mesmo era
dizer, uma fraqueza.
A bastardinha achava-se elevada muito acima da sua condição,
sendo por certo filha de rameira. Mas a mulher do lord, a coronel
Anne, mais gostava de andar entre os soldados, mostrando as
meias, que de conceber. De maneira que o pobre do marido, vendo
chegar a idade da impotência, se agarrava ao que tinha do seu
sangue, com menos contenção do que devia. Pois maior escândalo
oferecia aquele apego, que fazia correr quanto dinheiro o criado
pedisse, do que o facto da bastardia em si.
Lord Macintosh demorou-se em Edimburgo muito mais tempo do
que programara porque o Inverno não deu tréguas para viagens.
Gilbert levou-lhe Lillias uma tarde. Ela pareceu-lhe um pouco mais
robusta, e a beleza dos seus olhos, que ele não vira no dia da
chegada, tão cobertos de sujidade e lágrimas estavam, era de certo
modo uma obra sua, uma obra dos cuidados que ele pagava. Pensou
que esperaria uns anos mais e que depois a enviava de presente,
como criada-grave para a mulher.
Cultivava a menina com despesa, imaginando a gargalhada de
Anne quando a desembrulhasse à sua frente. Receberia uma bonita
rapariga cuja mudez, de que jamais se desfizera, lhe acrescentava
uma tristeza de animal. Angus não concebia melhor jogo que
devolver à esposa a jovem Fraser, que ela provavelmente já
esquecera.
“Quero que a tratem com desvelo. Eu pago”, recomendou a
Gilbert. E ofereceu um alfinete de oiro à rapariga. A filha da viúva
Davidson escutava, à porta, à espera de Lillias. Quando o lord partiu
com a equipagem, que incluía Gilbert, o equívoco tomou o lugar
dele, continuando a proteger a vida da menina.
Cresceu entre remoques mal sustidos, com as Davidson, mãe e
filha, a procurarem corrompê-la com doces e preguiças que
alternavam com bruta disciplina. Não resistiam a atormentá-la.
Enervava-as a sorte da menina a ponto de, por vezes, se
esquecerem de quanto melhorara a própria sorte. Pois a casa, que
dantes recebia modestos recadeiros, vendedores de folhas de cordel,
encafuados em divisórias de tabique a meia altura, fora como lavada
em banho de ouro desde que nela entrara a bastardinha de Lord
Macintosh. E, a verdade se diga, não ficou tanto a dever-se a súbita
ascensão às moedas que Gilbert entregara quanto à espécie de
chama que a menina fazia arder na sua solidão.
Os descendentes de ladrões de gado, cujo prestígio não passara
para os filhos, estendiam à viúva Davidson as suas bolsas onde os
dólares e as coroas, em que ela quase nunca pusera a mão, se lhe
ofereciam, em troca de um serão na mesma sala onde a filha do
laird olhava o fogo. Ourives, gente dada ao contrabando, que todos
encaravam com bons olhos, podiam dar-se ao luxo de pagar pela
proximidade da menina. De regresso, traziam-lhe presentes.
Ninguém, mais que um escocês daqueles tempos, valorizava os laços
que o ligassem a um chefe de clã. A nova clientela da viúva ia
comprando panos e atavios para lhe oferecer, ao mesmo tempo que
informava os lojistas da idade da criança, para que se visse o
desinteresse erótico. Os mais ousados levantavam-na nos braços, e
ela ria durante o rodopio, levando a hospedeira a murmurar, pelo
canto da boca, à filha Kitty, sobre o gosto por homens que a
pequena mostrava já. E realmente, a sós com elas, nunca Lillias foi
feliz.
Durante o crescimento do seu corpo, pareceu que o coração se
lhe afastava, como se um raquitismo dilatasse o arco das costelas.
Nem safanões nem pregadeiras o alcançavam. Estava tão surdo e
protegido que deixou de buscar nas mulheres o cheiro da mãe.
Aos oito anos, aprendera muito. Como não confiava nas
Davidson, continuava sem falar. Essa mudez ainda a tornava mais
desagradável, e Kitty não podia coibir-se de expressar o seu próprio
desconforto, beliscando-a ou fechando-lhe o nariz. Lillias dormia
entre ela e a viúva e só durante o sono soluçava. A pele, o peito
quente das mulheres abandonado nas camisas induziam em erro os
seus sentidos. Alguma coisa da sua casa morta a visitava. A velha
Davidson, que tinha insónia, lutava em vão contra a piedade e
acabava por pôr o braço à volta da criança. Lillias viveu de tal
maneira concentrada que, apesar da fineza da figura, dava certa
impressão de grosseria, de uma pesada e rude obstinação. Parecia
suja. E a forma como ria, elevada no ar pelos viajantes, que se
mostravam intrigados com o seu peso, era rouca de mais. A
intensidade um pouco obscena da rapariguinha enchia às vezes as
pessoas de mal-estar.
Lillias estava presente nos serões para que os hóspedes se
vangloriassem de conversarem com a pequena Macintosh. Via
aqueles homens congestionados de alegria e calor, bebericando o
seu uísque adoçado, eles que tinham sido criados com cerveja
azeda. Via-os adoecendo de ambição, presos à corda que lançavam
para subir. Mentiam já nas histórias que contavam sobre a vida
passada, muito atentos a todo o risco de contradição. E limpavam os
rostos, sem saberem como lidar com aquele novo sofrimento.
As Davidson eram perguntadoras e não apenas por coscuvilhice.
Kitty desinteressou-se das promessas do criado de Lord
Macintosh. Já não sonhava em ficar ao serviço da coronel. Além do
mais, supunha que a lady nada queria com quem criara Lilly, a
bastarda.
Estudava cada novo visitante com a frieza de um contabilista.
Tarde após tarde, Lillias recebia, no seu olhar dourado,
informações sobre os dias futuros daqueles homens. Contra a ligeira
neve da janela, o alfaiate, que viera à capital fazer os seus
aviamentos para a costura, ia narrando a sua itinerância, de casa
rica em casa rica, costa a costa, experimentando o conforto das
estradas que o general Wade tinha mandado abrir, para grande
irritação dos aldeões.
Falava, e a massa interna do seu crânio deitava para fora, como
um bolo com dose exagerada de fermento. Rodas ferradas,
suportando todo o peso da carruagem em desequilíbrio, passavam-
lhe na cara, abrindo um sulco. O que o homem pensou naquele
instante espalhou-se pelo chão, como um rasteiro tufo de urzes
rosadas da charneca. Enlouquecidos, os cavalos erguiam voo e o
cocheiro agitava o seu chicote, espantado aquele conjunto pela
morte que já se erguera para os perseguir.
O homem ria e Lillias via os seus miolos, via como a paisagem
estava ainda surpreendida e se mantinha silenciosa, e como ele se ia
devagar acostumando e começava a entregar o sangue, ficando
mole como um adormecido.
Lillias olhava e não se comovia, deixara de assustar-se com as
visões. Aprendera sozinha a distinguir entre o presente e o
anunciado, e tinha sobretudo a percepção da inutilidade do seu
dom.
Enquanto o seu olhar corria mais depressa do que as horas de
uma vida e alcançava a pessoa moribunda, os outros continuavam a
falar, a cantar e a dançar algumas vezes, sempre que pernoitava um
tocador. Naturalmente, todos morreriam. E, ainda que ela quisesse
dar aviso, dizendo como, o quando não sabia, não mais faria que
acabar com o serão e desvendar a falsidade da mudez, a sua
linguagem das montanhas.
Pelo contrário, quando via aqueles desastres, Lillias sorria e
acabava por sentir a animação que há numa quebra de rotina. Só
lamentava que a viúva e Kitty permanecessem firmes nos seus dias,
nem um minuto para a frente ou para trás.
Nunca a pequena Fraser as viu mortas e nem sequer magoadas.
Aos serões, a touca rendilhada da viúva adejava ao de leve,
estremecendo com as sacudidelas da conversa, e a sombra dela
errava-lhe na testa como um sinal de bem-aventurança. Na verdade,
elas não se intimidaram, como a Lady “Viúva”
Macintosh. Nunca acharam nos olhos da menina mais que o
reflexo do muito oiro que ela lhes trouxe.
VII
A notícia lutava por chegar aos ouvidos da velha Macintosh, mas,
contra o que é vulgar, não conseguia. Partia Escócia acima,
rastejando. Bicho do chão, o mais ligeiro obstáculo lhe travava o
avanço. Na saliva que ela deitava para deslizar, colavam-se os
minúsculos detritos de quem tinha passado por ali, e assim, a certa
altura do caminho, já carregava sobre os flancos lixo e pedras que
lhe tolhiam por completo o andamento.
Qualquer notícia de mais peso, e se as havia naqueles tempos
nervosos pós-Culloden, esmagava a nossa sob o calcanhar. Ela
teimava e era apanhada pelas neves, pela hora mortal da natureza,
e o tempo corria-lhe por cima, sem lhe prestar a mínima atenção.
Ano após ano, alçava-se e caía. Quando, por fim, com muito esforço,
se arrastava até às portas baixas do castelo, não passava para além
da criadagem. Trepava pelas pernas das mulheres, fria e brilhante, e
elas gargalhavam e sacudiam-na de si, mas tão tentadas, tão cheias
de temor pelo seu mal, que a mantinham ali, dias e dias, atirando
com ela umas às outras, mostrando-a às escondidas aos passantes.
Porém, entre as cozinhas e os ouvidos da Lady “Viúva” Macintosh,
havia um fosso e a notícia voltava para trás.
Só encontrou quem a levasse para cima no ministro de Deus,
padre Tulloch, que regressava de Edimburgo onde passara os meses
da doença de uma irmã. É de supor que este reverendo
experimentou tanto prazer como uma alcoviteira quando encetou os
seus rodeios, sacudindo da saia acastanhada o cachorrinho que
saltara do colo da castelã. Mas a soturnidade da igreja enegrecia-lhe
a linguagem, e a notícia, entregue à sua voz, tombou nas lajes com
uma ressonância de demónio.
Uma filha ilegítima era coisa que tornava os culpados
merecedores da humilhação pública, ao domingo. Que um laird
escapasse ao tribunal divino, que o não sentassem sobre o banco
alçado para que o varasse o ódio dos fiéis, isso, qualquer ministro o
entendia. Caberia à família, no entanto, limpar, portas adentro,
aquele pecado. O laird andava muito pelo Sul, pelas terras do luxo,
disse o padre, onde a nobreza tinha os seus bastardos tal como Sua
Senhoria tinha os cães. Pois a criança, ao que se comentava, vinha
de Londres, onde a mãe ficara.
Num impulso de sogra, a velha lady acusou Anne, ainda antes de
pensar. Viu-a a cavalgar entre os rebeldes, deixando vaga a cama do
marido. Olhou o padre com severidade, enquanto se irritava contra a
nora. E, receando que ele adivinhasse, sorriu. “Tem a certeza do que
diz?” “A certeza, só Deus”, sentenciou o reverendo Tulloch. Mas a
intriga estava em todas as bocas de Edimburgo e as provas eram
tais que ele próprio vira o caso como ofensa pessoal. “Se há um
segredo, eu deveria conhecê-lo.” E quase acrescentou que tinha feito
figura de asno, tão sinceramente revelara o seu espanto. “Tem uns
dez anos já, a rapariga.”
Não faltava dinheiro à Davidson desde que Gilbert lhe levara a
protegida. O padre bem puxara por pretextos para fazer uma visita à
casa, mas não encontrou nada verosímil. “Não achei modo de a ir
ver.
Mas dizem que a rapariga é muda e sai à mãe no tom dos olhos,
que não é comum.”
A Lady “Viúva” fez-se muito pálida, ela que tinha um rosto
normalmente rosado e liso, muito fresco para a idade. O padre
temeu ter exagerado, mas sentiu-se feliz pela influência que ainda
exercia em Eva Macintosh. Pensou que Deus falava no silêncio e
aguardou que ela se recompusesse. O sol cortou subitamente o chão
da sala, e a velha lady agitou-se no assento. “Como se chama a
rapariga?”, perguntou.
“Acho que Lillian”, respondeu o padre, algo desconfiado.
“Lillian?”
“Dizem. Dizem também que... enfim, nasceu em Londres.”
“Ah!”, exclamou Eva, como quem confirma. E bateu palmas, a
chamar o seu mordomo. “Vá comer, padre, e deixe-me pensar.” “Eis
a sobranceria do costume”, murmurou o reverendo para si. Mas
tinha realmente muita fome e seguiu o criado para a cozinha, ainda
que não se achasse satisfeito com o seu papel no rumo da conversa.
***
Anne dera à luz o seu primeiro filho e afastou-se para casa própria,
mal o marido obteve do governo que ela gozasse a plena liberdade.
A memória de Lillias apagou-se rapidamente entre as mulheres
Macintosh, estando, como estava, assente entre elas que a pequena
seguira o seu caminho, livre dos perigos que espreitavam as
mendigas, e que mais não pedia a caridade. Pelo seu lado, Lord
Angus Macintosh só se lembrava da rapariguinha quando Gilbert,
achando portador, lhe dava a entender que conviria mandar papéis
de crédito à viúva. A distância doirava Kitty Davidson aos olhos do
criado, e ele via em Lillian (foi este o nome que julgou ouvir ao amo
quando o notário a despejou na entrada) uma espécie de seguro
que garantia o coração da noiva, no que, aliás, se equivocava
grandemente.

Angus nunca falou de Lillias à mãe ou à mulher, pois poucas


vezes pensava nela e, se por um acaso da conversa, os Fraser lhe
surgiam à lembrança, ele cerrava fortemente os lábios, tentado a dar
notícias da pequena e a estragar assim toda a surpresa. Mas sempre
se conteve. De maneira que, quando o padre veio falar de uma
bastarda, só passado um momento a Lady “Viúva” compreendeu que
ele se estava a referir a Lillias. Pensou que, com tais olhos, a criança
fora, apesar da sua tenra idade, capaz de desviar a história a seu
favor. E aquele pareceu-lhe um desafio onde, à distância, ainda se
ouvia ressoar os Fraser prontos a afrontar os Macintosh, cada qual
do seu lado da batalha.
***

O reverendo Tulloch voltou, lutando ainda com a deglutição do seu


cozido.

Eva estava de pé:


— Livre-nos dela.
— Sabe o que pede Vossa Senhoria? — exclamou o padre, em
vias de engasgar.
Só depois percebeu que pela mente da Lady “Viúva” não passava
o assassínio, mas o encaminhar da rapariga para longe da família
Macintosh. “Arranje alguém que a tire da Escócia para sempre.”
— E pagará?
— Não pago coisa alguma. Ofereça-a para criada de meninos.
O reverendo não gostava daquele tom. No entanto, já tinha
recebido outras ordens da lady, que esquecia a deferência devida a
um ministro. Ele dava por si a acatá-las, contra vontade. Séculos de
amor a lairds caprichosos e afáveis haviam imprimido este comando
no sangue rude de que ele descendia. Aliás, sempre que entrava nas
cozinhas, caía sobre a dádiva das carnes com uma fome que não era
sua. O mesmo coração obediente batia ao toque seco da chibata em
que Eva, irada, ia entretendo as mãos.
— E que dirá Sua Excelência, o lord?
— A rapariga não é filha dele. Nem sei por que a protege há
tanto tempo.
Eva acercou-se mais. Assim, de perto, podia ver-se como ela se
tornara tão pequena, de ossatura mirrada. Era incapaz de olhar de
cima, como dantes o fazia. Tocava a chibatinha na mão esquerda e
aquilo fazia as vezes da estatura. “Ela vem a ser bruxa, digo-lhe eu.”
— Que sabe disso Vossa Senhoria?
— Sei. Mande-me buscar a rapariga e entregue-a a alguém que
vá para longe.
— Porque incomoda tanto essa menina?
A velha lady suspirou. Bateu com a chibata no ombro esquerdo
do reverendo, como quem repreende uma criança:
— Não crê no que lhe disse? Não há nela uma gota do sangue
Macintosh.
— Quem me não der contas a mim, dá-as a Deus — disse
Tulloch. Sempre que falava como vigário do Senhor, o coração
esquecia a lealdade e endurecia.
Mas, no dia seguinte, já pensava em como havia de atender
aquele desejo.

***

E, ao contrário do que prometera, a Lady “Viúva” Macintosh pagou,


e bem, já que o reverendo lhe acudia à porta e desfiava o seu
rosário de obstáculos, de tal maneira organizado que ela tinha de se
chegar ao lume, para que o padre a não visse corar de indignação.

Pagou para que um sobrinho de Tulloch desse o seu apelido à


rapariga que até então vivera sem papéis. Pagou as diligências do
reverendo, passagens, e o silêncio das Davidson. Kitty mandara
avisos ao criado de Lord Macintosh, receando que o seu brilho entre
os homens se apagasse quando Lillias deixasse a sua sala. Mas mais
depressa eles alcançaram o castelo do que Londres, onde Angus se
encontrava. Eva não costumava recear as cóleras do filho, mas
supôs que dessa vez ele não perdoaria.
Havia de mandar os seus soldados baterem Edimburgo, casa a
casa, e esbofetearia o primeiro homem que achasse na soleira da
Davidson, a fim de não tocar numa mulher. Era preciso que a
pequena, disse o padre, se sumisse de vez e limpamente. Tinham-
lhe dado o apelido de McLean, de modo a apagarem-se os vestígios
daquela mãe londrina que decerto a baptizara no seu próprio nome.
Sem o saber, eles devolviam Lillias à sua identidade de escocesa.
Lillias passara aqueles anos de Edimburgo escondida dentro do
seu próprio corpo. Tivera, é certo, algumas rebeldias, mas tão
discretas que nem mesmo Kitty, que, no entanto, se tornara
histérica, encontrava razões para a castigar. Parecia uma criança
cabisbaixa, dessas que têm vocação para a sujidade e que apenas
sorriem aos subornos. Ela, porém, não desviava os olhos, e
embaraçava toda a gente à sua volta. Aquele excesso de serenidade
incomodava mais que uma impudência. Por essa altura, Lillias
percebera que a sua entrada numa sala conseguia perturbar a
fluência da conversa. Mas, enquanto a não viam, os presentes
sofriam como de desatenção, de um desajeitamento de maneiras
como os que o estado da paixão provoca. Muito deste fascínio se
devia ao pressuposto de que a rapariga era filha de Lord Macintosh.
Lillias estava aprendendo a fazer uso do seu olhar, ao estilo da
serpente, e nunca suspeitou de que o efeito que andava a provocar
sobre as pessoas tivesse origem nessa falsidade.

***
Quando o padre, escoltado por sobrinhos, a foi buscar, Lillias nem
estremeceu. Sentiu na face o pranto da viúva a quem os
sentimentos visitavam de forma arrasadora, à despedida. Ela deitara
à filha um soporífero e tinha à sua conta todo o drama da venda da
criança. Vivia intensamente aquela hora, tanto mais que, no fundo,
suspeitava que a estada de Lillias em sua casa acabaria por trazer
problemas.

A penugem azul da madrugada ainda se achava assente nos


degraus, e os pés dos visitantes arranhavam, como cascos perdidos,
o soalho. A menina deixava-se levar, flutuava e batia contra os
móveis, que, à pouca luz, pareciam fabricados por um mero capricho
da poeira. O reverendo Tulloch era robusto e a má vontade com que
estava agindo fê-lo pegar em Lillias pela cintura. Levou-a escada
abaixo, como um fardo, enquanto a velha Davidson chorava,
deitando ao chão o saco das moedas e avançando um passo para o
cobrir com o folho do saiote, como a um cão. Depois, o próprio vulto
da viúva pareceu rodar no patamar e dissipou-se.
Lillias não viu, que não olhou para trás.
VIII
Não sei se as coisas se passavam deste modo em todas as
mulheres daquela idade. Sei que Miss Frances Connelly viu a palavra
inscrita sobre a neve, em frente à porta, mal a entreabriu nessa
manhã.
Virou-se para dentro, suspirou e, quando olhou, ela
desaparecera. Isso desesperou-a, pois provava que não era partida
de garotos, mas uma informação da própria alma.
Tinha vinte e nove anos e um aspecto ainda francamente juvenil.
Mas a palavra “solteirona” visitara-a, saltara-lhe da rua para o
pescoço, fazendo força, começando logo a puxá-la para baixo, para
a velhice. De maneira que Fanny se dobrou sob aquela evidência e a
tia foi encontrá-la no chão, desfeita em lágrimas. Ela tão-pouco
conhecera homem, porém levou bastante tempo a perceber aquele
abatimento da sobrinha. Dali para a frente, era preciso distraí-la.
“Será melhor ires visitar a tua irmã”, disse, por fim. “Dava-lhe
jeito alguma ajuda.” Ambas sabiam que à ideia da viagem se
associava ainda alguma esperança, algum comerciante que
aguardasse por uma conterrânea para casar. Fanny sentiu que o seu
semblante se alterava com a vergonha desse pensamento. “Só se
também vier comigo”, respondeu. E desviou os olhos para a janela,
para a neve onde já nada estava escrito. Humilhava-se em vão.
Nunca teriam dinheiro suficiente para partir.
***

“Pago mais o silêncio do que o feito”, disse o padre Tulloch. Não se


atrevia a ver naquilo intervenção divina. Falava com cuidado, para
que o nome de Deus não aparecesse no negócio, nem por
automatismo da linguagem. Mas a conversa de Aileen Connelly, que,
em visita à igreja, se queixava dos nervos da sobrinha, parecia
atendimento de uma prece.

O padre resistira à tentação de olhar para cima, e arrastara


Aileen para o lado de fora do portal. A neve em flocos ia-os
recobrindo e eles tremiam sob a dor do frio. As mãos arroxeadas de
um e de outro tinham parado de agitar-se, empedernidas, e eles
eram obrigados a bater com as solas no chão.
Formavam um conjunto misterioso, um tanto obsceno,
segredando a ponto de misturarem o vapor das bocas. Mas o
reverendo Tulloch antes queria criar suspeitas nos paroquianos do
que acordar a cólera de Deus, levando o assunto para Sua casa.
Aliás, com o tempo que fazia, ninguém reconhecia o próprio
irmão senão no instante de chocar com ele.

***

Julgando que a levava para longe, o reverendo Tulloch trazia Lillias


de regresso às charnecas de Inverness. Acolitado pelos dois
sobrinhos, ele cavalgou, parando o menos que podia, com a menina
agarrada às suas costas, ligada a si por muitas voltas de uma corda,
para não cair, se acaso adormecesse.

Era perigoso andar de noite pelas ruas, pois o olhar dos tempos
divisava rebeldes, não amantes, sob as capas. Por isso, os vultos já
se destacavam quando os homens pararam à entrada da casa das
solteiras Connelly e alguns vizinhos assistiram, dos postigos, ao que
não conseguiram entender.
A história que Aileen inventou para a sobrinha parecia mal
urdida. Porém, Fanny fizera certamente as suas rezas e tomou a
menina, e o dinheiro, como uma graça que exigia dela bondade e
pouca veia para perguntas. No entanto, assustou-se quando à luz da
lamparina entreabriu a capa e deu com Lillias.
Estava muito alta para a idade e tinha um ar tão magro e
macilento que facilmente a suporiam prisioneira. A sua transparência
repugnava, como se, ao vê-la, a achassem incapaz de fechar bem as
suas imundícies, os vermes que lhe andavam na barriga, o pus de
alguma chaga nos pulmões. Era preciso um novo movimento, um
reconsiderar, para que os olhos assentassem de novo na criança e
avistassem beleza e desamparo. Fanny pegou em Lillias pela mão.
“Como te chamas?”
— Lillias Fraser — respondeu. Aileen virou-se atónita para o
padre: — Tinha-me dito que ela não falava.
O reverendo Tulloch escondia o rosto para que Fanny não o
conhecesse. Sob aquela surpresa, descobriu-se, mas não deixou de
disfarçar a voz. “A rapariga chama-se MacLean. Lillian MacLean.
É órfã e não fala.”
— Tem a certeza? — perguntou Aileen. Era provável que de
madrugada as fadas se metessem na conversa e provocassem certas
ilusões.
— Não percam os papéis — disse o reverendo. E empurrou os
sobrinhos para a saída. “Pago mais o silêncio do que o feito”,
lembrou, puxando o cachené sobre a cabeça.
Portugal, 1751

I
Lillias temeu terrivelmente o mar. No entanto, não cedeu à
tentação de se livrar do medo por palavras. Estava muito distante já
o dia em que Anne Macintosh lhe dera a ordem de não falar, para
lhe salvar a vida, ao fazê-la passar por inglesa. Mas a boca fechada
defendera-a da feia intimidade das Davidson. Dissera o nome,
aquela madrugada em que o padre a levou para Inverness, e ouvira-
os gritar à sua volta, como se um animal os atacasse. Não lhe fora
difícil regressar ao silêncio a que andava habituada, pois Aileen
Connelly e a sobrinha não queriam perguntar-lhe coisa alguma. Não
se atreviam a pensar que o padre as envolvera numa história negra,
e preferiram mostrar-se afadigadas com os preparativos da viagem.
Acreditavam na mudez da rapariga, o que as poupava a muita
informação.
Davam-na como órfã e criada de sua casa, embora Lillias fosse
tão indolente que se viam obrigadas até mesmo a vesti-la, sob pena
de ela ficar em camisinha todo o dia, aconchegada à protecção do
lume.
No barco, enquanto as Connelly jogavam whist e iam fazendo as
suas amizades, que os balanços tornavam bem mais físicas do que o
pudor, em terra, acataria, Lillias quase não podia ter-se em pé.
Fitava as ondas com extremo horror e contraía os lábios de tal
modo que a serrilha dos dentes os cortava. Parecia uma criança
maltratada, com inchaço e negrões de espancamentos. Fanny
chegou a condoer-se, mas os olhos de Lillias assustavam-na,
cravados nela tão intensamente que se sentia odiada sem razão.
Não soube que aos terrores da menina se juntava o seu rosto de
afogada de onde se suspendiam, mordiscando, peixes de prata que
pareciam filigrana. O grande corpo balançava-se nas águas, redondo
e verde, entre os rasgões da saia. Era preciso um esforço violento
para que ele se endireitasse e encolhesse, para que o gosto a
sangue quente dispersasse os pequenos necrófagos, e Fanny a
estivesse de novo sacudindo, exasperada com o sofrimento que
atravessava os olhos de Lillias. “Que tens tu? É
enjoo? É só enjoo?”, foi perguntando, até que se calou. “Só
temos de a levar e deixar lá”, disse-lhe a tia. “Bem sei que é uma
criança, mas não parece precisar de nós.”
Seria na viagem de regresso que Frances Connelly se afogaria,
por se deixar cair da amurada, a um sacão mais pérfido do mar.
Isso, porém, ninguém sabia ainda, e aqueles dias de navegação
pareceram tão propícios que somente nas orações da noite os
passageiros se lembravam dos perigos de um naufrágio. Era noite
cerrada quando enfim aportaram ao Tejo. Deitada sobre a capa,
ouvindo os remos dos pequenos batéis de encontro ao casco e as
imprecações em língua estranha, Lillias esfregava os olhos, receando
sofrer de alguma espécie de cegueira, pois tanta actividade
pressupunha que as coisas se mostrassem sob a luz. Fanny rugia de
furor contra a paciência da tia, que parecia dormitar. Mas realmente
não desembarcaram. E quando a luz do dia regressou, achavam-se
outra vez longe da costa.
Aileen, temendo os nervos da sobrinha, adiantou-se a conseguir
informações. O capitão estava passando à pressa boletins de saúde,
com a data falsificada para um mês atrás. E o barco rumava ao Sul,
para o porto chamado Saint Tubes. “Mas quanto tempo mais?”,
perguntou Fanny.
“Não muito”, disse Aileen. Porém, os ventos barravam o caminho,
como um touro.
Lillias sentia a frouxidão das águas, aquela espécie de
desassossego, um rastejar de cobra sob os pés.

***

Só pelo fim do dia Fanny veio arrancá-la do chão. Estava feliz e não
admitia que ninguém, nem mesmo Lillias, se alheasse do momento
em que viam o porto ao seu alcance. A perspectiva de voltar a terra
levava toda a gente a comover-se.
Ao largo, sobre barcos que pareciam fazerem um só corpo com
as águas, os pescadores estavam cantando as vésperas. Cantavam
como mortos, abatidos pela paz daquela hora e, ainda que olhassem
para as igrejas, a sua voz caía sobre o mar e ardia levemente, como
um óleo, tocada pelo sol que se enganava e se acercava a receber
aquilo que lhe parecia uma oração pagã.
Estava-se em Abril mas, apesar da luz esplendorosa do
crepúsculo, a negridão das almas aparecia. A imobilidade e a tristeza
empurravam para baixo, para o lodo. Isto viu Lillias, como viu a hera
comendo as pedras de um palácio que, em verdade, só oito anos
mais tarde cairia, partido a malho, como as pernas do seu dono.
Todos os outros, passageiros e marujos, tremiam do desejo de
descer, imaginando as mesas postas, as maçãs doiradas, as selhas
que entornavam água morna. Os pescadores calaram-se e, com
eles, calou-se o vento. Era outra a luta agora, a das pequenas luzes
contra a noite. Os barcos avançavam pelo mar e pareciam fugir da
escuridão, pondo a salvo o clarão das suas tochas.
A gente debruçada na amurada estendia os braços, como a
implorar. “Só poderiam, disse o capitão, dar por finda a viagem de
manhã, após visita das autoridades. Viriam funcionários da
alfândega. E o delegado da Inquisição.”
A palavra voou pelo convés como uma faca que cortasse as
línguas. Ou porque a noite se adensasse, ou pelo medo, os altos
vultos dos britânicos a bordo perdiam de repente o seu volume. As
mulheres tinham frio e Aileen esfregava nervosamente as costas da
sobrinha. Lillias riria se não fosse perceber que havia que passar
mais uma noite nas agonias da ondulação.
E depois o murmúrio começou: “As Bíblias! As Bíblias!”, diziam.
Era preciso que buscassem nas bagagens e escondessem as Bíblias
cujo texto estava não em latim, mas em inglês.
Os dedos cegos empurravam a criança como empurravam tudo à
sua frente. O navio sacudia-se, julgando que o atacavam ratos
aturdidos. As tábuas, descoradas pelo sal, fosforesciam
enganosamente e toda a gente se perdia no caminho.
Ainda que em Portugal os ingleses fossem alvo de má opinião,
tinham tal importância que ninguém os perseguia por antipapistas.
Mas aqueles que chegavam estremeciam como se não houvesse
protecção.
Lillias acocorou-se nos cordames. A febre que saía das pessoas
batia-lhe na testa, entorpecendo-a. O futuro parecia assustador mas
a menina, mesmo assim, adormeceu.
***

O delegado da Inquisição foi, afinal, amável com as mulheres.


Mandou apenas que puxassem os cabelos, para ver se não usavam
cabeleiras. Quanto aos homens, tomaram compromisso de não
falarem com as portuguesas nem urinarem perto de uma cruz.
Quando desembarcaram, viram como a jura era difícil de cumprir,
pois a cruz existia em toda a parte.

***

Talvez que Frances Connelly adivinhasse que não mais tornaria a ver
a Escócia. Para desgosto da tia, não parava de buscar semelhanças
na paisagem. “Deixou os olhos lá”, pensava Aileen. Isso faria com
que não prestasse verdadeira atenção aos pretendentes, caso
viessem a surgir alguns.

Iam todos em grupo para norte, os que se destinavam a Lisboa.


Não conseguiram carros para as mulheres e também elas oscilavam
sobre as mulas, cujo capricho as inquietava mais do que uma espera
dos ladrões de estrada. O guia, a quem chamavam chetsarona,
chicoteava os animais regularmente, querendo talvez passar por
entendido, de maneira que os pobres viajantes se achavam
disparados para a frente, operando trabalhos de equilíbrio com
aptidões até então desconhecidas. Lillias seguia alcandorada entre
as bagagens, pois o seu peso não justificava que se pagasse mais
um aluguer. A terra, lá em baixo, estranhamente descorada do sol,
reconfortava-a. Era como se voltasse a merecê-la, como se o perigo
dessa cavalgada fosse a última prova antes de os pés se firmarem
de novo sobre o chão.
Na subida da serra percebia-se que o avanço dos homens se
deteve bem longe das encostas a ocidente. Baixa e feroz na sua
mata atlântica, a natureza impunha o seu mistério. Mas, à direita, os
campos cultivados, as cepas ainda nuas dos vinhedos, cabanas e
moinhos, gado e cruzes, testemunhavam a ocupação.
As flores bravias irrompiam como pus, amarelentas e de mau
odor. Aquela gente, exausta e indignada, forçada a dar a volta por
Setúbal com despesas de tempo e de dinheiro, seguia atormentada
sob a luz. O chetsarona só falava por sacões e em casos de absoluto
desespero. As suas ordens eram monossílabos, como gritos de
guerra, reforçados por acenos frenéticos das mãos. Os viajantes
entendiam pouco, cabeceavam, apalpando os sacos de jóias e
moedas que levavam a tiracolo por debaixo das camisas.
As estalagens não serviam alimentos, ainda que o uso de mesas
e utensílios fosse pago. Tinham de abastecer-se nos casebres, com
mulherezinhas que puxavam os cabelos, exasperadas com as contas
e os trocos. Os ingleses traziam facilmente dinheiro português que
circulava com abundância pela Grã-Bretanha, moedas com a efígie
de João V a que eles davam o nome de moidores. Enquanto que, na
Escócia das montanhas, não existiam os salteadores por serem raros
transeuntes com dinheiro, a caminho do Sul já os temores das
emboscadas iam aumentando. As cartas da família e dos amigos
estabelecidos em Lisboa mais falavam da muita porcaria que dos
roubos. Porém, ninguém se havia preparado para aquela travessia
da Arrábida. Além do mais, andavam pela serra loucos e eremitas
que trepavam aos fraguedos mais altos e uivavam, lançando
maldições às caravanas. Os frades capuchinhos, esbaforidos, subiam
do convento para os buscar.
Ao encetarem a descida para Lisboa, Fanny avistou uma
charneca arroxeada. “Urze”, gritou. E o seu contentamento, o seu
sotaque quase indecifrável levaram os ingleses a sorrir. Aileen estava
corada de vergonha. Mas o entusiasmo da sobrinha tornava aquelas
léguas agradáveis e quase todos a cumprimentaram quando chamou
à Moita outro Kinghorn e comparou as marés daquele rio às do seu
Firth.
Só embarcaram ao anoitecer. E, embora tivessem alugado
diversos barcos para que a travessia lhes desse finalmente algum
conforto, tropeçavam em porcos, peixes mortos, couves já
fermentadas do calor. Tinham partido havia pouco tempo quando os
barqueiros e os seus rapazes se levantaram para cantar as vésperas.
Parecia que Lisboa só dispunha de escuridão para lhes oferecer.
Sentindo novamente essa ameaça das águas por debaixo dos
seus pés, Lillias chorou e Fanny apiedou-se. Puxando-a para si,
sentou-a ao colo. O seu terrível rosto de afogada respirava para cima
da criança.
II
— Não gosto dela — disse Mary Martin.
Para escândalo da tia e da irmã, tinha mudado o nome de
baptismo. “Moyra”, explicou, na língua portuguesa, não era modo de
chamar uma crista. E, em Lisboa, nem sequer a criadagem tratava
os amos pelos apelidos. Desviavam os olhos ensonados quando
insistia em que a chamassem Mrs. Martin.
“Senhora Mary, minha senhora”, murmuravam, com uma teimosia
de animal.
Moyra achava-os difíceis de educar e, ainda por cima, muito
intrometidos. Mas as maternidades sucessivas haviam-na tornado
negligente e agora passeava pela casa com um vago sorriso, como
cega.
Aileen falava dos distúrbios da idade que lhe prejudicavam a
memória. Esquecia o novo nome da sobrinha e só não lhe causou
mais embaraços porque mesmo os ingleses de visita tinham
dificuldade em entendê-la. O coração de Mary dividia-se. A chegada
de gente do seu sangue dava-lhe o gosto de uma intimidade de que
se havia desabituado e que agora a tornava malcriada. Os Martin
estavam bem considerados no meio dos britânicos, não só junto da
burguesia com negócios, como até da elite diplomática. Era certo
que o cheiro a bacalhau dos grandes armazéns do rés-do-chão subia
às vezes ao primeiro andar, o que levava Mary a aspergir os estofos
com água-da-hungria. A queima de ervas era receada.
Os ingleses chamavam macaronies aos afectados pelo Continente
e não havia macarronice mais vincada que a dos comPatriotas em
Lisboa. Mary estava cansada do marido cuja fertilidade a desfazia e
só parecia ser chamada à vida quando se embonecava para os
parties. A singeleza da família Connelly ficara para sempre entre as
montanhas. As saudades que tinha de Inverness irritavam-na tanto
que as tomava por um disfarce do ressentimento. Olhava para trás
como se um lobo a tivesse tentado abocanhar; preso nos dentes
dele via o destino de quase todas as mulheres das Terras Altas.
Aquilo era invulgar numa escocesa. Mas Mary, ao escapar-se do seu
lobo, deixara-se cair noutra goela. A ambição fazia-lhe doer.
Ainda que não tocassem no assunto, todos compreendiam que
Aileen vinha para deixar a sobrinha em Portugal. Lisboa estava cheia
de ingleses, comerciantes ricos e seus primos, afilhados, irmãos, que
estagiavam, aprendendo a criar uma riqueza como outros seguem
uma profissão. Mary sofria antecipadamente com o momento de
casar as filhas. Havia, é certo, muito fidalgo português disposto a
liquidar as suas dívidas com o dinheiro de uma burguesinha que lhe
quisesse desposar o título. Mas os nativos receavam as inglesas,
licenciosas e antipapistas. Mary já começara as diligências para levar
os conterrâneos a aceitar, como parte do dote, o esquecimento das
obscuras origens do marido, que a namorara enquanto pescador e
apanhador dos ovos nos rochedos. Tinha anglicizado o apelido,
mudando-o de O'Mairtín para Martin, para que não houvesse
confusões com os irlandeses, que eram desprezados, quase tão
pobres quanto as gentes da Galiza. Uma reputação requeria mais
talento para se impor que uma fortuna.
Ainda que a mais velha andasse apenas pelos oito anos, era na
modorrice dos salões que a mãe ia cuidando do futuro. A chegada
de Fanny e da tia pareceu-lhe escancarar uma janela por onde a
velha Escócia, rude e gelada, vinha quebrar as chávenas de chá.
Não somente o aspecto, mas a fala, denunciavam Frances Connelly.
Olhando-a, os ingleses de Lisboa decifrariam finalmente o que os
deixava de algum modo intrigados quando Mary, já um pouco
bebida, começava a bater com o pé contra o sobrado, numa
obcecação por cantorias pouco vulgar em damas elegantes e
absolutamente inusitado numa novata que devia concentrar-se.
Ainda assim, os laços de família levaram a melhor; e em breve
Fanny gritava de terror às mãos da irmã que a sufocava em barbas
de baleia e lhe emprestava o seu cabeleireiro. Os seus cabelos loiros
e encrespados viam-se repuxados em altura e cravejados de zircões
e flores de seda. Ela tossia com o pó-
de-frança que lhe cobria o rosto e o pescoço.
Aileen olhava aqueles preparativos de uma distância um tanto
temerosa. Empregava a desculpa da idade para se furtar às
apresentações. “Não, Moyra, eu não”, dizia. E em vão esperava por
alguma insistência da sobrinha.
Ela punha o carmim sobre os malares, colava o sinalzinho de
cetim e apreciava reticentemente o porte embaraçado da irmã. “Fala
o menos possível”, ordenava. E tapava-lhe a boca com o leque.
***

— Não gosto dela — disse Mary Martin.

