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Ficha Técnica

Título original: Swimming Home


Título: Nadar Para Casa
Autor: Deborah Levy
Introdução de Tom McCarthy
Traduzido por Ana Saldanha
Edição: Carmen Serrano
Capa: Rui Garrido
Imagem da capa: Shutterstock
ISBN: 9789722051644
OFICINA DO LIVRO
uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2011, Deborah Levy
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Para a Sadie e a Leila, tão queridas, sempre
INTRODUÇÃO

Entrar no Redemoinho:
comércio, política, casamento e lar

Se, jovem aspirante a escritor da primeira metade da década de 1990,


levantasse a cabeça e olhasse à volta para a paisagem literária britânica,
uma figura se destacaria de todas as outras: Deborah Levy. Liam-se duas
páginas da sua obra e tornava-se imediatamente evidente que ela era uma
escritora tão à vontade nas áreas da arte visual e conceptual, da filosofia e
da performance, como na área da palavra impressa. Tinha lido os seus
Lacan e Deleuze, os seus Barthes, Marguerite Duras, Gertrude Stein e
Ballard, já para não mencionar Kafka e Robbe-Grillet – e estava a pôr todas
estas personagens em ação de formas novas e excitantes. Tal como as
coreografias emocionais e cerebrais de Pina Bausch, a sua ficção parecia
menos preocupada com as histórias que narrava do que com a interzona
(para pedir de empréstimo o termo de Burroughs) que estabelecia, na qual
circulavam o desejo e a especulação, a fantasia e os símbolos. Até mesmo
objetos comuns adquiriam dimensões fantasmagóricas e intensas, como
ready-mades de Duchamp ou os objetos nos sonhos para Freud.
Por isso, a editora And Other Stories não poderia ter pescado um peixe
maior para iniciar o seu primeiro ano de publicação. Se a localização e o
enredo de Nadar Para Casa são pedidos de empréstimo, quase
ironicamente, ao romance convencional da classe média em férias, todas as
semelhanças ficam por aí. O verdadeiro drama do livro desenrola-se através
de ratinhos azuis de açúcar que saltitam de barracas de doçarias para
pesadelos; ou de pedras com buracos que se transformam em telescópios de
voyeurs (ou de míopes), de seguida em pesos letais e por fim,
simplesmente, em buracos. O que mantém coesa esta narrativa
caleidoscópica, mesmo enquanto despedaça as suas personagens, é – ao
típico estilo freudiano – o desejo: o desejo e o seu inseparável reverso, o
impulso da morte. Este aparece encarnado – de forma nua, quase
primordial, flutuando na água para a qual voltará – na figura de Kitty Finch,
meio Sylvia Plath trágica e obcecada pelo papá meio Edie Sedgwick pós-
colapso nervoso em Ciao! Manhattan: instável, implodindo à volta de uma
piscina. Atraídos para ela, e para o vórtice ou redemoinho de que ela é
sereia ao seu lado, estão os mundos do comércio, da política, do casamento
e do lar, e a própria literatura, representados por dois comerciantes de
objetos exóticos, uma correspondente de guerra e um poeta célebre, todos
constrangidamente emparelhados. E, no outro extremo do espectro, pela
adolescente que se revelará a verdadeira protagonista do romance, herdeira
dos seus traumas históricos.

Tom McCarthy
Junho de 2011
Todas as manhãs em todas as famílias, homens, mulheres e
crianças, se não tiverem nada melhor para fazer, contam uns aos
outros os seus sonhos. Estamos todos à mercê do sonho e
devemos a nós próprios submeter o seu poder ao estado de
vigília.

– La Révolution surréaliste, Nº 1, dezembro de 1924


ALPES-MARITIMES,
FRANÇA
Julho de 1994

Uma Estrada de Montanha. Meia-noite.

Quando Kitty Finch tirou a mão do volante e lhe disse que o amava, ele já
não sabia se ela estava a ameaçá-lo ou a ter uma conversa com ele. O
vestido de seda escorregava-lhe dos ombros quando ela se debruçava sobre
o volante. Um coelho atravessou a estrada a correr e o carro guinou para um
lado e para o outro. Ele ouviu-se dizer: – Porque é que não arranjas uma
mochila e não vais ver os campos de papoilas no Paquistão como disseste
que querias?
– Sim – disse ela.
Ele sentia o cheiro a gasolina. As mãos dela desciam em voo picado sobre
o volante como as gaivotas que eles tinham contado do quarto no Hotel
Negresco duas horas antes.
Ela pediu-lhe que abrisse a janela para poder ouvir os insetos a chamarem
uns pelos outros na floresta. Ele baixou o vidro e pediu-lhe, delicadamente,
que mantivesse os olhos na estrada.
– Sim – disse ela outra vez, com os olhos agora de novo na estrada. E
depois disse-lhe que as noites eram sempre «macias» na Riviera Francesa.
Os dias eram duros e cheiravam a dinheiro.
Ele inclinou a cabeça para fora da janela e sentiu o ar frio da montanha a
picar-lhe os lábios. Seres humanos primitivos tinham em tempos vivido
nesta floresta que era agora uma estrada. Sabiam que o passado vivia nas
pedras e nas árvores e sabiam que o desejo os tornava desastrados, loucos,
misteriosos, baralhados.
Ter estado em tal intimidade com Kitty Finch tinha sido um prazer, um
sofrimento, um choque, uma experiência, mas, acima de tudo, tinha sido um
erro. Ele pediu-lhe de novo que por favor, por favor, por favor o conduzisse
em segurança para casa, para junto da mulher e da filha.
– Sim – disse ela. – Só vale a pena viver a vida porque temos a esperança
de que ela melhore e de chegarmos todos a casa em segurança.
SÁBADO

Vida selvagem

A piscina na casa de férias era mais como um lago do que como as


lânguidas piscinas azuis nas brochuras das agências de viagens. Um lago
em forma de retângulo, escavado na pedra por uma família italiana de
pedreiros que viviam em Antibes. O corpo estava a flutuar perto da parte
mais funda, onde uma fila de pinheiros mantinha a água fresca à sua
sombra.
– É um urso? – Joe Jacobs acenou com a mão vagamente na direção da
água. Sentia o sol a queimar através da camisa que o seu alfaiate hindu lhe
tinha feito de um rolo de seda natural. Tinha as costas em fogo. Até as
estradas estavam a derreter na vaga de calor de julho.
A sua filha, Nina Jacobs, de catorze anos, de pé à beira da piscina com o
seu novo biquíni estampado com cerejas, deitou um olhar ansioso à mãe.
Isabel Jacobs estava a desapertar o fecho dos jeans como se estivesse a
preparar-se para mergulhar na piscina. Ao mesmo tempo, viu Laura e
Mitchell, os dois amigos da família que partilhavam a casa com eles durante
o verão, pousarem as canecas de chá e encaminharem-se para os degraus de
pedra que davam para a parte menos funda da piscina. Laura, uma gigante
delgada com um metro e noventa, sacudiu as sandálias dos pés e entrou na
água até aos joelhos. Um colchão de borracha amarela em mau estado batia
contra os lados musgosos, dispersando as abelhas que se encontravam em
vários estádios de agonia na água.
– O que é que achas, Isabel?
De onde se encontrava, Nina via que era uma mulher a nadar nua debaixo
de água. Estava de barriga para baixo, com ambos os braços esticados como
uma estrela do mar e o cabelo comprido a flutuar como algas ao lado do
corpo.
– O Jozef acha que ela é um urso – respondeu Isabel Jacobs na sua voz
impassível de correspondente de guerra.
– Se é um urso, vou ter de disparar sobre ele. – Mitchell tinha
recentemente comprado duas pistolas persas antigas na feira da ladra em
Nice e andava a pensar em disparar sobre coisas.

Ontem tinham todos estado a falar de um artigo de jornal sobre um urso


de noventa e quatro quilos que descera das montanhas em Los Angeles e
fora dar um mergulho na piscina de um ator em Hollywood. O urso estava
com o cio, segundo os Serviços de Animais de Los Angeles. O ator tinha
chamado as autoridades. Dispararam sobre o urso com uma arma de
tranquilizantes e depois libertaram-no nas montanhas vizinhas. Joe Jacobs
tinha-se perguntado em voz alta como seria estar sob o efeito de um
tranquilizante e depois ter de ir aos tropeções para casa. Teria chegado a
casa? Teria ficado estonteado e esquecido e começado a alucinar? Talvez o
barbitúrico metido no dardo, também conhecido como «captura química»,
tivesse posto as pernas do urso a tremer e sacudir-se? Será que o
tranquilizante tinha ajudado o urso a lidar com os acontecimentos
stressantes da vida, acalmando-lhe a mente agitada, de tal maneira que ele
agora suplicava às autoridades que lhe atirassem presas de pequeno porte
injetadas com xaropes de barbitúricos? Joe só tinha parado com estas
improvisações quando Mitchell lhe calcou o dedo do pé. Na opinião de
Mitchell era muito, muito difícil conseguir que o poeta imbecil conhecido
pelos seus leitores como JHJ (Joe para todas as outras pessoas, menos para
a mulher) fechasse a porra da matraca.
Nina viu a mãe mergulhar na água verde e turva e nadar na direção da
mulher. Salvar a vida de corpos inchados a flutuarem em rios era,
provavelmente, o tipo de coisa que a mãe dela andava sempre a fazer.
Aparentemente, as audiências subiam sempre quando ela aparecia nas
notícias. A mãe dela desaparecia para a Irlanda do Norte e para o Líbano e
o Kuwait e depois regressava como se só tivesse dado um salto à esquina
para comprar leite. A mão de Isabel Jacobs estava prestes a agarrar o
tornozelo da pessoa que estava a flutuar na piscina. Um súbito chape
violento fez Nina correr para o pai, que lhe agarrou o ombro queimado pelo
sol fazendo-a soltar um grito. Quando surgiu da água uma cabeça, com a
boca aberta e a arquejar, durante um segundo de pânico ela pensou que
estava a rugir como um urso.

Uma mulher com cabelo pela cintura a gotejar trepou para fora da piscina
e correu para uma das espreguiçadeiras de plástico. Parecia ter vinte e
poucos anos, mas era difícil dizer ao certo, porque andava a saltar
freneticamente de uma cadeira para a outra, à procura do vestido. Ele tinha
caído nas lajes, mas ninguém a ajudou, porque estavam todos a olhar
fixamente para o seu corpo nu. Nina sentiu-se estonteada no calor
abrasador. O perfume acre e doce da alfazema evolava-se na sua direção,
sufocando-a, com o som da respiração ofegante da mulher a misturar-se
com o zumbido das abelhas nas flores que murchavam. Pensou que talvez
estivesse com uma insolação, porque se sentia como se fosse desmaiar.
Vagamente, viu que os seios da mulher eram surpreendentemente cheios e
redondos para alguém tão magro. As suas longas coxas estavam encaixadas
nas articulações salientes da anca como as pernas das bonecas que Nina
costumava dobrar e virar em criança. A única coisa que parecia real na
mulher era o triângulo de pelos púbicos dourados a brilhar ao sol. Vê-lo fez
Nina cruzar os braços sobre o peito e encolher as costas para tentar fazer o
seu próprio corpo desaparecer.
– O seu vestido está ali. – Joe Jacobs apontou para o monte de algodão
azul enrodilhado debaixo da espreguiçadeira. Tinham todos estado a olhá-la
por um período de tempo embaraçosamente longo. A mulher agarrou no
vestido fino e com destreza enfiou-o pela cabeça.
– Obrigada. Eu sou a Kitty Finch, já agora.
O que ela disse de facto foi Eu sou a Que Que Que e continuou a gaguejar
até conseguir dizer Kitty Finch. Toda a gente esperava ansiosa que ela
acabasse de dizer quem era.
Nina deu-se conta de que a mãe ainda estava na piscina. Quando ela subiu
os degraus de pedra, o seu fato de banho molhado vinha coberto de agulhas
de pinheiro prateadas.
– Eu sou a Isabel. O meu marido pensou que você era um urso.
Joe Jacobs torceu os lábios, esforçando-se por não rir.
– É claro que não pensei que ela era um urso.
Os olhos de Kitty Finch eram cinzentos como os vidros esfumados do
carro de aluguer de Mitchell, um Mercedes, que estava estacionado no
cascalho na frente da casa.
– Espero que não se importem de que eu tenha usado a piscina. Acabei de
chegar e está taanto calor. Houve um engano com as datas do aluguer.
– Que tipo de engano? – Laura olhou irritada para a jovem, como se
tivessem acabado de lhe passar uma multa de estacionamento.
– Bem, eu julguei que ia ficar aqui a partir deste sábado durante quinze
dias. Mas o zelador…
– Se é que se pode chamar zelador a um ganzado preguiçoso como o
Jurgen. – Só mencionar o nome de Jurgen fazia Mitchell transpirar de
aversão.
– É. O Jurgen diz que me enganei nas datas e que agora vou perder o
depósito.
Jurgen era um hippy alemão que nunca tinha a certeza sobre nada.
Descrevia-se como «um homem da Natureza» e andava sempre com o nariz
enfiado no Siddhartha de Hermann Hesse.
Mitchell acenou-lhe com o dedo. – Há coisa piores do que perder o
depósito. Nós estávamos prestes a dar-lhe um sedativo e a levá-la para as
montanhas.
Kitty Finch levantou o pé esquerdo e tirou lentamente um espinho. Os
seus olhos cinzentos procuraram Nina, que ainda estava escondida por trás
do pai. E depois sorriu.
– Gosto do teu biquíni. – Tinha os dentes da frente tortos, encavalitados
uns nos outros, e o seu cabelo estava a secar em caracóis da cor de cobre. –
Como é que te chamas?
– Nina.
– Achas que eu pareço um urso, Nina? – Fechou a mão direita como se
fosse uma pata e ergueu-a para o céu azul sem nuvens. Tinha as unhas
pintadas de verde-escuro.
Nina abanou a cabeça e depois engasgou-se com a saliva e começou a
tossir. Toda a gente se sentou. Mitchell na cadeira azul feia, porque era o
mais gordo e aquela era a maior, Laura na cadeira de verga cor-de-rosa,
Isabel e Joe nas duas espreguiçadeiras de plástico branco. Nina empoleirou-
se na borda da cadeira do pai e pôs-se a mexer nos cinco anéis de prata para
os dedos dos pés que Jurgen lhe tinha dado nessa manhã. Tinham todos um
lugar à sombra menos Kitty Finch, que estava desajeitadamente acocorada
nas lajes quentes.
– Não tem onde se sentar. Eu arranjo-lhe uma cadeira. – Isabel espremeu
as pontas do seu cabelo preto molhado. Gotas de água brilhavam-lhe nos
ombros e depois deslizavam-lhe pelo braço como uma cobra.
Kitty abanou a cabeça e corou. – Oh, não se incomode. Pe pe por favor.
Só estou à espera de que o Jurgen volte com o nome de um hotel e vou-me
embora.
– É claro que tem de se sentar.
Laura, perplexa e pouco à vontade, ficou a ver Isabel arrastar uma pesada
cadeira de madeira coberta de pó e de teias de aranha na direção da piscina.
Havia coisas no seu caminho. Um balde vermelho. Um vaso partido. Dois
guarda-sóis de lona enfiados em blocos de cimento. Ninguém foi ajudá-la,
porque não tinham bem a certeza do que é que ela estava a fazer. Isabel, que
tinha arranjado maneira de prender o cabelo molhado com um travessão em
forma de lírio, estava de facto a pôr a cadeira de madeira entre a sua cadeira
e a do marido.
Kitty Finch deitou um olhar nervoso a Isabel e depois a Joe, como se não
soubesse bem se estava a ser-lhe oferecida a cadeira ou se estava a ser
obrigada a sentar-se nela. Limpou as teias de aranha com a saia do vestido
durante demasiado tempo e por fim sentou-se. Laura juntou as mãos no
regaço como se estivesse a preparar-se para entrevistar uma candidata a um
emprego.
– Já cá tinha estado?
– Sim. Já cá venho há anos.
– Trabalha? – Mitchell cuspiu o caroço de uma azeitona para uma taça.
– De certa forma. Sou botânica.
Joe afagou o pequeno corte no queixo que tinha feito a barbear-se e
sorriu-lhe. – Há algumas palavras peculiares bastante engraçadas na sua
profissão.
A sua voz era surpreendentemente delicada, como se intuísse que Kitty
Finch se sentia ofendida com a maneira como Laura e Mitchell estavam a
interrogá-la.
– Pois. O Joe gosta de palavras pe-cu-li-a-res porque é poeta. – Mitchell
disse «peculiar» como se estivesse a imitar um aristocrata bêbedo.
Joe recostou-se na cadeira e fechou os olhos. – Ignore-o, Kitty. – Dava a
ideia de ter sido magoado de alguma forma inexplicável. – Tudo é pe-cu-li-
a-r para o Mitchell. Estranhamente, isso fá-lo sentir-se superior.
Mitchell enfiou cinco azeitonas na boca umas atrás das outras e depois
cuspiu os caroços na direção de Joe como se fossem pequenas balas de uma
das suas armas menores.
– Então, entretanto – Joe inclinou-se para a frente –, talvez pudesse dizer-
nos o que sabe sobre cotilédones.
– Certo. – Kitty piscou o olho direito a Nina quando disse «certo». – Os
cotilédones são as primeiras folhas de uma planta ao germinar. – A sua
gaguez parecia ter desaparecido.
– Correto. E agora a minha palavra favorita… como descreveria uma
folha?
– Kitty – disse Laura asperamente –, há muitos hotéis, por isso é melhor
ir procurar um.
Quando Jurgen finalmente entrou pelo portão, com as rastas grisalhas
presas num rabo de cavalo, disse-lhes que todos os hotéis da aldeia estavam
cheios até quinta-feira.
– Então, vai ter de ficar cá até quinta-feira. – Isabel disse isto vagamente,
como se não acreditasse bem no que estava a dizer. – Acho que há um
quarto vago nas traseiras da casa.
Kitty franziu a testa e recostou-se na sua nova cadeira.
– Bem, pois. – Obrigada. Ninguém se importa? Por favor, digam se se
importam.

Parecia a Nina que ela estava a pedir-lhes que se importassem. Kitty


Finch estava a corar e a encolher os dedos dos pés ao mesmo tempo. Nina
sentia que o coração lhe batia apressado. Tinha-se posto histérico, aos
baques no peito. Deitou um olhar a Laura e viu que ela estava a torcer as
mãos. Laura estava prestes a dizer que se importava. Ela e Mitchell tinham
fechado a loja em Euston durante todo o verão, sabendo que as montras que
já tinham sido partidas por ladrões e toxicodependentes pelo menos três
vezes nesse ano estariam novamente partidas quando acabassem as férias.
Tinham vindo para os Alpes-Maritimes para escapar à futilidade de
consertar vidros partidos. Laura viu-se sem saber o que dizer. A jovem era
uma montra à espera que lhe entrassem por ali dentro. Uma montra que ela
adivinhava estar já um pouco rachada, de qualquer maneira. Não podia ter a
certeza, mas parecia-lhe que Joe Jacobs já tinha posto o pé na fenda e que a
sua mulher o tinha ajudado. Pigarreou e preparou-se para dizer o que lhe ia
na cabeça, mas o que lhe ia na cabeça era tão indizível que o zelador, o
hippy, falou primeiro.
– Então, Kitty Ket, levo-te as valises para o quarto?
Toda a gente olhou para onde Jurgen estava a apontar com o seu dedo
manchado de nicotina. Estavam dois sacos de lona azul à direita das portas
envidraçadas.
– Obrigada, Jurgen. – Kitty despachou-o como se ele fosse o seu criado
pessoal.
Ele baixou-se e pegou nos sacos.
– O que são as ervas? – Ele ergueu um emaranhado de plantas a florir que
tinha sido enfiado no segundo saco azul.
– Oh, encontrei-as no adro da igreja ao lado do café do Claude.
Jurgen parecia impressionado.
– Vais ter de lhes chamar a planta Kitty Ket. É um facto histórico. Os
descobridores de plantas muitas vezes davam o seu nome às plantas que
encontravam.
– Pois. – Ela desviou o olhar e fixou-o nos olhos escuros de Joe Jacobs
como se a dizer: – O nome especial por que o Jurgen me trata é Kitty Ket.

Isabel dirigiu-se para a beira da piscina e mergulhou. Ao nadar debaixo


de água, com os braços esticados para a frente, viu o seu relógio no fundo
da piscina. Deu uma cambalhota e apanhou-o dos ladrilhos verdes. Quando
veio à tona, viu a velha senhora inglesa que vivia na casa ao lado a acenar
da sua varanda. Retribuiu-lhe o aceno, mas depois apercebeu-se de que
Madeleine Sheridan estava a acenar a Mitchell, que estava a chamá-la pelo
nome.
Interpretar um Sorriso

– Madel-eeene!
Era o homem gordo que gostava de armas a chamá-la. Madeleine
Sheridan ergueu o braço artrítico e acenou com dois dedos moles da sua
cadeira de verga. O corpo já se lhe tinha transformado numa soma de partes
com defeito. Na escola de Medicina tinha aprendido que havia vinte e sete
ossos em cada mão, oito só no pulso, cinco na palma. Os seus dedos
estavam cheios de terminações nervosas, mas agora até mexer dois dedos
era um esforço.
Queria recordar a Jurgen, que via a levar os sacos de Kitty Finch para
dentro de casa, que fazia anos daí a seis dias, mas sentia relutância em
parecer estar a implorar a sua companhia em frente dos turistas ingleses.
Talvez ela já estivesse morta e tivesse estado a assistir ao drama da chegada
da jovem do Outro Lado? Há quatro meses, em março, quando Kitty Finch
estava sozinha na casa (alegadamente, para estudar plantas da montanha),
tinha informado Madeleine Sheridan de que uma brisa ajudaria os seus
tomateiros a ficarem com galhos mais fortes e oferecera-se para lhos
desbastar. Foi o que fez, mas sempre a murmurar sozinha, pe pe pe, que que
que, consoantes que produziam sons duros nos seus lábios. Madeleine
Sheridan, que acreditava que os seres humanos tinham de sofrer provações
reais antes de terem o direito de perder o juízo, disse-lhe numa voz dura
como o aço para parar de fazer aquele ruído. Para parar. Para parar
imediatamente. Hoje era sábado e o ruído tinha voltado para França para a
atormentar. Até lhe tinham oferecido um quarto na casa de férias.

– Madel-eeene, vou fazer bifes hoje à noite. E se viesse jantar connosco?


Ela conseguia entrever a cúpula rósea da cabeça careca de Mitchell,
olhando para ele com os olhos semicerrados ao sol. Madeleine Sheridan,
que gostava bastante de bife e que muitas vezes se sentia sozinha ao serão,
perguntou-se se teria forças suficientes para recusar o convite de Mitchell.
Achava que sim. Quando os casais oferecem abrigo ou uma refeição a
pessoas perdidas ou solitárias, não as incluem realmente. Brincam com elas.
Atuam para elas. E quando já lhes chega, dizem à convidada encalhada, das
mais variadas formas astuciosas, que é altura de ela se ir embora. Os casais
estavam sempre desejosos de retomar a missão de tentar destruir os seus
companheiros de longa data enquanto faziam de conta que estavam a cuidar
dos seus interesses. Uma convidada sozinha era uma mera pausa nesta
missão.

– Madel-eeene.
Mitchell parecia mais ansioso do que o habitual. Ontem tinha-lhe dito que
avistara o Keith Richards a beber uma Pepsi em Villefranche-sur-Mer e que
queria imenso ir pedir-lhe um autógrafo. Acabou por não o fazer, porque,
nas suas próprias palavras: – O poeta imbecil estava comigo e ameaçou dar-
me uma cabeçada por eu ser normal.
Mitchell, com os seus braços flácidos e da cor de camarão, divertia-a
quando observava sombriamente que Joe Jacobs não era o tipo de poeta que
se punha a olhar para a lua e não tinha os músculos tonificados.
Provavelmente, seria capaz de levantar um guarda-fatos com os dentes.
Especialmente se tivesse uma mulher bonita lá dentro. Quando os turistas
ingleses chegaram há duas semanas, Joe Jacobs (JHJ nos seus livros, mas
ela nunca tinha ouvido falar dele) foi-lhe bater à porta a pedir sal
emprestado. Estava com um fato de inverno no dia mais quente do ano e
quando ela chamou a atenção para esse facto ele disse-lhe que eram os anos
da irmã e que ele usava sempre fato em sinal de respeito.
Isto intrigou-a, porque o seu dia de anos andava a ocupar-lhe bastante os
pensamentos. O fato dele parecia mais apropriado para um funeral, mas ele
era tão encantador e atencioso que ela lhe perguntou se ele queria provar a
sopa de amêndoas à andaluza que ela tinha feito. Quando ele murmurou: –
É muito simpático da sua parte, minha querida – ela deitou uma porção
generosa numa das suas taças preferidas e convidou-o a tomar a sopa na sua
varanda. Aconteceu algo terrível. Ele bebeu um gole e sentiu alguma coisa
a emaranhar-se-lhe nos dentes, descobrindo depois que era cabelo dela.
Uma pequena bola de cabelo grisalho tinha de alguma forma aparecido na
taça. Ele ficou perturbado a um ponto incompreensível para Madeleine,
embora ela pedisse desculpa, sem fazer ideia de como é que aquilo fora
parar ali. Ele tinha as mãos a tremer e afastou a taça com tal força que a
sopa se derramou por todo o seu ridículo fato às riscas, com o casaco
forrado com seda cor-de-rosa, à janota. Ela achou que um poeta poderia ter-
se saído melhor. Poderia ter dito: – A sua sopa foi como beber uma nuvem.

– Madel-eeene.
Mitchell nem sequer sabia dizer o nome dela em condições. Talvez
porque ele próprio tivesse um nome tão ridículo. A perspetiva de ter de
viver com Kitty Finch pusera-o obviamente em pânico, o que não a
surpreendia. Semicerrou os olhos, apreciando a visão dos seus feios pés
descalços. Era tão bom não usar meias e sapatos! Mesmo depois de quinze
anos a viver em França, desterrada como estava do seu país de origem e da
sua primeira língua, era pelo prazer dos pés nus que se sentia mais grata.
Podia passar sem uma fatia do suculento bife de Mitchell. E seria
insanamente corajoso da sua parte arriscar um serão na companhia de Kitty
Finch, que estava a fazer de conta que não a tinha visto. Neste preciso
momento, estava a apanhar pinhas da piscina com Nina Jacobs, como se a
sua vida dependesse disso. De maneira nenhuma Madeleine Sheridan, a seis
dias de fazer oitenta anos, iria desempenhar o papel de uma velha senhora
digna à mesa de jantar da casa de férias. À mesma mesa que Jurgen tinha
comprado na feira da ladra e que tinha encerado com cera de abelhas e
parafina. Mais ainda, tinha-a encerado em cuecas, por causa da vaga de
calor. Ela tivera de desviar os olhos ao vê-lo a transpirar no que ela
delicadamente chamava a sua «roupa interior».
Pairava uma águia no céu. Tinha visto os ratos que corriam na relva por
cortar do pomar.
Madeleine gritou as suas desculpas lá para baixo, a Mitchell, mas ele
parecia não a ter ouvido. Estava a ver Joe Jacobs desaparecer para dentro de
casa à procura de um chapéu. Parece que Kitty Finch ia levar o poeta inglês
a dar um passeio para lhe mostrar umas flores. Madeleine Sheridan não
tinha bem a certeza, mas achou que a rapariga doida, com a sua auréola de
cabelo ruivo a brilhar ao sol, talvez estivesse a sorrir-lhe.
Para usar a linguagem de uma correspondente de guerra, que era, como
ela sabia, a profissão de Isabel Jacobs, teria de dizer que Kitty Finch estava
a sorrir-lhe com intenção hostil.
A Lição de Botânica

Havia tabuletas por todo o lado a dizer que o pomar era propriedade
privada, mas Kitty insistiu que conhecia o agricultor e que ninguém lhes
lançaria os cães. Nos últimos vinte minutos tinha andado a apontar para
árvores que, na sua opinião, «não estavam lá muito bem».
– Só repara em árvores que sofrem? – Joe Jacobs protegeu os olhos com
as mãos, que estavam cobertas de picadas de mosquitos, e fitou-a nos seus
brilhantes olhos cinzentos.
– Sim, acho que sim.
Ele estava convencido de que ouvia um animal a rosnar na relva e disse-
lhe que dava a ideia de ser um cão.
– Não se preocupe com os cães. O agricultor tem 2000 oliveiras na zona
de Grasse. Anda demasiado ocupado para nos lançar os cães.
– Bem, suponho que assim tantas oliveiras o mantenham ocupado –
murmurou Joe.
A sua cabeleira preta, agora a ficar com caracóis grisalhos, caía-lhe
despenteada à volta das orelhas e o chapéu velho de palha estava sempre a
escorregar-lhe da cabeça. Kitty tinha de correr para trás para o ir apanhar.
– Oh. 2000… não são assim tantas… de modo nenhum.
Ela baixou-se para olhar de perto para umas flores silvestres que cresciam
entre as ervas brancas e altas que lhe chegavam aos joelhos.
– Estas são Bellis perennis. – Agarrou numa mancheia do que pareciam
ser pétalas de margarida e meteu-as à boca. – As plantas são sempre de
alguma família.
Enterrou o rosto nas flores que tinha na mão e disse-lhe o nome delas em
latim. Ele ficou impressionado com o modo terno como ela segurava as
plantas entre os dedos e falava delas com uma intimidade fácil, como se de
facto fossem uma família com problemas variados e qualidades pouco
usuais. E depois ela disse-lhe que o que mais queria na vida era ver os
campos de papoilas no Paquistão.
– De facto – confessou ela nervosamente –, escrevi um poema sobre isso.
Joe parou. Então era por isso que ela estava ali.
Mulheres jovens que o seguiam e que queriam que ele lesse a poesia
delas, e ele estava agora convencido de que ela era uma delas, começavam
sempre por lhe dizer que tinham escrito um poema sobre algo
extraordinário. Caminhavam lado a lado, aplanando um caminho entre a
erva alta. Ele esperou que ela falasse, que fizesse o seu pedido, que dissesse
como se sentia influenciada pelos seus livros, que explicasse como tinha
conseguido localizá-lo e depois que lhe perguntasse se ele não se
importaria, se teria tempo, se teria a bondade de por favor, por favor ler a
sua pequena tentativa inspirada por ele próprio.
– Então, leu os meus livros todos e agora seguiu-me até França – disse ele
rispidamente.
Uma nova vaga de rubor abateu-se sobre o rosto dela e o seu pescoço
comprido.
– Sim. A Rita Dwighter, que é a dona da casa, é uma amiga da minha
mãe. A Rita disse-me que a tinha alugado para o verão todo. Ela deixa-me
ficar na casa de graça na época baixa. Eu não podia ficar porque você a a a
a a abarbatou-a.
– Mas não estamos na época baixa, Kitty. Julho é aquilo a que se chama a
época alta, não é?
Ela tinha sotaque do Norte de Londres. Os seus dentes da frente eram
tortos. Quando não estava a gaguejar e a corar parecia que tinha sido
esculpida em cera numa oficina escura em Veneza. Se era botânica,
obviamente não passava muito tempo ao ar livre. Quem quer que a tivesse
feito demonstrara esperteza. Ela sabia nadar e chorava e corava e dizia
coisas como «abarbatou-a».

