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Toda magia tem um preço.

Haven sobreviveu aos Devoradores, mas ela não está mais perto de quebrar a
maldição. Enquanto isso, sua magia proibida se torna mais brilhante e mais perigosa
a cada dia.

Para controlar seus poderes e ter uma chance contra a Rainha das Sombras, Haven
fez uma barganha com dois inimigos imortais. Agora, suas horas de vigília são
passadas lutando ao lado do Senhor do Sol, mas seus sonhos pertencem ao Senhor
do Submundo.

Só que quanto mais ela se aventura no perverso Reino das Sombras, mais sua magia
se manifesta - e mais ela luta para saber em quem confiar. O dourado, mas ferido,
Senhor do Sol ou o sombrio, mas carismático Senhor do Submundo.
Ambos estão fora dos limites.

E ambos têm a capacidade de salvá-la... ou destruí-la.


Com a Rainha das Sombras se aproximando e o tempo de Bell quase acabando,
Haven vai sacrificar tudo para quebrar a maldição - mas será o suficiente para
impedir que o reino mortal caia na escuridão para sempre?
À minha mãe, por todo amor e apoio.
Forjada em desgosto, incrustada em osso, fundida em sangue, esculpida em pedra.
Mil anos reinará minha maldição, a menos que eu tenha estas seis coisas:
As lágrimas de uma fada de uma floresta profunda.
O figo de um vorgrath da fortaleza de sua companheira.
A escama de um selkie de ouro polido.
O osso de uma bruxa da floresta de um século.
Uma lasca da meia-noite do chifre de uma Rainha das Sombras.
O sacrifício de dois amantes dilacerados.
Pela primeira vez em anos, Haven estava perdida. Os rastros de vorgrath, que ela tinha
visto horas atrás, agora pareciam uma ilusão e o cheiro almiscarado que a criatura usava para
marcar seu território, uma invenção de sua mente.
E, no entanto, ela ainda podia sentir o odor fétido em seu dedo, extraído de uma
árvore musgosa não muito longe dali.
Ela deu uma volta, suas botas escorregando contra a lama, a respiração alta em seus
ouvidos enquanto procurava nas copas das árvores uma brecha na folhagem pesada que
cobria o céu. Se apenas ela pudesse ver a posição do sol, ela poderia determinar em que
direção ela estava indo.
Normalmente, a floresta dava-lhe respostas - o lado de uma rocha onde crescia musgo,
a direção em que as nuvens se moviam; até mesmo onde uma aranha pendurava sua teia
poderia ajudá-la a distinguir o do norte do sul.
Mas a magia das sombras nestes bosques virou tudo o que ela sabia sobre a floresta de
cabeça para baixo. Enormes teias prateadas de aracnídeos, que ela rezava nunca encontrar,
brilhavam em galhos altos de ambos os lados. O musgo cobria tudo.
Movendo sua mochila recém-invocada sobre os ombros, ela se abaixou sob as raízes
de um enorme carvalho, fazendo careta quando larvas brancas peroladas caíram em sua
cabeça.
Ela tinha se agachado debaixo da mesma árvore uma hora atrás, ela tinha certeza disso.
Mas agora, em vez de uma árvore caída bloqueando seu caminho, três amieiros retorcidos
brotaram do solo.
Se ela realmente tivesse caminhado por aqui antes, não haviam rastros. Ou a floresta
estava mudando constantemente ou ela estava perdendo a cabeça.
Oh, Bell. Você adoraria estudar este lugar. Ela podia ouvi-lo tagarelar sobre as
propriedades mágicas, vê-lo cuidadosamente anotando tudo. Deusa Acima, sinto sua falta.
Agora que ela estava sozinha, sem o bando de Solis constantemente distraindo-a, ela
teve tempo para considerar o buraco que seu melhor amigo deixou com sua ausência - seu
sorriso radiante, sua risada provocadora.
É por ele que você está fazendo tudo isso, ela lembrou a si mesma. Não o decepcione.
Pensar no Príncipe Penrythiano a fez redobrar seus esforços para encontrar o
vorgrath. Ela não só precisava de um figo de sua fortaleza para satisfazer a Maldição, mas se
ela, de alguma forma, não coletasse algumas gotas de veneno de um de seus famosos incisivos
longos, Rook morreria.
— Sem pressão — ela murmurou, pisando forte nas águas salobras de um pântano.
Lama grudava em suas botas e fazia com que sentisse as pernas pesadas, enquanto o fedor de
água rançosa enchia seu nariz. Criaturas flutuavam ao longo da superfície, algum tipo de
répteis com placas de armadura saltando de suas costas, com apenas as pontas mais altas de
suas costas e olhos à vista.
Lutando contra a vontade de vomitar, ela enxugou a testa, tirando suor e depositando
musgo e lama sobre sua pele.
Água fodida! Ela nunca a odiou tanto. Ela umedecia o ar e enchia seus pulmões,
tornando cada inalação uma tarefa árdua. O que ela não daria por um banho - ou dez.
Seus olhos estavam cansados de tanto procurar no solo pantanoso os rastros
triangulares de três dedos deixados pelo vorgrath. Enquanto ela olhava, sua mente repassou
a segunda parte da Maldição.
O figo de um vorgrath da fortaleza de sua companheira.
De acordo com sua experiência, o vorgrath macho nunca estava muito longe da
fortaleza de sua companheira, guardando as figueiras dia e noite para sua parceira. O
vorgrath macho mataria qualquer criatura que chegasse muito perto, especialmente durante
a época de acasalamento.
No verão passado, quando ela quase capturou o vorgrath que aterrorizava
Muirwood, ela contou quase cinquenta criaturas da floresta massacradas em um raio de
oitocentos metros de sua fortaleza.
A maioria das vítimas eram animais noturnos, o que lhe dizia que o vorgrath era
provavelmente menos ativo durante o dia. Talvez até dormia por algumas horas - se ela
tivesse sorte.
Na hora em que ela encontrou o tesouro do vorgrath, uma jovem figueira escondida
perto de uma ravina, raios alaranjados do crepúsculo encheram Muirwood, e ela decidiu
partir e voltar à luz do dia.
Quando ela voltou no dia seguinte, os frutos haviam sido removidos da figueira e o
macho vorgrath jazia morto no chão. Morto por sua companheira, provavelmente, depois
que a fêmea sentiu o cheiro de Haven tão perto de sua fortaleza.
Aparentemente, as vorgraths fêmeas não eram do tipo que perdoa.
O que quer que acontecesse agora, ela não podia esquecer que mesmo se de alguma
forma conseguisse o figo da fortaleza de um vorgrath e de alguma forma coletasse seu veneno
sem morrer e se de alguma forma conseguisse fugir, a fêmea estaria por perto.

Haven descobriu mais rastros de vorgrath perto de um pântano. O dia estava


desaparecendo, mergulhando a floresta em sombras profundas, alguns raios de luz coral
recuando com cada pulsação esmagadora de seu coração. Aqui e ali, partes descobertas
manchavam as árvores, onde algo havia arranhado e tirado a casca.
Gritos estranhos e agudos perfuravam o ar pesado, junto com ruídos exóticos que ela
não conseguia identificar de criaturas que ela preferia não encontrar. Mas quanto mais para
o oeste ela andava, mais silenciosa a floresta se tornava.
A maioria das pessoas pensava que o silêncio na floresta era uma coisa boa, mas Haven
sabia melhor.
Ela estava agora oficialmente em território vorgrath.
Ela rastejou através da treliça de árvore-raízes e videiras, com cuidado para evitar as
pegadas cheias de água que ela seguia. Pela profundidade das pegadas e pelo comprimento
dos dedos dos pés, este vorgrath era muito maior e mais velho que o do Muirwood.
E mais inteligente - ele havia percorrido por riachos e voltado para trás mais de uma
vez.
Maravilhoso. Só ela mesmo para encontrar um vorgrath maduro e estabelecido, o que
significava que seria grande, mais inteligente do que a maioria e excessivamente protetor de
seu covil.
Como que ela não o mataria?
Mas, de acordo com Stolas, matando-o condenaria ela.
— Não mate o vorgrath — ela zombou, fazendo sua voz ficar baixa e provocante para
soar como a do Senhor do Submundo — a menos que você queira que sua companheira te
cace até os confins da terra.
Chutando o toco de uma árvore comido por vermes, ela revirou os olhos.
— Como isso me ajuda se eu estiver morta?
Por um instante, a floresta se agitou e ela podia jurar que uma risada irritada gotejou
de cima.
Pela sombra de Sombreamento, este lugar estava começando a afetá-la. Se ao menos
Surai estivesse aqui para escutá-la reclamar. Ela imaginava Rook zombando enquanto os
dois tentavam encontrar o caminho através do emaranhado de bosques, Archeron andando
à frente, irritado com algo que Haven havia dito ou feito – como respirar ou simplesmente
existir.
Mesmo assim... ela sentia falta deles. Todos eles.
Ela nunca teria admitido tal coisa algumas horas antes... mas algo sobre caminhar por
florestas terrivelmente cobertas de vegetação sozinha fazia com que uma pessoa apreciasse a
importância da companhia, e não havia como negar a verdade.
Ela tinha se apegado aos Solis.
Mesmo que eles zombassem dela e a tratassem como um animal de estimação, mesmo
que Archeron tivesse o hábito de amarrá-la e provocá-la, estar perto deles parecia normal.
Seguro.
Você está amolecendo, Ashwood.
Afastando pensamentos sobre os Solis, ela se afundou ainda mais no mato, rosnando
baixinho, enquanto as sombras entre as árvores pareciam se alongar e escurecer diante de
seus olhos.
Tensão dançava sob sua pele suada, arrepiando os pelos de seus braços. Ela tirou a
adaga generosamente emprestada a ela pelo Senhor do Submundo. A arma era mais pesada
do que ela preferia, ponderada para baixo com um intrincado cabo de ouro, o punho de
ônix um conjunto de asas de corvo. Rubis e diamantes negros giravam em torno do cabo,
lançando brilhos estúpidos em seus olhos.
Uma arma ridícula e brega, até mesmo para o Senhor do Submundo.
Ainda assim, os vorgraths eram criaturas furtivas. Quando ela notasse um sobre ela,
seu arco seria inútil. E ela tinha uma esperança longínqua de que ela pegaria esse vorgrath
dormindo - certamente eles dormiam - e, de alguma forma, ser capaz de incapacitá-lo sem
que ele percebesse.
Adaga mágica tão pesada e chamativa quanto fosse.
As vinhas e a folhagem tornaram-se mais densas, estrangulando ainda mais a luz. Ela
silenciosamente abria um caminho, enquanto galhos e espinhos arranhavam suas bochechas,
abaixando-se e deslizando pela vegetação que parecia estreitar-se ao seu redor.
Sem dúvida, se Stolas visse como ela usava mal sua adaga favorita, ele ficaria chateado,
mas ela já não se importava mais.
A folhagem engrossou, até que ela foi ficou dentro da confusão espessa de espinheiros
e vinhas. O pânico a pesou e ela se esqueceu de ficar quieta. Esqueceu que deveria estar
calma.
Andando descontroladamente, ela foi abrindo o caminho a frente com as mãos,
lutando para respirar, por luz, por -
Um buraco se abriu e ela caiu para frente.
Piscando contra a escuridão aquosa, tingida de fúcsia pelo último raio de sol, ela
endireitou o chapéu e observou o local. Uma enorme árvore se erguia a dez metros de
distância. A coisa maciça e retorcida estava centrada dentro do buraco de vegetação que algo
havia construído cuidadosamente, um ninho gigante de trepadeiras, galhos e ossos grudados
juntos com lama seca.
Imensas raízes lotavam a base da árvore, furiosas serpentes cinzentas meio enterradas
na terra. Os galhos eram baixos, grossos e amplos. E ao longo dos ramos menores pendiam
frutas escuras em forma de lágrima.
A figueira do vorgrath.
Haven congelou, a respiração morrendo em sua garganta. A adrenalina estreitou sua
visão e seu olhar disparou ao redor da árvore, vasculhando as sombras. Não haviam ruídos
da floresta dentro do ninho do vorgrath, nenhuma brisa sibilante ou insetos.
Nada além de sua respiração irregular e aterrorizada e o baque baque de seu coração.
Um perfume de podridão e figos maduros encheu seu nariz e fez sua cabeça girar.
Enquanto ela se aproximava da árvore, sua mão apertou a adaga do Senhor do
Submundo. O suor escorreu por suas omoplatas. Suas roupas encharcadas a faziam se sentir
pesada e lenta. Fome, adrenalina e fadiga atrapalhavam sua visão, fazendo as coisas parecerem
próximas e depois distantes. Criando movimento onde não havia nenhum.
Enquanto ela cuidadosamente caminhava sobre as raízes altas e sinuosas perto da base
da árvore, seu olhar caiu sobre o que, a princípio, pareciam ovos grandes. Mas, então, por
um momento abençoado, sua visão se aguçou.
Não ovos - crânios humanos.
Crânios pálidos e rachados sobre montes de armaduras enferrujadas e ossos. O medo
percorreu sua espinha enquanto ela catalogava o cemitério informal. Adereços humanos
estavam por toda parte. Uma bota enlameada aqui. Uma bolsa de viagem mofada ali.
Ela perdeu o fôlego quando ela viu um capacete de latão de lado, trepadeiras e outra
vegetação crescendo através do visor. O estandarte Boteler, três dálias negras curvando uma
lâmina irregular, era visível ao longo de sua superfície opaca.
Doze. Treze. Quatorze. Sua mente contou automaticamente os crânios... apenas para
parar quando ela percebeu o que estava fazendo.
Deusa Acima, duas feridas de perfuração do tamanho de uma uva marcavam a maior
parte dos crânios, sem dúvida deixadas por presas de vorgrath. Alguns foram quebrados em
centenas de pedaços e uma imagem indesejável do vorgrath esmagando o crânio de um
humano no tronco da árvore passou por sua mente.
Alguns foram empilhados um em cima do outro para formar pilares horríveis. Um
aviso para ficar longe ou morrer.
Ainda bem que ela nunca deu ouvidos à razão, ou ela teria fugido na hora.
Em vez disso, ela fez uma oração silenciosa à Deusa e andou cuidadosamente entre os
crânios, músculos tensos enquanto ela esperava que suas botas quebrassem os ossos e
acordassem a vorgrath.
Inteligente, ela admitiu, olhando para o macabro sistema de alarme de ossos, mesmo
com a náusea formigando no fundo de sua garganta.
Quantos tolos desesperados para quebrar a Maldição haviam pisado onde ela pisava
agora, segundos antes do vorgrath os massacrar?
Arranhões profundos foram esculpidos no tronco cinza claro da árvore. Um último
aviso feito por garras mais longas que seus dedos.
Runas, ela queria aceitar o aviso e fugir. Fora deste ninho da morte. Fora da floresta
escura e arruinada. Todo o caminho até Penryth.
Exceto que não havia Penryth sem Bell. E se ela sucumbisse ao seu medo, ela poderia
correr para os confins do reino e, mesmo assim, nunca escaparia da culpa e tristeza por deixar
Bell morrer por sua magia e Rook por sua estupidez.
Apertando a lâmina da adaga entre os dentes, ela começou a subir na árvore. Ela se
movia lentamente, meticulosamente, ciente de cada raspar de sua bota, cada explosão de
respiração de seus lábios.
Seu batimento cardíaco era um tambor furioso reverberando dentro de seu crânio e
abafando todos os outros sons.
Se o vorgrath a pegasse agora, ela estaria indefesa.
Ela se posicionou em um galho de sessenta centímetros de largura e congelou,
esforçando-se para ouvir. O silêncio se arrastou sob sua pele, estremecendo em seus ossos.
E se o vorgrath estivesse acordado, esperando por ela nos galhos acima? E se estivesse
esperando pelo momento certo, incisivos já abertos e prontos para perfurar seu crânio?
Pensamentos felizes, Ashwood.
Ela prendeu a respiração e escalou para um galho mais alto. Então outro. Toda vez
vasculhando cada galho de árvore, cada folha reluzente, em busca de um figo para roubar.
Mas foi só no meio do caminho para o topo da árvore que ela encontrou dois figos grandes,
pendurados na parte inferior de um cacho de folhas.
Um fruto ainda estava verde e duro ao toque. Mas o outro era de uma cor carmesim
profundo, firme, mas maleável. Ele caiu com um corte da adaga de Stolas. Assim que o figo
maduro estava em segurança dentro de seu bolso, ela ficou sobrecarregada com um desejo
de partir.
Soltando uma respiração silenciosa, ela olhou para baixo e para a liberdade. Para a
sobrevivência. Se ela fugisse com o figo, as chances de Bell eram cem vezes melhores. Mas se
ela corresse de forma barulhenta, se ela encontrasse o vorgrath e tentasse extrair seu veneno,
ela provavelmente morreria, levando as chances de Bell para o túmulo.
Um chocalho suave e borbulhante gotejou de cima. Como algo despertando do sono.
A adaga tremeu em sua mão.
Corra, corra, corra!
Ela não fez tal coisa. Com um suspiro pesado – e sua promessa para Surai soando em
sua mente – ela enfiou a adaga entre os dentes e se arrastou mais alto, seu corpo entorpecido
com um coquetel potente de adrenalina e medo.
Submundo a levasse, ela não poderia quebrar uma promessa. Ela não faria isso.
Mesmo que essa fosse a coisa mais estúpida que ela já tivesse feito.
Uma parede de fedor a atingiu como carne rançosa envolta em pelo de cachorro
molhado. O odor fez seus olhos arderem. Os galhos acima agitaram-se quando algo se
mexeu, algo pesado e grande, e uma melodia medonha de grunhidos guturais e garras
estalando arranhando seus tímpanos.
O vorgrath estava acordado.
Farejando – ele estava lentamente puxando o ar, sentindo o cheiro. O cheiro dela.
As inalações pararam e ela ficou imóvel, uma estátua de nervosismo e pânico. Por um
instante ansioso, um silêncio mortal estrangulou o ar e seus músculos se contraíram,
preparados para lutar mesmo com sua mente uivando com um terror ofuscante.
O galho baixava e levantava, as folhas farfalhando e fazendo seu coração disparar
enquanto o vorgrath pulava no alto da árvore.
Ofegante, Haven esticou o pescoço, olhando para os galhos mais altos. Onde ele
estava? Ela vislumbrou um lampejo e, em seguida, ouviu mais folhas farfalhando. Ela trocou
sua adaga pelo seu arco e encaixou uma flecha com ponta envenenada, seguindo o vislumbre
das folhas tremeluzentes.
Mas ele se movia rápido demais para um bom tiro. Um borrão cinza chamou sua
atenção, outro farfalhar de folhas, e quando ela girou a ponta da flecha naquela direção, ele
se moveu novamente.
Ele estava tentando confundi-la. Para desequilibrá-la.
A árvore tremia violentamente. Com os joelhos dobrados, Haven se concentrou em
se equilibrar enquanto o vorgrath se movia cada vez mais rápido.
Ele saltava, de novo e de novo.
De novo e de novo, ela alterava sua mira.
De repente, os galhos da árvore congelaram. O barulho parou. O silêncio ondulou
sobre ela, intensificando a batida frenética de seu coração.
Onde você está?
Ela sentiu o galho da árvore em que estava agachada oscilar antes mesmo de ouvir as
garras do vorgrath estalarem sobre a madeira macia atrás dela. Instintivamente, ela girou e
simultaneamente liberou sua flecha.
O vorgrath era uma coleção hedionda de pele cinza escamosa e enrugada, esticada
sobre ossos finos. Dois chifres retorcidos e nodosos erguiam-se de sua cabeça esquelética e se
enrolavam ao longo das cristas espinhais de suas costas arqueadas. Braços cadavéricos, feitos
para balançar em árvores e cortar presas, chegavam quase a seus pés. Garras negras, mais
longas que sua adaga, brotavam de seus dedos magros.
Mas seus olhos foram o que tirou o ar de dentro de seu peito. Discos largos e
vermelho-esbranquiçados como sangue rodopiando no leite. Não havia pupila, nada para
demonstrar humanidade ou algo com que se conectar.
O vorgrath agarrou a flecha cravada em seu peito esquelético, as garras estalando. Um
grito agudo transformou suas entranhas em geleia. Ela tinha atingido logo acima de onde ela
achava que estava seu coração.
Ela encaixou outra flecha, até se lembrar do aviso de Stolas. Junto com o fato irritante
de que ela precisava da criatura viva para obter o veneno.
Runas! Tudo dentro dela gritava para matar o predador monstruoso. Mas uma
promessa era uma promessa.
Então, a adaga substituiu o arco e ela avançou para frente quando o vorgrath
guinchou para ela, revelando dentes irregulares que poderiam rasgar armadura penrythiana
e partir ossos. Gotas de veneno brilhavam na ponta de duas presas longas e curvas.
Era dito que o vorgrath macho usava seu veneno para incapacitar o intruso para
apresentá-lo, ainda vivo, a sua companheira. O pensamento foi o suficiente para enviar bile
para o fundo de sua garganta.
O vorgrath olhou para os galhos altos.
— Não! — ela gritou, fazendo a criatura sibilar. — Não se atreva a pular, sua coisa
horrível.
Como será que alguém vinculava a alma a um vorgrath?
Seus olhos cheios de ódio olharam para sua adaga e ela sibilou mais alto. A teia sobre
sua longa caixa torácica vibrou com um chocalho de advertência. Uma gosma preta
acinzentada escorria de sua ferida.
— Shh — ela murmurou, dando outro passo para mais perto, espelhando a postura
corporal do vorgrath. — Seja um bom pequeno vorgrath.
O chocalho tornou-se um staccato de grunhidos profundos que coagularam seu
sangue. Todas as iguarias que ela comeu na casa do Senhor do Submundo ameaçavam
ressurgir enquanto ela se aproximava.
Ela poderia fazer isso. Ela quase tinha ligado a alma a um Senhor do Submundo.
Certamente, ela poderia vincular a alma a esta criatura horrível.
Ela estava perto o suficiente agora; um salto e suas presas penetrariam em seu
pescoço... ou em seu crânio. A cabeça do vorgrath virou para o lado. Duas membranas
translúcidas se fechavam sobre seus olhos horríveis enquanto a estudavam.
Deusa Acima, ele era feio.
Sua respiração estava alinhada com a dele; ela piscava quando ele piscava. O início de
uma conexão tentativa formava entre eles. O vínculo parecia estranho, alheio, a mente do
vorgrath uma paisagem selvagem de ganância, raiva e impulsos primitivos, mas ela agarrou-
se a uma semelhança que eles compartilhavam - devoção.
Sua devoção a sua companheira tornou-se uma porta pela qual entrar. O vorgrath
lutou contra ela a princípio, o elo entre eles se esgarçando, rosnados baixos agitando o ar.
Mas depois de alguns instantes, a criatura se acalmou e ela soube que ele estava sob
seu comando.
Ela se aproximou com cuidado, devagar, uma mão no frasco de vidro que guardava
para venenos, a outra em sua adaga. Enquanto ela acalmava o terreno irregular de sua
consciência, engasgando com o odor repulsivo do vorgrath, ela lutava para mantê-lo dócil e
controlar seu próprio medo predominante.
A luz moribunda cintilou nas escamas de peixe mortas que subiam pelo pescoço
musculoso do vorgrath. Ela ergueu o frasco, deslizando a borda logo abaixo da presa curva
de cinco polegadas que espreitava de seu lábio superior.
Sua boca cinza se abriu.
Ele estava ofegando no ritmo dos batimentos cardíacos dela e, de perto, ela percebeu
que ele tinha pupilas – pequenas lascas vermelhas verticais dentro de um mar de branco.
— Bom — ela sussurrou, mal ousando respirar quando uma gota prateada e
iridescente de veneno deslizou para o fundo do frasco. Só mais uma gota...
Clack. Clack. Ela olhou para as longas garras do vorgrath estalando juntas. A conexão
estava falhando.
De repente, as membranas brancas escuras do vorgrath começaram a piscar sobre seus
olhos, sua caixa torácica arfando cada vez mais rápido.
Pelos dentes de Odin! Ela conseguiu espremer mais uma gota de veneno e colocar o
frasco em sua bolsa antes que a conexão se quebrasse.
Um grunhido saiu do vorgrath como se estivesse surpreso por ela estar ali. Seu olhar
foi primeiro para a flecha ainda enterrada profundamente em seu peito, de volta para ela e
ele caiu, os músculos ondulando dentro das coxas salientes.
Com a adaga na mão, Haven recuou até que ela estava presa contra o tronco da árvore.
Em um movimento suave, ela trocou a adaga por seu arco e teve uma flecha encaixada.
— Nem pense nisso, idiota — ela avisou.
Isso parou a coisa feia.
Ele inclinou a cabeça de um lado para o outro, movimentos rápidos e animalescos.
Então, o vorgrath gritou com a flecha apontada para seu peito e raspou suas garras contra o
galho da árvore.
Mas ele não a seguiu quando ela pulou para o próximo galho, depois para o próximo.
Todo o tempo, ela nunca abaixou sua arma ou quebrou o olhar desumano da criatura.
Matar a coisa vil era tentador, mas ela não queria arriscar a ira da companheira do
vorgrath se não fosse absolutamente necessário.
Talvez uma flecha em seu ombro ossudo poderia atrasá-lo um pouco. Ou irritá-lo -
não que ela imaginou que a fúria dentro de seus olhos mortos pudesse queimar muito mais
brilhante.
O vorgrath sabia que, se ele não matasse Haven, sua companheira iria ficar puta.
Quando ela atingiu o chão, a flecha ainda estava bem no centro do peito do vorgrath
e ele se agachou e começou a rastejar de galho em galho atrás dela, sem tirar o olhar de sua
flecha. No momento em que ela chegou à entrada do ninho, andando de costas, a besta
disforme a observava do galho mais baixo.
De uma vez só, o último raio de luz sumiu e a noite surgiu.
Sua mão ao redor do arco tremia e estava escorregadia de suor.
Dentro do ninho do vorgrath, enterrado sob um dossel de trepadeiras, folhas e ossos,
a luz fraca das estrelas e da lua não conseguia entrar, mergulhando seu mundo em escuridão
absoluta. A única luz vinha dos olhos vermelhos do vorgrath, duas janelas para o Submundo.
Aparentemente na escuridão, eles brilhavam como Fogo do Submundo – o que não
era nada assustador ou aterrorizante.
E então, aquelas esferas de fogo piscaram e ela se virou e correu.
Bell passou a noite mais longa de sua vida no sofá da criatura. Ele se recusava a dormir
em um dos muitos quartos opulentos disponíveis - cada vez que entrava em uma câmara e
fechava a porta, o ar ficava rarefeito e ele não conseguia respirar - em vez disso, escolheu se
mexendo no mesmo sofá empoeirado da noite anterior, suando por causa do fogo que
assolava ao lado dele.
Quando ele fechava os olhos, via Haven caindo. Haven queimando.
Haven morrendo.
Então seus olhos ficavam abertos e ele contava as estrelas que brilhavam da parede
aberta perto do canto. Elas eram muito mais brilhantes do que as estrelas em casa e ele se
perguntava se alguém já havia se dado ao trabalho de pintá-las.
Haven teria tentado...
Pare de pensar nela. Ela se foi. Mas Haven estava entrelaçada muito profundamente
no tecido de sua vida para ele se desvencilhar com algumas palavras duras.
Para ele, ela estava em toda parte. Ele podia ver o sorriso dela, sentir o cheiro dos pães
pegajosos que ela sempre levava com ela, ouvir sua voz dando-lhe ordens em sua cabeça, sua
risada flutuando pelos corredores. No fundo, ele sabia que nunca conheceria alguém tão
mandona, bonita, engraçada e irreverente como ela.
Ela era uma estrela feroz, tão brilhante quanto as de cima. Uma luz que Penryth e o
resto dos reinos mortais precisavam desesperadamente.
Um mundo sem Haven não era algo que ele pudesse imaginar.
Talvez se ele finalmente conseguisse chorar, ele poderia limpar o resíduo de dor que
se agarrava a ele como veneno. Mas suas lágrimas, que durante anos vinham prontamente ao
primeiro sinal de emoção, estavam ausentes. Privando-o de uma saída para sua dor.
Com a mandíbula travada, Bell pulou do sofá e se dirigiu para a sala de jantar. Poderia
ter sido de manhã de qualquer maneira, pelo que ele podia perceber. O dia não existia aqui.
Apenas uma noite sem fim, cheia de belas estrelas e criaturas horríveis à espreita nas sombras.
Assim que ele entrou na sala de jantar iluminada pelas estrelas, ele encontrou outro
prato de comida esperando por ele e uma xícara de chá fumegante.
Bell franziu a testa para a mesa enorme e cadeiras vazias. Em qualquer outro
momento, ele teria se sentado e aceitado que estaria comendo sozinho. Em qualquer outro
momento, ele poderia ter dado boas-vindas à privacidade para ser apenas ele mesmo. Mas
um momento a mais dentro de sua cabeça, com suas memórias de Haven, e ele certamente
ficaria louco.
Em vez disso, ele voltou sua raiva para seu anfitrião e sua falta de educação. Bell
poderia ser um prisioneiro, mas ele ainda era tecnicamente um convidado. Erguendo o
queixo, ele girou nos calcanhares e marchou para fora das portas.
Assim como da última vez, houve uma faísca e o cabo de metal frio girou sob sua
palma. O ar frio infiltrou-se nas roupas de Bell e em seus ossos, mas ele quase não o sentiu.
Logo, ele estaria através do portal e sob um céu ensolarado. Em breve, o cheiro de
flores substituiria o ar bolorento do castelo.
— O que você está fazendo aqui?
A severa voz masculina veio do topo das escadas. Se Bell já não soubesse quem estava
falando, ele teria pensado que ela pertencia a um menino não muito mais velho que ele, não
da enorme criatura curvada descendo as escadas em sua direção.
— Vou lá fora — respondeu Bell, enfiando as mãos nos bolsos para não estremecer.
A criatura se moveu pesadamente para bloquear a parede onde o portal estava, uma
risada rouca saindo debaixo de seu capuz.
— Vá comer seu café da manhã.
— Eu não quero comer sozinho.
— Então você vai morrer de fome.
Bell deu de ombros.
— Por mim tudo bem.
— Certo. — A criatura se virou para subir as escadas, então parou e olhou para trás.
— Por que você não vai dormir em um dos quartos que eu lhe ofereci?
Bell mexeu nos bolsos de sua calça. O que uma criatura como ele saberia da solidão,
do medo?
Então ele disse o que imaginou que um verdadeiro príncipe diria em tal situação. —
Eles não são para minha satisfação.
— E a comida que tão graciosamente lhe ofereci? Você também acha isso
insuficiente?
Nunca em sua vida Bell disse uma palavra indelicada a alguém, mas agora, tudo o que
ele queria era machucar alguém. Para vomitar a raiva e a tristeza que o comiam de dentro
para fora.
Menos de uma semana atrás, ele estava feliz. Menos de uma semana atrás, sua melhor
amiga estava viva. Menos de uma semana atrás, ele nunca teria que lidar com uma criatura
como esta.
— É uma gororoba sem graça que não serviria nem para um cachorro — afirmou Bell.
— E suponho que não seja adequado para entretê-lo, príncipe?
Ignorando o rosnado baixo de advertência nas palavras da criatura, Bell disse: — Se
você estivesse em Penryth, nós o teríamos jogado nas masmorras e o acorrentado como uma
fera.
A última palavra pairou no ar. A criatura não o encarou, mas seus grunhidos e suas
mãos cerradas ao lado do corpo alertavam sobre sua fúria.
Bell tinha certeza de que ele se viraria e agiria como a criatura que era. Talvez ele o
matasse ali mesmo. Ou rugisse para ele. Ou alguma coisa.
Talvez Bell quisesse que ele fizesse isso.
Mas os ombros da criatura caíram. Sem dizer uma palavra, ele começou a subir as
escadas.
A culpa apertou a garganta de Bell. Por que ele disse coisas tão horríveis? Ele soltou
um suspiro áspero. — Minha amiga... minha amiga está morta.
O silêncio encheu o castelo quando a criatura parou no meio da escada.
— Ela estava vindo me salvar — Bell continuou, sua voz estranhamente sem emoção
— e eles a mataram por isso. Apenas apagaram esse ser brilhante e maravilhoso.
A criatura inclinou a cabeça para trás.
— Eu não quero saber seus problemas.
Bell não sabia por que estava dizendo isso à criatura, especialmente porque era óbvio
que ele não se importava. Mas ele não conseguia impedir as palavras de fluírem.
— Haven foi a única pessoa que já me amou. Ela era a única coisa boa na minha vida
confusa e eles a tiraram de mim e agora... ela está morta e eu nem consigo chorar. O que há
de errado comigo?
— Por que você quer chorar?
Através da amargura na voz da criatura, Bell pensou ter captado uma pitada de
confusão genuína e sua garganta doía de emoção enquanto tentava explicar.
— Porque é isso que você faz quando alguém que você ama morre, certo? — Ele
chutou no último degrau. — Seu corpo deveria reagir, para refletir a magnitude dessa perda,
mas eu sou um fracasso em tudo, caso você não saiba. Aparentemente, até no luto.
— Isso é tolice — a criatura rosnou. — Fique feliz que as lágrimas não venham.
— Minha melhor amiga se foi — disse Bell, balançando a cabeça. — Ela merece algo.
A vida não pode simplesmente... continuar.
A criatura soltou uma risada sombria.
— Ah, mas a vida continua, príncipe mimado. Talvez seja hora de você aprender isso.
Antes que Bell pudesse responder, a criatura subiu as escadas e deixou Bell sozinho na
escuridão fria com seu luto, desejando que ele tivesse ficado na sala de jantar e comido
sozinho afinal.
O vorgrath estava se aproximando. Haven se chocava contra parede após parede de
matagal, forçando seus olhos na escuridão por qualquer indício de um caminho. Os
espinhos rasgavam suas bochechas, braços e capa, mas ela mal os sentia.
Galhos e videiras estalavam atrás dela, perto o suficiente para inundar seus membros
com adrenalina para que continuasse se contorcendo, continuasse cortando e esfaqueando
a folhagem que iria matá-la.
Mova seu traseiro, Ashwood!
Como se em resposta, um rosnado cortou o ar. Ela cambaleou para frente. Em algum
lugar ao longo do caminho, ela tinha trocado seu arco pela adaga estúpida de Stolas.
Graças à Deusa, ela era afiada o suficiente para matar, porque ela estava cortando
descontroladamente, cortando as sombras, em qualquer coisa e tudo que a tocasse ou se
movesse.
