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Ficha Catalográfica

Autor
Cassio L. Moraes

Revisão
Do autor

Editoração Eletrônica da Capa


Editora Kiron

Produção Digital
Paulo de Tarso Soares Silva
Editora Kiron | editorakiron.com.br

M791

Moraes, Cassio L.

Amet Negro; Cassio L. Moraes. Brasília: Editora Kiron, 2017.

ebup; 885KB

ISBN 978-85-8113-592-2

1. Literatura. 2. Ficção. 3. Fantasia. I. Título.

CDU 82
Sobre o autor

F ormado em sociologia pela Universidade de Brasília, Cassio L. Moraes começou a


escrever seu primeiro romance aos quinze anos de idade. Nas horas vagas, gosta de
mestrar jogos de RPG e compor músicas.
Prólogo

Olho Invisível

H á mil e vinte e dois anos, ele chegou. Sobre a terra sagrada, quebrou cada um dos treze
demônios que nossos antepassados nos ensinaram a adorar e os chamou de Anur,
reduzindo-os às treze pontas de seu sol negro. Trouxe consigo homens de cabelo vermelho e
olhos sem cor do além-mar, que o adoravam. Eram seu exército e vestiam o mesmo vermelho
de suas cabeças. Nada pudemos fazer contra o poder do Rei Bestial, que via onde nenhum
poderia ver, tinha a força de cem homens e pele que flecha nenhuma trespassava. Seus
seguidores o chamavam de muitos nomes; entre eles, Amet. Proclamava-se um deus. Para nós,
era apenas um falso profeta escondido numa carapaça negra.
Entre os que não se encantaram com os feitos da criatura estávamos nós, subindo o Rio
Moltes e jurando por cada um dos Treze que a terra sagrada seria reconquistada. Quando a
torre branca foi erguida e, em torno dela, a cidade de Atablan, o Falso Profeta clamou para si
todas as terras entre o mar e a montanha. Chamou-as de Terras da Lei. Éramos seus inimigos,
e, nos cânions do Moltes, resistimos por décadas. Os que sobreviveram acabaram fugindo para
o norte; os que pereceram, nunca puderam ser queimados ou enterrados. Desde então, aquele
local ficou conhecido como Rivinakuloké, onde só habitam os abutres.
A perseguição ao nosso povo não cessou até que estabelecêssemos morada nas montanhas
do norte, as Varekvaké, e lá passamos a nos conhecer como Uremiték, pois somos o povo que
preservou a língua antiga e que nunca se dobrou perante o falso profeta Amet. Por um milênio,
cultivamos os clãs, as tradições e os nomes dos Treze; aprendemos a usar a erva negra, e com
ela nossas mulheres puderam perscrutar o mundo além do véu do mundo, onde está escrita a
profecia.
Quando Amet cair, todos os clãs Uremiték cavalgarão montanha abaixo e reclamarão a
terra sagrada no sul. Está dito, está escrito.
Capítulo 1

Dente Branco

– Mmpf... mmmmpf!
O som vinha do beco. Bamir o ignorou e caminhou até a entrada do estabelecimento. A
porta estava entreaberta, e acima dela uma placa indicava “Abremusc”. Era pouco mais que um
cômodo escuro com um balcão. Pedaços de carne pendiam do teto. Parecia algo saído duma
história de Andarilhos ou similar. Dirigiu-se ao batente que ficava além da bancada e desceu os
degraus que levavam ao porão. Ele pôde ver a luz dos lampiões pelo vão da porta, acolhedora
como as vozes que escapavam lá de dentro.
No esconderijo havia uma mesa, e, em torno dela, três homens bebendo, fumando,
elevando as vozes umas contra as outras. Bamir fez uma saudação, respondida com vigor
ensaiado pelos demais, puxou um dos bancos vazios e juntou-se aos companheiros. À sua
frente se sentava Velet. Ele esperou o olhar do homem encontrá-lo e levantou o copo vazio.
– Velet, o monstro!
Velet contorceu a face numa tentativa de sorriso e ergueu seu próprio copo.
– Deixe o homem em paz por hoje, Bamir – disse o homem à sua direita, fazendo uma
careta. Seu nome era Cassur. – Estamos de luto, esqueceu?
O homem à esquerda encheu seu próprio copo e o de Bamir. Seu nome era Naner. Solicitou
um brinde com uma expressão grave no rosto. Os outros aquiesceram.
– Ao nosso Rei – disse ele. Os quatro beberam em silêncio. Bamir continuava fitando o
gordo à sua frente, estudando suas expressões.
– E agora o quê? – perguntou Naner.
– Impossível de prever – disse Cassur. – Talvez seja melhor esperar, sabe. Abafar as luzes.
– Ora, acho que não é tão mal assim – disse Velet, acomodando a pança diante da mesa. –
Nós sempre nos viramos bem, não importa a situação. Os negócios de sempre.
– Os negócios de sempre? – perguntou Naner. – Tudo bem. Deixa eu te dizer um “negócio”
que sempre esteve em pé, muito antes de nascermos: Purcalat!
Bamir secou seu copo enquanto notava o desconforto de Velet. Alcançou a garrafa de vidro
azul e encheu outra rodada para si.
– Até que decidam quem vai ficar em Purcalat, o movimento deve ser baixo – disse Cassur.
– Ou alto demais – disse Bamir, atraindo todos os olhares. Um silêncio desconfortável
abateu-se sobre a mesa. Ele adivinhou a inquietação que ele mesmo trouxera à vista.
Vermelhos. Ou algo pior.
– Ora, rapaz – disse Velet –, se você se preocupa com os Vermelhos, eu te digo que eles
estarão muito ocupados nos próximos dias. Imagine se um dos nossos chefes caísse? –
Apontou um indicador gordo para o teto. – Nós teríamos de correr de amanhecer a amanhecer.
E eu acho que isso é o que eles farão.
– Como poder ser? – disse Naner, fechando o punho diante dos lábios. – Depois de todo
esse tempo...
– Eu me pergunto quem terá sido o sujeito que envenenou o Rei – disse Velet. – Juro pelos
Anur que se eu pusesse as mãos nele obrigaria a se tornar um de nós. Muita coragem.
Por um instante, Bamir sentiu que havia algo de podre em toda aquela conversa que
ninguém mais conseguia ver. Um fundo carcomido por onde todas as verdades escorriam. Mas
tinha um trabalho a fazer. Voltou a concentrar-se em Velet. Era divertido vê-lo sofrer daquela
maneira.
– Ora, ah! – disse Cassur, agitando os braços. – Esse sujeito é um idiota, eu lhes digo. Um
palhaço.
– Um palhaço – disse Bamir, enquanto tomava o cachimbo das mãos de Cassur.
– Há algo de errado – disse Naner. – Por mil anos, vejam bem, por mil anos ele esteve ali,
naquela maldita torre. Quantos já não tentaram apagar o velho? Quer dizer então que alguém
simplesmente decidiu matá-lo e o fez, sem mais nem menos? E quem sabe se o Rei sequer
poderia ser envenenado?
Velet gargalhou, olhando para os outros dois. Bamir abriu um sorriso falso, o olhar fixo no
gordo. Por um momento, ele viu o medo passar por seus olhos, um brilho arisco.
– Naner tem razão numa coisa – disse Cassur. – Como se envenena um... bicho daqueles?
– Não é porque ele tinha escamas que não podia ser morto – disse Velet. – Se você quiser,
eu posso provar. Eu saio agora das muralhas, trago para você um lagarto e encho ele de akva
até explodir!
Todos riram, com exceção de Naner.
– Ele não era um lagarto, seu porco – disse Naner. – Ele era um deus. Como se mata um
deus?
– Ele se dizia um deus – disse Bamir.
Naner voltou-se para Bamir com um ar professoral.
– Se ele não era um deus, como ele viveu esse tempo todo? E por um acaso você já viu por
aí qualquer coisa parecida com o Rei Amet?
– Olhe – disse Cassur, apontando para a barriga de Velet –, esse aí está querendo chegar lá.
Viva o novo Rei Bestial! – Ele encarou Naner, que continuava sério. – Ora, Naner, nós vamos
nos virar bem, você vai ver. Os Cengasmut ainda terão um milênio para aterrorizar os bons
cidadãos de Atablan.
Todos concordaram em uníssono.
– Há conversas de sangue por aí – disse Naner. – Estou preocupado.
– E é por isso que seus cabelos estão brancos desse jeito – disse Velet. – Você dá ouvidos
demais.
E você, Velet, fala demais.
Bamir deu uma baforada no cachimbo, fitando Velet através da fumaça.
– Bem – disse Cassur, intensificando a careta –, eu quero que os Vermelhos e todos os
outros nargorot ardam na tumba dos Anur! Se for o que está para ocorrer, eu saúdo a morte do
Rei.
Naner apontou para ele.
– Pense no que você está dizendo, amigo. Os Vermelhos só cumprem ordens. Todo o resto,
todo o ouro e todo o movimento que tanto apreciamos só existem por causa dessa cidade, do
que ela é. E esta cidade só existe por causa do Rei Amet. Nós só existimos por causa do...
– Ou! – gritou Cassur, agitando os braços. – Não toque nessa ferida!
– Naner – disse Velet, fazendo a garrafa azul deslizar até ele. – Você pensa demais.
Naner agarrou a garrafa com os olhos fixos em Velet. Em seguida, olhou para Bamir, como
se esperasse um sinal.
– Vamos mudar de assunto – disse Velet. – Bamir, como vão as coisas em Bolcatagrit?
Bamir deu um sorriso alongado para ele.
– Interessantes. Hoje mesmo eu fui lá honrar meu compromisso com o mitolosc...
– O homem do estanho? – perguntou Velet, apressado.
– Sim. O homem do estanho.
Houve uma pausa desconfortável. Velet se adiantou para preenchê-la, mas Bamir o deteve
com um gesto.
– Houve um pequeno imprevisto.
– Você pegou a carga?
– Ela ainda está no ancoradouro. Eu pedi para o mitolosc segurá-la enquanto eu tratava do
imprevisto.
Velet olhava vidrado para ele.
– Ora, ao menos...
– Eu molhei meu bico – disse Bamir, elevando a voz acima da do gordo.
Naner e Cassur olhavam para baixo, silenciosos.
– Bem, hoje foi um dia muito incomum, não? – disse Velet. – Com a morte do Rei e todo o
resto.
Bamir encarou o gordo como se não tivesse ouvido nada do que tivesse dito. Notou uma
gota brilhante escorrendo em sua testa, que Velet aparou com a manga da camisa.
– O quê? – perguntou Velet. – Vermelhos? – Bamir assentiu com a cabeça. – Ora, eu
pensei que tivesse cuidado deles em Bolcatagrit. Pelos Anur, o que o medo faz com os
homens.
– O que ele faz... – disse Cassur.
Velet afrouxou o colarinho de sua camisa, aliviando a papada gorda.
– M-mas então, você disse que molhou seu bico – disse Velet.
– Sim. Com licença, já te mostro – levantou-se e devolveu o cachimbo a Cassur.
– Ou! – disse Velet, confuso.
– Eu já volto – disse Bamir.
Ele saiu do Abremusc e entrou na noite de Atablan. Havia algo pesado no ar, um silêncio
artificial. Em poucos passos, alcançou o beco onde estivera antes de encontrar os
companheiros.
– Mmpf... mmmmpf!
O beco era estreito o bastante para que só um por vez pudesse passar. No final dele, havia
um homem no chão, amarrado e amordaçado, trajando uma túnica vermelha com o desenho de
um sol no centro. Um dos olhos estava escurecido. Bamir sacou o espadim do cinto.
– Mmmmpf... mmmmmmmpf!
Com um só corte, ele desatou as cordas que envolviam os tornozelos. O soldado pareceu
ficar aliviado. Bamir tomou o homem pelo braço e o conduziu de forma pouco amigável para
dentro do Abremusc e escadas abaixo.
Velet deu um salto quando viu o Vermelho.
– O que...
Cassur e Naner sacaram seus facões e apontaram para o gordo.
– Você fica bem parado aí, rato! – gritou Cassur, a face perdida dentro da careta.
– Como eu falei – disse Bamir –, eu molhei meu bico. – Ele ergueu o espadim em direção à
face do soldado e cortou sua mordaça. O Vermelho se curvou e vomitou no chão.
– Anur-eldorot! – exclamou Naner, afastando os pés dos respingos.
– Eu...eu não... – disse Velet.
– Cale a boca – disse Cassur, aproximando a lâmina ainda mais da garganta do gordo.
– Este aqui é um jovem herói – disse Bamir, enquanto puxava o prisioneiro pelos cabelos.
O vômito escorreu pelo queixo. – Não deve ter nem um ano de serviço com os Vermelhos.
Estava sozinho, me esperando.
– Poucos são tão valentes assim, não? – disse Naner.
– Ou pontuais – disse Bamir.
Naner se aproximou do Vermelho.
– Qual o seu nome?
– Ba...
– Responda, infeliz! – Bamir chacoalhou o soldado pelos cabelos, fazendo-o gemer.
– Ba... ru...
– Baru? – perguntou Naner.
– Ar... nus...
– Baru-arnus? – disse Cassur, provocando risos em Bamir. – Que porra de nome é esse?
Velet suava aos litros e batia os joelhos uns nos outros.
– Eu nunca vi esse...
– Cale a boca! – gritou Cassur.
Bamir atirou o Vermelho no chão, que se encolheu em posição fetal, como se quisesse se
esconder dentro de si mesmo.
– Este aqui tem uma boa história para nos contar – Bamir se afastou do soldado moribundo
e contornou a mesa. – Uma história de ratos.
– Eu juro que... – disse Velet.
Cassur deu uma estocada violenta na pança de Velet, que guinchou e caiu de joelhos.
– Rato de merda!
Os outros dois fecharam o círculo em volta de Velet, golpeando com as pontas afiadas
dezenas de vezes. Bamir fez questão de mirar as bochechas, aquelas tábuas rosadas e
molengas. Uma poça de sangue se formou e o gordo desmaiou sobre ela. As facadas
prosseguiram. Após terminarem, ficaram parados, encharcados e ofegantes, observando a
massa vermelha de carne humana. Bamir sentiu-se realizado, como se tivesse acabado de
trepar. Era sempre uma tarefa difícil sacrificar um irmão, mas aquela matança era uma pela
qual os três há muito esperavam.
Naner voltou-se para o Vermelho choramingando no chão sobre o próprio vômito.
– E quanto a este verme? – perguntou ele.
Bamir limpou o nariz com a manga e cuspiu no cadáver de Velet.
– O que quer dizer? Nós daremos o tratamento que se dá a um verme.

Não se podia dizer se o tom dos cochichos e murmúrios era alegre, temeroso ou raivoso.
Devia haver mais de mil pessoas reunidas em Fetacarp, centro do centro de Atablan. Todas
esperavam as desculpas que seriam apresentadas pelo arauto dos Anespornat, os conselheiros
reais. Bamir e Cassur estavam próximos ao círculo de Vermelhos que defendia a estátua do sol
de bronze. Tinham os capuzes postos, como um bom Cengamut deveria fazer, mantendo-se
firmes sob a pressão da multidão desejosa de se aproximar dos soldados ao redor da estátua.
Do centro do círculo de Vermelhos ergueu-se um velho de túnica marrom. Era bem
possível que tivesse obrigado um dos soldados a ficar de quatro e servir de palco. Por entre as
cabeças oscilantes e bafos quentes, Bamir viu o arauto erguer as mãos. O silêncio se espalhou
pela multidão com uma onda de gritos de “cala a boca”.
– Filho da puta – sussurrou Cassur.
– Povo de Atablan – disse o velho. Sua voz era quase cantada. Não se encaixava muito bem
no corpo franzino da qual saía. – É com grande pesar que anuncio o falecimento de nosso
querido Rei Amet Ertaglot Atablanest Mateminot, na madrugada do terceiro dia do Apoletolt.
Uma onda de agitação se propagou de dentro para fora da multidão.
– Embebido do espírito que Vossa Majestade semeou no coração de vossos filhos –
continuou o arauto –, gostaria de anunciar que, a partir do presente momento, é concedida à
honorável mesa dos Uscavasc Anespornat a ocupação interina do trono de Purcalat e o governo
da cidade de Atablan e das Terras da Lei. Ao espírito imortal do Rei Amet Ertaglot Atablanest
Mateminot é mantida a coroa Atablanet, à contingência da vinda do segundo Mateminot, como
urge a lei que está acima de todo e qualquer homem.
Houve burburinho e alguns empurrões. Os fanáticos repetiam os dizeres de “acima de todo
e qualquer homem”.
– Velho safado! – gritou Cassur.
A multidão acalmou-se repentinamente.
– Até que se efetivem os mandamentos da profecia – continuou o arauto –, a lei de Atablan
permanece intocada. Para aqueles que se prestam a maldizer a lei, sobre eles cairá a justiça de
Amet para toda a eternidade.
Os fanáticos pressionaram a linha de frente da multidão, gritando o nome do Rei Bestial e
clamando por piedade. Os Vermelhos que protegiam o arauto ergueram as espadas.
– Vai ficar feia a coisa – disse Cassur.
– Vamos – disse Bamir. – Já perdemos muito tempo aqui.
Os dois abriram uma trilha no emaranhado de almas perdidas. Em duas ocasiões, Bamir
precisou exibir o seu espadim e enxotar os mendigos e religiosos que ameaçavam seu caminho.
A turba que engolia Fetacarp era uma visão patética. Deixaram a praça e foram até uma
charrete estacionada em suas imediações. Diante dela, um homem barbudo, também
encapuzado, os esperava. Seu nome era Legor.
– Pelos Anur! – disse Legor, mirando a multidão convulsa.
– Então, garoto, matou sua curiosidade? – perguntou Cassur para Bamir.
– Eu tinha que ouvir da boca de alguém de cima.
Eles ouviram gritos vindos do centro da praça. Cassur se virou e levou uma das mãos para
dentro da capa.
– Acho que vai servir – disse Bamir, apoiando uma das mãos na charrete. Havia um grande
saco em sua traseira no formato de um corpo humano.
– Considero minha dívida paga – disse Legor.
Bamir olhou direto em seus olhos, detendo-se por um instante.
– Mande minhas saudações para a família. – Ele saltou para a parte dianteira, tomando as
rédeas da besta. Os gritos continuavam onde o sol de bronze se erguia. Viu as pontas das
espadas juntas umas das outras, afastando-se do centro. Cassur ainda estava distraído pelo
tumulto.
– Cassur! – gritou Bamir.
O colega se desvencilhou da distração escalou a charrete, sentando-se ao seu lado.
– Vamos. Se cuide, Legor.
Bamir agitou as rédeas e fez uma curva na direção oposta à da praça. O som do tumulto se
distanciou atrás dele. À frente, as pessoas ocupadas cruzavam a rua em seus afazeres. O
silêncio era artificial.
O sol estava se pondo quando estacionaram em Golcaneu. As águas da foz do Moltes
ondulavam lentas, a luz refletida se alternando em um turbilhão de pontos luminosos, ao ritmo
da maré, até onde a água encontrava a pedra da orla. O odor de putrefação que vinha da parte
de trás da charrete contrastava com a vista. Cassur saltou do veículo e puxou o saco em forma
de corpo de maneira desajeitada. Ele gemeu com o peso e deixou o pacote cair.
– Porra! Preste atenção! – sussurrou Bamir, olhando em volta.
– Me ajude, então.
Bamir desceu com passos silenciosos. Eles rolaram o saco até a borda do calçamento, onde
as águas do Moltes começavam. As moscas já davam suas caras. Com um impulso e mais um
gemido de Cassur, rolaram a carga e ela se espatifou na água.
– E a roupa? – perguntou Bamir.
– Que roupa?
– A do Vermelho.
– O que tem ela?
– Onde está?
– Bem, está ali – Cassur apontou para o fundo do rio.
– Seu animal! – Bamir levou a mão à testa. – Caromosut quer todas as túnicas vermelhas.
– Ou! – Cassur abriu os braços. – Não ouvi nada a respeito disso. Tem muitas dessas no
fundo do Moltes, como sempre foi. Eu não entendo...
– Você vai ter que se explicar para o chefe.
Cassur apontou um dedo para a cara de Bamir.
– Nós vamos ter que nos explicar.
– Tem razão. Seu animal!
– Não se preocupe, rapaz.
Bamir suspirou. Havia uma ansiedade nele que não estava conseguindo trazer à tona. Uma
coceira interna. Os dois voltaram à charrete. Bamir agitou as rédeas e a mula avançou
preguiçosa. Deu uma última olhada para as águas e para a faixa alaranjada projetada pelo sol
moribundo.
– Eu não entendo – disse Cassur. – O que Caromosut quer com essas roupas?
– Vai saber...
– Já não basta termos que apagar verme após verme, agora temos que os despir também?
Bamir sentiu a coceira acumulando em seu peito e borbulhando.
– Verme desgraçado!
– Ou! Já passou, jovem.
– E aquele rato filho da puta, gordo escroto! Como eu não vi antes?
– É como as coisas são. Sempre tem alguém querendo ser mais esperto do que nós.
A respiração de Bamir acelerou e ele fez força para contê-la.
– Você é um bom Cengamut, jovem – disse Cassur. – O melhor matador que eu já vi. Não
deixe que as pequenas coisas te irritem demais, hein?
A coceira persistia.
– Como está sua vida, tudo sobre controle?
Bamir sabia sobre o que ele estava perguntando e isso o deixou ainda mais irritado.
– Tudo sob controle.
– Me desculpe, jovem, mas é a minha obrigação te perguntar. Afinal, não podemos deixar o
passado totalmente de lado.
– Eu entendo. Está tudo sob controle, pelos Anur!
Os dois prosseguiram em silêncio. Bamir se perguntava se o seu arduamente conquistado
controle estaria lhe escapando. Ele havia retornado das cinzas e se transformado num soldado
dedicado do crime de Atablan. A névoa que cobrira sua visão estava dispersa, mas ele não era
tolo o bastante para não reconhecer a coceira que o afligia. Ela tinha um nome, um sabor e uma
história de naufrágio.
– É uma longa história – disse Bamir.
Sobre a cama, nua sob os lençóis, Lepe sorriu para ele. Tinha dentes muito brancos. Bamir
sempre ansiava por essas visitas ao seu quarto cativo na estalagem, mesmo que acompanhadas
da curiosidade inclemente da garota.
– Isso soa como uma desculpa esfarrapada – disse ela.
– Não é. Se não fosse pelos Cengasmut, eu estaria morto. Não importa o que aconteça com
esta cidade, eu estou com eles. E, como disse, a razão disso não lhe concerne.
– Quem estava tentando te matar?
– Eu disse que não é da sua conta.
Lepe manteve os olhos cinzentos fixos em Bamir. Ele tentou desviá-los, mas não conseguiu
por muito tempo. A rua o preocupava. Os últimos dois dias haviam sido muito silenciosos.
Nunca um bom sinal.
– Vejamos – disse Lepe. – Talvez um dos cães do Cribat. Você tem cara de alguém
propenso a jogar e pedir empréstimos.
Bamir deu um sorriso irônico.
– Claro, eles emprestariam ouro para um jogador degenerado qualquer.
– Ah, então você jogava.
– Não. Jogos são para os desocupados, ou para os que detestam suas próprias ocupações.
– Eu já te vi jogando ultert com Legor.
– É diferente. Exige habilidade e não é uma questão de dinheiro.
– Mas sempre se aposta alguma coisa no ultert, não?
– É o costume.
Bamir observou os transeuntes na rua. Um homem de cabelos brancos contava moedas
escuras nas mãos diante da entrada da estalagem. Parecia muito pouco cauteloso.
– Então, quem estava querendo te matar?
Ele voltou-se para Lepe, agora mais próxima a ele, os seios pressionados contra o colchão.
A pele também era muito branca. Sabia que não tinha nenhuma chance de dissuadi-la. Não era
como com os outros.
– Eu mesmo.
Ela sorriu.
– Quer dizer então que os Cengasmut recrutam suicidas? Faz sentido.
– Não é o tipo de suicídio que você está pensando.
– O que era então?
Bamir suspirou. Um gosto amargo veio à boca, familiar.
– É uma longa história.
– É a segunda vez que você me diz isso.
– É porque é longa mesmo.
– Eu não estou com pressa. – Lepe apoiou o queixo nas mãos, como uma criança faria.
Bamir sentiu-se pesado com as memórias. Não gostava de olhar para trás. Nunca ajudava,
não importava o que dissesse Cassur. A garota parecia divertir-se com a sua angústia. Os
dentes eram muito brancos, e em volta dele havia duas linhas macias e rosadas. Os olhos
estavam arregalados e brilhantes, e sobre eles caía o cabelo fino, de um castanho claro de
vários tons. Talvez valesse a pena ficar vulnerável diante dela. Tomou fôlego.
– Eu não sou de Atablan – disse Bamir.
– Não?
– Não. Sou de Putobolc. Nasci sobre os barcos, mas nunca me vi sendo um navegador.
Meu pai... deixa para lá.
– Continua.
Bamir olhou pela janela mais uma vez. O homem que contava suas peças continuava no
mesmo lugar, com a mão na cintura, olhando para a entrada da estalagem.
– O que importa é que eu sabia que era um guerreiro. Sempre soube. É isso que eu faço
bem.
Havia algo exótico na postura do homem lá em baixo.
– E eu achava – continuou –, na época, bem, que era algo que podia ser glorificado. Que eu
poderia... ter sucesso com isso.
– Bem, você conseguiu um lugar entre os Cengasmut, não?
– Não era muito bem o que eu tinha em mente. Para mim... para nós, em Putobolc, só havia
uma organização que poderia trazer a glória através da espada...
– Continua.
– Então... decidi que queria entrar para as fileiras dos Astanart. Me tornar um Vermelho.
Ela gargalhou, escondendo a face nas mãos. Era uma boa risada, feminina.
– Eu não acredito! – disse Lepe.
– O que eu podia fazer? – disse Bamir, irritado. – Era tudo que conhecíamos lá em casa. Eu
queria lutar, e só os Vermelhos vinham à cabeça.
– Desculpe – ela abafou os risos. – Continua.
– Enfim, larguei tudo e todos que tinha em Putobolc e vim para cá. A primeira coisa que eu
fiz foi ir até o distrito real e buscar o quartel dos Astanart. Fui barrado. Dormi na rua. No dia
seguinte, tentei de novo. Fui chutado para fora.
– O que você esperava?
O homem grisalho agora andava em círculos diante da estalagem, eventualmente se virando
e olhando para a porta.
– Acabei em Valvomit e aprendi a roubar. Não foi muito difícil. Eu tinha minha espada, e
muitos dos nargorot de lá amanheceram na vala tentando montar nas minhas costas. Eu
também ia a Bolcatagrit. Sabia onde os que vinham de cima do rio guardavam as cargas. Mas
não era o bastante.
– Porque você não voltou para casa?
A pergunta pareceu estúpida.
– Não podia. Você não iria entender. Eu tinha que ficar.
– Continua.
– As coisas não iam bem. Atablan é uma cidade muito mais perigosa do que você imagina.
Não importava o que eu fizesse, sempre acabava em Valvomit, num barraco imundo, fugindo
dos Vermelhos. E você sabe o que acontece com quem vive naquelas ruas por muito tempo.
Ela franziu o cenho. Para uma garota que vivia entre criminosos, Lepe era deveras
inocente.
– Deixa para lá – disse Bamir, acenando com a mão. – Isso tudo está no passado. Qual o
sentido de ficar lembrando este tipo de coisa? Nunca ajuda.
– Você se prostituiu?
– Não! Como pode dizer uma coisa dessas?
– Se você não me contar – disse ela, encostando a ponta do indicador nos dentes –, eu vou
assumir que você estava mordendo travesseiros.
– Anur-Eldorot!
O homem continuava seu momento circular, impaciente. Não era nada bom. Bamir virou-se
para Lepe, retirou a luva da mão direita e exibiu a palma. Ela estava escurecida, como se
tivesse acabado de manusear carvão.
– Pelos Anur! – disse ela.
Bamir baixou a cabeça. Uma vergonha subiu-lhe pelo peito até a face, realçando algumas
velhas dores. Lepe sentou-se na cama.
– Eu pensava que... como você largou?
– Eu não sei. Eu só sei que um dia Cassur me viu matar um dos contrabandistas e, desde
então, eu nunca mais tive nenhum trago.
– Eu nunca imaginaria.
Bamir ajoelhou-se na cama, sentindo o estremecimento no corpo da garota. Encostou os
lábios nos dela.
– Lepe.
– Sim?
– Nós temos que sair daqui.
– O quê?
Bamir alcançou o espadim sobre a cômoda e abriu uma fresta na porta. Ouviu passos
metálicos subindo as escadas. Não havia mais tempo.
– O que está acontecendo? – perguntou Lepe.
– Você sabe. – Apoiou-se na borda da cama e deu mais um beijo nela, em seguida saltando
pela janela que dava para a rua. O pouso foi desajeitado. O homem que estava parado no meio
da rua contando moedas soltou um grito e caiu para trás. Bamir ergueu-se e correu para a viela
mais próxima.

A noite era a amiga de Bamir. Passara o dia em Valvomit, onde os Vermelhos pouco se
arriscavam a entrar. Ali, sua coceira ficara ainda mais forte. Quando a luz cessou, retornou ao
centro da cidade. Talvez seus colegas tivessem algo a dizer sobre os acontecimentos daquela
manhã.
O Abremusc ainda estava aceso. Ele observava do mesmo beco onde, dias antes, o
Vermelho que capturara em Bolcatagrit estivera amarrado e amordaçado. Esperou. A rua
parecia vazia demais. Um silêncio artificial. Quando decidiu entrar, ouviu vozes saindo do
bazar. De lá saíram três Vermelhos com espadas desembainhadas. O último deles conduzia um
homem algemado, com um saco preto na cabeça. Naner. Bamir sentiu sua garganta se
contorcer.
Alguém era culpado disso. Talvez o próprio Rei Morto.
Esgueirou-se de sombra em sombra, de beco em beco. A noite não era mais a sua amiga.
Tal qual um rato, ele passou do centro de Atablan para o bairro vizinho, Pilcagust. Ali os
ladrilhos começavam a se transformar em areia e os edifícios tinham seus exteriores
enegrecidos pela fumaça das forjas. Havia mais movimento; ainda assim, tímido. Ele passou de
porta em porta, até encontrar uma que tinha a pintura verde descascada. Bateu.
– Ou! – gritou Cassur ao atendê-lo. – O que você está fazendo aqui?
– Deu merda, Cassur.
O homem olhou para suas vestes, aprofundando a careta. Bamir então se lembrou que,
desde que fugira dos Vermelhos na estalagem, vestia apenas a sua ceroula.
– Como você chega na minha casa vestido assim?
– Depois eu te conto. Deu merda.
Cassur o fitou incrédulo.
– Venha, venha – disse Cassur, abrindo passagem. – Vou te dar algo para vestir.
Pouco depois eles estavam no banco – que nada mais era que um bloco de pedra fincado na
areia – no centro da praça, se é que se podia chamar aquilo de praça: consistia num quadrado
aberto entre as traseiras de quatro edifícios. Outrora fora um ponto de consumo de erva, antes
dos Cengasmut chegarem a Pilcagust e expulsarem os zumbis.
Cassur tragava o cachimbo, curvado e ansioso. Estavam ambos com capuzes negros sobre a
cabeça, como um bom Cengamut deveria fazer. Bamir sondou o ar à sua volta, buscando sem
saber o som dos martelos que trabalhavam dia e noite em Pilcagust. Não ouviu nada. Nem
mesmo o vento.
– Tem alguma ideia? – perguntou Cassur, retirando Bamir de seus devaneios.
– Não. Mas de uma coisa eu sei: eles sabem o que estão fazendo. Estão precisos.
Cautelosos.
– Então alguém está falando demais.
Silêncio.
– Eles estão vindo, Cassur – disse Bamir.
– Eu sei. Quem sabe se aproveitaram da morte do Rei para fazer uma faxina. Mas está
muito rápido. Nunca conheci um Vermelho que fosse mais esperto do que nós.
– Quem se mexe primeiro tem a vantagem.
– Eu vou ter com Caromosut.
Bamir não sabia dizer se era uma boa ou má ideia ir atrás do chefe.
– O que você acha? – perguntou Bamir.
– Eu espero que esteja errado, mas...
– Guerra? Se for o caso, vai ser difícil reverter esta situação.
– Vamos esperar alguns dias. – Cassur passou o cachimbo. – Na quarta noite eu te espero
aqui nesta mesma praça. É bom nos separarmos por enquanto, sabe. Depois, nós
compartilhamos o que descobrirmos.
Bamir assentiu com a cabeça. Ele sabia que os dois Cengasmut, mesmo que num nível
sutil, desconfiavam um do outro. Eram os ossos do ofício, mesmo entre os que se amavam.
– Na quarta noite – disse Cassur. – E fique longe da garota.
Me desculpe, irmão, mas você não sabe como os dentes dela são brancos. E a pele
também.
Capítulo 2

Céu Púrpura

O nascer do sol deixou o céu púrpura. Uma alvorada turquesa significava vitória. Uma
alvorada vermelha significava derrota. O que significava uma alvorada púrpura?
Dois mil cascos tamborilavam atrás de Vakú, e quatro à sua frente. Acima dos cavaleiros, a
areia se erguia e formava uma nuvem de poeira. Pouco podia ver do que estava além do cavalo
negro de Mosú, seu irmão e seu chefe, que liderava a corrida. Avançavam como se não
houvesse o amanhã, o vento nos cabelos, a excitação da investida. Ele olhou para o céu
novamente. Era uma alvorada púrpura. O que isto queria dizer?
Em alguns instantes alcançaram os muros da vila, pouco mais que um punhado de pedras
em círculo com uma porteira. Os Uremiték atrás dele bradaram em seu anseio por sangue e
fogo. Quebraram o frágil portão com os corpos de seus próprios cavalos. Houve gritos. Tão
logo adentraram o círculo de pedra, as chamas se ergueram nos telhados de palha. A fumaça
negra e ácida se mesclou à areia levantada e o céu desapareceu.
Não era costume entre os Uremiték guardar prisioneiros. Na realidade, não estava na
memória do clã Okorók, ou de nenhum dos outros clãs, a conquista e a pilhagem. Homens,
mulheres e crianças sobreviventes da vila foram reunidos no centro, ao menos três dúzias
deles. Vakú os vigiava de cima de sua montaria, indeciso. Ouviu a aproximação de Mosú, que
freou ao seu lado.
– Eles não têm nada. Pescadores – disse Mosú.
– E os mantimentos?
– Irrelevantes.
Os irmãos ficaram parados lado a lado, os cavalos agitados com a fumaça escura. Vakú deu
alguns tapas em Tulú, sua montaria, negra como a de Mosú. As criaturas diante deles os
olhavam de baixo como se estivessem diante de demônios. Próxima à Vakú estava uma garota,
uma nemék adolescente vestida numa saia imunda. Parecia mais assustada que os demais.
– Qual sua ordem para eles? – perguntou Vakú, indicando os prisioneiros.
– Deixe-os. Não há nada para fazer aqui.
– Mosú... – Vakú olhou nos olhos da garota. – Será que é prudente?
O chefe girou a montaria e aproximou a face escurecida.
– Nós não estamos aqui para um banho de sangue, Vakú. – Mosú olhou em volta. – Já foi
estúpido o bastante queimar esta vila por razão nenhuma.
– Os homens podem entender mal.
– Entender o quê mal?
– Você sabe. A guerra...
– Não há nada para entender aqui. Nós marchamos para o sul e precisamos de
mantimentos, só isso. O resto é desperdício. Deixe-os partir.
Mosú esporou o cavalo e saiu galopando. Vakú continuava a olhar para a garota, que agora
o encarava. Ele sentiu sua respiração aprofundar-se e a febre crescer no seu corpo. Olhou para
trás, buscando Mosú. Tudo que viu foram telhados escurecidos, dois ou três corpos de nemék
caídos e o passar de lá para cá de homens montados. Voltou sua atenção para a prisioneira. A
febre intensificou-se. O vento então mudou, lançando um tubo de fumaça negra entre si e os
que vigiava. Eles esconderam as faces. Vakú conduziu o cavalo até ficar ao lado da garota,
sacando a lança atarraxada em sua cela e cutucando-a com o cabo.
– Você. – A garota olhou para cima, tremendo. Vakú apontou na direção da porteira
despedaçada. Ela levantou-se e começou a caminhar. Ele a seguiu.
Os Uremiték ergueram o acampamento em torno da vila nemék, montando tendas
cinzentas, algumas feitas com peles e couro de animais. A maior parte dos locais havia pego o
pouco que lhes restara e ido em direção às terras altas do leste, na direção oposta do rio. Vakú
cruzara com uma família deles quando voltava para o acampamento de sua caçada vespertina.
Na mão direita, Vakú trazia um falcão mensageiro morto com um pequeno tubo de papel
enrolado nas patas, similar ao que havia chegado nas Varekvaké quase um mês antes. Ao
alcançar o círculo de tendas, foi diretamente até Mosú, seu irmão, seu chefe. Ele se sentava
sobre um tapete de pele de cervo. Ao lado dele, de pé, estava Koroní, sua cunhada, cada vez
mais esbelta com a idade. Ela vestia uma bata cinzenta e tinha os cabelos sobre o seio
esquerdo. Não olhou para Vakú quando ele entrou.
– Então? – perguntou Mosú.
Vakú ergueu o falcão morto.
– Aqui está – desatarraxou o pedaço de papel do corpo da ave e o entregou. Mosú leu em
silêncio.
– As mesmas notícias – disse Mosú. – O Rei Bestial morto. – Ele largou o papel no chão.
Tinha rugas nas faces e, onde outrora o cabelo fora completamente negro, havia salpicos
prateados.
– Míro encontrou um cadáver no exterior dos muros – disse Mosú, severo. – Uma garota.
Vakú sentiu o estômago gelar.
– Você ouviu alguma coisa sobre isso? – perguntou Mosú.
– Nai.
O ar da tenda ficou pesado. Podia-se ouvir o som dos cavalos relinchando do lado de fora.
– Eu dei ordens para pouparem a todos – disse Vakú.
– Sim.
– Agora mesmo eu vi uma família de...
– Não minta para mim, Vakú! – gritou Mosú.
O gelo no estômago de Vakú cresceu ainda mais.
– Eu nunca... eu não sei de nada.
Mosú baixou a cabeça, massageando os olhos com as pontas dos dedos. Vakú largou o
corpo do falcão no chão e abaixou-se, repousando uma das mãos no ombro do irmão, que
repeliu o contato.
– Eu preciso da sua palavra – disse Mosú.
– Você a tem, em nome dos Kinetolé. Mosú, acho que você já se esqueceu como são os
homens na guerra. Não teremos criminosos entre os nossos se você os deixar livres para
fazerem o que desejarem com os conquistados, a não ser que vá plantar uma bandeira. Estes
são os modos.
– E o que você sabe sobre a guerra?
– Pouco. Mas entendo os guerreiros. Eles precisam de motivação.
– Chacinar e violentar inocentes?
– Você sabe disso, Mosú. Sabe que na luta os procederes mudam. E quando mudam...
Mosú ergueu uma das sobrancelhas.
– ... é difícil conter os instintos – continuou Vakú. – Melhor dizendo, é bom deixá-los à
solta. É uma das poucas coisas que a guerra traz de bom.
– Você está dizendo que sangue, senhor e profecia não são o bastante?
– Isso é o que os faz marchar, mas não vencer.
Mosú o repreendeu com o olhar.
– Você sempre teve esperteza, Vakú. Espero que faça bom uso dela.
Mais uma vez, Vakú gelou.

