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Ficha Técnica

Título original: The Plot Against América


Título: A Conspiração Contra a América
Autor: Philip Roth
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Atelier Henrique Cayatte com a colaboração de Rita Múrias
Revisão: F. Baptista Coelho
ISBN: 9789722049818

Publicações Dom Quixote


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1
Junho de 1940-Outubro de 1940
VOTE EM LINDBERGH
OU VOTE PELA GUERRA

O MEDO preside a estas memórias, um medo perpétuo. Embora infância


alguma esteja isenta dos seus terrores, pergunto-me se teria sido um rapaz
menos assustado se Lindbergh não tivesse sido presidente ou se eu não
tivesse sido filho de judeus.
Quando se deu o primeiro choque, em Junho de 1940 – a nomeação de
Charles A. Lindbergh para a presidência, herói americano da aviação
internacional, pela Convenção Republicana em Filadélfia –, o meu pai tinha
trinta e nove anos, era um agente de seguros com escolaridade média,
ganhava pouco menos de cinquenta dólares por semana, o suficiente para
pagar a tempo e horas as despesas básicas, mas pouco mais do que isso. A
minha mãe – que quisera estudar para professora mas não pudera, por causa
da despesa, que trabalhara em casa como secretária depois de terminar a
secundária, que evitara que nos sentíssemos pobres durante o pior período
da Depressão, gerindo o salário que o meu pai lhe entregava todas as
sextas-feiras tão eficientemente como governava a casa – tinha trinta e seis
anos. O meu irmão, Sandy, andava no sétimo ano, possuía um talento
prodigioso para desenhar e tinha doze anos, e eu andava no terceiro ano, um
período à frente dele – era um coleccionador de selos embrionário
inspirado, como milhões de miúdos, pelo mais notável filatelista do país, o
presidente Roosevelt –, tinha sete.
Morávamos no 2.º andar de uma pequena casa de dois pisos e águas-
furtadas de uma rua ladeada de árvores, com casas de madeira com
alpendres de tijolo vermelho encimados por um telhado em empena e tendo
na frente um pequeno pátio rodeado por uma cerca baixa. O bairro de
Weequahic tinha sido construído em lotes de terreno agrícola no
subdesenvolvido extremo sudoeste de Newark, logo após a Primeira Guerra
Mundial, com uma meia dúzia de ruas imperialmente baptizadas com
nomes de vitoriosos comandantes navais da Guerra Hispano-Americana, e o
cinema local, com o do primo em quinto grau de FDR – e vigésimo sexto
presidente do país –, Roosevelt. A nossa rua, Summit Avenue, ficava, a
nordeste da cidade, no cimo da colina local, uma elevação tão alta como
qualquer outra de uma cidade portuária, que raramente sobe trinta metros
acima do nível da marinha da maré, e a baía funda para leste do aeroporto
que curva à volta dos tanques de petróleo da península de Bayonne, onde se
junta à baía de Nova Iorque para passar pela Estátua da Liberdade e lançar-
se no Atlântico. Olhando para oeste, da janela das traseiras do nosso quarto,
às vezes conseguíamos ver para o interior, até à escura linha de árvores da
Watchungs, uma cordilheira baixa, orlada por grandes propriedades e
subúrbios ricos e esparsamente habitados, limite extremo do mundo
conhecido – e a menos de quinze quilómetros da nossa casa. A um
quarteirão para sul ficava a cidade operária de Hillside, cuja população era
predominantemente gentia. A fronteira com Hillside assinalava o começo
do Union County, «uma New Jersey inteiramente diferente.
Em 1940 éramos uma família feliz. Os meus pais eram pessoas sociáveis
e hospitaleiras, e os seus amigos escolhidos entre os colegas de escritório do
meu pai e as mulheres que, juntamente com a minha mãe, tinham ajudado a
organizar a Associação de Pais e Professores da recém-construída Escola da
Chancellor Avenue, da qual o meu irmão e eu éramos alunos. Todos judeus.
Os homens do bairro ou tinham os seus próprios estabelecimentos – eram
donos da loja de caramelos e rebuçados, da mercearia, da joalharia, da loja
de vestuário, da casa de móveis, da estação de serviço e da charcutaria, ou
proprietários de pequenas oficinas industriais perto da linha Newark-
Irvington, ou canalizadores, electricistas, pintores de casas e caldeireiros
por conta própria – ou agentes de vendas, como o meu pai, que
calcorreavam todos os dias as ruas da cidade e iam a casa das pessoas
vender as suas mercadorias à comissão. Os médicos e os advogados judeus,
e os comerciantes bem-sucedidos, donos de grandes armazéns no centro da
cidade, viviam em casas monofamiliares em ruas que desembocavam da
vertente oriental da colina da Chancellor Avenue, mais perto do relvado e
arborizado Weequahic Park, mais de cento e vinte hectares paisagísticos
cujo lago para botes, campo de golfe e pista de corridas de cavalos
separavam a zona de Weequahic das instalações industriais e dos terminais
de embarque que ladeavam a Route 27 e o viaduto da Pennsylvania
Railroad a leste daquela, e o aeroporto em expansão a leste daquele, e o
próprio limite da América a leste daquele – os armazéns e as docas de
Newark Bay, onde descarregavam carga vinda de todo o mundo. No lado
ocidental do bairro, o lado sem jardim onde nós morávamos, vivia um ou
outro professor primário ou farmacêutico, mas tirando isso, eram poucos os
profissionais que se contavam entre os nossos vizinhos mais próximos e,
com certeza, nenhuma das famílias prósperas ligadas ao empresariado ou à
indústria. Os homens trabalhavam cinquenta, sessenta e até setenta horas,
ou mais, por semana; as mulheres estavam sempre a trabalhar, com pouca
ajuda de aparelhos que lhes facilitassem as tarefas, a lavar roupa, a passar
camisas a ferro, a passajar peúgas, a virar colarinhos, a pregar botões, a
proteger a roupa de lã com naftalina, a encerar móveis, a varrer e lavar o
chão, a lavar os vidros das janelas, a limpar lava-louças, banheiras, sanitas e
fogões, a aspirar tapetes, a cuidar dos doentes, a comprar comida, a fazer as
refeições, a dar de comer a familiares, a arrumar armários e gavetas, a
fiscalizar trabalhos de pintura e reparações domésticas, a tratar dos
preparativos para as práticas religiosas, a pagar contas e a fazer a
contabilidade da família, ao mesmo tempo que cuidavam da saúde, do
vestuário, da higiene, da educação escolar, da nutrição, da conduta, dos
aniversários, da disciplina e da conduta moral dos filhos. Algumas
trabalhavam ao lado dos maridos nas lojas familiares das ruas comerciais
próximas, ajudadas depois das aulas e aos sábados pelos filhos mais velhos,
que entregavam as compras, verificavam as existências e faziam a limpeza.
Muito mais do que pela religião, era pelo trabalho que eu identificava e
distinguia os nossos vizinhos. Ninguém no bairro usava barba, se vestia no
estilo antiquado do Velho Mundo ou usava uma quipá, quer fora quer dentro
de casa. Eu andava geralmente com os meus amigos de infância. Os adultos
já não eram praticantes dos modos exteriormente identificáveis, se é que o
eram verdadeiramente em qualquer outro aspecto, e excluindo os lojistas
mais velhos, como o alfaiate e o talhante kosher – e os avós doentes ou
decrépitos que viviam, por necessidade, com os filhos adultos –, quase
ninguém na vizinhança falava com sotaque. Em 1940, os pais judeus e os
seus filhos do canto sudoeste da maior cidade de Nova Jérsia falavam entre
si num inglês americano que se assemelhava mais à língua falada em
Altoona ou Binghamton do que aos famosos dialectos usados do outro lado
do Hudson pelos nossos pares judeus nos cinco municípios. Havia
caracteres hebraicos, em estêncil, na montra do talho e gravados nos lintéis
das pequenas sinagogas do bairro, mas em nenhum outro lugar (além de no
cemitério) pousavam os nossos olhos no alfabeto do livro de orações em
vez de nas letras familiares da língua nativa, usada sempre por praticamente
toda a gente para todos os fins concebíveis, fossem eles elevados ou
comuns. Na banca de jornais defronte da nossa loja de rebuçados da
esquina, eram dez vezes mais os clientes que compravam o Racing Form do
que o diário iídiche, o Forvitz.
Israel ainda não existia, seis milhões de judeus europeus ainda não tinham
deixado de existir, e a relevância da distante Palestina (sob tutela britânica
desde a dissolução em 1918, pelos Aliados vitoriosos, das últimas extensas
províncias do defunto Império Otomano) era um mistério para mim.
Quando um desconhecido de barba, e que nunca era visto de cabeça
descoberta, começou a aparecer, com intervalos de poucos meses, depois de
escurecer, para pedir num inglês macarrónico uma contribuição para o
estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina, eu, que não era uma
criança ignorante, não percebia bem o que fazia ele no nosso patamar. Os
meus pais davam-me, ou ao Sandy, duas moedas para metermos na sua
caixa, uma dádiva que sempre me pareceu inspirada por bondade, para não
magoar os sentimentos de um pobre velho que, de um ano para o outro,
parecia incapaz de meter na cabeça que nós já tínhamos uma pátria havia
três gerações. Eu prestava fidelidade à bandeira da nossa pátria todas as
manhãs, na escola. Louvava as suas maravilhas com os meus condiscípulos
em programas em conjunto. Festejava fervorosamente os seus feriados
nacionais, sem pensar duas vezes na minha afinidade com o fogo-de-
artifício do 4 de Julho, o peru do Dia de Acção de Graças ou o jogo duplo
do Decoration Day1. A nossa pátria era a América.
Depois os Republicanos designaram Lindbergh e tudo mudou.
Durante quase uma década Lindbergh fora um herói tão grande no nosso
bairro como era em qualquer outro lado. A conclusão do seu voo sem escala
e a solo, de trinta e três horas e meia, de Long Island para Paris, no seu
pequeno monoplano Spirit of St. Louis, coincidiu até com o dia da
Primavera de 1927 em que a minha mãe descobriu que estava grávida do
meu irmão mais velho. Em consequência disso, o jovem aviador cuja
coragem emocionara a América e o mundo e cuja proeza prenunciava um
futuro de inimaginável progresso aeronáutico, passou a ocupar um lugar
especial na galeria de histórias de família que constituem o embrião da
primeira mitologia coesa de uma criança. O mistério da gravidez e o
heroísmo de Lindbergh combinavam-se para conferir um relevo que raiava
o divino à minha própria mãe, para a qual nada menos do que uma
anunciação global acompanhara a encarnação do seu primeiro filho. Mais
tarde, Sandy registaria este momento com um desenho ilustrando a
justaposição daqueles dois magníficos acontecimentos. No desenho –
concluído aos nove anos de idade e com laivos incautos de arte
propagandística soviética –, Sandy visionava-a a quilómetros da nossa casa,
no meio de uma multidão jubilosa na esquina da Broad com a Market. Uma
jovem esbelta de vinte e três anos, com cabelo escuro e um sorriso todo
feito de sadio contentamento, surpreendentemente sozinha e com o avental
florido que usava na cozinha, ali no cruzamento das duas vias públicas mais
movimentadas da cidade, com uma mão toda aberta na frente do avental,
onde a envergadura dos seus quadris ainda é ilusoriamente efeminada,
enquanto com a outra é a única da multidão a apontar para o céu, para o
Spirit of St. Louis, que passa, visível, sobre o centro de Newark no
momento preciso em que ela dá conta que, num feito não menos triunfante
para um mortal do que o de Lindbergh, concebeu Sanford Roth.
Sandy tinha quatro anos, e eu, Philip, ainda não tinha nascido, quando,
em Março de 1932, o primeiro filho de Charles e Anne Morrow Lindbergh,
um menino cujo nascimento vinte meses atrás fora motivo de regozijo
nacional, foi raptado da nova casa isolada da sua família na cidade rural de
Hopewell, em New Jersey. Cerca de dez semanas depois, o corpo em
decomposição do bebé foi descoberto por acaso numa área arborizada, a
poucos quilómetros de distância. O bebé tinha sido assassinado ou morto
acidentalmente depois de roubado do berço e, no escuro, ainda com a roupa
de dormir, levado por uma janela do seu quarto no segundo piso e por uma
escada improvisada, enquanto a ama e a mãe estavam ocupadas nas suas
habituais actividades nocturnas noutra parte da casa. Quando o julgamento
do rapto e assassínio, realizado em Flemington, Nova Jérsia, em Fevereiro
de 1935, terminou, com a condenação de Bruno Hauptmann – um ex--
presidiário alemão de trinta e cinco anos, residente no Bronx com a sua
mulher alemã –, a intrepidez do primeiro piloto do mundo a realizar, a solo,
a travessia transatlântica tinha sido impregnada por uma compaixão que o
transformara num titã martirizado comparável a Lincoln.
Depois do julgamento, os Lindbergh deixaram a América e expatriaram-
se temporariamente, a fim de protegerem um novo bebé Lindbergh de
qualquer perigo e recuperarem, na medida do possível, a privacidade por
que ansiavam. A família mudou-se para uma pequena aldeia inglesa e, a
partir daí, e como cidadão particular, Lindbergh começou a fazer as viagens
à Alemanha Nazi que viriam a transformá-lo num pulha aos olhos da maior
parte dos judeus americanos. No decorrer de cinco visitas, durante as quais
conseguiu familiarizar-se em primeira mão com a magnitude do poderio
bélico alemão, foi ostensivamente recebido pelo marechal-do-ar Göring e
cerimoniosamente condecorado em nome do Führer, e exprimiu
abertamente o seu elevado apreço por Hitler, chamando à Alemanha «a
nação mais interessante do mundo» e ao seu líder, «um grande homem». E
todo este interesse e admiração depois das leis raciais hitlerianas de 1935
terem negado aos judeus os seus direitos cívicos, sociais e de propriedade,
anulado a sua cidadania e proibido o seu casamento com arianos.
Quando entrei para a escola, em 1938, o nome de Lindbergh provocava
em nossa casa o mesmo tipo de indignação que as radiodifusões dominicais
do padre Coughlin, o sacerdote da área de Detroit que editava um
semanário de direita chamado Social Justice e cuja virulência anti-semita
despertava as paixões de um públibro de 1938 – o ano mais negro e funesto
para os judeus da Europa em dezoito séculos – que os nazis instigaram, em
toda a Alemanha, o pior pogrom da história moderna, a Kristallnacht:
sinagogas incendiadas, residências e estabelecimentos de judeus destruídos
e, durante uma noite pressagiadora do monstruoso futuro, milhares de
judeus levados à força das suas casas e transportados para campos de
concentração. Quando foi sugerido a Lindbergh que, como reacção a
tamanha e inaudita selvajaria, devia considerar a ideia de devolver a cruz de
ouro ornamentada com quatro suásticas que lhe fora conferida, em nome do
Führer, pelo marechal-do-ar Göring, ele recusou, alegando que devolver
publicamente a Medalha de Serviço da Águia Alemã constituiria um
«insulto desnecessário» ao comando nazi.
Lindbergh foi o primeiro americano famoso vivo que aprendi a odiar –
assim como o presidente Roosevelt foi o primeiro americano vivo que me
ensinaram a amar –, e por isso a sua nomeação pelos Republicanos para se
candidatar contra Roosevelt, em 1940, ameaçou, como nada antes
ameaçara, aquele enorme capital de segurança pessoal que eu considerara
garantido na minha qualidade de filho americano de pais americanos e
aluno de uma escola de uma cidade americana numa América em paz com o
mundo.
A única ameaça comparável surgira uns treze meses antes quando, em
virtude de vendas consistentemente altas durante a pior parte da Depressão,
na sua qualidade de agente da sucursal em Newark da Metropolitan Life,
fora oferecida ao meu pai uma promoção para subdirector da sucursal da
companhia a cerca de dez quilómetros a oeste da nossa casa, em Union,
uma cidade que se distinguia apenas, que eu soubesse, pelo facto de possuir
um cinema drive-in onde passavam filmes mesmo quando chovia, e para
onde a companhia esperava que o meu pai e a sua família fossem viver, se
ele aceitasse o lugar. Como subdirector, o meu pai poderia ganhar em breve
setenta e cinco dólares por semana e, em anos futuros, chegar mesmo aos
cem dólares semanais, uma fortuna, em 1939, para pessoas com as nossas
expectativas. E como havia casas monofamiliares à venda em Union uns
milhares de dólares mais baratas, devido à Depressão, ele poderia
concretizar uma ambição que tinha acalentado enquanto crescera, pobre,
num andar alugado em Newark: tornar-se um americano dono da sua casa.
«O orgulho da propriedade» era uma frase favorita do meu pai, uma frase
que incorporava uma ideia tão real como o pão para um homem com os
seus antecedentes, uma ideia que não tinha nada que ver com competição
social ou consumismo evidente, mas sim com a sua condição de resoluto
chefe de família.
O único inconveniente residia no facto de que, em virtude de Union,
como Hillside, ser uma cidade de classe trabalhadora gentia, o meu pai seria
muito provavelmente o único judeu num escritório onde trabalhavam umas
trinta e cindo pessoas, a minha mãe a única mulher judia da nossa rua, e
Sandy e eu os únicos miúdos judeus da nossa escola.
No sábado seguinte a ter sido oferecida a promoção ao meu pai – uma
promoção que, acima de tudo, satisfaria o forte desejo de uma pequena
margem de segurança financeira próprio de uma família atingida pela
Depressão – partimos os quatro, depois do almoço, para uma vista de olhos
a Union. Mas uma vez lá e a subir e a descer as ruas residenciais, a espreitar
para as casas de dois pisos – não totalmente idênticas, mas mesmo assim
cada uma com um alpendre da frente com guarda-vento, um relvado
aparado, alguns arbustos e um caminho de cascalho de acesso a uma
garagem para um carro, casas muito modestas, sem dúvida, mas apesar de
tudo mais espaçosas do que o nosso andar de dois quartos, e muito
parecidas com as casinhas brancas que vemos nos filmes acerca da América
profunda de pequenas cidades –, uma vez lá, toda a nossa inocente euforia
com a ascensão da família à classe de possuidora de casa própria foi
suplantada, aliás previsivelmente, pela nossa inquietação com o alcance da
caridade cristã. A minha em geral tão enérgica mãe respondeu à pergunta do
meu pai, «Que te parece, Bess?», com um entusiasmo que até uma criança
compreendia ser fingido. E eu, apesar de muito novo, deduzi sem
dificuldade porquê: porque ela estava a pensar: «A nossa será a casa “onde
moram os judeus”. Será outra vez Elizabeth.»
Elizabeth, em New Jersey, quando a minha mãe lá foi criada num andar
por cima da mercearia do seu pai, era um porto industrial com um quarto do
tamanho de Newark, dominado pela classe operária irlandesa e pelos seus
políticos e pela vida paroquial estreitamente coesa que girava à volta das
muitas igrejas da cidade, e embora eu nunca a tivesse ouvido queixar-se de
ter sido intencionalmente maltratada em Elizabeth, quando era rapariga, foi
só quando casou e se mudou para o novo bairro judeu de Newark que
encontrou a confiança que a levou a tornar-se primeiro uma «mãe de escola
primária» da Associação de Pais e Professores, depois uma vice-presidente
da APP encarregada de organizar um Clube de Mães de Infantário e, por
fim, a presidente da APP que, depois de assistir em Trenton a uma
conferência sobre a paralisia infantil, propôs um baile anual de March of
Dimes2 em 30 de Janeiro – o aniversário do presidente Roosevelt –, que foi
aceite pela maioria das escolas de Newark. Na Primavera de 1939 estava no
seu segundo ano de dirigente bem-sucedida com ideias progressistas –
apoiando já uma jovem professora de Estudos Sociais empenhada em levar
a «educação visual» às salas de aula da Chancellor –, e agora não podia
deixar de imaginar-se a ser privada de tudo quanto conseguira ao tornar-se
esposa e mãe em Summit Avenue. Se tivéssemos a sorte de comprar e de
nos mudarmos para uma casa em qualquer das ruas de Union que
estávamos a ver no seu melhor aspecto primaveril, não só a sua condição
regressaria ao que fora quando crescia como filha de um merceeiro judeu
imigrante na católica-irlandesa Elizabeth, como também, e pior ainda do
que isso, Sandy e eu seríamos obrigados a reviver a sua própria juventude
circunscrita como vizinha estranha.
Apesar do estado de espírito da minha mãe, o meu pai fez tudo quanto
pôde para manter a nossa boa-disposição, observando como tudo parecia
limpo e bem tratado, lembrando a Sandy e a mim que, se morássemos numa
daquelas casas, nós dois deixaríamos de ter de partilhar um pequeno quarto
e apenas um armário e explicando os benefícios decorrentes de pagar uma
hipoteca em vez de uma renda, uma lição de economia elementar que
terminou abruptamente quando ele precisou de parar o carro numa luz
vermelha ao lado de uma esplanada, que dominava uma esquina do
cruzamento. Havia mesas de piquenique verdes no exterior, à sombra de
árvores cheias de folhagem, e, naquela soalheira tarde de fim-de-semana,
criados de casacos brancos agaloados andavam rapidamente de um lado
para o outro, equilibrando bandejas carregadas de garrafas, jarros e pratos, e
homens de todas as idades, sentados às mesas, fumavam cigarros,
cachimbos e charutos e bebiam sequiosamente por copos altos e canecas de
barro. E também havia música: um homem baixo e robusto, de calças
curtas, meias altas e chapéu ornamentado com uma pena comprida, tocava
acordeão.
– Filhos da mãe! – exclamou o meu pai. – Malditos fascistas! – Depois a
luz mudou e seguimos em silêncio, a fim de vermos o edifício do escritório
onde ele estava prestes a ter a sua oportunidade de ganhar mais de
cinquenta dólares por semana.
Foi o meu irmão quem, quando nessa noite nos deitámos, explicou por
que motivo o meu pai se tinha descontrolado e praguejado alto na presença
dos filhos: o acolhedor espaço de divertimento ao ar livre, ali mesmo no
meio da cidade, chamava-se um jardim da cerveja, e o jardim da cerveja
tinha alguma coisa que ver com a Bund germano-americana, a Bund
germano-americana tinha alguma coisa que ver com Hitler, e Hitler, como
não era preciso que me dissessem, tinha tudo que ver com a perseguição aos
judeus.
O tóxico do anti-semitismo. Foi isso que imaginei ao vê-los todos a beber
tão alegremente no seu jardim da cerveja, naquele dia – como todos os
nazis em todo o lado, emborcando caneca atrás de caneca de anti-
semitismo, como se absorvessem a panaceia universal.
O meu pai teve de faltar uma manhã ao trabalho, a fim de ir à sede em
Nova Iorque – ao edifício alto cuja torre mais elevada era coroada pelo farol
da sua empresa, orgulhosamente designado como «A Luz Que Nunca
Falha» – e informar o superintendente das agências de que não podia aceitar
a promoção por que tanto ansiara.
– A culpa é minha – disse a minha mãe, assim que ele começou a contar,
enquanto jantávamos, o que se passara no décimo oitavo andar de Madison
Street, 1.
– A culpa não é de ninguém. Eu expliquei, antes de sair, o que lhe ia
dizer, fui lá e disse-lho, e pronto. Não nos vamos mudar para Union,
rapazes. Vamos ficar aqui.
– E ele, o que fez? – perguntou a minha mãe.
– Ouviu-me até ao fim.
– E depois? – insistiu ela.
– Levantou-se e apertou-me a mão.
– Não disse nada?
– Disse «Felicidades, Roth».
– Ficou zangado contigo.
– Hatcher é um cavalheiro da velha escola. Um gói alto, com um metro e
oitenta. Parece um astro de cinema. Sessenta anos e ali para as curvas. As
pessoas assim são as que dirigem, Bess... não perdem o seu tempo a zangar-
se com alguém como eu.
– Então e agora? – perguntou a minha mãe, de uma forma que dava a
entender que, fosse o que fosse que acontecesse em consequência do
encontro do meu pai com Hatcher, não seria bom e podia ser mau.
E eu pensei que compreendia porquê. Esforça-te e conseguirás: eis o
axioma que os meus pais nos tinham incutido. À mesa do jantar, o meu pai
repetia constantemente aos seus jovens filhos: «Se alguém perguntar: «És
capaz de fazer este trabalho? Consegues dar conta dele?», respondam
sempre: «Com certeza.» Quando eles descobrirem que não sabem, já vocês
terão aprendido e o emprego será vosso. E, quem sabe, pode muito bem
tratar-se da oportunidade de uma vida inteira.» No entanto, ele não fizera
nada parecido com isso em Nova Iorque.
– Que disse o Chefe? – perguntou-lhe ela. O Chefe era como nós quatro
nos referíamos ao gerente do escritório do meu pai em Newark, Sam
Peterfreund. Naquele tempo de quotas não divulgadas para manter as
admissões de judeus a um nível mínimo nas faculdades e escolas
profissionais e de discriminação incontestável que negava aos judeus
promoções significativas nas grandes empresas, e de restrições rígidas ao
ingresso de judeus em milhares de organizações sociais e instituições
cívicas, Peterfreund foi um dos primeiros do pequeno punhado de judeus
que alguma vez alcançou um cargo administrativo na Metropolitan Life. –
Foi ele que te indicou para a transferência – disse a minha mãe. – Como se
sentiu ele?
– Sabes o que ele me disse quando voltei? Sabes o que me disse a
respeito do escritório em Union? Que está cheio de bêbados. É famoso
pelos bêbados. Não quis influenciar antecipadamente a minha decisão. Não
queria atravessar-se no meu caminho, se fosse isso que eu desejava. Famoso
por ter agentes que trabalham duas horas de manhã e passam o resto do
tempo em tabernas ou coisas piores. E esperava-se que eu fosse para lá, eu
o novo judeu, o novo grande chefe onzenário para quem todos os góis estão
mortos por trabalhar, esperava-se que eu fosse para lá e os apanhasse do
chão da taberna. Esperava-se que eu fosse para lá e lhes recordasse os seus
deveres para com as suas mulheres e os seus filhos. Oh, como eles me
teriam adorado, rapazes, por lhes fazer esse favor! Podem imaginar o que
me chamariam por trás das costas. Não, eu estou melhor onde estou.
Estamos todos melhor aqui.
– Mas a empresa pode despedir-te por teres recusado?
– Querida, eu fiz o que fiz. E ponto final.
Mas a minha mãe não acreditava no que ele lhe tinha contado que o
Chefe dissera; estava convencida de que estava a inventar o que o Chefe
tinha dito, para ela parar de se censurar por ter recusado mudar os seus
filhos para uma cidade de gentios que era um paraíso para a Bund germano-
americana e por, ao fazê-lo, o ter privado da oportunidade da sua vida.
Os Lindbergh regressaram em Abril de 1939 para reatar a sua vida na
América. Só passados meses, em Setembro, depois de já ter anexado a
Áustria e invadido a Checoslováquia, Hitler invadiu e conquistou a Polónia,
e a França e a Grã-Bretanha ripostaram, declarando guerra à Alemanha.
Entretanto, Lindbergh tinha sido passado ao activo como coronel no Army
Air Corps e começou a viajar pelo país em nome do Governo dos EUA,
exercendo a sua influência em prol do desenvolvimento da aviação
americana e da expansão e modernização do ramo da aeronáutica das forças
armadas. Quando Hitler ocupou, aceleradamente, a Dinamarca, a Noruega,
a Holanda e a Bélgica, e praticamente derrotou a França, e a segunda
grande guerra europeia do século já estava em curso, o coronel do Air
Corps tornou-se no ídolo dos isolacionistas – e no inimigo de FDR – ao
acrescentar à sua missão o objectivo de impedir que a América fosse
arrastada para a guerra ou, de algum modo, ajudasse os Britânicos ou os
Franceses. Já havia forte animosidade entre ele e Roosevelt, mas agora que
Lindbergh declarava abertamente, em grandes comícios públicos, na rádio e
em revistas populares, que o Presidente estava a enganar o país com
promessas de paz ao mesmo tempo que, secretamente, conspirava e
planeava para que entrássemos na luta armada, alguns membros do Partido
Republicano começaram a falar de Lindbergh como o homem possuidor da
magia adequada para derrotar «o amigo da guerra da Casa Branca» e
impedi-lo de cumprir um terceiro mandato.
Quanto mais o presidente Roosevelt pressionava o Congresso para
revogar o embargo das armas e abrandar as restrições a respeito da
neutralidade do país, a fim de evitar que os Ingleses fossem derrotados,
mais decidido Lindbergh se tornava, até que, finalmente, fez o famoso
discurso radiofónico, perante um salão cheio de apoiantes entusiasmados,
em Des Moines, no qual nomeou entre os «mais vigorosos e eficazes
empenhados em empurrar os Estados Unidos para um envolvimento na
guerra» um grupo que representava menos de 3 por cento da população e a
que se referiu alternadamente como «o povo judeu» e a «raça judia».
«Ninguém com honestidade e visão», disse Lindbergh, «pode hoje, aqui,
olhar para a sua política pró-guerra sem ver os perigos que tal política
implica para nós e para eles.» E depois acrescentou, com notável
sinceridade:

Alguns judeus perspicazes compreendem isso e opõem-se à


intervenção. Mas a maioria ainda não compreende... Não podemos
censurá-los por zelarem por aquilo que acreditam serem os seus próprios
interesses, mas nós também temos de zelar pelos nossos. Não podemos
permitir que paixões e preconceitos naturais de outras pessoas conduzam
o nosso país à destruição.
No dia seguinte, as mesmas acusações que tinham arrancado estrondosos
aplausos ao público de Lindbergh em Iowa foram vigorosamente
denunciadas por jornalistas liberais, pelo secretário de imprensa de
Roosevelt, por agências e organizações judaicas e até, no interior do Partido
Republicano, por Dewey, o governador de Nova Iorque, e por Wendell
Willkie, o advogado bolsista de Wall Street, ambos potenciais candidatos
presidenciais. As críticas de membros do gabinete democrático, como o
secretário do Interior, Harold Ickes, foram de tal modo fortes que Lindbergh
preferiu demitir-se do seu posto de coronel do Exército na reserva a servir
sob as ordens de FDR como seu comandante-chefe. Mas o America First
Committee3, a organização de base mais ampla que comandava a batalha
contra a intervenção, continuou a apoiá-lo, e ele continuou a ser o prosélito
mais popular da sua tese pela neutralidade. Para muitos adeptos do America
First não havia qualquer contestação (mesmo tratando-se de factos) da
afirmação de Lindbergh de que «o maior perigo [dos judeus] para este país
reside na sua vasta posse e influência de e sobre o nosso cinema, a nossa
imprensa, a nossa rádio e o nosso Governo». Quando Lindbergh escrevia
orgulhosamente a respeito da «nossa herança de sangue europeu», quando
advertia contra a «diluição por raças estrangeiras» e «a infiltração de sangue
inferior» (frases que aparecem, todas elas, em registos no seu diário desses
anos), estava a mencionar convicções pessoais partilhadas por uma parte
considerável das bases do America First, assim como por um eleitorado
fanático ainda mais extenso do que aquilo que um judeu – como o meu pai,
com a sua intensa aversão pelo anti-semitismo, ou como a minha mãe, com
a sua arraigada desconfiança dos cristãos –, jamais poderiam imaginar que
estivesse a alastrar vigorosamente por toda a América.
A Convenção Republicana de 1940. O meu irmão e eu fomo-nos deitar
naquela noite – quinta-feira, 27 de Junho –, enquanto o rádio estava ligado
na sala e o nosso pai, a nossa mãe e o nosso primo mais velho, Alvin,
ouviam, juntos, a cobertura radiofónica do que se passava em Filadélfia.
Após seis votações, os Republicanos ainda não tinham escolhido um
candidato. O nome de Lindbergh não fora pronunciado por um único
delegado, e em virtude de uma reunião de engenharia numa fábrica do
Midwest onde tinha estado a dar o seu parecer sobre a concepção de um
novo avião de caça, ele não se encontrava presente nem era esperado.
Quando Sandy e eu nos deitámos, a convenção continuava dividida entre
Dewey, Wilkie e dois poderosos senadores republicanos, Vandenberg, do
Michigan, e Taft, do Ohio, e nada indicava que um acordo de bastidores
estivesse para ser negociado em breve por figurões importantes do partido
como o ex-presidente Hoover, que tinha sido desalojado pela esmagadora
vitória de FDR em 1932, ou pelo governador Alf Landon, que FDR
derrotara ainda mais humilhantemente quatro anos depois, na maior derrota
eleitoral da história.
Visto ser a primeira noite sufocante do Verão, as janelas estavam abertas
em todas as divisões e Sandy e eu não podíamos deixar de continuar a
ouvir, da cama, as notícias transmitidas pelo nosso rádio, na sala, pelo do
andar de baixo e – em virtude de uma travessa com largura suficiente,
apenas, para a passagem de um carro separar uma casa da seguinte – pelos
rádios dos nossos vizinhos de ambos os lados e do outro lado da rua. Como
isto se passava muito antes de os aparelhos de ar condicionado instalados
nas janelas levarem a melhor sobre os ruídos das noites tropicais de um
bairro, a transmissão radiofónica abrangia o quarteirão da Keer à
Chancellor – um quarteirão onde não morava um único republicano em
qualquer das trinta e tal casas de dois andares e águas-furtadas ou dos
pequenos novos prédios de apartamentos da esquina da Chancellor Avenue.
Em ruas como a nossa, os judeus votavam no Partido Democrático
enquanto FDR encabeçasse a lista de candidatos.
Mas nós éramos miúdos e adormecemos, apesar do barulho, e
provavelmente só teríamos acordado de manhã se Lindbergh – com os
Republicanos empatados na vigésima votação – não tivesse aparecido
imprevistamente na sala da convenção às 3,18h da manhã. O magro, alto e
belo herói, um homem ágil e de porte atlético que ainda não completara
quarenta anos, chegou com o seu fato de aviador, depois de ter aterrado, no
seu próprio avião, no aeroporto de Filadélfia poucos minutos antes, e, ao
verem-no, os esmorecidos participantes da convenção levantaram-se, num
ímpeto de entusiasmo redentor, e gritaram «Lindy! Lindy! Lindy!» durante
trinta gloriosos minutos, sem serem interrompidos pela presidência. Por trás
da bem-sucedida representação deste espontâneo drama pseudo-religioso
encontravam-se as maquinações do senador Gerald P. Nye, de North
Dakota, um isolacionista da ala direita, que apresentou sem demora a
nomeação de Charles A. Lindbergh, de Little Falls, Minnesota, após o que
dois dos membros mais reaccionários do Congresso – o senador McCarran,
de Nevada, e o congressista Mundt, South Dakota – apoiaram a nomeação,
e às quatro horas da manhã, em ponto, de sexta-feira, 28 de Junho, o Partido
Republicano escolheu por aclamação, como seu candidato, o racista que
utilizara a rádio para denunciar os judeus, a um público nacional, como
«outros povos» que usavam a sua enorme «influência... para conduzir o
nosso país à destruição», em vez de nos reconhecer, com verdade, como
uma pequena minoria de cidadãos imensamente ultrapassada em número
pelos seus compatriotas cristãos, de modo geral impedida, por preconceito
religioso, de aceder ao poder público e, com certeza, não menos leal aos
princípios da democracia americana do que um admirador de Adolf Hitler.

«Não!», foi a palavra que nos acordou. Um «Não!» gritado em voz forte
por um homem e saído de cada casa do quarteirão. Não pode ser. Não. Não
para presidente dos Estados Unidos.
Numa questão de segundos, o meu irmão e eu estávamos de novo a ouvir
a rádio com o resto da família, e ninguém se deu ao trabalho de nos mandar
voltar para a cama. Apesar do calor, a minha recatada mãe vestira um robe
por cima da leve camisa de dormir – também estivera a dormir e fora
acordada pelo barulho – e agora estava sentada no sofá ao lado do meu pai,
com os dedos a tapar a boca como se tentasse evitar o vómito. Entretanto, o
meu primo Alvin, incapaz de permanecer sentado, tinha começado a andar
de um lado para o outro na sala de cinco metros e meio por três metros e
sessenta, com passadas tão enérgicas que dir-se-ia um vingador revistando a
cidade para liquidar a sua némesis.
Naquela noite, a cólera era a genuína forja rugidora, a fornalha que se
apodera de nós e nos torce como aço. E não amainou – não enquanto
Lindbergh permaneceu silencioso na tribuna de Filadélfia a ouvir-se
novamente ovacionado como o salvador da nação, nem quando proferiu o
discurso aceitando a nomeação pelo seu partido e, com ela, o mandato para
manter a América fora da guerra europeia. Todos nós esperávamos,
aterrorizados, ouvi-lo repetir na convenção o difamatório aviltamento dos
judeus, mas o facto de o não ter feito não influenciou minimamente o
estado de espírito que levou todas, mas absolutamente todas, as famílias do
quarteirão para a rua quase às cinco horas da manhã. Famílias inteiras, que
antes só conhecera completamente vestidas, com as roupas de dia, usavam
pijamas e camisas de noite debaixo dos roupões de banho e andavam por ali
de chinelos, ao alvorecer, como se um tremor de terra as tivesse obrigado a
sair de casa. Mas o que mais impressionava uma criança era a cólera, a
cólera de homens que eu conhecia como kibbitzers4 bem-humorados, ou
calados e atenciosos chefes de família que levavam o dia inteiro a
desentupir canos, ou a reparar caldeiras, ou a vender maçãs a peso e depois,
à noite, passavam uma vista de olhos pelo jornal, ouviam a rádio e
adormeciam na cadeira da sala, pessoas simples que por acaso eram judeus
e vociferavam agora na rua, praguejavam sem quererem saber para nada da
decência, abruptamente devolvidos à luta miserável de que tinham julgado
haver-se libertado e às suas famílias, graças à migração providencial da
geração anterior.
Eu teria imaginado que o facto de Lindbergh não se ter referido aos
judeus no discurso de aceitação da sua nomeação constituía um bom
presságio, um sinal de que fora punido pelo clamor que o levara a renunciar
à sua comissão de serviço no Exército, ou que mudara de opinião depois do
discurso de Des Moines, ou que já se esquecera de nós, ou que, no seu foro
íntimo, sabia muito bem que estávamos irrevogavelmente comprometidos
com a América – que, embora a Irlanda ainda tivesse importância para os
Irlandeses, a Polónia para os Polacos e a Itália para os Italianos, nós não
sentíamos nenhuma fidelidade para com aqueles países do Velho Mundo
onde nunca fôramos bem-vindos e aonde não tínhamos intenção alguma de
jamais regressar. Se eu tivesse podido pensar bem, e tão a fundo, no
significado daquele momento, provavelmente seria isto que pensaria. Mas
os homens que estavam na rua pensavam de modo diferente. O facto de
Lindbergh não ter referido os judeus era, para eles, um estratagema, um
truque e nada mais, o início de uma campanha de hipocrisia,
simultaneamente destinada a calar-nos e a apanhar-nos desprevenidos.
«Hitler na América!», gritavam os vizinhos. «Fascismo na América! Tropas
de choque na América!» Depois de terem passado a noite inteira sem
dormir, não havia nada que os nossos desorientados mais velhos não
pensassem e nada que não dissessem em voz alta, ao alcance dos nossos
ouvidos, antes de começarem a regressar às suas casas (onde todos os
aparelhos de rádio continuavam aos berros), os homens, para fazer a barba,
vestir-se e tomar uma chávena de café antes de irem para o trabalho, e as
mulheres para vestir, alimentar e preparar os filhos para o dia.
Roosevelt fortaleceu o ânimo de toda a gente com a sua vigorosa
resposta, ao saber que o seu adversário ia ser Lindbergh e não um senador
da envergadura de Taft, ou um ex-promotor de justiça tão agressivo como
Dewey, ou um grande advogado de alto gabarito tão afável e bem-parecido
como Wilkie. Consta que, quando o acordaram às quatro horas da manhã
para lhe darem a notícia, terá vaticinado da sua cama na Casa Branca:
«Quando isto acabar, esse jovem estará arrependido não só de se ter metido
na política, mas também de ter aprendido a voar.» E logo a seguir voltou a
mergulhar num sono profundo – ou pelo menos foi essa a história que nos
causou tanto alívio no dia seguinte. Na rua, quando a única coisa em que
alguém conseguia pensar era a ameaça que representava para a nossa
segurança aquela afronta tão transparentemente injusta, as pessoas tinham-
se estranhamente esquecido de FDR e do baluarte que ele era contra a
opressão. A pura surpresa da nomeação de Lindbergh desencadeara um
sentimento atávico de vulnerabilidade, de estarmos indefesos, que tinha
mais que ver com Kishinev e os pogroms de 1903 do que com New Jersey,
trinta e sete anos depois, e, como consequência disso, as pessoas tinham-se
esquecido da nomeação por Roosevelt, para o Supremo Tribunal, de Felix
Frankfurter e da sua escolha de Henry Morgenthau para secretário do
Tesouro, e também do íntimo conselheiro presidencial, o financeiro Bernard
Baruch, e de Mrs. Roosevelt, de Ickes e do vice-presidente Wallace, todos
os três, como o próprio presidente, conhecidos por serem amigos dos
judeus. Havia Roosevelt, havia a Constituição dos Estados Unidos da
América, havia o Bill of Rights e havia os jornais, a imprensa livre da
América. Até o republicano Newark Evening News publicou um editorial
recordando aos leitores o discurso de Des Moines e contestando
abertamente a sensatez da nomeação de Lindbergh, e o PM, o tablóide de
esquerda de Nova Iorque que custava um níquel e que o meu pai começara
a levar para casa depois do trabalho, juntamente com o Newark News – e
cujo lema era: «O PM é contra aqueles que tratam mal outras pessoas» –
desferia o seu ataque contra os Republicanos num extenso editorial e
também em apontamentos noticiosos e colunas virtualmente espalhados por
cada uma das suas trinta e duas páginas, incluindo colunas anti-Lindbergh
da autoria de Tom Merany e Joe Cummiskey na secção de desporto. Na
primeira página, publicava uma grande fotografia da medalha nazi de
Lindbergh e, na Revista Fotográfica Diária, onde afirmava publicar
fotografias que outros jornais suprimiam – fotografias controversas de
quadrilhas de linchamento e presidiários acorrentados, de fura-greves
armados de bastões, de condições inumanas em penitenciárias americanas
–, havia páginas e páginas mostrando o candidato republicano visitando a
Alemanha nazi em 1938, culminando com uma fotografia de página inteira,
mostrando-o com a infame medalha ao pescoço e apertando a mão a
Hermann Göring, o líder nazi, à frente do qual só havia Hitler.
No domingo à noite esperámos, enquanto se sucediam os programas de
entretenimento, que chegasse a vez de Walter Winchell aparecer, às nove
horas. E quando ele apareceu e começou a dizer o que esperáramos que
dissesse, e no mesmo tom insolente que desejávamos que usasse,
irromperam aplausos do outro lado da travessa, como se o famoso jornalista
não estivesse isolado num estúdio de rádio no lado oposto do grande divisor
que era o rio Hudson, mas ali, entre nós e furioso, com o nó da gravata
puxado para baixo, o colarinho desabotoado e o chapéu mole cinzento
empurrado para trás, a desancar verbalmente Lindbergh através de um
microfone posto em cima do oleado da mesa da cozinha do nosso vizinho
do lado.
Era a última noite de Junho de 1940. Depois de um dia de calor,
arrefecera o suficiente para nos sentarmos confortavelmente dentro de casa,
sem transpirar, mas quando Winchell acabou de falar, às nove e um quarto,
os nossos pais resolveram que saíssemos os quatro para juntos
aproveitarmos a bonita noite. A ideia era irmos apenas dar uma pequena
volta e regressarmos – depois do que o meu irmão e eu nos deitaríamos –,
mas era quase meia-noite quando fomos para a cama e, nessa altura, o sono
estava fora de questão para miúdos tão contagiados pela exaltação dos pais.
Como a intrépida belicosidade de Winchell fizera todos os nossos vizinhos
sair também para a rua, o que começara, para nós, como um pequeno e
aprazível passeio nocturno redundou num convívio improvisado para toda a
gente do quarteirão. Os homens arrastaram cadeiras de praia das garagens e
armaram-nas à entrada das travessas, as mulheres trouxeram de casa jarros
de limonada, as crianças mais novas correram desabaladamente de porta em
porta e as mais velhas sentaram-se a rir e a conversar umas com as outras, e
tudo porque fora declarada guerra a Lindbergh pelo judeu mais conhecido
da América a seguir a Albert Einstein.
No fim de contas, tinha sido a coluna da Winchell que introduzira
famosamente os três pontos que separavam – e de algum modo
magicamente autenticavam – cada matéria noticiosa picante, sempre muito
levemente assente na realidade, e fora Winchell quem tivera mais ou menos
a ideia de disparar na cara das crédulas massas bagos de chumbo grosso de
insinuante mexeriquice: destruindo reputações, comprometendo
celebridades, outorgando fama, fazendo e desfazendo carreiras no mundo
do espectáculo. Era a sua coluna, só a sua coluna, que saía simultaneamente
em centenas de jornais de todo o país, assim como o seu quarto de hora das
noites de domingo era o programa noticioso mais popular do país, com o
fogo rápido do discurso de Winchell e o seu cinismo belicoso a emprestar a
cada «furo» o tom sensacionalista de uma revelação. Admiravamo-lo como
um outsider destemido e um insider astuto, amigalhaço de J. Edgar Hoover,
director do FBI, e ao mesmo tempo vizinho do gangster Frank Costello e
confidente do círculo íntimo de Roosevelt e até, por vezes, convidado da
Casa Branca para fazer companhia ao presidente enquanto tomavam uma
bebida – o combatente de rua bem informado e o homem do mundo realista
que os seus inimigos temiam e que estava do nosso lado. Nascido em
Manhattan, Walter Winschel (aliás Weinschel) passara de dançarino de
vaudeville de Nova Iorque para colunista inexperiente da Broadway,
ganhando bom dinheiro ao expressar as paixões dos mais imbecis dos novos
diários iletrados, apesar de, desde o advento de Hitler e muito antes de
qualquer outra pessoa da imprensa ter a previsão ou a fúria necessária para
lhes cair em cima, fascistas e anti-semitas se terem tornado o seu inimigo
principal. Já rotulara de «ratzis» os membros da Bund Germano-Americana
e não dava tréguas ao seu líder, Fritz Kuhn, na rádio e na imprensa escrita,
apodando-o de agente secreto estrangeiro, e agora – depois da piada de
FDR, do editorial do Newark News e da meticulosa denúncia feita pelo PM
– bastou Walter Winchell revelar a «filosofia pró-nazi» de Lindbergh aos
seus trinta milhões de ouvintes da noite de domingo, e classificar a
candidatura presidencial de Lindbergh como a maior ameaça de todos os
tempos à democracia americana, para todas as famílias judias da pequena
Summit Avenue parecerem de novo americanos desfrutando da vitalidade e
da boa-disposição de uma cidadania segura, livre e protegida, em vez de
saírem para a rua com a roupa de dormir como doentes fugidos de um
manicómio.
Todo o bairro conhecia o meu irmão como sendo capaz de desenhar
«tudo» – uma bicicleta, uma árvore, um cão, uma cadeira, um boneco de
desenho animado como Li’lAbner –, embora ultimamente o seu interesse
fossem os rostos verdadeiros. Juntavam-se miúdos à sua volta, a observá-lo,
sempre que, depois da escola, se instalava em qualquer lado com o seu
grande bloco de desenho com lombada em espiral e a sua lapiseira e
começava a esboçar as pessoas que se encontravam perto. Inevitavelmente,
os mirones desatavam a gritar: «Desenha-o, desenha-a, desenha-me», e
Sandy fazia-lhes a vontade, quanto mais não fosse para que parassem de lhe
gritar aos ouvidos. Entretanto, a sua mão não parava de trabalhar, ele olhava
para cima, para baixo, para cima, para baixo... e ali estava Fulano de tal,
vivo, numa folha de papel. Qual é o truque, como é que consegues,
perguntavam-lhe todos, como se desenhar – como se a magia pura –
pudesse ter contribuído de algum modo para o feito. A resposta de Sandy a
toda aquela importunação era um encolher de ombros ou um sorriso: o
truque para fazer aquilo residia no facto de ele ser o rapaz calmo, sério e
simples que era. Chamar a atenção, onde quer que fosse, por fazer os
retratos que lhe pediam, aparentemente não produzia qualquer efeito no
elemento impessoal existente no cerne da sua força, a modéstia inata que
era a sua firmeza e que, mais tarde, ele fintou à sua própria custa.
Em casa já não copiava ilustrações da Collier’s ou fotografias da Look,
mas estudava um manual sobre a imagem. Ganhara o livro num concurso
para estudantes de cartazes do Dia da Árvore, que coincidira com um
programa de plantação de árvores, à escala da cidade, patrocinado pelo
Departamento de Jardins e Património Público. Houvera, até, uma
cerimónia em que ele apertara a mão a um tal Mr. Bannwart,
superintendente do Serviço de Árvores de Sombra. O desenho do cartaz
vencedor, feito por Sandy, baseava-se num selo vermelho de dois cêntimos
da minha colecção, comemorativo do sexto aniversário do Dia da Árvore.
Eu achava o selo particularmente bonito, porque, visível entre as suas duas
estreitas margens verticais brancas, havia uma árvore esguia, cujos ramos
arqueavam no cimo e, juntando-se, formavam um caramanchão – e até o
selo se tornar meu e poder examinar à lupa as suas características
específicas, o significado de «caramanchão» fora absorvido pelo nome
familiar do feriado5. (A pequena lupa – juntamente com um álbum para dois
mil e quinhentos selos, uma pinça para selos, um medidor de perfurações,
cantos gomados para enquadrar selos e um prato de borracha preto chamado
detector de marcas de água – tinha sido uma prenda dos meus pais no meu
sétimo aniversário. Por mais dez cêntimos tinham-me comprado também
um livrinho de noventa e tal páginas chamado The Stamp Collector’s
Handbook, onde, sob a epígrafe «Como Iniciar uma Colecção de Selos», li,
fascinado, esta frase: «Em arquivos comerciais ou correio particular antigos
encontram-se com frequência selos de edições que deixaram de ser emitidas
e possuem grande valor; por isso, se têm amigos que vivem em casas
antigas e guardaram material desse tipo nos sótãos, tentem obter os seus
antigos sobrescritos ou papéis de embrulho estampilhados.» Nós não
tínhamos sótão, nenhum dos nossos amigos que moravam em andares e
apartamentos tinha sótão, mas houvera sótãos logo abaixo dos telhados das
casas monofamiliares de Union – do meu lugar no banco de trás do carro
vira pequenas janelas de mansarda em cada extremidade de cada uma das
casas, enquanto percorríamos a cidade naquele terrível sábado do ano
anterior, e por isso, quando chegámos a casa à tarde, não consegui pensar
noutra coisa senão nos velhos sobrescritos estampilhados e nos selos
gravados nas cintas dos jornais comprados por assinatura escondidos
naqueles sótãos, e no facto de, agora, não ter hipótese alguma de os «obter»
em virtude de ser judeu).
A atracção do selo comemorativo do Dia da Árvore era muito realçada
por representar uma actividade humana em vez do retrato de uma pessoa
famosa ou da imagem de um lugar importante – e, para mais, uma
actividade desempenhada por crianças: no centro do selo, um rapaz e uma
rapariga aparentando dez ou onze anos plantam uma árvore jovem, com o
rapaz a abrir uma cova com uma pá, enquanto a rapariga, amparando o
tronco da árvore com uma das mãos, a mantém firmemente no seu lugar por
cima da cova. No seu cartaz, Sandy reposicionou o rapaz e a rapariga,
colocando-os em lados opostos da árvore, e o rapaz é representado como
destro, em vez de esquerdino, veste calças compridas em lugar de calções e
tem um pé apoiado na lâmina da pá, para a enterrar no solo. Também há
uma terceira criança no cartaz de Sandy, um rapazinho mais ou menos da
mesma idade, que é quem usa agora os calções. Está parado atrás e um
pouco para o lado da pequena árvore, e segura, pronto a usá-lo, um regador
– como eu segurei quando posei para Sandy com os meus melhores calções
de ir para a escola e meias pelo joelho. Acrescentar esta terceira criança foi
ideia da minha mãe, para ajudar a distinguir a ilustração de Sandy da do
selo do Dia da Árvore – e protegê-lo da acusação de «copiar» –, mas
também para dar ao cartaz um conteúdo social que implicava um tema de
modo algum habitual em 1940, tanto no desenho dos cartazes como em
qualquer outra coisa, e que por razões de «gosto» poderia até ter-se
revelado inaceitável para os juízes.
A terceira criança que participava na plantação da árvore era um negro, e
o que encorajou a minha mãe a sugerir a sua inclusão – além do desejo de
instilar nos seus filhos a virtude cívica da tolerância – foi um outro selo
meu, um selo novinho de dez cêntimos da edição da «série dos
educadores», cinco selos que eu comprara nos Correios por um total de
vinte e cinco cêntimos e pagara em prestações ao longo do mês de Março
com a minha semanada de um níquel. Por cima do retrato central, cada selo
tinha a imagem de uma lâmpada que os Correios dos EUA identificavam
como a «Lâmpada da Sabedoria», mas que para mim representava a
lâmpada de Aladino, por causa do rapaz das Arabian Nights com a lâmpada
mágica e o anel e os dois génios que lhe davam aquilo que ele pedisse. O
que eu teria pedido a um génio seria o mais cobiçado de todos os selos
americanos: primeiro, o célebre selo de correio aéreo de vinte e quatro
cêntimos, de 1918, que diziam valer três mil e quatrocentos dólares, no qual
o aeroplano representado no centro, o Flying Jenny militar, está invertido, e
depois desse os três famosos selos da edição da Exposição Pan-Americana
de 1901, que também tinham sido erradamente impressos com a parte
central invertida e valiam mais de mil dólares cada.
No selo verde de um cêntimo da série dos educadores, logo acima da
imagem da Lâmpada da Sabedoria, estava Horace Mann; no selo vermelho
de dois cêntimos, Mark Hopkins; no selo carmesim de três cêntimos,
Charles W. Eliot; no selo azul de quatro cêntimos, Frances E. Willard, e no
selo castanho de dez cêntimos Booker T. Washington, o primeiro negro a
aparecer num selo americano. Lembro-me de, depois de colocar o selo de
Booker T. Washington no meu álbum e de mostrar à minha mãe que ele
completava a série de cinco, lhe ter perguntado: «Acha que haverá alguma
vez um judeu num selo?» E ela respondeu: «Provavelmente... um dia, sim.
Pelo menos assim o espero.» Na realidade, teriam de passar mais vinte e
seis anos e foi preciso Einstein para isso acontecer.
Sandy guardava a sua semanada de vinte e cinco cêntimos – e os trocos
que ia ganhando a limpar neve com uma pá, a recolher folhas mortas com o
ancinho e a lavar o carro da família – até juntar o suficiente para ir de
bicicleta à papelaria da Clinton Avenue, que vendia material de desenho, e,
ao longo de meses, comprar um lápis de carvão, depois folhas de lixa para
afiar o lápis, depois papel de carvão e depois a pequena engenhoca tubular
por onde soprava para aplicar o fixador fino que impedia o carvão de se
esborratar. Tinha clipes enormes, uma prancha de masonite, lápis
Ticonderoga amarelos, borrachas, cadernos de esboços e papel de desenho,
material que guardava numa caixa de cartão no fundo do roupeiro do nosso
quarto e em que a minha mãe, quando fazia limpezas, não estava autorizada
a mexer. A sua determinada meticulosidade (herdada da nossa mãe) e a sua
espantosa perseverança (herdada do nosso pai) só aumentavam a minha
admiração por um irmão mais velho que toda a gente afirmava estar
destinado para grandes coisas, enquanto a maioria dos rapazes da sua idade
não parecia sequer destinada a comer a uma mesa com outro ser humano.
Eu era então o menino bom, obediente tanto em casa como na escola – a
obstinação, em grande medida inerte, e a agressividade, regulada para
explodir mais tarde; ainda era demasiado jovem para conhecer o potencial
de um fúria própria –, e não havia nada nem ninguém com quem fosse
menos intransigente do que com ele.
No dia em que fizera doze anos, Sandy tinha recebido um grande porta-
fólio preto, espalmado, feito de cartão duro que se dobrava ao longo de um
vinco e se fechava, na parte de cima, por meio de duas fitas que ele atava
num laço, para prender as folhas. O porta-fólio media cerca de sessenta por
quarenta e cinco centímetros, demasiado grande, portanto, para caber nas
gavetas da cómoda do nosso quarto ou ser posto, verticalmente, encostado à
parede do atravancado armário que ele e eu partilhávamos. Foi-lhe
permitido arrumá-lo – juntamente com os seus blocos de esboços – deitado
debaixo da sua cama, e guardava nele os desenhos que considerava
melhores, a começar pela sua obra-prima de composição datada de 1936, o
retrato ambicioso da nossa mãe a apontar para cima, para o Spirit of St.
Louis rumando a Paris. Sandy tinha vários retratos grandes do heróico
aviador, tanto a lápis como a carvão, guardados no porta-fólio. Faziam parte
de uma série de americanos proeminentes que andava a reunir e que se
concentrava principalmente nas eminências vivas mais reverenciadas pelos
nossos pais, como o presidente e Mrs. Roosevelt, o mayor de Nova Iorque,
Fiorello La Guardia, o presidente do sindicato United Miners Workers, John
L. Lewis, e a romancista Pearl Buck, que ganhara o Prémio Nobel em 1938
e cujo retrato ele copiara da sobrecapa de um dos seus best sellers. Diversos
desenhos do porta--fólio eram de membros da família e, destes, quase
metade da única sobrevivente dos nossos avós, a nossa avó paterna, que,
nos domingos em que o meu tio Monty a levava de visita a nossa casa,
servia, às vezes, de modelo a Sandy. Sob a influência da palavra
«venerável», ele desenhava cada ruga que descobria no rosto dela e cada nó
deformado dos seus dedos artríticos, enquanto – com a mesma submissão
com que toda a sua vida esfregara soalhos, de joelhos, e cozinhara para uma
família de nove pessoas num fogareiro a carvão – a pequenina e vigorosa
avó se sentava na cozinha e «posava».
Estávamos os dois sozinhos em casa, poucos dias depois da declaração
radiofónica de Winchell, quando Sandy tirou o porta--fólio de baixo da sua
cama e o levou para a sala de jantar. Abriu-o em cima da mesa (reservada
para receber o Chefe e festejar datas familiares especiais) e,
cuidadosamente, levantou os retratos de Lindbergh do papel de decalque
que protegia cada desenho e alinhou-os em cima da mesa. No primeiro,
Lindbergh usava o seu capacete de cabedal de aviador, com as correias
soltas penduradas sobre as orelhas; no segundo, o capacete estava
parcialmente oculto atrás dos grandes e pesados óculos de voo empurrados
para a testa, e no terceiro estava em cabelo, sem nada que o distinguisse
como aviador a não ser o olhar firme posto no horizonte distante. Aferir o
valor deste homem, pelo modo como Sandy o retratara, não era difícil. Um
herói viril. Um aventureiro corajoso. Uma pessoa natural com uma força
gigantesca e uma rectidão combinadas com uma convincente suavidade.
Tudo menos um vilão assustador ou uma ameaça para a Humanidade.
– Ele vai ser presidente – disse-me Sandy. – O Alvin diz que Lindbergh
vai ganhar.
Confundiu-me e assustou-me tanto, que fiz de conta que ele estava a
brincar e ri-me.
– O Alvin vai para o Canadá e alistar-se no Exército canadiano –
continuou Sandy. – Vai combater pelos Ingleses contra Hitler.
– Mas ninguém pode vencer Roosevelt – afirmei.
– Lindbergh vai vencê-lo. A América vai ser fascista.
Depois ficámos ali juntos, sob o fascínio intimidador dos três retratos.
Nunca o facto de ter sete anos me parecera uma deficiência tão grave.
– Não contes a ninguém que tenho estes retratos – disse Sandy. – Mas a
mãe e o pai já os viram. Viram-nos todos. Toda a gente viu.
– Eu disse-lhes que os rasguei.
Não havia ninguém mais verdadeiro do que o meu irmão. Ele não era
calado por ser dissimulado e falso, mas sim porque nunca se dava ao
trabalho de se comportar mal e por isso não tinha nada a esconder. Mas
agora algo exterior transformara o significado daqueles desenhos, tornando-
os naquilo que não eram, e por isso ele disse aos nossos pais que os tinha
destruído, transformando-se a si mesmo naquilo que não era.
– Mas supõe que eles os encontram – lembrei.
– Como é que os encontrarão?
– Não sei.
– Muito bem, não sabes. Limita-te a manter essa matraquinha fechada, e
ninguém descobrirá nada.
Fiz o que ele disse por muitas razões, sendo uma delas o facto de o
terceiro selo de correio dos EUA mais antigo que possuía – e que não seria
capaz de descolar e deitar fora – ser um exemplar de correio aéreo de dez
cêntimos editado em 1927 para comemorar o voo transatlântico de
Lindbergh. Era um selo azul, cerca de duas vezes mais comprido do que
alto, cujo desenho central, uma imagem do Spirit of St. Louis a voar para
leste sobre o oceano, proporcionara a Sandy o modelo para o avião do
desenho comemorativo que criara. Adjacente à margem branca do lado
esquerdo do selo está a linha costeira da América do Norte, com as palavras
«New York» projectando-se para o Atlântico, e adjacente à margem da
direita a linha costeira da Irlanda, da Grã-Bretanha e da França, com a
palavra «Paris» no fim de um arco pontilhado que traça o trajecto do voo
entre as duas cidades. No cimo do selo, imediatamente abaixo das letras
brancas que formam orgulhosamente as palavras UNITED STATES
POSTAGE, lê-se LINDBERGH – AIR MAIL num tipo ligeiramente mais
pequeno, mas sem dúvida suficientemente grande para ser lido por um
miúdo de sete anos com uma visão perfeita. O selo já estava avaliado em
vinte cêntimos no Standard Postage Stamp Catalogue de Scott, e eu
compreendi de imediato que o seu valor só poderia continuar a subir (e tão
rapidamente que em breve se tornaria no meu bem mais valioso) se Alvin
tivesse razão e o pior acontecesse.
No passeio, durante os longos meses de férias, entretínhamo-nos com um
novo jogo chamado «Eu Declaro Guerra», usando uma bola de borracha
barata e um pedaço de giz. Traçávamos com o giz um círculo com cerca de
um metro e meio a um metro e oitenta de diâmetro, dividíamo-lo em tantos
segmentos – tipo fatias de tarte – quantos os jogadores, e escrevíamos a giz,
em cada segmento, o nome de um dos vários países estrangeiros
mencionados nas notícias ao longo do ano. A seguir, cada jogador escolhia
o «seu» país e colocava-se com um pé dentro e outro fora do contorno do
círculo, de modo que, quando chegasse o momento, pudesse fugir
rapidamente. Entretanto, um jogador escolhido levantava a bola bem alto e
anunciava devagar, num ominoso tom cadenciado, «Eu... declaro... guerra...
a...» Seguia-se uma pausa para criar expectativa e, depois, o miúdo que
declarava guerra atirava a bola ao chão ao mesmo tempo que gritava
«Alemanha!», ou «Japão!», ou «Holanda!», ou «Itália!», ou «Bélgica!», ou
«Inglaterra!», ou «China!» – e algumas vezes, até, «América!» –, e todos os
outros desatavam a fugir, excepto aquele contra o qual o ataque de surpresa
fora desencadeado. Cabia-lhe então apanhar a bola no ressalto, o mais
rapidamente possível, e gritar «Alto!» Todos os que estavam agora aliados
contra ele tinham de se imobilizar onde se encontravam e o país agredido
desencadeava o contra-ataque, tentando eliminar um país agressor de cada
vez, atingindo-os sucessivamente com a bola, com toda a força possível, a
começar por aqueles que se encontravam mais perto dele e avançando a sua
posição a cada pancada aniquiladora.
Jogávamos este jogo sem parar. Até chover e os nomes dos países serem
temporariamente apagados, as pessoas tinham de lhes passar por cima ou
desviar-se quando desciam a rua. Naquele tempo, não havia no nosso bairro
quaisquer outros grafitos dignos de nota, apenas estes, os vestígios
hieroglíficos dos nossos simples jogos de rua. Inofensivos, sem dúvida, mas
capazes de endoidecer algumas mães que tinham de nos ouvir horas a fio
através das suas janelas abertas. «Não sabem fazer outra coisa qualquer,
rapazes? Não podem entreter-se com outro jogo?» Mas nós não podíamos –
declarar guerra era, também, tudo em que pensávamos.
Em 18 de Julho de 1940, a Convenção Democrática realizada em Chicago
nomeou FDR para um terceiro mandato, por uma maioria esmagadora, logo
no primeiro escrutínio. Ouvimos na rádio o seu discurso de aceitação,
proferido com a inflexão confiante da classe superior que, havia já quase
oito anos, inspirara milhões de famílias comuns como a nossa e lhes
permitira manter a esperança no meio das dificuldades. Havia alguma coisa
no decoro inerente ao seu discurso que, embora estranha, não só acalmava a
nossa ansiedade como também conferia à nossa família um significado
histórico, amalgamando autorizadamente as nossas vidas com a sua, assim
como com as da nação inteira, quando se nos dirigia na nossa sala como
seus «concidadãos». Que os Americanos pudessem escolher Lindbergh –
que os Americanos pudessem escolher alguém – em vez do presidente que
cumprira dois mandatos e cuja voz, só por si, transmitia autoridade sobre o
tumulto dos assuntos humanos... bem, isso era impensável – era-o
sobretudo, e com certeza, para um pequeno americano como eu, que nunca
ouvira uma voz presidencial que não fosse a dele.
Umas seis semanas depois, no sábado antes do Dia do Trabalho6,
Lindbergh surpreendeu o país ao não aparecer na parada do Dia do Trabalho
em Detroit, onde estava previsto que iniciaria a sua campanha com um
cortejo automóvel pelo coração operário da América isolacionista (e bastião
anti-semita do padre Coughlin e de Henry Ford), e, em vez disso, chegar
sem ser anunciado ao aeródromo de Long Island onde iniciara treze anos
antes o seu espectacular voo transatlântico. O Spirit of St. Louis fora
transportado em segredo, coberto com um oleado, e guardado durante a
noite num hangar distante, embora, quando Lindbergh conduziu o
aeroplano para o campo, na manhã seguinte, todos os serviços noticiosos
telegráficos da América e todas as estações de rádio e jornais de Nova
Iorque tivessem um repórter no local para assistir à descolagem, desta vez
para oeste, sobre a América rumo à Califórnia, em lugar de para leste, sobre
do Atlântico, rumo à Europa. É claro que, em 1940, os serviços aéreos
comerciais transcontinentais já transportavam há mais de uma década carga,
passageiros e correio, e faziam-no em grande parte devido ao incentivo da
proeza a solo de Lindbergh e dos seus diligentes esforços como consultor,
com um ordenado de um milhão de dólares por ano, de linhas aéreas recém-
organizadas. Mas, naquele dia, não era o apoiante rico da aviação comercial
que iniciava a sua campanha, nem o Lindbergh que fora condecorado em
Berlim pelos nazis; nem o Lindbergh que, numa transmissão radiofónica a
nível nacional, se excedera nas acusações a judeus influentes de tentarem
empurrar o país para a guerra; nem mesmo o estóico pai do bebé raptado e
assassinado por Bruno Hauptmann em 1932. Era, antes, o desconhecido
piloto de correio aéreo que ousara fazer o que jamais fora feito por algum
aviador antes dele, o adorado «Lone Eagle», juvenil e ainda inocente,
apesar dos anos de fama fenomenal. No feriado de fim-de-semana que
encerrou o Verão de 1940, Lindbergh esteve muito longe de melhorar o
tempo recorde de um voo directo costa a costa que ele próprio estabelecera
uma década atrás com um aparelho mais avançado do que o velho Spirit of
St. Louis. No entanto, quando chegou ao aeroporto de Los Angeles, uma
multidão constituída em grande parte por trabalhadores de aeronáutica –
dezenas de milhares deles, ao serviço dos grandes novos construtores de
Los Angeles e arredores – foi avassalada pelo mesmo enorme entusiasmo
que sempre o acolhia em toda a parte.
Os Democratas classificaram o voo de artifício publicitário encenado pelo
estado-maior de Lindbergh, quando na verdade a decisão de voar para a
Califórnia fora tomada apenas horas antes exclusivamente por Lindbergh, e
não pelos profissionais que o Partido Republicano tinha encarregado de
orientar o político noviço durante a sua primeira campanha política e que,
como toda a gente, esperavam vê-lo aparecer em Detroit.
O seu discurso foi simples e objectivo, pronunciado numa voz aguda,
monótona, com pronúncia do Midwest e, decididamente, não rooseveltiana.
O seu equipamento de voo, constituído por botas altas, calças de montar e
um blusão leve por cima de uma camisa e gravata, era uma réplica daquele
com que atravessara o Atlântico, e ele falou sem tirar o capacete de cabedal
ou os óculos de voo, que tinha empurrado para a testa exactamente como
Sandy os pusera no desenho a carvão escondido debaixo da sua cama.
– A minha intenção ao candidatar-me à presidência – disse à ruidosa
multidão depois de terem parado de gritar o seu nome – é preservar a
democracia americana, impedindo a América de participar noutra guerra
mundial. A vossa escolha é simples: não é entre Charles A. Lindbergh e
Franklin Delano Roosevelt; é entre Lindbergh e a guerra.
E foi só: trinta e duas palavras, se contarmos o A de Augustus.
Após um duche, uma merenda e uma hora de sono no aeroporto de L.A.,
o candidato voltou a entrar no Spirit of St. Louis e voou para São Francisco.
Ao anoitecer estava em Sacramento. E em todos os lugares onde aterrou na
Califórnia, nesse dia, foi como se o país não tivesse sabido do crash da
Bolsa de Valores e das atribulações da Depressão (ou dos triunfos de FDR,
pela mesma ordem de ideias), como se até a guerra que ele estava ali para
nos impedir de travar não tivesse sequer passado pela cabeça de ninguém.
Lindy descia do céu no seu famoso aeroplano, e era outra vez 1927. Era
outra vez Lindy, o Lindy que falava claro, que nunca precisava de parecer
superior, ou de falar como se o fosse, porque era, simplesmente, superior –
o destemido Lindy, ao mesmo tempo juvenil e gravemente amadurecido, o
individualista inflexível, o lendário americano viril que consegue fazer o
impossível contando exclusivamente consigo próprio.
Durante o mês e meio seguinte, continuou a passar um dia inteiro em
cada um dos quarenta e oito estados, até que, em fins de Outubro, fez a
viagem de regresso à pista de Long Island de onde levantara voo no fim de
semana do Dia do Trabalho. Ao longo das horas do dia, saltava de uma
cidade, povoação ou aldeia para a seguinte, aterrava em auto-estradas se
não havia pista de aviação perto, assim como aterrava em, e descolava de,
pastagens quando voava para falar com agricultores e as suas famílias nos
mais remotos condados rurais da América. Os comentários que fazia nos
campos de aviação eram transmitidos por estações de rádio locais e
regionais, e várias vezes por semana, a partir da capital do estado onde se
encontrava a passar a noite, transmitia uma mensagem à nação. Era sempre
sucinta e deste género: Já é tarde de mais para impedir uma guerra na
Europa. Mas ainda não é tarde de mais para impedir a América de participar
nessa guerra. FDR está a enganar a nação. A América será arrastada para a
guerra por um presidente que promete falsamente paz. A escolha é simples.
Votem em Lindbergh ou votem pela guerra.
Quando jovem piloto nos primeiros tempos da novidade da aviação,
Lindbergh, juntamente com um companheiro mais velho e mais experiente,
tinha divertido multidões em todo o Midwest saltando de pára-quedas ou
saindo sem pára-quedas para a asa do avião, e agora os democratas
começaram, sem perder tempo a depreciar a sua campanha nas regiões
rurais, no Spirit of St. Louis, comparando-a com essas acrobacias. Em
conferências de imprensa, Roosevelt já não se dava ao trabalho de
responder com um sarcasmo irónico quando interrogado pelos jornalistas
acerca da campanha heterodoxa de Lindbergh: passava simplesmente a
discutir o medo de Churchill de uma iminente invasão alemã da Grã-
Bretanha, ou a anunciar que iria pedir ao Congresso que financiasse o
primeiro recrutamento americano em tempo de paz, ou a lembrar a Hitler
que os Estados Unidos não tolerariam qualquer interferência na ajuda
transatlântica que os nossos navios mercantes estavam a prestar ao esforço
de guerra britânico. Tornou-se claro desde o início que a campanha do
presidente consistiria em continuar na Casa Branca, onde, em contraste com
aquilo que o secretário Ickes chamava as «palhaçadas de circo» de
Lindbergh, tencionava concentrar-se nas contingências da situação
internacional com toda a autoridade de que dispunha, trabalhando de dia e
de noite se fosse necessário.
Durante a digressão de estado em estado, Lindbergh perdeu-se duas vezes
devido ao mau tempo e, em cada uma delas, decorreram várias horas antes
de o contacto via rádio ser restabelecido e ele poder comunicar ao país que
estava tudo bem. Mas depois, em Outubro, no próprio dia em que os
Americanos ficaram aturdidos ao saber que no último dos destruidores
raides nocturnos a Londres os alemães tinham bombardeado a Catedral de
São Paulo, uma notícia breve, à hora do jantar, informou que o Spirit of St.
Louis fora visto explodir no ar sobre as Alleghenies e despenhar-se, em
chamas, no solo. Desta vez decorreram seis longas horas antes de uma
segunda notícia corrigir a primeira, dizendo que tinham sido problemas com
o motor, e não uma explosão em pleno ar, que haviam obrigado Lindbergh a
fazer uma aterragem de emergência em terreno traiçoeiro nas montanhas do
lado ocidental da Pensilvânia. Antes, porém, de a notícia ter sido corrigida o
nosso telefone tocara incessantemente: amigos e familiares ligavam para
especular, com os nossos pais, acerca do comunicado inicial do flamejante e
provavelmente fatal acidente. Na presença de Sandy e de mim, os meus pais
não disseram nada que denunciasse alívio perante a perspectiva da morte de
Lindbergh, mas também não disseram que desejavam que isso não tivesse
acontecido nem se contaram entre aqueles que se mostraram jubilosos
quando, cerca das onze horas da noite, constou que, longe de se ter
despenhado em chamas, o «Lone Eagle» saíra, ileso, do monomotor intacto
e esperava apenas a chegada de uma peça sobressalente para levantar voo e
reatar a campanha.
Na manhã de Outubro em que Lindbergh aterrou no aeroporto de
Newark, entre as personalidades que esperavam para lhe dar as boas-vindas
a New Jersey encontrava-se o rabi Lionel Bengelsdorf do B’nai Moshe, o
primeiro dos templos conservadores da cidade organizados por judeus
polacos. O B’nai Moshe ficava a poucos quarteirões do coração do velho
gueto miserável dos vendedores ambulantes, que continuava a ser o bairro
mais pobre da cidade, embora tivesse deixado de ser habitado pelos
congregantes do B’nai Moshe e passasse a sê-lo por uma comunidade de
negros empobrecidos, recém-emigrados do Sul. Havia anos que o B’nai
Moshe andava a perder na competição pelos ricos; em 1940 essas famílias
tinham abandonado o conservadorismo e aderido às congregações
reformistas do B’nai Jeshurun e do Oheb Shalom – ambos impressivamente
instalados entre as antigas mansões da High Street – ou aderido a outro
templo conservador há muito firmado, o B’nai Abraham, situado vários
quilómetros a oeste de onde fora inicialmente acolhido, numa ex-igreja
baptista, e ficava agora adjacente às casas dos médicos e advogados judeus
residentes em Clinton Hill. O novo B’nai Abraham era o mais sumptuoso
dos templos da cidade, um edifício circular austeramente concebido no que
se chamava «o estilo grego» e tinha capacidade suficiente para acolher um
milhar de adoradores nos feriados solenes. Joachim Prinz, um imigrante
expulso de Berlim pela Gestapo de Hitler, substituíra um ano antes o
aposentado Julius Silberfeld como rabi do templo e estava já a revelar-se
um homem enérgico e com uma ampla visão social, que oferecia aos seus
prósperos congregantes uma perspectiva da história judaica fortemente
marcada pela sua própria experiência recente no cenário sangrento do crime
nazi.
Os sermões do rabi Bengelsdorf eram radiodifundidos semanalmente pela
estação WNJR para a populaça a que chamava a sua «congregação
radiofónica», e ele era autor de vários livros de poesia inspiradora
rotineiramente oferecidos como presente a rapazes que faziam o bar
mitzvah e a recém-casados. Nascera na Carolina do Sul em 1879, filho de
um imigrante, negociante de tecidos, e sempre que se dirigia ao seu público
judaico, quer do púlpito quer via rádio, o seu cortês sotaque sulista, aliado
às suas cadências grandíloquas – e às cadências do seu próprio nome
polissilábico –, deixava uma impressão de digna profundidade. A respeito,
por exemplo, da sua amizade com o rabi Silberfeld, do B’nai Abraham, e do
rabi Foster, do B’nai Jeshurun, disse uma vez aos seus radiouvintes:
«Estava escrito: assim como Sócrates, Platão e Aristóteles faziam parte,
juntos, do mundo antigo, assim também nós pertencemos, juntos, ao mundo
religioso.» E apresentou a homilia sobre altruísmo, que proferiu para
explicar a radiouvintes por que razão um rabi do seu estatuto se contentava
com dirigir uma congregação em declínio, dizendo: «Talvez estejais
interessados na minha resposta a perguntas que me foram feitas por,
literalmente, milhares de pessoas. “Por que motivo renuncia às vantagens
comerciais de um ministério peripatético? Por que opta por permanecer em
Newark, tendo como único púlpito o Templo B’nai Moshe, quando tem
todos os dias seis oportunidades de o trocar por outras congregações?”»
Estudara em grandes instituições de ensino na Europa, assim como em
universidades americanas, e tinha fama de falar dez línguas; de ser versado
em filosofia clássica, teologia e história de arte, assim como em história
antiga e moderna; de nunca transigir em questões de princípio; de nunca
recorrer a apontamentos no púlpito ou numa tribuna de conferências; de
nunca estar desprecavido de um conjunto de fichas de referência
relacionadas com os tópicos que no momento mais o ocupavam e a que
diariamente acrescentava novas reflexões e impressões. Era também um
exímio cavaleiro, conhecido por parar a montada a fim de anotar um
pensamento, servindo-se da sela como secretária improvisada. Treinava
todas as manhãs, cavalgando pelas sendas para cavaleiros do Weequahic
Park, acompanhado – até à sua morte, vitimado por cancro, em 1936 – pela
mulher, a herdeira do ourives mais rico de Newark. A mansão da família
dela na Elizabeth Avenue, onde o casal vivera, mesmo defronte do parque,
desde o casamento, em 1907, abrigava um acervo de Judaica que, dizia-se,
se contava entre as mais valiosas colecções particulares do mundo.
Em 1940, Lionel Bengelsdorf reivindicou o mais longo recorde de
serviço no seu próprio templo de qualquer rabi na América. Os jornais
referiam-se-lhe como o chefe religioso dos judeus de New Jersey e, ao
relatarem os seus numerosos aparecimentos públicos, mencionavam
invariavelmente os seus «dotes oratórios» a par das dez línguas que falava.
Em 1915, na comemoração do 250.º aniversário da fundação de Newark,
sentara-se ao lado do mayor Raymond e proferira a invocação, o que fazia
também anualmente nos cortejos do Memorial Day e no 4 de Julho: «Rabi
Exalta a Declaração de Independência», era o cabeçalho do Star-Ledger em
todos os dias 5 de Julho. Nos sermões e palestras em que declarava «o
incremento de ideais americanos» a primeira prioridade dos Judeus» e «a
americanização dos Americanos» o melhor meio de preservar a nossa
democracia contra o «bolchevismo, o radicalismo e a anarquia», citava com
frequência a última mensagem de Theodore Roosevelt à nação, na qual o
falecido presidente disse: «Aqui não pode haver uma lealdade dividida.
Qualquer homem que diz ser americano, mas também qualquer outra coisa,
não é de modo algum americano. Só temos lugar para uma bandeira, para a
bandeira americana.» O rabi Bengelsdorf falara sobre a americanização dos
Americanos em todas as igrejas e escolas públicas de Newark, perante
quase todos os grupos fraternais, cívicos, históricos e culturais do estado, e
os artigos noticiosos de jornais de Newark acerca de discursos seus tinham
nas datas os nomes de dezenas de cidades espalhadas pelo país, aonde ele
fora chamado para proferir conferências e participar em convenções sobre
esse tema, assim como sobre questões que iam do crime e do movimento de
reforma prisional – «O movimento de reforma prisional está impregnado
dos mais elevados princípios éticos e ideais religiosos» – às causas da
Guerra Mundial – «A guerra é o resultado das ambições materialistas dos
povos europeus e do seu esforço para alcançarem os objectivos de domínio
militar, poder e riqueza» –, da importância de infantários diurnos – «Os
infantários são jardins de vida de flores humanas em que cada criança é
ajudada a crescer numa atmosfera de alegria e felicidade» – aos malefícios
da era industrial – «Acreditamos que o mérito do homem trabalhador não
está em ser computado pelo valor material da sua produção» – e ao
movimento sufragista, a cuja proposta de alargar às mulheres o direito ao
voto se opunha fortemente, argumentando que «se os homens não são
capazes de gerir os assuntos do Estado, por que não ajudá-los a sê-lo.
Nenhum mal foi jamais curado pela sua duplicação.» O meu tio Monty, que
detestava todos os rabis mas tinha por Bengelsdorf uma aversão
particularmente virulenta que remontava à sua infância como aluno por
caridade da escola religiosa do B’nai Moshe, gostava de dizer a seu
respeito: «O inchado filho da mãe sabe tudo: é uma grande pena que não
saiba mais nada.»

A presença do rabi Bengelsdorf no aeroporto – onde, de acordo com a


legenda sob a fotografia na primeira página do Newark News, era o
primeiro da fila para apertar a mão a Lindbergh quando ele saiu da cabina
do Spirit of St. Louis – foi uma fonte de consternação para um grande
número de judeus da cidade, incluindo os meus pais, assim como a citação
que lhe foi atribuída no relato do jornal da breve visita de Lindbergh.
«Estou aqui», disse o rabi Bengelsdorf ao News, «para aniquilar todas as
dúvidas quanto à impoluta lealdade dos judeus americanos aos Estados
Unidos da América. Dou o meu apoio à candidatura do coronel Lindbergh,
porque os objectivos políticos do meu povo são idênticos aos dele. A
América é a nossa pátria bem-amada. A América é a nossa única pátria. A
nossa religião é independente de qualquer pedaço de terra que não seja este
grande país, ao qual, agora como sempre, rendemos a nossa total dedicação
e fidelidade como os mais orgulhosos dos cidadãos. Quero que Charles
Lindbergh seja o meu presidente, não apesar de eu ser judeu, mas porque
sou judeu: um judeu americano.»
Três dias depois, Bengelsdorf participou na enorme concentração
realizada em Madison Square Garden para assinalar o fim do circuito aéreo
de Lindbergh. Nessa altura, faltavam apenas duas semanas para as eleições
e, embora parecesse haver apoio crescente entre o eleitorado de todo o Sul
tradicionalmente democrático, e se previssem disputas renhidas nos estados
mais conservadores do Midwest, as sondagens nacionais davam ao
presidente uma vantagem confortável no sufrágio popular e uma vantagem
muito confortável no sufrágio do colégio eleitoral. Constava que dirigentes
do Partido Republicano estavam desesperados com a recusa obstinada do
candidato em permitir que qualquer outra pessoa, a não ser ele próprio,
gizasse a estratégia da sua campanha, e por isso, a fim de o afastar da
austeridade repetitiva da sua interminável campanha de terra em terra e
envolver numa atmosfera mais semelhante à da ruidosa campanha da
convenção para a nomeação de Filadélfia, fora organizada a concentração
de Madison Square Garden, radiodifundida para o país inteiro na noite da
segunda segunda-feira de Outubro.
Os quinze oradores que apresentaram Lindbergh nessa noite foram
descritos como «americanos eminentes» de todos os escalões da vida».
Contavam-se entre eles um dirigente agrário, para falar do mal que uma
guerra causaria à lavoura americana, ainda em crise em consequência da
Primeira Guerra Mundial e da Depressão; um dirigente laboral, para falar
da tragédia que uma guerra representaria para os trabalhadores americanos,
cujas vidas seriam arregimentadas por agências governamentais; um
industrial, para falar das catastróficas consequências que a excessiva
expansão e a onerosa tributação do tempo de guerra teriam, no longo prazo,
na indústria americana; um pastor protestante, para falar do efeito
brutalizador da moderna arte de guerrear sobre os jovens que travariam os
combates, e um padre católico, para falar da inevitável degradação da vida
espiritual de uma nação amante da paz como a nossa e da destruição da
decência e da generosidade, resultantes do ódio gerado pela guerra. Por
último, havia um rabi, Lionel Bengelsdorf, de New Jersey, que foi acolhido
de forma especialmente calorosa pelo pleno dos apoiantes de Lindbergh
quando chegou a sua vez de subir à tribuna, e que ali estava para discorrer
acerca do facto de a associação de Lindbergh com os nazis ser tudo menos
cúmplice.
– Não há dúvida – disse Alvin –, eles compraram-no. Está filado.
Puseram-lhe uma argola de ouro na grande penca judia e agora podem levá-
lo para onde quiserem.
– Tu não sabes se é isso – respondeu o meu pai, mas não porque ele
próprio não estivesse fulo com o comportamento de Bengelsdorf. – Ouve o
que o homem diz, presta-lhe atenção. É justo que o faças – palavras ditas
em grande parte para benefício de Sandy e de mim, para evitar que o
assustador rumo dos acontecimentos parecesse tão terrível, a nós dois,
como parecia aos adultos. Na noite anterior, eu caíra da cama abaixo,
enquanto dormia, coisa que não acontecera desde que tinha sido promovido
de um berço para uma cama, e para evitar que isso voltasse a acontecer os
meus pais tinham colocado um par de cadeiras de cozinha ao lado do
colchão. Quando se presumiu automaticamente que a minha queda,
passados tantos anos, só podia ser atribuída ao facto do aparecimento de
Lindbergh no aeroporto de Newark, teimei que não me lembrava de ter tido
nenhum sonho mau relacionado com Lindbergh, que a única coisa de que
me recordava era de ter acordado no chão entre a minha cama e a do meu
irmão, apesar de saber muito bem que praticamente já não conseguia
adormecer sem imaginar os desenhos de Lindbergh escondidos no porta--
fólio do meu irmão. Tinha vontade de perguntar a Sandy se não podia
escondê-los no nosso compartimento de arrecadação da cave, em vez de
debaixo da cama ao lado da minha, mas como jurara não falar dos desenhos
a ninguém – como não tinha coragem de me separar do meu próprio selo
comemorativo do voo de Lindbergh – não me atrevia a aludir-lhes, como
um problema, embora andassem de facto a atormentar-me e a tornar
inacessível o irmão, de cujo encorajamento nunca precisara tanto.
Estava uma noite fria. O aquecimento estava ligado, e as janelas fechadas,
mas mesmo sem podermos ouvi-los, sabíamos que havia rádios ligados de
uma ponta a outra do quarteirão e famílias que, noutras circunstâncias, não
pensariam em ouvir uma concentração a favor de Lindbergh tinham ligado
os aparelhos em virtude de ter sido anunciada a presença do rabi
Bengelsdorf. Entre os membros da sua própria congregação, algumas
pessoas importantes já tinham começado a exigir a sua demissão, se não o
seu afastamento imediato pelo conselho de curadores do templo, enquanto a
maioria que continuava a apoiá-lo tentava convencer-se de que o seu rabi
estava apenas a exercer o seu direito democrático de liberdade de expressão
e que, por muito que os horrorizasse o seu apoio público a Lindbergh, tentar
silenciar uma consciência tão notável como a dele não cabia no âmbito dos
seus direitos.
Nessa noite, o rabi Bengelsdorf revelou à América o que afirmava ser o
verdadeiro motivo por trás das missões aéreas pessoais de Lindbergh à
Alemanha nos anos 30. «Contrariamente à propaganda disseminada pelos
seus críticos», informou-nos o rabi, «ele não visitou uma única vez a
Alemanha como simpatizante ou apoiante de Hitler, mas, ao invés, fez cada
uma e todas as viagens na condição de conselheiro secreto do Governo dos
EUA. Longe de trair a América, como os mal-informados e os mal-
intencionados continuam a acusá-lo, o coronel Lindbergh serviu para, quase
sem qualquer ajuda, fortalecer a preparação militar da América transmitindo
os seus conhecimentos aos nossos próprios militares e fazendo tudo quanto
estava ao seu alcance para promover a causa da aviação americana e
desenvolver as defesas aéreas americanas.»
– Jesus! – exclamou o meu pai. – Toda a gente sabe...
– Caluda – murmurou Alvin –, caluda... deixe o grande orador falar.
«Sim, em 1936, muito antes do início das hostilidades europeias, os nazis
condecoraram o coronel Lindbergh com uma medalha e, sim», continuou
Bengelsdorf, «é verdade, o coronel aceitou a medalha deles. Mas ao mesmo
tempo, sempre, meus amigos, sempre explorou secretamente a sua
admiração, a fim de proteger e preservar a nossa democracia e de preservar
a nossa neutralidade através da força.»
– Não posso acreditar... – começou o meu pai.
– Tente – resmungou Alvin, maldosamente.
«Esta não é a guerra da América», proclamou Bengelsdorf, e a multidão
reunida em Madison Square Garden reagiu com um minuto inteiro de
aplausos. «Esta», disse-lhes o rabi, «é a guerra da Europa.» Novos aplausos
demorados. «É uma de uma sequência de mil anos de guerras europeias que
remontam ao tempo de Carlos Magno. É a sua segunda guerra devastadora
em menos de meio século. E alguém consegue esquecer o trágico preço que
a América pagou pela última grande guerra deles? Quarenta mil americanos
mortos em combate. Cento e noventa e dois mil americanos feridos. Setenta
e seis mil americanos mortos por doença. Trezentos e cinquenta mil
americanos incapacitados, hoje, em consequência da sua participação nessa
guerra. E que proporções astronómicas atingirá o preço, desta vez? O
número dos nossos mortos... diga-me, presidente Roosevelt, duplicará,
apenas, ou será o triplo ou, talvez, o quádruplo? Diga-me, Sr. Presidente,
que espécie de América deixará a carnificina maciça de inocentes rapazes
americanos na sua esteira? Evidentemente que a perseguição e a opressão
exercidas pelos nazis sobre a sua população judia é motivo de enorme
angústia para mim, assim como para todos os judeus. Durante os anos em
que estudei Teologia nas grandes universidades alemãs em Heidelberga e
Bona fiz lá muitos e distintos amigos, grandes intelectuais, que hoje, pelo
simples facto de serem alemães de origem judaica, foram demitidos de
cargos académicos há muito exercidos e estão a ser implacavelmente
perseguidos pela gentalha nazi que passou a dominar a sua pátria. Oponho-
me com todas as minhas forças à maneira como são tratados, assim como o
coronel Lindbergh se opõe. Mas de que modo poderá o cruel destino que
sobre eles se abateu, na sua própria terra, ser mitigado com a ida do nosso
grande país para a guerra contra os seus atormentadores? A resultar alguma
coisa de tal acto, só poderia ser o incomensurável agravamento da situação
de todos os judeus da Alemanha – um agravamento trágico, temo. Sim, eu
sou judeu, e como judeu sinto o seu sofrimento com uma dor tão intensa
como se fossem da minha família. Mas eu sou um cidadão americano, meus
amigos» – aplausos, de novo –, «nasci e fui criado como um americano, e
por isso vos pergunto: como seria a minha dor mitigada se a América
entrasse agora na guerra e, juntamente com os filhos das nossas famílias
protestantes e os filhos das nossas famílias católicas, os filhos das nossas
famílias judias combatessem e morressem às dezenas de milhares num
campo de batalha europeu encharcado em sangue? Como seria a minha dor
diminuída se tivesse de consolar os próprios membros da minha
congregação...»
Foi a minha mãe, geralmente a pessoa menos temperamental da nossa
família, aquela que costumava acalmar-nos quando nos tornávamos
demasiado emotivos, foi ela quem, de repente, achou o som do sotaque
sulista de Bengelsdorf tão insuportável que teve de sair da sala. Mas
enquanto ele não acabou o seu discurso e foi ruidosamente ovacionado fora
da tribuna, pelo público da Madison Square Garden, mais ninguém se
mexeu ou disse uma única palavra. Eu não me atreveria, e o meu irmão
estava preocupado – como era frequente em situações semelhantes – a
esboçar o aspecto de todos nós, no momento, enquanto ouvíamos a rádio. O
silêncio de Alvin era o da aversão feroz, e o meu pai – despojado, talvez
pela primeira vez na sua vida, da fúria inexorável que punha na luta contra
os reveses e a decepção – estava agitado de mais para falar.
Pandemónio. Alegria indizível. Lindbergh entrara finalmente no palco do
Garden e, como uma pessoa meio enlouquecida, o meu pai saltou do sofá e
desligou o rádio, no momento exacto em que a minha mãe voltava à sala e
perguntava: «Quem quer alguma coisa? Alvin»», disse, com lágrimas nos
olhos, «uma chávena de chá?»
A missão dela era manter o nosso mundo unido tão calma e sensatamente
quanto podia; era isso que preenchia a sua vida e era isso que estava a tentar
fazer, e, contudo, nunca qualquer de nós a vira tão ridicularizada por essa
banal ambição materna.
– Que raio está a acontecer? – começou o meu pai a gritar. – Por que
diabo fez ele aquilo? Aquele discurso estúpido! Pensará que um único judeu
vai votar agora naquele anti-semita por causa deste discurso estúpido e
mentiroso? Perdeu por completo o juízo? Que pensa este homem que está a
fazer?
– A tornar Lindbergh kosher – respondeu Alvin. – A tornar Lindbergh
kosher para os góis.
– A tornar kosher o quê? – perguntou o meu pai, exasperado por,
aparentemente, Alvin estar a dizer disparates sarcásticos num momento de
tanta confusão. – A fazer o quê?
– Eles não o levaram ali, ao palco, para falar aos judeus. Não o
subornaram para isso. Não compreende? – perguntou Alvin, furioso agora
com o que considerava a verdade subjacente. – Ele está lá em cima a falar
para os góis, está a dar aos góis de todo o país a sua permissão rabínica
pessoal para votarem em Lindy no dia das eleições. Não percebe, tio
Herman, o que eles levaram o grande Bengelsdorf a fazer? Ele acaba de
garantir a derrota de Roosevelt!

Cerca das duas horas da manhã dessa noite, enquanto dormia a sono
solto, voltei a cair da cama, mas depois lembrei-me do que estivera a sonhar
antes de ir parar ao chão. Era um pesadelo e relacionava-se com a minha
colecção de selos, à qual acontecera alguma coisa. O desenho de dois dos
conjuntos dos meus selos tinha mudado de uma maneira terrível, sem eu
saber quando nem como. No sonho, tinha tirado o álbum da gaveta da
minha cómoda para o levar comigo para casa do meu amigo Earl e levava-o
debaixo do braço, a caminho da casa dele, como já fizera dúzias de vezes.
Earl Axman tinha dez anos e andava no quinto ano. Morava com a mãe no
prédio novo, de tijolo amarelo e quatro pisos, construído três anos atrás no
grande terreno deserto próximo do cruzamento da Chancellor com a
Summit, diagonalmente defronte da escola primária. Antes disso morara em
Nova Iorque. O pai dele era músico dos Glen Gray e da Casa Loma
Orchestra – Sy Axman, que tocava saxofone tenor ao lado do saxofone alto
de Glen Gray. Mr. Axman era divorciado da mãe de Earl, uma loura de uma
beleza aparatosa que fora fugazmente cantora da banda antes de Earl nascer
e, segundo diziam os meus pais, era oriunda de Newark e morena, uma
rapariga judia chamada Louise Swig que fora para South Side e se tornara
localmente famosa em revistas musicais da YMHA7. De todos os rapazes
que eu conhecia, Earl era o único filho de pais divorciados, assim como o
único cuja mãe se pintava muito e usava blusas que deixavam os ombros
nus e saias rodadas por cima de saiotes tufados. Também gravara um disco
da canção «Gotta Be This or That» quando estava na Glen Gray, e Earl
punha-o muitas vezes a tocar para mim. Nunca conheci nenhuma outra mãe
como ela. Earl não a tratava por mãe ou mamã, mas sim, escandalosamente,
por Louise. No quarto dela havia um roupeiro cheio dos tais saiotes, e
quando Earl e eu estávamos sozinhos em sua casa ele mostrava-mos. Uma
vez até me deixou tocar num, sussurrando, enquanto eu hesitava: «Podes
tocar onde quiseres.» Depois abriu uma gaveta, mostrou-me os sutiãs e
ofereceu-se para me deixar tocar num, mas aí eu declinei. Ainda era
suficientemente novo para poder admirar um sutiã de longe. Os pais davam-
lhe, cada um, um dólar, inteiro, por semana para gastar em selos, e quando a
Casa Loma Orchestra não estava a tocar em Nova Iorque e andava em
digressão, Mr. Axman mandava a Earl sobrescritos com selos de correio
com carimbo de cidades de todo o lado. Havia, até, um de «Honolulu,
Oahu», onde Earl, que não resistia a envolver o pai ausente no manto do
esplendor – como se um pai saxofonista de uma famosa banda de swing (e
uma mãe loura oxigenada e cantora) não fosse suficientemente assombroso
para o filho de um agente de seguros –, afirmava que Mr. Axman fora
levado a uma «casa particular» para ver o cancelado selo haitiano
«Missionary» de dois cêntimos, de 1851, emitido nada menos do que
quarenta e sete anos antes de o Havai ser anexado aos Estados Unidos como
território, um tesouro inimaginável avaliado em cem mil dólares e cujo
desenho central era simplesmente o algarismo 2.
Earl possuía e melhor colecção de selos das redondezas. Foi ele que me
ensinou, quando eu era um miúdo pequeno, tudo quanto havia de prático e
de esotérico a respeito de selos – da sua história, de coleccionar selos novos
em vez de usados, de questões técnicas como papel, impressão, cor, cola,
sobreimpressão, serrilhas e impressão especial, a respeito de grandes
falsificações e erros de desenho – e, como grandíssimo pedante que era,
iniciara a minha educação na matéria falando-me do coleccionador francês
Monsieur Herpin, que cunhou a palavra «filatelia», explicando-me a sua
derivação de duas palavras gregas, a segunda das quais, ate-leia, que
significava isenção de taxa, nunca fez inteiramente sentido para mim. E
sempre que acabávamos de conversar a respeito dos nossos selos na sua
cozinha e ele deixava momentaneamente de me dominar, soltava uma
pequena gargalhada e dizia: «Agora vamos fazer uma coisa indecente» – e
foi assim que comecei a ver a roupa interior da mãe dele.
No sonho, dirigia-me para casa de Earl com o álbum dos selos apertado
contra o peito quando alguém gritou o meu nome e começou a perseguir-
me. Tinha enfiado por uma travessa e corria para dentro de uma das
garagens, a fim de me esconder e de verificar se alguns selos se tinham
soltado, quando, enquanto fugia do meu perseguidor, tropecei e deixei cair
o álbum precisamente no sítio do passeio onde costumávamos jogar ao «Eu
Declaro Guerra». Quando o abri na página dos meus selos comemorativos
do Bicentenário de Washington de 1932 – doze selos que iam do castanho-
escuro de meio cêntimo ao amarelo de dez cêntimos – fiquei estupefacto.
Washington já não estava nos selos. No topo de cada selo mantinha-se
inalterada a frase «United States Postage» – escrita no que eu aprendera a
identificar como do tipo romano mais claro e espaçada a uma ou duas
linhas. As cores dos selos também se mantinham inalteradas – o de dois
cêntimos, vermelho; o de cinco cêntimos, azul; o de oito cêntimos, verde--
azeitona, etc. –, todos os selos tinham o tamanho regulamentar, e as
molduras dos retratos mantinham o desenho individual como no conjunto
original, mas em vez de um retrato diferente de Washington para cada um
dos doze selos, o retrato era agora o mesmo em todos, e já não de
Washington, mas de Hitler. E na fita por baixo de cada retrato também já
não se lia o nome «Washington». Quer a fita se curvasse para baixo, como
nos selos de meio cêntimo e de seis cêntimos, quer se curvasse para cima,
como nos de quatro, cinco, sete e dez, quer fosse recta com as extremidades
erguidas, como nos de um, um e meio, dois, três, oito e nove cêntimos, o
nome agora escrito nela era «Hitler».
Foi quando olhei, a seguir, para a página de rosto, a fim de ver se
acontecera alguma coisa à minha série de dez selos de Parques Nacionais de
1934, que caí da cama abaixo e acordei no chão, desta vez a gritar.
Yosemite na Califórnia, Grand Canyon no Arizona, Mesa Verde no
Colorado, Crater Lake no Oregon, Acadia no Maine, Mount Rainier em
Washington, Yellowstone no Wyoming, Zion no Utah, Glacier em Montana,
Great Smoky Mountains no Tennessee... e na frente de cada um deles, de
ponta a ponta dos penhascos, das florestas, dos rios, dos picos, do géiseres,
dos desfiladeiros, do litoral, da água azul-escura e das altas cataratas, de
ponta a ponta de tudo o que na América era mais azul, mais verde e mais
branco e devia ser preservado para sempre naquelas antigas reservas, estava
estampada uma suástica negra.
1 Feriado celebrado a partir de 30 de Maio de 1868 em memória dos mortos da Guerra Civil
Americana, cujas campas eram decoradas. Mais tarde passou a ser comemorado na última segunda-
feira de Maio em memória de todos os mortos americanos das guerras. Chama-se agora Memorial
Day. (NT)

2 Organização humanitária instituída em 1938 pelo presidente Roosevelt com o fim de salvar a
juventude americana da poliomielite e assente na ideia de que as pessoas podem resolver qualquer
problema se trabalharem em conjunto. (NT)

3 Comité Primeiro a América. Os seus adeptos eram conhecidos por «America Firsters» (NT)

4 Iídiche: palpiteiro, aquele que gosta de dar palpites ou conselhos, geralmente não solicitados ou
desejados. (NT)

5 Em minúscula, «arbor» significa caramanchão, mas no conjunto «Arbor Day» significa «Árvore»:
Dia da Árvore. (NT)

6 Nos Estados Unidos, o Labor Day, ou Dia do Trabalho, comemora-se na primeira segunda-feira de
Setembro. (NT)

7 Young Men’s Hebrew Association (também referida por «Y») — associação promotora do bem-
estar social, intelectual e físico dos jovens judeus; o equivalente judaico da YMCA para os cristãos.
(NT)
2
Novembro de 1940-Junho de 1941
JUDEU FALA-BARATO

EM JUNHO de 1941, exactamente seis meses depois da tomada de posse de


Lindbergh, a nossa família meteu-se no carro e percorreu os cerca de
quinhentos quilómetros para Washington, D. C., a fim de visitar os lugares
históricos e os famosos edifícios governamentais. A minha mãe andara a
poupar durante quase dois anos numa conta do Clube de Natal do Howard
Savings Bank, retirando um dólar por semana do nosso orçamento
doméstico para cobrir o grosso das despesas da nossa futura viagem. A
excursão fora planeada quando FDR cumpria um segundo mandato
presidencial e os Democratas controlavam ambas as câmaras, mas agora,
com os Republicanos no poder e o novo inquilino da Casa Branca
considerado um inimigo traiçoeiro, houve uma breve discussão familiar
acerca de viajarmos antes para norte, para vermos as Cataratas do Niágara e
fazermos o cruzeiro de barco, de impermeáveis vestidos, pela rota marítima
das Mil Ilhas do São Lourenço, atravessarmos depois no nosso carro para o
Canadá e visitarmos Otava. Alguns dos nossos amigos e vizinhos já tinham
começado a falar em sair do país e emigrar para o Canadá se a
Administração Lindbergh se voltasse abertamente contra os judeus, e por
isso uma viagem ao Canadá também serviria para nos familiarizarmos com
um porto de abrigo, no caso de perseguição. Em Fevereiro, o meu primo
Alvin já tinha partido para o Canadá para se alistar nas forças armadas
canadianas, como dissera que faria, e combater ao lado dos Ingleses contra
Hitler.

***

Até à sua partida, Alvin estivera sob a custódia da minha família durante
quase sete anos. O seu falecido pai era o irmão mais velho do meu e
morrera quando ele tinha seis anos, e a mãe de Alvin – prima em segundo
grau da minha mãe e quem apresentara os meus pais um ao outro – morreu
quando Alvin tinha treze anos e, por isso, ele fora viver connosco durante os
quatro anos em que frequentou a escola secundária de Weequahic; era um
rapaz esperto, que jogava e roubava, que o meu pai estava empenhado em
salvar. Alvin tinha vinte e um anos em 1940 e morava num quarto alugado
mobilado, por cima de uma loja de engraxador, logo ao dobrar da esquina
do mercado de produtos agrícolas, e nessa altura trabalhava havia quase
dois anos para a Steinheim & Sons, uma das duas maiores empresas
judaicas de construção civil – a outra era dirigida pelos irmãos Rachlin.
Alvin arranjou o emprego por intermédio do Steinheim mais velho, o
fundador da empresa e cliente de seguros da agência do meu pai.
O velho Steinheim, que tinha um sotaque carregado e não sabia ler inglês,
mas era, segundo dizia o meu pai, «feito de aço», ainda assistia aos serviços
dos dias sagrados importantes na nossa sinagoga local. Num Yom Kippur de
alguns anos atrás, quando viu o meu pai com Alvin no lado de fora da
sinagoga, julgou que o meu primo era o meu irmão mais velho e perguntou:
«O que faz ele? Mande o rapaz aparecer e trabalhar para nós.» Foi aí que
Abe Steinheim, que transformara a pequena empresa de construção do seu
pai imigrante numa operação multimilionária – embora só depois de uma
grande guerra de família ter posto os seus dois irmãos na rua –, ganhou
simpatia pelo sólido e entroncado Alvin e pelos seus modos convencidos, e
por isso, em vez de pregar com ele na sala do correio ou usá-lo como
paquete do escritório, fê-lo seu motorista: fazer recados, entregar
mensagens, conduzi-lo de um lado para o outro aos locais das obras para
vigiar os subempreiteiros (a quem Abe chamava «os intrujões», embora,
segundo Alvin dizia, fosse ele quem os intrujava e vigarizava toda a gente).
Aos sábados, no Verão, Alvin levava-o de carro a Freehold, onde Abe tinha
meia dúzia de cavalos de trote que punha em competição na velha pista de
corridas, cavalos aos quais gostava de chamar «hambúrgueres». «Hoje
temos um «hambúrguer» a correr em Freehold», e lá iam no Caddy, a toda a
velocidade, para verem o seu cavalo perder, todas as vezes. Ele nunca
ganhava dinheiro algum com isso, mas a ideia também não era essa. Tinha
cavalos a correr aos sábados para a Road Horse Association, na bonita pista
de trote do Weequahic Park, e falava aos jornais a respeito da restauração da
pista plana de Mount Holly, cujos dias gloriosos tinham passado há muito, e
foi assim que Abe Steinheim conseguiu tornar-se comissário de corridas de
cavalos do estado de New Jersey, o que lhe deu direito a uma placa no carro
que lhe permitia conduzir no passeio, ligar uma sereia e estacionar onde
quisesse. E foi também assim que travou amizade com os funcionários de
Monmouth County e se insinuou no círculo hípico da costa – góis de Wall
Township e Spring Lake que o levavam a almoçar nos seus clubes de luxo,
onde, conforme Abe dizia a Alvin, «toda a gente me vê e não faz outra coisa
senão segredar «olhem quem temos aqui», mas eles não se importam de
tomar minha bebida e de serem obsequiados com grandes jantaradas, e por
isso, no fim, acaba por valer a pena». Tinha o seu barco de pesca de alto
mar ancorado no Shark River Inlet, transportava-os para o largo, punha-os
bem bebidos e contratava tipos para pescarem por eles, de modo que cada
vez que um novo hotel era construído em qualquer ponto entre Long
Branch e Point Pleasant, era-o num terreno que os Steinheim tinham
adquirido por uma bagatela – Abe, como o pai, tinha a grande sabedoria de
só comprar coisas com desconto.
De três em três dias, Alvin conduzia-o ao longo dos quatro quarteirões
que iam do escritório ao número 744 da Broad Street para uma aparadela
rápida na barbearia do átrio atrás da loja de charutos, onde Abe Steinheim
comprava os seus Trojans e os seus charutos de dólar e meio. O 744 da
Broad era um dos dois edifícios de escritórios mais altos do estado, onde o
National Newark e o Essex Bank ocupavam os vinte andares do topo e os
advogados e financeiros de prestígio da cidade ocupavam os restantes, e
onde os maiores ricaços de New Jersey frequentavam regularmente a
barbearia. Apesar disso, uma parte do trabalho de Alvin consistia em ligar
para a barbearia imediatamente antes de saírem e dizer ao barbeiro que se
preparasse, pois Abe ia a caminho, e tirasse da cadeira quem quer que lá
estivesse. Ao jantar, na noite em que Alvin arranjou o emprego, o meu pai
disse-nos que Abe Steinheim era o mais excêntrico, o mais excitante e o
maior construtor que Newark jamais conhecera. «E um génio», acrescentou.
«Não chegaria lá se não fosse um génio. Brilhante. E um belo homem.
Louro. Corpulento, mas sem ser gordo. Apresenta-se sempre bem.
Sobretudos de lã de camelo. Sapatos de gáspeas pretas e brancas. Belas
camisas. Impecavelmente vestido. E tem uma bonita mulher: educada, cheia
de classe, Freilich por nascimento, uma Freilich de Nova Iorque, uma
mulher muito rica por direito próprio. O que não falta ao Abe é esperteza. E
o homem tem garra. Perguntem seja a quem for, em Newark: por muito
arriscado que um projecto seja, Steinheim deita-lhe a mão. Constrói
edifícios onde mais ninguém correria esse risco. O Alvin vai aprender com
ele. Vai observá-lo e ver o que é trabalhar sem descanso por qualquer coisa
que é nossa. É verdade, ele pode ser uma inspiração importante para a vida
do Alvin.»
Em grande parte para que o meu pai pudesse mantê-lo debaixo de olho e
a minha mãe verificasse que ele não estava a sobreviver apenas de
cachorros quentes, Alvin ia a nossa casa; duas vezes por semana, para
comer uma boa refeição e, miraculosamente, em vez de ouvir, à mesa do
jantar, sermões severos a respeito de honestidade, responsabilidade e
trabalho esforçado – como nos dias que se seguiram a ter sido apanhado em
flagrante com a mão na caixa da estação de serviço da Esso, onde
trabalhava depois das aulas e que, até o meu pai convencer Simkowitz, o
proprietário, a desistir da queixa e repor o dinheiro do seu bolso, parecia já
ir a caminho do Reformatório Rahway –, Alvin conversava acaloradamente
com o meu pai a respeito de política e, em especial, do capitalismo, um
sistema que, desde que o meu pai o convencera a interessar-se pela leitura
do jornal e a falar das notícias, ele deplorava, mas o meu pai defendia,
argumentando pacientemente com o reabilitado sobrinho, não como um
membro da Associação Nacional de Industriais, mas sim como um
entusiasta do New Deal de Roosevelt. Ele avisara Alvin: «Não fales de Karl
Marx a Mr. Steinheim. O homem não hesitará em pôr-te no olho da rua.
Aprende com ele. É para isso que lá estás. Aprende com ele e mostra-te
respeitoso, pois esta pode ser a oportunidade da tua vida.»
Mas Alvin não suportava Steinheim e dizia mal dele constantemente: ele
é um trampolineiro, ele é um fanfarrão, ele é um unhas de fome, ele é um
tirano, ele só sabe berrar, ele é trafulha, ele é um homem que não tem um
amigo no mundo inteiro, as pessoas não suportam estar perto dele, e eu,
lembrava Alvin, tenho de lhe servir de motorista por todo o lado. É cruel
com os filhos, não mostra sequer interesse em olhar para um neto e, sempre
que lhe dá na gana, humilha a escanzelada da mulher, que nunca se atreve a
dizer ou fazer alguma coisa que lhe desagrade. Toda a gente da família tem
de viver em apartamentos do mesmo prédio de luxo que Abe construiu
numa rua de grandes carvalhos e bordos perto do Upsala College, em
Orange Oriental. Os filhos trabalham para ele do nascer ao pôr do Sol, em
Newark, onde têm de o ouvir gritar-lhes e berrar-lhes o dia inteiro, e depois,
à noite, ele pega no telefone interno de East Orange e continua a gritar e a
berrar com eles. O dinheiro é tudo, não para comprar coisas, mas para poder
safar-se sempre de dificuldades: para proteger a sua posição e garantir as
suas acções e comprar tudo quanto quiser em imobiliário, a preço de saldo,
pois foi assim que se encheu depois do Crash. Dinheiro, dinheiro, dinheiro
– estar no meio do caos e no meio dos negócios e ganhar todo o dinheiro do
mundo.
– Um tipo reforma-se aos quarenta e cinco anos com cinco milhões de
dólares. Cinco milhões dele no banco, que é um balúrdio, e sabem o que o
Abe diz? – Alvin faz esta pergunta ao meu irmão de doze anos e a mim.
Acabámos de jantar e ele está connosco no quarto: todos nós estendidos
sem sapatos em cima das camas, Sandy na sua, Alvin na minha e eu ao lado
de Alvin, na curva entre o seu braço forte e o seu peito forte. E é um
encantamento: histórias acerca da avareza do homem, do seu fervor, da sua
vitalidade sem limites e espantosa arrogância, e a contar essas histórias um
primo que não conhece, ele próprio, limites, nem mesmo depois de todos os
esforços do meu pai, um primo fascinante, emocionalmente ainda entre os
mais imaturos dos imaturos, que aos vinte e um anos já tem de rapar a barba
negra duas vezes por dia para não parecer um criminoso endurecido.
Histórias dos descendentes carnívoros dos macacos gigantes que outrora
habitaram nas antigas florestas e abandonaram as árvores, onde passavam o
dia inteiro a mordiscar folhas, para virem para Newark trabalhar no centro
da cidade.
– O que é que Mr. Steinheim diz? – pergunta Sandy.
– Diz: «O tipo tem cinco milhões. É só isso que tem. Ainda novo e na
força da vida, com a possibilidade de um dia vir a valer cinquenta, sessenta,
talvez mesmo cem milhões, e diz-me: “Vou largar tudo. Não sou como tu,
Abe. Não vou continuar aí à espera do ataque cardíaco. Tenho o suficiente
para dizer basta e passar o resto da minha vida a jogar golfe.”» E o que diz
Abe? «Um tipo destes é um idiota chapado.» A cada subempreiteiro que vai
ao escritório à sexta-feira buscar dinheiro para a madeira, o vidro, os tijolos,
Abe diz: «Olha, estamos sem dinheiro, isto é o máximo que posso arranjar»,
e paga-lhes metade, um terço – se consegue levar a sua avante até mesmo
um quarto – do que lhe pedem, apesar de aquelas pessoas precisarem do
dinheiro para sobreviver. Mas este é o método que ele aprendeu com o pai,
e não há remédio. Está a construir tanto que se safa e ninguém tenta matá-
lo.
– Alguém tentaria matá-lo? – pergunta Sandy.
– Sim – responde Alvin. – Eu.
– Conta-nos do aniversário do casamento – peço-lhe.
– O aniversário do casamento – repete. – Pois sim, ele cantou cinquenta
canções. Contratou um pianista – conta-nos Alvin, exactamente da mesma
maneira que conta a história de Abe ao piano, todas as vezes que lhe peço –
e ninguém diz uma palavra, ninguém sabe o que se está a passar, todos os
convidados levam a noite inteira a comer a comida dele, e Abe, de pé no seu
smoking ao lado do piano, continua a cantar as suas canções, todas as
canções populares que possas imaginar, e nem sequer ouve quando eles se
despedem e saem.
– Ele grita e berra contigo? – pergunto.
– Comigo? Com toda a gente. Grita e berra aonde quer que vá. Levo-o de
carro à Tabatchnick’s, aos domingos de manhã. As pessoas estão na bicha
para comprarem as suas bagels e o seu salmão fumado. Nós entramos e ele
desata a berrar. Há uma bicha de seiscentas pessoas, mas ele berra:
«Chegou o Abe!», e elas deixam-no passar à frente. O Tabatchnick vem a
correr das traseiras, empurra todos para o lado, Abe faz compras de uns
cinco mil dólares e voltamos para casa, onde está Mrs. Steinheim, que pesa
quarenta e três quilos e sabe muito bem quando deve desaparecer do
caminho, e ele telefona aos três filhos, que chegam em cinco segundos e
comem os quatro uma refeição para quatrocentas pessoas. A única coisa em
que ele gasta dinheiro é em comida. Comida e charutos. Fala-se na
Tabatchnick’s, na Kartzman’s, e ele está-se nas tintas para quem lá está,
quantas pessoas: chega e compra a loja inteira. Comem todos os bocadinhos
de tudo, todos os domingos de manhã – esturjão, arenques, marta, bagels,
picles – e depois levo-os de carro para o escritório da imobiliária, para
verem quantos apartamentos estão vagos, quantos estão alugados, quantos
estão em obras. Sete dias por semana. Nunca pára. Nunca tem férias. Não
há mañana, eis o seu lema. Fica doido se alguém perde um minuto de
trabalho. Não consegue adormecer se não souber que no dia seguinte haverá
mais negócios que renderão mais dinheiro, e todo esse maldito esquema me
dá vómitos. Para mim, o homem é uma única coisa: um anúncio ambulante
a favor do derrube do capitalismo.
O meu pai classificava as queixas de Alvin de coisas de miúdo, que devia
guardar para consigo no emprego, sobretudo depois de Abe ter decidido que
ia enviar o meu primo para a Rutgers. És demasiado esperto, disse Abe a
Alvin, para seres tão ignorante; e depois aconteceu uma coisa que
ultrapassou tudo quanto o meu pai poderia, realisticamente, ter esperado.
Abe pega no telefone, liga para o presidente da Rutgers e desata a gritar
com ele. «Você vai aceitar este rapaz, a altura em que ele deixou a escola
secundária não vem ao caso, o rapaz é órfão e potencialmente um génio,
você vai dar-lhe uma bolsa de estudos completa e eu construo-lhe um
edifício universitário, o mais belo do mundo... mas não leva nem uma
cagadeira se este órfão não entrar na Rutgers com todas as despesas pagas!»
E explica a Alvin: «Nunca gostei de ter um motorista formal que fosse um
motorista idiota. Gosto de miúdos como tu, com qualquer coisa de especial.
Vais para a Rutgers, vens a casa e conduzes-me nas férias de Verão, e
quando fores um Phi Beta Kapa, então vamos sentar-nos os dois e
conversar.»
Abe queria que Alvin começasse como caloiro em New Brunswick, em
Setembro de 1941, e regressasse, passados quatro anos de universidade,
para ser alguém na empresa, mas em vez disso Alvin partiu para o Canadá
em Fevereiro. O meu pai ficou furioso com ele. Discutiram semanas a fio,
até que, sem nos dizer nada, Alvin embarcou no comboio expresso na Penn
Station de Newark directamente para Monreal. «Não percebo a sua
moralidade, tio Herman. Não quer que eu seja um ladrão, mas acha bem
que eu trabalhe para um ladrão.» «Steinheim não é um ladrão. Steinheim é
um construtor. O que ele faz é o que eles fazem», respondeu o meu pai, «o
que todos eles têm de fazer, porque a construção é um negócio implacável,
onde vale tudo. Mas os edifícios que ele constrói não caem, pois não? Ele
infringe a lei, Alvin? Infringe?» «Não, ele só aproveita todas as
oportunidades para lixar os trabalhadores bem lixados. Não sabia que a sua
moralidade também abrangia isso.» «A minha moralidade fede», respondeu
o meu pai, «toda a gente da cidade sabe o que ela vale. Mas a questão não
sou eu. A questão é o teu futuro. É ires estudar. Quatro anos de educação
superior grátis.» «Grátis porque ele intimida o presidente da Rutgers da
mesma maneira que intimida a porcaria do mundo inteiro.» «Deixa o
presidente da Rutgers preocupar-se com isso! Que raio se passa contigo?
Queres estar aí sentado a dizer-me que o pior ser humano que jamais veio a
este mundo é um homem que quer tornar-te uma pessoa instruída e arranjar-
te um lugar na sua empresa de construção?» «Não, não, o pior ser humano
que jamais nasceu é Hitler e, francamente, eu preferia ir combater contra
esse filho da mãe a desperdiçar o meu tempo com um judeu como
Steinheim, que só envergonha os outros judeus com o seu maldito...» «Oh,
não fales comigo como uma criança... e eu também dispenso os “malditos”.
O homem não envergonha ninguém. Julgas que seria melhor se trabalhasses
para um construtor irlandês? Experimenta trabalhar para o Shanley e verás
o tipo porreiro que ele é. E os italianos, achas que os italianos seriam
melhores? O Steinheim grita e berra, os italianos disparam armas.» «E o
Longy Zwillman não dispara?» «Por favor, eu sei tudo a respeito do Longy.
Cresci na mesma rua que ele. O que tem tudo isso que ver com a Rutgers?»
«Tem que ver comigo, tio Herman, e com ficar em dívida com o Steinheim
durante o resto da minha vida. Não basta ele ter três filhos que já está a
destruir? Não basta eles terem de assistir a todas as festas judaicas com ele,
e a todos os dias de Acção de Graças com ele, e a todas as vésperas de Ano
Novo com ele, é preciso que eu também lá esteja e ele berre também
comigo? Todos eles a trabalhar no mesmo escritório, e a morar no mesmo
prédio, e a esperar apenas uma coisa: repartirem tudo no dia em que ele
morrer. Posso garantir-lhe, tio Herman, que o desgosto deles não durará
muito.» «Estás enganado. Redondamente enganado. Há mais coisas entre
essas pessoas do que apenas dinheiro.» «O tio é que está enganado! Ele
tem-nos na mão por causa do dinheiro. O tipo está doido varrido e eles
ficam e aguentam por medo de perderem o dinheiro!» «Eles ficam porque
são uma família. Todas as famílias passam por muitas coisas. Uma família
é, ao mesmo tempo, paz e guerra. Nós próprios estamos a passar por uma
pequena guerra, neste preciso momento. Eu compreendo. Eu aceito-o. Mas
isso não é motivo para abrires mão da universidade onde não entraste, e
onde tens agora oportunidade de entrar, para ires todo apressado combater
contra o Hitler.» «Isso significa», replicou Alvin como se, finalmente,
tivesse percebido qual era o jogo não só do seu patrão, mas também do
familiar seu protector, «que, afinal, é um isolacionista. O tio e Bengelsdorf.
Bengelsdorf, Steinheim... eles formam uma boa parelha.» «De quê?»,
perguntou, irritado, o meu pai, perdendo finalmente a paciência. «De falsos
judeus.» «Ah, agora também estás contra os judeus?» «Contra esses judeus.
Os judeus que são uma vergonha para os judeus... estou, sim,
completamente!»
A discussão repetiu-se durante quatro noites consecutivas e depois, na
quinta, uma sexta-feira, Alvin não apareceu para jantar, embora a ideia
fosse fazê-lo comparecer regularmente para jantar, até o meu pai o demover
pelo cansaço e o rapaz voltar à razão – o rapaz que o meu pai transformara,
sozinho, de um inútil inexperiente na consciência da família.
Na manhã seguinte soubemos por Billy Steinheim, de todos os filhos de
Steinheim o mais chegado a Alvin e suficientemente preocupado com ele
para telefonar no sábado logo de manhã, que depois de receber a féria, na
sexta-feira, o meu primo tinha atirado as chaves do Caddy à cara do pai de
Billy e partido. E quando o meu pai saiu apressadamente no nosso carro
para a Wright Street, a fim de falar com Alvin no quarto dele, ouvir a
história toda e avaliar até que ponto ele destruíra as suas possibilidades, o
proprietário do salão de engraxadores, que era o senhorio de Alvin,
informou-o de que o inquilino pagara a renda, fizera as malas e partira para
combater contra o pior ser humano que jamais viera ao mundo. Dada a
magnitude da sanha de Alvin, ninguém menos nefando lhe serviria.

