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Para os GREYLINGS (Audrey Grey's Reader Group) – vocês são demais

Haven escapou das garras do novo Soberano do Sol e encontrou consolo em


Shadoria, mas por quanto tempo?

Agora que a extensão de seus poderes é conhecida, Solis, Noctis e mortais a caçam.
Enquanto isso, o caos reina em todo o país. O reino imortal é governado por um rei
depravado que não vai parar por nada para reclamar Haven como uma arma,
enquanto as terras mortais devem escolher entre servir a um tirano ou seguir o
Príncipe Bell, o Assassino de Parentes.

E abaixo, no Submundo, um grande mal espera, acumulando um exército de poderes


incalculáveis.

Caçada, atormentada pela dúvida e dividida entre o dever e o amor, Haven deve
encontrar uma maneira de negociar a paz entre as nações antes que seja tarde demais.
Stolas Darkshade reprimiu o desejo de saltar da cadeira de pedra gasta que o mantinha
cativo, abrir suas asas inquietas e cavalgar em uma das rajadas de vento uivante no céu de
aço. Apenas o olhar de sua mãe, duro e crepitante de poder, o convenceu de que seria uma
péssima ideia. Empoleirada em um trono escuro feito para acomodar suas gloriosas asas
noturnas, a Imperatriz Serafim comandava a frente da mesa circular de ônix - e a atenção
extasiada de todos os convidados.
A risada da imperatriz foi carregada na brisa violenta e Stolas deslizou seu olhar
entediado para sua mãe. Como sempre, suas asas atraíram seu foco.
Cinco atendentes eram necessárias todas as noites para limpá-las e passar óleo nelas e
quando uma pena caía, ela era queimada nas fogueiras eternas bem abaixo de seu palácio,
nas cavernas ocas feitas pelo primeiro Noctis.
Vestida em uma armadura delicada tão escura quanto suas penas de ônix, suas feições
afiadas foram direcionadas ao Senhor Demônio à sua direita, Kazaack Nightfell, e seu filho,
Raziel, o Príncipe das Cinzas.
Mas a atenção de sua mãe estava exclusivamente nele.
Saia desta mesa, ela ronronou em sua mente, e eu vou tirar essas coisas macias e felpudas
que você chama de asas e transformá-las em nada mais do que pedaços de couro e osso.
A advertência em sua voz não conseguiu mascarar sua afeição por ele. Não era segredo
que ele era o favorito de sua mãe. Talvez porque ela odiasse essas ocasiões tanto quanto ele.
Nem todo mundo compartilha da sua avaliação contundente de meus anexos, ele
provocou, olhando de relance para a amante do Senhor Kazaack. A demonai à sua direita
olhava abertamente para Stolas desde que ela estava havia sentado.
Seus lábios se inclinaram para cima, revelando os afiados dentes de prata que todos os
demonai exibiam. Vermelho-escuro agarrava-se à prata.
A prática do sangui mortus, ou derramamento de sangue de criaturas menores, era
evitada pelos Serafins desde os tempos antigos. Mas aqueles do Reino Demoníaco de
Niefgard ainda praticavam o costume selvagem.
Suas narinas se dilataram quando ele sentiu o cheiro do sangue semi-congelado dentro
da taça da demonai. Solis, pelo aroma floral e acobreado. Carregado com quantidades
copiosas de medo.
Uma picada afiada em suas gengivas anunciou a descida de suas presas.
Ela percebeu a mudança, uma expressão de triunfo cobrindo seu rosto.
Ele retribuiu o sorriso, tendo grande prazer em imaginar o som que os ossos dela fariam
quando ele os partisse. A única coisa mais satisfatória seria o medo em seus olhos quando ele
a jogasse no vazio e, então, visse seu corpo quebrar nas rochas abaixo.
Esconda seu ódio, filho, sua mãe ronronou, ou vou arrancar esses lindos olhos de sua
cabeça inútil.
Como você pode tolerá-los? Eles são quase tão repugnantes quanto os Golemitas.
Os Golemitas eram as criaturas parasitas que corriam nos recessos mais profundos do
Submundo. Eles viviam da magia das almas e do sangue dos vivos, do medo, do terror e de
todas as outras emoções.
Eles têm um propósito, sua mãe o lembrou. Quando esse propósito for cumprido, eles
voltarão furtivamente para seu reino.
Bebendo um gole de seu vinho condimentado, Stolas voltou sua atenção para Senhor
Kazaack. O Senhor Demônio havia finalmente ultrapassado as gentilezas e estava discutindo
a razão de todos eles estarem reunidos: negociar por mais demônios para ajudar em sua
guerra sem-fim com os Solis e os mortais.
Conforme ele se aproximava do final das negociações, suas feições se suavizaram, sua voz
mudando, tornando-se mais melódica.
O preço de negociação era muito mais favorável aos Serafins do que deveria ter sido.
— Por que você ofereceria termos tão agradáveis? — A pergunta de sua mãe pairou no
ar frio e salgado, espesso com a promessa letal.
Se isso fosse um truque, o Senhor Demônio, seu filho e todo o sangue negro de sua corte
alimentariam o mar ganancioso abaixo.
O filho de Kazaack, o Príncipe das Cinzas, puxou os lábios em um sorriso suave. —
Queremos todos os seus prisioneiros.
Então o notório Príncipe Raziel fala.
O domínio de Raziel da língua dos Serafins era perfeito, suas características agradáveis,
sua voz doce e calmante. No entanto, nada disso mudava a enormidade do que a Corte de
Nightfell estava pedindo.
Negociar com apenas um dos Senhores Demônios seria um ato que beirava a guerra.
Stolas estudou o Príncipe Demônio com cuidado.
Todos os Senhores Demônios e sua comitiva tomavam grande cuidado para esconder
suas verdadeiras naturezas e características daqueles neste reino, mascarando ambos por trás
de camadas de magia. Para todos os olhos, exceto para os mais poderosos, eles pareciam
quase humanos.
O Príncipe das Cinzas tinha escolhido a fachada de um garoto de cabelos dourados com
olhos castanhos gentis e uma boca rápida de sorrir. Sua túnica, embora bem feita, era simples
de seda de ônix.
Sem enfeites.
Nenhum brilho de armas na cintura ou nos bolsos.
Seus movimentos eram suaves, hesitantes, não ameaçadores. Sua voz suave e alegre um
lembrete de como ele era inofensivo.
Quão mortal, fraco e confiável.
Tudo mentira, é claro.
O silêncio de sua mãe encheu o ar tempestuoso. Stolas tinha visto homens mais
poderosos do que este desmoronarem sob seu olhar, mas o Príncipe Demônio simplesmente
olhou de volta para aquelas piscinas gêmeas de escuridão.
Sua mãe passou um dedo delicado pelo queixo. — Seu pedido coloca meu reino em
grande risco.
Raziel hesitou antes de responder — Disseram-me que a Loba dos Céus não temia
ninguém.
Bastardo insolente.
Violência derramava de sua mãe quando ela se inclinou para a frente em seu trono, com
a cabeça assinalando para o lado. — Principezinho, a magia infinita desta terra surge através
de minhas veias. Apenas Odin e Freya possuem mais poder. Mas a fúria dos senhores
demônios iria transbordar para o meu povo e eu duvido muito que a sua oferta poderia
compensar o seu derramamento de sangue.
— E se pudesse? — o Príncipe das Cinzas ronronou com aquela voz melódica e aqueles
olhos calorosos e atraentes.
Stolas percebeu uma leve suavização na mandíbula afiada de sua mãe.
— Olhe ao seu redor, Príncipe Demônio. — A mão da imperatriz deslizou pelo ar para
indicar a vasta extensão de terra ao redor deles; um território envolto em névoa de picos
nevados recortados, tão negros quanto o mar. O famoso Castelo Perfurador de Estrelas
projetava-se do oceano de nuvens e névoa como uma lança negra. — O que você pode ter
que ainda não possuímos em abundância?
Por um instante, o encanto em torno do Príncipe das Cinzas vacilou. Tempo suficiente
para Stolas distinguir o rosto estranhamente sobrenatural; feições etéreas e assustadoras que,
sem dúvida, atrairiam qualquer mulher neste reino - se não fossem os olhos amarelos
desumanos, a pele azulada e as orelhas finas e pontudas.
— Eles afirmam que seus dentes são tão irregulares quanto estes picos — Raziel
ronronou. — Seu apetite por sangue e carnificina tão eterno quanto as ondas abaixo. E
ainda... Eu vejo o que você deseja acima de tudo.
Os olhos da imperatriz brilharam com prazer violento enquanto ela arqueava uma
graciosa sobrancelha branco-prateada. — E o que é isso, Principezinho?
Se Raziel adivinhasse errado, seria um insulto. E sua mãe acabaria com ele e acabaria com
esse jogo tolo.
Os incisivos de Stolas deslizaram para a posição, sua garganta apertada com a
necessidade.
Ele nunca provou a magia de um Senhor Demônio antes.
O Príncipe das Cinzas deve ter sentido o perigo girando ao seu redor. E ainda... o
bastardo sorriu ao responder: — Paz. A Loba dos Céus anseia por paz.
Stolas teria rido - quase riu - se não fosse a expressão estranha no rosto de sua mãe.
Suas asas chamejaram, enviando taças voando para tombar no vazio e ela surgiu no céu
com tanta força que as montanhas ao redor deles tremeram.
Era toda a resposta que o Senhor Demônio receberia esta noite. Mas Stolas ficou se
sentindo um pouco livre.
Paz. A palavra ricocheteou em seu crânio como uma maldição.
Paz.
Paz era perigosa. Traiçoeira. Uma sentença de morte. Paz significava sem mais
batalhas. Não haveriam mais prisioneiros para comerciar com os senhores demônios. Se eles
descobriram o desejo de sua mãe pelo fim da Guerra das Sombras... se Odin suspeitasse...
Ou seu animal de estimação favorito, Morgryth...
Rosnando, Stolas levantou-se para o céu, incapaz de sacudir o sentimento pesado do
destino enredando-se no lugar como uma corrente lentamente, lentamente deslizando em
torno de seu pescoço.
No momento em que o estrondo dos sinos gigantes no topo das torres de guarda
alcançou os ouvidos de Haven Ashwood, ela já estava fora da cama e vestida com suas botas
de cano alto, calças forradas de lã e túnica de mangas compridas. Demelza não disse nada
enquanto ajudava Haven a preparar suas armas, que haviam sido convenientemente
colocadas na mesa de cabeceira na noite anterior.
O raro silêncio de Demelza era quase tão enervante quanto o barulho dos sinos. Era um
ritual macabro, infelizmente. Um que Haven rezava todas as noites que nunca viesse. Até
agora, suas orações ficaram sem resposta.
Mas esta noite foi a primeira noite em que houve gritos. O que significava que os
intrusos haviam quebrado as proteções da torre...
— Mais rápido — Haven sibilou quando Demelza mergulhou a arma final - uma espada
curta - na bainha de couro em sua coxa.
Haven se virou para encarar Demelza. Os cachos apertados da mulher aureolavam um
rosto cansado de noites como esta. As linhas profundas que marcavam sua testa escarpada e
formavam teias de aranha nos cantos de seus olhos eram visivelmente mais profundas, seus
lábios finos cercados por linhas de preocupação.
— Você precisa sair de novo? — a criada perguntou.
— Preciso. Mas você estará segura aqui. — Haven acenou com a cabeça para as sombras
passando do lado de fora das janelas.
Os guardas Serafins que protegiam esta torre estavam sob ordens estritas para manter
Haven segura a qualquer custo. E eles não saberiam que ela tinha deixado até que o ataque
houvesse terminado.
— E você? — Demelza estalou a língua. — Quem vai mantê-la segura?
Haven piscou, forçando seus lábios secos em um sorriso enquanto ela acariciava o
punho de ferro preso em sua cintura. — Os deuses. Você não ouviu? Eles meio que gostam
de mim.
Rindo mais alto, a pobre mulher mal teve tempo de deslizar uma capa forrada de pele
sobre os ombros de Haven antes dela se dirigir para a porta.
— Tenha cuidado — Demelza falou e, quando Haven olhou por cima do ombro e viu
a preocupação nos olhos escuros da mulher, uma dor abriu dentro de seu peito que a deixou
momentaneamente tonta.
— Eu vou ficar bem, Demelza. — Haven virou antes que a mulher pudesse ver a emoção
brotando em seus olhos.
No momento em que pousaram nas margens de penhascos altos desta ilha envolta em
névoa, os ataques começaram. Cada mercenário e assassino de aluguel implacável, desde as
Terras das Ruínas até o Mar Selkie, tinha aceitado a recompensa de Archeron por sua cabeça.
Mas não foi apenas Haven. Archeron prometeu milhares de pedras de runas pela morte
de cada membro da sua comitiva. Seu povo. As próprias almas na cidade errante abaixo que
precisavam de sua ajuda agora.
Stolas trabalhava incansavelmente para restaurar algumas das proteções da torre de
guarda ao nível de funcionamento, mas isso ainda deixava uma grande parte da costa
desprotegida.
Puxando sua capa verde-esmeralda firmemente ao redor de seu corpo, Haven deslizou
para o corredor sombrio e se assustou ao ver dois pares brilhantes de olhos lavanda avaliando-
a.
Sua irmã de armas, Surai, mudava impacientemente de um pé para o outro, pronta para
a ação.
Ela já havia despachado os sentinelas que guardavam a câmara de Haven, graças à
Deusa. Uma coisa a menos com que Haven precisava se preocupar. Teria levado um tempo
precioso para convencê-los a deixá-la sair de seu quarto.
— Achei que você se recusaria a ficar trancada dentro de sua gaiola dourada — Surai
ronronou.
— Bell vai ficar furioso. — Haven sorriu para isso.
Bell estava encarregado de sua proteção, uma ironia que não lhe escapou. Ela deveria
ficar escondida dentro de sua câmara durante esses ataques. Protegida no alto do céu
noturno dentro de uma torre quase inescalável.
É como se ele nem a conhecesse.
Ao longe, outro grito foi carregado pela brisa. Uma fúria compartilhada passou entre
elas. Os lábios de Haven ficaram à mostra em um rosnado contido enquanto elas corriam
pelo corredor em pés silenciosos, uma serenata soando com tilintar de suas armas. Janelas
em forma de estrelas estavam esculpidas nas paredes de pedra de ônix. Entre cada abertura
havia uma tocha entre as presas da cabeça de um lobo de ferro. As chamas de um cintilante
azul topázio tremeluziram quando Haven passou.
Haven subiu a escada sinuosa cinco degraus de cada vez, suas botas mal fazendo barulho
enquanto ela pousava. Saltava. Pousava.
Ao lado dela, Surai já havia mudado para sua forma de corvo.
No patamar inferior, as paredes da escada caíam para uma ponte aberta que conectava a
torre ao palácio principal.
— Vá! — Haven ordenou, sacudindo o queixo em direção à expansão escura abaixo. —
Ajude Ember.
Surai hesitou, voando em círculos ao redor da cabeça de Haven.
— Eu vou encontrar uma maneira para baixo — Haven prometeu.
Satisfeita, Surai grasnou duas vezes antes de mergulhar na névoa rodopiante em direção
à torre ocidental.
Normalmente, Stolas já a teria encontrado e a levado para a luta, mas o Príncipe Serafim
havia levado um punhado de seus sentinelas no início da noite para enfrentar a armada fora
da costa de Shadoria. O bloqueio foi um presente de Archeron, destinado a matar de fome
seu reino incipiente. Não foi uma tarefa difícil quando os espiões já haviam se infiltrado nas
defesas porosas da ilha e destruído as poucas faixas raras de terra fértil.
Desgraçado.
E os Serafins eram mais propensos a forçá-la a voltar para sua torre do que levá-la para a
batalha. Cada membro da Shadoria tinha jurado protegê-la, o que nem sempre funcionava
a seu favor.
Uma runa alada? Não, o último que ela tentou terminou com ela quase caindo para uma
morte ignominiosa no pátio abaixo. Cada conjurador de sombras que morava aqui se
alimentava de sua magia de luz, tornando certos feitiços imprevisíveis.
Ela ia ter que descer à moda antiga. Haven estreitou os olhos, reorientando sua
frustração na ponte fina e sem corrimão.
Runas, ela odiava pontes.
O Castelo Perfurador de Estrelas foi construído para os Serafins. E criaturas aladas
tinham muito pouca necessidade de corrimões ou fácil acesso ao solo. É por isso que o
castelo era uma série de torres e estruturas interligadas que se estendiam até as nuvens, uma
relíquia indomável da época em que os Serafins governavam os céus.
Após a Guerra das Sombras e a queda de Odin, quando Morgryth e seu reino foram
enviados de volta ao Submundo e o primeiro verdadeiro Rei dos Nove reivindicou o palácio,
os construtores adicionaram escadas a muitas das torres iminentes - mas não a todas.
Havia, no entanto, um pequeno portal de escravos que ela descobriu, um resquício de
quando escravos mortais serviam aqui, que a levaria ao mercado principal da cidade. Dali, o
litoral estava a uma curta distância.
O único som quando ela cruzou a ponte e, então, saltou para a saliência mais próxima
foi o chicotear de sua capa atrás dela. Ela saltou de sacada em sacada até que as torres esguias
deram lugar a parapeitos e pedras em ruínas.
Formas escuras agitavam o ar turvo enquanto os sentinelas Serafins patrulhavam o céu,
vasculhando as nuvens em busca dos intrusos.
Então, eles eram alados, desta vez.
Sombras? Golemitas de Morgryth? Gremwyrs? A lista de possíveis intrusos inimigos era
tão vasta quanto a cidade espalhada abaixo. Uma cidade cheia de civis inocentes que a
seguiram até aqui com a fé cega de que ela poderia protegê-los.
E, no entanto, aqui estava ela, rastejando e cambaleando pelo castelo, a um único passo
em falso da morte.
Grunhindo, ela forçou seus movimentos em um ritmo perigoso. Qualquer medo que
ela pudesse ter sentido foi superado pela raiva.
Uma raiva sombria e brilhante.
Quando o chão surgiu da névoa com apenas alguns andares de altura, ela saltou, rolando
para amortecer a queda. Seus ossos gemeram com o impacto, lembrando-a de que ela era
mortal. Carne e sangue.
Completamente, irritantemente quebrável.
Mas as chamas da magia surgindo de suas palmas abertas eram tudo menos humanas
enquanto ela penetrava a cidade que penetrava as colinas. As tempestades noturnas que
frequentavam as costas de Shadoria iluminavam o céu; formas escuras e desumanamente
rápidas riscavam os pontinhos violeta dos relâmpagos sobre a água.
Os intrusos foram afastados da cidade.
Resolvida a mantê-los assim, Haven atravessou a rua principal, passando por lojas recém-
inauguradas e pequenas casas esculpidas na encosta da montanha de ônix. Luzes de runas
piscavam nas janelas enquanto as pessoas que haviam desistido de tudo para segui-la se
agachavam atrás de suas paredes. Seu terror amargo sufocava o ar noturno, tão pungente e
real quanto seus gritos abafados.
Haven deveria protegê-los. Mantê-los seguros. E, até agora, ela falhou nisso.
Uma grande onda de fúria quase a cegou. Torcendo os dedos, ela desenhou uma runa
rápida recém-aprendida no ar. No momento em que a cauda final do símbolo em espiral
desapareceu, o mundo ao seu redor se transformou em raios de luz.
Sua velocidade arrancou o ar de seus pulmões. Ela mal teve tempo de piscar antes que as
ruas de paralelepípedos dessem lugar a uma areia branca tão pálida como os ossos que quase
brilhava. O cheiro forte de sangue permeava a brisa do mar. Haven dirigiu seu olhar para o
céu, para as sombras que lutavam lá em cima.
Um grunhido frustrado saiu de sua garganta enquanto ela caminhava abaixo, as botas
afundando na areia movediça.
Se ao menos ela tivesse as asas dos Serafins.
Um baque chamou sua atenção para os penhascos atrás dela, onde os cabelos brancos
luminosos dos soldados serafins balançavam contra as rochas escuras como chamas. Ela
coletou mais detalhes enquanto se aproximava. Uma Serafim estava deitada de lado, suas
belas asas brilhantes flácidas contra a areia manchada de sangue.
Havia algo de horrível em ver aquelas asas, que estavam sempre se movendo, sempre se
estendendo e se curvando e tão cheias de força, agora sem vida e inertes.
A outra mulher se ajoelhou ao lado de sua amiga, cuidando de seus ferimentos
aparentes. Uma trança branca espessa serpenteava por suas costas e quando ela chicoteou a
cabeça para olhar Haven...
— Delphine? — Haven chamou, correndo.
Delphine voltou-se para sua amiga, seus dedos hábeis trabalhando uma série de runas
escuras no ar, enquanto sua mão livre acariciava a bochecha de sua amiga. Haven caiu na
areia ao lado delas, ignorando a sensação de sangue que escoava através do tecido de sua calça
e em seus joelhos. Ela começou a fazer uma nova runa de luz de cura que tinha acabado de
aprender quando Delphine ergueu os olhos para Haven e balançou a cabeça.
Foi quando Haven percebeu que Delphine não estava executando runas de cura; era
óbvio que era tarde demais para ela. Esses símbolos eram diferentes. Algum tipo de último
ritual que os Serafins realizavam antes da morte.
A Serafim moribunda ergueu a cabeça. Sua armadura negra silenciosa, tão escura que
engolia o luar, rangendo suavemente.
Estava pintada com manchas brilhantes de sangue e as penas espalhadas de sua dona
moribunda.
Assim que a mulher reconheceu Haven, uma estranha serenidade acalmou o caos dentro
de seus olhos vazios.
Com um suspiro silencioso, a mulher usou o momento final de sua vida para esticar um
dedo trêmulo em direção à torre mais próxima ao leste, longe da luta.
— O que há ali? — ela perguntou à Delphine.
Mas Delphine não conseguia falar e a série de sinais que ela criava com as mãos não
significava nada para Haven.
Ela ficou com vergonha de admitir que não percebeu a mudez dos gêmeos até que
estivessem no barco em direção a Shadoria. Só então ela percebeu que, em vez de falar, a
dupla fazia uma vasta gama de símbolos com as mãos.
Ela pensou que poderia ter sido um código que eles desenvolveram durante sua
escravidão à Morgryth, para impedi-la de se intrometer em suas conversas internas.
A verdade brutal era muito mais sombria.
Como Stolas havia explicado, os Serafins foram proibidos de se comunicar de qualquer
maneira. Magia cruel e selvagem foi usada para esmagar a parte das mentes que os Serafins
usavam para falar através da alma.
Qualquer Serafim pego falando em voz alta com seus irmãos tinha suas línguas
arrancadas.
Haven estremeceu, seu olhar passando rapidamente para o leste e tudo o que a esperava
antes de retornar para Delphine. Se Haven soubesse como ler seus sinais… e ela fez uma
anotação mental para aprender, na próxima vez que ela tivesse algumas horas para si mesma.
A amiga de Stolas fez três sinais, terminando a declaração com o punho cerrado sobre o
coração e, então, explodiu para o céu. Sua forma sombria logo se juntou à batalha pelo mar.
Hora de descobrir o que a esperava no leste. O punho da espada de Haven estava frio
sob sua palma enquanto ela caminhava em direção à torre iminente. As sombras dos
penhascos escondiam facilmente sua aproximação. Onde quer que a Serafim moribunda a
direcionasse, Haven enfrentaria isso sozinha.
Não haviam Serafins ali. Nada além do quebrar suave das ondas, a canção embaladora
do mar afogando a cacofonia de violência e morte em suas costas.
Ela não era tola o suficiente para confundir o silêncio com segurança.
Um trovão retumbou ao longe, um deus zangado despertando de seu sono. Algumas
gotas de chuva fria tamborilaram em seu rosto.
O brilho dançante de um portal verde iluminou a praia, pintando a areia clara com um
tom de morte suave e doentio. Cinco guerreiros Asgardianos guardavam o portal, suas
armaduras brilhando. E, quando ela viu a criatura que escorregou da boca escancarada do
portal, o machado enorme de seu cavaleiro já estava levantado enquanto a dupla
aterrorizante subia aos céus...
Um arrepio de horror arrasou seu núcleo. Saqueadores da Morte da nação
Asgardiana. Conhecidos por defender a cidade flutuante de Tyr em Asgard em dragões de
batalha, seus batalhões massacraram milhares na Guerra das Sombras.
Suas montarias eram pouco maiores do que um corcel Alpaciano. Musculosos e grossos,
com asas atarracadas destinadas a combates de baixo nível e peles com escamas quase
impossíveis de perfurar, os híbridos de wyrm domesticados foram criados para ter força e
resistência.
Combinados com a habilidade dos guerreiros Asgardianos, eles eram absolutamente
letais. E agora eles caçavam os habitantes de Shadoria.
Gelo picou suas veias. Se os Saqueadores da Morte alcançassem a cidade novamente...
Isso nunca vai acontecer. Nunca.
Uma espada de um relâmpago branco ofuscante adornou o céu, paralisando
momentaneamente a visão noturna dos Asgardianos. Ela contou até três, cronometrando
seu ataque com o estalar do trovão que se seguiu. Os guerreiros protegendo o portal não
viram nem ouviram Haven até que sua espada longa provou seu sangue.
Uma espada normal mal teria penetrado em sua carne. Mas a rara lâmina de cinzas
noturnas - forjada com fogo demoníaco e infundida com sangue de corvo - tornava sua carne
imortal tão macia quanto as peras-lunares maduras que permeavam a ilha.
Três morreram imediatamente, desabando no chão no silêncio assustador que se seguiu
ao trovão.
Os dois últimos conseguiram erguer seus escudos de ferro, desviando seus golpes
poderosos. Cada escudo era decorado com uma imagem da primeira montaria de dragão
macho.
Metal retinia contra metal em sincronia com o trovão estrondoso. O impacto explodia
em seu pulso e braço, a dor tirando o fôlego de seus pulmões e mantendo-a atenta.
Ela se abaixou quando o fio mortalmente fino de um machado assobiou no ar. Uma
pontada de adrenalina aqueceu seu peito e acelerou seu coração em um ritmo rápido.
Bjorn tinha mantido seu próprio machado afiado o suficiente para matar. Memórias do
que ele tinha feito para os corpos musculosos e de couro das Sombras…
Não pela primeira vez, ela amaldiçoou sua carne e ossos mortais. Se uma coisa era certa
sobre toda essa profecia era que, ser chamada de descendente de uma Deusa, enquanto estava
enjaulada em um corpo mortal frágil, era cruel.
O ar gemeu e ela girou de lado quando a lâmina do machado brilhou ao lado de sua
bochecha, cortando uma longa mecha de cabelo rosa-dourado. Um segundo depois e sua
cabeça estaria rolando sobre a areia.
Empurrando o pensamento sombrio para longe, ela dançou para fora do alcance deles,
rindo, puxando-os para mais perto. As ondas quebravam em suas costas. Uma chuva tímida
caía, molhando suas armaduras e cabelos, criando uma música suave e tamborilando na
areia.
Satisfeitos que, sem o elemento surpresa, ela não representava mais uma ameaça, os
Asgardianos baixaram suas armas brutais até a cintura.
Afinal, ela valia mais para eles viva do que morta.
Esse foi o primeiro erro de Archeron. Ela nunca se deixaria tornar uma escrava
novamente. Nunca.
Suas narinas se dilataram enquanto ela estudava os homens rapidamente. Eles eram
altos, com mais de dois metros de altura, e certamente os Saqueadores da Morte viraram
assassinos de aluguel. Línguas de sua famosa magia de luz verde lamberam e estalaram ao
redor deles, deixando o ar tempestuoso com cheiro de rosas e mirra.
A mão da espada dela se contraiu com mais força. Como Bjorn, ambos eram bonitos,
quase divinos. Sua pele da cor das pérolas escuras de Ashari. Sua magia de luz explodindo de
suas formas míticas e dançando sobre seus rostos sedutores enquanto eles se aproximavam.
Assim como ela queria que eles fizessem.
Esse foi o segundo erro de Archeron. Usar Asgardianos endurecidos pela batalha, cujos
egos enormes os tornavam fáceis de embalar em uma falsa sensação de poder.
Sua mortalidade significava que eles nunca a veriam como uma verdadeira ameaça.
— Então, esta é a bastarda do Sombreamento — disse o mais alto Asgardiano. Não havia
malícia em sua voz. Nem ódio. Apenas uma curiosidade fria e desdenhosa enquanto seus
olhos verdes, da mesma cor que a sua magia, passavam sobre ela. — Você não é descendente
da Deusa. Eu posso sentir sua aura ruinosa a partir daqui, infectada com a escuridão de
Odin.
As palavras rasparam uma velha ferida. Haven lutou contra a onda de dor enquanto as
palavras de Archeron sussurravam através dos ventos da tempestade. Matar você é um ato de
misericórdia. Estou salvando você do que você se tornaria.
— Você pode estar certo. — Um sorriso sarcástico apareceu em seu rosto enquanto ela
girava sua espada círculos, peito borbulhando com antecipação. As bordas de seu manto
enrolavam em torno de suas pernas, arremessado pelo vento. Tiras de seu cabelo rosa-
dourado arranhavam suas bochechas e testa, pintadas cinza-rosa graças à luz do portal. —
Mas se vocês cancelarem seus ataques e saírem agora, essa escuridão vai ficar trancada e isso
é uma misericórdia que vocês não merecem.
A coisa gananciosa dentro dela se enfureceu com a ideia de deixá-los escapar. Ela podia
sentir o inchaço contra seu peito, batendo e arranhando e implorando por liberação.
Cada grama de seu poder foi usado para mantê-lo acorrentado. Se ela os poupasse, se
pudesse convencê-los de alguma forma a se unirem a ela e aos outros contra Archeron e o
Sombreamento...
— E por que você oferece termos tão generosos? — Um humor zombeteiro escorreu das
palavras do Saqueador da Morte mais próximo.
— Porque o Sombreamento está chegando. E, quando ele chegar ao seu reino, não
importa quantas pedras rúnicas e ouro revestem seus bolsos. — Os tendões de seu pescoço
grosso se arquearam com a menção do Sombreamento e ela se permitiu um sussurro de
esperança ao acrescentar: — Precisamos de aliados para lutar contra ele. Juntas, nossas
nações podem ter uma chance contra a invasão.
— Filhos de Freya e Odin e homens juntos? Sob seu domínio venenoso? — A risada do
Asgardiano retumbou pela praia, a lâmina do machado refletindo as chamas verdes que o
circundavam enquanto ele a girava. — Mesmo se o Soberano do Sol não estivesse oferecendo
cem runas de poder pela sua captura, você ainda seria minha inimiga, sua vadia blasfema.
A raiva cresceu dentro dela. Ela esperava a resistência dos Solis. A hostilidade e a
desconfiança. Mas não neste grau. Archeron estava espalhando histórias de sua trapaça,
alegando que ela estava envolvida no ataque a Solethenia. Que ela fez de tudo para roubar a
Assassina de Deuses.
Não a admirava que a desprezassem.
Contendo um grunhido frustrado, ela disse: — Inimiga ou não, eu ofereço mais
misericórdia do que o Sombreamento.
— Cada palavra que você pronuncia cheira a traição. Você afirma ser descendente da
Deusa, mas sua carne é mortal e sua magia distorcida por seu amante Noctis obscuro. O
Soberano do Sol está certo; você é uma abominação e a arma do enganador. Se o Soberano
do Sol não quisesse controlá-la pessoalmente, eu a mataria onde você está.
A palavra que Archeron usou contra ela despertou o espinho quase constante de agonia
enterrado no fundo de seu coração. Abominação.
Ela flexionou os ombros para esconder o desconforto, forçando uma respiração
calmante. — Ele está oferecendo cem runas de poder agora? Ele deve estar ficando
desesperado.
Ela mudou seu olhar para o outro Asgardiano. Talvez ele pensasse de forma
diferente... seu escárnio destruiu os últimos resquícios de esperança que ela tinha de uma
aliança.
Uma parte fria e vingativa dela estava feliz.
Não haveria conversa sobre aliança esta noite.
Nem piedade.
Apenas morte.
Os gritos anteriores rodaram em sua mente. Pessoas inocentes mortas. Seu povo
apavorado e massacrado e para quê?
Ela podia sentir que estava mudando. Sentindo sua magia de luz queimando. Ela
encontrou o olhar arrogante do Asgardiano, obtendo satisfação na centelha de medo que
acendeu por trás de seus olhos de peridoto.
Ambos sentiram a escuridão dentro dela despertar, esticando seus tentáculos de poder
enquanto ela afrouxava seu controle sobre ele.
Seus lábios se curvaram em um sorriso.
— Por que você está sorrindo? — A areia rangeu quando o homem mais próximo
lentamente se aproximou. Séculos defendendo a cidade flutuante de Tyr, anunciados como
guerreiros lendários que lutaram contra os Noctis nas Guerras das Sombras, o fizeram
desconsiderar tolamente o poder que sentiu. — Você está gostando da ideia do que o
Soberano do Sol fará com você?
— Prostituta mortal — o outro cuspiu. — Nenhuma filha da Deusa estaria em aliança
com o Senhor do Submundo, nem seria tola o suficiente para cair direto nos braços dos
Saqueadores da Morte.
Calor beijou sua palma, enviando luz dourada dançando sobre o aço inclinado do
peitoral dele. Seus olhos se moveram preguiçosamente para a magia dançando logo acima de
seus dedos enquanto ele deslizava para a esquerda, a fluidez furtiva com a qual ele se movia
dando a entender que aqueles Senhores do Sol eram poderosos. Acostumados a matar
monstros maiores e mais assustadores do que ela com facilidade.
Bem, se é com isso que eles estavam acostumados...
Distraídos por sua magia de luz, ambos os homens perderam a luz bruxuleante do azul
ardente entrelaçando-se entre as pontas de seus dedos. E, quando eles viram isto, viram no
que estava se tornando... quando seus olhos se estenderam em todas as órbitas brancas de
surpresa e, então, se encheram de medo - era tarde demais.
Sombras serpentinas se contorciam e se agitavam ao redor dos Asgardianos, uma gaiola
cruel devorando avidamente sua magia de luz. Sugando-a deles com eficiência
surpreendente.
O portal gotejou e, então, morreu, sua magia alimentando seu monstro.
A pele deles ficou pálida e doentia enquanto eles balançavam suas armas. De novo, de
novo e de novo. Cortando inutilmente a magia das sombras que os estava matando lenta e
metodicamente.
Ela podia ver em seus rostos desesperados: eles sabiam que seu destino estava selado. Eles
morreriam nesta costa rochosa pela promessa de runas de poder e ganância.
Seus olhos se arregalaram quando a gaiola de obsidiana começou a
mudar. Solidificando-se enquanto seu corpo musculoso se curvava para fora, gavinhas de
escuridão brotando no ar.
Algo em seus movimentos inteligentes era diferente de todas as vezes que ela praticou
esse truque antes.
O que no Submundo?
Um estranho pânico saltou em seu peito. Apesar dos ventos frios da tempestade, uma
gota de suor deslizou entre suas omoplatas enquanto ela observava sua magia das sombras
tomar forma, dividida entre o fascínio e o horror.
Estava se transformando em algo. Esticando e pulsando no ar, membros lentamente
aparecendo das sombras nebulosas...
Deusa Acima.
Stolas havia avisado que existia uma pequena chance de isso acontecer, mas vendo
agora... a terrível brutalidade vazando de sua forma...
Ela tropeçou para trás quando fragmentos de gelo se enterraram em seu núcleo.
Cada Serafim tinha um Familiar das Sombras, uma criatura nascida da magia das
sombras que eventualmente se manifestava fora de seu hospedeiro. Na terceira noite aqui,
durante a primeira onda de ataque de Archeron na ilha, Haven avistou uma enorme sombra
bloqueando as estrelas enquanto circulava o céu noturno.
Seus rugidos foram altos o suficiente para acordar toda a cidade.
Assumindo que a coisa foi enviada por Archeron, ela alertou Stolas.
Apenas para descobrir que era o Familiar das Sombras de Nasira, um dragão de fogo.
E foi então que Stolas mencionou a possibilidade de Haven também ter um familiar. Ele
disse isso tão casualmente que ela presumiu que a possibilidade era desanimadora, na melhor
das hipóteses.
É por isso que ela não prestou muita atenção quando ele explicou o que isso significava.
Em suas palavras, no momento em que ela entrou nas margens do Shadoria, se o
Sombreamento tinha passado o mesmo presente para ela, a transição sagrada poderia ser
despertada.
Sempre que ela considerava a possibilidade, sua mente conjurava um dragão elegante e
bonito, feroz, mas majestoso.
Isso, essa coisa crescendo diante de seus olhos, não era nada majestosa.
Ela estremeceu quando um longo focinho brotou de uma cabeça enorme, a escuridão se
condensando em perna e garras e uma cauda de serpente que chicoteava com força suficiente
para quebrar pedras. Asas esqueléticas brotaram de suas costas deformadas e enviaram
sombras deslizando pela areia. Espinhos cresceram e se retorceram como cobras por todo seu
corpo musculoso.
Rosnados foram arrancados da criatura torta e curvada, os sons de gelar o intestino
direto do Submundo.
Ela tentou molhar os lábios, mas descobriu que sua boca estava seca como areia.
Como poderia essa... coisa ser uma parte dela?
A entidade grotesca hesitou, esperando por uma ordem.
Ela podia sentir sua sede de sangue guerreando com sua necessidade de agradá-la. Seu
desejo primordial de dor e destruição temperado por seu desejo de obedecer.
Mas aquele controle que ela tinha sobre ele estava se desgastando a cada segundo que ela
esperava. Ela sabia que poderia acabar com eles sozinha. Poderia envolvê-los em uma
escuridão sufocante.
Eles não sentiriam dor.
A morte deles seria rápida.
Mas ela não queria acabar com eles rapidamente. Deveria haver consequências para o
que eles fizeram.
Ela não estava ciente de que tinha tomado uma decisão até que surgiu através daquela
tênue corda entre ela e a criatura monstruosa. Com um grunhido satisfeito, a besta ergueu-
se sobre os Saqueadores da Morte, uma amálgama dos pesadelos de Haven.
Cada terror dela, cada medo enterrado liberado para formar essa coisa sádica e
repugnante.
— O que em nome da Deusa sagrada você é? — o Asgardiano mais próximo gritou
enquanto balançava sua arma de novo e de novo, alheio ao esforço desperdiçado.
Haven desejou que ela soubesse. Deveria haver alguma forma distinguível, mas ela se
preocuparia com isso mais tarde.
Os olhos em pânico do Asgardiano se fixaram nos dela. — Misericórdia, Nascida da
Deusa!
Haven não sentiu nada quando ela disse: — Eu lhe ofereci misericórdia, mas você
recusou. Eu lhe ofereci paz, mas você escolheu a morte. Agora cada um de seus homens irá
segui-lo para o Submundo.
Era verdade. Com o portal fechado para reforços, os Saqueadores da Morte estavam
condenados. Mesmo agora, seus dragões feridos e moribundos caíam no mar ao seu
redor. Seus gritos agonizantes reverberavam nas paredes do penhasco e puxavam seu
coração.
Não precisava ser assim. Os dragões estavam apenas cumprindo as ordens de seus
mestres, mas os Asgardianos tiveram uma escolha.
Eles escolheram errado.
Ela esperou até que o último Asgardiano e sua montaria espiralassem até a morte através
das estrelas e desaparecessem no oceano negro. Somente quando os Asgardianos souberam
que o último de seus homens morreria com eles, uma vez que aquela finalidade assombrosa
os fez largar suas armas, ela liberou completamente sua besta espectral.
Ela não sentiu nada enquanto ela desceu sobre os homens. Nada quando seus gritos
começaram.
Nada quando os barulhos de metal e ossos quebrando perfuraram a noite.
Mas ela teve que se virar quando eles imploraram à Deusa por misericórdia.
Misericórdia que eles recusaram dela. Cuspiram nela como veneno.
Ela se concentrou na tempestade à distância enquanto a pontada familiar de dúvida a
incomodava.
Talvez a profecia esteja errada.
Talvez ela não tenha nascido da Deusa, apenas da Sombra e o monge viu o que queria
ver.
Talvez ela só tenha visto o que ela queria ver.
Por que mais sua mãe nunca tentou alcançá-la?
Talvez o que Haven ofereceu não fosse misericórdia, mas uma missão impossível. Uma
ideia impossível. As nações mortal, Noctis e Solis guerreavam desde o início dos tempos.
O que a fazia pensar que poderia uni-los quando até mesmo Freya havia falhado?
Algo - uma pontada na barriga, uma dança de sombras na face recortada do penhasco -
atraiu sua atenção para a forma escura pousando suavemente em uma pedra próxima.
Olhos vermelhos brilhantes pulsavam das sombras. Stolas. Algo também lhe dizia que
ele a estava observando há algum tempo.
Seu protetor dedicado parecia um predador quando ele se agachou, suas gloriosas asas
escuras coroando o céu, seu cabelo ondulado branco como a lua em nítido contraste com
sua armadura negra meia-noite. Seus lábios se curvaram com orgulho quando ele viu a besta
que ela criou.
Como se reconhecesse outro monstro, a magia das sombras dela ergueu sua nebulosa
cabeça negra de sua alimentação gulosa para observar o príncipe sombrio.
Gravemente ferido, o sobrevivente Asgardiano se arrastou pela areia até encontrar a
parede do penhasco. Preso, seu olhar em pânico disparou entre o monstro mágico e o real.
Ambos eram igualmente sedentos de sangue - e igualmente dela.
Stolas desenhou uma runa rápida, as linhas elétricas azuis chiando no ar e a fera escura
se tornou uma névoa nebulosa que afunilou de volta para dentro dela de forma indolor.
A raiva aplacada, ela se virou para ele, surpresa ao descobrir que estava respirando com
dificuldade.
Stolas apertou as asas contra o corpo enquanto saltava graciosamente da pedra e rondava
em direção a ela. Uma coroa negra irregular se erguia de seus cachos brancos, a única
indicação de seu status.
Caso contrário, ele usava a mesma armadura padrão que o resto dos sentinelas Serafins
que patrulhavam esses céus, cada centímetro do material uma vez brilhante coberto de
sangue e sangue.
— Pequena Fera — Sua voz era suave, gentil, moderando a ferocidade avassaladora que
emanava de seu ser. O vermelho circulando em suas íris desbotou-se conforme a
preocupação cintilou nas profundezas prateadas. — Esta é a primeira vez que seu Familiar
das Sombras tenta se formar?
Ela assentiu enquanto trabalhava para esconder sua inquietação. Supunha-se que os
Familiares se assemelhavam a formas animais. Stolas e sua mãe tinham familiares lobos
terríveis. O resto da linhagem Darkshade foram presenteados com dragões familiares
talentosos semelhantes ao dragão de fogo de Nasira.
No entanto, saber não tornava isso menos inquietante. Especialmente considerando a
forma aterrorizante que sua besta havia assumido. Se crianças com magia das sombras
herdavam seus Familiares das Sombras de seus pais, isso significava que o dela viera
diretamente do próprio Sombreamento.
— Dê um tempo — disse Stolas, seu comando suave cortando seus medos. — Às vezes,
seu Familiar leva meses para se comprometer com sua forma final. Nesse ínterim, devemos
trabalhar para desenhá-lo lentamente, deixar o vínculo entre vocês se fortalecer.
Apesar de seu tom gentil, sua boca estava apertada. Depois que Stolas a avisou da
possibilidade de que ela pudesse ter um Familiar, ela o provocou sobre o dele até que
percebeu a dor reprimida em seus olhos.
Sua explicação simples – que o dele estava adormecido – não era toda a história, mas ela
não insistiu mais.
Ele diria a ela quando estivesse pronto.
— Então, você está dizendo que há uma chance de eu não ter algo vivendo dentro de
mim que se parece com a cria de um Lorrack e um demônio? — ela brincou, mantendo a
voz baixa no caso da coisa poder ouvi-la.
— Estou dizendo, Pequena Fera, que qualquer criatura que seu Familiar decida
manifestar será uma parte de você e, portanto, extraordinário.
Ela engoliu em seco, desesperada por outro assunto. — O bloqueio?
— Afundamos quatro navios, mas o ataque aqui nos chamou de volta.
Haven sentiu seus ombros cederem quando compreendeu. — Eles estavam esperando
que você atacasse os navios. Foi um estratagema para afastá-lo da ilha.
Quando ela disse as palavras, dedos gelados pareceram apertar em torno de sua coluna
vertebral. Era como se Archeron estivesse um passo à frente deles. Ele tinha o poder e a
riqueza da poderosa Corte do Sol atrás dele, enquanto eles eram uma nação em dificuldades,
cheia de párias.
Uma nação que quase morreu esta noite. Se os Saqueadores da Morte tivessem rompido
suas defesas e entrado na cidade...
Stolas colocou uma mecha errante de seu cabelo atrás da orelha. — Quando foi a última
vez que você realmente dormiu?
— Estou bem.
— Ou comeu, por falar nisso?
Sua mandíbula flexionou. — Estamos todos ocupados. Além disso, não me lembro de
ter visto você devorando comida no refeitório.
A coluna forte de sua garganta mergulhou e, tarde demais, ela se lembrou do porquê. —
Eu não preciso do mesmo tipo de sustento que você.
Tipo. Certo. Porque ele precisava de sustento, mas não de comida mortal.
Quando ele era o Senhor do Submundo, ele tinha uma vasta gama de almas para se
alimentar. Mas aqui... bem, ela ainda não tinha coragem de perguntar como ele estava
satisfazendo essas necessidades.
— Eu comerei depois — ela prometeu, a mentira pairando entre eles.
Ele arqueou uma sobrancelha cinza, seus olhos brilhando como se ele quisesse discutir
mais, mas, então, ele simplesmente disse: — Eu pensei que o príncipe Bell tivesse ordenado
que você ficasse segura e protegida dentro da torre norte?
— Ordenou? — ela zombou, ignorando a forma como a voz provocante dele ficou baixa
e quente em sua barriga. — Acho que você sabe melhor do que ninguém o quão bem eu
respondo a comandos.
Seu sorriso foi devastador. — De fato. — A atenção dele deslizou para os lábios dela
enquanto ele traçava um dedo sobre a borda fina de sua mandíbula. — Assim como seu Rei
Bell já deve saber que você nunca poderia se esconder atrás das paredes da torre enquanto
inocentes estão sendo massacrados.
Sua garganta se fechou.
— Quantos?
Os planos de seu rosto se aguçaram com raiva controlada e ela se perguntou como seria
experimentar a versão desencadeada dessa raiva infinita. — Encontramos dez casas até agora.
Casas. Não pessoas. Ele estava tentando protegê-la dos detalhes. Tentando tornar isso
mais fácil para ela.
Mas ela não queria fácil.
— Quantos?
— Vinte e três. — Os músculos de sua testa tremiam quando ele olhou além dela para a
periferia da cidade, onde as pessoas ainda estavam agachadas por trás de suas paredes e da
ilusão de segurança. — Mas haverão mais.
— Crianças?
Sua garganta balançou. — Nove. Quatro das quais vieram de uma casa só. Apenas o pai
sobreviveu, mas, pelo olhar em seu rosto, duvido que ele viva muito tempo.
Uma dor se formou sob seu esterno, culpa, vergonha e raiva convergindo em uma massa
fria e oca. — E os outros quadrantes da cidade?
As cidades situadas nas montanhas na base do palácio foram divididas em quadrantes,
cada uma com sua própria torre de vigia e proteções. Se este tinha sido atacado, ela assumiu
que os outros também.
— Nasira pegou o portal perto da torre sul. Bell e Xandrian cuidaram do leste. Surai e
Ember do norte.
A dor de fúria em seus olhos a fez desviar o olhar. Ela não se atreveu a perguntar as baixas
dos outros quadrantes. Ela descobriria em breve quando visitasse as famílias em luto hoje
mais tarde.
Uma fadiga de cansaço até os ossos se apoderou dela. Cada noite trazia novos
terrores. Cada ataque era pior do que o anterior. A sensação de fracasso total ameaçava
dominá-la.
Arrastando o cabelo para trás de sua testa, ela deslizou seu olhar para o invasor
Asgardiano, onde ele caiu contra a base do penhasco.
— O que você vai fazer com ele? — Stolas perguntou, um brilho perverso em seus olhos
quando ele mudou seu olhar para o Asgardiano. Houve um aperto em torno da boca de
Stolas, uma dilatação delicada de suas narinas quando ele sentiu o cheiro do homem ferido.
Um perfume sem dúvida impregnado de medo.
A prata dos olhos de Stolas escureceu quando o brilho vermelho começou a latejar, um
rosnado suave e um ronronar vibrando em sua garganta.
Os cabelos finos de sua nuca se arrepiaram. Se ela tinha alguma dúvida do que a cor
vermelha significava, o rosnado bestial os dissipou.
A batalha da noite o deixou com uma fome profunda e implacável.
Assim que a atenção de Stolas caiu sobre o homem ferido, o medo puxou seu rosto
contorcido pela dor.
Haven passou por cima dos cadáveres de seus irmãos enquanto ela se aproximava do
homem, cujos olhos permaneceram firmes em Stolas atrás dela.
— O que você faria? — Haven perguntou ao príncipe faminto, nunca tirando os olhos
do Asgardiano. — Ofereceria misericórdia?
Uma risada sombria. — Pelo que me lembro, ele rejeitou sua misericórdia. Bastante
rudemente.
Então, Stolas tinha estado assistindo.
— Por favor. — O sangue escorria dos lábios do Saqueador da Morte enquanto ele
implorava. — Não foi nada pessoal. Eu... Eu estava apenas cumprindo ordens.
Haven olhou para ele. Antes de Shadoria, antes de carregar o fardo pesado de sua
linhagem e da profecia, ela poderia ter ordenado que ele fosse curado. Poderia ter tentado
teimosamente negociar uma aliança de novo.
Antes da morte de seu povo, ela poderia ter pensado ingenuamente que salvá-lo
convenceria o reino de que ela era boa.
Mas sua bondade não manteria seu povo seguro. Só o medo faria isso.
Se eles estavam esperando a filha do Sombreamento, ela também poderia desempenhar
o papel. — Foi pessoal quando seus saqueadores massacraram as crianças que dormiam em
suas camas?
O medo brilhou dentro de seus olhos. — Elas foram...
— Uma transação? — Seus dedos cerrados e estendidos ao lado do corpo. — Quanto
você disse que ele pagou por cada morte de novo?
Seu peito arfava com respirações irregulares. — Isso não foi...
— Pessoal?
Ele piscou.
Ela olhou para Stolas. Seu protetor. Seu amigo. E, sim, em todos os sentidos da palavra,
um monstro. Mas ela estava começando a descobrir que haviam tipos muito diferentes de
monstros.
Uma vez, ela teria se esquivado de sua natureza. Da fome que ela reconheceu em seus
olhos enquanto ele bebia o Asgardiano. A faísca de excitação semelhante a um gato
observando um pássaro ferido.
Depois de drenar sua magia das sombras em batalha, ele ficaria faminto pela magia da
luz.
— Diga ao Soberano do Sol e aos tolos tentados por suas ofertas que a morte aguarda
qualquer um que venha aqui sem ser convidado. Diga a ele... — Sua garganta se apertou ao
recordar Archeron como antes, ferido, mas cheio de esperança. — Diga a ele que não
precisamos ser inimigos.
Percebendo que estava sendo poupado da morte, o invasor Asgardiano relaxou contra a
parede de pedra e fechou os olhos. — Eu irei. Agora, por favor. Eu estou sangrando. Eu
preciso de um curandeiro.
Haven girou nos calcanhares para sair.
— Espera. Não me deixe com ele. Ele é um...
— Monstro? — Haven terminou antes de encontrar o olhar de Stolas.
Os olhos de Stolas se arregalaram de surpresa quando ele percebeu que ela o estava
soltando completamente.
Um sorriso perverso iluminou seu rosto, mostrando presas de marfim que ela só
vislumbrou algumas vezes antes. Ele sempre foi cuidadoso em esconder esse lado de si
mesmo dela.
Para protegê-la disso.
Mas ela se recusou a desviar o olhar, a se encolher dos instintos primordiais que eram
parte dele.
Outro lampejo de surpresa, seguido por uma emoção vulnerável que ela não ousou
nomear.
Mas o que quer que se passasse entre eles, foi quase instantaneamente devorado pela
besta que ele se deixou tornar. Suas pupilas se alongaram em cortes finos e felinos, seus dedos
desembainhando garras negras.
Aquele olhar faminto fixo em sua presa. — Você achou que poderia entrar
sorrateiramente em meu reino, o lar sagrado de meus ancestrais que e não haveriam
consequências? Que você poderia matar crianças dormindo em suas camas sem enfrentar
minha ira?
O terror selvagem nos olhos do Asgardiano lembrou Haven de como Stolas era de
verdade. Aqueles olhos vidrados deslocaram-se para Haven. — Por favor, Nascida da
Deusa. Ele não.
— Então, é Nascida da Deusa agora? Do que foi que você chamou ela antes? — a voz de
Stolas saiu em um baixo e retumbante grunhido mais animal do que humano. — Uma
mortal prostituta?
— Não. Levarei sua mensagem ao Soberano do Sol...
— Eu tenho minha própria mensagem para o Senhor do Sol, mas você pode não gostar
do que ela diz.
Mesmo Haven teve o bom senso de parar enquanto Stolas deslizava silenciosamente em
direção ao Asgardiano.
O homem começou a rezar. Stolas estava em silêncio, totalmente focado na caça. O
rosnado baixo e ronronante que ele fez lembrou Haven dos gatos selvagens do estábulo em
Penryth depois de terem sido jogados restos de pernas de faisão.
Quanto tempo posso brincar com ele? Stolas passou lentamente em sua mente.
O tanto que você quiser. Só... mantenha-o vivo o suficiente para transmitir minha
mensagem. É... possível?
Possível, sim. Com a quantidade certa de controle. Embora ele fique arruinado para
qualquer coisa além dessa simples tarefa.
Haven nem mesmo queria saber o que isso implicava.
Uma pausa e, então, Stolas murmurou, obrigado.
Ela quase riu da fachada. Como se ela pudesse se dignar a dar-lhe permissão para
qualquer coisa. Ele podia pegar o que quisesse, quando quisesse. Especialmente aqui, em
suas próprias terras, onde seus poderes prosperavam tão fortemente que às vezes ela sentia
sua magia turva do outro lado do castelo, uma criatura viva que respirava.
A insistência dele para que ela o comandasse era uma cerimônia, para convencer o
mundo - ou a si mesma - de que ela era descendente da Deusa.
Mas sua gratidão não era por sua permissão. No Submundo, ele tinha um suprimento
constante de almas para atender às suas necessidades e ela nunca foi confrontada com sua
fome sombria ou o ato real.
Ele agradeceu, porque ela reconheceu sua fome e não se encolheu.
Na verdade, uma parte dela estava curiosa sobre como a drenagem de magia da luz
funcionava. Com o que parecia.
Ela sabia por conversas anteriores que Stolas poderia tornar o ato agradável, quase
eufórico - se ele quisesse.
Mas quando ele não queria...
Ela chegou a apenas seis metros antes do primeiro grito começar. E ele continuou até
que ela estava fora do alcance da voz.
Quando Haven se arrastou para o refeitório para uma refeição rápida e sem gosto de
aveia morna, regada por uma xícara de cerveja escaldante, seu cansaço corria fundo de sua
alma.
As horas após o ataque passaram rapidamente como um borrão entorpecido. Havia
muito a fazer antes da chegada da noite e da ameaça de novos ataques. As proteções dentro
das torres tiveram que ser verificadas, as enfraquecidas, reforçadas. Séculos antes, durante o
reinado dos Darkshade, as torres extraíam seu poder dos fogos demoníacos eternos que
foram presenteados pelos Senhores Demônios.
Mas os fogos há muito se extinguiram e as runas antigas esculpidas nas torres de pedra
escura foram erodidas, desgastadas pelas ondas e tempestades ferozes que cercavam a ilha.
Os poucos estudiosos de runas na ilha passavam seus dias e noites nas bibliotecas
subterrâneas abaixo da cidade, vasculhando cada livro antigo em busca dos feitiços
apropriados para fortalecer as proteções mais uma vez, mas menos da metade havia sido
descoberta.
O que significava que todas as noites, quando a luz prateada e etérea que cobria Shadoria
era drenada para trás das Montanhas Ravenite, novos horrores aconteciam.
E, todas as manhãs, naquela hora mágica do amanhecer quando a luz da Deusa se
derramava sobre a cidade envolta em névoa, Haven forçava seu corpo cansado pelas ruas
para visitar as famílias dos mortos.
Havia o filho do sapateiro, recém-casado com um bebê a caminho. O casal de idosos que
estavam juntos há quase sessenta anos. A família de seis, abatidos antes que pudessem sair da
cama que todos eles compartilhavam. Eles ainda estavam envolvidos em torno uns dos
outros, como se estivessem dormindo, pernas e braços entrelaçados em torno das cobertas
de lã.
Haven correu da casa de pedra com vista para um pátio em ruínas, perturbada não
apenas por suas mortes trágicas, mas pelo modo como eles viveram. O amor fácil que se
evidenciava na forma como a mãe segurava a filha mais velha junto ao peito, os dois meninos
mais novos agarrados às pernas do pai.
Um amor caloroso e familiar que Haven nunca conheceria.
Foi naquele momento, cercada pela carnificina restante da noite, que a multidão de
cidadãos saiu para vê-la, seus olhos ainda, de alguma forma, de alguma forma, adorando-a
apesar de seu fracasso total em protegê-los, fazendo Haven se sentir mais sozinha do que ela
já se sentiu antes.
Cada oferenda que eles tentaram colocar em suas mãos manchadas de sangue, cada erva
preciosa ou quinquilharia amada ou pedaço de moeda que tentaram presenteá-la parecia
uma mentira.
Puxando o manto sobre a cabeça, ela fugiu para o palácio, esperando que uma refeição
aliviasse o vazio que atormentava seu peito. Felizmente, as longas mesas comunais onde os
sentinelas Serafins e o resto dos Escolhidos comiam estavam quase vazias. Com seu
incomum cabelo rosa-dourado escondido e as runas de carne iridescentes que mapeavam
sua pele cobertas por camadas de roupas, a única mesa de soldados mal lhe poupou um
segundo olhar.
Ela comeu em silêncio. Mesmo que a aveia encharcada e aguada fosse provavelmente a
coisa mais nojenta que ela já havia provado, a comida ajudava.
Quando foi a última vez que ela comeu? Ou teve uma noite inteira de sono, para falar a
verdade?
Era fácil esquecer que ela era mortal quando o mundo parecia desmoronar ao seu redor
diariamente.
Sua colher de prata raspou no fundo de sua tigela. Um estrondo em sua barriga exigia
mais, mas a necessidade de lavar o suor e o sangue coagulado da manhã venceu.
O cheiro sulfuroso dos banhos comunitários flutuava pelos corredores enquanto ela se
aproximava das enormes câmaras. As grandes piscinas retangulares eram alimentadas pelas
fontes termais que atravessavam a ilha, a água fumegante era uma cerceta fresca e
convidativa.
Suas sobrancelhas se ergueram quando ela viu a quantidade de soldados na primeira
piscina, suas risadas reverberando através da câmara de teto alto.
Os banhos estavam ocupados hoje.
Surpresa nenhuma. Após cada ataque extenuante, os Serafins e Escolhidos precisavam
de tempo para relaxar. As casas de banho não se pareciam em nada com as piscinas claras e
sinuosas da Corte do Sol. Rios nas profundezas do núcleo da ilha alimentavam as piscinas
de formato irregular. As águas escuras verde-azuladas eram reverenciadas por suas
propriedades curativas, mas foi o brilho sutil da magia que faiscava em sua superfície
fumegante que atraiu Haven.
Suas botas respingaram nas poças no chão de pedra quando ela cruzou para o segundo
banho, onde os Solis e os membros da Ordem de Soltari se reuniam.
O silêncio tomou conta do leve barulho de vozes enquanto ela passava, tentando não
fazer contato visual. A reverência em seus rostos sempre a deixava inquieta.
Indigna.
A última casa de banho era a menor, sua piscina sinuosa cravada nas profundezas da
pedra negra lisa como o vidro que compunha a maior parte da ilha. Criaturas bestiais foram
esculpidas na face das colunas altas que sustentavam o telhado. Além dessas colunas havia
uma vista de tirar o fôlego. As Montanhas Ravenite um recorte irregular de obsidiana e
creme de um lado; o feroz Mar de Obsidiana do outro.
— Haven! — uma voz familiar a chamou, arrastando-a do nevoeiro da batalha e da
morte.
Enquanto Haven observava as feições de Bellamy, seu sorriso fácil e olhos de topázio
vibrantes, um peso pareceu ser tirado de seus ombros tensos. Surai e Ember estavam com
ele, profundamente envolvidas em uma conversa que Haven não conseguia ouvir. A magia
da água brilhava em sua pele e parecia irradiar a intrincada teia de marcas de runa cobrindo
sua carne musculosa.
Bell jogou água nela quando ela se aproximou. Ele estava encostado na lateral da piscina,
aproveitando um raro raio de sol que passava por uma claraboia. O vapor afrouxou seus
cachos de modo que seu cabelo caía desgrenhado e selvagem para o lado.
Uma contusão já estava escurecendo a maçã de seu rosto e mais mapeavam a parte
superior do peito e das costas, junto com um corte feio no ombro.
A ferida já havia fechado sob o toque da água curativa, a linha vermelha raivosa
desaparecendo em sua pele cinza. Dizia-se que as propriedades mágicas das fontes termais
vinham das profundezas da terra, sugando da mesma fonte que criou os cristais.
— Espero que o outro cara esteja pior — ela comentou enquanto tirava suas botas, calças
e, finalmente, sua túnica. Surai ergueu os olhos de sua conversa, seus lábios se curvando nos
cantos ao ver a relutância de Haven em tirar sua roupa de baixo.
Todos os outros estavam completamente nus, até mesmo Bell. Mas Haven ainda tinha
que se acostumar com o costume dos Serafins de tomar banho juntos diariamente.
Apenas os Serafins da realeza tinham suas próprias câmaras de banho, versões menores
desta situadas no alto do palácio. Stolas ofereceu a sua à Haven... mas os outros já olhavam
para ela de forma diferente.
Privilégios especiais só aumentariam o abismo que ela sentia lentamente se abrindo entre
eles.
As bochechas morenas de Ember estavam salpicadas e vermelhas pelo calor e elas se
ergueram sob seu sorriso enquanto ela olhava as roupas íntimas de Haven. — Por que
esconder o corpo que a Deusa lhe deu?
Sempre protetora, Surai olhou para Ember. — Os mortais ensinam suas mulheres a ter
vergonha de seus corpos.
Ember não pareceu surpresa com a explicação, mas ela não comentou mais sobre isso.
Ignorando as duas, Haven afundou no abraço incrivelmente quente da água. Um
gemido escapou de seus lábios quando o calor atingiu seus músculos. Suas pálpebras se
fecharam.
Bell riu ao lado dela. — A sua cara é a mesma de quando come pãezinhos pegajosos.
— Se ao menos os Serafins fizessem eles. — Ela afundou mais na água, descansando a
cabeça na borda da piscina. Um olho se abriu. — Então, sua magia funcionou?
— Você deveria ter me visto. — O orgulho faiscou dentro de seus olhos azuis
brilhantes. — Quer dizer, Xandrian estava lá o tempo todo e meu Enfiar foi um desastre -
mesmo com a ajuda do meu acrum. Mas eu usei um feitiço de fogo e consegui atingir um
dos Asgardianos com minha adaga.
Atrás de Bell, Ember e Surai tentaram esconder suas . Vangloriar-se de ter acertado um
inimigo na batalha deve parecer tão bobo para guerreiras como elas.
Surai puxou sua orelha. — Cuidado sendo tão durão ou eles escreverão canções sobre
suas façanhas.
— Aposto que eles já o fizeram com esses músculos — brincou Haven, apertando seu
braço. Bell nunca seria enorme, mas seu treinamento remodelou seu corpo esguio,
estimulando músculos que ela nunca soube que ele tinha.
Um sorriso tímido iluminou seu rosto. Ela quase podia ver sua felicidade vazando
através da água e em seu seio, descongelando o punho frio que parecia permanentemente
enrolado em seu coração.
Bell estava prosperando sob a tutela especialista de Xandrian, mas não foi apenas sua
previsão de runas que havia melhorado. As lições de esgrima do Senhor do Sol se
concentravam nos talentos inatos de Bell - agilidade e velocidade - um nítido contraste com
a teimosa insistência de seu pai para que Bell aprendesse a lutar usando a força bruta.
Sua magia estava vindo mais devagar do que ele gostaria, mas, de acordo com Xandrian,
para um mortal das Nove Casas isso era de se esperar. Sua magia esteve adormecida por
anos. Uma vez que eles se limitassem para seu tipo específico de poder, seria mais fácil.
— Eu ouvi que você destruiu um portal — Bell comentou e Haven endureceu,
lembrando dos gritos dos Asgardianos. — Eu pensei que combinamos que você ficaria
dentro da torre, onde você está protegida?
— Concordei que a torre era o lugar mais seguro para mim, mas nunca prometi ficar lá
durante um ataque.
— Espertinha. — Bell revirou os olhos.
— Droob.
— Se o monge estivesse aqui, você ficaria quiera.
— Talvez — ela admitiu, encolhendo-se ao imaginar a maneira desapontada com que
ele a olharia silenciosamente, seu julgamento cortando seu silêncio. Se dependesse do
monge, ela estaria no templo todas as horas de vigília, orando pela orientação da Deusa. —
Quando ele voltar, talvez não mencione a noite passada?
O monge – eles ainda tinham que aprender seu nome – estava viajando por Solissia
reunindo recrutas da Ordem dos Soltari.
— Eu fiz um juramento, Haven. — Os sulcos ao redor de sua boca se aprofundaram
enquanto sua voz se tornava solene. — Um juramento para proteger você. Então, deixem-
me. Você sabe o que aconteceria se Archeron a capturasse...
O rosto de Surai escureceu. — Não usamos mais esse nome. Ele pertencia ao meu irmão-
de-armas e ele foi para o Nihl.
— O novo Soberano do Sol — Bell corrigiu— não vai parar até que tenha Haven. Se eu
fosse o governante de Penryth, poderia oferecer a ela mais proteção... — Um músculo da
mandíbula de Bell pulsou e ela percebeu como seus dedos se curvaram e se desenrolaram
com a menção de seu reino roubado. — Até ouvirmos dos emissários, esta ilha permanece
muito desprotegida.
Eles enviaram emissários há mais de duas semanas para todos os cantos do reino. Todas
as esperanças de Haven repousavam na construção de alianças, esperanças que se
deterioravam mais e mais a cada dia que os emissários deixavam de retornar.
O rosto de Surai estava dolorosamente vazio de emoção quando ela disse: — Cada um
de nós morreria antes de deixá-lo levá-la.
Ember arqueou uma sobrancelha, o gesto de provocação tão dolorosamente semelhante
ao de Rook que Haven prendeu a respiração. — Se ao menos o novo Soberano do Sol tivesse
penugem de pêssego suficiente naquelas pequenas bolas dele para vir para Shadoria em vez
de enviar mercenários contratados.
Haven tentou sorrir com a piada, mas as feridas que Archeron havia deixado ainda eram
muito recentes. Cada menção a ele arrastava seu rosto para a superfície.
Seu sorriso arrogante. Sua voz rica e sempre provocante. Aquela esperança ardente que
ele sempre carregava dentro dele para afugentar a escuridão implacável.
Pequena Mortal.
O ar ao redor dela ficou mais rarefeito. Seu peito arfou enquanto ela tentava respirar, o
mundo girando em círculos soltos e chocantes. Apesar do calor sufocante, um frio profundo
e dolorido percorreu seus ossos e se instalou sob seu esterno.
Você ainda me ama agora que não sou mais bonito?
Seus dentes bateram juntos quando a aveia sem graça de antes ameaçou subir. Com os
olhos lacrimejando, ela mergulhou as mãos na água para esconder o tremor e olhou para o
trecho de ônix do mar.
Haven nunca sentiu uma vergonha tão profunda como ela sentia agora.
Todo mundo tinha sofrido nos últimos meses. Surai tinha perdido sua companheira e
irmão-de-armas. O pai de Bell tinha sido assassinado, seu reino e título roubados. Xandrian
tinha cometido traição contra a Corte do Sol, quando ele escolheu segui-la aqui e, agora,
enfrentava uma vida de ser caçado por seu próprio reino. Mesmo Ember tinha sido
repudiada por sua mãe, seu título ao trono despojado.
No entanto, todos eles permaneceram fortes. Disciplinados. Sem reclamar.
Apenas Haven parecia incapaz de lutar contra a dor - dor que parecia às vezes ondas de
agonia lentamente a afogando.
Sua incapacidade de superar o trauma e as feridas infligidas em Solethenia era uma
fraqueza, um insulto a seus amigos.
Ela prometeu fazer melhor.
As linhas delicadas da testa de Surai suavizaram enquanto ela observava Haven lutar
silenciosamente para se recompor. Haven pode ser capaz de mascarar suas emoções de Bell,
mas Surai viveu milhares de anos e a irritantemente inteligente batedora Ashari captava
tudo.
— O Archeron que conhecíamos morreu quando ele quebrou a magia das sombras que
amarrava sua alma ao rei — Surai disse suavemente. — Lembre-se que... o tirano que mata
inocentes e nos persegue como cães não é ele. — Surai passou a mão pelo seu cabelo preto
brilhante, brincando com as extremidades enquanto seus olhos escuros como ametista se
franziam. — Se nós nos encontrarmos de novo, eu não vou hesitar em acabar com ele.
Depois disso, a conversa mudou para assuntos mais leves e Haven tentou pelo
menos parecer que estava se divertindo. Mas ela não conseguia parar de pensar em Archeron.
Todas as noites nos sonhos de Haven, o Senhor do Sol aparecia. Às vezes ele era gentil,
beijando seus lábios e provocando-a enquanto prometia não machucá-la, se ela voltasse para
ele.
Às vezes, ele não dizia nada, apenas a observando das sombras. Nas piores noites, ele
sussurrava como iria caçar e matar cada um de seus amigos até que ela se entregasse a ele.
E, todas as manhãs, ela acordava com a memória de enfiar a Assassina de Deuses em seu
peito.
Mas não importa quantas vezes ela enfiasse aquela adaga em seu coração, não importa
quantas vezes ela desencadeasse sua fúria no Senhor do Sol, ele sempre retornava, um
espectro assombroso do homem que ela uma vez quase amou.
E Haven temia que ele nunca desistiria dela até que ele destruísse tudo e todos por quem
ela se importava.
O crepúsculo veio como todas as noites em Shadoria, em uma explosão de lilás e
tangerina. Na hora anterior ao nascer e pôr-do-sol, a meia-luz normalmente prateada da ilha
se tornava uma exibição de tirar o fôlego da luz mais brilhante e etérea que Haven já tinha
visto. Os cristais de ametista escuros embutidos na obsidiana natural da ilha iluminavam-se
como faíscas denteadas cintilando sobre a paisagem cinzenta.
Os Serafins chamavam esses dois períodos de luz delicada e cintilante - quando o sol
brilhava sob a camada de nuvens e névoa acima da cidade - a hora da alma.
De acordo com sua cultura, era quando os antigos deuses podiam ouvir suas
vozes. Antes de sua queda, o povo Serafim passava aquelas horas nos templos que
pontilhavam os picos das montanhas mais altas, orando para aquelas entidades há muito
tempo mortas.
Haven quase podia acreditar que os deuses ouviam, especialmente dentro do templo
favorito de Stolas, construído para a tia de Odin e sua homônima, Serafina. Como a maioria
dos edifícios aqui, o templo tinha sido esculpido na encosta da montanha, uma coleção de
torres pretas esguias com janelas abertas que conectavam a um centro de cúpula alta.
As torres haviam desabado havia muito tempo, deixando apenas a casca das paredes
como os ossos quebrados de um animal se projetando da neve. Pela sorte da Deusa, a cúpula
do templo onde Haven treinava com Stolas permaneceu intacta - quase. A outra
extremidade do teto havia desabado e a neve soprava do topo das montanhas e se acumulava
nas escadas em ruínas que serpenteavam pela estrutura cavernosa.
Parecia apropriado que o lugar favorito de Stolas na ilha fosse no topo da montanha
mais alta, inalcançável sem asas e escondido da vista por uma proteção mágica ainda gravada
no chão de pedra escura.
Claro que era onde ele insistia em treinar todas as noites. Embora o treinamento fosse
um termo suave para descrever a dança perigosa que eles executavam.
— Stolas? — ela murmurou enquanto a escuridão dentro dela se agitava. Uma
combinação surpreendente de antecipação e medo primitivo abriu caminho em seu peito,
mais potente que o frio dolorido.
As botas de Haven rangeram sobre um conjunto dilapidado de escadas em espiral que
paravam a três metros acima do solo, como se um gigante tivesse escavado a metade
inferior. Raios de luz gloriosa derramavam-se das janelas do templo para o espaço abaixo,
refratando os cristais de vidro embutidos nas paredes altas.
Todas as noites, Stolas tinha um portal secreto criado apenas para ela que a levava de sua
torre ao topo da montanha. Ela nunca sabia a localização exata para qual a levaria.
Só que assim que ela passasse para o outro lado, ela teria que estar pronta.
Com as coxas flexionadas, ela saltou do último degrau e aterrissou com força no chão de
pedra. Neve estava recolhida nos cantos. Sua respiração saía em baforadas nubladas. Além
do uivo abafado do vento lá fora, o silêncio reinava.
Uma lufada de ar foi o único aviso do ataque de Stolas. Um orbe de luz dourada estava
pronto em sua palma quando ela se virou para encontrá-lo, sua capa girando em torno de
suas pernas e espada erguida. Chamas de magia desceram pelo aço em um impressionante
whoosh.
Um sorriso cruel esculpiu a mandíbula angular de Stolas, quase a distraindo do ataque
de magia sombria correndo em seu rosto.
O orbe de fogo que ela lançou para contra-atacar sumiu junto com as chamas de sua
espada.
— Foco — ele exigiu. — Use sua magia das sombras para proteger a sua da luz.
Ela tentou novamente, mas as chamas de seus poderes morreram antes que ela pudesse
envolvê-lo totalmente na escuridão. Ele estava se alimentando disso. Devorando cada
pedaço de magia que ela conjurava.
Uma onda de raiva cresceu dentro dela. Raiva de si mesma. Da dor dela. Sua
incapacidade de proteger as pessoas na cidade abaixo. De Archeron. Do pai dela.
Do maldito mundo inteiro.
Uma explosão de luz envolta em escuridão explodiu de seus dedos, serpentes de tinta e
ouro deslizando em direção ao Senhor das Sombras. Ele escorregou para o lado, a facilidade
de seus movimentos irritante. A magia bateu na parede escura atrás dele, sacudindo o templo
e estalando no ar gelado.
Stolas sorriu de prazer quando pedaços de pedra e neve caíram sobre eles.
— Melhor. Da próxima vez, realmente me acerte.
Espada erguida, ela se lançou contra o Senhor das Sombras. O aço brilhou. Ele esperou
até que sua arma estivesse a um fio de cabelo de encontrar seu corpo. Esperou até que ela
sentisse o ímpeto do triunfo seguido pela picada do medo...
Antes de deslizar fora de alcance novamente. Ainda com aquele sorriso irritantemente
perverso. Ainda se movendo com aquela fluidez impossível e graça sobrenatural.
Ele se moveu tão rápido que ela o perdeu de vista. Ela girou, a capa enroscando em seus
tornozelos, as botas escorregando no chão molhado.
Onde está você?
Ela ia despedaçá-lo com as próprias mãos...
— Essa é a Pequena Fera que eu conheço. — Sua respiração fria estremeceu contra seu
pescoço por trás. Ela rosnou enquanto girava para encará-lo…
Uma rajada de asas batendo e ele estava deslizando nos raios de luz tingidos de ameixa
acima. Relâmpagos de magia brilharam em sua direção.
Ela mergulhou, rolou por cima do ombro e se desenrolou até ficar de pé. Apenas para
mergulhar novamente enquanto seus poderes estalavam sobre ela, sussurrando morte contra
sua pele mortal.
— Volte aqui e me enfrente — ela rosnou, saliva pontilhando seus lábios— ou você está
com medo?
Uma risada sombria ecoou no teto alto. — Cuidado com o que deseja, Pequena Fera.
Eles caíram em um ritmo constante de estocadas e magia, aço e fúria, enquanto ela corria
atrás dele, este Senhor das Trevas, e ele tremeluzia fora de alcance - uma sombra provocadora.
Ela sabia o que ele estava fazendo. Ela descobriu desde cedo que as sessões de
treinamento não eram apenas para avançar em sua magia.
Eles eram um escape. Para sua magia, sua raiva e tristeza.
Mas admitir isso também significava admitir que ele captava suas emoções. Que ele
estava bem sintonizado com o humor dela, apesar das centenas de outras coisas que
ocupavam sua atenção.
Reconstruir sua casa. A fixação das proteções. O contrabando de comida pelo bloqueio
de Archeron. Domar Nasira. Trabalhar para criar ordem, hierarquia e propósito novamente
nos sentinelas Serafins, muitos dos quais foram fisicamente quebrados por incontáveis anos
de escravidão e tortura. Suas asas mancando e deformadas. Olhos cegos. Línguas retiradas.
Esses foram os sortudos. Os cidadãos Serafins cujas pequenas asas os tornaram
inelegíveis como soldados foram usados como servos dos Noctis. Suas feridas estavam do
lado de dentro, invisíveis, mas, quando Haven passava por eles nos corredores, ela sempre
sentia um arrepio com o vazio em seus olhos.
Cada uma dessas coisas e mais mil ocupavam todo o ser de Stolas. Ela nem tinha certeza
de que ele tinha dormido desde que chegaram.
E, ainda assim, ele esculpiu um tempo precioso que ele não tinha para ajudá-la a
trabalhar sua dor.
Um rosnado baixo arrastou seu foco para a perna de Stolas... varrendo em direção a seus
pés. Sua espada saltou de seus dedos e caiu no chão. Ela caiu para trás.
Uma coluna tirou o ar de seus pulmões.
Antes que ela pudesse se mover, ele reivindicou o espaço entre eles. Lembrando-lhe que
ele possuía todos os pedaços desta terra desde o pico mais alto até as cavernas mais abaixo.
Seus braços presos em cada lado de seu rosto, uma gaiola robusta de músculos e de magia
sombria e brilhante. Era em momentos como esse que ela se lembrava de como ele era maior
do que ela. Seu corpo estava tenso com um poder indomado.
A luz diáfana percorreu o comprimento de seus chifres de ônix e se prendeu em suas
penas, criando um arco-íris de cores que roubou seu fôlego.
— Você está distraída. — Sua acusação pairou entre eles.
— Não.
— Você tem estado desde que chegamos. — Suas sobrancelhas cinzas se juntaram acima
dos olhos prateados com aros amarelos, seus lábios curvados suavizando-se. Sua
preocupação por ela parecia uma condenação. Uma marca contra ela de alguma forma. —
Eu posso sentir sua dor, Haven. A mágoa e a vergonha que brotam de alguma ferida
esfarrapada que não posso ver, não posso consertar.
— Estamos todos tendo dificuldades, mas eu posso lidar com isso. — Ela empurrou
contra seus ombros, mas ela poderia muito bem estar empurrando pedra. — Vamos. Mova-
se.
Flocos de neve se desprenderam de seu cabelo branco acinzentado enquanto ele
balançava a cabeça. — Não até você falar comigo.
— E dizer o quê? — Sua garganta doía. Por que ele a estava forçando a fazer isso? — Eu
disse a você, estou bem, tão bem quanto qualquer outra pessoa aqui.
— Seus pesadelos dizem o contrário.
Ela sufocou sob o peso de sua preocupação. Foi por isso que ela o empurrou de seus
sonhos. Por isso que ela acabou mudando sua câmara da parte central do palácio, onde todos
os outros Escolhidos ficavam, para a torre.
Seus gritos noturnos eram uma vergonha, um fardo para ela lidar sozinha.
— Haven. — Ela odiava a gentileza repentina em sua expressão, a preocupação brotando
em seus olhos enquanto ele roçava o polegar em sua bochecha - com cuidado, muito cuidado
- como se ela pudesse quebrar. — Eu estive onde você está agora. A raiva. A amargura, a
confusão e... s vergonha. Se você não liberar esses sentimentos, eles irão apodrecer dentro de
você como um veneno.
Seu peito estava tão apertado que era tudo o que ela podia fazer para respirar.
— Você não é responsável pelo que aconteceu em Solethenia. Pelo que ele fez. Pelo que
ele está fazendo agora.
Um poço de emoções ásperas surgiu para engoli-la. Ela fechou os olhos contra a
queimação das lágrimas. — Pare. Por favor.
— Archeron escolheu seu caminho. Ele escolheu trair você e seu povo.
— Stolas — Por que ele estava fazendo isso com ela? Por que ele não percebia que ela
estava se afogando? — Pare. — Uma vergonha incandescente a envolveu, a dor queimando
seu interior, consumindo-a.
Ela deveria ter ajudado Archeron. Deveria ter reconhecido sua dor.
— Não é culpa sua, Haven. Você entende? Nada disso é.
Não é? Uma voz respondeu dentro de sua cabeça. Ela viu a família massacrada em sua
cama. Viu o rosto destroçado e os olhos assombrados de Archeron. Viu a expressão triste de
Rook enquanto era arrastada para o céu para sua morte. A finalidade nos olhos de Bjorn
antes que ele fosse incinerado.
Tanta morte e destruição e para quê? Parecia que nunca iria acabar e ela não sabia como
pará-las.
Ela estava impotente.
Desamparada.
— Chega.
A dor e a culpa eram demais. Estava girando em sua mente, suas costelas, um turbilhão
de acusação. Estava devorando-a inteira.
— Libere sua dor, Haven.
— Não. Não.
— Você está segura comigo.
— Por favor.
— Você não pode me machucar.
Seu último vestígio de controle se quebrou quando ela sentiu algo dentro dela se abrir. A
explosão a abalou profundamente. A magia das sombras trovejou de todo o seu corpo,
derramando cada grama de sua raiva e culpa em...
Oh, Deusa, não.
Seus poderes bateram em Stolas como mil punhos.
Embora Stolas estivesse pronto para isso, este homem todo-poderoso que poderia
destruir montanhas com um único movimento de seu dedo foi arremessado violentamente
para trás.
A força foi tão forte que ela temia que iria quebrar todos os ossos de seu lindo corpo. Um
boom ensurdecedor sacudiu o templo enquanto as asas de Stolas se abriam, retardando o
impacto. Ele derrapou até parar meros centímetros de colidir com a parede da frente, com
as pernas abertas. A pedra sob suas botas estava rachada e afundada onde seus pés tinham
cavado em busca de apoio.
Ela colocou a mão sobre a boca. — Stolas...
— Estou bem. — Seu rosto estava apertado, corpo rígido com a força que ela bateu nele,
mas... Ela vasculhou seu corpo por ferimentos, sangue, qualquer sinal de que tinha ferido
ele.
Ele estava falando a verdade. Graças à Deusa por isso. Seu alívio deu lugar à fúria quando
ela percebeu sua diversão. Aqueles malditos lábios se torceram em um sorriso.
— Haven...
Ela se atirou nele, batendo vento, fogo dourado, neve e qualquer outra coisa que ela
pudesse usar para prendê-lo contra a parede. A raiva queimou através dela enquanto ela se
aproximava...
Ele desapareceu. Movendo-se tão rápido que seus olhos mortais não puderam rastreá-
lo. Tarde demais, ela se virou para encontrá-lo, mas ele atravessou o ar como uma névoa.
— Você me provocou— ela rosnou, saltando em direção ao lampejo de escuridão à sua
esquerda.
— Sim. — Sua respiração acariciou seu pescoço.
Antecipando seus movimentos, ela saltou para a esquerda e girou, pronta para bater com
o punho em qualquer coisa com que ela pudesse se conectar...
Em um movimento suave, ele a colocou no chão, suas costas pressionadas no chão frio
de pedra, seu corpo maciço encostado no dela.
Com uma explosão de puro poder, ela bateu a palma da mão no ombro dele, o impacto
subindo por seu cotovelo, braço e peito. Ao mesmo tempo, ela balançou a perna para cima
e para baixo, virando-o.
Ela montou em sua cintura e olhou triunfante para ele. Seu peito arfava violentamente,
sua respiração irregular saindo em rajadas leitosas.
Ele sorriu, aquele sorriso lupino apenas a enfurecendo enquanto ele ria. Ria, pelo amor
das Runas. Como se tudo isso fosse uma brincadeira.
— Você me provocou. — Ela bateu as mãos em ambos os lados de sua cabeça, logo acima
das bordas superiores de suas asas. — Forçou-me a usar magia poderosa em você.
— Sim. E farei isso de novo e de novo, se for preciso.
— Eu não sou um brinquedo — ela sussurrou, inclinando-se para que seus lábios
estivessem perto dos dele— para ser o seu entretenimento.
— Não. — Seu foco disparou para sua boca. — Você é a filha dos deuses. Talvez o ser
mais poderoso na existência. Estou aqui simplesmente, para lembrá-la desse fato.
— Eu me lembro. Cada segundo de cada dia. Como não lembraria quando todos me
olham de forma diferente?
— Eu não.
De repente, ela estava quase dolorosamente ciente de seu corpo sob o dela. O calor
surpreendente. Os músculos poderosos que se curvavam e se contorciam com cada
movimento seu. A pontada sombria de energia que a chamava.
E aqueles lábios – lábios que a beijaram com sua própria magia poderosa, uma magia
que fez seu corpo esquecer sua dor. Esquecer tudo menos ele e aquele desejo cru que ela
sentia em sua presença.
Ela poderia ceder a esse desejo agora. Usar Stolas e esquecer mais uma vez a sua
dor. Porque era só isso, certo? Uma maneira de esquecer.
Mas ela não queria esquecer, porque sem a dor ela temia não sentir nada e isso a
aterrorizava mais do que qualquer coisa.
Ela o empurrou. — Talvez você devesse.
Algo cintilou em sua expressão quando ele se levantou, seus olhos nunca deixando os
dela...
Seu olhar estalou para as portas do templo assim que elas se abriram. Antes que Haven
pudesse processar o que estava acontecendo, ele se posicionou entre ela e o convidado.
Uma ironia amarga, considerando os poderes violentos que ela desencadeou momentos
atrás.
Enquanto Stolas observava Bane e Delphine, a tensão fugiu de seus ombros largos, suas
asas relaxando em suas costas. Os sentinelas gêmeos Serafins - e uma vez seus amigos mais
próximos - ainda estavam vestidos com a armadura ensanguentada desta manhã e Haven se
perguntou se eles estavam cuidando de seus feridos esse tempo todo.
E aqui estava Stolas, seu senhor e comandante, cuidando dos ferimentos dela em vez dos
de seu povo.
Tudo porque ela era fraca. Incapaz de aceitar quem ela era ou o que aconteceu em
Effendier.
Uma nova rodada de vergonha a atingiu, tão gelada quanto o ar frio que entrava pelas
portas abertas.
Os Serafins curvaram-se em uníssono, primeiro para Stolas e depois para ela. Seus
cabelos brancos como a neve estavam presos em tranças soltas que pendiam entre as
omoplatas. Suas asas - versões menores e menos vibrantes das de Stolas - estavam bem presas
atrás deles, algo que ela notou que todos os Serafins faziam na presença de Stolas e Nasira.
Bane foi o primeiro a começar a fazer sinais. Assim como sua irmã, sua língua foi
removida por Morgryth. Os dedos do sentinela Serafim habilmente manobravam na altura
do peito para formar símbolos que Haven só podia adivinhar. Stolas fez o mesmo, seus dedos
longos realizando sinais curtos e rápidos em resposta.
Delphine interrompeu seu irmão, os sinais rápidos e frustrados que ela fez transmitindo
sua angústia. A mandíbula de Stolas estava tensa quando ele colocou seu rosto em uma
máscara sem emoção, tentando esconder de Haven sua reação às notícias.
Uma lasca de medo se infiltrou em seu coração.
Inúmeros cenários passaram espontaneamente em sua mente. Outro ataque. Outra
remessa de alimentos afundada. Talvez Morgryth tinha encontrado uma maneira de
contornar a magia da ilha.
A partir dos fragmentos de explicação que ela reuniu de Stolas e Nasira, cada Imperatriz
Serafim era dotada com os poderes místicos da ilha. De alguma forma, Morgryth descobriu
uma maneira de roubar esse poder da última imperatriz e tomá-lo para si mesma.
Mas, uma vez que os Noctis foram jogados no Submundo após o fim da guerra e a ilha
recuperou seu poder, ela percebeu que tinha sido enganada.
Agora, nenhum Golemita poderia chegar a menos de um quilômetro da costa de
Shadoria sem sofrer a fúria da ilha.
Caso contrário, sua nação nascente não teria durado tanto. Eles mal podiam suportar as
forças de Archeron sozinhos e, se Morgryth encontrasse uma maneira de passar pelas defesas
da ilha, eles estavam condenados.
Seu coração estava na garganta quando os gêmeos saíram e Stolas encontrou seu
olhar. Ele parecia dividido entre continuar a conversa de antes e lidar com esta nova
informação.
Ele estendeu a mão. — Houve um... desenvolvimento com os emissários. Todos estão
se reunindo no Salão da Luz.
Todos? A tensão se apertou entre as omoplatas. Se isso fosse verdade, então deve ser mais
que ruim. — Quantos emissários voltaram?
— Todos eles.
Sua resposta enigmática a incomodou. Ele estava tentando protegê-la de notícias menos
do que positivas. Mesmo que apenas por um momento. Tempo suficiente para ela se
preparar para o pavor que sentiu subindo em seu estômago como a névoa de Shadoria ao
pôr-do-sol. Crescendo mais pesada, mais densa, consumindo tudo até que era tudo o que ela
podia ver.
Forçando o medo de sua mente, Haven seguiu Stolas para fora da porta assim que os
últimos resquícios de luz deslizaram sobre as montanhas irregulares. Acima da cidade, a
crosta de gelo nos picos e as tempestades eram tão frequentes quanto os sorrisos perversos
de Stolas.
A neve rangeu sob suas botas e ela puxou o manto mais apertado ao redor de seu corpo,
seus dedos já ficando dormentes.
Ela nunca pensou que ficaria tão grata por um vulcão ativo. A formação mercurial,
apropriadamente chamada Vômito da Morte, fazia parte de uma enorme rede de rios de
magma correndo sob a cidade. O calor daquelas artérias de fogo derretidas significava que as
ruas estavam sempre quentes, as casas cada uma equipada com runas arcaicas que atraíam
aquele calor para dentro delas. Até as praias eram dotadas de calor...
Furtivo como sempre, ela mais sentiu do que ouviu Stolas se posicionar atrás dela. Antes
que ela pudesse se preparar para seu toque, os braços dele deslizaram ao redor de sua cintura
e um forte puxão de desejo a cortou.
Uma mão unida baixa e firme sobre o quadril, a outra bem acima do umbigo.
Era tudo o que ela podia fazer para não suspirar.
Houve um estalo repentino quando suas asas enormes se abriram para pegar as rajadas
de vento poderosas que caíam das montanhas cinza-escuro.
— Você tem que parar de me provocar. — Ela se inclinou contra o peito dele, a curva
sólida de seus músculos tremendo com o contato, e inclinou o queixo para trás para que suas
palavras o alcançassem. — Se eu machucar você...
Uma risada rouca roçou seu ouvido. — Me machucar? O que você fez lá atrás foi um
mero sopro de vento. Você vai ter que se esforçar muito mais do que isso para me machucar.
A presunção em sua voz a fez querer tentar neste instante. — Isso é um desafio?
— Se você quiser que seja.
A mudança abrupta em seu tom de provocador e brincalhão para sensual e vulnerável
a deixou tonta. Seu corpo reagiu instintivamente ao estremecimento dela, envolvendo-a
com mais força, seus longos dedos curvando-se sobre seus quadris e caixa torácica como se a
segurassem no lugar.
Mesmo através do tecido de suas roupas, o fogo disparou das pontas dos dedos em sua
carne.
Ela lutou contra o desejo repentino e irresistível de se derreter nele. Para se entregar à
segurança que sentia em seu abraço primordial. A lembrança daquela noite em Solethenia
depois do baile se enrolou em sua mente como uma chama e ela lutou para apagá-la antes
que o fogo se espalhasse.
Stolas pensava naquela noite? Ele não havia mencionado o que havia acontecido entre
eles.
Nem uma vez.
Afinal, eles estavam ocupados. Tentando ressuscitar um reino morto há muito tempo,
suas defesas e basicamente permanecerem vivos. Uma façanha impossível quando metade
do reino os queria mortos e a outra metade tinha acabado de perceber que ela seria uma arma
inestimável. Especialmente com a Assassina de Deuses sob seu comando.
À medida que os dias e as noites se confundiam em um fluxo entorpecido de luta e
reconstrução, os detalhes daquela noite foram perdidos, distorcidos pelo tempo, pelo
trauma e revividos repetidamente. Até que, como um cobertor amado, as bordas se
desgastaram e o tecido ficou mais fino e ela não conseguia se lembrar de como era antes.
Ela forçou Stolas a beijá-la de alguma forma ou ele quis?
Talvez o ato tenha sido impessoal para ele, um meio de aliviar a dor dela e mantê-la para
alcançar o objetivo comum. Talvez sabendo - ou suspeitando - quem ela era, ele não poderia
dizer não.
Ou, pior, foi por curiosidade. Seduzir uma deusa presa dentro de um corpo mortal tinha
que ser algo que um homem pudesse prender em seu cinto com orgulho.
A ideia doeu mais do que ela pensava, mas ela a rejeitou quase imediatamente. Stolas era
muitas coisas, mas um homem fraco e fanfarrão não era uma delas. E ele poderia ter feito
muito mais naquela noite... se ele quisesse.
Se ele quisesse.
