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«Não!», foi a palavra que nos acordou. Um «Não!» gritado em voz forte
por um homem e saído de cada casa do quarteirão. Não pode ser. Não. Não
para presidente dos Estados Unidos.
Numa questão de segundos, o meu irmão e eu estávamos de novo a ouvir
a rádio com o resto da família, e ninguém se deu ao trabalho de nos mandar
voltar para a cama. Apesar do calor, a minha recatada mãe vestira um robe
por cima da leve camisa de dormir – também estivera a dormir e fora
acordada pelo barulho – e agora estava sentada no sofá ao lado do meu pai,
com os dedos a tapar a boca como se tentasse evitar o vómito. Entretanto, o
meu primo Alvin, incapaz de permanecer sentado, tinha começado a andar
de um lado para o outro na sala de cinco metros e meio por três metros e
sessenta, com passadas tão enérgicas que dir-se-ia um vingador revistando a
cidade para liquidar a sua némesis.
Naquela noite, a cólera era a genuína forja rugidora, a fornalha que se
apodera de nós e nos torce como aço. E não amainou – não enquanto
Lindbergh permaneceu silencioso na tribuna de Filadélfia a ouvir-se
novamente ovacionado como o salvador da nação, nem quando proferiu o
discurso aceitando a nomeação pelo seu partido e, com ela, o mandato para
manter a América fora da guerra europeia. Todos nós esperávamos,
aterrorizados, ouvi-lo repetir na convenção o difamatório aviltamento dos
judeus, mas o facto de o não ter feito não influenciou minimamente o
estado de espírito que levou todas, mas absolutamente todas, as famílias do
quarteirão para a rua quase às cinco horas da manhã. Famílias inteiras, que
antes só conhecera completamente vestidas, com as roupas de dia, usavam
pijamas e camisas de noite debaixo dos roupões de banho e andavam por ali
de chinelos, ao alvorecer, como se um tremor de terra as tivesse obrigado a
sair de casa. Mas o que mais impressionava uma criança era a cólera, a
cólera de homens que eu conhecia como kibbitzers4 bem-humorados, ou
calados e atenciosos chefes de família que levavam o dia inteiro a
desentupir canos, ou a reparar caldeiras, ou a vender maçãs a peso e depois,
à noite, passavam uma vista de olhos pelo jornal, ouviam a rádio e
adormeciam na cadeira da sala, pessoas simples que por acaso eram judeus
e vociferavam agora na rua, praguejavam sem quererem saber para nada da
decência, abruptamente devolvidos à luta miserável de que tinham julgado
haver-se libertado e às suas famílias, graças à migração providencial da
geração anterior.
Eu teria imaginado que o facto de Lindbergh não se ter referido aos
judeus no discurso de aceitação da sua nomeação constituía um bom
presságio, um sinal de que fora punido pelo clamor que o levara a renunciar
à sua comissão de serviço no Exército, ou que mudara de opinião depois do
discurso de Des Moines, ou que já se esquecera de nós, ou que, no seu foro
íntimo, sabia muito bem que estávamos irrevogavelmente comprometidos
com a América – que, embora a Irlanda ainda tivesse importância para os
Irlandeses, a Polónia para os Polacos e a Itália para os Italianos, nós não
sentíamos nenhuma fidelidade para com aqueles países do Velho Mundo
onde nunca fôramos bem-vindos e aonde não tínhamos intenção alguma de
jamais regressar. Se eu tivesse podido pensar bem, e tão a fundo, no
significado daquele momento, provavelmente seria isto que pensaria. Mas
os homens que estavam na rua pensavam de modo diferente. O facto de
Lindbergh não ter referido os judeus era, para eles, um estratagema, um
truque e nada mais, o início de uma campanha de hipocrisia,
simultaneamente destinada a calar-nos e a apanhar-nos desprevenidos.
«Hitler na América!», gritavam os vizinhos. «Fascismo na América! Tropas
de choque na América!» Depois de terem passado a noite inteira sem
dormir, não havia nada que os nossos desorientados mais velhos não
pensassem e nada que não dissessem em voz alta, ao alcance dos nossos
ouvidos, antes de começarem a regressar às suas casas (onde todos os
aparelhos de rádio continuavam aos berros), os homens, para fazer a barba,
vestir-se e tomar uma chávena de café antes de irem para o trabalho, e as
mulheres para vestir, alimentar e preparar os filhos para o dia.
Roosevelt fortaleceu o ânimo de toda a gente com a sua vigorosa
resposta, ao saber que o seu adversário ia ser Lindbergh e não um senador
da envergadura de Taft, ou um ex-promotor de justiça tão agressivo como
Dewey, ou um grande advogado de alto gabarito tão afável e bem-parecido
como Wilkie. Consta que, quando o acordaram às quatro horas da manhã
para lhe darem a notícia, terá vaticinado da sua cama na Casa Branca:
«Quando isto acabar, esse jovem estará arrependido não só de se ter metido
na política, mas também de ter aprendido a voar.» E logo a seguir voltou a
mergulhar num sono profundo – ou pelo menos foi essa a história que nos
causou tanto alívio no dia seguinte. Na rua, quando a única coisa em que
alguém conseguia pensar era a ameaça que representava para a nossa
segurança aquela afronta tão transparentemente injusta, as pessoas tinham-
se estranhamente esquecido de FDR e do baluarte que ele era contra a
opressão. A pura surpresa da nomeação de Lindbergh desencadeara um
sentimento atávico de vulnerabilidade, de estarmos indefesos, que tinha
mais que ver com Kishinev e os pogroms de 1903 do que com New Jersey,
trinta e sete anos depois, e, como consequência disso, as pessoas tinham-se
esquecido da nomeação por Roosevelt, para o Supremo Tribunal, de Felix
Frankfurter e da sua escolha de Henry Morgenthau para secretário do
Tesouro, e também do íntimo conselheiro presidencial, o financeiro Bernard
Baruch, e de Mrs. Roosevelt, de Ickes e do vice-presidente Wallace, todos
os três, como o próprio presidente, conhecidos por serem amigos dos
judeus. Havia Roosevelt, havia a Constituição dos Estados Unidos da
América, havia o Bill of Rights e havia os jornais, a imprensa livre da
América. Até o republicano Newark Evening News publicou um editorial
recordando aos leitores o discurso de Des Moines e contestando
abertamente a sensatez da nomeação de Lindbergh, e o PM, o tablóide de
esquerda de Nova Iorque que custava um níquel e que o meu pai começara
a levar para casa depois do trabalho, juntamente com o Newark News – e
cujo lema era: «O PM é contra aqueles que tratam mal outras pessoas» –
desferia o seu ataque contra os Republicanos num extenso editorial e
também em apontamentos noticiosos e colunas virtualmente espalhados por
cada uma das suas trinta e duas páginas, incluindo colunas anti-Lindbergh
da autoria de Tom Merany e Joe Cummiskey na secção de desporto. Na
primeira página, publicava uma grande fotografia da medalha nazi de
Lindbergh e, na Revista Fotográfica Diária, onde afirmava publicar
fotografias que outros jornais suprimiam – fotografias controversas de
quadrilhas de linchamento e presidiários acorrentados, de fura-greves
armados de bastões, de condições inumanas em penitenciárias americanas
–, havia páginas e páginas mostrando o candidato republicano visitando a
Alemanha nazi em 1938, culminando com uma fotografia de página inteira,
mostrando-o com a infame medalha ao pescoço e apertando a mão a
Hermann Göring, o líder nazi, à frente do qual só havia Hitler.
No domingo à noite esperámos, enquanto se sucediam os programas de
entretenimento, que chegasse a vez de Walter Winchell aparecer, às nove
horas. E quando ele apareceu e começou a dizer o que esperáramos que
dissesse, e no mesmo tom insolente que desejávamos que usasse,
irromperam aplausos do outro lado da travessa, como se o famoso jornalista
não estivesse isolado num estúdio de rádio no lado oposto do grande divisor
que era o rio Hudson, mas ali, entre nós e furioso, com o nó da gravata
puxado para baixo, o colarinho desabotoado e o chapéu mole cinzento
empurrado para trás, a desancar verbalmente Lindbergh através de um
microfone posto em cima do oleado da mesa da cozinha do nosso vizinho
do lado.
Era a última noite de Junho de 1940. Depois de um dia de calor,
arrefecera o suficiente para nos sentarmos confortavelmente dentro de casa,
sem transpirar, mas quando Winchell acabou de falar, às nove e um quarto,
os nossos pais resolveram que saíssemos os quatro para juntos
aproveitarmos a bonita noite. A ideia era irmos apenas dar uma pequena
volta e regressarmos – depois do que o meu irmão e eu nos deitaríamos –,
mas era quase meia-noite quando fomos para a cama e, nessa altura, o sono
estava fora de questão para miúdos tão contagiados pela exaltação dos pais.
Como a intrépida belicosidade de Winchell fizera todos os nossos vizinhos
sair também para a rua, o que começara, para nós, como um pequeno e
aprazível passeio nocturno redundou num convívio improvisado para toda a
gente do quarteirão. Os homens arrastaram cadeiras de praia das garagens e
armaram-nas à entrada das travessas, as mulheres trouxeram de casa jarros
de limonada, as crianças mais novas correram desabaladamente de porta em
porta e as mais velhas sentaram-se a rir e a conversar umas com as outras, e
tudo porque fora declarada guerra a Lindbergh pelo judeu mais conhecido
da América a seguir a Albert Einstein.
No fim de contas, tinha sido a coluna da Winchell que introduzira
famosamente os três pontos que separavam – e de algum modo
magicamente autenticavam – cada matéria noticiosa picante, sempre muito
levemente assente na realidade, e fora Winchell quem tivera mais ou menos
a ideia de disparar na cara das crédulas massas bagos de chumbo grosso de
insinuante mexeriquice: destruindo reputações, comprometendo
celebridades, outorgando fama, fazendo e desfazendo carreiras no mundo
do espectáculo. Era a sua coluna, só a sua coluna, que saía simultaneamente
em centenas de jornais de todo o país, assim como o seu quarto de hora das
noites de domingo era o programa noticioso mais popular do país, com o
fogo rápido do discurso de Winchell e o seu cinismo belicoso a emprestar a
cada «furo» o tom sensacionalista de uma revelação. Admiravamo-lo como
um outsider destemido e um insider astuto, amigalhaço de J. Edgar Hoover,
director do FBI, e ao mesmo tempo vizinho do gangster Frank Costello e
confidente do círculo íntimo de Roosevelt e até, por vezes, convidado da
Casa Branca para fazer companhia ao presidente enquanto tomavam uma
bebida – o combatente de rua bem informado e o homem do mundo realista
que os seus inimigos temiam e que estava do nosso lado. Nascido em
Manhattan, Walter Winschel (aliás Weinschel) passara de dançarino de
vaudeville de Nova Iorque para colunista inexperiente da Broadway,
ganhando bom dinheiro ao expressar as paixões dos mais imbecis dos novos
diários iletrados, apesar de, desde o advento de Hitler e muito antes de
qualquer outra pessoa da imprensa ter a previsão ou a fúria necessária para
lhes cair em cima, fascistas e anti-semitas se terem tornado o seu inimigo
principal. Já rotulara de «ratzis» os membros da Bund Germano-Americana
e não dava tréguas ao seu líder, Fritz Kuhn, na rádio e na imprensa escrita,
apodando-o de agente secreto estrangeiro, e agora – depois da piada de
FDR, do editorial do Newark News e da meticulosa denúncia feita pelo PM
– bastou Walter Winchell revelar a «filosofia pró-nazi» de Lindbergh aos
seus trinta milhões de ouvintes da noite de domingo, e classificar a
candidatura presidencial de Lindbergh como a maior ameaça de todos os
tempos à democracia americana, para todas as famílias judias da pequena
Summit Avenue parecerem de novo americanos desfrutando da vitalidade e
da boa-disposição de uma cidadania segura, livre e protegida, em vez de
saírem para a rua com a roupa de dormir como doentes fugidos de um
manicómio.
Todo o bairro conhecia o meu irmão como sendo capaz de desenhar
«tudo» – uma bicicleta, uma árvore, um cão, uma cadeira, um boneco de
desenho animado como Li’lAbner –, embora ultimamente o seu interesse
fossem os rostos verdadeiros. Juntavam-se miúdos à sua volta, a observá-lo,
sempre que, depois da escola, se instalava em qualquer lado com o seu
grande bloco de desenho com lombada em espiral e a sua lapiseira e
começava a esboçar as pessoas que se encontravam perto. Inevitavelmente,
os mirones desatavam a gritar: «Desenha-o, desenha-a, desenha-me», e
Sandy fazia-lhes a vontade, quanto mais não fosse para que parassem de lhe
gritar aos ouvidos. Entretanto, a sua mão não parava de trabalhar, ele olhava
para cima, para baixo, para cima, para baixo... e ali estava Fulano de tal,
vivo, numa folha de papel. Qual é o truque, como é que consegues,
perguntavam-lhe todos, como se desenhar – como se a magia pura –
pudesse ter contribuído de algum modo para o feito. A resposta de Sandy a
toda aquela importunação era um encolher de ombros ou um sorriso: o
truque para fazer aquilo residia no facto de ele ser o rapaz calmo, sério e
simples que era. Chamar a atenção, onde quer que fosse, por fazer os
retratos que lhe pediam, aparentemente não produzia qualquer efeito no
elemento impessoal existente no cerne da sua força, a modéstia inata que
era a sua firmeza e que, mais tarde, ele fintou à sua própria custa.
Em casa já não copiava ilustrações da Collier’s ou fotografias da Look,
mas estudava um manual sobre a imagem. Ganhara o livro num concurso
para estudantes de cartazes do Dia da Árvore, que coincidira com um
programa de plantação de árvores, à escala da cidade, patrocinado pelo
Departamento de Jardins e Património Público. Houvera, até, uma
cerimónia em que ele apertara a mão a um tal Mr. Bannwart,
superintendente do Serviço de Árvores de Sombra. O desenho do cartaz
vencedor, feito por Sandy, baseava-se num selo vermelho de dois cêntimos
da minha colecção, comemorativo do sexto aniversário do Dia da Árvore.
Eu achava o selo particularmente bonito, porque, visível entre as suas duas
estreitas margens verticais brancas, havia uma árvore esguia, cujos ramos
arqueavam no cimo e, juntando-se, formavam um caramanchão – e até o
selo se tornar meu e poder examinar à lupa as suas características
específicas, o significado de «caramanchão» fora absorvido pelo nome
familiar do feriado5. (A pequena lupa – juntamente com um álbum para dois
mil e quinhentos selos, uma pinça para selos, um medidor de perfurações,
cantos gomados para enquadrar selos e um prato de borracha preto chamado
detector de marcas de água – tinha sido uma prenda dos meus pais no meu
sétimo aniversário. Por mais dez cêntimos tinham-me comprado também
um livrinho de noventa e tal páginas chamado The Stamp Collector’s
Handbook, onde, sob a epígrafe «Como Iniciar uma Colecção de Selos», li,
fascinado, esta frase: «Em arquivos comerciais ou correio particular antigos
encontram-se com frequência selos de edições que deixaram de ser emitidas
e possuem grande valor; por isso, se têm amigos que vivem em casas
antigas e guardaram material desse tipo nos sótãos, tentem obter os seus
antigos sobrescritos ou papéis de embrulho estampilhados.» Nós não
tínhamos sótão, nenhum dos nossos amigos que moravam em andares e
apartamentos tinha sótão, mas houvera sótãos logo abaixo dos telhados das
casas monofamiliares de Union – do meu lugar no banco de trás do carro
vira pequenas janelas de mansarda em cada extremidade de cada uma das
casas, enquanto percorríamos a cidade naquele terrível sábado do ano
anterior, e por isso, quando chegámos a casa à tarde, não consegui pensar
noutra coisa senão nos velhos sobrescritos estampilhados e nos selos
gravados nas cintas dos jornais comprados por assinatura escondidos
naqueles sótãos, e no facto de, agora, não ter hipótese alguma de os «obter»
em virtude de ser judeu).
A atracção do selo comemorativo do Dia da Árvore era muito realçada
por representar uma actividade humana em vez do retrato de uma pessoa
famosa ou da imagem de um lugar importante – e, para mais, uma
actividade desempenhada por crianças: no centro do selo, um rapaz e uma
rapariga aparentando dez ou onze anos plantam uma árvore jovem, com o
rapaz a abrir uma cova com uma pá, enquanto a rapariga, amparando o
tronco da árvore com uma das mãos, a mantém firmemente no seu lugar por
cima da cova. No seu cartaz, Sandy reposicionou o rapaz e a rapariga,
colocando-os em lados opostos da árvore, e o rapaz é representado como
destro, em vez de esquerdino, veste calças compridas em lugar de calções e
tem um pé apoiado na lâmina da pá, para a enterrar no solo. Também há
uma terceira criança no cartaz de Sandy, um rapazinho mais ou menos da
mesma idade, que é quem usa agora os calções. Está parado atrás e um
pouco para o lado da pequena árvore, e segura, pronto a usá-lo, um regador
– como eu segurei quando posei para Sandy com os meus melhores calções
de ir para a escola e meias pelo joelho. Acrescentar esta terceira criança foi
ideia da minha mãe, para ajudar a distinguir a ilustração de Sandy da do
selo do Dia da Árvore – e protegê-lo da acusação de «copiar» –, mas
também para dar ao cartaz um conteúdo social que implicava um tema de
modo algum habitual em 1940, tanto no desenho dos cartazes como em
qualquer outra coisa, e que por razões de «gosto» poderia até ter-se
revelado inaceitável para os juízes.
A terceira criança que participava na plantação da árvore era um negro, e
o que encorajou a minha mãe a sugerir a sua inclusão – além do desejo de
instilar nos seus filhos a virtude cívica da tolerância – foi um outro selo
meu, um selo novinho de dez cêntimos da edição da «série dos
educadores», cinco selos que eu comprara nos Correios por um total de
vinte e cinco cêntimos e pagara em prestações ao longo do mês de Março
com a minha semanada de um níquel. Por cima do retrato central, cada selo
tinha a imagem de uma lâmpada que os Correios dos EUA identificavam
como a «Lâmpada da Sabedoria», mas que para mim representava a
lâmpada de Aladino, por causa do rapaz das Arabian Nights com a lâmpada
mágica e o anel e os dois génios que lhe davam aquilo que ele pedisse. O
que eu teria pedido a um génio seria o mais cobiçado de todos os selos
americanos: primeiro, o célebre selo de correio aéreo de vinte e quatro
cêntimos, de 1918, que diziam valer três mil e quatrocentos dólares, no qual
o aeroplano representado no centro, o Flying Jenny militar, está invertido, e
depois desse os três famosos selos da edição da Exposição Pan-Americana
de 1901, que também tinham sido erradamente impressos com a parte
central invertida e valiam mais de mil dólares cada.
No selo verde de um cêntimo da série dos educadores, logo acima da
imagem da Lâmpada da Sabedoria, estava Horace Mann; no selo vermelho
de dois cêntimos, Mark Hopkins; no selo carmesim de três cêntimos,
Charles W. Eliot; no selo azul de quatro cêntimos, Frances E. Willard, e no
selo castanho de dez cêntimos Booker T. Washington, o primeiro negro a
aparecer num selo americano. Lembro-me de, depois de colocar o selo de
Booker T. Washington no meu álbum e de mostrar à minha mãe que ele
completava a série de cinco, lhe ter perguntado: «Acha que haverá alguma
vez um judeu num selo?» E ela respondeu: «Provavelmente... um dia, sim.
Pelo menos assim o espero.» Na realidade, teriam de passar mais vinte e
seis anos e foi preciso Einstein para isso acontecer.
Sandy guardava a sua semanada de vinte e cinco cêntimos – e os trocos
que ia ganhando a limpar neve com uma pá, a recolher folhas mortas com o
ancinho e a lavar o carro da família – até juntar o suficiente para ir de
bicicleta à papelaria da Clinton Avenue, que vendia material de desenho, e,
ao longo de meses, comprar um lápis de carvão, depois folhas de lixa para
afiar o lápis, depois papel de carvão e depois a pequena engenhoca tubular
por onde soprava para aplicar o fixador fino que impedia o carvão de se
esborratar. Tinha clipes enormes, uma prancha de masonite, lápis
Ticonderoga amarelos, borrachas, cadernos de esboços e papel de desenho,
material que guardava numa caixa de cartão no fundo do roupeiro do nosso
quarto e em que a minha mãe, quando fazia limpezas, não estava autorizada
a mexer. A sua determinada meticulosidade (herdada da nossa mãe) e a sua
espantosa perseverança (herdada do nosso pai) só aumentavam a minha
admiração por um irmão mais velho que toda a gente afirmava estar
destinado para grandes coisas, enquanto a maioria dos rapazes da sua idade
não parecia sequer destinada a comer a uma mesa com outro ser humano.
Eu era então o menino bom, obediente tanto em casa como na escola – a
obstinação, em grande medida inerte, e a agressividade, regulada para
explodir mais tarde; ainda era demasiado jovem para conhecer o potencial
de um fúria própria –, e não havia nada nem ninguém com quem fosse
menos intransigente do que com ele.
No dia em que fizera doze anos, Sandy tinha recebido um grande porta-
fólio preto, espalmado, feito de cartão duro que se dobrava ao longo de um
vinco e se fechava, na parte de cima, por meio de duas fitas que ele atava
num laço, para prender as folhas. O porta-fólio media cerca de sessenta por
quarenta e cinco centímetros, demasiado grande, portanto, para caber nas
gavetas da cómoda do nosso quarto ou ser posto, verticalmente, encostado à
parede do atravancado armário que ele e eu partilhávamos. Foi-lhe
permitido arrumá-lo – juntamente com os seus blocos de esboços – deitado
debaixo da sua cama, e guardava nele os desenhos que considerava
melhores, a começar pela sua obra-prima de composição datada de 1936, o
retrato ambicioso da nossa mãe a apontar para cima, para o Spirit of St.
Louis rumando a Paris. Sandy tinha vários retratos grandes do heróico
aviador, tanto a lápis como a carvão, guardados no porta-fólio. Faziam parte
de uma série de americanos proeminentes que andava a reunir e que se
concentrava principalmente nas eminências vivas mais reverenciadas pelos
nossos pais, como o presidente e Mrs. Roosevelt, o mayor de Nova Iorque,
Fiorello La Guardia, o presidente do sindicato United Miners Workers, John
L. Lewis, e a romancista Pearl Buck, que ganhara o Prémio Nobel em 1938
e cujo retrato ele copiara da sobrecapa de um dos seus best sellers. Diversos
desenhos do porta--fólio eram de membros da família e, destes, quase
metade da única sobrevivente dos nossos avós, a nossa avó paterna, que,
nos domingos em que o meu tio Monty a levava de visita a nossa casa,
servia, às vezes, de modelo a Sandy. Sob a influência da palavra
«venerável», ele desenhava cada ruga que descobria no rosto dela e cada nó
deformado dos seus dedos artríticos, enquanto – com a mesma submissão
com que toda a sua vida esfregara soalhos, de joelhos, e cozinhara para uma
família de nove pessoas num fogareiro a carvão – a pequenina e vigorosa
avó se sentava na cozinha e «posava».
Estávamos os dois sozinhos em casa, poucos dias depois da declaração
radiofónica de Winchell, quando Sandy tirou o porta--fólio de baixo da sua
cama e o levou para a sala de jantar. Abriu-o em cima da mesa (reservada
para receber o Chefe e festejar datas familiares especiais) e,
cuidadosamente, levantou os retratos de Lindbergh do papel de decalque
que protegia cada desenho e alinhou-os em cima da mesa. No primeiro,
Lindbergh usava o seu capacete de cabedal de aviador, com as correias
soltas penduradas sobre as orelhas; no segundo, o capacete estava
parcialmente oculto atrás dos grandes e pesados óculos de voo empurrados
para a testa, e no terceiro estava em cabelo, sem nada que o distinguisse
como aviador a não ser o olhar firme posto no horizonte distante. Aferir o
valor deste homem, pelo modo como Sandy o retratara, não era difícil. Um
herói viril. Um aventureiro corajoso. Uma pessoa natural com uma força
gigantesca e uma rectidão combinadas com uma convincente suavidade.
Tudo menos um vilão assustador ou uma ameaça para a Humanidade.
– Ele vai ser presidente – disse-me Sandy. – O Alvin diz que Lindbergh
vai ganhar.
Confundiu-me e assustou-me tanto, que fiz de conta que ele estava a
brincar e ri-me.
– O Alvin vai para o Canadá e alistar-se no Exército canadiano –
continuou Sandy. – Vai combater pelos Ingleses contra Hitler.
– Mas ninguém pode vencer Roosevelt – afirmei.
– Lindbergh vai vencê-lo. A América vai ser fascista.
Depois ficámos ali juntos, sob o fascínio intimidador dos três retratos.
Nunca o facto de ter sete anos me parecera uma deficiência tão grave.
– Não contes a ninguém que tenho estes retratos – disse Sandy. – Mas a
mãe e o pai já os viram. Viram-nos todos. Toda a gente viu.
– Eu disse-lhes que os rasguei.
Não havia ninguém mais verdadeiro do que o meu irmão. Ele não era
calado por ser dissimulado e falso, mas sim porque nunca se dava ao
trabalho de se comportar mal e por isso não tinha nada a esconder. Mas
agora algo exterior transformara o significado daqueles desenhos, tornando-
os naquilo que não eram, e por isso ele disse aos nossos pais que os tinha
destruído, transformando-se a si mesmo naquilo que não era.
– Mas supõe que eles os encontram – lembrei.
– Como é que os encontrarão?
– Não sei.
– Muito bem, não sabes. Limita-te a manter essa matraquinha fechada, e
ninguém descobrirá nada.
Fiz o que ele disse por muitas razões, sendo uma delas o facto de o
terceiro selo de correio dos EUA mais antigo que possuía – e que não seria
capaz de descolar e deitar fora – ser um exemplar de correio aéreo de dez
cêntimos editado em 1927 para comemorar o voo transatlântico de
Lindbergh. Era um selo azul, cerca de duas vezes mais comprido do que
alto, cujo desenho central, uma imagem do Spirit of St. Louis a voar para
leste sobre o oceano, proporcionara a Sandy o modelo para o avião do
desenho comemorativo que criara. Adjacente à margem branca do lado
esquerdo do selo está a linha costeira da América do Norte, com as palavras
«New York» projectando-se para o Atlântico, e adjacente à margem da
direita a linha costeira da Irlanda, da Grã-Bretanha e da França, com a
palavra «Paris» no fim de um arco pontilhado que traça o trajecto do voo
entre as duas cidades. No cimo do selo, imediatamente abaixo das letras
brancas que formam orgulhosamente as palavras UNITED STATES
POSTAGE, lê-se LINDBERGH – AIR MAIL num tipo ligeiramente mais
pequeno, mas sem dúvida suficientemente grande para ser lido por um
miúdo de sete anos com uma visão perfeita. O selo já estava avaliado em
vinte cêntimos no Standard Postage Stamp Catalogue de Scott, e eu
compreendi de imediato que o seu valor só poderia continuar a subir (e tão
rapidamente que em breve se tornaria no meu bem mais valioso) se Alvin
tivesse razão e o pior acontecesse.
No passeio, durante os longos meses de férias, entretínhamo-nos com um
novo jogo chamado «Eu Declaro Guerra», usando uma bola de borracha
barata e um pedaço de giz. Traçávamos com o giz um círculo com cerca de
um metro e meio a um metro e oitenta de diâmetro, dividíamo-lo em tantos
segmentos – tipo fatias de tarte – quantos os jogadores, e escrevíamos a giz,
em cada segmento, o nome de um dos vários países estrangeiros
mencionados nas notícias ao longo do ano. A seguir, cada jogador escolhia
o «seu» país e colocava-se com um pé dentro e outro fora do contorno do
círculo, de modo que, quando chegasse o momento, pudesse fugir
rapidamente. Entretanto, um jogador escolhido levantava a bola bem alto e
anunciava devagar, num ominoso tom cadenciado, «Eu... declaro... guerra...
a...» Seguia-se uma pausa para criar expectativa e, depois, o miúdo que
declarava guerra atirava a bola ao chão ao mesmo tempo que gritava
«Alemanha!», ou «Japão!», ou «Holanda!», ou «Itália!», ou «Bélgica!», ou
«Inglaterra!», ou «China!» – e algumas vezes, até, «América!» –, e todos os
outros desatavam a fugir, excepto aquele contra o qual o ataque de surpresa
fora desencadeado. Cabia-lhe então apanhar a bola no ressalto, o mais
rapidamente possível, e gritar «Alto!» Todos os que estavam agora aliados
contra ele tinham de se imobilizar onde se encontravam e o país agredido
desencadeava o contra-ataque, tentando eliminar um país agressor de cada
vez, atingindo-os sucessivamente com a bola, com toda a força possível, a
começar por aqueles que se encontravam mais perto dele e avançando a sua
posição a cada pancada aniquiladora.
Jogávamos este jogo sem parar. Até chover e os nomes dos países serem
temporariamente apagados, as pessoas tinham de lhes passar por cima ou
desviar-se quando desciam a rua. Naquele tempo, não havia no nosso bairro
quaisquer outros grafitos dignos de nota, apenas estes, os vestígios
hieroglíficos dos nossos simples jogos de rua. Inofensivos, sem dúvida, mas
capazes de endoidecer algumas mães que tinham de nos ouvir horas a fio
através das suas janelas abertas. «Não sabem fazer outra coisa qualquer,
rapazes? Não podem entreter-se com outro jogo?» Mas nós não podíamos –
declarar guerra era, também, tudo em que pensávamos.
Em 18 de Julho de 1940, a Convenção Democrática realizada em Chicago
nomeou FDR para um terceiro mandato, por uma maioria esmagadora, logo
no primeiro escrutínio. Ouvimos na rádio o seu discurso de aceitação,
proferido com a inflexão confiante da classe superior que, havia já quase
oito anos, inspirara milhões de famílias comuns como a nossa e lhes
permitira manter a esperança no meio das dificuldades. Havia alguma coisa
no decoro inerente ao seu discurso que, embora estranha, não só acalmava a
nossa ansiedade como também conferia à nossa família um significado
histórico, amalgamando autorizadamente as nossas vidas com a sua, assim
como com as da nação inteira, quando se nos dirigia na nossa sala como
seus «concidadãos». Que os Americanos pudessem escolher Lindbergh –
que os Americanos pudessem escolher alguém – em vez do presidente que
cumprira dois mandatos e cuja voz, só por si, transmitia autoridade sobre o
tumulto dos assuntos humanos... bem, isso era impensável – era-o
sobretudo, e com certeza, para um pequeno americano como eu, que nunca
ouvira uma voz presidencial que não fosse a dele.