As eleições de Novembro não tinham sido ganhas sequer à tangente.


Lindbergh obteve 57 por cento da votação popular e na contagem eleitoral
arrebatou quarenta e seis estados, perdendo apenas Nova Iorque, o estado
natal de FDR, e, por uns meros dois mil votos, Maryland, onde a grande
população de funcionários do gabinete federal votara esmagadoramente por
Roosevelt enquanto o presidente pudera assegurar – como não conseguia
em mais lugar algum abaixo da Linha Mason-Dixon – a lealdade de quase
metade do velho círculo eleitoral sulista dos Democratas. Embora na manhã
seguinte às eleições a incredulidade prevalecesse, sobretudo entre os
organizadores de sondagens, um dia depois toda a gente parecia
compreender tudo e os comentadores da rádio e os colunistas da imprensa
transmitiam a impressão de que a derrota de Roosevelt tinha sido previsível.
O que acontecera, explicavam, fora o facto de os Americanos se terem
mostrado relutantes em quebrar a tradição dos dois mandatos presidenciais
que George Washington instituíra e que nenhum presidente antes de
Roosevelt ousara desafiar. Além disso, na esteira da Depressão, a confiança
ressurgente tanto de jovens como de idosos fora estimulada pela relativa
juventude e pelo atletismo garboso de Lindbergh, que contrastavam tão
flagrantemente com as dificuldades físicas com as quais FDR se debatia na
sua condição de vítima da poliomielite. E havia também o encantamento da
aviação e o novo modo de vida que prometia: Lindbergh, já o recordista-
mor dos voos de longa distância, podia conduzir inteligentemente os seus
compatriotas para o desconhecido do futuro aeronáutico, ao mesmo tempo
que lhes garantia, com o seu comportamento austero e antiquado, que as
conquistas da engenharia moderna não tinham necessariamente de corroer
os valores do passado. Sucedia, concluíram os especialistas, que os
americanos do século XX, cansados de defrontar uma nova crise em cada
década, estavam sedentos de normalidade, e o que Charles A. Lindbergh
representava era uma normalidade elevada a proporções heróicas, era um
homem decente, com um rosto franco e uma voz comum, que demonstrara
retumbantemente ao Planeta inteiro a coragem de tomar o comando e a
fortaleza de espírito para moldar a História e, evidentemente, a força para
transcender a tragédia pessoal. Se Lindbergh prometia que não haveria
guerra, então não haveria guerra – para a grande maioria era tão simples
como isso.
Pior ainda do que as eleições, para nós, foram as semanas que se
seguiram à tomada de posse, quando o novo presidente americano viajou
para a Islândia, a fim de se encontrar pessoalmente com Adolf Hitler e,
decorridos dois dias de conversações «cordiais», assinar «um acordo» que
garantia relações pacíficas entre a Alemanha e os Estados Unidos. Houve
manifestações contra o Acordo da Islândia numa dúzia de cidades
americanas e discursos inflamados no Congresso e no Senado, proferidos
por congressistas democratas que tinham sobrevivido à avalancha
republicana e condenavam Lindbergh por negociar com um tirano fascista
assassino como seu igual e por aceitar, como ponto de encontro, um reino
insular cuja lealdade histórica era devida a uma monarquia democrática
cuja conquista os nazis já tinham consumado – uma tragédia nacional para a
Dinamarca, claramente deplorável para o seu povo e para o seu rei, mas
uma tragédia que a visita de Lindbergh a Reiquiavique parecia absolver
tacitamente.
Quando o presidente regressou da Islândia a Washington – com uma
formação de dez grandes aviões-patrulhas da Marinha a escoltar o novo
bimotor Lockheed Interceptor pilotado por ele próprio –, o seu discurso à
nação constou de cinco frases apenas. «Está agora assegurado que este
grande país não terá qualquer participação na guerra da Europa.» Começou
assim a histórica mensagem, que foi depois desenvolvida e concluída nos
seguintes termos: «Não nos aliaremos a nenhuma facção beligerante em
ponto algum do Globo. Ao mesmo tempo, continuaremos a armar a
América e a treinar os nossos jovens das forças armadas no uso da
tecnologia militar mais avançada. A chave da nossa invulnerabilidade é o
desenvolvimento da aviação americana, incluindo a tecnologia de foguetes.
Isto tornará as nossas fronteiras continentais inexpugnáveis a ataque externo
sem deixarmos de manter a nossa rigorosa neutralidade.»
Dez dias depois, o presidente assinou o Acordo do Havai, em Honolulu,
com o príncipe Fumimaro Konoye, primeiro-ministro do governo imperial
japonês, e o ministro dos estrangeiros Matsuoka. Na condição de emissários
do imperador Hirohito, os dois já tinham assinado uma aliança tripartida
com os Alemães e os Italianos em Berlim, no mês de Setembro de 1940, em
que os Japoneses aprovaram a «nova ordem na Europa», instaurada sob o
comando da Itália e da Alemanha, as quais, por sua vez, aprovaram a «Nova
Ordem da Grande Ásia Oriental» instaurada pelo Japão. Os três países
comprometeram-se ainda a apoiar-se uns aos outros militarmente, no caso
de qualquer deles ser atacado por uma nação não envolvida na guerra
europeia ou na sino-japonesa. Como o Acordo Islandês, o Acordo Haitiano
tornou os Estados Unidos parceiro, em tudo menos em nome, da aliança
tripartida do Eixo, alargando o reconhecimento americano à soberania
japonesa na Ásia Oriental e garantindo que os Estados Unidos não se
oporiam à expansão nipónica no continente asiático, incluindo a anexação
das Índias Holandesas e da Indochina Francesa. O Japão comprometia-se a
reconhecer a soberania dos Estados Unidos no seu próprio continente, a
respeitar a independência política da comunidade americana nas Filipinas –
prevista para ser decretada em 1946 – e a aceitar os territórios americanos
do Havai, Guam e Midway como possessões permanentes dos Estados
Unidos no Pacífico.
Como consequência dos Acordos, americanos proclamavam, em todo o
lado: Guerra nunca mais, jovens a combater e a morrer nunca mais!
Lindbergh sabe lidar com Hitler, diziam, Hitler respeita-o porque ele é
Lindbergh. Mussolini e Hirohito respeitam-no porque ele é Lindbergh. Os
únicos que estão contra ele, diziam as pessoas, são os judeus. E, na
América, isso era com certeza verdade. A única coisa que os judeus podiam
fazer era preocupar-se. Na rua, os nossos anciãos especulavam
incessantemente a respeito do que eles nos fariam, em quem podíamos
confiar para nos proteger e como poderíamos proteger-nos a nós próprios.
Os miúdos mais novos, como eu, chegavam da escola assustados e
confusos, e até em pranto, por causa do que os rapazes mais velhos
andavam a dizer uns aos outros acerca do que Lindbergh dissera a Hitler a
nosso respeito e do que Hitler dissera a Lindbergh a nosso respeito durante
as refeições, juntos, na Islândia. Uma das razões por que os meus pais
decidiram manter os nossos há muito projectados planos para visitar
Washington foi a de convencer o Sandy e a mim – quer eles próprios
acreditassem quer não nisso – de que nada mudara além do facto de FDR já
não ser presidente. A América não era, e não iria ser, um país fascista,
independentemente do que o Alvin vaticinara. Havia um novo presidente e
um novo Congresso, mas tanto um como outro eram obrigados a respeitar a
lei estipulada pela Constituição. Eram republicanos, eram isolacionistas e,
entre eles, havia, sim, anti-semitas, mas isso estava muito longe de serem
nazis. Aliás, bastava ouvir, nas noites de domingo, Winchell desancar o
novo presidente e «o seu amigo Joe Goebbels», ou ouvi-lo enumerar os
lugares que o Departamento do Interior estava a considerar para construir
campos de concentração – lugares na maioria situados em Montana, o
estado natal do vice-presidente da «ordem nacional» de Lindbergh, o
democrata isolacionista Burton K. Wheeler – para termos a certeza do zelo
com que a nova Administração estava a ser vigiada por repórteres favoritos
do meu pai, como Winchell, Dorothy Thompson, Quentin Reynolds e
William L. Shirer, e, é claro, pelo pessoal do PM. Até eu tinha a minha vez
de folhear o PM quando o meu pai o trazia para casa à noite, e não apenas
para ler a banda desenhada Barnaby ou passar os olhos pelas páginas de
fotografias, mas para ter nas mãos prova documentada de que, apesar da
incrível velocidade a que o nosso estatuto de americanos parecia estar a
adulterar-se, ainda vivíamos num país livre.
Depois de Lindbergh prestar juramento como presidente em 20 de Janeiro
de 1941, FDR voltou com a família para a sua propriedade em Hyde Park,
Nova Iorque, e desde então não tinha sido visto ou ouvido. Em virtude de
ter sido na casa de Hyde Park que, quando era rapaz, começara a interessar-
se por coleccionar selos – quando a mãe, segundo rezava a história, lhe dera
os seus próprios álbuns da infância –, eu imaginava-o lá a passar todo o seu
tempo a organizar as centenas de espécimes que acumulara nos seus oito
anos na Casa Branca. Como todos os coleccionadores sabiam, antes dele
nenhum presidente encarregara, nunca, o seu correio-mor de emitir tantos
selos novos, nem houvera nenhum outro presidente americano tão
intimamente envolvido com o Departamento dos Correios. Quando recebi o
meu álbum, praticamente o meu primeiro objectivo era juntar todos os selos
em que sabia que FDR interviera, quer na concepção quer sugerindo-o
pessoalmente, a começar pelo selo de três cêntimos de Susan B. Anthony,
de 1936, comemorativo do décimo sexto aniversário da emenda do sufrágio
feminino, e pelo selo de cinco cêntimos de Virginia Dare, de 1937,
assinalando o nascimento em Roanoke, trezentos e cinquenta anos antes, da
primeira criança inglesa nascida na América. O selo de três cêntimos do Dia
da Mãe de 1934, inicialmente desenhado por FDR – e mostrando no canto
esquerdo a legenda «Em Memória e em Homenagem às Mães da América»
e à direita do centro o famoso retrato da mãe de Whistler feito pelo próprio
–, foi-me dado numa série de quatro pela minha própria mãe, para ajudar a
lançar a minha colecção. Ela também contribuiu para que eu adquirisse os
sete selos comemorativos que Roosevelt aprovara no seu primeiro ano
como presidente e que eu queria ter, porque, em lugar de destaque de cinco
deles, estava impresso «1933», o ano do meu nascimento.
Antes de partirmos para Washington, pedi autorização para levar o meu
álbum de selos na viagem. Receando que eu o perdesse e ficasse desolado, a
minha mãe começou por recusar, mas depois deixou-se convencer quando
eu insisti na necessidade de ter comigo pelo menos os meus selos
presidenciais – ou seja, os dezasseis que eu tinha da série de 1938 e
progrediam sequencialmente, e por denominação, de George Washington a
Calvin Coolidge. O selo do Cemitério Nacional de Arlington de 1922 e os
selos do Monumento a Lincoln e dos Edifícios do Capitólio eram
demasiado caros para o meu orçamento, o que me não impediu de
apresentar, como mais um motivo para levar a minha colecção, o facto de os
três famosos lugares se encontrarem claramente desenhados a preto e
branco na página do álbum que lhes estava reservada. A verdade é que tinha
medo de deixar o álbum na nossa casa vazia, por causa do pesadelo que
tivera, tinha medo de que, quer devido a não ter feito nada no sentido de
retirar, da minha colecção, o selo de correio aéreo de dez cêntimos de
Lindbergh, quer por Sandy ter mentido aos nossos pais e os seus retratos de
Lindbergh continuarem intactos debaixo da sua cama – quer ainda por
causa da nossa traição filial ao conspirarmos um com o outro –, ocorresse
na minha ausência uma transformação perversa que transformasse os meus
desprotegidos Washingtons em Hitleres e imprimisse suásticas nos meus
National Parks.

Mal entrámos em Washington, fizemos uma viragem errada no trânsito


intenso e, enquanto a minha mãe tentava ler o mapa rodoviário e orientar o
meu pai no caminho certo para o nosso hotel, apareceu-nos à frente a maior
coisa branca que eu alguma vez tinha visto. No alto do declive ao fundo da
rua erguia-se o Capitólio dos EUA, com os degraus largos a subir
arrojadamente para a colunata e encimado pela trabalhada cúpula de três
camadas. Inadvertidamente, seguíramos directamente para o próprio
coração da história americana e, soubéssemo-lo ou não com tanta certeza,
era com a história americana, delineada na sua forma mais inspiradora, que
estávamos a contar para nos proteger de Lindbergh.
– Olhem! – exclamou a minha mãe, virando-se para Sandy e para mim,
no banco de trás. – Não é emocionante?
A resposta, claro, era sim, mas Sandy parecia ter mergulhado num torpor
patriótico e eu segui-lhe o exemplo e deixei também o silêncio traduzir o
meu espanto.
Nesse instante, um polícia de motocicleta apareceu ao nosso lado e
perguntou, através da janela aberta:
– O que se passa, Jersey?
– Andamos à procura do nosso hotel – respondeu o meu pai. – Como se
chama ele, Bess?
A minha mãe, ainda subjugada pela majestade atrofiadora do Capitólio,
empalideceu imediatamente e, quando conseguiu falar, a sua voz estava tão
fraca que não se ouvia acima do barulho do trânsito.
– Tenho de tirá-los daqui, amigos – gritou o polícia. – Fale alto, minha
senhora.
– É o Douglas Hotel! – apressou-se a gritar-lhe o meu irmão, ao mesmo
tempo que tentava dar uma boa vista de olhos à motocicleta. – Na Rua K,
Sr. Guarda.
– Assim é que se fala, rapaz. – O polícia levantou o braço, indicando aos
carros atrás de nós que parassem e ao nosso que o seguisse, enquanto dava
meia volta e ia na direcção oposta, pela Pennsylvania Avenue acima.
– Estamos a receber tratamento vip – comentou o meu pai, a rir. – Mas
como sabes para onde ele nos está a levar? – perguntou a minha mãe. – O
que está a acontecer, Herman?
Com o polícia à frente, íamos a passar por uma série de grandes edifícios
federais, quando Sandy apontou, numa grande agitação, para um relvado
ondulante, logo à nossa esquerda.
– Olhem, ali em cima! – exclamou. – A Casa Branca!
Tanto bastou para a minha mãe romper em pranto.
– Não é o mesmo... – tentou explicar, imediatamente antes de chegarmos
ao hotel e o polícia nos acenar um adeus e se afastar ruidosamente –... não é
a mesma coisa, já não é a mesma coisa do que viver num país normal. Sinto
muito, filhos... desculpem-me, por favor. – E começou a chorar de novo.
Num pequeno quarto das traseiras do Douglas havia uma cama de casal
para os meus pais e divãs para o meu irmão e para mim, e mal o meu pai
acabou de gratificar o paquete que abrira a porta e depositara as nossas
malas dentro do quarto, a nossa mãe voltou a ser a mesma de sempre – ou a
fingir que era, arrumando o conteúdo das malas na cómoda e comentando,
em tom de apreço, que as gavetas tinham sido forradas com papel novo.
Estivéramos na estrada desde que tínhamos saído de casa, às quatro horas
da manhã, e passava da uma hora da tarde quando saímos à procura de um
lugar para almoçar. O carro estava estacionado defronte do hotel, do outro
lado da rua, e parado a seu lado encontrava-se um homem baixo, de rosto
anguloso e fato cinzento de casaco assertoado, que tirou o chapéu e se
apresentou: «Chamo-me Taylor, meus senhores. Sou guia profissional da
capital da nação. Se não querem desperdiçar tempo, talvez estejam
interessados em contratar alguém como eu. Conduzo o carro para evitar que
se percam, levo-os aos lugares turísticos, digo-lhes tudo quanto devem
saber, espero-os e encarrego-me fazer com que comam onde o preço for
certo e a comida saborosa, e tudo isso, usando o vosso próprio carro, por
apenas nove dólares por dia. Aqui está a minha licença», acrescentou, e
desdobrou um documento com várias páginas para o mostrar ao meu pai.
«Emitida pela Câmara do Comércio», explicou. «Verlin M. Taylor, caro
senhor, guia oficial do D.C. desde 1937. Desde 5 de Janeiro de 1937, para
ser preciso – o próprio dia em que reuniu o 75.º Congresso dos EUA.»
Os dois trocaram um aperto de mão e, com os seus melhores modos de
agente de seguros, o meu pai folheou os papéis do guia, antes de lhos
devolver.
– Parece-me interessante – declarou. – Mas não creio que nove dólares
por dia estejam no programa, Mr. Taylor, pelo menos no desta família.
– Compreendo. Mas, entregue a si mesmo, sendo o senhor a conduzir sem
saber orientar-se, e depois tentando encontrar um lugar de estacionamento
nesta cidade... bem, em tais circunstâncias o senhor e a sua família não
conseguirão ver metade do que poderão ver comigo, e também não
apreciarão nada como deve ser. Eu podia levá-los a um lugar agradável para
almoçarem, esperá-los com o carro e depois começávamos imediatamente
pelo Monumento a Washington. A seguir, descíamos o Mall para o
Memorial de Lincoln. Washington e Lincoln. Os nossos dois maiores
presidentes – é sempre assim que gosto de começar. Como sabe,
Washington nunca viveu em Washington. O presidente Washington
escolheu o local e assinou a lei que o tornava sede permanente do Governo,
mas foi John Adams, o seu sucessor, o primeiro presidente a mudar-se para
a Casa Branca, em 1800. No dia 1 de Novembro, para ser preciso. A sua
mulher, Abigail, juntou-se a ele, duas semanas mais tarde. Entre os muitos
objectos decorativos interessantes da Casa Branca ainda se conta um copo
de aipo que pertenceu a John e Abigail Adams.
– Bem, aí está uma coisa que eu não sabia – respondeu o meu pai. Mas
permita que discuta este assunto com a minha mulher. – E perguntou em
voz baixa à minha mãe: «Podemos dar-nos a este luxo? Não há dúvida de
que ele é entendido na matéria.» Ela murmurou: «Mas quem o enviou?
Como localizou ele o nosso carro?» «É o seu ofício, Bess. Descobrir quem
são os turistas. É assim que o homem ganha a vida.»
O meu irmão e eu estávamos encolhidos ao lado deles, desejando que a
minha mãe se calasse e o guia bem-falante, de rosto afilado e pernas curtas,
fosse contratado para o tempo que as férias durassem.
– O que é que vocês querem? – perguntou o meu pai, voltando-se para
Sandy e para mim.
– Bem, se for muito caro... – começou o meu irmão.
– Esquece o preço – cortou o meu pai. – Gostas do tipo ou não gostas?
– Ele é um número, pai – sussurrou Sandy. – Parece um daqueles patos de
engodo. Gosto quando ele diz «para ser preciso».
– Bess, o homem é um guia de confiança para Washington, D. C. Não
creio que alguma vez tenha sorrido, mas é um homenzinho atento e não
poderia ser mais bem-educado. Deixa-me ver se ele aceita sete dólares.
Afastou-se de nós, foi ter com o guia, falaram com ar muito sério alguns
minutos e depois, fechado o negócio, voltaram a dar um aperto de mão e o
meu pai disse, em voz alta:
– Pronto, vamos comer! – transbordante de energia, como sempre, mesmo
quando não tinha nada que fazer.
Era difícil dizer o que parecia mais inacreditável: se encontrar-me fora de
Nova Jérsia pela primeira vez na minha vida, a quinhentos quilómetros da
minha casa e na capital da nação, se o facto de a nossa família estar a ser
conduzida, no nosso próprio automóvel, por um desconhecido com o
sobrenome do décimo segundo presidente dos Estados Unidos, cujo perfil
adornava o selo vermelho-violeta, de doze cêntimos, do álbum que eu
levava no colo, colocado entre o Polk azul de onze cêntimos e o Fillmore
verde, de treze cêntimos.
– Washington – dizia-nos Mr. Taylor – divide-se em quatro zonas:
noroeste, nordeste, sudeste e sudoeste. Com poucas excepções, as ruas que
seguem para norte e para sul são identificadas por números, e as que
seguem para leste e oeste, por letras. De todas as capitais do mundo
ocidental, apenas esta cidade foi criada com o fim exclusivo de
proporcionar uma sede ao governo nacional. É isso que a torna diferente
não só de Londres e Paris, mas também da nossa própria cidade de Nova
Iorque e de Chicago.
– Ouviram? – perguntou o meu pai, olhando por cima do ombro para
Sandy e para mim. – Bess, ouviste Mr. Taylor dizer por que motivo
Washington é tão especial?
– Ouvi – respondeu ela, e pegou-me na mão, para se convencer,
convencendo-me, de que tudo iria agora correr bem. Mas, desde o momento
em que entrámos em Washington até sairmos, eu só tive uma preocupação:
evitar que acontecesse algum mal à minha colecção de selos.
A cafetaria onde Mr. Taylor nos deixou era limpa e barata e a comida tão
boa quanto ele dissera, e quando acabámos a refeição e nos dirigimos para a
rua, lá estava o nosso carro, a parar em fila dupla do outro lado da rua.
– Que pontualidade! – exclamou o meu pai.
– Ao longo dos anos, aprendemos a calcular quanto tempo leva uma
família a comer o seu almoço – respondeu Mr. Taylor. – Foi bom, Mrs.
Roth? – perguntou à nossa mãe. – Estava tudo a seu gosto?
– Foi muito agradável, obrigada.
– Está, portanto, toda a gente preparada para o Monumento a Washington
– disse ele, e partimos. – Sabem, evidentemente, em honra de quem é o
monumento: do nosso primeiro presidente e, na opinião da maioria, o nosso
melhor presidente, ao lado do presidente Lincoln.
– Olhe, eu incluiria FDR nessa lista. Um grande homem, e o povo deste
país retirou-o do cargo – respondeu o meu pai. – E veja o que nos calhou na
rifa, em vez dele.
Mr. Taylor escutou cortesmente, mas não disse nada.
– Com certeza já todos viram fotografias do Monumento a Washington –
prosseguiu. – Mas as fotografias nem sempre transmitem a sua imponência.
A uma altura de cento e sessenta e nove metros e trinta e quatro centímetros
acima do solo, é a estrutura de alvenaria mais alta do mundo. O novo
elevador eléctrico transporta-os ao cimo, num minuto e um quarto. Mas
também têm a hipótese de lá chegar subindo a pé uma escada de caracol de
oitocentos e noventa e três degraus. A vista lá de cima abarca um raio de
cerca de 25 a 35 mil metros. É digna de ver. Olhem... estão a vê-lo? Mesmo
em frente.
Minutos depois, Mr. Taylor encontrou um espaço para estacionar no
recinto do monumento e, quando saímos do carro, trotou, de pernas
arqueadas ao nosso lado, enquanto ia explicando:
– O monumento foi limpo há poucos anos, pela primeira vez. Imagine o
trabalho de limpeza que deve ter sido, Mrs. Roth. Usaram água misturada
com areia e escovas com cerdas de aço. Demorou cinco meses e custou cem
mil dólares.
– No governo de FDR? – perguntou o meu pai.
– Creio que sim.
– E as pessoas sabem? As pessoas ligam importância a isso? Não.
Preferem um piloto de correio aéreo a governar o país. E isso não é o pior.
Mr. Taylor ficou cá fora enquanto nós entrámos no monumento. No
elevador, a nossa mãe, que voltara a segurar-me a mão, chegou-se para mais
perto do nosso pai e murmurou:
– Não deves falar dessa maneira.
– Dessa maneira como?
– A respeito de Lindbergh.
– Ah, isso? Exprimi apenas a minha opinião.
– Mas não sabes quem este homem é.
– Isso é que sei. É um guia legalizado, com documentos que o
comprovam. Estamos no Monumento a Washington, Bess, e tu dizes-me
que guarde os meus pensamentos para comigo, como se o Monumento a
Washington estivesse situado em Berlim.
O modo brusco como ele falou afligiu-a ainda mais, sobretudo porque as
outras pessoas que esperavam pelo elevador podiam escutar a nossa
conversa. Voltando-se para outro dos pais presentes, que estava
acompanhado da mulher e de dois filhos, o meu perguntou-lhe: «De onde
são vocês? Nós somos de Jersey.» «Maine», respondeu o homem.
«Ouviram?», perguntou-nos o meu pai, ao meu irmão e a mim. Ao todo,
cerca de vinte crianças e adultos entraram no elevador, ocupando mais ou
menos metade da sua capacidade, e enquanto ele subia pela armação de
pilares de ferro o meu pai aproveitou o minuto e um quarto da subida até ao
cimo para perguntar às restantes famílias de onde eram.
Mr. Taylor esperava-nos do lado de fora, quando terminámos a visita.
Pediu-nos, a Sandy e a mim, que descrevêssemos o que víramos das janelas
situadas a mais de cento e cinquenta metros de altura, e depois guiou-nos
numa rápida volta a pé em redor do exterior do monumento, contando-nos
de novo a história intermitente da sua construção. A seguir tirou algumas
fotografias à família com o nosso «caixote» Brownie. Depois, apesar dos
protestos dele, o meu pai insistiu em fotografar Mr. Taylor com a minha
mãe, Sandy e eu, com o Monumento em fundo. Por fim metemo-nos no
carro e, com Mr. Taylor de novo ao volante, começámos a descer o Mall, a
caminho do Memorial de Lincoln.
Desta vez, enquanto estacionávamos, Mr. Taylor avisou-nos de que não
existia em parte alguma do mundo outro edifício como o Memorial e que
devíamos preparar-nos para ficar estupefactos. Depois acompanhou-nos da
área de estacionamento até ao grande edifício com colunatas e aos largos
degraus de mármore que nos conduziram, para além das colunas, ao interior
do átrio e à estátua de Lincoln no seu amplo trono dos tronos, com o rosto
esculpido a olhar-me como a mais sagrada das amálgamas: o rosto de Deus
e o rosto da América num só.
– E eles mataram-no, os nojentos canalhas – disse o meu pai, gravemente.
Parámos os quatro mesmo na base da estátua, que estava iluminada de
modo a permitir que tudo em redor de Abraham Lincoln parecesse
colossalmente grandioso. O que passava normalmente por imponente
empalidecia e, perante a solene atmosfera de hipérbole, adultos ou crianças
não podiam deixar de se sentir indefesos.
– Quando pensamos no que este país faz aos seus maiores presidentes...
– Herman – pediu a minha mãe –, não comeces.
– Não estou a começar nada. Esta foi uma grande tragédia. Não é
verdade, rapazes? O assassínio de Lincoln.
Mr. Taylor aproximou-se e disse-nos, calmamente:
– Amanhã vamos ao Ford’s Theatre, onde foi atingido a tiro, e ao outro
lado da rua, à Petersen House, para vermos onde morreu.
– Eu estava a dizer, Mr. Taylor, que é indecente o que este país faz aos
seus grandes homens.
– Graças a Deus temos o presidente Lindbergh – disse uma voz de mulher
a pouca distância. Era idosa e estava parada sozinha, a consultar um livro-
guia, e o seu comentário não pareceu dirigido a ninguém em especial,
embora, talvez, inspirado por ter ouvido o meu pai.
– Comparar Lincoln a Lindbergh? Valha-me Deus – gemeu o meu pai.
Na realidade, a senhora idosa não estava sozinha, mas com um grupo de
turistas, entre os quais se encontrava um homem mais ou menos da idade do
meu pai e que poderia ser filho dela.
– Está incomodado com alguma coisa? – perguntou ele ao meu pai,
avançando agressivamente na nossa direcção.
– Eu, não – respondeu-lhe o meu pai.
– Incomodou-o alguma coisa do que a senhora disse?
– Não, senhor. Estamos num país livre.
O desconhecido lançou um olhar demorado e fixo ao meu pai, depois à
minha mãe, depois ao Sandy e depois a mim. E o que viu? Um homem
bem-vestido, musculoso, de peito largo e com um metro e setenta e cinco de
altura, bem-parecido em modesta escala, com olhos verde-acinzentados e
meigos, cabelo castanho ralo, aparado muito curto nas têmporas e
apresentando as duas orelhas ao mundo um pouco mais comicamente do
que era necessário. A mulher era esbelta mas forte e esmeradamente vestida,
com um anel do ondulado cabelo escuro a descair para uma sobrancelha,
faces arredondadas com um toque de rouge, nariz proeminente, braços
roliços, pernas bem torneadas, ancas esbeltas e os olhos vivos de uma
rapariga com metade da sua idade. Em ambos os adultos havia um excesso
de prudência e um excesso de energia, e com o casal encontravam-se dois
rapazes de contornos ainda muito suaves, filhos crianças de pais jovens,
vivamente atentos e saudáveis, incorrigíveis apenas no seu optimismo.
O desconhecido demonstrou a conclusão a que as suas observações o
tinham conduzido com um zombeteiro movimento de cabeça. Depois,
soltando um silvo ruidoso para que ninguém se enganasse quanto à
avaliação que de nós fizera, voltou para junto da senhora idosa e do seu
grupo de excursionistas, afastando-se devagar, com movimentos lentos e
bamboleantes que, juntamente com a silhueta das suas costas largas,
pareciam pretender deixar um aviso. Foi dessa distância que o ouvimos
referir-se ao nosso pai como «um judeu fala-barato», a que a senhora idosa
acrescentou, decorrido um momento: «Daria tudo para o esbofetear.»
Mr. Taylor conduziu-nos rapidamente para um átrio mais pequeno, logo à
saída da câmara principal, onde havia uma placa em que estava inscrito o
Discurso de Gettysburg e um mural cujo tema era a Emancipação.
– Ouvir palavras como aquelas num lugar como este – disse o meu pai,
com a voz estrangulada a tremer de indignação. – Num monumento a um
homem como este!
Entretanto, Mr. Taylor disse, a apontar para o quadro:
– Está a ver aquilo? Um anjo da verdade a libertar um escravo.
Mas o meu pai não conseguia ver nada.
– Acha que ouviria aquilo aqui, se Roosevelt fosse presidente? As pessoas
não ousariam, não lhes passaria pela cabeça, no tempo de Roosevelt... Mas
agora que o nosso grande aliado é Adolf Hitler, agora que o melhor amigo
do presidente dos Estados Unidos é Adolf Hitler... agora eles acham que
podem fazer o que lhes apetece. É infame. Começa na Casa Branca...
Para quem estava ele a falar, a não ser para mim? O meu irmão ia atrás de
Mr. Taylor, a fazer perguntas a respeito do mural, e a minha mãe esforçava-
se para se conter e não dizer ou fazer nada, lutava contra as próprias
emoções que a tinham avassalado, horas antes, no carro – e nessa altura sem
nada que se comparasse no capítulo de justificação.
– Lê aquilo – disse o meu pai, referindo-se à placa com o Discurso de
Gettysburg. – Lê, apenas. «Todos os homens nascem iguais.»
– Herman – queixou-se, ofegante, a minha mãe –, não posso continuar
com isto.
Regressámos à luz do dia e reunimo-nos no degrau de cima. A lança alta
do Monumento a Washington erguia-se a menos de um quilómetro de
distância, do outro lado do espelho de água existente na base do acesso em
ladeira ao Lincoln Memorial. Havia ulmeiros a toda a volta. Era a paisagem
mais bela que eu já tinha visto, um paraíso patriótico, o Jardim do Éden
americano a desenrolar-se à nossa frente – e nós ali imóveis, apertados uns
contra os outros, a família expulsa.
– Ouçam – disse o meu pai, puxando-nos, ao meu irmão e a mim, mais
para ele –, acho que é altura de dormirmos todos uma sesta. Foi um dia
muito comprido para toda a gente. Por isso, vamos para o hotel e
descansamos uma hora ou duas. Que lhe parece, Mr. Taylor?
– É consigo, Mr. Roth. Creio que, depois do jantar, a família gostará de
dar uma volta de carro pela Washington nocturna, com os edifícios famosos
todos iluminados.
– Assim é que se fala. Achas bem, Bess? – Mas a minha mãe não era tão
fácil de animar como o Sandy e eu. – Querida – insistiu o meu pai –,
apanhámos pela frente um chanfrado. Dois chanfrados. Podíamos ter ido ao
Canadá e topado com alguém da mesma laia. Não podemos permitir que
isso nos estrague a viagem. Vamos descansar todos um bocado, Mr. Taylor
espera por nós e depois continuamos. Olha! – acrescentou, fazendo um
movimento largo com o braço estendido. – Isto é uma coisa que todos os
americanos deviam ver. Voltem-se, rapazes, e dêem um último olhar a
Abraham Lincoln.
Fizemos o que ele disse, mas foi-me impossível voltar a sentir os
arroubos do patriotismo virarem-me do avesso. Quando iniciámos a longa
descida da escada de mármore, ouvimos alguns miúdos atrás de nós
perguntarem aos pais: «Aquilo é realmente ele? Está sepultado debaixo de
todas aquelas coisas?» A minha mãe descia a escada ao meu lado, tentando
comportar-se como alguém cujo pânico não corria desenfreado dentro dela,
e de súbito tive consciência de que me competia acalmá-la, tornar-me de
repente uma corajosa nova criatura com algo do próprio Lincoln agarrado a
si. Mas a única coisa de que fui capaz, quando ela me estendeu a mão, foi
de pegar-lhe e apertá-la, como o ser imaturo que era, um rapaz cuja
colecção de selos ainda representava nove décimos do seu conhecimento do
mundo.
No carro, Mr. Taylor planeou o resto do nosso dia. Regressávamos ao
hotel, dormíamos uma sesta e às seis menos um quarto ele ia buscar-nos e
levava-nos de carro a jantar. Podíamos voltar à cafetaria ao lado da Union
Station, onde almoçáramos, ou então ele recomendava um ou dois outros
restaurantes de preços populares e cuja qualidade garantia. Depois do jantar,
conduzir-nos-ia na volta pela Washington nocturna.
– Nada o perturba, pois não, Mr. Taylor? – perguntou-lhe o meu pai.
Limitou-se a responder com um movimento de cabeça cauteloso.
– De onde é?
– De Indiana, Mr. Roth.
– Indiana. Imaginem, rapazes. E qual é a sua cidade natal, lá? – Não
tenho. O meu pai é mecânico. Consertava máquinas agrícolas. Andava
sempre de um lado para o outro.
– Bem – disse o meu pai, por razões que não devem ter sido claras para
Mr. Taylor –, tiro-lhe o chapéu, meu caro senhor. Deve orgulhar-se de si
mesmo.
Mr. Taylor ficou-se uma vez mais pelo movimento da cabeça: era um
homem prático, de fato justo e com alguma coisa de decididamente militar
na sua eficiência e no seu porte – era como uma pessoa escondida, mas não
havia nada a esconder, tudo quanto nele era impessoal estava claramente à
vista. Loquaz quando falava de Washington, D.C., calado a respeito de tudo
o mais.
Quando chegámos ao hotel, estacionou o carro e entrou connosco, como
se não fosse apenas o nosso guia, mas também o nosso acompanhante. E
ainda bem que o fez, pois ao chegarmos ao átrio do pequeno hotel
descobrimos as nossas quatro malas alinhadas ao lado da recepção.
O novo homem que se encontrava atrás do balcão apresentou-se como o
gerente.
Quando o meu pai perguntou o que estavam ali a fazer as nossas malas,
ele respondeu:
– Devo-lhes desculpas, meus caros. Tive de fazer as malas por vocês. O
nosso recepcionista da tarde cometeu um erro. O quarto que lhes deu estava
reservado por outra família. Aqui têm o sinal – e estendeu ao meu pai um
sobrescrito com uma nota de dez dólares.
– Mas a minha mulher escreveu-lhes. E vocês responderam-nos. Fizemos
a reserva há meses. Foi por isso que mandámos o sinal. Bess, onde estão as
cópias das cartas?
– Senhor, o quarto está ocupado e não há vagas – declarou o gerente. –
Não lhes cobramos a utilização que todos fizeram hoje do quarto nem o
sabonete que falta.
– Que falta? – ali estava a palavra certa para o fazer perder as estribeiras.
– Está a dizer que nós o roubámos?
– Não, senhor, não estou. Talvez um dos garotos o tenha guardado como
recordação. Não tem importância nenhuma. Não vamos regatear por uma
coisa tão insignificante nem revistar-lhes as algibeiras, à procura do
sabonete.
– O que significa isto?! – perguntou, peremptório, o meu pai, e deu um
murro no balcão, debaixo do nariz do gerente.
– Mr. Roth, se vai fazer uma cena...
– Vou, vou fazer uma cena até saber o que se passa com aquele quarto!
– Bem, nesse caso não tenho outro remédio senão telefonar à polícia.
Neste ponto, a minha mãe – que tinha um braço por cima dos ombros do
meu irmão e dos meus, protegendo-nos e mantendo-nos a uma distância
segura do balcão – disse o nome do meu pai, tentando impedi-lo de ir mais
longe. Mas era tarde de mais. Sempre fora. Ele jamais teria consentido em
ocupar calmamente o lugar que o gerente pretendia impor-lhe.
– Isto é obra daquele pulha do Lindbergh! – gritou o meu pai. – Todos
vocês, fascistas de meia-tigela, estão agora no poleiro!
– Pega nas malas e parte imediatamente com a sua família ou chamo a
polícia?
– Chame a polícia. Faça isso.
Além de nós, encontravam-se agora no átrio cinco ou seus hóspedes.
Tinham entrado durante a discussão e tinham-se deixado ficar para ver
como ia acabar.
Foi então que Mr. Taylor se colocou ao lado do meu pai e lhe disse:
– Mr. Roth, tem absolutamente toda a razão, mas a polícia é a solução
errada.
– Não, é a solução certa. Chame a polícia – repetiu o meu pai ao gerente.
– Há neste país leis contra gente como você.
O gerente estendeu a mão para o telefone e, enquanto ele marcava o
número, Mr. Taylor dirigiu-se para as malas, pegou em duas em cada mão e
levou-as para fora do hotel.
– Herman, acabou – disse a minha mãe. – Mr. Taylor levou as malas.
– Não, Bess – respondeu ele, azedamente. – Estou farto da treta deles.
Quero falar com a polícia.
Mr. Taylor regressou ao átrio e, a correr e sem parar, dirigiu-se para a
recepção, onde o gerente estava a terminar o telefonema. Em voz baixa,
falou exclusivamente ao meu pai.
– Há um hotel agradável não muito longe daqui. Telefonei-lhes da cabina,
lá de fora. Têm um quarto para vocês. É um hotel simpático, numa rua
simpática. Vamos até lá e registamos a família.
– Obrigado, Mr. Taylor. Mas neste momento estamos à espera da polícia.
Quero que ela recorde a este homem as palavras do Discurso de
Gettysburgh que hoje mesmo vi lá gravadas.
As pessoas que observavam sorriram umas para as outras quando o meu
pai aludiu ao Discurso de Gettysburg.
– O que foi? – segredei ao meu irmão.
– Anti-semitismo – segredou ele em resposta.
De onde estávamos parados, vimos os dois polícias quando chegaram de
motocicleta. Observámo-los enquanto desligavam os motores e entravam no
hotel. Um deles posicionou-se logo à entrada da porta, de onde podia vigiar
toda a gente, enquanto o outro se dirigia para a recepção e fazia sinal ao
gerente para se aproximar de um lugar onde pudessem falar
confidencialmente.
– Senhor agente... – começou a dizer o meu pai.
O polícia virou-se e respondeu-lhe:
– Só posso ouvir uma parte de uma discórdia de cada vez – e recomeçou a
falar com o gerente, enquanto segurava pensativamente o queixo.
O meu pai virou-se para nós:
– Tinha de ser feito, rapazes. – E acrescentou, dirigindo-se à nossa mãe: –
Não há nenhum motivo para te preocupares.
Terminada a conversa com o gerente, o polícia foi falar com o meu pai.
Não sorriu, como fizera intermitentemente enquanto escutava o gerente,
mas, apesar disso, falou sem qualquer indício de irritação e num tom que,
ao princípio, pareceu amigável.
– Qual é o problema, Roth?
– Enviámos um sinal para reservar um quarto neste hotel durante três
noites. Recebemos uma carta a confirmar tudo. A minha mulher tem a
documentação nas nossas malas. Chegámos aqui hoje, registámo-nos,
ocupámos o quarto e desfizemos as malas, saímos para ver a cidade e
quando voltámos fomos despejados, porque o quarto estava reservado não
sei para quem.
– E qual é o problema?
– Somos uma família de quatro pessoas, viajámos de carro todo o
caminho de Nova Jérsia até aqui. Não podem pôr-nos simplesmente na rua.
– Mas se outra pessoa qualquer reserva um quarto...
– Mas não há nenhuma outra pessoa! E mesmo que houvesse, porque
teríamos de ser nós a dar-lhe o lugar?
– Mas o gerente devolveu-lhe o dinheiro do sinal. Até lhe fez as malas.
– Não está a compreender-me. Porque havia a nossa reserva de ceder o
lugar à deles? Estive com a minha família no Lincoln Memorial. Têm o
Discurso de Gettysburgh na parede. Sabe que palavras lá estão escritas?
«Todos os homens nascem iguais.»
– Mas isso não significa que todas as reservas nasçam iguais.
A voz do polícia foi ouvida pelos mirones que ocupavam o átrio.
Incapazes de continuarem a controlar-se, alguns deles riram alto.
A minha mãe deixou-nos, ao Sandy e a mim, sozinhos, a fim de se
aproximar do meu pai e do polícia e intervir. Estivera a aguardar um
momento em que não piorasse as coisas e, apesar da respiração acelerada,
parecia convencida de que esse momento chegara.
– Querido, deixa isso e vamos – implorou ao meu pai. – Mr. Taylor
arranjou um quarto para nós aqui perto.
– Não! – gritou o meu pai, e sacudiu a mão com que ela tentara agarrar-
lhe o braço. – Este polícia sabe por que motivo fomos despejados. Ele sabe,
o gerente sabe, todos quantos estão no átrio sabem.
– Acho que deve dar ouvidos à sua mulher – aconselhou o polícia. – Acho
que deve fazer o que ela lhe está a dizer, Roth. Saia. – Inclinou a cabeça na
direcção da porta e acrescentou: – Saia, antes que me esgote a paciência.
A resistência do meu pai ainda não se esgotara, mas também ainda havia
nele algum bom senso que lhe permitia compreender que os seus
argumentos tinham perdido todo o interesse para toda a gente, a não ser
para ele. Saímos do hotel sob os olhares das outras pessoas. A única que
falou foi o outro polícia. Do lugar onde estava parado, mesmo ao lado da
planta envasada da entrada, acenou-me amigavelmente com a cabeça e,
quando nos aproximámos, estendeu a mão para me despentear. «Como vai
isso, miúdo?» «Bem», respondi. «O que levas aí?» «Os meus selos», disse,
mas continuei a andar, antes que ele pedisse para ver a minha colecção e eu
tivesse de lha mostrar para não ser preso.
Mr. Taylor esperava-nos no passeio.
– Nunca na minha vida me aconteceu uma coisa destas – disse-lhe o meu
pai. – Ando sempre por fora, entre pessoas, pessoas de todas as condições e
estratos sociais, e nunca...
– O Douglas – mudou de mãos – explicou Mr. Taylor. – Tem novos
proprietários.
–Mas temos amigos que se instalaram lá e ficaram 100 por cento
satisfeitos – observou a minha mãe.
– Bem, Mrs. Roth, mudou de proprietários. Mas eu arranjei-lhes um
quarto no Evergreen e vai correr tudo muito bem.
Precisamente neste momento, ouviu-se o ruído forte de um avião a voar
baixo sobre Washington. Ao fundo da rua, algumas pessoas que iam a
caminhar pararam e um dos homens levantou os braços para o céu como se,
em Junho, tivesse começado a nevar.
Sandy, que conseguia identificar praticamente tudo quanto voava pela sua
silhueta, o bem informado Sandy apontou e gritou, por sua vez:
– É o «Lockheed Interceptor»!
– É o presidente Lindbergh – explicou Mr. Taylor. – Todas as tardes, mais
ou menos a esta hora, dá uma pequena volta ao longo do Potomac. Voa para
as Montanhas Alleghenies, depois desce ao longo das Blue Ride e segue
para Chesapeake Bay. As pessoas estão sempre à espera de o ver.
– É o avião mais rápido do mundo – disse o meu irmão. – O
«Messerschmitt 110» dos Alemães voa a trezentas e sessenta e cinco milhas
por hora, enquanto o «Interceptor» voa a quinhentas milhas por hora.
Consegue levar a melhor a qualquer caça do mundo.
Olhámos todos juntamente com Sandy, que era incapaz de disfarçar o seu
encantamento com o próprio «Interceptor» em que o presidente voara para e
da Islândia, a fim de se encontrar com Hitler. O avião subiu em flecha, com
uma força tremenda, antes de desaparecer no céu. As pessoas que andavam
na rua começaram a aplaudir, alguém gritou «Viva Lindy!», e depois
seguiram o seu caminho.
No Evergreen a minha mãe e o meu pai dormiram juntos numa das camas
de pessoa só e o Sandy e eu na outra. Duas camas individuais fora o melhor
que Mr. Taylor conseguira arranjar em tão pouco tempo, mas, depois do que
acontecera no Douglas, ninguém reclamou – nem por as camas não serem
adequadas para descansar, nem por o quarto ser ainda mais pequeno do que
o primeiro, nem por a minúscula casa de banho, apesar de fortemente
impregnada de desinfectante, não cheirar bem –, sobretudo porque, quando
chegámos, fomos amavelmente recebidos por uma mulher bem-disposta, na
recepção, e as nossas malas empilhadas num carrinho por um negro idoso
fardado de paquete, um homem magro, a quem a recepcionista chamava
Edward B., o qual, depois de abrir a porta de acesso ao rés-do-chão do lado
inferior de um respiradouro, anunciou comicamente «O Evergreen Hotel
apresenta à família Roth as boas-vindas à capital da nação!», e fez-nos as
honras do lugar como se a cripta fracamente iluminada fosse um boudoir do
Ritz. O meu irmão não despegara os olhos de Edward B. desde o momento
em que ele carregara a nossa bagagem, e na manhã seguinte, antes de
qualquer de nós acordar, vestiu-se sorrateiramente, pegou no bloco de
esboços e correu para o átrio, a fim de o desenhar. Sucedeu que o paquete
de serviço era outro negro, menos pitorescamente esgalgado e engelhado do
que Edward B., mas sem deixar de ser um achado, do ponto de vista
artístico: muito escuro, com feições faciais vincadamente africanas de um
tipo que Sandy nunca antes tivera oportunidade de desenhar, a não ser a
partir de uma fotografia de um número atrasado da National Geographic.
Passámos a maior parte da manhã com Mr. Taylor a mostrar-nos o
Capitólio e o Congresso e, mais tarde, o Supremo Tribunal e a Biblioteca do
Congresso. Mr. Taylor sabia a altura de todas as cúpulas e as dimensões de
todos os átrios, assim como as origens geográficas do mármore de todos os
soalhos e os nomes das personagens e acontecimentos celebrados em todos
os quadros e murais de todos os edifícios governamentais onde entrávamos.
«Você é excepcional», disse-lhe o meu pai. «Um rapaz de uma vilória de
Indiana. Devia constar do Information Please.»
Depois do almoço, seguimos de carro para sul, ao longo do Potomac para
Virgínia, a fim de visitarmos Mount Vernon.
– Evidentemente que Richmond, Virgínia – explicou Mr. Taylor –, era a
capital dos onze estados sulistas que se separaram da União, a fim de
formarem os Estados Confederados da América. Muitas das grandes
batalhas da Guerra Civil foram travadas na Virgínia. Pouco mais de trinta
quilómetros para oeste fica o Manassas National Battlefield Park. O parque
inclui ambos os campos de batalha onde os Confederados desbarataram as
forças da União perto do pequeno regato de Bull Run, primeiro sob o
comando do general P. G. T. Beauregard e do general J. E. Johnston, em
Julho de 1861, e depois sob o comando do general Robert E. Lee e do
general Stonewall Jackson, em Agosto de 1862. O general Lee comandava
o exército da Virgínia, e o presidente da Confederação, que governava a
partir de Richmond, era Jefferson Davis, se se lembram do que aprenderam
em História. A sudoeste, a cerca de duzentos quilómetros daqui, fica
Appomattox, Virgínia. Sabem o que aconteceu lá, no tribunal, em Abril de
1865. No dia 9 de Abril, para ser preciso. O general Lee rendeu-se ao
general dos EUA, Grant, pondo assim termo à Guerra Civil. E todos sabem
o que aconteceu a Lincoln, seis dias depois: foi alvejado a tiro.
– Aqueles cães nojentos – repetiu o meu pai.
– Bem, lá está ela – disse Mr. Taylor, no exacto momento em que a casa
de Washington aparecia à vista.
– Oh, é tão bonita! – exclamou a minha mãe. – Reparem no pórtico.
Reparem nas janelas altas. Não se trata de uma réplica, meus filhos; é a
verdadeira casa onde George Washington viveu.
– Ele a sua mulher, Martha – recordou-lhe Mr. Taylor –, e os dois
enteados, aos quais o general tinha grande afeição.
– Tinha? Não sabia. O meu filho mais novo tem um selo com Martha
Washington. Mostra o teu selo a Mr. Taylor – pediu a minha mãe, e eu
encontrei-o logo, o selo castanho de um cêntimo e meio, de 1939,
mostrando a mulher do primeiro presidente, de perfil e com o cabelo
coberto por uma coisa que a minha mãe nos identificara, quando arranjei o
selo, como sendo algo entre uma touca e uma rede.
– É de facto ela – confirmou o guia. – Também aparece, como sem dúvida
sabes, num selo de quatro cêntimos de 1923 e noutro de oito cêntimos de
1902. E naquele selo de 1902 que como sabe, Mrs. Roth, é o primeiro a
representar uma mulher americana.
– Sabias isso? – perguntou-me a minha mãe.
– Sabia – respondi e, de repente, esqueci todas as complicações
decorrentes de sermos uma família judia na Washington de Lindbergh e
senti-me como costumava sentir-me na escola quando, no início de um
programa comemorativo, nos levantávamos e cantávamos o hino nacional
com todas as nossas forças.
– Ela foi uma grande companheira para o general Washington – disse-nos
Mr. Taylor. – O seu nome de solteira era Martha Dandridge e era viúva do
coronel Daniel Parke Curtis. Os seus dois filhos chamavam-se Patsy e John
Parke Curtis. Ela levou consigo, quando casou com Washington, uma das
maiores fortunas da Virgínia.
– Estou sempre a dizer isso aos meus rapazes – observou o meu pai, a rir
como não o ouvíramos todo o dia. – Casem como o presidente Washington.
É tão fácil amá-las ricas como pobres.
A visita a Mount Vernon foi o momento mais feliz que passámos naquela
viagem, talvez por causa da beleza do lugar, dos jardins, das árvores e da
casa, majestosamente erguida num promontório sobranceiro ao Potomac;
talvez por causa da invulgaridade, para nós, do mobiliário, da decoração e
do papel de parede – papel de parede a respeito do qual Mr. Taylor sabia um
milhão de coisas –, talvez porque conseguimos ver, de uma distância de
apenas um ou dois metros, a cama de colunas onde Washington dormira, a
secretária onde escrevera, as espadas que usara e os livros que possuíra e
lera; ou talvez somente porque estávamos a escassos vinte e cinco
quilómetros de Washington, D.C. e do espírito de Lindbergh que pairava
sobre tudo.
Mount Vernon estava aberto até às quatro e meia e, por isso, tivemos
muito tempo para ver todas as salas e edifícios exteriores, para andarmos
pelos terrenos e, depois, para visitarmos a loja de recordações, onde
sucumbi à tentação de um abre-cartas que era uma réplica de dez
centímetros, de peltre, de um mosquete com baioneta da Revolução.
Comprei-o com doze dos quinze cêntimos que tinha andado a juntar para a
nossa visita, no dia seguinte, à secção de filatelia do Departamento de
Gravura e Impressão, enquanto Sandy, prudentemente, usou as suas
economias para comprar uma história ilustrada da vida de Washington, um
livro cujas imagens lhe poderiam sugerir mais retratos para a série patriótica
guardada na pasta debaixo da sua cama.
O dia findava e nós íamos tomar um refresco na cafetaria quando vimos
aparecer ao longe um avião, a voar a baixa altitude direito a nós. À medida
que o roncar do motor se foi tornando mais forte, as pessoas começaram a
gritar: «É o presidente! É Lindy!» Homens, mulheres e crianças correram
todos para o grande relvado da frente e acenaram ao aparelho, que inclinou
as asas ao atravessar o Potomac. «Viva!», gritavam as pessoas. «Viva
Lindy!» Era o mesmo caça «Lockeed» que víramos sobrevoar a cidade na
tarde anterior, e não tivemos outro remédio senão ficar ali parados como
patriotas e observar com as outras pessoas, enquanto ele voava, inclinado
lateralmente, sobre a casa de George Washington, antes de virar para
acompanhar o Potomac rumo a norte.
– Não era ele, era ela! – Alguém, que afirmava ter conseguido ver o
interior da cabina, começou a espalhar a notícia de que o piloto do
«Interceptor» era a mulher do presidente.
E talvez fosse verdade. Lindbergh ensinara-a a pilotar quando ela era
ainda a sua jovem noiva e ela voara frequentemente com ele nas suas
viagens aéreas. Por isso, agora, as pessoas começaram a dizer aos filhos que
tinha sido Anne Morrow Lindbergh quem tinham acabado de ver a
sobrevoar Mount Vernon, um acontecimento histórico que jamais
esqueceriam. Por essa altura, a sua audácia como piloto do mais avançado
avião americano, combinada com a sua atitude recatada de filha bem-
educada das classes privilegiadas e os seus dotes literários como autora de
dois livros publicados de poesia lírica, tinham-na consolidado em todas as
sondagens como a mulher mais admirada da nação.
O nosso passeio perfeito ficou, por isso, arruinado, não tanto porque um
avião pilotado por um ou outro dos Lindbergh, num voo de recreio, ter
passado por acaso sobre as nossas cabeças, pela segunda vez consecutiva,
mas pelo sentimento que a exibição, como o meu pai lhe chamava, inspirara
em toda a gente menos em nós.
– Sabíamos que as coisas estavam más – disse o meu pai aos amigos,
assim que se sentou para lhes telefonar, mal regressámos a casa. Precisavam
de ter visto, para poderem acreditar. Eles vivem num sonho e nós vivemos
num pesadelo.
Foi a frase mais eloquente que alguma vez o ouvira pronunciar, e
porventura caracterizada por mais precisão do que alguma jamais escrita
pela mulher de Lindbergh.
Mr. Taylor reconduziu-nos ao Evergreen, para nos lavarmos e
descansarmos, e voltou às cinco horas e quarenta e cinco da tarde, em
ponto, para nos levar à cafetaria económica próxima da estação dos
caminhos-de-ferro. Voltaríamos e encontrar-nos depois, disse-nos, para
iniciarmos a visita nocturna a Washington, adiada na véspera.
– Porque não vem connosco esta noite? – sugeriu o meu pai. – Deve ser
enfadonho comer sempre sozinho.
– Não desejo invadir a sua privacidade, Mr. Roth.
– Ouça, você é um guia maravilhoso e nós apreciaríamos a sua
companhia. É nosso convidado.
A cafetaria era ainda mais popular à noite do que durante o dia, com todas
as cadeiras ocupadas e clientes em pé, em bicha, à espera de serem
atendidos pelos três homens de aventais e barretes brancos tão atarefados a
servi-los que nem tinham tempo para parar e enxugar os rostos transpirados.
À nossa mesa, a minha mãe consolou-se a reatar o seu papel materno das
horas das refeições – «Querido, tenta não baixar o queixo para o prato
quando vais levar a comida à boca» –, e o facto de termos Mr. Taylor
sentado ao nosso lado, como se fosse um parente ou um amigo da família,
embora não constituísse uma aventura tão invulgar como sermos expulsos
do Douglas Hotel, proporcionou-nos a oportunidade de vermos comer
alguém que crescera em Indiana. O meu pai era o único a prestar atenção
aos outros comensais, todos eles a rir e a fumar e a atacar o afrancesado
prato do dia – carne assada au jus e tarte de noz à la mode –, enquanto ele
dava voltas #####
ao seu copo de água, aparentemente a tentar compreender como era
possível que os problemas das vidas deles pudessem ser tão diferentes dos
da sua.
Quando decidiu exprimir os seus pensamentos – que continuaram a ter
primazia sobre o jantar –, não foi a um de nós que escolheu como
interlocutor, mas a Mr. Taylor, que começara a comer a fatia de torta
coberta de queijo cheddar que escolhera para sobremesa.
– Somos uma família judia, Mr. Taylor. Claro que nesta altura já o sabe,
se já não o sabia antes, pois essa foi a razão por que ontem nos expulsaram
do hotel. Foi um grande abalo. É uma coisa difícil de suportar, sem mais
nem menos. Foi um abalo porque, embora se trate de uma coisa que podia
ter acontecido sem este homem ser presidente, a realidade é que ele é
presidente e não gosta dos judeus. É amigo de Adolf Hitler.
– Herman – murmurou a minha mãe –, assustas o pequenito.
– O pequenito já sabe tudo – respondeu ele, e voltou a dirigir-se a Mr.
Taylor. – Alguma vez ouviu o Winchell? Permita que lhe cite Walter
Winchell: «Terá havido algo mais no seu acordo diplomático, terão falado
de outras coisas, concordado sobre outras coisas? Chegaram a um acordo
acerca dos judeus da América – e, se chegaram, qual foi?» Isto revela a
coragem de Winchell. Foram estas as palavras que ele teve a coragem de
dizer à nação inteira.
Surpreendentemente, alguém se aproximara tanto da nossa mesa que
estava meio debruçado sobre ela: um homem idoso, corpulento e de bigode,
com um guardanapo branco enfiado no cinto, e que parecia excitado com o
que quer que tinha intenção de dizer. Estivera a comer ali perto e os seus
companheiros de mesa estavam todos inclinados na nossa direcção,
ansiosos por ouvir o que ia seguir-se.
– Eh, que vem a ser isso, amigo? – disse o meu pai. – Afaste-se, sim?
– Winchell é um judeu a soldo do governo britânico – proclamou o
indivíduo.
O que aconteceu a seguir foi o seguinte: as mãos do meu pai levantaram-
se violentamente da mesa, como se ele fosse espetar a #####
faca e o garfo, de baixo para cima, na pança anafada do desconhecido.
Não precisou de fazer mais nada para demonstrar a sua aversão, mas
mesmo assim o homem do bigode não se mexeu. O bigode não era um
quadrado pequeno e escuro, aparado curto, como o de Hitler, mas sim
inspirado num espírito menos oficioso e mais excêntrico, um bigode de
morsa branco mais vistosamente substancial, do tipo exibido pelo
presidente Taft no selo vermelho-claro de cinquenta cêntimos, de 1938.
– Se alguma vez houve um judeu fala-barato com demasiado poder... –
começou o desconhecido.
– Basta! – gritou Mr. Taylor e, levantando-se de um pulo, colocou-se,
apesar da sua fraca figura, entre o calmeirão que se avantajava sobre nós e o
meu indignado pai, imobilizado cá em baixo por toda aquela burlesca
corpulência.
Judeu fala-barato. E pela segunda vez em menos de quarenta e oito horas.
Dois dos homens de avental que estavam atrás do balcão vieram a correr
para o espaço da cafetaria e agarraram o nosso atacante, um de cada lado.
– Isto não é a sua taberna da esquina – disse-lhe um deles –, não se
esqueça disso.
Quando chegaram à mesa dele empurraram-no para a sua cadeira, e
depois o que o repreendera veio ter connosco e disse:
– Quero que encham bem as chávenas de café. Vou buscar mais gelado
para os rapazes. Deixem-se ficar e acabem de jantar à vontade. Sou o
proprietário, chamo-me Wilbur, e todas as sobremesas que desejarem são
por conta da casa. Entretanto, vou buscar-lhes mais água fresca.
– Obrigado – agradeceu o meu pai, falando com a impessoalidade
espectral de uma máquina. – Obrigado – repetiu. – Obrigado.
– Herman, por favor, vamo-nos embora – pediu a minha mãe, num
murmúrio.
– Não, de modo algum. Estamos a acabar de jantar. – Pigarreou, para
acrescentar: – Viemos ver Washington à noite e não vamos para casa
enquanto não o fizermos.
Por outras palavras, o programa seria cumprido até ao fim, sem permitir
que ninguém nos intimidasse. Para Sandy e para mim isso significou novas
pratadas de gelado, entregues na nossa mesa por um dos homens do balcão.
Passaram alguns minutos antes de a cafetaria se encher de novo com o
barulho do arrastar de cadeiras, o tilintar de talheres e o leve tinir dos
pratos, se não, ainda, com todo o clamor da hora do jantar.
– Queres mais café? – perguntou o meu pai à minha mãe. – Ouviste o que
o proprietário disse: ele quer que enchas a chávena. – Não – murmurou ela.
– Não quero mais.
– Mr. Taylor, mais café?
– Não, estou bem assim.
– Diga-me cá – pediu o meu pai a Mr. Taylor, de modo formal,
constrangido, mas começando de novo a querer deixar para trás tudo quanto
de horrível estava a acontecer –, que tipo de trabalho fazia antes deste? Ou
foi sempre guia em Washington?
E foi neste momento que ouvimos de novo o homem que se levantara
para nos informar de que, como Benedict Arnold antes dele, Walter
Winchell se vendera aos Britânicos:
– Oh, não se preocupem – dizia ele aos seus amigos –, os judeus não
tardarão a aprender.
No silêncio reinante, não podiam restar dúvidas quanto ao significado do
que dissera, tanto mais que não se incomodara a disfarçar o escárnio do tom
da sua voz. Metade dos comensais nem sequer levantou os olhos, fingindo
que não tinha ouvido nada, mas um bom número deles virou-se para olhar
para as ofensivas presenças.
Eu só tinha visto uma vez aplicar alcatrão e penas, num filme do Oeste,
mas pensei: «Vão-nos envolver em alcatrão e penas», imaginando toda a
nossa humilhação colada à pele como uma camada de imundície espessa de
que nunca conseguiríamos libertar-nos.
O meu pai estacou um momento, de novo obrigado a decidir se devia
controlar o sucedido ou deixar-se levar por ele.
– Estava a perguntar a Mr. Taylor – disse, de súbito, à minha mãe,
enquanto lhe tomava as mãos – o que fazia ele antes de ser guia. – E olhou-
a como se tentasse enfeitiçá-la, como alguém cuja arte consiste em impedir
que a nossa vontade seja livre da sua e de agirmos por nosso arbítrio.
– Sim – respondeu ela –, eu ouvi. – E depois, apesar de a angústia lhe
encher de novo os olhos de lágrimas, endireitou-se na cadeira e pediu a Mr.
Taylor:
– Sim, por favor conte-nos.
– Continuem a comer o gelado, filhos – disse o meu pai, estendendo as
mãos e dando-nos pancadinhas nos antebraços, até ambos o olharmos nos
olhos. – É bom?
– É – respondemos.
– Bem, então continuem a comer e não tenham pressa. – Sorriu, para nos
fazer sorrir também, e dirigiu-se a Mr. Taylor: – O emprego antes deste, o
seu antigo emprego. O que é que o senhor fazia?
– Era professor do ensino superior, Mr. Roth.
– A sério? Ouviram, rapazes? Estão a jantar com um professor do ensino
superior.
– Professor de História – acrescentou Mr. Taylor, em nome da precisão.
– Eu devia ter adivinhado – confessou o meu pai.
– Num pequeno colégio no Noroeste de Indiana – disse Mr. Taylor,
esclarecendo-nos aos quatro. – Quando eles encerraram metade do colégio
em 1932, acabou-se, para mim.
– E o que fez, então? – quis saber o meu pai.
– Bem, pode imaginar. Com o desemprego, as greves e o resto, fiz um
pouco de tudo. Durante uns tempos, colhi hortelã nos campos fertéis de
Indiana. Embalei carne para o matadouro em Hammond. Embalei sabão
para a Cudahy em Chicago Oriental. Trabalhei um ano para as Real Silk
Hosiery Mills em Indianapolis. Cheguei mesmo a trabalhar algum tempo
em Logansport, no hospital psiquiátrico de lá, como servente de pessoas
com doenças mentais. Tempos difíceis, acabaram por me fazer desaguar
aqui.
– E como se chamava esse colégio onde trabalhou? – perguntou o meu
pai.
– Wabash.
– Wabash? Bem – comentou o meu pai, apaziguado pelo próprio som da
palavra –, toda a gente ouviu falar dele.
– Quatrocentos e vinte e seis estudantes? Não tenho tanta certeza de que
tenham ouvido. Do que toda a gente ouviu falar foi de uma coisa que um
dos nossos distintos licenciados uma vez disse, embora não o conheçam,
necessariamente, por ter sido um homem de Wabash. Conhecem-no, sim,
por ter sido vice-presidente dos Estados Unidos da América de 1912 a 1920.
Refiro-me ao nosso vice-presidente, durante dois mandatos, Thomas Riley
Marshall.
– Com certeza. O vice-presidente Marshall, governador democrata de
Indiana. Vice-presidente de outro grande democrata, Woodrow Wilson.
Homem de dignidade, o presidente Wilson. Foi o presidente Wilson – disse
o meu pai que, ao fim de dois dias sob a tutela de Mr. Taylor, se sentia
agora, pessoalmente, com veia elucidativa – quem teve a coragem de
nomear Louis D. Brandeis para o Supremo Tribunal. O primeiro membro
judeu de sempre do Supremo Tribunal. Sabiam isso, rapazes?
Sabíamos. Não era, de modo algum, a primeira vez que ele no-lo dizia.
Era apenas a primeira vez que no-lo dizia, em voz tonitruante, numa
cafetaria como esta, em Washington, D. C.
De vento em popa, Mr. Taylor continuou:
– E o que o vice-presidente disse tornou-se famoso em todo o país, desde
então. Um dia, no Senado dos Estados Unidos – quando lá estava a presidir
a um debate –, disse aos senadores presentes: «Do que este país precisa é de
um charuto de cinco cêntimos realmente bom.»
O meu pai riu-se – tratava-se, de facto, de um comentário popular que
conquistara os corações de toda a sua geração e que até Sandy e eu
conhecíamos, de tanto o ouvirmos repetir. Ele riu-se, portanto, com gosto, e
depois, para surpreender ainda mais não só a sua família, mas
provavelmente todos os presentes na cafetaria, a quem já enaltecera
Woodrow Wilson por ter nomeado um judeu para o Supremo Tribunal,
proclamou:
– Do que este país precisa agora é de um novo presidente.
Não provocou nenhum motim. Nada. Na realidade, pelo facto de não ter
desistido, quase parecia ter levado a melhor.
– E não há lá um rio Wabash? – perguntou, a seguir, a Mr. Taylor.
– É o maior afluente do Ohio. Percorre mais de setecentos e cinquenta
quilómetros através do estado, de leste para oeste.
– E também há uma canção – recordou o meu pai, quase sonhadoramente.
– Há, sim senhor – confirmou Mr. Taylor. – Uma canção muito famosa.
Talvez tão famosa como a própria «Yankee Doodle». Foi escrita por Paul
Dresser, em 1897. «Nas Margens do Wabash, Muito longe.»
– Exactamente! – exclamou o meu pai.
– Era a canção favorita dos nossos soldados da Guerra Hispano-
Americana em 1898 e foi adoptada como a canção estadual de Indiana em
1913. Em 4 de Março, para ser preciso.
– Isso mesmo, isso mesmo, eu sei essa – respondeu o meu pai.
E, inesperadamente, num ritmo vivo, começou a cantar com vigor
suficiente para todos os presentes na cafetaria ouvirem: «Através dos
sicómoros a luz das velas brilha...»
– Muito bem – disse o nosso guia, com admiração –, muito bem. – E,
completamente fascinado com a bravura de barítono do meu pai, a grave
pequena enciclopédia sorriu, enfim.
– O meu marido – disse a minha mãe, de olhos secos – tem uma bela voz
para cantar.
– Isso é que tem – afirmou Mr. Taylor, e, embora sem aplausos, a não ser
os de Wilbur atrás do balcão, levantámo-nos repentinamente para sair, antes
de abusarmos do nosso pequenino triunfo e o homem do bigode
presidencial perder a tramontana.
3
Junho de 1941-Dezembro de 1941
SEGUINDO CRISTÃOS

EM 22 DE JUNHO de 1941, o Pacto de Não Agressão Hitler-Estaline –


assinado, dois anos atrás, pelos dois ditadores, poucos dias, apenas, antes da
invasão e divisão da Polónia – foi quebrado sem aviso, quando Hitler,
depois de já ter assolado a Europa continental, ousou empreender a
conquista da enorme massa de terra que se estendia da Polónia, através da
Ásia, até ao Pacífico, preparando um ataque maciço a leste contra as tropas
de Estaline. Nessa noite, o presidente Lindbergh falou à nação, da Casa
Branca, a respeito da colossal expansão da guerra efectuada por Hitler e
surpreendeu até o meu pai com o seu franco enaltecimento do Führer
alemão. «Com este acto», afirmou o presidente, «Adolf Hitler afirmou-se
como a maior salvaguarda do mundo contra o alastramento do comunismo e
dos seus perigos. Isto não pretende minimizar o esforço do Japão imperial.
Empenhados como os Japoneses estão em modernizar a China feudal e
corrupta de Chang Kai-Chek, não o estão menos em erradicar a fanática
minoria comunista chinesa, cujo objectivo é apoderar-se do controlo desse
imenso país e, como os bolcheviques na Rússia, transformar a China num
campo de prisioneiros comunista. Mas é a Hitler que, esta noite, o mundo
inteiro deve estar grato, por ter atacado a União Soviética. Se o exército
alemão for bem-sucedido na sua luta contra o bolchevismo soviético – e há
todas as razões para acreditar que será –, a América nunca terá de enfrentar
a ameaça da imposição, por um Estado comunista, do seu pernicioso
sistema ao resto do mundo. Só espero que os internacionalistas que ainda
servem no Congresso dos Estados Unidos reconheçam que, se tivéssemos
permitido que a nossa nação fosse arrastada para esta guerra mundial ao
lado da Grã-Bretanha e da França, teríamos agora a nossa grande
democracia aliada ao regime perverso da URSS. É muito possível que, esta
noite, o exército alemão esteja a travar a guerra que, de outro modo, teria de
ter sido travada por soldados americanos.»
No entanto, lembrou o presidente aos seus concidadãos, as nossas tropas
estavam e continuariam a estar de prevenção durante muito tempo, graças
ao recrutamento em tempo de paz decretado pelo Congresso a seu pedido:
vinte e quatro meses de treino militar obrigatório para jovens de dezoito
anos, seguidos por oito anos nas reservas, que contribuiriam enormemente
para cumprir o seu objectivo duplo de «manter a América fora de todas as
guerras estrangeiras e manter todas as guerras estrangeiras fora da
América». «Um destino independente para a América»: foi esta a frase que
Lindbergh repetiu algumas quinze vezes no seu discurso do Estado da
Nação e voltou a repetir a fechar o seu discurso na noite de 22 de Junho.
Quando, preocupado com os cabeçalhos e oprimido por todos os meus
pensamentos ansiosos, pedi ao meu pai que me explicasse o que as palavras
significavam, ele franziu a testa e respondeu: «Significam virarmos as
costas aos nossos amigos. Significam tornarmo-nos amigos dos inimigos
deles. Sabes o que significam, meu filho? Significam destruir tudo quanto a
América simboliza.»

Sob os auspícios do Just Folks – descrito pelo recém-criado Gabinete


Americano de Assimilação, de Lindbergh, como «um programa de trabalho
voluntário para familiarizar a juventude citadina com os costumes
tradicionais da vida no interior –, o meu irmão partiu no último dia de
Junho de 1941 para um «aprendizado» estival junto de um cultivador de
tabaco do Kentucky. Porque ele nunca tinha estado longe de casa antes, e
porque a família nunca antes vivera com semelhante incerteza, e porque o
meu pai se opunha veementemente ao que a existência do GAA implicava a
respeito do nosso estatuto como cidadãos – e também porque Alvin, já
ausente a prestar serviço no exército canadiano, se tornara numa fonte de
preocupação constante –, a despedida de Sandy foi emotiva. O que dera a
Sandy força para resistir aos argumentos dos meus pais contra a sua
participação no Just Folks – e, para começar, lhe metera na cabeça a ideia
de se alistar – tinha sido o apoio que recebera de Evelyn, a enérgica irmã
mais nova da minha mãe, agora assistente executiva do rabi Lionel
Bengelsdorf, que fora nomeado pela nova Administração primeiro director
da secção do GAA para o estado de New Jersey. O objectivo anunciado da
organização era pôr em prática programas «para encorajar as minorias
religiosas e nacionais da América a incorporarem-se mais profundamente
no todo da sociedade», embora na Primavera de 1941 a única minoria que o
GAA parecia estar seriamente interessado em encorajar fosse a nossa. Era
intenção do Just Folks retirar centenas de rapazes judeus, com idades
compreendidas entre os doze e os dezoito anos, das cidades onde viviam e
frequentavam a escola e pô-los a trabalhar durante oito semanas como
trabalhadores agrícolas e jornaleiros em casa de famílias rurais, a centenas
de quilómetros das suas casas. Tinham sido colocadas notificações
elogiando o novo programa estival em quadros de afixação de boletins da
Chancellor e da Weequahic, a escola secundária logo ao lado, onde a
população estudantil, como a nossa, era quase 100 por cento judia. Num dia
de Abril, um representante do GAA de New Jersey tinha ido falar com os
rapazes de doze anos e mais acerca da missão do programa, e nessa noite
Sandy apresentou-se à mesa do jantar com um impresso de inscrição que
requeria a assinatura de um progenitor.
– Compreendes o que este programa tenta, na realidade, fazer? –
perguntou-lhe o meu pai. – Compreendes por que motivo Lindbergh quer
separar rapazes como tu das suas famílias e recambiá-los para a parvónia?
Fazes alguma ideia do que está por trás de tudo isto?
– Não tem nada que ver com anti-semitismo, se é isso que está a pensar.
Tem uma coisa, e uma só, na cabeça. Trata-se apenas de uma grande
oportunidade, mais nada.
– Oportunidade de quê?
– De viver numa quinta. De ir a Kentucky. De desenhar todas as coisas de
lá. Tractores. Celeiros. Animais. Toda a espécie de animais.
– Mas eles não estão a mandar-te para tão longe para desenhares animais
– disse-lhe o meu pai. – Estão a mandar-te para levares a lavagem aos
animais. Estão a mandar-te para espalhares estrume. Ao fim do dia estarás
tão estoirado que não conseguirás aguentar-te em pé, quanto mais desenhar
um animal.
– E as tuas mãos – lembrou a minha mãe. – Nas quintas há arame
farpado. Há máquinas com lâminas afiadas. Podias ferir as mãos, e depois o
que seria de ti? Nunca mais voltarias a desenhar. Pensava que ias ter aulas
de Artes na secundária, este Verão. Ias aprender desenho com Mr. Leonard.
– Posso fazer isso em qualquer altura... isto é ir ver a América!
Na noite seguinte, a tia Evelyn veio jantar connosco, convidada pela
minha mãe, a uma hora em que Sandy tencionava estar em casa de um
amigo a fazer os trabalhos de casa. Deste modo, ele não estaria presente e
não ouviria a discussão que, com certeza, deflagraria entre a tia Evelyn e o
meu pai a respeito do Just Folks, e que eclodiu, de facto, mal ela entrou em
casa e anunciou que se encarregaria do encaminhamento da candidatura de
Sandy, assim que ela chegasse ao escritório.
– Não nos faças favores – replicou o meu carrancudo pai.
– Queres dizer que não o deixas ir?
– Porque deixaria? Porque haveria de deixar?
– Por que demónio não haverias de deixar, a não ser que sejas mais um
judeu com medo da própria sombra?
A discordância entre ambos tornou-se ainda mais veemente durante o
jantar, com o meu pai a teimar que o Just Folks era o primeiro passo de um
plano de Lindbergh para separar as crianças judias dos pais, para corroer a
solidariedade da família judaica, e a tia Evelyn a insinuar, com pouca
diplomacia, que o maior medo de um judeu como o seu cunhado era que os
filhos conseguissem não ser tão tacanhos de espírito e assustados como ele
era.
Alvin era o renegado do lado do meu pai, Evelyn era a ovelha
tresmalhada do lado da minha mãe, uma professora primária substituta do
sistema educativo de Newark que, alguns anos antes, desempenhara um
papel activo na criação da ala esquerda, maioritariamente judaica, do
Sindicato de Professores de Newark, cujas poucas centenas de membros
competiam com uma associação de professores mais cordata e apolítica na
negociação de contratos com o município. Em 1941 Evelyn tinha apenas
trinta anos, e até dois anos antes, quando a minha avó materna morrera de
insuficiência cardíaca após uma década como doente coronária, foi a minha
tia quem tratou dela no minúsculo espaço de uma casa de dois apartamentos
e águas-furtadas que mãe e filha partilhavam em Dewey Street, não muito
longe da escola de Hawthorne Avenue, onde Evelyn costumava trabalhar
como substituta. Nos dias em que não havia uma vizinha livre para ir lá a
casa ver como a minha avó estava, a minha mãe apanhava o autocarro para
Dewey Street e tomava conta dela, até Evelyn regressar do trabalho, e
quando, um ou outro sábado à noite, a minha tia ia a Nova Iorque ver uma
peça de teatro, ou o meu pai trazia a minha avó de carro para passar o serão
connosco ou a minha mãe voltava a Dewey Street e cuidava dela lá. Muitas
noites a tia Evelyn não conseguia regressar de Nova Iorque a casa, apesar
de ter planeado voltar antes da meia-noite, e por isso a minha mãe era
obrigada a passar a noite longe do marido e dos filhos. Havia também as
tardes em que Evelyn só regressava horas depois de as aulas terem
terminado, por causa de um caso amoroso de longa data, do tipo pára--
arranca, com um professor substituto de North Newark, como ela, forte
defensor do sindicato e, ao contrário dela, casado, italiano e pai de três
filhos.
A minha mãe alegava sempre que, se não tivesse estado todos aqueles
anos presa em casa a tratar da mãe incapacitada de ambas, Evelyn teria
assentado e casado depois de obter o diploma de professora e jamais teria
acabado enredada em «duvidosas» relações instáveis com homens casados
que eram seus colegas de trabalho. O seu nariz grande não impedia as
pessoas de a considerarem «vistosa», e era verdade, como contava a minha
mãe, que, quando a pequena Evelyn entrava numa sala – uma morena cheia
de vida, com uma silhueta feminina, ainda que em miniatura, enormes olhos
escuros oblíquos como os de um gato e batom carmesim garantido para
ofuscar –, toda a gente se voltava para a olhar, tanto as mulheres como os
homens. O seu cabelo tinha um brilho metálico e ela usava-o puxado para
trás e preso num carrapito, tinha as sobrancelhas espectacularmente
depiladas e quando saía de casa para dar aulas, vestia uma saia de cor viva,
sapatos de salto alto a condizer, um cinto branco largo e uma blusa
semitransparente, de tom pastel. O meu pai considerava o seu vestuário de
mau gosto para uma professora primária, e o director da Hawthorne era da
mesma opinião, mas a minha mãe, que, certa ou erradamente, se censurava
por Evelyn ter tido de «sacrificar a sua juventude» para cuidar da mãe de
ambas, era incapaz de julgar com severidade a ousadia da irmã, mesmo
quando esta desistiu de ensinar, saiu do sindicato e, aparentemente sem um
rebate de consciência, abandonou as suas convicções políticas para
trabalhar para o rabi Bengelsdorf no GAA de Lindbergh.
Decorreriam vários meses antes de passar pela cabeça dos meus pais que
a tia Evelyn era a amante do rabi, e fora-o desde que ele a conhecera numa
recepção que se seguira ao seu discurso ao Sindicato de Professores de
Newark, «O Fomento de Ideais Americanos na Sala de Aula» – e
perceberam-no então apenas porque, ao abandonar o seu GAA em Nova
Jérsia para desempenhar o cargo de director federal na sede nacional em
Washington, Bengelsdorf deu aos jornais de Newark a notícia do seu
noivado, aos sessenta e três anos de idade, com a sua fogosa assistente de
trinta e um.

Quando fugiu pela primeira vez para combater contra Hitler, Alvin
imaginava que a maneira mais rápida de entrar em combate seria a bordo de
um dos contratorpedeiros canadianos que protegiam os navios mercantes
que transportavam mantimentos para a Grã-Bretanha. Os jornais
publicavam regularmente notícias do afundamento por submarinos alemães
de um ou mais desses navios canadianos no Atlântico Norte, por vezes tão
perto do continente como as águas de pesca costeira da Terra Nova – um
estado de coisas nefasto para os Ingleses, em virtude de o Canadá se ter
tornado praticamente a sua única fonte de abastecimento de armas,
alimentos, medicamentos e maquinaria desde que a Administração
Lindbergh cancelara a legislação de ajuda aprovada pelo Congresso de
Roosevelt. Em Monreal, Alvin conheceu um jovem desertor americano que
lhe disse para esquecer a Marinha: quem estava no centro da acção eram os
comandos canadianos, que desencadeavam raides nocturnos sobre o
continente ocupado pelos nazis, sabotando serviços vitais para os Alemães,
atirando pelos ares arsenais de munições e, ao lado de comandos britânicos
e em consonância com movimentos clandestinos de resistência europeia,
destruindo docas e estaleiros ao longo da linha costeira da Europa
Ocidental. Quando contou a Alvin as muitas maneiras de matar um homem
que os comandos ensinavam, o meu primo abandonou os seus planos
iniciais e alistou-se neles. Como as restantes forças armadas canadianas, os
comandos estavam ansiosos por receber nas suas fileiras cidadãos
americanos qualificados, e por isso, decorridas dezasseis semanas de treino,
Alvin foi incorporado numa unidade de comandos activa e enviado para
uma área de concentração secreta nas Ilhas Britânicas. E foi então que
tivemos finalmente notícias dele, quando recebemos uma carta com sete
palavras que dizia: «Vou partir para combater. Vejo-os em breve.»
Foi só dias depois de Sandy, entregue a si mesmo, ter apanhado o
comboio nocturno para Kentucky que os meus pais receberam uma segunda
carta, esta enviada não pelo meu primo, mas pelo Ministério da Guerra de
Otava, comunicando aos parentes próximos designados por Alvin que o seu
sobrinho fora ferido em combate e se encontrava a convalescer num
hospital em Dorset, Inglaterra. Depois de os pratos do jantar dessa noite
terem sido levantados, a minha mãe voltou a sentar-se à mesa da cozinha
com uma caneta de tinta permanente e a caixa de papel de carta
monogramado reservado para correspondência importante. O meu pai
sentou-se defronte dela e eu fiquei de pé, a olhar por cima do seu ombro, a
ver o seu cursivo desenrolar-se uniformemente, segundo as normas da
técnica caligráfica que ela usara como secretária e nos ensinara cedo, ao
Sandy e a mim: o terceiro e o quarto dedos posicionados de modo a
suportarem a mão e o indicador mais perto do bico da caneta do que o
polegar. Dizia cada frase em voz alta antes de a escrever, para o caso de o
meu pai querer modificá-la ou acrescentar alguma coisa.

Querido Alvin,
Esta manhã recebemos uma carta do governo canadiano informando-nos
de que foste ferido em combate e estás num hospital em Inglaterra. A carta
não continha nada mais específico do que uma morada para onde podíamos
escrever-te.
Neste momento, encontramo-nos à mesa da cozinha, o tio Herman, o
Philip e a tia Bess. Todos nós desejamos saber tudo a respeito do teu estado.
O Sandy foi passar o Verão fora, mas nós vamos escrever-lhe
imediatamente a teu respeito.
Existe alguma possibilidade de seres reenviado para o Canadá? Se existir,
iremos lá ver-te de carro. Entretanto, enviamos-te todo o nosso amor e
esperamos que nos escrevas de Inglaterra. Por favor, escreve ou pede a
alguém que escreva por ti. Seja o que for que queiras que nós façamos, nós
faremos.
Mais uma vez, amamos-te e temos saudades tuas.

Acrescentámos a esta missiva as nossas três assinaturas. Passou quase um


mês antes de recebermos uma resposta.

Caros Mr. e Mrs. Roth:


O cabo Alvin Roth recebeu a vossa carta de 5 de Julho. Sou o enfermeiro-
chefe da unidade dele e li-lhe várias vezes a carta, para ter a certeza de que
ele compreendia de quem era e o que dizia.
Neste momento, o cabo Roth não está comunicativo. Perdeu a perna
esquerda abaixo do joelho e foi gravemente ferido no pé direito. O pé está a
sarar e esse ferimento não deverá deixá-lo diminuído. Quando a sua perna
estiver em condições, ser-lhe-á posta uma prótese e será ensinado a andar
com ela.
Este é um momento triste para o cabo Roth, mas desejo garantir-lhes que,
com o tempo, ele poderá reatar a sua vida como civil sem quaisquer
problemas físicos importantes. Este hospital limita-se a tratar amputados e
queimados. Já vi muitos homens passarem pelas mesmas dificuldades
psicológicas que o cabo Roth, mas a maior parte deles ultrapassou-as e é
minha forte convicção que o cabo Roth também as ultrapassará.
Com consideração,
Tenente A. F. Cooper

Sandy escrevia uma vez por semana a dizer que se encontrava bem e a
falar do calor que estava no Kentucky, e rematava com uma frase a respeito
da vida na quinta – qualquer coisa como «Há uma colheita monumental de
amoras», ou «As moscas estão a dar com os bezerros em malucos», ou
«Hoje andam a ceifar alfafa», ou «Começou a poda das copas», fosse o que
fosse que isso significava. No fim, por baixo da assinatura – e talvez para
provar ao pai que tinha energia suficiente para os seus desenhos, mesmo
depois de trabalhar o dia inteiro na quinta – fazia o desenho de um porco
(«Este porco», informava, «pesa mais de cento e trinta e cinco quilos»), ou
de um cão («Suzie, a cadela do Orin, especializada em afugentar cobras»,
ou de um cordeiro («Ontem, Mr. Mawhinney levou trinta cordeiros para os
currais»), ou de um celeiro («Acabaram de o pintar com creosote. Que
fedor!») Geralmente, o espaço ocupado pelo desenho era maior do que o
ocupado pelas notícias e, para desgosto da minha mãe, as perguntas que ela
fizera na sua própria carta semanal – se precisava de roupa, remédios ou
dinheiro – raramente obtinham resposta. É claro que eu sabia que a minha
mãe se preocupava com igual carinho com cada um dos seus filhos, mas foi
só quando Sandy partiu para o Kentucky que compreendi quanto ele
significava para ela como alguém diferente do seu irmão mais novo.
Embora não se mostrasse desanimada por estar oito semanas separada de
um filho já com treze anos, durante todo o Verão notaram-se laivos de
melancolia subjacentes em certos gestos e expressões faciais, sobretudo à
mesa da cozinha, onde a quarta cadeira puxada para o jantar permanecia
deserta, noite após noite.
A tia Evelyn estava connosco quando fomos à Penn Station esperar
Sandy, no sábado de finais de Agosto em que ele regressou a Newark. Era a
última pessoa cuja presença o meu pai desejaria, mas, do mesmo modo que,
contra a sua própria vontade, acabara por deixar Sandy inscrever-se no Just
Folks e aceitar o emprego estival no Kentucky, voltou a submeter-se à
influência da cunhada sobre o seu filho, para não tornar ainda mais difícil
uma situação melindrosa cujo perigo final ainda não era inteiramente claro.
Na estação, a tia Evelyn foi a primeira a reconhecer Sandy quando ele
desceu do comboio para o cais, cerca de cinco quilos mais pesado do que
quando partira e com o cabelo castanho mais alourado, em virtude de ter
trabalhado nos campos sob o sol estival. Também estava uns cinco
centímetros mais alto, de modo que as calças lhe ficavam agora a uma boa
distância dos sapatos, e eu tinha a impressão de que o meu irmão se
encontrava disfarçado.
– Eh, agricultor – chamou a tia Evelyn –, estamos aqui! – E Sandy veio
em grandes passadas direito a nós, balançando as malas aos lados do corpo
e exibindo um novo andar solto a condizer com o novo físico.
– Bem-vindo a casa, forasteiro – disse a minha mãe e, com o ar de uma
rapariga nova, passou-lhe os braços pelo pescoço, feliz, e as palavras que
lhe murmurou ao ouvido («Alguma vez existiu um rapaz mais bonito?»)
fizeram-no protestar: «Mãe! Deixe-se disso!», o que provocou,
evidentemente, uma grande gargalhada ao resto da família. Abraçámo-lo
todos e, parado ao lado do comboio em que entrara uns mil e duzentos
quilómetros atrás, Sandy flectiu os bicípites para eu os apalpar. No carro,
quando começou a responder às nossas perguntas, descobrimos como a sua
voz se tornara grossa e ouvimos pela primeira vez o tom arrastado e
fanhoso.
A tia Evelyn estava triunfante. Sandy falou do último trabalho que fizera
nos campos: andar com Orin, um dos filhos de Mawhinney, a apanhar as
folhas de tabaco partidas durante a colheita. Eram geralmente as mais
baixas da planta e chamavam-lhes «voadoras», mas tratava-se de tabaco de
elevada qualidade e que atingia o preço mais alto do mercado. No entanto,
os homens que fazem o corte num campo de tabaco de cerca de dez
hectares não podem perder tempo com as folhas do chão, explicou-nos,
porque têm de cortar uns três mil sarrafos para tabaco por dia, a fim de em
duas semanas ficar tudo armazenado no barracão de cura. «Ena, ena... o que
é um sarrafo, querido?», perguntou a tia Evelyn, e ele respondeu-lhe
amavelmente, com a mais longa explicação possível. E também perguntou o
que é um barracão de cura, o que é podar as copas, o que é rebento ladrão, o
que é desinfestar? E quanto mais perguntas a tia Evelyn fazia, mais Sandy
adoptava um ar entendido, de modo que, mesmo quando chegámos à
Summit Avenue e o meu pai parou o carro no beco, ele continuava a
dissertar acerca da cultura do tabaco como se esperasse que todos nós
fôssemos a correr para o quintal e começássemos a preparar o canteiro
inçado de ervas ao lado dos contentores de lixo para a primeira de todas as
colheitas de white burley8. «É o do tipo adocicado dos Luckies», informou-
nos, «que lhes dá o gosto que têm». E, entretanto, eu estava em pulgas para
lhe apalpar de novo os bicípites, que para mim não eram menos
extraordinários do que o sotaque regional, se era disso que se tratava –
trocava os sons de «an» por «ain», e de «e» por «ai», e de «ai» por «aa», e
de «ain» por «in», acrescentava um «a» antes de algumas palavras
começadas por «w» ou «t»... e podem chamar o que quiserem àquela
misturada de inglês, mas não era o que nós, nativos de Newark, falávamos.
A tia Evelyn estava triunfante, mas o meu pai parecia embasbacado e não
dizia quase nada. Naquela noite, a mesa do jantar pareceu particularmente
soturna quando Sandy começou a descrever o modelo que Mr. Mawhinney
era. Para começar, era licenciado pela Faculdade de Agricultura da
Universidade de Kentucky, enquanto o meu pai, como muitas outras
crianças dos bairros pobres de Newark de antes da Guerra Mundial, não
tinha estudado para além do oitavo ano. Mr. Mawhinney era proprietário
não apenas de uma quinta, mas de três – as duas mais pequenas estavam
arrendadas –, terra que pertencia à sua família quase desde o tempo de
Daniel Boone, enquanto o meu pai não tinha nada mais impressionante do
que um carro com seis anos. Mr. Mawhinney sabia selar um cavalo,
conduzir um tractor, trabalhar com uma debulhadora, manobrar uma
adubadora, lavrar um campo tão facilmente com uma parelha de machos
como com uma junta de bois; sabia fazer rotação de colheitas e dirigir
homens contratados, tanto brancos como negros; sabia reparar ferramentas,
afiar pontas de arado e segadeiras, colocar cercas e arame farpado, criar
frangos, lavar ovinos com desinfectante, serrar os cornos a gado, matar
porcos, fumar toucinho, fazer fiambre – além de cultivar melancias que
eram as mais doces e sumarentas que Sandy jamais comera. Graças ao
cultivo de tabaco, milho e batatas, Mr. Mawhinney conseguia ganhar a vida
com o produto da terra e depois, ao jantar de domingo (onde o agricultor,
com um metro e noventa de altura e cento e cinco quilos de peso, devorava
mais frango frito com molho de natas do que todas as outras pessoas à mesa
juntas), comia apenas alimentos que ele próprio cultivara e criara, ao passo
que a única coisa que o meu pai fazia era vender seguros. Escusado seria
dizer que Mr. Mawhinney era cristão, membro de longa data da esmagadora
maioria que combateu na Revolução e fundou a nação, conquistou a
imensidão selvagem, dominou os Índios, escravizou os Negros, emancipou
os Negros e segregou os Negros, um dos milhões de homens bons, puros e
trabalhadores que povoavam a fronteira, lavravam os campos, construíam
as cidades, governavam os estados, tinham assento no Congresso,
ocupavam a Casa Branca, acumulavam a riqueza, possuíam a terra, eram
donos das fábricas de aço, e dos clubes de basebol, e dos caminhos-de-
ferro, e dos bancos e eram até donos e fiscais da língua, era um daqueles
inatacáveis protestantes nórdicos e anglo-saxões que dirigem e sempre
dirigirão a América – generais, dignitários, magnatas, manda-chuvas, os
homens que ditavam a lei, e punham e dispunham, e pregavam sermões
quando lhes apetecia – enquanto o meu pai, evidentemente, era apenas um
judeu.

O meu irmão soube o que acontecera ao Alvin depois de a minha tia ter
ido para casa. O meu pai estava a trabalhar nos seus livros de contabilidade
na mesa da cozinha, antes de sair para fazer as suas cobranças nocturnas, e
a minha mãe estava na cave com Sandy, a escolher as roupas que ele
trouxera do Kentucky para decidir o que precisava de arranjo e o que tinha
de deitar fora, antes de meter todo o resto no tanque de lavar. Fazia sempre
imediatamente o que tinha de ser feito e estava decidida a tratar da roupa
suja dele antes de ir para a cama. Eu estava lá em baixo com eles, resolvido
a não perder o meu irmão de vista. Ele soubera sempre tudo o que eu não
sabia e regressara do Kentucky a saber ainda mais.
– Preciso de te contar o que aconteceu ao Alvin – disse-lhe a minha mãe.
– Não quis dizer-to por escrito porque... bem, não queria abalar-te, querido.
– Depois de se controlar e ter a certeza de que não ia chorar, acrescentou em
voz baixa: – O Alvin foi ferido. Está num hospital em Inglaterra, a
recuperar dos ferimentos.
– Quem o feriu? – perguntou Sandy, surpreendido, como se ela estivesse
a informá-lo de uma coisa ocorrida no nosso bairro em vez de na Europa
ocupada pelos nazis, onde estavam constantemente a estropiar, ferir e matar
pessoas.
– Não sabemos os pormenores – respondeu-lhe a minha mãe. – Mas não
se trata de um ferimento superficial. Tenho de te dizer uma coisa muito
triste, Sanford. – E, apesar dos seus esforços para não abalar a coragem de
ninguém, a sua voz começou a tremer quando disse: – O Alvin perdeu uma
perna.
– Uma perna? – Não há muitas palavras menos abstrusas do que «perna»,
mas foi preciso algum tempo para ele compreender.
– Sim. Segundo a carta que recebi de um dos seus enfermeiros, foi a
perna esquerda, abaixo do joelho. – E, como se isso pudesse de algum de
modo acalmá-lo, acrescentou: Se quiseres lê-la, a carta está lá em cima.
– Mas... como é que ele vai andar?
– Vão pôr-lhe uma perna artificial.
– Mas não compreendo quem o feriu. Como é que ele foi ferido?
– Bem, eles estavam lá para combater contra os alemães, por isso deve ter
sido um deles.
Ainda a tentar ignorar o que já apreendera parcialmente, Sandy
perguntou:
– Qual delas?
– A esquerda – repetiu ela, o mais ternamente que pôde.
– A perna inteira? Toda?
– Não, não – apressou-se a tranquilizá-lo. – Eu disse-te, querido: abaixo
do joelho.
De súbito, Sandy começou a chorar e, em virtude de ter crescido tanto na
largura de ombros, no peito e nos pulsos em relação ao que fora na
Primavera anterior, em virtude de os seus braços serem agora musculosos
como os de um homem em vez de magros como os de uma criança,
assustei-me ao ver as lágrimas correrem-lhe pelas faces fortemente
bronzeadas e comecei a chorar também.
– É horrível, querido – disse a minha mãe. – Mas o Alvin não está morto.
Ainda está vivo e agora, pelo menos, fora da guerra.
– O quê? – explodiu Sandy. – Ouviu o que acabou de me dizer?
– A que te referes?
– Não ouviu o que disse? Disse: «Está fora da guerra.»
– E está. Definitivamente. E porque está, voltará para casa antes que lhe
possa acontecer mais alguma coisa.
– Mas porque estava ele, sequer, na guerra, mãe?
– Porque...
– Por causa do pai! – gritou Sandy.
– Não, querido, isso não é verdade – respondeu ela, e a sua mão voou
para lhe cobrir a boca, como se tivesse sido ela quem dissera aquelas
palavras imperdoáveis. – Não foi assim – protestou. – O Alvin foi para o
Canadá sem nos dizer nada. Fugiu na sexta-feira à noite. Tu lembras-te
como foi terrível para nós. Ninguém queria que ele fosse para a guerra... ele
foi porque quis, sem dizer nada.
– Mas o pai quer que o país inteiro vá para a guerra. Não quer? Não foi
por isso que votou em Roosevelt?
– Baixa a voz, por favor.
– Primeiro dá graças a Deus por o Alvin estar fora da guerra...
– Baixa a voz! – A tensão do dia avassalou-a de tal modo que perdeu a
paciência e disse em tom ríspido ao rapaz cuja falta sentira tão
dolorosamente o Verão inteiro: – Não sabes do que estás a falar!
– Mas vocês não ouvem! – gritou ele. – Se não fosse o presidente
Lindbergh...
De novo aquele nome! Preferia ter ouvido uma bomba explodir do que,
uma vez mais, aquele nome que andava a atormentar-nos a todos.
Precisamente neste momento, o meu pai apareceu na luz fraca do patamar
do cimo da escada para a cave. Talvez tenha sido bom que, de onde
estávamos parados junto do grande tanque de lavar roupa, só lhe
conseguíssemos ver as calças e os sapatos.
– Ele está transtornado por causa do Alvin – disse a minha mãe, olhando
para cima, para explicar o motivo dos gritos. – Eu cometi um erro. –
Acrescentou, dirigindo-se ao Sandy: – Nunca te deveria ter dito esta noite.
Não é fácil para um rapaz regressar a casa de uma grande experiência como
aquela... nunca é fácil ir de um lugar para outro... e, de qualquer maneira,
estás tão cansado... – E depois, sem força, rendendo-se à sua própria
exaustão, rematou: – Agora vão para cima, os dois, para eu poder lavar a
roupa.
Voltámo-nos para subir a escada e descobrimos, por sorte, que o meu pai
já desaparecera do patamar e estava lá fora, no carro, para ir fazer as suas
cobranças nocturnas.

Na cama, uma hora depois. Toda a casa está às escuras. Nós falamos
num sussurro.

Divertiste-te, realmente?

Diverti-me muito, foi formidável.

Que foi que o tornou tão formidável?

Estar numa quinta é formidável. Temos de nos levantar de manhã cedo,


passamos o dia ao ar livre e há todos aqueles animais. Desenhei uma
quantidade deles, depois mostro-te os meus desenhos. E comíamos gelado
todas as noites. É a própria Mrs. Mawhinney que o faz. Lá têm leite fresco.

Todo o leite é fresco.

Não, nós tínhamo-lo directamente da vaca. Ainda estava morno. Punha-se


ao lume, fervia-se e depois era só tirar a nata de cima e beber.

E não se pode adoecer por causa disso?

É por isso que o fervem.

Mas não o bebias directamente da vaca.

Uma vez experimentei, mas não sabe tão bem. É demasiado cremoso.

Ordenhaste uma vaca?


Orin mostrou-me como se faz. É difícil. Ele esguichava o leite e os gatos
vinham todos e tentavam apanhá-lo.

Tinhas amigos?

Bem, o Orin é o meu melhor amigo.

Orin Mawhinney?

Sim. É da minha idade. Anda na escola de lá. Trabalha na quinta.


Levanta-se às quatro da manhã. Tem tarefas a cumprir. Não é como nós. Vai
para a escola de autocarro. São cerca de quarenta e cinco minutos de
viagem. Regressa à noite e faz mais tarefas, além dos trabalhos de casa, e
depois vai para a cama. Levanta-se às quatro horas da manhã seguinte. Dá
muito trabalho ser filho de um agricultor.

Mas eles são ricos, não são?

São muito ricos.

Porque é que falas assim, agora?

Porque não? É assim que eles falam no Kentucky. Só queria que ouvisses
Mrs. Mawhinney. Ela é da Georgia. Todas as manhãs faz panquecas para o
pequeno-almoço. Com bacon. Mr. Mawhinney defuma o seu próprio bacon.
Numa casa de fumeiro. Ele sabe como se faz.

Comias bacon todas as manhãs

Todas. É delicioso. E aos domingos, quando nos levantávamos, comíamos


panquecas, bacon e ovos. Das próprias galinhas deles. Os ovos... as gemas
são quase vermelhas, de tão frescas. Vamos tirá-los às galinhas, levamo-los
para dentro e comemo-los logo.

Comias presunto?
Comíamos presunto ao jantar umas duas vezes por semana. Mr.
Mawhinney faz o seu presunto. Tem uma receita especial, de família. Diz
que, se um presunto não fica pendurado a envelhecer durante um ano, não
quer nada com ele.

Comias salsichas?

Comia. Ele também faz as suas salsichas. Moem a carne numa


trituradora. Às vezes comíamos salsichas em vez de bacon. É bom.
Costeletas de porco. Também são boas. Óptimas. Não sei, realmente por
que razão não comemos essas coisas.

Porque vêm de um porco.

E depois? Porque pensas que os agricultores criam porcos? Para as


pessoas olharem para eles? É como tudo o mais que comemos. Comemos, e
pronto, é bom!

Vais continuar a comer essas coisas agora?

É claro que vou.

Mas estava lá muito calor, não estava?

Durante o dia. Mas íamos para casa à hora do almoço e comíamos


sanduíches de tomate e maionese. Com limonada... litros de limonada.
Descansávamos dentro de casa e depois voltávamos para os campos e
fazíamos o que havia para fazer. Mondávamos. Mondávamos a tarde inteira.
Mondávamos o milho. Mondávamos o tabaco. Tínhamos uma horta, o Orin
e eu, e também a mondávamos. Trabalhávamos com o pessoal e também
havia alguns negros, à jorna. E há um negro, Randolph, que é rendeiro,
passou de contratado a rendeiro. Mr. Mawhinney diz que é um agricultor de
primeira categoria.

Compreendes, quando os negros falam?


Compreendo, pois.

És capaz de imitar um?

Dizem «baco» em vez de tabaco. Dizem «claro» em vez de declaro. Eu


claro isto e eu claro aquilo. Mas não falam muito. O que mais fazem é
trabalhar. No tempo da matança do porco, Mr. Mawhinney tem o Cleto e o
Velho Henry, que estripam os porcos. São negros e irmãos, e levam as tripas
para casa e comem-nas fritas. Miudezas.

Eras capaz de comer isso?

Pareço um negro? Mr. Mawhinney diz que os negros estão a começar a


afastar-se da quinta porque pensam que podem ganhar mais dinheiro na
cidade. Às vezes, o Velho Henry é preso, nas noites de sábado. Por beber.
Mr. Mawhinney paga a multa para o soltarem, porque precisa dele na
segunda-feira.

Eles têm sapatos?

Alguns. Os miúdos andam descalços. Os Mawhinney dão-lhes as roupas,


quando já não as querem. Mas eram felizes.

Alguém diz alguma coisa a respeito de anti-semitismo?

Não pensam sequer nisso, Philip. Disseram-me que fui o primeiro judeu
que conheceram. Mas nunca disseram nada de mal. É o Kentucky. As
pessoas de lá são simpáticas.

Então, estás satisfeito por teres voltado para casa?

Mais ou menos. Não sei.

Voltas para lá para o ano?

Com certeza.
E se a mãe e o pai não te deixarem?

Vou de qualquer maneira.