Ela se lembrou de Stolas logo antes dele se alimentar do Asgardiano. Aquela intensidade
feroz enquanto ele perseguia sua presa. Não havia como um homem como aquele se impedir
de ir mais longe, se ele quisesse.
Uma sensação de afundamento pesou em seu estômago.
Ela ignorou a decepção. Seria mais fácil assim. Seu coração já estava devastado por um
desgosto, abri-lo imediatamente para outro era muito perigoso.
Especialmente quando essa pessoa era Stolas Darkshade.
Quando as torres do Castelo Perfurador de Estrelas se ergueram da névoa abaixo, ela
forçou Stolas para fora de sua mente e se preparou para as notícias.
As cabeças estavam cobertas com fina seda esmeralda e colocadas em caixas
maravilhosamente trabalhadas de abalone, latão e jacarandá. Sete, para ser exato. Alguém as
havia alinhado ordenadamente sobre a mesa de mármore no centro da grande câmara. Seus
olhos estavam abertos e estranhamente alerta enquanto olhavam para a plateia, seus rostos
moldados em expressões de interesse calmo, como se achassem todo esse calvário divertido.
Eles devem ter sido drenados de sangue e preservados por magia após a morte, porque
sua pele era da cor exata de porcelana e não havia um único sinal de sangue ou decomposição.
Bell meio que esperava que as cabeças piscassem em algum momento ou gritassem uma
saudação.
Essa era a intenção, é claro.
Seu olhar caiu para o símbolo da Corte do Sol, um sol com trepadeiras em flor,
estampado no forro de veludo vinho da tampa da caixa.
Bell engoliu em seco antes de se virar para Xandrian. — Bastardo doente. Que tipo de
governante esconde seu símbolo dentro de algo assim?
Se estivesse do lado de fora, eles teriam uma noção, pelo menos, sobre o que esperar.
O único sinal do desgosto de Xandrian pela exibição sombria foi uma ligeira curva em
seu lábio superior, como se ele cheirasse algo sujo.
Talvez ele tenha.
Talvez nenhuma quantidade de magia pudesse realmente mascarar o aroma da morte
quando se tratava de um Senhor do Sol.
— Todos os Soberanos do Sol flertam com algum grau de crueldade; é um pré-requisito
para a sobrevivência. Mas isso... — Seu olhar azul pálido passou rapidamente por cada rosto
que espiava de sua caixa requintada e, embora ele nem ao menos piscasse, Bell sentiu sua
inquietação. — Assassinar emissários em tempos de paz é uma afronta à lei da Deusa.
Só a Deusa sabe como Xandrian ainda estava surpreso com as ações cada vez mais
depravadas de seu primo. Afinal, o Senhor do Sol tentou assassinar Haven. Ele enviou
espiões para envenenar os campos férteis da ilha e assassinos para matar cidadãos inocentes.
E, agora, ele estava assassinando emissários e apresentando suas cabeças sorridentes.
Realmente, era apenas uma questão de tempo antes que Archeron passasse a decapitar
pessoas. Era uma tática uma vez favorita de seu pai...
Não pense nele.
As portas duplas distantes se abriram e Surai entrou, sombreada por Ember. Ambas
estavam rindo baixinho e Bell odiava saber que sua rara felicidade estava prestes a
desaparecer.
Antes que ele pudesse alertá-las, elas pararam no meio do caminho, cada uma reagindo
a qualquer magia pervertida ou decadência que Xandrian havia detectado.
Surai respirou fundo antes de olhar para Bell. — Onde está Haven?
— Com Stolas. — Uma das elegantes sobrancelhas negras de Surai se arqueou com isso
e Bell sentiu a necessidade de acrescentar: — Treinamento. Os gêmeos estão alertando-os.
Bell não sabia onde eles treinavam; esse era um segredo bem guardado. Só que para
chegar ao local era necessário ter asas.
Ember assobiou enquanto circulava as cabeças, estudando a obra de Archeron. —
Quem diria que o lindo Senhor do Sol tinha isso nele? — Seus ricos olhos castanhos
salpicados de âmbar se voltaram para Xandrian. — A sede de sangue e a insanidade estão na
família?
Xandrian deslizou dois dedos pelo gibão. — Só quando a lua está cheia.
Era para ser uma piada, mas ninguém riu ou sorriu. Bem, exceto as cabeças.
Quando as caixas chegaram, Bell e Xandrian estavam abaixo, dentro da biblioteca
subterrânea que percorria toda a extensão do palácio. Mais um cofre do que uma verdadeira
biblioteca, as cavernosas câmaras interconectadas que abrigavam os tesouros dos Serafim
eram diferentes da gloriosa biblioteca da infância de Bell. Em vez de luz do sol, madeira rica
de bordo e poeira, os livros encadernados em couro e pergaminhos abaixo estavam
aninhados em nichos frescos esculpidos profundamente dentro da terra, o brilho suave da
luz do sol trocado pelo azul etéreo frio da magia das sombras que percorria a pedra.
Ainda assim, era um dos lugares favoritos de Bell aqui em Shadoria. Por sorte, ele e
Xandrian estavam na câmara logo abaixo quando chegaram notícias dos emissários.
Ou, talvez isso fosse azar, considerando a notícia.
Eles foram os primeiros a chegar no Salão de Luz. Em qualquer outro momento, Bell
amava esta área do castelo. As janelas foram cortadas para formar espinhas de peixe e outros
padrões estranhos que brilhavam com a luz roxa de Shadoria ao longo das paredes pretas e
pisos de mosaico.
Mas foi o magenta impressionante e o lustre ametista de cristal que enchia o espaço
acima que Bell mais amava.
O primeiro dia em que entrou no Salão de Luz, Xandrian tinha notado Bell olhando
para a obra-prima, milhares de cristais como penas dentro de uma exposição maciça de asas.
Ele explicou que os cristais usados no lustre e em todo o palácio eram pedras preciosas
naturais encontradas no leito rochoso da ilha.
O cristal continha a mais alta concentração de magia de luz natural em qualquer matéria
orgânica, exceto coisas vivas.
Não demorou muito para deduzir o resto. Que os Serafins extraíam dos cristais para
alimentar sua magia das sombras. Bell sempre presumiu que eles dependiam apenas de
doadores vivos, assim como sempre presumiu que Shadoria seria um lugar escuro, sombrio
e grosseiro.
Ele estava errado em ambos os casos. Graças à Deusa por isso, considerando que esta
poderia muito bem ser sua casa pelo resto de sua vida mortal, por mais breve que esta fosse.
Uma risada feroz atraiu a atenção de Bell para as paredes altas. Com pelo menos nove
andares de altura, a vasta câmara ocupava as sacadas, alcovas e passagens usuais que ele
aprendera que constituíam a maior parte do palácio.
Qualquer dia, em quase qualquer câmara do castelo, podia-se olhar para cima e ver
Serafins aninhados, observando a comoção abaixo, alisando suas penas, até dormindo.
Mas a forma sombria pairando acima não era um Serafim comum. Nasira Darkshade
mergulhou em direção a eles em uma velocidade assustadora, apenas para parar segundos
antes de se chocar contra Surai, suas asas negras sedosas se abrindo para impedir a colisão.
No ar, Nasira inclinou a cabeça, fungou, sua expressão infantil mudando para
predatória daquela maneira que Bell achava enervante. — Bonito. Posso pegar uma? Talvez
a bela cabeça no meio? Ela ficaria linda na minha mesa de cabeceira e seus olhos
combinariam com a minha colcha.
— Não, Nasira.
Bell reconheceu a reação de Nasira - não exatamente medo, mas definitivamente
subserviência - antes dele reconhecer a voz elegante, mas firme, e ele conseguiu se ajoelhar ao
lado dos outros enquanto Stolas e Haven rondavam pelo corredor.
A tensão entre os dois sangrou no ar. Eles estavam discutindo? Não - não exatamente
discutindo, Bell decidiu enquanto os estudava sob seus cílios escuros.
Mas... havia algo nas energias de ambos, como dois barris contaminados de vinho de
ameixa prestes a estourar.
Haven pegou seu olhar antes de acenar para o grupo. O sinal para levantar. Apenas
alguém que a conhecesse bem poderia detectar sua inquietação com seu novo status.
Para todos os outros, ela parecia régia e feroz, cada pedaço a Deusa que alegavam, um ser
poderoso confortável com as reverências de seus amigos. O cabelo rosa dourado que ele
amava estava preso em uma trança apertada que caia no meio das costas, mechas finas
emoldurando seu rosto. Mesmo com calças de couro escuro, uma túnica larga e botas até os
joelhos que já haviam visto dias melhores, ela estava radiante. Seus olhos estavam tão
dourados que quase brilhavam.
Mas sob seu sorriso confiante e olhar firme, sua mandíbula flexionou.
Lentamente, ela varreu seu olhar cauteloso sobre as caixas.
Ele pegou a sombra de surpresa e, em seguida, a decepção ondulou sobre sua máscara
cuidadosamente composta. A que ela usava quase todo o tempo agora.
Uma onda violenta de algo rápido demais para ler fraturou seu rosto controlado,
rachaduras de emoção, teias de aranha sobre aquela superfície velada, abrindo-se para revelar
uma raiva fervilhante.
Sua espinha se esticou. Suas narinas se dilataram, suas mãos se fecharam e relaxaram
enquanto ela trabalhava para se recompor. Atrás dela, Bell notou Stolas se aproximar, seus
movimentos deslizantes tão suaves que ele mal parecia se mover.
O Senhor das Sombras tinha bom senso suficiente para não tentar tocá-la.
Não em público, pelo menos. Era diferente em privado? Bell não poderia ser o único a
notar a maneira como ela subconscientemente posicionava seu corpo em direção a Stolas
sempre que ele estava por perto. A maneira como ela sorria mais perto dele. Ria mais perto
dele. Mesmo a capacidade de Stolas de provocá-la de uma forma que poucos podiam dizia
muito.
A primeira vez que o vínculo incomum entre eles se tornou aparente foi em Solethenia,
durante os torneios. Mas era agora, atolada na dor da traição de Archeron e confusão de sua
linhagem, que sua confiança em Stolas como mais do que um mentor era aparente para
todos.
Todos, exceto talvez a própria Haven.
Talvez seja por isso que um dos monges da Ordem de Soltari franziu a testa enquanto
dava um passo à frente, os olhos treinados no Senhor das Sombras, embora ele se dirigisse a
Haven.
— Nascida da Deusa, todos, exceto um emissário, foram pegos pelos assassinos da Corte
do Sol, torturados e assassinados. — O tom calmo do monge estava em desacordo com a
severidade de suas palavras. Todos os monges falavam com aquela voz sem emoção.
O homem realmente possuía emoções, ou elas foram magicamente afastadas de alguma
forma junto com seu cabelo e personalidade?
Dando as costas para a exibição horrível, Haven igualou a calma do monge quando ela
disse: — Eu gostaria de vê-lo.
— Infelizmente, ele morreu minutos depois de chegar. Os curandeiros Solis tentaram
salvá-lo, mas ele estava gravemente ferido. — A decepção juntou as sobrancelhas escuras de
Haven até que o monge acrescentou: — a alma corajosa conseguiu entregar uma carta do
Rei dos Três Quebrados.
Um choque de interesse abalou Bell.
Rei Eros - o governante mortal recém-nomeado dos Três Quebrados: Duna, Drothian
e Veserack, os três territórios vizinhos a oeste de Penryth.
Penryth. Penryth. Penryth.
O nome estremeceu através dele como uma canção, uma canção de ninar que ele
memorizou desde o nascimento...
Não pense nisso. Não tem motivo.
Mas é claro que era tudo o que ele pensava enquanto um dos homens da Ordem de
Soltari procurava a carta, um pergaminho esfarrapado com o que parecia ser sangue.
Sangue. Ele viu os olhos em pânico de seu pai enquanto ele estava morrendo, os brancos
manchados de um vermelho brilhante com sangue.
Não. Inalando profundamente, ele se concentrou em sua nova vida. Proteger Haven.
Nada mais importava.
Você não é mais um príncipe, ou um rei. Você faz parte dos Escolhidos dela, selecionado
pela própria Deusa.
Tinha sido surpreendentemente fácil escapar de sua identidade como príncipe herdeiro
e herdeiro do maior trono mortal de Eritreyia e simplesmente se tornar Bellamy, o protetor
escolhido da Nascida da Deusa.
Era tudo o que ele pensava. Aprimorando sua magia. Aprimorando suas habilidades de
armamento. Treinando por horas e horas desde o amanhecer até o anoitecer e depois
encharcando seu corpo maltratado nos banhos quentes.
Era tudo o que ele se permitia pensar.
Não o rosto de seu pai, contorcido em uma careta de dor enquanto ele morria. Não as
leis gananciosas que Renk, sem dúvida, já havia promulgado para se beneficiar enquanto os
cidadãos sofriam. Não as mentiras que Renk sussurrava sobre a traição de Bell que se
espalharam pelo reino, solidificando Bell como um covarde e assassino.
Especialmente não seu novo nome – Assassino de Parentes.
Mas agora... uma dor escancarou-se em seu peito e com ela veio o cheiro de jasmim e
sebo queimando do castelo, as altas florestas e prados de sua juventude, a sensação do sol
penrythiano em seu rosto.
Seu corpo era de Haven, coração e alma, mas uma parte dessa alma ainda estava
embutida em Penryth, igual quando a alma de Archeron tinha sido presa dentro do anel de
seu pai. E apenas retomar seu trono de direito e matar Renk o faria inteiro novamente.
De sua periferia, Bell notou que Xandrian o observava com aquela percepção silenciosa
e ele se concentrou em sua nova e simples vida.
Haven estava apenas começando a ler a carta. Era curta e, quando terminou, dobrou
cuidadosamente o pergaminho, colocou-o no bolso e suspirou.
— O Rei Eros Elhaem oferece uma reunião em Veserack para discutir os termos de uma
aliança.
Ember bufou. Bell não tinha conhecido a sua irmã, Rook, mas se ela era qualquer coisa
como Ember, ele provavelmente teria gostado dela. — Será que esse rei mortal acha que a
Nascida da Deusa Freya irá viajar para o seu pequeno feudo abandonado pelo
Sombreamento?
Haven endireitou os ombros, puxando-os para trás de uma forma que disse a ele que ela
já tinha tomado uma decisão. — Aquele rei mortal controla três casas mortais outrora
poderosas. Mais importante, ele controla toda a costa sudoeste do continente mortal, o que
significa que ele comanda todo o comércio vindo de Asgard. — Seus olhos dourados se
voltaram para ele. — O que você sabe sobre este novo rei, Bell?
Enquanto todos os olhos se desviavam em sua direção, ele vasculhou a escória de sua
memória. — Não muito. Ele só recentemente reivindicou o domínio sobre os três reinos
quebrados. — O rei Eros nunca teria se declarado governante dos Três Quebrados se o pai
de Bell estivesse vivo. Mas com o fraco Renk no trono e com o Senhor Thendryft e Eleeza
mortos, o vácuo de poder na ponta sul do continente mortal havia mudado tudo. — Ele era
um comerciante, antes da Maldição ser quebrada, eu acho, o quinto ou sexto filho da Casa
Coventry. Só me lembro de ouvir rumores de que seus navios eram suspeitos de pirataria. Os
Asgardianos do outro lado do mar o chamam de Ridere Felionous . — Ele abriu um
sorriso. — Significa o Gato Sorridente.
Surai arqueou uma sobrancelha. — Um rei pirata com o nome de um felino
sorridente? E ele espera que iremos até ele?
— Ele sabe que nossas outras opções recentemente se tornaram bastante limitadas. —
Haven considerou as opções que ela mencionou, todas amarradas em suas caixas.
— E não são? — Xandrian falou lentamente, tirando algum pedaço invisível de poeira
na lapela. Às vezes Bell esquecia como arrogância de Xandrian poderia ser. Parecia vir colado
com um Senhor do Sol. — Talvez ele saiba precisamente isso, porque ele ajudou meu primo
a matar os emissários e agora planeja uma armadilha para nós. Seus reis mortais são
notoriamente gananciosos.
Xandrian tinha razão.
— Eu digo que devemos ir ver este rei mortal — Nasira ronronou, seu fascínio com a
exibição macabra finalmente mudando para a conversa— e, então, ver como sua cabeça fica
dentro de uma linda caixa.
Se alguém mais tivesse sugerido isso, Bell teria ficado aborrecido. Mas vindo de Nasira,
com seus enormes olhos azul-prateados e sorriso radiante, era, bem, fofo... de certa forma.
Após essa sugestão, todos olharam para Stolas para a sua opinião sobre o assunto. O
Senhor das Sombras ainda tinha a forma alarmante dele que comandava a atenção de todo
o salão.
Mesmo conhecendo o lado menos selvagem de Stolas – que não poderia ser chamado de
nobre ou gentil – Bell sentiu o medo formigar sob sua pele.
Stolas passou seu olhar intenso sobre eles um por um, seus lábios se contraindo quando
mais do que alguns se esqueceram de respirar. — Sob essas luzes sagradas de meus ancestrais,
vejo as filhas de rainhas, os filhos de soberanos. Eu vejo um rei escolhido duas vezes pela
própria Freya, uma Imperatriz Serafim que aterroriza até mesmo o Sombreamento e uma
Deusa tão feroz que até os céus tremem quando ela está com raiva.
Haven trocou um olhar sombrio com Stolas e aquela boca trêmula finalmente se
comprometeu com um sorriso sombrio. Lembrando Bell que Stolas tinha muitos sorrisos,
muitos dos quais eram tudo menos alegres. — Eu voto sim. — Stolas continuou— Nós
aceitamos o convite deste aspirante a governante para entrar em seu território. Se realmente
for uma armadilha, mostraremos aos reinos o que acontece quando eles esquecem de suas
maneiras com a filha de Freya.
As linhas suaves envolvendo a boca de Haven disseram que era exatamente a resposta
que ela esperava. Não que Bell tenha ficado surpreso.
Sentar em um lugar esperando que seus inimigos atacassem não era o estilo de Haven.
Agora que a decisão foi tomada, o peso no ar deu lugar ao propósito e eles caíram nos
detalhes necessários para proteger Shadoria enquanto estavam fora. Haven queria partir o
mais rápido possível e foi decidido que partir antes do amanhecer era melhor.
Um plano. Um plano precário e arriscado, mas era melhor do que ir para a cama todas
as noites esperando carnificina e morte.
A noite havia caído, o salão estava vivo com fragmentos luminosos de luar e o brilho
púrpura-pálido dos cristais. Provavelmente era sua hora favorita do dia dentro do
castelo. Sua mente já estava na próxima sessão de treino com Xandrian em um dos platôs
envoltos em névoa, então ele apenas assistiu Haven de sua periferia quando ela começou a
fechar as tampas das caixas e apenas ouviu o clique suave de cada fecho de latão sendo
colocado no lugar.
Xandrian, sem dúvida, atacaria com uma das complexas sequências de magia que ele
ensinou esta manhã. Bell estava mergulhado em uma manobra defensiva de contra-ataque
quando teve a estranha sensação de que algo estava errado.
O toro de energia abaixo de seu esterno, onde ele sentia sua magia de repente, se contraiu.
Dividido entre seu devaneio e a realidade, ele se concentrou em Haven enquanto ela
fechava a tampa final. Ele se deu conta de um assobio suave. Algo deslizando contra seus
sentidos. A estrutura de sua magia.
Uma linguagem antiga e primordial que raspou contra seus ossos mortais e fez sua magia
recuar.
Haven enrijeceu e puxou a mão para trás. A razão ficou imediatamente clara: a cabeça
estava olhando para Haven, rastreando-a com uma consciência alarmante, piscando e se
contorcendo.
Vivo. E os lábios...
Ele entendeu com clareza alarmante de onde vinha a linguagem.
Assim como uma parte racional dele sabia que era tarde demais.
Qualquer maldição sombria que a cabeça animada estava cantando já havia sido
desencadeada.
Stolas foi o primeiro a reagir. Garras para fora, ele se lançou para Haven tão rápido que,
no momento em que seu rosnado chegou aos ouvidos de Bell, Stolas já estava se envolvendo
em Haven, usando seu corpo poderoso, suas asas maciças e fios agitados de sua magia para
formar uma parede impenetrável. Bell se juntou aos outros enquanto eles corriam para
proteger Haven.
Mas não havia nada para proteger. Um rugido tão alto que fraturou alguns dos cristais
acima irrompeu de Stolas quando ele abriu suas asas e retraiu sua magia, piscando para o
espaço vazio diante dele.
O olhar despedaçado em seus olhos só podia significar – oh, Deusa, isso não podia estar
acontecendo, mas estava.
Ela se foi.
Envolta na escuridão completa da proteção de Stolas, Haven não percebeu a princípio
quando ela mudou daquele espaço para outro. Mas a perda da magia das sombras de Stolas
foi quase dolorosa, como ser arrancada de um sono profundo e reconfortante e jogada em
um mar gelado. Onda após onda de magia suja a invadiu. Seus próprios poderes se afogaram
sob a magia contaminada.
Lutando para respirar, ofegando e segurando o peito, ela vasculhou as sombras para se
orientar. Ela estava em uma espécie de câmara. Uma névoa oleosa a cobria, tão densa que ela
imaginou que poderia descascá-la com os dedos, mas estava recuando. Escapando como a
maré se revelando... janelas?
Seus olhos saltaram desesperadamente do mosaico de ladrilhos criados em sóis para as
grossas trepadeiras ao longo das paredes. Este lugar era familiar, mas não. Nada fazia
sentido. Ela estava em outro lugar, em algum lugar que ela esteve antes, mas por trás de um
véu de uma magia bruta e horrível.
Tudo parecia vazio. Doente. Errado. Como as Terras das Ruínas tinham estado antes de
quebrar a Maldição. Mas pior. Muito pior.
Porque ela finalmente reconheceu os três tronos. O homem dominante do trono meio
estava vestido com a elegância de um deus. Esmeraldas formando um padrão rúnico ao
longo de seu colete cinza-escuro, suas caras botas de couro de cano alto decoradas em prata
e ouro. A coroa de ouro brilhava das sombras.
Ele observou-a em silêncio, mas sua alma o conhecia antes mesmo que ele ficasse de pé e
caminhasse em direção a ela. Ela reconheceu seu irmão-de-armas antes que ela encontrasse
aquela familiaridade reconfortante em seu andar arrogante e vagabundo. Antes que seu
olhar se deslocasse para seu lindo rosto, uma vez conhecido por sua rara beleza.
Não mais.
O tecido de sombras pareceu se separar ao redor de Archeron quando ele parou na frente
dela, apenas perto o suficiente para tocá-la - ou cravar uma adaga em seu coração. —
Pequena Mortal.
Seu sorriso era uma espécie de pesadelo, só que era um meio-sorriso. O outro lado de seu
rosto estava coberto por uma máscara dourada tão bem ajustada que poderia ter sido
derramada. Esmeraldas e rubis decoravam o adorno, mas elas não podiam esconder as
manchas esverdeadas escuras que floresciam sobre a máscara, como se a corrupção interna
estivesse borbulhando para a superfície.
— Meus conselheiros acharam que as joias tornariam a máscara ainda mais... palatável
— ele disse coloquialmente. — O que você acha? Funciona?
Seu olhar foi atraído para o olho que a observava dos recessos profundos da máscara.
Todo preto, parecia vir de uma entidade completamente separada do outro olho, que era
um verde salobra semelhante à corrupção que estragava sua máscara.
Ela se concentrou naquele olho. Aquele Archeron. — Você recebeu minha mensagem
de paz?
— O homem Asgardiano entregue na minha porta? Ele conseguiu transmitir sua
mensagem, sim, junto com alguns outros detalhes que minhas Sombras Douradas extraíram
dele.
Ela estremeceu quando ele se aproximou. As sombras se contorciam ao redor dele como
enguias escorregadias. Ela procurou por seus poderes, lutando para aproveitá-los, para
encontrar um fragmento de algo...
— Sua magia não funciona aqui.
Certo. — E onde é... aqui?
— Você está presa no Éter, enquanto eu ainda estou em nosso reino.
Runas. Isso explicava as tiras oleosas de sombra flutuando ao redor deles e sua
incapacidade de usar magia. Ela deveria ter percebido isso mais cedo.
— Minha mãe acumulou tesouros maravilhosos de todos os Reinos dos Outros— ele
continuou. — Eu sempre pensei que sua obsessão em coletar runas de poder raras e feitiços
sombrios era uma preocupação vã, mas estou descobrindo que certas coisas têm seus usos.
Apesar de seu tom conversacional, seu coração acelerou em uma batida forte. Stolas
explicou que o Éter era a camada que separava os reinos. Um estrato escorregadio
posicionado entre cada reino, Stolas comparou o Éter ao óleo usado na roda de uma
carruagem.
Ele permitia a caminhada da alma e era usado por poderosos conjuradores de luz como
Xandrian para se transportar. Embora, quando o portal não fosse feito exatamente da
maneira certa, alguém poderia ficar preso no Éter . Incapaz de usar magia para voltar para
casa.
Ou alguma coisa do gênero. Ela provavelmente deveria ter prestado mais atenção na
hora.
Archeron poderia prejudicá-la aqui? Se... não, quando ela voltasse para Stolas, ela pediria
outra lição sobre este lugar e suportaria sua carranca de aborrecimento.
Archeron fechou outro centímetro de espaço entre eles e ela tornou-se
assustadoramente consciente de que não podia se mover de sua posição. Runas foram
posicionados em torno dela em um círculo, suas pálidas formas laranja pulsando contra os
ladrilhos de mármore. Enquanto ela não as reconhecia, elas eram obviamente algum tipo de
gaiola mágica que a impedia de mover-se.
Suas mãos e rosto, por outro lado...
Ela puxou a adaga de treinamento em seu quadril, o cabo ainda úmido de seu suor
anterior e mostrou os lábios em um grunhido.
Olhos divertidos se voltaram para a lâmina. Ele riu, o som quase normal, quase
caloroso. — O que exatamente você planeja fazer com isso?
A lâmina arqueou para a extensão do pescoço nu logo acima de seu colarinho alto...
E deslizou por ele como se ele fosse feito de névoa. Sombreamento abaixo.
— Como eu senti falta dessa ferocidade selvagem. Essa... imprudência.
Isso era afeto em sua voz? Se o aço não funcionasse, ela poderia usar isso. Poderia agarrar-
se aos restos da humanidade ainda presos à casca de Archeron e usar isso como uma arma.
Ela forçou seu olhar para encontrar os olhos dele, afogando o lampejo de desgosto pelo
que viu lá, e olhou para ele do jeito que costumava olhar. — Junte-se a nós, Archeron. Eu
não sou sua inimiga. Eu ainda... — Ela piscou, a garganta apertada enquanto forçava as
palavras a se formar, a liberá-las. — Eu ainda me importo com você. Eu vejo você em meus
sonhos... eu...
As palavras se transformaram em cinzas em sua língua quando ela percebeu sua
expressão. Não desgosto, mas um vazio que afundou em seu coração.
— Eu sonho com você, também— ele admitiu suavemente. Ela piscou. Uma parte dela
ainda queria proteger a vulnerabilidade súbita em seus olhos. — Eu vejo agora que você é a
chave para o futuro de Effendier.
Ela engoliu em seco. Ele estava sugerindo uma aliança? Mesmo depois de tudo que ele
tinha feito, a esperança brotou dentro de seu peito como uma chama rugindo para a vida. —
Então, você vai lutar conosco contra o Sombreamento?
— Lutar... com você? — A diversão arrogante dominou seu tom, uma arrogância que
ela uma vez achou charmosa. Mas que agora cortou até o osso. — Não, Haven. Você é uma
abominação, um insulto flagrante à própria Deusa.
Ele estava brincando com ela, outro hábito que ela uma vez achou encantador e agora –
agora ela arrancaria seus olhos se pudesse se mover.
— Você já ouviu falar dos lobos de guerra de Aramos? — Ele tomou o silêncio dela como
um não e continuou. — O falecido Soberano os possuía. Eles não eram realmente lobos,
pelo menos não do tipo que temos em nosso reino. Eles eram de Neifgard, um presente de
um dos Senhores Demônios. Assim como você esperaria daquele reino, eles eram criaturas
ferozes e deixados à sua natureza sanguinária, eles teriam matado seu caminho através do
reino.
— Aramos entendeu que tinha que matá-los ou encontrar uma maneira de controlá-
los. Então, ele pegou todas as mulheres, exceto duas, e as matou na frente de seus
companheiros. Então, ele colocou os lobos em fossos sozinhos até que quase morreram com
a separação. E, finalmente, ele os quebrou fisicamente.
Haven tinha ouvido falar dos lobos da guerra. Na verdade, havia uma pintura no museu
em Solethenia e Stolas passara muito tempo falando amorosamente sobre as criaturas. As
terríveis bestas eram conhecidas por formar uma vanguarda protetora ao redor do Soberano
do Sol em batalha e eles respondiam a um apito mágico que ele usava em seu pescoço.
Um apito maldito, pelo amor da Deusa.
— Eu não vou lutar ao seu lado, Pequena Mortal— ele explicou suavemente e o bastardo
realmente teve a audácia de parecer triste. — Não, eu vou quebrar você, amarrar você e
empunhá-la como a fera que você é.
Através do turbilhão de emoções golpeando sua mente, a dor e a raiva, ela conseguiu
assobiar: — Você nunca vai me quebrar. Nunca.
A verdadeira agonia torceu o lado ileso de seu rosto e isso era quase pior do que o vazio,
porque ela entendeu então que ele ainda se importava com ela. Que ela não podia culpar
outra pessoa.
Este ainda era Archeron. Seu Archeron. Torcido e pervertido pela escuridão, mas ele
ainda estava lá.
— Esse espírito de luta é o que eu mais gosto em você. — Ele estava tão perto, ela não o
viu levantar a mão até que ele já estava deslizando o polegar sobre a borda afiada de sua
mandíbula. Onde seus dedos teriam tocado do outro lado, um formigamento se formou,
como o tecido de seda mais leve roçando. — Mas há um tempo para teimosia, Pequena
Mortal, e há um tempo para aceitar seu destino.
— Não use esse apelido — ela rosnou, recuando com as emoções ligadas a ele.
A felicidade não tinha lugar aqui.
— Por quê? Porque você acredita em uma facção radical que a convenceu de que você é
a filha da Deusa?
O desdém em sua voz era como uma lâmina afiada lentamente se infiltrando em sua
carne.
— Não se esqueça do Sombreamento.
Ele piscou e ela teve uma satisfação sombria no tremor de nojo que azedou sua
expressão. — Acredite nas mentiras que quiser. Se você se recusar a se tornar uma
arma para Effendier, então você é inimiga e eu usarei meus vastos recursos para acabar com
você.
A dor gravada em suas feições quando ele disse isso, a carícia familiar de seu polegar
enquanto acariciava suavemente seu lábio inferior - era tudo demais.
Eu não aguento isso. Ela não conseguia respirar. As sombras pareceram engrossar, o ar se
transformando em areia em seus pulmões.
Ela não conseguia respirar.
Archeron deslizou o outro braço por trás de sua cintura, uma sensação espinhosa
dançando na parte inferior de suas costas, onde seus dedos se espalharam. Ele pode não ser
capaz de tocá-la fisicamente do outro lado, mas ele estava fazendo algo. Controlando seu
corpo de alguma forma.
O formigamento ao longo de seu queixo se transformou em pressão dolorosa quando
ele aumentou seu aperto, inclinando seu rosto para cima para segurar seu olhar. Ela podia
sentir sua magia crescendo ao redor deles. Sentir as runas gravadas no chão estremecerem e
pulsarem com energia crescente.
Fitas de magia verde pálida giraram dentro de seu olho bom e dispararam entre as
sombras, fazendo as joias dentro de sua máscara brilharem. Mas seu olho roxo parecia ainda
mais escuro, um buraco faminto engolindo a luz em vez de refleti-la.
— Você permitiu que o Senhor do Submundo bebesse de um Solis sob minha proteção.
— Havia uma crueldade em sua voz que a perturbou. — Você o deixou beber de você
também?
— Pare.
— É assim que ele mantém em seu encalço? Em sua cama? — As manchas escuras na sua
máscara pareciam espalhar enquanto sua raiva inchava, agitando para fora como um animal
faminto. — Você é uma prostituta agora?
— Vá se foder! — Haven se viu ofegante com raiva para igualar a sua, as palavras saindo
entre goles furiosos de ar. — Eu não sou a prostituta de ninguém. Embora eu quase me
tornei sua uma vez, não foi? É disso que se trata? Seu ego?
Ele estremeceu como se ela tivesse batido nele.
— Seus mercenários mataram pessoas inocentes. Famílias inteiras mutiladas
irreconhecivelmente, crianças arrastadas para as ruas. Archeron, por favor. Este não é
você. É o trabalho de um... um monstro.
A raiva em seus olhos mudou para algo mais frio. — Um monstro? Você quer dizer
como a coisa que deslizou para fora de você? Antes de ficar completamente mudo, o
Asgardiano conseguiu me contar como você sorriu ao vê-lo matar seu amigo. Que era como
um demônio chamado do Submundo.
Um tremor deslizou por ela enquanto ela se lembrava da carnificina. A sede de sangue
inegável.
Seu polegar acariciou sua bochecha. — Você está cheia de surpresas, não é? O que mais
você está escondendo de mim?
— Por que você não me encontra no mundo real e descobre? — ela rosnou.
— Em breve. — ele prometeu. — Por enquanto, preciso que você volte e diga ao seu
Senhor das Sombras que estou presenteando Shadoria com duas semanas de paz, um
gostinho do que posso oferecer por seu retorno para mim.
Apesar de seu pânico, ela se agarrou a essa palavra.
Retorno.
Isso significava que ele a estava mandando de volta, embora pelo aumento de sua magia
ela não retornaria ilesa.
— Você está perdendo seu fôlego. Stolas nunca negociará com você.
— Então, lembre-o de que não importa o quanto de si mesma você dê a ele, você
pertence a mim e posso alcançá-la em qualquer lugar. A qualquer momento.
Preparando-se para o pior, ela ficou surpresa quando ele a puxou para perto dele. Era
reconfortante demais, familiar demais.
Seu coração vacilou quando seu cheiro a envolveu - couro e sândalo. Seus lábios roçaram
sua orelha, seu corpo se lembrando de todas as vezes que ele tinha feito isso
antes. Lembrando-se de como ele uma vez a beijou tão suavemente atrás do joelho.
Essa foi a noite em que ela admitiu ter tentado acabar com sua vida no deserto e a noite
em que ele admitiu seu amor por uma mãe que nunca poderia amá-lo de volta e um reino
que nunca seria dele.
Como ambos estavam errados.
— Considere este meu aviso final— Archeron murmurou. — Você precisa entender o
que acontecerá com seus amigos se você não se render. O que acontecerá com Surai,
Haven. Seu sofrimento, seu tormento e morte – preciso que você realmente veja, para
entender as consequências do jogo tolo que você joga.
— Jogo? — Um som amargo se formou em sua garganta. — Surai fez um juramento à
Deusa para proteger sua filha. Todos eles fizeram. Mesmo que eu me rendesse
voluntariamente, eles morreriam tentando me salvar. Certamente você ainda se lembra do
que é honra?
Ele riu sombriamente, sua respiração alcançando o Éter e acariciando seu pescoço. —
Você não é a Nascida da Deusa, Haven; você é mortal, da raça corrompida desprezada
igualmente pelos Noctis e Solis. Até mesmo Freya sabia que muito poder seria mal utilizado
por sua espécie e é por isso que existem leis contra abominações como você. Diga-me, por
que ela faria isso se você fosse sua filha?
Ela não tinha uma resposta.
— Stolas está usando você como um peão. Até ele sabe que os reinos de Solissia nunca
se curvarão a uma mortal, não importa quanta magia você possua. É cruel o jeito como ele
te deixa ter esperanças. Pelo menos eu ofereço a verdade.
A dúvida tomou conta dela. O Asgardiano havia dito isso.
— Stolas está desfilando em torno de você como o seu próprio animal de estimação
pessoal. Assim como os lobos após o fim da guerra, você é uma novidade, mantida em uma
pequena gaiola como entretenimento. Talvez você não vê a gaiola ainda, porque ele permite
que você vá para fora de vez em quando, porque ele te joga pedaços apenas o suficiente de
poder para te alimentar, mas ele ainda está lá. Um dia você vai perceber que é melhor uma
gaiola que você pode ver do que uma que você não pode.
Uma raiva calma assumiu, seu corpo ficando quente e frio. Ainda havia muito sobre
Stolas que ele guardava dela, mas ela sabia de uma coisa com absoluta certeza: ele nunca
tentaria prendê-la.
Archeron recuou o suficiente para ver seu rosto. Talvez ele estivesse esperando que ela
parecesse em conflito. Em vez disso, o que quer que ele tenha visto, acabou com aquele
sorriso arrogante até que morreu uma morte gloriosa.
— Você esqueceu o que aconteceu com os pobres lobos enjaulados, Soberano do Sol? —
Ela praticamente cuspiu o título dele; ele não merecia. — Um dia, entediado com seus uivos
e apetites caros, o Soberano do Sol decidiu que impressionaria a realeza visitando os
lobos. Afinal, o Soberano ainda tinha seu apito. Ele pensava que estava no controle.
A flexão da mandíbula de Archeron dizia que ele sabia como essa história terminava.
— Mas os lobos também estavam entediados — ela continuou— e, quando a caçada
começou, o Soberano rapidamente percebeu seu erro. Cem Solis morreram antes que as
Sombras Douradas matassem os lobos. O próprio Aramos perdeu parte do braço no ataque.
— Ela o encarou, lembrando-se do prazer perverso de Stolas ao contar a história do tolo
Soberano do Sol. — Veja, os lobos só estavam seguindo as ordens do Soberano na batalha,
porque seus interesses se alinhavam aos deles: matar. Em sua arrogância, Aramos pensou que
poderia controlá-los. Ele se imaginava como um predador e os lobos como presas, mas
sempre foi o contrário.
Seus olhos se apertaram nos cantos quando as palavras dela tomaram conta. Foi uma
pontada de... medo? Então, ele sorriu e sussurrou uma promessa em seu ouvido. — Eu
tenho uma linda gaiola esperando por você, Pequena Mortal. Você tem duas semanas para
decidir se quer vir de boa vontade ou às custas de todos de quem você gosta.
Ela tentou fechar os olhos contra o que veio a seguir, mas ela não conseguia parar o
ataque de visões através de seu crânio. Cada uma tão vibrante, tão real que ela imediatamente
se esqueceu de onde ela tinha estado. Ela esqueceu Archeron. Esqueceu que as visões eram
apenas isso: visões. Se esqueceu de que haveria um fim a tudo isso.
Cada alucinação foi experienciada como se estivesse acontecendo.
Elas estavam acontecendo.
Oh, Deusa, ela não conseguia parar.
Bell. Surai. Stolas. Nasira. Xandrian. Ember. Demelza.
Cada um morrendo horrivelmente, o tormento se estendendo pelo que pareceram
semanas. Meses. Vidas. Ela foi incapaz de desviar o olhar por um momento sequer. Incapaz
de chorar ou gritar ou fazer qualquer coisa além de assistir enquanto eles a chamavam,
imploravam e imploravam, de assistir e assistir até que algo dentro dela quebrou.
No momento em que Stolas sentiu Haven arrancada deste reino, o calor abrasador de
sua magia de luz ficando fria e morta contra seu peito, algo antigo despertou dentro dele. Ele
recuou enquanto sua mente reorganizava a situação.
Levada.
Ela foi levada.
Ele a levou.
Fúria gelada bateu nele. Fechando os olhos, ele lançou seus sentidos sobre todo o reino,
procurando por aquela centelha de fogo incandescente que era Haven.
Se foi... ela se foi. Sua luz escondida sob camadas e camadas de sombra e escuridão e...
Um berro rasgou de sua garganta quando ele entendeu para onde Archeron a tinha
levado. Mas o rugido não era de raiva.
Era um aviso.
Ele só havia se sentido assim uma outra vez. O dia em que a Rainha das Sombras o forçou
com magia a matar sua mãe.
Só então, ele estava pronto para seu Familiar das Sombras. Levou cada grama de sua
magia para bloqueá-lo. Ele tinha apenas começado a aprender a controlar seu lobo com a
ajuda de sua mãe, mas, de alguma forma, ele o empurrou mais e mais fundo dentro dele,
matando-o de fome até que murchasse em um fiapo de sombra e magia.
Morto - ele pensou que estava morto.
Agora, ele se debatia contra sua gaiola de músculos e ossos, muito vivo, seu poder
reverberando através de sua caixa torácica como pedregulhos colidindo. Se ele soubesse que
ainda estava dentro dele, poderia ter erguido os escudos necessários para mantê-lo
enjaulado...
Uma dor cegante queimou seu meio enquanto garras rasgavam suas paredes erguidas às
pressas. Ele tentou gritar outro aviso, mas só conseguiu rosnar quando a última de suas
defesas foi destruída. A pressão em seu torso diminuiu, sua forma familiar se moldando no
ar.
O chão tremeu sob enormes patas pretas da criatura. Uma vez ele tinha sido capaz de
controlá-lo, mas agora... agora era voraz e selvagem e louco de fúria, um animal selvagem
enjaulado por muito tempo.
Um animal selvagem se alimentando de seu ódio por Archeron. De sua raiva, impotência
e dor. Sua mente estava ligada à dele e Stolas sentiu o foco da criatura girar para os Solis e sua
magia de luz, tão semelhante à de Archeron.
Não.
Concentrando cada pedacinho de sua raiva viciosa, Stolas aprimorou-a na única coisa
que poderia interessar seu lobo das sombras: os gloriosos cristais. Cristais que seus ancestrais
haviam cuidadosamente embutido nessas paredes. Cristais oferecidos por Freya e
valorizados por seu povo.
Os cristais dentro do salão eram os mais raros encontrados na ilha. Cada um era precioso
além das palavras. Logo antes de sua morte, sua mãe tinha usado sua magia coletiva para
atrair força suficiente para transmitir uma última mensagem a ele.
E, no entanto, para salvar os amigos de Haven, ele voluntariamente destruiria todos
eles. Então, ele deixou seu lobo saciar sua fúria viciosa no salão que sua mãe amava. O lustre
que ela mesma projetou e construiu. O som de quebra que cada joia gloriosa fazia quando
era rasgada em pedaços cavava em seu coração.
Quando finalmente o desejo de destruição de seu lobo se acalmou, ele encontrou a
corrente que prendia a fera a si mesmo e a forçou, rosnando e ganindo, de volta à sua gaiola
imortal de magia, tendões e ossos.
E, quando Haven reapareceu logo depois, se contorcendo e gritando em cima dos
escombros de cristais e pedras, duas das coisas que ele amava quebradas e torcidas juntas,
cada pensamento, cada sentimento saiu de Stolas.
Salve um. Proteja Haven.
Se algum dos outros tentasse impedi-lo de levá-la, eles seriam mortos. Ele agiu por puro
instinto enquanto a conduzia através da névoa e nuvens para o lugar mais seguro em
Shadoria: seu quarto no céu.
Ele não percebeu Nasira ou Surai no quarto enquanto colocava Haven em sua cama e
enrolava seu corpo ao redor dela, usando cada pedacinho de seus poderes para tirar a dor que
apodrecia dentro dela. Uma espécie de terror enfadonho ameaçou tomar conta enquanto
ele cheirava o travo demoníaco da magia demente misturada com seu medo.
Seus olhos estavam abertos, vidrados e sem visão, sua carne fria como o ar lá fora. Seus
braços se agarrando como um animal selvagem. O corpo se sacudindo e se debatendo e
emitindo gemidos gorgolejantes...
Ele ia despedaçar Archeron por isso.
E ele faria isso lentamente.
Mas primeiro - suavemente, muito suavemente, ele a segurou quieta. — Você está
segura, Haven. Segura. Nada pode te machucar agora.
Ela rasgou a colcha e, em seguida, virou as unhas nele. Fugindo cegamente. Sufocando e
tossindo enquanto ela tentava respirar através de seu terror. Ignorando o ataque irracional,
ele se concentrou em infundir sua magia nela. Firmando sua mente enquanto ele empurrava
sua euforia nela com pulsações rítmicas, deixando-a se acostumar com a sensação, esperando
até que ele a sentisse se abrir para ele. Esperando que ela reconhecesse sua presença.
Que aceitasse a segurança e o alívio que ele estava oferecendo a ela.
Quando ele sentiu seu corpo descongelar, seus lamentos se transformando em gemidos
suaves e suplicantes, ele a guiou para a campina em sua paisagem de sonho compartilhada. E,
então, assim como ela o consolou uma vez, ele a segurou em seu colo sob a árvore,
sussurrando poemas de sua juventude ou histórias favoritas, qualquer coisa que ele pudesse
pensar para trazê-la de volta para ele.
Até que finalmente, a magia demente perdeu o controle sobre sua mente e quaisquer
horrores que ela experimentou sangraram. Então, ela descansou mole e quieta contra seu
peito, respirando suavemente.
E ele contou cada respiração como alguns contam estrelas, sussurrando sua gratidão à
Deusa ou aos céus ou quem quer que no Submundo estivesse ouvindo por seu retorno
seguro.
Destruído. O Salão de Luz foi destruído. Crateras gigantes de pedra sobravam, onde
os cristais uma vez brilhavam. Eles foram arrancados das paredes. Do chão. Arrancados das
alcovas. Estilhaçados. Como se aquela criatura que Stolas liberou não pudesse suportar a luz.
Fragmentos de cristais multifacetados que uma vez estavam pendurados no lustre
milenar acima se espalharam pelo chão, entre outros destroços. Móveis, pinturas, tapeçarias
- nada foi poupado da ira de Stolas.
Exceto eles, é claro. Por pouco.
Xandrian se ajoelhou ao lado de Bell, pegou uma lasca de cristal e balançou a cabeça. —
Tanto desperdício.
— Você sabia que ele poderia fazer isso?
— Haviam rumores, mas a realeza dos Serafins sempre foi muito reservada sobre seus
dons.
Bell zombou. — Dons?
Fosse o que fosse, dom era uma palavra agradável demais.
Horas se passaram desde que Haven reapareceu no Salão de Luz. Mas assim como o salão
para o qual ela voltou não era o mesmo, a Haven que voltou não foi aquela que saiu. Seu
corpo tinha se enrolado violentamente em si mesmo, sua pele branca como a lua espiando
das janelas, membros sacudindo com tanta força que ele pensou que o chão de mármore
poderia rachar.
E os gritos horríveis que saíram de sua garganta enquanto ela jazia indefesa e se
contorcendo nos escombros quebrados...
Ele pensou que ela estava morrendo.
Bell percebeu que suas mãos tremiam e as enfiou nos bolsos. Mas não foi o medo que o
movia quase violentamente; era raiva.
A coisa toda ainda parecia um pesadelo. Observando Haven escapar de suas mãos. Na
frente dos Escolhidos. Na frente dele. Enquanto ele estava ocupado sonhando acordado
com o treinamento, ele deveria ter notado o erro da caixa. Deveria ter reagido antes.
Ele deveria ter feito algo.
Xandrian apertou seu ombro levemente, tirando Bell de suas ruminações. — Ela ainda
está dormindo?
Bell acenou com a cabeça, ciente de como Xandrian foi rápido em remover sua
mão. Xandrian nunca o tocava fora do treinamento, então se ele estava fazendo um esforço
agora, significava que Bell provavelmente parecia tão horrível quanto se sentia.
No momento em que Haven foi devolvida a eles, Stolas a pegou em seus braços e
explodiu na noite. Surai se transformou para segui-los, enquanto Xandrian se enfiava nos
portais mais próximos, levando-os o mais alto que podiam para dentro do palácio. O ponto
mais alto do palácio era protegido contra estranhos. Apenas os Serafins de sangue real
podiam passar.
Surai os encontrou esperando o que pareceu uma eternidade depois. Seus olhos cor de
lavanda estavam desbotados e vazios, mas ela prometeu que Haven ficaria bem. Stolas estava
cuidando dela - o que quer fosse no Sombreamento que isso significasse.
Isso não satisfez Bell. Só depois que Surai retransmitiu a ameaça de Bell, de destruir as
pinturas e esculturas requintadas que revestiam os corredores, Stolas baixou as proteções
para sua câmara para que pudessem entrar.
O último andar do castelo assomava bem acima das nuvens. Em vez de quartos, havia
uma câmara gigante aberta para o céu noturno. Colunas impressionantes com lobos
esculpidos em seus lados sustentavam um teto abobadado pintado como o céu.
Dentro daquela câmara sobrenatural, rodeado por aquela vista deslumbrante dos céus,
Haven parecia tão pequena. Especialmente aninhada na enorme cama de dossel no centro -
enorme para caber em suas asas, Bell assumiu, e não as orgias que os rumores diziam que o
príncipe das trevas preferir - seu cabelo varria um travesseiro de marfim como tinta. As tiras
de seda de carvão penduradas acima da cama giravam com a brisa.
Stolas estava empoleirado em uma saliência perto de uma claraboia. Seus olhos nunca
deixaram Haven quando Bell entrou, mas ele sabia que o Senhor das Sombras estava ciente
de sua presença. Sabia que se alguém além de Bell ou um dos Escolhidos entrasse, eles nem
o veriam chegando até que fosse tarde demais.
Depois do que aconteceu no Salão da Luz, Bell teve bom senso o suficiente para sentir
um medo recém-descoberto perto do Senhor das Sombras.
Nasira o encontrou na cabeceira da cama de mármore com dossel.
— O que Archeron fez com ela? — Bell exigiu.
— Ele a arrastou para o Éter, prendeu-a lá e, em seguida, a afligiu com algum tipo de
feitiço de tormento desagradável.
Bell lutou contra o desejo de bater em algo. — Ela está melhor agora?
— Stolas foi capaz de quebrar o feitiço e depois acalmá-la.
Nasira falou como se a aflição de Haven fosse uma febre, não alguma perversão infligida
a ela por um louco.
Depois de tudo que Haven passou em sua vida, toda a tragédia, rejeição e mágoa, o
pensamento de seu sofrimento o deixou fisicamente doente. — Eu vou matar Archeron.
— Entre na fila. — Os olhos de Nasira passaram para Stolas e de volta para Bell. — O
que você viu no salão após Haven desaparecer... — Outro olhar arremessando para o
irmão. — Haven explicou a você o que era aquilo?
— Aquilo? — Bell disse entorpecido, porque ele não podia imaginar que havia um nome
para algo tão terrível, tão monstruosamente selvagem como a coisa que Stolas havia lançado.
— Cada Serafim real tem um Familiar das Sombras. — As asas de Nasira vibraram com
entusiasmo enquanto ela continuava explicando o fenômeno, como se a criatura que tinha
destruído o lugar mais bonito que Bell já tinha visitado em um mero instante era algo para
se orgulhar. — Meu irmão compartilha a Forma da minha mãe, o lobo terrível.
Lobo. Tudo se encaixou no lugar, as memórias traumáticas de antes se solidificando. Na
época, ele estava em modo de sobrevivência como os outros, mais focado em encontrar
refúgio da criatura sombria que rasgava pedra com os dentes nus do que em catalogá-la.
Mas, agora, o longo focinho gotejando com presas se formou em sua mente. A pele negra
luxuosa e os olhos vermelhos ardentes e os músculos tensos e enrolados. Nasira sabia o que
estava acontecendo e ergueu um escudo para protegê-los enquanto a criatura atacava.
Foi como se a tempestade mais violenta e poderosa que se possa imaginar tivesse sido
forçada a formar um lobo do tamanho de uma cabana. Tudo o que tocou foi arruinado. Se
não fosse pelo raciocínio rápido de Nasira, a carnificina teria incluído mais do que apenas
móveis e pedras.
— Stolas mal tinha descoberto sua forma antes de Morgryth matar nossos pais— disse
Nasira, baixinho, quase como se estivesse falando para si mesma— então ainda era um
segredo. Ao invés de deixar Morgryth usá-lo como uma arma, ele manteve seu familiar
trancado bem dentro dele, firmemente acorrentado, escondido e... e morrendo de fome. Ele
mentiu e disse a ela que nunca aconteceu. Se um conjurador de sombras experimenta grande
estresse durante seus anos de transição, sabe-se que seus familiares ficam dormentes, às vezes
indefinidamente. Ela não acreditou nele, é claro. Mas não importa quanto tempo aquela
bruxa o torturou, ele o manteve enjaulado até... que ele secou em sombras e cinzas. Nós
pensamos que estava morto.
Bell exalou. Ele só podia imaginar as coisas que Ravenna e a Rainha das Sombras teriam
feito com um monstro tão poderoso. Então, sua mente voltou ao comentário anterior. —
Você disse que todo Serafim Real tem um Familiar das Sombras. Se Haven é descendente
do próprio Sombreamento, isso significa que Haven tem uma dessas... coisas dentro dela?
O sorriso de Nasira confirmou sua suspeita.
Chega. Ele só podia lidar até um certo ponto. Ele encontraria uma maneira de
compartimentar isso mais tarde.
Bell finalmente se atreveu a olhar para Haven, parte dele já estremecendo com a dor que
esperava ver.
Gotas de suor brilhavam sobre seu lábio superior e sobrancelha. Sua cabeça estava jogada
para trás, expondo o centro pálido de seu pescoço delicado, os lençóis de prata amontoados
entre seus dedos enrolados. Mas suas feições eram suaves, sua boca sem rugas e entreaberta,
respirando suave e lentamente. Os cílios rosa-dourado escuros tremulavam como se ela
sonhasse.
Ele relaxou. Comparada com sua condição desesperadora anterior, ela quase parecia
uma pessoa diferente.
— O que Stolas fez com ela?
Nasira deu de ombros. — Consertou ela.
Tradução: você não quer saber os detalhes. E ele não queria. Não agora, pelo menos. Era
outra coisa para pensar mais tarde, quando seus nervos não pareciam ter sido desgastados
com lâminas de barbear.
Asas tremularam no alto quando Bell se inclinou em direção a Haven, tirando uma
mecha úmida de cabelo de sua testa. — Eu sinto muito. Você merece muito mais do que o
que ele fez com você, mas você é a pessoa mais valente que eu conheço e vai superar isso. —
Ele beijou sua bochecha e ela se mexeu. — Eu... eu te amo.
Ele poderia ter jurado que o fantasma de um sorriso contraiu seus lábios. Se ela estivesse
acordada, ela daria a ele tanta merda.
Nasira estava inclinando a cabeça para ele enquanto ele se endireitava, mas ela não o
provocou como ele esperava.
Não, seus estranhos olhos azul-prateados o observaram por um momento longo e
curioso. Então, ela acenou com a mãozinha e disse: — Vá dormir, lindo rei mortal. Alguém
vai te pegar quando ela acordar.
Depois de superar o choque usual de receber ordens da minúscula imperatriz Serafim,
ele obedeceu, mas sabia que não conseguiria dormir, então voltou para o destruído Salão de
Luz.
Xandrian já estava lá, apenas olhando para a destruição com aquele seu olhar
impassível. Sem palavras, eles começaram a tentar salvar o que podiam, pelo menos para
fazer algo para esquecer a facilidade com que Archeron havia violado suas defesas.
Bell sabia que Haven estava bem agora. O que quer que Stolas tenha feito, ele de alguma
forma parou a magia que golpeava sua mente, mas não a apagou. Enquanto Bell lentamente
reunia os pedaços de cristal quebrados, ele não conseguia afastar a sensação de que, assim
como o candelabro quebrado acima, o que quer que Archeron tivesse feito a Haven não
poderia ser desfeito. Despercebido.
Uma dor lancinante latejava na mão de Bell e ele ficou chocado ao ver um caco de cristal
apertado sob seus dedos, sangue pingando no chão de pedra. Ele rejeitou a oferta de
Xandrian para curá-lo. A picada afiada de seu corte o distraiu.
— Rei. — Xandrian assustou Bell pegando sua mão e envolvendo uma faixa azul-gelo
ao redor do corte. Quando ele terminou, sua mão permaneceu. — Você deveria
descansar. Partimos para as terras mortais assim que Haven estiver pronta e espero que você
ajude com o Enfiar.
Em qualquer outro momento, Bell teria ficado empolgado com o teste de habilidade
que se aproximava. Enfiar era uma das habilidades mais complexas que um conjurador de
runas poderia aprimorar; mesmo Haven, com todo o seu vasto acesso ao poder, não poderia
controlá-lo. E, agora que Stolas não era mais o Senhor do Submundo, ele também não
poderia.
Em qualquer outro momento, ele também poderia ter deixado seus pensamentos
vagarem para os dedos de Xandrian ainda levemente curvados sobre sua mão.
Mas apenas um pensamento ressoou dentro de seu crânio: Archeron nunca iria parar
até que possuísse Haven ou a matasse.
Bell se afastou do toque gentil de Xandrian. — Eu quero treinar.
— Agora? — O escárnio de Xandrian se transformou em pena quando ele balançou a
cabeça. — Não faça isso. Não se puna pelo que aconteceu antes. Nós temos toda a
responsabilidade disso.
— Isto não é um castigo. Estarei pronto da próxima vez que aquele bastardo vier buscá-
la, mas eu entendo se você precisar de seu descanso de beleza, Senhor do Sol.
O desafio de Bell limpou a simpatia do rosto de Xandrian; seus lábios se curvaram em
um sorriso suave e punitivo enquanto ele acenava com a mão em direção às portas duplas. —
Depois de você.
Xandrian o faria pagar por essa observação, mas Bell saudaria a dor.
Ele estava descobrindo que essa era a melhor distração de todas.
— Eu irei rasgar a cabeça de Archeron de seu corpo — Stolas rosnou, andando ao
longo do comprimento do balcão de pedra áspero onde ele e Nasira estavam. A umidade do
calor dos banhos reais flutuava sobre sua pele fria. O som de zumbido da criada de Haven
flutuava sobre o vento, onde ela escovava o cabelo rosa-dourado vibrante de Haven.
Haven tinha acordado fraca e atolada em suor. Em seu típico modo obstinado, ela
tentou se levantar, fingindo que estava bem. Mas o vazio em seus olhos dizia o contrário.
E quando ela deslizou da cama e quase desmaiou...
Ele não tinha corrido para ajudá-la, por mais que isso o matasse. Ela teria odiado
isso. Pensar nisso agora fez seu sangue ferver.
Como ele teve que assistir sua luta para ficar de pé. Andar. Como ela usou a pouca
energia que tinha para esconder o olhar assustado em seus olhos. Com a ajuda de Demelza e
Nasira, ele convenceu Haven a tomar banho e tomar café-da-manhã.
Duas horas - tinha levado duas horas cambaleando e parando para chegar ao banheiro
pessoal dele. Cada segundo que a observava lutar enquanto fingia estar bem torcia a adaga
de dor e raiva mais fundo em seu coração.
Nasira estendeu as asas, o rosto inclinado para captar a primeira luz do
amanhecer. Como sua mãe, ela era baixa em comparação com a maioria dos Serafins, seu
rosto surpreendentemente bonito, com uma corrente de selvageria que só aumentava o
fascínio.
Ela bocejou, mostrando os caninos que ela nunca retraía. — Eu não posso acreditar que
sou eu quem está apontando isso, mas matar o Soberano do Sol vai contra o plano de Haven.
— Discutível.
— Na verdade, não. Ela quer unir as nações, lembra? Ou você não estava presente para
o mesmo discurso chato que eu estava?
— Não consigo ver como isso tem a ver com a remoção da cabeça de Archeron.
— Porque remover a cabeça do governante do maior reino de Solissia iria contra o nosso
novo tema de paz e amor. — Ela deu de ombros com seus ossos de pássaro. — Eu sou
totalmente a favor da ideia, claro, especialmente se eu conseguir manter a cabeça. É muito
mais interessante agora que metade de seu rosto é horrível e a outra bela, além disso, sempre
achei ridícula a ideia de aliar todas as nações.
— Então, este discurso é… o quê? Você está discutindo por discutir?
— Sinto a necessidade de salientar que Haven ficará furiosa... já que você parece se
importar com isso.
Ele sentiu os dentes à mostra em um sorriso ridículo. — Eu me importo,
estranhamente. Como você deveria, já que fez um juramento como a Escolhida dela.
— Fazer um juramento de protegê-la com a minha vida não significa que eu me importo
com o humor dela. — Ela se inclinou para trás, esticando as asas. — E por quanto tempo
devemos continuar sendo legais com as nações Solis, exatamente?
— O tempo que Haven quiser.
— Implorando por alianças? Implorando para ser reconhecida como filha de
Freya? Nossa mãe não pediu permissão para ser respeitada, ela exigiu. Desrespeito foi
respondido com violência imediata.
— Não no final.
Os olhos de Nasira brilharam. — E veja o que aconteceu.
Isso foi minha culpa. As palavras ficaram presas em sua garganta, não ditas. Nasira nunca
diria isso, mas não precisava.
E, agora, o pensamento da mesma coisa acontecendo com Haven...
Um grunhido retumbou em seu peito. — Ela não me diz o que ele fez com ela.
Os olhos azul-acinzentados de Nasira assumiram um aspecto assombrado quando ela
encontrou seu olhar furioso. — Lembra quando eles costumavam nos arrastar para longe de
nossas celas enquanto o outro assistia? — Ela exalou, mudando seu foco para a névoa roxa e
dourada que dourava as nuvens fibrosas. — Quando você voltava, coberto de sangue,
hematomas e pior, seus olhos terrivelmente vazios, eu perguntava o que aconteceu, lembra?
As memórias empurraram para a superfície, envenenando seus pensamentos até que ele
os forçou a voltar. Hoje não era o dia para revisitar esses horrores particulares.
— Eu não entendia então por que você não me respondia, mas eu entendo agora. —
Nasira encontrou seus olhos novamente, a dor dentro de seu rosto fazendo seu estômago
revirar. — Você estava me protegendo, Stol. Você sempre me protegeu, não importa o preço
que a segurança lhe custasse.
Ele deixou sua atenção deslizar para Haven. Terminado o banho, Demelza tinha uma
toalha branca felpuda enrolada no corpo magro de Haven. — Ela não precisa me proteger
do que aconteceu.
— Não? Depois que ela desapareceu... Stol, a última vez que te vi assim foi quando...
— Não. Não diga isso.
Ele ainda podia ver os olhos prateados de sua mãe, com contornos dourados como os
dele, quando eles se arregalaram. Eles brilhavam em seus sonhos, seus pesadelos. Sua boca se
abriu. O anel de ouro desbotando e a prata se transformando em fuligem quando a vida a
deixou.
Essa foi a última vez que ele sentiu tanta raiva, tanto medo, suas emoções emaranhadas
e cruas e consumindo tudo.
— Você tem certeza que ela vale tudo isso? — O vento quase engoliu a voz suave de
Nasira.
Sem hesitar, ele respondeu: — Sim.
Ambos se viraram para assistir Haven. Ela parecia ter recuperado a maior parte de sua
força, evidente pela forma animada como ela discutia com Demelza - algo sobre demônios?
E ainda... seu olhar fixo na irregularidade de suas clavículas e braços. A magreza de suas
bochechas.
Isso não foi causado da noite para o dia.
Uma onda de preocupação cresceu dentro dele, seguida por uma carranca. Depois de
séculos sufocando cada emoção, cada sussurro de sentimento além da raiva desenfreada, a
vulnerabilidade que vinha com o cuidar de outro ser era... desconfortável.
Mesmo com sua irmã, ele conseguiu se livrar das preocupações com ela. Provavelmente
porque ela era meio selvagem e na maioria das vezes era ela quem o via sofrer.
Com Haven, no entanto... não havia como se desprender. Não havia como cortar o
estranho vínculo entre eles. Não agora. Ele não poderia prender seus sentimentos por ela
mais do que ele poderia seu Lobo Sombra.
Ambos se tornaram poderosos demais para isso.
Ele a seguiu com o olhar, franzindo a testa enquanto distinguia as sombras que se
estabeleceram entre as protuberâncias afiadas de sua coluna.
As exigências de seu reino tornavam impossível garantir que ela tivesse tempo para
comer. No início, ele assumiu que ela estava simplesmente muito ocupada e fez com que os
cozinheiros começassem a entregar sua comida naquele pequeno e desolado quarto que ela
insistia em usar.
Mas eles o informaram que os pratos voltavam intactos.
Presumindo que ela estava simplesmente sendo exigente, ele falou com Bell e fez com
que os pobres cozinheiros Serafins passassem dois dias aprendendo a assar os doces que ela
amava.
Esses também voltaram praticamente intocados. Junto com sua sopa favorita, uma sopa
de tomate. Sua comida favorita no café da manhã, biscoitos com molho de carne.
Tudo isso intocado.
Ela estava morrendo de fome.
Se ele não estivesse tentando pelo menos parecer civilizado para o bem dos outros, ele a
jogaria por cima do ombro e a obrigaria a comer. Para parar de se punir pelo que aconteceu
em Solethenia. Para se perdoar pela traição de Archeron. Para parar de se culpar por cada
morte que aquele bastardo reivindicou em seu nome.
Mas ele não podia fazer isso por ela e por mais que quisesse trancá-la em um quarto e
forçá-la a cuidar de si mesma, ele pelo menos teve a presença de espírito de saber que ideia
terrível era aquela.
— É ela? — A voz de Nasira o tirou de suas ruminações.
— O quê? Filha de Freya?
— Não. — A pele ao redor dos olhos de Nasira se contraiu. — Você sabe de quem estou
falando. Dela. Aquela que a áuguria de sangue mencionou.
Ele ficou imóvel. Completamente, totalmente imóvel. — Você conhece a regra. Não
falamos disso.
— Ela não é imortal e...
Ele rosnou.
— Stolas...
— Chega.
Ela estremeceu com seu tom de advertência. Estremeceu - mas continuou
teimosamente. — Eu me recuso a deixar isso acontecer. Eu não me importo com o que
aquela augúria mentirosa disse...
Suas palavras sumiram quando Haven se aproximou e seus ombros relaxaram quando
ele focou sua atenção nela. Alguns dos hematomas sob seus olhos haviam desaparecido, as
águas curativas trabalhando para consertar sua carne física, pelo menos.
O que havia além disso, porém, levaria tempo. E ele estaria lá para cada passo. Para o que
ela precisasse.
— Você consegue estar pronto para sair em breve? — ela perguntou como forma de
saudação. Claro que ela estava tentando ignorar completamente o que aconteceu na noite
passada.
Ele estreitou o olhar para ela. — A questão é: você consegue?
— Estou bem. — Ela ignorou a série de grunhidos céticos e maldições que Demelza
proferiu. A mulher realmente fazia maldições como uma forma de arte.
— Primeiro tomamos o café-da-manhã. — Ela foi discutir e todos os seus planos de
permanecer um cavalheiro fugiram. — Você vai comer, Haven, se eu tiver que segurar você
e forçar a comida em sua boca teimosa.
Bem, lá estava, e ele não estava arrependido.
Em sua visão periférica, ele percebeu o sorriso de Nasira. Demelza parou no meio de um
grunhido e ficou boquiaberta com ele, sua expressão ou furiosa ou impressionada - era difícil
ler a maldita mulher.
Os olhos de Haven brilharam com fogo. — Eu gostaria de ver você tentar.
— Jura? Porque podemos providenciar isso... ou você pode simplesmente marchar com
sua bunda obstinada até o refeitório, dar a seu corpo mortal o que ele tanto requer - sustento
- e continuar nosso dia.
— Você me deixaria ir como eu estou... — ela puxou a ponta da toalha, destacando o
quão precariamente ela estava enrolada em seu corpo— ou posso pelo menos me vestir
primeiro?
Ele arqueou uma sobrancelha. — Sua escolha. Embora, o Sombreamento sabe, os
soldados precisam de algo para acordá-los esta manhã.
A incredulidade alargou aqueles lindos olhos dourados e ele mal se conteve para esboçar
um sorriso. Isso só iria enfurecê-la mais - uma reviravolta divertida, mas, em última análise,
inútil, que anularia o propósito desse impasse.
Quando ela levantou o queixo, ele se preparou para mais luta verbal, mas ela se virou e
marchou em direção às portas. Alguns minutos depois, ela apareceu no corredor, totalmente
vestida e acabou com tudo em seu prato.
Depois, aqueles lábios teimosos - agora cobertos de flocos de massa com mel - sorriram
ferozmente para ele.
E ele só imaginou qual seria o sabor daqueles lábios macios e doces por um mísero
segundo antes de afastar a fantasia e devolver o sorriso.
Ele preferia a raiva pelo olhar assombrado que testemunhou quando ela acordou pela
primeira vez. Se isso fosse necessário para fazê-la cuidar de si mesma, para acalmar a ferida
inflamada que mantinha escondida de todos, ele ocuparia esse papel com prazer.
Haven tirou uma mecha de cabelo úmida de suor da testa enquanto olhava para as
proteções recém-restabelecidas cintilando bem acima do muro de pedra empilhada que
circundava a cidade de Luthaire.
Stolas enfiou as asas nas costas. O cabelo branco em suas têmporas tinha escurecido com
suor para um prata-claro e ele olhou contra a luz do sol brilhante enquanto varria seu olhar
sobre o perímetro. — O muro que esperávamos, mas o escudo é... novo.
Nova não era exatamente a palavra certa. A capital, Veserack, já foi a sede do poder sobre
os Três Reinos Quebrados e suas proteções já, uma vez, foram impressionantes. Tão antigo
quanto o muro de runas em Penryth, e dado por um Rei Asgardiano, o escudo poderoso
mantinha fora até mesmo os intrusos mais astutos - até que rachou e, então, desapareceu na
história anos atrás.
Seguiu-se um êxodo em massa da cidade.
— Deve ter voltado à vida depois que a Maldição foi quebrada— Haven disse enquanto
desabotoava a blusa, que já estava encharcada de suor. — Eu deveria ter adivinhado.
Mesmo dali, ela podia sentir a magia defensiva do escudo picando o ar úmido. E a Deusa
sabia que estava úmido. Ela tinha esquecido que era o meio do verão nos continentes
mortais, na ponta sul um caldeirão de molhado, calor ameno.
Ela quase invejou Surai e Delphine enquanto vagavam pelos céus, pegando a brisa do
mar. Elas estavam avaliando a cidade e os territórios vizinhos em busca de possíveis pontos
de entrada - assim como armadilhas.
— Sou o único que pensou que vir aqui sem avisar era uma má ideia? — Xandrian
perguntou, cutucando uma mancha invisível do colete prateado que ele usava. — Afinal, há
um decoro nessas coisas.
— Você pensou que vir aqui era uma má ideia, Senhor do Sol— Surai disse quando
apareceu dos freixos mais próximos. — Mas nós estamos aqui agora, então pare de fazer
beicinho como um mortal e lide com isso.
Era em momentos como este que Haven se perguntava se seus amigos lembravam que
ela e Bell eram mortais.
Os traços duros do rosto de Xandrian se transformaram em uma carranca ofendida.
— Eu estou. Quem você acha que nos trouxe aqui?
Atrás dele, o portal que ele e Bell abriram brilhava suavemente entre duas grandes pedras,
cercadas por fogo verde-pálido.
Haven franziu a testa.
— Devemos fazer algo para esconder isso?
O rosto de Bell assumiu uma expressão acadêmica que significava que ele estava prestes
a ensinar algo a ela. — Os feitiços entrelaçados na composição do portal são incrivelmente
complexos. Incluímos tudo, desde runas de longevidade a runas de mascaramento.
— Explique-me como se eu não soubesse nada sobre a criação de portais.
Um sorriso orgulhoso revelou seus dentes brancos perfeitamente retos. — Esta artéria
específica entre Shadoria e Veserack vai durar semanas, possivelmente meses, e só pode ser
vista por seus viajantes originais: nós.
— No máximo — acrescentou Xandrian— qualquer um que passasse confundiria isso
com uma miragem de calor.
— Uma ocorrência totalmente crível — Stolas murmurou, obviamente amando as
temperaturas tropicais tanto quanto Haven.
— Que astuto — Xandrian murmurou. — Talvez agora você possa encontrar um
caminho para dentro dessas paredes. A menos — seu olhar fixou em Surai— que você
descobriu algo útil, metamorfa de corvo?
O estômago de Haven caiu um pouco quando Surai deu uma sacudida sutil de sua
cabeça. — Nada. A cidade e o porto são extremamente seguros. Este novo rei deve ter
colocado todos os seus recursos nas defesas primeiro.
Sua voz tinha uma nota de respeito que Haven estava começando a compartilhar. A
maioria dos reis teria desviado sua atenção para melhorias mais chamativas destinadas a
mostrar sua riqueza e poder.
— Nenhum sinal de armadilhas ou reforços escondidos? — perguntou Stolas.
Surai balançou a cabeça novamente. — Delphine ainda está verificando algumas áreas,
mas, no geral, parece seguro.
Qual é o seu jogo, Rei? Haven se perguntou enquanto todos se voltavam para Luthaire. A
cidade portuária formava um crescente em torno de um grande porto artificial. Haven se
lembrava vagamente de ter visitado com Bell a corte anos atrás, pouco antes da cidade
cair. Apesar do comércio entre os Solis e os mortais estar praticamente esgotado, havia quase
trinta navios no porto cintilante de topázio.
Edifícios de arenito outrora impressionantes alinhavam-se na costa de marfim, sua
arquitetura em ruínas escondida sob andaimes e escadas. Uma fumaça pálida saía das casas
de telhados vermelhos enquanto todos se preparavam para o jantar.
Durante o reinado da Maldição, a cidade foi abandonada quando as facções se dividiram
em clãs e os cidadãos fugiram para as montanhas para se esconder. Sem a manutenção
constante da guilda de alvenaria e as proteções para lutar contra o abraço destrutivo do mar,
a grande cidade de Luthaire havia caído em degradação natural.
Agora que as proteções estavam funcionando novamente e o porto estava cheio de
navios de guerra de vela branca e navios mercantes, os cidadãos haviam retornado e
começado a reconstrução.
Embalado pelas muralhas da vasta cidade e da baía calma, o palácio do mar erguia-se do
centro da cidade, um monólito de parapeitos de pedra branco-areia e torres branqueadas
pelo ar salgado e pelo sol. Como uma besta que apareceu na costa, ele se estendia sobre a
água em um complexo sistema de palafitas.
Quando o portão da foz do porto era fechado durante a maré alta, o palácio e a cidade
eram acessíveis por navios e barcos menores.
Mas quando eles eram abertos, a água escoava, deixando toda a cidade completamente
fora do alcance dos atacantes. Por terra e água, pelo menos.
Surai franziu a testa para o palácio. — Talvez entremos pela boca do porto? Eu não
verifiquei tão longe.
— A baía é guardada por um portão gigante — respondeu Bell, deslizando um
instrumento de bronze fino em uma bainha de prata incrustada de pérolas em sua
cintura. — Seria mais fácil passar pelas poucas entradas vigiadas em terra, embora isso não
diga muito.
O dispositivo era um acrum, uma ferramenta que ajudava os conjuradores de luz a
perfurar os Reinos do Outro enquanto eles esculpiam um caminho através dos planos
invisíveis. Uma ponta era pontiaguda como uma agulha, a outra tinha uma safira preta de
corte radiante cercada por turmalina.
Acrums eram usados por conjuradores de luz da antiguidade para criar os portais antigos
que conectavam todos os continentes. Ela sabia disso, porque Bell havia passado uma noite
inteira contando a ela tudo sobre as ferramentas raras e como foram necessários vinte
conjuradores de luz com acrums durante um ano inteiro para criar um daqueles portais
antigos.
De acordo com Surai, havia apenas um punhado de agulhas de acrum restantes em todo
o reino. O que provavelmente explicava o sorriso radiante de Bell e o floreio extra em seus
movimentos quando o empunhava.
— Oh, maravilhoso — Xandrian murmurou. — Alguém gostaria de dar um passeio no
meio da tarde por esta cidade encantadora?
A irritação de seu nariz comprido e reto destacou seu sarcasmo, caso o desdém que
gotejava de cada palavra sua não estivesse claro.
Stolas deu uma risadinha. — Nós poderíamos ter todo esse trabalho, ou simplesmente
contornar as formalidades e chegar à sala do trono.
O olhar azul-claro de Xandrian deslizou para as asas de Stolas, que estavam espalhadas
casualmente de forma que as penas índigo coroando as pontas roçassem a grama macia. —
Feitiços Asgardianos são tecidos em cada centímetro daquele escudo. Da última vez que
verifiquei, as asas não podem romper as barreiras deste complexo.
— Não, mas eu posso. Ou você esqueceu que sou filho da última Imperatriz Serafim?
— Quem pode esquecer quando você lembra a todos? — Xandrian murmurou.
— Asgardianos são astutos. Quaisquer paredes de proteção que eles construíram para
outros reinos sempre contêm uma pequena assinatura de seu criador, uma pequena porta
para o caso de o reino se tornar um inimigo de Asgard. — O sorriso arrogante de Stolas
beirou a alegria suicida quando acrescentou: — Já localizei essa seção, agora é uma questão
de convencer a ala senciente de que sou seu mestre.
— E é tão fácil assim?
— Já que sou eu, sim — prometeu Stolas, seu tom presunçoso fazendo-a se perguntar se
ele estava tentando irritar Xandrian.
Xandrian estalou a língua. — Mesmo se isso fosse verdade, é uma boa ideia apenas
aparecer dentro da casa deste rei? Sem convite?
— Tecnicamente fomos convidados. Mas se você preferir pedir permissão primeiro,
fique à vontade.
Seu olhar escuro deslizou para Haven e seu peito inchou um pouco quando ela percebeu
que ele estava esperando por sua opinião. Ela passou seu foco sobre seus amigos.
Cada um de seus Escolhidos estava disposto a cair direto em uma armadilha por ela.
Morrer por ela.
Tinha sido decidido que os outros ficariam em Shadoria caso a promessa de paz de
Archeron fosse um truque. Mas todos eles teriam vindo apesar de saber os riscos.
Eles sabiam que Haven estava sendo caçada, que a recompensa por sua cabeça a tornava
um alvo. Uma sombra de horror caiu sobre ela enquanto suas visões ganhavam vida, os gritos
e terror tão reais...
Não. Archeron está tentando usar o medo para controlá-la. Não o deixe.
Sua mandíbula se apertou contra a memória das alucinações depravadas de Archeron e
ela exalou pelo nariz quando uma fria finalidade a invadiu. — Estou cansada de pedir
permissão. Se este rei não gostar, ele mesmo pode me dizer.
Surpresa e deleite iluminou os olhos de Stolas e, então, ele voltou sua atenção para
Xandrian. — Você e sua pequena agulha estão à altura da tarefa?
— Algumas agulhas são mais poderosas do que outras.
Surai bufou antes de ir para os céus, onde ela iria vigiar com Delphine por ameaças
externas.
No caminho até aqui, Xandrian deixou Bell passar pelos portais, um processo árduo que
exigia a instalação de inúmeros portais em cada pequeno afloramento de terra que pudessem
encontrar. Xandrian foi surpreendentemente paciente ao corrigir gentilmente a técnica de
Bell. Reposicionando os dedos no acrum ou apontando runas para lidar com a umidade, o
que aparentemente mexia com a longevidade de um portal.
Agora, não havia dúvida de quem estava criando o próximo portal. Xandrian piscou,
estufando o peito enquanto seu humor azedo se transformava em orgulho arrogante. —
Observe e aprenda, Noctis.
Sombreamento Abaixo, não havia espaço suficiente neste reino para ambos os
egos. Assim que Stolas abriu uma fenda na proteção, Xandrian seguiu sua arrogância com
um portal que os levou direto pela brecha e...
Para a sala do trono do Rei Elhaem.
A mudança ocorreu conforme o esperado.
No segundo em que foram jogados sem cerimônia naquela sala arejada de marfim,
mármore e ouro banhados pelo sol, os guardas do rei Elhaem apareceram. Os soldados
usavam roupas brancas soltas amarradas com faixas roxas e batiam as pontas de suas lanças
no chão enquanto se aproximavam.
Pelas tatuagens de orações rúnicas para a Rainha Selkie cobrindo seus braços escuros,
eles eram ex-marinheiros.
Haven quase sentiu pena dos homens quando a compreensão de quem - e o quê - eles
estavam prestes a lutar ocorreu-lhes. E só piorou quando Xandrian dobrou seus dois dedos
e, de repente, uma parede de ondas espumosas se ergueu fora das paredes abertas. Pronta
para cair ao seu comando. E quando viram que as asas de Stolas eram tão largas que as pontas
de cada lado raspavam nas paredes, as pontas dos incisivos aparecendo abaixo do lábio
superior enrolado.
Para seu mérito, os homens não vacilaram. Se houvesse uma luta, ela decidiu, ela acabaria
com eles misericordiosamente.
— Ei, calma, todo mundo. Calma! — Bell avançou com as mãos levantadas enquanto
tentava acalmar os guardas. Usando cada fragmento que provavelmente conhecia de Sancrit,
a linguagem comum dos Três Reinos Quebrados, ele explicou quem eles eram.
Quando Bell terminou, os marinheiros que se tornaram guardas passaram os olhos por
Haven antes de se estabelecerem novamente em Stolas. Suas lanças baixaram alguns
centímetros, os amuletos pendurados na base das pontas tilintando.
Era um avanço, pelo menos. Tudo o que eles conseguiriam se Stolas continuasse
incitando-os com aquele sorriso provocador.
Provocando pobres guardas mortais? ela disse, ela falou através da alma em sua
mente. Eles dificilmente valeriam a pena a luta.
O quê? ele ronronou inocentemente de volta. Estou sorrindo para eles. Achei que os
mortais gostassem disso?
Se por sorrir você quer dizer mostrar suas presas como um gato da montanha prestes a
atacar, então, sim, você está acertando em cheio.
Então, como devo me parecer?
Menos como você, ela retrucou.
— Bravo. — A atenção de todos se voltou para o Rei Elhaem. Ele estava descendo os
degraus do estrado em direção a eles, batendo palmas suavemente. A luz do sol faiscava
dentro dos rubis e diamantes dos anéis que adornavam cada dedo.
O proclamado rei dos territórios dos Três Quebrados não era nada como Haven
esperava. Eros Elhaem era jovem, não mais do que uma década mais velho do que ela, para
começar. E, ao contrário do rei Horace, cujo corpo havia sido inchado e estragado por
muitas iguarias e escadas insuficientes, o rei Eros se movia com a graça ágil de um homem
que viveu de peixes e pouco mais por anos.
Este rei era muito capaz de empunhar uma espada - ou um exército, ela apostava.
Uma túnica de brocado de seda em ouro e turquesa drapeada quase até os joelhos, como
era a moda mortal, mas não conseguia esconder o inchaço musculoso de suas
coxas. Afunilada na cintura por um cinto de conchas de abalone, as cores da túnica eram
marcantes contra sua pele bronzeada. Em vez da trança longa e elaborada trançada em ouro
que os marinheiros preferiam, seu cabelo ônix era curto, duas tranças grossas e simples
cobrindo seu crânio.
Um único aro de ouro pendurado em sua orelha - a única dica que ele já havia caçado
em mar aberto.
E ele era bonito - chocantemente. Aqueles olhos escuros repletos de uma inteligência
felina que fez seu apelido parecer de repente... imponente em vez de bobo.
O Gato Sorridente, de fato.
Eros avaliou Stolas primeiro, aqueles olhos astutos demorando enquanto mudavam
para Bell, Xandrian e, finalmente, Haven.
Lá seu olhar permaneceu, tempo suficiente para conjurar um rosnado baixo de Stolas. E,
quando Eros finalmente abriu um sorriso, foi tudo menos acolhedor. — Que sorte temos de
receber a visita de quatro dos jogadores mais infames do reino. Um Senhor caído do
Submundo, um Senhor do Sol traidor, um pretenso rei assassino de parentes e uma...
— Cuidado como você se dirige a ela — Stolas falou lentamente, o grave aviso sob aquele
tom educado fazendo até Haven estremecer. — As paredes de marfim desta sala têm uma
leveza maravilhosa que seria perdida se eu tivesse que pintá-las com seu sangue.
Xandrian amaldiçoou baixinho e ela pegou a faísca de magia piscando dentro da palma
meio fechada de Bell.
Sutil, ela estalou, batendo suas palavras em sua mente, forte o suficiente que sua
mandíbula tiquetaqueou.
Este rei não responde à sutileza, foi a única resposta que ela recebeu.
Talvez a invasão tenha sido um erro. Talvez...
Uma risada distante interrompeu seus pensamentos. Uma risada infantil. Se ela podia
ouvir, então... ela olhou discretamente para Stolas, seguindo sua atenção extasiada para uma
sacada do outro lado da câmara.
Duas crianças pequenas em vestidos caros de seda semelhantes ao do rei estavam
sentadas nos ladrilhos, alheias aos intrusos enquanto brincavam. A menina não poderia ter
mais de quatro anos, o menino provavelmente seis ou sete. Pelo menos nove guardas os
cercavam, voltados para fora para desviar qualquer ameaça surpresa.
Seus filhos. O rei era vigiado, porque seus filhos estavam por perto.
Ela compreendeu no momento em que uma mulher incrivelmente bela, vestida com
uma seda esmeralda solta, sobre membros longos e musculosos, se aproximou para ficar ao
lado do rei. Sua pele era da cor bronzeada da região, seu cabelo escuro cortado rente ao couro
cabeludo, exibindo um longo pescoço sem joias. — Sim, Eros. Onde estão suas maneiras? —
A mulher virou seus olhos arregalados para contemplar Haven, uma ferocidade
surpreendente transbordando em suas profundidades marrons profundas enquanto ela se
angulava para esconder as crianças de vista. — Tenho certeza de que nossos convidados não
estão aqui para prejudicar ninguém, não é mesmo, Nascida da Deusa?
Esta era a esposa e a mãe das crianças do rei Ero. Haven assentiu, nunca quebrando o
olhar da mãe. — Peço desculpas pela entrada abrupta, mas... Estou tendo problemas de
confiança ultimamente.
— Como você deveria. — A mulher sorriu, compensando o sorriso frio de Eros com um
calor ofuscante. — Eu sou Neri, a Rainha dos Três Quebrados e meu marido estava prestes
a oferecer a vocês todos os confortos de Luthaire, começando com um pouco de nosso
famoso vinho.
A mandíbula de Eros estava tensa, quando ele murmurou: — Claro. Onde estão minhas
maneiras?
Um movimento de seus dedos chamou os criados para a sala para colocar uma porção
de comida e bebida em uma longa mesa de servir. Os guardas voltaram para perto as paredes,
um de cada lado das inúmeras varandas com vista para o mar. Sua organização impecável e
treinamento óbvio eram outro ponto positivo para Eros, que Haven estava começando a
suspeitar que ele era muito mais do que apenas um pirata que confiscou um trono.
O grito das gaivotas preencheu o silêncio que se seguiu. Xandrian deve ter concluído
que a ameaça havia passado, porque ele afrouxou o controle sobre o mar lá fora, as ondas
voltando para a baía calma, e se aproximou para provar o vinho.
A espiral de tensão dentro do peito de Haven aliviou quando ela olhou para a sala do
trono. Centrada acima da parte mais profunda da baía, a estrutura em forma de barbatana
flutuava no coração do castelo, sustentada por inúmeras passarelas cobertas que levavam a
diferentes alas. A câmara inteira era construída com tiras de mármore branco inclinadas,
como os ossos esbranquiçados de uma baleia, a abertura permitindo que a brisa salgada do
mar agitasse a sala.
De longe, a estrutura fazia o palácio do mar parecer um esqueleto oceânico morto há
muito tempo surgindo da baía.
Rei Elhaem notou o olhar curioso de Haven e ela ficou surpresa ao ver um sorriso
verdadeiro tocar seus lábios. — Maravilhoso, não é? Quando eu era mais jovem, costumava
passar fora dos muros da baía e me maravilhar com a ousadia de um lugar assim. A beleza
como um insulto direto aos deuses.
Antes que Haven pudesse responder, Stolas começou a rondar a câmara, seu rosto
formado em uma expressão estudiosa enquanto inspecionava a arquitetura. Claro, ele estava
perfeitamente ciente de como cada cortesão congelava quando ele passava.
O rei arqueou uma sobrancelha escura para Haven. — O Senhor do Submundo gosta
das artes?
— Ele gosta, de fato — respondeu Stolas, sem se incomodar em desviar o olhar de uma
escultura feita de vidro do mar, conchas e coral.
Ótimo. Stolas estava falando de si mesmo em terceira pessoa agora.
— Então, talvez uma turnê pela minha cidade antes de discutirmos assuntos mais sérios?
— sugeriu Eros.
Haven franziu a testa, olhando para Bell. Penryth ficava a apenas um dia de viagem
difícil pelas montanhas de distância. Se Renk soubesse que Bell estava aqui, ou pior, se Renk
fizesse parte de uma armadilha para atraí-los até aqui...
A compreensão surgiu no rosto de Eros e ele inclinou a cabeça para se dirigir a Bell. —
Enquanto estiver dentro dessas paredes, todos sob minha proteção estarão seguros.
Xandrian, que ficara perfeitamente feliz assistindo à cena da borda de sua taça de vinho
quase vazia, soltou uma risada amarga. — Certo. Cada Solis em Effendier sabe que as
palavras dos mortais estão cheias de mentiras. Para a sua espécie nada é sagrado, exceto a
ganância dentro de seus corações. Como sabemos que não haverá assassinos esperando nos
becos? Só a recompensa pela cabeça do Governante dos Nove poderia financiar as reformas
de toda esta cidade.
Neri ficou rígida ao lado do Rei Eros e Haven odiou assistir o lampejo de dor em sua
expressão orgulhosa.
Stolas olhou por cima do ombro para ela, seu olhar dizendo: Não fui eu desta vez.
Runas e presas das sombras. Antes que ela pudesse tentar acalmar as coisas, o Rei Elhaem
deu um breve aceno de cabeça. — Não é segredo que os reis mortais de nossa terra agiram
de forma desonrosa no passado, mas nem todo homem deve ser julgado por seus ancestrais.
— Talvez se alguns de seus reis mortais fossem rainhas, você não teria esse problema —
Stolas observou preguiçosamente, nem mesmo se preocupando em desviar o olhar de seu
fascínio atual - uma corda que, quando puxada, envolvia as ripas do teto com cortinas de
ouro para bloquear a luz.
Se eles estivessem sozinhos, ela poderia tê-lo beijado.
Os lábios de Neri se contraíram e, quando seus olhos castanhos escuros se voltaram para
Haven novamente, havia uma luz recém-descoberta lá.
— Talvez. — Eros captou as runas de carne brilhando suavemente sobre os braços nus
de Haven. — Mas acho que você vai descobrir, no que diz respeito à honra, gênero ou raça
têm muito pouco a ver com isso.
Os criados congelaram quando Stolas caminhou com pés silenciosos até a mesa de
refrescos e serviu-se de uma taça de vinho espumante. — Um pirata se tornando poético
sobre honra?
Os ombros largos de Eros enrijeceram com o insulto e Haven cerrou a mandíbula. O
que no Submundo, Stolas estava fazendo?
Mas Neri não pareceu surpresa quando ela deslizou uma mão calmante pelo lado do rei,
um sorriso doce em seu rosto tenso. — Pirata implicaria roubar algo que não é seu. Depois
que o antigo governante de Luthaire caiu e os reinos entraram em caos, o rei Boteler enviou
mercenários para assumir o comando de nossa frota de navios. Ingenuamente, pensamos
que ele estava nos ajudando. Mas assim que ele controlou as rotas comerciais, ele desviou
todos os alimentos e recursos para Penryth.
As sobrancelhas de Bell se juntaram. — Isso - isso não é verdade. Ele teve que assumir o
controle ou as facções em guerra teriam destruído todo o comércio ao sul da barreira de
runas.
— Essa foi a afirmação de seu pai, sim, mas não a verdade. — Neri olhou para Bell por
um segundo. Era apenas Haven ou as linhas ferozes ao redor de seus olhos suavizaram? —
Eu imagino que durante o reinado da Maldição você foi bem alimentado? Bem
vestido? Você tinha água limpa, temperos e remédios, sebo para suas velas, óleos e perfumes
para cheirar bem?
Bell piscou. — Claro, assim como os reinos do sul. Os nobres governantes ao sul da
muralha vinham a Fenwick todos os meses e garanto a você que nada lhes faltava.
Isso era absolutamente verdade. Haven sempre sabia quando os Senhores do sul estavam
visitando pelos perfumes enjoativos e mulheres vestidas na última moda.
— Os nobres que visitaram Penryth fizeram um acordo com seu pai. Seu apoio absoluto
para alguns restos de comida e tecido, apenas o suficiente para mantê-los acostumados com
seu estilo de vida opulento.
Bell engoliu em seco quando ele descobriu o que ela não disse. — Mas não o suficiente
para as pessoas sob seu domínio.
Algo sombrio ondulou sobre sua expressão rapidamente. — Quando você vê uma
criança morrer de fome, você faz coisas que nunca teria feito de outra forma. Eros começou
com um navio. Depois, dois. Lentamente, ele tomou de volta o que pertencia às pessoas
sabendo que ele seria considerado um fora-da-lei, sua reputação manchada para
sempre. Tudo o que ele saqueou da linha de navegação do rei Horace foi dado ao povo. Ele
é a única razão pela qual a maioria de nós sobreviveu e a razão pela qual todos os cidadãos
aqui permanecem leais a ele.
Nós. Isso explicava o tom áspero de seu tom. Haven havia assumido, pelas maneiras bem
faladas e graça de Neri, que ela nascera nobre, mas talvez não. A maioria das mulheres
mortais nobres não falava o que pensava e certamente não desafiava seus maridos.
— Se isso for verdade— começou Bell— então, sinto muito, e farei o que for preciso
para corrigir esse erro...
Sua boca se fechou com força, como se ele acabasse de lembrar que não estava mais em
posição de fazer tal declaração.
O coração de Haven se apertou. Se ela pudesse tirar aquela dor dele de alguma forma -
mas não, assim como ela tinha que lidar com suas próprias feridas, ele tinha que curar as dele.