– Vamos sentar-nos à sombra.


Ele apontou para uma árvore grande rodeada por pequenos penedos. Um
gordo pombo castanho estava comicamente empoleirado num ramo fino
que parecia prestes a quebrar-se com o seu peso.
– Está bem. Essa árvore é uma a a a a aveleira, a propósito.
Ele avançou antes de ela acabar a frase e sentou-se, encostando-se ao
tronco da árvore. Como ela parecia relutante em vir-se-lhe juntar, ele deu
uma palmadinha no espaço ao seu lado, varrendo os galhos e as folhas, até
que ela se sentou, alisando sobre os joelhos o vestido de algodão de um azul
desbotado. Ele não lhe ouvia propriamente o coração, mas sentia-o a bater
sob o vestido fino.
– Quando escrevo poemas, penso sempre que consegue ouvi-los.
Um sino tilintou à distância. Dava a impressão de ser uma cabra a pastar
algures no pomar, a andar pelas ervas altas.
– Porque é que está a tremer? – Ele sentia o cheiro a cloro no cabelo dela.
– Pois. Deixei de tomar as pastilhas e por isso tenho as mãos um bocado a
tremer.
Kitty aproximou-se um pouco mais dele. Ele não sabia como o interpretar
até ver que ela estava a evitar uma fila de formigas vermelhas que
rastejavam debaixo da barrigas das pernas dela.
– Porque é que toma pastilhas?
– Oh, decidi não tomar durante uns tempos. Sabe… é um alívio bastante
grande sentir-me infeliz outra vez. Não sinto nada quando tomo as
pastilhas.
Deu uma palmada nas formigas que lhe rastejavam pelos tornozelos.
– Também escrevi sobre isso… Chama-se «Apanhar Rosas Sob o Efeito
de Seroxat».
Joe procurou no bolso um pedaço de seda verde e assoou-se. – O que é
Seroxat?
– Sabe o que é.
Ele tinha o nariz enfiado no lenço de seda.
– Diga-me, de qualquer maneira – fungou ele.
– O Seroxat é um antidepressivo muito forte. Já o tomo há anos.
Kitty fitou o céu a esmagar-se contra as montanhas. Ele deu consigo a
estender a sua mão para a mão fria e trémula dela e a agarrá-la firmemente
no seu regaço. Ela tinha razão em ficar indignada com a pergunta dele.
Segurar-lhe na mão era um reconhecimento silencioso de que ele sabia que
ela o tinha lido, porque ele contara aos seus leitores tudo sobre os seus anos
de adolescência a tomar medicação. Aos quinze anos, tinha raspado muito
ligeiramente o pulso esquerdo com uma lâmina de barbear. Nada de sério.
Só uma experiência. A lâmina era fria e afiada. O seu pulso era quente e
macio. Não deviam formar par, mas era um jogo de cartas adolescente. E
ele quase ganhou. O médico, um húngaro velho com pelos nas orelhas, não
concordara que aquele emparelhamento fosse um erro trivial. Tinha-lhe
feito perguntas. Biografia era o que o médico húngaro queria.
Nomes e lugares e datas. Os nomes da sua mãe, do seu pai, da sua irmã.
As línguas que eles falavam e a idade que ele tinha quando os viu pela
última vez. Em resposta, Joe Jacobs tinha desmaiado no consultório e por
isso os seus anos de adolescência tinham sido tranquilizados e passados
numa névoa farmacológica. Ou, como ele sugerira no seu poema mais
famoso, agora traduzido em vinte e três línguas: uma fada má fez um
acordo comigo: « Dá-me a tua história e eu dar-te-ei algo para a remover.»
Quando ele se voltou para olhar para o rosto dela, agora esvaído do seu
rubor, ela tinha as faces molhadas.
– Porque é que está a chorar?
– Eu estou bem. – A voz dela era pragmática.
– Agrada-me poder poupar dinheiro e não o gastar num hotel, mas não
esperava que a sua mulher me oferecesse o quarto vago.
Três moscas pretas instalaram-se na testa dele, mas ele não soltou a mão
da dela para as enxotar. Passou-lhe o pedaço de seda que usava como lenço.
– Limpe a cara.
– Eu não quero o seu lenço. – Ela atirou o pedaço de seda para o regaço
dele. – E detesto quando as pessoas dizem para me limpar. Como se eu
fosse um soalho sujo.
Ele não tinha a certeza, mas achava que era um dos versos dos seus
poemas. Não exatamente como estava escrito, mas bastante próximo.
Reparou num arranhão no tornozelo esquerdo dela e ela disse-lhe que era
onde a mulher dele lhe tinha agarrado o pé na piscina.
A cabra estava a aproximar-se. De cada vez que se mexia, o sino tilintava.
Quando ficava imóvel, o sino parava de tocar. Fazia-o sentir-se perturbado.
Sacudiu um pequeno grilo verde do seu ombro e pô-lo na mão aberta dela.
– Penso que escreveu alguma coisa que gostaria que eu lesse. Não é
verdade?
– Sim. É só um poema. – Mais uma vez, o tom da voz dela era
pragmática. Libertou o grilo, ficando a vê-lo saltar para a erva e
desaparecer. – É uma conversa consigo, na realidade.
Joe apanhou um galho que tinha caído da árvore. O pombo castanho
acima da sua cabeça estava a tentar a sua sorte. Havia ramos mais fortes
para onde podia mudar-se, mas recusava-se a dar um passo. Joe disse a
Kitty que leria o seu poema nessa noite e ficou à espera de que ela lhe
agradecesse.
Esperou. Pelos agradecimentos dela. Pelo seu tempo. Pela sua atenção.
Pela sua generosidade. Por a defender de Mitchell. Pela sua companhia e
pelas suas palavras, pela poesia que a tinha feito mais ou menos vir atrás
dele quando ele estava a passar férias com a família. Os agradecimentos
dela não vieram.
– Já agora – ele fitou as pálidas canelas das pernas dela, cobertas de
formigas esmagadas –, o facto de eu saber que toma medicação e isso
tudo… é confidencial.
Ela encolheu os ombros. – Bem, na realidade, o Jurgen e a Dra. Sheridan
e toda a gente da aldeia já sabem. E eu deixei de a tomar, de qualquer
maneira.
– A Madeleine Sheridan é médica?
– É. – Ela encolheu os dedos dos pés. – Tem amigos no hospital em
Grasse, por isso é melhor que faça de conta que se sente feliz e que se
controle.
Ele riu e a seguir ela, para o fazer rir um pouco mais, avisou-o de que
nada, NADA MESMO, continuava a ser confidencial depois de ser contado a
Jurgen. – Como todas as pessoas indiscretas, ele põe a mão no coração e
assegura quem lhe fez confidências de que tem os lábios selados. Os lábios
do Jurgen nunca estão selados, porque têm sempre um charro gigante entre
eles.
Joe Jacobs sabia que devia fazer mais perguntas. Como a sua mulher, a
jornalista. O porquê o como o quando o quem e todas as outras palavras que
supostamente deveria perguntar para tornar a vida mais coerente. Mas ela
tinha-lhe dado alguma informação. A caminho do pomar disse-lhe que tinha
largado o emprego, a varrer folhas e a cortar a relva no Victoria Park em
Hackney. Um gangue de rapazes tinha-a ameaçado com uma navalha,
porque como quando ela estava a tomar medicação as pernas lhe tremiam,
era uma presa fácil.
Ouviram o sininho outra vez.
– O que é? – Kitty levantou-se e olhou para a erva alta.
Joe via as vértebras da coluna dela sob o vestido. Quando deixou cair o
chapéu mais uma vez, ela apanhou-o e sacudiu-lhe o pó com as pontas das
suas unhas verdes, estendendo-lho depois.
– Oh!
Kitty gritou «Oh!», porque naquele momento a erva alta agitou-se e eles
viram clarões de cor-de-rosa e prateado a brilhar por entre as ervas. Algo
estava a encaminhar-se para eles. A erva pareceu apartar-se e Nina apareceu
em frente a eles, descalça e com o biquíni estampado com cerejas. Nos
dedos dos pés trazia o presente de Jurgen de cinco anéis de prata da Índia
com sininhos presos.
– Vim à tua procura. – Ela fitou o pai, que parecia estar a segurar na mão
de Kitty Finch. – A mamã foi a Nice. Disse que tinha de ir levar uns sapatos
ao sapateiro.
Kitty olhou para o relógio no seu pulso magro.
– Mas os sapateiros estão fechados em Nice agora.
Três cães a rosnar saltaram da erva e começaram a andar à roda deles.
Quando o agricultor apareceu e disse ao poeta inglês todo suado que ele
estava indevidamente na sua terra, a linda rapariga inglesa arrancou o lenço
do chapéu que trazia e deu-o ao poeta de sobrolho franzido.
– Limpe-se – disse ela, e pediu em francês ao agricultor para chamar os
seus cães.

Quando voltaram para a casa de férias, Joe passou pelos ciprestes a


caminho do jardim, onde tinha posto uma mesa e uma cadeira para escrever
à sombra. Há duas semanas que se lhe referia como o seu escritório e era
ponto assente que não devia ser incomodado, nem mesmo quando
adormecia na cadeira. Por entre os ramos dos ciprestes viu Laura sentada na
cadeira de verga desbotada junto à piscina. Mitchell encaminhava-se para
ela com uma taça de morangos.
Deitou um olhar sonolento a Laura e a Mitchell a comerem os morangos
ao sol e deu consigo prestes a adormecer. Era uma sensação estranha, «dar
consigo» prestes a adormecer. Como se pudesse dar consigo em qualquer
sítio, em qualquer altura. O melhor era transformar o qualquer sítio num
sítio bom onde estar, então, num sítio sem angústia ou ameaça iminente;
sentado a uma mesa à sombra de uma velha árvore com a sua família; a tirar
fotos numa gôndola a vogar nos canais de Veneza; a ver um filme num
cinema vazio, com uma lata de cerveja entre os joelhos. Num carro numa
estrada de montanha a meio da noite depois de fazer amor com Kitty Finch.
Uma Estrada de Montanha. Meia-Noite

Estava a escurecer e ela disse-lhe que os travões do carro de aluguer


estavam fodidos, que não via nada, que nem sequer conseguia ver as mãos.
O vestido de seda escorregava-lhe dos ombros quando ela se debruçava
sobre o volante. Um coelho atravessou a estrada a correr e o carro guinou
para um lado e para o outro. Ele disse-lhe para ela manter os olhos na
estrada, para só fazer isso, e enquanto ele falava ela beijava-o e conduzia ao
mesmo tempo. E depois ela pediu-lhe para abrir a janela para ouvir os
insetos a chamarem uns pelos outros na floresta. Ele baixou o vidro e pediu-
lhe, mais uma vez, que mantivesse os olhos na estrada. Inclinou a cabeça
para fora da janela e sentiu o ar frio da montanha a picar-lhe os lábios. Seres
humanos primitivos tinham em tempos vivido nesta floresta na montanha.
Sabiam que o passado vivia nas pedras e nas árvores e sabiam que o desejo
os tornava desastrados, loucos, misteriosos, baralhados.
– Sim – disse Kitty Finch, com os olhos agora de novo na estrada. – Eu
sei o que estás a pensar. Só vale a pena viver a vida porque temos a
esperança de que ela melhore e de chegarmos todos a casa em segurança.
Mas tu tentaste e não chegaste a casa em segurança. Não chegaste a casa, de
todo. É por isso que eu estou aqui, Jozef. Vim a França para te salvar dos
teus pensamentos.
Imitações da Vida

Isabel Jacobs não sabia bem porque mentira sobre levar os sapatos ao
sapateiro. Era apenas mais uma coisa de que não tinha a certeza. Depois da
chegada de Kitty Finch, para se aguentar só conseguia imitar alguém que
costumava ser, mas quem essa pessoa era, quem ela costumava ser, já não
parecia ser uma pessoa que valesse a pena imitar. O mundo tornara-se cada
vez mais misterioso. E ela também. Já não tinha a certeza do que sentia
sobre as coisas, de como o sentia ou de porque é que tinha oferecido a uma
estranha o quarto vago. Depois de descer a estrada da montanha, de
encontrar trocos para a portagem, de se perder em Vence e de tentar fazer
inversão de marcha no trânsito que engarrafava a estrada costeira para Nice,
condutores enraivecidos faziam-lhe gestos, buzinavam-lhe, baixavam o
vidro e berravam-lhe. Nos assentos traseiros dos automóveis, cãezinhos
muito bem arranjados fitavam-na trocistas, como se não saber para onde ir
num sistema de sentido único fosse algo que também eles desprezavam.
Estacionou em frente à praia chamada Opéra Plage e encaminhou-se para
a cúpula cor-de-rosa do Hotel Negresco, que reconheceu do mapa agrafado
ao «folheto informativo» que havia na casa de férias. O folheto informativo
estava cheio de informações sobre o Hotel Negresco, o hotel belle époque
mais antigo e mais grandioso na promenade des Anglais. Parece que tinha
sido construído em 1912 por Henri Negresco, um imigrante húngaro que o
concebera para atrair a Nice «a camada superior da camada superior».
Soprava uma brisa nas duas faixas de trânsito que a separavam das praias
sobrelotadas. Esta baforada de vida citadina e suja sabia melhor, muito
melhor do que o ar limpo e cortante da montanha, que só parecia tornar a
mágoa ainda mais cortante. Aqui em Nice, a quinta maior cidade de França,
ela poderia desaparecer por entre as multidões de veraneantes como se não
tivesse nada a ocupar-lhe a mente a não ser queixar-se do preço do aluguer
de uma espreguiçadeira na Riviera.
Uma mulher com um capacete de cabelo com permanente e pintado com
hena parou para lhe perguntar se sabia o caminho para a rue François Aune.
As lentes dos seus óculos de sol grandes estavam manchadas com o que
parecia ser leite seco. Falava em inglês com um sotaque que Isabel achou
que poderia ser russo. A mulher apontou com um dedo carregado de anéis
para um mecânico com um fato-macaco azul-escuro cheio de manchas de
óleo que estava deitado junto a uma motorizada, como que a sugerir que
Isabel perguntasse por ela o caminho. Por um momento, Isabel não
compreendeu porque é que lhe estava a ser feito aquele pedido, mas depois
apercebeu-se de que a mulher era cega e que conseguia ouvir o mecânico a
acelerar a motorizada nas imediações.
Quando Isabel se ajoelhou no passeio e mostrou ao homem o pedaço de
papel que a mulher lhe tinha metido nas mãos, ele apontou com o polegar
para o prédio de apartamentos do outro lado da rua. A mulher cega estava
na rua de que andava à procura. – Está aqui. – Isabel pegou-lhe no braço e
conduziu-a através do portão para o prédio com um ar rico, com todas as
janelas enquadradas por portadas verdes recentemente pintadas. Três
aspersores regavam as palmeiras plantadas em filas direitas no jardim do
prédio.
– Mas eu quero o porto, madame. Estou à procura do Dr. Ortega.
A russa cega parecia indignada, como se tivesse sido levada ao lugar
errado contra sua vontade. Isabel olhou para os nomes dos moradores
gravados nas placas de latão junto à porta e leu-os em voz alta. – Perez,
Orsi, Bergel, Dr. Ortega. – Lá estava o tal nome. Era ali que ele vivia,
embora a russa discordasse.
Carregou no botão da campainha do Dr. Ortega e ignorou a russa, que
estava agora a vasculhar toda aflita a sua carteira de pele de crocodilo à
procura do que acabou por ser um dicionário de bolso bastante usado.
A voz que saiu do intercomunicador de latão polido do sistema de entrada
do prédio era uma voz espanhola suave pedindo-lhe em francês que dissesse
quem era.
– Chamo-me Isabel. A sua visita está à sua espera cá em baixo.
Uma sirene de um carro da polícia abafou as suas palavras e ela teve de
repetir.
– Disse que se chama Isabel? – Era uma pergunta bastante simples, mas
pô-la ansiosa, como se estivesse na realidade a fazer-se passar por alguém
que não era.
O sistema de entrada emitiu uma espécie de gemido e ela empurrou a
porta de vidro, com um caixilho de madeira pesada e escura, que dava para
o átrio em mármore. A mulher russa com óculos escuros manchados não
queria avançar e continuava a repetir o pedido de ser levada ao porto.
– Ainda está aí, Isabel?
Porque é que o médico não descia as escadas e não vinha ele próprio
buscar a mulher cega?
– Podia descer e vir buscar a sua paciente? – Ela ouviu-o rir.
– Señora, soy doctor en Filosofia. Ela não é minha paciente. É minha
aluna.
Ria-se de novo. O riso cavernoso e rouco de um fumador. Ela ouvia a sua
voz através dos furos no intercomunicador e aproximou-se dele.
– A minha aluna quer ir para o porto porque pretende voltar para São
Petersburgo. Não quer vir à aula de Espanhol e por isso não acredita que
está aqui. Ella no quiere estar aquí.
Era brincalhão e sedutor, um homem que tinha tempo de falar por
adivinhas, protegido pelo sistema de entrada do prédio. Ela queria poder ser
mais como ele, não levar a sério e brincar com o que o dia lhe trouxesse. O
que a tinha levado aonde ela estava agora? Onde é que ela estava agora?
Como de costume, estava a fugir de Jozef. Esta ideia fez-lhe arder os olhos
com lágrimas que a incomodavam. Não, outra vez não, não Jozef, não outra
vez. Virou-se e deixou a mulher russa a tatear o corrimão da escadaria de
mármore, ainda a insistir que estava no sítio errado e que o porto era o seu
destino final.

O céu escurecera e ela sentia o cheiro do mar algures por perto.


Guinchavam gaivotas por cima da sua cabeça. O cheiro doce a fermento da
boulangerie pairava sobre os automóveis estacionados. Famílias inteiras
regressavam da praia com bolas de plástico e cadeiras e toalhas coloridas. A
boulangerie encheu-se subitamente com rapazes adolescentes a comprarem
fatias de pizza. Do outro lado da rua, o mecânico estava a acelerar a sua
motorizada triunfantemente. Isabel não estava ainda pronta para voltar para
casa e para começar a imitar alguém que era dantes. Em vez disso,
caminhou durante o que lhe pareceu uma hora pela promenade des Anglais
e parou num dos restaurantes montados na praia, perto do aeroporto.
Os aviões que descolavam voavam baixo sobre o mar preto. Um grupo de
estudantes estava a beber cerveja nas dunas de pedrinhas da praia. Estavam
cheios de opiniões, a namoriscar, a falar aos gritos uns com os outros, a
desfrutar de uma noite de verão numa praia da cidade. As coisas estavam a
começar nas suas vidas. Novos empregos. Novas ideias. Novas amizades.
Novos amores. Ela estava a meio da sua vida, tinha quase cinquenta anos e
já presenciara um sem-número de massacres e de conflitos no trabalho que
a aproximava intimamente do mundo em sofrimento. Não tinha sido
enviada para cobrir o genocídio no Ruanda, como dois dos seus colegas,
que tinham ficado destroçados. Eles tinham-lhe dito que era impossível
acreditar na escala de destruição humana, com os seus próprios olhos
siderados ao verem os olhos siderados dos órfãos. Os cães famintos tinham-
se acostumado a comer carne humana. Eles tinham visto cães a vaguear
pelos campos com pedaços de pessoas entre os dentes No entanto, mesmo
sem ter testemunhado em primeira mão os terrores do Ruanda, ela penetrara
demasiado na infelicidade do mundo para começar tudo de novo. Se
pudesse optar por desaprender tudo o que supostamente a tornara mais
sábia, começaria tudo de novo. Ignorante e com esperança, casaria de novo
e teria de novo uma filha e beberia cerveja com o seu belo marido jovem
nesta praia da cidade à noite. Seriam principiantes encantados de novo, a
beijar-se sob as estrelas brilhantes. Era o melhor que se podia ser na vida.
Uma família alargada grande, de mulheres com as suas crianças, estava
sentada a três mesas juntas. Tinham todas o mesmo tipo de cabelo castanho
crespo e maçãs do rosto salientes e comiam espirais elaboradas de gelado
em copos altos. O empregado de mesa acendeu os pauzinhos de fogo de
artifício que tinha enfiado no chantilly e elas soltaram ohs e ahs e bateram
palmas. Ela sentia frio no seu vestido cavado, demasiado despida para esta
altura da noite. As mulheres que estavam a dar gelado às suas crianças com
colheres prateadas de cabo comprido deitavam olhares curiosos à mulher
silenciosa e pensativa com os ombros nus. Tal como o empregado, pareciam
ofendidas com a sua solidão. Ela teve de dizer duas vezes ao empregado
que não estava à espera de ninguém. Quando ele pousou com força a
chávena de café na mesa vazia posta para dois, a maior parte do café
derramou-se no pires.
Ela pôs-se a ver as ondas a rebentarem no cascalho. O oceano a
incorporar em si os sacos de plástico deixados na praia naquele dia.
Enquanto tentava fazer com que o que restava do seu café durasse o tempo
suficiente para justificar o seu lugar a uma mesa posta para dois, os
pensamentos que tentava arredar voltavam como as ondas nas pedras.
Ela era uma espécie de fantasma na sua casa de Londres. Quando
regressava das várias zonas de guerra e descobria que na sua ausência a
graxa dos sapatos ou as lâmpadas tinham sido arrumadas num lugar
diferente, ficava a saber que também ela tinha um lugar transitório na casa
da família. Para fazer as coisas que escolhera fazer no mundo arriscava-se a
perder o seu lugar de esposa e de mãe, um lugar desconcertante,
assombrado por tudo o que fora imaginado para ela, se optasse por o
ocupar. Tinha tentado ser alguém que não compreendia realmente. Uma
personagem feminina poderosa mas frágil. Embora soubesse que ser forte
não era o mesmo que ser poderosa e que ser delicada não era o mesmo que
ser frágil, não sabia como usar este conhecimento na sua própria vida, ao
que ele equivalia ou até mesmo como é que tornava mais aceitável estar
sentada sozinha a uma mesa posta para dois numa noite de sábado. Quando
chegava a Londres de África, da Irlanda ou do Kuwait, era Laura que, por
vezes, lhe oferecia uma cama no armazém por cima da loja deles em
Euston. Era uma espécie de convalescença. Ela ficava deitada na cama
durante o dia e Laura trazia-lhe chávenas de chá quando não havia
movimento na loja. Não tinham nada em comum a não ser o facto de já se
conhecerem há muito tempo. O tempo que tinha passado entre elas contava
para alguma coisa. Não tinham de explicar nada, de ser bem-educadas ou de
preencher os vazios na conversa.
Ela tinha convidado Laura para partilhar a casa de férias com eles durante
o verão e ficou surpreendida com a rapidez com que a sua amiga aceitou.
Usualmente, Laura e Mitchell precisavam de ser avisados com mais
antecedência para fecharem a loja e porem os seus assuntos em ordem.
Os pauzinhos de fogo de artifício estavam a acabar de estralejar nos
gelados. Subitamente, uma das mães berrou ao seu filho de cinco anos, que
tinha deixado cair o copo do gelado ao chão. Foi um berro de raiva
incandescente. Isabel via que ela estava exausta. A mulher tinha ficado
feroz, nem infeliz nem feliz. Estava agora de joelhos a limpar o gelado do
chão com os guardanapos que o clã lhe ia passando. Isabel sentia a
reprovação das mulheres, que a olhavam fixamente, ali sentada sozinha,
mas estava-lhes grata. Traria Nina a este restaurante e daria à sua filha um
gelado com um pauzinho de fogo de artifício. Aquelas mulheres tinham
planeado uma coisa simpática para os seus filhos, uma coisa que ela
imitaria.
Paredes que se Abrem e se Fecham

Nina estava a ver Kitty Finch pressionar as palmas das mãos contra as
paredes do quarto vago como se estivesse a testar a sua solidez. Era um
quarto pequeno que dava para as traseiras da casa, com cortinados amarelos
bem corridos na única janela. Tornavam o quarto quente e escuro, mas Kitty
disse que gostava assim. Lá em cima, na cozinha, ouviam Mitchell a cantar
desafinado uma canção dos Abba. Kitty disse a Nina que estava a verificar
as paredes, porque os alicerces da casa eram fracos. Há três anos, um
gangue de trabalhadores da construção civil duvidosos tinha sido pago para
dar um jeito à casa. Havia fendas por todo o lado, mas tinham sido cobertas
apressadamente com o tipo errado de reboco.
Nina estava admirada com o que Kitty sabia sobre tudo. Qual era o tipo
certo de reboco, então? Kitty Finch trabalhava no setor da construção civil?
Como é que conseguia enfiar o cabelo todo num capacete?
Foi como se Kitty lhe tivesse lido os pensamentos, porque disse: – Pois,
bem, o tipo certo de reboco tem calcário – e depois, ajoelhou-se no chão e
pôs-se a examinar as plantas que tinha colhido no adro da igreja nessa
manhã.
As suas unhas verdes acariciavam as folhas triangulares e as flores
brancas que, insistia ela franzindo o nariz, cheiravam a rato. Ia guardar as
sementes das plantas, porque queria estudá-las, e Nina podia ajudá-la, se
quisesse.
– Que tipo de planta é?
– Chama-se Conium maculatum. É da mesma família do funcho, da
cherovia e da cenoura. As folhas parecem salsa, não parecem?
Nina não sabia.
– Isto é cicuta. O teu pai sabia isso, claro. Antigamente, as crianças
faziam assobios com os caules e às vezes envenenavam-se. Mas os Gregos
acreditavam que curava tumores.
Kitty parecia ter muito que fazer. Depois de ter pendurado os seus
vestidos de verão no guarda-fatos e de ter alinhado alguns livros gastos e
muito folheados na prateleira, correu lá acima para olhar outra vez para a
piscina, embora a noite já tivesse caído.
Quando voltou, explicou que agora a piscina tinha luzes debaixo da água.
– No ano passado não tinha.
Tirou um envelope A4 de papel pardo do seu saco de lona azul e pôs-se a
examiná-lo. – Isto – disse ela, acenando com ele a Nina – é o poema que o
teu pai prometeu ler logo à noite. – Trincou o lábio superior. – Ele disse-me
para o pôr na mesa à porta do quarto dele. Vens comigo?
Nina levou Kitty Finch até ao quarto onde dormiam os seus pais. O
quarto deles era o maior da casa, com um quarto de banho ainda maior ao
lado. Tinha torneiras douradas e um chuveiro de alta pressão e um botão
para transformar a banheira num jacuzzi. Ela apontou para uma mesa
pequena contra a parede junto ao quarto. No centro da mesa estava uma
taça, com uma confusão de óculos para natação, flores secas, canetas de
feltro velhas, postais e chaves.
– Oh, aquelas são as chaves da casa das máquinas. – Kitty parecia
excitada. – Na casa das máquinas está a maquinaria toda que faz funcionar
a piscina. Eu vou pôr o envelope debaixo da taça.
Franziu a testa ao envelope pardo e inspirava profundamente, sacudindo
os caracóis como se alguma coisa lhe estivesse presa no cabelo.
– Afinal, acho que vou metê-lo debaixo da porta. Assim, o teu pai vai
tropeçar nele e vai ter de o ler imediatamente.
Nina ia dizer-lhe que o quarto não era só dele, que a mãe dela também lá
dormia, mas calou-se, porque Kitty Finch estava a dizer coisas esquisitas.
– Tem de se arriscar, não é? É como atravessar uma rua com os olhos
fechados… não se sabe o que vai acontecer a seguir. – E depois atirou com
a cabeça para trás e desatou a rir. – Lembra-me de te levar a Nice amanhã
para comeres o melhor gelado que alguma vez provarás na vida.
Estar ao lado de Kitty Finch era como estar perto de uma rolha que
acabasse de ser disparada de uma garrafa. O primeiro disparo, quando os
gases parecem escapar e tudo é salpicado por um segundo com algo
inebriante.
Mitchell estava a chamar para o jantar.
Boas Maneiras