A cabra berrou como se já conhecesse seu destino. Estava amarrada diante da enorme
fogueira num toco. Era noite. Os Uremiték formavam um círculo com várias fileiras,
silenciosos e solenes. O berro do animal encheu Vakú de culpa.
– Uma cabra poderá valer muito no caminho adiante – disse ele, enquanto estudava o
punhal em sua mão.
Mosú o fitou incrédulo.
– Você cospe na profecia?
– Claro que não, eu só...
– O que deu em você?
– É uma estrada longa...
– O que deu em você?
Vakú manteve a cabeça baixa.
– Olhe para mim, Vakú.
Ele obedeceu.
– O que deu em você? Você cospe na profecia?
– Nai.
– Então pare de choramingar e vá! – Mosú apontou para a cabra diante da fogueira.
Vakú pôs a mão do punhal atrás das costas e caminhou até o centro. O animal se agitou ao
sentir sua aproximação, tentando libertar-se das amarras. Vakú se agachou ao lado da cabra e
imobilizou seu pescoço com o braço direito. Em seguida, apontou o punhal para os céus,
encarando o círculo.
– Kornumevé – entoou Vakú, – Kornuvamepé, Kornumulé, Kornutulé, Kornuvaré,
Kornuruné...
Os Uremiték fecharam os olhos e ergueram as mãos.
– ...Kornuvatasé, Kornukodé, Kornupalkamíl, Kornupleikú, Kornuvalé, Kornunivopú,
Kornunirke-manasú!
Após entoar o décimo terceiro nome, Vakú desceu a faca até o pescoço da cabra. Os
homens em círculo começaram a repetir em uníssono o nome dos Kinetolé. Ao sentir o aço
frio, a cabra se debateu, forçando Vakú a agarrar sua mandíbula com mais força. Ele foi brusco
ao penetrar a faca na garganta, e ela prendeu-se em algo. O animal berrou mais alto,
gorgolejando. Vakú fez força e rasgou o pescoço de lado a lado. O sangue espirrou e a cabra
parou de se mover. No momento em que o círculo entoava o nome de Kornunirkemanasú,
Vakú ergueu a faca avermelhada.
– Sangue, senhor e profecia! – gritou Mosú desde a borda do círculo. Centenas de vozes
repetiram o clamor.
– Uremiték – gritou Vakú, ganhando a atenção dos demais. – Eu, Okorovakú, filho de
Okoronamú, ofereço este sacrifício à causa de nosso povo e à liderança de meu irmão
Okoromosú, filho de Okoronamú.
Os Uremiték ergueram vozes e armas em aprovação. Vakú olhou para Koroní, que estava
ao lado de Mosú. Ela vestia uma bata vermelha, como a tradição coagia as mulheres. Parecia
um espírito perdido em meio àquele turbilhão de agressividade e credulidade.
– As palavras dos Kinetolé são claras – continuou Vakú. – Nós marchamos pelo direito de
sangue dos Uremiték sobre as terras do sul, roubadas de nossos antepassados pelo Falso
Profeta.
A multidão vibrou.
– E eu espero... – a força na voz de Vakú se perdeu. Ele olhou para a cabra morta aos seus
pés. – Eu espero que possamos chegar a salvo a Atavalán. Eu espero que possamos fazer... o
que é necessário, que não nos apoiemos tão somente em nosso direito de sangue.
Houve um murmurar desconfortável entre os homens.
– Que pensemos antes de agir. Atavalán não é uma vila qualquer de nemék despossuídos.
Suas muralhas são altas e seu exército, treinado. Será difícil. Muito difícil. Não podemos achar
que... bem, que os Kinetolé decidam se Okoromosú subirá ao trono ou não, que os...
Envergonhado, Vakú largou a faca e deixou o círculo. Olhares chocados o seguiram.
Desapareceu na escuridão.

Anarvú, líder dos Oreák, era a principal atração das noites do acampamento. Seu clã era
pequeno, mas o carisma do seu chefe o engrandecia. Era raro que Vakú se dispusesse a sentar
em torno de sua fogueira e ouvir suas histórias e ensinamentos, sempre orados com destreza.
Agora parecia uma boa forma de esquivar-se de Mosú depois do seu comportamento na
sagração da noite anterior.
– Eles até podem nos ajudar – disse Anarvú –, mas, ao fim, os Kinetolé só ajudam aqueles
que pegam na espada e a dedicam à profecia.
Um peixe espetado, com um braço de comprimento, assava sobre as brasas. Uma dúzia de
homens e mulheres sentava-se ao redor do fogo em silêncio, quase todos Oreák. Anarvú olhava
nos olhos de cada um.
– E é muito fácil – disse, fechando um punho diante da face – pegar numa espada para lutar
com a sua sombra ou contra nemék desarmados. É quando o inimigo tem mais armas do que
você, quando seus irmãos e filhos estão caindo ao seu lado, aí sim você deve provar o quanto o
sangue, o senhor e a profecia estão na sua lâmina. Aí sim é que se diz quem os Kinetolé irão
ajudar.
– Não existem inimigos assim nas Varekvaké – disse Vakú, quebrando o silêncio.
– Não mais, Okorovakú. Mas haverá uma pilha deles em Atavalán. Acho que você sabe
muito bem. Eu diria que está se borrando com isso.
Os demais riram.
– E o senhor, Oreanarvú, não terá a mínima ideia do que fazer quando estiver lá – disse
Vakú. – Isto é, se chegar vivo. Vale para todos nós.
– Você dá rédeas para a covardia, não?
– Não, não é isso, é só...
– É o quê? – Anarvú se inclinou, enfrentando-o. Vakú sentiu o gelo percorrer seu torso.
– É...
– Perdeu a coragem de falar também?
Mais risos. Vakú só conseguiu romper seu medo através da fúria. Ergueu-se.
– Ninguém aqui sabe o que está fazendo! Nós destruímos uma vila inteira sem tomar
prisioneiros, escravos ou mesmo mantimentos. Nós perdemos tempo caçando mensagens,
lendo os céus, desperdiçando comida com muito mais sagrações do que temos direito. Somos
quinhentos homens e mulheres, mais cavalos, com mais de sessenta léguas a percorrer, e nem
sequer sabemos o que encontraremos no caminho. E a estrada irá piorar. Nós teremos que
passar por Rivinakuloké – aquela menção fez os ouvintes inclinarem-se para trás. – E outros
devem marchar para o sul, atrás do mesmo que desejamos. E como iremos transpor os muros?
Com flechas?
Silêncio.
– Se não mudarmos alguma coisa – continuou Vakú –, vamos todos morrer.
– Você cospe na profecia! – disse um jovem Oreá.
– Eu te julgava um covarde, Okorovakú – disse Anarvú –, mas não a ponto de questionar a
liderança do seu próprio clã. O que seu irmão tem a dizer sobre isso?
– Nós precisamos das sagrações. – disse uma mulher Oreá.
Anarvú calou seus irmãos com um gesto.
– Responda à minha pergunta.
Vakú emudeceu, arrependido.
– Bem. Eu acho que isso diz tudo. – Anarvú indicou Vakú aos demais. – Olhem quem
cavalga à frente de nós. Sangue covarde.
Aquilo beirou o pior dos insultos, mas Vakú não reagiu. Algo o prendia. Um gosto amargo
veio à sua boca, um que sentira apenas uma vez durante sua infância nas montanhas.
– O que importa é que nós não sabemos o que faremos – disse Vakú. – Covardes e valentes
irão morrer se não descobrirmos logo.
– Ah, então você assume sua covardia? – perguntou Anarvú.
– Não!
– Então você quer dizer que seu irmão não tem ideia do que irá fazer?
Silêncio.
– Isso é o bastante para mim – disse Anarvú. – Eu espero que seja o akva falando por você,
jovem, ou então a sagração de ontem se voltará contra nós.
Vakú deixou o grupo, não sabendo se ficava satisfeito ou arrependido por ter sido honesto
com os Oreák.

Em Aramurké, onde acampava o exército dos Uremiték, as margens do rio Moltes não
podiam ser muito bem divisadas. Havia pelo menos quarenta varas de brejo antes do início das
águas. As garças moviam as patas com lentidão ou ficavam imóveis, atentas para quaisquer
sinais de caracóis, girinos e peixes nos locais onde os tufos verdes se abriam e revelavam a
água. Era perigoso levar os cavalos até lá.
Vakú rolou um pedregulho até Tulú, seu cavalo. Tomou as rédeas e as amarrou na pedra.
Mosú fez o mesmo com sua própria montaria. Os irmãos se despiram e, com os odres em
mãos, iniciaram a caminhada para dentro do lamaçal. O chão era pegajoso e movediço,
desagradável de se pisar, especialmente para quem fora condicionado ao chão duro das
Varekvaké.
– Esse lugar deve estar cheio de cobras – disse Vakú. Mosú mantinha-se calado, rígido,
sem olhar para ele. Os dois claudicaram por mais de cinquenta varas de brejo até chegarem às
águas correntes. Desviaram o percurso da vegetação flutuante – sempre um bom lugar para os
seres indesejáveis espreitarem – e entraram na correnteza. A água passava pela cintura,
puxando. A margem oposta, a oeste, também era um lamaçal, a mais de sessenta varas de onde
eles estavam. Lavaram a poeira dos corpos e encheram os odres. Mosú continuava sem
expressão e sem contato.
– Mosú, eu sei o que te incomoda – disse Vakú. O irmão não reagiu. – Mosú, o velho...
– CALE A BOCA! – Mosú bateu com as duas mãos na água. Seu olhar era o de um lobo
faminto.
– Deixe-me explicar!
– Não tem nada o que explicar, seu monte de merda! Você contestou minha liderança pelas
minhas costas! – Parecia prestes a voar para cima de Vakú e arrancar suas tripas com os
dentes.
– Nunca!
Mosú desfez a postura de ataque.
– Eu não pedirei mais para você não mentir para mim, pois eu sei que é inútil. Você sempre
foi esperto, Vakú, e sempre foi um mentiroso e um doente. Não me importa mais que você
viole e mate garotas inocentes e ponha a culpa em outra pessoa. Por mais horrível que isso
seja, eu já me acostumei.
Vakú sentiu o corpo gelar.
– Mas se você cuspir na profecia e no nosso sangue na frente dos meus homens e disser que
não o fez...
Mosú bufava, a face vermelha. Vakú olhava para baixo, para a correnteza passando pelo
seu corpo.
– Olhe para mim! – gritou Mosú, quase rasgando a própria garganta.
Vakú obedeceu. Ele encontrou no meio das linhas raivosas e das veias saltadas do rosto do
irmão dois olhos negros tristes, cansados, desesperançosos. Nunca Mosú quis liderar os
Uremiték para a reconquista do sul, esta era a verdade. Vakú perdeu a compostura e começou a
chorar. E não era um choro de homem ao perder um irmão ou ser ferido em batalha. Era o
choro de uma criança. De um garotinho que bateu o joelho na quina de uma pedra.
Mosú aproximou-se dele e o agarrou pelos cabelos com as duas mãos.
– O que deu em você, Vakú? O que deu em você?
– Perdão. Perdão, Mosú. Eu sempre te seguirei. Eu juro.
– O que deu em você?
– Perdão, irmão.
– O que deu em você?
Vakú ajoelhou-se. A correnteza passava agora na altura de seu peito, puxando as águas
para o sul.

Entre a luz das fogueiras e as sombras proporcionadas pelas tendas do acampamento, havia
um caminho escuro, e era por ali que Vakú desviava do contato com os seus. Deveria estar
envergonhado, ansioso por reafirmar sua lealdade ao clã e à profecia, mas não era o caso. Ele
estava furioso. E quando ficava furioso, evitava ser visto, guardava o gelo em seu peito para si.
O clã Koromuskúr havia sido gentil com ele; seu chefe, Karevú, sempre fora receptivo às suas
ideias pouco usuais. E foi com eles que conseguira a cumbuca de ensopado que carregava.
Enquanto percorria a trilha de sombras, passou perto de onde estava Mosú. Ele falava com
alguns dos Oreák, incluindo Anarvú. A audiência parecia fechada e seu irmão, nervoso. Vakú
parou por um instante para tentar ouvir o que era dito, mas não conseguiu. Continuou seu
caminho.
Nós vamos todos morrer.
Sua própria tenda ficava afastada do centro do acampamento, do jeito que ele gostava.
Diante dela, uma mulher segurava uma tocha, esbelta, vestida num gibão de couro de
aparência masculina. Era sua cunhada Koroní. Sentiu como se tivesse acabado de levar um
soco na boca do estômago.
Vakú aproximou-se passo a passo, olhando para os lados.
– O que...
– Vamos entrar – disse ela.
Vakú não sabia o que pensar.
No interior da tenda havia uma pele de lobo esticada sobre um tapete de palha trançada.
Sentou-se e repousou o ensopado ao lado do tapete. Koroní manteve-se de pé.
– Sente-se – disse ele.
– Estou bem assim.
– Ao menos me dê sua luz. – Vakú estendeu a mão na direção da tocha.
– Não precisa. Serei breve.
Os olhos negros de Koroní estavam apreensivos.
– Mosú me pediu para falar com você – disse ela. – Ver se havia alguma coisa que eu
poderia fazer.
Ele irritou-se.
– Estou bem. Eu me arrependo.
– Eu posso ver que não há nenhuma sombra em você. Eu já sabia disso, mas Mosú
convenceu-se do contrário.
– Porque você não se senta?
– Eu estou bem onde estou.
– Você não precisa do rildémos para ver a sombra?
– Não mais. Já tenho o talento dentro de mim.
– E o que você vê em mim?
Koroní apertou os olhos.
– Eu vejo o que você sempre foi. Não há sombra em você, apenas...
– O quê?
Ela suspirou, desviando o olhar.
– Desculpe por ser tão honesta, mas você é uma má influência para Mosú. Ele te estima
muito, e por isso não vê o óbvio.
– E qual é o óbvio?
– Me perdoe, não devia ter dito isso. Eu vim aqui para procurar uma sombra em você, mas
já sabia que não havia nada.
– Por que você não se senta?
– Vakú, você não é uma boa influência para o nosso chefe.
– Qual o problema? Por que você não se senta?
– Eu já te disse o que tinha que dizer.
Vakú levantou-se. Ela deu um passo para trás.
– Koroní, eu gosto de você. Você é minha irmã. Eu preciso que você me siga também. Não
é isso que os irmãos fazem?
– Eu já disse, não há sombra em você, só má índole. Como eu posso seguir alguém que
faça mal ao nosso líder, ao meu esposo?
– Eu sei o que te incomoda, irmã, e eu te digo que me incomoda também. Não é óbvio?
Mosú está inseguro. E isso deixa todos inseguros.
– Vakú, você cuspiu na profecia na frente de todos. Duas vezes.
– Eu me arrependo. Já disse a Mosú que me arrependo.
– Eu não acredito.
– Mas nós estamos fracos de verdade, irmã. Você, que tem conhecimento, tem que me
seguir. Os Uremiték não conseguirão. Morrerão em Rivinakuloké, ou em outra fortificação
sulista, ou diante dos muros de Atavalán. O direito é nosso, mas a profecia não basta.
– Você diz que se arrepende e cospe na profecia mais uma vez.
– Eu me arrependo sim, por todos os problemas que causei ao meu irmão. Mas eu só os
causei porque ele se recusou a me ouvir.
Koroní apertou as feições aduncas.
– Ouça, irmã – disse Vakú –, Mosú sempre teve medo. Você, que partilha da sua cama,
sabe disso. Está nos olhos dele. E é um medo estúpido. Medo dos seus próprios homens e
medo de sangrar o inimigo.
Vakú aproximou as mãos de Koroní.
– Medo de que você veja uma sombra nele.
Ela deu mais um passo para trás.
– Não me toque.
– Eu sei que você me ouve. Por favor.
– Você até pode estar certo, Vakú, mas isso não quer dizer que você esteja em paz com a
profecia.
Vakú virou de costas e caminhou pela tenda.
– De que vale então a profecia se ela não nos dará a vitória?
– A profecia é maior que a vitória ou a derrota, Vakú. Nós a seguimos para qualquer fim
que ela nos indicar.
– Não faz sentido.
– Para você não faz sentido – disse ela, adiantando-se. – Para a maioria dos homens não faz
sentido, mas é isso que aprendemos com a Manisarél. Nós aprendemos a aceitar algo que
nunca entrará na cabeça de um homem, a não ser que ele esteja como você.
– Como eu?
– Como você. Perdido em pensamentos que desafiam a profecia.
– Não estou perdido.
– Você está, só não percebeu ainda. É por isso que o rildémos é proibido a vocês homens.
Os transforma em Andarilhos. Não conseguem lidar com a verdade. Te darei um conselho,
Vakú, que pode salvar sua vida: guarde o que você sabe para você.
Vakú aproximou-se de Koroní até ficar a um palmo dela. Ele olhou em seus olhos, sentindo
a presença do seu corpo envolvê-lo. A febre cresceu. Mas esta era uma febre antiga, uma à
qual ele estava mais do que acostumado. Sentira-a pela primeira vez com treze anos de idade.
– Nós estamos mortos de qualquer forma se os homens não me seguirem. Então, do que
adianta guardar o que eu sei só para mim?
– O que deu em você?
– Você não sabe, não? – Ele sorriu. – Eu fui tocado pela erva. Eu já vi o outro lado.
Koroní controlou-se, mas seus olhos a traíram.
– Isso explica muita coisa.
– Então, você me segue?
– De forma alguma. Eu deveria ir agora até Mosú e contar-lhe que você provou do
rildémos. Ele cortaria seus cabelos.
– Mas você não irá, não é?
– Isso só irá piorar as coisas. Ele deve continuar agindo como um chefe deve agir,
escutando a profecia e fazendo o que deve ser feito.
– Ele está cometendo um erro grave.
– Você está.
– Mas eu sei mais que ele. Faria melhor que ele, se tivesse a pessoa certa ao meu lado, que
soubesse de tudo o que eu sei. Você sabe que eu faria melhor, não é? Que eu sou o único que
entende a profecia entre os homens?
– Você cospe na profecia de novo. Ela não é para ser entendida, apenas seguida.
Ele ergueu as mãos na direção dela.
– Mas eu entendo. O mal está feito.
– Não me toque.
Vakú sentiu a febre tomar proporções incontroláveis. Enfiou a mão por baixo do gibão de
Koroní e apalpou seus seios. Era a primeira vez que sentia a pele da cunhada na sua. Ela ficou
imóvel.
– Eu acredito na sua sabedoria, irmã. Nós poderíamos...
Com um empurrão de Koroní, ele deu um passo para trás e se desequilibrou. Antes que
pudesse reagir, ela pressionou a ponta da tocha contra sua têmpora direita, derretendo a pele.
Ele berrou e caiu no chão, debatendo-se.
– Eu disse para não me tocar.
– Irmã! Por quê?
– Você é uma má influência.
– Irmã, eu me arrependo! Eu sigo Mosú!
– E ele lhe dirá o que fazer. Não cuspa mais uma vez, eu te aviso.
Ela se virou e deixou a tenda.
– Irmã!

O Moltes corria nove varas abaixo do cânion, chiando e borbulhando no contato com a
rocha. No horizonte, as chapadas se acumulavam até formarem uma muralha vermelha, o local
para onde se dirigiam as fileiras de cavaleiros e bestas de carga. Rivinakuloké era chamada
aquela terra, e sua infâmia justificava o silêncio que se abatia sobre os Uremiték.
Nove varas abaixo, o rio cantava.
Na dianteira da tropa iam Mosú, Anarvú e Karevú, o maciço líder dos Korosmuskúr. Atrás
deles iam Míro, Koroní e Vakú. Algumas das mulheres Koromeské haviam prensado uma
mistura de ervas nas queimaduras da face de Vakú, mas não havia adiantado muito. Era uma
cicatriz que ele carregaria até o fim de sua vida. Ele tentava cobrir o rosto com os cabelos, mas
o vento insistia em expor sua humilhação para todos verem.
Vakú sabia de sua fragilidade perante os clãs, especialmente o seu próprio.
Um abutre deslizou no vento acima deles, ultrapassando-os e fazendo uma curva. Centenas
de vozes atrás de Vakú se agitaram com a chegada da ave negra. Mau agouro, especialmente
em Rivinakuloké.
O sol do meio dia era inclemente, mas Mosú insistia em deslocar-se durante a luz. Vakú
teria reclamado para ele, mas a vergonha o impedia. Um segundo abutre juntou-se ao primeiro.
Os Uremiték avançavam silenciosos, pesarosos. Não estava nos planos de ninguém
acampar em Rivinakuloké, mas a aridez começava a abater as forças de homem e cavalo. O rio
lhes provia água e comida, mas já não era o suficiente. Três quinzenas antes, quando os
Uremiték haviam deixado as montanhas, o ermo parecia convidá-los para a marcha. Agora,
empurrava-os de volta, pouco a pouco. Vakú sentiu um impulso de chegar até seu irmão e
implorar para que parassem ali e avançassem ao pôr-do-sol, mas não sabia quais palavras
haviam sido proferidas por Koroní ao esposo. Não fazia ideia do que passava na cabeça de
Mosú. Além do mais, estavam em Rivinakuloké. Nenhum Uremiték se arriscaria a montar sua
tenda naquelas bandas.
Um terceiro abutre juntou-se à dança do vento.
Quando se aproximaram da muralha vermelha, a trilha já havia se afastado do cânion e se
dirigia para uma fenda no paredão. Um corredor. Ao avistá-lo, Mosú puxou as rédeas e ergueu
uma das mãos.
– Alto! – gritou Míro, imitando o gesto de Mosú. Gritos similares se espalharam pela tropa,
seguido do som de centenas de cascos freando.
Vakú viu Mosú se aproximar do gigante Karevú, que teve que se curvar para ouvi-lo.
Olhou para o céu azul. Não podia mais contar quantos abutres circulavam acima deles,
ansiosos por uma refeição gratuita. Anarvú entrou na conversa da comissão de frente. Ao passo
que a deliberação se estendia, mais inquietos ficavam os Uremiték. Era uma passagem
perigosa, e a única à vista.
– É uma armadilha – disse Vakú.
– É o nosso caminho – disse Koroní, sem olhar para ele.
Havia dois dias que Vakú não trocava uma palavra sequer com o irmão, mas seus instintos
falaram mais alto, como se fossem uma voz clara e independente em sua cabeça. Esporou o
cavalo. Míro adiantou-se e parou com sua montaria à frente dele. Na mão direita, segurava
uma lança.
– Se você não voltar para onde estava – disse Míro –, eu te darei de presente ao rio!
– Isso não é problema seu. Saia da...
Antes que concluísse a frase, Míro o golpeou no centro do peito com a lança. O peitoral de
couro impediu que Vakú fosse ferido, mas ele se desequilibrou e Tulú empinou. Quando se
deu conta estava no chão, comendo poeira.
Tudo o que ele podia fazer era engolir a humilhação. De cabeça baixa, caminhou na direção
de Tulú. Acariciou e acalmou o animal. Ele usou a textura macia do pelo do cavalo para
acalmar-se também, evitando encontrar os olhares dos cavaleiros que o cercavam. A passos
lentos, conduziu Tulú para a retaguarda da tropa, onde estava o clã Felkúr, composto
majoritariamente de adolescentes com faixas vermelhas amarradas nas cabeças, que parecia
não ter notado a exibição de discórdia entre os Okorók na vanguarda. Mesclou-se entre eles,
que não se atreveram a questionar suas razões.
Quando houve movimento de cavalos vindo da vanguarda da tropa, os Uremiték já
conversavam alto, protegendo-se nas sombras das próprias montarias, fingindo afastar a tensão
que a presença dos abutres provocava. Vakú notou os homens montando os cavalos mais à
frente, gritando ordens, desembainhando as armas. Mosú chegara a uma conclusão.
Um cavaleiro com a faixa vermelha chegou até eles.
– Felkúr! Nós atravessaremos a passagem de armas em mãos. Um dos nossos foi designado
pelo senhor para compor o esquadrão traseiro, e este será Felkiralívo – apontou a lança para
um Felkí ao lado de Vakú, que se aprumou na montaria. Era apenas um garoto.
Nós vamos todos morrer.
A fúria tomou Vakú. Um calafrio percorreu sua espinha e o endureceu. Tulú sentiu a raiva,
quase fugindo do controle das rédeas por um instante. Mosú se entregaria numa bandeja para
os obscuros nemék de Rivinakuloké. O mar de abutres acima deles faria todos num raio de
cinco léguas notarem a tropa, que estava prestes a se afunilar num corredor de seis varas de
largura. Vakú estivera errado em considerar que os Uremiték pereceriam diante dos muros de
Atavalán. Não conseguiriam nem mesmo transpor Rivinakuloké. Agora era uma questão de
responsabilidade.
Vakú desembainhou a sua espada e esporou Tulú, trotando pela lateral da tropa. Se preciso,
enfrentaria todos os clãs de uma só vez para deter aquela insanidade. Quando chegou próximo
à dianteira, onde o esquadrão de frente se preparava, viu um cavaleiro montado em um animal
castanho vir ao seu encontro. Míro. Vakú freou.
– Mosú! – chamou Vakú.
Míro aproximou a ponta da lança.
– Dê meia volta, Okorovakú. Seu lugar é nos fundos.
Com um surto de força, Vakú golpeou a lança e o desarmou.
– Saia da minha frente ou te darei de presente aos abutres!
Houve murmúrios e uma acumulação de cavaleiros por trás de Míro. Vakú viu dois homens
do esquadrão de frente trotarem até eles. Por um instante pensou que Koroní viria interceder
em seu favor, mas eram Anarvú e Mosú que se acercavam.
– Seu pirralho! – disse Anarvú. – Como ousa mostrar o aço para seu próprio sangue?
– Vakú, por favor – disse Mosú, melancólico. – Já tomamos nossa decisão. Você perdeu
sua voz.
– Se você pensa que eu verei meu próprio sangue morrer nesta terra maldita por causa de
uma estupidez dessas...
– Pois o meu está morto! – disse Mosú. – Você morreu para mim, até que reconheça o mal
que causou a todos, e que está prestes a causar. Você... – Mosú engasgou nas palavras. – Volte,
Vakú.
– Eu sou o único que pode nos salvar!
– Volte...
– Você sabe disso Mosú. Precisa de mim!
– Eu não preciso de ninguém que fira minha honra dia após dia!
Aquelas palavras gelaram Vakú. A audiência ficou em silêncio, somente quebrado pelos
cascos do cavalo de Anarvú, que se posicionou entre os dois irmãos. O velho parecia uma
parede de gelo negro, fitando-o como se ele fosse um rato. Pior do que isso.
– Nasoporvú.
Enfim, Anarvú dissera a palavra.
– Nasoporvú!
Não havia qualquer reação por parte de Vakú que significasse uma resposta àquilo. Não
haveria mais nenhuma possibilidade de convivência entre ele e o líder dos Oreák, ou mesmo
entre o seu clã e o de Anarvú. Poucos entre os piores inimigos dos Uremiték haviam ouvido
aquele som. Trevas descenderam sobre todos os cavaleiros em volta deles.
Uma corda sibilou e houve um ruído surdo de couro sendo perfurado. Anarvú gemeu e
sangue escorreu pelos cantos de sua boca. A ponta de uma flecha surgiu no centro de seu peito.
O cavalo se assustou e deixou cair o corpo inerte do velho, revelando Mosú e seu arco, os
cabelos negros ao vento e lágrimas nos olhos.
Não havia mais lugar para Okorovakú entre os Uremiték.
Capítulo 3

Fogo Azul

B amir sentiu que não iria aguentar por muito tempo. Suas horas de sono haviam sido
poucas, e longas seriam as que teria que ficar na escuridão. Seu cachimbo estava
estragado, assim que ele fumava ao modo dos marujos em alto mar: tabaco enrolado em
papiro. O gosto era horrível; e quanto mais ele se enojava dele, maior era sua vontade de
fumar. A coceira estivera mais forte do que nunca desde a morte do Rei Amet e tudo o que ela
havia causado aos Cengasmut. Cada vez que tomava consciência dela, mais ela crescia.
Ele tateou a mesa à sua frente, cujas dimensões havia intuído desde que se escondera.
Encontrou o saco onde guardava o tabaco, sentindo seu interior e descobrindo que havia o
suficiente para mais um cigarro, talvez dois. Era melhor economizar.
Pela quinquagésima vez, certificou-se de que seu espadim se encontrava preso em seu
cinto. Repousar a mão nele deixava-o mais seguro.
Calma. Você sabe o que acontecerá se você perder a calma.
Pensou em Lepe, em sua brancura. A coceira se transformou em ofego. Repousou a mão
esquerda no peito, como se pudesse conter a ansiedade com os dedos.
Você não pode. Não agora. Eles te encontrarão, te encontrarão e esse será seu fim.
Você sabe o que acontecerá se perder a calma. Ela te acalmará.
Novamente ele tateou o saco, recolhendo o restante do tabaco e um pedaço de papiro. A
expectativa do gosto de papel queimado lhe deu náuseas. Apenas os manteve na palma mão.
Não dá mais para aguentar.
Calma.
Ela te acalmará.
Bamir deu um salto da cadeira. Ele não era mais o mesmo. Tateou em busca da saída, das
escadas que subiam até o barraco em Valvomit. Todo o seu pensamento estava concentrado em
Lepe, em sentir seu gosto. Correu pelos degraus.
Um zumbi cambaleou por ele enquanto atravessava a rua. A carne do homem já estava
deixando os ossos e exibindo costelas irregulares. Manchas negras apareciam aqui e ali em seu
torso. Fedia a urina. Aquela visão o motivou ainda mais. Apressou o passo, cruzando as
passagens mofadas entre os barracos até chegar à via principal e seus resquícios de
calçamento. A brancura de Lepe ofuscava as memórias que Valvomit trazia à tona e dava fúria
às suas pernas.
Foi quando ele os avistou. Três homens vestidos em cotas-de-malha tingidas de negro, as
cabeças raspadas, facões e bestas presos aos cinturões. Andavam em linha, afastando os
miseráveis do caminho apenas com sua presença. Olhavam para frente, queixo contra o peito,
passos largos e certeiros. Bamir ficou sóbrio e calculou, tateando a bainha de seu espadim.
Deslizou para a viela mais próxima, virando em seguida, e mais uma vez. Sacou sua lâmina e
agachou-se atrás de um caixote quebrado. Ouviu. Havia apenas o som dos mosquitos em torno
das poças.
Aqueles homens eram soldados, mas não eram Vermelhos ou Capas-Marrons ou os
nargorot que lutavam entre si pelo controle do contrabando de rildémos. Eles eram outra coisa,
e tinham uma missão muito específica ali em Valvomit.
Eles vieram por você.
Aquele pensamento veio como uma voz que não a sua, em bloco. Deixou o beco.
Por trás de uma esquina ele viu os três soldados carecas entrarem no barraco que dava em
seu esconderijo. A voz lhe dissera a verdade, mas nada fazia sentido, a não ser o fato de que
estava sendo vigiado. Os únicos que conheciam aquele local eram Cassur e Caromosut. As
linhas de pensamento em sua cabeça que desaguavam na traição por um de seus irmãos eram
muitas e desencontradas. Mais importante, todas elas cruzavam com uma eventual visita à
Lepe, que agora estava fora de cogitação.
Antes que pudesse decidir o que fazer, se enfurnou novamente nas passagens imundas de
Valvomit. Sua coceira mudou de direção, e, dessa vez, foi incapaz de encontrar um motivo
para ignorá-la.

Foi difícil encontrá-la, mas Bamir já não era mais o mesmo. Se comportava feito um
animal selvagem, sobressaltando-se com o som de cavalos e transeuntes. Tinha a mão direita
apertada no cabo do espadim e a esquerda segurando um saco de couro. O maldito saco.
Caminhava pelas ruas entre Valvomit e Bocatagrit, buscando o seu velho ponto, uma ruela que
terminava numa mureta.
Cada passo que dava produzia um tilintar metálico oriundo do saco. O maldito saco.
Encontrou seu lugar, sentando-se com as costas apoiadas na mureta. Ouviu passos atrás
dela. Paralisou. Nada, apenas o frio da pedra em suas costas. Tinha que ser rápido.
O primeiro passo era certificar-se de que estava usando uma luva. Bamir sempre as usava,
especialmente na mão direita, a que estava escurecida. Abriu o saco de couro. Lá dentro havia
um copo e um canudo de ferro. Abaixo deles, o pó negro.
O segundo passo era colocar a quantidade certa de rildémos no copo, cerca de um terço de
seu volume. Ele repousou o copo e o canudo no chão e pôs uma quantidade de pó menor do
que o de costume em sua mão direita. O toque da erva ardeu, como se ela estivesse quente.
Com pressa, ele derramou o pó dentro do recipiente.
O terceiro passo era chacoalhar o copo na horizontal, tapando sua boca com a mão, para
que o rildémos se alojasse numa de suas metades. O movimento de Bamir foi displicente,
porém, surtiu o efeito desejado. O pó negro aderiu à lateral do copo com elegância.
O quarto passo era verter água na parte oposta à da erva para não desfazer a aderência, de
preferência água quente. Raramente havia condições para tais luxos. Bamir tirou da cintura o
odre e deixou a água fria cair. Ela veio trôpega, quase arruinando a infusão.
O quinto passo era introduzir o canudo na base da erva, tapando uma das extremidades com
o dedo. Ao fazê-lo, pequenas bolhas surgiram na água.
O sexto passo... Bamir quase chorou ao sentir o metal nos lábios mais uma vez. O rildémos
veio amargo como nada era, rasgando língua e garganta. Ele ficou tonto com o trago. Estava
começando.
De repente, o mundo desapareceu.
O beco se abriu, revelando dunas incontáveis, rochas vermelhas esquecidas, o mais belo, o
maior e o mais solitário. Fechou os olhos e sorriu. O medo tinha ido embora.
Pareceu ter se passado um ano antes que notasse que estava caído no chão. Mas não era ele
que estava caído, era o mundo inteiro que tinha girado um quarto de volta. Gargalhou.
Foi quando um lobo adentrou o beco. Ele era gigantesco, branco e tinha os olhos muito
tristes. Bamir sentiu pena dele e o chamou pelo nome: Cogolat. Aquilo provavelmente o
irritou, pois o lobo abriu as mandíbulas e soltou uma baforada de fogo na direção de Bamir. O
fogo não era quente, mas gelado como o ar da montanha. E não era amarelo ou alaranjado, mas
azul. Não adiantou nada, pois Bamir estava imune às chamas. Ele era o guardião do fogo, o
mestre de todas as bestas, o rei que se sentava sobre o trono mais horrendo que o mundo já
vira.
O medo voltou.

Um surto de dor abdominal fez Bamir querer vomitar e matar alguém ao mesmo tempo.
Abriu os olhos e a luz do dia o cegou. Quando se acostumou à claridade, viu botas diante de si
e percebeu que havia recebido um pontapé. O amargor que se espalhava de sua boca para a
face, garganta e estômago o lembrou da razão de estar com o rosto pressionado contra o chão.
– Eu não fiz nada – gemeu Bamir.
– Levampite, vaxagunde! – disse uma voz masculina acima das botas.
– O-o quê?
– Levante-se, vagabundo!
– Eu não sou vagabundo, seu... seu viado!
– O que você disse?!
Bamir pressentiu um segundo pontapé e se encolheu.
– Não – disse uma segunda voz. – Olhe para esse infeliz. Não vale a pena.
– Isso mesmo – disse Bamir. – Eu não sou vagabundo.
A cabeça de Bamir pesava com a erva. Ele a ergueu e abriu os olhos o máximo que pôde.
Viu uniformes vermelhos e espadas embainhadas. Num reflexo, buscou seu espadim na
cintura. Não estava lá.
– Vamos levá-lo – disse a voz que o havia protegido.
Bamir foi pego pelo braço e erguido com dificuldade pelos dois homens. Arrastaram-no até
a entrada do beco, onde estava parado um veículo. Era uma carruagem-prisão, com um
pequeno estandarte pregado em seu topo, vermelho com um sol amarelo em seu centro. O
pânico subiu por Bamir até quase explodir. Começou a se debater.
– Eu não fiz nada! Eu sou leal, eu não fiz nada!
Um dos Vermelhos torceu seu braço, ficando com a face bem próxima à sua.
– Você, vagabundo, você estava com a erva proibida. Você será enforcado.
Bamir sentiu as forças fugirem de suas pernas e a cabeça rodopiar. Foi conduzido para a
parte traseira da carruagem-prisão e atirado para dentro.
– Eu não fiz nada!
O soldado golpeou a grade com algo pesado, fazendo a carruagem inteira vibrar.
– Se você resolver nos encher o saco, eu encomendo sua execução aqui mesmo!
Bamir encolheu-se no chão da jaula, tomando consciência do frio que fazia. Cada
respiração vinha com vapor. Adormeceu, pesado e anestesiado.

A carruagem freou de repente, acordando Bamir. Ainda intoxicado, manteve os olhos


fechados. Ouviu os Vermelhos debatendo sobre algum obstáculo à sua passagem, os ânimos
exaltados. Alguém gritou mais à frente, e os soldados responderam de forma incompreensível.
Bamir se encolheu mais ainda, esforçando-se para não prestar atenção. O seu sono era tudo o
que importava.
Foi acordado de novo. Havia um Vermelho grisalho olhando feio para ele de cima. Sentiu-
se irritado. Sem ao menos tentar pensar no que estava acontecendo, fechou os olhos com força,
como se sua ignorância pudesse fazer tudo à sua volta desaparecer. Não funcionou. Foi erguido
pelo colarinho e conduzido para fora da carruagem-prisão. Olhando em volta, viu uma dúzia de
figuras de preto e sem cabelos vinte varas adiante, no fim da rua. Além deles, estava Fetacarp.
Havia um cheiro de decomposição no ar.
– Ah – gemeu Bamir. – Então quer dizer que os carecas são o quê, uma força especial?
Os Vermelhos que o conduziam não responderam. Mau sinal.
Eles não estão à sua altura.
A voz que não era a sua, mais uma vez. Ela desanuviou um pouco sua mente e o lembrou
de alguma coisa dita horas antes. Os dois Vermelhos o arrastaram para o beco mais próximo. O
mais jovem deles ficou à frente de Bamir, enquanto o grisalho atava suas mãos com algemas
de ferro. Forçaram-no a se ajoelhar, e ele ouviu um ruído alongado de aço raspando no couro.
Eles não podem fazer nada contra você.
A conclusão encheu Bamir de pavor. Seu corpo todo tremeu.
– Sem forca para você, meu amigo – disse o Vermelho diante de si. – Se os Utet querem
que viremos bárbaros, que assim seja.
– Vamos acabar logo com isso – disse o outro.
Olhe!
Neste momento, viu o Lobo Branco atrás do Vermelho, pintando o ar com as chamas azuis.
Corria em sua direção, furioso. Bamir se agitou, tentando levantar-se. O soldado diante dele o
segurou ajoelhado.
– Vai! – disse o Vermelho que o agarrava.
Bamir não sabia se era medo ou bravura, mas uma explosão de energia o ergueu, mesmo
com o soldado tentando estrangulá-lo por trás. O Vermelho grisalho rodou a espada com
violência, mas seus movimentos pareciam lentos e previsíveis. Bamir curvou o torso e atirou-
se ao chão. Houve um grito agudo e um líquido quente espirrou em suas costas. Num segundo
impulso, saltou à frente, atingindo as entranhas do soldado armado com uma cabeçada que o
derrubou de costas. A espada voou para longe de sua mão e Bamir o pisoteou enquanto corria
para a saída do beco. Sua visão estava turva e suas pernas, ferozes. Tropeçou por caminhos
desconhecidos, fugindo dos gritos e dos passos; e, é claro, do lobo branco.