Seus pulmões pareciam encolher conforme suas pernas batiam no chão macio e ela
devorava lufadas de ar gigantescas e gananciosas. Cada som a fazia girar para trás, cortando
sombras até que ela não tinha ideia em qual direção estava indo.
Tudo o que ela sabia era que o som de galhos quebrando ainda vinha de trás dela e
que ele estava mais perto - perto demais.
Ela se libertou da moita, ofegando de alívio com o banho de luz perolada do luar que
filtrava através da floresta. Depois de olhar por cima do ombro, ela disparou pela floresta,
sua mente zumbindo para formular um plano, um lugar que ela poderia ir para fugir do
vorgrath.
Não as árvores. Sua cabeça girou da esquerda para a direita, procurando algo para
mascarar seu cheiro, um lugar para se esconder.
Não há tempo suficiente. Ela saltou sobre um riacho e virou à direita, descendo uma
colina íngreme. Rochas cobertas de musgo e bétulas caídas agarraram suas botas.
No fim da colina, ela enxergou um sicômoro morto. A maior parte de seu grosso
tronco estava submerso em um lago raso de água prateada. Algo se moveu logo acima...
Seu corpo ficou rígido. O vorgrath caiu graciosamente da espessa copa das árvores
acima sobre o sicômoro caído, aterrissando silenciosamente. Ele gorjeou uma vez, seu crânio
calvo inclinado para o lado, os olhos queimando dentro de suas órbitas esqueléticas.
Seu longo pescoço se ergueu enquanto fazia outro pio estranho e sinistro.
Uma, duas, três vezes.
Chamando sua companheira, talvez?
Não houve nenhum aviso antes dele atacar. Um segundo ele estava agachado na
árvore. No próximo, ele saltou sobre ela, as presas à mostra e brilhando com veneno.
O vorgrath colidiu com ela. Estrelas vermelhas estouraram através de sua visão. Ela
sentia o gosto lama, musgo e sangue. Ela rolou por instinto, esquivando-se dos incisivos que
perfurariam seu crânio, e bateu forte contra um tronco. O impacto quase a nocauteou.
Antes que ela retomar seus sentidos, raios de dor atravessaram sua capa e túnica e
atingiram suas costas.
Oh, Deusa salve-a. A dor...
A agonia ardente queimando sua carne a fez ficar de pé. Ela gritou quando as garras
do vorgrath se prenderam em sua pele antes de a soltarem. O tormento apagou seus
pensamentos e ela mal conseguiu retomar sua consciência.
Com um rosnado selvagem, ela cambaleou sobre o tronco para correr, mas as garras
do vorgrath estavam por toda parte. Cortando. Rasgando. Esculpindo sulcos em sua
bochecha, seu pescoço. Rasgando sua carne em tiras.
Sangue - sangue estava por toda parte. Tanto sangue.
A dor queimava seu corpo. Sua adaga encontrou seu alvo, uma, duas vezes, mas
apenas roçava aquelas escamas viscosas. Aquela carne cinzenta e robusta.
Um golpe a atingiu na têmpora. Escuridão. A agonia ricocheteou em torno de seu
crânio conforme ela desabava.
Ela estava deitada de costas. Ela ergueu a mão. A adaga - a adaga havia sumido.
Runas! Ela se levantou com dificuldade, vasculhando o solo sombrio em busca da adaga,
mas o vorgrath a encontrou primeiro.
Com um grito gutural, ele agarrou a lâmina entre seus dedos alongados e atirou a
adaga na água.
Portões do Inferno! Seu arco.
Estava em suas mãos assim que o pensamento a atingiu. Quando ela o tinha pego? Sua
mente estava incompleta. Seus sentidos estavam todos confusos. A adrenalina transformava
tudo em cenas agitadas de meio segundo.
Flecha - ela precisava de uma flecha.
Ela avistou o brilho de pontas de flechas de ferro espalhadas pelo chão. Apenas uma
permanecia em sua aljava.
Pegando a madeira fina, ela firmou a flecha contra a corda, o hábito assumindo o
controle enquanto ela puxava para trás o eixo da flecha. Sua respiração desacelerou. Seu
pulso caótico se estabilizou.
Uma sensação de calma a invadiu, entorpecendo as feridas mortais que devastavam
seu corpo.
Dois instantes se passaram. Dois instantes inteiros para ela decidir mover a flecha
meio centímetro para a esquerda, longe do ombro do monstro. Um tiro mortal.
O aviso de Stolas sussurrou através dela, mas ele não podia competir com a raiva,
medo e desgosto surgindo através dela.
Mate o filho-da-...
O vorgrath saltou – e ela lançou sua flecha.
A luz da lua brilhava na ponta de metal giratória enquanto atravessava a escuridão
aquosa. A flecha atingiu o vorgrath bem quando a criatura descia sobre Haven. O vorgrath
caiu bem próximo de seu alvo, colidindo com a terra lamacenta, com um baque retumbante.
Eu não quero estar aqui quando a companheira dele chegar, ela decidiu. Ela deu um
passo lamentável... e então caiu ao lado da besta. Monstro e mortal, ambos feridos além de
qualquer ajuda.
Ela forçou a cabeça para o lado, olhando para o vorgrath, apenas deixando-se afundar
no chão da floresta carregado de musgo quando ela viu sua flecha afundada profundamente
em seu coração monstruoso.
Antes que a criatura moribunda sucumbisse, ela soltou um grito agudo. O grito era
tão humano que ela pensou por um segundo que foi ela quem fez o som.
Então o vorgrath morreu.
Em algum lugar nas profundezas da floresta, um grito semelhante estremeceu as
árvores e ecoou dentro de seu crânio.
Sua companheira.
Sua cabeça caiu para trás e ela soltou um suspiro agonizante. Ela ainda não estava
segura. Longe disso. Ela estava morrendo.
Talvez não imediatamente. Mas sangrar em uma floresta de predadores famintos não
deixava muito espaço para esperança. E isso se a companheira do vorgrath não a pegasse
primeiro.
Tantas maneiras de morrer, ela pensou amargamente.
Ela só podia rezar para que os Solis encontrassem seu corpo e o veneno de vorgrath
antes que Rook morresse também.
Um pequeno sorriso, em parte agonia em parte ironia, apareceu em seus lábios. Nesse
caso o Senhor do Sol teria que respeitá-la- ele não teria escolha.
Durante um fôlego doloroso, ela pensou ter captado o brilho de algo nas árvores
acima, observando-a. A forma de um homem, sua cabeça inclinada para o lado mostrando
decepção. Talvez até o contorno prateado das asas tremeluzisse dentro e fora de sua visão e
um único corvo circulava acima, mas ela estava morrendo afinal.
Seria de se esperar algumas alucinações.

A garota estava morrendo. Stolas mudou de posição no galho acima, onde ele assistiu
à batalha inteira - se é que se pode chamar disso - se desenrolar do reino do espelho.
Se ela soubesse como controlar sua magia, ela poderia ter terminado a luta antes que
ela começasse. Graças à sua habilidade com armas, ela sobreviveu por mais tempo que a
maioria dos mortais que enfrentaram as criaturas perversas e territoriais - mas, no final, armas
e habilidade não eram o suficiente.
Não contra um vorgrath.
A companheira da Sombra morta chamou do outro lado da ravina que os flanqueava,
seu grito lamentoso misturado com fúria. Ele já havia proibido o monstro vingativo de
chegar perto de Haven - pelo menos ele poderia deixá-la morrer pacificamente - mas a
criatura não ficaria longe por muito tempo.
De todos as Sombras sob seu reinado, os vorgraths eram os mais difíceis de controlar.
Ele voltou sua atenção para Haven. A morte a cercava, uma fera voraz deslizando ao
longo de sua carne exposta, marcando-a como seu prêmio. Sempre o espectro paciente,
esperando que o resto de seu sangue derramasse na terra e seu coração mortal vibrasse sua
batida final.
Então, e só então, ela entraria em seu corpo carnal, reivindicaria sua alma e lhe
presentearia com ela, como um cão orgulhoso com uma ave morta em suas mandíbulas.
Só que Haven não era um pássaro para ser jogado a seus pés.
Um inexplicável puxão de emoção agitou dentro dele enquanto ele a observava tentar
se levantar, arranhando o chão, os dedos cavando no tapete musgoso.
Ela ficou deitada de lado, de frente para ele. Seus poderes guerreiros - um claro e um
escuro - agitavam-se ao seu redor, serpentes de fogo de ouro e azul. Fios de seu lindo cabelo,
escurecidos com sujeira e sangue, espalhavam-se ao seu redor.
Foi a primeira vez que ele o viu solto. Ela parecia mais jovem com o cabelo solto. Mais
suave e menos feroz. Como um caco denteado de ônix polido apenas o suficiente para que
alguém pudesse lidar com ele sem tirar sangue.
— Você perdeu — sua companheira ronronou, sua voz exultante cavando sob sua
pele. — Se ao menos ela tivesse voltado depois de pegar o figo. — Ela apertou as asas contra
o corpo e suspirou. — Por que você acha que ela voltou para pegar o veneno?
— Estupidez mortal — ele rosnou, desejando poder descer e repreender Haven por
sua precipitação.
Mesmo assim, algo na coragem dela o impressionara. Quando ela se aproximou do
covil do vorgrath, ela estava aterrorizada, seu cheiro misturado com o sabor metálico do
medo. E depois que ela encontrou o figo, ele leu a dúvida em sua expressão.
Ela queria fugir - mas não o fez.
Como Senhor do Submundo, ele tinha observado humanos por séculos, tempo
suficiente para entendê-los melhor do que eles próprios. Qualquer outro mortal teria
deixado a guerreira Rainha do Sol Rook morrer.
Como se Haven pudesse sentir sua presença, ela reuniu força suficiente para levantar
a cabeça em sua direção. Seus olhos se encontraram e, mesmo sabendo que ela não podia vê-
lo, ele sentiu uma pulsação de conexão.
Ela riu - riu de verdade - e então sua energia foi drenada e ela caiu de volta no tapete
de musgo.
Choque. Ela estava entrando em choque.
— Esta é minha fase favorita da morte — disse sua companheira. — Eles sempre
fazem as coisas mais idiotas.
Tendo assistido a milhares de mortes, ele sabia o que viria a seguir. Os estágios eram
simples: pânico, negação, choque e depois uma calma sensação de aceitação no final.
Depois disso, seus espíritos escapavam de seus corpos carnais. Às vezes, eles
escapuliam silenciosamente. O ato quase sereno. Às vezes, as almas se sacudiam de seus
receptáculos mortais como se estivessem sendo arrancadas por uma mão invisível, a pessoa
parecendo bastante chocada com seu novo estado corporal.
Mas eles sempre, sempre, vinham até ele, de má vontade e aterrorizados. Seu novo
mestre.
— Ela será nossa em breve — disse sua companheira. — Posso ter prioridade nela?
O rosnado que irrompeu de seu peito a fez saltar para trás no galho, suas asas
tremulando atrás dela e agitando as poucas folhas que sobraram nas árvores.
— Ninguém a toca — ele rugiu, surpreendendo até a si mesmo. — Entendido?
Sua boca se separou e ela deixou seu olhar migrar da figura morimbunda de Haven
de volta para ele. Desde quando você se importa? ela parecia prestes a replicar antes de,
sabiamente, pensar melhor.
Ele tinha os mesmos pensamentos. Perdendo a calma agora? Por causa de uma
mortal?
Puxando suas asas para perto de seu corpo, ele tentou virar as costas para Haven,
bloquear suas respirações irregulares, tão pequenas e indefesas. A dor que ele sentiu nela. O
medo.
Deixe ela morrer. Você já fez o suficiente.
Contra todos os instintos, seu olhar voltou para a cena. Para ela. E algo em seu rosto,
a torção feroz de seus lábios enquanto ela encarava a morte, a luta em seus olhos, fez com
que ele quisesse ajudá-la.
— Não — sua companheira disse, embora sua voz tremesse – ela ainda estava
cautelosa depois de sua última explosão. — Você prometeu que não iria intervir.
Suas garras irromperam de seus dedos, a pressão maçante e depois a liberação quase
prazerosa. Ele sabia em sua mente que já havia tomado a decisão de salvá-la, mas não entendia
o porquê, então lutava contra isso.
Muitos mortais tiveram mortes piores. Por que esta o afetava tão profundamente? Ele
precisava dela para seu plano, mas isso não explicava a forma como a agonia dela fazia com
que uma proteção crua e visceral surgisse através dele com cada respiração dela.
Os lábios dela se separaram, um gemido suave escapando e ele se enlouqueceu.
Rosnando, ele abriu as asas e se preparou para descer para ajudá-la.
Naquele momento, ele teria movido o Nihl e o Submundo para fazer sua dor parar...
O cheiro atingiu Stolas primeiro, quebrando o controle que Haven tinha sobre ele.
Um Solis estava perto. Ele rosnou quando seu inimigo natural apareceu, sua aura mágica
uma essência dourada pálida que iluminava as árvores ao seu redor.
Archeron Halfbane, filho do Soberano do Sol de Effendier e escravo de um rei mortal.
Sua magia cintilava e vacilava, tentando escapar da escuridão que se alimentava de sua
chama. Mas mesmo o poderoso filho do Soberano não conseguia escapar da Maldição e sua
magia era um mero sussurro.
Stolas sentiu seus lábios formarem um meio sorriso. O menino bonito Senhor do Sol
odiaria ter sua magia sufocada quase tanto quanto desprezaria saber que estava sendo
observado pelo Submundo.
— Pobre heroína fracassada — sua companheira brincou enquanto as asas de Stolas
relaxavam lentamente, sua respiração se acalmando. — Parece que um Solis reivindicará esse
título em vez disso.
— Bom — Stolas murmurou, acomodando-se inquieto de volta na árvore para
assistir. Agora que o feitiço foi quebrado, ele estava tão surpreso com sua vontade de ajudar
a garota mortal ferida quanto sua companheira estava. — Deixe o idiota Solis lidar com ela.
— Você diz isso, mas seu rosto...
— Meu rosto o quê?
— Talvez — sua companheira persistiu, seu tom mudou de provocador para
preocupado — o sangue que você a enganou para ingerir conectou vocês de alguma forma.
Lentamente, ele ergueu o lábio superior e mostrou suas presas. Seu peito sacudiu com
um rosnado baixo. — Eu só fiz isso para despertar seus poderes. Agora, chega de conversa
sobre a mortal. Não estou no clima.
Abaixando a cabeça, ela se esgueirou alguns metros antes de pular para a próxima
árvore, onde ela olhava para ele com cautela. Normalmente, ele já a teria colocado em seu
lugar, mas ele estava distraído esta noite e sempre a Noctis astuta, ela tinha percebido isso.
Ela estava testando os limites de seu relacionamento, vendo até onde ela poderia
pressioná-lo. — Você já considerou — ela disse — que você completou dois dos três atos
necessários para o ritual de acasalamento?
Ele havia considerado tal coisa, não que ele fosse admitir isso para sua companheira.
— Para que um ritual de acasalamento Noctis seja válido, os participantes devem beber o
sangue um do outro e compartilhar um vínculo onírico — destacou. — Mas a garota não
tem acesso aos meus sonhos, nem me deu seu sangue de bom grado para beber.
Insatisfeita, sua companheira cruzou os braços em volta do peito e olhou para a
mortal moribunda. Contra sua vontade, Stolas seguiu seu olhar.
Sempre cavalheiro, Archeron estava cobrindo Haven com sua capa. Eles estavam
conversando. Stolas inclinou a cabeça, esforçando-se para ouvir.
Ela chamou o nome dele? E Archeron... por que o tolo soava tão... afetuoso?
Ele conhecia Archeron há séculos e ele era muitas coisas - arrogante, vaidoso, um
bastardo - mas afetuoso não era uma delas.
Uma pontada de raiva se formou entre suas omoplatas e suas garras se alongaram.
Franzindo o cenho, ele soltou um longo suspiro e tentou ficar grato por Archeron ter
aparecido para salvar a garota e manter sua aposta intacta.
E ainda... ele não podia escapar do impulso, a necessidade de ser o único a salvá-la. De
ser quem ela veria quando acordasse. Para consertar sua carne, expulsar sua dor e ver seus
olhos âmbar brilhando novamente, avaliando-o com a mesma estupidez corajosa pela qual
ele deveria tê-la matado no primeiro dia em que a conheceu.
Sua companheira grunhiu em seu galho recém-descoberto, olhando para ele com um
beicinho. — Eu só menciono o sangue porque... a maneira como você olha para ela... —
Antes de continuar sua declaração, ela recuou mais alguns passos, suas asas alargando-se
enquanto ela se preparava para voar para a segurança - se necessário. — Você acha que ela
iria olhar para você da mesma forma? Para ela, você é um monstro igual a nossa sombra que
ela derrubou.
Suas palmas formigavam; suas mãos se fecharam em punhos, garras cravando em sua
carne. Sua companheira o observava sem piscar enquanto esperava por sua resposta, mal
ousando respirar, mantendo as penas preto-azuladas que cobriam suas asas perfeitamente
imóveis.
— A garota não significa nada para mim — disse ele, vigorosamente, tentando fazer
com que a declaração fosse verdade.
— Então prove isso.
Normalmente, qualquer exigência para provar a si mesmo seria ignorada...
— Quando ela tiver servido ao seu propósito, beberemos de sua magia — ele disse. —
Juntos. — Ele se mexeu e ela se encolheu ligeiramente, as penas se arrepiando, mas seu
movimento foi apenas para desdobrar os dedos cerrados. Ele estava feliz em ver que suas
garras haviam se retraído. — Isso te satisfaz?
Ela acenou com a cabeça, lentamente. Mas a preocupação puxava os cantos de seus
lábios e, mais de uma vez, quando ela pensou que ele não podia vê-la, ela o estudava
cuidadosamente.
Abaixando as sobrancelhas, ele forçou sua atenção de volta para a cena que se
desenrolava abaixo e fez um juramento. Se Archeron salvasse a pequena tola, ele iria tratá-la
com a mesma indiferença que tratava qualquer outro mortal, até que ele pudesse se livrar
dela.
A cabeça de Archeron se ergueu ao ouvir o som do vorgrath moribundo e ele disparou
mais rápido por entre as árvores, rosnando baixinho. Ele tinha ouvido os gritos de Haven
um quilômetro atrás. Lamentos e gritos assustados que despertaram antigos sentimentos de
proteção e fúria e o forçaram a correr.
Ele vasculhou a colina, sua espada rúnica erguida e congelou. O vorgrath estava
esparramado de costas, uma flecha cravada em seu peito, outra quebrada em seu ombro. Ao
lado da sombra havia uma massa ensanguentada e imóvel, minúscula e frágil em
comparação.
O matiz vibrante de seu cabelo era familiar, assim como seu cheiro sob o travo de
sangue.
— Haven. — O nome da garota mortal saiu em um sussurro e ele correu em direção
à cena, sua cabeça girando enquanto procurava pela companheira da criatura.
Mesmo com o predador morto, o corpo de Archeron reagia, os músculos tensos e os
olhos afiados. Ele reprimiu seu instinto de separar a cabeça da sombra de seu corpo, o
método de matar que ele preferia para tais abominações. A garota mortal tinha visto sangue
suficiente hoje.
Mais da metade parecia ser dela.
Tirando o foco de seus ferimentos, ele tirou a capa e se ajoelhou ao lado dela.
Enquanto ele colocava a seda escura sobre seu corpo quebrado, o tecido grudou no sangue
que parecia vir de todos os lugares. Ele mal tinha soltado a roupa antes que ela estivesse
encharcada.
Sua mandíbula se apertou quando seus ferimentos ficaram claros, os sulcos vermelhos
profundos marcando sua pele pálida, os pedaços brancos de osso exposto.
O monstro havia brincado com ela. Esfolando sua delicada pele mortal quando
poderia facilmente ter oferecido um golpe mortal.
Raiva o invadiu, quente e ofuscante, e ele teve que focar sua respiração para recuperar
o controle. Por que ele estava reagindo tão fortemente? Ele tinha visto soldados feridos da
mesma forma em batalha e sua resposta, embora empática, nunca pareceu tão visceral, tão
fora de controle.
Enterrando suas emoções sob uma máscara dura, ele exigiu: — Você consegue andar?
Gemendo baixinho, ela olhou em sua direção como se acabasse de notá-lo, seus olhos
âmbar claro distantes e vidrados. Calafrios sacudiam seu corpo e enviaram uma nova onda
de raiva percorrendo por ele.
Graças à Deusa, o choque estava mascarando a dor.
— Se eu des... desmaiar, olhe dentro da minha mochila. — Ela piscava cansada, mas,
surpreendentemente, mesmo em tal estado, seus olhos brilhavam com... orgulho. — Eu
tenho um presente para você. — Ela lambeu os lábios secos e seu olhar vagou para o vorgrath
morto. — O bastardo está morto?
— Sim. — Ele a levantou com um braço, surpreso com o quão leve ela era, sua espada
pronta na outra mão. A companheira do vorgrath estaria por perto. — Foi um tiro bom e
certeiro, direto no coração.
— Quão difícil foi... — ela ofegou —, admitir isso?
— Eu não tenho nenhum problema em admitir quando um mortal faz algo digno de
elogio — ele rosnou enquanto deslizava pela floresta, Haven firmemente em seus braços. —
Simplesmente não acontece com muita frequência.
— Hmph. — Uma risada minúscula e áspera escapou de seus lábios, mas então ela
gemeu e se contorceu contra seu peito. Sangue, quente e pegajoso, manchava sua túnica e
pescoço.
Em contraste, seu pequeno corpo estava gelado.
— Eu posso andar — ela teimosamente insistiu.
Ele grunhiu. — Mesmo perto da morte, você discute.
— Por favor... não posso ficar devendo mais...
— Não é nada. Você pesa menos que um saco de grãos apesar de comer mais do que
dez Rainhas do Sol. — Não está ajudando. Ele baixou a voz e tentou uma tática mais suave.
— Deixe-me carregá-la, Haven Ashwood.
Archeron nunca tinha usado seu nome de batismo. Ele não estava ciente, na verdade,
de que ele o sabia. Talvez ele tenha ouvido na corte ou durante uma das poucas vezes em que
a observou na arena de treinamento em Penryth, lutando contra garotos mortais
desajeitados que pensavam que eram homens.
Mas assim que o nome dela escapou de sua boca, ela se tornou algo além da mortal
enfurecedora que o testava a cada passo.
Alguém além.
Talvez, como Surai disse, ela já fosse há algum tempo e ele tinha sido teimoso demais
para perceber. Talvez tivesse sido preciso que ela estivesse a meio caminho entre o reino dos
vivos e o Submundo para ele reconhecer que não queria que ela desaparecesse.
Mas agora, correndo por entre as árvores com ela sangrando em seus braços, o
pensamento de que ela poderia morrer - que provavelmente morreria - o atingiu com força.
A emoção parecia tão real quanto o sangue derramando sobre ele e a lua minguante
iluminando seu caminho acima.
Por motivos que ele não conseguia explicar totalmente, ele se importava com ela.
Uma mortal. Mais do que tinha se importado com alguém em muito tempo. E uma fúria
repentina e selvagem o encheu com a ideia de ela ser levada embora.
Ela bateu um pequeno punho contra o peito dele. Uma vez. Duas vezes. Então seus
olhos se fecharam. Os cílios de ouro rosa vibraram e ficaram imóveis. Seu cabelo rosa escuro
combinando, quase iridescente ao luar, era macio contra seu pescoço enquanto ela
descansava a cabeça na curva de sua clavícula, sua respiração saindo quente e rápida.
Cada pulso quente de ar contra sua carne lhe assegurava que ela ainda estava viva.
Ele mudou seu foco da garota para seus arredores, acelerando o passo. Seus ouvidos
sintonizados com a canção da floresta, esforçando-se para escutar qualquer coisa que
necessitasse a sua espada. Algo os observava; ele podia sentir sua presença. Mas localizar as
entidades obscuras era outra questão. Além dos ruídos habituais de água corrente e folhas
farfalhando, a floresta estava quieta.
Talvez o sentimento viesse simplesmente da insidiosa magia das sombras que
permeava esta floresta destruída. Archeron não era de correr para lugar nenhum, mas se
obrigou a acelerar, com pressa para salvar a garota e livrar-se deste lugar.
Haven se mexeu, gemendo em seu pescoço. O som o atingiu como uma lâmina.
— Você está bem agora — ele sussurrou de forma protetora.
Enfiando a espada na bainha em seu quadril, ele deslizou o outro braço sob as pernas
dela, fazendo pressão contra o couro de suas calças rígidas com sangue parcialmente seco.
Ele tentou mudar seu foco mais uma vez para a floresta, mas algo o atraiu de volta para o
pacote ensanguentado em seus braços.
Uma parte dele queria jogá-la no chão e dar-lhe uma bronca por sua impulsividade.
Como ela pode ser tão ingênua? Tão imprudente! Indo atrás do vorgrath sozinha.
Fazendo as coisas do jeito dela, sem conselhos, sem ajuda.
Mas então, ela se mexeu em seus braços, um suspiro irregular deslizando de seus lábios
entreabertos, e ele queria apertar seus braços ao redor dela até que de alguma forma tirasse
sua dor.
Um rosnado baixo retumbou de sua garganta e ele deixou seu olhar deslizar sobre o
rosto dela. Sua testa parecia a única parte dela que não estava ensanguentada. Enquanto ele
corria abaixo das lacunas nas copas das árvores, a luz da lua cintilava sobre seu rosto,
iluminando pequenas sardas que pontilhavam suas maçãs do rosto - estrelas fracas dentro de
um céu de porcelana.
Como se ela sentisse seu olhar, seus cílios tremeram, seus lábios franzindo.
Por favor, ele rezou para a Deusa. Tire a dor desta mortal tola. Deixe-a despertar
para... comer de novo - ela gosta disso - e me deixar louco. Ela gosta especialmente disso. E
quaisquer outros prazeres mortais que ela possua.
Ele ergueu o rosto para o céu, surpreso por ter invocado a Deusa. Quanto tempo fazia
desde que ele a invocara? Meses? Anos? Depois de ter suas orações não respondidas por
tanto tempo, não parecia haver muito sentido em orar...
Concentrando-se nas lacunas de estrelas através das árvores, ele desejou que a Deusa
o ouvisse. Não a leve ainda, ele implorou. Eu sei que ela é apenas uma mortal, mas ela é tão
corajosa quanto tola, o suficiente para rivalizar com qualquer uma de suas Rainhas do Sol.
Ela merece outra chance na vida.
Era em parte um pedido egoísta. Cada gemido, cada suspiro de seus lábios o enchia
de raiva.... e desamparo... desamparo tão profundo, tão avassalador que, se pudesse, ele o
arrancaria de seu coração com a ponta de sua espada.
A Deusa devia estar escutando, porque Haven parou de se contorcer e gemer de dor.
Sua respiração irregular se acalmou. Os músculos rígidos de seu corpo suavizaram.
— Veja — ele sussurrou. — Você está bem, Pequena Mortal. — E por um breve
segundo, o amuleto de Juramento do Coração em seu pescoço pulsou em um calor
abrasador antes de se tornar uma pedra gelada contra sua carne.
Então ele estava deslizando entre o emaranhado de videiras, sicômoros e carvalhos
com ela firme contra seu corpo, seu batimento cardíaco fraco batendo contra seu peito
enquanto ele contava suas respirações e desejava que ela vivesse.
— Nós deveríamos ter nos casado — Rook murmurou. Foi a primeira coisa coerente
que ela falou em horas. A cabeça da Rainha do Sol repousava no colo de Surai, o plano
intrincado de tranças enrolando seu cabelo emaranhado com folhas e sujeira. Seus olhos
estavam fechados, seus lábios pálidos e rachados, separando-se ligeiramente a cada respiração
superficial.
A lua minguante desta terra amaldiçoada pendia baixa e pesada, lançando uma
palidez cinza sobre sua pele normalmente bronzeada.
A culpa não é apenas da lua, Surai admitiu enquanto olhava para sua companheira.
A sombra da morte havia penetrado Rook enquanto Surai sucumbia ao sono. Ela havia se
enrolado ao lado da forma felina de Rook, prometendo a si mesma que seria apenas por
alguns minutos - mas, então, metade da noite havia passado.
Quando ela acordou, Rook estava enrolada de lado, em seu corpo carnal, tremendo e
gemendo.
Como ela poderia ter deixado Rook batalhando sozinha enquanto ela dormia?
Mordendo a bochecha até sentir o gosto metálico do sangue, Surai forçava seus olhos
cansados a ficarem abertos. Vou ficar acordada o tempo que for preciso.
Um grito distante de alguma criatura noturna enviou adrenalina em suas veias. Há
quanto tempo Archeron tinha saído? Ela havia perdido a noção do tempo, todo seu foco em
Rook, desejando que seu peito subisse, sua boca respirasse, seus olhos se abrissem. Não
desista, meu amor.
— Um pouco mais e então teremos o antídoto e poderemos nos casar aqui mesmo —
Surai prometeu. Seus olhos formigaram, mas ela impediu as lágrimas de caírem. Rook
odiaria isso.
— Por que? — Rook resmungou, sua voz tão suave que Surai quase não percebeu.
— Por que casar com você? — Surai perguntou, passando a mão na bochecha úmida
de Rook. Estava assustadoramente fria e ela rapidamente tentou brincar para esconder sua
inquietação. — Eu me pergunto isso diariamente.
— Não — Rook disse. Sua voz estava ofegante e fraca, a voz de uma desconhecida. —
Por que... confiar... nela?
Surai sacudiu a cabeça. Ela não tinha uma resposta para o porquê de colocar tanta fé
em Haven além de que seu coração assim o desejava. Mas sua companheira guerreira nunca
havia entendido a confiança de Surai em seu coração. Ao invés disso, Rook preferia governar
suas decisões usando a astúcia que aprendera na corte de sua mãe e seus instintos de soldado.
— Estou com medo — Rook sussurrou. Seus cílios pálidos vibraram, contrastando
com a faixa vermelha escura tatuada ao redor de seus olhos.
Com medo?
Surai agarrou a mão de Rook, ciente de que em qualquer outro momento, ela teria
apreciado segurar os dedos de Rook em vez de sua pata. As pontas de sua mão, logo abaixo
de onde seus dedos encontravam sua palma, estavam calejadas de uma vida inteira
balançando uma espada, as linhas abaixo eram profundas e enrugadas.
Como ela nunca havia percebido esses detalhes?
— Do que você está medo? — Surai perguntou. Ela nunca tinha ouvido Rook
admitir ter medo de alguma coisa e a declaração a perturbou.
Os olhos de Rook se abriram por um momento, as íris douradas desbotadas e opacas,
salpicadas aqui e ali com marrom. — Temo que quando eu me for, seu coração bondoso
fará de você um alvo.
A garganta de Surai se apertou. — Então não me deixe.
— Eu não vou. Não... ainda. — Rook relaxou em seu colo, um suspiro deixando seu
corpo. Depois de uma verificação desesperada para garantir que o peito de sua companheira
ainda subia e descia, Surai passou a mão pela testa de Rook, tirando algumas tranças úmidas
de suor de seu rosto.
— Ainda não — repetiu Surai. — E não por muito tempo. Você está me ouvindo,
Princesa Morgani?
Rook tinha a crença boba de que ela sabia como morreria. Cada criança Morgani
recebia os detalhes de sua morte - supostamente - para que elas não a temessem. Mas isso era
uma merda supersticiosa com o objetivo de diminuir o seu medo de morrer. Apenas outra
maneira da mãe de Rook, a Rainha Morgani, controlá-los.
O destino era o que você fazia dele. E Surai estava determinada a viver para ver Rook
sendo uma mulher velha e mal-humorada.
Surai estava prestes a escapar para preparar um pouco de caldo para Rook quando
um estrondo vindo das árvores atrás delas chamou sua atenção. Colocando gentilmente a
cabeça de Rook de lado, ela se levantou de um salto, suas katanas firmes em sua mão.
Archeron irrompeu no meio do mato. Levou um momento para ela perceber que as
manchas escuras cobrindo sua túnica e braços eram sangue e outro segundo para entender
que ele estava carregando algo.
Não algo. Alguém. Uma menina pequena e frágil embrulhada em sua capa. Tanto a
garota quanto a capa estavam encharcadas de sangue. Um longo fluxo de cabelos, escuro
com sangue e cinza ao luar, caía sobre o ombro de Archeron. A profusão de cachos
ondulados era de uma cor estranha, quase tingida de rosa, e caía até o punho de sua espada...
— Haven? — Surai embainhou suas lâminas e correu para eles, preparada para ajudar
Archeron a carregá-la, mas assim que o olhar de Archeron se voltou para ela, ela engasgou.
Havia uma selvageria em seus olhos, uma possessividade crua que a fez desejar não ter
enterrado seu aço.
Rosnando, ele moveu Haven em seu peito e alcançou sua espada. Ela congelou
quando viu sua expressão sombria, seus lábios franzidos como os de um gato da montanha
em um rosnado de advertência. Serpentes de ouro furiosas cintilavam ao redor dele e, pela
primeira vez desde que entraram neste lugar horrível, ela estava grata pela magia das sombras
que limitava seus poderes.
Surai ergueu as mãos. — Archeron, sou eu!
Ele piscou, os olhos verdes brilhando com magia. A cabeça da mortal subia e descia
com seu peito arfante. Sua mão pausou sobre o punho da espada antes de voltar a embalar a
garota. Enquanto ele apertava os braços ao redor do corpo dela, um pouco da ferocidade
deixou seu rosto.
Mas Surai ainda caminhava lentamente em direção a eles, os braços erguidos,
mantendo seus passos ponderados, até que o inferno selvagem em seus olhos se tornou uma
chama gotejante.
— Precisamos colocá-la no chão — disse Surai, falando baixinho e esperando que sua
voz despertasse algum tipo de familiaridade. — A última vez que verifiquei, os mortais têm
muito sangue e, pelo que parece, ela não tem muito de sobra.
Quando ela percebeu um lampejo de reconhecimento dentro de sua expressão, ela se
atreveu a levantar a mão em direção a Haven. Mas foi muito cedo. Archeron reagiu, seus
braços rodeando Haven, um rosnado baixo retumbando em seu peito.
— Não toque nela — ele rosnou, seu tom mais animal do que Solis.
Surai congelou, sem saber o que fazer. Ela nunca o tinha visto assim. Por causa de seu
profundo poço de magia, todos os Senhores do Sol cultivavam partes primitivas de si
mesmos que, quando desbloqueadas, poderiam se tornar selvagens e perigosas.