– A minha mulher foi a Nice ao sapateiro – anunciou Joe Jacobs


teatralmente a toda a gente à mesa de jantar.
O seu tom indicava que estava meramente a transmitir uma informação e
que não requeria uma resposta do grupo reunido para o jantar. Eles
aceitaram-na. Não foi mencionada.
Mitchell, sempre o chef autodenominado, passara a tarde a assar o lombo
de vaca que Joe insistira em pagar no mercado nessa manhã. Fatiou-o todo
alegre, com sangue cor-de-rosa a esvair-se do meio.
– Para mim não, obrigada – disse Kitty delicadamente.
– Oh, só um naco. – Uma fatia fina de carne ensanguentada caiu-lhe do
garfo e aterrou no prato dela.
– Naco é a palavra preferida do Mitchell. – Joe pegou no guardanapo e
entalou-o no colarinho da camisa.
Laura serviu o vinho. Estava com um colar africano ornado, uma banda
grossa de ouro entrançado fechada com sete pérolas.
– Parece uma noiva – disse Kitty, num tom de admiração.
– Estranhamente – respondeu Laura –, é de facto um colar de noiva da
nossa loja. É do Quénia.
Os olhos de Kitty estavam marejados por causa do rábano-picante, que
ela metia à boca como se fosse açúcar. – Então o que é que a Laura e o
Mitchell vendem no vosso Cash & Carry?
– «Empório» – corrigiu Laura. – Vendemos armas primitivas persas,
turcas e hindus. E joias africanas caras.
– Somos pequenos negociantes de armas – disse Mitchell efusivamente. –
E nos intervalos vendemos mobília feita de avestruzes.
Joe enrolou uma fatia de carne com os dedos e meteu-a na taça do molho
de rábano-picante. – A mobília é feita de avestruzes e o rábano é feito de
rabos – entoou.
Nina atirou com a faca. – Foda-se, cala-te!
Mitchell fez uma careta. – As meninas da tua idade não deviam usar
palavras tão feias.
O pai dela acenou com a cabeça como se concordasse plenamente. Nina
fitou-o furiosa, a vê-lo polir a colher com a ponta da toalha. Sabia que o pai
apreciava aquilo a que Mitchell chamava palavras «feias». Quando ela lhe
dizia, regularmente, que estava farta de usar sapatos horrorosos para ir para
a escola, com meias de uma cor que não combinava, o seu pai poeta
corrigia a sua escolha de palavras. – Da próxima vez, diz antes a merda de
uns sapatos horrorosos. Vai dar mais ênfase ao teu caso.
– As palavras feias são para pensamentos feios. – Mitchell deu uma
pancada rápida no lado da sua cabeça careca e depois lambeu um pedacinho
de molho de rábano-picante do polegar. – Eu nunca dizia palavrões em
frente do meu pai quando era da tua idade.
Joe deitou um olhar à filha. – Sim, minha filha. Por favor não digas
palavrões, que ofendes os filhos da puta a esta mesa. Especialmente o
Mitchell. Ele é perigoso. Tem armas. Espadas e revólveres de marfim.
– Na verdade – Mitchell acenou com o dedo –, do que eu realmente
preciso é de uma ratoeira, porque há roedores nesta cozinha.
Olhou Kitty Finch de soslaio quando disse «roedores».
Kitty deixou cair a fatia de carne ao chão e inclinou-se para Nina. – O
rábano-picante não é feito de rabos. É da família da mostarda. É uma raiz e,
provavelmente, o teu pai come muito porque lhe faz bem ao reumatismo.
Joe ergueu as suas sobrancelhas grossas. – O quê? Eu não tenho
reumatismo!
– Provavelmente, tem – respondeu Kitty. – Tem um andar um bocado
perro.
– Isso é porque ele já tem idade para ser seu pai. – Laura fez um
sorrisinho desagradável. Ainda se sentia perplexa por Isabel ter insistido
tanto que uma mulher jovem, que nadava nua e queria obviamente atrair a
atenção do seu marido de meia-idade, ficasse lá em casa. A sua amiga,
supostamente, era a parte traída no casal. Magoada pelas infidelidades do
marido. Carregando o fardo do passado dele. Traída e enganada.
– A Laura congratula-se por conseguir ver o que as pessoas escondem e
falar sem papas na língua – declarou Joe a toda a mesa. Apertou a ponta do
nariz entre o indicador e o polegar, um código secreto entre ele e a filha, do
quê não sabia bem, talvez de amor duradouro, apesar dos seus defeitos e da
sua tolice e da irritação que sentiam um com o outro.
Kitty sorriu nervosamente a Laura. – Muito obrigada a todos por me
deixarem ficar cá em casa.
Nina viu-a mordiscar uma rodela de pepino e depois afastá-la para a beira
do prato.
– Devia agradecer à Isabel – corrigiu Laura. – Ela tem bom coração.
– Eu não diria que a Isabel é bondosa, não achas, Nina?
Joe enrolou outra fatia de carne ensanguentada e meteu-a à boca.
Era a deixa para Nina dizer algo crítico sobre a mãe para agradar ao pai,
algo como: – A minha mãe não me conhece de todo. – Na verdade, Nina
sentiu-se tentada a dizer: – A minha mãe não sabe que eu sei que o meu pai
vai dormir com a Kitty Finch. Nem sequer sabe que eu sei o que quer dizer
anorética.
Em vez disso, disse: – A Kitty julga que as paredes se podem abrir e
fechar.
Quando Mitchell rodou o indicador esquerdo em círculos junto à orelha,
como que a dizer louuca, ela é louuca, Joe inclinou-se e deu uma pancada
violenta no dedo trocista de Mitchell com o seu punho castanho fechado.
– É mal-educado ser tão normal, Mitchell. Até tu deves ter sido criança.
Até tu talvez tenhas pensado que havia monstros à espreita debaixo da
cama. Agora que és um adulto tão impecavelmente normal, provavelmente
espreitas discretamente para debaixo da cama e dizes a ti próprio, bem,
talvez o monstro seja invisível!
Mitchell revirou os olhos e fitou o teto como que a implorar ajuda e
conselhos. – Já alguma vez te disseram que és um convencido de primeira?

O telefone estava a tocar. Um fax estava a deslizar e a ranger para o


tabuleiro de plástico ao lado do folheto informativo da casa de férias. Nina
levantou-se e foi buscá-lo. Deitou-lhe um olhar e levou-o ao pai.
– É para ti. Sobre a tua sessão de leitura na Polónia.
– Obrigado. – Joe beijou-lhe a mão com os lábios manchados de vinho e
pediu-lhe que lhe lesse o fax em voz alta.

ALMOÇO À CHEGADA
DOIS MENUS. Borscht branco com ovo cozido e salsicha.
Estufado tradicional à caçador com puré de batata. Refrigerante.

OU

Sopa tradicional polaca de pepino. Folhas de couve recheadas com carne e


puré de batata. Refrigerante.
POR FAVOR, ENVIE-NOS POR FAX A SUA ESCOLHA

Laura tossiu. – Tu nasceste na Polónia, não nasceste, Joe?


Nina viu o pai a acenar vagamente com a cabeça.
– Não me lembro.
Mitchell ergueu as sobrancelhas no que ele imaginava ser uma expressão
de incredulidade. – Uma pessoa tem de ser um bocado esquecida para não
se lembrar de onde nasceu. É judeu, não é, cavalheiro?
Joe pareceu sobressaltado. Nina perguntou-se se seria por chamarem
cavalheiro ao pai. Kitty também estava de testa franzida. Sentou-se mais
direita na cadeira e dirigiu-se à mesa como se fosse a biógrafa de Joe.
– É claro que ele nasceu na Polónia. Vem nas capas dos livros todos dele.
Jozef Nowogrodzki nasceu na Polónia Ocidental em 1937. Chegou a
Whitechapel, no Leste de Londres, quando tinha cinco anos.
– Certo. – Mitchell parecia de novo confuso. – Então, como é que afinal
te chamas Joe Jacobs?
Kitty assumiu mais uma vez o comando. Era como se tivesse dado três
pancadinhas no seu copo de vinho para criar um silêncio expectante. – Os
professores no colégio interno dele mudaram-lhe o nome para ser mais fácil
dizê-lo.
A colher que Joe tinha estado a polir durante todo o jantar estava agora
prateada e brilhante. Quando a ergueu, como se para inspecionar o seu
trabalho aplicado, Nina viu o reflexo distorcido de Kitty a flutuar na parte
de trás da colher.
– Colégio interno? Onde estavam os teus pais, então?
Mitchell reparou que Laura estava a mexer-se na cadeira. O que quer que
ele deveria saber sobre Joe tinha-se-lhe varrido completamente da memória.
Laura tinha-lhe dito, claro, mas não se lembrava. Ficou aliviado por Kitty
Finch não se encarregar de responder à sua pergunta e, de certa forma,
desejou não a ter feito.
– Bem, tu és mais ou menos inglês, então, não és, Joe?
Joe acenou com a cabeça. – Sim, sou. Sou quase tão inglês como tu.
– Bem, eu não concordaria totalmente com isso, Joe – declarou Mitchell
no tom de um funcionário bonacheirão dos serviços de imigração –, mas
como eu digo sempre à Laura, é o que sentimos cá dentro que conta.
– Tens razão – concordou Joe.
Mitchell achou que devia ter acertado nalguma coisa, porque, por uma
vez, Joe estava a ser delicado.
– Então, o que é que sentes dentro de ti, Joe?
Joe olhou atentamente para a colher que tinha na mão como se ela fosse
uma joia ou um pequeno triunfo sobre o problema dos talheres baços.
– Tenho um PSE cá dentro.
– E o que é isso, cavalheiro?
– É a porra de um sentimento estranho.
Mitchell, que já estava bêbedo, deu-lhe uma palmada nas costas para
confirmar a sua nova solidariedade.
– Apoiado, Jozef seja lá qual for o teu apelido. Eu tenho um PSE aqui
mesmo. – Deu uma pancadinha na cabeça. – Tenho três desses.
Laura arrastou os seus pés compridos debaixo da mesa e anunciou que
tinha feito um trifle para a sobremesa. Era uma receita que tinha tirado do
Complete Cookery Course de Delia Smith e esperava que o creme de ovos
tivesse solidificado e que as natas não tivessem talhado.
DOMINGO

Ladrão de Cicuta

O início do canto dos pássaros. O som de pinhas a caírem na quietude da


piscina. O cheiro acre do rosmaninho a crescer em floreiras de madeira no
parapeito da janela. Quando Kitty Finch acordou, sentiu que estava alguém
a respirar-lhe para cima do rosto. Ao princípio, julgou que a janela se abrira
com o vento durante a noite, mas depois viu-o e teve de enfiar o cabelo na
boca para se impedir de gritar. Um rapaz de cabelo preto estava de pé ao
lado da sua cama e estava a acenar-lhe. Ela calculava que ele teria uns
quinze anos e segurava um caderno na mão com que não estava a acenar. O
caderno era amarelo. Ele estava com um blazer de colégio e tinha a gravata
enfiada no bolso. Por fim, desapareceu para dentro da parede, mas ela
continuou a sentir a brisa da sua mão invisível a acenar.
Ele estava dentro dela. Tinha viajado num transe para dentro da sua
mente. Ela estava a receber os seus pensamentos, os seus sentimentos e as
suas intenções. Cravou as unhas nas faces e, quando teve a certeza de que
estava acordada, dirigiu-se para a porta e entrou na piscina. Uma vespa
mordeu-lhe o pulso quando ela nadava para o colchão insuflável meio
vazio, que puxou para a parte menos funda. Não tinha a certeza se a visão
espectral era um fantasma, um sonho ou uma alucinação. Fosse o que fosse,
estava na sua mente há muito tempo. Mergulhou a cabeça e começou a
contar até dez.
Estava alguém na piscina com ela.
Kitty só conseguia ver as pontas ampliadas dos dedos de Isabel Jacobs a
apanhar insetos que estavam sempre a morrer na parte mais funda da
piscina. Quando veio à tona, os braços fortes de Isabel cortavam agora a
água fria e verde, com os insetos a contorcerem-se num montinho na laje
mais perto da beira da piscina. A esposa jornalista, tão silenciosa e superior,
aparentemente desaparecia para Nice à hora das refeições e ninguém falava
do assunto. Sobretudo o seu marido, que, esperava Kitty, já teria lido o seu
poema. Era o que ele tinha dito que ia fazer depois do jantar interminável na
noite anterior. Ia deitar-se na cama e ler as suas palavras.
– Está a tremer, Kitty.
Isabel nadou na sua direção até as duas ficarem ombro a ombro a ver o
nevoeiro matinal a levantar-se das montanhas. Ela disse a Isabel que tinha
uma dor de ouvidos e que estava a sentir-se atordoada. Era a única maneira
de falar sobre o que vira nessa manhã.
– Provavelmente, tem uma infeção nos ouvidos. Não admira que se sinta
atordoada.
Isabel estava a tentar dar a impressão de que tinha tudo sob controlo.
Kitty tinha-a visto na televisão há cerca de três anos. Isabel Jacobs no
deserto perto do esqueleto de um camelo no Kuwait. Estava encostada a um
tanque do Exército incendiado, apontando para um par de botas de soldado
queimadas que se encontravam por baixo do tanque. Elegante e bem
arranjada, Isabel Jacobs era mais dura do que parecia. Quando mergulhara
na piscina ontem e agarrara o tornozelo de Kitty, tinha-o torcido com força
suficiente para lhe provocar uma escoriação. Ainda lhe doía o pé por causa
disso. Isabel magoara-a deliberadamente, mas Kitty não podia dizer nada,
porque o que fez a seguir foi oferecer-lhe o quarto vago. Ninguém se
atrevera a dizer que se importava, porque a correspondente de guerra
controlava-os a todos. Como se a última palavra fosse dela ou os desafiasse
a contradizê-la. A verdade é que quem tinha a última palavra era o marido
dela, porque escrevia palavras e depois punha pontos finais. Ela sabia isto,
mas o que é que a mulher dele sabia?
Kitty saltou para fora da água e dirigiu-se ao extremo da piscina,
arrancando folhas de um pequeno loureiro que estava num vaso junto à
parte menos funda. Isabel saiu também da água e sentou-se na beira de uma
espreguiçadeira branca. A esposa jornalista estava a acender um cigarro
distraidamente, como se estivesse a pensar nalguma coisa mais importante
do que o que estava a acontecer agora. Devia ter visto o envelope A4 muito
gasto que Kitty deixara encostado à porta do quarto.

Nadar Para Casa


por
Kitty Finch

Kitty não disse a Isabel que estava a sentir-se quente e que tinha a visão
toldada. Sentia comichão e achava que talvez a língua lhe tivesse inchado.
Também não lhe falou do rapaz espectral que tinha saído da parede para a
saudar quando ela acordou. Ele tinha-lhe roubado algumas das plantas,
porque quando voltou a entrar na parede levava uma braçada delas. Ela
achava que talvez ele estivesse à procura de maneiras de morrer. As
palavras que ela o ouviu dizer eram palavras que ouvia na sua cabeça, não
com os ouvidos. Estava a acenar-lhe, como se estivesse a dizer-lhe olá, mas
agora ela achava que talvez ele estivesse a dizer-lhe adeus.

– Então, veio cá porque é fã da poesia do Jozef?


Kitty mastigou lentamente uma folha de louro até conseguir mascarar a
ansiedade na sua voz. – Acho que sou fã. Embora não o encare assim.
Fez uma pausa, esperando que a voz lhe ficasse mais firme. – A poesia do
Joe é mais como uma conversa comigo do que outra coisa qualquer. Ele
escreve sobre coisas em que eu penso frequentemente. Estamos em contacto
de nervos.
Voltou-se e viu Isabel apagar o cigarro com o pé descalço. Kitty susteve a
respiração.
– Isso não doeu?
Se Isabel se tinha queimado, parecia não se importar.
– O que quer dizer «contacto de nervos» com o Jozef?
– Não quer dizer nada. Inventei-o agora mesmo.
Kitty reparou que Isabel Jacobs usava sempre o nome completo do
marido. Como se só ela possuísse a parte dele que era secreta e misteriosa, a
parte dele que escrevia coisas. Como é que poderia dizer-lhe que ela e Joe
estavam a transmitir mensagens um ao outro quando ela própria não o
compreendia? Isto era algo de que falava com Jurgen. Ele explicava-lhe que
ela tinha sentidos extra, porque era poeta, e depois dizia-lhe palavras em
alemão que ela sabia serem palavras de amor. Era sempre complicado
escapar-lhe à noite, por isso ela estava grata por ter o quarto vago para onde
escapar. Sim, de certa forma estava grata a Isabel por a salvar do amor de
Jurgen.
– Sobre o que é o seu poema?
Kitty examinou a folha de louro, traçando com a ponta dos dedos os seus
veios prateados.
– Não me lembro.
Isabel riu-se. Isso era ofensivo. Kitty sentiu-se ofendida. Já não
agradecida, deitou um olhar furioso à mulher que lhe oferecera o quarto
vago mas que não se dera ao trabalho de lhe arranjar lençóis ou almofadas
ou de reparar que as janelas não abriam e que o chão estava coberto de
caganitas de rato. A jornalista estava a fazer-lhe perguntas como se
estivesse a preparar-se para entregar alguma reportagem. Era curvilínea e
alta, tinha o cabelo preto como uma indiana e usava uma aliança de ouro na
mão esquerda para mostrar que era casada. Os seus dedos eram compridos e
macios, como se nunca tivesse esfregado um tacho nem metido os dedos na
terra. Nem se tinha dado ao trabalho de oferecer à sua hóspede alguns
cabides. Nina tivera de trazer uma braçada deles do seu armário. No
entanto, Isabel Jacobs ainda estava a fazer perguntas, porque queria manter
o controlo.
– Disse que conhece a proprietária da casa?
– Conheço. É uma psiquiatra chamada Rita Dwighter e é amiga da minha
mãe. Tem casas por todo o lado. Na verdade, só em Londres tem doze
casas, que valem cerca de dois milhões de libras cada. Provavelmente,
pergunta aos doentes dela se contraíram empréstimos para comprar casa.
Isabel riu-se e desta vez Kitty riu-se também.
– Obrigada por me deixar ficar, já agora.
Isabel acenou a arredar o assunto e disse qualquer coisa sobre ir para
dentro para fazer torradas com mel. Kitty ficou a vê-la entrar a correr pelas
portas de vidro, esbarrando com Laura, que estava sentada à mesa da
cozinha, com uns auscultadores na cabeça e um emaranhado de fios à volta
do pescoço. Laura andava a aprender uma língua africana qualquer,
formando as palavras em voz alta com os seus lábios finos.
Kitty ficou sentada, nua e a tremer, na extremidade da piscina, a ouvir a
mulher alta e loura com olhos azuis assustados repetir numa cantilena frases
de outro continente. Ouviu os sinos da igreja a tocarem na aldeia e alguém a
suspirar. Quando olhou para cima, teve de fazer um esforço para não se
descontrolar pela segunda vez nessa manhã. Madeleine Sheridan estava
sentada na sua varanda como de costume, olhando fixamente para ela como
se estivesse a perscrutar o oceano à procura de tubarões. Era de mais. Kitty
levantou-se de um salto e agitou o punho à figura sombria que tomava o seu
chá da manhã.
– Foda-se, pare de me vigiar. Ainda estou à espera de que me traga os
sapatos, Dra. Sheridan. Já os tem?
Extraterrestres Com Saudades de Casa

Jurgen estava a arrastar um extraterrestre de borracha insuflável com um


metro e vinte de altura e o pescoço cheio de rugas para a cozinha do café de
Claude. Tinha-o comprado na feira da ladra no sábado e ele e Claude
estavam a ter três conversas ao mesmo tempo. Claude, que tinha acabado de
fazer vinte e três anos e sabia que se parecia com Mick Jagger, era
proprietário do único café da aldeia e planeava vendê-lo a promotores
imobiliários de Paris no ano seguinte. O que Claude queria saber era porque
é que os turistas tinham oferecido um quarto a Kitty Finch.
Jurgen coçou a cabeça e balouçou as rastas para encontrar um ângulo para
a pergunta. O esforço estava a deixá-lo exausto e ele não conseguia
encontrar uma resposta. Claude, cujo cabelo sedoso pelos ombros tinha um
corte caro para dar a impressão de que ele nunca se dava ao trabalho de o
arranjar, calculava que secretamente Kitty devia sentir repulsa pelas rastas
que Jurgen usava, porque sabia que podia ficar com ele sempre que
quisesse. Ao mesmo tempo, estavam ambos a troçar de Mitchell, que estava
sentado na esplanada a empanturrar-se de baguettes e compota enquanto
esperava que a mercearia abrisse. O homem gordo com a sua coleção de
armas antigas andava a gastar fiado no café e na mercearia, que era da mãe
de Claude. Mitchell ia levar à falência a família toda de Claude. Entretanto,
Jurgen estava a explicar o enredo do filme E.T. enquanto Claude descascava
batatas. Jurgen arrancou o cigarro aos lábios grossos do seu amigo e deu
uma passa enquanto tentava lembrar-se do filme que tinha visto no Mónaco
há três anos.
– O E.T. é um extraterrestre bebé que se vê perdido na Terra, a três
milhões de anos-luz de casa. Torna-se amigo de um miúdo de dez anos e
começam a ter uma ligação especial um com o outro.
Claude deitou uma piscadela de olho maliciosa ao pequeno extraterrestre
que estava na sua cozinha. – Que tipo de ligação?
Jurgen balouçou as rastas sobre uma tarte de pera acabada de cozer que
estava a arrefecer junto à janela da cozinha como se para se recordar de um
enredo que há muito esquecera.
– Então… Se o E.T. adoece, o miúdo terrestre também fica doente, se o
E.T. tem fome, o miúdo terrestre também fica com fome, se o E.T. está
cansado ou triste, então o miúdo sofre com ele. O extraterrestre e o seu
amigo estão em contacto com os pensamentos um do outro. Estão
mentalmente ligados.
Claude fez uma careta, porque Mitchell estava a chamá-lo, a pedir-lhe
mais um cesto de pão e uma fatia de tarte de pera, que tinha acabado de ser
incluída no menu. Claude disse a Jurgen que não conseguia perceber porque
é que o gordo nunca tinha dinheiro, apesar de estar na casa de férias de
luxo. A conta dele tinha rebentado com a escala. – Então, como é que acaba
o E.T.?
Jurgen, que normalmente estava demasiado pedrado para se lembrar fosse
do que fosse, tinha acabado de avistar Joe Jacobs à distância, a caminhar
por entre as ovelhas que pastavam nas montanhas. Por alguma razão,
conseguia lembrar-se de todas as falas do extraterrestre bebé no filme.
Achava que era porque ele próprio era também um alienígena, um rapaz
alemão da Natureza a viver em França. Explicou que o E.T. tem de se
desligar do rapaz, porque receia torná-lo muito doente e não quer fazer-lhe
mal. E depois descobre uma maneira de voltar para casa, para o seu planeta.
Jurgen deu uma cotovelada a Claude e apontou para o poeta inglês ao
longe. Parecia que estava a saudar algo invisível, porque estava a tocar com
os dedos na testa. Claude gostava bastante do poeta, porque ele deixava
sempre boas gorjetas e conseguira de algum modo fazer uma filha
adolescente linda, de pernas compridas, a quem Claude tinha pessoalmente
convidado a vir ao café tomar um aperitivo. Até agora, ela ainda não
aceitara o seu convite, mas ele vivia na esperança, porque, como dizia a
Jurgen, em que mais é que se podia viver?
– Ele é supersticioso, deve ter visto uma pega. É famoso. Tu queres ser
famoso?
Jurgen acenou com a cabeça. E depois sacudiu a cabeça e bebeu um gole
de uma garrafa com um líquido verde que estava encostada à garrafa de
óleo alimentar.
– Quero. Às vezes acho que seria bom não ser zelador e toda a gente
querer lamber-me as botas. Mas há um problema. Não tenho a energia
necessária para ser famoso. Tenho muito que fazer.
Claude apontou para o poeta, que parecia ainda estar a saudar pegas.
– Talvez ele esteja com saudades de casa. Quer voltar para casa, para o
seu planeta.
Jurgen gargarejou com a bebida verde que Claude sabia que era xarope de
menta. Jurgen estava mais ou menos viciado nele, da mesma maneira que
algumas pessoas são viciadas em absinto, que tinha a mesma cor verde-
fada.
– Não. Ele só está a evitar a Kitty Ket. Não leu a coisa da Ket e anda a
evitá-la. A Ket é como o E.T. Julga que tem uma ligação mental com o
poeta. Ele não leu a coisa dela e ela vai ficar triste e vai-lhe subir a tensão
arterial e vai matá-los a todos com as armas do gordo.
SEGUNDA-FEIRA

O Armadilhador

Mitchell estava deitado de costas a transpirar. Eram três da manhã e tinha


acabado de ter um pesadelo sobre uma centopeia. Tinha-a decepado com
uma faca de trinchar, mas ela dividiu-se em duas partes e começou a crescer
de novo. Quanto mais golpes lhe desferia, tantas mais centopeias havia.
Contorciam-se aos seus pés. Tinha centopeias até às orelhas e a lâmina da
sua faca estava coberta de visco. Rastejavam para dentro das suas narinas e
tentavam meter-se-lhe na boca. Quando acordou, perguntou-se se deveria
dizer a Laura que tinha o coração a bater com tanta força e tão depressa que
achava que talvez estivesse prestes a ter um ataque. Laura dormia
sossegada, virada de lado, com os pés fora da cama. Não havia cama no
mundo que fosse suficientemente grande para Laura. A cama deles em
Londres fora especialmente desenhada tendo em conta a altura dela e a
largura dele por um construtor naval dinamarquês. Ocupava o quarto todo e
assemelhava-se a um galeão atracado num laguinho de um parque
municipal. Estava alguma coisa a rastejar na direção dele ao longo da
parede caiada. Soltou um grito.
– O que foi, Mitch? – Laura sentou-se na cama e pôs a mão no peito
arfante do marido.
Ele apontou para a coisa na parede.
– É uma traça, Mitchell.
E o certo é que abriu as asas cinzentas e voou para fora pela janela.
– Tive um pesadelo – resmungou ele. – Um pesadelo terrível.
Ela apertou-lhe a mão quente e húmida. – Dorme. Vais-te sentir melhor
de manhã. – Puxou o lençol para o ombro e voltou a deitar-se.
Mitchell nunca conseguiria dormir. Levantou-se e foi lá acima à cozinha,
onde se sentia mais seguro. Abriu o frigorífico e tirou uma garrafa de água.
Enquanto levava a garrafa à boca e bebia avidamente a água gelada, sentiu-
se despedaçado como a centopeia. Quando ergueu a cabeça, que lhe doía,
reparou nalguma coisa no chão da cozinha. Era a ratoeira que tinha armado
para a ratazana. Tinha apanhado alguma coisa. Engoliu em seco e dirigiu-se
para ela.
Um pequeno animal estava deitado de lado com as costas para ele, mas
não era uma ratazana. Reconheceu o bicho. Era o coelho castanho de nylon
de Nina, com a sua longa orelha mole presa debaixo do arame. Via-lhe a
bola branca gasta da cauda e a etiqueta suja cosida na parte interior da
perna. A fita de cetim verde à volta do seu pescoço tinha-se também
enredado nos arames. Deu consigo a transpirar ao baixar-se para o libertar
do arame e foi então que reparou numa sombra no chão. Estava ali alguém
com ele. Alguém tinha entrado de assalto na casa e ele não tinha consigo as
suas armas. Até a sua arma antiga de ébano da Pérsia enxotaria quem quer
que ali estivesse.
– Olá, Mitchell.
Kitty Finch estava nua, encostada contra a parede, a vê-lo esforçar-se por
não ficar com os dedos presos na sua própria armadilha. Estava a mordiscar
o chocolate que ele deixara para a ratazana, com os braços cruzados sobre o
peito.
– Agora chamo-lhe o armadilhador, mas já avisei os mochos todos sobre
si.
Mitchell levou a mão ao seu coração palpitante e fitou o rosto pálido e
moralista de Kitty. Estava capaz de a matar. Se tivesse ali as suas armas era
o que faria. Alvejaria o estômago. Imaginou como empunharia a arma e
escolheu o momento de premir o gatilho. Ela cairia por terra, os seus olhos
cinzentos vidrados e arregalados, um buraco ensanguentado aberto na
barriga. Pestanejou e viu que ela ainda estava encostada à parede, a
provocá-lo com o chocolate que ele colocara tão cuidadosamente nos
arames. Parecia magra e patética e ele apercebeu-se de que a tinha
assustado.
– Desculpe ter sido tão abrupto.
– Pois. – Ela acenou com a cabeça como se subitamente fossem grandes
amigos. – Assustou-me, mas eu já estava assustada, de qualquer maneira.
Ele também estava aterrorizado. Por um momento, pôs seriamente a
hipótese de lhe contar o pesadelo que tivera.
– Porque é que mata animais e pássaros, Mitchell?
Ela era quase bonita, com a sua cintura estreita e cabelo comprido a
brilhar no escuro, mas também esfarrapado, não muito diferente de alguém
a pedir esmola à porta de uma estação de comboios com um cartaz a dizer
que era uma sem-abrigo e que tinha fome.
– Faz-me esquecer certas coisas – deu consigo a dizer como se fosse
verdade, que era.
– Que tipo de coisas?
Mais uma vez, ele pôs a hipótese de lhe contar algumas das preocupações
que lhe pesavam na mente, mas parou a tempo. Não podia pôr-se a
desabafar com uma doida como ela.
– Você é um desastre, Mitchell. Deixe de matar coisas e vai sentir-se
melhor.
– Não tem casa para onde ir? – Ele achou que a sua intenção tinha sido
boa, mas até aos seus próprios ouvidos soou a um insulto.
– Tenho, vivo com a minha mãe neste momento, mas não é a minha casa.
Enquanto ela se ajoelhava para o ajudar a soltar o coelho de peluche sujo
que ridicularizava a ratoeira, ele não conseguia entender porque é que
pensava que uma pessoa tão triste como ela pudesse ser perigosa.
– Sabe que mais? – Desta vez Mitchell achou que a sua intenção era
genuinamente boa. – Se usasse roupa mais vezes em vez de andar por aí
como veio ao mundo, pareceria mais normal.
Levada Misteriosamente

O desaparecimento de Nina só foi descoberto às sete da manhã depois de


Joe a chamar porque tinha perdido a sua caneta de tinta permanente
especial. A sua filha era a pessoa que lha encontrava sempre, fosse em que
altura fosse, um drama que Laura já ouvira pelo menos uma dúzia de vezes
naquelas férias. Sempre que Nina entregava vitoriosamente a caneta ao seu
pai aos berros e desamparado, ele envolvia-a nos braços e gemia
melodramaticamente: – Obrigado obrigado obrigado. – Muitas vezes numa
série de línguas: polaco, português, italiano. Ontem tinha sido: – Danke
danke danke.
Ninguém queria acreditar que Joe estivesse a chamar a filha aos gritos tão
cedo, mas era o que ele estava a fazer e Nina não respondeu. Isabel foi ao
quarto da filha e viu que as portas da varanda estavam abertas de par em
par. Levantou o edredão, esperando vê-la escondida debaixo da roupa de
cama. Nina não estava lá e o lençol estava manchado com sangue. Quando
Laura ouviu Isabel soluçar, correu para o quarto, onde encontrou a sua
amiga a apontar para a cama com uns estranhos sons sufocados a saírem-lhe
da boca. Estava pálida, branca de morte, a dizer palavras que soavam a
Laura como «osso», «cabelo» ou «ela não está aqui»; era difícil perceber o
que ela estava a dizer.
Laura sugeriu que fossem juntas procurar Nina no jardim e amparou-a
para fora do quarto. Pequenas aves faziam voo picado sobre a água verde e
parada da piscina para beberem. Uma caixa de bombons com recheio de
cereja do dia anterior estava a derreter na cadeira azul grande de Mitchell,
coberta de formigas. Duas toalhas húmidas cobriam as espreguiçadeiras de
lona e entre elas, como uma conversa interrompida, estava a cadeira de
madeira que Isabel tinha arrastado cá para fora para Kitty Finch se sentar.
Debaixo dela estava a caneta de tinta preta de Joe.