Dois dias depois do trago, sobrava apenas o peso em sua cabeça. Lembrou-se de uma vez
por todas de quem era. Deu-se conta de que aquela dor que crescia em sua barriga era fome. O
que não conseguia entender era como havia escapado duma execução algemado e desarmado,
com as mãos atadas e sob o efeito do rildémos.
Era noite e ele perambulava por Pilcagust. O retorno gradual de sua sobriedade o fez notar
bloqueios pelas ruas de Atablan, tanto de Vermelhos como daqueles carecas que eram
chamados de Utet. Mesmo intoxicado, Bamir sabia se mover. Nenhum punhado de soldados
rasos e suas barricadas poderiam impedi-lo de ir aonde desejava, a não ser o Distrito Real.
Porém, a sua curiosidade sobre o que se passava era ofuscada pela recente consciência de sua
fome. Precisava fazer algo a respeito, e só conhecia um jeito de fazê-lo.
A primeira pessoa que passou ele elegeu como vítima. Era uma má escolha: um homem
alto e sólido, de capa verde e chapéu. Se chegasse sorrateiro o bastante por trás, poderia
enforcá-lo com as algemas. Tão logo deu os primeiros passos, o homem ficou estático e
enterrou uma das mãos dentro da túnica. Bamir parou também. Aquele não era um cidadão
qualquer. O homem se virou, a mão no cabo de uma faca. Sob a aba do chapéu, Bamir pôde
notar dois pequenos olhos cinzentos e uma barba cerrada, que o fizeram sorrir e relaxar a
postura.
– Anur-Eldorot! – disse o homem. – Os Cengasmut vivem!
– Legor?
– O que aconteceu com você? A ressaca está tão grande assim? – Quando Legor se
aproximou, algo na aparência de Bamir retirou o sorriso de seu rosto. – Pelos Anur!
– Você tem comida? E um alicate? – Bamir exibiu os pulsos algemados.
Legor olhou em volta.
– Venha comigo.
O porão da casa tinha uma mesa repleta de pães escuros, maçãs e peixe defumado e
salgado. Havia também uma cama onde alguém dormia por baixo dos cobertores. Bamir
desconfiou de quem seria, mas sua atenção ao local foi ofuscada pelo ímpeto de atacar a mesa,
o que fez sem pedir licença. Uma vez saciado, ouviu a terceira pessoa se mexer no colchão.
Sua respiração parou por um instante. Legor aproximou-se dele com um alicate de ferreiro e
fez sinal para que estendesse os pulsos. Bamir observava o movimento nos colchões. Teria
sido muito azar ou muita sorte que tivesse sido acolhido ali. Em meio aos cobertores e cabelos
emaranhados estava a pele branca de Lepe, ainda de olhos fechados.
Com um estalo, a corrente das algemas de Bamir foi rompida.
– Eu não sei se consigo quebrar as rodelas – disse Legor.
– Tudo bem. Elas estão frouxas o bastante.
Lepe moveu-se mais uma vez sob as cobertas.
– Eu agradeço – disse Bamir. – Eu faria o mesmo por você e sua irmã.
Legor tinha uma expressão de cansaço. Parecia ter envelhecido dez anos em quinze dias.
– Eu sei disso. Considere como um pagamento pela charrete. – Ele sorriu amarelo. –
Descanse um pouco. Precisaremos da sua ajuda.
Horas mais tarde, os dois Cengasmut ainda estavam sentados na mesa, e Lepe continuava
afundada no colchão. Bamir sabia que ela estava acordada e de ouvidos bem abertos.
– Mas qual era a razão? – perguntou Legor.
– Você sabe.
Legor olhou fundo em seus olhos, aquela expressão repreensiva que enchia Bamir de ódio.
– Deixa para lá. – Legor abanou uma das mãos. – Não é hora para falar disso.
– Bem, continuando, eu passei dois dias esbarrando com os bloqueios nas ruas. Dos
Vermelhos eu entendo, mas não sei do que esses outros são capazes. Tive que andar feito um
camundongo.
– Utet.
– Sim, eu ouvi os Vermelhos dizerem esse nome.
– Fanáticos. Estão com os olhos em Purcalat.
– Como é que eu nunca ouvi falar deles?
– Eu também não tinha ouvido antes de Mepamir me inteirar. Não fazem negócios, e
parece que estão há muito esperando uma brecha.
– Eles sabem de nós.
– Quem não sabe? – Legor agarrou uma maçã da mesa. Houve um som metálico quando as
frutas rolaram.
– Eu quero dizer, eles sabem dos nossos esconderijos – disse Bamir.
– Talvez os próprios Vermelhos já soubessem e agora simplesmente resolveram sair
vendendo a informação.
– Não pode ser. Eu diria que algumas pessoas estão falando demais.
– Alguma notícia dos seus?
– Nada. Eu vi Naner sendo levado pelos Vermelhos. Somos só eu e Cassur.
– Uma partida de ultert sem dúvida me salvaria de todas essas preocupações. – Legor
sorriu melancólico. Bamir repetiu o gesto. – Bem, eu tenho que encontrar Mepamir. Ao menos
a minha célula ainda existe. Trarei notícias.
Legor deu um tapa pesado nas costas de Bamir e saiu, subindo as escadas. Quando o
alçapão foi fechado acima dele, ouviu Lepe se mexer no colchão mais uma vez. Ela se sentou e
esfregou os olhos, fingindo estar surpresa. A lembrança do desejo intenso por encontrá-la dias
antes deixou Bamir envergonhado. Todo ele havia sido desfeito no rildémos.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou ela.
– O mesmo que você. Me escondendo.
– E os seus amigos?
– Eu sei que você estava ouvindo tudo.
Ela sorriu, revelando os dentes. Bamir sentiu o corpo esquentar.
– As coisas se complicaram – disse ele, mexendo as maçãs na mesa em busca da origem do
som metálico.
– Eu sei. Não aguentarei por muito tempo aqui. Legor disse que só mais uns dias e
poderemos sair.
– Eu duvido.
Ela se levantou, dirigindo-se à mesa sem olhar para ele.
– É sério – disse Bamir. – Nós estamos no meio do fogo cruzado. Sejam Vermelhos ou
Utet, eles virão atrás de nós.
Ela lançou-lhe um olhar assustado.
– Mas... Legor me disse...
– Seu irmão é um bom homem e sou grato por me acolher, mas...
– Mas o quê?
– Você sabe.
Ele cravou o olhar nela, esperando que pudessem desviar daquele assunto para um mais
prazeroso, mas Lepe se apressou para o fundo do porão e começou a mexer na trouxa ao lado
do colchão. Dela tirou uma calça, botas, um colete de couro e uma capa com capuz. Despiu-se
com a certeza de que Bamir teria uma visão privilegiada da brancura de sua pele. Quando
acabou de se vestir, tirou um punhal de baixo do colchão e o prendeu na cintura.
– Nunca te vi vestida assim.
Ela dirigiu-se à escada.
– Faça o que Legor te mandar – disse ela com frieza.
– Espere um pouco. Aonde você vai?
Ela não respondeu e procedeu para o andar de cima. Numa situação normal, ele nunca
permitiria aquele tipo de comportamento. Concentrou-se no objeto que estava escondido na
mesa em meio à pilha de maçãs.

– Sua aparência está melhor – disse Legor.


– Se eu ficar mais um dia aqui embaixo, vou enlouquecer – disse Bamir, olhando de
relance para Lepe, que estava de pé atrás do irmão. Ela devolveu a mirada.
– As coisas não estão nada bem. Os Vermelhos estão abandonando os postos e executando
todos os que tentam fugir.
– Mas é uma coisa boa que os Vermelhos estejam amedrontados, não? – perguntou Lepe.
Legor baixou a cabeça.
– Não quando um bando de fanáticos insubornáveis está tomando a cidade! Pelos Anur...
Lepe parecia uma criança que havia acabado de tomar uma bronca.
– Lepe, porque você não vai lá para cima e dá uma olhada pela janela, hein? – disse Legor.
Ela obedeceu.
Legor sentou-se próximo de Bamir. Parecia exausto.
– Bamir, eu acho melhor você não sair por estes dias. Você sabe.
– Não vai acontecer de novo. Está impossível de comprar agora.
Legor suspirou.
– Até quando nos esconderemos? – perguntou Bamir. – Não há segurança nenhuma aqui.
– Eu sei. Mas é o melhor que temos.
Bamir encarou o colega barbudo por um longo momento. Tinha olheiras profundas e não
conseguia manter o olhar fixo num só lugar por muito tempo.
Covarde.
– Você parece cansado – disse Bamir. – Hoje à noite eu saio para a ronda. Eu insisto.
– Bamir...
– O quê?
– Você teve que matar um Vermelho há poucos dias.
– Eu te disse como foi. Juro pela faca em meu braço.
– É que essa história não soma.
– Eu estou te dizendo, o Vermelho ficou na mira da espada do outro.
– Você estava doidão.
– Sim, eu estava, mas não era uma visão. Você nunca usou, não sabe como elas são.
A lembrança do lobo branco trouxe um pouco do medo de volta.
– De qualquer jeito, acho que não é seguro para você.
– Será rápido. Só preciso sentir o vento mais uma vez na minha face. Não sei do que serei
capaz se ficar mais um dia aqui.
Legor o encarou com raiva nos olhos.
– Tudo bem, você não é prisioneiro de ninguém. Mas se você demorar, não te receberei de
volta. Entendeu?
Bamir fez que sim, perguntando-se se aquela era a última vez que se viam. Em seguida,
ouviram passos no andar de cima e o som de alguém abrindo o alçapão. Legor levou a mão ao
punho de sua faca. Bamir tateou o interior do manto e sacou a arma escondida. Era uma espada
de lâmina escura, com um braço de comprimento. Ela tremulou ao ser exibida. Lepe apareceu
nas escadas, agitada.
– Tem alguém lá fora – disse ela.
– Como assim “lá fora”? – perguntou Legor.
– Na rua. Passou duas vezes olhando para cá.
– Vermelho? – perguntou Bamir.
– Não. – Lepe apertou as mãos uma contra a outra. – Eu acho que não.
Legor olhou para Bamir e para sua lâmina.
– Eu vejo que você tomou a liberdade para tomar minha espada – disse Legor.
– Me desculpe, mas eu precisava de alguma coisa para segurar. É de gustabit, não?
Legor assentiu com a cabeça.
– Vamos ver o que se passa.
Os dois se dirigiram para a escada, Legor na frente. Uma vez no andar de cima, eles
pararam agachados diante da janela empoeirada. Estava entardecendo e não havia ninguém na
rua.
– Temos que checar – disse Bamir.
– Fique aqui – Legor afastou Bamir para trás com uma mão pesada e peluda.
– Eu acho...
– Fique com minha irmã. Desça e não saia de lá. Se eu demorar muito, fuja e leve-a com
você.
Legor deixou a casa, vestindo o seu chapéu. Bamir o observou. O homem era muito
perceptível, mesmo à distância. Os trejeitos furtivos de um Cengamut no corpo de um gigante.
Quando voltou ao porão, Lepe andava de um lado para o outro, a postura encolhida. Bamir
a ignorou e manuseou a espada de gustabit. Era leve, dançava com o movimento. Uma peça
muito valiosa. Apreciou seu equilíbrio, sua empunhadura. Lepe o observava. O tempo estava
correndo. Talvez fosse melhor aproveitar as oportunidades.
Tão logo Bamir cessou suas atividades com a espada e voltou-se para a garota, Legor
irrompeu.
– Ninguém – disse ele. – Há Vermelhos quatro ruas abaixo. Garotos-soldados.
– Eu vi alguém passando – disse Lepe. – Duas vezes. Um local. Ele olhou para a nossa
janela.
Bamir e Legor se entreolharam.
– Bem, está anoitecendo – disse Legor. – Não há nada com aqueles Vermelhos. Estão mais
assustados do que nós.
– Tem os outros, os Utet – disse Bamir. – Eles encontraram meu lugar em Valvomit.
Legor lançou-lhe um olhar repreensivo.
– Sabemos muito pouco sobre eles. Não sei se estaríamos mais seguros fora daqui.
– Legor – disse Lepe, aproximando-se do irmão e segurando um de seus braços. – Nós
temos que sair de Atablan. Estou com medo. As coisas não vão melhorar.
– Não.
– Impossível – disse Bamir.
– Vocês e essa honra hipócrita – disse Lepe, afastando-se.
– Você não entende – disse Legor.
– Você que não entende. Aposto que são seus amigos que vão nos entregar.
– Ei! Não fale sobre o que você não sabe!
Bamir moveu mais uma vez a espada de gustabit, fazendo curvas no ar. Enquanto olhava
para a arma, o bloco de pensamento veio à sua cabeça, grave e amargo.
Veja com os seus próprios olhos.
– Nós não podemos sair, Lepe – disse Bamir, ainda de olho na lâmina. – Mas sobre uma
coisa você tem razão: este esconderijo é uma armadilha.
– Chega! – gritou Legor. – Não quero mais ouvir falar nisso.
– Está escurecendo – disse Bamir, como se não tivesse ouvido o brado do colega. – Está na
minha hora.
Legor olhou para ele com raiva dissimulada.
– Lembre-se do que eu te disse. Não demore.
Enquanto saía, olhou para Lepe. Ela estava abalada e não correspondeu a seu olhar. Uma
tristeza o assaltou, e por um momento decidiu ficar. Mas não podia. Tinha que ver com os
próprios olhos o que se passava em Pilcagust, quem os vigiava. Sentir o vento na face. Tomar
as rédeas que o seu colega se recusava a apertar. Ou talvez fosse apenas aquele rombo, o fundo
carcomido por onde todas as verdades escorriam, com exceção daquela voz. Com um vazio no
peito, Bamir subiu as escadas.

As ruas de Pilcagust eram malformadas. Faziam curvas repentinas, com pedaços de pedra
despontando do calçamento e revelando a areia. Lembrava Putobolc. Porém, a cidade natal de
Bamir era mais inocente. Havia algo nas ruas de Atablan que sempre revelava sua
monstruosidade, não importasse o quão pacata fosse a vizinhança. Era o peso do desconhecido
em cada esquina. A rua estava deserta, e o desconhecido que assomava nas curvas de Pilcagust
era ainda mais pesado. Bamir decidiu andar pelas ruas largas, embora soubesse que isto
facilitaria um encontro indesejável. Melhor que se passasse num lugar onde sua nova espada
de gustabit tivesse espaço para dançar e onde pudesse correr, se necessário. A maresia soprava
na sua face e lhe dava energia.
Não tardou para que avistasse Vermelhos encolhidos numa barricada, ao norte da rua
principal de Pilcagust. Não podia parar, pois chamaria muita atenção. Também não podia
enfurnar-se num beco sem o mesmo resultado. Apenas baixou o capuz, puxou a capa à frente
do corpo e avançou. Seus passos ecoavam no silêncio artificial.
Os Vermelhos eram jovens e ansiosos. Se perdesse a mão nos modos, as coisas poderiam
ficar feias.
– Alto! – disse um dos soldados, sem elmo e de cabelos dourados. Havia medo em sua voz.
– Perdoem-me, oficiais. Onde há uma saída de Pilcagust?
– Volte para casa, senhor. Não é seguro aqui.
– Compreendo. Alguma notícia de Purcalat?
– O-os rebeldes foram acuados. Não há nada de mais. Dê meia volta, senhor.
– Desculpem o incômodo.
Bamir fez uma reverência discreta e deu meia volta. Aquele não era o exército de Amet que
ele conhecia. Havia desespero neles. Se desejasse, poderia passar por ali sem muitos
incômodos. Mas Lepe veio à sua cabeça e ele apressou o passo de volta para o esconderijo.
Quanto mais andava naquela direção, mais inquieto se tornava.
Sua inquietação não fora gratuita. Alguém o seguia. Firmou a pegada no cabo da espada e
manteve o ritmo dos passos, sem olhar para trás. Teria que ser rápido. Diminuiu as passadas e
preparou-se para girar. Os passos atrás de si ficaram mais próximos. Não havia o gingar
pesado de armaduras. Deu um passo para a esquerda e girou a face o suficiente para olhar
quem vinha. Um homem caminhava com uma tábua de madeira no braço direito. Vestia uma
camisa sem mangas e uma sandália. Nada diferente de um cidadão qualquer de Pilcagust. O
homem fez uma reverência quase imperceptível e seguiu seu caminho.
Havia algo de errado com o cidadão. Já era noite, e ele era o único do tipo por ali. Talvez
fosse quem Lepe avistara. Por um instante fez menção de ir atrás do homem, mas pensou
melhor. Se eles realmente estivessem vigiando a casa, e se aquilo representasse alguma
ameaça, o estrago já estaria feito. Precisava voltar rápido e sorrateiro. Dirigiu-se para as ruelas,
seu habitat natural.
O que presenciou ao avistar a entrada do esconderijo fê-lo pular como um gato para a
esquina mais próxima.
Merda.
Bamir calculou os possíveis desfechos de suas possíveis atitudes. Pôs a testa para fora do
beco e olhou de relance para a entrada. O homem ainda estava lá, careca, vestido numa cota de
malha tingida de negro. Seu coração considerou a lealdade aos Cengasmut. Legor fora um
companheiro no início da carreira e um aliado útil, só isso. Além do mais, a lista de pessoas
que poderiam olhar mal para uma quebra de juramento minguava a cada dia.
Mas havia Lepe. Ele nunca iria se perdoar. Não sabia do que os Utet eram capazes, mas
muitas ideias lhe ocorreram.
Tomou fôlego e escalou a parede do beco sem dificuldade. Deu passos lentos no telhado
até ficar acima do Utet que guardava a entrada. Exibiu o gustabit e saltou, derrubando o careca
com os dois pés. Antes que gritasse, o homem já tinha um palmo de aço enterrado na garganta.
Bamir se esgueirou para dentro da casa. Vozes no porão, nenhuma de mulher. Abaixou-se e
colou o ouvido no fundo falso que abria para o porão. Havia alguém subindo. Quando o chão
abriu, a espada desceu com violência e abriu o crânio careca. O Utet rolou escada abaixo e
Bamir saltou para o porão. A primeira coisa que viu foi o terceiro careca se precipitando para a
mesa, onde repousava uma besta armada. Ele foi lento, recebendo uma estocada em sua
espinha, gritando e caindo no chão. Bamir o finalizou enterrando a ponta do gustabit em sua
nuca.
Em meio ao sangue e ao cheiro de cadáveres, olhou em volta. Dois outros corpos estavam
estendidos, cravados de virotes de besta. Ele se atirou ao corpo branco de Lepe e buscou,
desesperado, sinais vitais. Perdeu toda a força. As lágrimas e o ranho escorreram pelo queixo.
Numa nuvem cem vezes mais intensa do que a que o rildémos jamais lhe proporcionara, caiu,
em meio a todo tipo de fluido capaz de ser expelido de um corpo humano.
Por horas, chorou.
Capítulo 4

Lagarto Verde

D esde as Varekvaké, ao norte, até as orlas de Atavalán, toda a vida e seus destinos estavam
atrelados ao rio Moltes. Vakú já havia ouvido aquilo em várias formas e sotaques, mas
era uma verdade que só quem caminhava sozinho pelo vale podia compreender com o coração
e o intestino. Se ele perdesse o rio, estava perdido.
E o que encontraria se continuasse com ele? E quem encontraria?
A sede, a fome e as queimaduras em sua face não o castigavam tanto quanto a sua
vergonha. Ela o mantinha tolerante às privações físicas. Doía mais. Cavalgava para o norte,
fugindo de Rivinakuloké e cumprindo o último pedido de Mosú. Seu senhor e sangue de seu
sangue.
Havia chegado a Aramurké, onde comandara o ritual uma quinzena antes. Cavalgava na
madrugada e crepúsculo, descansando nas horas mais quentes, como os nemék faziam. Como
deveria ser feito. Concentrar-se na pura sobrevivência era bom para ele naquele momento.
Qualquer outro caminho da mente o destruiria.
O sol da manhã subiu e esquentou o vale. À sua direita, à leste, a planície árida elevava-se
até desenhar colinas amareladas no horizonte. À oeste, os tufos verdes e arbustos se
acumulavam, denunciando a proximidade dos brejos que cercavam o Moltes. Vakú freou o
cavalo. Precisava buscar mais água. Enfrentar o brejo. O único odre que levava era pequeno
demais para si e para Tulú, e ele não sabia quando encontraria outro córrego afluente. Antes de
chegar a Aramurké, tinha sido mais fácil. Ele descera as rochas até a correnteza e enchera o
odre vez após outra. Mas ao passo que os cânions do Moltes se tornavam mais brandos, o chão
tornava-se mais egoísta, escondendo o rio em seu escudo de lamaçais. Teria ao menos mais
uma quinzena antes que os afluentes do Moltes surgissem e o vento esfriasse, e nesse meio
tempo seria necessário descobrir os caminhos no chão pantanoso se quisesse sobreviver.
No fundo, sabia que nunca mais veria as Varekvaké.
Vakú amarrou Tulú da mesma forma que havia feito antes, laçando as rédeas num
pedregulho, despindo-se e tranquilizando o animal. Notou a saliva grossa que pingava no
cascalho e o suor no focinho. Se perdesse Tulú, também estaria perdido.
A noite era fria e cheia de sons distantes. Dois dias antes ele começou a ouvir uivos e
latidos assim que a lua surgia no céu, a lua dourada e lasciva do ermo. E era quando ela dava
as caras que ele avançava, onde o sol não podia ferir homem ou cavalo. O som dos lobos
motivava Tulú. O que motivava Vakú? Aquela verdade estava crescendo a cada hora, a voz
misteriosa que lhe garantia que nunca mais veria as Varekvaké. A verdade rodopiou, esquivou-
se e o perfurou até obrigá-lo a pensar de novo no irmão. Com o olho da mente ele viu Mosú e
Koroní prostrados num corredor de pedra alaranjada, os abutres assomando e seguindo a trilha
de sangue deixada por eles. Quanto mais pensava, mais forte esporava Tulú.
A cada dia o retorno do sol era mais agressivo, e seu olhar se deslocava cada vez mais para
as colinas amarelas à leste. Míro havia encontrado pegadas naquele trecho de Aramurké. Elas
indicavam que alguém das terras altas havia se deslocado até o rio e voltado. Com uma tropa
de quinhentos Uremiték, não houve muito a temer, mas agora a situação era outra. Vakú sentiu
os lábios rachados, a pele do lado direito da face descascando e ardendo. Sua visão estava
ficando turva, e a espuma que Tulú expelia pelo focinho ficava cada vez mais grossa.
Precisava comer, e precisava levar Tulú ao brejo para que se saciasse da forma devida. Isso
poderia custar a vida ao animal e, consequentemente, a sua própria, mas tinha que ser feito.
Vakú freou e desceu da montaria, só que desta vez agarrou as rédeas e conduziu Tulú em
direção aos alagados. O cascalho abaixo de seus pés começou a se transformar em areia úmida,
e os pequenos tufos verdes e arbustos tornaram-se mais densos. Tulú quis parar para investigar
a vegetação, mas Vakú o dissuadiu com um puxão nas rédeas. Algumas varas adiante, a areia
se transformou em lama. Tulú refugou, obrigando Vakú a segurar as rédeas com as duas mãos.
– Shh. Vai ficar tudo bem. Shh.
Seguiram pelo lamaçal passo a passo, conversando com o chão. A primeira poça decente
estava a pelo menos trinta varas de distância. Um pardal se lavava, espirrando gotas para o
alto. Era um longo caminho para um cavalo naquele terreno. Não havia escolha, tinha que
avançar. Vakú deu dois passos largos, acompanhados por Tulú, que afundou uma das patas
dianteiras. O pardal voou para longe. Vakú travou os dentes e respirou fundo, testando Tulú
com mais um passo. Para seu alívio, o cavalo desprendeu o casco e prosseguiu. Outros dois
passos, e ele sentiu água em seu pé direito, uma poça rasa que ele não tinha notado. Vakú
avaliou a situação: se não havia visto aquela poça, poderia muito bem haver lamas movediças
no brejo que condenariam o animal. Tulú parecia firme no chão, afastando os insetos com a
cauda e farejando os tufos verdes. Vakú decidiu avançar sozinho até a poça logo adiante para
averiguar o terreno, antes que puxasse o cavalo naquela direção. A cada passo que dava, o
zumbido dos mosquitos se tornava mais alto.
Foi quando Tulú relinchou. Vakú viu o cavalo empinar e dar um giro direção contrária.
– Não, Tulú!
O cavalo tentou fugir trotando do brejo, e no primeiro galope enterrou a pata dianteira
esquerda na lama até a altura do torso. Soltou um som agudo e rasgado, horrível de se ouvir.
Tentou se livrar, espirrando lama e vegetação para todos os lados com a pata de trás. Vakú
gelou dos pés à cabeça e correu na direção de Tulú. Tropeçou e cambaleou até ficar a um braço
do cavalo, quando viu algo se movendo com o canto dos olhos. Parou o suficiente para uma
respiração arfante, procurando o que espreitava na massa de lama e raízes. Tulú relinchou mais
uma vez, aquele som desesperado e fantasmagórico. Naquele momento, Vakú sentiu algo
perfurando o seu calcanhar direito. Gritou e caiu. O fogo tomou a perna inteira. Olhou para
Tulú e depois para o lado oposto. Uma cauda negra se enterrou na lama e desapareceu.
A perna queimava e estava paralisada. Tulú relinchou mais uma vez, com menos força. O
sol cegou Vakú e a escuridão o tomou. Insetos pousaram em sua face e sugaram seu sangue.
Koroní andava de costas para Vakú, carregando uma tocha que espirrava fogo para os dois
lados a cada passo. Estavam num corredor de pedra, pedra antiga. Muitas memórias ali. Vakú
queria olhar para cunhada e perguntar a ela onde estavam, para onde iam, mas o fogo impedia
que emparelhasse com ela e olhasse na sua cara. Tinha decidido que só falaria com Koroní
olho no olho. O problema era o fogo. Era muito e ele tinha um medo terrível dele. A perna
direita ardia a cada passo. Ao final da passagem, encontraram uma figura negra agachada,
perigosa. Quis parar. Koroní continuou. Vakú tentou gritar, mas o som saiu baixo demais.
– Não! – gritou Vakú. A luz do sol o cegou. Sentiu algo encostando em sua boca, um
líquido amargo e doce ao mesmo tempo. Viu um sorriso de dentes podres. A perna direita
latejou com agulhadas em seu calcanhar. Adormeceu novamente.
Então estava de volta a Rivinakuloké. Os paredões de pedra alaranjada eram tão altos que
nem mesmo podia ver o céu. Com a mão esquerda, ele segurava Mosú, que estava com a
cabeça pendente. Um abutre em seu ombro bicava e descarnava sua orelha. O terror tomou
conta de Vakú, mas não podia fazer nada a respeito.
Mosú não te ouve mais.
Aquela voz.
Olhou para o lado oposto e viu Koroní. Ela estava na entrada de um túnel que se abria na
base das pedras, segurando a tocha.
– Aqui, Vakú. Aqui dentro está o responsável por isso tudo. O inimigo da profecia.
Vakú acordou. Sentiu um balançar e um deslizar abaixo de si. Sua visão ainda não
conseguia lidar com a luz. O corpo inteiro estava dormente. Ouviu um chacoalhar de cordas à
frente e um cheiro de...
Não tinha forças. Deixou-se cair num sono negro.
Cães! Cheiro de cães.
Quando abriu os olhos, ainda balançava. Estava sendo carregado nos ombros de alguém
muito forte. Viu a pedra amarela abaixo. Cães enormes, parecendo lobos, o seguiam. Um
deles, de pelo branco, ergueu-se nas patas traseiras e tocou um dos seus braços pendentes com
o focinho. Tinha grandes olhos azuis e uma língua cinza-escuro.
Então lembrou-se de Tulú agonizando no lamaçal. Tentou perguntar alguma coisa para
aquele que o conduzia, mas sua garganta estava fechada. Entregou-se mais uma vez.
Vakú acordou dentro duma caverna, diante de uma fogueira. Cobertores de pele o
envolviam e ele suava frio. Seu corpo estava fraco e havia um gosto amargo em sua boca,
familiar. Com toda energia que pôde reunir, apoiou-se no cotovelo e tentou se sentar. Tudo o
que conseguiu foi erguer o tronco algumas polegadas acima do chão. Havia um homem
sentado na entrada da caverna, de costas para ele, com tranças grisalhas imundas. Vakú tossiu,
tentando expulsar o amargor da garganta.
– Fique onde está – disse o homem. A voz era idosa e quebrada.
– Onde...
– Mais uma noite para você, misevaré. Fique onde está.
A perna direita ainda estava adormecida, mas ele conseguia movê-la. Havia muito no que
pensar. Mosú, Tulú, Koroní. Aquele sentimento estava se realizando como uma sombra.
Mesmo que sobrevivesse àquela caverna, Vakú sabia que nunca mais veria as Varekvaké: os
picos brancos, os cabritos monteses, a casa de sua família, o vento gelado da manhã, os mil
córregos que alimentavam as nascentes do Moltes. E também as coisas ruins. O escárnio. Os
olhares tortos dos Uremiték. Aquelas garotas que repudiavam o seu toque e o seu olhar,
mesmo depois de ter explicado para elas que era o seu direito, seu dever, seu defeito. Sem
Mosú, as Varekvaké lhe seriam tão mortais quanto qualquer lugar mau agourado das terras do
sul.
Talvez aquele sentimento fosse apenas um desejo.

Vakú se desvencilhou da pele que o cobria. Sua cabeça estava pesada, mas se sentia bem-
disposto. Notou que havia uma faixa de trapo amarrada em seu pé direito e que algo viscoso
estava pressionado contra o seu calcanhar. Deslizou a mão para a têmpora. Não ardia mais,
mas a pele estava irregular e endurecida. Depois sentiu seus cabelos, picotados pelos cortes de
faca de Mosú. Afastou os pensamentos negativos e olhou em volta. No centro da caverna havia
uma depressão, onde as brasas levantavam pequenas línguas de fogo. No lado oposto, dois
troncos unidos em seu topo por uma corda. Dela pendiam uma dúzia de sacos, alguns
pequenos animais ressecados e pedaços de trapo. Logo abaixo estava seu arco e sua aljava,
ainda sujos de lama. Vakú se levantou num impulso, mas seu pé direito fisgou e ele quase caiu.
Mancou até suas armas e as recolheu.
Enquanto amarrava a aljava nas costas, o cão branco de olhos azuis entrou na caverna.
Parou, balançando a cauda de um lado para o outro, a língua escurecida de fora. Num susto,
Vakú tirou uma flecha da aljava e a encaixou na corda do arco, apontando para o cão, os dedos
sofrendo com a ausência de sua luva de tiro. O animal não reagiu, mantendo aquela expressão
boba de que só os cães são capazes. Quando não aguentou mais a tensão nos dedos, Vakú
abaixou-se e repousou o arco no chão. Exibiu as costas da mão para o cão, que foi ao seu
encontro, cheirando as pontas dos seus dedos, as orelhas voltadas para trás. Deu duas lambidas.
Nada a temer.
O momento foi quebrado por latidos do lado de fora. O cão branco deu um salto para trás e
correu na direção da saída, uivando. Vakú recuperou seu arco e novamente encaixou a flecha,
apontando-a para baixo. Em alguns instantes surgiram outros dez cães, negros, castanhos,
cinzentos, todos com o mesmo aspecto lupino. Atrás deles vinha o seu anfitrião, envolto num
trapo cor-de-nada, a barba grisalha embaraçada e os pés descalços e empoeirados. O homem
olhou para Vakú e abriu um sorriso enrugado e podre.
– Kornukaviné! – gritou o homem. Vakú reconheceu a voz que ouvira na caverna um dia
antes. – Olhe para você. – Quando chegou perto, apontou para o cão branco, que o saudava
com pequenos saltos. – Você tem sorte que Palosíl intercedeu em seu favor. Não quis sair
conosco, veja só.
O velho falava a língua do norte, mas Vakú tinha que se esforçar para entendê-lo. Chegou a
face a um palmo de distância dele, olhando fundo em seus olhos. Exalava um odor amargo,
familiar, não o mau cheiro dos nemék. Seus olhos eram negros e pequenos, com uma
profundidade ameaçadora. Parecia tentar ver algo em Vakú. Passou por ele em direção ao
fundo da caverna. Vakú o seguiu.
– Eu descansaria se fosse você – disse o velho, enquanto pendurava mais sacos no varal.
Vakú obedeceu e se sentou no amontoado de peles.
– Onde eu...
– Não se preocupe. Seu fogo será respondido. Descanse, eu disse.
Sem entender, Vakú se calou. Palosíl, o cão branco, se aproximou dele e o farejou. Os
outros cães o imitaram.
Durante as horas que se seguiram, o velho manuseou o interior dos sacos pendurados na
corda e misturou o que pareciam ser especiarias diversas em outros sacos que amarrava no
varal. Alguns ele banhava com um pouco da água de seu odre. De vez em quando, ele ia até o
fogo de chão e rearranjava as brasas com habilidade, alimentando-o com doses comedidas de
lenha e folhas secas. Naqueles momentos, a expressão do velho se alterava e ele recitava baixo
palavras incompreensíveis. Vakú observava calado. Em duas ou três ocasiões, o homem parou
diante da entrada da caverna e gargalhou. Era uma risada sem humor, compulsiva, que fazia
Vakú levar às mãos ao seu arco, preparando-se para um eventual surto de violência do velho.
Quando a noite começou a cair e o estômago de Vakú a roncar, o homem expulsou os cães
aos gritos. Apenas Palosíl, o cão branco, recusou-se a sair, o que demandou alguns pontapés. O
velho se sentou diante de Vakú e abriu seu sorriso apodrecido.
– Você tem olhos de fome, misevaré. Bom.
– Quem é você?
– Pode me chamar de Kalté se quiser, mas os nomes não importam. Hoje não.
– Foi você que me tirou do pântano?
– Sim, mas não há nenhum mérito nisso. Eu sou o pântano também.
Vakú ajeitou-se sobre a esteira de pele, impaciente com o jeito de falar do homem.
– E Tulú... quero dizer, o meu cavalo?
– Cavalos e lamaçais. Acho que não preciso te explicar, misevaré.
O relincho esganiçado de Tulú veio à mente de Vakú.
– Foi uma serpente, não?
– Olenamós, como é conhecida por aqui. Os homens e as mulheres do vale não sabem lidar
com ela muito bem. Mas para mim não existem plantas proibidas. E é por isso que você está
aqui. – Kalté gargalhou, escancarando o terror castanho dentro de sua boca.
– Olenamós...
– Ela vai atrás dos que estão perdidos no vale.
Vakú olhou furioso para Kalté:
– Eu não estava perdido.
– Não importa. Você tem olhos de fome, e isto é ideal.
– Ideal para quê? – perguntou Vakú, tateando em busca de seu arco.
– Para a visão.
– Eu não quero nada com visão nenhuma.
– Mas você tem que ter a visão hoje. Você chegou aqui porque estava perdido. Só com a
visão você pode se encontrar de novo. Se não, problema para este velho aqui.
– Eu não estava perdido. Eu estava voltando para casa.
– Saber aonde vai não significa que não está perdido. – Kalté gargalhou novamente,
inclinando a cabeça para trás. – Mais problemas para mim. Eu sou o pântano e o vale. Não
quero que ninguém ande por cima de mim sem saber a hora de me deixar.
Vakú calou-se, tentando compreender.
– Eu posso lhe pagar de outras formas – disse Vakú.
– Eu não quero ser pago! – A voz de Kalté se tornou agressiva. – Não há nada que eu tenha
feito. Eu só quero que os viajantes passem e não se percam em mim. A visão não é um
pagamento, é o meu desejo.
– Você quer que eu tome o rildémos, não é?
Kalté gargalhou.
– Poucos tremem tanto diante da folha negra como vocês murevaré. É uma boa sabedoria.
Não se preocupe, não há sombra em você, até onde eu posso ver. Se houver, bem, é o que
estava destinado a acontecer. É a minha vontade.
– Eu já ouvi isso antes. – Vakú entristeceu-se ao pensar em Koroní.
– Mas há fogo em você. As Muniresarél ignoram o fogo da aura. Ficam buscando sombras
e mais sombras, igual a cães, sempre com os focinhos apontados para baixo. O fogo é
perigoso, mas é também a luz. Não há como saber o que será da sua visão.
Vakú estremeceu, agarrando o seu arco e a aljava.
– E se eu recusar?
– Você morre, aqui ou no pântano. – Kalté o olhou grave.
Vakú pensou em uma pergunta, depois outra, depois outra, mas sabia que não teria as
respostas que desejava. Não iria tirar nada do velho antes que concordasse com a sua
exigência. Quando adolescente, havia provado o rildémos, e havia sido uma experiência
recreativa. Talvez Koroní estivesse com razão e aquela experiência tenha sido a causa de seus
distúrbios, mas rechaçou a possibilidade. Ao contrário do que os anciãos entre os Uremiték
ensinavam, ele não tinha se tornado um...
Andarilho! Este homem é um Andarilho.
Vakú teve menos coragem ainda de recusar. Largou suas armas, lembrando-se das histórias
terríveis contadas sobre esses homens; tão terríveis que ele não tinha se dado conta de que
aquele nemék franzino era um deles.
– Bom! – disse Kalté, entre uma gargalhada e outra. – Muito bom! Espere de olhos
fechados.
Vakú deitou-se sobre as peles e fechou os olhos. Seu coração ameaçava sair pela boca, seus
pensamentos tão rápidos e carregados que não conseguia se fixar em nenhum deles. Seu
estômago rugia e competia com o medo. Ouviu Kalté passar para lá e para cá, depois um som
de metal contra metal e um de chocalho.
Quando finalmente relaxou, Kalté tocou sua face com um dedo.
– Aqui. – O Andarilho estava de cócoras diante dele, com uma tigela de barro na mão.
Dentro dela havia algo transparente e gelatinoso. – Você precisa tomar a goma de rildemulé
antes da visão. Alguns não sabem disso. Ficam presos na sombra. Precisa tomar a goma antes.
Vakú se sentou, tomou a tigela das mãos do Andarilho e bebeu. A goma de rildemulé era
adocicada. Em seguida, Kalté indicou-lhe um lugar diante da fogueira, cujas chamas estavam
mais altas. O Andarilho começou a entoar palavras incompreensíveis, enquanto espalhava um
pó negro no fogo. Um cheiro amargo subiu com a fumaça. Passou um copo pesado de metal
envolto em couro para Vakú. Uma massa negra se alinhava numa das metades dele, enquanto
na outra havia água morna. De dentro do copo saía um canudo de ferro. Vakú tremia, castigado
entre a fome, o medo do rildémos e a atmosfera sombria da caverna do Andarilho. Não podia
voltar atrás agora.
Antes que pudesse encostar o canudo na boca, Kalté o interrompeu:
– Tem que ser tudo em um gole só.
Sugou. O amargor e o ardor da erva quase o fizeram vomitar, mas ele se manteve firme,
bebendo até ouvir o ar sendo chupado para dentro do canudo.
Kalté voltou a cantar. O tremor de Vakú passou por um instante. Agora ele se sentia tonto.
O cântico do Andarilho pareceu aumentar de volume, mas nada parecia estar diferente, com
exceção do frio em suas costas. Então notou que havia rocha pontuda à sua frente. Tinha se
deitado sem ao menos perceber.
Foi quando o mundo desapareceu.