Aparentemente como consequência directa de Sandy ter comido bacon,


presunto, costeletas de porco e salsichas, parecia não haver maneira alguma
de conter a transformação das nossas vidas. O rabi Bengelsdorf vinha jantar.
Trazido pela tia Evelyn.
– Porquê nós? – disse o meu pai à minha mãe. O jantar terminara, Sandy
estava na cama a escrever a Orin Mawhinney e eu estava sozinho com eles
na sala, interessado em ver como ia o meu pai aceitar a notícia, agora que
tudo à nossa volta se movia ao mesmo tempo.
– Ela é minha irmã – respondeu a minha mãe, num tom levemente
beligerante –, e ele é chefe dela... não posso dizer-lhe que não.
– Eu posso.
– Não farás semelhante coisa.
– Então explica-me de novo por que razão merecemos tamanha honra. O
figurão importante não tem nada mais premente para fazer do que vir cá?
– A Evelyn quer que ele conheça o nosso filho.
– Isso é ridículo. A tua irmã sempre foi ridícula. O meu filho frequenta o
oitavo ano da escola de Chancellor Avenue. Passou o ano a arrancar ervas
daninhas. Tudo isto é ridículo.
– Herman, eles vêm na quinta-feira à noite e nós vamos dar-lhes as boas-
vindas. Podes detestá-lo, mas ele não é uma nulidade qualquer.
– Eu sei – respondeu o meu pai, impacientemente. – É por isso que o
detesto.
Agora, quando ele andava pela casa, tinha constantemente um exemplar
do PM nas mãos, quer enrolado como uma arma – como se estivesse a
preparar-se para, se o convocassem, ir ele próprio para a guerra – quer
dobrado para uma página onde havia alguma coisa que queria ler alto à
minha mãe. Nesta noite em especial, estava perplexo, sem perceber porque
é que os Alemães continuavam a avançar com tanta facilidade pela Rússia
dentro, e por isso, sacudindo exasperadamente o jornal, perguntou, de
súbito:
– Porque não lutam aqueles russos? Têm aviões... por que não os usam?
Porque não há lá ninguém que resista? Hitler entra num país, atravessa a
fronteira e vai por ali fora, e, pronto, é dele. A Inglaterra é o único país da
Europa que faz frente àquele cão. Ele bombardeia aquelas cidades inglesas
todas as noites, sem descanso, e eles continuam a combatê-lo com a RAF.
– Quando é que Hitler vai invadir a Inglaterra? – perguntei-lhe. – Porque
não a invade já?
– Isso fazia parte do acordo que ele fez com Mr. Lindbergh na Islândia.
Lindbergh quer ser o salvador da Humanidade – explicou-me o meu pai – e
negociar a paz que ponha fim à guerra. Por isso, depois de Hitler tomar a
Rússia, e depois de tomar o Médio Oriente, e depois de tomar tudo quanto
muito bem lhe apetecer, Lindbergh convocará uma pretensa conferência de
paz – uma conferência de paz que convenha aos interesses da Alemanha. Os
Alemães estarão presentes, e o preço para a paz mundial sem invasão alemã
da Grã-Bretanha será a tomada de posse em Inglaterra de um governo
fascista britânico. A colocação em Downing Street de um primeiro-ministro
fascista. E quando os Ingleses recusarem, então Hitler invadirá, e tudo com
o consentimento do nosso presidente, o apaziguador.
– É isso o que Walter Winchell diz? – perguntei, achando tudo quanto ele
explicara complicado de mais para mim.
– É isso que eu digo – respondeu, e provavelmente era verdade. A pressão
do que acontecia estava a acelerar a instrução de toda a gente, incluindo a
minha. – Mas graças a Deus por Walter Winchell. Sem ele estaríamos
perdidos. É a última pessoa que resta na rádio para falar contra aqueles cães
nojentos. É repugnante. É pior do que repugnante. Lenta mas seguramente,
deixou de haver na América alguém disposto a pronunciar-se contra o facto
de Lindbergh lamber as botas ao Hitler.
– E os Democratas? – perguntei.
– Filho, não me fales dos Democratas. Já estou furioso de mais, sem isso.
A minha mãe pediu-me que a ajudasse a pôr a mesa na sala de jantar, na
quinta-feira à noite, e depois mandou-me para o quarto vestir a roupa de
sair. A tia Evelyn e o rabi Bengelsdorf deviam vir às sete horas, quarenta e
cinco minutos mais tarde do que era costume acabarmos de comer na
cozinha, mas o rabi não podia chegar a nossa casa antes das sete horas, por
causa de todas as suas actividades sociais. Tratava-se do próprio traidor a
quem o meu pai, de modo geral tão respeitador do clero judaico, acusara em
voz alta de ter feito «um discurso estúpido e mentiroso» a favor de
Lindbergh em Madison Square Garden. O «falso judeu», segundo Alvin,
que assegurara a derrota de Roosevelt ao «tornar Lindbergh kosher para os
góis», e por isso me confundia o trabalho que estávamos a ter para o
alimentar. Fui avisado de antemão para não usar as toalhas lavadas da casa
de banho e não me aproximar, sequer, da poltrona do meu pai, que estava
reservada para uso do rabi antes de jantarmos.
Primeiro sentámo-nos todos constrangidamente na sala, enquanto o meu
pai lhe oferecia um whisky com soda ou um cálice de schnapps, mas
Bengelsdorf declinou ambos a favor de um copo de água da torneira.
«Newark tem a melhor água potável do mundo», declarou o rabi, no mesmo
tom que empregaria para declarar qualquer outra coisa, com profunda
consideração. Recebeu amavelmente o copo, num pires, estendido pela
minha mãe – a qual eu ainda me lembrava de, em Outubro, se ter afastado
apressadamente do rádio para não ter de o ouvir elogiar Lindbergh.
– Tudo no seu lugar e tudo perfeitamente arrumado. Isso revela o amor
pela ordem que eu próprio partilho. Vejo que tem um pendor pelo verde.
– Gosto dos tons de verde da floresta – disse a minha mãe, tentando sorrir
e agradar, mas falando com dificuldade e ainda incapaz de olhar na direcção
dele.
– Deve orgulhar-se muito da sua encantadora casa. Sinto-me honrado por
aqui estar como convidado.
O rabi era muito alto, com uma constituição do tipo da de Lindbergh –
um homem magro, calvo, com um fato escuro completo e reluzentes
sapatos pretos, cujo porte erecto me parecia exprimir uma fidelidade aos
mais elevados ideais da Humanidade. Pelo melífluo sotaque sulista que lhe
ouvira na rádio, imaginara alguém com um aspecto muito menos severo,
mas apenas os seus óculos inspiravam respeito, em parte por serem como os
ovais, do tipo coruja, que apertam o nariz para permanecerem no seu lugar,
como os de Roosevelt, mas também porque o mero facto de ele os usar – e
nos examinar microscopicamente através deles – tornava claro que não era
um homem com quem devêssemos discordar. No entanto, quando falava, o
seu tom era cordial, afável e até confiante. Eu esperara que nos tratasse com
desdém ou desse ordens, mas a única coisa que ele fazia era falar com
aquele sotaque (que não se parecia nada com o de Sandy), e com tanta
suavidade que às vezes tínhamos de conter a respiração para termos
consciência de quanto ele era instruído.
– E tu deves ser o rapaz – disse a Sandy – que nos encheu a todos de
orgulho.
– Sou o Sandy, senhor – respondeu o meu irmão, corando violentamente.
Quanto a mim, foi uma resposta brilhante a uma pergunta que outro rapaz
bem-sucedido, empenhado em respeitar o padrão de modéstia vigente,
talvez não conseguisse dar com tanto desembaraço. Não, agora nada
conseguia atrapalhar o Sandy, não com aqueles músculos, aquele cabelo
descolorido pelo sol e a abundância de carne de porco que enfardara sem
pedir licença a ninguém.
– E que tal foi – perguntou o rabi – trabalhar nos campos do Kentucky
sob o sol escaldante? – Usou o sotaque de lá na maior parte das palavras,
mas pronunciou Kentucky correctamente, e não Kintuck, como Sandy
costumava agora dizer.
– Aprendi muito. Aprendi muito a respeito do meu país.
A tia Evelyn aprovou sem reservas, como aliás era de esperar, visto que
na véspera o preparara telefonicamente com a resposta adequada a uma
pergunta daquele género. Como ela tinha de ser sempre superior ao meu
pai, nada podia deliciá-la mais do que moldar a existência do filho mais
velho do cunhado, ali mesmo nas ventas dele.
– A tua tia Evelyn disse-me que estiveste numa plantação de tabaco.
– Estive, sim, senhor. Tabaco white burley.
– Sabias, Sandy, que o tabaco foi o alicerce económico da primeira
colónia inglesa na América, em Jamestown, na Virgínia?
– Não sabia – admitiu ele, mas acrescentou: – Mas não me surpreende
sabê-lo – e, assim, num ápice, o pior passou.
– Foram muitos os reveses que atormentaram os pioneiros de Jamestown
– disse-lhe o rabi. – Mas o que os salvou a eles da fome e à colónia da
extinção foi o cultivo do tabaco. Pensa nisso. Sem o tabaco, o primeiro
governo representativo do Novo Mundo nunca poderia ter-se reunido em
Jamestown, como fez em 1619. Sem o tabaco, a colónia de Jamestown teria
sucumbido, a colonização da Virgínia teria falhado e as Primeiras Famílias
da Virgínia, cuja riqueza provinha das suas plantações de tabaco, jamais
teriam alcançado a proeminência. E se nos lembrarmos de que as Primeiras
Famílias da Virgínia foram os antepassados dos estadistas da Virgínia que
se tornaram os nossos Pais Fundadores, tomamos consciência da
importância vital do tabaco para a história da nossa república.
– Tomamos, sim, senhor – respondeu Sandy.
– Eu próprio nasci no Sul americano – continuou o rabi. – Catorze anos
depois da tragédia da Guerra Civil. O meu pai lutou, quando era jovem,
pela Confederação. O pai dele veio da Alemanha para se fixar na Carolina
do Sul em 1850. Era vendedor ambulante. Tinha um cavalo e uma carroça,
usava barba comprida e vendia tanto a negros como a brancos. Alguma vez
ouviste falar de Judah Benjamin? – perguntou a Sandy.
– Não, senhor. – Mas voltou a ultrapassar a lacuna, inquirindo desta vez:
– Posso perguntar-lhe quem ele era?
– Bem, era judeu e só ficava atrás de Jefferson Davis no governo da
Confederação. Era um advogado judeu que serviu Davis como procurador-
geral, como secretário da Guerra e como secretário de Estado. Antes da
secessão do Sul fizera parte do Senado dos Estados Unidos na qualidade de
um dos dois senadores da Carolina do Sul. Na minha opinião, a causa por
que o Sul enveredou pela guerra não foi nem legal nem moral, o que não
me impede de sempre ter tido a mais elevada consideração por Judah
Benjamin. Um judeu era uma raridade na América daquele tempo, não
menos no Norte do que no Sul, mas não penses que então não era preciso
lutar contra o anti-semitismo. Apesar disso, Judah Benjamin esteve perto do
auge do sucesso político no governo confederado. Perdida a guerra, partiu
para o estrangeiro e tornou-se um advogado distinto em Inglaterra.
Neste momento, a minha mãe retirou-se para a cozinha – alegadamente
para ver como ia o jantar –, e a tia Evelyn disse a Sandy:
– Talvez este seja um bom momento para o rabi ver os desenhos que
fizeste na quinta.
Sandy levantou-se e levou para a poltrona do rabi os vários cadernos de
esboços que enchera de desenhos durante o Verão e que mantivera em cima
dos joelhos desde que nos reuníramos todos na sala.
O rabi pegou num dos cadernos e começou a folheá-lo devagar. – Diz ao
rabi qualquer coisa a respeito de cada desenho – sugeriu a tia Evelyn.
– Isso é o celeiro – disse Sandy. – Aquilo é onde penduram o tabaco para
a cura, depois da colheita.
– Bem, aquilo é um celeiro, sem dúvida, e um celeiro muito bem
desenhado. Gosto muito do padrão de luz e sombra. Tens muito talento,
Sanford.
– E aquilo é uma planta de tabaco a crescer. Têm esse aspecto. Tem a
forma de um triângulo, está a ver? São grandes. Essa ainda tem a flor em
cima. Antes de a cortarem.
– E esta planta de tabaco – disse o rabi, virando a página –, com o saco no
topo... é uma coisa que nunca tinha visto.
– É assim que obtêm a semente. Essa é uma planta de semente. Cobrem a
flor com um saco de papel e apertam-no bem apertado. Assim mantêm a
planta como a querem.
– Muito, muito bem. Não é fácil desenhar uma planta com exactidão e ao
mesmo tempo torná-la numa obra de arte. Repara como sombreaste as
páginas inferiores das folhas. Muito bom, de facto.
– E isto é um arado, claro – explicou Sandy –, e aquilo é uma enxada. E
aquilo é um sacho manual. Para mondar. Mas também podemos mondar só
com as mãos.
– Mondaste muito? – perguntou o rabi, em tom trocista.
– Oh, se mondei! – exclamou Sandy, e o rabi Bengelsdorf sorriu e deixou
de parecer assustador. – E esta é a cadela – continuou Sandy –, a cadela do
Orin. Está a dormir. Este é um dos negros, o Velho Henry, e aquelas são as
suas mãos. Achei que tinham carácter.
– E quem é este?
– É o irmão do Velho Henry. Clete.
– Gosto da maneira como o apresentas. O homem parece muito cansado,
com aquele ar indolente. Conheço esses negros; cresci com eles e respeito-
os. E isto? O que é isto? Aqui, com o fole.
– Bem, tem uma pessoa dentro. É assim que pulveriza, contra os vermes
do tabaco. Têm de se vestir dessa maneira, da cabeça aos pés, com grandes
luvas e roupas grossas, todas abotoadas, para não se queimarem. Quando
esguicham o insecticida pelos foles, podem queimar-se. O pó é verde, e
quando o homem acaba está todo coberto dele. Tentei captar o aspecto do
pó, tentei dar uma imagem mais clara de onde o pó está, mas não acho que
tenha saído bem.
– Bem, tenho a certeza de que é difícil desenhar pó – observou o rabi, e
começou a passar as páginas um pouco mais depressa até chegar ao fim e
fechar o livro. – Kentucky foi para ti uma experiência que valeu a pena, não
é verdade, meu jovem?
– Adorei – respondeu Sandy, e o meu pai, que tinha estado calado e
imóvel no sofá desde que cedera a sua poltrona preferida ao rabi, levantou-
se e disse:
– Tenho de ir ajudar a Bess – da mesma maneira com que poderia ter dito:
«Agora vou atirar-me da janela abaixo e matar-me.»
– Os judeus da América – disse-nos o rabi durante o jantar – são
diferentes de qualquer outra comunidade judaica da história do mundo.
Gozam da maior oportunidade concedida ao nosso povo nos tempos
modernos. Os judeus da América podem participar inteiramente na vida
nacional do seu país. Já não precisam de residir à parte, como uma
comunidade paroquial separada das restantes. Basta para isso a coragem
que o vosso filho Sandy demonstrou, ao partir sozinho para o desconhecido
Kentucky e trabalhar lá durante o Verão como um trabalhador agrícola.
Estou convencido de que o Sandy e os outros rapazes judeus como ele do
programa Just Folks deveriam servir de exemplo não só para todas as
crianças judias que crescem neste país, mas também para todos os judeus
adultos. E isto não é simplesmente um sonho meu: é o sonho do presidente
Lindbergh.
A nossa provação enveredara, de súbito, pelo pior caminho possível. Eu
não esquecera como, em Washington, o meu pai tinha feito frente ao
gerente do hotel e ao polícia provocador, e por isso, agora que o nome de
Lindbergh fora pronunciado com deferência em nossa casa, pensei que
chegara o momento de ele fazer frente a Bengelsdorf.
Mas um rabi era um rabi, e ele não fez.
A minha mãe e a tia Evelyn serviram a refeição, três pratos seguidos por
um bolo-mármore cozido no nosso forno, naquela tarde. Comemos nos
pratos «bons» com os talheres «bons» e, nem mais nem menos, na sala de
jantar, onde tínhamos a nossa melhor carpete, a nossa melhor mobília e a
nossa melhor roupa de mesa, e onde nós próprios só comíamos em ocasiões
especiais. Do meu lado da mesa viam-se as fotografias dos mortos da
família dispostas em cima do aparador, que era o nosso sacrário de
homenagem aos falecidos. Estavam lá emoldurados dois avôs, a nossa avó
materna, uma tia materna e dois tios, sendo um destes o tio Jack, pai do
Alvin e querido irmão mais velho do meu pai. Em consequência da
invocação do nome de Lindbergh pelo rabi Bengelsdorf, sentia-me mais
confuso do que nunca. Um rabi era, sem dúvida, um rabi, mas entretanto
Alvin estava num hospital militar canadiano em Monreal a aprender a andar
com uma perna esquerda artificial, depois de ter perdido a verdadeira a
combater Hitler, e em minha própria casa – onde supostamente devia usar
tudo menos a roupa boa – tive de pôr a minha única gravata e de vestir o
meu único casaco para causar boa impressão precisamente ao rabi que
ajudara a eleger o presidente que tinha Hitler como amigo. Como podia
deixar de estar confuso, quando a nossa desgraça e a nossa glória eram uma
e a mesma coisa? Algo essencial fora destruído e perdido, estavam a coagir-
nos para sermos diferentes dos americanos que realmente éramos, e no
entanto, à luz do lustre de vidro lapidado e no meio da pesada mobília
envernizada da sala de jantar, eis-nos a comer a carne estufada da minha
mãe na companhia do primeiro visitante famoso que alguma vez
recebêramos.
Para me confundir ainda mais e me fazer pagar o preço total dos meus
pensamentos, Bengelsdorf começou, de súbito, a falar a respeito do Alvin,
de cuja situação tomara conhecimento por intermédio da tia Evelyn.
«Entristece-me o que aconteceu ao vosso familiar. O meu coração está com
todos vós. A Evelyn disse-me que quando o vosso sobrinho tiver alta do
hospital virá convalescer com vocês. Estou certo de que estão ao corrente
da angústia mental que um ferimento dessa natureza pode provocar a
alguém ainda na flor da juventude. Serão necessários todo o vosso amor e
paciência para o ajudar a reatar uma vida útil. A história dele é
particularmente trágica, em virtude de não ter havido necessidade alguma
de ele partir para o Canadá para se alistar nas forças armadas canadianas.
Alvin Roth nasceu cidadão dos Estados Unidos, e os Estados Unidos não
estão em guerra com ninguém, não têm intenção alguma de entrar em
guerra com ninguém e não precisam do sacrifício da vida ou membro, em
combate, de um único dos seus jovens... Muitos de nós têm feito grandes
esforços para que assim seja. Encontrei grande hostilidade em membros da
comunidade judaica por me ter aliado, nas eleições de 1940, à campanha de
Lindbergh. Mas encorajou-me e valeu-me a minha aversão à guerra. Já é
suficientemente terrível o facto de o jovem Alvin ter perdido a perna numa
batalha no continente que nada tinha que ver com a segurança da América
ou o bem-estar dos Americanos...»
E continuou, repetindo mais ou menos o que dissera em Madison Square
Garden a favor da manutenção da neutralidade americana, mas agora a
minha atenção estava concentrada apenas em Alvin. Ele vinha ficar
connosco? Olhei para a minha mãe. Ela não nos dissera nada a esse
respeito. Quando chegaria? Onde dormiria? Como se não bastasse não
vivermos num país normal, conforme a minha mãe dissera em Washington,
agora também nunca mais voltaríamos a viver numa casa normal. Ganhava
forma à minha volta uma vida de sofrimento ainda maior, e apeteceu-me
gritar: «Não! O Alvin não pode ficar aqui... ele só tem uma perna!»
Estava tão transtornado que só decorrido algum tempo me apercebi de
que o reinado do decoro vigente na sala de jantar tinha terminado e o meu
pai deixara de permitir a si mesmo manter-se calado. Não sei como,
conseguira finalmente derrubar os obstáculos constituídos pelas credenciais
de Bengelsdorf e pelas suas próprias insuficiências; deixara de se intimidar
com a magnificência rabínica e, impelido pela irreprimível sensação de uma
tragédia iminente – e violentamente irritado com a condescendência – dava
o devido troco a Bengelsdorf, borrifando-se para as lunetas.
– Hitler – ouvi-o dizer –, Hitler não é vai tudo bem, como de costume,
rabi! Esse louco está a travar uma guerra como as de há mil anos. Uma
guerra como ninguém jamais viu neste planeta. Conquistou a Europa. Está
em guerra com a Rússia. Todas as noites transforma Londres em ruínas com
os seus bombardeamentos e mata centenas de inocentes civis britânicos. É o
pior anti-semita da História. E, apesar disso, o seu grande amigo, o nosso
presidente, acredita na sua palavra quando Hitler diz que têm um «acordo».
Hitler tinha um acordo com os Russos. Respeitou-o? O objectivo de Hitler é
conquistar o mundo, e isso inclui os Estados Unidos da América. E como
em todos os lugares aonde vai abate os judeus, quando chegar o momento
oportuno virá matar os judeus daqui. E que fará então o nosso presidente?
Protege-nos? Defende-nos? O nosso presidente não levantará um dedo. É
esse o acordo a que eles chegaram na Islândia, e qualquer adulto que pense
de modo diferente está doido.
Em vez de se mostrar impaciente com o meu pai, o rabi Bengelsdorf
escutava-o respeitosamente, como se concordasse, pelo menos, com alguma
coisa do que ouvia. Só o Sandy parecia ter alguma dificuldade em conter os
seus sentimentos, e quando o nosso pai se referia desdenhosamente a
Lindbergh como «o nosso presidente», virava-se para mim com uma cara
que revelava quanto se afastara da órbita da família, pelo simples facto de
ter feito o habitual ajustamento americano à nova Administração. A minha
mãe estava sentada à direita do meu pai e, quando ele acabou de falar,
apertou a sua mão na dela, embora não fosse claro se o fazia para lhe
demonstrar quanto se orgulhava dele, se para o aconselhar a calar-se.
Quanto à tia Evelyn, obedecia a todas as deixas do rabi, escondendo os seus
sentimentos atrás de uma máscara de benigna tolerância enquanto o idiota
do seu cunhado ousava contradizer, com o seu insignificante vocabulário,
um estudioso capaz de falar dez línguas.
Bengelsdorf não respondeu imediatamente: deixou instalar-se um
intervalo portentoso, antes de dar a sua réplica:
– Ainda ontem de manhã estive na Casa Branca a falar com o presidente.
– Bebeu um gole de água, a dar-nos tempo para nos recompormos. – Fui
felicitá-lo – prosseguiu – pelo importante progresso que conseguira na
acalmia da desconfiança judaica que remontava às suas visitas à Alemanha
no final dos anos 30, quando foi avaliar secretamente as dimensões da força
aérea alemã em nome do Governo dos Estados Unidos. Informei-o de que
aqueles dos meus paroquianos que tinham votado em Roosevelt eram agora
fortes apoiantes seus, gratos por ele ter afirmado a nossa neutralidade e
poupado ao nosso país as angústias de mais uma grande guerra. Disse-lhe
que o Just Folks e programas semelhantes começavam a convencer os
judeus da América de que ele é tudo menos inimigo deles. Reconheço que,
antes de se tornar presidente, fez, por vezes, declarações públicas baseadas
em lugares-comuns anti-semitas. Mas então falou por ignorância e hoje
admite que assim foi. Apraz-me dizer-lhe que não foram precisas mais de
duas ou três sessões a sós com o presidente para o levar a abandonar as suas
concepções erradas e a apreciar a natureza diversificada da vida judaica na
América. Ele não é, em aspecto algum, um homem mau. É um homem de
enorme inteligência inata e grande probidade, justamente famoso pela sua
coragem pessoal, e quer agora contar com o meu auxílio para o ajudar a
demolir as barreiras de ignorância que continuam a separar cristãos de
judeus e judeus de cristãos. Pois infelizmente também existe ignorância
entre os judeus, muitos dos quais persistem em pensar que o presidente
Lindbergh é um Hitler americano, quando sabem muito bem que ele não é
um ditador que chegou ao poder graças a um putsch, mas sim um líder
democrático que chegou a presidente graças a uma vitória esmagadora em
eleições livres e justas e não manifestou uma única tendência para governar
autoritariamente. Ele não glorifica o Estado a expensas do indivíduo; pelo
contrário, encoraja o individualismo empreendedor e um sistema de
economia livre isenta da interferência do Governo Federal. Onde está o
estatismo fascista? Onde está o banditismo fascista? Onde estão os Camisas
Castanhas nazis e a polícia secreta? Alguma vez viu uma única
manifestação de anti-semitismo fascista emanada do nosso Governo? O que
Hitler perpetrou contra os judeus da Alemanha com a aprovação, em 1935,
das Leis de Nuremberga é a antítese absoluta do que o presidente Lindbergh
se empenhou em fazer pelos judeus da América com a criação do Gabinete
Americano de Assimilação. As Leis de Nuremberga privaram os judeus dos
seus direitos de cidadãos e fizeram tudo para os excluir de membros da sua
nação. O que eu encorajei o presidente Lindbergh a fazer foi a criação de
programas convidando os judeus a integrar-se tanto quanto quiserem na
vida nacional, uma vida nacional que, estou certo, deve concordar, não é
menos nossa, para a usufruirmos, do que de quaisquer outros.
A nossa mesa de jantar, ou provavelmente qualquer outra do nosso
quarteirão, jamais fora palco de um manancial de frases tão esclarecidas
como estas, e foi por isso surpreendente – quando o rabi concluiu o discurso
perguntando mansamente, quase intimamente, «Diga-me, Herman, o que
expliquei começou a dissipar os seus temores? – ouvir o meu pai responder
terminantemente: «Não. Não. Nem por um momento.» E depois, sem se
importar com a possibilidade de fazer uma afronta que não só despertaria o
desagrado do rabi como também insultaria a sua dignidade e provocaria o
seu desdém rancoroso, acrescentou: «Ouvir uma pessoa como o senhor falar
dessa maneira... francamente, assusta-me ainda mais.»
Na noite seguinte, a tia Evelyn telefonou-nos e, esfuziante, informou-nos
de que, dos cem rapazes de New Jersey que naquele Verão tinham partido
para oeste sob o patrocínio do Just Folks, Sandy fora escolhido como
«agente recrutador» a nível estadual encarregado de falar, como veterano, a
jovens judeus elegíveis, e às famílias, acerca dos muitos benefícios do
programa do GAA e a encorajá-los a alistar-se. Assim se vingou o rabi. O
filho mais velho do nosso pai era agora um membro honorário da nova
Administração.

Pouco depois de Sandy começar a passar as tardes no centro da cidade, no


escritório do GAA da tia Evelyn, a minha mãe vestiu o seu melhor fato – o
saia e casaco de alfaiate, cinzento com riscas claras – que costumava usar
para presidir às reuniões da APP e como delegada, em período de eleições,
na cave da escola – e saiu para procurar emprego. Ao jantar anunciou que
arranjara trabalho a vender vestidos de senhora no Hahne’s, um grande
armazém do centro da cidade. Tinha sido contratada inicialmente como
auxiliar em períodos de férias, para trabalhar seis dias por semana e nas
quartas-feiras à noite, mas como era secretária comercial com experiência
acalentava a esperança de, nas semanas seguintes, poder haver uma vaga no
piso administrativo do armazém e ela ficar depois do Natal como
funcionária permanente. Explicou-nos, ao Sandy e a mim, que o seu
ordenado contribuiria para pagar as despesas de casa, acrescidas pelo
regresso de Alvin, mas a sua verdadeira intenção (além dela, só do
conhecimento do marido) era depositar os cheques, pelo correio, numa
conta bancária em Monreal, para a eventualidade de termos de fugir e
recomeçar do nada no Canadá.
A minha mãe não estava em casa, o meu irmão não estava em casa e o
Alvin viria em breve a caminho de casa. O meu pai fora de carro a Monreal,
a fim de o visitar no hospital militar de lá. Numa sexta-feira de manhã,
horas antes de Sandy e eu nos levantarmos para irmos para a escola, a
minha mãe preparou-lhe o pequeno--almoço, encheu-lhe uma garrafa-
termos e embrulhou-lhe comida – três cartuchos de papel assinalados com o
lápis de carvão de Sandy: A para almoço, M para merenda e J para jantar –
e ele partiu na direcção da fronteira internacional, mais de quinhentos e
cinquenta quilómetros a norte. Como o chefe só o pôde dispensar na sexta-
feira, teve de conduzir durante todo esse dia para ver Alvin no sábado e
depois de conduzir durante todo o domingo, a fim de regressar a tempo de
estar presente para a reunião do pessoal na segunda-feira de manhã. Teve
um furo num pneu à ida e mais dois no regresso, e para não chegar atrasado
à reunião foi obrigado a seguir directamente da auto-estrada para o centro
da cidade, sem passar por casa. Quando o vimos ao jantar passara mais de
um dia sem dormir e ainda mais tempo sem poder lavar-se como devia ser.
Alvin, disse-nos, parecia um cadáver, emagrecera e o seu peso não chegava
aos cinquenta quilos. Ao ouvir isto, perguntei a mim mesmo quanto pesaria
a perna que tinha perdido, e nessa noite tentei, em vão, pesar a minha
própria perna na balança da casa de banho. «Não tem apetite nenhum»,
explicou o meu pai. «Põem-lhe a comida à frente e ele afasta-a. Apesar de
forte, aquele rapaz não quer viver, não quer nada a não ser estar para ali
deitado, magro e com aquele terrível rosto carrancudo. Eu disse-lhe: “Alvin,
conheço-te desde que nasceste. És um lutador. Não desistes. Tens a força do
teu pai. O teu pai era capaz de receber o mais rude golpe e mesmo assim
seguir para a frente. E a tua mãe também.” E acrescentei: “Quando o teu pai
morreu, a mulher teve de fazer das fraquezas força e continuar a sua vida...
não teve outro remédio, pois tinha-te a ti.” Mas não sei se ele prestou
atenção. Espero que tenha ouvido alguma coisa» – disse, com a voz a ficar
cada vez mais rouca – «porque, enquanto ali estive, com todos aqueles
rapazes doentes naquelas camas em meu redor, enquanto estive sentado ao
lado da sua cama naquele hospital...», e não acrescentou mais nada. Foi a
primeira vez que vi o meu pai chorar. É um marco miliário na infância,
quando as lágrimas de outra pessoa são mais insuportáveis do que as nossas
próprias.
– É por estares tão cansado – disse-lhe a minha mãe, levantando-se da
cadeira e começando a afagar-lhe a cabeça, a tentar acalmá-lo. – Quando
acabares de comer, tomas um duche e vais logo para a cama.
Encostando com firmeza a cabeça no amparo da mão dela, o meu pai
começou a soluçar descontroladamente.
– A explosão arrancou-lhe a perna – disse, e a minha mãe fez-nos sinal,
ao Sandy e a mim, para a deixarmos confortá-lo sozinha.
Começou uma nova vida para mim. Tinha visto o meu pai desmoronar-se
e nunca mais voltaria à mesma infância. A mãe que estivera em casa estava
agora todo o dia ausente a trabalhar no Hahne’s; o irmão sempre presente
trabalhava agora, depois da escola, para Lindbergh, e o pai que cantara
desafiadoramente para todos aqueles imaturos anti-semitas da cafetaria, em
Washington, chorava agora alto, com a boca escancarada – chorava, ao
mesmo tempo, como uma criancinha abandonada e um homem a ser
torturado –, por se sentir impotente para deter o imprevisto. E, como a
eleição de Lindbergh não poderia ter tornado mais claro para mim, a
revelação do imprevisto era tudo. Virado do avesso, o implacável
imprevisto era o que nós, miúdos da escola, estudávamos como «História»,
história inofensiva, em que tudo quanto é inesperado no seu próprio tempo
é relatado na página do livro como inevitável. O terror do imprevisto é o
que a ciência da História oculta, transformando uma tragédia numa epopeia.
Como me encontrava entregue a mim mesmo, comecei a passar todas as
minhas horas livres depois das aulas com Earl Axman, o meu mentor da
filatelia, e não apenas para observar a sua colecção com a minha lupa ou
para admirar na cómoda da mãe dele a embaraçosa variedade da sua roupa
interior. Como os meus trabalhos de casa se faziam num instante e a minha
única outra tarefa era pôr a mesa para o jantar, estava agora completamente
livre para fazer travessuras. E como, à tarde, a mãe do Earl parecia estar
sempre ausente, no salão de beleza ou a fazer compras em Nova Iorque, o
meu amigo estava livre para as inventar. Era quase dois anos mais velho do
que eu e, porque os seus glamorosos pais eram divorciados – e porque eram
glamorosos –, parecia nunca ter de se esforçar para ser uma criança-modelo.
Ultimamente, cada vez mais irritado por estar sozinho, dera-me para
resmungar na cama: «Agora vamos fazer alguma coisa horrível», a sugestão
com que o Earl me entusiasmava e assustava, alternadamente, sempre que
se cansava do que estávamos a fazer. Era infalível que, mais cedo ou mais
tarde, o espírito de aventura imporia a sua atracção, mas desiludido pela
sensação de que a minha família estava a distanciar-se de mim, juntamente
com o meu país, eu estava preparado para travar conhecimento com as
liberdades que um rapaz oriundo de um lar exemplar podia tomar quando
desistia de se esforçar para agradar a toda a gente, com a sua pureza juvenil,
e descobria o prazer culpado de agir secretamente por sua conta e risco.
Aquilo em que me meti com o Earl foi a seguir pessoas. Havia meses que
ele já andava a fazê-lo umas duas vezes por semana: deslocava-se sozinho
para o centro da cidade, depois da escola, e ficava pelas paragens de
autocarros à procura de homens que regressavam do trabalho a casa.
Quando aquele pelo qual se decidia se metia no seu autocarro, Earl fazia o
mesmo, acompanhava-o sem dar nas vistas até ele se apear, apeava-se logo
a seguir e depois, de uma distância segura, seguia-o até casa. «Porquê?»,
perguntei. «Para ver onde moram.» «Mas é só isso?» «E é muito. Ando por
todo o lado. Chego até a sair de Newark. Vou aonde me apetece. As pessoas
moram em toda a parte», explicou-me. «Mas como te arranjas para chegar a
casa antes da tua mãe?» «Aí é que está o truque: ir tão longe quanto posso e
regressar antes dela.» Confessou sem hesitar que arranjava o dinheiro para
os bilhetes de autocarro roubando-o das malinhas de mão da mãe, e depois,
alegremente, como se estivesse a arrombar a fechadura do cofre forte de
Fort Knox, abriu uma gaveta do quarto onde estavam empilhados ao acaso,
umas em cima das outras, todos os tipos de malas de senhora. Aos fins-de-
semana, quando ia ficar com o pai em Nova Iorque, roubava das algibeiras
dos fatos pendurados no roupeiro do pai, e quando quatro ou cinco músicos
da Casa Loma Orchestra iam ao apartamento do pai jogar póquer, aos
domingos, ele arrumava-lhes prestavelmente os sobretudos em cima da
cama e a seguir passava-lhes revista às algibeiras e escondia as moedas
numa peúga suja, no fundo da sua mala. Depois regressava
descontraidamente à sala, para assistir a tarde inteira ao jogo de cartas e
ouvir as histórias engraçadas que eles contavam a respeito de quando
tinham tocado na Paramount, na Essex House e no Glen Island Casino. Em
1941, a banda acabara de regressar de Hollywood, onde tinham participado
num filme, e por isso, entre mãos das cartas, falavam das estrelas e de como
eram, informação privilegiada que eu depois repetia ao meu irmão, que
dizia invariavelmente: «Isso é treta», e me recomendava que não andasse
com Earl Axman. «O teu amigo», dizia-me, «sabe de mais para um miúdo
da sua idade.» «Ele tem uma grande colecção de selos.» «Pois sim, mas
também tem uma mãe que sai com toda a gente. Sai com homens que nem
sequer são da sua idade.» «Como é que sabes isso?» «Em Summit Avenue
todos sabem, não é segredo para ninguém, Philip.» «Eu não sei.» «Bem»,
respondeu-me, «essa não é a única coisa que não sabes», declarou, e eu,
satisfeitíssimo comigo mesmo, pensei: «Talvez haja alguma coisa que tu
também não sabes», mas não pude deixar de me interrogar, nervosamente,
se a mãe do meu melhor amigo não seria aquilo a que os rapazes chamam
«uma puta».
Deu-se o caso de ser muito mais fácil do que eu poderia ter suposto
habituar-me a roubar à minha mãe e ao meu pai, e mais fácil também do
que teria imaginado seguir pessoas, apesar de nas primeiras vezes não ter
havido um momento que não me atordoasse, a começar pelo facto de estar
no centro da cidade, sem ninguém a vigiar-me, às três e meia da tarde. Às
vezes chegávamos a ir à Penn Station para encontrar alguém, outras à Board
e à Market, e algumas subíamos a Market até ao tribunal, para esperarmos
na paragem do autocarro e apanharmos aí a nossa presa. Nunca seguíamos
mulheres. Elas não nos interessavam, dizia Earl. Nunca seguíamos ninguém
que julgássemos ser judeu. Não nos interessava. A nossa curiosidade estava
concentrada em homens, nos homens adultos cristãos que trabalhavam todo
o dia no centro de Newark. Para onde iam quando regressavam a casa?
O meu receio atingia o ponto mais alto quando entrávamos no autocarro e
pagávamos. O dinheiro do bilhete era roubado, estávamos onde não
devíamos estar e não fazíamos a mínima ideia de qual era o nosso destino –
e quando lá chegávamos, fosse ele qual fosse, eu estava tão tonto de
emoção que não compreendia o que Earl me dizia quando segredava ao
meu ouvido o nome do bairro. Estava perdido, fazia de conta que era um
rapaz perdido. O que vou comer? Onde dormirei? Serei atacado por cães?
Serei preso e metido na cadeia? Haverá algum cristão que tome conta de
mim e me adopte? Ou acabarei por ser raptado como o filho de Lindbergh?
Ou fingia que estava perdido em alguma região distante que me era
desconhecida, ou então que, com a conivência de Lindbergh, Hitler invadira
a América e Earl e eu estávamos a fugir dos nazis.
E enquanto me atormentava com os meus temores, íamos, sub-
repticiamente, dobrando esquinas, atravessando ruas e baixando-nos atrás
de árvores para nos mantermos ocultos até ao momento climático em que o
homem que seguíamos chegava a casa, ver abrir a porta e entrar.
Mantínhamo-nos a uma certa distância, a olhar para a casa – com a porta de
novo fechada –, e Earl dizia qualquer coisa do género: «Aquele relvado é
realmente grande», ou «O Verão acabou – porque há redes nas janelas?, ou
«Vês o interior da garagem? Aquele é o novo Pontiac.» E depois, porque
tentar chegar sorrateiramente às janelas e espreitar sem sermos observados
ultrapassava até o judaísmo bisbilhoteiro de Earl Axman, ele reconduzia-
nos ao autocarro que nos levaria de regresso à Penn Station. Àquela hora,
com toda a gente a sair apressada do trabalho, era frequente o autocarro
para o centro da cidade não transportar outros passageiros além de nós, e
por isso era como se o motorista fosse um motorista pessoal, o autocarro
público, a nossa limusina particular, e nós os dois, os rapazes mais audazes
que existiam. Earl era um rapaz de dez anos extremamente bem alimentado
e de pele branca, já um tanto ou quanto anafado, com bochechas gordas de
bebé, compridas pestanas escuras e o cabelo preto encaracolado perfumado
com a brilhantina do pai, e se o autocarro estava vazio estendia-se no banco
comprido da retaguarda, numa pose de paxá que condizia perfeitamente
com o seu ar fanfarrão, enquanto, sentado a seu lado, magro e ossudo, eu
alardeava o sorriso de sublimidade meio envergonhado do pequeno parceiro
submisso.
Da Penn Station apanhávamos o 14 para casa, na quarta ousada viagem
de autocarro da tarde. Durante o jantar, pensava: «Segui um cristão, e
ninguém sabe. Podia ter sido raptado, e ninguém sabe. Usando o dinheiro
que arranjámos entre os dois, se quiséssemos podíamos ter...», e às vezes
quase me autodenunciava ao olhar penetrante da minha mãe, porque não
conseguia que o meu joelho parasse de se mexer por baixo da mesa
(exactamente como Earl quando estava a tramar alguma coisa). E noite após
noite adormecia sob o excitante fascínio do grande novo objectivo que
desencantara a minha vida de oito anos: evadir-me dela. Quando na escola
ouvia, pela janela aberta, um autocarro subir a ladeira da Chancellor
Avenue, a única coisa em que conseguia pensar era viajar nele. Todo o
mundo exterior se tornara num autocarro, do mesmo modo que para um
rapaz de South Dakota se torna num pónei: o pónei que o transporta aos
limites da evasão permitida.
Juntei-me a Earl como aprendiz de mentiroso e ladrão em fins de Outubro
e, sem qualquer enfraquecimento da sensação de importância crucial, as
nossas passeatas secretas continuaram, à medida que o tempo arrefecia,
entrando por Novembro e depois por Dezembro, quando as decorações
natalícias foram instaladas no centro da cidade e havia um excesso de
homens por onde escolher praticamente em todas as paragens de autocarro.
Havia árvores de Natal à venda nos próprios passeios do centro da cidade,
coisa que eu nunca antes vira, e a vendê-las a um dólar cada estavam
miúdos que pareciam fazê-lo por necessidade ou então rufiões acabados de
sair do reformatório. O facto de o dinheiro mudar assim de mãos, às claras,
começou por me parecer ilegal, mas a verdade é que ninguém parecia
preocupado em ocultar a transacção. Não faltavam polícias, polícias com
bastões nocturnos a fazerem a ronda nos seus grandes sobretudos azuis, mas
pareciam satisfeitos e entrar no jogo – quero dizer, no espírito natalício.
Logo a seguir ao Dia de Acção de Graças começara a haver duas vezes por
semana tempestades de neve batida pelo vento, de modo que de cada lado
das ruas recentemente limpas havia montes de neve suja que já chegavam à
altura de um carro.
Alheios às multidões do fim da tarde, os vendedores separavam uma
árvore das outras e transportavam-na durante uma certa distância, pelo
passeio movimentado, e apoiavam-na no tronco serrado, para o cliente a
avaliar. Era estranho ver árvores plantadas por algum cultivador a
quilómetros da cidade encostadas em grandes quantidades aos
gradeamentos de ferro forjado da frente das igrejas mais antigas da cidade e
amontoadas contra as fachadas de imponentes bancos e companhias de
seguros, e não era menos estranho respirar o seu penetrante cheiro a campo
numa rua do centro da cidade. No nosso bairro não havia árvores à venda –
porque não havia lá ninguém que as comprasse –, e por isso o mês de
Dezembro, se algum cheiro tinha, era o de alguma coisa que um gato
assanhado arrastara do caixote do lixo entornado no quintal de alguém, ou
do jantar a aquecer no fogão de um andar cuja janela da cozinha, enevoada
de vapor, estava entreaberta para deixar entrar o ar da travessa, ou das
baforadas de fétido gás carbónico expelidas pelas chaminés dos fornos, ou
do balde de cinzas transportado da cave para ser despejado na rua, nos
pavimentos escorregadios do passeio. Comparados com as fragrâncias da
Primavera húmida, do Verão alagadiço e do Outono instável e caprichoso de
North Jersey, os odores de um Inverno muito frio quase não se notavam, ou
pelo menos era isso que eu supunha antes de ir com Earl para o centro da
cidade, ver as árvores, aspirar o seu cheiro e descobrir que, como acontecia
com muitas outras coisas, Dezembro era diferente para os cristãos. Com o
centro adornado por milhares de lâmpadas, cantores a entoar cânticos de
Natal, a banda do Exército de Salvação numa pândega incessante e um Pai
Natal risonho em cada esquina, era o mês do ano em que o coração da
minha cidade natal era sublimemente deles e só deles. No Military Park
havia uma árvore de Natal enfeitada, com doze metros de altura, e da
fachada do edifício dos Serviços Públicos estava suspensa uma gigantesca
árvore de Natal metálica, iluminada por projectores, que o Newark News
dizia medir mais de vinte e quatro metros de altura, enquanto eu media um
metro e trinta e sete, à justa.
A minha última escapadela com Earl aconteceu numa tarde, poucos dias
antes das nossas férias de Natal, quando entrámos no autocarro para Linden
atrás de um homem que levava em cada mão um saco de centro comercial
cheio de presentes e decorado, para a época natalícia, em tons de vermelho
e verde. Exactamente dez dias depois, Mrs. Axman sofreria um colapso
nervoso e seria levada numa ambulância, a meio da noite, e pouco depois
disso, no Dia de Ano Novo de 1942, Earl seria por sua vez levado pelo pai,
com a colecção de selos e tudo o mais. Em fins de Janeiro apareceu um
camião de mudanças e, enquanto eu observava, levou todos os móveis da
casa, incluindo a cómoda com a roupa interior da mãe de Earl, e em
Summit Avenue nunca mais ninguém voltou a ver os Axman.
Em virtude de o frio crepúsculo do Inverno chegar agora tão rapidamente,
seguir pessoas para casa, de autocarro, fazia-nos sentir ainda mais
satisfeitos com nós mesmos, como se andássemos a tratar dos nossos
assuntos muito depois da meia-noite, quando os outros miúdos já estavam a
dormir havia horas. O homem com os sacos de compras permaneceu no
autocarro depois da linha de Hillside, seguiu para a Elizabeth e apeou-se
logo a seguir ao grande cemitério, não muito longe da esquina onde a minha
mãe crescera por cima da mercearia do pai. Descemos calmamente depois
dele, indistinguíveis, ambos, de mil outros miúdos da escola na
camuflagem-padrão de Inverno de canadiana com capuz, grossas mitenes
de lã e informes calças de bombazina enfiadas em apertadas galochas de
borracha com metade dos irritantes atacadores por atar. Mas por nos
supormos mais encobertos do que estávamos pelas sombras que se
adensavam, ou por o tempo estar a levar a melhor sobre a nossa destreza,
devemos tê-lo seguido menos habilmente do que era costume,
comprometendo assim «o duo invencível», como Earl baptizara
vangloriosamente a parelha de seguidores de cristãos em que nos
tornáramos.
Precisámos de atravessar dois compridos quarteirões, ambos ladeados por
imponentes casas de tijolo, reluzentes de iluminações natalícias, que Earl
identificou, num sussurro, como «mansões de milionários»; seguiram-se
dois quarteirões mais curtos, de modestas e muito mais pequenas casas de
madeira, do tipo que já víramos às centenas nas ruas que percorrêramos,
cada qual com a sua coroa de Natal na porta. No segundo dos dois
quarteirões o homem virou para um estreito caminho de tijolo que curvava
na direcção de uma casa quadrada, baixa, revestida de ripas, que espreitava
agradavelmente da neve amontoada como o enfeite comestível de um
grande bolo glaceado. Brilhavam luzes fracas na parte de cima e na de
baixo, e via-se o piscar da árvore de Natal através de uma das janelas do
lado da porta principal. Enquanto o homem pousava os sacos para tirar a
chave, fomo-nos aproximando cada vez mais do ondulante relvado
embranquecido até podermos distinguir, pela janela, os ornamentos que
decoravam a árvore.
– Olha – segredou Earl –, estás a ver o pico? Mesmo no cimo da árvore,
vês? É Jesus!
– Não, é um anjo.
– E o que pensas tu que Jesus é?
– Julgava que era o Deus deles – sussurrei em resposta.
– É o chefe dos anjos... e está ali!
Este era, então, o auge da nossa demanda: Jesus Cristo que, pelo
pensamento deles, era tudo e, pelo meu, lixara tudo: porque se não fosse
Cristo não haveria cristãos, e se não fossem os cristãos não haveria anti-
semitismo, e se não fosse o anti-semitismo não haveria Hitler, e se não
fosse Hitler, Lindbergh nunca seria presidente, e se Lindbergh não fosse
presidente...
De súbito, o homem que seguíramos, parado agora defronte da porta
aberta com os sacos das compras, girou nos calcanhares e suavemente,
como se exalasse um anel de fumo, chamou: «Rapazes.»
Ficámos tão espantados por termos sido surpreendidos que eu, pelo
menos, me senti intimado a avançar pelo caminho que conduzia à casa e,
como a criança-modelo que fora dois meses antes, limpar a consciência
dizendo-lhe o meu nome. Mas o braço de Earl deteve-me.
– Não se escondam, rapazes. Não é preciso – disse o homem.
– E agora? – perguntei, baixinho, a Earl.
– Caluuuuda... – segredou ele.
– Sei que estão aí, rapazes. Está a ficar terrivelmente escuro, rapazes –
avisou-os em tom amigável. – Não estão gelados? Não gostariam de uma
bela chávena de cacau? Para dentro, rapazes, venham depressa para dentro,
antes que comece a nevar. Tenho cacau quente, bolo de especiarias, bolo de
cominhos e bonecos de gengibre, tenho crackers com a forma de animais
com cobertura de cores diferentes, e tenho marshmallows no armário, que
podemos torrar em cima do lume.
Quando voltei a olhar para Earl, para saber o que devia fazer, ele já ia a
caminho de Newark.
– Pira-te – gritou-me por cima do ombro –, pira-te, Phil... o gajo é larila!
8 Tabaco claro, cultivado principalmente no Kentucky e usado sobretudo no fabrico de cigarros. (NT)
4
Janeiro de 1942-Fevereiro de 1942
O COTO

ALVIN foi licenciado em Janeiro de 1942, após abandonar primeiro a


cadeira de rodas e depois as muletas e de, durante um longo período de
reabilitação hospitalar, ter sido treinado por enfermeiros militares
canadianos a andar sem ajuda com a sua perna artificial. Passaria a receber,
do Governo canadiano, uma pensão mensal de incapacidade de cento e
vinte e cinco dólares, pouco menos de metade do que o meu pai recebia
mensalmente da Metropolitan, além de trezentos dólares adicionais por fim
de contrato. Na sua condição de veterano deficiente, poderia ter direito a
mais benefícios se optasse por continuar no Canadá, onde a cidadania
canadiana era concedida aos voluntários estrangeiros das Forças Armadas
canadianas que o desejassem imediatamente após a cessação de serviço. «E
porque não se tornou ele canadiano?», perguntou o tio Monty. «Se, de
qualquer modo, não suportava a América, porque não se deixou ficar onde
estava e cobrou?»
Monty era o mais autoritário dos meus tios, o que talvez explicasse por
que motivo era também o mais rico. Fizera fortuna a vender fruta e
hortaliças por atacado perto da via-férrea do mercado de Miller Street. O
pai de Alvin, o tio Jack, criara o negócio e chamara Monty para trabalhar
com ele e, depois da morte do tio Jack, Monty chamara o seu irmão mais
novo, o tio Herbie. Quando convidou também o meu pai – no tempo em que
os meus pais eram recém-casados sem recursos –, ele recusou, pois já
estava farto de ser tiranizado por Monty enquanto cresciam. O meu pai
conseguia acompanhar o prodigioso consumo de energia de Monty, e a sua
capacidade de suportar toda a espécie de dificuldades não era menos
notável do que a de Monty, mas sabia, devido aos conflitos dos tempos de
rapaz, não estar à altura do inovador que primeiro apostara em levar
tomates maduros para Newark no Inverno, comprando carradas de tomates
verdes vindos de Cuba e amadurecendo-os em divisões aquecidas
especialmente no rangente segundo piso do seu armazém da Miller Street.
Quando eles atingiam o ponto de amadurecimento adequado, Monty
embalava-os em caixas de quatro, e foi assim que passou a ser conhecido
por Rei dos Tomates.
Enquanto nós éramos inquilinos num andar de cinco divisões em Newark,
os tios negociantes por atacado viviam no bairro judaico da suburbana
Maplewood, onde cada um tinha uma grande casa branca de estilo colonial,
com persianas, um relvado na frente e um reluzente Cadillac na garagem.
Por sorte ou azar, o egoísmo exaltado de um Abe Steinheim, ou de um tio
Monty, ou de um rabi Bengelsdorf – judeus notavelmente dinâmicos e todos
eles aparentemente impelidos pelo seu estatuto aguerrido de descendentes
de papalvos para o desempenho do maior papel possível como homens
americanos –, não fazia parte da maneira de ser do meu pai, nem ele
possuía o mais leve desejo de supremacia, e por isso, apesar de o orgulho
pessoal ser uma força motriz e a sua mistura de coragem e combatividade
ser fortemente alimentada, como a deles, pelos agravos inerentes às suas
origens de criança pobre a que outros miúdos chamavam «kike»9,
contentou-se com fazer de si alguma coisa (em vez de tudo), e fazê-lo sem
destroçar as vidas que o rodeavam. O meu pai nasceu para combater, mas
também para proteger, e causar mal a um inimigo não lhe exaltava o ânimo
como acontecia ao seu irmão mais velho (para não mencionar todos os
restantes figurões empresariais). Havia os mandões e havia os mandados, e
os primeiros eram-no geralmente por uma razão – e estavam no negócio por
conta própria por uma razão, quer o negócio fosse o da construção, quer o
das verduras, do rabinato ou da extorsão. Era a melhor maneira que
conseguiam encontrar para não enfrentarem obstáculos – o menor dos quais
não era a discriminação da hierarquia protestante que mantinha 99 por cento
dos judeus a trabalhar resignadamente para as empresa dominantes.
– Se o Jack estivesse vivo – disse o tio Monty –, o rapaz não se teria ido
embora. Nunca deverias tê-lo deixado partir, Herm. Fugiu para o Canadá
para se tornar um herói da guerra, e aí está o resultado: ficou manco para o
resto da sua vida. – Isto passou-se no domingo anterior ao sábado do
regresso de Alvin, e o tio Monty, de roupa lavada em vez do blusão cheio de
nódoas, das velhas calças salpicadas e do imundo boné de pano que
constituíam o seu vestuário habitual no mercado, estava na cozinha
encostado ao nosso lava-louça, com um cigarro suspenso da boca. A minha
mãe estava ausente. Desculpara-se, como era seu costume quando Monty
aparecia, mas eu era miúdo e sentia-me fascinado por ele, como se fosse, de
facto, o gorila que ela lhe chamava pelas costas, quando o exaspero causado
pela grosseria do cunhado levava a melhor.
– O Alvin não suporta o teu presidente – respondeu o meu pai –; foi por
isso que partiu para o Canadá. Não há muito tempo, tu também não podias
suportar o homem. Mas agora esse anti-semita é teu amigo. A Depressão
acabou, segundo todos vocês, judeus ricos, me dizem, não graças a
Roosevelt, mas sim a Mr. Lindbergh. A Bolsa está em alta, os lucros estão a
subir, os negócios vão de vento em popa... e porquê? Porque temos a paz de
Lindbergh em vez da guerra de Roosevelt. E o que é mais importante, o
que, além do dinheiro, conta para vocês?
– Até pareces o Alvin a falar, Herman. Pareces um miúdo. O que conta,
além do dinheiro? Contam os teus dois rapazes. Queres que o Sandy volte
um dia para casa como o Alvin? Queres que o Phil – acrescentou, olhando
para onde eu estava, sentado à mesa da cozinha, a ouvir – volte um dia para
casa como o Alvin? Estamos e continuaremos a estar fora da guerra.
Lindbergh não me fez mal nenhum, que eu saiba. – Esperei que o meu pai
respondesse «Espera e verás», mas como eu estava presente e já bastante
assustado, não respondeu.
Assim que o tio Monty saiu, disse-me:
– O teu tio não sabe usar a cabeça. Voltar para casa como o Alvin... isso é
uma coisa que não acontecerá.
– E se Roosevelt voltar a ser presidente? Então haverá guerra.
– Talvez haja ou talvez não. Ninguém pode prever isso de antemão.
– Mas se houvesse – insisti –, e se o Sandy tivesse idade suficiente, seria
recrutado para combater na guerra. E se combatesse na guerra, o que
aconteceu ao Alvin podia acontecer-lhe a ele.
– Filho, tudo pode acontecer a qualquer pessoa, mas geralmente não
acontece.
«A não ser quando acontece», pensei, mas não me atrevi a dizê-lo, porque
ele já estava transtornado com as minhas perguntas e era até capaz de não
saber como responder, se eu continuasse a perguntar. Como o que o tio
Monty lhe dissera a respeito de Lindbergh era exactamente o que o rabi
Bengelsdorf lhe dissera – e também o que Sandy andava secretamente a
dizer-me –, comecei a perguntar a mim mesmo se o meu pai saberia do que
estava a falar.

Decorrera quase um ano depois da tomada de posse de Lindbergh quando


Alvin regressou a Newark num comboio nocturno vindo de Monreal,
acompanhado por uma enfermeira da Cruz Vermelha canadiana e trazendo a
menos metade de uma das pernas com que partira. Fomos esperá-lo de carro
para o centro da cidade, para a Penn Station, como fôramos no Verão
anterior esperar Sandy, mas desta vez o meu irmão estava connosco.
Algumas semanas antes, em nome da harmonia familiar, fora-me permitido
acompanhar a tia Evelyn e Sandy e sentar-me a ouvi-lo impressionar as
pessoas presentes numa sinagoga a cerca de sessenta quilómetros a sul de
Newark, em New Brunswick, incitando-as a inscrever os filhos no
programa Just Folks com histórias da sua aventura no Kentucky e uma
exposição dos seus desenhos. Os meus pais tinham-me tornado claro que o
trabalho de Sandy a favor do Just Folks era uma coisa que eu não precisava
de mencionar a Alvin; eles próprios se encarregariam de explicar tudo, mas
só depois de o meu primo ter tido a oportunidade de se habituar ao facto de
estar em casa e poder compreender melhor que a América mudara desde a
sua ida para o Canadá. Não se tratava de lhe esconder alguma coisa ou de
lhe mentir, mas sim de o proteger do que fosse susceptível de interferir na
sua recuperação.
O comboio de Monreal estava atrasado, naquela manhã, e, para passar o
tempo – e porque a situação política ocupava agora todos os momentos do
seu dia –, o meu pai comprara o Daily News. Sentado num banco da Penn
Station, foi passando uma vista de olhos pelo jornal, um tablóide de direita
de Nova Iorque a que ele se referia infalivelmente como um «pasquim»,
enquanto o resto da família andava de um lado para o outro do cais,
esperando ansiosamente que a fase seguinte da nossa nova vida começasse.
Quando o sistema de altifalantes anunciou que o comboio de Monreal
chegaria ainda mais atrasado do que o previsto, a minha mãe deu-nos o
braço, a Sandy e a mim, e regressou connosco ao banco, para lá esperarmos
juntos. Entretanto, o meu pai já lera o máximo que podia suportar do Daily
News e deitara-o num caixote do lixo. Como na nossa casa todos os
cêntimos contavam, senti-me perplexo por vê-lo deitar fora o jornal, uns
minutos, apenas, depois de o ter comprado – como, aliás, já me sentira
perplexo por o ver a lê-lo.
– São capazes de acreditar nesta gente? – perguntou. – Este cão fascista
ainda é o seu herói. – O que não disse foi que, cumprindo a promessa que
fizera na campanha de manter a América fora da guerra mundial, o cão
fascista se tornara agora o herói de praticamente todos os jornais do país,
com excepção do PM.
– Bem – disse a minha mãe, quando o comboio entrou finalmente na
estação e começou a reduzir a velocidade para parar –, aí vem o vosso
primo.
– O que devemos fazer? – perguntei-lhe, enquanto ela nos mandava
levantar e nos dirigíamos os quatro para a margem da plataforma.
– Cumprimentem-no. É o Alvin. Dêem-lhe as boas-vindas.
– E a respeito da perna? – murmurei.
– A respeito da perna o quê, querido?
Encolhi os ombros.
O meu pai agarrou-mos e disse:
– Não tenhas medo. Não tenhas medo do Alvin nem da sua perna.
Mostra-lhe como cresceste.
Foi Sandy quem se separou de nós e desatou a correr na direcção da
carruagem que parara uns sessenta metros mais abaixo. Alvin estava a ser
tirado do comboio numa cadeira de rodas empurrada por uma mulher com o
uniforme da Cruz Vermelha, enquanto a pessoa que corria direita a ele,
gritando o seu nome, era a única de nós que fora conquistada pelo outro
lado. Eu já não sabia o que havia de pensar do meu irmão, mas a verdade é
que também não sabia o que pensar de mim, tão atarefado andava a tentar
não me esquecer de guardar os segredos de toda a gente e, ao mesmo
tempo, a esforçar-me para conter os meus receios e não deixar de acreditar
no meu pai, assim como nos Democratas e em FDR, e em quem quer que
pudesse impedir-me de alinhar com o resto do país na adoração do
presidente Lindbergh.
– Voltaste! – exclamou Sandy. – Estás em casa! – E depois vi o meu
irmão, que acabara de fazer catorze anos, mas era forte como um jovem de
vinte, ajoelhar-se no chão de cimento para poder passar melhor os braços à
volta do pescoço de Alvin. Foi então que a minha mãe começou a chorar e o
meu pai me deu rapidamente a mão, quer para tentar impedir-me de romper
em pranto, quer para se autoproteger do caos dos seus próprios sentimentos.
Pensei que me competia correr, por minha vez, para Alvin e, por isso,
soltei-me dos meus pais, disparei direito à cadeira de rodas e, uma vez
chegado, e imitando Sandy, lancei-lhe os meus braços ao pescoço e descobri
quanto ele cheirava mal. Ao princípio pensei que o cheiro devia ser da
perna, mas vinha-lhe da boca.
Sustive a respiração e fechei os olhos, e só o soltei quando o senti
inclinar-se para a frente na cadeira, a fim de apertar a mão ao meu pai.
Reparei então nas muletas de madeira presas a um lado da cadeira e ousei,
pela primeira vez, olhá-lo de frente. Nunca tinha visto ninguém tão
esquelético e deprimido. Os seus olhos, porém, não denotavam medo nem
quaisquer vestígios de choro e observaram o meu pai com ferocidade, como
se ele fosse o protector que cometera o acto imperdoável que transformara o
protegido num estropiado.
– Herman – disse, apenas.
– Voltaste – disse o meu pai –, estás em casa. Nós vamos levar-te para
casa.
Depois, a minha mãe inclinou-se para a frente, para o beijar.
– Tia Bess.
A perna esquerda das calças caía, a direito, do joelho, o que de modo
geral parecia natural aos adultos, mas que me assustou, apesar de eu já
conhecer um homem sem pernas, um homem que começava nos quadris e
não era, ele próprio, nada mais do que um coto. Tinha-o visto antes, a
mendigar no passeio do lado de fora do escritório do meu pai no centro da
cidade, mas, avassalado pela sua colossal anormalidade, nunca pensara
muito nele, visto não existir perigo algum de alguma vez ir viver em nossa
casa. Era mais bem-sucedido com a sua mendicidade na época do basebol,
pois, quando os homens que ali trabalhavam saíam do edifício comunicava-
lhes os resultados finais da tarde, com a sua voz incongruentemente
profunda e declamatória, e cada um deles deixava uma moeda ou duas no
amolgado balde da roupa que era a sua caixa de esmolas. Deslocava-se
numa pequena plataforma de contraplacado – na realidade, parecia mesmo
viver nela – montada sobre patins de rodas. Além de me lembrar das
grossas luvas de trabalho, endurecidas pelo tempo, que ele usava durante
todo o ano – para proteger as mãos, que eram o seu meio ambulatório –, era
incapaz de descrever o resto do seu vestuário, porque o medo de ficar de
boca aberta, junto ao terror de ver, me impedia de olhar tempo suficiente
para ter consciência do que ele vestia. O simples facto de se vestir parecia-
me tão miraculoso como o de ele conseguir, de algum modo, urinar e
defecar, quanto mais lembrar-se dos resultados do basebol. Sempre que, ao
sábado de manhã, ia ao edifício vazio da companhia de seguros com o meu
pai – em grande parte para me deliciar a girar na sua cadeira enquanto ele
tratava do correio semanal –, ele e o coto de homem cumprimentavam-se
sempre com um amigável aceno de cabeça. Descobri então que a grotesca
injustiça de um jovem ser partido ao meio não só acontecera, simplesmente,
o que só por si já era muito incompreensível, como acontecera a alguém
chamado Robert, um nome masculino banalíssimo e com seis letras, como o
meu. «Como vai isso, Little Robert?», perguntava o meu pai, enquanto
entrávamos juntos no edifício. «Como vai, Herman?», respondia Little
Robert. A certa altura, perguntei ao meu pai: «Ele tem apelido?» «Tu
tens?», perguntou-me o meu pai, por sua vez. «Tenho.» «Bem, ele
também.» «Qual é? Little Robert quê?» O meu pai pensou um momento e
depois riu-se e respondeu: «Para ser franco, filho, não sei.»
A partir do momento em que soube que Alvin regressava a Newark para
convalescer em nossa casa, passei a imaginar involuntariamente Robert na
sua plataforma e com as suas luvas de trabalho, sempre que estava deitado,
rígido, às escuras e a esforçar-me para adormecer: primeiro os meus selos
cobertos de suásticas, depois Little Robert, o coto vivo.
– Pensava que andarias de pé com a perna que te deram. Pensava que não
te poderiam licenciar de outro modo – ouvi o meu pai dizer a Alvin. – O
que aconteceu?
Sem se incomodar a olhar para ele, Alvin respondeu, secamente:
– O coto rebentou.
– O que significa isso?
– Não tem importância. Não se preocupe com isso.
– Ele tem bagagem? – perguntou o meu pai à enfermeira.
Mas Alvin antecipou-se e não a deixou responder:
– Claro que tenho bagagem. Onde pensa que está a minha perna?
Sandy e eu fomos despachados para o balcão da bagagem, no átrio
principal, com Alvin e a sua enfermeira, enquanto o meu pai saía
apressadamente para ir buscar o carro ao parque de estacionamento de
Raymond Boulevard, acompanhado pela minha mãe, que decidiu ir com ele
no último minuto, muito provavelmente para falarem a respeito do que não
tinham previsto acerca do estado mental de Alvin. No cais, a enfermeira
chamara um bagageiro e, juntos, ajudaram Alvin a levantar-se. Depois o
bagageiro encarregou-se da cadeira de rodas enquanto a enfermeira
caminhava ao lado de Alvin, que saltava ao pé-coxinho na direcção do cimo
da escada rolante. Aí ela ocupou o seu lugar como escudo humano,
enquanto Alvin saltava atrás dela, agarrado ao corrimão em movimento, e a
escada descia. Sandy e eu íamos atrás dele, finalmente fora do alcance do
seu fétido hálito – e com Sandy preparado instintivamente para o agarrar, se
Alvin se desequilibrasse. O bagageiro, carregando de pernas para o ar e por
cima da cabeça a cadeira de rodas ainda com as muletas presas a um lado,
meteu pela escada paralela à rolante e já estava no átrio principal, à nossa
espera, quando Alvin saltou da escada rolante e nós atrás dele. O homem
colocou a cadeira como devia ser no chão do átrio e dispô-la firmemente,
para Alvin voltar a sentar-se, mas o meu primo virou-se, apoiado no único
pé, e começou a afastar-se, saltando vigorosamente e deixando a enfermeira
– à qual não dissera adeus nem obrigado – a vê-lo afastar-se rapidamente
pelo chão de mármore, na direcção da sala da bagagem.
– Ele não pode cair? – perguntou-lhe Sandy. – Vai tão depressa... E se
escorrega e cai?
– Quem, ele? Aquele rapaz consegue ir ao pé-coxinho seja para onde for.
É capaz de percorrer uma longa distância ao pé-coxinho. Não cairá. É o
campeão mundial do pé-coxinho. Sentir-se-ia mais feliz se tivesse vindo de
Monreal a saltar do que comigo aqui a ajudá-lo a descer do comboio. –
Depois confidenciou-nos, a nós, duas crianças protegidas e inteiramente
desconhecedoras da angústia da perda: – Já vi a fúria dos que perderam
ambas as pernas, mas nunca vi ninguém tão furioso como ele.
– Furioso com quê? – perguntou Sandy, ansioso.
Ela era uma mulher robusta, com olhos cinzentos severos e cabelo curto,
como o de um soldado, por baixo do boné cinzento da Cruz Vermelha, mas
foi no mais doce dos tons maternais, com uma brandura que constituiu outra
das surpresas daquele dia, como se Sandy fosse mais um dos jovens ao seu
cuidado, que explicou:
– Com o que enfurece as pessoas... com o rumo que as coisas tomam.
A minha mãe e eu tivemos de ir para casa de autocarro, pois não havia
lugar para nós no pequeno Studebaker da família. A cadeira de rodas de
Alvin ia no porta-bagagens, cuja porta, por ser do tipo rígido, teve de ser
fechada com a ajuda de uma corda grossa. A sua mala de viagem de lona
(com a perna artificial algures no interior) estava tão cheia que Sandy foi
incapaz de a levantar, mesmo com a minha ajuda, e tivemos de a arrastar
pelo chão do átrio até à porta da rua, onde o meu pai entrou em acção e,
ajudado por Sandy, a largou deitada no banco de trás. Praticamente dobrado
pela cintura, o meu irmão empoleirou-se na mala para o trajecto até casa,
com as muletas de Alvin atravessadas no colo. As pontas reforçadas de
borracha das muletas projectavam-se por uma das janelas da retaguarda, e o
meu pai atou-lhes o lenço de bolso para chamar a atenção de outros
condutores. O meu pai e Alvin iam à frente, e eu preparava-me tristemente
para me encaixar no meio deles, logo à direita do manípulo da direcção,
quando a minha mãe disse que precisava da minha companhia para
regressar a casa. Afinal, o que ela realmente desejava era poupar-me ao
espectáculo de mais sofrimento.
– É natural – observou, enquanto dobrávamos a esquina para a passagem
subterrânea onde se formava a bicha para o autocarro da carreira 14. – É
absolutamente natural estares transtornado. Todos nós estamos.
Neguei que estivesse transtornado, mas dei comigo a olhar em redor da
paragem do autocarro, à procura de alguém a quem seguisse. Eram cerca de
doze os trajectos que se iniciavam nesta única paragem da Penn Station, e
sucedeu que um autocarro Vailsburg, com destino à distante North Newark,
estava a receber passageiros no próprio momento em que a minha mãe e eu
parámos no lado do passeio da passagem subterrânea, à espera que
aparecesse um da carreira 14. Localizei de imediato o homem a seguir, um
empresário de pasta, que me pareceu – com a minha capacidade
reconhecidamente imperfeita para avaliar as características significativas
com as quais Earl estava tão magistralmente sintonizado – não ser judeu.
No entanto, só me foi permitido olhar anelantemente, pois a porta do
autocarro fechou-se atrás dele e o veículo partiu, privando-me de qualquer
possibilidade de o espiar de um lugar próximo.
Quando ficámos sozinhos os dois no autocarro, a minha mãe disse:
– Conta-me o que está a preocupar-te.
Como não respondi, começou a explicar o comportamento de Alvin na
estação ferroviária.
– Ele está envergonhado. Sente-se envergonhado por nós o vermos numa
cadeira de rodas. Quando partiu de cá era forte e independente. Agora tem
vontade de se esconder, quer gritar, apetece-lhe recalcitrar a torto e a
direito, e isso é terrível para ele. E também é terrível para um rapaz como tu
ter de ver assim o teu primo crescido. Mas tudo isso mudará. Assim que ele
compreender que não há nada no seu aspecto nem no que lhe aconteceu de
que deva envergonhar-se, recuperará o peso que perdeu e começará a andar
por todo o lado com a sua perna artificial, e voltará a parecer exactamente
como recordas que ele era antes de partir para o Canadá... Isso ajuda-te
alguma coisa? O que estou a dizer tranquiliza-te, ao menos?
– Não preciso de ser tranquilizado – respondi, mas o que queria dizer era:
«O seu coto... O que significa dizerem que rebentou? Tenho de o ver? Terei,
alguma vez, de lhe tocar? Vão consertá-lo?» Num sábado, duas semanas
antes, tinha ido à cave com a minha mãe e ajudara-a a despejar as caixas de
cartão cheias de coisas de Alvin, resgatadas pelo meu pai do quarto da
Wright Street depois de ele ter fugido para se alistar no exército canadiano.
A minha mãe esfregou tudo quanto era lavável na tábua do tanque com duas
divisões, ensaboando numa e enxaguando na outra, e depois foi metendo
uma peça de cada vez no espremedor, enquanto eu dava à manivela para
extrair a água de enxaguar. Detestava aquele espremedor: cada peça saía
espalmada de entre os dois rolos, como se tivesse sido atropelada por um
camião, e, não sei porquê, quando estava na cave tinha sempre medo de
virar as costas é engenhoca. Mas dessa vez esforcei-me para deitar cada
peça de roupa molhada, deformada e trucidada no cesto e levá-lo para cima,
para a minha mãe pôr tudo a secar na corda da roupa do quintal. Passei-lhe
as molas, enquanto ela se debruçava para estender a roupa, e nessa noite,
depois do jantar, enquanto ela, de pé, passava a ferro as camisas e os
pijamas que acabara de a ajudar a recolher, eu, sentado à mesa da cozinha,
dobrava a roupa interior de Alvin e enrolava cada par de peúgas numa bola,
decidido a fazer com que tudo corresse bem e comportando-me como o
melhor rapazinho possível de imaginar, muito melhor do que Sandy – e
melhor, até, do que eu próprio.
No dia seguinte, depois das aulas, tive de ir duas vezes ao alfaiate da
esquina, com as roupas de sair do meu primo, para serem limpas a seco.
Dias depois, fui buscá-las e, em casa, pendurei tudo – sobretudo, fato,
casaco de desporto e dois dos seus pares de calças – em cabides de madeira
na metade do roupeiro que reservara para ele no meu quarto, e empilhei a
restante roupa limpa nas duas gavetas de cima, que anteriormente tinham
sido de Sandy. Como Alvin ia dormir no nosso quarto – para dispor do
acesso mais fácil possível à casa de banho –, o meu irmão já preparara tudo
para se mudar para a marquise da frente da casa e arrumara as suas coisas
no aparador da sala de jantar, ao lado da toalha de mesa e dos guardanapos
de linho. Uma noite, poucos dias antes do regresso previsto de Alvin,
engraxei-lhe o par de sapatos castanhos e o par de sapatos pretos, fazendo o
possível por ignorar qualquer incerteza quanto ao facto de ser ou não
necessário dar lustro aos quatro sapatos. Pôr os sapatos a brilhar, levar as
suas roupas de sair para serem limpas, arrumar muito bem as peças limpas
de vestuário nas gavetas da cómoda – e fazer tudo isso simplesmente como
uma prece, uma prece improvisada aos deuses do lar para que protegessem
as nossas modestas cinco divisões e tudo quanto elas continham da fúria
vingadora da perna perdida.
Tentei calcular, pelo que via do lado de fora da janela do autocarro,
quanto tempo faltava para chegarmos à Summit Avenue e era tarde de mais
para revelar o meu futuro. Estávamos na Clinton Avenue, a passar pelo
Riviera Hotel, onde, como nunca deixava de me lembrar, a minha mãe e o
meu pai tinham passado a noite de núpcias. Deixáramos para trás o centro
da cidade, estávamos a meio caminho de casa e, mesmo em frente, ficava o
Templo B’nai Abraham, a grande fortaleza oval construída para servir os
judeus ricos da cidade e que não era menos estranha para mim do que seria
se fosse o Vaticano.
– Eu podia dormir na tua cama – disse a minha mãe –, se é isso que está a
incomodar-te. Por agora, até voltarmos todos a habituar-nos uns aos outros,
podia dormir na tua cama, ao lado da do Alvin, e tu dormias com o pai na
nossa cama. Achas que seria melhor assim?
Respondi que preferia dormir sozinho na minha própria cama.
– E se o Sandy passasse da marquise para a sua cama – sugeriu a minha
mãe –, o Alvin dormisse na tua e tu dormisses onde o Sandy vai dormir, no
divã da marquise? Ias sentir-te só na frente da casa ou preferirias realmente
isso?
Se preferiria? Adoraria. Mas como poderia Sandy, que trabalhava agora
para Lindbergh, partilhar um quarto com alguém que perdera a perna por ter
ido para a guerra contra os amigos nazis de Lindbergh?
Estávamos a virar para a Clinton Place da paragem da Clinton Avenue, a
familiar esquina residencial onde, antes de Sandy me abandonar trocando-
me pela tia Evelyn, nas tardes de sábado, eu e ele costumávamos apear-nos
para a sessão de dois filmes no Roosevelt Theater, cujo toldo com letras
pretas ficava a um quarteirão de distância. O autocarro não tardaria a passar
pelas travessas estreitas e pelas casas de dois pisos e águas-furtadas que
ladeavam a extensão plana de Clinton Place – ruas que se pareciam muito
com a nossa, mas cuja enfiada de entradas principais de tijolo vermelho
com empenas triangulares não despertava um só dos fundamentais
sentimentos juvenis que a nossa despertava –, antes de chegarmos à grande
curva final para a Chancellor Avenue. Começaria aí a difícil subida da
encosta, passando pelos elegantes pilares estriados da bonita nova escola
secundária, pelo robusto pau de bandeira da frente da minha escola primária
e atravessando a crista da colina, onde o nosso professor do terceiro ano
dizia ter vivido, numa aldeia minúscula, um bando de lenni lenapes10 que
cozinhavam os alimentos sobre pedras aquecidas e faziam desenhos nos
seus utensílios. Esse era o nosso destino, a paragem da Summit Avenue,
diagonalmente oposta às bandejas de chocolates recém-cobertos
esbanjadoramente dispostas nas montras adornadas de cortinas de renda da
Anna Mae’s, a loja de doces que sucedera às tendas cónicas dos índios e
cujo aroma arrebatador adoçava o ar a menos de uma caminhada de dois
minutos da nossa casa.
Por outras palavras, o tempo reservado para responder sim à marquise era
precisamente mensurável e estava a esgotar-se, cinema após cinema, loja de
doces após loja de doces, entrada de prédio após entrada de prédio; mas
mesmo assim a única coisa que eu consegui dizer foi não, não, ficarei bem
onde estou, até não restar à minha mãe nada de tranquilizador para sugerir
e, malgrado seu, ficar tristemente calada, de um modo muito triste e muito
claro, como se a sucessão de acontecimentos da manhã estivesse finalmente
a transtorná-la como me transtornara a mim. Entretanto, como não sabia
quanto tempo seria capaz de continuar a esconder que não podia suportar
Alvin por causa do membro perdido e da perna das calças vazia, e do seu
horrível cheiro, da sua cadeira de rodas, das suas muletas e do modo como
falava sem olhar para nós, comecei a fingir que estava a seguir alguém do
nosso autocarro que não tinha ar de judeu. Foi então que dei conta –
valendo-me de todos os critérios que Earl me transmitira – de que a minha
mãe parecia judia. O seu cabelo, o seu nariz, os seus olhos... enfim, a minha
mãe parecia inequivocamente judia. Mas isso significava que devia
acontecer o mesmo comigo, que me parecia tanto com ela. Era uma
novidade; nunca o soubera.

Alvin cheirava muito mal por causa do estado lastimoso da sua boca.
«Perdemos os dentes quando temos problemas», explicou o Dr. Lieberfarb
depois de observar com o seu espelhinho e dizer dezanove vezes «Uh-oh»,
e começou a usar a broca nessa mesma tarde. Ia fazer todo aquele trabalho
de graça, porque Alvin fora combater os fascistas como voluntário e
também porque, ao contrário «dos judeus ricos» que surpreendiam o meu
pai julgando-se seguros na América de Lindbergh, Lieberfarb continuava
sem ilusões quanto ao que «os muitos Hitlers deste mundo» ainda podiam
ter de reserva para nós. Dezanove obturações de ouro era obra, mas foi essa
a sua maneira de mostrar a sua solidariedade ao meu pai, à minha mãe, a
mim e aos Democratas, em oposição ao tio Monty, à tia Evelyn, ao Sandy e
a todos os republicanos presentemente nas boas graças dos seus
compatriotas. Dezanove obturações também demoravam muito tempo a
fazer, sobretudo a um dentista que estudara na escola nocturna enquanto de
dia acondicionava caixotes de carga em Port Newark e cujo toque nunca foi
muito leve. Lieberfarb passou meses a brocar, mas nas primeiras semanas já
tinha removido podridão suficiente, de modo que dormir mais ou menos
perto da boca de Alvin deixara de ser uma provação tão grande. O coto era
outra história. «Rebentado» significa que a extremidade do coto está mal:
abre, estala, fica infectada. Surgem erupções, feridas e edema, e não se pode
andar com a prótese apoiada nele, o que torna necessário tirá-la e recorrer a
muletas até o coto cicatrizar e conseguir suportar a pressão sem rebentar de
novo. O defeito estava no ajuste da perna artificial. Os médicos diziam-lhe:
«Perdeu o ajuste», mas ele não o perdera, ele nunca o tivera, explicava
Alvin, porque, para começar, o fabricante da perna não tirara as medidas
como devia ser.
– Quanto tempo leva a cicatrizar? – perguntei-lhe na noite em que ele me
explicou, finalmente, o que significa «rebentado».
Sandy, no lado da frente da casa, e os meus pais no quarto deles, já
dormiam havia horas, assim como Alvin e eu, quando ele começou a gritar
«Dança! Dança!» e, com um ofegar assustador, se sentou de repente na
cama, completamente acordado. Quando acendi o candeeiro da mesa-de-
cabeceira e o vi coberto de suor, levantei-me, abri a porta do quarto e,
embora eu próprio tivesse ficado, de súbito, encharcado em suor, atravessei
o pequeno vestíbulo da parte de trás da casa em bicos de pés, não para ir ao
quarto dos meus pais contar-lhes o que acontecera, mas sim para ir à casa
de banho buscar uma toalha para Alvin. Ele usou-a para enxugar o rosto e o
pescoço e depois despiu o casaco do pijama para enxugar o peito e os
sovacos, e foi então que eu vi, finalmente, o que acontecera à parte de cima
do seu corpo desde que a parte de baixo fora estropiada pela explosão. Não
tinha feridas nem pontos, nem estava desfigurada por cicatrizes, mas
também não tinha qualquer força, era apenas a pele pálida de um rapaz
doente colada aos nós e às saliências dos ossos.
Era a quarta noite que passávamos juntos. Nas primeiras três, Alvin tivera
o cuidado de vestir o pijama na casa de banho e depois voltar ao pé-coxinho
para o quarto, a fim de pendurar as roupas no armário, e como de manhã
voltava a usar a casa de banho para se vestir, eu ainda não vira o coto e
podia fingir que desconhecia a sua existência. À noite virava-me para a
parede e, fatigado com todas as minhas preocupações, caía logo no sono e
continuava a dormir até às primeiras horas da manhã, quando Alvin
coxeava para a casa de banho e depois voltava de novo para a cama. Ele
fazia tudo isto sem acender a luz, e eu ficava à espera, com medo de que
chocasse com qualquer coisa e caísse. À noite, todos os seus movimentos
me davam vontade de fugir, e não apenas do coto. Foi só na quarta noite,
quando Alvin acabara de se enxugar com a toalha e estava deitado apenas
com as calças do pijama vestidas, que ele puxou a perna esquerda das
calças para observar o coto. Supus que se tratava de um sinal prometedor,
que ele começava a estar menos insanemente agitado, pelo menos na minha
presença, mas continuei sem querer olhar na sua direcção... mas olhei,
esforçando-me para ser um soldado na minha cama. O que vi no
prolongamento da articulação do seu joelho foi uma coisa com uns doze ou
quinze centímetros de comprimento e que parecia a cabeça alongada de um
animal sem feições, algo em que, com alguns traços bem aplicados, Sandy
poderia ter desenhado olhos, nariz, boca, dentes e orelhas, transformando-o
em qualquer coisa de semelhante a uma ratazana. O que vi foi aquilo que a
palavra «coto» descreve: o resto rombo de uma coisa inteira que fizera parte
daquilo e ali estivera. Se não conhecêssemos o aspecto de uma perna, esta
poderia ter-nos parecido normal, dado o modo como a pele sem pêlos se
arredondava suavemente na extremidade abreviada, como se fosse obra da
natureza e não uma dolorosa sequência de amputações clínicas.
– Está cicatrizado? – perguntei.
– Ainda não.
– Quanto tempo levará?
– Eternamente.
Fiquei atordoado. Então isto é interminável! – pensei.
– Extremamente frustrante – continuou Alvin. – Pomos a perna que eles
fizeram para nós e o coto rebenta. Andamos com muletas e começa a inchar.
O coto fica mal seja o que for que façamos. Tira as minhas ligaduras da
gaveta.
Obedeci-lhe. Ia ter de mexer nas ligaduras elásticas beges que ele usava
para evitar que o coto inchasse quando não tinha a perna artificial posta.
Estavam enroladas a um canto da gaveta, ao lado das suas peúgas. Cada
uma media cerca de oito centímetros de largura e tinha um grande alfinete
de ama a prender a ponta, para evitar que se desenrolasse. Eu tinha tanta
vontade de enfiar a mão na gaveta como de descer à cave e enfiá-la entre os
rolos do espremedor, mas meti-a, e quando estendi as ligaduras, uma em
cada mão, ele disse: «Bom menino», e conseguiu fazer-me rir afagando-me
a cabeça como se fosse a de um cão.
Com medo de ver o que se seguiria, sentei-me na minha cama e observei.
– Põe-se esta ligadura – explicou-me ele – para evitar que ele inche. –
Segurou o coto com uma das mãos e com a outra abriu o alfinete e começou
a enrolar uma ligadura num padrão entrecruzado sobre o coto e subindo
para a articulação do joelho e depois vários centímetros mais para cima. –
Põe-se esta ligadura para evitar que inche – repetiu as palavras
fatigadamente, com uma paciência exagerada –, mas não devemos pô-la por
cima da parte rebentada porque o impediria de cicatrizar. Por isso andamos
de um lado para o outro até ficarmos chalupas. – Quando acabou de colocar
a ligadura e pôr o alfinete na extremidade, para a prender, mostrou-me o
resultado. – Temos de apertar bem, estás a ver? – Pegou na segunda
ligadura e recomeçou a manobra. O coto, quando ele acabou, voltou a
lembrar-me um pequeno animal, desta vez um animal cuja cabeça tivera de
ser açaimada com enorme cuidado para o impedir de cravar os dentes
cortantes como navalhas na mão do seu captor.
– Como se aprende a pôr isso? – perguntei-lhe.
– Não precisamos de aprender. Basta pôr. A não ser – explicou de súbito –
que fique apertado de mais, raios. No fim de contas, talvez seja preciso
aprender. Grandes estupores, raios as partam! Ou ficam lassas de mais ou
apertadas de mais, catano! Dá com um gajo em chalado... tudo isto. – Tirou
o alfinete que prendia a segunda ligadura e depois tirou ambas, para
começar de novo. – Estás a ver – disse-me, a esforçar-se para conter a fúria
com a inutilidade de tudo – como nos tornamos peritos nisto. – Recomeçou
a ligar o coto, tarefa que, como a cicatrização, parecia destinada a
prosseguir eternamente no nosso quarto.
No dia seguinte, quando acabaram as aulas, corri direito a uma casa que
sabia estar deserta – Alvin estava no dentista, Sandy tinha ido a qualquer
lado com a tia Evelyn, ambos, inexplicavelmente, a ajudarem Lindbergh a
atingir os seus fins, e os meus pais só voltariam do trabalho à hora do jantar.
Como Alvin se habituara a dedicar as horas do dia a permitir que o
rebentamento cicatrizasse sem ligaduras e as noites a ligar o coto para evitar
que o ele inchasse, não tive dificuldade em encontrar as duas ligaduras no
canto da gaveta de cima, aonde ele as devolvera bem enroladas naquela
manhã. Sentei-me na beira da minha cama, arregacei a perna esquerda das
calças e, espantado por verificar que o que restava da perna do meu primo
não era diametralmente muito maior do que a minha, comecei a ligar-me.
Na escola, tinha passado o dia a recapitular mentalmente o que o vira fazer
na noite anterior, mas às três e vinte da tarde, quando cheguei a casa, mal
começara a enrolar a primeira ligadura a um imaginário coto pessoal
quando senti, contra a carne abaixo do joelho, o que verifiquei ser uma
crosta irregular da ulcerada parte inferior do coto de Alvin. A crosta devia
ter-se soltado durante a noite – Alvin ignorara-a ou não dera por ela – e
agora colara-se a mim e eu estava muito longe de saber como lidar com
aquilo. Embora as ânsias de vómito começassem no quarto, corri para a
porta das traseiras e pela escada abaixo até à cave, conseguindo assim
colocar a cabeça sobre o tanque duplo segundos antes de começar a vomitar
a sério.
Encontrar-me sozinho na caverna húmida da cave era uma provação,
fossem quais fossem as circunstâncias, e não apenas por causa do
espremedor. Com o seu friso manchado de bolor e humidade ao longo das
fendidas paredes caiadas – manchas de todas as tonalidades do arco-íris
excrementício e nódoas de infiltrações que pareciam ter escorrido de um
cadáver –, a cave era um reino macabro à parte, que se estendia sob toda a
superfície da casa e não recebia luz alguma da meia dúzia de frestas de
vidro embaciado pela sujidade que davam para o cimento dos becos e para
o quintal da frente inçado de erva. Havia vários canos do tamanho de pires
embebidos no fundo de uma concavidade em declive no meio do piso de
cimento. Afixados na boca de cada um deles havia um disco preto, pesado,
crivado de perfurações concêntricas, do tamanho de uma moeda de dez
cêntimos, pelas quais eu não tinha qualquer dificuldade em imaginar que
criaturas vaporosas e espiraladas subiam malevolamente das entranhas da
terra para dentro da minha vida. A cave era um lugar privado não só de uma
única janela ensolarada, mas também de toda a confiança humana, e
quando, caloiro, comecei a estudar Mitologia Grega e Romana numa escola
secundária e tive conhecimento, pelos livros escolares, de Hades e Cérbero
e do rio Estige, era sempre a nossa cave que eles me lembravam. Uma
lâmpada de trinta velas pendia sobre o tanque no qual eu vomitara, havia
uma segunda nas imediações das fornalhas a carvão – incandescentes e
volumosas, alinhadas juntas como o Plutão tripessoal do nosso mundo
subterrâneo – e outra, quase sempre fundida, estava suspensa de um fio
eléctrico dentro de cada um dos cubículos de arrecadação.
Nunca aceitei que um dia me viesse a caber a responsabilidade de, em
tempo de Inverno, deitar pás de carvão na fornalha correspondente à nossa
família, todos os dias de manhã cedo, e depois a de amodorrar o lume, antes
de ir para a cama, e a de, uma vez por dia, transportar um balde de cinzas
frias para o contentor da cinza, no quintal das traseiras. Entretanto, Sandy
tornara-se suficientemente forte para substituir o meu pai nessas tarefas e,
dentro de mais alguns anos, quando ele partisse, como todos os rapazes
americanos de dezoito anos, para receber a sua instrução militar de vinte e
quatro meses no novo Exército do Cidadão do presidente Lindbergh, eu
herdaria a tarefa e só a deixaria quando, por minha vez, também fosse
recrutado. Imaginar, aos nove anos, um futuro em que estaria na cave
sozinho a encarregar-me da fornalha era tão perturbador como pensar na
inevitabilidade de morrer, que também começara a atormentar-me na cama,
todas as noites.
Mas temia a cave, principalmente por causa daqueles que já tinham
morrido: o meu avô materno e o meu avô paterno, a mãe da minha mãe e a
tia e o tio que outrora tinham sido a família de Alvin. Os seus corpos
podiam estar enterrados logo à saída da Route 1, na linha Newark-
Elizabeth, mas para vigiarem os nossos assuntos e observarem a nossa
conduta os seus fantasmas residiam dois pisos abaixo do nosso andar.
Lembrava-me pouco ou nada de qualquer deles, a não ser da avó que
morrera quando eu tinha seis anos, mas mesmo assim, sempre que me
dirigia sozinho para a cave, tinha o cuidado de avisar cada um deles, por
sua vez, de que ia descer e rogar-lhes que se mantivessem distantes de mim,
que não me cercassem quando estivesse no meio deles. Quando era da
minha idade, Sandy costumava precaver-se contra o seu tipo de medo
correndo pela escada da cave abaixo, aos gritos: «Tipos maus, sei que estão
aí em baixo... estou armado», enquanto eu descia a murmurar: «Lamento se
fiz alguma coisa errada.»
Havia o espremedor, os canos, os mortos – os fantasmas dos mortos a
observar, a julgar e a condenar, enquanto eu vomitava para o tanque duplo
onde a minha mãe e eu laváramos a roupa de Alvin – e havia os gatos do
beco que desapareciam na cave quando a porta das traseiras ficava
entreaberta e depois miavam de onde quer que estivessem encolhidos, no
escuro – e havia a tosse atroz do nosso vizinho de baixo, Mr. Wishnow, uma
tosse que ecoava na cave como se ele estivesse a ser rasgado por uma serra
manobrada por dois homens. Mr. Wishnow era, como o meu pai, agente de
seguros da Metropolitan, mas estava há dois anos com baixa, demasiado
doente com cancro da boca e da garganta para fazer outra coisa além de
ficar em casa e ouvir as série diárias da rádio, quando não estava a dormir
ou a tossir desgarradamente. Com a autorização da sede, a mulher
substituíra-o – tornando-se a primeira agente de seguros feminina da
história da zona de Newark – e agora trabalhava no mesmo horário de horas
extra do meu pai, que geralmente tinha de voltar a sair depois do jantar para
efectuar as cobranças e angariar novos clientes quase todos os sábados ou
domingos, pois os fins-de-semana eram a única altura em que podia ter
esperança de encontrar um trabalhador chefe de família em casa disposto a
ouvir a sua conversa de vendedor. Antes de, ela própria, ter de começar a
trabalhar como empregada de balcão no Hahne’s, a minha mãe ia ao andar
de baixo umas duas vezes por dia, para ver como Mr. Wishnow estava; e
agora, quando Mrs. Wishnow telefonava a dizer que não poderia estar em
casa a tempo de preparar um jantar como devia ser, a minha mãe
acrescentava um pouco mais ao que ia fazer para o jantar e, antes de nos
sentarmos para comer a nossa refeição, Sandy e eu levávamos, cada um, um
prato de comida quente num tabuleiro ao andar de baixo, um para Mr.
Wishnow e outro para Seldon, o filho único do casal. Seldon abria-nos a
porta e nós transportávamos os nossos tabuleiros para a cozinha,
esforçando-nos para não entornarmos nada quando os depositávamos na
mesa, onde Mr. Wishnow já estava à espera, com um guardanapo de papel
metido na gola do pijama, mas com o aspecto de não ser, de modo algum,
capaz comer, por muito desesperadamente que necessitasse de se alimentar.
«Vocês estão bem, rapazes?», perguntava-nos no fiapo de voz esfarrapada
que lhe restava. «Que tal dizeres-me uma piada, Phillie? Fazia-me jeito uma
boa piada», admitia, mas sem azedume, sem tristeza, limitando-se a
demonstrar a jovialidade branda e defensiva de alguém que ainda resistia
sem nenhuma razão aparente para resistir. Seldon devia ter dito ao pai que
eu fazia os rapazes rir, na escola, e por isso era ironicamente desafiado a
dizer-lhe uma piada quando a sua simples proximidade chegava para
obliterar a minha capacidade de falar. O mais que conseguia era tentar olhar
para alguém que eu sabia estar a morrer – e, pior ainda, resignado a morrer
– sem permitir que os meus olhos vissem nos dele a arrepiante evidência do
suplício físico por que estava a ser obrigado a passar no seu caminho para
uma vida espectral na nossa cave, na companhia de todos os outros mortos.
Às vezes, quando era preciso ir à farmácia aviar as receitas de Mr.
Wishnow, Seldon subia apressadamente a escada para me perguntar se
queria ir com ele, e como eu soubera pelos meus pais que o pai dele estava
condenado – e o próprio Seldon agia como se não soubesse nada a esse
respeito –, não encontrava nenhuma maneira de me esquivar, apesar de
nunca ter gostado de estar com uma pessoa tão patentemente ansiosa por ser
tratada como amiga. Seldon era uma criança claramente dominada pela
solidão e imerecidamente rica em sofrimento, e esforçava-se em excesso
para mostrar um sorriso permanente, era um daqueles rapazinhos lingrinhas,
pálidos e com cara de bonzinhos que embaraçam toda a gente ao atirar uma
bola como uma rapariga, mas também o melhor aluno da nossa classe e a
fera máxima de toda a escola em Matemática. Curiosamente, não havia
ninguém na aula de Ginástica melhor do que Seldon a amarinhar e a descer
pelas cordas que pendiam do tecto alto do ginásio, agilidade aérea que,
segundo um dos nossos professores, estava inteiramente relacionada com a
sua incontestável perícia com números. Já era um pequeno campeão de
xadrez, que o pai lhe ensinara, e por isso, cada vez que o acompanhava à
farmácia, sabia de ciência certa que nada me impediria de, mais tarde, ir
ficar diante do tabuleiro de xadrez na sala escurecida da sua família –
escurecida para poupar electricidade e também porque os cortinados
estavam agora sempre corridos, para evitar que os curiosos mórbidos do
bairro espreitassem lá para dentro e acompanhassem a descida, passo a
passo, de Seldon para a orfandade. Inabalado pela minha firme resistência,
Seldon Solitário (como fora alcunhado por Earl Axman, para quem o
esgotamento mental da mãe, de um dia para o outro, fora uma aterradora
catástrofe parental de outra natureza) tentava ensinar-me pela milionésima
vez como deslocar as peças e jogar enquanto, atrás da porta do quarto das
traseiras, o seu pai tossia tão frequentemente e com tanta força que parecia
haver ali não um, mas quatro, cinco, seis pais a tossir até à morte.

Em menos de uma semana, era eu e não Alvin quem lhe ligava o coto, e
entretanto praticara tanto em mim mesmo – e sem voltar a vomitar – que ele
não tivera motivos para se queixar, uma única vez, de que as ligaduras
estavam folgadas ou apertadas de mais. Fazia-o todas as noites – mesmo
depois de o coto ter cicatrizado e ele andar regularmente com a perna
artificial – para evitar uma recidiva do inchaço. Durante todo o tempo em
que o coto estivera a cicatrizar, a perna artificial tinha estado guardada no
fundo do roupeiro, em grande parte oculta pelos sapatos arrumados na parte
da frente e as calças suspensas do varão dos cabides. Mesmo assim, era
preciso algum esforço para não reparar nela, mas eu estava decidido e não
soube do que era feita até ao dia em que Alvin a tirou e colocou.
Exceptuando o facto de replicar macabramente a forma da metade inferior
de uma perna, tudo nela era, horrível, mas horrível e admirável ao mesmo
tempo, a começar por aquilo a que Alvin chamava o seu arnês: a espécie de
colete de cabedal escuro que envolvia a frente e se estendia desde logo
abaixo da nádega até ao cimo da rótula e ficava preso à prótese por
dobradiças de aço de cada lado do joelho. O coto, com uma comprida peúga
de lã branca esticada por cima, encaixava aconchegadamente numa
cavidade almofadada esculpida no cimo da prótese, que era moldada em
madeira oca com furos de ventilação, e não, como eu imaginara, de um
bocado de borracha preta semelhante a uma moca de livro de histórias aos
quadradinhos. Na extremidade da perna havia um pé artificial que se flectia
apenas alguns graus e era almofadado com uma sola de esponja. Encaixava-
se perfeitamente na perna sem nenhuma da ferragem à vista, e embora
parecesse mais uma forma de sapatos de madeira do que um pé verdadeiro
com cinco dedos separados, quando Alvin calçava as peúgas e os sapatos –
as primeiras lavadas pela minha mãe e os segundos engraxados por mim –
era como se os pés fossem ambos dele e naturais.
No primeiro dia em que voltou a pôr a perna artificial, Alvin treinou no
beco, andando de um lado para o outro, da garagem do fundo até à sebe
raquítica que envolvia o pequeno jardim da frente, mas sem nunca avançar
sequer um passo mais que permitisse verem-no da rua. No segundo dia
treinou de novo sozinho, de manhã, mas quando eu cheguei da escola
levou-me consigo para fora de casa, para outra sessão, concentrando-se
desta vez não apenas no andar, mas fingindo também que a saúde do seu
coto e o ajustamento da sua prótese – além do longo futuro que tinha pela
frente como perneta – não pesavam no seu espírito. Na semana seguinte,
usou a perna em casa o dia inteiro, e na outra disse-me: «Vai buscar a bola
de futebol.» Mas nós não tínhamos uma bola dessas – ter uma bola de
futebol era o mesmo que usar protectores nos sapatos ou chumaços nos
ombros, e nenhum miúdo que não fosse «rico» tinha uma bola dessas. E eu
não podia ir requisitar uma ao campo de jogos atrás da escola, a não ser que
fôssemos usá-la ali mesmo; por isso, o que fiz – eu, que até então nunca
roubara nada além de alguns trocos dos bolsos dos meus pais –, o que eu fiz
sem a mínima hesitação foi descer a Keer Avenue até onde havia casas de
monofamiliares com relvados na frente e nas traseiras e observar todos os
caminhos de acesso até descobrir o que procurava: uma bola de futebol para
roubar, uma genuína Wilson de couro, roçada do pavimento, com
atacadores de couro gastos e uma «bexiga» que se enchia soprando, que um
miúdo qualquer com dinheiro ali deixara abandonada. Meti-a debaixo do
braço e voltei para trás, correndo pela ladeira da Summit Avenue como se
fosse devolver um pontapé de saída pelo velho Notre Dame.
Nessa tarde treinámos passes no beco durante quase uma hora, e à noite,
quando examinámos juntos o coto, atrás da porta fechada do nosso quarto,
não lobrigámos nem um sinal de rebentamento, apesar de, enquanto me
lançava as suas perfeitas espirais com a mão esquerda, Alvin ter apoiado
praticamente todo o seu peso na perna artificial. «Não tive outro remédio»,
eis a defesa que eu teria apresentado se tivesse sido apanhado em flagrante
na Keer Avenue, naquele dia. «O meu primo Alvin queria uma bola,
Meritíssimo. Ele perdeu a perna a lutar contra Hitler e agora está em casa e
queria uma bola de futebol. Que outra coisa poderia eu ter feito?»
Entretanto, passara um mês desde o terrível regresso na Penn Station e,
embora não fosse necessariamente agradável, a verdade é que não sentia
nenhuma repulsa digna de nota quando, enquanto ia buscar os meus sapatos
de manhã, estendia a mão para o fundo do armário, a fim de tirar a prótese
de Alvin e estendê-la para onde ele estava, sentado na cama em cuecas, à
espera da sua vez para usar a casa de banho. O ar soturno estava a
desaparecer, tinha começado a ganhar peso, empanturrando-se entre as
refeições com punhados do que quer que houvesse no frigorífico, os seus
olhos já não pareciam tão grandes e o seu cabelo tornara-se de novo farto,
um cabelo ondulado tão preto que tinha um brilho de cera, e quando ele
estava ali sentado, semidesamparado, com o coto exposto, cada manhã,
havia, para um rapaz que o adorava, um pouco mais para adorar e, ao
mesmo tempo, o que havia para lastimar era um pouco menos impossível de
suportar.
Em breve, Alvin deixou de se confinar ao beco e, sem ter de depender das
muletas ou da bengala que se sentia humilhado por usar em público, passou
a andar por todo o lado na sua perna artificial, fazendo compras para a
minha mãe no talho, na padaria e no lugar de hortaliça, comprando um
cachorro quente para si mesmo na esquina, viajando de autocarro não só
para o dentista na Clinton Avenue, mas até à Market Street para comprar
uma camisa nova na Larkey’s – e também, coisa que eu ainda não sabia,
passando pelos campos de jogos atrás da escola secundária, com o dinheiro
da indemnização no bolso, para ver quem por lá se encontrava disposto a
jogar póquer ou aos dados. Um dia, depois das aulas, arranjámos os dois
espaço, no cubículo das arrumações, para a cadeira de rodas, e nessa noite,
depois do jantar, contei à minha mãe uma coisa que me viera à cabeça na
escola. Estivesse onde estivesse e fosse o que fosse que devia estar a fazer,
dava comigo a pensar em Alvin e em como poderia fazê-lo esquecer-se da
sua prótese. Por isso, disse à minha mãe: «Se o Alvin tivesse um fecho de
correr no lado da perna das calças, seria mais fácil para ele vesti-las e despi-
las quando tem a perna posta, não acha?» Na manhã seguinte, quando ia
para o trabalho, ela deixou um par de calças da tropa do meu primo numa
costureira do bairro, que trabalhava em casa, e a costureira abriu a costura
lateral e pregou-lhe um fecho que subia uns quinze centímetros pela perna
esquerda, sem bainha, das calças. Nessa noite, quando Alvin enfiou as
calças depois de ter aberto o fecho, a perna subiu facilmente por cima da
prótese sem que ele tivesse de amaldiçoar este mundo e o outro só por estar
a vestir-se. E quando correu o fecho, não se dava por ele. «Nem sabemos
que ele está aí!», exclamei. De manhã metemos todas as suas outras calças
num saco de papel, e a minha mãe levou-as à costureira, para lhes fazer o
mesmo. «Eu não poderia viver sem ti», disse-me o meu primo, quando nos
deitámos, nessa noite. «Não podia vestir as calças sem ti», acrescentou, e
deu-me, para que a guardasse para sempre, a medalha canadiana que lhe
fora atribuída «por desempenho em circunstâncias excepcionais». Era uma
medalha de prata circular, que tinha num lado o rei Jorge VI, de perfil, e no
outro um leão triunfante erguido sobre o corpo de um dragão. É claro que a
aceitei com carinho e comecei a usá-la regularmente, mas com a estreita fita
verde de que pendia presa à camisola interior, para que ninguém a visse e
questionasse a minha lealdade para com os Estados Unidos. Só a deixava
em casa, na minha gaveta, nos dias em que tinha ginástica e tínhamos de
despir as outras camisas e camisolas, para fazermos os exercícios.
E como ficava Sandy em tudo isto? Como, pessoalmente, andava tão
atarefado, ao princípio não pareceu notar a minha assombrosa
transformação em criado pessoal de um herói de guerra canadiano
condecorado que, por sua vez, me condecorara agora a mim. E quando deu
por isso – e se sentiu péssimo, ao princípio não tanto por causa do
envolvimento de Alvin comigo, que era natural ter acontecido em
consequência de dormirmos no mesmo quarto, mas por causa da indiferença
hostil que o primo manifestava a seu respeito – era tarde de mais para me
destituir do grande papel de apoio (com as suas repugnantes obrigações)
que eu fora praticamente forçado a desempenhar e que, para surpresa de
Sandy, tão sublime reconhecimento suscitara nos anos finais da minha
longa carreira como seu irmão mais novo.
E tudo isto fora conseguido sem que eu aludisse uma única vez à
identificação de Sandy, por intermédio da tia Evelyn e do rabi Bengelsdorf,
com a nossa presente e detestável Administração. Todos, incluindo o meu
irmão, tinham evitado falar do GAA e do Just Folks na presença de Alvin,
convencidos de que até ele compreender como a enorme popularidade da
política isolacionista de Lindbergh começara a conquistar, até, o apoio de
muitos judeus – e até que ponto era menos traiçoeiro do que podia parecer
que um rapaz judeu da idade de Sandy tivesse sido atraído pela aventura
que o Just Folks proporcionava –, nada mitigaria a indignação do mais
abnegado e firme antilindberglista de todos nós. Mas Alvin parecia já ter
sentido que Sandy o atraiçoara e, sendo quem era, não se dava ao trabalho
de disfarçar os seus sentimentos. Eu não tinha dito nada, os meus pais não
tinham dito nada e Sandy não dissera, de modo algum, nada que o
incriminasse aos olhos de Alvin, mas apesar disso este viera a saber (ou
procedia como se soubesse) que a primeira pessoa a dar-lhe as boas-vindas
na estação ferroviária fora também a primeira a aliar-se aos fascistas.

Ninguém tinha a certeza do que Alvin iria fazer. Haveria dificuldades


para arranjar emprego, pois não era toda a gente que se disporia a contratar
alguém considerado um deficiente, um traidor, ou ambas as coisas. No
entanto, os meus pais achavam essencial desencorajar qualquer possível
inclinação de Alvin para não fazer nada e limitar-se a viver amuado e com
pena de si mesmo durante o resto da vida, enquanto ia sobrevivendo da sua
magra pensão. A minha mãe queria que ele utilizasse o seu cheque mensal
de incapacidade para frequentar a faculdade. Tinha-se informado e haviam-
lhe dito que, se ele passasse um ano na Academia de Newark e conseguisse
nota B nas disciplinas em que tirara D’s e F’s na Weequahic, seria mais do
que provável que fosse aceite na Universidade de Newark no ano seguinte.
O meu pai, porém, não podia imaginar que Alvin repetisse voluntariamente
o décimo segundo ano, mesmo numa escola particular do centro da cidade;
aos vinte e dois anos, e depois de tudo por que passara, precisava, o mais
urgentemente possível, de arranjar um emprego com futuro, e para tal
propôs-lhe que procurasse Billy Steinheim. Billy era o filho que fora amigo
de Alvin quando este fora motorista de Abe, e se estivesse disposto a
apresentar ao pai uma justificação para lhe darem uma segunda
oportunidade, talvez concordassem em arranjar-lhe um lugar na empresa,
um lugar modesto, por enquanto, mas em que poderia redimir-se aos olhos
de Abe Steinheim. Se fosse necessário, e só se fosse necessário, Alvin
poderia começar a trabalhar com o tio Monty, que já viera oferecer trabalho
ao sobrinho no mercado de verduras – isso acontecera naqueles maus
primeiros tempos em que o coto de Alvin estava gravemente rebentado e ele
ainda passava a maior parte do tempo na cama, sem consentir que se
levantassem as gelosias do nosso quarto, tanto medo tinha de ver um
vislumbre, que fosse, do pequeno mundo em que em tempos vivera são e
inteiro. No regresso da Penn Station a casa, com o meu pai e Sandy,
preferira fechar os olhos quando a escola secundária aparecera à vista a
recordar-se das inúmeras vezes que saíra daquele edifício a correr, ao fim
do dia, sem que nenhum tormento físico o impedisse e em condições físicas
para fazer o que lhe apetecesse.
Na própria tarde que antecedeu a visita do tio Monty, voltei da escola um
pouco tarde – tinha sido a minha vez de limpar os quadros – e quando
cheguei a casa verifiquei que Alvin não estava lá. Como não o encontrei na
cama nem na casa de banho, nem em qualquer outro sítio da casa, saí para o
procurar no quintal das traseiras e depois, intrigado, voltei a correr para
casa onde, do fundo da escada, ouvi leves gemidos que subiam de baixo –
fantasmas, os fantasmas sofredores da mãe e do pai de Alvin! Desci
devagarinho, para verificar se podiam ser vistos além de ouvidos, mas o que
vi em vez deles, junto da parede da frente da cave, foi o próprio Alvin a
espreitar pela pequena fresta envidraçada horizontal que dava, ao nível da
rua, para a Summit Avenue. Encontrava-se de roupão de banho e com uma
das mãos agarrada ao parapeito estreito, para se equilibrar. Não pude ver a
outra mão. Estava a utilizá-la para fazer uma coisa que eu era demasiado
novo para saber de que se tratava. Através de um pequeno círculo da
vidraça, que tinha sido limpo da sujidade, Alvin espreitava as raparigas da
escola secundária, que moravam na Keer Avenue, a dirigirem-se a pé da
Weequahic para casa, pela nossa rua. As pernas delas a desfilarem pela sebe
da frente deviam ser praticamente tudo quanto podia ver, mas mesmo esse
pouco bastava para ele gemer com o que eu supus ser angústia por já não ter
duas pernas para andar. Subi silenciosamente a escada, saí pela porta das
traseiras e acocorei-me no extremo mais distante da nossa garagem, a
pensar numa maneira de fugir para Nova Iorque e ir viver com Earl Axman.
Só voltei para casa porque estava a escurecer e tinha trabalhos da escola
para fazer, mas mesmo assim detive-me primeiro para olhar para a cave e
ver se Alvin ainda lá estava. Como não estava, atrevi-me a descer a escada,
passei a correr pelo espremedor e à volta dos canos, e uma vez à janela e em
bicos de pés – com a intenção, apenas, de olhar para a rua como ele olhara
–, descobri que a parede caiada por baixo da vidraça estava escorregadia e
molhada com um líquido viscoso qualquer. Como não sabia o que era a
masturbação, é claro que também não sabia o que era ejacular. Pensei que
fosse pus. Pensei que fosse mucosidade. Não soube o que pensar, a não ser
que devia tratar-se de alguma coisa terrível. Na presença de uma espécie de
descarga ainda misteriosa para mim, imaginei que fosse alguma coisa que
se infectava no corpo de um homem e depois supurava pela sua boca
quando a dor o consumia por completo.