Este era o espaço reordenado de ontem. Passaram por entre os ciprestes


até ao jardim ressequido. Não chovia há meses e Jurgen tinha-se esquecido
de regar as plantas. A madressilva estava a morrer, a terra por baixo da
relva castanha rachada e dura. À sombra do pinheiro mais alto, Laura viu o
biquíni de Nina em cima das agulhas de pinheiro. Quando se baixou para
pegar nele, nem ela pôde deixar de pensar que o estampado de cerejas do
tecido dava a ideia de salpicos de sangue. Começou a remexer com os
dedos no bolso à procura da pequena calculadora de aço inoxidável que ela
e Mitchell tinham trazido para fazer as contas.
– A Nina está bem, Isabel. – Passou os dedos pela calculadora, como se
os números e os símbolos que sabia que estavam ali, os m+ e m-, o x e o
ponto decimal, de alguma forma resultassem no aparecimento de Nina. –
Provavelmente, foi dar um passeio. Quer dizer, ela tem catorze anos, não foi
realmente… – ia dizer «assassinada», mas mudou de ideias e disse antes
«levada misteriosamente».
Não acabou a frase, porque Isabel desatou a correr por entre os ciprestes
tão depressa e com tal força que as árvores continuaram a abanar durante
minutos. Laura observou o caos momentâneo das árvores. Era como se
tivessem sido desequilibradas e não soubessem bem como encontrar a sua
forma anterior.
Mães e Filhas

O quarto vago estava escuro e quente, porque as janelas estavam fechadas


e os cortinados corridos. Um par de chinelos de dedo sujos estava em cima
de um emaranhado de ervas daninhas secas no chão. O cabelo ruivo de
Kitty espalhava-se por uma almofada manchada e aos papos e os seus
braços sardentos abraçavam Nina, que agarrava o coelho de peluche de
nylon que era o seu último laço envergonhado com a infância. Isabel sabia
que Nina estava acordada e que estava a fazer de conta que dormia, coberta
pelo que dava a ideia de ser uma toalha de mesa engomada. Parecia uma
mortalha.
– Nina, levanta-te. – A voz de Isabel saiu-lhe mais ríspida do que ela
tencionava.
Kitty abriu os seus olhos cinzentos e segredou: – Veio o período à Nina
durante a noite e por isso ela meteu-se na minha cama.
As raparigas estavam ensonadas e contentes nos braços uma da outra.
Isabel reparou que os livros usados que Kitty tinha posto nas prateleiras,
cerca de seis, eram todos do seu marido. Dois botões de rosa cor-de-rosa
estavam num copo de água ao lado deles. As rosas só poderiam ter sido
colhidas no jardim da frente de Madeleine Sheridan, a sua tentativa de criar
uma recordação de Inglaterra em França.
Isabel recordou o estranho comentário de Kitty ontem de manhã, depois
de nadarem juntas: «A poesia do Joe é mais como uma conversa comigo do
que outra coisa qualquer.» Que tipo de conversa é que Kitty Finch estava a
ter com o seu marido? Deveria insistir que a sua filha saísse da cama e
deixasse este quarto que estava tão quente como uma estufa? Kitty estava
obviamente a manter o calor para aquecer as suas plantas. Tinha construído
um pequeno mundo quente e caótico, cheio de livros e de frutos e de flores,
um subestado no país da casa de férias com as suas estampas de Matisse e
de Picasso mal encaixilhadas penduradas nas paredes. Dois zangões
gorduchos rastejavam pelos cortinados amarelos à procura de uma janela
aberta. O guarda-fatos estava aberto e Isabel entreviu uma capa curta de
penas brancas pendurada ao canto. Magra e bonita, com os seus chinelos de
dedo e vestidos de verão maltrapilhos, parecia que Kitty Finch era capaz de
se instalar como em sua casa em qualquer sítio. Deveria Isabel insistir que
Nina se levantasse e voltasse para o seu quarto limpo e solitário lá em
cima? Arrancá-la aos braços de Kitty parecia um ato de violência.
Debruçou-se e beijou a sobrancelha escura da filha, que estremeceu
ligeiramente.
– Vem dizer-me olá quando estiveres acordada.
Os olhos de Nina estavam firmemente cerrados. Isabel fechou a porta.

Quando entrou na cozinha, disse a Jozef e a Laura que Nina estava a


dormir com Kitty.
– Ah. Foi o que eu pensei. – O seu marido coçou a nuca e desapareceu
para o jardim para ir buscar a caneta, que, dissera-lhe Laura, estava
«debaixo da cadeira da Kitty». Cobrira os ombros nus com uma fronha
branca e parecia um padre que se tivesse ordenado a si próprio. Fazia-o para
evitar que os ombros lhe ficassem queimados quando escrevia ao sol, mas,
de qualquer maneira, isso irritava Laura. Quando ela olhou para ele de
novo, ele estava a examinar o aparo de ouro como se tivesse sido danificado
de alguma forma. Ela abriu o frigorífico. Mitchell queria um pedaço de
queijo seco para apanhar a ratazana castanha que tinha visto a cirandar pela
cozinha à noite. A ratazana tinha tasquinhado o salame que estava
pendurado num gancho por cima da banca e ele tivera de o deitar fora.
Mitchell sentia-se não tanto enojado, mas mais ultrajado pelo bicho sujo
que devorava os petiscos que ele comprava com o dinheiro que tanto lhe
custava a ganhar. Considerava-o uma afronta pessoal, como se lenta mas
seguramente as ratazanas estivessem a roer-lhe a carteira.
Pais e Filhas

Então, a sua filha perdida estava a dormir na cama de Kitty. Joe sentou-se
no jardim à sua secretária improvisada, à espera de que o pânico que fizera
com que esfolasse a nuca com os dedos acalmasse, enquanto via a sua
mulher a falar com Laura dentro de casa. Tinha a respiração descontrolada,
estava a respirar com dificuldade. Pensava que Kitty Finch, que tinha
parado de tomar Seroxat e devia estar a sofrer, se descontrolara e
assassinara a sua filha? A sua mulher estava agora a caminhar na direção
dele por entre as clareiras nos ciprestes. Mudou as pernas de posição como
se parte dele quisesse fugir dela ou talvez fugir para ela. Não sabia mesmo
que direção tomar. Podia tentar dizer alguma coisa a Isabel, mas não sabia
bem como começar, porque não sabia bem como acabaria. Havia alturas em
que achava que ela mal conseguia olhar para ele sem esconder o rosto no
cabelo. E ele também não conseguia olhar para ela, porque a tinha traído
tantas vezes. Talvez agora devesse pelo menos tentar dizer-lhe que quando
ela abandonava a sua filha pequena para dormir numa tenda cheia de
escorpiões, ele compreendia que dava mais sentido à vida dela ser alvejada
em zonas de guerra do que ouvir as mentiras dele na segurança do seu
próprio lar. De qualquer maneira, ele sabia que a sua filha tinha chorado por
ela nos primeiros anos e que mais tarde aprendera a não o fazer, porque isso
não lhe traria a mãe de volta. Por sua vez (este assunto dava voltas sobre
voltas com regularidade na sua mente), a perturbação da sua filha trazia-lhe
a ele, o seu pai, sentimentos com que ele não conseguia lidar com
dignidade. Contara aos seus leitores como fora enviado para um colégio
interno pelos seus tutores e como costumava ficar a ver os pais dos seus
colegas irem embora no dia da visita (domingo), e como, se os seus
próprios pais o tivessem visitado, ele teria ficado especado para sempre nas
marcas dos pneus que o automóvel fizera no chão. A sua mãe e o seu pai
eram visitantes noturnos, não visitas da tarde. Apareciam-lhe em sonhos
que ele esquecia imediatamente, mas supunha que estavam a tentar
encontrá-lo. O que o preocupara mais era que achava que talvez eles não
tivessem um número suficiente de palavras inglesas entre os dois para se
fazerem compreender. O Jozef, o meu filho, está aqui? Temos andado a
procurá-lo pelo mundo todo. Ele tinha chorado por eles e mais tarde
aprendera a não o fazer, porque isso não os traria de volta. Olhou para a sua
mulher, esperta e bronzeada, com o seu cabelo escuro a esconder-lhe o
rosto. Esta era a conversa que poderia iniciar qualquer coisa ou terminar
qualquer coisa, mas saía toda mal, demasiado caótica e fodida. Ouviu-se
perguntar-lhe se ela gostava de mel.
– Gosto. Porquê?
– Porque eu sei tão pouco sobre ti, Isabel.
Meteria a pata em todos os buracos de todas as árvores para tirar o favo
de mel e pô-lo aos pés dela se achasse que assim ela ficaria um pouco mais
de tempo com ele e com a cria deles. Ela parecia hostil e solitária e ele
compreendia-o. Obviamente, ele metia-lhe nojo. Ela até a companhia de
Mitchell preferia à sua.
Ouviu-a dizer: – A principal coisa a fazer no resto do verão é
assegurarmo-nos de que a Nina está bem.
– É claro que a Nina está bem – ripostou ele. – Olho por ela desde os três
anos e ela está bem, não está?
E depois pegou no seu caderno e na caneta de tinta preta que tinha
desaparecido nessa manhã, sabendo que Isabel era derrotada de cada vez
que ele parecia estar a escrever e de cada vez que ele falava da filha deles.
Estas eram as suas armas para silenciar a mulher e mantê-la na sua vida,
manter a sua família intacta, defeituosa e hostil, mas ainda assim uma
família. A filha era o seu maior triunfo no casamento, a única coisa que ele
tinha feito bem.
«sim sim sim ela disse sim sim sim gosta de mel» – a sua caneta riscava
estas palavras agressivamente na página enquanto ele observava uma
borboleta branca a pairar sobre a piscina. Era como a respiração. Era um
milagre. Uma maravilha. Ele e a sua mulher sabiam coisas que era
impossível saber. Tinham ambos visto a vida a ser aniquilada. Isabel
registava e testemunhava catástrofes para tentar fazer com que as pessoas se
recordassem. Ele tentava fazer-se esquecer.
Apanhar Pedras

– Tem um buraco no meio.


Kitty segurou numa pedra do tamanho da sua mão e deu-a a Nina para
que ela espreitasse por ela. Estavam sentadas numa das praias públicas em
Nice abaixo da promenade des Anglais. Kitty disse que nas praias
concessionadas tinha de se pagar uma fortuna por espreguiçadeiras e
guarda-sóis. As pessoas pareciam doentes em camas de hospital e faziam-
lhe uma impressão horrível. O sol queimava manchas cor-de-rosa no seu
rosto pálido como a cera.
Nina espreitou obedientemente pelo buraco. Viu uma jovem a sorrir, com
um brilhante púrpura cravado no dente da frente. Quando virou a pedra, a
mulher estava a tirar comida de um saco de plástico. Estava lá também
outra mulher, sentada numa cadeira baixa de lona às riscas e a segurar pela
trela um cão grande e branco com a mão direita. O cão parecia um lobo da
neve. Um husky com olhos azuis. Nina fitou os seus olhos azuis através do
buraco na pedra. Não tinha bem a certeza, mas parecia-lhe que o lobo da
neve estava a desapertar os atacadores dos sapatos da mulher que tinha o
brilhante no dente. Nina via tudo isto em fragmentos através do buraco na
pedra. Quando voltou a olhar, viu que a mulher de T-shirt preta só tinha um
braço. Virou a pedra no sentido longitudinal e espreitou por ela,
semicerrando o olho. Uma cadeira de rodas elétrica decorada com conchas
estava estacionada perto da cadeira de lona. Agora as mulheres estavam a
beijar-se. Como amantes. Vendo-as a encostarem-se uma à outra, Nina
ouviu a sua respiração ficar mais alta. Durante todas as férias tinha andado
a pensar o que faria se alguma vez se visse sozinha com Claude. Ele tinha-a
convidado para ir ao seu café para o que descrevera como um aperitivo. Ela
não sabia bem o que isso era e, de qualquer maneira, tinha acontecido uma
coisa que mudava tudo.

Ontem à noite, quando acordou, descobriu que estava a menstruar pela


primeira vez. Tinha-se atrevido a pôr o biquíni, porque era a única coisa que
conseguira encontrar, e a ir bater à porta de Kitty para lhe contar a
novidade. Kitty estava deitada acordada debaixo de uma velha toalha de
mesa e tinha enrolado um dos seus vestidos para fazer de almofada.
– Já comecei.
Ao princípio, Kitty não compreendeu o que ela queria dizer. E depois
agarrou na mão de Nina e correram para o jardim. Nina via a sua própria
sombra na piscina e no céu ao mesmo tempo. Era alta e comprida, não tinha
fim nem princípio, o seu corpo estava esticado e era vasto. Queria nadar, e
quando Kitty insistiu que o sangue não fazia diferença, ela atreveu-se a tirar
o biquíni e a ficar nua, vendo a sua sombra gémea desatar as fitas do biquíni
com mais coragem do que a Nina de tamanho real sentia de facto. Por fim,
saltou para a piscina e escondeu-se no manto de folhas que flutuava na
água, sem saber bem o que fazer com o seu novo corpo, porque ele estava a
transformar-se em algo estranho e que a deixava perplexa.
Kitty nadou até ela e apontou-lhe os caracóis prateados nas lajes. Disse
que as estrelas espalhavam a sua poeira sobre tudo. Havia pedacinhos de
estrelas partidas nos caracóis. E depois pestanejou.
pe pe pe pe pe pestanejou.
Nua de pé na água, Nina fez de conta que tinha um problema sério de fala
e produziu uns gaguejos na sua cabeça. Sentia-se outra pessoa. Alguém que
tivesse começado. Alguém que não era ela. Sentia-se insuportavelmente
feliz e mergulhou a cabeça na água para celebrar o milagre da chegada de
Kitty Finch. Não estava sozinha com a Laura e o Mitchell e com a mãe e o
pai, que não tinha a certeza de que gostassem um do outro, menos ainda de
que se amassem.

Nina atirou a pedra ao mar, o que pareceu irritar Kitty. Pôs-se de pé e


puxou por Nina para ela também se levantar.
– Preciso de juntar mais pedrinhas. Aquela que deitaste fora era perfeita.
– Para que é que as queres?
– Para as estudar.
Nina coxeava, porque as sapatilhas lhe roçavam contra as bolhas que
tinha nos calcanhares. – São demasiado pesadas para carregar com elas –
gemeu. – Eu quero ir-me embora.
Kitty estava a transpirar e o seu hálito tinha um cheiro doce.
– Pois, bem, desculpa lá fazer-te perder tempo. Já alguma vez esfregaste
um soalho, Nina? Já alguma vez te puseste de joelhos com um trapo
enquanto a tua mãe te grita que limpes os cantos? Já alguma vez aspiraste
as escadas e levaste os sacos do lixo lá fora?
A menina mimada, com os seus calções caros (ela tinha visto a etiqueta) e
todas as pontas espigadas cortadas, tinha obviamente chegado aos catorze
anos sem levantar um dedo.
– Precisas de uns problemas a sério para levares para a tua casa toda fina
em Londres.
Kitty atirou com a mochila cheia de pedras e marchou pelo mar dentro
com o vestido cor de manteiga que dizia que a punha muito bem-disposta.
Nina ficou a vê-la mergulhar numa onda. A casa em Londres a que Kitty se
referira não era exatamente acolhedora. O pai sempre no escritório. A mãe
fora, com os sapatos e os vestidos perfilados no guarda-fatos como os de
alguém que tivesse morrido. Quando ela tinha sete anos e andava sempre
com piolhos, a casa cheirava às poções mágicas que costumava fazer com
os cremes para o rosto da mãe e o creme de barbear do pai. A casa grande
no Oeste de Londres cheirava a outras coisas também. Às namoradas do pai
e aos seus vários champôs. E ao perfume do pai, que lhe era feito por uma
suíça de Zurique que se tinha casado com um homem que era proprietário
de dois cavalos de competição na Bulgária. O pai dizia que os perfumes
dela lhe «abriam a mente», especialmente o seu favorito, que se chamava
Hungary Water. A casa toda fina cheirava ao estatuto especial dele e aos
lençóis que ele metia sempre na máquina depois de as namoradas se irem
embora de manhã. E à compota de alperce que ele metia à boca às
colheradas diretamente do frasco. Ele dizia que a compota mudava o tempo
dentro dele, mas ela não sabia qual era o tempo, para começar.

Sabia mais ou menos. Por vezes, quando entrava no escritório dele,


achava que ele estava com um aspeto lastimável, curvado no seu roupão,
em silêncio e parado como se tivesse sido trespassado por alguma coisa. Ela
tinha-se habituado aos dias em que ele estava afundado na cadeira e se
recusava a olhar para ela ou até mesmo a levantar-se noites a fio. Ela
fechava a porta do escritório e levava-lhe canecas de chá em que ele nunca
tocava, porque ainda lá estavam quando ela lhe falava do outro lado da
porta (com uma película bege viscosa formada à superfície do chá) e lhe
pedia dinheiro para o almoço ou que assinasse uma carta a autorizá-la a ir a
uma visita de estudo. Acabava por as assinar ela com a caneta de tinta
permanente do pai, a razão por que sabia sempre onde é que ela estava,
usualmente debaixo da cama dela ou virada ao contrário no quarto de banho
juntamente com as escovas dos dentes. Tinha inventado uma assinatura que
conseguia replicar. J.H.J., com um ponto entre as letras e um floreado no
último J. Ao fim de algum tempo, ele costumava animar-se e levava-a à
Angus Steak House, onde se sentavam sempre no mesmo banco forrado a
veludo vermelho desbotado. Nunca falavam sobre a infância dele ou sobre
as suas namoradas. Não era propriamente um pacto secreto implícito entre
eles, era mais como ter um minúsculo estilhaço de vidro na planta do pé,
sempre lá, ligeiramente doloroso, mas conseguia viver com isso.

Quando Kitty voltou, com o vestido encharcado, vinha a dizer alguma


coisa, mas o husky estava a ladrar a uma gaivota. Nina via os lábios de Kitty
a mexerem-se e sabia, com uma sensação dolorosa dentro de si, que ela
ainda estava zangada ou que havia algo de errado. Quando se dirigiam para
o carro, Kitty disse: – Vou encontrar-me com o teu pai no café do Claude
amanhã. Ele vai-me falar sobre o meu poema. Nina, estou tão nervosa!
Devia ter arranjado um emprego para o verão num pub em Londres e não
me ter incomodado. Não sei o que vai acontecer.
Nina não estava a escutá-la. Tinha acabado de ver um rapaz de calções
prateados a patinar no passeio junto ao mar com um saco de limões enfiado
debaixo do seu braço bronzeado. Parecia-se um bocado com Claude, mas
não era ele. Quando ouviu uma ave guinchar como se, pareceu-lhe,
estivesse em agonia, não se atreveu a olhar para trás para a praia. Achou
que o husky ou lobo da neve talvez tivesse afinal apanhado a gaivota.
Talvez nada disso estivesse a acontecer e, seja como for, ela acabara de
avistar a senhora de idade que vivia na casa ao lado a caminhar no passeio à
beira-mar. Vinha a falar com Jurgen, que estava de óculos de sol roxos em
forma de corações. Nina chamou-os e acenou-lhes.
– É a Madeleine Sheridan, a nossa vizinha.
Kitty olhou para cima. – Sim, eu sei. A bruxa velha e má.
– É?
– É. Chama-me Katherine e quase me matou.
Depois de ter dito aquilo, Kitty fez algo tão assustador que Nina disse a si
própria que não tinha visto bem. Inclinou-se para trás de tal modo que o seu
cabelo cor de cobre se estendeu em ondas até à parte de trás dos joelhos e
abanou a cabeça de um lado para o outro muito depressa enquanto sacudia e
agitava as mãos acima da cabeça. Nina via-lhe os chumbos nos dentes. E a
seguir ela levantou a cabeça e fez um gesto feio com o dedo a Madeleine
Sheridan.
Kitty Finch era marada.
Enfermeiras de Odessa

Madeleine Sheridan estava a tentar pagar um cartucho de amêndoas


caramelizadas que tinha comprado ao vendedor mexicano no passeio à
beira-mar. O cheiro de açúcar queimado fê-la sentir o desejo de comer as
amêndoas que, esperava ela, acabariam por a matar engasgada. Tinha as
unhas a desfazerem-se, os ossos a enfraquecer, o cabelo a ficar ralo, a
cintura perdida para sempre. Tinha-se transformado num sapo na velhice e
se alguém se atrevesse a beijá-la ela não voltaria a transformar-se numa
princesa, porque nunca tinha sido uma princesa.
– Estas malditas moedas. Quanto é esta, Jurgen? – Sem dar tempo a
Jurgen de responder, ela segredou: – Viu a Kitty Finch a fazer-me aquele
gesto?
Ele encolheu os ombros. – Claro. A Kitty Ket tem algo a dizer-lhe. Mas
agora tem uns amigos novos para a fazerem feliz. Eu tenho de marcar o
passeio a cavalo para a Nina. É a Ket que vai levá-la.
Ela deixou que ele lhe pegasse no braço e a conduzisse (um nadinha
demasiado depressa) para um dos bares na praia. Ele era a única pessoa a
quem ela falava sobre a sua vida em Inglaterra e a sua fuga do seu
casamento. Apreciava o facto de ele andar sempre pedrado, tornava-o
pouco crítico. Apesar da diferença de idade entre eles, gostava da sua
companhia. Como ele não tinha mais nada para fazer na vida a não ser viver
à custa de outras pessoas e de expedientes, fazia-a sempre sentir-se digna
em vez de um caso triste, provavelmente porque não a escutava.

Hoje ela quase não o escutava. A chegada de Kitty Finch era uma má
notícia. Era isto que ela estava a pensar enquanto fitava um barco a motor a
fazer cicatrizes de espuma no mar azul-acinzentado. Quando ele encontrou
uma mesa à sombra e a ajudou a sentar-se numa cadeira que era demasiado
pequena para um sapo, não pareceu dar-se conta de que ela teria de torcer o
corpo em posições que lhe causavam dor. Era uma falta de atenção da parte
dele, mas ela estava demasiado desorientada pela visão de Kitty Finch para
se importar.
Tentou acalmar-se insistindo que Jurgen tirasse os óculos de sol.
– É como olhar para dois buracos negros, Jurgen.
Fazia anos daí a quatro dias e neste momento estava com sede por causa
do calor, quase louca de sede. Há semanas que aguardava com expectativa
este almoço com ele. Nessa manhã, tinha telefonado para o seu restaurante
preferido para saber o que havia no menu, onde estava posicionada a sua
mesa e para pedir ao chefe de sala que lhe guardasse um lugar de
estacionamento à porta a troco de uma boa gorjeta. Pediu aos gritos ao
empregado do bar um whisky para si e uma Pepsi para Jurgen, que não
gostava de bebidas alcoólicas por razões espirituais. Era difícil uma mulher
de idade atrair a atenção de um empregado de mesa quando ele andava
atarefado a servir mulheres a apanhar banhos de sol em topless e fio dental.
Tinha lido um artigo sobre posturas de ioga que proporcionavam a
invisibilidade humana através de uma combinação de concentração e de
meditação. De alguma forma, ela tinha conseguido tornar o seu corpo
impercetível ao empregado sem qualquer treino. Ergueu ambos os braços e
acenou-lhe como se estivesse a mandar descer um avião numa ilha deserta.
Jurgen apontou para o acordeonista de Marselha empoleirado num caixote
de madeira junto à máquina de jogos com luzes a piscar. O músico estava a
transpirar, enfiado num fato preto três números acima do seu.
– Ele vai tocar num casamento hoje à tarde. Disse-me o apicultor de
Valbonne. Se eu me casasse, também lhe pedia que tocasse no meu
casamento.
Madeleine Sheridan, beberricando o seu merecido whisky, ficou
surpreendida por a voz dele se tornar subitamente tão aguda.
– Casar não é boa ideia, Jurgen.
De maneira nenhuma. Ela começou a contar-lhe (outra vez) como as duas
grandes partidas na sua vida tinham sido deixar a família para estudar
Medicina e deixar o marido para viver em França. Tinha chegado à
conclusão de que não estava saciada com amor por Peter Sheridan e trocara
uma vida respeitável de infelicidade pela infelicidade desrespeitável de ser
uma mulher que tinha cortado os laços com o amor. Agora parecia-lhe,
fitando o seu companheiro, cuja voz tremia descontroladamente, que no seu
coração estropiado (demasiados cigarros) ele queria dar o nó, fechar o
círculo da sua vida sozinho, o que, francamente, era uma afronta.
Recordou-lhe a altura em que andavam a passear na praia em Villefranche
e viram um casamento a realizar-se no porto. As damas de honor estavam
com vestidos de tafetá amarelo e a noiva de cetim creme e amarelo. Ela
tinha troçado da figura que faziam em voz alta, mas o que é que o hippy
Jurgen tinha dito?
– Dê-lhes uma hipótese.
Este era o mesmo homem que alguns meses antes tinha dito à namorada
que nada lhe indicava que o casamento fosse uma boa ideia. Ela não tinha
acreditado nele e levara-o a um churrasco argentino para lhe propor
casamento. Grandes pilhas de madeira aromática. Nacos de carne das
pampas atirados para as brasas. A namorada dele atacou a carne vermelha
até reparar que Jurgen não estava a comer e se lembrar de que Jurgen era
um vegetariano militante. Talvez ela se tivesse rido demasiado alto quando
ele lhe disse isso.
– Acho que a Kitty Finch quer fazer-me mal.
– Ach, nein. – Jurgen contraiu o rosto como se estivesse com dores. – A
Ket só faz mal a si própria. O Claude perguntou-me porque é que a
Madame Jacobs insistiu que ela ficasse. Mas eu não faço ideia.
Ela fitou o amigo com os seus olhos nublados, míopes. – Acho que ela
quer que a bela rapariga doida lhe distraia o marido para ela poder
finalmente deixá-lo.
Subitamente, Jurgen quis pagar uma bebida ao acordeonista. Chamou o
empregado e disse-lhe para oferecer uma cerveja ao homem de fato grande.
Madeleine ficou a ver o empregado a segredar ao ouvido do músico e
tentou esquecer como tinha dado com Kitty Finch no túnel junto ao
mercado de flores em Cours Saleya há quatro meses. O seu encontro era
mais uma coisa que ela queria acrescentar à longa lista de coisas que queria
esquecer.

Encontrara a rapariga inglesa de cabelo flamejante numa manhã fresca de


primavera quando ia comprar duas barras de sabão de Marselha, um de óleo
de palma e o outro de azeite, ambos misturados com plantas marinhas do
Mediterrâneo pelo artesão de sabonetes local. Kitty estava nua e a falar
sozinha em cima de um caixote de ameixas podres que os agricultores
tinham deitado fora ao fim do dia. Os sem-abrigo que dormiam no túnel
estavam a rir-se dela, a fazer comentários maliciosos sobre o seu corpo nu.
Quando Madeleine Sheridan lhe perguntou o que tinha acontecido às suas
roupas, ela disse que estavam na praia. Madeleine ofereceu-se para ir de
carro à praia buscá-las. Kitty podia deixar-se ficar exatamente onde estava e
esperar por ela. E depois Madeleine levá-la-ia de volta à casa de férias onde
ela estava para estudar plantas da montanha. Ficava lá frequentemente
quando Rita Dwighter não a tinha alugado a gestores de fundos
aposentados, porque a mãe de Kitty trabalhava para ela a fazer limpezas.
Mrs Finch era o braço direito de Rita Dwighter, a sua secretária e
cozinheira, mas principalmente a sua empregada da limpeza, porque na sua
mão direita estava sempre uma esfregona.
Kitty Finch insistira que se ela não se fosse embora ela gritaria pela
polícia. Madeleine Sheridan poderia tê-la deixado ali, mas não o fez. Kitty
era demasiado nova para estar a falar sozinha entre os homens de olhos
mortiços a fitarem os seus seios. Para sua surpresa, a rapariga doida
subitamente mudou de ideias. Aparentemente, tinha deixado os jeans e uma
T-shirt e um par de sapatos, os seus sapatos preferidos, vermelhos às
pintinhas, na praia em frente ao Hotel Negresco. Kitty inclinou-se para ela e
segredou-lhe ao ouvido: – Brigadinha. Eu espero aqui que os vá buscar. –
Madeleine Sheridan tinha dobrado a esquina e quando achou que Kitty já
não conseguia vê-la chamou uma ambulância.
Na sua opinião, Katherine Finch sofria de ansiedade psíquica, perda de
peso, falta de sono, agitação, pensamentos suicidas, pessimismo em relação
ao futuro, dificuldade de concentração.

O músico ergueu o copo de cerveja num gesto de agradecimento ao


homem gracioso que estava sentado com a idosa.

Kitty Finch tinha sobrevivido ao seu diagnóstico sumário. A mãe levou-a


para casa, para a Grã-Bretanha, e ela passou dois meses num hospital no
Kent, o jardim de Inglaterra. Aparentemente, as enfermeiras eram da
Ucrânia, de Odessa e de Kiev. Com os seus uniformes brancos, pareciam
campânulas brancas nos relvados verdes aparados do hospital. Foi o que
Kitty Finch disse à mãe e o que Mrs Finch disse a Madeleine, que ficou
espantada ao saber que as enfermeiras fumavam todas cigarros atrás de
cigarros no intervalo para o almoço.