Um grunhido chamou a atenção do grupo para Stolas e algo... não, alguém puxando sua
asa? Quando a mente de Haven envolveu-se em torno do que estava acontecendo, ela não
conseguiu conter a risada.
A filha mais nova de Eros e Neri havia escapado de seus guardas e estava puxando uma
das longas penas da asa de Stolas. Seu cabelo preto estava preso em tranças apertadas ao redor
de sua cabeça e preso com fitas verdes e amarelas e ela estava gritando algo em Sancrit
enquanto pulava para cima e para baixo, completamente alheia ao perigo ao lado dela.
Stolas ficou completamente imóvel, como se não se mover fosse de alguma forma
escondê-lo.
No tempo em que Haven conheceu Stolas, ela nunca o viu assim... tão dividido entre
diversão e terror. Como se ele não soubesse catalogar esta criatura.
Por um instante tensa, todos os olhos observaram para ver como o Senhor das Sombras
reagiria. Os guardas estavam parados em volta dele em um círculo, prontos para proteger a
princesa, enquanto seus pais estavam congelados de medo.
Uma memória da Maldição flutuou sem ser convidada na cabeça de Haven. Uma das
garotas cativas no acampamento do Devorador tinha tropeçado e caído no poço onde
Damius mantinha um pobre leopardo das neves que ele comprou de um comerciante
Solis. Haven ainda podia se lembrar do silêncio absoluto das meninas enquanto se reuniam
ao redor do poço, incapazes de se mover ou fazer qualquer coisa, exceto rezar para que o gato
tivesse sido alimentado recentemente.
Não tinha.
Ela viu o mesmo medo paralisante nos rostos de Neri e Eros agora e ela endireitou sua
postura, preparada para o inferno explodir.
Antes que Haven pudesse dizer uma palavra para acalmar os temores do rei e da
rainha e evitar que os guardas fizessem algo precipitado, uma risada rouca ecoou pela sala.
Rindo. Stolas estava rindo. Seus olhos se iluminaram em um raro tom de verde que ela
nunca tinha visto antes quando ele se inclinou até estar no nível da garotinha, abriu a palma
da mão e soltou uma faísca de magia das sombras. A chama azul ardente se rompeu em um
cardume de peixes prateados e alaranjados que corriam ao redor dela. A garota gritou de
alegria, esmagando o maior número possível de peixes com seus pequenos punhos.
Amaldiçoando em sua língua nativa, Neri perseguiu sua filha enquanto Eros balançava
a cabeça.
— Meu filho nunca nos deu problemas, mas aquela ali? — O olhar afiado de Eros
suavizou quando se desviou para a garotinha, que ainda estava de alguma forma fugindo de
uma Neri muito ágil e de pelo menos dez soldados nervosos. Um lampejo de orgulho brilhou
dentro de seus olhos. — Deusa ajude o homem com quem ela se casar.
— E se ela não quiser se casar?
Eros piscou surpreso.
— Que tipo de mulher não sonha em se tornar esposa e ter filhos?
Levou tudo nela para não bufar. Do outro lado da sala, ela sentiu a atenção de Stolas se
concentrar nela.
— Alguns de nós têm outros sonhos, Rei.
— Mesmo uma princesa não pode escapar de seus deveres para com o seu reino. — O
rei passou o polegar sobre um botão de ouro logo abaixo do colarinho. — Certamente você
sabe disso?
— Você ainda está falando sobre sua filha ou sobre mim?
— Estou apenas apontando que em tempos caóticos como estes, um grande sacrifício é
exigido de todos.
Uma punhalada de decepção latejava em seu peito. O que ela esperava? Afinal, aquele
era o reino mortal e todo o continente estava em uma convulsão massiva. Garantir alianças
por meio do casamento era a maneira mais rápida e eficiente de fortalecer o poder e proteger
territórios.
E ainda, a ideia de ser forçada a se casar com um estranho. Pior. Alguém que você
desprezava...
— Sua filha está prometida a quem? Duna ou Drothian?
Um músculo em seu pescoço saltou.
— Duna. Meu filho está prometido para a filha do governante Drothian.
Foi assim que ele assumiu o controle de todos os três territórios tão rapidamente. Uma
centelha de raiva acendeu dentro dela. Como usar crianças para controlar territórios era
diferente do Rei Horace que usava alimentos e recursos?
— Suponho que seja fortuito, então, que você tenha dois filhos para casar nos dois
territórios sob seu controle. — Seu tom era afiado.
— Sim. — Ele segurou seu olhar, inabalável. — A Deusa nos abençoou nesse aspecto.
Haven endureceu. Ela acreditava que Eros era um homem honrado, mas, como
qualquer governante, ele tinha que ser esperto para sobreviver. Até que soubessem por
que ele arriscou a ira de Archeron e Renk ao se encontrar com ela, ela não podia confiar nele.
— Por que você me convidou aqui, Rei Elhaem? Você conhece os riscos desta reunião e
tem muito a perder.
Xandrian e Bell ergueram as sobrancelhas com a franqueza de sua pergunta, mas ela
estava cansada de dançar em torno do assunto.
Uma emoção fugaz, breve demais para catalogar – vulnerabilidade? Medo? –, escureceu
seu rosto. Então, ele estendeu um braço elegante em direção ao continente atrás dele.
— Façam aquele passeio pela cidade. Falaremos novamente esta noite durante o jantar,
Haven Ashwood.
Não Nascida da Deusa, mas Haven. Ela não se sentia como se o nome fosse com a
intenção de desprezá-la. Em vez disso, Eros parecia alguém que dava respeito depois de
conquistado e ela ainda não tinha feito nada além de invadir sua sala do trono e insultá-lo.
— Estamos ansiosos para isso. Enquanto isso, por onde devemos começar nossa
excursão?
— Quais alimentos você prefere?
Bell riu. — Isso é fácil. Qualquer coisa doce o suficiente para apodrecer seus dentes.
— E para ele? — Eros olhou para Stolas, que estava examinando o que parecia ser uma
garrafa de vinho muito velho, provavelmente muito caro, que ele de alguma forma
convenceu um criado nervoso a adquirir. — Ou ele prefere ficar aqui e esgotar minha
coleção de vinhos caros?
Não havia animosidade em seu tom. Talvez ele tenha ficado aliviado por Stolas parecer
mais interessado em esvaziar o vinho do que os próprios criados.
Mas quanto tempo isso duraria? Além do Asgardiano que ela o deixou ter, Haven não
tinha ideia de como ele estava se alimentando. Os cristais em Shadoria o mantinham nutrido,
mas não... saciavam-no. Ela sabia disso.
E agora que eles estavam aqui, seria o suficiente sugar a magia da luz das proteções e
feitiços escavados na cidade, ou ele precisaria ser cuidado de alguma forma?
Enquanto um criado os conduzia para seus quartos, Haven percebeu quão pouco ela
sabia sobre Stolas Darkshade.
Sua necessidade de compartimentalizá-lo como Senhor do Submundo começou
primeiro como necessidade e, depois, porque era mais fácil fingir que ele não tinha
sentimentos e desejos, mantê-lo a uma distância segura.
Mas agora...
Ela saiu de seus pensamentos para ver Stolas no final do corredor ensolarado, a rara
garrafa de vinho quase esquecida em sua mão enquanto ele a observava em silêncio. Algo em
seu olhar cru enviou calor correndo para queimar suas bochechas.
Ela molhou os lábios repentinamente secos enquanto mentalmente perguntava: Você
confia nele?
Sua intensidade mudou para cautela quando ele deu de ombros. Ele resistiu às minhas
provocações quando a maioria dos homens mortais teria reagido. Só isso já o faz valer mais da
metade dos reis da Eritreyia. E... ele tem um gosto impecável para vinho.
Ela revirou os olhos, murmurando em voz alta: — Vocês mimados da realeza e seu amor
pelo velho e caro suco de uva.
Ele estalou a língua e, então, algo quente e líquido ardeu em seus olhos prateados. —
Junte-se a mim para uma bebida e eu vou te mostrar como você está maravilhosamente
errada.
Seu pulso se acelerou. Além da noite anterior, quando foi a última vez que ela esteve
realmente sozinha com Stolas? Treinamento, mas isso não contava. Toda sua concentração
estava focada em conjurar a magia correta e evitar seus ataques brutais.
Se ela entrasse em seu quarto, não haveria nada entre eles para se esconder atrás. Apenas
a brisa quente do mar, a luz do sol interminável e a onda calmante do oceano abaixo. Pelo
menos durante o treinamento, sua alta frequência cardíaca poderia ser explicada.
Mas aqui, sem a constante ameaça de ataque ou exigências de Shadoria, não havia como
esconder os sentimentos crescentes que ela nutria por ele.
E isso a apavorou por dois motivos.
Primeiro, ele poderia rejeitá-la e ela não estava pronta para esse tipo de dor. Não dele.
Mas se ele não a rejeitasse, se ele se sentisse da mesma maneira... se algo acontecesse entre
eles, Archeron saberia.
De alguma forma, ele saberia. E ele converteria todos os recursos de seu reino da caça de
Haven para o assassinato de Stolas...
Não! Um choque violento de horror e medo a atingiu, as visões da morte de Stolas
estourando na superfície de sua mente. Era o final lento e agonizante de Stolas que ainda
invadia seus pensamentos. Ainda a atormentava sempre que fechava os olhos. Infectando-a
como uma praga que se instalou profundamente dentro de cada parte de seu ser.
Archeron cuidou para que isso acontecesse. Qualquer que seja a magia que ele usou para
criar o pesadelo, tinha sido tão real. Tão dolorosamente real... quase como uma profecia do
futuro.
Não. De certa forma, Stolas a conhecia melhor do que ninguém aqui, até mesmo
Bell. Stolas era o único que conseguia entender a escuridão que vivia dentro dela.
Ela não podia perdê-lo. Terror e agonia rasgaram seu coração apenas imaginando uma
vida sem ele.
Uma fria finalidade apoderou-se dela.
Fazendo o possível para parecer cansada, ela deu a Stolas um sorriso suave. — Outra
hora. Eu... eu preciso me refrescar antes da excursão.
A decepção fugaz em seus olhos foi tão breve que ela poderia ter imaginado.
Stolas era seu amigo. Seu mentor e protetor.
Isso era o suficiente, tinha que ser.
As poucas horas antes do jantar passaram em um borrão de cafés e lojas. Neri enviou
dois de seus primos para levar Haven e os outros ao redor da cidade usando os pequenos
barcos esguios que deslizavam pelos canais sinuosos. Quando Haven perguntou o que eles
faziam quando o portão estava totalmente aberto e a água saía, um dos primos simplesmente
explicou que, se isso acontecesse, eles teriam problemas maiores para lidar.
Haven tentou obter informações dos primos que pintariam uma imagem melhor do
relacionamento do rei Elhaem com a nova corte e governante de Penryth, mas sempre que
ela tentava, eles fingiam não a entender, mesmo quando ela usava a língua comum Solissiana.
Por que era importante ver a cidade antes do jantar? Especialmente sabendo dos riscos
de deixar a proteção do palácio? Até agora, Haven sentiu que entendia o suficiente sobre
Eros e Neri para ver que eles não eram nada como o Rei Horace.
Se eles prometeram que Haven e Bell estavam seguros dentro dessas paredes, eles estavam
falando sério.
Mas... Archeron era o Soberano do Sol e os protegidos desta cidade não eram páreo para
seu poder e influência. E Renk, embora não fosse o mais brilhante, possuía uma astúcia letal
que, quando combinada com sua crueldade, era tão perigosa quanto o Rei Horace tinha
sido.
Por causa disso, ela nunca relaxou durante o passeio.
Não quando foram levados a uma vinícola e receberam amostras de um vinho
espumante de ouro-mel com gosto de céu. Não quando pararam nas lojas para se preparar
com roupas leves e arejadas da noite - um presente de Eros.
Nem mesmo durante a última parada, em um restaurante à beira-mar com vista para o
porto, onde foram servidas patas de caranguejo e lagosta fresca do mar. Ela se sentou em um
banco de pedra perto da varanda ao lado de Bell e Surai, incapaz de apreciar a comida
enquanto examinava o horizonte em busca de sinais de perigo.
Stolas percebeu e ergueu uma sobrancelha acinzentada até que ela quebrou a dura casca
de uma perna de caranguejo, mergulhou a delicada carne branca em uma tigela de molho
vermelho e enfiou tudo na boca.
Satisfeito? ela exigiu em sua mente.
Nem um pouco. Ele sorriu, aquele olhar escuro indo para sua boca. Você tem
algum... molho no lábio inferior.
Ignorando-o, ela forçou o resto da refeição em sua boca, seu corpo grato pelo sustento,
mesmo que ela mal pudesse prová-lo.
Quando ela olhou para Stolas, preparada para continuar sua sessão privada de farpas, ele
estava mergulhado em sua própria conversa particular com Delphine.
Haven não conseguia tirar os olhos dos dois enquanto eles sinalizavam para frente e para
trás. Stolas estava inclinado para perto, seus olhos acesos, sorrindo de uma forma que não
deveria incomodar Haven, mas incomodava. Sua mão fez uma série de símbolos e o rosto de
Delphine deu uma risada silenciosa e histérica, lágrimas brilhando nos cantos de seus olhos.
Mesmo vestidos com roupas normais, com suas asas magicamente afastadas, era óbvio
que eles eram Serafins por seus cabelos brancos como a lua, pele pálida e cores dos olhos em
constante mudança. Embora Delphine fosse menor - como a maioria das mulheres Serafins
pareciam ser - e não possuísse os chifres que apenas os Serafins reais ostentavam, ela poderia
muito bem ser sua irmã.
Ou amante.
Sua última mordida se alojou em sua garganta.
Era isso que ele queria? O que ele precisava? Alguém que o entendesse, seus costumes,
sua língua e sua história. Delphine sabia exatamente como ele se mantinha alimentado.
E, em vez de desviar o olhar quando ele o fizesse, ela provavelmente se juntaria a ele.
Ela soltou um suspiro trêmulo, uma sensação estranha e retorcida em seu peito.
Se Stolas não tivesse que gastar todo o seu tempo treinando Haven, se preocupando com
ela, talvez ele e Delphine...
— Você está bem? — Surai perguntou de repente. Ela estava enxugando os lábios com
a ponta de um linho branco depois de comer uma montanha gigante de patas de caranguejo.
— Sim. — Haven forçou um sorriso. — Apenas, você sabe, estar tão perto de Penryth
é... Difícil.
Surai deslizou seu olhar conhecedor para Stolas e Delphine e depois de volta para ela. —
Hum. — Seus olhos lavanda escureceram. — Você tem certeza de que vai jantar hoje à
noite? Podemos adiar, Rei Eros...
— Não. Esta noite tem que acontecer.
Surai e Bell trocaram um rápido olhar de preocupação. Eles não tinham parado de
observá-la desde que ela os encontrou esta manhã para o café-da-manhã. Ela tinha sido vaga
sobre o que Archeron tinha feito, desesperada para poupar seus amigos da preocupação.
Era difícil dizer que toda vez que ela olhava em seus olhos, a horrível reencenação de sua
morte se desenrolava diante dela, tão real que ela não conseguia respirar. Mais difícil ainda
enfrentar a realidade que, quando ela acordou, uma parte dela estava pronta para se entregar
a Archeron só para poupá-los.
Que era o que Archeron queria.
— Haven. — Foi a vez de Bell implorar a ela, seus olhos azuis brilhantes da mesma cor
do mar abaixo. — Ninguém iria culpar você se você precisasse de um dia para se recuperar
de...
— A única maneira de me proteger, de proteger todos nós de Archeron são alianças e eu
planejo fazer exatamente isso esta noite, parecendo linda, a propósito.
As rugas na boca de Bell suavizaram com a piada, como ela sabia que aconteceria e logo
ela o fez discutir seu guarda-roupa para a noite. A tensão se dissipou quando Xandrian se
juntou a ele, seguido por Surai.
Eles nem perceberam quando Haven silenciosamente se retirou da conversa, aliviada por
não ter mais que fingir estar animada com seu vestido ou a noite ou... Qualquer coisa.
Porque, quando ela puxou de volta as emoções superficiais que ela gessou em torno dela
como uma parede, tudo o que ela sentia era fúria.
Fúria e medo.
Ela estava terminando de limpar a boca em um guardanapo quando algo chamou sua
atenção para Stolas, que a observava enquanto os outros debatiam seda versus linho.
Seu queixo estava inclinado para frente, seus olhos prateados mais azuis que o normal
enquanto a estudavam sob cílios pesados.
Por instinto, ela começou o processo de levantar os lábios em um sorriso quando ele
disse em sua mente: Não faça isso.
Sua pobre tentativa de sorrir vacilou e morreu. Não faça o quê? Sorrir para você? Certo.
Não quando é mentira. Prefiro que você destrua meu rosto com suas unhas do que sentir a
necessidade de me enganar.
Por alguma razão, a vergonha tomou conta de seu peito, seguida por aquela raiva muito
familiar. Por Archeron. Pelo Sombreamento. Por mãe dela. Por ela própria.
E, então, uma amargura lenta e crescente por Stolas, por não deixá-la lidar com seu
trauma do seu próprio jeito. Por insistir que ela mostrasse a ele debaixo do verniz feliz até a
raiva monstruosa e irrestrita e o trauma por baixo.
Com os dedos se fechando em punhos, ela lançou um olhar sombrio em sua direção,
carrancuda, deixando-o sentir a escuridão turva passando por baixo da superfície.
Se era isso que ele queria, tudo bem. Ele poderia tê-lo. Tudo isso. Melhor?
Ela esperava que ele recuasse. Mas ele segurou seu olhar.
E, quando seus lábios largos e cheios se ergueram lentamente em um sorriso de lobo, não
havia dúvida de que a emoção era real.
Imensamente.
O jantar que o Rei Eros planejou para eles foi elaborado, mas felizmente
privado. Além dos atendentes que os convocaram ao anoitecer e os poucos criados entrando
e saindo apressados, apenas Eros, Neri e o grupo de Haven compareceram.
Haven quase hesitou enquanto ela seguia seu atendente por uma série de corredores e,
então, descendo uma escada incrivelmente longa e profunda. A sensação do oceano
pressionando-os cresceu até que ela quase podia ouvir as águas profundas correndo dentro
e ao redor do túnel de tijolos pelo qual passavam.
Por outro lado, ela foi recompensada com uma enorme câmara cônica feita do vidro
mais claro que ela já tinha visto. E, com sorte, os mais grossos, considerando que estavam
situados em uma bacia profunda no fundo do solo arenoso do porto, cercada por águas azul-
turquesa.
Encantada, Haven pressionou seus dedos contra a parede curva, observando os
cardumes laranja e prateados de peixes passarem. Coral de todas as cores se erguia como uma
cidade ao redor deles, um lar para criaturas marinhas além de sua imaginação.
Neri se juntou a Haven. A seda azul drapeada sobre o corpo esguio da rainha era da
mesma cor do oceano e fluía com cada movimento gracioso dela. — Este é talvez o meu lugar
favorito em todo o reino.
— Eu posso ver por quê. — Um sorriso apareceu nos lábios de Haven enquanto uma
água-viva azul-esverdeada metálica ondulava por elas na correnteza. — É como se eles nem
nos notassem... ou não se importassem quanto poder e magia podemos ter. Eles vivem em
um mundo totalmente diferente, com regras e hierarquias diferentes.
Neri piscou, sua surpresa se transformando em aprovação antes que ela desviasse sua
atenção para o recife. — Se tivermos sorte, podemos até ver os enormes tubarões de
barbatana branca que caçam nestas águas.
Bell, que foi o último do grupo a chegar, deu um sorriso acadêmico que significava que
ele estava prestes a dar uma de suas palestras. — De acordo com relatos antigos dos livros de
registro, o recife foi praticamente dizimado depois que a última corte fugiu. Anos de vida
sem mortais perto do oceano o fizeram prosperar novamente.
— Muito bem — Neri murmurou, desta vez não se preocupando em mascarar sua
aprovação.
— Nós temos uma tendência de arruinar as coisas — acrescentou Haven.
Com um suspiro, Haven desviou o olhar da cena colorida e seguiu Neri e Bell. Uma
longa mesa foi preparada para acomodar o grupo e Haven ficou agradavelmente surpresa ao
ver que Eros havia colocado uma cadeira ao lado da sua na cabeceira da mesa para Neri.
A maioria dos reis mortais nunca sonharia em colocar sua esposa na posição de
cabeça. Mas depois de ouvir que elas não mereciam o respeito de um homem desde o
nascimento, a maioria das rainhas mortais não saberia como preencher o lugar de destaque,
especialmente ao receber um grupo poderoso como o deles.
Sem surpresa, Neri não teve esse problema. Com a cabeça erguida para mostrar um
pescoço longo e elegante, ela deslizou na cadeira de madeira de espaldar alto e imediatamente
começou a encher Xandrian com perguntas sobre seu tempo em Effendier.
O rei Eros acenou com a cabeça enquanto Haven se sentava em frente a Bell, ao lado do
rei. Surai e Delphine sentaram-se juntas no lado oposto e Haven reprimiu um sorriso ao
perceber que Surai havia captado sinais suficientes para manter uma conversa.
Isso deixou Stolas à sua direita. Uma rápida olhada revelou que ele estava lindo em uma
longa túnica dourada e preta habilmente cortada que combinava com o estilo do reino.
Algo se sacudiu e girou dentro de seu peito e ela ignorou o sorriso perverso que ele deu,
rapidamente voltando a se concentrar no rei.
Mas mesmo sem olhar, ela sentiu o foco afiado de Stolas formigar sobre sua pele,
particularmente ao longo da pele nua de suas costas. O tecido pecaminosamente fino de seu
vestido verde-esmeralda caía sedutoramente sobre sua clavícula e ombros, unidos por duas
belas joias de cavalo-marinho incrustadas de diamantes rosa.
Neri deu a Eros um sorriso triunfante. — Eu disse a você que a cor esmeralda ficaria
perfeita nela.
Eros deu uma risadinha. — Neri escolheu todas as suas roupas. Ela tem um bom olho
para esse tipo de coisa.
— Eu era costureira real e assistente de costureira em Ashiviere, antes de... tudo isso. —
A surpresa arregalou os olhos de Haven e Neri encontrou seu olhar. — O que você acha do
vestido em comparação com a moda em Penryth?
Se tudo não dependesse de Haven convencê-los de que ela era nascida de uma deusa, ela
teria bufado. — Diferente. Há... bem, definitivamente há menos, para começar.
A risada tilintante de Neri encheu o ar. — Os nobres da corte anterior mantiveram a
velha moda enclausurada, mesmo depois que os cidadãos adotaram as sedas e linhos folgados
mais práticos dos Asgardianos.
— Mas vocês mudaram essa tradição? — Haven perguntou enquanto um atendente
despejava água em sua taça. Dentro de seu gabinete de vidro cilíndrico, tudo – desde a
corrente de água em sua taça até sua voz – parecia amplificado.
— Mudamos muitas coisas. — Neri ergueu as sobrancelhas escuras quase
maliciosamente. — Em uma época de tal convulsão, faz sentido questionar as regras mais
arcaicas do passado.
O olhar de Neri baixou incisivamente para os braços e peito de Haven. Com tanto de
sua pele exposta, suas marcas de carne brilhavam como os raios dourados da luz do sol que
cintilava nas profundezas da água.
Eros não se incomodou em esconder seu fascínio por ela.
— Você nasceu com as marcas? — perguntou ele, enquanto dois atendentes de pele
bronzeada serviam decantadores de vinho dourado em suas taças.
Ela balançou a cabeça. — Elas me foram dados por... — Sua garganta se apertou e ela
pegou o olhar de Surai antes de encontrar o olhar do rei mais uma vez. — Por amigos.
— Aqueles devem ter sido amigos poderosos.
— Eles eram. — A umidade fugiu de sua garganta e ela respirou fundo antes de beber o
vinho. A bebida fresca sabor de damascos, grama e limão. — Naquela época, eles não sabiam
quem eu era ou, bem, imagino que teriam recusado.
Mentira. Bjorn sabia. Ou suspeitava. E Surai ainda teria seguido o plano,
independentemente de quem era Haven.
Mas Archeron... ele havia implorado para ela não fazer isso.
Alguma parte sombria e ancestral dele sabia que chegaria a esse ponto?
Ela percebeu que seus dedos estavam tremendo ligeiramente ao redor da haste de sua
taça de vinho. Parando sua mão, Haven tomou outro gole experiente.
— E você sempre possuiu os dois tipos de magia? — ele continuou, suas mãos juntas sob
o queixo, seu vinho intocado. O olhar em seus ricos olhos castanhos era de curiosidade, nada
mais - mas ela não estava pronta para um exame tão amplo e algo dentro dela recuou com as
perguntas. As memórias que elas trouxeram.
Com os dentes cerrados, ela deu de ombros. — Eles apareceram na mesma época.
— E quando você soube da sua... linhagem única?
O suor quente escorria entre suas omoplatas. Como responder a isso? Quando ela foi
amarrada e quase morta por Archeron, seu quase amante e o novo Soberano do Sol?
Ao lado dela, Stolas tomou um gole teatral, limpando o vinho em torno de sua boca e
suspirou alto. — Este vinho é quase tão refinado quanto sua esposa, Eros. Onde está a vinha,
que você disse?
Enquanto o rei relutantemente arrancou seu foco de Haven, ela sentiu os músculos de
sua mandíbula relaxarem. Você não tinha que me salvar, ela falou mentalmente para Stolas,
mais irritada consigo mesma do que com ele.
Ela deveria ter esperado esses tipos de perguntas. Deveria estar mais preparada.
Seu cheiro diz o contrário.
O rei era experiente o suficiente para saber o que estava acontecendo, mas manteve o
questionamento benigno depois disso, tendo uma conversa fácil com Bell sobre as tarifas
comerciais durante o curso de ensopado de marisco. Quando Renk foi mencionado, o rei se
afastou do assunto complicado com uma facilidade que apenas um governante experiente
poderia administrar.
Neri estava curiosa sobre o torneio mágico em Solethenia e Bell estava mais do que feliz
em regalar a mesa com histórias dos torneios e da infame Corte do Sol.
Sem surpresa, ele deixou de fora a parte sobre o fim, quando a velha Soberana do Sol
prendeu Haven e, então, Archeron tentou matá-la.
Era uma dança estranha, ver todo mundo contar histórias enquanto contornavam certos
tópicos, que pareciam intermináveis.
Ainda assim, apesar da abundância de vinho e conversa, Haven podia sentir o rei ficando
inquieto.
Uma vez que as sobremesas foram distribuídas - um creme rico e glaceado coberto com
framboesas dentro de cascas de amêijoas douradas - Haven sabia que não poderia adiar mais
suas perguntas. — Peço desculpas se não pareci sincera antes — ela começou, mexendo a
colher dentro do creme. — Meu passado tem algumas... memórias desagradáveis.
Eros ficou quieto por um momento. Quando seus olhos encontraram os dela, eles foram
quase gentis. — Eu também tenho memórias que prefiro não revisitar. Mas eu tenho que
saber com quem estou me aliando.
— A Nascida da Deusa da profecia — Xandrian respondeu, casualmente girando um
dedo ao redor da borda de sua taça de vinho. Até agora, ele se contentara em beliscar sua
comida e deixar abundantemente claro que ele achava tudo insuficiente.
Tudo menos o vinho, aparentemente.
— E eu deveria apenas... acreditar em sua palavra? — O Rei Eros arqueou uma
sobrancelha grossa para o Senhor do Sol, seu sorriso açucarado fazendo pouco para mascarar
seu sarcasmo.
— Sim. — Xandrian deu uma mordida em seu creme, enxugou a boca com um
guardanapo verde de espuma do mar e encontrou o olhar do rei. — Você já ouviu falar da
Ordem de Soltari? — Pela maneira como o rei congelou, ele ouviu. — Há anos procuramos
a filha de Freya. Vasculhando todas as cidades mortais abandonadas pela Deusa, arriscando-
nos a sofrer tortura e morte no processo e posso lhe dizer, inequivocamente, que a mulher
sentada à sua direita é ela.
Os olhos do rei se estreitaram enquanto observavam Haven mais uma vez. Desta vez,
não houve nenhum lampejo de bondade, apenas a inteligência astuta que o levou até aqui.
— Ela é linda e não há dúvida do poder dentro dela. Até eu posso sentir isso estalando
em sua pele como o ar antes de uma tempestade. É uma combinação inebriante, aparência e
poder. Infelizmente, sob essas curvas, ela ainda é muito mortal. Então, se isso é tudo que
você tem a oferecer, uma bela mulher que possui magia rara e pode preencher um vestido,
temo que não seja o suficiente para arriscar a segurança do meu reino e da minha família.
A frustração tomou conta de Haven. E, então, talvez porque ela estava cansada de
falarem sobre ela como se ela não estivesse lá, ou de ser avaliada e cutucada como uma
esquisitice, ela fixou seu olhar no rei até que ele encontrou seu olhar furioso. — Quem disse
que eu concordo com a aliança? Ainda não fui convencida por você, rei mortal. Ou você
achou que um bom creme dentro de uma casca e uma cara garrafa de vinho seriam
suficientes para conquistar a filha de Freya?
Ele se endireitou, aquele rosto bonito torcendo um pouco em choque quando ele piscou
para ela, seus lábios se abrindo enquanto ele preparava uma resposta...
— Eu não terminei — ela retrucou. — Eu vi governantes mais poderosos do que você
irem e virem. Eu pessoalmente ajudei a derrotar alguns deles, incluindo a Rainha das
Sombras, não uma, mas duas vezes. Então, embora eu suponha que eu goste de ser olhada e
lisonjeada tanto quanto qualquer outra garota, se você acha que me chamar de 'bonita' é
tudo o que preciso para escolher me aliar a você, você é tão estúpido quanto todos os outros
mortais reis que vieram antes de você e você durará o mesmo tempo.
No silêncio que se seguiu era difícil respirar, mas Haven se
sentiu... Melhor. Notavelmente melhor.
O rei Eros limpou a garganta, se empurrou suavemente para trás cadeira e se
levantou. Então, ele se virou e saiu sem dizer uma palavra, seus passos suaves ecoando nas
paredes.
Os outros se levantaram e Haven fez o mesmo, com o peito apertado. Ela quis dizer cada
palavra que disse e ainda... todas as suas esperanças estavam baseadas nessa aliança. Sobre
Eros ser diferente de outros reis mortais.
— Foi o ataque ao vinho dele? — Stolas ronronou, deslizando seu olhar letalmente
calmo em direção a Neri— ou ao creme? Que é perfeitamente aceitável, devo acrescentar,
mesmo que a apresentação tenha sido um pouco ostentosa.
Neri manteve o rosto neutro enquanto olhava para Stolas, mas suas mãos se fecharam
ao lado do corpo, seu peito tremendo com cada inspiração. — Ele está sob uma pressão
enorme. As decisões que ele tem que tomar têm grandes...
— Você acha que Haven está sob menos pressão? — Stolas interrompeu suavemente. —
Que as decisões dela são mais fáceis? Que suas perdas são menos dolorosas? Enquanto
falamos, o povo dela, nosso povo pode estar morrendo sob outro ataque do Soberano do
Sol. Nossa escolha de viajar para cá os deixou em grande risco e agora civis inocentes podem
estar sofrendo por essa escolha. Diga-me, cometemos um erro?
Os músculos do pescoço de Neri estavam tensos, suas narinas delicadas dilatadas. —
Você não entende. Se você entendesse... — Ela exalou, seus dedos afrouxando quando ela
encontrou o olhar de Haven. — Vou conversar com ele. Enquanto isso, há uma recepção
no Salão Astronômico para você. Todos vocês. Talvez depois de mais algumas bebidas,
possamos começar de novo?
Assim que a rainha desapareceu, Xandrian empalou uma framboesa em seu garfo e
girou-a no ar. — Correu bem. Eu voto em insultá-lo e ver quanto tempo até que nos
aprisione.
— Ou até ele tentar, pelo menos — acrescentou Bell, ganhando um chocado, mas
satisfeito, olhar de Xandrian.
Stolas correu um dedo sobre a borda de seu vinho praticamente intocado. — O rei
insultou Haven. Até onde sabemos, que era um teste. Um que ela passou de forma bastante
divertida.
Xandrian disse: — Sim, imagino que ele gosta de ser chamado de burro. E questionando
por sua capacidade de governar, os homens adoram isso.
— Se ao menos as negociações fossem deixadas para as mulheres — gemeu Surai, seu
olhar cor de lavanda se fixando incisivamente em Xandrian — não teríamos que jogar esse
jogo do meu-é-maior-que-o-seu.
— Outros homens não jogam esses jogos — Xandrian corrigiu com um sorriso
malicioso. — Não quando os Senhores do Sol estão presentes. Caso contrário, eles nunca
ganhariam.
O gemido de Haven espelhou o de Surai e, quando Delphine respondeu, segurando o
polegar e o dedo indicador para representar um comprimento menos do que
impressionante, Haven não precisava ser fluente na linguagem de sinais para reconhecer o
significado do gesto.
Ou para rir junto com os outros. Mas, assim como antes, a emoção parecia
vazia. Forçada. Não havia dúvida em sua mente agora que se estivessem sozinhos contra
Archeron, cada uma de suas visões se tornaria realidade.
E cada pessoa naquele salão morreria.
O Salão Astronômico era uma cúpula situada sobre uma área rasa da baía, com
inúmeras alcovas e túneis construídos nas paredes. O luar fluía de cima, iluminando o chão.
Haven ficou encantada ao descobrir que era feito de vidro grosso que estalava sob seus
calcanhares e dava uma visão direta do oceano abaixo. Uma multidão leve de pessoas se
reuniu no salão de baile, bebendo de taças altas e fingindo não olhar para Haven, Stolas e
para os outros.
Embora, sua atenção estivesse principalmente reservada para Stolas. As mulheres,
especialmente, olhavam com olhos de corça enquanto ele fazia um show ao provar os vinhos
e fingir que não sabia que era o fascínio de cada mortal no salão.
Ela se convenceu de que era por causa de suas asas – oleadas e escovadas em um brilho
glorioso – e não o sorriso devastador que ele exibia. Um sorriso que, quando combinado
com seu suntuoso terno de ônix e prata, corpo poderoso e chifres, o fazia parecer um Deus
de antigamente.
— Por que ele continua sorrindo para elas? — Bell sussurrou em seu ouvido enquanto
observavam Stolas deslumbrar outra mulher.
— Por que um gato brinca com um rato mesmo quando não está com fome? — ela
brincou, surpresa com a acidez em seu tom. Stolas era livre para sorrir para quem quer que
fosse. — Ele não consegue se conter.
— Deusa ajude os tolos — Surai murmurou de seu poleiro contra uma coluna envolta
em pequenas luzes de runa em forma de cavalo-marinho.
Haven forçou seu olhar para longe do espetáculo. Na verdade, se não fosse pela
perspectiva de falar com Eros novamente, ela teria se retirado para seu quarto e para o
banheiro gigante de porcelana que estava chamando seu nome. Estava ficando mais difícil
forçar um sorriso e fingir que estava bem quando, cada vez que olhava para o rosto de seus
amigos, via como eles morriam.
Talvez isso fosse parte da magia das sombras. Que mesmo agora, muito depois de Stolas
ter quebrado as visões, ela reviveria isso nos rostos daqueles que ela mais amava.
O rei Eros e Neri ainda não tinham aparecido, então Haven pegou uma taça de vinho
branco gelado, separou-se dos outros e aproveitou o momento para reunir seus
pensamentos.
O salão de baile era enorme e provavelmente já havia entretido todos os senhores mortais
do continente. Algumas arandelas de luz rúnica em forma de cavalos-marinhos estavam
posicionadas ao redor da câmara esférica, mas a maior parte da luz vinha do recorte em forma
de estrela acima.
Ela pensou a princípio que era por isso que o corredor se chamava Astronômico… até
que ela olhou para o vidro e percebeu que a vida marinha estava brilhando, iluminada por
magia ou algum outro fenômeno, milhares de minúsculas criaturas marinhas fluindo como
um rio de faíscas sob seus pés.
Não, como um rio de estrelas. Estrelas brilhantes e se contorcendo.
A silhueta em forma de sino de uma água-viva passou dançando, seus vibrantes
tentáculos roxos pressionando o vidro, deslizando e balançando enquanto tentavam em vão
se enrolar em seus tornozelos e carregá-la para baixo. Desistindo, a criatura faminta mudou-
se para um cardume de peixes e ela seguiu-a pelo corredor, passando por casais espremidos
em alcovas até que ela estava sozinha no túnel.
A inclinação do caminho era tão sutil que ela mal notou que eles estavam totalmente
submersos – assim como a sala em que jantaram antes – até que as luzes rúnicas
desapareceram e as paredes se tornaram um labirinto sinuoso de túneis de vidro.
Esta parte do oceano era mais profunda, mais escura. E algo sobre a escuridão, o brilho
suave da vida marinha alienígena flutuando no passado, acalmou-a.
— Esse tipo particular de água-viva é chamado de morte branca — uma voz familiar
soou atrás dela. — Um toque de seus tentáculos poderia matar cem homens mortais.
Ela se virou para Stolas, com as costas pressionadas na parede pálida da alcova, o
estômago apertando contra a onda de calor que esperava com a presença dele.
— Há muitos deles na costa de Shadoria?
— Não, eles preferem as águas mais quentes das costas mortais. — Ele estudou a água-
viva por mais alguns segundos antes de deslizar aquele foco intenso para ela, seu coração
batendo em uma batida irregular. — Mas eu conheci muitas almas que entraram em conflito
com a picada letal da morte branca. Uma vez, uma tripulação inteira de marinheiros
náufragos, na verdade. — Um canto de sua boca se contraiu. — Gostei dos marinheiros. Eles
possuíam um senso de humor maravilhosamente grosseiro.
Ah. Depois de algumas semanas de liberdade, era fácil esquecer o que ele tinha sido
antes. As almas que ele passou incontáveis anos atormentando. — Quase parece que você
admira a água-viva.
— Talvez eu tenha uma queda por criaturas assassinas.
Algo em sua voz, ou talvez na maneira como ele a olhava, fez com que, de repente, ficasse
difícil de respirar e ela se sentiu exatamente como aquelas mulheres para quem ele sorria; um
sorriso e ela derreteria.
— Você se cansou de flertar com as mulheres no salão de baile?
— Era isso que eu estava fazendo? — Um lampejo de emoção sombria cintilou em seus
olhos, bem rapidamente. — Era melhor do que sentir o medo delas sempre que eu passava.
A luz delicada de um peixe que passava iluminou as penas azul-escuras de suas asas, soltas
atrás dele. Elas se abriram um pouco quando ele deu um passo em direção a ela.
Por instinto, ela tentou colocar espaço entre eles, apenas para lembrar-se de que não
havia para onde ir. O vidro frio pressionou suas costas nuas quando ela se afundou contra
ele, Stolas diminuindo a distância até que ele quase a tocou.
Quase, mas não exatamente. Como se uma barreira invisível o impedisse.
Ao redor deles, a vida marinha se reunia, como se atraída pela poderosa magia que
sentiam emanando de Haven e Stolas.
— Você também tem medo de mim, Pequena Fera? — Sua respiração acariciou seus
lábios.
O cheiro dele, írises e tangerina-de-sangue e almíscar, encheu seus sentidos e a fez se
sentir tonta. Seu coração batia violentamente contra seu esterno.
— Não.
— Mas você tem medo de alguma coisa sempre que estou por perto. Se não eu, então o
quê?
Sua pergunta a pegou desprevenida, porque... porque ele estava certo. Seu coração estava
acelerado, seu peito tremendo com cada inalação, os músculos de suas coxas e núcleo
ganhando força, prontos para fugir. Isso acontecia toda vez que ele se aproximava demais.
Cada vez que ficavam sozinhos, mesmo que brevemente, ele olhava para ela do jeito que
olhava agora.
Stolas não a assustava, mas essa coisa entre eles, a maneira como seu corpo reagia à sua
proximidade, seu cheiro, sua magia...
Ela cruzou os braços, não estando pronta para lidar com isso esta noite. — Não estou
com medo, apenas cansada.
A mentira veio facilmente. Mas ela não podia fazer isso. Não agora. Não com tanta coisa
em jogo e ela ainda pesadelos tão perto da superfície, prontos para rasgar através de sua
fachada confiante e devastar tudo o que importava.
O emaranhado de emoções sob seu peito ameaçava se desfazer a qualquer momento,
como se puxar um fio - qualquer fio - fosse derrubá-la.
Archeron cuidou para que isso acontecesse. Apenas o pensamento das visões pinicavam
sua pele de suor, a imagem de Stolas com dor, Stolas morrendo, seu coração se despedaçando
repetidamente enquanto ela revivia perdê-lo... runas.
— Cansada. Certo. — Ele inalou profundamente. — O Rei Eros estava certo sobre uma
coisa. Sua carne ainda é muito mortal, o que significa que você não pode mentir para mim,
nem pode mascarar seu medo.
Droga.
— Talvez seja por isso que estou com medo. Não importa quanta magia eu possua, ou
quão lindamente eu vista o papel, eu sempre serei mortal, meu corpo frágil lentamente se
deteriorando, envelhecendo, um erro longe da morte.
— Estamos todos a um erro da morte. — Seus lábios cheios se separaram um pouco e
suas pálpebras pesadas varreram para baixo do vestido, agarrando-se às curvas. — Mas frágil
e decadente não são palavras que eu usaria para descrevê-la.
— Ainda não, mas os Solis e os Noctis? Isso é tudo que eles vão pensar quando olharem
para mim. Talvez o Rei Eros tenha dito a verdade.
Um sorriso perverso esculpiu sua mandíbula. — Oh, ele certamente
disse. Você é mortal. Você é linda E você preenche esse vestido, embora ele não mencionou
como primorosamente. Mas não é por isso que seu coração sente medo, não é?
Sua garganta seca raspou enquanto ela tentava engolir. Aquela coisa dentro dela – a coisa
que se retorcia um pouco cada vez que ela estava perto dele – latejava quase dolorosamente,
cortando carne e osso a cada volta.
Péssima ideia, era uma péssima ideia.
— Lá está de novo. — Os dedos dele estavam frios enquanto seguraram o queixo dela,
delicadamente, como se ela realmente pudesse quebrar e ela ergueu os olhos para encontrar
os dele. O anel de fogo dourado em torno de seus olhos estranhos dançava como luz sobre
os altos penhascos de suas maçãs do rosto, seus cílios grossos projetando longas sombras. —
O que poderia deixar a criatura mais magnífica que eu já conheci com medo?
Enquanto ela olhava para aquele rosto cruelmente magnífico, os planos familiares de sua
mandíbula muito afiada e nariz reto, a boca diabólica perpetuamente retorcida em alguma
piada particular, aqueles olhos assombrados tão cheios de emoção e agora transbordando de
esperança delicada... ela entendeu.
Ela poderia amá-lo, este quebrado, monstruoso e belo Senhor das Sombras.
Isso é o que a assustava.
Ela provavelmente o amava. Provavelmente há um longo tempo. Antes de
Effendier. Antes deles quebraram a maldição. Ela deve ter o amado quando ela disse o nome
de Stolas enquanto estava com Archeron.
E, então, quando Archeron a fez reviver a morte de Stolas em suas visões e ela acordou
com Stolas segurando-a, sem saber que ela estava acordada, sem saber que ela podia
testemunhar a ternura de seu toque...
Tudo se encaixou.
Mas levou até este momento para admitir a verdade para si mesma. Sua mente
girou. Quando isso aconteceu? Como?
Talvez durante uma de suas sessões de treinamento, o que não fazia absolutamente
nenhum sentido, porque ela o odiava e ele a desprezava...
Runas. Ela o amava.
Merda. Merda. Merda.
Ela amava Stolas Darkshade. Amava ele. E ela estava apavorada, porque sabia o que
Archeron faria se descobrisse.
Assim como ela sabia que havia uma boa chance de que Stolas não se sentisse da mesma
forma. Talvez nem fosse capaz de amar.
Agonia atingiu-a com o próximo pensamento.
Talvez ele simplesmente não fosse capaz de amá-la.
Ela soltou uma respiração irregular, com a intenção de afastá-lo, mas seu olhar caiu sobre
seus lábios. Algo sombrio brilhou em seus olhos quando ele olhou para sua boca, entreaberta
e trêmula.
Com a cabeça inclinada, seus olhos se ergueram mais uma vez para encontrar os dela
enquanto, lentamente, curiosamente, ele moveu seu polegar e acariciou a delicada
protuberância de seu lábio inferior.
O contato enviou um arrepio de sensação por ela tão poderoso que ela pensou, a
princípio, que ele havia usado magia.
Suas pupilas incharam, um grunhido de surpresa retumbou em seu peito.
E, então, seu olhar mudou para a curva de seu ombro e ela seguiu sua atenção e...
Ela estava brilhando. Assim como em Solethenia logo antes de... oh, Deusa salve-a.
Isso não poderia estar acontecendo.
— Pequena Fera. — A voz normalmente elegante de Stolas estava rouca enquanto ele
passava um dedo preguiçoso pelo ombro dela, traçando suas marcas, deixando um rastro de
fogo gelado em seu rastro. — É isso que te assusta?
— Não sei do que você está falando.
Mentirosa, seu corpo acusou. Fogo derretido queimava através de seu núcleo. Cada
onda que caía sobre ela, deixando sua pele sensível e dolorida, sussurrava o mesmo.
Mentirosa, mentirosa, mentirosa.
— Ou isso? — Ela se engasgou quando a mão dele encontrou a fenda do tecido ao longo
de sua saia, as pontas dos dedos deslizando sob aquela seda fina demais e sobre a carne
ardente de sua coxa, acariciando, provocando.
Prometendo.
Suas costas arquearam, seu corpo reagindo descontroladamente ao toque dele, à magia
fria que era tão semelhante aos poderes magnéticos que percorriam suas próprias veias.
Uma parte dela quase podia sentir o monstro dentro dele chamando o dela, aquela besta
primordial de sombra e raiva, fome e desejo. Quase podia sentir seu rosnado retumbante
ecoando dentro de seus ossos.
Mesmo agora, com o mundo desabando ao seu redor, ela sabia que poderia se perder
nisso – o que quer que fosse. Poderia se perder em Stolas.
— Por que — seu polegar fez contato com a parte interna de sua coxa — isso — ele
circulou mais alto, mais alto — te assusta?
— Stolas. — Seu nome saiu suplicante, um encantamento sussurrado
para... quê? Parar? Continuar? Ambos?
Ambos. Mas ela não conseguia dizer nada enquanto aquelas mãos continuavam
explorando sua carne, correndo ao longo de suas runas como se ele as estivesse
memorizando... como se elas pertencessem a ele e a memória do que aqueles dedos
poderiam fazer...
Medo, saudade e um pânico estranho e sem fôlego contraíram sua espinha. Seu coração
bateu forte e girou e, runas, ele provavelmente podia ouvir seu corpo enlouquecer. Podia
senti-la respondendo ao seu toque. Os músculos internos de sua coxa se contraindo e
saltando sob o toque provocador de seu polegar.
Cada músculo que ela possuía ficou rígido quando ele, de repente, roçou o nariz em seu
pescoço.
— Se eu te beijar — ele murmurou, sua respiração acariciando a concha de sua orelha —
qual será o seu gosto?
No momento em que seus lábios colidiram com os dela, surpreendentemente suaves e
gentis, sua boca traidora se abriu para ele. Sua língua varreu a dela, lentamente, pressionando
mais fundo a cada beijo.
Ele se inclinou para trás para estudá-la, um olhar estranho em seu rosto.
— Está mesmo em seu beijo, uma doce nota de pânico em camadas com o vinho de
antes.
— Isso te excita? — ela sussurrou, porque ela não conseguia pensar em mais nada para
dizer para distraí-lo da verdade. E ela sabia que quando ele se alimentou do Asgardiano, seu
medo certamente despertou Stolas - por falta de uma palavra mais adequada.
— Excitar? Não estou me alimentando de você, Haven. Pelo menos... — Uma pausa —
...não dessa forma.
Doce Deusa e tudo de mais sagrado.
— Então, você pode separar os dois?
— Leva... esforço. — ele admitiu com aquela voz rouca e implacável. — Quando eu era
jovem e tolo, misturei saciar minha fome com outros prazeres, mas isso foi um erro.
— E agora?
— Agora, estou simplesmente curioso para saber por que minha presença faz seu corpo
pulsar de medo, quando também faz você sentir outras coisas.
— Coisas? — Odin a derrube onde ela estava. — Como você pode ter tanta certeza?
Mordendo o lábio inferior, ela desejou que sua maldita coxa parasse de tremer.
Seu sorriso foi devastador. E aparentemente uma distração. Sua mão livre deslizou ao
redor de seu quadril, espalmada contra a parte inferior de suas costas e gentilmente a puxou
para frente.
Sua perna direita se estendeu para se firmar...
Seu polegar se moveu no espaço entre, indo e voltando, e o que ele encontrou lá...
— Porque — ele rosnou em seu ouvido — o medo geralmente não faz isso.
Sombreamento abaixo.
— O que é que te assusta, Haven? Você tem medo de como eu te faço sentir? De perder
o controle? Você tem medo de mim?
Sua garganta se fechou e ela pressionou mais fundo na frieza da parede de vidro
enquanto o calor dançava sobre sua pele. Seu corpo estava inflamado. Em chamas. A luz
implacável de suas marcas de runa cintilando no recinto de vidro, atraindo ainda mais
criaturas marinhas até que a água ao redor deles cintilava.
— Eu disse que eu sou seu, Pequena Fera. Seu monstro. Seu protetor. Diga a palavra e
eu vou levá-la para longe daqui. Vou te levar aonde você quiser.
— E fazer... o quê? — Pelos portões do Submundo, ela parecia uma idiota. Mas ela
precisava que ele soletrasse. Não, ela precisava que ele confirmasse que ele se sentia da mesma
maneira que ela.
Que isso não estava apenas saciando o desejo físico.
Ele riu, seus lábios se curvando em deleite felino.
— Se não me falha a memória, já respondi a essa pergunta antes. Minuciosamente.
Deusa salve-a. A vibração em seu peito migrou para sua barriga.
— E o rei?
— Não está convidado. — O olhar dele deslizou para os lábios dela. — Concedido, ele
é bonito, mas eu não gosto de compartilhar.
Ela ergueu as sobrancelhas em exasperação.
— O rei é um idiota. Fazê-lo esperar uma noite ou três lhe ensinaria boas maneiras. Ele
quer essa aliança tanto quanto nós, só preciso descobrir o porquê.
— Então, seria uma tática de negociação? — Algo quente e lânguido se desenrolou
profundamente em sua barriga enquanto ela se imaginava fazendo o que ele propôs por três
noites inteiras. E ainda... — O povo de Shadoria? O que acontecerá com eles nesse ínterim?
Sua mandíbula flexionou.
— Esses tipos de alianças levam semanas para serem construídas. Eu não teria vindo se
não confiasse na minha irmã e nos outros para cuidar deles, mas... Eu não jurei minha
lealdade a eles, Haven. Eu jurei a você. E farei o que for necessário para aliviar sua dor.
— Minha dor? — Ela piscou.
— Sim, a mesma dor que tirei de você ontem à noite. A dor que você tenta esconder de
todos. Certamente você já sabe que meu dever é proteger você e mais ninguém, custe o que
custar.
Bombardeada por seu toque, seu cheiro e a promessa de muito mais, ela demorou alguns
segundos nebulosos para que sua resposta fosse assimilada.
Mas quando foi, quando sua mente agarrou o significado por trás do que ele disse...
Um calafrio deslizou sobre os ombros. Ele não poderia ter mergulhado o inferno feroz
dentro dela de forma mais eficiente do que se ele tivesse jogado um balde de água gelada no
rosto dela. Ela inalou profundamente quanto suas palavras soaram contra seu crânio.
Fidelidade. Eu jurei a você. O que for preciso. Aliviar sua dor.
Meu dever é proteger você, custe o que custar.
Como se fosse seu comando. Seu dever de tocá-la. Para fazê-la se sentir assim.
Para fazê-la...
Não.
Essas foram as palavras de um soldado, não de alguém tomado por paixão. Certamente
não alguém... alguém apaixonado.
Amor. Naquele instante, ela soube o quão tola havia sido. Por trazer uma emoção como
o amor para a equação, especialmente agora - o que diabos ela estivera pensando?
Lutando para respirar, ela recuou para a parede, longe dele. Do toque dele e da forma
traiçoeira com que sua carne ainda se agarrava a isso. A ele.
O ar entre eles escureceu quando a luz de suas marcas de runas desbotou para seu brilho
iridescente usual.
Em qualquer outro momento ela ainda as teria achado maravilhosas, mas agora elas
pareciam mudas e... frias. Contendo uma mera fração de seu brilho de antes.
Por um segundo dolorosamente esticado, ele olhou para ela, um olhar questionador,
quase vulnerável em seus olhos prateados tornando toda a situação ainda mais insuportável.
E, então, como se reconhecendo a magnitude de seu desconforto, suas mãos caíram para
os lados e ele recuou um centímetro, mas foi o suficiente para romper o feitiço.
Estúpido pensar que o filho da falecida Imperatriz Serafim poderia se apaixonar por uma
mortal. Não quando havia tantas de sua própria espécie para ele escolher. Mulheres com asas
tão gloriosas quanto as dele, que podiam rasgar o céu como suas iguais. Que viveriam
milhares e milhares de anos, enquanto ela... ela explodiu em um piscar de olhos.
Amor. Sério, o que ela estava pensando?
Amargura brotou em seu peito, aguda e cortante, seguida pela compreensão de que não
importava se ele a amasse de volta. Na verdade, era melhor que não o fizesse.
Depois da noite passada, ela entendeu que seu amor era uma maldição. Uma sentença
de morte.
Um olhar de determinação apertou sua mandíbula e ele plantou as mãos em cada lado
do rosto dela, embora tivesse o cuidado de não a tocar.
— Diga-me o que eu fiz para ofendê-la.
Ela balançou a cabeça, incapaz de encontrar as palavras para disfarçar sua vergonha. Seus
olhos se estreitaram. Runas, ele não iria deixar isso passar até que ela se envergonhasse
totalmente com a verdade.
A verdade estúpida e inescapável.
Eu te amo, idiota. E você acabou de se oferecer para me servir como um prostituto.
Ela nunca iria dizer isso em voz alta, nunca. Ele podia ler a alma dela e provavelmente
descobrir o suficiente para entender, mas por alguma razão, ele estava respeitando a
privacidade dela – por mais que isso parecesse doer.
Aquilo era... novo.
— Haven...
Ela disparou sob seu braço, ignorando a confusão crua em sua voz enquanto ela fingia
estudar um pequeno polvo agarrado ao vidro. A coisa toda parecia um pesadelo
mortificante, pior do que os sonhos que ela costumava ter em que aparecia na corte sem
roupa e depois tentava se esconder atrás de sua espada.
Mas não havia onde se esconder agora. Nada para além da humilhação certamente
avermelhando suas bochechas. A mortificação absoluta que, por um batimento cardíaco
selvagem, ela pensou que seu toque era real. Que ele a queria da mesma forma que ela o
queria.
Que sua oferta de intimidade não era alimentada por seu dever de consertar o que estava
quebrado para que ela pudesse se apresentar ao mundo como a Nascida da Deusa, infalível,
forte e perfeita.
Meu dever é proteger você, custe o que custar.
A náusea borbulhou em seu peito enquanto sua compreensão crescia. Claro que ele se
sentia obrigado a tirar sua dor por meio do prazer físico. Isso é exatamente o que ela pediu a
ele para fazer da última vez e não era como se ela tivesse qualquer expectativa além de
esquecer.
Mas desta vez... barata e fria por toda parte - era assim que a obrigação dele a fazia se
sentir agora.
Aquele formigamento familiar caiu em cascata sobre suas omoplatas nuas quando ele
veio por trás dela. Ela podia sentir seu olhar questionador, o silêncio carregado que pairava
pesado entre eles.
Seu zeloso protetor, mesmo agora. Que jurou mantê-la a salvo de tudo – incluindo seu
próprio coração tolo.
O Submundo a leva. E se ele pensasse que tinha que dar prazer a ela?
Uma nova onda de horror caiu sobre ela quando a implicação afundou. E se, em alguma
torção cruel, ele agora se sentisse ligado a ela da mesma forma que tinha sido ligado a
Ravenna?
Runas. Por que ela não conhecia nenhum feitiço para desaparecer? Uma vergonha
sufocante deslizou por sua garganta, seu peito apertado e sem ar e...
— Pequena Fera, olhe para mim. — Reunindo coragem, ela encontrou seu olhar ilegível
no reflexo do vidro. Sua voz continha a cadência sempre constante e divertida, mas havia
uma tendência de vulnerabilidade que fez sua garganta apertar. — Se você acha...
— Nascida da Deusa?
A cabeça de Stolas estalou em direção à voz com um rosnado estrondoso, suas asas
voando para fora e enviando o enxame de peixes atrás do vidro para longe. Agradecida pela
intrusão, Haven rapidamente ajeitou seu vestido enquanto ela seguia seu olhar.
A rainha esperava perto da entrada da alcova, de alguma forma conseguindo ficar imóvel
quando a maioria dos mortais já teria fugido sob o mau-humor de Stolas. Enquanto seus
olhos se ajustavam à escuridão e ela distinguiu a posição íntima de Stolas atrás de Haven,
uma mão flutuou em seu pescoço.
Seu olhar varreu Haven, demorando-se em seu peito corado e na fenda aberta de seu
vestido – empurrada no alto de sua coxa – antes de se estabelecer mais uma vez em Stolas.
Tudo o que ela viu em seu rosto a fez piscar de surpresa, ou qualquer outra coisa que só
a Deusa sabia.
— Eros concordou em continuar a reunião, a menos que eu tenha pegado vocês em um
momento ruim?
Se apenas a rainha soubesse o quão ruim. Talvez ela soubesse. Ela era mortal, não cega.
— Não. — Ombros para trás, Haven caminhou em direção à rainha, de alguma forma
conseguindo controlar sua expressão em um sorriso entediado. — Terminamos por aqui.
O arco da sobrancelha da rainha era apenas o suficiente para sugerir suas suspeitas,
enquanto a suavidade ao redor de seus olhos dizia que não era da conta dela.
Ainda assim, Haven sentiu a desaprovação silenciosa no olhar muito longo da rainha
enquanto ela os conduzia para longe do salão de baile. Uma reação completamente
compreensível, considerando que os mortais só conheciam Stolas como o Senhor do
Submundo, o ser monstruoso que esperava por eles na morte e se deliciava com seus gritos.
Sem mencionar que todas as crianças reais levadas para alimentar Ravenna durante o
reinado da Maldição foram recuperadas por Stolas. Os mortais sabiam tão pouco sobre os
Noctis e sua história. A maioria não conseguia distinguir entre um Serafim e um Golemita
e eles certamente não foram educados sobre a queda da corte Darkshade para Morgryth.
Não importava a verdade, o reino sempre o veria como o executor de Morgryth, não
escravo, uma criatura sanguinária tão temida e injuriada quanto o Sombreamento.
Sentir qualquer coisa além de nojo por alguém assim – bem, tinha que parecer estranho
para Neri. Certamente parecia para Haven.
Você ama um monstro e, se você ainda não sabe, saberá.
Bell tinha visto o que ela não podia. Se ele ao menos também pudesse ter previsto que
aquele monstro em particular não a amaria de volta. Que ele veria cuidar das necessidades
físicas dela como seu trabalho - um trabalho que o afastou de seu povo, de seu reino e de sua
nova vida.
Se ele simplesmente quisesse dormir com ela por prazer... isso seu ego poderia ter
lidado. Não teria sido o suficiente, não agora, sabendo seus verdadeiros sentimentos por ele.
Mas também não seria como ter suas entranhas arrancadas.
Stolas ficou em silêncio enquanto ele as seguia. O soldado zeloso, pronto para fazer o
que fosse necessário para mantê-la segura. Distrair o rei ao primeiro indício de seu
desconforto. Obrigá-la a comer. Beijá-la até deixá-la sem fôlego. Segurá-la enquanto os
pesadelos devastavam sua mente.
Deitar-se com ela sempre que ela estivesse triste.
Qualquer coisa para mantê-la no caminho certo como a deusa que ela deveria ser, em
vez da mortal que era.
Uma risada amarga subiu por sua garganta quando ela percebeu que ele era seu para
comandar em todos os sentidos, menos o que ela queria. De cabeça erguida, ela sufocou a
emoção, muito consciente do olhar implacável de Stolas.
Seus olhos eram como mil sóis nas costas dela.
E em outras áreas...
Bom. Ela pode ter deixado seus quadris balançarem um pouco mais do que o
normal. Pode ter jogado o cabelo por cima do ombro no hábito bobo pelo qual costumava
julgar as outras mulheres.
Se ele iria tratar dar prazer a ela como seu dever, então ela iria se certificar de que ele se
arrependesse de cada segundo em que falhasse nessa tarefa.
Haven esperava que o rei Eros estivesse esperando em outra sala ostensiva com
comidas ricas e vinhos para regalá-la. Então, quando Neri os conduziu por um corredor de
serviçais do lado de fora para uma passarela coberta e depois para uma escada de ferro
corroída, Haven quase hesitou. Apenas a presença de Stolas atrás dela, ao mesmo tempo
reconfortante e uma fonte de vergonha constante, a empurrou para tirar os saltos e escalar
os degraus até a beira de um telhado de cobre.
O rei estava sentado um pouco mais para baixo no telhado, as pernas balançando na
beirada como uma criança, olhando para a frota de navios que pontilhava as águas escuras
enquanto as ondas batiam lá embaixo. Havia apenas uma maneira de cruzar o telhado com
um vestido e não era bonita. Haven conseguiu garantir um lugar próximo a Eros enquanto
Stolas passava pelas nuvens acima, sua sombra fazendo círculos lentos e pontiagudos ao
redor deles.
— Você sempre mantém a coleira do seu monstro tão curta? — Eros perguntou
enquanto servia vinho escuro em um copo de aço simples e entregava a ela.
Se ele estava tentando irritá-la, levaria mais do que isso. Ela aceitou o copo e deu de
ombros.
— Só quando metade do reino está tentando me matar. Ainda não descobri em que
metade você se enquadra.
— Nem eu.
Ela não sabia dizer se ele estava brincando ou falando sério.
— Você prefere que eu o mande embora? Eu posso, se ele te deixa nervoso.
— Esse é o objetivo, não é? Deixar as pessoas nervosas? — Ele esticou o pescoço para
estudar as nuvens, uma curiosa inclinação de sua boca. — Ele disse que eu mandei duas
mulheres para ele antes do jantar?
Suas sobrancelhas se ergueram em surpresa, mas ela suavizou sua expressão em uma de
tédio.
— Só duas?
Seus lábios se curvaram nas bordas, provocando um sorriso, mas ela não confundiu isso
com algo próximo ao calor.
— Eu tinha ouvido rumores, é claro, mas não tinha certeza.
— Você não estava com medo que ele iria machucá-las?
— Eu estava cautelosamente otimista de que ele poderia se conter, considerando que
estamos negociando uma aliança.
— É isso que é isso? — ela falou lentamente.
— Você não está curiosa para saber se ele se comportou?
Sim, sim, ela estava.
— Considerando que você ainda não nos expulsou, suponho que ele não as
machucou. O resto não é da minha conta.
Ele passou o polegar por cima da bota de couro, logo acima do joelho.
— Todo governante tem seus males necessários. Você o viu se alimentar então, imagino?
— Só uma vez — ela admitiu.
— E? Sua vítima estava viva no final?
Um poço de inquietação se formou em seu intestino quando ela se lembrou dos gritos.
— Sim. De certa forma.
O copo dele tiniu contra o dela.
— Aos males necessários.
Ela quase engasgou quando o líquido vermelho áspero atingiu sua boca, queimando
todo o caminho até seu estômago. Bom. Isso a lembrou de beber com cuidado, ao contrário
dos vinhos celestiais que ele serviu no jantar, que desciam fácil demais para seu conforto.
Perto de um homem como Eros, ela precisava de seu juízo completamente intacto.
Ela pensou que ele iria seguir direto com mais perguntas, como no jantar, mas ele estava
estranhamente quieto, seu olhar solene enquanto olhava para o porto fazendo-o parecer
muito mais velho do que antes. À distância, o assobio de nevoeiro de um navio cortou o
grito das gaivotas.
— É este o seu plano? — Ela ergueu o copo. — Me embebedar com vinho barato e
depois me empurrar do telhado? Porque, se for o caso, tem algumas falhas graves e
provavelmente deveríamos discutir isso.
Um sorriso – talvez o primeiro real que ela viu – enfeitou seu rosto, lembrando Haven
que, quando ele queria, ele poderia ser bonito e charmoso, uma combinação perigosa.
— Sabe, você não é nada como eu esperava.
— Eu poderia dizer o mesmo sobre você. Tive a infelicidade de conhecer alguns reis
mortais e você não se parece em nada com eles. Então, novamente, eu nunca conheci um rei
chamado Gato Sorridente.
Outro sorriso. Ele realmente ficava lindo quando sorria. Talvez tenha sido aí que ele
pegou o apelido, embora ela duvidasse muito. Mais como sua intensa curiosidade,
juntamente com sua astúcia afiada e charme desarmante, ganhou esse apelido.
Um longo período de silêncio se seguiu enquanto ele derramava o vinho escuro de
Borgonha em seu copo.
— Quando eu era capitão, este era o único vinho a bordo. Jurei no segundo em que
meus pés encontrassem a costa para sempre que nunca beberia mais uma gota dessa
lama. Mas aqui estou eu, sentado em cima da coleção mais cara de barris de vinho em todas
as terras mortais e é isso que eu anseio.
Ela tomou outro gole, lutando contra o espasmo que apertou sua garganta.
— Tem um... charme após o quinto ou sexto gole.
— O salão submarino em que jantamos? Tenho mais dez câmaras iguais a este, cheios de
móveis e artefatos de ouro maciço. Salas elaboradas destinadas a impressionar os Senhores
do Sol. Até nosso quarto real está debaixo d'água. E, no entanto, o único lugar em que me
sinto normal é aqui, no telhado com as gaivotas e ratos.
Comparada com a formalidade de antes, sua confissão a surpreendeu. Talvez ele
estivesse tentando desarmá-la com sua vulnerabilidade repentina, fazê-la se soltar e cometer
um erro, mas... realmente parecia que ele estava sendo genuíno.
— Acho que todos nós encontramos conforto no que conhecemos. — Ela observou o
alto portão do porto à distância se abrir lentamente para permitir a passagem de um único
navio de velas brancas. — Eu deveria ser filha de Freya, mas me apego às emoções e desejos
mortais.
Stolas veio à mente. A maneira como ele a beijou. A forma como a pele dela estremeceu
ao seu menor toque. Desejo era uma palavra muito mansa para o que ela sentia ao redor dele.
Um longo trecho de silêncio seguiu enquanto eles observavam aquele navio solitário se
aproximar das docas, Eros batendo ritmicamente com o dedo indicador sobre o copo.
Quando a batida parou, ele se virou para ela.
— Quais são seus planos para as terras mortais?
Haven piscou, não esperando a pergunta. Ela esteve tão ocupada nas últimas semanas
tentando sobreviver que não tinha pensado qual era seu plano daqui a duas semanas.
Um mês.
Ela observou o navio mercante atracar e começar a descarregar suas mercadorias,
imaginando como seria viver uma vida tão simples.
— Não tenho planos além de aliar Solis, mortais e Noctis contra o Sombreamento.
— E depois? Supondo que haja uma guerra contra Odin e que sejamos vitoriosos, e daí?
— Você quer saber se vou tentar governar?
Foi a vez dele de piscar.
— Não quero terras. Não quero ouro, poder ou mais magia e certamente não desejo o
trono de ninguém, inclusive o seu.
— Então, o que você quer?
A mesma pergunta que ela poderia fazer a ele.
— Eu... quero viver em um mundo sem medo.
— É isso? — Se a sobrancelha arqueada quase comicamente não deixou claro seu
ceticismo, sua voz deixou. — E quanto ao seu Escolhido, Rei Bellamy?
— O que tem ele?
— Você pretende restabelecê-lo no trono de Penryth? — Seus olhos eram afiados como
uma navalha quando ele se virou para ela. — Os mortais podem ignorar muitas coisas, mas
um Assassino de Parentes é universalmente insultado.
— Você conheceu o rei Bellamy. Ele parece o tipo de rei que envenenaria seu próprio
pai? — Seu copo tiniu sobre o telhado de latão quando ela o colocou no chão, com força. —
Imagino que você também tenha conhecido Renk agora, que como rei é sem dúvida dez
vezes pior do que era antes; e ele já era horrível. Me conte. Como isso está funcionando para
você? Você vê uma união longa e frutífera com aquele tirano birrento?
Ela não tinha ideia se eles realmente se conheceram ou o que Eros pensava de Renk, mas
os músculos flexionando em sua mandíbula diziam que eles se conheceram e não tinha sido
um caso amigável.
— O rei Renk é... problemático, mas ele é jovem e gerenciável o suficiente.
— Por agora. — Sua mão agarrou a alça de seu copo. Renk machucou Bell durante toda
a vida, mas o que ele fez em Effendier... essa traição rendeu a Renk uma adaga com seu nome
nela.
Quando chegasse o dia, ela ajudaria Bell a torcê-lo no coração negro ganancioso do
bastardo.
Eros desabotoou o topo do colarinho e soltou um suspiro longo e cansado.
— Sabe, o que eles não falam sobre ser rei é o quão exaustivo é. Eu costumava passar
noites em mar aberto com nada além de Neri e uma garrafa de vinho e as estrelas.
— Quem diria que ser pirata era tão romântico? — ela brincou.
Ele poderia ter se ofendido. Em vez disso, ele riu, mas o som não tinha nenhum calor
real.
— Agora, passo as noites aqui. Às vezes a noite toda. Quando o sol nasce, vejo as famílias
sob minha proteção deixarem suas casas e me pergunto: minhas ações de hoje as condenarão
à morte?
Foi nesse momento que Haven soube que ela gostava de Eros, o pirata que se tornou
rei. Mesmo que seu charme, aparência e diplomacia fossem perigosos, mesmo que ele
possivelmente estava preparando uma armadilha para ela... ela gostou do bastardo.
O que tornava o que ela tinha a dizer muito mais difícil.
— Rei, uma guerra está chegando. Não há nada que você possa fazer para impedi-
la. Você não pode se esconder disso. Você não pode negociar com isso. Pessoas vão morrer,
as suas e as minhas e outras, tantas outras. A questão é: contra qual inimigo você
lutará? Claro, você pode aplacar Renk com presentes e acordos comerciais benéficos e ele
pode esquecer que quer suas terras e poder - por enquanto. Mas se Renk se sentar no trono
de Penryth quando o Sombreamento vier, Penryth e todas as terras do norte cairão. Quanto
tempo você acha que vai levar para Sombreamento e seus exércitos de demônios cruzarem
as montanhas e chegarem ao seu reino?
Suas sobrancelhas se ergueram com a mudança na conversa, lembrando-a do quão jovem
ele era. Ela imaginou Bell assim em dez anos, cansado, um pouco desiludido, mas ainda cheio
de ânimo para fazer a coisa certa por seu povo.
— Quando você coloca dessa maneira... — Inclinando a cabeça para trás, ele terminou
seu vinho. — Eu deveria ter trazido o conhaque.
— Você sabe que eu falo a verdade.
— Não. Eu sei que você fala uma verdade, a que os oráculos e videntes e áugures de
sangue têm previsto por séculos. Todos os anos, alguém afirma que o Deus das trevas
quebrará suas correntes e entrará em nosso mundo e todos os anos ele permanece preso
abaixo - ou morto, pelo que sabemos.
Haven balançou a cabeça.
— Ele está vivo. Eu posso sentir isso aqui. — Ela empurrou o punho em sua barriga. —
Morgryth o acordou do desespero e, agora, ele reúne um exército.
— Não posso tomar decisões com base em um sentimento que você tem.
— Não? E a partir do que você sabe? Tribos inteiras juraram fidelidade a ele. Pessoas sob
seu controle. Eles estão indo para o norte em massa. Como você explica isso?
— Como alguém explica a loucura nestes tempos?
Ela deu um grunhido frustrado.
— Você é sempre tão obtuso?
— De acordo com minha esposa? Sim. — Um sorriso tenso puxou seus lábios quando
ele olhou para a esquerda, onde ela, sem dúvida, esperava por ele. — Eu tenho uma confissão
a fazer. Eu só convidei você aqui para fazê-la feliz.
Haven lutou contra seu próprio sorriso.
— Ela parece uma rainha que sabe como conseguir o que quer, quando é importante
para ela.
— Você não tem ideia. — Ele correu dois dedos sobre a leve barba por fazer de sua
mandíbula. — Como você já deve ter adivinhado, minha esposa não é da nobreza, mas ela
afirma ter laços de sangue distantes com o rei Bellamy.
Esses laços devem ter sido muito distantes, porque Neri nunca tinha estado na corte. Ela
parecia ser possivelmente de Duna ou mesmo da região de Ashiviere, de onde a mãe de Bell
vinha. Mas, depois que a mãe de Bell morreu no parto, o Reino de Ashiviere perdeu seu
único aliado na corte de Penryth e rapidamente caiu em desgraça com o rei Horace.
Um litoral rochoso com poucos recursos ou terras cultiváveis que sempre contou com
o comércio de Effendier para sustentá-lo. Depois que Effendier cortou completamente o
comércio com seu vizinho costeiro, o reino caiu em ruínas.
— Por causa dessa conexão e... outras razões — continuou o rei — ela insistiu que eu
fizesse contanto com você.
Outras razões? Não havia dúvida de que Neri era persuasiva quando queria ser, mas Eros
nunca teria dito sim a um encontro tão arriscado por causa dos laços familiares. Quaisquer
que sejam as razões que ele aludiu, elas tinham pouco a ver com relações familiares.
— Claro — ele continuou — eu presumi que você enviaria uma mensagem de volta
primeiro, não apareceria na minha sala do trono.
— E, quando o processo usual de formalidades tivesse se exaurido, você a teria
dissuadido da ideia e esta reunião nunca teria acontecido.
Outro sorriso.
— Essa era a esperança, embora ela tivesse tanta certeza que uma vez que eu conhecesse
você, eu estaria convencido a oferecer meu apoio.
— E? — Haven inclinou a cabeça quando ela encontrou seu olhar. — Você está
convencido?
— Convencido de que você é uma criatura divina com mais poderes do que qualquer
mortal neste reino? Sem dúvida. Você, Haven Ashwood, é possivelmente a conjuradora de
runas mais impressionante que já encontrei e já negociei para cima e para baixo nos
continentes Solis. Não só isso, mas você possui uma rara combinação de ferocidade e
gentileza que em qualquer outra situação, em qualquer outro momento, me faria curvar
diante de você. — Ele abaixou a cabeça em reverência antes de encontrar seus olhos
novamente. — Mas nada disso muda o que você é: mortal.
Ela engoliu em seco quando a decepção bateu.
— A profecia disse que Freya deu à luz uma criança mortal.
— Possivelmente. Mas todos os textos posteriores usam a palavra imortal.
Imortal.
Ela piscou enquanto tentava processar esta nova informação. Estava ficando cada vez
mais claro que, mesmo sendo a suposta Nascida da Deusa, ela sabia muito pouco sobre a
profecia em si.
Sua decepção deu lugar a uma profunda e crescente frustração e ela se levantou.
— Você sabia que eu era mortal antes de vir. Por que passar por esse processo então? Ou
foi curiosidade de marinheiro? — Ela correu seu olhar frio sobre ele. Talvez ele não fosse tão
merecedor de sua bondade quanto ela pensava. — O rei mortal entediado que descobriu que
governar não era tão excitante quanto ele pensava e precisava de uma distração. Eu sou seu
entretenimento? — Ela não se incomodou em esconder a ameaça em seu
tom. Nem se incomodou em tentar mascarar o lampejo de medo que escondia por trás de
seu sorriso tenso quando ela acrescentou suavemente: — Ou o de sua esposa?
Calmamente, ele largou o vinho, enxugou a boca com a manga finamente cortada e se
levantou, apoiando o quadril esquerdo. Uma velha lesão de vela?
— Todo mundo ama minha esposa. Ou qualquer pessoa que valha alguma coisa, de
qualquer maneira. E, acredite em mim, ela seria a primeira na fila para remover minhas bolas
se ela pensasse que eu tinha te desrespeitado.
Sim. Haven adorava Neri. Mas ela afastou qualquer sentimento de afeição por ela
quando disse: — Então, como você chama isso? Está começando a parecer um jogo e se eu
não deixei claro na nossa chegada, eu desprezo isso.
— Então, você enfrentará mundo de decepções, porque é tudo que isso é. Proteger
alianças. Forjar uniões entre reinos. Todo um jogo complexo e mortal de engano que até
mesmo a filha de Freya tem que jogar.
Ela encontrou seus olhos.
— Não tem que ser.
— Claro, você é um desses. Uma idealista. — Eros suspirou, passando a mão pelo cabelo
preto curto e cortado. — Quando eu era criança, minha família morava longe da cidade, em
uma mansão murada. Meu pai, um senhor apenas por título, também era um idealista, à sua
maneira. Ele pensou que os restos de riqueza e poder jogados em nós pelo Rei Penryth
poderiam manter a Maldição fora. Por um tempo, vivemos como se a Maldição nunca
tivesse acontecido, com criados, atendentes e bailes mensais para distrair os moribundos ao
nosso redor. Minha criada favorita era minha babá de Asgard. Ela costumava contar essas
histórias encantadoras antes de dormir com os deuses, mas foi a história do filho escondido
de Freya que mais me fascinou.
Haven se sentiu imóvel. Muito poucos no reino mortal já tinham ouvido falar da
profecia. As ondas continuaram a quebrar abaixo, as gaivotas continuaram a crocitar e o
vento salgado continuou seu farfalhar suave através da baía.
Mas tudo o que ela podia ouvir era o bater de seu pulso dentro de seu crânio enquanto
ela perguntava: — Foi uma história com um final feliz?
— De acordo com minha babá, a criança começaria uma nova era de guerra e morte. Mas
os Asgardianos percebem o futuro e o destino como um rio e o futuro desta criança era
incerto, um riacho escorrendo pela lama e pedra, procurando áreas para se esculpir, se alargar
e prosperar. Dependendo do caminho que o destino da criança tomasse, a criança se tornaria
um rio poderoso que cortaria o coração da ameaça vindoura...
Ele parou e ela insistiu: — Ou?
— Ou a criança profetizada se juntaria ao pai e se tornaria uma furiosa inundação de
aniquilação para toda a humanidade.
Haven estremeceu quando dedos invisíveis de pavor percorreram sua espinha. — Que
história de ninar horrível — ela brincou, tentando esconder o quão profundamente isso a
afetou. — Não admira que você tenha problemas de confiança.
— Pela sua expressão surpresa, vejo que a Ordem de Soltari não divulgou essa adorável
ramificação da profecia.
— Não importa, porque eu nunca me juntaria ao meu... ao Sombreamento.
A luz da lua faiscou dentro do anel de ouro que ele usava enquanto brincava com seu
brinco, seu olhar fixo nas águas escuras além. Naquele momento, com seu colarinho
desabotoado, hálito com cheiro de vinho de taverna barato, olhos soltos de álcool e
provavelmente dias de pouco ou nenhum sono, ele não parecia um rei que conseguiria
manter os Três Quebrados por uma única noite, muito menos convencê-los a se aliarem a
ela.
Então, novamente, ela se encolheu com o que Eros viu nela. Seus pés descalços e cabelos
soltos e emaranhados, quase totalmente livres agora de seus grampos e chicoteando com a
brisa crescente suave; seu próprio cansaço aparecendo nas cavidades sob seus olhos; a nitidez
de sua clavícula que lhe dava uma aparência meio selvagem.
Ela provavelmente se parecia mais com uma sereia vingativa vindo para devorar seu
coração do que a Nascida da Deusa de suas histórias.
— Você diz que nunca se juntaria ao Sombreamento— ele disse— mas ainda ontem eu
jurei que nunca arriscaria meu reino para me juntar a uma fora-da-lei mortal alegando ser a
Deusa da profecia.
Seu coração deu uma guinada para o lado. — E agora?
— Bem, agora tudo depende desta mortal provando que ela é quem ela afirma.
— E como ela faz isso, exatamente?
Seus olhos eram quase empáticos enquanto a olhava por um longo momento. — A
lógica e a história dizem que você é simplesmente outra herege, nem salvadora nem
destruidora. Um erro da natureza sendo usado por forças que disputam o controle do
reino. Mas, se você fosse a filha profetizada de Freya e Odin...
Ele balançou a cabeça como se a ideia fosse simplesmente absurda demais para ser
cogitada.
Então, pegou a garrafa de vinho quase vazia, juntou os copos de aço e partiu para a
escada, caminhando desconfortavelmente perto da beirada do telhado. — Amanhã,
encontre-me nas docas ao entardecer.
— Para quê?
— Sua chance de provar a si mesma.
Limpando a poeira da parte de trás de seu vestido, ela caminhou atrás dele, o metal frio
sob seus pés. Ela fez questão de manter uma distância segura da borda. A última coisa que
ela precisava era cair e ter Stolas a salvando. — Então, um teste? E se eu falhar?
Ele fez uma pausa. Seu queixo largo apareceu quando ele olhou para ela. — Então, você
deixa as terras mortais imediatamente, poupando minha esposa da cruel e falsa esperança
que você espalha e promete nunca mais voltar.
Apesar da calmaria rítmica das ondas do lado de fora de sua janela, Haven demorou
para dormir. Quando ela finalmente caiu em um sono profundo e sem sonhos, Bell a
acordou logo depois para o treinamento, que ela esqueceu que havia prometido.
Ele circulou pelo quarto dela enquanto ela colocava as calças e botas, pulando de um pé
para o outro.
— Noite longa? — ele brincou. — Você desapareceu logo depois que a dança começou
e, em seguida, o lindo homem alado no salão também.
Encostada na parede, com a bota apoiada na cômoda, ela terminou de amarrar os
cadarços gastos e lançou-lhe um olhar sombrio. — Isso foi antes ou depois de você e
Xandrian fugirem para sua varanda privativa?
Ela procurou por Bell na noite passada após a reunião com Eros, apenas para encontrar
Bell e Xandrian em uma pequena varanda, encolhidos sobre um livro e sussurrando. Ela
esperou até que ele voltasse para seu quarto horas depois antes de divulgar sua conversa com
o rei.
Bell parou de examinar um difusor de óleo feito de uma concha de abalone e cortou os
olhos para ela. — Acredite em mim, não é assim. Ele está me ajudando a refinar o veneno
que descobri em Solethenia para nossos soldados. Estamos perto de encontrar um meio que
retenha sua potência, mas nos permita fazer cem vezes mais.
— Huh. Fascinante. Por mais de duas horas?
Ele se ocupou em fazer a cama dela, dobrando os cantos e afofando o travesseiro. —
Mesmo. Ele deixou bem claro em Solethenia que é incapaz de um relacionamento. — Bell
deu de ombros, brincando com uma borla dourada do travesseiro. — O que é bom, porque
agora que o conheço, ele é... ele é...
— Um pavão estufado narcisista com um ego inflado que provavelmente não
corresponde ao você-sabe-o-quê dele?
A cabeça de Bell caiu para trás em uma risada assustada. — Eu ia dizer emocionalmente
indisponível, mas isso também. — Um olhar conhecedor surgiu em seu rosto. — Ah, você
é boa. Quase esqueci que estava te interrogando.
Haven suspirou enquanto lutava com seu cabelo. Bell havia insistido que a filha de Freya
não podia usar uma trança simples, que por acaso era a única que ela sabia fazer. — Não há
nada para interrogar. Stolas está ligado a mim da mesma forma que você e os outros, mas seu
interesse é puramente por dever.
Dever. Ela puxou o cabelo com tanta força que algumas mechas podem ter saído. Ela
nunca odiou uma palavra mais.
Bell bufou. — Você está trançando o cabelo ou lutando contra ele? Aqui, deixe-me.
Ele deu a volta na cama e assumiu o controle, como quando eram mais
jovens. Normalmente, isso a faria se sentir infantil. Mas, agora, com tudo mudando tão
rápido em suas vidas, o velho hábito trouxe a ela uma sensação de conforto muito necessária.
— Nada elaborado, certo? — ela esclareceu enquanto se acomodava na cama, sabendo
que se não ele passaria duas horas fazendo seu cabelo em um elaborado ninho de pássaro ou
algo igualmente ridículo.
— Você é a Nascida da Deusa, Haven, e os mortais são tão superficiais e fúteis quanto
os Solis. Você precisa ter uma boa aparência.
— Ou eu poderia apenas parecer... Eu?
Ele bufou como se essa fosse a ideia mais horrível que ele já tinha ouvido. Felizmente,
suas mãos trabalharam rápido, puxando e tecendo delicadamente mechas de seu cabelo rosa-
dourado para trás de seu rosto.
— Você diz que o interesse dele em você é simplesmente dever— Bell começou,
circulando de volta para a conversa anterior— mas você não viu a coisa monstruosa que ele
lançou no Salão da Luz depois que você foi levada.
Ela ficou rígida. — Que coisa monstruosa? O que aconteceu?
— Nasira o chamou de seu familiar das sombras. Fosse o que fosse, pode ser a coisa mais
aterrorizante que eu já testemunhei. E, como você sabe, eu tenho muita experiência nesse
departamento.
— Se parece com o quê?
— Como uma névoa de tinta no início, mas depois cresceu lindos pelos pretos, dentes e
garras de ônix longas o suficiente para arrancar pedras quando andava, ele não estava
realmente andando, mas rondando, a propósito. Suas patas gigantes sacudiam o chão a cada
passo. Tinha aqueles olhos vermelhos horripilantes e era enorme, tão enorme... um lobo, por
falta de uma palavra melhor. — Alcançando além dela, ele pegou o laço de cabelo preto de
sua mesa de cabeceira e prendeu a trança. — A coisa era a morte em forma de besta e eu não
acho que ele conseguia controlá-la. Se não fosse por Nasira, teria matado a todos nós.
Haven estremeceu. — Ele me disse que seu Familiar das Sombras estava adormecido,
quase morto, provavelmente para sempre.
— Bem, aparentemente, seu familiar ficou entediado com a quase morte e reanimado.
O que Bell pensaria se soubesse que algo possivelmente ainda pior espreitava dentro
dela? Ela encontrou seus olhos azuis brilhantes no espelho do outro lado do quarto,
imaginando como seria essa conversa.
Tem chifres e asas e parece uma cria de demônio, mas é mais legal do que parece?
Ele pegou sua carranca e sorriu suavemente. — Pronto. Agora você parece que poderia
ser filha de Freya em vez de uma criatura do pântano. Mas sugiro escovar os dentes para
solidificar o visual.
Ela deu um tapa no braço dele, mas de fato escovou os dentes usando a pequena bacia
de água ao lado da cama. E, quando seu olhar mais uma vez encontrou seu reflexo, ela quase
pôde ignorar os crescentes machucados sob seus olhos.
A sessão ocorreu no pequeno pátio do lado de fora de seus quartos com vista para a
baía. Xandrian, Delphine e Surai apareceram uma hora depois e beberam chá enquanto
observavam Haven e Bell trabalhando. Sobretudo esgrima com um pouco de magia.
Quando o sol se ergueu bem acima das muralhas da cidade, ele provou ser proficiente
tanto em empunhar os floretes leves que agora preferia quanto em encantar as armas para
infligir o máximo de dano e melhorar sua pontaria.
Ele só conseguia manter a magia queimando na lâmina por alguns segundos de cada vez,
mas isso melhoraria com a prática.
Haven saboreou a forma como seus músculos e seus pulmões queimavam quando ela
afundou nos bancos da mesa, coberta de suor. Ela seguiu um ritmo cansativo, usando a dor
de seu corpo para distrair sua mente do encontro mortificante da noite anterior.
— Onde está o desgraçado taciturno com chifres? — Xandrian perguntou em forma de
saudação.
Haven tinha certeza de que seu engolir era audível quando ela deu de ombros, rezando
para que suas bochechas não estivessem vermelhas.
Delphine e Surai discutiram algo por um momento e, então, Surai explicou: —
Delphine disse que Stolas nunca voltou para seu quarto na noite passada.
— Devemos nos preocupar? — Xandrian perguntou, olhando para a cesta de biscoitos
como se uma víbora se escondesse dentro.
Outra salva de sinais passou entre Delphine e Surai.
— Ele é Stolas— disse Surai— não acho que seja com ele que devemos nos preocupar.
Delphine passou a Haven a bandeja de frutas. Grata pela distração, Haven rapidamente
fez o sinal que Surai ensinou para agradecer. Quando teve certeza de que não tinha dito
acidentalmente a Delphine para se ferrar, ela encheu seu prato com figos, meia toranja e dois
biscoitos duros.
Xandrian bateu palmas quando Bell terminou de guardar seu equipamento e se juntou
a eles. — Não tão habilidoso quanto quando eu o treinei— Xandrian falou lentamente,
olhando para Haven— mas você ajudou a expor sua fraqueza telegrafando a estocada, então
ao menos serviu a um propósito..
Surai compartilhou um olhar divertido com Haven enquanto Delphine fazia um sinal
que Haven suspeitava significar bastardo arrogante ou algo muito semelhante,
considerando que ela só o usava depois que Xandrian falava.
Todos eles tinham se acostumado com a arrogância de Xandrian, uma característica que
Haven estava começando a suspeitar que a maioria dos Senhores do Sol possuía. Na verdade,
a maioria dos imortais com magia poderosa, independentemente de serem Noctis ou Solis,
pareciam ser dotados de um senso de importância excessivamente grande e inflado. Leve
Stolas como...
Não. Ela franziu a testa para o ovo pochê em seu prato, tentando tirar o Senhor das
Sombras de seus pensamentos. Ela se recusava a pensar nele esta manhã. Recusava-se a se
perguntar onde ele estava ou pior... se ele estava em algum lugar dormindo na cama de outra
pessoa.
Talvez o rei o tenha enviado mais... sustento.
Conhecendo Eros e sua curiosidade insaciável, aquele sustento seria maravilhoso.
Seu intestino apertou quando seu apetite se reduziu a nada. Stolas havia dito que ele não
misturava alimentação com prazer, mas ele era um homem, afinal.
Um homem que tinha acabado de ganhar sua liberdade, depois de anos de prisão. Um
homem que passava cada momento de vigília tentando construir seu reino ou cuidando dela
em vez de suas próprias necessidades.
Ela forçou um figo gordo em sua boca. Obrigou-se a se concentrar na comida enquanto
a conversa girava em torno dela.
Mastigar. Engolir. Acenar com a cabeça de vez em quando. Sorrir.
Fingir que ela não está pensando nele.
Porque pensar nele significava reviver a noite anterior, o que ela já tinha feito a noite
toda, revirando-se na cama enquanto repetia suas palavras. Seu toque. O significado por trás
de torcer e contorcer até que ela não podia confiar no que era real ou imaginário.
— Alguma ideia do que o teste pode ser? — Surai estava perguntando a Xandrian agora.
Haven voltou a se concentrar nessa questão, a outra coisa que a manteve acordada a
maior parte da noite. Após informar Bell sobre os planos do rei na noite anterior, ela
encontrou Surai e Delphine no quarto de Surai, comendo um prato de frutos-do-mar e disse
o mesmo a elas.
Ninguém parecia ter ideia de como o Rei Eros a testaria.
Xandrian cutucou seu ovo, o nariz enrugado enquanto olhava para a iguaria. — Como
eu iria saber? Reis mortais são um mistério para mim nos melhores dias. Quando eles não
estão previsivelmente apunhalando um ao outro pelas costas por causa de bugigangas de
ouro e prata, eles estão agindo de forma imprevisível, guiados pela emoção.
— Ninguém nesta mesa precisa de uma lição sobre reis mortais — ela o lembrou, seu
tom saindo mais mal-humorado do que o pretendido. — Mas você é o único aqui que tem
conhecimento da profecia em primeira mão.
A noite anterior praticamente confirmou suas suspeitas crescentes de que ela foi
mantida propositalmente desinformada sobre certos elementos do mito que cercavam a
Nascida da Deusa.
Xandrian arrastou seu olhar desdenhoso do pobre ovo em seu prato para ela. — A
profecia? Nem todas as respostas estão nos textos.
— Como eu saberia disso? Eu ainda não vi nenhum deles.
— Nem eu. Meu trabalho para a ordem era como espião, o que significa que tive muito
pouco contato com qualquer um dos pergaminhos sagrados ao longo dos anos. Mas mesmo
que minha posição perigosa não me impedisse de obter tais informações, elas estão
espalhadas pelos continentes em lugares secretos. Alguns foram traduzidos e, portanto,
alterados, minuciosamente, mas ainda assim. Outros são considerados trabalhos apócrifos
que ainda não foram confirmados, enquanto alguns pergaminhos altamente guardados que
antes eram considerados evangelhos agora são considerados falsos.
Haven beliscou a ponta de seu nariz. O monge foi ainda menos útil nas poucas ocasiões
em que ela conseguiu encurralá-lo antes de ele partir. — Eros mencionou um
desdobramento da profecia na noite passada. Uma que era consideravelmente mais sombria
do que a que você aludiu.
Os olhos azul-gelo de Xandrian se estreitaram. — Talvez você não deva ouvir aqueles
que têm motivos para manipulá-la e enganá-la.
— Talvez se você me desse mais informações, eu saberia em quem confiar. — Uma
gaivota branca saltou sobre os paralelepípedos em direção à mesa e ela jogou seu biscoito
intocado. — Quando os textos me mencionam, eles falam de mim como mortal
ou... imortal?
Bell, Delphine e Surai trocaram olhares. Colocando as mãos sob o queixo, Xandrian
suspirou. — Isso é complicado.
— Mas não é. Não realmente. É uma palavra.
— Portanto, uma palavra que pode ter sido traduzida dez vezes mais ao longo dos
séculos, mudando. Mais uma vez, minuciosamente, mas a palavra mortal e imortal em
qualquer idioma é muito semelhante, o suficiente para que um escriba ou um monge, meio
morto de fome e se escondendo na escuridão próximo, pode confundir as duas coisas.