Umas seis semanas depois, no sábado antes do Dia do Trabalho6,
Lindbergh surpreendeu o país ao não aparecer na parada do Dia do Trabalho
em Detroit, onde estava previsto que iniciaria a sua campanha com um
cortejo automóvel pelo coração operário da América isolacionista (e bastião
anti-semita do padre Coughlin e de Henry Ford), e, em vez disso, chegar
sem ser anunciado ao aeródromo de Long Island onde iniciara treze anos
antes o seu espectacular voo transatlântico. O Spirit of St. Louis fora
transportado em segredo, coberto com um oleado, e guardado durante a
noite num hangar distante, embora, quando Lindbergh conduziu o
aeroplano para o campo, na manhã seguinte, todos os serviços noticiosos
telegráficos da América e todas as estações de rádio e jornais de Nova
Iorque tivessem um repórter no local para assistir à descolagem, desta vez
para oeste, sobre a América rumo à Califórnia, em lugar de para leste, sobre
do Atlântico, rumo à Europa. É claro que, em 1940, os serviços aéreos
comerciais transcontinentais já transportavam há mais de uma década carga,
passageiros e correio, e faziam-no em grande parte devido ao incentivo da
proeza a solo de Lindbergh e dos seus diligentes esforços como consultor,
com um ordenado de um milhão de dólares por ano, de linhas aéreas recém-
organizadas. Mas, naquele dia, não era o apoiante rico da aviação comercial
que iniciava a sua campanha, nem o Lindbergh que fora condecorado em
Berlim pelos nazis; nem o Lindbergh que, numa transmissão radiofónica a
nível nacional, se excedera nas acusações a judeus influentes de tentarem
empurrar o país para a guerra; nem mesmo o estóico pai do bebé raptado e
assassinado por Bruno Hauptmann em 1932. Era, antes, o desconhecido
piloto de correio aéreo que ousara fazer o que jamais fora feito por algum
aviador antes dele, o adorado «Lone Eagle», juvenil e ainda inocente,
apesar dos anos de fama fenomenal. No feriado de fim-de-semana que
encerrou o Verão de 1940, Lindbergh esteve muito longe de melhorar o
tempo recorde de um voo directo costa a costa que ele próprio estabelecera
uma década atrás com um aparelho mais avançado do que o velho Spirit of
St. Louis. No entanto, quando chegou ao aeroporto de Los Angeles, uma
multidão constituída em grande parte por trabalhadores de aeronáutica –
dezenas de milhares deles, ao serviço dos grandes novos construtores de
Los Angeles e arredores – foi avassalada pelo mesmo enorme entusiasmo
que sempre o acolhia em toda a parte.
Os Democratas classificaram o voo de artifício publicitário encenado pelo
estado-maior de Lindbergh, quando na verdade a decisão de voar para a
Califórnia fora tomada apenas horas antes exclusivamente por Lindbergh, e
não pelos profissionais que o Partido Republicano tinha encarregado de
orientar o político noviço durante a sua primeira campanha política e que,
como toda a gente, esperavam vê-lo aparecer em Detroit.
O seu discurso foi simples e objectivo, pronunciado numa voz aguda,
monótona, com pronúncia do Midwest e, decididamente, não rooseveltiana.
O seu equipamento de voo, constituído por botas altas, calças de montar e
um blusão leve por cima de uma camisa e gravata, era uma réplica daquele
com que atravessara o Atlântico, e ele falou sem tirar o capacete de cabedal
ou os óculos de voo, que tinha empurrado para a testa exactamente como
Sandy os pusera no desenho a carvão escondido debaixo da sua cama.
– A minha intenção ao candidatar-me à presidência – disse à ruidosa
multidão depois de terem parado de gritar o seu nome – é preservar a
democracia americana, impedindo a América de participar noutra guerra
mundial. A vossa escolha é simples: não é entre Charles A. Lindbergh e
Franklin Delano Roosevelt; é entre Lindbergh e a guerra.
E foi só: trinta e duas palavras, se contarmos o A de Augustus.
Após um duche, uma merenda e uma hora de sono no aeroporto de L.A.,
o candidato voltou a entrar no Spirit of St. Louis e voou para São Francisco.
Ao anoitecer estava em Sacramento. E em todos os lugares onde aterrou na
Califórnia, nesse dia, foi como se o país não tivesse sabido do crash da
Bolsa de Valores e das atribulações da Depressão (ou dos triunfos de FDR,
pela mesma ordem de ideias), como se até a guerra que ele estava ali para
nos impedir de travar não tivesse sequer passado pela cabeça de ninguém.
Lindy descia do céu no seu famoso aeroplano, e era outra vez 1927. Era
outra vez Lindy, o Lindy que falava claro, que nunca precisava de parecer
superior, ou de falar como se o fosse, porque era, simplesmente, superior –
o destemido Lindy, ao mesmo tempo juvenil e gravemente amadurecido, o
individualista inflexível, o lendário americano viril que consegue fazer o
impossível contando exclusivamente consigo próprio.
Durante o mês e meio seguinte, continuou a passar um dia inteiro em
cada um dos quarenta e oito estados, até que, em fins de Outubro, fez a
viagem de regresso à pista de Long Island de onde levantara voo no fim de
semana do Dia do Trabalho. Ao longo das horas do dia, saltava de uma
cidade, povoação ou aldeia para a seguinte, aterrava em auto-estradas se
não havia pista de aviação perto, assim como aterrava em, e descolava de,
pastagens quando voava para falar com agricultores e as suas famílias nos
mais remotos condados rurais da América. Os comentários que fazia nos
campos de aviação eram transmitidos por estações de rádio locais e
regionais, e várias vezes por semana, a partir da capital do estado onde se
encontrava a passar a noite, transmitia uma mensagem à nação. Era sempre
sucinta e deste género: Já é tarde de mais para impedir uma guerra na
Europa. Mas ainda não é tarde de mais para impedir a América de participar
nessa guerra. FDR está a enganar a nação. A América será arrastada para a
guerra por um presidente que promete falsamente paz. A escolha é simples.
Votem em Lindbergh ou votem pela guerra.
Quando jovem piloto nos primeiros tempos da novidade da aviação,
Lindbergh, juntamente com um companheiro mais velho e mais experiente,
tinha divertido multidões em todo o Midwest saltando de pára-quedas ou
saindo sem pára-quedas para a asa do avião, e agora os democratas
começaram, sem perder tempo a depreciar a sua campanha nas regiões
rurais, no Spirit of St. Louis, comparando-a com essas acrobacias. Em
conferências de imprensa, Roosevelt já não se dava ao trabalho de
responder com um sarcasmo irónico quando interrogado pelos jornalistas
acerca da campanha heterodoxa de Lindbergh: passava simplesmente a
discutir o medo de Churchill de uma iminente invasão alemã da Grã-
Bretanha, ou a anunciar que iria pedir ao Congresso que financiasse o
primeiro recrutamento americano em tempo de paz, ou a lembrar a Hitler
que os Estados Unidos não tolerariam qualquer interferência na ajuda
transatlântica que os nossos navios mercantes estavam a prestar ao esforço
de guerra britânico. Tornou-se claro desde o início que a campanha do
presidente consistiria em continuar na Casa Branca, onde, em contraste com
aquilo que o secretário Ickes chamava as «palhaçadas de circo» de
Lindbergh, tencionava concentrar-se nas contingências da situação
internacional com toda a autoridade de que dispunha, trabalhando de dia e
de noite se fosse necessário.
Durante a digressão de estado em estado, Lindbergh perdeu-se duas vezes
devido ao mau tempo e, em cada uma delas, decorreram várias horas antes
de o contacto via rádio ser restabelecido e ele poder comunicar ao país que
estava tudo bem. Mas depois, em Outubro, no próprio dia em que os
Americanos ficaram aturdidos ao saber que no último dos destruidores
raides nocturnos a Londres os alemães tinham bombardeado a Catedral de
São Paulo, uma notícia breve, à hora do jantar, informou que o Spirit of St.
Louis fora visto explodir no ar sobre as Alleghenies e despenhar-se, em
chamas, no solo. Desta vez decorreram seis longas horas antes de uma
segunda notícia corrigir a primeira, dizendo que tinham sido problemas com
o motor, e não uma explosão em pleno ar, que haviam obrigado Lindbergh a
fazer uma aterragem de emergência em terreno traiçoeiro nas montanhas do
lado ocidental da Pensilvânia. Antes, porém, de a notícia ter sido corrigida o
nosso telefone tocara incessantemente: amigos e familiares ligavam para
especular, com os nossos pais, acerca do comunicado inicial do flamejante e
provavelmente fatal acidente. Na presença de Sandy e de mim, os meus pais
não disseram nada que denunciasse alívio perante a perspectiva da morte de
Lindbergh, mas também não disseram que desejavam que isso não tivesse
acontecido nem se contaram entre aqueles que se mostraram jubilosos
quando, cerca das onze horas da noite, constou que, longe de se ter
despenhado em chamas, o «Lone Eagle» saíra, ileso, do monomotor intacto
e esperava apenas a chegada de uma peça sobressalente para levantar voo e
reatar a campanha.
Na manhã de Outubro em que Lindbergh aterrou no aeroporto de
Newark, entre as personalidades que esperavam para lhe dar as boas-vindas
a New Jersey encontrava-se o rabi Lionel Bengelsdorf do B’nai Moshe, o
primeiro dos templos conservadores da cidade organizados por judeus
polacos. O B’nai Moshe ficava a poucos quarteirões do coração do velho
gueto miserável dos vendedores ambulantes, que continuava a ser o bairro
mais pobre da cidade, embora tivesse deixado de ser habitado pelos
congregantes do B’nai Moshe e passasse a sê-lo por uma comunidade de
negros empobrecidos, recém-emigrados do Sul. Havia anos que o B’nai
Moshe andava a perder na competição pelos ricos; em 1940 essas famílias
tinham abandonado o conservadorismo e aderido às congregações
reformistas do B’nai Jeshurun e do Oheb Shalom – ambos impressivamente
instalados entre as antigas mansões da High Street – ou aderido a outro
templo conservador há muito firmado, o B’nai Abraham, situado vários
quilómetros a oeste de onde fora inicialmente acolhido, numa ex-igreja
baptista, e ficava agora adjacente às casas dos médicos e advogados judeus
residentes em Clinton Hill. O novo B’nai Abraham era o mais sumptuoso
dos templos da cidade, um edifício circular austeramente concebido no que
se chamava «o estilo grego» e tinha capacidade suficiente para acolher um
milhar de adoradores nos feriados solenes. Joachim Prinz, um imigrante
expulso de Berlim pela Gestapo de Hitler, substituíra um ano antes o
aposentado Julius Silberfeld como rabi do templo e estava já a revelar-se
um homem enérgico e com uma ampla visão social, que oferecia aos seus
prósperos congregantes uma perspectiva da história judaica fortemente
marcada pela sua própria experiência recente no cenário sangrento do crime
nazi.
Os sermões do rabi Bengelsdorf eram radiodifundidos semanalmente pela
estação WNJR para a populaça a que chamava a sua «congregação
radiofónica», e ele era autor de vários livros de poesia inspiradora
rotineiramente oferecidos como presente a rapazes que faziam o bar
mitzvah e a recém-casados. Nascera na Carolina do Sul em 1879, filho de
um imigrante, negociante de tecidos, e sempre que se dirigia ao seu público
judaico, quer do púlpito quer via rádio, o seu cortês sotaque sulista, aliado
às suas cadências grandíloquas – e às cadências do seu próprio nome
polissilábico –, deixava uma impressão de digna profundidade. A respeito,
por exemplo, da sua amizade com o rabi Silberfeld, do B’nai Abraham, e do
rabi Foster, do B’nai Jeshurun, disse uma vez aos seus radiouvintes:
«Estava escrito: assim como Sócrates, Platão e Aristóteles faziam parte,
juntos, do mundo antigo, assim também nós pertencemos, juntos, ao mundo
religioso.» E apresentou a homilia sobre altruísmo, que proferiu para
explicar a radiouvintes por que razão um rabi do seu estatuto se contentava
com dirigir uma congregação em declínio, dizendo: «Talvez estejais
interessados na minha resposta a perguntas que me foram feitas por,
literalmente, milhares de pessoas. “Por que motivo renuncia às vantagens
comerciais de um ministério peripatético? Por que opta por permanecer em
Newark, tendo como único púlpito o Templo B’nai Moshe, quando tem
todos os dias seis oportunidades de o trocar por outras congregações?”»
Estudara em grandes instituições de ensino na Europa, assim como em
universidades americanas, e tinha fama de falar dez línguas; de ser versado
em filosofia clássica, teologia e história de arte, assim como em história
antiga e moderna; de nunca transigir em questões de princípio; de nunca
recorrer a apontamentos no púlpito ou numa tribuna de conferências; de
nunca estar desprecavido de um conjunto de fichas de referência
relacionadas com os tópicos que no momento mais o ocupavam e a que
diariamente acrescentava novas reflexões e impressões. Era também um
exímio cavaleiro, conhecido por parar a montada a fim de anotar um
pensamento, servindo-se da sela como secretária improvisada. Treinava
todas as manhãs, cavalgando pelas sendas para cavaleiros do Weequahic
Park, acompanhado – até à sua morte, vitimado por cancro, em 1936 – pela
mulher, a herdeira do ourives mais rico de Newark. A mansão da família
dela na Elizabeth Avenue, onde o casal vivera, mesmo defronte do parque,
desde o casamento, em 1907, abrigava um acervo de Judaica que, dizia-se,
se contava entre as mais valiosas colecções particulares do mundo.
Em 1940, Lionel Bengelsdorf reivindicou o mais longo recorde de
serviço no seu próprio templo de qualquer rabi na América. Os jornais
referiam-se-lhe como o chefe religioso dos judeus de New Jersey e, ao
relatarem os seus numerosos aparecimentos públicos, mencionavam
invariavelmente os seus «dotes oratórios» a par das dez línguas que falava.
Em 1915, na comemoração do 250.º aniversário da fundação de Newark,
sentara-se ao lado do mayor Raymond e proferira a invocação, o que fazia
também anualmente nos cortejos do Memorial Day e no 4 de Julho: «Rabi
Exalta a Declaração de Independência», era o cabeçalho do Star-Ledger em
todos os dias 5 de Julho. Nos sermões e palestras em que declarava «o
incremento de ideais americanos» a primeira prioridade dos Judeus» e «a
americanização dos Americanos» o melhor meio de preservar a nossa
democracia contra o «bolchevismo, o radicalismo e a anarquia», citava com
frequência a última mensagem de Theodore Roosevelt à nação, na qual o
falecido presidente disse: «Aqui não pode haver uma lealdade dividida.
Qualquer homem que diz ser americano, mas também qualquer outra coisa,
não é de modo algum americano. Só temos lugar para uma bandeira, para a
bandeira americana.» O rabi Bengelsdorf falara sobre a americanização dos
Americanos em todas as igrejas e escolas públicas de Newark, perante
quase todos os grupos fraternais, cívicos, históricos e culturais do estado, e
os artigos noticiosos de jornais de Newark acerca de discursos seus tinham
nas datas os nomes de dezenas de cidades espalhadas pelo país, aonde ele
fora chamado para proferir conferências e participar em convenções sobre
esse tema, assim como sobre questões que iam do crime e do movimento de
reforma prisional – «O movimento de reforma prisional está impregnado
dos mais elevados princípios éticos e ideais religiosos» – às causas da
Guerra Mundial – «A guerra é o resultado das ambições materialistas dos
povos europeus e do seu esforço para alcançarem os objectivos de domínio
militar, poder e riqueza» –, da importância de infantários diurnos – «Os
infantários são jardins de vida de flores humanas em que cada criança é
ajudada a crescer numa atmosfera de alegria e felicidade» – aos malefícios
da era industrial – «Acreditamos que o mérito do homem trabalhador não
está em ser computado pelo valor material da sua produção» – e ao
movimento sufragista, a cuja proposta de alargar às mulheres o direito ao
voto se opunha fortemente, argumentando que «se os homens não são
capazes de gerir os assuntos do Estado, por que não ajudá-los a sê-lo.
Nenhum mal foi jamais curado pela sua duplicação.» O meu tio Monty, que
detestava todos os rabis mas tinha por Bengelsdorf uma aversão
particularmente virulenta que remontava à sua infância como aluno por
caridade da escola religiosa do B’nai Moshe, gostava de dizer a seu
respeito: «O inchado filho da mãe sabe tudo: é uma grande pena que não
saiba mais nada.»
Cerca das duas horas da manhã dessa noite, enquanto dormia a sono
solto, voltei a cair da cama, mas depois lembrei-me do que estivera a sonhar
antes de ir parar ao chão. Era um pesadelo e relacionava-se com a minha
colecção de selos, à qual acontecera alguma coisa. O desenho de dois dos
conjuntos dos meus selos tinha mudado de uma maneira terrível, sem eu
saber quando nem como. No sonho, tinha tirado o álbum da gaveta da
minha cómoda para o levar comigo para casa do meu amigo Earl e levava-o
debaixo do braço, a caminho da casa dele, como já fizera dúzias de vezes.
Earl Axman tinha dez anos e andava no quinto ano. Morava com a mãe no
prédio novo, de tijolo amarelo e quatro pisos, construído três anos atrás no
grande terreno deserto próximo do cruzamento da Chancellor com a
Summit, diagonalmente defronte da escola primária. Antes disso morara em
Nova Iorque. O pai dele era músico dos Glen Gray e da Casa Loma
Orchestra – Sy Axman, que tocava saxofone tenor ao lado do saxofone alto
de Glen Gray. Mr. Axman era divorciado da mãe de Earl, uma loura de uma
beleza aparatosa que fora fugazmente cantora da banda antes de Earl nascer
e, segundo diziam os meus pais, era oriunda de Newark e morena, uma
rapariga judia chamada Louise Swig que fora para South Side e se tornara
localmente famosa em revistas musicais da YMHA7. De todos os rapazes
que eu conhecia, Earl era o único filho de pais divorciados, assim como o
único cuja mãe se pintava muito e usava blusas que deixavam os ombros
nus e saias rodadas por cima de saiotes tufados. Também gravara um disco
da canção «Gotta Be This or That» quando estava na Glen Gray, e Earl
punha-o muitas vezes a tocar para mim. Nunca conheci nenhuma outra mãe
como ela. Earl não a tratava por mãe ou mamã, mas sim, escandalosamente,
por Louise. No quarto dela havia um roupeiro cheio dos tais saiotes, e
quando Earl e eu estávamos sozinhos em sua casa ele mostrava-mos. Uma
vez até me deixou tocar num, sussurrando, enquanto eu hesitava: «Podes
tocar onde quiseres.» Depois abriu uma gaveta, mostrou-me os sutiãs e
ofereceu-se para me deixar tocar num, mas aí eu declinei. Ainda era
suficientemente novo para poder admirar um sutiã de longe. Os pais davam-
lhe, cada um, um dólar, inteiro, por semana para gastar em selos, e quando a
Casa Loma Orchestra não estava a tocar em Nova Iorque e andava em
digressão, Mr. Axman mandava a Earl sobrescritos com selos de correio
com carimbo de cidades de todo o lado. Havia, até, um de «Honolulu,
Oahu», onde Earl, que não resistia a envolver o pai ausente no manto do
esplendor – como se um pai saxofonista de uma famosa banda de swing (e
uma mãe loura oxigenada e cantora) não fosse suficientemente assombroso
para o filho de um agente de seguros –, afirmava que Mr. Axman fora
levado a uma «casa particular» para ver o cancelado selo haitiano
«Missionary» de dois cêntimos, de 1851, emitido nada menos do que
quarenta e sete anos antes de o Havai ser anexado aos Estados Unidos como
território, um tesouro inimaginável avaliado em cem mil dólares e cujo
desenho central era simplesmente o algarismo 2.
Earl possuía e melhor colecção de selos das redondezas. Foi ele que me
ensinou, quando eu era um miúdo pequeno, tudo quanto havia de prático e
de esotérico a respeito de selos – da sua história, de coleccionar selos novos
em vez de usados, de questões técnicas como papel, impressão, cor, cola,
sobreimpressão, serrilhas e impressão especial, a respeito de grandes
falsificações e erros de desenho – e, como grandíssimo pedante que era,
iniciara a minha educação na matéria falando-me do coleccionador francês
Monsieur Herpin, que cunhou a palavra «filatelia», explicando-me a sua
derivação de duas palavras gregas, a segunda das quais, ate-leia, que
significava isenção de taxa, nunca fez inteiramente sentido para mim. E
sempre que acabávamos de conversar a respeito dos nossos selos na sua
cozinha e ele deixava momentaneamente de me dominar, soltava uma
pequena gargalhada e dizia: «Agora vamos fazer uma coisa indecente» – e
foi assim que comecei a ver a roupa interior da mãe dele.
No sonho, dirigia-me para casa de Earl com o álbum dos selos apertado
contra o peito quando alguém gritou o meu nome e começou a perseguir-
me. Tinha enfiado por uma travessa e corria para dentro de uma das
garagens, a fim de me esconder e de verificar se alguns selos se tinham
soltado, quando, enquanto fugia do meu perseguidor, tropecei e deixei cair
o álbum precisamente no sítio do passeio onde costumávamos jogar ao «Eu
Declaro Guerra». Quando o abri na página dos meus selos comemorativos
do Bicentenário de Washington de 1932 – doze selos que iam do castanho-
escuro de meio cêntimo ao amarelo de dez cêntimos – fiquei estupefacto.
Washington já não estava nos selos. No topo de cada selo mantinha-se
inalterada a frase «United States Postage» – escrita no que eu aprendera a
identificar como do tipo romano mais claro e espaçada a uma ou duas
linhas. As cores dos selos também se mantinham inalteradas – o de dois
cêntimos, vermelho; o de cinco cêntimos, azul; o de oito cêntimos, verde--
azeitona, etc. –, todos os selos tinham o tamanho regulamentar, e as
molduras dos retratos mantinham o desenho individual como no conjunto
original, mas em vez de um retrato diferente de Washington para cada um
dos doze selos, o retrato era agora o mesmo em todos, e já não de
Washington, mas de Hitler. E na fita por baixo de cada retrato também já
não se lia o nome «Washington». Quer a fita se curvasse para baixo, como
nos selos de meio cêntimo e de seis cêntimos, quer se curvasse para cima,
como nos de quatro, cinco, sete e dez, quer fosse recta com as extremidades
erguidas, como nos de um, um e meio, dois, três, oito e nove cêntimos, o
nome agora escrito nela era «Hitler».
Foi quando olhei, a seguir, para a página de rosto, a fim de ver se
acontecera alguma coisa à minha série de dez selos de Parques Nacionais de
1934, que caí da cama abaixo e acordei no chão, desta vez a gritar.
Yosemite na Califórnia, Grand Canyon no Arizona, Mesa Verde no
Colorado, Crater Lake no Oregon, Acadia no Maine, Mount Rainier em
Washington, Yellowstone no Wyoming, Zion no Utah, Glacier em Montana,
Great Smoky Mountains no Tennessee... e na frente de cada um deles, de
ponta a ponta dos penhascos, das florestas, dos rios, dos picos, do géiseres,
dos desfiladeiros, do litoral, da água azul-escura e das altas cataratas, de
ponta a ponta de tudo o que na América era mais azul, mais verde e mais
branco e devia ser preservado para sempre naquelas antigas reservas, estava
estampada uma suástica negra.
1 Feriado celebrado a partir de 30 de Maio de 1868 em memória dos mortos da Guerra Civil
Americana, cujas campas eram decoradas. Mais tarde passou a ser comemorado na última segunda-
feira de Maio em memória de todos os mortos americanos das guerras. Chama-se agora Memorial
Day. (NT)
2 Organização humanitária instituída em 1938 pelo presidente Roosevelt com o fim de salvar a
juventude americana da poliomielite e assente na ideia de que as pessoas podem resolver qualquer
problema se trabalharem em conjunto. (NT)
3 Comité Primeiro a América. Os seus adeptos eram conhecidos por «America Firsters» (NT)
4 Iídiche: palpiteiro, aquele que gosta de dar palpites ou conselhos, geralmente não solicitados ou
desejados. (NT)
5 Em minúscula, «arbor» significa caramanchão, mas no conjunto «Arbor Day» significa «Árvore»:
Dia da Árvore. (NT)
6 Nos Estados Unidos, o Labor Day, ou Dia do Trabalho, comemora-se na primeira segunda-feira de
Setembro. (NT)
7 Young Men’s Hebrew Association (também referida por «Y») — associação promotora do bem-
estar social, intelectual e físico dos jovens judeus; o equivalente judaico da YMCA para os cristãos.
(NT)
2
Novembro de 1940-Junho de 1941
JUDEU FALA-BARATO
***
Até à sua partida, Alvin estivera sob a custódia da minha família durante
quase sete anos. O seu falecido pai era o irmão mais velho do meu e
morrera quando ele tinha seis anos, e a mãe de Alvin – prima em segundo
grau da minha mãe e quem apresentara os meus pais um ao outro – morreu
quando Alvin tinha treze anos e, por isso, ele fora viver connosco durante os
quatro anos em que frequentou a escola secundária de Weequahic; era um
rapaz esperto, que jogava e roubava, que o meu pai estava empenhado em
salvar. Alvin tinha vinte e um anos em 1940 e morava num quarto alugado
mobilado, por cima de uma loja de engraxador, logo ao dobrar da esquina
do mercado de produtos agrícolas, e nessa altura trabalhava havia quase
dois anos para a Steinheim & Sons, uma das duas maiores empresas
judaicas de construção civil – a outra era dirigida pelos irmãos Rachlin.
Alvin arranjou o emprego por intermédio do Steinheim mais velho, o
fundador da empresa e cliente de seguros da agência do meu pai.
O velho Steinheim, que tinha um sotaque carregado e não sabia ler inglês,
mas era, segundo dizia o meu pai, «feito de aço», ainda assistia aos serviços
dos dias sagrados importantes na nossa sinagoga local. Num Yom Kippur de
alguns anos atrás, quando viu o meu pai com Alvin no lado de fora da
sinagoga, julgou que o meu primo era o meu irmão mais velho e perguntou:
«O que faz ele? Mande o rapaz aparecer e trabalhar para nós.» Foi aí que
Abe Steinheim, que transformara a pequena empresa de construção do seu
pai imigrante numa operação multimilionária – embora só depois de uma
grande guerra de família ter posto os seus dois irmãos na rua –, ganhou
simpatia pelo sólido e entroncado Alvin e pelos seus modos convencidos, e
por isso, em vez de pregar com ele na sala do correio ou usá-lo como
paquete do escritório, fê-lo seu motorista: fazer recados, entregar
mensagens, conduzi-lo de um lado para o outro aos locais das obras para
vigiar os subempreiteiros (a quem Abe chamava «os intrujões», embora,
segundo Alvin dizia, fosse ele quem os intrujava e vigarizava toda a gente).
Aos sábados, no Verão, Alvin levava-o de carro a Freehold, onde Abe tinha
meia dúzia de cavalos de trote que punha em competição na velha pista de
corridas, cavalos aos quais gostava de chamar «hambúrgueres». «Hoje
temos um «hambúrguer» a correr em Freehold», e lá iam no Caddy, a toda a
velocidade, para verem o seu cavalo perder, todas as vezes. Ele nunca
ganhava dinheiro algum com isso, mas a ideia também não era essa. Tinha
cavalos a correr aos sábados para a Road Horse Association, na bonita pista
de trote do Weequahic Park, e falava aos jornais a respeito da restauração da
pista plana de Mount Holly, cujos dias gloriosos tinham passado há muito, e
foi assim que Abe Steinheim conseguiu tornar-se comissário de corridas de
cavalos do estado de New Jersey, o que lhe deu direito a uma placa no carro
que lhe permitia conduzir no passeio, ligar uma sereia e estacionar onde
quisesse. E foi também assim que travou amizade com os funcionários de
Monmouth County e se insinuou no círculo hípico da costa – góis de Wall
Township e Spring Lake que o levavam a almoçar nos seus clubes de luxo,
onde, conforme Abe dizia a Alvin, «toda a gente me vê e não faz outra coisa
senão segredar «olhem quem temos aqui», mas eles não se importam de
tomar minha bebida e de serem obsequiados com grandes jantaradas, e por
isso, no fim, acaba por valer a pena». Tinha o seu barco de pesca de alto
mar ancorado no Shark River Inlet, transportava-os para o largo, punha-os
bem bebidos e contratava tipos para pescarem por eles, de modo que cada
vez que um novo hotel era construído em qualquer ponto entre Long
Branch e Point Pleasant, era-o num terreno que os Steinheim tinham
adquirido por uma bagatela – Abe, como o pai, tinha a grande sabedoria de
só comprar coisas com desconto.
De três em três dias, Alvin conduzia-o ao longo dos quatro quarteirões
que iam do escritório ao número 744 da Broad Street para uma aparadela
rápida na barbearia do átrio atrás da loja de charutos, onde Abe Steinheim
comprava os seus Trojans e os seus charutos de dólar e meio. O 744 da
Broad era um dos dois edifícios de escritórios mais altos do estado, onde o
National Newark e o Essex Bank ocupavam os vinte andares do topo e os
advogados e financeiros de prestígio da cidade ocupavam os restantes, e
onde os maiores ricaços de New Jersey frequentavam regularmente a
barbearia. Apesar disso, uma parte do trabalho de Alvin consistia em ligar
para a barbearia imediatamente antes de saírem e dizer ao barbeiro que se
preparasse, pois Abe ia a caminho, e tirasse da cadeira quem quer que lá
estivesse. Ao jantar, na noite em que Alvin arranjou o emprego, o meu pai
disse-nos que Abe Steinheim era o mais excêntrico, o mais excitante e o
maior construtor que Newark jamais conhecera. «E um génio», acrescentou.
«Não chegaria lá se não fosse um génio. Brilhante. E um belo homem.
Louro. Corpulento, mas sem ser gordo. Apresenta-se sempre bem.
Sobretudos de lã de camelo. Sapatos de gáspeas pretas e brancas. Belas
camisas. Impecavelmente vestido. E tem uma bonita mulher: educada, cheia
de classe, Freilich por nascimento, uma Freilich de Nova Iorque, uma
mulher muito rica por direito próprio. O que não falta ao Abe é esperteza. E
o homem tem garra. Perguntem seja a quem for, em Newark: por muito
arriscado que um projecto seja, Steinheim deita-lhe a mão. Constrói
edifícios onde mais ninguém correria esse risco. O Alvin vai aprender com
ele. Vai observá-lo e ver o que é trabalhar sem descanso por qualquer coisa
que é nossa. É verdade, ele pode ser uma inspiração importante para a vida
do Alvin.»