Jurgen acotovelou-a. O acordeonista de Marselha estava a tocar uma


música para ela. Ela sentia-se demasiado agitada para o escutar. Kitty tinha
sobrevivido e agora voltara para a castigar. Talvez até para a matar. Por que
outra razão estaria aqui? Madeleine não achava que Kitty fosse uma pessoa
de confiança para levar Nina de carro à praia e por estradas de montanha
perigosas. Devia dizer isso a Isabel Jacobs, mas por alguma razão não
conseguia dispor-se a ter essa conversa. Apesar de estar a caminho de ir
comprar sabão e acabar por chamar uma ambulância, Transport Sanitaire
em francês, não sentia que tivesse as mãos inteiramente limpas. Mesmo
assim, estar nua num lugar público, andar a saltar para a frente e para trás
ao mesmo tempo que entoava algo incoerente, isso fizera-a recear pela
jovem desgraçada. Era impossível acreditar que alguém não quisesse que a
salvassem da sua incoerência.
Quando o acordeonista acenou a Jurgen, ele soube que estava com sorte.
Compraria haxixe e ele e Claude iriam fumá-lo e sair da Riviera enquanto
todos os turistas queriam entrar nela. Voltou a pôr os seus óculos de sol
roxos e disse a Madeleine Sheridan que estava muito, muito feliz hoje, mas
que estava um bocadinho preso dos intestinos. Achava que tinha o cólon
bloqueado e isso era porque não tinha vivido o seu sonho. Qual era o seu
sonho? Bebeu um gole de Pepsi e reparou que a médica inglesa se tinha
arranjado toda para o almoço. Pusera bâton e o cabelo, o que restava dele,
tinha sido lavado e penteado aos caracóis. Ele não podia contar-lhe que o
seu sonho era ganhar o totoloto e casar com Kitty Ket.
TERÇA-FEIRA

Ler e Escrever

Joe Jacobs estava deitado de costas na suite, como o quarto era descrito
no folheto informativo da casa de férias, cheio de vontade de comer um
caril. O sítio onde mais lhe apetecia estar neste momento era no atelier do
seu alfaiate hindu em Bethnal Green. Rodeado por seda. A beber chá doce.
Do que sentia falta nos Alpes-Maritimes era de dhal. De arroz. De iogurte.
E de autocarros. Sentia a falta do andar de cima nos autocarros. E de
jornais. E de boletins meteorológicos. Por vezes, sentava-se no seu
escritório no Oeste de Londres com o rádio ligado a escutar atentamente a
previsão do tempo para a Escócia, a Irlanda e o País de Gales. Se o sol
estava a brilhar no Oeste de Londres, reconfortava-o saber que estaria a
nevar na Escócia e a chover no País de Gales. Agora ia ter de se sentar e
não continuar deitado. Pior ainda, ia ter de se levantar e de revistar a suite à
procura do poema de Kitty Finch. À distância, ouvia Mitchell a disparar
sobre coelhos no pomar. Ajoelhou-se no chão e agarrou o envelope que
tinha atirado a pontapé para debaixo da cama. Segurou nas mãos o envelope
usado e deu consigo a olhar fixamente para o título escrito com a aprumada
letra científica de uma botânica acostumada a fazer desenhos precisos de
plantas e a etiquetá-los.

Nadar Para Casa


por
Kitty Finch

Quando finalmente tirou a folha de dentro do envelope, ficou


surpreendido por sentir a mão a tremer como a mão do seu pai poderia ter
tremido se tivesse vivido o tempo suficiente para consertar chaleiras na
velhice. Segurou a folha perto dos olhos e forçou-se a ler as palavras que
flutuavam na página. E depois afastou a página dos olhos e leu-a de novo.
Não havia nenhum ângulo que tornasse mais fácil apreendê-la. As palavras
dela estavam por todo o lado, a nadar à volta das margens do retângulo de
papel, por vezes desaparecendo completamente, mas voltando para o centro
da página pautada com a sua mensagem triste e final. O que é que ela
esperava que ele lhe dissesse depois de a ter lido? Estava perplexo. Uma
carrinha do peixe tinha estacionado à porta da casa de férias. A voz
atroadora que saía do altifalante estava a berrar nomes de peixes. Alguns
eram grand, alguns eram petit. Alguns eram a seis francos e alguns eram a
treze francos. Nenhum tinha nadado para casa. Tinham todos sido
apanhados no caminho. A fita-cola que selara o envelope lembrava-lhe um
penso rápido num arranhão. Inspirou fundo e expirou lentamente. Ia ter de
improvisar qualquer coisa ao almoço. Palpou o interior do bolso do casaco
para se assegurar de que a carteira ainda lá estava e atirou com o envelope
para debaixo da cama dizendo a si próprio mais uma vez o quanto odiava as
terças-feiras. E as quartas, quintas, sextas, etc.
et cetera
Uma expressão latina que significa «e outras coisas» ou «assim por
diante» ou «o resto de coisas dessas». O poema, «Nadar Para Casa», era na
sua maior parte constituído por etcs; contara sete só em metade da página.
Que tipo de linguagem era esta?

A minha mãe diz que eu sou a única joia da sua coroa


Mas eu cansei-a com todos os meus etc,
E por isso agora ela anda com bengalas

Aceitar a sua linguagem era aceitar que ela o tinha a ele, o seu leitor, em
grande estima. Estava a ser-lhe pedido que desse algum sentido àquilo e o
sentido que ele lhe dava era que cada etc ocultava alguma coisa que não
podia ser dita.

Kitty estava à espera dele na esplanada do café de Claude. Para seu


desagrado, viu que Jurgen estava sentado na mesa em frente da dela.
Parecia estar a brincar com um pedaço de cordel, a tecê-lo entre os dedos
para fazer uma teia de aranha. Estava a tornar-se-lhe claro que Jurgen era
uma espécie de cão de guarda de Kitty Finch, não exatamente arreganhando
os dentes a todos os intrusos, mas protetor e possessivo mesmo assim.
Parecia ter esquecido que a intrusa era ela. De qualquer forma, Jurgen
estava obviamente ali para se assegurar de que quem se aproximava dela
era uma visita bem-vinda e não um assaltante. Ele não parecia obter grande
afeto dela. Era como se ela soubesse que nunca deveria fazer-lhe festas ou
mimos para não o fazer sentir-se menos alerta para a sua segurança.
– Olá, Joe. – Kitty sorriu. Parecia que tinha encostado a testa a um ferro
em brasa. Era ruiva e o sol tinha sido brutal para a sua pele pálida.
Ele acenou com a cabeça, fazendo tilintar as moedas no bolso do casaco
quando se sentou. – Devia usar protetor solar, Kitty – disse ele
paternalmente.
Claude, que sabia que se parecia cada vez mais com Mick Jagger e se
esforçava bastante por manter este feliz acaso genético, avançou com
passos elegantes para a mesa deles com uma garrafa grande de água mineral
e dois copos. Joe viu isto como uma oportunidade de passar tempo e evitar
falar sobre o poema que tinha pontapeado para debaixo da cama com as
baratas, etc.
Voltou-se para Kitty. – Mandou vir isto?
Ela abanou a cabeça e fez uma careta sombria a Claude. Joe ouviu-se a
berrar ao empregado, que estava a fazer beicinho.
– Que mal tem a água da torneira?
Claude fitou-o com hostilidade evidente. – A água da torneira está cheia
de hormonas.
– Não está nada. As garrafas de água são um truque para sacar mais
dinheiro aos turistas.
Joe ouviu Claude rir. O único outro som era dos pássaros. E o zumbido
nervoso dentro de Kitty Finch, que era uma ave ou qualquer coisa de um
conto de fadas. Não conseguia olhar para ela. Em vez disso, pregou os
olhos em Claude.
– Diga-me, cavalheiro. O seu país é incapaz de processar água que seja
seguro beber?
Claude, com o floreado de um chulo barato a exibir os seus novos botões
de punho de diamantes, rodou a tampa da garrafa de água gelada e dirigiu-
se para os seus cães, que estavam a dormir à sombra do castanheiro. Piscou
o olho a Jurgen enquanto vertia a água para as taças de louça rachadas que
estavam junto às patas dos cães. Os cães lamberam a água com indiferença
e depois desistiram. Claude fez-lhes festas na cabeça e voltou com passos
elegantes para o café. Quando voltou a sair, trazia um copo de água da
torneira tépida e turva, que pôs à frente do poeta inglês.
Joe ergueu o copo ao sol. – Parto do princípio – berrou ao zelador, que
ainda estava a desembaraçar o seu cordel – de que este copo de água vem
de um pântano pútrido. – Bebeu a água de um só gole e apontou para o
copo vazio. – Isto é água. Encontra-se nos oceanos e nas calotas glaciares…
Encontra-se nas nuvens e nos rios… será…
Claude estalou os dedos debaixo do nariz do poeta. – Obrigado,
monsieur, pela lição de Geografia. Mas o que nós queremos saber é se leu a
poesia aqui da nossa amiga? – Apontou para Kitty. – Porque ela diz-nos que
é um poeta muito respeitado e que se ofereceu muito simpaticamente para
lhe dar uma opinião.
Joe teve de olhar finalmente para Kitty Finch. Os seus olhos cinzentos,
que eram por vezes verdes, pareciam brilhar ainda mais radiosamente no
seu rosto queimado. Não parecia minimamente embaraçada pela
intervenção de Claude a seu favor. De facto, parecia estar divertida, até
grata. Joe calculou que este era o pior dia das suas férias até àquele
momento. Era demasiado velho, estava demasiado ocupado para ter de
aturar uma aldeia cheia de idiotas mais fascinados com ele do que ele se
sentia por eles.
– Isso é uma conversa privada entre dois escritores – disse ele em voz
baixa para ninguém em particular.
Kitty corou e fitou os pés. – Acha que eu sou uma escritora?
Joe franziu a testa. – É, acho que provavelmente é.
Olhou nervosamente para Jurgen, que parecia estar absorto no puzzle do
seu cordel. Os cães estavam agora a beber a água engarrafada cara nas suas
taças. Claude dançou para dentro do café, onde tinha colado à parede um
cartaz de Charlie Chaplin, de pé, com a cara branca num círculo de luz e a
bengala entre as pernas. Por baixo estavam escritas as palavras Les Temps
Modernes. Ao lado, encontrava-se o novo modelo de borracha do E.T., com
o seu pescoço de extraterrestre bebé enfeitado com uma tira de hera
artificial. Claude começou a fritar as batatas do dia anterior em gordura de
pato, espreitando pela janela para ver o que o poeta e Kitty Ket estavam a
fazer.
Kitty debruçou-se para a frente e tocou com a mão no ombro de Joe. Era
um gesto estranho. Como se estivesse a testar se ele estava ali.
– Tenho os seus livros todos no meu quarto.
Soava vagamente ameaçadora. Como se por ter os seus livros, ele por sua
vez lhe devesse alguma coisa. Os caracóis da cor do cobre do seu cabelo
comprido por escovar a caírem-lhe nos ombros pareciam um sonho
maravilhoso que ele poderia ter inventado para se animar. Como é que ela
tinha conseguido abarbatar-se a tanta beleza? Cheirava a rosas. Era macia e
delgada e flexível. Era interessante e encantadora. Adorava plantas. Tinha
dedos verdes1. E, mais literalmente, unhas verdes. Admirava-o, queria a sua
atenção e intrigava-o, mas ele não precisava de se ter dado ao trabalho de
ler o seu poema porque já o compreendia.

Claude, com nova humildade e equanimidade, pôs uma taça de salada


verde e batatas fritas na mesa deles. Joe pegou numa batata e mergulhou-a
na mostarda.
– Tenho estado a pensar no seu título, «Nadar Para Casa».
O seu tom era indiferente, mais descontraído do que se sentia. Não lhe
disse como tinha estado a pensar no seu título. A piscina retangular que
tinha sido escavada em pedra no jardim da casa lembrava-lhe um caixão.
Um caixão aberto flutuante, iluminado com as luzes subaquáticas que
Jurgen amaldiçoava quando mexia nas lâmpadas incandescentes que já
tivera de mudar duas vezes desde que eles tinham chegado. Uma piscina era
só um buraco na terra. Uma sepultura cheia de água.
Dois parapentistas vogavam em seda amarela entre as montanhas. As
estreitas ruas empedradas da aldeia estavam desertas. Os parapentistas
estavam a aterrar perto do rio em vez de na base habitual a cinco
quilómetros.

Kitty encheu a boca com folhas de alface. Um gato magro ronronou


roçando-se-lhe nos tornozelos quando ela atirou as suas batatas fritas para
debaixo da mesa. Inclinou-se para a frente.
– Aconteceu-me uma coisa este ano. Esqueci-me de coisas. – Franziu a
testa e ele viu que a queimadura começava a ganhar bolhas.
– Que tipo de coisas?
– Não consigo lê lê lê lê.
Ela não era poeta. Era um poema. Estava prestes a partir-se em duas. Ele
pensou que a sua própria poesia a fizera a a a a amá-lo. Era insuportável.
Ele não conseguia suportá-lo. Ela ainda estava a lembrar-se de como se
dizia lembrar-se.
Se ele não era capaz de falar do poema dela, para que servia? Mais lhe
valia mudar-se para a província e tomar conta da barraquinha das rifas na
festa da igreja. Mais lhe valia começar a escrever histórias sobre os últimos
anos do império, em que aparecesse um Humber V8 Snipe preto e coberto
de poeira com um motorista idoso de confiança.
Ela era uma leitora astuta e estava perturbada e tinha pensamentos
suicidas, mas afinal como é que ele queria que fossem os seus leitores? Era
necessário que comessem os legumes todos, tivessem um salário mensal
regular e um fundo de pensões, com uma inscrição anual no ginásio e um
cartão de fidelização do seu supermercado preferido?
O olhar dela, a adrenalina deste era como uma mancha, os etcs no seu
poema uma luz brilhante, um ruído estridente. E se tudo isto não fosse
assustador o suficiente, a atenção dela ao pormenor de cada dia era-o ainda
mais, ao pólen e às árvores com problemas e aos instintos dos animais, às
dificuldades de fazer de conta que se é implacavelmente são de espírito, à
maneira como ele andava (ocultara à família o reumatismo que o
envelhecia), aos cambiantes de estado de espírito e sentimento de todos
eles. Ontem ele tinha-a visto libertar algumas abelhas presas no vidro de
uma lanterna como se fosse ela que estivesse prisioneira. Ela era tão
recetiva quanto era possível ser-se, uma exploradora, uma aventureira, um
pesadelo. Cada momento com ela era uma espécie de emergência, as suas
palavras sempre demasiado diretas, demasiado cruas, demasiado
verdadeiras.
Não havia outra coisa a fazer a não ser mentir.
– Desculpe, Kitty, mas ainda não li o seu poema. E tenho um prazo do
meu editor. E tenho de ir fazer umas leituras a Cracóvia dentro de três
semanas. E prometi levar a Nina a pescar hoje à tarde.
– Certo. – Ela mordeu o lábio e desviou os olhos. – Certo – disse mais
uma vez, mas a sua voz estava a ficar entrecortada. Jurgen parecia ter
desaparecido e Kitty estava a roer os dedos.
– Porque é que não o dá a ler ao Jurgen? – Mal disse isto desejou não o
ter dito. Ela estava literalmente a mudar de cor em frente a ele. Mais do que
a corar estava a fundir-se. Um cabo elétrico a começar a derreter-se. Fitou-o
com um olhar de tão intensa hostilidade que ele se perguntou o que teria de
facto feito que fosse assim tão mau.
– O meu poema é uma conversa consigo e com mais ninguém.

Não devia estar a acontecer, a sua procura de amor nela, mas estava. Ele
iria ao fim do mundo para encontrar amor. Estava a tentar não o fazer, mas
quanto mais tentava não o procurar tanto mais havia para encontrar.
Imaginava-a numa praia britânica, com uma garrafa termos de chá no saco,
a fazer fintas às ondas frias, a traçar o seu nome na areia, a olhar para as
estações de energia nuclear ao longe. Essa era mais a sua paisagem, um
poema catastrófico por si só. Ele tocara-a com as suas palavras, mas sabia
que não devia tocar-lhe de mais nenhuma maneira, de uma maneira mais
literal, com os lábios, por exemplo. Isso seria aproveitar-se dela. Tinha de
combater o impulso até ao fim. Que fim, onde? Ele não sabia, mas
combatê-lo-ia até ao fim. Se fosse religioso, pôr-se-ia de joelhos e rezaria.
Pai, leva tudo isto embora. Embora. Deixa que tudo isto se desvaneça. Ele
sabia que era como uma súplica ou um desejo ou um cântico ao seu próprio
pai, o sombrio patriarca de barba; a sombra que perseguira toda a sua vida,
etc. O seu pai disse adeus, etc. A sua mãe disse adeus, etc. Ele esconde-se
numa floresta escura na Polónia Ocidental, etc.

Kitty levantou-se e pôs-se a remexer na carteira. Ele disse-lhe que não se


preocupasse. Por favor. Ele queria oferecer-lhe o almoço. Ela insistiu que
pagaria a sua parte. Ele viu que a carteira dela estava plana, vazia, não havia
nada dentro dela, mas ela estava à procura de moedas mesmo assim. Ele
insistiu. Não era nada de mais. Por favor, será que ela podia deixar a conta a
seu cargo? Ela pôs-se aos gritos enquanto os seus dedos procuravam
freneticamente dentro da carteira, berrando-lhe que se calasse se calasse se
calasse, o que é que ele julgava que ela era? Corada e furiosa, por fim
encontrou aquilo de que estivera à procura, uma nota suja de vinte francos
dobrada ao meio como se tivesse sido guardada para alguma coisa. Ela
desdobrou-a cuidadosamente e as mãos tremiam-lhe quando a enfiou
debaixo de um pires, e depois correu por uma das ruas empedradas. Ele
ouvia-a tossir. E depois ouviu a voz de Jurgen a falar com ela e
compreendeu que o zelador devia ter estado à espera dela. Ela estava a
perguntar-lhe em francês porque é que a água da piscina estava tão turva e
ele perguntava-lhe porque é que ela estava a chorar. Ele ouviu Jurgen dizer
esquece esquece, o sol está a brilhar, Kitty Ket. Era uma espécie de
cantilena: esquece esquece Kitty Ket esquece esquece Kitty Ket.

Joe procurou o seu lenço de seda e enterrou o rosto nele. A seda era usada
para fazer os primeiros coletes à prova de bala. Era uma segunda pele e ele
precisava dela. O que é que havia de fazer? O que é que havia de fazer com
o poema dela? Ele não era o médico dela. Ela não queria que ele lhe
apontasse uma luz aos olhos. Deveria contar a Isabel que a jovem que ela
tinha convidado a ficar na casa ameaçara fazer alguma coisa?
Em breve estaria na Polónia. A atuar num velho palácio em Cracóvia. A
sua tradutora e guia informá-lo-ia sobre as linhas dos elétricos e as ementas.
Levá-lo-ia a descansar nas montanhas Tatra e mostrar-lhe-ia as dachas de
madeira construídas na floresta. Mulheres com lenços na cabeça estariam a
tratar dos seus gansos e convidá-lo-iam para provar as suas compotas e os
seus queijos. Quando finalmente partisse do aeroporto de Varsóvia e na
alfândega lhe perguntassem se ele levava caviar para fora do país, ele diria:
– Nenhum caviar. Levo o meu passado negro e oleoso para fora do país e
pertence-nos a ambos. É assim. O meu pai disse adeus, etc. A minha mãe
disse adeus, etc. Esconderam-me numa floresta escura na Polónia
Ocidental, etc.

Alguém estava a dar-lhe uma pancadinha no ombro. Para sua surpresa,


Claude tinha posto um copo de cerveja fresca na sua mesa. O que provocara
este bondoso gesto fraternal do Mick Jagger da Parvónia? Joe bebeu a
cerveja de um só longo trago sedento. Pegou na nota que Kitty tinha
deixado debaixo do pires e meteu-a no bolso da camisa antes que Claude
pegasse nela para pagar ao cabeleireiro. Arranjaria maneira de lha devolver.
Ela ia-se embora daí a dois dias, graças a Deus. Terminaria tudo. Para seu
desconsolo, no momento em que começava a sentir-se animado por estar
sozinho, viu a sua filha a descer a encosta na direção do café.
Nina trazia uma rede da pesca e um balde. Oh, não. Que raio. Começou a
gemer entre dentes. Aqui está ela. A minha filha pôs rímel para ir pescar. E
brincos. Umas argolas grandes de ouro que vão prender-se nos galhos das
árvores. Agora ia ter de ir com ela todo o caminho até ao rio no calor da
tarde, como lhe prometera. Dois quilómetros.
Ninguém parecia compreender que ele tinha cinquenta e sete anos. Teria
de descer a custo a encosta da margem do rio tentando não escorregar nas
pedras. Acenou sem entusiasmo e a filha agitou a rede da pesca na sua
direção. Quando finalmente se atirou para a cadeira em frente a ele, ele
pegou-lhe na mão e apertou-lha. – Parabéns. A mãe disse-me que
começaste por fim a ter o período.
– Cala-te, foda-se. – Nina revirou os olhos e fitou o balde com um
fascínio arrebatado.
– OK, eu calo-me. Porque é que não cancelamos a pescaria e não ficamos
aqui sentados a beber cerveja os dois?
– Nem penses.
Joe aclarou a garganta. – Hum… Tens tudo aquilo de que precisas…
Sabes, para uma menina que começou…?
– Cala-te.
– OK, eu calo-me.
– Onde é que está a Kitty?
– Ela… hum… Não sei para onde foi.
Nina pôs-se a olhar fixamente para o cabelo do pai. Ele tinha-o escovado,
por uma vez. Tinha de admitir que ele era bastante atraente, embora fosse
repugnante. Tinha feito um esforço para agradar a Kitty, dissesse o que
dissesse.
– Gostaste do poema dela?
O que é que ele havia de dizer? Mais uma vez, fez o que fazia melhor,
que era mentir.
– Ainda não o li.
Nina deu-lhe um murro no braço com tanta força quanto podia.
– Ela estava tão nervosa por tu o ires ler que quase se estampou com o
carro. Comigo dentro dele. Quase que nos atirava da montanha abaixo. Teve
de ganhar coragem para vir ter contigo. Estava a TREMER.
– Oh, meu Deus. – Joe encheu as bochechas de ar.
– Porquê «Oh, meu DEUS»? Julguei que não acreditavas em Deus –
resmungou a sua filha e virou-lhe as costas.
Ele deu um muro na mesa, que saltou.
– NUNCA MAIS entras num carro com a Kitty Finch outra vez,
Compreendes?
Nina achava que compreendia, mas não sabia realmente o que era que
tinha concordado em compreender. A Kitty era má condutora, ou quê? O
pai parecia furioso.
– Não suporto os DEPRIMIDOS. É como um emprego, é a única coisa em
que trabalham no duro. Oh que bom a minha depressão está muito bem
hoje. Oh que bom hoje tenho mais um sintoma misterioso e vou ter outro
amanhã. Os DEPRIMIDOS estão cheios de ódio e de bílis e quando não estão a
ter ataques de pânico estão a escrever poemas. O que é que eles querem que
os poemas deles FAÇAM? A depressão é a coisas mais VITAL neles. Os
poemas deles são ameaças. SEMPRE ameaças. Não há sensação que seja mais
viva ou esteja mais ativa do que a sua dor. Não dão nada em troca a não ser
a sua depressão. É mais um item de primeira necessidade. Como a
eletricidade e a água e o gás e a democracia. Não poderiam sobreviver sem
ela. MEU DEUS, ESTOU CHEIO DE SEDE. ONDE É QUE SE METEU O CLAUDE?
Claude espreitou cá para fora. Estava a esforçar-se por não se rir, mas
olhava para Joe com um pouco mais de respeito do que o habitual. De facto,
estava a pensar em perguntar-lhe confidencialmente se poderia pagar a
conta de Mitchell no café.
– Por favor, Claude, traga-me água. Uma água qualquer. Pode ser de
garrafa. Não. Vou beber outra cerveja. Uma grande. Não servem cervejas de
meio litro neste país?
Claude acenou com a cabeça e desapareceu para dentro do café, onde
tinha ligado a televisão para ver o futebol. Nina pegou na rede da pesca e
agitou-a em frente ao rosto do pai.
– O plano para hoje à tarde é irmos pescar, por isso levanta-te e começa a
andar, porque estás a ser um chato de merda.
«De merda» era a sua expressão mais recente e ela disse-a com prazer.
– Eu sei que não sou um chato «de merda» – rosnou o seu pai
pateticamente, com a voz rouca.
Nina não se atreveu a dizê-lo outra vez, porque de cada vez que ele a
levava a sair de rede e balde ela ficava sempre excitada com os horrores
que, de alguma maneira, ele conseguia pescar.
Claude trouxe a cerveja, «uma grande», num copo de meio litro, e
explicou a Nina que não voltaria a servir o pai dela, porque estava a ver a
semifinal entre a Suécia e o Brasil.
– Tudo bem. – Joe atirou algum dinheiro para cima da mesa e depois de
Claude lhe segredar qualquer coisa ao ouvido sacou de um maço de notas e
disse-lhe que pagaria tudo o que Mitchell gastasse no café, mas que ele não
podia saber, o gordo não devia ser informado de que os seus pastéis
intermináveis seriam pagos com os direitos de autor do poeta imbecil e rico.
Claude deu uma pancadinha no nariz. Cumpriria a sua parte do acordo.
Deitou um olhar a Nina e depois quebrou um galho da buganvília púrpura
que crescia pelo muro acima. Fez das flores uma pulseira e ofereceu-lha
com uma pequena vénia. – Para a linda filha do poeta.
Nina viu-se a estender o braço ousadamente para ele lhe pôr as pétalas
violeta à volta do pulso como uma algema. A sua pulsação ficou
descontrolada quando as pontas dos dedos dele lhe tocaram no pulso.
– Dá-me a rede, Nina. – O pai dela estendeu o braço. – Posso usá-la para
arrancar os olhos. Na verdade, eu gostava era de ficar a ver o Mundial com
o Claude. Tens de aprender a ser um bocado mais compreensiva para com o
teu pai.
Ela mordeu o lábio de uma maneira que esperava que fosse atraente e
atreveu-se a deitar um olhar a Claude, que encolheu os ombros num gesto
de impotência. Ambos sabiam que ele preferia ficar a vê-la a ela.

Ao passarem pela igreja para chegarem à estrada que Joe sabia que levava
à cancela que levava ao campo com touros resfolegantes que levava ao
caminho que levava à ponte que levava ao rio, ele sentiu a mão da filha a
enfiar-se no bolso das suas calças.
– Estamos quase lá – disse ela encorajadoramente.
– Cala-te – respondeu o pai.
– Eu acho que tu ficas deprimido. Não ficas, papá?
Joe tropeçou numa pedra desnivelada.
– Como tu disseste – disse ele –, «estamos quase lá».
1 Diz­-se, em inglês, de quem tem especial habilidade para a jardinagem. (N. do E.)
A Fotografia

O grupo de turistas japoneses estava feliz. Sorriam há o que parecia um


período de tempo demasiado longo para ser natural. Isabel, que estava
sentada à sombra de uma oliveira prateada à espera de Laura, calculou que
deviam estar a sorrir há cerca de vinte minutos. Estavam a tirar fotografias
uns aos outros no exterior do château cor-de-rosa desbotado do Museu
Matisse e os seus sorrisos começavam a parecer doridos e atormentados.
O parque estava cheio de famílias a fazer piqueniques à sombra das
oliveiras. Quatro homens de idade a jogar boules à sombra fizeram uma
pausa no jogo para falar da vaga de calor que estava a dar cabo dos
vinhedos em França. Laura estava a acenar a Isabel e não se apercebeu de
que se tinha atravessado numa fotografia. Os sete turistas japoneses, com os
braços à volta dos ombros uns dos outros, ainda estavam a sorrir, com Laura
à frente deles, o seu braço erguido quando o flash da máquina disparou.
Isabel fora sempre a primeira a levantar a mão nas aulas no liceu em
Cardiff. Sabia as respostas muito antes de as outras meninas chegarem lá,
meninas que, como ela, usavam todas blazers verdes com o lema da escola,
Que o Conhecimento Sirva o Mundo. Agora, ela achava que mudaria o
lema da escola para algo que avisasse as meninas de que o conhecimento
não as serviria necessariamente a elas, nem as tornaria felizes. Havia a
hipótese de, em vez disso, lançar luz sobre visões que elas não queriam ter.
O novo lema teria de levar em conta a ideia de que, por vezes, era difícil
viver com o conhecimento e de que depois de as jovens inteligentes de
Cardiff o provarem nunca mais conseguiriam voltar a meter o génio na
garrafa.
Os homens tinham voltado ao seu jogo de boules. Vozes saídas de um
rádio algures por perto discutiam a greve dos controladores aéreos. Garrafas
termos de café estavam a ser abertas à sombra das árvores. Crianças caíam
das bicicletas. Famílias tiravam dos farnéis sanduíches e fruta. Isabel via a
sucessão de hotéis azuis e brancos belle époque construídos na colina e
sabia que algures por perto se encontrava o cemitério onde Matisse estava
sepultado. Laura tinha uma garrafa de vinho tinto na mão esquerda. Isabel
chamou-a, mas Laura já a tinha visto. Caminhava depressa, eficiente e
concentrada. Laura teria algo a dizer sobre o facto de ela ter convidado
Kitty para ficar lá em casa, mas Isabel insistiria que pagaria ela o aluguer da
casa de férias para o verão todo. Laura e Mitchell deviam ir para um hotel
no campo perto de Cannes, sobre o qual ela tinha lido num guia turístico.
Um solar provençal pintado de ocre, que servia bons vinhos e robalo em
crosta de sal. Seria o sítio ideal para Mitchell, que viera com a esperança de
um verão gastronómico de dimensões épicas e em vez disso se vira a
partilhar as férias contra sua vontade com uma estranha que parecia estar a
matar-se à fome. Laura e Mitchell precisavam de ordem e de estrutura.
Mitchell fazia planos quinquenais para o negócio deles em Euston,
fluxogramas descrevendo tarefas a realizar, a lógica de decisões, os
resultados desejados. Ela admirava a fé deles no futuro: a crença de que
proporcionava resultados que podiam ser organizados para saírem da forma
certa.