Mas Archeron nunca havia perdido o controle. Ele chegou perto quando Remurian
morreu, mas nunca assim...
— Archeron, olhe para mim — ela insistiu.
Sua respiração desacelerou quando ele olhou para ela.
— Eu sou sua amiga, Surai — ela continuou com aquela voz segura e calorosa. — Eu
quero ajudar.
Soltando uma respiração irregular, ele relaxou, os músculos de seu pescoço e
mandíbula suavizando quando ele voltou seu olhar para a garota em seus braços. Algo
próximo à agonia passou por seu rosto. — Não podemos deixar que a morte a leve. Não ela
também.
Surai sentiu um choque de raiva passar por ela. Primeiro, a morte reivindicou
Remurian. Agora ameaçava Haven e Rook.
Ela estava farta da morte ferindo aqueles que ela amava.
Seu medo de Archeron desapareceu quando ela alcançou Haven, sua mente de
repente com um propósito. — Ninguém vai morrer esta noite. A morte terá apenas que
esperar. Agora, vou tocar em Haven e se você me machucar, Archeron Halfbane, vou
amaldiçoá-lo para o Submundo por uma eternidade.
No momento em que a mão de Surai fez contato com o braço de Haven, Archeron
saiu de seu transe. Depois disso, eles trabalharam juntos para deitar a mortal em uma pilha
de cobertores ao lado do fogo. Bjorn surgiu, não tentando nem parecer um pouco surpreso
com o que estava acontecendo enquanto ele atiçava o fogo sem falar nada.
Com medo de que uma vez que ela levantasse a capa e expusesse as feridas de Haven,
Archeron retornaria ao seu estado primitivo, ela usou todas as suas artimanhas para
convencê-lo a deixar Haven e procurar na floresta por ervas curativas. Assim que seus passos
desapareceram, Surai tirou a capa de seda.
Um suspiro escapou de sua garganta quando ela percebeu o dano. A dor deve ter sido
insuportável.
Surai fez o que pôde por Haven, mas seus ferimentos eram graves. Enquanto Surai
avaliava os sulcos profundos ao longo de sua barriga, ela sabia que apenas um tipo de sombra
poderia ter feito isso.
Vorgrath.
Surai pegou pedaços de seda, do que já tinha sido o cachecol favorito de Rook, e os
apertou na lateral de Haven. Quando ela fez isso, Haven gemeu. Então seus lábios se
apertaram firmemente, seu rosto formando uma careta teimosa enquanto ela lutava contra
a dor com o coração de uma guerreira.
— Pequena mortal resistente — Surai murmurou.
Enquanto ela cobria os muitos cortes e rasgos na carne de Haven, calor vibrou sob
suas mãos. Era um tipo de calor diferente do que o de um corpo. A sensação formigante e
elétrica, como relâmpagos em miniatura dançavam sob sua palma.
Sua magia havia retornado, mesmo que apenas parcialmente.
A magia de Surai não era tão poderosa quanto a dos outros, mas anos de vida de
soldado a ensinaram proficiência nas artes de cura. Por alguma razão, sua magia estava
funcionando, pelo menos o suficiente para cauterizar as feridas da garota e talvez, se ela se
concentrasse o suficiente, estancar o sangramento.
Tirando o cabelo de sua testa, ela se apressou para consertar a carne da mortal antes
que sua magia fugisse, ignorando a decepção que a enchia.
Haven obviamente não havia conseguido obter o veneno, o que significava...
Surai olhou para Bjorn, que estava parado perto do fogo. Mesmo sabendo que ele não
podia realmente ver, seu olhar estava fixo nela, despertando aquela sensação desconfortável
familiar que ela às vezes tinha ao seu redor. — Se você acabou com o fogo, pode me ajudar
com ela?
A luz do fogo brilhou em seus dentes enquanto ele sorria, irritantemente silencioso.
— Você vai ficar aí sorrindo enquanto nossa amiga sangra até a morte? — Surai
exigiu, reprimindo as lágrimas.
Mas eram lágrimas de culpa, sua fúria dirigida para dentro. Por que ela havia colocado
tanta fé em uma mortal? Haven tinha tentado - isso estava claro - e ela a amava por isso. Mas
uma mortal colhendo veneno de um vorgrath?
Ela nunca se perdoaria por tal lapso de julgamento.
— Parece — Bjorn falou enquanto caminhava em direção a Surai, sua capa vermelha
escura arrastando atrás dele — que seu julgamento estava correto.
Estalando o pescoço, Surai se levantou. O sangue manchava suas mãos. Seu corpo
doía e seus olhos ardiam. Francamente, ela não estava com disposição para os truques de
Bjorn.
— Vidente, o que eu disse a você sobre entrar na minha cabeça... — Suas palavras
ficaram presas na garganta quando compreendeu a declaração dele.
— Então você não quer saber o que a mortal encontrou? — Bjorn perguntou. Ele
não estava mais sorrindo, mas um canto de seus lábios estava torto.
Encontrou? Seu coração batia de lado em suas costelas. — Chega de falar de forma
enigmática, Bjorn. — Surai prendeu a respiração enquanto estudava seu rosto, procurando
por sinais de provocação. Ela não ousava ter esperança. Ainda não. — O que você está
dizendo?
Mas Bjorn, como sempre, se recusou a dar uma resposta direta. Em vez disso, usando
sua magia, ele fez um movimento com o pulso e abriu o pequeno pacote de Haven que estava
jogado na grama à sua direita.
— Como a nossa magia está funcionando? — Surai murmurou.
Bjorn deu de ombros sem olhar em sua direção. — Essas coisas são para a Deusa
saber; Não questiono o destino.
Ela teria revirado os olhos em sua resposta vaga, mas sua atenção estava colada na
mochila de Haven enquanto ela se farfalhava e se movia. Bjorn girou os dedos – como se
enrolando metodicamente uma fita em um carretel – e algo pequeno e brilhante emergiu da
mochila de Haven.
Ela observou, mal ousando piscar, enquanto um pequeno frasco de alguma coisa
flutuava em um fluxo de magia dourada e faíscas choviam no chão abaixo e refletiam no
frasco de vidro retangular.
A magia de Bjorn carregou o frasco bem devagar sobre pedras e grama até que
chegasse na palma trêmula de Surai, o vidro delicado duro, frio e real.
Só quando ela viu o líquido iridescente dentro, claro e viscoso, ela finalmente
permitiu que uma brasa de esperança acendesse dentro dela.
— É isto... ?
Bjorn acenou com a cabeça.
— Haven conseguiu? — Surai fincou os joelhos para não cair enquanto o chão
parecia tremer. — Ela conseguiu — ela repetiu antes de finalmente pronunciar as palavras
que ela queria gritar nos últimos quatro dias. — Rook... Rook vai viver.
Bjorn acenou com a cabeça novamente, mas Surai já estava correndo para Rook para
dar-lhe o antídoto de veneno de vorgrath, lágrimas rebeldes escorrendo por seu rosto.
Haven sabia que estava sonhando, porque a dor tinha sumido e ela tinha uma pele
nova onde sua carne devastada deveria estar. Ela estava em uma campina ampla, cercada por
bétulas e pinheiros, o tapete gramado oscilando em torno de seus joelhos. Explosões
brilhantes de flores silvestres pintavam uma tela de tons pastéis no vale - serralha, trílio,
margaridas e jessamina.
Uma colcha quadriculada, amarela e azul-clara, estava estendida sob um carvalho
gigante. Era lá que Haven e Bell encontravam refúgio quando a biblioteca estava muito
lotada. Lá, eles assistiam as violentas tempestades penrythianas cruzarem o céu ocidental ao
anoitecer.
E foi lá, aparentemente, que seus sonhos a levaram.
Exceto, agora, um céu da meia-noite, incrustado de estrelas, pairava pesado sobre o
vale e incontáveis corvos escureciam os ramos do carvalho. Abaixo do carvalho sagrado de
Haven e Bell, o Senhor do Submundo de asas negras esperava por ela com uma expressão
severa e com uma pele perolada que rivalizava com as pétalas de neve das margaridas.
Ela quase havia se esquecido sobre o acordo de treinar e ela escondeu seu choque atrás
de uma carranca enquanto o estudava neste estranho mundo dos sonhos.
Ele parecia... diferente de alguma forma. Seus trajes habituais - a capa e a coroa do
corvo - estavam faltando. Em vez disso, uma túnica preta elegante, mas simples, de seda caía
até suas coxas e seu cabelo branco acinzentado estava mais selvagem do que o normal,
ondulado e desgrenhado em vez de bem preso no lugar.
Duas íris de cor cinza-aço formavam seus olhos, o anel de chama amarela ao redor
deles destacando sua cor estranhamente escura.
Mas foi a maneira como ele olhava para ela o que mais mudou. Antes, ele mal parecia
ciente de sua presença. Mal poupando-lhe mais do que um olhar.
Agora - bem, agora seu olhar seguia cada movimento dela. Seus olhos absorvendo
cada detalhe dela do jeito que ela o fazia, como se algo nela fosse diferente também. Mas o
quê?
Sentindo-se insegura, ela quase deu um tapinha nas costas para ver se ela tinha asas ou
algo assim.
Falando disso... ela deixou seu próprio olhar banquetear-se com os roxos e índigos na
exibição maciça de penas dele, aprimorada pela delicada luz prateada da lua acima. Ao
contrário de seu lugar usual, dobrado contra suas costas, suas asas estavam soltas e alargadas,
mostrando sua estonteante beleza sobrenatural.
Algo mudou em seu rosto e ele desviou o foco dela enquanto fez um sinal com o
queixo, exigindo impacientemente que ela se apressasse.
Ela não obedeceu, passeando pelo campo em direção a ele enquanto mudava sua foco
para as estrelas.
Afinal, era o sonho dela. Ela poderia fazer o que Submundo ela quisesse. E parecia
que faziam anos que ela não via estrelas de verdade.
Assim que seu dedo do pé tocou a colcha, ela falou: — Onde está sua capa de corvo?
Em vez de responder, Stolas lançou uma bola incandescente de relâmpago azul nela.
Uma dor gelada sacudiu seu corpo, congelando camada após camada de pele e
músculos, penetrando profundamente em sua medula até ela pensar que morreria de frio.
Tudo isso aconteceu no espaço de meio segundo.
Rosnando, ela se levantou de onde tinha caído na grama, seu corpo doendo enquanto
descongelava. — Runas! Por que você faria isso?
— Bem, Pequena Fera, não estamos aqui para tomar chá, estamos? — ele falou
lentamente. Ele girou os dedos enquanto cargas azuis escaldantes saltavam entre eles. —
Hoje à noite, nós construímos suas defesas, já que vimos que você não tem absolutamente
nenhuma.
Ela teria argumentado, ao menos por hábito, mas algo em sua expressão, a escuridão
em seus olhos, a fez concordar.
Eles trabalharam em algumas manobras evasivas. Técnicas fáceis, como criar um
escudo temporário. Então eles passaram para o que Stolas chamou de três linhas de defesa
contra a magia das sombras: distração, contra-ataque e anulação.
— Distração — Stolas explicou — funciona com magia das sombras muito poderosa
para neutralizar ou anular. É usada apenas como um último recurso, porque a magia vai
aprender rapidamente que é um truque.
Ele fez um movimento em um círculo apertado com a mão, formando uma bola
dourada de fogo agitado. Dentro de sua outra mão cresceu uma esfera brilhante de magia
das sombras. Quando a chama azulada era tão grande quanto sua cabeça, ele empurrou a
bola dourada em direção a ela.
Ela flutuou pelo ar lentamente e parou bem à sua esquerda, pairando.
— A maior parte da magia forte é brutal, sem sofisticação, porque seu portador não
tem ideia de como usá-la adequadamente. Uma vez que a magia das sombras se alimenta da
magia da luz, ela não consegue perceber a diferença entre você e aquela distração brilhante
perto da sua cabeça.
Com um movimento de seu pulso, ele enviou a magia das sombras fluindo para ela –
mas no último segundo, ela desviou e consumiu o orbe dourado em uma explosão silenciosa
de luz que iluminou o prado.
— Agora — ele disse — você tenta.
Haven tentou. Uma, duas, cem vezes sob aquele carvalho, o sonho se estendendo pelo
que parecia uma eternidade enquanto ela falhava continuamente. Stolas era impiedoso, mal
dando a ela algum tempo antes de lançar a estúpida magia nela.
— Eu não sei o que devo fazer — ela resmungou, os dentes rangendo enquanto ela se
arrastava para ficar de pé novamente.
— É simples, Pequena Fera — Stolas ronronou enquanto a magia das sombras
dançava entre as pontas de seus dedos, jogando luz azul sobre seu rosto e chifres. — Conjure
um pouco de sua magia de luz. Você fez muito mais do que isso antes.
Ela olhou para suas mãos ineptas e sem magia. — Mas eu pensei que não poderia fazer
magia da luz nas Terras das Ruínas.
Stolas soltou um suspiro longo e ofendido enquanto abria os braços. — Estamos nas
Ruínas? Ou estamos dentro dessa nebulosa paisagem dos sonhos? Hein?
— Por falar nisso — ela disse. — Como você pode exercer magia da luz? Eu pensei...
— Pequena Fera, a magia está em tudo. Ambos os tipos. Eu posso não ser capaz de
abrir a porta do Nihl como você faz, mas eu possuo magia de luz suficiente para criar um
pequeno orbe de luz.
— Mas...
As palavras encolheram em sua garganta quando ele deu dois passos em sua direção.
Seu dedo indicador batendo com força sua testa duas vezes. — Isto. Isto é o seu problema.
— Minha cabeça?
— Sua mente. — Ele bateu novamente. — Que pequenos problemas mortais estão
correndo em torno de seu cérebro?
Desconfortável por estar tão perto de um predador, mesmo que apenas em um sonho,
Haven deu um passo para trás. — Por um lado, estou um pouco preocupada que possa estar
morrendo do outro lado.
— Você não está — disse ele com naturalidade, explicando apenas quando ela fez uma
careta para ele. — Eu coloquei um escudo temporário sobre o acampamento de seus amigos
Solis tolos para garantir que eles possam aceder magia o suficiente para curar você. Também
me certifiquei de que o bonito e arrogante Senhor do Sol encontrasse uma raiz de pântano
para você. É uma coisa horrível, mas vai consertar o que o vorgrath destruiu e restaurar o
sangue vital que você tão tolamente cedeu.
— Eu não sangrei voluntariamente — ela sussurrou antes de perceber a implicação
de suas palavras. — Você estava assistindo?
— Estava mais olhando com vergonha. Sabe aquela tentativa infeliz de amarrar a alma
que você tentou no vorgrath? Você tem sorte que não a ter matado naquele momento. E,
por sorte, eu recuperei minha adaga daquele lago antes que uma selkie a reivindicasse, devo
acrescentar.
— Desculpe, eu estava um pouco ocupada demais tentando não ser eviscerada para
me preocupar com sua adaga ridícula. — Ela chutou a grama. — E para a minha primeira
ligação de alma, parece ter ido relativamente bem.
— Não. — Ela estremeceu com o tom abafado de sua voz, o espaço que Stolas entrou
sem que ela soubesse. Mais uma vez, eles estavam a centímetros de distância e ele bateu no
meio de sua testa. — Você está tentando fazer com que a magia exista através do
pensamento, mas não funciona dessa forma. A magia já existe. Seus pensamentos? Sua
mente? Deixe isso ir.
— Se eu não puder? — ela perguntou, cruzando os braços sobre o peito.
— Então seu amigo morrerá, a Maldição assumirá o controle de suas terras mortais e
tudo o que você preza deixará de existir.
Sem pressão. Haven forçou um suspiro irritado, seu rosto se contorcendo em uma
carranca.
— Pare. — O comando foi suave, quase reconfortante. Stolas a pegou pelos braços,
seus dedos gelados em torno de sua carne, mas eles a seguraram gentilmente, diferente de
antes. — Feche seus olhos.
Ela obedeceu, fechando as pálpebras.
— Agora, foque em suas respirações. Para dentro, para fora. Sim? Bom. Encontre o
seu batimento cardíaco, aquele ritmo lento e suave. Deixe seus pensamentos se dissiparem.
Apenas sinta.
No início, sua mente disparou com ainda mais pensamentos. Mas ela focou em seu
corpo, a sensação do ar descendo por sua garganta até seus pulmões, a lufada suave de sangue
pulsando em suas veias... e logo ela não era nada além de energia.
Energia profunda e latejante.
De longe, ela sentiu um casulo de calor dentro dela, o filete de luz na escuridão.
Um calor suave fez cócegas em sua palma. Ela abriu os olhos para uma pequena esfera
dourada perfeita pairando centímetros acima de sua mão.
Luz azul piscou quando Stolas jogou sua bola escura de magia nela.
No último segundo, ela lançou sua luz mágica no ar. A centímetros de seu rosto, a
magia dele roçou ar frio sobre suas bochechas enquanto mudava de direção, colidindo com
seu orbe.
Um pulso de luz se espalhou pelo vale, transformando a noite em dia por um breve
segundo.
Stolas estava sorrindo para ela. Um sorriso suave que temperou o olhar feroz dentro
de seus olhos e fez com que ela sentisse menos medo dele. — Muito bem, Pequena Fera.
Muito bem.
O orgulho encheu seu peito. Ela sabia que eles não eram amigos - eles nunca seriam
isso. Mas eles tinham acabado de compartilhar uma vitória, por menor que fosse. Ela se
apoiou nele sem pensar. O braço dela roçou o dele.
Seus olhos se encontraram e ela percebeu que o estava tocando de propósito. O que
diabos você está fazendo, Ashwood?
No mesmo momento em que ela estava pensando nisso, ele lançou uma esfera de
magia nela, o formigamento em sua pele como fogo invernal. Frio, ardente e todo poderoso.
A força foi uma rajada de adagas de gelo que a golpeou nas costas com força suficiente para
tirar o fôlego de seus pulmões.
Droob! Confusa e desorientada, ela ficou de pé, pronta para lutar, mas o Senhor do
Submundo já havia ido embora.
Haven acordou de seu sono, com o peito arfando, para encontrar-se sob um céu
noturno de cobalto e sob o cobertor fino demais de Surai. Os restos moribundos de uma
fogueira fumegavam a poucos metros de distância. Mais além, uma parede de sicômoros
montava sentinela sobre o acampamento.
Ela passou a mão pelo cabelo úmido de suor e pausou. Seu corpo parecia volumoso e
estranho como se tivesse crescido uma camada extra em sua pele.
Mordendo o lábio, ela espiou sob o cobertor. Uma camada espessa e crocante de algo
preto, algo sujo, envolvia seu torso até as pernas, estalando e coçando enquanto ela se mexia.
Antes que ela pudesse se levantar, o cheiro a atingiu.
Como excremento, só que pior. Raiz do pântano.
Ela se levantou em um piscar de olhos, pedaços viscosos de raiz do pântano salpicando
o chão aos seus pés.
Envolvida em nada além do cobertor, ela correu sobre as rochas, parando na beira de
um penhasco. Duas silhuetas escuras estavam amontoadas nas sombras abaixo. Quando seus
olhos se ajustaram, ela distinguiu Archeron e Bjorn.
Por que eles se aventurariam longe do fogo?
Foi a curiosidade, talvez, que a fez cair de bruços e se contorcer até a beira do
penhasco. Cada movimento enviava calafrios de dor através de suas articulações, mas não o
tipo de agonia que ela deveria sentir depois das garras do vorgrath rasgarem sua carne até os
ossos.
E suas costas - suas costas foram dilaceradas pela criatura. Destruídas.
Deusa Acima, ela nem deveria estar viva, muito menos bem o suficiente para espionar
os Solis. Mas qualquer que seja a magia na raiz do pântano que a salvou, ela não estava
reclamando... Muito.
A voz aveludada de Archeron chamou sua atenção de volta para a base do penhasco.
— Sua visão não mudou nem um pouco? — Archeron perguntou, inclinando-se para
mais perto de Bjorn.
Ela se esforçou para ouvir. Havia algo no modo como ele fez a pergunta, no modo
como colocou ênfase na última palavra e prendeu a respiração, que a fez pensar que a
resposta era importante para ele.
— Desculpe, se eu pudesse lhe dar uma resposta diferente, eu o faria. A garota...
Bjorn baixou a voz para um sussurro que só Archeron podia ouvir. Um segundo
depois, Archeron murmurou algo que ela não conseguiu entender, um som zangado e
frustrado, e seus movimentos se tornaram rápidos em vez de exibir sua habitual suavidade.
— Tem certeza, Bjorn?
Haven ouviu dessa vez, porque ele praticamente gritou.
Ela deixou cair a cabeça sobre o penhasco, por alguma estranha razão, desejando que
Bjorn dissesse que não tinha certeza. Que ele estava errado - embora ela não soubesse de
quem eles estavam falando. Só que a resposta de Bjorn dependia de Archeron não estar
zangado.
A cabeça de Bjorn baixou. — Você sabe que eu tenho.
Seixos tilintaram perto de sua cabeça e ela olhou para cima a tempo de ver uma figura
esguia e encapuzada sentar-se de pernas cruzadas ao seu lado.
— Eles estão dizendo alguma coisa interessante? — Surai perguntou, bocejando entre
suas palavras. Uma trança escura e bagunçada serpenteava pelo seu ombro até o colo.
Haven empurrou o chão com seus cotovelos, caindo de costas, e sentiu o calor
borbulhando sob suas bochechas. — Eu não ouvi... Muito. — Um sorriso apareceu em seus
lábios. Não havia condenação no rosto de Surai - apenas uma marca vermelha em sua testa
por dormir nas pedras. — Não por falta de tentativa.
Surai riu, um som como o tilintar de porcelana quebrando. — Está tudo bem.
Devemos parecer tão estranhos para você.
— Um pouco. — Ela pegou os flocos pegajosos que cobriam seus braços. — Na
verdade, muito. Então... Rook está bem?
— Sim. — A voz de Surai vacilou e ela olhou para a forma adormecida de Rook do
outro lado da fogueira. — O veneno de vorgrath que você adquiriu funcionou
imediatamente. Embora, sem dúvida, ela usará essa desculpa para dormir até o amanhecer.
— Quase morrer é uma boa desculpa...
Haven congelou quando a testa de Surai pressionou contra a dela. A carne de Surai
era quente e lisa e Haven podia ver o tênue contorno das runas de Surai brilhando sob o
quase amanhecer. O delicado aroma de lótus se agarrava ao seu cabelo escuro.
— Meu povo, os Ashari, acredita que a alma está alojada na testa — disse Surai. —
Colocando nossas testas juntas, estamos unindo nossas almas como irmãs.
A garganta de Haven doeu de emoção. Com exceção de Bell, ela tinha o hábito de
manter todos à uma certa distância, mas de alguma forma Surai havia entrado
sorrateiramente.
Tentando afastar a intimidade, Haven brincou: — Então, isso é como um abraço, só
que menos irritante?
— Não, isso é um agradecimento — Surai sussurrou, sua voz normalmente
caprichosa pesada com propósito. — Por Rook. Por consertar a ponte para que pudéssemos
atravessar. Você poderia ter usado sua magia no Wyvern ou para se salvar, mas não o fez. Eu
sabia que estava certa sobre você, mortal. Agora nossos destinos estão entrelaçados, assim
como nossos corações.
Uma parte de Haven queria se afastar. Ela não sabia como aceitar tal proximidade,
nem se sentia merecedora de elogios. Não com Bell como prisioneiro por causa dela e da
maldição ininterrupta.
Ainda assim, ela nunca deixaria um elogio tão sincero sem resposta.
— É uma honra — ela sussurrou em Solissiano, esperando que Surai sentisse sua
sinceridade.
Elas ficaram assim por cinco instantes inteiros.
Então Surai soltou uma risada e se recostou. — Deusa Acima, você fede pior do que
a bunda de um Lorrack.
Franzindo a testa, Haven estendeu o braço. Algo disse a ela que os Solis não
aprovariam seu treinamento noturno com Stolas, então ela fingiu ignorância sobre a raiz do
pântano. — O que é isso?
— Pasta feita com a raiz da planta mais nojenta das Ruínas — disse Surai, nem mesmo
tentando esconder sua diversão. — Cheira como o Submundo, mas é a razão pela qual suas
feridas quase cicatrizaram. — Surai se acomodou. — Depois que demos a Rook o veneno
de vorgrath, usei um pouco no ferimento dela também. Temos sorte de ter encontrado isso
tão rapidamente. É muito raro.
— Que bom que não sou a única a feder.
— Oh, não há comparação, acredite em mim. — Seus olhos brilharam em lilás. —
Nós vamos nos casar assim que a Maldição for quebrada. Rook convidaria metade das Ilhas
Morgani se eu permitisse. — Suas mãos caíram sobre o colo. — Eu só quero ter um
casamento juntas em nossa verdadeira pele. Eu quero segurar Rook com as mãos, não com
garras, e usar todas as palavras que não posso dizer como uma besta muda para pronunciar
nossos votos.
Haven mordeu o lábio. — Me perdoe se isso é pessoal, mas como...
— Nós acabamos como um corvo e um lince, em períodos opostos do dia? — Ela
olhou por cima do ombro para a forma adormecida de sua companheira. — Rook e eu
ambas nascemos com runas de metamorfo. Como a filha mais velha da rainha reinante das
Ilhas Morgani, a forma de metamorfo de Rook foi considerada régia e majestosa, enquanto
a minha foi considerada inferior. Um pássaro inteligente com penas pretas lembra muito
meu povo de nosso inimigo ancestral, os Noctis, e eu não tenho nenhuma linhagem real para
me apoiar.
O olhar de Haven se desviou para as linhas tênues e elegantes que se curvavam sobre
o antebraço esbelto de Surai antes de desaparecerem dentro de sua manga preta larga.
— Mesmo assim — continuou Surai. — Eu me transformava sempre que podia
apenas para sentir o vento agitar minhas asas.
— Eu faria a mesma coisa — disse Haven, lembrando-se da sensação ao voar nos
braços de Stolas.
Um sorriso cintilou no rosto de Surai e logo morreu. — Há um conto em Effendier
sobre o bravo lince e o inteligente corvo, dois animais de mundos diferentes. Um vivia no
céu, o outro nas montanhas. Apesar de suas diferenças, eles se apaixonaram, mas é claro que
estava condenado desde o início.
— Seu amor não está condenado — Haven declarou, imediatamente se sentindo
boba pela emoção por trás de suas palavras. Mas ela falava sério. — Já vi muitos mortais
unidos pelo casamento, mas nenhum jamais teve o vínculo especial que você e Rook
compartilham.
— Talvez se não fosse por nossa maldição... — Surai soltou um suspiro pesado. —
Nossa punição poderia ter sido pior. A governante que executou nosso julgamento achou
adequado garantir que passássemos apenas uma hora juntas em nossa verdadeira forma sob
a luz do sol e uma hora juntas sob as estrelas. Poderia ter sido pior — ela repetiu.
Que governante as puniu? A Rainha das Sombras?
Mas os belos ombros de Surai se curvaram para dentro, seu corpo encolhendo um
pouco. Não havia como escapar de sua tortura pessoal, então Haven não questionou Surai
mais.
Se Surai quisesse dizer mais, ela o faria.
Inclinando-se para a frente, Surai lançou um olhar sobre o penhasco. — Diga-me,
Haven. Você e Archeron eram amigos em seu reino mortal?
— Penryth? — Haven meio que bufou. — Não. Quer dizer, o Senhor do Sol ficava
mais sozinho. Eu não acho que ele goste dos mortais.
Os dedos de Surai se agitaram sobre seu longo pescoço, seu olhar ainda nas sombras
abaixo. — Como ele parecia para você?
— Entediado. — Haven encolheu os ombros enquanto tentava se lembrar das poucas
vezes que esteve perto de Archeron em Penryth. — Incomodado. Nervoso. Talvez... talvez
solitário.
A cabeça de Surai se ergueu com a palavra, uma respiração afiada escapando de seus
lábios. — É claro que ele estaria — disse ela, falando mais para si mesma do que para Haven.
Ela mudou inconscientemente para Solissiano. — Claro — ela repetiu.
A curiosidade de Haven aumentou. — Por que ele era - é escravizado pelo rei Horace?
Surai ficou de pé, limpando as calças e esquivando-se do olhar questionador de
Haven. — Com fome? Vou ver o que Bjorn pode fazer para nós.
— Espere — Haven chamou enquanto tropeçava para ficar de pé, mexendo em seu
cobertor para garantir que ainda estava apertado em torno de seu corpo. Ela estendeu um
braço duro. — Como faço para tirar essa sujeira?
— Eu te levo.
Haven se virou com a voz aveludada para ver Archeron a menos de dois metros de
distância. Com os braços cruzados sobre o peito, Haven recuou um passo, a carne sob a pasta
de raiz do pântano queimando quando o olhar dele mudou para seus braços e seu peito antes
de passar sobre suas panturrilhas expostas.
— Levar-me para onde? — ela exigiu, lábios torcidos em um sorriso de escárnio. Ela
ainda podia sentir as queimaduras em seus pulsos, por serem amarrados por ordem dele.
Duas vezes.
Archeron se mexeu um pouco, as mãos enfiadas profundamente em seus bolsos. —
Há uma lagoa abaixo —Ele direcionou com sua mandíbula apertada para baixo do penhasco
— isto é, se você gostaria de ficar limpa?
É claro que eu quero ficar limpa, ela quase gritou. Exceto, dessa vez, qualquer vestígio
da arrogância de Archeron havia desaparecido.
Se ela estivesse sendo ousada, poderia até dizer que ele parecia vulnerável.
Um sorriso irônico enfeitou o rosto de Bjorn enquanto ele olhava para o chão,
fingindo não ouvir. Com sua visão periférica, ela viu Surai com uma mão cobrindo sua boca,
uma risada silenciosa mexendo seus ombros.
— Eu não se — Haven disse, fixando-o com um olhar ruinoso. — Isso envolve me
amarrar? Porque isso acontece quando estou perto de você.
A raiva brilhou dentro de seus olhos esmeralda e ele olhou para Surai sob as
sobrancelhas abaixadas antes de suspirar. — Sem amarras.
— Tudo bem então — Haven murmurou com os dentes cerrados.
— Tudo bem? — Archeron disse rapidamente como se não pudesse acreditar que
fora tão fácil. — Quero dizer... Bom. — Ele deu a volta para sair, então parou, seus ombros
largos e musculosos levantando quando ele soltou um suspiro pesado e se virou, uma mão
estendida. — Você poderia me seguir, por favor?
Haven apertou o cobertor ao redor de seu corpo, soltou um bufo e passou por ele
pela trilha, apesar de não ter ideia de onde ela estava indo.
Ela poderia permitir que o Senhor do Sol a acompanhasse, mas certamente não ia
segurar a mão do homem que quase a vendeu para os Devoradores.
Mesmo que seu arrependimento parecesse genuíno e que seus modos recém-
descobertos o tornassem de alguma forma mais lindo do que antes.
Haven achava que o sol de Penryth era impiedoso, mas o fogo no olhar de um Senhor
do Sol era mil vezes mais quente. Ela parou no fundo do penhasco para deixá-lo passar e ele
percorreu aquele olhar esmeralda sobre sua pele novamente, seu rosto, realmente olhando
para ela pela primeira vez desde que a jornada começou.
Seu corpo congelou sob sua avaliação.
Antes, ele mal parecia notá-la. Agora, era como se ele achasse cada rachadura e poro
de sua carne, cada curva de seu corpo, interessante. Agora, era como se ele percebesse que ela
era mulher.
Exceto que seu olhar não era malicioso como os que ela recebeu dos homens
Penrythianos. Não era para humilhá-la ou fazê-la se sentir pequena e fraca. Pelo contrário,
havia apreciação dentro de seus olhos muito verdes.
— Eu posso ir sozinha, sabia — ela disse. — Você não tem que vir.
— Verdade. Mas Surai me mandaria para o Submundo em pedaços se eu deixasse
você se tornar o café da manhã de uma das criaturas famintas que espreitam nestas terras
amaldiçoadas.
— Eu não vi tantas — Haven brincou, mesmo enquanto seu olhar esvoaçava sobre a
floresta, examinando as moitas sombrias. — E eu sou muito boa em cuidar de mim mesma,
caso você não tenha percebido.
— Oh, eu percebi — ele riu. — Mas, a menos que você planeje se banhar com uma
adaga em uma mão e um arco na outra, você precisa de um observador. Especialmente
porque cada gota d'água nesta terra miserável pertence à Rainha Selkie.
A palavra evocou imagens do livro na biblioteca de corpos escorregadios cintilando
com escamas de ametista e ouro, grandes olhos negros e fileiras de dentes em forma de
agulha.
Depois disso, ela parou de protestar contra a presença de Archeron.
Em vez disso, ela o observou enquanto suas coxas longas e grossas devoravam a terra
com passos largos suaves, conduzindo-a através de uma densa parede de carvalhos
imponentes. O ar úmido ficava mais espesso a cada passo para dentro da floresta. Ele
balançava uma espada curta sobre a cortina de trepadeiras e galhos à frente, os músculos de
seus ombros e costas se mexendo e se projetando através de sua túnica fina.
Os fios dourados que corriam ao longo de seu colarinho brilhavam à luz do sol,
semelhantes ao ouro antigo de seu cabelo solto na altura dos ombros.
Um brilho de água turquesa apareceu entre a vegetação brilhante. Archeron a olhou
com um meio sorriso nos lábios enquanto inclinou a cabeça em direção à água. — Como
prometido, Pequena Mortal.
— Haven — ela murmurou, parando ao lado das rochas cobertas de musgo que
margeavam a costa. — Meu nome é Haven.
— Haven.
Talvez tenha sido a maneira como ele disse o nome dela em sua voz profunda e
sensual, ou a maneira como seus lábios se curvaram nos cantos depois, mas um arrepio
percorreu seu corpo.
Ela pigarreou. — Eu preciso me despir.
Ele ergueu as sobrancelhas. — Vá em frente.
— Sozinha.
Desde que sua pequena jornada começou, os lábios do Senhor do Sol brincavam com
um sorriso. Mas agora… agora o sorriso que esculpia sua mandíbula quadrada era felino, até
mesmo predatório. — Quem você acha que cobriu você com raiz do pântano, Haven?
Cada gota de umidade ressecou de sua boca, tanto por causa da maneira como ele
praticamente ronronou seu nome quanto por sua implicação. — Surai?