Na tarde em que o tio Monty foi lá a casa para ver Alvin, ia a caminho do
centro, para a Miller Street, onde, desde os catorze anos, trabalhava a noite
inteira no mercado, onde chegava por volta das cinco da tarde e de onde
saía para chegar a casa cerca das nove horas da manhã seguinte, tomar a sua
principal refeição do dia e dormir. Era esta a vida do membro mais rico da
nossa família. As suas duas filhas viviam melhor. Linda e Antena, que eram
um pouco mais velhas do que Sandy e manifestavam a penosa timidez das
raparigas que vivem em bicos de pés em redor de um pai tirano, tinham
muitas roupas e frequentavam a suburbana escola secundária de Columbia,
em Maplewood, onde havia mais miúdos judeus possuidores de muitas
roupas e cujos pais, como Monty, tinham um Caddy para eles próprios e um
segundo carro na garagem para uso da mulher e dos filhos crescidos. A
minha avó vivia com eles na grande casa de Maplewood e também tinha
muitas roupas, todas compradas para ela pelo seu filho mais bem--sucedido,
e nenhumas das quais ela usava, a não ser nos feriados principais e quando
Monty a fazia vestir-se a preceito para ir comer fora com a família, aos
domingos. Os restaurantes não eram suficientemente kosher para
corresponder aos padrões dela e, por isso, a única coisa que pedia, sempre,
era a refeição do presidiário, à la carte, de pão e água – e, de qualquer
maneira, nunca sabia como proceder num restaurante. Uma vez, quando viu
um servente transportar uma enorme quantidade de pratos para a cozinha,
levantou-se para ir ajudá-lo. O tio Monty gritou: «Ma! Não! Loz im tsu ru!
Deixe o rapaz em paz!», e quando ela lhe deu uma palmada na mão, para se
soltar, teve de ser puxada de novo para a mesa pela manga do seu vestido
ridiculamente bordado a lantejoilas. Havia uma negra, conhecida por «a
rapariga», que ia duas vezes por semana de Newark, de autocarro, para
fazer limpezas, mas isso não impedia a avó de se pôr de joelhos, quando
não estava ninguém perto, para esfregar o chão da cozinha e da casa de
banho, nem de lavar a sua própria roupa numa tábua de tanque, apesar da
presença na arranjada cave de Monty de uma Bendix Home Laundry
novinha em folha, de noventa e nove dólares. A minha tia Tillie, mulher de
Monty, passava a vida a lamentar-se por causa de o marido dormir todo o
dia e nunca estar em casa à noite, embora todas as outras pessoas da família
achassem que isso, mais do que o seu novo Oldsmobile, era a sorte dela.
Alvin estava deitado na cama, e ainda de pijama, às quatro horas da tarde
desse dia de Janeiro em que Monty passou por lá a primeira vez para o ver e
ousar fazer a pergunta cuja resposta nenhum de nós sabia, exactamente:
«Como diabo conseguiste perder uma perna?» Como Alvin se mostrara tão
insociável quando eu cheguei a casa, da escola, e respondera apenas com
um resmungo de irritação a cada tentativa minha para o animar, não
esperava que o nosso familiar menos estimado conseguisse arrancar-lhe
alguma resposta.
Mas a presença intimidadora do tio Monty, com o omnipresente cigarro
suspenso do canto da boca, era de tal ordem que naqueles primeiros tempos
nem mesmo Alvin se atreveu a dizer-lhe que se calasse e fosse embora.
Naquela tarde em especial, Alvin não foi sequer capaz de tentar imitar a
impertinente provocação que o levara a atravessar ao pé-coxinho, como um
prodígio, o átrio de Penn Station após o seu regresso como amputado.
– França – respondeu, em tom cavo, à grande pergunta.
– O pior país do mundo – disse-lhe Monty, sem sombra de hesitação. No
Verão de 1918, aos vinte e um anos, ele próprio combatera em França
contra os Alemães, na segunda sangrenta Batalha do Maine, e depois na
Floresta de Argonne, quando os Aliados abriram caminho pela frente
ocidental alemã, e por isso sabia, evidentemente, tudo a respeito de França.
– Mas eu não te perguntei onde – continuou. – Perguntei-te como.
– Como – repetiu Alvin.
– Desembucha, miúdo. Far-te-á bem.
Ele também sabia isso: o que faria bem a Alvin.
– Onde estavas quando foste atingido? E não me respondas que estavas
«no lugar errado». Toda a tua vida estiveste no lugar errado.
– Estávamos à espera do barco que nos levaria dali.
Alvin fechou os olhos, como se esperasse nunca mais ter de os abrir de
novo. Mas em vez de ficar por aí, como eu estava a rezar para que
acontecesse, acrescentou, inesperadamente:
– Atingi um alemão.
– E? – persistiu Monty.
– Ele passou o resto da noite a gritar.
– E? E? Continua. Ele estava a gritar, e depois?
– E depois, perto do alvorecer, antes de serem horas de o barco chegar,
rastejei até onde ele estava. A uns cinquenta metros de distância, talvez.
Mas então já estava morto. Mesmo assim rastejei para cima dele e dei-lhe
dois tiros na cabeça. Depois cuspi no filho da puta. E nesse segundo eles
atiraram a granada. Apanhei com ela nas duas pernas. Numa delas, o pé
ficou torcido. Partido e torcido. Esse, puderam tratá-lo. Operaram-me e
trataram-no. Puseram-lhe um aparelho de gesso. Endireitaram-no. Mas o
outro, fora-se. Olhei para baixo e vi um pé virado de trás para a frente e
uma perna pendurada. A perna esquerda, já quase amputada.
Ali estava, e não era nada parecido com a heróica realidade que eu tão
frivolamente imaginara.
– Sozinho na terra de ninguém – disse-lhe Monty –, podes ter sido
atingido por um dos teus. Ainda não é dia, na semiclaridade, um gajo ouve
tiros, entra em pânico... e zás, arranca a espoleta!
Alvin não teve nada a dizer quanto a essa suposição.
Qualquer outra pessoa poderia compreender e compadecer-se, quanto
mais não fosse com a transpiração que cobria a testa de Alvin e as gotas de
suor acumuladas no côncavo da sua garganta, e também com o facto de ele
ainda não ter aberto os olhos. Mas não o meu tio: ele compreende e não se
compadece.
– E como explicas que não te tenham deixado lá ficar? Depois de fazeres
asneira, como explicas que não te tenham deixado, simplesmente, lá, para
morrer?
– Havia lama por todo o lado – foi a resposta vaga de Alvin. – O chão era
só lama. Só me lembro de que havia lama.
– Quem te salvou, idiota?
– Eles levaram-me. Eu devia estar fora dela. Chegaram e levaram-me.
– Estou a tentar imaginar como funciona o teu cérebro, Alvin, e não
consigo. Cuspiu. Ele cuspiu. E essa é a história de como perdeu a perna.
– Há coisas que fazemos sem saber porquê. – Era eu quem estava a falar.
Que sabia eu? Mas era eu, era eu quem estava a dizer ao meu tio: –
Fazemo-las, apenas, tio Monty. Não podemos deixar de fazê-las.
– Não podes deixar de fazê-las, Philie, quando és um idiota profissional.
– E o meu tio acrescentou, dirigindo-se depois a Alvin: – E agora? Vais
ficar aí sentado, a viver de cheques de incapacidade? Vais viver como um
batoteiro, da tua sorte? Ou preferes considerar a ideia de te manteres como
os restantes de nós, mortais idiotas? Há um emprego para ti no mercado,
quando te levantares da cama. Começas por baixo, a lavar o chão à
mangueirada e a encaixotar tomates, começas por baixo, com os carroceiros
e os carregadores, mas tens lá um emprego a trabalhar para mim e um
salário semanal. Ganhas metade na estação da Esso, mas eu aceito-te,
apesar de tudo, porque continuas a ser o filho do Jack, e eu faço tudo pelo
meu irmão Jack. Não estaria onde estou se não fosse o Jack. Ele ensinou-me
o negócio das verduras e depois morreu. Exactamente como o Steinheim
queria ensinar-te o negócio da construção. Mas a ti ninguém pode ensinar
nada, idiota. Atiraste as chaves à cara do Steinheim. Eras importante de
mais para o Steinheim. Só Hitler é suficientemente importante para Alvin
Roth.
Na cozinha, numa gaveta onde estavam as pegas e o termómetro do
forno, a minha mãe guardava uma agulha comprida e fio resistente para
coser e enrolar o peru do Dia de Acção de Graças depois de recheado. Era,
além do espremedor, o único instrumento de tortura que me lembrava de
termos, e senti vontade de o ir buscar e usá-lo para fechar a boca do meu
tio.
À porta do quarto, antes de sair para o mercado, Monty voltou atrás para
resumir. Os fanfarrões gostam de resumir. O redundante resumo reprovador:
nada o iguala, além da flagelação fora de moda.
– Os teus camaradas arriscaram tudo para te salvar. Foram buscar-te e
arrastaram-se debaixo de fogo. Não é verdade? E para quê? Para poderes
passar o resto da vida a lançar dados com o Margulis? Para poderes jogar
póquer de sete cartas no pátio da escola? Para poderes voltar para a bomba
de gasolina e roubar o Simkowitz à grande? Cometeste todos os erros da
cartilha. Tudo quanto fazes, fá-lo mal. Até a matar alemães meteste o pé na
argola. Porque será? Porque atiras chaves à cara das pessoas? Porque lhes
cospes? Um gajo já está morto e tu cospes-lhe? Porquê? Porque a vida não
te foi entregue numa bandeja de prata, como aos restantes Roth? Se não
fosse o Jack, Alvin, eu não estaria aqui a gastar o meu fôlego. Não há nada
que tenhas ganho. Sejamos claros a esse respeito. Nada. Durante vinte e
dois anos foste um desastre, Estou a fazer isto pelo teu pai, rapaz, não por ti.
Estou a fazer isto pela tua avó. «Ajuda o moço», disse-me ela, e por isso
estou a ajudar-te. Quando resolveres como queres fazer a tua fortuna, vai ter
comigo na tua perna de pau e conversamos.
Alvin não chorou, não praguejou, não berrou, nem mesmo depois de
Monty ter saído pela porta das traseiras e entrado no seu carro e ele poder
soltar todos os seus maus pensamentos. Naquele dia estava desesperado de
mais para gritar. Ou sequer para se ir abaixo. Só eu o fiz, depois de ele se
recusar a abrir os olhos e olhar para mim quando lho supliquei; só eu me fui
abaixo, sozinho, mais tarde, no lugar da nossa casa para onde sabia que
podia ir para estar longe dos vivos e de tudo o que eles são incapazes de não
fazer.
9 Judeu, depreciativo. (NT)

10 Grupo de povos americanos nativos, estreitamente relacionados, que habitaram inicialmente o


Delaware e os vales do Hudson. (NT)
5
Março de 1942-Junho de 1942
NUNCA ANTES

EIS COMO Alvin ganhou pó ao Sandy.


Antes de o deixar sozinho na manhã da primeira segunda-feira depois do
seu regresso, a minha mãe fizera Alvin prometer-lhe que usaria as muletas
para se deslocar até um de nós estar em casa para lhe levar o que precisasse.
Mas Alvin detestava tanto andar de muletas que recusava a si mesmo
submeter-se à estabilidade que elas proporcionavam. À noite, quando
estávamos nas nossas respectivas camas com as luzes apagadas, o meu
primo fazia-me rir ao explicar por que motivo andar de muletas não era tão
simples como a minha mãe pensava. «Vamos à casa de banho», disse-me,
«e elas estão sempre a cair. Sempre a bater em tudo. Sempre a fazer um
barulho do caraças. Vamos à casa de banho com as muletas, tentamos tirar a
picha para fora, mas não conseguimos porque as muletas atrapalham.
Temos de nos livrar delas. Ficamos apoiados só numa perna. Não é muito
prático. Inclinamo-nos para um lado ou para outro e salpicamos tudo. O teu
pai disse-me que me sentasse para mijar. Sabes o que eu respondi? “Sento-
me quando você se sentar, Herman.” Catano de muletas! Apoiado numa
perna. Tirar a picha para fora. Jesus! Mijar já é complicado, sem tudo isto.»
Eu ri-me descontroladamente, não só por a história ser particularmente
divertida pelo facto de ele a contar num meio sussurro no quarto às escuras,
mas porque nunca antes um homem se me revelou deste modo, usando as
palavras proibidas tão livremente e dizendo francamente graçolas de casa
de banho. «Vamos, admite, miúdo... mijar não é tão fácil como parece»,
dizia Alvin.
Aconteceu, por isso, que nessa primeira manhã de segunda-feira passada
sozinho e em que a amputação ainda era uma perda ilimitada que calculava
ele o limitaria e atormentaria para sempre, Alvin deu a queda de que
ninguém da família teve conhecimento além de mim. Ele estava de pé
encostado ao lava-louça da cozinha, aonde fora sem a ajuda das muletas
beber um copo de água. Quando se voltou para regressar ao quarto,
esqueceu-se (por todas as razões possíveis) de que tinha apenas uma perna
e, em vez de saltar, fez o que toda a gente fazia na nossa casa: começou a
andar e, evidentemente, foi parar ao chão. A dor que lhe subiu da
extremidade do coto foi pior do que a dor do segmento decepado da sua
perna – uma dor que, explicou-me ele depois de, pela primeira vez, o ver
sucumbir ao seu ataque na cama ao lado da minha «nos agarra e não nos
larga», apesar de não restar membro algum que a cause. «Há dor onde
estamos», disse-me Alvin quando chegou o momento de me tranquilizar
com um comentário cómico, «e há dor onde não estamos. Pergunto a mim
mesmo quem inventou isso.»
O hospital inglês administrava morfina aos amputados, para controlar a
dor. «Estamos sempre a pedi-la», explicou-me. «E sempre que pedimos,
eles dão-no-la. Carregamos no botão a chamar a enfermeira e quando ela
vem dizemos: “Morfina, morfina”, e alivia-nos muito.» «Doía muito, no
hospital?» «Não era brinquedo nenhum, miúdo.» «Qual foi a pior dor que já
tiveste?» «A pior dor que tive», respondeu, «foi quando o meu pai fechou a
porta do carro e me entalou o dedo, tinha eu seis anos.» Riu-se, e eu
também. «O meu pai disse... quando me viu a berrar como um desalmado,
era eu um fedelho mais ou menos desta altura... disse: Pára de chorar, não
ganhas nada com isso.» Continuando a rir baixinho, Alvin acrescentou: «E
isso talvez tenha sido pior do que a dor. E é também a minha última
recordação dele. Mais tarde, nesse mesmo dia, caiu morto.»
Debatendo-se no chão de linóleo da cozinha, Alvin não tinha ninguém a
quem chamar para pedir ajuda, quanto mais para uma injecção de morfina;
tinham saído todos, para a escola ou para o trabalho, de modo que, quando
conseguiu, teve de se arrastar pela cozinha e pelo vestíbulo até à sua cama.
Mas, precisamente quando se posicionava para se erguer do chão,
vislumbrou o porta--fólio dos desenhos de Sandy. O meu irmão ainda o
usava para guardar os seus desenhos a lápis e a carvão no meio do papel de
esboços e para os levar consigo quando precisava de ir mostrá-los a algum
lado. Era grande de mais para o guardar na marquise e, por isso, continuava
no nosso quarto. Foi a mera curiosidade que levou Alvin a puxá-lo de
debaixo da cama, mas como naquele momento estava incapaz de determinar
do que se tratava – e também porque a única coisa que realmente queria era
voltar para dentro da cama –, preparava-se para o abandonar quando
reparou na fita que unia as duas metades. A existência era desprezível, viver
era insuportável e o seu corpo ainda latejava da dor causada pelo estúpido
acidente no lava-louça da cozinha; por isso, sem nenhum outro motivo que
não fosse o de se sentir impotente para desempenhar uma tarefa física mais
importante, começou às voltas com a fita até desatar o laço.
Dentro do porta-fólio encontrou os três retratos de Charles A. Lindbergh
como aviador, que Sandy dissera aos meus pais ter destruído dois anos
atrás, assim como aqueles que desenhara a pedido da tia Evelyn depois de
Lindbergh se ter tornado presidente. Eu próprio só vira estes últimos
quando a minha tia me levara a New Brunswick para ouvir Sandy
pronunciar o seu discurso de recrutamento para o Just Folks, na cave da
sinagoga. «Este mostra o presidente Lindbergh a assinar a Lei do
Recrutamento Universal, destinada a manter a América em paz graças ao
ensino à nossa juventude das técnicas necessárias para proteger e defender a
nação. Este mostra o presidente numa prancha de desenho, a acrescentar as
suas sugestões de carácter aeronáutico ao projecto do mais recente caça-
bombardeiro da nação. Aqui mostro o presidente Lindbergh a descansar na
Casa Branca com o cão da família.»
Alvin examinou, no chão do quarto, cada um dos retratos de Lindbergh
mostrados como prelúdio para a palestra de Sandy em New Brunswick.
Depois, apesar da fúria destruidora provocada nele pela perícia tão
meticulosamente aplicada naqueles belos retratos, voltou a colocá-los entre
as folhas de papel de esboços e meteu de novo o porta-fólio debaixo da
cama.

Quando começou a sair e a andar pelas imediações, Alvin não precisou de


se basear nos desenhos de Lindbergh feitos por Sandy para compreender
que, enquanto ele andara a fazer ataques--surpresa a depósitos de munições
em França, o sucessor republicano de Roosevelt acabara, se não por
conquistar a confiança total dos judeus, pelo menos por ser, por enquanto,
considerado tolerável até mesmo entre aqueles vizinhos nossos que tinham
começado por odiá-lo tão veementemente como o meu pai o odiava. Walter
Winchell persistia em atacar o presidente no seu programa de rádio dos
sábados à noite, e todos os moradores do quarteirão sintonizavam os
aparelhos para emprestarem crédito, enquanto escutavam, às suas
alarmantes interpretações da política do presidente, mas como nada do que
tinham receado acontecera desde a tomada de posse, pouco a pouco os
nossos vizinhos começaram a dar mais fé às garantias optimistas do rabi
Bengelsdorf do que às profecias catastrofistas de Winchell. E não apenas os
vizinhos, mas também líderes judeus de todo o país começaram a
reconhecer abertamente que, longe de os ter traído ao apoiar Lindy nas
eleições de 1940, Lionel Bengelsdorf de Newark tivera a presciência
suficiente para ver para onde a nação estava a ser conduzida e que a sua
elevação ao cargo de director do Gabinete Americano de Assimilação – e
principal conselheiro para os assuntos judaicos, junto da Administração –
era consequência directa de ter conquistado inteligentemente a confiança de
Lindbergh como apoiante inicial. Se o anti-semitismo do presidente fora de
algum modo neutralizado (ou, mais notavelmente, erradicado), os judeus
estavam dispostos a atribuir o milagre à influência do venerável rabi que em
breve se tornaria – outro milagre – tio, pelo casamento, de Sandy e de mim.
Num dia do princípio de Março, fui andando, sem ser convidado, para a
rua sem saída que dava para o recreio das traseiras da escola onde Alvin
começara a jogar aos dados e ao póquer quando a tarde estava
suficientemente quente e não chovia. Agora era raro estar em casa quando
eu regressava da escola, e embora em geral aparecesse por volta das cinco e
meia, para o jantar, depois da sobremesa saía a caminho do ponto de
encontro dos cachorros quentes, a um quarteirão da nossa casa, para se
juntar aos seus antigos amigos da escola secundária, alguns dos quais
tinham trabalhado nas bombas de gasolina da Esso, propriedade de
Simkowitz, e sido despedidos como ele por roubarem o patrão. Eu já estava
a dormir quando ele regressava, e só quando Alvin tirava a perna e
começava as idas e vindas ao pé-coxinho para a casa de banho abria os
olhos e murmurava o seu nome, antes de mergulhar de novo no sono. Cerca
de sete semanas depois de ele se ter mudado para a cama ao lado da minha,
deixei de lhe ser indispensável e descobri-me, inesperadamente, privado do
mesmérico substituto que ele tinha sido de Sandy, desaparecido agora do
meu lado para o estrelato planeado para ele pela tia Evelyn. O pária
americano mutilado e sofredor que acabara por se tornar, para mim, maior
do que qualquer homem que jamais conhecera, incluindo o meu pai, cujos
combates apaixonados se tinham tornado os meus próprios combates e por
cujo futuro me atormentava quando deveria estar a prestar atenção ao
professor, na aula, começara a acamaradar com os mesmos inúteis que o
tinham ajudado a tornar-se num reles larapiozito aos dezasseis anos. Parecia
ter perdido em combate, juntamente com a perna, todo e qualquer hábito
decente que lhe fora inculcado quando vivia sob a custódia dos meus pais.
Não evidenciava, sequer, o mínimo interesse pela luta contra o fascismo à
qual, dois anos antes, ninguém conseguira impedi-lo de aderir. Na verdade,
o motivo por que, todas as noites, dava o fora da nossa casa, empoleirado na
sua perna artificial, era em grande parte, pelo menos no início, para não ter
de se sentar na sala enquanto o meu pai lia em voz alta as notícias da guerra
que vinham no jornal.
Não havia campanha contra as potências do Eixo que não atormentasse o
meu pai, sobretudo quando as coisas corriam mal para a União Soviética e
para a Grã-Bretanha e se tornava claro quanto precisavam urgentemente das
armas americanas embargadas por Lindbergh e pelo Congresso dominado
pelos Republicanos. Nessa altura, o meu pai já aprendera a debitar com
grande competência a terminologia de um estratego de guerra quando
dissertava sobre a necessidade de os Britânicos, Australianos e Holandeses
impedirem os Japoneses – que, ao abrirem caminho pelo Sudeste Asiático,
revelavam toda a virtuosa crueldade dos racialmente superiores – de
prosseguirem para oeste, e entrarem na Índia, e para sul e penetrarem na
Nova Zelândia e daí para a Austrália. Nos primeiros meses de 1942, as
notícias da guerra no Pacífico que nos lia eram uniformemente más: foi o
bem-sucedido avanço japonês para a Birmânia, a captura japonesa da
Malásia, o bombardeamento japonês da Nova Guiné e, após devastadores
ataques por mar e ar e o aprisionamento de dezenas de milhares de soldados
britânicos e holandeses no terreno, a queda de Singapura, Bornéu, Samatra
e Java. Mas o que mais o preocupava era o progresso da campanha russa.
No ano anterior, quando os Alemães pareciam na iminência de invadir todas
as grandes cidades da metade ocidental da União Soviética (incluindo
Quieve, de cujas imediações os meus avós maternos tinham emigrado para
a América na década de 1890), até os nomes de cidades menores russas
como Petrozavodsk, Novgorod, Dnepropetrovsk e Taganrog se tinham
tornado tão familiares para mim como as capitais dos quarenta e oito
estados. No Inverno de 1941-42, os Russos tinham desencadeado os
impossíveis contra-ataques que romperam os cercos de Leninegrado,
Moscovo e Estalinegrado, mas em Março os Alemães tinham-se
reorganizado depois da sua catástrofe do Inverno e, como demonstravam os
movimentos de tropas descritos no Newark News, estavam a reforçar-se
para uma ofensiva da Primavera, a fim de conquistarem o Cáucaso. O meu
pai explicava que o que tornava tão terrível a perspectiva de um colapso
russo era que demonstraria ao mundo a invencibilidade da máquina bélica
alemã. Os imensos recursos naturais da União Soviética cairiam em mãos
alemãs e o povo russo seria obrigado a servir o Terceiro Reich. O pior de
tudo, «para nós», era que, com o avanço alemão para leste, milhões e
milhões de judeus russos ficariam sob o domínio de um exército de
ocupação equipado de todos os modos para pôr em prática o messiânico
programa hitleriano de libertar a Humanidade das garras dos judeus.
Segundo o meu pai, o triunfo brutal do militarismo antidemocrático
estava iminente em quase toda a parte, a chacina dos judeus russos,
incluindo membros da extensa família da minha mãe, estava praticamente à
mão, e Alvin estava-se completamente nas tintas para isso. Já não o
preocupava o sofrimento de ninguém a não ser o seu próprio.

Encontrei o meu primo apoiado no joelho são da perna a sério, com dados
na mão e o monte de notas a seu lado com um pedaço irregular de cimento
em cima. Com a perna protética estendida à sua frente, parecia um russo
acocorado a dançar uma daquelas loucas jigas eslavas. Cercavam-no de
muito perto seis outros jogadores, três deles ainda em jogo e apertando na
mão o que restava do seu dinheiro, dois falidos e apenas um a observar –
que reconheci vagamente como ex-fracassados da Weequahic, agora com
mais de vinte anos – e o tipo de pernas compridas a pairar por cima dele, o
«sócio» de Alvin, conforme vim a saber, Shushy Margulis, um magricela de
zoot-suit, com uma constituição rija e um andar deslizante, o parasita do
tempo da bomba de gasolina e aquele que o meu pai mais desprezava.
Shushy era conhecido por nós, miúdos, como o Rei do Pinball, porque um
tio escroque a respeito de cujo parentesco bazofiava era o rei do pinball – e
rei, também, de todas as máquinas caça-moedas ilegais de Filadélfia, onde
reinava – e também por causa das horas que passava a embolsar ganhos
batendo em todas as máquinas de pinball das lojas de guloseimas das
imediações, empurrando-as, amaldiçoando-as, sacudindo-as violentamente
de um lado para o outro até o jogo terminar com o pulsar das luzes
coloridas a anunciar «Inclinado» ou o dono da loja a pô-lo na rua. Shushy
era o farsante famoso que divertia os seus admiradores lançando
jovialmente fósforos acesos pela abertura do grande marco de correio verde
defronte da escola secundária, que, uma vez, comera um louva-a-deus vivo,
para ganhar uma aposta, e que, durante a sua curta carreira académica,
gostava de fazer rir a malta, do lado de fora da loja de cachorros quentes,
atravessando a Chancellor Avenue a coxear, com uma mão levantada, para
fazer parar o trânsito – a coxear muito, tragicamente, embora não tivesse
nenhum problema. Agora já devia ter entrado nos trinta anos e continuava a
viver com a mãe, modista, num dos pequenos apartamentos no cimo de uma
casa para duas famílias e águas-furtadas ao lado da sinagoga da Wainwright
Street. Fora à mãe de Shushy, compassivamente conhecida por todos por
«pobre Mrs. Margulis», que a minha levara as calças de Alvin para lhes pôr
os fechos de correr – pobre Mrs. Margulis não apenas por ser viúva e
sobreviver a trabalhar à peça, por preços irrisórios, para um fabricante de
vestuário de Down Neck, mas também porque o vigarista do filho parecia
nunca ter tido outro emprego além do de moço de recados do agente de
apostas que trabalhava a partir o salão de bilhar ao virar da esquina da casa
deles, logo ao fim da rua que partia do orfanato católico da Lyons Avenue.
O orfanato erguia-se no interior dos terrenos cercados da St. Peter, a
igreja paroquial que, curiosamente, monopolizava uns três quarteirões
quadrados no próprio coração do nosso irredimível bairro. A igreja
propriamente dita era encimada por uma torre alta e um campanário ainda
mais alto que terminava numa cruz erguida divinamente acima dos fios
telefónicos. Localmente, não se via outro edifício tão alto enquanto não
descíamos mais de quilómetro e meio pela ladeira da Lyons Avenue até ao
lugar do meu nascimento, o Geth Israel Hospital, onde todos os rapazes
meus conhecidos tinham igualmente nascido e, aos oito dias de idade, sido
ritualmente circuncidados no santuário do hospital. Flanqueando o
campanário da igreja havia duas torres mais pequenas que nunca me dei ao
trabalho de examinar, porque se dizia que tinham sido esculpidos na pedra
rostos de santos cristãos e também que os vitrais das altas e estreitas janelas
contavam uma história que eu não precisava de saber. Perto da igreja havia
uma pequena reitoria que, como tudo o mais situado adentro das paliçadas
de ferro preto daquele estranho mundo, fora construída na parte final do
século anterior, várias décadas antes de a primeira das nossas casas ter sido
erigida e de a orla ocidental do bairro de Weequahic ganhar forma como
fronteira judaica de Newark. Atrás da igreja ficava a escola secundária que
servia os órfãos – que eram cerca de cem – e um número mais pequeno de
crianças católicas locais. A escola e o orfanato eram dirigidos por uma
ordem de freiras – lembro-me de me terem dito que eram freiras alemãs. As
crianças judias, mesmo as criadas em lares tolerantes, como o meu,
atravessavam geralmente a rua nas raras ocasiões em que as viam vir na sua
direcção, roçagantes nas suas vestes que lembravam as de feiticeiras, e
rezava a lenda familiar que, quando o meu irmão era pequeno e, uma tarde,
estava sentado sozinho à porta da frente, viu aproximar-se um par delas,
vindas da Chancellor Avenue, e gritou, todo alvoraçado, para a minha mãe:
«Olhe, mãe... as palermas»11.

Havia um convento ao lado da residência dos órfãos. Eram ambos


edifícios simples, de tijolo vermelho, e às vezes, ao fim dos dias de Verão,
vislumbrávamos os órfãos – crianças brancas, raparigas e rapazes, dos seis
aos catorze anos – sentados cá fora, na escada de salvação. Não me lembro
de alguma vez os ter visto em grupo noutro lugar qualquer, e nunca a correr
livremente nas ruas, como nós fazíamos. Um bando deles não me teria
desconcertado menos do que a perturbadora aparição das freiras,
principalmente por serem órfãos, mas também porque se dizia que eram,
simultaneamente, «desleixados» e «indigentes».
Atrás do espaço residencial, e diferente de tudo quanto podia ser visto no
nosso bairro – ou em qualquer outro ponto de uma cidade industrial com
perto de meio milhão de habitantes, havia uma horta do tipo que fez de New
Jersey «o Estado Jardim», no tempo em que hortas familiares, capazes de
render um pequeno lucro, salpicavam as extensões rurais subdesenvolvidas
do estado. Os produtos agrícolas cultivados e colhidos na St. Peter
contribuíam para alimentar os órfãos, cerca de uma dúzia de freiras, o idoso
monsenhor que dirigia o estabelecimento e o padre mais jovem, seu
assistente. Com a ajuda dos órfãos, a terra era trabalhada por um agricultor
residente alemão chamado Thimmes – a não ser que esteja enganado e esse
fosse o nome do monsenhor da St. Peter, que dirigia o lugar há anos.
Na nossa escola primária pública, a cerca de quilómetro e meio de
distância, dizia-se à boca pequena que as freiras que davam aulas aos órfãos
batiam rotineiramente nas mãos dos mais estúpidos com réguas de madeira
e que, quando o erro de um rapaz era tão grosseiro ao ponto de ser
considerado intolerável, chamavam o assistente do monsenhor para lhe
bater nas nádegas com o mesmo chicote usado pelo agricultor para fustigar
o dorso demasiado curvo da parelha de ronceiros cavalos de carga que
puxavam o arado para as plantações da Primavera. Todos nós conhecíamos
e reconhecíamos estes cavalos, em virtude de, por vezes, vaguearem juntos
da horta até ao pequeno prado arborizado do limite sul da propriedade da
St. Peter e esticarem as cabeças, curiosamente, por cima da cancela que
dava para a Goldsmith Avenue, onde estava em curso o jogo de dados que
se me deparara.
Havia uma vedação de rede de aço com cerca de dois metros e dez de
altura na extremidade do recreio do lado mais próximo da Goldsmith
Avenue e uma vedação de rede de arame, fixada em postes, na orla
arborizada da horta, no extremo oposto, e como ainda não tinham sido
construídas casas nas proximidades e nunca houvera muito trânsito pedonal
ou automóvel digno de nota, o local proporcionava um recanto isolado e
quase silvestre onde o pequeno punhado de párias da cidade podia entregar-
se sem perigo aos seus prazeres. O mais perto que eu alguma vez chegara,
antes, de um destes sinistros conclaves fora quando, durante um jogo
qualquer no recreio, tivera de correr atrás de uma bola que rebolara para
onde eles estavam todos juntos, logo a seguir à vedação, soltando
imprecações uns contra os outros e reservando as falinhas mansas apenas
para os dados.
Ora, eu não era nenhum moralista inimigo do jogo de dados e chegara
mesmo a pedir a Alvin que me ensinasse a jogar, numa tarde em que ele
ainda andava de muletas e a minha mãe me recomendara que o
acompanhasse à consulta no dentista e fizesse, por ele, coisas como meter o
dinheiro da passagem na ranhura e segurar-lhe as muletas enquanto ele
saltava para a rua da porta da retaguarda do autocarro. Nessa noite, quando
tinham todos ido dormir e eu apagara a luz do candeeiro da mesa-de-
cabeceira entre as nossas duas camas, ele observara a sorrir enquanto, à luz
da lanterna de bolso, eu murmurava «Dados, portem-se bem» e,
silenciosamente, lançara três setes consecutivos em cima dos meus lençóis.
No entanto, ao observá-lo agora nas garras dos seus inferiores e recordando
todos os sacrifícios que a minha família fizera para evitar que se
transformasse numa réplica de Shushy, cada obscenidade que aprendera
como seu companheiro de quarto inundou-me nojentamente o pensamento.
Amaldiçoei-o em nome da minha mãe, do meu pai e, especialmente, do
meu desterrado irmão – tinha sido para aquilo que todos nós concordáramos
em suportar o comportamento repreensível de Alvin em relação a Sandy?
Fora para aquilo que ele tinha fugido para combater na guerra? Pensei:
«Pega na porra da tua medalha, coxelas, e mete-a no cu!» Se ao menos ele
aprendesse a lição perdendo até ao último cêntimo da sua pensão de
invalidez... mas a verdade é que não conseguia parar de ganhar, do mesmo
modo que não podia deixar de abandonar o desejo de voltar a ser, jamais, o
herói de alguém, e depois de já ter ganho um bom maço de notas, estendeu
os dados para os meus lábios e, numa voz grossa e áspera, com que
pretendia parecer engraçado aos seus amigos, ordenou-me: «Sopra-lhes...
menino.» Eu soprei, ele lançou-os e voltou a ganhar. «Seis mais um... dá
quanto?», perguntou. «Sete», respondi obedientemente, «da maneira
difícil»12.
Shushy inclinou-se para me despentear o cabelo e começou a chamar-me
a mascote de Alvin, como se a palavra «mascote» pudesse abarcar o que eu
resolvera ser para o meu primo desde que ele voltara para casa, como se
uma palavra tão oca e infantil pudesse explicar por que motivo a medalha
do rei Jorge, de Alvin, estava pregada na minha camisola interior. Shushy
tinha vestido um fato assertoado, de gabardina cor de chocolate, com calças
afuniladas, ombros enchumaçados e lapelas exuberantes, a sua farpela
preferida quando laureava pelo bairro a gingar e a estalar os dedos – e,
como dizia a minha mãe, a «desperdiçar a sua vida» –, enquanto, na
minúscula casa, nas águas-furtadas, a mãe embainhava cem vestidos por dia
para poder pagar as contas da família.
Quando ele falhou o seu objectivo, Alvin reuniu todos os seus ganhos e,
ostensivamente, meteu o maço de notas na algibeira – o homem que levou à
ruína o banco nas traseiras da escola secundária. Depois agarrou-se à
vedação de malha de aço para se levantar. Percebi (e não apenas por
observar o modo torturado como ele começou a coxear para se movimentar)
que irrompera uma grande bolha no seu coto, na noite anterior, e que
naquele dia ele não se encontrava na melhor forma. Mas recusava-se a ser
visto de muletas por alguém que não fosse da família, e antes de sair para
acamaradar com o janota Shushy – e passar mais um dia a repudiar
espalhafatosamente todos os ideais que tinham feito dele um aleijado –
encaixava o coto na prótese, por muito que lhe doesse.
– Maldito fabricante de pernas – foi tudo quanto disse, à laia de lamento,
quando se aproximou para pôr a mão no meu ombro.
– Agora posso ir para casa? – perguntei baixinho.
– Claro, porque não? – Depois tirou duas notas de dez dólares da
algibeira – quase metade do ordenado semanal do meu pai – e colocou-as
na palma da minha mão. Nunca antes o dinheiro me parecera uma coisa
viva.

Em vez de voltar para o recreio, meti por um caminho ligeiramente mais


longo para casa, descendo a Goldsmith Avenue para a Hobson Street, de
modo a poder olhar de perto para os cavalos do orfanato. Nunca me
atrevera a estender a mão e a tocar-lhes, e antes desse dia nunca lhes tinha
falado como outros miúdos faziam, chamando satiricamente àqueles
animais salpicados de lama e babando saliva viscosa «Omaha» e
«Whirlaway», que eram os nomes de dois dos maiores vencedores do derby
de Kentucky do nosso tempo.
Parei a uma distância segura de onde os protuberantes olhos com um
brilho escuro espreitavam acima da cerca do orfanato, vigiando
impassivelmente, através das compridas pestanas, a terra de ninguém que
separava a fortaleza da St. Peter do bairro de judeus fora do seio da igreja.
A corrente estava saída da argola e pendia para fora da cancela. Bastar-me-
ia levantar o fecho e abrir a cancela, e aqueles cavalos ficariam livres para
partir a galope. A tentação era enorme – assim como o despeito.
«Cabrão do Lindbergh», disse-lhes. «Sacana do cabrão nazi do
Lindbergh!», e depois, com medo de que, se abrisse a cancela, em vez de
fugirem, livres, os cavalos usassem os grandes dentes para me arrastarem, a
mim, para dentro do orfanato, lancei-me pela rua abaixo e, virando para a
Hobson, corri ao longo do quarteirão de casas para quatro famílias e dobrei
a esquina da Chancellor Avenue, onde donas de casa minhas conhecidas
entravam e saíam da mercearia, da padaria e do talho, e rapazes mais
crescidos, cujos nomes eu sabia, andavam de bicicleta, e o filho do alfaiate
transportava, em cada ombro, uma carga de roupas acabadas de passar a
ferro, para entrega, e onde canções italianas saíam para a rua pela porta do
sapateiro, cujo rádio estava sempre sintonizado na WEDV – sendo o EDV
uma homenagem ao perseguido herói socialista Eugene V. Debs –, e onde
eu me sentia em segurança longe de Alvin, de Shushy, dos cavalos, dos
órfãos, dos padres, das freiras e do chicote da escola paroquial.
Quando virei a subir para a colina, na direcção de casa, um homem muito
bem vestido, de fato completo, começou a andar a meu lado. Ainda era cedo
de mais para os trabalhadores locais regressarem a casa para jantar, e por
isso percebi logo que devia desconfiar.
– Master Philip? – perguntou, com um sorriso rasgado. – Costuma ouvir
Gangbusters na rádio, Master Philip? A respeito de J. Edgar Hoover e do
FBI?
– Costumo.
– Bem, eu trabalho para Mr. Hoover. Ele é meu chefe. Sou agente do FBI.
Veja – disse, enquanto tirava uma carteira de um bolso interior do casaco e
a abria para me mostrar o seu distintivo. – Se não se importasse, gostaria de
lhe fazer algumas pequenas perguntas.
– Importar não me importo, mas vou para casa. Tenho de ir para casa.
Pensei imediatamente nas duas notas de dez dólares. Se ele me revistasse,
se tivesse uma autorização assinada para me revistar, não pensaria, ao
encontrar todo aquele dinheiro, que era roubado? Não o pensaria qualquer
pessoa? E até dez minutos antes eu passara a vida inteira a andar pelas ruas
com as algibeiras vazias, sem um cêntimo para mandar cantar um cego!
Guardava a minha semanada de cinco cêntimos num boião de geleia em
cuja tampa Sandy abrira uma ranhura com a lâmina do abre-latas da sua
faca de escuteiro. E agora ia ali a andar como um assaltante de bancos.
– Não se assuste. Acalme-se, Master Philip. Ouviu Gangbusters. Nós
estamos do seu lado. Nós protegemo-lo. Só quero fazer-lhe umas perguntas
acerca do seu primo Alvin. Como vai ele?
– Vai bem.
– Como vai a sua perna?
– Bem.
– Consegue andar como deve ser?
– Sim.
– Não foi ele que eu vi, no lugar de onde você acaba de vir? Não era o
Alvin que estava atrás do recreio? Cá fora, no passeio, não era o Alvin com
o Shushy Margulis?
Como não respondi, continuou:
– O facto de estarem a jogar aos dados não tem importância. Isso não é
crime. Faz apenas parte de se ser um homem adulto. O Alvin deve ter
jogado muito aos dados no hospital militar, em Monreal.
Como eu continuava incapaz de falar, ele perguntou:
– De que estavam os tipos a falar?
– De nada.
– Estiveram ali toda a tarde e não falaram de nada?
– Só falaram de quanto estavam a perder.
– Mais nada? Nada a respeito do presidente? Sabe quem é o presidente,
não sabe?
– Charles A. Lindbergh.
– Não disseram nada a respeito do presidente Lindbergh, Master Philip?
– Que eu ouvisse, não – respondi, sem faltar à verdade.
Mas ter-me-ia ele ouvido, a mim, dizer o que disse aos cavalos?
Impossível... no entanto, nesta altura eu tinha a certeza de que ele estava ao
corrente de cada movimento meu desde que Alvin regressara da guerra a
casa e me dera a sua medalha. Era indiscutível, ele sabia que eu usava a
medalha. Por que outro motivo estaria a olhar-me dos pés à cabeça?
– Eles falaram do Canadá? A respeito de irem para o Canadá?
– Não, senhor.
– Trata-me por Don, está bem? E eu trato-te por Phil. Sabes o que é um
fascista, não sabes, Phil?
– Acho que sim
– Lembras-te de eles terem chamado fascista a alguém? – Não.
– Não tenhas pressa. Não te apresses a responder. Leva todo o tempo que
precisares. Tenta lembrar-te. É importante. Eles chamaram fascista a
alguém? Disseram alguma coisa a respeito de Hitler? Sabes quem é o Hitler.
– Toda a gente sabe.
– É um homem mau, não é?
– É.
– Ele é contra os judeus, não é?
– É.
– Quem mais é contra os judeus?
– A Bund.
Eu sabia o suficiente para não referir Henry Ford, o America First, os
Democratas do Sul, ou os Republicanos isolacionistas, e muito menos
Lindbergh. Ao longo dos últimos anos, a lista que ouvia enunciar, em casa,
de americanos notáveis que odiavam os judeus era muito maior do que isso,
sem contar com os americanos comuns, dezenas de milhões deles, como os
bebedores de cerveja ao lado dos quais não gostaríamos de morar em
Union, o dono do hotel de Washington e o comensal de bigode que nos
insultara na cafetaria perto da Union Station, «Não fales», disse a mim
mesmo, como se um rapaz protegido de nove anos andasse metido com
criminosos e tivesse alguma coisa a esconder. Mas já devia ter começado a
pensar em mim mesmo como um pequeno criminoso, em virtude de ser
judeu.
– E quem mais? – repetiu ele. – Mr. Hoover quer saber quem mais. Diz-
me, Phil.
–Já disse – insisti.
– Como está a tua tia Evelyn?
– Está bem.
– Vai-se casar. Não é verdade que ela se vai casar? Podes responder pelo
menos a isso.
– É.
– És um rapaz esperto. Penso que sabes mais... muito mais. Mas és
demasiado esperto para me dizeres, não és?
– Ela vai casar com o rabi Bengelsdorf. Ele é director do GAA.
Riu-se, por eu dizer isto.
– Está bem, podes ir para casa. Vai para casa e come os teus matzohs. Não
é isso que os faz tão espertos? Comer os matzohs?
Estávamos agora na esquina da Chancellor com a Summit, e eu via a
entrada da nossa casa, ao fundo do quarteirão.
– Adeus! – gritei e, sem esperar que a luz mudasse, corri para casa, antes
de cair na armadilha dele – se é que já não caíra.

Encontravam-se três carros da polícia estacionados na rua defronte da


nossa casa e a nossa travessa estava bloqueada por uma ambulância. Dois
polícias conversavam, parados à entrada, enquanto outro estava parado ao
lado da porta das traseiras. As mulheres do quarteirão, muitas delas ainda de
avental, estavam à entrada das suas casas, a tentar perceber o que se
passava, e os miúdos tinham-se reunido todos no passeio do outro lado da
rua, a espreitar para os polícias e para a ambulância por entre a fileira de
carros estacionados. Não me lembrava de alguma vez os ter visto assim
reunidos tão silenciosamente e com um ar tão apreensivo.
O nosso vizinho de baixo morrera. Mr. Wishnow suicidara-se. Era por
isso que tudo quanto eu nunca esperara ver estava agora do lado de fora da
nossa casa. Pesando escassos quarenta quilos, conseguira estrangular-se
passando os cordões dos cortinados da sala pelo varão de madeira do
roupeiro do átrio das traseiras, fazendo uma laçada à roda do pescoço e
lançando-se para a frente da borda da cadeira da cozinha onde se sentara
dentro do roupeiro. Quando Seldon, ao chegar da escola, foi arrumar o
casaco, encontrou o pai, de pijama, caído de rosto para baixo no chão do
roupeiro, no meio dos sapatos e das galochas da família. O meu primeiro
pensamento, ao saber a notícia, foi que não teria de voltar a ter medo de
ouvir um ataque de tosse, proveniente do homem moribundo do primeiro
piso, todas a vezes que estivesse sozinho na cave, nem de o ouvir na minha
cama, no piso de cima, quando tentava pegar no sono. Mas depois dei conta
de que o fantasma de Mr. Wishnow se juntaria agora ao círculo de
fantasmas que já habitavam a cave e que, pelo simples facto de me sentir
aliviado com a sua morte, ele faria tudo e mais alguma coisa para me
assombrar durante o resto da minha vida.
Como não sabia o que mais fazer, ao princípio ajoelhei-me ao lado dos
carros estacionados, escondendo-me aí com os outros miúdos. Nenhum
deles conhecia melhor do que eu o cataclismo que se abatera sobre os
Wishnow, mas foi graças aos seus segredinhos que pude fazer uma ideia de
como Mr. Wishnow morrera e fora encontrado, e fiquei a saber que Seldon
e a mãe estavam dentro de casa com um dos polícias e os paramédicos. E
com o cadáver. Era isso, o cadáver, que todos os miúdos estavam à espera
de ver. Preferi esperar com eles, a arriscar-me a entrar no corredor das
traseiras precisamente quando estivessem a transportar Mr. Wishnow pela
escada abaixo. Também não queria ir para casa e ficar lá sozinho até a
minha mãe, o meu pai ou o Sandy aparecerem. Quanto ao Alvin, nunca
mais queria voltar a vê-lo ou ser interrogado por ninguém a seu respeito.
A mulher que saiu da casa a acompanhar os paramédicos, não era Mrs.
Wishnow, mas a minha mãe. Não compreendi por que motivo ela estava em
casa e não a trabalhar, até me vir ao pensamento que o morto que estavam a
transportar era o meu próprio pai. Sim, claro, o meu pai suicidara-se. Não
pudera suportar mais Lindbergh nem o que Lindbergh estava a deixar os
nazis fazerem aos judeus da Rússia e o que Lindbergh fizera à nossa
família, aqui, e por isso fora ele que se enforcara – no nosso roupeiro.
Naquele tempo, não tinha centenas de recordações dele, tinha apenas uma
e essa não me parecia de modo algum suficientemente importante para ser a
recordação que devia estar a ter. A última recordação que Alvin tinha do pai
era a de ele ter fechado a porta do carro no seu dedo de menino; a que eu
tinha do meu era a de ouvi-lo cumprimentar o coto de homem que esmolava
todos os dias à porta do prédio do seu escritório. «Como vai isso, Little
Robert?», dissera o meu pai, e o coto de homem respondera: «Como vai,
Herman?»
Foi nessa altura que me meti entre os carros estacionados muito juntos e
atravessei a rua a correr.
Quando vi que o lençol que cobria o corpo e o rosto do meu pai não
poderia deixá-lo respirar, comecei a chorar.
– Não, meu amor, não chores – disse a minha mãe. – Não há motivo
nenhum para teres medo. Envolveu a minha cabeça com os braços, apertou-
me a si e repetiu: «Não há motivo nenhum para teres medo. Ele estava
doente e a sofrer muito, e morreu. Agora já não sofre.
– Estava no roupeiro – disse eu.
– Não, não estava. Estava na sua cama. Morreu na sua cama. Estava
muito, muito doente. Tu sabias. Era por isso que ele tossia constantemente.
Entretanto, as portas da ambulância abriram-se para receber a maca. Os
paramédicos manobraram-na com todo o cuidado e depois fecharam a
porta. A minha mãe permaneceu a meu lado, na rua, a apertar a minha mão
nas suas e parecendo, para meu espanto, perfeitamente calma. Só quando
fiz menção de fugir dela e correr atrás da ambulância, só quando eu gritei:
«Ele não pode respirar!», ela compreendeu, enfim, o que estava a torturar-
me.
– Foi Mr. Wishnow... foi Mr. Wishnow quem morreu. – Sacudiu-me,
sacudiu-me com brandura para a frente e para trás, até eu serenar. – Foi o
pai do Seldon, querido... morreu da sua doença, esta tarde.
Não consegui perceber se ela estava a mentir para evitar que eu ficasse
ainda mais nervoso ou se estava a dizer a maravilhosa verdade.
– O Seldon encontrou-o no roupeiro?
– Não. Já te disse... não. Ele encontrou o pai na cama. Como a sua mãe
não estava em casa, chamou a polícia. Eu vim porque Mrs. Wishnow me
telefonou para a loja e me pediu que a ajudasse. Estás a compreender? O teu
paizinho está no trabalho. O teu paizinho está a trabalhar. Oh, mas o que é
que tens estado a pensar? O paizinho não tardará a chegar a casa, para
jantar. E o Sandy também. Não há motivo nenhum para ter medo. Estarão
todos em casa, virão todos para casa, jantaremos e estará tudo bem – disse,
tranquilizadoramente.
Mas nada estava «bem». O agente do FBI que me apertara com perguntas
a respeito de Alvin, na Chancellor Avenue, passara antes pela secção de
vestuário do Hahne’s para interrogar a minha mãe, depois pelo escritório da
Metropolitan em Newark para interrogar o meu pai e, logo após Sandy ter
saído do escritório da tia Evelyn para regressar a casa, metera-se no mesmo
autocarro que ele e, no lugar a seu lado, efectuou mais outro interrogatório.
Alvin não ouviu falar disto, porque não apareceu para jantar – precisamente
quando estávamos a sentar-nos à mesa, telefonara a dizer à minha mãe que
não guardasse nada para ele. Parecia que, todas as vezes que ganhava um
balúrdio a jogar póquer ou dados, levava Shushy ao centro da cidade, para
um jantar de bife grelhado no carvão no Hickory Grill. «Parceiro de Alvin
no crime», chamava o meu pai a Shushy. O que chamou ao sobrinho
naquela noite foi: ingrato, estúpido, estouvado, ignorante e incorrigível.
– E amargo – disse a minha mãe, tristemente –, muito amargo por causa
da sua perna.
– Bem, estou farto e cansado de ouvir falar na sua perna – replicou o meu
pai. – Ele foi para a guerra. Quem o mandou? Eu não fui. Tu não foste. O
Abe Steinheim não foi. O Abe queria mandá-lo para a faculdade. Foi para a
guerra por sua conta e risco e pode considerar-se com sorte por não ter sido
morto. Teve sorte em perder apenas a perna. A verdade é essa, Bess. Perdi a
paciência com aquele rapaz. O FBI interroga os meus filhos? Como se não
bastasse incomodarem-nos, a ti e a mim – e no meu escritório, nota, na
presença do Chefe! Não, Bess. Isto tem de acabar, e acabar já. Esta casa é
um lar. Nós somos uma família. Ele vai jantar no centro da cidade com o
Shushy? Pois que viva com o Shushy.
– Se ao menos fosse para a escola – disse a minha mãe. – Se ao menos
aceitasse um emprego.
– Ele tem um emprego – replicou o meu pai. – Vadio.
Quando acabámos de comer, a minha mãe preparou uma refeição para
Seldon e Mrs. Wishnow e o meu pai ajudou-a a levar os pratos para baixo,
enquanto Sandy e eu nos encarregávamos da louça do jantar. Deitámos
mãos à obra no lava-louça, como fazíamos na maioria das noites, com a
diferença de que eu não consegui ficar calado.
– A mãe não está a dizer-nos a verdade. Ele suicidou-se, mas ela não quer
dizê-lo. O Seldon encontrou-o no roupeiro, quando chegou da escola. Ele
enforcou-se. Foi por isso que a polícia veio.
– Ele mudou de cor? – perguntou o meu irmão.
– Só o vi debaixo do lençol. Talvez tenha mudado... não sei. Não quero
saber. Já bastava vê-lo mexer-se quando eles agitavam a maca. – Não disse
em voz alta que, ao princípio, pensei que era o meu pai quem estava
debaixo do lençol, com medo de que, se o dissesse, se tornasse verdade. O
facto de o meu pai estar vivo, vivamente vivo – furioso com Alvin e
ameaçando pô-lo fora de casa –, não exercia qualquer influência mo meu
pensamento.
– Como sabes que ele estava no roupeiro? – perguntou Sandy.
– Era o que todos os rapazes diziam.
– E tu acreditas neles? – Por causa da sua fama, estava a tornar-se um
rapaz muito duro, cuja tremenda confiança parecia cada vez mais altiva
arrogância, sempre que falava de mim ou dos meus amigos.
– Então porque apareceram todos aqueles polícias? Só porque ele
morreu? A toda a hora morrem pessoas – repliquei, embora tentasse não
acreditar no que dizia. – Ele matou-se. Teve de se matar.
– E desde quando é contra a lei, uma pessoa matar-se? O que iam fazer,
metê-lo na cadeia por se ter morto?
Eu não sabia. Como já não sabia o que era a lei, também desconhecia o
que podia ou não ser contra ela. Não sabia sequer se o meu próprio pai –
que acabava de descer para o piso de baixo com a minha mãe – estava
realmente vivo, ou fingia estar vivo, ou estava a ser conduzido, morto, na
retaguarda daquela ambulância. Não sabia nada. Não sabia por que motivo
Alvin era, agora, mau em vez de bom. Não sabia se tinha sonhado que um
agente do FBI me interrogara na Chancellor Avenue. Só podia ser um
sonho, mas ao mesmo tempo não podia, pois todos os outros diziam que
também tinham sido interrogados. A não ser que o sonho fosse isso. Senti-
me tonto e pensei que ia desmaiar. Nunca antes vira alguém desmaiar, a não
ser num filme, e eu próprio nunca antes desmaiara. Nunca antes olhara para
a minha casa de um esconderijo do outro lado da rua e desejara que fosse a
casa de outra pessoa qualquer. Nunca antes tivera vinte dólares na algibeira.
Nunca antes conhecera ninguém que vira o pai enforcado num roupeiro.
Nunca antes crescera a um ritmo como este.
Nunca antes: o grande estribilho de 1942.
– É melhor chamares a mãe – disse ao meu irmão. – Chama-a... diz-lhe
que venha imediatamente para casa! – Mas antes de Sandy ter tempo de
chegar à porta das traseiras, a fim de descer apressadamente para casa dos
Wishnow, já eu estava a vomitar para o pano da louça que ainda tinha na
mão, e quando caí foi porque uma explosão arrancara a minha perna e havia
sangue meu por todo o lado.
Estive seis dias de cama com febre alta, tão fraco e abalado que o médico
da família passava lá por casa todas as noites, para avaliar o progresso da
minha doença, aquela não rara enfermidade da infância chamada porque-
não-pode-continuar-como-era.

O dia seguinte, para mim, foi domingo. A tarde ia avançada e o tio Monty
vinha visitar-nos. Alvin também estava presente e, pelo que escutei, na
cama, do que se dizia na cozinha, não fora visto em lado algum desde que
Mr. Wishnow cometera suicídio, na sexta-feira, e ele se afastara do jogo de
dados com o seu maço de notas de cinco, dez e vinte dólares. Mas desde a
hora de jantar de sexta-feira eu próprio estivera ausente, lá por fora com os
cavalos e os seus cascos, cercado por alucinações caleidoscópicas em que
os cavalos de trabalho do orfanato me perseguiam até à fronteira da terra.
E agora outra vez o tio Monty, outra vez o tio Monty a atacar Alvin, e
com palavras que eu não podia acreditar que estivessem a ser ditas na
minha casa, na presença da minha mãe. Mas a verdade é que o tio Monty
sabia dominar Alvin usando métodos a que o meu pai era pura e
simplesmente incapaz de recorrer.
Ao anoitecer, depois de toda a gritaria se ter reduzido a lamentos pelo
meu falecido tio Jack e a voz tonitruante de Monty ter enrouquecido, Alvin
aceitou o emprego no mercado de verduras que recusara considerar, sequer,
quando Monty lho oferecera pela primeira vez. Tão desmoralizado quanto
estivera pela sua mutilação na manhã em que chegara à Penn Station sob o
cuidado daquela corpulenta enfermeira canadiana, tão humilhado pela
derrota como quando, da sua cadeira de rodas, não ousava olhar nenhum de
nós nos olhos, Alvin consentiu em desfazer a sua sociedade com Shushy e
desistir de jogar nas ruas do bairro. Não menos inimigo da subserviência do
que do choro, surpreendeu toda a gente ao irromper em lágrimas de
remorso, pedir perdão e aceder a deixar de ser um bruto com o meu irmão,
um ingrato com a minha mãe e o meu pai e uma má influência para mim, e
também a tratar-nos com o apreço que nos era devido. O tio Monty
advertiu-o de que, se não cumprisse as suas promessas e, ao invés,
continuasse a sabotar a família de Herman, os Roth não quereriam mais
nada com ele, definitivamente.
Embora Alvin parecesse estar a esforçar-se muito para cumprir o trabalho
servil de burro de carga do seu primeiro emprego, não permaneceu no
mercado tempo suficiente para subir um furo, que fosse, acima das tarefas
de varrer e fazer recados. Um dia, quando lá trabalhava há pouco mais de
uma semana, o FBI apareceu para fazer perguntas a seu respeito, o mesmo
agente e usando as mesmas perguntas ameaçadoramente inofensivas que
fizera à minha família e a mim, com a diferença de que, desta vez, deu a
entender aos outros trabalhadores que Alvin era um traidor confesso que
conspirava com descontentes antiamericanos, como ele, para assassinar o
presidente Lindbergh. As acusações eram ridículas, mas mesmo assim, e
apesar de Alvin se ter mostrado submisso durante toda aquela semana – tão
submisso como jurara ser e se empenhara em permanecer –, mesmo assim
foi imediatamente despedido e, à saída, aconselhado por um dos valentaços
de serviço a nunca mais se aproximar do mercado. Quando o meu pai
telefonou ao irmão para saber o que tinha acontecido, Monty respondeu-lhe
que não tivera outro remédio: recebera ordem dos rapazes de Longy para se
livrar do sobrinho. Longy Zwillman de, Newark, que crescera como o meu
pai e os seus irmãos, filho de imigrantes nos velhos bairros miseráveis
judeus, dirigia nesse tempo as negociatas sujas de Jersey, era o potentado
implacável de tudo, desde apostas ilegais e fura-greves aos serviços de
camionagem e carga impostos a negociantes como Belmont Roth. Em
virtude de os federais serem as últimas pessoas que Longy queria a meter o
nariz na sua vida, Alvin perdeu o emprego, saiu da nossa casa e deixou a
cidade em menos de vinte e quatro horas, desta vez sem atravessar a
fronteira internacional para Monreal e os comandos canadianos, mas
atravessando o Delaware para Filadélfia e um emprego com o tio de
Shushy, o rei das máquinas de apostas, um vigarista aparentemente mais
tolerante para com traidores do que o seu par sem rival de North Jersey.
Na Primavera de 1942, para comemorar o Acordo da Islândia, o
presidente e Mrs. Lindbergh ofereceram um jantar oficial na Casa Branca
em honra do ministro dos Estrangeiros Joachim von Ribbentrop, que se
sabia ter elogiado Lindbergh aos seus colegas nazis como o candidato
presidencial americano ideal para a Alemanha muito antes de o Partido
Republicano o ter escolhido na sua convenção de 1940. Von Ribbentrop foi
o negociador que se sentou ao lado de Hitler durante os encontros na
Islândia e o primeiro líder nazi a ser convidado a visitar a América por
qualquer governo ou agência oficial desde que os fascistas tinham
conquistado o poder, quase dez anos atrás. Assim que o jantar a von
Ribbentrop foi tornado público, a imprensa liberal deu voz a fortes críticas e
houve comícios e manifestações de protesto em todo o país contra a decisão
da Casa Branca. Pela primeira vez desde que deixara o poder, o ex-
presidente Roosevelt saiu do seu recolhimento para fazer um breve discurso
a todo o país, a partir de Hyde Park, instigando o presidente Lindbergh a
cancelar o convite «em nome de todos os americanos amantes da paz, e em
especial das dezenas de milhões de americanos de ascendência europeia
cujos países ancestrais tinham de viver sob o jugo esmagador dos nazis».
Roosevelt foi de imediato atacado pelo vice-presidente Wheeler, acusado
de «brincar à política» imiscuindo-se na condução, por um presidente em
exercício, dos negócios estrangeiros do país. Não era apenas cínico, disse o
vice-presidente, mas absolutamente irresponsável da sua parte, argumentar
a favor da mesma política perigosa que quase arrastara a América para uma
sangrenta guerra europeia enquanto os Democratas do New Deal
governavam o país. Wheeler era, ele próprio, um democrata, ex-senador de
Montana durante três mandatos e o primeiro e único membro do partido da
oposição a ser escolhido para partilhar uma plataforma eleitoral com um
candidato presidencial, desde que Lincoln escolhera Andrew Johnson para
concorrer com ele ao segundo mandato, em 1864. No início da sua carreira
política situava-se tão à esquerda que fora a voz dos líderes trabalhistas
radicais de Butte, o inimigo da Anaconda Copper – a companhia mineira
que dirigia Montana quase como se dirigisse um grande armazém – e, na
condição de um dos primeiros apoiante iniciais de FDR, o seu nome tinha
sido sugerido como seu candidato a vice-presidente em 1932. Afastara-se
pela primeira vez do Partido Democrático em 1924, para se aliar ao senador
reformista do Wisconsin, Robert La Follette, na plataforma presidencial,
apoiada pelo sindicato, do Partido Progressista, e a seguir, depois de
abandonar La Follette e os seus apoiantes da esquerda americana não-
comunista, juntara-se a Lindbergh e aos isolacionistas da ala direita para
ajudar a fundar o America First, atacando Roosevelt com declarações
antiguerra tão extremas que levaram o presidente a rotular a sua crítica de
«a coisa mais falsa, ignóbil e antipatriótica jamais dita na vida pública da
minha geração». Wheeler fora escolhido pelos Republicanos para concorrer
com Lindbergh, em parte porque a sua própria máquina política em
Montana ajudara a eleger republicanos para o Congresso durante o fim dos
anos 30, mas sobretudo para persuadir o povo americano da força do apoio
bipartidário ao isolacionismo e para terem na sua lista um candidato
combativo não afecto a Lindbergh, cuja missão seria atacar e ultrajar o seu
próprio partido político em todas as oportunidades, como fez na conferência
de imprensa dada no gabinete do vice-presidente quando previu que se a
imprudente retórica «pró--guerra» da mensagem de Roosevelt em Hyde
Park constituía alguma indicação da campanha que os Democratas
tencionavam desencadear nas próximas eleições, eles sofreriam, no
Congresso, perdas ainda maiores do que tinham sofrido com a avalancha
republicana de 1940.
Logo no fim-de-semana seguinte, a Bund Germano-Americana encheu
quase totalmente a Madison Square Garden, uma multidão de cerca de vinte
e cinco mil pessoas que se tinham apresentado para apoiar o convite do
presidente Lindbergh ao ministro dos Estrangeiros alemão e para
denunciarem os Democratas pelo seu renovado «fomento da guerra».
Durante o segundo mandato de Roosevelt, o FBI e os comités do Congresso
que investigavam as actividades da Bund tinham imobilizado a organização,
qualificando-a de frente nazi e instaurando processos criminais contra
líderes do seu alto comando. Mas com Lindbergh cessaram os esforços
governamentais de perseguição e intimidação de membros da Bund, que
puderam recuperar a sua força identificando-se não apenas como patriotas
americanos de origem alemã que se opunham à intervenção da América em
guerras estrangeiras, mas também como vigorosos inimigos da União
Soviética. A profunda camaradagem fascista que unia a Bund mascarava-se
agora com clamorosas declarações patrióticas sobre o perigo de uma
revolução comunista à escala mundial.
Mais como organização anticomunista do que pró-nazi, a Bund
continuava tão anti-semita como antes, equiparando claramente o
bolchevismo ao judaísmo nos panfletos de propaganda, insistindo no grande
número de judeus «pró-guerra» – como o secretário do Tesouro,
Morgenthau, e o financeiro Bernard Baruch, que fora confidente de
Roosevelt – e, claro, mantendo-se firmemente fiel aos objectivos
enunciados na declaração oficial da primeira organização em 1936:
«combater a loucura dirigida por Moscovo da ameaça do mundo vermelho e
dos seus porta-bacilos judeus» e promover «uns Estados Unidos livres
dirigidos por gentios». Desapareceram, porém, do comício de 1942 em
Madison Square Garden as bandeiras nazis, as braçadeiras com suásticas, o
braço estendido da saudação hitleriana, os uniformes de tropas de choque e
o gigantesco retrato do Führer exibidos no primeiro comício, em 20 de
Fevereiro de 1939, um acontecimento promovido pela Bund como
«Exercícios do Aniversário de George Washington». Desapareceram
igualmente as faixas murais proclamando «Desperta, América – Esmaga os
Comunistas Judeus!», as referências feitas por oradores a Franklin D.
Roosevelt como «Franklin D. Rosenfeld» e os grandes autocolantes brancos
com letras pretas que tinham sido oferecidos aos membros da Bund para
porem nas lapelas e que diziam:

MANTENHAM A AMÉRICA
FORA DA
GUERRA JUDAICA

Entretanto, Walter Winchell continuava a referir-se aos Bun-distas como


«Bundits», e Dorothy Thompson, a eminente jornalista e mulher do
romancista Sinclair Lewis, que fora expulsa do comício da Bund de 1939
por exercer aquilo a que ela chamava o seu «direito constitucional de se rir
de declarações ridículas feitas num espaço público», continuava a denunciar
a sua propaganda com o mesmo espírito que demonstrara três anos antes
quando saíra do comício a gritar: «Treta, treta, treta! Mein Kampf, palavra
por palavra!» E no seu programa de sábado à noite, depois do comício da
Bund, Winchell argumentou, com a prosápia habitual, que a hostilidade
crescente para com o jantar oficial em honra de Ribbentrop assinalava o fim
da lua-de-mel americana com Charles A. Lindbergh. «O despautério
presidencial do século», chamou-lhe, «o despautério dos despautérios»,
pelo qual os lacaios republicanos reaccionários do nosso presidente, amigos
dos fascistas, pagarão com as suas vidas políticas nas eleições de
Novembro.»
A Casa Branca, habituada ao endeusamento quase universal de
Lindbergh, pareceu paralisada com a forte desaprovação que a oposição
conseguira congregar tão rapidamente contra ele, e embora a Administração
procurasse distanciar-se do comício da Bund de Nova Iorque, os
Democratas – decididos a associar Lindbergh com a reputação ignominiosa
da organização – organizaram por sua vez um comício próprio em Madison
Square Garden. Orador após orador denunciaram contundentemente «os
Bundistas de Lindbergh», até que, para espanto e contentamento geral, o
próprio FDR apareceu na tribuna. A ovação de dez minutos que acolheu a
sua presença teria continuado durante ainda mais tempo se o ex-presidente
não tivesse anunciado, energicamente, acima do alarido: «Meus
concidadãos americanos, meus concidadãos americanos... tenho um recado
tanto para Mr. Lindbergh como para Herr Hitler. O momento obriga-me a
declarar, com uma sinceridade inequívoca, que somos nós, e não eles, os
senhores do destino da América.» Estas palavras eram tão comoventes e
dramáticas que todo o ser humano que fazia parte daquela multidão (e na
nossa sala e nas de cima a baixo da nossa rua) foi arrebatado pela ditosa
ilusão de que a salvação do país estava ali, ao nosso alcance.
«A única coisa que temos a temer», disse FDR ao seu público –
recordando as sete palavras do início de uma frase tão famosa como
quaisquer jamais pronunciadas num primeiro discurso inaugural –, «é a
servil submissão de Charles A. Lindbergh aos seus amigos nazis, o namoro
vergonhoso do presidente da maior democracia do mundo a um déspota
culpado de inúmeras acções criminosas e actos de selvajaria, a um tirano
cruel e bárbaro sem paralelo no historial dos crimes humanos. Mas nós,
Americanos, não aceitaremos um mundo dominado por Hitler. Hoje o
mundo inteiro está dividido entre escravatura humana e liberdade humana.
Nós... escolhemos... a liberdade! Nós só aceitamos uma América
consagrada à liberdade! Se está a ser congeminada, por forças
antidemocráticas aqui no país, uma conspiração com uma matriz quisling
para uma América fascista, ou por nações estrangeiras sôfregas de poder e
supremacia – uma conspiração para eliminar a grande vaga de liberdade
humana da qual o Bill of Rights americano é o documento fundamental,
uma conspiração para substituir a democracia americana pela autoridade
absoluta de um domínio despótico como o que escraviza os povos
conquistados da Europa –, então aqueles que ousarem conspirar
secretamente contra a nossa liberdade têm de compreender que os
Americanos, seja qual for a ameaça ou perante seja que perigo for, jamais
renunciarão às garantias de liberdade criadas para nós pelos nossos
antepassados na Constituição dos Estados Unidos.»
A resposta de Lindbergh veio alguns dias depois: vestiu o seu fato de
piloto Lone Eagle e, numa manhã cedo, levantou voo de Washington no seu
bimotor Lockheed Interceptor para se encontrar frente a frente com o povo
americano e assegurar-lhe que todas as decisões que tomava eram
concebidas única e exclusivamente para lhes reforçar a segurança e garantir
o bem-estar. Era isso que fazia quando a mínima crise surgia: voava para
cidades de todas as regiões do país – desta vez, quatro e cinco num só dia,
graças à fenomenal velocidade do Interceptor, e fosse onde fosse que o seu
aparelho aterrasse tinha à sua espera os figurões importantes locais, uma
quantidade de microfones de rádios, assim como os correspondentes do
serviço telegráfico, os repórteres da cidade e os milhares de cidadãos que se
tinham reunido para verem o seu jovem presidente com o seu famoso
blusão de voo e capacete de cabedal. E cada vez que ele aterrava, tornava
claro que estava a percorrer o país sem escolta, sem a protecção quer dos
Serviços Secretos, quer do Corpo de Aviação. Isto demonstrava quanto
considerava seguros os céus americanos; quanto o país estava seguro, agora
que a sua Administração, em pouco mais de um ano, dissipara todas as
ameaças de guerra. Recordava ao seu público que, desde que tomara posse,
não fora, nem seria, posta em risco a vida de um só rapaz americano
enquanto ele permanecesse no seu posto. Os Americanos tinham depositado
a sua confiança na liderança dele, e ele tinha cumprido todas as promessas
que lhes fizera.
Isso era tudo quanto dizia ou tinha para dizer. Nunca mencionava o nome
de von Ribbentrop ou o de FDR nem fazia referência à Bund Germano-
Americana ou ao Acordo da Islândia. Não dissera nada em apoio dos nazis,
nada que revelasse uma afinidade com o seu líder e os objectivos dele, nem
sequer para observar com aprovação que o Exército Alemão recuperara das
perdas do Inverno e que, ao longo de toda a frente russa, os comunistas
soviéticos estavam a ser empurrados mais para leste, rumo à suprema
derrota. Mas a verdade é que na América todos sabiam ser inabalável a
convicção do presidente, assim como da ala direita dominante do partido,
de que a melhor protecção contra o alastramento do comunismo através da
Europa, na Ásia e no Médio Oriente, e até ao nosso próprio hemisfério era a
destruição total da União Soviética de Estaline pelo poderio militar do III
Reich.
À sua maneira reservada, taciturna a insinuante, Lindbergh dizia às
multidões aglomeradas no campo de aviação e aos radiouvintes quem era e
o que tinha feito, e quando voltava a subir para o avião, a fim de voar para a
paragem seguinte, poderia ter anunciado que, na sequência do jantar oficial
oferecido a von Ribbentrop na Casa Branca, a primeira-dama convidaria
Adolf Hitler e a sua namorada para passarem o fim-de-semana do 4 de
Julho, como convidados, no quarto de Lincoln na Casa Branca, que mesmo
assim seria ovacionado pelos seus compatriotas como o salvador da
democracia.

Shepsie Tirschwell, amigo de juventude do meu pai, fora um dos vários


montadores-projeccionistas do Newsreel Theater da Bond Street desde a
sua abertura, em 1935, como o único cinema de actualidades da cidade. O
programa de uma hora do Newsreel compreendia blocos noticiosos, breves
e «A Marcha do Tempo», e passava diariamente, desde manhã cedo até à
meia-noite. Todas as quintas-feiras, a partir de milhares de metros de filmes
noticiosos fornecidos por companhias como a Pathé e a Paramount, Mr.
Tirschwell e os outros três montadores seleccionavam histórias e
organizavam um programa de última hora, para os frequentadores regulares
como o meu pai – cujo escritório na Clinton Street ficava a poucos
quarteirões de distância – poderem manter-se em dia com as notícias
nacionais, acontecimentos importantes em todo o mundo e momentos
emocionantes de campeonatos desportivos que, na era da rádio, só podiam
ser vistos em película num cinema. O meu pai tentava arranjar uma hora
todas as semanas para ver um programa completo, e quando o conseguia
contava-nos o que vira, e quem, enquanto jantávamos. Tojo. Pétain. Batista.
De Valera. Arias. Quezon. Camacho. Litvinov. Zhukov. Hull. Wells.
Harriman. Dies. Heydrich. Blum. Quisling. Gandhi, Rommel. Mountbatten.
O rei Jorge. La Guardia. Franco. O papa Pio XII. E esta era apenas uma
lista abreviada do tremendo elenco de personagens proeminentes em
acontecimentos que, segundo ele nos dizia, um dia recordaríamos como
história digna de ser transmitida aos nossos próprios filhos.
– Sim, porque o que é a história? – perguntava retoricamente, quando
estava no seu expansivo modo educativo da hora de jantar. – A história é
tudo o que acontece em todo o lado. Até aqui, em Newark. Até aqui, na
Summit Avenue. Até o que acontece em sua casa a um homem comum, um
dia, isso será história.
Aos fins-de-semana, quando Mr. Tirschwell estava a trabalhar, o meu pai
levava-nos, ao Sandy e a mim, para recebermos mais instrução no Newsreel
Theater. Mr. Tirschwell deixava entradas grátis para nós na bilheteira, e
cada vez que o meu pai nos levava lá acima, à cabina de projecção, depois
do espectáculo, pregava-nos o mesmo sermão cívico. Dizia-nos que, numa
democracia, manter-se a par dos acontecimentos correntes era o mais
importante dever de um cidadão e que nunca era cedo de mais para
estarmos informados das notícias do dia. Nós reuníamo-nos perto do
projector do filme, ele ensinava-nos o nome de cada uma das suas peças, e
depois olhávamos para as fotografias emolduradas das paredes, que tinham
sido tiradas na noite de estreia, com traje de cerimónia, do cinema, quando
o primeiro e único mayor judeu de Newark, Meyer Ellenstein, cortara a fita
estendida através do átrio e dera as boas-vindas a convidados famosos,
entre os quais, como Mr. Tirschwell nos disse, apontando para as
respectivas fotografias, se contavam o ex-embaixador americano em
Espanha e o fundador do grande armazém Bamberger.
O que mais me agradava no Newsreel Theater era o facto de os lugares
terem sido construídos de modo que nem mesmo um adulto precisava de se
levantar para deixar passar outras pessoas, de dizerem que a cabina de
projecção era à prova de som e de na alcatifa do átrio haver um desenho de
bobinas de película que podíamos pisar à entrada e à saída. Só quando o
meu pensamento recua para esses sábados consecutivos de 1942, em que
Sandy tinha catorze anos e eu nove e fomos levados pelo meu pai
especificamente para vermos o comício da Bund, numa semana, e FDR
falando para os presentes no comício anti-Ribbentrop, na seguinte, consigo
lembrar-me de mais alguma coisa do que da voz de Lowell Thomas, que
apresentava a maioria das notícias políticas, e da de Bill Stern, que falava
entusiasticamente de desporto. Mas nunca me esqueci do comício da Bund
devido ao ódio instilado em mim pelos bundistas que, de pé, entoavam o
nome de Ribbentrop como se fosse ele quem era agora presidente dos
Estados Unidos; e nunca esqueci o discurso de FDR porque, quando ele
proclamou no comício contra Ribbentrop que «A única coisa que temos de
recear é a obsequiosa cedência de Charles A. Lindbergh aos seus amigos
nazis», uma boa metade dos espectadores apupou e assobiou, enquanto os
restantes, incluindo o meu pai, batiam palmas com toda a força, e eu me
perguntava se não iria rebentar uma guerra ali mesmo, na Broad Street, em
pleno dia, e se, quando saíssemos do cinema às escuras, não encontraríamos
o centro de Newark reduzido a um monte de ruínas fumegantes e incêndios
a deflagrar por todo o lado.
Não foi fácil para Sandy passar aquelas duas tardes sentado no Newsreel
Theater, e como ele já compreendera isso de antemão, ao princípio recusou
o convite do meu pai e só concordou em acompanhar-nos quando o convite
se transformou em ordem. Na Primavera de 1942, Sandy estava a poucos
meses de entrar na escola secundária e era um rapaz alto, magro e bem-
parecido, sempre muito bem arranjado e penteado e cuja postura, de pé ou
sentado, era tão perfeita como a de um cadete de West Point. A sua
experiência como jovem e importante porta-voz do Just Folks dotara-o,
ainda, de um ar de autoridade raramente visto numa pessoa tão nova. O
facto de Sandy se revelar tão versado em influenciar adultos e de ter
conquistado um séquito reverente entre os miúdos mais novos do bairro,
ansiosos por imitá-lo e serem aceites para o programa estival agrícola do
Gabinete Americano de Assimilação, surpreendera os meus pais e tornara
mais atemorizador ter o seu filho mais velho em casa, agora, do que no
tempo em que toda a gente o considerava um rapaz afável e razoavelmente
comum, com um dom para desenhar retratos de pessoas. Para mim, ele fora
sempre o poderoso, por ser mais velho, e agora parecia-me mais poderoso
do que nunca e despertava facilmente a minha admiração, apesar de me ter
afastado dele por causa do que Alvin descrevera como o seu oportunismo –
embora até o oportunismo (se Alvin estava certo e oportunismo era a
palavra certa) parecesse mais um predicado notável, o símbolo de uma
maturidade serena e consciente de si mesma inteligentemente casada com
as coisas do mundo.
É claro que, aos nove anos, o conceito de oportunismo me era muito
pouco familiar; no entanto, Alvin transmitia com bastante clareza o seu
estatuto ético através da náusea com que proferia a sua acusação e daquilo
que acrescentara a título aumentativo. Nessa altura, ainda saíra há pouco
tempo do hospital e sentia-se tão desgraçado que era incapaz de mostrar
muito comedimento.
– O teu irmão não é nada – informou-me uma noite, da sua cama. – É
menos do que nada. – E foi então que rotulou Sandy de oportunista.
– É? Porquê?
– Porque as pessoas são oportunistas, porque procuram vantagem para si
próprias, e todos os outros que se lixem. O Sandy é um sacana de um
oportunista. E a cabra da tua tia de mamas empinadas também. E o grande
rabi. A tia Bess e o tio Herman são pessoas honestas. Mas o Sandy...
vender-se àqueles pulhas com tanta pressa? Na sua idade? Com o seu
talento? Um grandíssimo espertalhão, esse teu mano.
Vender-se. Também era linguagem nova para mim, mas agora não mais
difícil de compreender do que «oportunista».
– Ele só fez uns retratos – expliquei.
Mas Alvin não estava com disposição que me permitisse tentar minimizar
aqueles retratos, sobretudo porque, não sei como, acabara de tomar
conhecimento da filiação de Sandy no Just Folks de Lindbergh. Não tive
coragem de lhe perguntar como descobrira o que eu tinha decidido nunca
lhe dizer, embora supusesse que, depois de ter descoberto por acaso o porta-
fólio dos desenhos debaixo da cama, ele tivesse bisbilhotado nas gavetas do
aparador da sala de jantar, onde Sandy guardava os seus blocos de
apontamentos e o seu papel de carta, e encontrado todas as provas
necessárias para detestar o meu irmão para sempre.
– Não significa o que estás a pensar – apressei-me a dizer, mas tive logo
de pensar que outra coisa poderia significar. – Ele está a fazer isso para nos
proteger – declarei. – Para não arranjarmos problemas.
– Por minha causa.
– Não! – protestei.
– Mas foi isso que ele te disse. Para a família não arranjar problemas por
causa do Alvin. É assim que ele justifica esta merda que anda a fazer.
– Mas por que outro motivo o faria? – perguntei tão ingenuamente como
uma criança e com toda a astúcia de uma criança. E também sem fazer a
mínima ideia de como livrar-me de um conflito que só agravara ao mentir
estupidamente em defesa do meu irmão. – Que mal há no que ele está a
fazer, se está a tentar ajudar?
– Não acredito em ti, espertinho – limitou-se a responder, e eu, como não
estava à altura do meu primo, desisti de tentar, pessoalmente, acreditar. Mas
se ao menos Sandy me tivesse dito que levava uma existência dupla! Se ao
menos ele estivesse a tirar o melhor partido de uma situação terrível e a
disfarçar-se de lealista de Lindbergh para nos proteger! No entanto, tendo-o
visto falar a um público de adultos judeus naquela cave da sinagoga de New
Brunswick, sabia quanto estava convencido do que dizia e como se
deliciava com a atenção de que isso o tornava alvo. O meu irmão descobrira
em si mesmo o dom raro de ser alguém, e por isso, enquanto fazia discursos
elogiando o presidente Lindbergh, e enquanto exibia os desenhos que fizera
dele, e enquanto enaltecia publicamente (com palavras escritas pela tia
Evelyn) os benefícios enriquecedores das suas oito semanas vividas como
trabalhador agrícola no coração do país gentio – enquanto, verdade seja
dita, fazia o que eu próprio não me teria importado de fazer, porque era
normal e patriótico em toda a América e aberrante e excêntrico só na sua
casa –, Sandy estava a viver o melhor tempo da sua vida.

Depois chegou a seguinte intrusão descomunal da história: um convite


impresso do presidente e de Mrs. Charles A. Lindbergh ao rabi Lionel
Bengelsdorf e a Miss Evelyn Finkel para assistirem ao jantar oficial em
honra do ministro dos Estrangeiros da Alemanha na noite de sábado, 4 de
Abril de 1942. O voo a solo a trinta cidades tornara a reputação de
Lindbergh, como homem do povo realista, prático e franco, ainda maior do
que era antes de Winchell ter rotulado o jantar de von Ribbentrop de «o
disparate político do século». Em breve, os editoriais da imprensa
largamente republicana do país berravam que disparate fora FDR e os
Democratas terem, deliberada e enganosamente, querido apresentar como
sinistra conspiração o que não passava de um jantar cordial oferecido na
Casa Branca a um dignitário estrangeiro.
Por muito atordoados que tivessem ficado ao saber do convite, os meus
pais nada puderam fazer. Meses antes, tinham feito sentir a Evelyn a sua
decepção por ela se ter tornado mais um membro do pequeno bando de
judeus iludidos dispostos a serem lacaios dos que estavam agora no poder.
Não fazia sentido pôr de novo em causa a sua distante relação
administrativa com o presidente dos Estados Unidos, tanto mais que sabiam
não ter sido a convicção ideológica que a animara, como parecia ter
acontecido nos seus tempos de sindicalista, ou simples e baixa ambição
política, mas sim a alegria de ter sido resgatada pelo rabi Bengelsdorf da
sua vidinha de professora substituta residente num sótão da Dewey Street e
levada para uma vida na corte tão miraculosamente como a Gata
Borralheira. No entanto, quando, inesperadamente, telefonou uma noite
para dizer à minha mãe que ela e o rabi tinham conseguido que o meu irmão
os acompanhasse ao jantar de von Ribbentrop... bem, ao princípio ninguém
queria acreditar nela. Ainda era quase impossível admitir que Evelyn
pudesse ter passado, da noite para o dia, da nossa sociedade local para
celebridade de «A Marcha do Tempo», mas agora também o Sandy? Não
era suficientemente inverosímil a sua pregação a favor de Lindbergh em
caves de sinagogas? Não podia, simplesmente, ser verdade, insistia o meu
pai – querendo com isso significar que não devia ser assim, que,
credibilidade à parte, era demasiado repugnante para ser verdade. «Isto só
prova», disse ele ao meu irmão, «que a tua tia está maluca.»
E talvez estivesse, talvez tivesse endoidecido temporariamente devido a
uma noção exagerada da sua recém-descoberta importância. De que outra
maneira poderia ela ter encontrado a audácia para solicitar um convite para
o sobrinho de catorze anos assistir a um acontecimento tão importante? De
que outra maneira poderia ter convencido o rabi Bengelsdorf a fazer um
pedido tão estranho à Casa Branca, a não ser insistindo, com a teimosia
tenaz de uma excêntrica em ascensão? O meu pai falou-lhe pelo telefone, o
mais calmamente que conseguiu. «Basta desta idiotice, Evelyn. Nós não
somos pessoas importantes. Deixa-nos em paz, por favor. Já basta o que
uma pessoa comum tem de suportar, sem esses disparates.» Mas o empenho
da minha tia em libertar um sobrinho excepcional das limitações da
insignificância de um cunhado (para que ele pudesse, como ela,
desempenhar um papel proeminente na sociedade) tornara-se entretanto
inexpugnável. Sandy tinha de ir ao jantar como um testemunho do êxito do
Just Folks, tinha de comparecer como, nada mais nada menos, o
representante a nível nacional do Just Folks, e nenhum pai do gueto iria
impedi-lo – nem impedi-la. Meteu-se no carro e, passados quinze minutos,
deu-se o ajuste de contas.
Depois de desligar, o meu pai não fez nada para ocultar a sua indignação,
e a sua voz, subiu, subiu como se ele fosse o tio Monty.
– Na Alemanha, Hitler tem, pelo menos, a decência de proibir a entrada
de judeus no Partido Nazi. Isso e as braçadeiras, isso e os campos de
concentração, e pelo menos é evidente que porcos judeus não são bem-
vindos. Mas aqui os nazis fingem convidar os judeus para entrar. E porquê?
Para os sossegarem e adormecerem. Para os adormecerem com o sonho
ridículo de que tudo na América é um mar de rosas. Mas isto? – gritou. –
Isto? Convidarem-nos para apertar a mão suja de sangue de um criminoso
nazi? É inacreditável! Não param um instante de mentir e maquinar!
Descobrem o melhor rapaz, o mais talentoso, o mais trabalhador, o que
melhor cresce... Não! Já zombaram de nós o suficiente com o que estão a
fazer ao Sandy! Ele não vai a lado nenhum! Já roubaram o meu país... não
vão roubar-me o meu filho!»
– Mas ninguém está a zombar de ninguém! – protestou Sandy. – Isto é
uma grande oportunidade, – «Para um oportunista», pensei eu, mas mantive
a boca fechada.
– Cala-te – disse-lhe o meu pai, apenas isso, e a severidade serena da sua
voz foi mais eficaz do que a cólera, para que Sandy compreendesse que se
encontrava à beira da pior hora da sua vida.
A tia Evelyn estava a bater à porta e a minha mãe levantou-se para lhe
abrir a porta das traseiras.
– O que pretende agora essa mulher? – perguntou o meu pai. – Disse-lhe
que nos deixasse em paz e em vez disso ela aparece, feita doida!
A minha mãe não discordava absolutamente nada da resolução do meu
pai, mas olhou-o de modo suplicante, quando saía da cozinha, na esperança
de conseguir convencê-lo a mostrar-se um bocadinho clemente, por muito
pouco merecedora de clemência que Evelyn fosse, devido à atrevida
estupidez com que explorara o entusiasmo de Sandy.
A tia Evelyn estava estupefacta (ou fingia estar) com a incapacidade de os
meus pais compreenderem o que significava para um rapaz da idade de
Sandy ser convidado para a Casa Branca, o que significaria para o seu
futuro ter sido convidado para jantar na Casa Branca... «A Casa Branca não
me impressiona!», gritou o meu pai, dando um murro na mesa para a fazer
calar-se, depois de a ter ouvido dizer «a Casa Branca» pela décima quinta
vez. «Estou apenas impressionado com quem lá vive. E a pessoa que lá vive
é um nazi!» «Ele não é nazi!», insistiu Evelyn. «E quererás dizer-me que
Herr Ribbentrop também não é nazi?» Em resposta, ela classificou o meu
pai de medroso, provinciano, inculto, estreito de ideias... e ele mimoseou-a
com epítetos como irracional, crédula e arrivista social... e a zaragata
prosseguiu, inflamada, de um lado e outro da mesa, com cada um a soltar
acusações violentas, para aumentar a fúria do outro, até que uma coisa que a
tia Evelyn disse – uma coisa até relativamente branda, na verdade, a
respeito dos cordelinhos que o rabi Bengelsdorf puxara em benefício de
Sandy – foi mais um disparate que fez transbordar a taça do meu pai e o
levou a levantar-se da mesa e mandá-la embora. Saiu da cozinha para o
vestíbulo das traseiras, onde abriu a porta para a escada, e daí disse-lhe:
«Vai-te embora. Sai. E não voltes. Nunca mais quero voltar a ver-te nesta
casa.»
Ela não podia acreditar naquilo, e nós também não. Parecia-me uma
brincadeira, uma frase lançada num filme de Abbot e Costello. Sai,
Costello. Se vais portar-te dessa maneira, deixa esta casa e não voltes nunca
mais.
A minha mãe levantou-se de onde os três adultos tinham estado a tomar
chá e seguiu o meu pai para o vestíbulo.
– A mulher é uma idiota, Bess – disse-lhe o meu pai –, uma idiota infantil
que não compreende nada. Uma idiota perigosa.
– Fecha a porta, por favor – pediu-lhe a minha mãe.
– Evelyn – insistiu ele. – Já. Imediatamente. Sai.
– Não faças isso – murmurou a minha mãe.
– Estou à espera de que a tua irmã saia da nossa casa.
– Da nossa casa – replicou a minha mãe, e voltou para a cozinha. – Ev,
vai para casa – disse baixinho –, para que tudo possa serenar.
A tia Evelyn tinha o rosto na mesa, escondido nas mãos. A minha mãe
pegou-lhe no braço, levantou-a e conduziu-a para a porta da cozinha e para
fora de casa. A nossa obstinada e exuberante tia parecia ter sido atingida por
uma bala e estar a ser transportada para morrer.
A seguir, ouvimos o meu pai bater com a porta.
–A mulher pensa que é uma festa – disse-nos, ao Sandy e a mim, quando
nos dirigimos para o vestíbulo para observarmos as consequências do
combate. – Pensa que é uma brincadeira. Vocês estiveram no Newsreel
Theater, eu levei-os lá, rapazes. Sabem o que lá viram.
– Sim – disse eu, pois achava que tinha de dizer alguma coisa, visto o
meu irmão se recusar a falar. Ele suportara estoicamente o ostracismo a que
Alvin o votara, suportara estoicamente o Newsreel Theater, e agora estava a
suportar estoicamente a expulsão da sua tia preferida – já desavindo, aos
catorze anos, com os teimosos homens da família, estava decidido a fazer
frente a tudo.
– Pois bem – declarou o meu pai, – não é uma brincadeira. É uma luta.
Uma luta, lembrem-se disso!
Voltei a dizer que sim.
– Lá fora, no mundo...
Mas chegado a este ponto calou-se. A minha mãe não voltara. Eu tinha
nove anos e pensei que ela nunca mais voltaria. E é possível que o meu pai,
com quarenta e um, também pensasse o mesmo: o meu pai, a quem as
atribulações tinham libertado de muitos medos, não estava livre do medo de
perder a sua querida mulher. A catástrofe deixara de estar longe do
pensamento de todos, e ele olhava para os filhos como se, de repente,
tivéssemos ficado tão privados de uma mãe como Earl Axman ficara na
noite em que Mrs. Axman tivera o esgotamento nervoso. Quando o meu pai
foi à sala para olhar pelas janelas da frente, Sandy e eu fomos logo atrás
dele. O carro da tia Evelyn já não estava estacionado junto ao passeio. E a
minha mãe não estava parada no passeio, nem à entrada da porta, nem na
travessa e nem sequer do outro lado da rua – e também não estava na cave
quando o meu pai correu pela escada abaixo a chamá-la. Nem com Seldon e
a sua mãe. Eles estavam a jantar na sua cozinha quando o meu pai lhes
bateu à porta e nos mandaram entrar aos três.
– Viu a Bess? – perguntou o meu pai a Mrs. Wishnow.
Mrs. Wishnow era uma mulher corpulenta, alta e desajeitada, que
costumava andar com os punhos cerrados e que, o que me surpreendia
sobremaneira, diziam ter sido uma rapariga risonha e bem-humorada
quando o meu pai a conhecera, a ela e à sua família, no Third Ward, antes
da Grande Guerra. Agora que era, ao mesmo tempo, mãe e ganha-pão da
família, os meus pais estavam constantemente a elogiar os seus esforços
ilimitados a favor de Seldon. Que a sua vida era um luta constante, era
incontestável: bastava olhar para os seus punhos.
– O que aconteceu? – perguntou ao meu pai.
– A Bess não está aqui?
Seldon levantou-se da mesa da cozinha para nos vir falar. Desde o
suicídio do seu pai, a minha aversão por ele crescera e ao fim do dia
escondia-me nas traseiras da escola quando sabia que ele estava na frente, à
espera, para ir comigo para casa. E embora morássemos apenas a um curto
quarteirão da escola, de manhã eu descia a escada em bicos de pés e saía
quase quinze minutos antes de ser necessário, só para o evitar. Mas depois,
ao fim da tarde encontrava-o inevitavelmente, mesmo que me encontrasse
na outra extremidade da Chancellor Avenue. Saía para fazer um recado, e lá
estava Seldon nos meus calcanhares, a fingir que se tratava de mero acaso.
E sempre que ele aparecia para tentar ensinar-me a jogar xadrez, eu fingia
que não estava em casa e não abria a porta. Se a minha mãe estava, tentava
persuadir-me a jogar com ele, lembrando-me precisamente aquilo que eu
queria esquecer: «O pai dele era um excelente jogador de xadrez. Há anos,
foi campeão na Y. Ensinou o Seldon e agora que ele não tem com quem
jogar, quer jogar contigo.» E eu dizia-lhe que não gostava do jogo, não o
compreendia e não sabia como se jogava, mas por fim não tinha outro
remédio, e Seldon aparecia com o tabuleiro e as peças de xadrez, eu
sentava-me defronte dele à mesa da cozinha e ele começava logo a lembrar-
me que o seu pai fizera o tabuleiro e arranjara as peças. «Foi a Nova Iorque,
sabia exactamente onde procurar e encontrou as peças certas. Não são
bonitas? São feitas de madeira especial. E foi ele que fez este tabuleiro.
Arranjou a madeira adequada e cortou-a... vês como as cores são
diferentes?» E a única maneira que eu encontrava para o impedir de
continuar a falar eternamente do seu pai morto de modo tão aterrador era
bombardeá-lo com as últimas anedotas indecentes que ouvira na escola.
Quando voltámos para cima, pensei que agora o meu pai casaria com
Mrs. Wishnow e que uma noite, em breve, carregaríamos os três as nossas
coisas pela escada das traseiras e iríamos morar com ela e com Seldon, e
que na ida para a escola, assim como no regresso, nunca mais haveria
qualquer maneira de evitar Seldon e a sua incessante necessidade de
procurar amparo em mim. E depois, em casa, eu teria de pendurar o meu
casaco no roupeiro onde o pai de Seldon se enforcara. Sandy dormiria na
marquise dos Wishnow, como dormira na nossa quando Alvin morava
connosco, e eu dormiria no quarto das traseiras ao lado de Seldon, enquanto
no outro quarto o meu pai dormiria onde o pai dele costumara dormir, ao
lado da mãe dele e dos seus punhos cerrados.
Apetecia-me ir para a esquina, meter-me num autocarro e desaparecer.
Ainda tinha os vinte dólares de Alvin escondidos na biqueira de um sapato,
no fundo do meu armário. Tirava o dinheiro, metia-me num autocarro,
apeava-me na Penn Station e comprava um bilhete só de ida para o comboio
de Filadélfia. Aí procuraria o Alvin e nunca mais viveria com a minha
família. Ficaria com o meu primo e cuidaria do seu coto.
A minha mãe ligou para casa depois de ter metido a tia Evelyn na cama.
O rabi Bengelsdorf estava em Washington, mas falara com a tia Evelyn pelo
telefone e depois com a minha mãe, assegurando-lhe que ela sabia melhor
do que o burro do marido o que era e não era do interesse dos judeus. A
maneira como Herman tratara Evelyn não seria esquecida, declarou,
sobretudo depois de todos os esforços que ele próprio fizera a favor do
sobrinho dela, a pedido de Evelyn. O rabi rematou dizendo à minha mãe
que no momento oportuno seria tomada a atitude adequada.
Cerca das dez horas, o meu pai foi buscar a minha mãe e trouxe-a para
casa de carro. Sandy e eu já estávamos em pijama quando ela entrou no
quarto, se sentou na minha cama e me pegou na mão. Nunca a tinha visto
tão exausta – não completamente esgotada como Mrs. Wishnow, mas nada
que se parecesse com a mãe incansável e repleta de contentamento que
costumava viver cheia de energia dentro da sua pele, no tempo em que as
suas preocupações eram apenas as de poder sustentar a família com os
menos de cinquenta dólares que o marido trazia semanalmente para casa.
Um emprego no centro da cidade, uma casa para governar, uma irmã
tempestuosa, um marido determinado, um filho de catorze anos teimoso e
outro, de nove anos, apreensivo – mas nem a enxurrada simultânea de todas
estas preocupações, com todas as suas severas exigências, teriam de ser
excessivamente esmagadoras para uma mulher tão desembaraçada e
expedita se não houvesse, também, Lindbergh.
– Sandy, o que vamos fazer? – perguntou ela. – Precisarei de te explicar
por que motivo o pai não acha que devas ir? Podemos fazer isso juntos,
calmamente? Chegará uma altura em que teremos de discutir tudo até ao
fim. Só tu e eu, juntos. Às vezes o pai perde os trambelhos, mas eu não
perco, como sabes. Podes confiar em mim para te ouvir. Mas precisamos de
ter alguma perspectiva acerca do que está a passar-se. Porque talvez não
seja, de facto, bom para ti deixares-te arrastar ainda mais para uma coisa
como esta. Talvez a tia Evelyn tenha cometido um erro. Ela empolga-se de
mais, querido. Toda a vida foi assim. Acontece uma coisa fora do vulgar, e
ela perde toda a perspectiva. O pai pensa... Posso continuar, querido, ou
queres dormir?
– Faça como quiser – respondeu Sandy, secamente. –
Continue – pedi eu.
A minha mãe sorriu-me.
– Porquê? O que queres saber?
– Por que razão está tanta gente a gritar tanto.
– Porque toda a gente vê as coisas de maneira diferente. – Deu-me um
beijo de boas-noites e acrescentou: – Porque estão todos muito
preocupados. – Mas quando se inclinou para a cama de Sandy, para o beijar,
ele virou a cara na almofada.

Geralmente, o meu pai saía para trabalhar antes de Sandy e eu estarmos


acordados, e a minha mãe levantava-se cedo pata tomar o pequeno-almoço
com ele e preparar as sanduíches do nosso almoço, embrulhá-las em papel
encerado e metê-las no frigorífico, antes de sair ela própria para o trabalho
depois de verificar que estávamos os dois prontos para ir para a escola. No
dia seguinte, porém, o meu pai não saiu para o trabalho antes de ter uma
oportunidade de esclarecer Sandy acerca do motivo por que ele não ia à
Casa Branca e não voltaria a participar em nenhum dos programas
patrocinados pelo GAA.
– Esses amigos de von Ribbentrop – explicou a Sandy – não são amigos
nossos. Cada plano sujo que Hitler impingiu à Europa e cada mentira
nojenta que ele disse a outros países passaram pela boca de Mr. von
Ribbentrop. Um dia, estudarás o que aconteceu em Munique. Estudarás o
papel que Mr. von Ribbentrop desempenhou para convencer Mr.
Chamberlain a assinar um tratado que não valia o papel em que foi escrito.
Lê o PM a respeito desse homem. Ouve Winchell a respeito desse homem.
O ministro dos Estrangeiros von Ribbensenobe, como lhe chama Winchell.
Sabes como ganhava ele a vida antes de a guerra rebentar? Vendia
champanhe. Era um vendedor de bebidas alcoólicas, Sandy. Um trafulha:
um plutocrata, um ladrão e um trafulha. Até o «von» do seu nome é falso.
Mas tu não sabes nada disso. Tu não sabes nada a respeito de von
Ribbentrop, não sabes nada a respeito de Göring, não sabes nada a respeito
de Goebbels, e Himmler, e Hess. Mas eu sei. Alguma vez ouviste falar do
castelo na Áustria onde Herr von Ribbentrop dá de comer e beber aos
restantes criminosos nazis? Sabes como ele o obteve? Roubou-o. Himmler
mandou para um campo de concentração o nobre que era seu proprietário e
agora o castelo é propriedade do vendedor de bebidas alcoólicas. Sabes o
que é o Tratado de Versalhes? Já ouviste falar do Mein Kampf? Pergunta a
Mr. von Ribbentrop; ele diz-te. E eu também te digo, mas não do ponto de
vista nazi. Eu acompanho as coisas, eu leio coisas e eu sei quem estes
criminosos são, filho. E não vou permitir-te que te aproximes sequer deles.
– Nunca lhe perdoarei isto – respondeu Sandy.
– Perdoarás, sim – interveio a minha mãe. – Um dia, compreenderás que
aquilo que o pai quer para ti é apenas o que mais te convém. Ele tem razão,
querido, acredita em mim... não tens nada que ver com tal gente. Eles estão
só a usar-te como seu instrumento.
– A tia Evelyn? – perguntou Sandy. – A tia Evelyn está a transformar-me
num «instrumento»?
– Está – confirmou a minha mãe, tristemente.
– Não! Isso não é verdade! Lamento, mas não posso atraiçoar a tia
Evelyn.
– A tua tia Evelyn é que nos traiu – disse o meu pai. – Just Folks! –
acrescentou, desdenhosamente. – O único objectivo desses ditos Just Folks
é transformar crianças judias numa quinta coluna e voltá-las contra os seus
pais.
– Treta! – exclamou Sandy.
– Pára com isso! – ordenou a minha mãe. – Pára imediatamente com isso.
Já deste conta de que somos a única família deste quarteirão a passar por
uma coisa destas? A única família de todo este bairro. Nesta altura, já todos
os outros aprenderam a continuar a viver como viviam antes das eleições e
a esquecer quem o presidente é. E isso é o que nós também vamos fazer.
Aconteceram coisas más, mas já passaram. O Alvin foi-se embora e agora a
tia Evelyn também, e tudo vai voltar ao normal.
– E quando é que nos mudamos para o Canadá, por cauda da vossa mania
da perseguição? – perguntou Sandy.
O meu pai disse-lhe, de dedo espetado:
– Não imites a estúpida da tua tia. Não voltes a responder-me dessa
maneira, nunca mais.
– O pai é um ditador – disse-lhe Sandy –, é um ditador pior do que o
Hitler.
Porque cada um dos meus pais fora criado numa família onde um pai
imigrado não hesitava em disciplinar os filhos de acordo com os métodos
coercivos tradicionais do seu país, eles eram pessoalmente incapazes de
bater em Sandy ou em mim e desaprovavam a aplicação do castigo corporal
fosse a quem fosse. Consequentemente, a única coisa que o meu pai fez, ao
ser-lhe dito por um filho que era pior do que Hitler, foi virar as costas,
desgostoso, e sair para o trabalho. Mas, mal saíra pela porta das traseiras, a
minha mãe levantou a mão e, para meu espanto, deu uma boa bofetada em
Sandy.
– Sabes o que o teu pai acaba de fazer por ti? – gritou-lhe. – Ainda não
compreendes o que tu estavas prestes a fazer a ti próprio? Acaba o pequeno-
almoço e vai para a escola. E quero-te aqui em casa quando as aulas
terminarem. O teu pai ditou a lei; é melhor que lhe obedeças.
Ele nem estremeceu quando ela lhe bateu, e depois, todo cheio de
resistência, tratou de reforçar o seu heroísmo dizendo-lhe, atrevidamente:
– Irei à Casa Branca com a tia Evelyn. Não me importa que vocês, judeus
do gueto, gostem ou não.
Para agravar a hediondez da manhã, para aumentar a implausibilidade, de
pôr os nervos em franja, de toda aquela discussão, ela fê-lo pagar por inteiro
o seu desafio filial aplicando-lhe segunda bofetada, e desta vez ele desfez-
se em lágrimas. E se tal não acontecesse a nossa prudente mãe teria
levantado a sua branda e bondosa mão maternal e repetido a dose uma
terceira, uma quarta e uma quinta vez. «Ela não sabe o que está a fazer, ela
é outra pessoa... todos somos», pensei, e agarrei nos livros escolares e corri
pela escada das traseiras abaixo até à travessa e daí para a rua – e, como se
o dia não fosse já suficientemente horrendo, Seldon estava à minha espera
na entrada principal, para me acompanhar até à escola.