Koroní apareceu, mas não era a mesma Koroní que queimara sua face; era uma Koroní
jovem, de canelas finas e sorridente. Ela caminhava pelo passo de Rivinakuloké. Os abutres
pousados no chão levantavam voo e abriam caminho. Voltou-se para Vakú com os olhos
castanhos risonhos.
– Venha – disse ela, gesticulando.
Uma névoa turquesa saía do corpo de Vakú, o seu amor por ela, a paixão de muitos anos.
Ela flutuava e ia em direção a Koroní, que brilhava cada vez mais ao passo que o amor se
deslocava de Vakú para ela; e ela se tornava cada vez mais bela, e cada vez mais Vakú a
desejava. Não podia aguentar mais.
Quando olhou em volta, estava de novo na caverna de Kalté. O Andarilho estava acocorado
diante da fogueira, cantarolando com as palmas viradas para cima. Vakú suava. O fogo estava
muito quente. A névoa azul-claro ainda saía dele, só que agora se dirigia para as mãos de
Kalté. Sobre as palmas cascudas do velho estava Mosú, com os cabelos completamente negros,
e a jovem Koroní, de mãos dadas com ele. Era o dia do casamento. Ela vestia uma bata
vermelha. O coração de Vakú quebrou no meio e a névoa turquesa voltou para dentro dele,
causando dor. Vakú gritou e se atirou para trás.
Estava de volta à Rivinakuloké, num platô cercado pelas paredes de rocha alaranjada. Os
abutres se refestelavam na carne dos corpos de uma centena de garotas seminuas. Vakú sentiu
o riso e a satisfação crescerem dentro de si. Dos corpos estirados jorrava outro tipo de névoa,
ora vermelha, ora cinza, ora negra; e ela alimentava Vakú, que não conseguia parar de rir. Mas
esta névoa o enfraquecia. Ao final da trilha de corpos, havia um maior que os demais. Era
Mosú. Sua face estava cadavérica e sem brilho, e um abutre bicava a sua orelha. Ao lado dele
estava Tulú, com uma das patas afundada na pedra, guinchando desesperado, aquele som que
enchia Vakú de pavor. Procurou a névoa escura que saía do corpo das garotas, mas os abutres
tinham começado a respirá-la; e toda vez que o faziam, dividiam-se em dois outros novos
abutres. Em alguns instantes, o platô estava transbordando com eles.
Correu de lá e se encontrou de novo com Koroní, a mesma aparência com a qual a tinha
visto pela última vez, com uma tocha na mão direita. Ela estava diante de uma abertura na
pedra. O túnel.
– Venha – disse ela.
Ele a seguiu para a escuridão e os dois caminharam pela umidade, pela pedra lisa, alvenaria
antiga, muitas memórias.
– Para onde vamos, irmã?
– Nós vamos atrás dele. O inimigo da profecia.
Havia uma presença no fundo daquele túnel; esmagadora, negra, porém familiar, como a
voz de um mestre rigoroso com o qual tivesse convivido por anos. De lá vinha uma fumaça de
fogo. Vakú a tragava e isto o enchia de propósito. Koroní tossiu e se curvou.
– Você... – disse Koroní, entre uma tosse e outra, – você é uma... uma má influência para...
para o seu irmão. – Ela apontou logo adiante, onde uma parede de chamas barrava o caminho e
gerava a fumaça. Koroní caiu no chão, largando a tocha, que rolou até a parede e foi
desintegrada pelo fogo.
– Passe! – disse uma voz vinda do alto. – Passe!
Vakú sentiu medo. A presença massiva ao fundo do túnel o mantinha estático. Voltou a
respirar a fumaça com todo o seu fôlego, e ela o encheu de propósito mais uma vez. Tentou
correr e escorregou, rolando pela pedra lisa até a parede de fogo. Quando próximo dela,
entendeu que as chamas não poderiam feri-lo. Ele era o senhor do fogo, mestre de cães e
abutres, o rei que se sentaria sobre o trono mais horrendo que o mundo já vira.
– Passe!
Com os dois pés firmes no chão, atravessou.
Além da parede de fogo estava a figura, agachada e envolta numa capa negra. Ela falou
numa língua estranha. Pouco a pouco, reconheceu o sotaque e os termos. Era a fala do sul.
– Quem é você? – perguntou Vakú.
Sem responder, a figura se levantou. Uma mão surgiu no meio da capa, empunhando uma
adaga negra. A lâmina brilhava com o fio amolado mil e vinte e duas vezes; a arma derradeira,
a arma dos covardes, a vitória do refúgio e das falsas identidades; o fim de tudo que é antigo e
de tudo que segue o sangue, o senhor e a profecia, tudo concentrado no fio negro da faca. Vakú
estava paralisado, mas não era por causa daquela figura. A presença massiva estava por trás
dela. Ouviu vozes, vozes distintas de uma mesma fonte sendo atiradas por trás da entidade
negra. Tudo o que pôde fazer foi esperar o golpe. Não havia nada a fazer. Chorou. Chorou por
seus pais, por Mosú, por Koroní, por todos os Okorók e pelos Uremiték; pelos nemék, por
todos os homens e mulheres, por Tulú, por todas as criaturas deste mundo. Como seria possível
alguma coisa sobreviver diante da existência de tanto terror e desesperança?
Mas a facada não veio. A um palmo dele, a capa negra caiu, como se aquele que a vestia
tivesse evaporado dentro dela. Era apenas um amontoado de tecido no chão cavernoso. A
respiração de Vakú soava como um trovão dentro do túnel. Sabia que não havia terminado.
Houve movimento dentro da capa. De uma das mangas surgiu a cabeça de um lagarto verde-
esmeralda, o mais belo réptil que Vakú já tinha visto. Até a língua bifurcada era bonita, azul e
brilhante. Ficou hipnotizado pelo bicho. O lagarto levantou a cabeça, olhando em sua direção,
e acelerou como uma flecha para os seus pés. Vakú não pôde reagir. Sentiu uma mordida no
calcanhar direito, que começou a arder. Ardeu até pegar fogo. Sentiu seu pé derretendo e caiu
no chão. Sua face começou a derreter, seguida pelo resto do corpo. Não houve grito alto o
bastante para expressar aquela sensação. Ficou calado, queimando.
Então morreu.
Mas a morte, na realidade, era a pós-vida em uma caverna, uma vida eterna enclausurada.
Viu o teto da rocha. Havia uma mancha negra logo acima de onde ficava a fogueira. A luz do
sol invadiu o ambiente. Diante dele, surgiu o sorriso mais feio que jamais vira, um emaranhado
de dentes tortos e enegrecidos. Havia, porém, compreensão no sorriso; a compreensão de
quem, como ele, conhecia o que há além da morte. Naquele instante, Vakú amou o homem.
– Kornumulé? – perguntou Vakú.
– Então, você morreu? – perguntou Kalté.
Vakú caiu numa gargalhada febril, rolando de um lado para o outro. Kalté o acompanhou
em seu riso. Ele viu Palosíl se aproximar e lambê-lo. Parecia um coelhinho, um coelhinho
sanguinário. O riso aumentou e suas calças se encharcaram.

Vakú mastigava a carne do lagarto. Ele olhava para a carcaça e se lembrava do lagarto
verde que o mordera e o fizera entrar em combustão. Mastigava devagar, lembrava-se,
mastigava um pouco mais, engolia, mordia outro pedaço.
– Agora você pode perguntar – disse Kalté, acocorado do outro lado da fogueira. Ele
tragava uma mescla entre o rildémos e outras ervas – sua bebida costumeira –, enquanto
ajeitava a lenha com um bastão. O fogo nunca cessava, a erva nunca cessava.
Vakú engoliu mais um naco e tentou pensar em perguntas. A cabeça estava pesada e o
estômago revirado.
– Eu vi a minha... irmã. Jovem primeiro, depois em seu casamento, depois mais velha e
fria, como da última vez que estive com ela.
– Onde ela estava? O que estava fazendo?
– Ela me chamava, me mostrava o caminho e se casava com meu irmão. Em Rivinakuloké.
Kalté parou, pensativo.
– Um lugar de morte. Você viu morte lá?
– Você quer dizer, na visão?
– Não faz diferença.
– Vi meu irmão morto... quero dizer, na visão. Outros também. Mas não minha... irmã.
– Que você matou?
Vakú gelou. A lembrança do prazer, da névoa negra e vermelha que sugara dos corpos
mortos das jovens, deixou-o envergonhado.
– O que mais? – perguntou Kalté.
– Um túnel em Rivinakuloké. Minha irmã indicou para mim o caminho. Nós dois entramos.
– O que mais?
– Havia fumaça e fogo no túnel. Uma faca negra. Um lagarto verde que me mordeu no
mesmo lugar que a olenamós. Uma presença que eu não pude ver no fundo do túnel.
– Quem segurava a faca?
– Alguém encapuzado, que falava a língua do sul.
Kalté o fitou sério.
– Morte ao seu encalço. Você tem o toque da podridão. O amor por sua irmã, mais que
fraternal, mas disso você já sabe. E fogo.
– O que há com o fogo?
– Você não vai parar. Já não será mais um misevaré por muito tempo. Muito sangue
derramado pelo seu toque, e você ainda não para. Todos os que estiverem junto de você estão a
um passo da putrefação; ainda assim, você continua.
– Até você? – Vakú sentiu um nó na garganta.
Kalté gargalhou.
– Eu não sou ninguém, misevaré. Como você profana alguém que não é ninguém?
– E a faca? O lagarto verde? A presença? – perguntou Vakú, com um tom de desespero na
voz. – Há cura para mim?
– Não há cura e ela não é necessária. Você é o que é. O que é, é. Quando você, como eu,
não for ninguém, você entenderá. Você não quer nada. Vai para onde vai.
– Quer dizer que... – Vakú balançou a cabeça, confuso. – Você não respondeu às outras
perguntas.
– O que está além do fogo e antes da morte é só seu para saber. Você poderia ter ficado
para sempre naquele túnel, para sempre negociando uma saída. Por sorte, ou melhor, por um
desejo seu, você morreu e renasceu.
Vakú lembrou-se das histórias de Andarilhos que ouvira da Manisarél na infância, homens
loucos vagando e falando sozinhos, para sempre incapazes de olhar outra pessoa nos olhos.
Talvez estivessem presos no túnel. Em algum lugar ele sabia que não era o seu desejo ter saído
dali. Não houvera arbítrio de qualquer forma em sua morte. Tivera sorte, ou então algo o
presenteara com o caminho de volta. A presença. Notou que ainda podia senti-la dentro de si.
Nasoporvú.
Os olhos de Vakú marejaram.
– Coragem – disse Kalté.
– Quer dizer que todos que chegarem até mim apodrecerão?
– Quem estava apodrecendo em Rivinakuloké? Quem foi poupado? – Kalté sorria, como se
estivesse se divertindo com o sofrimento alheio. Mas não era com o sofrimento, notou Vakú.
Ele estava à beira de uma realização profunda e ainda não havia se dado conta. Viu novamente
o caminho se abrindo na rocha de Rivinakuloké, e lá estava ela: sua cunhada, sua irmã. Koroní.
A paixão que o havia destruído vez após vez. Viu também a faca negra, amolada mil e vinte
duas vezes, a destruidora de tudo o que era velho neste mundo, de tudo o que ele era. E o
lagarto, brilhante, tão belo e mortal.
– Kornumevé! – gritou Vakú, estendendo as mãos para o céu. – Kornuvamepé, Kornumulé,
Kornu... – começou a rir histericamente, caindo de lado. Kalté gargalhou também. Um abutre
pousou em seu ombro e cochichou o segredo de seus medos na orelha esquerda.
Em meio à segunda onda do rildémos, adormeceu na rocha nua.
Capítulo 5

Bandeira Vermelha

À primeira vista, o homem parecia um contrabandista qualquer, mas havia algo errado. Os
zumbis, os mortos-vivos que cambaleavam pelas paragens mais inóspitas de Atablan em
busca do beijo negro, chegavam a ele e eram empurrados, enxotados, ameaçados. Nenhum
contrabandista de rua agia assim em Valvomit. O bairro era a casa dos mais imundos.
Bamir aproximou-se devagar, a cabeça baixa, pronto para fazer algo muito estúpido caso o
pretenso contrabandista o tratasse daquela forma. O homem estava parado na esquina, vestindo
um chapéu de aba larga que escondia sua face, o cabo do facão à mostra para todos verem.
Havia um trejeito peculiar em seus gestos...
Não pode ser!
Bamir apertou o passo e se desvencilhou de sua cautela. Ao chegar diante do
contrabandista, o homem abaixou ainda mais a cabeça.
– Ou! – disse o contrabandista, interrompendo seu caminhar com a palma da mão. – Até aí.
Se veio atrás de erva, pode dar meia volta.
– Eu sou a faca negra, a arma dos despossuídos.
O homem levantou a face, exibindo a boca larga encurvada em sua típica careta, a
contorção que nunca abandonava aquele rosto.
– Anur-Eldorot! – exclamou Cassur.
– Sou eu.
Cassur não notou o cheiro fétido que indicava a aproximação de mais um dos zumbis.
Abriu os braços com as palmas voltadas para cima e disse:
– E o nosso encontro? Por onde você andou?
– O que importa agora?
Cassur encarou o homem decrépito que cambaleava na direção deles.
– Vá embora ou te cortarei todo! – disse ao zumbi, levando a mão ao facão. O homem
recuou, choramingando.
– Eu suponho que tenha um esconderijo aqui por perto – disse Bamir.
Cassur balançou a cabeça em meia concordância.
– Você me conhece.
Ele guiou Bamir para os fundos de um dos prédios que compunha a viela. Com uma chave
do tamanho de uma colher, abriu uma grade no chão, abaixo da qual havia degraus. Desceram
até um porão fedorento, com túnicas vermelhas penduradas por ganchos nas quatro paredes.
Bamir se adiantou para estudar os uniformes expostos. Todos tinham o sol amarelo de Amet
gravado no peito.
– Então quer dizer que... – antes que terminasse a frase, Bamir foi agarrado por trás e sentiu
uma ponta afiada pressionada contra sua nuca.
– Quem te mandou aqui? O que você quer? – A voz de Cassur estava rasgada.
Bamir ergueu as mãos.
– Cassur, eu te contarei tudo...
– Rato desgraçado!
– Relaxe. Eu te explicarei.
– Ah é? Você vai mentir de novo? Eu sei o que você fez, rato desgraçado!
O aperto da lâmina ficou mais forte.
– Cassur, mais uma acusação dessas e eu arrancarei essa porra dessa sua língua. Eu matei
dois Vermelhos com as mãos algemadas e mais três carecas para chegar aqui, e não me
importarei em fazer o mesmo com você. Me teste. Vamos. Me chame de rato mais uma vez.
A ameaça ecoou gelada pelo porão. Bamir sabia que o faria. Cassur estava lento demais, e
ele, violento demais.
Cassur começou a rir e retirou o facão da nuca de Bamir.
– Eu quase te peguei – disse Cassur. – Por um fio de cabelo você não confessou.
Bamir estava furioso, mas sabia que havia ganhado.
– Como eu disse antes, te explicarei tudo.
Cassur tirou o chapéu, cruzou os braços e aprofundou sua careta.
– Estou ouvindo.

– Os Anespornat estão trancados, dizem por aí – disse Cassur. – Estamos sem lei. Acho que
Naner tinha razão, afinal. Qual o sentido de ser fora-da-lei se não há lei em primeiro lugar?
Uma merda, vou te dizer.
Os dois se sentavam na pequena mesa redonda que havia no porão, iluminada por uma
lanterna no centro. Bamir fumava o cachimbo do colega. Fumar depois de algum tempo sem o
deixou dormente dos pés à cabeça.
– Mas há Vermelhos lutando ainda – disse Bamir.
– Sim, claro. Dizem que ainda têm os portões, e que esses bloqueios são só algumas ordens
que ainda não foram retiradas. Estão sem fôlego. E os carecas...
– Você sabe quem os lidera?
– Fala-se em Corlomut, o que é que isso seja.
– Soa como Caromosut.
– Não diga besteiras!
– O que importa agora? Olhe para nós: num porão fedorento em Valvomit.
Cassur sorriu com amargor.
– E o que é isso tudo? – perguntou Bamir, enquanto apontava para os uniformes nas
paredes.
– Bem, um ou outro nargorot compra uma delas para tentar fugir da cidade. Era aqui que
Caromosut mandava guardar. Descobri esse lugar alguns dias depois do Rei cair.
– Quando eu te falei que o chefe queria as roupas – disse Bamir, sorrindo. Cassur sorriu de
volta.
– Pois é, jovem. Mas está difícil. Os zumbis estão impacientes. A erva sumiu.
Bamir respirou fundo. Para sua surpresa, não encontrou nenhuma coceira.
– Cassur – disse Bamir num tom sério. Cassur levantou uma das sobrancelhas. – Eu vou te
dizer a mesma coisa que disse à Legor antes de os Utet o estriparem. Eu acho que você já sabe,
mas, mesmo em Valvomit, isto aqui é uma armadilha. Eles quase me pegaram aqui. Os
Cengasmut, inclusive eu, cometeram o erro de se esconderem. Nós temos duas opções: ou
ficamos aqui e esperamos os carecas nos encontrarem, ou fazemos alguma coisa a respeito.
– Alguma coisa? Como o quê?
– Recuperar algo para nós. Defender um território. Talvez ainda haja alguns...
– Você está maluco. Não há mais ninguém, jovem. E mesmo se houvesse...
– Nós dois – interrompeu Bamir. – Já é um começo.
– Contra duzentos mil Carecas, Vermelhos e toda sorte de nargorot que corre livre por aí?
Faça-me o favor...
– Dois Cengasmut. Lembre-se disso.
– Sejamos realistas, jovem. Quem somos nós sem a nossa rede de irmãos? Agora é cada um
por si. Eu honestamente não sei se vou sair dessa vivo, mas faço o que posso para continuar. E
se nós vivermos para ver essa cidade voltar a ser o que era, somos nós que traremos os
Cengasmut de volta à vida. Sobreviver é mais que o suficiente.
Covarde.
Bamir se levantou e começou a andar em círculos pelo porão, examinando as túnicas
vermelhas de perto. A maioria estava imunda e manchada.
– Olha, jovem – disse Cassur –, pode parecer que...
– Quando a faxina começou – interrompeu Bamir, ainda estudando os uniformes –, você
me disse para eu não procurar a minha garota, não é mesmo? Eu menti para você, e foi isso
que me salvou. Eu também te disse que estava tudo sob controle; o que eu não te contei foi que
antes de ter sido pego pelos Vermelhos, eu fui atrás da erva. Como foi bom dar aquele trago...
– Qual o propósito disso, hein?
– Eu menti para você duas vezes, e duas vezes fui poupado. Alguns caíram no meu lugar,
mas eu fui poupado.
A memória do corpo branco retalhado encheu Bamir de ódio.
– Diz logo o que quer dizer, pelos Anur! – gritou Cassur.
Bamir parou de circular e ficou de frente para Cassur. Viu os olhos do homem se
arregalarem e a sua mão direita buscar o punho da faca.
– Eu não vou mais mentir para você e para nenhum dos Cengasmut. Também não quero
nenhum tipo de conselho estúpido, que foi a única coisa que eu ouvi de todos os irmãos desde
que a morte do Rei Amet nos afundou. Eu não me esconderei mais. Estou indo e, se quiser, se
tiver alguma honra restante em você, sugiro que venha comigo.
Cassur levantou-se abruptamente, parando com o nariz a uma polegada de distância da cara
de Bamir. Havia ameaça em seu olhar, mas uma expressão aprendida, sem força. Podia-se ver
a fragilidade por trás da careta, e ela não era momentânea. Bamir se deu conta que Cassur
sempre fora um fraco. Por mais que o tivesse acolhido e o impedido de se tornar um zumbi, era
uma vítima das condições que o cercavam. Sentiu o velho amor que tinha por seu padrinho se
esvair e se transformar num oco gelado.
– O que você quer dizer com isso? – perguntou Cassur entre os dentes. – Quem é você para
falar da minha honra, seu...
– Diga – Bamir tateou o cabo da espada na cintura. – Diga a palavra. Vejamos se você tem
coragem.
Cassur desfez a ira na careta numa expressão de preocupação, também falsa.
– O que há com você? – perguntou Cassur. – De onde vem isso?
– Não há nada. Só estou fazendo as coisas do meu jeito, como sempre deveria ter feito, sem
dar ouvidos para ninguém mais.
Cassur ficou novamente furioso.
– Ah, eu sei desse seu jeito. Vá, volte lá para fora, seu ingrato de merda. Ache uma mulher
zumbi para você. Quem sabe ela te chupa tão bem quanto a irmãzinha de Legor. Ou melhor,
você chupe ela. – Cassur pôs a língua para fora e a moveu rapidamente, produzindo um som de
sucção irritante.
Ele esperou a reação de Bamir, mas cometera um erro grave. O homem esperava que, como
nos tempos idos, o jovem se sentisse intimidado com aquele tipo de provocação, temeroso de
manchar sua imagem diante dos Cengasmut. Mas ele já não era mais o mesmo. Mais rápido
que o velho amigo pôde perceber, o gustabit penetrou suas costelas. Cassur cuspiu sangue na
cara de Bamir e caiu; sem se debater, sem se contorcer, sem se arrastar, sem chamar por sua
mãe. Um golpe fora o suficiente para apagá-lo.
Tão fraco.

O assassinato de Cassur foi o estopim das frustrações. Era o último ao qual trairia, e
esperava que o colega soubesse disto. Meias verdades são a maior parte do que um Cengamut
comunica ao outro, mas encostar uma lâmina em seu pescoço e chamá-lo de rato...
Ali mesmo acabara toda sua lealdade para com a irmandade, com o mesmo oco gelado com
o qual a vida de Cassur havia acabado. Mas Bamir não era ingênuo o suficiente para pensar
que isso faria alguma diferença aos Utet, que caçavam os irmãos sem motivo aparente. Ele
estava sozinho e ainda na mesma condição de matar ou morrer.
Lembrou-se dos acontecimentos no beco dias antes, quando se esquivara de uma execução
a sangue frio de joelhos e com as mãos algemadas. Algo diferente havia acontecido então.
Esse é o caminho, disse a voz, o bloco de palavras forasteiras em sua mente. Não tinha
escolha senão confiar nela.
Ainda no porão, Bamir usou a faca do falecido para tirar cada fio de cabelo da cabeça. Um
filete de sangue escorreu pela testa. Apanhando uma das túnicas penduradas, cortou duas
faixas a partir de seu tecido: um deles ele repousou na mesa, e o outro ele dobrou e pôs entre
os dentes. Notou a garrafa de akva sobre a mesa, ainda com dois dedos do líquido. Tomou a
faca de Cassur de sua cintura morta, abrindo os dedos enrijecidos que a envolviam. Em
seguida, dobrou a manga esquerda da própria camisa, revelando uma tatuagem: a silhueta de
uma adaga negra. Com a faca, começou a raspar a pele naquele local, enquanto mordia com
força o pano em sua boca. Doeu, mas não o suficiente. Quando apenas sobrava uma mancha
vermelha no braço, cuspiu o pano e recolheu a garrafa de akva, vertendo a bebida no
ferimento. Gritou. Depois recolheu o segundo pedaço de pano em cima da mesa e improvisou
uma atadura.
Quando saiu do porão, vestia uma túnica dos Vermelhos e tinha a espada de gustabit
desembainhada, presa no cinto. Em nenhum momento quis olhar para a face do defunto. Ele
não era mais o mesmo.
Sua primeira parada foi um sobrado antigo a três quarteirões dali: um monstro cinzento
com apenas a base carcomida do que outrora fora seu segundo andar. Diante dele, uma dúzia
de zumbis girava em torno do próprio eixo. Não se importou com a presença deles como
normalmente faria. O que chamou a sua atenção foi o gordo de quase duas varas de altura
diante do edifício. Bamir o reconheceu, mas não se lembrou de seu nome.
Os sinais que o guarda enviava eram claros: não havia mais erva para os despossuídos.
Bamir avançou, mão na espada. Antes que se dispusesse a interrompê-lo, o gigante hesitou
ao ver o uniforme dos Astanart no corpo de Bamir. Foi o bastante para que vinte polegadas de
gustabit fossem enterradas em seu ventre. Os zumbis que os circulavam gritaram, fugiram,
gargalharam. Dois deles aproximaram-se de Bamir, que desenterrou o aço com rapidez e os
ameaçou. Os mendigos recuaram.
O cheiro amargo tomava todo o ar do casarão. Os corredores descascados lhe traziam as
piores lembranças possíveis, fatos que ele não narrava nem para si mesmo. Os zumbis ricos,
espalhados pelos cômodos sem porta, não preocuparam Bamir. Seu objetivo era a porta ao
fundo do corredor principal. Ao chegar ao seu destino, abriu caminho com a sola da bota,
fazendo o nargorot maneta sentado do outro lado cair da cadeira. Antes que retomasse o
equilíbrio, o contrabandista recebeu a espada no trapézio. E como cortava bem. Um prazer
incorreto surgiu em seu ventre.
Sobre a mesa, um monte de pó negro e brilhante, com dois palmos de altura.
Foi fácil pôr o casal para correr. Como na maioria das vezes, bastava mostrar o aço. Bamir
se sentava sobre a esteira de palha, diante de si um pote de argila cheio de água, um saco, um
canudo negro e o maior copo de rildémos que jamais tivera em mãos. Por um momento,
refletiu sobre seu medo, sobre as ínfimas possibilidades de que seu plano desse certo. Mesmo
sendo chamado certa vez de “o melhor matador entre os Cengasmut”, sozinho não poderia
fazer muito contra os Utet e o que mais estivesse por trás do caos de Atablan. Tudo com o que
contava era um segundo surto de força provocado pela erva, e sabia muito bem qual seria o
resultado caso a voz tivesse mentido para ele. Não havia escapatória. Independentemente do
que acontecesse, só havia morte em seu futuro próximo, com ou sem o rildémos. Apressado,
iniciou os trabalhos.
O primeiro passo era certificar-se de que estava usando uma luva. Bamir sempre as usava,
especialmente na mão direita, a que estava escurecida. Abriu o saco. Havia mais rildémos do
que jamais seria capaz de consumir.
O segundo passo era colocar a quantidade certa de rildémos no copo, cerca de um terço de
seu volume. O copo tinha quase dez polegadas de altura em seu interior. Com a luva,
preencheu quase metade dele.
O terceiro passo era chacoalhar o copo horizontalmente, tapando sua boca com a mão, para
que o rildémos se alojasse numa de suas metades. O movimento de Bamir foi elegante, cheio
de propósito.
O quarto passo era verter água na parte oposta à da erva para não desfazer a aderência, de
preferência água quente. A água do pote não só estava fria, mas barrenta. Não importava.
O quinto passo era introduzir o canudo na base da erva, tapando uma das extremidades com
o dedo. Ao fazê-lo, pequenas bolhas surgiram na água.
O sexto passo... Bamir estremeceu ao sentir o metal nos lábios mais uma vez. O rildémos
veio amargo como nada era, rasgando língua e garganta. Ele ficou tonto com o trago.
Não havia saída, não havia irmãos, não havia terra natal, não havia Lepe. Só ele, o gustabit,
a erva e o que restava de Atablan. E, é claro, a voz.

Correu. Primeiro pelo túnel antigo, até encontrar uma muralha de fogo. Seu objetivo eram
as dunas: o maior, o mais belo e o mais solitário. A perspectiva de estar só diante do infinito
era o seu único desejo. Mas havia a parede e o fogo no final do túnel. Ao acordar, dois
selvagens desnudos o encaravam, atrás deles o teto de um barraco. Eram a mesma pessoa,
dividida entre macho e fêmea. Então, a escuridão total e absoluta, e algo que nenhuma
memória poderia reter. Quando correu de novo, não estava mais no túnel, ou nas dunas, ou
com os selvagens no barraco. Estava em casa, nas ruas de Atablan. Só que era uma Atablan
mudada, com um silêncio artificial que a engolfava como uma gigantesca gota de óleo.
Alguém o perseguia, queria tirar sua vida, e ele sabia quem era: o lobo branco e seu fogo
gelado. Fogo Azul. Correu ainda mais. Chegou a um ponto onde não aguentava mais correr e
desabou no pavimento, abaixo de um sol negro. Seu inimigo se aproximou, andando macio,
torturando-o. O maldito lobo. Por trás dele, o silêncio se condensou como um muro de ferro,
cercando suas rotas de fuga. Sentiu o hálito do predador, viu dentro de sua boca, e lá estavam
as dunas e o deserto infindável. O lobo o abocanhou no pescoço. Foi uma mordida úmida e
suave, mas Bamir sabia que era mortal. O silêncio se contraiu ainda mais e o apertou.
Morreu. Mas a morte era bem diferente do que ele imaginava. O sol negro brilhou e ele
abriu seus olhos.
Estava deitado em Atablan, no centro de seu centro, Fetacarp. Era manhã e o céu estava
nublado. Ninguém à vista. Acima dele, a estátua do sol negro, de onde pendiam homens,
pendurados pelo pescoço. Tentou mover a cabeça e um borrão desenhou o movimento,
reorganizando-se ao focar a vista num ponto. Com dificuldade, tateou o pescoço em busca da
marca da mordida.
Demorou ao menos uma hora para se levantar. Nenhuma alma viva em Fetacarp, senão as
moscas que orbitavam os cadáveres pendurados. Fechou os olhos e farejou o ar tal qual um cão
de caça. Havia medo e morte ali. A espada arranhara seu quadril e coxa e criara um retalho na
túnica vermelha. O braço esquerdo ardia, a cabeça pesava. O mesmo tempo que levou para se
levantar foi o tempo gasto tentando lembrar-se do que estava fazendo. Havia algo, uma espécie
de objetivo ou missão. A lembrança veio com uma boa gargalhada, que ecoou livre no vão de
Fetacarp.
Quando se movia, o borrão o acompanhava. Havia um traço de ladrilhos mais claros saindo
da estátua do sol que ia na direção sul. Suas pernas se tornaram ferozes. Sentiu um impulso de
correr, mas o embaraço em sua visão estava grande demais. Caminhou energético, quase
saltitante.
Foi quando se lembrou de outra coisa. Olhou para trás. Só o assobio do vento na praça. Deu
mais dez passos e olhou para trás novamente.
Ele te matou, esqueceu? O lobo branco te matou e agora você renasceu.
A voz parecia mais clara e paternal, quase reconfortante.
Ao sul da praça os prédios eram lustrosos e esbranquiçados. Sóis, colunas adornadas,
gárgulas com cabeças de lagarto. Algumas se moveram para vê-lo passar, mas estavam órfãs.
O pai delas não estava mais ali. Bamir se sentia imerso num mar de claridade e realeza, tudo
tão quieto.
Então ela apareceu, transformando todo o branco dos demais edifícios num amarelo
desbotado.
Erguia-se a mais de cinquenta varas de altura, sólida, com o topo em forma de ponta de
lança, nenhum detalhe senão uma pequena sacada em sua meia-altura. Seu branco era tão claro
que até mesmo as nuvens ficavam enegrecidas em contraste com ela. Bamir parou, com
lágrimas nos olhos, paralisado pelo esplendor inexpressável de Purcalat. Não era a primeira
nem a segunda vez que a via perfurando os céus, mas agora parecia uma centena de vezes mais
imponente. Estava com os pés pregados no chão, incapaz de mover as mãos, o olhar dos olhos
e da mente capturados.
– Amet – soluçou. Sua voz parecia um grito contra o silêncio das ruas – Amet. De onde, de
onde você tirou tanta brancura? Eu já sei. Não precisa me responder. Foi dos dentes de Lepe.
Só eles podiam competir com sua torre e você sabia disso, e por isso deixou ela morrer. Mas
agora você está morto, e ainda não ressuscitou como eu. Mas... eu te saúdo. Olhe para isso!
Bamir queria se aproximar mais, pôr as mãos em Purcalat para ter certeza que era sólida.
Este pensamento lhe deu força, como se seu corpo fosse mais duro do que qualquer coisa que
ele pudesse tocar. Seu plano havia funcionado. Foi quando ouviu os passos. Muitos passos, à
sua direita. Por um instante, era o velho e sóbrio Bamir, buscando com os olhos o beco mais
próximo e as paredes mais escaláveis.
Receba-os.
Por mais que confiasse na voz, seus instintos falaram mais alto. Disparou pelas ruas
estreitas entre os prédios reais. Passou por muitas cabeças de réptil e estátuas solares até
encontrar uma passagem que mal comportava a largura de seus ombros. Uma escalada difícil,
mas a energia dentro de si parecia inesgotável. Não ouvia mais os passos. Saltou e prensou um
pé em cada uma das paredes. Mais um salto e novamente se equilibrou, agora a três varas do
chão. Não se sentia cansado como deveria, e aproveitou isso com mais dois impulsos para
cima até chegar ao topo do edifício à sua direita. Caminhou pelo teto, onde tremulava uma
bandeira vermelha com um sol e uma espada branca no centro, o brasão dos Astanart. Não sem
um espanto jocoso, deu-se conta de que pisava sobre o quartel general dos Vermelhos. Alguns
dias atrás, nunca sonharia em sequer se aproximar daquele lugar.
E onde estariam os Vermelhos? E os Capas-Marrons, a guarda de elite de Amet?
Do parapeito ele observou um grupo de dez ou quinze carecas Utet patrulhando as
redondezas: os passos que ouvira antes. Pareciam manter uma distância proposital da sede dos
Astanart, e o maior entre eles gritava ordens de dispersão aos demais. Ele viu um que era
menor e mais magro que os outros correr em direção à Purcalat. Preparavam uma emboscada
ou algo do tipo.
Bamir sentou-se ao lado da bandeira vermelha e, em vão, tentou fazer senso da situação.
Ansiou pela voz, mas ela não veio. Talvez estivesse ficando louco, mas não era a linha de
pensamento que perseguia agora. Antes que o efeito da erva se dissolvesse completamente,
precisava tomar uma atitude. Tão logo tomou consciência disso, reparou numa grade de ferro
no teto. Investigou. Estava trancada, mas valeria a pena uma tentativa. Agarrou a grade com as
duas mãos e fez força, gemendo. Sem usar toda a potência que julgava necessária, o cadeado
se rompeu e a grade foi aberta. Bamir segurou o riso com uma das mãos e saltou para baixo.
Era a realização de um sonho entretido em conversas ébrias no porão do Abremusc: invadir a
sede dos Vermelhos e fodê-los por trás.
Pousou num pequeno cômodo vazio, com um batente que se abria num lance descendente
de escadas. Sacou o gustabit e procedeu.
Capítulo 6

Caminho Amarelo

P alosíl serpenteou pelas pedras com o focinho no chão. Parou, ergueu as orelhas pontudas e
os olhos azuis, notando Vakú parado na entrada da caverna. Galopou em sua direção,
roçando em suas pernas e apoiando as patas em seu peito. Vakú o acariciou com lentidão,
distraído. Podia ouvir Kalté dentro da caverna, manuseando potes e sacos. O Andarilho passara
o dia anterior inteiro cozinhando uma mistura negra e grudenta.
– Não toque nisso – dissera Kalté quando indagado sobre a substância.
Veneno.
Vakú tinha a aljava presa às costas e o arco num dos ombros. Kalté lhe arranjara um trapo
cor-de-areia para proteger a cabeça do sol. Em instantes, rumariam para Relenú, uma cidade
nas colinas, de onde Vakú poderia seguir sua viagem, segundo dissera o Andarilho. Com um
súbito alvoroço de cães trilha abaixo, Kalté iniciou a sua caminhada. Vakú o seguiu.
Não era fácil acompanhar o ritmo do velho. Suas passadas eram largas e o seu compasso
nunca quebrava. Enquanto caminhava, murmurava algo similar a um cântico, de cabeça baixa.
Os dois contornaram a colina até chegarem à sua face sul, de onde descia um segundo córrego.
A partir dali, desceram. Palosíl não saía do lado de Vakú, a não ser por uma eventual incursão
a um dos arbustos secos que cresciam entre as rochas. Não tardou para que chegassem no
pequeno vale ao sul da caverna de Kalté, entre duas colinas. Em seu fundo corria um ribeirão,
abrindo caminho até desaguar no Moltes. Ali as pedras eram mais traiçoeiras, soltando-se e
exibindo seus dentes. Vakú já estava cansado e seu calcanhar direito ainda fisgava. Observava
a algibeira de Kalté balançando à sua frente, em algum lugar a gosma negra venenosa. Não
podia perder o foco.
O vale se estreitava à medida que caminhavam na direção oposta à da correnteza, para o
leste. Quando a luz se tornou escassa, estavam ao sopé duma terceira colina, de onde descia o
ribeirão.
– Ali – disse Kalté, apontando para o alto. – Relenú. Lá em cima, na nascente. Subimos
mais um pouco e descansamos antes da escalada. – Estudou o céu, límpido e estrelado. – Será
uma boa manhã para escalar.
Kalté tirou de sua algibeira gravetos com várias tonalidades de marrom. Prosseguiu com os
cânticos enquanto recolhia galhos secos. Montou um círculo de pedras no chão, dentro do qual
repousou a lenha. Em meio aos galhos, fincou um graveto esverdeado. Uma vez acesa, a
fogueira produziu chamas arroxeadas e nenhum aroma perceptível, além de uma quantidade
insignificante de fumaça. Kalté prosseguiu com seus cânticos, enquanto preparava sua mistura
pessoal de rildémos. Vakú o observava apreensivo, reparando na destreza com a qual o
Andarilho manuseava copo, canudo e ervas.
O veneno não fazia sentido para Vakú, com exceção do fato de que aquele homem era um
Andarilho. Um Andarilho que, poucos dias antes, salvara sua vida. Talvez estivesse reservando
uma agulhada fatal para Relenú, ou apenas fosse para a sua defesa pessoal. Vakú sentiu algo
peludo se aconchegando ao seu lado. Era Palosíl. Os demais cães haviam dispersado, farejando
os pequenos animais que se escondiam por baixo das pedras. Nas Varekvaké, muitos caçadores
ervavam suas flechas para certos tipos de caça. E ninguém – talvez com exceção do velho tolo,
Anarvú – mostraria seu veneno para aquele que deseja envenenar. Apesar de todas essas
considerações, o homem ainda era um Andarilho. Imprevisível. Observou o velho de cócoras,
a barba desgrenhada terminando em tubos. Nunca tirava os olhos do fogo. Decidiu que não
dormiria enquanto Kalté não dormisse, o que poderia ser a noite inteira.
O fogo continuava a queimar e os olhos de Vakú coçavam. Palosíl roncava ao seu lado.
– Descanse, misevaré – disse Kalté. – Descanse para a escalada.
Fingindo obedecer, Vakú se deitou na pedra, usando o trapo cor-de-areia como cobertor.
Passou a noite inteira com os olhos abertos, atento a cada mínimo som, o arco e a flecha
dissimuladamente repousados sobre o seu peito. Quanto mais pensava no veneno, mais
pontadas sentia em seu calcanhar. Quando mais sentia o calcanhar, menos se incomodava com
o cansaço nos olhos e mais os mantinha abertos, olhando para o alto.
As estrelas eram gigantes no céu seco.