Parecia não ligar à rapariga e, no entanto, ia baixando a voz


sempre que a pressentia ao pé de si.
Temera-a mal a vira, acobertada pela saia de Aileen, resvaladiça,
como eram as crianças dos ciganos. Espreitava somente com um
olho. No vão da porta, contra a luz de Abril, uma íris de cobre
cintilava.
Por estranho que pareça, apenas Mary, de entre tanta mulher
que a teve em casa, se apercebeu do dom de Lillias. Aileen explicou-
lhe que ela não falava, e a sobrinha dispôs-se a aceitá-la para criada
das meninas, atendendo — pensou, sem, no entanto, o confessar —
a que não poderia corromper o belo inglês em que as andava
mergulhando.
Viu-a depois, na sombra da braseira, fazer-se muito branca e
estremecer, quando a ama, chamada àquela sala, se aproximou com
a mais nova das crianças, que era um rapaz, sonhando nos seus
braços.
Mary sabia dessa palidez que cobria os videntes e assustou-se.
Porém, mordeu os lábios, furiosa, e não tocou no assunto com a tia,
nem sequer com a irmã. Acreditava que ambas sabiam bem o que
faziam ao trazerem-lhe aquela criatura capaz de adivinhar-lhe um
mal nos filhos. “A terceira visão”, pensava, ouvindo as vozes das
mulheres da sua infância, quando se recolhiam à passagem de certa
velha, ou de uma ruiva sem pestanas, para que elas as não vissem
rebentadas, com os vermes saindo do nariz. A terceira visão
mostrava a morte ou, pelo menos, o sangue e o sofrimento.
Desvendava o futuro, ainda que nada se pudesse fazer para o evitar.
O puro horror caía sobre os olhos e lá ficava dentro, esvoaçando.
— Não gosto dela — disse Mary Martin.
Seguia os movimentos do seu rosto, receando que a morte das
crianças nele se espelhasse. As suas mãos de mãe lutavam
ferozmente contra o ar, contra aquela ameaça que Lillias trazia em
si, como outros trazem uma peste. E expulsou-a para os fundos,
para a cozinha.
Tornou-se claro que a não queria ver e que não ia confiar-lhe as
filhas, ainda que as Connelly não vislumbrassem qualquer razão para
tanto agastamento. Haviam prometido ao padre Tulloch que
achariam um lar para a pequena e recebido o seu dinheiro por isso.
Aileen não se encontrava satisfeita porque o tempo passava, o calor
ia tornando as ruas cada vez mais fétidas e os ingleses perdiam a
vontade de fazerem convites para os serões. Muitos refugiavam-se
no campo. Fanny parecia acabrunhada e emagrecia, o que em nada
jogava a seu favor. E a irmã mostrava-se impaciente, tropeçava na
areia que uma negra tinha espalhado pelos corredores e ia
encharcando a espaços, com deleite. Mas, apesar das preocupações,
e ainda que não sentisse compaixão, Aileen pensava no que
prometera ao padre e punha-se à procura da criança cujo cabelo
havia escurecido, coberto como andava pelo fumo, de tal maneira
que se confundia com a ramagem seca para o fogão. Chamava-a,
porém Lillias não ouvia. Estava entre as negras, vendo como abriam
sob o calor as pernas varicosas.
Cantavam. O suor e a fuligem mascarravam as faces de Lillias. E
elas riam, como se assistissem a uma pantomima no terreiro. A
cozinheira queria impor respeito, mas acabava por se rir também.
***

“As nossas almas estão comprometidas”, considerou Aileen. Falava


baixo, querendo dar a impressão de que o assunto a perturbava de
tal modo que começara a murmurar sozinha.

— Pensei que ia agradar-te a rapariga — dizia finalmente para


Mary, ao ver gorada a sua exibição. -
Além do mais, foi graças a ela que viemos. Não tínhamos
dinheiro para as passagens.
A sobrinha puxava o fio doirado do seu bordado a bastidor com
uma força que não devia realmente usar. Sentia-se bem pouco
agradecida e suspirava por casar a irmã ou por vê-la no barco de
regresso.
Fanny mostrara a sua decepção quando, ao contrário do que
tinha ouvido, não achou verdadeira semelhança entre a cidade de
Lisboa e Edimburgo. Eram as duas construídas em altura, porém
teria de arrastar-se o Calton Hill até ao centro para que se
parecessem. A negligência com a porcaria incomodava mais num
lugar quente. Nenhuma Connelly estava feliz. Mas Aileen não
esquecia o seu contrato a respeito de Lillias. Receava que, mal
voltasse costas, a mandassem para o meio da rua. O avanço do
Verão tornava as almas ainda mais irritáveis e indolentes, uma
estranha mistura que os britânicos jamais conseguiriam entender.
***

Lillias andava mal alimentada e aprendeu com a criadagem a roubar.


Ficou doente e dormitava no seu canto, sem que ao menos as
negras, conhecidas pela facilidade com que amavam, lhe chegassem
um caldo, um pão francês. Se fosse Inverno, não resistiria. Pelos
parâmetros da época, não era já nenhuma criança. Tinha idade para
se fazer útil numa casa. Porém, dado que Mary a ignorava, todos, a
começar pelos seus filhos, se habituaram a olhar através dela, como
de uma cortina à transparência.

Alguma coisa de ouro resplandecia e se apagava para abrir


passagem. Lillias via os que iriam morrer e afastava-se, para evitar o
toque do seu pus. Detestava o pequeno Vincent Martin, que cravava
as gengivas nos mamilos deformados da ama, adormecia, e
começava a desfazer-se devagar. Não era ele o único na casa.
Um dia, Mary Martin decidiu que não queria Lillias entre os seus.
— Que sabe a tia acerca dela? — perguntou.
— Praticamente nada — disse Aileen. — Sei que se chama Lillias
MacLean.
— De que MacLeans?
A tia não podia acrescentar nenhuma informação. Tinha os
papéis que o padre lhe entregara, e supusera que isso resolvia todos
os problemas no estrangeiro. Não contara com a birra da sobrinha.
“As nossas almas...”, começou. Mas ela saiu da sala sem a querer
escutar. Ao contrário da irmã, que definhava com saudades da
Escócia e já falava em regressar a casa antes do Inverno, o que
denunciava uma demência, Mary não era uma resignada. Fazia
planos para a sua gente e diligenciava por cumpri-los.
— Vou pô-la no convento — anunciou, no meio da conversa do
jantar. Estava um brilhante sábado de Agosto e até Fanny parecia
ganhar cor.
— Em qual convento?
— No convento inglês.
Aileen não se atreveu a protestar. Objectou apenas que as
freirinhas eram de Santa Brígida, católicas. Mary olhou-a de maneira
que a calou.
John Martin, o marido, levantou-se antes do fim da refeição,
ligeiramente trôpego do vinho, sem perceber de quem falavam elas.
O calor português embrutecia-o.
III
Pela primeira vez na sua vida, desde Culloden, Lillias conversava.
Servia de criada a Soror Theresa, que era uma mulher larga,
claramente vocacionada para a maternidade. A freira declarava-se
encantada por ter à mão aquela conterrânea, a cujo nome de
escocesa as circunstâncias conferiam um tom familiar. Mary dissera
que a rapariguinha não sabia falar e a freira quase entornou o seu
leite quando ouviu uma outra voz que não a sua, naquele quarto
onde não se encontrava mais ninguém. Lillias olhava para o ar,
surpreendida, como se a boca lhe cuspisse um animal. Não percebia
bem o que dissera e tudo aquilo pareceu assustador, a surpresa da
freira, os sons meio roucos, jogados como pedras para cima da
mesa preparada para o chá. A cela estremecia e, se Theresa não
tivesse sorrido, deitando ao chão a taça da compota com um gesto
mais amplo que o previsto, já que o momento a entusiasmara, Lillias
escaparia para a rua. Assim, chorou e riu. Soror Theresa, cujo inglês
denunciava uma ruralidade que, por vezes, a fazia corar, tomou
aquilo por um convite à adopção espiritual. Com escrúpulo de mãe,
ia apurando a sua própria fala, de maneira a que ambas
alcançassem a pronúncia apoiada nos dentes, dos londrinos. Não lhe
deu tratamento de criada e Lillias, que vivera em privação de um
corpo de mulher que a embalasse, necessitava dela anormalmente.
Encostava-se à freira, afagava-lhe o cabelo cortado, adormecia com
o rosto encostado às suas pernas.
Tinha idade bastante para mentir a respeito de certos episódios.
Dizia-se nascida em Edimburgo e entregue às Davidson depois que
os pais morreram de doenças do Inverno. Essa era a história que
podia contar. Palavras como Fraser ou Culloden, ou Anne Macintosh,
jaziam num terreno inominável, tão privado quanto uma cicatriz no
baixo-ventre.
***

As freirinhas inglesas socorriam-se do português “saudades” para


exprimir o que sentiam quanto à terra-mãe. O nome do convento
original, dito “Syon”, prestava-se à imagem de uma população
abandonada ao cruel sofrimento do exílio. Na verdade, as freirinhas
não voltaram ao seu país, nem quando os protestantes, antes do fim
do século dezoito, se dispuseram para as receber. Tinham felicidade
num lugar onde gozavam do calor do Sol e de boa pensão do rei de
Espanha. A casa delas era confortável, em Buenos Aires, onde os
ingleses procuravam morada no Inverno. A luz e a brisa do rio Tejo
levantavam-se, limpando de miasmas a encosta.

Os lisboetas adoravam-nas. Havia um impulso simpático para a


Ordem que tinha sido expulsa de Inglaterra, pelos mesmos hereges
que mandavam agora no comércio em Portugal. Como todas as
freiras daquele tempo, elas eram alegres e expeditas, até no modo
de fazer dinheiro. Caixas de esmolas com a sua padroeira viajavam
nos navios de longo curso. A menor ameaça de naufrágio, ficavam
atulhadas de moedas.
Havia no convento aquela espécie de sexualidade desviada que,
ao afastar-se do seu centro erótico, se livrava da culpa e do terror.
Os sentidos mantinham-se excitados à força de ovos e de visitantes
e, daqueles corpos que não iam procriar, saíam risos, gritos e
cantigas, lavores minuciosos, doçaria. Um cheiro de amêndoas e de
caramelo andava misturado com a cera das velas de domingo. Água
de rosas fervia com açúcar nas cozinhas.
As freirinhas batiam-se nas faces para as carminarem, numa
garridice que condizia com a pressa das sandálias no seu caminho
para o parlatório, Quando se descerravam as cortinas e os
marinheiros protestantes se empurravam para chegarem às grades
e, quem sabe, roçar de leve um dedo distraído, alguma coisa de
bordel vinha assentar, por um momento, sobre os azulejos.
Lillias gostava de levar o tabuleiro e de passar os pires onde
brilhava a prata de minúsculas colheres até às mãos muito
enervadas dos marujos. Eles traziam presentes, à maneira dos
frequentadores portugueses cujas carruagens muitas vezes
bloqueavam o acesso aos conventos femininos. Soror Theresa
entregava a Lillias frasquinhos de perfume, lenços, sedas. A certa
altura, o olhar dos visitantes começou a buscar a cabeleira, os olhos
cor de mel da rapariga, e a abadessa proibiu-a de mostrar-se.
Lillias crescera muito e habituara-se, sem pânico, aos sinais da
puberdade, ainda que não trocasse confidências com ninguém, nem
sequer com as criadas. Mas tinha os seus momentos de cozinha e
aprendeu a falar o português com serventes gulosas que mudavam
de estado de alma com facilidade. O sol forçava os seus humores a
transpirar e tudo acontecia à superfície. Tresandavam a sangue, a
caspa e a urina, deitavam lágrimas a rir e a chorar. Lillias vivera
tanto tempo separada dos outros corpos que se nauseava com o que
lhe parecia uma indecência e, no entanto, não tardava a procurá-las.
O amor de Soror Theresa não bastava para a compensar da falta de
uma mãe.
Theresa tinha também a sua história, mas ninguém a virá contar
aqui. Saberemos apenas que as católicas necessitavam de dinheiro,
de coragem e de robustez física para escaparem à vigilância inglesa
e conseguirem chegar, com o seu dote, a um convento, algures na
Bélgica, ou em Portugal. Não admira que poucas alcançassem os
seus fins. Apesar dos seus modos cativantes, as freiras do Siao ainda
sofriam de arrogância britânica. Temiam, mais do que tudo, ver a
sua casa encher-se de noviças portuguesas. Lillias parecia o caso
exemplar de uma escocesa destinada a trabalhos inferiores, e todas
a mimavam, gratas por se poderem recordar do mundo como o
tinham conhecido.
***

Naquele período de felicidade, mesmo a exterioridade dos católicos


pareceu muito agradável a Lillias. Ela ignorava que a volúpia maior
daquele teatro consistia em pôr gente nas fogueiras. As cores, os
cânticos, as imagens com peruca, vestidas de veludo e diamantes,
aquela intimidade quase física com os pequenos santos que podiam
andar de porta em porta, qual parentes, tudo a excitava por
contraste com a severa fé presbiteriana. Para as missas de domingo,
celebradas em igrejas agrestes onde estava disposto um palco para
julgamentos, os vigilantes das paróquias escocesas entravam sem
cerimónia pelas casas a fim de arrebanhar os refractários. Era uma
crença escura e sem perdão. O desespero levava-os a dançar, como
se diz que se dançava nas cidades empestadas. Enquanto isso, os
católicos cantavam, estalando os dedos, no esplendor das
procissões, depois de todos, nobres e plebeus, se terem arrojado
sobre as lajes, para que os pisasse a glória do Senhor. Achavam-se
num estádio primitivo, sem domínio de si, e realmente evocavam
crianças, muito tácteis, frágeis perante a sua própria crueldade.

Lillias rapava o fundo aos tachos onde tinham cozido os doces,


ria, disputando as colheradas com a criadagem. Às vezes uma delas
escorregava, caía sobre o chão onde as galinhas e os gatos
procediam à limpeza, comendo aquilo que iria apodrecer. E até
mesmo nos tempos da Quaresma, ou durante os sermões em que o
prior estava determinado a assustar, e exibia caveiras de enforcados,
o corpo adolescente de Lillias mantinha a sua plácida alegria.
Via morrer aqueles que a rodeavam, via-os sofrer quando se
divertiam e nada suspeitavam do futuro.
Mas aprendera a desviar os olhos. Já conhecia a qualidade das
visões que antecipavam o desastre sem que nada se pudesse fazer
para o impedir. Era uma graça da qual ela começava a defender-se
como de uma maldição. Agora que falava e que a ouviam com
benignidade, a compaixão levava-a novamente para o silêncio. No
entanto, sem querer, enternecia-se com aqueles que sabia
condenados. Isso levou a que uma freira idosa suspeitasse e
evitasse a todo o custo o seu olhar. Lillias não desejava aquele poder
que causava mal-estar entre as pessoas a quem amava
dedicadamente. Sorria para a velha e afagava-lhe as mãos que nem
as luvas aqueciam. A freira preparou-se para morrer e tentou
prevenir a abadessa contra os desvelos da rapariguinha. Julgaram-
na demente e, com efeito, a tão temida morte não chegou.

***

Mas uma noite Lillias acordou sem entender porquê e, ajoelhando no


seu enxergão térreo, olhou para a cama de Soror Theresa que
dormia em paz. A lamparina iluminava Santa Brígida, na sua
estampa debruada a renda. A luz pareceu ganhar intensidade sobre
o corpo da freira e revelou o animal que lhe escavava o seio
esquerdo, devorando os tecidos e avançando, até que a pele vazia
se abateu. O mamilo estava estranhamente intacto, rosado,
encarquilhado como um rato recém-nascido, a flutuar na chaga.
Lillias acompanhou a caminhada do animal por dentro da mulher.
Túneis cruzavam o seu grande corpo, rompendo as veias e os
intestinos. A mesma massa que em criança vira a sair da barriga do
seu pai fazia agora inchar Soror Theresa, transformava-a num
monstro enegrecido. Lillias sabia exactamente aquilo que estava a
ver.

Esfregou os olhos, sacudiu a freira que lhe sorriu e lhe virou as


costas. O seu rosto, corado pelo sono, parecia muito belo. O cabelo
curto, que a falta de ar tornava pardacento, recuperara o brilho.
Lillias permaneceu sentada à sua beira, como se a conseguisse
proteger.
A rapariga emagrecia a olhos vistos. Vivera quase toda a infância
sem falar, de forma que lidava com o silêncio com competência
imprópria para a idade. Não respondia quando perguntavam o que
sentia e por que tinha tal aspecto, e isso mais inquietava toda a
gente. Preparavam-lhe doces de galinha, ovos sem clara. O médico
sangrava-a, receando que se tratasse de um começo de histeria. A
preocupação com Lillias fazia Theresa emagrecer também. Só deu
pelo seu mal, que em todo o caso era irremediável, umas semanas
antes de morrer.
Não é de admirar que Lillias tenha rezado com fervor naquela
altura. Facilmente os católicos chamavam pela mãe de Deus como se
fosse sua mãe, para que viesse, de candeia acesa, expulsar da noite
todo o pesadelo, passando os dedos pela testa humedecida de uma
criança a quem o sono fatigou.
Pensavam que, puxando pela manga, beijando a fímbria do
vestido num altar, conseguiam chamar-lhe a atenção. Lillias chorava,
mas os olhos de vidro da Senhora não se baixaram nunca para a ver.
Soror Theresa foi a enterrar no cemitério inglês, embora
houvesse espaço na igreja do convento.
Não se fez grande esforço para que alguém ocupasse depressa a
sua cela, embora as candidatas portuguesas apresentassem dotes
interessantes. Lillias passava as noites no enxergão, junto à cama
vazia que cheirava ligeiramente à pele da moribunda.

***

Pelos finais de Outubro, Lillias via a construção da casa a desfazer-


se. Era a primeira vez que adivinhava o desastre nas pedras, nas
paredes. Acordava de noite, ouvindo o inferno a não caber em si, a
rebentar, exactamente como percebia quando um tumor buscava
uma saída. O chão rosnava. Em breve mostraria as suas grandes
fauces de carvão. E, do seu dorso em fogo, tudo aquilo que estava
vivo e formava a cidade dos mortais seria arremessado no abismo.

Lillias supôs que ia assistir ao fim do mundo e receou que a força


do diabo fosse maior do que o que se esperava, pois da glória de
Deus nada aparecia. Somente cheiro a enxofre e escuridão. Entre o
céu e os homens assentavam ruínas tais que as almas não podiam
encontrar o caminho de subida. “Temos de rezar muito”, murmurava.
Porém, nos intervalos das visões, ouvindo os risos das freirinhas no
quintal, era levada pela própria idade a descurar o zelo. Aliás, ela
não reconhecera nenhum dos habitantes do convento entre o
amontoado dos cadáveres.

***

Estava a habituar-se àquele rugido, à súbita irrupção de labaredas


sobre o sossego de uma refeição, a deitar-se no meio dos
escombros que de manhã se iriam dissipar. As bocas que sangravam,
muito abertas, surgiam como peixes entre as pedras. Mas Lillias
avançava pelas lajes e era ocre vermelho que pisava. Ajoelhou-se
aos pés do confessor que detestava aquele calor de Outubro e
suspirava sem delicadezas. Ele limpava a testa, desatento, e Lillias
desistiu de lhe falar. De certo modo, reflectiu, não tinha nada para
dizer.
Sabia como a paz era vedada para sempre aos visionários, como
eles arrastavam multidões e as punham a uivar e a babar-se,
excitadas pelo medo, sem querer atribuir sentido algum à verborreia
que irrompia dos seus beiços. As criadas baixavam as cabeças,
quase a tocar-se, para que o som ficasse entre elas, e por vezes sem
conta relatavam os prodígios do padre Malagrida. O homem nunca
mais conseguiria passar despercebido, nem sequer para beber um
golo de água no caminho. Ele resplandecia de magreza e
escorregava pelas imundícies. E, no entanto, o rei D. João V, quase a
morrer, curvara-se a seus pés.
Lillias fingia buscar em vão um resto de comida para captar
fragmentos das histórias que as mulheres repartiam na cozinha e as
freiras se negavam a escutar. Porque, apesar da protecção de que
gozavam, não podiam cair em imprudências. Queriam que o mundo
mantivesse o equilíbrio apoiado nas suas doçarias.
Não levariam Lillias a sério.
É natural, na sua idade, que acabasse por supor o aviso pessoal.
No fundo, estava pronta para deixar o convento e as suas
inglesinhas, mas jamais o faria se não fosse vê-lo constantemente
derrubado. A meio de uma noite, os gritos atacaram as paredes da
cela, como corvos, abrindo-lhe buracos com os bicos. Ela cobria os
olhos, os ouvidos. O anteparo das mãos não duraria até ao fim da
alucinação.
Lillias pensou que os gritos a iriam furar até aos ossos. Levantou-
se e, meio cega, correu para o oratório onde a estampa da santa,
tão amada por Soror Theresa, parecia prestes a soltar-se, baloiçando
à luz irregular da lamparina. Lillias arrancou-a. Pensou que talvez
fosse a própria imagem quem lhe estava a pedir que fosse embora,
porque não podia ficar ali para sempre, em frente ao leito onde
Soror Theresa agonizara.

***

Ela sabia que algo terrível ia acontecer. Mas aceitou que a santa lhe
pedia que a levasse para longe, de maneira que não se trataria de
uma fuga mas de uma espécie de missão sagrada.
Ignorava as horas. Preparou a sua trouxa, adivinhando as coisas,
tacteando debaixo dos lençóis.
Passou pela cozinha onde dormiam algumas velhas sempre
enregeladas. Depois saiu. Guiada pelo cheiro das avencas e pelo
som da água que caía, procurou a pereira onde ainda vira frutos
serôdios e encheu o avental. Um cão ladrou quando ela abriu o
portãozinho que dava para o beco das traseiras.
IV
Lillias começou a caminhar. Seguiu para norte sem que, no
entanto, buscasse direcção. A vista não servia para muito enquanto
a noite não desaparecesse. Ia cosida com os muros, escorregava no
caldo dos detritos, receosa de que os bichos das casas a sentissem e
lhe denunciassem a presença.
Atravessou o lamaçal do Rato. Os aguadeiros dormiam,
resguardados por lonas enceradas.
Marcavam vez perto do chafariz. Eram galegos, dados a sonhar,
por isso facilmente acreditaram que o vulto branco que os fizera
abrir os olhos não tinha consistência material.
Lillias sempre gostara de escutar os visitantes do convento que
contavam episódios de sangue, os muitos perigos que ao abrigo da
noite aconteciam. Emboscadas, punhais e fidalgotes deixados nus, a
soluçar, nalgum recesso, desejando e temendo a madrugada. As
freirinhas esfregavam o nariz, contendo o riso, enquanto ouviam os
relatos que os ingleses, quase todos protestantes, vinham trazer, a
troco de algum mimo. Nas histórias havia uma pragmática. Quem
saía de casa a horas mortas era devidamente castigado. A noite não
servia para os cristãos.
Devia ter-se camuflado, posto aos ombros uma manta cinzenta,
pensou Lillias. Mas não havia nada que pudesse fazer então; e a sua
cabeleira, a sua saia de riscado cor de grão, recolhiam o brilho das
estrelas invulgarmente forte para a época. Porém, ninguém seguiu
no seu encalço. Aquela hora adiantada, os meliantes contavam o
produto dos seus roubos junto aos nichos dos santos que pareciam
tremer de medo sobre a luz das lamparinas.
Lillias foi-se afastando da cidade, seguindo as azinhagas entre as
quintas, a caminho das terras-de-ninguém. Se alguém a visse, o
mais provável era que se benzesse em vez de a assaltar.
***

Lillias ouviu um grito, e depois outro, mas não vinham da terra e,


muito menos, de uma garganta humana. Eram os lobos. Os seus
olhos vermelhos refulgiam, tocados pela luz do firmamento. Lillias
nada sabia a seu respeito e estremecia, imóvel naquele cerco de
demónios. Mas eles não estavam tão desesperados que precisassem
de atacar sem garantias. Parecia Verão e os alimentos abundavam. A
rapariga emanava uma baça claridade que bastou para mantê-los à
distância. Mas ela quase desmaiava e a caminhada findou ali.

A madrugada achou-a profundamente adormecida. Ela aninhou-


se no seu encosto de ervas e de pedra e, ao primeiro calor, sonhou
com a mãe, com o cheiro da turfa que queimava e não subia
inteiramente à chaminé. Depois, a turfa ardia em cima dela e Lillias
fez um esforço para acordar.
Achava-se no cimo de um cabeço, no meio de fetos e de
carvalhinha. As cores lutavam entre si para dominarem toda a
paisagem antes do Inverno. O castanho-doirado ia vencendo, mas
estava um tempo tão enganador que havia florações inesperadas.
Tufos de malmequeres, de um branco sujo, simulavam ossadas ao
abandono.
***

“O que faço eu aqui?”, pensou Lillias. O trabalho diurno do seu


cérebro tornava aquela fuga inexplicável. Fui eu, não ela, quem
relacionou a visão do seu pai dilacerado com a corrida que a salvara
dos ingleses. Para Lillias, foram coisas separadas. Naquele instante,
o impulso que a levara a afastar-se tanto do convento pareceu-lhe
uma completa desrazão. A fome e a solidão ameaçavam-na. Ela
esfregou os olhos, duvidando dos avisos que a noite lhe fizera.

Não passavam, talvez, de pesadelos, dirigidos à alma, não ao


corpo, a quem cabia não se levantar.
Os seus membros dormentes não podiam agitar-se sequer, e o
terror reinava sobre a vítima à vontade. O sonho era uma teia. E, ao
escapar-lhe, Lillias levava os filamentos agarrados.
Sentia-se indefesa. Já vivera no meio de gente hostil, mas
sempre sob um tecto, junto às brasas de um fogão. O que fazia ali?
Ia morrer de febre, ou peste, ou mordedura de animal. Ao longe, ao
fundo, alguém saía de um casebre e gritava impropérios à manhã.
Lillias tirou uma das pêras do avental e preparou-se para voltar para
trás. Dera somente uns passos quando foi atirada para o chão, e o
grande terramoto começou.

***

A terra estava em fúria, qual um touro varado por petardos numa


arena. Muitos iriam realmente interpretar aquelas convulsões como
revolta moral da natureza, ante os pecados que os humanos
andavam cometendo. Muitos acharam que o bom Deus do Papa
castigava Lisboa pela sua submissão aos heréticos ingleses.
Equivalente enlevo punitivo ocupava os jornais dos protestantes.
Tinham sido poupados quase todos, contando entre eles menos de
cem vítimas, porque em boa verdade aquele desastre se dirigia
apenas aos papistas, como um solene aviso do Senhor.

Lillias julgou-se em cima de um ser vivo, porque parecia haver


um sentimento na forma como o chão se debatia. Aquilo que dentro
dele se revolvia levava-o a rugir, ferido de morte. Escancarou uma
enorme goela na encosta onde Lillias havia de encontrar-se, se
tivesse avançado um minuto antes. A lama negra fumegava, como o
bolo de alguma monstruosa digestão. O enxofre vinha directamente
arremessado do inferno.
Lillias pensou nas pêras e no pão que lhe tinham caído do
avental. Não conseguia pensar em nada mais. O estômago ocupava
o centro do seu mundo. Tocou na trouxa que trazia na cintura, mas
logo se esqueceu de Santa Brígida. Também a alma estava
concentrada na preocupação com a comida.
Com o segundo abalo, desistiu. Sentou-se à espera de que o
chão, por baixo dela, se abrisse, e a mão dos mortos se estendesse
e a puxasse para a sua companhia. A sua educação religiosa fora
apenas formal, feita de ritos e certo despotismo de palavras. Não
esperaria ver no fim do mundo o Supremo Juiz cobrindo os céus.
Dava por si sozinha e desvalida, uma pequena criatura mais, no
meio das ervas e dos roedores.
Ouvia os gritos da cidade ao longe. Corriam pelo ar, em vez dos
pássaros que tinham procurado o vale de Alcântara e não mais se
mexeram todo o dia. Lillias pensou que os vermes sairiam dos túneis
subterrâneos. Pôs-se de pé, para que eles a não tomassem por um
cadáver. Viu no horizonte, acima de Lisboa, uma poeira imóvel,
como um escudo. Mas, no campo deserto, o sol mantinha a sua
desusada intensidade. Lillias sentia sede. E o seu medo
transformava-se em ânsia de animal, numa necessidade de achar
água.

***

Foi alcançada pelos fugitivos. O horror empurrava-os para a frente. A


rapidez com que se deslocavam, velhos, estropiados, mulheres
grávidas, tornava-os irreais, como se mal pousassem os seus pés.
Lillias abandonou uma nascente que lhe oferecera um líquido oleoso
e juntou-se aos primeiros que avistara, caminhando para norte,
caminhando para longe da cidade que não deixara de abanar de
quando em quando.

O número de gente deslocada aumentava em segundos, de


maneira que Lillias passou despercebida.
As carruagens corriam brutalmente, abrindo espaço com o
chicote e os gritos dos cocheiros. A espuma de agonia dos cavalos
caía na cabeça das crianças.
Deve dizer-se que, no dia imediato, o ministro deu ordens.
Homens válidos foram arrebanhados pelas tropas e levados de volta
para a cidade. As forcas levantaram-se e os meirinhos julgavam e
puxavam pelas cordas com eficácia nunca vista em Portugal.
Mas, nas primeiras horas, toda a gente pensava apenas em
ganhar distância, e muito dolorosas decisões foram tomadas,
quando se tratou de deixar para trás os moribundos. Não admira
que a mulher piedosa que, por amor de três ou quatro filhos,
abandonou um ferido no caminho, se tenha brevemente
transformado numa assassina, para roubar comida. Famílias e
vizinhos agregavam-se e o seu instinto de sobrevivência era espesso
como uma fortaleza. No meio da barbárie, o zelo sagrado parecia
ainda mais apetecível e Lillias viu os portugueses rodearem um
pobre inglês que foi achar-se entre eles, a fim de o baptizarem com
as rezas e os pressupostos do catolicismo. Estavam-lhe fazendo
caridade e o homem curvou-se, resignado. Lillias aprendera o
português com as outras criadas do convento, mas temeu, mesmo
assim, denunciar-se. E a voz da coronel Anne Macintosh segredou-
lhe de novo: “Está calada.”
Deambulava pelos grupos à deriva, porém a força bruta do pavor
empurrava-os a todos para a frente.
O Sol punha-se cedo, às cinco horas, e era tão receado esse
momento que muitos deles se encaminharam para noroeste, como
se lhe pedissem piedade.
Lillias acompanhou-os. Sentiu fome, porém não esperaria que
alguém lhe desse as sobras do comer.
Não era já uma criança. E, ainda que o fosse, não despertaria
bondades maternais. As mulheres tinham retrocedido nessas poucas
horas até ao estádio em que uma fêmea conhecia as próprias crias
pelo cheiro e o timbre dos vagidos. Além do mais, olhavam Lillias
uma vez e viravam o rosto para o chão.
Receavam a luz da rapariga. Era como se a sua intensidade
fizesse evaporar os alimentos.
Compreendeu que se tratava de roubar e fez rondas suspeitas às
famílias. Um homem veio ameaçá-
la, abriu-lhe a trouxa e tirou dela o cordão de ouro de Soror
Theresa. Mas teve medo de ofender a santa e devolveu a estampa
emoldurada. Tão-pouco se interessou pelos papéis. Mas atentou
melhor na rapariga e acenou-lhe para que o seguisse. Ela pensou
que o que quer que existisse entre os humanos só diria respeito à
fome e à sede.
A desorganizada caravana via os sinais da noite e começava a
inventar abrigos, de maneira a que, como na guerra, fossem claras
as marcas de direito do ocupante. O acampamento continuava
retalhado em mil fracções, hostis umas às outras. Mas, agora, que
se haviam detido e resguardado com panos e dosséis improvisados,
aqueles poucos que ainda se moviam eram olhados com maior
desconfiança.
Lillias caminhava atrás do homem, sentindo que passava entre
mastins. A claridade cedeu rapidamente aos tons de roxo que
cobriram as coisas como tinta e ocultaram o homem por momentos.
Depois o som de vides a estalar e um foco avermelhado de fogueira
revelaram a sua direcção.
Alguém puxou o braço à rapariga e lhe encostou a lâmina ao
pescoço. Lillias achou-se no meio de gente que falava língua
estranha e que parecia armada até aos dentes. Mas riram-se e
deixaram-na cair.
Tinham um ar radioso, como se a desordem fosse a sua
natureza, e uma gargalhada de mulher saiu de entre aqueles trajes
masculinos.
Compreendeu que esquartejavam um cavalo e se aprestavam
para o devorar. Atiravam pedaços para as brasas, mas não os
conseguiam cozinhar. Uma mistura de carvão e sangue escorria-lhes
das bocas.
Aquele cheiro tinha atraído uma pequena multidão que os
estrangeiros intimidavam com pistolas.
Lillias deitou a mão a um bocado de carne que queimava e quis
fugir. O homem que a guiara lambuzou-a com a sua saliva
avermelhada. Esfregava as calças entre as pernas, onde Lillias
pressentiu qualquer coisa repugnante. Resfolegava como alguém
que ia morrer. Alguns continuavam a sorrir, mas espiavam em volta,
mais excitados com a perspectiva de uma escaramuça do que com o
terror da rapariga. Ela empurrou o homem e lançou-se, com a carne
nas mãos, abrindo a custo uma brecha no meio dos que cercavam.
Ocultou-se na sombra de um arbusto. As fibras e os nervos
encruados do que fora um ginete espanhol dificilmente se deixavam
moer entre os seus dentes. Ela esgarçava-os como um animal.

***

Com a noite fechada, veio a nova de que Lisboa inteira estava a


arder e muita gente se juntou, esticando o corpo, subindo onde
podia para espreitar. Tagarelavam, propalando pormenores, e as
mulheres apontavam para sudeste, de onde haviam fugido,
garantindo que se avistava o brilho do incêndio. De certo modo,
aquilo proporcionava um desenlace purificador, uma certeza de que
nada se salvara e não era possível regressar. A percepção do
irremediável tornou alguns mais comunicativos.

Não se sabia se existiriam mais sobreviventes, se eles seriam os


únicos na Terra, com o olho de Deus inteiramente assestado na sua
vigilância.

***

Ao primeiro clarão da madrugada, entre o choro das crianças e os


gemidos, ouvia-se um sussurro de desânimo. O terreno, onde
houvera erva rasteira, surgia à luz como uma rua de cidade,
infectado, coberto de detritos. Os cães vadios tinham-se chegado
durante a noite e estavam mortos pelo chão. As feridas feitas pelas
facas-de-mato cintilavam. Ia ser mais um dia ensolarado.

Podia ver-se, pelo acanhamento com que as disputas


arrancavam, que ninguém sabia exactamente o que fazer.
Lillias seguiu com um pequeno grupo que parecia fugir de
qualquer coisa ou conhecer exactamente algum destino. Mas era um
movimento do acaso. As pessoas juntavam-se ou perdiam-se,
aglutinadas nos seus núcleos familiares como corpos de múltiplas
cabeças. Os solitários estavam condenados.
Lillias mantinha-se à distância. Mesmo assim, havia quem
parasse para olhar, mandando uma mensagem silenciosa. O ouro
que recobrira a rapariga, no cabelo, nas íris, até mesmo na saia de
riscado, ia afundando, sob camadas de carvão e terra. Talvez ela
parecesse uma cigana; a incurável estranheza dessa raça autorizava
a que os que ela tentava acompanhar não hesitassem sobre a
crueldade. Quando chegaram perto de uma aldeia, atiraram-lhe
pedras. Lillias teve de se ocultar no meio de grandes blocos de rocha
farinhenta. Era tão branca que, apesar de absorver grande parte da
luz com o seu pó, ainda reverberava nas retinas.
As casinhas poisavam sobre um vale e pareciam intactas. Podia
ouvir-se até o cacarejo das galinhas.
Depois, houve um silêncio e viu o grupo que seguira até então
empurrado para longe do caminho. Os aldeões erguiam as forquilhas
e simulavam espetar-lhas nas barrigas. Provavelmente, desde
madrugada que defendiam os seus bens dos fugitivos. Os lisboetas
escalaram a encosta do outro lado do riacho. As mães gritavam,
arrastando as crianças pelo chão.
Lillias olhou o lugarzinho lá em baixo e percebeu que, tarde ou
cedo, um bando armado viria destroçar os habitantes. Viu-os caídos,
agarrando ainda o pedaço de pão que defendiam. As forquilhas
brilhavam contra o sol, mas era um sol-poente, avermelhado, e
Lillias soube que isso ocorreria quando a tarde estivesse no seu fim.
Rodeou a aldeia pelos cimos. Ficara só, mas nada se admirou por
se sentir bastante aliviada. Talvez o solo não quisesse ser mais
generoso do que os seres humanos, talvez não conseguisse achar
comida.
Mas pareceu-lhe mais fácil de acatar aquela indiferença, ou
mesmo as pedras em que um novo tremor a sepultasse.
Escondia-se do sol. Era meio-dia, mas as copas das árvores
deitavam grande sombra no chão. Lillias instruía o seu ouvido para
que, de entre os sons do campo, distinguisse uma música de água
em qualquer parte. Mas tudo o que escutou foi um gemido. Ela
pensara nunca mais buscar a companhia de pessoas. No entanto, o
medo de que fosse um moribundo que se visse a descer para os
infernos, porque ninguém fora fechar-lhe os olhos, levou-a a um
impulso de piedade. Chegou-se devagar e encontrou uma mulher de
negro, desmaiada. Tinha a testa rasgada pelas silvas. Lillias puxou-a
para debaixo de um pinheiro. Por muito que soubesse do futuro, não
teve então a mais pequena ideia de quanto iam ligar-se as suas
vidas.
A senhora Cilicia não teria sobrevivido, é certo, àquela tarde, sem
a dedicação da rapariga. Mas, se não fosse a súbita aflição, tão-
pouco Lillias haveria recorrido a fontes improváveis de alimento.
Vendo-a de língua escancarada, como um cão, olhou em volta e
resolveu deitar a mão às folhas prateadas e carnudas de uma
espécie de cacto não espinhoso que desprendia um cheiro de
hortelã. Pensou que talvez fossem venenosas, mas agia com boas
intenções, o que a não impediu de as espremer primeiro sobre os
lábios da mulher e só depois, vendo-a sorrir, nos seus.
Mais confiante, conseguiu achar castanhas que o tempo seco
havia preservado da podridão. Eram pequenas e desidratadas, mas
Lillias carregou-as no avental para as esconder, sabendo o muito que
valiam.
Por antiga prudência, nada disse. A senhora Cilicia, no entanto,
necessitava quase tanto de palavras como de líquido e de nutrição.
Lillias convenceu-a a levantar-se.
“Tu de onde vens?”, disse a mulher, estranhando o seu sotaque.
E sossegou, ao perceber que era católica. Todos gostavam do
convento inglês. “Morreriam, as freiras?”, perguntou. Falava por falar,
precipitada, como quem se vê livre de mordaça.
Lillias temia a noite. Precisava de encontrar gente que lhe desse
lume. Arrastava Cilicia pela mão. O sol batia no seu ombro esquerdo,
cor de laranja escuro. Chegava a hora em que aqueles camponeses
do valado seriam mortos, e as suas aves, de tripas rebentadas,
assariam sobre o carvão das próprias capoeiras. Lillias queria tomar
outro caminho.
Tentava orientar-se pelos cheiros, mas as suas narinas não
dispunham de talento animal. Mais do que a vista, o olfacto era
confuso e enganador. A senhora Cilicia acompanhava-a, na passada
oscilante dos obesos. Ao perceber que a luz diminuía, rezava as
vésperas, repetidamente. Havia claridade suficiente para que vissem
muitas penas negras caídas sobre as árvores rasteiras. Eram penas
de corvos. Toda a gente se afastaria delas, respeitando o seu pesado
enigma, se não fossem excepcionais aquelas circunstâncias. Lillias
examinou-as. Percebeu que surgiam aos olhos dos famintos tão
comestíveis como pombos ou faisÕes. Foram de facto o alimento
desses dias. Isso deu-lhes a esperança de que houvesse algum
braseiro esquecido ali por perto.
***
Fazendo frente aos cães vadios, devoraram os restos de uma ave
que alguém, por óbvio nervosismo, abandonara. Isso não só lhes
consolou o estômago como também lhes restaurou a fé em Deus.

