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Entrar no Redemoinho:
comércio, política, casamento e lar
Tom McCarthy
Junho de 2011
Todas as manhãs em todas as famílias, homens, mulheres e
crianças, se não tiverem nada melhor para fazer, contam uns aos
outros os seus sonhos. Estamos todos à mercê do sonho e
devemos a nós próprios submeter o seu poder ao estado de
vigília.
Quando Kitty Finch tirou a mão do volante e lhe disse que o amava, ele já
não sabia se ela estava a ameaçá-lo ou a ter uma conversa com ele. O
vestido de seda escorregava-lhe dos ombros quando ela se debruçava sobre
o volante. Um coelho atravessou a estrada a correr e o carro guinou para um
lado e para o outro. Ele ouviu-se dizer: – Porque é que não arranjas uma
mochila e não vais ver os campos de papoilas no Paquistão como disseste
que querias?
– Sim – disse ela.
Ele sentia o cheiro a gasolina. As mãos dela desciam em voo picado sobre
o volante como as gaivotas que eles tinham contado do quarto no Hotel
Negresco duas horas antes.
Ela pediu-lhe que abrisse a janela para poder ouvir os insetos a chamarem
uns pelos outros na floresta. Ele baixou o vidro e pediu-lhe, delicadamente,
que mantivesse os olhos na estrada.
– Sim – disse ela outra vez, com os olhos agora de novo na estrada. E
depois disse-lhe que as noites eram sempre «macias» na Riviera Francesa.
Os dias eram duros e cheiravam a dinheiro.
Ele inclinou a cabeça para fora da janela e sentiu o ar frio da montanha a
picar-lhe os lábios. Seres humanos primitivos tinham em tempos vivido
nesta floresta que era agora uma estrada. Sabiam que o passado vivia nas
pedras e nas árvores e sabiam que o desejo os tornava desastrados, loucos,
misteriosos, baralhados.
Ter estado em tal intimidade com Kitty Finch tinha sido um prazer, um
sofrimento, um choque, uma experiência, mas, acima de tudo, tinha sido um
erro. Ele pediu-lhe de novo que por favor, por favor, por favor o conduzisse
em segurança para casa, para junto da mulher e da filha.
– Sim – disse ela. – Só vale a pena viver a vida porque temos a esperança
de que ela melhore e de chegarmos todos a casa em segurança.
SÁBADO
Vida selvagem
Uma mulher com cabelo pela cintura a gotejar trepou para fora da piscina
e correu para uma das espreguiçadeiras de plástico. Parecia ter vinte e
poucos anos, mas era difícil dizer ao certo, porque andava a saltar
freneticamente de uma cadeira para a outra, à procura do vestido. Ele tinha
caído nas lajes, mas ninguém a ajudou, porque estavam todos a olhar
fixamente para o seu corpo nu. Nina sentiu-se estonteada no calor
abrasador. O perfume acre e doce da alfazema evolava-se na sua direção,
sufocando-a, com o som da respiração ofegante da mulher a misturar-se
com o zumbido das abelhas nas flores que murchavam. Pensou que talvez
estivesse com uma insolação, porque se sentia como se fosse desmaiar.
Vagamente, viu que os seios da mulher eram surpreendentemente cheios e
redondos para alguém tão magro. As suas longas coxas estavam encaixadas
nas articulações salientes da anca como as pernas das bonecas que Nina
costumava dobrar e virar em criança. A única coisa que parecia real na
mulher era o triângulo de pelos púbicos dourados a brilhar ao sol. Vê-lo fez
Nina cruzar os braços sobre o peito e encolher as costas para tentar fazer o
seu próprio corpo desaparecer.
– O seu vestido está ali. – Joe Jacobs apontou para o monte de algodão
azul enrodilhado debaixo da espreguiçadeira. Tinham todos estado a olhá-la
por um período de tempo embaraçosamente longo. A mulher agarrou no
vestido fino e com destreza enfiou-o pela cabeça.
– Obrigada. Eu sou a Kitty Finch, já agora.
O que ela disse de facto foi Eu sou a Que Que Que e continuou a gaguejar
até conseguir dizer Kitty Finch. Toda a gente esperava ansiosa que ela
acabasse de dizer quem era.
Nina deu-se conta de que a mãe ainda estava na piscina. Quando ela subiu
os degraus de pedra, o seu fato de banho molhado vinha coberto de agulhas
de pinheiro prateadas.
– Eu sou a Isabel. O meu marido pensou que você era um urso.
Joe Jacobs torceu os lábios, esforçando-se por não rir.
– É claro que não pensei que ela era um urso.
Os olhos de Kitty Finch eram cinzentos como os vidros esfumados do
carro de aluguer de Mitchell, um Mercedes, que estava estacionado no
cascalho na frente da casa.
– Espero que não se importem de que eu tenha usado a piscina. Acabei de
chegar e está taanto calor. Houve um engano com as datas do aluguer.
– Que tipo de engano? – Laura olhou irritada para a jovem, como se
tivessem acabado de lhe passar uma multa de estacionamento.
– Bem, eu julguei que ia ficar aqui a partir deste sábado durante quinze
dias. Mas o zelador…
– Se é que se pode chamar zelador a um ganzado preguiçoso como o
Jurgen. – Só mencionar o nome de Jurgen fazia Mitchell transpirar de
aversão.
– É. O Jurgen diz que me enganei nas datas e que agora vou perder o
depósito.
Jurgen era um hippy alemão que nunca tinha a certeza sobre nada.
Descrevia-se como «um homem da Natureza» e andava sempre com o nariz
enfiado no Siddhartha de Hermann Hesse.
Mitchell acenou-lhe com o dedo. – Há coisa piores do que perder o
depósito. Nós estávamos prestes a dar-lhe um sedativo e a levá-la para as
montanhas.
Kitty Finch levantou o pé esquerdo e tirou lentamente um espinho. Os
seus olhos cinzentos procuraram Nina, que ainda estava escondida por trás
do pai. E depois sorriu.
– Gosto do teu biquíni. – Tinha os dentes da frente tortos, encavalitados
uns nos outros, e o seu cabelo estava a secar em caracóis da cor de cobre. –
Como é que te chamas?
– Nina.
– Achas que eu pareço um urso, Nina? – Fechou a mão direita como se
fosse uma pata e ergueu-a para o céu azul sem nuvens. Tinha as unhas
pintadas de verde-escuro.
Nina abanou a cabeça e depois engasgou-se com a saliva e começou a
tossir. Toda a gente se sentou. Mitchell na cadeira azul feia, porque era o
mais gordo e aquela era a maior, Laura na cadeira de verga cor-de-rosa,
Isabel e Joe nas duas espreguiçadeiras de plástico branco. Nina empoleirou-
se na borda da cadeira do pai e pôs-se a mexer nos cinco anéis de prata para
os dedos dos pés que Jurgen lhe tinha dado nessa manhã. Tinham todos um
lugar à sombra menos Kitty Finch, que estava desajeitadamente acocorada
nas lajes quentes.
– Não tem onde se sentar. Eu arranjo-lhe uma cadeira. – Isabel espremeu
as pontas do seu cabelo preto molhado. Gotas de água brilhavam-lhe nos
ombros e depois deslizavam-lhe pelo braço como uma cobra.
Kitty abanou a cabeça e corou. – Oh, não se incomode. Pe pe por favor.
Só estou à espera de que o Jurgen volte com o nome de um hotel e vou-me
embora.
– É claro que tem de se sentar.
Laura, perplexa e pouco à vontade, ficou a ver Isabel arrastar uma pesada
cadeira de madeira coberta de pó e de teias de aranha na direção da piscina.
Havia coisas no seu caminho. Um balde vermelho. Um vaso partido. Dois
guarda-sóis de lona enfiados em blocos de cimento. Ninguém foi ajudá-la,
porque não tinham bem a certeza do que é que ela estava a fazer. Isabel, que
tinha arranjado maneira de prender o cabelo molhado com um travessão em
forma de lírio, estava de facto a pôr a cadeira de madeira entre a sua cadeira
e a do marido.
Kitty Finch deitou um olhar nervoso a Isabel e depois a Joe, como se não
soubesse bem se estava a ser-lhe oferecida a cadeira ou se estava a ser
obrigada a sentar-se nela. Limpou as teias de aranha com a saia do vestido
durante demasiado tempo e por fim sentou-se. Laura juntou as mãos no
regaço como se estivesse a preparar-se para entrevistar uma candidata a um
emprego.
– Já cá tinha estado?
– Sim. Já cá venho há anos.
– Trabalha? – Mitchell cuspiu o caroço de uma azeitona para uma taça.
– De certa forma. Sou botânica.
Joe afagou o pequeno corte no queixo que tinha feito a barbear-se e
sorriu-lhe. – Há algumas palavras peculiares bastante engraçadas na sua
profissão.
A sua voz era surpreendentemente delicada, como se intuísse que Kitty
Finch se sentia ofendida com a maneira como Laura e Mitchell estavam a
interrogá-la.
– Pois. O Joe gosta de palavras pe-cu-li-a-res porque é poeta. – Mitchell
disse «peculiar» como se estivesse a imitar um aristocrata bêbedo.
Joe recostou-se na cadeira e fechou os olhos. – Ignore-o, Kitty. – Dava a
ideia de ter sido magoado de alguma forma inexplicável. – Tudo é pe-cu-li-
a-r para o Mitchell. Estranhamente, isso fá-lo sentir-se superior.
Mitchell enfiou cinco azeitonas na boca umas atrás das outras e depois
cuspiu os caroços na direção de Joe como se fossem pequenas balas de uma
das suas armas menores.
– Então, entretanto – Joe inclinou-se para a frente –, talvez pudesse dizer-
nos o que sabe sobre cotilédones.
– Certo. – Kitty piscou o olho direito a Nina quando disse «certo». – Os
cotilédones são as primeiras folhas de uma planta ao germinar. – A sua
gaguez parecia ter desaparecido.
– Correto. E agora a minha palavra favorita… como descreveria uma
folha?
– Kitty – disse Laura asperamente –, há muitos hotéis, por isso é melhor
ir procurar um.
Quando Jurgen finalmente entrou pelo portão, com as rastas grisalhas
presas num rabo de cavalo, disse-lhes que todos os hotéis da aldeia estavam
cheios até quinta-feira.
– Então, vai ter de ficar cá até quinta-feira. – Isabel disse isto vagamente,
como se não acreditasse bem no que estava a dizer. – Acho que há um
quarto vago nas traseiras da casa.
Kitty franziu a testa e recostou-se na sua nova cadeira.
– Bem, pois. – Obrigada. Ninguém se importa? Por favor, digam se se
importam.
– Madel-eeene!
Era o homem gordo que gostava de armas a chamá-la. Madeleine
Sheridan ergueu o braço artrítico e acenou com dois dedos moles da sua
cadeira de verga. O corpo já se lhe tinha transformado numa soma de partes
com defeito. Na escola de Medicina tinha aprendido que havia vinte e sete
ossos em cada mão, oito só no pulso, cinco na palma. Os seus dedos
estavam cheios de terminações nervosas, mas agora até mexer dois dedos
era um esforço.
Queria recordar a Jurgen, que via a levar os sacos de Kitty Finch para
dentro de casa, que fazia anos daí a seis dias, mas sentia relutância em
parecer estar a implorar a sua companhia em frente dos turistas ingleses.