No caminho do trabalho para casa, duas semanas depois, o meu pai parou
no Newsreel Theater para apanhar a cobertura filmada do jantar de von
Ribbentrop. Foi então que soube por Shepsie Tirschwell, a quem visitou na
cabina de projecção depois do espectáculo, que no primeiro de Junho o seu
velho amigo de juventude partiria para Winnipeg com a mulher, os três
filhos, a mãe e os pais idosos da mulher. Representantes da pequena
comunidade judaica em Winnipeg tinham ajudado Mr. Tirschwell a arranjar
trabalho como projeccionista num cinema de bairro de lá e haviam alugado
apartamentos para toda a família num modesto bairro judeu muito parecido
com o nosso. Os canadianos tinham igualmente arranjado um empréstimo
com juros baixos para custear a mudança de Tirschwell da América e ajudar
os sogros até Mrs. Tirschwell arranjar um emprego em Winnipeg que lhe
permitisse pagar as despesas dos pais. Ele disse ao meu pai que lhe custava
muito deixar a sua cidade natal e os seus queridos velhos amigos, e que,
evidentemente, lamentava abandonar o seu emprego singular no cinema
mais importante de Newark. Ia deixar muito e perder muito, mas graças a
toda a quantidade de película não montada, filmada por equipas de
cinenoticiários à volta do mundo, que vira nos últimos anos, estava
convencido de que o lado secreto do pacto firmado nas Islândia entre
Lindbergh e Hitler, em 1941, estipulava que Hitler derrotaria primeiro a
União Soviética, depois invadiria e conquistaria a Inglaterra, e só depois
disso (e depois de os Japoneses terem invadido a China, a Índia e a
Austrália, completando assim a sua «Nova Ordem na Grande Ásia) o
presidente americano estabeleceria a «Nova Ordem Fascista Americana»,
uma ditadura totalitária nos moldes da hitleriana, que prepararia o cenário
para a última grande luta continental: a invasão, conquista e nazificação
alemã da América do Sul. Dois anos depois, com a suástica de Hitler a
flutuar nas câmaras do Parlamento de Londres, o Sol Nascente desfraldado
sobre Sydney, Nova Deli e Pequim e Lindbergh eleito para a presidência
durante mais quatro anos, a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá
seria encerrada, as relações diplomáticas entre os dois países cortadas e,
para concentrar os Americanos no grave perigo interno que obrigaria à
redução dos seus direitos constitucionais, seria desencadeado o ataque em
massa contra os quatro milhões e meio de judeus da América.
Na esteira da visita de von Ribbentrop a Washington – e do triunfo que
representou para os mais perigosos apoiantes americanos de Lindbergh –,
era esta a previsão de Mr. Tirschwell, uma previsão mais pessimista do que
tudo quanto o meu pai previa, que ele resolveu não no-la repetir nem
mesmo, quando regressou a casa para jantar vindo do Newsreel Theater ao
princípio da noite, dizer alguma coisa acerca da iminente partida do amigo,
convencido de que as notícias me aterrorizariam, irritariam Sandy e poriam
a minha mãe a clamar para que emigrássemos imediatamente. Desde a
tomada de posse de Lindbergh, ano e meio atrás, calculava-se que apenas
duzentas a trezentas famílias judias tinham fixado residência permanente no
refúgio do Canadá: os Tirschwell eram os primeiros fugitivos desse tipo que
o meu pai conhecia pessoalmente, e ter sido posto ao corrente da sua
decisão deixara-o abalado.
Depois veio o choque de ver, em filme, o nazi von Ribbentrop e a sua
mulher calorosamente saudados no pórtico da Casa Branca pelo presidente
e por Mrs. Lindbergh. E o choque de ver todos os eminentes convidados
descerem das suas limusinas, sorrindo de antemão da perspectiva de
jantarem e dançarem na presença de von Ribbentrop – e entre os
convidados, aparentemente não menos emocionados do que os outros pelo
repugnante acontecimento, o rabi Lionel Bengelsdorf e Miss Evelyn Finkel.
«Não pude acreditar», disse o meu pai. «O sorriso na cara dela tinha um
quilómetro de comprimento. E o futuro marido? Parecia julgar que o jantar
era em sua honra. Só queria que vissem aquele homem, a inclinar a cabeça
a toda a gente como se tivesse, realmente, importância!» «Mas porque
foste», perguntou a minha mãe, «se sabias que ficarias transtornado desta
maneira?» «Fui porque todos os dias faço a mim próprio a mesma pergunta:
Como pode uma coisa destas estar a acontecer na América? Como podem
pessoas destas governar o nosso país? Se não tivesse visto com os meus
próprios olhos, pensaria que estava a ter alucinações.»
Embora mal tivéssemos começado a jantar, Sandy pousou os talheres e
resmungou: «Mas não está a acontecer nada na América, nada», e levantou-
se da mesa – e não era a primeira vez que isso acontecia desde que a minha
mãe o esbofeteara. Agora, às refeições, bastava a mínima referência às
notícias para Sandy se levantar e, sem qualquer explicação ou pedido de
desculpa, desaparecer no nosso quarto e fechar a porta. Nas primeiras
vezes, a minha mãe levantou-se, foi atrás dele e entrou para falar com ele e
convidá-lo a voltar para a mesa, mas Sandy sentava-se à sua secretária a
afiar um crayon ou a rabiscar com ele no caderno de desenho até ela o
deixar em paz. O meu irmão nem sequer falava comigo quando, levado por
pura solidão, me atrevia a perguntar-lhe quanto tempo mais ia continuar a
proceder assim. Comecei a pensar se ele não seria capaz de pegar nas suas
coisas e sair de casa, não para a da tia Evelyn, mas para ir viver com os
Mawhinney na sua quinta no Kentucky. Mudaria o nome para Sandy
Mawhinney e nunca mais voltaríamos a vê-lo, assim como não voltaríamos
a ver Alvin. E ninguém precisava de se incomodar a raptá-lo; ele fá-lo-ia
pessoalmente, entregar-se-ia aos cristãos para nunca mais ter nada que ver
com judeus. Ninguém precisava de o raptar, porque Lindbergh já o raptara,
juntamente com todos os outros!
O comportamento de Sandy transtornava-me tanto que, à noite, passei a
fazer os trabalhos de casa fora da vista dele, na mesa da cozinha. Foi por
isso que acabei por escutar o meu pai – que estava na sala com a minha
mãe, a ler o jornal da tarde, enquanto Sandy permanecia em insolente
reclusão nas traseiras da casa – a lembrar-lhe que a nossa perturbação
familiar era exactamente o tipo de discórdia que os anti-semitas de
Lindbergh tinham esperado fomentar entre pais judeus e os seus filhos, com
programas como o Just Folks. Compreender isso, porém, só fortalecera a
sua resolução de não imitar Shepsie Tirschwell e partir.
– Do que estás a falar? – perguntou a minha mãe. – Queres dizer que os
Tirschwell vão para o Canadá?
– Sim, em Junho.
– Porquê? Porquê em Junho? O que vai acontecer em Junho? Quando é
que soubeste isso? Porque não disseste nada?
– Porque sabia que ficarias transtornada.
– E fiquei... como querias que não me transtornasse? Porquê, Herman,
por que motivo vão eles partir em Junho? – exigiu saber.
– Porque, na opinião do Shepsie, chegou o momento. Não vamos discutir
o assunto – pediu o meu pai, baixinho. – O miúdo está na cozinha e já anda
suficientemente assustado. Se o Shepsie acha que chegou o momento, essa
é a sua decisão, para ele e para a sua família, e desejo-lhe sorte. Ele passa
horas e horas sentado a ver as últimas notícias. As notícias são a vida do
Shepsie, e como as notícias são terríveis afectam a sua maneira de pensar e
ele chegou a esta decisão.
– O homem chega a esta decisão – observou a minha mãe – porque é
informado.
– Eu também sou informado – replicou ele, asperamente. – Não sou
menos informado do que ele... mas acabo de chegar a uma conclusão
diferente. Não compreendes que estes pulhas anti-semitas querem que
fujamos? Querem que os judeus fiquem tão fartos de tudo que se vão
embora de vez, e depois os góis terão este maravilhoso país só para eles.
Pois bem, eu tenho uma ideia melhor. Porque não se vão eles embora? A
cambada toda... por que não vão viver sob o domínio do seu Führer na
Alemanha nazi? Então, sim, nós teremos um país maravilhoso! Olha, Bess,
o Shepsie pode fazer o que considerar certo, mas nós não vamos para lugar
nenhum. Ainda há um Supremo Tribunal neste país. Graças a Franklin
Roosevelt, é um Supremo Tribunal liberal e existe para zelar pelos nossos
direitos. Há o juiz do Supremo, Douglas. Há o juiz do Supremo,
Frankfurter. Há o juiz do Supremo, Murphy, e o juiz do Supremo, Black.
Eles estão lá para fazer cumprir a lei. Ainda há homens bons neste país. Há
o Roosevelt, há o Ickes, há o mayor La Guardia. Em Novembro realizam-se
as eleições para o Congresso. Ainda há a urna de voto e as pessoas ainda
podem votar sem ninguém lhes dizer o que devem fazer.
– E em quem votarão elas? – perguntou a minha mãe, e respondeu
imediatamente à sua própria pergunta: – O povo americano votará e os
Republicanos ficarão ainda mais fortes.
– Fala baixo. Tenta falar baixo, está bem? Em Novembro saberemos os
resultados e, então, haverá tempo para decidir o que faremos.
– E se não houver tempo?
– Haverá. Por favor, Bess, isto não pode continuar assim todas as noites!
E foi dele a última palavra, embora provavelmente tenha sido devido
apenas ao facto de eu estar a fazer os trabalhos de casa na cozinha que a
minha mãe fez um esforço e não disse mais nada.
No dia seguinte, logo depois das aulas, desci a Chancellor Avenue, virei
para Clinton Place e depois deixei para trás a escola secundária, segui até
onde me pareceu haver menos probabilidades de alguém me reconhecer e
esperei por um autocarro para o centro, para o Newsreel Theater. Vira os
horários no jornal, na véspera à noite. Havia um programa de uma hora
inteira que começava aos cinco minutos para as quatro, o que significava
que poderia apanhar o autocarro da carreira 14 das cinco horas na paragem
da Broad Street, no lado oposto do cinema, e chegar a casa a horas para
jantar, ou até mais cedo, dependendo de quando von Ribbentrop fosse
introduzido no programa. Fosse como fosse, tinha de ver a tia Evelyn na
Casa Branca, não porque, como os meus pais, estivesse apavorado e
indignado com o que ela estava a fazer, mas porque o simples facto de ela lá
ter ido me parecia mais extraordinário do que qualquer outra coisa que
pudesse acontecer a um membro da nossa família – excepto, evidentemente,
o que tinha acontecido ao Alvin.
NAZI IMPORTANTE CONVIDADO DA CASA BRANCA – eis o título
a letras pretas escrito de lado a lado do toldo triangular do cinema, e além
do facto de me encontrar no centro da cidade sem o meu irmão, Earl Axman
ou um dos meus pais, senti-me tremendamente delinquente quando me
aproximei do guiché da bilheteira e pedi um bilhete.
– O quê, sem a companhia de um adulto? Não, senhor – disse a mulher
que vendia os bilhetes,
– Sou órfão – respondi-lhe. – Vivo no orfanato da Lyons Avenue. A irmã
mandou-me escrever um relatório acerca do presidente Lindbergh.
– Onde está a autorização?
Eu escrevera uma cuidadosamente, no autocarro, usando uma folha em
branco do meu livro de apontamentos, e estendi-lha pela abertura por onde
se passava o dinheiro. Estava redigida nos termos que a minha mãe usava
para as saídas da escola, com a diferença de que a assinatura era: «Irmã
Mary Catherine, St. Peter’s Orphanage.» A mulher olhou-a sem a ler e
depois fez-me sinal para passar o dinheiro. Dei-lhe uma das notas de dez
dólares de Alvin – uma nota gorda para um miúdo da minha idade e ainda
muito mais para um órfão do St Peter’s –, mas ela estava apressada e
passou-me os nove dólares e cinquenta cêntimos de troco, mais um bilhete,
sem qualquer objecção. Não me devolveu, porém, a autorização. «Preciso
disso», disse-lhe. «Desanda, meu filho», respondeu-me impacientemente, e
fez-me sinal para dar lugar às pessoas que ainda estavam na bicha para o
espectáculo seguinte.
Entrei precisamente quando as luzes se apagaram, a música marcial soou
e o filme começou a correr. Como, aparentemente, todos os homens de
Newark (o cinema atraía muito poucas mulheres) queriam dar uma olhadela
ao inverosímil convidado da Casa Branca, a sala estava cheia para aquela
sessão do fim da tarde de sexta-feira e o único lugar vago que consegui
encontrar ficava lá para trás, no balcão – quem quer que entrasse agora teria
de ficar de pé, atrás da última fila. Apoderou-se de mim uma grande
agitação, não só por ter conseguido safar-me com uma coisa que não se
esperaria de mim, mas também porque, envolto no fumo das centenas de
cigarros e no odor extravagante de charutos de cinco cêntimos, me sentia
profundamente mergulhado na magia viril de um rapaz a fazer-se passar por
homem entre homens.
Britânicos desembarcam em Madagáscar para retomar base naval
francesa.
Pierre Laval, chefe do Governo francês de Vichy, denuncia a operação
britânica como um «acto de agressão».
RAF bombardeia Estugarda pela terceira noite consecutiva.
Caças britânicos travam feroz combate aéreo sobre Malta. Exército
alemão retoma ataque à URSS na península de Kerch.
Mandalay cai em poder do exército japonês na Birmânia. Exército
japonês desencadeia nova investida nas selvas da Nova Guiné.
Exército japonês marcha da Birmânia para a província chinesa de Iunão.
Guerrilheiros chineses atacam a cidade de Cantão, matando quinhentos
soldados nipónicos.
Uma multitude de capacetes, uniformes, armas, edifícios, portos, praias,
flora, fauna – rostos humanos de todas as raças –, mas, tirando isso, o
mesmo inferno, repetidamente, o inultrapassável mal de cujos horrores os
Estados Unidos, entre todas as grandes nações, era o único país a ser
poupado. Imagem após imagem de desgraça infinita: os morteiros a
rebentar, os soldados de infantaria a correr, dobrados, fuzileiros com
espingardas levantadas a vadear na costa, aviões lançando bombas, aviões
explodindo e caindo em parafuso para terra, as sepulturas colectivas, os
capelães ajoelhados, as cruzes improvisadas, os navios a afundar-se, os
marinheiros a afogar-se, o mar em chamas, as pontes destroçadas, o
bombardeamento de tanques, hospitais alvejados partidos em dois, colunas
de chamas subindo em espiral de reservatórios de petróleo bombardeados,
prisioneiros encurralados num mar de lama, maqueiros transportando
troncos vivos, civis trespassados por baionetas, bebés mortos, corpos
decapitados borbotando sangue...
E depois a Casa Branca. Um crepuscular anoitecer primaveril. Sombras a
projectarem-se em diagonal no relvado. Arbustos a desabrochar. Arvores a
florir. Limusinas conduzidas por motoristas de libré e toda a gente a sair
delas formalmente vestida. Na entrada de mármore, para lá das portas
abertas do pórtico, um conjunto de cordas tocava a canção mais célebre do
ano passado, «Intermezzo», popularizada a partir de um tema de Tristão e
Isolda de Wagner. Sorrisos amáveis. Riso sereno. O presidente, esbelto,
amado, atraente. Ao lado dele, a poetisa talentosa, aviadora ousada e
elegante socialite mãe do filho assassinado de ambos. O convidado de
honra, loquaz, de cabelo prateado. A elegante esposa nazi no seu comprido
vestido de cetim. Palavras de boas-vindas, ditos espirituosos, e o galante
cavalheiro do Velho Mundo, impregnado da teatralidade da corte real e
parecendo soberbo no seu traje de noite, beijando garbosamente a mão da
primeira-dama.
Não fora a Cruz de Ferro, concedida ao ministro dos Estrangeiros pelo
seu Führer, e que lhe adornava a algibeira poucos centímetros abaixo do
lenço de seda impecavelmente posto, e pareceria uma contrafacção tão
persuasivamente civilizada quanto a astúcia humana podia conceber.
Ah, e lá estavam a tia Evelyn e o rabi Bengelsdorf, passando pela guarda
de fuzileiros, transpondo a porta e desaparecendo!
Não podiam ter permanecido no ecrã nem três segundos, mas isso bastou
para que o resto das notícias nacionais e dos apontamentos desportivos do
fecho se tornassem incompreensíveis para mim e eu ficasse a desejar que a
película fosse remoinhada até ao momento em que a minha tia se
materializou, refulgente com as pedras preciosas anteriormente propriedade
da falecida mulher do rabi. Entre as muitas improbabilidades que as
câmaras fixaram como irrefutavelmente reais, o vergonhoso triunfo da tia
Evelyn foi para mim a menos real de todas.
Quando a sessão terminou e as luzes se acenderam, encontrava-se de pé
na coxia, a movimentar a lanterna eléctrica, um arrumador fardado.
– Tu – disse. – Vem comigo.
Conduziu-me pelo meio da multidão que estava a sair, entrou comigo por
uma porta que abriu com uma chave e depois levou-me por uma escada
estreita e íngreme acima que reconheci de quando ali fora levado, com
Sandy, para vermos as manifestações de Madison Square Garden sobre von
Ribbentrop.
– Que idade tens? – perguntou-me o arrumador.
– Dezasseis anos.
– Essa á boa. Guarda-a bem guardada, miúdo, e ainda arranjas mais
encrencas.
– Agora tenho de ir, se não perco o autocarro para casa.
– Vais perder muito mais do que isso.
Bateu com força à famosa porta à prova de som de acesso à cabina de
projecção de Mr. Tirschwell, que nos mandou entrar.
Tinha na mão o bilhete da irmã Mary Catherine.
– Não sei como posso deixar de mostrar isto aos teus pais – disse-me ele.
– Foi só uma brincadeira.
– O teu pai vem-te buscar. Telefonei para o seu escritório e disse-lhe que
estavas aqui.
– Muito obrigado – agradeci, com toda a delicadeza com que fora
ensinado a dizê-lo.
– Senta-te, por favor.
– Mas foi só uma brincadeira – repeti.
Mr. Tirschwell estava a preparar as bobinas para a sessão seguinte.
Quando olhei em redor, reparei que muitas das fotografias autografadas dos
frequentadores famosos do cinema tinham sido tiradas das paredes, e
compreendi que Mr. Tirschwell começara a reunir as recordações que
levaria para Winnipeg. E compreendi também que a gravidade de
semelhante resolução poderia só por si justificar a severidade com que
estava a tratar-me. Ao mesmo tempo, também me pareceu estar perante o
tipo de adulto rigoroso cujo sentido de responsabilidade se estende muitas
vezes àquilo que não é da sua conta. Seria difícil dizer, quer pelo seu
aspecto quer pela sua maneira de falar, que crescera com o meu pai num
prédio de Newark. Era uma versão atenuada, claramente mais culta e altiva
do que a do meu pai, da criança de bairro pobre deficientemente instruída
que se libertara da pobreza dos pais imigrantes quase inteiramente graças a
uma diligência vigilante e programada. Para estes homens, o ardor era tudo
quanto tinham para prosseguir. Aquilo a que os gentios seus superiores
chamavam agressividade era de modo geral apenas isso: o ardor, a
veemência que era tudo.
– Se eu sair – disse-lhe –, ainda posso apanhar o autocarro e chegar a casa
a horas de jantar,
– Deixa-te ficar onde estás, por favor.
– Mas que mal fiz eu? Só queria ver a minha tia. Não é justo – aleguei,
perigosamente à beira das lágrimas. – Eu queria ver a minha tia na Casa
Branca, mais nada.
– A tua tia – disse ele, e cerrou os dentes com força, para não dizer mais
nada.
Apesar de tudo o mais, foi o desdém dele pela tia Evelyn que me fez
correr as lágrimas.
– Estás a sofrer? – perguntou-me sardonicamente. – Estás a sofrer o quê?
Fazes alguma ideia daquilo por que as pessoas estão a passar por todo esse
mundo? Não compreendeste nada do que acabaste de ver? Só espero que no
futuro te seja poupado qualquer motivo genuíno para chorar. Espero e rezo
para que, nos tempos que aí vêm, a tua família... Calou-se de súbito,
claramente pouco habituado a um pouco digno excesso de emoção
irracional, sobretudo ao lidar com uma insignificante criança. Até eu
compreendi que a sua irritação era com qualquer outra coisa e não comigo,
mas isso não atenuava o choque de ter de ser eu a suportar a violência da
sua ira.
– O que é que vai acontecer em Junho? – perguntei-lhe. Era a pergunta
sem resposta que escutara a minha mãe a fazer ao meu pai na noite anterior.
Mr. Tirschwell continuou a perscrutar o meu rosto como se testasse o meu
défice de inteligência.
– Recompõe-te – disse, por fim. – Toma. Enxuga os olhos – e estendeu-
me o seu lenço.
Obedeci-lhe, mas quando repeti: «O que vai acontecer em Junho? Porque
vai para o Canadá?», o exaspero desapareceu imediatamente da sua voz e
deu lugar a alguma coisa ao mesmo tempo mais forte e mais suave: a sua
inteligência.
– Tenho um novo emprego lá.
Aterrou-me o facto de ele estar a poupar-me e desfiz-me de novo em
lágrimas.
O meu pai chegou cerca de vinte minutos depois. Mr. Tirschwell
entregou-lhe o bilhete que eu escrevera para conseguir entrar no cinema,
mas o meu pai não perdeu tempo a lê-lo enquanto não me conduziu pelo
cotovelo do cinema para a rua. E é então que me bate. Primeiro a minha
mãe bate no meu irmão, agora o meu pai lê as palavras da irmã Mary
Catherine e, pela primeira vez na minha vida, esbofeteia-me sem
comedimento. Como já estou com os nervos em frangalhos – e não sou,
nem por sombras, tão estóico como o meu irmão –, desato a chorar
desalmadamente junto da cabina da bilheteira, à vista de todos os gentios
que se apressam a regressar a casa, vindos dos seus escritórios no centro da
cidade, para um tranquilo fim-de-semana primaveril na América em paz de
Lindbergh, a fortaleza autónoma a oceanos de distância das zonas de guerra
mundiais onde ninguém além de nós corre perigo.
11 O sentido perde-se em português: Sandy confundiu nuns – freiras – com nuts – palermas, idiotas,
etc. (NT)

12 The hard way, no original. Termo de gíria do jogo de dados para o qual não encontrei
correspondência. Significa a repetição de um número par saído no primeiro lançamento e obtido
lançando dois dados pares que somados o atingem. Em tradução literal: a maneira mais difícil e
complicada de conseguir alguma coisa. (NT)
6
Maio de 1942-Junho de 1942
O PAÍS DELES

22 de Maio de 1942
Prezado Mr. Roth:
Em conformidade com um pedido do Homestead 42, Gabinete Americano
de Assimilação, Departamento do Interior dos EUA, a nossa empresa está a
oferecer oportunidades de realojamento a funcionários veteranos como o
senhor, tidos como qualificados para inclusão na nova e arrojada iniciativa,
a nível nacional, do GAA.
Foi exactamente há oitenta anos que o Congresso dos EUA aprovou o
Homestead Act de 1862, a famosa legislação, exclusiva da América, que
concedia oitenta hectares de terra pública não ocupada, virtualmente grátis,
a lavradores dispostos a partir e colonizar o novo Oeste americano. Desde
então, nada de comparável foi empreendido no sentido de proporcionar a
americanos corajosos emocionantes novas oportunidades de expandirem os
seus horizontes e fortalecerem o seu país.
A Metropolitan Life orgulha-se de se contar entre o primeiro grupo de
grandes empresas e instituições financeiras americanas seleccionadas como
participantes do novo Programa Homestead, concebido para dar a famílias
americanas emergentes uma oportunidade única na vida de mudarem as
suas residências, a expensas do Governo, a fim de criarem raízes numa
inspiradora região americana que anteriormente lhes era inacessível. O
Homestead 42 proporcionará um ambiente desafiador, impregnado das mais
antigas tradições do nosso país e onde pais e filhos poderão enriquecer a sua
americanidade ao longo das gerações.
Quando receber esta notificação deverá comunicar imediatamente com
Mr. Wilfred Kurth, o representante do Homestead 42 no nosso escritório da
Madison Avenue. Ele responderá pessoalmente a todas as suas perguntas e o
seu pessoal ajudá-lo-á amavelmente em tudo quanto estiver ao seu alcance.
Felicitamo-lo, a si e à sua família, por ter sido escolhido entre numerosos
candidatos da Metropolitan Life merecedores de se contarem entre os
primeiros «homesteaders» pioneiros de 1942.

Com consideração,
Homer L. Kasson
Vice-presidente dos Assuntos do Pessoal

Decorreram vários dias antes de o meu pai se munir da coragem


necessária para mostrar a carta da companhia à minha mãe e dar a notícia
de que, a partir de 1 de Setembro de 1942, ia ser transferido da filial da
Metropolitan de Newark para um escritório a abrir em Danville, Kentucky.
Num mapa do Kentucky que tinha sido incluído na documentação do
Homestead 42 que lhe fora entregue por Mr. Kurth, localizou Danville para
nós. Depois leu em voz alta uma página de um panfleto da Câmara de
Comércio intitulado O Estado Blue Grass. «Danville é a sede do condado
do Boyle County rural. Situa-se na bonita região rural do Kentucky, a cerca
de cem quilómetros a sul de Lexington, a segunda maior cidade do estado
depois de Louisville.» Folheou o panfleto até encontrar factos ainda mais
interessantes para nos ler e que pudessem, de algum modo, mitigar a falta
de sentido desta nova situação. «Daniel Boone ajudou a criar a “Wilderness
Road”, que abriu caminho para o povoamento de Kentucky... Em 1792, o
Kentucky tornou-se o primeiro estado a oeste dos Apalaches a juntar-se à
União... Em 1940, a população do Kentucky era de 2 845 627 pessoas.» A
população de Danville... deixem-me ver... a população de Danville era de
6700 pessoas.»
– E, nessas 6700 pessoas, quantos judeus havia em Danville? – perguntou
a minha mãe. – Quantas, em todo o estado?
– Tu já sabes a resposta, Bess. Muito poucas. A única coisa que te posso
dizer é que podia ser pior. Podia ser Montana, para onde vão os Geller.
Podia ser o Kansas, para onde vão os Schwart. Podia ser Okhlaoma, para
onde vão os Brody. São sete os homens que saem do escritório, e eu sou o
que tem mais sorte, acredita. O Kentucky é uma bela terra e tem um belo
clima. Não é o fim do mundo. Acabaremos por viver lá mais ou menos
como vivemos aqui. Talvez até melhor, em virtude de ser tudo tão barato e o
clima ser tão agradável. Haverá escola para os rapazes, haverá o emprego
para mim, haverá a casa para ti. Quem sabe se não conseguiremos comprar
um lugar que seja nosso, onde os rapazes possam ter um quarto para cada
um e um quintal nas traseiras para brincarem...
– E onde arranjaram eles o descaramento para fazer uma coisa destas às
pessoas? – perguntou a minha mãe. – Estou pasmada, Herman. As nossas
famílias estão aqui. Os nossos amigos de toda a vida estão aqui. Os amigos
dos nossos filhos estão aqui. Vivemos aqui em paz e harmonia durante
todas as nossas vidas. Estamos apenas a um quarteirão da melhor escola
primária de Newark. Estamos a um quarteirão da melhor escola secundária
de New Jersey. Os nossos filhos foram criados entre judeus. Vão para a
escola com outras crianças judias. Não há atrito algum com as outras
crianças. Ninguém chama nomes. Não há zaragatas. Eles nunca tiveram de
se sentir excluídos e sós como eu me senti quando era criança. Não posso
acreditar que a companhia te esteja a fazer isto. A maneira como trabalhaste
para aquela gente, as horas que fazes a mais, o esforço... e agora isto –
disse, zangada –, agora isto é a recompensa.
– Rapazes, perguntem-me o que quiserem saber – disse o meu pai. – A
mãe tem razão. Isto é uma grande surpresa para todos nós. Estamos todos
um bocado perplexos. Por isso, perguntem o que quiserem. Não quero
ninguém confuso a respeito de nada.
Mas Sandy não estava confuso nem parecia minimamente perplexo.
Sandy estava entusiasmado e quase incapaz de disfarçar o seu
contentamento, e tudo porque sabia exactamente onde encontrar Danville,
Kentucky, no mapa – a cerca de vinte e dois quilómetros da plantação de
tabaco dos Mawhynney. Talvez fosse até possível que ele já soubesse que
nos mudaríamos para lá antes de qualquer de nós o saber. O meu pai e a
minha mãe podem não ter dito tanto, mas, precisamente por causa do que
ninguém estava a dizer, até eu fui capaz de compreender que o facto de o
meu pai ter sido seleccionado como um dos sete «homesteaders» judeus da
sua área não era mais fortuito do que o de ter sido designado para o novo
escritório da companhia em Danville. Depois de ele ter aberto a nossa porta
das traseiras e dito à tia Evelyn para sair da nossa casa e nunca mais voltar,
o nosso destino não poderia ter sido outro.
Já jantáramos e encontravam-nos na sala. Serenamente imperturbável,
Sandy desenhava qualquer coisa e não tinha perguntas a fazer, e eu – a olhar
para fora com o rosto comprimido contra a rede da janela aberta –, eu
também não tinha nada para perguntar. Por isso o meu pai, taciturnamente
mergulhado nos seus pensamentos, e sabendo que tinha sido derrotado,
começou a andar de um lado para o outro, enquanto a minha mãe, sentada
no sofá, murmurava qualquer coisa entre dentes, recusando resignar-se ao
que nos esperava. No drama do confronto, na luta contra não sabíamos o
quê, cada um deles assumira o papel que o outro representara no átrio do
hotel em Washington. Compreendi a que ponto as coisas tinham chegado e
como tudo era agora terrivelmente confuso, e também que a calamidade,
quando se abate, é de supetão.
Desde cerca das três horas que tem estado a chover e muito vento, mas
agora, de repente, a chuva fustigada pela ventania parou e o sol irrompeu,
fulgurante, como se os relógios tivessem sido adiantados e, no Ocidente, a
manhã de amanhã estivesse agora marcada para começar às seis horas da
tarde de hoje. Como podia uma rua tão modesta como a nossa produzir
tamanho êxtase só por estar reluzente de chuva? Como podiam os
intransitáveis charcos cheios de folhas do passeio e os pequenos quintais
inçados de erva ressumantes da grande chuvada exsudar uma fragrância que
me deleitava como se eu tivesse nascido numa floresta tropical chuvosa?
Matizada pela brilhante luz pós-tempestade, a Summit Avenue estava tão
reluzente de vida como um animal de estimação, o meu próprio animal de
estimação, sedoso e palpitante, lavada pelos lençóis de água que tinham
caído e estendida agora em todo o seu comprimento, a deliciar-se na
beatitude.
Nada conseguiria, nunca, levar-me daqui.
– E com quem brincarão os rapazes? – perguntou a minha mãe.
– Não faltam crianças no Kentucky com quem possam brincar –
respondeu o meu pai.
– E eu, com quem falarei? Quem terei eu lá como as amigas que tenho
tido durante toda a minha vida?
– Também lá há mulheres.
– Mulheres gentias. – Geralmente, a minha mãe não ia buscar força ao
desdém, mas desta vez falou desdenhosamente, o que era um sinal do
quanto se sentia perplexa e em perigo. – Boas mulheres cristãs que se
multiplicarão em esforços para que eu me sinta em casa. Não têm direito
nenhum de fazer isto! – proclamou.
– Bess, por favor... isto é o que acontece quando trabalhamos numa
grande empresa. As grandes empresas estão sempre a transferir pessoas. E
quando o fazem, nós temos de fazer as malas e partir.
– Estou a falar do Governo. O Governo não pode fazer isto. Não pode
obrigar as pessoas a fazer as malas e partir... isso não consta de nenhuma
constituição de que eu alguma vez tenha ouvido falar.
– Eles não estão a obrigar-nos.
– Nesse caso, porque vamos? É claro que estão a obrigar-nos. Isto é
ilegal. Não podem pegar em judeus e, porque são judeus, obrigá-los a viver
onde querem que vivam. Não podem pegar numa cidade e, pura e
simplesmente, fazer o que lhes apetece com ela. Para se livrarem de
Newark como ela é, com judeus a viverem aqui como quaisquer outras
pessoas? Que têm eles a ver com isso? É contra a lei. Toda a gente sabe que
é contra a lei.
– Pois – disse Sandy, sem sequer se dignar a levantar os olhos do que
estava a desenhar. – Porque não processamos os Estados Unidos da
América?
– Podem processá-los – respondi-lhe eu. – No Supremo Tribunal.
– Ignora-o – disse-me a minha mãe. – Enquanto o teu irmão não aprender
a ser bem-educado, continuamos simplesmente a ignorá-lo.
Sandy levantou-se, pegou nos seus materiais de desenho e foi para o
nosso quarto. Incapaz de continuar a assistir ao espectáculo da impotência
do meu pai e da angústia da minha mãe, abri a porta da frente, corri pela
escada principal abaixo e saí para a rua, onde os miúdos que tinham
acabado de jantar já se encontravam a deitar pauzinhos de chupa-chupas
para as valetas e a vê-los mergulhar em cascata pelo gradeamento de ferro
para o esgoto gorgolejante, de mistura com os detritos naturais sacudidos
das alfarrobeiras pela tempestade e o redemoinho de papéis de rebuçados,
besouros, caricas de garrafas, minhocas, pontas de cigarros e, misteriosa,
inexplicável e previsivelmente, um desgarrado preservativo viscoso. Todos
tinham saído de casa para uns últimos momentos agradáveis antes de terem
de regressar e irem para a cama – e todos eles ainda eram capazes de se
divertir, porque nenhum tinha um pai que trabalhava para qualquer das
empresas que colaboravam com o Homestead 42. Os pais deles eram
homens que trabalhavam por conta própria ou com um sócio que era seu
irmão ou cunhado, e por isso não tinham de se ir embora para outro lugar
qualquer. Mas eu também não iria para nenhum outro lugar. Não seria
arrancado pelo Governo dos Estados Unidos de uma rua em cujas próprias
valetas jorrava o elixir da vida.
Alvin era um trampolineiro em Filadélfia, Sandy vivia no exílio em nossa
casa e a autoridade do meu pai como protector fora drasticamente
comprometida, se não mesmo destruída. Dois anos antes, a fim de preservar
o modo de vida que escolhêramos, conseguira reunir forças para se meter
no carro, ir à sede da companhia e, cara a cara com o patrão-mor, declinar a
promoção que teria beneficiado a sua carreira e aumentado os seus ganhos,
mas cobrando-lhe em troca o preço de irmos viver em New Jersey, onde a
implantação bundista era muito forte. Agora já não tinha coragem para
desafiar um desenraizamento potencialmente não menos arriscado, pois
concluíra que o confronto era inútil e o nosso destino já não estava nas
mãos dele. Escandalosamente, o facto de a sua empresa ter dado
obedientemente as mãos ao Estado tornara-o impotente. Agora não restava
ninguém para nos proteger, a não ser eu.

No dia seguinte, depois das aulas, voltei a dirigir-me, às escondidas, para


o autocarro que ia para o centro da cidade, desta vez o da carreira 7, cujo
trajecto percorria cerca de mil e duzentos metros da Summit Avenue, no
lado mais distante do terreno arado do orfanato, até onde o St. Peter’s ficava
de frente para a via pública da Lyons Avenue e onde, à sombra do seu
campanário, era ainda menos provável que fosse localizado por um vizinho,
um colega da escola ou um amigo da família do que quando decidi deixar
para trás a escola secundária e descer para a Clinton Place, a fim de apanhar
o autocarro da carreira 14.
Esperei na paragem, do lado de fora da igreja, ao lado de duas freiras
identicamente inumadas nos volumosos hábitos de grosseiro e pesado
tecido preto que nunca tivera a oportunidade de estudar tão de perto como
neste dia. Naquele tempo, o hábito de uma freira chegava-lhe aos sapatos, e
isso, juntamente com o brilhante arco de tecido branco engomado que lhes
emoldurava rigidamente as feições faciais e obliterava toda a visão lateral –
a touca hirta que lhes escondia couro cabeludo, orelhas, queixo e pescoço e
era por sua vez envolta por uma espécie de comprido lenço branco –, fazia
das freiras católicas, vestidas segundo a tradição, as criaturas de aspecto
mais arcaico que eu já vira, muito mais assustadoras, quando as víamos no
nosso bairro, do que os próprios padres com o seu arrepiante aspecto de
cangalheiros. Não se viam quaisquer botões ou algibeiras, de modo que não
era possível imaginar como aquele invólucro de tecido espesso e fechado
era enfiado ou como era despido, ou se alguma vez era despido, tendo em
conta que por cima de tudo isso havia uma grande cruz de metal suspensa
de um comprido colar de cordão, e fieiras de contas, grandes e reluzentes
como berlindes «abafadores», que lhes pendiam vários palmos à frente,
suspensas de um cinto de cabedal preto, e, preso ao lenço da cabeça, um
véu preto que se alargava nas costas e caía a direito até à cintura. A não ser
na pequena região desnuda que era o rosto embiocado, simples e sem
qualquer ornamento, não havia penugem nem macieza em parte alguma.
Presumi que eram duas das freiras que supervisionavam a vida dos órfãos
e ensinavam na escola paroquial. Nenhuma delas olhou para mim e, pela
minha parte, sem um parceiro jocoso como o Earl Axman, não me atrevi a
olhar para elas a não ser furtivamente, embora, mesmo enquanto fitava os
meus próprios pés, a capacidade de autocensura de criança bem-comportada
me tivesse abandonado e eu me confrontasse, repetidamente, com os
mistérios, com todas as questões relacionadas com os seus corpos femininos
e as suas funções mais abjectas, e todas tendendo para a depravação. Apesar
da seriedade da minha missão secreta daquela tarde e de tudo quanto
dependia do seu resultado, não conseguia estar perto de uma freira, quanto
mais de duas, sem que a minha mente ficasse inundada pelos meus
pensamentos judaicos que não primavam pela pureza.
As freiras ocuparam os dois lugares atrás do motorista e, apesar de a
maioria dos lugares mais atrás estar vaga, eu sentei-me do lado oposto da
estreita coxia, logo atrás do torniquete e da caixa para o dinheiro da
passagem. Não tinha intenção alguma de me sentar ali nem compreendia
por que motivo o fazia, mas em vez me afastar para onde pudesse estar ao
abrigo da influência da curiosidade à solta, abri o caderno, para fingir que
fazia os trabalhos de casa, prisioneiro, simultaneamente, da esperança e do
pavor de ouvi-las dizer alguma coisa em linguagem católica. Ai de mim,
elas mantiveram-se silenciosas, supus que a rezar, e não menos fascinantes
por o fazerem num autocarro.
A cerca de cinco minutos do centro da cidade, ouvi um tilintar metálico
de contas de rosários quando as duas se levantaram juntas para descerem no
cruzamento largo da High Street com a Clinton Avenue. Num dos lados do
cruzamento havia um stand de automóveis e do outro ficava o Hotel
Riviera. Ao passarem, a mais alta das freiras sorriu-me da coxia e, com uma
vaga tristeza na voz serena – talvez porque o Messias chegara e partira sem
eu dar por isso –, observou à companheira: «Que rapazinho engraçado e tão
bem arranjadinho.»
Se ela soubesse no que eu tinha estado a pensar... E daí, talvez soubesse.
Passados poucos minutos, antes de o autocarro fazer a grande curva para
sair da Broad Street e começar a descer o Raymond Boulevard para a última
paragem do lado de fora da Penn Station, também eu me apeei e comecei a
correr na direcção do Federal Office Building, na Washington Street, onde
era o escritório da tia Evelyn. No átrio, um ascensorista disse-me que o
GAA ficava no último andar, e quando lá cheguei perguntei por Evelyn
Finkel. «És o irmão do Sandy», disse a recepcionista. «Podias ser o seu
pequeno gémeo», acrescentou, avaliadoramente. «O Sandy é cinco anos
mais velho do que eu», respondi-lhe. «Ele é um rapaz maravilhoso,
maravilhoso», afirmou, «toda a gente gostava de o ter por aqui.» E depois
ligou para o escritório da tia Evelyn. «Está aqui o seu sobrinho Philip, Miss
F», anunciou, e passados segundos a tia Evelyn levara-me rapidamente, ao
longo de meia dúzia de homens e mulheres sentados a escrever à máquina,
para o seu gabinete, que ficava sobranceiro à biblioteca pública e ao
Newark Museum. Beijava-me, abraçava-me e dizia-me que sentira muito a
minha falta, e, apesar de todas as minhas apreensões – começando, é claro,
pelo medo de que os meus pais descobrissem o meu encontro com a nossa
desavinda tia –, procedi como planeara, confidenciando-lhe que fora
sozinho, e secretamente, ao Newsreel Theater para a ver na Casa Branca.
Sentei-me na cadeira ao lado da sua secretária – uma secretária que era,
com certeza, duas vezes maior do que a do meu pai na Clinton Street – e
pedi-lhe que me contasse como fora o jantar com o presidente e Mrs.
Lindbergh. Quando ela começou a responder com grande minúcia – e com
uma ânsia de me impressionar que não fazia sentido nenhum a uma simples
criança já completamente confusa com a magnitude da sua traição –,
custou-me a crer que fosse tão fácil fazê-la pensar que era por esse motivo
que estava eu ali.
Na parede atrás da sua secretária havia dois grandes mapas trespassados
por maciços de pequenos alfinetes coloridos e afixados num quadro de
cortiça para colocação de boletins. O mapa maior era dos quarenta e oito
estados e o mais pequeno apenas de New Jersey, cujo comprido rio interior,
fronteiriço com a vizinha Pensilvânia, aprendêramos na escola a identificar
como o fantástico perfil de um chefe índio, com a fronte lá em cima, em
Phillipsburg, as narinas em baixo, perto de Stockton, e o queixo a estreitar
para o pescoço nas imediações de Trenton. O densamente povoado canto
mais oriental do estado, abrangendo Jersey City, Newark, Passaic e
Paterson, e estendo-se para norte, para a fronteira traçada à régua com os
condados mais meridionais do estado de Nova Iorque, delineava a parte
superior traseira do cocar de penas do índio. Era assim que eu o via então, e
é assim que continuo a vê-lo. A par dos cinco sentidos, um miúdo com os
meus antecedentes possuía, naquele tempo, um sexto, o sentido geográfico,
o apurado sentido de onde vivia e quem e o quê o rodeava.
Em cima da espaçosa secretária da tia Evelyn, ao lado de fotografias
emolduradas da minha falecida avó e do rabi Bengelsdorf, havia uma
grande fotografia autografada do presidente e de Mrs. Lindbergh, juntos na
Sala Oval, e uma fotografia mais pequena da tia Evelyn, no seu vestido de
noite, a apertar a mão ao presidente.
– Isso é a bicha para a recepção – explicou-me. – A caminho para a sala
dos jantares oficiais, os convidados desfilam um por um diante do
presidente e da primeira dama, assim como do convidado de honra da noite.
Somos apresentados pelo nome e tiram-nos uma fotografia que depois a
Casa Branca nos envia.
– O presidente disse alguma coisa?
– Disse: «É um prazer tê-la cá.»
– É permitido responder alguma coisa?
– Eu respondi: «É uma honra para mim, Sr. Presidente.»
Não fez qualquer esforço para disfarçar quanto aquela troca de palavras
tinha sido importante para ela, e talvez para o presidente dos Estados
Unidos. Como sempre acontecia com a tia Evelyn, havia algo de muito
insinuante no seu entusiasmo, embora, no contexto da confusão que reinava
em minha casa, não tenha podido deixar de perceber o que também havia
nele de diabólico. Nunca na minha vida julgara tão asperamente um adulto
– nem os meus pais, nem mesmo Alvin ou o tio Monty –, e também nunca
percebera, até àquele momento, até que ponto a escandalosa vaidade dos
perfeitos idiotas pode determinar tão fortemente o destino de outras
pessoas.
– Conheceu von Ribbentrop?
Desta vez respondeu, com um embaraço quase juvenil:
– Dancei com Mr. von Ribbentrop.
– Onde?
– Houve baile depois do jantar, numa grande tenda montada no relvado
da Casa Branca. Estava uma bela noite. Orquestra e baile, e o Lionel e eu
fomos apresentados ao ministro dos Estrangeiros e à sua esposa,
conversámos um pouco e depois ele inclinou-se e convidou-me para dançar.
Tem fama de excelente dançarino e é, na verdade: um dançarino
absolutamente mágico de sala de baile. E o seu inglês é impecável. Estudou
na Universidade de Londres e depois viveu quatro anos no Canadá, quando
era jovem. A sua grande aventura da juventude, como diz. Achei-o um
cavalheiro deveras encantador e muitíssimo inteligente.
– O que foi que ele disse?
– Oh, falámos a respeito do presidente, do GAA, das nossas vidas...
falámos de tudo. Ele toca violino, sabias? É como o Lionel, um homem do
mundo capaz de falar inteligentemente de tudo. Repara, querido, olha o que
eu usava. Estás a ver a mala que levava? Malha de ouro. Vês isto? Vês os
escaravelhos? Escaravelhos de ouro, esmalte e turquesa.
– O que é um escaravelho?
– É um besouro. É uma pedra preciosa que se corta para parecer um
escaravelho. E foi feito aqui mesmo, em Newark, pela família da primeira
Mrs. Bengelsdorf. A oficina deles era mundialmente famosa. Faziam jóias
para os reis e as rainhas da Europa e para todas as pessoas mais ricas da
América. Olha, o meu anel de noivado – disse, aproximando tanto a
mãozinha perfumada da minha cara que me senti de súbito como um cão e
me apeteceu lambê-la. – Estás a ver a pedra? É uma esmeralda, meu
querido, querido, amorzinho.
– Verdadeira?
Beijou-me.
– Verdadeira! E na fotografia, aqui... é uma pulseira de elos. Ouro com
safiras e pérolas. Verdadeiras! – exclamou, e beijou-me de novo. – O
ministro dos Estrangeiros disse que nunca tinha visto uma pulseira mais
bonita em lado nenhum. E o que julgas que é aquilo que tenho ao pescoço?
– Um colar?
– Um colar de festão.
– O que é «festão»?
– É uma enfiada de flores, uma grinalda de flores. Conheces a palavra
«festival». Conheces a palavra «festividades». E conheces «festa», não
conheces? Bem, estão todas relacionadas. Repara nos dois broches, estás a
vê-los? São safiras, meu querido... safiras de Montana encastoadas em ouro.
E vês quem as está a usar? Quem? Quem é? A tia Evelyn! Evelyn Finkel, de
Dewey Street! Na Casa Branca! Não é inacreditável?
– Acho que sim.
– Oh, amorzinho! – disse, puxando-me para si e beijando-me a cara toda.
– Eu também acho que sim. Estou tão contente por me teres vindo ver.
Tinha tantas saudades tuas – e afagou-me de uma maneira que parecia
querer descobrir se eu tinha as algibeiras cheias de coisas roubadas. Só anos
mais tarde compreendi que a perícia com que usava as mãos tacteantes
podia muito bem ter sido o que explicava a rápida renovação da vida da tia
Evelyn por uma individualidade da estatura de Lionel Bengelsdorf. Por
muito brilhante e erudito que o rabi fosse, superior a todos até no seu
egoísmo, a tia Evelyn nunca se devia ter atrapalhado com ele.
O paraíso de envolvimento que se seguiu ficou, evidentemente, por
identificar, na altura. Onde quer que eu pusesse as minhas mãos, encontrava
a superfície macia do corpo dela. Para onde quer que virasse o rosto,
encontrava a densidade do seu perfume. Para onde quer que olhasse, lá
estava o seu vestuário, roupas novas, primaveris, tão leves e diáfanas que
não velavam, sequer, o brilho da sua combinação. E havia os olhos de outro
ser humano como nunca os tinha visto antes. Eu não chegara ainda à idade
do desejo, estava sem dúvida cego pela palavra «tia», ainda achava o
ocasional endurecimento da pequena bolota que era meu pequeno pénis o
intrigante incómodo que sempre fora, e por isso o prazer que me causava
estar aconchegado na curvilineidade da irmã de trinta e um anos da minha
mãe, um pequenina e vivaz Thumbelina aparentemente desprovida de
qualquer timidez e formada segundo o modelo de colinas e maçãs, era uma
sensação fria de frenesim e nada mais, como se um valioso selo raro,
imperfeitamente impresso e que eu sabia ser impagável, aparecesse
acidentalmente numa carta metida pelo carteiro na nossa caixa de correio da
Summit Avenue.
– Tia Evelyn...
– Diz, meu querido.
– Sabe que nos vamos mudar para o Kentucky?
– Sim, sim.
– Não quero ir, tia Evelyn. Quero continuar na minha escola. Ela afastou-
se bruscamente de mim e, com um ar que não tinha agora nada o de
namorada, perguntou:
– Quem te mandou cá, Philip?
– Quem me mandou? Ninguém.
– Quem te mandou vir ter comigo. Diz a verdade.
– Estou a dizer a verdade. Ninguém.
Voltou para a cadeira atrás da secretária e a expressão dos seus olhos
obrigou-me a fazer tudo quanto estava ao meu alcance para não me levantar
e fugir. Mas queria demasiado o que queria para fugir.
– Não há nada a temer no Kentucky – declarou.
– Eu não tenho medo. Só não quero ter de me mudar.
Até o seu silêncio era totalmente abrangente e, se eu estivesse de facto a
mentir, ter-me-ia arrancado a confissão que ela queria. Pobre mulher, vivia
num estado de perpétua intensidade.
– O Seldon e a mãe não podem ir em vez de nós?
– Quem é o Seldon?
– É o rapaz que mora por baixo de nós, cujo pai morreu. A mãe dele
trabalha agora para a Metropolitan. Porque é que nós temos de ir e eles não?
– Não foi o teu pai que te encarregou disto, querido?
– Não. Não. Ninguém sabe, sequer, que estou aqui.
Mas percebi que continuava a não acreditar em mim – a sua aversão pelo
meu pai era demasiado preciosa para ser afastada pela verdade evidente.
– O Seldon quer ir para o Kentucky?
– Eu não lhe perguntei. Não sei. Lembrei-me apenas de perguntar à tia se
eles podiam ir em lugar de nós.
– Meu querido rapazinho, estás a ver o mapa de New Jersey? Vês estes
alfinetes, no mapa? Cada um representa uma família escolhida para
realojamento. Agora olha para o mapa do país inteiro. Vês todos os alfinetes
que lá estão? Representam a localidade para onde cada família de New
Jersey foi destinada. Fazer estes realojamentos implica a cooperação de
muita, muita gente deste gabinete, da sede em Washington e no estado para
onde cada família se vai mudar. As maiores e mais importantes empresas de
New Jersey estão a realojar funcionários de parceria com o Homestead 42, e
por isso foi necessário muito planeamento, muito, muito mais do que podes
imaginar, para organizar tudo isto. E, claro, nenhuma decisão é tomada por
uma só pessoa. Mas mesmo que fosse, e eu fosse essa pessoa e pudesse
fazer alguma coisa para continuares perto dos teus amigos e na tua escola,
continuaria a pensar que tu, para começar, vais beneficiar enormemente por
te tornares algo mais do que outra criança judia cujos pais a encheram de
tanto medo que nunca quererá deixar o gueto. Vê o que a tua família fez ao
Sandy. Viste o teu irmão em New Brunswick, naquela noite. Viste-o a falar
com toda aquela gente a respeito da sua aventura na plantação de tabaco.
Lembras-te dessa noite? Não te orgulhaste dele?
– Orgulhei.
– E pareceu-te que viver no Kentucky era assustador e que o Sandy teve,
por um momento sequer, medo?
– Não.
Nesta altura, meteu a mão na secretária para tirar qualquer coisa,
levantou-se e voltou para onde eu estava sentado. O seu rosto bonito, com
as suas feições grandes e a espessa camada de maquilhagem, pareceu-me de
súbito ridículo, o rosto carnal da mania voraz a que, na opinião da minha
mãe, a sua emotiva irmã mais nova sucumbira irremediavelmente. Com
certeza que, para uma criança da corte de Luís XIV, as ambições e
satisfações de semelhante familiar nunca teriam atingido a assustadora aura
de importância que as da tia Evelyn atingiam para mim, nem a promoção
mundana de um clérigo como o rabi Bengelsdorf teria parecido
minimamente escandalosa aos meus pais se eles próprios ascendessem na
corte a marquês e marquesa. Provavelmente, eu não poderia ter feito pior –
era até possível que tivesse feito muito melhor – se procurasse consolo nas
duas freiras do autocarro na Lyons Avenue do que em alguém que se
deliciava com os prazeres das mesquinhas e habituais corrupções que
proliferam em todo o lado onde as pessoas competem pela mais ínfima das
vantagens da hierarquia.
– Sê corajoso, meu querido. Sê um rapaz corajoso. Queres passar o resto
da vida sentado nos degraus da entrada da Summit Avenue ou preferes sair
para o mundo, como o Sandy fez, e provar que és tão bom como qualquer
outro? Imagina que eu tinha medo de ir à Casa Branca e conhecer o
ministro dos Estrangeiros, porque lhe chamam nomes. Não podemos andar
por aí com medo de tudo aquilo que não nos é familiar. Não podes crescer
para seres uma pessoa assustada como os teus pais. Promete-me que não o
farás.
– Prometo.
– Toma, tenho uma coisa para ti – disse ela, e estendeu-me um de dois
pequenos pacotes de cartão que tinha nas mãos. – Trouxe isto pata ti da
Casa Branca. Adoro-te, meu queridinho, e quero que aceites.
– O que é?
– Um chocolate para depois do jantar, embrulhado em papel dourado.
Sabes o que está gravado no próprio chocolate? O selo presidencial! Este é
para ti. Se te der o do Sandy entregas-lho, da minha parte?
– Está bem.
– Isto é o que nos põem na mesa na Casa Branca, no fim da refeição.
Chocolates num prato de prata. E, mal os vi, pensei nos dois rapazes deste
mundo que mais desejo tornar felizes.
Levantei-me, com os chocolates na mão, e a tia Evelyn passou-me
apertadamente o braço pelos ombros e foi comigo, passando por todas as
pessoas que trabalhavam para ela, até ao corredor, onde carregou no botão
do elevador.
– Qual é o apelido do Seldon? – perguntou-me.
– Wishnow.
– E ele é o teu melhor amigo?
Como podia explicar-lhe que não o suportava? Por isso, acabei por mentir
e dizer: «É, sim.» E como a minha tia gostava realmente de mim e, pelo seu
lado, não estava a mentir quando dissera que queria fazer-me feliz, poucos
dias, apenas, mais tarde, depois de ter finalmente conseguido livrar-me dos
chocolates da Casa Branca, esperando que não estivesse ninguém a ver e
atirando-os por cima da cerca do orfanato, Mrs. Wishnow recebeu uma
carta da Metropolitan informando-a de que ela e a sua família também
tinham tido a felicidade de ser escolhidas para ir para o Kentucky.
Numa tarde de domingo, em finais de Maio, foi convocada uma reunião
confidencial, na nossa sala, dos agentes de seguros judeus que, juntamente
com o meu pai, estavam a ser deslocados do escritório de Metropolitan em
Newark ao abrigo do Homestead 42. Vieram todos apenas com as mulheres,
pois fora acordado que seria melhor deixar as crianças em casa. Ao
princípio da tarde, Sandy e eu, acompanhados por Seldon Wishnow,
tínhamos disposto as cadeiras para a reunião, incluindo um conjunto de
cadeiras de brídege que transportáramos para cima, de casa dos Wishnow. A
seguir, Mrs. Wishnow levou-nos aos três de carro ao Mayfair Theater, em
Hillside, onde assistiríamos a uma sessão com dois filmes de longa
metragem e seríamos depois recolhidos pelo meu pai, quando a reunião
terminasse.
Os outros convidados eram Shepsie e Estelle Tirschwell, que estavam a
dias, apenas, de mudar a sua família para Winnipeg, e Monroe Silverman,
um primo distante que abrira recentemente um escritório de advogado em
Irvington, logo por cima da loja de fanqueiro propriedade do segundo irmão
mais velho do meu pai, Lenny, o tio que abastecia o Sandy e a mim de
roupas novas para a escola «a preço de custo». Quando a minha mãe
sugeriu – movida pelo seu tolerante respeito por tudo quanto somos
ensinados a respeitar – que Hyman Resnick, o nosso rabi local, fosse
convidado para assistir à reunião, mais ninguém, entre os organizadores que
se tinham reunido na nossa cozinha na semana anterior, se mostrou muito
entusiasmado com a ideia e, após poucos minutos de deferente discussão
(durante os quais o meu pai disse diplomaticamente o que sempre dizia
diplomaticamente a respeito do rabi Resnick: «Eu gosto do homem, gosto
da sua mulher, não há no meu espírito a menor dúvida de que ele faz um
excelente trabalho, mas, sabem, não é muito inteligente»), a proposta da
minha mãe foi retirada. Apesar de, para gáudio de um miúdo pequeno, estes
amigos íntimos da nossa família falarem numa escala de vozes tão vasta e
divertida como as personagens de The Fred Allen Show, e serem todos tão
claramente diferentes no aspecto como os bonecos da banda desenhada do
jornal da tarde – isto passava-se no tempo em que as piadas maliciosas
acerca da evolução ainda eram exuberantemente notórias, muito antes da
renovação juvenil de rosto e aspecto se tornarem uma aspiração adulta séria
–, eram pessoas muito semelhantes no seu âmago: criavam as suas famílias,
geriam o seu dinheiro, cuidavam dos seus pais idosos e tratavam das suas
modestas casas de modo muito semelhante, pensavam da mesma maneira
em muitas questões de natureza pública e votavam da mesma maneira em
eleições políticas. O rabi Resnick presidia a uma modesta sinagoga de tijolo
amarelo no extremo do bairro, onde toda a gente aparecia, nas suas
melhores roupas, três dias em cada ano, para as cerimónias do Rosh
Hashanah e do Yom Kippur, mas tirando isso para pouco mais lá apareciam,
a não ser, quando necessário, para recitar obedientemente a oração do dia
pelos mortos, no período prescrito. Um rabi servia-lhes para oficiar em
casamentos e funerais, no bar mitzvah dos seus filhos, para visitar os
doentes no hospital e para consolar os enlutados no shiva; para além disso,
não representava um papel de qualquer importância nas suas vidas
quotidianas, nem ninguém – incluindo a minha respeitosa mãe – esperava
que representasse, e não apenas por Resnick não ser muito inteligente. O
facto de serem judeus não decorria do rabinado, da sinagoga ou das suas
poucas práticas religiosas formais, embora, ao longo dos anos, em grande
parte por respeito aos pais vivos que vinham visitá-los e comer com eles
uma vez por semana, vários lares, incluindo o nosso, fossem kosher. O facto
de serem judeus não decorria, sequer, do alto. É verdade que, todas as
sextas-feiras ao pôr do Sol, quando a minha mãe acendia ritualmente (e
comoventemente, com a delicadeza devota que absorvera ao observar, em
criança, a sua própria mãe) as velas do Sabath, invocava o Todo-Poderoso
pelo seu título hebraico, mas tirando isso nunca ninguém fazia qualquer
menção a Adonai. Estes eram judeus que, para serem judeus, não
precisavam de grandes termos de referência, de nenhuma profissão de fé ou
credo doutrinal, e também não precisavam, de modo algum, de nenhuma
outra linguagem: tinham uma, a sua língua natal, cuja expressividade
vernacular dominavam sem esforço e, fosse à mesa do jogo de cartas, fosse
quando faziam a promoção de um produto, com a mesma facilidade natural
da população indígena. O facto de serem judeus tão-pouco era um revés ou
uma desgraça, ou uma coisa de que devessem sentir-se «orgulhosos».
Aquilo que eram era aquilo que não podiam deixar de ser – aquilo que não
podiam pensar, sequer, em deixar de ser. O facto de serem judeus decorria
de serem o que eram, como o facto de serem americanos. Era assim porque
era assim, fazia parte da natureza das coisas, era tão fundamental como ter
artérias e veias, e eles nunca manifestavam o mais ínfimo desejo de mudar
ou negar essa realidade, independentemente das consequências.
Eu conhecera aquelas pessoas durante toda a minha vida. As mulheres
eram amigas íntimas e de confiança que trocavam confidências e receitas,
que se compadeciam mutuamente pelo telefone, olhavam pelos filhos umas
das outras e, regularmente, festejavam os seus aniversários, viajando os
cerca de vinte quilómetros até Manhattan para verem um espectáculo na
Broadway. Os homens não só trabalhavam há anos no mesmo escritório
local, como também se reuniam para jogar besigue nas duas noites por mês
em que as mulheres tinham o seu jogo de majongue, e, de vez em quando,
numa manhã de domingo, um grupo ia até aos velhos banhos de vapor da
Mercer Street com os filhos a reboque – por coincidência, a prole desses
grupos era constituída apenas por rapazes com idades mais ou menos entre
a de Sandy e a minha. No dia dos Heróis da Guerra Civil, no 4 de Julho e
no Dia do Trabalho as famílias costumavam organizar um piquenique a
pouco mais de quinze quilómetros a oeste do nosso bairro, na bucólica
Reserva da South Mountain, onde os pais e os filhos jogavam à malha,
escolhiam equipas para soft-ball e ouviam o relato de um jogo de basebol
no asmático rádio portátil de algum deles, a mais mágica tecnologia
conhecida do nosso mundo. Nós, os rapazes, não éramos necessariamente
os melhores amigos, mas sentíamo-nos ligados pelas simpatias dos nossos
pais. De todos nós, Seldon era o menos robusto, o menos confiante e, muito
dolorosamente para ele, o menos afortunado, e apesar disso fora com ele
que eu arranjara maneira de me ligar para o resto da infância e,
provavelmente, para lá dela. Começara a seguir-me mais teimosamente
desde que ele e a mãe tinham sabido do seu realojamento, e eu só pensava
que, em virtude de irmos ser os únicos alunos judeus da escola primária de
Danville, era de esperar – não menos pelos gentios de Danville do que pelos
nossos próprios pais – que eu fosse o seu aliado natural e companheiro mais
chegado. A omnipresença de Seldon talvez não fosse o pior que me
esperava no Kentucky, mas, na imaginação de um miúdo de nove anos,
gravou-se como uma atribulação insuportável e acelerou o ímpeto de me
rebelar.
Como? Ainda não sabia. Tudo quanto sentia, por enquanto, era a sanha da
pré-amotinação, e tudo quanto fiz nesse sentido foi procurar uma pequena
mala de cartão manchada de água, esquecida debaixo da bagagem utilizável
da nossa arrecadação da cave e, depois de a limpar do bolor por dentro e
por fora, esconder lá as peças de roupa de que me apoderava sub-
repticiamente, peça a peça, no quarto de Seldon sempre que a minha mãe
me obrigava a suportar uma hora no andar de baixo como contrafeito
aprendiz de xadrez. Teria escondido as minhas próprias roupas na maleta se
não soubesse que a minha mãe descobriria o que faltava e um dia, em
breve, eu seria obrigado a arranjar uma explicação. Ela continuava a lavar a
roupa aos fins-de-semana e arrumava as peças lavadas – assim como as que
tinham ido para limpeza a seco e me competia ir buscar à alfaiataria todos
os sábados –, e tinha gravado na sua cabeça um inventário tão completo da
roupa de cada um que não lhe escapava, sequer, a localização de um par de
peúgas. Por outro lado, roubar peças de roupa a Seldon era canja e – em
virtude de ele se ter alapado a mim como o seu outro eu – vingativamente
irresistível. Era fácil tirar peúgas e roupa interior de casa dos Wishnow e
levá-las pela escada abaixo, para a cave, escondidas debaixo da minha
camisola interior. Roubar e esconder um par de calças, um blusão de
desporto e um par de sapatos, isso já fiava um pouco mais fino, mas
digamos que Seldon era suficientemente fácil de distrair para o roubo ser
consumado e, durante algum tempo, passar despercebido.
Depois de ter reunido tudo o que precisava dele, não fazia ideia do que
planeava fazer a seguir. Ele e eu éramos mais ou menos do mesmo
tamanho, e na tarde em que ousei esconder-me na arrecadação e trocar a
minha roupa pela de Seldon, limitei-me a ficar ali de pé e murmurar: «Olá!
Chamo-me Seldon Wishnow.» Sentia-me um estafermo, não apenas porque
Seldon se tornara um grande estafermo para mim e eu estava a ser ele, mas
também porque se tornava claro, devido a todas as minhas sorrateiras
andanças transgressivas por Newark – e culminando nesta mascarada na
cave escura –, que eu próprio me tornara um estafermo muito maior. Um
estafermo com um enxoval.
Os dezanove dólares e meio que restavam dos vinte que Alvin me deram
foram igualmente para a mala, escondidos debaixo da roupa. Depois voltei
a vestir apressadamente as minhas próprias roupas, empurrei a mala de
cartão para debaixo das outras e, antes que o fantasma irado do pai de
Seldon pudesse matar-me por estrangulamento com uma corda de carrasco,
corri para a travessa e daí para a rua. Nos próximos dias, consegui esquecer
o que escondera e o objectivo não especificado a que esse procedimento se
destinava. Consegui até considerar que esta última pequena tunantice, além
de não ser nada gravemente aberrante, era tão inofensiva como seguir
cristãos com o Earl, até à noite em que a minha mãe teve de ir a correr ao
andar de baixo para se sentar com Mrs. Wishnow, confortá-la, fazer-lhe uma
chávena de chá e metê-la na cama, tão preocupada e angustiada se
encontrava a pobre e sobrecarregada de trabalho mãe de Seldon com o facto
de o filho andar «a perder a sua roupa» inexplicavelmente.
Entretanto, Seldon estava no nosso apartamento, para onde fora mandado
fazer os trabalhos de casa comigo. Sentia-se, ele próprio, muito preocupado.
– Eu não as perdi – dizia, por entre lágrimas. – Como podia perder um
par de sapatos? Como podia perder um par de calças? – Deixa lá, ela acaba
por se esquecer – respondi-lhe.
– Não, ela não se esquece de nada. «Ainda pregas connosco no asilo dos
pobres», disse-me ela. Para a minha mãe é tudo a última gota.
– Talvez as tenhas deixado na aula de Ginástica...
– Como podia eu fazer isso? Como podia sair da aula de Ginástica sem
roupa?
– Seldon, com certeza que as deixaste em qualquer lado. Pensa.
Na manhã seguinte, antes de ir para a escola e a minha mãe sair para o
trabalho, ela sugeriu-me que oferecesse a Seldon um conjunto de roupas
minhas, para substituição das desaparecidas.
– Há também a camisa que nunca usas, aquela do tio Lenny que dizes ser
demasiado verde. E o par de calças de bombazina do Sandy, as castanhas,
que nunca te serviram bem... tenho a certeza de que ficariam bem ao
Seldon. Mrs. Wishnow está fora de si e seria um gesto muito atencioso da
tua parte.
– E roupa interior? Também lhe quer dar a minha roupa interior? Quer
que a dispa já?
– Não é necessário – respondeu, a sorrir para apaziguar a minha irritação.
– Mas a camisa verde e as calças de bombazina castanhas, e talvez um dos
teus cintos velhos, que não usas. Depende inteiramente de ti, mas
significaria muito para Mrs. Wishnow... e para o Seldon, então, seria
maravilhoso. Ele adora-te, sabes muito bem.
Pensei imediatamente: «Ela sabe. Ela sabe o que eu fiz. Ela sabe tudo.»
– Mas eu não quero que ele ande por aí com as minhas roupas –
recalcitrei. – Não quero que ande a dizer a toda a gente, no Kentucky:
«Olhem para mim, trago as roupas do Roth.»
– Porque não te preocupas com o Kentucky quando, e se, para lá formos?
– Ele levá-las-á para a escola aqui, mãe.
– Mas o que se passa contigo? O que tens? Estás a transformar-te num...
– A mãe também! – repliquei, e corri para a escola com os meus livros.
Quando voltei a casa para almoçar, tirei do armário do meu quarto a
camisa verde que detestava e as calças de bombazina castanhas que nunca
me tinham assentado bem e levei-as para baixo, para casa de Seldon, que
estava na sua cozinha a comer a sanduíche que a mãe lhe deixara e a jogar
xadrez sozinho.
– Toma – disse-lhe, e atirei as roupas para cima da mesa. – Dou-te isto. –
E acrescentei, embora soubesse que não serviria de nada no
redireccionamento de qualquer das nossas vidas: – Em troca, deixa de me
seguir por todo o lado!

Havia sanduíches de sobras de carnes frias para o nosso jantar quando


Sandy, Seldon e eu regressámos do cinema. Os adultos, que tinham comido
na sala quando a reunião terminara, tinham entretanto ido todos para suas
casas, com excepção de Mrs. Wishnow que estava sentada à mesa da
cozinha com os punhos cerrados, ainda aguerrida, ainda a defrontar-se, dia
após dia, com tudo quanto parecia apostado em esmagá-la e ao seu filho
órfão. Ouviu, com nós os três, os programas de comédia de domingo à noite
e, enquanto comíamos, observou Seldon como um animal observa as suas
crias recém-nascidas quando fareja alguma coisa que se aproxima
sorrateiramente delas. Mrs. Wishnow tinha lavado e limpo a louça e
arrumado tudo no armário, a minha mãe estava na sala a limpar a carpete e
o meu pai juntara e pusera o lixo na rua, levara o conjunto de cadeiras de
brídege para baixo, a fim de as arrumar atrás do armário onde Mr. Wishnow
se matara. O pivete a fumo de tabaco invadia a casa, apesar de todas as
janelas terem sido abertas, a cinza e as beatas, despejadas na sanita, e os
cinzeiros de vidro, lavados e arrumados, empilhados, no armário das
bebidas do aparador (do qual nem uma garrafa fora retirada naquela tarde –
em conformidade com a temperança habitual praticada na grande maioria
das casas daquele primeira laboriosa geração nascida na América – nem
uma gota solicitada por um único visitante).
De momento, as nossas vidas estavam intactas, os nossos lares nos seus
lugares e o conforto dos rituais costumados era quase suficientemente
poderoso para preservar a ilusão infantil de tempo de paz de um presente
eterno e livre de perseguições. Tínhamos a rádio a transmitir os programas
preferidos, tínhamos sanduíches a escorrer molho de carne enlatada para o
jantar e suculento bolo de café para sobremesa, tínhamos pela frente o
reatamento da rotina escolar semana após semana e tínhamos no papo uma
sessão de cinema de duas longas metragens. Mas como não fazíamos a
mínima ideia do que os nossos pais tinham decidido acerca do futuro – por
enquanto ainda não sabíamos se Shepsie Tirschwell os persuadira a emigrar
para o Canadá, se o primo Monroe apresentara um artifício jurídico
concebível para pôr em xeque o plano de realojamento, sem que todos
acabassem por ser despedidos ou se, depois de estudarem, tão serenamente
quanto eram capazes, os prós e os contras do seu realojamento, ordenado
pelo Governo, não tinham encontrado outra alternativa que não fosse a
aceitação de que as garantias de cidadania já os não abrangiam por inteiro
–, a atmosfera do todo familiar que nos envolvia não era a embriaguez que
teria sido em circunstâncias normais.
Seldon lambuzou a cara toda de mostarda quando atacou famintamente a
sua sanduíche, e eu surpreendi-me ao ver a sua mãe estender a mão para a
limpar com um guardanapo de papel. E o facto de ele a deixar fazê-lo ainda
me surpreendeu mais. «É por ele não ter pai», pensei, e apesar de, agora,
estar convencido disso acerca de tudo quanto lhe dizia respeito, pareceu-me
que provavelmente desta vez tinha razão. «É assim que vai ser no
Kentucky», pensei também. A família Roth contra o mundo e Seldon e a sua
mãe a jantarem connosco para sempre.
A nossa voz de protesto beligerante, Walter Winchell, ouviu-se às nove
horas. Toda a gente esperara, em sucessivas noites de domingo, que
Winchell se atirasse ao Homestead 42, e como ele não o fazia, o meu pai
tentava libertar-se da sua agitação sentando-se para redigir uma carta
endereçada ao único homem, além de Roosevelt, que considerava a
derradeira esperança da América. «Isto é uma experiência, Mr. Winchell.
Foi assim que Hitler agiu. Os criminosos nazis começam por qualquer coisa
pequena e depois, se se safam» escrevia, «se ninguém como o senhor solta
um grito de alarme...», mas nunca prosseguia com a lista dos horrores que
podiam suceder, porque a minha mãe tinha a certeza de que a carta acabaria
por ir parar à sede do FBI. É endereçada a Walter Winchell, explicava ela,
mas nunca chega às mãos dele: nos Correios é desviada para o FBI onde a
metem numa pasta com o rótulo de «Roth, Herman», a fim de ser arquivada
ao lado da pasta já existente com o rótulo de «Roth, Alvin».
O meu pai argumentou: «Nunca. Os Correios dos EUA não fariam isso.»
Mas a resposta cheia de bom senso da minha mãe privou-o de imediato do
pouco que restava da sua certeza. «Estás aí sentado a escrever ao Winchell,
a predizer-lhe que nada detém estas pessoas quando sabem o que podem
fazer impunemente. E agora estás a tentar dizer-me, a mim, que não podem
fazer o que quiserem e lhes apetecer aos serviços postais? Deixa outro
qualquer escrever ao Winchell. Os nossos filhos já foram interrogados pelo
FBI. O FBI já nos está a observar como um falcão por causa do que o Alvin
fez.» «Mas é por isso», disse-lhe ele, «que lhe estou a escrever. Que mais
posso fazer? Se sabes, aconselha-me. Devo limitar-me a ficar aqui sentado à
espera de que aconteça o pior?»
Ela viu a sua oportunidade no espanto impotente do meu pai e, não por
ser insensível, mas por estar desesperada, aproveitou-a e, ao fazê-lo,
humilhou-o ainda mais. «Não vês o Shepsie sentado a escrever cartas e à
espera de que o pior aconteça», disse-lhe. «Não, o Canadá outra vez, não!»,
respondeu ele, como se Canadá fosse o nome da doença que insidiosamente
nos debilitava a todos. «Não quero ouvir falar nisso. O Canadá»,
acrescentou com firmeza, «não é uma solução.» «É a única solução»
contrapôs ela. «Eu não vou fugir!», gritou o meu pai, assustando-nos a
todos. «Este é o nosso país!» «Não», respondeu a minha mãe, tristemente,
«já não é. É o país de Lindbergh. É o país dos góis. É o país deles»,
afirmou, e o tremor da sua voz, as palavras chocantes e a iminência de
pesadelo do que era implacavelmente real obrigaram o meu pai, no apogeu
da sua virilidade, em boa forma, concentrado e tão impossível de
desencorajar como qualquer outro homem de quarenta e um anos poderia
ser, a ver-se com mortificante clareza: um pai dedicado, de energia titânica,
tão incapaz de proteger a sua família do perigo como Mr. Wishnow
enforcado no roupeiro.
Ao Sandy – ainda silenciosamente enfurecido por ter sido despojado da
sua preciosa importância –, nenhum deles parecia outra coisa a não ser
estúpido, e a sós comigo não hesitava em referir-se-lhes com a linguagem
que aprendera com a tia Evelyn. «Judeus de gueto», disse-me, «assustados e
paranóicos judeus de gueto.» Em casa sorria desdenhosamente de quase
tudo o que eles diziam, fosse sobre que assunto fosse, e depois escarnecia
de mim quando parecia céptico do seu azedume. Talvez naquela altura ele
tivesse, de qualquer maneira, começado a gostar seriamente de escarnecer, e
é possível que, mesmo em tempos normais, a nossa mãe e o nosso pai se
vissem na necessidade de tolerar o melhor que podiam o sarcasmo
desdenhoso de um adolescente inquieto, mas em 1942 o que tornava as
coisas mais do que simplesmente exasperantes era a situação grave e
ambiguamente ameaçadora ao longo da qual ele continuaria a rebaixá-los
nas suas próprias caras.
– O que é «paranóico»? – perguntei-lhe.
– É alguém que tem medo da própria sombra. Alguém que pensa que o
mundo inteiro está contra ele. Alguém que pensa que o Kentucky fica na
Alemanha e que o presidente dos Estados Unidos é um tropa de choque.
Essa gente – disse, imitando a nossa capciosa tia, sempre que, altivamente,
se diferenciava da gentalha judia. – Oferecem-se para lhes pagar a
mudança, oferecem-se para escancarar as portas aos seus filhos... Sabes o
que é paranóico? – perguntou-me Sandy. – Paranóico é maluco. Eles os dois
estão chonés... estão doidos. E sabes o que os endoideceu?
A resposta era Lindbergh, mas não me atrevi a dizê-lo.
– O que foi?
–Viverem como uma cambada de papalvos num maldito gueto. Sabes o
que a tia Evelyn diz que o rabi Bengelsdorf lhe chama?
– Chama a quê?
– À maneira como esta gente vive. Chama-lhe «Manter a fé na certeza da
atribulação judaica».
– E o que significa isso? Não compreendo. Traduz, por favor. O que é
«atribulação»?
– Atribulação? Atribulação é aquilo a que vocês, judeus, chamam tsuris.

Os Wishnow tinham voltado para baixo e Sandy instalara-se na cozinha a


acabar os seus trabalhos de casa quando os meus pais, na parte da frente,
ligaram o rádio da sala para ouvirem Walter Winchell. Eu estava na cama
com as luzes apagadas. Não queria ouvir de ninguém nem mais uma palavra
apavorada a respeito de Lindbergh ou von Ribbentrop, Danville ou
Kentucky, e também não queria pensar no meu futuro com Seldon. A única
coisa que queria era mergulhar no esquecimento do sono e acordar de
manhã em qualquer outro lugar. Mas em virtude de a noite estar quente e as
janelas todas abertas, ao bater pontual das nove horas não pude evitar ser
assaltado, virtualmente por todos os lados, pela famosa marca radiofónica
registada de Winchell: o bater de pontos e traços telegráficos em código
morse (que Sandy me ensinara) que não significavam absolutamente nada.
E depois, acima desse bater que ia diminuindo, a explosão ao rubro das
palavras de Winchell em pessoa saindo de todas as casas do quarteirão.
«Boa noite, Mr. e Mrs. América...», seguido pela barragem em staccato de
palavras há muito desejadas – finalmente o látego purificador de Winchell
que mudaria tudo. Em tempos normais, quando estava de um modo geral ao
alcance da minha mãe e do meu pai porem as coisas nos devidos lugares e
explicar uma dose suficiente do desconhecido para que a existência
parecesse racional, não era de modo algum assim, mas, devido ao
exasperador presente, Winchell tornara-se, até para mim, num verdadeiro
deus e de longe mais importante do que Adonai.
– Boa noite, Mr. e Mrs. América e todos os navios no mar. Vamos à
imprensa! Instantâneo! Para gáudio do cara de rato Joe Goebbels e do seu
chefe, o Carniceiro de Berlim, a pontaria aos judeus da América pelos
fascistas de Lindbergh está oficialmente em marcha. A alcunha mentirosa
para a primeira fase da perseguição organizada aos judeus na terra dos
livres é «Homestead 42». A Homestead 42 está a ser ajudada e a ter a
cumplicidade dos mais respeitáveis barões do crime da América – mas não
se preocupem; eles serão recompensados com a distribuição de baixas de
impostos pelos homens de mão republicanos de Lindbergh, no próximo
Congresso pró-ganância.
«Item: Se os judeus da Homestead 42 irão parar a campos de
concentração à la Buchenwald de Hitler, ainda está para ser decidido pelos
dois principais suástico-pensadores de Lindbergh, o vice-presidente
Wheeler e o secretário do Interior Henry Ford. Eu disse «se»? Perdoem o
meu alemão. Queria dizer «quando».
«Item: Duzentas e vinte e cinco famílias judias já foram notificadas para
abandonarem as cidades do Nordeste americano, a fim de serem separadas
por milhares de quilómetros de família e amigos. Esta primeira leva foi
estrategicamente pequena, a fim de passar despercebida à atenção nacional.
Porquê? Porque marca o princípio do fim para os quatro milhões e meio de
cidadãos americanos de ascendência judaica. Os judeus serão enviados e
dispersos por onde quer que os adeptos hitlerianos do America First
prosperam. Aí, os sabotadores da democracia da ala direita – os ditos
patriotas e os ditos cristãos – podem ser levados a voltar-se, da noite para o
dia, contra essas famílias judias isoladas.
«E quem se segue, Mr. e Mrs. América, agora que o Bill of Rights deixou
de ser a lei da terra e os prosélitos do ódio racial dirigem o espectáculo?
Quem é o próximo alvo do plano de pogroms da dupla Wheeler-Ford para
perseguição financiada pelo Governo? Os pacientes negros? Os diligentes
italianos? Os últimos moicanos? Quem mais, entre nós, deixou de ser bem-
vindo na América ariana de Adolf Lindbergh?
«Furo! Este repórter teve conhecimento de que a Homestead 42 estava na
forja em 20 de Janeiro de 1941, o dia em que a Nova Ordem Fascista
americana mudou a sua quadrilha para a Casa Branca, e foi assinada na
negociata efectuada na Islândia entre o Führer americano e o seu associado
nazi no crime.
«Furo! Este repórter soube que Hitler só acedeu a poupar as Ilhas
Britânicas de uma invasão armada maciça através do canal Inglês a troco do
realojamento gradual – e eventual aprisionamento em massa – de judeus
americanos por arianos de Lindbergh. Os dois amados Führer concordaram
na Islândia que não fazia sentido massacrar arianos puros de olhos azuis e
cabelo louro, a não ser que fosse definitivamente indispensável. E não
constitui surpresa nenhuma que Hitler tenha definitivamente de o fazer se o
partido fascista inglês de Oswald Mosley não se apoderar do controlo
ditatorial do número 10 de Downing Street antes de 1944. É então que a
raça superior planeia concluir a escravização de trezentos milhões de russos
e içar a suástica no topo do Kremlin de Moscovo.
«E durante quanto tempo tolerará o povo americano esta traição
perpetrada pelo seu presidente eleito? Quanto tempo permanecerão os
Americanos a dormir enquanto a sua querida Constituição é feita em
fanicos pelos fascistas da quinta coluna da direita republicana a marchar sob
o sinal da cruz e da bandeira? Fiquem comigo, com o vosso correspondente
de Nova Iorque Walter Winchell, para a minha próxima grande bomba
acerca das mentiras traiçoeiras de Lindbergh.
«Volto num instante com um instantâneo!»
Aconteceram então três coisas, simultaneamente: a voz apaziguadora do
locutor Ben Grauer começou a anunciar loção para as mãos em nome do
patrocinador do programa; o telefone começou a tocar no corredor do lado
de fora do meu quarto, coisa que nunca acontecia depois das nove horas da
noite, e Sandy explodiu. Dirigindo-se apenas ao aparelho de rádio (mas tão
apaixonadamente que o meu pai se levantou de imediato da sua cadeira na
sala), começou a gritar: «Mentiroso imundo! Sacana mentiroso!»
– O que é isso? – perguntou o meu pai, correndo para a cozinha. – Nesta
casa, não. Essa linguagem nesta casa, não. Basta!
– Mas como é capaz de ouvir aquela porcaria? Que campos de
concentração? Não há campos de concentração nenhuns! Cada palavra é
uma mentira... Tretas e mais tretas para os levar a ouvi-lo! O país inteiro
sabe que Winchell é um saco de vento pomposo... só vocês é que não
sabem.
– E quem são, ao certo, esses vocês? – ouvi o meu pai perguntar.
– Eu vivi no Kentucky! O Kentucky é um dos quarenta e oito estados!
Vivem lá seres humanos, como vivem em qualquer outro lugar! Não é um
campo de concentração! Este gajo ganha milhões a vender a sua loção de
merda para as mãos... e vocês acreditam nele!
– Já te disse o que tinha a dizer a respeito de linguagem suja e agora estou
a falar-te a respeito dessa história do «vocês». Repete o «vocês» mais uma
vez que seja, filho, e pedir-te-ei que saias de casa. Se quiseres ir viver no
Kentucky em vez de aqui, levo-te no carro à Penn Station e podes apanhar o
primeiro comboio que partir, pois eu sei muito bem o que esse «vocês»
significa. E tu também sabes. Assim como toda a gente. Não voltes a usar
essa palavra nesta casa, nunca mais.
– Bem, na minha opinião, Walter Winchell é só bazófia.
– Muito bem. Essa é a tua opinião e tens direito a ela. Mas há outros
americanos que têm uma opinião diferente. Sucede, até, que milhões e
milhões de americanos ouvem Walter Winchell todos os domingos à noite...
e eles não são apenas aquilo que tu e a tua brilhante tia chamam «vocês» ou
«essa gente». O programa dele ainda é o programa noticioso com maior
audiência. Franklin Roosevelt confidenciou a Walter Winchell coisas que
jamais teria dito a outro jornalista. E, faz o favor de me ouvir: isto são
factos.
– Mas eu não posso ouvi-lo. Como posso ouvi-lo quando me fala em
«milhões» de pessoas? Milhões de pessoas não são nada senão idiotas!
Entretanto, a minha mãe atendera o telefone no corredor e, da minha
cama, também a ouvia agora a ela. Sim, dizia, claro que tinham ligado para
o Winchell. Sim, era terrível, era pior do que pensavam, mas pelo menos
agora estava a descoberto, era do conhecimento público. Sim, o Herman
ligaria assim que o programa de Winchell terminasse.
Travou quatro vezes consecutivas esta mesma conversa, mas quando o
telefone tocou pela quinta vez não saltou do lugar para atender, apesar de
quem ligava só poder ser outro dos amigos deles abalado pelo fogo intenso
das revelações de Winchell – e não atendeu porque a publicidade acabara, e
ela e o meu pai estavam de novo junto do rádio, na sala. E Sandy
encontrava-se agora no quarto, onde eu fingi estar a dormir enquanto ele se
preparava para se deitar à luz velada do pequeno candeeiro de interruptor de
alavanca que ele fizera a partir do nada na aula de Trabalhos Manuais, no
tempo em que era apenas um rapaz com dotes artísticos, absorvido naquilo
que conseguia fazer com as suas próprias mãos hábeis e abençoadamente
não contaminado por lutas ideológicas.

Desde a morte da minha avó, há dois anos, que o nosso telefone não era
usado tão incessantemente e a horas tão tardias da noite. Eram quase onze
horas quando o meu pai acabou de retribuir as chamadas de todos, e
decorreu outra hora até ele e a minha mãe saírem da cozinha, onde tinham
estado a conversar calmamente, e irem por sua vez deitar-se. E passaram
ainda mais duas horas até eu ter a certeza de que eles estavam a dormir
profundamente e, na cama ao lado da minha, o meu irmão já não estava de
olhos furiosamente fitos no tecto, mas sim, também, a dormir, o que me
permitiu levantar-me em segurança, sem ser descoberto, dirigir-me para a
porta das traseiras, abrir a fechadura, sair sorrateiramente de casa e descer a
escada para a cave onde, às escuras, atravessei descalço o chão húmido até
à nossa arrecadação.
Não me impelia nenhum sentimento impulsivo ou histérico, não havia
nada de dramático na minha decisão nem, que me apercebesse, nada de
temerário. As pessoas disseram, depois, que não tinham feito ideia de que
sob a pátina de obediência e boas maneiras de garoto do quarto ano, eu
pudesse ser uma criança tão surpreendentemente irresponsável e
devaneadora. Mas não se tratou de nenhum devaneio insignificante. Eu não
estava a brincar ao faz de conta nem estava a ser travesso pela travessura
em si. Na verdade, as minhas travessuras com Earl Axman tinham sido um
treino precioso, mas empreendido com um objectivo completamente
diverso. Não sentia, garanto, que estava a lançar-me de cabeça na
insanidade, nem sequer quando entrei na arrecadação escura, despi o pijama
e enfiei as calças de Seldon, ao mesmo tempo que afugentava mentalmente
o fantasma do seu pai e tentava não me sentir aterrorizado com a cadeira de
rodas vazia de Alvin. Não estava a ser engolido por nada mais do que a
determinação de resistir a uma tragédia que a nossa família e os nossos
amigos já não podiam ignorar e a que talvez não sobrevivessem. Mais tarde,
os meus pais disseram: «Ele não sabia o que estava a fazer», e o
«sonambulismo» tornou-se a explicação oficial. Mas eu estava inteiramente
acordado e a minha motivação nunca foi obscura para mim. Obscuro era
apenas saber se seria bem-sucedido. Um dos meus professores sugeriu que
eu sofrera de «mania de grandeza» inspirada pelo que estava a aprender na
escola acerca do Caminho-de-Ferro Subterrâneo, organizado antes da
Guerra Civil para ajudar os escravos na fuga para norte, para a liberdade.
Não era. Eu não era nada parecido com Sandy, no qual a oportunidade
atiçara o desejo de ser um rapaz em grande escala, montado na crista da
História. Eu não queria ter nada que ver com a História. Queria ser um
rapaz na mínima escala possível. Queria ser órfão.
Havia apenas uma coisa que não queria deixar para trás: o meu álbum de
selos. Se tivesse podido ter a certeza de que ele seria mantido intacto depois
da minha partida, talvez não tivesse, no último momento antes de sair do
quarto, parado para abrir a gaveta da minha cómoda e, o mais
silenciosamente possível, tirado o álbum de onde ele estava arrumado
debaixo das minhas peúgas e roupa interior. Mas era-me intolerável pensar
que o meu álbum seria destruído ou deitado fora, ou, pior ainda, dado
absolutamente intacto a outro rapaz, e por isso meti-o debaixo do braço e,
juntamente com ele, o abre-cartas com o formato de um mosquete que
comprara em Mount Vernon e cuja ponta de baioneta usava para abrir muito
bem o único correio que alguma vez recebia, além de cartões de parabéns
nos meus anos: as embalagens de «ofertas de venda» enviadas regularmente
de Boston 17, Massachusetts, pela «maior firma de filatelia do mundo», a
H. E. Harris & Co.

Não me lembro de nada entre o momento em que saí sorrateiramente de


casa e comecei a descer a rua deserta na direcção dos terrenos do orfanato e
aquele em que acordei no dia seguinte e deparei com os rostos severos dos
meus pais aos pés da minha cama e ouvi um médico, que retirava
atarefadamente uma espécie de tubo qualquer do meu nariz, dizer-me que
estava internado no Beth Israel Hospital e, embora tivesse, provavelmente,
uma enorme dor de cabeça, ia ficar bom. A cabeça doía-me de facto
terrivelmente, mas isso não se devia à pressão de nenhum coágulo de
sangue no cérebro – possibilidade que tinham temido quando fui
encontrado, a sangrar e inconsciente – nem a nenhuma lesão cerebral. Os
raios X tinham excluído qualquer fractura de crânio e o exame neurológico
não revelara quaisquer lesões nos nervos. Além de uma extensa laceração
com oito centímetros que precisou de dezoito pontos, que foram tirados na
semana seguinte, e ao facto de não ter qualquer recordação da própria
pancada, não havia nada de grave comigo. Uma concussão de rotina,
declarou o médico, era apenas isso que estava a causar a dor e a amnésia.
Provavelmente nunca me lembraria de ter sido escoiceado pelo cavalo –
nem da série de acontecimentos que conduzira a essa colisão –, o que
também era rotina, no dizer do médico. Tirando isso, a minha memória
estava intacta. Felizmente. Ele empregou várias vezes esta palavra, que
pareceu ridícula à minha cabeça dorida.
Mantiveram-me internado sob observação durante todo esse dia e essa
noite – acordando-me quase de hora a hora para terem a certeza de que não
mergulhava de novo na inconsciência – e na manhã seguinte deram-me alta
e recomendaram-me apenas que não abusasse de actividades físicas durante
cerca de uma ou duas semanas. A minha mãe pedira licença no trabalho
para estar no hospital comigo, e estava lá para me levar para casa de
autocarro. Como a cabeça não parou de me doer durante cerca de dez dias,
e como não se podia fazer nada a esse respeito, não pude ir à escola; mas
tirando isso diziam que eu estava bem, e estava bem principalmente graças
a Seldon que, de longe, observara quase tudo aquilo de que eu era incapaz
de me lembrar. Se ele não se tivesse esgueirado da cama quando me ouviu
descer a escada das traseiras, se não me tivesse seguido no escuro ao longo
da Summit Avenue, atravessado o campo de jogos da escola secundária para
o lado do orfanato que dava para a Goldsmith Avenue e entrado pela
cancela aberta para a mata do orfanato, eu teria provavelmente ficado ali
caído, com a sua roupa vestida, a sangrar até à morte. Seldon correu todo o
caminho de volta a casa, acordou os meus pais, que ligaram imediatamente
para a telefonista a pedir socorro, meteu-se no nosso carro com eles e
indicou-lhes o caminho até onde eu me encontrava. Eram nessa altura quase
três horas da manhã e estava negro como breu; ajoelhando a meu lado no
solo húmido, a minha mãe comprimiu uma toalha que trouxera contra a
minha cabeça, para estancar o sangue, enquanto o meu pai me tapava com
uma velha manta de piqueniques que se encontrava na bagageira e me
manteve quente até a ambulância chegar. Os meus pais organizaram o meu
salvamento, mas Seldon salvou-me a vida.
Aparentemente, eu assustara os dois cavalos quando, desorientado,
começara a tropeçar no escuro onde as matas abriam para o campo de
cultivo, e ao voltar-me para tentar escapar aos animais e voltar à rua pelo
meio da mata, um deles empinara-se, eu tropeçara e caíra, e o outro cavalo,
em fuga, batera-me com um casco no alto da parte de trás da minha cabeça.
Durante semanas, Seldon contou-me e recontou-me animadamente (e, é
claro, à escola inteira) todos os pormenores da minha tentativa nocturna
para fugir de casa e ser recebido pelas freiras como uma criança sem família
– apimentando em especial o azar com os cavalos, assim como o facto de
ele, fora de casa no meio da noite, descalço e apenas com o pijama vestido,
ter atravessado duas vezes o quilómetro e meio de terreno abrasivo entre a
mata do orfanato e a nossa casa.
Ao contrário da sua mãe e dos meus pais, Seldon não conseguia dominar
a emoção de descobrir que não fora ele quem, inexplicavelmente, «perdera»
a sua roupa, mas sim eu que lha roubara para a usar na minha fuga. Esta
absoluta improbabilidade atribuiu à sua própria existência um valor que
jamais tivera e que antes escapara à sua atenção. Contar a história com todo
o prestígio de salvador e, ao mesmo tempo, co-conspirador – e mostrar a
toda a gente que os olhava os seus pés esfolados – pareceu tornar Seldon
finalmente importante, até aos seus próprios olhos, um rapaz intrépido,
capaz de chamar uma atenção de herói pela primeira vez na vida, enquanto
eu estava devastado não apenas pela vergonha de tudo aquilo, que era mais
insuportável e durou mais do que a dor de cabeça, mas também porque o
meu álbum de selos, o meu maior tesouro, aquilo sem o qual não podia
viver, desaparecera. Não me lembrei de tê-lo levado comigo até ao dia
depois de ter regressado do hospital a casa, quando me levantei de manhã
para me vestir e verifiquei que ele desaparecera de baixo das minhas peúgas
e da minha roupa interior. A razão principal por que o guardava ali era para
ser a primeira coisa que via todas as manhãs quando me vestia para ir para a
escola. E agora a primeira coisa que via, na minha primeira manhã em casa,
era que a coisa mais importante que jamais possuíra estava desaparecida.
Desaparecida e insubstituível. Como se tivesse perdido uma perna – e ao
mesmo tempo absolutamente diferente disso.
– Mãe! – gritei. – Mãe! Aconteceu uma coisa terrível!
– O que foi? – gritou ela, em resposta, e veio a correr da cozinha para o
meu quarto. – O que aconteceu?
Pensou, claro, que eu tinha começado a sangrar dos meus pontos, ou que
estava prestes a desmaiar, ou que a dor de cabeça se tornara insuportável.
– Os meus selos! – Foi tudo quanto consegui dizer, e ela foi capaz de
calcular o resto.
O que fez, então, foi ir procurá-los. Dirigiu-se sozinha à mata do orfanato
e revistou o terreno onde eu fora descoberto, mas não encontrou o álbum
em lugar nenhum, não encontrou um único selo para amostra.
– Tens a certeza de que os levavas? – perguntou-me, quando chegou a
casa.
– Tenho! Tenho! Eles estão lá! Têm de estar lá! Não posso perder os meus
selos!
– Mas eu procurei. Procurei em todo o lado.
– Quem os terá apanhado? Onde poderão estar? São meus! Temos de os
encontrar! São os meus selos!
Estava inconsolável. Imaginei uma horda de órfãos a descobrirem o
álbum na mata e a rasgá-lo com as mãos imundas. Vi-os a arrancar os selos
e a comerem-nos, a espezinharem-nos e a deitá-los às mancheias para a
sanita da sua horrorosa casa de banho e a puxarem o autoclismo. Odiavam o
álbum, porque não era deles – odiavam o álbum, porque nada era deles.
Porque eu lho pedi, a minha mãe não disse nem ao meu pai nem ao meu
irmão o que acontecera aos meus selos nem lhes falou do dinheiro
encontrado nas calças de Seldon. «Na algibeira, quando te encontrámos,
havia dezanove dólares e cinquenta cêntimos. Não sei de onde vieram, nem
quero saber. Esse episódio está morto e enterrado. Abri uma conta de
poupança para ti no Howard Savings Bank e depositei-os lá, para o teu
futuro.» Estendeu-me uma pequena caderneta bancária, com o meu nome
escrito no interior e tendo «$19,50» carimbado a preto, como primeiro e
único registo, na página dos depósitos. «Obrigado», agradeci. E depois ela
proferiu o julgamento do seu segundo filho, julgamento que, estou
convencido, levou consigo para a sepultura: «És uma criança
estranhíssima», disse-me. «Não fazia a mínima ideia», acrescentou. «Nem
me passava pela cabeça.» A seguir estendeu-me o abre-cartas, o mosquete
de estanho em miniatura comprado em Mount Vernon. A coronha estava
riscada e suja e a baioneta ligeiramente deformada. Encontrara-o nessa
tarde quando, sem eu saber, viera a correr do emprego, à hora do almoço, e
regressara uma segunda vez à mata do orfanato em busca do mais pequeno
resto da colecção de selos que levara sumiço como se nunca tivesse
existido.
7
Junho de 1942 – Outubro de 1942
AS ARRUAÇAS DE WINCHELL

NO DIA anterior a ter descoberto que os meus selos tinham desaparecido,


tomara conhecimento da decisão do meu pai de deixar o emprego. Minutos,
apenas, após o meu regresso do hospital a casa, na terça-feira de manhã, ele
guiou para nossa casa, entrou na travessa na camioneta, com lados de ripas
de madeira, do tio Monty e estacionou-a atrás do carro de Mrs. Wishnow,
depois de acabar a sua primeira noite de trabalho no mercado da Miller
Street. Daí em diante, de domingo à noite até sexta-feira de manhã, passou
a chegar a casa às nove, dez horas, lavar-se, comer a sua abundante
refeição, ir para a cama e adormecer pelas onze horas, e quando eu voltava
da escola tinha de ter cuidado e não bater com a porta das traseiras, para
não o acordar. Um pouco antes das cinco da tarde ele levantava-se e saía,
porque por volta das seis, sete horas, os agricultores começavam a chegar
ao mercado com os seus produtos e depois, das dez horas da noite às quatro
da manhã, chegavam os retalhistas para comprar, juntamente com os
proprietários de restaurantes e os hoteleiros, e finalmente os vendedores
ambulantes, de carroça e cavalo, da cidade. Ele sobrevivia à longa noite
com a garrafa-termos de café e as duas sanduíches que a minha mãe lhe
preparava para levar para o trabalho. Aos domingos de manhã ia visitar a
mãe a casa do tio Monty e trazia-a para casa, para nos ver, e passava o resto
do domingo a dormir – e, mais uma vez, nós não podíamos fazer barulho,
para não o acordar. Era uma vida difícil, sobretudo porque, de vez em
quando, ele tinha de partir muito antes do alvorecer para visitar agricultores
em condados de Passaic e Union e trazer os seus produtos, tudo sozinho, se
o tio Monty achava que fazia melhor negócio dessa maneira.
Eu sabia que era uma vida dura, porque quando ele chegava a casa, de
manhã, tomava uma bebida. Geralmente, em nossa casa uma garrafa de
Four Roses durava anos. A minha mãe, uma caricatura de abstémia, não
suportava o aspecto de um copo de cerveja espumejante, quanto mais o
cheiro do whisky puro, e quando é que o meu pai alguma vez tomara uma
bebida, a não ser no aniversário do seu casamento ou quando o seu chefe
vinha jantar connosco e ele lhe servia Four Roses on the rocks? Mas agora
chegava a casa do mercado e, antes mesmo de despir a roupa suja e tomar
duche, deitava o whisky num copo pequeno, inclinava a cabeça para trás e
bebia-o de um trago, fazendo a cara de um homem que acabava de trincar
uma lâmpada eléctrica. «Bom!», exclamava em voz alta, «Bom!» Só depois
conseguia descontrair-se o suficiente para comer uma farta refeição sem
ficar com indigestão.
Eu estava aturdido, não apenas pelo declínio abrupto do estatuto
profissional do meu pai – não apenas pela camioneta na travessa e as botas
de solas grossas nos pés de um homem que anteriormente saía para o
trabalho de fato e gravata e sapatos pretos bem engraxados, não apenas pelo
modo absurdo como ele emborcava a sua golada de whisky e jantava
sozinho às dez horas da manhã –, mas também pelo meu irmão, pela
imprevista transformação dele.
Sandy já não andava furioso. Nem desdenhoso. Não agia com sobranceria
em aspecto algum. Era como se também ele tivesse levado uma pancada na
cabeça, mas uma pancada que, em vez de lhe provocar amnésia,
rejuvenescera o rapaz calmo e consciencioso cujas satisfações emanavam
não de ser um precoce figurão importante, cheio de opiniões antagónicas,
mas daquela corrente forte e serena de uma vida interior que o conduzia
firmemente de manhã até à noite e que, aos meus olhos, sempre fizera dele
genuinamente superior aos outros rapazes da sua idade. Ou talvez a paixão
pelo estrelato – a par da capacidade de conflito – se tivesse esgotado; talvez
ele nunca tivesse possuído o egoísmo necessário e se sentisse secretamente
aliviado por já não ter de ser publicamente estupendo. Ou talvez nunca
tivesse acreditado naquilo que esperavam que proclamasse. Ou talvez,
enquanto eu estava inconsciente no hospital com um hematoma que poderia
ameaçar-me a vida, o meu pai lhe tivesse pregado o sermão que resolvera o
assunto. Ou talvez, na esteira da crise que eu precipitara, estivesse apenas a
ocultar o eu estupendo que existia atrás do antigo Sandy, disfarçando,
calculando, esperando astutamente escondido até... até sabe-se lá o que
poderia acontecer a seguir. Fosse como fosse, por agora o choque das
circunstâncias reencaminhara o meu irmão para o redil da família.
E a minha mãe já não trabalhava fora de casa. Não havia, de modo algum,
o que ela esperara juntar na conta de poupança em Monreal, mas havia o
suficiente para atravessarmos a fronteira e recomeçarmos no Canadá se
tivéssemos de fugir de um momento para o outro. Ela deixara o seu
emprego no Hahne’s não menos expeditamente do que o meu pai alijara a
segurança dos seus doze anos de ligação à Metropolitan, a fim de frustrar os
planos governamentais para a nossa transferência para o Kentucky e
salvaguardar-nos do subterfúgio anti-semita que ele, assim como Winchell,
sabia ser o Homestead 42. Ela estava de novo a governar a casa a tempo
inteiro e voltaria a estar lá quando regressássemos da escola, e durante as
férias de Verão também lá estaria para não nos perder de vista, ao Sandy e a
mim, para não voltarmos a descontrolar-nos devido à falta de vigilância.
Um pai remodelado, um irmão restituído, uma mãe recuperada, dezoito
suturas de seda preta na minha cabeça e o meu maior tesouro
irremediavelmente perdido, e tudo a uma espantosa velocidade de conto de
fadas. Uma família simultaneamente desclassificada e reenraizada da noite
para o dia, sem enfrentar nem o exílio nem a expulsão, mas ainda
entrincheirada na Summit Avenue, ao passo que, dentro de três breves
meses, Seldon – a quem eu estava irremediavelmente jungido, agora que ele
andava pelo bairro a gabar-se de me ter impedido de sangrar até à morte
disfarçado com as suas roupas –, Seldon ir-se-ia embora. A partir de 1 de
Setembro, Seldon estaria ausente, a viver com a sua mãe, e seria o único
miúdo judeu em Danville, Kentucky.

O meu «sonambulismo» teria provavelmente causado um escândalo ainda


mais humilhante do que causou na nossa vizinhança imediata, não fora o
caso de Walter Winchell ter sido despedido pela Jergens Lotion, horas,
apenas, depois de ter saído do ar na noite de domingo em que eu fugira.
Essa era a notícia verdadeiramente chocante em que ninguém podia
acreditar e que Winchell não estava disposto a deixar o país esquecer.
Depois de dez anos como o principal repórter radiofónico da América, foi
substituído, às nove horas da noite do domingo seguinte, por mais uma
banda de música de dança transmitida por mais outro sofisticado superclube
na cobertura de um hotel de Manhattan. A primeira acusação da Jergens
contra ele era que um locutor de rádio com uma audiência, a nível nacional,
de mais de vinte e cinco milhões de pessoas, praticamente «gritou fogo num
cinema apinhado»; a segunda foi que difamara um presidente dos Estados
Unidos com acusações mal-intencionadas «que só o mais insultuoso
demagogo poderia inventar para despertar as paixões da turba».
Até o moderado New York Times, um jornal fundado por e propriedade de
judeus – e altamente considerado pelo meu pai por esse motivo –, e de
modo algum acrítico da política de Lindbergh em relação à Alemanha de
Hitler, proclamava o seu irrestrito apoio à atitude adoptada pela Jergens
Lotion num editorial intitulado «Uma Vergonha Profissional». «Há algum
tempo que se verifica uma rivalidade», escrevia o Times,

entre empresários contra Lindbergh para avaliar qual deles consegue


apresentar as explicações mais indignas para os motivos da
Administração Lindbergh. Com uma passada bombástica, Walter
Winchell colocou-se à frente da matilha. Os ténues escrúpulos e o gosto
questionável de Mr. Winchell tropeçaram num paroxismo de vitríolo tão
imperdoável quanto desprovido de escrúpulos. Com acusações tão
forçadas que até um democrata de longa data pode dar consigo a sentir
inesperada simpatia pelo presidente, Winchell desacreditou-se
irredimivelmente. A Jergens Lotion merece elogios pela rapidez com que
o retirou do ar. O jornalismo tal como é praticado pelos Walter Winchells
deste país é um insulto tanto aos nossos cidadãos esclarecidos como aos
padrões jornalísticos de precisão, equidade e responsabilidade pelos
quais Mr. Winchell, as suas cínicas coortes tabloidescas e os seus
editores famintos de dinheiro sempre demonstraram o máximo desprezo.

Num ataque posteriormente desencadeado a favor da Administração de


Lindbergh e publicado pelo Times como a primeira e mais extensa das
cartas inspiradas pelo seu editorial, um eminente correspondente, depois de
aludir com gratidão ao editorial e de reforçar a sua argumentação com
novos exemplos do desrespeito ostensivo de Winchell à Primeira Emenda,
concluía: As tentativas para instigar e assustar os outros judeus não são
menos desprezíveis do que a desconsideração pelas normas de decência que
o vosso jornal tão veementemente condena. Nada é, sem dúvida, tão
abominável como explorar os medos históricos de um povo perseguido, em
especial quando a participação plena numa sociedade aberta isenta de
opressão é precisamente o que a actual Administração se empenha em
conseguir para este mesmo grupo através dos esforços do Gabinete
Americano de Assimilação. A caracterização, por Walter Winchell, do
Homestead 42, um programa elaborado para alargar e enriquecer o
envolvimento de orgulhosos cidadãos judeus da América na vida nacional,
como uma estratégia fascista para isolar os judeus e excluí-los da vida
nacional é o cúmulo do atrevimento jornalístico e um exemplo da técnica da
Grande Mentira que representa hoje a maior ameaça à liberdade
democrática em todo o lado.»
A carta era assinada por «rabi Lionel Bengelsdorf, director, Gabinete
Americano de Assimilação, Departamento do Interior, Washington, D. C.»
A resposta de Winchell saiu na coluna que ele escrevia para o Daily
Mirror, o jornal de Nova Iorque pertencente ao editor mais rico da América,
William Randolph Hearst, proprietário de uma cadeia de cerca de vinte
jornais de direita e meia dúzia de revistas populares, assim como da King
Features, onde Winchell escrevia e era lido por muitos mais milhões. Hearst
desprezava as simpatias políticas de Winchell, em especial a sua
glorificação de FDR, e tê-lo-ia despedido há anos, não fora o facto de os
próprios Nova-Iorquinos, por cujos níqueis o Mirror competia contra o
Daily News, acharem irresistível o encanto de sarjeta da singular mistura de
contenciosa denúncia de escândalos e nauseante patriotismo do colunista.
Segundo Winchell, o motivo por que Hearst finalmente o despediu teve
menos que ver com a animosidade de longa data entre colunista e editor do
que com a pressão da Casa Branca, à qual nem um velho e implacável
magnata tão poderoso como Hearst ousou resistir, com medo das
consequências.
«Os fascistas de Lindbergh» – assim começava a coluna
caracteristicamente atrevida e incorrigível de Winchell publicada poucos
dias, apenas, depois de ter perdido o seu contrato com a rádio –
«desencadearam abertamente o seu assalto nazi à liberdade de expressão.
Hoje, Winchell é o inimigo a silenciar... Winchell, “o instigador da guerra”,
“o mentiroso”, “o alarmista”, “o comuna”, “o judeu”. Hoje, este vosso
servidor; amanhã, qualquer homem da rádio e repórter que ouse dizer a
verdade acerca da conspiração fascista para destruir a democracia
americana. Arianos honorários como o rábido rabi Lionel Mentiroso B e os
presumidos proprietários da Park Avenue do cobarde New York Times não
são os primeiros Quislings judeus ultracivilizados a lamber as botas a um
amo anti-semita, porque, coitados, são muito, mas muito, mesmo, refinados
para lutar como Winchell... e não serão os últimos. Os jumentos da Jergens
não são os primeiros cobardes corporativos a alinhar com a máquina
ditatorial mentirosa que dirige agora este país... e também não serão os
últimos.»
E essa coluna – que continuava a enumerar mais uns quinze inimigos
pessoais seus que se qualificavam como principais colaboradores fascistas
da América – seria, de facto, a sua última.
Três dias mais tarde, depois de visitar Hyde Park para se certificar de que
FDR continuava determinado a não sair do seu isolamento político para se
candidatar a um terceiro mandato, Winchell anunciou a sua candidatura a
presidente dos Estados Unidos nas próximas eleições gerais. Até então,
considerava-se que estavam na corrida o secretario de Estado de Roosevelt,
Cordell Hull; o ex-secretário da Agricultura e candidato a vice-presidente
da plataforma de 1940, Henry Wallace; o correio-mor de Roosevelt e
presidente do Partido Democrático, James Farley; o juiz do Supremo
Tribunal, William O’Douglas, e dois democratas do centro, nenhum deles
ligado ao New Deal, o ex-governador de Indiana, Paul V. MacNutt, e o
senador Scott W. Lucas, do Illinois. Havia também uma notícia não
confirmada (posta a circular e talvez criada por Winchell no tempo em que
ainda ganhava oitocentos mil dólares por ano e punha em circulação
notícias não confirmadas), segundo a qual, se a convenção acabasse num
empate, como podia muito bem acontecer com uma lista de candidatos tão
pouco entusiasmante, Eleanor Roosevelt, uma forte presença política e
diplomática durante os dois mandatos do marido – e ainda uma figura
popular, cujo misto de franqueza e reserva aristocrática lhe granjeara
enormes adeptos entre o eleitorado liberal do partido, assim como
numerosos inimigos zombeteiros na imprensa da direita –, apareceria na
sala da convenção da mesma maneira que Lindbergh aparecera na
Convenção Republicana de 1940 e conquistaria a nomeação por aclamação.
Mas depois de Walter Winchell se tornar o primeiro candidato democrata a
entrar na corrida, e a fazê-lo quase trinta meses antes das eleições de 1944,
antes mesmo das eleições de meio de mandato para o Congresso – e a fazê-
lo imediatamente após o retumbante alarido que resultou do facto de ter
sido «purgado» da sua profissão pela «táctica de putsch violento da
quadrilha fascista da Casa Branca» (como Winchell descreveu os seus
inimigos e respectivos métodos, ao anunciar a sua candidatura) –, o outrora
colunista de mexericos tornou-se o homem que era preciso vencer, o único
democrata com um nome conhecido de todos e suficientemente audacioso
para atacar com ferocidade um governante tão amado como Lindy.
Líderes republicanos não se dignavam a tomar Winchell a sério,
presumindo quer que o irreprimível actor estava a encenar um
autoglorificante espectáculo secundário para apanhar fundos a um punhado
de democratas fanáticos, quer a servir de ostentosa manobra de diversão
para encobrir FDR (ou talvez a ambiciosa mulher de Roosevelt), agitando e
avaliando simultaneamente os ocultos sentimentos contra Lindbergh que
porventura poderiam existir numa nação onde as sondagens mostravam que
o presidente continuava a ser apoiado por um recorde de 80 a 90 por cento
de todos os tipos e categorias de votantes, exceptuando os judeus. Em
resumo, Winchell era o candidato dos judeus, e ele próprio um judeu do tipo
mais grosseiro, não se parecendo em nada com o círculo íntimo de bem-
educados e dignos democratas judeus como o amigo rico de Roosevelt,
Bernard Baruch, ou o banqueiro e governador de Nova Iorque, Herbert
Lehman, ou o recentemente aposentado Louis Brandeis, juiz do Supremo
Tribunal. E como se ser um judeu sem estatuto, que personificava
praticamente todas as características vulgares que tornavam os judeus
menos do que bem-vindos aos melhores estratos da sociedade social e
comercial americana, não bastasse para o tornar uma impertinência
irrelevante na cena política, a não ser nos distritos eleitorais fortemente
judaicos da Cidade de Nova Iorque, havia a sua fama de mulherengo
adúltero, com queda para seduzir coristas de pernas compridas, e a sua
devassa vida nocturna entre as celebridades de hábitos condenáveis de
Hollywood e da Broadway, que bebiam até altas horas no New York’s Stork
Club, para o tornar um anátema para a multidão puritana. A sua candidatura
era uma anedota, e os Republicanos trataram-na como tal e nada mais.
Mas na nossa rua, nessa semana, como consequência imediata do
despedimento de Winchell e da sua ressurreição instantânea como candidato
presidencial, o significado desses dois acontecimentos era o assunto quase
exclusivo das conversas entre vizinhos. Após quase dois anos sem nunca
saberem se deviam acreditar no pior, de tentarem concentrar-se nas
exigências do seu dia-a-dia e absorverem depois, impotentemente, todos os
boatos acerca do que o Governo tinha de reserva para eles, de nunca
poderem justificar nem o seu medo nem a sua compostura com factos puros
e claros, após tanta perplexidade, estavam tão preparados para se iludirem
que, quando os pais se reuniam nas suas cadeiras de praia para conversarem
nas travessas, à noite, o jogo da conjectura que invariavelmente começava
podia prolongar-se horas a fio, sem parar: Quem seria o vice-presidente da
plataforma de Winchell? Quem nomearia ele para o seu gabinete? Quem
nomearia ele para o Supremo Tribunal? Quem viria a ser o maior líder, FDR
ou Walter Winchell? Lançavam-se de cabeça em mil fantasias, e as próprias
crianças pequenas eram contagiadas por esse espírito e pulavam e
dançavam, entoando: «Wind-shield para pre-si-den-te... Wind-shield para
pre-si-den-te.» É claro que nenhum judeu poderia ser, nunca, eleito
presidente – e muito menos um judeu com uma boca tão imparável como a
de Winchell –, até um miúdo da minha idade já aceitava isso como se a
interdição estivesse claramente escrita na Constituição dos EUA. No
entanto, nem essa certeza blindada conseguia impedir os adultos de
ignorarem o bom senso e, durante uma ou duas noites, imaginarem-se, a si e
aos seus filhos, cidadãos nativos do Paraíso.

O casamento do rabi Bengelsdorf e da tia Evelyn efectuou-se num


domingo, em meados de Junho. Os meus pais não foram convidados, nem
esperavam ou queriam ser, mas no entanto nada foi possível fazer para
aliviar a tristeza da minha mãe. Eu já antes a ouvira chorar atrás da porta do
seu quarto, e embora não fosse uma ocorrência habitual, ou de que eu
gostasse, em todos os meses durante os quais os meus pais lutaram para
avaliar a ameaça constituída pela Administração Lindbergh e determinarem
qual a reacção sensata que uma família judaica devia adoptar, nunca a
achara tão inconsolável. «Porque tem de acontecer também isto?»,
perguntou ao meu pai. «Eles estão apenas a casar-se», respondeu-lhe ele.
«Não é o fim do mundo.» «Mas eu não consigo deixar de pensar no meu
pai.» «O teu pai morreu, o meu pai morreu. Não eram novos, adoeceram e
morreram.» Teria sido difícil imaginar um tom mais compreensivo do que o
dele, mas o desgosto dela era tão grande que, quanto mais doce era a voz
dele, mais ela sofria. «E penso», continuou, «na minha mãe, penso que ela
já não conseguiria compreender nada.» «Querida, podia ser tudo muito mais
terrível... tu sabes isso.» «E será», disse a minha mãe. «Talvez não, talvez
não. Talvez tudo tenha começado a mudar. Winchell ... !» «Oh, por favor,
Walter Winchell não será...!» «Caluda, caluda», murmurou-lhe ele, «olha o
mais novo.»
Compreendi, assim, que Walter Winchell não era, de facto, o candidato
dos judeus: era o candidato dos filhos dos judeus, uma coisa que nos estava
a ser dada para a agarrarmos, do mesmo modo que, não muitos anos antes,
nos fora dado o seio, não apenas para nos alimentarmos, mas também para
alívio dos medos da tenra infância..

A cerimónia do casamento realizou-se no templo do rabi e a recepção,


depois, no salão de baile do Essex House, o hotel mais luxuoso de Newark.
Os notáveis que compareceram, cada um acompanhado por uma mulher ou
um marido, vinham enumerados dentro de uma caixa, separada da notícia
do casamento propriamente dita e mesmo ao lado de fotografias da noiva e
do noivo publicadas no Newark Sunday Call. A lista era
surpreendentemente extensa e impressionante, e eu apresento-a aqui para
explicar por que motivo eu, pelo menos, não pude deixar de perguntar a
mim mesmo se os meus pais e os seus amigos da Metropolitan não estariam
completamente alheados da realidade para imaginarem que lhes podia
acontecer algum mal em virtude de um programa do Governo ser
administrado por um luminar da estatura do rabi Bengelsdorf.
Para começar, havia judeus em abundância na cerimónia do casamento,
entre eles familiares e amigos, frequentadores do templo do rabi
Bengelsdorf, admiradores e colegas de todos os pontos do país. E também
muitos cristãos. E, de acordo com o artigo do Sunday Call – que ocupava
página e meia das duas dedicadas à sociedade naquele dia –, entre os vários
convidados que não tinham podido comparecer, mas tinham enviado os
seus votos de felicidades por intermédio da Western Union, contava-se a
mulher do presidente, a primeira-dama, Anne Morrow Lindbergh,
identificada como uma amiga íntima do rabi, «conterrâneo de New Jersey e,
como ela, poeta», com quem ele partilhava «interesses culturais e
intelectuais» e se encontrava frequentemente «durante o chá da tarde para
um tête-à-tête na Casa Branca em que discutiam filosofia, literatura,
religião e ética».
Em representação da cidade estavam os dois judeus de categoria mais
elevada de sempre no Governo de Newark, o ex-mayor, durante dois
mandatos, Meyer Ellenstein e o secretário do município, Harry S.
Reichenstein, e cinco do grande número de irlandeses presentemente mais
importantes do município, o director da Segurança Pública, o director do
Departamento de Impostos e Finanças, o director dos Parques e
Propriedades Públicas, o engenheiro-chefe do município e o advogado da
corporação. Estavam presentes o correio-mor federal de Newark e o chefe
dos bibliotecários da Biblioteca Pública de Newark, assim como o
presidente da junta de curadores da biblioteca. Entre os distintos educadores
presentes no casamento estavam o reitor da Universidade de Newark, o
director da Faculdade de Engenharia de Newark, o superintendente das
escolas e o director da Escola Preparatória de St. Benedict. E uma
quantidade de clérigos distintos – protestantes, católicos e judeus – contava-
se também entre os presentes. Da First Baptist Peddie Memorial Church, a
maior congregação negra das cidade, estava o reverendo George E.
Dawkins; da Trinity Cathedral, o reverendo Arthur Dumper; da Grace
Episcopal Church, o reverendo Charles L. Gomph; da St. Nicholas Greek
Orthodox Church, da High Street, o reverendo George E. Spyridakis, e da
St. Patrick’s Cathedral o reverendo John Delaney em pessoa.
Ausente – e notoriamente ausente para os meus pais, embora não lhe
fosse feita referência alguma na notícia do jornal – estava o adversário do
rabi Bengelsdorf e o mais importante dos rabis de Newark, Joachim Prinz,
da Congregação B’nai Abraham. Antes da ascensão do rabi Bengelsdorf à
proeminência nacional, a autoridade do rabi Prinz entre os judeus de toda a
cidade, na mais vasta comunidade judaica e entre estudiosos e teólogos de
todas as religiões, excedera muito a do seu colega mais idoso, e dos rabis
conservadores dirigentes das três congregações mais ricas da cidade fora ele
o único que nunca se vergara na sua oposição a Lindbergh. Os outros dois,
Charles I. Hoffman, da Oheb Shalom, e Solomon Foster, da B’nai Jeshurun,
estavam presentes, tendo o segundo presidido à cerimónia matrimonial.
Presentes, também, estavam os presidentes dos quatro maiores bancos de
Newark, os presidentes de duas das suas maiores companhias de seguros, o
presidente da sua maior empresa de construção, o presidente do Athletic
Club de Newark, o proprietário de três das maiores salas de cinema do
centro da cidade, o presidente da Câmara de Comércio, o presidente da Bell
Telephone de New Jersey, os editores-chefes dos dois jornais diários e o
presidente da P. Ballantine, a mais famosa fábrica de cerveja de Newark. Do
governo do condado de Essex marcavam presença o supervisor da Câmara
de Proprietários Livres e Alodiais e três membros da Junta, e do corpo
judiciário de New Jersey estavam o vice-presidente do Tribunal da Relação
e um juiz associado do Supremo Tribunal estadual. Da Assembleia do
Estado estavam o presidente da maioria e três dos quatro deputados do
condado de Essex, e do Senado estadual um representante do condado de
Essex. A entidade estadual de categoria mais elevada era um juiz, o
procurador-geral David T. Wilentz, que dirigira com êxito a acusação de
Bruno Hauptmann, mas o funcionário estadual cuja presença mais me
impressionou foi Abe J. Greene, outro judeu, mas, o que era mais
importante, comissário do pugilismo de New Jersey. Estava presente um
dos dois senadores dos EUA de Jersey, o republicano W. Warren Barbour,
assim como o nosso congressista, Robert W. Kean. Do Tribunal de Distrito
dos Estados Unidos para o distrito de New Jersey havia um juiz itinerante,
dois juizes de distrito e o promotor de distrito (cujo nome eu reconhecia de
ouvir Gangbusters), John J. Quinn.
De Washington viera uma quantidade de colegas do rabi na sede nacional
do GAA e diversos funcionários representando o Departamento do Interior,
e embora não houvesse no casamento ninguém dos escalões mais elevados
do Governo Federal, havia um eloquente substituto representando nada
mais nada mesmo do que o próprio presidente: o telegrama da primeira-
dama que foi lido em voz alta pelo rabi Foster durante a recepção. Depois
da leitura, os convidados levantaram-se espontaneamente para aplaudir os
sentimentos da primeira-dama, mas o noivo pediu-lhes que permanecessem
de pé e o acompanhassem, e à sua noiva, enquanto cantavam o Hino
Nacional.
O longo texto do telegrama foi reproduzido na íntegra pelo Sunday Call.
Dizia o seguinte:

Meus caros Rabi Bengelsdorf e Evelyn,


O meu marido e eu enviamo-lhes os nossos melhores votos e unimo-
nos no desejo da mais ditosa felicidade.
Ficámos encantados por termos tido a oportunidade de conhecer
Evelyn no jantar de Estado oferecido na Casa Branca ao ministro dos
Estrangeiros da Alemanha. Ela é uma jovem encantadora e cheia de
vivacidade, claramente uma pessoa muito digna e íntegra, e bastaram-me
os poucos minutos que passei a conversar com ela para identificar os
dotes de personalidade e intelecto que lhe granjearam a dedicação de um
homem tão extraordinário como Lionel Bengelsdorf.
Recordo hoje as linhas de poesia esplendidamente sucintas que o meu
encontro com Evelyn me trouxe à memória, naquela noite. A poeta é
Elizaberth Barrett Browning e as palavras com que inicia o décimo
quarto dos seus Sonnets from the Portuguese encarnam uma sabedoria
feminina exactamente como a que vi emanar dos olhos espantosamente
escuros e belos de Evelyn. «Se haveis de amar-me» escreveu Mrs.
Browning, «que não seja por nada/ senão por mor apenas do amor...»
O rabi Bengelsdorf tem sido mais do que um amigo, desde que nos
conhecemos aqui, na Casa Branca, depois da cerimónia da fundação do
Gabinete Americano de Assimilação; desde a sua mudança para
Washington, a fim de se tornar director do GAA, tem sido um mentor
inestimável. As nossas absorventes conversas, juntamente com os livros
esclarecedores que me tem generosamente dado para ler, têm-me
ensinado muito, não apenas a respeito da fé judaica, mas também das
atribulações do povo judeu e das fontes da grande força espiritual que
tem sido a mola real da sua sobrevivência ao longo de três mil anos. Só
me enriqueceu o facto de ter descoberto por seu intermédio quão
profundamente a minha própria herança religiosa está enraizada na sua.
A nossa maior missão como americanos é viver em harmonia e
fraternidade como um povo unido. Sei, pelo excelente trabalho que
ambos estão a fazer pelo GAA, quanto os dois estão empenhados em
ajudar-nos a atingir este precioso objectivo. Das muitas bênçãos que
Deus conferiu à nossa nação, nenhuma é mais valiosa do que a de termos
entre nós cidadãos como vocês, orgulhosos e imprescindíveis defensores
de uma raça indómita cujos antigos conceitos de justiça e liberdade tem
sustentado a nossa democracia americana desde 1776.