— Ela estava ocupada cuidando de sua companheira. E você estava ocupada
morrendo. Esfreguei aquela pasta nojenta sobre cada centímetro de sua carne devastada.
— E Bjorn?
Ele arqueou uma sobrancelha divertidamente. — O vidente cego?
Ela afundou os dedos dos pés na lama preto-esverdeada, os braços cruzados sobre o
peito, segurando o cobertor. — Então, obrigada. Mas eu ainda gostaria de ficar sozinha.
Ele deu um olhar lento e errante sobre ela, seu sorriso se transformando em outra
coisa, um lampejo primitivo, e então se virou.
Sem ter que lidar com seu olhar intenso, ela pode finalmente respirar. Ela olhou uma
última vez para se certificar de que ele não estava espiando, então deslizou para a água morna
e límpida, seus pés transformando a lama em nuvens escuras ao redor de suas coxas.
Quando chegou a água atingiu sua cintura, ela se virou para olhar para as costas do
Senhor do Sol, tremendo quando uma fraca corrente de energia desceu por suas pernas.
A magia das sombras estava nessas águas. Muita dela. A maldição era poderosa aqui.
Ela perdeu momentaneamente o fôlego quando ela desfez o cobertor de Surai de seu
corpo e a água acariciou sua pele. A pasta de raiz do pântano grudada nas fibras de lã do
cobertor saiu sob seus dedos massageadores.
Ela espremeu o tecido, gotas ondulando sobre a superfície do lago, então jogou o
cobertor enrolado na margem... e viu Archeron encostado em um carvalho fendido, imóvel
e quieto, observando-a como um gato montanhês faminto observaria peixes correndo
abaixo da superfície da água.
Ela congelou. A água batia em seu umbigo, o resto de seu torso escondido atrás de
uma pasta cinza-escura. Mesmo assim. O contorno nu de seu corpo estava claro como o dia,
então ela cruzou os braços sobre o peito enquanto seu estômago dava cambalhotas.
— Por que você tem vergonha do seu corpo? — Sua voz suave acariciou seus ossos.
— Eu não tenho — ela disse, e era verdade. Ela adorava a dureza de suas coxas, a
rigidez de sua barriga, o poderoso aperto dos músculos de suas costas quando ela puxava a
corda do arco. — Mas na minha cultura, o corpo de uma mulher é...
O quê? Ela não conseguia se lembrar das palavras que foram ditas, apenas que estava
implícito. O corpo de uma mulher era vergonhoso. Algo para ser ao mesmo tempo cobiçado
e rebaixado. Algo para esconder junto com seu cabelo, uma posse que poderia ser roubada
se ela não tomasse cuidado, tomada sem seu consentimento.
— Em minha cultura — Archeron disse, os olhos esmeralda brilhando — a forma
feminina é a expressão mais verdadeira de beleza e força. Nossas Rainhas do Sol exibem seus
corpos sem remorso ou vergonha e qualquer homem que tentasse fazê-las sentir o contrário
perderia rapidamente a cabeça.
Haven sorriu com a ideia. — Elas andam nuas em Effendier?
Uma longa pausa se seguiu. — Quando nós estamos sem roupa, geralmente andar
não está envolvido, não.
Deusa Acima e tudo que é sagrado.
O calor chiou sob sua pele com a implicação e ela desviou o olhar do brilho feroz nos
olhos dele, mergulhando mais fundo na água. Ela trabalhou as mãos sobre a gosma colada
em sua carne, amaciando a pasta, removendo pedaços aqui e ali.
Escurecia a água e exalava um cheiro estagnado.
Sob a água, sua carne brilhava rosada e fresca. Leves listras vermelhas eram tudo o que
restava do trabalho do vorgrath.
Ela desejava ficar ali por horas. Desejava mergulhar abaixo da superfície e sentir a água
deslizando sobre sua pele, limpando a sujeira dos últimos dias.
Mas ela não podia se divertir quando Bell ainda estava preso, com medo,
possivelmente ferido.
Ela se forçou a voltar lentamente para a margem.
Quando a água atingiu logo abaixo de seus ossos afiados do quadril, ela hesitou.
O olhar de Archeron tinha perdido um pouco de sua intensidade, mas ele nunca
realmente parou de olhá-la.
Sua barriga se contraiu. Ela pensou em suas palavras. Sobre não ficar constrangida ou
envergonhada. Afinal, seu corpo a tinha ajudado a passar por mais coisas do que a maioria
dos homens de sua idade conseguiria sobreviver.
Por que ela teria vergonha de algo tão poderoso? Tão vivo?
Engolindo em seco, ela soltou um longo suspiro e caminhou orgulhosamente para a
praia, mal respirando, sua pele consciente da água que girava em torno de suas coxas, seguida
de seus joelhos, suas panturrilhas e, finalmente, seus pés.
Archeron ainda a observava, mas, talvez, ele não tivesse realmente pensado que ela
faria isso, porque ele parecia ter parado de respirar também. Seu peito estava quieto, seus
lábios apertados. Seus olhos brilhavam febrilmente enquanto a seguiam - sem desculpas, sem
remorso - deslizando trilhas lânguidas de seu corpo ao seu rosto.
Então ela parou, completamente nua, na margem. A luz do sol escorria pelo tapete
verde de folhas, aquecendo sua pele. A água escorria como rios por sua barriga, suas pernas.
Cada músculo de seu corpo se apertava sob sua carne.
Nunca em sua vida ela havia desnudado seu corpo e se sentido assim... Forte. Uma
emoção com camadas de vulnerabilidade e poder.
Esta sou eu, ela parecia estar dizendo. E não tenho vergonha.
Sem uma palavra, Archeron deixou a árvore e deslizou para onde ela estava. Quando
ele o fez, seu olhar percorreu seu corpo e encontrou seu olhar, seus lábios se separando
ligeiramente, as mãos fechadas em punhos frouxos ao seu lado.
Ele parou a centímetros dela, uma respiração aguda escapando de seus lábios.
Então ele estava tirando sua capa e a deslizando pelos ombros dela. Entorpecida, ela
puxou a capa com mais força; ainda estava quente do corpo de Archeron, seu calor mais
quente do que o beijo do sol em uma tarde penrythiana.
Agarrando sua túnica por baixo, ele a deslizou sobre sua cabeça, revelando a pele
morena e os músculos encorpados que dançavam com cada movimento seu. A luz da manhã
nadou ao longo das marcas de runas de prata gravadas em sua carne, uma treliça de runas
complexas que ela não reconhecia.
Ele sacudiu os cabelos dourados, dobrou a túnica e a entregou a ela.
A camisa de musselina parecia como nuvens sob seus dedos, suave e leve. — Obrigada
— ela disse.
Ela andou alguns metros e pendurou a capa em um galho, enfiando-se na túnica do
Senhor do Sol. A roupa caiu até suas coxas, a musselina delicada contra sua pele.
Ela reprimiu o desejo de inalar o cheiro que se agarrava à camisa, uma mistura
inebriante de couro, magnólias no calor do verão e terra rica e argilosa.
Será que todos os Senhores do Sol cheiravam tão divinamente ou era apenas
Archeron?
Ou, talvez, a magia das sombras da floresta estivesse mexendo com sua mente.
Tonta, ela se virou, mas Archeron estava curvado sobre a água, os músculos de suas
costas franzindo enquanto ele girava suas roupas na água rasa, tirando a camada endurecida
de sujeira de suas calças de couro. Ela não disse a ele que ela poderia invocar calças novas.
Era muito divertido vê-lo ser doméstico.
De seu perfil, ela podia ver seus olhos se erguerem. Ela seguiu seu olhar para o outro
lado da lagoa.
Três cabeças lustrosas balançavam na água, jubas de cabelo prateado se espalhando ao
redor delas. De seus rostos perolados piscavam grandes olhos negros tão escuros que
engoliam a luz.
Logo abaixo, a luz do sol dourada filtrava-se através da água translúcida e iluminava
escamas em tons de joias e longas nadadeiras cor de cereja girando como algas marinhas
apanhadas em uma onda.
A escama de um selkie de ouro polido.
O preço da maldição. Três instantes se passaram antes que ela tivesse um arco e flecha
invocado e em sua mão, a magia formigando nas pontas dos seus dedos.
Antes que ela pudesse levantar a flecha, as selkies desapareceram na água, enviando
pequenas ondulações em direção à costa.
— Selkies são muito cautelosas para isso — Archeron disse enquanto se levantava e
torcia suas roupas, os músculos de seus braços saltando com cada torção. — Além disso, se
você matar uma, nunca mais poderá entrar na água. Eles são criaturas cruéis e vingativas.
Haven juntou suas roupas, incapaz de tirar os olhos das ondulações que chegavam
lentamente na superfície. — Você tinha selkies em Effendier?
Ele coçou o pescoço. — Elas eram raras, mas sim. Algumas frequentavam a costa.
Uma vez, quando eu era menino, meu tio pegou uma em suas redes de pesca e decidiu deixá-
la viver no fosso fora de seu castelo. A criatura era a coisa mais linda que eu já tinha visto,
com a pele como o interior das conchas que surgiam na costa e o cabelo como ouro líquido.
— Do que elas gostam? — ela perguntou, deslizando para dentro das calças molhadas,
enquanto se perguntava como apanhar uma.
— Homens. — Archeron disse a palavra tão suavemente que ela estremeceu. —
Quanto mais bonito, melhor. Descobrimos isso quando quatro soldados de minha mãe
desapareceram depois que ela visitou seu irmão. Quando meu tio vasculhou o fosso, tudo o
que restava dos jovens eram ossos, limpos pelos dentes de selkie. Elas até matam e comem
seus companheiros após copular.
Outro calafrio percorreu sua espinha, mas a atenção de Haven foi para outra coisa.
— Você disse a corte de sua mãe. Ela é algum tipo de realeza em seu mundo?
Seus lábios se curvaram em um sorriso irônico que não alcançou seus olhos. — Ok,
mortal curiosa. Você responde à minha pergunta e eu responderei à sua.
Haven engoliu em seco, balançando-se em seus calcanhares. No entanto, o que ele
poderia perguntar que ela estava com medo de responder?
Soltando um longo suspiro, ela assentiu.
Ele se endireitou e ela teve que desviar o olhar dos músculos que tremiam sob sua
carne dourada enquanto ele levantou seu queixo, avaliando-a. — Por que você esconde seu
cabelo?
— Você quer dizer além da cor estranha?
Ele assentiu.
Ela passou a mão pelo cabelo emaranhado em um nó úmido na base do crânio
enquanto seu coração batia forte contra o esterno. — Acho que queria que os homens
parassem de olhar para mim. — Mas essa não era toda a verdade. — Não, mais do que isso.
Eu queria ficar invisível por um tempo. Para desaparecer do mundo dos homens.
Ela não se atreveu a mencionar Damius ou o terror que ela suportou. Mas, de alguma
forma, ela sentiu que Archeron entendia, como se ele já tivesse entendido essa parte das
memórias que ela lhe enviou no Destruidor.
Mesmo que seus olhos brilhassem com violência, sua voz era gentil quando ele disse:
— É imperdoável que seus homens a mantenham fraca e depois a ataquem.
— Eles não conseguiram me manter fraca — ela disse, a amargura tingindo sua voz
enquanto ela se lembrava do quão mais forte ela tinha que lutar do que os homens em sua
academia. Quantas vezes mais ela teve que provar a si mesma para se tornar a guardiã real de
Bell.
— Eu sei.
Ela piscou para ele. Por que ele estava tão diferente agora? O que mudou? — Quero
mudar minha pergunta. Isso é permitido?
Ele correu o polegar sobre o cabo da espada de runas em seu quadril. — Depende da
pergunta.
— Por que você está sendo legal comigo? A última vez que te vi, você me amarrou nas
costas de um cavalo e me chamou de chinga.
Ele encolheu os ombros. — Sim, mas depois eu te libertei.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— E chinga nem sempre é um termo negativo.
— Não? Então, eu sou uma praga que se enterra sob sua pele e põe ovos dentro do
seu coração antes de matá-lo?
Suspirando, ele se aproximou antes que seu olhar caísse em suas botas. — Me desculpe
por ter te tratado injustamente. — Sua boca se abriu, mas ele continuou. — Sua espécie me
traiu na véspera de uma batalha muito importante. Por causa de suas ações, meu irmão de
armas morreu e minha noiva e amigos foram amaldiçoados para a eternidade. É por isso que
descarreguei minha raiva em você. — Seus olhos encontraram os dela. Olhos arrependidos.
— Espero que você possa me perdoar.
Ela não esperava tanta honestidade ou sinceridade. Todas as palavras que ela queria
dizer se embaralharam, mas ela conseguiu assentir.
Seu olhar permaneceu por mais um momento, sua mandíbula apertada, e então ele se
virou para sair.
— Eu também sinto muito — ela deixou escapar. Talvez porque ela soubesse que um
Senhor do Sol se desculpando com um mortal era quase inédito. Ou talvez porque ela
realmente sentisse muito. — Às vezes, deixo minhas emoções turvarem meu julgamento.
— Às vezes? — ela o ouviu murmurar baixinho antes que ele desviasse o olhar para
ela, fazendo com que seu cabelo dourado deslizasse sobre sua testa. — Desculpas aceitas,
Haven Ashwood.
Depois disso, ele parecia pensativo, olhando para as árvores enquanto conduzia o
caminho de volta pela floresta verde escura sem dizer uma palavra, seus passos o único som.
Mesmo que ele não dissesse nada, ela podia dizer pela curva interna de seus ombros e
pela flexão de suas mãos que algo o estava incomodando.
Quando eles passaram por entre as árvores e as falésias apareceram, Archeron virou-
se para encará-la. — Você pode ter pensado que esconder seu cabelo fez de você invisível,
mas tudo o que fez foi destacar seu pescoço elegante. E um dia, Haven Ashwood, você vai
querer alguém para beijar seu pescoço... e outros lugares.
Ela tentou falar, mas ele ergueu a mão. — Pare de desejar ser menos, Haven, e aceite
que você é mais. Pare de se desculpar pelo fogo dentro de você. Em vez disso, queime como
o sol até que você deixe o mundo em chamas.
Ele se virou e caminhou em direção aos penhascos antes que ela pudesse responder.
Não que ela pudesse, ela estava literalmente chocada demais para falar.
Haven estava estendendo a mão para Bell enquanto as chamas lambiam sua capa. Ela
gritou o nome dele de seu poleiro na ponte em chamas. Ele tentou agarrar a mão dela, mas
não conseguiu alcançá-la e cada vez que seus dedos se aproximavam dos dela, ela de alguma
forma ficava mais longe.
De repente, a ponte cedeu e ela escorregou para o vazio.
Bell se levantou para se sentar, chutando um lençol pálido enrolado em suas pernas e
tentou recuperar o fôlego. Ele havia adormecido no chão de pedra duro perto da parede
aberta.
Assim como da última vez, demorou um pouco para ele se lembrar de onde ele estava.
Ele passou seu olhar sobre a massa de obsidiana em silhueta de Spirefall contra o céu da meia-
noite.
Estômago roncando, ele arrastou-se para ficar de pé e encontrou a sala de jantar.
Chamas pálidas dançavam do lustre e tochas alinhavam a parede. As cortinas diáfanas foram
puxadas para trás das janelas em arco, revelando uma noite espessa com estrelas.
Um prato de pão, queijo e uma variedade de carnes cortadas enchiam o prato
usualmente solitário, o que significava que era hora do almoço. Agora, ele havia aprendido
a dizer o tempo pela comida servida - se o tempo realmente existisse aqui.
Ele não tinha certeza.
A cadeira rangeu contra o chão quando ele se sentou. No canto de sua mente, ele
podia ouvir Haven repreendendo-o por ceder tão facilmente.
Se você ameaça não comer, ela diria, então é melhor passar fome.
Não que Haven fosse fazer uma ameaça com uma coisa tão ridícula. A garota era um
poço sem fundo. Bell riu e começou a enfiar comida na boca, ignorando os talheres
cuidadosamente enfiados em seu guardanapo.
Por que ele se importaria com boas maneiras e decoro agora?
Uma porta se abriu no corredor e a cabeça de Bell se ergueu, as bochechas inchadas
de pão, para ver a criatura parada do lado de fora da sala de jantar.
— Posso me juntar a você? — a criatura perguntou, sua voz sem a habitual aspereza.
Bell fez uma careta e enfiou uma fatia de presunto em sua boca e, depois, estendeu o
braço ao lado. — Sua... mesa.
A criatura resmungou enquanto puxava o assento na extremidade oposta e reajustava
sua capa antes de se sentar. Seu enorme contorno se derramava da cadeira, seus joelhos
chegavam ao topo da mesa.
Bell tomou um longo gole de chá quente, ignorando-o.
A criatura pigarreou. — Você dormiu bem?
Limpando a boca na manga, Bell deu um aceno rápido.
— E, hum, a comida é do seu agrado?
Bell deu de ombros. Suas palavras cruéis para a criatura mais cedo ainda o
incomodavam, mas não o suficiente para se desculpar – e certamente não o suficiente para
reconhecer a presença da criatura.
Afinal, ele havia explicado por que tinha dito aquelas coisas ofensivas e a criatura o
deixou lá para sofrer sozinho. Bell nunca teria feito isso nem com seu pior inimigo.
Em algum lugar, um relógio tiquetaqueou enquanto o silêncio se estendia. Outro
prato de carnes e pão apareceu na frente da criatura, mas ele não tocou na comida.
— Sinto muito — a criatura começou, pigarreando. — Sobre a sua amiga.
Bell congelou, em seguida, colocou o pão que estava prestes a morder em seu prato.
Ele tentou engolir, mas sua boca estava seca. — Obrigado.
— O nome dela era... Haven?
Piscando de volta sua dor, Bell acenou com a cabeça. — Haven Ashwood. Foi esse o
nome que eu lhe dei, pelo menos. Haven, porque era tudo o que ela conseguia dizer quando
nos conhecemos. Seu único pertence era um arco de freixo. Pareceu adequado.
A criatura assentiu por trás de seu capuz escuro e Bell ficou surpreso com a sensação
de que ele estava realmente ouvindo.
— Ela veio para Penryth quando era jovem — ele continuou. — Nós chutamos
apenas nove verões, mas só a Deusa sabe com certeza. Runas, ela era uma coisa selvagem e
imunda, pega roubando no mercado pelos homens de meu pai. Eu a escolhi como meu
presente de aniversário, principalmente para irritar meu pai, que queria que eu escolhesse
um arco de caça. O que ele não sabia na época era que ela era uma arma mais eficaz do que
um arco poderia ser, mesmo aos nove.
Bell continuou, descrevendo os pesadelos que a acordavam aos gritos e o passado que
ele sabia que ela escondia dele. Como eles começaram a esgueirar ela dos aposentos dos servos
para o quarto dele à noite.
Logo, ele contou toda a sua história, nos mínimos detalhes. Quando ele terminou, ele
sentiu como se tivesse tirado um pouco do peso nos ombros.
Eles conversaram casualmente depois disso. A criatura explicou como a Maldição
manteve as Terras das Ruínas presas em meia-noite permanente. Como toda Spirefall
costumava ser um belo castelo feito de pedra da lua, governado pela casa mortal mais
poderosa do norte.
A parte do castelo em que eles ficavam agora era a única peça que ficou intocada pela
magia das sombras da Rainha das Sombras.
Uma pausa na conversa deixou a sala em um silêncio casual e Bell olhou para fora das
janelas à sua esquerda. A neve caía no mundo prateado e meio escuro lá fora e uma fina
camada de gelo emoldurava as vidraças das janelas.
Quando Bell se virou, ele encontrou a criatura olhando para ele em silêncio.
Criatura. O termo não parecia mais se adequar à figura sentada à sua frente, passando
um dedo enluvado em seu garfo.
— Eu não sei como chamá-lo — admitiu Bell. — Você tem um nome?
Debaixo da capa, a criatura ficou tensa, sua mão segurando o garfo. — Por favor,
chame-me o que me chamam... criatura.
— Mas você não é...
— Qualquer outra coisa é mentira. — Suas palavras foram ásperas, finais.
— Se você insiste. — Bell mexia sua colher de sopa. Agora que ele viu que a criatura
era capaz de emoções humanas, ele não conseguiu escapar de sua curiosidade sobre ele. —
Como você veio morar aqui? O que você é?
Uma eternidade pareceu se passar enquanto a criatura o estudava de seu véu de capa
e sombras, o uivo do vento contra as vidraças subitamente ensurdecedor.
Ele se levantou com um grunhido. — Se você se recusa a usar os quartos, pelo menos
tome banho e aceite roupas limpas. — Bell se levantou, pronto para protestar, mas a criatura
levantou a mão. — Quando estiver pronto, você pode se juntar a mim no portal.
Sua capa escura e esfarrapada deslizou ao longo do mármore enquanto ele se afastava
e Bell ficou se perguntando se ele fez algo para perturbá-lo.
Mas a criatura estava certa; Bell estava começando a cheirar mal e roupas limpas iriam
animá-lo.
Ele vagou para uma das câmaras onde, magicamente, uma túnica de seda de marfim
bordada com verde esperava dobrada em cima da cama junto com calças do tamanho exato
de Bell. O cômodo era dividido em um quarto, uma sala de estar com travesseiros coloridos
e um banheiro atrás de cortinas chartreuse empoeiradas.
Depois de um banho quente em uma banheira com pés, onde poderiam caber três
dele e retinha água que nunca refrescava, Bell colocou suas lindas roupas novas, desejando
que sua magia pudesse pelo menos fazer trajes como este.
Então ele saiu de seu quarto e encontrou o portal, sentindo-se melhor.
Ele suspirou com prazer quando a luz do sol do outro lado o saudou, correndo ao
longo de suas bochechas como línguas sedosas de fogo.
Quem diria que alguns dias preso em um reino noturno poderia fazê-lo sentir falta
dos verões sufocantes de Penryth?
Mas o sol neste lugar era quente sem se intrometer, um beijo gentil em sua pele escura.
Bell passou as horas seguintes ajudando a cuidar do jardim de flores - podando e
arrancando ervas daninhas, colhendo pétalas caídas. Suor escorria por suas costas e umedecia
suas têmporas.
Os cheiros de terra e grama orvalhada acalmavam as partes irregulares de sua mente,
permitindo-lhe esquecer sua situação por um tempo.
Isso... Isso foi o mais próximo que ele chegou à paz em uma semana.
Quando eles terminaram, o crepúsculo tinha caído sobre este outro mundo, uma
tangerina brilhante pairando perto de uma floresta na distância.
Onde ficava esse lugar?
Bell não se atreveu a perguntar. E não era importante, não mesmo. Tudo o que
importava era que Bell podia escapar do frio do Reino das Sombras e Spirefall por algumas
horas.
A criatura juntou-se a Bell para o jantar naquela noite, vestindo uma nova capa de
cetim verde-floresta enfeitada com arminho branco. Todas as teias de aranha foram
removidas das paredes de mármore e do lustre, a espessa camada de poeira foi lavada e a mesa
brilhava como se tivesse sido recentemente polida.
Um vaso de porcelana com rosas vermelhas tão perfeitas que pareciam falsas coroava
a mesa, enchendo o ar com seu doce perfume. E quando o jantar acabou, Bell descobriu que
ele poderia dormir na maior câmara onde havia tomado banho mais cedo sem pânico.
Na manhã seguinte, a criatura encontrou Bell para um café da manhã com biscoitos,
frutas e queijo, mantendo uma conversa agradável.
Depois, eles saíram para o outro mundo, labutando no jardim até a hora do almoço,
quando a criatura invocou um cobertor e uma variedade de carnes e mais frutas.
Bell passou dois dias desse jeito. Jantar com a criatura que, embora não conversasse
muito, ouvia educadamente enquanto Bell falava de Penryth, Haven e sua mãe e qualquer
outra coisa, realmente, que viesse à mente. Eles continuaram a jardinagem sob o sol de outro
mundo, cultivando solo e levantando pedras até que os músculos que Bell nunca soube que
existiam doessem.
Ele se banhava todas as noites naquela banheira monstruosa e adormecia sob as belas
estrelas. Seus sonhos com Penryth e Haven eram agradáveis, nenhum indício de pontes ou
wyverns em chamas. Nenhuma imagem de sua melhor amiga caindo para a morte.
Por alguns dias sob aquele céu impossivelmente azul, ele enganou a si mesmo,
fingindo que as coisas ficariam bem. Ele poderia estar, mesmo que não feliz, pelo menos sem
medo. Seus pesadelos ficaram para trás.
E, então, no terceiro dia no jardim, tudo mudou.
Haven sentia como se estivessem vagando pela densa floresta há anos, não dias,
perdidos dentro do labirinto móvel de sombras e névoa. Ela colocou os braços em volta do
peito, lutando contra o frio profundo que pairava no ar, independentemente da
temperatura.
Grunhindo, ela bateu em uma videira que tinha escorregado em torno de seu braço,
os espinhos tão grandes quanto seu dedo mindinho. O sangue escorria de onde eles haviam
cravado em sua carne.
O dossel emaranhado de galhos e trepadeiras acima estrangulava a luz já desbotada,
então eles caminhavam em uma semi-escuridão aquosa que confundia seus dias e a fazia
sentir como se estivesse tropeçando em um sonho onde as plantas a arranhavam e o sol estava
morrendo.
Toda vez que Bjorn pensava que estavam perto da Floresta das Bruxas, a terra
mudava, as árvores mudavam e eles tinham que encontrar os caminhos certos novamente, o
que levava horas, às vezes dias.
Dias que eles não tinham.
Eles teriam feito um progresso melhor se Haven não tivesse que descansar à noite.
Quando escurecia, Archeron dava alguma desculpa para eles pararem e nenhum dos Solis
dizia que era por ela.
Haven desprezava ser a razão pela qual eles estavam ficando para trás, mesmo que ela
ansiasse dormir. Dormir significava escapar da floresta horrível, úmida e sombria por
algumas horas para sonhar - e sonhar significava ter as lições de magia de Stolas.
Até agora, ela ultrapassado as três defesas principais para magia das sombras e eles
tinham acabado de começar manobras ofensivas. Só de pensar em treinar fazia seu coração
acelerar em antecipação.
Além de ser uma ocorrência muito preferida ao invés de seus pesadelos habituais, seu
treinamento com o Senhor do Submundo significava que a cada dia ela se tornava mais útil,
sua magia menos um risco e mais uma arma.
Quando eles pararam para almoçar, Haven estava faminta, mal-humorada e
encharcada de suor. Frustração estava espelhada nos outros também. Rook e Surai, em suas
verdadeiras formas, estavam discutindo sobre o preço da maldição.
— O osso de uma bruxa da floresta com um século de idade não faz sentido — Rook
insistiu, tirando gravetos de suas leves tranças. — Todo mundo sabe que uma bruxa da
floresta está na forma de espírito.
— Sim — Surai murmurou, mais mal-humorada do que de costume — mas todo
mundo também sabe que um espírito já teve carne e osso. Nós apenas temos que o
encontrar. Archeron...
Antes que Surai pudesse terminar de chamar o Senhor do Sol para sua discussão,
Archeron desapareceu na floresta, murmurando algo sobre lenha.
Ambas as garotas olharam para Bjorn, a única pessoa do grupo que já tinha estado nas
Terras das Ruínas, mas Bjorn se concentrou em sua mochiça, fingindo não notar que a
atenção havia mudado para ele.
Haven não o culpou. Ela também não gostaria de ficar entre as duas garotas
discutindo.
Quando ela começou a ajudar Bjorn a descarregar as panelas e suprimentos para a
fogueira, ela entregou-lhe uma concha e sussurrou: — Boa jogada.
— De fato. — Sua mandíbula se apertou. — É a magia das sombras aqui. Podemos
sentir isso deslizando profundamente em nossos ossos, em nossas mentes. Agora mesmo, a
nossa luz mágica luta contra isso, mesmo enfraquecida assim. Mas, eventualmente, apesar
das proteções e runas que completamos, nossa magia será drenada e iremos sucumbir.
— E então?
Bjorn esfregou dois dedos sobre sua mandíbula. — Todo mundo é diferente sob a
influência da magia das sombras. Alguns ficam loucos. Alguns se transformam, com o
tempo, em criaturas bestiais. Alguns enfraquecem até não serem mais do que uma estátua,
incapazes de se mover enquanto a floresta eventualmente os sepulta.
Haven estremeceu. — Há algo que possamos fazer para impedir isso?
— Já dei aos outros uma potente mistura de flores direto de Effendier para retardar a
mudança.
— Eu não recebi nada — apontou Haven, tentando não soar muito carrancuda.
— Minha querida mortal — Bjorn disse, olhando para ela pela primeira vez desde que
eles começaram a falar — a escuridão já vive dentro de você.
Touché. Franzindo o cenho, Haven decidiu mudar de assunto ao invés de falar sobre
um assunto que a perturbava. — Então, sobre a discussão delas. Você sabe a resposta?
Bjorn soltou um suspiro dramático, algo que costumava fazer quando ela estava por
perto. — Tantas perguntas, mortal. Um Solis não pode encontrar paz perto de você?
— Não. Não quando eu sei tão pouco sobre este lugar e você sabe tanto.
Seu olhar cego desviou-se para as sombras escuras entre as árvores. — Prefiro não
saber nada sobre este lugar.
— Mas?
— Anos atrás, quando eu estava preso aqui — Bjorn disse, uma sombra escura caindo
sobre sua expressão — os Noctis sentiram o cheiro de uma bruxa da floresta assombrando a
floresta mais próxima. Uma bruxa da floresta não é uma sombra; é algo pior, um demônio
outrora mortal que foi prometido ao Sombreamento. Elas não podem ser negociadas nem
controladas. Então Morgryth ordenou que a bruxa da floresta fosse capturada e vários
Noctis marcharam para a floresta, para nunca mais voltar.
— Depois de alguns meses disso, um Noctis inteligente descobriu uma maneira de
rastrear os ossos da bruxa da floresta até seu local de enterro nas profundezas da floresta. Ele
os queimou e aquela bruxa da floresta em particular nunca mais foi vista.
Haven mordeu as bochechas para não revirar os olhos. — Você se esqueceu de
mencionar como ele rastreou os ossos.
— Eu não esqueci — Bjorn emendou, tomando um gole do que quer que estivesse
no caldeirão sobre o fogo. — Não é relevante no momento.
Rosnando baixinho, Haven engoliu a onda de perguntas que ela tinha, sabendo que
Bjorn não estava com vontade de respondê-las.
Enigmático Senhor do Sol!
Ela olhou de soslaio para o vidente. De todos os Solis, ele era o único que ela não
conseguia entender.
Archeron era, bem, Archeron. Arrogante, um pouco vaidoso, teimoso, honrado
demais. Mas nos últimos dias, ela viu outro lado dele também. Leal e atencioso, ele morreria
por qualquer um de seus amigos.
Rook e Surai eram iguais. Elas não eram perfeitas, mas eram honradas e boas. E todos
eles embarcaram nessa missão suicida por motivos claros.
Liberdade. Honra. Amor.
Todos, exceto Bjorn. Por que ele estava tentando quebrar a maldição? Que desejo ele
pediria? Sua visão? Ela duvidava que ele enfrentaria todos esses problemas por causa de sua
visão, visto que sua cegueira dificilmente o atrapalhava.
Haven balançou na ponta das botas, tentando localizar o que a incomodava em
Bjorn.
O estalo de um galho atraiu seu foco para a floresta. Archeron estava a um metro de
distância, um conjunto de lenha em seus braços, observando-a. Sua túnica verde-esmeralda
combinava com seus olhos, ambos da cor vibrante das sempre-vivas de Penryth.
Um arrepio agradável percorreu sua espinha até os dedos dos pés enquanto ela
sustentava seu olhar intenso, perguntando-se há quanto tempo ele estava ali.
Eles jogavam esse jogo há dias, desde a água.
Tudo começou com um olhar que demorou um segundo a mais. Um roçar de dedos
em seus quadris quando ele passava.
Talvez ele esperasse que ela fosse tímida. Mas tímida era a última coisa que Haven era
e ela encarava os olhares dele com os dela. Stolas até comentou sobre seus flertes inofensivos
em seus sonhos na noite passada e Haven riu da ideia, assim como da contração infeliz dos
lábios de Stolas quando ele disse isso.
Archeron estava noivo de uma linda rainha. E Haven não tinha interesse em um caso
com um homem prometido a outra - mesmo que essa outra pessoa estivesse atualmente
amaldiçoada como um esqueleto.
Seus olhares lúdicos eram para passar o tempo nesta floresta terrível, nada mais.
De repente, a cabeça de Archeron se ergueu e ele largou a lenha, desembainhando sua
espada. O ruído de metal atraiu a atenção de Bjorn. Uma fração de segundo depois, seu
machado substituiu a concha em sua mão. Haven encontrou seu arco e flecha e tinha uma
flecha encaixada no momento em que Rook e Surai sacaram suas armas.
Algo estava aqui.
— A companheira de Vorgrath. — Archeron rosnou enquanto entrava na pequena
clareira. — Ela está nos seguindo há dias, mas esta é a primeira vez que ela chega perto.
Haven sentiu seu rosto ficar branco enquanto examinava a floresta. — O quê? Por
que só agora estou ouvindo sobre isso?
— Eu não queria que você se preocupasse desnecessariamente — Archeron disse sem
um traço de remorso. — Seu sono já estava inquieto.
Ela engoliu a série de obscenidades em sua língua. Ela devia estar movendo-se durante
o sono ao treinar com Stolas e Archeron pensou que ela estava tendo pesadelos.
— Eu posso lidar com qualquer coisa, exceto ter coisas escondidas de mim. — Sua
voz estava tensa e os olhos de Archeron se arregalaram ao mesmo tempo que seus lábios se
curvaram em um sorriso satisfeito. — Entendido?
Os outros estavam todos segurando suas armas e fingindo não ouvir.
Archeron deu um pequeno aceno de cabeça, seus olhos nunca deixando os dela. —
Entendido.
Acalmando a raiva em sua voz, ela disse: — Quão perto ela está?
— Perto demais — ele respondeu, retornando ao modo guerreiro, retirando o olhar
de seu rosto e deslizando-o sobre a borda da floresta. — Haven, fique aqui com Rook.
Quando...
— Eu não estou indefesa e me recuso a ficar aqui enquanto vocês...
— Você é a isca. — Os olhos de Archeron brilharam, mas ela podia dizer pela forma
como eles estudavam-na que ele queria saber como ela iria reagir a essa revelação.