Talvez ela já estivesse morta e tivesse estado a assistir ao drama da chegada
da jovem do Outro Lado? Há quatro meses, em março, quando Kitty Finch
estava sozinha na casa (alegadamente, para estudar plantas da montanha),
tinha informado Madeleine Sheridan de que uma brisa ajudaria os seus
tomateiros a ficarem com galhos mais fortes e oferecera-se para lhos
desbastar. Foi o que fez, mas sempre a murmurar sozinha, pe pe pe, que que
que, consoantes que produziam sons duros nos seus lábios. Madeleine
Sheridan, que acreditava que os seres humanos tinham de sofrer provações
reais antes de terem o direito de perder o juízo, disse-lhe numa voz dura
como o aço para parar de fazer aquele ruído. Para parar. Para parar
imediatamente. Hoje era sábado e o ruído tinha voltado para França para a
atormentar. Até lhe tinham oferecido um quarto na casa de férias.
– Madel-eeene.
Mitchell parecia mais ansioso do que o habitual. Ontem tinha-lhe dito que
avistara o Keith Richards a beber uma Pepsi em Villefranche-sur-Mer e que
queria imenso ir pedir-lhe um autógrafo. Acabou por não o fazer, porque,
nas suas próprias palavras: – O poeta imbecil estava comigo e ameaçou dar-
me uma cabeçada por eu ser normal.
Mitchell, com os seus braços flácidos e da cor de camarão, divertia-a
quando observava sombriamente que Joe Jacobs não era o tipo de poeta que
se punha a olhar para a lua e não tinha os músculos tonificados.
Provavelmente, seria capaz de levantar um guarda-fatos com os dentes.
Especialmente se tivesse uma mulher bonita lá dentro. Quando os turistas
ingleses chegaram há duas semanas, Joe Jacobs (JHJ nos seus livros, mas
ela nunca tinha ouvido falar dele) foi-lhe bater à porta a pedir sal
emprestado. Estava com um fato de inverno no dia mais quente do ano e
quando ela chamou a atenção para esse facto ele disse-lhe que eram os anos
da irmã e que ele usava sempre fato em sinal de respeito.
Isto intrigou-a, porque o seu dia de anos andava a ocupar-lhe bastante os
pensamentos. O fato dele parecia mais apropriado para um funeral, mas ele
era tão encantador e atencioso que ela lhe perguntou se ele queria provar a
sopa de amêndoas à andaluza que ela tinha feito. Quando ele murmurou: –
É muito simpático da sua parte, minha querida – ela deitou uma porção
generosa numa das suas taças preferidas e convidou-o a tomar a sopa na sua
varanda. Aconteceu algo terrível. Ele bebeu um gole e sentiu alguma coisa
a emaranhar-se-lhe nos dentes, descobrindo depois que era cabelo dela.
Uma pequena bola de cabelo grisalho tinha de alguma forma aparecido na
taça. Ele ficou perturbado a um ponto incompreensível para Madeleine,
embora ela pedisse desculpa, sem fazer ideia de como é que aquilo fora
parar ali. Ele tinha as mãos a tremer e afastou a taça com tal força que a
sopa se derramou por todo o seu ridículo fato às riscas, com o casaco
forrado com seda cor-de-rosa, à janota. Ela achou que um poeta poderia ter-
se saído melhor. Poderia ter dito: – A sua sopa foi como beber uma nuvem.
– Madel-eeene.
Mitchell nem sequer sabia dizer o nome dela em condições. Talvez
porque ele próprio tivesse um nome tão ridículo. A perspetiva de ter de
viver com Kitty Finch pusera-o obviamente em pânico, o que não a
surpreendia. Semicerrou os olhos, apreciando a visão dos seus feios pés
descalços. Era tão bom não usar meias e sapatos! Mesmo depois de quinze
anos a viver em França, desterrada como estava do seu país de origem e da
sua primeira língua, era pelo prazer dos pés nus que se sentia mais grata.
Podia passar sem uma fatia do suculento bife de Mitchell. E seria
insanamente corajoso da sua parte arriscar um serão na companhia de Kitty
Finch, que estava a fazer de conta que não a tinha visto. Neste preciso
momento, estava a apanhar pinhas da piscina com Nina Jacobs, como se a
sua vida dependesse disso. De maneira nenhuma Madeleine Sheridan, a seis
dias de fazer oitenta anos, iria desempenhar o papel de uma velha senhora
digna à mesa de jantar da casa de férias. À mesma mesa que Jurgen tinha
comprado na feira da ladra e que tinha encerado com cera de abelhas e
parafina. Mais ainda, tinha-a encerado em cuecas, por causa da vaga de
calor. Ela tivera de desviar os olhos ao vê-lo a transpirar no que ela
delicadamente chamava a sua «roupa interior».
Pairava uma águia no céu. Tinha visto os ratos que corriam na relva por
cortar do pomar.
Madeleine gritou as suas desculpas lá para baixo, a Mitchell, mas ele
parecia não a ter ouvido. Estava a ver Joe Jacobs desaparecer para dentro de
casa à procura de um chapéu. Parece que Kitty Finch ia levar o poeta inglês
a dar um passeio para lhe mostrar umas flores. Madeleine Sheridan não
tinha bem a certeza, mas achou que a rapariga doida, com a sua auréola de
cabelo ruivo a brilhar ao sol, talvez estivesse a sorrir-lhe.
Para usar a linguagem de uma correspondente de guerra, que era, como
ela sabia, a profissão de Isabel Jacobs, teria de dizer que Kitty Finch estava
a sorrir-lhe com intenção hostil.
A Lição de Botânica
Havia tabuletas por todo o lado a dizer que o pomar era propriedade
privada, mas Kitty insistiu que conhecia o agricultor e que ninguém lhes
lançaria os cães. Nos últimos vinte minutos tinha andado a apontar para
árvores que, na sua opinião, «não estavam lá muito bem».
– Só repara em árvores que sofrem? – Joe Jacobs protegeu os olhos com
as mãos, que estavam cobertas de picadas de mosquitos, e fitou-a nos seus
brilhantes olhos cinzentos.
– Sim, acho que sim.
Ele estava convencido de que ouvia um animal a rosnar na relva e disse-
lhe que dava a ideia de ser um cão.
– Não se preocupe com os cães. O agricultor tem 2000 oliveiras na zona
de Grasse. Anda demasiado ocupado para nos lançar os cães.
– Bem, suponho que assim tantas oliveiras o mantenham ocupado –
murmurou Joe.
A sua cabeleira preta, agora a ficar com caracóis grisalhos, caía-lhe
despenteada à volta das orelhas e o chapéu velho de palha estava sempre a
escorregar-lhe da cabeça. Kitty tinha de correr para trás para o ir apanhar.
– Oh. 2000… não são assim tantas… de modo nenhum.
Ela baixou-se para olhar de perto para umas flores silvestres que cresciam
entre as ervas brancas e altas que lhe chegavam aos joelhos.
– Estas são Bellis perennis. – Agarrou numa mancheia do que pareciam
ser pétalas de margarida e meteu-as à boca. – As plantas são sempre de
alguma família.
Enterrou o rosto nas flores que tinha na mão e disse-lhe o nome delas em
latim. Ele ficou impressionado com o modo terno como ela segurava as
plantas entre os dedos e falava delas com uma intimidade fácil, como se de
facto fossem uma família com problemas variados e qualidades pouco
usuais. E depois ela disse-lhe que o que mais queria na vida era ver os
campos de papoilas no Paquistão.
– De facto – confessou ela nervosamente –, escrevi um poema sobre isso.
Joe parou. Então era por isso que ela estava ali.
Mulheres jovens que o seguiam e que queriam que ele lesse a poesia
delas, e ele estava agora convencido de que ela era uma delas, começavam
sempre por lhe dizer que tinham escrito um poema sobre algo
extraordinário. Caminhavam lado a lado, aplanando um caminho entre a
erva alta. Ele esperou que ela falasse, que fizesse o seu pedido, que dissesse
como se sentia influenciada pelos seus livros, que explicasse como tinha
conseguido localizá-lo e depois que lhe perguntasse se ele não se
importaria, se teria tempo, se teria a bondade de por favor, por favor ler a
sua pequena tentativa inspirada por ele próprio.
– Então, leu os meus livros todos e agora seguiu-me até França – disse ele
rispidamente.
Uma nova vaga de rubor abateu-se sobre o rosto dela e o seu pescoço
comprido.
– Sim. A Rita Dwighter, que é a dona da casa, é uma amiga da minha
mãe. A Rita disse-me que a tinha alugado para o verão todo. Ela deixa-me
ficar na casa de graça na época baixa. Eu não podia ficar porque você a a a
a a abarbatou-a.
– Mas não estamos na época baixa, Kitty. Julho é aquilo a que se chama a
época alta, não é?
Ela tinha sotaque do Norte de Londres. Os seus dentes da frente eram
tortos. Quando não estava a gaguejar e a corar parecia que tinha sido
esculpida em cera numa oficina escura em Veneza. Se era botânica,
obviamente não passava muito tempo ao ar livre. Quem quer que a tivesse
feito demonstrara esperteza. Ela sabia nadar e chorava e corava e dizia
coisas como «abarbatou-a».
Isabel Jacobs não sabia bem porque mentira sobre levar os sapatos ao
sapateiro. Era apenas mais uma coisa de que não tinha a certeza. Depois da
chegada de Kitty Finch, para se aguentar só conseguia imitar alguém que
costumava ser, mas quem essa pessoa era, quem ela costumava ser, já não
parecia ser uma pessoa que valesse a pena imitar. O mundo tornara-se cada
vez mais misterioso. E ela também. Já não tinha a certeza do que sentia
sobre as coisas, de como o sentia ou de porque é que tinha oferecido a uma
estranha o quarto vago. Depois de descer a estrada da montanha, de
encontrar trocos para a portagem, de se perder em Vence e de tentar fazer
inversão de marcha no trânsito que engarrafava a estrada costeira para Nice,
condutores enraivecidos faziam-lhe gestos, buzinavam-lhe, baixavam o
vidro e berravam-lhe. Nos assentos traseiros dos automóveis, cãezinhos
muito bem arranjados fitavam-na trocistas, como se não saber para onde ir
num sistema de sentido único fosse algo que também eles desprezavam.
Estacionou em frente à praia chamada Opéra Plage e encaminhou-se para
a cúpula cor-de-rosa do Hotel Negresco, que reconheceu do mapa agrafado
ao «folheto informativo» que havia na casa de férias. O folheto informativo
estava cheio de informações sobre o Hotel Negresco, o hotel belle époque
mais antigo e mais grandioso na promenade des Anglais. Parece que tinha
sido construído em 1912 por Henri Negresco, um imigrante húngaro que o
concebera para atrair a Nice «a camada superior da camada superior».
Soprava uma brisa nas duas faixas de trânsito que a separavam das praias
sobrelotadas. Esta baforada de vida citadina e suja sabia melhor, muito
melhor do que o ar limpo e cortante da montanha, que só parecia tornar a
mágoa ainda mais cortante. Aqui em Nice, a quinta maior cidade de França,
ela poderia desaparecer por entre as multidões de veraneantes como se não
tivesse nada a ocupar-lhe a mente a não ser queixar-se do preço do aluguer
de uma espreguiçadeira na Riviera.