Laura estava a sorrir, mas não parecia feliz. Sentou-se ao lado de Isabel e
tirou as sandálias. E depois pôs-se a arrancar tufos de erva seca com os
dedos e disse à sua amiga que a loja em Euston ia fechar. Ela e Mitchell já
não conseguiam aguentar as coisas. Já mal conseguiam pagar as prestações
do empréstimo do banco. Tinham vindo para França com cinco cartões de
crédito entre os dois e muito pouco dinheiro. Nem sequer podiam comprar
gasolina para o Mercedes que Mitchell alugara estupidamente no aeroporto.
Na verdade, Mitchell tinha contraído dívidas de que ela só agora começava
a alcançar a verdadeira extensão. Devia grandes quantias por todo o lado.
Há meses que dizia que alguma coisa acabaria por aparecer, mas não tinha
aparecido nada. A loja ia entrar em liquidação. Quando voltassem para
Londres teriam de vender a casa.
Isabel aproximou-se de Laura e abraçou-a. Laura era tão alta que por
vezes era difícil acreditar que não estivesse literalmente acima das coisas
que incomodavam as outras pessoas. Era óbvio que não estava em si,
porque também tinha os ombros descaídos. A sua amiga nunca adotara a
postura curvada que as pessoas altas por vezes assumem para se reduzirem
à escala humana, mas agora parecia abatida.
– Vamos abrir o vinho. – Como Laura se tinha esquecido de trazer o saca-
rolhas, usaram o pente de Isabel, enfiando a ponta comprida de plástico na
rolha, e puseram-se a beber da garrafa, passando-a uma à outra como
adolescentes nas suas primeiras férias sem a família. Isabel contou a Laura
que tinha passado a manhã à procura nas lojas de pensos higiénicos para
Nina, mas que não fazia ideia de como se dizia em francês. Por fim, o
homem da farmácia tinha-lhe dito que as palavras eram «serviettes
hygiéniques». Ele tinha embrulhado a embalagem de pensos num saco de
papel pardo e depois num saco de plástico e depois noutro saco de plástico
como se, na sua ideia, os pensos já estivessem encharcados em sangue. E a
seguir Isabel mudou de assunto. Queria saber se Laura tinha uma conta
bancária só em seu nome. Laura abanou a cabeça. Ela e Mitchell tinham
uma conta conjunta desde que tinham montado o negócio. E depois Laura
mudou de assunto e perguntou a Isabel se ela achava que Kitty Finch talvez
fosse um pouco… procurou a palavra… «perturbada»? A palavra ficou-lhe
encravada na boca e ela desejou saber outra língua para traduzir o que
queria dizer, porque as únicas palavras que tinha guardadas dentro de si
eram do recreio da escola da sua geração, um léxico que, sem qualquer
ordem particular, começava por avariada, aluada, alucinada, prosseguia com
chanfrada, desatinada, com macaquinhos no sótão e depois saltitava pelo
alfabeto outra vez para acabar em anormal. Laura começou a dizer-lhe o
quanto a chegada de Kitty a alarmava. Quando estava a sair de casa para vir
ter ao Museu Matisse, vira Kitty dispor num vaso as caudas de três coelhos
que Mitchell tinha matado no pomar – como se fossem flores. A questão era
que devia ter sido a própria Kitty que tinha cortado as caudas dos coelhos.
Com uma faca. Devia ter esquartejado os coelhos com uma faca de trinchar.
Isabel não respondeu, porque estava a passar um cheque a Laura.
Espreitando por cima do ombro dela, Laura viu que era uma quantia
considerável e que estava assinado com o nome de solteira de Isabel.
Isabel Rhys Jones. Quando andavam a estudar e se apresentavam umas às
outras no bar da escola, Isabel dizia sempre o nome da sua cidade natal em
gaélico: Caerdydd. Tinha pronúncia galesa, mas depois perdeu-a, mais ou
menos. No segundo ano do curso, Isabel falava com um sotaque inglês que
não era bem inglês, mas se tornaria inglês quando começou a aparecer na
televisão a fazer reportagens de África. Laura, que tinha estudado Línguas
Africanas, tentava não soar inglesa quando falava suaíli. Era um assunto
complicado e ela gostaria de ter ficado a pensar nele mais algum tempo,
mas Isabel tinha posto a tampa na caneta e estava a aclarar a voz. Estava a
dizer qualquer coisa e soava bastante galesa. Laura perdeu a primeira parte
do que a sua amiga estava a dizer, mas sintonizou a tempo de a ouvir dizer
que parecia que a norte-africana que limpava o chão da casa de férias por
tuta e meia estava em greve. A mulher usava um lenço na cabeça e
arranjava as fichas elétricas a Jurgen, que descobrira encantado que ela
tinha mais jeito para reparações elétricas do que ele. Laura tinha-a visto
fitar os fios das fichas e depois olhar lá para fora, para a luz prateada que
parece que tinha curado a tuberculose de Matisse. Esta mulher andava-lhe
nos pensamentos por alguma razão, e quando estava a perguntar-se porque é
que sentia tanto interesse nela, recordou-se do que Isabel dissera quando
estava a passar-lhe o cheque. Tinha algo a ver com Laura abrir uma conta à
parte da que partilhava com Mitchell. Começou a rir e recordou a Isabel que
o seu nome de solteira era Laura Cable.
A Coisa

– Não se devia empastelar com tanta loção solar, Mitchell.


Kitty Finch estava obviamente incomodada com alguma coisa. Tinha
tirado a roupa toda e estava de pé à beira da piscina como se não estivesse
lá mais ninguém. – Altera o equilíbrio químico da água.
Mitchell pôs uma mão protetora na cúpula da sua barriga e gemeu.
– A água está efetivamente TURVA. – Kitty parecia furiosa. Corria à volta
da piscina a olhar fixamente para ela de todos os ângulos. – O Jurgen fez o
tratamento químico todo mal. – Bateu com o pé descalço nas lajes quentes.
– É a química que afina as coisas. Ele pôs pastilhas de cloro no aspirador de
superfície e agora está demasiado concentrado na parte mais profunda.
Mais uma vez, Mitchell encarregou-se de lhe dizer que se fosse foder.
Porque é que ela não fazia uma sanduíche de queijo e não se ia mas era
perder na floresta? De facto, ele até estava disposto a levá-la lá de carro, se
ela arranjasse maneira de meter gasolina no Mercedes.
– Você assusta-se tão facilmente, Mitchell.
Ela deu um salto na direção dele. Dois saltos compridos, como se
estivesse a fazer de conta que era uma gazela ou um veado e estivesse a
provocá-lo para ele vir caçá-la. As costelas sobressaíam-lhe da pele como
os arames da ratoeira que Mitchell comprara para apanhar a ratazana.
– É bom que a Laura seja assim tão alta, não é? Pode espreitar por cima
da sua cabeça quando você dispara sobre animais e nunca ter de olhar para
o chão onde eles caem feridos.
Kitty saltou para a água turva com os dedos a apertar o nariz. Mitchell
sentou-se e teve logo uma tontura. O sol punha-o sempre doente. No
próximo ano ia sugerir que alugassem um chalé à beira de um fiorde gelado
na Noruega, tão longe da família Jacobs quanto possível. Ia apanhar focas e
fustigar-se com galhos de bétula nas saunas e depois correria pela neve e
pôr-se-ia a gritar enquanto Laura praticava ioruba e ansiava por África.
– A ÁGUA ESTÁ FODIDA.
O que é que lhe tinha dado? Ao desviar o guarda-sol para proteger a sua
careca cor-de-rosa, viu Joe a manquejar na direção da pequena cancela que
dava para as traseiras do jardim. Nina seguia-o por entre os ciprestes com
um balde vermelho e uma rede.
– Olá, Joe.
Kitty saltou para fora da piscina e começou a sacudir a água das espirais
de cobre do seu cabelo. Ele acenou-lhe com a cabeça, aliviado por, apesar
do seu anterior encontro desagradável, ela soar genuinamente satisfeita por
o ver. Apontou para o balde que Nina estava a levar com alguma
dificuldade para a beira da piscina.
– Venham ver o que encontrámos no rio.
Juntaram-se à volta do balde, que estava meio cheio de água lamacenta.
Um bicho viscoso e cinzento com uma lista vermelha na espinha estava
agarrado a um punhado de ervas. Era da grossura do polegar de Mitchell e
parecia pulsar, porque a água por cima dele estava a estremecer. De vez em
quando, enrolava-se numa bola e voltava a esticar-se lentamente.
– O que é? – Mitchell não queria acreditar que eles se tivessem dado ao
trabalho de trazer este bicho repugnante o caminho todo pelos campos até à
casa.
– É uma coisa. – Joe fez um sorriso afetado.
Mitchell gemeu e afastou-se. – Que nojo.
– O papá encontra sempre coisas nojentas.
Nina espreitava por cima do ombro de Kitty, tentando não olhar para os
seus seios, que pendiam agora por cima do balde enquanto ela olhava lá
para dentro. Ela não queria olhar para Kitty nua e com o pai tão perto. Nina
conseguia contar os ossos que desciam como contas pela espinha dela. Kitty
passava fome. Tinha o quarto cheio de comida a apodrecer que escondera
debaixo de almofadas. Nina preferia olhar para as manchas de pastilha
elástica nos passeios de Londres do que para o pai e para Kitty Finch.
Kitty estendeu a mão para uma toalha. Estava atrapalhada, deixando-a
cair e apanhando-a outra vez, até que Joe finalmente pegou nela e a ajudou
a pô-la à volta da cintura.
– O que é que acham que é? – Kitty olhou fixamente para dentro do
balde.
– É um bichinho repelente – anunciou Joe. – A minha melhor descoberta
até agora.
Nina achava que talvez fosse uma centopeia. Tinha centenas de pernas
minúsculas que ondulavam freneticamente na água, a tentar encontrar algo
a que se agarrar.
– Do que é que anda à procura exatamente quando vai à pesca? – Kitty
baixou a voz, como se o bicho a pudesse ouvir. – Encontra as coisas que
quer encontrar?
– De que é que você está a falar? – Mitchell soava como um professor
irritado com uma criança.
– Não fales assim com ela. – Os braços de Joe estavam agora presos à
volta da cintura de Kitty, segurando a toalha como se a sua vida dependesse
disso.
– Ela está a perguntar porque é que eu não apanho peixinhos prateados e
conchas bonitas. A resposta é que estão sempre lá.
Enquanto falava, enfiava o dedo nos caracóis molhados do cabelo de
Kitty. Nina viu a mãe e Laura entrarem pela cancela branca. O pai dela
largou a toalha e Kitty corou. Nina pôs-se a olhar tristemente para os
ciprestes, fingindo que procurava o ouriço que sabia que se abrigava no
jardim. Joe dirigiu-se para a cadeira de encosto de plástico e deitou-se.
Olhou de relance para a mulher, que se tinha encaminhado para o balde.
Tinha folhas no cabelo e manchas de relva nas pernas nuas. Mais do que
distanciar-se dele tinha-se mudado para outro bairro. Havia um novo vigor
na maneira como ficou de pé junto ao balde. A sua determinação de não o
amar parecia ter renovado a sua energia.
Mitchell ainda estava a olhar para o bicho que rastejava pelas paredes do
balde de plástico vermelho acima. Ele estava perfeitamente camuflado pela
lista vermelha na espinha.
– O que é que vão fazer com a vossa minhoca?
Toda a gente olhou para Joe.
– Sim – disse ele. – A minha «coisa» está a pôr-vos todos incomodados.
Vamos pô-la numa folha no jardim.
– Não. – Laura encolheu-se toda. – Ainda volta para aqui.
– Ou trepa pelos canos e aparece-nos na água. – Mitchell parecia
verdadeiramente alarmado.
Laura estremeceu e depois gritou: – Está a trepar para fora. Está quase
fora. – Correu para o balde e atirou uma toalha por cima dele.
– Faz qualquer coisa para o impedir de sair, Joe.
Joe foi lentamente até ao balde, tirou a toalha e atirou o bicho para o
fundo da água com o polegar.
– É realmente bastante minúsculo. – Bocejou. – É só uma coisa estranha,
minúscula e viscosa.
Um emaranhado de ervas do rio pendia-lhe da sobrancelha. Tudo ficara
muito silencioso. Mesmo o ciciar das cigarras ao fim da tarde parecia ter-se
desvanecido. Quando Joe abriu os olhos, toda a gente menos Laura tinha
desaparecido para dentro de casa. Laura estava a tremer, mas a sua voz era
pragmática.
– Olha, eu sei que a Isabel convidou a Kitty para ficar. – Parou e começou
de novo. – Mas tu não tens de o fazer. Quer dizer, tens? Tens de o fazer?
Tens? Tens de continuar a fazê-lo?
Joe cerrou os punhos dentro dos bolsos.
– Fazer o quê?
QUARTA-FEIRA

Corpo Elétrico

Jurgen e Claude estavam a fumar o haxixe que Jurgen tinha comprado ao


acordeonista na praia em Nice. Normalmente, comprava-o ao motorista que
trazia as empregadas da limpeza imigrantes às casas de férias, mas elas
estavam a organizar uma greve. Ainda por cima, nas notícias na noite
anterior tinham anunciado um temporal e a aldeia inteira passara a noite a
preparar-se para ele. A casa de Jurgen era de Rita Dwighter, mas ainda não
tinha sido «restaurada» e ele queria manter a situação tal como estava. Por
vezes, atirava com objetos pesados às paredes na esperança de que ficasse
impossível de restaurar e assim mantivesse o seu estatuto de filha feia e
disfuncional na família de propriedades de Rita Dwighter.
Agora estava debruçado sobre o telemóvel de Claude. Claude tinha
gravado o mugido de uma vaca. Não sabia porquê, mas teve de o fazer.
Tinha entrado num campo e empunhara o telemóvel tão perto quanto se
atrevera do focinho da vaca. Se Jurgen premisse o botão «play» a vaca
mugia. A tecnologia tornara o som da vaca familiar mas também
desconfortavelmente estranho. De cada vez que a vaca mugia eles riam-se
histericamente, porque a vaca tinha pisado o dedo grande do pé de Claude e
agora ele tinha a unha deformada.
Madame Dwighter tinha dito a Jurgen para esperar em casa pelo seu
telefonema. Jurgen não se importava. Esperar em casa sempre era melhor
do que ser chamado para mudar uma lâmpada nas casas ao «estilo
provençal» que ele nunca teria posses para comprar. Uma pilha de estampas
de Picasso que ele tinha comprado por atacado na feira da ladra estava
encostada à parede. Ele preferia o modelo em borracha do E.T. que tinha
encontrado para Claude. Rita Dwighter tinha-lhe dado instruções para
encaixilhar e pendurar «os Picassos» em todos os espaços disponíveis nas
três casas de que era proprietária, mas ele não estava para se dar a esse
trabalho. Era mais interessante ouvir a vaca mugir no telemóvel de Claude.
Quando Jurgen estava a começar a fazer outro charro, ouviu o telefone
tocar. Claude apontou para o telefone, que estava no chão. Jurgen torceu o
nariz com o polegar e o indicador e acabou por pegar no auscultador.

Claude teve de tapar a boca com a mão para se impedir de rir tão alto
como lhe apetecia. Jurgen não queria ser zelador. Madame Dwighter andava
sempre a pedir-lhe que lhe dissesse em que estava a pensar, mas ele só dizia
a Claude o que estava a pensar. Só pensava numa coisa.
Kitty Finch. Se pressionado, incluiria: sexo, drogas, o budismo como
meio de atingir a unicidade na vida, nada de carne, nada de vivissecção,
Kitty Finch, nada de vacinas, nada de álcool, Kitty Finch, pureza de corpo e
alma, remédios naturais, tocar guitarra de blues, Kitty Finch, tornar-se
aquilo que Jack Kerouac descrevera como um Rapaz da Natureza Santo.
Claude ouviu o seu amigo dizer a Madame Dwighter que sim, tudo estava
muito calmo na casa de férias este ano. Sim, o famoso poeta inglês e a sua
família estavam a gostar das férias. De facto, tinham tido uma visita
surpresa. Mademoiselle Finch estava no quarto vago e estava a encantá-los
a todos. Sim, ela tinha um equilíbrio muito bom este ano e tinha escrito uma
coisa para mostrar ao poeta.
Claude desapertou os jeans e deixou-os cair até aos joelhos. Jurgen teve
de afastar o telefone do ouvido enquanto se dobrava em dois, fazendo
gestos obscenos a Claude, que estava agora a fazer flexões nos seus boxers
da Calvin Klein no chão. Jurgen bateu com o charro contra o joelho e
continuou a falar com Rita Dwighter, que estava a telefonar-lhe do seu
exílio fiscal em Espanha. Não tardaria a ter de lhe chamar «señora».
Sim, o folheto informativo estava atualizado. Sim, a água da piscina
estava perfeita. Sim, as empregadas da limpeza estavam a fazer um bom
trabalho. Sim, ele tinha substituído a vidraça partida. Sim, ele estava a
sentir-se bem. Sim, a vaga de calor estava a chegar ao fim. Sim, ia haver
trovoadas. Sim, toda a gente estava a par da previsão meteorológica. Sim,
ele iria fechar bem as portadas.
Claude ouvia a voz de Rita Dwighter tombar do auscultador e desaparecer
nas nuvens de fumo de haxixe. Toda a gente na aldeia se ria à menção da
psicanalista e promotora imobiliária rica que pagava a Jurgen tão bem pela
sua falta de competência. Gostavam de dizer a brincar que ela mandara
construir um heliporto para os homens de negócios poderem aterrar junto ao
seu consultório no Oeste de Londres. Ficavam sentados em cadeiras de
design enquanto os seus pilotos, usualmente ex-alcoólicos expulsos de
companhias de aviação comercial, fumavam cigarros da loja franca à chuva.
Claude andava a pensar em espalhar o boato de que um dos seus clientes
mais ricos tinha ficado com o braço preso nas pás da hélice logo depois de
ela ter esclarecido porque é que ele gostava de vestir um uniforme nazi e
vergastar prostitutas. Tivera de amputar o braço e deixara de a consultar, o
que queria dizer que afinal ela já não teria posses para comprar a casinha do
carteiro.
Quando Rita Dwighter vinha inspecionar os seus imóveis, o que, para
alívio de Jurgen, não era muito frequente, convidava sempre Claude, com
os seus ares de Mick Jagger, para jantar. Na última vez que jantara com ela,
ela tinha enfiado um talo ereto de ananás num brie húmido e a derreter-se e
dissera-lhe que se servisse.
Por fim, Jurgen pousou o telefone. Olhou fixamente para as estampas de
Picasso como se quisesse assassiná-las. Disse a Claude, que tinha tirado a T-
shirt e estava de cara para baixo no chão com os boxers vestidos, que tinha
ordens para pendurar Guernica no corredor para tapar as fendas irregulares
no estuque. A dominatrix Dwighter sentia-se obviamente impressionada
com as técnicas que o grande artista empregara para dizer algo sobre a
condição humana. Claude levantou-se do chão a custo e pôs a tocar um dos
CD velhos de Jurgen. Estava em cima de uma caixa de joias indiana e tinha
a etiqueta «Prague Muzic. Seleção da Ket para Calma».
Estava alguém a bater à porta. Jurgen não gostava de visitas, porque era
sempre alguém a pedir-lhe que fizesse o que lhe competia. Desta vez, era a
bonita filha de catorze anos do poeta britânico imbecil. Estava com uma
minissaia branca e naturalmente queria que ele fizesse alguma coisa.
– A minha mãe pediu-me que viesse cá para confirmar que marcou o
passeio a cavalo para amanhã.
Ele acenou com a cabeça, muito razoável, como se mais nada lhe tivesse
ocupado os pensamentos. – Entra. O Claude está aqui.
Quando Jurgen disse O Claude está aqui, o CD pareceu saltar ou ficar
encravado, ou aconteceu qualquer coisa. Nina ouviu um violino a tocar e
por trás dele o som de um lobo a uivar e a cantora a murmurar uma palavra
que soava como «snowburst»2. Ela deitou um olhar a Claude, que dançava
nos seus boxers. Tinha as costas tão lisas e bronzeadas que ela desviou o
olhar para a parede.
– Bonjour, Nina. Os cães comeram-me os jeans, por isso agora só tenho
os calções. O CD está riscado, mas gosto dele para me acalmar.
Quando ela o olhou com desprezo, ele viu-se como um caracol esmagado
na sola de corda das alpergatas vermelhas dela. Jurgen tinha as mãos
apoiadas nas suas ancas ossudas, com os cotovelos a apontarem para fora a
formar um triângulo. Parecia querer a opinião dela sobre as suas rastas.
– Então, achas que eu devia cortar o cabelo?
– Acho.
– Eu tenho o cabelo assim para ser diferente do meu pai.
Riu-se e Claude riu-se com ele.

aguaceiro de neve
a vogar
para o escuro3

Jurgen estava a tentar resolver uma questão de Geografia. – A Áustria é o


início da minha infância. Depois acho que foi Baden-Baden. O meu pai
ensinou-me a cortar madeira segundo a velha tradição. – Coçou a cabeça. –
Acho que era austríaca. Qualquer coisa antiga, de qualquer maneira. Então,
de que tipo de música é que tu gostas?
– Os Nirvana são a minha banda preferida.
– Ah, tu gostas do Kurt Cobain com os seus olhos azuis, sim?
Ela disse-lhe que tinha feito um santuário ao Kurt Cobain no quarto dela
depois de ele se ter suicidado na primavera passada. Em cinco de abril, para
ser exata, mas o seu corpo só foi encontrado a 8 de abril. Ela tinha tocado o
álbum dele In Utero todo aquele dia.
Jurgen inclinou as rastas para um lado. – O teu pai já leu o poema da
Kitty Ket?
– Não. Eu vou lê-lo.
Claude fez beicinho e deu uns passos afetados para o frigorífico. – Isso é
um bom plano. Queres uma cerveja?
Ela encolheu os ombros. Claude estava tão ansioso por lhe agradar que
era patético. Claude traduziu o seu encolher de ombros como um sim
entusiástico.
– Eu tenho de trazer cerveja para beber em casa do Jurgen, porque ele só
bebe sumo de cenoura.
Jurgen tinha acabado de ouvir uma motorizada parar à porta da sua casa.
Era o seu amigo Jean-Paul, que lhe dava sempre comissão nas marcações
dos passeios a cavalo. Jean-Paul só tinha póneis, por isso não ia ser
exatamente um passeio a cavalo, mas os póneis tinham cascos e uma cauda
bonita, de qualquer maneira. Quando Jurgen correu lá para fora para ultimar
o negócio, Claude pegou na T-shirt e tentou com dificuldade vesti-la.
Nina olhava para tudo o que não fosse ele. E depois sentou-se de pernas
cruzadas no chão, com as costas contra a parede, enquanto ele se dirigia
para ela com uma cerveja. Ele abriu-lhe a cerveja e sentou-se tão perto dela
que as suas coxas quase se tocavam.
– Então, estás a gostar das férias?
Ela bebeu um gole da cerveja azeda. – Não estão a ser más.
– Se vieres ao meu café eu mostro-te o Extraterrestre que tenho na
cozinha.
De que é que ele estava a falar? Ela deu consigo a aproximar-se do ombro
dele. E depois virou o rosto para ele e fez os seus olhos dizerem podes
beijar-me beijar-me beijar-me e durante um segundo pressentiu que ele não
tinha a certeza do que ela queria dizer. Ainda tinha a cerveja na mão e pô-la
no chão.

a vogar
para a escura
floresta4

Os lábios dele estavam quentes e estavam nos lábios dela. Ela estava a
beijar Mick Jagger e ele estava a devorá-la como um lobo ou alguma coisa
feroz mas também suave, e decididamente não calma. Ele estava a dizer-lhe
que ela era tão tudo. Ela aproximou-se ainda mais e depois ele parou de
falar.

para a escura
floresta
onde as árvores sangram
aguaceiro de neve5

Quando ela entreabriu os olhos e viu que ele tinha os olhos fechados, ela
fechou de novo os seus, mas depois a porta abriu-se e Jurgen estava no
meio da sala a piscar os olhos.
– Está tudo combinado para o passeio a cavalo.
Havia uma vírgula de beijos no ar. Tudo tinha ficado vermelho-escuro.
Jurgen pôs as mãos nas ancas para os cotovelos lhe ficarem espetados e as
vibrações poderem fluir através dos triângulos que os cotovelos formavam
com o corpo.
– Por favor, peço-te que leias o poema da Ket para me poderes dizer o
caminho para o coração dela.
2 Aguaceiro de neve. (N. da T.)

3 snowburst/drifting away/to the dark. (N. da T.)

4 drifting away/to the dark/forest. (N. da T.)

5 to the dark/forest/where trees bleed/snowburst. (N. da T.)


QUINTA-FEIRA

O Enredo

Nina abriu a porta do quarto dos pais e patinou em meias pelo chão de
tijoleira. Estava de meias apesar do calor, porque tinha o pé esquerdo
inchado devido a uma picada de uma abelha. Para ganhar coragem para a
tarefa que tinha entre mãos tinha passado a última hora a espalhar nas
pálpebras o kohl azul de Kitty. Quando se viu ao espelho, os seus olhos
castanhos estavam brilhantes e decididos. Da janela junto à cama via a sua
mãe e Laura a falarem junto à piscina. O pai tinha ido a Nice ver a Catedral
Ortodoxa Russa e Kitty Finch estava com Jurgen como de costume. Iam
apanhar bosta de vaca dos campos e depois espalhá-la no novo terreno de
Jurgen de que Kitty, segundo a própria «ia tomar conta durante o verão».
Ninguém percebia porque é que ela não estava de facto a viver com Jurgen
na casa ao lado, mas a mãe de Nina tinha dado a entender que talvez Kitty
não estivesse tão «caída» por ele como ele estava por ela. Ouviu umas
pancadas que vinham da cozinha. Mitchell envolvera uma barra de
chocolate negro num pano de cozinha e estava a martelá-la todo
entusiasmado. Fazia calor lá fora, mas ela sentia frio no quarto dos pais,
como se afinal fosse um rinque de gelo. Sabia que aspeto tinha o envelope,
mas não o via em lado nenhum. Do que precisava era de uma lanterna,
porque não podia acender as luzes e assim atrair as atenções. Se alguém
entrasse, ela enfiava-se no quarto de banho e escondia-se atrás da porta. Na
mesa de cabeceira do lado da mãe reparou num pedaço de um favo de mel
embrulhado numa folha de jornal. Tinha obviamente sido atado com o
cordel verde que estava ao seu lado. Dirigiu-se para ele e viu que era um
presente do pai, porque ele tinha escrito a tinta preta na folha:
Para a minha doçura com todo o meu amor como sempre, Jozef.
Nina franziu a testa ao ver o mel espesso e dourado a esvair-se pelos
buracos. Se, afinal, os seus pais gostassem bastante um do outro, isso daria
cabo da história que ela tinha construído para si própria. Quando pensava
nos pais, o que fazia na maior parte do tempo, estava sempre a tentar
encaixar as peças. Qual era o enredo? O pai dela tinha mãos muito meigas e
ontem tinha-se fartado de tocar na mãe. Ela tinha-os visto a beijarem-se no
corredor como se fosse uma cena de um filme, agarrados um ao outro
enquanto as traças se estampavam contra a lâmpada acima das suas
cabeças. Para ela, tragicamente, os seus pais não podiam ver-se um ao outro
e só a amavam a ela. O enredo era que a mãe dela abandonava a sua única
filha para ir abraçar órfãos na Roménia. Tragicamente (tanta tragédia), Nina
ocupara o lugar da sua mãe na casa da família e tornara-se a companheira
mais preciosa do seu pai, adivinhando os seus estados de espírito e as suas
necessidades. Mas as coisas começaram a ficar tremidas quando a mãe lhe
perguntou se ela gostaria de ir a um restaurante especial à beira-mar comer
um gelado com um pauzinho de fogo de artifício. Pior ainda, se os pais se
estavam a beijar ontem (os lençóis da cama por fazer pareciam um bocado
enrodilhados) e se pareciam compreender-se de uma maneira que a excluía,
o enredo estava a descarrilar.
Foi só depois de passar seis minutos numa busca frenética que acabou por
encontrar o envelope com o poema de Kitty lá dentro. Tinha desistido de
vasculhar por entre as camisas e os lenços de seda que o seu pai passava
sempre tão cuidadosamente a ferro e rastejou de joelhos para espreitar
debaixo da cama. Quando viu o envelope encostado aos chinelos do pai e
duas baratas mortas de pernas para o ar, deitou-se de barriga para baixo e
chegou-lhe com o braço. Havia mais qualquer coisa debaixo da cama, mas
ela não teve tempo de descobrir o que era.
A janela que dava para a piscina era um problema. A sua mãe estava
sentada nos degraus na parte menos funda, a comer uma maçã. Ouviu-a
perguntar a Laura porque é que ela andava a aprender ioruba e Laura dizer:
– Porque não? Mais de vinte milhões de pessoas falam essa língua.
Acocorou-se no chão, onde não podia ser vista, e arrancou a fita-cola da
dobra do envelope. Estava vazio. Espreitou para dentro. Uma folha de papel
tinha sido dobrada num quadrado do tamanho de uma caixa de fósforos e
estava encravada no fundo do envelope como um sapato velho atolado na
lama de um rio. Ela tirou-o e desdobrou-o com cuidado.
Nadar para Casa
por
Kitty Finch

Depois de ter lido, Nina não se deu ao trabalho de voltar a dobrar o papel
nos seus quadrados complicados. Enfiou-o no envelope e voltou a metê-lo
debaixo da cama com as baratas. Porque é que o seu pai não o tinha lido?
Ele compreenderia exatamente o que se estava a passar na mente de Kitty.
Subiu as escadas até à sala de estar e espreitou pela porta de vidro.