Em grande parte para que o meu pai pudesse mantê-lo debaixo de olho e
a minha mãe verificasse que ele não estava a sobreviver apenas de
cachorros quentes, Alvin ia a nossa casa; duas vezes por semana, para
comer uma boa refeição e, miraculosamente, em vez de ouvir, à mesa do
jantar, sermões severos a respeito de honestidade, responsabilidade e
trabalho esforçado – como nos dias que se seguiram a ter sido apanhado em
flagrante com a mão na caixa da estação de serviço da Esso, onde
trabalhava depois das aulas e que, até o meu pai convencer Simkowitz, o
proprietário, a desistir da queixa e repor o dinheiro do seu bolso, parecia já
ir a caminho do Reformatório Rahway –, Alvin conversava acaloradamente
com o meu pai a respeito de política e, em especial, do capitalismo, um
sistema que, desde que o meu pai o convencera a interessar-se pela leitura
do jornal e a falar das notícias, ele deplorava, mas o meu pai defendia,
argumentando pacientemente com o reabilitado sobrinho, não como um
membro da Associação Nacional de Industriais, mas sim como um
entusiasta do New Deal de Roosevelt. Ele avisara Alvin: «Não fales de Karl
Marx a Mr. Steinheim. O homem não hesitará em pôr-te no olho da rua.
Aprende com ele. É para isso que lá estás. Aprende com ele e mostra-te
respeitoso, pois esta pode ser a oportunidade da tua vida.»
Mas Alvin não suportava Steinheim e dizia mal dele constantemente: ele
é um trampolineiro, ele é um fanfarrão, ele é um unhas de fome, ele é um
tirano, ele só sabe berrar, ele é trafulha, ele é um homem que não tem um
amigo no mundo inteiro, as pessoas não suportam estar perto dele, e eu,
lembrava Alvin, tenho de lhe servir de motorista por todo o lado. É cruel
com os filhos, não mostra sequer interesse em olhar para um neto e, sempre
que lhe dá na gana, humilha a escanzelada da mulher, que nunca se atreve a
dizer ou fazer alguma coisa que lhe desagrade. Toda a gente da família tem
de viver em apartamentos do mesmo prédio de luxo que Abe construiu
numa rua de grandes carvalhos e bordos perto do Upsala College, em
Orange Oriental. Os filhos trabalham para ele do nascer ao pôr do Sol, em
Newark, onde têm de o ouvir gritar-lhes e berrar-lhes o dia inteiro, e depois,
à noite, ele pega no telefone interno de East Orange e continua a gritar e a
berrar com eles. O dinheiro é tudo, não para comprar coisas, mas para poder
safar-se sempre de dificuldades: para proteger a sua posição e garantir as
suas acções e comprar tudo quanto quiser em imobiliário, a preço de saldo,
pois foi assim que se encheu depois do Crash. Dinheiro, dinheiro, dinheiro
– estar no meio do caos e no meio dos negócios e ganhar todo o dinheiro do
mundo.
– Um tipo reforma-se aos quarenta e cinco anos com cinco milhões de
dólares. Cinco milhões dele no banco, que é um balúrdio, e sabem o que o
Abe diz? – Alvin faz esta pergunta ao meu irmão de doze anos e a mim.
Acabámos de jantar e ele está connosco no quarto: todos nós estendidos
sem sapatos em cima das camas, Sandy na sua, Alvin na minha e eu ao lado
de Alvin, na curva entre o seu braço forte e o seu peito forte. E é um
encantamento: histórias acerca da avareza do homem, do seu fervor, da sua
vitalidade sem limites e espantosa arrogância, e a contar essas histórias um
primo que não conhece, ele próprio, limites, nem mesmo depois de todos os
esforços do meu pai, um primo fascinante, emocionalmente ainda entre os
mais imaturos dos imaturos, que aos vinte e um anos já tem de rapar a barba
negra duas vezes por dia para não parecer um criminoso endurecido.
Histórias dos descendentes carnívoros dos macacos gigantes que outrora
habitaram nas antigas florestas e abandonaram as árvores, onde passavam o
dia inteiro a mordiscar folhas, para virem para Newark trabalhar no centro
da cidade.
– O que é que Mr. Steinheim diz? – pergunta Sandy.
– Diz: «O tipo tem cinco milhões. É só isso que tem. Ainda novo e na
força da vida, com a possibilidade de um dia vir a valer cinquenta, sessenta,
talvez mesmo cem milhões, e diz-me: “Vou largar tudo. Não sou como tu,
Abe. Não vou continuar aí à espera do ataque cardíaco. Tenho o suficiente
para dizer basta e passar o resto da minha vida a jogar golfe.”» E o que diz
Abe? «Um tipo destes é um idiota chapado.» A cada subempreiteiro que vai
ao escritório à sexta-feira buscar dinheiro para a madeira, o vidro, os tijolos,
Abe diz: «Olha, estamos sem dinheiro, isto é o máximo que posso arranjar»,
e paga-lhes metade, um terço – se consegue levar a sua avante até mesmo
um quarto – do que lhe pedem, apesar de aquelas pessoas precisarem do
dinheiro para sobreviver. Mas este é o método que ele aprendeu com o pai,
e não há remédio. Está a construir tanto que se safa e ninguém tenta matá-
lo.
– Alguém tentaria matá-lo? – pergunta Sandy.
– Sim – responde Alvin. – Eu.
– Conta-nos do aniversário do casamento – peço-lhe.
– O aniversário do casamento – repete. – Pois sim, ele cantou cinquenta
canções. Contratou um pianista – conta-nos Alvin, exactamente da mesma
maneira que conta a história de Abe ao piano, todas as vezes que lhe peço –
e ninguém diz uma palavra, ninguém sabe o que se está a passar, todos os
convidados levam a noite inteira a comer a comida dele, e Abe, de pé no seu
smoking ao lado do piano, continua a cantar as suas canções, todas as
canções populares que possas imaginar, e nem sequer ouve quando eles se
despedem e saem.
– Ele grita e berra contigo? – pergunto.
– Comigo? Com toda a gente. Grita e berra aonde quer que vá. Levo-o de
carro à Tabatchnick’s, aos domingos de manhã. As pessoas estão na bicha
para comprarem as suas bagels e o seu salmão fumado. Nós entramos e ele
desata a berrar. Há uma bicha de seiscentas pessoas, mas ele berra:
«Chegou o Abe!», e elas deixam-no passar à frente. O Tabatchnick vem a
correr das traseiras, empurra todos para o lado, Abe faz compras de uns
cinco mil dólares e voltamos para casa, onde está Mrs. Steinheim, que pesa
quarenta e três quilos e sabe muito bem quando deve desaparecer do
caminho, e ele telefona aos três filhos, que chegam em cinco segundos e
comem os quatro uma refeição para quatrocentas pessoas. A única coisa em
que ele gasta dinheiro é em comida. Comida e charutos. Fala-se na
Tabatchnick’s, na Kartzman’s, e ele está-se nas tintas para quem lá está,
quantas pessoas: chega e compra a loja inteira. Comem todos os bocadinhos
de tudo, todos os domingos de manhã – esturjão, arenques, marta, bagels,
picles – e depois levo-os de carro para o escritório da imobiliária, para
verem quantos apartamentos estão vagos, quantos estão alugados, quantos
estão em obras. Sete dias por semana. Nunca pára. Nunca tem férias. Não
há mañana, eis o seu lema. Fica doido se alguém perde um minuto de
trabalho. Não consegue adormecer se não souber que no dia seguinte haverá
mais negócios que renderão mais dinheiro, e todo esse maldito esquema me
dá vómitos. Para mim, o homem é uma única coisa: um anúncio ambulante
a favor do derrube do capitalismo.
O meu pai classificava as queixas de Alvin de coisas de miúdo, que devia
guardar para consigo no emprego, sobretudo depois de Abe ter decidido que
ia enviar o meu primo para a Rutgers. És demasiado esperto, disse Abe a
Alvin, para seres tão ignorante; e depois aconteceu uma coisa que
ultrapassou tudo quanto o meu pai poderia, realisticamente, ter esperado.
Abe pega no telefone, liga para o presidente da Rutgers e desata a gritar
com ele. «Você vai aceitar este rapaz, a altura em que ele deixou a escola
secundária não vem ao caso, o rapaz é órfão e potencialmente um génio,
você vai dar-lhe uma bolsa de estudos completa e eu construo-lhe um
edifício universitário, o mais belo do mundo... mas não leva nem uma
cagadeira se este órfão não entrar na Rutgers com todas as despesas pagas!»
E explica a Alvin: «Nunca gostei de ter um motorista formal que fosse um
motorista idiota. Gosto de miúdos como tu, com qualquer coisa de especial.
Vais para a Rutgers, vens a casa e conduzes-me nas férias de Verão, e
quando fores um Phi Beta Kapa, então vamos sentar-nos os dois e
conversar.»
Abe queria que Alvin começasse como caloiro em New Brunswick, em
Setembro de 1941, e regressasse, passados quatro anos de universidade,
para ser alguém na empresa, mas em vez disso Alvin partiu para o Canadá
em Fevereiro. O meu pai ficou furioso com ele. Discutiram semanas a fio,
até que, sem nos dizer nada, Alvin embarcou no comboio expresso na Penn
Station de Newark directamente para Monreal. «Não percebo a sua
moralidade, tio Herman. Não quer que eu seja um ladrão, mas acha bem
que eu trabalhe para um ladrão.» «Steinheim não é um ladrão. Steinheim é
um construtor. O que ele faz é o que eles fazem», respondeu o meu pai, «o
que todos eles têm de fazer, porque a construção é um negócio implacável,
onde vale tudo. Mas os edifícios que ele constrói não caem, pois não? Ele
infringe a lei, Alvin? Infringe?» «Não, ele só aproveita todas as
oportunidades para lixar os trabalhadores bem lixados. Não sabia que a sua
moralidade também abrangia isso.» «A minha moralidade fede», respondeu
o meu pai, «toda a gente da cidade sabe o que ela vale. Mas a questão não
sou eu. A questão é o teu futuro. É ires estudar. Quatro anos de educação
superior grátis.» «Grátis porque ele intimida o presidente da Rutgers da
mesma maneira que intimida a porcaria do mundo inteiro.» «Deixa o
presidente da Rutgers preocupar-se com isso! Que raio se passa contigo?
Queres estar aí sentado a dizer-me que o pior ser humano que jamais veio a
este mundo é um homem que quer tornar-te uma pessoa instruída e arranjar-
te um lugar na sua empresa de construção?» «Não, não, o pior ser humano
que jamais nasceu é Hitler e, francamente, eu preferia ir combater contra
esse filho da mãe a desperdiçar o meu tempo com um judeu como
Steinheim, que só envergonha os outros judeus com o seu maldito...» «Oh,
não fales comigo como uma criança... e eu também dispenso os “malditos”.
O homem não envergonha ninguém. Julgas que seria melhor se trabalhasses
para um construtor irlandês? Experimenta trabalhar para o Shanley e verás
o tipo porreiro que ele é. E os italianos, achas que os italianos seriam
melhores? O Steinheim grita e berra, os italianos disparam armas.» «E o
Longy Zwillman não dispara?» «Por favor, eu sei tudo a respeito do Longy.
Cresci na mesma rua que ele. O que tem tudo isso que ver com a Rutgers?»
«Tem que ver comigo, tio Herman, e com ficar em dívida com o Steinheim
durante o resto da minha vida. Não basta ele ter três filhos que já está a
destruir? Não basta eles terem de assistir a todas as festas judaicas com ele,
e a todos os dias de Acção de Graças com ele, e a todas as vésperas de Ano
Novo com ele, é preciso que eu também lá esteja e ele berre também
comigo? Todos eles a trabalhar no mesmo escritório, e a morar no mesmo
prédio, e a esperar apenas uma coisa: repartirem tudo no dia em que ele
morrer. Posso garantir-lhe, tio Herman, que o desgosto deles não durará
muito.» «Estás enganado. Redondamente enganado. Há mais coisas entre
essas pessoas do que apenas dinheiro.» «O tio é que está enganado! Ele
tem-nos na mão por causa do dinheiro. O tipo está doido varrido e eles
ficam e aguentam por medo de perderem o dinheiro!» «Eles ficam porque
são uma família. Todas as famílias passam por muitas coisas. Uma família
é, ao mesmo tempo, paz e guerra. Nós próprios estamos a passar por uma
pequena guerra, neste preciso momento. Eu compreendo. Eu aceito-o. Mas
isso não é motivo para abrires mão da universidade onde não entraste, e
onde tens agora oportunidade de entrar, para ires todo apressado combater
contra o Hitler.» «Isso significa», replicou Alvin como se, finalmente,
tivesse percebido qual era o jogo não só do seu patrão, mas também do
familiar seu protector, «que, afinal, é um isolacionista. O tio e Bengelsdorf.
Bengelsdorf, Steinheim... eles formam uma boa parelha.» «De quê?»,
perguntou, irritado, o meu pai, perdendo finalmente a paciência. «De falsos
judeus.» «Ah, agora também estás contra os judeus?» «Contra esses judeus.
Os judeus que são uma vergonha para os judeus... estou, sim,
completamente!»
A discussão repetiu-se durante quatro noites consecutivas e depois, na
quinta, uma sexta-feira, Alvin não apareceu para jantar, embora a ideia
fosse fazê-lo comparecer regularmente para jantar, até o meu pai o demover
pelo cansaço e o rapaz voltar à razão – o rapaz que o meu pai transformara,
sozinho, de um inútil inexperiente na consciência da família.
Na manhã seguinte soubemos por Billy Steinheim, de todos os filhos de
Steinheim o mais chegado a Alvin e suficientemente preocupado com ele
para telefonar no sábado logo de manhã, que depois de receber a féria, na
sexta-feira, o meu primo tinha atirado as chaves do Caddy à cara do pai de
Billy e partido. E quando o meu pai saiu apressadamente no nosso carro
para a Wright Street, a fim de falar com Alvin no quarto dele, ouvir a
história toda e avaliar até que ponto ele destruíra as suas possibilidades, o
proprietário do salão de engraxadores, que era o senhorio de Alvin,
informou-o de que o inquilino pagara a renda, fizera as malas e partira para
combater contra o pior ser humano que jamais viera ao mundo. Dada a
magnitude da sanha de Alvin, ninguém menos nefando lhe serviria.
Quando fugiu pela primeira vez para combater contra Hitler, Alvin
imaginava que a maneira mais rápida de entrar em combate seria a bordo de
um dos contratorpedeiros canadianos que protegiam os navios mercantes
que transportavam mantimentos para a Grã-Bretanha. Os jornais
publicavam regularmente notícias do afundamento por submarinos alemães
de um ou mais desses navios canadianos no Atlântico Norte, por vezes tão
perto do continente como as águas de pesca costeira da Terra Nova – um
estado de coisas nefasto para os Ingleses, em virtude de o Canadá se ter
tornado praticamente a sua única fonte de abastecimento de armas,
alimentos, medicamentos e maquinaria desde que a Administração
Lindbergh cancelara a legislação de ajuda aprovada pelo Congresso de
Roosevelt. Em Monreal, Alvin conheceu um jovem desertor americano que
lhe disse para esquecer a Marinha: quem estava no centro da acção eram os
comandos canadianos, que desencadeavam raides nocturnos sobre o
continente ocupado pelos nazis, sabotando serviços vitais para os Alemães,
atirando pelos ares arsenais de munições e, ao lado de comandos britânicos
e em consonância com movimentos clandestinos de resistência europeia,
destruindo docas e estaleiros ao longo da linha costeira da Europa
Ocidental. Quando contou a Alvin as muitas maneiras de matar um homem
que os comandos ensinavam, o meu primo abandonou os seus planos
iniciais e alistou-se neles. Como as restantes forças armadas canadianas, os
comandos estavam ansiosos por receber nas suas fileiras cidadãos
americanos qualificados, e por isso, decorridas dezasseis semanas de treino,
Alvin foi incorporado numa unidade de comandos activa e enviado para
uma área de concentração secreta nas Ilhas Britânicas. E foi então que
tivemos finalmente notícias dele, quando recebemos uma carta com sete
palavras que dizia: «Vou partir para combater. Vejo-os em breve.»
Foi só dias depois de Sandy, entregue a si mesmo, ter apanhado o
comboio nocturno para Kentucky que os meus pais receberam uma segunda
carta, esta enviada não pelo meu primo, mas pelo Ministério da Guerra de
Otava, comunicando aos parentes próximos designados por Alvin que o seu
sobrinho fora ferido em combate e se encontrava a convalescer num
hospital em Dorset, Inglaterra. Depois de os pratos do jantar dessa noite
terem sido levantados, a minha mãe voltou a sentar-se à mesa da cozinha
com uma caneta de tinta permanente e a caixa de papel de carta
monogramado reservado para correspondência importante. O meu pai
sentou-se defronte dela e eu fiquei de pé, a olhar por cima do seu ombro, a
ver o seu cursivo desenrolar-se uniformemente, segundo as normas da
técnica caligráfica que ela usara como secretária e nos ensinara cedo, ao
Sandy e a mim: o terceiro e o quarto dedos posicionados de modo a
suportarem a mão e o indicador mais perto do bico da caneta do que o
polegar. Dizia cada frase em voz alta antes de a escrever, para o caso de o
meu pai querer modificá-la ou acrescentar alguma coisa.
Querido Alvin,
Esta manhã recebemos uma carta do governo canadiano informando-nos
de que foste ferido em combate e estás num hospital em Inglaterra. A carta
não continha nada mais específico do que uma morada para onde podíamos
escrever-te.
Neste momento, encontramo-nos à mesa da cozinha, o tio Herman, o
Philip e a tia Bess. Todos nós desejamos saber tudo a respeito do teu estado.
O Sandy foi passar o Verão fora, mas nós vamos escrever-lhe
imediatamente a teu respeito.
Existe alguma possibilidade de seres reenviado para o Canadá? Se existir,
iremos lá ver-te de carro. Entretanto, enviamos-te todo o nosso amor e
esperamos que nos escrevas de Inglaterra. Por favor, escreve ou pede a
alguém que escreva por ti. Seja o que for que queiras que nós façamos, nós
faremos.
Mais uma vez, amamos-te e temos saudades tuas.
Sandy escrevia uma vez por semana a dizer que se encontrava bem e a
falar do calor que estava no Kentucky, e rematava com uma frase a respeito
da vida na quinta – qualquer coisa como «Há uma colheita monumental de
amoras», ou «As moscas estão a dar com os bezerros em malucos», ou
«Hoje andam a ceifar alfafa», ou «Começou a poda das copas», fosse o que
fosse que isso significava. No fim, por baixo da assinatura – e talvez para
provar ao pai que tinha energia suficiente para os seus desenhos, mesmo
depois de trabalhar o dia inteiro na quinta – fazia o desenho de um porco
(«Este porco», informava, «pesa mais de cento e trinta e cinco quilos»), ou
de um cão («Suzie, a cadela do Orin, especializada em afugentar cobras»,
ou de um cordeiro («Ontem, Mr. Mawhinney levou trinta cordeiros para os
currais»), ou de um celeiro («Acabaram de o pintar com creosote. Que
fedor!») Geralmente, o espaço ocupado pelo desenho era maior do que o
ocupado pelas notícias e, para desgosto da minha mãe, as perguntas que ela
fizera na sua própria carta semanal – se precisava de roupa, remédios ou
dinheiro – raramente obtinham resposta. É claro que eu sabia que a minha
mãe se preocupava com igual carinho com cada um dos seus filhos, mas foi
só quando Sandy partiu para o Kentucky que compreendi quanto ele
significava para ela como alguém diferente do seu irmão mais novo.
Embora não se mostrasse desanimada por estar oito semanas separada de
um filho já com treze anos, durante todo o Verão notaram-se laivos de
melancolia subjacentes em certos gestos e expressões faciais, sobretudo à
mesa da cozinha, onde a quarta cadeira puxada para o jantar permanecia
deserta, noite após noite.
A tia Evelyn estava connosco quando fomos à Penn Station esperar
Sandy, no sábado de finais de Agosto em que ele regressou a Newark. Era a
última pessoa cuja presença o meu pai desejaria, mas, do mesmo modo que,
contra a sua própria vontade, acabara por deixar Sandy inscrever-se no Just
Folks e aceitar o emprego estival no Kentucky, voltou a submeter-se à
influência da cunhada sobre o seu filho, para não tornar ainda mais difícil
uma situação melindrosa cujo perigo final ainda não era inteiramente claro.
Na estação, a tia Evelyn foi a primeira a reconhecer Sandy quando ele
desceu do comboio para o cais, cerca de cinco quilos mais pesado do que
quando partira e com o cabelo castanho mais alourado, em virtude de ter
trabalhado nos campos sob o sol estival. Também estava uns cinco
centímetros mais alto, de modo que as calças lhe ficavam agora a uma boa
distância dos sapatos, e eu tinha a impressão de que o meu irmão se
encontrava disfarçado.
– Eh, agricultor – chamou a tia Evelyn –, estamos aqui! – E Sandy veio
em grandes passadas direito a nós, balançando as malas aos lados do corpo
e exibindo um novo andar solto a condizer com o novo físico.
– Bem-vindo a casa, forasteiro – disse a minha mãe e, com o ar de uma
rapariga nova, passou-lhe os braços pelo pescoço, feliz, e as palavras que
lhe murmurou ao ouvido («Alguma vez existiu um rapaz mais bonito?»)
fizeram-no protestar: «Mãe! Deixe-se disso!», o que provocou,
evidentemente, uma grande gargalhada ao resto da família. Abraçámo-lo
todos e, parado ao lado do comboio em que entrara uns mil e duzentos
quilómetros atrás, Sandy flectiu os bicípites para eu os apalpar. No carro,
quando começou a responder às nossas perguntas, descobrimos como a sua
voz se tornara grossa e ouvimos pela primeira vez o tom arrastado e
fanhoso.
A tia Evelyn estava triunfante. Sandy falou do último trabalho que fizera
nos campos: andar com Orin, um dos filhos de Mawhinney, a apanhar as
folhas de tabaco partidas durante a colheita. Eram geralmente as mais
baixas da planta e chamavam-lhes «voadoras», mas tratava-se de tabaco de
elevada qualidade e que atingia o preço mais alto do mercado. No entanto,
os homens que fazem o corte num campo de tabaco de cerca de dez
hectares não podem perder tempo com as folhas do chão, explicou-nos,
porque têm de cortar uns três mil sarrafos para tabaco por dia, a fim de em
duas semanas ficar tudo armazenado no barracão de cura. «Ena, ena... o que
é um sarrafo, querido?», perguntou a tia Evelyn, e ele respondeu-lhe
amavelmente, com a mais longa explicação possível. E também perguntou o
que é um barracão de cura, o que é podar as copas, o que é rebento ladrão, o
que é desinfestar? E quanto mais perguntas a tia Evelyn fazia, mais Sandy
adoptava um ar entendido, de modo que, mesmo quando chegámos à
Summit Avenue e o meu pai parou o carro no beco, ele continuava a
dissertar acerca da cultura do tabaco como se esperasse que todos nós
fôssemos a correr para o quintal e começássemos a preparar o canteiro
inçado de ervas ao lado dos contentores de lixo para a primeira de todas as
colheitas de white burley8. «É o do tipo adocicado dos Luckies», informou-
nos, «que lhes dá o gosto que têm». E, entretanto, eu estava em pulgas para
lhe apalpar de novo os bicípites, que para mim não eram menos
extraordinários do que o sotaque regional, se era disso que se tratava –
trocava os sons de «an» por «ain», e de «e» por «ai», e de «ai» por «aa», e
de «ain» por «in», acrescentava um «a» antes de algumas palavras
começadas por «w» ou «t»... e podem chamar o que quiserem àquela
misturada de inglês, mas não era o que nós, nativos de Newark, falávamos.
A tia Evelyn estava triunfante, mas o meu pai parecia embasbacado e não
dizia quase nada. Naquela noite, a mesa do jantar pareceu particularmente
soturna quando Sandy começou a descrever o modelo que Mr. Mawhinney
era. Para começar, era licenciado pela Faculdade de Agricultura da
Universidade de Kentucky, enquanto o meu pai, como muitas outras
crianças dos bairros pobres de Newark de antes da Guerra Mundial, não
tinha estudado para além do oitavo ano. Mr. Mawhinney era proprietário
não apenas de uma quinta, mas de três – as duas mais pequenas estavam
arrendadas –, terra que pertencia à sua família quase desde o tempo de
Daniel Boone, enquanto o meu pai não tinha nada mais impressionante do
que um carro com seis anos. Mr. Mawhinney sabia selar um cavalo,
conduzir um tractor, trabalhar com uma debulhadora, manobrar uma
adubadora, lavrar um campo tão facilmente com uma parelha de machos
como com uma junta de bois; sabia fazer rotação de colheitas e dirigir
homens contratados, tanto brancos como negros; sabia reparar ferramentas,
afiar pontas de arado e segadeiras, colocar cercas e arame farpado, criar
frangos, lavar ovinos com desinfectante, serrar os cornos a gado, matar
porcos, fumar toucinho, fazer fiambre – além de cultivar melancias que
eram as mais doces e sumarentas que Sandy jamais comera. Graças ao
cultivo de tabaco, milho e batatas, Mr. Mawhinney conseguia ganhar a vida
com o produto da terra e depois, ao jantar de domingo (onde o agricultor,
com um metro e noventa de altura e cento e cinco quilos de peso, devorava
mais frango frito com molho de natas do que todas as outras pessoas à mesa
juntas), comia apenas alimentos que ele próprio cultivara e criara, ao passo
que a única coisa que o meu pai fazia era vender seguros. Escusado seria
dizer que Mr. Mawhinney era cristão, membro de longa data da esmagadora
maioria que combateu na Revolução e fundou a nação, conquistou a
imensidão selvagem, dominou os Índios, escravizou os Negros, emancipou
os Negros e segregou os Negros, um dos milhões de homens bons, puros e
trabalhadores que povoavam a fronteira, lavravam os campos, construíam
as cidades, governavam os estados, tinham assento no Congresso,
ocupavam a Casa Branca, acumulavam a riqueza, possuíam a terra, eram
donos das fábricas de aço, e dos clubes de basebol, e dos caminhos-de-
ferro, e dos bancos e eram até donos e fiscais da língua, era um daqueles
inatacáveis protestantes nórdicos e anglo-saxões que dirigem e sempre
dirigirão a América – generais, dignitários, magnatas, manda-chuvas, os
homens que ditavam a lei, e punham e dispunham, e pregavam sermões
quando lhes apetecia – enquanto o meu pai, evidentemente, era apenas um
judeu.
O meu irmão soube o que acontecera ao Alvin depois de a minha tia ter
ido para casa. O meu pai estava a trabalhar nos seus livros de contabilidade
na mesa da cozinha, antes de sair para fazer as suas cobranças nocturnas, e
a minha mãe estava na cave com Sandy, a escolher as roupas que ele
trouxera do Kentucky para decidir o que precisava de arranjo e o que tinha
de deitar fora, antes de meter todo o resto no tanque de lavar. Fazia sempre
imediatamente o que tinha de ser feito e estava decidida a tratar da roupa
suja dele antes de ir para a cama. Eu estava lá em baixo com eles, resolvido
a não perder o meu irmão de vista. Ele soubera sempre tudo o que eu não
sabia e regressara do Kentucky a saber ainda mais.
– Preciso de te contar o que aconteceu ao Alvin – disse-lhe a minha mãe.
– Não quis dizer-to por escrito porque... bem, não queria abalar-te, querido.
– Depois de se controlar e ter a certeza de que não ia chorar, acrescentou em
voz baixa: – O Alvin foi ferido. Está num hospital em Inglaterra, a
recuperar dos ferimentos.
– Quem o feriu? – perguntou Sandy, surpreendido, como se ela estivesse
a informá-lo de uma coisa ocorrida no nosso bairro em vez de na Europa
ocupada pelos nazis, onde estavam constantemente a estropiar, ferir e matar
pessoas.
– Não sabemos os pormenores – respondeu-lhe a minha mãe. – Mas não
se trata de um ferimento superficial. Tenho de te dizer uma coisa muito
triste, Sanford. – E, apesar dos seus esforços para não abalar a coragem de
ninguém, a sua voz começou a tremer quando disse: – O Alvin perdeu uma
perna.
– Uma perna? – Não há muitas palavras menos abstrusas do que «perna»,
mas foi preciso algum tempo para ele compreender.
– Sim. Segundo a carta que recebi de um dos seus enfermeiros, foi a
perna esquerda, abaixo do joelho. – E, como se isso pudesse de algum de
modo acalmá-lo, acrescentou: Se quiseres lê-la, a carta está lá em cima.
– Mas... como é que ele vai andar?
– Vão pôr-lhe uma perna artificial.
– Mas não compreendo quem o feriu. Como é que ele foi ferido?
– Bem, eles estavam lá para combater contra os alemães, por isso deve ter
sido um deles.
Ainda a tentar ignorar o que já apreendera parcialmente, Sandy
perguntou:
– Qual delas?
– A esquerda – repetiu ela, o mais ternamente que pôde.
– A perna inteira? Toda?
– Não, não – apressou-se a tranquilizá-lo. – Eu disse-te, querido: abaixo
do joelho.
De súbito, Sandy começou a chorar e, em virtude de ter crescido tanto na
largura de ombros, no peito e nos pulsos em relação ao que fora na
Primavera anterior, em virtude de os seus braços serem agora musculosos
como os de um homem em vez de magros como os de uma criança,
assustei-me ao ver as lágrimas correrem-lhe pelas faces fortemente
bronzeadas e comecei a chorar também.
– É horrível, querido – disse a minha mãe. – Mas o Alvin não está morto.
Ainda está vivo e agora, pelo menos, fora da guerra.
– O quê? – explodiu Sandy. – Ouviu o que acabou de me dizer?
– A que te referes?
– Não ouviu o que disse? Disse: «Está fora da guerra.»
– E está. Definitivamente. E porque está, voltará para casa antes que lhe
possa acontecer mais alguma coisa.
– Mas porque estava ele, sequer, na guerra, mãe?
– Porque...
– Por causa do pai! – gritou Sandy.
– Não, querido, isso não é verdade – respondeu ela, e a sua mão voou
para lhe cobrir a boca, como se tivesse sido ela quem dissera aquelas
palavras imperdoáveis. – Não foi assim – protestou. – O Alvin foi para o
Canadá sem nos dizer nada. Fugiu na sexta-feira à noite. Tu lembras-te
como foi terrível para nós. Ninguém queria que ele fosse para a guerra... ele
foi porque quis, sem dizer nada.
– Mas o pai quer que o país inteiro vá para a guerra. Não quer? Não foi
por isso que votou em Roosevelt?
– Baixa a voz, por favor.
– Primeiro dá graças a Deus por o Alvin estar fora da guerra...