Uma mulher com um capacete de cabelo com permanente e pintado com
hena parou para lhe perguntar se sabia o caminho para a rue François Aune.
As lentes dos seus óculos de sol grandes estavam manchadas com o que
parecia ser leite seco. Falava em inglês com um sotaque que Isabel achou
que poderia ser russo. A mulher apontou com um dedo carregado de anéis
para um mecânico com um fato-macaco azul-escuro cheio de manchas de
óleo que estava deitado junto a uma motorizada, como que a sugerir que
Isabel perguntasse por ela o caminho. Por um momento, Isabel não
compreendeu porque é que lhe estava a ser feito aquele pedido, mas depois
apercebeu-se de que a mulher era cega e que conseguia ouvir o mecânico a
acelerar a motorizada nas imediações.
Quando Isabel se ajoelhou no passeio e mostrou ao homem o pedaço de
papel que a mulher lhe tinha metido nas mãos, ele apontou com o polegar
para o prédio de apartamentos do outro lado da rua. A mulher cega estava
na rua de que andava à procura. – Está aqui. – Isabel pegou-lhe no braço e
conduziu-a através do portão para o prédio com um ar rico, com todas as
janelas enquadradas por portadas verdes recentemente pintadas. Três
aspersores regavam as palmeiras plantadas em filas direitas no jardim do
prédio.
– Mas eu quero o porto, madame. Estou à procura do Dr. Ortega.
A russa cega parecia indignada, como se tivesse sido levada ao lugar
errado contra sua vontade. Isabel olhou para os nomes dos moradores
gravados nas placas de latão junto à porta e leu-os em voz alta. – Perez,
Orsi, Bergel, Dr. Ortega. – Lá estava o tal nome. Era ali que ele vivia,
embora a russa discordasse.
Carregou no botão da campainha do Dr. Ortega e ignorou a russa, que
estava agora a vasculhar toda aflita a sua carteira de pele de crocodilo à
procura do que acabou por ser um dicionário de bolso bastante usado.
A voz que saiu do intercomunicador de latão polido do sistema de entrada
do prédio era uma voz espanhola suave pedindo-lhe em francês que dissesse
quem era.
– Chamo-me Isabel. A sua visita está à sua espera cá em baixo.
Uma sirene de um carro da polícia abafou as suas palavras e ela teve de
repetir.
– Disse que se chama Isabel? – Era uma pergunta bastante simples, mas
pô-la ansiosa, como se estivesse na realidade a fazer-se passar por alguém
que não era.
O sistema de entrada emitiu uma espécie de gemido e ela empurrou a
porta de vidro, com um caixilho de madeira pesada e escura, que dava para
o átrio em mármore. A mulher russa com óculos escuros manchados não
queria avançar e continuava a repetir o pedido de ser levada ao porto.
– Ainda está aí, Isabel?
Porque é que o médico não descia as escadas e não vinha ele próprio
buscar a mulher cega?
– Podia descer e vir buscar a sua paciente? – Ela ouviu-o rir.
– Señora, soy doctor en Filosofia. Ela não é minha paciente. É minha
aluna.
Ria-se de novo. O riso cavernoso e rouco de um fumador. Ela ouvia a sua
voz através dos furos no intercomunicador e aproximou-se dele.
– A minha aluna quer ir para o porto porque pretende voltar para São
Petersburgo. Não quer vir à aula de Espanhol e por isso não acredita que
está aqui. Ella no quiere estar aquí.
Era brincalhão e sedutor, um homem que tinha tempo de falar por
adivinhas, protegido pelo sistema de entrada do prédio. Ela queria poder ser
mais como ele, não levar a sério e brincar com o que o dia lhe trouxesse. O
que a tinha levado aonde ela estava agora? Onde é que ela estava agora?
Como de costume, estava a fugir de Jozef. Esta ideia fez-lhe arder os olhos
com lágrimas que a incomodavam. Não, outra vez não, não Jozef, não outra
vez. Virou-se e deixou a mulher russa a tatear o corrimão da escadaria de
mármore, ainda a insistir que estava no sítio errado e que o porto era o seu
destino final.
Nina estava a ver Kitty Finch pressionar as palmas das mãos contra as
paredes do quarto vago como se estivesse a testar a sua solidez. Era um
quarto pequeno que dava para as traseiras da casa, com cortinados amarelos
bem corridos na única janela. Tornavam o quarto quente e escuro, mas Kitty
disse que gostava assim. Lá em cima, na cozinha, ouviam Mitchell a cantar
desafinado uma canção dos Abba. Kitty disse a Nina que estava a verificar
as paredes, porque os alicerces da casa eram fracos. Há três anos, um
gangue de trabalhadores da construção civil duvidosos tinha sido pago para
dar um jeito à casa. Havia fendas por todo o lado, mas tinham sido cobertas
apressadamente com o tipo errado de reboco.
Nina estava admirada com o que Kitty sabia sobre tudo. Qual era o tipo
certo de reboco, então? Kitty Finch trabalhava no setor da construção civil?
Como é que conseguia enfiar o cabelo todo num capacete?
Foi como se Kitty lhe tivesse lido os pensamentos, porque disse: – Pois,
bem, o tipo certo de reboco tem calcário – e depois, ajoelhou-se no chão e
pôs-se a examinar as plantas que tinha colhido no adro da igreja nessa
manhã.
As suas unhas verdes acariciavam as folhas triangulares e as flores
brancas que, insistia ela franzindo o nariz, cheiravam a rato. Ia guardar as
sementes das plantas, porque queria estudá-las, e Nina podia ajudá-la, se
quisesse.
– Que tipo de planta é?
– Chama-se Conium maculatum. É da mesma família do funcho, da
cherovia e da cenoura. As folhas parecem salsa, não parecem?
Nina não sabia.
– Isto é cicuta. O teu pai sabia isso, claro. Antigamente, as crianças
faziam assobios com os caules e às vezes envenenavam-se. Mas os Gregos
acreditavam que curava tumores.
Kitty parecia ter muito que fazer. Depois de ter pendurado os seus
vestidos de verão no guarda-fatos e de ter alinhado alguns livros gastos e
muito folheados na prateleira, correu lá acima para olhar outra vez para a
piscina, embora a noite já tivesse caído.
Quando voltou, explicou que agora a piscina tinha luzes debaixo da água.
– No ano passado não tinha.
Tirou um envelope A4 de papel pardo do seu saco de lona azul e pôs-se a
examiná-lo. – Isto – disse ela, acenando com ele a Nina – é o poema que o
teu pai prometeu ler logo à noite. – Trincou o lábio superior. – Ele disse-me
para o pôr na mesa à porta do quarto dele. Vens comigo?
Nina levou Kitty Finch até ao quarto onde dormiam os seus pais. O
quarto deles era o maior da casa, com um quarto de banho ainda maior ao
lado. Tinha torneiras douradas e um chuveiro de alta pressão e um botão
para transformar a banheira num jacuzzi. Ela apontou para uma mesa
pequena contra a parede junto ao quarto. No centro da mesa estava uma
taça, com uma confusão de óculos para natação, flores secas, canetas de
feltro velhas, postais e chaves.
– Oh, aquelas são as chaves da casa das máquinas. – Kitty parecia
excitada. – Na casa das máquinas está a maquinaria toda que faz funcionar
a piscina. Eu vou pôr o envelope debaixo da taça.
Franziu a testa ao envelope pardo e inspirava profundamente, sacudindo
os caracóis como se alguma coisa lhe estivesse presa no cabelo.
– Afinal, acho que vou metê-lo debaixo da porta. Assim, o teu pai vai
tropeçar nele e vai ter de o ler imediatamente.
Nina ia dizer-lhe que o quarto não era só dele, que a mãe dela também lá
dormia, mas calou-se, porque Kitty Finch estava a dizer coisas esquisitas.
– Tem de se arriscar, não é? É como atravessar uma rua com os olhos
fechados… não se sabe o que vai acontecer a seguir. – E depois atirou com
a cabeça para trás e desatou a rir. – Lembra-me de te levar a Nice amanhã
para comeres o melhor gelado que alguma vez provarás na vida.
Estar ao lado de Kitty Finch era como estar perto de uma rolha que
acabasse de ser disparada de uma garrafa. O primeiro disparo, quando os
gases parecem escapar e tudo é salpicado por um segundo com algo
inebriante.
Mitchell estava a chamar para o jantar.
Boas Maneiras
ALMOÇO À CHEGADA
DOIS MENUS. Borscht branco com ovo cozido e salsicha.
Estufado tradicional à caçador com puré de batata. Refrigerante.
OU
Ladrão de Cicuta
Kitty não disse a Isabel que estava a sentir-se quente e que tinha a visão
toldada. Sentia comichão e achava que talvez a língua lhe tivesse inchado.
Também não lhe falou do rapaz espectral que tinha saído da parede para a
saudar quando ela acordou. Ele tinha-lhe roubado algumas das plantas,
porque quando voltou a entrar na parede levava uma braçada delas. Ela
achava que talvez ele estivesse à procura de maneiras de morrer. As
palavras que ela o ouviu dizer eram palavras que ouvia na sua cabeça, não
com os ouvidos. Estava a acenar-lhe, como se estivesse a dizer-lhe olá, mas
agora ela achava que talvez ele estivesse a dizer-lhe adeus.
O Armadilhador
Então, a sua filha perdida estava a dormir na cama de Kitty. Joe sentou-se
no jardim à sua secretária improvisada, à espera de que o pânico que fizera
com que esfolasse a nuca com os dedos acalmasse, enquanto via a sua
mulher a falar com Laura dentro de casa. Tinha a respiração descontrolada,
estava a respirar com dificuldade. Pensava que Kitty Finch, que tinha
parado de tomar Seroxat e devia estar a sofrer, se descontrolara e
assassinara a sua filha? A sua mulher estava agora a caminhar na direção
dele por entre as clareiras nos ciprestes. Mudou as pernas de posição como
se parte dele quisesse fugir dela ou talvez fugir para ela. Não sabia mesmo
que direção tomar. Podia tentar dizer alguma coisa a Isabel, mas não sabia
bem como começar, porque não sabia bem como acabaria. Havia alturas em
que achava que ela mal conseguia olhar para ele sem esconder o rosto no
cabelo. E ele também não conseguia olhar para ela, porque a tinha traído
tantas vezes. Talvez agora devesse pelo menos tentar dizer-lhe que quando
ela abandonava a sua filha pequena para dormir numa tenda cheia de
escorpiões, ele compreendia que dava mais sentido à vida dela ser alvejada
em zonas de guerra do que ouvir as mentiras dele na segurança do seu
próprio lar. De qualquer maneira, ele sabia que a sua filha tinha chorado por
ela nos primeiros anos e que mais tarde aprendera a não o fazer, porque isso
não lhe traria a mãe de volta. Por sua vez (este assunto dava voltas sobre
voltas com regularidade na sua mente), a perturbação da sua filha trazia-lhe
a ele, o seu pai, sentimentos com que ele não conseguia lidar com
dignidade. Contara aos seus leitores como fora enviado para um colégio
interno pelos seus tutores e como costumava ficar a ver os pais dos seus
colegas irem embora no dia da visita (domingo), e como, se os seus
próprios pais o tivessem visitado, ele teria ficado especado para sempre nas
marcas dos pneus que o automóvel fizera no chão. A sua mãe e o seu pai
eram visitantes noturnos, não visitas da tarde. Apareciam-lhe em sonhos
que ele esquecia imediatamente, mas supunha que estavam a tentar
encontrá-lo. O que o preocupara mais era que achava que talvez eles não
tivessem um número suficiente de palavras inglesas entre os dois para se
fazerem compreender. O Jozef, o meu filho, está aqui? Temos andado a
procurá-lo pelo mundo todo. Ele tinha chorado por eles e mais tarde
aprendera a não o fazer, porque isso não os traria de volta. Olhou para a sua
mulher, esperta e bronzeada, com o seu cabelo escuro a esconder-lhe o
rosto. Esta era a conversa que poderia iniciar qualquer coisa ou terminar
qualquer coisa, mas saía toda mal, demasiado caótica e fodida. Ouviu-se
perguntar-lhe se ela gostava de mel.