Alguma parte obscura da mente de Vakú, aquela que estava por trás do túnel, ofereceu-lhe
a resposta para o enigma do veneno. Não era algo que podia expressar para si com clareza. Só
quem já havia morrido e ressuscitado poderia entender; ou então alguém que, sem saber, ainda
estava em meio à névoa do rildémos.
O sol estava forte desde sua primeira aparição naquele dia. Vakú estava faminto, com as
solas dos pés doloridas. Os cães tinham as línguas de fora. Kalté já não mais cantava ou
murmurava, mas seu ritmo era o mesmo. Sem dúvida, ele era o vale, a planície e o pântano.
Também era a olenamós.
O Andarilho havia sido clemente com Vakú. Oferecera-lhe a visão e alguma explicação, o
suficiente para que abandonasse o caminho sem volta que percorria e se encontrasse
novamente. Como o próprio vale, oferecera-lhe introspecção e os frutos da terra, assim como
os predadores e animais peçonhentos. Este era o pagamento. Seu desejo. Agora Vakú entendia
e, com aquele entendimento, preparou seu arco.
– Nenhuma caça nessas bandas, misevaré. Economize suas flechas.
– Não estou caçando.
Os dois homens e os onze cães deram continuidade à escalada, focados na trilha escondida
entre uma pedra e outra. O sol subiu até as sombras se encolherem e escurecerem. Não era o
modo dos nemék caminharem – descansando nos picos na luz e avançando nas sombras. Até
mesmos os cães tinham dificuldades de acompanhar o Andarilho naquelas condições, sempre
no mesmo ritmo, tanto sob as sombras como sobre o chão escaldante.
Ele era o vale, a planície, o pântano e a olenamós.
Kalté só parou no meio da tarde. Diante dele havia uma árvore de mais de três varas de
altura, altiva numa paisagem onde os arbustos não cresciam mais do que a altura de um
homem. Não tinha mais do que um punhado de folhas amarelas, e o tronco era inchado como a
barriga de uma grávida. Podia-se ouvir o córrego escorrendo do topo da colina a alguns passos
dali. Os cães seguiram o som da água. Vakú desejou fazer o mesmo, mas tinha uma tarefa a
cumprir.
– Punavasané – disse Kalté, enquanto acariciava o tronco barrigudo. – A água corre
embaixo da terra – ele abriu o sorriso apodrecido e encostou um dos ouvidos no tronco. –
Venha, misevaré. Eu sei o quanto deseja um pouco dessa sombra. O que um viajante do vale
pode desejar mais do que uma boa sombra e o som da água correndo?
Entre a pedra seca e a correnteza, o rio cobra seu preço.
Vakú não sabia de onde havia tirado aquilo.
Kalté o fitava com o sorriso horrendo estampado e olhos sérios, negros, profundos.
Repousou o saco sobre uma pedra, agachou-se sob a sombra da punavasané e recomeçou a
cantoria. Com as mãos sobre os joelhos, ele cantava para o chão, como se as pedras fossem a
sua audiência. Vakú espaçou as pernas e tensionou a flecha contra a corda com sutileza. Cada
movimento das falanges dos dedos do Andarilho era captado por Vakú, e a cada um deles ele
incrementava a tensão entre madeira e corda. Uma gota de suor escorreu de sua testa e veio
parar no olho esquerdo, mas ele a ignorou o melhor que pôde. Tinha uma tarefa a cumprir.
Kalté estendeu a mão para dentro do saco tal qual o bote de uma serpente. Quando os dedos
alcançaram seu interior, uma flecha enterrou-se em seu peito. Parou de cantar, mas não de
sorrir. Vakú se abaixou e rolou para trás de uma pedra. Ofegante, apanhou uma segunda flecha
da aljava e apontou-a para o Andarilho. O velho caiu para trás, sem gemidos ou soluços. Os
cães latiram no córrego mais adiante.
Foi só quando Palosíl foi ao seu encontro que ele relaxou a tensão da corda e esgueirou-se
para a punavasané. Kalté estava imóvel, com uma mancha escura se expandindo em seus
trapos. Na mão, três pequenos dardos de madeira, negros na ponta; no rosto, o emaranhado de
presas cor-de-lama, sempre sorrindo.
A estátua não tinha cor senão a da pedra da qual tinha sido feita. Tinha duas varas de altura,
um pouco menos talvez, com três abas próximas ao seu topo. Era feia e estava sozinha no meio
do nada. As pernas de Vakú estavam pesadas demais para que questionasse a presença da
estátua. Fora um dia de tensão, de espera por uma agulhada fatal. Podia ouvir os cães uivando
e lamentando abaixo dali. Sentou-se com as costas apoiadas no monumento e a cabeça
pendida.
– Quem ousa?! – disse uma voz feminina.
Já era dia e a sua boca estava seca. Viu uma mulher de meia idade diante dele, vestida
numa bata cinzenta e com o cabelo curto. Ele se levantou, lento e relaxado. Com o canto do
olho viu uma terceira pessoa agachada entre as pedras. Exibiu as mãos vazias.
– Meu nome é Okorovakú, filho de Okoronamú.
– Onde está o Guardião? – perguntou ela, a boca comprimindo a voz.
Vakú julgou que ela se referia a Kalté.
– Com seus cães, lá embaixo. Nos desentendemos.
– Não conhece a lei do templo, misevaré?
Vakú olhou em volta, observando uma quarta pessoa por trás do ombro da mulher, mal
escondida atrás de uma punavasané. Avaliou a situação com todo o tempo que dispunha,
pensando numa resposta apropriada, uma que desarmasse seus inquisidores.
– Nai.
– Pois bem. Você não pode dormir diante duma enilvé – disse a mulher, indicando a estátua
–, e também não pode vir ao templo de mãos vazias.
– Eu não sabia de nada disso.
– Uma defesa insuficiente. Você será julgado, Okorovakú.
Vakú se perguntou se estaria sonhando ou tendo uma segunda visão. Os outros dois,
homens, também de cabelos curtos e vestidos em batas cinzentas, com porretes negros nas
mãos, posicionaram-se atrás de Vakú. Um deles recolheu o arco e a aljava.
– Ande – disse a mulher, e os homens o cutucaram com os porretes para que se movesse.
Ele obedeceu, buscando com os olhos algum sinal de Palosíl.
Relenú não era propriamente uma vila ou cidade, ou mesmo um templo ou local sagrado
como os que haviam nas Varekvaké. Ficava no topo da colina, onde os ventos eram mais frios,
cercada por um muro da altura de um homem. Havia estátuas parecidas com o enilvé diante do
qual fora capturado de vários tamanhos em seu interior, e as residências tinham o mesmo
formato; as pessoas que circulavam tinham a mesma bata cinzenta, os mesmos cabelos curtos,
e os que ocupavam postos de vigia carregavam os mesmos porretes escuros. Olhavam de
soslaio para Vakú quando passava, desinteressados.
O caminho principal dentro das muralhas terminava no maior edifício de todos, e era para
lá que o conduziram.
A única coisa que havia lá dentro eram degraus para o subterrâneo e um odor de velhice.
Era um lugar sem saída. Chegaram a um salão iluminado por uma pira ardente em seu centro,
pouco mais que brasas. Os dois homens ficaram próximos dos degraus, na entrada, junto com
Vakú; a mulher se dirigiu até o fogo. Ela tirou de uma das mangas da bata algo que ele não
pôde ver e espalhou pela pira. O fogo cresceu, revelando as paredes do salão. Ao notá-las, a
espinha de Vakú congelou.
– Você vem até nós de mãos vazias – disse a mulher. – Para ter as nossas boas-vindas, é
preciso dar boas-vindas a Karnól. E para ter as boas-vindas de Karnól, é necessário dar-lhe sua
oferenda.
Não se podia ver rocha ou alvenaria nas paredes laterais, apenas um emaranhado de ossos
enegrecidos e crânios pendurados uns sobre os outros até onde a vista alcançava. Na parede à
frente, abria-se um buraco de três varas de diâmetro, escuro como a própria morte. Como o
rildémos. Como os olhos do Andarilho.
– Quando chegarem a Relenú os de olhos grandes e mãos vazias, Karnól voltará e engolirá
o mundo – disse a sacerdotisa.
Os esqueletos sorriram para Vakú.
– Você deve uma morte para Karnól – ela o fitou como se esperasse uma resposta.
Os esqueletos estavam prestes a saltar em cima de Vakú. Precisava sair de seu
congelamento. Agora.
– E-eu...
Seria jogado naquele túnel negro, se juntaria aos outros mortos que decoravam o salão, ou
algo pior. Mas já havia passado por aquilo. Já sentira seu corpo arder e a vida esvair. Seu rosto
estava queimado, seus cabelos cortados, no seu sangue corria o veneno da olenamós, e no final
do túnel mais antigo do mundo enfrentara o inimigo da profecia e fora derrotado.
– Eu sou um homem morto – disse ele. – Se é pelos mortos que este kornú anseia, aqui
estou eu.
A mulher arregalou os olhos.
– Você largou um morto para a colina – disse um dos homens. – Não se deixa os mortos
para os abutres. Essa é a lei. Os mortos devem ser oferecidos para Karnól.
Havia um ar de medo fanático entre os cinzentos. Uma inquietação explorável.
Nasoporvú.
– Ele não estava morto nem vivo – disse Vakú. – Ele não era ninguém. Ele era o vale, o
pântano e a planície. Eu sou o morto. Olhe para os meus cabelos. Eles foram cortados, e para
um guerreiro misevaré este é o tratamento que se dá aos mortos. Eu fui tocado pela erva
proibida e vi fogo nas profundezas da terra – sua voz preencheu a cripta. Os esqueletos
sorriram para ele. – Eu presto meu sangue aos kornúk da terra, à profecia, aos meus...
Um dos homens golpeou Vakú com violência nas costelas. Ele se ajoelhou, sem ar.
– Que homem blasfema? – perguntou o agressor.
– Aquele que... – Vakú tossiu e olhou para a mulher, da mesma forma que olhara para
tantas garotas. Sem medo, cheio de agressão. Ela se inclinou para trás. – Aquele... que
morreu... e que retornou... do túnel do lagarto!
A resposta foi o som da pira ardendo e a luz dançando nas paredes de osso.

Para lá e para cá ele foi conduzido, para a nascente que fornecia água e banho aos locais,
para outro lugar, onde lhe deram uma versão descolorida e maltratada das batas dos sacerdotes,
sempre mantendo uma distância temerosa dele. Agora os olhares não eram mais de soslaio:
uma pequena turba se amontoava por todos os lugares que era levado, formada principalmente
por jovens. Ficou um bom tempo de pé sob o sol, junto com os dois cinzentos de porrete,
enquanto a sacerdotisa que o desafiara – que descobriu que se chamava Palí – falava com
alguns dos mais velhos, entrava e saía dos outros edifícios, todos com o mesmo formato e a
ausência de beleza. Tudo ali era cinza.
– Levem-no para a Manisarél – ordenou Palí aos dois pobres homens.
Eles se dirigiram à parte sul da cidadela. No local onde a colina delimitava sua extensão,
havia uma abertura natural na rocha com uma vara de altura e uma de largura. Diante da fenda,
um monte de cinzas brancas dentro de um círculo de pedras lembrava a fogueira de Kalté, com
a diferença de que ele não havia visto o velho deixá-la apagar. Um cheiro familiar vinha da
caverna, adocicado. Rildemulé, a goma que o Andarilho lhe oferecera antes da erva. Os
guardas indicaram o local com os porretes e ele entrou, tendo que se abaixar.
– Quem vem aí? – perguntou uma voz de mulher.
– Okorovakú, filho de Okoronamú.
Dentro da caverna, uma senhora estava sentada sobre um tapete de palha. Ela tinha os
cabelos grisalhos, grossos, tocando o chão. A pele era clara e enrugada. Os olhos estavam
fechados e apertados. Vestia uma bata vermelha surrada e rasgada. À frente dela havia uma
pequena cumbuca com areia cinzenta, de onde saltava uma dúzia de gravetos multicoloridos
com pontas em brasa, soltando fumaça. Era muito diferente das Muniresarél das Varekvaké.
– Okorovakú, o que você me traz?
Vakú ficou parado, pensando se se sentaria ou não. Sentou.
– Apenas a mim mesmo.
– Foi-me dito que o Guardião o enviou para cá.
– É verdade.
– Isso nunca é bom. Deixe-me vê-lo – ela franziu o cenho e estendeu a mão para a frente. A
palma estava escurecida, como se tivesse acabado de manusear carvão. – Isto é estranho.
Nenhuma sombra.
Conte-me algo novo.
– Eu não preciso de ninguém para ver coisas em mim. Eu vi com meus próprios olhos.
– Aí está um que confia nas visões, não é? – ela sorriu. – Nós decidimos o que fazer com
elas antes que venham a nós. Você já decidiu. Nenhuma sombra.
Vakú sentiu-se impaciente.
– Vou embora.
– Não, ainda não. Fique...
Vakú começou a se levantar.
– ...Cogolat! – ela estendeu as duas mãos à frente.
Aquela palavra. Ele se deteve e voltou a sentar. Observando a tez clara da Manisarél, ele
percebeu.
– O que uma mulher sulista está fazendo no vale?
– Então é isso, não é, Cogolat? É isso que o trouxe para mim. O que há no sul para você?
– Meu irmão, meu senhor. Minha irmã.
– E algo mais. Porque você os abandonou? Eu não acho que você é mais um que marcha
para essa estúpida reconquista e é consumido pelo rio.
– A profecia nos obriga.
– E você desdenha a profecia? Por isso os abandonou?
– Acho que não vale nada sozinha.
– E você tem razão, mas disso você já sabe. A promessa da reconquista foi feita quando a
profecia ainda era jovem. Agora, os que marcham para Atablan pouco sabem dela. Está velha,
dura e escorregadia.
– E estas não são, por lei, terras do Falso Profeta? Não deveriam os homens do vale
marchar também?
– Sim, terras do Rei Amet. Mas nós seguimos os meios de Karnól. Nós esperamos o que a
terra nos traz. E veja o que ela nos trouxe. Onde está o Guardião?
Vakú ficou em silêncio.
– Ah, então, enfim – disse a Manisarél –, você sobreviveu à sua dose e fez o que tinha que
fazer. Não é para menos toda essa sua fala de visões. Você vai se tornar um deles.
– Eles quem? – perguntou Vakú, sentido seu estômago revirar.
– Andarilhos. Eu sou o vale, ele lhe disse, não?
– Nunca!
– Você gostaria de ouvir o que tenho a dizer sobre isso? Pois bem: Kalté já vestiu o cinza,
assim como aquele antes dele, e todos desde o tempo em que os primeiros começaram a
empilhar pedras no vale. E ele sempre oferece uma escolha àqueles que cruzam seu caminho.
A maior parte deles não suporta a visão e não vive muito tempo depois disso. E os que vivem
são trazidos pelo Guardião para a sala dos mortos, onde podem esperar a chegada de Karnól
com os outros. Isto até que o tempo consuma o Guardião e um dos nossos machos seja
abençoado com a erva. E quando o tempo me consumir, outra fêmea será abençoada com a
erva e se sentará nesta caverna.
Vakú tremia.
– Visão nenhuma me fará andar, nem que precise pôr fogo em cada um de vocês. Nem que
eu precise morrer.
– Você é o primeiro a chegar aqui em muito tempo, Cogolat. Há alguma coisa que... que
não posso ver em você – ela apertou os olhos ainda mais, fazendo força. – Por mais que você
esteja aberto para mim e sem nenhuma sombra, há...
– Fogo?
– Não sei sobre isso. Mas agora você está em perigo, isto eu sei. Você pode vestir o cinza e
se tornar o nosso novo Guardião no lugar de Kalté ou ir habitar a sala dos mortos. Ou então...
– Não farei nenhuma...
– ...ou então levar Relenú consigo para onde quer que você deseje ir.
Vakú ponderou as palavras. A fumaça empesteava sua face. Teve vontade de espirrar.
– Como eu disse antes, eu já decidi o que fazer.
– O caminho amarelo.
– Como?
– O caminho dos abutres. Não posso te dizer como você chegará até lá, mas terá que levar
o vale consigo. Eles não te deixarão ir sozinho. Morrerão tentando te impedir. A reconquista
também urge os que vestem o cinza, mas de um jeito diferente. Eles andarão pelo caminho
amarelo caso não haja mais motivo para aguardarem o retorno de Karnól. E eis ele aqui: o
Andarilho que passou pela porta da morte.
– Eles... – Vakú olhou para trás. Não havia mais ninguém na entrada da caverna. – Quer
dizer que você não acredita... – recordou as palavras de Koroní em sua tenda. O entendimento
da necessidade de seguir cegamente a profecia.
– Eu sou a Manisarél, não é meu papel interferir com o que está acima da voz da profecia.
Você a ouviu? Acho que sim. Você já instigou muitos pensamentos destrutivos desde que
chegou aqui, Cogolat. Eles passam pela minha cabeça também.
Você tem o toque da podridão.
– E o que você dirá para eles? – perguntou Vakú. – Tenho certeza que...
– Que não há sombra. Que você é um bom rapaz.
– E eu sou?
– Você tem cheiro de guerra, Cogolat. Você não trará nada de bom para nós, mas já é
irreversível. Os sinais são muito fortes para que os nossos prossigam em sua quietude. Eles te
matarão ou matarão por você. Ouça o que a voz te diz. Por um acaso ela te trouxe alguma
palavra reconfortante?
Ela não sabe nem metade do que você sabe. Ela não sabe sobre a faca negra.
A voz veio grave, explosiva. Vakú levou as mãos à cabeça.
– Pobre Cogolat – disse a Manisarél.
Demorou para que Vakú recobrasse a compostura e a respiração. Talvez ainda estivesse
sonhando, enquanto sua vida se esvaía no veneno da olenamós. Talvez Mosú o tivesse matado
ao invés de Anarvú. Mas a voz não era algo saído dos sonhos, disso ele tinha certeza. Era mais
real do que a da mulher que estava bem diante de si.
– Como... – disse Vakú.
– Sim?
– Você ainda se lembra da língua de sua terra?
– O que você quer saber?
– Como se diz “faca negra” na língua do sul?
Ela sorriu, como se estivesse lendo seus pensamentos.
– Cengamut.
Ela não devia ter mais de dezesseis anos, cabelos curtos avermelhados, pequenas manchas
escuras sobre o nariz e abaixo dos olhos redondos, cor de mel. Outra sulista.
– Você vai vestir o cinza, misevaré?
– Nai.
Armaram um toldo com um remendo de peles e tecidos para Vakú, parecido com uma
tenda de mascate. Não lhe haviam permitido ficar nas grutas e masmorras com os outros. Ele
não se importava. Não lhe devolveram seu arco e sua aljava, mas o deixaram ficar com um
saquinho de couro de cobra que tomara do Andarilho, que tratava com toda a delicadeza.
– Sabe, todos os que chegam de mãos vazias vestem o cinza. – Ela se ajoelhou e repousou
o balde de madeira no chão. – Você até cortou seu cabelo.
– Não fui eu. Cortaram para mim. – Vakú sentiu uma sensação de propósito nostálgico.
– Palí disse que você vai provar a erva e ir morar na caverna de Aramurké.
Aquilo estava desconfortável. Em vários sentidos.
– Nai.
– Acho que você não contaria para mim, mas... – ela baixou o tom de voz para um suspiro.
– Me disseram que você matou o Guardião. E também me disseram que ele era imortal, que já
estava morto, mas que ainda andava. Eu tinha medo dele, daqueles dentes.
Ele sorriu e ela abaixou o olhar, envergonhada.
– Me desculpe – disse a garota. – Não deveria estar falando essas coisas.
– Qual o seu nome?
– Letví.
– Letví, o que acha que eu sou, honestamente?
– Eu não...
– Tudo bem, pode dizer. O que você acha?
– E-eu só sei o que é dito para mim. E eles dizem...
– Não, não. Não quero saber o que eles dizem. Quero saber o que você acha.
Letví olhou para os dois lados.
– Eu acho que você vai ficar no lugar do velho Kalté.
Vakú sentiu um calor reconfortante dentro de si, como se soubesse exatamente o que tinha
que fazer daquele ponto até o fim de sua vida.
– Deixa eu te contar um segredo – disse Vakú, inclinando-se para frente e prendendo a
atenção da garota. – Eu não vestirei o cinza. Eu não ficarei no lugar do velho. Ele próprio disse
que não era meu destino. A Manisarél me disse a mesma coisa. Eu vou marchar para o sul,
pelo caminho amarelo, pela estrada dos abutres. Eu tenho o toque da vitória, o velho me disse.
E quem for comigo irá escrever seu nome nas pedras brancas de Atavalán.
– Anur-Eldorot! – disse Letví, tapando a boca em seguida.
– Agora ouça: não conte isso para ninguém. Eu confio em você, você que traz minha água e
minha comida. – Ele pôs o dedo diante dos lábios. – Para ninguém.
Ela assentiu e deu um sorriso inconsciente. Deixou o toldo de Vakú com pressa. Correria se
pudesse. Vakú deitou-se na esteira de palha, as mãos apoiando a nuca, confiante de que através
da garota Letví as suas meias-verdades se espalhariam como fogo na palha entre os cinzentos.
Tinha que estar preparado.
Nasoporvú.

Os pensamentos de Vakú haviam triplicado de volume no silêncio da noite da cidadela.


Uma canção se repetia em sua cabeça em algum ponto entre o afeto pelos seus entes queridos e
os furos proféticos da visão e das palavras da Manisarél; e aquele sentimento não enunciável
de que sabia o que fazer dali em diante até o fim de sua vida.
Notou uma luz vindo em direção ao seu toldo. Luz de tocha e duas silhuetas negras.
Quando viu suas faces, percebeu que eram dois garotos. Eles pararam diante da entrada da
cabana improvisada.
– Senhor misevaré?
– Sim?
– Podemos falar com o senhor?
Vakú demorou a responder.
– Claro, mas deixem esse fogo para fora.
O garoto que segurava a tocha a repousou no chão. Entraram, perguntando com o corpo se
poderiam sentar.
– Sentem-se.
Os dois se acomodaram com reticência, ajeitando as batas cinzas. Eram povo de seu povo:
olhos e cabelos negros, pele morena. O que se dirigia a ele tinha agressividade nas
sobrancelhas. O outro tinha a energia de um filhote de cão que fora maltratado. Vakú os
encarou, divertindo-se com seu desconforto. Era bom finalmente receber o tipo de atenção que
sempre julgou merecer.
– Senhor, obrigado por nos receber – disse o das sobrancelhas agressivas.
– O-obrigado por nos receber – disse o filhote de cão.
Vakú não se moveu.
– Nós queríamos saber... – disse o primeiro.
Silêncio.
– Eu sei o que querem saber. Se é verdade o que ouviram. – Os garotos se entreolharam. –
Digam-me então, o que foi que ouviram?
Houve demora na resposta.
– Que o senhor levará os daqui para o sul, para lutar na torre branca – disse o das
sobrancelhas.
– Atavalán – disse o outro.
A menina é rápida.
– Há alguns aqui que desejam que eu espere pelo kornú junto aos outros mortos – disse
Vakú.
Os garotos estavam inclinados para frente.
– Então é verdade? – perguntou o das sobrancelhas.
– Qual o seu nome, jovem?
– Avé, senhor.
– E eu sou Suné – disse o filhote de cão.
– Muito bem, Avé, Suné. – Vakú impostou a voz da maneira que Mosú fazia. – Eu não
quero criar problemas para os sacerdotes, mas eu tomarei o caminho amarelo em breve;
morrerei tentando fazê-lo se preciso. Meu irmão, meu senhor, está correndo perigo, e eu tenho
que ajudá-lo.
O impacto das palavras foi satisfatório. Podia ver o desejo de glória nos olhares dos jovens.
– Mas suas leis não me permitem, e não permitem que vocês me sigam. Segundo elas, eu
tenho que tomar o lugar do velho Guardião. O que eles não entendem é que o tempo dos
Andarilhos e das Muniresarél está acabado. O Falso Profeta se foi, e a profecia urge a todos
que seguem as leis antigas a reclamarem a pedra branca. Disso eu não posso fugir.
Vakú olhou para baixo, suspirando.
– Porém, como eu disse antes, há aqui alguns que se esqueceram há muito tempo, se
misturaram aos costumes do sul, aos costumes do Rei Bestial. Eles me querem no lugar onde
eles acham que é certo, com meus ossos na parede; ou numa caverna para sempre, com visões
que não servem para nada.
Silêncio.
– Deixe eles tentarem! – disse Vakú, fechando os punhos. – Eu morri e voltei à vida. Eu
não tenho medo dos abutres. Eu sou o Senhor dos Abutres! Eruloké!
A palavra ecoou. Avé e Suné responderam com olhares de adoração.
– Senhor, se depender de nós, ninguém te impedirá – disse Avé.
– O que tiver de ser, será – disse Vakú, sombrio.
– Dê-nos armas, Eruloké! – disse Suné.
– O que deu em você? – disse Avé para o colega.
– Eu sou seu prisioneiro. Vocês são os que têm acesso às armas, se é que podemos chamá-
las assim. Agora vão – Vakú levou o indicador aos lábios –, mas lembrem-se: não digam nada
para ninguém.
Os garotos deixaram o toldo a contragosto, com muitas pequenas reverências.
Tão jovens.
Você tem o toque da podridão.
Nasoporvú.

Bum-bururum-bum-burum-burubudum.
Os tambores tinham um ritmo difícil de se captar, ainda mais com o sol os castigando.
Vakú agradeceu pelos trapos leves e vazados que havia ganhado. Amarrado na cintura estava o
saquinho de couro de cobra; nunca o deixava longe das mãos. Estavam todos diante do edifício
central que continha o salão dos mortos. Vakú contava pelo menos cem cabeças vestidas de
cinza. Apenas ele e a Manisarél, de vermelho, eram exceção.
Burum-burubudum.
Ao lado da Manisarél estava Palí, a sacerdotisa que o encontrara dormindo abaixo do
enilvé, um cinzento velho e os três tocadores de tambor. Um corpo envolto em panos
vermelhos era conduzido através de um caminho aberto na multidão. Ele iria se juntar aos
outros mortos.
Burubum-bum-dum-buburum.
Era o corpo do Andarilho.
Burudurum.
Em torno de Vakú estavam Avé, Suné, Akaradé e Letví, o grupelho de adolescentes que o
idolatrava; também estavam lá Levú, Polomé e Valmavakí, que o seguiam da forma mais
desconfiada e dissimulada própria dos mais experientes. Eles eram seus.
Burum-burumbudum-buruburuburuburuuuum...
Bum.
Ao cessar do som dos tambores, a Manisarél ergueu os braços, revelando um punhal
brilhante. Todos levaram as mãos unidas em concha à testa. Vakú achou melhor imitá-los.
– Karnól-Eramevé – entoou a Manisarél, a voz áspera e segura, – Karnól-Erevamepé,
Karnól-Eremulé, Karnól-Eretulé, Karnól-Ereseké, Karnól-Eraviné.
Vakú desfez o gesto e ficou boquiaberto.
– Karnól-Erevatasé, Karnól-Eretamé, Karnól-Erepalkamíl, Karnól-Eremurolnú, Karnól-
Erevalé, Karnól-Erenivopú, Karnól-Erirkemalepké!
Era uma distorção grosseira do mantra que aprendera ainda garoto nos ventos frios das
Varekvaké, diante de tantas cabras que haviam dado suas vidas em honra aos Kinetolé e à sorte
de seu povo. Vakú sempre tivera pena das cabras e sempre fora repreendido por tal. Para ele
era uma tolice, desperdício, crueldade. Não obstante, era o mantra de sua gente. Do mundo que
primeiro conheceu. E agora uma sulista o corrompia. Da mesma forma que era feito em
Atavalán em honra ao Falso Profeta, se fazia aqui em nome de um único kornú. Um que se
alimentava dos mortos.
O corpo do Andarilho chegou até a Manisarél e lá foi repousado. Os cinzentos começaram
a repetir o mantra:
– Karnól-Eramevé, Karnól-Eretamé...
– Parem! – sussurrou Vakú para os seus seguidores. – Estas palavras estão corrompidas!
Os quatro adolescentes pararam, lançando olhares confusos. Akaradé, o maior e mais velho
entre eles, retomou o mantra logo em seguida. Os outros três aguardaram.
– ...Karnól-Eretulé, Karnól-Ereseké...
Vakú xingou, abrindo caminho entre os cinzentos para fora do ritual. Olhares assustados,
confusos e raivosos caíram sobre ele. Não era a primeira vez.
Vakú se dirigiu para o seu toldo e se sentou na esteira de palha. Os tambores rufavam à
distância. Os sete foram até ele, mais um homem e uma mulher. Nove ao todo. O homem
recém-chegado se adiantou com a cara de quem vira um espírito faminto.
– Por que faz isso, Eruloké? – perguntou o homem.
– Vocês sabem por que o Falso Profeta é chamado assim?
Confusão.
– O Falso Profeta – disse Vakú, agitando as mãos. – O Rei Bestial.
Compreensão.
– Ele está morto, Eruloké – disse Akaradé, como se Vakú não soubesse daquilo.
– Sim, mas vocês sabem por que ele era um falso profeta? Ele tomou as palavras originais
da profecia e as distorceu para o seu próprio benefício. Cada um dos kornú leva consigo uma
parte do segredo da vida e da morte; nenhum deles sozinho pode clamar a servidão dos
homens. E foi isso que o Rei Bestial fez. Cuspiu na profecia, cuspiu nos Kinetolé e reclamou
as palavras para si.
Silêncio.
– É exatamente o que se faz aqui. Este kornú comedor de ossos toma para si as palavras e
as distorce em seu próprio benefício. As palavras da Manisarél dão poder para os lugares
errados. Dão comida aos abutres.
Os cinzentos não sabiam o que fazer com aquilo, a não ser Avé, que se adiantou com
desejo de sangue estampado nas sobrancelhas.
– Eruloké, permita-me acabar com esta profanação.
– Não é necessário. O corpo do último Guardião vai para baixo da terra. A falsa profecia
vai com ele, assim como as mentiras de Atavalán morreram com a Besta.
– E o que você pretende fazer, Eruloké? – perguntou a mulher que Vakú não sabia o nome.
– Abaixar a cabeça e cumprir o que a profecia nos comanda. Cortar o mal pela raiz. Lá. –
Vakú apontou para a sua esquerda, para o sul. – Onde há mil anos se distorceu a profecia pela
primeira vez.
Houve uma inquietação excitada na audiência. Avé e Akaradé, os dois jovens mais
agressivos, sorriram com os olhos.

– Quem você pensa que é? Que tipo de besteira a Manisarél pôs em sua cabeça? –
perguntou Palí.
Diante de seu toldo, Vakú era seguro pelos braços por dois cinzentos com porretes nas
mãos. Ele ficou em silêncio, encarando a sacerdotisa com um meio sorriso no rosto. Por
dentro, tremia.
– Vamos jogá-lo, Mil-Palí – disse um dos homens. – Deixá-lo para as pedras.
– Bem, isso seria bonito de se ver, não? Afinal, ele deturpou a sagração daquele que ele
mesmo matou, e, ainda por cima, convenceu alguns dos mais desmiolados a fazerem o mesmo.
– As palavras... – disse Vakú, a voz cheia de dor.
– Fale mais alto! – gritou Palí.
– As palavras da sagração... são sujas.
Um ódio repulsivo se desenhou no rosto da sacerdotisa. Não havia mais razão para a
política com os cinzentos. O melhor caminho era o choque. Vakú travou o pescoço, a
mandíbula e o ventre, preparando-se para os golpes vindouros. O sacerdote que o segurava
pelo braço direito ergueu o porrete.
– Batam nele mais uma vez e eu serei a última coisa que vocês verão – disse uma voz atrás
de Palí. Vakú viu as sobrancelhas de Avé mais ferozes do que nunca. Ele segurava um porrete
com as duas mãos. Os homens riram nervosos, desacreditando no próprio humor.
– O que está fazendo, noviço? – perguntou Palí. – Você quer beijar as pedras junto com seu
amigo, quer?
Avé não moveu um fio de cabelo. Era uma visão de fúria desnuda. Todos ficaram
apreensivos. Palí aproximou-se do garoto a uma distância segura, apontando o indicador para
sua face. A única palavra que Vakú pôde entender foi “arrepender”. Ela gesticulou para os dois
cinzentos, que largaram Vakú e a seguiram para longe dali. Avé correu e repousou o braço
esquerdo de Vakú em seus ombros.
– Está bem, Eruloké?
– Estou.
– Isso não vai ficar assim.
– Temo que vá. Só irá piorar. Amanhã eu parto. Diga aos outros. O caminho amarelo não
pode mais esperar.
Avé fez que sim com a cabeça, esboçando um sorriso. O martírio pulsava nas veias saltadas
de seu pescoço.
Um cão de guarda. Muito bom.

A madrugada veio fria e pesada. Com Vakú em seu toldo estavam Avé, Akaradé, um
sulista de meia idade e um quinto noviço. Eram onze agora no total. Akaradé tinha repousado
nove porretes negros diante da esteira. Esperavam pelo sinal de Vakú, ainda desconfortável
com sua nova posição de causador numa cidadela remota de sacerdotes no vale do Moltes.
– Suné estava agindo estranho hoje à tarde – disse Akaradé, olhando para Avé. – Eu me
pergunto...
– Ele tinha algo a fazer – respondeu Avé.
– Algo a fazer? – perguntou Vakú.
– Sim, Eruloké. Nós temos que nos precaver contra a corrupção.
Vakú notou leve baixar de cabeça dele e os olhares distantes e carentes dos demais. Esta
entidade Eruloké que havia criado já estava fora de seu controle.
– Diga então Avé, o que é que...
Vakú viu uma sombra passando diante do prédio mais próximo. Os outros acompanharam
o seu olhar.
– Não tema, Erulot – disse o sulista. O homem tinha uma energia nervosa na fala. – São só
os homens de Palí. Enquanto estivermos com o senhor, nada farão.
– Avé, diga o que você estava prestes a dizer – disse Vakú.
– Sim, perdoe-me, Eruloké. Ele foi fazer uma visita à velha bruxa.
O termo desconcertou os demais.
– Uma visita? – perguntou Vakú. Avé assentiu.
Vakú se levantou. Teve vontade de correr até a caverna e impedir o que ele julgava ser uma
decisão pueril e estúpida da parte de seus seguidores, mas algo o deteve.
Não olhe para trás.
A voz.
Aos mortos, os abutres.
Havia um novo sentido. Encarou os cinco diante dele e inspirou, decidido.
– Avé, vá buscá-lo. Nós partimos agora. Você, Akaradé...
– Erulot – disse o sulista –, para onde...
– Você saberá em breve. Despertem os outros. Já fiquei tempo demais por aqui.
Depois de alguns momentos de hesitação, os cinzentos se movimentaram. Avé ficou ali por
mais um instante, com ferocidade nas sobrancelhas e nas pupilas negras.
– Traga a faca e qualquer outra coisa útil para o caminho – disse Vakú.
Avé assentiu e zarpou. Uma vez sozinho, Vakú curvou-se sobre os joelhos, ofegante.
Só recuperou a compostura quando ouviu a aproximação de um grupo. Contou nove. Eles
carregavam algibeiras, sacos improvisados e os porretes. O sulista de meia-idade trazia uma
gaiola. Dentro dela havia um pássaro curioso, com todas as cores do arco-íris nas penas.
Akaradé carregava uma corda e vestia uma capa esverdeada com capuz, que o deixava com
uma aparência escorregadia. Era um grupo estranho.
– Esperem-me do lado de fora – disse Vakú.
O grupo saiu silencioso. Apenas o pássaro do sulista soltava um pio ou outro. Trazê-lo era
uma estupidez sem tamanho, mas Vakú não foi capaz de ordenar que o deixasse para trás. A
imagem de Tulú agonizando no lamaçal veio à sua cabeça.
Um grito na noite e o som de passos. Vakú, ainda sob o toldo, apanhou o porrete e afastou
as pernas. Duas figuras corriam em sua direção. Apertou a empunhadura e ergueu o bastão.
Vislumbrar os rostos de Avé e Suné não foi o bastante para desfazer sua postura defensiva.
Suné carregava um punhal com a lâmina tingida de vermelho. Tinha a expressão de uma
criança de cinco anos sendo imersa na água gelada.
– Eruloké – disse Avé, arfando –, nós temos que sair depressa.
Outros passos vinham naquela direção. Vakú saiu em disparada para o portão,
serpenteando entre os prédios. Os jovens o seguiram. Ao chegarem lá, um dos cinzentos que
fazia a ronda noturna tentou fechar o portão às pressas. Avé ultrapassou o grupo e partiu para
cima do homem. Vakú rapidamente tirou a faca da mão do aterrorizado Suné e o empurrou
para trás. Quando se voltou para o portão, ouviu um gemido e o som de ossos quebrando. No
lugar da cabeça do cinzento havia uma concavidade onde Avé o golpeara.
Vakú levou a mão à boca, chocado.
Eles empurraram o portão e abriram uma fresta suficiente para que só um por vez passasse.
Os passos e gritos dentro da cidadela estavam próximos. Vakú puxou Suné e o empurrou para
fora. Correram pela trilha entre as pedras como se não houvesse o amanhã.
Capítulo 7