E, ao contrário do que combinaram, estar uma delas sempre de


vigília, adormeceram e acordaram enlaçadas, como duas crianças no
seu sótão. A senhora Cilicia tinha um corpo absolutamente maternal.
Dos seus enormes seios emanava um cheiro de coalho e da
ligeira febre de amamentar. Ficara neles, desde o tempo em que
parira, como se achasse essa memória tão preciosa que não mais a
quisesse retirar. E a gordura que, à primeira vista, fazia dela uma
mulher doente, ocultava uma força muito própria, de quem se sente
habilitado para lutar contra aquilo que ameaça a sua cria. Devia
andar pelos quarenta e muitos anos e com certeza que vendera cara
uma beleza ainda resistente. O tempo, arredondando-lhe as feições,
estava-a poupando às rugas da velhice. Era morena, uma perfeita
portuguesa, dessas em que os estrangeiros admiravam sobretudo o
cabelo e a dentição.
Quando se vira só, abandonada pelas criadas de quem queria
pensar mal, que talvez se tivessem simplesmente perdido umas das
outras, a senhora Cilicia enfraquecera. Andou como num bosque
enfeitiçado, cada vez mais distante do lugar que tanto se esforçava
por rever. De qualquer modo, se voltasse atrás, não iria encontrar
ninguém à espera. A fuga não parava, não obstante as tropas do
ministro perseguirem os homens em idade de trabalho. O facto é
que os abalos continuavam e as pessoas pensavam que jamais a
terra de Lisboa sararia.
V
Avistaram as torres do convento e desde então não mais se
interrogaram sobre o caminho que iam prosseguir. Não que a imensa
construção fosse dotada da força de atracção de um santuário ou da
pedra pagã. A própria cor, de um amarelo queimado, estabelecia que
tipo de poder mandava ali. Era o poder do rei, que iluminava e
forçava à cegueira, como um sol. Tudo aquilo se vergara à mão
humana, e a solenidade de uma prece, a imponência da paisagem
soçobravam num cenário de trono e diamantes.
Demonstrava-se à França e à Espanha que os monarcas de
Portugal tinham tamanho de gigantes. Nada e ninguém se deteria
ante a vontade que derrubara, a pólvora, aquele monte. Parecia que
as estradas despejavam naturalmente os viajantes no seu largo,
como se não pensassem que existisse outro destino que não fosse o
de espantar-se com a brutal visão da majestade.
As estalagens, cujos preços excessivos mereciam comentários
aos ingleses, achavam-se fechadas.
Tinham selado as portas e as janelas com tábuas grossas, como
se fazia contra as pestes do Verão. Com tanto fugitivo esfomeado,
tornava-se evidente que os seus donos não pensariam em fazer
negócio mas sim em defender-se das pilhagens. “Mafra”, exclamou
Cilicia. Mesmo os seus olhos de lisboeta bem vivida não deixavam de
arregalar-se, sem preparação.
O monumento não parecia ter sofrido os males do terramoto.
Mas, no ligeiro declive à sua frente, a distância segura, bivacavam os
habitantes, frades e criados. Ninguém lhes garantia que aquele
monstro se não desmoronava um desses dias.

***

Lillias jamais ouvira falar daquele lugar.

Na verdade, sabia muito pouco do mundo português, para além


dos suavemente eróticos temas do parlatório, a que, por fim, fora
privada de assistir, e das conversas das criadas na cozinha. Tinha
catorze anos, uma idade que era considerada casadoira. No entanto,
o silêncio e a má vontade que a rodearam quase toda a infância
haviam-na levado a não crescer como deviam crescer as raparigas
sem fortuna.
Nada aprendera. E os anos de convento tão-pouco a educaram
para a vida. Cultivara a prudência, mas apenas porque não
encontrara simpatia. Soror Theresa amou-a, num amor que nunca
conheceu necessidades. Coisas elementares, como o receio de
empurrar uma porta mal fechada, não foram bem marcadas no seu
espírito. A linguagem da sobrevivência, essa, fazia-se entender sem
escrúpulo.
Lillias atravessou o largo, e arrastou a senhora Cilicia pela mão.
Alguns dos acampados esticaram, por um momento, os seus
pescoços para olharem, e o vulto magro e claro, e o gordo e escuro,
cobrindo a passos largos o cascalho, não os preocuparam
grandemente. Tornava-se impossível sustentar o velho gosto da
coscuvilhice. Os movimentos, tão imprevisíveis, não permitiam
interpretações.
A senhora Cilicia ia hesitante, puxava o grande corpo para trás.
Mas fazia-o por birra de criança, porque o papel de mãe se desviara
inadvertidamente para Lillias, e a mulher descobria aquele prazer de
pedinchar, de se tornar difícil. Tinha a vaga noção de que ninguém
ousaria meter-se no convento, onde ela imaginava que estariam
guardas armados, cordas de enforcar. Mas ansiava tanto por um
tecto que a determinação de Lillias, da qual aparentava demarcar-
se, não achou verdadeira resistência.
Lillias pensava simplesmente que uma casa tão grande como
aquela abrigaria todos os fugitivos de Lisboa.

***

As ratazanas começavam a subir. Vinham das caves, dos seus largos


túneis, onde o abalo provocara fendas pelas quais ressumava um
óleo, um fumo que elas não conseguiram suportar. Ao mesmo
tempo, aquela informação que perpassa entre os grupos animais e
os leva a movimentos colectivos, como se uma palavra se
espalhasse, já lhes fazia conhecer a extraordinária deserção dos
humanos, o acesso desimpedido às arcas da comida.

Gritavam umas contra as outras, assanhando-se, fervendo numa


negra cavalgada que rechinava, como a cinza de um vulcão. Haviam
alcançado o rés-do-chão e, assim, a mulher e a rapariga recuaram,
julgando que o tremor de terra as perseguira até ali. Mas a surpresa
foi recíproca e afastaram-se, roedores e humanos, de maneira que,
por instinto, elas subiram as escadas, pisando o estuque que caíra
das paredes. As ratazanas atreviam-se a segui-las, encurtando a
distância. Lillias viu uma pequena porta entreaberta, incrustada no
grande portão do patamar. A senhora Cilicia, aligeirada pelo nojo e
pelo medo, adiantou-se e puxou para dentro a rapariga.
***

Não estavam sós. Podiam ouvir passos, pequenas tosses


controladas, repentinos ataques de catarro, logo extintos.
Escapavam-se de sala para sala, num infindável corredor de portas
onde elas se sentiam vulneráveis, como quem se encontrasse em
campo aberto. Mas, descuidando a fome e a fadiga, a senhora Cilicia
remoçava, gozando aquela singular experiência de percorrer as salas
de um palácio. E vasculhava canto atrás de canto, não tão
entusiasmada que se esquecesse de verificar se Lillias a seguia.

Lillias não entendia aqueles propósitos. Queria comer e preparar-


se para a noite em que haveria frio e ratazanas. A magnificência dos
salões não lhe oferecia o mínimo consolo. “Pára, pára!”, gritava. Não
sabia conjugar bem o verbo em português.
Tinham chegado aos quartos de dormir. A senhora Cilicia parecia
desafiar um grande guarda-roupa, minimizá-lo, antes de o abrir. As
saias que eram talhadas para acompanhar a convexidade das
anquinhas, pendiam lisas, com um comprimento que sugeria uma
deformação. Havia cabeleiras desgrenhadas, postas a monte, de
mistura com chinelas. “Cabras, porcas”, dizia-lhes Cilicia, puxando
tudo a esmo para o chão. Podia ver-se as manchas de humidade ou,
quem sabe, de líquidos do corpo, que embaciavam partes dos
tecidos.
A escuridão entrava pelos vidros. Lillias avistou velas, derrubadas
junto de um toucador. Porém não tinha lume para as acender. A
senhora Cilicia veio buscá-la, tropeçando, excitada, entre os
vestidos.
Descobrira uma cama, um leito enorme onde dormiam
certamente os reis.
Era um quarto de esquina, ainda mais descomunal do que os que
o precediam. O vulto de Cilicia balouçava sobre a colcha vermelha
que perdia rapidamente a cor, naquele crepúsculo. Dava saltinhos
contra o enxergão, tirando um som ritmado das madeiras: “Então
aqui é que eles fizeram as infantas!”
Lillias era inocente. Não sabia nada do sexo nem dos
nascimentos. Pensou que a mulher tinha enlouquecido, devido à
fome e aos sustos que sofrera. E a própria Cilicia percebeu que se
estava a exceder no à-vontade.
— O que eu quero mesmo, rapariga — disse -, é mijar no penico
da rainha.

***

Podemos achar estranho que o palácio tenha escapado às mãos dos


assaltantes. Porém, a maior parte das pessoas, e os ladrões no seu
encalço, ou os expulsos do seu, até então, honesto seio, haviam
divergido para nordeste. Mafra ficava fora do caminho, sem acesso
por rio, o que era sempre um argumento de dissuasão. Dos poucos
que para lá se dirigiram, quase todos levavam um destino, a casa de
um parente ou de um criado que criara raízes por ali. E uns ou
outros que restassem: tresmalhados de algum grupo fugido da
prisão; desertores de um exército estrangeiro, presença habitual nas
nossas ruas, não se podiam arriscar a ser ingénuos. Um edifício que
se mostrava, como aquele, sem estragos, nunca despediria a sua
soldadesca, tanto mais que uma riqueza bruta, de negreiro, requeria
permanente protecção. Achariam, até, suspeito o acampamento
onde pasmavam frades de burel, como iscas a chamar o predador.
***

Ninguém pensou que as crises venatórias que atingiam o rei e, mais


ainda, a máscula rainha, não chegavam para incutir na vida do
palácio uma respiração quotidiana. Eles levavam tudo de Lisboa,
cozinheiras, criados, aias, cães. Parecia que rumavam ao deserto,
num cortejo infindável de cavalos e escuras carruagens espanholas.
Por algum tempo, os corredores enchiam-se, o gorgorão pesado dos
vestidos estalava em falsas fugas aos fidalgos, num erotismo quase
sempre inconsequente. As salas, que pareciam concebidas a uma
escala sobre-humana, cintilavam por efeito da água das paredes que
a farta lenha dos primeiros dias ia chamando para a superfície. Os
panelões ferviam na cozinha e os pássaros caíam sufocados, com os
seus ninhos, pelas chaminés.

Depois o tédio e, mesmo, a agorafobia roubavam a acção aos


cortesãos. A rainha, de calças e sem luvas, prosseguia as caçadas
obsessivas. A carne de veado, recebida com júbilo às primeiras
refeições, tirava o apetite a toda a gente pela maneira como se
oferecia, sem alternância, às mesas do jantar. A acumulação do
desconforto provocava pequenas rebeliões, casos de negligência,
alfinetadas, doenças da estação. Quase podia ouvir-se o alívio que
se sucedia à ordem de regresso.
Só os monarcas é que olhavam para trás. Uma coisa os unia,
apenas uma, o prazer da caçada. De bom grado trocariam Lisboa
pela tapada de Mafra ou os matagais de Salvaterra. Porém, os
nobres, que os acompanhavam com tanto entusiasmo como se
partilhassem com eles o cadafalso, davam ordens gritadas aos
cocheiros para que fustigassem os cavalos. Essas ordens não eram
para cumprir, porque em caso nenhum eles poderiam passar à frente
do real transporte. Mas o contentamento pela partida tinha, de
qualquer forma, de mostrar-se.

***
Uma extraordinária solidão ressoava nas salas do palácio. Não por
causa do número restrito dos que haviam ficado, mas porque aquela
transitória multidão nunca deixava o mínimo calor. Eram como
fantasmas, apesar do trabalho que os corpos exigiam. Um sopro os
punha, um sopro os apagava.

Ficavam os fradinhos, também eles de medida risível para o


lugar. Estavam habituados à altura dos templos do Senhor. Mas, mal
saíam da vertigem da nave para as celas dos edifícios monacais
comuns, viam como os tamanhos se moldavam, com gentileza, à
sua pequenez. De facto, em certas noites de doença, sentiam-se
entalados nas paredes. Mas, nas horas felizes, parecia que os
convidavam para uma eterna infância, entre coisas amáveis e
minúsculas.
Aquele mosteiro era um atrevimento. Naturalmente, incomodava
Deus e fatigava os frades. Mesmo o frio dos seus Invernos tinha
dimensões impessoais e eles não o ofereciam, em penitência,
dando-lhe um sentido. Quando a grande estrutura estremeceu a
ponto de fazer tocar os sinos, eles, que se achavam todos na
basílica, viraram as cabeças para cima. Porém, tudo o que viram foi
poeira e os lampadários oscilando, num conjunto de circunstâncias
que apagou as velas. Levaram o seu tempo a recompor-se, muito
brancos do susto e da vergonha, pois tinham caminhado uns sobre
os outros, esquecendo inteiramente a caridade, na pressa de saírem
para o largo.
Ninguém queria voltar para o convento que pouco ou nenhum
mal sofrera. Já em Lisboa, a muito ferida, toda a gente regressava
ao que fora a sua casa, ainda em Mafra frades e criados
continuavam a dormir nas tendas, sem que a menor razão lhes
assistisse. Talvez que não reconhecessem nele um lar.
Durante as longas noites de Dezembro, quando o frio os privava
do repouso, imaginavam, como por vingança, que tudo se abatera
sobre o chão. Na ténue luz do dia, o nevoeiro colar-se-ia ao fumo
dos destroços.
***
A senhora Cilicia teve, enfim, de ouvir as queixas do seu próprio
estômago. Vivera um estado semelhante ao ascetismo, alimentando
o corpo de paixão. Nenhuma fantasia de burguesa ousara, alguma
vez, um sonho assim. Cilicia acordou cedo, nessa cama que, era,
decerto, a cama dos monarcas, e olhou o tecto decorado com
afrescos de onde Nossa Senhora, rodeada por anjos querubins,
abençoava as horas conjugais.

Por um momento duvidou, mas realmente a Virgem parecia


aliviada ou divertida com a presença das intrusas. “Está a rir-se para
a gente, vês?”, dizia, dando cotoveladas em Lillias. A rapariga
adormecera com dificuldade, sentindo as contracções do diafragma.
Agora recusava-se a espertar. Tivera medo de perder-se de Cilicia,
por muito que ansiasse por comida. O corpo da mulher, com o seu
cheiro e a sua gordura maternal, havia-a finalmente confortado.
Naquela idade de catorze anos tudo acaba por converter-se em
sono, até a fome. Os vestidos, as capas de veludo que Cilicia tirara
dos roupeiros, pareciam mais pesados, como se fizessem tenção de
as dissuadir, perante o esforço de os deitarem para trás.
As ratazanas tinham avançado durante a noite. Ainda não se
achavam ao alcance da vista, mas os guinchos subiam pelos quartos
de lavagem, pelas retretes cujas tampas de madeira seriam fáceis de
empurrar para o chão.
Cilicia apavorou-se de repente e sacudiu Lillias. Os seus dedos já
não se deslumbravam nos tecidos poisados sobre a cama. Bacios
reais, intimidade, desrespeito, tudo o que lhe oferecera um tal
prazer que sentiria um arrepio ao recordar, pelo resto da vida,
aquelas horas, perdeu rapidamente a importância ante os perigos do
corpo: ratos, fome. Forçou a rapariga a levantar-se e deixou para
depois a intenção de se vestirem ambas a preceito.
Pensou que o pão e a carne se achariam num andar inferior,
junto às cozinhas. Mas Lillias escapou-se-lhe das mãos e olhava para
cima, para os tectos, como se só acreditasse na subida. Cilicia não
se opôs demasiado, caminhava atrás dela, maldizendo aqueles
corredores descomunais. Apesar da fraqueza, recebia a fuga de
Lillias como um pretexto para não enfrentar as ratazanas. E
avistaram realmente umas escadas quase dissimuladas na parede,
num vão inesperado, obscurecido como um meio segredo. “Vem,
vem”, disse Lillias. Tinha aprendido a escalonar eficazmente os
medos. Escolhia antes o desconhecido.
VI
Estavam a afastar-se da comida, o que Cilicia não cessava de
lembrar, embora não largasse a rapariga, agarrando-lhe a saia com a
mão para que a distância não crescesse entre elas. Por alguma
razão, as ratazanas transformavam-se em carne comestível, em
saborosos roedores, coelhos, lebres, respingando gordura sobre as
brasas. O descontrolo da imaginação punha depois em grande plano
os seus focinhos que tentavam entrar-lhe para a boca e Cilicia
benzia-se e cuspia, dando pressas a Lillias de avançar.
A rapariga já se habituara às crises infantis da companheira.
Sentia-se também apavorada, e uma elasticidade de animal contraía-
lhe os músculos, aprontando o salto para a caça ou para longe de
qualquer som que a apanhasse de surpresa. Seguia para diante,
estranhamente inclinada para a frente porque a mulher se retesava,
presa a ela, tão renitente como uma criança.
Os espaços vazios que atravessavam faziam um contraste que
dir-se-ia atenuar a dívida moral em que incorria o gigantismo dos
salões. Eram uns quartos pobremente iluminados e de tal modo
baixos que nem todos os que os usassem poderiam pôr-se em pé.
Havia qualquer coisa de masmorra, porém nem os barulhos nem os
cheiros vinham da terra ou ressumbravam do seu ventre.
Lillias espreitou por um janelo arredondado e pareceu-lhe que o
acampamento se situava muito longe, a tal distância que nunca mais
se tornariam a cruzar, que o chão lhe estava a ser negado para
sempre. Cilicia olhava os vidros com suspeita, puxava a rapariga
para trás. Perdeu as forças. Lillias arrastou-a para que se apoiasse
na parede e depois ela própria desmaiou.
***

O arquitecto do convento, um alemão que, no dizer do viajante


James Murphy, não passou de ferreiro no seu país, sabia como os
edifícios deveriam resistir às pressões da natureza, porém dobrar-se
ao peso social. O andar destinado à criadagem não tinha nem um
terço da altura dos salões feitos para Sua Majestade. Era preciso
que, durante a noite, os servidores se descontaminassem dessa
poeira de grandeza que os cobrira. Os bofes ressequidos, com
caroços, respirariam finalmente um ar não renovado, igual ao das
cidades. O forte cheiro de excreções humanas dominaria os sonhos,
não deixando que o perfume do amo os corrompesse.

No entanto, sorriam, confortados pela ideia de que a cólica, a


insónia, o soluço dos reis acordariam as nobres camareiras. Até
chegar de novo a madrugada, os detritos, as ténias, os escarros de
Suas Majestades passariam pelas mãos das condessas. Nessas
horas, os nobres, humilhados, fantasiavam as deposições.
Os criados dormiam com pressa, sem sonhar.
***

Quando, sem querer, depois se recordava, Lillias sentia novamente o


cheiro das entranhas do homem, da podridão dos dentes a passar
para o interior da sua própria boca.

Voltara a si, chamada pela dor. O medo de morrer emudecia-a.


Os gemidos, os gritos, os sussurros batiam fora dela e não faziam
parte daquilo onde ela estava a acordar. Era um estranho assassino
a esfaqueá-la entre as pernas, por baixo da barriga, e arrojado a
todo o comprimento do seu corpo, como quem busca um sítio
inacessível.
Por muito que o punhal continuasse, a náusea de Lillias crescia
agora contra o rosto do homem.
Tinha os lábios como que corroídos de saliva. A repugnância
devolveu-lhe a força. Pôs-lhe as mãos contra os ombros e empurrou-
o. Ele estremeceu. Parecia fortemente atingido. Descaiu para o lado,
suspirando. “Então, matei-o”, pensou Lillias. O seu sangue escorria
do buraco que ele fizera, mais abundante que nos dias regulares, e
dava-lhe vergonha de se erguer.
Só nessa altura as gargalhadas de Cilicia que, no entanto, já se
ria havia tempo, chegaram à consciência de Lillias. Estava deitada.
As coxas, que a idade cobrira já de covas e varizes, abriam
molemente, como mortas. Eram cinzentas e arroxeadas, e reluziam,
quase independentes do resto da mulher. Dois corpos de homem
encostavam-se à parede, de cabeça pendida. Lillias viu um deles
arrebatado pelo ar fora, uivando, de olhos secos e vermelhos,
enquanto o nó da corda se apertava. Ele ia caminhando no vazio,
cada vez mais depressa. A língua vinha, como um último insulto, até
ao queixo.
Tinha as ceroulas empapadas de aguadilha. E, depois, tudo
aquilo se entregava à sua paz de coisa, de cadáver.
Lillias achou que essa visão a enganava, que nunca enforcariam
aquele homem já ausente da vida como os outros, o que, encostado
a ele, o amparava, e o que jazia, imóvel, ao pé dela. E nem as
gargalhadas de Cilicia a convenciam do contrário. Já ouvira rir
daquele modo as mães enlouquecidas, carregando as crianças que
Lisboa, esmagando mal, matara devagar.
A senhora Cilicia percebeu quanto a cena assustava a rapariga e
soergueu-se num dos cotovelos. Na outra mão erguia um naco de
toucinho que balançava, respingando, com salmoura: — Vale tudo,
filha. Deus já cá não está.
O medo e mais confusos sentimentos que mantinham Lillias
pregada ao chão dissiparam-se à vista da comida.
Apesar do alívio por estar viva e de estômago cheio, Lillias olhava
com estranheza a euforia que dominava os quatro companheiros. A
senhora Cilicia abandonara as calças a um canto. Como engomadas
pela sujidade, elas pareciam conter um resto de substância humana,
de membros decepados pelos joelhos. O folho que servia de remate
escondia a cor dos ossos golpeados. De pernas livres, a mulher
dançava. O seio esquerdo havia-se soltado dos laços do corpete e o
seu volume ia esgarçando as aberturas da camisa. O cabelo de
morena, com fiapos despigmentados, balouçava-lhe nas costas.
Roçava pelos homens um a um, e eles, recuperados do torpor
que Lillias tomara pela morte, enfrentavam-na, a rir, mas
concentrados numa espécie de aprumo de toureiros. O que ela vira a
estrebuchar na forca mostrava uma leveza juvenil, ainda que as
rugas lhe vincassem já o rosto. Lillias estava habituada às cabeleiras,
às cabeças rapadas que surgiam quando a calota se desajustava e
tudo escorregava para trás. Mas eles tinham cabelo natural que lhes
tocava os ombros e lhes dava, juntamente com a barba, o ar de
bichos.
Puxou a saia que colara às nádegas quando o sangue deixara de
correr. Isso deixava-a mais envergonhada do que o desbragamento
de Cilicia. Os homens acenavam-lhe, avançando o baixo-ventre em
sua direcção. Mas ela estava grata e não fugiu. Ainda assim, o modo
como olhava, vendo-os a todos mortos, dissuadiu-os.
Eles próprios regressavam ao bom senso, arrefecidos pela
melancolia que caía das íris da menina.
Um deles limpou a boca, exactamente como a pôr fim a uma
refeição.
***

Dois daqueles homens eram ajudantes de Alessandra Giusti, o


escultor que orientava a escola do palácio. Carregavam as pedras,
desbastavam, sacudiam o pó que começava a corroer os olhos do
seu mestre. E, apesar de se tratar de portugueses, os aprendizes
tinham-lhes respeito. O hirsutismo e o desleixo no vestir, que eles
interpretavam como um estilo num século pejado de vaidade,
convidava à distância. Os dois pareciam ligados pelo sangue, pai e
filho, ou irmãos afastados na idade. Porém, eram soturnos e
rodavam sem uma fala à volta do escultor, de modo que o mistério
os recobria e ninguém conhecia a sua história.

No momento em que a terra estremeceu, corriam, atrasados,


para a missa. Com o estuque a cair nas suas costas e um horrível
rugido a persegui-los, erraram o caminho para a saída. Um
sentimento semelhante ao de Cilicia, essa volúpia de ladrão e
espreitador, empurrou-os para os quartos, para as cozinhas. Ainda
puderam recolher comida, encher com ela os sacos para a farinha,
antes que as ratazanas atacassem. Depois subiram.
Encontraram outro homem atravessado, semimorto, na
passagem e aquelas circunstâncias de excepção, que os tornavam
sensíveis, obrigaram a uma inesperada caridade. Ele não passava de
um vulgar gatuno que nem quisera crer na sua sorte. Tentava deitar
mão a um cavalo que, no largo, escapara do seu dono, pressentindo
talvez o terramoto, quando as sacudidelas começaram e todas as
portadas do convento se abriram, dando fuga aos habitantes. O
homem quase não sentira medo, tão inspirado se encontrava ainda
pela perseguição ao animal. Os gritos e a queda das paredes de uma
ou outra estalagem não puderam atingir-lhe os sentidos. A visão de
uma casa de rei desguarnecida fazia-o caminhar, equilibrando-se no
chão revolto, como num milagre.
Mas o medo cobrara a sua dívida quando o surpreendera
esfomeado e perdido entre os grandes corredores. As ratazanas
atiravam-se-lhe às pernas e ele esmagava-lhes os crânios com os
gomis, os castiçais de prata que roubara. Arremessava toda uma
fortuna para deter as bocas venenosas. Alguns dos bichos
penduravam-se na colcha onde ele guardara o saque e que adejava,
vermelha, num toureio de pesadelo. Quando o homem, subindo,
achou a porta que pôde enfim trancar, não tinha nada de tudo aquilo
a que deitara mão.

***

Por muito que este grupo nos pareça extraordinário na sua


formação, não só pela diferença entre os seus membros como pelos
motivos que os uniam, de modo algum foi único na época. Onde a
deriva dos caminhos convidou gente estranha a matar-se por comida
ou pelo brilho de um anel meio enterrado, ali também os corpos,
libertados pela desordem que reinava sobre tudo, tiveram estranhas
generosidades. Os vapores do desastre embebedavam.

Lillias não partilhava a alegria e a excitação sensual dos


companheiros. Porém, sentia-se feliz com eles. Desconhecia a
natureza do episódio que tanto a assustara de manhã. Por medo dos
seus olhos, nunca mais os homens a tocaram sob a saia. Davam
grandes palmadas em Cilicia que, não obstante a sua animação, já
começava a revelar fadiga. Por alguma razão, não se detinham. Iam
de sala em sala, cada vez mais lentamente, e arrastavam atrás deles
os sacos de comida meio vazios.
Prendiam-se uns aos outros, quais amantes. Assim como sabiam
que, encostados e, talvez, em fricções libidinosas, se manteriam
aquecidos contra a noite, também contavam com o poder do grupo
para se protegerem do pavor.
“Se não vens para aqui, morres, rapariga”, disse o mendigo
quando, enfim, pararam. Chamava-se Tomás como Tom Fraser.
Lillias teve uma forte memória da infância. Pôs a cabeça sobre o
peito de Tomás e ficou a esperar a escuridão. Quando fechou os
olhos, a distância a que obrigava os homens anulou-se. De tudo o
que eles fizeram nessa noite, só lhe interessava perceber que a não
matavam. A julgar pelo riso de Cilicia, algum contentamento havia
ali. Ainda que a barriga lhe doesse, não era dor de fome, e isso
bastou.
Como se o dia fosse ruidoso, ao primeiro sinal de claridade eles
ouviram chegar as ratazanas.
Arranhavam nas portas, longe, ainda, mas com tal frenesim que
se entendia terem conhecimento da comida, fosse pelo faro, fosse
pelo instinto. Tomás levou-os pelos quartos sem mobília, em busca
de um objecto contundente. Assumia o comando, pondo a uso
cinquenta anos de conflitos nas esquinas.
Acharam ripas e um ferro de braseira. Tudo o resto era palha que
o suor e algum sémen haviam escurecido e tornado propícia à
podridão, bacias que a ferrugem desfizera. Ainda que ninguém o
confessasse, todos se apercebiam do ridículo. Não queriam ter o ar
de fugitivos, mas estavam mudados, silenciosos e recurvados sob o
peso da atenção.
O guincho dos roedores que, certamente, se guerreavam na
disputa de terreno, fazia ricochete nas abóbadas e ia rolando pelas
tijoleiras. Parecia ele próprio tão assustador que se podia ver o seu
avanço, um mar, um pássaro embatendo nas paredes. Os ajudantes
do escultor tremiam, como não tremeriam num combate. O mais
novo virou-se e vomitou. Lillias não tirava os olhos dele porque o
vira enforcado e, assim, sabia que ele não ia morrer em breve ali.
Por isso temeu pouco quando a terra estremeceu outra vez, e com
maior intensidade que nas outras réplicas. Apesar de caírem,
atirados de um lado ao outro ao longo do aposento, nenhum deles
sofreu mais do que ligeiras pancadas na cabeça. A senhora Cilicia ria
ainda, compondo a saia sobre as pernas nuas, mas fazia-o por puro
mecanismo, como um fantoche em falsas convulsões. Aliás, o terror
que experimentavam ainda antes de o abalo começar tinha-os de
certo modo vacinado. Enquanto o chão se não fendesse à sua volta,
enquanto a arrogância do convento contribuísse para o manter de
pé, visto que Deus gostava de arrogantes, não se sentiam realmente
em perigo.
O pó que esbranquiçara os seus cabelos numa simulação de
maquilhagem assentou lentamente sobre o chão. Estavam
habituados ao silêncio que se seguia ao ronco subterrâneo, e
durante uns instantes não estranharam aquela espécie de
esvaziamento que parecia dilatar o espaço. Só depois entenderam.
Assustadas pelo forte abalo, ou tão-somente pelo rugido que
figurava um monstro a despertar, as ratazanas tinham-se afastado.
Eles não sabiam, mas os bichos levantaram-se, apoiados nas
patas posteriores, e à sua maneira, farejando, interrogavam também
eles os céus. Fosse o que fosse que levaram por resposta,
inverteram a sua direcção. Desceram pelas escadas, pelos buracos,
mas não voltavam para o seu lugar, as grandes galerias do subsolo
por onde se dizia que João V se escapulia com cavalos e carruagem
para fornicar com a freira de Odivelas. Alguma coisa humana lhes
ficara da ascensão às salas do palácio, pois que saíram todas para o
largo pelos portões que se haviam entreaberto.
Depois enviesaram à direita, sem que o cheiro a enchido e a
carne seca que detectavam no acampamento as atraísse mais do
que aquele ponto que as chamava de longe para a fuga. Afinal
também elas se enganavam naquele pressentimento de um desastre
maior que não chegou a ocorrer.
Os camponeses viam-nas passar como um rio que gritasse,
confirmando que a bondade das coisas naturais estava chegando
realmente ao fim. Consta que, aprofundando a analogia, se
lançaram no mar.
Mas, pelo Verão do ano de 56, já os guinchos de novas ratazanas
ecoavam nos túneis do convento, fazendo arrepiar os que os
ouviam.
***

Ainda que o coração os não puxasse para voltarem a morar no


edifício, guardas e servidores interpretaram a desaparição das
ratazanas como uma espécie de convite à sua entrada. Tinham
presenciado o turbilhão de centenas de horríveis animais. Se eles
atravessassem pelas tendas, nada resistiria às suas bocas. A
salvação, que não sabiam explicar, tornou-os arrogantes. Era como
se uma poalha do poder real fosse vista a brilhar sobre os seus
ombros e demovesse todos os ataques. Em vez de se assustarem,
supuseram que o tempo da desordem terminara e que o convento
se auto-saneava, para que as botas o pisassem outra vez.

Toda a população parasitária gerada por aquele ajuntamento


olhou também, e sem disfarce, para cima. Não sei se com excepção
dos frades, a imagem que tornava as paredes transparentes e lhes
entrava dentro das cabeças era a das pratas nos aparadores. De que
uns pensassem recolhê-las simplesmente para as defender do
saque, não podemos nós, da nossa distância, duvidar. O que é certo
é que pouco prejuízo houve efectivamente no palácio. Talvez em
parte o gigantismo tenha causado desalento aos roubadores que se
perdiam sob o duro olhar dos príncipes nos seus quadros a óleo que,
apeados, com as molduras sujas de caliça, não haviam tombado
contra o chão. Bastava aferrolhar-lhes as saídas para que acabassem
por endoidecer. Ordens e contra-ordens circulavam, tentando cada
um ficar sozinho para dar sumiço às coisas de valor.
Ninguém vira, entretanto, o intendente, a quem provavelmente
acobardara o ter de prestar contas do recheio. A desumanidade do
convento levava a que ninguém funcionasse conforme a sua
especialização. Os criados sujavam, os ladrões não conseguiam
concentrar-se para roubar, os guardas não sabiam caminhar sem
que os calções, cheios de furtos, tilintassem. Os frades, seduzidos
pelo ar livre e pelo cheiro a sexo das mulheres, adiavam o regresso.
Não pareciam sentir a mínima curiosidade pelo estado da igreja,
nem sequer pelo dos seus aposentos. Na verdade, o edifício
defendia-se a si próprio, com a sua repelência original.
***

O nosso grupo, ouvindo vozes, entendera que não o deixariam


descansar. Sem que uns aos outros confessassem, imaginavam
coisas iguais, a mesma soldadesca, sob o comando do meirinho, a
quem as culpas do atraso apavoravam. Eles deslizavam de porta em
porta com as suas baionetas que eram a grande novidade do
momento e aumentavam o gosto de matar. Milímetro a milímetro
declaravam, pelo som das botas assentando contra o chão, que, já
que a providência conservara o bom estado geral do edifício, cabia
agora aos zeladores do rei torná-lo habitável outra vez. Isso
significava eliminar, cortar as mãos a toda a criatura que tivesse
tomado o terramoto por oportunidade da fortuna. Enganavam-se os
nossos, figurando uma tropa metódica e sombria. Vimos já o bulício,
o desencontro, o prejuízo que os supostos guardadores, ainda mais
que os ladrões, iam fazendo. Porém, em cima, amontoados no seu
canto, eles, sem falar, davam por findos aqueles dias que nem
sequer os ajudantes do escultor, perto da criação como se achavam,
alguma vez haviam concebido. Acabariam por os encontrar e o
melhor que lhes sucederia seria verem-se de novo revestidos da
máscara referente ao seu papel. “Esta é uma mulher, esta uma
moça, este um mendigo, este ajudante de escultor.” A vida inteira
decorria disso.

“Antes as ratazanas”, confessou a senhora Cilicia. Os outros riram


pela última vez, compreendendo.
Por uma distorção do sentimento, pensavam nelas como em
guardiãs que os protegiam contra o avanço dos humanos. Mas
tinham de encarar a retirada e começaram a distribuir o pão. “Levem
vossemecês”, disse o mais novo, o que a justiça havia de enforcar
sem que Lillias soubesse por que crime. Sendo ajudantes de
Alessandro Giusti, deveria bastar-lhes explicar que se tinham perdido
por ali. Talvez os guardas não acreditassem e ninguém aparecesse a
defendê-los, mas essa história não nos diz respeito.
Já voltámos as costas para sempre.
***

Seguimos com Tomás, Lillias, Cilicia, que agora sente a falta das
ceroulas, o que quase lhe tolhe o andamento. E, confiando na
destreza do mendigo, descemos uma estreita escadaria, quase sem
luz.