– Gosto. Porquê?
– Porque eu sei tão pouco sobre ti, Isabel.
Meteria a pata em todos os buracos de todas as árvores para tirar o favo
de mel e pô-lo aos pés dela se achasse que assim ela ficaria um pouco mais
de tempo com ele e com a cria deles. Ela parecia hostil e solitária e ele
compreendia-o. Obviamente, ele metia-lhe nojo. Ela até a companhia de
Mitchell preferia à sua.
Ouviu-a dizer: – A principal coisa a fazer no resto do verão é
assegurarmo-nos de que a Nina está bem.
– É claro que a Nina está bem – ripostou ele. – Olho por ela desde os três
anos e ela está bem, não está?
E depois pegou no seu caderno e na caneta de tinta preta que tinha
desaparecido nessa manhã, sabendo que Isabel era derrotada de cada vez
que ele parecia estar a escrever e de cada vez que ele falava da filha deles.
Estas eram as suas armas para silenciar a mulher e mantê-la na sua vida,
manter a sua família intacta, defeituosa e hostil, mas ainda assim uma
família. A filha era o seu maior triunfo no casamento, a única coisa que ele
tinha feito bem.
«sim sim sim ela disse sim sim sim gosta de mel» – a sua caneta riscava
estas palavras agressivamente na página enquanto ele observava uma
borboleta branca a pairar sobre a piscina. Era como a respiração. Era um
milagre. Uma maravilha. Ele e a sua mulher sabiam coisas que era
impossível saber. Tinham ambos visto a vida a ser aniquilada. Isabel
registava e testemunhava catástrofes para tentar fazer com que as pessoas se
recordassem. Ele tentava fazer-se esquecer.
Apanhar Pedras
Hoje ela quase não o escutava. A chegada de Kitty Finch era uma má
notícia. Era isto que ela estava a pensar enquanto fitava um barco a motor a
fazer cicatrizes de espuma no mar azul-acinzentado. Quando ele encontrou
uma mesa à sombra e a ajudou a sentar-se numa cadeira que era demasiado
pequena para um sapo, não pareceu dar-se conta de que ela teria de torcer o
corpo em posições que lhe causavam dor. Era uma falta de atenção da parte
dele, mas ela estava demasiado desorientada pela visão de Kitty Finch para
se importar.
Tentou acalmar-se insistindo que Jurgen tirasse os óculos de sol.
– É como olhar para dois buracos negros, Jurgen.
Fazia anos daí a quatro dias e neste momento estava com sede por causa
do calor, quase louca de sede. Há semanas que aguardava com expectativa
este almoço com ele. Nessa manhã, tinha telefonado para o seu restaurante
preferido para saber o que havia no menu, onde estava posicionada a sua
mesa e para pedir ao chefe de sala que lhe guardasse um lugar de
estacionamento à porta a troco de uma boa gorjeta. Pediu aos gritos ao
empregado do bar um whisky para si e uma Pepsi para Jurgen, que não
gostava de bebidas alcoólicas por razões espirituais. Era difícil uma mulher
de idade atrair a atenção de um empregado de mesa quando ele andava
atarefado a servir mulheres a apanhar banhos de sol em topless e fio dental.
Tinha lido um artigo sobre posturas de ioga que proporcionavam a
invisibilidade humana através de uma combinação de concentração e de
meditação. De alguma forma, ela tinha conseguido tornar o seu corpo
impercetível ao empregado sem qualquer treino. Ergueu ambos os braços e
acenou-lhe como se estivesse a mandar descer um avião numa ilha deserta.
Jurgen apontou para o acordeonista de Marselha empoleirado num caixote
de madeira junto à máquina de jogos com luzes a piscar. O músico estava a
transpirar, enfiado num fato preto três números acima do seu.
– Ele vai tocar num casamento hoje à tarde. Disse-me o apicultor de
Valbonne. Se eu me casasse, também lhe pedia que tocasse no meu
casamento.
Madeleine Sheridan, beberricando o seu merecido whisky, ficou
surpreendida por a voz dele se tornar subitamente tão aguda.
– Casar não é boa ideia, Jurgen.
De maneira nenhuma. Ela começou a contar-lhe (outra vez) como as duas
grandes partidas na sua vida tinham sido deixar a família para estudar
Medicina e deixar o marido para viver em França. Tinha chegado à
conclusão de que não estava saciada com amor por Peter Sheridan e trocara
uma vida respeitável de infelicidade pela infelicidade desrespeitável de ser
uma mulher que tinha cortado os laços com o amor. Agora parecia-lhe,
fitando o seu companheiro, cuja voz tremia descontroladamente, que no seu
coração estropiado (demasiados cigarros) ele queria dar o nó, fechar o
círculo da sua vida sozinho, o que, francamente, era uma afronta.
Recordou-lhe a altura em que andavam a passear na praia em Villefranche
e viram um casamento a realizar-se no porto. As damas de honor estavam
com vestidos de tafetá amarelo e a noiva de cetim creme e amarelo. Ela
tinha troçado da figura que faziam em voz alta, mas o que é que o hippy
Jurgen tinha dito?
– Dê-lhes uma hipótese.
Este era o mesmo homem que alguns meses antes tinha dito à namorada
que nada lhe indicava que o casamento fosse uma boa ideia. Ela não tinha
acreditado nele e levara-o a um churrasco argentino para lhe propor
casamento. Grandes pilhas de madeira aromática. Nacos de carne das
pampas atirados para as brasas. A namorada dele atacou a carne vermelha
até reparar que Jurgen não estava a comer e se lembrar de que Jurgen era
um vegetariano militante. Talvez ela se tivesse rido demasiado alto quando
ele lhe disse isso.
– Acho que a Kitty Finch quer fazer-me mal.
– Ach, nein. – Jurgen contraiu o rosto como se estivesse com dores. – A
Ket só faz mal a si própria. O Claude perguntou-me porque é que a
Madame Jacobs insistiu que ela ficasse. Mas eu não faço ideia.
Ela fitou o amigo com os seus olhos nublados, míopes. – Acho que ela
quer que a bela rapariga doida lhe distraia o marido para ela poder
finalmente deixá-lo.
Subitamente, Jurgen quis pagar uma bebida ao acordeonista. Chamou o
empregado e disse-lhe para oferecer uma cerveja ao homem de fato grande.
Madeleine ficou a ver o empregado a segredar ao ouvido do músico e
tentou esquecer como tinha dado com Kitty Finch no túnel junto ao
mercado de flores em Cours Saleya há quatro meses. O seu encontro era
mais uma coisa que ela queria acrescentar à longa lista de coisas que queria
esquecer.
Ler e Escrever
Joe Jacobs estava deitado de costas na suite, como o quarto era descrito
no folheto informativo da casa de férias, cheio de vontade de comer um
caril. O sítio onde mais lhe apetecia estar neste momento era no atelier do
seu alfaiate hindu em Bethnal Green. Rodeado por seda. A beber chá doce.
Do que sentia falta nos Alpes-Maritimes era de dhal. De arroz. De iogurte.
E de autocarros. Sentia a falta do andar de cima nos autocarros. E de
jornais. E de boletins meteorológicos. Por vezes, sentava-se no seu
escritório no Oeste de Londres com o rádio ligado a escutar atentamente a
previsão do tempo para a Escócia, a Irlanda e o País de Gales. Se o sol
estava a brilhar no Oeste de Londres, reconfortava-o saber que estaria a
nevar na Escócia e a chover no País de Gales. Agora ia ter de se sentar e
não continuar deitado. Pior ainda, ia ter de se levantar e de revistar a suite à
procura do poema de Kitty Finch. À distância, ouvia Mitchell a disparar
sobre coelhos no pomar. Ajoelhou-se no chão e agarrou o envelope que
tinha atirado a pontapé para debaixo da cama. Segurou nas mãos o envelope
usado e deu consigo a olhar fixamente para o título escrito com a aprumada
letra científica de uma botânica acostumada a fazer desenhos precisos de
plantas e a etiquetá-los.
Aceitar a sua linguagem era aceitar que ela o tinha a ele, o seu leitor, em
grande estima. Estava a ser-lhe pedido que desse algum sentido àquilo e o
sentido que ele lhe dava era que cada etc ocultava alguma coisa que não
podia ser dita.
Não devia estar a acontecer, a sua procura de amor nela, mas estava. Ele
iria ao fim do mundo para encontrar amor. Estava a tentar não o fazer, mas
quanto mais tentava não o procurar tanto mais havia para encontrar.
Imaginava-a numa praia britânica, com uma garrafa termos de chá no saco,
a fazer fintas às ondas frias, a traçar o seu nome na areia, a olhar para as
estações de energia nuclear ao longe. Essa era mais a sua paisagem, um
poema catastrófico por si só. Ele tocara-a com as suas palavras, mas sabia
que não devia tocar-lhe de mais nenhuma maneira, de uma maneira mais
literal, com os lábios, por exemplo. Isso seria aproveitar-se dela. Tinha de
combater o impulso até ao fim. Que fim, onde? Ele não sabia, mas
combatê-lo-ia até ao fim. Se fosse religioso, pôr-se-ia de joelhos e rezaria.
Pai, leva tudo isto embora. Embora. Deixa que tudo isto se desvaneça. Ele
sabia que era como uma súplica ou um desejo ou um cântico ao seu próprio
pai, o sombrio patriarca de barba; a sombra que perseguira toda a sua vida,
etc. O seu pai disse adeus, etc. A sua mãe disse adeus, etc. Ele esconde-se
numa floresta escura na Polónia Ocidental, etc.
Joe procurou o seu lenço de seda e enterrou o rosto nele. A seda era usada
para fazer os primeiros coletes à prova de bala. Era uma segunda pele e ele
precisava dela. O que é que havia de fazer? O que é que havia de fazer com
o poema dela? Ele não era o médico dela. Ela não queria que ele lhe
apontasse uma luz aos olhos. Deveria contar a Isabel que a jovem que ela
tinha convidado a ficar na casa ameaçara fazer alguma coisa?
Em breve estaria na Polónia. A atuar num velho palácio em Cracóvia. A
sua tradutora e guia informá-lo-ia sobre as linhas dos elétricos e as ementas.