– Baixa a voz! – A tensão do dia avassalou-a de tal modo que perdeu a
paciência e disse em tom ríspido ao rapaz cuja falta sentira tão
dolorosamente o Verão inteiro: – Não sabes do que estás a falar!
– Mas vocês não ouvem! – gritou ele. – Se não fosse o presidente
Lindbergh...
De novo aquele nome! Preferia ter ouvido uma bomba explodir do que,
uma vez mais, aquele nome que andava a atormentar-nos a todos.
Precisamente neste momento, o meu pai apareceu na luz fraca do patamar
do cimo da escada para a cave. Talvez tenha sido bom que, de onde
estávamos parados junto do grande tanque de lavar roupa, só lhe
conseguíssemos ver as calças e os sapatos.
– Ele está transtornado por causa do Alvin – disse a minha mãe, olhando
para cima, para explicar o motivo dos gritos. – Eu cometi um erro. –
Acrescentou, dirigindo-se ao Sandy: – Nunca te deveria ter dito esta noite.
Não é fácil para um rapaz regressar a casa de uma grande experiência como
aquela... nunca é fácil ir de um lugar para outro... e, de qualquer maneira,
estás tão cansado... – E depois, sem força, rendendo-se à sua própria
exaustão, rematou: – Agora vão para cima, os dois, para eu poder lavar a
roupa.
Voltámo-nos para subir a escada e descobrimos, por sorte, que o meu pai
já desaparecera do patamar e estava lá fora, no carro, para ir fazer as suas
cobranças nocturnas.
Na cama, uma hora depois. Toda a casa está às escuras. Nós falamos
num sussurro.
Divertiste-te, realmente?
Uma vez experimentei, mas não sabe tão bem. É demasiado cremoso.
Tinhas amigos?
Orin Mawhinney?
Porque não? É assim que eles falam no Kentucky. Só queria que ouvisses
Mrs. Mawhinney. Ela é da Georgia. Todas as manhãs faz panquecas para o
pequeno-almoço. Com bacon. Mr. Mawhinney defuma o seu próprio bacon.
Numa casa de fumeiro. Ele sabe como se faz.
Comias presunto?
Comíamos presunto ao jantar umas duas vezes por semana. Mr.
Mawhinney faz o seu presunto. Tem uma receita especial, de família. Diz
que, se um presunto não fica pendurado a envelhecer durante um ano, não
quer nada com ele.
Comias salsichas?
Não pensam sequer nisso, Philip. Disseram-me que fui o primeiro judeu
que conheceram. Mas nunca disseram nada de mal. É o Kentucky. As
pessoas de lá são simpáticas.
Com certeza.
E se a mãe e o pai não te deixarem?
Alvin cheirava muito mal por causa do estado lastimoso da sua boca.
«Perdemos os dentes quando temos problemas», explicou o Dr. Lieberfarb
depois de observar com o seu espelhinho e dizer dezanove vezes «Uh-oh»,
e começou a usar a broca nessa mesma tarde. Ia fazer todo aquele trabalho
de graça, porque Alvin fora combater os fascistas como voluntário e
também porque, ao contrário «dos judeus ricos» que surpreendiam o meu
pai julgando-se seguros na América de Lindbergh, Lieberfarb continuava
sem ilusões quanto ao que «os muitos Hitlers deste mundo» ainda podiam
ter de reserva para nós. Dezanove obturações de ouro era obra, mas foi essa
a sua maneira de mostrar a sua solidariedade ao meu pai, à minha mãe, a
mim e aos Democratas, em oposição ao tio Monty, à tia Evelyn, ao Sandy e
a todos os republicanos presentemente nas boas graças dos seus
compatriotas. Dezanove obturações também demoravam muito tempo a
fazer, sobretudo a um dentista que estudara na escola nocturna enquanto de
dia acondicionava caixotes de carga em Port Newark e cujo toque nunca foi
muito leve. Lieberfarb passou meses a brocar, mas nas primeiras semanas já
tinha removido podridão suficiente, de modo que dormir mais ou menos
perto da boca de Alvin deixara de ser uma provação tão grande. O coto era
outra história. «Rebentado» significa que a extremidade do coto está mal:
abre, estala, fica infectada. Surgem erupções, feridas e edema, e não se pode
andar com a prótese apoiada nele, o que torna necessário tirá-la e recorrer a
muletas até o coto cicatrizar e conseguir suportar a pressão sem rebentar de
novo. O defeito estava no ajuste da perna artificial. Os médicos diziam-lhe:
«Perdeu o ajuste», mas ele não o perdera, ele nunca o tivera, explicava
Alvin, porque, para começar, o fabricante da perna não tirara as medidas
como devia ser.
– Quanto tempo leva a cicatrizar? – perguntei-lhe na noite em que ele me
explicou, finalmente, o que significa «rebentado».
Sandy, no lado da frente da casa, e os meus pais no quarto deles, já
dormiam havia horas, assim como Alvin e eu, quando ele começou a gritar
«Dança! Dança!» e, com um ofegar assustador, se sentou de repente na
cama, completamente acordado. Quando acendi o candeeiro da mesa-de-
cabeceira e o vi coberto de suor, levantei-me, abri a porta do quarto e,
embora eu próprio tivesse ficado, de súbito, encharcado em suor, atravessei
o pequeno vestíbulo da parte de trás da casa em bicos de pés, não para ir ao
quarto dos meus pais contar-lhes o que acontecera, mas sim para ir à casa
de banho buscar uma toalha para Alvin. Ele usou-a para enxugar o rosto e o
pescoço e depois despiu o casaco do pijama para enxugar o peito e os
sovacos, e foi então que eu vi, finalmente, o que acontecera à parte de cima
do seu corpo desde que a parte de baixo fora estropiada pela explosão. Não
tinha feridas nem pontos, nem estava desfigurada por cicatrizes, mas
também não tinha qualquer força, era apenas a pele pálida de um rapaz
doente colada aos nós e às saliências dos ossos.
Era a quarta noite que passávamos juntos. Nas primeiras três, Alvin tivera
o cuidado de vestir o pijama na casa de banho e depois voltar ao pé-coxinho
para o quarto, a fim de pendurar as roupas no armário, e como de manhã
voltava a usar a casa de banho para se vestir, eu ainda não vira o coto e
podia fingir que desconhecia a sua existência. À noite virava-me para a
parede e, fatigado com todas as minhas preocupações, caía logo no sono e
continuava a dormir até às primeiras horas da manhã, quando Alvin
coxeava para a casa de banho e depois voltava de novo para a cama. Ele
fazia tudo isto sem acender a luz, e eu ficava à espera, com medo de que
chocasse com qualquer coisa e caísse. À noite, todos os seus movimentos
me davam vontade de fugir, e não apenas do coto. Foi só na quarta noite,
quando Alvin acabara de se enxugar com a toalha e estava deitado apenas
com as calças do pijama vestidas, que ele puxou a perna esquerda das
calças para observar o coto. Supus que se tratava de um sinal prometedor,
que ele começava a estar menos insanemente agitado, pelo menos na minha
presença, mas continuei sem querer olhar na sua direcção... mas olhei,
esforçando-me para ser um soldado na minha cama. O que vi no
prolongamento da articulação do seu joelho foi uma coisa com uns doze ou
quinze centímetros de comprimento e que parecia a cabeça alongada de um
animal sem feições, algo em que, com alguns traços bem aplicados, Sandy
poderia ter desenhado olhos, nariz, boca, dentes e orelhas, transformando-o
em qualquer coisa de semelhante a uma ratazana. O que vi foi aquilo que a
palavra «coto» descreve: o resto rombo de uma coisa inteira que fizera parte
daquilo e ali estivera. Se não conhecêssemos o aspecto de uma perna, esta
poderia ter-nos parecido normal, dado o modo como a pele sem pêlos se
arredondava suavemente na extremidade abreviada, como se fosse obra da
natureza e não uma dolorosa sequência de amputações clínicas.
– Está cicatrizado? – perguntei.
– Ainda não.
– Quanto tempo levará?
– Eternamente.
Fiquei atordoado. Então isto é interminável! – pensei.
– Extremamente frustrante – continuou Alvin. – Pomos a perna que eles
fizeram para nós e o coto rebenta. Andamos com muletas e começa a inchar.
O coto fica mal seja o que for que façamos. Tira as minhas ligaduras da
gaveta.
Obedeci-lhe. Ia ter de mexer nas ligaduras elásticas beges que ele usava
para evitar que o coto inchasse quando não tinha a perna artificial posta.
Estavam enroladas a um canto da gaveta, ao lado das suas peúgas. Cada
uma media cerca de oito centímetros de largura e tinha um grande alfinete
de ama a prender a ponta, para evitar que se desenrolasse. Eu tinha tanta
vontade de enfiar a mão na gaveta como de descer à cave e enfiá-la entre os
rolos do espremedor, mas meti-a, e quando estendi as ligaduras, uma em
cada mão, ele disse: «Bom menino», e conseguiu fazer-me rir afagando-me
a cabeça como se fosse a de um cão.
Com medo de ver o que se seguiria, sentei-me na minha cama e observei.
– Põe-se esta ligadura – explicou-me ele – para evitar que ele inche. –
Segurou o coto com uma das mãos e com a outra abriu o alfinete e começou
a enrolar uma ligadura num padrão entrecruzado sobre o coto e subindo
para a articulação do joelho e depois vários centímetros mais para cima. –
Põe-se esta ligadura para evitar que inche – repetiu as palavras
fatigadamente, com uma paciência exagerada –, mas não devemos pô-la por
cima da parte rebentada porque o impediria de cicatrizar. Por isso andamos
de um lado para o outro até ficarmos chalupas. – Quando acabou de colocar
a ligadura e pôr o alfinete na extremidade, para a prender, mostrou-me o
resultado. – Temos de apertar bem, estás a ver? – Pegou na segunda
ligadura e recomeçou a manobra. O coto, quando ele acabou, voltou a
lembrar-me um pequeno animal, desta vez um animal cuja cabeça tivera de
ser açaimada com enorme cuidado para o impedir de cravar os dentes
cortantes como navalhas na mão do seu captor.
– Como se aprende a pôr isso? – perguntei-lhe.
– Não precisamos de aprender. Basta pôr. A não ser – explicou de súbito –
que fique apertado de mais, raios. No fim de contas, talvez seja preciso
aprender. Grandes estupores, raios as partam! Ou ficam lassas de mais ou
apertadas de mais, catano! Dá com um gajo em chalado... tudo isto. – Tirou
o alfinete que prendia a segunda ligadura e depois tirou ambas, para
começar de novo. – Estás a ver – disse-me, a esforçar-se para conter a fúria
com a inutilidade de tudo – como nos tornamos peritos nisto. – Recomeçou
a ligar o coto, tarefa que, como a cicatrização, parecia destinada a
prosseguir eternamente no nosso quarto.
No dia seguinte, quando acabaram as aulas, corri direito a uma casa que
sabia estar deserta – Alvin estava no dentista, Sandy tinha ido a qualquer
lado com a tia Evelyn, ambos, inexplicavelmente, a ajudarem Lindbergh a
atingir os seus fins, e os meus pais só voltariam do trabalho à hora do jantar.
Como Alvin se habituara a dedicar as horas do dia a permitir que o
rebentamento cicatrizasse sem ligaduras e as noites a ligar o coto para evitar
que o ele inchasse, não tive dificuldade em encontrar as duas ligaduras no
canto da gaveta de cima, aonde ele as devolvera bem enroladas naquela
manhã. Sentei-me na beira da minha cama, arregacei a perna esquerda das
calças e, espantado por verificar que o que restava da perna do meu primo
não era diametralmente muito maior do que a minha, comecei a ligar-me.
Na escola, tinha passado o dia a recapitular mentalmente o que o vira fazer
na noite anterior, mas às três e vinte da tarde, quando cheguei a casa, mal
começara a enrolar a primeira ligadura a um imaginário coto pessoal
quando senti, contra a carne abaixo do joelho, o que verifiquei ser uma
crosta irregular da ulcerada parte inferior do coto de Alvin. A crosta devia
ter-se soltado durante a noite – Alvin ignorara-a ou não dera por ela – e
agora colara-se a mim e eu estava muito longe de saber como lidar com
aquilo. Embora as ânsias de vómito começassem no quarto, corri para a
porta das traseiras e pela escada abaixo até à cave, conseguindo assim
colocar a cabeça sobre o tanque duplo segundos antes de começar a vomitar
a sério.
Encontrar-me sozinho na caverna húmida da cave era uma provação,
fossem quais fossem as circunstâncias, e não apenas por causa do
espremedor. Com o seu friso manchado de bolor e humidade ao longo das
fendidas paredes caiadas – manchas de todas as tonalidades do arco-íris
excrementício e nódoas de infiltrações que pareciam ter escorrido de um
cadáver –, a cave era um reino macabro à parte, que se estendia sob toda a
superfície da casa e não recebia luz alguma da meia dúzia de frestas de
vidro embaciado pela sujidade que davam para o cimento dos becos e para
o quintal da frente inçado de erva. Havia vários canos do tamanho de pires
embebidos no fundo de uma concavidade em declive no meio do piso de
cimento. Afixados na boca de cada um deles havia um disco preto, pesado,
crivado de perfurações concêntricas, do tamanho de uma moeda de dez
cêntimos, pelas quais eu não tinha qualquer dificuldade em imaginar que
criaturas vaporosas e espiraladas subiam malevolamente das entranhas da
terra para dentro da minha vida. A cave era um lugar privado não só de uma
única janela ensolarada, mas também de toda a confiança humana, e
quando, caloiro, comecei a estudar Mitologia Grega e Romana numa escola
secundária e tive conhecimento, pelos livros escolares, de Hades e Cérbero
e do rio Estige, era sempre a nossa cave que eles me lembravam. Uma
lâmpada de trinta velas pendia sobre o tanque no qual eu vomitara, havia
uma segunda nas imediações das fornalhas a carvão – incandescentes e
volumosas, alinhadas juntas como o Plutão tripessoal do nosso mundo
subterrâneo – e outra, quase sempre fundida, estava suspensa de um fio
eléctrico dentro de cada um dos cubículos de arrecadação.
Nunca aceitei que um dia me viesse a caber a responsabilidade de, em
tempo de Inverno, deitar pás de carvão na fornalha correspondente à nossa
família, todos os dias de manhã cedo, e depois a de amodorrar o lume, antes
de ir para a cama, e a de, uma vez por dia, transportar um balde de cinzas
frias para o contentor da cinza, no quintal das traseiras. Entretanto, Sandy
tornara-se suficientemente forte para substituir o meu pai nessas tarefas e,
dentro de mais alguns anos, quando ele partisse, como todos os rapazes
americanos de dezoito anos, para receber a sua instrução militar de vinte e
quatro meses no novo Exército do Cidadão do presidente Lindbergh, eu
herdaria a tarefa e só a deixaria quando, por minha vez, também fosse
recrutado. Imaginar, aos nove anos, um futuro em que estaria na cave
sozinho a encarregar-me da fornalha era tão perturbador como pensar na
inevitabilidade de morrer, que também começara a atormentar-me na cama,
todas as noites.
Mas temia a cave, principalmente por causa daqueles que já tinham
morrido: o meu avô materno e o meu avô paterno, a mãe da minha mãe e a
tia e o tio que outrora tinham sido a família de Alvin. Os seus corpos
podiam estar enterrados logo à saída da Route 1, na linha Newark-
Elizabeth, mas para vigiarem os nossos assuntos e observarem a nossa
conduta os seus fantasmas residiam dois pisos abaixo do nosso andar.
Lembrava-me pouco ou nada de qualquer deles, a não ser da avó que
morrera quando eu tinha seis anos, mas mesmo assim, sempre que me
dirigia sozinho para a cave, tinha o cuidado de avisar cada um deles, por
sua vez, de que ia descer e rogar-lhes que se mantivessem distantes de mim,
que não me cercassem quando estivesse no meio deles. Quando era da
minha idade, Sandy costumava precaver-se contra o seu tipo de medo
correndo pela escada da cave abaixo, aos gritos: «Tipos maus, sei que estão
aí em baixo... estou armado», enquanto eu descia a murmurar: «Lamento se
fiz alguma coisa errada.»
Havia o espremedor, os canos, os mortos – os fantasmas dos mortos a
observar, a julgar e a condenar, enquanto eu vomitava para o tanque duplo
onde a minha mãe e eu laváramos a roupa de Alvin – e havia os gatos do
beco que desapareciam na cave quando a porta das traseiras ficava
entreaberta e depois miavam de onde quer que estivessem encolhidos, no
escuro – e havia a tosse atroz do nosso vizinho de baixo, Mr. Wishnow, uma
tosse que ecoava na cave como se ele estivesse a ser rasgado por uma serra
manobrada por dois homens. Mr. Wishnow era, como o meu pai, agente de
seguros da Metropolitan, mas estava há dois anos com baixa, demasiado
doente com cancro da boca e da garganta para fazer outra coisa além de
ficar em casa e ouvir as série diárias da rádio, quando não estava a dormir
ou a tossir desgarradamente. Com a autorização da sede, a mulher
substituíra-o – tornando-se a primeira agente de seguros feminina da
história da zona de Newark – e agora trabalhava no mesmo horário de horas
extra do meu pai, que geralmente tinha de voltar a sair depois do jantar para
efectuar as cobranças e angariar novos clientes quase todos os sábados ou
domingos, pois os fins-de-semana eram a única altura em que podia ter
esperança de encontrar um trabalhador chefe de família em casa disposto a
ouvir a sua conversa de vendedor. Antes de, ela própria, ter de começar a
trabalhar como empregada de balcão no Hahne’s, a minha mãe ia ao andar
de baixo umas duas vezes por dia, para ver como Mr. Wishnow estava; e
agora, quando Mrs. Wishnow telefonava a dizer que não poderia estar em
casa a tempo de preparar um jantar como devia ser, a minha mãe
acrescentava um pouco mais ao que ia fazer para o jantar e, antes de nos
sentarmos para comer a nossa refeição, Sandy e eu levávamos, cada um, um
prato de comida quente num tabuleiro ao andar de baixo, um para Mr.
Wishnow e outro para Seldon, o filho único do casal. Seldon abria-nos a
porta e nós transportávamos os nossos tabuleiros para a cozinha,
esforçando-nos para não entornarmos nada quando os depositávamos na
mesa, onde Mr. Wishnow já estava à espera, com um guardanapo de papel
metido na gola do pijama, mas com o aspecto de não ser, de modo algum,
capaz comer, por muito desesperadamente que necessitasse de se alimentar.
«Vocês estão bem, rapazes?», perguntava-nos no fiapo de voz esfarrapada
que lhe restava. «Que tal dizeres-me uma piada, Phillie? Fazia-me jeito uma
boa piada», admitia, mas sem azedume, sem tristeza, limitando-se a
demonstrar a jovialidade branda e defensiva de alguém que ainda resistia
sem nenhuma razão aparente para resistir. Seldon devia ter dito ao pai que
eu fazia os rapazes rir, na escola, e por isso era ironicamente desafiado a
dizer-lhe uma piada quando a sua simples proximidade chegava para
obliterar a minha capacidade de falar. O mais que conseguia era tentar olhar
para alguém que eu sabia estar a morrer – e, pior ainda, resignado a morrer
– sem permitir que os meus olhos vissem nos dele a arrepiante evidência do
suplício físico por que estava a ser obrigado a passar no seu caminho para
uma vida espectral na nossa cave, na companhia de todos os outros mortos.
Às vezes, quando era preciso ir à farmácia aviar as receitas de Mr.
Wishnow, Seldon subia apressadamente a escada para me perguntar se
queria ir com ele, e como eu soubera pelos meus pais que o pai dele estava
condenado – e o próprio Seldon agia como se não soubesse nada a esse
respeito –, não encontrava nenhuma maneira de me esquivar, apesar de
nunca ter gostado de estar com uma pessoa tão patentemente ansiosa por ser
tratada como amiga. Seldon era uma criança claramente dominada pela
solidão e imerecidamente rica em sofrimento, e esforçava-se em excesso
para mostrar um sorriso permanente, era um daqueles rapazinhos lingrinhas,
pálidos e com cara de bonzinhos que embaraçam toda a gente ao atirar uma
bola como uma rapariga, mas também o melhor aluno da nossa classe e a
fera máxima de toda a escola em Matemática. Curiosamente, não havia
ninguém na aula de Ginástica melhor do que Seldon a amarinhar e a descer
pelas cordas que pendiam do tecto alto do ginásio, agilidade aérea que,
segundo um dos nossos professores, estava inteiramente relacionada com a
sua incontestável perícia com números. Já era um pequeno campeão de
xadrez, que o pai lhe ensinara, e por isso, cada vez que o acompanhava à
farmácia, sabia de ciência certa que nada me impediria de, mais tarde, ir
ficar diante do tabuleiro de xadrez na sala escurecida da sua família –
escurecida para poupar electricidade e também porque os cortinados
estavam agora sempre corridos, para evitar que os curiosos mórbidos do
bairro espreitassem lá para dentro e acompanhassem a descida, passo a
passo, de Seldon para a orfandade. Inabalado pela minha firme resistência,
Seldon Solitário (como fora alcunhado por Earl Axman, para quem o
esgotamento mental da mãe, de um dia para o outro, fora uma aterradora
catástrofe parental de outra natureza) tentava ensinar-me pela milionésima
vez como deslocar as peças e jogar enquanto, atrás da porta do quarto das
traseiras, o seu pai tossia tão frequentemente e com tanta força que parecia
haver ali não um, mas quatro, cinco, seis pais a tossir até à morte.
Em menos de uma semana, era eu e não Alvin quem lhe ligava o coto, e
entretanto praticara tanto em mim mesmo – e sem voltar a vomitar – que ele
não tivera motivos para se queixar, uma única vez, de que as ligaduras
estavam folgadas ou apertadas de mais. Fazia-o todas as noites – mesmo
depois de o coto ter cicatrizado e ele andar regularmente com a perna
artificial – para evitar uma recidiva do inchaço. Durante todo o tempo em
que o coto estivera a cicatrizar, a perna artificial tinha estado guardada no
fundo do roupeiro, em grande parte oculta pelos sapatos arrumados na parte
da frente e as calças suspensas do varão dos cabides. Mesmo assim, era
preciso algum esforço para não reparar nela, mas eu estava decidido e não
soube do que era feita até ao dia em que Alvin a tirou e colocou.
Exceptuando o facto de replicar macabramente a forma da metade inferior
de uma perna, tudo nela era, horrível, mas horrível e admirável ao mesmo
tempo, a começar por aquilo a que Alvin chamava o seu arnês: a espécie de
colete de cabedal escuro que envolvia a frente e se estendia desde logo
abaixo da nádega até ao cimo da rótula e ficava preso à prótese por
dobradiças de aço de cada lado do joelho. O coto, com uma comprida peúga
de lã branca esticada por cima, encaixava aconchegadamente numa
cavidade almofadada esculpida no cimo da prótese, que era moldada em
madeira oca com furos de ventilação, e não, como eu imaginara, de um
bocado de borracha preta semelhante a uma moca de livro de histórias aos
quadradinhos. Na extremidade da perna havia um pé artificial que se flectia
apenas alguns graus e era almofadado com uma sola de esponja. Encaixava-
se perfeitamente na perna sem nenhuma da ferragem à vista, e embora
parecesse mais uma forma de sapatos de madeira do que um pé verdadeiro
com cinco dedos separados, quando Alvin calçava as peúgas e os sapatos –
as primeiras lavadas pela minha mãe e os segundos engraxados por mim –
era como se os pés fossem ambos dele e naturais.
No primeiro dia em que voltou a pôr a perna artificial, Alvin treinou no
beco, andando de um lado para o outro, da garagem do fundo até à sebe
raquítica que envolvia o pequeno jardim da frente, mas sem nunca avançar
sequer um passo mais que permitisse verem-no da rua. No segundo dia
treinou de novo sozinho, de manhã, mas quando eu cheguei da escola
levou-me consigo para fora de casa, para outra sessão, concentrando-se
desta vez não apenas no andar, mas fingindo também que a saúde do seu
coto e o ajustamento da sua prótese – além do longo futuro que tinha pela
frente como perneta – não pesavam no seu espírito. Na semana seguinte,
usou a perna em casa o dia inteiro, e na outra disse-me: «Vai buscar a bola
de futebol.» Mas nós não tínhamos uma bola dessas – ter uma bola de
futebol era o mesmo que usar protectores nos sapatos ou chumaços nos
ombros, e nenhum miúdo que não fosse «rico» tinha uma bola dessas. E eu
não podia ir requisitar uma ao campo de jogos atrás da escola, a não ser que
fôssemos usá-la ali mesmo; por isso, o que fiz – eu, que até então nunca
roubara nada além de alguns trocos dos bolsos dos meus pais –, o que eu fiz
sem a mínima hesitação foi descer a Keer Avenue até onde havia casas de
monofamiliares com relvados na frente e nas traseiras e observar todos os
caminhos de acesso até descobrir o que procurava: uma bola de futebol para
roubar, uma genuína Wilson de couro, roçada do pavimento, com
atacadores de couro gastos e uma «bexiga» que se enchia soprando, que um
miúdo qualquer com dinheiro ali deixara abandonada. Meti-a debaixo do
braço e voltei para trás, correndo pela ladeira da Summit Avenue como se
fosse devolver um pontapé de saída pelo velho Notre Dame.
Nessa tarde treinámos passes no beco durante quase uma hora, e à noite,
quando examinámos juntos o coto, atrás da porta fechada do nosso quarto,
não lobrigámos nem um sinal de rebentamento, apesar de, enquanto me
lançava as suas perfeitas espirais com a mão esquerda, Alvin ter apoiado
praticamente todo o seu peso na perna artificial. «Não tive outro remédio»,
eis a defesa que eu teria apresentado se tivesse sido apanhado em flagrante
na Keer Avenue, naquele dia. «O meu primo Alvin queria uma bola,
Meritíssimo. Ele perdeu a perna a lutar contra Hitler e agora está em casa e
queria uma bola de futebol. Que outra coisa poderia eu ter feito?»
Entretanto, passara um mês desde o terrível regresso na Penn Station e,
embora não fosse necessariamente agradável, a verdade é que não sentia
nenhuma repulsa digna de nota quando, enquanto ia buscar os meus sapatos
de manhã, estendia a mão para o fundo do armário, a fim de tirar a prótese
de Alvin e estendê-la para onde ele estava, sentado na cama em cuecas, à
espera da sua vez para usar a casa de banho. O ar soturno estava a
desaparecer, tinha começado a ganhar peso, empanturrando-se entre as
refeições com punhados do que quer que houvesse no frigorífico, os seus
olhos já não pareciam tão grandes e o seu cabelo tornara-se de novo farto,
um cabelo ondulado tão preto que tinha um brilho de cera, e quando ele
estava ali sentado, semidesamparado, com o coto exposto, cada manhã,
havia, para um rapaz que o adorava, um pouco mais para adorar e, ao
mesmo tempo, o que havia para lastimar era um pouco menos impossível de
suportar.
Em breve, Alvin deixou de se confinar ao beco e, sem ter de depender das
muletas ou da bengala que se sentia humilhado por usar em público, passou
a andar por todo o lado na sua perna artificial, fazendo compras para a
minha mãe no talho, na padaria e no lugar de hortaliça, comprando um
cachorro quente para si mesmo na esquina, viajando de autocarro não só
para o dentista na Clinton Avenue, mas até à Market Street para comprar
uma camisa nova na Larkey’s – e também, coisa que eu ainda não sabia,
passando pelos campos de jogos atrás da escola secundária, com o dinheiro
da indemnização no bolso, para ver quem por lá se encontrava disposto a
jogar póquer ou aos dados. Um dia, depois das aulas, arranjámos os dois
espaço, no cubículo das arrumações, para a cadeira de rodas, e nessa noite,
depois do jantar, contei à minha mãe uma coisa que me viera à cabeça na
escola. Estivesse onde estivesse e fosse o que fosse que devia estar a fazer,
dava comigo a pensar em Alvin e em como poderia fazê-lo esquecer-se da
sua prótese. Por isso, disse à minha mãe: «Se o Alvin tivesse um fecho de
correr no lado da perna das calças, seria mais fácil para ele vesti-las e despi-
las quando tem a perna posta, não acha?» Na manhã seguinte, quando ia
para o trabalho, ela deixou um par de calças da tropa do meu primo numa
costureira do bairro, que trabalhava em casa, e a costureira abriu a costura
lateral e pregou-lhe um fecho que subia uns quinze centímetros pela perna
esquerda, sem bainha, das calças. Nessa noite, quando Alvin enfiou as
calças depois de ter aberto o fecho, a perna subiu facilmente por cima da
prótese sem que ele tivesse de amaldiçoar este mundo e o outro só por estar
a vestir-se. E quando correu o fecho, não se dava por ele. «Nem sabemos
que ele está aí!», exclamei. De manhã metemos todas as suas outras calças
num saco de papel, e a minha mãe levou-as à costureira, para lhes fazer o
mesmo. «Eu não poderia viver sem ti», disse-me o meu primo, quando nos
deitámos, nessa noite. «Não podia vestir as calças sem ti», acrescentou, e
deu-me, para que a guardasse para sempre, a medalha canadiana que lhe
fora atribuída «por desempenho em circunstâncias excepcionais». Era uma
medalha de prata circular, que tinha num lado o rei Jorge VI, de perfil, e no
outro um leão triunfante erguido sobre o corpo de um dragão. É claro que a
aceitei com carinho e comecei a usá-la regularmente, mas com a estreita fita
verde de que pendia presa à camisola interior, para que ninguém a visse e
questionasse a minha lealdade para com os Estados Unidos. Só a deixava
em casa, na minha gaveta, nos dias em que tinha ginástica e tínhamos de
despir as outras camisas e camisolas, para fazermos os exercícios.
E como ficava Sandy em tudo isto? Como, pessoalmente, andava tão
atarefado, ao princípio não pareceu notar a minha assombrosa
transformação em criado pessoal de um herói de guerra canadiano
condecorado que, por sua vez, me condecorara agora a mim. E quando deu
por isso – e se sentiu péssimo, ao princípio não tanto por causa do
envolvimento de Alvin comigo, que era natural ter acontecido em
consequência de dormirmos no mesmo quarto, mas por causa da indiferença
hostil que o primo manifestava a seu respeito – era tarde de mais para me
destituir do grande papel de apoio (com as suas repugnantes obrigações)
que eu fora praticamente forçado a desempenhar e que, para surpresa de
Sandy, tão sublime reconhecimento suscitara nos anos finais da minha
longa carreira como seu irmão mais novo.