Com os maiores votos de felicidade,


Anne Morrow Lindbergh

Na segunda vez que o FBI entrou nas nossas vidas, quem estava sob
vigilância era o meu pai. O mesmo agente que me detivera para me
interrogar a respeito de Alvin, no dia em que Mr. Wish-now se enforcou (e
que interrogara Sandy no autocarro, a minha mãe na loja e o meu pai no
escritório), apareceu no mercado de verduras e andou pelas proximidades
do pequeno restaurante aonde os homens iam comer e beber café a meio da
noite, e, comportando-se como se comportara quando Alvin tinha começado
a trabalhar para o tio Monty, fazendo agora perguntas do tio de Alvin,
Herman, e do que ele andava a dizer às pessoas a respeito da América e do
nosso presidente. O caso chegou aos ouvidos do tio Monty por intermédio
de um homem de mão de Longy Zwillman, que lhe transmitiu o que o
agente McCorkle lhe comunicara: nomeadamente que, após ter abrigado e
alimentado um traidor que combatera para um país estrangeiro, o meu pai
preferira agora abandonar um bom emprego na Metropolitan Life a
participar num programa governamental destinado a unificar e fortalecer o
povo americano. O tio Monty disse ao tipo de Longy que o seu irmão era
um pobre diabo sem instrução, com dois filhos e uma mulher para sustentar,
e que não podia causar grande mal à América alancando com grades de
verduras seis noites por semana. O tipo de Longy ouviu
compreensivamente, segundo disse o tio Monty que, com nenhum do
decoro de modo geral usado em nossa casa, nos contou a história toda na
nossa cozinha, numa tarde de sábado: «...e mesmo assim o tipo disse-me:
“O teu irmão tem de ir-se embora.” Eu respondi-lhe: “Tudo isso é treta. Diz
ao Longy que faz tudo parte da treta contra os judeus.” O próprio tipo é
judeu, chama-se Niggy Apfelbaum, mas o que eu lhe disse não fez mossa
nenhuma. Niggy procura o Longy e diz-lhe que o Roth não faz o que lhe foi
mandado. O que acontece a seguir? Longy aparece ali mesmo, no meu
escritoriozinho pelintra, todo pinoca num fato de seda feito por medida.
Alto, falinhas mansas, vestido a matar – percebe-se como ele caça as
estrelas de cinema. Eu digo-lhe: “Lembro-me de ti da escola primária,
Longy. Já nesse tempo vi que ias longe.” E ele responde-me: “Também me
lembro de ti. Já nesse tempo vi que não ias a lado nenhum.” Desatámos a
rir, e eu expliquei-lhe: “O meu irmão precisa de um emprego, Longy. Não
posso dar um emprego ao meu próprio irmão?” “E eu posso ter o FBI a
meter o nariz por aí?”, perguntou-me. “Eu sei tudo isso, e não é verdade que
me livrei do meu sobrinho Alvin por causa do FBI? Mas com o meu próprio
irmão não é a mesma coisa, pois não? Olha – proponho –, dá-me vinte e
quatro horas e eu resolvo tudo. Se não resolver, se não conseguir resolver, o
Herman vai-se embora.” Espero, por isso, que fechemos na manhã seguinte,
vou até ao Sammy Eagle’s e vejo o mick shmegeggy13 do FBI. “Permita que
lhe ofereça o pequeno-almoço”, ofereço, peço um boilermaker14, sento-me
ao lado dele e pergunto-lhe: “O que é que tem contra os judeus,
McCorkle?” “Nada”, responde-me. “Então porque persegue o meu irmão
desta maneira? Que mal fez ele a alguém?” “Ouça, se eu tivesse alguma
coisa contra os judeus, estaria aqui sentado no Eagle’s e o Sammy Eagle
seria meu amigo?” Chama o Eagle e pergunta-lhe: “Diz-lhe, Eagle, eu tenho
alguma coisa contra os judeus.” “Que eu saiba, não”, responde o outro.
“Quando foi do bar mitzvah do teu filho, não estive presente e lhe ofereci
uma mola de gravata?” “Ele ainda a usa”, diz-me o Eagle. “Está a ver?”,
pergunta-me o McCorkle. “Limito-me a fazer o meu trabalho, como o Eagle
faz o dele, e você o seu.” “E é também isso, apenas, o que o meu irmão
faz”, replico. “Muito bem. Óptimo. Então não diga que sou contra os
judeus.” “Enganei-me. Peço desculpa”, digo-lhe e, entretanto, passo-lhe o
sobrescrito, o pequeno sobrescrito castanho, e está o caso arrumado.»
Neste ponto, o meu tio virou-se para mim e disse: “Ouvi dizer que és um
ladrão de cavalos. Constou-me que roubaste um cavalo da igreja. Rapaz
esperto. Mostra-me lá.” Inclino-me e mostro-lhe onde o casco do cavalo me
abrira a cabeça. Ele riu-se, quando passou ao de leve o dedo pela extensão
da cicatriz e à volta da parte onde o cabelo fora rapado e começava a
crescer. “Que contes muitas mais”, disse-me – e depois, como costumava
fazer desde que eu me lembrava, levantou-me sem delicadezas para um dos
seus joelhos de modo a que o montasse, imagine-se, como a um cavalo. “Já
assististe a uma bris15, não assististe?”, perguntou-me, e começou a fazer-
me andar de cavalinho, baixando e levantando a coxa. “Sabes o que fazem
quando circuncidam um bebé numa bris, não sabes?” “Cortam o prepúcio.”
“E o que é que fazem ao pequeno prepúcio? Depois de o tirarem,
evidentemente. Sabes o que lhe fazem?» «Não.» «Bem», respondeu o tio
Monty, «guardam-no e quando juntam bastantes dão-nos ao FBI para
fazerem agentes com eles.» Não me contive, e apesar de saber que não
devia fazê-lo, e apesar, ainda, de na última vez que ele me fizera a mesma
pergunta ter dito: «Mandam-nos para a Irlanda, para fazerem padres»,
apesar disso tudo desatei a rir. «O que é que estava no sobrescrito?»,
perguntei-lhe. «Adivinha.» «Não sei. Dinheiro?» «Dinheiro, acertaste. És
um ladrãozinho de cavalos inteligente. O dinheiro que faz desaparecer todos
os problemas.»
Só mais tarde fiquei a saber pelo meu irmão, que escutara os meus pais a
falarem no seu quarto, que a importância total do suborno pago a McCorkle
seria descontada pelo tio Monty do salário já de si miserável do meu pai,
em prestações de dez dólares por semana durante os seis meses seguintes. E
o meu pai não podia fazer nada para o evitar. Tudo quanto sempre disse a
respeito da dureza do trabalho e das humilhações inerentes a servir o irmão
foi: «Ele é assim desde os dez anos, será assim até morrer.»

Tirando os sábados e as manhãs de domingo, mal vimos o meu pai


durante todo esse Verão. A minha mãe, pelo contrário, estava agora sempre
presente, e como o Sandy e eu tínhamos de estar em casa ao meio-dia para
almoçarmos e de novo no meio da tarde para ela saber de nós, nem ele nem
eu podíamos afastar-nos muito e, ao anoitecer, estávamos proibidos de ir
fosse aonde fosse para além do recreio da escola, a um quarteirão de casa.
Ou a minha mãe estava a controlar-se muito rigorosamente, ou conseguira
reconciliar-se temporariamente com o seu desgosto, pois embora o meu pai
tivesse sofrido uma grande baixa no salário e o orçamento doméstico
exigisse cortes difíceis, ela não evidenciava sinais debilitantes das
incertezas com que se confrontara no ano anterior. A sua capacidade de
recuperação tinha muito que ver com o facto de ter regressado a um
trabalho cujas compensações significavam muito mais para ela do que as
decorrentes de vender vestidos, trabalho a que não fugira, mas que lhe
parecera sem sentido quando comparado com as suas tarefas normais. Até
que ponto as suas preocupações continuavam a ser inquietantes só se tornou
claro para mim quando chegou uma carta de Estelle Tirschwell, falando-lhe
do progresso da vida da sua família em Winnipeg. Todos os dias, à hora do
almoço, eu trazia o correio para cima, depois de o tirar da nossa caixa de
correio na entrada da frente, e se havia um sobrescrito com o carimbo do
correio canadiano ela sentava-se imediatamente à mesa da cozinha e,
enquanto Sandy e eu comíamos as nossas sanduíches, lia a carta em
silêncio, duas vezes, e depois dobrava-a e guardava-a na algibeira do
avental, para lhe dar uma vista de olhos algumas dez vezes mais, antes de a
estender ao meu pai, para ele a ler quando se levantava para ir para o
mercado – a carta para o meu pai, os selos com o carimbo canadiano para
mim, para me ajudar a iniciar uma nova colecção.
Os amigos de Sandy passaram, de súbito, a ser as raparigas da sua idade,
as adolescentes que ele conhecia da escola mas nunca antes examinara tão
cobiçosamente. Ia ter com elas ao pátio do recreio, onde as actividades
organizadas para o Verão se efectuavam ao longo de todo o dia e até ao
princípio do anoitecer. Eu também lá estava, agora acompanhado
regularmente por Seldon. Observava Sandy com sentimentos que oscilavam
entre a ansiedade e o contentamento, como se o meu próprio irmão se
tivesse tornado num carteirista ou num vigarista profissional. Instalava-se
num banco perto da mesa de pingue-pongue, onde as raparigas tinham
tendência para se reunir, e começava a desenhar a lápis as mais giras, no seu
bloco de esboços. Invariavelmente, elas queriam ver os desenhos e, por
isso, eram boas as probabilidades de, antes de findar o dia, sair
sonhadoramente do pátio, de mãos dadas com uma delas. A forte tendência
de Sandy para se empolgar já não era galvanizada pela propaganda a favor
do Just Folks ou pelo gosto de podar tabaco para os Mawhinney, mas
fomentada por essas raparigas. Ou a nova excitação do desejo transformara
a sua existência com a mesma incrível rapidez do Kentucky e, aos catorze
anos e meio, ele fora refundido de novo numa única explosão hormonal ou,
como era minha convicção – derivada do meu próprio pendor para lhe
outorgar a omnipotência –, arranjar raparigas para saírem com ele era
simplesmente um artifício divertido, a maneira de aguardar a sua
oportunidade de... Tratando-se de Sandy, eu pensava sempre que devia estar
a passar-se muito mais do que eu podia imaginar, sequer, quando na
realidade, e apesar do seu ar de rapaz bonito e senhor de si, ele não fazia
mais ideia do que qualquer pessoa do motivo por que mordia o isco. O
plantador de tabaco judeu de Lindbergh descobre os seios e, de repente, fica
igual a outro adolescente qualquer.
Os meus pais atribuíam essa doidice por raparigas a um desafio, a
«rebeldia», a uma demonstração compensatória de independência resultante
do seu abandono forçado da causa de Lindbergh, e pareciam inclinados para
considerá-la relativamente inofensiva. Uma das mães das raparigas não era,
claramente, da mesma opinião e telefonou a dizer isso mesmo. Quando o
meu pai chegou a casa vindo do trabalho, houve uma longa conversa entre
ele e a minha mãe atrás da porta do seu quarto, e depois outra entre o meu
irmão e o meu pai atrás da porta do nosso quarto, e durante o resto da
semana Sandy não foi autorizado a afastar-se das imediações da casa. Mas
não podiam, evidentemente, mantê-lo encurralado na Summit Avenue
durante todo o Verão e, em breve, ele estava de regresso ao pátio da escola a
desenhar confiantemente retratos das raparigas bonitas, e fosse o que fosse
que essas raparigas lhe permitiam fazer com as mãos quando saíam
sozinhos – e que não podia ter sido muito, tratando-se de alunos do oitavo
ano tão ignorantes das coisas do sexo como eram os miúdos daquela idade
naqueles anos – não corriam para casa a contar e, por isso, os meus pais não
tiveram de se haver com mais telefonemas agitados no meio de todos os
seus outros problemas.
Seldon. Seldon foi o meu Verão. O focinho de Seldon no meu rosto, como
o de um cão, e miúdos que eu conhecera toda a minha vida a rir-se e a
chamarem-me Dorminhoco, miúdos com os braços rigidamente estendidos
à sua frente e a andarem com passos lentos e pesados de zombies,
supostamente a imitar o meu andar aos solavancos, adormecido, na direcção
do orfanato, e a equipa no campo a gritar em coro Hi ho Silver! sempre que
era a minha vez de bater para escolha da equipa.
Naquele ano não haveria nenhum grande piquenique de fim de Verão na
South Reservation Mountain no Dia do Trabalho, porque todos os amigos
do meu pai da Metropolitan tinham deixado Newark com os filhos em
Setembro, para se instalarem na região, antes do início do ano escolar. Uma
por uma, ao longo desse Verão, cada família veio visitar-nos num sábado,
de automóvel, para se despedir. Foi terrível para os meus pais, que eram os
únicos do grupo da Metropolitan local designado para realojamento pela
Homestead 42 que tinham resolvido permanecer onde estavam. Aqueles
eram os seus amigos muito queridos, e as tardes quentes de sábado, com os
adultos chorosos a abraçarem-se na rua enquanto todas as crianças
observavam tristemente – tardes que terminavam com nós quatro, que
ficávamos, a acenar-lhes adeus, da beira do passeio, enquanto a minha mãe
gritava para o carro que se afastava: «Não se esqueçam de escrever! –,
eram, por enquanto, os momentos mais cruciantes, aqueles em que o nosso
desamparo se tornava real para mim e eu pressentia o início da destruição
do nosso mundo. E também me apercebia de que o meu pai era, de todos
aqueles homens, o mais obstinado, irremediavelmente preso aos seus
melhores instintos e às suas excessivas exigências. Só então compreendi
que ele não deixara o emprego meramente por ter medo do que no fim nos
esperava se aceitássemos, como os outros, ser realojados, mas sim porque,
para o melhor ou para o pior, quando era oprimido por forças superiores que
considerava corruptas não estava na sua natureza ceder – neste caso, resistir
fugindo para o Canadá, como a minha mãe insistia para que fizéssemos, ou
curvar-se a uma directiva governamental que era patentemente injusta.
Havia dois tipos de homens fortes: aqueles que, como o tio Monty e Abe
Steinheim, não tinham quaisquer rebates de consciência no seu afã de
ganhar dinheiro, e os que, como o meu pai, obedeciam implacavelmente à
sua noção de jogo limpo.
«Venham», dizia o meu pai, tentando animar-nos no sábado em que a
última das seis famílias realojadas desaparecera aparentemente para sempre.
«Venham daí, rapazes. Vamos comer gelado.» Descemos os quatro a
Chancellor a caminho do drugstore, cujo proprietário era um dos seus
clientes mais antigos dos seguros e onde no Verão o ambiente era de um
modo geral mais agradável do que na rua, graças aos toldos abertos para
impedir que os raios de sol atravessassem a montra de chapa de vidro e às
pás das três ventoinhas do tecto a estalar suavemente enquanto giravam por
cima das nossas cabeças. Metemo-nos num compartimento e pedimos
sorvetes de fruta com natas, e a minha mãe, embora fosse incapaz de comer
apesar da insistência do meu pai, acabou por conseguir conter as lágrimas
que lhe corriam pelas faces. Nós, no fim de contas, não estávamos menos
destinados a um futuro in-cognoscível do que os nossos amigos exilados, e
por isso fomos comendo colheradas de gelado na semiescuridão,
proporcionada pelos toldos, do fresco drugstore, todos mudos e
completamente esgotados, até que a minha mãe levantou, enfim, os olhos
do guardanapo de papel que estivera a fazer cuidadosamente em tiras e,
com aquele sorriso triste e de soslaio de quem já esgotou por completo as
lágrimas, disse ao meu pai: «Bem, goste-se ou não, Lindbergh está a
ensinar-nos o que é ser judeu.» E depois acrescentou: «Nós apenas
pensamos que somos americanos.» «Que disparate. Não!», protestou o meu
pai. «Eles é que pensam que nós apenas pensamos que somos americanos.
Não é assunto para discussão, Bess. Nem para negociação. Esta gente não
está a compreender que isso para mim é uma certeza, com os diabos!
Outros? Ele atreve-se a chamar-nos outros? O outro é ele. O que parece
mais americano, e contudo é o menos americano, é ele! O homem é um
incapaz. Não devia ocupar aquele lugar. Não devia ocupar aquele lugar, é
tão simples como isso!»
Para mim, a separação mais difícil de suportar foi a de Seldon. É claro
que me sentia encantado por vê-lo partir. Passara o Verão inteiro a contar os
dias. No entanto, naquela manhã cedo da última semana de Agosto em que
os Wishnow partiram com dois colchões amarrados ao tejadilho do carro
(postos lá e atados, debaixo de um oleado, pelo meu pai e por Sandy, na
noite anterior) e vestuário empilhado até ao topo no banco de trás do velho
Plymouth (montes de roupa, incluindo várias peças minhas, que a minha
mãe e eu os ajudáramos a levar de casa), fui eu quem, grotescamente, não
conseguiu parar de chorar. Lembrava-me de uma tarde em que Seldon e eu
tínhamos apenas seis anos, e Mr. Wish-now estava vivo e aparentemente
bem de saúde e ainda trabalhava todos os dias para a Metropolitan, e Mrs.
Wishnow ainda era uma dona de casa como a minha mãe, absorvida pelas
necessidades quotidianas da sua família e até, ocasionalmente, tomando
conta de mim se a minha mãe tinha de se ausentar para fazer o seu trabalho
na APP, Sandy não estava e eu me encontrava sozinho em casa depois das
aulas. Recordava o maternalismo genérico que ela partilhava com a minha
mãe – a ajuda hospitaleira com que me regalava como se fosse a coisa mais
natural deste mundo – e de que dispus de modo tão admirável na tarde em
que fiquei fechado na casa de banho deles e não conseguia sair. Recordava
como ela fora bondosa comigo enquanto eu tentava e falhava repetidamente
abrir a porta, preocupando-se espontaneamente comigo como se,
independentemente de diferenças de aparência, temperamento e
circunstâncias imediatas, nós quatro – Seldon e Selma, Philip e Bess –
fôssemos todos uma e a mesma coisa. Recordava Mrs. Wishnow quando o
que tinha mais importância na sua mente era o que tinha mais importância
na mente da minha mãe, no tempo em que ela era apenas outro membro
vigilante do matriarcado local cuja tarefa primordial era criar um modo de
vida doméstico para a geração seguinte. Recordava Mrs. Wishnow
imperturbável, quando os seus punhos ainda não estavam cerrados e o seu
rosto cheio de dor.
Era uma casa de banho pequena, exactamente como a nossa,
claustrofóbica, com a porta ao lado de uma sanita e a sanita a confinar com
um lavatório e uma banheira apertada ao lado dele. Puxei a porta, mas ela
não se abriu. Em casa, tê-la-ia fechado apenas no trinco atrás de mim, mas
em casa dos Wishnow fechei-a à chave – coisa que nunca tinha feito na
minha vida. Fechei-a, urinei, puxei o autoclismo e lavei as mãos e, como
não queria tocar na toalha deles, enxuguei-as na parte de trás das pernas das
minhas calças de bombazina. Pronto, estava tudo em ordem, e preparei--me
para sair da casa de banho. O pior é que não fui capaz de abrir a fechadura
por cima da maçaneta. Conseguia girar a chave um bocadinho, mas depois
ela emperrava e ficava imóvel. Não bati na porta nem sacudi a maçaneta,
limitei-me a prosseguir com os esforços para fazer girar a chave o mais
silenciosamente possível. Mas em vão. Voltei a sentar-me na sanita e a
pensar que talvez o problema se resolvesse por si mesmo, embora não
fizesse ideia como. Fiquei um bocado ali sentado, mas depois senti-me só,
levantei-me e tentei de novo. Continuou a não se abrir, eu comecei a bater
ao de leve na porta e Mrs. Wishnow aproximou-se e disse: «Oh, a fechadura
da porta às vezes faz isso. Tens de a girar assim...» Explicou-me como
devia fazer, mas continuei incapaz de a abrir e, por isso, ela disse, muito
calmamente: «Não, Philip, enquanto a estás a girar, tens de a puxar para
trás», e embora eu tentasse fazer como ela dizia continuava sem obter
resultados. «Querido», continuou, «gira e puxa para trás simultaneamente...
gira e puxa para trás ao mesmo tempo.» «Para trás como?», perguntei.
«Para trás. Para trás na direcção da parede.» «Ah, da parede. Está bem»,
respondi, mas o resultado era o mesmo, tentasse o que tentasse. «Não
funciona», disse, e comecei a transpirar. Depois ouvi Seldon: «Philip? É o
Seldon. Porque a fechaste à chave? Nós não íamos entrar.» «Eu não disse
que iam.» «Então porque a fechaste?» «Não sei.» «Acha que devemos
chamar os bombeiros, mãe? Eles podem tirá-lo de lá com uma escada.»
«Não, não, não», disse Mrs. Wishnow. «Vamos lá, Philip», insistiu Seldon
comigo, «não é assim tão difícil. «É, sim. Está encravada.» «Como vai ele
sair, mãe?» «Cala-te, Seldon. Philip?» «Sim?» «Estás bem?» «Bom, está
calor aqui dentro. Está a ficar quente.» «Bebe um copo de água fria,
querido. Está um copo no armário dos remédios. Enche o copo de água,
bebe devagar e vais sentir-te bem.» «Pois sim.» Mas o copo tinha qualquer
coisa viscosa no fundo e, embora o tirasse do armário, fingi apenas que
bebia por ele, mas em vez disso bebi pelas mãos em concha. «Ma», disse
Seldon, «o que está ele a fazer errado? Philip, o que estás a fazer errado?»
«Como queres que eu saiba?, respondi. «Mrs. Wishnow? Mrs. Wishnow?»
«Sim, querido.» «Está muito calor aqui dentro. Estou realmente a
transpirar.» «Então abre a janela. Abre a janelinha ao pé do chuveiro. Achas
que chegas lá?» «Acho que sim.» Descalcei os sapatos, entrei na banheira
de meias e, pondo-me em bicos de pés, consegui chegar à janela – uma
janela pequena, de vidro granuloso, que dava para a travessa –, mas quando
tentei abri-la, também estava encravada. «Não se abre», anunciei. «Bate-lhe
um pouco, querido. Bate no caixilho do fundo, mas não com muita força, e
tenho a certeza de que se abrirá.» Segui as suas instruções, mas a janela
manteve-se impávida e fechada. Entretanto, a minha camisa ficara
encharcada em suor e, por isso, virei-me um pouco de lado, para poder dar
um bom safanão para cima à janela, só que, ao virar-me, devo ter batido na
torneira do chuveiro com o cotovelo, pois de repente a água começou a
jorrar. «Oh, não!», lamentei-me, enquanto a água gelada me caía na cabeça
e escorria pelas costas da camisa. Saltei do chuveiro para o chão de
mosaico. «O que aconteceu, querido?» «O chuveiro abriu-se.» «Como?»,
perguntou Seldon. «Como pode o chuveiro ter-se aberto?» «Não sei!»
«Estás muito molhado?», perguntou a mãe dele. «Mais ou menos.» «Tira
uma toalha... tira uma toalha do armário. As toalhas estão no armário.» Nós
tínhamos o mesmo estreito armário de casa de banho, logo por cima do da
casa de banho dos Wishnow e também o usávamos para guardar as toalhas,
mas quando quis abrir o deles não consegui: a porta estava encravada.
Puxei, mas nada. «O que aconteceu agora, Philip?» «Nada.» Não podia
dizer-lhe a verdade. «Tiraste uma toalha?» «Tirei.» «Então enxuga-te. E
mantém-te calmo. Não há motivo nenhum para te preocupares.» «Eu estou
calmo.» «Senta-te. Senta-te e enxuga-te.» Eu estava todo encharcado e o
chão começava também a ficar molhado; por isso, sentei-me na tampa da
sanita. Foi então que vi uma casa de banho como aquilo que ela é, na
realidade – a parte de cima de um esgoto –, e senti as lágrimas subirem-me
aos olhos. «Não te preocupes» – disse-me Seldon, «a tua mãe e o teu pai
não tardam a chegar a casa.» «Mas como é que eu saio?» E, de repente, a
porta abriu-se... e lá estava Seldon e, atrás dele, a sua mãe. «Como
conseguiste fazer isso?», perguntei. «Abri a porta.» «Mas como?» Encolheu
os ombros. «Empurrei-a. Empurrei-a, apenas. Esteve sempre aberta.» Foi
então que desatei a chorar, e Mrs. Wishnow me abraçou e disse: «Não tem
importância. Coisas como esta acontecem. Podem acontecer a qualquer
pessoa.» «Estava aberta, mãe», disse-lhe Seldon. «Caluda!», respondeu-lhe
ela. «Caluda, não tem importância!» E depois entrou na casa de banho,
fechou a torneira de água fria – que continuava a correr para a banheira – e,
sem qualquer problema, abriu a porta do armário, tirou uma toalha lavada e
começou a enxugar-me o cabelo, a cara e o pescoço, ao mesmo tempo que
não parava de me dizer brandamente que não tinha importância e que
aquelas coisas estavam sempre a acontecer às pessoas.
Mas isso foi antes de tudo o mais correr mal.

A campanha para o Congresso começou às oito horas da manhã da terça-


feira seguinte ao Dia do Trabalho, com Walter Winchell em cima de um
caixote de sabão na esquina da Broadway com a 42nd Street – a célebre
encruzilhada onde anunciara a sua candidatura presidencial em cima do
mesmo genuíno caixote de sabão – e parecendo, em plena luz do dia,
exactamente como as fotografias de imprensa o mostravam a transmitir o
seu programa do estúdio da NBC nas noites de domingo, às nove horas:
sem casaco, em mangas de camisa com os punhos arregaçados, o nó da
gravata puxado para baixo e na cabeça, empurrado para trás, o chapéu mole
característico do jornalista batido. Decorridos poucos minutos, apenas, já
eram necessários cerca de meia dúzia de polícias montados da Cidade de
Nova Iorque para desviarem o trânsito do caudal de gente trabalhadora que
enchia a rua, ansiosa por ouvi-lo e vê-lo ao vivo. E mal se espalhou a
notícia de que o orador com o altifalante não era apenas outro maçador
bíblico, profetizando a condenação da América pecadora, mas sim o habitué
do Stork Club e, ainda recentemente, o mais influente homem da rádio e o
mais celerado jornalista de tablóides da cidade, o número de mirones
passou das centenas para os milhares – quase dez mil pessoas ao todo,
segundo os jornais, subindo dos subterrâneos do metro e descendo de
autocarros, atraídas pelo agitador e pelo seu descomedimento.
– Os cobardes da rádio – disse-lhes ele – e os rufias bilionários da
imprensa, controlados a partir da Casa Branca pela quadrilha de Lindbergh,
dizem que o Winchell foi despedido por gritar «Fogo!» num cinema
apinhado. Mr. e Mrs. Cidade de Nova Iorque, a palavra não foi «fogo»: foi
«fascismo» que Winchell gritou – e ainda é. Fascismo! Fascismo! E
continuarei a gritar «fascismo» a todas as multidões de americanos que
possa encontrar até o partido da traição pró-hitleriano de Herr Lindbergh ser
expulso do Congresso no dia das eleições. Os hitlerianos podem tirar-me o
meu microfone da rádio, e fizeram precisamente isso, como sabem. Podem
tirar-me a minha coluna no jornal, e fizeram-no, como também sabem. E
quando – Deus não o permita! – a América se tornar fascista, as tropas de
choque de Lindbergh podem fechar-me num campo de concentração para
me calarem – e também farão isso, como sabem. Podem até fechá-los, a
vocês, num campo de concentração, para os calarem. Espero que, nesta
altura, vocês já saibam muito bem que é assim. Mas o que os hitlerianos
indígenas não nos podem tirar é o meu e o vosso amor pela América. O meu
e o vosso amor pela democracia. O meu e o vosso amor pela liberdade. O
que eles não nos podem tirar – a não ser que os crédulos, os carneiros e os
medrosos sejam suficientemente idiotas para os porem mais uma vez em
Washington – é o poder da urna de voto. A conspiração hitleriana contra a
América tem de ser detida: e detida por vocês! Por vocês, Mr. e Mrs.
Cidade de Nova Iorque! Pelo poder do voto das pessoas amantes da
liberdade desta grande cidade na terça-feira, 3 de Novembro de 1942!
Durante todo esse dia – 8 de Setembro de 1942 – até à noite, Winchell
subiu ao seu caixote de sabão em todos os bairros de Manhattan, de Wall
Street, onde foi largamente ignorado, para Little Italy, onde foi apupado,
para Greenwich Village, onde foi ridicularizado, para o Garment District,
onde foi intermitentemente ovacionado, para o Upper West Side, onde foi
recebido como seu salvador pelos judeus de Roosevelt, seguindo depois
para norte, para o Harlem, onde, na multidão de várias centenas de negros
que se reuniram ao lusco-fusco para o ouvirem falar na esquina da Lenox
Avenue com a 25th Street, alguns se riram e um punhado aplaudiu, mas a
maioria se manteve respeitosamente desagradada, como se para despertar as
suas antipatias ele precisasse de proferir um discurso muito diferente.
Era difícil avaliar o impacte que Winchell teve no público votante naquele
dia. Para o ex-jornal de Winchell, o Daily Mirror de Hearst, o esforço
ostensivo para conquistar o apoio de bases locais para correr com o Partido
Republicano do Congresso, a nível nacional, pareceu mais um número
publicitário do que outra coisa – um número publicitário previsivelmente
egomaníaco de um colunista de mexericos desempregado que não suportava
estar fora das luzes da ribalta –, tanto mais que nem um candidato
democrata ao Congresso em disputa da eleição em Manhattan se dignara
aparecer em parte alguma dentro do alcance auditivo do altifalante de
Winchell. Se havia alguns candidatos em campanha na rua, mantiveram-se
muito longe de onde quer que Winchell tenha cometido repetidamente o
disparate de associar o nome de Adolf Hitler com o do presidente
americano, cujo heroísmo o mundo ainda idolatrava, cujos feitos até o
Führer respeitava e a quem uma esmagadora maioria dos seus compatriotas
continuava a adorar como o divino catalisador da paz e da prosperidade da
sua nação. Num breve e sardónico editorial intitulado «De Novo», o New
York Times só conseguia chegar a uma conclusão a respeito da mais recente
das «parlapatices em proveito próprio» de Winchell: «Não há nada para que
Walter Winchell tenha mais talento», dizia o Times, «do que para ele
próprio.»
Winchell passou um dia inteiro em cada uma das outras quatro
circunscrições eleitorais da cidade, e na semana seguinte dirigiu-se para
norte, para o Connecticut. Apesar de ainda carecido de um candidato
democrata disposto a unir uma incipiente campanha para o Congresso à sua
retórica inflamada, Winchell foi em frente, disposto a colocar o seu caixote
de sabão do lado de fora dos portões das fábricas de Bridgeport e à entrada
dos estaleiros navais de New London, onde empurrou para trás o chapéu
mole, puxou para baixo o nó da gravata e gritou «Fascismo! Fascismo!» na
cara da multidão. Da costa industrial de Connecticut viajou de novo para
norte, para os enclaves operários de Providence, e depois atravessou de
Rhode Island para as cidades fabris do Sudeste de Massachusetts, dirigindo-
se a pequenos grupos em esquinas de ruas de Fall River, Brockton e Quincy
com não menos fervor do que o que usara no seu discurso inicial na Times
Square. De Quincy rumou a Boston, onde planeava passar três dias
deslocando-se através das irlandesas Dorchester e South Boston para o
North End italiano. No entanto, na sua primeira tarde na movimentada
Perkins Square de South Boston, os poucos provocadores escarninhos que o
tinham apodado de judeu desde a partida da sua Nova Iorque natal – e o
facto de ter deixado lá atrás a protecção policial garantida por Fiorello La
Guardia, o mayor republicano, e contra Lindbergh, da cidade – aumentaram
e transformaram-se numa turba, agitando cartazes feitos à mão, que
lembravam as faixas e os símbolos que embelezavam as manifestações da
Bund em Madison Square Garden. E no momento em que Winchell abriu a
boca para falar, alguém brandindo uma cruz incendiada correu direito ao
caixote de sabão para lhe deitar fogo e foram disparados dois tiros para o ar,
quer como um sinal dos organizadores para os arruaceiros, quer como um
aviso para o homem marcado da «Iorque Judia», quer como ambas as
coisas. Ali, na antiga paisagem citadina de tijolo feita de pequenas lojas
geridas por famílias, de carros eléctricos, de árvores de sombra e casas
pequenas, cada uma encimada, naquele tempo antes da TV, apenas pelo
apêndice de uma chaminé alta, na Boston onde a Depressão nunca
terminara, no meio das fachadas de lojas térreas sagradas para a rua
principal americana – a loja dos gelados, a barbearia, a farmácia – e, logo
acima do caminho que descia da silhueta escura e aguçada da St.
Augustine’s Church, avançaram rufiões munidos de cacetes, aos gritos de
«Matem-no!» e, duas semanas após o início nos cinco círculos eleitorais de
Nova Iorque, a campanha de Winchell, tal como ele a imaginara, estava
lançada. Ele trouxera finalmente à superfície o grotesco de Lindbergh, o
que estava por baixo da suavidade afável, mostrara-o cruamente e sem
disfarces.
Embora a polícia de Boston nada fizesse para conter os provocadores – os
disparos tinham soado uma boa hora antes de um carro policial chegar para
observar o cenário –, a equipa à paisana de guarda-costas profissionais
armados que se mantivera ao lado de Winchell durante toda a viagem
conseguiu extinguir as chamas que consumiam uma das pernas das calças
dele e, depois de o libertarem da primeira vaga da multidão, após apenas
algumas cacetadas, conduziu-o para um carro estacionado a poucos metros
do caixote de sabão e levou-o ao Carney Hospital, em Telegraph Hill, onde
foi tratado de ferimentos faciais e pequenas queimaduras.
Quem primeiro o visitou no hospital não foi o mayor, Maurice Tobin,
nem o seu derrotado rival, o ex-governador James M. Curley (outro
democrata de FDR que, como o democrata Tobin, não queria ter nada que
ver com Walter Winchell). Também não foi o congressista local, John W.
McCormack, cujo irmão arruaceiro, um taberneiro conhecido por Knocko,
mandava no bairro com tanta autoridade como o popular representante
democrata. Para surpresa de todos, a começar pelo próprio Winchell, o seu
primeiro visitante foi um aristocrata republicano de distinta linhagem da
Nova Inglaterra, o governador, no segundo mandato, do Massachusetts,
Leverett Saltonstall. Ao saber da hospitalização de Winchell, o governador
Saltonstall deixara o seu gabinete para transmitir directamente a sua
preocupação a Winchell (a quem, em privado, só poderia desprezar) e
prometer uma investigação minuciosa do bem engendrado, e obviamente
premeditado, pandemónio que, por um mero bambúrrio de sorte, não
provocara vítimas. Garantiu-lhe também a protecção da polícia estadual – e,
se necessário, da Guarda Nacional – durante todo o tempo em que ele
estivesse em campanha no Massachusetts. E, antes de sair do hospital, o
governador ordenou a presença de dois soldados armados à porta, apenas a
alguns palmos da cama de Winchell.
O Boston Herald interpretou a intervenção de Saltonstall como uma
manobra política para ser reconhecido como um conservador corajoso,
honesto e justo, capaz de servir o seu partido como digno substituto, em
1944, do vice-presidente democrata, Burton K. Wheeler, que desempenhara
o papel necessário na campanha de 1940, mas cuja imprudência, como
orador, muitos republicanos estavam agora convencidos de que poderia
comprometer o seu presidente numa segunda vez. Numa conferência de
imprensa no hospital, onde apareceu aos fotógrafos de roupão, com pensos
a cobrir-lhe metade do rosto e o pé esquerdo todo ligado, Winchell
agradeceu a oferta do governador Saltonstall, mas declinou o auxílio numa
mensagem (redigida, agora que fora agredido, numa linguagem mais
própria de estadista do que a sua habitual verborreia febril) que foi
distribuída às duas dúzias de repórteres da rádio e da imprensa escrita que
tinham convergido para o seu quarto. A declaração começava assim: «No
dia em que um candidato à presidência dos Estados Unidos precisar de uma
falange de agentes da polícia armados e soldados da Guarda Nacional para
proteger o seu direito de livre expressão, este país terá passado para o
barbarismo fascista. Não posso aceitar que a intolerância religiosa emanada
da Casa Branca tenha já corrompido o cidadão comum ao ponto de este ter
perdido todo o respeito por concidadãos americanos com um credo
religioso diferente do seu. Não posso aceitar que a aversão à minha religião
partilhada por Adolf Hitler e Charles A. Lindbergh possa ter já corroído...»
Daí em diante, agitadores anti-semitas perseguiram Winchell em cada
cruzamento, embora sem êxito em Boston, onde Saltonstall ignorara a
atitude teatral de Winchell e ordenara às suas tropas que impusessem a
ordem, usando da força se necessário fosse, e metessem os violentos na
cadeia, uma ordem que eles trataram de cumprir, por muito que lhes
desagradasse. Entretanto – usando uma bengala para se apoiar, devido ao pé
queimado, e ainda com pensos no queixo e na testa –, Winchell continuou a
atrair uma turba furiosa que gritava «Agiota, vai para casa!» em todas as
paróquias onde exibia os seus estigmas aos fiéis, da Gate of Heaven
Church, em South Boston, ao St. Gabriel Monastery, em Brighton. Para lá
do Massachusetts, em comunidades da parte superior do estado de Nova
Iorque, na Pensilvânia e em todo o Midwest, já famosos pelo seu fanatismo
– e para onde a estratégia explosiva de Winchell o empurrava
irresistivelmente –, a maioria das autoridades locais não partilhava da
relutância de Saltonstall para tolerar agitação civil e, por isso, apesar de ter
duplicado o seu séquito de guarda-costas à paisana, o candidato estava na
iminência de ser espancado cada vez que subia para o caixote de sabão para
denunciar «o fascista da Casa Branca» e assacar directamente ao «ódio
religioso» do presidente a responsabilidade por «fomentar um inaudito
barbarismo nazi nas ruas americanas».
A pior e mais extensa violência verificou-se em Detroit, a sede no
Midwest da «Radio Priest» do padre Coughlin e da sua Frente Cristã
Antijudaica, assim como do ministro cativador de multidões conhecido por
«decano» dos anti-semitas, o reverendo Gerald L. K. Smith, o qual pregava
que «o carácter cristão é a verdadeira base do genuíno americanismo».
Evidentemente que Detroit também era a sede da indústria automóvel
americana e do idoso secretário do Interior de Lindbergh, Henry Ford, cujo
jornal confessadamente anti-semita, o Dearborn Independent, publicado
nos anos 20, se dedicou a «uma investigação da Questão Judaica» que Ford
posteriormente reimprimiu em quatro volumes, num total de quase mil
páginas, intitulados The International Jew, onde decretava que, na limpeza
da América, «o Judeu Internacional e os seus satélites, na qualidade de
inimigos conscientes de tudo aquilo que os Anglo-Saxões consideram
civilização, não são poupados».
Era de esperar que organizações como a Americam Civil Liberties Union
e eminentes jornalistas liberais como John Gunther e Dorothy Thompson
ficassem indignados com as arruaças de Detroit e tornassem imediatamente
público o seu desagrado, mas o mesmo aconteceu a muitos americanos
convencionais da classe média que, apesar de considerarem Winchell e a
sua retórica repugnantes e compreenderem que ele estava a «procurar
encrencas», também se sentiam aterrados com os relatos de testemunhas
oculares acerca de como a arruaça que começara na primeira paragem de
Winchell em Hamtramck (o bairro residencial habitado principalmente por
trabalhadores da indústria automóvel e suas famílias e que se dizia conter a
maior população polaca do mundo fora de Varsóvia) alastrou
suspeitosamente, em poucos minutos, à 12th Street, a Linwood e depois ao
Dexter Boulevard. Aí, nos maiores bairros judeus da cidade, eram pilhadas
lojas e partidas janelas, judeus apanhados fora de casa eram atacados e
espancados e cruzes impregnadas de petróleo eram incendiadas nos
relvados de casas elegantes, ao longo do Chicago Boulevard, na frente de
modestas habitações para duas famílias de pintores de casas, canalizadores,
talhantes, padeiros, sucateiros e merceeiros que viviam em Webb e Tuxedo
e nos pequenos e sujos pátios dos judeus mais pobres da Pingry e Euclid. A
meio da tarde, momentos, apenas, antes de o dia de aulas terminar, uma
bomba incendiária foi lançada para o átrio da frente da escola primária de
Winterhalter, onde metade dos alunos era judia, outra no átrio da
Secundária Central, cujo corpo estudantil era 95 por cento judeu, outra
através de uma janela do Instituto Sholem Aleichem – uma organização
cultural que Coughlin identificara ridiculamente como comunista – e uma
quarta no exterior de outro dos alvos «comunistas» de Coughlin, a Aliança
de Trabalhadores Judeus. Seguiu-se o ataque a casas de culto. Não só foram
partidos vidros de janelas e vandalizadas paredes de cerca de metade das
trinta e tal sinagogas ortodoxas da cidade, como, à hora marcada para o
início dos serviços religiosos nocturnos, houve uma explosão nos degraus
do prestigiado templo Shaarey Zedek, no Chicago Boulevard. A explosão
causou grandes estragos na exótica peça central de desenho mourisco do
arquitecto Albert Kahn – os três maciços portais arqueados que exibiam
proeminentemente a uma populaça da classe operária um estilo nitidamente
não americano. Cinco transeuntes, por acaso nenhum deles judeu, foram
feridos por destroços que voaram da fachada, mas não foram anunciadas
outras baixas.
Ao cair da noite, várias centenas dos trinta mil judeus da cidade tinham
fugido e procurado refúgio na outra margem do rio Detroit, em Windsor,
Ontário, e a história americana registara o seu primeiro progrom em grande
escala, claramente inspirado nas «manifestações espontâneas» contra os
judeus da Alemanha conhecidas por Kristalnacht, «a Noite dos Vidros
Partidos, ou Noite de Cristal», cujas atrocidades foram planeadas e
perpetradas quatro anos antes pelos nazis e que o padre Coughlin, no seu
tablóide semanal Social Justice, defendera na altura como uma reacção dos
Alemães contra o «comunismo inspirado pelos judeus». A Kristalnacht de
Detroit foi similarmente justificada na página editorial do Detroit Times
como a infeliz mas inevitável e totalmente compreensível repercussão das
actividades do intruso desordeiro que o jornal identificava como «o
demagogo judeu cujo objectivo fora, desde o início, despertar a fúria de
patriotas americanos com a sua pérfida instigação à populaça».
Na semana seguinte ao ataque a judeus de Detroit – que não foi resolvido
com eficiência nem pelo governador do Michigan nem pelo mayor da
cidade –, foi desencadeada nova violência contra casas, lojas e sinagogas
em bairros judeus de Cleveland, Cincinnati, Indianapolis e St. Louis,
violência que os inimigos de Winchell atribuíram ao seu aparecimento
deliberadamente desafiador nessas cidades depois do cataclismo que
instigara em Detroit, e que o próprio Winchell – que, em Indianapolis,
escapara por um triz de ser esmagado por um paralelepípedo arremessado
de cima de um telhado e que fracturara o pescoço ao guarda-costas parado
ao lado dele – atribuiu ao «clima de ódio» emanado da Casa Branca.
A nossa rua em Newark ficava a muitas centenas de quilómetros do
Dexter Boulevard, em Detroit, ninguém das imediações fora alguma vez a
Detroit e antes de Setembro de 1942 tudo quanto os rapazes do quarteirão
sabiam acerca de Detroit era que o único judeu jogador da basebol
organizado era o primeira-base Hank Greenberg, estrela do Tiger. Mas
depois sucederam as arruaças de Winchell e, de súbito, até as crianças
sabiam dizer os nomes dos bairros de Detroit que tinham sido abalados pela
violência. Papagueando o que ouviam dos pais, argumentavam entre si se
Walter Winchell era corajoso ou idiota, abnegado ou interesseiro e se estava
ou não a fazer o jogo de Lindbergh ao permitir que os gentios dissessem a si
mesmos que os judeus eram os culpados da sua própria desgraça. Discutiam
se, antes de desencadear um pogrom à escala nacional, não seria melhor se
Winchell desistisse e permitisse que fossem restauradas relações «normais»
entre os judeus e os seus concidadãos americanos, ou se, a longo prazo,
seria melhor para ele continuar a espalhar o alarme entre os judeus mais
complacentes do país – e a despertar a consciência dos cristãos – expondo a
ameaça do anti-semitismo de um extremo ao outro da América. A caminho
da escola, no recreio depois da escola, entre aulas nos corredores da escola,
víamos os rapazes mais inteligentes parados frente a frente, rapazes da
idade de Sandy assim como alguns miúdos não mais velhos do que eu,
debatendo acaloradamente se as andanças de Walter Winchell de um lado
para o outro do país com o seu caixote de sabão, para fazer sair da toca os
bundistas germano-americanos, os coughlinistas, os ku-klux-klanistas, os
camisas prateadas, os America firsters, a Legião Negra e o Partido Nazi
Americano, se levar estes anti-semitas organizados e os seus milhares de
simpatizantes invisíveis a mostrar o que eram – e mostrar o presidente
como aquilo que ele era, um chefe do Executivo e um comandante-chefe
que ainda não se dignara admitir que existia algo parecido com um estado
de emergência, quanto mais a chamar as tropas federais para impedir mais
desacatos – era bom ou mau para os judeus.
Depois de Detroit, os judeus de Newark – uns cinquenta mil numa cidade
com muito mais de meio milhão de habitantes – começaram a preparar-se
para a erupção de violência grave nas suas próprias ruas, quer devido a uma
visita de Winchell a New Jersey, quando voltasse para leste, quer devido a
desacatos que inevitavelmente irromperiam em cidades onde, como em
Newark, havia um bairro fortemente judaico contíguo a grandes
comunidades operárias de irlandeses, italianos, alemães e eslavos, que já
abrigavam um bom número de fanáticos. Presumia-se que esta gente não
precisaria de muito encorajamento para ser transformada num turba insana
e destruidora pela conspiração pró-nazi que com tanto êxito planeara a
arruaça em Detroit.
Quase de um dia para o outro, o rabi Joachim Prinz, juntamente com
cinco outros eminentes judeus de Newark – incluindo Meyer Ellenstein –,
criaram o Comité de Cidadãos Judeus Preocupados de Newark. O grupo
tornou-se rapidamente um modelo para semelhantes grupos ad hoc de
cidadãos judeus noutras grandes cidades, determinados a assegurar a
segurança das suas comunidades levando as autoridades a elaborar planos
de contingência, a fim de estarem preparadas para a pior possibilidade. O
Comité de Newark começou por organizar uma reunião no Município –
presidida pelo mayor Murphy, cuja eleição pusera fim aos oito anos de
Ellenstein no cargo –, com o chefe da polícia de Newark, o comandante dos
bombeiros e o director do Departamento de Segurança Pública. No dia
seguinte, o Comité reuniu-se na State House, em Trenton, com o
governador democrata Charles Edison, o superintendente da Polícia
Estadual de New Jersey e o oficial comandante da Guarda Nacional de New
Jersey. O promotor público Wilentz, conhecido de todos os seis membros
do Comité, também compareceu e, de acordo com o boletim enviado pelo
Comité de Newark para os jornais de Jersey, terá garantido ao rabi Prinz
que quem tentasse desencadear um ataque contra os judeus de Newark seria
processado em conformidade com todas as instâncias da lei. Em seguida, o
Comité telegrafou ao rabi Bengelsdorf solicitando uma reunião com ele em
Washington, mas foi informado de que a questão deles era local e não
federal e aconselhado a comunicar a sua preocupação, como estava a fazer,
aos funcionários municipais e estaduais.
Partidários do rabi Bengelsdorf louvaram-no por se manter afastado do
sórdido caso de Walter Winchell, ao mesmo tempo que serenamente, em
conversas privadas na Casa Branca com Mrs. Lindbergh, solicitava que
fosse prestada assistência aos judeus inocentes de todo o país que estavam a
pagar tragicamente pela iníqua conduta do candidato renegado, um
provocador que encorajava cinicamente cidadãos americanos, que não
tinham o mínimo motivo para se sentirem ameaçados em aspecto algum, a
aferrarem-se às suas mais antigas e incapacitantes angústias. Os apoiantes
de Bengelsdorf constituíam uma influente clique recrutada no escalão
superior altamente assimilado da sociedade judaica alemã. Muitos deles
tinham nascido em berço rico e contavam-se entre a primeira geração
judaica a frequentar escolas secundárias de elite e colégios da Ivy League,
onde, em virtude da pequenez do seu número, se tinham misturado com
não-judeus, com quem posteriormente se associaram em empreendimentos
comunitários, políticos e comerciais, e que por vezes pareciam aceitá-los
como iguais. Para estes judeus privilegiados não havia nada de suspeito nos
programas concebidos por intermédio do rabi Bengelsdorf no sentido de
auxiliar judeus mais pobres e menos civilizados a aprenderem a viver em
mais estreita harmonia com os cristãos da nação. Na opinião deles, de
lamentar era o facto de judeus como nós continuarem unidos, concentrados,
em cidades como Newark em consequência de uma xenofobia gerada por
pressões históricas que já não existiam. O estatuto conferido pela vantagem
económica e vocacional inclinava-os a crer que aqueles a quem faltava esse
prestígio eram rejeitados pela sociedade em geral mais por espírito de clã
insular do que por qualquer gosto acentuado de exclusividade da parte da
maioria cristã, e que bairros como os nossos eram a menos consequência de
discriminação do que o seu terreno de cultura. Reconheciam,
evidentemente, que existiam bolsas de gente atrasada na América entre a
qual o anti-semitismo violento era ainda a paixão mais forte, mais
obsessiva, mas isso parecia apenas mais uma razão para o director do GAA
encorajar os judeus em posição desvantajosa resultante das limitações de
uma existência segregada a permitirem que pelo menos os seus filhos
entrassem no mainstream americano e demonstrassem, lá, não serem nada
como a caricatura do judeu disseminada pelos nossos inimigos. O motivo
por que estes judeus ricos, urbanos, senhores de si, detestavam
particularmente o autocaricaturizado Winchell derivava de ele reforçar
tanto, e deliberadamente, a própria hostilidade que eles imaginavam ter
propiciado com o seu comportamento exemplar para com os seus colegas e
amigos cristãos.
Além do rabi Prinz e do ex-mayor Ellenstein, os quatro restantes
membros principais do Comité de Newark eram a idosa líder cívica
responsável pelo êxito do programa de americanização para filhos de
imigrantes no sistema escolar de Newark – e mulher do cirurgião-chefe do
Beth Israel Hospital –, Jenny Danzis; o executivo do armazém-geral e filho
do fundador do S. Plaut & Co., assim como dez vezes presidente da Broad
Street Association, Moses Plaut; o proeminente proprietário e antigo
presidente da Newark Conference of Jewish Charities, o líder comunitário
Michael Stavitsky, e o chefe do corpo clínico do Beth Israel, Dr. Eugene
Parsonnette. O facto de o afamado gangster de Newark, Longy Zwillman,
não ter sido escolhido para se juntar a um grupo de judeus locais tão
distintos como este não constituiu surpresa para ninguém, apesar de Longy
ser um homem rico e muitíssimo influente e com certeza não menos
angustiado do que o rabi Prinz pela ameaça representada pelos anti-semitas
que, a pretexto de estarem a ser provocados por Walter Winchell, tinham
enveredado pelo que a muitos parecia a primeira fase da resolução da
«Questão Judaica» de Henry Ford.
Independentemente das muitas autoridades civis que tinham prometido a
sua total cooperação ao rabi Prinz, Longy tratou, por seu lado, de assegurar
que, se e quando os polícias e as tropas estaduais de Newark não reagissem
mais vigorosamente do que a polícia reagira aos desacatos verificados em
Boston e Detroit, os judeus da cidade não ficariam desprotegidos. «Bullet»
Apfelbaum, o associado íntimo conhecido em toda a cidade como principal
homem de mão de Longy – e irmão mais velho de «Niggy» Apfelbaum –,
foi encarregado por Longy de complementar o bom trabalho do Comité de
Cidadãos Judeus Preocupados de Newark, recrutando aquele magote de
incorrigíveis miúdos judeus que não conseguiam terminar a escola
secundária e treinando-os como enquadramento de um corpo de voluntários
rapidamente formado e que se chamaria Polícia Judaica Provisória. Tratava-
se dos rapazes locais sem quaisquer dos ideais que eram incutidos aos
restantes de nós e tinham começado a emanar uma aura de desregramento
logo por altura do quinto ano, inflando preservativos na casa de banho da
escola, desatando ao murro no autocarro da carreira 14 e lutando até
sangrarem no passeio de cimento do exterior do cinema, daqueles de quem,
durante os anos passados na escola, os pais recomendavam aos filhos que se
afastassem e que andavam agora pelos vinte anos e tinham como ocupação
as apostas, o bilhar e a lavagem de pratos nas cozinhas de um ou outro dos
restaurantes de pronto a comer do bairro. Para a maioria de nós, eram
conhecidos, quando eram, apenas pelo fascínio rufia das suas alcunhas
pesadas – Leo «the Lion» Nusbaum, «Knuckles» Kimmelman, «Big» Gerry
Schwartz., «Dummy» Breitbart, Duke «Dike-it-out» Glick16 – e pelos seus
QI de dois dígitos.
E agora eles, o punhado de falhados do nosso bairro, estavam
estacionados nas ruas, esquina sim, esquina não, a cuspir por entre os
dentes, com pontaria certeira, para a valeta e transmitindo sinais uns aos
outros, assobiando com dois dedos enfiados fundo pela boca abaixo. Ali
estavam, os valentaços, os obtusos e os mentalmente deficientes, os
aberrantes dos próprios judeus percorrendo as ruas como marinheiros de
folga em terra à procura de uma briga. Ali estavam eles, os poucos
desmiolados que tínhamos sido ensinados a lamentar e temer, os imbecis da
Idade da Pedra, e os anões coléricos, e os duros e pimpões levantadores de
pesos a agarrarem a manga de miúdos como eu, na Chancellor Avenue, e a
dizerem-nos para mantermos os nossos bastões de basebol a postos, para o
caso de sermos chamados à noite para as ruas, irmos até à Y ao anoitecer, e
aos campos de basebol aos domingos, e às lojas locais durante a semana,
recrutando à má fila os fisicamente aptos entre os homens adultos do bairro,
de modo a haver um total de três em cada quarteirão, uma brigada com a
qual pudessem contar numa emergência. Personificavam tudo quanto era
grosseiro e desprezível que os nossos pais tinham tido a esperança de haver
deixado para trás, juntamente com a sua infância sem recursos, nos bairros
miseráveis do Third Ward, e no entanto ali estavam os nossos demónios
promovidos a nossos protectores, cada um com o seu revólver preso à
barriga da perna, uma arma emprestada da colecção do Apfelbaum
«Bullet», que toda a gente sabia ter dedicado a sua existência a intimidar
lealmente pessoas em nome do «Longy», a ameaçá-las, a espancá-las, a
torturá-las e – apesar de, imitando um patrão uns bons quinze quilos mais
magro do que ele e trinta centímetros mais alto, nunca ninguém ver o
«Bullet» senão com um fato de três peças, adornado com um lenço de seda
muito bem dobrado e da cor da gravata na algibeira do peito, e um
Borsalino caro, garbosamente inclinado até poucos centímetros acima do
mesquinho olhar carrancudo de um severo juiz da natureza humana – a
acabar-lhes com a vida, se fosse esse o gosto do seu patrão.

O que tornou a morte de Walter Winchell digna de instantânea cobertura à


escala nacional não foi o facto de a sua inconvencional campanha ter
desencadeado os piores distúrbios anti-semitas do século fora da Alemanha
nazi, mas sim o de o assassínio de um mero candidato à presidência não ter
precedentes na América. Embora os presidentes Lincoln e Garfield tivessem
sido alvejados a tiro e mortos na segunda metade do século XIX, e McKinley
no início do século XX, e embora, em 1933, FDR tivesse sobrevivido a uma
tentativa de assassínio que em vez disso tirara a vida ao seu apoiante
democrata Cermak, o mayor de Chicago, só vinte e seis anos depois do
assassínio de Winchell um segundo candidato presidencial seria abatido a
tiro: o senador democrata de Nova Iorque Robert Kennedy, fatalmente
atingido na cabeça depois de ganhar as primárias do seu partido na
Califórnia, na terça-feira, 4 de Junho de 1968.
Na segunda-feira, 5 de Outubro de 1942, encontrava-me em casa sozinho,
depois das aulas, a ouvir pelo rádio da sala os innings finais do quinto jogo
das World Series entre os Cardinals e os Yankees, quando, na altura do
nono, com os Cardinals a preparar-se para bater num empate de 2-2 – e
comandando as Series com três jogos a um –, a transmissão jogada a jogada
foi interrompida por uma voz com aquela dicção perfeitamente bem
articulada e levemente anglicizada tão apreciada, naqueles primeiros
tempos da rádio, num locutor: «Interrompemos este programa para
transmitir um importante boletim noticioso. O candidato presidencial Walter
Winchell foi alvejado a tiro e morto. Repetimos: Walter Winchell morreu.
Foi assassínio em Louisville, Kentucky, enquanto falava num comício
político ao ar livre. Isto é tudo quanto se sabe neste momento sobre o
assassínio em Louisville do candidato presidencial democrata, Walter
Winchell. Regressamos ao nosso programa habitual.»
Ainda não eram bem cinco horas da tarde. O meu pai acabara de sair para
o mercado na camioneta do tio Monty, a minha mãe tinha saído poucos
minutos antes para ir à Chancellor Avenue comprar qualquer coisa para o
jantar e o meu decidido irmão também tinha saído à procura de um local de
encontro para procurar conseguir que uma das suas raparigas de depois das
aulas lhe concedesse acesso ao seu peito. Ouvi gritar na rua, depois um
grito vindo de uma casa próxima, mas o jogo recomeçara, e o suspense era
tremendo: Red Ruffling a lançar para o terceira-base, Whitey Kurowski,
novato do Cardinals, o apanhador do Cardinals, Walker Cooper, na primeira
base, com a sua sexta batida em cinco jogos, e os Cardinals a precisarem
apenas desta vitória para vencerem as Series. Rizzuto tinha feito um home
run para os Yankees, o portentosamente alcunhado Enos Slaughter17 feito
home run para os Cardinals e, como os histriónicos pequenos fãs gostam de
dizer uns aos outros, eu «sabia», antes mesmo de Ruffing ter disparado o
seu primeiro lançamento, que Kurowski estava prestes a conseguir um
segundo home run para os Cardinals e a dar-lhes a sua quarta vitória
consecutiva depois de uma derrota no dia da abertura. Estava em pulgas
para correr para a rua e gritar: «Eu sabia! O Kuroswki não ia falhar!» Mas
quando Kuroswki fez home run, o jogo terminou e eu saí pela porta fora e
corri a toda a velocidade pela nossa travessa, vi dois membros da polícia
judaica – Big Gerry e Duke Gluck – correrem de um lado para o outro da
rua, darem murros nas portas e gritarem para os átrios: «Abateram o
Winchell! Winchell está morto!»
Entretanto, iam saindo mais miúdos das suas casas, delirantes com o
resultado das World Series. Mas, mal chegaram à rua a gritar o nome de
Kurowski, Big Gerry desatou a berrar-lhes: «Vão buscar os bastões!
Começou a guerra!» E não estava a referir-se à guerra contra a Alemanha.
Ao anoitecer não havia uma família judia na nossa rua que não estivesse
barricada atrás de portas fechadas e trancadas, com os rádios ligados sem
descanso para ouvirem o último boletim noticioso e todos a telefonarem uns
aos outros para dizerem que Winchell não tinha dito nada que fosse, nem
pouco mais ou menos, excessivo à multidão de Louisville, que na realidade
iniciara o seu discurso no que só poderia ser interpretado como um apelo
franco à auto-estima cívica – «Mr. e Mrs. Louisville, Kentucky, orgulhosos
cidadãos da única cidade da América que é palco da maior corrida de
cavalos do mundo e berço do primeiro juiz judeu do Supremo Tribunal dos
Estados Unidos da América...» –, e no entanto, antes de ele ter tempo de
pronunciar alto o nome de Louis D. Brandeis, fora abatido por três balas na
parte de trás da cabeça. Um segundo comunicado, emitido poucos minutos
depois, apenas, identificava o lugar onde o assassínio ocorrera como
situando-se a poucos metros de um dos mais elegantes edifícios municipais
construídos no estilo renascentista grego em todo o Kentucky, o Jefferson
County Courthouse, com a sua imponente estátua de Jefferson voltada para
a rua e uma escadaria alta e larga conduzindo ao grandioso pórtico com
colunas. Os tiros que mataram Winchell pareciam ter sido disparados de
uma das grandes, austeras e belamente proporcionadas janelas da frontaria
do tribunal.
A minha mãe começou a fazer os primeiros telefonemas, assim que
chegou das compras. Eu colocara-me logo do lado de dentro da porta para
lhe falar de Walter Winchell no instante em que ela chegasse, mas nessa
altura ela já sabia o pouco que havia para saber, primeiro porque a mulher
do dono do talho telefonara para a loja, a fim de repetir o boletim noticioso
ao marido, precisamente quando ele estava a embrulhar o que a minha mãe
comprara, e depois por causa do espanto aparente entre as pessoas na rua, já
a correrem para a segurança dos seus lares. Não tendo conseguido
comunicar com o meu pai, cuja camioneta ainda não parara no mercado,
começou, evidentemente, a preocupar-se com o meu irmão, que estava de
novo a abusar da sorte e provavelmente só correria pela escada das traseiras
acima segundos antes de dever encontrar-se sentado à mesa da cozinha com
as mãos lavadas da sujidade do dia e o rosto bem limpo de manchas de
batom. Era o pior momento imaginável para qualquer deles estar afastado e
desconhecer o paradeiro exacto do outro, mas sem perder tempo a tirar as
compras do cesto, ou a denunciar o alarme que sentia, a minha mãe disse-
me: Vai-me buscar o mapa. Vai buscar o teu mapa da América.
Havia um grande mapa desdobrável do continente norte-americano
metido numa bolsa, dentro do primeiro volume da enciclopédia que
compráramos a uma vendedor de porta a porta no ano em que eu entrara
para a escola. Corri para a marquise, onde, amparada entre os anteparos de
bronze representando George Washington, comprados em Mount Vernon
pelo meu pai, se encontrava toda a nossa biblioteca: os seis volumes da
enciclopédia, um exemplar encadernado em pele da Constituição dos
Estados Unidos, oferecido pela Metropolitan Life, e a edição integral do
dicionário Webster que a tia Evelyn dera a Sandy no seu décimo
aniversário. Desdobrei o mapa em cima do oleado que cobria a mesa da
cozinha, e a minha mãe – servindo-se da lupa que eu recebera dos meus
pais como presente de aniversário quando fizera sete anos, juntamente com
o meu insubstituível e inesquecido álbum de selos – procurou na parte norte
de Kentucky central o ponto que representava a cidade de Danville.
Passados segundos, apenas, encontrávamo-nos de novo os dois junto da
mesa do telefone, no vestíbulo, por cima da qual estava pendurada uma
outra oferta que o meu pai recebera por vender seguros, uma réplica de
cobre, gravada, da Declaração da Independência. O serviço telefónico
automático local, no interior de Essex County, teria escassos dez anos e
provavelmente um bom terço da população ainda não dispunha de serviço
telefónico de qualquer espécie – e a maioria dos que possuíam dispunha
apenas, como nós, de uma linha partilhada –, por isso as chamadas de longa
distância eram ainda um fenómeno assombroso, não apenas porque fazer
uma chamada dessas estava longe de ser uma experiência comum para uma
família com os nossos recursos, mas também porque nenhuma explicação
tecnológica, ainda que básica, conseguia removê-la inteiramente do reino da
magia.
A minha mãe falou de modo muito preciso com a telefonista, para ter a
certeza de que nada sairia errado e não nos seria debitada por engano uma
importância adicional.
– Desejo fazer uma chamada pessoal de longa distância. Para Danville,
Kentucky. De pessoa para pessoa, para Mrs. Selma Wishnow. E, por favor,
não se esqueça de me dizer quando os meus três minutos terminarem.
Seguiu-se uma longa pausa, enquanto a telefonista obtinha o número por
intermédio da colega encarregada das listas telefónicas. Quando ouviu
finalmente a chamada a ser feita, a minha mãe fez-me sinal para encostar a
orelha à dela, mas para não falar.
– Estou! – Atende entusiasticamente Seldon.
Telefonista: Chamada de longa distância. Tenho uma chamada pessoal
para Mrs. Selma Wishful.
–S ... sim... – gagueja Seldon.
– Fala Mrs. Wishful?
– Está? A minha mãe não está em casa neste momento.
Telefonista: – Estou a ligar para Mrs. Selma Wishful...
– Wishnow! – Grita a minha mãe. – Wish-now.
– Quem é? – pergunta Seldon. – Quem fala?
Telefonista: – Menina, a sua mãe está em casa?
– Eu sou um rapaz – responde Seldon, perplexo. Outra ofensa. Nunca
paravam. Mas a verdade é que a sua voz parece de rapariga; está ainda mais
esganiçada do que quando vivia no andar por baixo de nós. – A minha mãe
ainda não voltou do trabalho – acrescenta.
Telefonista: Mrs. Wishnow não está em casa, minha senhora.
A minha mãe olha para mim e diz:
– O que terá acontecido? O rapaz está sozinho. Onde poderá ela estar?
Ele está sozinho... Telefonista, falo com qualquer pessoa.
Telefonista: – Atenda, senhor.
– Quem fala? – pergunta Seldon.
– Seldon, é Mrs. Roth. De Newark.
– Mrs. Roth?
– Sim. Estou a telefonar de longa distância para falar com a tua mãe.
– De Newark?
– Tu sabes quem eu sou.
– Mas parece que está ali em baixo, na rua.
– Pois sim, mas não estou. É uma chamada de longa distância. Onde está
a tua mãe, Seldon?
– Estou a lanchar e à espera que ela volte do trabalho. Estou a comer uns
biscoitos de figo. E a beber leite.
– Seldon...
– Estou à espera de que ela volte do trabalho. Ela trabalha até tarde.
Trabalha sempre até tarde. Eu fico aqui sentado, à espera. Às vezes como
qualquer coisa...
– Seldon, pára. Cala-te um momento.
– E depois ela vem para casa e faz o jantar. Mas chega tarde todas as
noites.
Aqui a minha mãe olha para mim e faz menção de me estender o telefone.
– Fala com ele. Ele não ouve quando eu falo.
– Falo com ele de quê? – pergunto, afastando o telefone.
– O Philip está aí? – pergunta Seldon.
– Só um momento, Seldon – diz-lhe a minha mãe.
– O Philip está aí? – repete ele.
– Pega no telefone, por favor – diz-me a minha mãe.
– Mas o que quer que eu diga?
– Pega no telefone – insiste a minha mãe, ao mesmo tempo que me
coloca o auscultador numa das mãos e levanta o bocal para eu lhe pegar
com a outra.
– Está, Seldon? – pergunto.
Numa hesitação suave, incrédulo, ele responde:
– Philip?
– Sim. Olá, Seldon.
– Olá... Sabes, não tenho amigos na escola.
– Queremos falar com a tua mãe – digo-lhe.
– A minha mãe está a trabalhar. Trabalha até tarde, todas as noites. Estou
a lanchar. Biscoitos de figo e um copo de leite. Faço anos daqui a uma
semana e a minha mãe disse que eu podia ter uma festa...
– Espera um momento, Seldon.
– Mas eu não tenho amigos nenhuns.
– Seldon, preciso de perguntar uma coisa à minha mãe. Espera.
Tapo o bocal e segredo-lhe:
O que é que quer que eu lhe diga?
Ela segreda-me, em resposta:
– Pergunta-lhe se sabe o que aconteceu hoje em Louisville. – Seldon, a
minha mãe pergunta se sabes o que aconteceu hoje em Louisville.
– Eu moro em Danville. Moro em Danville, Kentucky. Estou só à espera
de que a minha mãe volte para casa. Estou a lanchar. Aconteceu alguma
coisa em Louisville?
– Espera um momento, Seldon – peço, e pergunto baixinho à minha mãe:
– E agora?
– Fala com ele, mais nada. Continua a falar com ele. Depois, se a
telefonista disser que os três minutos acabaram, diz-me.
– Porque telefonaste? – pergunta-me Seldon. – Vens visitar-me? – Não.
– Lembras-te de quando te salvei a vida?
– Lembro, sim.
– Olha, que horas são aí? Estás em Newark? Estás na Summit Avenue?
– Já te dissemos que estamos. Sim.
– Ouve-se muito nitidamente, não ouve? Até parece que estás ali no fim
do quarteirão. Gostava que pudesses vir cá e lanchasses comigo, e depois
podias ficar para a festa dos meus anos, para a semana. Não tenho nenhuns
amigos para convidar para a festa dos meus anos. Não tenho ninguém com
quem possa jogar xadrez. Agora estou aqui sentado a treinar a minha jogada
de abertura. Lembras-te da minha jogada de abertura? Avanço com o peão
que está logo defronte do rei. Lembras-te de quando tentava ensinar-te?
Avanço com o peão de rei, lembras-te? Depois movo o bispo, depois o
cavalo e depois o outro cavalo... E lembras-te como é quando não há peças
entre o rei e uma das torres? Quando movo o meu rei por cima de dois
espaços para o proteger?
– Seldon...
A minha mãe murmura:
– Diz-lhe que tens saudades dele.
– Mãe! – protesto.
– Diz-lhe, Philip.
– Tenho saudades tuas, Seldon.
– Então queres vir cá lanchar? Quero dizer, parece que... estás mesmo ali
em baixo, na rua?
– Não, este telefonema é de longa distância.
– Que horas são aí?
– São... deixa ver... quase dez para as seis.
– Oh, são dez para as seis... A minha mãe já devia ter chegado, por volta
das cinco horas. Cinco e meia, no máximo. Uma noite chegou a casa às
nove horas.
– Seldon, sabes que mataram o Walter Winchell?
– Quem é ele?
– Deixa-me acabar. Walter Winchell foi morto em Louisville, Kentucky.
No teu estado. Hoje.
– Sinto muito. Quem é ele?
Telefonista: – Os seus três minutos terminaram, senhor.
– Esse é o teu tio? – pergunta Seldon. – Era o teu tio que te ia visitar? Ele
morreu?
– Não, não – respondo, enquanto penso que, sozinho no Kentucky, quem
parece agora ter levado um coice na cabeça é ele. Parece atordoado.
Atrofiado. Parece parado. E, no entanto, era o miúdo mais inteligente da
nossa classe.
A minha mãe pega no telefone.
– Seldon, é Mrs. Roth. Quero que escrevas uma coisa.
– Está bem. Tenho de ir procurar um papel. E um lápis.
Espera. Espera.
– Seldon? – insiste a minha mãe.
Mais espera.
– Pronto – diz ele.
– Seldon, escreve o que vou dizer. Isto está a custar muito dinheiro.
– Desculpe, Mr. Roth. Não consegui encontrar um lápis em casa. Eu
estava na cozinha. A lanchar.
– Seldon, escreve que Mrs. Roth...
– Está bem.
–...telefonou de Newark.
– De Newark. Caramba! Quem me dera estar ainda em Newark, a morar
no andar de baixo. Sabe que salvei a vida do Philip. – Mrs. Roth telefonou
de Newark para ter a certeza...
– Só um momento. Estou a escrever.
– ... para ter a certeza de que está tudo bem.
– Há alguma coisa que não esteja bem? Quero dizer, o Philip está bem. E
a senhora também. Mr. Roth está bem?
– Está. Obrigada por perguntares, Seldon. Diz à tua mãe que foi por isso
que telefonei. Não há motivo nenhum para preocupação a respeito de nós.
– Eu devia estar preocupado com alguma coisa?
– Não. Come o teu lanche...
– Creio que já não me apetece mais biscoitos de figos. De qualquer
maneira, obrigado.
– Adeus, Seldon.
– Mas gosto de biscoitos de figo.
– Adeus, Seldon.
– Mrs. Roth...
– O que é?
– O Philip vem visitar-me? Faço anos, para a semana, e não tenho
ninguém a quem convidar para a festa de aniversário. Não tenho amigos em
Danville. Os rapazes daqui chamam-me Saltine18. Tenho de jogar xadrez
com um miúdo de seis anos, que mora aqui ao lado. É o único com quem
posso brincar. Um miúdo. Ensinei-o a jogar xadrez. Ele às vezes faz
movimentos que não se podem fazer. Ou desloca a rainha e eu tenho de lhe
dizer que não faça isso. Ganho-lhe sempre, mas não é nada divertido. No
entanto, não tenho mais ninguém com quem jogar.
– Seldon, é difícil para toda a gente. Agora as coisas são difíceis para toda
a gente. Adeus, Seldon – Pôs o telefone no gancho e desatou a soluçar.

Poucos dias antes, no primeiro de Outubro, as duas casas de Summit


Avenue que tinham ficado vagas em Setembro pelos «homesteaders de
1942» – uma por baixo de nós e a outra do outro lado da rua, três portas
abaixo – foram ocupadas por famílias italianas vindas da First Ward.
Essencialmente, as suas novas habitações tinham-lhes sido atribuídas por
claro decreto governamental, embora com o amenizador incentivo de um
desconto de 15 por cento na renda (ou seja, $6,37 sobre a mensalidade de
$42,50) num período de cinco anos, dinheiro que seria pago directamente
ao senhorio pelo Departamento do Interior durante a vigência do
arrendamento inicial de três anos e nos primeiros dois anos de uma
renovação de outros três. Estas disposições decorriam de uma parte
anteriormente não publicada do plano de deslocalização chamada Projecto
Bom Vizinho, destinada a introduzir um número firmemente crescente de
residentes não judeus em bairros com predominância de judeus e, deste
modo, «enriquecer» a «americanidade» de todas as pessoas envolvidas. O
que ouvíamos em casa, porém – e às vezes até na escola, dos nossos
professores – era que a meta subjacente ao Projecto Bom Vizinho, assim
como ao do Just Folks, era enfraquecer a solidariedade da estrutura social
judaica, assim como diminuir a força eleitoral que uma comunidade judaica
pudesse ter em eleições locais e para o Congresso. Se o realojamento de
famílias judias e a sua substituição pelo recrutamento de famílias gentias
obedecesse ao esquema do plano geral da Agência, era muito possível que
uma maioria cristã se tornasse dominante em pelo menos metade dos vinte
bairros judeus mais povoados, logo no início do segundo mandato de
Lindbergh, e uma resolução da Questão Judaica estivesse próxima, de uma
maneira ou de outra
A família recrutada para morar no andar por baixo do nosso – uma mãe,
um pai, um filho e uma avó – era a dos Cucuzza. Graças aos anos que o
meu pai passara a calcorrear a First Ward, onde os clientes cujos pequenos
prémios de seguro ele cobrava mensalmente eram na sua grande maioria
italianos, ele já conhecia os novos inquilinos e, consequentemente, quando
chegou do trabalho na manhã depois de Mr. Cucuzza, um guarda-nocturno,
ter transportado na camioneta os móveis da família do apartamento sem
água quente de um prédio situado numa rua lateral não longe do Cemitério
Holy Sepulchre, o meu pai parou primeiro à porta do andar de baixo para
ver se, apesar de se apresentar sem casaco nem gravata e com as mãos
sujas, a idosa avó o reconheceria como o agente de seguros que vendera ao
seu marido a apólice de seguro que proporcionara à sua família os meios
necessários para o sepultar.
Os «outros» Cucuzzas (parentes dos «nossos» Cucuzzas que se tinham
mudado do seu apartamento sem água quente da First Ward para a casa a
três portas de distância da nossa) eram uma família muito maior – três
filhos, uma filha, uma mãe, um pai e um avô – e potencialmente vizinhos
mais barulhentos e incómodos. Estavam ligados, por intermédio do avô e do
pai, a Ritchie «the Boot» Boiardo, o quadrilheiro que dominava as
esquadras italianas de Newark e constituía o único concorrente sério do
monopólio do mundo do crime de Longy. É verdade que o pai, Tommy, não
passava de mais um de uma caterva de subalternos e, como o seu próprio
pai reformado, representava o papel de criado de um dos restaurantes
populares do Boiardo, o Vittorio Castle, quando não fazia as rondas das
tabernas, das barbearias, dos bordéis, dos recreios das escolas e das lojas de
guloseimas dos cortiços da Third Ward para extrair o dinheiro de bolso aos
negros que, fielmente, apostavam todos os dias nas lotarias.
Independentemente da religião, os outros Cucuzza estavam longe de ser o
tipo de vizinhos que os meus pais queriam nas proximidades dos seus
impressionáveis jovens filhos, e durante o pequeno-almoço, aos domingos
de manhã, explicava, para nos confortar, como a nossa situação seria pior se
nos tivessem calhado como vizinhos o explorador das lotarias e os seus três
rapazes, em vez do guarda--nocturno e do seu filho, Joey, um miúdo de
onze anos, recentemente alistado na St. Peter’s e, segundo ele, um rapaz
com boa índole e um problema auditivo, que pouco tinha em comum com
os rufiões dos seus primos. Enquanto estavam na First Ward, os quatro
filhos de Tommy Cucuzza tinham frequentado a escola pública local, mas
agora tinham-se matriculado, juntamente com Joey, na St. Peter’s, em vez
de numa escola pública como a nossa, cheia de judeuzinhos espertos.
Como o meu pai deixara o trabalho poucas horas, apenas, depois do
assassínio de Winchell e, apesar do irritado desacordo do tio Monty, guiara
para casa a fim de passar o resto daquele tenso anoitecer ao lado da mulher
e dos filhos, estávamos os quatro sentados à mesa da cozinha, à espera de
que a rádio nos desse novas notícias, quando Mr. Cucuzza e Joey subiram a
escada das traseiras para nos visitarem. Bateram à porta e depois tiveram de
esperar no patamar, até o meu pai ter a certeza de quem eram.
Mr. Cucuzza era um homenzarrão calvo, com cerca de um metro e
noventa e oito de altura e mais de cento e dez quilogramas de peso, e estava
vestido para o trabalho com o seu uniforme de guarda-nocturno: camisa
azul-escura, calças azul-escuras bem passadas a ferro e um cinto preto largo
que, além de lhe segurar as calças, suportava vários quilos da mais
extraordinária colecção de equipamento de que eu alguma vez estivera
suficientemente perto para poder ver e tocar. Havia molhos de chaves, cada
um do tamanho de uma granada de mão, suspensos do lado de cada
algibeira das calças; havia um conjunto de algemas a sério e, suspenso de
uma correia da fivela brilhante do cinto, um relógio de guarda--nocturno no
seu estojo preto. À primeira vista, tomei o relógio por uma bomba, mas não
me equivoquei quanto à pistola que ele trazia num coldre, à cintura. Uma
lanterna comprida, que podia fazer as vezes de bastão, estava enfiada, com
a lâmpada para cima, na algibeira de trás, e na parte de cima de uma manga
da sua camisa de trabalho bem engomada havia um triângulo branco com
letras azuis que diziam: «Guarda Especial».
Joey também era forte – tinha apenas mais dois anos do que eu e já o
dobro do meu peso – e o equipamento que trazia pareceu-me quase tão
intrigante como o do seu pai. Tinha metido no buraco da orelha direita um
aparelho auditivo – que parecia um bocado de pastilha elástica moldada –
ligado por um fio fino a uma caixa preta redonda com um mostrador na
frente, que ele usava preso à algibeira da camisa; outro fio ligava-se a uma
bateria mais ou menos do tamanho de um isqueiro grande, que transportava
na algibeira das calças. E na mão trazia um bolo, presente da sua mãe para a
minha.
O presente de Joey era um bolo, o de Mr. Cucuzza uma pistola. Tinha
duas, uma que usava para o trabalho e outra que guardava escondida em
casa. Viera oferecer esta ao meu pai.
– É amável da sua parte – disse-lhe o meu pai –, mas, francamente, não
sei disparar.
– Pux’ò gatilho.
Mr. Cuccuza tinha uma voz surpreendentemente suave para uma pessoa
tão grande, embora com um certo gume áspero, como se tivesse estado
demasiado exposta ao tempo durante as horas da sua ronda de guarda-
nocturno. E o seu sotaque era tão agradável ao ouvido que, às vezes,
quando estava sozinho, eu fingia que falava como ele. Quantas vezes me
entretive a dizer alto: «Pux’ò gatilho»? Com excepção da mãe de Joey, que
nascera americana, os nossos Cucuzzas tinham todos vozes curiosas, sendo
a da avó bigoduda a mais curiosa de todas, mais ainda do que a do próprio
Joey, cujo som lembrava menos uma voz do que o eco sem inflexão de uma
voz. E era curiosa não apenas por ela só falar italiano, quer com outros
(incluindo eu), quer consigo mesma enquanto varria a escada das traseiras
ou se ajoelhava na terra a plantar as suas verduras no nosso minúsculo
quintal, quer quando estava apenas parada, a resmonear, à entrada escura da
porta. A sua voz era a mais esquisita, porque soava como a de um homem –
ela parecia um velho pequenino, de vestido preto comprido, e também
falava como se o fosse, sobretudo quando gritava ralhos, ordens e
sentenças, às quais Joey jamais se atrevia a desobedecer. A metade
brincalhona dele, a alma da qual as freiras e os padres nunca viram o
suficiente para a quererem salvar, era praticamente tudo quanto eu
encontrava quando estávamos os dois juntos. Era difícil sentir muita pena
pela sua deficiência auditiva, porque Joey era um rapaz muito divertido e
muito brincalhão, com o seu tipo pessoal de riso esganiçado, um rapaz
falador, curioso e monumentalmente crédulo, com uma mente veloz, ainda
que imprevisível. Era difícil sentir pena dele e, no entanto, quando estava
com a sua família, a obediência de Joey era tão meticulosamente absoluta
que eu a achava quase tão espantosa de contemplar como a insurgência
absoluta de um Sushy Margulis. Não poderia haver melhor filho em toda a
Newark italiana, e foi por isso que a minha própria mãe não tardou a achá-
lo irresistível – a sua impecável devoção filial e as suas compridas pestanas
escuras, o modo como olhava implorativamente para os adultos, à espera de
que lhe dissessem o que devia fazer, permitiam-lhe pôr de lado a reserva
tensa que era a sua defesa inata contra gentios. Mas a avó imigrante, essa,
enchia-o, como a mim, de nervosismo.
– Aponta – explicava Mr. Cucuzza ao meu pai, exemplificando com um
polegar erguido e um indicador estendido – e dispara. Aponta e dispara, e
pronto, já está.
– Não preciso dela – repetiu o meu pai.
– E se eles aparecerem por aí, como vai proteger-se? – perguntou o
italiano.
– Cucuzza, eu nasci na cidade de Newark no ano de mil novecentos e um.
Toda a minha vida paguei a minha renda no prazo, paguei os meus impostos
no prazo e paguei as minhas contas no prazo. Nunca enganei um patrão
num níquel, que fosse. Nunca tentei enganar o Governo dos Estados Unidos
da América. Acredito neste país. Amo este país.
– Também eu – respondeu o nosso alentado vizinho de baixo, cujo cinto
largo continuava a fascinar-me tanto como se pendessem dele cabeças
mumificadas. – Vim para cá aos dez anos. O melhor país de todo o mundo.
Nenhum Mussolini aqui.
– Agrada-me que tenha esses sentimentos, Cucuzza. É uma tragédia para
a Itália, é uma tragédia humana para pessoas como você.
– Mussolini, Hitler... dão-me a volta ao estômago.
– Sabe do que eu gosto, Cucuzza? Do dia das eleições. Adoro votar.
Desde que atingi a idade de votar, não falhei umas eleições. Em 1924 votei
contra Mr. Coolidge e a favor de Mr. Davis, e Mr. Coolidge venceu. E todos
nós sabemos o que Mr. Coolidge fez pela gente pobre deste país. Em 1928
votei contra Mr. Hoover e a favor de Mr. Smith, e Mr. Hoover ganhou, e
nós sabemos o que ele fez pela gente pobre deste país. Em 1932 votei pela
segunda vez contra Mr. Hoover e a favor de Mr. Roosevelt, pela primeira
vez, e, graças a Deus, Mr. Roosevelt ganhou e pôs a América de novo de pé.
Tirou este país da Depressão e deu ao povo o que prometera: uma nova
distribuição. Em 1936 votei contra Mr. Landon e a favor de Mr. Roosevelt e
mais uma vez Mr. Roosevelt ganhou – dois estados, Maine e Vermont,
foram tudo o que Mr. Landon conseguiu. Nem sequer venceu no Kansas.
Mr. Roosevelt arrebatou o país com a maior votação presidencial de todos
os tempos, e mais uma vez cumpriu todas as promessas que fez nessa
campanha ao povo trabalhador. E depois disso o que fazem os eleitores em
1940? Elegem um fascista em lugar dele. Não apenas um idiota como o
Coolidge, não apenas um pateta como o Hoover, mas um fascista completo,
com uma medalha a prová-lo. Elegem um fascista com um fascista agitador
da gentalha como parceiro, Mr. Wheeler, e põem Mr. Ford no Gabinete, Mr.
Ford que além de anti-semita, como Hitler, também é um capataz de
escravos que transformou o trabalhador numa máquina humana. E agora,
esta noite, o senhor vem ter comigo, à minha própria casa, e oferece-me
uma pistola. Na América, no ano de mil novecentos e quarenta e dois, um
vizinho acabado de chegar, um homem que ainda nem sequer conheço, veio
aqui e ofereceu-me uma pistola, a fim de eu proteger a minha família da
quadrilha anti-semita de Mr. Lindbergh. Bem, Cucuzza, não pense que não
lhe estou grato. Nunca esquecerei a sua preocupação. Mas sou um cidadão
dos Estados Unidos da América, assim como o são a minha mulher e os
meus filhos, e o mesmo era... – a voz tremeu-lhe –... o mesmo era Mr.
Walter Winchell...
De súbito, neste preciso momento, a rádio anuncia outro boletim acerca
de Walter Winchell. «Caluda!», diz o meu pai. «Caluda!», como se, ali na
cozinha, o orador tivesse sido outra pessoa que não ele. Escutamos todos –
até Joey parece escutar –, como pássaros que se juntam em bandos para
migrar e como peixes que nadam em cardume.
O corpo de Walter Winchell, abatido naquele dia num comício político
em Louisville, Kentucky, por um assassino suspeito de pertencer ao Partido
Nazi Americano e trabalhando em colaboração com a Ku Klux Klan, será
transportado durante a noite, de comboio, de Louisville para a Penn Station
da Cidade de Nova Iorque. Aí, por ordem do mayor Fiorello La Guardia e
sob a protecção da Polícia da Cidade de Nova Iorque, o corpo ficará em
câmara ardente no grande átrio da estação ferroviária durante toda a manhã.
De acordo com o costume judaico, haverá um serviço fúnebre no mesmo
dia, às duas horas da tarde, no Templo Emanu-El, a maior sinagoga de Nova
Iorque. Um sistema de altifalantes transmitirá a cerimónia para fora do
templo, para uma multidão reunida na 5.ª Avenida e que se espera atinja as
dezenas de milhares. Juntamente com o mayor La Guardia, contar-se-ão
entre os oradores o senador democrata James Mead, o governador judeu de
Nova Iorque, Herbert Lehman, e o ex-presidente dos Estados Unidos,
Franklin D. Roosevelt.
– Está a acontecer! – grita o meu pai. – Ele voltou! FDR voltou!
– Precisamos muito dele – diz Mr. Cucuzza.
– Rapazes, compreendem o que está a acontecer? – pergunta o meu pai, e
abraça-nos, ao Sandy e a mim. – É o princípio do fim do fascismo na
América! Não há aqui nenhum Mussolini, Cucuzza – não há mais nenhum
Mussolini aqui!
13 Dois termos de calão, um irlandês e outro iídiche. Significa «o irlandês idiota» (NT).

14 Uísque servido com um copo de cerveja para acompanhar (NT).

15 Iídiche. Circuncisão (NT).

16 «the Lion», «Knuckles», «Big», «Dummy» e «Duke-it-out», podem traduzir-se respectivamente


por «o Leão», «Soqueira», «Calmeirão» e «Arreia-Lhe». (NT)

17 Matador. (NT)

18 Bolacha de água e sal, embora aqui também possa ser uma corruptela maliciosa, com o sotaque
local, de Seldon. (NT)
8
Outubro de 1942
TEMPOS DIFÍCEIS

ALVIN apareceu em nossa casa na noite seguinte, ao volante de um Buick


verde novo em folha e na companhia de uma fiancée chamada Minna
Schapp. Quando era pequeno, a palavra fiancée deixava-me sempre
confuso. Dava-me a impressão de que se tratava de uma pessoa especial –
mas depois ela aparecia e era apenas uma rapariga como outra qualquer,
que, quando conhecia a minha família, tinha medo de dizer alguma coisa
errada. De qualquer modo, a pessoa especial não era, neste caso, a futura
esposa, mas sim o futuro sogro, um homem de negócios arrogante, disposto
a livrar Alvin do negócio das máquinas de jogo – no qual, ajudado por dois
calmeirões valentaços que levantavam a carga e afugentavam malfeitores, o
meu primo trabalhava na venda e instalação de máquinas ilegais –, com um
fato branco sobre branco, como se fosse um dono de restaurante de Atlantic
City, de seda de Hong-Kong e feito por medida, e uma camisa
monogramada. Apesar de o próprio Mr. Schapp ter começado nos anos 20
com o nome de Pinball Billy Schapiro, um vigarista de meia-tigela ligado
aos piores mafiosos das mais degradadas casas em fileira das mais violentas
ruas das más terras do Sul de Filadélfia – entre os quais se contava o tio de
Shushi Margulis –, em 1942 o rendimento das pinballs e das caça-moedas
ascendia semanalmente a mais de quinze mil dólares não declarados, e
Pinball Billy fora reciclado como William F. Schapp II, membro altamente
considerado do Clube de Campo de Green Valley, da fraternidade judaica
Brith Achim (onde nas noites de sábado levava a sua dinâmica esposa,
ornada com as suas gigantescas jóias, para dançar ao ritmo da música de
Jackie Jacobs e os seus Jolly Jazzers), e da sinagoga Har Zion (por
intermédio de cuja agência funerária adquiriu um talhão de solo sagrado
para a família no canto belamente ajardinado do cemitério da sinagoga),
além de ser o marajá de uma mansão de dezoito divisões na suburbana
Merion e o ocupante, no Inverno, de uma suite de cobertura – verdadeiro
sonho de um rapaz pobre – anualmente reservada para ele no Eden Roc de
Miami Beach.
Aos trinta e um anos, Minna era oito anos mais velha do que Alvin, uma
mulher de tez untuosa e ar intimidado que, quando ousava falar na sua voz
infantil, pronunciava cada palavra como se tivesse acabado de aprender a
dizer as horas. Era, toda ela, a filha de pais autoritários, mas como, além da
Intercity Carting Company – o rosto público da negociata das máquinas de
jogar –, o pai era proprietário de uma casa de lagostas com um quarto de
hectare defronte do Steel Pier, onde aos fins-de-semana as pessoas faziam
bicha dupla à volta do quarteirão para entrarem, e como no início dos anos
30, quando a Proibição acabou e a participação marginal de Pinball Billy no
sindicato interestadual de contrabando de álcool de Waxey Gordon secou
subitamente, ele abrira a «Original Schapp’s» de Filadélfia – a casa de bifes
popular entre aquilo a que em Filadélfia chamavam a Máfia Judaica –,
Pinball Billy contava muito com Alvin como defensor de Minna. «O
contrato é o seguinte», disse-lhe Schapp, quando lhe entregou o dinheiro
para comprar o anel de noivado para a filha, «Minna cuida da tua perna, tu
cuidas de Minna e eu cuido de ti.»
Foi desta maneira que o meu primo passou a vestir os fatos feitos por
medida e a atribuir a si mesmo a encantadora responsabilidade de conduzir
às respectivas mesas clientes tão famosos como o mayor corrupto de Cidade
de Jersey, Frank Hague; o campeão de meios-pesados de New Jersey, Gus
Lesnevich, e magnatas de negociatas sujas como Moe Dalitz, de Cleveland;
King Solomon, de Boston; Mickey Cohen, de Los Angeles, e mesmo o
próprio «Cérebro», Meyer Lansky, quando vinham à cidade para uma
convenção do mundo do crime. E até de, regularmente, todos os meses de
Setembro, receber, acabada de chegar do seu cortejo triunfal, a recém-
coroada Miss América com todos os seus atarantados parentes a reboque.
Depois de cumprimentar todos prodigamente, e de se sentarem com os seus
ridículos babetes para comerem lagosta, cabia a Alvin a honra de fazer sinal
ao criado, com um estalar de dedos, de que a despesa era por conta da casa.
O futuro genro perneta de Pinball Billy não tardou a ter uma alcunha
própria, Showy, que lhe foi posta, como ele dizia a toda a gente, por Allie
Stolz, que disputava o título mundial de pesos--leves. Alvin viera de
Filadélfia para visitar Stolz – uma rapaz de Newark, como Gus Lernevich –
no dia em que ele e Minna apareceram em nossa casa para jantar. Stolz
travara e perdera um combate decisivo de quinze rounds contra o campeão
de meios-pesados em Madison Square Garden no anterior mês de Maio, e
naquele Outono estava a treinar no ginásio de Marsillo, da Market Street,
para um combate em Novembro contra Beau Jack, que lhe daria a
possibilidade de defrontar Tippy Larkin, caso ganhasse. «Quando se safar
do Beau Jack», disse Alvin, «só haverá o Larkin entre ele e o título, e o
Larkin tem um queixo de vidro.»
Queixo de vidro. Farronca. Enxerto de porrada. Um gajo teso. Qual é a
dele? Aguento-me no balanço. A mais velha vigarice do mundo. Alvin tinha
um vocabulário novo e toda uma nova e aparatosa maneira de falar que
desagradavam claramente aos ouvidos dos meus pais. No entanto, quando
se referiu com adoração à generosidade de Stolz – «O Allie é um tipo
rápido com o dólar» –, não resisti a parecer pessoalmente um gajo duro
repetindo a surpreendente expressão na escola, juntamente com uma
extensa rapsódia de termos de calão que o meu primo usava agora para
exprimir a palavra dinheiro.
Minna manteve-se silenciosa durante a refeição – embora a minha mãe
tentasse tudo para lhe soltar a língua, eu estava tolhido pela timidez e o meu
pai não conseguia pensar noutra coisa senão na bomba lançada na sinagoga
em Cincinnati, na noite anterior, e na pilhagem de lojas de judeus em
cidades americanas espalhadas por uma extensão que abrangia dois fusos
horários. Esta era a segunda noite consecutiva em que ele optara por faltar
ao trabalho para o tio Monty em vez de deixar a família sozinha em Summit
Avenue, mas não podia preocupar-se com a ira do irmão numa altura destas
e passou o jantar a levantar-se para ir à sala ligar o rádio e ouvir que
notícias davam na esteira do funeral de Winchell. Alvin, entretanto, só
conseguia falar de «Allie» e da sua luta pela conquista do pugilismo
mundial, como se o meio--pesado natural de Newark personificasse a sua
mais profunda concepção da espécie humana. Podia haver abandono mais
completo do código moral que lhe custara a perna? Desfizera-se do que
quer que em tempos se erguera entre ele e as aspirações de um Shushi
Margulis – ele desfizera-se de nós.
Quando a conheci, perguntei a mim mesmo se Alvin dissera, sequer, a
Minna que era um amputado. Não me passou pela cabeça que a sua
personalidade dominada era precisamente o que a tornava na primeira e
única mulher a quem Alvin podia dizer, nem compreendi que Minna era a
prova da incapacidade dele com as mulheres. Na realidade, o seu coto
constituiu o maior êxito de Alvin com Minna, sobretudo depois de Schapp
morrer em 1960 e de o inútil irmão dela tomar conta das máquinas de jogo,
enquanto Alvin se contentava com adquirir os restaurantes e começar a
andar com as prostitutas mais bonitas de dois estados. Sempre que o coto
rebentava e ficava dorido, ensanguentado e infectado – o que acontecia em
consequência das suas muitas loucuras –, Minna intervinha imediatamente e
não lhe permitia que usasse a prótese. Alvin bem lhe dizia, «Pelo amor de
Deus, não te preocupes com isso, não tarda está bom», mas nisso, e só
nisso, Minna levava a melhor. «Não podes pôr peso em cima dessa perna»,
dizia-lhe, «enquanto não estiver arranjada» – referindo-se à perna artificial,
que estava sempre, segundo as palavras do fabricante que Alvin me
ensinara quando eu, que ainda não fizera nove anos, era a sua Minna
maternal, a «deixar de servir». Quando Alvin ficou mais velho e o coto
começou a rebentar constantemente em consequência de ter de suportar
todo o peso que ele adquirira, quando tinha de passar semanas a fio sem a
prótese até ele cicatrizar, Minna levava-o de carro à praia pública, no Verão,
e observava, completamente vestida, debaixo de um grande chapéu de sol,
enquanto ele passava horas a brincar na rebentação cicatrizadora,
balouçando ao sabor das ondas, flutuando de costas, esguichando para o ar
géiseres de água salgada e depois, para pregar um susto aos turistas que
enchiam a praia, saindo da água a gritar «Tubarão! Tubarão!» e a apontar,
com horror, para o coto.
Alvin apareceu com Minna para jantar depois de ter telefonado de manhã
para dizer à minha mãe que ia estar em North Jersey e desejava passar lá
por casa para agradecer à tia e ao tio tudo quanto tinham feito por ele
quando regressara dos comandos e os fizera passar um mau bocado a todos.
Tinha muitos motivos de gratidão, afirmou, e queria fazer as pazes com eles
e ver os dois rapazes, além de apresentar a sua fiancée. Foi isto que ele
disse, e é bem possível que fosse o que tinha em mente antes de se
encontrar cara a cara com o meu pai e com a recordação dos instintos
regeneradores – e com a realidade da inata antipatia mútua, a antipatia com
tipos humanos que estivera de facto presente desde o início. E foi por isso
que, quando cheguei da escola a casa e soube da novidade, remexi na minha
gaveta à procura da medalha e, pela primeira vez desde que ele partira para
Filadélfia, voltei a pregá-la na camisola interior.
Evidentemente que estava longe de ser um dia ideal para uma visita
conciliadora da ovelha negra da família. Não havia notícia de qualquer
violência anti-semita em Newark ou nas outras cidades mais importantes de
New Jersey durante a noite, mas a bomba na sinagoga, que ardera por
completo, a uns cento e cinquenta quilómetros acima do rio Ohio a partir de
Louisville, em Cincinatti, e o aleatório partir de vidros e as pilhagens de
lojas pertencentes a judeus em outras oito cidades (sendo as três maiores St.
Louis, Buffalo e Pittsburgh) não contribuíram nada para diminuir o medo de
que o espectáculo do funeral judaico de Walter Winchell, logo do outro lado
do Hudson, em Nova Iorque – e as manifestações e contramanifestações
coincidentes com todas as solenes cerimónias religiosas –, pudessem
provocar uma explosão de violência muito mais perto de onde vivíamos. Na
escola, logo de manhã, fora elaborado um programa especial de meia hora
para os alunos do quarto ao oitava ano. Juntamente com um representante
do Conselho Pedagógico, um delegado do gabinete do mayor Murphy e a
presidente actual da APP, o director descreveu as providências que estavam
a ser tomadas para assegurar a nossa segurança durante o dia e enumerou
dez normas que nos protegeriam do perigo durante a ida para a escola e o
regresso a casa. Embora não tenha sido feita nenhuma menção à polícia
judaica de Bullet Apfelbaum – que estivera toda a noite na rua e ainda lá
estava de manhã, a beber café quente de um termo e a comer donuts
polvilhados de açúcar oferecidos pela padaria de Lehrhoff, quando Sandy e
eu fôramos para a escola –. foi-nos garantido pelo delegado do mayor que
«até as condições normais serem restabelecidas», brigadas extra da polícia
municipal patrulhariam o bairro, e recomendaram-nos que não nos
assustássemos se encontrássemos um polícia fardado em cada uma das
portas da escola e outro nos corredores. Foram distribuídas a cada aluno
duas folhas mimeografadas, uma descrevendo as regras a que devíamos
obedecer na rua, que os nossos professores repetiriam connosco quando
regressássemos às nossas respectivas salas de aula, e a outra para levarmos
aos nossos pais, a informá-los das novas medidas de segurança. Se
houvesse perguntas, os nossos pais deveriam fazê-las a Mrs. Sisselman, a
presidente da APP que sucedera à minha mãe.
Comemos na sala de jantar, onde jantáramos pela última vez quando a tia
Evelyn levara o rabi Bengelsdorf lá a casa para nos conhecer. Depois do
telefonema de Alvin, a minha mãe (com cuja incapacidade de alimentar
uma má vontade pessoal ele deve ter contado no momento em que a ouviu
atender o telefone) saiu para comprar o necessário para confeccionar um
jantar que agradasse especialmente ao sobrinho, e isso apesar da ansiedade
que sentia cada vez que tinha de abrir a porta e voltar para a rua. O facto de
polícias armados de Newark estarem a fazer a ronda a pé e haver carros-
patrulha a percorrer as ruas locais, pouco mais segurança lhe causava do
que os vislumbres da polícia judaica de Bullet Apfelbaum, e por isso, como
qualquer outra pessoa que ia às compras numa cidade sitiada, acabou por
andar praticamente a correr de um lado para o outro da Chancellor Avenue
para comprar tudo aquilo de que precisava. Na cozinha, tratou de fazer o
bolo de chocolate em camadas, com cobertura de chocolate e nozes picadas,
que fora o preferido de Alvin, de descascar as batatas e picar as cebolas para
as latkes19 que ele devorava, e a casa ainda cheirava à cozedura no forno, à
fritura e à assadura desencadeadas pelo inesperado regresso, quando Alvin
entrou com o seu Buick na travessa. Aí (onde treináramos jogadas com a
bola que eu roubara) Alvin parou atrás da pequena pickup Ford que Mr.
Cucuzza utilizava para fazer mudanças de mobílias como segundo
emprego, e que se encontrava por acaso estacionada na garagem, porque era
o dia de folga do guarda-nocturno, e nesses dias ele dormia todo o dia.
Alvin trazia um fato de raiom brilhante, cinzento-pérola, com grandes
chumaços nos ombros, sapatos de gáspeas duplas perfuradas, de dois tons e
com protectores nas biqueiras, e prendas para todos: um avental branco com
rosas vermelhas para a tia Bess, um bloco de esboços para Sandy, um boné
dos Phillies para mim e, para o tio Herman, um vale que dava direito a um
jantar de lagosta grátis, para quatro pessoas, no restaurante de Atlantic City.
O facto de ele trazer prendas para todos tranquilizou-me, pois era sinal de
que não esquecera todas as coisas boas que encontrara em nossa casa nos
anos que tinham antecedido a perda da sua perna. Naquele momento e ali,
não parecia, com certeza, que éramos uma família dividida ou que, quando
o jantar terminasse – e Minna já estivesse na cozinha a aprender com a
minha mãe como se faziam latkes –, poderia irromper uma discussão
monumental entre o meu pai e Alvin. É possível que, se Alvin não tivesse
aparecido na sua fatiota espalhafatosa e com o seu carro de luxo,
praticamente a respirar por todos os poros a sensualidade grosseira do
ginásio Marsillo’s e exuberante com a aquisição iminente de riqueza nunca
sonhada... é possível que, se Winchell não tivesse sido assassinado vinte e
quatro horas antes e o pior que se temera quando Lindbergh tomara posse
não tivesse parecido mais perto de se abater sobre nós do que nunca... é
possível que, nesse caso, os dois homens adultos que mais tinham
significado para mim durante toda a minha infância não tivessem, jamais,
estado tão perto de se assassinarem um ao outro.
Antes daquela noite, eu não fizera ideia alguma de que o meu pai fosse
tão inclinado para pintar a manta ou estivesse tão preparado para efectuar
aquela transformação, rápida como o relâmpago, da sanidade mental para a
loucura indispensável para pôr em acção a ânsia desenfreada de destruir. Ao
contrário do tio Monty, ele preferia nunca falar das provações de um miúdo
de um prédio pobre judeu da Runyon Street antes da Primeira Guerra
Mundial, quando os irlandeses, armados de cacetes, pedras e tubos de ferro,
vinham regularmente em magotes, pelas passagens inferiores do viaduto do
bairro Ironbound, cobrar vingança aos matadores de Cristo da Third Ward
judia, e por muito que gostasse de nos levar, ao Sandy e a mim, a Laurel
Garden, na Springfield Avenue, quando conseguia arranjar bilhetes para um
bom combate, apavorava-o ver homens lutar uns com os outros fora de um
ringue de boxe. Que ele sempre tivera um físico musculoso, não era segredo
para mim, graças a um instantâneo tirado quando tinha dezoito anos e que a
minha mãe colara no álbum fotográfico da família, juntamente com a outra
única fotografia sobrevivente da sua juventude, uma fotografia dele aos seis
anos de idade, ao lado do tio Monty, três anos mais velho e quase meio
metro mais alto – dois miúdos mal-enjorcados em pose rígida nos seus
fatos-macacos velhos e blusas sujas e com os bonés empurrados para trás
apenas o suficiente para revelar a crueldade dos cortes de cabelo. Na foto a
sépia dos dezoito anos já se encontra a um milhão de quilómetros da
infância, é uma força da natureza em plena pujança, em fato de banho e de
braços cruzados na soalheira praia de Spring Lake, em New Jersey, a
imóvel pedra angular na base de uma pirâmide humana de seis criados de
hotel galifões, a gozar a sua tarde de folga. Como se vê por essa fotografia
de 1919, ele fora possante de peito desde o início, e mantivera de algum
modo os ombros vigorosos e os braços musculosos, apesar dos anos
passados a bater a portas em nome da Metropolitan Life, de modo que
agora, aos quarenta e um anos, depois de ter trabalhado a carregar caixotes
pesados e levantar sacas de cinquenta quilos seis noites por semana, durante
todo o mês de Setembro, havia provavelmente mais força explosiva
acumulada naquele corpo do que jamais houvera na sua vida.
Antes dessa noite, teria sido tão impossível para mim imaginá-lo a
espancar alguém – e muito menos a desancar sem dó nem piedade o filho
órfão do seu amado irmão mais velho – como imaginá-lo em cima da minha
mãe, tanto mais que não havia tabu mais forte entre judeus com as nossas
empobrecidas origens europeias e as nossas tenazmente mantidas ambições
americanas do que a difusa e tradicional proibição de resolver disputas pela
força. Naquele tempo, a propensão judaica comum era, de modo geral, não
violenta, assim como não alcoólica, uma virtude cuja falha residia na
impossibilidade de educar o grosso dos jovens da minha geração para a
agressão combativa que era a primeira lei de outras educações étnicas e,
indiscutivelmente, de grande valia prática quando não podíamos negociar o
nosso afastamento pacífico da violência ou arranjar maneira de fugir. Entre,
digamos, as várias centenas de rapazes da minha escola primária, com
idades compreendidas entre os cinco e os catorze anos, que não estavam
cromossomaticamente predeterminados para serem pesos-leves de alto
calibre como Allie Stolz, ou gangsters como Longy Zwillman, eram com
toda a certeza em menor número as brigas de murros que se verificavam do
que em qualquer das outras escolas de bairro da industrial Newark, onde as
obrigações éticas de uma criança eram diferentemente definidas e os
colegas de escola demonstravam a sua beligerância por meios que não
estavam de facto ao nosso alcance.
Por isso, por todas as razões imagináveis, aquela foi uma noite
devastadora. Em 1942, eu não possuía a capacidade necessária para
começar, sequer, a decifrar todas as terríveis implicações, mas a simples
visão do sangue do meu pai e de Alvin foi suficientemente arrasadora. A
nossa carpete oriental de imitação estava toda salpicada de sangue, pingava
sangue dos restos escavacados da mesinha do centro, uma mancha de
sangue atravessava, como um sinal, a testa do meu pai, jorrava sangue do
nariz do meu primo – e os dois, mais do que a esmurrar-se, mais do que a
lutar, atiravam-se um ao outro, colidindo com um terrível choque ósseo,
empinavam-se para trás e arremetiam de novo como homens de cujas
frontes brotassem chifres, fantásticas criaturas de espécies cruzadas que
tivessem saltado da mitologia para a nossa sala e estivessem a reduzir a
polpa a carne uma da outra com os seus cornos bifurcados por galhos.
Dentro de uma casa, é costume reduzirmos a escala dos nossos
movimentos, reduzirmos a escala da nossa velocidade, mas aqui a escala
das coisas invertera-se e era aterradora de ver. As arruaças de South Boston,
as arruaças de Detroit, o assassínio de Louisville, o bombardeamento de
Cincinnati, a violência em St. Louis, Pittsburgh, Buffalo, Akron,
Youngstown, Peoria, Scranton e Syracuse... e agora isto: na sala de uma
família comum – tradicionalmente o palco do esforço colectivo para traçar a
linha contra as intrusões de um mundo hostil –, os anti-semitas estavam
prestes a ser estimulados, na sua exaltante solução para o pior problema da
América, com o facto de empunharmos cacetes e histericamente nos
destruirmos.
O horror terminou quando Mr. Cucuzza, em camisa e barrete de dormir
(vestimenta nunca antes vista em ninguém, homem ou rapaz, a não ser em
filmes cómicos), entrou de rompante em nossa casa, de pistola em punho. A
avó emigrante do Velho Mundo de Joey, apropriadamente enfaixada como a
Rainha das Trevas calabresa, soltou, ao fundo do nosso patamar, um grito
frenético – e do interior da nossa própria casa saiu um grito igualmente
arrepiante no momento em que a estilhaçada porta das traseiras se
escancarou e a minha mãe viu que o intruso em camisa de dormir estava
armado. Minna começou a vomitar para as mãos tudo quanto engolira ao
jantar e eu não me contive e urinei-me todo, enquanto Sandy, o único de
nós capaz de encontrar as palavras adequadas e a força vocal necessária
para as proferir, gritava: «Não dispare! É o Alvin!» Mas Mr. Cucuzza era
um guardião profissional da propriedade privada treinado para actuar de
imediato e fazer distinções depois e – sem se deter para perguntar «Quem é
o Alvin?» – imobilizou o atacante do meu pai num meio-nelson20 com um
braço, enquanto lhe encostava o cano da pistola à cabeça com a mão do
outro.
A prótese de Alvin rachara-se em duas, o seu coto estava todo dilacerado
e um dos seus pulsos partido. Três dos dentes do meu pai estavam partidos e
duas costelas fracturadas, tinha um corte ao longo da face esquerda que teve
de ser suturado, com quase o dobro dos pontos do ferimento que me fora
infligido pelo cavalo do orfanato, e o pescoço tão gravemente torcido que
teve de andar meses com uma coleira de aço. A mesa de centro de mogno
com tampo de vidro, para cuja compra no Bam’s passara anos a juntar
dinheiro (e onde, no fim da agradável hora de leitura nocturna, depositava,
com a fita a marcar as páginas, o novo romance de Pearl Buck, Fannie
Hurst ou Edna Ferber trazido da minúscula biblioteca de aluguer da
farmácia local), estava espalhada em bocados pela sala toda, e
miscroscópicos grânulos de vidro tinham-se-lhe cravado nas mãos. A
carpete, as paredes e as poltronas estavam salpicados de cobertura de
chocolate (das fatias de bolo de camadas que eles estavam a comer quando
se sentaram, à sobremesa, para conversarem um com o outro na sala), assim
como de pingos de sangue deles, além do seu cheiro – um cheiro asfixiante
e provocador de vómitos, um cheiro de matadouro.
A violência, quando se verifica em casa, é tão dilacerante como ver
roupas penduradas numa árvore depois de uma explosão. Podemos estar
preparados para ver a morte, mas não as roupas na árvore.
E tudo consequência de o meu pai nunca ter compreendido que a natureza
de Alvin não era realmente corrigível, apesar dos ralhos e do amor
repreensivo – tudo consequência de o meu pai o ter recolhido para o salvar
daquilo em que estava simplesmente na sua natureza tornar-se. Tudo
consequência de o meu pai observar Alvin e se recordar da vida
tragicamente esvaecente do falecido pai de Alvin e, no seu desespero,
abanar tristemente a cabeça e dizer: «Um Buick, fatos de vigarista, a
escumalha da Terra como amigos... mas sabes, importa-te, incomoda-te
minimamente, Alvin, o que está a acontecer esta noite neste país? Há anos
importava-te, com os diabos. Lembro-me claramente disso. Mas agora não.
Agora são charutos enormes e automóveis. Fazes alguma ideia, por ínfima
que seja, do que está a acontecer aos judeus neste preciso momento,
enquanto aqui estamos sentados?
E Alvin, cuja sorte estava finalmente a dar sinais de vida, cujas
perspectivas nunca tinham sido tão risonhas, não podia suportar, e não
toleraria, ser informado pelo protector cuja tutela significara outrora tudo –
pelo parente que, quando mais ninguém o queria, por duas vezes o levara
para viver num acolhedor pequeno andar em Weequahic, no seio de uma
família bondosa e das suas pequenas preocupações – de que ele não dera em
nada. Com a voz enrouquecida pela afronta da parte ofendida, o modo de
falar martelado e sem uma única cesura onde pudesse infiltrar-se alguma
coisa que não fosse retaliatória, todo calúnia, todo punição, todo coerção e
fanfarronice fátua, Alvin gritou ao meu pai: Os judeus? Destruí a minha
vida pelos judeus! Perdi a porra da minha perna pelos judeus! Perdi a porra
da minha perna por você! Que me interessava a mim o Lindbergh, de uma
maneira ou de outra? Mas você mandou-me lutar contra ele, catano, e eu,
uma porra de um miúdo estúpido, fui. E veja, veja, Caraças de Tio
Tragédia... fiquei sem a porra da perna!
Puxou um punhado do lustroso tecido cinzento-pérola que tão
lustrosamente o encadernava para mostrar onde, de facto, já não existia um
membro inferior de carne, sangue, músculo e osso. E depois, insultado,
negado, intimamente, de novo, o homem emasculado (e o miúdo vadio),
acrescentou o heróico toque final cuspindo no rosto do meu pai. Uma
família, como o meu pai gostava de dizer, era ao mesmo tempo paz e
guerra, mas esta família era o que nunca a pudera imaginar. Cuspir na cara
do meu pai como cuspira na cara daquele soldado alemão morto!
Se ao menos lhe tivesse sido permitido continuar não reabilitado, na sua
própria desprezível trajectória... mas isso não acontecera e, portanto, foi
assim que a grande ameaça nos perdeu e a abominação da violência entrou
na nossa casa, e eu vi como a amargura cega um homem e a degradação que
gera.
E porquê, porque foi ele combater, para começar? Porque combateu e
porque caiu? Porque se está a travar uma guerra, ele escolhe isso, escolhe-a
– o furioso instinto rebelde historicamente encurralado! Se ao menos os
tempos fossem diferentes, se ao menos ele tivesse sido mais inteligente...
Mas ele quer combater. É como os próprios pais de que se quer libertar.
Essa é a tirania do problema. Tentar ser fiel àquilo de que está a tentar
desfazer-se. Tentar ser fiel e livrar-se daquilo a que é fiel ao mesmo tempo.
E, tanto quanto consigo deduzir, foi por isso que, antes de mais nada, ele foi
combater.