— Então, como eu sei que isso é real?
Os outros ficaram imóveis, os garfos pousados sobre os pratos.
Foi a primeira vez que ela se permitiu questionar em voz alta a profecia, mas as palavras
estavam carregadas em sua língua por semanas.
Bell colocou uma mecha de seu cabelo preto encaracolado atrás da orelha. — Talvez se
você explicasse como a profecia se originou em primeiro lugar, pudéssemos entendê-la
melhor.
Xandrian lançou um olhar ansioso sobre sua fruta, suspirou e empurrou o prato. — A
maioria das pessoas pensa que a profecia veio da própria Freya, mas ela se originou primeiro
do áugure de sangue mais confiável de Varyssian. A maior parte do fundamento original da
profecia veio do áugure. Foi por causa do que este áugure disse a Freya sobre seu papel
central no futuro, junto com o desejo de Freya por um filho de verdade, que a convenceu a
morrer para que você pudesse viver.
A garganta de Haven ficou seca, como acontecia toda vez que havia menção ao sacrifício
de sua mãe.
— A maioria dos textos reais foram gravados antes dela ser transmutada em
pedra. Primeiro em tábuas sagradas que foram quebradas e escondidas e, depois, anos
depois, em papel. Mas, depois que ela foi acordada para ter você, antes de morrer, alguns
afirmam que ela acrescentou mais à profecia.
— E onde estão esses textos?
— Não textos. Pinturas. Em seus últimos dias antes de dar à luz, ela criou uma série de
três pinturas. Ninguém sabe por quê. Se aquelas pinturas foram simplesmente uma válvula
de escape para sua loucura depois de ter adormecido por tanto tempo, ou uma distração
durante as primeiras dores do parto, ou... se elas foram parte da própria profecia.
Uma dor de desejo brotou dentro de seu coração. Pintar - sua mãe pintava. — Onde elas
estão agora?
— A existência delas causou uma tal cisão na Ordem que elas foram finalmente
condenadas à destruição. A primeira pintura foi destruída, mas antes que as outras duas
tivessem o mesmo destino, elas foram roubadas.
Haven tomou um longo gole de seu suco de romã para esconder o alívio repentino e
avassalador. Apenas a ideia de que algo que sua mãe criou, algo tangível e único como uma
pintura, existia a fez se sentir tonta. — Roubada? Por quem? Por quê?
— O por quem nós não sabemos. O porquê... é complicado. Existem rumores, mas nada
de concreto.
Haven ergueu uma sobrancelha. — Rumores? Tais como?
— Por exemplo, as pinturas mantinham um segredo.
— Um segredo? — Seu pulso se acelerou. Por que ele não podia simplesmente cuspir já
a informação? — Para o quê?
— Para a imortalidade. Ou melhor — esclareceu Xandrian enquanto esfaqueava um
figo com o garfo e o segurava para inspeção— o segredo para obter a imortalidade para
aqueles que não foram abençoados com isso.
Imortalidade para mortais.
O que quer que Haven estivesse esperando, não era isso. E, no entanto, no momento em
que as palavras saíram de seus lábios, tudo pareceu se encaixar. O problema que ela estava
revirando em sua mente tentando resolver de repente tinha uma solução.
Sua mãe sabia que Haven nasceria mortal, assim como ela sabia que teria que se tornar
imortal.
— Ela os pintou para mim — Haven murmurou.
Surai lançou um olhar sombrio para Xandrian antes de se virar para Haven. — Não
sabemos o que as pinturas realmente significam ou onde estão, ou mesmo se ainda
existem. Colocar todas as nossas esperanças em um boato - não, a sugestão de um boato - só
pode levar à decepção.
Claro que Surai estava sendo lógica e cautelosa. E, no entanto, a ideia de uma obra de
arte criada pela mãe de Haven com instruções sobre como se tornar imortal parecia fortuita
demais para ser ignorada.
— Bell— disse ela, falando rapidamente— você já ouviu falar dessas pinturas?
Se houvesse algo sobre o segredo da imortalidade nos livros de história, Bell teria
certamente encontrado.
Ela tentou sufocar sua decepção quando ele balançou a cabeça. — Nunca. Nem uma
única passagem em qualquer livro que já li. E, se tal coisa existisse, a imortalidade para os
mortais seria mencionada em algum lugar.
Runas, ele estava certo. Se o rei Horace ou qualquer um dos outros senhores tivesse
tropeçado até mesmo no menor indício de que a imortalidade era possível, eles teriam
trocado seus reinos inteiros pela chance de caçá-lo.
Surai não conseguiu esconder a preocupação por trás de seu sorriso suave ao dizer: — A
imortalidade está além do escopo da magia, Soror. Se tal coisa existisse, sem dúvida já teria
sido usada.
— Delphine? — Haven perguntou, desejando Stolas estivesse aqui. Com sua riqueza de
conhecimentos adquiridos a partir de anos interrogando almas de todos os reinos, ele
poderia ter ouvido alguma coisa.
O coração de Haven afundou ainda mais quando Delphine balançou a cabeça e
murmurou, Desculpe.
A imortalidade não era algo que pudesse ser comprado.
Mas Haven se recusou a desistir completamente da ideia. — E se, e se alguém tiver as
pinturas, mas não souber o que são? E se, quem as roubou, as desse para alguém que não
tinha ideia do que elas têm?
— Certo. — Bell jogou as migalhas finais de seu café-da-manhã para a gaivota, que se
tornou bastante agressiva. — Isso é realmente muito inteligente. Passe as pinturas como
nada de especial. Elas estariam escondidas à vista de todos.
Xandrian deu um suspiro ofendido enquanto empurrava a cadeira para trás e se
levantava. — Oh, bom. Agora temos duas pinturas que podem ou não existir. E, se elas
existem, elas podem estar em qualquer lugar. Em qualquer parede ou abóbada de qualquer
continente. Como, exatamente, isso nos ajuda?
— Porque, agora que sei que minha mãe me deixou uma maneira de tornar-me imortal,
eu vou encontrá-la. — Ela desdobrou-se da cadeira, os braços cruzados sobre o peito. —
Assim, eu posso ser capaz de obter um rei mortal como Eros se aliar a nós. Talvez. Mas
você sabe o seu tipo e seus preconceitos contra os meus. Enquanto eu permanecer mortal,
eles nunca vão me seguir.
Ele passou a mão pelo cabelo louro e comprido, enrolando as extremidades, com a testa
franzida. Por fim, ele aceitou seu ponto com um aceno sombrio. — Se as pinturas estão lá
fora, eu posso ser capaz de usar minhas conexões para descobrir quem pode possuir tal arte,
conscientemente ou acidentalmente.
Haven quase contornou a mesa e o abraçou.
— Mas... temos de manter isso entre nós. Se quem detém essas posses soubesse o que
têm - bem, tal coisa seria inestimável para os senhores mortais deste reino. E perigosa, se
caísse em mãos erradas.
O rosto de Bell se contorceu em uma careta quando ele percebeu o que um rei corrupto
como Renk poderia fazer com a imortalidade. Mesmo Eros, se soubesse dessas pinturas,
provavelmente as cobiçaria para seu próprio reino.
Ela podia ver agora por que a Ordem de Soltari escolheria destruir os objetos. Nas mãos
erradas, as pinturas podem causar danos irreparáveis.
Depois de um banho quente, um atendente do palácio chegou oferecendo outro
passeio pela cidade, desta vez conduzido pela própria Neri. A rainha usava calções de pernas
largas creme e uma túnica de uma cor amendoada, o tecido solto e esvoaçante exibindo seus
movimentos graciosos enquanto ela passeava pelas ruas íngremes. Sua empolgação em
mostrar a cidade para eles era contagiante. Ao contrário da visita de ontem, que se
concentrou em pontos de referência populares e outros locais formais, mas incrivelmente
chatos, os lugares que Neri os levou não estavam em nenhum dos mapas de Haven.
Um mercado subterrâneo que traficava artefatos mágicos e feitiços. Uma loja
administrada por mulheres gêmeas Asgardianas que apresentavam machados e lanças
antigas. Um estúdio de tatuagem especializado em runas proibidas.
Eles pararam em um café no coração da cidade e, assim como Neri afirmou, os bolos de
caranguejo e sopa foram os melhores que Haven já tinha provado.
Cada loja e mercado que visitavam deixava uma coisa clara. As pessoas aqui adoravam
sua rainha e ela os adorava. Era uma coisa fácil amar Neri. Com seu sorriso contagiante,
olhos gentis e lealdade teimosa.
Ela lembrava tanto Haven de alguém...
A última parada foi uma destilaria de rum aninhada no topo de um penhasco,
administrada por sacerdotisas de um templo próximo. As mulheres orgulhosamente
distribuíram amostras de seu rum dourado enquanto uma delas contava a história de seu
produto.
Haven deixou os outros e se juntou a Neri do lado de fora, em um mirante rochoso com
uma vista deslumbrante do porto. — É verdade? — Haven chamou. — O rei Eros bebe rum
todas as noites antes de dormir?
Neri piscou. — Só se as sacerdotisas perguntarem.
Haven colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Foi gentil da sua parte nos levar
por aí. Tenho certeza de que você tem mil outras coisas que poderia estar fazendo.
— O prazer é meu. — Neri deu de ombros e novamente... algo em seu gesto, seus olhos,
parecia familiar.
— Eros disse que foi sua ideia nos convidar aqui, então, obrigada.
Neri acenou com a mão como se não fosse nada. — Às vezes, os homens só precisam ser
informados de que não há problema em fazer alguma coisa. Além disso, não acho que Eros
tenha se divertido tanto em anos.
Haven ergueu as sobrancelhas. Ela tinha certeza que a conversa deles na noite passada,
embora interessante, não o deixou alegre.
Se alguma coisa, ele estava mais em conflito.
— Ah, seu Senhor das Sombras não te contou? — Um olhar curioso passou por seus
olhos escuros. — Ele convenceu Eros a levá-lo por ai ontem à noite depois que você
partiu. Eles saíram de manhã e ainda estão fora. Segundo o dono do café, eles já visitaram
todos os museus e bares da cidade.
Alívio varreu Haven. Ele não esteve nos braços de outra mulher. Mas esse alívio foi
substituído quase imediatamente pela frustração, principalmente consigo mesma. Stolas
podia passar as noites onde quisesse.
Preocupar-se com o que ele fazia – ou com quem ele fazia – era uma distração indesejada.
— Você achou que seu Senhor das Sombras estava em outro lugar? — Neri perguntou
e seu tom de provocação lembrou muito a Haven de Bell.
Deusa Acima, era quem ela lembrava a Haven, e provavelmente porque Haven – e
basicamente todo mundo – amava Neri.
Era da mesma forma que eles amavam Bell. Aquele sorriso. Aquele brilho travesso e
bondade rara.
— O rei disse que você e Bell eram parentes distantes— Haven meditou, observando
Neri de perto. — Quão distante, exatamente?
Um lampejo de algo - choque? Alarme? – passou por seu rosto e Neri virou-se para a
destilaria. — Devemos voltar. O jantar será servido cedo esta noite, antes do seu teste, e você
mal tocou no almoço.
Por que Neri estaria guardando seus laços com Bell? Enquanto Haven seguia Neri para
recolher os outros, ela não pôde deixar de pensar que esse segredo, qualquer que fosse,
também poderia explicar por que Neri os convidou em primeiro lugar.
O jantar desta vez foi realizado em uma enorme sacada com vista para a
cidade. Longas e incontáveis mesas de banquete foram montadas para conter o que parecia
ser toda a corte de Veserack. Abaixo, as ruas se apinhavam de pessoas acenando e aplaudindo
enquanto disputavam um lugar na multidão.
— As pessoas amam o rei e a rainha — observou Bell enquanto se sentavam à mesa real
mais próxima da grade.
Haven procurou em seu rosto por ciúme ou amargura, mas encontrou apenas
admiração e os olhos injetados do excesso de rum mais cedo. Ainda assim, era difícil não
comparar a adoração que os cidadãos de Veserack tinham por seu rei com o povo de Penryth,
que nunca aplaudiu tanto os Boteler, nem mesmo durante a época de Bell.
— Ele arriscou sua vida roubando comida de seu pai para alimentá-los durante a
Maldição — Haven lembrou gentilmente.
O hábito de Bell de ver o bem em todos significava que ele nunca reconheceu seu pai
como o tirano astuto que ele era. Forçando-o a admitir isso agora parecia cruel.
— Imagino que Renk esteja furioso, porque um pirata reivindicou os territórios antes
que ele pudesse colocar um de seus próprios senhores no trono. — Bell sorriu. — Um rei
pirata apelidado de gato.
— Não é como se seus reis tivessem uma boa reputação para comparar — Xandrian
murmurou enquanto brincava com o vinho âmbar em sua taça, seus dedos fazendo
passarinhos com o líquido. Haven quase tinha esquecido que era um de seus poderes.
Xandrian era o único aparentemente não afetado pelo rum. Surai e Delphine, por outro
lado, estavam tomando taças de água, sua comida até então intocada. Ambas as meninas se
revezaram correndo para o banheiro.
Enquanto o banquete se arrastava, Haven mal conseguia olhar para seu próprio prato. O
teste parecia maior a cada segundo que o sol se aproximava do horizonte e nem o rei, nem
Stolas, haviam chegado ainda.
Pegando a garra de um camarão em sua perfumada sopa branca, ela tentou ser
compreensiva. Ele tinha acabado de recuperar sua liberdade, depois de anos de prisão. E,
entre treiná-la, tentar alimentar e proteger Shadoria e com Archeron rompendo suas defesas
todas as noites, ele tinha que se sentir estressado.
Deusa sabe que ela se sentia.
Mas esta noite era importante. Mesmo que o rei voltasse em dívida com Stolas de todas
as maneiras possíveis, nada disso importaria se ela não passasse em qualquer maldito teste
que ele tivesse reservado.
Como se conjurado por sua preocupação, uma trombeta anunciou a chegada do rei e de
Stolas.
Ainda vestidos com as mesmas roupas da noite anterior, eles vagaram em direção à mesa
com a confiança fácil de homens que poderiam chegar tão tarde quanto quisessem. A risada
estrondosa de Eros flutuou na brisa fresca e Stolas lhe deu um tapinha no ombro, ambos os
homens ignorando o atendente que tentou pegar seus paletós.
Neri não conseguiu esconder a tensão em seus lábios enquanto os observava passear,
uma elegante sobrancelha escura levantada com a cena.
— Alguém está com problemas — Bell sussurrou para Haven e Haven não se atreveu a
comentar que era o mesmo olhar furioso que Bell tinha quando estava com raiva.
Stolas exibia um sorriso diabólico enquanto se sentava na cadeira em frente a ela. Sua
túnica estava desabotoada no meio do peito, suas maçãs do rosto altas e severamente coradas,
aqueles lábios exuberantes puxados para aquele sorriso sardônico solto. Seu cabelo branco
como cor de osso estava despenteado para o lado, alguns fios mais longos se enrolando
contra o colarinho preto e rígido.
O cheiro de fumaça, conhaque e outra coisa – a sugestão enjoativa de perfume – se
apegava a ele, matando o resto de seu apetite.
Esticando-se para trás em seu assento, ele cruzou os braços atrás da cabeça, fazendo com
que sua camisa meio desabotoada revelasse ainda mais seu peito e a fixou com um olhar de
pálpebras pesadas.
Ela segurou seu olhar, rezando para parecer indiferente.
Você parece...bem. A voz dele gotejou em sua mente, melosa e quente e não convidada.
Você parece bêbado.
Antes que ele pudesse responder, ela imaginou uma parede negra de terra, pedras e lodo
entre eles, formando-a com sua mente. Fazendo-a crescer cada vez mais até que se alojou de
forma pesada e impenetrável entre eles. Stolas insistiu que eles passassem pelo menos meia
hora todos os dias praticando esse movimento, prendendo-a bem no caso de ela ser
capturada.
Usar essa mesma técnica contra ele parecia estranhamente empoderador e ela olhou
placidamente para ele.
— Muito bem, Pequena Fera.
Graças à Deusa, ninguém parecia achar estranho que ele estivesse tendo uma conversa
unilateral com ela, provavelmente por causa de sua condição. O que não era realmente um
bêbado desleixado. Se a maioria dos venenos não pudesse matá-lo, provavelmente era preciso
muito álcool para afetá-lo e, mesmo assim, ele nunca cairia bêbado.
Mas suas bordas pareciam suavizadas de alguma forma, seu corpo poderoso solto e à
vontade de uma forma que ela não via há um tempo.
Delphine estava à sua direita e seu nariz enrugou quando ela se inclinou e o
cheirou. Então, ela fechou a mão em um punho, bateu na palma da mão aberta e gesticulou
como se estivesse puxando ar para o nariz.
— O que ela está falando? — Bell perguntou a Surai.
Xandrian riu. — Ah, eu posso responder isso. Imagino que ela tenha dito que ele cheira
a bordel.
O intestino de Haven se apertou. Talvez seja por isso que ele parecia tão... contente.
— Espero que Neri não castre Eros — Xandrian continuou. — Ele é o primeiro
governante mortal que encontrei que tem coragem.
Todo mundo ficou quieto. Haven olhou para Bell, mas ele já estava se levantando de seu
assento, sua mandíbula apertada. — Vou tomar um ar.
Tarde demais, a compreensão surgiu no rosto de Xandrian. Ele piscou. Limpou o
lampejo de emoção de seus olhos.
E, então, depois de um olhar fugaz para a forma de Bell em retirada, voltou a fazer
criaturas mágicas em sua taça.
A cadeira de Haven raspou contra o piso de mármore quando ela se levantou. — Acho
que vou me juntar a ele.
Ignorando o olhar fulminante de Stolas, ela alcançou Bell na alcova mais próxima do
lado de fora do corredor. Não demorou muito para encontrar uma varanda vazia com vista
para as docas, escondida atrás de uma parede saliente de clematites e glicínias.
Ele pegou duas taças de champanhe de um garçom que passava e, então, se encostou no
corrimão de mármore. — Runas, isso parece como em Penryth quando costumávamos
escapar daqueles banquetes sem fim que Cressida dava, lembra?
— Runas, aquela mulher insistia em pelo menos trinta pratos — Haven gemeu,
sentando-se ao longo do parapeito enquanto ela aceitava o champanhe. — Você sabe que
Xandrian não quis dizer isso, certo?
— Sim, ele queria. Mas não foi por isso que saí. — Bell estudou as bolhas em sua taça
como se elas tivessem as respostas para a vida.
— Então, por que você saiu? E não diga que foi a sopa, porque eu realmente gostei dela.
Bell soltou uma risada oca. — Você gosta de tudo, então não conta. — Ele tomou um
gole. — Saí, porque tudo o que Xandrian disse era verdade. Meus ancestrais, os reis que me
ensinaram a admirar durante toda a minha vida, eles eram governantes terríveis, corruptos
em quase todos os sentidos. — Seus dedos ficaram brancos ao redor da haste de sua taça. —
Agora, Renk detém essa cadeira de poder e ele é pior do que todos eles juntos. Então, sim,
estou chateado. Irritado com o sofrimento que ele vai causar. Chateado que eu não posso
fazer mais para pará-lo. E, acima de tudo, estou furioso por ter demorado tanto para
entender.
— Entender?
— A diferença que eu poderia ter feito naquela época. Em vez disso, tudo o que me
importava eram livros e roupas e me esconder dos meus deveres. Renk não merece o trono,
mas talvez eu também não.
Seu peito se apertou com a dor e a frustração escorrendo de sua voz. — Confie em mim,
todos nós fizemos coisas das quais não nos orgulhamos, eu mais do que a maioria, mas essas
ações não têm influência sobre quem você é hoje. Neste exato momento.
— Deusa Acima, quem é você e o que você fez com minha amiga? — ele brincou.
— Cale-se. Você não é o único que mudou.
Ele estendeu a mão, uma faísca de magia dourada dançando no centro de sua palma. —
Eu estava pensando em visitar a corte da minha mãe.
— Você quer visitar Ashiviere? — Ela colocou seu champanhe intocado
cuidadosamente no parapeito. Ela precisava de seu juízo sobre ela para o teste.
— Eu sei, faz anos que não ouvimos nada deles e eles não morriam de amores pelo meu
pai. Mas meu avô, se ainda estiver vivo, provavelmente marcaria uma reunião
comigo. Afinal, sou do mesmo sangue que ele e, se conseguirmos o apoio deles contra Renk,
podemos ter uma chance.
— Quando você planeja visitá-lo?
— Depois que você passar neste teste e eu te ajudar a encontrar a localização das
pinturas. A menos que você precise de mim para algo mais.
Depois que ela passasse, não se ela passasse. Porque se ela falhasse, nenhum deles seria
permitido voltar ao continente mortal.
Esse era o acordo.
Ela assentiu, ignorando o desconforto que pairava sobre seus ombros ao pensar em Bell
em Eritreyia sem ela, sozinho contra a ira de Renk. — Se você acha que existe a possibilidade
de eles se tornarem aliados, vale a pena tentar.
— Uau— Bell brincou— você realmente mudou.
Ela tinha definitivamente mudado. Alguns meses atrás, ela teria recusado a ideia e não
apenas por causa dos riscos que Bell enfrentava, mas pelas consequências de suas ações à
longo prazo.
Se Renk descobrisse que Bell estava aqui, se ele o capturasse, ou pior, ela não hesitaria
em usar todo o poder de seus poderes contra aquele bastardo chorão e queimar Penryth no
chão, foda-se as consequências.
O que, claro, seria grave.
Assassinar um rei mortal – mesmo um tão merecedor da morte quanto Renk – colocaria
todos os reinos mortais contra ela.
— Pela sombra de Sombreamento, você não deveria estar lidando com isso agora — disse
Bell, com a testa franzida. — Não com o teste chegando em breve.
— Ah, aquilo. — Ela fez um gesto irreverente em contraste direto com a ansiedade
mordiscando suas entranhas. — Você não ouviu? Eu sou filha de Freya. Testes mortais não
me assustam.
— Você é pior que Xandrian — ele gemeu enquanto se afastava do corrimão e se dirigia
para a porta em arco. — Eu vou voltar. Quer se juntar a mim?
Seu tom alegre não conseguia esconder a preocupação em seus olhos azuis brilhantes.
— Eu preciso de alguns minutos para limpar minha cabeça. Peça para eles me buscarem
quando for a hora?
Sua boca se abriu como se fosse discutir. Então, ele acenou com a cabeça, seu olhar
preocupado demorando-se nela por mais um segundo, e abaixou-se sob a bandeira das flores.
Ele mal tinha saído antes que seus sentidos percebessem um peso no ar, uma sensação de
formigamento.
Stolas.
Ela foi forçada a se esconder sob o dossel de flores de videira sobre a porta, mas
quando Stolas entrou na varanda repentinamente pequena demais, ela poderia jurar que as
flores de madressilva recuaram para permitir a passagem dele.
Deusa a salve, ele era lindo. Especialmente agora, banhado na luz etérea do crepúsculo,
suas asas captando cada pedacinho do brilho moribundo do sol e refratando-o em um
caleidoscópio de cores. Seu cabelo foi empurrado para o lado, alguns fios sedosos mais
ondulados do que o normal enquanto se enrolavam em torno da base de seus chifres.
Seus dedos flexionaram contra a necessidade de correr os dedos por seus cabelos
desgrenhados enquanto ela levantava uma sobrancelha. — Está aqui para me buscar?
— Te buscar? — Ele fechou o espaço entre eles, seus lábios curvados em diversão. —
Você é um paletó para ser buscado? Além disso, eu pareço do tipo de pessoa que busca algo?
— Você sabe o que eu quero dizer. — Ela não ia jogar seus jogos. Não essa noite.
— O rei vai mandar chamar você em alguns minutos, mas — ele estendeu a mão, de
repente, e ela endureceu, seu olhar prendendo o dela enquanto ele pegava sua taça de
champanhe intocada da grade— não é por isso que estou aqui.
Ela engoliu em seco, lutando para não reagir à sua proximidade. Para não ficar
boquiaberta com os planos lisos e musculosos de seu peito esculpido em mármore
espreitando por sua túnica desabotoada. A coluna forte de sua garganta.
Se ele soubesse como ela se sentia em relação a ele, como seu corpo estava reagindo
mesmo agora com o teste se aproximando como uma sombra escura, ele poderia oferecer
seus serviços novamente.
E ela não podia aguentar aquela humilhação crua.
Não esta noite, nunca mais.
— Então, o que você quer?
Ele tomou um gole meticuloso do champanhe, estudando-a sobre a borda do copo com
aqueles olhos prateados com contornos de âmbar.
— Quer? Eu quero muitas coisas. Mas, neste momento, estou simplesmente me
esforçando para divulgar as informações que reuni durante meu tempo com Eros.
— Informações? — Ela se acomodou contra a grade quando sua motivação ficou
clara. — É por isso que você o convidou para sair?
Seus olhos brilharam. — Que outro motivo haveria?
— E porque você visitou um bordel — ela acrescentou, incapaz de deixar essa parte
passar.
— Eros estava começando a ficar sóbrio, então eu posso tê-lo guiado acidentalmente em
um estabelecimento muito elegante, que por acaso oferece esses serviços, sim.
O sabor amargo da decepção cobriu sua boca. — Eu não achava que Eros fosse o tipo.
— Ah, ele não é. Ele permaneceu fiel a Neri apesar das muitas ofertas para servi-lo
gratuitamente. Parece que ser um rei tem suas vantagens. — Ela abriu a boca para questioná-
lo, mas ele acrescentou: — Eu precisava que ele bebesse, porque precisava que seus lábios se
soltassem e qualquer homem, mesmo um rei, tem dificuldade em dizer não a uma dose de
conhaque quando é apresentado entre os seios de uma mulher.
Suas sobrancelhas se ergueram quando uma fita quente de ciúme se desenrolou dentro
dela.
O rei pode ter se contido, mas e você?
As palavras pairaram entre eles não ditas, embora ela não tivesse o direito de fazer tal
pergunta. Se ele tivesse tentado ler a alma dela, ele teria percebido a verdadeira emoção em
seu rosto enquanto ela segurava seu olhar.
Em vez disso, ele confundiu sua expressão de dor com desgosto.
— Você desaprova? — Ele observou como a mão dela roçou sua garganta, aquele olhar
afiado absorvendo cada movimento dela. — Nunca escondi o que sou. Nunca afirmei ser
bom ou decente e certamente não sou um cavalheiro. O que eu sou é seu, uma criatura
perigosa totalmente dedicada a uma tarefa: mantê-la segura. E se isso significa frequentar
bordéis, debochar de reis ou abrir a garganta de alguém, farei isso sem hesitação.
Você é meu em todos os sentidos, menos o que eu desejo.
Mais palavras que ela nunca diria em voz alta. Ela inalou uma lufada de ar salgado
enquanto se forçava a admitir a verdade. Ela estava sendo injusta, cruel até. Tudo o que ele
fazia estava a serviço dela. E mesmo que tivesse dormido com uma das mulheres que sem
dúvida o tentaram, e daí?
Era seu coração que ela queria reivindicar, não seu corpo.
Mentirosa. Ela deixou seu olhar disparar sobre seu peito novamente, imaginando as
linhas duras de seu estômago abaixo. A forma como esses músculos rígidos se pareceriam
sob suas palmas e...
Todo ele. Ela queria tudo dele e a ideia de outra mulher chamando sua atenção, tocando-
o...
— Você está em chamas.
— O quê? — Ela piscou quando um clarão de luz atraiu seu foco para a manga de sua
túnica. Sua túnica flamejante.
Com um movimento de seus dedos a chama se apagou. — Quem diria que sua
desaprovação seria tão forte que você pegaria fogo?
Sombra do Sombreamento, isso tinha que parar. Ela limpou a garganta. — O que você
aprendeu durante seu tempo com o rei?
Ele inclinou a cabeça por um momento como se estivesse ouvindo para garantir que eles
estavam sozinhos. — Eros é um homem inteligente e, mesmo embriagado, deu muito
pouco. Mas consegui juntar os pequenos detalhes que ele admitiu para tecer uma teoria
funcional.
— Continue.
— Aparentemente o pequeno Renk tem estado ocupado promulgando leis sobre
magia. Uma dessas leis estipula que os mortais comuns que possuem magia proibida não
serão condenados à morte se se declararem à Casa Boteler.
Suas mãos se curvaram sobre a borda do corrimão. — O quê? Por que Renk lhes
ofereceria uma trégua?
— Não pela bondade de seu coração, o Sombreamento sabe disso. Ele afirma que a
Maldição esgotou completamente as Nove Casas de magia e que a exceção à lei da Deusa é
para o bem maior.
Haven bufou. — Quem acredita nisso é um tolo. O que Eros pensa?
— O rei ficou cauteloso quando pressionado diretamente, apesar de ter bebido centeio
suficiente para atordoar um pequeno dragão, mas consegui inferir suas suspeitas. — Stolas
arrancou uma flor de madressilva de uma trepadeira ao longo da parede e girou as pétalas de
tangerina entre seus dedos hábeis. — Parece que tem recentemente havido alguns mortais
comuns que desenvolvem magia, alguns bem antes da idade rúnica. Ninguém sabe por
quê. O próprio Eros enviou vários conjuradores de luz comuns para Penryth, alguns com
apenas nove anos mortais.
— E?
— E os conjuradores de luz de Veserack entregues a Renk desaparecem
misteriosamente. Renk tem desculpas. Um escapou, outro não tinha magia afinal, não que
Renk precise de explicações, porque a maioria dos reinos nunca se preocupa em checar seus
cidadãos depois que eles são entregues. Eles estão simplesmente felizes por se livrar do
problema.
Problema. Um arrepio percorreu sua espinha. Qualquer criança comum que não fosse
de uma casa real encontrada com magia era executada. Essa era a lei. Em tempos como esses,
é claro que os reinos desistiriam de qualquer suspeito de conjurar luz fora da lei sem fazer
muitas perguntas.
— Renk provavelmente nunca sonhou que Eros se daria ao trabalho de checá-los — ela
murmurou.
— Aquele homem tem uma mente perigosamente curiosa. Desde então, ele registra
secretamente os destinos dos conjuradores de luz enviados de outros reinos.
— Você deve ter usado cada grama de charme que possui para arrancar tudo isso dele.
— Posso ser incrivelmente charmoso, quando necessário. — Seu sorriso era
positivamente perverso. — Você duvida de mim?
Deusa salve-a.
Desejando que seu coração se estabilizasse, ela disse: — E? O que você descobriu?
Sua voz se aquietou. — É como se eles tivessem desaparecido.
Outro calafrio a engolfou quando ela de repente entendeu, embora desejasse que não o
fizesse. — Eu sei o que ele está fazendo. Ele está drenando a magia deles para si mesmo da
mesma forma que tentou tirar a de Bell.
As narinas de Stolas se dilataram com raiva mal contida. Para aqueles com magia, o ato
de roubá-la – que era bem diferente do drenamento de magia temporariamente que ele
praticava – era blasfemo, além de depravado. — Eros não disse isso abertamente, mas
acredito que essas são suas suspeitas, assim como acredito que Eros pode estar abrigando
conjuradores de luz proibidos. Logo, depois que Renk aprovou essa lei, ele reuniu um
conselho dos senhores de territórios e reinos vizinhos e fez outra passar. Agora, é uma ofensa
mortal para um reino esconder alguém com magia.
— É por isso que ele quer a aliança. — Não era uma pergunta. Exalando, ela se inclinou
contra a grade enquanto uma pedra de gelo inchava em seu estômago. — Se Renk realmente
está tomando a magia deles para si, é apenas uma questão de tempo até que Renk seja o
mortal mais poderoso de Eritreyia. Ele estará livre para pegar o que quiser, de quem
quiser. Eros os está escondendo não da bondade de seu coração, mas por uma questão de
sobrevivência...
Ela inalou bruscamente quando as ramificações disso ficaram claras.
— Sim, esse é o meu pensamento.
— Então, por que esconder isso de nós? — Ela não podia deixar de sentir que ainda
estava faltando alguma coisa. — No mínimo, saber nos deixaria mais desesperados para
formar uma aliança.
Seu sorriso disse que ele estava feliz que ela notou. — Eu o teria mantido fora por mais
tempo para descobrir a última peça do quebra-cabeça, mas presumi que se ele perdesse o
jantar, Neri o evisceraria publicamente.
— Ela ainda pode — Haven murmurou, lembrando do olhar furioso de Neri quando
seu marido retornou. — Mas antes de arrastá-lo para o... estabelecimento após o expediente,
ela estava genuinamente feliz que ele estava se divertindo. Eu acho... acho que faz muito
tempo desde que Eros teve um amigo.
As sobrancelhas pálidas de Stolas se juntaram enquanto ele olhava para a baía. — Devo
admitir, gosto dele muito mais do que pensei que gostaria. Ele é tão inteligente que, quando
ficar totalmente sóbrio, reunirá minhas intenções e, então, qualquer amizade entre nós será
impossível. Mas não me arrependo.
Seu perfil estava para ela, o último pedaço de luz do sol poente refletindo nas inclinações
angulares de suas maçãs do rosto e destacando a extensão proeminente de seus cílios. Uma
brisa leve agitou suas penas.
Ela estava prestes a falar, apenas para quebrar o súbito silêncio, quando ele se virou para
ela. — Eu nunca vou me arrepender do que faço – ou dos sacrifícios que faço – por você,
Pequena Fera. Nunca.
Foi o jeito que ele disse isso, ou talvez o jeito que ele olhou para ela, ou talvez ambos que
fizeram seu estômago afundar e seu coração pular no peito.
Ambos se viraram de repente quando passos soaram do outro lado da porta. E, quando
o criado do rei espiou sua cabeça sob a tapeçaria de madressilvas, Haven conseguiu criar
espaço entre ela e Stolas.
Depois de uma rápida reverência – e alguns olhares aterrorizados para Stolas – o
atendente os informou que estava na hora.
Ao saírem da privacidade da sacada e serpentearem pelos corredores em direção ao rei,
anunciados por uma multidão reunida de cortesãos e criados, os pensamentos sobre Stolas
ou a maneira como ele a olhara se desvaneceram. Substituído pelo martelar rítmico de seu
coração e uma determinação cada vez maior.
Por mais que Eros quisesse desesperadamente essa aliança, ainda era um risco
enorme. Um que ele nunca aceitaria sem validar que ela era, de fato, a Nascida da Deusa.
O que significava passar neste teste usando qualquer meio necessário.
O teste que Haven estava esperando – um enigma, uma espécie de competição
mágica, uma demonstração crua de seu poder – nada disso a preparou para o que Eros havia
realmente planejado. Eles levaram quase uma hora para percorrer o caminho ao longo da
costa arenosa, seguindo um largo estuário que contornava a cidade e percorria para seu
interior.
Eros liderava o caminho. Ele estava acompanhado por Neri, seus filhos, um punhado de
conselheiros e os mesmos doze guardas reais que o seguiam em todos os lugares. Eles pararam
em uma grande enseada ladeada por penhascos de calcário quase verticais. Uma faixa pálida
de areia se desdobrou sob seus pés, repleta de pedregulhos e grama azul.
Enquanto os guardas conduziam a pequena multidão ao longo de um caminho estreito
para os penhascos acima, Haven esticou o pescoço para espiar o céu claro da noite. Delphine
e Surai estavam em algum lugar acima, explorando as terras caso Eros não fosse tão sábio
quanto ela pensava originalmente e isso fosse uma armadilha elaborada.
Uma vez que ela viu as duas sombras gravadas contra as estrelas - uma pequena e uma
grande - ela relaxou, voltando sua atenção para a enseada, onde a lua brilhava contra a
superfície imóvel como vidro.
— Talvez seja uma competição de natação — ela murmurou, forçando um sorriso para
esconder seus nervos.
— Ou alguma cerimônia grosseira que envolve nadar juntos nus— Xandrian brincou,
não parecendo nem um pouco perturbado com a ideia. Ele pegou a sobrancelha levantada
de Stolas e acrescentou: — Reis mortais são conhecidos por serem depravados e mais do que
alguns adorariam reivindicar uma noite com imortais como nós.
Stolas estalou a língua quando seu foco deslizou para as pessoas que observavam
acima. — E os espectadores?
Xandrian ergueu um ombro. — Não seria a primeira vez que um rei iria querer uma
audiência.
Bell encontrou seu olhar divertido. — Algum sinal de selkies?
Deusa só podia esperar que não. No extremo sul, selkies e outras criaturas aquáticas
normalmente ficavam longe das águas interiores próximas às cidades mortais. Nada deixava
os homens mais excitados para caçar do que o sussurro de uma selkie infestando as águas
próximas.
E Haven ainda não tinha superado quase se afogar na última vez que ela nadou em águas
infestadas de selkies, antes de Archeron...
Ela jogou o pensamento para longe como se fosse fogo, mas não antes que ele queimasse
as camadas de defesas que ela construiu e permitisse que memórias indesejadas
aflorassem. Os braços de Archeron firmes e protetores ao redor de sua cintura enquanto a
salvava do afogamento, a briga que tiveram depois. Ela queria marcas de runas e ele se
recusou a cogitar a ideia por causa das consequências. Ela pensou que ele estava sendo
excessivamente cauteloso e teimoso.
Se ela soubesse...
Eros estava se aproximando. Enviando as memórias indesejadas deslizando de volta para
o buraco onde ela enterrou todas as coisas com Archeron, Haven voltou a se concentrar no
rei, endireitando seus ombros enquanto o fazia. — Se eu soubesse que iríamos nadar, teria
trazido minha roupa de banho.
Seu lampejo de dentes não podia ser considerado um sorriso. — Como você sabe, depois
que a Maldição caiu, a cidade de Luthaire resistiu por centenas de anos antes que o caos
sangrasse no palácio. A realeza fugiu, levando com eles seus pertences mais preciosos,
principalmente artefatos mágicos inestimáveis, presentes dos Asgardianos.
— O êxodo repentino deles está documentado nas histórias — respondeu Haven,
perguntando-se para onde ele queria chegar com a história.
— Na estrada, eles foram atacados por ladrões e criminosos. Temendo que as heranças
passadas por milênios fossem perdidas, eles esconderam os mais poderosos de seus pertences
em cavernas e estuários, com mapas cuidadosamente escritos que detalhavam suas
localizações.
Haven alisou uma mecha solta de seu cabelo sendo soprada ao redor de seu rosto pela
brisa suave. — Você quer que eu recupere um desses artefatos?
Tal esforço dificilmente parecia um desafio, ou valeria a pena seu tempo.
Ele empurrou o queixo para o penhasco mais alto e ela seguiu seu olhar para uma área
sombria na metade da face vertical. — O último tesouro perdido está escondido dentro
daquela caverna. Traga-o para mim e você terá sua aliança.
Haven engoliu enquanto algo a incomodava. Algo importante. — O que vou
recuperar?
— Procure uma caixa de ferro coberta de runas antigas. — A boca dela se abriu para
responder e ele acrescentou: — O que está dentro não é importante.
Algo ainda a incomodava. Um sentimento de algo não muito certo. Enfiando a ponta
de sua túnica no cós, ela estudou a enseada, os sentidos disparando, tentando discernir o que
a incomodava...
— Está quieto demais — ela murmurou. — Não há pássaros ou peixes, nada na água ou
nas árvores próximas.
Ela desviou o olhar de volta para a praia para encontrar os olhos de Stolas a observando,
o anel de ouro ardente brilhando em advertência.
Ele também sentiu.
— Ah. Deixei de mencionar o orc do mar que vive na caverna acima? Minhas desculpas,
culpo as grandes quantidades de uísque e centeio que consumi mais cedo.
Se seu sarcasmo cortante em suas palavras não foram claras o suficiente, o tom ácido não
deixou dúvidas de que Eros sabia que ele tinha sido usado para obter informações - e ele não
estava satisfeito com isso. Stolas arqueou uma sobrancelha divertida antes de lançar-lhe um
olhar de desculpas.
Runas. — Você também esqueceu o quão grande é esse orc do mar?
— Grande o suficiente que eu não ousei enviar nenhum dos meus próprios homens para
recuperar o tesouro.
Sua mão tremulou até o punho de sua espada curta que, de repente, parecia um
brinquedo contra o que ela enfrentava. — Bell, refresque minha memória sobre orcs do mar.
A garganta de Bell mergulhou. — Eles são uma espécie antiga de dragão que vive de
mamíferos marinhos, normalmente baleias, tubarões, focas e um ocasional marinheiro
infeliz. Seus corpos escamosos são longos e serpentinos, suas asas menores do que a maioria
de seus primos. Eles preferem a água à terra ou ao ar e só voam em emergências ou quando
mergulham acima das ondas para avistar suas presas.
Seu intestino se apertou. — Eles respiram fogo?
Em alguma reviravolta cósmica da sorte, alguns dragões pareciam incapazes de usar o
fogo para matar suas presas.
— Os relatos que li sugerem que eles caçam batendo em suas presas de cima da água,
atordoando-as e depois usando suas garras traseiras para eviscerar o animal.
Pelos portões do Submundo, Bell lia demais. — Maravilhoso. Alguma fraqueza ou
sugestão além de evitar suas garras?
— Em terra eles são desajeitados e lentos, especialmente se comeram recentemente. —
Seus olhos foram para a boca sombria da caverna antes de encontrar os dela novamente. —
Na água, eles são assassinos letais.
— Fique longe da água. Anotado. — Infelizmente, o único caminho para a caverna que
ela podia ver era pela face rochosa do penhasco de calcário. E o único caminho para a face
do penhasco era através da água.
Franzindo o cenho, ela passou alguns cenários mágicos em sua cabeça, apenas para
descartá-los com a mesma rapidez. O wyvern de Damius estava sintonizado até mesmo com
o menor sopro de magia da mesma forma que algumas criaturas estavam sintonizadas com
vibrações ou cheiros. Era uma das razões pelas quais Damius manteve a fera apesar da
fortuna que gastava mantendo-a alimentada e hidratada.
No momento em que ela usasse um sussurro de poder, o dragão sentiria e saberia que
ela estava lá.
Na melhor das hipóteses, ela não teria que usar seus poderes, em vez disso, esgueirando-
se pela criatura enquanto ela dormia.
Ignorando o pior cenário alternativo, ela estalou o pescoço e se espreguiçou, desejando
ter pensado em trazer uma arma maior. Então, ela se inclinou e desamarrou primeiro as
botas, em seguida, a parte superior de sua túnica, tirando os pés descalços, calças e camiseta.
Os lábios de Stolas se contraíram nos cantos quando ela tirou o cinto...
Revirando os olhos, ela jogou o pesado acessório de fivela no rosto dele e manteve
as calças. Agora substancialmente mais leve e desimpedida, ela mergulhou um dedo do pé
na água jade escura, lutando contra um calafrio quando o frio penetrou em seu corpo.
— Pelo menos sabemos que qualquer selkies teriam sido comidas— ela gritou enquanto
mergulhava mais fundo na água escura.
Ninguém respondeu. Lado positivo, Ashwood.
A travessia a nado foi sem intercorrências. No momento em que ela alcançou um
despejo inclinado de pedra plana e pálida na base do penhasco, seu corpo se ajustou ao
frescor.
A água escorregando em suas palmas foi depositada no líquen agarrado a uma
pedra. Então, ela esticou a cabeça enquanto seguia a rocha vertical com o olhar para cima,
traçando rapidamente a rota mais segura com as maiores possibilidades de apoio.
Aqui vai nada.
Suas calças de couro encharcadas rangeram suavemente quando ela começou a
subir. Sua respiração acelerou para dentro e para fora com o ritmo suave de seu
coração. Tudo o que ela precisava fazer era ficar calma, passar pela criatura e voltar com a
caixa do tesouro.
Quando a boca da caverna apareceu, ela lentamente levantou a cabeça para espiar na
escuridão. O leve odor de peixe podre emanava do enclave, mascarando um cheiro selvagem
e primitivo que enrolou em sua espinha e cobriu suas palmas de suor.
A reação foi um aviso instintivo para recuar quando uma voz insistente sussurrou corra,
corra, corra.
Em qualquer outro momento, ela poderia ter escutado.
Maldito Eros e seu amor por jogos. Sem dúvida, este era mais um experimento para
satisfazer sua curiosidade da mesma forma que enviar duas mulheres a Stolas.
Apertando a mandíbula, ela deslizou sobre a borda da caverna, suas bochechas
pressionando contra o líquen e o musgo, e ficou silenciosamente de pé. Uma vez que seus
olhos se ajustaram o suficiente para distinguir as paredes, ela começou a tarefa de mergulhar
mais fundo nas sombras. Cada passo era um estudo de força de vontade. Seu corpo coçava
para se virar. Seus músculos travados e carregados, prontos para fugir ao primeiro sinal de
perigo.
Agachada, ela moveu-se de ponta a ponta, mantendo todos os músculos contraídos para
aliviar a força de seus passos. A tarefa se tornou mais árdua quando ela penetrou em uma
câmara menor e entrou em contato com ossos. O luar era um mísero gotejar aqui, então ela
navegou pelo toque e pelo delicado brilho prateado de suas marcas de runas.
Suas runas de carne.
Seu erro a atingiu de uma vez.
A magia que vazava de suas marcas de runa era fraca, um mero fio de poder perfumando
o ar. Igual ao cheiro do orc do mar, era um aviso para as poucas criaturas que conseguiam
captá-la. A maioria nunca conseguia. Mesmo poderosos Senhores do Sol não tinham a
capacidade de sentir o traço de energia que suas marcas de runa constantemente emitiam.
Mas como uma das criaturas mais antigas existentes, os dragões eram altamente sensíveis
até mesmo a um toque de magia.
Um toque que agora preenchia o espaço fechado a cada segundo que ela permanecia.
Uma vibração penetrou em seus pés descalços e em seu peito, como algo pesado e grande
movendo-se sobre as paredes. As escamas rasparam a pedra quando algo farejou o ar.
Perto - estava perto demais. Possivelmente nesta mesma câmara.
Possivelmente ao lado dela.
Seu corpo inteiro se apertou contra seu impulso irresistível de fugir e ela recuou
lentamente, uma mão no punho da espada. As vibrações vinham de todos os lugares
agora. Altas o suficiente para bloquear sons e distorcer seus sentidos. Seu coração martelava
em seus ouvidos. O fedor de peixe podre entupiu sua garganta e fez seus olhos lacrimejarem.
Uma parede quase tirou o ar de seus pulmões. Ela congelou, vasculhando as sombras
para a abertura que levava de volta para a primeira câmara.
Ela estava virada para o lado errado? Ela tinha perdido a saída?
O estrondo era ensurdecedor agora. O dragão acelerando pelos túneis enquanto o som
ficava mais alto.
Nenhuma razão para esconder sua magia agora; ele sabia que ela estava aqui. Um orbe
de ouro voou de sua palma molhada no ar, perseguindo sombras e iluminando as paredes da
caverna. Piscando, tentando se orientar enquanto o chão abaixo dela balançava e terra e
pedras choviam do teto, ela se virou e ficou cara a cara com um olho.
Um olho amarelo fendido do tamanho de sua cabeça.
A pupila alongada se contraiu e se dilatou quando o hálito quente e fétido atingiu seu
rosto, soprando seu cabelo para trás e levando-a quase a vomitar.
Por um instante atordoado, eles olharam um para o outro – fera e mortal, executando
aquela dança milenar decidindo quem era o caçador e quem era a presa. Não demorou
muito para que ambos caíssem em seus lugares na cadeia alimentar.
Presa. Ela era a presa.
A explosão de magia de luz que explodiu dos dedos de Haven rolou sobre a cabeça do
orc do mar, revelando uma criatura magnífica diretamente de um dos livros de histórias de
Bell. Pés com membranas e garras pretas abaixo de um corpo serpentino coberto de pele
azul-viridiana lisa. Milhares de escamas iridescentes de cerceta e ônix cintilavam como joias.
Era possivelmente a criatura mais bonita que ela já tinha visto de perto.
A cabeça da fera afastou-se da luz. Pedaços de pedra se partiram quando se chocaram
contra a parede. Perdendo outra rajada de fogo chamuscante, ela se abaixou sob sua cabeça
oscilante e disparou em direção ao brilho do luar prateado à frente.
Se ela pudesse atraí-lo para fora de alguma forma...
Se ela pudesse, de alguma forma, enganá-lo na água abaixo enquanto ela estivesse na
parte de cima por tempo suficiente para erguer um escudo, selar a entrada e pegar a caixa...
Rocha e poeira explodiram atrás dela. Algo estava roçando seu pescoço. Picando e
queimando enquanto um brilho laranja dançava sobre as paredes e a fumaça preta subia
sobre sua cabeça...
Fogo. A maldita coisa cuspia fogo. Bell nunca ouviria o fim disso.
Ela atirou orbes gêmeos de magia de luz e escuridão juntos e, então, desenhou uma runa
protetora na esfera mágica. Ela se enrolou ao redor dela para formar um escudo quando o
peso total das chamas do orc envolveu a câmara e irrompeu da entrada da caverna na noite.
Ela imaginou Bell franzindo a testa com a evidência de seu erro enquanto fogo vermelho
faminto lambia ao redor dela, arranhando o escudo. Embora erguido às pressas, o escudo era
sólido. Ainda assim, o calor era tão grande que parte dele se infiltrou através da barreira
mágica e transformou a água de suas roupas em vapor.
Pernas agachadas e prontas, ela esperou que o fogo retrocedesse na escuridão e, então,
mergulhou em direção ao céu ao longe. Seu joelho bateu em algo duro, mas ela mal sentiu.
Outro beijo de fogo em seu pescoço. Outro escudo. Ela esperou o fogo apagar e, então,
continuou. O cheiro de roupas chamuscadas, cabelo e musgo sufocava a caverna. Um berro
cheio de raiva ecoou pela câmara logo atrás dela, sacudindo as paredes da caverna.
A borda da caverna apareceu de repente. Não havia para onde ir. Girando para enfrentar
a fera que se aproximava, ela puxou sua espada. A luz azul escura se derramou pelo
comprimento da lâmina quando o dragão contornou a esquina final.
Sua cabeça enorme apareceu lentamente, balançando para cima e para baixo enquanto
seu olhar predatório seguia sua magia, fios escuros de fumaça escorrendo de sua boca aberta.
— Eu não quero te matar— ela sussurrou. — Eu... preciso de algo nesta caverna.
Um estrondo baixo e gutural veio da fera enquanto a observava. Não estava mais se
aproximando, a parte superior de seu longo corpo serpentino enrolado e empilhado para
bloquear a entrada, seus olhos primordiais brilhando suavemente.
A forma como o dragão piscou para ela, observando, esperando – havia uma vasta
inteligência ali.
Talvez estivesse saciado de uma refeição recente, ou não a achasse particularmente
atraente, mas a criatura a estava deixando sair. Ele só parecia se importar em impedi-la de
entrar nos túneis atrás dele.
Ele estava protegendo o tesouro perdido? Alguns dragões ficavam obcecados em
colecionar e guardar joias e outras bugigangas. Pelo menos, de acordo com o mito.
Uma lufada de ar quente e esfumaçado saiu de sua mandíbula e rolou sobre ela. Como
se a fera não pudesse entender por que ela estava hesitando.
Você e eu, amigo.
Matar a coisa parecia fácil dez minutos atrás. Tudo o que Haven conhecia da espécie do
dragão era o wyvern de Damius, Sombra, uma besta cruel totalmente sob a escravidão de seu
mestre. Mas agora, cara a cara com o orc do mar, sua magnificência em plena exibição e olhos
cheios de sensibilidade humana, o pensamento de destruí-lo a deixou doente.
Havia duas opções que ela podia ver e nenhuma delas era promissora. Ela poderia matar
a bela criatura - ou ela poderia tentar amarrá-la pela alma.
Matá-lo seria lamentavelmente fácil. Seu suprimento infinito de magia cuidava
disso. Amarrar a alma seria quase impossível. Ao contrário dos vorgraths primitivos, os
dragões eram seres antigos e inteligentes que levavam anos para serem totalmente vinculados
à alma.
Mas apenas um caminho a deixaria dormir à noite. Com um suspiro dramático, ela
deslizou sua espada de volta na bainha. O dragão se encolheu um pouco com o
som. Segurando seu olhar, ela rolou os ombros e lentamente começou a alcançar sua
mente. Procurando. Incitando. Procurando um caminho dentro de seu ser. Para qualquer
coisa que ela pudesse se agarrar.
Ao mesmo tempo, ela gentilmente deslizou seus pensamentos em direção a ele, pequenas
ondas de conforto destinadas a acalmar.
Não estou aqui para te machucar.
Sua mente colidiu contra uma concha protetora.
Você é lindo, magnífico.
A casca amoleceu como couro sob suas palavras.
Eu sou sua amiga.
A pupila do dragão se contraiu em um mero crescente de preto quando ela sentiu o
menor dos buracos romper aquela parede protetora.
Eu sou a filha da Deusa Acima, a Deusa de todas as criaturas grandes e pequenas.
Uma bufada suave enviou poeira carbonizada e detritos girando em torno de seus pés.
Não vou te machucar.
Rápida como um relâmpago, ela passou pela brecha e entrou em sua mente.
Em vez de pensamentos, fumaça, enxofre e fogo formavam imagens que passavam
correndo. Caçando baleias negras nas profundezas do golfo. Contornando a cidade onde os
homens viviam. Homens que o caçavam. Que queriam matá-lo.
E, então, Haven viu o que o orc do mar estava escondendo. Protegendo.
Não joias ou tesouros.
Algo infinitamente mais belo e precioso.
Dragões. Seus dragões. Eles estavam em algum lugar seguro nos recessos da
caverna. Algum lugar...
Um grito cheio de raiva cortou o ar. Antes que Haven pudesse reagir, ela foi ejetada da
mente do dragão, tão violentamente que por um batimento cardíaco dentro de seu próprio
corpo, ela não podia ver.
E, quando sua visão voltou uma fração de segundo depois, era tarde demais.
Uma parede de fogo agitada estava correndo em direção a ela, o calor borbulhando em
sua fúria absoluta.
Ela não teve escolha a não ser uma - pular.
Foi só quando ela caiu no ar em direção à enseada que ela se lembrou do conselho de Bell
para ficar longe da água.
Haven mal tinha engolido uma lufada de ar antes que a água a esbofeteasse de seus
pulmões. Ela afundou, as pernas chutando na esperança de encontrar areia para empurrar,
e não encontrando nada. Agarrando seu caminho para a superfície, ela vasculhou o céu até
encontrar a boca do penhasco acima.
Se a Deusa estivesse sorrindo para ela, o orc do mar decidiria que ela não era mais uma
ameaça e...
Uma maldição escapou de seus lábios quando ela viu a criatura descendo o lado do
penhasco. O luar dançava em suas escamas de peixe, pintando sua carne lisa de um azul-
prateado pálido. Pedregulhos caíram em seu rastro, enviando ondas batendo sobre sua
cabeça.
O dragão estava chateado, compreensivelmente. Como qualquer boa mãe
estaria. Haven mergulhou, lançando esferas de magia dourada ao redor dela para obter luz
enquanto ela se lançava em direção à costa. O impacto do orc entrando na enseada
reverberou pela água e depois... silêncio.
Na água, eles são absolutamente letais.
Não faria nenhum som enquanto a perseguia. O golpe seria rápido como um relâmpago,
sua morte acabaria antes que ela pudesse registrar a dor.
Ela tinha alguns segundos, na melhor das hipóteses, para matá-la primeiro.
A menos que...
A runa para controlar a água era uma simples figura oito e uma estrela de cinco pontas
entrelaçadas. No momento em que ela terminou o símbolo, ela se agarrou à água com sua
mente. Imaginou-a enrolado em seus dedos como algas marinhas, lisa e flexível.
Então, ela jogou os dois braços para fora. Houve um grande som sibilante quando a água
subiu para a direita e para a esquerda, dividindo-se em torno dela em duas ondas crescentes.
Quando as ondas estavam quase tão altas quanto o penhasco e o caminho tinha pelo
menos seis metros de largura, ela se lançou em direção à praia, a areia empurrando entre os
dedos dos pés e fazendo-a trabalhar duas vezes mais.
Agora, ela pelo menos veria o orc do mar chegando, comprando Haven alguns segundos
antes da morte.
Os detritos espalharam-se pelo caminho arenoso. Rochas, montes de algas, alguns
peixinhos se debatendo. Ela manteve os olhos fixos nas duas paredes de água enquanto
saltava sobre as trincheiras e contornava os pedregulhos, sua trança encharcada batendo para
cima e para baixo em seu ombro.
Uma sombra longa e serpentina cintilou contra a parede verde escura à sua
direita. Chegou e se foi.
Um súbito pânico a atingiu. E se atacasse os outros?
Não, eles teriam escudos erguidos. Escudos poderosos e impenetráveis alimentados por
sua magia coletiva.
Seis metros permaneciam até a costa. Se ela pudesse encontrar um terreno sólido antes
que seu feitiço acabasse...
Uma explosão de água puxou sua atenção para a direita bem a tempo de ver o orc do mar
surgindo em sua direção. Ela se abaixou, rolando sobre o ombro direito e ficou de pé do
outro lado do orc.
A criatura era tão longa que metade de seu corpo ainda permanecia na água enquanto a
outra metade estava enrolada ao longo do caminho. Aquela cabeça enorme – quase do
tamanho de uma carruagem – balançava para frente e para trás. Pernas dianteiras curtas
cavadas na areia com garras do comprimento de seu antebraço e fumaça enrolada em torno
de dentes brilhantes.
O punho da espada de Haven estava frio e molhado dentro de sua palma. Seu coração
balançou seu peito enquanto seus dedos se curvavam ao redor do metal, os pés cavando na
areia e ela começou a desembainhar sua espada...
Não, uma pequena voz sussurrou na cabeça de Haven. Era tão suave que ela poderia ter
imaginado, até que a voz repetiu: Não. Ela só está protegendo seus bebês.
A voz era infantil, cheia de magia crua e desajeitada. Seu primeiro instinto foi erguer
defesas para evitar que o intruso entrasse em sua mente novamente, mas algo a fez erguer os
olhos. Em direção à multidão no topo das falésias.
Era fácil identificar os filhos de Eros; eles eram os únicos cercados pela guarda real
acima. Seu olhar fixo no menino mais velho e seus olhos se arregalaram quando ele percebeu
que tinha sido pego.
Magia. Os filhos de Eros possuíam magia.
Sua atenção caiu para a boca da caverna e as duas cabeças de dragão pálidas espreitando
das sombras. Um estremecimento a atravessou ao saber que eles testemunhariam a morte de
sua mãe.
Sua espada estava meio puxada. A qualquer segundo, o orc do mar faria chover fogo ao
redor dela. Ela poderia usar a água para se proteger, mas, então, seu domínio se quebraria e
ela estaria na mesma situação de antes.
A única opção que restava era lutar, mas...
Ela tentou alcançar a mente do dragão mais uma vez, apenas para recuar do que sentia.
Ou melhor, via.
Bebês orcs do mar, seus bebês, mortos na água. Lançados por marinheiros. Seus corpos
minúsculos meio submersos.
Mais de uma vez.
A dor e a tristeza da mãe eram como uma onda de agonia caindo sobre Haven. Ela viu a
orc do mar gentilmente carregando seus bebês mortos para a caverna. Viu-a cutucando-
os. Enrolando seu corpo em torno deles em uma tentativa desesperada de trazê-los de volta
à vida.
Haven entendeu a emoção nos olhos da criatura agora. Não raiva, não ódio animalesco,
mas os instintos protetores de uma mãe. Ela faria o que fosse preciso - até mesmo dar a vida
- para salvar os bebês no ninho acima.
Assim como a própria mãe de Haven.
E Haven soube com uma clareza repentina e crua que ela não poderia matar o
dragão. Eros e esta aliança que se danem.
Ela não faria isso.
Ela segurou o olhar intenso do dragão enquanto colocava sua espada de volta em sua
bainha, então levantou as mãos vazias.
— Eu sinto muito pelo que eles fizeram com seus filhos— Haven sussurrou, desejando
suas palavras à distância. — Nenhuma mãe merece isso. Mas eu prometo a você, de hoje em
diante, nenhum cidadão de Veserack vai prejudicar seus filhos ou você, contanto que você
faça o mesmo.
Ela faria Eros cumprir essa promessa. Ameaçá-lo com o que fosse preciso. Ele pode não
querer a aliança agora, mas não arriscaria sua ira por um dragão, mesmo que o tesouro dentro
de sua caverna fosse um artefato poderoso.
Ele era muito racional e astuto para isso.
A orc do mar bufou, enviando areia e detritos voando ao redor dos pés descalços de
Haven e inclinou a cabeça. A longa fileira de barbatanas pontiagudas em suas costas se
esticou e a mão de Haven se fechou enquanto seu coração batia em sua garganta.
Mas ela não sacou sua arma.
Com um guincho gutural, o dragão chicoteou em direção à água e se lançou nas
profundezas. Um momento depois, ela estava arranhando ruidosamente de volta para seu
ninho, sua longa cauda de barbatanas balançando para frente e para trás no ar em
advertência.
Haven olhou para o ninho, observando enquanto a orc do mar e os bebês desapareciam,
antes que o alívio afrouxasse seus ombros. Mas seu alívio durou pouco.
Agora ela tinha que enfrentar Eros e depois explicar aos outros por que ela havia falhado.
Cada passo em direção à costa tornava a dor da derrota um pouco mais cortante. Ela não
se arrependia de ter poupado a mãe dragão, mas o preço daquela vida era difícil de
suportar. Eles voltariam para Shadoria de mãos vazias, sem a aliança que poderia ter evitado
mais derramamento de sangue e lhes dado uma chance.
O grupo ficou quieto quando ela se aproximou. Eros partiu para encontrar sua família
e conselheiros enquanto eles faziam a curta caminhada pelo caminho do penhasco. Ele
provavelmente estava tentando esconder sua decepção dela.
Algas e areia cobriam seu cabelo, suas calças rangendo e gemendo com cada
movimento. Ela se atreveu a olhar para cima para encontrar Stolas já olhando para ela, seus
olhos ilegíveis. E, então, ele lhe deu um sorriso terno e algo dentro dela quase se partiu ao
meio.
Ela limpou a emoção de sua garganta. — Eu não poderia matá-la. Stolas, ela tinha bebês,
eu não poderia fazer isso.
— Eu ficaria desapontado se você tivesse — Stolas murmurou e sua suposição de que ele
estava dizendo isso apenas para fazê-la se sentir melhor morreu quando ela notou a verdade
em seus olhos dourados. — Agora— seu olhar deslizou sobre seu corpo— você está ferida?
Seu peito se apertou. Se ela não tivesse admitido ontem à noite a verdadeira
profundidade de seus sentimentos por Stolas, não havia como negá-los agora.
— Estou bem. Talvez sem alguns dos meus cílios — ela olhou incisivamente para Bell—
mas de resto tudo bem.
Bell cavou uma bota na costa arenosa. — Os livros nunca mencionaram fogo.
— Os livros não podem dizer tudo. — Surai deu um tapinha no ombro de Bell. — A
vida deve ser aprendida com a experiência.
— Você não poderia amarrá-la pela alma? — Xandrian perguntou, seu tom gentil não
escondendo sua frustração. Ela não o culpava, ela se sentia exatamente da mesma maneira.
— Eu tentei. Todos nós podemos ver como isso funcionou.
— E você se recusa a voltar lá em cima e matá-la como todos nós sabemos que você pode?
Seus dentes brilharam. — Ninguém a tocará. Eu prometi a ela que ela estaria segura. —
Ela arrancou um fio viscoso de alga marinha de seu colarinho enquanto uma espiral de
decepção se formava em suas entranhas. — Agora posso informar Eros dessa promessa.
— Informar-me sobre o quê? — Eros ficou atrás dela.
Lentamente, ainda tirando pedaços das oferendas da enseada de sua túnica, ela se virou
para o rei, seus ombros se contraindo com o que ela sabia que encontraria em sua
expressão. — A orc do mar. Prometi a ela que ela e seus bebês estariam seguros enquanto
permanecessem em suas terras.
Sob o luar, o rosto de Eros era difícil de ler. Seu olhar segurou o dela, escuro e cheio de
uma emoção que ela não conseguia nomear, sua boca em uma linha dura. Dois olhos
arregalados de mármore piscavam por baixo do braço do rei enquanto seu filho olhava para
Haven.
Ela pensou ter ouvido a voz infantil dele sussurrar, obrigado, em sua mente.
— Você pode falar com dragões agora? — Eros ainda tinha que piscar. Que fazer
qualquer coisa além de olhar daquele jeito estranho.
— Eu não sei se ela entendeu minhas palavras, mas ela entendeu minhas intenções. E se
você ou alguém aqui fizer mal a ela ou a seus filhos, voltarei pessoalmente para lidar com
você.
Maravilhoso, Ashwood. Por que você não o ameaça apenas para garantir que qualquer
chance de uma aliança esteja bem e verdadeiramente morta?
Mas sua ameaça era real. Ela voltaria se precisasse e o aperto de sua mandíbula diziam
que ele sabia disso.
— Você arriscaria tudo por uma mera criatura? — Eros perguntou, aquela curiosidade
aguda em plena exibição.
Uma respiração deslizou de sua garganta. — Sim.
Eros finalmente piscou. Então, a expressão em seu rosto passou de uma emoção sem
nome para... para admiração e foi a vez dela de piscar quando, uma a uma, todas as pessoas
em sua comitiva caíram de joelhos e abaixaram a cabeça.
A princesa choramingou sobre a sujeira até que Neri lançou à garota um olhar severo
que poderia fazer os Senhores do Sol se encolherem e, então, a rainha e a princesa se juntaram
ao resto.
Curvando-se, eles estavam se curvando. Toda a família real e cortesãos de confiança, até
mesmo a guarda real. Suas capas de seda fina e calças de linho estavam sujas na areia
lamacenta. Os olhos abaixados, as mãos entrelaçadas como se estivessem rezando.
— Eu sei que os mortais são estranhos— Xandrian murmurou atrás dela— mas o que
em nome da Deusa eles estão fazendo?
— Pagando fidelidade a sua verdadeira Nascida da Deusa — Stolas respondeu.
E foi só então que ela se permitiu acreditar no que estava testemunhando.
Esperança.
Engolindo em seco, ela olhou para Eros. — Não entendo. Eu falhei no seu teste.
Eros se levantou, lama e água escurecendo sua capa colorida de espuma do mar e
encontrou seu olhar questionador. — Não havia nenhum artefato antigo para recuperar.
— Eu não... você mentiu?
— Mentir é uma palavra forte. Aquela caverna abrigava as joias mágicas que mencionei,
mas as recuperei no primeiro dia em que cheguei a Veserack. — Seus olhos se suavizaram
enquanto disparavam para a caverna acima antes de retornar para ela. — Tivemos uma sorte
incrível e o orc do mar estava caçando. Seus dragões ainda não haviam nascido.
— Então, por que me mandar para lá? Você sabia que eu teria que lutar. Você sabia...
— Ele não estava testando sua habilidade de recuperar o artefato— Stolas a informou e
havia um respeito relutante em sua voz. — Ele estava testando você.
Eros deu um passo à frente, suas botas chacoalhando na areia molhada. — Eu soube
desde o momento em que você entrou na minha sala do trono que você era descendente da
Deusa. Quando você está com conjuradores de runas por tempo suficiente, você reconhece
o poder e o seu não é como nada que eu já senti. O que eu não sabia é se você era capaz de
misericórdia.
A surpresa fez sua voz sair mais afiada do que o pretendido. — Desde quando reis
mortais se importam com coisas triviais como misericórdia?
— Eu precisava saber se aliar-se a você seria apenas trocar um monstro por outro.
Um monstro por outro. Ela se lembrou de sua versão da profecia, como seu caminho
poderia se ramificar em direção à luz – ou à escuridão.
Se ela fosse ele, ela poderia ter feito o mesmo.
— Então, poupando o dragão... — Ela esperou, forçando-o a dizer as palavras em voz
alta. Para torná-las reais.
— Você passou no teste — ele confirmou. — E ganhou a lealdade absoluta dos reinos
dos Três Quebrados. Nós somos seus. Nossos exércitos. Nossas cidades. Meu
palácio. Enquanto eu me sentar no trono, Nascida da Deusa, juramos obediência a você.
Esta não era apenas uma aliança. Não. Quando a compreensão total a atingiu, um
calafrio a percorreu.
O Rei Eros acabara de lhe dar o comando total dos Três Quebrados.
Era tarde quando eles voltaram para a cidade, então eles ficaram uma última noite,
apesar dos protestos de Haven de que ela estava perfeitamente bem para viajar. Agora que
eles cumpriram sua tarefa – e mais um pouco – seus pensamentos voltaram para Shadoria e
seu povo. Mesmo depois de um banho gloriosamente quente, ela se revirou na cama,
preocupada.
As poucas vezes que ela caiu em seus sonhos, eles foram um pesadelo. Uma repetição
horrível das visões enfeitiçadas de Archeron se repetindo em sua cabeça. Cada detalhe
permanecia. Seus sentidos sobrecarregados com o cheiro de sangue, o som de gritos, o gosto
de cinzas e destruição no ar.
Ao primeiro sinal da aurora rastejando sobre o piso de marfim, ela se levantou, vestiu-se
e arrastou-se para a varanda de jantar pessoal do rei com vista para a cidade portuária.
Um atendente sonolento a deixou passar. A cidade acabava de acordar e o grasnar das
gaivotas misturado com os gritos de pescadores e capitães, o ocasional assobio de navio, a
faziam sorrir.
Ainda estava escuro o suficiente para que arandelas de luz rúnica piscassem sobre a mesa
de mármore branco e com veios dourados, seu brilho suave deslizando sobre o rosto bonito
de seu companheiro - o rei Eros.
Ele não pareceu surpreso ao vê-la quando estendeu o braço, chamando-a para o assento
em frente ao dele. Almofadas azuis e douradas cobriam o banco e ela pegou a mais fofa,
arrumando-a embaixo dela. Talos de sálvia magenta enchiam o centro da mesa, perfumando
o ar salgado do mar com um aroma inebriante que nenhum perfumista jamais poderia
capturar.
— Elas são as flores favoritas de Neri — Eros explicou antes de levantar uma sobrancelha
grossa. — Chá?
Ela olhou para as garrafas fumegando de uma travessa próxima, tentando e falhando em
esconder seu desgosto.
Sua risada ecoou pelas paredes, fazendo com que um atendente meio adormecido
encostado em um pilar saltasse em atenção. — Eu também nunca adquiri gosto pela coisa,
embora todos os membros da realeza dos Três Quebrados não bebam nada além das
melhores ervas de chá, importadas de toda Solissia. O custo desse sortimento sozinho
poderia alimentar cinco famílias.
Ela observou em silêncio enquanto ele servia uma xícara de café escuro, acenando para
o atendente de olhos turvos que tentou ajudar. Sua língua formigava quando o aroma rico
e argiloso do café encheu o ar. Eles beberam em silêncio, Haven nem mesmo se importando
que o líquido queimasse sua língua.
Quando ela bebeu café suficiente para se sentir semi-viva, ela ergueu o olhar para o rei. —
Eu sei por que você queria a aliança. Demorei um pouco, mas entendi.
— Sem dúvida com a ajuda de um certo Senhor das Sombras. — Eros a observou
silenciosamente por cima da borda de sua caneca. Então, ele pousou a xícara, estalou os
dedos e fez os atendentes correrem.
Uma vez que o último criado desapareceu, ela disse: — Há quanto tempo seus filhos
têm magia?
Ele piscou, um longo dedo calejado batendo em sua xícara de café. Então, ele exalou e
olhou para a cidade. — Meu filho mostrou os primeiros sinais, cerca de um mês atrás, logo
após o fim do Praetori Fiernum. Os poderes da minha filha despertaram mais recentemente.
O tempo disso era... interessante. — Você tem uma linhagem mágica?
A sacudida de sua cabeça foi sutil, seu olhar ainda preso em algum ponto invisível da
cidade. — Nenhum.
Eros era tecnicamente de uma Casa dos Nove, mas muitas das casas haviam fraturado há
muito tempo, com centenas de nobres menores reivindicando o sangue dos Nove sem nunca
ter uma fração de habilidades mágicas.
— Então... Onde? — E, no entanto, assim que a pergunta saiu de seus lábios, ela soube
a resposta. — Neri. Quão próxima ela está relacionada com Bell?
Quando os olhos dele encontraram os dela, eles pareciam quase escuros na luz crescente
do amanhecer. Suas narinas se dilataram delicadamente. — O avô do rei Bellamy, o ex-
governante de Ashiviere, é o pai dela.
Haven piscou, tentando encaixar isso no que ela já sabia sobre a corte de Ashiviere – que
era basicamente nada. O contato com Penryth havia cessado após a morte da mãe de Bell, o
reino próximo separado por uma vasta faixa de florestas selvagens e montanhas traiçoeiras.
— Tecnicamente, ela é sua filha bastarda, nascida em segredo de uma das costureiras
reais. A mãe de Neri fugiu assim que percebeu que estava grávida com o filho do rei. Haviam
rumores de que o príncipe Lorenth Ashiviere estava consolidando o poder em uma tentativa
de conquistar o trono de seu pai e ele não teria sido muito gentil com um irmão com
potencial para magia, bastardo ou não.
Lorenth. De onde ela sabia esse nome? Haven brincou com uma borla dourada em seu
assento, desejando que ela tivesse dormido mais na noite passada. — Lorenth... esse é o...
— Tio — Eros respondeu, colocando uma azeitona na boca e mastigando devagar. —
Uma vez que o rei Boteler cortou os laços com o reino, Lorenth logo chegou ao poder. Ele
faleceu recentemente, entregando o reino ao seu único filho, Dram. Até onde ele sabe, a
linhagem mágica de seu avô só semeou na mãe de Bell.
Haven traçou um redemoinho de ouro na mesa com o dedo. Isso significava que Neri
era tia de Bell, embora ela não pudesse ser mais do que sete ou oito anos mais velha que ele e
seus filhos, seus primos. Ela tinha reconhecido a semelhança mais cedo, mas agora, sabendo
o que ela era, era gritantemente óbvio.
E se ela pudesse ver...
— Você tem medo que Renk descubra a conexão eventualmente — Haven disse
lentamente, observando sua expressão— e tente pegá-los.
Seus olhos brilharam de raiva. — A fome do Rei Renk por magia é insaciável. Achamos
que ele está de alguma forma esculpindo a magia das crianças que vêm até ele e depois as
matando, seja no processo ou para esconder o que está fazendo. Embora eu suspeite que
Stolas já a informou sobre isso.
Ela chupou o lábio inferior, tendo o bom senso de pelo menos parecer arrependida pela
pequena traição.
— Não importa — Eros continuou, acenando com a mão em um gesto irreverente. —
Eu teria feito o mesmo no lugar dele.
— Se ajudar, Stolas se sentiu mal depois.
Um sorriso irônico brilhou em seu rosto. — Sério? Um Senhor das Sombras com
consciência é uma criatura rara de fato. — Seu sorriso azedou quando ele se inclinou sobre
a mesa, os olhos escurecendo para a cor de seu café. — Se Renk soubesse quem Neri
realmente é, se de alguma forma descobrisse que nossos filhos têm o mesmo poder que corre
em suas veias como o rei Bellamy, ele... ele...
Seu punho de repente bateu na mesa, fazendo com que as garrafas saltassem e o café em
sua xícara se derramasse.
Ele exalou, seus olhos envergonhados quando encontraram os dela. — Peço desculpas
por perder o controle. Quando se trata de meus filhos e sua segurança, às vezes todo
pensamento racional foge de mim.
Haven sorriu apesar da pontada de tristeza que ela sentiu - e sempre sentiu -
testemunhando o amor de um pai por seu filho. — Faremos o que for preciso para mantê-
los seguros. Especialmente agora que eu sei que eles são a família de Bell, o que os torna a
minha também.
Um lampejo de surpresa ondulou em seu rosto, seguido de gratidão. Ele inclinou a
cabeça. — Você realmente é uma maravilha, Nascida da Deusa. Somente a filha de Freya
poderia possuir um coração tão gentil sob tal ferocidade.
— Cuidado, Rei Eros, ou alguém pode ouvir e pensar que você ficou mole.
Sua risada era tão parecida com a de Bell que ela foi forçada a se lembrar de sua idade,
quão jovem ele era. Este seria Bell em dez anos, se a Deusa quisesse. Com um parceiro ao seu
lado e sabedoria além de seus anos, governando Penryth e trabalhando com Eros para tornar
as terras mortais um lugar melhor.
A visão cresceu dentro dela até que ela pensou que poderia explodir, uma esperança
agridoce que ela mal ousava agarrar, mal ousava rezar, caso ela, de alguma forma,
amaldiçoasse um futuro tão brilhante com sua ganância.
Passos suaves ecoaram pela sacada quando Neri se aproximou, resplandecente em um
manto de seda verde-mar esvoaçante e um vestido marfim solto que beliscava seus pés
descalços. Pequenas conchas douradas pendiam de suas orelhas, tilintando enquanto ela
caminhava pelo pátio.
Mesmo vestida com simplicidade e sem sapatos, ela era uma rainha.
Bocejando, ela avaliou a sacada vazia antes de virar um olhar inquisitivo para Eros. —
Onde estão os atendentes, meu amor?
— Eu os mandei embora para que a Nascida da Deusa e eu pudéssemos conversar em
particular — explicou Eros.
Seu olhar compartilhado permaneceu, comunicando-se daquela maneira silenciosa que
só os amantes podiam antes que uma expressão de conhecimento surgisse no rosto de Neri.
Seus olhos não estavam mais sonolentos quando se voltaram para Haven. — Meu filho
falou com você ontem à noite, na enseada. — Não era uma pergunta, então Haven apenas
esperou. — Eu pensei que ele poderia ter, pelo jeito que você olhou para ele, mas... — Ela
pronunciou o que tinha que ser uma maldição em sua língua nativa antes de voltar para
Solissiano. — Ele está encrencado.
— Não o castigue com muita severidade— Haven disse. — Ele é parcialmente a razão
pela qual eu passei no teste.
— Ah, vejo que ele já te encantou com aqueles olhos grandes de cachorrinho e aquele
sorriso travesso. Muito parecido com o pai dele, aquele lá. — Ela deslizou para a almofada
mais próxima de Haven, esticou-se como um gato e suspirou. — Com todos os atendentes
afugentados, quem vai buscar meu café da manhã?
Haven suprimiu seu sorriso quando, com um gemido cercado, Eros deixou a mesa para
buscar a comida de Neri.
Isso, decidiu Haven. Isso é o que ela queria um dia. Alguém que a amava como Eros
amava Neri. Que a estimava acima de tudo e não pensava em seu ego quando se tratava de
fazê-la feliz.
Qualquer outro rei mortal teria deixado sua esposa de lado quando a oportunidade de
tomar o trono se apresentasse. Sua linhagem sombria e antecedentes comuns tornariam sua
ambição de tomar Veserack e manter os Três Quebrados quase impossível.
No entanto, Haven não tinha dúvidas de que ele morreria antes de deixar uma única
pessoa insultar sua esposa.
Algum dia, quando tivessem mais tempo, Haven perguntaria à Neri a história de como
ela e Eros se conheceram.
Haven ergueu os olhos para ver Neri a observando como se ela conhecesse seus
pensamentos. Talvez sim, porque suas palavras eram sobre amor - de um tipo. Só não entre
ela e Eros. — Nascida da Deusa, eu não quero causar mágoa com o que eu digo... mas o que
eu vi debaixo do mar na primeira noite aqui. Você e o Senhor das Sombras, Stolas
Darkshade, estão...
Apaixonados.
As palavras não ditas pairavam no ar entre elas, ganhando vida própria a cada segundo
que passava. Provocando-a com sua imprecisão de apaixonados implicava que ambos se
sentiam da mesma maneira.
E isso era uma mentira.
Limpando a garganta, Haven repetiu as palavras que passavam por sua mente como um
mantra. — Ele é meu amigo, meu protetor e meu soldado mais confiável. Isso é tudo.
Os lábios carnudos de Neri se apertaram enquanto ela parecia pesar a melhor resposta
antes de finalmente se decidir pela simples verdade. — Ele é mais do que isso para você.
Maldito olhar de Neri que não deixava nada passar. Haven suspeitava que ela tinha
aprendido isso por ser uma criança ilegítima em fuga, sua sobrevivência dependia de ler o
lugar antes de qualquer outra pessoa.
Avaliar as pessoas rapidamente era uma habilidade valiosa – uma que agora servia bem
a ela como rainha.
Haven pegou um grão de suco seco na mesa. — Não importa; ele não sente o mesmo
por mim e eu respeito isso.
Neri bufou. Bufou de verdade. Parecendo menos uma rainha naquele momento do que
uma amiga. Uma amiga muito chata e muito presunçosa. — Haven, sempre que você está
em uma sala, os olhos dele estão em você a cada momento. Seu corpo posicionado em
direção ao seu. Ele está ciente de cada movimento seu, cada desconforto, cada
respiração. Não há mais ninguém que possa chamar sua atenção e, acredite em mim, mais
do que algumas mulheres mortais tentaram.
Uma onda de raiva quente a inundou com o pensamento e ela molhou os lábios com
um copo de água. — Ele é muito protetor.
— Nenhum homem é tão atencioso, não assim. Não todos os momentos de todos os
dias, com as mulheres praticamente se jogando aos pés dele.
Suas mãos se curvaram em seu colo. Neri realmente tinha que ficar mencionando todas
as mulheres que Stolas tinha acesso?
— Acho que você está esquecendo que foi Stolas quem arrastou seu marido para um
bordel.
— Sim, algo que eu ainda tenho que perdoá-lo. Mas Eros disse que Stolas não olhou
uma única vez para as mulheres, algo que nem mesmo meu marido, em quem confio
implicitamente, certamente não fez. — Uma de suas sobrancelhas bem aparadas se
arqueou. — Foi assim que Eros determinou que Stolas o estava usando para obter
informações, a propósito. Depois que ele ficou sóbrio, é claro.
O alívio que Haven sentiu ao ouvir isso foi eclipsado pela frustração. Isso era bobo. Neri
estava cometendo o mesmo erro que Haven, acreditando que a lealdade irrestrita de Stolas
era algo mais do que era. — Você tem que entender Stolas para entender suas ações. Ele é a
pessoa mais obstinada que eu já conheci, singularmente impulsionado à sua causa e, agora,
eu sou essa causa. Seu dever é me proteger, mas isso é tudo que sou para ele: uma causa.
Seu coração disparou quando ela articulou as palavras em voz alta, dando vida a elas.
Pela primeira vez, ela se perguntou se Stolas poderia estar se jogando na tarefa de protegê-
la para se distrair de seus demônios.
Demônios que ela estava começando a suspeitar eram do tamanho de um pequeno
exército.
Ao focar todos os seus momentos de vigília em Haven, ele não tinha que enfrentar a
montanha de traumas deixados por séculos de tragédia e tortura. Ele estava, afinal, morando
agora na mesma casa onde toda a sua família foi massacrada na frente dele. Onde ele foi
preso, forçado a se casar com a assassina de sua família.
Forçado a se tornar um monstro.
Neri balançou a cabeça, seus brincos tilintando suavemente. — Para a filha da Deusa,
há tanto sobre o coração – e desejo – que você não conhece. — Sua mão estava quente
quando ela a colocou no pulso de Haven. — Apenas tome cuidado, em Eritreyia, os mortais
desprezam Stolas. Para eles, ele encarna a maldição, a praga e a aflição e, acima de tudo,
aquela coisa que todos nós mortais tememos: a morte. Se você se alinhar romanticamente
com ele, há muitos que não a seguiriam.
Sua declaração cortou Haven como uma lâmina, tornando-a ainda mais dolorosa,
porque Haven sabia que Neri falava a verdade.
E ainda... — Você diz isso, mas sabe melhor do que a maioria que os mortais podem
aceitar casamentos improváveis que vão contra... costumes.
— Eu sei e os obstáculos que meu nascimento comum e meu passado colorido causaram
foram quase o suficiente para me fazer deixar Eros, apenas para poupá-lo do problema. Mas
Haven, eu prometo a você, não é a mesma coisa. Se fosse, se houvesse alguma chance –
alguma – de que os reinos mortais pudessem aceitar tal união, eu a apoiaria mesmo que não
entendesse.
O peito de Haven doía como se as palavras de Neri tivessem enterrado-se dentro dela,
aninhando-se profundamente enquanto cavavam um buraco cada vez maior.
Ela olhou por cima da varanda de mármore, protegendo os olhos, como se ela acabasse
de sentir a fúria do sol da manhã. Marinheiros e pescadores invadiam as docas em caos
controlado. Ela deixou seu olhar vagar além, contemplando as famílias de mãos dadas. Os
lojistas varrendo suas calçadas. Os donos de restaurantes lavando pátios e arrumando
cadeiras para a multidão do café da manhã. Os vendedores do mercado espantando as
gaivotas de seus estandes.
Isso... era por isso que ela estava lutando. Uma vida além da Maldição. Uma vida
protegida de tiranos como Renk, onde homens como Eros e Bell governavam com
justiça. Ela varreu sua atenção sobre tudo isso, forçando-se por um único momento
horripilante a imaginar como seria a cidade uma vez que seu pai reinasse.
Cinzas. Cinzas, escombros e os ossos carbonizados desta cidade maravilhosa seriam tudo
o que restaria se o Sombreamento chegasse a essas margens. E ele iria. Se ela não conseguisse
convencer os mortais e os Solis a segui-la sob uma bandeira aliada, o continente mortal se
tornaria um terreno baldio pior do que os recessos mais sombrios do Submundo.
Sua mente se revoltou com o pensamento. Ela desviou o olhar da cidade vibrante e das
pessoas, decidida a mantê-los seguros, não importa o custo. Se desistir do amor tolo que
sentia por Stolas significava salvá-los, então seu sacrifício valeria a pena.
Tinha que valer.
Três dias se passaram desde que deixaram Luthaire com a promessa de uma
aliança. Fiel à sua palavra, os ataques de Archeron cessaram e, com seu retorno, eles
encontraram Shadoria quase reconstruída dos ataques anteriores.
A paz depois de tantas noites de horror parecia errada de alguma forma. Um truque
destinado a acalmá-los em uma falsa sensação de segurança. Mas Haven tentou aproveitar a
esperança contagiante que se espalhou pela ilha enquanto caminhava pelas ruas,
maravilhando-se com a resistência das pessoas ali. Era meio-dia e os que já trabalharam
estavam reunidos em torno das casas dos vizinhos, ajudando a erguer paredes caídas,
remendar telhados e consertar portas quebradas. Alguns trabalhavam nas fontes da praça da
cidade, rebocando as estátuas de Serafins outrora impressionantes e enchendo as fontes com
baldes de água do mar.
A magia que fazia as fontes funcionarem ainda estava presente e algumas das fontes
estavam agora funcionando.
O aroma de pão fermentado e peixe atraiu seu olhar para o mercado recém-construído,
um labirinto de barracas improvisadas na praça da cidade. Os vendedores sorriam quando
ela passava. Se eles se preocupavam com suas barracas quase vazias, seus rostos efervescentes
não mostravam.
— Nascida da Deusa — chamou uma mulher com uma garotinha no quadril. — Venha
pegar um amuleto para dar sorte.
A notícia da presença de Haven se espalhou como fogo pelo mercado até que seu nome
encheu o ar. Eles imploravam para que ela abençoasse seus lares, curasse seus filhos doentes,
curasse as feridas de brigas de seus maridos.
Mas foram suas orações de gratidão que a cortaram ao meio. Seus pedidos de
agradecimento.
Obrigado.
Se eles soubessem a verdade...
Ela lançou um olhar em pânico para Bell, onde ele estava inclinado sobre uma fileira de
adagas de arremesso brilhantes, inspecionando as lâminas.
O ar encolheu em seus pulmões. Ela não podia fazer isso. Olhá-los nos olhos e fingir que
não sabia que em uma semana suas vidas seriam reviradas, seus sorrisos substituídos pelo
olhar vazio de pessoas infectadas com um medo sem fim.
Com o peito dolorido, ela se abaixou em um beco onde alguns vendedores menores se
estabeleceram, de cabeça baixa. Ela se concentrou nos paralelepípedos irregulares enquanto
trabalhava para acalmar sua mente. Respirar.
Bell rapidamente a alcançou. — Eles têm mel fresco algumas barracas abaixo,
Haven. Fresco. Mel.
Em qualquer outro momento, isso teria sido suficiente para arrastá-la de volta. O mel
era o alimento perfeito. Podia ser regado em biscoitos e pão, adicionado a mingau sem graça
para adoçar.
Runas, até tornava o café de Demelza palatável e só isso valia seu peso em ouro.
Mas a cada segundo ela olhava nos olhos esperançosos das pessoas e abria um pouco mais
a crosta dentro dela. A crença deles em sua capacidade de mantê-los seguros deveria ter
alimentado sua confiança.
Em vez disso, parecia um segredo obscuro que ela estava guardando.
Ela descansou seu peso contra a parede de pedra à sua esquerda, grata pela frieza que
penetrou em seu braço e bochecha. — Esta foi uma má ideia.
Vir aqui deveria ser uma coisa boa.
— Eu pensei que ver este lugar iria animar você — disse Bell, e mesmo que ela mantivesse
os olhos fixos na cidade além do beco, ela poderia dizer que ele estava franzindo a testa.
Temendo que a qualquer momento os vendedores a reconhecessem, ela se afastou da
parede e começou a caminhar rapidamente, Bell lutando para manter o ritmo. — Eu
também — ela admitiu. — Eu só... Eu não esperava que eles fossem tão gratos. Eles acham
que os ataques pararam por causa de algo que fiz, não algo que ainda tenho que fazer.
Entregar-se. Tornar-se a arma de Archeron.
As palavras ficaram pesadas e frias entre eles até que Bell agarrou sua manga, fazendo-a
parar. — Pare. Você tem que se permitir desfrutar da felicidade deles.
Ela se irritou com o toque dele, mal suprimindo o desejo de se soltar e fugir. — Isso só
torna tudo mais difícil, Bell. Eu não posso vê-los reconstruir sabendo que ele vai acabar com
a esperança deles de novo.
O que, claro, era exatamente o motivo pelo qual Archeron lhes havia dado um breve
adiamento em primeiro lugar. Mostre a eles como a vida poderia ser maravilhosa sem
ela. Mostre a ela o preço de sua resistência.
Este era o preço e era apenas uma pequena fração do que seria tirado de Shadoria, dela
se ela não voltasse para ele.
— Nós precisamos. — ele respondeu suavemente. — Nossa sobrevivência depende de
poder sonhar um futuro diferente do terrível que Archeron oferece, mesmo que nunca
aconteça. Mesmo se... — Sua mandíbula flexionou. — Mesmo que ousar imaginar um
mundo assim deixe nossos corações desprotegidos e vulneráveis.
Por um instante, ela olhou para seu amigo. Ele tinha que saber mais do que ninguém
como era isso. Imaginar um futuro impossível tão brilhante, tão maravilhoso que doía
fisicamente imaginá-lo.
Com a mandíbula apertada, ela se libertou, deslizando dentro da sombra do prédio na
esperança de anonimato enquanto caminhava em direção ao final do beco.
Sem essa sorte. Um homem vendendo um mísero balde de frutas a reconheceu. Seus
olhos se iluminaram quando ele balançou uma maçã verde brilhante para ela.
— Eu não poderia — disse ela, dando um tapinha na barriga para mostrar que estava
cheia. Uma mentira - ela não tinha estômago para o café da manhã esta manhã e o almoço
tinha sido algumas mordidas de pão e uma lasca de queijo branco. Mas o pensamento de
comer agora a repugnava.
Bell não tinha esse problema. Depois de insistir que ele pagasse pela maçã – oferecendo
o dobro do valor da fruta – ele poliu a fruta em sua túnica de espuma do mar e deu uma
mordida ruidosa.
— Você come mais alto do que nosso antigo tutor — ela gemeu quando eles passaram
por um portão em ruínas e o trecho de mar negro apareceu. Na luz etérea e tingida de
púrpura da tarde, ela podia ver que a água não era realmente preta, mas de um verde escuro
e rico.
— Sombra de Sombreamento, eu esqueci disso. — Bell mastigou, fazendo um esforço
para não ser tão barulhento. — Ele estava constantemente mastigando nozes e outras frutas
que ele roubava do jardim, lembra?
— Como eu poderia esquecer? Quando Cressida descobriu que ele estava roubando
propriedades reais, ela tentou enforcá-lo.
Por insistência de Bell, ele só foi demitido, não executado por sua infração. Eles
descobriram mais tarde que ele tinha sete filhos em casa – três adotados – e mal podia se dar
ao luxo de alimentar todos com o salário que o rei lhe pagava.
Pensar em todos aqueles anos atrás fez seu peito doer mais apertado por algum
motivo. Talvez porque as coisas fossem muito mais simples na época. Suas únicas
preocupações eram manter Bell seguro, encontrar seus pais e não ser pega quando ela
quebrasse as regras – o que era praticamente o tempo todo.
Saber agora quantas pessoas estavam sofrendo ao seu redor como causa direta do
governo do rei Boteler era surpreendente - e vergonhoso. Especialmente considerando o
quão egoisticamente inconsciente ela e Bell tinham sido, apanhados em sua própria bolha
de desejos e necessidades.
Eles encontraram Xandrian esperando por Bell perto de uma pequena enseada. A água
rasa brilhava como uma esmeralda gigante, as bordas azul-escuras e onduladas com peixes
prateados.
Os lábios de Xandrian se ergueram quando ele viu Bell, apenas para reverter o curso em
uma carranca quando seu olhar deslizou para Haven.
— O que você descobriu? — ela chamou como forma de cumprimento, pegando um
dos floretes em um cobertor bege e testando seu peso.
Xandrian passou uma mão pelo cabelo dourado na altura dos ombros e uma pequena
parte dela doeu pela semelhança com Archeron. Uma vez que ela olhasse para além do cabelo
louro, os olhos em tons de joias e a pele bronzeada pelo sol, eles pareciam completamente
diferentes.