E tudo isto fora conseguido sem que eu aludisse uma única vez à
identificação de Sandy, por intermédio da tia Evelyn e do rabi Bengelsdorf,
com a nossa presente e detestável Administração. Todos, incluindo o meu
irmão, tinham evitado falar do GAA e do Just Folks na presença de Alvin,
convencidos de que até ele compreender como a enorme popularidade da
política isolacionista de Lindbergh começara a conquistar, até, o apoio de
muitos judeus – e até que ponto era menos traiçoeiro do que podia parecer
que um rapaz judeu da idade de Sandy tivesse sido atraído pela aventura
que o Just Folks proporcionava –, nada mitigaria a indignação do mais
abnegado e firme antilindberglista de todos nós. Mas Alvin parecia já ter
sentido que Sandy o atraiçoara e, sendo quem era, não se dava ao trabalho
de disfarçar os seus sentimentos. Eu não tinha dito nada, os meus pais não
tinham dito nada e Sandy não dissera, de modo algum, nada que o
incriminasse aos olhos de Alvin, mas apesar disso este viera a saber (ou
procedia como se soubesse) que a primeira pessoa a dar-lhe as boas-vindas
na estação ferroviária fora também a primeira a aliar-se aos fascistas.
Na tarde em que o tio Monty foi lá a casa para ver Alvin, ia a caminho do
centro, para a Miller Street, onde, desde os catorze anos, trabalhava a noite
inteira no mercado, onde chegava por volta das cinco da tarde e de onde
saía para chegar a casa cerca das nove horas da manhã seguinte, tomar a sua
principal refeição do dia e dormir. Era esta a vida do membro mais rico da
nossa família. As suas duas filhas viviam melhor. Linda e Antena, que eram
um pouco mais velhas do que Sandy e manifestavam a penosa timidez das
raparigas que vivem em bicos de pés em redor de um pai tirano, tinham
muitas roupas e frequentavam a suburbana escola secundária de Columbia,
em Maplewood, onde havia mais miúdos judeus possuidores de muitas
roupas e cujos pais, como Monty, tinham um Caddy para eles próprios e um
segundo carro na garagem para uso da mulher e dos filhos crescidos. A
minha avó vivia com eles na grande casa de Maplewood e também tinha
muitas roupas, todas compradas para ela pelo seu filho mais bem--sucedido,
e nenhumas das quais ela usava, a não ser nos feriados principais e quando
Monty a fazia vestir-se a preceito para ir comer fora com a família, aos
domingos. Os restaurantes não eram suficientemente kosher para
corresponder aos padrões dela e, por isso, a única coisa que pedia, sempre,
era a refeição do presidiário, à la carte, de pão e água – e, de qualquer
maneira, nunca sabia como proceder num restaurante. Uma vez, quando viu
um servente transportar uma enorme quantidade de pratos para a cozinha,
levantou-se para ir ajudá-lo. O tio Monty gritou: «Ma! Não! Loz im tsu ru!
Deixe o rapaz em paz!», e quando ela lhe deu uma palmada na mão, para se
soltar, teve de ser puxada de novo para a mesa pela manga do seu vestido
ridiculamente bordado a lantejoilas. Havia uma negra, conhecida por «a
rapariga», que ia duas vezes por semana de Newark, de autocarro, para
fazer limpezas, mas isso não impedia a avó de se pôr de joelhos, quando
não estava ninguém perto, para esfregar o chão da cozinha e da casa de
banho, nem de lavar a sua própria roupa numa tábua de tanque, apesar da
presença na arranjada cave de Monty de uma Bendix Home Laundry
novinha em folha, de noventa e nove dólares. A minha tia Tillie, mulher de
Monty, passava a vida a lamentar-se por causa de o marido dormir todo o
dia e nunca estar em casa à noite, embora todas as outras pessoas da família
achassem que isso, mais do que o seu novo Oldsmobile, era a sorte dela.
Alvin estava deitado na cama, e ainda de pijama, às quatro horas da tarde
desse dia de Janeiro em que Monty passou por lá a primeira vez para o ver e
ousar fazer a pergunta cuja resposta nenhum de nós sabia, exactamente:
«Como diabo conseguiste perder uma perna?» Como Alvin se mostrara tão
insociável quando eu cheguei a casa, da escola, e respondera apenas com
um resmungo de irritação a cada tentativa minha para o animar, não
esperava que o nosso familiar menos estimado conseguisse arrancar-lhe
alguma resposta.
Mas a presença intimidadora do tio Monty, com o omnipresente cigarro
suspenso do canto da boca, era de tal ordem que naqueles primeiros tempos
nem mesmo Alvin se atreveu a dizer-lhe que se calasse e fosse embora.
Naquela tarde em especial, Alvin não foi sequer capaz de tentar imitar a
impertinente provocação que o levara a atravessar ao pé-coxinho, como um
prodígio, o átrio de Penn Station após o seu regresso como amputado.
– França – respondeu, em tom cavo, à grande pergunta.
– O pior país do mundo – disse-lhe Monty, sem sombra de hesitação. No
Verão de 1918, aos vinte e um anos, ele próprio combatera em França
contra os Alemães, na segunda sangrenta Batalha do Maine, e depois na
Floresta de Argonne, quando os Aliados abriram caminho pela frente
ocidental alemã, e por isso sabia, evidentemente, tudo a respeito de França.
– Mas eu não te perguntei onde – continuou. – Perguntei-te como.
– Como – repetiu Alvin.
– Desembucha, miúdo. Far-te-á bem.
Ele também sabia isso: o que faria bem a Alvin.
– Onde estavas quando foste atingido? E não me respondas que estavas
«no lugar errado». Toda a tua vida estiveste no lugar errado.
– Estávamos à espera do barco que nos levaria dali.
Alvin fechou os olhos, como se esperasse nunca mais ter de os abrir de
novo. Mas em vez de ficar por aí, como eu estava a rezar para que
acontecesse, acrescentou, inesperadamente:
– Atingi um alemão.
– E? – persistiu Monty.
– Ele passou o resto da noite a gritar.
– E? E? Continua. Ele estava a gritar, e depois?
– E depois, perto do alvorecer, antes de serem horas de o barco chegar,
rastejei até onde ele estava. A uns cinquenta metros de distância, talvez.
Mas então já estava morto. Mesmo assim rastejei para cima dele e dei-lhe
dois tiros na cabeça. Depois cuspi no filho da puta. E nesse segundo eles
atiraram a granada. Apanhei com ela nas duas pernas. Numa delas, o pé
ficou torcido. Partido e torcido. Esse, puderam tratá-lo. Operaram-me e
trataram-no. Puseram-lhe um aparelho de gesso. Endireitaram-no. Mas o
outro, fora-se. Olhei para baixo e vi um pé virado de trás para a frente e
uma perna pendurada. A perna esquerda, já quase amputada.
Ali estava, e não era nada parecido com a heróica realidade que eu tão
frivolamente imaginara.
– Sozinho na terra de ninguém – disse-lhe Monty –, podes ter sido
atingido por um dos teus. Ainda não é dia, na semiclaridade, um gajo ouve
tiros, entra em pânico... e zás, arranca a espoleta!
Alvin não teve nada a dizer quanto a essa suposição.
Qualquer outra pessoa poderia compreender e compadecer-se, quanto
mais não fosse com a transpiração que cobria a testa de Alvin e as gotas de
suor acumuladas no côncavo da sua garganta, e também com o facto de ele
ainda não ter aberto os olhos. Mas não o meu tio: ele compreende e não se
compadece.
– E como explicas que não te tenham deixado lá ficar? Depois de fazeres
asneira, como explicas que não te tenham deixado, simplesmente, lá, para
morrer?
– Havia lama por todo o lado – foi a resposta vaga de Alvin. – O chão era
só lama. Só me lembro de que havia lama.
– Quem te salvou, idiota?
– Eles levaram-me. Eu devia estar fora dela. Chegaram e levaram-me.
– Estou a tentar imaginar como funciona o teu cérebro, Alvin, e não
consigo. Cuspiu. Ele cuspiu. E essa é a história de como perdeu a perna.
– Há coisas que fazemos sem saber porquê. – Era eu quem estava a falar.
Que sabia eu? Mas era eu, era eu quem estava a dizer ao meu tio: –
Fazemo-las, apenas, tio Monty. Não podemos deixar de fazê-las.
– Não podes deixar de fazê-las, Philie, quando és um idiota profissional.
– E o meu tio acrescentou, dirigindo-se depois a Alvin: – E agora? Vais
ficar aí sentado, a viver de cheques de incapacidade? Vais viver como um
batoteiro, da tua sorte? Ou preferes considerar a ideia de te manteres como
os restantes de nós, mortais idiotas? Há um emprego para ti no mercado,
quando te levantares da cama. Começas por baixo, a lavar o chão à
mangueirada e a encaixotar tomates, começas por baixo, com os carroceiros
e os carregadores, mas tens lá um emprego a trabalhar para mim e um
salário semanal. Ganhas metade na estação da Esso, mas eu aceito-te,
apesar de tudo, porque continuas a ser o filho do Jack, e eu faço tudo pelo
meu irmão Jack. Não estaria onde estou se não fosse o Jack. Ele ensinou-me
o negócio das verduras e depois morreu. Exactamente como o Steinheim
queria ensinar-te o negócio da construção. Mas a ti ninguém pode ensinar
nada, idiota. Atiraste as chaves à cara do Steinheim. Eras importante de
mais para o Steinheim. Só Hitler é suficientemente importante para Alvin
Roth.
Na cozinha, numa gaveta onde estavam as pegas e o termómetro do
forno, a minha mãe guardava uma agulha comprida e fio resistente para
coser e enrolar o peru do Dia de Acção de Graças depois de recheado. Era,
além do espremedor, o único instrumento de tortura que me lembrava de
termos, e senti vontade de o ir buscar e usá-lo para fechar a boca do meu
tio.
À porta do quarto, antes de sair para o mercado, Monty voltou atrás para
resumir. Os fanfarrões gostam de resumir. O redundante resumo reprovador:
nada o iguala, além da flagelação fora de moda.
– Os teus camaradas arriscaram tudo para te salvar. Foram buscar-te e
arrastaram-se debaixo de fogo. Não é verdade? E para quê? Para poderes
passar o resto da vida a lançar dados com o Margulis? Para poderes jogar
póquer de sete cartas no pátio da escola? Para poderes voltar para a bomba
de gasolina e roubar o Simkowitz à grande? Cometeste todos os erros da
cartilha. Tudo quanto fazes, fá-lo mal. Até a matar alemães meteste o pé na
argola. Porque será? Porque atiras chaves à cara das pessoas? Porque lhes
cospes? Um gajo já está morto e tu cospes-lhe? Porquê? Porque a vida não
te foi entregue numa bandeja de prata, como aos restantes Roth? Se não
fosse o Jack, Alvin, eu não estaria aqui a gastar o meu fôlego. Não há nada
que tenhas ganho. Sejamos claros a esse respeito. Nada. Durante vinte e
dois anos foste um desastre, Estou a fazer isto pelo teu pai, rapaz, não por ti.
Estou a fazer isto pela tua avó. «Ajuda o moço», disse-me ela, e por isso
estou a ajudar-te. Quando resolveres como queres fazer a tua fortuna, vai ter
comigo na tua perna de pau e conversamos.
Alvin não chorou, não praguejou, não berrou, nem mesmo depois de
Monty ter saído pela porta das traseiras e entrado no seu carro e ele poder
soltar todos os seus maus pensamentos. Naquele dia estava desesperado de
mais para gritar. Ou sequer para se ir abaixo. Só eu o fiz, depois de ele se
recusar a abrir os olhos e olhar para mim quando lho supliquei; só eu me fui
abaixo, sozinho, mais tarde, no lugar da nossa casa para onde sabia que
podia ir para estar longe dos vivos e de tudo o que eles são incapazes de não
fazer.
9 Judeu, depreciativo. (NT)
Encontrei o meu primo apoiado no joelho são da perna a sério, com dados
na mão e o monte de notas a seu lado com um pedaço irregular de cimento
em cima. Com a perna protética estendida à sua frente, parecia um russo
acocorado a dançar uma daquelas loucas jigas eslavas. Cercavam-no de
muito perto seis outros jogadores, três deles ainda em jogo e apertando na
mão o que restava do seu dinheiro, dois falidos e apenas um a observar –
que reconheci vagamente como ex-fracassados da Weequahic, agora com
mais de vinte anos – e o tipo de pernas compridas a pairar por cima dele, o
«sócio» de Alvin, conforme vim a saber, Shushy Margulis, um magricela de
zoot-suit, com uma constituição rija e um andar deslizante, o parasita do
tempo da bomba de gasolina e aquele que o meu pai mais desprezava.
Shushy era conhecido por nós, miúdos, como o Rei do Pinball, porque um
tio escroque a respeito de cujo parentesco bazofiava era o rei do pinball – e
rei, também, de todas as máquinas caça-moedas ilegais de Filadélfia, onde
reinava – e também por causa das horas que passava a embolsar ganhos
batendo em todas as máquinas de pinball das lojas de guloseimas das
imediações, empurrando-as, amaldiçoando-as, sacudindo-as violentamente
de um lado para o outro até o jogo terminar com o pulsar das luzes
coloridas a anunciar «Inclinado» ou o dono da loja a pô-lo na rua. Shushy
era o farsante famoso que divertia os seus admiradores lançando
jovialmente fósforos acesos pela abertura do grande marco de correio verde
defronte da escola secundária, que, uma vez, comera um louva-a-deus vivo,
para ganhar uma aposta, e que, durante a sua curta carreira académica,
gostava de fazer rir a malta, do lado de fora da loja de cachorros quentes,
atravessando a Chancellor Avenue a coxear, com uma mão levantada, para
fazer parar o trânsito – a coxear muito, tragicamente, embora não tivesse
nenhum problema. Agora já devia ter entrado nos trinta anos e continuava a
viver com a mãe, modista, num dos pequenos apartamentos no cimo de uma
casa para duas famílias e águas-furtadas ao lado da sinagoga da Wainwright
Street. Fora à mãe de Shushy, compassivamente conhecida por todos por
«pobre Mrs. Margulis», que a minha levara as calças de Alvin para lhes pôr
os fechos de correr – pobre Mrs. Margulis não apenas por ser viúva e
sobreviver a trabalhar à peça, por preços irrisórios, para um fabricante de
vestuário de Down Neck, mas também porque o vigarista do filho parecia
nunca ter tido outro emprego além do de moço de recados do agente de
apostas que trabalhava a partir o salão de bilhar ao virar da esquina da casa
deles, logo ao fim da rua que partia do orfanato católico da Lyons Avenue.
O orfanato erguia-se no interior dos terrenos cercados da St. Peter, a
igreja paroquial que, curiosamente, monopolizava uns três quarteirões
quadrados no próprio coração do nosso irredimível bairro. A igreja
propriamente dita era encimada por uma torre alta e um campanário ainda
mais alto que terminava numa cruz erguida divinamente acima dos fios
telefónicos. Localmente, não se via outro edifício tão alto enquanto não
descíamos mais de quilómetro e meio pela ladeira da Lyons Avenue até ao
lugar do meu nascimento, o Geth Israel Hospital, onde todos os rapazes
meus conhecidos tinham igualmente nascido e, aos oito dias de idade, sido
ritualmente circuncidados no santuário do hospital. Flanqueando o
campanário da igreja havia duas torres mais pequenas que nunca me dei ao
trabalho de examinar, porque se dizia que tinham sido esculpidos na pedra
rostos de santos cristãos e também que os vitrais das altas e estreitas janelas
contavam uma história que eu não precisava de saber. Perto da igreja havia
uma pequena reitoria que, como tudo o mais situado adentro das paliçadas
de ferro preto daquele estranho mundo, fora construída na parte final do
século anterior, várias décadas antes de a primeira das nossas casas ter sido
erigida e de a orla ocidental do bairro de Weequahic ganhar forma como
fronteira judaica de Newark. Atrás da igreja ficava a escola secundária que
servia os órfãos – que eram cerca de cem – e um número mais pequeno de
crianças católicas locais. A escola e o orfanato eram dirigidos por uma
ordem de freiras – lembro-me de me terem dito que eram freiras alemãs. As
crianças judias, mesmo as criadas em lares tolerantes, como o meu,
atravessavam geralmente a rua nas raras ocasiões em que as viam vir na sua
direcção, roçagantes nas suas vestes que lembravam as de feiticeiras, e
rezava a lenda familiar que, quando o meu irmão era pequeno e, uma tarde,
estava sentado sozinho à porta da frente, viu aproximar-se um par delas,
vindas da Chancellor Avenue, e gritou, todo alvoraçado, para a minha mãe:
«Olhe, mãe... as palermas»11.
O dia seguinte, para mim, foi domingo. A tarde ia avançada e o tio Monty
vinha visitar-nos. Alvin também estava presente e, pelo que escutei, na
cama, do que se dizia na cozinha, não fora visto em lado algum desde que
Mr. Wishnow cometera suicídio, na sexta-feira, e ele se afastara do jogo de
dados com o seu maço de notas de cinco, dez e vinte dólares. Mas desde a
hora de jantar de sexta-feira eu próprio estivera ausente, lá por fora com os
cavalos e os seus cascos, cercado por alucinações caleidoscópicas em que
os cavalos de trabalho do orfanato me perseguiam até à fronteira da terra.
E agora outra vez o tio Monty, outra vez o tio Monty a atacar Alvin, e
com palavras que eu não podia acreditar que estivessem a ser ditas na
minha casa, na presença da minha mãe. Mas a verdade é que o tio Monty
sabia dominar Alvin usando métodos a que o meu pai era pura e
simplesmente incapaz de recorrer.
Ao anoitecer, depois de toda a gritaria se ter reduzido a lamentos pelo
meu falecido tio Jack e a voz tonitruante de Monty ter enrouquecido, Alvin
aceitou o emprego no mercado de verduras que recusara considerar, sequer,
quando Monty lho oferecera pela primeira vez. Tão desmoralizado quanto
estivera pela sua mutilação na manhã em que chegara à Penn Station sob o
cuidado daquela corpulenta enfermeira canadiana, tão humilhado pela
derrota como quando, da sua cadeira de rodas, não ousava olhar nenhum de
nós nos olhos, Alvin consentiu em desfazer a sua sociedade com Shushy e
desistir de jogar nas ruas do bairro. Não menos inimigo da subserviência do
que do choro, surpreendeu toda a gente ao irromper em lágrimas de
remorso, pedir perdão e aceder a deixar de ser um bruto com o meu irmão,
um ingrato com a minha mãe e o meu pai e uma má influência para mim, e
também a tratar-nos com o apreço que nos era devido. O tio Monty
advertiu-o de que, se não cumprisse as suas promessas e, ao invés,
continuasse a sabotar a família de Herman, os Roth não quereriam mais
nada com ele, definitivamente.
Embora Alvin parecesse estar a esforçar-se muito para cumprir o trabalho
servil de burro de carga do seu primeiro emprego, não permaneceu no
mercado tempo suficiente para subir um furo, que fosse, acima das tarefas
de varrer e fazer recados. Um dia, quando lá trabalhava há pouco mais de
uma semana, o FBI apareceu para fazer perguntas a seu respeito, o mesmo
agente e usando as mesmas perguntas ameaçadoramente inofensivas que
fizera à minha família e a mim, com a diferença de que, desta vez, deu a
entender aos outros trabalhadores que Alvin era um traidor confesso que
conspirava com descontentes antiamericanos, como ele, para assassinar o
presidente Lindbergh. As acusações eram ridículas, mas mesmo assim, e
apesar de Alvin se ter mostrado submisso durante toda aquela semana – tão
submisso como jurara ser e se empenhara em permanecer –, mesmo assim
foi imediatamente despedido e, à saída, aconselhado por um dos valentaços
de serviço a nunca mais se aproximar do mercado. Quando o meu pai
telefonou ao irmão para saber o que tinha acontecido, Monty respondeu-lhe
que não tivera outro remédio: recebera ordem dos rapazes de Longy para se
livrar do sobrinho. Longy Zwillman de, Newark, que crescera como o meu
pai e os seus irmãos, filho de imigrantes nos velhos bairros miseráveis
judeus, dirigia nesse tempo as negociatas sujas de Jersey, era o potentado
implacável de tudo, desde apostas ilegais e fura-greves aos serviços de
camionagem e carga impostos a negociantes como Belmont Roth. Em
virtude de os federais serem as últimas pessoas que Longy queria a meter o
nariz na sua vida, Alvin perdeu o emprego, saiu da nossa casa e deixou a
cidade em menos de vinte e quatro horas, desta vez sem atravessar a
fronteira internacional para Monreal e os comandos canadianos, mas
atravessando o Delaware para Filadélfia e um emprego com o tio de
Shushy, o rei das máquinas de apostas, um vigarista aparentemente mais
tolerante para com traidores do que o seu par sem rival de North Jersey.
Na Primavera de 1942, para comemorar o Acordo da Islândia, o
presidente e Mrs. Lindbergh ofereceram um jantar oficial na Casa Branca
em honra do ministro dos Estrangeiros Joachim von Ribbentrop, que se
sabia ter elogiado Lindbergh aos seus colegas nazis como o candidato
presidencial americano ideal para a Alemanha muito antes de o Partido
Republicano o ter escolhido na sua convenção de 1940. Von Ribbentrop foi
o negociador que se sentou ao lado de Hitler durante os encontros na
Islândia e o primeiro líder nazi a ser convidado a visitar a América por
qualquer governo ou agência oficial desde que os fascistas tinham
conquistado o poder, quase dez anos atrás. Assim que o jantar a von
Ribbentrop foi tornado público, a imprensa liberal deu voz a fortes críticas e
houve comícios e manifestações de protesto em todo o país contra a decisão
da Casa Branca. Pela primeira vez desde que deixara o poder, o ex-
presidente Roosevelt saiu do seu recolhimento para fazer um breve discurso
a todo o país, a partir de Hyde Park, instigando o presidente Lindbergh a
cancelar o convite «em nome de todos os americanos amantes da paz, e em
especial das dezenas de milhões de americanos de ascendência europeia
cujos países ancestrais tinham de viver sob o jugo esmagador dos nazis».
Roosevelt foi de imediato atacado pelo vice-presidente Wheeler, acusado
de «brincar à política» imiscuindo-se na condução, por um presidente em
exercício, dos negócios estrangeiros do país. Não era apenas cínico, disse o
vice-presidente, mas absolutamente irresponsável da sua parte, argumentar
a favor da mesma política perigosa que quase arrastara a América para uma
sangrenta guerra europeia enquanto os Democratas do New Deal
governavam o país. Wheeler era, ele próprio, um democrata, ex-senador de
Montana durante três mandatos e o primeiro e único membro do partido da
oposição a ser escolhido para partilhar uma plataforma eleitoral com um
candidato presidencial, desde que Lincoln escolhera Andrew Johnson para
concorrer com ele ao segundo mandato, em 1864. No início da sua carreira
política situava-se tão à esquerda que fora a voz dos líderes trabalhistas
radicais de Butte, o inimigo da Anaconda Copper – a companhia mineira
que dirigia Montana quase como se dirigisse um grande armazém – e, na
condição de um dos primeiros apoiante iniciais de FDR, o seu nome tinha
sido sugerido como seu candidato a vice-presidente em 1932. Afastara-se
pela primeira vez do Partido Democrático em 1924, para se aliar ao senador
reformista do Wisconsin, Robert La Follette, na plataforma presidencial,
apoiada pelo sindicato, do Partido Progressista, e a seguir, depois de
abandonar La Follette e os seus apoiantes da esquerda americana não-
comunista, juntara-se a Lindbergh e aos isolacionistas da ala direita para
ajudar a fundar o America First, atacando Roosevelt com declarações
antiguerra tão extremas que levaram o presidente a rotular a sua crítica de
«a coisa mais falsa, ignóbil e antipatriótica jamais dita na vida pública da
minha geração». Wheeler fora escolhido pelos Republicanos para concorrer
com Lindbergh, em parte porque a sua própria máquina política em
Montana ajudara a eleger republicanos para o Congresso durante o fim dos
anos 30, mas sobretudo para persuadir o povo americano da força do apoio
bipartidário ao isolacionismo e para terem na sua lista um candidato
combativo não afecto a Lindbergh, cuja missão seria atacar e ultrajar o seu
próprio partido político em todas as oportunidades, como fez na conferência
de imprensa dada no gabinete do vice-presidente quando previu que se a
imprudente retórica «pró--guerra» da mensagem de Roosevelt em Hyde
Park constituía alguma indicação da campanha que os Democratas
tencionavam desencadear nas próximas eleições, eles sofreriam, no
Congresso, perdas ainda maiores do que tinham sofrido com a avalancha
republicana de 1940.
Logo no fim-de-semana seguinte, a Bund Germano-Americana encheu
quase totalmente a Madison Square Garden, uma multidão de cerca de vinte
e cinco mil pessoas que se tinham apresentado para apoiar o convite do
presidente Lindbergh ao ministro dos Estrangeiros alemão e para
denunciarem os Democratas pelo seu renovado «fomento da guerra».
Durante o segundo mandato de Roosevelt, o FBI e os comités do Congresso
que investigavam as actividades da Bund tinham imobilizado a organização,
qualificando-a de frente nazi e instaurando processos criminais contra
líderes do seu alto comando. Mas com Lindbergh cessaram os esforços
governamentais de perseguição e intimidação de membros da Bund, que
puderam recuperar a sua força identificando-se não apenas como patriotas
americanos de origem alemã que se opunham à intervenção da América em
guerras estrangeiras, mas também como vigorosos inimigos da União
Soviética. A profunda camaradagem fascista que unia a Bund mascarava-se
agora com clamorosas declarações patrióticas sobre o perigo de uma
revolução comunista à escala mundial.
Mais como organização anticomunista do que pró-nazi, a Bund
continuava tão anti-semita como antes, equiparando claramente o
bolchevismo ao judaísmo nos panfletos de propaganda, insistindo no grande
número de judeus «pró-guerra» – como o secretário do Tesouro,
Morgenthau, e o financeiro Bernard Baruch, que fora confidente de
Roosevelt – e, claro, mantendo-se firmemente fiel aos objectivos
enunciados na declaração oficial da primeira organização em 1936:
«combater a loucura dirigida por Moscovo da ameaça do mundo vermelho e
dos seus porta-bacilos judeus» e promover «uns Estados Unidos livres
dirigidos por gentios». Desapareceram, porém, do comício de 1942 em
Madison Square Garden as bandeiras nazis, as braçadeiras com suásticas, o
braço estendido da saudação hitleriana, os uniformes de tropas de choque e
o gigantesco retrato do Führer exibidos no primeiro comício, em 20 de
Fevereiro de 1939, um acontecimento promovido pela Bund como
«Exercícios do Aniversário de George Washington». Desapareceram
igualmente as faixas murais proclamando «Desperta, América – Esmaga os
Comunistas Judeus!», as referências feitas por oradores a Franklin D.
Roosevelt como «Franklin D. Rosenfeld» e os grandes autocolantes brancos
com letras pretas que tinham sido oferecidos aos membros da Bund para
porem nas lapelas e que diziam:
MANTENHAM A AMÉRICA
FORA DA
GUERRA JUDAICA
No caminho do trabalho para casa, duas semanas depois, o meu pai parou
no Newsreel Theater para apanhar a cobertura filmada do jantar de von
Ribbentrop. Foi então que soube por Shepsie Tirschwell, a quem visitou na
cabina de projecção depois do espectáculo, que no primeiro de Junho o seu
velho amigo de juventude partiria para Winnipeg com a mulher, os três
filhos, a mãe e os pais idosos da mulher. Representantes da pequena
comunidade judaica em Winnipeg tinham ajudado Mr. Tirschwell a arranjar
trabalho como projeccionista num cinema de bairro de lá e haviam alugado
apartamentos para toda a família num modesto bairro judeu muito parecido
com o nosso. Os canadianos tinham igualmente arranjado um empréstimo
com juros baixos para custear a mudança de Tirschwell da América e ajudar
os sogros até Mrs. Tirschwell arranjar um emprego em Winnipeg que lhe
permitisse pagar as despesas dos pais. Ele disse ao meu pai que lhe custava
muito deixar a sua cidade natal e os seus queridos velhos amigos, e que,
evidentemente, lamentava abandonar o seu emprego singular no cinema
mais importante de Newark. Ia deixar muito e perder muito, mas graças a
toda a quantidade de película não montada, filmada por equipas de
cinenoticiários à volta do mundo, que vira nos últimos anos, estava
convencido de que o lado secreto do pacto firmado nas Islândia entre
Lindbergh e Hitler, em 1941, estipulava que Hitler derrotaria primeiro a
União Soviética, depois invadiria e conquistaria a Inglaterra, e só depois
disso (e depois de os Japoneses terem invadido a China, a Índia e a
Austrália, completando assim a sua «Nova Ordem na Grande Ásia) o
presidente americano estabeleceria a «Nova Ordem Fascista Americana»,
uma ditadura totalitária nos moldes da hitleriana, que prepararia o cenário
para a última grande luta continental: a invasão, conquista e nazificação
alemã da América do Sul. Dois anos depois, com a suástica de Hitler a
flutuar nas câmaras do Parlamento de Londres, o Sol Nascente desfraldado
sobre Sydney, Nova Deli e Pequim e Lindbergh eleito para a presidência
durante mais quatro anos, a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá
seria encerrada, as relações diplomáticas entre os dois países cortadas e,
para concentrar os Americanos no grave perigo interno que obrigaria à
redução dos seus direitos constitucionais, seria desencadeado o ataque em
massa contra os quatro milhões e meio de judeus da América.
Na esteira da visita de von Ribbentrop a Washington – e do triunfo que
representou para os mais perigosos apoiantes americanos de Lindbergh –,
era esta a previsão de Mr. Tirschwell, uma previsão mais pessimista do que
tudo quanto o meu pai previa, que ele resolveu não no-la repetir nem
mesmo, quando regressou a casa para jantar vindo do Newsreel Theater ao
princípio da noite, dizer alguma coisa acerca da iminente partida do amigo,
convencido de que as notícias me aterrorizariam, irritariam Sandy e poriam
a minha mãe a clamar para que emigrássemos imediatamente. Desde a
tomada de posse de Lindbergh, ano e meio atrás, calculava-se que apenas
duzentas a trezentas famílias judias tinham fixado residência permanente no
refúgio do Canadá: os Tirschwell eram os primeiros fugitivos desse tipo que
o meu pai conhecia pessoalmente, e ter sido posto ao corrente da sua
decisão deixara-o abalado.
Depois veio o choque de ver, em filme, o nazi von Ribbentrop e a sua
mulher calorosamente saudados no pórtico da Casa Branca pelo presidente
e por Mrs. Lindbergh. E o choque de ver todos os eminentes convidados
descerem das suas limusinas, sorrindo de antemão da perspectiva de
jantarem e dançarem na presença de von Ribbentrop – e entre os
convidados, aparentemente não menos emocionados do que os outros pelo
repugnante acontecimento, o rabi Lionel Bengelsdorf e Miss Evelyn Finkel.