Surpreendentemente, isso a encheu de orgulho. Ele achava que ela era capaz de cuidar
de si mesma. E, considerando Archeron, este pode ter sido o maior elogio que ele poderia
dar.
— Tudo bem — disse ela, colocando a flecha de volta na aljava.
Sua respiração parou quando ele se inclinou abruptamente, sua mão quente
descansando levemente, tão levemente, em seu quadril.
Mas, por trás de sua expressão divertida, havia outra coisa. Preocupação. — Fique
atenta, Mortal.
Com algum comando que Haven não pôde ouvir, todos os Solis, exceto Rook,
invadiram a floresta em direções diferentes. Embora Haven sempre tenha caçado sozinha,
ela sabia o suficiente sobre a caça em grupo para entender que eles estavam tentando
flanquear a fêmea vorgrath.
Assim que eles se foram, um pavor gelado formigou em sua pele, e ela se juntou a
Rook no centro do acampamento perto do fogo, embora o calor não fizesse nada para
derreter sua inquietação.
As partes de sua carne outrora devastadas pelas garras do vorgrath formigavam; ela
ainda podia sentir seu corpo encharcado em seu próprio sangue, ainda podia sentir o cheiro
de cobre.
Soltando uma respiração irregular, ela afundou ao lado de Rook em um carvalho
caído e descansou seu arco em sua coxa junto com sua flecha de ponta vermelha.
Rook correu seu olhar sobre a arma de Haven. — Envenenada?
Haven assentiu, engolindo apesar de sua boca estar seca. — Oleandro.
Rook ergueu uma sobrancelha. — Eles ensinam isso em suas terras mortais?
— Não — ela zombou. — Tentativa e erro. Eu caçava sombras na floresta do lado de
fora da parede de runas de Penryth. Minhas flechas normais tiveram pouco efeito, então eu
experimentava. Um dia, eu estava seguindo uma sombra e notei que evitou algumas
beladonas no meio de um caminho. Depois disso, só tive que encontrar as flores certas.
Rook estudava-a, realmente estudava-a, como se a visse pela primeira vez. — Eu ouvi
que os mortais privam suas mulheres de habilidades de luta, então como você aprendeu?
— O Príncipe de Penryth e eu éramos... somos amigos. Eu acompanhava suas aulas
de espada e, um dia, o mestre de espadas me deixou tentar. Ele disse que nunca tinha visto
um talento natural como aquele, então ele concordou em me treinar depois do expediente.
O resto é... uma longa história.
Os olhos dourados de Rook brilhavam atrás de sua faixa vermelha tatuada. — Eu vejo
agora.
— Vê o que?
— Por que Archeron está apaixonado.
Uma risada escapou dos lábios de Haven. — Apaixonado? Archeron?
— Sim. — Sua expressão passou de provocadora a solene, seus lábios apertados. —
Você pode pensar que ele está apenas sendo brincalhão e talvez ele esteja. Mas eu nunca vi
Archeron assim.
— Nem mesmo com Avaline?
— Oh, isso foi diferente — ela insistiu, sacudindo o espesso emaranhado de cabelo
dourado por cima do ombro pálido. — Eles eram amigos praticamente desde o nascimento
e noivos quase há mais tempo. — Ela deu de ombros, com ombros musculares. — Era uma
boa combinação. Ele é o filho bastardo do reinante Soberano do Sol de Effendier e Avaline
era a herdeira aparente para um reino grande e crucial nas terras mortais.
— Por causa da bastardia de Archeron, ele nunca se casaria com a filha de um
Soberano do Sol do outro lado do Mar, mas Avaline é meia Noctis, meia mortal. Seu
casamento garantiria laços com as terras mortais e uma chance de uma aliança com algumas
das famílias Noctis menos perversas - se é que tal coisa ainda existe.
Haven fechou as mãos em punhos no colo. — Então, ele é um peão?
— Um peão disposto — Rook emendou. — Archeron fará qualquer coisa para
garantir o reinado de Effendier.
Haven sabia que ela não deveria estar desapontada. Claro, Archeron tinha
responsabilidades com seu reino, assim como Bell. Claro, ele não arriscaria seu reino e honra
por ela. Uma plebeia sem família e com magia proibida.
— Isso te incomoda? — Rook perguntou.
— Parece inútil. — Ela deu de ombros. — O que quer que seja isso entre nós.
— Inútil? Estão atraídos um pelo outro. Essa é uma coisa bonita. Além disso,
Archeron pode ter qualquer mulher que deseja, mesmo quando se casar. Contanto que você
não produza descendentes.
O calor inundou as bochechas de Haven e ela brincou com seu arco. Ter qualquer
mulher que ele deseja? A palavra fez parecer que ele estava escolhendo o que comer no
almoço.
— Oh. — Um sorriso divertido iluminou o rosto de Rook. — Você nunca fez amor?
Haven balançou a cabeça, mesmo quando o pensamento enviou ondas de calor
através de seu corpo. — Quero dizer, houve homens, mas nunca... nunca foi com alguém
com quem eu me importava.
— Bem, Pequena Mortal, Archeron Halfbane pode te ensinar muito.
— Ensinar? — Haven bufou, desejando que sua voz não soasse tão tonta.
— Sim. Como vocês aprendem a fazer amor adequadamente no mundo mortal?
— Nós não aprendemos. Pelo menos, não devemos aprender até o casamento. A
virgindade de uma mulher é considerada - eu não sei - um prêmio para seu marido.
Rook franziu a testa para isso. — Um prêmio? Como se você fosse um objeto a ser
conquistado? O homem também tem que esperar?
— Não. — Haven se lembrou de como o rei tinha rido orgulhosamente da propensão
de Renk para dormir com as criadas.
— Bem, isso não parece justo para mim — Rook observou.
Haven concordou. Ela abriu a boca para dizer isso quando o olhar de Rook disparou
para a floresta e ela ergueu a mão.
Silêncio - surgiu-se um silêncio profundo e terrível.
Um segundo depois, as duas garotas estavam com as armas prontas em mãos. O
batimento cardíaco de Haven reverberava dentro de seu crânio enquanto ela puxava a corda
do arco com um olho fechado, o outro focado na ponta de sua flecha.
Ao seu lado, Rook tinha seu chicote em uma mão e uma espada na outra.
Ainda assim, Haven não se sentia segura.
— Ela deve tê-los desviado de seu rastro, de alguma forma — Rook sussurrou. —
Garota esperta.
Haven estremeceu. O silêncio se espalhou sob sua pele e um instinto antigo e
primordial sentiu que algo a observava. O suor escorria de sua palma em torno de seu arco e
seu ombro tremia enquanto ela puxava mais a corda.
Rook baixou suas armas, seu olhar fixo nas árvores. — Economize sua energia. Ela
não vai atacar agora. Ela está estudando você. Vendo se você se assusta; quais armas você usa.
— Como você sabe? — Haven murmurou, recusando-se a baixar o arco.
— Porque ela é inteligente. Nós somos muitos e estamos vigilantes. Ela vai esperar e
escolher um momento em que menos esperamos.
Uma respiração irregular saiu da garganta de Haven. — Talvez ela simplesmente
desista?
— Pode ser. — Mas o tom cético de Rook não deixou muito espaço para esperança.
De repente, a floresta parecia voltar à vida, com o canto dos pássaros, o vento mais
uma vez farfalhando as folhas. A tensão nos ombros de Haven diminuiu e ela deixou cair o
arco em seu colo.
Archeron e os outros irromperam das árvores, armas prontas. Archeron correu para
elas, seu corpo rígido. A luz do sol percorria o comprimento de sua lâmina estendida.
— Nós a perdemos por menos de um minuto — explicou ele — e voltamos direto
para cá. Ela apareceu?
— Não — Haven disse rapidamente antes que Rook pudesse responder.
Archeron não era o único que podia manter as coisas escondidas e a última coisa que
Haven queria era que Archeron começasse a tratá-la de forma diferente por quê achava que
ela precisava de proteção.
— Não? — Archeron não parecia convencido e olhou de soslaio para Rook.
— Ela não apareceu — Rook respondeu, seu olhar se inclinando para Haven, os
lábios levemente curvados.
Era uma meia verdade. E o segredo delas.
Esperançosamente, um que não custasse a vida de Haven.
A mandíbula apertada de Archeron suavizou e seu olhar caloroso permaneceu nela
por um segundo antes de dizer: — Enquanto estávamos procurando, Bjorn encontrou o
caminho para a Floresta das Bruxas. Se nos apressarmos, podemos chegar lá antes do
anoitecer.
As palmas das mãos de Haven ainda estavam suadas enquanto eles guardavam o
acampamento e se preparavam para mergulhar de volta na floresta. E embora soubesse que
a companheira do vorgrath tinha ido embora, mesmo com a floresta dizendo a ela que agora
era seguro, ela não conseguia extinguir o medo que ardia em seu coração.
Antes de entrar na floresta, ela substituiu seu arco por suas duas foices, melhores para
combate corpo a corpo.
Embora, no fundo, uma parte dela soubesse que ela nunca veria o ataque chegando.
A Floresta das Bruxas era diferente de qualquer outra floresta pela qual Haven já havia
viajado. Troncos de árvore carbonizados do tamanho de dez grandes homens brotavam para
o céu, retorcidos como se, ao longo do tempo, a magia das sombras tivesse se infiltrado em
suas raízes e as envenenado. Não havia nenhuma outra vegetação, rastros ou marcas ou
qualquer outro sinal de criaturas da floresta.
Mas era o silêncio mortal que permeava as sombras escuras da floresta que enviava
adrenalina por todo seu corpo.
Eles caminhavam em fila única, Haven seguindo Archeron. Surai, em forma de corvo,
estava empoleirada no punho da espada presa entre suas omoplatas. Os outros Solis estavam
atrás de Haven.
Se ela não estivesse tão focada em seus arredores, ela poderia ter sorrido ao ver como
seus passos eram suaves, como eles se moviam silenciosamente e respiravam em um
murmúrio suave e silencioso.
Eles também podiam ser quietos.
Mas não era apenas a imobilidade que arranhava seus ossos e acomodava-se no fundo
de suas entranhas. A magia antiga e maligna residia aqui, uma presença fria e distante, à
espreita na escuridão, encharcando o ar, impregnando tudo que uma vez foi verde, bom e
vivo.
Um calafrio sacudiu seu peito; aquela mesma magia das sombras escondida dentro
dela.
E a cada respiração turva, ela podia sentir aquela parte de si mesma dando boas-vindas
ao que quer que seja que os observasse. Chamando isso. A voz mudando de um eco
imaginado para um sussurro lamentoso e inegável.
Solte-me, ela insistia. Torne-se o que você deve ser.
Archeron olhou para trás, fixando os olhos nos dela. Atrás de seu olhar casual
escondia-se preocupação.
Ela lhe deu um sorriso lento e irritado que morreu assim que ele se virou.
Fazia apenas alguns dias desde que ela havia se banhado na água enquanto ele
observava e ainda sim, de alguma forma, ele agora estava sintonizado com todos os seus
humores.
Runas, às vezes ela pensava que ele podia ler sua mente.
Então, é claro, ela se lembrou que ele realmente podia e ela cerrou os dentes,
determinada que, esta noite, ela faria Stolas ensiná-la a evitar a leitura da alma.
Archeron parou repentinamente ao longo do caminho estreito que percorriam, com
as costas rígidas. Um segundo depois, os grasnidos inconfundíveis de um corvo escorreram
de cima, o som ecoando no silêncio.
Esse era o sinal deles.
Sem dizer uma palavra, eles saíram do caminho e se esconderam seis metros
atrás; todos menos Rook, que estava olhando para eles do caminho, com a mão nos quadris.
Surai levantou voo, pairando sobre a cabeça de Rook e piando em rajadas rápidas e
raivosas. Com os ombros caindo, Rook arrancou uma pulseira de ouro de seu braço e a jogou
no caminho.
Então ela marchou em direção a eles, resmungando baixinho — Isso é melhor
funcionar, Vidente. Essa é uma herança real que poderia ter nos comprado um pequeno
reino.
— E agora — Bjorn disse, não rudemente — com a sorte do Sombreamento, ela vai
comprar a sua liberdade e a de Surai.
Rook fez o sinal da Deusa: um toque na cabeça e um toque no coração. — Que
compre todas as nossas liberdades.
Rook se escondeu atrás da árvore com Bjorn e Haven, seu olhar fixo na bugiganga
dourada na terra, enquanto Surai pousava no ombro da Princesa Morgani. Archeron, como
sempre, se inclinou casualmente contra a árvore, cutucando suas unhas com uma adaga
enquanto esperavam que algo acontecesse.
— Diga-me novamente, Vidente — Haven disse. — Por que Rook teve que desistir
de suas joias?
Bjorn deu um suspiro indignado que Haven conhecia muito bem. — A lenda diz que
os corvos vão levar joias para o túmulo dos ossos de uma bruxa da floresta em troca de um
favor.
— E o que você ganha com o favor de uma bruxa da floresta? — Haven perguntou,
mesmo quando uma parte dela disse que ela não queria saber.
O vidente mostrou os dentes. — Se você é um corvo, de vez em quando isso lhe dá
uma mordida na carne da vítima de uma bruxa da floresta. Ouvi dizer que seu deleite
favorito é o globo ocular.
Haven engoliu uma onda de bile e olhou para Surai. Ela teria que perguntar a ela mais
tarde se isso era verdade.
Deusa Acima, que não seja.
Algo tocou seu ombro. Ela olhou para cima para ver Archeron olhando para ela, uma
mão descansando com um dedo ao lado de sua clavícula.
Ele afundou até o nível dela, seu joelho pressionando o dela, a mão em seu ombro
deslizando por seu braço para descansar em seu cotovelo. — Lembra o que fazer se você
cruzar com uma bruxa da floresta?
O lampejo de prazer do corpo dele tocando o dela fez com que o foco ficasse difícil e
ela se afastou um pouco, tentando lembrar suas instruções. — Fechar meus olhos e dizer a
Oração da Deusa.
— Nunca olhe para uma, Haven, não importa o quanto você esteja com medo.
Agora, recite a oração.
Haven franziu a testa. Deusa Acima. Ele ordenou a ela como se fosse a coisa mais
natural do mundo. E, no entanto, sua preocupação era estranhamente bem-vinda, mesmo
que parecesse um pouco mandona demais para o gosto dela.
Do canto do olho, Haven viu Rook observando-os com um sorriso conhecedor. Mas
Archeron não estava sorrindo. Seus olhos tinham um olhar intenso que deteve a objeção em
seus lábios.
— A oração, Haven — ele persistiu, o tom suave e letal de sua voz acabando com
qualquer chance de recusa.
— Deusa Acima, mantenha meu fogo aceso — ela começou — minha mente afiada
e meu medo longe. Mantenha a coragem em meu coração e a escuridão à distância.
— Bom. — Ele se levantou, deixando um espaço frio em sua ausência e puxou o
manto mais apertado sobre seu peito enquanto se virava para observar o bracelete. Todos
eles observavam-no. Suas respirações saindo em nuvens geladas, suas esperanças e sonhos
repousando sobre naquele pequeno pedaço de ouro.
Uma sombra escura cintilou. Haven piscou e quase não viu o corvo quando ele voou
sobre o caminho e arrancou o bracelete com suas garras. Houve um bater de asas, quando
Surai partiu atrás do corvo.
Eles seguiram, saltando silenciosamente pela floresta.
O corvo grasnou e voou alto na copa das árvores, Surai alguns metros atrás. Quando
os pássaros desapareceram de vista completamente, Haven ouviu o barulho das folhas ou o
grito ocasional para conduzi-la.
Ela disparou sobre uma árvore caída, agachando-se e ziguezagueando pela floresta
silenciosa, mantendo a respiração baixa e os passos suaves.
O grito de um pássaro veio de sua esquerda e ela zuniu atrás do som, lançando olhares
rápidos para as copas das árvores sombrias. Seu coração batia forte em seu peito enquanto
ela se forçava a ir mais rápido, mesmo que se estivesse se tornando mais difícil não colidir
com as árvores.
A escuridão havia caído em algum momento, tornando o ar preto-azulado, e ela
instintivamente conjurou uma pequena chama de luz mágica para iluminar seu caminho
enquanto ela corria.
Mais à frente, ela avistou Archeron correndo pela floresta, uma sombra pálida
tremeluzindo na escuridão muito parecida com a chama em sua mão.
Os Solis eram rápidos. Provavelmente mais rápidos do que seu corpo mortal poderia
alcançar. No entanto, ela tinha uma chama, o que significava que ela poderia navegar na
floresta densa com reações rápidas como um raio.
Ela atingiu um ritmo de movimentos e respirações controladas, seu batimento
cardíaco forte combinando com a cadência de seus passos. Nada mais importava a não ser
seguir o corvo e encontrar os ossos.
Não foi até que ela tivesse que fazer uma pausa e recuperar o fôlego que ela percebeu
que não via os outros há algum tempo.
E, então, do outro lado das árvores, ela vislumbrou o corvo da floresta voando baixo
para uma clareira. Ela se aproximou lentamente, trabalhando para suavizar seu fôlego
ofegante, sua respiração irregular saindo em uma névoa leitosa que quase combinava com a
névoa que se acumulava ao redor de suas botas.
O ar aqui estava dolorosamente frio. Seus dentes batiam ruidosamente enquanto
garras de gelo alcançavam sua capa e raspavam seus ossos.
Estou aqui, algo sussurrou. Todo a sua volta.
A chama dentro de sua palma estava crepitando, diminuindo.
Ela forçou o fogo a crescer até que um calor escaldante lambeu suas bochechas. Um
segundo depois, esmaeceu novamente, diminuindo em sua mão.
Eu não provei uma magia tão forte em anos, a voz continuou – um belo e antigo som
como o vento assobiando através de penhascos. Você me sente dentro de você? Deixe-me
ajudá-la.
A boca de Haven formigava com o gosto quente de sangue e ela percebeu que tinha
mordido os lados de suas bochechas. Seguindo em frente, ela se concentrou na clareira,
esforçando-se para captar qualquer som enquanto entrava no pequeno círculo de espaço.
No meio da grama havia um monte de terra quatro por quatro coberto com
ornamentos humanos. Broches de ouro, pulseiras de prata, o aço martelado de um peitoral.
Ela estremeceu enquanto tentava contar os adornos empilhados sobre o túmulo,
relíquias dos soldados que entraram aqui anos atrás para quebrar a Maldição, ela assumiu -
e nunca conseguiram sair.
Um som soou pela floresta silenciosa e Haven virou a cabeça. Era a voz de um menino.
O reconhecimento a atingiu. Bell.
— Haven, me ajude — Bell gritou da floresta.
Ela olhou de volta para o túmulo, lutando contra o pânico que se alastrava dentro
dela. Isso tinha que ser um truque da mente. Bell era um prisioneiro em Spirefall. Não podia
ser ele.
Mas, então, por que soava exatamente como ele?
— Por favor, Haven. Estou com tanto frio.
Sua mente disse a ela que não era Bell, mas sua voz... sua voz era tão real.
— Haven, me ajude! Ela está vindo. Por favor, corra!
Seu estômago apertou e ela virou-se, seu olhar disparando ao redor das árvores negras.
Talvez tenha sido Bell. Talvez a Rainha das Sombras o tenha trazido aqui. Ela poderia
arriscar?
— Haven...
O terror em sua voz a fez pasmar. Ele estava ferido. Chamando por ela.
Uma fração de segundo depois, ela estava avançando pela floresta escura em direção
ao som, suas foices ao seu lado.
— Bell! — ela gritou, raspando o ombro contra uma árvore. Um barulho veio um
pouco além. — Bell!
Ela parou de repente ao ver Bell a poucos metros de distância. Ele estava de costas para
ela. O luar prateado brilhava em uma rara brecha no dossel acima, deixando à vista sua capa
do Dia da Runa rasgada da cor de sangue velho.
— Bell? — ela sussurrou enquanto o pavor frio se acumulava em sua barriga. — Bell,
sou eu.
Seu coração se alojou em sua garganta. Por que ele não estava se virando?
Ela parou, perto o suficiente para tocá-lo se quisesse, mas algo a fez hesitar. A essa
altura, ela podia reconhecer o frio formigamento da magia das sombras e a cada passo mais
perto de Bell parecia que ela estava mergulhando em um lago gelado do mal.
Suas mãos apertaram os cabos de suas foices.
Este não era Bell.
No segundo que o pensamento atingiu Haven, de que este não era Bell, a figura se
virou. Haven congelou. A forma esfumada e translúcida de uma bela jovem com cabelos
esvoaçantes e olhos brilhantes flutuava na frente dela.
Haven não deveria dizer algo?
Uma névoa fria de aceitação rolou sobre ela. De repente, ela ficou paralisada. Incapaz
de se mover, pensar ou fazer qualquer coisa, exceto observar as linhas de fumaça rodopiarem
de forma lenta como fios de seda de aranha pegos pelo vento.
Elas eram hipnotizantes, tão bonitas...
— Não tenha medo — a mulher murmurou enquanto se aproximava, sua voz gentil
ecoando dentro da mente de Haven. — Eu quero te ajudar. Deixe-me aliviar seus problemas,
garota mortal. Deixe-me entrar em você.
Os dedos longos e finos da mulher correram pelo braço de Haven, cuspindo geadas
onde quer que tocassem. O frio insidioso mergulhou diretamente através de sua carne e
músculos mortais e se alojou até a medula.
— Isso — a mulher sussurrou. — Você vê como é bom aceitar a escuridão? Sinta
como ela se enrola através de suas veias, como toca em seu coração batendo? Aceite. Deixe-
me entrar.
Lute. A voz veio de uma parte primordial de seu ser.
Feche... seus... olhos.
Assim que suas pálpebras se apertaram, o controle da bruxa da floresta foi cortado e
Haven se lembrou do que fazer.
— Deusa Acima, mantenha meu fogo queimando — ela engasgou mesmo com o frio
tomando conta de seu corpo. — Mantenha minha mente afiada e meu medo longe.
A bruxa da floresta gritou de raiva e raspou as unhas no peito de Haven, adagas
geladas perfurando o osso.
Haven engasgou enquanto o frio se acumulava sob seu esterno. — Mantenha a
coragem em meu coração — ela sussurrou — e a escuridão à distância.
Desta vez, quando ela olhou para a bruxa da floresta, ela a viu como ela realmente era,
uma bruxa torta com uma pele escurecida horrível esticada sobre um rosto esquelético,
cabelo preto fluindo ao redor dela como tinta. Seus ossos apareciam de sua capa esfarrapada,
pedaços de pele agarrados a eles, e seus dedos muito longos terminados em garras.
Dentes irregulares brilharam quando sua boca se abriu em um grito de gelar as
entranhas.
A bruxa da floresta atacou Haven com aquelas garras perversas e Haven recuou,
balançando suas foices na bruxa… mas as lâminas curvas cortaram diretamente a aparição
esfumaçada.
— Portões do Submundo! — Haven chiou, saltando para trás.
Suas costas bateram com tanta força em uma árvore que o ar fugiu de seus pulmões e
ela quase perdeu uma de suas inúteis foices. Ela desviou para o lado quando a bruxa bateu
no tronco, se dispersando em uma nuvem negra que se reagrupou do outro lado e correu em
direção a ela.
Haven largou suas foices e conjurou uma bola de magia de luz. A bruxa gritou.
Em um lampejo escuro, ela desviou para trás de Haven e atirou em suas costas.
Pingentes de dor perfuraram a carne de Haven. Ela estava de joelhos, ela estava sendo
drenada de energia, o frio chegando em ondas congelantes até que ela temesse que iria virar
gelo e quebrar.
A bruxa enxameou acima dela, uma nuvem de tempestade do mal. — Menina tola —
ela sussurrou. — Eu matei legiões de sua espécie e me banqueteei com sua essência com esse
truque simples.
— Foi uma armadilha? — ela sussurrou, seu corpo arqueando para escapar do frio
que continuava crescendo dentro dela. — Mas o - o corvo...
— Todos os corvos nas árvores — a bruxa cantou com uma voz horrível — eles
separaram vocês como eu quis. E então eu os matarei um por um antes do nascer do sol.
O coração de Haven afundou. Os pássaros eram uma distração, uma maneira de
separá-los.
— E você — disse a bruxa, sua forma negra lentamente em torno dela, se
aproximando. — Você foi prometida a mim pela Rainha das Sombras.
A Rainha das Sombras?
Em uma última tentativa de lutar, Haven convocou outra bola de luz ardente,
estremecendo quando ela começou a encolher imediatamente.
Uma risada cacarejante saiu da garganta da bruxa. — Sua magia de luz não tem poder
aqui, garota.
E então a risada da bruxa da floresta morreu e um lampejo de surpresa percorreu seu
rosto. Haven olhou para sua magia, surpresa ao ver tentáculos de fogo azul espiralando
através do orbe.
Ele pulava mais forte, a escuridão se alimentando da luz, surgindo para fora.
Ela não sabia como sua magia escura e clara estavam se misturando e ela não se
importava. Suas veias queimavam com poder, um tipo diferente do que ela estava
acostumada, seu corpo zumbindo com isso.
Um poder ardente e cru, tanto quente quanto frio. Fogo e gelo. Ela podia sentir a
força nisso, a destruição absoluta na ponta dos dedos.
Era aterrorizante e lindo.
— Parece que minha magia de luz tem poder aqui, afinal — Haven disse, tendo prazer
na forma como a bruxa da floresta encolheu-se dela.
— Não — a bruxa da floresta sibilou, protegendo os olhos do brilho. — Impossível.
O Sombreamento matou você.
Haven sorriu. — Então eu sou um fantasma e isso não deve doer nada.
Agarrando sua bola de magia, que era do tamanho de um ovo de dragão, Haven a
atirou na bruxa. Um segundo depois, ela estava gritando enquanto um fogo dourado
brilhante a consumia.
O fogo parecia brilhante na pele congelada de Haven.
Ela nem mesmo olhou para a bruxa enquanto se levantava e corria, saltando fora das
árvores na escuridão até que ela lutou para chegar à clareira. Ela caiu de joelhos perto do
túmulo e jogou as bugigangas de lado.
Suas mãos estavam dormentes demais para sentir qualquer coisa enquanto ela
arranhava o monte de terra. Besouros, cobras e vermes escorregaram entre seus dedos.
Ela estremeceu, cavando cada vez mais fundo.
O pânico a percorreu. Onde estavam os ossos?
Os gritos da bruxa da floresta ficaram mais altos, com mais raiva, como se ela pudesse
sentir Haven profanando seu túmulo.
Rápido. Alguns metros adiante, suas mãos bateram em algo duro. Deslizando os
dedos no solo ao redor do osso, ela puxou. Um maxilar amarelado saltou da terra e ela o
enfiou no bolso.
Em seguida, ela removeu o resto do solo ao redor dos ossos, revelando um esqueleto
retorcido em meio aos restos decadentes de roupas escuras. Runas estranhas foram
esculpidas nas pedras de malaquita e pirita espalhadas entre os restos.
Por mais curiosa que Haven estivesse sobre as runas antigas, ela sabia que perturbar
tais pedras mortais invocaria uma maldição, então ela cuidadosamente removeu o solo ao
redor delas.
Outra maldição era a última coisa que ela precisava.
Um uivo estridente e sobrenatural cortou o ar enquanto a bruxa da floresta corria em
direção a ela, ainda em chamas, os olhos vermelhos de fúria.
A chama que Haven conjurou era pequena, apenas grande o suficiente para iluminar
o túmulo. Mas quando ela a jogou sobre os ossos, houve uma explosão de luz e os ossos
subiram como gravetos, queimando até cinzas antes que ela pudesse piscar.
Os gritos morreram. A bruxa da floresta se transformou em cinzas na frente de Haven
e pedaços flutuantes explodiram em sua boca e olhos.
Engasgando, Haven tentou se levantar, mas seu corpo estava fraco pelos ataques da
bruxa e pelo uso de magia.
Ela tropeçou, quase caindo no túmulo.
Sua mente estava cambaleando e cada passo era mais vacilante que o anterior, mas ela
teve consciência o suficiente para encontrar suas foices e voltar por onde veio. Ela havia
matado essa bruxa da floresta, mas havia centenas de outras nesta floresta.
E com a mandíbula no bolso, não seria difícil determinar quem matou sua irmã.
Onde estavam Surai e os outros? Ela olhou para cima, procurando pelo corvo,
quando uma série de gritos medonhos encheu a floresta ao seu redor. As outras bruxas da
floresta sentiram a morte de sua irmã?
Ela preferiria não descobrir. Com a cabeça girando e a visão embaçada, ela correu.
Príncipe Bellamy Boteler nunca havia trabalhado duro em sua vida, mas achou o
trabalho surpreendentemente prazeroso, apreciando a forte dor nos músculos das costas ao
balançar uma enxada, o aperto de suas coxas enquanto se abaixava para arrancar uma pétala
da sujeira, até mesmo a sensação de suor escorrendo por suas omoplatas e encharcando sua
camisa.
Tudo isso o enchia de, senão de prazer, uma calma evasiva que permitia que sua mente
ficasse calma.
Ele enxugou o suor da testa e apertou os olhos contra o sol da tarde. Um cardeal
pousou em uma macieira, cantando, suas penas vermelhas tão brilhantes quanto as rosas que
Bell cuidava.
A criatura estava aplicando algum tipo de mistura antifúngica nas roseiras perto de
uma grande bacia de pedra para pássaros e uma pequena borboleta amarela voou para a flor
mais próxima.
Sem saber que Bell estava observando-o, a criatura parou seu trabalho para observar
a borboleta.
Bell percebeu que estava sorrindo quando a borboleta deixou a flor e encontrou um
poleiro no punho da manga da criatura. Enquanto a borboleta abria e fechava suas asas, a
criatura ficou imóvel como uma estátua.
Bell não pôde deixar de pensar que, sob seu capuz, a criatura estava sorrindo.
De repente, a borboleta voou para o céu. A criatura se virou, sua capa enroscada na
roseira e seu corpo tenso.
O que quer que a criatura tenha ouvido, deve tê-lo assustado, porque ele correu para
Bell e o conduziu em direção a um pátio circular, meio escondido dentro de um círculo de
sebes. Uma estrutura de mármore se erguia do outro lado. O coração de Bell disparava
enquanto ele se abaixava e corria em direção ao prédio, suas botas rangendo ruidosamente
sobre o cascalho.
A criatura era muito grande e desajeitada para dominar a arte do silêncio.
Por sorte, a pessoa de quem estavam fugindo era muito mais barulhenta. Vozes
risonhas escorriam atrás deles assim que chegaram ao templo de marfim. A cúpula de
mármore era pequena, com vitrais empoeirados que coloriam as lanças de verde-claro e
vermelho.
Bancos cobriam as paredes, todos voltados para a estátua nua da Deusa Acima
segurando uma espada em uma mão e um bebê enfaixado na outra.
Eles se abaixaram em um banco perto de uma janela quebrada. Bell passou a mão
sobre a prata alinhando as paredes de mármore e se esforçou muito para ignorar o corpo da
criatura tão perto dele. Ele cheirava à terra e flores, um cheiro que Bell estava começando a
amar.
— Fique quieto — a criatura disse ofegando, seu olhar fixo no pátio. — Eles devem
ir embora logo.
A ironia da criatura pedindo a Bell para ficar quieto fez seus lábios se curvarem. —
Para que eles possam nos ver?
— Minha magia está enfraquecendo. Não posso dizer com certeza que estamos
escondidos.
Bell espiou pelo buraco no vidro. Uma garota da idade de Bell virou a esquina, sua
pele e cabelo escuros como os da mãe dele. Ela usava um belo vestido escarlate com mangas
abauladas e seus olhos cinza-claros se enrugavam de tanto rir enquanto ela virava para
encarar quem quer que estivesse atrás dela.
— Ephinia — um menino brincou, seguindo seus passos. — Eu sei que você quer
brincar.
A respiração de Bell parou dentro de seu peito; o menino era surpreendentemente
bonito, com maçãs do rosto altas e olhos dourados, e a luz do sol trazia um pouco de
vermelho ao seu cabelo claro. Ele usava um casaco azul caro e calças cristalinas que gritavam
riqueza.
Outro menino caminhava atrás deles, mais alto do que ambos, sua pele meia-noite o
mesmo que da garota. Sua cabeça estava erguida de uma forma majestosa que Bell desejava
poder imitar. — Deixe minha irmã sozinha, Renault.
— Ou? — O menino, Renault, brincou. Ele estendeu a mão, cuspindo uma bola de
fogo. Magia. Bell sentiu-se inclinar para mais perto enquanto as chamas alaranjadas se
desenrolavam para se tornar um wyvern com asas e uma cauda longa e farpada.
Ephinia gritou e tentou correr, mas o dragão de fogo esticou suas grandes asas de fogo
e a circulou. — Pare, Renault!
Mas ela estava rindo. E o outro garoto criou um wyvern de água para perseguir o de
fogo. As criaturas mágicas giravam e giravam, lampejos de azul e laranja que deixaram Bell
hipnotizado e tonto.
Ao lado dele, a criatura mal respirava enquanto observava com as mãos cerradas nas
costas do banco.
— Quem são eles? — Bell sussurrou.
A criatura apenas olhava através do vidro quebrado. Se ele ouviu Bell, ele não
demonstrou.
De repente, o wyvern da água caiu no chão em uma poça e o wyvern do fogo se
transformou em fumaça que flutuou no ar entre eles. Uma fração de segundo, foi tudo o
que bastou para seus rostos passassem de sorridentes a rígidos de medo.
Um grunhido afiado escapou do peito da criatura quando uma mulher entrou no
pátio. Bell sentiu seu corpo ficar frio quando ele viu o cabelo entrançado e escuro como breu
e a pele de alabastro, a cruel risada de seus lábios vermelhos.
Ele tinha visto muitos retratos da filha da Rainha das Sombras para reconhecê-la
agora.
Ravenna. Seu vestido de ônix colado à pele brilhava sob a luz do sol e, quando ela se
aproximou, ele pôde distinguir as escamas de qualquer que fosse criatura desconhecida da
qual o vestido era feito. Sombras escuras seguiam atrás dela, girando em torno de suas asas e
escurecendo o sol.
Bell piscou. Isso significava... Isso era no passado.
Ravenna estava em algum lugar em Spirefall, morta-viva e aguardando a conclusão da
Maldição para voltar à vida.
— Deixe-nos — ela sussurrou, e o menino e Ephinia fugiram, mas não antes dele ver
Renault deslizar os dedos sobre a parte de trás do braço do menino, um gesto reconfortante,
e lançar-lhe um olhar rápido de vou ficar bem.