Vemos como Cilicia se contrai, colhida pelo sol sobre o terreiro. O


cabelo cinzento predomina sobre a sua aparência e aquele rosto,
que os saguões e a lascívia embelezavam, recuperou, com juros, a
velhice.
Também Lillias caminha devagar, empurrando a barriga à sua
frente, como se uma criança lhe pesasse.
No entanto, aquele grupo não atrai mais atenção que todo o
forasteiro. Há, entre a gente do acampamento, uma saturação de
novidade. Neste dia, em que os homens arrancaram pelo convento
acima, confundindo, na mesma acção, o saque e o dever, como se
se envolvessem numa guerra, os que achamos sentados sobre o pó,
mulheres e frades, velhos e crianças, olham emudecidos para o
chão. Se lhes tocarmos, estremeceremos, pois hão-de estar tão frios
como cadáveres. O processo da vida interrompeu-se neste exacto
momento, um pouco antes de os homens regressarem com despojos
e de um ou outro serem enforcados, com as pratas roubadas à
cintura. Então os frades tocarão de novo nos tornozelos das
mulheres ao seu alcance, e as crianças gritarão, com medo de que
as deixem cair, porque as ergueram, as mães e os tios, acima das
cabeças, para que não percam as execuções. O coração sabe que
deve repousar, quase morrendo, a fim de preparar-se para os novos
sentimentos do espectáculo.
Tomás conduz as suas protegidas pelos carreiros ainda
humedecidos de vómito e de urina matinais.
Elas nada perguntam. Julgam sua toda a dormência que
acompanha o mundo. Estão como cegas, apoiadas naquele homem
que colhe informações aqui e além. “Voltamos para Lisboa”, diz
Tomás. A senhora Cilicia quase ri: “Lisboa não existe, capitão.”
Ele ri também. Agora, à claridade, pode ver-se-lhe a barba e a
cabeleira, como esculpidas pela porcaria. É corpulento e os seus
pequenos olhos, iluminados pela matreirice, pouco mudaram desde
o tempo em que se esgueirava das mãos das camponesas,
apertando as galinhas contra o peito. Parece um homem bom.
Porém, roubou alegremente as velhas entrevadas. As suas mãos
alçaram pedregulhos para esmagar os crânios de viajantes a quem o
vinho já deitou por terra. Agora espreita com doçura para Cilicia,
pensando que não vai deixá-la só. Se alguma coisa da fortuna
própria ela recuperar na capital, terá Tomás ao lado, como um
duplo, como um anjo guloso e protector. “Lisboa não existe”, diz
Cilicia.
Mas ele, que nunca viu uma cidade, há-de pisar-lhe nem que
seja a cinza.
VII
Quinze dias depois do cataclismo, ainda as pedras estavam
fumegantes. Continham tal calor que incendiavam as cestas em que
as queriam retirar. Tomás, que se julgava preparado para qualquer
cenário, arrepiou-se. Ladrão de aldeia, não dispunha de modelo que
lhe servisse de comparação. Sabia apenas, por ouvir dizer, que por
Lisboa andava muita gente e que, em ruas inteiras, as mulheres,
dependuradas à janela, entre craveiros, exibiam o seio a quem
passasse. Quanto à grandeza de palácios, os viajantes olhavam o
convento e emudeciam.
Imaginando que a cidade ardera, ele antevia um espaço
silencioso e devorado pela combustão.
Vivera sempre da pequena esperança, um nevoeiro que
transviasse o mercador, um cavalo mal preso numa feira.
Subitamente alguma coisa se eximia ao curso habitual, por um
descuido, por um entusiasmo ou acidente. E nessa brecha da
normalidade é que Tomás entrava, nem que fosse necessário forçá-
la um bocadinho. Tivera às vezes de matar, mas isso não desdourava
a inocência de intenções.
Não é que acreditasse que, no nada em que a grande cidade se
tornara, se levantasse a casa de Cilicia por especial deferência do
divino. Mas não deixava de pensar que, a ter alguém de aproveitar-
se da desgraça alheia, lhe caberia o pleno merecimento.
Aquilo, porém, com que ele deparou, ultrapassados os
acampamentos que cercavam o Norte de Lisboa, mostrava um
território revolvido de sangue e pedra, lama negra e grossa que
respirava como um ser vivente. Lembrava os mil tentáculos do
inferno a arrastar os pés dos crentes para as trevas. A princípio era
fácil escapar, pisando apenas nos lugares fiáveis. Mas, à medida que
avançavam para baixo, o previsto deserto preenchia-se com toda a
espécie de acumulações. As carcaças das casas, distorcidas,
conservavam dois, três andares de altura. Pelos grandes buracos das
paredes podia ver-se gente que trepava, como se a forma de
locomover-se se tivesse tornado simiesca. O entulho da rua, em
certos sítios, parecia amontoado de propósito para que se passasse
dele aos sótãos cujas escadas tinham soçobrado. O sonho de ladrões
e de utopistas assentava, oscilando, nos escombros. Porém, por
sobre o caos, que se diria piscar o olho ao instinto de Tomás,
azafamava-se a população. Mais numerosos que os estropiados,
tolhendo o avanço aos frades mendicantes, centenas de homens
válidos gemiam, dando impulso a pesadas picaretas. Perto uns dos
outros, mas devidamente separados por espaços de prudência,
criados e burgueses, prisioneiros e escravos africanos com grilhões,
aplicavam-se agora a desmanchar aquela construção demencial. As
mulheres espreitavam os destroços, prontas a atacar, mal
vislumbrassem um brilho de metal, ou mesmo um caco que pudesse
levar comida ao lume. Os soldados sorriam, dando vagas coronhadas
no ar. Estavam atentos, mas também não deixavam de ter fome, o
que os tornava vulneráveis a pequenas ofertas de biscoitos.
Distraíam-nos aqueles combates entre raparigas, de cabelo solto e
coxas desnudadas, que se arranhavam por um laço de cetim. Era
uma diversão que interrompia as coisas sérias, fugas e motins. O
ministro mandara os seus exércitos trazer de volta todo o homem
válido que tivesse saído de Lisboa. Um alarido de obscenidades e de
lamentações cobria os ares. Nenhum deles regressava de bom
grado.
Vendo o trabalho e vendo a soldadesca, Tomás desiludia-se. Uma
força, que ele não sabia ainda de onde vinha, estava a manter as
coisas no lugar. Nos pontos altos, balouçavam enforcados. Isso
cansou-o como o não cansara a viagem de Mafra até ali.
Amparava a senhora Cilicia, a quem as pedras e um profundo
desânimo faziam perder o equilíbrio.
Ela buscava sem olhar, cheirando, apalpando o vazio à sua
frente. Tomá-la-iam certamente por mais uma dessas que o
terramoto endoidecera. Quase nada diziam uns aos outros. Mas
mudavam os três de direcção, ao mesmo tempo, sentindo o grupo,
como os animais.
Se alguém se interrogasse a seu respeito, entenderia ser uma
família, pai, mãe e filha que voltavam para casa, se casa houvesse.
E, realmente, nenhum deles pensava em separar o seu destino.
Esperavam que Cilicia conseguisse encontrar o seu bairro, a sua
porta.

***

Aliás, Lillias não esperava nada. Contra o que costumava suceder-


lhe, as visões tinham-na atirado para trás, quando passara junto aos
enforcados.

Estavam em fila, à beira do caminho, saudando os viajantes com


as línguas muito estendidas, numa grosseria. Mostravam vários
graus de podridão. Os melhor conservados com certeza morreram
na maior das aflições, sorvendo, com o seu último alento, aquele
cheiro dos cadáveres, vendo neles a sua própria carne a rebentar. Se
o medo dos tormentos educasse, ninguém se atreveria ao menor
roubo.
Porém, a gente olhava para o lado e tapava as narinas com as
mãos. Apesar disso, vomitavam e cuspiam, e aquele chão luzia sob o
sol. Vermes rosados escorregavam pelas chagas muito abertas pelas
aves carniceiras nos mortos que pendiam há mais tempo. E, ainda
que os passantes se benzessem e um frade ou outro levantasse a
cruz, a impiedade afogueava os rostos. Nem na morte os ladrões e
os assassinos deixavam de feder, de gotejar, com as partes
pudendas animadas por uma singular tumefacção.
Aos olhos de Lillias, o céu toldou-se e o frio escocês entrou-lhe
nos pulmões. Montava num cavalo.
E o cabelo molhado e doce de Anne Macintosh batia-lhe na boca.
Os enforcados recebiam os vencidos à entrada de Inverness. Poucos
eram os que as tropas faziam prisioneiros. Lillias ouvia a castelã a
soluçar de horror e de ira. Anne ocultava o choro dentro do peito,
como um ronco de leoa, para que os ingleses lhe não vissem
lágrimas. O ódio punha uma espécie de febre no seu corpo e a
menina sentia aquele calor a embalá-la, ao ritmo da corrida.
Atravessou Lisboa ao colo de Anne. Ninguém compreendia o seu
sorriso.

***
A senhora Cilicia achou o sítio e a matéria da casa, não a casa.
Ao contrário de muitas, em redor, que conservavam trechos de
paredes e até pedaços de soalho ainda habitável, a dela fora
inteiramente destruída. Estava perto do Tejo, ao lado oeste do
centro de Lisboa, e não escapara, primeiro ao rio, depois às
labaredas. A cinza e um lodo espesso como breu recobriam a pedra
e o carvão. Porém, havia bocados muito limpos, depressões
escavadas por mãos nuas no entulho. Pois, nem que fosse apenas
umas horas antes da forca, eles tinham feito o seu trabalho, os que
viam cair os edifícios e nem tratavam de se proteger, intoxicados
pela ocasião que os chamava a roubar, que se oferecia.
Outra mulher, que não Cilicia, entenderia que aquele abatimento
do seu lar fora causado pela própria fuga. O que sustenta um
interior não é somente a compressão de vigas e argamassa. O ar
expirado, as brasas na lareira, a pele ruborizada, ou pela cólera ou
pela indecência, humores e gases, tudo aquece e dá conforto às
coisas construídas. Por isso é que, no extremo da ruína, ainda o
tecto alberga a sua gente, curvado e carcomido, como as mãos de
um velho a defender a descendência, conforme pode, até cair
também. A senhora Cilicia, porém, nada conseguia torná-la numa ré.
Fugira, aliás, porque voltara cedo da missa matinal. Estava a tirar a
touca quando o chão estalou, literalmente, sob os pés. Não colhera
sequer uma moeda, um castiçal de prata, uma camisa. Se aquele
desprendimento era punido, uma vez mais ficava comprovada a
pequena valia da virtude.
O facto de Cilicia se indignar, em lugar de fazer a contrição, deu-
lhe um assomo de vitalidade.
Trepava para os montículos, chamando o nome dos vizinhos,
numa voz que indiciava genes de peixeira. E, como se o apelo as
revelasse, as pessoas da rua destacavam-se das zonas de cinzento
onde viviam numa espécie de limbo, sem ousarem nem afastar-se
nem entrar em casa. Eram os sofredores das famílias, os que, por
choque ou por temperamento, não tinham jeito para sobreviver. Para
além dos muitos que desapareceram, ou esmagados por escombros,
ou fugidos, não contando, tão-pouco com os homens recrutados, à
força, para as obras, é bem de ver que os feridos mais ligeiros e as
mulheres com pequena descendência haviam recolhido o que
podiam e tentado juntar-se à multidão. Não se sabia como, mas
havia melancias à venda em toda a parte.
Com sorte, algumas ainda acudiriam a fidalgas que haviam
tresloucado e andavam pelas ruas, coxeando, ou iriam levar bilhas
com água a quem tivesse meios de a pagar. O certo é que ninguém
no seu juízo, salvo se paralítico, que os cegos não deixariam de se
orientar, ninguém ficou sentado na soleira. Aliás, os abalos
sucediam-se e aquilo que não caíra ao primeiro dia bem poderia
desabar ao sexto ou décimo.
É de reconhecer que houve momentos de inesperada
generosidade, estranhos que se ajudavam sem que algum
pensamento interesseiro os corrompesse. Mas, a julgar pela rua de
Cilicia, o abandono táctico dos fracos, tão praticado pelos animais,
tivera a sua, e não pequena, parte. Os que, àquele chamamento, se
acercaram, velhos ou estropiados, sem contar uma jovem mulher
embranquecida, levaram tempo para se lembrarem de que estavam
a ver uma vizinha. Olhavam, com a boca entreaberta, inexpressivos
como os imbecis. E o que os fez finalmente reagir foi o que havia de
intrigante naquele grupo. O rosto, que a memória pouco a pouco
lhes ia colocando na janela de um andar que deixara de existir,
aparecia enquadrado por dois outros de tal modo suspeitos que o
receio, em vez de atenuado por Cilicia, a tornava também
assustadora.
“Estes são meus criados”, explicou ela. Mas temia que a falta das
ceroulas sob a saia fosse notada e lhes contasse uma outra história.
Além disso, os cabelos de Tomás, de tão compridos, não se
confundiam com o tamanho normal nos servidores. Ainda que,
depois do terramoto, ninguém pensasse em colocar postiços, o
passado de um homem estava ali, vicioso ou respeitável, na cabeça.
Ele, tentando dar mostras de humildade, curvava-se, inclinado sobre
a ama. E não deixava de parecer que trataria de estrangulá-la, mal
se achassem sós.
“Cuidámos que estaria além debaixo”, disse um dos velhos. Não
erguia os olhos e apontava com o queixo para as ruínas. Se Cilicia
sabia quem ele era, isso não lhe passava para as maneiras. Mostrava
uma frieza de juíza. A sua boca, ainda perfeita, ressequira, pedindo
economia de palavras.
“São Paulo ardeu também?” “Isso não sei”, disse-lhe o mesmo
velho. Os outros já se sentavam de novo sobre as pedras,
lamentando aquele gasto de energia. Não fora a única a voltar,
Cilicia, e por aquela altura eles deveriam ter aprendido a não se
levantar.
Vizinhos que subiam os degraus e entravam nas cozinhas uns
dos outros, que iam aos quartos dos doentes levar caldos e
emprestavam criados para as festas, tinham agora um tal carrego de
ódio que se encaravam como um perigo mútuo.

***

O bairro de São Paulo não tinha ardido. Os contrafortes com que o


demarcavam impediram o incêndio de avançar. Porém, tudo o que o
rio arremessara das suas profundezas, lodo, barcos, cadáveres de
afogados, recobrira as ruínas das casas. Foi, portanto, um dos
primeiros sítios que o ministro mandou que se regasse com cal viva.
Se alguém ouviu gemer os soterrados e se benzeu ao despejar os
caldeirões, isso não sei. Calculo que o momento não se compadecia
com minúcias.

Tinha de se queimar a infecção e de evitar que os cães


desenterrassem os mortos, cujo lento agonizar deitara um cheiro de
acidez que os atraía.
A senhora Cilicia conduzira os companheiros por sobre pedras
que soltavam o calor e suspiravam, ensonadas, como bichos.
Atravessaram o Terreiro do Paço. Apesar da moldura de desastre,
dos grandes edifícios abatidos onde, por pura sorte, não se achava a
família real nessa manhã, o lugar estava estranhamente álacre,
cheio de gente que assentava nos carvões cestas nas quais de tudo
havia à venda.
Ameaçados pelo pôr do Sol, os vendedores gritavam, salivando,
como a intimidar os interessados. E iam atando às costas ou
alçavam para a cabeça os bens remanescentes.
“É que não temos um vintém”, disse Cilicia. E empurrava Lillias. A
menina olhava, com surpresa, a multidão. A coronel Macintosh
entrara em casa, esquecendo-a, dando as ordens, de caminho, para
que lhe tratassem do cavalo. Então, o tempo levantava Lillias e
empurrava-a de novo para ali. Era um cenário negro e, no entanto, o
rosto amargurado das pessoas brilhava como um fruto contra a luz.
Tomás emudecera ao ver o rio. As águas, sossegadas, muito
grossas, pareciam pintadas de amarelo.
Porém, Cilicia tinha pressa: “Andar, andar.”
***

“Andar, andar”, dizia. Alguma coisa a estaria chamando de mais


longe, soprando-lhe a leveza sob os pés. Mas o que quer que fosse
não se achava em sítio algum. A brancura da cal fosforescia com o
aproximar da escuridão e as picaretas começavam a calar-se. Ela
rodava o corpo, procurando, desesperada e volumosa como um
touro. Era evidente que existira ali uma casa qualquer a que Cilicia
pensara recorrer para se abrigarem. No seu anseio de
reconhecimento usara o resto do vigor que a sustentava. “Agora
aqui morremos”, declarou.

***

A noite trabalhava sobre os nervos do mendigo Tomás como um


tropismo. Mexia-se depressa e agilmente, farejando os trajectos
invisíveis. Apesar de ignorante da cidade, podia confiar nos seus
sentidos, treinados pelos perigos de uma vida. Tomou as
companheiras pela mão: “Aqui chegados”, disse, “é aguantar.”

As provisões haviam-se esgotado e, felizmente, o ar causava um


certo enjoo. Lillias não se sentia enfraquecida, pois fora o dia inteiro
transportada no cavalo de Lady Macintosh. Nem receava a grande
sombra que caía e que tornava tudo mais pequeno. Os seus olhos
luziam, reflectindo a mais ligeira chama do caminho. Mas nada via e
isso sossegou-a. A corpulência de Tomás irradiava o único calor
daquela noite.
“Onde terá mais gente conhecida?”, perguntou ele, enquanto se
encostavam uns contra os outros sob um pontilhão de lajes.
Cilicia levou tempo a responder: “Tinha além na Pampulha.”
— É longe?
— Não.
“Amanhã lá iremos”, disse o homem.
“Agora aqui não há senão morrer”, repetia Cilicia. O desconforto
das suas pernas nuas sob as saias retirara-lhe todo o optimismo.
***

— Que é de parentes? — perguntou Tomás.

— São poucos e são maus — respondeu ela. Esfregavam-se no


frio da madrugada, prontos a caminhar.
O som disforme de uma cidade inteira que acordava fora do leito
e maldizendo o dia antecipava-se ao nascer do Sol. “Vamos a quem,
então?”
— A meus rendeiros — disse Cilicia. — Algum há-de viver.
E, com efeito, embora se enganassem quanto à conformação
daquela esperança que a passagem da noite repusera, acharam
finalmente uma das casas ainda sustentada nas paredes. As portas e
as janelas pareciam, nos dois andares de baixo, muito sólidas. Mas
num dos lados resvalavam pedras e o telhado abatera sobre os
sótãos. Era, ainda assim, a mais bem conservada da pequena
praceta.
O chão perdera toda a consistência, amolecido como turfa, e
incapaz de sustentar as suas laranjeiras.
Ao contrário das ruas mais centrais, que andavam povoadas de
aleijados e vigiadas pela soldadesca, de maneira que a vida, ainda
que expressa da mais calamitosa das maneiras, não desistia de
cantar vitória, aquele lugar vibrava no vazio. A manhã ia a meio e
sucedia que o ouvido julgava perceber o grito dos pardais que lá não
estavam. Decerto aquilo que havia para roubar fora roubado nos
primeiros dias. E aqueles que havia para apodrecer processavam a
sua corrosão muito discretamente, sob as pedras. A senhora Cilicia
ia esticando o pescoço através daquele silêncio, como se assim
chegasse mais depressa.
Tinha mais fome de uma casa do que de pão.
***

— Vós que quereis? — perguntara a rapariga. E só muito depois


abrira a porta. “Sois vós parente de Maria Aires?”, perguntara Cilicia
por seu turno.

— Senhora, não. Comprou-me em pequenita. — Olhava para


Lillias, confortada com o ar miserável da menina.
— Leva-me então junto da tua ama — disse Cilicia, e ela tornou-
se muito pálida. Estavam os quatro na penumbra da entrada e o
silêncio esgueirara-se também para o lado de dentro, volumoso.
Lajes que haviam revestido o átrio achavam-se arrumadas a um
canto e os pés batiam na areia húmida.
Explicou-se finalmente a rapariga, que era Ana, sem mais nada,
de seu nome, pondo algumas palavras pelo meio de muito aceno e
muito soluçar. Maria Aires jazia morta lá em cima.
— Isso, mulher de Deus, há quanto tempo? — perguntava
Tomás. E cuspinhava, despejando os miasmas para o chão. Sempre
fora incapaz de roubar mortos, excepto os que resultavam do
assalto.
***

A rapariga desfiava a sua história que arrepiava sem os comover.


Maria Aires, viúva com mistério, já avançada em anos, resistira aos
abalos de terra e à penúria dos dias a seguir. Mandara mesmo que
Ana pregasse tábuas nas janelas, no alçapão que dava acesso ao
sótão e no buraco onde existira a chaminé.
Mas tarde ou cedo acabariam por sair, por precisarem de
alimento e de água. Ela tinha confiança no ministro que, no entanto,
até àquela altura, era fraca referência no país.
Dos dois criados que desapareceram, temiam ambas que
voltassem para a pilhagem, conhecedores dos bens e das fraquezas
próprias da residência de uma velha. Achava Ana que o tumor do
medo cresceu tanto no peito da patroa que lhe tirou do gancho o
coração. Pois que ela se apagara quando as gentes andavam já por
fora a acudir e, para tal, bateram contra a porta com a brutalidade
daqueles dias.
Ao que Ana lhes gritara que na casa ninguém necessitava de
socorro e que seguissem, por amor de Deus. Maria Aires parecia que
fugira a vida inteira das autoridades, tal o tremor com que as ouviu
chamar. “São ladrões disfarçados”, comentou. E então, caiu-lhe o
coração do peito.
Tomás achou que deveria comandar, ainda que os joelhos lhe
tremessem. Havia ali, por preencher, ofício de homem. Ele Não se
tinha habituado a casas, muito menos com escadas interiores que
raramente vira em toda a vida. Parecia-lhe uma espécie de
armadilha, um caminho para a forca. Mas subiu. A senhora Cilicia,
receosa tanto da morta como do avanço que o mendigo levava,
persignou-se e foi-lhe prestesmente no encalço. Lillias e a rapariga,
cada qual encostada ao seu canto do vestíbulo, olhavam-se,
assustadas, decifrando o rebuliço no primeiro andar. “Para que a
guardaste tu, mulher? Para quê? Para quê?”, perguntava Cilicia lá de
cima. Gritava e o grito demorava-se no ar, como o uivo de um lobo
na montanha.
Ana transpôs por fim alguns degraus, ficou a meio, a soluçar.
Estava tão escuro por causa dos reforços nas janelas que só o
avental se lhe avistava, num difícil vislumbre, pardacento. Ela cobrira
com as mantas o corpo arrefecido, enchera de água a taça do
oratório, supondo que o contacto com a memória do antigo
conteúdo a benzeria, e aspergira tudo em volta. Imaginava que o
mundo, no exterior, ficara entregue a assassinos e violadores. Que
havia de fazer? Que pensariam quando a vissem sair com um
cadáver, tantos dias depois do terramoto?
Ana ignorava que, ao contrário dos bandidos que a velha receara,
eram soldados que tornavam as ruas perigosas para quem se
lembrasse de aparecer a carregar um morto já tardio. Os barcos em
que os tinham carregado, para os irem deitar no alto mar, davam por
terminada a sua faina. Os ladrões, não.
Tão-pouco aqueles que haviam guardado honestidade toda a
vida podiam resistir à tentação do ouro derretido que se via a brilhar
entre as ruínas. Tomás pensou nas jóias da viúva, que as devia
esconder em qualquer parte. O impulso de pegar-lhes e fugir foi
diligentemente dominado.
Maria Aires usava um crucifixo suspenso de um cordão de bom
quilate e ninguém se atreveu a retirar-lho quando lhe abriram cova
na cozinha. Estava carcomida, como se não contivesse humidade
nem bactérias. Tomás cavara fundo, mas não tanto que não pudesse
um dia apoderar-se do cordão e da cruz. Cilicia comentou, ao
persignar-se, que, à falta de um enterro em chão sagrado, melhor
não poderia suceder do que ficar em sua própria casa.
VIII
Durante muito tempo, Lillias Fraser foi poupada às visitas do
futuro. Dir-se-ia, aliás, que os dias do presente também só
vagamente lhe tocavam. Parecia, tal como Ana, apatetada, com os
seus grandes olhos amarelos feridos da luz, escondidos no cabelo
que ela se recusava a entrançar.
Isso, de certo modo, preservou-a do ódio de Cilicia que os
tomava, a ela e a Tomás, por testemunhas das coisas sucedidas no
convento. Precisava de um homem que servisse e defendesse a casa
e há que dizer que Tomás se mantinha no lugar, ainda que apalpasse
as raparigas. Mas a patroa imaginava ver no seu riso miúdo, de
matreiro, uma recordação. E, dentro dela, o seu corpo deitado nos
tijolos, a sua mão a empurrar-lhe as nádegas para que ele a
alcançasse bem no fundo. Às vezes desejava achá-lo morto, pela
manhã, na esteira onde dormia. Para purificar o pensamento,
alegava, de si para consigo, que Tomás não passava de um ladrão e
que esperava apenas o momento de envenenar ou estrangulá-las
todas.
Mas o que, sobretudo, a indignava era a maneira como o cheiro
masculino lhe causava fraqueza nos joelhos. Chamara Ana para
dormir consigo, na cama de embutidos da viúva. E pouco se lhe
dava do que em baixo, no rés-do-chão, sobre enxergões de palha,
acontecesse a Lillias e a Tomás.
Uma noite, desceu a buscar água e tropeçou a meio da cozinha.
A menina deitava-se nas lajes que encimavam o túmulo da velha.
Isso tornava-a mais inacessível do que qualquer muralha de
convento.
Se a Tomás lhe ocorrera pô-la à força para fora dali, não sei dizer.
Nunca o tentou. Havia um camponês temente a cemitérios dentro
dele.
Entretanto, a cidade renascia e as mulheres das ruas sujas
retomavam a sua actividade, tanto mais que, tal como o palácio do
ministro, os lupanares não foram destruídos.
***

Na própria grande noite do incêndio, Nossa Senhora tinha-se


mostrado no Convento do Carmo, que não era mais que nuvem de
pó sobre a colina. Ela acenava com um lenço branco, dando sinal de
pacificação. E, apesar de os abalos se repetirem por dias, meses,
anos, desde então, podendo ver-se a cólera de Deus contra a nação
que se baixava aos protestantes, havia algum descanso nas pessoas
quanto à sorte, não só das suas almas, como também das almas de
parentes que não tinham tomado a extrema-unção. Isso animava-os
de maneira que puderam dedicar-se mais cedo aos seus interesses
na vida terreal.

Deve dizer-se que o ministro andou com a dedicação de um pai


severo, que, se não chora ao pé do filho enfermo, tão-pouco se
consente adormecer. Mandou que se servisse pão e caldo a todo o
lisboeta desvalido. Por muito que fugissem com os olhos, os que
comiam nos ajuntamentos não conseguiam ignorar os enforcados
cobertos pelos corvos que voltavam. Mas havia um conforto, uma
justiça que fazia acalmar a multidão. A fidalguia tinha de abrir portas
e de ceder criados e cavalos. A inimizade que viria a dar resultados
terríveis começava e o ministro sorria toda a vez que um homem da
nobreza obedecia. Consta que, aos que fugiram, deu ele ordens de
jamais regressarem do exílio, pois talvez outro susto os aguardasse
e lhes rompesse os fracos corações.
Na casa de Cilicia, cada qual se esclarecera sobre o seu papel e,
à medida que as coisas iam sendo coladas e repostas nos seus
sítios, também os sentimentos se arrumavam. É certo que o Inverno
se vingou dos excepcionais dias de calor que tinham avançado por
Novembro. O telhado de nada lhes serviu, com as vigas quebradas e
sem telhas. Porém, só Ana se desesperava.
Tomás e a patroa, enrijecida pela experiência da vagabundagem,
protegiam com panos encerados tudo o que era possível proteger e
acendiam as madeiras velhas. Lillias dançava sobre as poças, na
cozinha. Foram esses os últimos momentos em que a desordem se
espalhou entre eles e em que os olhos brilharam, como haviam
brilhado nas orgias do convento. Uma espécie de noite perdurava,
tornando fácil a proximidade. Ainda assim, Cilicia procurava,
ocultando uma vela com a mão, os bens escondidos por Maria Aires.
Muitas das tábuas do soalho se soltavam, mostrando esconderijos
sem tesouro. O que ela achou, ao certo, não sabemos. Quando os
parentes da viúva apareceram, para reclamarem roupas e mobília,
disselhes ela que o que se salvara não lhe pagava as rendas em
atraso.
Ofereceu-lhes Ana. Eles recusaram. Ninguém queria mais bocas
numa casa.

***

Lisboa ia-se erguendo devagar, tão devagar que vinte anos depois
ainda muito relato de viajante dizia haver entulho em toda a parte.
Também a vida de Cilicia se arranjava, peça por peça, e,
comparando, velozmente.

Já pelo mês de Março empreendia, escoltada por Tomás,


expedições para retomar a posse de um quintal, de um armazém, de
um fio de casinhotos. Por sorte, a maior parte dos seus bens
situava-se a oeste da cidade, onde fora clemente a natureza. Por
esse tempo, andava tão feliz que ofereceu vestidos às criadas e
comprou uma mula para Tomás. Ninguém se interrogou sobre os
motivos, reconhecendo nela essa alegria comum aos donos de
propriedades que mergulham de novo as mãos nos bens.
Foi fácil a Tomás compreender que tudo o que a patroa possuía
se achava hipotecado sem retomo.
Porém, o usurário e a papelada tinham desaparecido na
catástrofe. Ele aplaudiu-a quando aquilo se confirmou, olhou-a como
se ambos se enlaçassem sobre um terreiro cheio de cadáveres.
Saía muito, agora, o ex-mendigo, porque o calor de um tecto lhe
pesava. E começava a entender-se com Lisboa, a rir e a defender-se
nos espectáculos, fosse uma pregação, fosse uma briga, fosse uma
procissão no fim da qual se arrastavam os bêbedos em pranto.
— Se precisarmos de ir a tribunal — disse, e esperou que o rosto
de Cilicia mostrasse que admitia a desinência -, compra-se
testemunhas no Rossio.
Num começo de fúria, ela encarou-o. Depois sorriu. “Que sabes
tu da minha vida?”
À noite mandou Ana para baixo e chamou o criado para o quarto,
já era o mês de Abril, mas não havia flores que chegassem para o
cheiro da Primavera. “Não suponhas que estou para te servir”, disse
para Tomás. E abriu-lhe a cama.

***

Mostrou-se mais amável com Lillias. O geral optimismo da cidade


coincidia com o seu bem-estar.

Estava singularmente generosa e deixou de encarar a rapariga


como potencial denunciante. Aliás, aqueles dias no convento já lhe
pareciam muito inconsistentes, prontos a desfazer-se na memória.
Não é que alguma vez tenha acolhido Lillias no coração, sem mais
reservas. Mas preferia-a a Ana, que chorava, necessitando muito de
atenções, o que era uma maneira de abusar.
IX
A senhora Cilicia percebera que, em terra tão amiga dos ingleses,
que, ainda por cima, andavam importando peixe e farinha para os
esfaimados, a clara cabeleira da menina poderia atrair-lhe simpatias.
Deu o seu apelido às raparigas, mas isso foi um passo
vulgaríssimo numa população que não tivera, até então, cuidado em
registar-se e recorria ao nome dos patrões. Lillias perdera o saco
com a santa e os papéis que a velha Macintosh encarregara o padre
de arranjar. Que passasse a chamar-se Lília Peres não significava
uma adopção e tão-pouco apagava na lembrança os verdadeiros
sons de Lillias Fraser.
Continuava a falar pouco e mal, o que só agravava a impressão
que primeiro causava nas pessoas, a de tratar-se de uma
atrasadinha. Depois, a luz dourada daqueles olhos levava os outros a
baixar os seus.
Ela seguia ao lado de Cilicia, como uma sua igual, no meio da
rua, escoltadas, a uns passos, por Tomás. Algumas vezes dirigiam-se
ao Convento de São Domingos, junto ao Palácio da Inquisição cuja
reconstrução ia avançada.
Com sensualidade de católica, Cilicia amava o horror da igreja
ardida. Tinha-se preservado o altar-mor e as capelas laterais, e isso
fora um convite de Deus a que as pessoas se juntassem ali para
ouvir missa. Cilicia recordava como, dantes, nas paredes agora
destruídas, pendiam san benitos. Todo o crente evocava os desfiles
que conduziam para os autos-de-fé. Era uma imagem que lhes dava
um prazer envergonhado, mas bem mais forte que a do Paraíso.
E não somente a carbonização que atingia as paredes, mas
própria vocação punitiva do ambiente criava ali um reino de negror
que nem o dia, entrando a céu aberto, nem as velas acesas por
promessas, conseguiam sequer atenuar. O cântico dos monges
embatia nas colunas quebradas, e deixava que os ouvidos dos leigos
entendessem a cólera de Deus, ainda que nada decifrassem dos
textos em latim.
Lillias temia o olhar do pregador que parecia correr a assembleia
procurando emissários do Diabo. As campainhas e o cheiro do
incenso atordoavam os sentidos, e Cilicia começava a suar de
comoção.
Regressavam a pé. Lillias gostava de espreitar para as travessas,
onde havia que formar fila indiana para passar, tal era a quantidade
do entulho. As pessoas subiam e desciam sobre as pedras e o barro,
e amparavam-se ao que podiam, em desequilíbrio. Talvez que, sob
aquilo que pisavam, ainda existissem corpos calcinados. Mas quem
pensara nisso enlouquecera e o comum das gentes lisboetas ria a
bom rir, ciente de estar vivo.
Retomavam lugar os vendilhões e os mendigos dos adros.
Tinham parte na ordem da cidade. Os seus gritos e a sua porcaria
asseguravam o regresso de rotinas e toda a gente lhes ficava grata.
O ministro mandara escorraçar para longe, para a província, as
curandeiras. Já lhe bastavam frades mendicantes que se cobravam
do sinal da Cruz. As ciganas traziam amuletos dissimulados sob os
aventais e puxavam para os cantos mais sombrios os que saíam
desolados das igrejas. Semiocultas nos recantos das ruínas,
mulheres que haviam sido honestas repuxavam os vestidos acima
dos joelhos, querendo imitar as praticantes do ofício. Os seus pés
enterravam-se no suco do lixo refervido e poucos queriam chegar-se
a elas. Pareciam meio mortas, muito roxas, apesar do avanço do
calor.
Lillias espreitava para toda a gente, virando-se para trás, como
as crianças que as mães com pressa arrastam pela mão. Havia em
tudo aquilo uma beleza de quadro tenebrista, fortes cores de
Quaresma contra um fundo completamente sujo de carvão. Tomás,
às vezes, atrasava-se também, chegando ao ponto de perder-se. E a
patroa, que era pessoa para ciúmes, nessas tardes não consentia
que ninguém ceasse. Porém, quando se achava bem-disposta,
comprava os pães-de-são-joão vindos do Sul e ia roer as vagens
junto ao rio. Lillias escondia algumas para Ana, de quem Cilicia
nunca se lembrava. Pelo contrário, sempre que não tinha a pequena
escocesa junto a si, ficava irritadiça. Habituara-se a senti-la colada
ao seu vestido, como um adorno que a favorecesse.
***

De um modo obscuro, Lillias associava essas noites em Mafra, com


os homens, e o desaparecimento das visões. E, no entanto, ainda
nessa altura, vira o auxiliar do escultor Giusti a erguer-se no ar, com
o pescoço preso na corda, ao mesmo tempo que fazia rir Cilicia
deitando-se, meio nu, sobre o seu ventre.

Lillias dormia sossegada sobre as lajes que cobriam a campa na


cozinha. Ana era de tal modo reservada que passava por surda.
Recebera mal a presença de outra rapariga, ainda que mais nova e
pouco activa. À medida que Lillias se tornava indispensável às saídas
de Cilicia, Ana ia-a encarando de outro modo e acabou por aceitar
que se tratava de uma criaturinha de brinquedo.
O facto de a menina recusar mudar-se para um quarto, quando o
sótão se tornou habitável outra vez, só veio reforçar essa impressão.
Pareceu-lhe que ela, à noite, regressava a uma natureza de animal
que precisava de enroscar-se, usando o solo.
Embora a penteasse e se oferecesse para lhe engomar o folho da
camisa, a criada não tinha com Lillias nem cumplicidades nem
deferência. Não é que não houvesse algumas vezes risos nervosos, o
roçar de testas que ao mesmo tempo se inclinavam para o cerzido.
Mas entre os corações de uma e da outra não se abria passagem.
Faltavam-lhes, talvez, aqueles momentos de se deitarem numa
mesma cama, de partilharem o bacio da urina, como era habitual
entre as criadas. As perguntas que Lillias tanto queria fazer, na sua
idade em que, ao tempo, naturalmente se casavam as donzelas,
nem sequer com o olhar as formulava.
Quanto a Tomás, mudara de atitude. Por razões que só ele
entenderia, gostava de assustar a rapariga.
Quando a via sozinha, debruçava-se para que ela respirasse do
seu hálito e depois segredava que Cilicia começava a sentir-se farta
dela.
Lillias, porém, amava-o a um ponto que estava perto da
insensatez. Quando queria lembrar-se daquele dia em que foram à
festa de Moy Hall, ela e o pai, e olhava para baixo, para o grande
homem que a levara aos ombros, via o peito e a cabeça de Tomás.
Então sorria para o ex-mendigo.
“Tu não vais herdar dela coisa alguma”, dizia-lhe ele. A raiva
enegrecia-o. Nunca ouvira falar de Thomas Fraser. Lillias parecia
uma provocadora, alguém capaz de o ir denunciar, de deitar os seus
ganhos a perder.
***

Lillias pisava a rua com frequência absolutamente inusitada para o


sexo feminino naquele tempo. A senhora Cilicia, que a levava em
todas as saídas, não deixava por mãos alheias a defesa dos seus
bens.

Esteve entre os primeiros que chegaram às mesas abrigadas sob


tendas onde os escriturários procediam a registos de tudo, gente e
casas, como se o mundo começasse ali.
Tomás montava a sua mula e ia fazer o reconhecimento dos
lugares de que a patroa se dizia proprietária. Possuía armazéns na
Boavista, prédios no Lumiar, hortas mais longe, tudo desimpedido de
hipotecas, agora que o credor e os papéis tinham desaparecido nos
escombros. Cilicia muita vez lhe acrescentava um terço pela alma,
agradecida. Falava até em reclamar de volta tudo aquilo de que ele
já se apoderara, dois prédios bons, por conta dos empréstimos.
Porém, Tomás, a quem a sorte dera um singular sentido de
prudência, aconselhava-lhe a moderação.
Havia algum mistério na mulher que tanto precisava de dinheiro.
Tomás mantinha uma distância respeitosa quando a acompanhava
na cidade. Por instantes, levava nos sentidos a memória do tempo
em que seguia atrás de alguma velha para a roubar, mal ela se
negasse a dar-lhe esmola. Olhava para os lados, com cautela, e
depois ria imbecilmente para o ar. Qualquer coisa, no fundo, lhe dizia
que ele não se ia dar bem naquela paz.
X
Aquilo aconteceu-lhe de repente. Tão de repente que ela teve de
gritar.
Saíam das ruínas do convento. Por estranho que parecesse, a
atracção daquelas pedras em ruínas onde apenas se levantava um
velho altar ao fundo era maior que a das igrejas mais poupadas,
talvez porque antes do tremor de terra a devoção a São Domingos
se fizesse noutro lugar, um pouco mais abaixo, e a mudança
excitasse os cidadãos.
Então, a multidão que dispersava recuou, animada pelo medo.
Gabriel Malagrida atravessava, com as sandálias meio rebentadas, o
terreiro alteroso do Rossio. Todos, até aqueles que o adoravam, se
arrepiavam de temor à sua vista. Temor ao próprio jesuíta, que
parecia empurrar as pessoas com os olhos até ao precipício dos
infernos. E temor ao ministro que, não tendo mostrado ainda toda a
sua crueldade, já se sabia que não era de perdões. Quem poderia
assegurar que o simples facto de partilhar o largo com o padre
isentava os presentes da suspeita?
Ele parecia agora um vagabundo. A batina e a capa, outrora
negras, estavam pardas do uso e do calor.
Gabriel Malagrida conhecera mais do que honras da corte. João V
chamou-o do Brasil, por pressentir a morte, que lhe advinha do uso
desregrado de cantáridas com que tentava provocar a erecção.
Assim que o viu, o rei ajoelhou, dizendo que o fazia aos pés de um
santo. Morrer veio a levar-lhe muito tempo e o jesuíta soube
aproveitá-lo. Essa energia que servira para curar ou para tranquilizar
os moribundos enervou, no entanto, o sucessor.
José I votou-o ao desprezo e afastou-o sem delicadeza dos
aposentos da rainha velha que precisava dele como do ar. Já então
começava entre o ministro e a Companhia de Jesus aquele jogo que,
de um mero recontro de influências, se tornou num combate sem
piedade.
O padre anunciara o terramoto, mas essa previsão fora ignorada.
Não se sabia como distinguir loucos e charlatães de visionários, a
não ser pelas provas factuais. Tarde de mais se percebeu que
Malagrida podia ler na mente do Senhor, e esse foi tempo de
consumição, de açoite em costas próprias pelas ruas.
Ele passava, terrível, semelhante a um cadáver que se
levantasse, e o espumejar das vociferaçÕes brilhava-lhe na barba,
branca e rala. Deus ressoava pela sua boca. A idade secara-lhe o
pescoço, os braços, que ele mostrava à multidão, e toda a sua cólera
de santo parecia outra vez prestes a romper e a terminar o seu
mortífero trabalho.
Gabriel Malagrida não sabia escutar com humildade as suas
vozes. Era um guerreiro, um pregador armado. Os assuntos terrenos
e os divinos precisavam de idêntico vigor. De certo modo, o ódio do
ministro servia de alimento ao seu espectáculo. Condenava-o pelo
culto da razão, pelo empenho com que atribuíra o terramoto a
causas naturais e agora reerguia uma cidade das cinzas em que o
Mal a mergulhara. Levou até o seu descaramento a ponto de
mandar deixar-lhe em casa panfletos que escrevia, a insultá-lo.
Julgamos nós que tudo não passava de narcisismo
sadomasoquista. Porém, julgamos com o nosso século e as nossas
palavras. Não podemos entrar na intimidade de outra época em
certos pormenores essenciais.
Malagrida causava nas mulheres aquela espécie de
arrebatamento que elas buscavam na religião para substituir o
erotismo. As fidalgas faziam-no entrar por portões de quintal, como
um amante. As populares rasgavam os aventais, seguindo-o pelo
chão, sobre os joelhos. O desapontamento de uma vida e o temor
da morte apareciam nas suas caras, como um traço racial. Os
homens engrossavam o cortejo, descalços e com cordas à cintura,
antecipando os dias do martírio. Muitos eram criados da nobreza
que, de longe, o tentava proteger. Alguns irmãos da Companhia,
muito sujos, iam rezando sem concentração. Dir-se-ia, pela luz vaga
dos seus olhos, que o medo os tinha já endoidecido.