«Não pude acreditar», disse o meu pai. «O sorriso na cara dela tinha um
quilómetro de comprimento. E o futuro marido? Parecia julgar que o jantar
era em sua honra. Só queria que vissem aquele homem, a inclinar a cabeça
a toda a gente como se tivesse, realmente, importância!» «Mas porque
foste», perguntou a minha mãe, «se sabias que ficarias transtornado desta
maneira?» «Fui porque todos os dias faço a mim próprio a mesma pergunta:
Como pode uma coisa destas estar a acontecer na América? Como podem
pessoas destas governar o nosso país? Se não tivesse visto com os meus
próprios olhos, pensaria que estava a ter alucinações.»
Embora mal tivéssemos começado a jantar, Sandy pousou os talheres e
resmungou: «Mas não está a acontecer nada na América, nada», e levantou-
se da mesa – e não era a primeira vez que isso acontecia desde que a minha
mãe o esbofeteara. Agora, às refeições, bastava a mínima referência às
notícias para Sandy se levantar e, sem qualquer explicação ou pedido de
desculpa, desaparecer no nosso quarto e fechar a porta. Nas primeiras
vezes, a minha mãe levantou-se, foi atrás dele e entrou para falar com ele e
convidá-lo a voltar para a mesa, mas Sandy sentava-se à sua secretária a
afiar um crayon ou a rabiscar com ele no caderno de desenho até ela o
deixar em paz. O meu irmão nem sequer falava comigo quando, levado por
pura solidão, me atrevia a perguntar-lhe quanto tempo mais ia continuar a
proceder assim. Comecei a pensar se ele não seria capaz de pegar nas suas
coisas e sair de casa, não para a da tia Evelyn, mas para ir viver com os
Mawhinney na sua quinta no Kentucky. Mudaria o nome para Sandy
Mawhinney e nunca mais voltaríamos a vê-lo, assim como não voltaríamos
a ver Alvin. E ninguém precisava de se incomodar a raptá-lo; ele fá-lo-ia
pessoalmente, entregar-se-ia aos cristãos para nunca mais ter nada que ver
com judeus. Ninguém precisava de o raptar, porque Lindbergh já o raptara,
juntamente com todos os outros!
O comportamento de Sandy transtornava-me tanto que, à noite, passei a
fazer os trabalhos de casa fora da vista dele, na mesa da cozinha. Foi por
isso que acabei por escutar o meu pai – que estava na sala com a minha
mãe, a ler o jornal da tarde, enquanto Sandy permanecia em insolente
reclusão nas traseiras da casa – a lembrar-lhe que a nossa perturbação
familiar era exactamente o tipo de discórdia que os anti-semitas de
Lindbergh tinham esperado fomentar entre pais judeus e os seus filhos, com
programas como o Just Folks. Compreender isso, porém, só fortalecera a
sua resolução de não imitar Shepsie Tirschwell e partir.
– Do que estás a falar? – perguntou a minha mãe. – Queres dizer que os
Tirschwell vão para o Canadá?
– Sim, em Junho.
– Porquê? Porquê em Junho? O que vai acontecer em Junho? Quando é
que soubeste isso? Porque não disseste nada?
– Porque sabia que ficarias transtornada.
– E fiquei... como querias que não me transtornasse? Porquê, Herman,
por que motivo vão eles partir em Junho? – exigiu saber.
– Porque, na opinião do Shepsie, chegou o momento. Não vamos discutir
o assunto – pediu o meu pai, baixinho. – O miúdo está na cozinha e já anda
suficientemente assustado. Se o Shepsie acha que chegou o momento, essa
é a sua decisão, para ele e para a sua família, e desejo-lhe sorte. Ele passa
horas e horas sentado a ver as últimas notícias. As notícias são a vida do
Shepsie, e como as notícias são terríveis afectam a sua maneira de pensar e
ele chegou a esta decisão.
– O homem chega a esta decisão – observou a minha mãe – porque é
informado.
– Eu também sou informado – replicou ele, asperamente. – Não sou
menos informado do que ele... mas acabo de chegar a uma conclusão
diferente. Não compreendes que estes pulhas anti-semitas querem que
fujamos? Querem que os judeus fiquem tão fartos de tudo que se vão
embora de vez, e depois os góis terão este maravilhoso país só para eles.
Pois bem, eu tenho uma ideia melhor. Porque não se vão eles embora? A
cambada toda... por que não vão viver sob o domínio do seu Führer na
Alemanha nazi? Então, sim, nós teremos um país maravilhoso! Olha, Bess,
o Shepsie pode fazer o que considerar certo, mas nós não vamos para lugar
nenhum. Ainda há um Supremo Tribunal neste país. Graças a Franklin
Roosevelt, é um Supremo Tribunal liberal e existe para zelar pelos nossos
direitos. Há o juiz do Supremo, Douglas. Há o juiz do Supremo,
Frankfurter. Há o juiz do Supremo, Murphy, e o juiz do Supremo, Black.
Eles estão lá para fazer cumprir a lei. Ainda há homens bons neste país. Há
o Roosevelt, há o Ickes, há o mayor La Guardia. Em Novembro realizam-se
as eleições para o Congresso. Ainda há a urna de voto e as pessoas ainda
podem votar sem ninguém lhes dizer o que devem fazer.
– E em quem votarão elas? – perguntou a minha mãe, e respondeu
imediatamente à sua própria pergunta: – O povo americano votará e os
Republicanos ficarão ainda mais fortes.
– Fala baixo. Tenta falar baixo, está bem? Em Novembro saberemos os
resultados e, então, haverá tempo para decidir o que faremos.
– E se não houver tempo?
– Haverá. Por favor, Bess, isto não pode continuar assim todas as noites!
E foi dele a última palavra, embora provavelmente tenha sido devido
apenas ao facto de eu estar a fazer os trabalhos de casa na cozinha que a
minha mãe fez um esforço e não disse mais nada.
No dia seguinte, logo depois das aulas, desci a Chancellor Avenue, virei
para Clinton Place e depois deixei para trás a escola secundária, segui até
onde me pareceu haver menos probabilidades de alguém me reconhecer e
esperei por um autocarro para o centro, para o Newsreel Theater. Vira os
horários no jornal, na véspera à noite. Havia um programa de uma hora
inteira que começava aos cinco minutos para as quatro, o que significava
que poderia apanhar o autocarro da carreira 14 das cinco horas na paragem
da Broad Street, no lado oposto do cinema, e chegar a casa a horas para
jantar, ou até mais cedo, dependendo de quando von Ribbentrop fosse
introduzido no programa. Fosse como fosse, tinha de ver a tia Evelyn na
Casa Branca, não porque, como os meus pais, estivesse apavorado e
indignado com o que ela estava a fazer, mas porque o simples facto de ela lá
ter ido me parecia mais extraordinário do que qualquer outra coisa que
pudesse acontecer a um membro da nossa família – excepto, evidentemente,
o que tinha acontecido ao Alvin.
NAZI IMPORTANTE CONVIDADO DA CASA BRANCA – eis o título
a letras pretas escrito de lado a lado do toldo triangular do cinema, e além
do facto de me encontrar no centro da cidade sem o meu irmão, Earl Axman
ou um dos meus pais, senti-me tremendamente delinquente quando me
aproximei do guiché da bilheteira e pedi um bilhete.
– O quê, sem a companhia de um adulto? Não, senhor – disse a mulher
que vendia os bilhetes,
– Sou órfão – respondi-lhe. – Vivo no orfanato da Lyons Avenue. A irmã
mandou-me escrever um relatório acerca do presidente Lindbergh.
– Onde está a autorização?
Eu escrevera uma cuidadosamente, no autocarro, usando uma folha em
branco do meu livro de apontamentos, e estendi-lha pela abertura por onde
se passava o dinheiro. Estava redigida nos termos que a minha mãe usava
para as saídas da escola, com a diferença de que a assinatura era: «Irmã
Mary Catherine, St. Peter’s Orphanage.» A mulher olhou-a sem a ler e
depois fez-me sinal para passar o dinheiro. Dei-lhe uma das notas de dez
dólares de Alvin – uma nota gorda para um miúdo da minha idade e ainda
muito mais para um órfão do St Peter’s –, mas ela estava apressada e
passou-me os nove dólares e cinquenta cêntimos de troco, mais um bilhete,
sem qualquer objecção. Não me devolveu, porém, a autorização. «Preciso
disso», disse-lhe. «Desanda, meu filho», respondeu-me impacientemente, e
fez-me sinal para dar lugar às pessoas que ainda estavam na bicha para o
espectáculo seguinte.
Entrei precisamente quando as luzes se apagaram, a música marcial soou
e o filme começou a correr. Como, aparentemente, todos os homens de
Newark (o cinema atraía muito poucas mulheres) queriam dar uma olhadela
ao inverosímil convidado da Casa Branca, a sala estava cheia para aquela
sessão do fim da tarde de sexta-feira e o único lugar vago que consegui
encontrar ficava lá para trás, no balcão – quem quer que entrasse agora teria
de ficar de pé, atrás da última fila. Apoderou-se de mim uma grande
agitação, não só por ter conseguido safar-me com uma coisa que não se
esperaria de mim, mas também porque, envolto no fumo das centenas de
cigarros e no odor extravagante de charutos de cinco cêntimos, me sentia
profundamente mergulhado na magia viril de um rapaz a fazer-se passar por
homem entre homens.
Britânicos desembarcam em Madagáscar para retomar base naval
francesa.
Pierre Laval, chefe do Governo francês de Vichy, denuncia a operação
britânica como um «acto de agressão».
RAF bombardeia Estugarda pela terceira noite consecutiva.
Caças britânicos travam feroz combate aéreo sobre Malta. Exército
alemão retoma ataque à URSS na península de Kerch.
Mandalay cai em poder do exército japonês na Birmânia. Exército
japonês desencadeia nova investida nas selvas da Nova Guiné.
Exército japonês marcha da Birmânia para a província chinesa de Iunão.
Guerrilheiros chineses atacam a cidade de Cantão, matando quinhentos
soldados nipónicos.
Uma multitude de capacetes, uniformes, armas, edifícios, portos, praias,
flora, fauna – rostos humanos de todas as raças –, mas, tirando isso, o
mesmo inferno, repetidamente, o inultrapassável mal de cujos horrores os
Estados Unidos, entre todas as grandes nações, era o único país a ser
poupado. Imagem após imagem de desgraça infinita: os morteiros a
rebentar, os soldados de infantaria a correr, dobrados, fuzileiros com
espingardas levantadas a vadear na costa, aviões lançando bombas, aviões
explodindo e caindo em parafuso para terra, as sepulturas colectivas, os
capelães ajoelhados, as cruzes improvisadas, os navios a afundar-se, os
marinheiros a afogar-se, o mar em chamas, as pontes destroçadas, o
bombardeamento de tanques, hospitais alvejados partidos em dois, colunas
de chamas subindo em espiral de reservatórios de petróleo bombardeados,
prisioneiros encurralados num mar de lama, maqueiros transportando
troncos vivos, civis trespassados por baionetas, bebés mortos, corpos
decapitados borbotando sangue...
E depois a Casa Branca. Um crepuscular anoitecer primaveril. Sombras a
projectarem-se em diagonal no relvado. Arbustos a desabrochar. Arvores a
florir. Limusinas conduzidas por motoristas de libré e toda a gente a sair
delas formalmente vestida. Na entrada de mármore, para lá das portas
abertas do pórtico, um conjunto de cordas tocava a canção mais célebre do
ano passado, «Intermezzo», popularizada a partir de um tema de Tristão e
Isolda de Wagner. Sorrisos amáveis. Riso sereno. O presidente, esbelto,
amado, atraente. Ao lado dele, a poetisa talentosa, aviadora ousada e
elegante socialite mãe do filho assassinado de ambos. O convidado de
honra, loquaz, de cabelo prateado. A elegante esposa nazi no seu comprido
vestido de cetim. Palavras de boas-vindas, ditos espirituosos, e o galante
cavalheiro do Velho Mundo, impregnado da teatralidade da corte real e
parecendo soberbo no seu traje de noite, beijando garbosamente a mão da
primeira-dama.
Não fora a Cruz de Ferro, concedida ao ministro dos Estrangeiros pelo
seu Führer, e que lhe adornava a algibeira poucos centímetros abaixo do
lenço de seda impecavelmente posto, e pareceria uma contrafacção tão
persuasivamente civilizada quanto a astúcia humana podia conceber.
Ah, e lá estavam a tia Evelyn e o rabi Bengelsdorf, passando pela guarda
de fuzileiros, transpondo a porta e desaparecendo!
Não podiam ter permanecido no ecrã nem três segundos, mas isso bastou
para que o resto das notícias nacionais e dos apontamentos desportivos do
fecho se tornassem incompreensíveis para mim e eu ficasse a desejar que a
película fosse remoinhada até ao momento em que a minha tia se
materializou, refulgente com as pedras preciosas anteriormente propriedade
da falecida mulher do rabi. Entre as muitas improbabilidades que as
câmaras fixaram como irrefutavelmente reais, o vergonhoso triunfo da tia
Evelyn foi para mim a menos real de todas.
Quando a sessão terminou e as luzes se acenderam, encontrava-se de pé
na coxia, a movimentar a lanterna eléctrica, um arrumador fardado.
– Tu – disse. – Vem comigo.
Conduziu-me pelo meio da multidão que estava a sair, entrou comigo por
uma porta que abriu com uma chave e depois levou-me por uma escada
estreita e íngreme acima que reconheci de quando ali fora levado, com
Sandy, para vermos as manifestações de Madison Square Garden sobre von
Ribbentrop.
– Que idade tens? – perguntou-me o arrumador.
– Dezasseis anos.
– Essa á boa. Guarda-a bem guardada, miúdo, e ainda arranjas mais
encrencas.
– Agora tenho de ir, se não perco o autocarro para casa.
– Vais perder muito mais do que isso.
Bateu com força à famosa porta à prova de som de acesso à cabina de
projecção de Mr. Tirschwell, que nos mandou entrar.
Tinha na mão o bilhete da irmã Mary Catherine.
– Não sei como posso deixar de mostrar isto aos teus pais – disse-me ele.
– Foi só uma brincadeira.
– O teu pai vem-te buscar. Telefonei para o seu escritório e disse-lhe que
estavas aqui.
– Muito obrigado – agradeci, com toda a delicadeza com que fora
ensinado a dizê-lo.
– Senta-te, por favor.
– Mas foi só uma brincadeira – repeti.
Mr. Tirschwell estava a preparar as bobinas para a sessão seguinte.
Quando olhei em redor, reparei que muitas das fotografias autografadas dos
frequentadores famosos do cinema tinham sido tiradas das paredes, e
compreendi que Mr. Tirschwell começara a reunir as recordações que
levaria para Winnipeg. E compreendi também que a gravidade de
semelhante resolução poderia só por si justificar a severidade com que
estava a tratar-me. Ao mesmo tempo, também me pareceu estar perante o
tipo de adulto rigoroso cujo sentido de responsabilidade se estende muitas
vezes àquilo que não é da sua conta. Seria difícil dizer, quer pelo seu
aspecto quer pela sua maneira de falar, que crescera com o meu pai num
prédio de Newark. Era uma versão atenuada, claramente mais culta e altiva
do que a do meu pai, da criança de bairro pobre deficientemente instruída
que se libertara da pobreza dos pais imigrantes quase inteiramente graças a
uma diligência vigilante e programada. Para estes homens, o ardor era tudo
quanto tinham para prosseguir. Aquilo a que os gentios seus superiores
chamavam agressividade era de modo geral apenas isso: o ardor, a
veemência que era tudo.
– Se eu sair – disse-lhe –, ainda posso apanhar o autocarro e chegar a casa
a horas de jantar,
– Deixa-te ficar onde estás, por favor.
– Mas que mal fiz eu? Só queria ver a minha tia. Não é justo – aleguei,
perigosamente à beira das lágrimas. – Eu queria ver a minha tia na Casa
Branca, mais nada.
– A tua tia – disse ele, e cerrou os dentes com força, para não dizer mais
nada.
Apesar de tudo o mais, foi o desdém dele pela tia Evelyn que me fez
correr as lágrimas.
– Estás a sofrer? – perguntou-me sardonicamente. – Estás a sofrer o quê?
Fazes alguma ideia daquilo por que as pessoas estão a passar por todo esse
mundo? Não compreendeste nada do que acabaste de ver? Só espero que no
futuro te seja poupado qualquer motivo genuíno para chorar. Espero e rezo
para que, nos tempos que aí vêm, a tua família... Calou-se de súbito,
claramente pouco habituado a um pouco digno excesso de emoção
irracional, sobretudo ao lidar com uma insignificante criança. Até eu
compreendi que a sua irritação era com qualquer outra coisa e não comigo,
mas isso não atenuava o choque de ter de ser eu a suportar a violência da
sua ira.
– O que é que vai acontecer em Junho? – perguntei-lhe. Era a pergunta
sem resposta que escutara a minha mãe a fazer ao meu pai na noite anterior.
Mr. Tirschwell continuou a perscrutar o meu rosto como se testasse o meu
défice de inteligência.
– Recompõe-te – disse, por fim. – Toma. Enxuga os olhos – e estendeu-
me o seu lenço.
Obedeci-lhe, mas quando repeti: «O que vai acontecer em Junho? Porque
vai para o Canadá?», o exaspero desapareceu imediatamente da sua voz e
deu lugar a alguma coisa ao mesmo tempo mais forte e mais suave: a sua
inteligência.
– Tenho um novo emprego lá.
Aterrou-me o facto de ele estar a poupar-me e desfiz-me de novo em
lágrimas.
O meu pai chegou cerca de vinte minutos depois. Mr. Tirschwell
entregou-lhe o bilhete que eu escrevera para conseguir entrar no cinema,
mas o meu pai não perdeu tempo a lê-lo enquanto não me conduziu pelo
cotovelo do cinema para a rua. E é então que me bate. Primeiro a minha
mãe bate no meu irmão, agora o meu pai lê as palavras da irmã Mary
Catherine e, pela primeira vez na minha vida, esbofeteia-me sem
comedimento. Como já estou com os nervos em frangalhos – e não sou,
nem por sombras, tão estóico como o meu irmão –, desato a chorar
desalmadamente junto da cabina da bilheteira, à vista de todos os gentios
que se apressam a regressar a casa, vindos dos seus escritórios no centro da
cidade, para um tranquilo fim-de-semana primaveril na América em paz de
Lindbergh, a fortaleza autónoma a oceanos de distância das zonas de guerra
mundiais onde ninguém além de nós corre perigo.
11 O sentido perde-se em português: Sandy confundiu nuns – freiras – com nuts – palermas, idiotas,
etc. (NT)
12 The hard way, no original. Termo de gíria do jogo de dados para o qual não encontrei
correspondência. Significa a repetição de um número par saído no primeiro lançamento e obtido
lançando dois dados pares que somados o atingem. Em tradução literal: a maneira mais difícil e
complicada de conseguir alguma coisa. (NT)
6
Maio de 1942-Junho de 1942
O PAÍS DELES
22 de Maio de 1942
Prezado Mr. Roth:
Em conformidade com um pedido do Homestead 42, Gabinete Americano
de Assimilação, Departamento do Interior dos EUA, a nossa empresa está a
oferecer oportunidades de realojamento a funcionários veteranos como o
senhor, tidos como qualificados para inclusão na nova e arrojada iniciativa,
a nível nacional, do GAA.
Foi exactamente há oitenta anos que o Congresso dos EUA aprovou o
Homestead Act de 1862, a famosa legislação, exclusiva da América, que
concedia oitenta hectares de terra pública não ocupada, virtualmente grátis,
a lavradores dispostos a partir e colonizar o novo Oeste americano. Desde
então, nada de comparável foi empreendido no sentido de proporcionar a
americanos corajosos emocionantes novas oportunidades de expandirem os
seus horizontes e fortalecerem o seu país.
A Metropolitan Life orgulha-se de se contar entre o primeiro grupo de
grandes empresas e instituições financeiras americanas seleccionadas como
participantes do novo Programa Homestead, concebido para dar a famílias
americanas emergentes uma oportunidade única na vida de mudarem as
suas residências, a expensas do Governo, a fim de criarem raízes numa
inspiradora região americana que anteriormente lhes era inacessível. O
Homestead 42 proporcionará um ambiente desafiador, impregnado das mais
antigas tradições do nosso país e onde pais e filhos poderão enriquecer a sua
americanidade ao longo das gerações.
Quando receber esta notificação deverá comunicar imediatamente com
Mr. Wilfred Kurth, o representante do Homestead 42 no nosso escritório da
Madison Avenue. Ele responderá pessoalmente a todas as suas perguntas e o
seu pessoal ajudá-lo-á amavelmente em tudo quanto estiver ao seu alcance.
Felicitamo-lo, a si e à sua família, por ter sido escolhido entre numerosos
candidatos da Metropolitan Life merecedores de se contarem entre os
primeiros «homesteaders» pioneiros de 1942.
Com consideração,
Homer L. Kasson
Vice-presidente dos Assuntos do Pessoal
Desde a morte da minha avó, há dois anos, que o nosso telefone não era
usado tão incessantemente e a horas tão tardias da noite. Eram quase onze
horas quando o meu pai acabou de retribuir as chamadas de todos, e
decorreu outra hora até ele e a minha mãe saírem da cozinha, onde tinham
estado a conversar calmamente, e irem por sua vez deitar-se. E passaram
ainda mais duas horas até eu ter a certeza de que eles estavam a dormir
profundamente e, na cama ao lado da minha, o meu irmão já não estava de
olhos furiosamente fitos no tecto, mas sim, também, a dormir, o que me
permitiu levantar-me em segurança, sem ser descoberto, dirigir-me para a
porta das traseiras, abrir a fechadura, sair sorrateiramente de casa e descer a
escada para a cave onde, às escuras, atravessei descalço o chão húmido até
à nossa arrecadação.
Não me impelia nenhum sentimento impulsivo ou histérico, não havia
nada de dramático na minha decisão nem, que me apercebesse, nada de
temerário. As pessoas disseram, depois, que não tinham feito ideia de que
sob a pátina de obediência e boas maneiras de garoto do quarto ano, eu
pudesse ser uma criança tão surpreendentemente irresponsável e
devaneadora. Mas não se tratou de nenhum devaneio insignificante. Eu não
estava a brincar ao faz de conta nem estava a ser travesso pela travessura
em si. Na verdade, as minhas travessuras com Earl Axman tinham sido um
treino precioso, mas empreendido com um objectivo completamente
diverso. Não sentia, garanto, que estava a lançar-me de cabeça na
insanidade, nem sequer quando entrei na arrecadação escura, despi o pijama
e enfiei as calças de Seldon, ao mesmo tempo que afugentava mentalmente
o fantasma do seu pai e tentava não me sentir aterrorizado com a cadeira de
rodas vazia de Alvin. Não estava a ser engolido por nada mais do que a
determinação de resistir a uma tragédia que a nossa família e os nossos
amigos já não podiam ignorar e a que talvez não sobrevivessem. Mais tarde,
os meus pais disseram: «Ele não sabia o que estava a fazer», e o
«sonambulismo» tornou-se a explicação oficial. Mas eu estava inteiramente
acordado e a minha motivação nunca foi obscura para mim. Obscuro era
apenas saber se seria bem-sucedido. Um dos meus professores sugeriu que
eu sofrera de «mania de grandeza» inspirada pelo que estava a aprender na
escola acerca do Caminho-de-Ferro Subterrâneo, organizado antes da
Guerra Civil para ajudar os escravos na fuga para norte, para a liberdade.
Não era. Eu não era nada parecido com Sandy, no qual a oportunidade
atiçara o desejo de ser um rapaz em grande escala, montado na crista da
História. Eu não queria ter nada que ver com a História. Queria ser um
rapaz na mínima escala possível. Queria ser órfão.
Havia apenas uma coisa que não queria deixar para trás: o meu álbum de
selos. Se tivesse podido ter a certeza de que ele seria mantido intacto depois
da minha partida, talvez não tivesse, no último momento antes de sair do
quarto, parado para abrir a gaveta da minha cómoda e, o mais
silenciosamente possível, tirado o álbum de onde ele estava arrumado
debaixo das minhas peúgas e roupa interior. Mas era-me intolerável pensar
que o meu álbum seria destruído ou deitado fora, ou, pior ainda, dado
absolutamente intacto a outro rapaz, e por isso meti-o debaixo do braço e,
juntamente com ele, o abre-cartas com o formato de um mosquete que
comprara em Mount Vernon e cuja ponta de baioneta usava para abrir muito
bem o único correio que alguma vez recebia, além de cartões de parabéns
nos meus anos: as embalagens de «ofertas de venda» enviadas regularmente
de Boston 17, Massachusetts, pela «maior firma de filatelia do mundo», a
H. E. Harris & Co.
Na segunda vez que o FBI entrou nas nossas vidas, quem estava sob
vigilância era o meu pai. O mesmo agente que me detivera para me
interrogar a respeito de Alvin, no dia em que Mr. Wish-now se enforcou (e
que interrogara Sandy no autocarro, a minha mãe na loja e o meu pai no
escritório), apareceu no mercado de verduras e andou pelas proximidades
do pequeno restaurante aonde os homens iam comer e beber café a meio da
noite, e, comportando-se como se comportara quando Alvin tinha começado
a trabalhar para o tio Monty, fazendo agora perguntas do tio de Alvin,
Herman, e do que ele andava a dizer às pessoas a respeito da América e do
nosso presidente. O caso chegou aos ouvidos do tio Monty por intermédio
de um homem de mão de Longy Zwillman, que lhe transmitiu o que o
agente McCorkle lhe comunicara: nomeadamente que, após ter abrigado e
alimentado um traidor que combatera para um país estrangeiro, o meu pai
preferira agora abandonar um bom emprego na Metropolitan Life a
participar num programa governamental destinado a unificar e fortalecer o
povo americano. O tio Monty disse ao tipo de Longy que o seu irmão era
um pobre diabo sem instrução, com dois filhos e uma mulher para sustentar,
e que não podia causar grande mal à América alancando com grades de
verduras seis noites por semana. O tipo de Longy ouviu
compreensivamente, segundo disse o tio Monty que, com nenhum do
decoro de modo geral usado em nossa casa, nos contou a história toda na
nossa cozinha, numa tarde de sábado: «...e mesmo assim o tipo disse-me:
“O teu irmão tem de ir-se embora.” Eu respondi-lhe: “Tudo isso é treta. Diz
ao Longy que faz tudo parte da treta contra os judeus.” O próprio tipo é
judeu, chama-se Niggy Apfelbaum, mas o que eu lhe disse não fez mossa
nenhuma. Niggy procura o Longy e diz-lhe que o Roth não faz o que lhe foi
mandado. O que acontece a seguir? Longy aparece ali mesmo, no meu
escritoriozinho pelintra, todo pinoca num fato de seda feito por medida.
Alto, falinhas mansas, vestido a matar – percebe-se como ele caça as
estrelas de cinema. Eu digo-lhe: “Lembro-me de ti da escola primária,
Longy. Já nesse tempo vi que ias longe.” E ele responde-me: “Também me
lembro de ti. Já nesse tempo vi que não ias a lado nenhum.” Desatámos a
rir, e eu expliquei-lhe: “O meu irmão precisa de um emprego, Longy. Não
posso dar um emprego ao meu próprio irmão?” “E eu posso ter o FBI a
meter o nariz por aí?”, perguntou-me. “Eu sei tudo isso, e não é verdade que
me livrei do meu sobrinho Alvin por causa do FBI? Mas com o meu próprio
irmão não é a mesma coisa, pois não? Olha – proponho –, dá-me vinte e
quatro horas e eu resolvo tudo. Se não resolver, se não conseguir resolver, o
Herman vai-se embora.” Espero, por isso, que fechemos na manhã seguinte,
vou até ao Sammy Eagle’s e vejo o mick shmegeggy13 do FBI. “Permita que
lhe ofereça o pequeno-almoço”, ofereço, peço um boilermaker14, sento-me
ao lado dele e pergunto-lhe: “O que é que tem contra os judeus,
McCorkle?” “Nada”, responde-me. “Então porque persegue o meu irmão
desta maneira? Que mal fez ele a alguém?” “Ouça, se eu tivesse alguma
coisa contra os judeus, estaria aqui sentado no Eagle’s e o Sammy Eagle
seria meu amigo?” Chama o Eagle e pergunta-lhe: “Diz-lhe, Eagle, eu tenho
alguma coisa contra os judeus.” “Que eu saiba, não”, responde o outro.
“Quando foi do bar mitzvah do teu filho, não estive presente e lhe ofereci
uma mola de gravata?” “Ele ainda a usa”, diz-me o Eagle. “Está a ver?”,
pergunta-me o McCorkle. “Limito-me a fazer o meu trabalho, como o Eagle
faz o dele, e você o seu.” “E é também isso, apenas, o que o meu irmão
faz”, replico. “Muito bem. Óptimo. Então não diga que sou contra os
judeus.” “Enganei-me. Peço desculpa”, digo-lhe e, entretanto, passo-lhe o
sobrescrito, o pequeno sobrescrito castanho, e está o caso arrumado.»
Neste ponto, o meu tio virou-se para mim e disse: “Ouvi dizer que és um
ladrão de cavalos. Constou-me que roubaste um cavalo da igreja. Rapaz
esperto. Mostra-me lá.” Inclino-me e mostro-lhe onde o casco do cavalo me
abrira a cabeça. Ele riu-se, quando passou ao de leve o dedo pela extensão
da cicatriz e à volta da parte onde o cabelo fora rapado e começava a
crescer. “Que contes muitas mais”, disse-me – e depois, como costumava
fazer desde que eu me lembrava, levantou-me sem delicadezas para um dos
seus joelhos de modo a que o montasse, imagine-se, como a um cavalo. “Já
assististe a uma bris15, não assististe?”, perguntou-me, e começou a fazer-
me andar de cavalinho, baixando e levantando a coxa. “Sabes o que fazem
quando circuncidam um bebé numa bris, não sabes?” “Cortam o prepúcio.”
“E o que é que fazem ao pequeno prepúcio? Depois de o tirarem,
evidentemente. Sabes o que lhe fazem?» «Não.» «Bem», respondeu o tio
Monty, «guardam-no e quando juntam bastantes dão-nos ao FBI para
fazerem agentes com eles.» Não me contive, e apesar de saber que não
devia fazê-lo, e apesar, ainda, de na última vez que ele me fizera a mesma
pergunta ter dito: «Mandam-nos para a Irlanda, para fazerem padres»,
apesar disso tudo desatei a rir. «O que é que estava no sobrescrito?»,
perguntei-lhe. «Adivinha.» «Não sei. Dinheiro?» «Dinheiro, acertaste. És
um ladrãozinho de cavalos inteligente. O dinheiro que faz desaparecer todos
os problemas.»