Mas sempre levava um instante dolorosamente longo para perceber que ele não era
Archeron. Sua beleza mais refinada. Corpo límpido. Enquanto Archeron comandava
qualquer espaço que ocupasse, Xandrian havia aprendido a se mover como água em meio a
uma multidão. Apenas perceptível quando ele precisava ser.
A camisa de Xandrian estava desabotoada, as marcas de runas que mapeavam seu peito
eram um estanho metálico escuro no crepúsculo. Ele jogou fora as botas e estava afundado
até os tornozelos no oceano, um florete mantido baixo e solto ao seu lado. — Nascida da
Deusa, eu lhe informei ontem que a alertaria no momento em que descobrisse algo tangível
sobre as pinturas.
— Sim, mas ontem você não havia visitado o mercador Ashari que desembarcou.
Não era segredo que Xandrian ainda mantinha centenas de contatos que ele nutriu
como espião da Ordem de Soltari e normalmente ela não se incomodaria em descobrir com
quem ele estava se encontrando. Mas agora, com as pinturas lá fora e o tempo passando, ela
não estava além de usar Bell para se manter informada.
Os olhos azul-marinho de Xandrian se estreitaram quando se voltaram para Bell. — Vejo
que as notícias correm rápido.
Ela jogou a arma para Bell, orgulhosa da facilidade com que ele a pegou. — Você
provavelmente deveria saber que Bell perde toda a razão quando se trata de roupas bonitas.
Xandrian amaldiçoou. — Eu deveria ter adivinhado assim que o vi em seu novo colete
de seda esta manhã.
Bell revirou os olhos quando começou uma série de manobras de prática, os últimos
raios de luz roxo-esfumaçados piscando em sua lâmina. — Eu teria dado a ela essa
informação de graça, mas quem sou eu para dizer não a um colete de seda?
Apunhalando sua espada na areia, Xandrian se aproximou. — Embora sua lealdade um
com o outro seja adorável, não mencionei o que descobri esta manhã, porque ainda tenho
que comprovar e a primeira coisa que aprendi como espião é que sou tão bom quanto as
informações que forneço.
Agora que o bloqueio de Archeron foi temporariamente removido, alguns navios
corajosos começaram a chegar em suas costas. Principalmente os contatos do rei Eros de seu
tempo no mar, o que significava que os navios estavam, sem dúvida, vendendo mercadorias
roubadas.
Não que ela se importasse com onde eles compravam seus bens. Ela aceitaria
carregamentos de frutas roubadas do próprio Sombreamento se isso alimentasse as pessoas.
— Apenas me dê algo, Xandrian — ela implorou. — Temos um local? O Ashari ouviu
alguma coisa sobre os rumores sobre as pinturas...
— Uau. Não vamos nos precipitar, Nascida da Deusa. O Ashari com quem me
encontrei se especializava em encontrar casas para certos tipos de itens de luxo perdidos. Se
alguém ouviu falar de arte rara roubada da Ordem, seria ele.
Ela arqueou uma sobrancelha impaciente — E?
— E haviam várias possibilidades. — Ela deve ter levantado a outra sobrancelha, porque
ele acrescentou: — O quê? Realojar arte rara é um negócio lucrativo. De qualquer forma,
julgamentos à parte, uma história despertou meu interesse.
— Fale logo, Senhor do Sol — ela rosnou.
— Na época em que as pinturas foram roubadas, havia um boato de um nobre mortal
que fugiu para as Ilhas Morgani. Em troca de refúgio, ele deu uma pintura à Rainha
Morgani...
— Apenas uma?
— Apenas uma — ele confirmou, recuperando sua espada da areia. Ele estava de costas
para ela, quando acrescentou: — Você vê por que eu não mencionei isso. É frágil na melhor
das hipóteses. Não vale o risco de viajar para Solissia para investigar mais. Não até que eu
encontre algo mais conclusivo.
— O nobre poderia ter vendido a primeira pintura em trroca de passagem. E sabemos
que a rainha não aceitaria uma pintura como presente a menos que ela sentisse magia
poderosa dentro da tela – mesmo que ela não soubesse de onde essa magia veio ou o que ela
significava.
— Você vê agora por que eu não te disse? — Xandrian murmurou por cima do ombro,
os músculos de suas costas ondulando contra sua camisa justa enquanto ele se movia através
de exercícios de espada com Bell. — Agora, você não tem um encontro com um certo
bastardo com chifres?
Encontro não era exatamente a palavra que ela teria usado, mas Xandrian estava
certo. Stolas estaria esperando por suas sessões de treinamento noturno. E, se seu humor nas
últimas noites era qualquer indicação de seu comportamento esta noite, chegar atrasada não
era aconselhável.
Como temia, no momento em que ela caiu do portal e pegou a expressão sombria de
Stolas, ela se preparou para outra longa rodada de treinamento brutal, respostas curtas e
tensão tão espessa que quase podia vê-la sugando o ar da câmara.
A parte mais frustrante da coisa toda era que ela não tinha ideia do porquê ele estava
chateado. Foi algo que ela disse? Ou talvez a escuridão habitual que ela sentia pairando ao
redor dele quando ele estava em Shadoria, especialmente dentro do castelo?
Especialmente agora. Apesar do esforço que ele fez para esconder seus sentimentos, ele
foi destruído pela destruição do Salão da Luz.
Alguns dos cristais podiam ser consertados, mas a maioria havia sido quebrada além do
reparo, sua preciosa magia de luz perdida.
Todas essas coisas poderiam explicar seu súbito humor sombrio, mas uma parte dela se
preocupava que fosse mais do que isso. Que talvez o que havia acontecido naquela noite no
fundo do mar tivesse mudado irrevogavelmente seu relacionamento de alguma forma.
Ela o ofendeu quando recusou sua oferta? Obviamente que era o oposto de suas
intenções.
Antes que ela pudesse ruminar mais sobre o problema, ele a estava colocando em uma
sessão cansativa de manobras defensivas, cada uma exigindo cada grama de seu
foco. Normalmente eles treinavam dentro do templo para escapar dos ventos frios da
montanha, mas não esta noite.
Como se ele quisesse que o ambiente combinasse com suas emoções. Ou talvez ele
simplesmente quisesse puni-la, porque ele era um bastardo com tendências sádicas e uma
alma sombria.
Depois de uma hora cansativa de enfrentar seu implacável ataque, ela quase gemeu de
alívio quando ele parou para uma pausa. Ela encontrou um ponto entre duas pedras
cobertas de neve para conjurar um fogo e, desta vez, ela gemeu quando o calor voltou para
seus dedos.
— Da próxima vez use luvas— ele comentou atrás dela. Ela se assustou com a
proximidade dele. Então, novamente, ela aceitaria qualquer coisa que bloqueasse os ventos
gelados, mesmo que viesse na forma de um Senhor das Sombras mal-humorado.
— Eu não gosto de luvas — ela explicou, enfiando os dedos perto das chamas. — Elas
deixam minhas mãos desajeitadas.
— Melhor desajeitadas do que congeladas.
— Ok, bem, eu assumi que estaríamos dentro do templo novamente. Você sabe, aquele
lugar onde meus membros não caem após alguns minutos de exposição?
— Suposições são preguiçosas — ele rosnou.
Suposições são preguiçosas, ela imitou silenciosamente, grata por ele não poder ver seu
rosto. Ela teria argumentado em voz alta, não se importando com sua reação, mas suas botas
esmagaram o chão coberto de neve enquanto ele vagava abruptamente na direção oposta.
Com um suspiro dramático, ela deixou o calor do fogo para alcançá-lo. — Terminamos?
É certo que ela queria continuar treinando. Ela apenas preferia algum lugar... mais
quente.
Ele olhou para ela por um longo segundo e ela encontrou seu coração fazendo pequenas
torções estranhas sob aquele olhar ilegível.
— Já que você está obviamente lutando com os elementos, podemos terminar mais cedo
esta noite. Ou podemos trabalhar na ligação com o seu familiar. Você decide.
Um caroço se alojou diretamente na base de sua garganta. Nos dias que se seguiram à
aparência de seu familiar, ela quase conseguiu esquecer sua aparência monstruosa. Agora,
aquela imagem hedionda de carne e chifres negros e musculosos se pintava dentro de sua
mente com perfeita clareza.
Forçando um estremecimento, ela disse: — Se vou ter essa coisa dentro de mim, tenho
que aprender a controlá-la.
Tarde demais, ela percebeu que ele poderia ter se oferecido para continuar treinando por
dever. Que passar a noite inteira consertando os problemas dela provavelmente não era sua
ideia de diversão. Mas, quando ela se atreveu a encontrar seus olhos, ela pegou a aprovação
piscando em sua expressão sombria, quase imperceptível.
— Mas — ela acrescentou, esfregando os dedos dormentes— podemos pelo menos fazer
isso em algum lugar quente?
— A Nascida da Deusa tem medo de um pouco de frio?
— Sim, sim, ela tem— Haven rangeu entre os dentes. — Porque ela ainda é mortal,
lembra?
Por alguma razão inexplicável, ele se encolheu um pouco com isso. Ou não? O tremor
foi tão sutil que ela poderia ter imaginado.
No primeiro dia em que voltaram, ela explicou as pinturas e suas suspeitas sobre seu
propósito. Ele tinha ficado quieto - tão quieto, na verdade, que ela agora estava começando
a suspeitar que sua possível imortalidade de alguma forma contribuía para seu mau-humor.
O que não fazia sentido, mas às vezes Stolas era um completo enigma. Na verdade, na
maioria das vezes Stolas era um completo enigma.
Ele era um homem Serafim no auge de sua vida e, ainda assim, Eros havia dito que Stolas
mal olhou para as mulheres no bordel. Todo o seu tempo livre era gasto com Haven, mas
era óbvio que seu interesse por ela era alimentado apenas pelo dever e...
Um suspiro de surpresa explodiu de seus lábios semicongelados quando ele deslizou
atrás dela, passou o braço em volta da cintura dela e subiu para o céu.
— Um pequeno aviso da próxima vez— ela sussurrou quando suas asas enviaram neve
voando ao redor deles.
— Aviso? — ele falou lentamente, aquela voz fria afiada com diversão. — Talvez se você
não estivesse sonhando acordada, minhas intenções não teriam pegado você
desprevenida. O que estava passando por essa sua cabeça curiosa, Pequena Fera?
— Um banho quente — ela mentiu, sabendo que ele provavelmente sentiu a mentira e
não se importou. Deixe-o imaginar o que ela estava realmente pensando.
Algum instinto ridículo a fez se encostar nele. Sua carne zumbia onde suas mãos
pressionavam, palmas planas irradiando um calor provocador.
Quente. Seus olhos se tornaram fendas quando sua magia se derramou nela. Ela tinha
esquecido que ele podia fazer isso. Aquecê-la com seus poderes. Ele tinha feito isso uma vez
antes, depois que a Bruxa da Floresta a deixasse perto da morte, e, assim como antes, era
estranhamente... Maravilhoso. Como cair de um balde de água gelada em cobertores
aveludados de calor liso e brilhante.
Ela estremeceu quando os tentáculos de fogo pulsaram através de suas palmas abertas e
em sua barriga, enrolando e deslizando através do buraco de seus ossos. A sensação era quase
sensual, como uma carícia visceral de fogo.
Se ela pudesse ter se enrolado nele e adormecido, ela poderia ter feito isso naquele
momento. Mesmo com parte dela reconhecendo que um Noctis tão mortal quanto Stolas
possuindo habilidades para acalmar e desarmar era todo tipo de injusto.
Pelo menos, para sua presa – que era basicamente todo mundo existente, exceto talvez o
Sombreamento e a Deusa.
Ninguém deveria exercer essa quantidade de poder. Até mesmo Stolas.
Especialmente Stolas.
Por um batimento cardíaco selvagem, ela se perguntou como seria tê-lo usando essa
euforia nela enquanto estava acordada. Duas vezes agora, ela recebeu seu presente enquanto
estava fora dele. A primeira vez com dor após o ataque wyvern. A segunda vez após o feitiço
de visão cruel de Archeron.
Tudo o que ela conseguia lembrar da experiência era uma enxurrada de calor, embora
diferente do calor físico agora em cascata por seu corpo. Uma sensação borbulhante e
pacífica, como a luz do sol derretida borbulhando através de cada parte de seu corpo.
Como a felicidade líquida.
Preenchendo cada ferida, cada buraco irregular.
Consertando as partes quebradas de seu coração pedaço por pedaço.
Sim, ela decidiu, enquanto eles atravessavam a delicada camada de nuvens e eram
envoltos em um branco puro e diáfano. Um imortal capaz de prazer absoluto e destruição
completa era a criatura mais perigosa que existia.
Você ama um monstro.
Quando ela percebeu o quão longe eles estavam, as nuvens estavam centenas de metros
abaixo e Stolas estava mergulhando em direção à torre mais alta do Castelo Perfurador de
Estrelas. Suas orelhas estalaram, abafando os grasnidos dos corvos que se assustaram do
telhado abobadado da torre. Mais enormes pássaros negros se reuniram na grade de ferro
forjado da sacada que circundava a câmara, observando-os com aguçada atenção.
A câmara de Stolas.
Ele sussurrou um comando enfeitiçado enquanto mergulhavam em direção à sacada
mais próxima e um fogo cintilou para a vida em algum lugar dentro de seu quarto. No
segundo em que suas botas roçaram o piso de mármore, ela se livrou de seu aperto,
vasculhando a câmara para se distrair do desejo selvagem de rastejar de volta para seus braços.
A curiosidade rapidamente superou qualquer outra coisa que ela pudesse ter
sentido. Sua câmara estava fora dos limites para todos. A única vez que ela o visitou foi logo
após o ataque de Archeron e suas memórias entre acordar e chegar aos banhos quentes eram
confusas, na melhor das hipóteses.
A primeira coisa que notou foi o calor. A essa altura, a temperatura estava abaixo de zero,
os ventos absolutamente brutais. E, no entanto, apesar de não ostentar paredes, as cortinas
de seda clara que pendiam de cada coluna quase não se moviam. Um fogo crepitava de uma
lareira de mármore, velado por uma tela de metal em forma de asas.
Entre o fogo, quaisquer que fossem os feitiços que mantinham o vento afastado e o calor
que ainda irradiava de Stolas, seu quarto estava explodindo de calor.
Ela ergueu uma sobrancelha. — Sua câmara?
— Você disse que queria um lugar quente e precisamos de privacidade, então era aqui
ou na borda do vulcão do outro lado da ilha.
Uma parte dela suspeitava que o vulcão teria sido menos perigoso. Ela girou em um
círculo lento, passando o olhar sobre as mantas de pele, móveis espalhados e livros. — Você
sempre mantém isso quente aqui?
— Só quando entretenho convidados.
— Você se divertia muito em sua antiga vida? — ela perguntou antes de desejar que ela
não tivesse.
Se seu humor estivesse sombrio agora, trazer à tona aquela parte dolorosa de sua história
certamente não ajudaria. Mas este lugar foi obviamente construído grande o suficiente para
acomodar mais do que apenas Stolas. Era enorme. Do tamanho da biblioteca em Penryth,
pelo menos.
E Deusa Acima, aquela cama...
Veio à vista, uma monstruosidade circular de peles exóticas, travesseiros enormes e
lençóis brilhantes.
Uma onda de arrepios percorreu sua pele enquanto seu corpo se lembrava de como se
sentia envolto nessas camadas de luxo. Os lençóis deslizando sobre sua pele febril, fria e
sedosa. As peles de pelúcia e reconfortantes. E Stolas ao redor dela, seu poder, seu cheiro, sua
respiração enquanto ele sussurrava em seu ouvido, aqueles membros poderosos segurando-
a quieta, acariciando e...
Não. Girando para ficar de costas para a cama de dossel, ela desenvolveu um súbito
interesse pelo armário, uma bela peça de madeira de teca que parecia muito amada, apesar
de parecer antiga. Uma grande gaiola de prata cheia de bugigangas roubadas e brilhantes -
uma pulseira de ouro, uma colher torta, alguns cacos de vidro - repousava em cima.
Ravius.
Seu foco mudou para os livros encadernados em couro com lombadas quebradas
empilhados em cima de uma mesa de sofá. Mais estavam amontoados em um conjunto de
estantes de mármore à sua direita. Um decantador de cristal metade cheio de líquido âmbar
brilhava em uma mesa baixa ao lado de um único copo.
— Na minha antiga vida, sim — Stolas finalmente respondeu com uma voz
entrecortada. — Eu entretinha com frequência, como era esperado de um príncipe
Serafim. Embora eu preferisse mais... reuniões íntimas do que as grandes festas que você
provavelmente está imaginando.
— Hum. — Se ele achava que isso era de alguma forma mais reconfortante para ela, ele
era um tolo. Haviam sofás e espreguiçadeiras da cor creme mais do que suficientes para
sugerir o que realmente eram algumas dessas reuniões íntimas. — E com quantos
convidados você teve intimidade?
Sua mandíbula flexionou enquanto ele seguia seu olhar. — Alguns. Isso te incomoda?
Havia algo cauteloso em seu tom que a fez piscar.
Sim. Mil vezes sim. — Não. — Ela deu de ombros. — Você era jovem e acho que ainda
mais arrogante do que é agora, se é que isso é possível. Tenho certeza que você adorava que
as mulheres se jogassem em você.
Seus lábios apenas se inclinaram para um lado?
— Jogar-se? Eu não sabia que as mulheres faziam isso. Conte-me. Você literalmente joga
seu corpo em um homem ou...
— Cale-se. — Mas ela estava sorrindo, saboreando a faísca de diversão nos olhos dele,
ainda que breve. — É assim que desenharemos meu Familiar? Com você me provocando até
ele parecer apenas para fazer você parar de falar?
— Por mais divertido que pareça, eu estava pensando em ajudá-la a se conectar com ele
primeiro. Chamá-lo lentamente, depois de convencer seu familiar de que ele pode confiar
em você. Gosto bastante deste quarto, principalmente da minha cama e preferiria que ficasse
inteira.
Seus lábios definitivamente se curvaram com a menção de sua cama, seu olhar afiado
dançando sobre ela enquanto ela lutava para permanecer composta.
Pelo amor de runa, Ashwood. É apenas uma cama. Uma nuvem maciça e
pecaminosamente macia de uma cama... mas mesmo assim. Quem se importa com quantas
mulheres ele entreteu nela?
— Então, como podemos atrair a coisa com segurança? — ela perguntou.
— Primeiro, não é uma coisa. Seu Familiar das Sombras é um companheiro altamente
reverenciado e altamente cobiçado. Mais do que alguns Serafins reais que perderam seus
Familiares das Sombras em batalha acabaram morrendo pouco depois de luto.
Sua experiência até agora não apoiava essa afirmação, mas ela estava tentando ser positiva
sobre a coisa toda. — Ok, como vamos convencer meu familiar altamente reverenciado?
— Podemos começar de maneira semelhante ao processo que usei para chegar ao meu.
— Tirando as botas, ele deslizou para o chão, cruzou as pernas e fez sinal para que ela fizesse
o mesmo.
Sua boca se abriu. — Vamos... sentar no chão?
— Você prefere minha cama? — ele ronronou inocentemente. — É muito mais
confortável.
Ela bufou quando se abaixou para trabalhar em suas botas. Seus dedos ainda estavam
sensíveis do frio mais cedo e levou mais tempo do que deveria para desamarrá-las. Ele
observou silenciosamente enquanto ela puxava a última e depois caía de bunda.
— Fique confortável— ele ordenou.
— Estou sentada em um chão duro, não posso...
Ele de repente manobrou atrás dela, suas pernas musculosas se abrindo para envolver as
dela enquanto sua respiração fria deslizou sobre seu pescoço e mandíbula direita. —
Confortável agora, Pequena Fera?
Seu coração mergulhou antes de gaguejar em um ritmo selvagem.
Ela deveria ter escolhido o vulcão.
Haven não era baixa de forma alguma, mas comparado com seus longos membros ela
de repente parecia minúscula.
— Incline-se para trás. — Quando ela congelou, ele deslizou os braços ao redor de sua
cintura, puxando-a suavemente até que ela estivesse totalmente reclinada contra ele. —
Melhor agora?
Sim.
E não.
Era complicado.
Ele tomou o silêncio dela como um sim.
— Bom. É a única maneira que isso vai funcionar. Seu familiar é hipersensível ao seu
humor. Durante o processo de despertar, se sentir tensão ou estresse, mesmo que seja um
pouco, ele fugirá. Agora, feche os olhos.
Ela o fez, mas sua obediência lhe rendeu apenas silêncio.
— Eu deveria...
— Pare de pensar demais — ele latiu. — Na verdade, pare de pensar. Concentre-se na
sua respiração. Inspire pelo nariz e em seu abdômen, aqui— ele circulou o polegar ao redor
de seu umbigo, aparentemente alheio ao choque de prazer que seu toque enviou direto em
seu núcleo— de forma profunda o suficiente para levantar minhas mãos.
Colocando suas próprias mãos em seu colo, ela fez como instruído. Ou tentou.
Havia muitas coisas acontecendo. Ou seja, seu corpo tão perto do dela. Seu cheiro em
todos os lugares. Sua respiração flutuando sobre seu pescoço como uma carícia lenta.
E como ele achava que passar os dedos sobre a barriga dela não deveria distraí-la?
Quando ela finalmente desviou sua atenção de Stolas, ela foi direto para a pintura.
Com o que ela se pareceria? Foi colocada em uma moldura dourada ou enrolada? A
Rainha Morgani sabia o que ela continha?
Ela teria que perguntar a Ember mais tarde se ela já tinha visto tal pintura. Mesmo que
Ember não soubesse o que era, ela provavelmente saberia onde sua mãe guardava arte
valiosa...
— Foco. — A voz rouca dele retumbou pelas costas dela e, de alguma forma, se juntou
sob suas palmas enormes, como se suas palavras fossem seu próprio tipo de magia. — Não
lute contra seus pensamentos, deixe-os rolar por você a cada respiração. Solte a tensão que
sinto enrolada em cada músculo. Relaxe sua mandíbula. Suas pálpebras.
Suas ordens tiveram o efeito oposto. Quanto mais ela se concentrava em não tensionar
os ombros e a mandíbula, mais eles pareciam se contrair por conta própria.
— Isso é inútil — ela murmurou quando seus olhos se abriram para... Trevas.
Onde estavam as estrelas? O quarto dele? Aquela cama espalhafatosa e enorme...
Ah. Suas asas – elas estavam envoltas em volta deles como uma gaiola de sombras. Com
os olhos semicerrados, ela podia distinguir os finos filamentos das penas brilhantes, cada
uma dolorosamente bela, uma obra-prima de índigos, verdes e roxos.
Impulsivamente, ela estendeu dois dedos para tocar uma...
Um rosnado vibrou através de Stolas e em seu corpo, fazendo-a puxar a mão para trás. —
Concentre-se!
Ela bufou uma respiração frustrada. — Estou tentando.
— Sua atenção é assustadoramente curta.
Bell concordaria, ela decidiu. Ele também a repreendeu por sua atitude
derrotista. Fechando os olhos mais uma vez, ela prometeu realizar essa tarefa ou passar a
noite toda tentando.
Desta vez, ela fez como ele sugeriu. Respirando, deixando seus pensamentos entrarem e,
depois, deixando-os fluir através dela, um rio de preocupações e estresse percorrendo sua
mente. Afunilando-os até que todos se misturassem em um. Só que desta vez, em vez de
tentar repreendê-los, ela relaxou e os deixou ir.
Logo, suas respirações rítmicas chamaram sua atenção. Ela não conseguia imaginar o
que havia de fascinante em respirar, mas uma vez que sua mente caiu naquele ritmo
constante de entrada e saída, uma calma suave atingiu-a.
Ela se imaginou abrindo bem a garganta enquanto empurrava o umbigo para fora,
puxando o ar quente bem fundo em seu peito.
A cada inspiração completa, sua barriga subia, levantando as mãos de Stolas.
Para dentro e para fora.
Para dentro e para fora.
Nos recônditos mais distantes de sua mente, ela percebeu que seu coração estava
desacelerando e o próprio coração de Stolas batendo suavemente em suas costas no mesmo
ritmo do dela.
O rio de pensamentos tornou-se escuridão correndo por ela. Uma cascata calmante de
um nada líquido. O tempo diminuiu. Seu corpo ficou mais leve enquanto sua mente vagava
naquele rio.
Flutuou e flutuou até que ela pudesse sentir a presença de algo sob o fluxo de sua
consciência. Algo grosso, oco e duro... uma gaiola de barro e pedra.
E, dentro daquela prisão oca, algo se mexeu. Uma presença primordial.
Ela sentiu sua excitação cautelosa quando encontrou a fechadura. Sentiu sua gratidão
quando a fechadura se abriu. Ainda respirando suavemente, ainda focada em nada além do
fluxo daquele rio de obsidiana do nada, ela o libertou.
Um estalo como ossos ocos partidos em dois pulsou no centro de seu esterno. Suas
pálpebras tremeram quando ela abriu os olhos, piscando na escuridão. As asas de Stolas
ainda estavam bloqueando a luz, então ela estendeu a mão impaciente para sinalizar
silenciosamente para ele abri-las...
Apenas para ver seus dedos deslizarem pelas sombras enevoadas. Sombras que
brincavam enroladas em torno de seu polegar e mindinho.
Eles não estavam embrulhados em suas asas; elas estavam embrulhados em seu Familiar
das Sombras.
Com o coração acelerado, ela o viu girar hesitantemente ao redor deles. Gavinhas negras
saindo da forma nebulosa, seu toque como asas geladas de borboleta em sua pele.
Ela sentiu Stolas endurecer atrás dela quando a escuridão se estendeu de repente para
acariciar o penhasco irregular de sua bochecha. A gentileza daquele toque foi contra tudo
que ela testemunhou na outra noite. Movendo-se de seu rosto para seus
chifres. Tocado. Explorando.
Tentando entendê-lo enquanto examinava suas penas, até mesmo seu cabelo pálido –
branco como osso sob o luar.
Stolas não se moveu, nem mesmo para piscar. E, quando seu familiar finalmente saiu
para explorar o quarto, sua única reação foi uma exalação suave.
Esta criatura era diferente de antes. Em vez de raiva sem fim, era
estranhamente... inquisitiva. E cuidadosa - catalogando o quarto como um lobo solitário em
um ambiente desconhecido, precisando de apenas um ruído alto para fugir.
— Eu não entendo — ela sussurrou, inclinando a cabeça para que sua bochecha
pressionasse o peito de Stolas e ela pudesse ver a metade inferior de sua mandíbula. — É tão
diferente agora.
Ele inclinou o rosto para ela. — Seu familiar é movido por suas emoções. Seus
desejos. Ele se alimenta do seu prazer e, quando devidamente ligado, fará qualquer coisa para
agradá-la, mesmo com um grande custo para si mesmo.
Ela voltou seu olhar para seu familiar para descobri-lo pairando sobre a cama de Stolas,
inspecionando os lençóis. Os travesseiros. As peles. Brincando com as franjas douradas nas
almofadas como um gato.
Passou muito tempo na cama... mas só quando a coisa disforme começou a se esfregar
nas cobertas - como um cachorro rolando de costas para marcar seu lugar favorito - as
palavras de Stolas fizeram finalmente sentido.
É impulsionado por suas emoções. Seus desejos.
Deusa me mate agora.
Foi uma risada que ela sentiu vibrar suas omoplatas?
— Obviamente, ainda não estamos ligados — disse ela, tentando mentalmente levá-lo
para outra parte do quarto.
— Obviamente.
Mesmo sem olhar, ela poderia dizer que ele estava sorrindo. Ótimo. — Então, isso se
tornará parte da minha consciência?
— Não. Eles são influenciados por sua vontade – e alguns Serafins formam laços tão
profundos com seus familiares que às vezes podem ver através de seus olhos – mas seu
Familiar é uma entidade separada.
— Então, eu... nasci com isso
— Eles são muito raros, encontrados apenas em conjuradores de sombras incrivelmente
poderosos, quase sempre da linhagem Darkshade, então há muito pouco conhecimento
sobre sua origem. Alguns estudiosos dizem que são almas de bestas de outro reino presas no
Inferior e apenas os Serafins reais são poderosos o suficiente para dominá-los. Outros
afirmam que são dotados pelo próprio Sombreamento. A única coisa com a qual todos
concordamos é que suas almas estão eternamente amarradas às de seus conjuradores.
— Como você sabe que eles têm uma alma?
— Acredito que toda criatura, por menor ou por mais horrível que seja, possui uma
alma. Aqueles que afirmam o contrário o fazem para justificar sua brutalidade contra eles.
Ela se lembrou da fada. Como tudo o que a criatura queria era território próprio e,
como, quando Bell verbalizou a ideia, os senhores mortais riram na cara dele.
— Cuidado, Senhor das Sombras, ou eu posso começar a suspeitar que você tem um
coração.
Ele ainda a estava segurando – ela desempacotaria esse detalhe mais tarde – e ela sentiu
os músculos de seu peito e braços ficarem rígidos ao redor dela. — Não deixe minhas
palavras confundirem você. Eu nunca serei o mocinho, Pequena Fera. — Seguiu-se uma
longa pausa. — Sempre tive muito cuidado para não fazer você pensar o contrário.
— Então, o que você é? — ela provocou, tentando aliviar a tensão repentina que sentia
entre eles.
— Impiedoso, Haven. Isso é o que eu sou. E, para aqueles que machucariam as pessoas
com quem me importo, eu sou pior. Um mal insondável.
— Mas você é capaz de se importar — ela persistiu, pensando na maneira como ele se
sacrificou por Nasira. — O que significa que você não é exatamente o vilão que diz ser.
— Eu diria que isso é o que me torna o mais perigoso. Para proteger aqueles que amo,
faria todo tipo de coisas cruéis e vis. Coisas que me fariam exatamente o que eles dizem que
eu sou.
Um monstro.
Você ama um monstro.
Ele estava sendo dolorosamente honesto – isso ela sabia, mas se ele estava tentando
assustá-la, não estava funcionando.
No entanto, não parecia exatamente assim. Ela o tinha testemunhado logo antes de ele
se alimentar. Deu-lhe permissão. E, enquanto ela suspeitava que mal arranhava a superfície
da natureza selvagem que ele mantinha escondido dela, o fato de que ela não se encolheu
com o ato era enorme.
Talvez ele estivesse tentando prepará-la para o que ele poderia se tornar se as coisas se
transformassem em guerra?
Se isso fosse verdade, então ele estava gastando sua saliva. Esperava-se que todos fizessem
coisas horríveis em caso de guerra, inclusive ela.
— Quando eu treinei para me tornar a guardiã real de Bell— ela disse, descansando a
cabeça contra o peito dele— eles mantinham um urso pardo no quartel, trancado dentro
daquela pequena gaiola triste. Todos os outros alunos se revezavam cutucando a pobre
criatura com paus para fazê-la rosnar como se fosse um brinquedo para sua diversão.
— Eu estou supondo que há um ponto para a história? Ou eu sou o urso e você o pau?
Ela revirou os olhos. — A questão é que, um dia, o urso se cansou de ser cutucado e fez
o que os ursos fazem. Matou quatro cadetes e mutilou inúmeros outros antes de escapar.
Seus braços apertaram ao redor de sua cintura. — Eu já gosto deste urso, mesmo que o
ponto ainda me iluda.
— O urso não teve culpa das mortes; ele era apenas um urso. Eles eram os culpados.
Ele ficou quieto enquanto descansava o queixo no topo da cabeça dela. Ela não sabia se
ele entendeu o ponto de sua história. Ela certamente não sabia como se sentir sobre a forma
como ele a segurava – ou a forma como seu corpo respondeu.
A única coisa que ela sabia com certeza era que cada minuto gasto conhecendo Stolas,
apenas reforçava a sensação de que ela não o conhecia. Cada escudo que ele baixava revelava
outro, ainda mais impenetrável, erguido. Cada ato de bondade era seguido por um lembrete
de sua natureza bestial.
E cada toque persistente estava manchado por seu dever feroz e inabalável para com ela.
E, no entanto, sua escolha de ser honesto com ela sobre quem ele era – e quem ele não
era – parecia uma promessa de algum tipo.
Como um sussurro de esperança.
Ele estava se mostrando para ela — tudo de si mesmo. O bom e o mau. As partes vilãs,
bem como as peças que ainda eram, de alguma forma, depois de tudo que ele havia
experimentado, boas.
Relativamente falando, é claro.
Ela sabia que Stolas nunca se apegaria às nobres ideias que Archeron já teve. Ele nunca
falaria de honra como se a palavra fosse sagrada, ou se esquivaria da crueldade por causa de
noções de certo e errado.
Talvez seja isso que o mundo precisava agora. Não um herói dourado, mas um príncipe
sombrio capaz de enfrentar o mal do Sombreamento com um pouco de maldade própria.
Suspirando, ela afundou ainda mais em Stolas enquanto observavam silenciosamente
seu Familiar das Sombras se mover pelo quarto. Ainda tinha que escolher uma forma, mas
havia algo gracioso na forma como a névoa negra e oleosa deslizava ao redor das colunas e
cutucava os livros. Algo caprichoso em seus movimentos delicados e ágeis.
Talvez ter um monstro vivendo dentro dela não fosse tão ruim, afinal.
E talvez amar um, mesmo que esse amor não fosse correspondido, fosse perdoável.
Dias se passaram. Esperando pela notícia de sua nova aliança se espalhar. Esperando
que Eros confirmasse os reinos sob seu domínio, que não se opunham, para que pudessem
começar a se preparar para a inevitável guerra contra Penryth. Esperando pelos corvos que
enviaram - em vez de emissários desta vez - para obter uma resposta das nações Solissianas.
Esperando. Haven desprezava isso.
Ela preenchia seu tempo trabalhando ao redor do castelo, fazendo tudo e qualquer coisa
para passar o dia. As noites eram passadas com Stolas, treinando primeiro e depois liberando
seu Familiar das Sombras. Toda vez, Stolas deslizava atrás dela, segurando-a durante a
experiência.
Ela descobriu por que na noite passada. Eles estavam observando a forma do familiar, e
algo – ela ainda não tinha certeza do que – tinha desencadeado uma memória de Archeron.
Tudo tinha acontecido tão rápido. Seu Familiar reagiu à sua dor, transformando-se de
uma bolha inocente de sombra em uma criatura cheia de raiva de garras e dentes
brilhantes. Antes que pudesse destruir a coluna próxima, um dedo de prazer acariciou sua
espinha, enchendo-a de alegria irracional.
Seu Familiar se acalmou imediatamente e nada foi destruído.
Foi só depois, quando ela se debateu na cama lembrando como ele a segurava, que ela
entendeu.
Ele usou seus poderes calmantes para evitar que seu Familiar perdesse o controle.
Para evitar que ela perdesse o controle.
Então, ela se jogou em ainda mais trabalho no dia seguinte.
Ninguém se opôs quando ela colocou um avental e esfregou panelas na cozinha, para
horror absoluto de Demelza. Ela se juntou a Surai para consertar redes de pesca, tecendo os
fios de corda puídos juntos com magia até seus dedos ficarem cheios de bolhas e
sangrarem. Ajudou Bell e Xandrian a consertar as proteções em uma das torres falidas que
pontilhavam a costa. Ela até ajudou Delphine no cansativo processo de conjurar colheitas
para substituir as que foram envenenadas por Archeron.
Quando Haven questionou por que eles não podiam simplesmente conjurar comida
para alimentar as pessoas, ela descobriu que comida mágica não continha quase nenhuma
substância e se degradava dez vezes mais rápido.
Eles poderiam convocar uma ilha inteira cheia de frutas que seriam apodrecidas e não
comestíveis antes que pudessem terminar de distribuí-las.
As plantas conjuradas, por outro lado, poderiam produzir normalmente se fossem
enraizadas no solo adequado nos primeiros minutos após serem convocadas.
Delphine já estava curvada, suas asas de uma cor de carvão na luz etérea, o cabelo branco
sedoso puxado para trás em uma trança solta. Como o resto dos Serafins aqui, ela usava botas
de couro até o joelho e luvas. Haven descobriu por que um momento depois, quando
Delphine indicou com o queixo um monte cheio de moscas a seus pés.
— O que é aquilo? — Haven perguntou, franzindo o nariz para o fedor que flutuava da
pilha.
Os Serafins a observavam com sorrisos divertidos.
Delphine fez um sinal que Haven já tinha aprendido. Merda.
Surai estava ensinando a linguagem de sinais única dos Serafins para Haven pela
manhã. Era outra coisa para ajudar a passar o tempo, mas ela também queria poder se
comunicar com os Serafins que não podiam falar.
Mas certamente Haven interpretou mal o sinal. — Desculpa, o quê?
Alguns dos Serafins riram.
Sorrindo, Delphine fez o sinal novamente, as penas felpudas ao longo da base de suas
asas esvoaçando na brisa leve.
Não houve confusão desta vez quando Delphine fez o sinal de excremento.
Fantástico.
Os outros a observavam para ver se ela hesitava.
Então, ela desenhou uma runa rudimentar para bloquear o fedor, arregaçou as calças e
as mangas e começou a enfiar o excremento nos buracos pré-cavados.
Era um trabalho entorpecente, mas depois de uma hora trabalhando sem reclamar, havia
um respeito na expressão de Delphine que não existia antes. Haven até convenceu Delphine
a lhe ensinar algumas frases mal-humoradas.
A próxima vez que Stolas aparecesse com aquela boca esperta, ela o surpreenderia com
um retorno em linguagem de sinais.
Quando terminaram, o suor transformou a sujeira preta que cobria seus braços em lodo
e ela precisava desesperadamente de um banho. Mas ela deveria se encontrar com Nasira na
entrada vigiada das cavernas sob o palácio e já estava atrasada.
Um roxo profundo dourava as nuvens enquanto a noite caía. Graças à Delphine, Haven
não estava tão atrasada quando ela se arrastou pelo caminho de pedra escorregadio para
encontrar Nasira. As cavernas estavam escondidas atrás de uma enseada abrigada, a entrada
guardada por um portão tão enferrujado que parecia a um toque de desmoronar em pó.
Não muito impressionante. Então, novamente, não eram as barras corroídas que
impediam os intrusos de passarem além do limiar. Era a promessa de ter suas entranhas
incineradas por Fogo do Submundo e queimados vivos que fazia o truque.
Nasira estava empoleirada em uma pequena saliência próxima, jogando pedrinhas na
água verde-jade abaixo. Ninguém tinha permissão para entrar nos cofres sozinho, nem
mesmo Stolas. A ameaça de alguém colocar as mãos na Assassina de Deuses era grande
demais para não tomar todas as precauções.
Ela estremeceu. Mesmo quilômetros abaixo da terra, ela podia sentir a consciência fria
da arma sombria. Aquele mal estranho e espinhoso escorrendo de sua tumba como pus de
uma ferida. Insinuando algo corrompido, algo antigo, retorcido e maligno sob a superfície.
Inalando pelo nariz da maneira que Stolas a ensinara, ela respirou fundo várias
vezes. Esse horrível sentimento errado só pioraria quanto mais elas mergulhassem em direção
à adaga demoníaca.
Nasira, por outro lado, parecia completamente à vontade enquanto brincava com os
peixes abaixo, ignorando Haven. Depois de finalmente se cansar de seu jogo, ela saltou da
borda e se aproximou.
Seu nariz atrevido enrugou. — Por que você cheira como um chiqueiro?
Haven suspirou. Não havia dúvida de que Nasira era leal à Haven, mas era aí que o
relacionamento delas terminava. Haven estava um pouco envergonhada de admitir como o
comportamento frio da garota doía. No navio, Nasira parecia pronta para confiar em
Haven.
Mas quando elas chegaram tudo voltou ao que era antes. Além disso, a antipatia de
Nasira por Haven tinha crescido ao longo de suas semanas aqui, se isso fosse possível.
Haven encontrou uma pequena poça de água e começou a enxaguar a sujeira de suas
mãos. — Eu estava trabalhando, Nasira.
— Dentro de um balde de lixo?
Cerrando os dentes para evitar dizer algo que ela iria se arrepender, Haven secou as mãos
em sua camisa e acenou para a entrada. — Preparada?
Ela queria acabar com isso. Todos eles se alternavam em um horário entre os
Escolhidos. Duas pessoas verificavam a Assassina de Deuses de manhã e duas à
noite. Considerando que era a arma mais poderosa que existia e estava conectada ao
Sombreamento, eles tinham que ser mais cautelosos.
Nasira entrou primeiro. Achatando suas asas contra seu corpo, ela abriu o portão com
sua magia e desapareceu dentro. Haven estremeceu quando ela cruzou a soleira e sentiu a
pontada afiada da proteção varrer todo o seu ser.
A sensação era extremamente desconfortável e sempre deixava seus nervos doloridos e
sensíveis por horas depois. Seus lábios se curvaram com o fedor úmido de lama, água
estagnada e magia antiga.
Duas horas. Então, você estará com Stolas. Essa era a única parte do dia que ela ansiava.
Deusa Acima, por favor, dê-me tempo para tomar banho antes disso.
Arrancando uma tocha de luz rúnica da parede da caverna, ela disparou pelas escadas em
espiral esculpidas na pedra. A luz de Nasira oscilando na curva. Runas azuis pálidas
tremeluziam sob as botas de Haven. A magia protetora dentro de cada símbolo rolou sobre
ela, seus sussurros arranhando seu crânio.
Quem é você?
Quem é você?
Quem é você?
As abóbadas subterrâneas formavam um labirinto de passagens e cavernas
labirínticas. Haven alcançou Nasira perto do primeiro cofre, onde os pergaminhos e livros
raros eram guardados. Se ao menos fosse onde a Assassina de Deuses era mantida, mas
não. Ela estava presa no cofre mais profundo, o que significava descer degraus traiçoeiros e
em ruínas de dois em dois por quase uma hora.
Tão fundo na terra, era fácil perder a noção do tempo e do ambiente. Mas Haven sempre
sabia quando elas se aproximavam do último cofre. A magia astuta da Assassina de Deuses
distorcia tudo ao seu redor. As paredes pretas como azeviche. O ar. Até mesmo a magia de
sua tocha crepitava e gotejava sob o manto corruptor do poder distorcido.
O calor explodiu na escada em ondas.
Sem dizer uma palavra, Nasira ergueu um escudo de frio para protegê-las das
temperaturas escaldantes. As escadas se tornaram um único caminho tatuado com inúmeras
runas azuis pálidas que brilhavam enquanto passavam.
Elas saíram em uma enorme saliência, o ar sufocado com fumaça e brasas.
Ao redor delas havia uma caverna gigante, grande o suficiente para caber no Castelo de
Fenwick e em alguns dos jardins. Um lago de magma alaranjado borbulhava centenas de
metros abaixo. No meio daquele oceano de morte flamejante havia um pedestal de pedra,
cercado por três pares de asas de pedra maciças.
E centrado no topo das asas, acorrentado e preso por praticamente todos os feitiços de
proteção existentes, estava a Assassina de Deuses.
Qualquer outra arma teria derretido com o miasma fervente do calor. Então,
novamente, qualquer outra arma não estaria lançando seus sentidos como uma rede, cada
fio desse imenso poder brilhando com farpas afiadas com um único propósito: capturar
qualquer coisa que respirasse em completa subserviência.
Parte dela sempre esperava encontrar a arma um pouco danificada. O olho não tão
brilhante ou as asas sobre o punho deformadas.
Algo.
E sempre lá a maldita coisa esperava, desafiadora e intocada, aquele olho vermelho
piscando alegremente enquanto percorria a caverna até se prender a ela.
Eu estava ansioso para vê-la novamente, a Assassina de Deuses sussurrou. Ele ficará
satisfeito.
A tensão em seu peito suavizou quando ela percebeu que a voz desumana que vinha da
arma não era do Sombreamento. Seu pai não tinha falado com ela da adaga desde o ataque à
Solethenia quando ela deslizou a lâmina no peito de Stolas.
Quando ela o matou.
Você não deveria estar, ela cuspiu de volta, recusando-se a vacilar sob o olhar fixo do
olho. Se dependesse de mim, eu teria afundado você na lava no primeiro dia aqui.
O fogo não pode me machucar, criança. Sua mãe aprendeu isso da maneira mais
difícil... logo antes de minha carícia amorosa encontrar seu coração de cadela traidora.
As palavras cruéis provocaram uma reação visceral dentro dela e ela mostrou os
dentes. Algo pode. E quando eu descobrir o que é isso, vou acabar com sua existência miserável.
Mentirosa, a arma sussurrou enquanto sua magia depravada deslizou sobre sua
pele. Buscando uma rachadura em suas defesas. Um ponto de apoio em sua mente. Você me
deseja, eu posso sentir isso. Você quer me deixar entrar. Você precisa de mim...
Explodindo sua magia de luz para fora, ela repeliu o mal blasfemo e foi recompensada
com... risadas. Risadas horríveis, maliciosas e perversas que balançaram a caverna e enviaram
pedras soltas para o magma abaixo.
— O que foi isso? — Nasira exigiu, seu olhar avaliador nunca deixando a arma. — Ela
disse algo para você?
A garganta de Haven estava crua e arenosa enquanto ela tentava engolir. Ninguém mais
relatou a adaga falando com eles e admitir que ela compartilhava uma conexão com a arma
parecia... vergonhoso. Como um segredo sujo.
— A arma está com raiva. O mesmo de sempre.
— Claro que está — disse Nasira. Ela finalmente tirou seu olhar curioso da adaga e estava
ocupada transformando faíscas próximas em criaturas monstruosas de fogo e cinzas. — A
Assassina de Deuses está entediada. Algo tão poderoso foi feito para aniquilar deuses, não
viver acorrentado e amarrado.
Algo na voz de Nasira deixou Haven inquieta.
Na primeira noite em que os intrusos romperam suas proteções, Nasira implorou à
Haven para pegar a Assassina de Deuses e lançar um ataque à Corte do Sol. Com os poderes
crescentes de Haven e a magia inexplorada da arma, havia uma chance de que eles pudessem
ter sucesso.
Haven tinha brincado com a ideia por mais tempo do que ela gostaria de
admitir. Especialmente depois que o primeiro filho foi morto nos ataques.
Mas matar completamente o novo Soberano do Sol não os tornaria mais seguros do
Sombreamento. Na verdade, a guerra sangrenta e caótica que se seguiria, desestabilizaria seu
mundo, deixando-o vulnerável ao exército do Sombreamento.
Mesmo que chegasse o dia em que assassinar Archeron fosse sua única opção, o
pensamento de usar a Assassina de Deuses fazia seu estômago revirar.
— Algo tão poderoso não deveria existir. — Haven virou as costas para a arma, seu olhar
demoníaco cortando suas omoplatas. — Vamos testar as últimas proteções e pronto.
Nasira franziu a testa quando ela e Haven enviaram sua magia para sondar a intrincada
rede de guardas rúnicas gravadas nas paredes da caverna. Haven estava quase terminando sua
sonda quando sentiu que algo estava errado.
Como uma presença sombria próxima. Não a Assassina de Deuses. Alguém. Alguém
que não deveria estar aqui. Uma presença piscando dentro e fora dos planos de sua
consciência...
Atingiu-a quando a escuridão estalou em sua mente o quão confusa ela estava. Ninguém
tinha entrado na caverna.
Ela estava em outro lugar.
Ela piscou quando as mãos apareceram. Não as mãos dela. As de um homem pela
sensação de cabelos escuros e nós dos dedos grossos. Um anel de sinete preto e dourado com
um falcão segurando uma espada na boca brilhou da mão nua. O dedo ao lado estava
faltando na segunda junta.
Ela foi chamar Nasira, mas - Sombra de Sombreamento, ela não conseguia falar.
A mente dele. Ela estava dentro da mente do portador do anel. Vendo através de seus
olhos. Tudo estava embaçado, fora de foco. O que ele estava fazendo? Ele estava olhando
para alguma coisa. Alisando pergaminhos bronzeados. Usando uma lupa de algum tipo para
ler o que estava naquele pergaminho...
Como se o elástico de um cós se rompesse de repente, ela foi arremessada da mente do
leitor e de volta a si mesma. Carne e osso frios e pegajosos a envolveram. Uma onda de calor
azedo inundou sua garganta e ela mal conseguiu conter o vômito.
O que em nome da Deusa foi isso?
A caverna oscilou e listou em círculos enquanto seus sentidos voltavam. Sua audição foi
a última. Quando voltou, Nasira estava assobiando o nome de Haven.
— Haven! Você me ouviu? Eu disse que algumas das runas foram adulteradas.
Um poço de desconforto se abriu dentro de Haven, eclipsando seu pânico sobre pular
na cabeça de alguém. — Eu te ouvi. Vou terminar de verificar o meu lado. — Ela
rapidamente varreu sua magia. — Há um pedaço de proteções faltando do meu lado
também.
Seu pulso saltou em uma batida frenética enquanto ela avaliava rapidamente a extensão
das runas desarmadas. Mais do que deveria ter sido possível desde a última verificação.
— Quem poderia ter feito isso? — Haven perguntou, falando através de seu pânico. —
As runas não foram perturbadas do lado de fora... — O ar sugou de seu peito quando a
compreensão atingiu. — A Assassina de Deuses. De alguma forma, encontrou uma maneira
de desarmar as proteções por dentro.
Estava funcionando rápido. A última verificação foi há doze horas. Em doze horas
encontrou uma maneira de desarmar quase um terço das runas no cofre mais baixo.
Elas rapidamente consertaram as proteções enquanto Haven ignorava o olhar intenso
da Assassina de Deuses, aquele olho sem piscar observando-as trabalhar com uma
curiosidade presunçosa.
Tentaria de novo, ela sabia. Tornando-se cada vez mais eficiente à medida que
desvendava as proteções de dentro para fora.
Se alguma vez atingisse o limite final...
Não, ela nunca permitiria que isso acontecesse.
Haven quase tinha esquecido como era bom se mimar com um banho longo e
fumegante. Agora que os ataques noturnos estavam suspensos, Demelza realmente teve
tempo de levar água até a banheira de bronze martelado de Haven – e Haven realmente teve
tempo de mergulhar nela, cabelo e tudo mais.
Isso não era tudo. Pela primeira vez desde que pisaram em Shadoria, eles conseguiram
organizar um jantar juntos. Haven estava agudamente ciente de como seu brilhante cabelo
rosa-dourado caía em ondas sedosas ao redor de seus ombros e costas e tão ciente de como
os outros olhavam.
Xandrian realmente teve a coragem de assobiar quando ela chegou, por último, é
claro. Sua pele ainda enrugada do banho.
Também aconteceu de ser a noite mais magnífica. As nuvens que cobriam o céu estavam
mais esfarrapadas do que de costume, deixando passar gloriosos raios de sol quente. Uma
brisa suave arrastando o calor térmico da cidade até a varanda onde jantariam, aquecendo-a
o suficiente para que ela removesse o xale de lã que Demelza insistiu que ela levasse.
A sacada dava para as colinas onde gavinhas brancas de névoa deslizavam sobre a terra
como serpentes espectrais. De vez em quando, elas mudavam para revelar o brilhante mar
negro abaixo, incomumente quieto para esta hora do dia.
— A partir desta noite— disse Stolas, entregando preguiçosamente um pedaço de pão
de seu prato à Ravius— estamos aumentando as verificações da Assassina de Deuses para
três vezes por dia.
Ela estremeceu quando seu olhar a varreu... e passou costeado. Ele mal tinha olhado para
ela desde que ela chegou, seu meio sorriso normalmente perverso substituído por um
estoicismo distante que ela não conseguia superar. Seus humores estavam ficando mais
sombrios e a única vez que ela sentia que poderia realmente alcançá-lo era naquela única
hora em seu quarto quando eles soltavam seu Familiar.
Ravius – empoleirado no ombro do Senhor das Sombras – pareceu sentir a mudança
em seu humor também e suas penas negras se agitaram ansiosamente.
Xandrian franziu a testa para o vinho em sua taça. — Isso é mesmo necessário? Existem
milhares de proteções que levam até aquele buraco do inferno. Mesmo que a Assassina de
Deuses conseguisse desarmar algumas delas nos cofres inferiores, certamente não poderia
inativar todas elas em meio dia?
Stolas arqueou uma sobrancelha pálida. — Em doze horas, a Assassina de Deuses
conseguiu fazer quase um terço do caminho através das defesas do cofre inferior em sua
primeira tentativa. Estava testando-as. Aprendendo seu padrão. Cada vez que vai funcionar
um pouco mais rápido. Então, sim, eu diria que é necessário. Mas posso pegar seu turno se
você estiver muito ocupado?
Xandrian deslizou sua taça de vinho, intocado. Ela notou que ele quase nunca bebia o
vinho, apenas brincava com ele, passando pelos movimentos de beber, quase como um
adereço.
— E deixar você dominar isso sobre mim? — Xandrian perguntou. — Não, obrigado.
Delphine fez uma série de sinais para Stolas e a boca de Bane se abriu em uma risada
silenciosa.
— Sobre o que os gêmeos estão falando? — Xandrian perguntou divertidamente.
Stolas sorriu. — Ah, eles estavam comentando sobre a noite agradável.
Um bufo subiu por sua garganta e ela engoliu. Isso não foi absolutamente o que eles
disseram.
Bell se recostou na cadeira, o vento despenteando seus cachos escuros. — Corrija-me se
estiver enganado, mas as proteções nos cofres abaixo do Castelo Perfurador de Estrelas são
uma combinação única de runas das sombras e da luz. Para a Assassina de Deuses neutralizá-
las tão rapidamente, seria necessário acessar o livro de runas do criador original.
— Muito bom. — Stolas colocou as mãos sob o queixo afiado. — Cada ala é realmente
apenas uma complexa tapeçaria de runas. Para manter uma ala ao longo dos séculos, você
precisa de um mapa para saber o que vai para onde. Qualquer bom tecedor de sentinelas irá
criptografar o mapa, mas essas criptografias podem ser quebradas.
— E onde está o mapa das alas dos cofres? — Surai perguntou. Ela estava à direita de
Haven, seu cabelo preto brilhante recentemente cortado na linha do maxilar.
— Não aqui. Verifiquei no dia em que chegamos. — Os músculos de suas têmporas
tremeluziam sob sua pele pálida. — Todos os mapas das alas – incluindo os mapas das alas
da torre – foram saqueados junto com metade das heranças de nossa família.
— Por quem? — Ember exigiu, seus olhos castanhos – um profundo âmbar contra o
verde-escuro de sua faixa tatuada – queimando com fúria.
Haven imaginou que sua família tinha incontáveis tesouros transmitidos por
gerações. Perder mesmo uma peça seria devastador.
— Alguém ainda tem que perguntar? — Murmurou Nasira. — A Corte dos Nove não
apenas invadiu nossa terra e reivindicou nosso lar ancestral como deles. Eles saquearam
tudo. Joias que foram passadas de geração em geração. Instrumentos musicais uma vez
tocados pelos deuses. Caixas incrustadas de pérolas que uma vez abrigaram uma pena de
cada criança nascida em nossa linhagem real.
A amargura em sua voz enviou uma onda de desconforto varrendo Haven e ela
imaginou os senhores mortais vasculhando os pertences da família de Stolas. Itens antigos e
amados que mereciam reverência e respeito, não sendo avaliados, mas sim separados e depois
vendidos por dinheiro.
— Felizmente— Stolas continuou, seu rosto inexpressivo— os mortais nunca
aprenderam a criar asas, então as heranças nas torres mais altas ainda permanecem.
A mandíbula de Bell estava tensa quando ele balançou a cabeça, desgosto evidente em
seu rosto. — Eles não deveriam ter feito isso.
— Não, eles realmente não deveriam. Mas o que está feito, está feito. A questão
permanece, quem tem o mapa agora e como eles estão fornecendo essa informação a
Assassina de Deuses?
A comida que ela estava mastigando de repente se tornou pouco apetitosa. Ela engoliu
e limpou a garganta. — Acho que sei como. Ou, pelo menos, uma peça do quebra-cabeça.
A atenção de toda a mesa se fixou nela.
— Quando eu segurei a adaga pela primeira vez, o Sombreamento... ele falou comigo.
Bell deixou cair o garfo com um tinido alto. Surai engasgou e Ember colocou a mão
sobre a boca enquanto todos esperavam em um silêncio atordoado. A única pessoa que não
pareceu surpresa foi Stolas.
— Isso não aconteceu desde então, embora a arma também possa falar, mas isso é outra
história.
As sobrancelhas escuras de Surai se ergueram e Haven sentiu uma pontada de culpa por
não contar a ela.
— Tenho certeza que o Sombreamento ainda pode se comunicar com a Assassina de
Deuses — Haven continuou. — Morgryth poderia ter encontrado o mapa e dado a ele?
Stolas correu dois dedos sobre a ponta de seu chifre preto como azeviche enquanto
pensava. — Altamente improvável. Ele pode estar livre de sua jaula, mas ainda está preso nos
níveis mais baixos do Submundo e os mapas de sentinela não podem passar do limiar para o
Submundo. Todos os mapas de sentinela são sensíveis ao menor indício de magia. É à prova
de falhas caso o mapa caia em mãos inimigas, destinado a evitar que a magia seja usada para
desbloquear a criptografia.
— Então, alguém neste reino tem o mapa e está lentamente decifrando a criptografia e,
em seguida, alimentando as proteções para o Sombreamento de alguma forma, que por sua
vez trabalha através da Assassina de Deuses?
— Essa seria minha suposição, sim.
Todos na mesa pararam com isso. Claro que Haven sabia que as forças viriam para a
Assassina de Deuses. Archeron. Morgryth.
Mas ela não esperava que a brecha viesse de dentro.
Era apenas mais um lembrete de quão vulneráveis eles eram.
Por um momento, ela se lembrou da breve visão que teve nas cavernas. Mas tudo estava
embaçado e ela nem tinha certeza do que via agora. Mãos e possivelmente pergaminhos de
algum tipo?
— Por que não destruir a coisa? — perguntou Demelza. Ela estava sentada à esquerda
de Haven, envolta em seu xale de lã pesado e no de Haven, seu corpo torto curvado sobre
seu ensopado de carne tentando capturar o calor que escapava. Aparentemente, a mulher
desprezava o frio, o que parecia estranho, considerando que ela era do norte e reclamava de
ondas de calor o tempo todo.
— Poderosos conjuradores de runas tentaram — Xandrian explicou. — É como se a
arma abominável estivesse permanentemente revestida de ruína negra.
— Ruína negra? — Haven olhou para Bell enquanto esperava que ele colocasse aquele
rosto acadêmico e explicasse.
Ele não decepcionou. — Ruína negra é uma substância coletada do Éter e decomposta
em forma líquida. É muito volátil. Quando um objeto entra em contato com o material, esse
objeto existe temporariamente dentro do Éter e é protegido por um período de tempo,
mesmo que ainda possa ser visto neste reino. Mas a ruína negra só funciona em um objeto
por alguns dias, uma semana no máximo.
Haven se lembrou da substância pegajosa que parecia revestir tudo no Éter com um
cinza monocromático.
Os olhos de Nasira brilharam. — Os Senhores Demônios não nos presentearam com
um frasco de ruína negra uma vez?
— O que quer que você esteja pensando, Nasi— Stolas advertiu, cortando os olhos para
ela— não pense. Até a nossa mãe sabia que não devia tocar naquele material venenoso. Tem
mais usos do que os Senhores Demônios deixam transparecer.
Nasi? Haven estava absolutamente arquivando isso para mais tarde.
Agora, porém, seus pensamentos estavam voltados para diminuir sua lista cada vez
maior de inimigos. Cutucando o biscoito que estava na borda de sua tigela de ensopado, ela
disse: — Nada ainda dos corvos?
O silêncio lhe deu uma resposta, mas não a que ela queria.
— Eu pensei que uma vez que a notícia de nossa aliança se espalhasse... deixa pra
lá. Tenho certeza de que leva tempo para criar essa resposta.
Abandonando seu aperto em sua tigela, Demelza estendeu a mão e deu um tapinha na
mão de Haven. — Se esses governantes Solis não vierem até você, eles são tolos. Cada um
deles.
— Minha mãe é uma daquelas governantes Solis — Ember apontou, seu orgulho feroz
lembrando muito Haven de Rook.
— E se ela não vier para Haven, então ela é uma tola — Demelza bravamente insistiu.
Por um instante tenso, ninguém se atreveu a respirar enquanto aguardavam a reação de
Ember. Mas a princesa Morgani finalmente abriu um sorriso, sua cabeça caindo para trás
enquanto ela ria. — Haven, eu acho que a sua criada foi uma guerreira Morgani em uma
vida passada.
— Eu concordo. — Foi a vez de Haven apertar a mão de sua amiga. O tipo de coragem
necessária para seguir uma tripulação de foras-da-lei imortais através do mar até uma terra
condenada e não reclamar nem uma vez... Haven só podia rezar para que ela pudesse ter
metade da determinação quando se tratava de proteger seus amigos.
— Pode haver uma razão pela qual minha mãe ainda não enviou um falcão de volta. —
acrescentou Ember. — Meu reino está planejando o festival Fertalis Amare.
Bell se endireitou em sua cadeira quando seu rosto se iluminou. — Eu li sobre esse
festival. Ele celebra a irmã de Freya, a deusa do amor e da fertilidade, e termina com um
concurso, certo?
Um olhar de desejo intenso brilhou nos olhos de Ember antes de desaparecer. — Este
ano é uma competição de tiro com arco.
— Rook entrou em um ano — Surai refletiu, seus olhos escurecendo com a memória. —
Foi logo depois que sua mãe a despojou de seu título e a forçou a sair. Ela não tinha
permissão para levar nada com ela, mas queria desesperadamente um colar que sua avó lhe
dera antes de falecer.
Ember riu, mas o som estava mais perto de um soluço. — Eu lembro. A minha mãe ficou
furiosa. As regras do festival e do concurso declaram que qualquer um pode entrar –
mortais, Noctis, Solis menores, qualquer um. Ela não conseguiu evitar que Rook se tornasse
uma competidora.
— E quando Rook ganhou e reivindicou seu prêmio? — Surai disse, seu olhar fixo em
algum ponto distante no horizonte enevoado. — Eu nunca vi sua mãe tão brava. Acho que
o rosto dela ficou roxo brilhante.
Ambas as mulheres caíram na gargalhada e Haven desejou mais do que tudo que Rook
pudesse estar aqui agora para ver sua irmã favorita e sua companheira como amigas e aliadas.
— Espere— Haven disse. — que prêmio?
Surai enxugou as lágrimas de riso ao dizer: — Essa foi a melhor parte. O vencedor do
concurso pode escolher qualquer item do tesouro antigo guardado dos Morgani. Rook
poderia ter escolhido artefatos de valor inestimável, mas ela escolheu o colar de sua avó e a
Rainha Morgani teve que deixá-la levá-lo.
Uma onda de excitação varreu Haven. — O vencedor pode escolher... qualquer coisa?
— Qualquer coisa — Ember confirmou.
Haven virou-se para Xandrian para encontrá-lo já balançando a cabeça.
— Não, Haven — ele murmurou, sua voz ficando mais insistente quando ele viu seu
sorriso. — Eu lhe disse que a informação é infundada, um boato, na melhor das hipóteses. E
não podemos arriscar tudo por causa de um boato.
Ela ergueu o queixo. — Acho que todos sabemos que a Rainha Morgani não está
esperando até depois do festival para responder. Nenhuma das nações está. Eles nunca vão
se aliar a nós... não enquanto eu ainda for mortal.
Haven sempre se maravilhara de como Stolas conseguia atrair a atenção de uma
multidão sem dizer uma palavra. Agora, o Senhor das Sombras desdobrou as mãos
entrelaçadas, se inclinando para frente, e todos os olhares se voltaram para ele. — Alguém,
por favor, me diga o que está acontecendo.
Mesmo que sua voz mantivesse o mesmo tom educado de sempre, seu humor sombrio
veio em suas sobrancelhas abaixadas e boca apertada. Ravius abandonou o ombro do Senhor
das Sombras e ocupou um lugar nas costas da cadeira de Haven.
Ela jogou ao pássaro insaciável uma roda de queijo branco maior que sua cabeça e, então,
encontrou o olhar extasiado de Stolas. — Xandrian encontrou uma conexão com uma das
pinturas roubadas da minha mãe.
Surai engasgou. — O quê?
Xandrian começou a protestar, mas Haven continuou: — Achamos que a Rainha
Morgani a tem em sua posse, sem saber. — Ela encontrou os olhos assustados de Ember. —
Você já viu alguma coisa que pudesse ser a pintura roubada?
— Eu... Haven, há centenas de peças de arte apenas no palácio e inúmeras outras
armazenadas nos tesouros. Eu nem saberia por onde começar.
Haven soltou uma respiração irregular. — Ainda assim, poderia estar lá, certo? E, se eu
ganhar o concurso, posso reivindicá-la?
— Você está louca? — Xandrian perguntou baixinho. — Você é a conjuradora de runas
mais caçada no reino. Todos nós somos agora, na verdade, caso você tenha esquecido.
— Sim, mas qualquer um pode entrar no concurso. E Archeron não ousaria me atacar
enquanto eu fosse uma convidada da Rainha Morgani. — Ela esperava. — Ele é esperto
demais para causar uma guerra total com a segunda nação mais poderosa de Solissia, mesmo
por mim.
Mais uma vez, ela esperava que não.
— E Morgryth? — Xandrian pressionou. — Ou estamos fingindo que a Rainha das
Sombras não representa mais uma ameaça porque ela tem estado bastante quieta
ultimamente? Porque na minha vasta experiência, quando seu inimigo fica em silêncio, não
é uma coisa boa.
— Eu não esqueci a Rainha das Sombras, nem esqueci meu pai. Mas jogar pelo seguro
hoje simplesmente se traduz em adiar o inevitável. — Inalando, ela varreu seu olhar sobre a
mesa. — Sem aliados em Solissia, não sobreviveremos. Será que realmente importa se o
nosso fim chegará em alguns dias ou semanas?
Ember fez uma careta enquanto olhava para seus dedos entrelaçados. — Quero dizer,
ela tem um ponto.
Bell lançou a Xandrian um olhar de soslaio antes de olhar de volta para Haven. — Eu
concordo. Na verdade, se o exército da Rainha Morgani for obrigado a proteger os
competidores e seus companheiros, eu diria que estamos realmente mais seguros lá.
Xandrian lançou um olhar traído a Bell.
Stolas, que estava assistindo silenciosamente do outro lado da mesa, deslizou seu olhar
ilegível para Ember. — Isso é verdade? Sua mãe e sua guarda protegeriam Haven de
Archeron?
— Qualquer um pode entrar — Ember admitiu cautelosamente— e os competidores
são considerados convidados sob a proteção da nação Morgani, sim.
Stolas piscou. Olhou para Haven. — E você acha que poderia de alguma forma
reconhecer uma dessas pinturas?
Haven deu um aceno lento. — São as últimas coisas que minha mãe me deu. Me
aproxime delas, é tudo o que estou pedindo. As pinturas farão o resto.
Ela prendeu a respiração enquanto esperava que Stolas explicasse o quão tola ela estava
sendo. Sem o seu apoio, o resto deles seguiria o exemplo. O que seria extremamente
inconveniente, porque ela já havia decidido no último minuto que iria, não importava o
quê.
No fundo, uma voz calma sussurrou que esta era a resposta para tudo.
Sua mãe tinha deixado um mapa para a imortalidade para Haven e até parece que ela não
iria vasculhar o reino por isso.
Alguém a acompanharia? Surai - ela poderia convencer Surai a se
esgueirar... provavelmente. Possivelmente Ember e Bell. O resto era duvidoso.
E Stolas superaria isso.
Provavelmente.
Todos os seus planos desesperados foram interrompidos quando Stolas se levantou,
enxugou os lábios em um guardanapo branco e disse: — Então, está resolvido. Partimos
amanhã.
Haven sentiu suas sobrancelhas subirem pela testa.
— Por que isso te surpreende? — ele perguntou suavemente.
— Porque eu assumi que você diria... não. — Isso era apenas parcialmente verdade. Ela
estava pensando em Archeron e em todas as vezes que ele desaprovou suas ações. Todas as
vezes que ela teve que lutar com unhas e dentes para que suas opiniões importassem.
Teve que lutar para que ele a ouvisse. Para que ele não a interrompesse. Para ele não
explicar repetidamente como ela não sabia nada de seu mundo e como ele sabia melhor.
Realmente ouvir e deixá-la ser ouvida.
Essa experiência a preparou para lutar pela aprovação de Stolas.
Um meio sorriso irônico temperou a linha dura da boca de Stolas. — Você teria ouvido
se eu discordasse?
— Não.
A risada que saiu de seus lábios foi suave, quase perversa, e inexplicavelmente a fez
corar. — Então, é por isso.
— Porque eu teria saído de qualquer maneira?
— Porque encontrar a pintura é obviamente tão importante para você que você
arriscaria ir sozinha e o que é importante para você, é importante para todos nós. Nós nos
erguemos e caímos juntos, Haven. Essa é a única maneira de sobrevivermos. Embora eu
sugira que no futuro você se lembre de que é a Nascida da Deusa e nunca deve responder a
ninguém, nem mesmo a mim.
Suas palavras tomaram conta dela como o anoitecer - lentamente e, então, de uma vez
só.
Você nunca deve responder a ninguém, nem mesmo a mim.
Os lábios se separaram, cada resposta aparentemente plausível desapareceu em sua
língua enquanto ela o observava se virar para ir embora.
Ir embora.
— Espere. — ela chamou um pouco ansiosamente. — E o nosso... Treinamento?
Seu estômago caiu quando ele murmurou por cima do ombro— Não esta noite — sem
sequer se virar.
Stolas mal havia saído da mesa quando Xandrian falou lentamente: — É impressão
minha ou ele parece mais mal-humorado do que o normal?
Nasira mostrou os dentes para Xandrian. — O que você esperava hoje de todos os dias?
Ele deu de ombros, girando o vinho intocado em sua taça. Seu cabelo loiro dourado
estava puxado para trás de seu rosto por uma fita prateada, mostrando suas sobrancelhas
elegantes e maçãs do rosto perfeitamente arredondadas. — Quero dizer, já se passaram
centenas e centenas de anos desde o golpe. Presumi que o aniversário do evento se tornaria
apenas mais um dia depois, digamos, do segundo ou terceiro século.
Deusa Acima, foi hoje o dia em que Morgryth assumiu Shadoria?
— Por que eu não forço você a enfiar uma lâmina no coração de sua mãe— Nasira
sussurrou, a voz estranhamente sem emoção— mas devagar, para que você possa observar
cada expressão dela, ver seu medo, dor e tristeza enquanto ela morre sabendo que as crianças
estão todas mortas ou escravizadas? Então, podemos ver quanto tempo dura sua dor.
A mesa inteira ficou em silêncio. Até a brisa pareceu morrer. Dedos gelados envolveram
o coração de Haven. Ela não podia imaginar ver seus pais e irmãos morrerem na frente dela
para aquele monstro depravado, mas ser forçada a acabar com suas vidas... ter a memória do
ato enraizada em sua alma... isso era além de horrível.
Não admira que Stolas estivesse chateado.
Infelizmente, a única pessoa que não parecia ter empatia era Xandrian. — Considerando
que minha mãe é agora uma criatura feroz com guelras e um apetite por cabeças de peixe e
marinheiros, duvido muito que meu período de luto seria um assunto prolongado.
A cadeira de Bell raspou o chão de pedra, quando ele colocou o guardanapo sobre a mesa
e se levantou. — Sabe, Xandrian, eu costumava admirar você. Eu pensei... Eu pensei que
você era tudo o que eu aspirava ser.—
— E o que é isso, exatamente, Bellamy?
— Bonito. Admirado. Seu nome é conhecido por todos os cortesãos e cidadãos de seu
reino.
— E agora? — Xandrian falou lentamente, toda insensibilidade arrogante enquanto
fingia mais interesse em sua taça de vinho do que em Bell. Mas havia... algo mais em seu tom
também. Uma vulnerabilidade por trás daquele sorriso preguiçoso.
— Agora vejo que, enquanto por fora você é todas essas coisas e muito mais, por dentro
você é vazio, uma fraude – e tudo que eu aspiro a não ser.
Além do tique sutil de um músculo na têmpora de Xandrian, seu rosto permanecia tão
presunçoso como sempre. — Então... você admite que me acha bonito?
Se Xandrian pensava que dobrar a arrogância funcionaria em Bell, ele não conhecia seu
amigo como ela.
Bell varreu o olhar sobre a mesa com uma confiança que o fez parecer cinco anos mais
velho. — Boa noite. Haven, você pode vir mais tarde se quiser discutir amanhã. Eu tenho
algumas ideias sobre os portais.
As asas de Nasira se abriram quando ela foi atrás de Bell, a ponta brilhante de uma de
suas penas acidentalmente derrubando o vinho de Xandrian em seu colo.
Xandrian franziu a testa para a mancha vermelha que se espalhava. Então, ele
casualmente pegou a garrafa de cristal e encheu sua taça novamente. — Uma pena. — disse
ele. — Gostei bastante dessas calças, embora o vinho seja apenas mais ou menos.
Ember bufou antes de ficar de pé. — Acho que acabei de lembrar por que não há
homens pomposos em nossa ilha.
— Não há homens em sua ilha. — Xandrian apontou secamente. — É literalmente
contra a lei alguém entrar em seu reino, exceto em feriados e festivais.
— Sim, bem, você acabou de me lembrar o porquê. — O lábio superior se curvou em
desgosto, ela pegou a garrafa na frente de Xandrian e, então, acenou-a como um troféu. —
Alguém sem um apêndice inútil entre as pernas quer se juntar a mim nos banhos quentes?
Delphine e Bane se levantaram simultaneamente. Depois de uma conversa acalorada,
Delphine lançou um olhar irritado para Surai e assinou algo rápido demais para Haven
decifrar.
Surai sorriu. — Delphine disse que, embora o apêndice de seu irmão seja
definitivamente inútil, também é bem pequeno e não deve incomodar ninguém.
Bane lançou a sua irmã um olhar assassino.
Ember olhou incisivamente para a parte do corpo em questão e, então, deu de ombros.
Surai moveu-se para se juntar a eles antes de olhar para Haven. — Vamos? Pode ser a
última noite assim que teremos por um tempo.
Sem mortes e sem morrer, Surai não disse. Ela não precisava. Estava escrito em todos os
seus rostos. A necessidade desesperada de desfrutar esta noite. Para realmente viver nesta
noite rara e pacífica.
Haven queria ir. Fazia muito tempo desde que elas realmente saíam, ou apenas
conversavam como costumavam.
De certa forma, sua vida era muito mais solitária agora do que antes de ser Nascida da
Deusa.
Mas ela não podia beber e se divertir sabendo o que hoje significava para Stolas. Sabendo
do desespero que deveria sentir, mesmo centenas de anos depois.
Ela balançou a cabeça. — Não, acho que vou tentar finalmente fazer aquela coisa que os
mortais chamam de dormir. Mas vocês se divirtam por mim, ok? E leve Demelza com você.
— Não. — a criada protestou, seus cachos soprando ao redor de sua cabeça enquanto
ela a balançava. — Eu ficarei com você.
Do jeito que Demelza olhou para Bane e Delphine, ela provavelmente suspeitava que
eles eram demônios disfarçados.
Haven deu a Surai um olhar suplicante. — Por favor? E certifiquem-se de que ela se
divirta.
Quer Demelza admitisse ou não, este lugar tinha sido difícil para ela e ela precisava de
uma pausa.
Surai deu a volta na mesa e deu um beijo na cabeça de Haven. — Como quiser, Soror.
— Seus olhos cor de lavanda dispararam para uma Demelza amaldiçoando. — Você me deve
muito por isso. Tem certeza que não quer vir?
Haven balançou a cabeça antes que ela pudesse mudar de ideia.
— Certo. Apenas se certifique de que esse 'sono' que você mencionou não vem com
chifres retorcidos, asas lindas e uma carranca sombria e pensativa, ok?
— Eu não sei do que você está falando — brincou Haven, sabendo muito bem o que ela
queria dizer.
Surai grunhiu baixinho enquanto enganchava um braço sob o de Demelza e puxava,
persuadindo-a a se levantar da cadeira. Surai deu a Haven um último olhar, murmurou, você
me deve muito, e lutou com a mulher amaldiçoada pelo pátio enquanto elas alcançavam os
outros.
Haven os observou partir, nem mesmo se preocupando em esconder sua inveja.
Eles estão marchando a bruxa para sua morte? Ravius perguntou, pulando no ombro
de Haven.
— Claro que não — ela retrucou, descontando sua inveja nele.
Uma pena.
— Com licença? — disse Xandrian.
Ah, certo. Às vezes Haven esquecia que ninguém mais podia ouvir Ravius, e ela não
estava com vontade de explicar a Xandrian. — Nada.
— Você deveria ir com eles. — Os olhos de Xandrian tornaram-se fendas azul-marinho
enquanto ele olhava para o oceano enevoado. — A Deusa sabe que se eu deixasse cada
tragédia me afetar, eu nunca me divertiria.
— É isso que você está fazendo agora? Se divertindo?
— Ah, eu sou o epítome da felicidade, Nascida da Deusa.
Não estando com humor para a crueldade irreverente de Xandrian, ela se levantou para
ir embora... e hesitou.
— Se você não deixa nada te atingir, qual é a sua desculpa?
Ele ergueu uma sobrancelha entediada. — Perdão?
— Por ser um bastardo? Pelo menos Stolas tem um motivo, qual é o seu?
Ele riu, brincando com um dos botões dourados de seu colete. — Ser um bastardo me
manteve vivo em uma corte onde eu deveria ter morrido há centenas de anos. Essa é a minha
desculpa.
— É por isso que você sempre tem uma taça de vinho na mão quando quase não
bebe? Por que você diz as coisas mais cruéis para as pessoas que você realmente gosta? Eu vi
você na Corte do Sol. Você sempre esteve cercado pelas pessoas mais bonitas, mas nunca
sorriu. Nem uma vez.
— Existe um ponto para isso?
— Você não está na Corte do Sol, Xandrian. Você não precisa mais desempenhar esse
papel.
— Não? — Uma emoção brilhou dentro de seus olhos cautelosos, rápido demais para
catalogar. — E se, depois de fingir ser algo por tanto tempo, eu não me lembrar de quem eu
era antes? E então?
— Eu não sei. Comece por não ser um idiota e vá a partir daí?
Ele bufou. — Desculpe, quando eu quiser conselhos de alguém mais jovem do que a
cadeira debaixo da minha bunda, eu peço.
Ela suspirou enquanto se levantava. O ar havia esfriado consideravelmente com o
crepúsculo que se aproximava, mas, pela primeira vez, as mortalhas de névoa eram finas,
permitindo uma visão do sol alaranjado ardente enquanto mergulhava no mar negro. Com
o branco tingido de púrpura cobrindo as colinas, os dourados e rosas dançando nas ondas
espumosas, Shadoria nunca esteve mais bonita.
Parecia estranho que o dia de hoje, de todos os dias, escolhesse ser glorioso.
Ela plantou as palmas das mãos na mesa de mármore lisa. — Posso ser jovem, mas sei
que Bell é o melhor de todos nós. Ele é gentil, nobre e corajoso e merece muito mais do que
isso... o que quer que você seja.
— Isso é definitivamente verdade, mas dê vinte ou trinta anos e, se ele ainda estiver vivo
depois de tudo, ele não será tão gentil ou nobre. Essa vida perigosa de reis e tiranos o
transformará em algo mais duro, algo mais sombrio, da mesma forma que você. Venha falar
comigo então, Nascida da Deusa, depois de ter perdido quase todos que você ama.
Algo em suas palavras era como a ponta de uma lâmina rasgando a cicatriz das visões de
Archeron e ela se encolheu antes que pudesse se conter.
— Ah. Você achou que poderia passar por isso ilesa? — O que parecia uma verdadeira
pena cintilou em seu rosto. — Sua pobre garota ingênua.
A raiva a varreu como um incêndio. Ela arrastou seu olhar furioso sobre suas calças
manchadas antes de encontrar seus olhos. — Você ainda não o perdeu completamente, mas
o fará, Senhor do Sol. Para todo sempre.
Segurando seu olhar, ele tomou um longo gole de seu vinho. — Quem disse que eu
quero ficar com ele?
Haven deu de ombros, jogando o último de seu prato no chão para Ravius. — Não diga
que eu não avisei.
Enquanto caminhava em direção ao conjunto de portas que levavam para dentro, ela
esperou pela resposta rápida de Xandrian.
E esperou e esperou até que as portas se fechassem atrás dela.
Stolas podia não querer treinar esta noite, mas ele tinha planos. Ela descobriu quais
eram esses planos quando passou pela entrada do Salão da Luz a caminho da cama. A noite
havia caído no tempo que levou para caminhar da varanda no lado oeste do terreno até aqui
– o que era basicamente uma prova do tamanho do Castelo Perfurador de Estrelas.
Ela não tinha a intenção de parar nas enormes portas de pedra com maçanetas em forma
de cabeças de lobo, mas algo - um sentimento, ou talvez a luz gotejando do além - a fez parar.
Tochas recém-acesas lançavam ovais azul-claros de luz rúnica sobre as paredes negras
cheias de crateras da câmara maciça. Retângulos prateados de luar rastejavam pelo chão.
E, de joelhos dentro de uma daquelas faixas de luz etérea, estava Stolas. Suas asas
pendiam apertadas e moles contra suas costas, suas pontas roçando o chão escuro.
Ela pensou que poderia tê-lo ouvido suspirar audivelmente enquanto ela
silenciosamente cruzava para o lado dele. Quando ela viu o que ele estava fazendo, com que
delicadeza ele recolheu os pequenos cacos de cristal na palma da mão e depois os transferiu
para um pedaço de pano dobrado... seu coração parecia semelhante aos cristais quebrados
que ele estava tentando salvar.
— Achei que os atendentes já teriam recolhido todas as peças.
— Eu disse a eles que não — disse ele sem olhar para cima.
— Por quê?
— Quando meu Familiar das Sombras despertou pela primeira vez, eu era muito tolo
para entender seu perigo para os outros. Eu pensei que poderia controlá-lo sem tomar o
tempo para me relacionar primeiro. Esse erro custou a perna a um cidadão Serafim. Por um
ano inteiro depois, minha mãe me obrigou a viver com aquele homem – um padeiro – como
seu criado. Fui buscar-lhe o manto de manhã, o café da manhã. Coloquei tantos pães
naquele forno enorme que juro que nunca mais olharei para pão da mesma forma.
Ela sorriu um pouco ao imaginar um jovem e privilegiado Stolas trabalhando como
criado na frente de um forno, suas enormes asas apertadas dentro da padaria.
Stolas Darkshade sabia fazer pão. A ideia era tão ridícula que ela quase riu, mas,
novamente, tantas coisas sobre Stolas eram o oposto do que ela esperava.
Ele era um estudo de contrastes.
Às vezes, o poder bruto e irrestrito que ela sentia agitando-se sob sua carne era
esmagador, como o sol do meio-dia Penrythiano - poderoso demais, brilhante
demais. Outras vezes, sua presença era como estar sob um céu de estrelas cadentes -
totalmente hipnotizante.
— Isso deve ter sido humilhante — disse ela.
— Era. Mas aprendi uma lição valiosa. Só eu sou responsável por consertar o que eu
quebro.
Ela não tinha certeza se você poderia consertar a perna de alguém... mas ela entendeu e
ficou dividida entre zombar e sorrir.
Só Stolas poderia transformar essa situação em uma lição. Ele sempre a estava orientando
de alguma forma. E, mesmo que essas lições fossem tipicamente ministradas com
impaciência e pavio curto, ela as apreciava.
Ela olhou para Stolas. Ele ainda tinha que olhar para ela, sua atenção focada em uma
pequena lasca de cristal presa entre seus dedos longos. Ela entendeu por que ele assumiu a
única responsabilidade de limpar o dano que ele fez, mas fazer isso hoje à noite de todas as
noites, sozinho...
— Se você planeja ficar aí a noite toda com esse olhar de pena, então vou pedir para você
ir embora — ele murmurou.
Ela não o culpou por sua resposta seca. A última coisa que ele precisava agora era pena
de alguém. Mas ele estava errado se pensava que ela o deixaria sozinho para carregar esse
fardo.
Caindo de joelhos, ela jogou o cabelo por cima do ombro e começou a procurar nos
ladrilhos pretos o rápido lampejo de luz que marcava um fragmento de cristal próximo.
Uma mecha de cabelo marfim, embranquecida pelo luar que descia, caiu sobre a testa
de Stolas quando sua cabeça se inclinou para que ela pudesse ver seu perfil. — O que você
está fazendo?
— O que parece que estou fazendo? — ela perguntou suavemente. — Eu estou
ajudando.
— Eu não pedi para você. Este é o meu fardo para carregar sozinho.
— E aquele discurso que você deu mais cedo sobre nos erguermos e cairmos juntos?
Mesmo com o rosto virado, ela sabia que ele estava revirando os olhos. — Você está
distorcendo minhas palavras.
— Não, estou literalmente repetindo para você. E... Estou sendo uma amiga.
— Uma amiga? — Uma risada grave cortou o corredor. — É isso que somos um para o
outro?
Suas unhas cravaram em suas palmas. Se ela não conhecesse Stolas do jeito que conhecia,
as palavras dele doeriam. Mas ela o conhecia.
Sempre que sentia alguém se aproximando demais, especialmente durante um momento
vulnerável, ele fazia isso.
Espantava.
Empurrava as pessoas para longe.
Tentava ser o monstro que eles diziam que ele era.
— Você não pode me assustar, sabe. — Ela grunhiu quando seu joelho, já dolorido de
cair durante uma sessão de treinamento esta semana, ficou preso em uma parte irregular do
chão. — Eu vi você no seu pior momento, lembra?
— Pequena Fera, você nem sequer arranhou a superfície do meu pior momento.
Ela arrancou um fragmento de cristal do tamanho de uma unha de uma rachadura no
chão e o segurou contra a luz, fascinada pelo brilho de poder que ela sentiu pulsando de seu
núcleo. — Eu vou correr o risco.
Aparentemente chegando à conclusão de que ela não ia ceder, ele passou a ignorá-la e
eles juntaram os pedaços em silêncio. Os únicos sons eram sua respiração suave e o arrepiar
ocasional das penas de Stolas enquanto suas asas se moviam, esticando e agitando
aparentemente por conta própria.
Mais de uma vez, ela se viu observando-o quando ele não estava olhando. Algo sobre a
forma como a luz suave deslizava sobre sua forma ajoelhada era fascinante. Pintada naqueles
raios prateados, sua pele luminescente e girada da própria lua, penas dançando com índigos
e roxos profundos, ele não se parecia com o Senhor do Submundo que governou o
Submundo por incontáveis séculos.
Não, ele parecia um príncipe Serafim.
— Este era o cômodo favorito dela em todo o castelo. — Stolas pegou um pedaço de
cristal de ametista do tamanho de uma nectarina e o ergueu contra o luar. — Ela mesma
desenhou os planos para o lustre. Escolheu cada cristal com as próprias mãos.
Uma dor profunda se abriu dentro dela quando ela imaginou seu Lobo das Sombras
destruindo a magnífica estrutura de luz. Enxugando as mãos sujas nas calças, ela disse: —
Você estava protegendo eles, não estava? Você direcionou seu lobo para os cristais em vez de
Bell e os outros?
— Não — ele rosnou. — Não me faça o herói desta história. Por favor. Não essa noite.
A frustração aqueceu suas bochechas. — Stolas, se você não tivesse escolhido sacrificar
algo que você amava, eles estariam mortos.
— Você me dá muito crédito.
— Eu?
— Foi bem aqui neste mesmo lugar que eu a matei. — Suas palavras eram tão suaves que
ela quase as perdeu. Ele ainda estava de costas para ela. Aquelas asas gloriosas se estendendo
para preencher o espaço entre elas. Capturando cada pedacinho de luz como eles fizeram. —
Ainda quer me pintar como seu herói?
— Você não a matou, Stolas — Haven corrigiu, se aproximando. Ela passou pelas ondas
de escuridão que pulsavam dele. — Morgryth a matou.
— Eu segurei a lâmina. Olhei em seus olhos enquanto a posicionava sobre seu
coração. Eu posso ter sussurrado o nome dela, não me lembro. Mas eu me lembro do som
que ela fez quando a lâmina perfurou sua pele pela primeira vez. Sua magia a deixou, ela
estava completamente desprotegida. Incapaz de se defender de seu próprio filho.
— Você. A. Não. Matou.
— Pare. — Ele não levantou a voz, mas o aviso estava na suavidade de seu tom e em todas
as palavras não ditas no meio.
Qualquer outra pessoa e Stolas já os teria feito parar. Ela sabia disso. Sabia que ela estava
pairando sobre uma linha muito perigosa.
E ainda... deixá-lo continuar esse ciclo sombrio de ódio e culpa era cruel e, se ela pelo
menos não tentasse quebrar esse ciclo, então ela era uma covarde.
Ela se aproximou silenciosamente. — Stolas, Morgryth assassinou sua família, não você.
— Haven, eu preciso que você saia agora.
Sua voz estava irreconhecível.
Grave. Mais besta do que homem.
Sua imobilidade era uma coisa sobrenatural que avisava as partes mais primitivas dela
para correr.
Tudo nela gritava para obedecer. Para fugir deste predador. Mas a ideia dele no corredor
onde matou sua própria mãe, sozinho com sua raiva, vergonha e tristeza, odiando-se mais a
cada segundo que passava...
— Não posso, Stolas.
— Por quê?
— Porque... porque eu me importo com você.
A risada sombria que retumbou em seu peito era parte risada, parte rosnado e cem por
cento aterrorizante. Os pelos ao longo de seus braços ficaram rígidos quando ele
finalmente... finalmente se virou para ela.
E ela de repente soube por que ele não a tinha olhado completamente antes.
Quase tudo em seus olhos estava negro e com partes vermelho-sangue, a observando
acima dos incisivos mais longos que ela já tinha visto em um Noctis. Suas sobrancelhas
normalmente elegantes estavam severamente arqueadas, seus lábios exuberantes torcidos
cruelmente.
— Você se importa comigo, Pequena Fera? — Sua voz estava irreconhecível. — E se eu
te disser que neste exato segundo, eu posso sentir sua magia de luz pulsando dentro de suas
veias delicadas. Que me chama? Que eu quero me empanturrar disso... de você?
O medo quente e pegajoso se agrupou em seu meio. Não, não era Stolas. Sua mandíbula
cerrou com tanta força que ela esperou que um molar quebrasse, ela purgou o terror de seu
corpo, mas não rápido o suficiente.
Suas narinas se dilataram, captando o cheiro que ela tentou esconder. Um sorriso
perverso mostrou todo o comprimento de suas presas.
O pânico borbulhou dentro dela...
Um sussurro de sombra cortando o luar – isso foi tudo que ela captou antes que ele
estivesse sobre ela. Ela bateu a palma da mão por instinto, roçando o ângulo duro de sua
mandíbula.
Era como bater sua carne contra a borda de um balcão de mármore.
Ele não pareceu sentir isso quando ele se aproximou. Seus olhos eram poços negros com
partes de fogo. Piscinas gêmeas olhando diretamente para o Submundo.
— Stolas.
Nada.
— Stolas!
Seu silêncio era enervante. A maneira como ele se movia aparentemente pelos planos
deste reino como fumaça. Ela girou de seu alcance. Seu coração afundou e, então, acelerou
em um ritmo pulsante selvagem quando ela o sentiu ao seu redor. Dançando dentro e fora
das sombras. Movendo-se rápido demais para catalogar.
Um pincel de asa aqui. Uma carícia de respiração ali. Sua magia das sombras formigando
e pulsando e arranhando sua pele.
Algo acariciou seu pescoço enquanto o riso ecoava pelas paredes.
Reunindo sua energia, ela se concentrou naquela risada perversa e gutural. Lá. Antes
que ele pudesse se mover novamente, ela explodiu sua magia de luz...
E assistiu-a drenar em nada.
Ela concentrou toda sua atenção em sua presença mortal. Esperou até que ela sentiu isso
se materializar...
Seu chute foi duro e inesperado. Sua bota acertou alguma coisa - a coxa dele? - e ela
estremeceu quando o impacto reverberou pela canela e pelo fêmur.
— Isso não foi muito legal, Pequena Fera.
Tarde demais, ela sentiu as mãos apertarem sua cintura. Os braços como
mármore. Aquele cheiro familiar de íris e mandarina-de-sangue e almíscar.
Ela bateu o salto de sua bota em sua canela.
Uma vez. Duas vezes.
Inúmeras vezes até que o chão desapareceu e seu estômago ficou oco e...
Eles estavam bem acima do Salão da Luz, onde o candelabro ficava
pendurado. Suspenso em um feixe de luar delicado. Manchas de poeira brilhavam enquanto
giravam preguiçosamente ao redor deles. Janelas gigantes ofereciam vistas das colinas
carregadas de névoa, o brilho suave das lanternas rúnicas pulsando sob aquele véu de marfim
onde a cidade dormia.
A beleza de tudo quase podia convencê-la de que estava sonhando.
Mas isso não era um sonho, era um pesadelo.
Um braço estava pendurado sobre sua barriga.
O outro acariciava o emaranhado selvagem de seu cabelo, seus dedos enviando arrepios
através de sua pele inflamada quando ele a posicionou fora do caminho.
Desnudando seu pescoço.
Seu pescoço.
Ela congelou quando seu hálito frio flutuou sobre sua mandíbula.
Fechou os olhos enquanto ele arrastava as pontas de suas presas sobre o ponto sensível
logo abaixo de sua orelha.
— Você não gosta do gosto de sangue — ela disse, estupidamente.
— Não? — Seus lábios vibraram com o riso enquanto eles se revezavam com suas presas,
explorando sua carne.
Choque e confusão nublaram suas ações. Ele estava tentando lhe ensinar outra lição? —
Por que você está fazendo isso?
— É óbvio que nossas noites juntos fizeram você esquecer o que eu sou. Acho que você
precisa de um lembrete.
— Vai se— Ela agarrou seu braço livre — foder.