***
Lillias gritou e o padre olhou para ela.

Olhava como um vivo, ainda que a língua saísse inchada, sob o


aperto do garrote. As chamas levantaram-lhe o cabelo um momento
antes de o incendiarem. Ele parecia um joguete, sacudido pelas
cores que lutavam entre si, ouro, negro, vermelho, um laivo azul,
engalfinhados e soprando com o esforço. O corpo do jesuíta
alimentava-as, podia ver-se como lhe cravavam dentes e unhas para
o descarnarem. E, no entanto, por detrás do fogo, o seu olhar
prendia-se ao de Lillias. Era como se não contasse com aquele grito
e ele lhe oferecesse uma oportunidade, um caminho de volta para
trás.

***

Então falou. E o som da sua fala devolveu o presente ao seu lugar.


“Que vês que tanto temas, rapariga?”, perguntou para Lillias.
Detivera-se. Um acólito estendia-lhe o chapéu que ele nunca
conservava na cabeça, tão mirrada e, para mais, tão movediça.

O grito suspendera toda a gente que seguia o jesuíta em


procissão. Pareceu que se esperava uma resposta. Mas aquele
momento, como um pássaro, desapareceu na direcção do rio.
Malagrida sorriu, o que era nele tão pouco habitual que a sua cara
accionou os músculos da dor.
A senhora Cilicia fez descer o véu por toda a frente de Lillias.
Tinha-o cortado de um pedaço de linho duro e cru que a não
deixava ver. Durante as missas, a patroa instruía-a com as mãos
para que se erguesse e para que ajoelhasse, tão cheia de atenção e
tão brutal como se Lillias fosse sua filha e lhe houvesse nascido cega
e surda. E, realmente, o instinto de a cobrir para cortar o que quer
que a unira ao padre, para a soltar daquele grupo alucinado e
dirigido para a perdição, podia confundir-se com o de mãe.
A verdade era que ela se assustara e tapara a cabeça de Lillias,
calcando o pano, como quem extinguisse um fogo. Chagou Tomás
que se encontrava longe e razoavelmente distraído. Lisboa não
parava de o espantar.
XI
A senhora Cilicia obrigou Ana a massajar-lhe os pés e os
tornozelos. Depois, mandou-a chamar Lillias e sair. Como no ano
anterior, o Outono estava demasiado quente e o nervosismo levava a
transpirar e a dormir pouco. Mas aquela ansiedade de Cilicia não se
devia a medo de outro terramoto, ainda que tal ideia a obcecasse.
Com o espartilho desatado e as coxas tão separadas quanto o
permitia o espaço entre os dois braços da cadeira, fez Lillias
recordar-se do convento, dos homens que as prendiam contra o
chão.
A rapariga quis deter-se à porta, sentiu receio de lembrar-se
mais. Mas o rosto ainda belo de Cilicia não mostrava vestígios de
lascívia.
— Chega aqui, filha. Que ninguém nos ouça.
Falava com brandura e Lillias avançou pelo quarto. Um cheiro a
fritos subia das cozinhas. Nas ruas domingueiras, o alarido, muito
próprio do Sul, ia alastrando, levantado com força das ruínas. Duas
horas passadas sobre a horrível visão do jesuíta morto e em chamas,
aquela intimidade com Cilicia, o cheiro dos lençóis, o queimador com
cinzas velhas a um canto da janela, a tacinha de azeite com pavio
que engordurava os panos do oratório, tudo lhe dirigia a saudação
do lar. As paredes podiam estar ainda pouco recuperadas do abalo,
mas nenhum perigo as atravessaria. “Esta é a minha casa”, pensou
Lillias.
Pensara em português. Não se lembrava de alguma vez ter dito
aquela frase.
Cilicia olhou-a e ela sentou-se no soalho. Então esqueceu um
pouco o seu prazer e viu como a patroa se inquietava. Falava apenas
quando perguntada, de modo que esperou.
— O que viste tu lá? .— Nada, senhora.
Cilicia suspirou. Tinha tendência para sufocar de cólera, porém,
apenas o seu pé direito batia, de mau génio, contra o chão. Alguma
coisa a obrigava à simpatia.
— Tu tens visões. Não cuides que me enganas.
Lillias tremeu. Até àquela tarde, jamais alguém adivinhara o que
a levava aos gritos de terror. Tentou negar de novo, mas achou-se
sob o poder do rosto da mulher. Era um poder sem dó, inabalável,
alimentado pelo coração. Pregava Lillias ao lugar, como uma flecha.
A luz do Outono entrava na janela, prejudicando aquele
recolhimento. Mas Cilicia mantinha a rapariga filada no olhar. Era
uma presa.
— Eu preciso que vejas o meu filho.
Lillias olhou-a sem compreender. A face de Cilicia suplicava. A
rapariga ergueu-se e recuou, certa de que ela havia enlouquecido.
Não disseram mais nada. O quarto abria uma distância
desmedida entre os dois corpos.

***

Lillias nunca chegou a esclarecer a senhora Cilicia sobre o acaso com


que as suas visões aconteciam.

Ela mudara desde aquele domingo. Até então, espreitava a


rapariga como o animal espreita o caçador. Bastavam o seu vulto e o
seu silêncio para lhe lembrarem Mafra e o desvario. Na sua ideia,
mesmo quando se mostravam lado a lado na rua, mãe e filha,
punha-lhe a trela à volta do pescoço. E a firmeza desse pensamento
enrugava-lhe os lábios e a fronte, levava os outros a cederem-lhes
passagem.
Lillias não via nem a trela nem o pulso que se fechava para a
estrangular e caminhava com felicidade.
Mas a patroa começou a perturbá-la, tornando-se bondosa.
Repugnava. Dava-lhe ovos com vinho e com açúcar, às colheradas,
até Lillias vomitar. Tinha pequenas atenções sentimentais, como
cheirá-la, ou colori-la com carmim. Aos olhos de Ana e de Tomás
parecia que perdera o juízo e que tomava a rapariga por boneca de
brincar.
Dos seus amores com o ex-mendigo não podia dizer-se que
caíam no tédio conjugal. Tratar-se-ia apenas do embate entre
pessoas corpulentas num só espaço, o que umas vezes despoleta o
erotismo, outras um impulso de eliminação. Tomás estava por dentro
dos negócios e dava-lhe atenções de noite.
Isso servia muito bem a Cilicia, que o estimava. Mas, ao contrário
do que esperaria, o decurso do tempo não turvava a memória do
seu primeiro encontro. Se era conveniente que Tomás nunca
esquecesse a sua condição a fim de se manter humilde e grato,
também havia o perigo de a lembrar de pernas nuas e arfando, no
convento. Talvez Cilicia se enganasse, mas julgava ver-lhe essa
imagem a brilhar nos olhos quando ele sorria sem qualquer razão.
“De que ris tu?”, dizia. E ele virava-se, com a vulgar expressão de
prisioneiro que há nos homens casados. O que quer que os ligava
um ao outro ia cortando, queimando a pele na frequência do atrito.
A senhora Cilicia tinha pouco lugar para o afecto. Só cabia no
peito dela um amor de cada vez.
Estava, naquele tempo, amando Lillias ao seu estilo brutal e a
rapariga, amolecida pelo clima de Lisboa, não se atrevia a provocar
desilusões. Parecia realmente concentrada e Cilicia não queria
interromper. Mas certas noites levantava-se da cama e ia acordar
Lillias com o pé. A luz da lamparina atravessava pela carne dos
dedos e atingia, deformando, os volumes do seu rosto. “Já sabes
dele?”, perguntava.
— Não — respondia Lillias.
A mulher voltava, vacilante, para cima, deixando alguma da
insónia na cozinha.
XII
No Ocidente de Lisboa, as árvores tinham sobrevivido ao
terramoto e o Verão caía menos sobre as coisas. Mas, contra o que
era tão habitual, na casa de Cilicia não havia um quintal nas
traseiras. E sentia-se a falta da folhagem. Se a cozinha nunca
apanhava sol, essa frescura não a tornava mais acolhedora. Ana
dizia que cheirava mal, devido ao corpo de Maria Aires, enterrado,
sem bênção, naquele chão. Não se atreviam a tirar as lajes que
eram o território de Lillias. Por uma espécie de superstição,
associavam o dormir da rapariga com uma forma de manter a
ordem, de defender os vivos de surpresas.
Ignoro se Tomás subia ao sótão para visitar Ana a meio da noite.
Nada nos seus olhares, nas suas falas, indiciava uma tensão
suspeita. Ana era magra, mas a mocidade, que nela não se
confundiu com alegria, chamava por um homem, mesmo assim.
Quanto a Lillias, jamais, desde que entrou na cama de Cilicia, se
atreveu a tocá-la com um dedo. Os beliscões nas nádegas ficavam
muito para trás, num tempo que a memória espezinhava. Algo
obrigava o homem a afastar-se sempre que Lillias o acarinhava. Se,
de noite, fingia sentir sede para descer à cozinha, nenhuma das
mulheres o confirmou.
Os gatos que, no entanto, eram cobardes e fugiam ao mínimo
ruído, passavam por velar sobre Lillias. Ninguém podia dar-lhes
alimento, para que a fome constante os incitasse a caçarem os ratos
que abundavam, por causa de estrumeiras e ruínas. Cortavam-lhes
as caudas em pequenos para assinalar a condição doméstica. Mas
isso nada era, num país que enchia com explosivo as bandarilhas e
ria, ao vê-las rebentar no touro.
Quem, à noite, espreitasse para as lajes e conhecesse Os olhos
de Lillias, não deixaria de se arrepiar com certas luzes que se
levantavam. Ana dizia serem bocadinhos da alma da defunta, que
penava.
Tinha um púcaro de água à cabeceira, e pretexto nenhum a
levaria a tornar a descer, antes da aurora.
Só invejava Lillias no Inverno, por dormir junto às brasas. A
nortada, ainda que amortecida pelos montes, apagava-lhe a vela de
repente. Ela lembrava o tempo em que, no quarto, havia três ou
quatro raparigas que adormeciam abraçadas, aquecendo. Nas casas
ricas, que não era aquela, costumava agrupar-se por idades a
criadagem feminina. Uma mulher, aos vinte e cinco anos, deixava de
incutir maus pensamentos e podia cruzar-se com os homens. As
mais novas viviam sequestradas dentro dos aposentos das patroas.
Mas Ana aceitaria a reclusão, se isso a poupasse ao medo que
sentia.
Lillias não lhe servia para nada.
XIII
O recoveiro bateu palmas e chamou, com exasperação, para as
janelas. Ainda Tomás não tinha aberto a porta, já a rua se enchia de
assistentes.
— A senhora Cilicia acha-se aqui?
— Quem quer saber? — disse Tomás.
Por detrás dele, na sombra, cintilavam os olhos amarelos de
Lillias.
— O filho dela — disse o homem, e afastou-se, a si e ao burro
que trazia a carga.
Então, chegou-se mais o viajante. Não usava chapéu e enxugava
a cara e o pescoço que escorriam.
Alguma coisa o tinha enfurecido, talvez apenas uma tarde de
calor. “Vossemecê quem é?”, perguntou ele. E avançou um pé dentro
de casa.
— O filho dela? — repetiu Tomás.
— Vossemecê quem é?
— Sou o marido.
A senhora Cilicia veio correndo e desmaiou, prendendo as
atenções. Era um desmaio honesto.
Esverdeara. Todo o sangue da face, que lhe dava a cor morena
que fazia o seu desgosto, tinha acorrido ao coração de mãe.
Por que razão Cilicia Peres jamais falara da existência do seu
filho, foi questão que intrigou as pessoas a tal ponto que se
tornaram todas distraídas, falhando as mais primárias das tarefas.
Atravessava a casa, fora e dentro, fazendo troça da espessura
das paredes. Notou-se um pouco a falta de quintal, das sebes de
alfazema sobre as quais se interrogava facilmente as raparigas. Mas
essa falta não deteve a informação, ou, melhor o dizendo, a busca
dela.
É certo que Cilicia só morava naquela casa desde o terramoto e
nunca se lhe ouvira uma palavra a respeito dos tempos anteriores.
Falava de Lillias como “a pequena”, de Tomás como “o homem”. Não
se exigia grande coisa a tais conceitos. Tratou-se, realmente,
naqueles anos de transformar o caos numa cidade. De maneira que,
aos laços de família, se permitiam muitos rearranjos. O destino
oferecera aos que viveram uma segunda oportunidade, como a
recompensá-los dos maus dias. E, se os vizinhos se mostrassem
curiosos, seria mais devido à fome de novelas do que à devassa
moralizadora.
Tudo assentara finalmente no seu sítio. As situações outrora
irregulares viam justificados os esforços para serem aceites por
honradas. Assim como os papéis das hipotecas, também registos
matrimoniais tinham sido engolidos pela terra.
À senhora Cilicia, que um ou outro já conhecia de quando ela
vinha cobrar as rendas de Maria Aires, pessoalmente, em tardes
agradáveis, ninguém lhe recusou uma família que acrescia a
vantagem de poder usá-la a gosto, para o seu serviço.
Esse era o sonho que mulher alguma se atrevia a sonhar. Das
pequenas janelas sem vidraças, os olhos femininos animavam-se
quando a viam, escoltada por Tomás, passar, como uma dama e seu
escudeiro. Parecia que ali tinha o seu início uma mudança incrível
nos costumes, mulher à frente e homem apoucado. As vizinhas
deviam condenar aquele desrespeito pela ordem em que se era uso
deslocarem-se os casais, mas primeiro sorriam. E o sorriso ia bater
na nuca de Cilicia, tão fácil de entender como um aplauso.
***

Pensando bem, ainda que a bondade da vizinhança a isso a


convidasse, Cilicia Peres jamais falou da sua vida. Quando aquele
belo homem apareceu e a fez desmaiar, o bairro soube o que pôde
saber, enquanto a tinha ali por terra e incapaz de impor silêncio.
Soube que o filho a encontrara e pouco mais.

“É um estudante”, retorquia ela aos metediços que a


cumprimentavam. “Viajou muito.”
— Viu o Santo Padre?
“Não”, dizia Cilicia, e procurava que a voz lhe não tremesse.
Receava que eles o associassem aos hereges. Mais tarde, quis
mentir, mas percebeu que isso seria ainda mais suspeito.
O filho e o medo entraram-lhe na casa à mesma hora. Ela
acendia as lamparinas aos seus santos, no quarto, e sob o côncavo
da escada, com mais frequência e mais paixão que antigamente. Às
vezes surpreendiam-na a chorar, beijando os pés de Santo António
de Lisboa, o que fazia achar coisas perdidas, e imaginavam que era
gratidão.
***

Jayme Mendões trajava simplesmente, de camisa e calções, sem


cabeleira. Usava o cabelo longo e apanhado em rabo-de-cavalo. A
mãe dizia que o tomariam por um eguariço, equiparando o seu
aspecto ao de Tomás, a quem nunca comprara uma casaca, nem
mesmo após ele passar já por seu marido.

Embora apreciasse a iniciativa que levara Tomás a apresentar-se


como legítimo, dando ao filho, e ao povo, um testemunho de
honradez, jamais lhe perdoou, no fundo, aquele abuso. Invocou a
mudança da idade para o afastar da sua cama sem melindre.
Ele instalou o seu colchão no quarto que tinham arranjado para
Jayme. Por essa altura, confiava inteiramente no favor do destino.
Envelhecera. Ávida em liberdade parecia-lhe agora assustadora. Só
recordava os episódios maus, que, com efeito, eram a maior parte.
Com outro homem a morar na casa, houve que meditar nas
exigências e concessões de cada um. Porém, tratou-se de medir
forças a tal ponto desiguais que nem pode falar-se de disputa.
Tomás pedia apenas mesa e tecto, e encolheu-se para que Jayme
entrasse em casa. Mas praticara muito na malícia, na arte de
emboscar. Ficou à espera. Um mês depois, Cilicia via-se forçada a
recorrer à sua influência, sempre que o filho lhe virava as costas.
Tomás veio a conhecer Jayme Mendões na plena intimidade do
seu ser, e tal não significa unicamente partilhar raparigas nos
bordéis e vomitarem um sobre o outro as bebedeiras. Jayme
atulhou-o de ideologia. Deus sabe a falta que isso faz a um ladrão
de baixa escala que, no meio dos roubos, ainda fica obrigado a
mendigar.
XIV
Jayme falava do passado da família, como quem conta histórias,
ao serão. Pedia à mãe que acrescentasse dados, pormenores por
que ele nunca se interessara. As próprias refeições estimulavam
aquela espécie de democracia.
Desde Cilicia a Ana, toda a gente ia sentar-se à mesa ao mesmo
tempo, ainda que as raparigas esperassem que os outros se
servissem do melhor, antes de encherem os seus próprios pratos.
Fora uma exigência de Cilicia que cada um tivesse um prato e um
talher e deles cuidasse como coisa pessoal, num tempo em que era
hábito comer-se da travessa comum. Nessa mistura de coragem e
despeito que há no amor de mãe, compreendera que isolar-se com
Jayme resultaria num cenário vazio, onde as palavras se tornariam
raras e perigosas. Mas a comida conspurcada por criadas, por
Tomás, cujos beijos evitava, parecia-lhe quase uma indecência.
Passava entre eles somente a malga de água, o que já era
concessão bastante, dada a superstição de que podia chegar-se ao
pensamento pela saliva. Nos fontanários públicos, rapazes pagavam
aos alugadores de canecas para beberem a seguir às suas damas
que se afastavam com as bocas luzidias e olhando astutamente para
trás.
Cilicia começou por resistir, depois rendeu-se ao modo como o
filho transformava a pobreza num percalço, ela que sempre a
supusera escrita a ferro e a fogo no destino.
Conseguiu rir, sentindo que expelia o seu silêncio pela boca,
como um coágulo. Então, a sua infância de enjeitada, que conhecera
apenas as freirinhas e as irmãs leigas da Misericórdia, a si mesma
pareceu uma novela. Via, nos olhos de Ana e de Tomás, aquele
brilho que precede as lágrimas. Ela, no entanto, não se comovia.
Deitava a sua história para fora, com a minúcia e a diligência de um
insecto.
E, realmente, um trabalho de insecto os reunia, aquela pena de
criança sem pais, que ia luzindo e estremecendo entre eles, um fio
de seda, uma pequena estrela de aracnídeo.
***

A Irmandade da Misericórdia tomava encargo dos seus protegidos,


não os abandonando na idade em que teriam de ganhar o pão. Às
raparigas, procurava colocá-las em casas de homens de comércio e
de negócio.

A sorte de Cilicia não foi rara. Muitas outras acharam seus


maridos nos filhos dos patrões, já que a Irmandade oferecia dote e
amizade, ambos coisas de bem considerar. O mercador de panos
que aceitou receber a pequena Cilicia preferia cair no agrado da
Misericórdia a trazer para a família uma burguesa já desfeada pelos
chocolates. Criou-a para o filho. No entanto, a mulher faleceu-lhe de
repente, sem lhe dar tempo de se preparar para as dissimulações da
viuvez. Pode dizer-se que Cilicia se sentiu aliviada por casar com o
velho, já que o patrão mais novo a irritava e a desconsiderava a toda
a hora. Soube manter-se virgem, ainda que nunca alguém lhe tenha
dado essa instrução. Era como um triunfo, e permitiu-lhe tratar o
enteado com soberba.
Quando Jayme nasceu, todo o amor que andava às cegas dentro
dela convergiu na direcção do filho.
E o Mendões, revigorado pelo casamento, espreitava da porta
aquele mistério.
Mais tarde, teve de tomar partido contra o seu primogénito, e
tomou-o. Transferiu para a posse de Cilicia muita coisa, prédios,
terrenos, armazéns. Se a mulher chorou muito a sua morte, foi um
choro sincero. Ela ficava com grande parte da fortuna da família. O
enteado expulsou-a da casa, com o filho.
Jayme andava então pelos sete anos e mordeu-o, cortando o
parentesco.

***

No entanto, Lisboa não dispunha de bastante extensão para permitir


um desencontro eterno entre os irmãos. Apesar da diferença das
idades, cruzavam-se, por vezes, no Rossio, ou nos portões da
alfândega.

Aos quinze anos, envergonhado pelo amor da mãe demasiado


visível, Jayme envolvia-se com rixas e mulheres. E o Mendões mais
velho, que casara habilidosamente e aumentara, com o dote, o
negócio dos tecidos, via cair-lhe na reputação salpicos dos
escândalos de Jayme. No pequenino mundo da cidade, a palidez de
um homem, se informado dos desmandos de alguém com o mesmo
nome, não era provocada sem prazer.
A senhora Cilicia mal dormia, escutando ao mesmo tempo o mal
das ruas e os recados acerbos do enteado, dos quais se recordava
letra a letra: queria o rapaz fora do seu caminho, ou mandaria vigiá-
lo, até arranjar provas para a Inquisição.
Ela sonhava converter o filho e, nessa altura, emagreceu
bastante, à força de vigílias e jejuns. São José, a quem ela recorria
como figura de paternidade, olhava-a, da peanha onde o pusera,
com uma polidez de diplomata. Chegou, provavelmente, a intervir,
pois ao anjo que a veio visitar nada diziam as fraquezas femininas.
Era um anjo com pressa e sem piedade. A Cilicia pareceu-lhe que
trazia uma espada na mão e que a cortava, para roubar o menino do
seu ventre.
E, na manhã seguinte, percebeu que tinha de sangrar, não com o
fim de lhe dar vida, mas de lha manter.

***

Jayme Mendões foi confiado ao holandês que tinha quarto


permanente na vizinha para aquelas estadas em Lisboa que a
exportação de queijo lhe exigia. Os dezassete anos do rapaz
acolheram com gosto uma viagem. A mãe pensou que a experiência
o ensinaria a crescer e a tornar-se ponderado.

É certo que cresceu, mas na pior das direcções possíveis. Na


Holanda, depressa se cansou daquilo que começou por deslumbrá-
lo, uma religião honesta e sóbria. O que efectivamente o atraía era a
causa política. Na pele de estudante exilado e ressentido, correu os
meios intelectuais. Chegou mesmo a cruzar-se com Voltaire que
apreciou as suas convicções e o queria empregar como criado.
Jayme dormia de manhã e ia espertando à medida que a noite se
chegava, o que convinha ao horário do filósofo. O petit portugais
não suportava nenhuma eSpécie de subserviência, nem que ela,
como paga, lhe trouxesse intimidade com o homem cujo espírito ele
mais admirava sobre a Terra. E recusou, com um sorriso, o seu
convite.

***

A mãe mandava-lhe dinheiro. Ele nunca soube que o conseguia à


custa de hipotecas e de outros jogos com as propriedades. O
terramoto, que saldou as dívidas da senhora Cilicia, foi motivo de
muito discutir e aproveitar na guerra das ideias com que a Europa se
exercitava para as revoluções.

Também Voltaire se pronunciou sobre aquilo que tinha realmente


destruído Lisboa: se o desgosto de Deus, se contingência das forças
naturais. E o ministro foi muito apreciado lá por fora pelas suas
destemidas atitudes. Comentários de franco entusiasmo ecoavam
em tabernas e cafés e, por um tempo, Portugal pareceu uma
antecâmara para o culto da Razão. Porém, os viajantes regressavam,
sem levarem um único relato sobre alegria ou sobre inteligência.
Era como se toda a fórmula tentada viesse a resultar no mesmo
tóxico, com o mesmo poder silenciador. Ou a Inquisição ou a polícia,
ou o que quer que ainda se inventasse, geravam medo e aquela
espécie de poder com que os denunciantes se euforizam. O povo
ainda não se dedicava à terapia da embriaguez, como o fez umas
décadas depois, quando se tornou fácil comprar vinho. De modo que
vivia taciturno, entre fetiches da religião. E até mesmo a cordialidade
com que atendia os visitantes estrangeiros se assemelhava a
embasbacamento. Os que buscavam um país de Luzes soçobravam,
batidos por um sol que convidava à imobilidade e não contrariava a
escuridão.
***

Lillias prendeu-se a Jayme assim que o viu. Ele era, com efeito,
muito belo, como que amado pela claridade que lhe dourava os
olhos e os cabelos. Não se parecia com o pai nem com o irmão,
baixos, escuros e de grandes bocas, directamente consanguíneos da
mourama. Da senhora Cilicia já sabemos que ele poderia herdar
boas feições, porém nenhuma traça de nobreza. Numa observação
mais demorada, conseguiria imaginar-se a mãe iluminada pelo
interior e muito levantada no seu porte, como quem descendesse
dos cruzados que se tinham ficado por Lisboa.

Talvez o seu aspecto quase nórdico trouxesse algum conforto a


Lillias.
Ela sabia, pois tais coisas se aprendiam como uma concordância
de gramática que se toma por regra natural, que, sendo rapariga,
não podia dar-lhe a mão e segui-lo a todo o lado. Tão-pouco se
enganava quanto à luz que ele emitia e que era a luz de uma
malquerença. O gosto do rapaz pela desordem que, conduzindo a
uma ou outra decepção ou, talvez mesmo, ao susto de um duelo, se
apagaria com o crescimento, caso ele tivesse permanecido em
Portugal, achara, no estrangeiro, uma família.
Os membros revelavam-se uns aos outros por experimentarem
uma comoção que era anormal entre desconhecidos. Tal como, num
encontro entre parentes que não sabem das suas ligações, o sangue
bate com mais força contra as têmporas, querendo avisar, e
conseguindo apenas que todos se separem bruscamente, temendo
alguma obscenidade no sintoma, assim coravam, frente a seus
pares, os revolucionários.
Havia alguns indícios, como o pano que enrolavam à volta do
pescoço, recusando os enfeites do jabô. Eram desajeitados na
modéstia, que tinham aprendido muito à pressa, observando os
criados.
Mas, ainda que alguns fossem moderados e não se assinalassem
pelo aspecto, alguma coisa, um modo de sorrir, certa maneira de
rodar os ombros, escrevia neles como uma cicatriz.
Radiosos e cheios de segredos, cruzavam os caminhos da
Europa. Na rota deles achavam-se os banqueiros com as cartas das
mães, que receavam tanto a política como os males venéreos, e
devemos dizer que com razão. Naquele impulso de libertação que, à
força do trabalho dos filósofos, ia encontrando um deus e um
fundamento, o frenesim erótico tirava um não inconsequente
benefício.
A terrível beleza de uma ideia que crê na sua própria santidade
punha uma distinção naquela gente.
Jayme Mendões tomou-a sobre si, como se toma um hábito.
Afinal, também falavam de fraternidade. O seu mal-estar, que nem
sequer chegara a ter a chama de uma rebeldia durante os episódios
de Lisboa, ganhou então afinação moral. Porém, aconteceu o
terramoto. E da mãe, morta ou viva, nunca mais recebeu nem
notícias nem dinheiro. Diga-se, em seu abono, que preferiu
sobreviver no esforço e, até, no perigo, a fazer pane desses
parasitas que, parecendo nutrirem-se do espírito cultivado pelos
ricos nos salões, iam ferrando o dente nos hors-d'oeuvre.
Jayme tinha sucesso entre as mulheres e, quanto a isso, não se
fez rogado. Mas serviu pouco, à mesa e nos boudoirs. Foi alistar-se
como mercenário, o que naquela altura era vulgar e não traía
sentimentos patrióticos. Escolheu o lado de Frederico, o Grande, o
inconstante amigo de Voltaire.
Dava-se início à Guerra dos Sete Anos, mas Jayme não chegou a
combater senão em escaramuças junto aos rios. Viram como falava
com apreço acerca do ministro português. Talvez não inspirasse
confiança na arte do combate, que exigia, como nunca exigira,
disciplina. O certo é que o mandaram para baixo, com vagas
instruções de informador.
***

Se trouxe algumas cartas de recomendação, não as usou. Passou


despercebido. De qualquer modo, as cartas que valiam eram as
dirigidas a Dona Leonor Daun. Ela provinha da Casa de Áustria,
agora em guerra com a Prússia de Frederico. E ainda que o ministro,
seu marido, se entendesse com muito estrangeirado, os que
chegavam tinham de passar, antes de mais, pelo seu beija-mão. No
seu salão, ainda mais austero depois do terramoto, começavam e
abortavam carreiras. Preiteantes olhavam a biqueira do sapato
enquanto transpiravam na antecâmara, pensando mal dos
reposteiros de estamenha com que o ministro se afirmava igual aos
pobres.

Ele obrigara o rei e a família a vestirem burel, como sinal de


compaixão pelos súbditos. Aliás, a corte adaptou-se, num instante,
ao desconforto e mesmo à grosseria da sua nova casa na Ajuda, que
não passava de um conjunto de barracos, permeável ao frio e às
ratazanas. Já Lisboa cumpria novamente as rotinas normais de uma
cidade, ainda as reais pessoas resistiam a tomar aposentos em
palácio. As construções em pedra horrorizavam-nos.
***

Vistas as coisas com benevolência, nós poderemos aceitar que


jayme sentiu saudade de uma casa e de uma mãe, no preciso
momento em que a notícia do terramoto de Lisboa o alcançou. A
própria força das perguntas dos amigos que indagavam dos seus
desastres pessoais o tornava dramático. Ainda assim, já sabemos,
levou quase um ano a regressar.

Ele não rezava, é claro. Mas ficara, na sua formação de


português, aquela espécie de infantilidade que era a essência do
catolicismo. Contava com favores do acaso. Começou a fazer-se
pagar por escoltar damas que se escapavam às prisões paternas, e
por levar volumes a imprimir em cidades do Norte, como Antuérpia.
Mas visitava sempre os seus banqueiros e recebia o mesmo
encolher de ombros. Não achavam o rasto de Cilicia. E não passava
de uma, entre as centenas de perdas de contacto com Lisboa. O frio
durava ainda e eles tossiam, muito oportunamente constipados,
dobrando e desdobrando os grandes lenços, como se disso
dependesse a vida. Sim, pensariam e dariam a resposta mais tarde,
após consulta com os sócios. Sim, talvez fosse caso de adiantarem
algum dinheiro próprio ao seu cliente. Porém, Jayme tremia e eles
nem sequer lhe ofereciam um trago de beber.
Bateu um dia, entrando, a porta atrás de si com tanta fúria que
partiu o vidro. A ventania atravessou as grades e apagou a vela no
balcão. A luz da tarde revelava apenas os brancos muito duros,
como as folhas de um livro de registos que estalavam com o sopro
do ar, e a palidez do pobre senhor Salz que refulgia, por efeito do
suor. Ele descendia de judeus portugueses e assustava-se com muita
rapidez.
Jayme saiu, atormentado pelo cheiro a medo. Dificilmente um
homem conservava as mãos limpas de sangue, naquele tempo.
Desejava uma guerra, onde pudesse dessedentar-se sem caução
moral.
XV
Fez parte do caminho de regresso na companhia de um soldado
refractário, desiludido das vantagens do combate. Era um normando
corpulento e estranhamente conflituoso para um desertor, a quem
convinha não chamar as atenções.
Estes guerreiros em fuga convergiam numa rota comum que os
destinava ao Sul de Espanha e, sobretudo, a Portugal. Deslocavam-
se em bandos, facilmente desagregados pelas próprias forças, que
se viravam umas contra as outras. A incerteza de uma direcção e da
felicidade do desfecho tornava-os melindrosos.
Procuravam a voz que atravessara os Pirenéus, e os fora chamar,
quando dormiam por entre o cheiro a sangue e a bosta dos
palheiros. A chuva tilintava nos metais que, durante uma noite,
enferrujavam, tornando mais difícil a matança. Talvez aquela voz que
os convencera a levantarem-se e a roubarem um cavalo lhes falasse
somente de um país tão preguiçoso e quente que bastava estalar os
dedos para que as laranjas se amontoassem e os escravos africanos,
com as suas coleiras infectadas, servissem grandes peixes de água
doce.
O normando gabou-se de esmagar os crânios de dois homens
com as mãos. Calhava bem para o perigo das estradas, mas Jayme
não dormia, no receio de que ele o agredisse, num daqueles
impulsos que o faziam levantar. Foram jornadas tão penosas que,
por fim, choravam um e outro, como velhas, arrastando-se a pé
pelos caminhos para manterem vivos os cavalos. Jayme levava o seu
dinheiro escondido e furtava-se aos braços do normando que se
estava tornando muito físico. Passada a travessia das montanhas,
sentiam-se acanhados, e tentavam corrigir as excessivas
confidências, arrependidos das intimidades.
Eles faziam a barba mutuamente e roubaram algumas lavadeiras
que ficaram a vê-los afastar-se, com a roupa encharcada sobre as
pernas. As mulheres tinham medo de gritar e o rio indignou-se em
nome delas, batendo enegrecido contra a margem. Toda a paisagem
os hostilizava. Mas, assim escanhoados e vestidos, um tanto
espiritualizados pela fome, passavam por romeiros com haveres e,
às vezes, ofereciam-lhes pão quente.
Eles guiavam-se apenas pelo Sol, para que ninguém soubesse o
seu destino. O instinto das montadas conduzia-os à erva fresca e
aos tanques comunais onde eles também se debruçavam para beber.
Rumando ao Sul, achavam-se tão longe das estradas
conducentes a Santiago que o respeito devido aos peregrinos deixou
de os proteger. Até as cobras rastejavam na sua direcção,
levantando as cabeças prateadas. Nas aldeias, puxavam-nos para os
largos onde os ladrões ainda se agitavam, suspensos pela corda de
enforcar.
Aquela era uma terra tão intensa que Jayme julgou que Espanha
e o companheiro se achavam juntos na intenção de o oprimir. Nos
arredores de Cáceres, trocou a caixa de tabaco por um vinho e, com
paciência, embebedou o companheiro. Nunca o tratava pelos nomes
falsos que ele inventava e de que logo se esquecia. “Bebe,
normando.” Viu-o suspeitoso, antes de adormecer contra a parede
de uma casa sem cães nem habitantes. Jayme pensou que a peste a
esvaziara. Esporeou o cavalo e só parou numa estalagem à saída da
cidade. Queria gastar enfim o seu dinheiro e resgatar talvez o
orgulho ferido por precisar da protecção do desertor.
***

Conheceu Portugal pela desordem que bruscamente perturbava a


vista. Espinhos e matagais predominavam, chocando o seu olhar,
habituado ao traçado geométrico das sebes e à limpeza dos campos
de cultivo. Porcos selvagens tropeçavam nas raízes, para fugirem das
patas do cavalo. Num ou noutro casebre, uma mulher fazia sombra
com a mão na testa e ficava, agachada, a vigiar. A sonolência, que o
espanhol disciplinara, cobria aqui as coisas como um óleo que
proibia o oxigénio de passar. Diz-se que uma fraqueza hereditária,
não apenas da alma, mas do sangue, dissuade as gentes do
combate à natureza. Chamaram-lhe anemia falciforme. Parece que
ela corre as gerações com a fatalidade da genética. Há quem, como
eu, entenda que se trata da sábia resistência ao frenesim. Cada
homem sentado filosofa, conversa com a enxada que pousou.
XVI
O espírito do tempo entrou na casa no momento em que entrou
Jayme Mendões. Perigo e revelação tudo cobriam, como tinta
acabada de aplicar. Quem tocasse naquelas atitudes, naquele modo
arrogante de pensar, viria a exibir as mesmas marcas e orgulhar-se-
ia do contágio.
A senhora Cilicia convenceu-se de que Lillias fizera o seu recado,
encontrando-lhe o filho e atraindo-o, por cima de montanhas e
pauis, até que ele aterrasse à sua porta. Porém, a gratidão pelo
trabalho da rapariga deu lugar ao medo. Aqueles olhos dourados
claramente revelavam sinais de bruxaria. Via-os seguir Jayme. E ela
supunha que o filho ia lutando por livrar-se dessa espécie de cordas
encantadas. Examinava o fundo das caldeiras, procurando vestígios
de cabelos. Numa brutal obcecação de mãe, queria ocultá-lo sob as
suas saias, escondendo-o do desejo feminino. Sentia o cheiro do
amor na casa e erradamente estremecia pelo filho. Não reparou na
palidez de Lillias.

***

Se Jayme alguma vez tencionara mandar informações de Portugal


para o seu comandante prussiano, sob a forma de cartas amigáveis
a um destinatário inexistente, isso não sei. Mas nunca lhe escreveu.