Só mais tarde fiquei a saber pelo meu irmão, que escutara os meus pais a
falarem no seu quarto, que a importância total do suborno pago a McCorkle
seria descontada pelo tio Monty do salário já de si miserável do meu pai,
em prestações de dez dólares por semana durante os seis meses seguintes. E
o meu pai não podia fazer nada para o evitar. Tudo quanto sempre disse a
respeito da dureza do trabalho e das humilhações inerentes a servir o irmão
foi: «Ele é assim desde os dez anos, será assim até morrer.»
17 Matador. (NT)
18 Bolacha de água e sal, embora aqui também possa ser uma corruptela maliciosa, com o sotaque
local, de Seldon. (NT)
8
Outubro de 1942
TEMPOS DIFÍCEIS
Retirado dos
Arquivos do Newsreel Theater de Newark
DE NOVO!
Como todos sabem, o presidente Lindbergh não foi encontrado, nem dele
voltou a haver notícias, embora tivessem circulado histórias a seu respeito
durante toda a guerra e ao longo de uma década depois, juntamente com os
boatos acerca de outras pessoas proeminentes desaparecidas nessa época
conturbada, como Martin Bormann, secretário particular de Hitler, que se
supunha ter escapado aos exércitos aliados e fugido para a Argentina de
Juan Peron – mas que é mais provável que tenha perecido nos derradeiros
dias da Berlim nazi –, e Raoul Wallenberg, o diplomata sueco cuja
distribuição de passaportes suecos salvou cerca de vinte mil judeus
húngaros de serem exterminados pelos nazis, embora ele próprio tenha
desaparecido, provavelmente numa cadeia soviética, quando os Russos
ocuparam Budapeste em 1945. Entre o número decrescente de estudiosos da
conspiração de Lindbergh continuaram a aparecer relatos de pistas e
avistamentos, em comunicados intermitentes dedicados à especulação
quanto ao destino inexplicado do trigésimo terceiro presidente da América.
A história mais complicada, a história mais incrível – embora não
necessariamente a menos convincente – foi a primeira dada a conhecer à
nossa família pela tia Evelyn depois da prisão do rabi Bengelsdorf, e cuja
fonte era, nem mais nem menos, Anne Morrow Lindbergh, que
alegadamente terá confiado os pormenores ao rabi dias, apenas, antes de ser
levada da Casa Branca, contra a sua vontade, e mantida prisioneira na
enfermaria psiquiátrica do Walter Reed.
Mrs. Lindbergh, contou o rabi Bengelsdorf, relacionou tudo com o rapto,
em 1932, do seu filho bebé Charles, secretamente planeado e financiado,
afirmou, pelo Partido Nazi, pouco antes de Hitler chegar ao poder. Segundo
a recapitulação feita pelo rabi da história da primeira-dama, Bruno
Hauptmann tinha entregue o bebé, para que o guardasse, a um amigo que
vivia perto dele no Bronx – um compatriota imigrante alemão que era, na
realidade, um agente de espionagem nazi – e horas, apenas, depois de ter
sido tirado do berço em Hopewell, Nova Jérsia, e transportado pela escada
improvisada nos braços de Hauptmann, Charles Jr. já tinha sido levado em
segredo do país e ia a caminho da Alemanha. O cadáver encontrado e
identificado como sendo o do pequeno Lindbergh, dez semanas depois, era
de outro bebé, escolhido pelos nazis para ser assassinado, em virtude da sua
semelhança com o filho de Lindbergh, e depois, quando o corpo já estava
em decomposição, depositado na mata perto da casa dos Lindbergh, para
garantir a condenação e execução de Hauptmann e manter ocultas de toda a
gente, menos dos próprios Lindbergh, as verdadeiras circunstâncias do
rapto. Através de um espião nazi colocado como correspondente estrangeiro
em Nova Iorque, o casal tinha sido informado com antecedência da chegada
de Charles, são e salvo, a solo alemão e fora-lhe assegurado que lhe seriam
prestados os melhores cuidados com uma equipa especialmente escolhida
de médicos, amas, professores e pessoal militar nazi – cuidados merecidos
pela sua condição de filho primogénito do maior aviador do mundo –, desde
que os Lindbergh colaborassem inteiramente com Berlim.
Em consequência desta ameaça, durante os dez anos seguintes a sorte dos
Lindbergh e do seu filho raptado – e, gradualmente, o destino dos Estados
Unidos da América – foi determinada por Adolf Hitler. Graças à perícia e
eficiência dos seus agentes em Nova Iorque e Washington – e em Londres e
Paris depois de o famoso casal, obedecendo a ordens, «ter fugido» para
viver como expatriado na Europa, onde Lindbergh começou a visitar
regularmente a Alemanha nazi e a enaltecer as proezas da sua máquina
militar –, os nazis trataram de explorar a fama de Lindbergh em proveito do
Terceiro Reich e a expensas da América, decidindo onde o casal residiria,
com quem travaria amizade e, sobretudo, que opiniões emitiria nos seus
discursos públicos e escritos publicados, Em 1938, como recompensa por
Lindbergh ter aceite amavelmente uma prestigiada medalha atribuída por
Hermann Göring num jantar oferecido em Berlim em honra do aviador, e
depois de numerosas cartas suplicantes que foram secretamente
encaminhadas de Anne Morrow Lindbergh para o próprio Führer, os
Lindbergh foram finalmente autorizados a visitar o filho, então um belo
rapaz louro com quase oito anos que, desde o dia da sua chegada à
Alemanha, fora criado como um jovem hitleriano modelo. O cadete, que se
exprimia em alemão, não compreendeu, nem lhe foi dito, que os famosos
americanos a quem ele e os seus condiscípulos foram apresentados, após
exercícios na parada da sua academia militar de elite, eram a sua mãe e o
seu pai, e tão-pouco foi permitido aos Lindbergh falarem com ele ou serem
fotografados na sua companhia. A visita realizou-se precisamente quando
Anne Morrow Lindbergh concluíra que a história do rapto dos nazis era
uma mentira indizivelmente cruel e era mais do que tempo de os Lindbergh
se libertarem da sua sujeição a Adolf Hitler. Em vez disso, depois de verem
Charles vivo pela primeira vez desde o seu desaparecimento em 1932, os
Lindbergh deixaram a Alemanha irreversivelmente escravizados ao pior
inimigo do seu país.
Foi-lhes ordenado que pusessem fim ao seu expatriamento e regressassem
à América, onde o coronel Lindbergh adoptaria a causa da America First.
Foram-lhes fornecidos discursos, escritos em inglês, denunciando os
Ingleses, Roosevelt e os Judeus e apoiando a neutralidade da América na
guerra europeia; instruções pormenorizadas especificavam onde e quando
os discursos deviam ser feitos e até o tipo de vestuário a usar em cada
aparecimento em público. Lindbergh representou cada estratagema político
oriundo de Berlim com o mesmo perfeccionismo meticuloso que distinguia
as suas actividades aeronáuticas, até à própria noite em que chegou vestido
de aviador à Convenção Republicana e aceitou a nomeação para a
presidência com palavras escritas para a ocasião pelo ministro da
propaganda nazi Joseph Goebbels. Os nazis planearam cada manobra da
campanha eleitoral que se seguiu e, depois de Lindbergh ter derrotado FDR,
foi Hitler em pessoa quem assumiu o comando, passando a preparar – em
reuniões semanais com Göring, seu sucessor designado e administrador da
economia alemã, e Heinrich Himmler, senhor supremo dos assuntos
internos da Alemanha e chefe da Gestapo, a agência policial que tinha a seu
cargo a custódia de Charles Lindbergh Jr. – uma política estrangeira para os
Estados Unidos que melhor servisse os objectivos de tempo de guerra da
Alemanha e o seu grande desígnio imperial.
Em breve, Himmler começou a interferir directamente nos assuntos
internos dos Estados Unidos, exercendo pressão sobre o presidente
Lindbergh – humoristicamente rebaixado nos memorandos do chefe da
Gestapo com o apodo de «o nosso Gauleiter americano» – para que
instituísse medidas repressivas contra os quatro milhões e meio de judeus
americanos, e foi então, segundo Mrs. Lindbergh, que o presidente decidiu,
ainda que apenas passivamente, no início, afirmar a sua resistência. Para
começar, ordenou a criação do Gabinete Americano de Assimilação, a seu
ver uma agência suficientemente inconsequente para deixar os judeus
essencialmente incólumes, ao mesmo tempo que, na aparência, acatava –
com programas simbólicos como o Just Folks e o Homestead 42 – a
directiva de Himmler «para que iniciasse na América um processo
sistemático de marginalização que conduzirá num futuro previsível à
confiscação de todos os bens dos judeus e ao desaparecimento total da
população judaica, seus pertences e propriedade».
Heinrich Himmler estava longe de ser alguém que se deixasse enganar
com um ardil tão transparente, ou que se desse ao trabalho de disfarçar a
sua decepção, quando Lindbergh ousou justificar-se – por intermédio de
von Ribbentrop, que Himmler mandara a Washington, supostamente numa
visita oficial protocolar, apara ajudar o presidente a elaborar medidas
antijudaicas mais rigorosas – explicando ao comandante supremo dos
campos de concentração de Hitler que determinadas garantias constantes da
Constituição dos Estados Unidos, combinadas com tradições democráticas
americanas de longa data, tornavam impossível pôr em prática na América
uma solução final do problema judaico com tanta rapidez ou eficiência
como num continente onde havia uma história milenária de anti-semitismo
profundamente enraizada no povo comum, e onde o domínio nazi era
absoluto. Durante o jantar protocolar oferecido em honra de von
Ribbentrop, o presidente foi chamado à parte pelo seu ilustre convidado,
que lhe entregou um cabograma codificado, e descodificado momentos
antes na Embaixada da Alemanha, que constituía na sua totalidade a
resposta de Himmler. «Pense na criança», dizia o cabograma, «antes de
voltar a responder com semelhantes tretas. Pense no corajoso jovem
Charles, um notável cadete militar que, aos doze anos de idade, já conhece
melhor do que o seu famoso pai o valor atribuído pelo nosso Führer às
garantias constitucionais e às tradições democráticas, sobretudo no que
respeita aos direitos de parasitas.»
A reprimenda feita por Himmler ao «Lone Eagle» de «coração cobarde»
(como Lindbergh era descrito no memorando interno de Himmler)
assinalou o princípio do repúdio de Lindbergh da ideia de ser um pau-
mandado útil do Terceiro Reich. Ao derrotar Roosevelt e os
intervencionistas antinazis do partido de Roosevelt, proporcionara ao
exército alemão tempo adicional para reprimir a continuada e inesperada
resistência da União Soviética sem que a Alemanha corresse o risco de ter
de confrontar simultaneamente o poderio industrial e militar dos Estados
Unidos. Mais importante ainda do que isso, a presidência de Lindbergh
forneceu à estrutura científica alemã – já a trabalhar secretamente numa
bomba de força explosiva sem paralelo accionada por fissão atómica, assim
como um motor de foguetão capaz de transportar esta arma através do
Atlântico – mais dois anos para concluir a preparação para a luta
apocalíptica com os Estados Unidos, cujo resultado, na previsão de Hitler,
determinaria o curso da civilização ocidental e o progresso da Humanidade
durante o milénio seguinte. Se Himmler tivesse encontrado em Lindbergh o
visionário anti-semita que o alto-comando alemão fora levado a esperar
pelos relatórios da espionagem, em vez daquilo que desdenhosamente
apelidou de «anti-semita de jantar de cerimónia», talvez tivesse sido
permitido ao presidente completar o seu mandato e manter-se outros quatro
anos no cargo, antes de se retirar e ceder o Governo a Henry Ford, já
escolhido por Hitler como sucessor de Lindbergh, apesar da sua idade
avançada. Se Himmler tivesse podido confiar num presidente americano
possuidor de inatacáveis credenciais americanas para pôr em prática a
solução final do problema judaico da América, isso teria, evidentemente,
sido preferível ao emprego, em data posterior, de recursos e pessoal alemão
para desempenhar essa missão na América do Norte, e o avião de Lindbergh
não teria tido de desaparecer dos céus, como foi considerado necessário por
Berlim na quarta-feira, 7 de Outubro de 1942 – tão-pouco teria o presidente
interino Wheeler assumido o poder na noite seguinte e, para surpreendida
satisfação de todos os que até então o tinham considerado nada mais do que
um palhaço, provado em poucos dias que era um líder genuíno, ao pôr
espontaneamente em prática as próprias medidas que von Ribbentrop
propusera a Lindbergh e que, como era convicção de Himmler, o herói
americano não fora capaz de executar devido às pueris objecções morais da
sua mulher.
Decorrida uma hora após o desaparecimento de Lindbergh, Mrs.
Lindbergh fora informada pela Embaixada Alemã de que a responsabilidade
do bem-estar do seu filho era agora exclusivamente sua e que, se ela não
abandonasse a Casa Branca e se retirasse em silêncio da vida pública,
Charles Jr. seria retirado da sua academia militar e enviado para a frente
russa, para a ofensiva de Novembro contra Estalinegrado, onde
permaneceria de serviço como o mais jovem combatente de infantaria do
Terceiro Reich até expirar bravamente no campo de batalha para maior
glória do povo alemão.
Foi esta a história cujos contornos a tia Evelyn transmitiu à minha mãe
quando apareceu em nossa casa horas depois de o rabi Bengelsdorf ser
levado, algemado, do hotel deles em Washington por agentes do FBI. Muito
mais elaborada é a história contada em My Life under Lindbergh, a apologia
de 550 páginas publicada como diário de um insider, logo após a guerra,
pelo rabi Bengelsdorf e desmentida depois numa conferência de imprensa
por um porta-voz da família Lindbergh como «uma condenável calúnia sem
qualquer base nos factos, motivada pela vingança e pela ganância,
sustentada pela egomania, inventada em nome da grosseira exploração
comercial e que Mrs. Lindbergh não dignificará com outra resposta.» A
primeira vez que a minha mãe ouviu a história, pareceu-lhe tratar-se da
prova conclusiva de que o abalo de assistir à prisão do rabino Bengelsdorf
transtornara temporariamente as faculdades mentais da irmã.
O dia seguinte à visita de surpresa de Evelyn foi a sexta-feira, 16 de
Outubro de 1942, em que, antes de regressar à Casa Branca, Mrs. Lindbergh
foi para o ar a partir de um local secreto em Washington e, baseada
exclusivamente na sua autoridade como «esposa do trigésimo terceiro
presidente dos Estados Unidos», declarou que a «injuriosa história da
usurpação» levada a cabo pela Administração do presidente interino «estava
acabada». Se aconteceu algum mal ao seu filho raptado em consequência da
coragem da primeira-dama; se Charles Jr. alguma vez sobrevivera à
primeira infância para sofrer o terrível destino que Himmler prometera,
quanto mais para suportar a infância de um menor tutelado, privilegiado e
refém precioso do Estado alemão; se Himmler, Göring e Hitler foram de
algum modo importantes no apoio da ascensão de Lindbergh à eminência
política como membro da America First, ou no modelo da política dos EUA
durante os vinte e dois meses da presidência de Lindbergh, ou na execução
do misterioso desaparecimento de Lindbergh – tudo isso tem sido objecto
de controvérsia ao longo de mais de meio século, embora presentemente
seja uma controvérsia muito menos apaixonada e difundida do que quando,
ao longo de trinta e tal semanas, em 1946 (e apesar da sua frequentemente
citada caracterização por Westbrook Pegler, o decano dos jornalistas de
direita americanos contra Roosevelt, como «o diário idiota de um
mitomaníaco a precisar de internamento psiquiátrico»), My Life under
Lindbergh permaneceu no topo das listas de bestsellers americanos,
juntamente com duas biografias pessoais de FDR, que morrera em funções
no ano anterior, apenas semanas antes de a rendição incondicional da
Alemanha nazi aos Aliados assinalar o fim da Segunda Guerra Mundial na
Europa.
19 Iídiche, panquecas de batata. (NT)
20 Half nelson, no original. Golpe de luta em que um braço enfiado sob o braço correspondente do
adversário, com a mão colocada na parte de trás do seu pescoço, permite imobilizá-lo. (NT)
À luz das drásticas ocorrências do dia (com as quais nem a aprovação das
Leis dos Estrangeiros e da Sedição de 1798 nem mesmo aquilo a que
Jefferson chamou o federalista «reino das bruxas» se comparou
remotamente, no tocante a intolerância tirana ou traição), foram convocadas
reuniões de emergência, para essa noite, nas quatro escolas locais que,
juntas, abrangiam quase todos os alunos judeus do sistema de educação
primária de Newark. Cada reunião seria presidida por um membro da
Comissão de Cidadãos Judeus Preocupados. Um carro de som viera ao fim
da tarde pedir a toda a gente que passasse a palavra do encontro entre os
seus vizinhos. As pessoas eram convidadas a levar os filhos, se não
desejassem deixá-los sozinhos em casa, e era-lhes garantido que o mayor
Murphy prometera ao rabi Prinz uma mobilização policial total em toda a
South Ward – estendendo-se a protecção policial tão a leste como à
Frelinghuysen Avenue e tão a norte como à Springfield Avenue. Todo o
complemento departamental de polícia montada – dois pelotões de doze,
divididos e alojados em quatro esquadras diferentes – seria especificamente
encarregado de patrulhar as ruas a oeste da área de Weequahic que fazia
fronteira com Irvington (onde, na noite anterior, uma loja de bebidas
alcoólicas, propriedade de judeus, da principal rua comercial, tinha sido
incendiada e totalmente destruída, depois de ter sido invadida e pilhada) e
as ruas a sul que faziam fronteira com Union County e as cidades de
Hillside (famosa aos meus olhos pela grande fábrica Bristol-Myers ao longo
da Route 22, que fabricava o pó de Ipana que usávamos, e onde, no dia
anterior, tinham sido partidas as janelas de uma sinagoga) e Elizabeth (onde
os pais imigrantes da minha mãe se tinham instalado na viragem do século
– onde, o que era deveras intrigante para um miúdo de nove anos, se dizia
que a Nova Jérsia Pretzel Factory, na Livingston Street, contratava surdos-
mudos do estado para fazerem a dobragem das pretzels – e onde tinham
sido profanadas sepulturas no cemitério do Templo B’nai Jeshurun, apenas
a alguns quarteirões do campo de golfe de Weequahic Park).
Pouco depois das seis e meia, a minha mãe desceu rapidamente a rua para
a reunião de emergência na escola da Chancellor Avenue. Eu fiquei em
casa, encarregado por ela de atender o telefone e aceitar as chamadas a
pagar no destino, no caso de o meu pai telefonar da estrada. Os Cucuzza
tinham-lhe prometido que olhariam por mim até ela voltar para casa, e na
verdade, ainda ela ia a descer a escada já Joey as subia, três degraus de cada
vez, enviado por Mrs. Cucuzza para me fazer companhia enquanto eu
esperava – em vão, como veio a verificar-se – a chamada de longa distância
a informar-nos de que o meu pai e o meu irmão estavam ambos bem e não
tardariam a chegar a casa com o Seldon. Em virtude de, ao abrigo da lei
marcial, o Exército ter requisitado os serviços da Bell Telephone para uso
militar, os serviços de longa distância ainda ao dispor dos civis estavam
congestionados, e já tinham passado quarenta e oito horas desde que
soubéramos alguma coisa do meu pai.
Como a linha Newark-Hillside ficava apenas a uns duzentos metros da
nossa casa, era possível nessa noite, mesmo com as janelas fechadas,
encontrar uma certa segurança no barulho forte dos cascos dos cavalos da
polícia, enquanto subiam e desciam a ladeira da Keer Avenue, logo ao
dobrar da esquina. E quando abri a janela do meu quarto para me debruçar
para a travessa que escurecia e escutar, consegui ouvi-los, ainda que
levemente, quando chegavam a um ponto onde a Summit Avenue findava e
se tornava na Liberty Avenue de Hillside. A Liberty seguia por Hillside para
a Route 22, que prosseguia para oeste para Union e daí avançava para sul,
para o vasto desconhecido cristão daquelas vilas cujos nomes tinham um
som genuinamente anglo-saxónico, como Kenilworth, Middlesex e Scotch
Plains.
Não eram os subúrbios de Louisville, mas eram o mais longe, para oeste,
onde eu alguma vez estivera, e apesar de ser preciso atravessar mais três
condados de New Jersey só para chegar à fronteira oriental da Pensilvânia,
na noite de 15 de Outubro consegui alarmar-me a mim próprio com uma
visão de pesadelo da fúria anti-semita americana troando para leste através
do oleoduto da 22, e avançando da 22 para a Liberty Avenue, e jorrando da
Liberty Avenue directamente para a travessa da nossa Summit Avenue, e
subindo a nossa escada das traseiras como as águas de uma inundação, não
fora a vigorosa barreira oferecida pelos reluzentes flancos baios dos cavalos
da força policial de Newark, cujo vigor, velocidade e beleza o preeminente
rabi de Newark, com o nobre nome de Prinz, fizera materializar-se ao fundo
da nossa rua.
Como era de esperar, Joey não conseguia ouvir quase nada do que se
passava lá fora, e por isso deu-lhe para correr de sala para sala, espreitar por
janelas de ambos os extremos da casa para conseguir um vislumbre da
anatomia nem que fosse de um só dos cavalos – cavalos de uma
ascendência que os dotava de patas muito mais compridas, torsos
musculados muito mais esguios, crânios alongados e muito mais
requintados do que os do deselegante cavalo de trabalho que me escoiceara
na cabeça – e também para vislumbrar os polícias fardados, cada um com
duas fileiras de botões de latão a brilhar de alto a baixo da túnica justa e
assertoada e uma pistola num coldre preso no quadril.
Vários anos atrás, o meu pai levara-nos, ao Sandy e a mim, numa manhã
de domingo, ao Weequahic Park para jogarmos à malha no campo público,
e um polícia montado cavalgou através do parque em perseguição de
alguém que roubara uma carteira de senhora – um momento, em Newark,
saído da corte do rei Artur. Passaram dias antes de a excitação se dissipar e
eu conseguir deixar de me sentir emocionado com a intrepidez galante de
tudo aquilo. Recrutavam os polícias mais ágeis e atléticos para os treinarem
para polícias montados, e um miúdo pequeno podia deixar-se hipnotizar
pelo simples facto de ver um, que descia a rua com majestosa indolência,
parar para passar uma multa de estacionamento e, depois, inclinar-se na sela
e enfiar o talão debaixo do limpa-vidros do carro, um gesto físico de
magnífica condescendência, muito raro na idade da máquina. No famoso
Four Corners da cidade havia postos de patrulha montada, cada um virado
para um ponto diferente da bússola, e aos sábados eram muitos os miúdos
levados ao centro da cidade para verem os cavalos que lá estavam de
serviço, fazerem-lhes festas no focinho, darem-lhes cubinhos de açúcar e
aprenderem que cada polícia montado num cavalo valia quatro homens
apeados – e, evidentemente, fazerem as perguntas do costume aos polícias
montados, tais como: «Como se chama ele?», «O cavalo é a sério?» e «De
que é feito o pé dele?» Às vezes víamos o cavalo de um polícia preso ao
lado de uma rua movimentada do centro da cidade, muito imperturbável e
calmo sob o xairel azul e branco marcado com a insígnia NP, um animal
castrado com mais de um metro e oitenta de altura e pesando cerca de
quatrocentos e cinquenta quilos, com um bastão ameaçadoramente
comprido afivelado no flanco e um ar tão blasé como o mais esplendoroso
astro de cinema, enquanto o polícia, que acabara de desmontar, estava ali
perto, com as suas calças de montar azul-carregadas e botas pretas altas, o
pornográfico coldre de couro perfeitamente moldado no volume
congestionado dos genitais masculinos, indiferente ao perigo, no meio de
um pandemónio de carros, camionetas e autocarros e do alarido de
buzinadelas, a movimentar garbosamente os braços para restaurar o fluxo
suave do trânsito da cidade. Estes eram polícias com talento para tudo – até,
com mágoa do meu pai, para meterem a galope pelo meio de piquetes de
grevistas e fazê-los debandar – e o facto de estarem tão perto e parecerem
tão glamorosamente heróicos ajudou a reforçar os meus nervos para a
calamidade que se aproximava.
Na sala, Joey tirou o aparelho auditivo e estendeu-mo, deu-mo,
incompreensivelmente, empurrou-o para mim – o aparelho propriamente
dito, acompanhado da caixa do microfone, da bateria e de todos os seus
fios. Não sei porque se lhe meteu na cabeça que eu o quereria, sobretudo
numa noite como esta, mas ali estava a geringonça toda, aninhada nas
palmas das minhas duas mãos e, se tal era possível, com um aspecto mais
macabro do que quando ele a usava. Fiquei sem saber se esperava que o
interrogasse a respeito do aparelho, que o admirasse ou que tentasse
desmontá-lo e montá-lo de novo. Afinal, queria que o usasse.
– Põe-no – disse-me, na sua voz cava e grasnante.
– Porquê? – gritei. – Não me vai servir.
– Não serve a ninguém. Põe-no.
– Não sei como é – protestei, o mais alto que pude, e Joey prendeu a
caixa do microfone à minha camisa e enfiou a bateria na algibeira das
minhas calças e, depois de verificar todos os fios, deixou-me introduzir o
auricular moldado no ouvido. Fechei os olhos, ao fazê-lo, e fingi que era
uma concha e que nos encontrávamos na praia e ele queria que eu ouvisse o
rugido do oceano... mas tive de reprimir a náusea quando consegui colocá-
lo no devido lugar, ainda pegajosamente morno do interior do seu ouvido.
– Pronto, e agora?
Estendeu a mão e, como se se tratasse do interruptor da cadeira eléctrica e
eu fosse o Inimigo Público Número Um, girou risonhamente o mostrador
do centro da caixa do microfone.
– Não ouço nada – disse-lhe.
– Espera, eu aumento o volume do som.
– Usar esta coisa vai deixar-me surdo? – perguntei, e vi-me
simultaneamente surdo e mudo, encurralado em Elizabeth a torcer pretzels
para o resto da vida, na New Jersey Pretzel Factory.
As minhas palavras fizeram-no rir-se com gosto, embora eu não as tivesse
dito de brincadeira.
– Olha, não quero fazer isto – acrescentei. – Não agora. Sabes que estão a
passar-se lá fora muitas coisas que não são nada boas.
Mas ele estava alheio ao que não era nada bom, quer por ser católico e
não ter nada a recear, quer simplesmente por ser o irreprimível Joey.
– Sabes o que disse o aldrabão que o vendeu? O tipo nem sequer é
médico – contou Joey –, mas isso não o impediu de me impingir a treta da
experiência. – Tira o relógio do bolso, encosta-o ao meu ouvido e diz:
«Estás a ouvir o tiquetaque do relógio, Joey?», e como eu consigo ouvir um
bocadinho, ele começa a recuar e a perguntar: «E agora, consegues ouvir?»,
e eu não consigo, não consigo ouvir patavina, e por isso ele escreve uns
números numa folha de papel. Depois tira dois meios dólares da algibeira e
repete-se a mesma cena. Chocalha-os junto do meu ouvido, chocalho-os
juntos, e pergunta: «Ouves as moedas tilintar, Joey?», e depois começa a
recuar de novo e eu vejo-o a chocalhá-las, mas já não ouço nada. «A mesma
coisa», digo-lhe, e ele escreve isso. Depois olha para o que escreveu, olha
com toda a atenção, depois tira esta merda de lata de uma gaveta. Coloca-
ma, instala as peças todas, e diz ao meu pai: «Este modelo é tão bom que o
seu filho até vai ouvir a erva crescer.» – Joey recomeça a girar o mostrador
e o que eu ouvi foi água a correr para uma banheira – e eu era a banheira.
Depois ele girou-o vigorosamente... e ouvi trovoada.
– Acaba com isso! – gritei. – Já chega! – Mas o Joey estava a saltar
alegremente e, por isso, eu arranquei o auscultador da orelha e fiquei
momentaneamente baralhado, a pensar que, como se não bastasse o mayor
La Guardia estar preso, e o presidente Roosevelt estar preso, e até o rabi
Bengelsdorf estar preso, o novo rapaz do andar de baixo não ia ser mais
pêra doce do que o seu antecessor, e foi então que decidi fugir de novo. A
minha experiência com as pessoas ainda era muito pequena e não me
permitia compreender que, a longo prazo, ninguém é uma pêra doce, nem
eu próprio. Primeiro não podia suportar o Seldon, lá de baixo, e agora não
podia suportar o Joey, também lá de baixo, e por isso resolvi, sem hesitar,
fugir de ambos. Fugiria antes de o Seldon chegar, fugiria antes de os anti-
semitas chegarem, fugiria antes de o corpo de Mrs. Wishnow chegar e haver
um funeral a que teria de ir. Sob a protecção da polícia montada, fugiria
nessa mesma noite de tudo o que me perseguia e de tudo o que me odiava e
queria matar-me. Fugiria de tudo o que fizera e tudo o que não fizera e
começaria de novo como um rapaz que ninguém conhecia. E soube, de
repente, para onde fugiria: para Elizabeth, para a fábrica de pretzels. Dir-
lhes-ia, por escrito, que era surdo-mudo. Eles dar-me-iam trabalho a fazer
pretzels e eu nunca falaria e fingiria não ouvir, e ninguém descobriria quem
eu era.
– Sabes aquela do miúdo que bebeu sangue do cavalo?
– Sangue de que cavalo?
– Do cavalo do St. Peter’s. O miúdo entrou de noite na quinta e bebeu o
sangue do cavalo. Andam à procura dele.
– Andam quem?
– Os tipos. Nick. Aqueles tipos. Os tipos mais velhos.
– Quem é o Nick?
– Um dos órfãos. Tem dezoito anos. O rapaz que fez isso é judeu como tu.
Têm a certeza de que ele é judeu e vão encontrá-lo. – Mas porque é que ele
bebeu o sangue do cavalo?
– Os judeus bebem sangue.
– Não sabes do que estás a falar. Eu não bebo sangue. O Sandy não bebe
sangue. Os meus pais não bebem sangue. Ninguém que eu conheço bebe
sangue.
– Este miúdo bebe.
– Ah, sim? E como se chama ele?
– O Nick ainda não sabe. Mas andam a procurá-lo. Não te preocupes,
hão-de encontrá-lo.
– E o que farão quando o encontrarem, Joey? Bebem o sangue dele? Os
judeus não bebem sangue. Dizer isso é de malucos.