Levá-lo-ia a descansar nas montanhas Tatra e mostrar-lhe-ia as dachas de
madeira construídas na floresta. Mulheres com lenços na cabeça estariam a
tratar dos seus gansos e convidá-lo-iam para provar as suas compotas e os
seus queijos. Quando finalmente partisse do aeroporto de Varsóvia e na
alfândega lhe perguntassem se ele levava caviar para fora do país, ele diria:
– Nenhum caviar. Levo o meu passado negro e oleoso para fora do país e
pertence-nos a ambos. É assim. O meu pai disse adeus, etc. A minha mãe
disse adeus, etc. Esconderam-me numa floresta escura na Polónia
Ocidental, etc.
Ao passarem pela igreja para chegarem à estrada que Joe sabia que levava
à cancela que levava ao campo com touros resfolegantes que levava ao
caminho que levava à ponte que levava ao rio, ele sentiu a mão da filha a
enfiar-se no bolso das suas calças.
– Estamos quase lá – disse ela encorajadoramente.
– Cala-te – respondeu o pai.
– Eu acho que tu ficas deprimido. Não ficas, papá?
Joe tropeçou numa pedra desnivelada.
– Como tu disseste – disse ele –, «estamos quase lá».
1 Diz-se, em inglês, de quem tem especial habilidade para a jardinagem. (N. do E.)
A Fotografia
Laura estava a sorrir, mas não parecia feliz. Sentou-se ao lado de Isabel e
tirou as sandálias. E depois pôs-se a arrancar tufos de erva seca com os
dedos e disse à sua amiga que a loja em Euston ia fechar. Ela e Mitchell já
não conseguiam aguentar as coisas. Já mal conseguiam pagar as prestações
do empréstimo do banco. Tinham vindo para França com cinco cartões de
crédito entre os dois e muito pouco dinheiro. Nem sequer podiam comprar
gasolina para o Mercedes que Mitchell alugara estupidamente no aeroporto.
Na verdade, Mitchell tinha contraído dívidas de que ela só agora começava
a alcançar a verdadeira extensão. Devia grandes quantias por todo o lado.
Há meses que dizia que alguma coisa acabaria por aparecer, mas não tinha
aparecido nada. A loja ia entrar em liquidação. Quando voltassem para
Londres teriam de vender a casa.
Isabel aproximou-se de Laura e abraçou-a. Laura era tão alta que por
vezes era difícil acreditar que não estivesse literalmente acima das coisas
que incomodavam as outras pessoas. Era óbvio que não estava em si,
porque também tinha os ombros descaídos. A sua amiga nunca adotara a
postura curvada que as pessoas altas por vezes assumem para se reduzirem
à escala humana, mas agora parecia abatida.
– Vamos abrir o vinho. – Como Laura se tinha esquecido de trazer o saca-
rolhas, usaram o pente de Isabel, enfiando a ponta comprida de plástico na
rolha, e puseram-se a beber da garrafa, passando-a uma à outra como
adolescentes nas suas primeiras férias sem a família. Isabel contou a Laura
que tinha passado a manhã à procura nas lojas de pensos higiénicos para
Nina, mas que não fazia ideia de como se dizia em francês. Por fim, o
homem da farmácia tinha-lhe dito que as palavras eram «serviettes
hygiéniques». Ele tinha embrulhado a embalagem de pensos num saco de
papel pardo e depois num saco de plástico e depois noutro saco de plástico
como se, na sua ideia, os pensos já estivessem encharcados em sangue. E a
seguir Isabel mudou de assunto. Queria saber se Laura tinha uma conta
bancária só em seu nome. Laura abanou a cabeça. Ela e Mitchell tinham
uma conta conjunta desde que tinham montado o negócio. E depois Laura
mudou de assunto e perguntou a Isabel se ela achava que Kitty Finch talvez
fosse um pouco… procurou a palavra… «perturbada»? A palavra ficou-lhe
encravada na boca e ela desejou saber outra língua para traduzir o que
queria dizer, porque as únicas palavras que tinha guardadas dentro de si
eram do recreio da escola da sua geração, um léxico que, sem qualquer
ordem particular, começava por avariada, aluada, alucinada, prosseguia com
chanfrada, desatinada, com macaquinhos no sótão e depois saltitava pelo
alfabeto outra vez para acabar em anormal. Laura começou a dizer-lhe o
quanto a chegada de Kitty a alarmava. Quando estava a sair de casa para vir
ter ao Museu Matisse, vira Kitty dispor num vaso as caudas de três coelhos
que Mitchell tinha matado no pomar – como se fossem flores. A questão era
que devia ter sido a própria Kitty que tinha cortado as caudas dos coelhos.
Com uma faca. Devia ter esquartejado os coelhos com uma faca de trinchar.
Isabel não respondeu, porque estava a passar um cheque a Laura.
Espreitando por cima do ombro dela, Laura viu que era uma quantia
considerável e que estava assinado com o nome de solteira de Isabel.
Isabel Rhys Jones. Quando andavam a estudar e se apresentavam umas às
outras no bar da escola, Isabel dizia sempre o nome da sua cidade natal em
gaélico: Caerdydd. Tinha pronúncia galesa, mas depois perdeu-a, mais ou
menos. No segundo ano do curso, Isabel falava com um sotaque inglês que
não era bem inglês, mas se tornaria inglês quando começou a aparecer na
televisão a fazer reportagens de África. Laura, que tinha estudado Línguas
Africanas, tentava não soar inglesa quando falava suaíli. Era um assunto
complicado e ela gostaria de ter ficado a pensar nele mais algum tempo,
mas Isabel tinha posto a tampa na caneta e estava a aclarar a voz. Estava a
dizer qualquer coisa e soava bastante galesa. Laura perdeu a primeira parte
do que a sua amiga estava a dizer, mas sintonizou a tempo de a ouvir dizer
que parecia que a norte-africana que limpava o chão da casa de férias por
tuta e meia estava em greve. A mulher usava um lenço na cabeça e
arranjava as fichas elétricas a Jurgen, que descobrira encantado que ela
tinha mais jeito para reparações elétricas do que ele. Laura tinha-a visto
fitar os fios das fichas e depois olhar lá para fora, para a luz prateada que
parece que tinha curado a tuberculose de Matisse. Esta mulher andava-lhe
nos pensamentos por alguma razão, e quando estava a perguntar-se porque é
que sentia tanto interesse nela, recordou-se do que Isabel dissera quando
estava a passar-lhe o cheque. Tinha algo a ver com Laura abrir uma conta à
parte da que partilhava com Mitchell. Começou a rir e recordou a Isabel que
o seu nome de solteira era Laura Cable.
A Coisa
Corpo Elétrico
Claude teve de tapar a boca com a mão para se impedir de rir tão alto
como lhe apetecia. Jurgen não queria ser zelador. Madame Dwighter andava
sempre a pedir-lhe que lhe dissesse em que estava a pensar, mas ele só dizia
a Claude o que estava a pensar. Só pensava numa coisa.
Kitty Finch. Se pressionado, incluiria: sexo, drogas, o budismo como
meio de atingir a unicidade na vida, nada de carne, nada de vivissecção,
Kitty Finch, nada de vacinas, nada de álcool, Kitty Finch, pureza de corpo e
alma, remédios naturais, tocar guitarra de blues, Kitty Finch, tornar-se
aquilo que Jack Kerouac descrevera como um Rapaz da Natureza Santo.
Claude ouviu o seu amigo dizer a Madame Dwighter que sim, tudo estava
muito calmo na casa de férias este ano. Sim, o famoso poeta inglês e a sua
família estavam a gostar das férias. De facto, tinham tido uma visita
surpresa. Mademoiselle Finch estava no quarto vago e estava a encantá-los
a todos. Sim, ela tinha um equilíbrio muito bom este ano e tinha escrito uma
coisa para mostrar ao poeta.
Claude desapertou os jeans e deixou-os cair até aos joelhos. Jurgen teve
de afastar o telefone do ouvido enquanto se dobrava em dois, fazendo
gestos obscenos a Claude, que estava agora a fazer flexões nos seus boxers
da Calvin Klein no chão. Jurgen bateu com o charro contra o joelho e
continuou a falar com Rita Dwighter, que estava a telefonar-lhe do seu
exílio fiscal em Espanha. Não tardaria a ter de lhe chamar «señora».
Sim, o folheto informativo estava atualizado. Sim, a água da piscina
estava perfeita. Sim, as empregadas da limpeza estavam a fazer um bom
trabalho. Sim, ele tinha substituído a vidraça partida. Sim, ele estava a
sentir-se bem. Sim, a vaga de calor estava a chegar ao fim. Sim, ia haver
trovoadas. Sim, toda a gente estava a par da previsão meteorológica. Sim,
ele iria fechar bem as portadas.
Claude ouvia a voz de Rita Dwighter tombar do auscultador e desaparecer
nas nuvens de fumo de haxixe. Toda a gente na aldeia se ria à menção da
psicanalista e promotora imobiliária rica que pagava a Jurgen tão bem pela
sua falta de competência. Gostavam de dizer a brincar que ela mandara
construir um heliporto para os homens de negócios poderem aterrar junto ao
seu consultório no Oeste de Londres. Ficavam sentados em cadeiras de
design enquanto os seus pilotos, usualmente ex-alcoólicos expulsos de
companhias de aviação comercial, fumavam cigarros da loja franca à chuva.
Claude andava a pensar em espalhar o boato de que um dos seus clientes
mais ricos tinha ficado com o braço preso nas pás da hélice logo depois de
ela ter esclarecido porque é que ele gostava de vestir um uniforme nazi e
vergastar prostitutas. Tivera de amputar o braço e deixara de a consultar, o
que queria dizer que afinal ela já não teria posses para comprar a casinha do
carteiro.
Quando Rita Dwighter vinha inspecionar os seus imóveis, o que, para
alívio de Jurgen, não era muito frequente, convidava sempre Claude, com
os seus ares de Mick Jagger, para jantar. Na última vez que jantara com ela,
ela tinha enfiado um talo ereto de ananás num brie húmido e a derreter-se e
dissera-lhe que se servisse.
Por fim, Jurgen pousou o telefone. Olhou fixamente para as estampas de
Picasso como se quisesse assassiná-las. Disse a Claude, que tinha tirado a T-
shirt e estava de cara para baixo no chão com os boxers vestidos, que tinha
ordens para pendurar Guernica no corredor para tapar as fendas irregulares
no estuque. A dominatrix Dwighter sentia-se obviamente impressionada
com as técnicas que o grande artista empregara para dizer algo sobre a
condição humana. Claude levantou-se do chão a custo e pôs a tocar um dos
CD velhos de Jurgen. Estava em cima de uma caixa de joias indiana e tinha
a etiqueta «Prague Muzic. Seleção da Ket para Calma».
Estava alguém a bater à porta. Jurgen não gostava de visitas, porque era
sempre alguém a pedir-lhe que fizesse o que lhe competia. Desta vez, era a
bonita filha de catorze anos do poeta britânico imbecil. Estava com uma
minissaia branca e naturalmente queria que ele fizesse alguma coisa.
– A minha mãe pediu-me que viesse cá para confirmar que marcou o
passeio a cavalo para amanhã.
Ele acenou com a cabeça, muito razoável, como se mais nada lhe tivesse
ocupado os pensamentos. – Entra. O Claude está aqui.