Ela puxou o antebraço dele perto de sua boca.
E mordeu.
Forte.
No segundo que ela sentiu o aperto dele afrouxar em sua cintura, ela bateu o cotovelo
em seu abdômen e torceu.
Sua gaiola de músculos e ossos tornou-se ar livre.
Ela jogou sua magia – ou tentou.
Ele se foi.
Runas.
Olhos fechados, ela se preparou para o impacto... apenas para piscar de surpresa quando
ela foi parada a poucos centímetros do chão.
Antes que ela pudesse reagir, ela foi gentilmente virada de costas.
Mas não havia nada gentil nas mãos prendendo seus pulsos no chão. E os olhos que
olhavam para ela – não havia nada nem perto de gentil neles.
— Aquilo foi estúpido.
Suas bochechas inflamaram com mágoa e raiva quando ela olhou para ele. — Tome uma
única gota de minha magia ou sangue sem minha permissão e eu vou matar você.
— Você já me matou uma vez. Não demorou.
Desgraçado.
Com a cabeça inclinada para o lado, ele juntou os dois pulsos dela em uma mão. A outra
mão afastou uma mecha de cabelo de sua testa.
— Onde nós estávamos? Ah, certo. Você estava dizendo o quanto você se importa
comigo e o quanto eu não gosto de sangue.
Furiosa, ela levantou o joelho, mirando em qualquer coisa que pudesse acertar.
Ele torceu para fora do alcance dela, aqueles olhos predatórios brilhando de prazer
enquanto ele estalava. — Isso não parece com alguém que se importa, Pequena Fera.
Ela resistiu, sacudindo os quadris. Tentando jogá-lo de cima dela. Tentando arrancar
suas mãos de seu aperto. Tentando escapar da selvageria em seu ser.
Ela sempre sentiu aquela escuridão à espreita por trás daquelas belas maneiras... mas
sempre foi rigidamente controlada.
Não estava mais controlada.
Ela estendeu a mão para seus poderes... apenas para encontrar um buraco frio e vazio em
seu peito onde aquela magia agitada normalmente esperava.
Um barulho saiu de sua garganta, parte rosnado e parte grito de raiva. O que diabos ele
estava fazendo?
— Eu poderia beber sua magia à força— ele murmurou, arrastando a ponta de um dedo
pela bochecha dela. — mas, então, eu acredito que você tentaria me matar. Que criatura
assassina você é, Pequena Fera.
Pode apostar.
Ela sentiu o poder dele se agitar, sentiu-o estender-se lentamente, uma carícia de euforia
que suavizou sua mente. Outro golpe daquela horrível e maravilhosa emoção e seus
músculos relaxaram enquanto o calor líquido rolava através dela em ondas.
Completude promissora. Felicidade. Prazer - tanto prazer.
— Quanto tempo você acha que poderia resistir antes de fazer o que eu pedir? É isso que
você quer?
Ela abriu caminho através das camadas aveludadas de magia que ele a envolveu. Agarrou
e arranhou até que ela emergiu daquela promessa de euforia, meio selvagem, com fúria.
— Não— ela rosnou.
— Bom. — Sua escuridão recuou quando ele se afastou dela e tirou seus poderes,
deixando-a fria e confusa no chão. — Da próxima vez que você achar que
se importa comigo, lembre-se deste momento.
Ela ficou de pé enquanto o mundo parecia girar ao seu redor. Partindo - ele estava
partindo.
Seus olhos ardiam.
Sua garganta doía.
Ela estava, sem dúvida, em choque. Entorpecida demais para dizer uma palavra
enquanto o observava partir. Aquelas asas gloriosas captaram a luz e fizeram seu coração dar
um puxão estranho quando ela se lembrou de como ele estava lindo, momentos antes.
A confusão embotou todo o impacto das emoções que devastavam seu peito, mas seu
corpo sentia tudo. O lado esquerdo de seu pescoço ainda doía de onde as pontas de suas
presas haviam se arrastado. A carne acima de seus quadris doía com a pressão profunda de
seus dedos. Até os lábios dela estavam inchados, provavelmente feridos quando ela puxou o
braço dele para sua boca.
Para mordê-lo. Mordê-lo.
Não parecia real. Nada disso parecia nem perto da realidade.
Mesmo que a dor de seu ataque - realmente não havia outra palavra para isso -
desaparecesse nos próximos minutos, o latejar maçante onde seus dedos haviam circulado
seus pulsos como algemas já estivessem escurecendo.
Uma fatia de dor rasgou seu meio quando ela percebeu que seus dedos uma vez fizeram
a mesma coisa, segurando seus pulsos acima de sua cabeça enquanto ele assumia o controle
completo.
Mas desta vez não houve prazer, apenas confusão e traição.
Ela estendeu a mão para esfregar os pulsos e percebeu que estava tremendo. Da euforia
que ele infundiu nela, a adrenalina ainda batendo em suas artérias, ou sua raiva crescente, ela
não tinha certeza.
Provavelmente todas essas coisas.
Ela não encontrou sua voz até que ele passou pelos retângulos de luz prateado e
mascarado nas sombras profundas perto das portas.
Mas ela não precisava vê-lo para chamá-lo do que ele era. — Covarde.
Ele congelou. Cada pena parecia imóvel. Cada partícula de poeira rodopiando dentro
das poças de luz suspensas, mesmo que apenas por um momento. Como se este lugar,
quebrado e arruinado como estava, estivesse ligado às suas emoções.
Então, Stolas Darkshade espreitou pelas portas e desapareceu.
E Haven forçou seus músculos a pararem de tremer. Obrigou suas pernas a dar passos
firmes até que o Salão da Luz estivesse bem atrás dela.
Só então, ela deixou Stolas voltar aos seus pensamentos, apenas tempo suficiente para
decidir que ele era um bastardo covarde. Um bastardo e mentiroso abandonado pelas runas
e amaldiçoado pelas Sombras.
Em uma noite, ele destruiu tudo o que ela pensava que eles compartilhavam entre eles. A
confiança. A amizade.
Os... sentimentos que ela mantinha escondidos.
Tudo entre eles – tudo – agora quebrado e espalhado como os cacos de cristal no chão.
E ainda assim, ele não estava aqui para juntar os pedaços.
Haven acordou com alguém batendo na porta de seu quarto. Archeron! Ele os
traiu. Ela saltou da cama, quase tropeçando nos lençóis emaranhados em torno de suas
pernas, e procurou na pilha de roupas no chão por roupas adequadas.
Droga, onde estavam suas calças?
Uma semana de noites tranquilas a deixou grogue e despreparada. Ela virou a cabeça
para as janelas abertas, procurando no céu por sinais dos guardas Serafins. Uma espessa
tapeçaria de nuvens cinzas de aço a saudou, mas nenhuma sombra bruxuleante para sugerir
uma batalha.
Lá fora, o mundo estava quieto. Ainda.
As batidas tornaram-se mais insistentes. Demelza bufou, acordou de repente e rolou da
cama baixa no canto e caiu no chão empoeirado.
A última vez que Haven viu Demelza, ela estava sendo levada para a cama por Surai e
Delphine, cantando o hino nacional a plenos pulmões de qualquer cidade do norte
abandonada pela Maldição que ela saudasse. Haven teve que ajudar Surai a tirar uma garrafa
de vinho de seus dedos nodosos.
— Estou acordada — gritou Demelza, usando a estrutura da cama como apoio para ficar
de pé. — Nascida da Deusa, o que você precisa?
Haven estava quase vestida, Demelza prendendo o cinto da espada, quando a porta se
abriu com um estrondo. Haven lançou um escudo feito às pressas para proteger Demelza e,
então, se lançou contra o intruso, espada desembainhada...
— Haven, espere!
Do outro lado do batente da porta, Bell acenou com as mãos tentando chamar sua
atenção através da nuvem de poeira e madeira pulverizada. Foi quando ela notou o aroma
revelador da magia amadora – rosas queimadas.
Bell havia derrubado sua porta com magia.
Isso não poderia ser bom.
— O que é isso? — ela exigiu enquanto se abaixava sob um fragmento da porta que não
havia sido destruída.
O suor brilhava em seu rosto e ele estava respirando com dificuldade. Seus olhos
arregalados foram para sua espada. — Você não vai precisar disso.
— Bell. — Ela embainhou sua espada e o agarrou pelos ombros. — O que está
acontecendo?
— Você se lembra da coisa que eu te disse que Stolas liberou quando você estava no
Éter?
Seu pulso lanceou contra a carne macia de seu pulso. — Seu Lobo das Sombras?
— Ele está solto de novo — ele ofegou, trabalhando para recuperar o fôlego. — Está...
está destruindo o castelo. Os Serafins estão com medo demais para chegar perto dele. Nem
Nasira consegue controlá-lo. Você pode ser a única que pode pará-lo.

O primeiro sinal de que algo estava errado foram os uivos. Uivos profundos, estrondosos
e horripilantes que pareciam mais bestas do Submundo do que lobos mortais. Eles estavam
na torre real, três níveis abaixo da câmara de Stolas. Bell e Haven chegaram à crescente
multidão de Serafins e Escolhidos assim que Nasira veio correndo pela esquina.
Pânico sussurrou através de Haven com a visão. A linda camisola prateada e preta com
tiras que Nasira usava revelava marcas de garras varrendo cada centímetro disponível de seus
braços e pernas. E, enquanto os sulcos medonhos já estavam cicatrizando, se unindo diante
dos olhos de Haven, foi o tamanho das feridas que alarmou Haven. Se o lobo de Stolas
tivesse atingido um órgão importante, nenhuma quantidade de cura a teria salvado.
As asas de Nasira estavam eriçadas e tortas, faltando penas em vários lugares. Seu olhar
disparou para Haven e Haven ficou chocada com a rara sombra de medo escurecendo a
expressão da garota Noctis.
— Onde está Stolas? — Haven exigiu quando Xandrian, Surai e Ember correram.
Nasira balançou a cabeça. — Dormindo. Ele deve estar tendo um pesadelo.
Xandrian fez uma careta quando seu foco deslizou na direção dos uivos. — Isso é o
resultado de um pesadelo? Atrevo-me a perguntar o que acontece quando ele realmente fica
com raiva?
Nasira sibilou, mostrando seus caninos antes de se virar para Haven. — Eu não posso
parar isso.
Seu familiar destruiu o Salão da Luz em menos de um minuto e foi quando Stolas estava
acordado para direcionar sua sede de sangue. Ela só podia imaginar a devastação que causaria
agora. — Nasira, você tem que acordá-lo.
— Eu não posso, Haven. Ninguém pode chegar a trinta metros de seu quarto enquanto
ele dorme.
Um rugido explodiu de algum lugar próximo, seguido pelo estrondo de pedra se
estilhaçando.
Pedra.
Deusa Acima.
O castelo tremeu com a força. Poeira e pedras soltas choveram sobre eles.
— Acho que quebrou o chão — murmurou Surai.
— O chão? — Haven colocou uma mecha de cabelo rosa-dourado atrás da orelha, o
cabelo ainda úmido do banho antes de dormir. Ela não sabia muito sobre lobos, mas os cães
só cavavam quando havia algo que eles queriam. — Nasira, o que está tentando encontrar?
— Não encontrar. — Seus olhos se fecharam, reabriram. Havia um vazio em seu olhar
que Haven nunca tinha visto antes. — Destruir.
Delphine e Bane se aproximaram em algum momento durante o caos e Delphine
continuou a explicação usando sinais. Haven só conseguiu perceber um pouco.
Câmara. Magia. Segredo.
Surai traduziu. — Alguns dias antes do ataque de Morgryth, o nível dois andares abaixo
foi subitamente murado e protegido.
— Todo o nível? — Haven perguntou, pensando que era um erro.
Mas Surai assentiu. — Todo o nível. Todas as janelas foram pavimentadas. Todas as
portas destruídas.
Xandrian sorriu. — Quem precisa de portas quando você pode usar o teto?
Nasira olhou alguns segundos longe de arrancar a cabeça de Xandrian de seus ombros,
então Haven se colocou entre eles e disse a Nasira: — Se há proteções, então o Lobo das
Sombras não pode alcançá-lo, certo?
As pestanas cinzentas de Nasira baixaram quando seu olhar caiu no chão. — Pode se as
proteções foram criadas por seu mestre.
Stolas. O que poderia ter sido tão terrível que ele precisasse de tanta segurança para
mantê-lo trancado?
Outra explosão abalou o castelo. Outro uivo perfurou a noite. A intensa raiva e tristeza
dentro daquele som de outro mundo cortaram direto em seu coração. Agora mesmo, o
Lobo das Sombras de Stolas era sua dor personificada e cada grama de suas emoções estava
focada naquela câmara.
O que no Submundo estava lá?
Um pulso de magia queimou sobre eles como uma banda estalando.
A primeira ala foi quebrada.
— Talvez ele pare de destruir tudo quando descobrir o que diabos está o irritando tanto?
— Xandrian propôs através de um bocejo.
A cor sumiu do rosto de Nasira. — Isso não pode acontecer. Existe uma... uma maldição
sobre a coisa dentro daquela câmara. Uma maldição de amplificação.
Surai respirou fundo. — Deusa salve-o então.
— O quê? — Haven lançou um olhar desesperado para Bell, cujo rosto estava ferido. —
Bell? O que é uma maldição de amplificação?
Ele lentamente encontrou seu olhar. — Isso significa que o que for infligido ao objeto
retornará dez vezes ao agressor.
Ela piscou. Ainda não entendendo.
— Se o lobo de Stolas destruir o objeto— Surai sussurrou, incapaz de olhar para
Haven— Stolas vai morrer.
Outra proteção caiu sobre eles. Por um momento, enquanto a magia desaparecendo
percorreu sua pele, ela não conseguiu entender o significado completo das palavras de
Surai. Era incompreensível para Haven que Stolas pudesse morrer.
Ele tinha sobrevivido a tanto. Até mesmo a morte.
E, então,... uma fatia de medo atravessou seu peito.
Stolas poderia morrer.
Morreria se ela não fizesse algo.
Tudo caiu. Destruido.
Ela estava correndo em direção aos uivos e explosões.
Impulsionada por uma dor pulsante de terror que corroeu seu coração.
Isso ficou cada vez mais doloroso com cada barreira que batia sobre ela, quebrada.
Ela disparou pelo canto final para uma sala cheia de poeira e o cheiro agridoce de magia
cortada. Vozes chamavam seu nome, mas de tão longe. Alguns soldados Serafins se
amontoaram nas sombras, observando-a enquanto ela passava.
Um buraco escancarado esperava onde o chão deveria estar. Ela pulou sem olhar o quão
alta era a queda...
Pernas chutando o ar vazio, ela olhou para baixo e percebeu seu erro. A queda era de três
andares.
Ela só teve tempo de desenhar uma runa de almofada antes de bater. O chão bateu nela,
a dor ricocheteando em seus ossos enquanto ela rolava sobre o ombro para quebrar o
impacto.
Ficando de pé, ela rapidamente avaliou seu corpo – intacto – antes de procurar no
cômodo pelo Lobo das Sombras de Stolas.
Ela não precisou procurar muito. Através da nuvem de pedra pulverizada e fumaça
oleosa de carvão das proteções rasgadas, uma forma enorme emergiu. Sua mente girava
loucamente enquanto tentava categorizar a criatura.
Era um lobo, mas não era um lobo.
Possuía o mesmo corpo lupino. Cabeça em bloco, focinho longo, orelhas giratórias
afiadas destinadas a captar até os menores ruídos. E, assim como os lobos ao redor das
florestas de Penryth, antes de serem caçados até a quase extinção, havia uma beleza selvagem
no predador que lembrava Haven de Stolas.
Mas era aí que as semelhanças terminavam.
Os verdadeiros lobos mortais não eram do tamanho de wyverns.
Eles não tinham pelo tão preto que parecia devorar a luz.
E eles certamente não possuíam músculos que ondulavam e se amontoavam sob o pelo
mais elegante e luxuoso que ela já tinha visto. Não desgrenhado como a maioria dos lobos.
Suave. Um caçador de peles do reino pagaria qualquer preço.
Então, haviam aqueles olhos vermelhos luminosos. Olhos agora fixos nela.
Olhos muito antigos, muito inteligentes e sábios para vir de um animal.
Um rosnado de arrepiar retumbou na câmara quando os lábios pretos do Lobo das
Sombras se curvaram para trás. Incisivos perversos feitos para rasgar carne e quebrar ossos a
saudaram. Espuma e saliva pendiam de seus dentes e suas gengivas estavam... sangrando.
Ela entendeu por que quando ela olhou ao redor da câmara. No curto período de tempo
que o lobo esteve dentro, ele deixou um rastro de caos e destruição. Rasgando
indiscriminadamente tudo em seu caminho. Pedaços de pedra formavam incontáveis
pilhas. Os detritos foram pulverizados além do reconhecimento, algumas lascas irregulares
de madeira ou pedaços de tecido os únicos pedaços que restaram para sugerir suas origens.
Atrás da criatura erguiam-se prateleiras de madeira repletas de todos os tipos de
pertences. Urnas e bustos, livros, alaúdes, tapetes de lã bem enrolados, até pinturas. Se ela
soubesse qual objeto era o item amaldiçoado, talvez ela pudesse envolver um escudo ao redor
dele para proteção.
Seu estômago afundou. Haviam centenas de prateleiras. Mesmo que ela soubesse o que
procurar, nunca o encontraria a tempo.
A única opção era distrair o lobo até que Stolas acordasse.
Considerando que seu foco predatório já estava preso nela, isso não seria difícil de
fazer. Sobreviver, por outro lado, seria infinitamente desafiador.
Ela sorriu para a criatura. — Você não é tão ruim, é?
Um grunhido sobrenatural rasgou de sua boca salivando e roubou sua
respiração. Enormes patas flexionadas, suas garras de ônix perfurando o chão de pedra.
— Stolas?
Ele não fez um único ruído quando saltou.
Ela esperava que o lobo atacasse, mas ainda assim, a visão de uma fera tão poderosa
caindo sobre ela era quase paralisante.
Ela mergulhou. Fogo incandescente cortou seu ombro.
Não fogo. Garras.
Garras que a empurraram tão violentamente que sua cabeça estalou para trás. Ela caiu
em um monte de escombros. Estrelas dançaram dentro e fora de sua visão. O ar fugiu de seus
pulmões na forma de um grunhido. Ela rolou e rolou, a cabeça resvalando na pedra. Dentes
estalaram no ar por seu rosto.
Stolas! Ela lançou seu nome em sua consciência compartilhada. Tentando penetrar em
sua mente. Você está tendo um pesadelo e eu preciso que você acorde.
Quando o calor da respiração da criatura esfriou sobre sua pele, ela ficou de pé. Suas
botas escorregavam e deslizavam pelo chão empoeirado enquanto ela girava para enfrentar a
fera.
Poças gêmeas de fogo do Submundo queimaram das sombras, queimando-a. Ela
procurou em suas profundezas por uma dica de Stolas, algo com o qual ela pudesse se
conectar, mas...
Nada - não havia nada além de fúria derretida, tristeza e dor.
Um grunhido baixo preencheu o espaço entre eles quando a criatura viu o orbe dourado
pairando sobre sua palma. Ela deve ter subconscientemente puxado sua magia de luz.
— Não me faça usar isso — ela implorou, desejando que Stolas a ouvisse.
Acorde, Stolas.
Ela sabia que ele ia atacar pela forma como seus quartos traseiros ondulavam. Sua magia
arqueou através das sombras e quebrou contra seu focinho. O cheiro amargo de pelo
chamuscado foi seguido por um grito agudo de dor.
Ela se encolheu com aquele som horrível, tropeçando para trás através dos
escombros. As prateleiras se ergueram ao redor dela, dando a ilusão de segurança.
No fundo, ela sabia que não havia lugar seguro de uma criatura que pudesse quebrar
pedra como se fosse madeira podre.
Mas ela se agarrou à ilusão de qualquer maneira.
A prateleira à sua esquerda gemeu, deformando-se aparentemente em câmera lenta
enquanto o lobo a rasgava. Lascas de madeira e fragmentos de barro e vidro salpicaram seu
rosto, seu braço ferido. Levantando um escudo temporário, ela conseguiu desviar-se do
pior. Presas brancas rangeram contra a bolha dourada de magia entre ela e a fera, mas a magia
não duraria muito.
Ela precisava distraí-lo. O que poderia distrair um lobo?
A resposta mal se formou em sua mente antes que ela estivesse lançando faíscas de
magia. Uma runa foi desenhada sobre cada uma e as faíscas brilharam em coelhos de campo
brilhantes que corriam pelo chão ao redor das patas gigantes do lobo.
Ele estalou os dentes sobre as criaturas mágicas. O impacto sacudiu seus ossos.
O lobo não ficaria satisfeito com uma presa tão vazia por muito tempo. Seu coração se
alojou em sua garganta enquanto ela corria pelo labirinto de prateleiras.
O familiar de Stolas era pior do que ela imaginava. Uma fera frenética de pesadelos. Não
havia como alcançá-lo. Nenhum vínculo que ela pudesse ver com Stolas.
O sangue empapava a manga de sua túnica e pingava no chão. Suas costas doeram onde
ele deve tê-la atingido mais cedo. A adrenalina transformou a dor em um latejar implacável,
mas seu intestino dizia que os cortes eram profundos.
Um baque puxou sua atenção para a direita. Ela viu a figura sombria que se
aproximava...
— Bell? — ela assobiou. — Como?
Ele se inclinou, posicionando as mãos nos joelhos enquanto sugava o ar. — Eu acabei
de... descer. Foi uma combinação de... gravidade e... queda.
— Idiota — ela murmurou.
Outro baque leve revelou Surai, que pousou com muito mais elegância. Um coelho
mágico disparou entre suas pernas, sua luz cor de damasco deslizando pelas lâminas de suas
katanas gêmeas.
— Achei que você poderia precisar de ajuda, Soror. — Seu olhar lavanda deslizou para a
ferida de Haven, as prateleiras destruídas atrás dela e os coelhos em chamas correndo ao redor
da câmara. — Parece que estávamos certos.
— Nasira e os outros estão tentando passar pelas proteções de Stolas para seu quarto —
Bell explicou. Uma esfera dourada tingida e emplumada com vermelho dançou entre seus
dedos. Foi perfeitamente construída, uma exibição ofensiva da qual o mais distinto
conjurador de luz se orgulharia.
— Alguém esteve praticando — ela sussurrou, não que ela esperasse nada menos de seu
amigo estudioso e superdotado.
Os dentes brancos como pérolas de Bell brilharam. — Assim, eu não para me gabar,
mas...
Um uivo ensurdecedor o interrompeu. Muito longe - o uivo estava muito longe. O que
significava...
O objeto! Runas.
Haven correu ao redor da prateleira e procurou na escuridão pela criatura, seguindo o
som de madeira quebrando e quebrando para o outro lado da câmara. Cada batida era
pontuada por inalações frenéticas.
A qualquer momento o lobo descobriria o objeto que caçava e o destruiria, selando o
destino de Stolas.
Ela correu em direção à criatura. Seu pulso frenético açoitou sua pele.
Não encontre. Não encontre. Não encontre...
Um rangido estrondoso, como metal sendo deformado, ecoou pelas paredes e, então,
um estalo maciço fez seu coração acelerar. Ela saltou sobre uma prateleira virada a tempo de
ver o que restava de uma grande gaiola de ferro rasgada em duas. O Lobo das Sombras havia
retirado as barras de ferro apenas o suficiente para caber sua cabeça gigante dentro, mas não
o suficiente para permitir o acesso de seus ombros.
O foco de sua raiva era algo oblongo e, em torno de sua altura, coberto por uma mortalha
preta rendada.
As mandíbulas do lobo estalavam e rasgavam o ar tentando chegar ao item. Mais um
empurrão. Mais um golpe nas barras de ferro...
— Ei! — ela gritou. O lobo estava muito frenético para notá-la, mas não podia ignorar a
lança de magia de luz que ela enviou navegando em sua anca.
Um piscar de olhos. Isso foi todo o tempo que levou antes que o lobo estivesse sobre
ela. Ele se moveu tão rápido que ela nem viu o golpe de sua pata até que já estava se
conectando ao seu lado. Sua cabeça virou para o lado quando ela bateu em uma prateleira
próxima.
A força apagou sua mente. Ela caiu de costas, de costas contra a prateleira. Olhos
vermelhos flamejantes gêmeos piscaram a centímetros dos dela. O lobo estava tão perto que
ela podia distinguir os pedaços de tecido e madeira presos entre seus dentes afiados. A prata
adornava suas orelhas afiadas, que giravam constantemente para frente e para trás.
A baba pingava no chão entre suas pernas em plops suaves e metódicos.
Um rosnado aveludado agitou o ar. Ela resistiu à vontade de fechar os olhos quando o
hálito quente rolou sobre suas bochechas.
Segurando o olhar predatório da criatura, ela desejou que ele a reconhecesse.
Um gemido baixo subiu pela garganta da fera. Ela enrijeceu quando ele de repente jogou
a cabeça para a frente, pressionou o nariz quente sobre ela e começou a cheirar.
A pele sedosa acariciou sua mandíbula. Tinha um cheiro estranho... como fumaça e
outra coisa. Uma especiaria que ela conhecia, mas não conseguia nomear.
— Haven! — A voz de Bell veio de algum lugar atrás do lobo, mas ela não se atreveu a
mover a cabeça para olhar. Surai estaria com ele. Ambos dispostos a morrer protegendo-a.
— Não, Bell — ela sussurrou. — Espere.
Se Bell e Surai provocassem o lobo, não havia dúvida na mente de Haven que a criatura
os machucaria seriamente – ou pior. Mas sua hesitação era mais do que isso.
Algo estava acontecendo. Uma vibração profunda atrás de suas costelas que parecia
conectada ao familiar de Stolas de alguma forma.
De repente, uma corrente invisível dentro dela se esticou. Ela engasgou. Um gemido
gotejou do focinho macio do lobo quando sua cabeça disparou. Ele olhou em seus olhos por
um longo e estranho momento e foi quando ela entendeu que era seu Familiar das Sombras
reagindo ao de Stolas.
Ela não sabia por que ou o que isso significava. Talvez Stolas a sentisse através de seu
lobo mesmo enquanto dormia?
Tudo o que ela sabia era que tudo no comportamento do predador mudou. A terrível
fera se foi. Em seu lugar estava uma criatura dócil e afetuosa sentada sobre as ancas, a língua
pendurada enquanto a observava com a adoração de um leal cão de caça.
— Haven — sussurrou Surai. — Você está bem?
As orelhas escuras do lobo se moveram para trás quando um grunhido de advertência se
formou no fundo de seu peito, mas uma vez que percebeu a calma de Haven, decidiu que
Surai era inofensiva e voltou para... quê?
Protegendo ela. Estava protegendo-a. E seus olhos... seus olhos estavam mudando.
A prata estava ultrapassando as estrias vermelhas brilhantes. Olhos prateados com
bordas âmbar.
Stolas.
À medida que o reconhecimento inundava aqueles olhos familiares, o mesmo acontecia
com a compreensão. Seu olhar horrorizado foi para o ombro dela. Outro gemido, como se
pedisse desculpas... e o lobo desapareceu em uma névoa escura que se esvaiu.
Mesmo ferida e com dor, no momento em que a ameaça se foi, a curiosidade de
Haven assumiu. Seu ombro protestou quando ela usou a prateleira para se levantar. Sua
cabeça latejava com cada batida de seu coração lento. Mas enquanto ela girava em um círculo
lento, permitindo-se finalmente ver o cômodo e seu conteúdo, sua admiração eclipsou
qualquer outro pensamento.
Bell e Surai correram para o lado dela.
— Que diabos foi isso? — Bell exigiu.
— Hum? — Ela forçou seu olhar de uma flauta dourada com runas de fogo que acendeu
quando seus dedos se aproximaram.
— O lobo deveria ter matado você. — acrescentou Surai. — Em vez disso, ele reagiu a
algo.
— Stolas me reconheceu. — Era basicamente a verdade. O resto também foi... confuso
de explicar. O que ela diria?
Meu Familiar das Sombras reagiu, de alguma forma, ao dele?
Provavelmente reconheceu outro animal semelhante a ele.
Isso dificilmente parecia digno de menção de qualquer maneira.
Seus amigos aceitaram essa explicação e sucumbiram ao mesmo assombro que ela sentiu
enquanto caminhavam, catalogando os itens antigos e poderosos.
Embora houvessem muito poucas joias ou tesouros aparentemente caros, cada item
estava imbuído de poder suficiente para obter o resgate de um rei em moedas e pedras
rúnicas.
Esta era a herança de Darkshade, pelo menos, as coisas não saqueadas ou mantidas nos
cofres abaixo. O que não fazia muito sentido, considerando o quão raros e cobiçados eram
os objetos espalhados pelas prateleiras. E havia tantos deles.
Um nível inteiro da torre explodindo com tanta magia coletiva que fazia seus ossos
zumbirem.
— O que estava tentando destruir? — Surai perguntou e todos eles dirigiram sua atenção
para a coisa oval envolta no centro da gaiola deformada.
Haven se aproximou do item misterioso com cuidado, sabendo que a qualquer
momento Nasira ou Stolas apareceriam e os forçariam a sair. Foi por causa desse mesmo
segredo que ela se interessou.
Surai assobiou ao lado de Haven. — O Familiar de Stolas quebrou barras de ferro
reforçadas por feitiços como se fossem galhos.
— Eu me pergunto o que tem dentro? — Uma sensação fria e repugnante penetrou em
Haven enquanto ela se aproximava do objeto e seu corpo instintivamente recuou. — Você
sente isso?
Surai fez o sinal da Deusa. — Essa coisa está errada, Soror. Deixemos isso e pronto.
Mas a curiosidade de Haven foi substituída por uma estranha fascinação. — Você ouve
uma voz?
Uma distante canção de lamento escorria por trás da mortalha. Chamando por
Haven. Implorando a ela para ir mais perto. Implorando para que ela levantasse o véu. A bile
subiu por sua garganta enquanto ela se aproximava ainda mais. A coisa era repulsiva. A
maldade decadente disso enviando arrepios violentos sobre sua pele.
E, ainda assim, ela não conseguia parar.
Haven alcançou através do buraco entre as barras de ferro, seus dedos roçando a renda
preta...
— Afaste-se! — Uma forte rajada de vento varreu a sala.
Haven foi arrancada da jaula deformada e arremessada para trás em sua bunda junto
com os outros.
Ficando de pé, ela balançou a cabeça para ver Stolas caminhando para a jaula. Ele estalou
os dedos e as barras de ferro deformadas rangeram e gemeram quando começaram a se fundir
sob seu toque experiente.
Ela estava tão ocupada vendo-o remodelar a gaiola que quase não percebeu que a
mortalha havia escorregado. Deve ter acontecido quando ele os jogou de volta.
Curiosa, ela se aproximou do objeto misterioso, um espelho alto e oblongo emoldurado
em jade requintado esculpido para parecer que criaturas monstruosas estavam escapando de
outro mundo. Sustentada por um par de pernas de prata tortas terminando em patas
bestiais, tinha a altura de um homem.
Embora em excelente estado, era obviamente velho, as pernas prateadas manchadas pelo
tempo e a estrutura fissurada com rachaduras e lascas.
O que fez a superfície perfeitamente impecável do espelho... estranho. Mais estranho
ainda era que a superfície não parecia refletir seus arredores, mas um lugar inteiramente
diferente.
Apertando os olhos, ela percebeu o que parecia ser um... um quarto.
Não apenas um quarto, mas uma câmara cavernosa cheia de opulência e luxo
condizentes com um palácio. Poeira e mais alguma coisa -- possivelmente teias de aranha -
grudavam em tudo. De seu ponto de vista no chão, ela podia ver a arte nas paredes. A maioria
eram representações sombrias e horríveis de batalhas violentas ou demônios atacando
mortais, mas uma peça em particular chamou sua atenção por causa de quão diferente era
do resto.
Uma mulher em um sofá dourado amamentando um bebê.
Terminado com a gaiola, Stolas finalmente percebeu que a mortalha havia caído. Com
um movimento elegante de sua mão, ele posicionou o véu sobre o espelho mais uma vez.
Ele trabalhou em silêncio, com eficiência, mas o tempo todo ela sentiu uma raiva latente
logo abaixo daquele verniz polido. Agora, ele voltou essa fúria para ela. — Como você pode
ser tão tola?
Sua voz era como um trovão e trouxe à tona tudo o que havia acontecido antes.
Em toda a loucura, ela quase esqueceu.
A raiva quente a percorreu, grudando em sua garganta e impedindo que qualquer
palavra saísse. O que provavelmente era uma coisa boa enquanto ela caminhava em direção
a ele, considerando o que estava passando por sua mente.
Desgraçado. Bastardo imprudente e de coração obscuro.
Ela parou a alguns centímetros de distância. — O que você esperava que eu
fizesse? Deixasse você morrer?
— Sim.
Ela se encolheu. — Então, você obviamente não me conhece tão bem quanto eu pensei
que você conhecesse.
— Você ainda não me odeia o suficiente? — Ele deu um sorriso afiado, a selvageria
cravada em suas feições perfurando direto para o núcleo dela. — Você precisa de outra lição?
Um sussurro de medo cintilou...
Não, ela não faria isso. Jogar este jogo. — Eu sei o que você está fazendo.
— E o que é isso?
— Tentando me fazer desprezar você. É isso que você quer?
A coluna forte de sua garganta mergulhou. — Desejo e necessidade são duas coisas
muito diferentes.
— Então, o que você quer?
Silêncio.
Os outros estavam congelados ao redor deles, ocupados fingindo que não estavam
ouvindo. Mesmo Nasira, que estava vasculhando as prateleiras por a Deusa sabe o quê, tinha
metade de uma orelha apontada em sua direção enquanto ela escutava.
Haven não se importava. — Eu sei que nunca vou entender o trauma e a mágoa que
você sente depois do que aconteceu aqui, Stolas. Talvez eu não tenha o direito de
entender. Mas eu tenho o direito de saber o que você quer... de mim.
Pronto. Ela limpou seu coração na frente da Deusa e de todos.
— Eu não quero nada de você. — A suavidade de suas palavras estava em desacordo com
a dor aguda em seu estômago, como se tivesse sido chutado.
Dado o que aconteceu antes, seu comportamento insensível não deveria ter sido uma
surpresa.
Mas foi. E doeu, a dor tão fresca quanto antes.
— Stolas — ela sussurrou, desejando poder alcançá-lo. Desejando poder correr os dedos
sobre a linha dura de sua mandíbula ou através do cabelo sedoso e branco que precisava
desesperadamente de um corte. Bastava alcançá-lo. — Eu nunca poderia te odiar, não
importa o que você faça. Como você pode não ver isso?
Ele piscou, uma emoção ilegível ondulando em sua expressão sombria. Seu olhar
caminhou para o ombro dela e sua mandíbula flexionou. — Você está ferida.
— Eu vou ficar bem. Surai pode ajudar a me curar.
— Não. Essa é minha responsabilidade. — Antes que ela pudesse protestar, ele passou a
mão sobre sua ferida. Todos os Serafins possuíam um mínimo de magia de cura. Milhares
de anos atrás, essa habilidade foi usada para curar ferimentos feitos depois que eles faziam
algum pobre Solis ou escravo mortal sangrar.
Ela assumiu que geralmente havia um toque de euforia envolvido para suavizar o
processo doloroso, mas não desta vez. Ela cerrou os dentes enquanto a magia dele trabalhava
em sua pele quebrada, juntando as bordas irregulares como as barras de ferro da jaula.
Quando ele terminou, cílios grossos da cor de cinza se ergueram quando seus olhos
encontraram os dela. Os mesmos olhos que olharam para ela do lobo logo antes de
desaparecer.
— Você me viu, não foi?
Ele deu um aceno rígido.
— O que foi isso entre o seu Familiar e o meu?
Uma exalação suave chamou a atenção de Haven para Nasira a apenas alguns metros de
distância. Sua mão estava no bolso enquanto ela lançava um olhar sombrio para Stolas e,
então, se afastava.
Os ombros de Haven caíram. De alguma forma, ela conseguiu irritar tanto Stolas
quanto Nasira. Ótimo.
Quando ela se virou para Stolas, descobriu que a expressão dele estava dura. Mas havia
uma emoção conflitante em seus olhos... uma fragilidade crua que enviou um fluxo frio do
topo de sua cabeça até os dedos dos pés. — Pode chegar um dia em que você tenha que me
deixar ir, Pequena Fera. Prometa-me que você vai.
Sua garganta apertou. — Eu não... Não entendo.
— Espero que você nunca precise. — Seu olhar escureceu enquanto se lançava sobre o
espelho coberto.
Ela seguiu seu olhar. — Onde você conseguiu uma coisa tão horrível?
— Foi um presente de um Senhor Demônio. Tudo isso.
— Em troca de quê?
Sua voz estava distante quando ele disse: — Não importa agora. — Ele se virou para ela,
olhos cautelosos e inalcançáveis. — Saímos de madrugada. Você precisa parecer a filha de
Freya. Vou pedir a Nasira que lhe traga algo.
Suas asas enormes dispararam e ele voou. Não houve desculpas. Nenhuma
explicação. Nada além de uma frieza em seu rastro que a aterrorizou mais do que a raiva de
seu lobo ou do que a escuridão inquietante que ela sentiu derramando do espelho.
Eles tinham acabado de entrar secretamente em um reino abertamente hostil à
Haven, para entrar em um concurso onde metade dos competidores provavelmente
queriam Haven morta e Bell só conseguia falar sobre ver uma Valquíria na vida real.
— Então as asas de uma Valquíria nunca saem a menos que sejam chamadas pelo chifre?
— Bell perguntou, seu lábio inferior preso entre os dentes enquanto ele acenava com seu
acrum sobre o portal desbotado. O brilho áspero do sol brilhou através da joia na varinha e
fez Haven piscar. — As asas brotam de suas costas?
Alguns momentos atrás, eles entraram direto em um dos pátios inferiores nos jardins do
palácio da Rainha Morgani e, agora, eles se agachavam entre um canteiro de folhas de
bananeira gigantes.
Ela quase podia sentir o sorriso de Stolas enquanto ele os observava de algum lugar
acima.
O torneio de tiro com arco era realizado na Ilha de Kieri, que literalmente significava
“cor verde” em Solissiano. Conhecida como a joia das Ilhas Morgani, a massa de terra em
forma de coração era um paraíso tropical de oceano azul cristalino e florestas tropicais
exuberantes. Era também a maior ilha e lar das famosas Valquírias Morgani.
Ember terminou de escanear uma passarela ladeada de palmeiras antes de olhar para
Bell. — Sim, suas asas foram oferecidas a elas pela própria Freya, apenas para serem usadas
em batalha. E não, elas não brotam de suas costas, elas apenas... aparecem.
Ele sorriu enquanto olhava por cima do ombro, completamente imune ao humor de
Ember. O suor escorria em seu lábio superior, a umidade aqui fazendo Veserack parecer
agradável e seco em comparação. — E só sua mãe tem o chifre?
Ember suspirou. — Se você nos deixar esperando aqui por mais tempo com aquele
portal visível, nós vamos conhecê-las de perto e pessoalmente. E eu prometo a você, mesmo
sem asas, você não quer isso.
Bell riu baixinho enquanto deslizou seu acrum na bainha em sua cintura. — Feito. É
invisível para todos, menos para nós. Mais importante, só nós podemos entrar.
Xandrian arqueou uma sobrancelha entediada enquanto verificava a estrutura do
portal. Ele estava mais mal-humorado do que de costume e continuava a puxar o capuz de
sua capa cor de ameixa. — Quando posso tirar essa maldita coisa?
— Assim que seu rosto deixar de ser tão bonito— Surai comentou.
— Então, nunca. — ele resmungou. — Ótimo.
Mesmo aqui, entre outros Solis, as feições requintadas de Xandrian eram facilmente
reconhecíveis.
Terminado de analisar, ele admitiu a contragosto: — Vai servir.
Haven empurrou uma folha grande de ouro e laranja de seu rosto enquanto ela seguia
os outros para o caminho de cascalho. O coliseu esperava ao longe. O estádio bronzeado era
uma estrutura de quinze andares centralizada no meio de uma enseada azul-
turquesa. Gaivotas brancas circulavam sobre os campos de treinamento, prontas para
vasculhar os restos de comida da multidão.
Com vista para a água estava o palácio e o quartel da rainha, esculpidos nas falésias
brancas que cercavam a enseada.
A visão trouxe à tona velhos anseios de infância. Um dos comerciantes de Damius tinha
mencionado como cada mulher Morgani deixava suas ilhas ao meio-dia para vir para Kieri e
treinar. As melhores acabavam servindo na guarda pessoal da rainha, em uma das unidades
especiais de combate ou como Valquírias.
A noção de que as mulheres poderiam se tornar guerreiras despertou algo dentro
dela. Ela não havia entendido até agora o que era esse sentimento – esperança.
Agora, essa emoção era quase avassaladora quando os gritos e aplausos do coliseu
ficavam mais altos. Nove pontes ladeadas de palmeiras atravessavam a enseada, todas
levando ao evento principal. As multidões tornaram-se quase impossíveis de atravessar.
Surai e Ember flanqueavam Haven, Bell atrás dela e Xandrian na frente para que ela mal
fosse visível.
Poucos foliões prestavam atenção neles. Todos, exceto Haven, estavam vestidos com
roupas leves e folgadas, suas armas escondidas e marcas de runas enfraquecidas com magia.
Quando o cidadão ocasional passou a olhar além do círculo de guardas de Haven para a
mulher dentro, eles olharam. E olharam. Seus olhares se aguçando quando eles observaram
o arco elegante em suas costas, mapeado com runas. Eles ficaram boquiabertos com seu
cabelo rosa-dourado, descoberto e trabalhado no elaborado penteado trançado que as
Morgani preferiam.
Ember havia acrescentado dois broches de serpente dourados para prender tudo.
Eles estavam tentando descobrir de que nação ela vinha. Se eles vissem o que brilhava
sob o manto bronzeado que ela usava...
Agarrando as bordas macias, ela puxou sua capa mais apertada ao redor de seu corpo,
certa de que a luz de suas marcas de carne estava vazando através do tecido muito fino.
A própria Haven teve problemas para desviar o olhar de suas runas de carne mais cedo e
cobrir os redemoinhos e marcas elegantes parecia errado. Elas nunca tinham aparecido tão
luminescentes. Especialmente quando combinadas com o vestido colado em seu corpo.
Feito de um material delicado que ela só podia imaginar, o vestido parecia simples no
início. Tanto que ela suspeitava que Nasira lhe dera um vestido simples por despeito.
Isto é, até que ela tocou no material. Uma faixa esmeralda de tecido escorregadio que era
mais leve que seda, mas mais resistente que gaze, era como tocar uma névoa fria. Era ainda
mais frio, mas de uma maneira agradável e moldava cada curva dela, drapejando quase
inteligentemente para lisonjear e provocar.
Além de uma delicada camada de diamantes negros ao longo do decote baixo, o tecido
em si era tudo o que era necessário para chamar a atenção. Quando a luz do sol caía sobre o
vestido, um arco-íris de cores ondulava sob o verde rico e vibrante para criar uma
deslumbrante exibição de prismas e luz.
Mas não eram apenas o cabelo e o arco que os faziam olhar. Haven podia ver em seus
rostos quando ela finalmente encontrou seus olhos. Eles não sabiam quem ela era. Ainda
não. A maioria eram cidadãos de nações vizinhas que nunca tinham ouvido falar da mortal
que afirmava ser a Nascida da Deusa.
Mas eles sabiam que ela era alguém.
Esse era o ponto do conjunto, é claro, e por que Stolas insistiu que ela parecesse o
papel. Foi também por isso que Haven ficou grata quando a multidão se tornou tão densa
que as pessoas estavam muito ocupadas lutando para notá-la.
Perto da primeira entrada, Xandrian e Bell pararam para tomar seus assentos nas
arquibancadas. O que mais fazia sentido era se separar. Bell e Xandrian se misturariam e, se
algo acontecesse – como a Rainha Morgani decidindo aprisionar Haven para dá-la a
Archeron –, eles poderiam ajudar a libertá-la despercebida.
Surai tocou o pulso de Haven. — Tem certeza que quer que eu vá com você? Posso me
juntar a Stolas e Nasira no céu se isso for melhor.
Stolas. Mesmo agora, presa em uma multidão de milhares, ela podia sentir o peso de seu
olhar de onde quer que ele observasse, escondido atrás de camadas de magia
impenetrável. Era ele que insistiu em ser um guardião de cima e Nasira - que parecia estar
prestes a murchar no momento em que entraram no clima úmido e tropical - ficou mais do
que feliz em lhe fazer companhia.
Os dois herdeiros Serafins eram muito mais adequados acima de qualquer maneira. Os
Solis ainda não tinham motivos para confiar em Stolas ou Nasira e muitos acreditavam nas
mentiras que Archeron havia inventado sobre o Senhor do Submundo.
As coisas seriam... mais fáceis sem eles publicamente presentes. Especialmente Stolas.
Mas isso não significava que ele não estava pronto para protegê-la. Se alguém se
aproximasse de Haven de forma errada, ele interviria.
Violentamente.
Disso ela não tinha dúvidas.
Por um instante, ela se lembrou de seu rosto quando ele a viu mais cedo no vestido de
sua mãe. Ele quase parecia ferido. Como se vê-la no vestido trouxesse lembranças horríveis à
superfície. Só que parecia que sua reação era mais do que isso...
— Haven?
Quando Haven voltou a se concentrar em Surai, seu coração torceu ao reconhecer a dor
escurecendo os olhos de sua amiga em ametista nublado. A Rainha Morgani pode não dar
as boas-vindas a Stolas Darkshade, mas até parece que Haven deixaria a rainha fazer Surai se
sentir envergonhada e indesejada aqui. — Surai, você é minha irmã, minha melhor amiga e
minha protetora mais leal. Você realmente acha que eu vou deixar alguém te envergonhar
para se sentir menos do que isso? Especialmente quando seu único crime foi amar alguém?
— Mas a rainha...
— Deixe-me lidar com ela.
Surai lançou a Ember um olhar suplicante. — Diga a ela como é sua mãe.
Ember deu de ombros. — Ela é uma cadela de coração frio com garras quando precisa
ser, mas eu também sou. Vamos vê-la tentar nos expulsar.
— E eu pensei que Rook fosse descarada — Surai murmurou enquanto balançava a
cabeça, as pontas irregulares de seu cabelo preto sacudindo por sua mandíbula. Ignorando
Surai, Ember pegou dois espetos assados de... algo de um vendedor de passagem. Algo com
longas pernas e dedos nodosos...
Sombra Abaixo, eram pernas de rã. O homem mostrou os dentes enquanto se virava
para exigir o pagamento. Um olhar para Ember, a faixa verde tatuada em seus olhos
marcando-a como uma guerreira Morgani e ele caiu em uma reverência curta. — Pegue
quantos quiser.
Ember pegou mais dois espetos e entregou um para Surai. — Tente. Uma especialidade
de festival. — Ela balançou as sobrancelhas douradas para Haven. — Quero um? Eles são
crocantes, salgados e...
— Todo seu — Haven murmurou, enrugando o nariz enquanto ela empurrava em
direção ao primeiro portão.
Qualquer esperança de que elas pudessem entrar furtivamente no torneio morreu
quando ela viu as mulheres Solis perto da entrada. Altas, atléticas e de pele bronzeada, elas
usavam couraças douradas sobre saias de couro que mal cobriam suas pernas longas e
musculosas. Os escudos de metal pendurados em seus ombros carregavam o emblema
Morgani, uma harpia carregando uma espada em suas garras.
Quatro soldadas estavam debruçadas sobre uma mesa improvisada, jogando uma rodada
de cartas enquanto esperavam que os últimos participantes entrassem.
— Elas não deveriam estar guardando o portão? — Haven perguntou a Ember quando
elas se aproximaram.
— Quem disse que não estão?
— Mas elas estão...
— Jogando cartas, provavelmente muito mal? — Ember sorriu melancolicamente e
Haven se perguntou quantas vezes ela fez o mesmo com seus amigos. — Se o problema
começar, cada um colocaria uma lança em dez homens antes que a maioria pudesse piscar.
Surai riu baixinho enquanto lançava um olhar de soslaio para Haven. — Você não sabia,
Haven? As Morgani fazem tudo melhor.
— Não é se gabar se for verdade — Ember emendou.
Ponto justo. E sua declaração parecia verdade quando as soldadas ergueram seus olhares
endurecidos pela batalha para avaliar os participantes atrasados.
Seus dedos afrouxaram ao redor das bordas de sua capa, prontos para cair nas espadas
gêmeas de cada lado de sua cintura ao primeiro sinal de problema.
Antes que Haven pudesse dizer uma palavra, Ember se aproximou, deu um tapinha no
ombro da garota mais próxima e disse: — Ei, Lena, como está a competição?
A garota, aparentemente Lena, deu uma olhada em Haven. Então, ela deu de
ombros. — Justa. Eu tenho meu dinheiro em um arqueiro asgardiano de Tyr.
— Bem, adicione uma mortal ao seu rol de apostas, porque esta vai ganhar— Ember
disse e Haven rezou para que suas amigas não percebessem como o comportamento casual
de Ember não combinava com seus olhos apertados.
— Desculpe, você está atrasada demais — disse Lena, olhando de volta para as cartas em
sua mão. — Eles acabaram de fechar a entrada para o torneio.
O coração de Haven caiu, mas Ember apenas riu. — Nós duas sabemos que entradas
atrasadas ainda podem entrar, com... incentivo.
Lena deu uma mão sem olhar para cima. — Não dessa vez. A segurança está mais
apertada hoje. Muitos idiotas pomposos presentes, se você me entende.
Ember se inclinou sobre o ombro de Lena, batendo na carta que ela deveria jogar. — De
que bundas pomposas estamos falando?
Lena suspirou. — Deixe-me fazer meu trabalho, Ember. Você nem deveria estar aqui.
Casualmente, Ember deslizou algo do bolso da calça para o colo de Lena. Então, ela
cruzou as mãos sobre o item. — Eu não estava aqui, lembra? E você não nos viu chegar
tarde. — Ela virou a cabeça para Haven e Surai. — Vamos lá.
Haven desviou o rosto quando ela passou pela mesa.
— Espera. — O foco afiado de Lena se estabeleceu em Haven quando ela deu uma
olhada mais forte desta vez. — Esse arco é quase maior do que você, garota mortal. Acha que
pode lidar com uma arma tão poderosa?
Como ela devia responder a isso? A maioria dos mortais ficaria apavorada com uma
guerreira Morgani, mas se a garota pensasse que Haven era fraca, ela não se incomodaria em
arriscar seu pescoço para deixá-la passar.
Haven sorriu. — Aposte tudo em mim e descubra.
Ela não ousou respirar novamente até ouvir o portão se fechar atrás dela. Surai deslizou
seu braço dentro de Haven quando elas entraram em um túnel escuro. — Você deveria ter
sido Morgani com essa arrogância, Soror.
Haven sentiu-se rir apesar do emaranhado de nós em sua barriga. — O que você disse,
Ember? Não é se gabar se for a verdade?
— Certo— Ember disse enquanto batia no peito.
Haven manteve essa confiança - até elas emergirem do túnel para o sol para enfrentar
uma arquibancada cheia de milhares de pessoas. Anos escondendo seu cabelo chamativo a
fizeram jogar o capuz sobre a cabeça. Seu coração pulou quando seu pulso lancetou sua pele.
Respire. Só respire.
Protegendo os olhos do sol escaldante, ela procurou a rainha na multidão. Lá. Sentada
em uma caixa sombreada com uma comitiva de suas melhores guerreiras e os governantes
das nações participantes.
A Rainha Morgani parecia tanto com Rook que Haven quase engasgou. Uma versão
mais velha e mais dura de sua amiga, a bela mulher tinha os mesmos olhos âmbar e feições
fortes e régias. Uma rica faixa de ouro esticada sobre seus olhos, a cor mais alta que uma
guerreira Morgani poderia alcançar. Em vez de uma coroa, ela usava a cabeça de uma pantera
rosnando.
Safiras brilhavam no lugar dos olhos da pobre criatura.
— O cocar de pantera? — Sussurrou. — Essa era a irmã da rainha.
Rook havia mencionado uma vez que sua tia tentou tomar o trono de sua mãe, mas usar
a pele de metamorfo morta de sua irmã parecia um exagero.
— Vá— Ember sussurrou. — Rápido.
Surai apertou a mão de Haven. — Lembre-se de quem você é, Haven.
Haven correu pela areia até a fila de competidores enquanto Surai e Ember esperavam
com os outros atendentes sob um toldo sombreado. Ela examinou a multidão até encontrar
o rosto de Bell, suas feições tensas e olhos azuis brilhantes apertados com preocupação. A
carranca de Xandrian podia ser vista sob a sombra de seu capuz.
Muito em breve, era hora de se apresentar. Haven era a última participante e a multidão
já estava inquieta. A rainha nem estava olhando para Haven enquanto conversava e ria com
alguém à sua esquerda. Haven não conseguia ver quem era por causa de um guarda. As
gaivotas já haviam descido, seus grasnados enquanto lutavam e vasculhavam os restos
reverberando pelas paredes.
Todos os principais concorrentes já haviam sido apresentados. Ela foi um adendo. Uma
ninguém.
Mesmo a locutora que se aproximou de Haven teve que abafar um bocejo enquanto
dizia impacientemente: — Nome, linhagem, título – se houver — ela lançou um olhar
desdenhoso para Haven— e a nação que você defende.
Conversas barulhentas e risadas da multidão abafaram as palavras da mulher. Os dedos
de Haven abriram e fecharam sobre sua capa, suas palmas úmidas. O ar úmido ficou mais
rarefeito a cada segundo, cada inalação menos satisfatória que a anterior.
— Eu sou... — Ninguém estava ouvindo.
O coliseu era muito barulhento. Sua voz muito suave.
Ela hesitou. Nunca antes ela havia se declarado publicamente. Assim não. Depois de
passar a vida inteira fingindo ser pequena... ser menos do que era, sair das sombras era
aterrorizante.
Esconder-se - isso é o que ela tinha feito por incontáveis anos. De Damius. Da realeza e
nobres em Penryth. Da vida que ela deveria ter.
Ela cobriu o cabelo, mascarou seus talentos, abafou a voz. Ela recuou da magia que até
mesmo Damius sentiu inchar suas veias. Empurrou-a tão fundo dentro de si que só se
libertou no Dia da Runa de Bell.
É por isso que ela dedicou toda a sua vida a Bell, porque no momento em que ele salvou
sua vida, ela não entendia como alguém poderia pensar que ela valia a pena. Por que ela deu
seu coração tão rapidamente para Archeron, o primeiro homem que não recuou de sua
força.
E por que, agora, sabendo quem ela era e a magia incalculável que ela e só ela podia
acessar, uma parte dela ainda desejava ficar desesperadamente escondida. Pequena. Normal.
Mas ela não era pequena. Ela não era ordinária. Ela não era ninguém.
E ela estava cansada de se esconder.
Ela jogou o capuz para trás. No momento em que a capa escorregou de seus ombros e se
acumulou na areia a seus pés, suas marcas de runas brilharam com pura luz dourada que fez
o sol parecer fraco em comparação. Um silêncio caiu sobre a multidão. A boca da locutora
estava aberta enquanto ela olhava para Haven, para as runas e símbolos como a luz das
estrelas pintadas na carne de Haven.
Ela entendia agora por que Nasira havia escolhido aquele vestido em particular; sua luz
rúnica reagiu com o material de alguma forma para criar uma exibição hipnotizante de cores
e luz que poderia fazer qualquer um parecer uma Deusa.
O silêncio sufocou o ar. Ela certamente tinha a atenção deles agora. Cabeça erguida, ela
encontrou o olhar intenso da Rainha Morgani e gritou alto e claro: — Eu sou Haven
Ashwood, descendente da Deusa Freya e do Deus Odin, Nascida da Deusa, a filha da
profecia e eu represento a nação recém-restaurada de Shadoria.
Por uma batida selvagem de seu coração, uma quietude desumana tomou conta do
estádio. Ou talvez o tempo simplesmente diminuísse enquanto Haven esperava para ver o
que as centenas de soldados Solis treinados fariam. O que a rainha faria. Os competidores
reunidos sob o camarote da rainha também esperavam, cada um puxando lentamente seus
arcos em preparação para o comando da rainha.
Haven desviou o olhar para a Rainha Morgani. Compreensão lentamente surgiu em
seus olhos, seguido por um tipo perigoso de astúcia que enviou uma onda de pavor sobre
Haven.
Fortalecendo sua mente, Haven se preparou para a batalha.
E, então, o som de palmas atraiu o foco de Haven para o Solis com quem a rainha estava
conversando momentos antes. O homem real Solis agora totalmente visível e olhando para
Haven atrás da metade de uma máscara dourada.
Mesmo com o rosto parcialmente escondido atrás da máscara dourada, Archeron
ainda parecia um Deus. Um Deus lindo e vingativo. Ele estava envolto em roxo e dourado,
a maior espada que ela já tinha visto amarrada em suas costas. A luz refletia nas joias de sua
espada, máscara e dedos como pequenas estrelas dançando ao seu redor.
Olhando de cima com aquele meio sorriso, ele parecia muito maior do que ela se
lembrava.
Muito mais cruel.
Como se alguém tivesse tomado o Archeron que ela amava, o soldado cujo único desejo
era retornar à sua terra natal, e o moldou em uma versão mais sombria e corrompida.
Ele sorriu enquanto se levantava de seu assento para sua altura verdadeira e imponente.
— Olhe para você, Pequena Mortal. Toda vestida como um presente brilhante. Você
é meu presente? Porque eu vou ficar muito desapontado se você disser não.
— Não se preocupe — ela rosnou, pegando seu arco e deslizando uma flecha da aljava
em suas costas. — Eu tenho um presente para você. — Quando ela sentiu a corda do arco
esticar, ela apontou a flecha na cabeça de Archeron. A magia azul brilhante dançou da ponta
de ferro. — Onde você gostaria?
Ela jurou que algumas dos soldados Morgani riram.
Uma pitada de medo se agrupou sob seu esterno quando ela captou a raiva escondida
atrás da expressão presunçosa de Archeron. Suas narinas se dilataram, seu sorriso se
estendendo sob olhos frios, quase vazios.
Ela sabia o que se escondia sob aquele verniz arrogante. Ela testemunhou a infecção que
transformou sua alma nobre no rei depravado diante dela.
A luz do sol brilhou dentro do anel de rubi e ouro que ele usava enquanto estalava os
dedos. Em um piscar de olhos, pelo menos vinte Sombras Douradas entraram na arena...
E foram obliteradas em um jato de sangue e osso pulverizado.
Em vez de gritos, as arquibancadas ficaram totalmente silenciosas. Ember e Surai
correram para o lado de Haven, armas em punho. Xandrian jogou o capuz para trás
enquanto ele e Bell se preparavam para lutar.
Finalmente, um grito solitário perfurou o silêncio terrível. Mas não foi pelas vinte
manchas perfeitamente redondas de sangue na areia.
A mandíbula de Archeron era como mármore irregular quando ele levantou a cabeça.
Ela seguiu seu olhar odioso para uma raia escura arremessada do céu...
Stolas aterrissou com tanta força que ela jurou que sentiu o chão balançar, a areia se
movendo a seus pés. Uma onda de areia e poeira ondulou para fora enquanto suas asas se
retesavam para formar um escudo protetor entre ela e Archeron. Ela contou mais três
escudos impenetráveis brilhando no ar ao redor deles.
Se Archeron era um Deus vingativo, Stolas era um monstro colérico de sombra e
morte. Com seus chifres, asas e aqueles olhos vermelhos brilhantes e impiedosos, o público
encolhido não teve escolha a não ser ver Stolas como o vilão.
E uma parte dela os odiava por isso. Ela não se importava mais com o que eles
pensavam. Ela não se importava que o sangue se acumulasse na areia ao redor deles. Não se
importava que Stolas fosse o pesadelo das pessoas ganhando vida.
Se eles tentassem machucá-lo, se alguém tentasse machucá-lo, ela acabaria com eles.
Ela encontrou o olhar de Archeron, segurou-o enquanto recolocava sua flecha,
pendurou seu arco nas costas e caminhou para o lado de Stolas. Ela podia sentir o olhar de
Stolas enquanto ela se abaixava sob sua asa e havia algo em seu foco intenso que fez seu peito
arder e sua garganta travar.
Ainda segurando o olhar furioso de Archeron, ela brincou: — Você tinha que matar
todos eles?
Os lábios de Stolas se inclinaram perversamente. — Tinha? Não, mas foi extremamente
satisfatório. Eu te disse, Pequena Fera, eu vou te proteger sempre, não importa o que
aconteça.
Um tremor percorreu a mandíbula tensa de Archeron.
Cada músculo de seu corpo se contraiu enquanto ela olhava para o rei que tão
cruelmente a fez experimentar a morte horrenda de todos que ela amava. O amigo que a
traiu. O homem que a veria de joelhos diante dele, uma cativa mais uma vez. Sabendo que
iria matá-la.
Assim como Damius. Como a Rainha das Sombras. Como o pai dela. Todos eles
queriam usá-la para seus próprios desejos sombrios, drenar seu poder e vida até que ela fosse
uma casca vazia, uma arma sem sentido. E Archeron não era diferente.
Não, ele era pior, porque ela havia confiado nele. Amado ele.
Sem piscar, seu olhar ainda agarrado ao homem pelo qual ela teria morrido uma vez, ela
se inclinou para Stolas. Eles poderiam nunca ser amantes. Talvez nunca mais do que dois
herdeiros injustiçados de reinos quebrados e deuses caídos.
Odiados. Desprezados. Caçados. Incompreendidos.
Mas quando Stolas olhou para ela, surpresa e prazer faiscando naquele olhar predatório,
ela sabia que ele lutaria até os confins do reino por ela. Destruiria tudo e qualquer coisa que
a ameaçasse.
E ela por ele.
Não havia uma palavra para algo assim.
Qualquer coisa que restasse entre Haven e Archeron morreu naquele momento,
substituído por um ódio gelado, fervente e abjeto que se cravou atrás de seu esterno.
— Ela parece magra — Archeron disse suavemente. — Talvez você devesse soltá-la, de
vez em quando, pelo menos o suficiente para comer, Darkshade. Ou isso é apenas para fodê-
la?
Fúria explodiu de Stolas...
Ela roçou sua cintura, seu toque como água apagando chamas. Ignore-o, ela sussurrou
em sua mente. Ele está tentando te provocar. Fazer você agir como o monstro que eles pensam
que você é.
Talvez seja disso que este reino precisa, ele respondeu de volta, espelhando seus próprios
pensamentos do outro dia.
Ainda não. Ela tinha que acreditar que eles ainda poderiam ganhar aliados por meios
pacíficos.
As linhas duras das feições de Stolas se suavizaram quando suas palavras se firmaram,
seus poderes letais retrocedendo.
Apesar da tensão que sufocava o ar, a rainha ainda estava casualmente reclinada em seu
trono, as pernas ágeis cruzadas nos tornozelos enquanto preguiçosamente varria seu olhar
sobre a cena. — Então, este é o famoso Senhor do Submundo. Eu pensei que você
seria... mais feio. Como os mortos devem ter adorado acordar da morte para encontrá-lo de
pé sobre eles.
Haven jurou que ela pegou um estremecimento sobre o lado bom do rosto de
Archeron. Um rosto que nunca mais seria chamado de bonito.
Stolas fez uma reverência graciosa, uma mecha ondulada de cabelo branco prateado
caindo sobre sua testa e fazendo-o parecer quase infantil. — Eu sempre tento agradar,
Rainha.
— Assim como eu. — Seus olhos âmbar ficaram duros. — Atualmente, existem cem
bestas com flechas envenenadas apontadas para suas cabeças e não consigo pensar em nada
que agradaria mais a essa multidão do que soltá-las em você.
Uma rápida olhada revelou fendas na parede. Inúmeras pontas de flechas – brilhantes,
afiadas e prontas – brilhavam nos orifícios finos. As guardas devem ter se reunido no
momento em que Haven tirou sua capa. A adrenalina inundou Haven em uma onda de fogo
espinhoso, seus sentidos ganhando vida enquanto ela esperava pelo grito revelador de raios
cortando o ar.
Seu poder esfregou avidamente contra sua gaiola de carne e osso enquanto se preparava
para aniquilar tudo em seu caminho.
Se esta rainha pensava que eles iriam cair sem lutar, ela estava perigosamente enganada.
Stolas não olhou para as flechas.
Ele não lançou um único olhar para Archeron.
Mas ele sorriu e era uma coisa linda e perversa, de fato. — Nós temos muito em comum,
você e eu. Atualmente, minha irmã, a Imperatriz Serafim, espera acima de você, pronta para
liberar sua raiva absoluta neste caldeirão derretido de um reino. Ela adoraria começar com
você, rainha. — Ele examinou as unhas. — Ela gosta de cabeças como troféus e a sua seria a
joia da coleção dela – se não estivesse muito danificada, é claro. Eu tenho minhas dúvidas.
Um músculo se contraiu na mandíbula da rainha. — Ouvi dizer que havia uma garota
Serafim alegando ser a última herdeira do sexo feminino...
— Posso garantir que ela não é apenas minha irmã, mas uma Noctis tão poderosa quanto
minha mãe já foi. Seu temperamento, por outro lado, é muito mais... mercurial, mas
nenhum governante é perfeito – exceto você, é claro.— Ele caiu em outra reverência, mas
desta vez seus olhos nunca deixaram os dela.
Apenas Stolas conseguia ameaçar e seduzir a Rainha Morgani de uma só vez.
Os lábios da rainha se abriram para responder, mas, então.... hesitaram.
Archeron olhou para a rainha, horrorizado. — Certamente você sabe que cada palavra
que este Noctis vomita é uma mentira? Ele é um trapaceiro e manipulador em série. Por
tudo que sabemos, aquela garota acima é uma escrava Serafim que ele está desfilando como
sua irmã para manter o trono Serafim. Se...
Suas palavras foram cortadas quando uma sombra longa e serpentina deslizou sobre o
estádio e passou pela areia. As gaivotas grasnaram alarmadas enquanto fugiam. Gritos
abafados de terror se seguiram.
A rainha conseguiu manter a calma enquanto aquela enorme sombra escurecia sua caixa
sombreada, mas seu foco disparou para o céu. E, quando ela viu o Familiar de Nasira, a
magnífica besta com escamas brilhantes da cor de ônix e asas de meia-noite que quase
obscureceram o sol, um pequeno tremor ondulou em seu rosto composto.
Lábios inclinados para cima, Stolas cortou seus olhos prateados para Archeron e o olhar
entre os dois homens gelou seu sangue. — Por favor, Senhor do Sol— Stolas falou
lentamente— explique como uma escrava possuiria um Dragão das Sombras quando esse
Familiar em particular pertence à linhagem real Darkshade por mais tempo do que você
existe.
Todos os olhos foram atraídos para o dragão de Nasira enquanto ele deslizava pelo céu
azul-claro como pinceladas de carvão contra tela. Mesmo Haven teve problemas para desviar
o olhar.
Essa era a criatura que Nasira havia escondido de Haven em Penryth. Ela só podia
imaginar o medo e o caos que Nasira causaria quando o dragão atingisse seu tamanho
máximo.
— Você poderia ter forçado a pobre garota a compartilhar sua cama — Archeron
rosnou. Suas narinas estavam dilatadas, a veia acima de sua têmpora ingurgitada. — Todo
mundo sabe que o Familiar de uma fêmea Serafim pode assumir a forma de seu amante.
Haven piscou; ela era aparentemente a única pessoa que não sabia disso.
A voz de Stolas era suave, letal quando ele disse: — Meu Familiar das Sombras foi
lançado anos atrás e é o mesmo que o da minha mãe.
— E nós devemos apenas acreditar na sua palavra?
Stolas deu de ombros, mas Haven percebeu a violência naquele pequeno ato. — Ou eu
poderia provar isso.
Pela forma como a garganta da rainha mergulhou, o Lobo das Sombras de sua mãe deve
ter sido formidável. Ainda assim, Haven sabia que a rainha nunca iria capitular à promessa
de violência. Pois quanto mais Stolas e Haven a ameaçavam publicamente, mais ela tinha
que lutar.
Haven esticou o pescoço para o topo do coliseu, onde uma mulher vestida com uma
armadura de prata e ouro estava empoleirada. Valquíria.
O nome encheu Haven de admiração e uma pontada de medo.
Mais Valquírias se recortavam contra o céu, esperando como gárgulas que o chifre lhes
desse asas. Se Haven não fizesse algo, isso se transformaria em um banho de sangue.
Haven olhou para a rainha. — Devo estar enganada. Me disseram que você oferece sua
proteção a todos? Que eu estaria segura durante este festival sagrado para homenagear a irmã
de minha mãe? — Seu olhar se deteve em Archeron. — Ou suas regras não se aplicam
quando reis decidem que são inconvenientes?
Algumas das mulheres Morgani no camarote com a rainha acenaram com a cabeça
silenciosamente com aprovação.
Os cílios dourados da rainha baixaram enquanto ela avaliava Haven. Um dedo tocou
sua coxa nua. Aquele olhar pesado deslizou para sua filha à esquerda de Haven. De volta à
Haven.
Haven não se atreveu a quebrar aquele olhar. Se o fizesse, sabia que sua atenção se
desviaria para Archeron. Mesmo agora, ela podia sentir seus olhos perfurando-a, seu ódio
como uma coisa viva, respirando entre elas.
Tudo o que ela disse e fez foi visto por ele como uma traição. Como uma confirmação
de suas suspeitas sobre ela.
Finalmente a Rainha Morgani descruzou os tornozelos, apoiando as mãos espalmadas
nos braços do trono. — Por que você está aqui, Haven Ashwood? E não me diga que é pela
glória de vencer este torneio.
Haven levantou a cabeça para encontrar o olhar inabalável da rainha. — Estou aqui,
porque um rei se sente tão ameaçado por meus poderes que não aceita a verdade – uma
guerra está chegando. Uma que decidirá o futuro do nosso mundo para sempre. Estou aqui,
porque busco uma aliança entre todas as nossas nações, mortais, Solis e Noctis, para
combater essa ameaça. — Ela sentiu os poderes de Stolas a seguirem enquanto ela dava um
passo à frente. — O Soberano do Sol me vê como uma arma a ser quebrada, escravizada e
usada contra seus inimigos.
— Se você não é uma arma— a rainha perguntou— então o que você é?
— Depende. Alie-se a mim e eu serei sua salvação.
— Se não?
— Então, eu serei a sua ruína.
Risos nervosos encheram o ar, mas a rainha não estava sorrindo. — Nenhum governante
Solissiano jamais se aliará a um mortal que possua magia proibida. Certamente você percebe
isso?
— E se eu fosse como você? Uma imortal? Se minha carne fosse impermeável ao tempo
e meus ossos não quebrassem como galhos, se meu rosto permanecesse firme e bonito e meu
cabelo nunca ficasse grisalho... você acreditaria, então, que eu sou a Nascida da Deusa?
A rainha piscou. — Criança tola. Tornar-se...
— Você me seguiria, rainha? Se eu pudesse provar a você que eu era sua filha?
Outro piscar. Hesitação e algo mais passaram pelo rosto da rainha.
Então, a rainha acenou com a mão. — Desde o seu início, este festival oferece segurança
e refúgio a todos e não haverá violência enquanto ele durar. Quem quer que seja, você estará
protegida durante sua estada aqui, garota mortal.
Não era bem um compromisso com uma aliança - isso tinha sido um tiro no
escuro. Mas... alívio varreu Haven. Ela ainda tinha que vencer o torneio e encontrar a
pintura, mas isso era bom.
Uma vez que ela descobrisse a mensagem que sua mãe deixou, uma vez que ela se
tornasse imortal, tudo se tornaria muito mais fácil.
— E meus amigos? — Haven pressionado.
Não seja gananciosa, Stolas advertiu em sua mente, mas ela podia sentir sua aprovação.
A rainha olhou para Surai e Ember e as mãos de Haven se fecharam em punhos quando
a rainha fez seu desdém mais do que aparente. Para seu crédito, ambas as mulheres se
recusaram a desviar o olhar do frio escárnio da rainha.
Finalmente, a Rainha Morgani ergueu os ombros, cada músculo ondulando em seus
braços definidos, e disse: — Todos os membros do seu grupo, por mais mal-educados ou
tolos — seus olhos afiados se demoraram em sua filha — terão proteção garantida pela
duração do festival. Mas eu não recomendo ficar mais do que o esperado.
Eles estavam seguros. Todos eles. Mesmo Archeron não desafiaria flagrantemente o
governo da rainha e causaria uma guerra entre suas nações. Ela soltou um longo suspiro
quando a tensão diminuiu de seus ombros, preparada para se juntar aos competidores de
arco e flecha esperando do outro lado da arena, quando outra sombra caiu sobre ela.
Ela se virou para Stolas. — Diga a Nasira para parar...
Suas palavras morreram quando ela reconheceu a expressão de advertência contorcendo
suas feições. Suas asas se abriram.
Ela ergueu o olhar a tempo de ver o porquê.
Formas escuras e retorcidas sufocavam o céu azul-claro, tantas que se tornaram uma
enorme onda de preto agitado ocluindo o sol. O estalar das asas de couro golemita e o
guincho sobrenatural dos Gremwyrs retumbou como um rugido alto enquanto o céu se
enchia deles. Os soldados Golemitas mais próximos seguravam arcos negros perversos e os
gremwyrs pareciam estar segurando baldes fumegantes.
Em algum lugar acima da massa contorcida de escuridão, um comando estridente
dividiu o barulho de garras e asas e foles. — Agora!
Haven reconheceria aquela voz em qualquer lugar. A Rainha das Sombras.
O rosnado baixo de advertência de Stolas tornou-se um rugido de advertência quando o
céu se iluminou com fogo vermelho brilhante da cor do sangue. Pontas de flechas
tremeluziam sinistramente com a chama sinistra. Baldes se tornaram bolas de fogo
consumidas.
— Fogo do Submundo— Stolas rosnou. — ele vai queimar tudo o que tocar.
Meio segundo depois, Haven entendeu o que estava prestes a acontecer. Oh, Deusa
Acima. Todas as pessoas inocentes. Elas estavam fervilhando das arquibancadas, rastejando
umas sobre as outros enquanto procuravam abrigo.
Mas não havia cobertura. Não contra o Fogo do Submundo.
Haven vasculhou o caos em busca de Bell e Xandrian. Ela tinha que chegar até ele! Antes
que ela pudesse dar um passo, o grito agudo de flechas arremessadas em direção à arena
vibrou o ar, tão alto que ela sentiu em sua medula.
— Corram! — alguém gritou, mas era tarde demais.
Não havia para onde correr.
Eles estavam à mercê da Rainha das Sombras.
O céu era um mar vermelho de caos e morte. Surai e Ember se juntaram a Stolas para
criar um escudo espesso sobre eles. Usando seus poderes, Haven fundiu sua magia com as
outras... e, depois, o atirou mais para cobrir o estádio do outro lado.
Um choque visceral quando alguém deslizou seu escudo para cobrir o dela.
Sua magia se agitou com a intrusão até que ela reconheceu a assinatura – um sussurro de
salmoura e ondas quebrando.
Xandrian!
Os poderes de Bell foram os próximos, o frágil escudo que ele contribuiu sugerindo
dálias e rosas queimadas enquanto combinavam sua magia para cobrir as arquibancadas.
— Preparem-se — Stolas advertiu quando a primeira onda de fogo atingiu.
A explosão rasgou o ar e quase derrubou Haven de seus pés. Flechas flamejantes
atingiram os escudos, centenas de uma vez, o impacto sacudindo seus dentes enquanto elas
ricocheteavam. Ela podia sentir o Fogo do Submundo corroendo a magia como ácido.
Carne ardente e enxofre a atingiram como uma onda e ela lutou contra a vontade de se
dobrar e vomitar. Apesar dos escudos, um calor violento e abrasador os cobria, tão quente
que doía respirar. O ar ácido e esfumaçado queimou sua garganta.
Seguiu-se uma cacofonia de morte.
Gritos irregulares cortaram o coliseu esfumaçado, apenas para serem interrompidos
abruptamente. A pedra chiou e rachou enquanto o Fogo do Submundo a consumia. Fora
de seu escudo, Fogo do Submundo estalou e assobiava sobre a areia, rios de chamas
corroendo o chão para formar trincheiras fumegantes profundas. A areia não totalmente
consumida tornou-se vidro afiado e quebradiço.
Vermelho - tudo era vermelho. Em chamas. Como se um poço tivesse se aberto e os
arrastado para as profundezas do Submundo.
Surai caiu de joelhos, o rosto contorcido em uma careta enquanto segurava o
escudo. Um brilho vermelho lançado pelas chamas dançou sobre suas maçãs do rosto altas e
arredondadas. Haven cambaleou contra Stolas enquanto o Fogo do Submundo devorava
tudo que não estava protegido por um escudo.
E, então, o calor desapareceu. O Fogo do Submundo aparentemente consumindo o
mundo se transformou em uma chama latente e, depois, se extinguiu.
Em seu rastro estava a devastação. Devastação absoluta e incompreensível.
Seções inteiras do coliseu histórico... se foram. Queimadas em cinzas. As poucas áreas da
estrutura que permaneceram presas como os ossos irregulares de uma criatura morta há
muito tempo.
As pessoas se espalhavam pelos lados como formigas, algumas descendo, outras
empurradas, suas roupas em chamas.
O som de uma trombeta antiga ecoou pela arena. Três Valquírias empoleiradas nas
bordas mais altas do coliseu levantaram voo, suas gloriosas asas brancas batendo no ar. Mais
se ergueram à distância, o ouro de suas armaduras refletindo os raios de sol que conseguiam
perfurar o véu esfumaçado como fragmentos de magia de luz.
A área do estádio da rainha permaneceu intocada. Onde estava Archeron? Ele deve ter
fugido ao primeiro sinal de ataque. A rainha e seus soldados estavam em vários estados de
mudança, muitos curvados de quatro, costas arqueadas enquanto seus corpos se alongavam
e os dedos encurtavam em patas.
Pelo substituiu pele.
Alguns dourados. Alguns avistados. Alguns preto puro.
Haven mal teve tempo de piscar antes que cada guerreira Morgani se transformasse em
suas formas felinas. Leopardos, panteras, gatos da montanha.
E a rainha... era impossível desviar o olhar enquanto o enorme leão se empoleirava por
um momento ao longo do corrimão que dava para a arena, toda pelo dourado e ferozes olhos
âmbar. Pedaços de cinzas flutuaram ao redor dela quando seu olhar felino se prendeu em
um Gremwyr que pousou na arena. Haven poderia jurar que a rainha leão sorriu.
Com um rosnado, ela saltou dez metros e aterrissou na criatura.
Suas garras afundaram profundamente em suas costas de couro, traseiros rasgando asas
e ossos. Ele gritou...
Dentes brilharam quando a rainha abriu sua garganta. O Gremwyr ficou mole na areia.
Tudo acabou em menos de um segundo.
Surai apareceu ao lado de Haven. — Viu, vadia dura e fria com garras.
— Leve Haven de volta ao portal— Ember rosnou. Sua voz era como cascalho, seus
ombros já curvados.
— Você vai ficar? — perguntou Haven.
As pupilas arredondadas de Ember se alongaram em um corte quando ela caiu de quatro
na areia. — Não posso sair de casa quando está sob ataque. Você entende, certo?
Haven sabia que se ela ordenasse que Ember voltasse para Shadoria com os outros, ela o
faria. Mas mesmo que a Rainha Morgani ainda não estivesse pronta para aceitar Haven
como aliada, não havia como Haven deixar o reino durante um ataque surpresa.
Especialmente pela Rainha das Sombras.
— Eu entendo, porque também não vou embora — disse Haven. — Eu pretendo ficar
e lutar.
Gritos chamaram sua atenção para Bell e Xandrian correndo em direção a eles. Eles
tiveram que pular buracos na arena onde a fumaça ainda flutuava, as bordas queimando em
brasa.
Vidro esmagou sob as botas de Bell enquanto ele se aproximava. — Nós também vamos
ficar.
Xandrian parecia menos do que satisfeito com isso, mas assentiu. — Eu só estou aqui
para ter certeza que ele não faça nada estúpido.
Haven esticou o pescoço para olhar para o céu. — Onde está Nasira?
— Siga os Golemitas em fuga acima e você a encontrará — Stolas disse secamente.
Haven fez isso e encontrou a garota no meio da batalha aérea. Raios de magia azul-
relâmpago atingiram a horda escura, caindo cinco de cada vez. Os que não caíram
imediatamente foram vítimas de seu Dragão das Sombras.
Gritos distantes chamaram sua atenção para o palácio no topo dos penhascos ao
longe. Um enxame de gremwyrs e Golemitas circulava acima, o Fogo do Submundo que eles
carregavam como uma chama gigante daqui.
— Oh, Deusa não — Ember sussurrou.
— Eles estão destruindo o palácio — Stolas murmurou.
A voz de Ember tremeu de raiva quando ela disse: — Por que eles fariam isso?
Haven encontrou o olhar de Stolas. — Eles sabem sobre a pintura. De alguma forma eles
sabem que é por isso que estou aqui.
— É possível, ou eles estão punindo a Rainha Morgani por sua presença. Fazendo saber
que quem der abrigo à filha do Sombreamento será punido. Seria uma boa maneira de te
isolar e te fazer ir até ele. — Mas pela hesitação de Stolas, ele suspeitou do primeiro.
— Leve-me até lá. — Quando Stolas não se mexeu, ela acrescentou: — Por favor. — Ela
precisava salvar a pintura antes que a destruíssem.
Sorrindo, Bell avançou para revelar uma bandoleira reluzente com adagas. — Eu sabia
que havia uma razão para eu trazer essas belezas, recém-afiadas e com pontas banhadas
em ferrugem.
Surai cortou os olhos cor de lavanda para Bell. — Ferrugem?
— Sim. — De alguma forma, a arrogância de Bell cresceu, se é que isso fosse possível. —
Foi assim que chamei o veneno que desenvolvi para o Noctis. Em breve isso vai atiçar o medo
no coração de cada um dos conjuradores alados. — Bell deslizou um olhar de desculpas para
Stolas... — Exceto você, Stolas. Obviamente.
Stolas arqueou uma sobrancelha. — Obviamente.
Haven limpou o humor de seu rosto enquanto ela balançava a cabeça. — Não. Bell,
preciso que você, Xandrian e Nasira voltem para Shadoria e garantam que a Assassina de
Deuses esteja segura. Então, você deve ir direto para as terras mortais para preparar o Rei
Eros para a batalha contra Renk. O Sombreamento está tramando algo. Não temos tempo
de conseguir mais aliados antes de retomarmos Penryth.
A mandíbula de Bell cerrou, chamando a atenção para a barba escura que ela nunca
havia notado antes, mas ele assentiu.
— Se você puder— ela continuou— entre em contato com Ashiviere para uma
aliança. Sem um reino Solissiano lutando ao nosso lado, precisaremos de todos os soldados
que pudermos reunir.
— Eu não vou te decepcionar, Haven.
Ela o abraçou. — Eu sei. Da próxima vez que nos encontrarmos, serei imortal e você terá
um exército enorme esperando por mim.
Ela mudou seu foco para Xandrian enquanto Bell se afastava. — Deixe qualquer coisa
acontecer com ele - qualquer coisa - e eu vou responsabilizá-lo pessoalmente.
Xandrian abriu um sorriso sombrio. — Anotado. — Seu foco mudou para Stolas. —
Acha que você pode lidar com isso sozinho, Senhor das Sombras?
Havia uma corrente de calor no tom de provocação de Xandrian e a resposta de Stolas
não tinha o tom usual. — Será mais fácil agora que não tenho que me preocupar em salvar
seu traseiro, Senhor do Sol. Ah e não subestime os mortais. Eles são muito mais complicados
do que parecem.
Xandrian fez uma saudação simulada. — Sempre.
Haven sentiu seus lábios se curvarem em um sorriso. Isso era provavelmente o mais
próximo que Stolas e Xandrian chegariam de uma amizade.
Assim que Bell e Xandrian cruzaram com segurança a arena, Surai se transformou em
um corvo e Ember se transformou totalmente em uma pantera cinza-aço com marcas
brancas.
Stolas deslizou atrás de Haven, seu braço uma faixa de aço ao redor de sua cintura. —
Preparada?
— Sim.
Surai os levaria diretamente às abóbadas dentro do palácio onde estaria a pintura. O céu
estava entupido com uma fumaça negra e oleosa enquanto eles se elevavam sobre o oceano
em direção aos penhascos. Os ventos altos sopravam o calor do fogo ao redor deles, o ar acre
ardendo em seus olhos e pulmões. Fogueiras ardiam por toda a ilha, mas o pior vinha do
palácio.
Uma vez uma longa e sinuosa estrutura de marfim que abraçava as falésias, agora estava
esburacada e deformada. Buracos escancarados expeliam línguas de fogo e gavinhas de
fumaça. À medida que se aproximavam, formas aladas surgiram da destruição.
Cinzas e fuligem se agarravam às asas brancas como nuvens das Valquírias enquanto
lutavam contra os Golemitas. Algumas das Valquírias se erguiam do palácio, mergulhando
e balançando no ar, suas belas asas chamuscadas. Uma emergiu com as asas cobertas de Fogo
do Submundo vermelho flamejante.
Haven quase gritou quando a Valquíria despencou do penhasco nas águas turquesas
abaixo. Dois Gremwyr mergulharam atrás da Valquíria e Haven teve que desviar o olhar
quando eles começaram a lutar por seu corpo.
Era contra isso que eles lutavam. Mal implacável e depravado. O ataque foi uma
pequena amostra do que estava por vir se o Sombreamento escapasse do Submundo.
A maioria dos Gremwyrs e Golemitas estava concentrada ao redor do palácio, mas
alguns permaneceram em seu caminho. Antes que Haven pudesse levantar um dedo, as
Sombras deformadas explodiram em um jorro de sangue escuro.
O fato de que Stolas pudesse destruir tão facilmente um ser vivo que respirava. Mas não
incomodou.
Nem um pouco.
— Prepare-se — ele murmurou quando aterrissou no que uma vez tinha sido o último
andar do palácio, mas agora era uma borda irregular de mármore com vista para um
buraco. Faíscas e gritos de batalha surgiram das profundezas do palácio.
Seu arco estava em suas mãos e uma flecha encaixada antes que ela distinguisse a primeira
criatura alada saindo da fumaça.
Quando ela soltou sua arma, ela inflamou a ponta com magia de luz envolta em fios de
escuridão. A chama cresceu enquanto o projétil perfurou as sombras e afundou na garganta
de um Golemita.
Ele garrou-se ao poço enquanto mergulhava no caos escuro abaixo.
Stolas estendeu o braço e três Gremwyr caíram em uma parede. A força os matou no
impacto.
Escolhendo através das camadas de escuridão, ela saltou para outra saliência. No meio
do salto, um Gremwyr apareceu com sua boca hedionda escancarada, as presas brilhando.
Ela enfiou uma flecha na boca aberta e pousou, girando a tempo de ver a criatura
espiralar nas espessas nuvens de fumaça e cinzas. Ela derrubou mais dois Gremwyrs e um
Golemita antes que Stolas aterrissasse sobre o que restava de uma grande escadaria.
Sombras se desenrolavam ao redor dele enquanto seus poderes se estendiam. Seus olhos
brilhavam quase tão vermelhos quanto o Fogo do Submundo na penumbra. Quando os
lábios dele se curvaram em um sorriso encantado, ela nem sequer vacilou com as presas ali.
Surai apareceu, mudando de volta para sua forma Solis. As lâminas delgadas de suas
espadas brilharam enquanto ela as girava. — Tente acompanhar.
Em algum sinal tácito, todos eles mergulharam no caos sombrio. Os níveis superiores do
palácio foram destruídos e Haven teve que pular as tiras de piso ainda agarradas ao esqueleto
do outrora glorioso edifício.
Finalmente chegaram a uma parte intacta do castelo, espalhando-se enquanto corriam
pelo corredor. Haven trocou seu arco por uma espada curta, sua outra mão segurando magia
de luz, pronta para liberá-la.
A espera não durou muito. Dois Golemitas correram pela esquina em direção a
eles. Antes que Stolas pudesse reagir, sua magia se espalhou por seus corpos. Eles gritaram
de raiva.
Isto é, até que sua espada separou suas cabeças de seus corpos.
Stolas olhou para ela. — Eu não sabia que era uma competição.
Ela sorriu. — Não é.
Mas com certeza era.
Revirando os olhos, Surai correu pelos corredores, liderando o caminho para os
cofres. Ela nem sequer teve que sangrar suas espadas. Todos os Golemitas e Gremwyr que
encontravam, morriam antes de saberem o que lhes tinha atingido, abatidos por Haven e
Stolas.
Haven perdeu a conta depois dos doze. Sua magia parecia ganhar vida própria quando
saltou de suas mãos e consumiu os soldados da Rainha das Sombras. Os que não morreram
imediatamente ela matou com seu aço antes que Stolas pudesse reivindicá-los.
Os sons de rosnados e metal contra metal os atraíram pelo corredor final. Do outro lado
havia um grande e arejado salão de baile com tetos espelhados e piso em parquet branco e
dourado. Samambaias brotavam de enclaves e janelas abertas em arco atravessavam as
paredes. Fumaça escura flutuava nas lanças da luz do sol.
— A galeria abobadada fica logo abaixo — Surai disse, katanas abaixadas ao seu lado
enquanto eles entravam na câmara. — Há uma escada do outro lado do estrado que leva até
lá.
Isso explicava por que a luta acabou aqui. Uma formação de Valquírias, panteras e
leopardos lutava ao lado da Rainha Morgani. Ainda em sua forma de metamorfo, o
tamanho enorme da rainha a tornava fácil de identificar entre os combates.
Inúmeros Golemitas pairavam no teto alto, jogando seus poderes no grupo. Apenas as
Valquírias poderiam alcançá-los e Haven ficou boquiaberta por um momento com as
guerreiras habilidosas enquanto lutavam contra dois e às vezes três Golemitas de uma vez.
Mas havia muitos deles. Eles estavam entrando pelas janelas. Batendo no chão enquanto
eles pousavam, garras raspando ruidosamente. O som de asas de couro batendo no ar ficava
mais alto a cada segundo que passava.
Um Gremwyr notou-os parados na entrada e atacou. Stolas estalou os dedos e ele caiu
aos pés deles, o pescoço obviamente quebrado. — Pobre coitado — Stolas murmurou. Ele
arqueou uma sobrancelha perversa para Haven. — Você sabe, este seria o momento perfeito
para procurar a pintura.
As palavras que ele deixou não ditas pairaram entre eles. Enquanto a Rainha Morgani
estivesse ocupada e as forças da Rainha das Sombras distraídas, eles estariam livres para
procurar a peça.
Um rugido atraiu o foco de Haven de volta para a batalha. A Rainha Morgani tinha
acabado de derrubar um Golemita e chicoteado para enfrentar mais dois... mas ela estava
mancando. O sangue escurecia seu pelo fulvo. Sangue demais e era muito brilhante para ser
de mais alguém exceto dela.
Haven preparou um orbe de magia de luz. — Não posso deixá-la morrer.
— Nem eu — disse Surai, juntando-se a Haven. A luz dourada brilhou nas lâminas
curvas em cada uma de suas mãos. — Mesmo que ela seja uma cadela de coração frio que
abandonou e machucou o amor da minha vida, Rook gostaria que eu a ajudasse.
— Ótimo. — Stolas conseguiu dois orbes perfeitos de magia das sombras com
movimentos elegantes de suas mãos e os ergueu. — Não que ainda estejamos contando, mas
isso me dá três pontos.
As esferas elétricas azuis foram arremessadas em direção à batalha e bateram em dois
Golemitas que estavam prestes a acabar com um leopardo ferido.
Metido.
Haven seguiu com uma saraivada de sua própria magia. Embainhando sua espada, ela
puxou seu arco e começou a derrubar Golemitas e Gremwyrs no ar.
O tempo diminuiu e deformou.
Seus sentidos captavam tudo. O bater constante de seu coração. O guincho das garras
sobre o mármore. A lufada de vento e asas contra sua pele. A mordida metálica de sangue no
ar.
Enquanto Haven e os outros lutavam, eles lentamente se aproximavam do nexo de
batalha. Corpos batiam no chão depois de cada puxão da corda de seu arco. Em algum
momento, Ember os encontrou e se juntou à briga, eliminando os inimigos com uma
ferocidade que rivalizava com a de sua mãe.
Um grito de dor veio da esquerda de Haven. Ela se virou. Dois Gremwyrs tinham uma
guarda Morgani caída em suas bocas. Um a segurava pelo tornozelo, o outro pelo
ombro. Em seu estado ferido, a soldada voltou à sua forma original. Eles estavam puxando
em direções opostas, cada um tentando reivindicar seu prêmio.
A rainha soltou um rugido enquanto saltava, eviscerando o primeiro Gremwyr antes
que ele tivesse a chance de responder. O segundo se recusou a soltar o ombro da soldada. A
criatura gananciosa tentou retroceder com sua refeição.
Ferida e fatigada como estava, a rainha recusou-se a recuar. Ela saltou tão rápido que os
Gremwyr não tiveram tempo de fugir. Depois de fazer um trabalho rápido com a fera, a
rainha abaixou a cabeça do leão para lamber a soldada ferida...
Um traço de algo chamou a atenção de Haven para as sombras esfumaçadas atrás da
rainha. Um lampejo de metal e uma forma oscilante.
Sua respiração engatou. Não havia tempo para avisar a rainha. Haven ergueu uma flecha
e a soltou, sussurrando a runa para imbuir a ponta de ferro com magia de luz e escuridão. Os
olhos dourados da rainha se voltaram para o projétil e ela ergueu a cabeça com um rosnado...