Capa Marrom

B amir lambeu o sangue das costas da mão com a língua. Ele tinha fome e foi a primeira
coisa comestível que encontrou. Eram poucos guardas e eles estiveram com a cabeça num
lugar distante quando Bamir os esquartejou e rompeu suas gargantas, um a um. As pernas
estiveram ferozes, girando seu quadril; seu quadril, por sua vez, girando seus braços; seus
braços, por sua vez, girando o gustabit. Estava diante de uma porta de mogno, com o sol e a
espada entalhados em relevo. Era preciso ser um louco para invadir o quartel general dos
Astanart. Um palhaço. Mas Bamir já não era mais o mesmo. Atablan já não era mais a mesma.
O desespero e ferocidade de ambos desaguaram naquele momento.
Como iria ser? Do outro lado da porta podia ouvir vozes sopradas. Um toque sutil, talvez?
Três batidas leves, porém firmes, como se um dos guardas quisesse levar uma informação
monótona e inútil para os comandantes que possivelmente estariam do outro lado, e então...
Melhor não. Bamir acariciou a superfície da porta, sentido a madeira, depois a fechadura.
Afastou-se da porta, tomando a maior distância possível. Em seguida, correu na direção dela e
saltou com as solas da bota apontadas em direção à maçaneta. Com um estrondo, a porta cedeu
e Bamir rolou para dentro.
– Kornumulé! – gritou uma voz grave.
Bamir se ergueu, veloz como um gato, plantando as solas dos pés no chão e exibindo a
espada. A sala era luxuosa, com um tapete de pele de leão e uma lareira. Diante dela havia três
poltronas e dois homens, um sentado de costas para a entrada e um de pé, alto, escuro, vestido
numa túnica negra. Bamir ficou imediatamente sóbrio ao reconhecê-lo.
– Caromosut? – perguntou Bamir.
– O que se passa, Corlomut? – perguntou o homem sentado.
Caromosut parecia amedrontado.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou Bamir.
– O que você está fazendo? – perguntou Caromosut.
As perguntas não conheceram resposta. A chuva começou a golpear a janela de vidro no
lado oposto da sala.
– Responda ao homem, Caromosut – disse Bamir.
– Não é nada, senhor Condestável. Apenas um pivete insolente fantasiado de Astanart.
– Agora responderei à sua. – Bamir apontou a lâmina para Caromosut. – Eu vim atrás de
cabeças, de cabeças valiosas. De cabeças que querem a minha.
O homem sentado começou a rir. Quando os outros dois pensaram que a gargalhada ia
desvanecer, seu volume aumentou. Caromosut acompanhou a risada de maneira amarela.
Covarde.
– Corlomut, não é? – disse Bamir. – Me disseram que um tal de Corlomut era o líder dos
Utet, e aí está você, todo de preto. Veja só a minha sorte. O Condestável em pessoa e o cabeça
dos carecas sem guardas para protegê-los, na mira do meu aço.
Caromosut olhou para o Condestável, esperando uma resposta.
– Eu não tenho nada a ver com isso – disse o Condestável. – Vocês criminosos que se
entendam.
– Não se preocupe, senhor Condestável – disse Bamir, irônico. – Será uma conversa rápida.
– Seu filhote de rato ingrato! – disse Caromosut, mostrando os dentes. – Eu deveria ter te
deixado virar um zumbi.
– Tem razão. Quem diria que um dia eu viria atrás da sua cabeça?
– Você não sabe com o que está se metendo.
– E não preciso. O que eu sei é que você é um rato ganancioso que vendeu os irmãos para
se aproveitar do alvoroço da morte do Rei. Que você é um covarde, que se esconde atrás
desses pobres fanáticos. Mas tudo bem, eu te entendo. Cada um faz o que lhe interessa, o que
lhe faz mais rico de uma maneira ou outra, não é isso?
– Devo contar a ele? – Caromosut buscou novamente o Condestável.
– Olhe para mim, seu covarde filho de uma puta! – gritou Bamir.
Caromosut ficou estático. Bamir devia ser uma visão de loucura, de barcos queimados: a
careca repleta de cicatrizes e manchada de vermelho, a face contorcida no sorriso febril do
rildémos. Nos olhos de seu antigo chefe viu que já havia ganho aquela luta. Avançou.
O Condestável só desviou o olhar do fogo quando ouviu a faca negra de Caromosut cair no
chão, acompanhada pelos grunhidos. O gigante nortista tombou para trás, contorcendo-se e
emitindo odores vergonhosos. Bamir o finalizou com uma estocada no coração.
– Sente-se – disse o Condestável, a voz calma.
Bamir se abaixou e recolheu a faca negra, a arma que apenas os chefes deveriam portar. Era
o fim dos Cengasmut, e possivelmente da própria Atablan. Naner estivera certo, e agora
apodrecia em alguma cova rasa no fundo do Moltes junto com os ratos e os vermes. Sentou-se
na poltrona ao lado do Condestável e os dois ficaram em silêncio, observando a lareira e
tentando ignorar o cheiro de merda atrás deles.
– A quem devo minhas honras? – perguntou o Condestável.
– Bamir.
– Bamir. Muito bem. Creio que tenha algumas perguntas que queira fazer.
Bamir se virou para olhar o Condestável. Era um homem na casa dos sessenta anos, calvo e
de olhos azuis. Havia um ar aristocrático em torno dele: a taça metálica que segurava e da qual
bebericava, a calma diante dos seus últimos momentos. Voltou a olhar para o fogo. A chuva
engrossou do lado de fora.
– Eu não sei – disse Bamir, levando a mão ao queixo. Sentiu a névoa do rildémos retornar.
– Parece tudo muito...
– Você acabou de matar seu colega, rapaz, que você mesmo disse que vendeu os próprios
irmãos. Acho que você deseja saber o que vem em seguida, seu destino.
– O que vem em seguida?
– Purcalat.
Um tremor percorreu o corpo de Bamir.
– Eu não sei nada sobre isso ou sobre destino algum. Foi essa situação toda, foi a...
– A erva?
– Eu acho que não quero saber.
– Bem, isso não importa mais, não é? Eu não posso te enfrentar e você chegou longe
demais. O que os aterrorizados cidadãos de Atablan pensariam se você contasse como entrou
aqui, e que encontrou o Condestável, o líder dos Astanart, compartilhando uma taça de vinho
com o líder dos Utet? Se você voltar para trás, Bamir, será caçado até a morte.
– Eu estou sendo caçado.
– Não o quanto será. Você pode até não saber o que irá fazer, mas não me venha dizer que
você não sabe por que chegou até aqui.
– Eu estava acuado. Eu fui motivado a lutar até morrer contra quem quer que fosse. Não há
mais nada da minha velha vida, e eu deixei a erva me guiar. Ela me dá força agora, não sei por
quê. E tem essa... deixa para lá.
O Condestável suspirou e tomou mais um gole do vinho.
– Por que Purcalat? – perguntou Bamir.
– É o único lugar para o qual você pode ir se tiver ainda alguma vontade de viver. Não é
por acaso que você veio até aqui e nos pegou nessa situação desprevenida. Nós gastamos a
nossa vida deixando de lado todo o tipo de superstição, xingando-as de tolices, para que
possamos chegar até onde queremos sem dar chances para o azar. Mas ele vem, de qualquer
modo. E ele vem profético e tolo. – O Condestável olhou para Bamir com um sorriso honesto.
– Não há nada que possamos fazer quanto a isso.
– Eu não vejo como – disse Bamir, ignorando o Condestável. – Quero dizer, chegar até
aqui já era algo muito além do que eu consideraria provável. A torre branca...
– E as mil espadas que aguardam o seu chamado.
Bamir se voltou para o Condestável, surpreso.
– O sinal dos Anespornat?
– Eles se foram, rapaz. Purcalat está vazia.
A cabeça de Bamir deu um giro.
– Morreram com o Rei?
– Pare com isso! Pense um pouco por um instante. Quem seria tolo o bastante para tentar
envenenar o Rei Amet? Eu tive a honra de estar em sua presença, rapaz. Não há vida neste
mundo que chegue a menos de vinte passos dele sem que ele a comande completamente. Não
há nada que ele não veja. Não há ninguém cujas intenções ele não conheça. Ele é um deus, e os
deuses não morrem.
– Mas... se o que você está... qual a razão para tudo isso? O que...
– Não vá por esse caminho. É uma missão de tolos tentar entender. Em algum lugar ele
sabe, e só ele. Tudo que sei é que em Soltaprest, mil Capas-Marrons aguardam o sinal de
Purcalat; e com eles, os Anespornat.
– Isto não faz sentido...
Há-há-há-há-há.
– O que o impediu, ou a este rato – Bamir indicou o fedor atrás deles –, de irem vocês
mesmos até Purcalat e chamar os Capas-Marrons?
– São só aparências, Bamir. Quem se dispõe a almejar tão alto quando a própria vida
mundana está em risco, quando proteger seu próprio pescoço é a necessidade mais pungente,
ou quando não há mais erva? Você viu os seus amigos, e sei que você também se escondeu.
Até você chegar, eu e Corlomut tínhamos tudo o que quiséssemos. A ausência do Rei foi boa
para nós. Este vinho – ele agitou a taça – é o melhor vinho que eu já tomei na minha vida. E
tudo porque não há mais Capas-Marrons se metendo nos nossos negócios, e não há mais
criminosos como você para caçar quando o líder entre eles está tentando destruí-los, e não há
mais nenhuma guarda para eu comandar quando ela está entrincheirada, lutando contra homens
sob o comando daquele que toma este mesmo vinho comigo numa tarde chuvosa. Sabe, ele
veio do próprio armazém dos Anespornat. Está tudo aberto. Foi divertido enquanto durou.
– Você ainda não respondeu, Condestável.
– Há muita luta ainda pela frente para os Capas-Marrons, jovem, e para qualquer um que
deseje enviar o sinal de Purcalat. Eu não desejo isso, e não foi o que me ordenaram.
– O que te ordenaram? Quem?
– Os Anespornat. Todo esse jogo entre os Utet e os Astanart foi planejado antes que a
mentira do Rei fosse espalhada. Talvez uma ordem do próprio Amet, mas disso nunca
saberemos. E aqui está você, pronto para assumir essa batalha.
– Eu não estou aqui para assumir nada, não se engane.
– Você já sabia demais, e agora sabe mais do que lhe é seguro. Tem as armas que ninguém
mais tem. Eles estão vindo, do norte, para a reconquista. Bárbaros. Eu não quero estar aqui
para assistir.
– Mas você está, ou pelo menos estaria se eu não tivesse vindo aqui.
– Há uma embarcação escondida em Bolcatagrit, armada para a nossa fuga. Esperávamos
que fosse demorar mais uma semana. Alguém nos espera ao longo da costa, um vassalo,
ansioso pelas finas especiarias de Atablan. Mas você tinha que estragar tudo, não? – O
Condestável olhou para o teto. – Amet, você vê através de todas as paredes, não é? Perdoe
minha inocência.
Bamir sentiu-se incapaz de controlar a correnteza furiosa de pensamentos.
– Agora – disse o Condestável, a voz ébria –, escute bem, você tem essa responsabilidade.
Se sair daqui e voltar para o seu cortiço, onde quer que seja, os Utet não descansarão até terem
a sua cabeça. Foram instruídos para tal. Ninguém sai do Distrito Real e vive para contar, esta é
a ordem. Eles te viram, eu suponho, mas você já chegou longe demais. Cumpra a vontade de
Amet e suba na torre.
– O que....
– Não! Faça! É a vontade de Amet! Não tente entender!
A chuva continuava a bater na janela.

No fundo, o Condestável cultivava uma esperança de que, talvez, Bamir o deixasse fugir
por Bolcatagrit, que o seu rei divino ainda lhe oferecesse uma última chance de redenção. Ele
segurou o gustabit com as mãos, chutou as suas pernas, rangeu os dentes até as veias da face
quase explodirem. Não era à toa que havia se tornado o comandante dos Vermelhos: era um
lutador formidável, mesmo enfraquecido pela idade. Ao fim e ao cabo, a juventude, o talento e
a erva no sangue de Bamir prevaleceram, rasgando o abdômen do Condestável. Diante da
lareira, Bamir refletiu por mais alguns momentos e traçou seu plano. Purcalat. Sinal. Bárbaros.
Isso mesmo.
Ele avançou sobre a mesa do salão, rasgando os pães, engolindo as uvas sem mastigar e
bebendo vinho no gargalo. As moscas começaram a sondar os corpos caídos. Sem delongas,
saiu correndo pela porta que arrombara, tentando ser mais veloz que seus medos e dúvidas.
Logo estava de novo sob a bandeira vermelha, agora úmida e caída. Não havia ninguém lá
embaixo até onde podia ver.
Receba-os.
A voz parecia que era a mesma que sempre falara em sua mente. Estava confortável com
ela em sua indisposição de compreendê-la, evitá-la ou abraçá-la. Sentiu a vibração de energia
nas pernas e braços. Era o momento.
A torre branca era protegida por um muro de quatro varas de altura. Não havia portões,
como todos sabiam. As entradas e saídas estavam escondidas abaixo da terra. As seteiras eram
imperceptíveis na pedra sólida. Tudo que havia em sua parede era a sacada apontada para o
norte, onde outrora o Rei Bestial se revelava para os seus súditos e fiéis. Uma escalada
impossível. Bamir observou as pequenas torres que se dispunham pela muralha circular e
notou que estavam desocupadas. O Condestável falara a verdade.
Enquanto se frustrava diante do monstro branco, ouviu um uivo atrás de si. O lobo.
Virou-se e nada viu, apenas a esplanada de Purcalat na garoa. Era a erva. Talvez uma parte
da conversa com o Condestável também tivesse sido uma alucinação. Ou talvez o lobo
realmente estivesse ali. Não valia a pena fazer tais perguntas. Chegou próximo ao muro onde
se erguia uma das torres de guarda e sentiu a parede com as mãos. A pedra era lisa. Precisava
de um plano melhor. Corda. Ganchos. Purcalat. Sinal. Bárbaros. Isso mesmo.

Na primeira vez que Bamir experimentara o rildémos, ainda um indigente assombrando os


becos de Bolcatagrit, ele ouviu as mesmas histórias que todos ouvem: visões do futuro,
homens derrubando paredes com os punhos, tudo feito por um amigo do amigo lá de não-sei-
onde. Um ano depois, vendo a carne abandonar seus ossos, eram apenas lendas. Até que, ao
ver a cara da morte, elas se tornaram verdade, e por sua vez fizeram com que muitas lendas
com aparência de realidade se tornassem fictícias. Talvez por causa do lobo. Talvez a voz
fosse a voz do lobo branco. Talvez ele simplesmente estivesse morrendo.
Bamir viu o assassino com um olho que não possuía. Sentiu o desejo por seu próprio
sangue escondido na esquina seguinte, enquanto perambulava pelo Distrito Real atrás de corda.
E ganchos. Quando o homem saltou sobre si, já tinha se esquivado e o atirado ao chão. Porém,
não era um homem que ele rendia com a espada. Ela tinha os cabelos raspados como todos os
demais Utet. Como ele. Chutou a mão que empunhava a adaga.
– Misericórdia! – disse a mulher.
– Este aço provou do sangue de Corlomut há poucas horas atrás. – Bamir fez a lâmina
tremular. – E também do Condestável de Atablan. Ouça o que eu te digo.
– Misericórdia...
– Me leve para onde você e seus amigos se escondem. Esse é o preço.
– Não há... estão dispersos – a voz da moça estava trêmula. – Só sei do mestre.
– Você quer dizer aquele que eu estripei no quartel general dos Vermelhos?
– Eu não sei. – Ela fechou os olhos e virou cara.
– Olhe para mim! – gritou Bamir. Ela obedeceu. – Me leve para o seu esconderijo.
Os dois andaram na garoa, Bamir atrás, com a espada em riste. Poucos passos foram
necessários até que chegassem a uma torre cinzenta, tímida diante da opulência dos prédios
vizinhos. Uma torre de vigia dos Capas-Marrons.
– Aqui – indicou a mulher, a cabeça baixa.
– Primeiro você. – Bamir viu a esperança de liberdade escorrendo da face de sua refém. Ela
obedeceu, abrindo a porta de ferro. O interior não era muito impressionante. Duas camas, uma
estante, alguns sacos espalhados, uma escada de barras de ferro na parede que conduzia ao
topo.
– Qual o seu nome? – perguntou Bamir.
– Cengavasc.
– Cengavasc?
– Sim, senhor.
– Cengavasc? Malditos carecas... eu pedi seu nome, não um brado de ultert!
– Está bem, calma, está bem... é Aina.
– Aina, eu preciso de corda, de um gancho ou um arpão, e de uma arma de tiro.
– Senhor, há uma arma no terraço. Talvez...
– Vamos!
Ele puxou Aina pelo colarinho e a jogou na direção das escadas. Ela subiu, Bamir logo
atrás. No terraço havia uma balestra pregada ao chão, apontando para Purcalat por entre as
colunas que sustentavam o topo da torre.
– Isso?
– Senhor, eu...
– Como é que eu vou usar isso, sua putinha?!
Aina ficou boquiaberta.
– Não importa – disse Bamir, olhando de relance para o monstro de pedra branca no
horizonte. – Eu encontrarei algo que sirva. – Ele se voltou para Aina. Parecia demasiado fraca
para uma assassina dos Utet. – E você virá comigo.

– Você mentiu para mim! – sussurrou Bamir. Era noite, e ele e Aina estavam agachados
atrás de uma estátua.
– E-eu juro pelos Anur que não sabia.
Os três Utet estavam parados no meio da esplanada de Purcalat fumando, conversando,
armados com espadas, bestas e a mesma cota de malha negra. Bamir tinha consigo as cordas,
uma besta pesada e um gancho triplo. O efeito do rildémos estava sutil agora, e as dores e a
impaciência emergiram em seu corpo. Era outra forma de obsessão, porém, que o incitou a
decidir entrar em Purcalat naquela mesma noite. Algo a ver com Soltaprest.
– Escute – disse Bamir –, fale com eles e dê uma pista falsa. Se fizer isso, eu te deixo
partir. Se me enganar, eu te mato. Posso até morrer também, mas te levo junto.
Aina olhava fixamente para os carecas.
– Me dê a faca – disse ela.
Bamir sorriu.
– Perdão?
– Você ouviu. Preciso de uma desculpa, e um irmão não pode me ver desarmada.
Era algo muito estúpido a se fazer, mas havia alguma coisa sólida na expressão de Aina.
Deu-se conta que deveria ter dado cabo dela assim que encontrara os materiais que precisava,
mas nem pensara naquilo. Sem nenhuma razão suficiente, tirou do cinto a faca negra de
Caromosut e a entregou. Ela se admirou com a arma.
– Era de Corlomut – disse Bamir.
– Senhor?
– Diga.
– Então é verdade que você o matou?
– Sim.
Ela respirou fundo e saiu do esconderijo. Bamir se encolheu e concentrou-se em seus
ouvidos. Primeiro, apenas a conversa distante e o som dos passos de Aina. Vozes de homem.
Voz de mulher. A palavra “Golcaneu”. Mais passos. Vozes baixas. A voz de um dos homens
se elevou. A de mulher respondeu, calma. Um grito de homem e o som de um tapa. Risos.
Bamir sacou o gustabit e preparou-se mentalmente. Um baque surdo e um gemido de mulher.
Era hora. Contou um, dois, três, quatro, cinco, agora! Saltou e correu.
Um dos Utet segurava o pescoço de Aina e apontava a espada para seu rosto. Pobre garota.
Outro estava caído no chão, a mão sobre um ferimento no abdômen. Garota estúpida. O
terceiro estava mais próximo de Bamir, a faca de Caromosut em mãos. Parecia assustado.
Talvez disposto a conversar.
– Acabou, Utet! – disse Bamir. – Esta arma que você segura é a faca de Corlomut. Eu
mesmo tirei sua vida. Não há nada para vocês aqui.
– Então você o matou, Vermelho? – perguntou o Utet com a faca, irônico.
– Os Vermelhos acabaram. Eu também dei cabo do Condestável, na mesma sala onde ele
dividia uma taça de vinho com o seu chefe.
Os Utet riram.
– Você mente!
– Me teste, vamos. Encoste essa sua faca de açougueiro na garota. Vamos, por favor. Vai
ser bonito de se ver. Pena que um de vocês já está condenado. Seria melhor ainda se fossem os
três.
Bamir moveu a espada, posicionando-a diante do nariz. O Utet caído gemeu. Bamir deu um
passo à frente.
– O que estão esperando, suas bichas? Vamos!
A chuva ecoava no mármore do calçamento. Bamir deu mais um passo, o que fez o Utet
com a faca dar outro para trás.
– Se vocês não farão nada, saiam do caminho – disse Bamir. – E deixem a garota. E a faca.
Os Utet obedeceram em silêncio, abandonando a faca negra, a garota e mais o companheiro
moribundo. Bamir chutou a arma no chão para Aina.
– Vamos. Quero escalar essa torre ainda hoje.
Purcalat parecia brilhar com luz própria na noite. Os dois estavam diante de uma das
pequenas torres de vigia que a defendiam. Bamir preparava a corda e o gancho triplo com
pressa, como se pudesse ser pego a qualquer momento. Aina, incumbida da tarefa de vigiar
qualquer aproximação, estava inquieta e oscilante. A chuva cessara.
– Como se chama, senhor?
– Bamir.
– E por que um Vermelho cortaria os cabelos ao modo dos irmãos?
– Não sou um Vermelho. Foi a roupa que encontrei.
Ela olhou para o topo da torre. Bamir prosseguia amarrando, desamarrando, testando os
nós, encaixando a corda nos virotes e as desencaixando.
– O que fará se conseguir entrar? – perguntou Aina.
– Primeiro... – ele apertou um nó com uma bufada – ...tenho que entrar.
– Eu quero dizer, dizem que há pelo menos... quantos Capas-Marrons?
– Mil espadas. Mas estão longe daqui. A torre está vazia.
– Como assim?
– Olhe. – Bamir apontou para o topo da torre de vigia. – Ninguém ali. Ninguém à nossa
volta, nem Vermelhos, nem Capas-Marrons, só um dos seus colegas caído no meio da
esplanada.
Bamir encontrou uma maneira de encaixar o gancho na ponta de um dos virotes e a corda
em sua extremidade inferior. Nada naquela armação parecia confiável. Ele trouxe a besta
próxima aos olhos, mirando a torre de vigia.
– Por que faz isso? – perguntou Aina.
– Você é curiosa, não?
Ele encaixou visualmente uma das ameias da torre na mira da besta
– A verdade é que eu não sei – disse Bamir. – Meus amigos me traíram ou foram mortos, e
eu vi que minha hora estava chegando. Então eu simplesmente fiquei chapado e descobri um
segredo.
– Qual segredo?
– Cuidado agora. Eu não confio em você tanto assim. Quero dizer, algumas horas antes
você tentou me matar.
– Eu não sei mais para onde ir, com o chefe morto e todo o resto. Você parece saber.
– Já ouvi isso antes em algum lugar. – Bamir desfez a mira e repousou a besta. – De todo o
modo, meu chefe e o seu chefe eram a mesma pessoa.
Aina ficou confusa.
– Não importa – disse Bamir. – Eu decidirei se você entrará comigo quando estiver lá em
cima, isso se esta aberração não me matar antes. – Ele ergueu a besta com o virote-gancho
encordoado.
Bamir mirou a torre de vigia e disparou. O solavanco o fez dar um passo para trás e a corda
desenhou um belo arco no ar. Apanhou o rolo abaixo de si e começou a puxar. Ela se prendeu
em algo no terraço. Bamir puxou mais forte, testando sua firmeza. Ficou em dúvida.
Aproximou-se da pedra branca da muralha, firmou as duas mãos na corda e deu um salto,
ficando com as solas das botas na parede. Passo a passo, ganhou altura. A mão direita, a do
rildémos, ardia e era despelada. Mordeu os lábios. Resolveu sair de perto da parede e enrolar
uma das pernas na corda, como se fazia em Putobolc, nos barcos. Mais fácil. Chegou até a
altura das ameias e deu um impulso, ficando com metade do corpo para dentro do terraço.
Olhou para as mãos descarnadas. Não haveria a mínima possibilidade de escalar Purcalat
daquela maneira. Foi até a beirada da torre e fez sinal para que Aina subisse. Havia algo nela
que fazia apreciar sua companhia. Algo familiar.
Entre a muralha e a torre havia areia, úmida e compactada pela chuva. Nada de estátuas,
sóis, lagartos ou quaisquer adornos. Apenas areia estéril com ondulações, formando pequenas
dunas. Nenhum sinal de entrada, nenhuma brecha. Aina estava ao seu lado, besta na mão,
olhos calculistas.
– Como será que os Capas-Marrons passam daqui para a torre? – perguntou Aina. Ela
olhou para o chão e apontou. Havia um alçapão de madeira, trancado por um cadeado do
tamanho de um punho fechado.
– Bem – disse Bamir –, parece que é a única alternativa.
Bamir sacou o gustabit e golpeou a porta do alçapão. Com uma dúzia de espadadas
violentas, a madeira rachou. Finalizou o resto com os pés, ajudado por sua nova colega. Uma
escada levava à escuridão abaixo. Desceram. Muito mais do que esperavam. Bamir sentiu-se
feliz ao reconhecer a cooperação de Aina. Havia algo nela. Algo familiar.
A escada terminou na escuridão, aclarada pela luz das estrelas através da rachadura do
alçapão. Podia-se discernir lanças e flechas, grandes bolas empilhadas e camisas de cota de
malha presas à parede. Degraus no centro do piso levavam mais ao fundo. Bamir tateou os
objetos, mas não encontrou muito mais do que viu, a não ser uma garrafa fechada de akva.
– Precisamos de luz – disse Bamir.
Ele viu a silhueta esguia de Aina mexendo na própria roupa, seguido duma sequência de
sons de tecido sendo rasgado. Os braços magros agarraram uma das lanças apoiadas na parede.
Aina firmou-a contra a pedra e começou a golpear o cabo, mas seus pés eram muito leves.
Bamir se adiantou e, num pisão, partiu a lança no meio; e partiu a metade da lança no meio
novamente. Aina enrolou as roupas rasgadas na ponta do quarto-de-haste-de-lança com
diversos nós. Sem as mangas e boa parte da camisa, Bamir pôde se fixar nas formas do seu
corpo. Uma visão agradável. Precisava se concentrar. Aina quebrou a ponta da garrafa de akva
na parede e derramou a bebida no emaranhado de tecidos, sacou de um dos bolsos do cinto
uma pedrinha e riscou, riscou, riscou, com a tocha improvisada apoiada na parede. Tinha as
mãos delicadas demais para aquele trabalho. O pescoço também. Em breve estariam
adentrando as masmorras de Purcalat, e Bamir realmente precisava se concentrar. Algumas
faíscas saltaram da parede e flamejaram alaranjadas no tecido encharcado.
Aina desceu na frente com a tocha. Um vento gelado soprou da parte de baixo dos degraus.
O fogo azul. Bamir se assustou, esbarrando a lâmina na parede de pedra.
– Algo errado? – perguntou Aina.
– Você não sentiu?
– O quê?
– O vento.
– Não há vento nenhum.
– Uma impressão. – Bamir eriçou a postura. – Continuamos.
Ao final dos degraus estendia-se um túnel.
A luz da tocha improvisada hesitava e provavelmente não duraria muito. Bamir apertou o
passo, forçando Aina a caminhar mais depressa. Seus olhos se concentraram na alvenaria da
passagem. Pedra antiga. Muitas memórias. Era este o túnel. Uma vez mais, o vento gelado.
Dessa vez ele se fixou no movimento das chamas, que se tornaram azuis. Sentiu medo. Sentiu
que segredos que estariam melhor se deixados de lado o aguardavam adiante. A luz começou a
falhar. O túnel continuou, reto e monótono.
Capítulo 8

Pedra Laranja

L atidos na manhã. Os pés de Vakú estavam castigados. Ao seu lado ia o sulista – Talet era
seu nome –, sempre ameaçando ficar para trás, olhando a cada dez passos para o pássaro
multicolorido na gaiola. Do outro lado ia Avé, seu imediato, implorando por uma chance para
dar cabo tanto do misetél como de seu pássaro. Mais um latido e o som de um animal se
chocando contra os arbustos. Todos pararam e olharam para trás.
– Há cães em Relenú? – perguntou Vakú.
– Não, Eruloké – respondeu Avé.
Aproveitando a oportuna parada, Talet sentou-se numa pedra, ofegando. Porretes se
ergueram. Os sons se aproximaram até que um enorme cão branco despontou de cima de um
pedregulho, latindo, a língua escurecida de fora.
– Palosíl! – gritou Vakú, abaixando-se.
Palosíl saltou e correu. Ao chegar a Vakú, pôs as orelhas para trás e lambeu sua face e suas
mãos, recebendo em troca afagos vigorosos. Passou por cada um dos presentes, sentindo seus
cheiros, para depois retornar a Vakú.
– Onde estão seus irmãos? – perguntou Vakú ao cão.
– Eruloké... – disse Akaradé, que estava ao seu lado.
Vakú se levantou e observou cada uma das dez faces cansadas. Apenas nas sobrancelhas de
Avé podia notar alguma motivação. Continuaram a caminhada. Palosíl disparou à frente, com
o focinho rente ao solo.
O chão era tortuoso e uma sombra os empurrava: a retribuição de Relenú. Mais cedo ou
mais tarde, seriam alcançados pelos cinzentos; ou então, como temiam alguns entre os seus
seguidores, o próprio Karnól se ergueria das profundezas da terra e os engoliria. Mas havia
confiança no homem que chamavam de Eruloké, o enviado que os lideraria rumo ao destino
para o qual se preparavam desde que as primeiras pedras haviam sido empilhadas no vale.
Eruloké falava e todos ouviam. Era incômodo para Vakú, e, ao mesmo tempo, ele também era
um seguidor de Eruloké. Confiava na sua visão. E confiava que a realizaria de uma forma
inteligente e objetiva.
Quando a noite chegou, o grupo se arrastava. Seguiam o córrego em direção ao rio Moltes,
colina abaixo. Em algum lugar acima e à direita deles, ao norte, estava a caverna do Andarilho.
A passagem pelo local tornou o grupo mais silencioso. Vakú ordenou que montassem
acampamento.
– Mau agouro, Eruloké – disse o homem chamado Levú.
– Mau agouro para quem tentar nos deter.
Os garotos iniciavam os trabalhos da fogueira. Vakú intercedeu.
– Nada de fogo. Não até que alcancemos as terras baixas.
Houve uma expressão geral de desânimo.
– Nós estamos sendo caçados. Fogo e fumaça trarão os cinzentos para o nosso encalço
ainda mais rápido.
Foi uma noite de camas duras. Avé e Akaradé se voluntariaram para a vigília, mas Vakú
insistiu em ficar acordado nas horas que precediam o amanhecer. Quando a luz começou a
surgir no horizonte, ele saiu de seus pensamentos profundos e começou a observar, um a um,
seus novos seguidores, da mesma forma que Mosú gostava de fazer com os Uremiték. Havia
Avé, seu mais fiel seguidor. Um sunasú, com prazer pela matança, e Vakú sabia que se o
privasse disso por muito tempo o perderia. Ao lado dele estava o frágil Suné e Akaradé,
também um garoto violento. E havia Levú e Polomé, o nemék; e Nauré, outro adolescente.
Unidas abaixo de uma árvore retorcida estavam as mulheres: Varní, Valmavakí e Letví, sua
primeira seguidora, aquela que mais poderia causar-lhe problemas no futuro. Por último, fora
do círculo, o ruivo Talet e sua gaiola, já retardando a marcha mal ela havia começado. Todos o
seguiam. Seria ele ainda o Uremité sombrio e deslocado, sempre grudado aos pés do irmão,
mas que estes órfãos não conseguiam ver? Parecia tudo um sonho, uma visão ébria, a profecia
correndo no sangue de gerações e gerações e ofuscando o simples bom senso.
Palosíl acordou e ergueu as orelhas, depois o focinho, depois as pernas e começou a latir
para o alto, aquele tipo de latido uivado. Vakú se preparou, a faca da Manisarél em mãos. Os
demais despertaram e se ergueram à medida que o latido prosseguia. Apenas Talet continuou
dormindo, ainda que seu pássaro voasse e piasse como um louco dentro da gaiola. Vakú o
indicou com a cabeça para Avé. O misetél recebeu um tapa violento do jovem e acordou,
sobressaltado.
– Armas em mãos, amigos – disse Vakú. – Vamos!
O uivo de Palosíl ficou mais alto.

O sol se punha vermelho na margem oeste do Moltes, que já podia ser visto dali. Havia
sido um dia de marcha duríssima e perseguição, encerrando com o crepúsculo e a exaustão do
bando de Eruloké. Desistiram e voltaram-se para a retaguarda, encarando os caçadores. De
uma curva no horizonte assomaram ao menos cinco dúzias de mantos cinzentos, muitos com
porretes e clavas em mãos. Era um número muito grande de cabeças para uma caçada. Um
deles se adiantou, um homem alto e barbudo. Avé ergueu seu porrete, quase sorridente. Vakú
mandou abaixá-lo.
– Misevaré! – gritou o homem, enquanto caminhava na direção deles. – Nenhum mal lhe
farei se me deixar aproximar. – Num gesto muito largo, ele deixou cair seu próprio porrete,
exibindo as mãos vazias.
– É uma armadilha – disse Akaradé.
– Fiquem calados – disse Vakú, sinalizando para que o homem viesse até ele.
Quando chegou a dez passos de distância, Vakú exibiu a palma da mão, sinalizando para
que não avançasse mais. O homem tinha olhos de desespero.
– Misevaré...
– Você irá tratá-lo da maneira apropriada, Nomós – disse Avé. – Por Eruloké.
Nomós olhou confuso para os que cercavam Vakú.
– Eru-loké, nós viemos em paz – disse Nomós. – Há sangue derramado em Relenú, mortos
deixados aos abutres. Não há mais o Guardião, a Manisarél ou a Mil-Palí. Nós cremos que o
senhor seja aquele que veio com as mãos vazias, que nos mostrará o caminho. Karnól há de
engolir a colina e o vale. Não temos para onde ir.
– Você realmente pensa que eu estou com a profecia?
– Há dúvidas entre os nossos, não mentirei. Mas sua chegada destruiu tudo o que tínhamos.
Você é a única opção para nós, se é que tenciona fazer o que pensamos.
Você tem o toque da podridão.
– E o que seria isso?
– Trazer justiça para os infiéis. Para o Falso Profeta e seus seguidores.
Já não vinha mais à mente de Vakú a imagem de si sentado na torre branca, como quando
deixara as Varekvaké. Só pensava no caminho amarelo de Rivinakuloké e em Koroní,
aguardando-o diante da entrada do túnel sob a rocha.
– Este sou eu, Nomós. Eu marcho para o sul. Tomarei o caminho amarelo, onde fui traído
pelos meus. Todos são bem-vindos à marcha, sob uma condição.
Nomós levantou as sobrancelhas, atento.
– Devem renunciar às palavras corrompidas do seu kornú. Devem aceitar os Kinetolé,
todos os treze, e não uma entidade falsária que desvia as mentes. Esta deve ser sua promessa.
– Senhor Eruloké... – havia discordância na voz de Nomós.
– Cantem o nome deste... Karnól mais uma vez, e poderão dar meia volta.
Havia agressão nas palavras, mas aquele homem provavelmente já ouvira o nome dos
Kinetolé. Era sangue de seu sangue.
– Isto pode soar como uma afronta para os demais – disse Nomós.
– Muito bem. Eu mesmo os perguntarei.
Vakú sinalizou para que Akaradé viesse com ele. Ele entregou a faca ao garoto, que o
acompanhou até a multidão dispersa na curva da rocha.
– Não deixe que ninguém fique atrás de mim – disse Vakú.
Ele viu as cinco dúzias de cinzentos e suas faces confusas, olhos famintos, alguns deles
com aversão na boca. Três quartos homens, um quarto mulheres, pelo que calculou. Os
mantimentos que traziam pareciam precários. Vakú andou à frente deles de um lado para o
outro, o peito estufado, da forma que seu pai fazia diante dos Okorók; uma imitação crível para
os que não haviam conhecido Okoronamú, na melhor das hipóteses. Akaradé manteve-se
estático, com o punhal sob a capa.
– Arnaék! – gritou Vakú. – Eu ouvi de seu porta-voz que desejam se juntar à nossa marcha.
Silêncio.
– Eu lhes darei a mesma condição que ofereci a ele. Não mais se pronunciará o nome do
kornú ao qual vocês entregavam seus mortos. – Os sulistas entre eles pareceram confusos. –
Renunciem ao falso demônio, o comedor de ossos, e aceitem os Kinetolé. Nenhum kornú deve
ser adorado acima dos outros, da forma como fazia o Falso Profeta. Esta é a minha condição.
Aceitem-na ou deem meia volta. Eu os espero.
Vakú deu as costas para eles e começou a retornar para os seus seguidores.
– Preparem o fogo – disse ele. – Aguardamos.
– Você não nos ofereceu essa escolha, Eruloké – disse Akaradé, enquanto lhe devolvia a
faca da Manisarél.
– Vocês foram aqueles que sacrificaram tudo o que tinham por razão de profecia. Não há
dúvida em mim sobre vocês. Mas estes vieram até nós porque não havia nada para eles.
Vieram por desespero, não por profecia. Terão que provar que são dignos.
Ao retornar, foi cercado por olhares de adoração, de realização profética e de asco
religioso.
Nasoporvú.

Vakú caminhava à frente de quarenta e oito arnaék, dois jumentos e Palosíl. Alguns do
grande grupo viraram as costas ao serem coagidos a abandonarem suas crenças, uma minoria.
Os demais o seguiriam para qualquer que fosse o fim. Ou até que sentissem o gosto do próprio
sangue na boca.
Avançavam rápido, ladeando os pântanos do Moltes, o caminho pelo qual Vakú já passara
duas vezes em condições muito díspares. Iniciavam a marcha antes da alvorada e descansavam
nas horas mais quentes do dia, recomeçando quando o sol caía. Como deveria ser feito. Como
os nemék faziam. Eles se alternavam para buscar água e, com sorte, alguma comida. Um dos
jumentos havia sido sacrificado e sua carne garantiria que chegariam até os cânions do Moltes
e Rivinakuloké, onde tomariam o caminho amarelo. Iam silenciosos, sob uma ansiedade
crescente.
Avé tinha se tornado seu guarda costas, sempre vigilante e agressivo. Nomós fazia
perguntas que Vakú não sabia responder. Entre os demais, muita deferência e poucas palavras.
Eruloké haveria de domar os abutres da terra má, alguns diziam. Abrir a passagem. Sim,
Eruloké tinha os dons da profecia e trazia os ventos da mudança e, acima de tudo, o toque da
vitória. A imagem de Koroní diante do túnel era, na verdade, o que o motivava.
O deslocamento nas boas horas do dia preservava a energia. Alguns entre os cinzentos
conheciam os caminhos pelo brejo, os locais mais seguros, as plantas e os bichos. Polomé era o
melhor entre eles.
– Protejam aquele nemék – dissera Vakú aos mais próximos. – Ele pode significar a vida ou
a morte para nós.
Uma semana após o encontro, a pedra se tornou lisa e o rio, fundo e caudaloso. Nos
cânions era mais fácil encontrar sombra, mas ele era o prenúncio da terra que até mesmo os
nemék evitavam. Numa manhã fria, alcançaram o platô diante da passagem estreita, o local
onde Vakú por último vira o seu irmão, onde seu cabelo havia sido cortado. Passou a mão no
lado direito da face, agora uma superfície irregular e endurecida. Afastou o melhor que pôde
todo o alvoroço sentimental causado pelas memórias. Agora estava acompanhado de quarenta
e oito homens e mulheres que o seguiam sem contestação, que o chamavam por um título
nobre e assustador, que sabiam que o seu modo era o modo certo de fazer as coisas.
– Traga Polomé para cá – disse Vakú a Nomós. O homenzarrão obedeceu e trouxe o nemék
para a frente do grupo.
– Senhor Eruloké – disse Polomé.
– O que você me diz sobre este lugar?
– A pedra laranja é o que nos mantém deste lado do rio, Eruloké. O próprio Rei do Sul deu
armas aos guardiões daqui.
– Guardiões?
– Isto é o que se diz, Eruloké.
– O que eu gostaria de saber é se nos fará algum mal passar pela noite ou pelo dia.
– Disso eu não sei. Me desculpe, Eruloké.
A visão passou pela memória de Vakú como um raio. Os corpos caídos e sendo devorados
pelos abutres. Perscrutou o céu nublado. Nenhum sinal das aves. Um bom agouro, talvez.
– Acha mesmo que pode abrir o caminho, senhor? – perguntou Polomé.
Vakú desejou gritar com todo seu fôlego que não, que não tinha a mínima noção do que os
esperava adiante e de que ele estava com tanto medo quanto qualquer outro ali, talvez até mais,
uma vez que ele não tinha um suposto escolhido para seguir como todos os outros. Que ele era
uma farsa, um mentiroso e um doente.
– Sim, meu amigo – disse Vakú –, isso se os que me seguem o fizeram por razão de
profecia.
Polomé fitou-o sem entender.
– Avé! Akaradé! Nomós! – Vakú apontou para Polomé. – Você também.
Os convocados se aproximaram e se dispuseram num semicírculo.
– Separem todos em pequenos grupos, cinco pessoas no máximo – ordenou Vakú. –
Certifiquem-se que há pelo menos dois homens fortes em cada um deles. Nós avançamos pela
passagem com trinta ou quarenta passos entre cada um dos grupos. Quero Avé e Polomé
comigo, na dianteira. Sim, e digam para o misetél que daqui o seu estúpido pássaro não passa.
– Não foi sem pesar que ele exprimiu aquela última ordem.
Os quatro ficaram desconfiados, mas começaram a dividir os grupos. Alguns vieram até
Vakú pedir para ficarem consigo, mas ele recusou, frio. Viu Avé arrancando à força a gaiola de
Talet, o sulista, que gritou e tentou lutar. Outros homens o seguraram. Parecia fora de si. Em
seu surto, livrou-se de seus captores e saltou por cima de Avé, agarrando-o pelo pescoço. Foi
atirado ao chão por outras dez mãos e recebeu alguns pontapés. Vakú se acercou.
– Qual o problema aqui? – perguntou Vakú.
– Por que eu não posso levá-lo? – perguntou Talet.
– Ele fará barulho e é um fardo desnecessário.
– Ele é tudo o que tenho de valor – Talet cuspiu sangue no chão. – Prefiro morrer a deixá-
lo para trás.
– Eu respeito sua escolha. Tome o caminho de volta para as colinas, se assim deseja.
– Ele te desafia, Eruloké – disse Avé, os olhos brilhando. – Permita-me.
– Você deve escolher entre o pássaro ou a marcha – disse Vakú. – Isso é final.
Talet se levantou com dificuldade, os cabelos curtos e ruivos embaraçados, e tomou a
gaiola da mão de Avé. Com uma expressão de desgosto na face, abriu a jaula e o pássaro voou
em direção ao rio, nove varas abaixo.
– Eu me ressentirei disso para sempre, Erulot – disse Talet.
Avé ficou a um palmo de distância dele, ao seu lado, como se tentasse farejar o sangue do
sulista e ver se era doce ou não. Sunasú.
Um a um, os grupos formados penetraram a rocha avermelhada de Rivinakuloké. Vakú
mirou o céu mais uma vez. Nenhum sinal das aves negras. Seu coração saltava, suas mãos
tremiam. Palosíl correu à frente, as unhas ecoando na pedra a cada passo. Havia um silêncio
estranho na passagem. Um silêncio artificial.

Palosíl farejou a estátua como se fosse um pedaço de rocha qualquer. Era um cilindro de
pedra alaranjada que terminava num sol de treze pontas, bem no meio da passagem, entre os
dois paredões. Vakú ordenou que o grupo parasse e esperou uma resposta de Polomé. O nemék
deu de ombros.
– Ertaglot – disse Talet. – O Senhor do Sol.
Vakú franziu a testa para ele.
– É o símbolo do Rei – disse o sulista.
– Polomé – disse Vakú –, você me disse que o Rei deu armas aos nemék daqui.
– Nemék não, senhor.
– O que quer dizer?
– Não há sangue do meu sangue em Rivinakuloké.
Vakú estudou a estátua. Era antiga e fora castigada pelo clima. Treze pontas.
Prosseguiu, coração na garganta. Palosíl passou por eles, indo farejar quem vinha trinta
passos atrás, que era o grupo liderado por Nomós. Acima, nenhum sinal dos abutres. O mais
perturbador sobre aquele corredor de pedra era o silêncio: nem mesmo o vento assobiava pela
fenda. E não havia vida; não havia odores, ervas ou gramíneas; nem mesmo formigas e
besouros. A pedra era estéril e lisa, alaranjada nos paredões e amarela no chão. Tudo
contribuía para a inquietação que os consumia. Até mesmo o cão parecia se agitar, buscando os
cheiros familiares abaixo das pedras e não encontrando nada. Imaginou a passagem dos
Uremiték pelo local, com uma centena de abutres escondendo a fina faixa de céu.
Horas se passaram após o encontro com a estátua de treze pontas antes que a passagem se
alargasse. Ao final da travessia, eles viram os abutres.