Quando Jurgen disse O Claude está aqui, o CD pareceu saltar ou ficar
encravado, ou aconteceu qualquer coisa. Nina ouviu um violino a tocar e
por trás dele o som de um lobo a uivar e a cantora a murmurar uma palavra
que soava como «snowburst»2. Ela deitou um olhar a Claude, que dançava
nos seus boxers. Tinha as costas tão lisas e bronzeadas que ela desviou o
olhar para a parede.
– Bonjour, Nina. Os cães comeram-me os jeans, por isso agora só tenho
os calções. O CD está riscado, mas gosto dele para me acalmar.
Quando ela o olhou com desprezo, ele viu-se como um caracol esmagado
na sola de corda das alpergatas vermelhas dela. Jurgen tinha as mãos
apoiadas nas suas ancas ossudas, com os cotovelos a apontarem para fora a
formar um triângulo. Parecia querer a opinião dela sobre as suas rastas.
– Então, achas que eu devia cortar o cabelo?
– Acho.
– Eu tenho o cabelo assim para ser diferente do meu pai.
Riu-se e Claude riu-se com ele.
aguaceiro de neve
a vogar
para o escuro3
a vogar
para a escura
floresta4
Os lábios dele estavam quentes e estavam nos lábios dela. Ela estava a
beijar Mick Jagger e ele estava a devorá-la como um lobo ou alguma coisa
feroz mas também suave, e decididamente não calma. Ele estava a dizer-lhe
que ela era tão tudo. Ela aproximou-se ainda mais e depois ele parou de
falar.
para a escura
floresta
onde as árvores sangram
aguaceiro de neve5
Quando ela entreabriu os olhos e viu que ele tinha os olhos fechados, ela
fechou de novo os seus, mas depois a porta abriu-se e Jurgen estava no
meio da sala a piscar os olhos.
– Está tudo combinado para o passeio a cavalo.
Havia uma vírgula de beijos no ar. Tudo tinha ficado vermelho-escuro.
Jurgen pôs as mãos nas ancas para os cotovelos lhe ficarem espetados e as
vibrações poderem fluir através dos triângulos que os cotovelos formavam
com o corpo.
– Por favor, peço-te que leias o poema da Ket para me poderes dizer o
caminho para o coração dela.
2 Aguaceiro de neve. (N. da T.)
O Enredo
Nina abriu a porta do quarto dos pais e patinou em meias pelo chão de
tijoleira. Estava de meias apesar do calor, porque tinha o pé esquerdo
inchado devido a uma picada de uma abelha. Para ganhar coragem para a
tarefa que tinha entre mãos tinha passado a última hora a espalhar nas
pálpebras o kohl azul de Kitty. Quando se viu ao espelho, os seus olhos
castanhos estavam brilhantes e decididos. Da janela junto à cama via a sua
mãe e Laura a falarem junto à piscina. O pai tinha ido a Nice ver a Catedral
Ortodoxa Russa e Kitty Finch estava com Jurgen como de costume. Iam
apanhar bosta de vaca dos campos e depois espalhá-la no novo terreno de
Jurgen de que Kitty, segundo a própria «ia tomar conta durante o verão».
Ninguém percebia porque é que ela não estava de facto a viver com Jurgen
na casa ao lado, mas a mãe de Nina tinha dado a entender que talvez Kitty
não estivesse tão «caída» por ele como ele estava por ela. Ouviu umas
pancadas que vinham da cozinha. Mitchell envolvera uma barra de
chocolate negro num pano de cozinha e estava a martelá-la todo
entusiasmado. Fazia calor lá fora, mas ela sentia frio no quarto dos pais,
como se afinal fosse um rinque de gelo. Sabia que aspeto tinha o envelope,
mas não o via em lado nenhum. Do que precisava era de uma lanterna,
porque não podia acender as luzes e assim atrair as atenções. Se alguém
entrasse, ela enfiava-se no quarto de banho e escondia-se atrás da porta. Na
mesa de cabeceira do lado da mãe reparou num pedaço de um favo de mel
embrulhado numa folha de jornal. Tinha obviamente sido atado com o
cordel verde que estava ao seu lado. Dirigiu-se para ele e viu que era um
presente do pai, porque ele tinha escrito a tinta preta na folha:
Para a minha doçura com todo o meu amor como sempre, Jozef.
Nina franziu a testa ao ver o mel espesso e dourado a esvair-se pelos
buracos. Se, afinal, os seus pais gostassem bastante um do outro, isso daria
cabo da história que ela tinha construído para si própria. Quando pensava
nos pais, o que fazia na maior parte do tempo, estava sempre a tentar
encaixar as peças. Qual era o enredo? O pai dela tinha mãos muito meigas e
ontem tinha-se fartado de tocar na mãe. Ela tinha-os visto a beijarem-se no
corredor como se fosse uma cena de um filme, agarrados um ao outro
enquanto as traças se estampavam contra a lâmpada acima das suas
cabeças. Para ela, tragicamente, os seus pais não podiam ver-se um ao outro
e só a amavam a ela. O enredo era que a mãe dela abandonava a sua única
filha para ir abraçar órfãos na Roménia. Tragicamente (tanta tragédia), Nina
ocupara o lugar da sua mãe na casa da família e tornara-se a companheira
mais preciosa do seu pai, adivinhando os seus estados de espírito e as suas
necessidades. Mas as coisas começaram a ficar tremidas quando a mãe lhe
perguntou se ela gostaria de ir a um restaurante especial à beira-mar comer
um gelado com um pauzinho de fogo de artifício. Pior ainda, se os pais se
estavam a beijar ontem (os lençóis da cama por fazer pareciam um bocado
enrodilhados) e se pareciam compreender-se de uma maneira que a excluía,
o enredo estava a descarrilar.
Foi só depois de passar seis minutos numa busca frenética que acabou por
encontrar o envelope com o poema de Kitty lá dentro. Tinha desistido de
vasculhar por entre as camisas e os lenços de seda que o seu pai passava
sempre tão cuidadosamente a ferro e rastejou de joelhos para espreitar
debaixo da cama. Quando viu o envelope encostado aos chinelos do pai e
duas baratas mortas de pernas para o ar, deitou-se de barriga para baixo e
chegou-lhe com o braço. Havia mais qualquer coisa debaixo da cama, mas
ela não teve tempo de descobrir o que era.
A janela que dava para a piscina era um problema. A sua mãe estava
sentada nos degraus na parte menos funda, a comer uma maçã. Ouviu-a
perguntar a Laura porque é que ela andava a aprender ioruba e Laura dizer:
– Porque não? Mais de vinte milhões de pessoas falam essa língua.
Acocorou-se no chão, onde não podia ser vista, e arrancou a fita-cola da
dobra do envelope. Estava vazio. Espreitou para dentro. Uma folha de papel
tinha sido dobrada num quadrado do tamanho de uma caixa de fósforos e
estava encravada no fundo do envelope como um sapato velho atolado na
lama de um rio. Ela tirou-o e desdobrou-o com cuidado.
Nadar para Casa
por
Kitty Finch
Depois de ter lido, Nina não se deu ao trabalho de voltar a dobrar o papel
nos seus quadrados complicados. Enfiou-o no envelope e voltou a metê-lo
debaixo da cama com as baratas. Porque é que o seu pai não o tinha lido?
Ele compreenderia exatamente o que se estava a passar na mente de Kitty.
Subiu as escadas até à sala de estar e espreitou pela porta de vidro.
A mãe dela estava a balouçar os pés na água quente e a rir. Fez Nina
franzir a testa, porque aquele som era muito raro. Encontrou Mitchell a
fritar fígado na cozinha. Estava com uma das suas camisas havaianas mais
espampanantes, que usava para cozinhar.
– Olá – disse ele. – Vieste à procura de um naco de comida?
Nina encostou-se ao frigorífico e cruzou os braços.
– O que é que fizeste aos olhos? – Mitchell olhou atentamente para o kohl
azul brilhante que ela tinha espalhado nas pálpebras. – Alguém te deu um
soco?
Nina inspirou fundo para não gritar.
– Eu acho que a Kitty se vai tentar afogar na nossa piscina.
– Oh, não. – Mitchell fez uma careta de preocupação. – E porquê?
– Tenho essa impressão.
Ela não queria dizer que abrira o envelope destinado ao seu pai. Mitchell
ligou a batedeira elétrica e ficou a ver as castanhas e o açúcar a girarem até
se transformarem numa pasta e salpicarem as palmeiras da sua camisa.
– Se eu te atirasse para a piscina agora, tu flutuavas. Até eu, com a minha
grande barriga, flutuava.
Estava a gritar sobre o ruído da batedeira. Nina esperou que ele a
desligasse para poder segredar.
– Sim. Ela tem andado a apanhar pedras. Eu estava com ela na praia
quando ela andava à procura delas. – Explicou que Kitty lhe contara que
andava a estudar os canos da piscina e que tinha dito coisas esquisitas
como: «Não convém ficar com o cabelo preso na canalização.»
Mitchell olhou com afeto para a menina de catorze anos. Compreendia
que tinha ciúmes da atenção que o pai dela andava a prestar a Kitty e que,
provavelmente, queria que a rapariga se afogasse.
– Anima-te, Nina, Come um bocado de puré de castanhas doce com uma
colher. Vou misturá-lo com chocolate. – Lambeu os dedos. – E vou deixar
um quadradinho para a ratazana hoje à noite.
Ela sabia um terrível segredo que mais ninguém sabia. E havia outros
segredos também. Ontem, quando estava sentada na cama no quarto de
Kitty a ajudá-la a extrair as sementes das suas plantas, estava uma ave a
cantar no jardim. Kitty Finch pusera a cabeça nas mãos e chorara como se
fosse o fim de tudo.
Ela tinha de falar com o pai, mas ele estava em Nice a dirigir-se para uma
igreja russa qualquer, embora lhe tivesse dito que, se alguma vez se sentisse
tentada a acreditar em Deus, talvez fosse sinal de que estava a ter um
colapso nervoso. Outra coisa a preocupava. Era a coisa debaixo da cama,
mas não queria pensar nisso, porque tinha a ver com Mitchell e de qualquer
maneira agora a mãe estava a chamá-la para ir dar um passeio a cavalo.
Ponyland
A Caminho de Onde?
As pessoas paravam para olhar para ela. Para mirar e voltar a mirar a
visão de uma jovem radiante com um vestido de seda verde, que parecia
caminhar sobre o ar. A tira esquerda dos seus sapatos brancos de sapateado
tinha-se desapertado, como se para a ajudar a elevar-se acima das pontas de
cigarros e das pratas de chocolates nos passeios. Kitty Finch, com a sua
abundante cabeleira empilhada no topo da cabeça, estava quase tão alta
como Joe Jacobs. Enquanto passeavam pela promenade des Anglais na luz
prateada do fim da tarde, nevavam gaivotas em todos os telhados de Nice.
Ela tinha atirado pelos ombros a capa curta de penas brancas, com as suas
fitas de cetim atadas frouxamente à volta do pescoço. As penas esvoaçavam
ao vento que soprava do mar, o Mediterrâneo, que, pensou Joe, era da
mesma cor do brilhante kohl azul nas pálpebras de Kitty.