Devolvi-lhe o aparelho auditivo – pensando que podia agora acrescentar
Nick a tudo o mais de que tinha de fugir –, e pouco depois Joey recomeçou
a correr de janela para janela, a tentar ver os cavalos, até que, quando não
pôde suportar mais estar fora do alcance de um espectáculo comparável, na
sua cabeça, ao Wild West Show de Buffalo Bill chegando à cidade e
erguendo a grande tenda defronte da nossa casa, levantou-se e saiu porta
fora, e foi a última vez que o vi nessa noite. Constava haver em Newark um
cavalo da polícia que comia tabaco de mascar, como o polícia que o
montava, e que era capaz de somar algarismos batendo com a pata direita
dianteira, e mais tarde Joey afirmou que o vira ali, no nosso quarteirão, um
cavalo da 8.ª Esquadra chamado Ned, que deixava os miúdos balouçarem
suspensos da sua cauda sem os enxotar com as patas traseiras. E talvez ele
tenha visto o fabuloso Ned, talvez isso tenha feito tudo valer a pena. Mas a
verdade é que, por me ter abandonado nessa noite, por nunca mais ter
voltado, por ter sucumbido ao seu gosto pela excitação em vez de obedecer
às ordens da sua mãe, Joey foi severamente castigado quando o pai chegou
do trabalho na manhã seguinte, as suas nádegas cavalares implacavelmente
fustigadas com a correia preta tirada do relógio de ponto do guarda-noturno.
Depois de Joey sair, dei duas voltas à chave e teria ligado o rádio, para
me distrair das minhas preocupações, se não tivesse medo de que mais um
boletim especial interrompesse um programa regular e me transmitisse, a
mim que estava ali sozinho, notícias ainda mais horríveis do que as que
ouvíramos durante o dia. Não tardou muito, e comecei de novo a pensar na
fuga para a fábrica de pretzels. Lembrei-me do artigo a respeito da fábrica
que aparecera no Sunday Call, cerca de um ano antes, e que eu recortara
para levar para a escola, a fim de o usar para um trabalho que tinha de fazer
sobre uma indústria de New Jersey. O dito artigo citava o proprietário, um
tal Mr. Kuenze, como tendo desmentido a ideia, prevalecente, ao que
parecia, em todo o mundo, de que eram precisos dez anos para ensinar
alguém a fazer pretzels. «Eu posso ensiná-los da noite para o dia», declarou,
«se eles forem capazes de aprender.» Uma boa parte do artigo tinha sido a
respeito de uma controvérsia sobre a necessidade de pôr sal numa pretzel.
Mr. Kuenze alegava que o sal no exterior era desnecessário e que só o
punha «para satisfazer o mercado». O importante, dizia, era pôr sal na
massa, coisa que só ele, entre todos os fabricantes de pretzels do estado,
fazia. O artigo informava que Mr. Kuenze tinha cem empregados, uma boa
quantidade deles surdos-mudos, mas também «rapazes e raparigas que
trabalham depois da escola».
Eu sabia qual era o autocarro que passava pela fábrica de pretzels – era o
mesmo que o Earl e eu tomámos na tarde em que seguimos até casa, em
Elizabeth, o cristão que, no último momento Earl identificara como larila.
Teria de rezar para que o larila não fosse no mesmo autocarro, e se por
acaso fosse sairia e apanharia o seguinte. Precisava de ter comigo um
bilhete, um bilhete que desta vez não seria da irmã Mary Catherine, mas de
um surdo-mudo. «Caro Mr. Kuenze. Li a seu respeito no Sunday Call.
Quero aprender a fazer pretzels. Tenho a certeza de que sou capaz de
aprender da noite para o dia. Sou surdo e mudo. Sou órfão. Dá-me um
emprego?» E assinei: «Seldon Wishnow.» Por muito que me esforçasse, não
consegui lembrar-me de outro nome.
Precisava de um bilhete e precisava de roupas. Tinha de parecer a Mr.
Kuenze um miúdo em quem podia confiar, e não podia aparecer-lhe sem
roupas. E desta vez precisava de um plano, daquilo a que o meu pai
chamava «um plano de longo alcance». Ocorreu-me imediatamente: o meu
plano de longo alcance consistiria em juntar uma parte suficiente do
dinheiro que ganhasse na fábrica de pretzels para comprar um bilhete de
comboio, de ida, para Omaha, no Nebrasca, onde o padre Flanagan dirigia a
Cidade dos Rapazes. Conhecia o padre Flanagan e a Cidade dos Rapazes –
como todos os rapazes da América –, graças ao filme com Spencer Tracy,
que conquistou um prémio da Academia por representar o papel do famoso
padre e depois ter doado o seu Oscar à verdadeira Cidade dos Rapazes23.
Tinha cinco anos quando o vi com Sandy no Roosevelt, numa tarde de
sábado. O padre Flanagan tirava os rapazes da rua, alguns deles já ladrões e
pequenos bandidos, e levava-os para a sua quinta, onde eram alimentados e
vestidos, estudavam e jogavam basebol, cantavam num coro e aprendiam a
ser bons cidadãos. O padre Flanagan era pai de todos eles,
independentemente de raça ou credo. Na sua maioria, os rapazes eram
católicos e havia alguns protestantes, mas também viviam na quinta alguns
rapazes judeus necessitados – isto soube-o pelos meus pais, que, como
milhares de outras famílias americanas que tinham visto o filme e chorado,
davam uma contribuição ecuménica anual para a Cidade dos Rapazes. Não
que eu tencionasse identificar-me como judeu quando chegasse a Omaha.
Diria – falando finalmente de novo em voz alta – que não sabia o quê nem
quem era. Que não era nada nem ninguém, apenas um rapaz e nada mais, e
muito menos o culpado pela morte de Mrs. Wishnow e pela orfandade do
filho dela. A minha família que criasse esse filho como seu, de agora em
diante. Ele podia ficar com a minha cama. Podia ficar com o meu irmão.
Podia ficar com o meu futuro. Eu faria a minha vida com o padre Flanagan
no Nebrasca, que ficava ainda mais longe de Newark do que o Kentucky.
De súbito, pensei noutro nome e rescrevi o bilhete com a assinatura de
«Philip Flanagan». Depois dirigi-me para a cave, a fim de ir buscar a mala
de cartão onde escondera as roupas roubadas ao Seldon antes de fugir pela
primeira vez. Desta vez encheria a mala com as minhas próprias roupas e
levaria na algibeira o mosquete de peltre em miniatura que comprara em
Mount Vernon e usara para abrir os sobrescritos da casa dos selos, no tempo
em que ainda tinha uma colecção a sério e recebia correio. A sua baioneta
não chegava a medir dois centímetros e meio de comprimento, mas se ia
sair definitivamente de casa precisava de alguma coisa para me proteger, e a
única que tinha era um abre-cartas.
Minutos depois, ao descer a escada com uma lanterna eléctrica, encontrei
forças para evitar que as pernas se me fossem abaixo ao dar conta de que
esta era a última vez que teria de descer àquela cave e confrontar-me com a
máquina de torcer, ou com os gatos do beco, ou com os canos, ou com os
mortos. Ou com aquela parede húmida e suja que dava para a rua e na qual
o perneta Alvin esparramara uma vez a sua mágoa.
Ainda não estava frio suficiente para começarmos a queimar carvão, e
quando, do fundo da escada da cave, voltei a lanterna na direcção do vulto
cor de cinza das fornalhas apagadas, pareceram-me aquelas faustosas
criptas funerárias onde, pelo muito que hão-de ganhar com isso, os ricos e
poderosos se sepultam. Parei ali, na esperança de que o fantasma do pai de
Seldon tivesse ido ao Kentucky (talvez invisível na mala do carro do meu
pai) buscar a sua defunta mulher, mas sabendo muito bem que não fora, que
o seu papel como fantasma era ali comigo – que o seu espectral coração
fervilhava de pragas, e todas elas contra mim. «Não era minha intenção que
eles se fossem embora», murmurei. «Foi um erro. O culpado não sou
realmente eu. Não queria fazer do Seldon o alvo.»
Estava preparado, é claro, para o silêncio que envolvia inevitavelmente os
meus murmúrios suplicantes ao implacável morto, mas em vez disso ouvi
pronunciar o meu nome, em resposta – e por uma mulher! Uma mulher a
gemer o meu nome para lá das fornalhas! Morta havia horas, apenas, e já de
volta para me perseguir durante o resto da minha vida!
– Eu sei a verdade – disse ela e, ao mesmo tempo, emergindo qual
sacerdotisa oracular da Delfos da nossa arrecadação, apareceu a minha tia. –
Eles estão a perseguir-me, Philip – disse a tia Evelyn. – Eu sei a verdade, e
eles vão matar-me!
Quando chegou a casa e soube que o meu pai não tinha telefonado, a
minha mãe foi incapaz de disfarçar a sua reacção. Olhou desoladamente
para o relógio da cozinha, lembrando-se talvez do que era costume fazer
àquela hora: eram horas de ir para a cama, quando tudo quanto havia a fazer
era mandar os filhos lavarem o rosto e os dentes para que o dia denso de
tarefas terminasse a contento de todos. Hoje isso eram nove horas – ou
assim fôramos levados a crer por aquela naturalidade imutável e
inteiramente convincente, que se revelava agora ter sido uma impostura.
E a rotina quotidiana da escola, seria isso também uma impostura, um
embuste astucioso perpetrado para nos acalmar com expectativas racionais
e gerar absurdos sentimentos de confiança? «Não há escola porquê?»,
perguntei, quando ela me disse que amanhã teríamos feriado. «Porque»,
respondeu a minha mãe, recorrendo à formulação insípida sugerida aos pais
para eles poderem dizer a verdade sem assustarem indevidamente os filhos,
«a situação se deteriorou mais.» «Que situação?», perguntei. «A nossa
situação.» «Porquê? O que aconteceu agora?» «Não aconteceu nada, é
apenas melhor que amanhã vocês, crianças, fiquem em casa. Onde está o
Joey? Onde está o teu amigo?» «Comeu pão, levou a pêra e foi-se embora.
Tirou a pêra do frigorífico e correu lá para fora. Foi ver os cavalos.» «E tu
tens a certeza de que ninguém telefonou?», perguntou, demasiado exausta
para ficar zangada com o Joey por a ter decepcionado num momento destes.
«Quero saber porque é que não há escola, mãe.» «Tens de saber esta noite?»
«Tenho. Porque não posso ir para a escola?» «Bem... é porque pode haver
uma guerra com o Canadá.» «Com o Canadá? Quando?» «Ninguém sabe.
Mas é melhor ficarem todos em casa até vermos o que se passa.» «Mas
porque vamos entrar em guerra com o Canadá?» «Por favor, Philip, não
aguento muito mais esta noite. Já te disse tudo o que sei. Tu insististe e eu
disse-te. Agora temos de esperar. Temos de esperar e ver o que acontece,
como toda a gente.» E depois, como se o paradeiro desconhecido do meu
pai e do meu irmão não tivessem dado livre curso às suas piores suposições
– ou seja, que nós agora éramos, como os Wishnow, apenas uma viúva e o
seu filho –, acrescentou (tentando obstinadamente obedecer ao protocolo
das nove horas): «Quero que te laves e vás para a cama.»
Para a cama – como se a cama ainda existisse como um lugar de
conchego e conforto, em vez de ser uma incubadora de pavor.
A guerra com o Canadá representava muito menos um enigma, para mim,
do que aquilo que a tia Evelyn iria usar como retrete durante a noite. Tanto
quanto podia entender, os Estados Unidos iam finalmente entrar numa
guerra mundial, não ao lado da Inglaterra e da Comunidade Britânica, que
toda a gente esperara que apoiássemos enquanto FDR foi presidente, mas
ao lado de Hitler e dos aliados de Hitler, a Itália e o Japão. Além disso,
tinham passado dois dias inteiros desde que tivéramos notícias do meu pai e
do Sandy e nada nos dizia que não tinham sido mortos tão horrivelmente
como a mãe do Seldon pelos desordeiros anti-semitas; e amanhã também
não haveria escola, o que me levava a pensar que talvez nunca mais
voltasse a haver escola se o presidente Wheeler ia impor-nos agora as leis
que sabíamos terem sido impostas pelos nazis às crianças judias da
Alemanha. Uma catástrofe política de proporções inimagináveis estava a
transformar uma sociedade livre num estado policial, mas uma criança é
uma criança, e a única coisa em que eu conseguia pensar, na minha cama,
era que, quando chegasse a altura de despejar os seus intestinos, a tia
Evelyn teria de o fazer no chão da nossa arrecadação. Este era o
incontrolável acontecimento que pesava sobre mim em lugar de tudo o
mais, que se avantajava sobre mim como a materialização de tudo o mais e
que apagava tudo o mais. O perigo mais insignificante de todos, mas que
atingiu dimensões tão importantes que, cerca da meia-noite, fui em bicos de
pés à casa de banho e, na parte de trás da prateleira das toalhas, no fundo do
armário, encontrei o bacio que compráramos para o Alvin usar numa
emergência, quando ele regressara do Canadá. Já me encontrava na porta
das traseiras, e pronto para descer e levar o bacio à tia Evelyn, quando a
minha mãe me confrontou, em camisa de dormir, apavorada com a imagem
que eu apresentava de um rapazinho tão apavorado que estava a perder o
juízo.
Minutos depois, a tia Evelyn subia a escada, conduzida pela minha mãe, e
entrava em nossa casa. Não é necessário descrever a agitação que isto
causou no lar dos Cuccuza nem a reacção antagonista à figura assustadora
da minha tia por parte da figura assustadora que era a avó do Joey – o gume
burlesco do sofrimento é familiar a toda a gente. Fui mandado dormir na
cama dos meus pais, e a minha mãe e a tia Evelyn ocuparam o meu quarto,
onde a grande tarefa seguinte da minha mãe foi impedir a irmã de se
levantar da cama do Sandy, esgueirar-se para a cozinha para ligar o gás e
matar-nos a todos.
Foi desta maneira que Seldon foi morar connosco. Depois do regresso dos
três, em segurança, do Kentucky a Newark, Sandy mudou-se para a
marquise, e Seldon ocupou o lugar deixado vago por Alvin e pela tia Evelyn
na cama gémea ao lado da minha, na qualidade de pessoa destroçada pelas
cruéis indignidades da América de Lindbergh. Desta vez, não havia nenhum
coto para eu tratar. O próprio rapaz era o coto e, até o levarem para ir viver
com a irmã casada da sua mãe em Brooklyn, dez meses depois, eu fui a
prótese.
23 O título do filme é Boys Town, em inglês, e em Portugal intitulou-se Homens de amanhã (NT).
24 Mais conhecida por Ofensiva das Ardenas, da Segunda Guerra Mundial (NT).
Post-scriptum
CHARLES A. LINDBERGH
1902-1974
FIORELLO H. LA GUARDIA
1882-1947
BURTON K. WHEELER
1882-1975
HENRY FORD
1863-1947
Alguma documentação
Decorreram já dois anos desde que começou esta última guerra europeia.
A partir desse dia de Setembro de 1939 até ao momento presente, tem sido
feito um esforço sempre crescente para forçar os Estados Unidos a entrar no
conflito.
Esse esforço tem sido exercido por interesses estrangeiros e por uma
pequena minoria do nosso próprio povo; mas tem tido tanto êxito que, hoje,
o nosso país se encontra à beira da guerra.
Neste momento, quando a guerra está prestes a entrar no seu terceiro
Inverno, parece apropriado passar em revista as circunstâncias que nos
conduziram à nossa presente situação. Porque estamos à beira da guerra?
Era necessário para nós envolvermo-nos tão profundamente? Quem é o
responsável pela mudança da nossa política nacional da neutralidade e
independência para o envolvimento em assuntos estrangeiros?
Pessoalmente, estou convencido de que não existe melhor argumento
contra a nossa intervenção do que um estudo das causas e do desenrolar da
presente guerra. Tenho dito frequentemente que se os verdadeiros factos e
questões fossem colocados perante o povo americano não haveria nenhum
perigo de nos envolvermos.
Aqui, gostaria de lhes salientar uma diferença fundamental entre os
grupos que advogam a guerra estrangeira e aqueles que acreditam num
destino independente para a América.
Se olharem para trás, para os registos, descobrirão que aqueles de nós que
se opõem à intervenção tentaram constantemente clarificar factos e
questões, enquanto os intervencionistas têm tentado ocultar factos e
confundir questões.
Pedimo-lhes que leiam o que dissemos o mês passado, o ano passado e
até antes de a guerra começar. As nossas palavras são abertas e claras e nós
orgulhamo-nos disso.
Não os influenciámos por meio de subterfúgio e propaganda. Não
recorremos a passos que conduzissem à iminência de nada, a fim de levar o
povo americano aonde ele não queria ir.
O que dissemos antes das eleições dizemo-lo, repetimo-lo e tornamos a
repeti-lo, hoje. E não lhes diremos amanhã que se tratava apenas de oratória
de campanha. Alguma vez ouviram um intervencionista, ou um agente
britânico, ou um membro da Administração de Washington pedir-lhes que
voltassem atrás e estudassem um registo do que eles disseram desde que a
guerra começou? Estão os seus pretensos defensores da democracia
dispostos a pôr a questão da guerra à votação do nosso povo? Encontram
esses cruzados da liberdade de expressão estrangeira, ou da extinção da
censura aqui no nosso país?
O subterfúgio e a propaganda que existem no nosso país são evidentes em
todos os lugares. Esta noite tentarei penetrar numa parte dessas coisas até
aos factos nus que se encontram debaixo delas.
Quando esta guerra começou na Europa, era evidente que o povo
americano se opunha fortemente a participar nela. E porque não? Tínhamos
a melhor posição defensiva do mundo; tínhamos uma tradição de
independência da Europa, e, na única vez em que participámos numa guerra
europeia, problemas europeus ficaram por resolver e dívidas à América por
pagar.
As sondagens nacionais mostravam que quando a Inglaterra e a França
declararam guerra à Alemanha, em 1939, menos de 10 por cento da nossa
população era a favor de semelhante atitude para a América.
Mas havia diversos grupos de pessoas, aqui e no estrangeiro, cujos
interesses e crenças requeriam o envolvimento dos Estados Unidos na
guerra. Esta noite indicarei alguns desses grupos e delinearei os seus
métodos de agir. Ao fazê-lo terei de usar da máxima franqueza, pois para
contrariar os seus esforços precisamos de saber quem eles são.
Os três grupos mais importantes que têm pressionado este país para o
caminho da guerra são os Ingleses, os Judeus e a Administração de
Roosevelt.
Por detrás destes grupos, mas menos importante, encontra-se um número
de capitalistas, anglófilos e intelectuais convencidos de que o futuro da
Humanidade depende do domínio do Império Britânico. Acrescentemos a
estes os grupos comunistas, que até há poucas semanas se opunham à
intervenção, e estou convencido de que nomeei os maiores agitadores
guerra deste país.
Refiro-me aqui apenas a agitadores da guerra, não àqueles homens e
mulheres, sinceros mas insensatos, que, confusos pela desinformação e
assustados com a propaganda, vão atrás dos agitadores da guerra.
Como disse, estes agitadores da guerra abrangem apenas uma pequena
minoria do nosso povo; mas detêm uma tremenda influência. Contra a
determinação do povo americano de ficar fora da guerra, mobilizaram a
força da sua propaganda, do seu dinheiro e do seu apoio.
Consideremos esses grupos, um de cada vez.
Primeiro, os Britânicos: É óbvio, e perfeitamente compreensível, que a
Grã-Bretanha quer os Estados Unidos do seu lado na guerra. A Inglaterra
encontra-se agora numa situação desesperada. A sua população não é
suficientemente grande e os seus exércitos não são suficientemente fortes
para invadirem o continente europeu e ganharem a guerra que ela declarou
à Alemanha.
A sua posição geográfica é tal que não pode vencer a guerra só pelo
emprego da aviação, independentemente de quantos aviões lhe enviemos.
Mesmo que a América entrasse na guerra, seria improvável que os exércitos
aliados conseguissem invadir a Europa e destruir as potências do Eixo. Mas
uma coisa é certa: se a Inglaterra puder arrastar este país para a guerra,
poderá transferir para os nossos ombros uma grande parte da
responsabilidade por tê-la travado e pelo pagamento do seu preço.
Como todos sabem, ficámos com as dívidas da última guerra europeia, e,
a não ser que sejamos mais cautelosos no futuro do que fomos no passado,
ficaremos também com as dívidas do caso presente. Se não fosse a sua
esperança de poder responsabilizar-nos financeiramente, e também
militarmente, pela guerra, estou convencido de que a Inglaterra teria
negociado há muitos meses uma paz na Europa e só teria tido a ganhar com
isso.
A Inglaterra dedicou, e continuará a dedicar, todos os seus esforços no
sentido de nos arrastar para a guerra. Sabemos que gastou enormes quantias
em dinheiro neste país durante a última guerra, a fim de nos envolver nela.
Ingleses escreveram livros a respeito da inteligência do seu emprego.
Sabemos que a Inglaterra está a gastar grandes quantias em dinheiro para
propaganda na América durante a presente guerra. Se nós fôssemos
ingleses, faríamos o mesmo. Mas o nosso interesse vai primeiro para a
América. E, como americanos, é essencial que compreendamos o esforço
que os interesses britânicos estão a fazer para nos arrastar para a sua guerra.
O segundo grupo importante que mencionei é o judeu.
Não é difícil compreender por que motivo o povo judaico deseja derrubar
a Alemanha nazi. A perseguição que sofreram na Alemanha seria suficiente
para tornar qualquer raça em inimiga feroz.
Nenhuma pessoa com uma noção da dignidade da espécie humana pode
ignorar a perseguição à raça judia na Alemanha. Mas também nenhuma
pessoa com honestidade e visão pode olhar para a sua política pró-guerra,
aqui, hoje, sem ver os perigos que semelhante política implica, tanto para
nós como para eles. Em vez de agitarem para a guerra, os grupos judaicos
deste país deviam opor-se a ela de todas as maneiras possíveis, pois serão os
primeiros a sofrer as suas consequências.
A tolerância é uma virtude que depende da paz e da força. A História
mostra que ela não pode sobreviver à guerra e à devastação. Algumas
pessoas judias perspicazes compreendem isso e opõem-se à intervenção.
Mas a maioria ainda não compreende.
O maior perigo que constituem para o nosso país reside na grande
extensão da sua propriedade e da sua influência no nosso cinema, na nossa
imprensa, na nossa rádio e no nosso Governo.
Não estou a atacar nem o povo judeu nem o povo britânico. Admiro
ambas as raças. Mas estou a dizer que os líderes tanto da raça britânica
como da raça judia, por razões que são tão compreensíveis do seu ponto de
vista quanto desaconselháveis do nosso, por razões que não são americanas,
desejam envolver-nos na guerra.
Não podemos censurá-los por procurarem o que acreditam ser os seus
próprios interesses, mas também temos de velar pelos nossos. Não podemos
permitir que paixões e preconceitos naturais de outros povos conduzam o
nosso país à destruição.
A Administração Roosevelt é o terceiro grupo poderoso que tem estado a
empurrar este país para a guerra. Os seus membros usaram a emergência da
guerra para conseguirem um terceiro mandato presidencial pela primeira
vez na história da América. Usaram a guerra para acrescentar milhares de
milhões de dólares a uma dívida que já era a mais elevada que alguma vez
conhecemos. E acabam de usar a guerra para justificar a restrição do poder
do Congresso e a assunção de medidas ditatoriais da parte do presidente e
dos seus nomeados.
O poder da Administração Roosevelt depende da manutenção de uma
emergência de tempo de guerra. O prestígio da Administração Roosevelt
depende do sucesso da Grã-Bretanha, à qual o presidente ligou o seu futuro
político numa altura em que a maioria das pessoas pensava que a Inglaterra
e a França ganhariam facilmente a guerra. O perigo da Administração
Roosevelt encontra-se no seu subterfúgio. Enquanto os seus membros nos
prometiam paz, conduziam-nos para a guerra sem quererem saber do
programa graças ao qual foram eleitos.
Ao escolher estes grupos como sendo os maiores agitadores da guerra,
incluí apenas aqueles cujo apoio é essencial para o partido da guerra. Se
qualquer destes grupos – o britânico, o judeu ou a Administração – parar de
agitar a favor da guerra, estou convencido de que haverá pouco perigo de
nos envolvermos.
Não acredito que quaisquer dois deles tenham força suficiente para
conduzir este país à guerra sem o apoio do terceiro. E para esses três, como
já disse, todos os outros grupos pró guerra são de importância secundária.
Quando as hostilidades começaram na Europa, em 1939, esses grupos
compreenderam que o povo americano não tinha intenção alguma de entrar
na guerra. Sabiam que seria pior do que inútil pedir-nos uma declaração de
guerra nessa altura. Mas acreditavam que este país podia ser levado a entrar
na guerra de um modo muito semelhante ao que nos levou a entrar na
última.
Planearam: primeiro, preparar os Estados Unidos para a guerra
estrangeira sob o disfarce de defesa americana; segundo, envolver-nos na
guerra, passo a passo, sem nos apercebermos; terceiro, criar uma série de
incidentes que nos forçariam a participar no verdadeiro conflito. Estes
planos seriam, evidentemente, cobertos e auxiliados por todo o poder da sua
propaganda.
Os nossos teatros não tardaram a encher-se de peças retratando a glória da
guerra. Os cinejornais perderam toda a aparência de objectividade. Os
jornais e as revistas começaram a perder publicidade se publicavam artigos
contra a guerra. Foi instituída uma campanha difamatória contra indivíduos
que se opunham à intervenção. Termos como «quinta-colunista», «traidor»,
«nazi» e «anti-semita» eram incessantemente lançados a quem quer que
ousasse sugerir não ser no melhor interesse dos Estados Unidos entrar na
guerra. Homens perdiam os seus empregos se eram francamente contra a
guerra. Muitos outros deixaram de ousar falar.
A breve trecho, salas de conferências que se abriam para os defensores da
guerra fechavam-se para oradores que se lhe opunham. Estava lançada uma
campanha de medo. Foi-nos dito que a aviação, que tem mantido a esquadra
britânica fora do continente da Europa, tornava a América mais vulnerável
do que nunca antes da invasão. A propagada estava a funcionar em pleno.
Não houve dificuldade em obter milhares de milhões de dólares para
armas sob a capa de defender a América. O nosso povo manteve-se unido
num programa de defesa. O Congresso aprovou verbas e mais verbas para a
aquisição de armas, aviões e couraçados, com a aprovação da esmagadora
maioria dos nossos cidadãos. Que uma grande parte dessas verbas era para
ser usada no fabrico de armas para a Europa, só mais tarde viemos a saber.
Esse foi outro passo.
Usando um exemplo específico: em 1939, foi-nos dito que devíamos
aumentar o nosso corpo aéreo para um total de cinco mil aviões. O
Congresso aprovou a legislação necessária. Poucos meses depois, a
Administração disse-nos que os Estados Unidos deviam ter pelo menos
cinquenta mil aviões para nossa segurança nacional. Mas quase com a
mesma rapidez com que os aviões de combate saíam das nossas fábricas,
eram enviados para o estrangeiro, embora o nosso próprio corpo aéreo
tivesse a máxima necessidade de novo equipamento. De tal modo que hoje,
dois anos depois do início da guerra, o Exército americano tem algumas
centenas de bombardeiros e caças inteiramente modernos – menos, na
realidade, do que a Alemanha pode produzir num único mês.
Desde o seu começo, o nosso programa de armamento foi planeado muito
mais com o objectivo de continuar a guerra na Europa do que de constituir
uma defesa adequada para a América.
Ora, ao mesmo tempo que estávamos a ser preparados para uma guerra
estrangeira, era necessário, como já disse, envolver-nos na guerra. Isso foi
conseguido sob aquela agora famosa frase «a passos da guerra».
Para a Inglaterra e a França ganharem a guerra bastaria que os Estados
Unidos revogassem o seu embargo às armas e vendessem munições por
dinheiro, disseram-nos. E depois começou um refrão que se tornou familiar,
um refrão que marcou cada passo que demos ao longo de muitos meses
rumo à guerra: «a melhor maneira de defender a América e manter-nos fora
da guerra», disseram-nos, era «ajudando os Aliados.»
Primeiro, concordámos em vender armas à Europa; depois concordámos
em emprestar armas à Europa; depois concordámos em patrulhar o oceano
pela Europa; depois ocupámos uma ilha europeia na zona de combate.
Agora estamos à beira da guerra.
Os grupos belicistas foram bem-sucedidos nos primeiros dois dos seus
três passos importantes para a guerra. O maior programa de armamento da
nossa história está em marcha.
Envolvemo-nos na guerra praticamente de todos os pontos de vista,
exceptuando o verdadeiro tiroteio. Só resta ainda a criação de «incidentes»
suficientes, e estão a ver o primeiro deles já a verificar-se, em conformidade
com o plano – um plano que nunca foi apresentado ao povo americano para
que ele o aprovasse.
Homens e mulheres do Iowa, hoje, só uma coisa separa este país da
guerra: a oposição crescente do povo americano. O nosso sistema de
democracia e governo representativo está, como nunca antes esteve, à
prova. Encontramo-nos na iminência de uma guerra em que os únicos
vencedores seriam o caos e a prostração.
Estamos na iminência de uma guerra para a qual ainda não estamos
preparados e para a qual ninguém apresentou um plano de vitória exequível
– uma guerra que não pode ser ganha sem mandarmos os nossos soldados
para o outro lado do Atlântico e forçarem um desembarque numa costa
hostil contra exércitos mais fortes do que o nosso.
Estamos na iminência da guerra, mas ainda não é tarde de mais para
ficarmos fora dela. Não é tarde de mais para mostrarmos que nenhum
montante de dinheiro, ou propaganda, ou patrocínio pode obrigar um povo
livre e independente a ir para a guerra contra a sua vontade. Ainda não é
tarde de mais para recuperar e manter o destino americano independente
que os nossos antepassados estabeleceram neste novo mundo.
O futuro inteiro repousa sobre os nossos ombros. Depende dos nossos
actos, da nossa coragem e da nossa inteligência. Se são contra a nossa
intervenção na guerra, este é o momento de fazerem ouvir a vossa voz.
Ajudem-nos a organizar estes encontros e escrevam aos vossos
representantes em Washington. Digo-lhes que o último bastião da
democracia e do governo representativo deste país está na nossa câmara dos
representantes e no nosso senado.
Lá, ainda podemos dar a conhecer a nossa vontade. E se nós, povo
americano, fizermos isso, a independência e a liberdade continuarão a viver
entre nós e não haverá nenhuma guerra estrangeira.
26 Medo, ou Pavor, Vermelho. Período de grande agitação, situado no tempo mais ou menos entre o
fim da Primeira Guerra Mundial e meados dos anos 20 e caracterizado por uma vaga de greves de
dimensões sem precedentes, e respectiva repressão, deportações de estrangeiros, grande inflação,
distúrbios raciais e «redadas» policiais, em que predominava o medo dos «vermelhos» e dos
anarquistas (NT).