A mãe dela estava a balouçar os pés na água quente e a rir. Fez Nina
franzir a testa, porque aquele som era muito raro. Encontrou Mitchell a
fritar fígado na cozinha. Estava com uma das suas camisas havaianas mais
espampanantes, que usava para cozinhar.
– Olá – disse ele. – Vieste à procura de um naco de comida?
Nina encostou-se ao frigorífico e cruzou os braços.
– O que é que fizeste aos olhos? – Mitchell olhou atentamente para o kohl
azul brilhante que ela tinha espalhado nas pálpebras. – Alguém te deu um
soco?
Nina inspirou fundo para não gritar.
– Eu acho que a Kitty se vai tentar afogar na nossa piscina.
– Oh, não. – Mitchell fez uma careta de preocupação. – E porquê?
– Tenho essa impressão.
Ela não queria dizer que abrira o envelope destinado ao seu pai. Mitchell
ligou a batedeira elétrica e ficou a ver as castanhas e o açúcar a girarem até
se transformarem numa pasta e salpicarem as palmeiras da sua camisa.
– Se eu te atirasse para a piscina agora, tu flutuavas. Até eu, com a minha
grande barriga, flutuava.
Estava a gritar sobre o ruído da batedeira. Nina esperou que ele a
desligasse para poder segredar.
– Sim. Ela tem andado a apanhar pedras. Eu estava com ela na praia
quando ela andava à procura delas. – Explicou que Kitty lhe contara que
andava a estudar os canos da piscina e que tinha dito coisas esquisitas
como: «Não convém ficar com o cabelo preso na canalização.»
Mitchell olhou com afeto para a menina de catorze anos. Compreendia
que tinha ciúmes da atenção que o pai dela andava a prestar a Kitty e que,
provavelmente, queria que a rapariga se afogasse.
– Anima-te, Nina, Come um bocado de puré de castanhas doce com uma
colher. Vou misturá-lo com chocolate. – Lambeu os dedos. – E vou deixar
um quadradinho para a ratazana hoje à noite.
Ela sabia um terrível segredo que mais ninguém sabia. E havia outros
segredos também. Ontem, quando estava sentada na cama no quarto de
Kitty a ajudá-la a extrair as sementes das suas plantas, estava uma ave a
cantar no jardim. Kitty Finch pusera a cabeça nas mãos e chorara como se
fosse o fim de tudo.
Ela tinha de falar com o pai, mas ele estava em Nice a dirigir-se para uma
igreja russa qualquer, embora lhe tivesse dito que, se alguma vez se sentisse
tentada a acreditar em Deus, talvez fosse sinal de que estava a ter um
colapso nervoso. Outra coisa a preocupava. Era a coisa debaixo da cama,
mas não queria pensar nisso, porque tinha a ver com Mitchell e de qualquer
maneira agora a mãe estava a chamá-la para ir dar um passeio a cavalo.
Ponyland

Os póneis estavam a beber água de um tanque à sombra. Rastejavam


moscas pelas suas barrigas inchadas e pernas curtas e metiam-se-lhes nos
olhos castanhos que pareciam estar sempre húmidos. Enquanto Nina via a
mulher que os alugava escovar-lhes a cauda, decidiu que teria de falar à
mãe sobre o poema de afogamento de Kitty, como agora lhe chamava. Kitty
estava a falar em francês com a mulher dos póneis e não parecia alguém
que estivesse prestes a tentar afogar-se. Estava com um vestido curto azul e
tinha pequenas penas brancas no cabelo, como se a sua almofada tivesse
rebentado durante a noite.
– Temos de seguir o trilho. Há sacos de plástico cor de laranja atados aos
ramos das árvores. A mulher diz que temos de seguir os plásticos cor de
laranja e caminhar ao lado do pónei.
Nina, que queria ficar sozinha com a mãe, viu-se forçada a escolher um
pónei cinzento com orelhas compridas e cobertas de crostas e a fingir que
estava a ter uma infância perfeita.
O pequeno pónei não estava com disposição para ser alugado por uma
hora. Parava a cada dois minutos para tasquinhar a erva e roçar a cabeça
contra o tronco das árvores. Nina estava impaciente. Tinha coisas
importantes no pensamento, entre elas as pedras que tinha apanhado com
Kitty na praia, porque pensava que elas apareciam no poema. Tinha visto as
palavras «As Pedras de Afogamento» sublinhadas a meio da página.
Reparou que a mãe estava subitamente a reparar nas coisas. Quando Kitty
apontava para árvores e para diferentes tipos de erva, Isabel pedia-lhe que
repetisse os seus nomes. Kitty estava a dizer que certos tipos de inseto
precisavam de beber néctar na vaga de calor. A Isabel sabia que o mel é só
saliva e néctar? Quando as abelhas sugam o néctar, misturam-no com a sua
saliva e armazenam a mistura nos seus sacos de mel. Depois vomitam os
sacos de mel e começam de novo. Kitty estava a falar como se fossem uma
grande família feliz, sempre a segurar a corda do pónei entre o polegar e um
dedo. Nina ia sentada em cima do pónei em silêncio, fitando sombriamente
as fendas de céu azul que via por entre as árvores. Se virasse o céu ao
contrário, o pónei teria de nadar por entre as nuvens e o ar. O céu seria a
relva. Os insetos correriam pelo céu fora. O trilho parecia ter desaparecido,
porque já não havia mais sacos de plástico cor de laranja amarrados aos
ramos das árvores. Tinham saído do pinhal para uma clareira perto de um
café. O café ficava em frente a um lago. Nina olhou para as árvores à
procura de pedaços de plástico cor de laranja e apercebeu-se de que
estavam perdidas, mas Kitty não se importava. Estava a acenar a alguém, a
tentar atrair a atenção de uma mulher que estava sentada sozinha na
esplanada do café.
– É a Dra. Sheridan. Vamos dizer-lhe olá.
Ela conduziu o pónei para fora do que restava do trilho e fê-lo subir os
três degraus baixos de cimento na direção de Madeleine Sheridan, que tinha
tirado os óculos e os pusera em cima da mesa de plástico branco ao lado do
seu livro.
Nina viu-se presa em cima do pónei enquanto Kitty a conduzia, passando
pela empregada de mesa perplexa, que levava uma bandeja com Oranginas
a uma família sentada a uma mesa perto. A velha parecia ter ficado
paralisada na cadeira no momento em que ia pôr um torrão de açúcar na sua
chávena de café. Era como se uma jovem magra com um vestido curto azul,
de cabelo ruivo a serpentear-lhe pelas costas e a conduzir um pónei cinzento
para a esplanada de um café fosse uma cena que só pudesse ser olhada de
relance. Ninguém sentia que podia intervir, porque não compreendiam bem
o que estavam a ver. Recordou a Nina o dia em que tinha visto um eclipse
através de um buraco num papel colorido, com cuidado para o sol não a
cegar.
– Como está, Dra.?
Kitty puxou a corda e deu ao pónei um torrão de açúcar. Com uma das
mãos ainda a segurar a corda, passou o braço por cima do ombro da velha
senhora.

A voz de Madeleine Sheridan, quando finalmente falou, era calma e cheia


de autoridade. Estava com um xaile vermelho que parecia a capa de um
matador, com pompons cosidos na fímbria.
– Mantenha-se no trilho, Kitty. Não pode trazer póneis para aqui.
– O trilho desapareceu. Não há trilho para seguir. – Ela sorriu. – Ainda
estou à espera de que me traga os meus sapatos como disse que faria. As
enfermeiras disseram-me que eu tinha os pés sujos.
Nina lançou um olhar à mãe, que estava agora do lado esquerdo do pónei.
As mãos de Kitty tremiam e ela estava a falar demasiado alto.
– Estou surpreendida por não ter dito aos meus novos amigos o que me
fez. – Voltou-se para Isabel e imitou um sussurro de filme de terror: – A
Dra. Sheridan disse que eu tenho uma predisposição mórbida.
Para horror de Nina, a sua mãe riu-se como se ela e Kitty estivessem a
partilhar uma piada.
A empregada de mesa trouxe um prato de salsichas e feijão-verde e
pousou-o com força diante de Madeleine Sheridan resmungando-lhe em
francês que era preciso tirar o pónei do café.
Kitty piscou o olho a Nina. Primeiro o olho esquerdo. E depois o olho
direito. – A empregada não está habituada a que venham cá póneis para o
pequeno-almoço.
Como se fosse a sua deixa, o pónei começou a lamber as salsichas no
prato e todas as crianças na mesa ao lado se riram.
Kitty tomou um pequeno gole do café ainda intacto da médica. Os seus
olhos tinham parado de piscar. – Na verdade – os nós dos seus dedos
ficaram subitamente brancos quando ela agarrou com força a corda que
deveria manter o pónei no trilho –, ela mandou-me internar. – Limpou a
boca com as costas da mão. – EMBARACEI-A, POR ISSO ELA CHAMOU UMA
AMBULÂNCIA.
Kitty pegou na faca do prato, uma faca afiada, e agitou-a na direção do
pescoço de Madeleine Sheridan. Todas as crianças no café começaram a
gritar, incluindo Nina. Ela ouviu a idosa, com a voz entrecortada, dizer à
sua mãe que Kitty estava doente e que era imprevisível. Kitty estava a
abanar a cabeça e a berrar-lhe.
– Disse que ia buscar a minha roupa. Eu esperei por si. Você é uma
mentirosa. Eu pensei que era bondosa, mas eles eletrocutaram-me por sua
causa. Fizeram-no TRÊS vezes. A enfermeira queria rapar-me o CABELO.
A ponta da faca pairava a um centímetro do colar de pérolas de
Madeleine Sheridan.
– Quero ir embora! – berrou Nina à sua mãe, tentando equilibrar-se no
pónei, quando ele, com as suas orelhas pontiagudas alerta, se lançou para a
frente à procura da taça dos torrões de açúcar.
Isabel tentou desapertar os estribos para Nina poder descer do pónei. A
empregada do café estava a ajudá-la a desapertar as fivelas e Nina
conseguiu passar a perna por cima da sela, mas não se atreveu a saltar,
porque o pónei subitamente ergueu-se nas patas de trás.
Alguém no café estava a chamar o guarda do parque pelo telefone.
– QUEIMARAM-ME OS PENSAMENTOS PARA OS FAZER IR EMBORA.
Quando se aproximava de Madeleine Sheridan, acenando-lhe com a faca
ao rosto paralisado de medo, duas pequenas penas brancas que tinha presas
no cabelo voaram na direção de Nina, que ainda estava a tentar descer do
pónei.
– Os médicos espreitaram para dentro de mim por um óculo. Meteram-me
CARNE à força pela garganta abaixo. Eu tentei pôr creme na cara, mas
DOÍAM-ME os maxilares dos choques. Preferia MORRER a que voltassem a
fazer-me aquilo.
Nina ouviu-se falar.
– A Kitty vai-se tentar afogar.
Era como se ela fosse a única pessoa que conseguia ouvir a sua voz.
Estava a dizer coisas importantes, mas aparentemente não suficientemente
importantes.
– A Katherine vai-se tentar afogar.
Até aos seus próprios ouvidos soava como um murmúrio, mas achava que
a velha médica talvez a tivesse ouvido, mesmo assim. A mãe dela tinha
arranjado maneira de tirar a faca da mão de Kitty e Nina ouviu a voz
trémula de Madeleine Sheridan dizer: – Tenho de telefonar à polícia. Vou
telefonar à mãe dela. Tenho de lhe telefonar agora mesmo. – Parou de falar
porque Jurgen tinha aparecido de repente.
Era como se Kitty o tivesse feito aparecer por feitiço. Ele estava a falar
com o guarda do parque, que abanava a cabeça e parecia agitado.
– Eu tenho testemunhas. – Os pompons da capa vermelha de Madeleine
Sheridan saltavam para cima e para baixo como se fossem as testemunhas a
que ela se referia.
Kitty agarrou o braço de Jurgen e segurou-o. – Não deem ouvidos à Dra.
Sheridan. Ela está obcecada comigo. Não sei porquê, mas está. Perguntem
ao Jurgen.
Os olhos sonolentos de Jurgen piscaram por detrás dos seus óculos
redondos.
– Anda lá, Kitty Ket. Eu levo-te para casa. – Disse algo a Madeleine
Sheridan em francês e depois pôs o braço à volta da cintura de Kitty.
Ouviam a sua voz a sossegá-la. – Esquece esquece esquece Kitty Ket.
Estamos todos doentes por causa da poluição. Temos de fazer uma cura da
Natureza.

Os olhos de Madeleine Sheridan ardiam como brasas. Brasas azuis.


Queria chamar a polícia. Era um ataque. Uma agressão. Parecia um matador
que tivesse sido esventrado pelo touro. O guarda do parque mexia numa
argola com chaves que trazia presa ao cinto. As chaves eram quase tão
grandes como ele. Queria saber onde vivia a jovem. Qual era a sua morada?
Se madame desejava chamar a polícia, precisariam dessa informação. Isabel
explicou que Kitty tinha chegado cinco dias antes sem ter onde ficar e que
eles lhe tinham cedido um quarto na sua casa de férias alugada.
Ele franziu a testa ao ouvir esta informação, batendo nas chaves com o
seu polegar minúsculo. – Mas deve ter-lhe feito perguntas?
Isabel acenou que sim com a cabeça. Tinham-lhe feito perguntas. Jozef
perguntara-lhe o que era uma folha. E um cotilédone.
– Não me parece que seja preciso incomodar a polícia. É um problema
particular. Madame está abalada, mas não ferida.
A sua voz era suave e soava um bocadinho galesa.
O guarda estava agora a gesticular. – A jovem deve ter vindo de algum
lado. – Fez uma pausa para acenar a dois homens com botas enlameadas,
que pareciam precisar da sua autorização para cortar um toro com uma serra
circular.
– Sim – disse Madeleine Sheridan num tom cortante. – Veio de um
hospital no Kent, na Grã-Bretanha. – Tocou nas pérolas atacadas, amarradas
num nó junto do pescoço, e voltou-se para Isabel. – Julgo saber que o seu
marido a vai levar a tomar um cocktail no Negresco amanhã.
SEXTA-FEIRA

A Caminho de Onde?

As pessoas paravam para olhar para ela. Para mirar e voltar a mirar a
visão de uma jovem radiante com um vestido de seda verde, que parecia
caminhar sobre o ar. A tira esquerda dos seus sapatos brancos de sapateado
tinha-se desapertado, como se para a ajudar a elevar-se acima das pontas de
cigarros e das pratas de chocolates nos passeios. Kitty Finch, com a sua
abundante cabeleira empilhada no topo da cabeça, estava quase tão alta
como Joe Jacobs. Enquanto passeavam pela promenade des Anglais na luz
prateada do fim da tarde, nevavam gaivotas em todos os telhados de Nice.
Ela tinha atirado pelos ombros a capa curta de penas brancas, com as suas
fitas de cetim atadas frouxamente à volta do pescoço. As penas esvoaçavam
ao vento que soprava do mar, o Mediterrâneo, que, pensou Joe, era da
mesma cor do brilhante kohl azul nas pálpebras de Kitty.
À distância, viam a cúpula cor-de-rosa do Hotel Negresco. Ele mudara
respeitosamente de roupa, para um fato às riscas, e até abrira o novo frasco
de perfume que lhe fora enviado de Zurique. A sua parfumier, a última
alquimista viva do século xx, insistia que as notas de topo eram irrelevantes
e que as notas de fundo se revelariam quando ele transpirasse. Kitty enfiou
o seu braço nu no braço de fazenda às riscas, uma risca vermelha vertical
que tinha semelhanças com a centopeia que ele apanhara no rio. Ela não lhe
contou o que acontecera com Madeleine Sheridan (ela e Jurgen já tinham
falado sobre o assunto durante horas) e ele não lhe contou a ela como tinha
dado por si de joelhos a acender uma e depois duas velas na Catedral
Ortodoxa Russa. A tensão de esperar para se encontrarem outra vez levara
ambos a fazerem coisas que não compreendiam.
Quando chegaram à entrada de mármore, o porteiro com a sua jaqueta
carmim e luvas brancas abriu-lhes respeitosamente a porta, com NEGRESCO
pintado a toda a largura do arco de vidro em letras douradas. A capa de
penas esvoaçava atrás dela como as asas do cisne a que as penas tinham
sido arrancadas. Mais do que andar, vogou para o bar com luzes baixas,
cadeirões estofados a veludo vermelho desbotado e tapeçarias nas paredes.
– Estás a ver aquelas pinturas a óleo de nobres nos seus palácios?
Ele olhou para cima, para os retratos do que pareciam ser solenes
aristocratas pálidos a posar em cadeiras forradas a tapeçaria em sala de
mármore gélidas.
– Bem, a minha mãe limpa-lhes as pratas e lava-lhes as cuecas.
– É empregada doméstica?
– É. Dantes limpava a casa da Rita Dwighter. É por isso que eu fico de
graça às vezes.
Esta confissão fê-la corar, mas ele tinha algo a dizer em resposta.
– A minha mãe também era mulher a dias. Eu costumava roubar ovos das
galinhas para ela e trazê-los para casa nos bolsos.
Sentaram-se lado a lado em duas cadeiras antigas. As penas brancas da
capa dela estremeceram quando ele murmurou: – Há um recado para nós na
mesa. Acho que deve ser de Marie Antoinette.
Kitty estendeu a mão e pegou no cartão branco encostado a uma jarra de
flores.
– Diz que o cocktail do mês é champanhe com uma coisa chamada Crème
de Fraise des Bois.
Joe acenou com a cabeça como se esta informação fosse de importância
vital.
– Depois da revolução, toda a gente vai ter direito ao cocktail do mês.
Tomamos um, entretanto?
Kitty acenou entusiasticamente com a cabeça.
O empregado de mesa já estava ao seu lado, a atendê-lo como se fosse um
grande privilégio para ele. Um músico com um ar aborrecido, com um
smoking branco manchado, estava sentado ao piano a tocar «Eleanor
Rigby» ao canto do bar. Ela cruzou as pernas e esperou que ele lhe falasse
sobre o seu poema. Ontem à noite tinha visto uma coisa que a assustara e
queria falar-lhe disso. O rapaz estava outra vez de pé ao lado da cama dela.
Acenava freneticamente, como se estivesse a pedir-lhe que o ajudasse, e
tinha dois ovos de galinha no bolso. Tinha-lhe entrado de assalto na mente.
Ela começara a cobrir os espelhos para o caso de ele voltar a aparecer.
Enfiou as mãos por baixo da carteira que tinha no regaço para ele não ver
que estavam a tremer.
– Fala-me mais da tua mãe. É parecida contigo?
– Não, é obesa. Um dos braços dela dava uma de mim.
– Disseste que ela conhece a proprietária da casa de férias?
– Conhece. A Rita Dwighter.
– Fala-me mais sobre a Rita e a sua carteira de imóveis e de dor.
Ela não queria falar sobre a patroa da sua mãe. Era um estilhaço no seu
braço, a indiferença dele pelo envelope que ela tinha enfiado por baixo da
porta do quarto dele. Estava sempre a mudar de assunto. Ela inspirou
profundamente e sentiu o cheiro a trevo do seu perfume.
– A Rita é proprietária de tantos imóveis que teve de se exilar por
motivos fiscais em Espanha, mas isso quer dizer que ela só pode
permanecer no Reino Unido um certo número de dias por ano. A minha
mãe disse-lhe que ela ia ser como uma foragida e a Rita ofendeu-se e disse
que o psiquiatra dela lhe dissera que ela precisava de aceitar a sua ganância.
Ele riu e afundou os dedos na pequena taça de nozes que estava na mesa.
Brindaram e beberam o primeiro gole do cocktail do mês.
– Qual é o teu poema favorito, Kitty?
– Referes-te a um poema que eu tenha escrito ou a um poema de outra
pessoa? – Ele já devia saber que era o poeta preferido dela. Era por isso que
ela estava aqui. As palavras dele estavam dentro dela. Ela compreendia-as
antes de as ler. Mas ele recusava-se a admiti-lo. Estava sempre bem-
disposto. Tão bem-disposto que ela achava que ele poderia estar num perigo
terrível.
– Queria dizer se gostas de Walt Whitman ou de Byron ou de Keats ou de
Sylvia Plath?
– Ah, certo. – Ela bebeu mais um gole do cocktail. – Bem, não há dúvida.
O meu poema favorito é de Apollinaire.
– Qual é?
Ela inclinou a cadeira para a frente e agarrou na caneta de tinta
permanente que ele trazia sempre presa à camisa como um microfone.
– Dá-me a tua mão.
Quando ele pôs a mão no joelho dela, com a palma a deixar uma marca
de suor no seu vestido de seda verde, ela espetou-lhe o aparo na pele com
tal força que ele deu um salto. Ela era mais forte do que parecia, porque lhe
prendeu a mão e ele não conseguiu ou não quis tirá-la. Ela estava a magoá-
lo com a sua própria caneta ao inscrever uma tatuagem preta de letras na
sua pele.

Ele fitou a sua mão, que lhe doía. – Porque é que gostas tanto dele?
Ela levou a taça de champanhe aos lábios e enfiou a língua lá dentro,
lambendo os últimos restos de polpa de morango.
– Porque está sempre a chover.
– Está?
– Está. Tu sabes que está.
– Sei?
– Está sempre a chover quando uma pessoa se sente triste.
A imagem de Kitty Finch a uma chuva perpétua, a caminhar à chuva, a
dormir à chuva, a fazer compras e a nadar e a apanhar plantas à chuva
intrigava-o. Ainda tinha a sua mão no joelho dela. Ela não tinha voltado a
pôr a tampa na caneta. Ele queria exigir que ela lha devolvesse, mas em vez
disso deu consigo a oferecer-lhe outro cocktail. Ela estava absorta nos seus
pensamentos. Sentada muito direita no cadeirão de veludo, com a caneta
dele na mão. Com o aparo de ouro apontado para o teto. Pequenos
diamantes de suor gotejavam-lhe pelo pescoço comprido. Ele foi ao bar e
pousou os cotovelos no balcão. Talvez devesse suplicar ao pessoal que o
levasse a casa? Era impossível. Era a sedução impossível da catástrofe, mas
já tinha acontecido, estava a acontecer. Tinha acontecido e estava a
acontecer de novo, mas ele tinha de o combater até ao fim. Fitou a chuva
preta que ela tinha inscrito na sua mão e disse a si próprio que aquilo estava
ali para amolecer a sua decisão de lutar. Ela era esperta. Sabia o que a chuva
faz. Amolece coisas duras. Ele via-a à procura de alguma coisa na carteira.
Tinha um livro na mão, um dos livros dele, e estava a sublinhar alguma
coisa na página com a caneta dele. Talvez ela fosse uma escritora
extraordinária? Não lhe tinha ocorrido. Talvez fosse isso que ela era?
Joe mandou vir mais dois cocktails do mês. O barman disse a monsieur
que lhos levaria à mesa quando estivessem prontos, mas ele ainda não
queria voltar para o seu cadeirão antigo. Ela sabia realmente bastante sobre
poesia. Para uma botânica. Porque é que ele não lhe tinha dito que lera o
seu poema? O que estava a impedi-lo? Deveria confiar no seu instinto de
não revelar que tinha lido a ameaça que ela enfiara no envelope? Ele levou
as taças geladas até ela. Desta vez, Joe emborcou o seu champanhe com
morangos como se fosse um copo de cerveja. Inclinou-se para os lábios
dela, que estavam húmidos com o champanhe de morango, e beijou-a.
Como ela deixou, beijou-a outra vez, com o seu cabelo preto e grisalho a
enredar-se nos caracóis de cabelo ruivo dela. As suas pestanas claras
enfarruscadas com rímel batiam-lhe na face enquanto ele segurava o seu
longo pescoço com a palma da mão e sentia as unhas pintadas de verde a
cravarem-se no joelho dele.
– Estamos a beijar-nos à chuva. – A voz dela era dura e macia ao mesmo
tempo. Como os cadeirões de veludo. Como a chuva preta inscrita na sua
mão.

Ela tinha os olhos fechados com força. Ele estava a conduzi-la na direção
do pesado lustre austríaco no átrio. Ela tinha a cabeça a andar à roda e
precisava de beber água. Ouviu-o perguntar ao rececionista italiano se havia
quartos vagos. Abriu os olhos. O italiano elegante martelava as teclas do
seu computador. Sim, havia um quarto. Mas estava decorado ao estilo Luís
XVI em vez de art déco e não tinha vistas de mar. Joe entregou-lhe o seu
cartão de crédito. O paquete conduziu-os a um elevador forrado a espelhos.
Ela olhou fixamente para os múltiplos reflexos do braço suado de Joe à
volta da sua cintura, com a seda verde do seu vestido a estremecer enquanto
vogavam silenciosamente no elevador que cheirava a couro até ao terceiro
andar.
Metáforas

Madeleine Sheridan convidou formalmente Isabel para a visitar na


Maison Rose. Ofereceu-lhe um cálice de xerez e disse-lhe que se pusesse
confortável na chaise-longue desconfortável. Ela sentou-se no cadeirão em
frente da esposa jornalista e tirou delicadamente alguns fios de cabelo
grisalho do seu copo de whisky. Tinha os olhos turvos como a água da
piscina de que Kitty Finch se queixara a Jurgen e pensou que talvez
estivesse a perder a visão. Isso tornou-a ainda mais decidida a ajudar Isabel
Jacobs a ver as coisas claramente. A ajudá-la a compreender que ser
ameaçada com uma faca era um assunto sério e, estranhamente, sentiu uma
dor aguda no pescoço, embora na realidade Kitty Finch não tivesse chegado
a tocar-lhe no pescoço. Era muito mais a Dra. Sheridan do que Madeleine
quando explicou que tinha telefonado à mãe de Kitty, que chegaria no
domingo de manhã cedo. Mrs Finch viria de carro do aeroporto à casa de
férias buscar a sua filha e levá-la para casa. Isabel fitava as suas sandálias.
– Parece convencida de que ela está muito doente, Madeleine.
– Sim. É claro que está.
De cada vez que Isabel falava, Madeleine Sheridan calculava que era
como se estivesse a ler as notícias. A sua missão de ajudar a exótica família
Jacobs a ver as coisas como elas realmente são estava em alerta máximo.
– A vida é algo que ela tem de fazer, mas que não quer fazer. A Nina
disse-nos isso.
Isabel bebeu um gole de xerez.
– Mas, Madeleine… é só um poema.
A Dra. Sheridan suspirou. – A rapariga sempre foi um bocado perturbada.
Mas que beleza, hein?
– Ela é muito bela, sim. – Isabel ouviu-se dizer esta frase atrapalhada,
como se tivesse medo dela.
– Se me permite perguntar-lhe, Isabel… porque é que convidou uma
estranha para sua casa?
Isabel encolheu os ombros como se a resposta fosse inteiramente óbvia.
– Ela não tinha onde ficar e nós temos mais quartos do que precisamos.
Quer dizer, quem é que precisa de cinco quartos de banho, Madeleine?
Madeleine Sheridan tentou perscrutar Isabel Jacobs, mas o que viu, teve
de confessar, foi uma mancha indistinta. Os seus lábios estavam a mexer-se.
Estava a falar consigo própria em francês, porque as coisas que estava a
dizer eram menos apropriadas para a língua inglesa. Os seus pensamentos
estavam a fazer um ruído duro contra os seus lábios, Que Que Que, como se
estivesse de facto obcecada com Kitty Finch, que, por alguma razão, era tão
adorada por Jurgen e por todas as outras pessoas que conseguia manipular e
intrigar. Nas últimas três semanas, Madeleine observara a família Jacobs do
melhor lugar no teatro, da cadeira escondida na sua varanda. Isabel Jacobs
talvez tivesse atirado Kitty Finch para os braços do seu ridículo marido,
mas era um risco tolo que corria, porque poderia perder a sua filha. Sim. Se
o marido seduzisse a rapariga doente, seria impossível voltar à vida como
ela era antes. Isabel teria de pedir ao marido que deixasse a casa da família.
Nina Jacobs, como uma assassina, teria de escolher sem qual dos dois
poderia viver. Será que Isabel não compreendia que a sua filha já se tinha
adaptado à vida sem a sua mãe nela? Madeleine Sheridan tentou impedir
que os seus lábios se mexessem, porque diziam coisas desagradáveis.
Conseguia ver vagamente que Isabel se mexia na chaise-longue. Estava a
cruzar as pernas. A descruzar as pernas. O calor lá fora era tão intenso que
ela tinha ligado o velho aparelho de ar condicionado. Ele gemia por cima da
sua cabeça. Madeleine pressentia (embora não conseguisse ver) que Isabel
era uma mulher corajosa. Quando andava na escola de Medicina, tinha visto
mulheres a estudarem para serem especialistas do coração, ginecologistas,
especialistas de cancro dos ossos. Mas depois elas tinham filhos e alguma
coisa acontecia. Ficavam cansadas. O tempo todo. Madeleine Sheridan
queria que esta mulher bem arranjada e enigmática que estava sentada na
sua sala de estar ficasse gasta, ficasse exausta, exibisse alguma espécie de
vulnerabilidade, que precisasse dela e que, acima de tudo, desse valor a esta
conversa.
Em vez disso, a esposa traída enrolou o seu cabelo preto comprido nos
dedos e pediu outro xerez. Quase parecia que estava a tentar seduzi-la.
– Quando se aposentou, Madeleine? Tenho entrevistado frequentemente
médicos a trabalharem em condições muito difíceis. Sem macas, sem luzes,
por vezes sem medicamentos.
Doía a garganta a Madeleine Sheridan. Inclinou-se para a mulher que
estava a tentar destruir, inspirou e esperou que as palavras viessem, algo
sobre o seu trabalho antes de se aposentar e sobre a dificuldade de persuadir
pacientes com rendimentos baixos a deixarem de fumar.
– Faço anos hoje.
Ouviu a vozinha suplicante que lhe saiu da boca, mas era demasiado tarde
para tentar adotar outro tom. Se pudesse dizê-lo de novo, seria num tom
leve, arejado, divertido por estar sequer viva. Isabel pareceu genuinamente
surpreendida.
– Feliz aniversário! Se me tivesse dito, eu tinha trazido uma garrafa de
champanhe.
– Sim. Obrigada pela intenção. – Madeleine Sheridan ouviu-se falar num
inglês de classe média instalada.
– Alguém me assaltou o jardim. Roubaram-me as rosas e é claro que eu
sei que a Kitty Finch está muito zangada comigo.

A mulher exótica do poeta estava a dizer algo sobre o facto de roubar


uma rosa não ser exatamente sinal de distúrbio mental e que, de qualquer
forma, estava a fazer-se tarde e ela queria desejar boa-noite à filha. Da
janela em frente viu uma lua cheia flutuar no céu. O que é que a mulher do
poeta estava a fazer? Estava a encaminhar-se para ela. Estava cada vez mais
perto. Cheirava-lhe a mel.
Isabel Jacobs estava a desejar-lhe um feliz aniversário outra vez e os seus
lábios pousavam quentes na sua face. O beijo doeu-lhe tanto como as dores
na garganta.
Línguas Estrangeiras

Nina estava a dormir, mas no seu sonho estava acordada e deu consigo a
encaminhar-se para o quarto vago onde Kitty estava deitada na cama. Tinha
o rosto inchado e o lábio rebentado. Parecia-se com Kitty, mas não muito.
Ouviu Kitty segredar o seu nome.
Nina aproximou-se. As pálpebras de Kitty estavam pintadas com sombra
verde. Pareciam folhas. Nina sentou-se aos pés da cama. Kitty era proibida,
porque era perigosa. Fazia coisas perigosas. Nina engoliu em seco com
força e deu à Kitty morta uma informação.
A tua mãe vem cá buscar-te.
Pôs um rato de açúcar azul junto ao pé de Kitty. Tinha uma cauda
minúscula feita de cordel. Nina tinha-o encontrado debaixo da cama de
Kitty.
E comprei-te sabonete.
Ela tinha visto Kitty procurar sabonete muitas vezes, mas não havia
nenhum no quarto de banho dela e ela disse que gastara o dinheiro todo no
aluguer do carro.
Eu li o teu poema. Acho que é fantástico. É a melhor coisa que já li na
minha vida.
Citou a Kitty versos do seu poema. Não como eram no poema, mas como
ela se lembrava deles.