Certamente o conforto que encontrou o foi tornando mole e


desatento.
Era, aliás, difícil de entender, quanto mais de explicar, este país.
Jayme louvava certas medidas do ministro que pareciam inspiradas
pelo progresso. E, no entanto, o povo prosseguia na sua escuridão,
boçal, medroso, vendo exercer-se aquele poder, como já vira e
tornaria a ver o seu contrário. A grandiosidade das reformas gerava
a mesma espécie de estranheza que a colecção zoológica do rei.
Rapidamente Jayme percebeu que, dentro das tabernas
lisboetas, ideia alguma se encontrava em discussão. Eram lugares de
vinho e de frituras onde, por vezes, marinheiros da Irlanda iam pedir
que se cantasse qualquer coisa.
Tomás, que quase sempre o acompanhava, tornou-se o vigilante
das palavras. Fazia de seu aio ou de padrasto, ao sabor do capricho
do momento. Mas, em qualquer dos desempenhos, beliscava as
coxas do rapaz para o calar. Jayme soubera que o irmão, casa e
família, tudo fora engolido pela terra. Julgou-se favorito do destino
e, durante algum tempo, a imprudência tomou conta das suas
atitudes. Porém, a sua fala parecia cuspo de fogo sobre os
circunstantes. Olhavam-no, talvez desconfiados de que o
entendimento lhes falhava por excesso de consumo de bebidas.
Deixavam claro o quanto se mantinham estranhos àquilo que se
passava ali. Era verdade que ele elogiava os feitos do ministro e que
quem quer que estivesse a ouvir, por espionagem, faria dele
excelente opinião. Mas o uso político da voz projectava uma sombra
nas paredes e todos se anteviam enforcados, baloiçando à cadência
das lanternas.
Pouco a pouco, o controlo de Tomás foi-se tornando menos
necessário. Jayme deixava-se embeber de novo pelos gozos da
primeira mocidade. De tudo o que vivera no estrangeiro, ia-se
aligeirando o sério empenho na construção de um mundo fraternal.
Os riscos atraíam-no ainda, mas encontrava-os na libertinagem. Ela
requeria a mesma força de arrogância e aquela astúcia que eram o
sal dos revolucionários.

***

Tomás gostava de subir à Cotovia, onde as mulheres se vendiam por


um nada. Doutrinava as mais novas com lições sobre igualdade, que
aprendera ao pé de Jayme, o que as deixava muito entediadas.

Também ele começava a desejar o conforto da casa, como se


receasse outra vez a mendicância e o incómodo de esperas nas
estradas por viajantes pouco fáceis de roubar.
Algum tempo depois de o ter de volta, a senhora Cilicia percebia
que, em vez de fonte de felicidade, o filho era factor de sobressaltos.
Escutava-lhe, tremendo, as heresias, as vociferações contra a
nobreza e a casta vil das gentes da Igreja. Sentia-o a chegar de
madrugada, vindo de ruas infestadas de ladrões e, paradoxalmente,
de polícias, não se sabendo a quem mais recear. Estava grata a
Tomás, que se gabava de lhe merecer respeito e moderar a sua
rebeldia. A senhora Cilicia, como, aliás, todos os seus compatriotas,
achava-se confusa quanto aos actos ou às palavras que levavam à
prisão.
“Antigamente, as coisas eram fáceis”, tentava ela explicar ao
filho. “Os inimigos da Inquisição eram os nossos próprios inimigos.”
Recordava os desfiles executórios. Os condenados à fogueira iam tão
brancos, tão semimortos de terror, que a assistência os espicaçava
com carvões em brasa para lhes acordarem os sentidos. Os rostos
cintilavam de prazer e alguns homens, de entre a populaça, vertiam
o seu sémen, como se eles próprios fossem os carrascos.
Agora, a Inquisição continuava. “Majestade”, chamava-lhe o
ministro. E jogava com ela e contra ela. Os que exultavam com o
seu espectáculo, como puros católicos sem mancha, acordavam no
Forte da Junqueira juntamente com a nata da nação.

***

A senhora Cilicia era incapaz de achar defeitos no seu próprio filho.


O seu sangue virou-se contra Lillias que tivera poderes para o
chamar e certamente lhe inquinara a alma. Digo o seu sangue
porque, realmente, ela não concebeu tais pensamentos na clareza
do dia. Mas sentia que a força de Lillias se concentrava numa
direcção única, atingindo como uma agulha o coração de Jayme.

A cegueira de mãe não a deixava ver qual dos corações se


achava ferido.

***

Dentro de casa, ele mantinha ainda aquela exaltação idealista que


na rua parecera abandonar. Ficava rodeado, como um deus, das
mulheres assustadas que limpavam o suor dos decotes e deixavam
que se entornasse o leite no fogão. E fizera um acólito em Tomás.
Apesar de prudente, o ex-mendigo vira os novos conceitos a
descerem sobre a sua cabeça e a coroá-lo, elevando-o acima de
Cilicia e dos fidalgos, cujos trintanários abriam a chicote o seu
caminho, entre os peões, nas ruas destruídas.

Ao ouvir as conversas entre os dois, Lillias partia docemente para


casa. Margaret Fraser remexia no braseiro e o cheiro a turfa
levantava-se do chão. E os homens da família conspiravam, com a
solenidade e a malícia que os cobriam de luz de tal maneira que,
muitas vezes, se denunciavam pelo puro fulgor do seu olhar. Riam. E
o jovem Eavan imitava, muito corado pela emoção, aquele exterior
de que ele não conhecia ainda exactamente o conteúdo e onde a
bebida tinha o seu papel.
Lillias deixava-se embalar, tomando a noite daquele primeiro
Inverno ao pé de Jayme pela noite das charnecas de Inverness. Era
como se o tempo se dobrasse e tudo aquilo que lhe acontecera fosse
esmagado até ao esquecimento. Até mesmo Cilicia, gorda e escura,
se adelgaçava. A sua cabeleira sorvia todo o ouro que pairava no ar
enfarinhado da cozinha. E o peito dela, que ofegava de ansiedade
por Jayme, com receio do que ele desafiava com palavras, ainda que
moreno e a descoberto, despertava um desejo de criança, como o
colo severo de Margaret, onde Lillias fingia adormecer.
XVII
Quando Cilicia registara Lília Peres, a idade fora mal avaliada.
Lillias tinha crescido muito mais do que o normal nas raparigas
portuguesas de modo que, não só pela figura, como por datação
oficial, estava considerada casadoira. Usava já a trança do cabelo
enrolada na nuca, o que informava sobre uma condição humilde e
séria. Ana ensinara-a a enfaixar o peito para que os seios se não
salientassem. Mas nenhuma medida conseguia dar-lhe um efeito de
vulgaridade. Um eterno pôr do Sol caía nela, dourando toda a sua
superfície. E os seus olhos amarelos, que sofriam vendo os
passantes no momento de morrerem, assustavam por uma
compaixão que parecia despropositada, ao dirigir-se a gente ainda
feliz. Os futuros defuntos comentavam com os vizinhos essa ferida
misteriosa que se abrira, ao cruzarem-se com Lillias. Depois,
morriam efectivamente.

***

Jayme viu como as testas se franziam e os ombros se viravam


devagar quando a gente chegava à sua porta. Atravessavam para o
outro lado, talvez para escapar daquela sombra, mas ela já os tinha
enegrecido. E fechavam os punhos, aquecendo as pedras invisíveis
que continham. Supôs que o viam como estrangeirado, que queriam
deixar nítida a distância a que se achavam de qualquer mau
pensador, e gostava da espécie de poder que tal hostilidade lhe
conferia. Mas, afinal, Tomás desenganou-o. “E a cachopa. São os
olhos dela.” Teve de lhe explicar de quem falava.

— Que tem ela nos olhos? Nunca vi.


Tomás sorriu, tomando por bravata o que, por uma vez, era
verdade. Poucos dias depois de ele regressar, Lillias deixara de
mostrar-lhe os olhos.
Jamais ouvira alguém falar de amor. Nem Ana nem Cilicia Se
entregavam a narrativas de acasalamentos. Evitavam, quem sabe,
intimidades tão usuais entre amas e criadas. Ainda que falasse do
passado, da sua história de enjeitada e de viúva, a senhora Cilicia
punha um ponto muito final em temas amorosos.
Lillias não podia suspeitar de que a brutalidade com que o corpo
estremecia à presença do patrão tinha por causa a comoção erótica.
Julgou que o receava. E esse receio era de tal maneira sedutor que
o decurso dos dias começou a regular-se pela sua espera. Conhecia-
lhe os passos muito ao longe, com percepções agudas de animal.
Sentia-se febril e tiritava, puxando um grande xaile contra o peito.
Viciou-se depressa no mal-estar. A voz, o cheiro, o caminhar de
Jayme desordenavam-lhe o pulsar do sangue. Não lhe chamava
amor, mas percebia que se virara inteiramente para ele, como há
flores que se viram para o Sol e mais não fazem que o acompanhar.
Para perturbar a mãe, Jayme falava em partir novamente para as
nações onde o que era interessante acontecia. Conversavam nas
horas do serão. Lillias, estonteada de conforto, lembrava-se das
feridas de seu pai, do sangue aos pés de Lady Macintosh. Então,
esfregava o rosto, para espertar. “Se eu nunca o vir morrer, talvez
não morra”, pensou, a certa altura. E nunca mais ergueu os olhos
para os olhos dele.

***

Por via das palestras do patrão, Tomás tornara-se descrente de


bruxedos e atrevia-se a certos pensamentos cuja perigosidade lhe
agradava. Porém, sabia a quem falar, e o seu passado mantinha-se
atrás dele, vigilante, pronto a calá-lo à mínima imprudência.

— Não tem nada de mal, a rapariga — disse. — Os olhos não são


bem os das inglesas. Só por isso, ganharam-lhe respeito. Já se sabe
como é em Portugal.
— Como é o quê? — perguntou Jayme.
— O medo.
Jayme sorriu, mas não ouvia o seu discípulo. Sentiu-se curioso
por aquilo que podia levar uma mulher a não olhar na sua direcção.
Até então, mal reparara nela. Namorava burguesas malcasadas,
enquanto ia tratando dos acessos aos aposentos de uma dama da
nobreza, que mandava a anã espreitá-lo e rir, sempre que o viam, ao
passarem para a missa. Ele saía aos domingos com Tomás para,
disfarçados de comerciantes, poderem exibir pequenas espadas, o
que era uma benesse do ministro.
Nem por isso os plebeus lhe queriam mais, mas não deixavam de
mostrar bainha e cinta, sem se arredarem do caminho dos fidalgos.
O enigma de Lillias coincidiu com a chegada dos rigores do
Inverno. Entravam os amores de quarentena, excepto as cortesias
de salão, em que os pés se tocavam sob as mesas enquanto se
jogava o faraó. Mas os encontros mais aventurosos ficavam adiados
para Abril. A própria natureza interrompia o seu papel de
dissimuladora. Matas, jardins, paredes de arvoredo deixavam de
oferecer opacidade. Com as folhas, caía a sua ajuda.
A tosse e os joelhos atolados tão-pouco incendiavam corações.
Os dejectos boiavam na corrente, junto com cães e cabras afogados.
Os rios que rodeavam a cidade ficavam negros e intransitáveis.
Os dias eram breves, mas o tédio estendia o tempo até ao
infinito. Ensebadas as botas, areadas as lâminas de folha dos
punhais, nada restava aos homens para fazer. A impaciência andava
pelas casas e as mãos estalavam contra a face das mulheres. Não
existia, nessa altura, a raiva à chuva que vemos hoje. Só resignação.
Dava-se gasto à carne armazenada dentro das salgadeiras, e o vapor
das fervuras ficava preso ao tecto. jayme viu Lillias uma tarde,
recurvada no esforço de coser na escuridão. Tinha aquela maneira
de inclinar-se própria das raparigas assustadas com as novas
minúcias do seu corpo.
Não lhe parecia bela. Então chamou-a, e ela, desprevenida,
ergueu o rosto. O amarelo dos seus olhos irritou-o. Luziam como uns
olhos de animal. Mas Lillias sorriu. “De que ris tu?”
— Da chuva, meu senhor — respondeu ela.
E, com essa resposta, Jayme ouvia contar toda uma história de
exilada. Ele mesmo sentia algumas vezes as saudades do norte da
Europa, dos céus cinzentos, cheios de arco-íris. Uma perda comum
os empurrava um para o outro, no recanto da janela. Lillias temia
olhá-lo outra vez.
— Onde te deitas tu? — perguntou Jayme.
“Na laje da cozinha. Sobre a morta.” Jayme não entendeu estas
palavras. Baixou-se, fascinado, à sua frente e, naquele momento,
Lillias soube que não podia fazer nada para o poupar. Um dia, ele
entraria numa porta desfeito em sangue como Thomas Fraser.
XVIII
A senhora Cilicia conhecia bem o seu próprio filho. Desta vez, o
amor maternal não a cegou. A má vontade contra Lillias, que vinha
já dos tempos no convento, mas oscilara a ponto de, por vezes, se
confundir com birra de família, ganhou uma feroz definição. Dado o
alcance do olhar de mãe, pode dizer-se que ela vislumbrara aquele
desastre, antes de acontecer. E, como Lillias, também soube que não
estava na sua mão desviar coisas do caminho.
Jayme deitava-se com Lillias na cozinha. Isso podia ser o vulgar
uso de uma criada pelo seu patrão, o que nem mereceria
comentários. Mas, em lugar de se esconder e ficar pálida, a rapariga
refulgia de maneira que o fogo se pegava às suas saias, como se ela
emanasse um combustível. Tiveram de afastá-la dos braseiros.
Durante o dia, Jayme não lhe falava. Depois entravam para a
escuridão onde era realmente a sua casa.
A senhora Cilicia percebia que, se mostrasse o desagrado ao
filho, só o conseguiria excitar mais. Ele não usava, por exemplo,
cabeleira, nem alvaiade, nem calções acetinados que, no entanto, os
rendimentos permitiam. A mãe fazia-lhe notar que a aparência era
determinante no sucesso. Mas nele, a arrogância do ideário exercia-
se contra os pormenores.
Uma coisa podia agir sobre ele, uma única coisa, e era o
cansaço. Por isso, ela esperava com paciência. O seu orgulho
sufocado agoniava-a e, no mês de Fevereiro, adoeceu. Lillias cuidou-
a com eficácia, embora com frieza. “Não tem nada”, dizia. Não a via
na hora de morrer. Cilicia deu-se bruscamente por curada.
***

Então, uma espantosa Primavera caiu sobre Lisboa, e as canções


dos africanos elevavam-se no ar, como se o Sol os resgatasse à
servidão. Jayme saiu, chamado pela cidade. Mas esperou que Lillias
o seguisse. Reconhecia nela, finalmente, uma forma perigosa de
beleza. Sentia quanto os outros se assustavam, evitando tocá-la,
nessas ruas ainda tão atoladas com entulho que as pessoas
passavam uma a uma, e tinham de entender-se no seu trânsito. Não
andavam inglesas por ali, nem sequer irlandesas, que eram pobres
e, assim, a claridade de Lillias não podia passar despercebida. Ela
nem se cobria nem usava na cara as tintas de uma prostituta, o que
desanimava conjecturas.

***

Às vezes, a piedade dos seus olhos fazia estremecer os transeuntes.


Eles paravam, tocando-se no peito, como se suspeitassem de uma
ferida. No meio do caos, ouvia-se o barulho dos martelos montando
as armações, e as obscenidades dos serventes, ainda ocupados a
remover pedras. Jayme gostava de sujeitar Lillias a toda aquela
provação das ruas. Via-a corar sob as imprecações dos homens nos
andaimes, ou somente sob aquele sol a que ela não se habituava.
Mas, aos domingos, que eram dias de mulheres, trocava-a por
Tomás.

Ela subia, com a patroa, até à missa de São Roque, às horas


muito matinais em que a nobreza não reclamava toda a igreja para
si. No regresso, espreitavam para baixo, tentando ver a praça do
Rossio, essa a que os marinheiros ingleses chamavam já de “Roly-
Poly Square”, a “Praça de Pudim”, porque o seu chão,
deficientemente nivelado, ondulava e fugia sob os pés.
Uma manhã, Cilicia demorou-se, atrasando o regresso para casa.
Por esse entendimento que acontece, de vez em quando, entre o
geral das criaturas, e que é costume atribuir-se à Primavera,
ramagens, pássaros e gente partilhavam, por uns momentos, o
prazer de estarem vivos. As próprias sombras se deixavam comover
e recuavam, a caminho do meio-dia. E, no entanto, aquela melopeia
que subia das ruas inferiores batia, como pedra, nas encostas, nas
ruínas do Carmo, nos telhados de cobertura nova, perseguindo,
afundando a alegria. O padre Malagrida desfilava, com os seus
seguidores. Lillias achou-o ainda mais magro e mais envelhecido.
Mas tinha-o visto a arder e enganara-se.
A pregação toldava o rosto das pessoas, porém Lillias sorriu,
aliviada.
***

Ao passear com Lillias na cidade, Jayme sabia que chamava as


atenções. Não se atrevia a escândalos maiores, ainda que a vida de
Lisboa o entediasse. Nem a si mesmo o confessava, mas o facto é
que política avançada do ministro já não lhe provocava entusiasmo.
Era daqueles que desanimam quando vencem. Tinha por fútil o
empenhamento contra um poder que adoecia e estrebuchava.
Porém, o outro, o triunfante, o do ministro, também parecia
condenado à mesquinhez. Via-se um jogo de pessoas irritadas, que
batiam tacão pelos corredores. Com os lenços de linho da Irlanda,
dissimulava-se o espumar da bílis. O medo palaciano, mal contido,
tornava a fidalguia amarelada. Seria uma mudança estimulante que
os membros da nobreza se curvassem, doídos de pavor como de
cólica, e que a classe dos servos levantasse voz e cabeça, ao som de
um ça ira qualquer.

Porém, a criadagem definhava, temendo, ela também, a própria


sombra.
XIX
Os esbirros sentiam-se atingidos pela presença da mulher sem
véu nas praças e tabernas. Era certo que ela seguia cegamente o
companheiro e não sentia curiosidade nem pelos sítios, nem pelos
convivas. Mantinha os olhos baixos. No entanto, uma forte ciência
do pecado saía, como um cheiro, das suas saias. Via-se ali um
escárnio dos costumes, mas o ministro tolerava às vezes maiores
atrevimentos das mulheres, de modo que hesitavam em intervir.
O ministro encontrava-se em Oeiras, gozando o Verão e o título
de conde. Não descurava as coisas do governo, embora
despendesse muito tempo com os mistérios da vinicultura. O
intendente das polícias visitava-o, pelo menos, duas vezes por
semana.
Na varanda, tomando limonada, falou-lhe uma manhã da
rapariga. Supôs que era um assunto ligeiríssimo.
O ministro, porém, não lhe sorriu. E perguntou: “São eles por
mim ou contra mim?”
Se fossem contra ele, nunca o diriam, pensou o intendente, sem
falar: — Nas poucas vezes em que se revela, o homem põe-se a
atacar os jesuítas.
— Deixem-nos lá em paz — disse o ministro. — Para isso,
prendia-se as inglesas.
As inglesas não andam nas tabernas nem se sentam nas pedras
da calçada, pensou o intendente, sem falar. Transpirava e, dos olhos
empoados, escorriam duas gotas, como lágrimas. Mas o ministro
não usava escravos para provocarem brisa com abanos. Achava
efeminado um tal conforto.
XX
Satisfeito com os riscos de exibir uma mulher de olhar perigoso
pelas ruas, Jayme deixou cair certas conquistas que vinham a
tornar-se insuportáveis. As amantes faziam do seu caso uma
tragédia pessoal.
E, pegajosas, macilentas de insónia e de agonia, elas largavam a
sua cobertura sexual, como um traje de luxo que apertasse. A sua
verdadeira natureza, que era a de criaturas monogâmicas, espreitava
e instigava à repugnância.
Jayme sentia a falta das francesas, em quem mesmo o remorso
revestia um aspecto animoso, sedutor. E até a esqualidez das
luteranas lhe inspirava memórias sensuais. Lillias amava-o
devotadamente. Ele tinha muita vez a impressão de que podia usá-la
para atrair a curiosidade das mulheres, como quem leva um animal
exótico. Mas restringiu-se aos casos de domingo em que a deixava
para trás, os mais difíceis, os das damas da nobreza que fingiam
sufocos nas capelas dos seus palácios, para obterem permissão de
assistirem à missa nas igrejas.
No estado miserável a que havia chegado então o seu
imaginário, Jayme Mendões transferia para o sexo o papel vingador
que, um ano atrás, ainda esperava da revolução. Tornou a pôr os
olhos na condessa que, já no outro Verão, o distinguia entre os
muitos ociosos do caminho. A anã fora substituída por uma negra,
quase uma criança. A pintura estalava-lhe nas faces, talvez sob o
efeito do calor, e ela parecia um bicho cuja pele fosse listada. Tomás
vestia-se a rigor para lhe ir passar recados amorosos ao Loreto. A
igreja onde cantavam os castrati erguera-se depressa das ruínas,
graças aos cofres dos italianos.
A condessa não tinha, é bom dizer-se, frescuras juvenis, O seu
colo carecia de opulência e enrugava, ao inclinar-se para o chão.
Porém, arfava, como se a experiência religiosa fosse intensa em
demasia.
Decerto o aspecto físico de Jayme, com o longo cabelo natural, a
cara limpa e os calções sem brilho o tornava atraente a uma dama
que apenas se entregara a seu marido. O conde de Aguilar era
enfezado e muito comedido nos amores. Aparecia no quarto da
mulher sem ter limpado a cara que, a tais horas, perdia a
maquilhagem, como escamas.
É natural que, em sonhos, a condessa se visse amando um
jovem sem disfarces, que cheirasse a suor e a cavalos. Não existia,
ao tempo, essa doença que havia de chamar-se romantismo e de ter
por modelo a perdição. Entre os altos estímulos do perigo e o apego
à vida confortável, as mulheres manobravam com cautela. Aliás, as
portuguesas distinguiam-se pela prudência com que ponderavam
ganhos e perdas nos negócios sensuais. Em casos arriscados como
este, as mais das vezes não chegavam a cumprir-se os votos de
adultério. Dava-se asas à imaginação, mas as condessas nunca
estavam sós e os plebeus não transpunham as cozinhas.
Ainda assim, aquele namoro de olhos simulava uma posse.
Jayme sabia que acelerava o sangue da condessa como jamais o
conde, entrando nela, conseguira fazer acelerar. Sorria cruelmente,
ultrapassado o período dedicado às cortesias. E o sorriso de macho
satisfeito, que tinha já trejeitos de desdém, levou talvez o trintanário
a suspeitar. Dava, de facto, muito mais nas vistas do que os olhos
em alvo, sofredores, que procuravam as mulheres nas ladainhas.
***

Na noite em que sofreu a emboscada e em que Tomás perdeu a


mão direita, Jayme lutou com grande entusiasmo. Estava,
felizmente, lua cheia e ele reconheceu os assaltantes que não
cuidavam de ocultar o rosto. Eram criados da condessa de Aguilar.
Mas não tinham perícia de assassinos. O ouvido treinado de Tomás
deu o alerta, alguns segundos antes de eles investirem com os seus
punhais. Mas vararam-lhe o pulso lado a lado. Ele levantava os
braços sobre o rosto, a defendê-lo, como fazem as crianças.

Perdera os seus reflexos de assaltante.


Depois gritou. Soltou o grito de uma vida. Saiu-lhe da barriga, ao
mesmo tempo que o sangue lhe saía pelo buraco, soltando-se, antes
de irrigar a mão. A massa do seu corpo, envelhecendo, amortecera
aquele grito com gordura durante anos. Ele, porém, ouvia-o, e quase
o via atravessando as vísceras. Era o grito de um homem que
nascera já condenado à forca, uma criança herdeira de um patíbulo,
como outras tinham brasão de armas na colher. O conforto da casa
de Cilicia parecia-lhe, no fundo, imerecido. O grito ardia contra a
escuridão e fazia-o sentar-se, a meio do sono. O próprio alívio de
acordar o massacrava, adiando a chegada da catástrofe.
O grito rebentou naquela noite, soando como o urro de uma fera.
Os atacantes, que não tinham sangue-frio e começavam
esfaqueando mal, imediatamente duvidaram da sua competência
para a empresa. Achavam-se num beco. E, das janelas, pessoas que
aquele grito incomodara entornaram os baldes dos despejos sobre a
cabeça dos arruaceiros. O sangue de Tomás escorreu, levado por um
caldo de urina e de excrementos. Foi com certeza o que gerou a
infecção. A mão apodreceu rapidamente.
A verdade se diga: Jayme teve uma alegria extraordinária no
recontro. Porém, nem inimigos nem parceiros mostravam a mais
ténue dignidade. A populaça havia despenado e apupava o
espectáculo ao luar. As casas eram baixas, e as mãos quase
alcançavam aqueles crânios mal rapados. Jayme perdeu
inteiramente o estilo. Apunhalou a eito.
Eles não pareciam muito determinados a matar. De um momento
para o outro, retiraram-se, fracamente feridos, coxeando. Atrás das
portas dos quintais, os cães uivavam, como se o perigo fosse
verdadeiro.
Jayme rasgou a manga da camisa e envolveu o pulso de Tomás.
Sentiu mais raiva àquele país que aos assaltantes.
XXI
Lillias não vira o que ia acontecer. Parecia que cegara para os
seus. Entre a cozinha e a sala, onde se havia alcandorado um
estrado entre cadeiras, ela acartava os alguidares de água fervida.
Cilicia e Ana olhavam, estarrecidas, cada uma a seu canto, como se
sustivessem o prumo da parede. Poupado à dor pela embriaguez,
Tomás dificilmente se deixava, no entanto, prender pelos rapazes
que acompanhavam o cirurgião. Jayme espreitava pela janela para a
rua, vendo a balbúrdia que os insultos de Tomás provocavam na
tarde dos vizinhos.
A ferida do punhal enegrecera, depois ficara roxa e esverdeada.
A mão ameaçava rebentar. Tornara-se uma coisa desumana cuja
visão já não causava dó. Ao golpe do cutelo, aquilo caiu para dentro
do balde e a massa fétida da infecção espalhou-se sobre as tábuas.
Ninguém se aproximava para limpar. O mecanismo da respiração
parecia deslocar-se para o estômago e o alimento, como um ar,
subia à boca.
Em vez de desmaiar, Tomás espertara, ao cheiro da morte do seu
próprio corpo. Lillias olhava, enfeitiçada, para o pus. Depois, quando
contava o sucedido, Cilicia garantia que seguiu a direcção do olhar
da rapariga e deparara com centenas de lagartas. Mas o que Lillias
evocava era a manhã da perdida batalha de Culloden. Thomas
Fraser, passado a baionetas, escorria sangue e fezes dos buracos.
A senhora Cilicia quis que o filho procurasse de novo outra
nação. Talvez, no fundo, se tivesse arrependido de tanto haver
ansiado o seu regresso que se chegara mesmo a rebaixar, com o
apelo que fizera a Lillias. Era bem claro que o ataque acontecera por
pessoal perseguição. Todos sabiam que certas saias implicavam um
perigo não inferior ao das conspirações.
Jayme só resistiu àquela ideia tempo suficiente para que vissem
que o episódio o não intimidara.
Achava-se cansado de Lisboa. Ao contrário dos ricos de
Inglaterra, que aqui buscavam a saúde dos pulmões, ele sentia que
o ar o sufocava. Nem o falhanço do trabalho de espião, de que
haveria contas a prestar, o levava a temer-se da viagem. Sempre se
poderia desculpar com os ladrões de cartas, de que padres e moços
de recados tinham fama.
O dinheiro de Cilicia estava pronto a esperá-lo nos cofres dos
banqueiros, como uma cortesã reaparecida depois de recusar
tempos difíceis. Aos prussianos, que só queriam resultados, Jayme
relataria a situação de visu. Falaria de um país cujo tecido velho e
requeimado não aguentaria os esticões a que o primeiro-ministro o
submetia.
E ele, que fisicamente nunca fora um exibicionista, encomendou
um fato à moda preciosa dos franceses. Contava com visitas aos
salões.

***

Mal percebeu que iria perder Jayme, Lillias deixou de novo de o


olhar. Já não temia vê-lo moribundo, mas sim mostrar a morte que
ia nela. Ele procurava-a pouco sobre a saca de palha que isolava
precariamente as lajes sepulcrais. Estava de tal maneira habituado à
submissão da rapariga que nem mesmo pensou em preparar a
despedida.

***

Chovia já, naquela madrugada, mas Tomás fez questão de vir à rua,
com um pano oleado sobre o coto. Era preciso que a cerimónia se
cumprisse, que todos fossem testemunhas do abraço pelo qual o
poder se transmitia de homem a homem. A senhora Cilicia soluçava
e Ana agitava as mãos, lutando contra as emoções, como se luta
contra insectos. O recoveiro carregava a mula, Jayme pôs o tricórnio
na cabeça. Escorria-lhe água pela cara, mas os olhos mostravam-se
irritados e enxutos. Se perguntou por Lillias, foi com voz tão
apagada que ninguém ouviu.

***
Cilicia conservou a rapariga como uma corda que prendesse o filho e
o trouxesse de volta a qualquer hora. Sempre lhe atribuiu esse
poder e nunca suspeitou do verdadeiro que, aliás, de poder bem
pouco tinha.

Às vezes, essa espécie de vaidade que a mulher tira dos adornos


do seu lar ardia-lhe na boca. Era difícil não falar sobre Lillias às
amigas, quando elas se gabavam dos seus pretos ou das suas
galegas curandeiras. Felizmente, o estatuto de escocesa e a
impressão doirada que causava chegavam para imporem a patroa,
naquela concorrência de exotismos. Se não mordia a sua língua a
tempo, a senhora Cilicia adiantava certas inconfidências curiosas.
Depois arrependia-se e mantinha Lillias atarefada nas traseiras.
Graças ao modernismo do ministro, os judeus conheciam tempos
bons. O rei havia mesmo de assinar o fim do estigma sobre os
cristãos-novos. Mas albergar, como pessoa de família, um ser a
quem o Demo apadrinhara, dotando-o de sentidos sobre-humanos,
continuava a ser muito arriscado. Tomás, que conseguira uma
importância nunca sonhada nos seus tempos de mendigo, censurava
a mulher pela verborreia. Perder a mão e ocupar o lugar de homem
da casa haviam-no tornado mais prudente, ele que destemido nunca
fora.
XXII
A senhora Cilicia nem sabia se amava Lillias, se lhe queria mal.
Ela era dócil. Quando engravidara, tomara o preparado que a patroa
lhe dizia eficaz contra os enjoos, e suportara a dor e o sangramento
sem qualquer grito de rebelião.
Sem Jayme, a casa revelava um certo alívio, como um estômago
livre do espartilho. Ainda que nunca o houvesse confessado, Cilicia
tinha medo do rapaz. Mas, a pretexto da saudade, desleixava-se.
Até Ana, a soturna, se lançava em correrias pela escada abaixo,
num à-vontade que ninguém lhe adivinhava. Continuava magra, mas
o rosto, que ia afilando muito para a frente, denunciava uma
voracidade.
Parece que existia, realmente, um modo de sentir para cada
sexo, pois que Tomás levava agora a peito uma elegância de que
nunca se acercara. Encomendara dois revestimentos de bom couro,
com fivelas e tachinhas, para usar sobre o coto. Os ornamentos
tilintavam de modo imperioso e ele fazia uso daquele som, como os
fidalgos que sacodem as esporas nos corredores das casas de rivais.
Queria mesmo um criado. Havia-os prontos para servir, sem que
pedissem como recompensa mais que uma sopa e um canto no
palheiro. Eram aqueles a quem a Santa Inquisição dera um perdão
tão árduo de levar como se usassem eternamente o mesmo san
Benito. Eles saíam dos cárceres tão sós que se diriam acabados de
nascer, sem o processo da maternidade. O zelo que os não tinha
executado tão-pouco permitia que vivessem. A família fechava-lhes a
porta, os vizinhos cuspiam para o lado. Saindo vivos da manhã de
chamas, ardiam, no entanto, para sempre. Ninguém queria tocar-
lhes nem olhá-los.
Andavam pelos largos, na esperança de que os encarregassem
de um recado. A consciência de que repugnavam trazia-lhes ao rosto
uma miséria que os tornava, de facto, repugnantes.
Tomás argumentava que, ao levar um daqueles rebeldes para
casa, imitaria o espírito de Jayme, tão contrário aos terrores da
Igreja. Ia-se, aos poucos, transformando num ousado. Porém, Cilicia
não se convenceu. Já lhe bastava Lillias e a vaidade da própria boca
que a levava a imprudências.
Criados pagos, não podia ter. A mesada do filho retomava o seu
papel destruidor de anos atrás. Ela não tinha rendimentos que
chegassem e entregou-se outra vez aos usurários. A Inquisição
virara as suas garras contra os hereges e os novos pensadores, de
modo que a denúncia de judeus não dava já os frutos de outros
tempos. Em vão Cilicia esperava que os credores acabassem
queimados junto ao rio.
Somente um novo terramoto a salvaria.
Ela expulsava aquele pensamento que lhe vinha à cabeça sem
licença e olhava, envergonhada, em seu redor.
XXIII
Lillias partira, ao ver Jayme partir.
Deitava-se nas lajes da cozinha, ouvindo os ossos de Maria Aires.
Os lamentos da morta, já sem carne, reduziam-se a uma vibração.
Deles subia uma espécie de parede, dentro da qual rodopiava o
vento que atirava com Lillias para a viagem.
Atravessava os campos, atalhando, sobre o cavalo de Lady
Macintosh. O dorso da montada reluzia naquele calor que os meses
de declínio ainda excessivamente disparavam. Passava para o Sul,
pisando o Tejo que, para tais cascos, se tornava sólido.
À sua volta, o mundo escurecia, e o rasto de Jayme crepitava,
sendo então muito fácil de seguir.
Lillias alcançou-o nas estalagens turbulentas da Espanha,
destinadas a muita coisa mais que a descansar. Sentava-se a seu
lado e, em silêncio, matava a sede com o vinho que ele bebia.
À medida que o tempo decorria, ia encontrá-lo cada vez mais
longe. Tremeu de febre, quando as neves o levaram a pernoitar
numa carroça mal coberta. Das ventas do cavalo não saía vapor que
os ajudasse a aquecer. Ela estendeu-se em cima dele, cobrindo-o,
com o calor do pêlo de uma fera. E, realmente, a meio do seu
delírio, Jayme chamou pela rapariguinha.
Contou depois que vira uns olhos inumanos, o que todos
acharam natural, pois neve e lobos iam sempre juntos.
Um dos criados da condessa de Aguilar deixou a casa com
ressentimento. Dizia que ela lhe mostrara a perna e, não obtendo o
resultado pretendido, o mandara açoitar pelo cocheiro.
O homem avistou-se com Tomás. “Não foi o conde que ordenou
a emboscada.” O grande braço terminado em couro empurrou-o com
força contra o muro. Tomás corava de desilusão.
— Não foi coisa de amor?
— Foi, mas foi dela. Percebeu que ele não a queria. Que andava
por aí com uma inglesa.
Tomás sorriu: — Estiveste lá? No beco?
O criado escapou-se para o lado, e o coto fez as pedras
oscilarem, ao assentar a cólera sobre elas.
Viu o homem correr pela rua abaixo. Não coxeava. Talvez não
fosse ele um dos atacantes.
E o facto de fugir, pensou Tomás, também não confirmava a sua
culpa. Era um automatismo entre os plebeus.

***

Não fossem os abalos que prosseguiam, como restos do vómito do


chão, julgar-se-ia que a cidade de Lisboa tivera sempre arquitectura
de ruínas, de tão natural modo se vivia. Os carpinteiros balançavam
sobre as vigas, que eram as novas armações dos prédios. Alguma
coisa os transformava em pássaros e os transeuntes iam
caminhando junto das construções, ouvindo os guinchos e evitando
os caroços de azeitona que eles deixavam cair, como excrementos.

Todos os que escaparam do desastre tinham, de certa forma,


atravessado a fenda que se abrira dentro deles e retomado o dia-a-
dia, num cenário que logo a alma portuguesa decorou, ao estilo
profuso dos altares domésticos. Até o rei teimava em pôr craveiros
na terra em volta da Real Barraca, sem se vergar à moda das
bulbosas.
Tropeçando em madeira e cantaria, os portugueses não
deixavam de gritar os seus pregões, insultos e chalaças. Mantinham
especial agilidade, que lhes vinha talvez de um gene nómada, em
desfazerem um ajuntamento, mal a guarda a cavalo se aproximava.
O Deus, que era terrível, no entanto, recebia pedidos, ao
contrário do pai justo e severo dos protestantes. Tornava-se tão
físico o seu culto, e tão negociável o seu querer, que o confundiam
com um soberano a quem levassem oiro e vitualhas e os recebesse
ainda em camisa de dormir. Isso dava-lhes crises de alegria de uma
infantilidade que os ingleses nem se esforçavam por compreender.
O ministro lutava sem descanso para dar o empurrão a um país
que os estrangeiros visitavam com a mesma disposição para a
curiosidade com que visitariam os selvagens. Oscilando entre o
medo e a indulgência, eles davam conta de uma gente tão vaidosa
que os detentores de cargos elevados não abriam a boca em
recepções, com receio de dizerem disparates. Não entendiam nada,
e assim ficavam pela referência aos belos dentes das mulheres e aos
percevejos das hospedarias.
***

Deve dizer-se que, apesar de andar gozando inteiramente do papel


de homem da casa, que Jayme lhe atribuíra, tão legítimo como se
confirmado por notário, Tomás sofria a falta do patrão. Por causa
dele, perdera a mão direita. O pus da sua vida de mendigo e de
ladrão, em pobres emboscadas, saíra pelo golpe. E, no invólucro de
couro, o braço impunha uma outra história de aventuras masculinas,
de madrugadas em terraços, com adúlteras. Mas, sem Jayme, sentia
a solidão.

Procurava, imponente, pelos largos, ou nas tabernas, um diálogo


interessante, como se fosse um caso de paixão e ele procurasse um
sucedâneo para curar-se. Realmente, as coisas tinham largado o
brilho, a significação que Jayme dera. Tomás tornava-se arrogante,
mesmo em casa, e voltou a dormir com a patroa, a quem a sua
brusquidão muito agradou.
Malagrida foi preso, finalmente. Da sua cela, longe de Lisboa,
deu conta que expirava a mãe do rei à hora exacta em que isso
aconteceu. O seu poder de santo confirmou-se. A vila de Setúbal,
onde ele estava, recebeu a visita de fidalgos com uma assiduidade
inusitada. Ali mantinha uma imponente casa aquele duque de Aveiro
que talvez já conspirasse então contra o ministro.
Os folhetos do padre circulavam secretamente, como os livros de
Voltaire. O velho e o novo, no entanto, tão opostos, inimigos de
morte, conheciam a clandestinidade como iguais.
***

Lillias deixou de cavalgar atrás de Jayme. Olhava, e acordava dentro


dele, sem que fosse preciso aproximar-se.
Muitas noites gemeu com o prazer dos encontros de amor que
ele arranjava por todo o lado onde as mulheres o vissem. Lillias
estava no desejo daquele homem, respirava com ele sobre os
cabelos, sobre o pescoço das aventureiras. Sentia como o corpo
masculino se enchia de um terrível pensamento que nem era o da
carne, que não vinha de recesso nenhum do indivíduo, mas de uma
qualquer massa inicial em que apenas contava a predação.
Entrava nas mulheres com violência, Lillias, deitada sobre as lajes
da cozinha. Depois dormia com desprezo, como um macho, virando
as costas para ficar só. Cheirava nas axilas e no sexo o cheiro a
vinho, a camas e a cavalos que jayme tinha sempre no seu corpo.
“Eu sou ele”, murmurava. E ouvia, rindo, Cilicia lamentar-se das
saudades que a passagem do tempo lhe trazia. A idade e as
despesas desgastavam-na.
— Deitavas-te com ele. Não queres que volte? — chegou a
perguntar à rapariga. — Não o chamaste tu da outra vez?
Lillias baixava os olhos, tão feliz que a patroa chegou a pôr-lhe a
mão, desesperada com aquele enigma. “Nem mesmo eu aqui estou”,
respondeu Lillias.
No entanto, chorava, magoada.
***

Aquele amor materno acumulava dentro do organismo de Cilicia. Às


vezes, tinha de o fazer sair, como por incisão do sangrador, e ele
escorria sobre Lillias, absolutamente a despropósito. Arranjou-lhe
uma saia e um corpete de um pesado tecido de cortinas para a levar
consigo, sem que alguém conseguisse prever onde ou porquê.