À distância, viam a cúpula cor-de-rosa do Hotel Negresco. Ele mudara
respeitosamente de roupa, para um fato às riscas, e até abrira o novo frasco
de perfume que lhe fora enviado de Zurique. A sua parfumier, a última
alquimista viva do século xx, insistia que as notas de topo eram irrelevantes
e que as notas de fundo se revelariam quando ele transpirasse. Kitty enfiou
o seu braço nu no braço de fazenda às riscas, uma risca vermelha vertical
que tinha semelhanças com a centopeia que ele apanhara no rio. Ela não lhe
contou o que acontecera com Madeleine Sheridan (ela e Jurgen já tinham
falado sobre o assunto durante horas) e ele não lhe contou a ela como tinha
dado por si de joelhos a acender uma e depois duas velas na Catedral
Ortodoxa Russa. A tensão de esperar para se encontrarem outra vez levara
ambos a fazerem coisas que não compreendiam.
Quando chegaram à entrada de mármore, o porteiro com a sua jaqueta
carmim e luvas brancas abriu-lhes respeitosamente a porta, com NEGRESCO
pintado a toda a largura do arco de vidro em letras douradas. A capa de
penas esvoaçava atrás dela como as asas do cisne a que as penas tinham
sido arrancadas. Mais do que andar, vogou para o bar com luzes baixas,
cadeirões estofados a veludo vermelho desbotado e tapeçarias nas paredes.
– Estás a ver aquelas pinturas a óleo de nobres nos seus palácios?
Ele olhou para cima, para os retratos do que pareciam ser solenes
aristocratas pálidos a posar em cadeiras forradas a tapeçaria em sala de
mármore gélidas.
– Bem, a minha mãe limpa-lhes as pratas e lava-lhes as cuecas.
– É empregada doméstica?
– É. Dantes limpava a casa da Rita Dwighter. É por isso que eu fico de
graça às vezes.
Esta confissão fê-la corar, mas ele tinha algo a dizer em resposta.
– A minha mãe também era mulher a dias. Eu costumava roubar ovos das
galinhas para ela e trazê-los para casa nos bolsos.
Sentaram-se lado a lado em duas cadeiras antigas. As penas brancas da
capa dela estremeceram quando ele murmurou: – Há um recado para nós na
mesa. Acho que deve ser de Marie Antoinette.
Kitty estendeu a mão e pegou no cartão branco encostado a uma jarra de
flores.
– Diz que o cocktail do mês é champanhe com uma coisa chamada Crème
de Fraise des Bois.
Joe acenou com a cabeça como se esta informação fosse de importância
vital.
– Depois da revolução, toda a gente vai ter direito ao cocktail do mês.
Tomamos um, entretanto?
Kitty acenou entusiasticamente com a cabeça.
O empregado de mesa já estava ao seu lado, a atendê-lo como se fosse um
grande privilégio para ele. Um músico com um ar aborrecido, com um
smoking branco manchado, estava sentado ao piano a tocar «Eleanor
Rigby» ao canto do bar. Ela cruzou as pernas e esperou que ele lhe falasse
sobre o seu poema. Ontem à noite tinha visto uma coisa que a assustara e
queria falar-lhe disso. O rapaz estava outra vez de pé ao lado da cama dela.
Acenava freneticamente, como se estivesse a pedir-lhe que o ajudasse, e
tinha dois ovos de galinha no bolso. Tinha-lhe entrado de assalto na mente.
Ela começara a cobrir os espelhos para o caso de ele voltar a aparecer.
Enfiou as mãos por baixo da carteira que tinha no regaço para ele não ver
que estavam a tremer.
– Fala-me mais da tua mãe. É parecida contigo?
– Não, é obesa. Um dos braços dela dava uma de mim.
– Disseste que ela conhece a proprietária da casa de férias?
– Conhece. A Rita Dwighter.
– Fala-me mais sobre a Rita e a sua carteira de imóveis e de dor.
Ela não queria falar sobre a patroa da sua mãe. Era um estilhaço no seu
braço, a indiferença dele pelo envelope que ela tinha enfiado por baixo da
porta do quarto dele. Estava sempre a mudar de assunto. Ela inspirou
profundamente e sentiu o cheiro a trevo do seu perfume.
– A Rita é proprietária de tantos imóveis que teve de se exilar por
motivos fiscais em Espanha, mas isso quer dizer que ela só pode
permanecer no Reino Unido um certo número de dias por ano. A minha
mãe disse-lhe que ela ia ser como uma foragida e a Rita ofendeu-se e disse
que o psiquiatra dela lhe dissera que ela precisava de aceitar a sua ganância.
Ele riu e afundou os dedos na pequena taça de nozes que estava na mesa.
Brindaram e beberam o primeiro gole do cocktail do mês.
– Qual é o teu poema favorito, Kitty?
– Referes-te a um poema que eu tenha escrito ou a um poema de outra
pessoa? – Ele já devia saber que era o poeta preferido dela. Era por isso que
ela estava aqui. As palavras dele estavam dentro dela. Ela compreendia-as
antes de as ler. Mas ele recusava-se a admiti-lo. Estava sempre bem-
disposto. Tão bem-disposto que ela achava que ele poderia estar num perigo
terrível.
– Queria dizer se gostas de Walt Whitman ou de Byron ou de Keats ou de
Sylvia Plath?
– Ah, certo. – Ela bebeu mais um gole do cocktail. – Bem, não há dúvida.
O meu poema favorito é de Apollinaire.
– Qual é?
Ela inclinou a cadeira para a frente e agarrou na caneta de tinta
permanente que ele trazia sempre presa à camisa como um microfone.
– Dá-me a tua mão.
Quando ele pôs a mão no joelho dela, com a palma a deixar uma marca
de suor no seu vestido de seda verde, ela espetou-lhe o aparo na pele com
tal força que ele deu um salto. Ela era mais forte do que parecia, porque lhe
prendeu a mão e ele não conseguiu ou não quis tirá-la. Ela estava a magoá-
lo com a sua própria caneta ao inscrever uma tatuagem preta de letras na
sua pele.
Ele fitou a sua mão, que lhe doía. – Porque é que gostas tanto dele?
Ela levou a taça de champanhe aos lábios e enfiou a língua lá dentro,
lambendo os últimos restos de polpa de morango.
– Porque está sempre a chover.
– Está?
– Está. Tu sabes que está.
– Sei?
– Está sempre a chover quando uma pessoa se sente triste.
A imagem de Kitty Finch a uma chuva perpétua, a caminhar à chuva, a
dormir à chuva, a fazer compras e a nadar e a apanhar plantas à chuva
intrigava-o. Ainda tinha a sua mão no joelho dela. Ela não tinha voltado a
pôr a tampa na caneta. Ele queria exigir que ela lha devolvesse, mas em vez
disso deu consigo a oferecer-lhe outro cocktail. Ela estava absorta nos seus
pensamentos. Sentada muito direita no cadeirão de veludo, com a caneta
dele na mão. Com o aparo de ouro apontado para o teto. Pequenos
diamantes de suor gotejavam-lhe pelo pescoço comprido. Ele foi ao bar e
pousou os cotovelos no balcão. Talvez devesse suplicar ao pessoal que o
levasse a casa? Era impossível. Era a sedução impossível da catástrofe, mas
já tinha acontecido, estava a acontecer. Tinha acontecido e estava a
acontecer de novo, mas ele tinha de o combater até ao fim. Fitou a chuva
preta que ela tinha inscrito na sua mão e disse a si próprio que aquilo estava
ali para amolecer a sua decisão de lutar. Ela era esperta. Sabia o que a chuva
faz. Amolece coisas duras. Ele via-a à procura de alguma coisa na carteira.
Tinha um livro na mão, um dos livros dele, e estava a sublinhar alguma
coisa na página com a caneta dele. Talvez ela fosse uma escritora
extraordinária? Não lhe tinha ocorrido. Talvez fosse isso que ela era?
Joe mandou vir mais dois cocktails do mês. O barman disse a monsieur
que lhos levaria à mesa quando estivessem prontos, mas ele ainda não
queria voltar para o seu cadeirão antigo. Ela sabia realmente bastante sobre
poesia. Para uma botânica. Porque é que ele não lhe tinha dito que lera o
seu poema? O que estava a impedi-lo? Deveria confiar no seu instinto de
não revelar que tinha lido a ameaça que ela enfiara no envelope? Ele levou
as taças geladas até ela. Desta vez, Joe emborcou o seu champanhe com
morangos como se fosse um copo de cerveja. Inclinou-se para os lábios
dela, que estavam húmidos com o champanhe de morango, e beijou-a.
Como ela deixou, beijou-a outra vez, com o seu cabelo preto e grisalho a
enredar-se nos caracóis de cabelo ruivo dela. As suas pestanas claras
enfarruscadas com rímel batiam-lhe na face enquanto ele segurava o seu
longo pescoço com a palma da mão e sentia as unhas pintadas de verde a
cravarem-se no joelho dele.
– Estamos a beijar-nos à chuva. – A voz dela era dura e macia ao mesmo
tempo. Como os cadeirões de veludo. Como a chuva preta inscrita na sua
mão.
Ela tinha os olhos fechados com força. Ele estava a conduzi-la na direção
do pesado lustre austríaco no átrio. Ela tinha a cabeça a andar à roda e
precisava de beber água. Ouviu-o perguntar ao rececionista italiano se havia
quartos vagos. Abriu os olhos. O italiano elegante martelava as teclas do
seu computador. Sim, havia um quarto. Mas estava decorado ao estilo Luís
XVI em vez de art déco e não tinha vistas de mar. Joe entregou-lhe o seu
cartão de crédito. O paquete conduziu-os a um elevador forrado a espelhos.
Ela olhou fixamente para os múltiplos reflexos do braço suado de Joe à
volta da sua cintura, com a seda verde do seu vestido a estremecer enquanto
vogavam silenciosamente no elevador que cheirava a couro até ao terceiro
andar.
Metáforas
Nina estava a dormir, mas no seu sonho estava acordada e deu consigo a
encaminhar-se para o quarto vago onde Kitty estava deitada na cama. Tinha
o rosto inchado e o lábio rebentado. Parecia-se com Kitty, mas não muito.
Ouviu Kitty segredar o seu nome.
Nina aproximou-se. As pálpebras de Kitty estavam pintadas com sombra
verde. Pareciam folhas. Nina sentou-se aos pés da cama. Kitty era proibida,
porque era perigosa. Fazia coisas perigosas. Nina engoliu em seco com
força e deu à Kitty morta uma informação.
A tua mãe vem cá buscar-te.
Pôs um rato de açúcar azul junto ao pé de Kitty. Tinha uma cauda
minúscula feita de cordel. Nina tinha-o encontrado debaixo da cama de
Kitty.
E comprei-te sabonete.
Ela tinha visto Kitty procurar sabonete muitas vezes, mas não havia
nenhum no quarto de banho dela e ela disse que gastara o dinheiro todo no
aluguer do carro.
Eu li o teu poema. Acho que é fantástico. É a melhor coisa que já li na
minha vida.
Citou a Kitty versos do seu poema. Não como eram no poema, mas como
ela se lembrava deles.