Saltar para a frente com ambos os pés


Saltar para trás com ambos os pés
Pensar em maneiras de viver

As pálpebras de Kitty estremeceram e Nina viu que tinha dito o poema


todo mal e que não se tinha lembrado em condições. E depois pediu a Kitty
que deitasse a língua de fora, mas Kitty estava a falar-lhe em iídiche ou
talvez fosse alemão e estava a dizer «Levanta-te!», que foi o que fez Nina
acordar.
O Dinheiro é Duro

Ele pôs a mão à volta do pescoço dela e desatou a fita de cetim branco da
capa de penas. A cama de dossel com cortinados grossos e dourados parecia
uma caverna. Ela ouviu o alarme de um carro disparar enquanto as gaivotas
gritavam no parapeito da janela e fixou o olhar no papel de parede. As
penas brancas da sua capa estavam espalhadas no lençol como se ela tivesse
sido atacada por uma raposa. Tinha comprado a capa numa feira da ladra
em Atenas, mas nunca a usara até agora. O cisne era um símbolo do ano a
acabar no outono, lera isso algures. Tinha-lhe ficado na cabeça e fizera-a
pensar na maneira como os cisnes enfiam a cabeça na água e se viram de
pernas para o ar. Tinha andado a guardar a capa para algo, talvez para isto;
era difícil saber o que tivera em mente quando trocara dinheiro pelas penas
que tinham protegido esta ave aquática do frio e que eram também em
tempos usadas para escrever. Ele estava dentro dela agora, mas ele estava
dentro dela de qualquer forma, era isso que ela não podia dizer-lhe mas que
lhe dissera no seu poema que ele não tinha lido, e agora o alarme do carro
parara de tocar e ela ouvia vozes lá fora. Um ladrão devia ter assaltado um
carro, porque alguém estava a varrer vidros partidos.
Ao fim de algum tempo, ele preparou-lhe um banho.

Desceram as escadas até à receção e ela ficou sob os ofuscantes cristais


austríacos do lustre enquanto Joe assinava alguma coisa com a sua caneta.
O rececionista italiano devolveu-lhe o cartão de crédito e o porteiro abriu-
lhes as portas de vidro. Tudo estava como antes, mas um pouco diferente. O
pianista ainda estava a tocar «Eleanor Rigby» no bar de onde eles tinham
saído há duas horas, mas agora também cantava as palavras. As palmeiras
plantadas ao longo das duas faixas de rodagem estavam iluminadas com
luzinhas douradas. Kitty fez tilintar as chaves do carro na mão e disse a Joe
para esperar enquanto ela ia comprar um rato de açúcar à barraquinha de
doçarias no passeio à beira-mar. Os ratos estavam alinhados num tabuleiro
prateado. Rosa branco amarelo azul. Ela meteu-se à frente de uma
vietnamita que estava a comprar gomas de morango e examinou as
minúsculas caudas feitas de cordel. Acabou por escolher um rato azul,
deixando cair as chaves do carro enquanto rebuscava na carteira à procura
de moedas. Quando chegaram ao carro, ela disse-lhe que estava com fome.
A sua gaguez voltara para os atormentar a ambos. Ele importava-se se ela
parasse nalgum sítio para comer uma pe pe pe? É claro, disse ele, eu
também gostava de comer uma pizza, e encontraram um restaurante com
mesas cá fora na noite quente, ao lado de uma igreja. Era a primeira vez que
ele a via comer. Ela devorou a pizza fina com anchovas e ele mandou vir
outra com alcaparras e beberam vinho tinto como se fossem de facto os
amantes que não deveriam ser. Ela brincou com as velas que ardiam na
mesa deles, fazendo impressões digitais com a cera, e quando ele lhe pediu
que ela lhe desse uma para ele guardar para sempre, ela disse-lhe que as
suas impressões digitais estavam por todo o corpo dele, de qualquer
maneira. E depois falou-lhe sobre o hospital no Kent e de como as
enfermeiras de Odessa comparavam os seus chupões no intervalo do
almoço. Ela também escrevera sobre isso, mas não lhe pedia que o lesse –
só lhe estava a dizer que faria parte do seu primeiro livro de poemas. Ele
serviu-lhe salada e deitou-lhe alcachofras no prato com a colher e viu os
dedos compridos dela embeberem o pão no azeite. Fizeram um brinde e ela
disse-lhe que depois do tratamento de choque, quando ficou deitada desfeita
nos lençóis brancos, soube que os médicos ingleses não lhe tinham apagado
os pensamentos dentro da cabeça, etc, mas ele saberia tudo sobre isso e para
quê ir por aí agora, porque a noite estava macia aqui nos becos da velha
Nice, em contraste com o dia, que era duro e cheirava a dinheiro. A tudo
isto ele acenou e, embora não lhe fizesse perguntas, sabia que de certa
forma estavam a falar sobre o poema dela. Duas horas depois, quando
estavam a meio da estrada de montanha, com Kitty debruçada sobre o
volante enquanto fazia as curvas perigosas, ele deitou um olhar ao relógio.
Ela era boa condutora. Admirava-lhe as mãos firmes, com as suas pontas
dos dedos de cera no volante, a conduzir o carro nas curvas da montanha.
Kitty buzinou quando um coelho atravessou a estrada a correr e o carro
guinou para um lado e para o outro.

Ela pediu-lhe que abrisse a janela do lado dele para ela poder ouvir os
animais a chamarem-se uns aos outros no escuro. Ele desceu o vidro e
disse-lhe para manter os olhos na estrada. – Sim – disse ela outra vez, com
os olhos de novo na estrada. O vestido de seda escorregava-lhe dos ombros
quando ela se debruçava sobre o volante. Ele tinha uma coisa a pedir-lhe.
Um pedido melindroso que esperava que ela compreendesse.
– Seria melhor para a Isabel se ela não soubesse o que aconteceu hoje à
noite.
Kitty riu e o rato azul saltitou no seu regaço.
– A Isabel já sabe.
– Sabe o quê? – Ele disse-lhe que estava a sentir-se tonto. Será que ela
poderia abrandar?
– Foi por isso que ela me convidou a ficar. Ela quer deixar-te.
Ele precisava que o carro fosse devagar. Tinha vertigens e sentia que
estava a cair, embora soubesse que estava sentado no lugar do passageiro
num carro de aluguer. Era verdade que Isabel iniciara o princípio do fim do
casamento deles e convidara Kitty Finch para ser a última traição? Não se
atrevia a olhar para baixo, para as cascatas que rugiam contra os penedos ou
para os arbustos com as raízes à vista que se agarravam ao lado da
montanha.
Ele ouviu-se dizer: – Porque é que não arranjas uma mochila e não vais
ver os campos de papoilas no Paquistão como disseste que querias?
– Sim – disse ela. – Vens comigo?
Ele levantou o braço que estivera pousado no ombro dela e fitou as
palavras que ela tinha escrito na sua mão. Tinha sido marcado como o gado
é marcado para mostrar a quem pertence. O ar frio da montanha picava-lhe
os lábios. Ela estava a conduzir demasiado depressa nesta estrada que tinha
em tempos sido uma floresta. Seres humanos primitivos tinham vivido nela.
Estudavam o fogo e o movimento do sol. Liam as nuvens e a lua e tentavam
compreender a mente humana. O seu pai tinha tentado fazê-lo desaparecer
numa floresta polaca quando ele tinha cinco anos. Ele sabia que não devia
deixar vestígios ou rasto da sua existência, porque nunca deveria encontrar
o caminho para casa. Era o que o seu pai lhe tinha dito. Não podes voltar
para casa. Isto não era algo possível de saber, mas ele tinha de o saber
mesmo assim.

– Porque é que não leste o meu pe pe pe?


«Minha doçura» foi o que ela o ouviu dizer enquanto carregava com o seu
sapato branco no travão. O carro guinou para a beira da montanha. A voz
dele era verdadeiramente terna quando disse «Minha doçura». Algo tinha
mudado na sua voz. A cabeça dela estava a zunir como se tivesse tomado
quinze cafés uns atrás dos outros. E depois tivesse comido quinze torrões de
açúcar. Desligou o motor, puxou o travão de mão e recostou-se no assento.
Finalmente. Finalmente ele estava a falar com ela.
– É desonesto dares- me um poema e fazeres de conta que queres a minha
opinião quando o que realmente queres são razões para viver. Ou razões
para não morrer.
– Tu também queres razões para viver.
Ele inclinou-se para ela e beijou-lhe os olhos. Primeiro o esquerdo e
depois o direito, como se ela já fosse um cadáver.
– Eu não sou o leitor certo para o teu poema. Tu sabes isso.
Ela pensou nisto enquanto chupava o seu rato azul.
– O importante não é o morrer. É tomar a decisão de morrer que é
importante.
Ele tirou o lenço para esconder os olhos. Tinha jurado nunca mostrar o
terror e a inutilidade e o pânico nos seus olhos à mulher e à filha. Amava-
as, à sua mulher e à sua filha de cabelo escuro, amava-as e não podia dizer-
lhes o que lhe andava na mente há muito tempo. As lágrimas involuntárias
continuavam a jorrar dele como tinham jorrado de Kitty Finch no pomar
cheio de árvores em sofrimento e de cães invisíveis a rosnarem. Ele tinha de
pedir desculpa por não ter esmagado os seus próprios desejos, por não ter
lutado até ao fim.
– Lamento o que aconteceu no Negresco.
– O que é que aconteceu no Negresco que lamentas?
A voz dela era suave, confiante e razoável.
– Eu sei que tu gostas de seda, por isso usei um vestido de seda.
Ele sentiu os dedos dela a tocarem as suas faces molhadas e sentia o seu
perfume no cabelo dela. Ter tido tal intimidade com ela levara-o à beira de
algo verdadeiro e perigoso. À beira de todas as pontes em que ele já estivera
em cidades europeias. O Tamisa a correr para leste pelo Sul de Inglaterra e
a desaguar no Mar do Norte. O Danúbio, que começava na Floresta Negra
da Alemanha e desaguava no Mar Negro. O sexo com ela levara-o à beira
da linha amarela nas plataformas de estações de metro e de comboios onde
estivera a pensar naquilo. Paddington. South Kensington. Waterloo. Uma
vez no Metro em Paris. Duas vezes em Berlim. A morte andava-lhe no
pensamento há muito tempo. A ideia, o atirar-se para rios e para debaixo de
comboios, durava dois segundos, um tremor, um espasmo, um pestanejar e
um passo em frente, mas, até agora, um passo atrás outra vez. Um passo
atrás para cinco cervejas pelo preço de quatro, para assar um frango para
Nina, para tomar um chá, Yorkshire ou Tetley’s, nunca Earl Grey, para
Isabel, que estava sempre noutro sítio qualquer.
Ele era o leitor errado a quem perguntar se deveria viver ou morrer,
porque ele próprio mal estava ali. Perguntou-se que tipo de catástrofe vivia
dentro de Kitty Finch. Ela disse-lhe que tinha esquecido o que recordava.
Ele queria fechar, como a loja de Mitchell e de Laura em Euston. Tudo o
que estava aberto tinha de fechar. Os seus olhos. A sua boca. As suas
narinas. Os seus ouvidos que ainda ouviam coisas. Disse a Kitty Finch que
tinha lido o seu poema e que ele lhe andava a ressoar na cabeça desde
então. Ela era uma escritora de força imensurável e mais do que tudo ele
tinha a esperança de que ela fizesse as coisas que queria fazer. Tinha de
viajar até à Grande Muralha da China, até à vitalidade e o sonho que é a
Índia, e não devia esquecer os misteriosos lagos luminosos mais perto de
casa, na Cumbria. Eram tudo coisas a aguardar com expectativa.

Estava a escurecer e ela disse-lhe que os travões do carro de aluguer


estavam fodidos, que não conseguia ver nada, não conseguia sequer ver as
mãos.
Ele disse-lhe que mantivesse os olhos na estrada, que fizesse isso, e
enquanto ele falava ela beijava-o e conduzia ao mesmo tempo.
– Eu sei o que estás a pensar. Só vale a pena viver a vida porque temos a
esperança de que ela melhore e de chegarmos todos a casa em segurança.
Mas tu tentaste e não chegaste a casa em segurança. Não chegaste a casa de
todo. É por isso que eu estou aqui, Jozef. Vim a França para te salvar dos
teus pensamentos.
SÁBADO

Nina Ekaterina

Quando Nina acordou logo a seguir ao nascer do dia na manhã de sábado


soube imediatamente que tudo tinha mudado. As portas da sua varanda
estavam abertas de par em par como se alguém lá tivesse estado durante a
noite. Quando viu um quadrado de papel amarelo enrolado como um
pergaminho na sua almofada soube que faria melhor se voltasse a dormir e
se escondesse todo o dia. As palavras no papel amarelo estavam escritas
numa letra tremida, por alguém que estava com pressa e que obviamente
gostava de anotar coisas. Acabou de ler a mensagem e desceu à socapa até
às portas de vidro que davam para a piscina. Já estavam abertas, como
pensou que estariam. Sabia o que ia ver.

Estava algo a flutuar na piscina e isso não a surpreendeu. Olhando de


novo, viu que o corpo de Kitty não estava a flutuar, mas submerso
verticalmente na água. Estava envolta num roupão de xadrez, mas o roupão
tinha escorregado. O colchão de borracha amarela batia contra as beiras da
piscina e flutuava na direção do corpo. Ela ouviu-se chamar.
– Kitty?
A cabeça estava baixa na água, inclinada para trás e com a boca aberta. E
depois ela viu os olhos. Os olhos estavam vidrados e abertos e não eram os
olhos de Kitty.
– Papá?
O pai não respondeu. Ela pensou que ele estava a pregar-lhe uma partida.
A qualquer momento, ia levantar-se da água e rosnar-lhe.
– Papá?
O seu corpo era grande e silencioso. Todo o ruído que era o seu pai, todas
as palavras e desabafos e frases dentro dele, tinham desaparecido dentro da
água. Ela só sabia que estava a gritar e depois subitamente as portas
estavam a bater e a sua mãe tinha mergulhado na piscina. Mitchell saltou
também lá para dentro. Juntos manobraram o corpo à volta do colchão e
com dificuldade estavam a tentar tirá-lo da piscina. Nina ouviu a mãe gritar
alguma coisa a Laura. Viu Mitchell depositar o corpo nas lajes e pressioná-
lo com as mãos, para cima e para baixo. Ouviu o som da água a chapinar
quando a mãe puxou o roupão para fora da água. Não compreendia porque
é que ele estava tão pesado, mas então viu a mãe tirar alguma coisa dos
bolsos. Era uma pedra do tamanho da sua mão, e tinha um buraco no meio.
Nina viu a mãe debater-se com outras três pedras que ela tinha apanhado na
praia com Kitty e pensou que já devia ser mais tarde e que o sol estava a
nascer por cima da piscina, porque a água tinha mudado de cor. Tremeu de
frio e procurou o sol no céu, mas não conseguia vê-lo.
Mitchell enfiou os dedos na boca do seu pai. E depois apertou-lhe o nariz.
Mitchell estava ofegante e a beijar o seu pai uma e outra vez.
– Não sei. Não sei.
Laura correu para dentro de casa a berrar qualquer coisa sobre o folheto
informativo. Onde é que estava Jurgen? Toda a gente estava a gritar por
Jurgen. Nina sentiu alguém tocar-lhe na cabeça. Kitty Finch estava a fazer-
lhe festas no cabelo. E depois Kitty empurrou-a para dentro de casa pelas
portas de vidro e disse-lhe que se sentasse no sofá enquanto ela ajudava
Laura a procurar o folheto informativo. Foi só o que ela ouviu nos cinco
minutos seguintes. Onde é que estava o folheto informativo? Alguém tinha
visto o folheto informativo? Embora Nina ainda não tivesse a certeza se era
o seu pai ou Kitty que estavam vivos ou mortos, deixou-se ficar sentada
obedientemente no sofá a olhar fixamente para a estampa de Picasso na
parede. Uma espinha de peixe. Uma jarra azul. Um limão. Foi só quando
ouviu gritar: – É amarelo. O folheto informativo é um papel amarelo – que
se apercebeu de que tinha um papel amarelo na mão e acenou com ele a
Laura. Laura pareceu sobressaltada e depois arrancou-lho da mão e correu
para o telefone. Nina viu-a a olhar com atenção para os números.
– Não sei, Kitty. Não sei para qual ligar.
Kitty estava a dizer qualquer coisa num tom de voz impassível e
monocórdico.
– O hospital é em Grasse, no Chemin de Clavary.
Começou a chover. Nina ouviu-se soluçar. Estava fora de si, a olhar para
si mesma de pé junto às portas de vidro.
A ambulância e a polícia estavam a chegar. Madeleine Sheridan também
lá estava. Estava a berrar a Mitchell:
– Incline-lhe a cabeça para cima, segure-lhe o nariz! – e Nina viu-lhe os
dedos a pressionar o pescoço do seu pai à procura de pulsação.
– Não o ponha na posição de segurança, Mitchell. Acho que ele tem uma
fratura da coluna.
E depois Nina ouviu a velha gritar: – Aí vem…
Nina começou a soluçar à chuva, porque ainda não tinha a certeza do que
acontecera. Enquanto corria para a sua mãe ouviu-se a chorar muito alto.
Soava um pouco como riso, mas não era. Tinha os dentes arreganhados e
sentia pequenas pontadas no diafragma. Estava a franzir a testa e quanto
mais chorava mais franzia a testa. Sentia a mãe a segurá-la nos braços, a
fazer-lhe festas no pescoço. A sua mãe estava com uma camisa de noite que
estava molhada e fria e cheirava a cremes caros. Em criança, Nina tinha
jogado a um jogo mórbido em que se desafiava a ter de escolher qual dos
pais preferia que morresse. Tinha-se atormentado com este jogo e agora
enterrava o rosto na barriga da mãe, porque sabia que a tinha traído.
A suavidade contra a sua face fê-la chorar ainda mais e pensou que a mãe
sabia o que ela estava a pensar, porque a ouviu segredar-lhe ao ouvido
palavras quase inaudíveis, como uma folha de outono a voltejar ao vento. –
Deixa lá, deixa lá.

O seu pai estava a ser posto numa padiola. A polícia tinha começado a
esvaziar a piscina. Jurgen também estava lá. Tinha uma vassoura na mão e
andava a varrer energicamente à volta dos vasos de plantas. Até se tinha
dado ao trabalho de vestir um fato-macaco azul-marinho que o fazia parecer
um zelador.
A Notícia

Isabel dirigiu-se para os paramédicos e pegou na mão de Jozef. Ao


princípio, julgou que uma fila de formigas estava a rastejar numa linha
militar na direção dos nós dos dedos dele. E depois viu as vogais e as
consoantes em tinta preta desbotada a misturarem-se umas com as outras.

Ouvia o zumbido das abelhas por perto e ouviu-se insistir que do que o
marido precisava era de uma ambulância aérea, mas o que dizia
principalmente era o seu nome.
Jozef. Por favor. Jozef. Jozef. Jozef, por favor.
Porque é que ele tinha marcado assim a mão? Onde é que o tinha feito e
como pudera suportá-lo e o que queria dizer? Ela apertou-lhe os dedos e
pediu-lhe que se explicasse. Prometeu que, por seu turno, se explicaria ela
também. Fá-lo-ia agora mesmo. Disse-lhe que gostaria de ter sentido o seu
amor cair sobre ela como chuva. Era esse o tipo de chuva por que mais
ansiara no seu longo casamento pouco convencional. Os paramédicos
pediram-lhe que se afastasse do caminho, mas ela não se mexeu, porque
sempre se tinha afastado do caminho dele. Amá-lo tinha sido o maior risco
da sua vida. A coisa, a ameaça estava lá à espreita, em todas as palavras
dele. Ela soubera-o desde o início. Sempre o soubera. Ele tinha enterrado
cartuchos e granadas por explodir nas estradas e nos caminhos de todos os
seus livros, estavam debaixo de cada poema, mas se ele morresse agora a
filha deles atravessaria um mundo que estava sempre danificado e ela
estava tão zangada quanto era possível estar.
Jozef. Por favor. Jozef. Jozef. Jozef. Por favor.
Subitamente, apercebeu-se de que alguém estava a empurrá-la, a afastá-la
do caminho, e que lhe cheirava a sangue.
Um homem grande, com o cabelo rapado e um revólver preso ao cinto
estava a fazer-lhe perguntas. Para nenhuma das perguntas que ele fazia ela
tinha uma resposta direta. Como se chamava o seu marido?
Jozef Nowogrodzki no passaporte. Joe Harold Jacobs em todos os outros
documentos de identificação. De facto, ela não achava que o seu nome
fosse Nowogrodzki, mas era esse nome que os seus pais tinham escrito no
passaporte dele, de qualquer maneira. Ela também não disse ao polícia que
o seu marido tinha muitos outros nomes: JHJ, Joe, Jozef, o famoso poeta, o
poeta britânico, o poeta imbecil, o poeta judeu, o poeta ateu, o poeta
modernista, o poeta pós-Holocausto, o poeta mulherengo. Então, qual era o
local de nascimento de Monsieur Nowogrodzki? Polónia. Łód´z. 1937. Łód
´z em inglês diz-se Wodge, mas ela não sabia dizer o nome em francês. O
nome dos pais? Não tinha a certeza de como se escrevia. Ele tinha irmãos?
Sim. Não. Tinha uma irmã. Chamava-se Friga.
O inspetor parecia confuso. Isabel fez o que fazia melhor.
Deu-lhe as notícias, embora estivessem um pouco desatualizadas. O seu
marido tinha cinco anos quando foi levado clandestinamente para a Grã-
Bretanha em 1942, meio a morrer de fome e com documentos falsos. Três
dias depois de ele chegar, a sua mãe e o seu pai foram deportados
juntamente com a sua irmã de dois anos para o campo de concentração de
Chelmno, na Polónia Ocidental. O inspetor, que não compreendia bem
inglês, levantou a mão à frente da cara como se estivesse a mandar parar o
trânsito numa rua movimentada. Disse à mulher do poeta judeu que era um
infortúnio que os Alemães tivessem ocupado a Polónia em 1939, mas que
tinha de lhe lembrar que estava agora a tratar do inquérito a uma morte nos
Alpes-Maritimes em 1994. Ela concordava que Monsieur Nowogrodzki, ou
Jacobs, tinha deixado um bilhete final à sua filha? Ou era um poema? Ou
era uma prova? O que quer que fosse, era dirigido a Nina Ekaterina. Enfiou
o folheto informativo amarelo numa capa de plástico. Num dos lados
estavam instruções sobre o funcionamento da máquina de lavar louça. Do
outro lado estavam cinco linhas escritas a tinta preta. Aparentemente, eram
instruções para a sua filha.

Ainda não eram seis horas, mas toda a aldeia já tinha ouvido a notícia.
Quando Claude chegou à casa de férias com um saco cheio de pão,
Mitchell, que por uma vez não estava interessado em nacos, mandou-o
embora, com os olhos ainda a arder por causa do cloro na água turva. Os
paramédicos gritavam instruções uns aos outros e Isabel disse a Nina que
iria também na ambulância. Iam pôr tubos no nariz do pai e fazer-lhe uma
lavagem ao estômago a caminho do hospital. A ambulância começou a sua
viagem pela estrada de montanha abaixo. Nina sentiu que estava a ser
levada por Claude para a casa de Madeleine Sheridan, que se chamava
Maison Rose embora estivesse pintada de azul. No caminho, viu Jurgen
com os braços à volta de Kitty Finch e quando ouviu Mitchell gritar: – Põe-
te a andar e não voltes cá – toda a gente ouviu o que Kitty disse a seguir.
Falava baixo, mas era como se falasse aos gritos, porque o que ela disse foi
a única coisa que toda a gente já sabia.
– Ele matou-se com uma das suas armas, Mitchell.

O corpo grande de Mitchell estava dobrado em dois. Estava a acontecer


alguma coisa aos seus olhos, às suas narinas, à sua boca. Lágrimas e muco e
saliva saíam-lhe dos orifícios do rosto. Sem que um tiro fosse disparado, o
seu rosto tinha cinco buracos. Buracos para respirar, para ver, para comer.
Toda a gente estava a olhar na sua direção, mas o que ele via era uma
mancha vaga. Eram uma turba cheia de buracos tal e qual como ele. Como
é que ele ia proteger-se da turba quando lhe apontassem o dedo? Diria a
verdade à polícia. Quando a arma persa de ébano desapareceu, ele pensou
que a rapariga transtornada lha tinha roubado para o castigar por caçar
animais. O telefone tocou e depois parou de tocar e ele ouvia Laura a
chorar. Doíam-lhe os músculos de ter arrastado o corpo para fora da água.
Era tão pesado. Era tão pesado como um urso.
NINA JACOBS
Londres, 2011

Sempre que sonho o meu sonho do século XX sobre o meu pai, acordo e
imediatamente me esqueço das palavras-passe para a EasyJet e a Amazon.
É como se elas tivessem desaparecido da minha cabeça para a cabeça dele e
algures no século XXI ele estivesse sentado comigo num autocarro a
atravessar a London Bridge a ver a chuva cair na chaminé da Tate Modern.
As conversas que eu tenho com ele não pertencem de todo a este século,
mas mesmo assim pergunto-lhe porque é que nunca me falou realmente da
sua infância. Ele responde que espera que a minha própria infância não
tenha sido muito má e se me lembro das gatinhas?
As gatinhas da nossa família (a Agnieska e a Alicja) tinham sempre um
cheiro selvagem e o meu prazer de infância era penteá-las com a escova de
cabelo do meu pai. Ficavam deitadas no meu regaço e eu escovava-lhes o
pelo enquanto elas ronronavam e me davam pancadinhas na mão com as
suas patas macias. Junto à cauda, os pelos estavam sempre colados e
riçados, porque elas ainda eram demasiado pequenas para saberem limpar-
se. Por vezes, eu deixava as bolas de pelo no sofá e o meu pai fazia de conta
que as engolia. Abria muito a boca e fingia que tinha engolido uma e que
lhe estava presa na garganta e que estava a sufocar. O meu pai passou a vida
a tentar perceber porque é que as pessoas tinham sapos vivos na garganta,
borboletas no estômago, agulhas e alfinetes nas pernas, um espinho cravado
no lado, um argueiro nos olhos e, na verdade, se elas tivessem cuspido bolas
de pelo, ele também as teria estudado.
Não, diz ele. Eu não teria estudado as bolas de pelo.
Concordamos que ele e eu aprendemos a viver juntos mais ou menos
bem. Ele lavava as minhas camisolas interiores e as meias e as T-shirts,
cosia-me botões nos casacos de malha, procurava meias perdidas e insistia
que eu nunca devia ter medo de pessoas a falarem sozinhas em autocarros.
Sim, diz o meu pai. É o que tu estás a fazer agora.
Não, respondo, não é o que eu estou a fazer agora. Não estou a dizer em
voz alta aquilo em que estou a pensar. Isso seria de loucos. Ninguém neste
autocarro consegue ouvir-me a falar contigo.
Sim, diz ele, mas não faria mal, de qualquer modo, porque toda a gente
está a falar em voz alta ao telemóvel.

Eu ainda tenho a toalha de praia que ele me comprou numa loja de


souvenirs em Nice. As palavras Côte d’ Azur Nice Baie des Anges
esvoaçam por um grande céu azul numa letra amarela de sol. Os turistas na
praia são representados por pontos pretos e mesmo por trás há uma estrada
ladeada por palmeiras. À direita está a cúpula cor-de-rosa do Hotel
Negresco com uma bandeira francesa a adejar contra o céu azul da toalha.
O que falta é Kitty Finch com o seu cabelo acobreado às ondas até à
cintura, à espera de que o meu pai leia o seu poema. Se lhe deram o nome
de uma ave6, é possível que estivesse a fazer um estranho chamamento,
talvez um chamamento de emergência ao meu pai, mas eu não consigo
pensar nela nem nas pedrinhas que andámos a apanhar juntas sem querer
cair pelos buracos delas para fora do mundo. Por isso, vou substituí-la pelo
meu pai a caminhar na quinta maior cidade de França, passando pelos seus
monumentos e pelas suas estátuas, para ir comprar um pedaço de favo de
mel para a minha mãe. O ano é 1994, mas o meu pai (que tem um gelado na
mão e não um telemóvel) está a ter uma conversa consigo próprio que é
provavelmente algo triste e sério que tem a ver com o passado. Eu nunca
consegui saber ao certo quando o passado começa ou onde acaba, mas
embora as cidades ponham o passado em mapas, com estátuas de bronze
para sempre imobilizadas numa posição digna, por mais que eu tente fazer
com que o passado se mantenha quieto e tenha maneiras, ele move-se e
murmura comigo ao longo de todos os dias.
Da próxima vez que eu estiver sentada num autocarro a atravessar a
London Bridge e que a chuva esteja a cair na chaminé da Tate Modern,
tenho de dizer ao meu pai que quando leio biografias de pessoas famosas só
fico interessada quando elas escapam à família e passam o resto da vida a
ultrapassar o trauma. É por isso que quando dou um beijo de boas-noites à
minha filha e lhe desejo sonhos cor-de-rosa, ela compreende que a minha
intenção é boa, mas sabe, como todas as crianças, que é impossível os pais
dizerem-nos como devem ser os nossos sonhos. Sabem que têm de sonhar
para lá da vida e voltar a entrar, porque a vida tem sempre de nos atrair de
volta. Seja como for, digo-o sempre.
Digo-o todas as noites, especialmente quando chove.
6 O apelido de Kitty (Finch) significa «tentilhão». (N. da T.)

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