Mais tarde, naquela noite, depois de dois compinchas de Alvin terem


chegado num Cadillac com matrícula da Pensilvânia (um deles para levar
Alvin e Minna ao consultório do médico de Allie Stolz na Elizabeth
Avenue, e o outro para levar o Buick deles de volta a Filadélfia); depois de o
meu pai ter regressado a casa do serviço de urgências do Beth Israel (onde
lhe retiraram os vidros das mãos, suturaram o rosto, radiografaram o
pescoço, ligaram a caixa torácica e, à saída, lhe deram comprimidos de
codeína para as dores); depois de Mr. Cucuzza, que transportara o meu pai
para o hospital na sua camioneta, voltara com ele em segurança para o sujo
e desarrumado campo de batalha que era agora a nossa casa, depois de tudo
isso, começou o tiroteio na Chancellor Avenue. Tiros, gritos, berraria,
sereias – o pogrom começara e decorreram apenas segundos antes de Mr.
Cucuzza subir de novo a correr a escada que acabara de descer e bater de
novo na nossa escavacada porta das traseiras antes de irromper por ali
dentro.
Querendo desesperadamente dormir, fui arrastado da cama pelo meu
irmão, mas como as minhas pernas não andavam e o medo incontrolável as
fazia ir constantemente abaixo, tive de ser levado em braços pelo meu pai.
A minha mãe – que em vez de se ter deitado e tentado dormir pusera o
avental, calçara umas luvas de borracha e começara a limpar a imundície da
casa com um balde, uma vassoura e uma esfregona –, a minha meticulosa
mãe, chorando no meio dos destroços da sua sala, foi conduzida à porta por
Mr. Cucuzza e nós quatro levados pela escada abaixo para o antigo andar
dos Wishnow, para lá nos refugiarmos.
Desta vez, quando Mr. Cucuzza ofereceu uma pistola, o meu pai aceitou-
a. Tinha o pobre corpo praticamente todo negro, arroxeado e ligado, e a
boca cheia de dentes partidos, mas mesmo assim sentou-se connosco no
chão do vestíbulo sem janelas das traseiras da casa dos Cucuzza, a olhar
com toda a sua concentração para a arma que tinha nas mãos, como se já
não se tratasse apenas de uma arma, mas sim da coisa mais séria que
alguma vez lhe fora confiada desde que pela primeira vez lhe tinham
depositado nos braços os seus filhos bebés. A minha mãe estava sentada
muito direita, entre o estoicismo inseguro de Sandy e a minha inércia
atordoada, agarrando cada um com o braço mais próximo e fazendo tudo
quanto podia para manter um ténue laivo de coragem e não revelar o seu
terror aos filhos. Entretanto, o maior homem que eu jamais vira andava de
pistola em punho pela casa às escuras, avançando sorrateiramente de janela
para janela, a fim de se certificar, com o minucioso olhar de lince do
guarda-nocturno veterano, se havia alguém emboscado nas proximidades
com um machado, uma arma, uma corda ou uma lata de petróleo.
Joey, a mãe e a avó tinham recebido ordens de Mr. Cucuzza para
permanecerem nas respectivas camas, embora a velha senhora não resistisse
ao magnetismo de toda aquela turbulência e ao quadro de pura angústia que
nós quatro apresentávamos. Rosnando pequenas frases de tosco italiano,
que não podiam ser elogiosas dos seus hóspedes, espreitava da entrada da
cozinha escura – onde costumava dormir, vestida, num divã perto do fogão
–, fixando-nos na mira da sua loucura (porque lá louca, era!), como se fosse
a santa padroeira do anti-semitismo cujo crucifixo de prata engendrara tudo
aquilo.
O tiroteio durou menos de uma hora, mas nós só voltámos para cima
depois do alvorecer, e só depois de Mr. Cucuzza se ter aventurado
valentemente, como batedor, até ao local onde a Chancellor Avenue estava
isolada por um cordão, ficámos a saber que o tiroteio não fora entre a
polícia da cidade e os anti-semitas, mas sim entre a polícia da cidade e a
polícia judaica. Não houvera nenhum progrom na cidade naquela noite, mas
apenas uma troca de tiros, extraordinária por ter ocorrido dentro do alcance
auditivo da nossa casa, mas tirando isso não muito diferente da desordem
que podia deflagrar em qualquer grande cidade depois do anoitecer. E
apesar de terem sido mortos três judeus – Duke Glick, Big Gerry e o
próprio Bullet – não foi necessariamente por serem judeus («embora não
fizesse mal», disse o meu tio Monty), mas porque eram exactamente o tipo
de rufiões que o novo mayor queria fora das ruas, sobretudo para
demonstrar a Longy que deixara de ser membro honorário do Conselho de
Comissários da cidade (lugar que – constava à boca pequena entre os
inimigos de Meyer Ellenstein – tivera no tempo do antecessor judeu de
Murphy). Ninguém se deu ao trabalho de levar o comissário da polícia
demasiado a sério quando ele explicou ao Newark News que tinham sido os
«vigilantes com gosto pelo gatilho» quem, sem provocação, abrira fogo um
pouco antes da meia-noite sobre dois polícias que faziam a sua ronda a pé,
nem, entre os nossos vizinhos, houve qualquer expressão de pesar digna de
nota pelo modo como os três – pessoas perigosas por conta própria cuja
protecção nenhuma pessoa decente teria sonhado solicitar – tinham sido
abatidos sem-cerimónia. Era, é claro, horrível que o sangue de homens
violentos manchasse os passeios por onde as crianças do bairro iam todos
os dias para a escola, mas pelo menos não tinha sido sangue vertido num
recontro com a Klan, os camisas-prateadas ou a Bund.
Não houve progrom, mas isso não impediu que às sete horas da manhã o
meu pai estivesse a fazer uma chamada de longa distância para Winnipeg e
a confessar a Shepsie Tirschwell que os judeus estavam tão assustados e os
anti-semitas tão atrevidos que em Newark – onde felizmente o prestígio do
rabi Prinz continuara a exercer influência sobre os poderes vigentes e nada
pior do que o realojamento fora ainda imposto a nenhuma família judia – já
não era possível viver como pessoas normais. Ninguém podia dizer com
certeza que a perseguição clara, sancionada pelo Governo, era inevitável,
mas o medo da perseguição era tal que nem um homem prático, assente nas
suas tarefas quotidianas, uma pessoa que tentava o melhor que podia conter
a incerteza, a ansiedade e a cólera e agir de acordo com os ditames da razão,
podia ter esperança de manter por mais tempo o seu equilíbrio.
Sim, admitiu o meu pai, ele tinha estado enganado desde o princípio e a
Bess e os Tirschwell tinham tido razão – e depois, o melhor que pôde,
disfarçou o seu embaraço a respeito de tudo o que gerira e interpretara mal,
incluindo a improvável violência que fizera em cacos, juntamente com a
nossa mesa de centro, aquele rígida barreira de rectidão que durante uma
vida inteira se erguera entre a sua rigorosa educação e os seus ideais
adultos. «É isso», confessou a Shepsie Tirschwell, «não posso continuar a
viver sem saber o que acontecerá amanhã», e a conversa telefónica derivou
para a emigração, os passos a dar e as providências a tomar, de modo que,
quando Sandy e eu saímos de casa, não restava dúvida alguma de que, por
incrível que parecesse, fôramos vencidos pelas forças dispostas contra nós e
estávamos prestes a fugir e a tornarmo-nos estrangeiros. Chorei durante
todo o caminho para a escola. A nossa incomparável infância americana
acabara. Em breve, a minha pátria não seria mais do que o meu local de
nascimento. Agora, até Seldon, no Kentucky, estava em melhor situação.
Mas depois acabou. O pesadelo acabou. Lindbergh desapareceu e nós
estávamos livres de perigo, embora eu nunca mais fosse capaz de
ressuscitar aquele sereno sentimento de imperturbável segurança gerado
numa criança pequena por uma grande república protectora e pelos seus
ferozmente responsáveis pais.

Retirado dos
Arquivos do Newsreel Theater de Newark

Terça-feira, 6 de Outubro de 1942


Trinta mil enlutados desfilam pelo grande salão da Penn Station para
verem o caixão envolto na bandeira de Walter Winchell. A afluência excede
até as expectativas do mayor de Nova Iorque, Fiorello La Guardia, cuja
decisão era transformar o assassínio num dia de luto, à escala da cidade,
pelas «vítimas americanas da violência nazi», culminando com uma oração
fúnebre a proferir por FDR. No exterior da estação (como em numerosos
outros lugares em toda a cidade), homens e mulheres silenciosos, vestidos
de escuro, distribuem botões pretos do tamanho de moedas de meio dólar,
cujas letras em branco perguntam: «Onde está Lindbergh?» Pouco antes do
meio-dia, o mayor La Guardia chega ao estúdio da estação de rádio da
cidade, onde tira o seu chapéu preto de aba larga debruada de branco (uma
recordação das suas raízes juvenis no Território do Arizona como filho de
um chefe de banda do Exército dos EUA) para rezar o pai-nosso; depois
volta a pôr o chapéu para ler alto, em hebraico, a oração judaica pelos
mortos. Ao bater do meio-dia, por decisão do Conselho Municipal, é
observado um minuto de silêncio nas cinco circunscrições. A polícia de
Nova Iorque está em evidência em todo o lado, principalmente para vigiar
as manifestações de protesto organizadas pelos diversos grupos de direita
localizados no preponderantemente alemão Yorkville – o bairro de
Manhattan, a norte do Upper East Side e a sul do Harlem, que é a sede
principal do movimento nazi americano – que apoia militantemente o
presidente e a sua política. À uma hora da tarde, uma guarda de honra de
motocicletas conduzidas por polícias com braçadeiras pretas alinha-se com
o cortejo fúnebre que está a formar-se no exterior da Penn Station e, com o
mayor à frente a abrir caminho do sidecar de uma motocicleta, escolta
lentamente o cortejo para norte pela 8th Avenue acima, para leste ao longo
da 57th Street, de novo para norte pela 5th Avenue para a 65th Street e o
Templo Emanu-El. Aí, entre os dignitários convocados por La Guardia para
encherem o templo até ao último lugar, encontram-se os dez membros do
Gabinete de Roosevelt de 1940, os quatro magistrados nomeados por
Roosevelt para o Supremo Tribunal, Philip Murray, presidente do CIO,
William Green, presidente da AFL21, John L. Lewis, presidente dos United
Mine Workers, e Roger Baldwin da American Civil Liberties Union, assim
como passados e presentes governadores, senadores e congressistas
democratas de Nova Iorque, New Jersey, Pensilvânia e Connecticut, entre
os quais o derrotado aspirante presidencial do Partido Democrático, em
1928, e ex-governador de Nova Iorque, Al Smith. Altifalantes, instalados da
noite para o dia por trabalhadores municipais e ligados a postes telefónicos,
postes de barbearias e padieiras de portas, por toda a cidade, transmitem o
serviço fúnebre aos Nova-Iorquinos, que se juntaram nas ruas de todos os
bairros de Manhattan (excepto de Yorkville) e a milhares de pessoas de fora
da cidade que se lhes reuniram – todos os Mr. e Mrs. América que tinham
ouvido Walter Winchell semanalmente desde que ele tinha ido para o ar e se
deslocaram à sua cidade natal para lhe prestarem homenagem. E
praticamente todos os homens, mulheres e crianças entre eles usam a agora
omnipresente divisa de desafiadora solidariedade, o botão preto e branco
que pergunta «Onde está Lindbergh?»
Fiorello H. La Guardia – o despretensioso ídolo da gente trabalhadora da
cidade; o extravagante ex-congressista que representara beligerantemente
um congestionado East Harlem de italianos e judeus pobres durante cinco
mandatos, que já em 1933 descrevia Hitler como um «maníaco pervertido»
e reclamou um boicote a mercadorias alemãs; o porta-voz tenaz dos
sindicatos, dos necessitados e dos desempregados que lutara quase sozinho
contra os ociosos congressistas republicanos de Hitler durante o primeiro
ano negro da Depressão e, para horror do seu próprio partido, reclamou
impostos para «fazer pagar os ricos»; o liberal republicano anti-reforma,
Tammany, que foi o mayor de mandato triplo da Fusão da cidade mais
populosa do país, a metrópole que abriga a maior concentração de judeus do
hemisfério – La Guardia é o único entre os membros do seu partido a
demonstrar o seu desprezo por Lindbergh e pelo dogma nazi da
superioridade ariana que ele (filho de uma mãe judia não praticante da
Trieste austríaca e de um pai italiano livre-pensador que chegou à América
como músico de navio) identificou como sendo o preceito existente no
âmago do credo de Lindbergh e do enorme culto americano de veneração ao
presidente.
La Guardia coloca-se ao lado do caixão e dirige-se aos dignitários com a
mesma voz emotiva e aguda com que, durante uma greve de um jornal de
Nova Iorque, famosamente narrara às crianças da cidade, pela rádio
municipal e todas as manhãs de domingo, a banda desenhada dominical, e o
fizera pacientemente como o melhor dos tios, quadrado a quadrado, balão
de fala a balão de fala, de «Dick Tracy» a «Little Orphan Annie», e por aí
fora durante o resto das séries de histórias aos quadradinhos.
– Para começar, podemos dispensar o panegírico – diz o mayor. – Toda a
gente sabe que Walter não era um ser humano encantador. Walter não era o
tipo forte e calado que esconde tudo, mas o denunciador que detesta tudo
quanto é escondido. Como qualquer pessoa que alguma vez abriu o jornal
na sua coluna vos pode dizer, Walter nem sempre foi tão exacto como
poderia ter sido. Não era acanhado, não era modesto, não era decoroso,
discreto, amável, etc. Meus amigos, se eu fosse enumerar-vos todas as
coisas adoráveis que o W.W. não era, ficaríamos aqui até ao próximo Yom
Kippur. Receio bem que o falecido Walter Winchell fosse apenas mais um
exemplo marcante de um espécime de homem imperfeito. Ao declarar-se
candidato à presidência dos Estados Unidos eram os seus motivos tão
imaculados como a neve? Os motivos de Walter Winchell? Não estava a sua
ridícula candidatura contaminada por um ego delirante? Meus amigos, só
um Charles A. Lindbergh tem motivos imaculados como a neve quando se
candidata à presidência americana. Só um Charles A. Lindbergh é decoroso,
discreto, etc. – oh, e exacto, também, inteiramente exacto, sempre que, de
poucos em poucos meses, convoca o sentimento gregário para dirigir as
suas dez banalidades favoritas à nação. Só um Charles A. Lindbergh é um
dirigente altruísta e um santo forte e silencioso. Walter, pelo contrário, era o
Sr. Colunista Mexeriqueiro. Walter, pelo contrário, era o Sr. Broadway:
gostava dos cavalos, gostava das horas tardias, gostava de Shermann
Billingsley – alguém me disse, uma vez, que até gostava das raparigas. E a
revogação daquela «nobre experiência», como Mr. Herbert Hoover lhe
chamou, a revogação da hipócrita, dispendiosa, estúpida e inexequível
Décima Oitava Emenda, não foi mais ignóbil para Walter Winchell do que
para os restantes de nós aqui em Nova Iorque. Em resumo, faltavam ao
Walter todas as cintilantes virtudes demonstradas diariamente pelo
incorruptível piloto de ensaios anichado na Casa Branca.
«Oh, sim, há várias outras diferenças, talvez merecedoras de referir, entre
o falível Walter e o infalível Lindy. O nosso presidente é um simpatizante
fascista, mais do que provavelmente, até, um fascista completo – e Walter
Winchell era o inimigo do fascista. O nosso presidente não gosta de judeus
e, mais do que provavelmente, é um anti-semita retinto, enquanto Walter
Winchell era um judeu e um inimigo resoluto e clamoroso do anti-semita. O
nosso presidente é um admirador de Adolf Hitler e, mais do que
provavelmente, ele próprio um nazi – e Walter Winchell era o primeiro e o
pior inimigo americano de Hitler. Eis onde o nosso imperfeito Walter era
incorruptível: onde importava sê-lo. Walter é estrepitoso de mais, Walter
fala depressa de mais, Walter fala de mais, e contudo, comparativamente, a
vulgaridade de Walter é algo de grandioso, enquanto o decoro de Lindbergh
é odioso. Walter Winchell, meus amigos, era o inimigo dos nazis em toda a
parte, sem exclusão dos Dieses, e dos Bilbos, e dos Parnell Thomases que
servem o seu Führer no Congresso dos Estados Unidos; sem excluir os
hitlerianos que escrevem para o New York Journal--American e para o New
York Daily News, sem excluir aqueles que banqueteiam regiamente
assassinos nazis na nossa Casa Branca americana a expensas do
contribuinte americano. E foi porque ele era o inimigo de Hitler, e foi
porque ele era o inimigo dos nazis que Walter Winchell foi ontem abatido a
tiro à sombra da estátua de Thomas Jefferson na mais histórica e bela praça
pública da graciosa velha Louisville. Por dizer o que pensava no estado do
Kentucky, W.W. foi assassinado pelos nazis da América que, graças ao
silêncio do nosso forte, calado e altruísta presidente, proliferam à solta por
esta nossa grande terra. Não pode acontecer aqui? Meus amigos, está a
acontecer aqui – e onde está Lindbergh? Onde está Lindbergh?»
Nas ruas, os que ouvem, juntos, à volta dos altifalantes, apoderam-se do
grito do mayor e a sua pergunta não tarda a repercutir-se torrencial e
fantasticamente pela cidade inteira – «Onde está Lind-bergh? Onde está
Lind-bergh?» –, enquanto no interior da sinagoga o mayor repete e torna a
repetir as suas três iradas palavras, batendo no púlpito não como um orador
a enfatizar dramaticamente uma questão, mas como um cidadão indignado
exigindo a verdade. «Onde está Lindbergh?» Este é o epílogo rosnado com
a qual o corado La Guardia prepara os enlutados ali reunidos para o
aparecimento culminante de Franklin D. Roosevelt, que atordoa até os seus
amigos políticos mais íntimos (Hopkins, Morgenthau, Farley, Berle e
Baruch, todos sentados e enchapelados a poucos palmos, apenas, do caixão
do candidato martirizado, cujo tipo de melomania nunca fora do agrado do
círculo íntimo da Casa Branca, por muito útil que ele pudesse ter sido ao
seu chefe como porta-voz) ao ordenar como sucessor de Winchell o político
astuto, insolente, irascível, teimoso e rechonchudo, com pouco mais de um
metro e cinquenta e cinco de altura e afectuosamente conhecido, pelos seus
devotados eleitores. como a Pequena Flor. Do púlpito do Templo Emanu-El,
o chefe nominal do Partido Democrático garante o seu apoio ao mayor
republicano de Nova Iorque como candidato de «unidade nacional» a opor
ao desejo de Lindbergh de um segundo mandato em 1944.
Quarta-feira, 7 de Outubro de 1942
Pilotado pelo presidente Lindbergh, o Spirit de St. Louis parte de manhã
de Long Island, levantando voo da pista que serviu como ponto de partida
para o voo transatlântico, a solo, de Maio de 1927. Sem nenhuma escolta de
protecção, o aparelho acelera no céu outonal sem nuvens, atravessa New
Jersey, Pensilvânia e Ohio e desce para o Kentucky. Só uma hora antes de
estar prevista a aterragem, ao sol do meio-dia, no aeroporto comercial de
Louisville, o presidente notifica a Casa Branca do seu destino. Isso permite
a antecedência apenas suficiente para o mayor de Louisville, Wilson Wyatt,
e a cidade e os seus cidadãos se prepararem para a chegada do presidente.
Está um mecânico a postos, em terra, para examinar o aparelho, afiná-lo e
equipá-lo para o voo de regresso.
A polícia calcula que dos 320 000 residentes de Louisville pelo menos um
terço percorreu os oito quilómetros necessários para sair da cidade e já está
a encher os campos e as terras adjacentes ao Bowman Field quando o
presidente aterra e conduz suavemente o avião para uma plataforma onde
foi colocado um microfone para ele se dirigir à imensa multidão. Quando o
grande clamor das saudações começa finalmente a diminuir e a sua voz
consegue ser ouvida, o presidente não faz qualquer referência a Walter
Winchell, não alude ao assassínio cometido dois dias antes, nem ao funeral
no dia anterior, nem ao discurso feito pelo mayor La Guardia aquando da
sua sagração como sucessor de Winchell por Franklin Roosevelt numa
sinagoga de Nova Iorque. Nem precisa. Que La Guardia é, como Winchell
antes dele, apenas uma fachada para FDR na sua demanda ditatorial de um
terceiro mandato presidencial sem precedentes, e que aqueles que se
encontram por trás do «acintoso libelo do nosso presidente» são as
mesmíssimas pessoas que teriam obrigado a América a ir para a guerra em
1940, já foi abundantemente explicado à nação pelo vice-presidente
Wheeler num discurso improvisado em Washington na convenção da
Legião Americana, na noite anterior.
Tudo quanto o presidente diz à multidão é: «O nosso país está em paz. O
nosso povo está a trabalhar. Os nossos filhos estão na escola. Voei até aqui
para vos lembrar isso. Agora vou regressar a Washington para manter as
coisas assim.» Uma série de frases bem inofensivas, mas para estas dezenas
de milhares de pessoas do Kentucky, que foram o objecto do interesse
nacional durante dois dias inteiros, é como se ele tivesse anunciado o fim de
todas as atribulações na Terra. Volta de novo o pandemónio, enquanto o
presidente, lacónico como sempre e despedindo-se com um simples aceno,
volta a enfiar o corpo alto e magro na cabina do avião, e da pista
improvisada um mecânico sorridente indica com a chave-inglesa que está
tudo verificado e pronto para seguir. O motor gira, o Lone Eagle acena um
último adeus e, rápida e ruidosamente, o Spirit of St. Louis sobe da
esplendorosa selva do estado de Daniel Boone, centímetro a centímetro,
palmo a palmo, até finalmente (como o piloto acrobático que se lançava de
pára-quedas e andava nas asas dos aviões que fora em rapaz, voando a
baixa altitude por cima das vilas rurais do Oeste – e para delícia da
multidão delirante) Lindy transpõe, com uma folga não superior a um fio de
cabelo, os cabos telefónicos esticados entre os postes ao longo da Route 58.
Subindo firmemente para a corrente de um tépido e suave vento de cauda, o
mais famoso pequeno avião da história da aviação – o equivalente moderno
da Santa Maria de Colombo e do Mayflower dos Peregrinos – desaparece
rumo a leste para nunca mais voltar a ser visto.

Quinta-feira, 8 de Outubro de 1942


Buscas no solo do habitual trajecto de voo entre Louisville e Washington
não revelaram quaisquer indícios de destroços, apesar do perfeito tempo
outonal que possibilita a equipas de busca locais penetrarem profundamente
nas escarpadas montanhas da Virgínia Ocidental e distribuírem-se pelas
terras de lavoura ceifadas da Marilândia e pelas linhas costeiras do
Delaware durante as horas do dia. À tarde, o Exército, a Guarda Costeira e a
Marinha juntam-se à busca, assim como centenas de homens e rapazes de
todos os condados de todos os estados a leste do Missíssipi que se
ofereceram como voluntários para ajudarem as unidades da Guarda
Nacional convocadas pelos governadores estaduais. Apesar disso, à hora do
jantar em Washington ainda não há nenhum relato de avistamento do
aparelho ou dos seus destroços e, por isso, às oito horas da noite o gabinete
é convocado para uma reunião de urgência em casa do vice-presidente. Aí,
Burton K. Wheeler anuncia que, depois de consultar a primeira-dama, a
maioria dos líderes da Câmara e do Senado e o juiz-presidente do Supremo
Tribunal, tinha considerado que seria no melhor interesse do país assumir as
funções de presidente interino de acordo com o Artigo II, parágrafo 1 da
Constituição dos Estados Unidos.
Em dúzias de jornais, o cabeçalho nocturno, impresso no maior e mais
escuro negrito visto em primeiras páginas de jornais da América desde o
crash da Bolsa de valores de 1929 (e com a intenção de humilhar Fiorello
La Guardia), pergunta sombriamente: ONDE ESTÁ LINDBERGH?

Sexta-feira, 9 de Outubro de 1942


Quando os americanos acordam para começar o seu dia, a lei marcial foi
imposta em todo o território continental dos Estados Unidos, nos territórios
e nas possessões. Ao meio-dia, o presidente interino Wheeler viaja, com
escolta militar, para o Capitólio, onde anuncia, numa sessão de emergência
do Congresso realizada à porta fechada, que o FBI recebeu informações
segundo as quais o presidente foi raptado e está em poder de desconhecidos
num lugar algures na América do Norte. O presidente interino assegura ao
Congresso que estão a ser dados todos os passos necessários no sentido de
conseguir a libertação do presidente e entregar os perpetradores do crime à
justiça. Entretanto, as fronteiras do país com o Canadá e o México foram
fechadas, assim como aeroportos e portos marítimos, e a lei e a ordem,
declara o presidente interino, será mantida no Distrito de Colúmbia pelas
forças armadas dos EUA e, noutros pontos, pela Guarda Nacional em
colaboração com o FBI e as autoridades policiais locais.

DE NOVO!

Lê-se no cabeçalho, de duas únicas palavras, de todos os jornais de Hearst


do país e impresso a encimar fotografias do pequeno bebé Lindbergh,
fotografado vivo pela última vez em 1932, dias apenas antes do seu rapto
aos vinte meses de idade.

Sábado, 10 de Outubro de 1942


A rádio estatal alemã anuncia ter sido descoberto que o rapto de Charles
A. Lindbergh, trigésimo terceiro presidente dos Estados Unidos e signatário
do histórico Acordo da Islândia com o Terceiro Reich, foi perpetrado por
uma conspiração de «Interesses Judaicos». Citam dados altamente secretos
dos serviços de informação da Wehrmacht para corroborar relatos iniciais
do Ministério de Estado, segundo os quais o plano foi congeminado pelo
instigador da guerra, Roosevelt – conluiado com o seu secretário do
Tesouro, o judeu Morgenthau; o seu juiz do Supremo Tribunal, o judeu
Frankfurter, e o banqueiro de investimentos, o judeu Baruch –, e que estava
a ser financiado pelos agiotas judeus internacionais Warburg e Rothschild e
posto em prática sob o comando do homem de mão mestiço, o gangster
meio-judeu La Guardia, mayor da cidade judaica de Nova Iorque,
juntamente com o governador judeu do estado de Nova Iorque, o financeiro
Lehman, a fim de reinstalar Roosevelt na Casa Branca e desencadear uma
guerra judaica total contra o mundo não judaico. Os dados secretos, que
foram entregues ao FBI pela Embaixada Alemã em Washington, alegam que
o assassínio de Walter Winchell foi planeado e executado pela mesma
cabala de judeus de Roosevelt – e a responsabilidade pelo crime
previsivelmente atribuída por eles a americanos de ascendência alemã –
para desencadear a traiçoeira campanha «Onde Está Lindbergh?», que por
seu turno levou o presidente a embarcar no avião e voar para a cena do
assassínio a fim de tranquilizar os cidadãos de Louisville, Kentucky,
compreensivelmente receosos de uma retaliação judaica organizada. Mas aí
– segundo as informações da Wehrmacht –, quando o presidente falava à
multidão, um mecânico do aeroporto subornado pela conspiração judaica
(ele próprio também desaparecido e, segundo se crê, assassinado por ordem
de La Guardia) tornou inoperante o rádio do aparelho. Mal o presidente
descolou para Washington, viu-se impossibilitado de estabelecer contacto
com o solo ou com outro avião e não teve outro remédio senão capitular
quando o Spirit of St. Louis foi encurralado por caças britânicos de grande
altitude, que o obrigaram a desviar-se da rota e a aterrar, algumas horas
mais tarde, numa pista secretamente mantida por interesses judeus
internacionais do lado da fronteira canadiana oposto ao estado de Nova
Iorque governado por Lehman.
Na América, o anúncio alemão leva o mayor La Guardia a dizer a
repórteres no City Hall: «Qualquer americano capaz de acreditar nessa
grandíssima mentira nazi desceu ao nível mais baixo possível.» No entanto,
fontes bem informadas dizem que tanto o mayor como o governador foram
demoradamente interrogados por agentes do FBI, e Ford, o ministro do
Interior, exige que Mackenzie King, primeiro-ministro do Canadá, organize
uma busca intensiva em solo canadiano para procurar o presidente
Lindbergh e os seus captores. Diz-se que o presidente interino, Wheeler,
está a examinar a documentação alemã com assessores da Casa Branca, mas
não fará qualquer comentário acerca das alegações enquanto a busca para
encontrar o avião do presidente não estiver concluída. Contratorpedeiros da
Marinha, juntamente com lanchas torpedeiras da Guarda Costeira,
procuram agora sinais de um desastre de aviação em áreas tão a norte como
Cape May, em New Jersey, e tão a sul como Cape Hatteras, na Carolina do
Norte, enquanto, no solo, unidades do Exército, do Corpo de Fuzileiros e da
Guarda Nacional continuam a procurar em vinte estados pistas sobre o
paradeiro do avião desaparecido.
As unidades da Guarda Nacional que velam pelo cumprimento do
recolher obrigatório a nível nacional não referem quaisquer incidentes
violentos decorrentes do desaparecimento do presidente. A América
mantém-se calma sob a lei marcial, embora o grande feiticeiro da Ku Klux
Klan e o líder do Partido Nazi Americano tenham exigido ao presidente
interino que «tome medidas extremas para proteger a América de um golpe
de estado judaico».
Entretanto, uma comissão de clérigos judeus americanos chefiada pelo
rabi Stephen Wise, de Nova Iorque, envia um telegrama à primeira-dama
exprimindo o mais profundo pesar pela hora de sofrimento que a sua
família atravessa. O rabi Lionel Bengelsdorf é visto a entrar na Casa Branca
ao princípio da noite, ao que consta a pedido de Mrs. Lindbergh, a fim de
oferecer orientação espiritual à família no que é agora o terceiro dia da sua
vigília. O convite da Casa Branca ao rabi Bengelsdorf é largamente
interpretado como indicador da recusa da primeira-dama em acreditar que
«interesses judaicos» tiveram alguma coisa que ver com o desaparecimento
do seu marido.

Sábado, 11 de Outubro de 1942


Em cerimónias religiosas efectuadas em todo o país fazem-se preces em
intenção da família Lindbergh. As três principais cadeias de rádio cancelam
programas regularmente marcados para radiodifundirem os serviços
religiosos efectuados na Catedral Nacional de Washington, onde a primeira-
dama e os seus filhos comparecem, e durante o resto do dia e pela noite
dentro a programação é exclusivamente dedicada a música reconfortante.
Às oito horas da noite, o presidente interino Wheeler fala à nação,
assegurando os seus concidadãos americanos de que não tem quaisquer
planos para abandonar a busca. Comunica que, a convite do primeiro-
ministro canadiano, representantes de agências americanas de manutenção
da lei ajudarão a Real Polícia Montada Canadiana a percorrer a metade
oriental da fronteira EUA--Canadá e os condados mais a sul das províncias
orientais canadianas.
Tendo saído como porta-voz oficial da primeira-dama, o rabi Lionel
Bengelsdorf diz a um grande grupo de repórteres que o esperam no pórtico
da Casa Branca que Mrs. Lindbergh insta o povo americano a ignorar
especulações dimanadas de qualquer Governo estrangeiro a respeito das
circunstâncias do desaparecimento do seu marido. Recorda ao público,
informa o rabi, que em 1926, quando era piloto de correio aéreo da carreira
St. Louis--Chicago, o presidente sobreviveu duas vezes, ileso, a quedas que
demoliram o aparelho, e que, de momento, é convicção da primeira-dama
que o presidente terá uma vez mais sobrevivido, se tiver havido outra
queda. A primeira-dama continua a não se sentir convencida, diz o rabi,
com os indícios de um rapto que lhe foram apresentados pelo presidente
interino. Quando perguntam ao rabi Bengelsdorf por que razão não pode
Mrs. Lindbergh falar pessoalmente, e a imprensa está a ser impedida de a
interrogar directamente, ele responde: «Tenham em consideração que esta
não é a primeira vez, nos seus trinta e seis anos, que Mrs. Lindbergh tem
sido obrigada a lidar com perguntas da imprensa enquanto passa pelas mais
graves crises familiares. Penso que os americanos estão inteiramente
dispostos a aceitar quaisquer decisões que a primeira-dama considere
capazes de melhor proteger a sua privacidade e a dos seus filhos enquanto a
busca continuar.» Quando lhe perguntam se existe alguma verdade nos
boatos de que Mrs. Lindbergh está demasiado transtornada para tomar as
suas próprias decisões e que é Lionel Bengelsdorf quem as toma por ela, o
rabi responde: «Quem quer que tenha observado o comportamento da
primeira-dama na catedral, esta manhã, pode ver por si mesmo que ela se
encontra perfeitamente lúcida, intelectualmente, e na posse completa de
todas as suas faculdades, e que, apesar da magnitude da situação, nem o seu
intelecto nem o seu discernimento foram, em aspecto algum, lesados.»
Apesar das garantias dadas pelo rabi, circularam pelos serviços
telegráficos histórias sobre suspeitas proferidas por um «funcionário
governamental altamente colocado» – supostamente o secretário Ford – de
que a primeira-dama se tornara cativa do «rabi Rasputine», o porta-voz
judeu considerado comparável, na sua influência sobre a mulher do
presidente, ao louco monge-camponês siberiano que insidiosamente
controlava as mentes do czar e da czarina da Rússia, reinava praticamente
no palácio imperial nos tempos que conduziram à Revolução Russa e cujo
reinado só terminou quando foi assassinado por uma conspiração de
patrióticos aristocratas russos.

Segunda-feira, 12 de Outubro de 1942


Os matutinos de Londres referem que os serviços de informação
britânicos enviaram ao FBI comunicações alemãs codificadas provando
sem margem para dúvida que o presidente Lindbergh está vivo e em
Berlim. Os serviços de informação britânicos verificam que em 7 de
Outubro, de acordo com um plano de longa data concebido pelo marechal-
do-ar Hermann Göring, o presidente dos Estados Unidos conseguiu fazer
descer o Spirit of St. Louis, de acordo com certas coordenadas
predeterminadas do Atlântico, a aproximadamente trezentas milhas a leste
de Washington. Aí identificou-se a um submarino alemão que o esperava, e
cuja tripulação o transferiu para um vaso naval germânico que aguardava ao
largo da costa de Portugal, a fim de o levar para a localidade ocupada pelos
italianos de Cotor, em Montenegro, no mar Adriático. Os destroços do avião
do presidente foram requisitados e levados para bordo por um cargueiro
militar alemão, desmantelados, encaixotados e transportados para um
armazém da Gestapo em Bremen. O presidente foi levado de uma pista de
aterragem de Cotor para a Alemanha, num avião camuflado da Luftwaffe,
acompanhado pelo marechal-do-ar Göring, e depois de chegar a uma base
aérea da Luftwaffe conduzido ao esconderijo de Hitler em Berchtesgaden, a
fim de conferenciar com o Führer.
Grupos resistentes sérvios na Jugoslávia confirmam o relatado pelos
serviços de informação ingleses, com base em informação fornecida por
fontes do interior do Governo de Belgrado, instituído pelos Alemães, do
general Milan Nedich, cujo Ministério do Interior dirigiu a operação naval
no porto de Cotor.
Em Nova Iorque, o mayor La Guardia diz aos repórteres: «Se é verdade
que o nosso presidente fugiu voluntariamente para a Alemanha nazi, se é
verdade que, desde que prestou juramento como presidente, tem estado a
trabalhar a partir da Casa Branca como agente nazi, se é verdade que as
nossas políticas interna e externa têm sido ditadas ao presidente pelo regime
nazi que hoje tiraniza todo o continente europeu, então faltam-me as
palavras para descrever uma traição cuja perversidade não tem igual na
história humana.»
Apesar da imposição da lei marcial e de um recolher obrigatório à escala
nacional, e apesar da presença de tropas fortemente armadas da Guarda
Nacional a patrulhar as ruas de todas as principais cidades americanas,
irromperam distúrbios anti-semitas, logo após o pôr do Sol, em Alabama,
Illinois, Indiana, Iowa, Kentucky, Missuri, Ohio, Carolina do Sul,
Tennessee, Carolina do Norte e Virgínia, os quais continuaram pela noite
fora e até às primeiras horas da manhã. Só depois das oito horas é que
tropas federais – enviadas pelo presidente interino Wheeler para apoiarem
as unidades da Guarda Nacional – conseguiram dominar esses distúrbios e
controlar os piores incêndios que os desordeiros tinham ateado. Entretanto,
perderam a vida cento e vinte e dois cidadãos americanos.

Terça-feira, 13 de Outubro de 1942


Numa alocução pela rádio, o presidente interino Wheeler assaca a
responsabilidade dos distúrbios ao «Governo britânico e aos seus apoiantes
americanos amantes da guerra».
«Depois de disseminar as mais vis acusações que poderiam ser feitas a
um patriota da estatura de Charles A. Lindbergh, o que poderia essa gente
esperar de uma nação já desolada pelo desaparecimento de um líder amado?
Para beneficiar os seus próprios interesses económicos e raciais», diz o
presidente interino, «essa gente opta por atormentar até ao limite a
consciência de uma nação desolada, e o que esperavam que acontecesse,
depois? Posso informar que a ordem foi restaurada nas nossas devastadas
cidades por todo o Sul e Midwest, mas a que preço para a equanimidade da
nossa nação?»
Posteriormente, é transmitida pelo rabi Lionel Bengelsdorf uma
declaração da mulher do presidente. Mais uma vez, a primeira-dama
aconselha os seus concidadãos a ignorar todas as hipóteses, não
verificáveis, acerca do desaparecimento do seu marido dimanadas de
capitais estrangeiras, e pede ao Governo dos Estados Unidos que cesse
imediatamente a busca de uma semana do aeroplano do marido. A primeira-
dama deseja que o país recorde a tragédia de Amelia Earhart, a maior das
mulheres aviadoras, que, seguindo o exemplo do presidente Lindbergh, fez
a sua anunciada travessia aérea a solo do Atlântico, em 1932, e acabou por
desaparecer sem deixar rasto em 1937, ao tentar uma travessia aérea a solo
do Pacífico. «Como aviadora experiente por direito próprio», diz o rabi
Bengelsdorf à imprensa, «a primeira-dama chegou à conclusão de que
alguma coisa muito semelhante ao que aconteceu a Amelie Earhart parece
ter acontecido agora ao presidente. A vida não é isenta de riscos, sobretudo
para aqueles como Amelia Earhart e Charles A. Lindbergh, cuja ousadia e
coragem como aviadores a solo iniciaram a era aeronáutica em que vivemos
agora.»
Pedidos de repórteres para se encontrarem com a primeira--dama são de
novo cortesmente declinados pelo seu porta-voz oficial, o que leva o
secretário Ford a exigir a prisão do rabi Rasputine.

Quarta-feira, 14 de Outubro de 1942


No início do anoitecer, o mayor La Guardia convoca uma conferência de
imprensa para realçar em especial três manifestações do «puro desconcerto
que estão a ameaçar a sanidade da nação». Primeira, um artigo de primeira
página do Chicago Tribune, datado de Berlim, relata que o filho de doze
anos do presidente e de Mrs. Lindbergh – a criança que se acreditava ter
sido raptada e assassinada em New Jersey, em 1932 – se tinha reunido ao
seu pai em Berchtesgaden depois de ter sido resgatado pelos nazis de uma
masmorra em Cracóvia, na Polónia, onde fora mantido prisioneiro no gueto
judeu da cidade desde o seu desaparecimento e onde, todos os anos, era
retirado sangue ao menino cativo para ser usado na preparação ritual dos
matzohs pascais da comunidade.
Segunda, republicanos da Câmara de Representantes apresentam uma
proposta de lei para uma declaração de guerra contra a comunidade do
Canadá se o primeiro-ministro King não revelar dentro de quarenta e oito
horas o paradeiro do presidente americano desaparecido.
Terceira, agências de segurança no Sul e no Midwest informam que os
«chamados distúrbios anti-semitas» de 12 de Outubro foram instigados por
«elementos judaicos locais» actuando como parte de «uma conspiração
judaica de grande envergadura decidida a minar o moral do país». Dos
cento e vinte e dois mortos nos distúrbios, noventa e sete já foram
identificados como «provocadores judeus» empenhados em desviar as
suspeitas do próprio grupo responsável pelos desacatos e conspirando para
se apoderarem do controlo do Governo Federal.
O mayor La Guardia diz: «Prepara-se de facto uma conspiração, e de bom
grado nomearei as forças que a impulsionam: histeria, ignorância, rancor,
estupidez, ódio e medo. Em que repugnante espectáculo o nosso país se
transformou! Há mentira, crueldade e loucura em toda a parte, e força bruta
nos bastidores, à espera de nos liquidar. Agora lemos no Chicago Tribune
que durante todos estes anos astutos pasteleiros judeus usaram o sangue do
raptado pequeno Lindbergh para fazerem matzohs pascais na Polónia – uma
história tão maluca, hoje, como quando foi engendrada pela primeira vez
por maníacos anti-semitas há quinhentos anos. Como o Führer deve
deliciar-se por envenenar o nosso país com este sinistro disparate!
Interesses judaicos. Elementos judaicos. Agiotas judaicos. Retaliação
judaica. Conspirações judaicas. Uma guerra judaica contra o mundo. Ter
escravizado a América com estas trapaças! Ter fascinado a mente da maior
nação do mundo sem dizer uma única palavra verdadeira! Oh, o prazer que
devemos estar a proporcionar ao homem mais maligno da Terra!

Quinta-feira, 15 de Outubro de 1942


Pouco antes de amanhecer, o rabi Bengelsdorf é detido pelo FBI sob
suspeita de se encontrar «entre os cabecilhas da intriga conspirativa judaica
contra a América». Ao mesmo tempo, a primeira-dama, que diziam estar a
sofrer de «extremo esgotamento nervoso», é transportada de ambulância da
Casa Branca para o Hospital Militar de Walter Reed. Entre os detidos da
rusga policial do início da manhã contam-se o governador Lehman, Bernard
Baruch, o juiz do Supremo Frankfurter, o protegido de Frankfurter, e
administrador de Roosevelt, David Lilienthal, os conselheiros do New Deal
Adolf Berle e Sam Rosenman, os líderes sindicalistas David Dubinsky e
Sidney Hillman, o economista Isador Lubin, os jornalistas esquerdistas I. F.
Stone e James Wechsler e o socialista Louis Waldman. Consta estarem
iminentes mais detenções, mas o FBI não revelou se a acusação de
conspiração para raptar o presidente impende sobre alguns ou todos os
suspeitos.
Tanques e unidades de infantaria do Exército dos EUA entram em Nova
Iorque para ajudarem a Guarda Nacional a reprimir esporádica violência
antigovernamental de rua. Em Chicago, Filadélfia e Boston tentativas para
organizar manifestações de protesto contra o FBI – manifestações essas
violadoras da lei marcial – cifram-se apenas em ferimentos ligeiros, embora
a polícia anuncie centenas de detenções.
No Congresso, notáveis republicanos louvam o FBI por ter frustrado o
complot dos conspiradores. Em Nova Iorque, o mayor La Guardia dá uma
conferência de imprensa acompanhado por Eleanor Roosevelt e Roger
Baldwin da ACLU22. Exigem a libertação imediata do governador Lehman,
juntamente com a dos seus alegados co-conspiradores. La Guardia é
posteriormente detido na mansão do mayor.
A fim de falar num comício de protesto convocado de urgência por uma
comissão de cidadãos de Nova Iorque, o ex-presidente Roosevelt viaja da
sua casa em Hyde Park para Nova Iorque; «para sua própria protecção», é
rapidamente colocado sob custódia policial. O exército encerra todas as
sedes de jornais e estações de rádio de Nova Iorque, onde a lei marcial
reforçará o recolher obrigatório de depois de escurecer para o dia inteiro,
até nova ordem. Tanques encerram todos os túneis e pontes de acesso à
cidade.
Em Buffalo, o mayor anuncia a sua intenção de distribuir máscaras
antigás aos cidadãos, e o seu colega da vizinha Rochester inicia um
programa de abrigo contra bombas «para proteger os nossos residentes no
caso de um ataque canadiano de surpresa». A Canadian Broadcasting
Company relata uma troca de fogo de armas ligeiras na fronteira entre o
Maine e a província de New Brunswick, não longe da casa de Verão de
Roosevelt na Campobello Island, na baía de Fundy. De Londres, o
primeiro-ministro Churchill adverte da iminência de uma invasão alemã do
México, alegadamente para proteger o flanco meridional da América,
enquanto os Estados Unidos se preparam para arrancar o controlo do
Canadá aos Britânicos. «Já não se trata», diz Churchill, «de uma questão de
a grande democracia americana actuar militarmente para nos salvar. Chegou
o momento de cidadãos americanos actuarem civilmente para se salvarem.
Não há, nem haverá nunca, dois dramas históricos isolados, o americano e o
britânico. Há apenas uma provação, e agora como no passado enfrentamo-la
em comum.»

Sexta-feira, 16 de Outubro de 1942


Com início às nove horas da manhã, um transmissor de rádio escondido
algures na capital da nação emite a voz da primeira--dama, a qual, com a
ajuda de fiéis de Lindbergh no seio do Serviço Secreto, conseguiu escapar
de Walter Reed, onde – declarada por autoridades como sendo uma doente
mental ao cuidado de psiquiatras do Exército – fora metida num colete de
forças e mantida prisioneira durante quase vinte e quatro horas. O tom é
cativantemente suave, as palavras são proferidas sem qualquer traço de
rispidez ou justo desprezo – em todos os aspectos, trata-se da voz
calmamente determinada de alguém de toda a respeitabilidade, educado
para olhar de alto o desgosto e a decepção sem nunca perder o autodomínio.
Não é nenhum ciclone, embora a tarefa seja de monta e ela não revele medo
algum.
«Compatriotas americanos, a ilegalidade da parte das agências de
segurança da América não pode prevalecer, nem tal lhe será permitido. Em
nome do meu marido, peço a todas as unidades da Guarda Nacional que se
desarmem e se dispersem e aos guardas que regressem à vida civil. Peço a
todos os membros das Forças Armadas dos Estados Unidos que abandonem
as nossas cidades e se reagrupem nas suas bases de origem, sob o comando
dos seus autorizados oficiais superiores. Peço ao FBI que liberte todos os
que deteve sob a acusação de conspirarem para prejudicar o meu marido e
lhes restitua imediatamente todos os seus plenos direitos como cidadãos.
Peço às autoridades encarregadas de manter a lei em toda a nação que
façam o mesmo àqueles que detiveram em cadeias locais e estaduais. Não
existe um fio de prova de que um único detido seja de algum modo culpado
do que quer que aconteceu ao meu marido e ao seu aeroplano na, ou depois
da, quarta-feira, 7 de Outubro de 1942. Peço à polícia da Cidade de Nova
Iorque que abandone as instalações ilegalmente ocupadas de jornais,
revistas e estações de rádio confiscados pelo Governo e que esses lugares
reatem as suas actividades normais como é garantido pela Primeira Emenda
da Constituição. Peço ao Congresso dos Estados Unidos que tome as
providências necessárias para afastar do seu cargo o actual presidente
interino dos Estados Unidos e nomeie um novo presidente em
conformidade com a Lei de Sucessão presidencial de 1886, que designa o
secretário de Estado como o primeiro sucessor à presidência, no caso de a
vice-presidência estar vaga. A Lei da Sucessão de 1886 também estipula
que, nas circunstâncias descritas, o Congresso deve decidir se convoca
eleições presidenciais especiais, e portanto peço ao Congresso que faça
precisamente isso e autorize uma realização de eleições presidenciais que
coincidam com as eleições para o Congresso marcadas para a primeira
terça-feira depois da primeira segunda-feira de Novembro.»
A emissão matinal é repetida pela primeira-dama, de meia em meia hora,
até que, ao meio-dia, ela anuncia que, a despeito de o presidente interino – a
quem acusa, mencionando-o pelo nome – ter ordenado o seu rapto e
internamento, vai regressar para fixar residência, com os filhos, na Casa
Branca. Apropriando-se deliberadamente, para o seu exórdio, de ecos do
texto mais venerado da democracia americana, conclui: «Não cederei nem
serei intimidada pelos representantes ilegais de uma administração
sediciosa, e não peço ao povo americano mais do que siga o meu exemplo e
recuse aceitar ou apoiar uma conduta presidencial que é indefensável. A
história da Administração actual é uma história de repetidas injúrias e
usurpações, tendo todas como objectivo directo o estabelecimento de uma
tirania absoluta sobre estes estados. Este Governo foi surdo para a voz da
justiça e exerceu sobre nós uma jurisdição insustentável.
Consequentemente, em defesa desses mesmos direitos inalienáveis
reclamados em Julho de 1776 por Jefferson, da Virgínia, Franklin, da
Pensilvânia, e Adams de Massachusetts Bay, e com a autorização do mesmo
bom povo desses Estados Unidos, e apelando ao mesmo supremo juiz do
mundo pela rectidão das nossas intenções, eu, Anne Morrow Lindbergh,
natural do estado de New Jersey, residente no Distrito de Colúmbia e esposa
do trigésimo terceiro presidente dos Estados Unidos, declaro terminada essa
injuriosa história de usurpação. A conspiração dos nossos inimigos falhou, a
liberdade e a justiça estão restauradas e aqueles que violaram a Constituição
dos Estados Unidos serão agora julgados pelo ramo judicial do Governo,
em rigorosa conformidade com a lei da Terra.»
«Nossa Senhora da Casa Branca» – como Harold Ickes chama
contrariadamente a Mrs. Lindbergh – regressa aos aposentos residenciais do
presidente ao princípio da noite e, a partir daí, usando do poder da sua
mística de mãe sofredora de um bebé martirizado e viúva resoluta do deus
desaparecido, elabora o rápido desmantelamento, pelo Congresso e pelos
tribunais, da inconstitucional Administração Wheeler, cuja criminalidade,
em meros oito dias de funções, excedeu em muito a da Administração
republicana de Warren Harding, vinte anos antes.
A restauração da normal conduta democrática iniciada por Mrs.
Lindbergh culmina duas semanas e meia depois, na terça-feira, 3 de
Novembro de 1942, com a conquista estrondosa pelos Democratas da
Câmara e do Senado e com a vitória esmagadora de Franklin Delano
Roosevelt, que lhe dá um terceiro mandato presidencial.
No mês seguinte – depois do devastador ataque de surpresa dos Japoneses
a Pearl Harbor e, passados quatro dias, da declaração de guerra da
Alemanha e da Itália aos Estados Unidos –, a América entra no conflito
global que começara na Europa cerca de três anos antes com a invasão da
Polónia e desde então se expandira até abranger dois terços da população do
mundo. Desacreditados por causa do seu conluio com o presidente interino
e desmoralizados pela colossal derrota eleitoral, os poucos republicanos que
restavam no Congresso juram o seu apoio ao presidente democrata e à sua
luta até ao fim contra as potências do Eixo. A Câmara e o Senado aprovam
a entrada da América na guerra sem um único voto discordante em cada
câmara, e, no dia seguinte à sua tomada de posse, o presidente Roosevelt
emite a Proclamação n.º 2368, «Concedendo um Perdão a Burton Wheeler.»
Nela se lê, em parte:

Em consequência de certos actos ocorridos antes do seu afastamento


do cargo de presidente interino, Burton K. Wheeler tornou-se passível de
possível acusação e julgamento por delitos contra os Estados Unidos. A
fim de poupar o país à provação desse procedimento criminal contra um
ex-presidente interino dos Estados Unidos, e para proteger a nação do
perturbador transtorno de semelhante espectáculo em tempo de guerra,
eu, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, usando o
poder de perdão que me é conferido pelo Artigo II, Parágrafo 2, da
Constituição, concedi, e pelo presente confirmo, a Burton Wheeler um
perdão pleno, livre e absoluto de todos os delitos contra os Estados
Unidos que ele, Burton Wheeler, cometeu, pode ter cometido ou ter
participado, durante o período de 8 de Outubro de 1942 até 16 de
Outubro de 1942.

Como todos sabem, o presidente Lindbergh não foi encontrado, nem dele
voltou a haver notícias, embora tivessem circulado histórias a seu respeito
durante toda a guerra e ao longo de uma década depois, juntamente com os
boatos acerca de outras pessoas proeminentes desaparecidas nessa época
conturbada, como Martin Bormann, secretário particular de Hitler, que se
supunha ter escapado aos exércitos aliados e fugido para a Argentina de
Juan Peron – mas que é mais provável que tenha perecido nos derradeiros
dias da Berlim nazi –, e Raoul Wallenberg, o diplomata sueco cuja
distribuição de passaportes suecos salvou cerca de vinte mil judeus
húngaros de serem exterminados pelos nazis, embora ele próprio tenha
desaparecido, provavelmente numa cadeia soviética, quando os Russos
ocuparam Budapeste em 1945. Entre o número decrescente de estudiosos da
conspiração de Lindbergh continuaram a aparecer relatos de pistas e
avistamentos, em comunicados intermitentes dedicados à especulação
quanto ao destino inexplicado do trigésimo terceiro presidente da América.
A história mais complicada, a história mais incrível – embora não
necessariamente a menos convincente – foi a primeira dada a conhecer à
nossa família pela tia Evelyn depois da prisão do rabi Bengelsdorf, e cuja
fonte era, nem mais nem menos, Anne Morrow Lindbergh, que
alegadamente terá confiado os pormenores ao rabi dias, apenas, antes de ser
levada da Casa Branca, contra a sua vontade, e mantida prisioneira na
enfermaria psiquiátrica do Walter Reed.
Mrs. Lindbergh, contou o rabi Bengelsdorf, relacionou tudo com o rapto,
em 1932, do seu filho bebé Charles, secretamente planeado e financiado,
afirmou, pelo Partido Nazi, pouco antes de Hitler chegar ao poder. Segundo
a recapitulação feita pelo rabi da história da primeira-dama, Bruno
Hauptmann tinha entregue o bebé, para que o guardasse, a um amigo que
vivia perto dele no Bronx – um compatriota imigrante alemão que era, na
realidade, um agente de espionagem nazi – e horas, apenas, depois de ter
sido tirado do berço em Hopewell, Nova Jérsia, e transportado pela escada
improvisada nos braços de Hauptmann, Charles Jr. já tinha sido levado em
segredo do país e ia a caminho da Alemanha. O cadáver encontrado e
identificado como sendo o do pequeno Lindbergh, dez semanas depois, era
de outro bebé, escolhido pelos nazis para ser assassinado, em virtude da sua
semelhança com o filho de Lindbergh, e depois, quando o corpo já estava
em decomposição, depositado na mata perto da casa dos Lindbergh, para
garantir a condenação e execução de Hauptmann e manter ocultas de toda a
gente, menos dos próprios Lindbergh, as verdadeiras circunstâncias do
rapto. Através de um espião nazi colocado como correspondente estrangeiro
em Nova Iorque, o casal tinha sido informado com antecedência da chegada
de Charles, são e salvo, a solo alemão e fora-lhe assegurado que lhe seriam
prestados os melhores cuidados com uma equipa especialmente escolhida
de médicos, amas, professores e pessoal militar nazi – cuidados merecidos
pela sua condição de filho primogénito do maior aviador do mundo –, desde
que os Lindbergh colaborassem inteiramente com Berlim.
Em consequência desta ameaça, durante os dez anos seguintes a sorte dos
Lindbergh e do seu filho raptado – e, gradualmente, o destino dos Estados
Unidos da América – foi determinada por Adolf Hitler. Graças à perícia e
eficiência dos seus agentes em Nova Iorque e Washington – e em Londres e
Paris depois de o famoso casal, obedecendo a ordens, «ter fugido» para
viver como expatriado na Europa, onde Lindbergh começou a visitar
regularmente a Alemanha nazi e a enaltecer as proezas da sua máquina
militar –, os nazis trataram de explorar a fama de Lindbergh em proveito do
Terceiro Reich e a expensas da América, decidindo onde o casal residiria,
com quem travaria amizade e, sobretudo, que opiniões emitiria nos seus
discursos públicos e escritos publicados, Em 1938, como recompensa por
Lindbergh ter aceite amavelmente uma prestigiada medalha atribuída por
Hermann Göring num jantar oferecido em Berlim em honra do aviador, e
depois de numerosas cartas suplicantes que foram secretamente
encaminhadas de Anne Morrow Lindbergh para o próprio Führer, os
Lindbergh foram finalmente autorizados a visitar o filho, então um belo
rapaz louro com quase oito anos que, desde o dia da sua chegada à
Alemanha, fora criado como um jovem hitleriano modelo. O cadete, que se
exprimia em alemão, não compreendeu, nem lhe foi dito, que os famosos
americanos a quem ele e os seus condiscípulos foram apresentados, após
exercícios na parada da sua academia militar de elite, eram a sua mãe e o
seu pai, e tão-pouco foi permitido aos Lindbergh falarem com ele ou serem
fotografados na sua companhia. A visita realizou-se precisamente quando
Anne Morrow Lindbergh concluíra que a história do rapto dos nazis era
uma mentira indizivelmente cruel e era mais do que tempo de os Lindbergh
se libertarem da sua sujeição a Adolf Hitler. Em vez disso, depois de verem
Charles vivo pela primeira vez desde o seu desaparecimento em 1932, os
Lindbergh deixaram a Alemanha irreversivelmente escravizados ao pior
inimigo do seu país.
Foi-lhes ordenado que pusessem fim ao seu expatriamento e regressassem
à América, onde o coronel Lindbergh adoptaria a causa da America First.
Foram-lhes fornecidos discursos, escritos em inglês, denunciando os
Ingleses, Roosevelt e os Judeus e apoiando a neutralidade da América na
guerra europeia; instruções pormenorizadas especificavam onde e quando
os discursos deviam ser feitos e até o tipo de vestuário a usar em cada
aparecimento em público. Lindbergh representou cada estratagema político
oriundo de Berlim com o mesmo perfeccionismo meticuloso que distinguia
as suas actividades aeronáuticas, até à própria noite em que chegou vestido
de aviador à Convenção Republicana e aceitou a nomeação para a
presidência com palavras escritas para a ocasião pelo ministro da
propaganda nazi Joseph Goebbels. Os nazis planearam cada manobra da
campanha eleitoral que se seguiu e, depois de Lindbergh ter derrotado FDR,
foi Hitler em pessoa quem assumiu o comando, passando a preparar – em
reuniões semanais com Göring, seu sucessor designado e administrador da
economia alemã, e Heinrich Himmler, senhor supremo dos assuntos
internos da Alemanha e chefe da Gestapo, a agência policial que tinha a seu
cargo a custódia de Charles Lindbergh Jr. – uma política estrangeira para os
Estados Unidos que melhor servisse os objectivos de tempo de guerra da
Alemanha e o seu grande desígnio imperial.
Em breve, Himmler começou a interferir directamente nos assuntos
internos dos Estados Unidos, exercendo pressão sobre o presidente
Lindbergh – humoristicamente rebaixado nos memorandos do chefe da
Gestapo com o apodo de «o nosso Gauleiter americano» – para que
instituísse medidas repressivas contra os quatro milhões e meio de judeus
americanos, e foi então, segundo Mrs. Lindbergh, que o presidente decidiu,
ainda que apenas passivamente, no início, afirmar a sua resistência. Para
começar, ordenou a criação do Gabinete Americano de Assimilação, a seu
ver uma agência suficientemente inconsequente para deixar os judeus
essencialmente incólumes, ao mesmo tempo que, na aparência, acatava –
com programas simbólicos como o Just Folks e o Homestead 42 – a
directiva de Himmler «para que iniciasse na América um processo
sistemático de marginalização que conduzirá num futuro previsível à
confiscação de todos os bens dos judeus e ao desaparecimento total da
população judaica, seus pertences e propriedade».
Heinrich Himmler estava longe de ser alguém que se deixasse enganar
com um ardil tão transparente, ou que se desse ao trabalho de disfarçar a
sua decepção, quando Lindbergh ousou justificar-se – por intermédio de
von Ribbentrop, que Himmler mandara a Washington, supostamente numa
visita oficial protocolar, apara ajudar o presidente a elaborar medidas
antijudaicas mais rigorosas – explicando ao comandante supremo dos
campos de concentração de Hitler que determinadas garantias constantes da
Constituição dos Estados Unidos, combinadas com tradições democráticas
americanas de longa data, tornavam impossível pôr em prática na América
uma solução final do problema judaico com tanta rapidez ou eficiência
como num continente onde havia uma história milenária de anti-semitismo
profundamente enraizada no povo comum, e onde o domínio nazi era
absoluto. Durante o jantar protocolar oferecido em honra de von
Ribbentrop, o presidente foi chamado à parte pelo seu ilustre convidado,
que lhe entregou um cabograma codificado, e descodificado momentos
antes na Embaixada da Alemanha, que constituía na sua totalidade a
resposta de Himmler. «Pense na criança», dizia o cabograma, «antes de
voltar a responder com semelhantes tretas. Pense no corajoso jovem
Charles, um notável cadete militar que, aos doze anos de idade, já conhece
melhor do que o seu famoso pai o valor atribuído pelo nosso Führer às
garantias constitucionais e às tradições democráticas, sobretudo no que
respeita aos direitos de parasitas.»
A reprimenda feita por Himmler ao «Lone Eagle» de «coração cobarde»
(como Lindbergh era descrito no memorando interno de Himmler)
assinalou o princípio do repúdio de Lindbergh da ideia de ser um pau-
mandado útil do Terceiro Reich. Ao derrotar Roosevelt e os
intervencionistas antinazis do partido de Roosevelt, proporcionara ao
exército alemão tempo adicional para reprimir a continuada e inesperada
resistência da União Soviética sem que a Alemanha corresse o risco de ter
de confrontar simultaneamente o poderio industrial e militar dos Estados
Unidos. Mais importante ainda do que isso, a presidência de Lindbergh
forneceu à estrutura científica alemã – já a trabalhar secretamente numa
bomba de força explosiva sem paralelo accionada por fissão atómica, assim
como um motor de foguetão capaz de transportar esta arma através do
Atlântico – mais dois anos para concluir a preparação para a luta
apocalíptica com os Estados Unidos, cujo resultado, na previsão de Hitler,
determinaria o curso da civilização ocidental e o progresso da Humanidade
durante o milénio seguinte. Se Himmler tivesse encontrado em Lindbergh o
visionário anti-semita que o alto-comando alemão fora levado a esperar
pelos relatórios da espionagem, em vez daquilo que desdenhosamente
apelidou de «anti-semita de jantar de cerimónia», talvez tivesse sido
permitido ao presidente completar o seu mandato e manter-se outros quatro
anos no cargo, antes de se retirar e ceder o Governo a Henry Ford, já
escolhido por Hitler como sucessor de Lindbergh, apesar da sua idade
avançada. Se Himmler tivesse podido confiar num presidente americano
possuidor de inatacáveis credenciais americanas para pôr em prática a
solução final do problema judaico da América, isso teria, evidentemente,
sido preferível ao emprego, em data posterior, de recursos e pessoal alemão
para desempenhar essa missão na América do Norte, e o avião de Lindbergh
não teria tido de desaparecer dos céus, como foi considerado necessário por
Berlim na quarta-feira, 7 de Outubro de 1942 – tão-pouco teria o presidente
interino Wheeler assumido o poder na noite seguinte e, para surpreendida
satisfação de todos os que até então o tinham considerado nada mais do que
um palhaço, provado em poucos dias que era um líder genuíno, ao pôr
espontaneamente em prática as próprias medidas que von Ribbentrop
propusera a Lindbergh e que, como era convicção de Himmler, o herói
americano não fora capaz de executar devido às pueris objecções morais da
sua mulher.
Decorrida uma hora após o desaparecimento de Lindbergh, Mrs.
Lindbergh fora informada pela Embaixada Alemã de que a responsabilidade
do bem-estar do seu filho era agora exclusivamente sua e que, se ela não
abandonasse a Casa Branca e se retirasse em silêncio da vida pública,
Charles Jr. seria retirado da sua academia militar e enviado para a frente
russa, para a ofensiva de Novembro contra Estalinegrado, onde
permaneceria de serviço como o mais jovem combatente de infantaria do
Terceiro Reich até expirar bravamente no campo de batalha para maior
glória do povo alemão.

Foi esta a história cujos contornos a tia Evelyn transmitiu à minha mãe
quando apareceu em nossa casa horas depois de o rabi Bengelsdorf ser
levado, algemado, do hotel deles em Washington por agentes do FBI. Muito
mais elaborada é a história contada em My Life under Lindbergh, a apologia
de 550 páginas publicada como diário de um insider, logo após a guerra,
pelo rabi Bengelsdorf e desmentida depois numa conferência de imprensa
por um porta-voz da família Lindbergh como «uma condenável calúnia sem
qualquer base nos factos, motivada pela vingança e pela ganância,
sustentada pela egomania, inventada em nome da grosseira exploração
comercial e que Mrs. Lindbergh não dignificará com outra resposta.» A
primeira vez que a minha mãe ouviu a história, pareceu-lhe tratar-se da
prova conclusiva de que o abalo de assistir à prisão do rabino Bengelsdorf
transtornara temporariamente as faculdades mentais da irmã.
O dia seguinte à visita de surpresa de Evelyn foi a sexta-feira, 16 de
Outubro de 1942, em que, antes de regressar à Casa Branca, Mrs. Lindbergh
foi para o ar a partir de um local secreto em Washington e, baseada
exclusivamente na sua autoridade como «esposa do trigésimo terceiro
presidente dos Estados Unidos», declarou que a «injuriosa história da
usurpação» levada a cabo pela Administração do presidente interino «estava
acabada». Se aconteceu algum mal ao seu filho raptado em consequência da
coragem da primeira-dama; se Charles Jr. alguma vez sobrevivera à
primeira infância para sofrer o terrível destino que Himmler prometera,
quanto mais para suportar a infância de um menor tutelado, privilegiado e
refém precioso do Estado alemão; se Himmler, Göring e Hitler foram de
algum modo importantes no apoio da ascensão de Lindbergh à eminência
política como membro da America First, ou no modelo da política dos EUA
durante os vinte e dois meses da presidência de Lindbergh, ou na execução
do misterioso desaparecimento de Lindbergh – tudo isso tem sido objecto
de controvérsia ao longo de mais de meio século, embora presentemente
seja uma controvérsia muito menos apaixonada e difundida do que quando,
ao longo de trinta e tal semanas, em 1946 (e apesar da sua frequentemente
citada caracterização por Westbrook Pegler, o decano dos jornalistas de
direita americanos contra Roosevelt, como «o diário idiota de um
mitomaníaco a precisar de internamento psiquiátrico»), My Life under
Lindbergh permaneceu no topo das listas de bestsellers americanos,
juntamente com duas biografias pessoais de FDR, que morrera em funções
no ano anterior, apenas semanas antes de a rendição incondicional da
Alemanha nazi aos Aliados assinalar o fim da Segunda Guerra Mundial na
Europa.
19 Iídiche, panquecas de batata. (NT)

20 Half nelson, no original. Golpe de luta em que um braço enfiado sob o braço correspondente do
adversário, com a mão colocada na parte de trás do seu pescoço, permite imobilizá-lo. (NT)

21 CIO, sigla de Congress of Industrial Organizations; AFL, abreviatura de American Federation of


Labor. (NT)

22 Sigla de American Civil Liberties Union. (NT)


9
Outubro de 1942
MEDO PERPÉTUO

O TELEFONEMA de Seldon chegou quando a minha mãe, o Sandy e eu já


estávamos deitados. Era segunda-feira, 12 de Outubro, e ao jantar
ouvíramos pela rádio as notícias dos distúrbios que se tinham desencadeado
no Midwest e no Sul depois do anúncio, pelos serviços de informação
ingleses, de que o presidente Lindbergh descera propositadamente o
aeroplano trezentas milhas ao largo, de onde fora recolhido pela Marinha e
pela Aviação da Alemanha nazi e levado para um encontro secreto com
Hitler. Só na manhã seguinte os jornais puderam dar pormenores dos
distúrbios desencadeados por esta notícia, embora escassos minutos
decorridos após ouvirmos a notícia à nossa mesa da cozinha a minha mãe
tivesse calculado, correctamente, quem era o alvo dos arruaceiros e porquê.
Tinham, entretanto passado três dias desde que a fronteira do Canadá fora
encerrada, e até para mim, que considerava deixar a América uma
perspectiva insuportável, se tornou claro que a recusa do meu pai em dar
ouvidos à minha mãe e levar-nos para fora do país, meses atrás, era o erro
mais grave que ele jamais cometera. Ele voltara a trabalhar de noite no
mercado, a minha mãe ia todos os dias às compras – quixotescamente, ela
assistira a uma reunião na escola, uma tarde, para escolha de futuros
delegados vigilantes das eleições de Novembro – e Sandy e eu íamos todas
as manhãs para a escola com os nossos amigos, mas mesmo assim, no
princípio da segunda semana da administração do presidente interino
Wheeler, o medo estava em todo o lado, e isso apesar de Mrs. Lindbergh ter
aconselhado os Americanos a ignorarem as notícias provenientes de países
estrangeiros a respeito do paradeiro do presidente, apesar da ascendência,
como figura noticiosa, do rabi Bengelsdorf, agora membro da nossa família
e tio pelo casamento, que até jantara uma vez em nossa casa, mas não podia
fazer nada para nos ajudar – e não faria, mesmo que pudesse, devido ao
desprezo que o meu pai e ele sentiam um pelo outro. O medo estava em
todo o lado, o olhar estava em todo o lado, sobretudo nos olhos dos nossos
protectores, o olhar que surge na fracção de segundo depois de termos
fechado a porta e darmos conta de que não temos chave. Nunca antes
observáramos os adultos a pensar todos, impotentemente, os mesmos
pensamentos. Os mais fortes dentre eles faziam o possível para estarem
calmos, serem corajosos e parecerem realistas quando nos diziam que as
nossas preocupações terminariam em breve e o curso normal da vida
regressaria, mas quando ligavam o rádio para ouvir as notícias ficavam
devastados pela rapidez com que tudo quanto era terrível estava a acontecer.
Depois, na noite do dia 12 – enquanto cada um de nós estava na cama,
incapaz de adormecer –, o telefone tocou: era Seldon que telefonava do
Kentucky a cobrar no destino. Eram dez horas da noite, a sua mãe ainda não
chegara a casa e, como ele sabia o nosso número de cor (e não sabia a quem
mais ligar), deu à manivela do telefone, ouviu a telefonista e,
apressadamente, tentando articular todas as palavras necessárias antes de a
faculdade da fala o abandonar, disse-lhe: «A cobrar, por favor. Newark,
New Jersey. Summit Avenue, 81. Waverley 3-4827. Chamo-me Seldon
Wishnow. Desejo falar pessoalmente com Mr. ou Mrs. Roth. Ou Philip. Ou
Sandy. Seja quem for, telefonista. A minha mãe não está em casa. Tenho dez
anos. Não comi e ela não está aqui. Telefonista, por favor – Waverley 3-
4827! Falo com qualquer pessoa!»
Nessa manhã, Mrs. Wishnow metera-se no carro para Louisville, para o
escritório regional da Metropolitan, a fim de se apresentar, a pedido da
companhia, ao supervisor da sua zona. Louisville ficava a mais de cento e
cinquenta quilómetros de Danville e as estradas eram tão más na maior
parte do caminho que praticamente levaria o dia inteiro para ir e vir. Por que
motivo o supervisor não podia ter-lhe escrito uma carta ou pegado no
telefone e dito o que tinha a dizer, nunca ninguém compreendeu, nem nunca
lhe foi pedido que explicasse. O palpite do meu pai era que a companhia
tencionava despedi-la naquele dia: mandá-la entregar o seu livro de contas,
com o registo escrito pelo seu punho das cobranças, e mandá-la embora,
desempregada ao fim de meras seis semanas de serviço e a mais de mil
quilómetros de casa. Ela não fizera negócios dignos de nota naquelas
primeiras semanas naquela área rural de Boyle County, embora tal não se
devesse a falta de grande esforço da sua parte – essencialmente, devia-se a
não haver ali negócios para fazer. Na realidade, todas e cada uma das
transferências feitas pela Metropolitan sob os auspícios da Homestead 42
estavam a transformar-se em catástrofes para os agentes vindos da área de
Newark. Nos recantos escassamente habitados daqueles estados distantes
onde eles e as suas famílias tinham sido recolocados, nenhum deles
conseguiria, nunca, auferir um quarto das comissões que estavam
habituados a ganhar na metropolitana North Jersey – e por isso, mesmo que
tivesse sido só por essa razão, o meu pai tinha sido extraordinariamente
presciente ao despedir-se do emprego e ir trabalhar para o tio Monty. Já não
o fora tanto no que respeitava a levar-nos para o outro lado da fronteira
canadiana antes de ela ser encerrada e a lei marcial declarada.
– Se ela estivesse viva... – disse Seldon à minha mãe, depois de ela ter
aceite pagar a chamada e atendê-lo – se ela estivesse viva... – Ao princípio,
por causa do seu choro, só conseguia dizer isso, e mesmo essas quatro
palavras eram quase ininteligíveis.
– Seldon, acaba com isso. Estás a enervar-te a ti mesmo. Estás a ficar
muito nervoso. É claro que a tua mãe está viva. Atrasou-se apenas a chegar
a casa... foi só isso que aconteceu.
– Mas se ela estivesse viva, telefonaria!
– Seldon, e se ela ficou apenas presa no trânsito? E se aconteceu alguma
coisa ao seu carro e ela teve de parar para lho arranjarem? Não aconteceu
isso antes, quando estavam aqui em Newark? Lembras-te daquela noite em
que chovia e ela teve um furo e tu vieste cá para cima, para ficar connosco?
Provavelmente teve apenas um furo, querido, por isso acalma-te, por favor.
Tens de parar de chorar. A tua mãe está bem. Dizeres o que estás a dizer só
serve para te transtornar, além de não ser verdade, por isso, por favor, faz
um esforço, já, e tenta acalmar-te.
– Mas ela morreu, Mrs. Roth! Como o meu pai! Agora ambos os meus
pais estão mortos!
E tinha razão, evidentemente. Seldon não sabia nada a respeito dos
distúrbios lá longe, em Louisville, e pouco sabia a respeito do que se
passava no resto da América. Como não havia na vida de Mrs. Wishnow
espaço para nada além do filho e do emprego, nunca havia um jornal para
ler na casa em Danville, e quando os dois se sentavam para jantar não
ouviam as notícias como nós ouvíamos em Newark. Mais do que
provavelmente, ela estava cansada de mais, em Danville, para as ouvir e,
entretanto, também entorpecida de mais para ter consciência de qualquer
infortúnio além do seu próprio.
Mas Seldon estava absolutamente certo: Mrs. Wishnow morrera, embora
ninguém o viesse a saber se não no dia seguinte, quando o carro incendiado
contendo os restos mortais da sua mãe foi encontrado, fumegante, numa
vala de drenagem ao lado de um batatal, na região plana logo a sul de
Louisville. Aparentemente, fora espancada e roubada e o carro incendiado
nos primeiros minutos da violência do anoitecer, que não se confinara às
ruas do centro de Louisville, onde havia lojas que eram propriedade de
judeus, ou às ruas residenciais, onde vivia um punhado de cidadãos judeus
de Louisville. Os homens do Klan sabiam que, uma vez as tochas acesas e
as cruzes a arder, a ralé tentaria sair e, por isso, estavam à sua espera, não
apenas na estrada principal que levava para norte, para o Ohio, mas também
ao longo das estreitas estradas vicinais que seguiam para sul, que foi onde
Mrs. Wishnow pagou com a vida a difamação do bom nome de Lindbergh,
primeiro pelo falecido Walter Winchell e agora pela máquina de propaganda
controlada pelos judeus do primeiro-ministro Churchill e do rei Jorge VI.
A minha mãe disse:
– Seldon, tens de procurar alguma coisa para comer. Isso ajudar-te-á a
acalmar. Vai ao frigorífico e tira qualquer coisa para comer.
– Comi os biscoitos de figo. Já não há mais.
– Seldon, estou a falar em comeres uma refeição, A tua mãe deve chegar a
casa muito em breve, mas entretanto não podes ficar sentado à espera que
ela venha para te dar de comer... tens de te alimentar tu mesmo, e não com
biscoitos. Pousa o telefone e vai ver ao frigorífico, e depois volta e diz-me o
que lá há que possas comer.
– Mas é longe.
– Faz o que te digo, Seldon.
A Sandy e a mim, muito chegados a ela no vestíbulo das traseiras, a
minha mãe disse:
– Ela está muito atrasada e ele não comeu e está sozinho, ela não
telefonou e o pobre rapaz está apavorado e morto de fome.
– Mrs. Roth?
– Sim, Seldon.
– Há requeijão. Mas está velho e não tem muito bom aspecto.
– Que mais há?
– Beterrabas. Numa taça. Restos. Estão frios.
– E mais alguma coisa?
– Vou ver de novo... só um momento.
Desta vez, quando Seldon pousou o telefone, a minha mãe disse a Sandy:
– A que distância de Danville ficam os Mawhinney?
– De camioneta, a cerca de vinte minutos.
– O número deles está na minha cómoda... em cima, na minha carteira.
Está num bocado de papel na bolsinha castanha dos trocos. Vai buscá-lo,
por favor, Sandy.
– Mrs. Roth? – disse Seldon.
– Sim, estou aqui.
– Há manteiga.
– Mais nada? Não há leite? Não há sumo?
– Mas isso é para o pequeno-almoço, não é para o jantar.
– Há Rice Krispies, Seldon? Há Corn Flakes?
– Com certeza.
– Então tira o cereal de que gostas mais.
– Rice Krispies
– Vai buscá-los, tira o leite e o sumo, e quero que faças um pequeno-
almoço para ti.
– Agora?
– Faz o que te digo, por favor. Quero que tomes o pequeno--almoço.
– O Philip está aí?
– Está, mas não podes falar com ele. Primeiro tens de comer. Volto a
telefonar-te daqui a meia hora, depois de teres comido. São dez e dez,
Seldon.
– Em Newark são dez e dez?
– Em Newark e em Danville também. É exactamente a mesma hora em
ambos os lugares. Telefono-te quando faltar um quarto para as onze.
– Nessa altura posso falar com o Philip?
– Podes, mas primeiro quero que te sentes com tudo o que precisas na
mesa da cozinha. Quero que uses uma colher, um garfo, um guardanapo e
uma faca. Come devagar. Usa pratos. Usa uma tigela. Há algum pão?
– Está duro. São só duas fatias.
– Tens uma torradeira?
– Claro que tenho. Trouxemo-la para cá no carro. Lembra-se da manhã
em que enchemos todos o carro?
– Ouve-me, Seldon. Presta atenção. Faz torradas, para comeres com o
cereal. Usa a manteiga. Barra-as de manteiga. Enche um copo grande de
leite. Quero que comas um bom pequeno--almoço, e quando a tua mãe
chegar quero que lhe digas que nos telefone imediatamente. Pode ligar a
pagar aqui. Diz-lhe que não se preocupe com o preço. É importante para
nós sabermos quando ela está em casa. Mas, de qualquer maneira, daqui a
meia hora telefono-te, por isso não saias daí.
– Está escuro lá fora. Aonde iria?
– Seldon, come o teu pequeno-almoço.
– Está bem.
– Adeus, até daqui a pouco. Eu telefono-te quando faltar um quarto para
as onze. Fica onde estás.
A seguir, ligou para os Mawhinney. O meu irmão estendeu-lhe o papel
com o número e ela pediu à telefonista que fizesse a ligação. Quando
alguém respondeu do outro lado, a minha mãe disse:
– Estou a falar com Mrs. Mawhinney? Aqui fala Mrs. Roth. Sou a mãe do
Sandy Roth. Estou a falar de Newark, New Jersey, Mrs. Mawhinney. Peço
desculpa se a acordei, mas precisamos que nos ajude com um rapazinho que
está sozinho em Danville. O quê? Sim, claro, sim. – E acrescentou,
dirigindo-se a nós: – Ela foi chamar o marido.
– Oh, não! – gemeu Sandy.
– Sanford, o momento não é próprio para isso. Eu também não gosto do
que estou a fazer. Tenho consciência de que não conheço esta gente. Tenho
a certeza de que eles não são como nós. Sei que os agricultores vão para a
cama cedo, se levantam cedo e trabalham muito. Mas és capaz de me dizer
que mais eu podia fazer? Aquele pobre rapaz vai enlouquecer se o
deixarmos mais tempo sozinho. Ele não sabe onde está a mãe. Precisa de ter
lá alguém. Já sofreu demasiados choques, para uma criança da sua idade.
Perdeu o pai. Agora a mãe está desaparecida. Não és capaz de compreender
o que isso significa?
– Claro que sou – respondeu, indignado, o meu irmão. – Claro que
compreendo.
– Ainda bem. Nesse caso, compreendes que alguém tem de ir ter com ele.
Alguém... – Mas neste momento Mr. Mawhinney falou ao telefone e a
minha mãe explicou-lhe por que motivo estava a telefonar, e ele
prontificou-se imediatamente a fazer tudo o que ela lhe pedia. Depois a
minha mãe desligou e disse: – Pelo menos ainda resta alguma decência no
nosso país. Pelo menos há alguma decência em algum lado.
– Eu tinha-lhe dito – murmurou o meu irmão.
Nunca ela me pareceria mais extraordinária do que naquela noite, e não
apenas pela naturalidade com que fazia e recebia telefonemas para e do
Kentucky. Mas houve mais, muito mais. Houve, para começar, a agressão
de Alvin ao meu pai na semana anterior. Houve a reacção explosiva do meu
pai. Houve a destruição da nossa sala. Houve os dentes e as costelas
partidas do meu pai, os pontos no seu rosto e a coleira especial no seu
pescoço. Houve o tiroteio na Chancellor Avenue. Houve a nossa certeza de
que era um pogrom. Houve as sereias a noite inteira. Houve os berros e os
gritos nas ruas a noite inteira. Houve as horas passadas escondidos no
vestíbulo dos Cucuzza, a pistola carregada no colo do meu pai, a pistola
carregada no punho de Mr. Cucuzza – e isso tinha sido apenas duas
semanas antes. Houve também o mês antes, o ano antes, e o ano antes desse
– todas aquelas agressões, insultos e surpresas, com o fim de enfraquecerem
e assustarem os judeus, que ainda não tinham conseguido abalar a força da
minha mãe. Antes de a ouvir dizer a Seldon, de mais de mil quilómetros de
distância, que fizesse qualquer coisa para comer e se sentasse e comesse,
antes de a ouvir ligar aos Mawhinney – gentios frequentadores da igreja nos
quais ela nunca pusera os olhos – a fim de os convencer a evitarem que
Seldon enlouquecesse, antes de a ouvir pedir para falar a Mr. Mawhinney e
depois dizer-lhe que se tivesse acontecido alguma coisa grave a Mrs.
Wishnow os Mawhinney não precisavam de se preocupar, receando ficar
com Seldon, porque o meu pai estava disposto a ir de carro ao Kentucky
para o trazer de novo para Newark (e prometer isto a Mr. Mawhinney
quando ainda ninguém sabia ao certo até onde os Wheelers e os Fords
tencionavam permitir a turba americana de ir), antes de tudo isso, eu não
percebera nada da história que foi a vida dela naqueles anos. Até ao
desesperado telefonema de Seldon do Kentucky, nunca avaliara o preço que
a presidência de Lindbergh fora para a minha mãe e para o meu pai – até
àquele momento, fora incapaz de fazer uma conta de somar tão elevada.
Quando a minha mãe telefonou a Seldon, às onze horas menos um quarto,
explicou-lhe o plano que combinara com os Mawhinney. Disse-lhe que
metesse a escova de dentes, o pijama, roupa interior e um par de peúgas
lavadas num saco de papel, vestisse o seu casaco quente e pusesse o boné
de flanela, e esperasse em casa que Mr. Mawhinney chegasse na sua
camioneta. Mr. Mawhinney era um homem muito bondoso, disse ela a
Seldon, um homem amável e generoso, com uma mulher simpática e quatro
filhos, que o Sandy conhecia do Verão que passara na quinta deles.
– Então ela morreu! – gritou Seldon.
Não, não, não, de modo nenhum – a sua mãe iria buscá-lo a casa dos
Mawhinney na manhã seguinte, para o levar de carro para a escola. Mr. e
Mrs. Mawhinney tratariam disso tudo para ele; não tinha de se preocupar
com coisa nenhuma. Mas entretanto ele precisava de fazer uma coisa: com a
sua melhor caligrafia, Seldon devia escrever um bilhete para a mãe e deixá-
lo na mesa da cozinha, um bilhete a dizer-lhe que ia passar a noite em casa
dos Mawhinney e a deixar o número do telefone deles para ela. Devia
também dizer-lhe, no bilhete, que ligasse para Mrs. Roth, a cobrar em
Newark, assim que chegasse a casa. Depois disso, Seldon devia sentar-se na
sala e esperar até ouvir Mr. Mawhinney buzinar, no exterior, e depois devia
apagar todas as luzes da casa...
Instruiu-o acerca de cada fase da sua partida e depois, a um custo
financeiro de que eu não podia fazer a mínima ideia, continuou em linha até
ele ter feito o que ela lhe dissera e voltar ao telefone para lhe dizer que o
fizera, e nem mesmo então desligou ou parou de o tranquilizar a respeito de
tudo, até finalmente Seldon gritar: «É ele, Mrs. Roth! Está a buzinar!, e a
minha mãe disse: «Está bem, óptimo, mas agora, com calma, Seldon, com
muita calma, pega no saco, apaga as luzes, não te esqueças de fechar a porta
à chave quando saíres, e amanhã de manhã, muito cedinho, vais ver a tua
mãe. Felicidades, meu querido, não corras e... Seldon? Seldon, desliga o
telefone!» Mas ele esqueceu-se de fazer isso. Na sua pressa de fugir o mais
depressa que pudesse daquela assustadora e solitária casa sem pais, deixou
o telefone pendurado, embora isso pouca importância tivesse. O fogo
poderia ter arrasado a casa até ao chão, que não teria tido importância,
porque Seldon nunca mais lá voltaria a pôr os pés.
No domingo, 19 de Outubro, voltou a Summit Avenue. O meu pai,
acompanhado por Sandy, foi buscá-lo de carro ao Kentucky. O caixão
contendo os restos mortais de Mrs. Wishnow veio depois deles, de
comboio. Eu sabia que ardera no seu carro até ficar irreconhecível, mas
mesmo assim continuava a imaginá-la dentro do caixão com os punhos
ainda cerrados. Ou então a imaginar-me trancado na casa de banho deles,
com Mrs. Wishnow a explicar-me do lado de fora como devia abrir a porta.
Como ela fora paciente! Tão parecida com a minha própria mãe! E agora
estava dentro de um caixão, e quem lá a pusera fora eu.
Era só nisso que conseguia pensar na noite em que a minha mãe, como
um oficial em combate, conduziu Seldon nos passos necessários para
organizar o seu jantar e depois a sua partida, e a colocar-se em segurança
nas mãos dos Mawhinney. Fui eu, era só nisso que conseguia pensar então,
e é só nisso que consigo pensar agora. Eu fiz isto ao Seldon e fiz-lhe isto a
ela. O rabi Bengelsdorf fizera o que fizera, a tia Evelyn fizera o que fizera,
mas fora eu quem desencadeara isto – esta devastação tinha sido feita por
mim.
Na quinta-feira, 15 de Outubro – o dia em que o putsch de Wheeler
atingiu o cúmulo da ilegalidade – o nosso telefone tocou às seis horas
menos um quarto da manhã. A minha mãe julgou que era o meu pai e Sandy
a telefonarem do Kentucky com más notícias ou, pior ainda, alguém a
telefonar a respeito deles dois, mas por enquanto as más notícias eram da
minha tia. Poucos minutos antes, apenas, agentes do FBI tinham batido à
porta do quarto de hotel de Washington onde o rabi Bengelsdorf estava
instalado. A tia Evelyn tinha viajado de Newark para lá, na véspera, e por
isso passara lá a noite – caso contrário, poderia nunca ter tido conhecimento
das circunstâncias do desaparecimento dele. Os agentes não se deram ao
trabalho de esperar que alguém do interior abrisse a porta; a chave-mestra
do gerente do hotel teve a amabilidade de lha abrir e, depois de
apresentarem uma ordem para a prisão do rabi Bengelsdorf e de esperarem
em silêncio enquanto ele se vestia, escoltaram-no, algemado, para fora do
quarto, sem uma palavra de explicação à tia Evelyn, que mal os viu partir
com ele num carro não identificado telefonou à minha mãe, para pedir
ajuda. Mas esta não era, de modo algum, uma ocasião para a minha mãe me
deixar ao cuidado de outra pessoa qualquer e viajar cinco horas de comboio
a fim de ajudar uma irmã com quem não se dava havia meses. Cento e vinte
e dois judeus tinham sido assassinados três dias antes – entre eles, como
acabáramos de saber, Mrs. Wishnow –, o meu pai e Sandy ainda estavam a
fazer a sua perigosa viagem para salvar Seldon e ninguém sabia o que
esperava até mesmo aqueles de nós que se encontravam em casa na Summit
Avenue. O tiroteio com a polícia da cidade, de que resultara a morte de três
bandidos locais, fora o pior que acontecera em Newark até àquele
momento; no entanto, o facto de ter acontecido logo ali ao virar da esquina,
na Chancellor Avenue, deixara todos os moradores da rua com a sensação
de que fora deitada abaixo uma parede que anteriormente protegera as suas
famílias – não a parede do gueto (que não protegera ninguém, certamente
não do medo nem das patologias da exclusão), não uma parede destinada a
isolá-los ou a fechá-los, mas uma parede protectora de garantias legais que
se erguia entre eles e os transtornos de um gueto.
Às cinco horas dessa tarde, a tia Evelyn apareceu à nossa porta, mais
desvairada do que parecera ao telefone depois da prisão do rabi
Bengelsdorf. Ninguém em Washington estava disposto ou apto a dizer-lhe
onde o marido se encontrava detido ou sequer se ainda estava vivo, e
depois, quando ela teve conhecimento da prisão de figuras aparentemente
inexpugnáveis como o mayor La Guardia, o governador Lehman e o juiz do
Supremo Tribunal Frankfurter, deixou-se vencer pelo pânico e meteu-se no
comboio para sair de Washington. Receosa de regressar sozinha à mansão
de Elizabeth Avenue do rabi – receosa, também, de que, se telefonasse
primeiro, a minha mãe lhe dissesse que se mantivesse afastada –, apanhara
um táxi na Penn Station directamente para a Summit Avenue, a fim de rogar
que a recolhessem. Duas horas antes, apenas, fora transmitido pela rádio um
boletim chocante: a notícia de que, ao entrar em Nova Iorque para
participar, ao fim da tarde, num comício de protesto em Madison Square
Garden, o presidente Roosevelt fora «detido» pela polícia de Nova Iorque –
e foi isso que levou a minha mãe a sair de casa e, pela primeira vez desde
que eu entrara no jardim infantil em 1938, ir-me buscar ao fim do dia de
aulas. Até então, mostrara-se tão disposta como qualquer outra pessoa da
rua a respeitar as instruções do rabi Prinz no sentido de que a comunidade
mantivesse o modo de vida habitual e deixasse as questões de segurança a
cargo do seu comité, mas naquela tarde achou que os acontecimentos
tinham, agora, ultrapassado a sensatez do rabi e, juntamente com uma
centena de outras mães que tinham chegado a semelhante conclusão,
aparecera para levar o seu filho quando a última sineta tocou e os miúdos
começaram a sair para a rua a fim de irem para casa.
– Eles andam atrás de mim, Bess! Tenho de me esconder... tu tens de me
esconder!
Como se o nosso mundo não se tivesse virado de pernas para o ar em
pouco mais de uma semana, ali estava agora a minha vibrante e altiva tia,
mulher (ou talvez, entretanto, viúva) do mais importante personagem em
que qualquer de nós já pusera os olhos – ali estava a pequenina tia Evelyn,
sem a sua maquilhagem, com os cabelos num desalinho, subitamente
transformada num mostrengo, tornada tão feia e com um aspecto tão
vulnerável tanto pela tragédia como pela sua própria teatralidade. E ali
estava a minha mãe a bloquear a nossa porta e com um ar mais zangado e
furioso do que alguma vez a imaginara capaz. Nunca a tinha visto numa tal
fúria nem ouvido proferir uma palavra grosseira. Ignorava, mesmo, que ela
soubesse fazê-lo.
– Porque não pedes aos Ribbentrop que te escondam? – perguntou a
minha mãe. – Porque não vais pedir protecção ao teu amigo von
Ribbentrop? Rapariga estúpida! E a minha família? Pensas que também não
temos medo? Pensas que também não corremos perigo? Cabra egoísta...
todos nós temos medo!
– Mas eles vão prender-me! Vão torturar-me, Bess, porque eu sei a
verdade!
– Não podes ficar aqui! Isso está fora de questão! Tens uma casa,
dinheiro, criados – tens tudo para te proteger. Nós não temos nada que se
pareça com isso, absolutamente nada que se pareça com isso. Vai-te
embora, Evelyn! Vai! Sai desta casa!
Surpreendentemente, a minha tia virou-se para mim, para suplicar abrigo.
– Querido rapaz, meu amorzinho...
– Como te atreves?! – gritou a minha mãe, e bateu com a porta, não
entalando só por um triz a mão que a tia Evelyn estendera
desamparadamente para a minha.
No momento seguinte, abraçou-me com tanta força que senti o seu
coração bater contra a minha testa.
– Como é que ela vai para casa? – perguntei.
– De autocarro. Isso não nos diz respeito. Apanha o autocarro, como toda
a gente.
– Mas o que queria ela dizer a respeito da verdade, mãe?
– Nada. Esquece o que ela queria dizer. A tua tia deixou de ser
preocupação nossa.
De regresso à cozinha, ocultou o rosto nas mãos e o choro convulsionou-
lhe imediatamente o corpo. Os responsáveis escrúpulos maternos cederam
e, com eles, a força a que rigorosamente recorria para ocultar as suas
fragilidades, manter as aparências e não dar parte de fraca.
– Como pode a Selma Wishnow estar morta? – perguntou. – Como
podem ter prendido o presidente Roosevelt? Como é possível que estejam a
acontecer estas coisas?
– Porque Lindbergh desapareceu? – perguntei.
– Porque ele apareceu – respondeu-me. – Porque ele apareceu, para
começar, um gói idiota a pilotar um estúpido aeroplano! Oh, eu nunca devia
tê-los deixado ir buscar o Seldon! Onde está o teu irmão? Onde está o teu
pai? – Onde está também, parecia perguntar, aquela existência tranquila,
outrora tão cheia de objectivos, onde está o grande, o enorme
empreendimento de sermos nós quatro? – Não sabemos sequer onde eles
estão – disse, mas dando a impressão de que era ela quem estava perdida. –
Mandá-los assim, daquela maneira... Em que estava eu a pensar? Deixá-los
partir quando o país inteiro... quando...
Calou-se deliberadamente, aí, mas o rumo do seu pensamento era bem
claro: quando os góis andam a matar judeus na rua.
Não havia nada que eu pudesse fazer a não ser observar até o pranto a ter
exaurido até ao fim, e então toda a ideia que fazia dela sofreu uma mudança
espantosa: a minha mãe era uma criatura como eu. A revelação chocou-me,
tanto mais que era demasiado novo para compreender que esse era o mais
forte de todos os laços.
– Como pude mandá-la embora? – perguntou ela. – Oh, querido, o que...
o que diria a avó, agora?
Previsivelmente, o remorso era a forma assumida pela sua angústia, a
flagelação implacável que é a autocensura, como se em tempos tão
extravagantes como estes houvesse um modo certo e um modo errado que
seriam claros para todos os outros, como se ao confrontar tais situações
complicadas a mão da estupidez estivesse sempre longe de guiar alguém.
No entanto, ela censurava-se por erros de julgamento que, além de serem
naturais quando deixara de haver uma explicação lógica fosse para o que
fosse, eram gerados por razões das quais ela não tinha motivo algum para
duvidar. O pior de tudo era o quanto estava convencida do seu catastrófico
erro, embora, se tivesse agido contra os seus instintos, não tivesse tido
menos razão para deplorar o que fizera. Para o rapazinho que a observava a
ser fustigada pela mais angustiosa confusão (e que tremia ele próprio de
medo) resumia-se tudo â descoberta de que não podemos fazer nada certo
sem fazermos também alguma coisa errada, tão errada, na realidade, que,
em especial onde o caos reinava e tudo estava em jogo, talvez o melhor
fosse esperar e não fazer nada – só que não fazer nada era também fazer
alguma coisa... em tais circunstâncias, não fazer nada era fazer muito –, e
que, mesmo para a mãe que agia todos os dias em oposição metódica ao
insubmisso fluxo da vida, não existia sistema algum para gerir tão sinistra
complicação.

À luz das drásticas ocorrências do dia (com as quais nem a aprovação das
Leis dos Estrangeiros e da Sedição de 1798 nem mesmo aquilo a que
Jefferson chamou o federalista «reino das bruxas» se comparou
remotamente, no tocante a intolerância tirana ou traição), foram convocadas
reuniões de emergência, para essa noite, nas quatro escolas locais que,
juntas, abrangiam quase todos os alunos judeus do sistema de educação
primária de Newark. Cada reunião seria presidida por um membro da
Comissão de Cidadãos Judeus Preocupados. Um carro de som viera ao fim
da tarde pedir a toda a gente que passasse a palavra do encontro entre os
seus vizinhos. As pessoas eram convidadas a levar os filhos, se não
desejassem deixá-los sozinhos em casa, e era-lhes garantido que o mayor
Murphy prometera ao rabi Prinz uma mobilização policial total em toda a
South Ward – estendendo-se a protecção policial tão a leste como à
Frelinghuysen Avenue e tão a norte como à Springfield Avenue. Todo o
complemento departamental de polícia montada – dois pelotões de doze,
divididos e alojados em quatro esquadras diferentes – seria especificamente
encarregado de patrulhar as ruas a oeste da área de Weequahic que fazia
fronteira com Irvington (onde, na noite anterior, uma loja de bebidas
alcoólicas, propriedade de judeus, da principal rua comercial, tinha sido
incendiada e totalmente destruída, depois de ter sido invadida e pilhada) e
as ruas a sul que faziam fronteira com Union County e as cidades de
Hillside (famosa aos meus olhos pela grande fábrica Bristol-Myers ao longo
da Route 22, que fabricava o pó de Ipana que usávamos, e onde, no dia
anterior, tinham sido partidas as janelas de uma sinagoga) e Elizabeth (onde
os pais imigrantes da minha mãe se tinham instalado na viragem do século
– onde, o que era deveras intrigante para um miúdo de nove anos, se dizia
que a Nova Jérsia Pretzel Factory, na Livingston Street, contratava surdos-
mudos do estado para fazerem a dobragem das pretzels – e onde tinham
sido profanadas sepulturas no cemitério do Templo B’nai Jeshurun, apenas
a alguns quarteirões do campo de golfe de Weequahic Park).
Pouco depois das seis e meia, a minha mãe desceu rapidamente a rua para
a reunião de emergência na escola da Chancellor Avenue. Eu fiquei em
casa, encarregado por ela de atender o telefone e aceitar as chamadas a
pagar no destino, no caso de o meu pai telefonar da estrada. Os Cucuzza
tinham-lhe prometido que olhariam por mim até ela voltar para casa, e na
verdade, ainda ela ia a descer a escada já Joey as subia, três degraus de cada
vez, enviado por Mrs. Cucuzza para me fazer companhia enquanto eu
esperava – em vão, como veio a verificar-se – a chamada de longa distância
a informar-nos de que o meu pai e o meu irmão estavam ambos bem e não
tardariam a chegar a casa com o Seldon. Em virtude de, ao abrigo da lei
marcial, o Exército ter requisitado os serviços da Bell Telephone para uso
militar, os serviços de longa distância ainda ao dispor dos civis estavam
congestionados, e já tinham passado quarenta e oito horas desde que
soubéramos alguma coisa do meu pai.
Como a linha Newark-Hillside ficava apenas a uns duzentos metros da
nossa casa, era possível nessa noite, mesmo com as janelas fechadas,
encontrar uma certa segurança no barulho forte dos cascos dos cavalos da
polícia, enquanto subiam e desciam a ladeira da Keer Avenue, logo ao
dobrar da esquina. E quando abri a janela do meu quarto para me debruçar
para a travessa que escurecia e escutar, consegui ouvi-los, ainda que
levemente, quando chegavam a um ponto onde a Summit Avenue findava e
se tornava na Liberty Avenue de Hillside. A Liberty seguia por Hillside para
a Route 22, que prosseguia para oeste para Union e daí avançava para sul,
para o vasto desconhecido cristão daquelas vilas cujos nomes tinham um
som genuinamente anglo-saxónico, como Kenilworth, Middlesex e Scotch
Plains.
Não eram os subúrbios de Louisville, mas eram o mais longe, para oeste,
onde eu alguma vez estivera, e apesar de ser preciso atravessar mais três
condados de New Jersey só para chegar à fronteira oriental da Pensilvânia,
na noite de 15 de Outubro consegui alarmar-me a mim próprio com uma
visão de pesadelo da fúria anti-semita americana troando para leste através
do oleoduto da 22, e avançando da 22 para a Liberty Avenue, e jorrando da
Liberty Avenue directamente para a travessa da nossa Summit Avenue, e
subindo a nossa escada das traseiras como as águas de uma inundação, não
fora a vigorosa barreira oferecida pelos reluzentes flancos baios dos cavalos
da força policial de Newark, cujo vigor, velocidade e beleza o preeminente
rabi de Newark, com o nobre nome de Prinz, fizera materializar-se ao fundo
da nossa rua.
Como era de esperar, Joey não conseguia ouvir quase nada do que se
passava lá fora, e por isso deu-lhe para correr de sala para sala, espreitar por
janelas de ambos os extremos da casa para conseguir um vislumbre da
anatomia nem que fosse de um só dos cavalos – cavalos de uma
ascendência que os dotava de patas muito mais compridas, torsos
musculados muito mais esguios, crânios alongados e muito mais
requintados do que os do deselegante cavalo de trabalho que me escoiceara
na cabeça – e também para vislumbrar os polícias fardados, cada um com
duas fileiras de botões de latão a brilhar de alto a baixo da túnica justa e
assertoada e uma pistola num coldre preso no quadril.
Vários anos atrás, o meu pai levara-nos, ao Sandy e a mim, numa manhã
de domingo, ao Weequahic Park para jogarmos à malha no campo público,
e um polícia montado cavalgou através do parque em perseguição de
alguém que roubara uma carteira de senhora – um momento, em Newark,
saído da corte do rei Artur. Passaram dias antes de a excitação se dissipar e
eu conseguir deixar de me sentir emocionado com a intrepidez galante de
tudo aquilo. Recrutavam os polícias mais ágeis e atléticos para os treinarem
para polícias montados, e um miúdo pequeno podia deixar-se hipnotizar
pelo simples facto de ver um, que descia a rua com majestosa indolência,
parar para passar uma multa de estacionamento e, depois, inclinar-se na sela
e enfiar o talão debaixo do limpa-vidros do carro, um gesto físico de
magnífica condescendência, muito raro na idade da máquina. No famoso
Four Corners da cidade havia postos de patrulha montada, cada um virado
para um ponto diferente da bússola, e aos sábados eram muitos os miúdos
levados ao centro da cidade para verem os cavalos que lá estavam de
serviço, fazerem-lhes festas no focinho, darem-lhes cubinhos de açúcar e
aprenderem que cada polícia montado num cavalo valia quatro homens
apeados – e, evidentemente, fazerem as perguntas do costume aos polícias
montados, tais como: «Como se chama ele?», «O cavalo é a sério?» e «De
que é feito o pé dele?» Às vezes víamos o cavalo de um polícia preso ao
lado de uma rua movimentada do centro da cidade, muito imperturbável e
calmo sob o xairel azul e branco marcado com a insígnia NP, um animal
castrado com mais de um metro e oitenta de altura e pesando cerca de
quatrocentos e cinquenta quilos, com um bastão ameaçadoramente
comprido afivelado no flanco e um ar tão blasé como o mais esplendoroso
astro de cinema, enquanto o polícia, que acabara de desmontar, estava ali
perto, com as suas calças de montar azul-carregadas e botas pretas altas, o
pornográfico coldre de couro perfeitamente moldado no volume
congestionado dos genitais masculinos, indiferente ao perigo, no meio de
um pandemónio de carros, camionetas e autocarros e do alarido de
buzinadelas, a movimentar garbosamente os braços para restaurar o fluxo
suave do trânsito da cidade. Estes eram polícias com talento para tudo – até,
com mágoa do meu pai, para meterem a galope pelo meio de piquetes de
grevistas e fazê-los debandar – e o facto de estarem tão perto e parecerem
tão glamorosamente heróicos ajudou a reforçar os meus nervos para a
calamidade que se aproximava.
Na sala, Joey tirou o aparelho auditivo e estendeu-mo, deu-mo,
incompreensivelmente, empurrou-o para mim – o aparelho propriamente
dito, acompanhado da caixa do microfone, da bateria e de todos os seus
fios. Não sei porque se lhe meteu na cabeça que eu o quereria, sobretudo
numa noite como esta, mas ali estava a geringonça toda, aninhada nas
palmas das minhas duas mãos e, se tal era possível, com um aspecto mais
macabro do que quando ele a usava. Fiquei sem saber se esperava que o
interrogasse a respeito do aparelho, que o admirasse ou que tentasse
desmontá-lo e montá-lo de novo. Afinal, queria que o usasse.
– Põe-no – disse-me, na sua voz cava e grasnante.
– Porquê? – gritei. – Não me vai servir.
– Não serve a ninguém. Põe-no.
– Não sei como é – protestei, o mais alto que pude, e Joey prendeu a
caixa do microfone à minha camisa e enfiou a bateria na algibeira das
minhas calças e, depois de verificar todos os fios, deixou-me introduzir o
auricular moldado no ouvido. Fechei os olhos, ao fazê-lo, e fingi que era
uma concha e que nos encontrávamos na praia e ele queria que eu ouvisse o
rugido do oceano... mas tive de reprimir a náusea quando consegui colocá-
lo no devido lugar, ainda pegajosamente morno do interior do seu ouvido.
– Pronto, e agora?
Estendeu a mão e, como se se tratasse do interruptor da cadeira eléctrica e
eu fosse o Inimigo Público Número Um, girou risonhamente o mostrador
do centro da caixa do microfone.
– Não ouço nada – disse-lhe.
– Espera, eu aumento o volume do som.
– Usar esta coisa vai deixar-me surdo? – perguntei, e vi-me
simultaneamente surdo e mudo, encurralado em Elizabeth a torcer pretzels
para o resto da vida, na New Jersey Pretzel Factory.
As minhas palavras fizeram-no rir-se com gosto, embora eu não as tivesse
dito de brincadeira.
– Olha, não quero fazer isto – acrescentei. – Não agora. Sabes que estão a
passar-se lá fora muitas coisas que não são nada boas.
Mas ele estava alheio ao que não era nada bom, quer por ser católico e
não ter nada a recear, quer simplesmente por ser o irreprimível Joey.
– Sabes o que disse o aldrabão que o vendeu? O tipo nem sequer é
médico – contou Joey –, mas isso não o impediu de me impingir a treta da
experiência. – Tira o relógio do bolso, encosta-o ao meu ouvido e diz:
«Estás a ouvir o tiquetaque do relógio, Joey?», e como eu consigo ouvir um
bocadinho, ele começa a recuar e a perguntar: «E agora, consegues ouvir?»,
e eu não consigo, não consigo ouvir patavina, e por isso ele escreve uns
números numa folha de papel. Depois tira dois meios dólares da algibeira e
repete-se a mesma cena. Chocalha-os junto do meu ouvido, chocalho-os
juntos, e pergunta: «Ouves as moedas tilintar, Joey?», e depois começa a
recuar de novo e eu vejo-o a chocalhá-las, mas já não ouço nada. «A mesma
coisa», digo-lhe, e ele escreve isso. Depois olha para o que escreveu, olha
com toda a atenção, depois tira esta merda de lata de uma gaveta. Coloca-
ma, instala as peças todas, e diz ao meu pai: «Este modelo é tão bom que o
seu filho até vai ouvir a erva crescer.» – Joey recomeça a girar o mostrador
e o que eu ouvi foi água a correr para uma banheira – e eu era a banheira.
Depois ele girou-o vigorosamente... e ouvi trovoada.
– Acaba com isso! – gritei. – Já chega! – Mas o Joey estava a saltar
alegremente e, por isso, eu arranquei o auscultador da orelha e fiquei
momentaneamente baralhado, a pensar que, como se não bastasse o mayor
La Guardia estar preso, e o presidente Roosevelt estar preso, e até o rabi
Bengelsdorf estar preso, o novo rapaz do andar de baixo não ia ser mais
pêra doce do que o seu antecessor, e foi então que decidi fugir de novo. A
minha experiência com as pessoas ainda era muito pequena e não me
permitia compreender que, a longo prazo, ninguém é uma pêra doce, nem
eu próprio. Primeiro não podia suportar o Seldon, lá de baixo, e agora não
podia suportar o Joey, também lá de baixo, e por isso resolvi, sem hesitar,
fugir de ambos. Fugiria antes de o Seldon chegar, fugiria antes de os anti-
semitas chegarem, fugiria antes de o corpo de Mrs. Wishnow chegar e haver
um funeral a que teria de ir. Sob a protecção da polícia montada, fugiria
nessa mesma noite de tudo o que me perseguia e de tudo o que me odiava e
queria matar-me. Fugiria de tudo o que fizera e tudo o que não fizera e
começaria de novo como um rapaz que ninguém conhecia. E soube, de
repente, para onde fugiria: para Elizabeth, para a fábrica de pretzels. Dir-
lhes-ia, por escrito, que era surdo-mudo. Eles dar-me-iam trabalho a fazer
pretzels e eu nunca falaria e fingiria não ouvir, e ninguém descobriria quem
eu era.
– Sabes aquela do miúdo que bebeu sangue do cavalo?
– Sangue de que cavalo?
– Do cavalo do St. Peter’s. O miúdo entrou de noite na quinta e bebeu o
sangue do cavalo. Andam à procura dele.
– Andam quem?
– Os tipos. Nick. Aqueles tipos. Os tipos mais velhos.
– Quem é o Nick?
– Um dos órfãos. Tem dezoito anos. O rapaz que fez isso é judeu como tu.
Têm a certeza de que ele é judeu e vão encontrá-lo. – Mas porque é que ele
bebeu o sangue do cavalo?
– Os judeus bebem sangue.
– Não sabes do que estás a falar. Eu não bebo sangue. O Sandy não bebe
sangue. Os meus pais não bebem sangue. Ninguém que eu conheço bebe
sangue.
– Este miúdo bebe.
– Ah, sim? E como se chama ele?
– O Nick ainda não sabe. Mas andam a procurá-lo. Não te preocupes,
hão-de encontrá-lo.
– E o que farão quando o encontrarem, Joey? Bebem o sangue dele? Os
judeus não bebem sangue. Dizer isso é de malucos.
Devolvi-lhe o aparelho auditivo – pensando que podia agora acrescentar
Nick a tudo o mais de que tinha de fugir –, e pouco depois Joey recomeçou
a correr de janela para janela, a tentar ver os cavalos, até que, quando não
pôde suportar mais estar fora do alcance de um espectáculo comparável, na
sua cabeça, ao Wild West Show de Buffalo Bill chegando à cidade e
erguendo a grande tenda defronte da nossa casa, levantou-se e saiu porta
fora, e foi a última vez que o vi nessa noite. Constava haver em Newark um
cavalo da polícia que comia tabaco de mascar, como o polícia que o
montava, e que era capaz de somar algarismos batendo com a pata direita
dianteira, e mais tarde Joey afirmou que o vira ali, no nosso quarteirão, um
cavalo da 8.ª Esquadra chamado Ned, que deixava os miúdos balouçarem
suspensos da sua cauda sem os enxotar com as patas traseiras. E talvez ele
tenha visto o fabuloso Ned, talvez isso tenha feito tudo valer a pena. Mas a
verdade é que, por me ter abandonado nessa noite, por nunca mais ter
voltado, por ter sucumbido ao seu gosto pela excitação em vez de obedecer
às ordens da sua mãe, Joey foi severamente castigado quando o pai chegou
do trabalho na manhã seguinte, as suas nádegas cavalares implacavelmente
fustigadas com a correia preta tirada do relógio de ponto do guarda-noturno.
Depois de Joey sair, dei duas voltas à chave e teria ligado o rádio, para
me distrair das minhas preocupações, se não tivesse medo de que mais um
boletim especial interrompesse um programa regular e me transmitisse, a
mim que estava ali sozinho, notícias ainda mais horríveis do que as que
ouvíramos durante o dia. Não tardou muito, e comecei de novo a pensar na
fuga para a fábrica de pretzels. Lembrei-me do artigo a respeito da fábrica
que aparecera no Sunday Call, cerca de um ano antes, e que eu recortara
para levar para a escola, a fim de o usar para um trabalho que tinha de fazer
sobre uma indústria de New Jersey. O dito artigo citava o proprietário, um
tal Mr. Kuenze, como tendo desmentido a ideia, prevalecente, ao que
parecia, em todo o mundo, de que eram precisos dez anos para ensinar
alguém a fazer pretzels. «Eu posso ensiná-los da noite para o dia», declarou,
«se eles forem capazes de aprender.» Uma boa parte do artigo tinha sido a
respeito de uma controvérsia sobre a necessidade de pôr sal numa pretzel.
Mr. Kuenze alegava que o sal no exterior era desnecessário e que só o
punha «para satisfazer o mercado». O importante, dizia, era pôr sal na
massa, coisa que só ele, entre todos os fabricantes de pretzels do estado,
fazia. O artigo informava que Mr. Kuenze tinha cem empregados, uma boa
quantidade deles surdos-mudos, mas também «rapazes e raparigas que
trabalham depois da escola».
Eu sabia qual era o autocarro que passava pela fábrica de pretzels – era o
mesmo que o Earl e eu tomámos na tarde em que seguimos até casa, em
Elizabeth, o cristão que, no último momento Earl identificara como larila.
Teria de rezar para que o larila não fosse no mesmo autocarro, e se por
acaso fosse sairia e apanharia o seguinte. Precisava de ter comigo um
bilhete, um bilhete que desta vez não seria da irmã Mary Catherine, mas de
um surdo-mudo. «Caro Mr. Kuenze. Li a seu respeito no Sunday Call.
Quero aprender a fazer pretzels. Tenho a certeza de que sou capaz de
aprender da noite para o dia. Sou surdo e mudo. Sou órfão. Dá-me um
emprego?» E assinei: «Seldon Wishnow.» Por muito que me esforçasse, não
consegui lembrar-me de outro nome.
Precisava de um bilhete e precisava de roupas. Tinha de parecer a Mr.
Kuenze um miúdo em quem podia confiar, e não podia aparecer-lhe sem
roupas. E desta vez precisava de um plano, daquilo a que o meu pai
chamava «um plano de longo alcance». Ocorreu-me imediatamente: o meu
plano de longo alcance consistiria em juntar uma parte suficiente do
dinheiro que ganhasse na fábrica de pretzels para comprar um bilhete de
comboio, de ida, para Omaha, no Nebrasca, onde o padre Flanagan dirigia a
Cidade dos Rapazes. Conhecia o padre Flanagan e a Cidade dos Rapazes –
como todos os rapazes da América –, graças ao filme com Spencer Tracy,
que conquistou um prémio da Academia por representar o papel do famoso
padre e depois ter doado o seu Oscar à verdadeira Cidade dos Rapazes23.
Tinha cinco anos quando o vi com Sandy no Roosevelt, numa tarde de
sábado. O padre Flanagan tirava os rapazes da rua, alguns deles já ladrões e
pequenos bandidos, e levava-os para a sua quinta, onde eram alimentados e
vestidos, estudavam e jogavam basebol, cantavam num coro e aprendiam a
ser bons cidadãos. O padre Flanagan era pai de todos eles,
independentemente de raça ou credo. Na sua maioria, os rapazes eram
católicos e havia alguns protestantes, mas também viviam na quinta alguns
rapazes judeus necessitados – isto soube-o pelos meus pais, que, como
milhares de outras famílias americanas que tinham visto o filme e chorado,
davam uma contribuição ecuménica anual para a Cidade dos Rapazes. Não
que eu tencionasse identificar-me como judeu quando chegasse a Omaha.
Diria – falando finalmente de novo em voz alta – que não sabia o quê nem
quem era. Que não era nada nem ninguém, apenas um rapaz e nada mais, e
muito menos o culpado pela morte de Mrs. Wishnow e pela orfandade do
filho dela. A minha família que criasse esse filho como seu, de agora em
diante. Ele podia ficar com a minha cama. Podia ficar com o meu irmão.
Podia ficar com o meu futuro. Eu faria a minha vida com o padre Flanagan
no Nebrasca, que ficava ainda mais longe de Newark do que o Kentucky.
De súbito, pensei noutro nome e rescrevi o bilhete com a assinatura de
«Philip Flanagan». Depois dirigi-me para a cave, a fim de ir buscar a mala
de cartão onde escondera as roupas roubadas ao Seldon antes de fugir pela
primeira vez. Desta vez encheria a mala com as minhas próprias roupas e
levaria na algibeira o mosquete de peltre em miniatura que comprara em
Mount Vernon e usara para abrir os sobrescritos da casa dos selos, no tempo
em que ainda tinha uma colecção a sério e recebia correio. A sua baioneta
não chegava a medir dois centímetros e meio de comprimento, mas se ia
sair definitivamente de casa precisava de alguma coisa para me proteger, e a
única que tinha era um abre-cartas.
Minutos depois, ao descer a escada com uma lanterna eléctrica, encontrei
forças para evitar que as pernas se me fossem abaixo ao dar conta de que
esta era a última vez que teria de descer àquela cave e confrontar-me com a
máquina de torcer, ou com os gatos do beco, ou com os canos, ou com os
mortos. Ou com aquela parede húmida e suja que dava para a rua e na qual
o perneta Alvin esparramara uma vez a sua mágoa.
Ainda não estava frio suficiente para começarmos a queimar carvão, e
quando, do fundo da escada da cave, voltei a lanterna na direcção do vulto
cor de cinza das fornalhas apagadas, pareceram-me aquelas faustosas
criptas funerárias onde, pelo muito que hão-de ganhar com isso, os ricos e
poderosos se sepultam. Parei ali, na esperança de que o fantasma do pai de
Seldon tivesse ido ao Kentucky (talvez invisível na mala do carro do meu
pai) buscar a sua defunta mulher, mas sabendo muito bem que não fora, que
o seu papel como fantasma era ali comigo – que o seu espectral coração
fervilhava de pragas, e todas elas contra mim. «Não era minha intenção que
eles se fossem embora», murmurei. «Foi um erro. O culpado não sou
realmente eu. Não queria fazer do Seldon o alvo.»
Estava preparado, é claro, para o silêncio que envolvia inevitavelmente os
meus murmúrios suplicantes ao implacável morto, mas em vez disso ouvi
pronunciar o meu nome, em resposta – e por uma mulher! Uma mulher a
gemer o meu nome para lá das fornalhas! Morta havia horas, apenas, e já de
volta para me perseguir durante o resto da minha vida!
– Eu sei a verdade – disse ela e, ao mesmo tempo, emergindo qual
sacerdotisa oracular da Delfos da nossa arrecadação, apareceu a minha tia. –
Eles estão a perseguir-me, Philip – disse a tia Evelyn. – Eu sei a verdade, e
eles vão matar-me!