A arma do Golemita, uma foice curva, parou a um centímetro do pescoço da rainha. Ele
olhou incrédulo para a flecha que descansava profundamente em seu peito enquanto a
magia o consumia por dentro. A lâmina curva da foice que ele segurava caiu no chão e
rachaduras de luz dourada apareceram em sua pele.
Ele explodiu em um respingo de luz, deixando apenas sua armadura e sapatos intactos.
Haven ergueu os olhos para a rainha e algo passou entre elas. Não era bem confiança,
mais como... respeito.
Não havia tempo para pensar nisso quando a luta recomeçou. Para cada Golemita que
eles matavam, mais três inundavam as janelas. Quando Stolas ergueu um escudo para cobrir
as janelas, eles arrancaram o teto, as paredes, destruindo qualquer coisa no caminho de
entrada.
Mas Stolas não conseguiria segurar os escudos por muito tempo – não quando cada
grama de sua magia era necessária para lutar.
Do lado de fora das janelas, o céu se agitava com Golemitas enquanto as Valquírias
tentavam proteger o que restava do castelo. Uma Valquíria enrolada em um Golemita caiu
por uma janela aberta e rolou pelo chão. O Golemita estava morto, suas asas abertas em um
ângulo estranho, olhos escuros sem piscar no teto. A pobre Valquíria estava ferida demais
para se mover debaixo do cadáver Golemita muito maior e ela ofegava.
Haven se juntou a Ember e Surai enquanto elas alinhavam suas costas perto do círculo
da guarda da rainha. A rainha mancava, suas patas marcando as manchas de sangue que
escorriam pelo chão ao redor delas. Ela estava ofegante. As feridas em sua coxa e peito
vazavam sangue vermelho brilhante.
Eles não iriam durar muito mais tempo assim.
A voz de Morgryth se elevou acima do grito de batalha, seguida por baques abafados no
telhado quando as coisas começaram a pousar. Através dos rasgos no teto, Haven distinguiu
Golemitas em armaduras negras como a noite.
Cada um segurava... um balde.
Um whoosh cortou o ar quando Fogo do Submundo ganhou vida em suas
mãos. Centenas de soldados prestes a jogar aquela substância mortal diretamente em cima
deles.
— Deusa nos proteja — Surai sussurrou.
O escudo que eles construíram borbulhou para fora, crescendo até cobrir seu
círculo. Sobraram tão poucos. As Valquírias lutando acima mergulharam em direção a essa
proteção. A maioria conseguiu, mas algumas foram pegas no ar quando o Fogo do
Submundo caiu. Apertando os dentes enquanto segurava o escudo, Haven assistiu ao teto
desaparecer em um lampejo. Assistiu às chamas vermelhas derretidas virem para eles em
câmera aparentemente lenta.
Uma Valquíria a centímetros do escudo foi incinerada bem na frente deles. Por um
instante, enquanto o Fogo do Submundo se agarrava à parede de escudo, corroendo as
camadas, sibilando e estalando, o mundo de Haven era fogo.
Um inferno de chamas vermelhas anormalmente escuras que consumiam tudo o que
tocavam e nunca queimavam. O cheiro de cabelo e carne chamuscados encheu o ar
quente. E, então, assim que o calor começou a diminuir e a luz ardente escureceu, ela se virou
para Stolas...
Ele não estava com eles.
Temor arrancou o ar dos pulmões de Haven. Como isso era possível? Ela sentiu sua
assinatura no escudo, sobrepondo seus poderes com os deles para fortalecer a fronteira e... e
protegê-los.
Protegê-los.
Onde ela o tinha visto pela última vez? Ela empurrou a cabeça para a esquerda das
portas. Ele estava ali lutando contra três Golemitas. Ela tentou espiar através da camada de
magia, mas o fogo a havia deformado e com a fumaça e as chamas...
Cobrindo o rosto com a mão livre, ela correu da bolha protetora. Surai tentou agarrá-la,
mas Haven se moveu rápido demais. Ela perfurou a cortina transparente de magia,
rapidamente afastando as brasas de Fogo do Submundo antes que pegassem em seu cabelo
e vestido e...
Parou. Seu estômago se apertou descontroladamente quando um abismo se abriu a seus
pés. Tudo no salão de baile que não estava protegido pelo escudo havia desaparecido. A
grossa pedra enfeitiçada, que outrora separava este nível da galeria abobadada abaixo, havia
sido devorada.
E os maravilhosos artefatos e itens armazenados nas alcovas, a pintura...
Tudo, tudo se foi. Incinerado. Seu estômago embrulhou. O fedor da magia queimada
liberada no ar a deixou enjoada.
Mas ela não se importou. Não sobre a pintura ou tornar-se imortal. Nada disso
comparado ao pânico que ela sentiu enquanto procurava por Stolas.
Por favor, esteja vivo. Por favor.
O pânico rolou através dela.
Sugando o ar tingido de cinzas, ela examinou a divisão e notou uma área no canto perto
de onde ela o viu pela última vez. O chão ainda estava intacto como se ele tivesse usado
alguns de seus poderes como escudo. Pedaços de vigas do tamanho de pedregulhos e detritos
empilhados, pequenos bolsões de fogo ainda queimando.
Isso significava que seu escudo havia desmoronado em algum momento.
O nome dele raspou sua garganta crua...
E, então, ela ouviu seu nome ser chamado do outro lado.
Archeron estava ajoelhado na beira do abismo enquanto a fumaça enrolava em torno de
suas botas. Ele estava coberto de sangue. O paletó real que ele estava vestindo antes havia
sido removido e seu cabelo tinha caído de suas amarras, fazendo-o parecer tanto com o
Archeron que ela conhecia que seu coração deu um puxão.
Quantas vezes ela o tinha visto assim? Imundo depois de alguma batalha, cabelo
bagunçado e empurrado para o lado, mangas arregaçadas. Até seu sorriso parecia
semelhante, aquela arrogância provocante em plena exibição.
Mas era apenas um meio-sorriso. O outro lado estava coberto por trás da máscara que
ela rapidamente aprendeu a desprezar. Temer, até. Chamas dançavam em sua superfície lisa,
fazendo as joias brilharem e brilharem.
Brasas se ergueram entre eles como vaga-lumes.
— Haven. — Sua voz era extraordinariamente suave quando ele estendeu a mão. —
Haven, venha até mim. Eu posso te proteger.
Ela balançou a cabeça, suas palavras pegando o nó em sua garganta. Sua voz era muito
familiar. Seu sorriso também como o velho Archeron.
Stolas - ela precisava encontrar Stolas.
— Olhe a sua volta. Você não tem chance. — Contra sua vontade, ela obedeceu. Seu
pulso disparou quando ela viu os Gremwyrs fervilhando pelas paredes, uma onda de
morte. Golemitas pairavam no céu acima, suas asas muito suscetíveis ao fogo para descer.
No momento em que o último fogo se apagasse, eles se juntariam a seus irmãos Sombras
para acabar com os Solis restantes.
Não havia dúvida na mente de Haven que Morgryth levaria Haven viva para seu pai –
depois de torturá-la primeiro, obviamente. E as coisas que seu pai faria com ela, fariam a
tortura da Rainha das Sombras parecer agradável.
— Venha a mim agora — Archeron continuou naquele tom enganosamente gentil— e
prometo que meus homens os protegerão. Você tem minha palavra. Serei gentil com você,
Haven. Enquanto você se curvar à minha vontade, você não tem nada a temer.
Seu olhar disparou para os escombros onde Stolas estivera, o desespero arranhando seu
peito.
— Haven, por favor. Eu sou realmente tão repugnante que você prefere ser levada pelo
Sombreamento do que por mim?
A vulnerabilidade em sua voz a assustou. Ele queria que ela viesse de bom grado para
ele. Precisava dela por algum motivo inexplicável.
Ela encontrou seu olhar suplicante. Sua mão ainda estendida, dedos se curvando
quando ele acenou. Pedaços de cinzas ficaram presos em seu cabelo e colarinho. O lado de
sua boca que ela podia ver se ergueu esperançosamente, seu olho verde-esmeralda brilhando
com expectativa.
Com... anseio.
Ela olhou para Surai e Ember. As duas mulheres estavam feridas. Elas não durariam
muito contra o ataque que se aproximava. Mas elas nunca desistiriam. E, se elas tivessem a
opção de dar Haven a Archeron e sobreviver ou lutar e morrer, ela sabia qual opção elas
escolheriam.
Seu foco voltou para Archeron. Para sua mão estendida e a falsa oferta de
segurança. Mas era uma ilusão e ele era tão ruim quanto o Sombreamento.
Talvez pior.
Pelo menos o Sombreamento sabia o que ele era. Archeron ainda se considerava justo e
bom. Ainda poderia de alguma forma justificar suas ações abomináveis.
Ela encontrou seu olhar e rosnou: — Eu prefiro morrer do que me entregar
voluntariamente a você.
A luz dentro de seu olho bom cintilou e, então, se apagou. O lampejo de dor e surpresa
em seu rosto lentamente se transformou em uma malícia tão escura que quase dobrou seus
joelhos. — Pensando bem, por que não me sento e espero até que Morgryth e sua laia
tenham derramado o sangue de seus amigos em você? Talvez, então, quando eu colocar
minha coleira em seu pescoço, você fique grata.
— Você arriscaria uma guerra com a Rainha Morgani só para me ter?
Seu foco derivou para onde as Morgani lutava atrás dela. — Como posso começar uma
guerra com alguém que está morta?
Rosnados chamaram a atenção de ambos para o canto onde...
Ah, Deusa. Stolas.
Horror enrolou em seu intestino ao vê-lo. Ensanguentado. Penas chamuscadas e
carbonizadas, algumas fumegando e expelindo fumaça. Sua túnica pendurada em farrapos
sobre seu corpo, revelando feridas terríveis e sangue – tanto sangue.
Seu? De outros? Sua mente girava enquanto ela tentava entender o que estava
vendo. Figuras corriam ao redor dele, seus movimentos rápidos difíceis de definir.
Cinco, não seis, não incontáveis Golemitas e Gremwyrs desceram sobre ele e o estavam
rasgando com dentes, armas e garras.
Ele lutava com a força de um Deus. Jogando os Gremwyrs de lado como se não pesassem
nada. Rasgando membros e asas de seus inimigos. Cortando sua espada em golpes
incrivelmente rápidos e medidos.
Por que ele não estava usando sua magia?
E, então, ela entendeu. Ele não havia se alimentado antes deles chegarem e depois com o
escudo e a batalha... seus vastos poderes foram esgotados.
Ele usou a última gota para protegê-la.
Um Gremwyr mergulhou do alto, pegando Stolas na parte superior das costas com suas
garras. A dor em sua mandíbula cerrada quando ele segurou um grito perfurou seu
núcleo. Stolas, de alguma forma, conseguiu arremessar a fera para trás e depois cortar sua
cabeça com sua espada, mas mais estavam descendo. Ele bateu seus chifres no rosto de um
Golemita, fazendo uma cratera com o impacto. Ele enfiou a ponta de sua espada na têmpora
de outro Golemita, derrubando-o.
Mas havia muitos. Esta era a vingança de Morgryth. Se as ordens fossem para levar
Haven viva, elas seriam o oposto para Stolas, o homem que assassinou a única filha de
Morgryth.
Uma Golemita disparou por trás, cortando uma de suas asas...
Desta vez ele grunhiu, cada músculo tremendo enquanto ele chicoteava para enfrentar
a ameaça. Seus tormentadores estavam rindo.
Rindo.
Do homem que a salvou inúmeras vezes. Que suportou tortura por ela. Que de alguma
forma, de alguma forma, manteve um pingo de esperança por séculos, apesar da crueldade
inimaginável. Que tinha apostado tudo nela, uma garota impulsiva e imprudente que
tentou acabar com sua vida.
Uma vida que ele salvou. Repetidamente.
Mesmo quando ela achava que não merecia.
Mesmo quando ela provavelmente não merecia.
A ira como ela nunca sentiu antes a abriu – uma torrente de fogo mil vezes mais quente
e gananciosa que o Fogo do Submundo.
A dor estalou seus joelhos - ela havia caído. A pressão em seu peito estava crescendo e
crescendo e...
Oh, Deusa, ela ia quebrar ao meio.
O ar saiu de seus pulmões quando a pressão foi liberada. O fogo crepitando em sua pele
se suavizando em um calor reconfortante.
Ela deve ter fechado os olhos e, quando os abriu, teve dificuldade em entender o que
estava vendo.
Uma grande fera de luz dourada cortou a fumaça negra enquanto saltava em direção a
Stolas. Seus tormentadores estavam fascinados demais com o ataque para notar a
criatura. Isto é, até que ela rugiu.
Esse rugido se transformou em um uivo que logo foi acompanhado por outra criatura.
O Lobo das Sombras de Stolas. Seus uivos lamentosos se entrelaçaram para criar uma
canção etérea que a alcançou profundamente, preenchendo o poço de vazio que ela sentiu
durante toda a sua existência. Calor cascateou através dela, sobre ela. Uma euforia de
pertencimento, de retidão que ela não entendia.
Os Golemitas se viraram para enfrentar a nova ameaça, alheios ao lobo de Stolas atrás
deles. Haven assistiu, paralisada, sabendo no fundo o que era isso.
Seu familiar tinha liberado.
E tinha escolhido uma forma.
Um lobo - um majestoso lobo dourado para combinar com o preto de Stolas.
Ele circulou os tormentadores de Stolas e ela podia senti-lo esperando por seu comando.
Ela não esperou muito.
Mate todos.
O exército da Rainha das Sombras se dispersou - ou tentou. Seu lobo estalou sua cabeça
gigante para baixo, os dentes quebrando os ossos enquanto os tirava em três e quatro.
Gritando de terror, os Golemitas e Gremwyrs tentaram voar, mas seu lobo os arrebatou
um por um. Quebrando seus pescoços. Arrancando suas cabeças. Eviscerando-
os. Rasgando-os ao meio.
Uma parte dela disse que ela deveria ter desviado o olhar. Deveria ter sentido uma
pontada de horror.
Em vez disso, ela sentiu uma satisfação profunda e primitiva.
Tudo acabou em poucos segundos. Sua loba havia se tornado corpórea, os filamentos
dourados de luz se tornando uma luxuosa pele de platina com pontas em ouro rico. Ela era
um pouco menor do que o lobo de Stolas, ágil, seu pelo mais grosso quando comparado ao
pelo sedoso do lobo ônix.
Choramingando, seu lobo caminhou até Stolas, que acabara de acabar com o último
Golemita restante. Ele estava ligeiramente ofegante e favorecendo suas costelas, mas quando
sua loba se inclinou para cheirá-lo, ele ficou desumanamente imóvel. A besta dourada
lambeu a ferida sobre seu peito antes de acariciar sua cabeça contra sua bochecha.
Por um momento estranho, Haven imaginou esboçar a cena. Stolas, seu cabelo
ondulado branco como osso caído ao lado de sua testa, chifres grossos de ébano curvados
para trás contra seu crânio como uma coroa. Suas asas brilhantes estavam erguidas atrás dele,
uma ligeiramente mais estendida que a outra.
E sua loba, radiante, quase brilhando por dentro enquanto verificava suas feridas.
O olhar de Stolas foi para o dela e ela sentiu a mesma conexão que teve quando seu
Familiar o reconheceu ontem. Um puxão tenso na barriga, mas cem vezes mais forte do que
antes.
E, quando os lábios de Stolas se curvaram para cima, sua respiração engatou.
Seu lobo uivou, o som acenando para o Familiar de Haven.
Era um chamado para caçar.
Juntos, os lobos gêmeos desceram na sala, criaturas de luz e escuridão trabalhando em
conjunto. Seus movimentos pareciam quase coordenados enquanto eles atacavam e
atacavam, enviando Golemitas e Gremwyrs fugindo em todas as direções.
Enquanto Haven observava, ela não pôde deixar de pensar nos momentos mais cedo,
quando ela e Stolas limparam os corredores juntos. Esse mesmo tipo de vínculo entre eles
enquanto caçavam e matavam tudo em seu caminho.
— Quando isso aconteceu? — Surai perguntou enquanto se dirigia para Haven.
Haven ergueu seu arco e pegou uma flecha. — Agora mesmo.
Algo, um lampejo de movimento, um ruído, atraiu o foco de Haven para Stolas. Havia
um olhar estranho, quase agridoce em seu rosto enquanto observava seu lobo e o dela
limparem a câmara. Como se sua união lhe trouxesse prazer e dor.
Outro movimento atraiu seu olhar para uma sombra que se elevava atrás de Stolas.
E, quando ela viu a máscara dourada, o medo mergulhou direto em seu coração.
Stolas nunca tinha visto uma criatura tão bonita quanto o Familiar de Haven. Ela
parecia ser feita de gelo, luz das estrelas e âmbar derretido, seus olhos lupinos um mosaico de
prata e ouro. Ele podia sentir seu lobo rosnar de prazer. Seu Familiar estava inquieto desde
o momento em que reconheceu sua companheira no Familiar de Haven.
O que significava que não havia mais como negar quem Haven era para ele.
Não que ele tivesse duvidado.
Suas asas feridas se juntaram perto de seu corpo enquanto ele avaliava seus ferimentos. A
maior parte de seu poder foi para proteger Haven, mas ele deixou uma pequena reserva para
erguer o escudo que o protegia da extensão da ira do Fogo do Submundo.
Seus poderes se esgotaram logo depois, suas asas sofrendo o peso do dano. A dor era
insondável e ele estupidamente deixou que isso o cegasse para os Golemitas que se
aproximavam até que eles já estivessem sobre ele. Ele nunca se dperdoaria seu erro. Em
qualquer outro momento, mesmo sem seus poderes, ele os teria apagado da face do reino.
Em vez disso, eles conseguiram feri-lo. Alguns ferimentos eram profundos até os ossos e
irregulares onde as garras haviam esculpido em sua carne, mas ele já podia sentir a coceira
profunda que significava que sua pele estava se recuperando. Sem sua fonte de magia levaria
mais tempo, mas ele se curaria.
Enquanto isso, ele faria os bastardos Golemitas pagarem por suas asas. Uma morte para
cada pena perfeita que o fogo queimou.
Era apenas justo.
Ele ergueu o olhar, preparado para voar e se juntar ao seu lobo, quando viu Haven...
Sua expressão de pânico o fez girar, mas tarde demais. Uma picada leve se instalou em
seu flanco esquerdo, logo abaixo de sua caixa torácica.
Seguiu-se um choque de agonia gelada.
O rosto de Archeron surgiu da fumaça, seus dentes arreganhados e olhos ardendo com
pura malícia. Em suas mãos estavam duas armas: a gloriosa espada longa de sua mãe e uma
pequena adaga.
Pela dor que percorria seu corpo com cada pulsação de seu coração, a adaga estava
banhada em algum tipo de veneno.
Ele era imune à maioria das toxinas neste reino, mas isso parecia diferente.
Lutando contra a onda de dor que se espalhava por seu corpo, Stolas caminhou em
direção ao Soberano do Sol. — Usando veneno? Eu não esperaria nada menos de um
covarde como você.
Archeron rugiu enquanto descia sua espada sobre Stolas.
Stolas escorregou do alcance da lâmina, dançando entre os golpes de
Archeron. Brincando com ele. Se tivesse escolha, ele prolongaria a morte de Archeron por
dias. Faria-o sentir cada sensação agonizante, cada grama de vergonha pelo que ele fez com
Haven.
Mas, por mais adorável que fosse, eles não tinham tempo para tais prazeres. Rosnando,
Stolas deu um soco no rosto de Archeron, seus dedos conectando com a borda da máscara.
Archeron cambaleou.
Um grunhido de prazer rasgou do peito de Stolas quando ele o atingiu novamente. A
sensação de osso e metal quebrando sob seus dedos era tão malditamente satisfatória.
A máscara se partiu com um estalo estrondoso. A adaga de Archeron retiniu pelo chão
e caiu no abismo. O Soberano do Sol cambaleou para trás, arranhando a máscara arruinada,
os poderes convergindo enquanto ele tentava fundi-la novamente.
Mas foi destruída além do reparo e os pedaços irregulares escorregaram por entre os
dedos.
Agora, seu rosto monstruoso estava em plena exibição. Um lado impecável, tão perfeito
que poderia ter sido esculpido pelos próprios deuses. O outro horrível e arruinado.
Algo sobre o contraste de beleza e horror era profundamente inquietante.
Ofegante, Archeron levantou a mão livre para mapear a desfiguração.
Qualquer luz restante nos olhos do Senhor do Sol desapareceu. — Você a forçou em sua
cama.
Como a maioria dos Solis, Archeron não entendia o que significava quando um Familiar
das Sombras pareava com outro. A verdade o enfureceria. Stolas abriu um sorriso
zombeteiro. — Se você acredita que Haven pode ser forçada a qualquer coisa, então você
não a conhece.
— Você é um animal, uma criatura bárbara monstruosa. Ela nunca estaria com você a
menos que você não a tivesse enfeitiçado de alguma forma.
— Enfeitiçado? — Stolas perguntou, aproximando-se. — Talvez eu simplesmente a
aceite por quem ela é, cada parte dela. — Ele fechou outro centímetro de espaço entre
eles. — Mas você deve saber, não é por isso que seu Familiar das Sombras escolheu uma
forma de lobo.
Stolas soube o momento exato em que Archeron entendeu seu significado. O rosto
mutilado do Soberano do Sol se contorceu em um rugido cheio de raiva quando ele ergueu
a espada...
Stolas atacou com a velocidade da luz, arrancando a arma pesada das mãos de
Archeron. — As lâminas grandes podem fazer os tolos sujarem suas calças, mas, em combate
real, elas se movem como merda.
Um lampejo de luz se formou na palma de Archeron...
Stolas enfiou o cabo da espada de Archeron na parte macia de sua garganta.
A magia do rei extinguiu-se. Ele agarrou seu pescoço, ofegante, olhos arregalados
lacrimejando. Isso ia doer um pouco.
— As grandes são boas para força bruta, eu suponho — Stolas falou lentamente
enquanto examinava a bela espada, famosamente presenteada à mãe de Archeron por um rei
Asgardiano. — Mas acho que às vezes uma boa bota com biqueira de aço funciona bem.
Stolas levantou o joelho e bateu o pé no centro do peito largo de Archeron. O impacto
socou o ar restante dos pulmões de Archeron e ele caiu para trás sobre a borda da galeria
abobadada abaixo. Um estrondo estridente se seguiu quando seu corpo se chocou contra
uma parede.
Agora, isso foi divertido. Stolas teve um enorme prazer no gemido de Archeron enquanto
mergulhava para acabar com ele.
Pedaços de pedra e escombros trituraram sob as solas de Stolas enquanto ele rondava em
direção a Archeron, que estava de pé novamente. Bolsões de fogo ainda estalavam nas
alcovas. O Fogo do Submundo tinha queimado quase tudo, embora alguns pedaços de
moldura ou pedaços do que antes eram estátuas permaneceram.
Stolas deixou a ponta daquela magnífica espada raspar no chão enquanto se
aproximava. Um insulto para uma arma tão requintada como esta.
— Você sabe— Stolas ronronou— sua mãe era cruel demais, mas ela pelo menos merecia
uma lâmina tão finamente trabalhada. Então, novamente, você tem o hábito de cobiçar
coisas que não te pertencem.
Os rubis incrustados no cabo captaram a luz das fogueiras moribundas quando Stolas
estalou a lâmina sobre sua coxa e jogou ambas as peças no chão.
Um pequeno círculo de magia se formou sobre a palma de Archeron. — Minha mãe se
perdeu. Ela teria arruinado Effendier se eu não tivesse....
— Não tivesse o quê?
A garganta de Archeron mergulhou e ele levantou a mão.
Stolas arqueou uma sobrancelha enquanto considerava a bola de luz girando entre os
dedos de Archeron. — Devo dizer que estou um pouco decepcionado. Para onde foram seus
poderes, Senhor do Sol? Eu poderia explodir essa pequena exibição triste com uma única
respiração.
As narinas de Archeron se dilataram e ele se retirou para uma alcova repleta de restos
queimados do que provavelmente foram uma vez lindas tapeçarias. Que vergonha.
— Diga-me, Senhor do Sol. — Stolas seguiu silenciosamente atrás de Archeron. — Você
arrancou a espada das mãos de sua mãe antes ou depois de matá-la?
Era um palpite, mas pela forma como Archeron se encolheu, Stolas sabia que estava
certo.
Covarde.
— Interessante — Stolas continuou enquanto circulava Archeron, o calor das chamas
aquecendo o ar. — que você estava aqui, por acaso, durante o ataque de Morgryth. Conte-
me. Quando você vendeu sua alma para o Sombreamento, hmm?
Com um grunhido sufocante, Archeron lançou a esfera dourada. Stolas se abaixou sob
a magia, arrancou um pedaço de entulho do tamanho de um melão e o atirou na cabeça de
Archeron.
O movimento foi tão rápido que Archeron não viu o projétil até que estava sobre ele. Ele
jogou as mãos para cima, a rocha se estilhaçando em seixos e poeira contra seu antebraço.
Stolas inclinou a cabeça enquanto observava Archeron lutar para conjurar seus
poderes. — Quando você destruiu sua escravidão mágica ao Rei Boteler, a antiga magia das
sombras dentro daquele anel entrou em sua alma. Mas o aspecto lamentável da magia das
sombras, Senhor do Sol, é que ela precisa de uma fonte de energia. É por isso que seus
poderes são uma sombra do que já foram. — Ele estalou suavemente. — Se alguém em sua
corte soubesse o quão fraco você realmente está, seu reinado estaria acabado.
O rosto de Archeron era irreconhecível enquanto ele zombava de Stolas. — Você não
tem ideia do que está falando.
— Não? Eu sou muitas coisas, mas tolo não é uma delas.
Tropeçando, o rei conseguiu se endireitar antes de enviar uma rajada de magia
desesperada em direção a Stolas.
Stolas evitou a magia da luz ofensiva várias vezes. Cada vez deslizando pelos orbes de
poder com uma facilidade surpreendente. Era decepcionante ver um conjurador de luz tão
poderoso quanto Archeron usar uma magia tão concisa.
Isso iria entorpecer o prazer de matá-lo, mas não o suficiente para que ele não fosse
estender a duração disso. Brincar com o rei, só um pouco, saboreando o doce aroma de seu
medo.
Ele merecia isso e muito mais pelo que fez com Haven.
Outra onda de magia de luz deixou as mãos de Archeron. Ele estava ficando desesperado.
— Passei metade de uma vida escravizado pela rainha cadela que acabou de destruir um
palácio inteiro usando Fogo do Submundo— Stolas falou lentamente, passeando em torno
de um monte de cinzas fumegantes. — As coisas que ela costumava fazer comigo fariam você
tremer de medo, rei. Você realmente acha que as frágeis esferas de magia que você está
produzindo vão fazer alguma coisa além de me irritar?
O desespero se formou no rosto de Archeron, seu olhar brilhante e selvagem enquanto
ele rosnava: — Eu vi a sua morte.
Stolas deu de ombros. — Todos nós morremos eventualmente. Confie em mim, eu já
morri uma vez.
Havia algo depravado tremeluzindo sob o pânico de Archeron. A sensação que deu a
Stolas era semelhante a passar por um lago onde um demônio espreitava logo abaixo da
superfície, sua carne pútrida e podre infectando a água.
— Eu fiz Haven ver isto também — Archeron raspou. — De novo e de novo e de
novo. A fiz ver você morrer de cem maneiras diferentes, para que quando você finalmente
morrer, isso a destruirá.
Stolas congelou quando o medo que ele manteve escondido ganhou vida nos lábios
daquele bastardo.
— Você não é o único que tem acesso aos talentos… sombrios dos Senhores
Demônios. Eventualmente, ela vai ver você pelo que você é e ela vai acabar com você.
Stolas inclinou a cabeça enquanto murmurava: — Você sabia que, depois que ela voltou
do Éter, ela chorou tanto que pensei que ela ia se despedaçar em meus braços? — A memória
de seus gemidos de angústia cortou sua própria dor. — Você pegou o amor extraordinário
dela pelos outros e o distorceu, armando isso contra ela.
Archeron retrocedeu um passo só para encontrar uma parede em seu caminho. Um
estranho olhar de determinação se instalou em suas feições. — Você só vê a bondade dela. Eu
também só vi isso, uma vez. Ela é bastante charmosa de um jeito teimoso e ingênuo. Mas um
poder tão imenso não pode ser confiado a uma mortal. Ele precisa ser quebrado, acorrentado
e controlado. Aproveitado pelo o bem de Haven e do reino.
— Por você.
— Melhor eu do que você, Noctis nojento.
— É aí que discordamos, Senhor do Sol. Você vê o fogo dela e isso o aterroriza. Você
quer sufocar essas chamas luminosas até que tudo o que a torna maravilhosa e surpreendente
se torne pequeno, obscuro e comum, uma faísca que você pode acender à sua vontade.
— E você não?
Stolas riu sombriamente. Tanta ignorância. — Não. Eu quero atiçar esse inferno
magnífico até que todo este reino miserável esteja em chamas e os tiranos gananciosos como
você não sejam nada mais do que pilhas de cinzas esquecidas.
— E se ela queimar você também?
Um sorriso perverso cintilou nos lábios de Stolas. — Então, eu vou morrer
incrivelmente quente e contente. — Suas asas começaram a se abrir quando uma raiva
cegante tomou conta. — Você, por outro lado, vai morrer com frio e sozinho e muito mais
cedo do que esperava.
Archeron avaliou Stolas, um brilho astuto em seu olhar. — Sua magia se foi, você está
gravemente ferido e não tem nenhuma arma.
— Não importa. — Ele se aproximou, movendo-se furtivamente agora. — Eu vou te
despedaçar com minhas próprias mãos pelo que você fez com ela. Mas primeiro, vou drenar
a pequena magia que você deixou.
Archeron deu uma risada suave. — Sentindo o efeito o veneno, não é?
— Nada que sua magia não possa remediar — Stolas murmurou, sua atenção cravada
na artéria que pulsava no pescoço de Archeron. Ele não tinha derramado sangue de ninguém
em muito tempo, mas ele abriria uma exceção para Archeron.
— Você tem certeza sobre isso? — Stolas arrastou seu olhar para cima para ver o lado
ativo dos lábios de Archeron torcido em um sorriso de escárnio. — Eu deveria te agradecer,
eu suponho. Uma vez que ela for minha, Senhor das Sombras, seu lobo também será. Pense
nos exércitos que ela e aquela fera destruirão sob a bandeira da Corte do Sol.
Um lampejo de movimento encheu a palma de Archeron enquanto ele conjurava o que
parecia ser outra arma.
Não era uma arma...
Stolas se lançou contra o rei assim que Archeron ativou o dispositivo, um disco circular
de ouro gravado com runas demoníacas.
Um portal ganhou vida entre eles.
Em vez dos dedos de Stolas se fecharem no pescoço de Archeron, eles se curvaram
inutilmente sobre fumaça e cinzas.
Haven estava repleta de fumaça, sangue e outras coisas piores. Sua garganta
queimava, seus olhos ardiam, todos os músculos de seu corpo doíam. Assim que ela viu
Archeron atrás de Stolas, uma onda final das forças da Rainha das Sombras desceu sobre seu
pequeno grupo. Era uma tentativa desanimada, alimentada por desespero e malícia, e com a
ajuda dos dois Lobos das Sombras, Haven e os outros repeliram o ataque.
Quando ela voltou para Stolas, com o coração na garganta com o que ela imaginou ver,
ele estava a apenas alguns metros de distância. Um pânico avassalador ameaçou engoli-la ao
ver suas feridas.
Tantos cortes irregulares em sua carne. Tanto sangue. Faixas de carmesim escuro se
agarravam a fios de seu cabelo pálido e suas pobres asas...
Pelo menos uma tinha sido gravemente ferida, o sangue endurecido e secando ao longo
do ápice e ele a segurava com cuidado como um gato faria com uma pata ferida.
Mas foi a dor em seus olhos, a dor que ele tentou e não conseguiu esconder, que se
instalou como pedras em seu estômago.
Ela testemunhou aquela agonia uma vez antes, em sua paisagem onírica compartilhada
depois que a Rainha das Sombras o torturou impiedosamente.
A preocupação impulsionou Haven em seus braços. Ela esqueceu que ainda estava
zangada com ele. Esqueceu as feridas profundas que ele infligiu quando ele ameaçou tirar
seu livre arbítrio no Salão da Luz.
Sua necessidade de que ele estivesse seguro e sem dor eclipsou todo o resto. Ele
estremeceu quando os dedos dela correram sobre seu corpo. Cada vez que ela se deparava
com outro ferimento, suas entranhas se contraíam como se ela fosse a ferida.
— Pequena Fera... — Sua voz crua estremeceu em agonia contida. — Eu estou bem.
Uma lufada de ar saiu de seus lábios quando ela levantou uma tira ensanguentada de sua
camisa para expor uma ferida aberta. — Você chama isso de bem?
— Uma mera... ferida na carne.
— Mentiroso. — Recolhendo uma tira limpa de sua túnica, ela pressionou o pano no
ferimento mais preocupante, um corte que atravessava seu peito e descia pelo estômago. O
sangue encharcou o tecido imediatamente.
Ele se encolheu, seus olhos nunca deixando os dela. — Eu sou
surpreendentemente... resiliente.
— Não, você está sangrando como um idiota. — Ela se concentrou em conjurar gaze e
bandagens para esconder o jeito que seus olhos reviraram. — Por que você não se alimentou
antes de virmos?
— Vou ignorar o desdém em seu tom e considerar sua preocupação como um sinal de
sua devoção eterna a mim.
Irritada, ela arrancou o que restava de sua camisa de seu torso e começou a aplicar as
bandagens limpas.
Diversão faiscou dentro de seus olhos. — Se você quiser me despir, sugiro esperar até
que não tenhamos uma audiência.
Seu olhar se estreitou enquanto se movia atrás dela.
Os outros estavam assistindo. A rainha e os guardas restantes e Valquírias tinham
mudado de volta para suas formas de Solis no momento em que Haven decapitou o último
Golemita, como se ficar na outra forma exigisse mais energia. Agora, eles haviam se
reagrupado em um círculo solto sobre o oval do chão deixado de pé e estavam cuidando dos
feridos.
Os azulejos brancos, turquesas e amarelo-canário – outrora um tipo de mosaico
representando grandes felinos reunidos em torno de um trono – estavam atolados em
sangue e morte.
Duas Valquírias pairavam sobre a rainha, ignorando seus próprios ferimentos enquanto
usavam sua magia para consertar suas várias feridas. Ember e Surai estavam ajudando a
estancar o sangramento de uma Valquíria que havia perdido um braço.
Todos eles pararam o que estavam fazendo para olhar para Stolas e Haven, seus olhares
cansados de batalha caminhando para os dois lobos que montavam guarda em lados opostos
do salão de baile.
Sua mão estava chocantemente fria quando ela a guiou para a gaze no centro de seu
peito. — Segure isso enquanto eu seguro o curativo.
— Haven.
— Eu não me importo com o que eles veem.
— Haven...
— Você é importante para mim, Stolas, e não vou esconder isso deles ou de ninguém.
As linhas duras de suas feições se suavizaram. — Sua devoção corajosa é apreciada, mas
precisamos mudar nosso foco para escapar. Archeron sabe que minha magia se foi. Nosso
portal de volta para Shadoria terá sido destruído. Suas forças estarão esperando o momento
em que deixarmos a presença da rainha.
— E a proteção dela? — Haven perguntou, já sabendo a resposta.
— Terminou no momento em que o torneio terminou — uma voz feminina firme
respondeu atrás de Haven.
Haven virou-se para avaliar a Rainha Morgani. Mesmo depois de um ataque tão
devastador, ela possuía uma realeza imperturbável que Haven só tinha visto uma vez antes,
em Rook. — Então, você deixaria ele me levar, sabendo o que ele faria?
Ela agarrou seu lado enquanto ria. Foi-se a elegância de antes: o cocar de pantera, as joias
e o lindo vestido. Em seu lugar estava uma rainha nua e sangrenta que Haven sabia que
ficaria feliz em lutar por seu reino e seu povo.
Surai disse uma vez que a maioria das soldadas Morgani mudavam sua forma sem a
magia para manter suas roupas depois. Era considerado mais puro.
— Neste estado— disse a rainha, arrastando o olhar sobre os feridos e mortos— ele pode
pegar o que quiser com muito pouca oposição e ele é presunçoso o suficiente para saber
disso.
Afastando as duas Valquírias, cujas asas desapareceram assim que o céu limpou de seus
inimigos, a rainha mancou em direção a Haven, de cabeça erguida. A única coisa que ela
usava era o chifre de Valquíria em volta do pescoço e sangue.
E, ainda assim, Haven duvidava que qualquer rainha já tivesse parecido tão magnífica.
— Ele não vai fazer isso abertamente — a rainha continuou. — Ele não está pronto para
desafiar publicamente minha autoridade – pelo menos ainda não, então você ganha um
pouco de tempo.
Haven conseguiu manter a voz firme enquanto perguntava: — Alguma chance de um
de vocês conseguir fazer portais?
— Temos algumas conjuradoras de fios em nossa corte – se elas ainda estiverem vivas –
mas temo que nossos talentos estejam em outro lugar.
Frustração brotou dentro do peito de Haven. No momento em que deixassem os
escombros do palácio, Archeron estaria esperando.
— Agora— a rainha ronronou— me diga, Haven Ashwood, o que há nas alcovas abaixo
que lhe interessam? — A surpresa de Haven deve ter sido óbvia, porque a rainha
acrescentou: — Você parecia chocada quando testemunhou a destruição da galeria privada
abaixo de nós e imagino que havia algo que você queria. Algo que você planejava pedir se
ganhasse o torneio.
Não havia razão para mentir – não mais. O presente que sua mãe deixou foi destruído.
Haven assentiu, enterrando sua decepção com as outras emoções cruas da última
hora. — Era uma pintura.
A rainha arqueou uma sobrancelha loira, rugas se formando na mancha de sangue meio
seca em sua testa alta. — Tudo isso por uma pintura?
— Teria sido especial de alguma forma. Talvez estranho.
A rainha estremeceu quando uma soldada deslizou uma capa de caxemira vermelha
sobre seu corpo. — Eu tenho um... ponto fraco por arte, como a maioria dos governantes
têm. Há – haviam inúmeras telas armazenadas abaixo. Algumas na galeria privada e outras
escondidas nas alcovas. Poderia ter sido qualquer uma dessas. Talvez eu a reconhecesse pelo
artista?
Haven afastou uma mecha solta de cabelo de seu rosto e suspirou. — Minha mãe.
Os lábios secos da rainha se abriram ligeiramente quando ela entendeu. — Sua...
— Freya. Antes de sua morte, ela criou três pinturas. Achamos que uma foi destruída,
mas ainda há duas por aí.
Se foram. O coração de Haven se contraiu um pouco com o lembrete. Todas as suas
esperanças de se tornar imortal, de encontrar algo tangível de sua mãe, algo criado apenas
para ela...
A perda era demais para se pensar.
Haven empurrou sua dor para ver a rainha olhando para ela calmamente. — Você
realmente acredita nisso, não é?
— O quê?
— Que você é filha dela.
— Eu não apenas acredito; eu sei. — Ela pode não se sentir merecedora da honra, mas
pela primeira vez desde que a profecia foi revelada a ela, ela sabia que era verdade.
— Só uma filha choraria por uma coisa dessas. — A rainha terminou de amarrar o manto
nos ombros, o olhar distante. — Houve uma peça anos atrás que era digna de nota, mas
havia apenas uma e eu a vendi logo depois.
Esperança ardente varreu Haven. — Vendeu?
Os olhos âmbar da rainha, tão parecidos com os de Rook, voltaram a se concentrar em
Haven. — Era uma... Coisa estranha. Simples, mas fascinante de uma forma que não
consigo descrever. Na noite seguinte à compra, sonhei que estava dentro da cena. Havia uma
- uma víbora preta, na parte de trás do sofá em que a mulher e seu bebê estavam sentados,
pronta para atacar. Um veneno terrível pingava de suas presas curvas. Tentei avisá-las, mas
elas não podiam me ouvir e, então, acordei com a estranha sensação de que deveria vender a
pintura. — Ela balançou a cabeça como se tentasse desalojar o sonho de sua mente. — Eu o
fiz no dia seguinte para um Senhor Demônio de passagem.
A respiração ficou presa no peito de Haven. Isso significava que a pintura estava
segura. — Você disse mãe e bebê. Essa é a ilustração na tela?
— Sim. — O olhar desfocado desapareceu quando a rainha recuperou a compostura. —
Era tão simples. Até mesmo bizarra. Eu poderia jurar que a primeira vez que a vi, a mãe estava
amamentando a criança. E, no entanto, quando olhei para a pintura antes de mudar de
mãos, o bebê estava enfaixado e dormindo.
— Eu já vi isso em algum lugar antes — Haven sussurrou.
A imagem cintilou em sua paisagem mental, construindo sobre si mesma em camadas
nebulosas enquanto sua mente a construía lentamente. A bela mulher cujo rosto estava
quase todo obscurecido enquanto olhava com adoração para uma criança.
Um bebê.
Ela.
— Eu também. — A respiração de Stolas acariciou o pescoço de Haven. Ela quase
tinha esquecido que ele estava atrás dela. — Por acaso, esse Senhor Demônio era chamado
de Príncipe das Cinzas?
A rainha conseguiu esconder sua surpresa atrás de um sorriso açucarado. — Sim,
embora ele tenha se apresentado como Raziel Nightfell. Eu só soube do apelido peculiar
mais tarde. — Seu sorriso se aprofundou. — Ele causou uma boa impressão em muitos da
minha corte. Se ele não tivesse insistido em partir tão cedo, temo que teria causado uma
grave ruptura entre minhas soldadas.
Era impossível perder a forma como a guarda pessoal da rainha – as Valquírias em
particular – sorriram.
A rainha lançou um olhar de aço para Stolas. — Como você pode saber uma coisa
dessas?
Stolas encontrou os olhos de Haven quando ele disse: — Porque ele deu aquela pintura
à minha corte junto com vários itens ilícitos pouco antes da traição de Morgryth.
— Que fortuito — a rainha murmurou. — A pintura, não a traição.
Stolas desviou sua atenção para a rainha, encarando-a por muito tempo.
— De fato.
Um calafrio varreu Haven, arrepiando seus braços nus.
— Mas a pintura não está no castelo, Stolas. Está dentro... daquela coisa.
Ela não diria espelho, porque o que quer que estivesse trancado, fortificado atrás daquela
gaiola de ferro enfeitiçada, não era um espelho. Era outra coisa.
Algo errado. Algo que não era deste mundo.
Um músculo flexionou na mandíbula afiada de Stolas. — Estava em minha posse até
alguns dias atrás, embora eu não soubesse o que era na época. — Ele soltou um suspiro
irregular. — O que você viu dentro daquela moldura de jade, Haven - aquela era a casa da
Guardiã.
Surai respirou fundo. — A augúria de sangue das Terras Demoníacas? É ela quem está
dentro do espelho que você quase morreu tentando destruir? Aquele cuja maldição teria
acabado com sua vida?
Os cílios de Stolas mergulharam quando ele assentiu.
— Por que ela é chamada de Guardiã? — Haven perguntou, sabendo muito bem que a
resposta seria horrível.
E era.
— Porque quando ela lhe conta o seu futuro— sussurrou Surai, como se a bruxa pudesse
ouvi-los discutindo sobre ela — ela recebe algo em troca. Às vezes, é um objeto
aparentemente aleatório, como um colar favorito ou o botão da sua camisa. Outras vezes, o
preço é seu filho favorito ou um pedaço de sua alma.
Haven franziu a testa. — Podemos entrar pelo espelho?
Stolas balançou a cabeça. — O espelho é um portal unilateral que viaja para o nosso
mundo. Apenas a Guardiã pode passar do nosso lado de volta para o dela.
— E onde exatamente é isso? — Haven pressionou.
— O Reino Demoníaco.
E assim, as esperanças de Haven se transformaram em cinzas em sua garganta.
A rainha fez um barulho de desaprovação. — Apenas um tolo se intrometeria com
aquelas criaturas abandonadas. Dizem que ela é amante de um poderoso Senhor
Demônio. Que ela vive desde os tempos antigos e é parte demônio, parte outra coisa. Diga-
me que você só consultou a bruxa demoníaca naquela ocasião, Príncipe Darkshade.
— Duas vezes. — A voz de Stolas estava crua, consumida pela angústia reprimida.
Um estremecimento percorreu Haven. — Nós sabemos que você deu a pintura à
Guardiã. Qual foi o preço da primeira vez?
A agonia escureceu seus olhos para peltre e ele respondeu suavemente: — Uma quantia
que eu não poderia pagar. Então, ela pegou algo infinitamente mais precioso em seu lugar.
A maneira como todos os músculos de seu corpo pareciam tensos e tendiam a avisar que
ele não queria discutir mais o evento. Não que eles tivessem tempo para mergulhar em seu
passado. Cada segundo que eles desperdiçavam sem um plano dava a Archeron tempo para
acumular mais de suas forças ao redor deles.
— Diga-me— disse a rainha. — além do componente sentimental, por que você procura
essa obra de arte?
Haven procurou os olhos da rainha. Ela não tinha certeza do que estava procurando,
mas tudo o que viu convenceu Haven que ela podia confiar a rainha com a verdade. —
Imortalidade. É isso que eu procuro.
— Ah. Uma Nascida da Deusa cuja carne enruga e se decompõe em um piscar de olhos
causa um pouco de problema.
Haven estendeu a mão e apertou a mão da rainha. A carne fria estava lascada com sangue
seco. — Se eu conseguir, posso contar com sua aliança?
As guardas da rainha correram para parar Haven, mas a rainha as parou com um
olhar. Ela olhou para os dedos de Haven sobre os dela. Quando seu olhar mudou para
Haven, seus olhos estavam brilhantes de emoção. — Diga-me, como exatamente minha filha
morreu?
— Ela morreu me salvando. Eu estava cercada por Gremwyrs e ela lutou contra eles para
que eu pudesse escapar. — Ela inalou, respirando através da dor inesperada que inchava sua
garganta. — Por causa de sua bravura altruísta, estou aqui hoje.
Surai soltou um suspiro irregular.
A rainha assentiu, suas feições endurecendo antes que ela cruzasse a borda do abismo
fumegante para olhar para a galeria em ruínas abaixo. — Você deve saber, há um portal de
mão única na alcova mais profunda. Ele não foi usado desde a última visita do Senhor
Demônio, mas se ainda for viável, ele o levará direto para Cimmeria, a capital comercial das
Terras Demoníacas e fortaleza do Senhor Demônio, Malik Damir. Há rumores de que é
onde Malik mantém sua amante augúria de sangue.
A Guardiã. A excitação de Haven diminuiu quando ela olhou para Stolas.
Apesar de seus esforços para esconder sua condição, ele estava desaparecendo diante de
seus olhos. Sua respiração era intensa, suas asas caídas como se sustentá-las fosse muito
esforço e suas íris eram da cor de osso branqueado.
Algo lhe dizia que isso não era bom.
— Eu preciso encontrar... sustento. — Realmente não havia uma ótima maneira de dizer
isso.
— Lá. — Ele ergueu o olhar para ela, o ato exigindo muito mais esforço do que
deveria. — Eu posso... encontrar o que preciso lá.
Surai zombou. — Você não pode estar falando sério. O Reino Demoníaco? Você sabe
o que eles vão fazer com Haven?
— Sim — murmurou Stolas — e tenho um plano para isso.
— Você? — Surai contra-atacou. — Porque em sua condição, duvido que você
sobreviva ao portal.
Haven esticou o pescoço para ter uma melhor visão do céu. A fumaça da cidade
maltratada formava um véu que obscurecia o sol poente, lançando dedos de laranja-escuro
e amarelo lamacento sobre tudo. Em algum lugar fora de vista, Archeron os aguardava com
seus reforços. Ele teria tido tempo para recrutar por centenas, senão milhares de
homens. Haven estava confiante em seus poderes, mas não tão confiante.
Eles não tinham escolha a não ser passar pelo Reino Demoníaco.
Haven odiava apontar o óbvio, mas... — Como vamos voltar a este reino?—
— É brilhante, na verdade — Stolas murmurou, a mão pressionada nas bandagens em
seu peito – bandagens encharcadas com sangue escuro. — O espelho nos levará direto para
o Castelo Perfurador de Estrelas.
— Assumindo que a Guardiã não nos mate — Ember emendou. Ela tinha um braço em
volta de uma Valquíria enquanto ajudava a soldada a se levantar. — Nossa magia de luz não
funciona no Reino Demoníaco. Não como aqui.
Haven soltou um suspiro desapontado. Isso foi um golpe, um que ela não estava
esperando. Mesmo assim. — Eu sobrevivi por muito tempo contra probabilidades quase
impossíveis sem magia. Nós ficaremos bem. Mas você e Surai não vêm.
Surai e Ember abriram a boca para discutir...
— Eu preciso de vocês duas em Shadoria para preparar as tropas para viajar para a
Eritreyia. Bell já está reunindo o último de nossos aliados.
À medida que a gravidade de sua tarefa se aprofundava, elas abaixaram a cabeça em
solene obediência. Na periferia de Haven, ela pegou a rainha observando a interação com
curiosidade descarada.
— E você, Soror? — Surai perguntou. — Quando nos veremos de novo?
Haven queria envolver seus braços ao redor de sua amiga, apenas no caso de ser a última
vez que elas se encontrassem. Mas pensar assim, agir assim parecia um mau presságio. Então,
ela deu um sorriso radiante para Surai e esperou que sua amiga soubesse o quanto ela a
apreciava.
O quanto ela a amava.
— Em breve. — Haven virou-se para a rainha. — Acho que você tem alguém treinado
na arte de criar portais?
— Claro, mas criar um portal para Shadoria levará pelo menos meio dia.
— Então, eu humildemente peço que você ofereça abrigo aos meus amigos até então.
Haven sabia o que ela estava pedindo. Uma vez que Archeron soubesse de sua fuga,
ficaria furioso. O suficiente para descontar isso em Ember e Surai? Ela não achava que ele
arriscaria a ira das Morgani para machucá-los, mas ainda era pedir muito da rainha.
A rainha arqueou uma sobrancelha. — Pedindo favores? Eu não sabia que nossa
amizade havia progredido para esse nível ainda.
— Então, considere um reembolso. — As palavras que ela deixou de fora — por salvar
sua vida, Rainha — pairaram no ar entre eles.
— Pensei que já tivesse lhe pagado de volta quando te avisei tão útil sobre o portal abaixo.
— Então, olhe para isso como um adiantamento em nosso futuro juntas.
A rainha nunca abaixou sua máscara dura enquanto dava um aceno sutil, mas os cantos
de seus lábios se contraíram para cima.
Longas sombras caíram sobre eles quando o sol terminou sua descida e Haven
estremeceu. Logo Archeron ficaria impaciente. Ontem ela teria dito que ele não ousaria
atacar na presença da Rainha Morgani. Mas isso foi antes que ela visse o desespero selvagem
de Archeron, sua... sua obsessão.
Essa era a única palavra que chegava perto de descrever o que ela viu em seus olhos.
Depois disso, só a Deusa sabia o que ele acabaria fazendo se ela permanecesse aqui.
Ela encarou Stolas para encontrá-lo calmamente olhando para ela, esperando com uma
paciência rara. — Preparado?
Um sorriso confuso iluminou seu rosto. — Eu pediria um par de roupas limpas e talvez
uma boa capa primeiro, mas... — Ele deu de ombros, seu sorriso ficando diabólico. — Se
você me prefere assim, bem, você não seria a primeira.
Surai abafou o bufo atrás da mão. Antes que alguém pudesse notar como as bochechas
de Haven estavam inflamadas, ela rapidamente conjurou calças de couro escuras e uma
túnica cinza tempestade que ela lembrava de gostar nele. Ela foi conjurar sua roupa habitual
– camisa folgada e calças gastas – quando ele balançou a cabeça.
— Vista isso. — Ele indicou seu vestido com o queixo, seu olhar demorado queimando
através do tecido fino direto para sua barriga. — Vai com a história falsa que usaremos para
qualquer pessoa muito curiosa sobre quem somos.
— E isso é?
O brilho provocador em seus olhos não era um bom presságio. — Vou explicar depois
que cruzarmos. Você vai precisar de um manto forrado de pele. As noites ficam bem frescas
lá.
Frescas para Stolas significava congelantes, então ela conjurou a capa mais felpuda e
pesada que ela conseguia se lembrar, uma linda peça de cashmere verde-esmeralda que Bell
lhe deu de presente anos atrás e que provavelmente ainda estava em seu pequeno armário
em Penryth.
Isso deixou apenas um detalhe para finalizar.
— Devo usar meus poderes para descer? — Ela olhou para a galeria fumegante um andar
abaixo. A queda era alta demais para pular com segurança e Stolas não estava em condições
de pilotá-los.
Um grunhido irritado retumbou em seu peito. — Minhas asas já sofreram muito pior,
eu prometo a você.
Ele estendeu a mão. Ele estava tentando manter sua dignidade? Não importava. Ela não
forçaria a questão e ela confiava nele para não colocar em risco sua segurança por seu ego.
Ela pretendia caminhar alguns metros até ele, mas quase cambaleou em seus braços, seu
corpo cansado e dolorido desejando relaxar em sua força. O calor encheu sua barriga quando
os braços dele deslizaram ao redor de sua cintura, firmando-a.
Ela o sentiu encolher-se atrás dela quando sua cabeça roçou a ferida em seu peito.
— Stolas...
— Estou bem. — Ele ficou tenso enquanto suas asas se espalhavam lentamente por todo
o seu comprimento, a dor irradiando de seu corpo. — Você esquece, mas eu tive milhares
de anos para aprender a abraçar a agonia. Para prosperar com isso. Essa dor não é nada
comparada ao que sofri antes.
Uma profunda tristeza a varreu com essa declaração.
Pouco antes de Stolas mergulhar nas sombras do cofre incendiado, a rainha ergueu a
mão.
Seus olhos âmbar encontraram os de Haven. — Você perguntou se eu faria uma aliança
com você. Torne-se uma imortal e este chifre que uso no pescoço é seu, junto com todo o
meu exército. Ou o que resta dele, de qualquer maneira.
— Por quê?
— Porque uma das minhas filhas deu a vida pela sua e a outra, que não aceita nem uma
ordem minha, sua mãe e rainha, apenas te obedeceu sem hesitar. Apenas a filha de Freya
poderia comandar tal lealdade.
Haven assistiu, sem palavras, enquanto a rainha caminhava até Ember e deslizava o
chifre de prata salpicado de sangue sobre o pescoço de sua filha. A rainha olhou por cima do
ombro para Haven. — Para quando você se tornar imortal. Eu sei que, enquanto isso, minha
filha manterá esse chifre sagrado, concedido à Morgani pela própria Freya, seguro.
Os olhos de Ember brilharam com orgulho quando ela assentiu. — Com a minha vida.
— E — acrescentou a rainha. — minha filha sabe que se ela quiser voltar para casa, ela é
bem-vinda.
Haven afundou contra Stolas. Seus lobos uivaram, pulando atrás de Haven e Stolas
enquanto eles mergulhavam na escuridão enfumaçada abaixo. Sabendo o que estava em jogo
agora, ela estava ainda mais determinada a se tornar imortal.
Custe o que custasse.
A rainha estava errada. O portal que levava ao Reino Demoníaco não os levava direto
para a cidade de Cimmeria. Em vez disso, eles deslizaram daquela escuridão turva para um
trecho frio de deserto vazio a pelo menos uma hora de caminhada da cidade. Talvez a magia
do portal estivesse falhando, ou a rainha estivesse confusa.
De qualquer forma, Haven não estava preparada para atravessar um deserto em pouco
mais que uma tira de tecido iridescente fino demais, um manto pesado que arrastava a areia
e sandálias.
Depois de alguns minutos de silêncio ofegante e caminhando pelas dunas intermináveis,
ficou claro que as sandálias eram mais obstáculos do que ajuda, então ela as jogou fora. A
capa era um incômodo, mas a temperatura estava caindo rapidamente, o que significava que
logo seria uma necessidade.
Normalmente eles teriam voado o resto do caminho, deslizando pelo céu escuro em
direção ao oásis ascendente que coroa o horizonte. Normalmente Haven não teria pensado
duas vezes antes de escorregar para o abraço de Stolas e voar.
Mas assim que eles entraram nos Reinos Demoníacos, Haven se virou para Stolas para
reclamar sobre a localização – e congelou.
Seus olhos estavam vidrados, da cor de osso velho. Sua respiração era superficial e
difícil. E sua pele tinha uma palidez cerosa que ela só tinha visto em cadáveres.
Com o maxilar cerrado e a testa brilhando de suor, Stolas estendeu a mão para ela. Ela
escondeu seu alarme com uma risada suave, dando alguma desculpa sobre a necessidade de
andar sob as estrelas para clarear a cabeça.
Ele nem mesmo discutiu, o que era tão diferente dele que o alarme dela se transformou
em terror total.
Não havia uma perda contínua de sangue. Sua nova camisa ainda estava impecável e os
poucos cortes que ela podia ver eram linhas rosa desbotadas.
Ele precisava se alimentar. Ela não tinha ideia de quanto tempo ele poderia durar antes
de sucumbir. Mas isso, o que quer que fosse, parecia mais do que apenas uma questão de
sustento.
E por que ele não cedeu à sua natureza mais básica e tentou se
alimentar dela ainda? Especialmente depois de seu aviso cruel na noite anterior?
Ela olhou de soslaio para ele e seu coração disparou em um ritmo martelando quando
ela viu seus olhos semicerrados.
— Posso te fazer uma pergunta? — ela desabafou, esperando que a conversa o
mantivesse acordado.
Ela tomou seu grunhido como um sim.
Por onde começar mesmo? — Com que frequência você precisa se alimentar?
— A cada... poucos dias.
Tão pouco? — Então, em Shadoria?
Ele soltou um suspiro abatido. — Há alguns conjuradores de luz mais do que dispostos
a ajudar.
— Por causa dos sentimentos de euforia que você dá a eles em troca?
Ele deu um aceno quase imperceptível, olhos nublados e desfocados enquanto olhavam
para frente. — A magia de luz deles, como a sua, vem da capacidade de acessar a energia do
Nihl, então quando eu dreno a magia de um conjurador de luz, na verdade não estou tirando
nada deles.
— Porque você está usando a porta deles para tomar diretamente do Nihl.
Outro leve movimento de sua cabeça.
Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes. — Como é a sensação de drenar o sangue? É
semelhante a drenar a magia?
A linha de seus ombros enrijeceu, suas asas se contraindo. — Drenar o sangue é um
costume arcaico. Mais bagunçado. Mais primitivo. Não tão puro quanto drenar a magia.
— Então, por que alguns, como sua irmã, preferem isso?
— Porque satisfaz um desejo primordial que espreita profundamente dentro de todos
os Serafins. Não é o sangue em si que nos dá prazer, é... é tudo envolvido nisso.
Um vento gelado soprou para trás sua capa e sua respiração ficou presa quando ela viu
suas marcas de runas desbotadas. Eles passaram de redemoinhos luminescentes de luz para
uma leve cintilação contra sua pele.
Pior, o lugar onde ela sentia sua magia residir era agora um buraco estéril. Sempre que
ela tentava alcançá-lo, uma sensação fria e desagradável, como nervos se apertando no fundo,
a fazia parar.
Um arrepio a percorreu. Enrolando o manto mais apertado em volta do peito, ela
inspecionou a paisagem. Duas enormes luas douradas iluminavam o ar noturno com um
brilho antes do amanhecer, dando a falsa esperança de que o sol nasceria a qualquer
momento. Ao redor deles se estendia um mar de areia. Erguendo-se como uma serpente
marinha contra ondas agitadas estava a cidade de Cimmeria, uma metrópole de edifícios
coloridos, tendas e um palácio escuro. Gravado contra a primeira lua inchada, o gigante
abobadado parecia saído de um conto de fadas retorcido.
Acima de tudo, formas aladas se agitavam e mergulhavam. Demônios? Algo mais? Será
que realmente importava se eles nunca conseguissem passar por esse deserto sem fim de areia
e vento?
A respiração de Stolas estava irregular agora e ela pressionou a mão na boca. Ele parecia
a poucos passos de cair de cara no chão. Se isso acontecesse, ela não seria capaz de movê-lo.
Não por conta própria.
E, mesmo que ela de alguma forma encontrasse uma maneira de arrastá-lo, não havia
como ela chegar ao palácio.
— Pare de olhar para mim assim — ele murmurou.
— Assim como?
— Como se eu estivesse... morrendo.
— Você está? — O pânico afiou sua voz.
Ele arqueou uma sobrancelha, o ato exigindo mais esforço do que deveria, e lançou um
olhar de soslaio em sua direção. — Sua fé em mim é... inabalável.
Seu sarcasmo não foi suficiente para confortá-la. Nem um pouco. Conhecendo Stolas,
seu último suspiro seria reservado para algum comentário irônico.
O desespero tomou conta e ela deslizou o braço ao redor da cintura de Stolas. Seu corpo
estremeceu com o toque. Pensando que ele estava prestes a fazer outro comentário sarcástico
enquanto recusava sua ajuda, ela se preparou para discutir...
Mas ele não pareceu notar.
Ruim - isso era ruim. Stolas nunca a deixaria ajudá-lo a menos que... a menos que
estivesse com sérios problemas. Talvez não morrendo.
Um pouco da tensão se dissipou quando eles atingiram uma elevação suave e ela avistou
um longo trecho de tendas multicoloridas. A cidade improvisada convergia para um rio
negro que levava direto para a cidade. O rio era largo o suficiente para acomodar barcaças e
embarcações menores e elas cortavam as luas gêmeas dançando na superfície da água.
Stolas tocou seu braço e acenou para uma coleção de tendas escarlates ao lado. — Lá. —
Uma pausa. — Haven, você entende o que eu tenho que fazer?
Seu coração acelerou em um ritmo acelerado quando ela reconheceu a fraqueza em sua
voz. — Você precisa de um conjurador de luz para se alimentar.
Sua testa franziu. — Sim, mas aqui há apenas uma maneira de drenar um conjurador de
luz.
Apenas uma maneira? Ah... ah. — Você precisa drenar seu sangue.
Não era uma pergunta, mas ele assentiu de qualquer maneira, suas feições abatidas se
acalmando enquanto ele estudava a reação dela.
— Você não precisa da minha permissão.
— Você diz isso, mas o ato em si é... bárbaro. Minha natureza mais básica será
liberada. Vou tentar mantê-la contida, mas... seu corpo reagirá instintivamente de maneiras
que podem alarmá-la.
Ela segurou seu olhar. — Você não precisa esconder o que você é perto de mim, Stolas.
— Lembre-se disso mais tarde— ele murmurou enquanto, juntos, eles cambaleavam
pela duna, grunhindo e ofegando. O suor escorria por sua espinha e colava mechas de cabelo
em sua testa. Um som suave e apressado atraiu seu foco para as asas de Stolas enquanto elas
se arrastavam pela areia, esculpindo linhas gêmeas em seu rastro. Entre as linhas, uma fina
fita escura de sangue se desenrolava.
Sua asa ferida não estava cicatrizando. Uma sensação de urgência a estimulou a ir mais
rápido. Stolas era meticuloso em manter suas penas arrumadas e nunca deixaria suas asas
tocarem o chão.
Quando chegaram às tendas escarlates, a maior parte de seu peso impressionante estava
sobre o ombro dela. Ela balançou a cabeça de um lado para o outro, o pânico corroendo sua
visão. As tendas estavam dispostas em círculo ao redor de um pátio. Divãs e travesseiros
estavam espalhados em vários lugares e as pessoas descansavam em todos os espaços
disponíveis. Fogueiras rugiam de poços de cascalho.
Um cheiro doce e metálico assombrou o ar e algo sobre isso a fez ficar toda gelada.
— O que é este lugar? — ela sussurrou.
Stolas lentamente conseguiu levantar a cabeça. Seus olhos eram fendas desbotadas. —
Demonai.
Aquela palavra não significava nada para ela. Demonai? Isso era diferente dos Senhores
Demônios? Movendo-se em seus pés, ela olhou ao redor. Os clientes estavam começando a
olhar, mas ninguém se adiantou para oferecer ajuda.
A ansiedade se transformou em raiva quando ela se virou, tropeçando, procurando
alguém para oferecer ajuda.
Uma mulher usando um vestido prateado transparente desenrolou-se de uma grande
almofada magenta e se aproximou. O cabelo preto caía até a cintura, um par de chifres
deformados torcendo ao redor de sua cabeça. Seus olhos eram puramente felinos, a pupila
cortada cercada por um amarelo surpreendente.
— Deixe-me adivinhar — Haven sussurrou para Stolas. — Esta é uma demonai.
Os olhos perturbadores do demonai se demoraram em Stolas. — Drenat immortium da
moi taiga.
Haven franziu a testa enquanto tentava colocar a linguagem melódica. Mesmo a forma
como as palavras escorregadias escorriam de seus lábios, fundidas como um canto
sussurrado, parecia estranha. — Eu não... eu não entendo. — Haven grunhiu quando ela
deslocou o peso de Stolas, se preparando contra a pressão. — Ele precisa se
alimentar. Alimentar. Agora.
— Mortalisium ou Solisati? — Os olhos da fêmea brilharam com uma astúcia recém-
descoberta quando a fêmea percebeu que Haven não falava sua língua. — Mortal, Solis ou
ambos?
O conhecimento da demonai sobre Solissiano era mesquinho, na melhor das hipóteses,
seu forte sotaque confundindo as palavras. Mas Haven entendeu seu significado.
Quanto a como responder à demonai, Haven não fazia a menor ideia. A verdade era que
ela não sabia como nada disso funcionava. Ela não sabia o que Stolas precisava ou se ele tinha
uma preferência.
Ela odiava o quão impotente isso a fazia se sentir, mas ela escondeu suas emoções atrás
de um sorriso casual. — Quem tiver a magia de luz mais forte.
A fêmea levantou uma sobrancelha escura enquanto avaliava Haven. Então, ela disse em
seu sotaque grosso e agitado: — Essa seria você, escrava de sangue.
Escrava de sangue? Então, essa era a capa deles. Haven teria uma discussão com Stolas
sobre isso mais tarde... depois que ele sobrevivesse.
— Desculpe, estou sem magia para dar.
A fêmea deu de ombros e acenou para uma tenda próxima. Então, ela sorriu
sombriamente para Haven, revelando uma boca cheia de dentes de prata afiados e dois
incisivos maiores. — Eu posso me juntar a você...
— Rasati corath! — Haven se encolheu com a voz grave de Stolas.
Ela não precisava entender a língua demoníaca para traduzir a dispensa. Pelo menos ela
sabia que ele ainda estava consciente.
Até certo ponto. Um grau de desvanecimento que não duraria muito mais tempo.
A fêmea deu de ombros novamente antes de caminhar até um casal em um divã.
Haven lutou sob o peso de Stolas enquanto ela o guiava em direção à tenda. — Então,
não temos que pagar?
Ele fez um barulho que parecia um grunhido. — Não, elas serão... felizes por me ter...
drenando-as.
Ela realmente não podia dizer se ele estava sendo arrogante ou dizendo a verdade.
— Diga-me que elas não são escravas.
— As únicas e verdadeiras escravas conjuradoras de luz estão dentro das cidades
demoníacas. O resto... — Ele arrastou em uma respiração. — Ex-escravas que se tornaram
viciadas ou... ou Solis que foram liberadas depois da guerra, mas que ficaram presas aqui.
Muitos culparam os Senhores Demônios e seu comércio demoníaco pela guerra e pela
queda do Sombreamento. Portais que conectaram seus dois mundos por incontáveis
milênios foram destruídos.
Ou assim tinham sido informados.
Se a Rainha Morgani ainda tinha um portal ativo para o Reino dos Demônios, outros
certamente também tinham.
Em algum lugar próximo, um flautista começou uma melodia assombrosa enquanto se
aproximavam da grande tenda. O mesmo aroma metálico enjoativo veio da aba entreaberta
que levava para dentro. Ao cruzarem a soleira, o cheiro tornou-se quase avassalador. A
fumaça do incenso cobria a tenda, iluminada pelos restos de um fogo moribundo dentro de
uma chaminé de latão e arandelas penduradas que abrigavam uma chama verde-sálvia.
Duas mulheres reclinadas em um grande sofá. Assim como Haven, o leve brilho de runas
de carne aparecia em seus braços e pernas, apenas visível quando a luz atingia o ângulo certo.
Solis.
— Vá embora— Stolas rosnou.
Ela pensou que ele estava se dirigindo à segunda mulher Solis até que ele se virou para
ela, seu rosto quase irreconhecível. Suas feições endureceram, sombras aprisionadas nas
severas cavidades sob suas bochechas. Suas pupilas estavam tão dilatadas que restava apenas
uma fina faixa branca prateada. As pontas de suas presas brilharam suavemente, seu
tamanho inchando seu lábio superior. — Isso vai ser desagradável, Haven.
Ela balançou a cabeça. — Eu posso lidar com isso.
Como Fogo do Submundo, ela o deixaria sozinho e indefeso nesse estado.
Ele se moveu tão rápido que se tornou um borrão.
Quando ele saiu das sombras atrás da primeira mulher Solis, Haven percebeu seu erro.
Não havia nada de indefeso nele.
Suas asas instintivamente se esticaram para formar uma parede ao redor da cama, se para
privacidade ou para manter as mulheres encurraladas, ela não sabia. Não que elas
precisassem de muito encurralamento. Seus olhos eram fendas de necessidade enquanto se
esfregavam contra ele.
Os braços de Stolas seguraram a mulher apertada contra ele, um braço em volta de seu
peito, o outro ao redor de sua cintura. Ele tinha segurado Haven da mesma forma centenas
de vezes antes, mas não havia nada afetuoso neste abraço. Era mais parecido com a forma
como um gato segura um pássaro agitado com a pata antes de enterrar os dentes no peito do
pássaro.
Mas a única angústia que a mulher em seus braços demonstrou foi a impaciência
enquanto ela movia seu longo cabelo loiro sujo para descobrir seu pescoço...
As presas de Stolas afundaram profundamente na carne abaixo de sua mandíbula. Sua
boca se abriu, mas em vez de um grito, um gemido de prazer escapou da garganta da mulher
Solis. Ela se contorceu sedutoramente contra ele - ou tentou, mas Stolas rosnou, os braços
apertando até que ela relaxou e se entregou a um tipo diferente de prazer.
Haven sabia que Stolas estava tentando tornar o evento o mais civilizado possível. Cada
vez que a mulher em seus braços se movia, mesmo que um pouquinho, ele rosnava baixo em
advertência. Os lábios da mulher estavam separados, os olhos atordoados e as pupilas
inchadas.
E suas marcas de runas estavam queimando cada vez mais brilhantes em conjunto com
seu êxtase crescente.
Reunindo sua coragem, Haven deixou seu olhar cair mais baixo para onde os lábios de
Stolas pressionaram contra a ferida. Ela pensou que seria mais bagunçado. Mais alto. Mas
ele bebia com uma eficiência silenciosa que era, sem dúvida, para o benefício de Haven.
A outra mulher tentou tocá-lo...
Ele rosnou, mandando-a correr de volta para esperar sua vez e Haven se viu feliz.
Alegre.
Seu estômago se apertou estranhamente quando o calor a percorreu. Calor e um
sussurro de raiva - de ciúme. Não que ele estivesse se alimentando das mulheres Solis, embora
uma parte dela estivesse incomodada que pudessem oferecer a ele o sangue vital que ela lhe
recusou.
Não, ela se lembrou do breve gosto de euforia que ele deu a ela. Como era absolutamente
maravilhoso. Como sol líquido.
Ela se lembrou e desejou sentir aquele êxtase novamente. Para experimentar isso dentro
de seus braços. O que era incrivelmente confuso, porque ela sentia, ao mesmo tempo,
repulsa pelo pensamento.
Um grito suave de prazer atraiu o foco de Haven para a mulher nos braços de Stolas
novamente. A luz branca pura rodou dentro de seus olhos de pálpebras pesadas enquanto a
euforia de Stolas a enchia.
O suor cortou a pele de Haven. Sufocante – a tenda estava subitamente sufocante, como
se um fogo tivesse ganhado vida em algum lugar próximo. Ela inalou em goles do ar metálico
doce demais quando a tenda começou a girar lentamente.
Enxugando as palmas das mãos manchadas de suor em seu vestido, ela olhou do rosto
da mulher para Stolas – para ver seu olhar fixo nela enquanto bebia.
Ele estava em silêncio e a única razão pela qual ela sabia que ele estava drenando
ativamente qualquer sangue era pelo jeito que sua garganta balançava ritmicamente.
Cada mergulho era seguido por uma onda de luz dourada escura dentro de seus olhos.
Um choque de fogo atravessou sua cintura, enchendo-a do jeito que a luz dourada
inchava dentro de suas íris. Mesmo com seus lábios pressionados contra a garganta da
mulher Solis, Haven pegou a forma como os cantos de sua boca se ergueram em um sorriso
perverso e convidativo.
Seu corpo respondeu na mesma moeda. Espirais de calor apertando em sua barriga. Seu
pulso batia contra seu pescoço, latejando quase dolorosamente quando sua carne começou
a doer.
Se ela não fosse embora, faria algo lamentável. Correndo em direção à porta, ela
cambaleou sob a aba. Os ventos frios a envolveram em uma onda gelada e ela quase tropeçou
antes de encontrar apoio contra um poste de madeira resistente. Ela se inclinou para trás
enquanto desejava que seu coração desacelerasse e sua respiração se acalmasse.
Emoções cruas atadas atrás de seu peito, mas não importa o quanto ela tentasse
desembaraçar o que ela sentia, a única coisa que ela conseguia identificar era frustração.
Ela nem sabia por que ela fugiu. Foi a selvageria do ato em si? Ou o fato de que não a
enojou como deveria?
Que ela olhou diretamente em seus olhos enquanto ele se alimentava de outro ser e ela
sentiu...
Não. Jogando a cabeça para trás, ela exalou, observando seu hálito leitoso derramar-se
no pátio.
Você está apaixonada por um monstro.
Ela baixou o queixo para olhar para os pés descalços e, quando ela olhou para cima, a
mulher demonai de antes estava olhando para ela através do fogo, seus olhos primordiais
brilhando acima de um sorriso afiado.
O brilho de vários pares de olhos observando Haven ao redor do pátio logo se tornou
demais para contar e sua mão foi para o punho da espada em sua cintura, os dedos se
curvando e desenrolando contra o aço frio.
O Reino Demoníaco era uma terra de mistérios insondáveis, mas uma coisa estava
ficando alarmantemente clara.
Aqui havia apenas duas categorias em que se enquadrava: predador ou presa.
E sua magia de luz a lançou diretamente na última.
Apesar da temperatura fria, os olhos gananciosos ao redor dela e o conhecimento do
que estava acontecendo dentro da tenda em suas costas, Haven lutou para manter os olhos
abertos. Ela não havia dormido mais do que algumas horas por dias, possivelmente por
semanas. Ela ficaria sentada até Stolas sair.
A areia era macia contra suas pernas. Com os dedos semicongelados, ela colocou o
manto forrado de pele sobre o corpo, enfiou os dedos dos pés gelados dentro e fechou os
olhos.
Apenas por um momento.
Ela imediatamente caiu em um meio-sono, interrompida por pesadelos onde ela
acordava e se encontrava cercada por demônios com olhos dementes, presas e caudas.
Poderia ter sido minutos ou horas depois, quando ela abriu os olhos para Stolas
inclinado sobre ela. Ocorreu-lhe que ele poderia ter sido um dos demonai com seus chifres
e asas.
Ao mesmo tempo, presa nas garras obscuras dos sonhos e da vigília, ocorreu-lhe que não
se importava.
— Você está melhor agora? — ela murmurou.
— Sim.
— Estou feliz que você não tenha um rabo. Chifres eu posso lidar, mas... Acho que não
conseguiria lidar com isso.
A diversão brincou em seus lábios enquanto ele olhava para ela em silêncio por alguns
instantes. Suas presas ainda tinham que retrair, o luar brilhando nas pontas curvas. Ele
deslizou um braço sob seus joelhos e outro ao redor de sua cintura. O ar frio atacou suas
costas enquanto ele a levantava, descansando-a contra seu peito. Suas pernas doíam, seus pés
latejavam e estavam dormentes e ela não conseguia sentir sua bunda.
Ele, por outro lado, estava quente, o que era incomum, especialmente devido ao frio lá
fora. Ele deve ter acabado de sair da tenda.
Uma onda de amargura brotou dentro dela com a memória. — Eu posso andar.
— Você está congelando. — ele murmurou. — Peço desculpas, eu deveria ter me
assegurado de que você tivesse abrigo antes de eu... me alimentar.
— Você estava morrendo, então eu te perdoo. Mas este vestido foi um erro. Já usei faixas
que eram mais quentes.
— Eu não estava morrendo. — Ele a moveu em seus braços. — E este vestido nunca será
um erro em você.
— Onde estamos indo?
— Eu assegurei-nos uma pequena tenda para a noite. Não é glamorosa, mas há uma
lareira e cobertores.
— E eu preciso ser carregada para lá? — ela perguntou, inclinando a cabeça para
encontrar seus olhos. Eles estavam inchados com magia, o brilho dourado luminescente
vazando deles mais brilhante do que as luas acima.
— Levar você para minha tenda diz aos demonai que estiveram observando você a noite
toda que você é minha.
Minha. Algo vibrou dentro de seu peito. — Nossa, você é um Senhor das Sombras
ganancioso?
Um sorriso escuro curvou nas bordas de sua boca. — Você não sabe a metade disso.
Seu coração acelerou. — Você não pode ainda ser... com fome.
— Não posso? — ele provocou baixinho. — Pequena Fera, os conjuradores de sombras
são vorazes por natureza. Bebemos de conjuradores de luz por duas razões: necessidade e
prazer. Cada demonai neste acampamento foi saciado dez vezes esta noite e, ainda assim, elas
ainda queimam com a necessidade primordial de drenar sua essência.
Ela estremeceu. E você queima com essa mesma necessidade?
A pergunta não dita pairava entre eles, junto com mais um milhão. Perguntas que ela
nunca ousaria fazer por medo da resposta.
O cabelo dela escorregou por cima do ombro quando ele mergulhou em uma tenda com
apenas um quarto do tamanho da anterior. Stolas teve que se curvar para não roçar os chifres
no teto inclinado. O corpo inteiro de Haven estremeceu quando o calor da chaminé de
bronze no centro encontrou sua pele fria. Seus membros estavam rígidos e doloridos quando
ele a colocou em uma pilha de peles macias e pretas.
Ele se virou para pendurar as capas em um dos postes da tenda e ela deixou as pálpebras
se fecharem enquanto o calor a percorria.
Quando seus olhos se abriram, ela encontrou Stolas observando-a sob pálpebras
pesadas. A luz do fogo pegou no estranho brilho metálico do vestido, destacando cada curva
de sua clavícula até o declive entre os seios.
Seus cílios prateados acinzentados mergulharam quando ele deixou seu olhar vagar mais
para baixo.
— Definitivamente não é um erro — ele murmurou, a voz cheia de sarcasmo e algo mais
enquanto ele arrastou sua atenção para o fogo. As novas toras se moviam, chamas saltando
da lareira, estalando e estalando.
Ela se enrolou em uma bola sob as peles, as pálpebras caídas e observou Stolas se
acomodar em frente ao fogo. Ele esticou suas longas pernas. Suas asas estavam voltadas para
ela, seu brilho normalmente brilhante embotado pela poeira e areia. Uma mão descansava
ao lado do corpo, pressionada como se quisesse reprimir a dor.
Haven se apoiou em um cotovelo. — Então, você está melhor agora?
A memória dele tropeçando, arrastando as asas na areia, era difícil de abalar.
— Como você define melhor?
— Você vai morrer?
— Não essa noite.
Espertinho. — Você não vai dormir?
Parecia uma pergunta boba. Noctis dormiam tanto quanto Solis, o que era muito
pouco. Mas eles precisavam de pelo menos algumas horas por noite.
— Eu posso descansar meus olhos aqui — ele respondeu sem olhar para trás.
— Você está preocupado que os demonai venham me buscar durante a noite?
— Não. Eles sabem que você pertence a mim.
— Pertenço? — Ela ergueu uma sobrancelha sonolenta, de repente longe de estar
cansada. — A você?
— Semântica. — Ela podia dizer pelo seu tom melodioso que ele estava sorrindo. —
Elas assumem que você pertence a mim, porque eu acabei de te trazer para minha
tenda. Normalmente, um conjurador de luz com seus poderes raros seria propriedade de um
Senhor Demônio, mas isso se encaixa em nossa história.
— Que é?
— Que estou aqui para vendê-la ao Senhor Malik.
Ela ficou tensa sob as cobertas. Vender. Essa palavra inundou suas veias com
violência. Violência, vergonha e impotência que ela jurou nunca mais sentir.
— Se isso te incomoda, podemos fazer uma nova estratégia.
Ela balançou a cabeça. Stolas sabia como ela se sentia em relação à escravidão e ele não
teria feito o plano se não fosse a melhor opção. Fingir ser uma escrava de sangue, por mais
repreensível que fosse, daria a eles uma maior chance de se infiltrar no palácio e recuperar a
pintura.
— Então, eu estou segura - por esta noite, pelo menos? — ela pressionou.
Seus ombros caíram ligeiramente quando ele deu um suspiro pesado. —
Deles? Provavelmente. Embora seu cheiro inebriante de magia provavelmente estou
deixando-os meio loucos de sede de sangue enquanto falamos.
— Você disse que eu estava a salvo deles. Isso significa que não estou a salvo de você?
— Cama — ele rosnou.
Ela rolou de lado e fechou os olhos, mas cansada como estava, não conseguia dormir. Seu
aviso sobre o que esperar quando se alimentasse veio à mente. Ele estava propositalmente se
afastando dela, porque achava que ela estava enojada com o que viu?
Talvez ela estivesse, de certa forma. Mas além do medo instintivo que ela sentiu
inicialmente ao vê-lo sangrar, havia uma nova intimidade em seu relacionamento.
Ele a deixou vê-lo em sua forma mais aterrorizante. Um pequeno arrepio a percorreu
quando ela se lembrou de como ele se atreveu a manter seu olhar enquanto bebia da mulher
Solis.
E o olhar que passou entre eles...
Ela levantou a cabeça. — Como foi antes? Quando você se alimentou?
Ele congelou. — Por que você me pergunta isso?
— Eu estou... curiosa. Eu quero saber o que é sobre o ato que os Serafins anseiam.
— Não, você não quer.
— Me teste. Posso não ser tão melindrosa quanto você pensa.
Ele suspirou. — É o sentimento uma criatura mais fraca presa abaixo de nós. O poder
de ter o futuro deles em nossas mãos. Ter controle total. É sentir seus batimentos cardíacos
enfraquecerem enquanto lentamente drenamos sua vida. É fazer alguém gemer com prazer
absoluto e entorpecente em um segundo e medo no próximo.
Ele estava tentando aborrecê-la, mas havia verdade em suas palavras. Sua garganta seca
convulsionou enquanto ela tentava engolir. — Então, o ponto alto vem do ato em si?
— Vem de ambos. A magia no sangue que drenamos reage com nossos instintos
predatórios profundamente enraizados para formar uma liberação, se você quiser chamar
assim. Chame de sede de sangue ou outra coisa, realmente não há nome para descrever com
precisão a experiência.
Sede de sangue. Considerando o que ela testemunhou na tenda, esse nome parecia mais
do que adequado....
— E você gosta disso? — ela sussurrou, já sabendo a resposta. — O poder e o controle,
a selvageria?
Ele olhou em silêncio para o fogo. — Você quer que eu minta?
— Eu quero que você confie em mim com a verdade.
— Sim, eu gosto.
— De tudo?
As pontas de suas asas se curvaram. — De tudo. No fundo, além do verniz de boas
maneiras e civilidade, é quem eu sou, Haven.
Ela conseguiu abafar o arrepio. — Eu não acredito em você.
— Então, você é uma tola.
— Stolas.
Ele se acalmou com a voz dela.
— Venha aqui.
Ele ficou quieto por um longo tempo. Cada batida selvagem de seu coração que se
seguiu a lembrou que ela estava jogando um jogo perigoso. Mas o jeito que ele olhou para
ela enquanto se alimentava, o desejo poderoso em seu rosto...
Não foi dever que passou entre eles. Foi algo a mais.
Ele se desdobrou em seus pés. Ela o observou sob as pálpebras pesadas enquanto ele
rondava, movendo-se com aquela fluidez e graça que uma vez a enervava e agora... o quê?
A fazia se sentir segura? Não, não segura. Ela nunca estaria realmente segura perto dele.
Houve um suave tamborilar de areia caindo contra o chão quando ele sacudiu suas asas,
o jogo da luz do fogo contra suas penas meia-noite e índigo hipnotizantes.
As chamas em suas costas lançavam sombras profundas sobre suas feições. — Haven,
estar tão perto de você tão cedo após a alimentação – pode ser perigoso.
— Eu não vou te machucar.
Ele não riu. — Para você.
Ela levantou a pele, notando a forma como seu olhar disparou para a curva de seu
pescoço. — Eu confio em você.
Uma risada baixa, mais rosnado do que risada, vibrou em seu peito. — Você não
deveria. Você realmente, realmente não deveria.
— E o que você acha disso? Vou lhe dizer o que sei sobre você. Para cada afirmação
verdadeira, você chega um passo mais perto. Para cada falsa, você dá um passo para trás.
— Você tem certeza que quer jogar este jogo, Haven?
Ela olhou diretamente para aqueles olhos luminosos, provocantes e perigosos. — Sim.
— Sua ingenuidade é alarmante — ele murmurou, mas assentiu.
Seu pulso estava batendo em seus pulsos. Cada parte dela parecia crua, exposta, mas ele
desnudou sua alma, sombria e selvagem como era e essa confiança ressoou profundamente
dentro dela.
Agora era a vez dela.
— Você usa sua natureza selvagem como desculpa para me afastar.
Ele não disse uma palavra enquanto se aproximava.
— Você me afasta, porque tem medo de me machucar.
Mais um passo à frente.
— Você anseia por meu sangue, minha magia e se sente culpado por isso.
Ele recuou.
— Ok, você anseia por meu sangue e magia e não se sente culpado, mas se preocupa em
agir com base nesses impulsos e que eu vou odiar você por isso.
Ele recuperou seu passo.
Ela arrastou uma respiração profunda. — Em Solethenia, depois do baile... aquilo não
foi por dever. Você... gostou.
Mesmo com seus lábios mergulhados na sombra, ela sabia que eles estavam sorrindo
enquanto ele se aproximava. Ele estava ao pé das cobertas agora. Seu cheiro familiar de íris e
mandarim-de-sangue rolando sobre ela.
Reunindo sua coragem, ela inclinou a cabeça para encará-lo. — Quando você olhou
para mim enquanto se alimentava mais cedo, você me queria.
Seu estômago se agitou e agitou enquanto ela esperava por sua resposta.
Ele soltou uma respiração suave. — Haven...
— Você ainda me quer. Não por dever. Não por causa de um juramento. Não para se
alimentar de mim, embora esse desejo ainda esteja lá também. Você me deseja.
Um leve tremor de antecipação e nervosismo a percorreu e, de repente, ela teve
dificuldade respirar. Ocorreu-lhe que não tinha ideia do que estava fazendo. Que Stolas
provavelmente estava certo, isso era perigoso, mas não pelas razões que ele pensava.
Dar seu coração a Stolas Darkshade era tolice por cerca de um milhão de razões.
Mas ela estava cansada de ser governada pelo medo. Se o dia de hoje havia lhe ensinado
alguma coisa, era que o futuro não pertencia a eles. Eles só tinham a promessa deste
momento.
E ela se recusava a viver mais um precioso segundo daquele tempo emprestado com
medo.
Recusava-se a ser a garota sem voz.
A garota que aceitava uma vida menor, porque era mais fácil.
Que não pegava o que ela realmente queria, porque era mais seguro.
Quem escurecia seus desejos, suas necessidades, sua magia para deixar os outros
confortáveis.
Ela finalmente sabia exatamente o que queria e ele estava bem na frente dela.
Levantando as cobertas de pele, ela disse: — Venha aqui, Stolas.
E ele foi.
Stolas soltou um rosnado frustrado.
— Isso vai acabar mal.
Ela se assustou com o quão brilhantes seus olhos ainda estavam. O brilho dourado estava
ficando amarelo acobreado, o centro já desaparecendo. Até amanhã, ela apostaria que a luz
seria o anel amarelo que ela estava acostumada.
— Defina mal.
Ele ficou desumanamente imóvel.
Apoiando-se de lado, ela lentamente estendeu a mão para tocar seu rosto.
Sua mão disparou, capturando seu pulso. A carne ainda estava tenra de onde seus dedos
se apertaram na noite anterior e ela estremeceu.
Ele viu a reação dela, seus olhos inchados de magia deslizando para o pulso dela. — Por
que a Deusa fez sua espécie tão frágil?
— Então, não me quebre.
— Haven...
— Não. — Ela levantou a outra mão. Um rosnado baixo começou em seu peito
enquanto ela arrastava as pontas dos dedos suavemente pela curva irregular de sua
bochecha...
Em um movimento rápido, ele rolou em cima dela, suas mãos prendendo seus pulsos no
chão macio. — Chega.
— Não.
Ele estava olhando para ela, seus olhos cravados em seus lábios. Seus dedos ao redor de
seus pulsos eram gentis, muito gentis.
— Eu quero você, Stolas. — Sua confissão abriu sua superfície dura para a
vulnerabilidade abaixo, mas ela conseguiu segurar seu olhar. — Eu sei agora que você me
quer também, mas você tem medo de me machucar.
— Eu vou te machucar.
Ela não sabia se ele queria dizer fisicamente ou não. — Não, você não vai. Deixe-me
provar isso para você.
Ela puxou uma mão livre e a deslizou por seu cabelo desgrenhado.
Ele congelou, uma lufada de ar escorrendo de seus lábios entreabertos. Seguiu-se um
gemido baixo. — Você sabe por que minhas presas ainda estão retraídas, Haven? Ainda
estou nas garras da sede de sangue. Cada batida do seu coração, cada lampejo de medo que
você tenta esconder desperta o monstro ganancioso dentro de mim.
Esses fios macios deslizaram por seus dedos quando ela agarrou a base de seu chifre e,
então, ela o puxou para ela. Surpresa brilhou em seus olhos, seguida por algo mais sombrio.
Algo que deveria tê-la aterrorizado, mas não o fez.
— E quanto a isso? — ela sussurrou. Ela deixou seus dentes roçarem seu lábio
inferior. Deixou a língua dela sair. — Qual parte de você isso desperta?
Ela sentiu o último fio de sua restrição derreter quando ele se acomodou em cima
dela. Sua boca esmagou a dela. Sua língua separou seus lábios, primeiro reivindicando e
depois mais suave enquanto a explorava. As pontas de suas presas picaram seu lábio inferior,
o calor metálico enchendo sua boca.
Rosnando, ele a beijou mais forte, o gosto de seu sangue se misturando com o dele.
— Isso é uma agonia — ele sussurrou.
Com o coração acelerado, ela enrolou as pernas em volta da cintura dele. — E agora?
— Uma coisa tão perversa — ele meio riu, meio rosnou. Ele se levantou para olhar para
ela, seus olhos luminosos, derramando magia diretamente do Nihl. — O que devo fazer com
você?
— Tire meu vestido.
Sua mandíbula flexionou. Ainda segurando seu olhar, ele pegou a fenda de seu vestido,
os nós dos dedos arranhando sua coxa enquanto ele puxava o tecido para cima. Ela fechou
os olhos enquanto ele puxava o tecido sedoso sobre sua cabeça e, quando ela os reabriu, ele
estava bebendo sua forma.
— E agora? — ele murmurou.
— Sua vez.
Ela o observou se despir. Primeiro a camisa e depois as calças. Na luz baixa do fogo,
sombras presas em seus músculos, destacando cada cume e curva. Runas, ele era lindo. Um
Deus sombrio nascido do Submundo.
— Agora? — ele perguntou, sua voz rouca se instalando baixa e quente em sua barriga.
— Venha aqui.
Ele fez como ela disse. — Tão exigente. O quê mais?
— Me beije.
Ele o fez, deslizando sobre ela enquanto sua boca capturava a dela. E a maneira suave e
carinhosa que ele a beijou desta vez, como se ela pudesse quebrar, foi quase o suficiente para
desfazê-la.
Seus lábios se separaram em um gemido quando as mãos dele começaram a se mover
sobre seu corpo. Fogo seguia suas carícias, inflamando cada centímetro de sua carne
enquanto ele acariciava cada vez mais perto de onde ela queria.
— Diga-me — ela murmurou contra sua boca. — Quando você olhou para mim mais
cedo, o que você estava pensando?
Seu grunhido fez cócegas em seus lábios molhados e inchados. — Você gostaria que eu
te mostrasse?
— Sim.
Ele fez um barulho reprovador. — Onde estão os seus modos?
— Sim, por favor.
Suas costas arquearam quando os dedos dele finalmente foram para onde ela queria. O
calor perverso e latejante surgiu para encontrá-los, rolando por sua cintura em ondas
abrasadoras.
Seu rosnado sacudiu a tenda e ele parou por um momento antes de retomar, só que dessa
vez devagar. Tão malditamente devagar.
Ao mesmo tempo, sua boca desceu pela garganta dela.
Degustando ela. Deslizando contra sua pele tão suavemente. Ela podia sentir sua
necessidade primordial de usar suas presas. Podia senti-las dançando sobre as áreas tenras de
sua carne.
— Que tortura deliciosa— ele murmurou. — Acho justo que você sofra um pouco
também.
Seus quadris estavam se movendo em círculos frustrados. Ele rosnou, prendendo-a com
uma mão enquanto a outra continuava aumentando a pressão dentro dela com golpes lentos
e hesitantes destinados a torturar e provocar.
Sua barriga apertou como ela se lembrava da última vez, mas...
— Mais — ela sussurrou. — Eu preciso sentir você. Todo você.