Uma vez que eles se foram, Ravenna virou-se para Renault, os lábios arreganhados
num sorriso. — Como é que vão os preparativos, doce príncipe?
Renault enrijeceu, um músculo em seu pescoço ficando tenso enquanto ele passava a
mão pelo cabelo. — Eu... Não tenho certeza se posso fazer isso.
— Não? — Seu sorriso esticou mais ainda, mesmo enquanto apertava seus olhos. Suas
asas pretas membranosas estavam dobradas perto de suas costas. — Você me convocou do
Inferno, príncipe Renault. No entanto, agora você me diz que não quer mais o reino de seu
pai?
Havia um aviso em sua voz suave e educada e Renault olhou para além dela, para o
caminho. — Eu nunca quis o reino dele! Eu te disse...
— Você me disse... — Ela acariciou seu pescoço com os dedos, suas asas tremulando
lentamente. — Que você queria liberdade. Que seu pai e seus irmãos o fariam se casar com
uma horrível princesa mortal que você não ama. Você me disse, doce e lindo príncipe, que
faria qualquer coisa para escapar de um casamento prometido. Qualquer coisa.
— E em troca?
— Em troca, eu só peço o menor dos favores.
— Um favor que você se recusa a especificar.
Ela correu um dedo sobre seu corpete decotado. — Um favor que você pode
facilmente dar, meu doce. E então você pode ser feliz, verdadeiramente feliz para viver sua
vida.
Ele mudou de posição. — Prometa-me que eles não vão se machucar. Minha família.
E meus amigos, os Solis, Ephinia e Bjorn.
— Claro que não, meu adorável príncipe. Que tipo de criatura perversa você acha que
eu sou? Hum? — Um tremor de repulsa passou por seu rosto quando ela se inclinou para
frente, roçando os lábios em sua bochecha e sussurrando em seu ouvido algo baixo demais
para ouvir.
A filha da Rainha das Sombras então colocou suas mãos em garras nas costas de
Renault e o puxou para ela. Ele ficou rígido, mas parecia incapaz de se afastar.
O estômago de Bell revirou enquanto suas mãos exploravam o caminho por suas
costas até que tocassem sua bunda. Toda a confiança arrogante do menino se foi e seus olhos
fixaram-se em algo distante enquanto ela sussurrava mais coisas para ele.
Coisas horríveis, horríveis, pela curva de desgosto em seus lábios.
Bell finalmente teve que desviar o olhar. Ele sentia como se estivesse assistindo a algo
que não entendia muito bem, mas a repulsa e a impotência no rosto do menino o deixaram
mal do estômago.
Ele havia sentido aquela impotência antes... muitas vezes.
Com um rosnado baixo, a criatura se virou e espreitou pelo templo. Bell o seguiu por
outra porta, mal conseguindo acompanhar enquanto a criatura rasgava sebes e roseiras
espinhosas para ir embora, rasgando sua capa nova.
Quando Bell alcançou-o perto da porta do portal, ele agarrou o braço da criatura. —
Quem eram eles? E por que a filha da Rainha das Sombras estava lá?
Os músculos da criatura ficaram tensos sob os dedos de Bell e ele rosnou: — Deixe
isso em paz!
Então ele deixou Bell parado lá sob o sol, tentando descobrir o que tinha acabado de
acontecer.
Haven cambaleava pela escuridão da floresta, tremendo e balançando a cada passo.
Cada parte dela doía de frio. A magia antiga da bruxa da floresta permanecia em seu corpo,
lentamente drenando seu calor.
Drenando sua vida.
Ela ergueu uma mão meio congelada e acendeu uma chama, apenas para ser
desapontada por um fio de fumaça.
Sua magia não estava funcionando.
Apesar de sua mente nebulosa, ela sabia que era porque ela havia usado demais antes,
matando a bruxa da floresta. Assim como ela sabia que se não encontrasse os outros antes
dela desaparecer, ela morreria.
Um gemido escapou de seus lábios gelados. Ela tentou chamar Archeron com sua
mente da mesma forma que tinha enviado a ele suas memórias, mas nada parecia acontecer.
A escuridão estava se aproximando. Os gritos das bruxas da floresta estavam ficando
mais altos. Mais perto.
Ela não se lembrava de ter caído de joelhos ou se enrolado de lado no chão, mas lá
estava ela, névoa rolando sobre ela.
Morrendo. Novamente.
Deusa Acima, ela estava cansada de morrer.
Ela não podia morrer. Bell precisava dela. Os outros precisavam dela. Por alguma
razão, sua mente foi para Stolas. A maneira como ele ficou irritado quando ela o tocou...
Stolas! Ela delirando de dor na última vez que quase morreu para se lembrar de sua
promessa de ajudá-la, mas agora seu cérebro estava funcionando muito bem.
— Stolas. — A palavra era um apelo quebrado. Mais duas vezes ela pronunciou o
nome do Senhor do Submundo como instruído para emergências, o que definitivamente
era. — Stolas. Stolas.
Ela mal tinha dito a última palavra quando asas da escuridão apareceram das sombras,
recolhendo-a dentro de um casulo frio. Sua mente estava escurecendo, seu pulso
desacelerando; ela estava prestes a desmaiar.
Mas, então, ondas de calma tomaram conta dela, uma suave euforia de amor e
felicidade. Tudo ficaria bem. Ela sentiu os arrepios violentos sacudindo seu corpo aliviarem
quando o calor acendeu em seu núcleo. Um instante mais tarde, o calor estava furioso e seu
corpo estremecia enquanto sua carne derretia sob as deliciosas chamas de magia.
Ela suspirou, nunca querendo que a sensação de calor e alegria acabasse.
Então, eles estavam em uma clareira próxima a uma enorme fogueira perto de um
grande carvalho que ela reconheceu. Enquanto Stolas gentilmente a colocava de pé, ela
percebeu que esta era a sua clareira. Aquela aonde ela levava Stolas em seus sonhos.
Atraída pelo fogo, ela estendeu os dedos o mais perto possível das chamas.
— Como? — ela começou, olhando ao redor uma segunda vez. Sua árvore estava lá
junto com um céu cheio de estrelas. — Estou sonhando?
— Não. — Sua voz habitualmente mal-humorada era um estrondo sinistro que
afugentou a bolha de calma que a cercava.
— Então como... ?
— Sem perguntas! — ele rosnou, rondando a clareira enquanto avaliava o perigo.
— Se você ia gritar comigo, por que se incomodar em usar sua magia para me fazer
sentir calma?
— Porque eu... — Ele passou a mão pelo cabelo como a neve e rosnou. — Chega de
perguntas, a menos que você queira que eu termine o que aquela bruxa começou.
Haven fez uma careta para ele. — Por que você está tão mal-humorado? Eu fiz
exatamente o que eu deveria fazer!
— Se — ele respondeu, parando ao lado dela — você quer dizer deixar a proteção do
seu grupo e cair direto na armadilha da bruxa da floresta, então sim, você fez.
— Não é justo. E eu peguei a segunda parte do Preço da Maldição. Isso dá dois, por
falar nisso. Se você estiver contando.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Eu não estou. E leva apenas uma vez para morrer,
Pequena Fera.
Evitando seu rosto de seu olhar, ela virou para aquecer seu traseiro. — Se eu soubesse
que sua ajuda significaria olhares mal-humorados, eu teria...
— O quê? — Ele rondou, parando a um centímetro do seu rosto, os ombros
apertados e asas estalando atrás dele, obscurecendo o céu. — Você iria morrer? Você está tão
ansiosa para fazer isso, Pequena Fera? Porque eu estou começando a questionar. Você é uma
erupção. Impulsiva. Você jogou sua magia escura e magia de luz juntas, se lixem as
consequências! Você é uma mortal, facilmente quebrada, facilmente morta, e ainda assim
você vagueia pelas minhas terras como se você fosse invencível.
— Eu seria se você ajudasse de vez em quando! — ela gritou, ignorando seu olhar
ardente. — Você estava obviamente aqui! Você sabia que eu estava a segundos da morte! Ou
esse é o seu estilo?
As chamas dentro de seus olhos cresceram para combinar com a fogueira, tão
brilhantes de raiva que ela pensou que iriam explodir. — Se eu pudesse quebrar essa
maldição, eu teria feito isso anos atrás. E, sim, eu estava assistindo, mas não podia sair.
— Então por que você está aqui agora?
— Porque você chamou meu nome três vezes e uma promessa é uma promessa. Então
eu deixei a presença de Morgryth imediatamente.
Dedos gelados arranharam sua espinha ao ouvir o nome da Rainha das Sombras. —
Ela visitou você no Submundo?
— Não, ela me chamou para Spirefall. E quando ela chama, não tenho escolha a não
ser vir.
— Ela não vai perguntar aonde você foi?
— Sim, Pequena Fera, ela certamente vai. — Sua voz estava resignada.
Ela realmente sentiu uma pontada de remorso pelo que disse, enquanto se afastava do
fogo que queimava suas costas.
Ela fechou o pequeno espaço restante entre eles, acolhendo o frio do corpo dele e
olhou para seu rosto. — Eu sinto muito. Eu gostaria de não ter chamado por você.
— Então você estaria morta e a Maldição permaneceria intacta. — Sua respiração era
uma rajada suave de neve em sua bochecha, mas pela primeira vez, ela não se importou. —
A geada da morte de uma bruxa da floresta se espalha rapidamente e você era gelo quando
eu te encontrei. Não vamos discutir mais isso.
— Tudo bem — disse ela, esfregando as mãos. Agora que seu sangue estava
bombeando nas pontas dos dedos, eles queimavam horrivelmente.
Pela primeira vez desde que Stolas a encontrou, ela pensou em quão perto esteve da
morte. Por que ela correu atrás do corvo como uma idiota? Ela era mais esperta do que isso.
— Ah — Stolas falou lentamente, levantando o queixo dela. — Agora, esse é o olhar
de alguém que quase morreu. Lembre-se desse sentimento, Pequena Fera. E tente não
repetir.
— Não seja absurdo — ela resmungou, tentando e falhando em tirar seu queixo dos
dedos dele. — Isso é tudo que nós mortais fazemos - tentar não morrer. Você não tem ideia
de como isso é exaustivo.
Rindo, ele inclinou a cabeça de um lado para o outro, avaliando-a. — Você parece
bastante frágil.
— Por que eu, então?
Sua pergunta pairou no ar entre eles. Ele soltou seu queixo, mas não respondeu.
— Por que me escolher? — ela repetiu. Ela ergueu as mãos formigando como se ela
precisasse lembrá-lo de que ela era mortal. — Como você disse, eu sou uma mortal. Existem
milhares de maneiras de me matar. Pelos Portões do Submundo, você provavelmente tem mil
feitiços para me matar. Então, por que colocar sua fé em mim?
— Já falamos sobre isso...
— Eu sei! Eu sei! Você não responde a certas perguntas. É só que não faz sentido.
Você sabe algo sobre minha magia? Por que tenho luz e escuridão? — Ela colocou a mão em
seu braço, ignorando a maneira como ele enrijeceu. — Existem outros como eu?
Seus dedos eram como gelo enquanto se enrolavam em seu pulso e cuidadosamente
arrancavam sua mão de seu braço. Pelo menos desta vez, ele não jogou sua magia nela. —
Essas são perguntas para outro dia. Mas já que você está tão cheia de perguntas, pergunte
outras e se eu puder respondê-las, eu responderei.
Um sorriso apareceu em seu rosto; ela presumiu que ser questionado por uma garota
mortal não estava no topo de sua lista de prazeres. — Ok, por quê suas asas têm penas, mas
as poucas pinturas que encontrei de Ravenna, sua esposa, mostram as asas dela
membranosas, como os gremwyrs?
Ele parou por um instante e então desviou o olhar para as estrelas. — Existem dois
tipos de Noctis. Eu sou um Serafim, da raça Serafian, enquanto eles são Golens dos
Golemitas.
— E os dois tipos de Noctis podem se casar?
Embora seu rosto fosse uma máscara fria, algo escuro brilhou logo abaixo de sua
superfície. — Eles casam agora, sim.
— Mas vocês não costumavam?
Ele suspirou. — Eu posso ver que você não vai desistir até que eu explique. Muito
antes da Maldição, os Serafians governavam Shadoria pacificamente ao lado dos reinos
mortais e Solissian, enquanto que os Golemitas governavam o Submundo. Mas, então, os
Solis deram magia aos mortais, enfurecendo Morgryth e sua espécie, os Golemitas.
— A Imperatriz Serafian tentou acalmar os Noctis. Ela não era campeã dos mortais –
e eles não eram nossos amigos – mas ela era mais sábia do que qualquer um que eu já conheci
e sabia que a guerra não era a resposta.
— Mas os Golemitas queriam mais do que tudo escapar do Submundo e tomar
Shadoria como se fosse sua. Sendo a malandra que Morgryth é, ela usou a raiva e a
desconfiança de nosso povo em relação aos mortais para fazê-los pensar que a guerra era
inevitável. O medo é uma ferramenta eficaz e Morgryth uma especialista em manejá-la. Não
demorou muito para que Morgryth voltasse o povo Serafian contra sua Imperatriz, alegando
que ela era uma covarde e traidora.
Haven se sentiu totalmente gelada quando perguntou: — O que aconteceu com ela?
A dor cintilou em seus olhos, que se tornaram de um prata pálido. — A Rainha das
Sombras esperou até ter apoio suficiente e então orquestrou um golpe, levando a Imperatriz
e seu marido como reféns. Quando ela reivindicou domínio sobre os Serafianos, nosso povo
já estava dividido demais para resistir às forças Golemitas. E então - bem, então ela poderia
fazer o que quisesse.
— Isso é terrível — Haven disse.
— Você não tem ideia. — Seus olhos estavam distantes como se ele estivesse revivendo
o momento. — A Imperatriz Serafian tinha dez filhos. Por esporte, Morgryth fez com que
seu marido e todos os filhos, exceto dois, fossem despedaçados na frente da Imperatriz e de
toda a corte. Então a Rainha das Sombras prendeu a alma de alguém muito querido à
Imperatriz e fez com que colocassem uma lâmina em seu coração, lentamente, para que ela
sentisse tudo. — Um tremor profundo sacudiu seu corpo e, quando ele voltou a falar, sua
voz era dolorosamente suave. — A essa altura, os serafins perceberam que cometeram um
erro, mas era tarde demais. Ela pegou as asas de todos os serafins, exceto alguns selecionados,
e então nos escravizou.
Haven soltou um suspiro. Ela sabia que a Rainha das Sombras era terrível, mas isso...
a Noctis que ele descreveu era um monstro. Um monstro que tinha Bell.
E era tudo culpa dela.
Seu foco voltou para o Senhor do Submundo. Talvez fosse a maneira como ele falava
com emoção crua, uma mudança brusca de seu tom normalmente cauteloso, que a atingiu.
Ou como ele parecia jovem de repente, não muito mais velho do que ela.
— Você era próximo da Imperatriz? — Era mais uma declaração do que uma
pergunta.
A raiva ondulava em seu rosto e ele tocou uma pena da capa que caía em cascata por
suas costas. — De quem você acha que são as penas que eu uso?
Ela sentiu um mal-estar. A dor em sua voz, embora bem escondida, soava como a dela.
— Por que você usaria uma capa feita com as penas da Imperatriz?
— Porque Morgryth pensou que me fazer usar as famosas asas lindas da minha mãe
me manteria dócil e com medo.
— Sua mãe? — Haven sussurrou quando tudo, de repente, horrivelmente fez sentido.
Mas era como se ele não a tivesse ouvido, seu olhar desfocado olhando além, por cima
do ombro dela. — Eu tinha o equivalente aos dez anos de um mortal. Depois disso,
Morgryth manteve minha irmã e eu presos no Submundo como peões, até que eu tivesse
idade suficiente para me casar com Ravenna.
— Por quê?
— Nossa união — seus lábios se curvaram de desgosto com a palavra - — fortalece a
reivindicação de Morgryth ao trono de Serafian. Somos reféns, de certa forma. Contanto
que meu povo permaneça obediente, Morgryth nos mantém vivos.
Haven sentiu as lágrimas molharem seus olhos e ela rapidamente piscou para afastá-
las. Ninguém merecia ter sua família arrancada assim.
— E sua irmã? — ela perguntou apesar de temer a resposta.
— Morta. — Sua voz era um sussurro distante. — Morta tentando escapar.
De repente, ela desejou que ele não tivesse contado a história, porque agora... agora
ela o via menos como um monstro. Menos um Noctis e mais um ser normal como ela. Ele
era criança quando seus pais foram assassinados. Ele viu a maioria de seus irmãos morrer
brutalmente.
E esse tipo de pensamento a mataria.
— Sinto muito — disse ela, afastando-se de Stolas e em direção à árvore. Ela precisava
se distanciar dele e das emoções que sentia. — Outra pergunta se a oferta ainda estiver de pé?
— Antes que ele pudesse recusá-la, ela deixou escapar: — Estamos dentro do meu sonho?
— Não exatamente. — Suas asas, que estavam bem abertas, se juntaram e se
enrolaram em suas costas enquanto ele relaxava. — Quando eu te encontrei, você já estava
cercada por bruxas da floresta e eu só tive alguns segundos para criar uma fenda entre o nosso
mundo e o Submundo. Eu fiz este pequeno bolso de espaço usando suas memórias.
— E elas não podem nos encontrar aqui?
— Não. Ele está oculto e protegido de qualquer coisa que possa fazer mal a você. Mas
minha magia não pode sustentar a fenda por muito tempo.
Haven não gostaria de voltar para Floresta das Bruxas, mas pelo menos agora, ela era
forte o suficiente para se defender. — A mistura de magia das sombras e luz que eu criei. Por
que funcionou quando a magia da luz sozinha não funcionou?
Ele puxou a capa para trás enquanto caminhava e ela estremeceu com sua origem. —
Eu suponho que a magia das sombras foi capaz de mascarar a magia da luz e prevenir que ela
fosse sifonada. Ou possivelmente, a escuridão protegeu a luz de alguma forma.
— Mas — ela lembrou — você disse que poderia ser perigoso?
— A magia é sempre perigosa, Pequena Fera. Misturar dois tipos de magia, bem, não
tenho certeza das consequências, mas era um risco que uma pessoa mais sábia e mais
prudente não teria corrido.
Ela sorriu; ninguém jamais a acusou de ser uma dessas coisas. — Bem, sabedoria e
prudência não vão quebrar a maldição, vão?
Um estrondo cresceu no peito de Stolas enquanto ele encarava Haven. —
Possivelmente não. Mas eles vão mantê-la viva e, da última vez que verifiquei, Pequena Fera,
você não pode quebrar a maldição do Submundo. Então, talvez um comprometimento
esteja em ordem.
Se ele realmente a conhecesse, ele não teria sugerido tal coisa. Mas ela não se atreveu a
contradizê-lo. Em vez disso, ela decidiu aproveitar ao máximo seu tempo juntos. — Você
pode segurar a fenda por tempo suficiente para treinar?
— Não. — Sua voz estava decidida.
Ela soltou um suspiro de desapontamento. — Só um truque? Nada? Por favor. Há
poucas horas entre meus sonhos e eu quero saber tudo.
— Lançar escuridão não pode ser reduzido a um truque — ele rosnou, mas ela podia
jurar que um lado de seus lábios se curvou para cima com prazer em sua ansiedade.
— Você tem razão. Mas você não pode me dar algo para impedir as pessoas de lerem
minha mente?
Stolas a olhou como se fosse uma criança, as sobrancelhas brancas e acinzentadas
unidas em uma linha raivosa. — A proteção contra a leitura da alma leva séculos para ser
aperfeiçoada.
— Eu aceito qualquer coisa. Por favor. — Ela forçou um sorriso tímido. — Temo
que os outros descubram nosso acordo e não acho que eles aceitariam bem você invadindo
meus sonhos. Você não concorda?
Ele a considerou friamente mesmo enquanto seus olhos dançavam com diversão. —
Tenho milhares de anos de idade. Você realmente acha que pode me manipular para
conseguir o que quer com um sorriso?
Milhares? Deusa salve-a. Ele era muito velho.
— Prefiro o termo 'experiente', ou mesmo 'bem vivido' — ele respondeu friamente.
Claro que o bastardo iria ler a alma dela. — Você deveria adicionar droob a essa lista
de descrições.
Ele arqueou uma sobrancelha. — Não sei o que isso significa, mas suspeito que você
esteja certa.
Já chega disso. Sua sabedoria matou qualquer prazer recém-descoberto que ela teve
em sua presença.
Ignorando seu sorriso malicioso, que prometia que o sentimento era mútuo, ela
ajeitou a capa e estendeu a mão. — Preparado?
— Tem certeza de que está bem o suficiente? — Ele correu um olhar cético sobre seu
corpo. — Se até mesmo um fragmento da magia da bruxa for deixado dentro de você, pode
apodrecer e significar sua morte.
— Eu penso que sim. — Ela massageou o peito, lembrando-se do frio horrível. —
Antes de me curar, você de alguma forma me encheu de uma sensação de euforia. Todos os
Noctis têm essa habilidade?
Os olhos de Stolas brilharam. — Eu pensei que você mal podia esperar para se livrar
de mim.
Ela levantou um ombro enquanto dava de ombros. — Foi apenas uma pergunta.
Seus lábios se separaram como se ele fosse repreendê-la novamente. Então, ele olhou
para a ponta dos dedos. — Nem todos os Noctis têm a minha habilidade calmante, mas
alguns dos mais poderosos têm. Isso nos ajuda a manter vocês calmos enquanto...
— Bebem nossa magia — ela terminou, encarando-o.
Ele a observou cuidadosamente, procurando por qualquer sinal de melindre, mas ela
se recusou a desviar o olhar.
— Isso te assusta? — ele perguntou suavemente.
Ainda o encarando, ela balançou a cabeça. — Você ainda não se alimentou de mim,
o que significa que você não é um completo monstro.
Um sorriso voraz curvou-se em sua mandíbula. — Que você saiba.
Ele se moveu como fumaça. Antes que ela pudesse reagir, ele a puxou para si, roçando
sua carne fria e lisa contra a dela. Apesar de sua provocação, ela não tinha medo de sua
proximidade - mesmo quando seu nariz roçou em seu pescoço.
— Se você está tentando me assustar — ela sussurrou, se contorcendo contra seu
aperto firme — você está falhando.
— Certo — ele riu. — Deve ser por isso que seu cheiro está misturado com medo.
Porque eu não te assusto. — Em seguida, suas asas se espalharam e ele rosnou em seu ouvido
— Segure firme. Se você cair, eu não vou voltar por você.
Sua súbita mudança de humor a fez revirar os olhos e sua mente voltou para a delicada
escova de prata em seu banheiro. Que tipo de mulher aguentaria seu temperamento
inconstante? Que mulher iria querer aguentar?
Um dia desses, ela decidiu, ela iria descobrir.
Logo antes de cruzarem o véu de volta ao mundo-de-agora, ela sentiu o queixo dele
pressionar a curva de seu pescoço quando ele disse: — Se aquele Senhor do Sol envaidecido
tentar ler seus pensamentos, pense na palavra 'foetor' — Ela conseguia perceber que seu
rosto tinha um sorriso malicioso. — Isso deve manter esse bastardo bonito fora de sua cabeça
por um tempo.
— Não vai... machucá-lo seriamente, não é? — ela perguntou.
— Machucá-lo, não. — Diversão passou por sua voz. — Mas mantenha alguns
metros de distância entre você e ele quando você fizer isso.
Obrigada, Senhor do Submundo, ela pensou.
Em volta da cintura dela, os braços dele apertaram em resposta.
Stolas deixou-a na orla da Floresta das Bruxas, perto de onde os Solis estavam
agrupados. Ela esperou um minuto inteiro depois que Stolas desapareceu antes de deixar as
sombras frias da floresta.
Fagulhas laranja saíam de um fogo ardente perto de um riacho. Surai estava
posicionada perto das chamas, com Rook e Bjorn cuidando dela.
Archeron estava a poucos metros de distância, seu corpo tenso.
A cabeça de Archeron se ergueu assim que ela deixou a cobertura das árvores e,
embora seu rosto permanecesse uma máscara protegida, seus ombros relaxaram e ele soltou
um suspiro.
Quando Surai viu Haven, ela jogou os braços ao redor dela, apertando com tanta
força que Haven mal conseguia respirar. Metade de seu corpo, Haven notou, estava gelado
contra sua carne e era como abraçar um bloco de gelo.
Ela estremeceu, sabendo da agonia que Surai devia sentir.
A Rainha do Sol terminou de se preocupar com Haven e se afastou, sua carranca
refletindo a expressão severa no rosto bonito de Archeron.
— O que aconteceu? — Surai exigiu.
— Eu devo ter perdido meu caminho seguindo o corvo — Haven explicou, tentando
decidir o quanto dizer a eles — e eu me separei do grupo.
Ela odiava mentir, mas não conseguia descobrir como explicar o resto
adequadamente.
Então, eu quase morri e convoquei o Senhor do Submundo, com quem eu também sonho
todas as noites e, oops, eu talvez tenha feito um acordo inquebrável com ele para treinar a
magia das sombras...
— Bem — Surai disse, apertando o ombro de Haven — graças à Deusa você está bem.
Rook apareceu ao lado de Surai, passando um braço pela cintura dela. — Esta se
atirou em uma bruxa da floresta...
— Tentando te salvar! — Surai protestou.
—... e quase acabou morrendo — finalizou Rook. — Se a bruxa da floresta não tivesse
saído de repente, você poderia ter acabado muito pior do que isso.
Surai dirigiu seus olhos lilases a Archeron. — A maneira como ela gritou e fugiu, ela
deve ter visto seu rosto feio, Archeron.
— Ok — Rook disse, sua voz gentil desta vez, tocando o ombro de Surai. — De volta
ao fogo, herois. Você ainda precisa descongelar.
Herois era basicamente meu herói em Solissiano.
Estabelecendo-se perto de Surai próximo ao fogo, Haven reprimiu seu sorriso quando
o olhar de Archeron a encontrou. A luz laranja do fogo iluminava suas maçãs do rosto
salientes e brilhava dentro de suas pupilas.
Pela forma como seus lábios puxaram para baixo, ela assumiu que ele estava bravo
com ela por cometer um erro tão amador como se separar do grupo.
Mas quando ele se aproximou dela, havia algo em seus olhos – alívio, talvez algo mais
– e ele passou a mão levemente pelo braço dela enquanto passava para alimentar o fogo.
— Que bom que você está bem, Mortal — foi tudo o que ele disse.
E, no entanto, foi a maneira como ele disse isso - sua respiração irregular e o toque
prolongado - que deixou as palavras penduradas no ar e gravadas em sua mente. Ela tinha
feito algo idiota, mas ele não gritou com ela.
Isso foi enorme.
Bjorn se aproximou com uma tigela de lata de caldo fumegante para ela e Surai.
Assim que a tigela quente encontrou as mãos de Surai, ela suspirou. — Eu morava
perto das montanhas em Asharia, onde os invernos duram metade do ano e a água congela
no segundo em que atinge o ar. No entanto, nunca senti tanto frio assim.
— Essa foi a magia das sombras — explicou Bjorn, esfregando as mãos sob as chamas
enquanto avaliava Surai discretamente. — Você ficará bem para entrar na Floresta das
Bruxas? Temos que tentar novamente antes do amanhecer.
O maxilar! Haven quase havia esquecido.
Ela abriu um sorriso enquanto o tirava do bolso. — Na verdade, nós não precisamos.
Os olhos cor de lavanda de Surai se arregalaram com a visão do maxilar dentro dos
dedos de Haven. Rook deu um grito de surpresa e se aproximou para examinar o osso
hediondo, seus olhos dourados brilhando contra a faixa pintada de vermelho enquanto
examinavam a relíquia.
Até mesmo Bjorn exibiu, o que Haven assumiu ser, sua forma de sorriso
impressionado quando ele tirou a mandíbula dela, virando-a em suas mãos.
Archeron, no entanto, olhou com olhos semicerrados para a coisa como se ela não
fosse outro item da Maldição e outro passo mais perto da liberdade para todos eles.
— Como você matou a bruxa da floresta? — Um temperamento mal disfarçado
enlaçou a voz de Archeron.
— Com minha magia — ela disse casualmente – casual demais pelo jeito que todos
olhavam.
Bjorn parou de examinar o maxilar com os dedos, a cabeça inclinada em direção a ela.
— Ainda assim, você precisaria de magia da luz, não da escuridão, para subjugar uma bruxa
da floresta.
— Estou ciente disso, acredite em mim.
— E como — Bjorn perguntou, dando um passo mais perto — você manteve a magia
das sombras dentro desta floresta de extinguir sua magia da luz?
Mais uma vez, ela se perguntou o quanto deveria dizer. Possuir magia de luz como
uma plebeia era o suficiente para ser jogada na prisão por sua própria espécie.
Mas empunhar a magia da luz e da escuridão juntas?
Algo assim definitivamente interessaria os Solis. Ela poderia ser caçada e morta. Ou
pior.
— Não tenho certeza — disse ela. Não era mentira, não exatamente. Stolas tinha
teorizado que sua magia das sombras de alguma forma mascarava a luz, mas isso não era
saber. Pelo menos, foi o que ela disse a si mesma enquanto balançava a cabeça e repetia: —
Não tenho certeza; só... aconteceu.
Um longo silêncio caiu sobre eles. Haven não sabia se isso era uma coisa boa ou ruim,
mas pelo menos ela não precisava mais falar sobre isso.
— Quem teria pensado — Rook murmurou, sua voz cansada tremendo de esperança
— que nós chegaríamos tão longe? Um bando de Solis amaldiçoados e uma garota mortal.
Se minha mãe pudesse me ver agora...
Haven sentiu o foco da Rainha do Sol mudar em sua direção e ela se atreveu a
imaginar que poderia haver orgulho naquele olhar.
Depois disso, o clima voltou a ser de excitação, especialmente entre Surai e Rook, que
brincavam uma com a outra enquanto todos juntavam suas coisas e se preparavam para o
próximo item da lista do Preço da Maldição: lágrimas de fadas.
Uma mancha dourada de luz pintou as copas das árvores enquanto o amanhecer se
arrastava sobre a terra. Com a promessa do dia levantando seus espíritos, eles partiram para
o Vale Esmeralda, um pequeno reino de fadas dentro das Terras das Ruínas, de acordo com
Bjorn.
Archeron diminuiu a velocidade para falar com ela, enquanto os outros continuavam
subindo uma colina irregular que levava a um promontório, e seu coração parou quando ele
roçou os lábios sobre a concha de sua orelha e sussurrou: — Você parece estar decidida a ser
morta.
— Isso te incomodaria? — ela perguntou, deslizando seu olhar para ele.
— Imensamente.
Ela ergueu as sobrancelhas, sem saber para onde isso estava indo. — Por quê, Senhor
do Sol?
— Porque... Eu sentiria sua falta.
Ela observou Archeron se afastar, com as mãos nos bolsos, seu cabelo dourado
refletindo a luz pálida, e não foi até que ele estivesse fora de vista que ela se lembrou de
respirar.
O Vale Esmeralda estava aninhado em um vale entre montanhas cobertas de neve
envoltas em nuvens. Enquanto eles cruzavam entre uma passagem baixa, tremendo sob a
sombra fria do pico mais alto, Haven tinha certeza que elas eram as mesmas nas quais ela
tinha olhado para baixo na propriedade escondida de Stolas.
Mesmo sabendo que as montanhas seriam imagens espelhadas, ela estudou o céu em
busca de gremwyrs ou qualquer outro sinal de Stolas e do Submundo que fosse paralelo ao
deles.
Estranhamente, ela ansiava por revisitar aquele sombrio mundo espelhado dos
mortos. Explorar suas profundezas e entender como tudo funcionava...
Chacolhando os ombros, ela tentou se livrar da memória de Stolas, mas ela se agarrou
a ela. Apesar de tudo que ela tinha que se preocupar - a missão que se aproximava, a
companheira do vorgrath, a segurança de Bell - sua mente continuava voltando para o
Senhor do Submundo.
Certamente, ele foi inteligente o suficiente para encontrar uma desculpa para a
Rainha das Sombras?
E, no entanto, quando ela caiu em seus sonhos, depois que os Solis pararam mais cedo
por algumas horas, ele não apareceu.
Ela mordeu o lábio. A decepção que ela sentiu por não treinar foi misturada com
preocupação. Stolas estava bem?
Suspirando, ela enterrou a emoção tão rapidamente quanto a descobriu. Era bobo,
até inútil para uma mortal como ela se preocupar com uma criatura como Stolas.
Ele poderia cuidar de si mesmo muito bem. Provavelmente, ele se cansou de suas
deficiências mortais e abandonou o acordo deles.
Aumentando o ritmo, ela finalmente tirou de sua mente qualquer coisa relacionada
a Stolas. Afinal, ela já tinha problemas suficientes. E adicionar um Senhor do Submundo
inconstante a essa lista era a própria definição de estúpido.
Mas antes disso, ela fez uma pequena oração à Deusa por ele. Apenas por precaução.
Até mesmo o Senhor do Submundo merecia misericórdia de vez em quando.

O sol aquecia seus rostos quando eles chegaram ao vale - um longo trecho de terra
verdejante esculpido no vale, coberto de violetas, trílios brancos e margaridas. O ar vibrava
com o som de água corrente. Ele vinha de inúmeras cachoeiras que alimentavam um grande
riacho, que cortava o meio do cenário. Uma brisa suave farfalhava os bosques de bétulas e
amieiros que cresciam ao redor.
Como se despertando de um longo sono, sua magia de luz agitou-se dentro dela. Ela
corria lentamente por suas veias e formigava nas pontas dos dedos, implorando por
liberação.
Este lugar tem magia de luz.
Mas como isso poderia acontecer quando todas as Terras das Ruínas possuíam magia
das sombras? Ela deveria ter sangrado este lugar há muito tempo.
Ela decidiu que teria que perguntar a Bjorn.
Mas seu foco rapidamente mudou para Rook enquanto ela saltava pelo vale em sua
forma de besta amaldiçoada, sua cauda dourada balançando para frente e para trás na grama
alta.
Depois de dias caminhando pela floresta escura, o brilho do vale iluminou seus
humores. Rook e Surai perseguiam uma a outra pelo prado enquanto Bjorn cantarolava uma
melodia suave antes de desaparecer em algum lugar, presumivelmente para vasculhar suas
visões.
Até Archeron pulou em uma grande pedra e se recostou, tomando sol como um gato,
um olho alerta ainda aberto, é claro. Ele seguiu ela quando ela se juntou a ele, saboreando o
calor da rocha contra suas costas.