Pobre garota. Vakú segurou sua cabeça enquanto ela vomitava e chorava ao mesmo tempo,
e não era a única. Soluços, murmúrios de preces, os grupelhos acumulados no fim da passagem
que desembocava num platô negro e rubro. Abutres até onde a vista alcançava. Era preciso
golpeá-los e gritar para que não confundissem os vivos com os mortos. Letví verteu outra
rodada no chão. Vakú precisava dar uma olhada, buscar seus parentes. Largou os cabelos
ruivos e chamou Avé. Pela primeira vez desde que o conhecera, o jovem estava assustado.
– Eu preciso dar uma olhada nos corpos – disse Vakú. – Me acompanhe.
A vista do platô o mesmerizou, mas precisava olhar para baixo, para as faces. Desceu pelo
barranco que levava ao mar de abutres abaixo até chegar ao primeiro corpo. Com o porrete na
mão esquerda, enxotou a ave que raspava os restos de carne. Viu o gibão escuro dos Uremiték
e um resto duma faixa vermelha sobre os buracos onde deveriam estar os olhos.
Felkúr.
– O cheiro, Eruloké – sussurrou Avé, como se não quisesse perturbar os mortos.
– Eu sinto.
– Não. Está fraco para esse tanto de...
A julgar pela quantidade de mortos, o cheiro deveria impossibilitar que qualquer pessoa
caminhasse por ali sem passar mal. Mas ele era sutil, permeado de uma textura amarga.
Também não podia ver moscas ou larvas. Apenas as malditas aves carniceiras.
Vakú passou por cima do Felké para o próximo corpo, Avé à sua frente golpeando o ar e
criando uma revoada de abutres. O próximo ele desconhecia. A pele estava enegrecida, como
se tivesse sido chamuscada, os braços amputados e o crânio sem carne deformado, com dentes
pontiagudos. Mal se podia chamar aquela visão infernal de um cadáver. Com relutância,
passou por cima dele em direção ao terceiro corpo.
Um a um, os clãs apareciam no mar de abutres e corpos, próximos às suas lanças, espadas e
escudos. Um a um, surgiam os homens de peles chamuscadas, alguns sem braços, outros com
pernas coladas umas nas outras, todos com crânios deformados e olhos opacos, com marcas de
cortes e flechadas nos corpos. Vakú precisava encontrar algum sinal dos Okorók, precisava
encontrar algum sinal de Mosú e de...
Lágrimas empestearam seus olhos. Podia ver no temível campo de batalha os sinais da
bravura dos Uremiték diante daqueles... monstros, quase um para cada nortista. Ele estivera
certo, como sempre esteve, e, pensava agora, como sempre haveria de estar. Todos iriam
morrer.
Foi quando um dos abutres pousou em seu ombro e fincou o bico em sua orelha. Foi como
uma facada. Vakú gritou e correu, tropeçando nos corpos. Caiu de joelhos e se esforçou para
alcançar as asas do animal. Conseguiu agarrá-las e deslizou a mão para o pescoço. Como fizera
tantas vezes com as galinhas das Varekvaké, quebrou-o no meio como um pedaço de pau. O
abutre parou de se mover e soltou a orelha, mas Vakú continuou a esganá-lo. Levantou-se e
pressionou a ave contra um cadáver, torcendo, gritando.
– Eruloké! – gritou Avé. – Está morto.
Vakú voltou a si e notou o corpo sobre o qual se debruçava. Havia no crânio uma mecha de
cabelo negro e liso salpicado de fios brancos. Tal qual um louco, vasculhou os corpos
próximos. Reconheceu o de Karevú. E Nasokarevú. Outros Okorók, mulheres. Nem sinal dela.
– O caminho está aberto! – gritou uma voz na entrada do platô. – Eruloké abriu para nós!
Continuou a buscar, movido pela dor, pelo horror, pela podridão, até chegar à parede da
rocha e a uma passagem ainda mais estreita. Uma rota de fuga. Apenas um cadáver ali, na
entrada, de um dos homens carbonizados, com duas flechas afundadas em suas costas.
– O caminho está aberto!
Capítulo 9

Tapete Grená

N ão havia portas trancadas, com exceção do alçapão da torre de vigia. Não havia
Vermelhos, Capas-Marrons ou qualquer vivalma que não o ser diante deles. Purcalat
estava escancarada.
O ser se arrastava como uma lesma, deixando um rastro úmido pelo salão, um caminho
grená sobre a tapeçaria vermelha. Murmurava numa língua ininteligível enquanto se arrastava.
Bamir não conseguia descrevê-lo nem para si mesmo. Era um verme. Uma abominação. Uma
criatura inspirada em pesadelos de mau gosto. Passo a passo, a criatura se distanciava deles,
aproximando-se do altar negro na extremidade do salão. Por fim, desapareceu atrás da rampa
dourada que sustentava o altar. Bamir e Aina estavam estáticos, incapazes de reagir a algo para
o qual a memória não podia conceber uma reação.
– Quem se presta a roubar o lugar do Mateminot? – disse a criatura. A voz soava como
unhas arranhando a tinta seca. – Quem se presta?
Silêncio.
– Ah, mas eu sei, eu sei de tudo. Você veio atrás de mim! Eu fui traído. O Mateminot me
garantiu, me garantiu tantas vezes que minha hora iria chegar, mas eu sei. Ele mandou um
capa-vermelha para me matar.
– Eu, eu, eu posso te dar algo – continuou a criatura. – Segredos, respostas. Ou minha
servidão. Mas você tem que tratar bem de mim, como fazia o Mateminot. Sim. Eu estou ferido.
Você atacaria um moribundo, sem mais nem menos, sem misericórdia?
O ser voltou a falar naquela língua incompreensível.
– Por favor, por favor! – suplicou a criatura. – Eu lhe darei o que você quiser. Eu lhe darei
o segredo do Mateminot. Ele me prometeu que tudo ficaria bem!
Bamir sentiu o vento gelado vindo por trás. O lobo branco estava chegando, e depressa.
Aquela sensação lhe devolveu a concentração, ao lugar onde estava: o trono de Purcalat.
Aquele ser infeliz pedia-lhe clemência. Sentiu pena dele.
– Você não pode ficar – disse Bamir. – Tem que deixar a torre.
– E o que há além da torre, capa-vermelha?
– O mundo.
– Mas ele me prometeu!
– Bamir – disse Aina –, este monstro é um feiticeiro. Não ouça o que ele diz.
– Verme, o que lhe foi prometido? – perguntou Bamir. – Fale!
– O Mateminot me disse que eu teria um novo pai se um dia ele partisse. Não me avisou
nada. Todos se foram e só fiquei eu, o Matemurc. Sim, o Matemurc guardou o lugar do
Mateminot como ele lhe pediu, e o Matemurc iria ganhar um novo pai se fizesse isso.
– Bamir – insistiu Aina.
– E porque o Mateminot foi embora? Para onde ele foi? – perguntou Bamir.
– Ah... – ouviram um som gosmento atrás da rampa. Nas sombras, aquela face sem face, de
olhos opacos, um fiapo de carne ondulante, revelou-se. Havia presas em sua boca, tortuosas,
esverdeadas. – O Matemurc sabe. Ele sabe. Sempre o Mateminot lhe falava do que desejava –
a criatura arrastou-se um pouco mais. Aina deu dois passos para trás, como se prestes a fugir. –
O Mateminot sempre via por trás das coisas. Ele a trouxe de longe, de muito longe. Sim. A
folha sempre lhe fazia saber o que tinha que saber. Enquanto houver a folha, não há nada que
ele não possa saber.
– Responda à pergunta ou te jogarei para o rio! – gritou Bamir, adiantando-se e desafiando
a criatura. Ela começou a se enrolar, dando meia volta.
– O capa-vermelha mente! O Mateminot mentiu! Misericórdia!
– Bamir, acabe com isso logo, pelos Anur – disse Aina.
– Responda à pergunta... Matemurc! – disse Bamir. – Onde está o Rei Amet e por que ele
foi embora? Diga a verdade e eu cumprirei a promessa do Mateminot.
O Matemurc se escondeu atrás da rampa mais uma vez.
– Jure! Jure pelos Casitolt! Jure que cumprirá sua palavra!
– Eu juro pelos... pelos Casitolt. Me diga a verdade e terá misericórdia. Minta e será jogado
no rio.
Bamir sabia, em algum lugar dentro de si, que não seria capaz de enfrentar aquele ser. Era o
seu limite.
– Você jura mesmo, capa-vermelha? Jura mesmo?
– Não me chame de capa-vermelha. Meu nome é Bamir.
– Oh sim, Bamir. Eu sinto um cheiro amargo no seu bafo, cheiro da folha.
– Está desperdiçando sua chance, Matemurc.
– Pergunte-me de novo.
– Onde está o Rei Amet, o Mateminot? Para onde ele foi? O que ele quer?
– Ele está diante de você. Ele quer o que sempre quis: governar. Para isso ele nasceu, para
isso ele mudou seu corpo, para isso ele trouxe a folha.
– Você me engana, verme? – Bamir ficou furioso.
– Acabe com isso, pelos Anur – disse Aina.
– Não! Não! – guinchou a criatura, a voz ainda mais aguda e arranhada. – Pelos Casitolt,
lorde Bamir. Olhe! Olhe! Contemple o Mateminot!
Tudo que havia diante deles era a rampa dourada, as duas colunas e o bizarro altar acima
deles. Parecia uma enorme corda negra enrolada, que refletia aqui e ali a luz da tocha que Aina
segurava em pequenos pontos espelhados. Mas havia algo mais, algo protuberando de seu
topo. Bamir adiantou-se, incrédulo.
– Mas por que...
– Ele vê tudo – disse o Matemurc. – Ele vê através de todos os olhos que são tocados pela
folha. Ele vê pelos seus. Ele governa através do dom da folha.
Bamir chegou mais perto.
– É uma armadilha! – gritou Aina.
Ele notou que a corda era na verdade um enorme corpo de serpente. O que protuberava de
seu topo eram dois braços retorcidos de três dedos. Os pensamentos acres do rildémos
tomaram sua mente mais uma vez.
– Eu vejo o lobo branco, cruzando as dunas incontáveis e o túnel – disse Bamir. – Ele está
atrás de mim.
– Bamir! – gritou Aina.
– É o que o Mateminot deseja – disse o Matemurc por trás da rampa.
– Onde está o sinal de Purcalat?
– Há uma escada. Aqui atrás.
– Muito bem.
Bamir repousou as mãos no corpo da serpente gigante. Era frio e duro. Todas suas visões
anteriores provocadas pela erva passaram diante de seus olhos num instante. Escalou. No alto
dele, onde estavam as garras, havia um círculo aplainado. Um pescoço decepado.
– Matemurc, onde está a cabeça do Rei? – perguntou Bamir.
– Ele a deixou cair. Disse que não precisava mais de seus olhos.
Bamir se sentou sobre o círculo, ébrio, poderoso.
– Agora o lorde Bamir deve cumprir sua promessa – disse o Matemurc.
Aina estava longe agora, um ponto luminoso no salão. O Matemurc deixou seu esconderijo,
arrastando-se para o centro, o rastro grená de muco o acompanhando.
– Aina. Queime este verme.
– Não! Misericórdia!
A criatura soltou lascas guturais de som numa língua que nunca mais seria pronunciada.

– O sinal foi aceso – disse Aina.


Bamir sentava-se sobre o cadáver petrificado de Amet com a espada de gustabit apoiada no
colo. Ideias estranhas dançavam em sua cabeça.
Ele não era mais o mesmo.
Entre ele e Aina havia um círculo negro onde o Matemurc havia ardido. Por toda a
extensão do salão se desenhava o rastro grená da abominação. A sua assistente estava inquieta,
ele podia sentir. Podia cheirar.
– Não se aflija, Aina. Nada mais será o mesmo daqui em diante. Os Capas-Marrons levarão
a justiça devida aos seus antigos irmãos. Fique ao meu lado e tudo se resolverá. Agora,
precisamos de mais mantimentos. Algum dos andares inferiores deve estar abarrotado dos
melhores produtos das Terras da Lei.
Ela fez uma reverência vaga, indecisa sobre a realeza daquele que um dia antes fora seu
alvo.
– Mais uma coisa, Aina. Tranque a torre.
Aina se retirou. Bamir fechou os olhos, sentindo uma presença em torno de si.
– É você? É mesmo você? – sussurrou.
Eu vejo pelos seus olhos e ouço por seus ouvidos, Bamir.
Abriu os olhos. Era a voz, ainda mais grave e pesada.
– É sobre seu corpo que eu me sento?
Por mil e vinte e dois anos ele foi. Agora meu corpo é o rildémos.
– Assim disse o Matemurc.
Deste corpo sobre o qual você se senta nasceu a erva. Dela eu nasci. Dela nasceu o
Matemurc e todas as criaturas que não se encaixam neste mundo. E em breve ela te tomará
também.
– Eu desisti de ser um zumbi há muito tempo.
E decidiu se tornar o que eu sou. Sinta o peso das minhas palavras e a memória das tuas
visões. A minha força em teus braços e pernas. O saber impronunciável que te trouxe até aqui.
– Eu devo estar doidão ainda.
Qual homem fica são após conhecer a verdade?
Bamir resolveu se entregar. Afinal, ele era um homem morto.
Por quê, Bamir, por que nos anos todos nos quais você se entregou ao rildémos você não
experimentou nada próximo do que lhe ocorreu desde a minha partida?
– A dor. Os barcos queimados que eu deixei para trás. É, esse é o meu palpite.
Eu e a planta somos um só. Eu fui homem, até que a descobri. Ela vem de fora, de além
das fronteiras da terra. Eu me matei com ela e renasci como Mateminot. Agora, enfim, atingi a
minha iluminação e dei-lhe o fogo ao invés da sombra.
– Por que eu?
Por que não?
Há outro, e você sabe disso.
– O lobo branco.
Ele está próximo. Ele buscará aquele que segura a faca negra.
– Você me ajudará?
Eu governo...
Bamir se sentiu tonto enquanto a voz se dissipava nas brumas da ebriedade. Os restos do
Matemurc à frente fediam a erva. O trono também. Exausto, fechou os olhos mais uma vez. A
voz não voltou, apenas uma visão. Ao lado do lobo havia um homem de cabelos curtos, um
mitolosc. Enquanto caminhava, trovões castigavam o céu cinzento, agitando as areias das
dunas.
Dormiu.
Capítulo 10

Tempestade Cinza

E m sua cabeça e nas orelhas estavam penduradas as penas negras dos abutres. Mais do que
nunca, ele agora era o Eruloké. Aquele sentimento fugidio se transformara numa
confirmação terrível, porém serena: nunca mais veria as Varekvaké. Rivinakuloké mudou
todos eles. Ninguém deu meia volta ou se perdeu; houve sim um enrijecimento dos espíritos, a
carapaça da guerra.
O céu estava coberto de nuvens cinzentas, um prenúncio das chuvas que custavam a chegar
vale acima. Boa parte da vila estava em chamas. Foi um ataque covarde, no meio da noite, com
fogo e terror, mas Vakú fez o que outrora seu irmão se recusou a fazer: tomou para si as
pessoas, dando-lhes a opção de segui-lo. Os cinzentos de Relenú traziam filas de cativos,
prontos para se ajoelharem diante de Eruloké e se integrarem à marcha. Alguns traziam
oferendas: armas, animais, até mesmo as próprias filhas. Eles não eram nemék: eram sulistas
mestiços, povos do rio, afetados nas maneiras e de fala estranha.
Vakú se sentava numa tenda improvisada, observando o passar de cinzentos e cativos, com
Avé e Talet ao seu lado. Tinha dois palitos entalhados à faca nas mãos.
– O que nos espera rio abaixo? – perguntou Vakú a Talet.
O misetél olhou para o sul. O rio se alargava cada vez mais ao passo que as árvores
cresciam e o chão esverdeava.
– Uma vila ou outra antes que cheguemos a Putobolc.
– O que há com Putovolék?
– Putobolc, Erulot. Uma cidade velha, um lugar de navegantes.
– Navegantes?
– Sim, senhor. Homens que vivem sobre barcos.
Enquanto refletia, observou dois dos noviços do grupo de Nomós arrastando uma garota
para fora da paliçada da vila. Eles a puxavam pelo cabelo e conduziam-na para longe do rio,
onde o mato era fechado. Ela se debatia. O caminho dos dois jovens foi interceptado por Varní,
que gritou com eles.
– Anur-Eldorot! – exclamou Talet. – Esses pirralhos perderam a noção.
– Akaradé! – gritou Vakú. Logo adiante, o jovem tentava conversar com dois locais,
ansiosos para se juntarem ao exército do Eruloké. Interrompeu a interação e se aproximou.
– Akaradé, tire Varní do caminho daqueles dois. Deixe que façam o que bem entenderem
com as mulheres daqui.
– Erulot! – disse Talet, de olhos arregalados. – Será que é prudente?
Akaradé apenas baixou a cabeça e correu na direção da sacerdotisa que ralhava com os
jovens.
– Escutem – disse Vakú. – Estes são os modos da guerra. A não ser que nossos prisioneiros
se juntem à marcha, cada um de vocês fará o que bem entender com eles. A clemência em
demasia torna os guerreiros vulneráveis. Meu povo aprendeu isso da pior maneira.
Akaradé precisou tomar Varní pelos braços para que cedesse. Os dois noviços arrastaram a
garota para a floresta.

A marcha prosseguiu ao amanhecer com uma eficiência silenciosa. Talet – que, apesar de
seu temperamento desagradável, revelou-se uma mente capaz – contara duzentos marchando,
com armas recolhidas de Rivinakuloké e da vila. Cavalos, jumentos e carroças eram usados
para transportar mantimentos. Redes de pesca haviam sido tomadas e recolhiam os frutos do
rio, muito próximo e cada vez mais brando, como se ressentindo da proximidade da água
salgada e querendo aproveitar seus últimos momentos doces. Polomé, Nomós, Avé, Akaradé e
Talet acompanhavam Vakú de perto. O diminuto grupo de mulheres arnaék tinha se tornado
evasivo e calado desde o saque à vila. Vakú sabia que aquele era um risco para toda a
empreitada.
A fartura da terra impressionava: árvores coníferas, o chão macio, as manadas de cervos
que podiam ser vistas pastando ao longo da trilha. Passaram por fazendas e pastores de cabras-
do-sul. Pediam para eles nada mais do que uma contribuição, que sempre era dada às pressas.
A vila que Talet mencionara, a três léguas da primeira, estava abandonada. Eles encontraram
alguns animais magros e famintos nos estábulos.
– São os Mitegrot, Erulot – disse Aletir, um dos homens do rio. – Com a queda do rei eles
perderam o medo.
Vakú ordenou que pernoitassem na vila abandonada. Havia sido uma jornada fortuita até
ali, mas ainda eram poucos, e não havia nenhum sinal de Koroní ou do restante dos Uremiték.
Era mais provável que tivessem se perdido naquelas terras estranhas, sem sulistas para guiá-
los. Onde estaria o túnel?
Enquanto a tropa se acomodava, as mulheres de Relenú formaram um círculo ante o poço
do centro da vila, olhando desconfiadas para o movimento ao redor. Vakú decidiu que era hora
de lidar com aquele problema.
– Algo as perturba, senhoras?
– Não nos sentimos seguras aqui, Eruloké – disse Varní, a líder entre elas. – Muitas
mulheres foram violentadas pelos seus homens, e dizem que foi com o seu consentimento.
– Estes são os modos da guerra.
– Então travaremos uma guerra com todos os homens que sequer olharem para nós. O
senhor irá comandar um exército de eunucos!
Vakú sentiu aquela sensação calorosa dentro de si, aquela que lhe dava a impressão de que
sabia precisamente o que fazer dali para o resto de sua vida.
– Não será necessário, Varní. Para a sua segurança, eu ordeno que cada uma de vocês deva
tomar um esposo ao seu gosto. Ele será responsável por sua proteção.
– Como ousa? – disse Varní, furiosa – Como ousa? Nós fomos consagradas como as
esposas de...
– Vamos, fale o nome do seu demônio na minha frente se tiver coragem.
– Se pensa que me casarei com...
– Há bons homens aqui, e eu lhes dou o privilégio de escolherem vocês mesmas. Mas
também lhes dou a escolha de continuarem a serem as esposas de uma aberração que se
alimenta dos mortos. Se assim escolherem, não farei nada para impedir que os homens as
cacem como cães.
Varní gargalhou com desdém. Ele a havia perdido.
– E se alguma de nós escolher o senhor? – perguntou Letví. Varní a mirou como se tivesse
sido insultada.
– Eu me abstenho até que a marcha chegue ao fim – disse Vakú. Ainda havia nele a
esperança de encontrar sua cunhada.
– Seu porco! – disse Varní entre os dentes.
Vakú a bofeteou e ela rolou no chão, cuspindo algumas gotas vermelhas.
– Covarde!
– Escolham seus parceiros.
Ele voltou-se para Varní.
– Você, especialmente. Irá precisar.

– Ela irá se voltar contra mim – disse Vakú, enquanto remexia os três palitos que havia
moldado mais cedo. Mirou a carne de bode pendurada numa das vigas da casa e os atirou. Um
se prendeu, o outro ricocheteou e caiu. Gastara boa parte do dia repetindo aquela atividade.
Avé e Akaradé observavam-no intrigados. – E ela voltará as outras contra mim.
– As mulheres já escolheram alguns dos nossos – disse Avé. – A sulista, a pequena, se
recusa. Segue a bruxa.
– Eu já desconfiava. Por isso mesmo os chamei aqui. – Vakú se levantou e recolheu os dois
palitos. – A bruxa deve partir.
O prazer se desenhou nas sobrancelhas de Avé.
– Akaradé – disse Vakú –, você deve trazer Letví para os meus aposentos ainda esta noite.
Avé... eu acho que não preciso te explicar. Seja rápido e não faça vítimas desnecessárias.
Avé assentiu, forçando-se para não sorrir.
– Você a tomará para si, Eruloké? – perguntou Avé. – A sulista?
– Não; mas é jovem ainda, não quero que me veja como um monstro. Ficará ao meu lado,
mas minhas mãos nunca a tocarão.
– E o que será dos homens que ficarem de mãos vazias? – perguntou Akaradé. –
Certamente hão de invejar os que foram escolhidos pelas mulheres.
– Temos uma cidade a ocupar a poucos dias daqui, e todos são livres para tomarem aquilo
que desejarem. Lembre os homens disso.
Avé sorria. Akaradé estava preocupado, como sempre. Após deixarem a casa, Vakú atirou
mais uma vez os palitos no pedaço de carne. Desta vez, os dois perfuraram o alvo.
Nasoporvú.
A batida na porta veio algumas horas mais tarde. Havia choro do lado de fora, choro de
mulher. Do outro lado estava Akaradé, segurando Letví pelos cabelos, a face da garota
contorcida.
– O que aconteceu? – Puxou os dois para dentro e fechou a porta. – Falem, pelos Kinetolé!
– Eruloké... – disse Akaradé, apoiado nos joelhos. Letví soluçava, sentada no chão. – A
bruxa... a bruxa cortou Avé. Acho que ela o matou.
– Onde está ela?
– Avé fez o que o senhor pediu. Estão no... no casebre à beira-rio.
– Traga-os para cá, Akaradé. Peça ajuda ao nemék. Vá!
Akaradé saiu trôpego, abrindo a porta com o cotovelo. Vakú se agachou ao lado de Letví.
Ele se preparou para o surgir da velha febre, mas ela não veio. Era uma novidade.
– Ele te machucou? – perguntou Vakú. – Responda!
– N-não. Por que, Eruloké?
Vakú respirou fundo.
– Ela me desafiou. Era uma má influência. – As palavras o estremeceram. Palavras de
Koroní.
– O senhor... o senhor irá me...
– Deixe de besteira! Você é jovem e ouviu as palavras erradas. Fique tranquila. Você ficará
ao meu lado a partir de agora e ficará de boca fechada. Ninguém te tocará.
– Eu agradeço, senhor.
Vakú pôs os dedos no queixo da garota, olhando fundo em seus olhos cor-de-mel. Nenhum
sinal da velha febre.
– Só não me desobedeça.
Os dois compartilhavam uma dose de akva quando Akaradé irrompeu pela porta com o
corpo amassado de Varní, seguido de Polomé, que carregava nos ombros o corpo inerte de
Avé. Vakú ordenou que Letví fosse para os fundos.
– Onde está o corte? – perguntou Vakú.
Polomé repousou o garoto no chão e exibiu um corte no antebraço direito. Em torno do
ferimento, havia uma mancha esverdeada.
– Nasomelé! – Vakú levou a mão à boca. – Que veneno é esse?
– Ele está vivo, Eruloké – disse Polomé, enquanto pressionava dois dedos contra o pescoço
do jovem. – É olenamós. Nem mesmo os meus podem curá-lo. Está condenado.
– Eu fui mordido por uma em Aramurké. O Andarilho me curou.
– O conhecimento se perdeu com ele, então.
– Temos que tentar! Façam o que for preciso para mantê-lo vivo!
Vakú correu para a noite.

A madrugada fora chuvosa, o que trouxe névoa e frio na manhã. Polomé estava ao seu lado
nos arredores da vila, na parte de trás de um casebre de madeira que os tinha escapado quando
da investida. Três árvores frondosas, com folhas escorridas que desciam até o chão, escondiam
o que crescia na parte de trás: vinte e um tentáculos negros saltavam do chão, onde suas raízes,
também negras, fixavam-se acima do solo como se fossem veias. Em cada um deles,
incontáveis minúsculas folhas se amontavam e davam às plantas uma aparência escamosa.
Emitiam um cheiro amargo.
– As queimamos? – perguntou Polomé.
– Não – disse Vakú. – As colhemos e moemos. Valem muito.
– Como queira, Eruloké.
Vakú retornou à pira no centro da vila onde os dois corpos ardiam. A perda de seu mais fiel
soldado tinha doído muito mais do que esperava. Para um homem morto, seu apego parecia
desmedido.
Cinzentos e homens do rio criavam um turbilhão de silêncio. O fogo na pira estava baixo, e
não houvera bálsamo para aliviar o fedor da carne queimada. Alguns olhavam temerosos.
Todos estavam sujeitos ao mesmo destino caso desagradassem o Eruloké. E era por esta razão
que tinha que falar. Suné e Akaradé estavam cabisbaixos. Letví, ao lado deles, parecia ter sido
tirada da cama à força e arrastada até ali, tamanho era o seu desgrenho. Vakú sacou sua nova
espada diante da audiência.
– Kuvakeruloké! Esta manhã é uma manhã de escolha para vocês. Eu trago para vocês uma
estrada dura e sem alegrias. Eu gritarei o nome dos Kinetolé aos portões do Falso Profeta para
que nunca mais sejam esquecidos no sul. Eu sangrarei, se for preciso; espalharei minhas
próprias entranhas pelo chão, se for preciso. Eu irei sozinho, se for preciso.
Vakú confrontou a parede de silêncio, abrindo o peito.
– Por isso, Kuvakeruloké, eu lhes ofereço uma escolha. Todos estão livres para dar meia
volta. Todos estão livres para me seguir e seguir a profecia. Se o fizerem, eu sangrarei por
vocês e pintarei a pedra branca com as minhas tripas por vocês. E sua palavra será sua justiça.
Me desafiem, e eu os estriparei em suas camas, durante a noite, com silêncio, veneno e
covardia. Eu os pagarei com o mesmo ouro que vocês me pagam.
“Esta mulher morreu por me desafiar. Por cuspir na profecia. E isso custou a vida de um
dos melhores entre os nossos. Um guerreiro.”
Vakú surpreendeu-se com a umidade nos próprios olhos.
– Nenhum mal cairá sobre vocês da minha parte se desejarem partir. Para os que decidam
ficar, esta é a punição para a traição e para o desafio.
A chuva voltou, abrandando as chamas que ainda restavam sobre as cinzas. Vakú abaixou a
cabeça e entoou o nome e cada um dos Kinetolé. Não houve reação.
– Hoje, marchamos para Putovolék. Façam sua escolha, em nome de Avé.
Ele viu Akaradé erguer o porrete do finado amigo.
– Eruloké – gritou o rapaz.
– Eruloké, nós te seguimos – gritou outra voz ao fundo. Pouco a pouco, outros repetiram o
brado. Ainda assim, não foram capazes de superar o som da chuva.
Três colinas verdes cercavam a muralha de Putovolék, no local onde as margens do Moltes
formavam uma curva e amansavam a correnteza. Podia-se ver os mastros das embarcações de
uma longa distância. A pedra da muralha era clara, assim como a das duas torres em cada
extremo da cidade. Se o jovem Vakú a tivesse visto e ninguém dissesse o seu nome, julgaria
ser a própria Atavalán.
Ele avistou Akaradé subindo a primeira das colinas onde Vakú e os Kuvakeruloké se
instalaram. Com sorte, teria passado a noite do lado de dentro da muralha. Vinha silencioso, a
face sob o capuz esverdeado, uma corda enrolada no ombro.
– Eruloké – disse ele ao chegar.
– Eu te saúdo, Akaradé.
– Há algo de errado na cidade. Há fogo e mortos. E estranhos.
– Nós vimos o fogo. Estranhos, você diz?
– Sim. Eu nunca tinha ouvido aquela língua na minha vida. Não eram os homens de
vermelho de que falou Talet. São homens cobertos de peles. Muitos dos locais fugiram pelos
barcos, e outros tantos foram aprisionados.
– Você foi visto?
– Não, senhor.
Vakú acreditou nele.
– Fale mais.
– Está tudo muito confuso. Eles parecem desorganizados. Selvagens. E havia uma...
– Uma... ?
– Uma mulher entre eles, Eruloké. Uma prisioneira.
– Só uma?
– Não, não é isso. É que era uma... diferente.
É ela.
Vakú acreditou na voz. Não havia dúvida em seu ventre.
– O que faremos, Erulot? – perguntou Talet.
Mas o que ela estaria fazendo com os bárbaros? A não ser que fossem os homens
conhecidos como mitegorók, dos quais os sulistas nunca perdiam o medo.
– Erulot?
– Sim, sim. Nós conversaremos. Traga Levú e Aletir para cá.
Vakú ouviu o som de madeira se partindo ao lado do tronco no qual se sentava. Palosíl
mastigava feliz. Os palitos! Vakú enfiou a mão na boca do cão, que não resistiu, e recuperou
seu brinquedo. Trouxe-os para perto do nariz. Estavam quebrados. Teria que fazer outros.
Não havia dúvida em seu ventre de quem era a mulher prisioneira dos mitegorók.
Os Kuvakeruloké estavam melhor do que nunca. Muitas tendas, cavalos, armas. As
mulheres de Relenú abandonaram a marcha após seu discurso fúnebre, com a exceção de
Letví, sempre em seu encalço. Sentia sua tristeza pelas costas. Foi na hora de seu jantar,
enquanto aguardava o enorme peixe sobre as brasas e lascava um galho para produzir outros
palitos, que Levú atendeu a seu chamado.
– Chamou por mim, Eruloké?
– Ouça, eu tenho um trabalho para você. Escolha alguns homens de sua preferência e vá até
a cidade. Exija que um porta-voz dos selvagens se apresente diante dos portões ao amanhecer.
Prometa toda a segurança a eles.
Levú ficou cauteloso, como esperado.
– E se recusarem ou nos retaliarem?
– Vocês recuam e eles amanhecem com serpentes nos cobertores.
Vakú parou de cortar a madeira e analisou o dardo que tinha acabado de produzir. Um
pouco torto, mas funcional. Atirou-o com rapidez, perfurando a carne do peixe.
– Como quiser, Eruloké – disse Levú.

A manhã chegou sem água, mas o céu continuava acinzentado. As plumas negras
esvoaçavam com os restos de seu cabelo e no cabo da espada fincada na terra. A cicatriz na
têmpora direita estava intencionalmente exposta. Com Vakú vieram Polomé, Talet, Levú e
mais dez dos homens de aparência mais ameaçadora, assim como Palosíl. Do outro lado estava
uma dúzia de homens vestidos em peles castanhas e negras, de barbas ruivas e louras até as
cinturas. Eram muito parecidos uns com os outros. Portavam uma variedade irregular de
armas, tomadas e roubadas, como a do seu próprio exército. Saqueadores se reunindo com
saqueadores para decidir o destino daquelas terras.
– ...ele se diz Farbut, chefe dos Normian. Vêm de Olgalamarc. – disse Talet.
– O que eu quero saber é se são eles os mitegorók que passaram pela vila acima daqui.
Talet falou na língua do sul com Farbut como se estivesse falando com uma criança. O
selvagem respondeu com uma sequência ríspida de grunhidos.
– Ele se recusa a responder, Erulot. Quer saber quais as pretensões do senhor.
Vakú encarou os olhos claros do selvagem. Era inútil perguntar diretamente quem era a
mulher cativa que Akaradé descrevera. Ele já sabia a verdade. Era ela. Como lhe dissera a voz.
– Talet, eu quero que você me traduza palavra por palavra. Eu sou o Eruloké, aquele que
retornou da morte. Eu marcho para o sul até onde o sul vai. Todos aqueles que não me seguem
são meus inimigos ou prisioneiros. E eu sou um covarde, e trago a justiça dos covardes para os
meus inimigos. Eu envenenarei a sua água, mandarei cem homens de pés leves na calada da
noite, cortarei as gargantas dos cavalos e incendiarei os barcos.
Talet traduzia enquanto ele falava.
– E diga que seus prisioneiros agora são meus, e que eu lhes ofereço a mesma escolha que
os ofereço agora. Me sigam até a torre branca ou morram.
A tradução de Talet foi respondida com brados raivosos e o erguer de armas. Os homens de
Vakú ficaram apreensivos.
– Os... os Normian... – disse Talet, concentrado. – Os Normian não levam.... não levam os
joelhos ao chão.
Vakú sorriu para os bárbaros.
– Diga a eles que darei tempo para pensarem. No amanhecer do terceiro dia a partir de
agora, conversamos novamente.
Saiu, acompanhado por seus homens. Os Normian continuaram a gritar. Atrás de uma
moita ele viu Akaradé com uma besta preparada. Sinalizou para que voltasse com eles.
Ao chegar ao acampamento, Vakú desenhou o plano em detalhes. Começou a gritar ordens
para os mais próximos. Todos se movimentaram. Cordas e redes foram preparadas. Punhais e
bestas tomaram o lugar das espadas e lanças. Capas cinzentas tomaram o lugar dos escudos.
Tocos e toras foram embebidos na banha. Aos Normian, seria dada a justiça dos covardes.

– Vakú? – perguntou ela.


Em volta dos dois, a cidade ardia. Os corpos eram empilhados logo atrás de Vakú e
incinerados. Os poucos que sobreviveram e se renderam eram apinhados ao lado dos
cadáveres, um motivo suficiente para desistirem da fuga.
– Vakú!
Os cidadãos locais que não haviam fugido ou sido mortos pelos selvagens também eram
reunidos, só que de maneira mais pacífica. Não tinham motivo para se opor à tempestade
cinzenta.
Vakú estava rígido, perplexo. A mulher, agora livre dos grilhões, chegou até ele e acariciou
a cicatriz em seu rosto direito. Seus olhos negros eram uma poça de emoções díspares.
– Vakú... seu irmão...
– Eu sei. Eu o vi. Eu vi todos eles.
Akaradé estava a três passos dos dois, besta em mãos, ansioso para derrubar mais um dos
Normian. Tivera o privilégio de cortar a garganta do próprio chefe bárbaro antes mesmo que
ele se desse conta de que os Kuvakeruloké haviam invadido a cidade e posto fogo nos telhados
de palha. Para homens como os Normian, que somente conheciam a bravura e os peitos
abertos, um ataque covarde era inconcebível. Até aquela manhã.
– Eu te busquei – disse Vakú.
– Todos te deram como morto – disse ela.
– Não estavam errados.
Nem o calor, nem os gritos, nem o cheiro de morte desviavam a sua atenção de Koroní.
Havia muito o que dizer. Não era a ocasião. Precisava protegê-la.
– Akaradé. Leve-a consigo para fora dos portões. Se alguma coisa acontecer a ela, você
pagará com sua mão direita.
– Não, Vakú – disse ela.
Com pesar, ele a ignorou.
A noite correra difícil para os Kuvakeruloké. A manhã trouxe chuva, que reduziu as
chamas a cinzas. Para a terceira geração dos que conheciam a chegada do Eruloké, a marcha já
era compulsória. Um a um, os cidadãos remanescentes de Putovolék se ajoelhavam diante de
Vakú e juravam lealdade. Qualquer outra atitude seria respondida com uma porretada de
Nomós. O rio ia, passo a passo, expondo o lado bestial dos homens.
Você tem o toque da podridão.
A cidade respondia bem às chamas. Alguns dos prédios mais belos, feitos de pedra branca,
estavam intactos. Um grupo de homens levaria cem anos para construir algo tão suntuoso. Ele
admirava uma casa de dois chãos com uma torre ao seu centro, terminando numa cúpula cor de
cobre, quando mais um dos sulistas chegou para se ajoelhar.
– Me perdoe, senhor mitolosc – falou ele em Urémi, o sotaque pesado –, mas o primeiro-
capitão de Putobolc se ajoelha não diante de ninguém. Todavia, estou para servir.
Nomós ergueu o porrete. Vakú pediu calma.
– Qual o seu nome, primeiro-capitão?
– Talamir, senhor.
– Eu só tenho uma pergunta para te fazer, Talamir. Para quem o senhor reza?
– Senhor, pela minha vida eu repeti palavras do Mateminot. Ele era nosso protetor, e pelas
viagens muitas eu roguei por sua benção vez depois de vez. E para quem rogo eu se nos
abandona para esses selvagens corruptos destruindo famílias sem juízo? O senhor mitolosc
clemente foi e assim que eu sigo, mas não ajoelhar. Eu rezo para os protetores daqueles que
protegem eu.
O homem tinha corpo e energia de soldado. Levava na cintura bainhas esvaziadas.
– Você pode manejar um barco?
– Minha é a frota de Putobolc, mitolosc. Eu muitas vezes levei barcos para norte e para
Atablan. De Putobolc saem para Atablan armas de água... armas para a água.
– É o bastante. Dê-lhe armas, Nomós, e os seus barcos, e peça que nos mostre as “armas
para a água” de que ele fala. Tenho outros assuntos para resolver agora.
Vakú se levantou e caminhou pela manhã esfumaçada até uma pequena casa próxima ao
porto, na frente da qual estava um cansado Akaradé. Passara a manhã guardando o tesouro
mais valioso de Putovolék.
– Descanse, meu jovem. Ponha alguém no seu lugar, Aletir talvez.
– Sim, Eruloké.
Ao lado dos sacos de odor amargo estava ela, ainda deitada. Sentou-se no colchão quando
Vakú entrou.
– Como está? – perguntou Vakú.
– Melhor.
– Bom. Temos muito o que conversar.

Vakú nunca tinha visto a cunhada tragando um cachimbo ou bebendo akva. Desde a
infância, fora para ele uma figura solene e distante. Até chegou a perguntar se ela tinha as
mesmas necessidades que os demais, e como e quando as satisfazia. Vê-la daquele jeito, tão
mundana, trazia-lhe uma sensação preguiçosa.
– Alguma vontade externa nos fez achar aquela passagem, mas saímos longe do rio – disse
Koroní. – Demos muitas voltas para encontrar a vila. E foi lá que...
– Eu entendo.
– Vakú, ainda não consigo acreditar que tantos te sigam.
– Eu te avisei. Faço as coisas do jeito certo. Do jeito que deve ser feito.
Silêncio.
– Depois da terra amaldiçoada a visão voltou para mim – disse Koroní. – Eu vi a
tempestade cinzenta. Nunca pensaria que seria você.
– Eu te vi também, na caverna do Andarilho.
– E agora?
– Eu vou cumprir a promessa que ando fazendo aos meus seguidores, mas o caminho que
temos adiante é incerto.
– Você tem homens agora, Vakú. Vamos acabar com essa loucura.
– Não foi você que disse que temos que seguir a profecia, faça ela sentido ou não?
– Não estávamos preparados.
– Mas isso eu disse a Mosú desde o primeiro dia.
– Nunca imaginaria que tudo seria à custa de tanta...
Vakú levantou-se da cadeira e enfiou a mão num dos sacos. As minúsculas folhas negras
arderam em sua mão. Ele a estendeu para Koroní.
– Não, Vakú, não....
– Este é o momento. As visões estão disponíveis, você mesmo disse.
– Irmão...
– Não me chame mais de irmão. Eu te herdei, sabe disso; caso contrário, este é o fim dos
Okorók. Você é minha esposa agora. Você irá até a cidade branca comigo. Fará o que eu disser
a partir de agora.
A velha febre voltou à Vakú, mas havia uma pessoa diferente ali com eles. Uma presença.
Koroní deixou o colchão e ajoelhou-se diante dele. Seu prazer foi preguiçoso.