Algo sombrio e ganancioso ondulou em suas feições. Ela foi levantar as pernas ao redor
dele, mas a mão dele agarrou suas coxas. — Devagar, Haven.
Segurando seu olhar, ele deslizou as mãos atrás de seus joelhos e, então, guiou suas pernas
até que elas travaram atrás dele. Sua mandíbula estava apertada quando ele se agachou e
começou a beijá-la. A sensualidade daquele beijo acendeu um fogo por dentro tão quente
que ela esperou abrir os olhos e ver as chamas dançando em sua pele.
Ela sentiu seu membro pressionar contra ela. — Quando eu olhei para você, Haven? Era
isso que eu imaginei fazer.
Um gemido separou seus lábios quando ele começou a preenchê-la, lentamente – tão
malditamente lento. Os músculos de seu pescoço e mandíbula tremeram enquanto ele
lutava para controlar seus instintos mais sombrios. A pressão aumentou para preenchê-
la. Ela tentou acalmar aquela dor enquanto apertava as pernas ao redor da cintura
dele. Tentou forçá-lo mais fundo.
— Uma Pequena Fera tão gananciosa — ele rosnou enquanto a beijava.
Ela deslizou os braços ao redor do pescoço dele e fechou os olhos, afogando-se na
sensação de Stolas. Seu cheiro, seu corpo ágil e poderoso, seu grunhido divertido. Seus
quadris estavam se movendo em círculos irritantemente lentos e provocantes. Aquele fio
profundo de tensão crescendo em seu meio, mais afiado, até que parecia demais.
— É isso que você quis dizer com pertencer a você? — ela sussurrou.
Ele rosnou, movendo-se mais rápido e ela rapidamente inclinou os quadris para que ele
mergulhasse mais fundo...
Ela gritou e suas presas apertaram suavemente em seu lábio inferior em advertência.
Mas ela estava se movendo contra ele agora, aquela pressão requintada crescendo e
crescendo.
Ela sentiu algo primitivo e cru tomar conta quando ele sussurrou: — Alguém precisa de
uma lição sobre como se comportar.
Sua boca cobriu a dela. E, quando sua língua deslizou entre seus lábios, ele afundou
completamente dentro dela. Ela gemeu, sua língua penetrando mais fundo enquanto ele
balançava contra ela. Essa dor requintada tornou-se uma sensação de prazer que crescia com
cada impulso.
Ela se perdeu no que veio a seguir. A dança tortuosa enquanto ele a arrastava para a beira
do prazer uma e outra vez apenas para arrancá-lo.
Cruelmente, perversamente. Mais e mais e mais até que...
Essa tensão afiada chicoteou através dela como um relâmpago, seguido por onda após
onda de prazer. Quando a última onda atingiu ela, Stolas estremeceu, deixando escapar um
gemido suave. Eles ficaram lá pelo que poderiam ter sido minutos ou horas, entrelaçados,
sem dizer uma palavra enquanto suas pernas tremiam e a sensação lentamente retornava ao
seu corpo.
Quando ele finalmente rolou de lado e a puxou para ele, uma parte dela desejava ficar
assim para sempre. Neste momento, ela não era a Nascida da Deusa e ele não era um Príncipe
Serafim.
Eles eram simplesmente... amantes.
Ele passou o dedo sobre um ponto escamoso em seu quadril. — Isso é sangue Golemita?
— Deusa Acima — ela gemeu, surpresa com o quão rouca sua voz estava. — Espero que
este Senhor Demônio goste seus escravos limpos. Acho que não aguento mais uma noite
coberta de suor e sangue.
— Mas estar coberta com o sangue de seus inimigos combina com você. — Ele se apoiou
em seu cotovelo, uma mecha de cabelo branco como a lua deslizando sobre sua testa
enquanto ele olhava para ela. A luz do fogo brilhava dentro da superfície preta brilhante de
seus chifres. — Diga uma palavra e encontraremos outra maneira de entrar no palácio.
— Não. Este é a única maneira. — Ela inclinou a cabeça para encará-lo. — Disse que
você não iria me machucar.
Ele riu sombriamente quando seu polegar começou preguiçosamente circulando seu
umbigo. — Se vangloriar, por outro lado, não combina com você.
— Não? — Enquanto ela sorria, ela pensou que podia ver todas as diferentes facetas dele
– monstro, príncipe quebrado, protetor, amigo e agora amante – lutando para se mostrar. —
Então, o que faz?
— Posso pensar em algumas coisas — ele ronronou enquanto seus dedos acariciavam
mais baixo. Mais baixo. — Como... isto.
Ela engasgou com o toque dele e, quando ele trouxe os lábios para o pescoço dela,
beijando sua clavícula, seu ombro, sua mão ainda se movendo tão suavemente...
— Assim está melhor— ele murmurou.
Desta vez, eles fizeram amor meio adormecidos, movendo-se juntos em um ritmo lento
e sensual até que se despedaçaram. E, depois, quando ele a beijou na bochecha com uma
ternura que ela juraria que ele era incapaz de fazer algumas horas atrás, ela não conseguiu
escapar da sensação de algo se encaixando no lugar.
Isso parecia certo, mais certo do que qualquer coisa que ela já tinha feito antes.
Envolta nos braços do monstro autoproclamado, ela caiu no sono mais profundo e
repousante que ela teve em meses. Ela sonhou que era um lobo branco e dourado caçando
pelas dunas ao lado de um lobo preto meia-noite com olhos amarelos.
O lobo escuro uivou e ela respondeu com um uivo retumbante, tão alto que alcançou
os céus e sacudiu as estrelas.
Haven jurou que nunca mais se deixaria ser levada como escrava. Nunca se deixaria
ser comprada e vendida como propriedade. E, no entanto, aqui estava ela, algemada a um
grupo de escravos Solis em frente ao palácio de Cimmeria. Uma suave névoa prateada pendia
do chão, obscurecendo os amplos degraus de ônix do palácio que levavam a um imponente
portão de ferro. Serpentes foram esculpidas nas portas, suas cabeças sibilantes torcidas em
torno dos florões dourados afiados.
Ignorando a mordida de magia escorrendo de suas algemas em seus pulsos, ela esticou o
pescoço para estudar o palácio. Uma maravilha arquitetônica de arcos e torres, a estrutura
de pedra escura era coroada por três enormes cúpulas douradas.
Era talvez o maior palácio que ela já tinha visto, o que tornava a pobreza e a doença que
o cercavam ainda mais difíceis de entender. Mendigos se alinhavam nas ruas escuras de
paralelepípedos e batedores de carteira se escondiam em becos, esperando para roubar o que
pudessem das nobres demonai que deixavam o palácio.
Dessa forma, ela supôs, o Reino Demoníaco era semelhante ao seu próprio mundo.
Haviam outras semelhanças. Havia um sol que subia e descia - embora fosse um orbe
distante emaranhado por camadas de nuvens densas que davam a tudo um leve brilho verde-
amarelado. Ou talvez fossem as lamparinas de luz de runa verde-claras e postes de luz
posicionados em cada esquina e prédio. A mesma luz cintilava nas janelas e arcos do palácio.
Os mercados também eram muito parecidos com os de Penryth. Os vendedores
regateavam. Os clientes alegavam que estavam sendo roubados. Os ladrões pegavam o que
podiam.
Tudo parecia tão normal.
Pelo menos até ela dar uma olhada mais de perto nos objetos que estavam sendo
vendidos. Crânios monstruosos do tamanho de melancias, potes cheios de olhos reptilianos
que seguiam o movimento e ervas que ela não conseguia começar a pronunciar. Depois
havia os mercados de demônios onde tudo, desde chifres de demônios até demônios reais,
podiam ser comprados.
Mas era a semelhança das pessoas deste reino que era o mais chocante. Eles pareciam
mortais em quase todos os aspectos. Em contraste com os demonai, os nobres que
reivindicavam sangue de demônio e possuíam algum grau de magia das sombras, eles quase
pareciam duas raças diferentes.
Os portões do palácio rangeram quando se abriram, gavinhas de névoa se enrolando em
seu rastro. Um servo demonai apareceu, encapuzado e curvado. Seu coração acelerou
enquanto ele descia as escadas em direção aos escravos e, pela primeira vez, ela estava feliz
por ter pulado o café-da-manhã, seu estômago revirando.
Lembre-se da razão pela qual você deixou Stolas fingir vendê-la para o traficante de
escravos demonai esta manhã. Lembre-se por que você tolera as algemas e os sorrisos
maliciosos. Lembre-se de quem você é.
Mas sua carne também se lembrava. Recordando de anos atrás, quando Damius colocou
uma algema de ferro em seu tornozelo e a fincou profundamente na areia. Ainda podia sentir
a dor lancinante quando semanas se transformaram em meses e sua carne ficou crua e
infectada sob o metal.
Lutando contra o pânico, ela conseguiu erguer os lábios secos em um sorriso tímido,
imitando a expressão do outro Solis escolhido para ser apresentado ao Senhor Malik. A
maioria provavelmente já era viciada, mas era difícil conciliar a esperança deles com a raiva
dela.
Mais difícil ainda ficar ali parecendo agradecida enquanto o servo demonai curvado a
avaliava, quando o que ela realmente queria era pegar a adaga escondida ao longo de sua coxa
e enfiá-la em seu crânio disforme.
Mas ela queria mais a imortalidade e, em algum lugar, nos recessos deste palácio escuro,
em uma torre construída apenas para ela, estava a amante do Senhor Demônio de Cimmeria
– e a pintura de sua mãe.
Então, Haven parecia obediente em vez de assassina. Ela até girou um pouco para o
demonai pequeno e encurvado com orelhas pontudas e nariz de morcego.
E encostada em uma coluna próxima, ela sentiu o olhar de Stolas. Suas bochechas
aqueceram e os eventos da noite passada voltaram para ela em um lampejo ardente. Se não
fosse pela dor sutil entre as pernas, ela poderia ter pensado que tudo foi um sonho.

Haven flexionou os pulsos, tentando não olhar para as fracas marcas vermelhas que suas
algemas haviam esfregado em sua pele. Ela foi instalada dentro de uma grande câmara, uma
das centenas escondidas em uma área proibida do palácio. Apenas as servas mortais e o
Senhor Demônio tinham permissão para vagar pelos corredores.
Se Haven conseguisse se tornar a favorita do Senhor Demônio, ela poderia até conseguir
um quarto melhor com seu nome na porta.
Uma nova rodada de desgosto a encheu quando ela percebeu o quanto o arranjo se
parecia com os estábulos reais em Penryth. Exceto que, quando um dos garanhões
premiados do rei Boteler ficava manco, o pobre animal era morto.
Aqui, as mulheres eram simplesmente jogadas para fora dos muros do palácio para se
defenderem sozinhas. A maioria era viciada até então e elas acabavam nos campos.
Matá-las teria sido mais misericordioso.
Ela apertou a mandíbula até seus dentes doerem, concentrando-se em seus arredores
para moderar sua raiva crescente.
O quarto era grande e arejado, com móveis espalhados - um sofá, uma namoradeira,
algumas almofadas. Lareiras de bronze foram colocadas perto do sofá e da cama, chamas
crepitando atrás de suas grades. Um guarda-roupa de teca escura estava no canto, suas portas
abertas revelando inúmeros vestidos. A cama em si era pequena, grande o suficiente para
uma pessoa, o que reforçou sua esperançosa suspeita de que o Senhor Demônio entretinha
suas escravas de sangue em sua própria câmara privada.
Uma porta se fechou e Haven se virou para ver a mulher que removeu as algemas de
Haven segurando uma pilha de sedas coloridas em seus braços. Seu nome era Imara e Haven
assistiu a pequena mulher esvoaçar ao redor do quarto, reunindo todas as loções, sabonetes
e tinturas que deveriam preparar Haven para o Senhor Demônio esta noite.
Haven suspirou quando Imara se aproximou com um pente largo feito de marfim. Ela
ficou surpresa ao saber que a mulher coriácea era do reino de Haven. Haven imediatamente
bombardeou Imara com todos os tipos de perguntas, sendo a primeira como Imara acabou
aqui.
Mas a mulher enrugada, que devia estar se aproximando dos oitenta anos, recusou-se a
discutir qualquer coisa além das questões mais básicas.
Este era o quarto de Haven? Era.
Ela estava trancada? Outro sim.
Quando ela veria o Senhor Demônio?
Imara parou de puxar um nó teimoso de ouro rosa e riu, revelando um total de três
dentes.
De acordo com Imara, todas as novas escravas de sangue eram exibidas na primeira noite
após o jantar. O Senhor Demônio tinha que escolher Haven. Caso contrário, ela seria
arrastada de volta para seu quarto e trancada lá dentro até ser chamada, o que poderia levar
dias - ou anos.
A maneira como Imara passou seu olhar sobre Haven, demorando-se em seu cabelo
emaranhado, incrustado com uma adorável mistura de sangue, cinzas e areia, ela ficaria neste
quarto por muito tempo.
A outra opção, Imara mencionou distraidamente, era ser dada esta noite aos amigos do
Senhor Demônio.
Nenhuma dessas opções poderia acontecer. Ela precisava ser escolhida esta noite. A torre
da Guardiã estaria perto dos aposentos do Senhor Demônio para facilitar o acesso. Uma vez
lá, bem, Haven ainda não tinha um plano de como lidar com o Senhor Demônio.
Stolas estava trabalhando nesse aspecto delicado.
Depois de escovar o máximo de emaranhados que pôde do cabelo de Haven, Imara a
levou para uma câmara de banho adjacente. A câmara também era grande, a banheira com
pés grandes o suficiente para dois e de alguma forma já cheia de água borbulhante e
fumegante. Janelas do chão ao teto espalhavam a luz etérea da cidade pelas paredes de
mármore escuro.
A luz turva fazia parecer mais perto da noite do que do início da tarde.
Além das janelas se estendia a cidade, uma vasta tapeçaria de prédios interligados que se
estendia até o horizonte.
Haven afundou no banho quente, suspirando enquanto o calor trabalhava em seus
músculos cansados. Os dedos nodosos de Imara tremiam enquanto ela colocava sabonetes e
óleos na borda da banheira. Uma cesta do que tinha que ser pão veio em seguida, o cheiro
de fermento familiar fazendo seu estômago apertar. Junto com o pão veio um prato de frutas
– figos, romãs, morangos vermelhos escuros e pêssegos perfeitamente maduros. Uma xícara
de chá perfumado fumegava ao lado do pequeno banquete.
Imara levava seu trabalho muito a sério. Haven precisava de alguma forma estar limpa,
pintada e engordada até esta noite.
Com um aceno feroz, a mulher saiu da câmara. Alguns segundos depois, Haven ouviu
a porta de seu quarto fechar e a fechadura clicar. Haven estava pegando um pedaço de pão
quando o mais leve formigamento de magia a fez parar.
— Achei que a velha nunca iria embora — veio uma voz familiar.
Stolas. A respiração ficou presa em sua garganta quando ele materializou das sombras
do canto mais distante. Ela não era a única que tinha se limpado desde a última vez que se
viram. Seu cabelo ondulado estava recém-lavado e escovado, os fios claros tão sedosos que
ela imaginou passar os dedos por eles novamente. O paletó de zibelina justo que ele usava
era bordado com prata para combinar com sua camisa. Ele mostrava seus ombros largos,
peito musculoso e cintura afilada.
Ela não conseguia tirar os olhos dele enquanto ele passeava ao redor da banheira. Sua
atenção se desviou para a água do banho. Ela notou com alarme que a espessa camada de
bolhas havia derretido em algumas ilhas frágeis.
Considerando o que eles fizeram na noite passada, sua modéstia parecia boba. E ainda...
Seus lábios se curvaram levemente nas bordas e ela exalou quando ele mudou o foco
predatório para a comida na borda da banheira. Arrancando um morango da travessa, ele se
sentou na beirada da banheira, ergueu os olhos para ela e mordeu a fruta.
Ela franziu a testa com a forma como seu coração acelerou. — Você veio aqui só para
comer minha comida?
— Ah, você queria tudo isso? — Ele empurrou o queixo em direção ao prato. —
Suponho que seja importante que você cheire bem esta noite.
— Você pode dizer o que alguém comeu pelo cheiro?
Ele deu outra mordida. — Não tudo, mas certas frutas perfumadas têm um cheiro
particular. Você ficaria surpresa com o quão bem morangos e figos combinam com sangue.
Deusa Acima. A refeição foi feita para torná-la saborosa. — E o chá?
Suas narinas se dilataram. — Isso é simplesmente para drogá-la para que seus instintos
primitivos sejam entorpecidos. Todo mundo entra em pânico na primeira vez.
— Como eles sabem que é minha primeira vez?
Ele inalou mais uma vez. — Seu aroma. Durante sua primeira drenação de sangue, você
é marcada.
— Para todo sempre?
Ele deu de ombros. — É uma coisa territorial.
Empurrando a comida de lado, ela cruzou os braços sobre o peito e mudou de
assunto. — Como você recuperou seus poderes?
— Sangue de demônio. — Ele pegou seu olhar de desgosto e acrescentou: — É a única
maneira de acessar magia das sombras dentro deste reino. Mesmo com o que consumi, meus
poderes são uma sombra do que normalmente são.
Haven levantou o braço. Bolhas deslizaram para revelar o brilho desbotado de suas
marcas de runa. — E meus poderes?
Ele balançou sua cabeça. — Mesmo uma gota de sangue de demônio pode corromper a
magia de um conjurador de luz.
Seu braço espirrou de volta na água. — E aqui eu estava tão animada para provar sangue
de demônio. Existe alguma coisa que eu possa consumir neste lugar que não vai me
prejudicar?
— Não é provável. Mas se jogarmos bem nossas cartas, partiremos pela manhã. — Ele
puxou algo do bolso do paletó e ela pensou que o pegou estremecer um pouco com o
movimento. Ele ainda estava ferido?
O item tiniu quando ele cuidadosamente o colocou na travessa ao lado de uma romã. —
Isso colocará o Senhor Demônio em uma compulsão muito breve.
Ela olhou para o frasco escuro do tamanho de um dedal. — O que é isso?
— Muito caro, isso é o que é.
— Você roubou?
Um lado de sua boca se curvou. — Não.
— Então, como?
— Posso ser muito charmoso quando preciso ser.
Ela quase riu... até que o modo faminto que a mulher demonai olhou para Stolas na
noite passada veio à mente, seguido por uma onda quente de ciúme. Com as mulheres deste
reino, ele não teria que controlar sua verdadeira natureza.
Ele podia ser ele mesmo sem se desculpar.
Exalando, ela deslizou seu foco de volta para o elixir. — Eu coloco na bebida dele?
— Idealmente, você consumiria e, então,...
Ela se tornaria a bebida. A bile azedou sua garganta. — Acho que não consigo.
— Isso é bom, porque se ele te tocar assim, eu vou matá-lo, e isso seria muito ruim para
nós.
— Que tal colocá-lo em um copo cheio de sangue?
Sua mandíbula flexionou e ele soltou uma respiração lenta. — Quando você estiver na
sala, todo o ser dele estará hiperfocado em você, nada mais. Você entende?
Infelizmente, ela entendia. A única fome que o Senhor Demônio sentiria era por ela. —
Você pode me dizer alguma coisa sobre ele que possa me ajudar?
— Tudo o que sei é que todos os Senhores Demônios fizeram barganhas sombrias com
demônios de alto nível. Cada um assume as características daquele demônio. Há rumores de
que o demônio de Malik parece uma serpente.
Ela apertou os braços ao redor de si mesma para esconder o arrepio, mas ele notou
mesmo assim. Seus olhos seguraram os dela enquanto ele se ajoelhava e, novamente, ela
notou um leve estremecimento.
Mas, então, ele estendeu a mão e segurou seu queixo e seus pensamentos se
concentraram na sensação de seus dedos longos e frios pressionados suavemente em sua
carne. A forma como suas asas se contraíram.
Ele olhou para ela por um longo instante. Então, ele inclinou o rosto dela para o dele. —
Você não tem que fazer isso. Diga a palavra e encontraremos outra maneira.
A oferta era tentadora, mas...— Eu não posso. Cada dia que permaneço mortal nos
coloca em perigo e me recuso a perder mais alguém. Ao fazer isso, posso proteger aqueles
que amo.
Uma emoção fugaz passou por seu rosto, breve demais para catalogar.
— O quê?
Ele soltou seu queixo, hesitou, e, então, roçou as costas de sua mão sobre sua
bochecha. — O jeito que você ama os outros, Haven, é extraordinário.
Ele se levantou antes que ela pudesse responder, seu foco flutuando sobre o frasco. —
Você ainda tem a adaga?
— Sim. Eu escondi-a debaixo do meu colchão.
— Banhe a lâmina no elixir. Você terá que esfaqueá-lo e deve ser profundo o suficiente
para que a poção entre em seu corpo. Você acha que pode fazer isso?
Ela sorriu. — Com prazer. Isso vai matá-lo?
— Não. Senhores Demônios são protegidos por feitiços antigos, demoníacos e magia de
sangue. Você poderia esfaqueá-lo mil vezes e o bastardo demente riria na sua cara.
Seu sorriso se tornou um beicinho. — Isso é decepcionante.
— Há uma razão para os mesmos Senhores Demônios existirem por incontáveis
milênios apesar de se odiarem. Sua magia demente os torna praticamente intocáveis.
— Mas não imune a isso. — Ela acenou com a cabeça em direção ao pequeno frasco.
— Todo mundo tem suas fraquezas.
Sua cabeça caiu para trás na banheira. Apunhalar um Senhor Demônio que mantinha
um harém de escravas era fácil. Conseguir que o Senhor Demônio a escolhesse entre as
inúmeras outras opções deliciosas para que ela pudesse esfaqueá-lo era... mais complicado. E
completamente fora de sua especialidade.
— Como faço para ele me escolher esta noite?
— Como? — O rosto de Stolas suavizou. — Você realmente não sabe o quão
maravilhosa você é?
Ela não sabia o que dizer a isso.
Ele virou as costas para ela, uma mão pressionada em seu flanco. — Você será
apresentada ao Senhor Demônio e seus cortesãos favoritos esta noite. — Ele estudou as
roupas que Imara tinha pendurado na parede para Haven antes de segurar um suntuoso
vestido de preto puro. A luz captada nas centenas de diamantes agarrados ao decote
profundo e brilhava como estrelas contra o céu noturno. — Use isso e todos os homens – e
mulheres – naquele salão não serão capazes de tirar os olhos de você, inclusive eu. Se em
algum momento você se sentir desconfortável, encontre-me no meio da multidão.
— Você estará lá?
— A partir deste momento, não vou deixar você fora da minha vista.
Ela arqueou uma sobrancelha. — Mesmo quando eu sair do banho?
Seu sorriso só poderia ser descrito como lupino. — Especialmente.
Ela o observou fundir-se de volta nas sombras. Então, ela lavou o cabelo e lubrificou seu
corpo, tomando seu tempo. Só quando o banho estava morno e frio ela finalmente se
levantou.
E, de algum lugar próximo veio o som fraco, mas inconfundível de uma risada baixa e
perversa.
Imara veio buscar Haven por volta da meia-noite. Haven passou horas depois de seu
banho transformando cada centímetro de si mesma em uma visão digna de uma Deusa. Sua
pele estava oleada em um brilho suave. Seu cabelo escovado e penteado de modo que caísse
em ondas de rosa-dourado pelas costas. De todas as joias apresentadas a ela, ela escolheu dois
grampos pretos incrustados de diamantes em forma de serpentes para manter o cabelo longe
do rosto.
O penteado desnudou a curva elegante de seu pescoço.
Stolas estava certo; o vestido preto se agarrava a cada curva que ela possuía e até mesmo
Haven teve dificuldade em desviar o olhar de seu reflexo no espelho de corpo inteiro.
Se Imara achava que as chances de Haven haviam melhorado drasticamente, era difícil
dizer. Ela poderia estar fazendo uma careta ou sorrindo enquanto conduzia Haven pelos
degraus iluminados por runas em direção ao refeitório. A adaga - revestida em metade do
frasco de poção - estava amarrada firmemente à sua coxa direita e ela deu acolheu o atrito
enquanto esfregava entre suas pernas.
A dor a lembrou que ela não estava totalmente indefesa.
Um peso frio pressionado logo abaixo de seu esterno. Ela usou tiras dos lençóis para
amarrar o frasco em volta do peito. Apenas se necessário.
Haven estava envolvida demais na beleza sombria do castelo para se sentir ansiosa. As
paredes foram criadas a partir de mármore ônix com veios de ouro, os tapetes ornamentados
feitos de padrões estranhos. Lustres de jade pendiam dos tetos arqueados, sua luz de runa
matizada de verme-amarelado. Servos e nobres demonai passeavam pelos corredores.
Eles passaram por uma garota demonai, com no máximo dez anos, andando como uma
pantera amarrada. Só quando os olhos verdes da pantera encontraram os de Haven, ela
percebeu que o animal de estimação era provavelmente um metamorfo Solis. Mas foi o olhar
de pena nos olhos da pantera que fez Haven perceber que ela também estava presa.
Mesmo que sua corrente fosse invisível, ela era um animal de estimação. Preparada,
alimentada e pronta para se apresentar para seu mestre.
Elas tinham acabado de descer uma escada majestosa que levava a um saguão quando
uma figura chamou sua atenção. Ela não tinha certeza do que chamou sua atenção para o
homem de pele azul pálida no canto. O capuz profundo de uma linda capa prateada e
turquesa lançava a maior parte de suas feições na sombra. Mas mesmo sem poder ver seus
olhos, ela o sentiu rastreando cada movimento dela.
— Imara. — Haven virou-se para a mulher curvada. — Quem é aquele homem?
Mas quando Haven olhou para trás, ele se foi.
Haven deixou que o estranho encontro saísse de sua mente, seus nervos crescendo quase
apagando a memória.
A longa bainha de seu vestido balançou em torno de suas pernas quando ela entrou no
salão de banquetes. Uma névoa esfumaçada de incenso e magia estranha cobria o
ar. Demonai de todo tipo enchiam as fileiras de mesas. Alguns estavam vestidos com uma
elegância que rivalizava com os governantes Solissianos. Alguns usavam túnicas e calças
manchadas de viagem. Todos tinham os olhos amarelos e dentes prateados que os marcavam
como demonai, caudas, chifres e outras feições bestiais escondidas sob capas e capuzes.
E cada um deles estava cheio de uma terrível sede de sangue. Mas foram as figuras quietas
no mezanino acima do estrado que gelaram o sangue de Haven. Foram seus olhares que ela
sentiu rastejando sob sua pele enquanto Imara empurrava Haven em direção ao estrado no
centro da sala.
Várias outras mulheres Solis já estavam alinhadas. Elas usavam vestidos semelhantes,
decotados para revelar o máximo de carne possível. Pelo brilho vidrado de seus olhos, todas
provaram o chá. Arrepios varreram Haven e ela lutou contra o desejo de envolver os braços
sobre o peito enquanto subia os degraus para se juntar a elas.
Onde estava Stolas?
Ela vasculhou a multidão em busca de seu rosto, apenas para encontrar o que tinha que
ser o Senhor Demônio, Malik, olhando para baixo do mezanino. Seu coração tropeçou em
um ritmo frenético quando ela viu o trono enorme em que ele estava reclinado. As costas
altas pareciam uma cobra encapuzada, completa com dois rubis gigantes no lugar dos
olhos. Uma coroa de presas e ossos se projetava de seu cabelo preto na altura dos ombros,
junto com os pontos mais escondidos de suas orelhas.
Essa era toda a confirmação que ela precisava. Stolas disse que todo Senhor Demônio
pode ser marcado por dois atributos: beleza surpreendente e orelhas pontudas não naturais.
As orelhas eram reais, mas o resto era uma ilusão e ela se perguntou que rosto esse Senhor
Demônio escondia atrás de sua máscara agradável - embora agradável pudesse ter sido um
exagero.
Cada traço era um pouco nítido demais, um pouco severo demais para ser considerado
atraente. Depois, haviam seus olhos amarelos serpentinos.
Algo em seu olhar frio sugeria uma crueldade insondável. Sua mão agitou-se
nervosamente para onde a adaga se escondia, confortada pela mordida fria do aço contra sua
coxa.
E, quando os olhos do Senhor Demônio se voltaram para ela e se demoraram, seu foco
afiado transbordando com fome insaciável, ela sabia que não teria nenhum problema em
colocar a lâmina em seu coração.
Mas primeiro ela tinha que convencê-lo a escolhê-la. Agindo por instinto, ela arregalou
os olhos com medo fingido, deixando seu olhar passar do Senhor Demônio para a porta,
como um coelho preso. Seu peito subia e descia em rajadas rápidas, os diamantes agarrados
ao seu decote lançando brilhos sobre suas bochechas e braços.
Era fácil agir petrificada quando o verdadeiro medo coagulava em sua medula. Runas,
ela provavelmente teria pesadelos sobre este reino horripilante nos próximos anos.
Em algum sinal silencioso, um servo mortal corpulento veio e levou todas, exceto Haven
e três das outras. Haven não teve que fingir a batida rápida de seu coração enquanto as luzes
diminuíam. Ela deveria estar triunfante por ainda estar no palco, mas seus instintos de
sobrevivência assumiram o controle, seu corpo preparado e pronto para fugir ao menor
ruído.
Música estranha e cativante deslizou pelo ar, diferente de tudo que ela já tinha ouvido
antes. A melodia lenta e assombrosa parecia envolvê-la. Acariciando sua pele, aquecendo sua
carne, aliviando seu pânico enquanto lentamente penetrava cada vez mais fundo dentro
dela.
Ela lutou contra a magia, especialmente quando suas inibições começaram a
desaparecer. Uma energia inquieta e reprimida se espalhou por seu peito, suas pernas, a
pressão crescendo. Cada músculo de seu corpo implorava para se alinhar com a batida.
As outras já tinham começado a dançar, balançando em círculos preguiçosos, movendo-
se de uma maneira sugestiva que Haven nunca tinha visto antes.
Apesar da atração da música, uma parte dela ainda não suportava dançar para o Senhor
Demônio. Seu orgulho se recusava.
É para isso que você está aqui. Mas ela não conseguiria. Não poderia dançar para um
bastardo como Senhor Malik. E ia custar-lhe a pintura.
Lembrando-se das palavras de Stolas para encontrá-lo, ela varreu o olhar sobre a
multidão de demonai, procurando aquele sorriso provocante familiar. Ela o encontrou
perto da frente do círculo, tão perto que poderia pular e tocá-lo.
Mas ele não estava sorrindo. Nem um pouco. Suas feições poderiam ter sido cortadas de
mármore enquanto ele a observava. Talvez fosse a música enfeitiçada o afetando, ou o
vestido, mas não havia dúvida de que o desejo queimava dentro de seus olhos.
Calor derretido explodiu em seu núcleo. Algo se esticou entre eles e os outros
desapareceram na escuridão abafada.
Seu mundo encolheu com a música, seu corpo e Stolas. Ninguém mais existia.
Antes que ela soubesse o que estava acontecendo, seus quadris começaram a
balançar. Então, seus braços. Levantando e flutuando acima dela enquanto ela balançava e
flutuava com a melodia. Ela teve um estranho fascínio na forma como o foco de Stolas se
fixou em cada movimento dela. A forma como seus lábios carnudos se separaram
ligeiramente e suas pupilas incharam enquanto seus quadris traçavam pequenos círculos
sobre o estrado. A fome em seus olhos era como na noite passada enquanto a observava, mas
diferente.
Quase... agridoce.
Como se cada torção de seu corpo dirigisse uma lâmina afiada de agonia e prazer mais
fundo em seu coração.
Seus olhos ainda estavam presos quando os instrumentos encantados pararam de
tocar. Uma onda de fria realidade rompeu o feitiço e Haven congelou no lugar. A cabeça de
Stolas virou para o mezanino, os lábios abertos em um rosnado silencioso.
Ela seguiu seu olhar, sabendo o que veria. Mas isso não a preparou para o medo gelado
que deslizou por sua espinha quando Senhor Malik apontou para ela. O gesto foi
irreverente, como se estivesse decidindo qual sobremesa mandaria para seu quarto.
De certa forma, ela ponderou sombriamente, ela era.
Um fio gelado de horror escorreu por sua espinha e ela encontrou os olhos de Stolas. A
expressão dele era dura, o maxilar cerrado, mas ela percebeu o aceno quase imperceptível
destinado apenas a ela.
Atrás dele, um lampejo de capa prateada e turquesa e pele azul-gelo chamou sua
atenção. Por que a mesma figura estranha estava tão perto de Sto...
Dedos frios e ossudos envolveram seu bíceps, as garras marcando sua pele arrepiada.
Ela se virou para encontrar um demonai com manchas de pele verde-escura e asas
esqueléticas e flácidas segurando seu braço.
— Você não é sortuda? — ele disse em um Solissiano gutural e quebrado.
Com sotaque ou não, seu sarcasmo era perfeitamente claro.
Ela não teve sorte. Na verdade, dada a forma como o demonai olhou para ela, as chances
eram boas de que a maioria das escravas de sangue de Malik nunca sobreviveu à noite.
O demonai parou na frente de uma porta de ferro esculpida para parecer um ninho de
cobras entrelaçadas. Cobras em movimento. Algumas das cabeças em forma de diamante
viraram em sua direção, línguas bifurcadas provando o ar. Eles mostraram suas presas
venenosas em um silvo.
Se uma porta coberta de víboras mortais não era um sinal para correr, Haven não sabia
o que era.
O demonai sussurrou uma palavra em serakki, a língua demoníaca, e as cobras voltaram
para a porta quando a fechadura se abriu.
O demonai girou a maçaneta de ferro, em forma de cabeça de víbora, e apontou com o
queixo pontudo para ela continuar.
Até ele sabia que não devia entrar.
Quando Haven deslizou pela soleira e a porta se fechou, uma onda de medo rolou sobre
ela. Ela tinha acabado de entrar voluntariamente nos aposentos privados de um Senhor
Demônio voraz armado apenas com uma adaga, um frasco meio cheio de poção e sua
inteligência.
O quarto estava velado pelas sombras. Haven respirou através de seu pânico
enquanto trabalhava para acalmar seu coração trovejante. Isso só levaria o Senhor Demônio
a um frenesi. Ela precisava dele interessado, mas apenas o suficiente para distraí-lo da lâmina
com seu nome nela.
Seus olhos atravessaram a escuridão enquanto se ajustavam. O cômodo era grande,
provavelmente para as vezes que Senhor Malik decidia compartilhar sua presa, móveis
espalhados por um enorme tapete de pele. Uma enorme lareira crepitava à sua
esquerda. Apesar das chamas lamberem o ar, o cômodo estava congelando.
Não havia cama, o que significava que provavelmente não era o quarto do Senhor
Demônio. Ela se virou em um círculo lento enquanto a decepção apertava seu peito. A
poção só funcionaria por uma hora, duas no máximo. Em um castelo desse tamanho, tudo
dependia dos aposentos da Guardiã estarem próximos.
Ela foi catalogar o resto do cômodo quando algo chamou sua atenção. Uma teia
translúcida pendurada sobre um sofá azul-marinho.
A curiosidade tornou-se alarmante quando ela finalmente entendeu o que era a teia: pele
de cobra.
Do tamanho de um homem grande. Ou um Senhor Demônio.
A sensação de ser observada caiu sobre ela como um vento gelado, os pelos de seu corpo
se levantando um a um. Medo pegajoso se agrupou sob seu esterno, tornando difícil
respirar. O suor deslizou por suas omoplatas.
Uma risada suave veio de trás dela.
O instinto implorou que ela se virasse para enfrentar a ameaça. Mas isso só provocaria
sua selvageria. Sua mente gritou quando ela se virou para encarar o Senhor Malik usando
movimentos cuidadosos e lentos.
Levou cada grama de sua força de vontade para não agarrar a adaga em sua coxa.
Ou pior, correr.
Suas feições eram ainda mais perturbadoras de perto. Sombras escuras se acumularam
nos recessos profundos de suas órbitas oculares e sua boca se torceu em um sorriso malicioso.
A cabeça do Senhor Demônio virou para o lado, o rápido movimento predatório
enviando seu coração a uma pirueta. — Você está com medo, ratinha?
Não havia razão para mentir. — Sim.
Sua garganta mergulhou, aqueles olhos amarelos caindo em seu pescoço. — Eu não
posso decidir o que eu gostaria mais. Deixar você tentar correr primeiro enquanto eu caço
você, ou pegar você imediatamente. O que você acha, ratinha?
Ela deu um passo para trás, sua mão avançando em direção a sua coxa. — Por que adiar
o prazer que pode ser obtido agora?
— Prazer? — Ele mostrou duas presas curvas do comprimento de seu dedo
mindinho. — Peço desculpas se você foi mal informada. Apenas um de nós sentirá
isso. Você, por outro lado, vai gritar. Ruidosamente. Você pode fazer isso, ratinha?
Ela segurou seu olhar, recusando-se a recuar. Para lhe dar o medo que ele desejava. —
Você não tem ideia do que eu posso fazer.
Ele estava mais perto - quando isso aconteceu? Seu coração bateu em sua garganta
quando ela piscou e ele estava a apenas alguns metros de distância.
— Então, me mostre.
Ele se tornou um borrão e depois desapareceu de vista. Onde ele está?
Sua mão se fechou ao redor da adaga quando ele a agarrou pelos ombros por trás. Seu
aperto era forte o suficiente para esmagar o osso. A agonia quente e branca queimou onde
seus dedos se apertaram em sua carne.
— Isso vai doer— ele prometeu, a respiração quente em seu pescoço. — Muito.
— Isso também. — Lâmina suada e fria em sua palma, ela a jogou para trás, preparando-
se para o impacto do metal encontrando carne e osso.
A dor explodiu em seu pulso. Ela foi sacudida. A mão do Senhor Demônio esmagou seu
pulso em um aperto, torcendo seu braço enquanto ele trazia a faca para examinar. — Ah,
você não é um rato, é?
Ela atacou, atingindo-o no rosto com um punho. Ele nem sequer vacilou. Algo estalou
quando ele torceu o braço dela ainda mais. O fogo subiu por seu antebraço. A adaga caiu no
chão de mármore.
Ela tentou bater nele de novo, mas ele pegou aquela mão. Em vez de raiva, seus olhos
ardiam com prazer perverso. — E você disse que não queria brincar.
— Não, eu disse que não queria adiar o prazer de enfiar aquela adaga no seu crânio.
Ela empurrou o joelho para cima, mas ele torceu fora de alcance.
Sua risada cruel reverberou pelas altas paredes de mármore. — Você realmente achou
que poderia me machucar?
Enfurecida, ela jogou a cabeça no prefácio, dando uma cabeçada em seu rosto
hediondo. Seguiu-se um estalo satisfatório.
Ela jogou a cabeça para trás e abriu um sorriso feroz. — Sim.
— Você realmente não deveria ter feito isso. — A pressão se liberou de seus pulsos e,
então, ele mostrou suas presas venenosas. — Corra, ratinha. Corra para que eu possa
encontrá-la.
A adaga. Ela vasculhou o chão de mármore...
Muito longe - estava muito longe, descansando sob uma otomana de marfim. Ela nunca
chegaria a tempo. Correr não era uma opção.
Horror a varreu quando sua ilusão se desfez como a pele de cobra no sofá. Quando ele
terminou, apenas seus olhos permaneceram os mesmos. Sua boca era uma longa cicatriz que
chegava de orelha a orelha, seu nariz largo agora dois buracos salientes e sua pele pálida havia
se transformado em ônix e escamas verdes.
Uma língua bifurcada disparou, piscando sobre seu rosto e pescoço.
Correr era o que ele queria que ela fizesse. O que ele esperava.
Ela se encolheu de seu rosto real, certificando-se de que seus olhos se arregalassem de
medo e sua respiração se tornasse difícil. Sua cabeça em forma de diamante começou a
deslizar para frente e para trás, seu olhar reptiliano travado nela.
Ela deixou um tremor balançar seu corpo congelado, como se estivesse petrificada
demais para fazer qualquer coisa além de tremer de medo.
O medo dela era como uma droga passando por cima dele. Ele bebeu, saboreando seu
terror abjeto, saboreando-o enquanto se preparava para atacar.
Tudo o que ele precisava agora era um empurrão final...
Com os olhos vidrados, ela forçou um grito agudo de sua garganta, como um coelho
preso em uma armadilha.
Ele não tinha ideia de que ela era a isca.
A boca do Senhor Demônio se abriu quando suas longas presas mergulharam direto em
seu pescoço.
Assim como ela queria que ele fizesse. Ela pegou o frasco meio cheio de poção, que ela
pegou enquanto Senhor Malik estava distraído por seu ato, e arremessou-o em sua boca
aberta.
Ele assobiou e cambaleou para trás, tossindo, arranhando sua garganta. — O que você...
Pálpebras translúcidas se fecharam sobre seus olhos quando ele piscou e, então, sua
expressão suavizou, seu foco embaçou.
— Isso levou mais tempo do que o planejado— uma voz masculina murmurou da
direita.
Ela se virou para olhar para Stolas. — Você esteve aqui o tempo todo?
— Como eu disse que estaria.
— Então, você poderia ter pegado a adaga, você poderia – poderia ter parado isso a
qualquer momento!
— Sim — ele respondeu enquanto caminhava até o Senhor Demônio e acenou com a
mão em seu rosto. — Mas eu pensei que depois do que ele te chamou, você iria querer provar
que ele estava errado... Ratinha.
Todo o terror e raiva reprimidos explodiram. As coisas que o Senhor Demônio planejava
fazer com ela... as coisas que ele já tinha feito com inúmeras mulheres...
O brilho da adaga chamou sua atenção. Ela pegou a arma, caminhou em direção ao
Senhor Demônio e enfiou a lâmina até o punho em seu coração.
Senhor Malik soltou um gemido baixo.
Stolas olhou para ela. — Acabou?
Ela puxou a lâmina livre, sangue xaroposo escuro arremessando pelo ar e escolheu o lado
oposto do peito de Senhor Malik para enterrar a arma.
A dor ondulou dentro dos olhos do Senhor Demônio, mas ele não se moveu. A ferida
aberta visível sob o buraco em sua camisa já estava se consertando, o que parecia injusto,
considerando o que ele havia planejado para ela. A dor e o tormento.
Ela agarrou a adaga, torcendo, antes de recolocá-la em sua coxa. Um grunhido abafado
escapou da boca de cobra de Senhor Malik, seus olhos a seguindo.
— Acabei — ela declarou.
— Tem certeza?
Ela exalou. — Sim.
— Uma pena. O covarde hediondo merece muito mais. — Stolas ergueu o lábio do
Senhor Demônio e correu um dedo curioso sobre uma de suas presas. — Interessante. Eu
acho que o veneno em suas presas age como um paralítico para evitar que suas vítimas
revidem.
A fúria a varreu. Ela não teve pouco prazer na forma como os olhos de Senhor Malik se
arregalaram quando ela pegou a arma, girando-a violentamente na frente dele. — Isto vai
doer. Muito.
Ela dirigiu a lâmina sob seu esterno.
Ele engasgou, engasgando com a dor.
— Quem é o ratinho agora?
Stolas arqueou uma sobrancelha.
— Agora, eu terminei.
— Tem certeza? Porque sua violência é quase tão sensual quanto aquela dança que você
fez antes. Conte-me. Aquilo foi para mim, Pequena Fera?
Calor ardente caiu através dela. Algo como realização brilhou por trás da expressão de
Senhor Malik e ela balançou a cabeça, esperando que suas bochechas não estivessem tão
vermelhas quanto pareciam. — Nós provavelmente deveríamos nos apressar. Eu realmente
não quero estar aqui quando ele acordar da compulsão.
Stolas deu um suspiro desapontado. Então, ele empurrou o queixo para Senhor
Malik. — Você infligiu a poção, então você é quem pode obrigá-lo.
Ela se endireitou na frente de Senhor Malik, tentando e falhando em não se gabar de sua
mudança de posição. Agora, era ela quem estava no poder. — Como chegamos à Guardiã?
Senhor Malik engoliu em seco. Piscou. Ele estava lutando contra a compulsão. Seu olhar
lentamente desceu atrás de Haven. — Pegue os túneis atrás da porta escondida lá. Quando
ele se ramificar, vire à esquerda. Os aposentos dela estão um pouco além.
— Haverá algum tipo de bloqueio ou feitiço para impedir a entrada — avisou Stolas.
Ela olhou para aqueles olhos horríveis mais uma vez. — Como entramos?
— Eu tenho... a chave. — Sob seu estupor, ela podia vê-lo lutando contra cada palavra.
— Onde.
— Meu pescoço.
Stolas pegou a chave e a colocou sobre sua cabeça.
— Mais alguma coisa que devemos saber? — perguntou Haven.
— Faz muito tempo desde que eu a alimentei. — Seus lábios se torceram em um
sorriso. — Ela ficará muito feliz em ter companhia.
Deusa Acima. Haven mal podia esperar para sair deste reino de pesadelo.
— Você vai esquecer o que aconteceu aqui — acrescentou Haven. — Esqueça tudo
sobre nós. Você não vai se lembrar de mim ou do meu companheiro. Entendeu?
— Sim. — Malícia brilhou dentro dos olhos de Senhor Malik e ela sabia que ele estava
ciente agora de tudo o que estava acontecendo, mesmo que ele não pudesse fazer nada para
detê-lo. — A ratinha e o lobo escuro.
Haven congelou quando um calafrio a percorreu. Ele sabia quem era Stolas?
Eles estavam ficando sem tempo. A compulsão só duraria pouco tempo. — Fique neste
quarto. Não saia a noite toda e, se alguém bater, diga que você está ocupado.
Ela atravessou a câmara, a luz do fogo brilhando nos diamantes em seu decote e
dançando sobre o cômodo, quando algo a fez olhar para trás. Stolas havia tirado a adaga do
Senhor Demônio e o esfaqueado novamente, no lado desta vez.
Ela percebeu por que um segundo depois, quando ele sussurrou algo no ouvido do
Senhor Demônio. Agora, Stolas poderia obrigá-lo.
Mandíbula apertada e olhos ardendo de ódio, Senhor Malik removeu a adaga de seu
lado, posicionou a lâmina longitudinalmente com a ponta afiada sobre o peito e cortou
profundamente. Um grunhido se seguiu quando sangue preto oleoso jorrou do corte.
Stolas a alcançou, sorrindo, mas o sorriso não alcançou seus olhos.
— O que você o fez fazer? — ela perguntou quando eles encontraram o túnel atrás do
painel escondido.
— Qual é o ditado, morte por mil cortes?
Haven ergueu as sobrancelhas. — É sábio provocá-lo ainda mais?
— Você quer dizer, além de drogá-lo, anular sua vontade, esfaqueá-lo – quatro vezes,
devo acrescentar – e forçá-lo a nos dar acesso ao seu bem mais precioso?
— Justo.
Stolas fechou o painel com um clique suave e, então, se virou para ela. Tochas
tremeluziam de algum lugar logo adiante, o ar frio e empoeirado. — Senhor Malik merece
ser esfolado vivo pelo que fez com você. Mas, por enquanto, vou me contentar com algumas
partes removidas.
— Você fez isso?
Um gemido abafado de pura agonia veio da câmara do Senhor Demônio e os lábios de
Stolas se curvaram em um sorriso diabólico.
Ele fez. Sombreamento Abaixo.
Seguiu-se um grito truncado, tão alto que qualquer um deste lado do castelo o
ouviria. Mas Haven sabia que os gritos daquela câmara eram uma ocorrência noturna.
Ninguém viria em auxílio do Senhor Malik.
Haven pensou que depois de lidar com Senhor Malik, a Guardiã seria mansa em
comparação. Ela estava errada. Quando eles se aproximaram da passagem final para os
aposentos da Guardiã, teias de aranha brancas e sedosas bloqueavam seu caminho. As teias
eram padrões intrincadamente tecidos que iam do chão ao teto, maiores do que qualquer
aranha normal poderia fazer.
A porta dos aposentos da Guardiã era ainda mais sinistra. Aranhas corriam pela
superfície de ferro, milhares delas.
Haven fez uma careta. — E aqui estava eu pensando que Senhor Malik era a pior coisa
que encontraríamos esta noite.
Stolas soltou uma respiração irregular. — A Guardiã é uma antiga áugure de sangue, a
mais antiga que conhecemos. Ela é parte demônio, parte bruxa e parte algo insidioso que
não é deste mundo.
— Ela pode prever o futuro?
— De certa forma. Alguns dizem que ela tece os fios do destino em uma teia
gigante. Que ela pode até manipular o destino.
— Como ela é?
Sua boca se torceu em desgosto. — Vil. Horrível em todos os sentidos. A primeira vez
que a conheci, ela veio na forma de uma bela mulher Serafim nua. Ela alegou que estava
sendo mantida em cativeiro por um Senhor Demônio. Que... que se eu apenas desse a ela o
que ela queria, isso a salvaria. Em troca, ela me deixaria ver meu futuro.
Haven engoliu. — O que ela queria?
— Eu na cama dela. — Aversão ondulou em sua expressão, um ódio poderoso e cru. —
Mas depois que ela me mostrou o que eu queria ver, recusei minha parte do trato. Eu era
jovem e estúpido e a essa altura eu tinha vislumbrado a criatura repulsiva espreitando sob o
encanto sedutor.
— Mas ela é prisioneira de Senhor Malik, ou isso era uma mentira?
— Sim. Ele a enganou com uma barganha inteligente anos atrás e, agora, ela é sua
amante. Esse era o preço dela. Ele deve visitar sua cama uma vez por mês. Em troca, ela o
alimenta com pedaços do futuro. O suficiente para que ele tenha ganhado uma vantagem
sobre todos os outros Senhores Demônios.
— Ele sabe sobre o portal do espelho?
— Duvido. Ele dificilmente parece do tipo que compartilha.
Então, deve ter sido outro Senhor Demônio que lhe deu o espelho.
— Por que você foi até ela uma segunda vez? — ela perguntou, procurando seu rosto. Se
a Guardiã realmente fosse tão hedionda como ele descreveu, não fazia sentido barganhar
com ela novamente.
Algo passou por seu rosto, rapidamente. — Porque eu estava desesperado para saber que
meu destino havia mudado.
— E tinha?
Sua mandíbula flexionou. — Devemos nos apressar antes que a compulsão de Senhor
Malik passe. — Ele virou as costas para ela, tirou a chave do pescoço e inseriu o objeto de
latão escuro no buraco da fechadura. Aranhas negras correram da maçaneta da porta
quando a proteção caiu e a fechadura girou.
Ruidosamente.
— Lá se vai a vantagem da surpresa— Haven sussurrou.
— Oh, ela soube no momento em que entramos no último corredor.
As teias de aranha.
— Este é o momento certo para mencionar que detesto aranhas? — ela murmurou,
assim que a porta se abriu lentamente.
Sozinha.
Stolas se virou para ela, seu rosto tomado por uma emoção que ela não conseguia
catalogar. — Espere. Eu só preciso olhar para você por um momento. — Seus cílios
mergulharam quando ele deslizou seu olhar sobre ela, lentamente, quase sem respirar. —
Quando fecho meus olhos, vejo você dançando ainda.Aquilo foi para mim, não foi?
Este não era o momento, mas... — Sim.
Ele encontrou seu olhar. Havia algo tão agridoce em seus olhos e ela não entendia por
quê. — O que aconteceu ontem à noite entre nós... não foi um erro. — Então, ele virou as
costas para ela, murmurando: — Está na hora.
Ela ainda estava cambaleando quando eles entraram em uma grande câmara que deve
ter sido uma linda sala de estar, mas agora estava coberta por anos de poeira. O luar inundava
as enormes janelas e iluminava um conjunto de sofás e cadeiras. Pinturas cobriam as paredes,
e bugigangas estranhas e itens pessoais estavam empilhados nos cantos. O paletó marrom de
um homem comido por traças. Colheres, garfos e todo tipo de talheres. A escova de
tartaruga de uma mulher ainda emaranhada com fios pretos.
Pulseiras de pérolas e punhos de ouro empilhados em mesas baixas ao lado de botas
gastas e um espartilho de osso de baleia encardido.
Teias de aranha cobriam tudo. Todos os fios de prata levavam para a próxima câmara,
um grande salão de entretenimento maior, onde Haven vislumbrou mais arte.
— Qual é o plano? — ela sussurrou enquanto eles caminhavam silenciosamente para a
câmara ao lado, abaixando os fios grossos de teia. Seus pés deixaram marcas na pesada
camada de poeira que cobria o chão.
— Eu pensei que poderia distraí-la enquanto você vai para a pintura — ele murmurou.
Suas asas se contraíram violentamente contra as teias de aranha grudadas em suas penas
e ela pensou que o pegou estremecer. Ele apertou a mão ao seu lado - a mesma área que ele
estava favorecendo na noite passada.
— Stolas...
Ruídos vinham de algum lugar bem acima, como pernas de aranha gigantes estalando
sobre mármore. Um dossel grosso de teia obscurecia o teto alto. Seu estômago caiu quando
ela viu o complexo emaranhado de fios começar a se contorcer e estremecer.
— Vocês são presentes do Senhor Malik? — veio uma voz sussurrante, como penas
macias roçando umas nas outras.
— Não exatamente — disse Stolas. Ele gesticulou silenciosamente para uma parede
cheia de pinturas do outro lado da câmara e Haven se esgueirou em direção à galeria
enquanto Stolas continuou: — Você se lembra de mim, Guardiã?
Poeira choveu sobre o chão enquanto o ninho da Guardiã estremecia com o movimento.
— Aproxime-se para que eu possa olhar para você — veio a voz sedutora da Guardiã.
Um baque suave atraiu o olhar de Haven atrás dela e ela ficou surpresa ao ver uma
mulher parada em um raio de luar. Ela estava nua, seu corpo lembrando Haven das estátuas
voluptuosas da Deusa que pontilhavam os templos. O cabelo ônix elegante caía em cascata
pelas costas.
Stolas avaliou a Guardiã. — Eu não sabia que era esse tipo de festa.
Sua risada era encantadora, hipnotizante mesmo. — Olá, Príncipe Serafim. Você veio
para finalmente cumprir sua parte quebrada do nosso acordo?
Seu olhar foi para Haven e voltou para a Guardiã. Eles não tinham muito tempo.
— Não, mas eu trouxe algo que você vai gostar ainda mais.
— A garota mortal mexendo nas minhas coisas? — a Guardiã murmurou e Haven
congelou. — Como você me mima.
Stolas só conseguiu distrair a Guardiã por pouco tempo antes que ela percebesse seu
plano. Haven vasculhou as telas na parede, encolhendo-se com as representações macabras
de demônios banqueteando-se com mortais. As inquietantes criaturas de outro mundo
trancadas em cenas gráficas de batalha. Muitas das telas estavam rachadas e embotadas pelo
tempo, suas molduras douradas ornamentadas apodrecendo.
Onde está você? Algo atraiu seu olhar para o centro da galeria e seu coração balançou
estranhamente.
Lá.
A pintura era menor que as outras, mas ainda maior que a média, do tamanho de uma
janela comum. A moldura era uma simples madeira sem verniz. Dentro do quadro, uma
mulher bonita com longos cabelos loiros segurava um bebê recém-nascido.
Rastejando o mais silenciosamente possível em um sofá prateado e vermelho com
estampa de rosas puídas, ela alcançou a moldura...
Ela empurrou a mão para longe da magia das sombras no momento em que símbolos
arcaicos brilhavam sobre a moldura, queimando um azul pálido.
O quadro foi encantado contra roubo. Pela magia fria que ela sentiu vindo das runas,
um toque provavelmente a teria incapacitado. Talvez houvesse uma maneira de desarmá-la?
Ela apertou os olhos para ver melhor os símbolos bizarros gravados na moldura, mas as
runas não pareciam familiares.
Seu coração afundou. Vir de tão longe só para ver a pintura e não poder tocá-la...
Tinha que haver outra maneira. Respirando com dificuldade, ela procurou pistas que
apontassem para a imortalidade. Mas havia apenas a mãe e seu bebê dentro de um quarto
simples e escassamente mobiliado. O sofá era marrom e manchado pela idade e pelo uso. A
mesa lateral ao lado estava vazia. E a única decoração era uma pintura na parede atrás delas...
Uma pintura. Ela olhou mais de perto para a tela. Em comparação com os móveis pobres
e a sala simples, a arte era cara. Uma pesada moldura dourada de hera envolvia o que parecia,
daqui, uma mulher com cabelos brancos esvoaçantes cuspindo luz dourada de sua boca.
Flores estavam espalhadas em um arco perfeito sobre sua cabeça. Acima disso, um rio
corria.
Era estranho e ainda assim... ela não conseguia tirar os olhos da imagem.
Uma pintura - dentro de uma pintura.
Algo puxou sua memória. Outra obra de arte, esta criada pela mãe de Stolas.
E se fosse isso mesmo? E se ela pudesse entrar na própria arte? E se a verdadeira pintura
estivesse disfarçada dentro desta, escondida à vista de todos?
Isso explicaria para onde foi a segunda pintura.
Antes que ela pudesse pensar demais, ela deslizou para fora do sofá e recuou. Então, ela
correu para o sofá e pulou no quadro.
Seus olhos se fecharam contra a expectativa de bater na parede. Em vez disso, ela caiu.
Na pintura.
Não podia ser possível, mas era. De alguma forma era. Em vez de mármore frio e
empoeirado, o chão pressionado em sua bochecha era de madeira desgastada. O cheiro
sufocante de magia vil se foi, substituído pelo cheiro de madressilva e pão recém-assado.
A sala não era nada glamorosa, mas alguém se importava o suficiente com este lugar para
manter o chão varrido e limpo. Uma luz suave e quente se derramava das janelas abertas
sobre um tapete escarlate esfarrapado.
O zumbido chamou a atenção de Haven para o sofá. A mulher usava um xale sobre um
vestido cinza e estava embalando o bebê no colo. Seus olhos dourados brilhavam com amor
sem fim.
A garganta de Haven apertou quando ela se levantou e se aproximou. A música que a
mulher cantava era familiar. Demelza cantarolava a mesma melodia. Era uma canção de
ninar.
Haven congelou quando a voz da mulher encheu o ar.
— O veado na floresta, o urso no campo, todos eles se curvarão a você. Os corvos lá no
alto, as Sombras de perto, todos eles jurarão a você. Os reis mortais, eles cairão todos, para
adorar aos seus pés. Mas aqueles que não prestam atenção à sombra das asas, à mordida dos
olhos de fogo, sua ira virá e os engolirá inteiros, a menina do fogo e do gelo.
Essa cena aconteceu. De alguma forma Haven entendia isso, assim como ela entendia
que sua mãe havia preservado a memória para Haven para que ela soubesse o quanto ela foi
cuidada uma vez.
Que sua mãe havia cantado para ela. A tinha amado - o suficiente para morrer de bom
grado para que ela pudesse viver.
Uma parte de Haven desejava ficar aqui. Para mergulhar na pura adoração que ela sentia
irradiando de sua mãe como a luz do sol, um tipo requintado de calor que ela poderia nunca
sentir novamente.
Seria quase o suficiente, ela pensou.
Quase, mas não exatamente. Seus amigos esperavam do outro lado e eles tinham
desistido de tudo por ela. Então, havia Stolas...
Stolas.
— Acho que você gostaria dele — ela sussurrou para sua mãe, que não podia ouvi-la, é
claro. — E eu acho que ele iria adorar você.
O bebê arrulhou e o cobertor enrolado em torno dele foi puxado para trás de modo que
um vibrante cabelo rosa-dourado apareceu.
Hora de voltar. Haven segurou cuidadosamente a moldura e levantou-a, a pintura
pesada em seus braços. Ela viu a cena uma última vez, gravando cada detalhe na memória e,
então, ela saltou através da escuridão para o outro lado.
Stolas lutou contra a atração enganosamente suave da beleza da Guardiã. A magia em
seu encantamento ficou ainda mais poderosa do que na primeira vez que ele negociou com
ela. Ele encontrou seu olhar atraído para seus grandes olhos escuros. A inocência fingida
atraiu seu lado predatório, como ela sabia que faria.
Seu cabelo preto como a noite caía sobre um seio enquanto ela ignorava Haven
completamente. Tal era sua confiança que tanto Haven quanto ele foram pegos em sua teia.
Gavinhas de seus poderes vis deslizavam sobre suas paredes mágicas internas, testando,
procurando por uma fraqueza. Uma maneira de influenciá-lo.
Ele cerrou os dentes contra a ferida lancinante enrugando seu lado, o veneno preto
penetrando em sua corrente sanguínea. Haven estava certa. O veneno quase o matou. Ele
esperava que a alimentação da noite passada retardasse a toxina vil o suficiente para que sua
magia pudesse fazer o resto, mas o que quer que fosse, era muito poderoso.
Logo o pouco de magia que o sangue do demônio lhe permitia diminuiria e, então, ele
não seria capaz de manter o veneno contido por mais tempo. Isso encheria suas artérias, seu
coração bombeando para todas as partes de seu corpo.
— Por quê você está aqui? — a Guardiã ronronou. — A última vez que te vi, você ficou
muito desapontado. Não me diga que você quer confirmar seu destino trágico
novamente? A resposta será a mesma, mas o preço desta vez será muito mais alto.
Stolas ficou de olho em Haven em sua periferia. Ela estava em um sofá examinando algo
na parede. Ele encontrou o olhar de outro mundo da Guardiã, seu rosto sem emoção
quando ele disse: — E se eu lhe disser que há duas razões para esta visita?
— Duas razões? — Ela arqueou as costas um pouco enquanto se aproximava. — Agora
estou muito curiosa, príncipe. Muito curiosa mesmo.
O som alto de passos veio do outro lado da sala. A cabeça da Guardiã virou para Haven
assim que ela pulou no sofá e...
Sombreamento Abaixo. A tola pulou na parede...
E desapareceu. Ele piscou, a cabeça inclinada. Isso era inesperado, mas ele confiava que
ela tinha uma razão.
A Guardiã lentamente virou a cabeça para ele, o movimento do inseto corrompendo sua
ilusão inocente. — Oh, alguém está sendo muito travesso. — Seus lábios curvados se
curvaram em um sorriso malicioso. — É ela, não é? A imortal que você está destinado a
amar? — As narinas da Guardiã se dilataram quando ela inalou profundamente. — Ah, mas
ela ainda é uma mortal e o vínculo de acasalamento entre vocês não foi garantido. É por isso
que você pensou que era seguro amá-la?
Stolas puxou uma lâmina. A adaga foi esculpida em obsidiana, a primeira arma que sua
mãe lhe deu. Ele a usara todos os dias de sua vida.
Os olhos muito arregalados da Guardiã deslizaram para a adaga, seus lábios formando
um biquinho falso. — Meus sentimentos estão feridos, Príncipe.
— Tenho esta arma escondida ao meu lado desde que minha corte caiu. — Sua garganta
doía enquanto ele segurava a adaga contra o delicado luar. O cabo de obsidiana frio não
tocava seus dedos há séculos e o peso familiar abriu memórias – memórias sombrias e de
pesadelo que ele havia bloqueado. — Esteve esperando pacientemente.
— Pelo quê, doce príncipe?
— Vingança.
Ele atacou tão rápido que nem ela conseguiu se mover antes que a lâmina cortasse seu
peito. Um grito de inseto dividiu a noite enquanto ela cambaleava para trás, sua bela ilusão
sangrando para a bruxa demoníaca abaixo.
— Aí está você — ele sussurrou, estremecendo em repulsa.
Tufos de cabelos grisalhos e grossos pendiam de uma cabeça esquelética, olhos de insetos
pretos do tamanho de ovos olhando para trás. Seu nariz tinha duas fendas acima de duas
presas de aracnídeo que se curvavam até o queixo. Oito pernas parecidas com aranhas
estavam presas ao corpo dela e elas estalaram contra o chão de mármore empoeirado
enquanto ela voltava para sua teia.
— Idiota. — Seu sussurro enfurecido reverberou pela sala. — Tolo estúpido.
A agonia ondulava em seu lado e ele bateu a mão contra a ferida febril. Toda a sua
concentração foi para usar sua magia para evitar que o veneno se espalhasse. Para esconder a
lesão por tempo suficiente...
A agonia derretida irradiava da ferida. Ele cambaleou, reprimindo um gemido. O
veneno estava se movendo muito rápido. Ruídos farfalhantes vinham de todos os lados.
A escuridão corroeu sua visão enquanto ele procurava pela Guardiã. Ele precisava que
ela atacasse antes que Haven voltasse. — Você entrou na minha casa e pegou algo que não
pertencia a você.
Uma risada arrepiante ecoou ao redor dele. — Você quebrou a lei da Deusa quando
recusou sua parte do nosso acordo, Príncipe. Eu tinha todo o direito de pegar o que quisesse
naquela época. Embora, se eu soubesse o poder daquela pena quando a troquei com
Morgryth, teria pedido muito mais.
A pena de sua mãe. O veneno cáustico inundou sua mente agora, sua visão embaçada. A
dor rasgou seu peito.
O veneno de Archeron entrou em seu coração.
Cada respiração agora trazia uma agonia profunda e devastadora. Ele mergulhou para
frente, teias de aranha grudadas em seu rosto, suas asas, seu cabelo. Ele balançou a lâmina
descontroladamente, a borda afiada cortando o ninho da Guardiã.
Uma faixa preta à sua direita. Ele girou para encará-la, piscando contra sua visão
desbotada para a criatura monstruosa. — Minha mãe me ajudou a criar esta adaga e, então,
Morgryth me forçou a enfiá-la em seu coração.
— Você não pode me culpar por isso— a Guardiã cantarolou.
— Ah, mas eu posso. — Ele pulou, mas ela deslizou para fora de seu alcance.
Ele cambaleou quando o fogo em brasa pulsava sobre cada centímetro dele.
— Vamos, sua vadia — ele rosnou.
Ele a ouviu atrás dele, mas estava longe demais para se virar antes que ela atacasse. Hastes
gêmeas de dor golpearam a carne entre seu pescoço e ombro quando a Guardiã enfiou suas
presas nele. A mordida de seu veneno veio em seguida.
Seguido por uma dor surda quando ela começou a se alimentar.
Ele supôs que havia alguma justiça sombria nisso.
Ele esperou até ter certeza de que ela tinha tomado o suficiente, até que não houvesse
dúvida de que o veneno inundando suas veias estava dentro dela também – e, então, ele usou
o resto de sua energia para arremessá-la de cima dele.
Ele rolou de costas. Suas asas estavam espalhadas embaixo dele no chão empoeirado, seu
peito arfando e pulmões chacoalhando a cada inalação.
Estava terminado.
Suas pernas finas bateram no mármore enquanto ela se aproximava. — Você disse que
havia duas razões pelas quais você veio aqui, Príncipe. Me divirta com o segundo antes que
eu termine de matar você.
Uma tosse violenta sacudiu seu torso. Então, era assim que era morrer de verdade. — Eu
vim... ajudar alguém que eu amo.
Ela levantou uma de suas pernas para acariciar seu rosto. — Este é o infame Senhor do
Submundo? O Príncipe Serafim que uma vez me desprezou? Que decepção você é. Você
falhou em ambos.
— Você está... tão certa sobre isso?
Mesmo meio morto, Stolas ainda estava lúcido o suficiente para captar o momento em
que ela entendeu o que ele havia feito.
Ela assobiou. O ar frio atacou sua pele inflamada enquanto ela levantava sua camisa. O
que quer que ela tenha visto em seu flanco, deve ter sido terrível, porque ela gritou,
deslizando para longe dele. — O que é que você fez?
— Veneno— ele gemeu. — Não tenho certeza... que tipo, mas não é agradável. Não é
possível encontrar um... antídoto. — Seus lábios secos se esticaram em um sorriso de dor. —
Pena que você não pode prever sua própria morte.
Seus guinchos se tornaram gritos quando o veneno tomou conta. — Não é assim que
você deveria morrer — ela engasgou. — Eu vi você caindo do céu. Eu a vi matar você.
— Bem, eu estou mudando as coisas... um pouco. — Ele se pegou rindo, apesar de
tudo. Depois de tudo que ele tinha sobrevivido, era o veneno de Archeron que finalmente
acabaria com ele.
Fechando os olhos, ele empurrou o som de sua mente e se concentrou na memória de
Haven dançando.
Só para ele.
Haven foi daquele mundo mágico para o silêncio. Um silêncio sombrio e terrível que
ressoou em seus ossos. Teias de aranha foram quebradas e estavam espalhadas por toda parte,
móveis revirados. E em um ponto vazio do chão, deitado de costas com as asas estendidas
para trás, descansava Stolas.
Ele não estava se movendo, nem mesmo suas penas, que nunca paravam quietas.
Não.
O pânico floresceu em seu peito quando ela viu a criatura de lado a alguns metros de
distância, claramente morta. Ela jogou a pintura em uma cadeira e correu para Stolas,
chamando seu nome.
Uma de suas asas se contraiu, acendendo uma faísca de esperança dentro dela.
Ele ainda estava vivo...
Sua esperança se despedaçou quando ela olhou em seu rosto. Seus olhos estavam
revirados para trás em sua cabeça, sua boca torcida de dor e salpicada de preto. Uma mão
repousava sobre o peito dele, os nós dos dedos cerrados e brancos sobre uma adaga preta que
ela nunca tinha visto antes. — Stolas, o que está acontecendo? Eu não entendo.
Ela agarrou sua camisa, assustada com o calor febril de sua pele irradiando através do
tecido. O desespero a deixou desajeitada quando ela o arrancou, botões voando.
Um gemido suave separou seus lábios.
— Oh Deusa — ela murmurou enquanto olhava a ferida ao seu lado. A lesão em si era
pequena, do tamanho de um dedo mindinho, mas veias pretas serpenteavam para fora do
buraco, deslizando sobre sua caixa torácica e ao redor de suas costas. — O que é isso? Stolas,
por favor.
Dois ferimentos desagradáveis, do tamanho de uma moeda, vazavam sangue fresco logo
acima de sua clavícula. Tinha que ser onde a Guardiã o mordeu. Seu peito estremecia com
cada respiração superficial.
Lutando contra as ondas de histeria que ameaçavam afogá-la, ela estendeu a mão para
tentar alcançar sua magia, mas não conseguiu. Frustrada, ela tentou de novo e de
novo. Batendo contra aquele vazio oco. Agarrando-o com fúria. Em desespero aterrorizado.
Nada.
Ela não podia ajudá-lo. Não podia fazer nada além de assistir enquanto ele engasgava e
desvanecia.
Ela olhou novamente para sua ferida purulenta, tentando entender. Entender o que
estava acontecendo.
Era o mesmo flanco que ele estava tocando.
A lesão era antiga.
— Por quê? — ela exigiu, implorando para ele abrir seus estúpidos olhos prateados e
olhar para ela. Bastava olhar para ela. — Por que você não me contou?
O choque estava tomando conta. Um choque entorpecido e impotente. Ela não sabia
como ajudá-lo, e ele estava morrendo.
Morrendo.
Ela bateu a palma da mão no chão, de repente furiosa com ele. — Você não pode me
deixar, Stolas. Assim não.
— Tocante, mas sua raiva não fará nada para impedir que esse veneno em particular o
mate, eu temo.
Haven lutou para se colocar entre a ameaça e Stolas. A figura saiu das sombras...
— Sua capa — ela disse, confusão aumentando sua selvagem variedade de emoções. —
Eu vi você mais cedo. Duas vezes.
— Sim. — Ele jogou o capuz para trás e se ajoelhou ao lado de Stolas.
Haven ofegou. — Você é um Senhor Demônio.
A ponta afiada de suas orelhas saía de seu cabelo curto e grisalho, mas foi sua beleza que
confirmou suas suspeitas.
Grandes olhos amarelos com bordas de carvão ergueram-se para ela. — Suspeito que
você tenha muitas perguntas, mas simplesmente não temos tempo. Tudo que você precisa
saber é que meu nome é Raziel e, sim, eu sou um Senhor Demônio. Um tolo que uma vez
negociou com uma Imperatriz Serafim e perdeu quase tudo.
Ela não teve tempo para ser cética. — Então, você está aqui para ajudar Stolas?
— Estou aqui para salvar a vida dele. Três vezes devo esse favor a ele antes que minha
obrigação seja cumprida.
— Se isso for verdade, onde você esteve todas as outras vezes que ele quase morreu?
Ele encolheu os ombros. — Minha obrigação não começou até que ele entrou no Reino
Demoníaco.
Haven exalou, sua mente girando. — Digamos que vou confiar em você, porque não
tenho outra opção. O que eu preciso fazer?
Raziel franziu o cenho para a ferida de Stolas. Ele cheirou o ar e sua carranca se
aprofundou. — Suspeito que o veneno seja mira podre, um veneno particularmente
perverso obtido de um demônio de alto nível.
— Quando ele teria... — Suas palavras se desvaneceram quando uma visão de Archeron
se esgueirando atrás de Stolas veio à tona.
Ele o envenenou então? Stolas deveria ter dito alguma coisa...
Não importava. Ela lidaria com isso mais tarde. — Existe um antídoto?
— O sangue de um Deus. Alguns frascos raros existem em algum lugar, mas seriam
quase impossíveis de encontrar e, a essa altura, ele estaria muito, muito morto. — Seu olhar
pousou em seu pescoço. — A menos que você conheça outra fonte?
Ele sabia quem ela era. Não fazia sentido dançar em torno da verdade.
Ela assentiu. — Meu sangue. — Ele nem se incomodou em fingir surpresa. — Como eu
- eu não sei como fazê-lo beber de mim.
— Dê-me seu pulso— Raziel comandou.
Em qualquer outro momento sua voz suave a teria aterrorizado. Mas se ele queria beber
dela, ou pior, não havia necessidade de uma história tão elaborada.
Ela ofereceu o braço, a mão virada para cima. Ela quase o puxou de volta quando viu a
garra afiada deslizar da ponta de seu dedo. Em um lampejo, ele abriu uma ferida profunda
em seu pulso.
Seu olhar permaneceu no sangue um segundo a mais, mas, então, ele rosnou e forçou
sua atenção em Stolas.
— Você não tem que ficar— ela disse enquanto se aproximava de Stolas. Seu peito parou
de se mover e seu coração apertou. Mas, então, sua respiração flutuou sobre seu pulso
quando ela o pressionou contra seus lábios e ela cedeu contra ele em alívio momentâneo.
— Quem vai impedi-lo de drenar você até você virar uma casca vazia? — Raziel meditou.
— Ele não vai me machucar.
— Você percebe quem é este, certo?
— Ele não vai me machucar — ela repetiu.
— Acho que vou ficar, só por precaução.
Ela ficou tensa, sem saber o que esperar enquanto seu sangue manchava os lábios de
Stolas.
Ele se mexeu.
Pressionando mais forte, ela chamou seu nome.
Suas pálpebras se abriram, todos os olhos negros cegos enquanto vagavam de um lado
para o outro. Sua mão disparou, prendendo seu antebraço, suas presas afundando
profundamente. Ela conteve o grito de dor quando ele chupou - com força - a pressão em
suas veias combinando com o latejar dolorido onde seus dentes penetravam.
Ela se mexeu de joelhos contra a dor. Ele rosnou, segurando seu pulso com tanta força
que ela não tinha esperança de se libertar.
— Stolas.
As veias negras e oleosas estavam lentamente recuando para dentro da ferida enquanto
uma faísca dourada de luz crescia no centro de seus olhos.
— Stolas.
A ferida estava cicatrizando agora, todos os sinais do veneno purulento
desaparecendo. As perfurações acima de sua clavícula também estavam se curando.
— Stolas.
— Diga-me quando você quer que eu o force a parar— Raziel disse em um tom
entediado.
— Stolas.
— De preferência antes que ele te mate...
— Stolas!
As pupilas de Stolas se contraíram de volta ao seu estado normal, seus olhos correndo
para o rosto dela. O reconhecimento se estabeleceu naquelas profundezas cheias de magia,
seguido por outra coisa. Um vínculo mais profundo que era ao mesmo tempo confuso e
surpreendente.
A dor profunda em seu pulso se desvaneceu para um latejar pungente quando suas
presas se retraíram. A testa de Stolas franziu quando ele olhou dela para Raziel e de volta e,
então, ele deu um grunhido gutural. — Você tem alguma ideia do que você fez, Senhor
Demônio?
Raziel sorriu. — Salvei sua vida?
Ela arrancou o pulso e envolveu os dedos ao redor das feridas.
— Ele provavelmente estará um pouco fora de si por alguns minutos — Raziel
murmurou e ela notou que ele estava recuando.
Ela franziu a testa para ele. — Onde você está indo?
— Oh, eu não mencionei que ele me despreza com cada fibra do seu ser? — Raziel piscou
com um sorriso escuro. — Ele me culpa, entre outros, pela queda prematura de sua corte e
pela morte da imperatriz.
— Espera. — Ela olhou mais de perto para ele. — Você é o Senhor Demônio que lhe
deu o espelho?
— Ele mesmo.
Stolas cambaleou enquanto se apoiava em seus cotovelos, seus olhos atordoados
enquanto tentava se concentrar em Raziel. — Você — Stolas rosnou.
— Eu. — Raziel deu uma pequena reverência. — Até a próxima, Darkshade.
Stolas rugiu quando ele tropeçou em seus pés e cambaleou em direção a Raziel, mas o
Senhor Demônio simplesmente... desapareceu.
Stolas estava respirando com dificuldade, seus olhos correndo ao redor da câmara. Ela
precisava levá-los de volta para Shadoria. Teias de aranha desfiadas mascaravam os móveis e
pertences e ela arrancou os fios pegajosos de tudo o que podia até...
Lá. Uma lasca de jade apareceu por baixo das teias de seda. Ela rasgou mais para revelar
exatamente o mesmo espelho que estava no Castelo Perfurador de Estrelas.
Ela correu de volta para Stolas, deslizando o braço sob o dele e juntos eles mancaram em
direção ao espelho. No último segundo antes de cruzarem o portal, ela se lembrou.
Deusa Acima e tudo sagrado, ela quase esqueceu a maldita pintura.
Uma vez que estava segura em mãos, ela se juntou a Stolas. Seu olhar bêbado percorreu
seu corpo de cima a baixo, um sorriso de lobo levantando seus lábios – lábios ainda
molhados com o sangue dela. — Por que você parou?
— O quê? — Ela o forçou em direção à superfície do espelho.
— De dançar. Você parou de dançar.
Revirando os olhos, ela o empurrou pelo portal. Ela estava prestes a segui-la quando
sentiu alguém olhando por cima de seu ombro. Raziel.
O Senhor Demônio sorriu. — Foi uma bela atuação.
Ela suspirou. — Quando Stolas se recuperar de seu estupor, há uma chance de eu matá-
lo novamente. Você pode querer estar pronto.
— Estou ansioso por isso, Nascida da Deusa.
Com isso, ela atravessou o espelho e deixou o mundo de pesadelo dos demônios para
trás.
Haven estava sentada no chão frio da câmara da torre de Stolas, olhando para a
pintura encostada ao lado de sua cama, quando ouviu Stolas pousar atrás dela. Eles haviam
chegado em Shadoria apenas algumas horas atrás. A magia do portal deixou Stolas sóbrio
imediatamente.
Ele não disse uma palavra quando Haven foi encontrar Surai e Ember. Era de manhã
cedo aqui, mas eles já estavam acordados, preparando suprimentos para viajar para a
Eritreyia.
Haven ficou desapontada ao descobrir que Bell já tinha ido embora. Ele e Xandrian
partiram ontem à noite para Ashiviere.
Ele teria adorado tentar interpretar a pintura com ela.
Eles haviam decidido por agora que a pintura estava mais segura no quarto de
Stolas. Depois de verificar que Demelza estava bem, Haven o fez trazê-la aqui, atraída pelo
mistério da pintura. Enquanto ela procurava pistas na tela, ele saiu para encontrar Nasira.
Agora Haven estava sentada de pernas cruzadas na frente da arte, suas costas rígidas e
doloridas enquanto ela franzia a testa para a cena confusa. Sua Loba das Sombras estava
esticado a alguns metros de distância. A loba ganiu quando Stolas se aproximou, mas Haven
não conseguia tirar o foco da pintura.
Nada na ilustração fazia sentido. A mulher na tela estava de costas para que seu rosto
não fosse visível. Ela estava de joelhos em um campo de papoulas, braços estendidos e cabeça
para trás. Tudo na mulher era luminescente – seu cabelo, sua pele, seu manto carmesim
esvoaçante.
Mas era a magia branca pura saindo de sua boca que Haven achava mais fascinante.
A placa na parte inferior foi intitulada: A Cantora de Luz.
— O que as flores acima dela significam? — Stolas perguntou e ela se assustou com a
rapidez com que ele fechou a distância entre eles. Às vezes ela esquecia que ele podia se mover
com uma velocidade silenciosa.
Ela exalou, levantando de seus joelhos para um suporte. — Ainda não sei.
— Você passou por muita coisa nas últimas horas. Descanse. Estará aqui de manhã.
Ela se virou para ele, chocada ao ver um novo arranhão descendo por sua bochecha. Já
estava cicatrizando. — O que aconteceu?
— Nasira. — Ele beliscou a ponte de seu nariz. — Nós tivemos uma discussão, mas você
não precisa se preocupar com isso. Não essa noite. Descanse.
— Eu não posso. Não até que eu tenha banhado cada pedaço de sujeira do Reino
Demoníaco. Mas Demelza está roncando alto o suficiente para acordar o Sombreamento e
estou cansada demais para me banhar.
Seus olhos eram luminosos enquanto seus lábios se inclinavam em um sorriso
sombrio. — Posso te ajudar com isso.
— Você pode me ajudar a tomar banho?
— Por que não? Não é como se eu não gostasse.
Sua garganta se apertou com a intimidade em sua voz. A promessa de continuar o que
começou no Reino Demoníaco era sedutora. E ainda... — Porque você mentiu para mim?
— Ela encontrou seu olhar. — Por que não me disse que você foi envenenado? Que você
estava... — Sua voz vacilou. — Morrendo?
Ele estendeu a mão. — Sente-se e eu prometo explicar.
Seu coração estava acelerado quando ela o deixou levá-la para um sofá escuro na frente
do fogo. Mas em vez de sentar, Stolas andou na frente dela, a luz do fogo refletindo em suas
penas. — A princípio, não lhe contei o que Archeron tinha feito, porque sabia que você
teria insistido em encontrar o antídoto em vez da pintura. Eu pensei – esperava que a
alimentação dos outros fosse suficiente para que minha magia pudesse fazer o resto.
— Mas não foi.
— Ajudou e eu estava esperançoso. Mas, quando te encontrei em seu banho naquela
noite, sabia que o veneno que Archeron usava era mais potente do que eu esperava. As
toxinas do Reino Demoníaco são altamente eficazes, mesmo contra mim.
Uma respiração irregular levantou seu peito. — Por que não me disse então?
— Porque estávamos tão perto de seu objetivo e... — Ele passou os dedos pelos cabelos
claros. — Você estava disposta a sacrificar tanto para proteger seus amigos, como eu poderia
não fazer o mesmo?
Ela fechou os olhos contra as lágrimas que sentiu se acumulando. Ele não sabia o quão
importante ele era para ela? — Você sabia que meu sangue poderia curá-lo?
— Não. Suspeito que foi o golpe final de Archeron. Ele assumiu que eu morreria ou
beberia de você e perderia todo o controle.
— Exceto que você não fez. Você parou. — Seu olhar deslizou para seu pulso, o curativo
cobrindo suas feridas. — Então, você decidiu usar o veneno lentamente matando você para
matar a Guardiã?
Ele deu de ombros. — Foi precipitado, admito. Mas eu estava morrendo de qualquer
maneira e ela nunca iria parar de caçar você por pegar o que pertencia a ela, Haven. — Sua
mandíbula endureceu. — Eu não vou mentir - matá-la foi um tipo de vingança.
— O que ela tirou de você todos esses anos atrás?
Olhos assombrados se ergueram para encontrar os dela. — O Senhor Demônio que
salvou minha vida, Raziel? Ele e seu pai vieram ao nosso reino para negociar. Em troca de
prometer-lhes acesso exclusivo aos escravos de sangue, ele ajudaria minha mãe a alcançar a
paz, o fim de uma guerra aparentemente sem fim. A Guardiã foi um dos presentes que ele
forneceu, mas minha mãe se recusou a negociar com a bruxa.
— Então, você negociou com ela?
Seu olhar era sombrio quando ele assentiu. — Mas em vez de ajudar a prever a guerra,
ela me contou meu futuro. Um que eu não queria ouvir. Na minha arrogância e ignorância,
pensei que poderia negar minha parte no trato, sem saber que isso dava a ela o direito de
entrar em nossa casa e pegar o que quisesse.
Haven estava estranhamente sem fôlego quando ela perguntou: — E o que foi isso?
— Uma única pena. Da minha mãe. — Suas mãos se fecharam e relaxaram ao lado do
corpo. — Toda imperatriz é presenteada com os poderes desta terra, os mesmos poderes que
eventualmente irão para Nasira. Mas a magia de um Serafim está enraizada em nossas penas
e é por isso que minha mãe era meticulosa em garantir que cada pena errante dela fosse
queimada. — Sua cabeça inclinou para trás quando um suspiro irregular escapou de seus
lábios. — Quando ela descobriu que eu havia negociado com a Guardiã, brigamos na frente
do espelho. Nenhum de nós notou a pena que ela perdeu na batalha. Mas a Guardiã sim e
ela a pegou para dar ao Senhor Malik. Ele descobriu nosso acordo de negociar apenas com a
corte de Senhor Raziel, então ele deu a pena para Morgryth e fez seu próprio acordo.
Haven engoliu. — A pena... foi isso que permitiu que Morgryth roubasse os poderes de
sua mãe?
Mesmo com apenas seu perfil visível, ela pegou o lampejos de agonia em sua
expressão. — Sim. Os feitiços necessários para extrair magia tão forte são raros, mas existem
no Reino Demoníaco.
Ela ficou alarmada ao descobrir suas mãos tremendo em seu colo. — Se isso for verdade,
por que ir a Guardiã uma segunda vez, Stolas?
Quando ele encontrou seu olhar, ela quase engasgou com a emoção crua em seus
olhos. — Porque eu estava desesperado para ouvir que meu futuro havia mudado. Eu
deveria saber que o destino não se dobra a ninguém, nem mesmo a mim.
Isso foi logo depois que eles voltaram de Veserack e, de repente, não parecia coincidência
que seu humor se piorasse logo depois. — É por isso que você tentou me afastar? Para me
proteger desse futuro sombrio?
Sua garganta mergulhou.
Outro pensamento veio. — No Reino Demoníaco, em nossa tenda – você só veio para
minha cama, porque sabia que estava morrendo.
— Pelo que me lembro, você não aceitaria um não como resposta.
— Alguma coisa teria acontecido de outra forma?
Sua respiração ficou presa quando ele se aproximou de repente. Ele se ajoelhou entre as
pernas dela, deslizou as mãos atrás dos joelhos dela e a puxou para ele. — Peço desculpas por
te machucar. Por te afastar. Eu pensei... pensei que estava protegendo você de algo pior. Eu
pensei que poderia de alguma forma mudar o futuro, mas o que está feito está feito. — Seus
dedos enviaram arrepios de prazer percorrendo sua carne enquanto deslizavam por suas
coxas. — Eu vejo agora que eu não poderia impedir essa coisa entre nós mais do que eu
poderia impedir que o sol nascesse todas as manhãs.
O músculo baixo em seu abdômen se esticou. — E o que é essa coisa entre nós,
exatamente?
— Eu quero você, Pequena Fera. Eu quero isso há meses e cada segundo sem agir de
acordo com esse desejo foi uma tortura prolongada. — Ele se inclinou para frente. Ela
pensou que ele ia beijá-la, mas em vez disso ele descansou a testa contra a dela. — Você tem
alguma ideia de quantas noites eu repassei aquela hora em Solethenia? O jeito que você
brilhou? Os sons requintados que você fez?
Deusa Acima.
— Nós fazemos nosso próprio futuro, você e eu— ele murmurou, puxando as pernas
dela ao redor de sua cintura. — Quaisquer que sejam as consequências de te amar, Haven
Ashwood, elas valerão a pena.
Seus braços enrolaram em volta do pescoço dele enquanto sua mente girava em voltas
vertiginosas. — Me amar?
Ele beijou o nariz dela. — Sim e agora vou passar várias horas provando isso para você
até que eu esteja convencido de que você acredita em mim.
— E o banho? — ela chiou.
— Quem disse que não haveria água envolvida? — ele ronronou, deslizando um braço
em volta da cintura dela e levantando-a em seus braços. — Mas eu não vou fazer amor com
você até que você esteja na minha cama. Eu quero olhar para você banhada no brilho
prateado da lua, ainda molhada do seu banho e saber que você é minha... — Ele soltou um
longo suspiro. — Enquanto o destino permitir.
Minha. O calor se espalhou por todo o seu corpo, seu coração acelerado em
antecipação. E, no entanto, outra coisa ainda a incomodava. — E quanto ao Senhor
Malik? O que ele fará com você por pegar o que pertencia a ele?
Senhor Malik já teria se livrado de sua compulsão agora e mesmo que ele não se lembrasse
de eventos passados, uma vez que descobrisse seu bem mais precioso, a Guardiã, morta –
bem, ele não ignoraria tal insulto.
— Deixe que eu me preocupe com ele.
E, então, eles estavam na câmara de banho pessoal de Stolas, mergulhados no vapor, luar
e seus desejos, e ela se esqueceu do Senhor Demônio. Esqueceu-se da Guardiã e da pintura e
de tornar-se imortal.
Ela se perdeu em Stolas pelo que pareceu uma eternidade. Quando finalmente ela se
deitou quente e exausta em seus braços, seus lobos os guardando ao pé de sua cama
monstruosamente grande e seu peito subindo suavemente em suas costas, ela repetiu suas
palavras novamente.
Quaisquer que sejam as consequências de te amar, Haven Ashwood, elas valerão a pena.
Nasira desceu silenciosamente os degraus de runas em espiral para dentro das
abóbadas subterrâneas, passando por câmaras cheias de ouro e prata, heranças que existiam
desde o tempo dos deuses. Nenhum deles despertou seu interesse. Seu foco estava fixado na
coisa abaixo. Ela podia sentir a curiosidade da Assassina de Deuses enquanto lançava sua
rede, procurando o intruso que sentia se aproximar.
Olá, Imperatriz, sussurrou em sua mente. Eu esperava que você voltasse.
O calor da lava derretida abaixo lambeu o escudo que ela ergueu quando Nasira se
aproximou da borda. A arma antiga chamou sua atenção. Assim como todas as outras vezes,
um arrepio de admiração a percorreu com um poder tão antigo e descontrolado.
Você cheira a sangue, ela ronronou.
Atordoada, ela olhou para o sangue de Stolas meio seco sob suas longas unhas e a mesma
emoção que sentiu enquanto discutiram borbulhou dentro dela. Essa raiva e desespero mais
quente que o magma abaixo.
Não tinha começado como uma discussão. Ela foi engolida pelo alívio quando o viu pela
primeira vez e percebeu que ele estava de volta do Reino Demoníaco. Mas, então, ela o
questionou sobre os rumores.
— É verdade? — ela exigiu. — O Familiar das Sombras de Haven assumiu sua forma de
lobo?
Ele não tentou esconder a verdade. — Sim.
O pânico a engoliu. E quando ela perguntou: — Mas você não consumou o vínculo? —
e viu seu rosto cabisbaixo, parecia como se uma adaga tivesse sido enfiada em seu coração.
— Nasi — disse ele, usando seu apelido de infância. — Eu estava morrendo quando ela
me deu seu sangue. Eu não sabia o que estava acontecendo até que foi feito.
— Não. Tem que haver uma maneira de parar isso. Não!
— É tarde demais.
Ela sabia que ele dizia a verdade. Havia três requisitos para consumar um vínculo de
acasalamento dos Serafins. Sonhos compartilhados, sangue compartilhado e uma forma de
Familiar das Sombras compartilhada.
Quando Haven deu livremente seu sangue a Stolas, ela trancou a peça final no lugar.
Lágrimas ardiam nos olhos de Nasira quando ela balançou a cabeça. Ela não chorou
quando os Golemitas a arrancaram de sua cama. Ela não derramou uma única lágrima
quando viu primeiro seus irmãos morrerem e depois seus pais.
Mas agora, agora ela não conseguia manter sua emoção sob controle. Stolas era tudo o
que lhe restava. E, mesmo que ela nunca tivesse coragem de dizer a ele, ele era tudo para ela.
Um desespero selvagem tomou conta dela. — Então, você tem que evitar que Haven se
torne imortal. Destrua a pintura...
— Pare! — ele rosnou antes de seu rosto se suavizar. — Eu não vou tirar isso dela e nem
você.
— Você esqueceu o que a Guardiã lhe disse?
Seus olhos se ergueram para ela, sombrios, desamparados e resignados. — Como eu
posso esquecer? Encontrarei uma amante que será igual a mim em todos os sentidos, uma
companheira imortal que arde mais forte que o sol. Vou amá-la mais do que jamais amei
outra pessoa – e ela vai me matar.
— Se você deixá-la se tornar imortal, a profecia será completa e ela se voltará contra você.
— Então, só posso rezar para que, quando ela o fizer, isso não a destrua do jeito que
matar nossa mãe quase me quebrou.
Ela o havia golpeado sem pensar, suas garras cortando uma ferida profunda em sua
bochecha. Ele não reagiu, não se moveu um centímetro enquanto o sangue escorria por sua
mandíbula e caía entre eles.
E, então, ela fugiu para cá.
A Assassina de Deuses acariciou suas garras insidiosas de poder sobre ela, aquela magia
insondável prometendo tantas, tantas coisas.
Diga-me, sussurrou a Assassina de Deuses. O que você quer, Imperatriz?
Parte dela sabia que uma vez que ela dissesse as palavras, não haveria como voltar
atrás. Mas a outra parte entendeu que ela faria isso e muito pior se isso significasse salvar a
única família que lhe restava.
Então, Nasira Darkshade nivelou seu olhar para a arma mais poderosa que já existiu e
fez uma barganha.

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