— Mortal — ele disse como forma de saudação. Que era sem dúvida melhor do que
chinga... embora não muito.
— Senhor do Sol.
Eles não haviam dito uma única palavra um ao outro desde sua admissão perto da
Floresta das Bruxas, meio dia atrás, mas parecia que estavam retomando a conversa minutos
depois.
— Eu não sou o senhor de ninguém — ele falou lentamente, fechando os dois olhos
novamente. — Me chame de Archeron.
— E eu não sou o animal de estimação mortal de ninguém — ela respondeu. — Me
chame de Haven.
— Haven. — Ele passou o nome dela por sua língua como se fosse uma gota de
chocolate para saborear, enviando arrepios por sua espinha. O som era sagrado. — Ha-vem.
Parte dela odiava a forma como o nome dela em sua boca enrolava seus dedos dos pés
com prazer. No entanto, uma parte substancialmente maior dela gostava da sensação. Era
uma emoção bem-vinda depois de tudo que ela tinha passado recentemente.
Por que não jogar este jogo e ver onde ele levava?
— Há magia da luz aqui — ela começou, arqueando uma sobrancelha. — Como?
Seus lábios se curvaram para cima enquanto ele colocava as mãos atrás da cabeça e sua
bainha dourada raspou na rocha. — As fadas eram apenas uma das muitas criaturas de magia
da luz que costumavam viver nas terras mortais, mas elas causavam travessuras e truques para
vocês mortais. Então, quando os Solis baniram os Noctis para o Submundo, os Noctis
insistiram que os Solis incluíssem todas as criaturas mágicas, não apenas as Sombras.
— Quando o Submundo foi aberto pela Maldição — ele continuou — o povo das
fadas fez uma barganha com a Rainha das Sombras. — Ele olhou para o vale. — O vale
permanece protegido da magia das sombras circundante e o povo das fadas é deixado em
paz.
— E em troca? — Haven perguntou.
— Em troca, elas entregam mortais desprevenidos como você para a Rainha das
Sombras.
Um forte respingo de água do riacho fez com que as pálpebras de Archeron se
abrissem, embora seu corpo permanecesse imóvel. Foi só quando ele avistou Rook na água
que ele pareceu relaxar.
Sua calma era tudo um truque. A realização fez seu coração disparar. Sob seu
comportamento casual, seus músculos estavam tensos, seu peito estremecendo com
respirações rápidas.
Haven olhou para o riacho. Rook dava uma patada em lampejos laranja de peixes sob
a água, mas suas orelhas de pontas escuras estavam apontadas para as árvores como se
estivessem ouvindo. E quando Surai se juntou a ela na água, o riacho pegando sua túnica
carmesim e girando ao redor de seu corpo, ela parou em meio aos salpicos de água para lançar
seu olhar ao redor do vale.
— Então, mais uma vez, eu sou uma isca. — Não era uma pergunta e Haven deu
outra olhada no vale enquanto a sensação de ser observada picava sua pele.
— Você é — admitiu Archeron, não soando nem um pouco arrependido.
Haven lançou-lhe um olhar cético. — E o que supostamente estamos fazendo aqui,
hein?
Lentamente, os olhos de Archeron se abriram e deslizaram para ela. — Todos
nós? Ou... você e eu?
Antes que ela pudesse responder, ele rolou sobre ela, as mãos plantadas em ambos os
lados de sua cabeça. As armas que adornavam seu corpo cutucavam sua cintura, mas por
baixo disso, ela sentiu sua carne, firme, quente e viva pressionada contra a dela.
Ele abaixou a cabeça até que seus narizes quase se tocassem e seu cabelo dourado caiu
como cortinas em cada lado de seus rostos.
— Eles vão assumir que somos amantes — ele ronronou, seus lábios macios passando
pelos dela com cada palavra. — Perdidos em alguma viagem. E este lugar nos fez baixar a
guarda.
Ela começou a bufar, mas, agora, com o hálito quente e doce dele em seu rosto, o calor
e o peso pressionado em seu corpo, isso fazia todo o sentido.
— Eles pensam — ele continuou em uma voz baixa e melosa, suas palavras pingando
como açúcar derretido — que esta noite, depois que nossas barrigas estiverem cheias de
vinho e comida e nós sonharmos, eles podem se aproximar de nós e roubar você.
— Hum.
— Assim como eles pensam que este é um beijo entre amantes.
Seus lábios se separaram. — Então... nós estamos... fingindo?
— Nós estamos, a menos que você prefira algo mais... autêntico?
A pergunta pairava pesadamente no ar, mesmo enquanto seus lábios ansiavam para
que a boca dele os cobrisse. A maior parte de seu peso estava apoiado em suas mãos e ela
lutou contra o desejo de envolver as pernas ao redor de sua cintura e puxá-lo para baixo até
que seu peso a prendesse contra a rocha.
Um pequeno ruído escapou de seus lábios e ela o sentiu ficar duro acima dela.
— Isso é uma resposta — ele perguntou, sua voz um ronronar baixo. Havia algo
dentro de seu tom. Uma questão velada de consentimento.
As coisas ficaram sérias e ele queria ter certeza de que ela concordava.
O jogo mudou, tornou-se real e seu estômago se apertou mesmo enquanto o resto de
seu corpo estremecia com a necessidade.
A confusão se instalou. Como ela poderia se divertir quando Bell estava preso e
aterrorizado? Que tipo de pessoa isso fazia ela? Ela deixou que um rosto bonito e a promessa
de um beijo a fizessem esquecê-lo e o prazer que sentiu tornou-se uma pontada de
arrependimento.
Além disso, Archeron era prometido a outra e, mesmo que os Solis tivessem regras
que permitiam a união dele e de Haven, ela tinha outras regras.
— Tenho certeza, Senhor do Sol — disse ela em uma voz mais fria do que pretendia
— que Avaline preferiria que fingíssemos.
Os olhos de Archeron se estreitaram e seu corpo se enrijeceu enquanto ele a estudava.
Ela poderia jurar que, por um momento, a mágoa cintilou no rosto do Senhor do Sol. —
Avaline entenderia, pois ela teve muitos amantes desde que nosso noivado começou...
quando eu ainda nem tinha nove anos. — A pele esticada ao redor de sua boca relaxou e um
olhar esperançoso brilhou dentro de seus olhos esmeralda. — Posso explicar nossos
costumes para você, se isso ajudar?
— Não... eu... — Ela não tinha palavras. Como ela poderia explicar a culpa que sentia
por ser feliz? Ao sentir desejo e afeição quando Bell foi trancado por um monstro pela magia
proibida de Haven?
A mandíbula dele se apertou, seu corpo endurecendo acima dela. Então, sem dizer
uma palavra, ele se levantou, com cuidado para não tocá-la, e caminhou em direção à água,
deixando o ar frio em sua ausência.
Haven deixou sua cabeça cair para trás na rocha com um baque e olhou para o céu.
Às vezes ela se sentia totalmente incompetente lidando com qualquer coisa além de esgrima
e luta.
Esfaquear coisas que precisavam ser esfaqueadas era fácil; entender como navegar o
coração era muito mais difícil.
Com um gemido, ela deixou a pedra e se ocupou preparando o acampamento em um
esforço para relaxar sua mente. Ela juntou galhos mortos para o fogo, água do riacho para a
panela de Bjorn e até tentou pescar os peixes laranja e prateados que frequentavam o riacho.
E o tempo todo, ela estava ciente do olhar penetrante e faminto das fadas - e do olhar
inexistente do Senhor do Sol.
Ela não tinha percebido o quão acostumada com o foco dele ela estava. Agora, porém,
sempre que eles passavam um pelo outro, era como se ela não existisse. Mesmo quando ele
acenava para ela ou sorria para manter a farsa, era como se uma parede de gelo os separasse.
É para o melhor, ela decidiu quando terminou de embalar os peixes que pegou em
uma cesta de arame, o sol refletindo em suas delicadas escamas de turquesa e coral.
Foi um jogo, um jogo estúpido e bobo. Qualquer coisa além disso seria egoísta.
Ela nunca se permitiria ser feliz até que Bell estivesse livre.
Um leve whoosh atraiu seu olhar para o outro lado do riacho. Um dossel cintilante de
ouro pálido tremulava com a brisa; rosas amarelo-citrino se enroscavam nas vigas e pendiam
das cortinas finas. Enquanto ela observava, Surai agitou sua mão e uma longa mesa de pinho
nodoso apareceu. Outro movimento convocou talheres e guardanapos.
Tanto tempo se passou desde que ela havia testemunhado os Solis usarem magia que
ela quase esqueceu que eles a possuíam e ela viu a Rainha do Sol conjurar coisas do nada com
um pouco de inveja.
Talvez algum dia ela pudesse usar sua magia sem que isso a esgotasse. Embora, uma
vez que a Maldição fosse quebrada e ela estivesse de volta à terra dos mortais, ela nunca
poderia realizar magia publicamente.
— Haven — Surai chamou. — Venha experimentar.
No momento em que Haven cruzou o riacho para encontrá-los, Surai havia
acrescentado cálices de prata martelados e delicados pratos de porcelana com bordas
douradas.
— Algo mais? — Surai questionou quando Haven inalou o doce toque de rosa que
perfumava o ar.
Haven franziu a testa para a mesa totalmente posta. — Você invocou isso de itens que
já existem?
— Muito bem — respondeu Surai. Ela girou um painel dourado dentro de seus
dedos, sem se preocupar em perguntar como Haven sabia sobre a arte da invocação. — Esta
configuração exata veio do banquete nupcial na noite anterior ao casamento fracassado de
Rook.
Rook, que estava em sua verdadeira forma, abaixou-se através do dossel flutuante e
mostrou os dentes em um sorriso. — Ela está fazendo isso para me lembrar do erro que quase
cometi.
Surai tirou uma rosa do tecido e a colocou atrás da orelha de Rook. — Não, estou
fazendo isso, porque foi a celebração mais divina que já vi e pensei que poderíamos recriá-la
esta noite. — Ela olhou para Haven, quase timidamente. — Eu não estarei aqui, é claro, não
em minha verdadeira forma, mas agirei como vigia enquanto vocês têm esta noite para viver.
Ela não disse o que ficou no ar: se eles tivessem sucesso esta noite, os desafios restantes
seriam muito mais perigosos. O próximo item da lista depois das lágrimas de fada era a
escama de uma selkie.
Mesmo que todos, de alguma forma, conseguissem sobreviver a essa tarefa, o item
final era uma lasca do chifre da Rainha das Sombras.
Essa era uma tarefa impossível que nenhum deles teve coragem de discutir ainda.
Esta noite poderia ser sua última chance de ter uma boa refeição... E serviria ao duplo
propósito de manter o disfarce de que eles não tinham ideia de que as fadas estavam aqui,
escondidas e observando.
— Quer adicionar alguma coisa? — Surai repetiu, arrastando Haven para longe de
seus pensamentos.
Ela estudou o cenário, com água na boca ao recordar as três bandejas de prata da
manhã do Dia da Runa de Bell. Então ela imaginou o cheiro das peras frescas e dos presuntos
cristalizados, a forma como a luz refratada dentro das gravuras curvando as bandejas, a forma
como o pão pegajoso havia derretido em uma poça de açúcar em sua boca.
Um formigamento pulsou na ponta dos dedos e as três bandejas apareceram na mesa
exatamente como naquela manhã. Um sorriso orgulhoso apareceu em seu rosto. A
invocação era simples e limpa. Sem cinzas ardentes ou material esfarelado.
Tome isso, Senhor do Submundo.
As duas garotas estavam com os olhos arregalados enquanto arrastavam o olhar da
comida para Haven e Rook disse: — Onde você aprendeu a invocar assim?
Haven odiava mentir, mas não havia como ela contar a elas sobre suas aulas com
Stolas. Então ela respondeu: — Eu li muito sobre magia quando estava em Penryth.
Não é exatamente uma mentira.
— Bem, não há dúvida de que as fadas vão tentar roubar-lhe agora — Rook disse em
uma voz casual, como se ser levada no meio da noite por fadas acontecia todos os dias, e
Haven percebeu que ela realizar magia era apenas uma outra parte do plano para atrair uma
ao campo. — Você faria um bom presente para a Rainha das Sombras e eu imagino que faz
algum tempo desde que elas tiveram alguns mortais para oferecer.
Haven escaneou os penhascos escarpados e colinas com seu olhar, estremecendo com
o pensamento de ser observada. — Temos certeza de que elas estão aqui?
— A Freya ama aço? — Surai disse. — Claro que elas estão aqui, as bastardas sílfides
sorrateiras. — Ela jogou o cabelo escuro por cima do ombro. — Eu quase morri de uma das
mordidas da criatura perversa durante nossa última campanha contra os Noctis.
Rook riu. — Achávamos que o braço dela ia apodrecer e, todos os dias, eu tinha que
fazer um curativo em sua ferida. Deusa Acima, ela gemia como uma mortal. — Ela olhou
para Haven. — Sem ofensa.
Surai estalou a língua para Rook. — Eu fui ferida tentando te fazer feliz. Lá estávamos
nós, Haven, cercadas por metade do exército de Noctis, e ela estava reclamando das
condições de sua tenda. Então...
— Eram deploráveis! — Rook interrompeu.
— Então eu escolhi para ela alguns lírios lindos — Surai continuou — mas, sem que
eu soubesse, eles pertenciam a um clã de fadas da floresta.
Os olhos de Haven estreitaram-se maliciosamente quando ela se lembrou das flores
silvestres perto da passagem e antes que elas pudessem dissuadi-la, ela invocou um vaso de
vidro em forma de coração do grande salão de Penryth e o encheu com as flores silvestres ao
longo da colina.
Quando o vaso estava cheio de água e uma mistura vibrante de flores roxas, brancas e
amarelas, ela o colocou no meio da mesa, satisfeita.
— Pronto — disse ela. — Isso deve irritar um pouco as fadas.
Rook bateu a mão no ombro de Haven. — Eu vejo por que Surai gosta tanto de você.
— Então ela arrancou uma violeta do vaso, girando o delicado caule entre os dedos. — Bjorn
está demorando para ver. Acho que vou dar uma olhada nele.
A maneira improvisada com que Rook disse isso não conseguiu esconder a
preocupação que cobria sua testa e Surai mordeu o lábio enquanto observava seu amante
partir.
— Bjorn está bem? — Haven perguntou.
— Tenho certeza que sim — disse Surai. — Ele tem as vidas de um wyvern.
Haven ergueu as sobrancelhas.
— As lendas dizem que os wyverns receberam sete vidas por ajudar a Deusa a escapar
do Noctis durante a batalha. — Surai deu de ombros, seu olhar ainda atraído para onde
Rook havia desaparecido. — As visões de Bjorn nunca demoraram tanto, mas tenho certeza
que ele está bem — ela repetiu.
Haven deixou a mentira de lado. Todos eles tinham seus segredos.
Alguns apenas tinham mais do que outros.
Enquanto Rook foi verificar Bjorn, Haven e Surai encontraram uma lagoa para
banhar-se. Flores vermelhas, que Haven não reconheceu, ladeavam a costa de musgo e ela
fez uma anotação mental para reunir algumas mais tarde, mesmo que isso significasse a ira
das fadas.
— Eu pensei que flores não cresciam nas Terras das Ruínas — Haven comentou
depois que ela estava limpa e vestida com couro fresco e uma túnica de prata que ela invocou.
— Mas aqui, elas estão em toda parte.
Surai tirou a cabeça da água, seu cabelo preto se espalhando ao redor dela. —
Flores? As fadas as colhem para a Rainha das Sombras. Há um enorme prado delas do outro
lado, perto das falésias. Devemos vê-las antes de partir.
— O que ela faz com elas?
— Bjorn mencionou uma vez que ela faz venenos para torturar seus próprios Noctis.
Por infrações mesquinhas também, como não se curvar o suficiente ou andar na sombra
dela. — Ela encolheu os ombros. — Mas Bjorn raramente fala sobre seu tempo lá, a menos
que seja necessário.
Surai emergiu da água, acenando com a mão sobre seu corpo para secá-lo com magia.
Suaves cintilações de luz dourada nadaram sobre suas coxas esguias e até seu estômago ágil,
fazendo com que gotas brilhantes de água desaparecessem no rastro da magia.
Normalmente, Haven desviaria o olhar, mas ela foi atraída pela confiança de Surai. A
maneira como ela se movia com facilidade, apesar de estar completamente nua.
Enquanto ela enrolava seu cabelo preto brilhante em uma trança flácida, os olhos de
Haven caíram para as runas iridescentes que cobriam sua carne. Runas que controlavam sua
magia e permitiam que ela usasse poderes específicos sem desperdiçar energia e se cansar.
— Você já ouviu falar de um mortal que tinha runas como as suas? — ela perguntou,
imaginando se algum dia haveria uma maneira de ela ter o mesmo.
Surai congelou, túnica na mão.
Então, ela se virou para Haven. — Mortais não podem ter marcas de runa; isso é
blasfêmia. A Deusa Acima deu suas pedras rúnicas a sua espécia, nada mais. Sinto muito,
mas essa é a Lei da Deusa.
Haven afrouxou o olhar e fingiu amarrar sua túnica para esconder sua decepção.
Mas Surai notou de qualquer forma e quando Haven terminou de amarrar, ela foi ao
seu lado. — Eu sei que não era isso que você queria ouvir. Mas isso provavelmente é para o
melhor. Neste momento, a sua inexperiência e falta de marcas de runas são as únicas coisas
mantendo-a despercebida e segura. Tanto quanto eu sei, runas na carne de um mortal é algo
impossível, mas se você encontrasse uma maneira de fazer isso, você nunca seria capaz de se
esconder da minha espécie.
— Ou da minha — Haven admitiu.
— Veja, é o melhor a se fazer. Você é minha amiga, Haven Ashwood, e eu quero você
segura. Não caçada em todos os reinos.
Isso faz de nós, duas, ela pensou enquanto pegavam as roupas sujas para irem embora.
E ainda assim, quando a luz saltou através dos pelos claros ao longo de seu braço, ela
imaginou marcas de runa correndo por baixo. Quase sentindo-as. Quentes, formigantes e
poderosas.
E no fundo de sua mente, ela sabia que algum dia ela teria suas marcas de runas, para
o Inferno com as regras.
No caminho de volta, ela arrancou um caule cheio de pétalas vermelhas das flores que
brotavam da lama ao longo do riacho. Enquanto ela enrolava uma pétala aveludada sob os
dedos, uma pergunta se recusou a ir embora.
Se a Rainha das Sombras envenenava seu próprio povo, o que ela faria com alguém
como Bell?
Mas, mais preocupante no momento, foi a raiva das fadas que ela sentiu ao seu redor,
depois que ela pegou as flores, e ela correu pela grama até o acampamento, feliz que ainda
não era hora delas virem.
Magia mantinha a fogueira acesa. Para manter as fadas afastadas, por enquanto, Surai
explicou enquanto elas deslizavam sob o pavilhão de ouro. Os estranhos temperos da comida
Solis, que Rook deve ter invocado enquanto elas estavam fora, formigaram o nariz de
Haven. Surai, em sua forma de corvo, estava empoleirada no topo de uma das vigas de
madeira no teto.
Sua cabeça inclinada, enquanto ela os observava, e Haven pensou ter visto tristeza e
desejo em seus olhos.
Estar presa na forma de criatura, incapaz de viver a maior parte de sua vida com sua
parceira e entes queridos - isso era, de fato, uma maldição e Haven decidiu que quem quer
que esta Soberana Effendier fosse, ela não era uma verdadeira rainha. Porque uma verdadeira
rainha nunca seria tão cruel.
Haven se sentou ao lado de Rook. Tirando a sensação de formigamento percorrendo
sua pele por causa do olhar das fadas, ela quase podia fingir que estava em Penryth sob um
dos pavilhões que eles às vezes montavam ao longo do pátio na primavera. Quase podia fingir
que Bell estava sentado à sua direita, esperando para provocá-la sobre seu amor por doces.
Falando em doces... doces e iguarias de todo tipo a saudavam. Alguns eram
estrangeiros para Haven, mas a maioria ela reconheceu do apetite do Rei Horace por
comidas ricas e exóticas. Sua única qualidade redentora.
Um segundo depois, Archeron se juntou a eles, colocando o cinto da espada e a
espada contra um poste. Enquanto ele tomava seu lugar à direita de Rook, seu olhar passou
por Haven.
O silêncio continuou e Haven se contorceu em sua cadeira.
Sem Surai e Bjorn, a refeição já havia se tornado constrangedora – e eles ainda
precisavam comer. Ela colocou o guardanapo no colo e estava prestes a pegar a tigela de pão
vitrificada quando os dois Solis começaram suas orações.
Sufocando um suspiro impaciente, ela se sentou em silêncio, seu estômago roncando
em protesto. Certamente a Deusa não precisava de cinco minutos de agradecimento pela
comida que já estava estragando sob o sol.
Terminadas as orações, Haven encheu seu prato, nem mesmo se preocupando em
tocar os talheres finos perto de seu cotovelo. Rook, que mastigava lentamente sua comida,
com a graça de uma princesa, observava Haven com os lábios curvados.
Archeron colocou beterrabas e cenouras carameladas em seu prato e espetou a pilha
com um garfo, dando mordidas rápidas e mecânicas - como se estivesse tentando acabar com
essa farsa o mais rápido possível.
Haven era a única que parecia estar com fome. Despejando uma segunda porção de
comida em seu prato, ela fez uma pausa. — Onde está Bjorn?
A pergunta pairou pesadamente no ar. A mandíbula de Rook ficou tensa e, então, ela
olhou para uma pilha de vegetais intocados. — Eu não consegui despertá-lo de suas visões.
— Devo levar um pouco de comida para ele? — Ela ergueu um pãozinho fino, sua
forma dourada brilhando com manteiga de mel.
Um olhar azedo torceu o rosto bronzeado de Rook e ela colocou o garfo ao lado do
prato. — Se ele está preso em suas visões, Haven, como você acha que ele vai comer?
Oh. Ela lutou contra o rubor subindo por seu pescoço. — Certo.
Rook pegou seu garfo de volta e, em seguida, abaixou-o novamente e suspirou. — Eu
não queria brigar com você. — Seu olhar dourado deslizou para Haven. — Apenas...
estamos todos cansados dessas terras, da escuridão. Há algo retorcido esperando por perto e
isso alimenta nossa esperança junto com a nossa magia.
Haven estremeceu, mas ela não podia negar a alegação de Rook. Embora eles
estivessem abrigados dentro de uma bolha de proteção contra a Maldição, ela ainda podia
sentir as garras geladas da escuridão esperando por eles fora desse vale.
Depois disso, os únicos sons eram a mastigação e o ocasional arranhar de um garfo na
porcelana. Se eles estavam tentando enganar as fadas, fazendo-as pensar que estavam se
divertindo, estavam falhando.
Haven examinou uma fruta amarela grumosa em seu prato, cutucando a casca dura
com a faca. — Como isso se chama?
Os lábios de Rook se torceram para o lado enquanto ela considerava o item estranho.
— Acho que é uma espécie de cabaça amarga das Ilhas Diamantes de Effendier. Archeron?
Ele lançou seu olhar rabugento sobre a fruta, mas não encontrou o olhar de Haven
quando disse — Um kwamlee — e voltou direto para sua mastigação negligente.
Rook olhou de Haven para Archeron, então se levantou, um sorriso conhecedor em
seu rosto. — Acho que vou checar Bjorn novamente.
Rook foi embora antes que Haven pudesse protestar. Seu estômago apertou
enquanto ela frazia a testa para o prato, moderando seu desejo por uma porção extra de
creme.
Em vez disso, ela se serviu de um dedal de rum de sabugueiro, não porque gostasse
disso particularmente, mas, porque era o único espírito que ela lembrava de Penryth quando
o invocou.
O licor xaroposo queimou sua garganta e aqueceu sua barriga, soltando o suficiente
da tensão para que ela pudesse respirar, pelo menos.
De repente, Archeron se jogou para trás em sua cadeira, os braços atrás da cabeça
enquanto ele a olhava fixamente, seu olhar como uma súbita explosão de fogo sobre sua pele.
Lentamente, ela virou-se para encontrar seu olhar e levantou uma sobrancelha.
— Você estava certa — disse ele, seu rosto uma máscara dura que ela não conseguia
decifrar. — Qualquer coisa diferente de uma farsa seria errado. Entrarei em sua tenda esta
noite antes de dormir, mas apenas por uma questão de aparência. Dez minutos e você vai se
livrar de mim.
Ela cruzou os braços sobre o peito, irritada com o brilho arrogante em seus olhos. —
Bom. Se dez minutos é tudo que é preciso... você tem certeza cinco não seria mais
apropriado?
Seus olhos se estreitaram em fendas esmeraldas. — Você sabe o que mais? Faça disso
uma hora... para autenticidade.
— Uma hora inteira, hein?
— Se eu estiver sendo rápido.
— Certo.
— Certo.
Rook apareceu dentro da tenda, Surai empoleirada em seu ombro, e parou. Rook
olhou de Haven para Archeron antes de se sentar. Bjorn era uma sombra silenciosa atrás dela
e no momento em que Archeron puxou uma cadeira para ele, ele desabou nela.
Haven cerrou as mãos ao ver os olhos opacos de Bjorn, o rosto flácido e a túnica
desgrenhada, mas foi a maneira como ele inclinou a cabeça para todos, exceto para ela, que
agitou seu estômago.
Cego como ele era, ele sempre a reconhecia de alguma forma.
Mas agora, agora era como se ela não estivesse lá.
O silêncio preenchia o ar enquanto Archeron enchia um cálice de licor escuro de uma
garrafa de cristal. Bjorn bebeu tudo de um só gole e Archeron franziu o cenho. Outra dose.
Outro cálice vazio.
Archeron e Rook trocaram olhares preocupados enquanto Bjorn passava o dedo
sobre a borda de seu cálice de ouro, perdido em algum lugar distante.
Então, finalmente, ele concentrou seu olhar assombrado em Haven. Todo o ar
pareceu fugir de seu peito enquanto ele murmurava — Haven Ashwood, você vai morrer.
Depois do estranho encontro no jardim do outro mundo, Bell e a criatura
trabalharam em silêncio, por mais uma hora perto da porta do portal, podando o ninho de
trepadeiras lilases em arco sobre uma treliça. Bell conhecia a maioria dos nomes das flores
agora e toda vez que acertava outro nome, seu primeiro pensamento ia para Haven.
Como ela teria rido de seu novo hobby. Ela riria e brincaria com ele enquanto ouvia
suas contemplações sobre qual flor desabrochava à noite, por quais botões as borboletas
eram mais atraídas.
Ele poderia ter falado por horas sobre suas observações e ela teria escutado mais ou
menos, porque ela o amava. Ele não tinha valorizado esse amor o suficiente e agora desejava
ter dito a ela o quanto a apreciava.
Você terá sua chance em breve, ele lembrou a si mesmo sombriamente.
A menos, é claro, que Haven viajasse para o Submundo ao invés disso. Apesar da
possibilidade sombria, Bell sorriu ao pensar no Senhor do Submundo tentando lidar com
ela.
Se ela fosse para aquele inferno do submundo, o Senhor do Submundo a enviaria para
o Nihl rapidamente apenas para se livrar dela.
Afastando os pensamentos de sua amiga morta, ele direcionou todos os seus esforços
para os lilases. Quando tinha aparado e reunido a maioria das escuras flores roxas, a criatura
levantou-se e fez um gesto para Bell para ir ao portal.
No segundo em que eles estavam de volta ao castelo escuro, e o ar úmido e frio o
atingiu, qualquer felicidade que ele ganhou com a luz do sol do outro mundo desapareceu.
Esperando voltar para o seu lado do castelo, Bell tentou entregar seu saco de pétalas à
criatura. Em vez disso, a criatura lhe deu os dois sacos.
— Eu preciso voltar para pegar uma coisa — a criatura disse. — Você poderia levá-las
lá em cima para o primeiro cômodo à sua direita, por favor?
Bell segurou os sacos perto do peito e acenou com a cabeça. — Claro.
Eles haviam caído nesta rotina de falar, mas sem dizer nada. A criatura tinha educação
e graça, dizendo 'por favor' e 'obrigado' e falando quando necessário. Ele dizia 'com licença'
nos corredores, fazia questão de que Bell tivesse comida e bebida suficiente e que tudo fosse
de seu agrado, mas eles nunca iam além de gentilezas, e apesar dos esforços de Bell para fazer
a criatura se abrir, ele era irritantemente quieto.
Mas Bell ansiava por uma conversa real e bagunçada. O tipo que fazia o olhar da outra
pessoa desviar quando esta confessasse tudo. O tipo que entraria mais tarde em sua mente,
questionando-se se tinha falado demais.
Se Bell tivesse sido mais corajoso, ele teria perguntado à criatura sobre o que eles viram
antes. Ele tinha certeza de que era uma peça do quebra-cabeça em relação à história da
criatura.
Mas ninguém o acusava de ser corajoso e ele obedientemente começou a subir as
escadas com as pétalas. Seus músculos doloridos se tensionavam a cada passo e ele estava
quase no topo quando a criatura gritou: — Desça imediatamente quando terminar.
Seu aviso foi claro: não vagueie.
Assim que Bell se aproximou da porta de ferro no topo da escada, a magia formigou
dentro de seus dedos e a porta se abriu com um rangido.
O cheiro doce e enjoativo de flores encheu seu nariz. No interior, prateleiras de ferro
cobriam as paredes de pedra e cada prateleira estava cheia de frascos de vidro coloridos. Eles
o lembraram dos frascos que Haven carregava com ela. A maioria estava rotulada com uma
caligrafia elegante que ele duvidava que a criatura pudesse lidar com suas mãos grossas e
enluvadas.
Abaixo, balcões na altura da cintura percorriam toda a extensão da parede. As
bancadas de pedra estavam cheias de caldeirões e fogões, escorredores e mais frascos. Bell
correu um dedo sobre o interior de um almofariz e pilão tingido de amarelo de alguma flor
que foi esmagada ultimamente e levou-o ao nariz. Calêndula.
As flores que Bell carregava foram deixadas no balcão ao lado de mais cinco sacos.
Então ele saiu, começou a descer as escadas... e pausou.
Mais quartos alinhavam este corredor, mas apenas uma porta estava fechada.
Bell nunca tinha sido curioso como Haven. Havia regras e procedimentos para uma
razão. Quem era ele para desafiá-los?
Só que, agora que estava a dias de morrer, ele não compartilhava do mesmo respeito
pelas regras. Afinal, as regras eram o motivo de sua magia pertencer à Rainha das Sombras.
Talvez para salvar sua própria vida e finalmente obter algumas respostas, ele teria que
quebrar algumas dessas regras. E, se isso finalmente desse-lhe clareza sobre o passado da
criatura, então melhor ainda.
Olhando ao redor, Bell esgueirou-se silenciosamente até o último cômodo. Mais uma
vez, a pedra rúnica que Haven deu a ele aqueceu em seu bolso, sua magia zumbiu e a porta
destrancou.
As mãos de Bell estavam suadas quando ele entrou e fechou a porta, seu batimento
cardíaco ecoando dentro de seu crânio. O cômodo estava escuro. O luar aguado escorria de
um par de janelas na parede oposta e pintava o meio do chão de prata.
Era um... quarto. Uma cama com dossel gigante preenchia um lado, juntamente com
duas mesinhas e um grande guarda-roupa. Havia uma sensação pesada no ar, como ele
imaginou que o interior de uma tumba antiga cheiraria, e a sensação de que este lugar não
tinha sido tocado em séculos.
Videiras grossas e espinhosas haviam quebrado as vidraças da janela e elas se
enroscavam em torno da cama enorme, as rosas vermelhas profundas que floresciam das
videiras eram a única cor no quarto. Todo o resto estava desbotado sob uma camada de
poeira.
Ele explorou a câmara, seu estômago se enchendo de pavor ao ver seus passos
claramente marcados por séculos de poeira no chão.
Mas isso não foi o suficiente para abafar sua curiosidade e ele inspecionou tudo. As
bugigangas na cômoda, a manchada bandeja matinal de prata carregando uma escova de
casco de tartaruga e um espelho de mão gravado com rosas.
Com o maior cuidado possível, ele abriu a porta do guarda-roupa. Seu coração quase
parou quando duas mariposas saíram voando, suas pequenas asas marrons batendo
descontroladamente.
Soltando um suspiro nervoso, ele voltou sua atenção para o guarda-roupa e as belas
peças penduradas dentro. Acostumado com as finuras reais, ele reconheceu a habilidade dos
paletós e coletes à sua frente, as tinturas requintadas e a alfaiataria especializada. Bell correu
o dedo sobre os tecidos finos: veludos de pelúcia, sedas cremosas, couro lindamente curtido,
lã de fiação fina.
Quem quer que morasse aqui tinha bom gosto, pelo menos.
Deusa Acima, sinto falta do meu armário em Penryth. Era uma ideia boba, mas a
única coisa boa em ser um príncipe era o guarda-roupa luxuoso.
Ele caminhou até a sala de estar do outro lado do quarto, observando as cadeiras
tufadas e namoradeira azuis, pintadas de prata pela luz aguada. Um espelho de vestir
assentava-se no canto, quebrado além do reparo. Mas Bell foi atraído para a pintura que
ocupava toda a parede acima.
Um lençol escuro a cobria e ele puxou suavemente o linho para baixo em uma lufada
de poeira.
Dentro da moldura dourada, um menino à beira da idade adulta estava posicionado
na ponta de um trono de madeira profunda, seu cabelo loiro e olhos dourados como o mel
tornados mais brilhantes pelo casaco azul-marinho que ele usava.
Bell reconheceu o príncipe imediatamente do encontro anterior no jardim. Renault.
Franzindo a testa, ele ficou na ponta dos pés para ver melhor...
Houve uma explosão atrás dele. Bell se virou bem a tempo de ver a porta se abrir,
estilhaçando-se em mil pedaços.
Bell engasgou, mas antes que ele pudesse fugir, a criatura estava se elevando sobre ele.
— Como você ousa vir aqui! — Ele rugiu, sua voz reverberante através costelas de
Bell.
Bell ergueu as mãos. — Eu...
— Eu permiti que você entrasse na minha vida. Eu te alimentei, te vesti e é assim que
você retribui a minha bondade!
— Por favor! — Bell lutou contra o desejo de encolher-se da criatura e ele respirou
fundo. — Eu apenas...