Olhe, Eruloké, o jovem Okorovakú.


Entre os borrões na sua visão e o amargo de sua língua estava Suné, esfregando as mãos
uma nas outras, parado à sua frente.
– Alguma coisa em mente, jovem Okorovakú? – perguntou Vakú.
– É... s-sim, Eruloké. Você disse... você ordenou que as mulheres deveriam...
– Minha ordem é uma ordem. O que deseja saber?
– Eu estive... estive pensando na que você tomou em sua proteção. Não, não a... mas a
pequena. A sulista.
Você vê, Eruloké? Nenhuma inocência floresce mais depois de passar por suas mãos.
– Minha ordem é uma ordem, Suné. Faça o que quiser. Ninguém te julgará, não enquanto o
Eruloké estiver por aqui!
O garoto brilhou pela primeira vez desde Relenú. Vakú podia ver a névoa vermelha
exalando de suas narinas. Suné saiu trotando, um palmo mais alto.
Onde está o cão branco, Eruloké?
Vakú olhou em volta. Viu Palosíl quatro casas adiante, farejando um beco, apenas o rabo
branco à mostra. Alguns dos homens de Putovolék desviavam dele, assustados com seu porte.
Sem ele, as portas de Atablan estarão fechadas para você.
Em volta dele, na praça, havia um movimento intenso de barris de akva e toda sorte de
alimentos, um festim em honra à conquista de Putovolék. Os homens do rio remanescentes
caminhavam na direção do porto, levando consigo toda sorte de ferro e artifício. Vakú
observou o edifício mais belo, o de dois chãos com uma pequena torre, agora com as portas
abertas. Uma mulher de Putovolék saiu lá de dentro carregando uma peça de ouro em forma de
sol e a escondeu na túnica. Traidora. Buscou o homem armado mais próximo, quando uma voz
chorosa o interrompeu.
– Eruloké! – Era Letví, com um rasgo na bata na altura do ombro esquerdo. – Eruloké! Me
leve contigo!
– Procure o Suné, criança. Suné.
Ela choramingou e se ajoelhou no chão.
– Você me desafia? – perguntou Vakú.
– N...
– Você me desafia?
Agora Letví estava aos prantos.
– Você me desafia?
Viu Suné indo até ela pelas costas, deixando um rastro de névoa vermelha em seu caminho.
Escondia algo nas roupas.
Capítulo 11

Amet Negro

Bamir

A hora está próxima. Olhe. Olhe o que eu criei.


Da sacada de Purcalat, Bamir admirava centenas de figuras castanhas alinhadas através da
esplanada, dispostas em batalhões retangulares. Muitos se atreviam a olhar para cima em busca
da figura na torre.
Ele está próximo, muito próximo. Ainda tem o maior desafio de todos a superar antes de
chegar. Onde está sua faca, Bamir?
Bamir tateou o robe vermelho dos Anespornat que vestia e encontrou o cabo da faca.
Sem ela, as portas de Purcalat estão abertas para o lobo branco.
– Como poderá um bárbaro enfrentar as muralhas e os Capas-Marrons, Amet? Parece...
longínquo.
Quão longínquo parece um jovem criminoso sentar-se sobre o meu antigo corpo e
comandar o exército mais mortífero já visto nas Terras da Lei? Não subestime os
desesperados.
À frente dos retângulos castanhos, um homem se destacava, gritando e gerenciando a
posição dos soldados.
Eles estão no túnel, subindo, prontos para se sentirem ofendidos. Você sabe de quem eu
falo.
– Os Anespornat. Eu não os temo.
Pois deveria.
– E porque esse lobo branco? O que ele tem a ver comigo?
Não é óbvio? Foi-se o tempo em que Amet precisou levar o mundo à sua toca. Você e ele
são a derrocada de tudo que é velho, comedido e sábio; tudo o que vai ao encontro da minha
própria iluminação...
A voz se extinguiu. Bamir deixou a sacada e subiu a rampa vermelha em forma de S que
levava ao salão. Os répteis de mármore vigiaram-no durante o percurso. Ele passou pelas
colunas, pela mancha negra do Matemurc, instalou-se no trono-cadáver e tirou um pequeno
frasco negro do bolso. Encontrara-o nos túneis que se ocultavam atrás do altar, a antiga morada
do Matemurc. Enquanto o apreciava, viu uma silhueta esbelta avançar na penumbra carregando
uma lança de ponta curva.
– Senhor – disse Aina –, os chefes dos Capas-Marrons chegaram.
– Não são chefes de ninguém.
– Parecem agitados.
– Eu sei disso, Aina. E lhes darei mais motivos para se agitarem.
– Estarei por perto. – Bamir ouviu devoção nas palavras. Havia algo ainda indecifrável para
ele em Aina.
Não subestime os desesperados. Olhe!
Num susto, Bamir notou um halo de fumaça negra em torno dela. Um vácuo que sugava
todas as outras auras ao seu redor.
Há-há-há-há...
– Apenas os velhos e ninguém mais – disse Bamir –, ninguém mais pode entrar. E só você
poderá passar da marca do Matemurc.
Aina assentiu.
– Deixe que cheirem o amargor – disse ele, cruel. – Que experimentem um pouco do enjoo.
Logo eles chegaram, treze homens de cabelos e barbas brancos até a cintura, calvícies e
rugas. Vestiam os mantos iguais ao de Bamir, com correntes massivas em torno do pescoço
sustentando pingentes na forma do sol de Amet. Caminhavam com elegância, as faces
enrijecidas por décadas de lida com os mais altos círculos da política de Atablan. Vieram mais
lentos do que deveriam, em sinal de desdém e desconfiança. Aina não precisou detê-los diante
da gosma negra endurecida: eles entenderam.
A voz na cabeça de Bamir lhe disse, um a um, os nomes dos anciãos.
– Uscavasc Anespornat, eu vos saúdo. Espero que a viagem desde Soltaprest tenha sido
pacífica.
– Quem fala em nome do Atablanest? – disse o que se chamava Anestavasc.
– O Cengamut fala.
Houve sussurros entre os velhos.
– Um criminoso? Um ladrão da cidade baixa? – perguntou o que se chamava Anestolet.
– O arauto do Mateminot, aquele que fala com sua própria voz – respondeu Bamir.
– Eu vejo um garoto que veste o nosso manto sem a corrente – disse o que se chamava
Anestast. – Um ladrão.
– Amet me escolheu e vive em mim.
– E como pode provar? – perguntou Anestavasc.
– Pelo lugar onde me sento.
– Nós responderemos ao segundo Mateminot, ninguém mais! – disse o que se chamava
Anestelet.
– Não há um segundo Mateminot. Amet vive.
– Blasfêmia! – gritou Anestolet.
– Não, Anestolet. Ele vive em mim e me disse cada um dos seus nomes. Ele ordenou que
eu enviasse o sinal a Soltaprest do corpo sobre o qual eu me sento e do qual ele não precisa
mais. Amet governará pela eternidade. Eu sou seus braços, pernas e boca.
– Você profana sentando-se sobre o cadáver real, ladrão! – disse o que se chamava
Anestalint.
– Não, Anestalint. Você profana ao se dirigir ao escolhido de Amet desta forma.
– Suas palavras são fracas, Cengamut – disse Anestavasc.
Bamir sorriu, satisfeito com o que acabara de ouvir.
– Então pergunte ao seu próprio rei, Anestavasc. Vocês veem o que está diante de vocês? –
Bamir apontou para a massa negra no carpete. – Sintam o cheiro. Esta é a fragrância de Amet.
Do Matemurc. Do rildémos.
Os anciãos sussurraram entre si. Bamir continuou:
– Em passagens escondidas neste salão estão quinhentos e dez frascos com a essência pura
da erva negra, retirada do corpo do próprio Amet. Uma gota será o bastante para que vocês
mesmos ouçam o que eu ouço agora em minha cabeça.
– Um viciado – disse Anestast. – Ele ouve vozes.
– Uma voz, Anestast.
– Você não sabe o que fala, Cengamut – disse o que se chamava Anestamurt. – Você está
ébrio e foi colocado aqui pelos inimigos do Rei. Você consumiu a folha proibida. Você
blasfema e regozija sem nenhum precedente, sem nenhum apoio senão esta criança de lança na
mão. – Ele indicou Aina. – Diga-me, quanto o seu chefe, o Caromosut, pagou ao Condestável?
Quantos você teve que assassinar para descobrir nossos nomes e estrelar este teatro patético?
Quantos você teve que... satisfazer? – Os Anespornat riram.
Bamir sentiu-se pequeno e frágil. Fechou os olhos e buscou desesperadamente a voz de
Amet, mas nada veio.
– Você, velho – continuou buscando –, não ajuda seus colegas... já foi o...
– Basta deste disparate! – disse Anestalint. – Pelos Anur! Vamos, Anespornat, busquemos
o que é nosso.
Os velhos viraram de costas para deixar o salão. Aina parecia aguardar uma ordem sua. No
desespero e contra as próprias recomendações da voz de Amet, ele sacou o pequeno frasco
negro. Seu coração acelerou. Verteu uma, duas gotas. Ficou tonto. Viu o buraco negro em
torno de Aina e o fogo envolvendo os Anespornat. Perdeu-se.

Okorovakú

Os homens de Putovolék manejavam a embarcação tão naturalmente quanto um Uremiték


caminhava pelas trilhas na montanha. Enquanto os nortistas se agarravam apreensivos às
bordas do convés, eles dançavam entre as cordas e o mastro como se fossem esquilos. Talamir
guiava a embarcação. O sulista era muito eficiente em dar ordens aos homens e em certificar-
se que elas eram cumpridas. No entanto, hesitava todas as vezes que Vakú perguntava sobre a
chegada a Atavalán.
– Nos portos altas paredes, navios guerreiros vigilantes, melhor em Bolcograc.
– O que há lá?
– É um tanto fora da parede de Atablan.
– Não, desembarcamos o mais próximo possível da torre. Ela é nosso objetivo, e é de lá
que levaremos a cidade abaixo.
– Bolcatagrit será então, senhor Erulot.
Distribuídos entre as onze embarcações que partiram de Putovolék estavam mais barris de
banha do que eles conseguiriam usar, ou assim Vakú pensava. Havia também dois barcos –
incluindo o que levava Vakú – com cabeças-de-bode em suas proas, munição de sobra,
ganchos para as cordas, tudo o que julgavam necessário para o desembarque em Atavalán. Os
sulistas, no entanto, estavam apreensivos, julgando ser ainda pouco para subjugar a maior
cidade das Terras da Lei. Vakú não era tolo de ignorá-los, mas a conquista de Putovolék lhe
dera confiança. O sul estava jogado aos abutres, e o senhor deles vinha cheio da justiça dos
covardes.
Koroní o preocupava. Não estava lidando bem com a ingestão do rildémos. Apenas dormia
e parecia pálida. Aquilo o enchia de uma sensação gelada. Não tinha acabado seus assuntos
com a nova esposa. Vakú desceu mais uma vez, Palosíl ao seu encalço. Passou pelos barris no
convés inferior e sentou-se ao lado de Koroní, estirada sobre uma pele de cervo. Não havia
mudado. Ele fechou os olhos.
Eruloké, Cogolat, ela está presa no túnel.
Vakú arregalou os olhos para ao vazio.
– Kalté?
Eu sou aquele que você busca, que se senta sobre a torre branca.
– Quem está aí?
Não me reconhece, Cogolat? Não se lembra da mordida que eu dei em seu calcanhar?
Você já passou pelo muro de chamas e ela não pode mais prosseguir.
– Saia de mim, tameporvú!
Ah, mas você me recebeu de braços tão abertos. Ela está presa, e não há nada que você
possa fazer para ajudá-la. Ela não é como você.
– Eu não te ouço!
Será?
Vakú foi tragado para um salão de piso vermelho. No fim dele, sentado sobre o trono mais
horrendo que ele já vira, estava o assassino e sua faca negra, amolada mil e vinte e duas vezes.
Ele exalava perigo. Abaixo dele, o lagarto verde-esmeralda montava guarda.
– Não... – sussurrou Vakú.
– Você chegou tarde, Cogolat – disse o assassino no dialeto do sul, que agora Vakú
entendia perfeitamente. – Ajoelhe-se!
– Nai!
– Ajoelhe-se!
– Nai!
– Eruloké? – perguntou Akaradé. Vakú notou que estava caído no chão. – Está acordado?
– O que você acha? – A cabeça de Vakú estava rodando. Viu que Koroní ainda dormia ao
seu lado. – Quanto tempo eu...
– Algumas horas, senhor. Atavalán está próxima. Venha ver.
Eles subiram ao convés. Em meio à névoa havia uma ilhota, nada mais que uma pedra
gigante cravada no centro do rio. Sobre ela, erguia-se a estátua do sol de treze pontas, a marca
do Falso Profeta.
– Mosú... eu cheguei...
Recordou-se dos Okorók preparando os cavalos; a Manisarél cantando, vestida em
vermelho; o vento gelado; o medo intenso de abandonar a terra da sua gente. Parecia ter sido
há um milhão de estações.
Olhe, Cogolat. Ela desistiu de tentar. Você tem o toque da podridão, de fato.
Vakú correu para o convés inferior, atropelando homens e carga.

Bamir

– Bolcatagrit? – perguntou Bamir.


– S-sim senhor!
O general dos Capas-Marrons estava aterrorizado. O salão parecia algo saído duma história
de Andarilhos ou similar.
– Em nome de... não importa. O que está acontecendo ali?
– Não havia ninguém lá, senhor, e os portões foram destroçados. Os Utet ainda nos dão
muito trabalho no centro, em Valvomit e em Tartapet. Eles têm as entradas norte e leste. E os
cidadãos...
– Cidadãos? Diga, general... ?
– Atalcar.
– A-tal-car. Olhe. – Bamir indicou as colunas nos flancos do salão. Pregados nas cabeças
de réptil estavam os cadáveres dos Anespornat. – Tudo o que é velho servirá de enfeite para
Purcalat. Diga a eles, general Atalcar, diga a eles que eu sou o Mateminot. Olhe. – Bamir pôs o
dedo na mancha escura e brilhosa que crescia em sua bochecha esquerda. – Amet vive em
mim. O deus deles retornou. Não seja tímido.
– S-senhor... o quê... – o jovem general suava.
– Mostre a esses bárbaros do que são feitos os Capas-Marrons. Deixe que os Utet e o povo
matem uns aos outros. Espalhe a notícia. Vá. Para Bolcatagrit!
O general foi embora correndo. Agora só havia ele, Aina e os cadáveres.
– Senhor Bamir – disse Aina –, você assusta seu novo exército.
– Eu assusto a mim mesmo.
Ele deu palmadas no lugar ao seu lado sobre o corpo endurecido de Amet.
– Venha aqui. Suba. Converse comigo.
Aina não reagiu.
– Venha, eu vou tirar sua sombra.
– Minha sombra?
– Sim, minha querida Aina. Você tem um buraco negro em volta de si. Suba. É uma ordem.
Ela continuou parada.
– AGORA!! – A voz de Bamir era um rugido vindo das profundezas, um som inumano,
como rochas gigantes sendo estraçalhadas umas contra as outras. Aina deu um salto para trás.
Tremendo e soluçando, arrastou-se até o trono – Isso. Isso. Agora suba. Sente aqui.
Aina escalou o trono se sentou, inclinada para a direção contrária de Bamir. Ele esticou o
braço à frente dela e derrubou sua lança. A arma ressoou no chão do salão.
– Me mostre seus dentes.
Ela mostrou.

Okorovakú

– Aí vêm eles, Eruloké! – gritou Akaradé.


As chamas já se erguiam nos prédios da orla, ao passo que barris e mais barris de banha
eram descarregados, e junto a eles dezenas de arnaék, sulistas, homens do rio e alguns dos
Normian desembarcavam, cortando tudo que passasse à frente deles. Estavam diante da rua
mais larga que Vakú já vira em sua vida; e ao final dela, duas dúzias de soldados de capas
castanhas investiam.
– Não deixem que nos peguem de costas para a água! – gritou Vakú. – Espalhem-se!
Ele, Talet, Akaradé e outros cinco homens deixaram a rua e avançaram entre os prédios
adjacentes – alguns com três andares – antes que a chuva de flechas viesse dos barcos.
Ouviram gritos, gemidos e o barulho de metal encontrando o metal. O calor era insuportável e
a fumaça travava a respiração. Em todas as direções, as ruas se dividiam e se multiplicavam.
Avançaram às cegas.
Não tardou para que o grupo colidisse com soldados marrons em retirada. Um deles tinha
uma flecha atravessada no ombro. Atacaram imediatamente, mas encontraram resistência
inesperada. Os homens do grupo de Vakú foram caindo um a um diante dos movimentos
econômicos dos marrons. Vakú derrubou um deles com uma espadada nas costas, mas em
seguida viu-se encurralado entre dois deles, de costas para um muro. Uma mancha branca
surgiu à sua direita, veloz como um raio, saltando e dilacerando a garganta de um de seus
opositores. Vakú aproveitou o susto para enterrar três palmos de aço no ventre do segundo.
Palosíl se aproximou e lambeu suas mãos. Estava mais vermelho do que branco agora.
Akaradé estava de pé, sujo de sangue.
– Estes... – disse Akaradé, com as mãos apoiadas nos joelhos – Estes não são soldados
comuns.
– Não. Vamos voltar!
Eles passaram por cinzentos mortos, nativos em fuga e vigas de madeira em brasas caindo
dos edifícios antes de atingirem a via larga. Os soldados marrons estavam no chão, cravados de
flechas. Havia muitos dos de Vakú feridos também, cortados, amputados, arrastando-se. O
fogo se alastrava com velocidade e começava a sufocar a orla de pedra. O desembarque
prosseguia.
– Eruloké! – gritou alguém em meio à confusão. Era Nomós, avançando pesado. – Eruloké,
estes marrons lutam até com flechas em suas bolas. Se houver muitos deles ainda, estamos
perdidos.
Vakú viu Talet estendido no chão a duas varas dali, com cortes no torso em várias direções.
– Nasomelé! – gritou Vakú.
– Eles nos esperavam – disse Nomós.
– Senhor! – chamou um dos homens do rio que vinha pela rua, com um corte profundo no
braço. – Eles estão vindo, da praça com tendas, rua acima. Mais três dúzias deles pelo menos.
Vá, Cogolat. Seus homens já não são mais homens.
Vakú foi tomado por um fogo indescritível. Ele berrou e finalizou com a espada um dos
castanhos que ainda agonizava, golpeando-o até que a cabeça fosse separada do corpo. Berrou
de novo, abrindo os braços. A fúria e a coragem e a tristeza borbulharam em seu peito e
explodiram.
– Eles podem ser superiores a nós, mas nós somos os covardes! Sujem esta cidade, fujam
por ela, debandem como os ratos que nós somos! Cortem a garganta de mulheres, crianças e
velhos! Matem esta cidade! Tomem o akva e os cabelos dos corpos e tudo que é amigo do fogo
e fodam com tudo! Que Atavalán morra conosco!
Houve gritaria, correria e confusão. Vakú partiu, Akaradé e Palosíl logo atrás.
Para o que interessa.

Bamir

– Fale, general.
Com Bamir estavam Aina e o general Atalcar. A noite caiu banhada pelas chamas, até onde
a vista alcançava.
– Os cidadãos e os Utet cooperam com os bárbaros, senhor. Nós avançamos com um
mínimo de baixas, mas...
– Mas o quê?
– O fogo está fora de controle. Dificulta nossa visão. E esses homens são covardes, se
escondem e atiram do escuro. Nós caçamos o seu líder, o que anda com um lobo branco ao seu
encalço. Se o pegarmos, pode ser que as coisas fiquem mais simples.
Bamir tremeu da cabeça aos pés, por um instante voltando a ser quem sempre foi.
– O lobo... o que disse?
– Um lobo branco, senhor. Ele avança ao lado da criatura. Derrubou três dos nossos em
Fetacarp antes de fugir.
A catarata de pensamentos quase arrancou a cabeça de Bamir do lugar.
– Deixe-o. Dê ordem para deixarem esse... homem... e seu lobo em paz. Deixe-o passar.
– Senhor!
– Deixe-o. Eu conheço esse. Mate os outros, mas deixe esse passar. – Bamir apalpou o
cabo da faca negra dentro do robe.
– Mas eu não entendo...
– Não importa. Ele não vai parar. Você desperdiçará seus homens com ele. Cacem os
demais, mas deixe ele vir até aqui.
– Como queira. – Havia cansaço na voz do general. Ao final das contas, ele provavelmente
não se importava se Bamir morresse ou não. A lealdade dos Capas-Marrons estava com a
cidade, e só com ela.
Durante aquele momento de sobriedade, Bamir admirou a cidade de Amet em chamas.
Sentiu a presença trêmula de Aina ao seu lado, e esta consciência o encheu de culpa. O fim
estava próximo, podia sentir.
– Aina, me desculpe por tudo.
– Não há nada por que se desculpar, Bamir. – A pronúncia de seu nome soou doce aos seus
ouvidos. – Você tem uma missão importante, eu sinto. Você está no lugar que deveria estar.
Ele a contemplou: a cabeça raspada, os olhos verdes, o nariz estreito, as linhas duras.
– Por que você tenta me consolar com bobagens? Eu te raptei, te tornei minha serva, te
possuí contra a sua vontade...
Aina tirou uma lâmina curva que estava escondida em sua bota. Sua ponta estava
escurecida.
– Por muitas vezes eu quis te matar e tive essa chance. Mas... uma voz...
Ele tomou as mãos dela num supetão e as virou para cima. A palma direita estava
escurecida.
– Pelos Anur...
– O quê?
Bamir se sentou no chão, de costas para a grade da sacada. Uma lágrima escorreu pelos
seus olhos. Aina se agachou diante dele e pôs a mão em seu ombro.
– A voz me disse para confiar em você. Pela primeira vez em minha vida...
– Pare! Pare de falar! Você não vê? É ele! É ele que te fala! O buraco negro. Ele possuiu
todos nós, eu, você, o lobo branco. Não sobrará nenhum espírito livre nesse mundo, a não ser
que morramos todos. É ele!
– Eu não...
– Escute – ele a chacoalhou. – Amet e a erva são uma coisa só, ele mesmo me disse, com a
mesma voz que fala com você. Tudo que ela toca o pertence. As visões, os surtos, os zumbis,
os bárbaros. Seus olhos são os nossos olhos e de todos eles. Ele vê por nós. Ele nasceu da erva!
Não há mais... não há mais...
– Não importa – disse Aina. – Está feito. Temos que continuar agora. Enquanto pudermos
lutar, nós continuamos. Nós defendemos esta torre ou nos rendemos ao inimigo.
– Ele é o inimigo.
– Se for meu destino morrer, eu morro. Se for seu destino se transformar no novo Rei
Bestial, eu estarei aqui. Eu sei disso. É a única coisa que eu já soube.
– Você não sabe de nada, Aina. Ele sabe. Só ele. Estas são as palavras dele.
Aina baixou a cabeça.
– Só ele sabe – continuou Bamir –, e só ele saberá. Não há destino, benção dos Anur, lei,
nada. Tudo faz parte de sua miserável existência.
– E qual parte de nós não é parte dele?
– A frágil. A que teme. A que não participa de destino nenhum. A que morre. Eu acho.
Silêncio.
– Então? – perguntou Aina.
– Então... vamos à morte.
Ela sorriu, com lágrimas nos olhos.

Purcalat

Um clarão ígneo pintou o céu de Atablan. No silêncio da esplanada, sob a terrível presença
de Purcalat, cinco almas apreensivas se encaravam.
De um dos lados estava um homem vestido em cota de malha e peles, segurando uma
espada de duas mãos. Ele tinha a pele escura e cabelos negros e lisos, na altura do pescoço,
cortados à faca num padrão caótico. Do cabo de sua espada, das suas orelhas e dos cabelos,
pendiam penas de abutre. Em seus olhos negros e apertados havia a profecia, a devoção do
velho povo do norte, que um milênio antes havia sido expulso daquelas terras quando da
ascensão do Rei Bestial. No lado esquerdo da face, a pele derretida e endurecida formava um
desenho irregular, horrível de se contemplar. Ao seu lado estava um jovem mais alto que ele,
vestindo uma capa cor-de-musgo, de espada em mãos. Também tinha as marcas do velho povo
no rosto. Era um órfão dos que habitavam o vale do Moltes, entregue ainda criança para servir
em Relenú junto aos outros sacerdotes. Como os demais noviços, fora educado para
reconhecer os sinais da profecia antiga, e no nortista conhecido como Eruloké estes sinais
gritavam. O cão branco ia à frente dos dois, e não era um cão qualquer. Crescera numa caverna
do vale e, ainda filhote, lambera o pó negro derramado no chão por seu antigo dono. Sua mente
estava muito além da simplicidade das feras, e ele reconhecera a profecia estampada no odor
do nortista desde a primeira vez que o farejara. O nome do nortista era Okorovakú. Vakú para
os seus. Eruloké para os fanáticos.
Do lado oposto havia um homem mais alto que todos ali, de cabeça raspada, vestido num
robe vermelho de fina fabricação, o traje dos Uscavasc Anespornat, o conselho de anciões que
outrora estivera logo abaixo do próprio Rei. Sua pele era alva e os olhos claros, como os de
boa parte dos sulistas. Numa das mãos, segurava uma espada fina e elegante, cujo aço
escurecido projetava um reflexo azulado. Na outra, empunhava uma faca de lâmina negra. Sua
postura era curvada, como se o peso da própria torre branca estivesse sobre as suas costas. De
sua bochecha esquerda protuberava uma mancha negra escamosa. Ao seu lado estava uma
mulher, também de cabeça raspada, vestindo uma cota de malha tingida de negro e
empunhando uma lança de ponta curva. Era pequena e magra, de contornos duros, o sangue
sulista também se revelando em suas feições. Sua personalidade instável e sua inclinação para
o fantástico levaram-na para algumas das companhias mais indesejáveis que se poderia
encontrar em Atablan, culminando no próprio usurpador de Purcalat. O nome do usurpador era
Bamir. Bamir dos Cengasmut, quando da sua antiga vida criminosa.
Havia reconhecimento mútuo entre os dois líderes. Sabiam muito um sobre o outro, e
conviveram numa mente compartilhada durante os dias mais sangrentos de suas vidas.
Foi o nortista que avançou, caminhando lento, de guarda baixa, ordenando que o cão e o
jovem de capa verde se afastassem.
O sulista entregou a faca negra à sua companheira. Ela se afastou sem a necessidade de
nenhum gesto.
– Cengamut – disse Vakú.
– Cogolat – disse Bamir.
Não havia mais nada que pudessem dizer. Não havia mais nada no qual as duas falas se
encontrassem. Mas sabiam das mesmas coisas. Sabiam que deveriam lutar. Ao vitorioso, a
cadeira e os auspícios da mesma voz que os comandava; a voz que vinha de algum canto
escuro da consciência, que desconhecia um indivíduo ou outro. Ergueram as armas em
concomitância e tocaram metal com metal.
E assim se iniciou a dança de Amet.
Bamir girou a espada de gustabit com fluidez, chocando-a contra a lâmina de Vakú. Antes
que pudesse se equibrar novamente, recebeu um segundo golpe. O sulista era ágil, os dedos em
harmonia com o cabo da arma. Vakú ficou tenso, a espada apertada contra o peito. Bamir
recuperou o fôlego, apontou o gustabit para o nortista e o circulou. Vakú arriscou uma
investida de cima para baixo, mas foi lento. Ao mesmo tempo que se esquivava para a
esquerda, Bamir cortou o abdômen do nortista. Vakú retomou o equilíbrio, a mão esquerda
cobrindo a ferida. Bamir retomou o andar em círculo. Vakú sabia que se atacasse seria
atingido. O sulista era muito rápido. Bamir sabia que apenas precisava cansar o nortista e a
vitória seria sua. Avançou, golpeando pela esquerda, pela direita, em sucessão. Vakú
defendeu-se com dificuldade, andando para trás, a espada pesando em suas mãos. Bamir
prosseguiu com a pressão, até que o nortista exibiu a sua empunhadura. Bamir aproveitou a
chance e feriu sua mão esquerda, forçando-o a largar a espada e desferindo um pontapé. Vakú
caiu desarmado. Havia acabado.
Bamir estava sobre o nortista, a espada apontada para o seu peito. Pensou sobre o que seria
dali em diante. Tornaria-se o arauto de Amet, o novo Rei, o segundo Mateminot. A verdade era
que nunca o bárbaro tivera uma chance contra ele. Podia ser um grande líder, um general
iluminado, mas Bamir era o melhor lutador que jamais estivera entre os Cengasmut, talvez o
melhor lutador que Atablan já conhecera. Não era de se admirar que Amet o havia escolhido.
Não precisava de visão nenhuma para sabê-lo. O lobo branco tinha sido apenas...
Num movimento rápido de mãos, Vakú alcançou o pequenino saco de couro de cobra e de
lá sacou três palitos pontiagudos. Os dardos do Andarilho. Com a rapidez e precisão que
treinara nos acampamentos, atirou-os. Dois deles atingiram o pescoço do sulista, que levou a
mão à garganta, sufocando, recuando, deixando cair o aço azulado.
Bamir sentiu a visão escurecer e ouviu um grito fugidio de uma voz feminina antes de cair
num abismo negro. Ouviu o crepitar da madeira dos barcos de Putobolc. A voz de sua mãe. A
careta de Cassur. Os dentes de Lepe. O olhar opaco dos Anespornat enquanto ele espremia
suas cabeças com as mãos nuas. O amargo na boca, na garganta, a tontura. No lugar onde se
encerrava toda a alegria e tristeza, um ser, meio homem e meio serpente, de olhos amarelos e
brilhantes, a pele negra, duas fendas no centro da face e um capuz de pele sobre o crânio
pontiagudo, estendeu para ele a mão negra de três garras.
– Quanta arrogância, Cengamut – falou a voz, pesada como uma bigorna.
Bamir flutuou, vendo toda a Atablan em chamas, do alto, de onde nem as aves alcançavam.
Então, não houve palavra que restasse.
A mulher sem cabelos vertia lágrimas sobre o corpo do sulista, mas os seus soluços não
tinham volume. O olhar de Vakú estava hipnotizado por Purcalat: a brancura, a imensidão.
Imaginou como Mosú e Koroní teriam gostado de vê-la assim, tão próxima, pelo menos uma
vez.
Chorou. Mas não como um homem ferido ou como um homem que enterra seus irmãos ou
como alguém que sabe que nunca mais voltará a ver aquilo que ama. Chorou como um
menino. Como um garotinho que havia acabado de bater o joelho numa pedra.
Entre. Sinta-se à vontade.
Glossário

Aqui estão organizados os nomes que possuem significado conhecido na língua de Atablan
(denominada Lurbet) e na língua dos povos do norte (denominada Urémi).

Abremusc: Lurbet para Bode no Muro, bazar de alimentos utilizado pela célula de Bamir
como local de reuniões.
Anarvú: Oreanarvú, Urémi para Lança de Gelo, líder dos Oreák.
Anespornat: Lurbet para Lança dos Antigos, ordem política de Atablan logo abaixo do rei.
Anestavasc: Lurbet para Ancião Luminoso, um dos Anespornat.
Anestolet: Lurbet para Ancião Talentoso, um dos Anespornat.
Anestast: Lurbet para Ancião Vigilante, um dos Anespornat.
Anestelet: Lurbet para Ancião Corajoso, um dos Anespornat .
Anestalint: Lurbet para Ancião Devoto, um dos Anespornat.
Anestamurt: Lurbet para Ancião Sombrio, um dos Anespornat.
Anur: Urémi para Antigos, seres mitológicos com status divino.
Anur-Eldorot: Lurbet para Mãe Perversa dos Anur, expressão exclamativa.
Apoletolt: Lurbet para Terceiro Mês.
Aramurké: Urémi para Pântanos de Baixo, região do vale do Moltes ao norte de
Rivinakuloké.
Arnaék: Urémi para Cinzentos, alcunha de Vakú para os sacerdotes de Relenú.
Atablanest: Lurbet para Pai de Atablan, um dos títulos de Amet.
Astanart: Lurbet para Vigias Vermelhos, tanto o exército de Amet como a milícia de Atablan.
Conhecidos popularmente como “Vermelhos”.
Bolcatagrit: Lurbet para Porto da Rocha, um dos portos de Atablan.
Bolcograc: Lurbet para Porto das Canoas, comunidade adjacente a Atablan.

Casitolt: Lurbet para Treze, os Kinetolé.


Cengasmut: Lurbet para Facas Negras, uma organização criminosa de Atablan. Singular:
Cengamut.
Cengavasc: Lurbet para Faca Luminosa, codinome de Aina entre os Utet.
Cogolat: Lurbet para Lobo Branco.
Corlomut: Lurbet para Urso Negro, líder dos Utet.

Enilvé: Urémi para Pedra Pequena, nome para as estátuas de Relenú.


Eramevé: Urémi para Senhor da Alvorada.
Erevamepé: Urémi para Senhor do Crepúsculo.
Eremulé: Urémi para Senhor da Terra.
Eretulé: Urémi para Senhor do Vento.
Ereseké: Urémi para Senhor do Vale.
Eraviné: Urémi para Senhor da Rocha.
Erevatasé: Urémi para Senhor da Chuva.
Erevatamé: Urémi para Senhor dos Espíritos.
Erepalkamíl: Urémi para Senhor da Chama Abençoada.
Eremurolnú: Urémi para Senhor dos Homens Mortos.
Erevalé: Urémi para Senhor do Rio.
Erenivopú: Urémi para Senhor do Bom Fim.
Erirkemalepké: Urémi para Senhor da Faca Cintilante.
Ertaglot: Lurbet para Senhor do Sol, um dos títulos de Amet.
Eruloké: Urémi para Senhor dos Abutres, alcunha de Vakú.

Felkiralívo: Urémi para Águia Devota, um Uremité do clã Felkúr.


Felkúr: Urémi para Águias, clã Uremiték.
Fetacarp: Lurbet para Praça da Coroa, a praça central de Atablan.

Golcaneu: Lurbet para Costa Pequena, uma das orlas de Atablan.


Gustabit: Lurbet para Ferro Azul, uma liga de metais flexível e resistente.

Karevú: Koromeskarevú, Urémi para Cão de Caça Forte, líder do clã Koromuskúr.
Karnól: Urémi para Serpente da Colina, Anur patrono de Relenú.
Kinetolé: Urémi para Treze, os treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornú: Urémi para Demônio ou Divindade. Plural: Kornúk.
Kornukodé: Urémi para Oitavo Demônio, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornumevé: Urémi para Demônio da Alvorada, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornumulé: Urémi para Demônio da Terra, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornunirkemanasú: Urémi para Demônio da Faca Sangrenta, um dos treze Anur cultuados
pelos Uremiték.
Kornunivopú: Urémi para Demônio do Bom Fim, um dos treze Anur cultuados pelos
Uremiték.
Kornupalkamíl: Urémi para Demônio da Chama Abençoada, um dos treze Anur cultuados
pelos Uremiték.
Kornupleikú: Urémi para Demônio Voador, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornuruné: Urémi para Demônio Chifrudo, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornutulé: Urémi para Demônio do Vento, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornuvalé: Urémi para Demônio do Rio, um dos treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Kornuvamepé: Urémi para Demônio do Crepúsculo, um dos treze Anur cultuados pelos
Uremiték.
Kornuvaré: Urémi para Demônio da Montanha, um dos Treze Anur cultuados pelos
Uremiték.
Kornuvatasé: Urémi para Demônio da Chuva, um dos Treze Anur cultuados pelos Uremiték.
Koromuskúr: Urémi para Cães de Caça, clã Uremité.
Koroní: Urémi para Loba da Noite, mulher dos Okorók.
Kuvakerukolé: Urémi para Seguidores de Erukolé.

Levú: Punalevú, Urémi para Árvore Sagrada, sacerdote de Relenú.

Manisarél: Urémi para Mulher da Caverna, mulheres visionárias do vale do Moltes. Plural:
Muniresarél.
Mateminot: Lurbet para Réptil Abençoado, um dos títulos de Amet.
Matemurc: Lurbet para Réptil de Baixo, criatura de Purcalat.
Míro: Okoromíro, Urémi para Lobo Nobre, membro do clã Okorók.
Misetél: Urémi para Homem do Sul ou Sulista. Plural: Muretél.
Misevaré: Urémi para Homem da Montanha. Plural: Murevaré.
Mitegrot/Mitegorók: Lurbet para Cavaleiro, também o nome dado aos bandoleiros do baixo
Moltes.
Mitolosc: Lurbet para Homem do Norte ou Nortista.
Mosú: Okoromosú, Urémi para Lobo Negro, líder do clã Okorók.

Nargorot: Lurbet para Sangue Ruim.


Nasomelé: Urémi para Sangue de Lagarto, xingamento.
Nasoporvú: Urémi para Sangue Ruim.
Nasokarevú: Okoronasokarevú, Urémi para Lobo de Sangue Forte, um Okoró.
Nomós: Velenomós, Urémi para Peixe Negro, sacerdote de Relenú.

Okorók: Urémi para Lobos, clã Uremité.


Okoronamú: Urémi para Lobo Vermelho, antigo chefe dos Okorók. Também conhecido como
Namú.
Olenamós: Urémi para Morte Negra, uma serpente venenosa.
Olgalamarc: Lurbet para Colina dos Corvos, lar dos Normian.
Oreák: Urémi para Lanças, clã Uremité.

Palosíl: Urémi para Fogo Azul, um dos cães de Kalté.


Pilcagust: Lurbet para Curva do Ferro, bairro de Atablan.
Punavasané: Urémi para Árvore de Água, uma espécie de árvore do Vale do Moltes.
Purcalat: Lurbet para Torre Branca, edifício real de Atablan.
Putobolc/Putovolék: Lurbet para Caminho das Embarcações, cidade ao norte de Atablan, às
margens do Moltes.

Relenú: Urémi para Vila do Templo, uma comunidade religiosa da região do vale do Moltes.
Rildémos: Urémi para Folha Negra, um narcótico.
Rildemulé: Urémi para Planta da Terra, um tubérculo.
Rivinakuloké: Urémi para Rochas dos Abutres, uma região do vale do rio Moltes.

Soltaprest: Lurbet para Ilha da Fuga, ilha-fortaleza na costa de Atablan.


Sunasú: Urémi para Boca Sangrenta, um homem ou mulher que sente prazer em matar.

Tameporvú: Urémi para Espírito Mau.


Tartapet: Lurbet para Alto do Arco, bairro de Atablan.

Ultert: Lurbet para Pés ao Alto, um esporte.


Uremiték: Palavra arcaica em Urémi significando Homens da Fala, denominação para nortista
ou descendente do velho povo. Singular: Uremité.
Uscavasc Anespornat: Lubert para Os Filhos Iluminados da Lança dos Antigos, nome
completo dos Anespornat.
Utet: Lurbet para Os Segundos, grupo armado clandestino de Atablan.

Vakú: Okorovakú, Urémi para Lobo Branco, membro do clã Okorók.


Valmavakí: Urémi para Lua Branca, sacerdotisa de Relenú.
Valvomit: Lurbet para Poço dos Bárbaros, bairro de Atablan.
Varekvaké: Urémi para Montanhas Brancas, cadeia de montanhas ao norte, lar da maior parte
dos clãs Uremiték.
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