Ele pôs a mão à volta do pescoço dela e desatou a fita de cetim branco da
capa de penas. A cama de dossel com cortinados grossos e dourados parecia
uma caverna. Ela ouviu o alarme de um carro disparar enquanto as gaivotas
gritavam no parapeito da janela e fixou o olhar no papel de parede. As
penas brancas da sua capa estavam espalhadas no lençol como se ela tivesse
sido atacada por uma raposa. Tinha comprado a capa numa feira da ladra
em Atenas, mas nunca a usara até agora. O cisne era um símbolo do ano a
acabar no outono, lera isso algures. Tinha-lhe ficado na cabeça e fizera-a
pensar na maneira como os cisnes enfiam a cabeça na água e se viram de
pernas para o ar. Tinha andado a guardar a capa para algo, talvez para isto;
era difícil saber o que tivera em mente quando trocara dinheiro pelas penas
que tinham protegido esta ave aquática do frio e que eram também em
tempos usadas para escrever. Ele estava dentro dela agora, mas ele estava
dentro dela de qualquer forma, era isso que ela não podia dizer-lhe mas que
lhe dissera no seu poema que ele não tinha lido, e agora o alarme do carro
parara de tocar e ela ouvia vozes lá fora. Um ladrão devia ter assaltado um
carro, porque alguém estava a varrer vidros partidos.
Ao fim de algum tempo, ele preparou-lhe um banho.
Ela pediu-lhe que abrisse a janela do lado dele para ela poder ouvir os
animais a chamarem-se uns aos outros no escuro. Ele desceu o vidro e
disse-lhe para manter os olhos na estrada. – Sim – disse ela outra vez, com
os olhos de novo na estrada. O vestido de seda escorregava-lhe dos ombros
quando ela se debruçava sobre o volante. Ele tinha uma coisa a pedir-lhe.
Um pedido melindroso que esperava que ela compreendesse.
– Seria melhor para a Isabel se ela não soubesse o que aconteceu hoje à
noite.
Kitty riu e o rato azul saltitou no seu regaço.
– A Isabel já sabe.
– Sabe o quê? – Ele disse-lhe que estava a sentir-se tonto. Será que ela
poderia abrandar?
– Foi por isso que ela me convidou a ficar. Ela quer deixar-te.
Ele precisava que o carro fosse devagar. Tinha vertigens e sentia que
estava a cair, embora soubesse que estava sentado no lugar do passageiro
num carro de aluguer. Era verdade que Isabel iniciara o princípio do fim do
casamento deles e convidara Kitty Finch para ser a última traição? Não se
atrevia a olhar para baixo, para as cascatas que rugiam contra os penedos ou
para os arbustos com as raízes à vista que se agarravam ao lado da
montanha.
Ele ouviu-se dizer: – Porque é que não arranjas uma mochila e não vais
ver os campos de papoilas no Paquistão como disseste que querias?
– Sim – disse ela. – Vens comigo?
Ele levantou o braço que estivera pousado no ombro dela e fitou as
palavras que ela tinha escrito na sua mão. Tinha sido marcado como o gado
é marcado para mostrar a quem pertence. O ar frio da montanha picava-lhe
os lábios. Ela estava a conduzir demasiado depressa nesta estrada que tinha
em tempos sido uma floresta. Seres humanos primitivos tinham vivido nela.
Estudavam o fogo e o movimento do sol. Liam as nuvens e a lua e tentavam
compreender a mente humana. O seu pai tinha tentado fazê-lo desaparecer
numa floresta polaca quando ele tinha cinco anos. Ele sabia que não devia
deixar vestígios ou rasto da sua existência, porque nunca deveria encontrar
o caminho para casa. Era o que o seu pai lhe tinha dito. Não podes voltar
para casa. Isto não era algo possível de saber, mas ele tinha de o saber
mesmo assim.
Nina Ekaterina
O seu pai estava a ser posto numa padiola. A polícia tinha começado a
esvaziar a piscina. Jurgen também estava lá. Tinha uma vassoura na mão e
andava a varrer energicamente à volta dos vasos de plantas. Até se tinha
dado ao trabalho de vestir um fato-macaco azul-marinho que o fazia parecer
um zelador.
A Notícia
Ouvia o zumbido das abelhas por perto e ouviu-se insistir que do que o
marido precisava era de uma ambulância aérea, mas o que dizia
principalmente era o seu nome.
Jozef. Por favor. Jozef. Jozef. Jozef, por favor.
Porque é que ele tinha marcado assim a mão? Onde é que o tinha feito e
como pudera suportá-lo e o que queria dizer? Ela apertou-lhe os dedos e
pediu-lhe que se explicasse. Prometeu que, por seu turno, se explicaria ela
também. Fá-lo-ia agora mesmo. Disse-lhe que gostaria de ter sentido o seu
amor cair sobre ela como chuva. Era esse o tipo de chuva por que mais
ansiara no seu longo casamento pouco convencional. Os paramédicos
pediram-lhe que se afastasse do caminho, mas ela não se mexeu, porque
sempre se tinha afastado do caminho dele. Amá-lo tinha sido o maior risco
da sua vida. A coisa, a ameaça estava lá à espreita, em todas as palavras
dele. Ela soubera-o desde o início. Sempre o soubera. Ele tinha enterrado
cartuchos e granadas por explodir nas estradas e nos caminhos de todos os
seus livros, estavam debaixo de cada poema, mas se ele morresse agora a
filha deles atravessaria um mundo que estava sempre danificado e ela
estava tão zangada quanto era possível estar.
Jozef. Por favor. Jozef. Jozef. Jozef. Por favor.
Subitamente, apercebeu-se de que alguém estava a empurrá-la, a afastá-la
do caminho, e que lhe cheirava a sangue.
Um homem grande, com o cabelo rapado e um revólver preso ao cinto
estava a fazer-lhe perguntas. Para nenhuma das perguntas que ele fazia ela
tinha uma resposta direta. Como se chamava o seu marido?
Jozef Nowogrodzki no passaporte. Joe Harold Jacobs em todos os outros
documentos de identificação. De facto, ela não achava que o seu nome
fosse Nowogrodzki, mas era esse nome que os seus pais tinham escrito no
passaporte dele, de qualquer maneira. Ela também não disse ao polícia que
o seu marido tinha muitos outros nomes: JHJ, Joe, Jozef, o famoso poeta, o
poeta britânico, o poeta imbecil, o poeta judeu, o poeta ateu, o poeta
modernista, o poeta pós-Holocausto, o poeta mulherengo. Então, qual era o
local de nascimento de Monsieur Nowogrodzki? Polónia. Łód´z. 1937. Łód
´z em inglês diz-se Wodge, mas ela não sabia dizer o nome em francês. O
nome dos pais? Não tinha a certeza de como se escrevia. Ele tinha irmãos?
Sim. Não. Tinha uma irmã. Chamava-se Friga.
O inspetor parecia confuso. Isabel fez o que fazia melhor.
Deu-lhe as notícias, embora estivessem um pouco desatualizadas. O seu
marido tinha cinco anos quando foi levado clandestinamente para a Grã-
Bretanha em 1942, meio a morrer de fome e com documentos falsos. Três
dias depois de ele chegar, a sua mãe e o seu pai foram deportados
juntamente com a sua irmã de dois anos para o campo de concentração de
Chelmno, na Polónia Ocidental. O inspetor, que não compreendia bem
inglês, levantou a mão à frente da cara como se estivesse a mandar parar o
trânsito numa rua movimentada. Disse à mulher do poeta judeu que era um
infortúnio que os Alemães tivessem ocupado a Polónia em 1939, mas que
tinha de lhe lembrar que estava agora a tratar do inquérito a uma morte nos
Alpes-Maritimes em 1994. Ela concordava que Monsieur Nowogrodzki, ou
Jacobs, tinha deixado um bilhete final à sua filha? Ou era um poema? Ou
era uma prova? O que quer que fosse, era dirigido a Nina Ekaterina. Enfiou
o folheto informativo amarelo numa capa de plástico. Num dos lados
estavam instruções sobre o funcionamento da máquina de lavar louça. Do
outro lado estavam cinco linhas escritas a tinta preta. Aparentemente, eram
instruções para a sua filha.
Ainda não eram seis horas, mas toda a aldeia já tinha ouvido a notícia.
Quando Claude chegou à casa de férias com um saco cheio de pão,
Mitchell, que por uma vez não estava interessado em nacos, mandou-o
embora, com os olhos ainda a arder por causa do cloro na água turva. Os
paramédicos gritavam instruções uns aos outros e Isabel disse a Nina que
iria também na ambulância. Iam pôr tubos no nariz do pai e fazer-lhe uma
lavagem ao estômago a caminho do hospital. A ambulância começou a sua
viagem pela estrada de montanha abaixo. Nina sentiu que estava a ser
levada por Claude para a casa de Madeleine Sheridan, que se chamava
Maison Rose embora estivesse pintada de azul. No caminho, viu Jurgen
com os braços à volta de Kitty Finch e quando ouviu Mitchell gritar: – Põe-
te a andar e não voltes cá – toda a gente ouviu o que Kitty disse a seguir.
Falava baixo, mas era como se falasse aos gritos, porque o que ela disse foi
a única coisa que toda a gente já sabia.
– Ele matou-se com uma das suas armas, Mitchell.
Sempre que sonho o meu sonho do século XX sobre o meu pai, acordo e
imediatamente me esqueço das palavras-passe para a EasyJet e a Amazon.
É como se elas tivessem desaparecido da minha cabeça para a cabeça dele e
algures no século XXI ele estivesse sentado comigo num autocarro a
atravessar a London Bridge a ver a chuva cair na chaminé da Tate Modern.
As conversas que eu tenho com ele não pertencem de todo a este século,
mas mesmo assim pergunto-lhe porque é que nunca me falou realmente da
sua infância. Ele responde que espera que a minha própria infância não
tenha sido muito má e se me lembro das gatinhas?
As gatinhas da nossa família (a Agnieska e a Alicja) tinham sempre um
cheiro selvagem e o meu prazer de infância era penteá-las com a escova de
cabelo do meu pai. Ficavam deitadas no meu regaço e eu escovava-lhes o
pelo enquanto elas ronronavam e me davam pancadinhas na mão com as
suas patas macias. Junto à cauda, os pelos estavam sempre colados e
riçados, porque elas ainda eram demasiado pequenas para saberem limpar-
se. Por vezes, eu deixava as bolas de pelo no sofá e o meu pai fazia de conta
que as engolia. Abria muito a boca e fingia que tinha engolido uma e que
lhe estava presa na garganta e que estava a sufocar. O meu pai passou a vida
a tentar perceber porque é que as pessoas tinham sapos vivos na garganta,
borboletas no estômago, agulhas e alfinetes nas pernas, um espinho cravado
no lado, um argueiro nos olhos e, na verdade, se elas tivessem cuspido bolas
de pelo, ele também as teria estudado.
Não, diz ele. Eu não teria estudado as bolas de pelo.
Concordamos que ele e eu aprendemos a viver juntos mais ou menos
bem. Ele lavava as minhas camisolas interiores e as meias e as T-shirts,
cosia-me botões nos casacos de malha, procurava meias perdidas e insistia
que eu nunca devia ter medo de pessoas a falarem sozinhas em autocarros.
Sim, diz o meu pai. É o que tu estás a fazer agora.
Não, respondo, não é o que eu estou a fazer agora. Não estou a dizer em
voz alta aquilo em que estou a pensar. Isso seria de loucos. Ninguém neste
autocarro consegue ouvir-me a falar contigo.
Sim, diz ele, mas não faria mal, de qualquer modo, porque toda a gente
está a falar em voz alta ao telemóvel.