O povo de Lisboa desfrutava de prazeres novos, graças ao


ministro. Toda a gente da casa de Cilicia se deslocou até ao vale de
Alcântara para assistir, sob as arcadas do aqueduto, a um concerto
com os mesmos músicos que haviam ido ao barracão do rei.
Os jesuítas, pressentindo uma catástrofe, escondiam as pratas
consagradas em covas, nos celeiros dos conventos e tornavam as
prédicas ligeiras. E, aos poucos, as igrejas resignavam-se a
franquear a porta à populaça que queria ouvir cantar italianos e que,
só por um resto de decência, não acotovelava os seus fidalgos. Estas
e outras benesses, em lugar de estimularem um gentil
comportamento, tornavam as pessoas irritáveis e mais insatisfeitas
do que outrora. Mal adivinha um deslaçar da ordem que mantém
cada classe em seu degrau, recai na insolência, o português.
XXIV
Quando a desonra de um marido, que esquecera a prestação
feudal devida ao rei, fez, ao que consta, que se disparassem tiros
contra o carro de Sua Majestade que regressava, à noite, de
aventuras, não foi só o ministro que exultou. Os lisboetas animaram-
se a um ponto que os animais andavam assustados com tanta
vozearia. Desrespeitava-se mesmo as horas marcadas pelo Sol, que
recolhia cedo nessa altura; e, noite dentro, ainda a vizinhança
comunicava. E como se tivessem medo de adormecerem e falharem
uma passagem de beleza excepcional.
Há murmúrios da História que sugerem ter sido o atentado um
expediente a que o próprio ministro deitou mão, aproveitando o
facto de o monarca andar de amores com uma Távora casada. Diz-
se que essa família, a grande vítima, era tão inocente que o seu
grito ainda pode ouvir-se a certas horas, vindo da pedra que assinala
o seu opróbrio.
Às vezes penso que, na escura madrugada que precedeu a sua
execução, se avistariam, no terreiro de Belém, onde soava o
martelar do cadafalso e o povo já marcava o seu lugar, olhares
iguais aos das mulheres que, em Paris, uns decénios mais tarde,
tricotavam com um afã doméstico os seus xailes, enquanto viam
trabalhar a guilhotina. Talvez até que, quando tudo terminou, uma
mania das recordações tenha levado as que mais perto estavam a
estenderem as mãos para as molharem, e aos folhos das camisas,
com o sangue que pingava da beira dos tabuados.
Na casa de Cilicia, como em todas as casas de Lisboa, nessa
noite ninguém dormiu, ainda que a vigília não incluísse a reza
colectiva aos pés do oratório. Não havia que gastar velas para além
do necessário. Tomás saíra, com um saco de merenda e uma
pequena lâmpada de azeite que a mais ligeira brisa apagaria. As
mulheres levaram-no à porta, e ele olhou duramente para trás,
como um guerreiro decidido à impiedade.
Lillias estremeceu, quando espreitou e uma pequena zona
iluminada puxou Tomás para baixo e o fez deitar-se em plena rua,
sobre o líquido pesado que fumegava, em volta da cabeça. Mas ele
continuava o seu caminho. Todas pensavam que rumava para Belém,
para assistir também àquele massacre, mais uma sombra em tantas
sombras que essa noite empurrava para oeste da cidade. O facto é
que Tomás buscou abrigo numa casa em ruínas e esperou pela
chegada da manha, pelos grupos que voltavam lentamente,
roncando de fadiga, como bêbedos. Vinham desiludidos com o efeito
que tanto horror tivera nos seus corpos, eles que se tinham
preparado para gozar mais com aquela justiça contra os nobres do
que gozavam com as chamas nos plebeus. Tomás não achou fácil
arrancar-lhes a descrição daquilo que se passara. “Vossemecê não
esteve lá”, diziam.
— Venho de longe e não cheguei a tempo — respondia Tomás.
Eles amparavam a boca com a mão, agoniados: “Não foi nada que já
não tenha visto.” — Isso calculo eu — disse Tomás. Jamais
confessaria que um patíbulo era coisa que ele nunca queria olhar.
Parecia-lhe que as tábuas o chamavam, de dedo em riste,
prometendo a sua vez.
***

Encaminhou-se para casa, preparado para narrar os pormenores,


achincalhando a falta de coragem das mulheres. Então, o chão
fugiu-lhe e ele escorregou. A cabeça estalou-lhe contra as pedras.
Sorria, quando Lillias o arrastou para junto da porta, de maneira a
que os cavalos não o espezinhassem — A forca, agora, esperaria em
vão.

Perdeu o resto dos espectáculos do ano. O padre Malagrida foi


queimado na praça do Rossio. O seu processo, ainda hoje
conservado, é monstruoso quanto ao tamanho e quanto ao
conteúdo. Dizem que endoideceu com os maus tratos, mas com
certeza ele próprio desejava uma glória final, um apogeu.
Cilicia e Ana foram assistir, sem conseguirem convencer Lillias.
“Outra vez, não”, disse ela. Nesse dia não pôde encontrar Jayme em
sítio algum.
Portugal, 1762
I
Coisa entre reis, chamada “pacto de família”, veio arrastar Lisboa
para a guerra. Realmente, o xadrez das alianças pouco diferia,
quanto às suas regras, das opções consanguíneas para os clãs. Mas
a arrumação final das partes há muito se fazia de igual modo,
tornando inúteis certas uniões. Era como se um íman gigantesco
brincasse sob o mapa da política para fatalmente provocar o choque
entre franceses e ingleses. E, em volta, com um automatismo de
metal, certos países, certos povos acorriam sempre na direcção do
mesmo pólo. Fossem os casamentos como fossem, o sangue não
valia uma amizade com tradição de séculos e o apuro que se
consegue nos tratados de comércio. No que quer que a Europa se
metesse, Portugal e a Espanha colocavam-se em campos inimigos.
Assim foi nos salpicos da Guerra dos Sete Anos que só tocaram
Portugal pelas fronteiras. Ficou chamada a nossa parte de
“Fantástica” e isso dá uma ideia do carácter muito desconcertante
dos combates.
O exército português, naqueles anos, achava-se em tal estado de
desleixo que nem contra ciganos ganharia. Quando o coronel
O'Reilly cá entrou para, em nome de Espanha, declarar que
começavam as hostilidades, os soldados saíram-lhe ao encontro, de
mão estendida para pedirem esmola. Eram um bando tal de
maltrapilhos que o irlandês julgou que o assaltavam e lamentou que
o brilho dos galões atraísse a miséria dessa gente. De regresso a
Madrid, apresentou um relatório bem-disposto que a experiência dos
castelhanos logo corrigiu. Havia que contar com os ingleses.
E, com efeito, como de costume, eles acorreram à chamada. O
conde de Lippe, prussiano que se achava às ordens de Inglaterra,
veio, à frente da legião das tropas estrangeiras, reformar um
exército que a paz, e não as guerras, tinha destroçado.
O pobre homem ficou tão estupefacto que mal sabia como
começar. Tomando fôlego, descansando nos britânicos que tinham
os comandos principais, o general deitou as mãos à obra. Era mais
trabalhoso instruir gente que entendia o serviço militar como uma
patuscada nas adegas do que formar recrutas sem passado. Porém,
não lhe ofereciam outra coisa. O conde chegou mesmo a ensinar
como deviam comportar-se à mesa, sem cuspirem, e usando
guardanapo. A infantilidade portuguesa levava a mal as
admoestações. Dissimulavam, capitães e praças, negligenciando o
que podiam.
O sol amolecia o esteio moral e nem os estrangeiros escapavam
a essa espécie de convite à fraudulência que parecia ler-se na
paisagem. Além de casos de processos e expulsões, houve o do
comandante Gravelone que, sem apelo, foi executado. Diz-se que
tinha meia dúzia de homens em vez do batalhão que deveria vestir e
alimentar com os dinheiros que o Tesouro português lhe facultava.
Em dias de parada, recrutava os vagabundos a quem punha farda.
Metia ao bolso o pagamento que sobrava.
Foi o capitão Forbes que, chorando, pondo o dever acima da
amizade, lhe foi vendar os olhos para morrer. Era um escocês
bondoso que ficou pelo resto da vida nesta terra e fez grande
carreira no Brasil.
Aliás, os escoceses, que abundavam entre as tropas britânicas,
sofriam de uma estranha influência em Portugal. Bebiam pouco e
davam o exemplo de uma delicadeza de maneiras que em casa
própria nunca haviam cultivado.

***

Londres enviou Lord Tyrawley para a chefia directa dos ingleses. Ele
conhecia bem este país, onde já tinha estado duas vezes,
desempenhando cargos diplomáticos.

Era uma figura singular, muito inconveniente nos salões e


adorado pela populaça. Ainda muita gente se lembrava de ir a Belém
para lhe acenar adeuses, quando acabara o seu primeiro mandato.
Ele levava catorze barras de ouro oferecidas pelo rei e número igual
de filhos ilegítimos. Acompanhavam-no as suas três mulheres. As
crónicas do tempo registaram o tamanho da trança de uma delas.
Esta festejadíssima família ia distribuída em dois batéis e os
remadores sorriam aos seus gritos, quando a ondulação os
empurrava. Até isso fazia os lisboetas suspirarem, com pena da
distância.
Agora o lord estava velho e a insolência tomara desmesura com
os anos. Fora julgado por indisciplina e falta de respeito, em
Inglaterra, e quase destruíra o tribunal. Os juízes, seus pares, jamais
se haviam confrontado com tanto palavrão.
Enviado para a guerra das fronteiras, Lord Tyrawley esqueceu-se
da idade e chegou prontamente a Portugal. Tinha saudades de um
país tão rude e tão preocupado em agradar. Mas não era um
estratego, nunca o foi. E perturbava, como uma criança, o curso dos
concílios militares. Ele não dava já muito nas vistas, como gostava,
pela sua grosseria, entre soldados a quem palavra alguma
embaraçava.
Fez a guerra de longe. Quis gozar a luz inimitável de Lisboa, as
suas tascas cheias de marujos, os seus salões beatos e sebentos
que se obrigavam a sorrir ao lord inglês, por muitos impropérios que
ele dissesse.
O velho achou Lisboa diferente, tanto devido às construções pós-
terramoto como ao estilo do governo do ministro. Talvez o
progressismo lhe agradasse, mas deu mais importância à repressão
que se exercia sobre as gentes da nobreza. De qualquer modo, Lord
Tyrawley não perderia a oportunidade de atrapalhar os protegidos
do governo, tecendo comentários acintosos, endereçados aos
ouvidos do poder.
O ódio do ministro aos ingleses era sujeito a grande contenção.
Tratava-os mais do que amigavelmente. Só Lord Tyrawley
conseguiria que ele revelasse a sua irritação, interpelando-o frente a
testemunhas:
— Ouvi que andais falando mal de mim — disse o ministro. Era
uma tarde de audiências.
— Sim. Mas não tanto quanto deveria — retorquiu-lhe, alto, Lord
Tyrawley. Apesar da velhice, ainda olhava para os pequenos
portugueses do salão com o seu largo queixo soerguido.
II
Cilicia recebeu carta do filho quando ele se achava havia muito
em Portugal, integrado no exército estrangeiro. Ela teria dado o seu
dinheiro de fiadora, como então se usava, para o livrar daqueles
recrutamentos brutais, tão semelhantes a caçadas, que se faziam
contra os populares. E eis que ele se alistava de vontade,
certamente levado por ideias, não por projectos. As ideias, para um
homem, eram como o amor para as mulheres: desordenavam as
prioridades e resultavam sempre no desastre.
Mas estas reticências de Cilicia nada podiam contra o amor de
mãe. Depois da morte de Tomás, ela aceitara a castidade própria da
velhice. O seu cabelo enfraquecera e descorara, e essa era uma
espécie de sentença que o tempo executava, assinalando-a para a
expulsar dos grupos sexuados. A beleza que houvera no seu rosto,
enquanto ele se manteve arredondado, distorcia-se agora, ao
chamamento do poderoso chão. A pele dos maxilares e do pescoço
estremecia, sem preenchimento, mesmo quando ela se sentava a
descansar. E até o atrevimento dos seus olhos, cujo brilho chegara a
ser obsceno, se encontrava coberto por um véu que ali se
desdobrara para sempre.
Aquela casa onde viviam três mulheres estava, por isso, de tal
forma vulnerável que não as protegia mais do que um pano. Cilicia e
Ana mal dormiam, sempre à espera de que os ladrões entrassem e
as achassem ajoelhadas junto ao oratório, numa última reza antes
da morte. Mas receavam admitir um estranho, que poderia, à noite,
abrir a porta, fazendo entrar os cúmplices no roubo. Ana falava de
arranjar marido, como quem se propunha um sacrifício. Cilicia via-se
roubada pelo casal, envenenada aos poucos nos seus caldos, posta,
por fim, na rua ao pontapé.

***

Só encontrava a salvação da casa no regresso de Jayme. Era já


tempo de entrar na ordem sucessória das famílias. Concertar
casamento para o filho, ganhar um dote e uma nora recatada, isso
lhe aconselhava o coração. Não fora sempre um coração sensato,
mas os anos lavraram, em silêncio, e finalmente ela sabia pensar
bem.

“É preciso que ele venha e que aqui fique”, dizia para consigo.
Nem rezava. As ausências do filho não deixaram que ela lhe
acompanhasse o crescimento e, enfim, olhasse e visse um homem
tão alheio que julgaria nunca o ter parido. Guardava o instinto de
amamentadora, confiando somente nela própria para manter com
vida a sua cria. Escreveu, chamando-o com lamentações. Receava
que a guerra o alcançasse, estando mais perto dele do que o seu
colo. E, na sua impaciência, que a velhice, longe de moderar,
tornava feia, fazendo-a espumejar e descompor-se, decidiu que não
ia esperar mais.
Viu aparecer outra manhã e indignou-se pelas horas de insónia
que sofrera. Parecia-lhe que o mundo empedernira e que nada o
faria comover. Teria de travar um corpo-a-corpo para que Jayme
regressasse a casa. “Vou eu por ele”, disse. E levantou-se. Gritou
alegremente, de maneira que as raparigas a julgaram louca.
***

Quando desceu, levava uma pistola. Estendeu-a a Ana: “É o teu


homem.”

Ela pegou-lhe sem hesitação. Nada tinha em comum com a


criada que lhes abrira a porta anos atrás, apavorada com o cadáver
da patroa.
Cilicia olhou-a com desconfiança, receando deixar-lhe entregue a
casa. Ana parecia realmente concentrada num desígnio qualquer.
Passava os dedos pela arma, como cega. Acariciava as falhas de
madeira, numa espécie de reconhecimento.
Pegava na caixinha com a pólvora, nos acessórios, com desvelo
de bordadeira. Cilicia imaginou que, ao regressar, a rapariga a visaria
da janela.
Mas traria o seu filho e bastaria um olhar dele para que a pistola
se escapasse das mãos da serviçal.
Mulheres e armas conheciam o seu homem e tornavam a ele,
como falcões.
III
Para que Lillias a acompanhasse, Cilicia fez-lhe um fato de rapaz
e cortou-lhe o cabelo pelos ombros. “Passas por filho meu. Não
abras boca.” Um sentimento de serenidade acompanhava a sua
decisão e pensou que ele lhe vinha de Lillias.
Porém, havia inquietação na rapariga. Olhava para as suas
próprias pernas e estranhava. Metade do seu corpo oscilava de
modo assustador sobre os finos suportes dos calções. O caminho
para dentro da barriga estava assinalado sem vergonha, naquele
espaço vazio que chamaria a atenção dos homens no caminho.
Cilicia perguntava-lhe por Jayme. Mas ela não sabia responder. O
seu mutismo, que já fora muita coisa, parecia agora resultar da
indiferença. “Tu dormiste com ele. Não o queres ver? Da outra vez
achaste-o e trouxeste-o”, insistia Cilicia. Continuava a crer em falsos
dons da rapariga.
Ela deixara de dormir profundamente e a percepção prendia-a na
cozinha, como se o fato masculino, que não estava, no entanto, a
usar durante a noite, tivesse chumbo e a impedisse de voar. Os
próprios ossos de Maria Aires rangiam com estridência inesperada,
furiosos no seu enterramento. A iminência da viagem, tão brutal,
cortara o fio por onde Lillias se evadia.
Tão-pouco o saber Jayme em Portugal, regressado, mais dia,
menos dia, a um quotidiano libertino a que faltava a singeleza de
Tomás, a fazia corar de entusiasmo. Pelo contrário, emagrecia mais.
Isso ajudava a que a figura do seu corpo se confundisse com a de
um rapaz. Ela sofria como de uma amputação, mas nem por um
momento lhe ocorreu que podia propor trocar com Ana.
IV
A senhora Cilicia dirigiu-se para Abrantes, por água, e Lillias
recordou-se de Fanny, a afogada.
Não havia, no entanto, semelhança entre as duas jornadas. O
batel não transportava víveres meio podres nem reses abatidas, só
baús, a que os proprietários se agarravam com uma incorrigível
afeição.
Os remadores passavam muito tempo a restabelecer o equilíbrio,
espalhando, aos gritos, os volumes pelo convés. Apesar disso, havia
gente amável, e Cilicia ficou surpreendida ao saber que um rapaz de
fino porte e olhos iluminados pela febre ia à procura do irmão mais
velho para o resgatar à vida de soldado. Lillias enjoou e obrigaram-
na a debruçar-se para vomitar. Murmuravam-lhe insultos amigáveis,
tomando-a por rapaz. Ela tremia, sentindo-se despida. Era forçada a
ver a turbulência da corrente, as cobras que corriam para o mar.

***

Em Abrantes, as tropas encontravam-se em estado de euforia.

Os estrangeiros tinham acorrido às linhas fronteiriças onde havia


ataques espanhóis, deixando-as livres para retomarem os prazeres
do Sul. Acampamentos, onde a disciplina julgara ter entrado,
convertiam-se num arraial de imprecações e risos. Os homens
libertavam-se das botas para dançarem na terra onde urinavam. As
vivandeiras descobriam os joelhos para amanharem o pescado,
confundindo-se com as honestas mulheres da beira-rio. Os frades
pululavam, oferecendo os seus serviços, que cobriam tudo. Se a
guerra andava ainda por ali, devia estar fechada entre as muralhas,
onde estrategos liam os seus mapas já maculados de salsaparrilha.
***

Ainda que não tivesse grande soma de dinheiro consigo, habituada


como se achava a crédito e a banqueiros, a senhora Cilicia sentiu
medo. Felicitou-se por levar Lillias a fazer de homem a seu lado.

Apesar de delgada, ela era alta, e a timidez do seu olhar passava


pela falta de expressão da crueldade.
Levava à cinta a adaga de Tomás. Como, evidentemente, não se
dava às cumplicidades dos rapazes, depressa circularam instruções
para que Cilicia e o seu suposto filho fossem sempre tratados como
estranhos.
Tudo se tornou, pois, dificuldade. Pareceu que entre elas e a
informação sobre o lugar onde estaria Jayme se erguia não um
forte, mas dezenas de barreiras de ferro, intransponíveis. Temendo
oferecer muito dinheiro, Cilicia nem tijolos demovia. Durante duas
noites não dormiu. Tinham tomado alojamento numa casa que fora
outrora um armazém e albergava os seguidores do rasto militar.
Pelos óculos do alto, não entrava mais do que um pó clareado pela
lua, e a gente amontoada sobre as palhas soltava os sons do corpo.
Isso soava tão ameaçador como o silêncio.

***

Enfim, Cilicia abriu a bolsa a um sargento que comia fatias de melão.


O sumo que caía sobre a farda, escapando aos beiços, dava a
entender o quanto umas moedas que o tornassem capaz de comprar
frangos e leitões, lhe induziriam o gosto da palavra.

Disse que o regimento de estrangeiros rumara para cima, para


Almeida. “Como posso saber se está meu filho?”
O sargento mostrava-se solícito. Foi à caserna consultar o rol das
tropas. “Jayme Mendões, tenente.
Também foi.” Cilicia ouvia o que esperava ouvir e entregou ao
homem mais uns réis. “Como podemos lá chegar?”
Ele riu-se. O sol batia-lhe nos olhos, que se estreitavam e eram
olhos de velhaco. Prometeu ir estudar a situação. Cilicia perguntou
pelo judeu que ali tinha os interesses do seu banco. O sargento
ofereceu-se para a guiar. Transportava a espingarda a tiracolo. Mas,
ao contrário do que Lillias receou, nunca virou o cano contra elas.
***

Cilicia percebera que os perigos provinham mais da falta de dinheiro


do que da ostentação. Pobres matavam pobres por um nada, mas
continham-se à vista da riqueza, como se fosse emanação divina.

Quem pudesse pagar por uma escolta não precisava de esconder


o ouro. Ladrões de estradas tinham quase sempre mulher e filhos, e
apego à vida. Haviam feito a sua educação roubando o pão das
velhas e as igrejas. Não olhavam sequer para a fidalguia, por trás de
quem a sombra do carrasco se elevava como anjo protector. E os
mercadores, que anos atrás eram cobardes e seguiam, a pé, as suas
mulas, tão enervados que chamavam a atenção, deslocavam-se
agora defendidos por grupos de soldados desertores que se
entendiam uns aos outros em francês.
A senhora Cilicia costumava manter uma atitude suspeitosa, o
que convinha à sua natureza. Sempre pensara que levar
acompanhantes seria convidá-los a matar. À força de escutar relatos
trágicos, imaginava o seu cadáver enterrado, os malfeitores
dançando à luz do ouro. Mas a experiência daqueles dias em
Abrantes aconselhou-a de diferente modo. Pagou ao chefe de uma
caravana que seguia com armas para Almeida e não podia
transportar mulheres. “Uma mulher faz sempre jeito”, disse.
O homem era um capitão pouco dotado para situações de
guerra. Mal dormia desde que o tinham enviado para a frente. E, se
não desertava, isso devia-se a maior medo do desconhecido, que se
acharia certamente em toda a parte, do que das balas que viriam de
um só lado. Cilicia prometeu-lhe o paraíso.
Com o dinheiro que ela lhe daria, ele fugiria como foge um rei.
— Nem diga tal palavra.
— O quê? Fugir?
— Fugir.
— Meu capitão, todos fugimos.
Cilicia riu e ele afastou-se, a meditar. Mas não a fez esperar por
muito tempo: — Talvez, se não se deixar ver pelo caminho... Nem
para as necessidades, repare bem.
— Homem, retenho o que preciso for.
O capitão olhou-a, impressionado. Semelhante a um velho
combatente que o milagre visita quando sente que periga a pátria
por que batalhou, a senhora Cilicia remoçava, naquela extraordinária
teimosia.
Lillias viu-o ceder e suspirou. De tudo aquilo apenas lhe
importava não terem de voltar ao barco, à água.
V
Foi com dificuldade que Cilicia deixou a posição de acocorada
entre vários caixotes de fuzis.
Cobrira-a uma lona. A rapariga, no seu disfarce de rapaz arisco,
ia-a alimentando com bocados que tirava da boca e lhe passava,
dissimulando a mão atrás das costas. Uma espécie de bicho
tacteava, uma probóscide a sugar o alimento.
Lillias não conhecia o amor materno e entendia que a teima de
Cilicia era uma casmurrice no vazio.
Não contava ver Jayme, de maneira que a peregrinação a
fatigava. Sofria os impropérios dos soldados que se ofendiam com o
seu recato, habituados como estavam a lançar, aos risos, uns aos
outros, a urina.
Eu creio mesmo que desconfiaram da feminilidade do viajante.
Parece-nos recurso original, este de usar um traje de rapaz, mas
praticou-se muito nas estradas. Ninguém ousava dar o primeiro
passo, sabendo que o esperava a baioneta do capitão que tinha
bolsa e honra interessadas naquela protecção. E limitavam-se a
obscenidades quase tão agradáveis como o acto. Não podiam
esquecer por muito tempo que seguiam caminho para as batalhas.
Então olhavam para as próprias mãos, como quem teme vê-las
decepadas.
No horizonte, essa angulosa Almeida parecia tão de fantasia
como a guerra em que ela tinha o principal papel. Na verdade, era
como se da planície, entediada da extensão de areia e pedra,
emanasse uma ilha, à semelhança do que há muito se viu o mar
fazer.
Nos poucos lugarejos que passavam, o vento levantava silhuetas
de pó e palha que rodopiavam e riam, no seu riso de embruxar.
Ninguém saía a trazer água ou nabos para refrescar um pouco a
soldadesca. Seguiam sem apoio, no vazio. Talvez a guerra, pela mão
dos castelhanos, já tivesse acabado de matar e não se achasse
criatura viva. Eles segredavam sem cuidado especial, considerando
saquear as casas. Mas o medo dos mortos inibia-os. O termo da
viagem estava perto. Podiam dar-se ao luxo da prudência.
E, nas últimas léguas, a incerteza tomava conta dos seus corpos.
Disfarçavam-se, queixando-se do sol e da secura, mas cada um
seguia o seu instinto que, como um laço de pequena corda, os
puxava, impedindo-os de avançar.
Os soldados sabiam como a guerra atraiçoava quem merecera os
seus favores e mudava de cama numa noite. De modo que,
chegando-se ao portão, temiam os disparos espanhóis em vez da
saudação dos aliados. Alguns pensavam em despir a túnica, expondo
o peito ao destino. No entanto, outra parte do corpo, os seus
joelhos, dizia-lhes que não e iam a terra, imitando a fraqueza do
morrer. O medo que, nas cargas da batalha, se transformava em
puro combustível, não fazia ali mais que esvaziá-los. E o ar da
planície ameaçava cair sobre eles como um peso esmagador.
Lillias olhava para aquela angústia, para aqueles homens que a
haviam torturado ao longo da viagem com a sua masculina intenção.
Via-os tão prestes a tombar que interpretavam eles próprios o
futuro, treinando a cor e a gesticulação por que se reconhece um
moribundo.
A única diferença era que o sangue não ensopava realmente a
terra.
***

Admitido na praça, o capitão teve ainda de esperar que anoitecesse


para retirar Cilicia da carroça. O heroísmo da mulher tocara-o. Ela
tinha sofrido, sem um som, o brutal desconforto do caminho,
sufocando, cozida na sua própria urina. Teimara, logo, em procurar o
filho. Porém, o capitão passou palavra para que antes se arranjasse
alojamento.

As notícias não foram optimistas. Não havia mulheres na


fortaleza.
— Como, não há mulheres?
— Só sem vergonha.
Eram as prostitutas do exército. A terem sorte, passariam, como
a água e as pedras afundadas na cisterna, sem se moverem, para as
mãos do vencedor, ainda que ele mudasse a farda e a língua.
Os soldados olhavam para o fundo, para umas casas encostadas
à muralha, de onde saía um cheiro de frituras. Ouvia-se tocar uma
viola e as palmas batiam o compasso. Todas as mulheres fáceis
dançavam como viam dançar as sevilhanas e os portugueses não as
estranhavam. O recanto era um bairro de Lisboa que ali pousara, em
pleno fim do mundo.
— Como há-de ser? — interrogou-se o capitão. E foi estendendo
a mão para as moedas que a senhora Cilicia prometera. Temia que
este obstáculo a vencesse e que ela desse o dito por não dito. Já
vira inesperadas desistências ante ligeiras contrariedades a homens
que arrasavam cidadelas. — Pague bem, e elas dão-lhe um quarto
honrado. Mantenha é o rapaz debaixo de olho.
Supunha que Cilicia se assustava com a ideia de deitar-se num
bordel. Ela acenou-lhe, exausta, mas o braço não se podia ver na
escuridão.
VI
As mulheres eram poucas, afinal, e todas dadas à melancolia.
Aliás, os seus serviços tinham mais de gerência caseira que de sexo.
Os militares necessitavam sobretudo de alguém com mão dotada
para a agulha, para as voltas de uma saponária, para um caldo. E
elas queriam valer-se das virtudes, mais que das pernas, para
caírem no agrado de algum oficial com aposentos. Os estrangeiros,
porém, desconfiavam. Tanta solicitude com certeza se deveria a
planos bem urdidos para os roubar, ou para os levar ao casamento,
o que, por muito incrível que pareça, acontecia repetidamente.
As mulheres em Almeida ressentiam-se da soberba das castas
superiores. A pouco mais chegavam que aos soldados. Eles eram
fiéis de Santo António, cuja carreira de armas possuía registo
rigoroso, de tal modo que ainda hoje conhecemos os seus salários e
as suas promoções. Uma seriedade de oração passava às vezes
pelos buracos das cortinas, atrás das quais se suporia haver apenas
lamentações de sexo e bebedeira.

***

Estavam, pois, prontas para se interessarem pelo caso de Cilicia.


Aquela mãe que atravessara uma nação de lado a lado em busca do
seu filho, e que vestira de rapaz a sua filha para que escapasse aos
homens do caminho, surgia no meio delas como um raio de
santidade, de eficácia maternal. Não se pode dizer que as
recebessem com pudicícia ou com acanhamento, ainda que os
clientes dessa noite se vissem empurrados para a rua com
pancadinhas de consolação. Mas todas, mesmo aquela que se
impunha nos casos mais difíceis de tratar e andava quase pelos
trinta anos, se afadigavam, sacudindo as almofadas, esfregando as
viajantes com sabão, como quem sabe de hospitalidade. Nem por
momentos se enganaram com Lillias. Ela tremia, sob as mãos
carnudas que lhe arrancavam meias e calções. No entanto, o relato
de Cilicia chamava mais as atenções do que o seu corpo. Alguém lhe
estendeu pão, uma camisa, e ela adormeceu.

Estava encostada às pernas da patroa que elas julgavam sua


mãe. A simpatia com que escutavam as palavras de Cilicia levava-as
a gritarem e a benzerem-se. Cada uma corria aqueles perigos, cada
uma procurava aquela guerra, dentro da qual havia um filho para
salvar. Cada uma tinha a filha adormecida, poupada aos homens
pelo seu disfarce.
VII
Também o capitão que as transportara se atrasava no passo para
espreitar, e acabou por descobrir a rapariga. Tivera o seu momento
de comédia, esfregando os olhos que estariam mal focados, dando
grandes palmadas no joelho. Rira-se, ainda que a vontade
verdadeira fosse dar um sopapo em toda a gente.
Vendo o rosto de Lillias à janela, como uma luz na casa das
mulheres, perguntava a si mesmo por que não dera por tal embuste
no caminho. “De certo modo, foi melhor assim”, pensava. Já lesara
muito os nervos, só com levar Cilicia às escondidas. Mas não deixava
de se envergonhar com a passividade dos sentidos. Cuidou que a
guerra o havia desgastado, naquela estranha ausência de recontros
que moíam a alma ao mais paciente.
Aliás, toda a praça se esgotava em alertas escusados. Era certo
que os castelhanos se mostravam ao alcance de um tiro de
mosquete. Mas pareciam cavaleiros a passeio, com plumas e coletes
de veludo.
Na fortaleza, entrava-se e saía-se, mantendo oxigenado o corpo
militar. Correr-se-ia mesmo um certo risco de ver a soldadesca a
desleixar-se, se não a retesassem os britânicos. Os chefes sacudiam
os chicotes, significando algumas intenções. Teimavam contra o
sangue português, que gosta de aplicar-se em zaragatas mas boceja
à ideia da batalha. E obrigavam à disciplina e a certos preceitos de
higiene que os inferiores achavam absurdos.
Jayme Mendões não se encontrava ali e a senhora Cilicia
resignou-se. “Não dou nem mais um passo”, declarou. O banho e a
roupa limpa das mulheres tinham-na devolvido à condição de fêmea
sedentária. Ela própria se dizia espantada com as razões que a
tinham empurrado até ali. E, no fundo, sentia-se feliz no meio das
prostitutas, assumindo certo papel que tanto lhes faltara, o da
matrona com rigor nas contas.
No entanto, o princípio não foi fácil. A presença de Lillias
estonteou, como um vapor de vinho, os militares. Julgavam-se
servidos de mulheres mas, no momento em que correu a voz de que
chegara aquela rapariga, alta e doirada, um sonho dos ingleses,
tudo o que faz um enamoramento e leva os homens à estupefacção
atravessou os corpos na parada. Não se tratava de mais uma das da
vida, o que, ainda assim, podia ser bastante para que todos se
desconcentrassem ao longo das tarefas desse dia.
Os soldados que tinham viajado na mesma caravana e se
sentiam, ao mesmo tempo, um centro de atenções e o alvo de
impiedosas ironias, olhando-se uns aos outros, construíram a
pequena ficção que desculpava tanta cegueira ou tanta castidade.
Que a pequena, diziam, se encontrava no meio de um cerco de
magia, intransponível. Que homem algum, diziam, a tocava. E
aconselhavam mesmo a evitar que se caísse sob a sua luz, que
causava delírios e desejo, como se a temperatura disparasse. De
maneira que Lillias ocupou toda a extensão do espaço masculino. E,
quanto mais a tinham por perigosa, mais o seu pensamento lhes
fugia para a janela onde a sabiam a espreitar.

***

O corrupio para a casa das mulheres dava à praça de Almeida um


novo rosto. O que antes fora tão discreto, tão velado que parecia
dispor de sombra própria em pleno Verão, tornou-se descarado. As
botas escarvavam em redor, e o som dos homens naquele canto
descentrava os acontecimentos.

No primeiro domingo, o capelão ouviu em confissão tantos


soldados que imaginou ser véspera de batalha. Eles haviam pecado
por luxúria e também por desejo de matar que os fazia agredir as
prostitutas no movimento em que se usavam delas. Era Lillias que
queriam. Acabavam por aceitar uma qualquer, necessitando
descarregar o que crescera dentro deles, o que a desilusão
malignara. Tornavam-se ferozes, conspirando uns com os outros,
como se Lillias fosse um trofeu de guerra e o furtassem.
Em breve as raparigas perceberam que o que tinham tomado por
vantagem lhes trazia a ruína do negócio. Os homens avistavam
Lillias por detrás da cortina da janela que ela não se cansava de
arredar.
E, alguns com arte, os outros brutalmente, todos diziam, cada
vez com mais clareza, que só entravam no bordel por causa dela. O
seu aspecto branco e silencioso tê-los-ia decerto saciado numa ou
duas visitas. Mas saberem que, numa casa de mulheres perdidas,
existia uma coisa inalcançável irritava-os, queimava-lhes a língua.
Alguns soldados foram castigados com dias de prisão no calabouço
por terem respondido ao capitão com palavrões de incrível
desrespeito.
***

Sentindo o nervosismo em todo o forte, o coronel Francis MacLean


lançou perguntas. Na sua ideia, um exército decente não suportava
o tempo de descanso. Confiava em que aquelas prostitutas, cuja
presença não desconhecia, lhes consumisse certas impaciêndas e
algumas moedas. Ao mesmo tempo, remendavam fundilhos de
calções. Não suspeitou que o estado sedicioso dos seus homens
tivesse por origem um lugar cuja função devia ser apaziguá-los. O
capitão-tenente esclareceu-o.

Depois de ponderar devidamente, Francis MacLean mandou


chamar as forasteiras.
VIII
A senhora Cilicia vira como as boas-vindas das mulheres tinham
mudado para cotoveladas ordinárias, quando compreenderam que a
corrida dos homens ao bordel só duraria se eles pusessem mão em
Lillias. Ela, porém, guardava-a com um zelo mais do que maternal,
imaginando que Jayme ainda havia de aparecer.
Embora os episódios de infortúnio lhe dessem sempre para o
despudor, guardava o seu respeito pelo filho. E, conhecendo-lhe as
contradições, sabia de antemão que o seu interesse por Lillias
cresceria, inverso ao dela. Se a deitasse ao desprezo e a entregasse
aos soldados de Almeida, Jayme reagiria como se Lillias fosse o
amor da sua vida. Se a tivesse estimada e protegida, ele mal
repararia que ali estava.

***

A sua condição de portuguesa levou-a a quase desmaiar quando o


ordenança veio transmitir a ordem de MacLean. O chamamento da
autoridade, ainda mais assustador por se tratar de um coronel e de
um estrangeiro, soou-lhe como o rufo do tambor que anuncia o abrir
do alçapão e o estremeção final do condenado. Rodeada pelos gritos
das mulheres que se excitavam, antevendo uma desgraça, Cilicia
ajoelhava-se, bradando, pedindo aos céus um raio por testemunho.
Lillias sorria, meio oculta pelas chitas que separavam fracamente os
gabinetes.

O ordenança não se tinha preparado para tão embaraçosa


recepção. Era um rapaz escuro, cujas mãos ainda mostravam cortes
da caliça. Não esperava encontrar aquela velha, tão combalida,
numa casa de prazer. Cilicia conseguia comovê-lo, e ele andava de
um lado para o outro, falando sobre as intenções do coronel que
nada tinham de castigadoras. “Vim só eu, a recado, então não vê?”,
repetia e olhava para a cortina, que semiocultava a rapariga.
Também ia deitar-se muitas noites indignado com o seu mistério.
***

Francis MacLean tinha uma história sólida de militar às ordens dos


ingleses. Estivera com o duque de Cumberland numa grande batalha
dos Hanôver nos campos da Holanda. Sofreram, aliás, uma derrota,
mas o prestígio de MacLean fundamentou-se. Ainda era novo
quando veio para Portugal, e a sua valentia, ao resistir contra a
entrega de Almeida aos espanhóis, levou as tropas à dedicação.
Ficou neste país por muitos anos, envelheceu governador da
Estremadura. Frequentava a corte, nesses tempos, e fazia sucesso
entre as fidalgas que ainda elogiavam o seu porte.

***

Em Almeida, os seus modos de escocês caíam bem aos seus


subordinados. Tinha pouca indulgência com os bêbedos, sabendo
como o álcool quebrantava, ao misturar-se com humores do Sul.
Mas entendia o sentimentalismo, e o delegar de responsabilidades à
passagem do tempo ou a poderes que não sofressem do limite
humano. Vivia a guerra com entusiasmo, aliando o atrevimento
montanhês com a cerebralidade de um estratego. E, evidentemente,
aborrecia-se naquela trapalhada na fronteira, cheia de escaramuças
e rodeios, que, de certa maneira, semelhava um entretenimento de
crianças.