Porque ela precisava de usar a casa de banho e comer alguma coisa – e


porque eu não sabia o que havia de fazer, além de dar à minha tia aquilo de
que ela precisava –, não tive outro remédio senão levá-la para cima comigo.
Cortei uma fatia do meio pão que tinha sobrado do jantar, barrei-a com
manteiga, enchi-lhe um copo de leite e, depois de ela ter ido à casa de
banho – e de eu ter descido as persianas da cozinha para que ninguém
pudesse ver lá para dentro do outro lado do caminho –, voltou e devorou
tudo febrilmente. Tinha o casaco e a carteira no colo e continuava com o
chapéu na cabeça, e eu desejava que, assim que tivesse comido o suficiente,
se levantasse e fosse para casa, para eu poder ir buscar a mala, pôr as coisas
lá dentro e fugir, antes de a minha mãe regressar da reunião. Mas quando
ela acabou de comer começou a dar à língua, repetindo e tornando a repetir
que sabia a verdade e, por causa disso, eles iam matá-la. Informou-me de
que tinham chamado a polícia montada para descobrir onde ela se
escondera.
No silêncio que se seguiu a essa assustadora declaração – em que,
naquelas circunstâncias, quando subitamente deixou de haver quaisquer
acontecimentos previsíveis, eu fui ainda suficientemente criança para quase
acreditar –, acompanhámos o avanço audível de um único cavalo a
pavonear-se pelo quarteirão acima, a caminho da Chancellor Avenue.
– Eles sabem que estou aqui – disse ela.
– Não sabem, tia Evelyn – respondi, mas sem convicção. – Eu não sabia
que a tia estava aqui.
– Então porque foste procurar-me?
– Não fui. Ia procurar outra coisa. A polícia está lá fora – disse-lhe,
convencido de que estava a mentir deliberadamente, apesar de falar com
toda a sinceridade possível –, a polícia está lá fora por causa do anti-
semitismo. Anda a patrulhar as ruas para nos proteger.
Sorriu, com o sorriso destinado às almas crédulas.
– Conta-me outra, Philip.
A verdade é que nada do que eu sabia coincidia com nada do que
qualquer de nós estava a dizer. A sombra da sua loucura insinuou-se em
mim sem que eu compreendesse, ainda, que enquanto estava escondida na
nossa arrecadação – ou talvez mesmo antes disso, enquanto via o FBI levar
o rabi algemado –, ela perdera o juízo. A não ser, é claro, que tivesse
começado a mergulhar irremediavelmente na insanidade na noite em que
dançara com von Ribbentrop na Casa Branca. Essa viria a ser a teoria do
meu pai: que muito antes da prisão do rabi, quando Bengelsdorf surpreendia
toda a Newark judaica com a indecência das alturas a que subira na estima
do presidente, ela se abandonara à mesma credulidade que transformara o
país inteiro num manicómio: a adoração de Lindbergh e da sua concepção
do mundo.
– Quer deitar-se? – perguntei, apavorado com a ideia de que ela
respondesse que queria. – Precisa de descansar? Quer que chame o médico?
Em resposta, apertou a minha mão com tanta força que as suas unhas se
cravaram na minha carne.
– Philip, meu amor, eu sei tudo.
– Sabe o que aconteceu ao presidente Lindbergh? É isso que quer dizer?
– Onde está a tua mãe?
– Na escola. Numa reunião.
– Levas-me comida e água, meu querido rapazinho?
– Levo? Com certeza. Onde?
–À cave. Não posso beber do tanque da roupa. Alguém me descobrirá.
– Isso não será conveniente – disse eu, pensando, acto contínuo, na avó
de Joey e no feroz sopro de loucura que dimanava dela. – Eu levo-lhe tudo.
– Mas depois de prometer isto já não podia fugir.
– Tens por acaso uma maçã? – perguntou a tia Evelyn.
Abri o frigorífico.
– Não, não há maçãs. Acabaram-se. A minha mãe não tem podido fazer
muitas compras. Mas há uma pêra, tia Evelyn. Quer?
– Quero. E outra fatia de pão. Corta outra fatia de pão.
A sua voz mudava constantemente. Agora falava como se estivéssemos
apenas a preparar-nos para um piquenique, a aproveitar o que tínhamos à
mão para levarmos para Wheequahic Park e comermos à beira-lago,
debaixo de uma árvore, como se os acontecimentos do dia fossem tão
insignificantes para nós como provavelmente eram para todas as outras
pessoas da América: uma pequena contrariedade para os cristãos, se tanto.
Como havia mais de trinta milhões de famílias cristãs na América e apenas
cerca de um milhão de famílias judaicas, por que motivo, na realidade,
havia isso de as incomodar?
Cortei uma segunda fatia de pão para ela levar para a cave e barrei-a com
uma generosa camada de manteiga. Se, mais tarde, me perguntassem o que
acontecera ao pão que faltava, responderia que Joey o tinha comido, assim
como a pêra, antes de sair a correr para ver os cavalos.

Quando chegou a casa e soube que o meu pai não tinha telefonado, a
minha mãe foi incapaz de disfarçar a sua reacção. Olhou desoladamente
para o relógio da cozinha, lembrando-se talvez do que era costume fazer
àquela hora: eram horas de ir para a cama, quando tudo quanto havia a fazer
era mandar os filhos lavarem o rosto e os dentes para que o dia denso de
tarefas terminasse a contento de todos. Hoje isso eram nove horas – ou
assim fôramos levados a crer por aquela naturalidade imutável e
inteiramente convincente, que se revelava agora ter sido uma impostura.
E a rotina quotidiana da escola, seria isso também uma impostura, um
embuste astucioso perpetrado para nos acalmar com expectativas racionais
e gerar absurdos sentimentos de confiança? «Não há escola porquê?»,
perguntei, quando ela me disse que amanhã teríamos feriado. «Porque»,
respondeu a minha mãe, recorrendo à formulação insípida sugerida aos pais
para eles poderem dizer a verdade sem assustarem indevidamente os filhos,
«a situação se deteriorou mais.» «Que situação?», perguntei. «A nossa
situação.» «Porquê? O que aconteceu agora?» «Não aconteceu nada, é
apenas melhor que amanhã vocês, crianças, fiquem em casa. Onde está o
Joey? Onde está o teu amigo?» «Comeu pão, levou a pêra e foi-se embora.
Tirou a pêra do frigorífico e correu lá para fora. Foi ver os cavalos.» «E tu
tens a certeza de que ninguém telefonou?», perguntou, demasiado exausta
para ficar zangada com o Joey por a ter decepcionado num momento destes.
«Quero saber porque é que não há escola, mãe.» «Tens de saber esta noite?»
«Tenho. Porque não posso ir para a escola?» «Bem... é porque pode haver
uma guerra com o Canadá.» «Com o Canadá? Quando?» «Ninguém sabe.
Mas é melhor ficarem todos em casa até vermos o que se passa.» «Mas
porque vamos entrar em guerra com o Canadá?» «Por favor, Philip, não
aguento muito mais esta noite. Já te disse tudo o que sei. Tu insististe e eu
disse-te. Agora temos de esperar. Temos de esperar e ver o que acontece,
como toda a gente.» E depois, como se o paradeiro desconhecido do meu
pai e do meu irmão não tivessem dado livre curso às suas piores suposições
– ou seja, que nós agora éramos, como os Wishnow, apenas uma viúva e o
seu filho –, acrescentou (tentando obstinadamente obedecer ao protocolo
das nove horas): «Quero que te laves e vás para a cama.»
Para a cama – como se a cama ainda existisse como um lugar de
conchego e conforto, em vez de ser uma incubadora de pavor.
A guerra com o Canadá representava muito menos um enigma, para mim,
do que aquilo que a tia Evelyn iria usar como retrete durante a noite. Tanto
quanto podia entender, os Estados Unidos iam finalmente entrar numa
guerra mundial, não ao lado da Inglaterra e da Comunidade Britânica, que
toda a gente esperara que apoiássemos enquanto FDR foi presidente, mas
ao lado de Hitler e dos aliados de Hitler, a Itália e o Japão. Além disso,
tinham passado dois dias inteiros desde que tivéramos notícias do meu pai e
do Sandy e nada nos dizia que não tinham sido mortos tão horrivelmente
como a mãe do Seldon pelos desordeiros anti-semitas; e amanhã também
não haveria escola, o que me levava a pensar que talvez nunca mais
voltasse a haver escola se o presidente Wheeler ia impor-nos agora as leis
que sabíamos terem sido impostas pelos nazis às crianças judias da
Alemanha. Uma catástrofe política de proporções inimagináveis estava a
transformar uma sociedade livre num estado policial, mas uma criança é
uma criança, e a única coisa em que eu conseguia pensar, na minha cama,
era que, quando chegasse a altura de despejar os seus intestinos, a tia
Evelyn teria de o fazer no chão da nossa arrecadação. Este era o
incontrolável acontecimento que pesava sobre mim em lugar de tudo o
mais, que se avantajava sobre mim como a materialização de tudo o mais e
que apagava tudo o mais. O perigo mais insignificante de todos, mas que
atingiu dimensões tão importantes que, cerca da meia-noite, fui em bicos de
pés à casa de banho e, na parte de trás da prateleira das toalhas, no fundo do
armário, encontrei o bacio que compráramos para o Alvin usar numa
emergência, quando ele regressara do Canadá. Já me encontrava na porta
das traseiras, e pronto para descer e levar o bacio à tia Evelyn, quando a
minha mãe me confrontou, em camisa de dormir, apavorada com a imagem
que eu apresentava de um rapazinho tão apavorado que estava a perder o
juízo.
Minutos depois, a tia Evelyn subia a escada, conduzida pela minha mãe, e
entrava em nossa casa. Não é necessário descrever a agitação que isto
causou no lar dos Cuccuza nem a reacção antagonista à figura assustadora
da minha tia por parte da figura assustadora que era a avó do Joey – o gume
burlesco do sofrimento é familiar a toda a gente. Fui mandado dormir na
cama dos meus pais, e a minha mãe e a tia Evelyn ocuparam o meu quarto,
onde a grande tarefa seguinte da minha mãe foi impedir a irmã de se
levantar da cama do Sandy, esgueirar-se para a cozinha para ligar o gás e
matar-nos a todos.

A viagem de ida e volta de dois mil e quinhentos quilómetros foi a grande


aventura da vida de Sandy. Para o meu pai, foi algo mais fatídico. O seu
Guadalcanal, suponho, a sua Batalha do Bulge24. Aos quarenta e um anos,
era demasiado velho para ser recrutado quando, nesse Dezembro, com a
política de Lindbergh desacreditada, Wheeler caído em desgraça e
Roosevelt de novo na Casa Branca, a América entrou finalmente na guerra
contra as potências do Eixo, portanto isto foi o mais perto que alguma vez
estaria do medo, da fadiga e do sofrimento físico dos soldados da linha da
frente. Com a sua coleira alta de aço, a braços com duas costelas partidas e
um ferimento facial suturado e com a boca cheia de dentes partidos – e com
a pistola extra de Mr. Cucuzza no compartimento das luvas, para se
proteger de pessoas que já tinham assassinado cento e vinte e dois judeus
naquelas mesmas zonas do país em cuja direcção o carro seguia –, conduziu
os cerca de mil duzentos e cinquenta quilómetros para o Kentucky, parando
apenas para meter gasolina e ir à casa de banho. Depois de dormir cinco
horas e de comer alguma coisa em casa dos Mawhinney, deu a volta e
iniciou a viagem de regresso, desta vez com uma dolorosa infecção a
alastrar ao longo da sutura e com Seldon, enjoado e febril no banco de trás,
com alucinações a respeito da mãe e quase a fazer truques de magia para
tentar trazê-la de volta.
A viagem de ida demorara apenas pouco mais de vinte e quatro horas,
mas a de volta demorou o triplo, por causa das muitas vezes que tiveram de
parar para Seldon vomitar na beira da estrada ou baixar as calças e agachar-
se numa vala, e porque, num raio de apenas quarenta quilómetros de
Charleston, Virgínia Ocidental (onde andaram em círculos,
irremediavelmente perdidos, em vez de seguirem para norte e leste na
direcção de Maryland), o carro se foi abaixo em seis ocasiões diferentes e
em pouco mais de um dia: uma vez, no meio de carris de via-férrea, cabos
eléctricos e poleias maciças, em Alloy, uma aldeia de duzentas almas onde
enormes montes de minério e sílica cercavam os edifícios da fábrica da
Electro-Metallurgical Company; outra, na cidadezinha próxima de Boomer,
onde as chamas dos fornos de carvão de coque chegavam tão alto que o
meu pai, parado depois do pôr do Sol no meio da rua sem iluminação, podia
ler (ou tresler) o mapa rodoviário à sua incandescência; outra, em Belle,
mais um daqueles minúsculos e diabólicos lugarejos industriais, onde os
vapores da fábrica de amoníaco Du Pont quase os deixaram sem sentidos
quando saíram do carro para levantar a capota e tentarem perceber o que
estava errado; outra, no Sul de Charleston, a cidade que pareceu «um
monstro» a Seldon, por causa do vapor e do fumo que subiam em
redemoinho dos cais de carga, dos armazéns e dos compridos telhados
escuros de fábricas enegrecidas de fuligem, e mais duas vezes logo nos
arredores da capital do estado, Charleston. Aí, cerca da meia-noite e para
chamar um reboque, o meu pai teve de atravessar a pé um aterro ferroviário
e depois de descer uma colina de ferro-velho até uma ponte que atravessava
um rio ladeado de barcaças de carvão e de dragagem e de rebocadores, para
chegar a uma casa com telefone público na frente ribeirinha, tendo deixado
os dois rapazes sozinhos no carro, na estrada do outro lado do rio, perto de
uma fábrica que era uma selva interminável: barracas e barracões,
construções de chapa de ferro e vagões de carvão abertos, guindastes,
diques de carregamento e torres de armações de aço, fornos eléctricos e
forjas tonitruantes, tanques baixos de armazenamento e cercas altas contra
os ciclones – uma fábrica que era, a acreditar no letreiro do tamanho de um
painel de anúncios, «O Maior Fabricante de Machados, Machadinhas e
Foices».
Aquela fábrica inçada de lâminas afiadas desfechou o golpe final no
pouco que restava do equilíbrio de Seldon: pela manhã, estava a gritar que
ia ser escalpado pelos índios. E, curiosamente, havia uma certa lógica nas
suas palavras: era possível estabelecer uma analogia, mesmo não estando
delirante, com os colonos brancos não convidados que primeiramente se
tinham infiltrado, pela barreira alpalachiana, nos territórios de caça
favoritos das tribos dos Delaware e dos Algonquinos, com a diferença de
que, em vez dos brancos desconhecidos e de aspecto estranho que tinham
afrontado os habitantes locais com a sua rapacidade, estes eram judeus
desconhecidos de aspecto estranho, cuja mera presença os tornava irritantes.
Desta vez, porém, aqueles que defendiam violentamente as suas terras da
usurpação e o seu modo de vida da destruição não eram índios chefiados
pelo grande Tecumseh, mas probos cidadãos americanos cristãos acirrados
pelo presidente interino dos Estados Unidos.
Estávamos, então, a 15 de Outubro – na exacta quinta-feira em que o
mayor La Guardia foi preso em Nova Iorque, em que a primeira-dama foi
encarcerada no Walter Reed, em que FDR foi «detido» juntamente com os
«Judeus de Roosevelt» que alegadamente tinham engendrado o rapto de
Lindbergh père, em que o rabi Bengelsdorf foi preso em Washington e a tia
Evelyn ficou destroçada na nossa arrecadação. Nesse mesmo dia, o meu pai
e Sandy procuravam nas montanhas da Virgínia Ocidental um médico
licenciado (em oposição a um barbeiro licenciado, que já oferecera os seus
préstimos), para tentar convencê-lo a dar a Seldon qualquer coisa que o
acalmasse. O homem que encontraram numa estrada rural de terra batida
tinha mais de setenta anos e tresandava a whisky, era um bom, amável e
activo «Doc» que dirigia uma clínica provinciana a partir de uma pequena
casa de madeira onde os pacientes, que faziam bicha à espera da sua vez no
alpendre da frente, eram, segundo Sandy me descreveu, a tropa fandanga
branca mais andrajosa que alguma vez vira. O médico calculou que o
delírio de Seldon se devia sobretudo a desidratação e decretou que ele
passasse uma hora a beber concha após concha de água do poço que havia
perto do leito da enseada, atrás da casa. Drenou também o pus do rosto
infectado do meu pai, para impedir uma septicemia, coisa que naquele
tempo, quando os antibióticos tinham acabado de ser descobertos e ainda
não estavam largamente disponíveis, poderia alastrar a todo o seu corpo e
matá-lo antes de chegar a casa. O velhote demonstrou menos talento a
suturar de novo a ferida do que a diagnosticar a incipiente septicemia, em
consequência do que, durante o resto dos seus dias, o meu pai deu a
impressão de ostentar uma cicatriz de duelo, adquirida quando era estudante
em Heidelberga. Depois pareceu não simplesmente um sinal das
contingências daquela viagem, mas, para mim, a marca do seu insano
estoicismo. Quando, finalmente, chegou a Newark estava tão debilitado
pela febre e pelos arrepios – e por uma tosse violenta não menos alarmante
do que a de Mr. Wishnow – que Mr. Cucuzza o levou directamente da nossa
cozinha, onde ele desmaiara à mesa do jantar, de novo para o Beth Israel
Hospital, onde por pouco não morreu de pneumonia. Mas não havia nada
que o fizesse parar enquanto Seldon não estivesse em segurança. O meu pai
era um salvador e os órfãos eram a sua especialidade. Perder os pais e ficar
órfão era uma mudança ainda maior do que ter de ir morar para Union ou
partir para o Kentucky. Vejam, dizia-nos, o que aconteceu ao Alvin.
Víssemos o que acontecera à sua cunhada depois de a nossa avó ter
morrido. Ninguém devia ficar sem mãe e sem pai. As pessoas sem mãe e
sem pai são vulneráveis a manipulações, a influências – ficamos sem raízes
e vulneráveis a tudo.
Sandy, entretanto, empoleirou-se no gradeamento do alpendre da frente
da clínica a desenhar os doentes, um dos quais era uma rapariga de treze
anos chamada Cecile. Estes foram os anos em que o meu precoce irmão foi
três rapazes diferentes num espaço de vinte e quatro meses, os anos em que,
apesar de toda a sua imperturbabilidade, podia dar a impressão de não fazer
nada de satisfatório, mesmo quando se distinguia: os meus pais não
gostaram quando ele foi trabalhar para Lindbergh e se tornou o menino-
prodígio em oratória e a principal autoridade de New Jersey na questão da
cultura de tabaco; não gostaram quando ele trocou Lindbergh pelas
raparigas e se tornou, da noite para o dia, o mais jovem Don Juan do bairro,
e agora, depois de se ter oferecido para conduzir o meu pai num quarto da
travessia do continente até à quinta dos Mawhinney – e de esperar, com
uma demonstração de genuína coragem, reconquistar o seu prestígio de
irmão mais velho e reentrar na família de que fora desligado, subverteu
virtualmente a sua causa com um entretenimento que lhe devia ter parecido
completamente inofensivo, por ser «artístico»: desenhar a núbil Cecile.
Quando o meu pai, com um novo penso a cobrir-lhe a face, saiu do
consultório do médico e viu o que ele estava a fazer, agarrou-o pelo cinto
das calças e arrastou-o, com o caderno de esboços e tudo, para fora do lado
do alpendre, na direcção da estrada e do carro. «Endoideceste?», perguntou-
lhe, num sussurro, olhando-o furiosamente por cima da coleira ortopédica.
«Deste em maluco, para a desenhares?» «É só o rosto», tentou Sandy
explicar, apertando o caderno de esboços ao peito – e mentindo. «Não me
interessa o que é! Nunca ouviste falar de Leo Frank? Nunca ouviste falar do
judeu que lincharam na Georgia por causa daquela rapariguinha da fábrica?
Pára de a desenhar, com os diabos! Pára de desenhar qualquer delas! Esta
gente não gosta de ser desenhada, não és capaz de compreender isso?
Viemos ao Kentucky buscar este rapaz, porque eles lhe queimaram a mãe
dentro do automóvel! Com a breca, guarda essas coisas de desenhar e não
desenhes mais raparigas!»
Finalmente de novo na estrada, não faziam a mínima ideia de que
Filadélfia (aonde o meu pai esperava chegar ao alvorecer do dia 17) tinha
sido ocupada por tanques e tropas do Exército dos Estados Unidos, e o meu
pai também não sabia que o tio Monty, indiferente às súplicas da minha
mãe e insensível a todas as atribulações além das suas, o despedira por não
ter comparecido ao trabalho pela segunda semana consecutiva. O meu pai
escolhe a resistência, o rabi Bengelsdorf escolhe a colaboração e o tio
Monty escolhe-se a si mesmo.
Para chegarem a Boyle County e à propriedade dos Mawhinney, tinham
viajado diagonalmente para sul, atravessando New Jersey para Camden,
atravessando o Delaware para Filadélfia, seguindo para sul e daí para
Baltimore, para oeste e sul, atravessando ao comprido a Virgínia Ocidental
e depois rumo ao Kentucky até, cerca de cento e sessenta quilómetros
adiante, chegarem a Lexington e, perto de um lugar chamado Versailles,
virarem de novo para sul, para as colinas ondulantes de Boyle County. A
minha mãe acompanhou a sua viagem pelo mapa dobrado da minha
enciclopédia, com os quarenta e oito estados e as províncias canadianas,
que abriu em cima da mesa da sala de jantar para poder olhá-lo sempre que
a ansiedade se apoderava dela, enquanto, na estrada, Sandy, munido de uma
lanterna eléctrica para as horas de escuridão, traçava o percurso deles num
mapa rodoviário da Esso e se mantinha atento a indivíduos de aspecto
suspeito, sobretudo quando passavam por alguma soturna pequena cidade
de uma só rua cujo nome nem sequer constava do mapa. Excluindo as seis
vezes em que o carro se avariou na viagem de regresso, Sandy contou pelo
menos outras seis na Virgínia Ocidental, quando o meu pai – a quem não
agradara o aspecto de uma camioneta em mau estado que vinha atrás deles,
nem o das pickups estacionadas ao acaso nas imediações de algum saloon
da beira da estrada, nem o do rapaz de fato-macaco da bomba de gasolina
que os abastecera de combustível, observara a frente do carro e depois
cuspira para o chão quando recebera o dinheiro – lhe pedira que abrisse o
compartimento das luvas e lhe passasse a pistola sobresselente de Mr.
Cucuzza, para a levar no colo enquanto conduzia, e dando sempre a
impressão de que, apesar de nunca ter dado um tiro na sua vida, não
hesitaria em premir o gatilho, se tivesse de ser.
Sandy, que quando chegou a casa desenhou de memória a obra-prima da
sua mocidade – a história ilustrada da sua grande descida ao duro mundo
americano –, admitiu que estivera assustado quase o tempo todo: estivera
assustado quando atravessavam cidades onde homens do Ku Klux Klan
estavam com certeza à espreita de qualquer judeu suficientemente temerário
para passar por ali, mas não o estivera menos quando estavam longe das
ominosas cidades, dos cartazes desbotados, das minúsculas estações de
serviço e da última das barracas onde os mais pobres, com as roupas no fio,
viviam – barracas de madeira em ruínas que Sandy reproduzia
meticulosamente, escoradas nos quatro cantos por pedras fragilmente
empilhadas, com buracos abertos a servir de janelas e uma chaminé
toscamente construída a desmoronar-se num lado e, no telhado escalavrado
pelo tempo, algumas pedras dispersas a manter no lugar as telhas soltas –, e
naquilo a que o meu pai chamava «os ermos». Sentira-se assustado, disse
Sandy, ao passar velozmente pelas vacas, pelos cavalos, pelos celeiros e
pelos silos sem outro carro à vista, assustado ao fazer curvas fechadas nas
montanhas sem, sequer, uma lomba ou um parapeito de segurança no lado
da estrada, e assustado quando a estrada pavimentada passava a gravilha e a
floresta se fechava à volta deles como se fossem Lewis e Clark. E
assustado, sobretudo, porque o nosso carro não tinha rádio e eles não
sabiam se a matança de judeus parara ou se estariam a dirigir-se
precisamente para o centro da fúria assassina do país contra pessoas como
nós.
Aparentemente, o único interlúdio que não assustara o meu irmão fora o
que tanto assustara o meu pai na frente da casa do médico: Sandy a
desenhar um retrato da rapariga da montanha da Virgínia Ocidental cujo
aspecto o deixara claramente agitado. Como veio a verificar-se, ela tinha
exactamente a mesma idade da «rapariguinha da fábrica» (como todo o país
veio a conhecê-la) assassinada em Atlanta, cerca de trinta anos antes, pelo
seu supervisor judeu, um homem de negócios casado, de vinte e nove anos,
chamado Leo Frank. O famoso caso de 1913, da pobre Mary Phagan –
encontrada morta com um nó corredio à volta do pescoço no chão da cave
da fábrica de lápis, depois de ter ido ao escritório de Frank no dia do
assassínio buscar o sobrescrito com o seu salário – viera em todas as
primeiras páginas, no Norte e no Sul, mais ou menos na altura em que o
meu pai, um impressionável rapaz de doze anos que saíra recentemente da
escola para ajudar a sustentar a família, trabalhava numa fábrica de chapéus
em East Orange, onde adquiriu uma instrução de primeira categoria no
libelo trivial que o ligava indissociavelmente aos crucificadores de Cristo.
Depois da condenação de Frank (com base em provas circunstanciais não
inteiramente sólidas e hoje praticamente desacreditadas), um colega de
prisão tornou-se um herói em todo o estado ao cortar-lhe a garganta e quase
o matar. Um mês depois, uma turba de linchamento, composta por cidadãos
respeitáveis, acabou o trabalho quando raptou Frank da sua cela e – para
grande satisfação dos colegas de trabalho do meu pai – «enforcou o
sodomita» numa árvore em Marietta, Jórgia (a cidade natal de Mary
Phagan), como aviso público a outros «libertinos judeus» para se afastarem
o mais possível do Sul e das suas mulheres.
O caso de Frank foi, sem dúvida, apenas uma parte da história que
alimentou o sentimento de perigo do meu pai na Virgínia Ocidental rural, na
tarde de 15 de Outubro de 1942. Remonta tudo a muito antes disso.

Foi desta maneira que Seldon foi morar connosco. Depois do regresso dos
três, em segurança, do Kentucky a Newark, Sandy mudou-se para a
marquise, e Seldon ocupou o lugar deixado vago por Alvin e pela tia Evelyn
na cama gémea ao lado da minha, na qualidade de pessoa destroçada pelas
cruéis indignidades da América de Lindbergh. Desta vez, não havia nenhum
coto para eu tratar. O próprio rapaz era o coto e, até o levarem para ir viver
com a irmã casada da sua mãe em Brooklyn, dez meses depois, eu fui a
prótese.
23 O título do filme é Boys Town, em inglês, e em Portugal intitulou-se Homens de amanhã (NT).

24 Mais conhecida por Ofensiva das Ardenas, da Segunda Guerra Mundial (NT).
Post-scriptum

Nota para o Leitor


Uma Cronologia Verdadeira das Figuras Importantes
Outras Figuras Históricas da Obra
Alguma Documentação
Nota para o Leitor

A Conspiração contra a América é uma obra de ficção. Este post-


scriptum destina-se a servir de referência a leitores interessados em situar
onde o facto histórico termina e a fantasia histórica começa. Os factos
apresentados abaixo foram colhidos nas seguintes fontes: John Thomas
Anderson, Senator Burton K. Wheeler and United States Foreign Relations
(dissertação apresentada ao corpo docente licenciado, Universidade de
Virgínia), 1982; Neil Baldwin, Henri Ford and the Jews: The Mass
Production of Hate, 2001; A. Scott Berg, Lindbergh, 1998; Biography
Resource Center, Newark News e Newark Star-Ledger; Allen Bodner, When
Boxing Was a Jewish Sport, 1997; William Bridgwater e Seymour Kurts,
orgs., The Columbia Encyclopedia, 1963; James MacGregor Burns,
Roosevelt: The Soldier of Freedom, 1970, e Roosevelt: The Lion and the
Fox, 1984; Wayne S. Cole, America First: The Battle Against Intervention,
1940-41, 1953; Sander A. Diamond, The Nazi Movement in the United
States, 1924-1941, 1974; John Drexel, org., The Facts on File Encyclopedia
of the Twentieth Century, 1991; Henry Ford, The International Jew: The
World’s Foremost Problem, vol. 3, Jewish Influences in American Life,
1920-1992; Neal Gabler, Winchell: Gossip, Power, and the Culture of
Celebrity, 1944; Gale Group Publishing, Contemporary Authors, vol. 182,
2000; John A. Garraty e Mark C. Carnes, orgs., American National
Biography, 1999; Susan Hertog, Anne Morrow Lindbergh: Her Life, 1999;
Richard Hofstadter e Beatrice K. Holfstadter. orgs., Great Issues in
American History: From Reconstruction to the Present Day, 1864-1981,
vol. 3, 1982; Joseph G. E. Hopkins, org., Dictionary of American
Biography, suplementos 3-9, 1974-1994; Joseph K. Howard, «The Decline
and Fall of Burton K. Wheeler», Harper’s Magazine, Março de 1974:
Harold L. Ickes, The Secret Diary of Harold L. Ickes, 1939-1941, 1974;
Thomas Kessner, Fiorello H. La Guardia and the Making of Modern New
York, 1989; Herman Klurfeld, Winchell: His Life and Times, 1976; Anne
Morrow Lindbergh, The Wave of the Furnace: A Confession of Faith, 1940;
Albert S. Lindemann, The Jew Accused: Three Anti-Semitic Affairs
(Dreyfus, Beilis, Frank), 1894-1915, 1991; Arthur Mann, La Guardia: A
Fighter Against His Times, 1882-1933, 1959; Samuel Eliot Morison e
Henry Steele Commager, The Growth of the American Republic, vol.2,
1962; Charles Moritz, org., Current Biography Yearbook, 1988, 1988; John
Morrison e Catherine Wright Morrison, Mavericks: the Lives and Battles of
Montana’s Political Legends, 1997; Random House Dictionary of the
English Language, 1983; Arthur M. Schlesinger, Jr., The Coming of the
New Deal, 1933-1935, 1958, e The Politics of Upheaval, 1935-1936, 1960
(vols. 2 e 3 de The Age of Roosevelt); Peter Teed, A Dictionary of
Twentieth-Century History, 1914-1990, 1992; Walter Yust, org., Britannica
Book of the Year Omnibus, 1937-1942, e Britannica Book of the Year, 1943;
Ben D. Zevin, org., Nothing to Fear: The Selected Addresses of Franklin D.
Roosevelt, 1932-1945, 1961.

Uma Cronologia Verdadeira das Figuras Importantes

FRANKLIN DELANO ROOSEVELT


1882-1945

NOVEMBRO DE 1920. Depois de servir como secretário-adjunto da


Marinha no Governo de Wilson, Roosevelt candidata-se como vice-
presidente da lista democrata com o governador James M. Cox do Ohio; os
Democratas foram derrotados pela vitória esmagadora de Harding.
AGOSTO DE 1921. Atacado pela poliomielite, que o deixa muito
incapacitado para o resto da vida.
NOVEMBRO DE 1928. Eleito para o primeiro de dois mandatos de dois
anos como governador de Nova Iorque, enquanto a lista nacional,
encabeçada pelo ex-governador Alfred E. Smith, perde a favor de Herbert
Hoover. Como governador, Roosevelt afirma-se fortemente como liberal
progressista, defensor de ajuda governamental a vítimas da Depressão,
incluindo seguro de desemprego, e inimigo da Proibição. Depois da vitória
esmagadora de 1930 para o cargo de governador, torna-se cabeça de lista
democrata para as eleições presidenciais.
JULHO-NOVEMBRO DE 1932. Escolhido como candidato presidencial
pela convenção democrata de Julho; em Novembro, derrota o presidente
Hoover com 57,4 por cento dos votos e os Democratas conquistam ambas
as câmaras do Congresso.
MARÇO DE 1933. Empossado como presidente em 4 de Março; com a
nação paralisada pela Depressão, proclama, no discurso de posse, que «a
única coisa de que temos de ter medo é do próprio medo». Propõe
rapidamente legislação de recuperação do New Deal para a agricultura, a
indústria, o trabalho e os negócios, e programas de auxílio a detentores de
hipotecas e aos desempregados. Fazem parte do gabinete Harold L. Ickes,
secretário do Interior; Henry A. Wallace, secretário da Agricultura; Frances
Perkins – a primeira mulher de sempre a ser nomeada para um governo –,
secretária do Trabalho, e Henry Morgenthau, Jr. – o segundo judeu de
sempre a ser membro de um governo –, secretário do Tesouro (para
substituir o secretário doente, William Woodin, em 17 de Novembro de
1933). Inicia breves emissões radiofónicas a partir da Casa Branca,
conhecidas como Conversas à Lareira, e convida repórteres para
conferências de imprensa informativas.
NOVEMBRO DE 1933-DEZEMBRO DE 1934. Reconhece a União
Soviética e começa em breve a reconstruir a Esquadra dos E.U., em parte
devido às actividades japonesas no Extremo Oriente. Em 1934, eleitores
negros tinham transferido a lealdade política do Partido Republicano de
Lincoln para o Partido Democrático de Roosevelt, como reacção aos
programas do presidente a favor dos desprivilegiados.
1935. Explosão de iniciativas reformadoras. referidas como «segundo
New Deal», têm como consequência o Social Security Act e o National
Labor Relations Act, assim com a WPA (Works Progress Administration),
que emprega dois milhões de trabalhadores por mês. Assina a primeira de
várias medidas de neutralidade como reacção à instável situação europeia.
NOVEMBRO DE 1936. Derrota o governador republicano do Kansas
Alfred M. Landon, ganhando todos os estados com excepção do Maine e de
Vermont. Os democratas alargam a maioria no Congresso. No discurso de
posse, afirma: «Eis um desafio para a nossa democracia... vejo um terço da
população mal alojada, mal vestida e mal alimentada.» Em 1937 a
recuperação económica está em marcha, mas segue-se a crise económica
que, aliada à agitação laboral, conduz a vitórias republicanas no Congresso
em 1938.
SETEMBRO-NOVEMBRO DE 1938. Apreensivo com as intenções de
Hitler na Europa, apela ao líder nazi para aceitar um acordo negociado na
disputa com a Checoslováquia. Na Conferência de Munique de 30 de
Setembro, a Grã-Bretanha e a França capitulam perante a reivindicação
alemã dos Sudetas Checos e do desmembramento da Checoslováquia;
tropas alemãs conduzidas por Hitler entram em Outubro (e, cinco meses
depois, conquistam o país inteiro, concedendo a independência à
Eslováquia como república fascista apoiada pela Alemanha). Em
Novembro, Roosevelt ordena um enorme aumento da produção de aviões
de combate.
ABRIL DE 1939. Pede a Hitler e Mussolini que durante um período de
dez anos se coíbam de atacar nações europeias mais fracas; Hitler responde
num discurso no Reichstag, escarnecendo de Roosevelt e gabando-se do
poderio militar germânico.
AGOSTO-SETEMBRO DE 1939. Telegrafa a Hitler pedindo-lhe para
negociar um acordo com a Polónia sobre a disputa territorial: Hitler
responde invadindo a Polónia em 1 de Setembro. A Inglaterra e a França
declaram guerra a Hitler e começa a Segunda Guerra Mundial.
SETEMBRO DE 1939. A guerra na Europa leva Roosevelt a procurar
mudanças no Neutrality Act que permitam à Grã-Bretanha e à França obter
armas dos EUA. Quando Hitler invade a Dinamarca, a Noruega, a Bélgica,
a Holanda, o Luxemburgo e a França na primeira metade do ano de 1940,
Roosevelt aumenta significativamente a produção de armas americana.
MAIO DE 1940. Cria o Conselho de Defesa Nacional e, mais tarde, o
Gabinete de Gestão de Produção, a fim de preparar a indústria e as forças
armadas para uma possível guerra.
SETEMBRO DE 1940. O Japão, em guerra com a China e tendo invadido
a Indochina Francesa (e anexado já a Coreia em 1910 e ocupado a
Manchúria em 1931), assina uma aliança tripartida com a Itália e a
Alemanha em Berlim. A instâncias de Roosevelt, o Congresso aprova a
primeira proposta de lei de recrutamento da história dos EUA em tempo de
paz, exigindo que todos os homens com idade entre os vinte e um e os trinta
e cinco anos se inscrevam para recrutamento e preparando a entrada nos
serviços armados de 800 000 recrutados.
NOVEMBRO DE 1940. Denunciado por republicanos da ala direita
como «fomentador de guerra», e fazendo campanha como inimigo confesso
de Hitler e do fascismo empenhado em fazer tudo quanto fosse possível
para manter a América fora da guerra europeia, Roosevelt conquista um
terceiro mandato sem precedentes, por 449 contra 82 votos eleitorais,
derrotando o republicano Wendell L. Wilkie numas eleições em que a
defesa nacional e a relação dos EUA com a guerra são questões
importantes: Wilkie ganha apenas no Maine, no Vermont e no isolacionista
Midwest.
JANEIRO-MARÇO DE 1941. Empossado em 20 de Janeiro. Em Março,
o Congresso aprova o seu Lend-Lease Act (Lei de Empréstimo e
Arrendamento), autorizando o presidente a «vender, transferir, emprestar,
alugar» armamentos, alimentos e serviços a países cuja defesa considere
vital para a defesa dos EUA.
ABRIL-JUNHO DE 1941. Após o exército alemão ter invadido a
Jugoslávia e depois a Grécia, Hitler rompe o pacto conjunto de não-
agressão e invade a Rússia. Em Abril, os EUA tomam a Gronelândia sob a
sua protecção; em Junho, Roosevelt autoriza o desembarque de forças dos
EUA na Islândia e alarga o Lend-Lease Act à Rússia.
AGOSTO DE 1941. Num encontro no mar, Roosevelt e Churchill
redigem a Carta do Atlântico de «princípios comuns», contendo uma
declaração de oito pontos de objectivos de paz.
SETEMBRO DE 1941. Anuncia que a Marinha recebeu ordens para
destruir quaisquer submarinos alemães ou italianos que entrem em águas
americanas e ameacem a defesa dos EUA; pede ao Japão que inicie a
evacuação da China e da Indochina, mas o ministro da guerra, general Tojo,
recusa.
OUTUBRO DE 1941. Pede ao Congresso que emende o Neutrality Act, a
fim de autorizar o armamento de navios mercantes americanos e lhes
permitir entrar em zonas de combate.
NOVEMBRO DE 1941. Maciça força de ataque japonesa reúne-se
secretamente no Pacífico, enquanto as negociações com os EUA sobre
assuntos militares e económicos parecem continuar com a chegada aos
EUA de enviados japoneses para «conversações de paz».
DEZEMBRO DE 1941. O Japão desencadeia ataque de surpresa sobre
colónias dos EUA no Pacífico e colónias da Grã-Bretanha no Extremo
Oriente; após discurso de emergência do presidente, no dia seguinte o
Congresso declara unanimemente guerra ao Japão. No dia 11 de Dezembro,
a Alemanha e a Itália declaram guerra aos EUA; em resposta, o Congresso
declara guerra à Alemanha e à Itália (número de baixas causado pelo ataque
japonês a Pearl Harbor: dois mil quatrocentos e três marinheiros, soldados,
fuzileiros navais e civis americanos mortos; mil cento e setenta e oito
feridos).
1942. A direcção do esforço de guerra ocupa quase exclusivamente o
presidente. Na sua mensagem anual ao Congresso, frisa o aumento da
produção de guerra, declara que «os nossos objectivos são claros: esmagar
o militarismo imposto pelos senhores da guerra aos seus povos
escravizados». Propõe um orçamento recorde de $58 927 000 000 para
fazer frente às despesas de guerra. Juntamente com Churchill, anuncia a
criação de um comando militar unificado no Sudeste Asiático. Da
conferência com Churchill sobre estratégia, em Junho, resulta a invasão, em
Novembro, do Norte de África francês por tropas aliadas sob o comando do
general Dwight D. Eisenhower (exército alemão repelido de África sete
meses depois); o presidente assegura à França, a Portugal e à Espanha que
os Aliados não têm quaisquer desígnios sobre os seus territórios. Em Julho
pede ao Congresso que reconheça a existência de estado de guerra contra
regimes fascistas da Roménia, Bulgária e Hungria, aliados das potências do
Eixo. Em Junho nomeia comissão para julgar oito sabotadores nazis presos
por agentes federais depois de desembarcarem de submarino inimigo em
costas dos EUA; como consequência do julgamento secreto, dois ficam
prisioneiros e seis são executados em Washington. Em Setembro, o
emissário presidencial Wendell Wilkie é recebido por Estaline em Moscovo,
onde insiste na necessidade de uma segunda frente militar na Europa
Oriental. Em Outubro, o presidente faz uma visita secreta de duas semanas
a instalações de produção de guerra e anuncia que os objectivos estão a ser
conseguidos. Pede ao Congresso que alargue o recrutamento às idades de
dezoito e dezanove anos.
JANEIRO DE 1943-AGOSTO DE 1945. A guerra na Europa (e a
concomitante chacina ordenada por Hitler de judeus europeus e
expropriação dos seus bens) dura até 1945. Em Abril, Mussolini é
executado por guerrilheiros italianos e a Itália rende-se. A Alemanha rende-
se incondicionalmente em 7 de Maio, uma semana depois do suicídio de
Adolf Hitler no seu bunker em Berlim, e menos de um mês depois da morte
súbita, de hemorragia cerebral, do presidente Roosevelt – então no primeiro
ano de um quarto mandato presidencial – e de o seu sucessor, o vice-
presidente Harry S. Truman, ter prestado juramento. A guerra termina no
Extremo Oriente quando o Japão se rende incondicionalmente em 14 de
Agosto. Estava terminada a Segunda Guerra Mundial.

CHARLES A. LINDBERGH
1902-1974

MAIO DE 1927. Charles A. Lindbergh, nascido no Minnesota e piloto


acrobático e de correio aéreo, pilota o Spirit of St. Louis de Nova Iorque
para Paris em trinta e três horas e trinta minutos. O facto de ter concluído o
seu primeiro voo transatlântico a solo e sem escala faz dele uma celebridade
mundial. O presidente Coolidge condecora-o com a Cruz de Voo Distinto e
integra-o como coronel na reserva do Corpo de Aviação do Exército dos
Estados Unidos.
MAIO DE 1929. Lindbergh casa com Anne Morrow, de vinte e três anos,
filha do embaixador dos EUA no México.
JUNHO DE 1930. Nasce em New Jersey Charles A. Lindbergh, Jr., filho
de Charles e Anne Lindbergh.
MARÇO-MAIO DE 1932. Charles Jr. é raptado na nova casa isolada da
família, com cerca de cento e setenta e cinco hectares, na Hopewell rural,
New Jersey; umas dez semanas depois, é descoberto por acaso numa mata
próxima o cadáver em decomposição do bebé.
SETEMBRO DE 1934-MARÇO DE 1935. Um carpinteiro imigrante
alemão, pobre e ex-presidiário, Bruno R. Hauptmann, é preso no Bronx,
Nova Iorque, pelo rapto e assassínio do bebé Lindbergh. O julgamento de
seis semanas em Flemington, New Jersey, é caracterizado pela imprensa
como o «julgamento do século». Considerado culpado, Hauptmann é
executado na cadeira eléctrica em Abril de 1936.
ABRIL DE 1935. Anne Morrow Lindbergh publica o primeiro livro,
North to Orient, um relato das suas aventuras aéreas com Lindbergh em
1931; torna-se bestseller e recebe o National Booksellers Award para o
melhor livro de não-ficção do ano.
DEZEMBRO DE 1935-DEZEMBRO DE 1936. Em busca de
privacidade, os Lindbergh deixam a América com os dois filhos pequenos e,
até regressarem na Primavera de 1939, residem principalmente numa
pequena aldeia em Kent, Inglaterra. A convite das forças armadas dos EUA,
Lindbergh viaja para a Alemanha, a fim de tomar conhecimento do
desenvolvimento aeronáutico nazi; nos três anos seguintes efectua repetidas
visitas com o mesmo objectivo. Em 1936 assiste aos Jogos Olímpicos de
Berlim, onde Hitler está presente, e mais tarde escreve a respeito de Hitler a
um amigo: «Ele é indubitavelmente um grande homem e eu estou
convencido de que fez muito pelo povo alemão.» Anne Morrow Lindbergh
acompanha o marido à Alemanha e depois escreve em tom crítico a respeito
da «opinião rigidamente puritana do país de que as ditaduras são
forçosamente erradas, más, instáveis e que nada de bom pode advir delas –
combinada com a nossa imagem de secção humorística de Hitler como um
palhaço – combinada com a muito forte propaganda judaica (naturalmente)
nos jornais pertencentes a judeus.»
OUTUBRO DE 1938. Cruz de Serviço da Águia Alemã – um medalhão
de ouro com quatro pequenas suásticas, conferido a estrangeiros por
serviços ao Reich – entregue a Lindbergh «por ordem do Führer, pelo
marechal-do-ar Hermann Göring num jantar na Embaixada Americana em
Berlim. Anne Morrow Lindbergh publica o segundo relato das suas proezas
aeronáuticas, Listen! the Wind, um bestseller de não-ficção apesar da
crescente impopularidade do marido entre antifascistas americanos e da
recusa de alguns livreiros judeus em venderem o livro.
ABRIL DE 1939. Depois de Hitler invadir a Checoslováquia, Lindbergh
escreve no seu diário: «Por muito que desaprove muitas coisas que a
Alemanha tem feito, estou convencido de que tem seguido a única política
coerente na Europa nos últimos anos.» A pedido do comandante do Corpo
Aéreo, general «Hap» Arnold, e com a aprovação de Roosevelt – que não
gosta dele nem confia nele –, passa para o serviço activo como coronel do
Corpo Aéreo Militar dos EUA.
SETEMBRO DE 1939. Em registos no diário depois de a Alemanha
invadir a Polónia, em 1 de Setembro, Lindbergh assinala a necessidade de
«nos protegermos contra ataques de exércitos estrangeiros e diluição por
raças estrangeiras... e a infiltração de sangue inferior». A aviação, escreve, é
«um daqueles bens sem preço que permitem à raça branca conseguir viver
num mar premente de amarelos, negros e castanhos». Anteriormente, neste
ano, regista, a respeito de uma conversa particular com um membro de
elevada categoria do Comité Republicano Nacional e com o jornalista
conservador Fulton Lewis, Jr.: «Estamos preocupados com o efeito da
influência judaica na nossa imprensa, na rádio e no cinema... É uma pena,
porque alguns judeus do tipo certo são, acredito, uma vantagem para
qualquer país.» Em Abril de 1939 escreve num registo no diário (omitido
em 1970 dos seus publicados Wartime Journals): «Já há demasiados judeus
em lugares como Nova Iorque. Alguns judeus acrescentam força e carácter
a um país, mas demasiados criam o caos. E nós estamos a ter demasiados.»
Em Abril de 1940, ao falar pelo Columbia Broadcasting System, diz: «A
única razão por que estamos em risco de nos envolvermos nesta guerra
deve-se a haver na América elementos poderosos que desejam que tomemos
parte nela. Representam uma pequena minoria do povo americano, mas
controlam muita da engrenagem de influência e propaganda. Aproveitam
todas as oportunidades para nos empurrarem para mais perto do limite.»
Quando o senador republicano do Idaho, William E. Borah, encoraja
Lindbergh a candidatar-se a presidente, ele diz-lhe que prefere tomar
posições políticas como cidadão privado.
OUTUBRO DE 1940. Na Primavera, é fundado, na Escola de Direito da
Universidade de Yale, o Comité America First, a fim de se opor à política
intervencionista de FDR e promover o isolacionismo americano; em
Outubro, Lindbergh dirige-se a uma assembleia de três mil pessoas em Yale,
defendendo que a América reconheça «as novas potências da Europa».
Anne Morrow Lindbergh publica o terceiro livro, The Wave of the Future,
um breve panfleto anti-intervencionista subintitulado «A Confession of
Faith», que provoca enorme controvérsia e se torna imediatamente um
grande bestseller de não-ficção, apesar de denunciado pelo Secretário do
Interior, Harold Ickes, como «a Bíblia de todos os nazis americanos».
ABRIL-AGOSTO DE 1941. Discursa para dez mil partidários do Comité
America First em Chicago, a outros dez mil num comício em Nova Iorque,
levando o seu acérrimo inimigo, o secretário Ickes, a chamar-lhe «O
Primeiro Companheiro de Viagem Nazi dos Estados Unidos». Quando
Lindbergh escreve a Roosevelt a queixar-se dos ataques que Ickes lhe faz,
em particular por ter aceite a medalha alemã, Ickes escreve: «Se Mr.
Lindbergh se sente tão incomodado quando é correctamente referido como
cavaleiro da Águia Alemã, porque não devolve de uma vez a malfadada
condecoração e arruma definitivamente o assunto?» (Anteriormente,
Lindbergh declinara devolver a medalha, alegando que tal constituiria «um
insulto desnecessário» ao comando nazi.) O presidente questiona
abertamente a lealdade de Lindbergh, instando-o a apresentar a demissão de
coronel do Exército ao seu Secretário da Guerra. Ickes observa que,
enquanto é célere a renunciar à sua comissão de serviço como coronel no
Exército, Lindbergh permanece inflexível na recusa em devolver a medalha
recebida da Alemanha nazi. Em Maio, juntamente com o senador Burton K.
Wheeler, de Montana, que está sentado na tribuna ao lado de Anne Morrow
Lindbergh, Lindbergh fala a vinte e cinco mil pessoas no primeiro comício
do America First realizado na Madison Square Garden: o seu aparecimento
é saudado pela assistência com gritos de «Nosso Próximo Presidente!» e o
seu discurso seguido por uma ovação de quatro minutos. Durante a
Primavera e o Verão, fala a grandes públicos em todo o país.
SETEMBRO-DEZEMBRO DE 1941. Faz o seu discurso radiofónico
«Quem São os Agitadores da Guerra» a um comício do America First em
Des Moines, em 11 de Setembro; um público de oito mil pessoas ovaciona
quando ele nomeia a «raça judia» como estando entre os que mais poderosa
e eficazmente empurram os EUA – «por razões que não são americanas» –
para o envolvimento na guerra. Acrescenta que «nós não os podemos
censurar por pretenderem o que acreditam ser os seus próprios interesses,
mas nós também devemos pretender os nossos. Não podemos permitir que
as paixões e os preconceitos naturais de outros povos conduzam o nosso
país à destruição». O discurso de Des Moines é atacado no dia seguinte
tanto por democratas como por republicanos, mas o senador Gerald P. Nye,
republicano do North Dakota e apoiante firme do America First, defende
Lindbergh das críticas e reitera acusações contra os judeus, como o fazem
outros apoiantes. O discurso de 10 de Dezembro, marcado para o primeiro
comício em Boston do Comité America First, é cancelado por Lindbergh
depois do ataque japonês a Pearl Harbor e à declaração de guerra dos EUA
ao Japão, à Alemanha e à Itália. As actividades do Comité America First são
encerradas pelos líderes, e a organização dissolve-se.
JANEIRO-DEZEMBRO DE 1942. Viaja para Washington para obter a
reintegração no Corpo e a Aviação, mas membros-chave do gabinete de
Roosevelt opõem-se veementemente, assim como grande parte da imprensa,
e Roosevelt diz não. Falham igualmente repetidas tentativas para encontrar
colocação na indústria da aviação, apesar de uma lucrativa associação
durante o fim dos anos 20 e início dos 30 com a Transcontinental Air
Transport («a Linha Lindbergh») e como consultor pago da Pan American
Airways. Na Primavera arranja finalmente trabalho, com aprovação
governamental, como consultor do programa de desenvolvimento de
bombardeiros de Ford, perto de Detroit, em Willow Run, e a família muda-
se para um subúrbio de Detroit. (Na tarde de Setembro em que o presidente
Roosevelt visita Willow Run para inspeccionar os projectos de produção,
Lindbergh arranja maneira de estar ausente). Participa em experiências no
laboratório aeromédico da Clínica Mayo para redução dos perigos físicos
no voo a elevada altitude; posteriormente, participa como piloto de ensaio
em experiências com equipamento de oxigénio a elevadas altitudes.
DEZEMBRO DE 1942-JULHO DE 1943. Tem papel activo no treino de
pilotos para o Corsair do Corpo Marinha/Fuzileiros, um avião de combate
que ajuda a desenvolver para a United Aircraft, no Connecticut.
AGOSTO DE 1943. Anne Marrow Lindbergh, agora mãe de quatro
filhos, publica The Steep Ascent, uma novela acerca de uma perigosa
aventura de voo – o seu primeiro desaire editorial, devido em grande parte à
hostilidade de críticos e leitores para com a política de antes da guerra da
família Lindbergh.
JANEIRO-SETEMBRO DE 1944. Após um período na Florida a testar
uma variedade de aviões de guerra, incluindo o novo bombardeiro B-29 da
Boeing, recebe autorização governamental para ir para o Pacífico Sul
estudar Corsairs em combate; uma vez lá, começa a fazer voos de combate
e bombardeamento contra alvos japoneses, a partir da base da Nova Guiné,
ao princípio como observador, mas em breve, e com grande sucesso, como
participante entusiástico. Ensina pilotos a aumentar a distância de combate
poupando combustível em voo. Depois de cumprir cinquenta missões – e
derrubar um caça japonês – regressa à América em Setembro para reatar o
trabalho no programa do avião de combate da United Aircraft, e a família
muda-se de Michigan para Westport, Connecticut.

FIORELLO H. LA GUARDIA
1882-1947

NOVEMBRO DE 1922. Depois de ter cumprido mandatos no Congresso


em representação do Lower East Side de Manhattan, imediatamente antes e
depois da Primeira Guerra Mundial, La Guardia regressa ao Congresso e
cumpre cinco mandatos consecutivos como representante republicano do
círculo eleitoral italiano e judaico de East Harlem. Encabeça a Câmara na
oposição ao imposto sobre vendas do presidente Hoover e na denúncia da
sua incapacidade de minorar o sofrimento da Depressão; também se opõe à
Proibição.
NOVEMBRO DE 1924. Nas eleições presidenciais, apoia abertamente o
candidato do Partido Progressista Robert M. La Follette em vez do
republicano, o presidente Coolidge.
JANEIRO DE 1931. O governador de Nova Iorque, Franklin D.
Roosevelt, convoca uma conferência de governadores para tratar dos
problemas de desemprego decorrentes da Depressão; La Guardia louva-o
por promover uma investigação conducente a legislação sobre trabalho e
desemprego que ele próprio reclamara sem êxito do presidente Hoover.
1932. Como republicano desalinhado – e congressista derrotado ainda em
funções – é escolhido pelo presidente eleito, Roosevelt, para apresentar a
legislatura do New Deal no 72.º Congresso derrotado, ainda em funções,
depois da vitória esmagadora dos Democratas em 1932.
NOVEMBRO DE 1933. Concorrendo como candidato contra Tammany,
foi eleito pela Fusão Republicana (e mais tarde, também, pelo Partido
Trabalhista Americano) mayor de Nova Iorque para o primeiro de três
mandatos consecutivos; como mayor activista, propõe-se levar a
recuperação económica à Nova Iorque da Depressão, fomentando projectos
de obras públicas e criando e aumentando serviços públicos. Denuncia o
fascismo e os nazis americanos; reagindo a terem-no rotulado de «Judeu-
Mor de Nova Iorque», escarnece: «Nunca pensei que me corresse nas veias
sangue judaico suficiente para justificar que me gabasse disso.»
SETEMBRO DE 1938. Depois de Hitler desmembrar a Checoslováquia,
La Guardia ataca os isolacionistas republicanos e toma o partido de FDR na
crescente controvérsia intervencionista.
SETEMBRO DE 1940. Embora se diga que Wendell Willkie considera
escolhê-lo para concorrer como seu vice-presidente, La Guardia volta a
abandonar os Republicanos, como em 1924; juntamente com o senador
George Norris, forma o Independentes por Roosevelt e faz abertamente
campanha por um terceiro mandato para Roosevelt.
AGOSTO-NOVEMBRO DE 1940. Com a guerra a aproximar-se,
Roosevelt prefere La Guardia para secretário da Guerra, mas em vez dele
escolhe o republicano Henry Stimson, nomeando La Guardia presidente da
parte americana da Junta de Defesa Americano--Canadiana.
ABRIL DE 1941. Aceita cargo não remunerado como director da defesa
civil de FDR, ao mesmo tempo que continua a ser mayor de Nova Iorque.
FEVEREIRO-ABRIL DE 1943. Pressiona Roosevelt para o reconduzir
no serviço activo no Exército como brigadeiro, mas Roosevelt, que não lhe
garantira um lugar no Gabinete nem o considerara como companheiro de
lista, recusa, a conselho de íntimos que consideram La Guardia demasiado
provocador; o decepcionado mayor volta a envergar o seu «uniforme de
limpa-ruas».
AGOSTO DE 1943. Os conflitos raciais de tempo de guerra, que
anteriormente atingiram Beaumont, Mobile, Los Angeles e Detroit – onde
houve trinta e quatro mortos nas desordens de 21 de Junho –, irrompem no
Harlem de Nova Iorque. Após quase três dias de vandalismo, pilhagens e
derramamento de sangue, La Guardia é elogiado por líderes negros pela sua
chefia forte e compassiva durante desordens que deixaram seis mortos,
cento e oitenta e cinco feridos e cinco milhões de dólares de estragos.
MAIO DE 1945. Um mês depois da morte de FDR, anuncia que não se
candidatará a um quarto mandato; antes de se retirar, tornou-se famoso por
ler pela rádio a banda desenhada dos jornais aos jovens de Nova Iorque
durante uma greve da imprensa. Depois de deixar o cargo, aceita ser
director da UNRRA (Administração de Auxílio e Reabilitação das Nações
Unidas).
WALTER WINCHELL
1897-1972

1924. Ex-artista de variedades, Walter Winchell foi contratado pelo New


York Evening Graphic e não tardou a conquistar popularidade como
repórter e colunista da Broadway.
JUNHO DE 1929. Vai trabalhar como colunista para o New York Daily
Mirror de William Randolph Hearst, emprego que manterá durante mais de
trinta anos. Negociada à escala nacional pela King Features, de Hearst, a
coluna de Winchell chega a aparecer em mais de dois mil jornais, Inventor
da moderna coluna de mexericos, torna-se naturalmente uma presença
regular no ponto de encontro nocturno de celebridades, o Stork Club.
MAIO 1930. Estreia-se na rádio com um programa de mexericos de
Hollywood; conquista maior popularidade com o programa Lucky Strike
Dance Hour e, em Dezembro de 1932, aos domingos às nove horas da
noite, com o programa da Jergens Lotion, na NBC, Blue Network. O seu
quarto de hora semanal de coscuvilhice do meio e noticiário geral não tarda
a reivindicar a maior audiência radiofónica, e a frase de abertura de Walter
Winchell – «Boa noite, Mr. e Mrs. América e todos os navios no mar,
vamos à imprensa!» – passa a fazer parte do patoá americano.
MARÇO DE 1932. Começa a cobrir o caso do rapto Lindbergh, ajudado
por dicas do director do FBI, J. Edgar Hoover; continua a fazer a cobertura
do caso durante a prisão de Bruno Hauptmann, em 1934, e o seu
julgamento, em 1935.
FEVEREIRO DE 1933. Quase único entre os comentadores públicos e
entre judeus bem conhecidos, começa a atacar publicamente Hitler e os
nazis americanos, incluindo o líder da Bund, Fritz Kuhn; prossegue o
ataque na rádio e na sua coluna até ao deflagrar da Segunda Guerra
Mundial; inventa os neologismos «razis» e «swastinkers»25 para
ridicularizar o movimento nazi.
JANEIRO-MARÇO DE 1935. Elogiado por J. Edgar Hoover pelo seu
trabalho na cobertura do julgamento de Hauptmann. Posteriormente,
Hoover e Winchell trocam informações acerca de nazis americanos que
acabam por ir parar à coluna de Winchell.
1937. Apoio na sua coluna a Roosevelt e ao New Deal, conduz a convite
para a Casa Branca, em Maio, e a comunicação regular entre o presidente e
Winchell. Cresce o desentendimento entre Hearst e Winchell por causa do
apoio público deste a FDR. Estabelece-se amizade entre Winchell e o
vizinho de Nova Iorque, o gangster Frank Costello.
1940. A soma do público da coluna na imprensa e da rádio é calculada em
cinquenta milhões de pessoas, mais de um terço da população americana; o
seu salário anual de oitocentos mil dólares coloca-o entre os americanos
mais bem pagos. Winchell reforça os ataques às actividades pró-nazis com
artigos na sua coluna como «A Coluna Winchell versus A Quinta Coluna».
Apoia fortemente FDR para um terceiro mandato sem precedentes; escreve
colunas com pseudónimos para o PM atacando o candidato republicano
Willkie, depois de Hearst lhe ter censurado a crítica a Willkie no Dayly
Mirror.
ABRIL-MAIO DE 1941. Ataca Lindbergh por declarações isolacionistas
e pró-germânicas; adverte o ministro dos Estrangeiros nazi, von Ribbentrop,
de que a América tem vontade para lutar e depois é atacado pelo senador
Burton K. Wheeler por «blitzkrieging o povo americano para esta guerra».
SETEMBRO DE 1941. Depois do discurso de Lindbergh em Des
Moines, acusando os judeus de empurrarem a América para a guerra,
escreve que o «halo [de Lindbergh] se transformou no seu nó corredio», e
ataca repetidamente Lindbergh, assim como os senadores Wheeler, Nye,
Rankin e outros que identifica como pró-nazis.
DEZEMBRO DE 1941-FEVEREIRO DE 1972. Depois da entrada da
América na Segunda Guerra Mundial, os noticiários radiofónicos e as
colunas de Winchell centraram-se predominantemente em notícias da
guerra; como capitão-de-mar-e-guerra reservista, pressiona FDR para
prestar serviço e é convocado para o activo em Novembro de 1942. Com o
fim da guerra, passa para a extrema--direita; torna-se inimigo feroz da
União Soviética e apoiante anticomunista do senador Joseph McCarthy.
Entra numa quase obscuridade no meio dos anos 50; quando morre, em
1972, apenas a sua filha comparece ao funeral.

BURTON K. WHEELER
1882-1975

NOVEMBRO DE 1920-NOVEMBRO DE 1922. Depois de desafiar a


poderosa gigante de Montana, a Anaconda Mining Company, como
legislador estadual de Montana, e depois de se opor a violações de direitos
humanos cometidas durante o Red Scare26 do pós-guerra, Wheeler sofre
uma pesada derrota na corrida para governador de 1920, mas em 1922 é
eleito como democrata para o Senado dos EUA, para um primeiro de quatro
mandatos, com o forte apoio de agricultores e trabalhadores. Ao longo dos
anos, converte o governo do estado de Montana no aparelho bipartidário de
Wheeler.
FEVEREIRO-NOVEMBRO DE 1924. É escolhido para dirigir o
inquérito do Senado ao escândalo de corrupção de Teapot Dome, que leva à
resignação do procurador-geral do presidente Coolidge, Harry M.
Dougherty, e à humilhação do Departamento de Justiça de Coolidge
Abandona os Democratas – e a lista democrata encabeçada por John W.
Davis – para se candidatar a vice-presidente na lista do Partido Progressista
com o senador do Wisconsin, Robert M. La Follette. Coolidge derrota
estrondosamente tanto democratas como progressistas, embora mais tarde o
partido recolha seis milhões de votos a nível nacional e quase 40 por cento
dos votos em Montana.
1932-1937. Antes da Convenção Democrata em 1932, visita dezasseis
estados para promover a nomeação de Roosevelt. Apesar de ser a primeira
figura nacional a apoiar o candidato democrata e, de modo geral,
simpatizante da reforma social do New Deal, em 1937 Wheeler opõe-se
com veemência ao presidente a respeito da sua proposta legislativa para
alargar o Supremo Tribunal e «enchê-lo» de apoiantes do New Deal; a
liderança de Wheeler conduz à derrota da controversa proposta de lei e
agrava a inimizade pessoal entre ele e o presidente.
1938. O aparelho de Wheeler em Montana trabalha para minar o seu rival
democrata, o congressista Jerry O’Connell, favorecendo a eleição para a
Câmara de Jacob Thorkelson, um republicano da ala direita rotulado por
Walter Winchell de «porta-voz do movimento nazi no Congresso».
Thorkelson chama a Winchell «caluniador judeu» e processa-o depois de
Winchell o incluir na série de artigos da revista Liberty intitulada
«Americanos sem os Quais Podemos Passar». O congressista O’Connell, ao
comentar as actividades eleitorais dos democratas de Wheeler, descreve este
como um «Benedict Arnold para o seu partido e um traidor do seu
presidente».
1940-1941. Democratas influentes formam em Montana o Clube Wheeler
para Presidente; no seu estado natal e noutros lugares, é considerado um
competidor formidável para a nomeação democrata, até Roosevelt anunciar
a sua candidatura para um terceiro mandato. No Senado, Wheeler alinha
cada vez mais com republicanos e democratas sulistas contra a ala liberal de
Roosevelt do Partido Democrático. Opõe-se clamorosamente à intervenção
americana na guerra europeia. Em Junho de 1940 ameaça abandonar o
Partido Democrático «se ele vai ser um partido da guerra». Encontra-se
nesse mês, para fazer planos «para contrariar a agitação de guerra e
propaganda» com Charles A. Lindbergh e um grupo de senadores
isolacionistas; na bancada do Senado, defende Lindbergh das acusações de
ser pró-nazi e, alguns meses mais tarde, depois de Roosevelt comparar
publicamente Lindbergh a um «Copperhead» da Guerra Civil (um nortista
que simpatizava com o Sul), considera a observação «chocante e aterradora
para todos os americanos bem-pensantes». Falando pela cadeia de rádio
NBC apresenta uma proposta de paz de oito pontos para negociar com
Hitler e recebe um telegrama de felicitações de Lindbergh. Encontra-se com
estudantes da Yale com a intenção de organizar o Comité America First e
assume o papel de conselheiro oficioso; juntamente com Lindbergh, torna-
se o orador mais popular das manifestações do AFC. Manifesta-se contra o
recrutamento, chamando à proposta de Roosevelt de recrutamento em
tempo de paz «um passo para o totalitarismo». Na bancada do Senado, ao
argumentar contra a Lei de Empréstimo e Arrendamento, diz: «Se o povo
americano quer uma ditadura, se quer uma forma de governo totalitário e se
quer a guerra, esta proposta de lei devia ser imposta e aprovada pelo
Congresso como o presidente Roosevelt pretende.» Afirma que a Lei de
Empréstimo e Arrendamento, se for aprovada, «ceifará um em cada quatro
rapazes americanos», o que leva Roosevelt a rotular o comentário de
Wheeler como «a coisa mais falsa... mais ignóbil e antipatriótica... que foi
dita na vida pública da minha geração». Revela publicamente – e
prematuramente – que os EUA vão enviar tropas para a Islândia; a Casa
Branca, juntamente com o primeiro-ministro Churchill, acusa Wheeler de
pôr em perigo vidas americanas e britânicas. É de novo acusado de
comprometer o segredo militar quando, em Novembro de 1941, deixa
escapar para o isolacionista Chicago Tribune um documento classificado do
Departamento da Guerra revelando a estratégia dos EUA em caso de guerra.
DEZEMBRO DE 1941-DEZEMBRO DE 1946. Depois de Pearl Harbor,
apoia o esforço de guerra, alegando, no entanto, que a aliança da América
com a União Soviética ajuda a sobrevivência do governo comunista. Em
1944, alegando que os «comunistas estão por trás da Missouri Valley
Authority (MVA)», toma partido contra os liberais, com a Montana Power
Company e a Anaconda Copper Company, ao ajudar a derrotar a correlativa
da Missouri Valley a favor da Tennessee Valey Autority. Posteriormente,
perde o resto do apoio democrata de Montana e é derrotado na campanha
das primárias de 1946 para o Senado pelo jovem liberal de Montana, Leif
Erickson.
ANOS 50. Exerce a advocacia em Washington, D.C. Alia-se ideológica e
politicamente ao senador Joseph McCarthy.

HENRY FORD
1863-1947

1903-1905. O primeiro automóvel Ford, o Modelo A de dois cilindros e


oito cavalos-vapor, concebido por Henry Ford e fabricado pela sua recém-
constituída Ford Motor Company, aparece em 1903 com o preço de venda
de oitocentos e cinquenta dólares. Modelos de preços superiores aparecem
nos anos seguintes.
1908. Concebido para a América rural, surge o Ford Modelo T que, até
1927, é o único modelo construído pela companhia. Isso faz de Ford o
primeiro fabricante de automóveis do país, concretizando o seu plano de
«construir um automóvel para a grande multidão».
1910-1916. Com os seus associados dos automóveis, cria um processo de
fabrico de produção sequencial e divisão de trabalho que evolui para a linha
de montagem em movimento contínuo – considerada o maior progresso
industrial desde o advento da Revolução Industrial – que leva à produção
em massa do Modelo T. Em 1914, Ford anuncia um salário base de cinco
dólares por um dia de oito horas de trabalho; a oferta abrange, na realidade,
apenas uma parte da força laboral de Ford. Não obstante, a sua defesa do
«Dia de Cinco Dólares» granjeia-lhe muitos louvores e a fama de homem
de negócios esclarecido, e mesmo de pensador esclarecido. «Não gosto de
ler livros», explica, «confundem-me a mente.» «A História, declara, «é mais
ou menos conversa fiada.»
1916-1919. O seu nome é posto na nomeação para a presidência na
Convenção Nacional Republicana e obtém trinta e dois votos na primeira
votação. Actua com êxito para exercer poder absoluto sobre todas as
empresas Ford. Em 1916, a empresa está a produzir dois mil carros por dia,
com uma produção total até à data de um milhão de modelos T. No início da
Primeira Guerra Mundial torna-se activo como pacifista opositor da guerra
e ataca a exploração lucrativa da guerra. Anuncia numa reunião de
funcionários da Ford: «Sei quem causou a guerra. Foram os banqueiros
judeus-alemães. Tenho aqui a prova. Factos. Os banqueiros judeus-alemães
causaram a guerra.» Com a entrada da América no conflito, compromete-se
a «trabalhar sem um cêntimo de lucro» no cumprimento de contratos
governamentais, mas esquece-se de o fazer. Por instância do presidente
Wilson, candidata-se ao Senado como democrata – embora anteriormente
fosse identificado como republicano – e é derrotado numas eleições muito
disputadas. Atribui a derrota a «interesses» da Wall Street» e «aos judeus».
1920. Em Maio, o Dearborn Independent – um semanário local
comprado por Ford em 1918 – imprime o primeiro de noventa e um artigos
pormenorizados destinados a expor «O Judeu Internacional: O Problema
Mundial»; em edições seguintes, publica em folhetim o texto dos
fraudulentos Protocols of the Learned Elders of Zion, ao mesmo tempo que
reivindica a autenticidade do documento – e a sua revelação de um plano
judaico para o domínio do mundo. No segundo ano de publicação, a
circulação subira para quase trezentos mil exemplares; assinaturas do jornal
são impostas a distribuidores da Ford como um produto da empresa, e os
artigos fortemente anti-semitas são compilados numa edição de quatro
volumes, The International Jew: The World’s Foremost Problem.
ANOS 20. Em 1921 é produzido o 5 000 000.º carro Ford: mais de
metade dos carros vendidos na América são Modelos T. Cria a grande
fábrica River Rouge e a cidade industrial em Dearborn. Adquire florestas,
minas de ferro e minas de carvão para abastecer a empresa automobilística
de matérias-primas. Diversifica a linha de automóveis Ford. A sua
autobiografia de 1922, My Life and Work, é um bestseller de não-ficção e o
nome e a lenda de Ford são conhecidos em todo o mundo. As sondagens
mostram-no à frente do presidente Harding em popularidade e fala-se dele
como potencial candidato presidencial republicano; no Outono de 1922
considera a candidatura a presidente. Adolf Hitler, numa entrevista de 1923,
diz: «Vemos Heinrich Ford como o líder do crescente movimento fascista
na América.» No meio da década de 1920, um processo por difamação
intentado contra ele por um advogado judeu de Chicago é resolvido fora do
tribunal, e em 1927 Ford retracta-se dos seus ataques aos judeus, aceita
interromper as suas publicações anti-semitas e encerra o Dearborn
Independent, uma empresa deficitária que lhe custara perto de cinco
milhões de dólares. Quando Lindbergh pilota o Spirit of St. Louis para
Detroit, em Agosto de 1927, encontra-se com Ford no Aeroporto Ford e
leva-o no famoso aparelho para o seu primeiro voo. Lindbergh interessa
Ford na indústria aeronáutica. Os dois voltam depois a encontrar-se
numerosas vezes, e numa entrevista de 1940, em Detroit, Ford explica:
«Quando Charles vem aqui, só falamos de judeus.»
1931-1927. A concorrência da Chevrolet e da Plymouth e o impacte da
Depressão causam grandes prejuízos à companhia, apesar da inovação do
motor Ford V-8. Más relações laborais na River Rouge, causadas por
aceleração da produção, insegurança de emprego e espionagem laboral.
Esforços da parte dos United Auto Workers para organizarem a Ford,
juntamente com a General Motors e a Chrysler, encontram violência e
intimidação da parte de Ford; um grupo de vigilantes de Detroit espanca
dirigentes laborais na River Rouge. A política laboral da Companhia Ford é
condenada pelo National Labor Relations Board e considerada a pior da
indústria automóvel.
1938. Em Julho, no seu septuagésimo primeiro aniversário, aceita a Cruz
de Serviço da Águia Germânica do Governo nazi hitleriano, num jantar de
aniversário oferecido em Detroit a mil e quinhentos cidadãos eminentes. (A
mesma medalha é concedida a Lindbergh, numa cerimónia realizada na
Alemanha em Outubro, o que leva o secretário do Interior Ickes a dizer,
numa reunião, em Dezembro, da Zionist Society de Cleveland, que «Henry
Ford e Charles A. Lindbergh são os dois únicos cidadãos livres de um país
livre que aceitaram obsequiosamente símbolos de insolente distinção numa
altura em que aquele que os concede conta como perdido o dia em que não
pode cometer novos crimes contra a Humanidade».») Sofre a primeira de
duas apoplexias.
1939-1940. Com o rebentar da Segunda Guerra Mundial alia-se ao seu
amigo Lindbergh no apoio ao isolacionismo e ao Comité America First.
Pouco depois de Ford ser nomeado para o comité executivo do America
First, Lessing J. Rosenwald, director judeu da Sears, Roebuck and
Company, demite-se do cargo devido à reputação anti-semita de Ford.
Durante algum tempo, reúne-se regularmente com o padre anti-semita
Coughlin, que fala pela rádio e cujas actividades Roosevelt e Ickes
acreditam serem financiadas por Ford. Dá apoio financeiro ao demagogo
anti-semita Gerald L. K. Smith para a sua emissão radiofónica semanal e
para as suas despesas pessoais (alguns anos mais tarde, Smith faz uma nova
edição de International Jew e sustenta que Ford «nunca mudou a sua
opinião a respeito dos judeus»).
1941-1947. Tem segunda apoplexia. A companhia converte-se, para
defender a produção, à medida que a guerra se aproxima; durante a guerra,
produz o bombardeiro B-24 na enorme fábrica de Willow Run, para a qual
Lindbergh é contratado como conselheiro. Devido à doença, Ford já não
está apto a dirigir a companhia e demite-se em 1945. Morre em Abril de
1947 e desfilam cem mil pessoas para ver o seu corpo. A imensa fortuna em
acções da companhia passa principalmente para a Fundação Ford, que se
torna em breve a fundação privada mais rica do mundo.

Outras Figuras Históricas Constantes da Obra

BERNARD BARUCH (1870-1965) Financeiro e conselheiro


governamental. Como director do War Industries Board do presidente
Woodrow Wilson, mobilizou os recursos industriais da nação para a
Primeira Guerra Mundial. Foi membro do círculo da Casa Branca durante
as administrações de Roosevelt. Nomeado por Truman representante da
Comissão de Energia Atómica das Nações Unidas em 1946.
RUGGIERO «RITCHIE THE BOOT» BOIARDO (1890-1984) Figura do
crime de Newark e rival local do gangster Longy Zwillman; a sua
influência foi mais forte na First Ward italiana da cidade, onde era
proprietário de um restaurante popular.

LOUIS D. BRANDEIS (1856-1941) Nascido em Louisville, Kentucky,


numa família imigrante judaica culta, de Praga. Advogado de questões de
interesse público e laborais, em Boston. Organizador inicial do movimento
sionista na América. É nomeado pelo presidente Wilson, juiz associado do
Supremo Tribunal, mas só ao fim de quatro meses de intensa controvérsia
no Comité Judiciário do Senado e pelo país fora, a qual Brandeis atribuiu ao
facto de ser o primeiro juiz judeu nomeado para o tribunal. Ocupou o cargo
durante vinte e três anos, até 1939..

CHARLES L. COUGHLIN (1891-1979) Padre católico romano e pastor


do Shrine of the Little Flower em Royal Oak, Michigan. Considerava
Roosevelt comunista e admirava fervorosamente Lindbergh. Nos anos 30,
disseminou ideias fortemente anti-semitas numa emissão radiofónica
semanal para toda a nação e no seu periódico Social Justice, que foi barrado
durante a guerra do Correio dos EUA por violar o Espionage Act e deixou
de ser publicado em 1942.

AMELIA EARHART (1897-1937) Em 1932 estabeleceu o recorde de


catorze horas e cinquenta e seis minutos no voo da Terra Nova para a
Irlanda; primeira mulher a efectuar a travessia a solo do Atlântico e do
Pacífico de Honolulu à Califórnia. O seu avião perdeu-se, algures sobre o
Pacífico, na tentativa de 1937 para dar a volta ao mundo tendo como
navegador Frederick J. Noonan.

MEYER ELLENSTEIN (1885-1963) depois de carreiras como dentista e


advogado, foi escolhido em 1933 por colegas da comissão municipal para
mayor de Newark. Primeiro e único mayor judeu da cidade, cumpriu dois
mandatos, de 1933 a 1941.

EDWARD FLANAGAN (1886-19489) Em 1904 emigrou da Irlanda para


os EUA, onde iniciou os estudos para o sacerdócio; ordenado em 1912.
Para promover o bem-estar de rapazes sem abrigo de todas as raças e
religiões, fundou em 1917 a Cidade dos Rapazes do padre Flanagan, em
Omaha. Tornou-se figura nacional em 1938 devido a um filme popular a
respeito da Cidade dos Rapazes, com Spencer Tracy no papel de padre
Flanagan.

LEO FRANK (1884-1915) Director da fábrica de lápis de Atlanta,


julgado culpado do assassínio de Mary Phagan, uma empregada de treze
anos, em 26 de Abril de 1913; atacado à facada enquanto estava preso e
mais tarde tirado à força da cadeia por cidadãos locais e linchado em
Agosto de 1915. Crê-se que o anti-semitismo teve papel importante na
duvidosa condenação.

FELIX FRANKFURTER (1882-1965) Juiz associado do Supremo


Tribunal de Justiça dos EUA, nomeado por Roosevelt, de 1939-1962.

JOSEPH GOEBBELS (1897-1945) Dos primeiros membros do Partido


Nazi, em 1933 tornou-se ministro da Propaganda e czar da cultura de Hitler,
responsável pela supervisão da imprensa, da rádio, do cinema e do teatro e
encarregado de organizar espectáculos públicos, como paradas e
manifestações maciças. Contava-se entre os mais dedicados e brutais
apaniguados de Hitler. Em Abril de 1945, com a Alemanha destruída e os
russos a entrar em Berlim, ele e a mulher mataram os seus filhos pequenos e
suicidaram-se juntos.

HERMANN GÖRING 1893-1946) Fundador e primeiro director da


Gestapo, ou polícia secreta, e responsável pela criação da força aérea alemã.
Em 1940 Hitler nomeou-o seu sucessor, mas depois demitiu-o perto do fim
da guerra. Condenado em Nuremberga por crimes de guerra e sentenciado à
morte, suicidou-se duas horas antes da execução.

HENRY (HANK) GREENBERG (1911-1986) Potente primeira base dos


Detroit Tigers nos anos 30 e 40; ficou a dois home runs do recorde de Babe
Ruth de 1938. Herói dos fãs judeus de basebol, foi o primeiro dos dois
jogadores judeus eleitos para o Hall of Fame.
WILLIAM RANDOLPH HEARST (1863-1951) Editor americano,
considerado o primeiro proponente do sensacionalista e jingoísta
«jornalismo amarelo» dirigido a um público maciço; o seu império
jornalista prosperou nos anos 30. Inicialmente alinhado com os democratas
populistas, desviou-se cada vez mais para a ala direita e tornou-se acerbo
inimigo de FDR.

HEINRICH HIMMLER (1900-1945) Líder nazi, comandante das SS, que


controlavam os campos de concentração, e chefe da Gestapo; encarregado
dos programas de «purificação» racial e tendo acima de si apenas Hitler.
Envenenou-se e morreu depois de ter sido aprisionado por tropas britânicas
em Maio de 1945.

J(OHN) EDGAR HOOVER 1895-1972) Director do Federal Bureau of


Investigation (inicialmente o Bureau of Investigation, um subsidiário do
Departamento de Justiça) de 1924-1972.

HAROLD L. ICKES (1874-1952) Republicano progressista que se tornou


democrata, serviu quase treze anos como secretário do Interior de
Roosevelt, cumprindo o segundo mais longo mandato de qualquer membro
do gabinete de Roosevelt. Conservador devotado e inimigo activo do
fascismo.

FRITZ KUHN (1886-1951) Veterano da Primeira Guerra Mundial,


nasceu na Alemanha, emigrou para a América em 1927, e em 1938, como
Bundesleiter que se considerava o Führer americano, consolidara a Bund
Germano-Americana como o grupo nazi mais poderoso, mais activo e mais
rico dos EUA, com vinte e cinco mil membros. Foi condenado por
apropriação indébita em 1939, desnaturalizado em 1943 e deportado para a
Alemanha em 1945. Em 1948 foi considerado culpado pelo tribunal alemão
de desnazificação de tentativa para transplantar o nazismo para os EUA e de
ter tido laços estreitos com Hitler; sentenciado a dez anos de trabalhos
forçados.

HERBERT H. LEHMAN (1878-1963) Sócio da Lehman Brothers, casa


bancária fundada pela sua família. Governador-adjunto de Nova Iorque no
mandato do governador Roosevelt; sucedeu a Roosevelt como governador,
de 1932-1942. Apoiante do New Deal e forte intervencionista. Como
senador democrático de Nova Iorque (1949-1957) foi dos primeiros
opositores do senador Joseph McCarthy.

JOHN L. LEWIS (1880-1969) Líder trabalhista americano, Em 1935,


como presidente dos United Mine Workers, rompeu com a American
Federation of Labor (AFL) para formar o novo Committee for Industrial
Organizations, que em 1938 se tornou o Congress of Industria
Organizations (CIO). Inicialmente apoiante de Roosevelt, apoiou o
republicano Wilkie nas eleições de 1940 e demitiu-se da presidência do CIO
após a derrota de Wilkie. Greves dos UMW, durante a guerra, conduziram a
maior inimizade entre Lewis e a Administração.

ANNE SPENCER MORROW LINDBERGH (1906-2001) Escritora e


autora americana. Nascida numa família rica e privilegiada em Englewood,
New Jersey; o pai, Dwight Morrow, era sócio da firma de investimentos de
J. P. Morgan and Co., foi embaixador americano no México durante a
Administração Hoover e senador republicano de New Jersey; a mãe,
Elizabeth Reeve Cutter Morrow, escritora, educadora e, num breve espaço
de tempo, presidente interina do Smith College, onde Morrow recebeu um
bacharelato em Literatura em 1928. Apresentada a Charles Lindbergh no
ano anterior, quando visitava a sua família na residência do embaixador na
Cidade do México. Para pormenores sobre a vida de Morrow depois desse
encontro, ver «Verdadeira Cronologia», Charles A. Lindbergh.

HENRY MORGENTHAU, JR. (1891-1967) Nomeado secretário do


Tesouro por Roosevelt, 1934-1945.

VINCENT MURPHY (1888-1976) Sucessor de Meyer Ellenstein como


mayor de Newark, 1941-1949. Candidato designado pelo Partido
Democrático para governador de New Jersey em 1943 e figura dominante
do trabalhismo de New Jersey durante trinta e cinco anos depois da sua
eleição em 1933 para secretário-tesoureiro da Federation of Labor do
estado.
GERALD P. NYE (1892-1971) Senador republicano ardentemente
isolacionista do North Dakota, 1929-1945.

WESTBROOK PEGLER (1894-1969) Jornalista de direita, cuja coluna


«As Pleger Sees It» apareceu nos jornais de Hearst de 1944 a 1962. Em
1941 ganhou o Prémio Pulitzer com uma denúncia de gangsterismo laboral.
Crítico acerbo de Roosevelt e do New Deal, que caracterizava como
inspirado pelos comunistas, e abertamente hostil aos judeus. Forte apoiante
e amigo do senador Joseph McCarthy e conselheiro do comité de
investigação de McCarthy.

JOACHIM PRINZ (1902-1988) Rabi, escritor e activista dos direitos


cívicos, foi rabi do Templo B’nai Abtaham de Newark, 1939-1977.

JOACHIM VON RIBBENTROP (1893-1946) Principal conselheiro de


política estrangeira de Hitler em 1933 e ministro dos Negócios
Estrangeiros, 1938-1945. Em 1939 assinou com o ministro dos Negócios
Estrangeiros soviético, Molotov, o Pacto de Não-Agressão que incluía um
acordo secreto sobre a divisão da Polónia. O Pacto abriu caminho para a
Segunda Guerra Mundial. Considerado culpado de crimes de guerra pelo
Tribunal de Nuremberga foi, em 16 de Outubro de 1946, o primeiro dos
condenados nazis a ser enforcado.

ELEANOR ROOSEVELT (1884-1962) Sobrinha de Theodore Roosevelt,


mulher do seu primo afastado FDR e mãe da filha e dos cinco filhos de
ambos. Como primeira-dama, fez discursos por causas sociais liberais,
conferências sobre o estatuto das minorias, dos desprivilegiados e das
mulheres, pronunciou-se contra o fascismo, escreveu uma coluna diária
para sessenta jornais e, durante a Segunda Guerra Mundial, foi co-
presidente do Gabinete de Defesa Civil. Como delegada às Nações Unidas
nomeada pelo presidente Truman, apoiou a criação de um Estado judaico, e
em 1952 e 1956 fez campanha a favor de Adlai Stevenson para presidente.
Foi novamente nomeada para delegada nas Nações Unidas pelo presidente
Kennedy, tendo-se oposto à invasão da Baía dos Porcos.
LEVERETT SALTONSTALL (1892-1979) Descendente de Sir Richard
Saltonstall, membro inicial da Massachusetts Bay Company, que chegou à
América em 1630. Governador republicano de Massachusetts, 1939-1944;
senador republicano, 1944-1967.

GERALD L. K. SMITH (1898-1976) Ministro e orador famoso, aliado


primeiro de Huey Long e mais tarde do padre Coughlin e de Henry Ford e
apoiado por ambos no seu inflexível ódio aos Judeus. A sua revista anti-
semita, The Cross and the Flag, acusou os Judeus de causarem a Depressão
e da Segunda Guerra Mundial. Em 1942, conseguiu cem mil votos no
Michigan como nomeado republicano para o Senado. Afirmava que
Roosevelt era judeu, que The Protocols of the Learned Elders of Zion era
um documento autêntico, e, depois da guerra, que o Holocausto nunca tinha
existido.

ALLIE STOLZ (1918-2000) Pugilista peso-leve da Newark judaica.


Ganhou 73 de 85 combates e perdeu dois combates para o título nos anos
40; o primeiro, uma controversa decisão no décimo quinto assalto, para o
campeão Sammy Angott; o segundo – que levou à sua retirada – num KO
no décimo terceiro assalto, para o campeão Bob Montgomery.

DOROTHY THOMPSON (1893-1961) Jornalista, activista política e


colunista em 170 jornais durante os anos 30. Inimiga inicial do nazismo e
de Hitler e crítica acerba da política de Lindbergh. Casou com o romancista
Sinclair Lewis em 1928 e divorciou-se em 1942. Opôs-se ao sionismo e
apoiou os árabes palestinianos nas décadas de 40 e 50.

DAVID T. WILENTZ (1894-1988) Procurador-geral de New Jersey


(1934-1944), a sua acusação no caso do rapto do bebé Lindbergh conduziu
à condenação e execução de Bruno Hauptmann. Mais tarde, foi influente na
organização democrática de New Jersey e conselheiro de três governadores
democratas do estado.

ABNER «LONGY» ZWILLMAN (1904-1959) Nascido em Newark,


contrabandista de bebidas alcoólicas no tempo da Proibição, chefiou os
gangsters de New Jersey dos anos 20 aos anos 40. Membro da quadrilha
«Big Six» da East Coast, de que faziam parte Lucky Luciano, Meyer
Lansky e Franco Costello. Extensa actividade criminosa exposta em
audições televisionadas pelo Comité do Crime do Senado em 1951.
Suicidou-se oito anos depois.

Alguma documentação

Discurso de Charles Lindbergh, «Quem São os Agitadores da Guerra»,


pronunciado no comício do America First Commitee em Des Moines, no
dia 11 de Setembro de 1941. O texto que se segue encontra-se em
www.pbs.org/wgbh/amex/lindbergh/filmmore/reference/primary/desmoiness
peech.html.

Decorreram já dois anos desde que começou esta última guerra europeia.
A partir desse dia de Setembro de 1939 até ao momento presente, tem sido
feito um esforço sempre crescente para forçar os Estados Unidos a entrar no
conflito.
Esse esforço tem sido exercido por interesses estrangeiros e por uma
pequena minoria do nosso próprio povo; mas tem tido tanto êxito que, hoje,
o nosso país se encontra à beira da guerra.
Neste momento, quando a guerra está prestes a entrar no seu terceiro
Inverno, parece apropriado passar em revista as circunstâncias que nos
conduziram à nossa presente situação. Porque estamos à beira da guerra?
Era necessário para nós envolvermo-nos tão profundamente? Quem é o
responsável pela mudança da nossa política nacional da neutralidade e
independência para o envolvimento em assuntos estrangeiros?
Pessoalmente, estou convencido de que não existe melhor argumento
contra a nossa intervenção do que um estudo das causas e do desenrolar da
presente guerra. Tenho dito frequentemente que se os verdadeiros factos e
questões fossem colocados perante o povo americano não haveria nenhum
perigo de nos envolvermos.
Aqui, gostaria de lhes salientar uma diferença fundamental entre os
grupos que advogam a guerra estrangeira e aqueles que acreditam num
destino independente para a América.
Se olharem para trás, para os registos, descobrirão que aqueles de nós que
se opõem à intervenção tentaram constantemente clarificar factos e
questões, enquanto os intervencionistas têm tentado ocultar factos e
confundir questões.
Pedimo-lhes que leiam o que dissemos o mês passado, o ano passado e
até antes de a guerra começar. As nossas palavras são abertas e claras e nós
orgulhamo-nos disso.
Não os influenciámos por meio de subterfúgio e propaganda. Não
recorremos a passos que conduzissem à iminência de nada, a fim de levar o
povo americano aonde ele não queria ir.
O que dissemos antes das eleições dizemo-lo, repetimo-lo e tornamos a
repeti-lo, hoje. E não lhes diremos amanhã que se tratava apenas de oratória
de campanha. Alguma vez ouviram um intervencionista, ou um agente
britânico, ou um membro da Administração de Washington pedir-lhes que
voltassem atrás e estudassem um registo do que eles disseram desde que a
guerra começou? Estão os seus pretensos defensores da democracia
dispostos a pôr a questão da guerra à votação do nosso povo? Encontram
esses cruzados da liberdade de expressão estrangeira, ou da extinção da
censura aqui no nosso país?
O subterfúgio e a propaganda que existem no nosso país são evidentes em
todos os lugares. Esta noite tentarei penetrar numa parte dessas coisas até
aos factos nus que se encontram debaixo delas.
Quando esta guerra começou na Europa, era evidente que o povo
americano se opunha fortemente a participar nela. E porque não? Tínhamos
a melhor posição defensiva do mundo; tínhamos uma tradição de
independência da Europa, e, na única vez em que participámos numa guerra
europeia, problemas europeus ficaram por resolver e dívidas à América por
pagar.
As sondagens nacionais mostravam que quando a Inglaterra e a França
declararam guerra à Alemanha, em 1939, menos de 10 por cento da nossa
população era a favor de semelhante atitude para a América.
Mas havia diversos grupos de pessoas, aqui e no estrangeiro, cujos
interesses e crenças requeriam o envolvimento dos Estados Unidos na
guerra. Esta noite indicarei alguns desses grupos e delinearei os seus
métodos de agir. Ao fazê-lo terei de usar da máxima franqueza, pois para
contrariar os seus esforços precisamos de saber quem eles são.
Os três grupos mais importantes que têm pressionado este país para o
caminho da guerra são os Ingleses, os Judeus e a Administração de
Roosevelt.
Por detrás destes grupos, mas menos importante, encontra-se um número
de capitalistas, anglófilos e intelectuais convencidos de que o futuro da
Humanidade depende do domínio do Império Britânico. Acrescentemos a
estes os grupos comunistas, que até há poucas semanas se opunham à
intervenção, e estou convencido de que nomeei os maiores agitadores
guerra deste país.
Refiro-me aqui apenas a agitadores da guerra, não àqueles homens e
mulheres, sinceros mas insensatos, que, confusos pela desinformação e
assustados com a propaganda, vão atrás dos agitadores da guerra.
Como disse, estes agitadores da guerra abrangem apenas uma pequena
minoria do nosso povo; mas detêm uma tremenda influência. Contra a
determinação do povo americano de ficar fora da guerra, mobilizaram a
força da sua propaganda, do seu dinheiro e do seu apoio.
Consideremos esses grupos, um de cada vez.
Primeiro, os Britânicos: É óbvio, e perfeitamente compreensível, que a
Grã-Bretanha quer os Estados Unidos do seu lado na guerra. A Inglaterra
encontra-se agora numa situação desesperada. A sua população não é
suficientemente grande e os seus exércitos não são suficientemente fortes
para invadirem o continente europeu e ganharem a guerra que ela declarou
à Alemanha.
A sua posição geográfica é tal que não pode vencer a guerra só pelo
emprego da aviação, independentemente de quantos aviões lhe enviemos.
Mesmo que a América entrasse na guerra, seria improvável que os exércitos
aliados conseguissem invadir a Europa e destruir as potências do Eixo. Mas
uma coisa é certa: se a Inglaterra puder arrastar este país para a guerra,
poderá transferir para os nossos ombros uma grande parte da
responsabilidade por tê-la travado e pelo pagamento do seu preço.
Como todos sabem, ficámos com as dívidas da última guerra europeia, e,
a não ser que sejamos mais cautelosos no futuro do que fomos no passado,
ficaremos também com as dívidas do caso presente. Se não fosse a sua
esperança de poder responsabilizar-nos financeiramente, e também
militarmente, pela guerra, estou convencido de que a Inglaterra teria
negociado há muitos meses uma paz na Europa e só teria tido a ganhar com
isso.
A Inglaterra dedicou, e continuará a dedicar, todos os seus esforços no
sentido de nos arrastar para a guerra. Sabemos que gastou enormes quantias
em dinheiro neste país durante a última guerra, a fim de nos envolver nela.
Ingleses escreveram livros a respeito da inteligência do seu emprego.
Sabemos que a Inglaterra está a gastar grandes quantias em dinheiro para
propaganda na América durante a presente guerra. Se nós fôssemos
ingleses, faríamos o mesmo. Mas o nosso interesse vai primeiro para a
América. E, como americanos, é essencial que compreendamos o esforço
que os interesses britânicos estão a fazer para nos arrastar para a sua guerra.
O segundo grupo importante que mencionei é o judeu.
Não é difícil compreender por que motivo o povo judaico deseja derrubar
a Alemanha nazi. A perseguição que sofreram na Alemanha seria suficiente
para tornar qualquer raça em inimiga feroz.
Nenhuma pessoa com uma noção da dignidade da espécie humana pode
ignorar a perseguição à raça judia na Alemanha. Mas também nenhuma
pessoa com honestidade e visão pode olhar para a sua política pró-guerra,
aqui, hoje, sem ver os perigos que semelhante política implica, tanto para
nós como para eles. Em vez de agitarem para a guerra, os grupos judaicos
deste país deviam opor-se a ela de todas as maneiras possíveis, pois serão os
primeiros a sofrer as suas consequências.
A tolerância é uma virtude que depende da paz e da força. A História
mostra que ela não pode sobreviver à guerra e à devastação. Algumas
pessoas judias perspicazes compreendem isso e opõem-se à intervenção.
Mas a maioria ainda não compreende.
O maior perigo que constituem para o nosso país reside na grande
extensão da sua propriedade e da sua influência no nosso cinema, na nossa
imprensa, na nossa rádio e no nosso Governo.
Não estou a atacar nem o povo judeu nem o povo britânico. Admiro
ambas as raças. Mas estou a dizer que os líderes tanto da raça britânica
como da raça judia, por razões que são tão compreensíveis do seu ponto de
vista quanto desaconselháveis do nosso, por razões que não são americanas,
desejam envolver-nos na guerra.
Não podemos censurá-los por procurarem o que acreditam ser os seus
próprios interesses, mas também temos de velar pelos nossos. Não podemos
permitir que paixões e preconceitos naturais de outros povos conduzam o
nosso país à destruição.
A Administração Roosevelt é o terceiro grupo poderoso que tem estado a
empurrar este país para a guerra. Os seus membros usaram a emergência da
guerra para conseguirem um terceiro mandato presidencial pela primeira
vez na história da América. Usaram a guerra para acrescentar milhares de
milhões de dólares a uma dívida que já era a mais elevada que alguma vez
conhecemos. E acabam de usar a guerra para justificar a restrição do poder
do Congresso e a assunção de medidas ditatoriais da parte do presidente e
dos seus nomeados.
O poder da Administração Roosevelt depende da manutenção de uma
emergência de tempo de guerra. O prestígio da Administração Roosevelt
depende do sucesso da Grã-Bretanha, à qual o presidente ligou o seu futuro
político numa altura em que a maioria das pessoas pensava que a Inglaterra
e a França ganhariam facilmente a guerra. O perigo da Administração
Roosevelt encontra-se no seu subterfúgio. Enquanto os seus membros nos
prometiam paz, conduziam-nos para a guerra sem quererem saber do
programa graças ao qual foram eleitos.
Ao escolher estes grupos como sendo os maiores agitadores da guerra,
incluí apenas aqueles cujo apoio é essencial para o partido da guerra. Se
qualquer destes grupos – o britânico, o judeu ou a Administração – parar de
agitar a favor da guerra, estou convencido de que haverá pouco perigo de
nos envolvermos.
Não acredito que quaisquer dois deles tenham força suficiente para
conduzir este país à guerra sem o apoio do terceiro. E para esses três, como
já disse, todos os outros grupos pró guerra são de importância secundária.
Quando as hostilidades começaram na Europa, em 1939, esses grupos
compreenderam que o povo americano não tinha intenção alguma de entrar
na guerra. Sabiam que seria pior do que inútil pedir-nos uma declaração de
guerra nessa altura. Mas acreditavam que este país podia ser levado a entrar
na guerra de um modo muito semelhante ao que nos levou a entrar na
última.
Planearam: primeiro, preparar os Estados Unidos para a guerra
estrangeira sob o disfarce de defesa americana; segundo, envolver-nos na
guerra, passo a passo, sem nos apercebermos; terceiro, criar uma série de
incidentes que nos forçariam a participar no verdadeiro conflito. Estes
planos seriam, evidentemente, cobertos e auxiliados por todo o poder da sua
propaganda.
Os nossos teatros não tardaram a encher-se de peças retratando a glória da
guerra. Os cinejornais perderam toda a aparência de objectividade. Os
jornais e as revistas começaram a perder publicidade se publicavam artigos
contra a guerra. Foi instituída uma campanha difamatória contra indivíduos
que se opunham à intervenção. Termos como «quinta-colunista», «traidor»,
«nazi» e «anti-semita» eram incessantemente lançados a quem quer que
ousasse sugerir não ser no melhor interesse dos Estados Unidos entrar na
guerra. Homens perdiam os seus empregos se eram francamente contra a
guerra. Muitos outros deixaram de ousar falar.
A breve trecho, salas de conferências que se abriam para os defensores da
guerra fechavam-se para oradores que se lhe opunham. Estava lançada uma
campanha de medo. Foi-nos dito que a aviação, que tem mantido a esquadra
britânica fora do continente da Europa, tornava a América mais vulnerável
do que nunca antes da invasão. A propagada estava a funcionar em pleno.
Não houve dificuldade em obter milhares de milhões de dólares para
armas sob a capa de defender a América. O nosso povo manteve-se unido
num programa de defesa. O Congresso aprovou verbas e mais verbas para a
aquisição de armas, aviões e couraçados, com a aprovação da esmagadora
maioria dos nossos cidadãos. Que uma grande parte dessas verbas era para
ser usada no fabrico de armas para a Europa, só mais tarde viemos a saber.
Esse foi outro passo.
Usando um exemplo específico: em 1939, foi-nos dito que devíamos
aumentar o nosso corpo aéreo para um total de cinco mil aviões. O
Congresso aprovou a legislação necessária. Poucos meses depois, a
Administração disse-nos que os Estados Unidos deviam ter pelo menos
cinquenta mil aviões para nossa segurança nacional. Mas quase com a
mesma rapidez com que os aviões de combate saíam das nossas fábricas,
eram enviados para o estrangeiro, embora o nosso próprio corpo aéreo
tivesse a máxima necessidade de novo equipamento. De tal modo que hoje,
dois anos depois do início da guerra, o Exército americano tem algumas
centenas de bombardeiros e caças inteiramente modernos – menos, na
realidade, do que a Alemanha pode produzir num único mês.
Desde o seu começo, o nosso programa de armamento foi planeado muito
mais com o objectivo de continuar a guerra na Europa do que de constituir
uma defesa adequada para a América.
Ora, ao mesmo tempo que estávamos a ser preparados para uma guerra
estrangeira, era necessário, como já disse, envolver-nos na guerra. Isso foi
conseguido sob aquela agora famosa frase «a passos da guerra».
Para a Inglaterra e a França ganharem a guerra bastaria que os Estados
Unidos revogassem o seu embargo às armas e vendessem munições por
dinheiro, disseram-nos. E depois começou um refrão que se tornou familiar,
um refrão que marcou cada passo que demos ao longo de muitos meses
rumo à guerra: «a melhor maneira de defender a América e manter-nos fora
da guerra», disseram-nos, era «ajudando os Aliados.»
Primeiro, concordámos em vender armas à Europa; depois concordámos
em emprestar armas à Europa; depois concordámos em patrulhar o oceano
pela Europa; depois ocupámos uma ilha europeia na zona de combate.
Agora estamos à beira da guerra.
Os grupos belicistas foram bem-sucedidos nos primeiros dois dos seus
três passos importantes para a guerra. O maior programa de armamento da
nossa história está em marcha.
Envolvemo-nos na guerra praticamente de todos os pontos de vista,
exceptuando o verdadeiro tiroteio. Só resta ainda a criação de «incidentes»
suficientes, e estão a ver o primeiro deles já a verificar-se, em conformidade
com o plano – um plano que nunca foi apresentado ao povo americano para
que ele o aprovasse.
Homens e mulheres do Iowa, hoje, só uma coisa separa este país da
guerra: a oposição crescente do povo americano. O nosso sistema de
democracia e governo representativo está, como nunca antes esteve, à
prova. Encontramo-nos na iminência de uma guerra em que os únicos
vencedores seriam o caos e a prostração.
Estamos na iminência de uma guerra para a qual ainda não estamos
preparados e para a qual ninguém apresentou um plano de vitória exequível
– uma guerra que não pode ser ganha sem mandarmos os nossos soldados
para o outro lado do Atlântico e forçarem um desembarque numa costa
hostil contra exércitos mais fortes do que o nosso.
Estamos na iminência da guerra, mas ainda não é tarde de mais para
ficarmos fora dela. Não é tarde de mais para mostrarmos que nenhum
montante de dinheiro, ou propaganda, ou patrocínio pode obrigar um povo
livre e independente a ir para a guerra contra a sua vontade. Ainda não é
tarde de mais para recuperar e manter o destino americano independente
que os nossos antepassados estabeleceram neste novo mundo.
O futuro inteiro repousa sobre os nossos ombros. Depende dos nossos
actos, da nossa coragem e da nossa inteligência. Se são contra a nossa
intervenção na guerra, este é o momento de fazerem ouvir a vossa voz.
Ajudem-nos a organizar estes encontros e escrevam aos vossos
representantes em Washington. Digo-lhes que o último bastião da
democracia e do governo representativo deste país está na nossa câmara dos
representantes e no nosso senado.
Lá, ainda podemos dar a conhecer a nossa vontade. E se nós, povo
americano, fizermos isso, a independência e a liberdade continuarão a viver
entre nós e não haverá nenhuma guerra estrangeira.

De Lindbergh, de A. Scott Berg, 1998

A paz, achava Lindbergh, só podia existir enquanto «nos unirmos para


preservar esse bem tão precioso e inestimável, a nossa herança de sangue
europeu, só enquanto nos protegermos contra o ataque de exércitos
estrangeiros e a diluição por raças estrangeiras». Encarámos a aviação como
«uma dádiva do céu para aquelas nações ocidentais que já eram as líderes
da sua época... uma ferramenta moldada especialmente para mãos
ocidentais, uma arte científica que outros só copiam de uma maneira
medíocre, mais uma barreira entre os fervilhantes milhões da Ásia e a
herança grega da Europa – um daqueles bens inestimáveis que permitem à
Raça Branca sobreviver num mar premente de Amarelos, Pretos e
Castanhos.»
Lindbergh acreditava que a União Soviética se tinha tornado no império
mais perverso da Terra e que a civilização ocidental dependia de o rechaçar
e às potências asiáticas que se encontravam para lá das suas fronteiras – o
«Mongol, o Persa e o Mouro». Ele escreveu que dependia também de «uma
força unida entre nós próprios, de uma força demasiado grande para poder
ser desafiada por exércitos estrangeiros; de uma Muralha Ocidental de raça
e armas capaz de conter quer um Gengiscão quer uma infiltração de sangue
inferior...» (página 394).
25 No primeiro caso, muda o «n» para «r» de rato; no segundo, aglutina «swastika» com «stinker», o
que dá qualquer coisa como «sacanas», ou «nojentos», ou «porcos» da suástica (NT).

26 Medo, ou Pavor, Vermelho. Período de grande agitação, situado no tempo mais ou menos entre o
fim da Primeira Guerra Mundial e meados dos anos 20 e caracterizado por uma vaga de greves de
dimensões sem precedentes, e respectiva repressão, deportações de estrangeiros, grande inflação,
distúrbios raciais e «redadas» policiais, em que predominava o medo dos «vermelhos» e dos
anarquistas (NT).

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