Com os seus conterrâneos, convocava coisas da Escócia que o


pudessem iludir, apagando o calor e as ervas secas. Mas nem a
música, ou o canto, ou a comida, nabos e bucho de carneiro
recheado que não tomavam o sabor natal, nada o levava, como um
sonho, pelos ares. Muito de vez em quando, no seu sono, uma
recordação do cheiro a turfa enchia, como a tinta de um cenário, o
quarto de paisagens escocesas.

***
Lillias entrou na sala baixa onde o lajedo mantinha um simulacro de
frescura. O sol entrava pelas frestas da janela, cortando o ar. De
modo que a princípio, entre as duas mulheres e o coronel, se
atravessava um ferro incandescente. MacLean mandou chamar o seu
intérprete, antevendo um diálogo intrincado.

A rapariga tinha, com efeito, como lhe haviam dito os ajudantes,


uma espécie de luz que a recobria.
Usava uma camisa decotada e um saiote pelos tornozelos. O
cabelo, cortado pelos ombros, seria, juntamente com os olhos, o
responsável pela ilusão de que o ouro flutuava em seu redor. Era
alta, mas via-se obrigada a levantar o rosto para o olhar. O coronel
compreendia que, apesar de se vestir como uma prostituta,
humilhava os soldados. O desprezo parecia estar na sua natureza e
aquela distinção da castidade puxava pelas vísceras dos homens.
Naturalmente, eles sentiriam fel e esperma tão revoltados dentro
dos seus corpos que, nessas horas, se tornavam insensatos e
indisciplinavam o quartel.
Tendo composto a sua própria explicação, o coronel MacLean
aproximou-se. Atrás da rapariga, uma mulher pequena e volumosa
estremecia, encolhida, afundada pelo medo. Mostrava essa agonia
dos humildes que nada sabem das razões pelas quais os chamam às
antecâmaras, de onde já não se vêem sair, senão para cárcere ou
degredo. Sabiam-se culpados, escutavam, durante a noite, a
determinação com que o mundo dos outros recolhia provas, mãos
apontadas contra eles. Francis MacLean franziu as sobrancelhas,
ofendido com o medo da mulher. Queria falar. Porém, não
conseguiam achar em parte alguma o seu intérprete. A falha
enfureceu o militar. Praguejou nessa língua que Lillias imediatamente
conheceu. Sorriu. MacLean olhou-a, estupefacto.
— De que estás tu a rir-te? — perguntou. Ela temeu que o tempo
lhe tivesse retirado as palavras. E bateu com a mão no peito, a
libertá-las daqueles anos. Então, um misto de gaélico e de inglês,
unificados pela fonologia, áspera e, no entanto, modulada, como
inventada para canções guerreiras, passou da sua boca para os
ouvidos do coronel que deu um urro de alegria. A senhora Cilicia,
apavorada, jamais afeita às bruxarias de Lillias, chegou-se
lentamente para a porta. Tentando a sorte, avançou pelo corredor,
passou alguns soldados que jogavam uma malha de ferro contra o
chão. Só uns dias mais tarde o coronel perguntou a Lillias quem era
a velha.
IX
Cilicia regressara ao seu bordel ainda muito enervada, mas
dizendo que as mulheres nada tinham a temer e que decerto nunca
mais se repetiam as teimosias dos soldados com Lillias. “Por lá ficou
com o coronel”, contava. “E vossemecê, não?”, estranharam elas,
julgando que era a mãe da rapariga.
Cilicia respondeu com azedume, dizendo que não queria servir
homem. E aquela presença feminina, que já não tinha apelo sexual
mas manifestamente se alegrava por respirar um ambiente obsceno,
parecia abrir na casa outro aposento. Elas trocavam, realmente,
confidências, serviços de amizade, como pôr cataplasmas num peito
constipado, ou passar com os dedos pelo cabelo, no passatempo de
catar piolhos. Descansavam, à volta de Cilicia, do seu trabalho de
sorrir e de agradar. Mesmo a mais velha, cuja autoridade nunca fora
atendida de bom grado, delegou a gerência do bordel, reconhecendo
à outra competência. Lavava o rosto com pepino e leite, para
remoçar. Cilicia instruía-a com os recursos da maturidade.
A saudade do filho, que a movera até então, mudava-se em
receio de que viesse dar com ela ali.
Estaria, ao que parecia, no Nordeste, integrado nas tropas
inglesas que os reforços locais abominavam.
E Cilicia vivia aquela vida com a sofreguidão de um sonhador,
constantemente ameaçado de acordar.
As mulheres perguntavam por Lisboa que apenas uma delas
tinha visto. “Sempre, sempre a tremer”, dizia ela. Na verdade os
abalos repetiam-se, ano após ano. Ainda havia pouco tempo, em
Fevereiro de 61, todos se prepararam para morrer.
“Volto quando eu quiser. Volto mais tarde. Talvez vos leve a todas
para lá. Por agora, aproveite-se esta guerra”, dizia, a rir. E nunca
confessou que se achava outra vez arruinada pelos gastos do filho
no estrangeiro, como no ano de 55, quando a salvara o grande
terramoto.
X
Lillias soube que a felicidade não lhe pedia tudo, dessa vez.
Aquele idioma que ela pouco usara, mas longamente ouvira, refazia-
lhe o conforto mental, e conseguia pensar em si, tornar-se
astuciosa. Não se entregou ao coronel com a volúpia e a perdição
para que Jayme a arrastava. Não contou fielmente a sua vida. Uma
reserva, ou mesmo um certo orgulho em controlar a sua língua de
escocesa como nunca fizera ao português, levava-a a mentir. Falou
dos hóspedes da casa em Edimburgo, deu, por seu nome, Lillias
MacLean, conforme os documentos que trouxera e perdera na fuga
de Lisboa. O coronel mostrava-se interessado, até ao desespero, em
descobrir o rebento comum dessas famílias. Ainda que ele próprio,
com a sua opção política, se tivesse empenhado contra os clãs, todo
o seu sangue se apressava a querer saber, a desvendar os laços de
família. Nunca ouvira falar das Davidson e teve de renunciar à
tentativa.
Ficava claro que a rapariga era adoptada e o fascinado medo de
um incesto deteve, nessa noite, o coronel à entrada do quarto de
Lillias. Ouviu-a respirar profundamente. Era uma irmã que
regressava a casa. Aliás, Lillias, mal dissera algumas frases,
compreendeu que iria ali ficar. No momento seguinte, já Cilicia se
escapulira para o corredor, ela sorriu para o coronel e olhou em
volta, pondo a primeira ordem nos objectos.
Francis MacLean também não teve dúvidas quanto ao destino a
dar à rapariga. Foi como se as parentes lhe enviassem um novo
plaid e, ao enroscar-se nele, toda a Escócia lhe entrasse na caserna.
XI
A subida de Lillias a mulher do coronel Francis MacLean deixou
Almeida finalmente capaz de sossegar. A rapariga transtornara mais
homens do que a guerra, cuja razão de ser lhes parecera, por
aqueles dias, coisa inútil de julgar. Com Lillias, tudo aquilo que se
viera a ordenar na civilização, a longa caminhada para a clareza,
sofrera um solavanco. Uma mulher, a que davam contornos de
mistério, que cortara um cabelo precioso, que buscava, diziam, um
irmão, uma mulher em quem ninguém tocara e que, com a mãe,
fora alojar-se num bordel, nem necessitaria daqueles olhos para
criar uma espécie de vertigem aos pobres militares que, até então,
raciocinavam separadamente sobre filhas e irmãs e prostitutas.
Compreendeu-se, finalmente, tudo, quando veio a saber-se que
Lillias servia o coronel, seu conterrâneo. Os soldados sorriam,
enlevados, coçando a nuca como se afagassem um pensamento
oculto. Pois toda a gente conhecia a amplidão que a palavra “servir”
ganhava às vezes. Francis MacLean mandara-a aguardar, ou porque
lhe afeitasse os aposentos e esperasse a chegada de encomendas,
ou porque lhe quisesse pôr diante o destino de amantes rejeitadas.
Alojara-a no meio das mulheres, mas tão escondida ao gozo
masculino que, como já sabemos, os soldados não podiam tirá-la da
cabeça. Se surgisse uma frente de batalha, eles teriam lutado de
maneira que todos se fariam trucidar, à força de desgosto e
distracção.
A senhora Cilicia, que se havia apresentado como mãe, não
passaria de alguma alcoviteira de Lisboa a quem o coronel dera
recado para que lhe arranjasse uma escocesa. Fingiam vir em busca
de um tenente de que ninguém se recordava ali, comentavam,
bebendo, os militares. E puxavam a pálpebra inferior, dando a
compreender que viam bem, viam para lá das falsas circunstâncias.

***
Nessa guerra que não acontecia e em que os ingleses os faziam
comportar-se como os efeminados dos salões, vestindo-se a preceito
e chapinhando em água fria assim que despertavam, o
aborrecimento regressava. No entanto, eles olhavam para cima e
avistavam Lillias à varanda. Vestia-se de escuro, pelo respeito, mas
isso apenas dava mais fulgor aos seus pedaços de ouro a
descoberto. Estava, enfim, arrumada no seu sítio, e poderiam
mesmo pensar nela na solidão das suas camaratas, quando todas as
vozes se calavam, ou evocar a sua imagem no momento em que
descarregavam no bordel. Sempre o faziam com as mulheres dos
superiores.

A fama da escocesa de MacLean saiu de Almeida com os


estafetas, com os ilustres visitantes do exército, com, diga-se
também, o vento leste, cuja toada alguns sabiam decifrar.
***

Graças à pertinácia de MacLean, o forte andava dado como exemplo


da correcção das tropas, e até mesmo Lippe elogiara o coronel.
Ainda não sabiam da vergonha que o cerco dos de Espanha infligiria
e do murro atirado por MacLean e por Costa de Ataíde àquela mesa
onde se trataria a rendição. A fome não iria poupar nem os altos
comandantes do exército. Nem velas eles teriam para acenderem,
comidos sebos e pavios por ratazanas. O escocês conservaria o seu
vigor e encararia os pares, muito vermelho.

Olhá-los-ia com estranheza, como quem não possuísse os


mesmos manuais e não soubesse do que estavam a falar. Mas os
ingleses, que decidiriam, iriam dar, depois, a entender que o
heroísmo do coronel MacLean não tinha sido mais que bebedeira.

***

O facto de ele se achar acompanhado por uma bela e invulgar


mulher parecia aos portugueses um abuso, de esperar naqueles
povos da heresia. Soldados que voltavam às aldeias e aos
aquartelamentos regulares contavam, estarrecidos, episódios de
desrespeito ao Papa e às majestades. Lillias não se livrara
inteiramente dessas histórias sobre os seus poderes com que Cilicia
tanto se afligira. Em Almeida, antevia poucas mortes. Um ou outro
soldado, que sorria, parado, sob o sol, a contemplá-la, quando ela
aparecia na varanda, caía e estrebuchava no terreiro, obrigando-a a
olhá-lo com piedade.

Uma mulher da casa que saíra para o calor da noite perdeu


sangue, como o perdera Lady Macintosh, e Lillias, ao espreitar,
soltou um grito. Mas a mulher olhava para cima, de perfeita saúde
nessa hora, e a detestá-la, convencida de que o grito fora para as
suas pernas desnudadas.
XII
Lillias mudou-se com serenidade para a cama de MacLean. Ele
desposara, muito novo, uma inglesa que, amando-o embora, não
sentia que o estatuto da conjugabilidade lhe exigisse sufocar de
calor no fim do mundo. O coronel vencera o escrúpulo do nome. Era
impossível que uma MacLean das classes baixas de Edimburgo
tivesse um sangue próximo do seu, acastelado e com raiz nas Terras
Altas. Ele contava que havia em sua casa uma bandeira, esburacada
pelo tempo, que uma fada entregara a um do clã quando, por amor
dele, atravessara para a zona dos mortais.
“Nós, MacLean, descendemos desse encontro”, dizia. E olhava
para o brilho de Lillias, cujos cabelos pareciam emanar uma luz mais
doirada que a das velas. “Com certeza tu és minha parente”,
acrescentava, rindo. Tal ideia, passada ao campo do imaginário,
como ficção, já não o assustava.
A verdade é que nem se apercebera da grande nostalgia que o
tomava e convertia a natural bondade numa exasperação de
tiranete. O espírito dos celtas, a alegria que se torna sombria nos
escoceses e é tão difícil de compreender, entrou com Lillias nessa
sala baixa, nessa severa alcova de campanha. Ouviam-nos cantar,
falar gaélico, cujo vocabulário, por desuso, se achava na fundura da
memória e ia sendo puxado para cima, por tentativas que os faziam
gargalhar. E cada um deles, no momento de puro sexo, escutava os
grandes ventos das montanhas que derrubavam árvores, as águas
que se apertavam nos desfiladeiros e, por instantes, atroavam a
planície da Beira, onde existia apenas uma erva baixa e seca.

***

Lillias resplandecia. Não amava o general MacLean e era feliz. Certas


noites seguia atrás de Jayme, como se o sofrimento lhe faltasse, e
achava-o em casernas, entre os homens, passando a pedra de afiar
pela baioneta. Parecia fatigado. E, quando Lillias ocupava o seu
corpo, confortando-o, ele não fazia mais que adormecer. Estava,
decerto, preparado para a mudança que a senhora Cilicia desejara,
para tomar esposa e dote, e dedicar-se a bem gerir as casas da
família. Mas a mãe desistira de o buscar.

Lillias mandava sobras às mulheres que já não eram as que


conhecera. Somente a novidade conseguia demover a avareza dos
soldados e elas revezavam-se, fazendo o périplo dos fortes, dos
quartéis. A senhora Cilicia recebia-as, convencia-as da sua utilidade
no negócio. E as raparigas, depois de uma primeira exclamação
contra a parte dos lucros exigida, sentiam-se a ganhar, naquela paz.
A matrona cuidava do bordel com afecto e rigor. E as pupilas
confiavam-lhe todas as questões, gozando aquela entrega de
crianças.
XIII
O comandante dos britânicos para as Beiras, que realmente
substituía o velho Tyrawley em toda a linha, era nem mais nem
menos que o Lord Loudon que nós já conhecemos de Inverness.
Contava agora mais dezassete anos, quase sessenta. Esteve na
mesma guerra das Américas onde Flora MacDonald, a que fizera
fugir Charles, vestido de mulher, andou também, acompanhando o
seu marido. Quarto conde de Loudon, dos Campbells, este homem,
tão talhado para o combate, tinha horror natural à violência. Tentara
moderar os ingleses nessa carnificina de Culloden. Era um homem
sensível, dado às árvores, com especial paixão pelos salgueiros,
como, depois, os pré-rafaelitas.
Punha uma seriedade desusada na gestão dos assuntos militares.
Passava com frequência por Almeida, essa estrela de pedra onde,
dizia, só confiava no coronel MacLean. No entanto, nas últimas
semanas, andara a acudir a norte e a sul, fazendo frente a um rol de
deserções que enfraquecia gravemente as armas. Desesperava da
gente portuguesa, que um dia se atrevera aos oceanos e julgava
merecer descanso eterno. Podiam passar noites a rezar, pedindo a
Deus que os declarasse vencedores.
Porém, se tinham de ficar de sentinela, adormeciam encostados
às guaritas.
Lord Loudon nunca vira tropa assim. Na solidão da sua tenda de
bivaque, sofria ataques de melancolia que, num escocês, têm
pesadas consequências. Necessitava de se distrair e recebeu com
extraordinário interesse notícias que falavam de Lillias.
Sorria e comentava que um soldado, sempre que o condenassem
ao desterro, que o mesmo era dizer a Portugal, devia ter direito,
além do pré, ao pagamento de uma conterrânea. De modo que,
passando por Almeida dias antes de o cerco começar, sem que
pudesse adivinhar o seguimento da rendição, que o deixaria
furibundo e incapaz de falar com portugueses, foi almoçar com o
coronel MacLean e perguntou-lhe pela rapariga.
***

Naturalmente, Lillias nunca se mostrava aos visitantes. Viam-na, de


longe, passando por momentos numa porta e deixando, apesar do
fato escuro, uma inexplicável claridade naquele vão. Tudo o que se
contava a seu respeito partia dessas fluidas impressões e do que os
companheiros de viagem, de Abrantes a Almeida, tinham dito sobre
o campo de luz que a protegia. Porém, Lord Loudon estava curioso e
excepcionalmente tolerante consigo próprio. Os nervos arrasados
por aquela campanha tosca, em que ninguém queria mexer-se,
pediam-lhe indulgência. Nem sabemos se, no fundo da sua irritação,
o não movia um certo pensamento, uma ideia confusa de partilha,
de empréstimo galante. O facto é que pediu a presença de Lillias.

Ela apareceu, um tanto descorada, porque comia mal. Mas


quando viu todo aquele aparato de escoceses, com o gaiteiro e o
rabequista que seguiam o conde Loudon para toda a parte, ainda
que a lei inglesa os proibisse, ruborizou-se de contentamento.
Francis MacLean mandou-a aproximar-se. Ela fincava os pés no chão
para não dançar. O céu da Escócia, cheio de arco-íris, corria-lhe por
cima, em vez do tecto.
Lillias olhou para o coronel, como a mulher olha para o seu
homem. Nesse instante, ouvindo os músicos em afinação e a
pronúncia ardilosa das montanhas, amou-o quanto não o tinha
amado. E todo o ouro da sua inconsistência cintilava. Lord Loudon
interessou-se e perguntou-lhe como se chamava.
No estado de alegria em que se achava, Lillias disse o seu nome
verdadeiro.
XIV
Na bondade da sua natureza, fatalmente Lord Loudon guardaria
um terreno minado. Pouca coisa, porém alguma coisa poderia fazer
despoletar o seu rancor. O apelido Fraser, entre todas as palavras do
mundo, era para o escocês a mais amarga. Na sua bela história
militar, as poucas nódoas tinham esse nome.
***

Uns meses antes da batalha de Culloden, Lord Loudon conseguira


reunir mais de duzentos homens com o fim de tomar Fort Augustus,
que o clã Fraser, sob o comando do seu chefe, Lord Lovat, tinha
ocupado para os seguidores do belo Charles. Voltou, triunfante, para
Inverness.

O Lovat procurara Castle Downie para se esconder e reunir as


forças. Lord Loudon foi fazê-lo prisioneiro.
Levou-o para a cidade, anunciando que só o deixaria em
liberdade quando o clã Fraser depusesse as armas. Mas Lovat
escapou, durante a noite, aproveitando uma janela mal fechada. O
povo riu. Lord Loudon conheceu a agonia da humilhação. Pensou
que, quando achasse no caminho alguém de nome Fraser, o matava.
E achara o filho de Lovat em Portugal.
Simon Fraser veio como brigadeiro e acabou por ficar para além
da guerra. Pelos registos de 64, vemo-lo já tenente-general. O filho
André, que era tenente de engenharia, acompanhou-o na expedição.
Lord Loudon, como chefe dos britânicos, só com Lord Tyrawley
por superior, teve esses homens sob o seu comando.
Aquele encontro com o inimigo de anos atrás trouxe-lhe, com
certeza, mais angústia que todos os momentos das batalhas.
Antecipando-o, erguia-se do leito, passava as horas gelado e
transpirando.
Esperava que o seu ódio se curasse por meio de muito sono e de
mal-estar, como se cura às vezes uma febre. Mas o tempo,
encurtando, aprofundava aquela fenda que se abrira em si, a
separar o militar, que ele era então, do militar que havia sido, em
Inverness. As mãos, que lhe tremiam, assustavam-no, ameaçavam
rebelar-se e estrangular. Via o seu novo camarada Simon Fraser
executado por vontade dessas mãos que havia mais de dezassete
anos em vão buscavam os pescoços da família.
Lord Loudon encontrava-se na Guarda, e a Primavera de 62
ainda não dissipara os nevoeiros. Ele quase não estranhara aquele
clima. Mas, ao saber que o filho de Lord Lovat estava a caminho
para se pôr às suas ordens, desejava um calor que o convencesse de
que nada da Escócia havia ali, de que a memória não reviveria.
Simon Fraser ainda se encontrava num bom momento da
maturidade. Era um homem muito alto, de olhos negros, como se a
invasão do povo viquingue não tivesse atingido os seus castelos. Na
sala de armas, que parecia não ter sido sacudida do pó e da
preguiça, aqueles dois homens encaravam-se e não viam mais do
que a madrugada de Culloden, com o seu antes e o seu depois. Se
alguma vez o ódio se tornou uma coisa exterior, com existência
independente do sujeito que o sentia, foi nessa tarde que isso
aconteceu. Caiu entre eles com sonoridade, e ali se ergueu como
uma porta de aço que reflectia as cenas do horror. Sobre cada um
dos rostos, perpassavam os feitos, as derrotas do seu lado. E os
circunstantes, muito pálidos perante essa visita da carnificina cuja
presença quase se tocava, não mudavam sequer de posição. Mesmo
aqueles que nada conheciam do desastre escocês se persignavam.
Ninguém soube explicar exactamente, quebrado o encanto, a
física impressão de estar olhando para um duelo que apenas com a
morte acabaria. E, no entanto, o grande esforço de Lord Loudon, já
o sabemos, não visava Simon Fraser mas sim o seu desejo de o
matar.
Deu ele, enfim, um primeiro passo em frente, numa amabilidade
que foi única em toda a hierarquia militar. Estendeu a mão. Queria
tocar no outro para verificar o seu controle, para suspirar de alívio
no momento que o contacto fosse um cumprimento e não o impulso
de um estrangulador. Simon Fraser gostou daquele gesto e a parede
da História fragmentou-se.
XV
Um tal esforço de grandeza de alma deixara Lord Loudon tão
exausto que o seu humor sofreu um duro golpe. Estreava mal, esta
campanha portuguesa, e o facto é que deu poucas alegrias ao pobre
militar, que definhava.
Quis conhecer a concubina de MacLean para se animar com um
riso de mulher, com uma claridade de escocesa. Ela chegou e
respondeu-lhe: “Lillias Fraser.” O general suportaria tudo menos o
nome Fraser outra vez.
Assustou Lillias. Agarrara-a pelos braços e abanava-a como a um
mensageiro que trouxesse notícias incompletas. “Que Fraser, diz?
Por que te chamas Fraser?” “Por que se chama ela Fraser, coronel?”,
perguntava a MacLean, que emudecera. Só passado um momento
respondeu: — Disse chamar-se Lillias MacLean.
As mãos que Loudon tinha reprimido à chegada do filho de Lord
Lovat punham nos antebraços de Lillias o seu brutal aperto de
desforra. “De que Frasers vens tu? Dos de Inverness?”
Ela ouvia o seu grande desespero que lhe parecia um desespero
de louco. Olhou para o coronel, por entre as lágrimas. Porém,
MacLean estava cinzento e cego.
“Eras alguma coisa a Donald Fraser?”
— Era sobrinha dele — disse Lillias. Dera-lhe uma resposta
poderosa, pois Lord Loudon estremeceu e afastou-se. Lillias
esfregava a carne magoada. Viu a felicidade daqueles dias sem
apoio, a partir-se contra o chão.
Francis MacLean falou então também. “Por que mentiste? Para
que usaste do meu nome?”
Eram, porém, perguntas que não queriam uma resposta, que
acusavam já. A sua voz de criadita, de sem-terra, nem mesmo aos
gritos se faria ouvir.

***
Toda a família de Donald Fraser fora dada por extinta no final das
represálias aos vencidos de Culloden. Thomas morrera ainda na
batalha, assim como o seu filho e outros parentes. Se conseguiu
pensar sensatamente no reencontro com o filho de Lord Lovat, o
que fugira quando ele o tinha por refém em Inverness, dando
motivo de risada aos jacobitas, nunca a mente de Loudon aceitou
recordar Donald Fraser, nem em sonhos, nem no mais sanguinário
pesadelo. Se a fuga de Inverness o humilhara a ponto de andar,
quase vinte anos decorridos, a discutir com as suas próprias mãos, o
episódio de Moy Hall, se o não tomasse imediatamente inacessível,
tê-lo-Ía matado de rancor. Menos de meia dúzia de lacaios, sob a
perícia de Donald Fraser, o ferreiro de Lady Macintosh, tinham
levado ao pânico o exército de muitos homens que Lord Loudon
comandava. Muitos fugiram na manhã seguinte.

Naquela tarde, ainda não se adivinhava o cerco castelhano e a


rendição, na sala do coronel Francis MacLean, Lord Loudon, que
tentara agir por bem em toda a sua vida militar, viu a sobrinha de
Donald Fraser. Isso era mais do que ele podia suportar. A partir
desse instante, o raciocínio até então fiável de Lord Loudon derivou
para certas fantasias que só Francis MacLean acompanhou. Feridos,
um no orgulho de guerreiro, outro no de homem, ambos queriam
suspeitar. Que a rapariga Fraser aparecesse com nome falso numa
praça-forte para cair nas graças de um coronel soou-lhes como
trama jacobita, numa altura em que o “Bonnie Prince” Charles
engordava, traído, ao sol de Itália e a sua causa se arrumava junto
às lendas.
MacLean perguntava-se a si mesmo como admitira na intimidade,
no mesmo instante de um primeiro encontro, uma mulher de quem
nada sabia, a não ser que morava com as putas. E, pálido, bebendo
uma aguardente, dava então parte ao superior de certas coisas que
ouvira acerca dos poderes de Lillias.
Olhava, realmente, para nós como olhavam as bruxas escocesas.
Pensar que, de algum modo, fora vítima de uma conspiração
que, certamente, o seduzira aquela feiticeira para que a sua alma
endoidecesse, aliviou as culpas do coronel. Estava sob o efeito
daquele choque, influenciado pelas associações um tanto
ensandecidas de Lord Loudon cuja presença lhe exigia reacção.
Talvez se achasse um pouco embriagado. Mais tarde arrependeu-se
e procurou Lillias em toda a parte. Mas, nessa noite, ele mandou
guardá-la à vista e expulsou-a da praça de manhã.
Lord Loudon levantou-se antes do Sol e chegou-se à varanda
para a ver. Era tão cedo que ninguém passava e só um recoveiro,
com o seu burro, esperava que se abrissem os portões. Lillias
negociava, certamente, a companhia dele para o caminho. No frio da
madrugada, ela parecia feita de luz azul. E o militar encarregado de
a fazer sair olhava, sem coragem, para o chão.
“É pena que já não se queimem bruxas”, disse o lord, afectando
crueldade. “Ela dava um magnífico espectáculo.”
O coronel pensou que deveria secundar este dito. Mas não pôde.
Foi deitar-se na cama, sem falar, pretextando doença. Lord Loudon
partiu na mesma tarde, começando a ter raiva a Portugal. Dias
depois Almeida foi cercada. As mulheres de Cilicia, sem trabalho,
temendo a fome que acabou por vir, mandavam bilhetinhos aos
espanhóis.
XVI
Lillias encaminhou-se para Lisboa, sem mesmo haver falado com
Cilicia. Seguiu durante um tempo o almocreve e foi andando, muito
lentamente, detendo-se onde alguém dava com o ouro e com a
piedade dos seus olhos e a chamava para a sua mesa. A sua saia
negra acastanhara com o sol e a lama das estradas e ela parecia
arder devagarinho, feita de turfa, em lenta combustão. Teve,
durante grande parte do trajecto, a companhia de uns saltimbancos
a quem morrera a única mulher. Afeiçoou-se às três crianças que
trepavam, com as perninhas recurvadas, a um cepo e ali se
equilibravam tristemente, oscilando, tocando pandeireta. E o seu
vulto claro, que perturbava, como um novo fenómeno de circo,
conseguia arrancar, no peditório, mais broas e toucinho do que
nunca.
Sentiu dificuldade em separar-se daquela espécie de família onde
os três homens lhe pediam, à vez, consolo nocturno, de mão
estendida para cima, a mendigar. Mas deixou-os no dia em que um
barqueiro lhes ofereceu transporte, em troco de tocarem e
dançarem à chegada, para as festas da água-pé. Lillias preferia
continuar por terra, embora todos lhe dissessem, de lágrimas nos
olhos, que ela não chegaria até Lisboa.
O Inverno ia entrando lentamente, dissuadindo da
vagabundagem. Os caminhos tornavam-se desertos. Ela temia os
cães cuja saliva luzia na penumbra. Mas, umas vezes por fascínio,
outras por medo, os aldeões chamavam-na das portas, com um
aceno, para que se aquecesse. Eram mais generosos com o lume do
que com o alimento. Mas Lillias, sorrindo, agradecia a sua côdea e
descrevia as ruas de Lisboa àquela gente que jamais dera passada
para além da igreja onde os seus iam a enterrar.
A chuva, que não era gelada ainda, envolvia-lhe os passos num
conforto que os portugueses não sabiam entender. O seu sangue
mensal não tinha vindo e ela entendeu que o corpo a ajudava a
poupar esses dias de retiro. Mais perto já das grandes quintas que a
nobreza mantinha como casas de veraneio e economia agrícola, a
poucas léguas da cidade capital, Lillias via as pastagens amarelas, os
olivais sombrios. E, sabendo que estava prestes a chegar, detinha-
se, perdendo a energia que a movera. Porém, em todo o mundo,
havia apenas um ponto que podia distinguir. Era a casa de Jayme e
de Cilicia. Não pensou nela como sua casa, como um lar bem-
amado. Tinha mesmo uma certa agonia de voltar, mas avançava
nessa direcção, com a fatalidade de um insecto.
XVII
Muito antes de Lillias, já MacLean, na sua bela fúria de escocês
pela rendição de Almeida, regressara. Era olhado em Lisboa como
exemplo de insensatez guerreira e de heroísmo, sendo de toda a
gente conhecida a sua posição durante o cerco. Ele não dava por
isso. Envergonhava-se por se achar envolvido em honrarias quando
o conflito ainda prosseguia, ainda que de fantástica maneira, quase
sem mortes e até mesmo sem ataques. A falta de paciência para a
política, de que depois se havia de curar, levava-o nesse tempo a
virar costas e a beber excessivamente nos salões. Suspirava pelos
dias de campanha como um poeta pela sua amada. Lord Tyrawley,
sarcástico, sorria-lhe, com piedade das suas ilusões. “Que esperava
um MacLean em Portugal? Outros MacLean? Aqui só há bichos
domésticos”, dizia, como quem chamasse parvo.
O coronel, desgostoso, não sabia o que fazer do tempo. Era um
castrense, habituado a largas cavalgadas. Aquelas procissões atrás
do rei, que andava então tratando de matar os seus palafreneiros,
obrigando-os a montarem as zebras do jardim, tornavam-se-lhe tão
aborrecidas que tinha de ocupar o pensamento com outra coisa.
Recordava-se de Lillias.
A tarde em que a loucura de Lord Loudon lhe tinha entrado pela
casa dentro parecia-lhe uma inteira desrazão. No fundo, ele receava
Lillias, os seus olhos doirados como chamas, tudo o que ela parecia
refrear no invólucro do corpo delicado. Sob o aviso de Lord Loudon,
ele largara-a, num movimento de repugnância, tendo a revelação de
uma serpente disfarçada de flor nas suas mãos. O nome falso que
lhe dera, igual ao dele, reforçara a suspeita.
Mas agora MacLean via na pressa com que havia expulsado a
rapariga uma fraqueza de subordinado. Ela morrera certamente no
caminho, no meio das mais horríveis provações. Ao coronel pesava-
lhe essa morte cuja sentença começara nele. Na tentativa de se
consolar, mandou que a procurassem por Lisboa. Ofereceu dinheiro
por notícias, desesperando de encontrá-la viva.
***

Quando chegou à rua onde morava, Lillias viu como o esforço da


viagem se abatia de vez sobre o seu corpo. Olhou para a casa e não
chorou de alívio. Depois pensou que Jayme ali estaria, que tudo fora
o desencontro de uma noite, muito longo, impossível de entender,
como sempre acontece com os sonhos.

Bateu as palmas. Era ao fim da tarde, uma tarde tão curta que,
no frio, certas coisas nem tinham despertado. Toda a maldade do
Inverno a assaltou naqueles minutos de silêncio. Certamente, a
vizinhança espreitaria nos postigos, sem a reconhecer. Ela insistiu.
Ana, de dentro, perguntou-lhe o nome. Depois disse-lhe, baixo: “Vai-
te embora.”
Esperava, talvez, uma palavra, um ai que Lillias não pronunciou.
Então, abriu somente um fio de porta. O rosto, reduzido a uma
estreita nesga na escuridão, mostrava logo a palidez, toda a cautela
de uma velha rapariga. “Andam atrás de ti. Já cá vieram.”
— Quem? — perguntava Lillias.
— Não sei. Era por ordem de um coronel escocês. Ana acabou
por se sentir desafiada pelo silêncio mortal da visitante. Escancarou
a entrada para poder pôr a cabeça toda para fora, mas viu somente
a sombra de uma saia a faiscar, dobrando o fim da rua.
O sangue que faltara apareceu, encharcando-lhe as pernas de
repente. Ela encostou-se sob um lampião, junto de uns muros altos.
O crepúsculo enxotava as pessoas para casa e o que parecia um
canto tranquilo brevemente se encheu de transeuntes. Alguns
olharam para a rapariga como para uma produção das trevas, fosse
mulher perdida ou animal. Logo depois, uma mulher gritou, vendo-a
perder as forças que a sustinham e ajoelhar sobre o seu próprio
escorrimento.
XVIII
A mulher riu. Tinha um tão claro riso que Lillias julgou, por um
momento, achar-se rodeada de crianças. No entanto, apesar do seu
cabelo, ainda muito escuro, e do seu rosto, liso e moreno, onde
brilhava a leve sugestão de emulsões orientais, vinha dela uma
esplêndida velhice. Atravessara o tempo e convencera-o a separar-se
dela para sempre. Olhava para Lillias com firmeza, como quem dá o
último retoque numa obra que honrou a expectativa.
O quarto era pequeno e abafado, de tectos muito baixos, em
abóbada. A luz esvoaçava entre as paredes, desenhando arabescos
com as asas. Lillias soergueu-se do enxergão, levantada pelos olhos
da mulher. Alguém tirara a sua roupa e lhe vestira uma camisa
esfiapada das lavagens.
A mulher disse: — Comes e descansas, porque essa fuga não
acaba aqui. E levantou-se. Usava trapos grossos e sobrepostos. Isso
não lhe dava o ar de uma mendiga. Olhava o lume. Lillias viu o sinal
manchar-lhe a face, que era a face direita, a do poder.
— Como te chamas?
— Lillias Fraser, madam.
A mulher acercou-se novamente. A sua voz cantada enchia o ar
como se ressoasse numa igreja.
“Perdeste muito sangue. Amanhã vejo se a criança está viva na
barriga.”
Lillias extinguia dentro de si mesma a vigilância de que precisara
para fazer o caminho até ali. E aquela fraqueza que a tomava, em
vez de a assustar, trazia o embalo da sua infância ao colo de
Margaret. “Que nome tem vossemecê?”
— Blimunda — disse a mulher. — Blimunda Sete-Luas.
— É um bonito nome — disse Lillias. Quis pegar-lhe na mão,
porém Blimunda já não estava a seu lado.
O próprio fogo se tornava invisível, devagar.
***
Lillias sentiu os olhos de Blimunda e acordou. Ela sorria-lhe outra
vez. “A criança está bem. De hoje em diante, eu tomo conta de
vocês as duas.”

— Que criança, senhora? — disse Lillias.


— A que tu, Lillias Fraser, vais parir.
— Como pode sabê-lo?
— Vejo dentro do corpo das pessoas quando estou em jejum —
explicou, Blimunda.
— Eu vejo a morte — disse Lillias.
Blimunda Sete-Luas inclinou-se e tocou-lhe com os dedos na
camisa. “Então sou mais feliz do que tu és. De hoje em diante só
verei este menino.”
Durante a refeição de pão e leite, Lillias contou-lhe toda a sua
história. Contou-lha como apenas a contara a Jayme, não deixando
de reserva nada com que pudesse defender-se. Blimunda via entrar
a claridade, de um azul forte de manhã de Inverno, e parecia temer
os seus efeitos. Mas era só a sua natureza que se agitava. Tinha que
fazer.
***

Lillias sofria muito com as ausências da sua protectora. Receava tê-


la inventado, com o seu delírio, e não saber magia que bastasse
para a convocar de novo ao pé de si. Blimunda nunca regressava à
mesma hora, mas Lillias veio a perceber que ela tentava varrer as
pistas que deixara à rapariga. Por fim, disse: “O coronel já cá não
está. Mas o poder acha-se em toda a parte.”

Estudava, nuns relances de frieza, a rcuperação da rapariga.


Antes que a gravidez a impedisse, queria levá-la para longe de
Lisboa.
— Para longe de tudo. Essa criança há-de nascer na terra-de-
ninguém, num espaço entre fronteiras que não seja nem Portugal
nem Espanha – ia dizendo.
— Nem Portugal nem Espanha — repetia, como se a encantasse,
Lillias. E perguntava o nome do lugar.
Blimunda não sabia responder.
***

Esperaram que a Janeiro sucedessem uns dias muito quentes que a


Lisboa pareceram mau agoiro.

Blimunda tinha os seus conhecimentos, gente envolvida por


algum mistério, que forneciam cartas para a viagem. Lillias cruzou o
Tejo para o Sul, exactamente no sentido inverso do que tomara
havia tantos anos. As águas iam turbulentas e enjoou. Mas, junto de
Blimunda, o rio parecia-lhe um animal nervoso e brincalhão. Em
Setúbal dormiram no palácio que pertencera ao duque de Aveiro e
que, depois da horrenda execução, feito em ruínas, abrigava os
viajantes.
Certos momentos, Lillias duvidava do sonho de Blimunda. De que
iriam viver? Onde morar? Quem as consentiria na fronteira? Depois,
via-a tão firme, tão serena, deixando um rasto de afeição em toda a
gente com quem o seu sorriso se encontrara, que a sentia capaz de
abrir um espaço fora dos reinos, sem governação. Blimunda
respirava com afinco, pelos gelados campos do Alentejo, e uma
espécie de raiva a conduzia. Puxava, como a velha na montanha no
dia da batalha de Culloden, pelo pulso arroxeado de Lillias.
Naquele Inverno português, a rapariga entrelaçava novamente os
dedos à cintura de Lady Macintosh e, sob a chuva, ia cheirando os
seus cabelos.
XIX
O duque de Cumberland, mandou, mais tarde, o embaixador
inglês pedir a mão dessa princesa do Brasil, filha mais velha de José
I, que iria herdar a coroa em Portugal.
Foi o embaixador solenemente convidado a um baile, onde a
princesa publicaria a sua decisão. Era uma jovem bem
desengraçada, a futura rainha, já sujeita a um brutal fervor religioso
que a tinha presa às mãos dos confessores. Chegada à grande sala,
olhou em volta com os seus olhos carrancudos. Os presentes
emudeceram, aguardando o passo que ela daria para o embaixador
e que a faria prometida ao duque. Mas Maria Francisca virou costas
e enlaçou a irmã para dançar. Veio a casar com o tio, assustadiço e
com tendência para a narcolepsia.
Foi por um triz que o Carniceiro da Escócia não se sentou no
trono português.

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