— Apenas o quê? — A criatura se abaixou, a escuridão dentro de seu capuz cobrindo
sua expressão. — Queria ver o príncipe caído? Você riu quando percebeu o quão longe eu
realmente caí?
Havia raiva na voz da criatura, mas estava misturada com agonia e vergonha.
Bell engoliu em seco, olhando para a imagem de Renault. — Eu não... Eu não
entendo. Quem é você? E quem é aquele?
Mas mesmo enquanto ele fazia a pergunta, algo dentro dele já estava colocando as
peças no lugar.
A criatura.
Renault.
Ravenna.
— Você é... — Bell desviou o olhar da pintura para a criatura escondida atrás da capa,
sentindo-se estúpido por não perceber antes. — Você é o príncipe caído?
A criatura respondeu com um grunhido agudo, seguido por uma longa extensão de
respirações irregulares.
— Você é! — Bell deu um passo para trás. — Você assassinou sua família e trouxe a
Maldição para nossas terras. Você... você...
— É um monstro? — a criatura terminou, quase cansada, como se já tivesse feito isso
antes.
O peito de Bell arfava. — Você sentou lá e me ouviu chorar. Você me fez pensar que
era meu amigo. Eu te contei sobre minha melhor amiga e você fingiu se importar, sabendo
que a morte dela foi culpa sua. — A raiva o atravessou. — Na verdade, a única razão pela
qual estou aqui é por sua causa.
Tudo era culpa da criatura. O sequestro de Bell. A morte de Haven. Foi bom remover
esse fardo de si mesmo.
— Você a matou — sussurrou Bell, e pela primeira vez a acusação estava em outra
pessoa. — Você causou tanta morte e destruição, tanta dor. Tudo porquê... ? Você queria
ser rei?
A criatura estava congelada como se as palavras de Bell o tivessem enfeitiçado. Bell
queria ver sua expressão, pelo menos saber que a criatura sentia remorso por suas ações, mas
sombras cobriam seu rosto.
Como ele se atreve a se esconder do que ele fez.
Em um ataque de raiva, Bell agarrou a ponta de seu capuz e puxou-a.
E então ele gritou.
Metade do rosto do príncipe caído era o belo rosto da pintura. Os lábios
arredondados perfeitos, a pele polida de peltre e os olhos cor de uísque que lembravam a Bell
o bronze cintilando sob o sol.
Mas a outra metade - Sombra Abaixo - a outra metade era monstruosa. Com escamas
de vários marrons e verdes, sua pele tinha a aparência áspera de um wyvern. Dentes
irregulares espreitavam de uma boca sem lábios. Acima, um olho reptiliano vermelho o
observava, nenhum traço de humanidade ou emoção dentro dele.
A criatura ficou parada como se não se mover pudesse de alguma forma torná-la
melhor. — Você gostaria de ver o resto, príncipe? Minha cauda, talvez? — A amargura
azedou sua voz. — As garras se curvando na ponta dos meus dedos?
Bell tentou respirar, mas seu coração parecia alojado na garganta. Estar tão perto
disso... dessa criatura depois de compartilhar tantos dias com ele, era tudo demais para
processar.
O olhar da criatura caiu no chão. — Eu te avisei para não vir aqui. — Ele olhou para
cima, aquele olho selvagem sem piscar, e lentamente estendeu o braço direito. — Mas parte
de mim ainda é... humana.
Bell queria sentir compaixão pela criatura. Mas trair a família era um pecado que ele
nunca poderia perdoar. Seu próprio pai o tratou horrivelmente. Sua madrasta abusou dele.
Seu meio-irmão o intimidou e o torturou.
No entanto, ele nunca iria derramar seu sangue ou desejar-lhes um verdadeiro mal.
— Não — Bell respirou, sua opinião formada. — Você parou de ser humano no dia
em que traiu sua família e nossas terras por um monstro Noctis.
Bell não poderia ficar aqui nem mais um segundo.
Sem pensar, ele disparou sob o braço da criatura e deslizou pela porta aberta enquanto
seu mundo oscilava.
A criatura gritou seu nome atrás dele. Mas Bell continuou. Passado as escadas. Ele
estava correndo, correndo, sua raiva e traição empurrando-o mais fundo em partes do castelo
que ele nunca havia explorado.
Ele podia sentir o monstro respirando em suas costas, rindo dele por ser tão burro.
Por não saber quem ele era.
A criatura e a Rainha das Sombras ririam juntas dele? O pequeno sacrifício
idiota? Lágrimas aqueciam suas bochechas e turvaram sua visão enquanto ele corria pelos
corredores. Ele não sabia para onde estava indo. Só sabia que ele tinha que sair daqui.
Um segundo ele estava correndo pelos corredores escuros.
No seguinte, ele se viu saltando pelo telhado, incapaz de parar de correr, correr, correr,
até que piscou e se viu dentro de Spirefall.
Sozinho.
A previsão sombria de Bjorn atingiu Haven no peito, tão real quanto um golpe físico,
e ela saltou para ficar de pé, jogando sua cadeira para trás.
— Por que você diria isso? — ela perguntou. Sua garganta estava com um nó, sua voz
rouca e selvagem.
Surai voou para seu ombro, aterrissando suavemente. Haven sabia que era um esforço
para confortá-la, mas era tarde demais. Ela leu a verdade nos olhos cegos do vidente.
— Como? — ela exigiu.
O afiado pomo-de-adão de Bjorn subiu e desceu por sua garganta enquanto ele
engolia. — Um vidente não pode divulgar os detalhes da morte de alguém. É contra a Lei da
Deusa.
Que se dane a Lei da Deusa, ela queria assobiar. Em vez disso, ela trabalhou para
controlar suas respirações irregulares, as batidas erráticas de seu coração. — Você pode me
dizer alguma coisa útil?
— Só que não pode ser parado. Agora tenho certeza.
— Agora? — Haven perguntou. Archeron baixou o olhar para a mesa e ela perdeu o
fôlego quando percebeu. — Você sabia? Vocês dois?
Um músculo se formou na mandíbula quadrada de Archeron, mas ele evitou o olhar
dela.
Rook rosnou e murmurou uma maldição Solissiana baixinho para os dois, enquanto
Surai alçava voo e circulava sob suas cabeças, piando.
Archeron olhava para seu prato. — Eu queria que ele tivesse certeza antes de contar a
você.
— E a maldição? — Haven perguntou.
Bjorn passou a ponta do polegar sobre o corpo do garfo. — Ainda há muitas
possibilidades.
— Então, eu posso morrer e a Maldição ainda pode ser quebrada? Bell ainda pode ser
libertado?
— É possível, sim, embora não provável.
— Então, enquanto for uma possibilidade, eu vou continuar lutando. — Ela ergueu
o queixo, sentindo-se estranhamente oca por dentro. — Minha morte tem que significar
alguma coisa.
Archeron ergueu a cabeça para olhá-la, seus olhos procurando seu rosto, mas ela
desviou o olhar. Ela não precisava da piedade do Senhor do Sol.
— O que mais você encontrou, Vidente? — Archeron perguntou, dirigindo sua
atenção para Bjorn enquanto lhe servia outra bebida.
Depois de Bjorn esvaziar o cálice, ele abaixou-o, fortemente, olhando para suas
profundezas vazias como se o fundo do seu cálice tivesse todas as respostas. — O caos e
morte. Muitas mortes.
Rook se inclinou sobre a mesa e pegou sua mão. — Nossa ou deles, Bjorn?
Váriaos instantes se passaram enquanto eles esperavam pela resposta do vidente.
Finalmente, ele balançou a cabeça. — A única coisa que posso dizer com certeza é que,
juntamente com Haven, um de nós irá morrer, um irá se apaixonar, um sacrificará tudo e
um trairá os outros.
Haven escondeu uma risada louca enquanto se servia de uma bebida do decantador
do qual os Solis bebiam. Seja qual fosse o líquido vermelho profundo que rodava dentro de
seu cálice, devia ser potente para os mortais, porque Rook abriu a boca para protestar, antes
de pensar melhor.
Haven estava morrendo, afinal. Ela poderia fazer o que no Submundo ela quisesse.
E ela queria ficar bêbada. Para esquecer as palavras do vidente. Esquecer a morte
estava próxima.
Engolindo a bebida, que tinha um gosto doce e ácido, ela pegou a garrafa da mesa e
se dirigiu para as tendas que Archeron tinha invocado antes, escolhendo a maior para ela.
Sem dúvida, Archeron tinha escolhido essa para ele.
Melhor ainda.
Sorrindo como uma idiota, ela se serviu de outra bebida.

Quando Archeron apareceu, Haven estava meio bêbada – talvez mais. E, a propósito,
Archeron ficava se transformando em duas figuras lindas e arrogantes, este “talvez” fosse
“provavelmente”.
A garrafa vazia estava deitada de lado na cama ao lado dela, onde ela se sentava de
pernas cruzadas em um adorável monte de peles brancas de animais, seu mapa e caderno
espalhados.
Enquanto os dois Archerons rondavam sob a aba de sua tenda com a furtividade e
graça de um animal selvagem, seu coração saltava contra sua caixa torácica e qualquer
ressentimento ou raiva que ela sentia por ele - os dois dele - se dissipou.
— Eu amo essa cama — ambos os Archerons murmuraram enquanto caminhavam
para ficar perto da cabeceira. Felizmente, eles se fundiram em um homem - Haven não tinha
certeza se ela poderia lidar com dois do bajulador Senhor do Sol.
Não em seu estado atual.
Haven se forçou a estudar o mapa e não ele, fingindo que realmente podia ver as
linhas borradas sob seu dedo. O lábio inferior preso em seus dentes, ela distraidamente
correu a mão sobre o pelo macio ao seu redor. — Eu posso ver por quê.
— Você sabia que era minha. — Sua declaração não continha uma pergunta, apenas
um traço de diversão. — Você está tentando me punir.
Ela realmente sabia que era dele e ela estava realmente tentando puni-lo.
— Por? — ela murmurou, fingindo ser tímida.
O colchão de penas afundou quando ele se juntou a ela na cama, esticando suas longas
pernas e suspirando. — Uma cama como esta poderia manter um Solis como eu contente.
Ela sorriu. — Isso é tudo que é necessário para mantê-lo feliz, Senhor do Sol? Uma
cama chique?
O olhar de lobo que ele deu a ela afugentou um pouco de sua embriaguez enquanto
ele falava lentamente: — Isso e um corpo quente para compartilhar as cobertas.
— É mesmo? E qualquer corpo quente serviria? — ela provocou, sentindo como se
alguma harpia tivesse assumido o controle de seu corpo. O que no Submundo havia dado
nela?
Ele riu, sem piscar, enquanto olhava para ela, de repente sério. — Eu tenho apenas
um em mente...
Uma onda de constrangimento caiu sobre ela. E qualquer corpo quente serviria? Ela
reprimiu um gemido. Sim, idiota, você disse isso.
O que diabos no Submundo tinha acontecido com ela? — Você disse que eu estava
te punindo — ela deixou escapar, desesperada para guiar a conversa de volta a um terreno
seguro. — Porque eu faria isso?
— Escondendo a visão de Bjorn de você para começar. — Ele pegou o desenho de
Surai e Rook brincando no lago e o examinou. — Esta é uma boa semelhança. Você gosta
de desenhar?
— Sim. — Ela finalmente ergueu o olhar para ele e, novamente, um pequeno choque
passou por ela ao ver Archeron - sua pele fulva e olhos esmeralda marcantes, a maneira como
ele a olhava com a intensidade do sol escaldante.
E seus lábios... Deusa Acima, seus lábios suaves e curvos imploravam para serem
beijados.
Pelos Portões do Submundo! Ela definitivamente estava completamente bêbada.
Ela sentiu um rubor subir por seu pescoço, um que não podia ser atribuído apenas ao
álcool. — Eu gostaria de ter sido treinada adequadamente — ela acrescentou, limpando a
rouquidão de sua voz — mas o Rei Horace disse que estava abaixo da Guarda Companheira
Real do príncipe aprender um ofício comum. Então eu aprendi a matar pessoas.
— O Rei Horace é um tolo como todos os reis mortais. — Sua voz era um rosnado
zangado, mas com a mesma rapidez, tornou-se suave e melancólica. — Em Effendier, os
artistas são reverenciados pela beleza que agregam à nossa sociedade. Existe até uma academia
de artes onde os alunos aceitos se comprometem a estudar por cem anos. É considerado um
dos maiores presentes duradouros para a nossa cultura.
— Diga-me, Senhor do Sol. É por Effendier que você luta para quebrar a Maldição?
Mesmo bêbada, Haven percebeu o pequeno tremor que cintilou em seu rosto. — A
maioria das pessoas tem alguém que ama o suficiente por quem dar sua vida — disse ele.
— Mas não você? — ela perguntou, ciente da forma como sua respiração engatou.
— Amar outro ser assim não está no meu destino. Para mim, esse amor está reservado
a minha pátria.
— Isso soa... solitário.
— Você não entende nada, Mortal. — Talvez fosse o licor, mas sua voz não parecia
zangada, apenas desapontada.
— Então me ajude a entender — ela disse suavemente.
Franzindo a testa, ele recuperou a adaga da cintura e cutucou as unhas já limpas. Era
um gesto casual, com o objetivo de desviar da agonia que ondulava sob a superfície de sua
máscara indiferente.
— Effendier permeia meus sonhos. — Havia uma vulnerabilidade em suas palavras
que perfurou o coração dela. — As ondas de seu mar turquesa quebram no ritmo do meu
coração; sua magia me chama de uma forma que nenhuma mulher jamais fez. — Ele desviou
o olhar para ela, sua boca uma linha tensa. — Eu irei quebrar a Maldição e pedir que minha
escravidão ao seu rei termine, ou morrerei tentando. Mas eu nunca vou voltar para Penryth
acorrentado.
— Então, você nunca teve alguém que amava dessa forma?
Sua mandíbula cerrou e ele olhou para as mãos antes de falar. — Eu tive um irmão,
uma vez. Uma alma gêmea de armas. Seu nome era Remurian.
— O que aconteceu com ele?
— Morto. — Sua voz concisa a impediu de perguntar mais detalhes.
— E Avaline? — Haven perguntou com cuidado, sua voz apenas um pouco arrastada.
— Você não a ama tanto assim?
— Ah. A outra razão pela qual você está com raiva de mim.
— Não. Eu não estou brava. Somente... desapontada.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Desapontada?
— Que você está prometido a outra pessoa
Ela poderia jurar que um músculo em seu pescoço tremeu. — Você preferia que eu
estivesse prometido a você em vez disso, Haven Ashwood?
— Prometido? Sombreamento Abaixo, eu nunca vou me casar. Com ninguém.
— Então?
O rubor subindo por seu pescoço era agora um fogo queimando seu rosto. — Eu me
recuso a ajudar você a trair Avaline.
Ele riu – o bastardo riu – sua cabeça caindo para trás e dentes brancos brilhando. —
Avaline e eu estamos noivos, não escravizados um ao outro. — Ele se inclinou para frente,
um brilho divertido em seus olhos. — Solis vivem vidas muito longas, Haven. Ao contrário
da cultura mortal, o casamento para nós significa um voto de criar filhos e apoiar um ao
outro, uma aliança para fortalecer nossas linhagens. É um casamento político – não que eu
não tenha sentimentos de respeito e afeição por Avaline – mas podemos ter outros cortejos
desde que não hajam filhos.
A boca de Haven se separou. Sua cabeça estava girando, seu coração batendo forte
dentro de seus ouvidos. — Não é apenas o seu juramento que me incomoda. Eu não posso
ser feliz enquanto a Rainha Sombria tem Bell, Archeron. Ele é... ele é o meu Effendier. —
Seu coração estava agora em sua garganta, milhares de borboletas fervilhando em seu
estômago. — Ou pelo menos... Eu achava que não podia.
Archeron estava olhando para sua adaga e sua cabeça chicoteou para cima, um olhar
feroz em seus olhos. — Achava? E... agora?
Sentindo como se cada nervo dentro de seu corpo estivesse em chamas, ela se inclinou
sobre sua bagunça de esboços até quase tocar Archeron, quase, mas não completamente.
Uma lasca de espaço se estendia entre eles. Nunca uma coisa tão pequena pareceu tão
grande, tão cheia de promessas.
Archeron se enrijeceu ao mesmo tempo que um sorriso agitava seus lábios.
— Você não ouviu? — ela respirou. — Vou morrer. E eu me recuso a deixar outro
segundo passar, espelhado em culpa. Eu quero viver. Eu quero sentir... tudo.
— Tudo? — ele perguntou baixinho.
Ela assentiu sem quebrar seu olhar.
Uma respiração irregular saiu dos lábios do Senhor do Sol, uma veia logo abaixo de
sua mandíbula saltou. Ele a estudou descaradamente, absorvendo cada detalhe, cada cicatriz,
sarda e poro.
Seu olhar vagou mais para baixo, analisando a ponta afiada de sua clavícula antes de
mergulhar abaixo. Um homem mortal teria roubado olhares por trás de uma careta
envergonhada, envergonhada por achar seu corpo atraente.
Não Archeron.
Ele a estudava com o olhar apreciativo de um pintor admirando seu objeto, um
adorador olhando para uma divindade. Suas pupilas queimavam enquanto seu olhar
lânguido observava suas curvas.
— O quê? — ela sussurrou.
— Você é como nenhuma mortal que eu já conheci — ele murmurou em um
grunhido gutural, seu olhar viajando de volta por sua garganta para encontrar seus olhos
curiosos. — Você me confunde. Você me excita. Você me intriga.
Então, devagar, tão devagar que ela imaginou que estava inventando, ele estendeu a
mão. Quando ele roçou as pontas dos dedos levemente contra sua bochecha – carícias
preguiçosas e sensuais que enviaram ondas ardentes ondulando por seu corpo – ele estudou
seu rosto, observando sua reação.
Ela se apoiou na mão dele. — Me beije. — Era uma exigência e tudo o que ela
conseguia pensar. Seus lábios nos dela. A sensação de seu corpo pressionado em sua carne. E
mais... muito mais.
— Beije-me — ela repetiu, sua voz rouca.
— Não.
Ela endureceu e piscou como se estivesse saindo de um transe. — O quê? Por que
não?
Sua expressão divertida a fez querer bater nele, mas em algum lugar enterrado sob seu
sorriso estava o desejo. Ela podia ver na forma como seus músculos se contraíram e ficaram
tensos, a forma como suas pupilas aumentaram para o tamanho de pequenas uvas, seus
lábios entreabertos e sua respiração irregular.
Ele exalou. — Você está bêbada...
— Eu sei o que estou pedindo — ela interrompeu. — Eu ainda posso dar
consentimento.
Um sorriso triste puxou um lado de seus lábios enquanto ele balançava a cabeça, seu
cabelo dourado caindo sobre sua testa. — Mesmo se isso fosse verdade, seus sentidos estão
entorpecidos. E quando eu te levar para a cama, Haven, farei com que você sinta tudo.
Santa Deusa Acima.
— Eu só pedi um beijo — ela esclareceu. — Não ser levada para a cama. Embora, eu
possa apontar que já estou em uma cama, uma cama boa e macia.
— Na minha experiência, um leva ao outro. Além disso — ele continuou — ao
contrário das tentativas desajeitadas e grosseiras de acasalamento dos seus homens mortais,
o cortejamento de um Solis é uma dança longa e requintada.
Ela teve prazer no modo como a voz dele estava cheia de necessidade. — Parece
demorado.
— Tudo que vale a pena fazer nesta vida leva tempo. E por mais que eu queira beijar
você agora e depois tomá-la nessas peles luxuosas... — Suas palavras sumiram quando um
grunhido retumbou no fundo de sua garganta, o pelo preso sob seus dedos cerrados. —
Apressar isso significaria entorpecer o prazer. Eu prometo a você, Pequena Mortal — seus
lábios se curvaram maliciosamente nas bordas — a espera valerá a pena.
Haven projetou seu queixo, usando toda sua força de vontade para não correr as mãos
sobre a carne lisa e fulva de seu peito que espreitava para fora de sua túnica. Seus dedos
coçaram para traçar as melodias de carne mapeando seu corpo. Para tocá-lo e ver sua reação.
No estado excitado dele, não demoraria muito para que ele mudasse de ideia. O
pensamento era inebriante.
— E se eu morrer antes disso? — ela perguntou.
Seus olhos ficaram solenes. Inclinando-se para frente, ele arrastou seus lábios sobre
sua bochecha antes de encontrar a concha sensível de sua orelha. Ela congelou com o prazer
daquele ato tão simples.
— Vou tentar muito, muito mesmo — ele murmurou — não deixar isso acontecer.
Por razões egoístas, obviamente.
— Obviamente — ela murmurou.
Então, ele se levantou, deixando o ar onde seu corpo poderoso estava frio em
comparação. Antes que ela pudesse protestar, ele estava caminhando em direção à saída. A
tensão percorria os músculos de suas costas e ele caminhava tenso como se cada passo que
dava para longe dela fosse doloroso.
Um lado de seus lábios puxou para cima. Bom.
Ela soube então que, se ela o chamasse, o último resquício de sua força de vontade
morreria e, de repente, ele deixaria que isso... o que quer que fosse entre eles ultrapasse os
sentidos dos dois.
Seu sangue, lento como estava com o álcool, esquentou com o pensamento.
No entanto, parte dela também entendia a emoção de esperar.
— Ei, Senhor do Sol — ela chamou.
Sua cabeça jogou para trás, a ansiedade iluminando seus olhos.
— Isso demorou muito mais do que cinco minutos — disse ela, dando-lhe o polegar
para cima. — Bom trabalho.
Seus ombros tremeram de tanto rir. — Durma um pouco, Pequena Mortal — ele
ordenou, a aspereza de seu tom suavizando para seu habitual ronronar arrogante. — Eu falei
sério com o que eu disse sobre mantê-la segura. Qualquer fada que se aproximar terá que
lidar comigo.
Assim que a aba da tenda se fechou atrás dele, ela soltou um suspiro, a cabeça girando.
Seu corpo inteiro estava quente e dolorido e ela se jogou em um travesseiro de marfim,
rosnando para o ar.
Como pelos portões do Submundo ela deveria dormir agora?
Haven tinha certeza que sonharia com Archeron, mas assim que seus olhos se
fecharam e ela adormeceu, ela foi transportada para a campina de Bell sob o carvalho gigante.
O céu era de um azul profundo da meia-noite, as estrelas escondidas atrás de uma mortalha
negra de nuvens.
— Stolas? — Haven chamou quando ela correu para a árvore. Ela não podia esperar
para trabalhar em mais magia. Ainda avia muito o que aprender e tão pouco tempo para a
prática. — Senhor do Submundo?
Ela congelou sob um galho baixo e retorcido, seu coração pulando
descontroladamente. Sua respiração saia em uma nuvem leitosa.
Algo estava errado.
Uma escuridão sondava sua paisagem de sonho, ela podia sentir. Tentáculos do mal
em busca de uma maneira de entrar.
O medo se enredou em seu interior. Ela se mexeu inquieta. Algo errado aqui. Você
precisa acordar.
Uma risada desumana ecoou pela paisagem. — Você é a garota mortal tentando
quebrar minha Maldição?
A voz era um grunhido primordial misturado com malícia e ódio e Haven congelou
quando um poço de pavor se abriu dentro dela.
— Você achou que poderia se esconder de mim? — a voz continuou
preguiçosamente, cruelmente.
Não havia dúvida de quem era...
— Rainha das sombras — Haven sussurrou.
A depravação da Rainha das Sombras poluía o prado, uma nuvem escura de desespero
sem esperança manchando tudo que tocava.
Como Haven alguma vez pensou que ela poderia enfrentar tal escuridão?
Apesar do medo coagulando seu sangue, Haven reuniu os poucos fragmentos de
coragem que lhe restavam e ergueu o queixo. — Eu pareço estar com medo?
Mais risadas sacudiram a frágil paisagem de sonhos, altas o suficiente para que Haven
pensasse que o mundo iria quebrar. — Vamos ver o quão corajosa você é agora, Garota
Mortal, quando você abrir seus olhinhos maçantes e ver minhas criaturas. Elas vão rasgar sua
garganta e se banquetear em suas entranhas. O que acha disso?
Haven saiu de sua paisagem do sonho de volta à realidade. Enquanto ela se levantava
na cama, o suor escorrendo de seu cabelo encharcado em sua testa, ela ficou cara a cara com
dois grandes olhos negros como breu.
Eles pertenciam a uma delicada criatura de pele quase transparente com orelhas
alongadas que terminavam em pontas afiadas e uma fileira de dentes em forma de agulha.
Asas escuras estavam espalhadas atrás dela, finas e iridescentes como uma borboleta.
Haven se dirigiu ao punhal debaixo de seu travesseiro, mas a fada gritou e pulou em
sua garganta...
Uma lufada de magia enviou adagas gêmeas disparando pela periferia de Haven,
prendendo a fada contra a parede da tenda por suas delicadas asas. O alívio de Haven se
transformou em vergonha enquanto ela observava a luta da fada. Ela viu a lâmina rasgar o
material fino como papel de suas asas escuras tão facilmente quanto uma borboleta presa em
um prego.
Archeron emergiu das sombras e a fada começou a gritar, os gritos agudos escorrendo
raiva. Archeron riu e a fada mudou para Solissiano.
— Solte-me, Senhor do Sol! — a fada gritou, seus músculos se contorcendo sob sua
pele enquanto ela lutava para puxar as adagas - mas a magia que as mantinha no lugar era
muito forte. — Liberte-me e você terá riquezas! Qualquer coisa - qualquer coisa que você
desejar.
Archeron passou dois dedos sobre sua mandíbula enquanto estudava a criatura. —
Eu desejo, Fada, que você fique quieta.
Surai e Rook invadiram a tenda, seguidas por Bjorn. A fada chiou e se contorceu no
ar enquanto eles a cercavam e ela puxou com mais força as adagas. Haven estremeceu
quando suas asas se despedaçaram ainda mais, o som de rasgo horrível para seus ouvidos.
— O que é isso? — a fada gritou. — Um truque? Fui enganada pelos Solis por ser
mortal? — Sua pele começou a brilhar, as folhas escuras, que caíam de sua cabeça como
cabelos, mudando para um vermelho raivoso. — Traição! Todo o reino saberá
disso! Traição!
Rook suspirou e colocou sua adaga na garganta pálida da fada e a fada ficou imóvel,
seus olhos escuros arregalados. — Você não ousaria, Rainha do Sol — disse a fada. — Nós,
fadas, iríamos assombrá-la até o fim de seus dias. Você não se atreveria! — ela repetiu.
— Me observe — Rook rosnou.
De repente, a fada parou de lutar e ficou imóvel, um sorriso astuto expondo seus
dentes afiados. — O que você deseja, linda?
— Você sabe porque estamos aqui — disse Bjorn.
A cabeça da fada virou para Bjorn. — Um desejo, Vidente? Ah, mas eu não posso
conceder-lhes mais. Minha magia é fraca como eu sou fraca.
— Pare de fingir, fada — Bjorn continuou. — Precisamos de suas lágrimas.
— Não! — A fada bateu a cabeça para trás contra a parede da tenda, seu minúsculo
pescoço se debatendo, asas batendo loucamente enquanto rasgavam contra as lâminas. —
Você sabe que eu não posso lhes dar isso! Por favor. A Rainha das Sombras... ela vai me
machucar, ela vai me punir. Ela vai me fazer sofrer das formas mais horríveis. Eu vi o que ela
pode fazer.
O medo escorria da voz da fada e Haven engoliu em seco, sua garganta
repentinamente seca. Quatro Solis com adagas não conseguiram intimidar essa fada, mas
uma menção à Rainha das Sombras e o terror a consumira.
Rook pressionou sua adaga com mais força contra a garganta trêmula da fada. — E o
que você acha que faremos com você, Fada? Fazer você dançar?
— Eu não posso ajudar! Vocês não entendem. A Rainha das Sombras saberá. Ela
saberá!
Com a lâmina ainda pairando sobre a garganta da fada, Rook olhou para eles. — E
agora?
Haven deslizou entre Surai e Archeron até que ela estava perto o suficiente para ver
as marcas irradiantes que cobriam a pele da fada. Ela era linda, de um jeito estranho. O tipo
de criatura fantástica e cheia de magia que ela achava que vivia em livros, não na vida real.
Os olhos da fada eram piscinas sem profundidade da meia-noite quando caíram sobre
Haven.
— Não tenha medo, Fada — Haven disse. — Nós não queremos machucar você.
Tudo o que queremos é quebrar a Maldição e libertar o meu povo.
Ela mostrou seus dentes afiados em um sorriso de escárnio. — Mentirosa! Ladra de
flores!
— Eu estou dizendo a verdade. Queremos ajudá-la.
— Ajudar-me? Seu povo me jogou no Submundo com os Noctis. Eles se alimentaram
da minha magia e... e pior. O Sombreamento estava lá. Você não pode imaginar as coisas que
ele fez. Você não pode imaginar... — Terror a fez arregalar os olhos para o tamanho de um
pires, mas agora algo amargo e astuto brilhava sobre eles. — Os mortais me traíram, então
por que eu iria ajudá-la, menina mortal?
— Porque — Haven começou, tentando tingir cada palavra com sinceridade — eu
sou amiga do Príncipe de Penryth. Estou indo salvá-lo agora. E quando a Maldição for
quebrada, eu prometo a você, ele permitirá que as fadas vivam mais uma vez entre os mortais.
Vocês terão grandes extensões de terra para chamar de sua, não este pequeno vale, e o melhor
de tudo, vocês não terão mais que pagar tributos à Rainha das Sombras.
Surai tocou seu braço. — Haven, não barganhe com ela. As fadas são criaturas
perversas e complicadas...
— Você jura com magia? — a fada interrompeu, seus olhos nunca deixando Haven.
— Vincule sua promessa com magia e vou permitir a seus amigos uma chance de me fazer
chorar.
— Não faça isso — Rook rosnou, sua adaga ainda presa contra a carne da fada. —
Encontraremos outro caminho. Eu posso fazê-la chorar um rio de lágrimas, acredite em
mim.
Haven respirou fundo. Ela não duvidava da palavra de Rook, mas isso levaria tempo
e cada segundo que passava era um segundo a mais que Bell estava com medo, faminto,
talvez até machucado.
— Eu vinculo minha promessa com magia, Fada. — Assim que as palavras foram
ditas, um pequeno arrepio de magia pulsou através do núcleo de Haven quase como se
correntes delicadas envolvessem seu interior. — Permita-nos esta chance e eu intervirei com
o Príncipe de Penryth para fazer um pacto com as fadas. Será feito.
Um sorriso inteligente iluminou o rosto da fada. — Muito bom, muito bom. Minhas
irmãs ficarão satisfeitas com isso. Agora, qual de vocês vai me fazer chorar? A mortal? Um
Solis? Minhas lágrimas não são baratas e... — seu sorriso se alargou com malícia. — A Rainha
das Sombras está chegando.
— Explique! — Archeron rosnou, olhando para os outros.
— Enquanto vocês festejavam, minhas irmãs enviaram um mensageiro para alertar a
Rainha das Sombras sobre a presença da garota mortal.
Rook soltou uma maldição e ela e Surai saíram para ficar de guarda na entrada. O som
de suas lâminas desembainhando do outro lado da tela encheu o estômago de Haven de
pavor.
— Agora — a fada provocou —, quem vai tentar provocar minhas lágrimas?
A mão de Haven apertou o cabo de sua adaga enquanto ela esperava que Bjorn se
aproximasse da fada. Com sua história trágica, ele parecia a escolha mais óbvia.
Mas foi Archeron, não o vidente, quem foi para a frente.
Ele acenou com a cabeça.
— Eu vou, Fada.
— Meu nome é Mossbark — a fada disse, seu lábio inferior esticado em um beicinho.
— E você é bonito demais para me fazer chorar. Mas talvez se você me soltar…
Um sorriso conhecedor curvou os lábios de Archeron quando ele disse: — Fique
presa à parede, Mossbark das fadas.
Uma raiva fria cintilou dentro dos olhos de piscina negra de Mossbark. — Você é
cruel, Solis. Eu não vou esquecer. Agora, qual é a sua história?
Archeron passou a mão pelo cabelo e Haven se viu inclinando-se para ouvir, curiosa.
— Eu sou Archeron Halfbane, nascido do Soberano do Sol de Effendier, um filho
bastardo de uma cortesã sem nome. Cresci ridicularizado por meus irmãos e compadecido
pelas minhas irmãs, forçado a me provar a cada passo. Quando eu tinha sete anos, dois reféns
políticos vieram morar em nossa corte: Avaline e Remurian Kallor de Lorwynfell. Eles
também eram bastardos, nascidos de uma princesa mortal que havia sido sequestrada e
levada para o Submundo. Quando seus pais a recuperaram, ficaram descontentes ao
descobrir que ela estava grávida de gêmeos.
— Assim como eu, eles eram párias e, talvez por isso, nos tornamos inseparáveis. Eles
eram os únicos amigos que eu conhecia. Quando a paz foi feita entre Effendier e seu reino e
eles foram autorizados a retornar, eu fui com eles lutar por seu reino em nome de minha
mãe. Assim como em Effendier, éramos nós contra os reinos. Viajamos pelas terras mortais
e até pelo Mar Brilhante lutando contra os Noctis. — Archeron gesticulou para Bjorn e as
duas garotas do lado de fora. — Recolhemos outros párias, à medida que avançávamos, e
logo éramos uma família. Você tem família aqui, Mossbark?
Mossbark piscou, delicados cílios prateados piscando. — Sim.
— Então você sabe como isso é especial. Amar alguém o suficiente para dar sua vida
por ele sem hesitar. Remurian e eu éramos o que os Effendier chamam de Irmãos de almas,
almas que se encontram em todas as vidas. Ele era meu melhor amigo. O tipo de mortal que
era bom para todos, até mesmo fadas como você. Você o teria achado bonito, Mossbark. A
Deusa sabe que todo o reino achava.
Sem pensar, Haven se aproximou ainda mais, atraída pela história. O corpo de
Archeron estava rígido, sua voz irregular.
— O que aconteceu com ele, Solis? — perguntou Mossbark. Ela também estava
inclinada para frente em atenção extasiada.
— O mortal Rei de Penryth nos implorou para nos juntarmos a ele na batalha contra
os Noctis durante os últimos dias da guerra final. Eu não confiava nele, mas Remurian viu
a paz para seu reino próxima e ele concordou. Lutamos por dois dias e, no terceiro dia de
batalha, o Rei Penrythiano nos traiu pelos Noctis, por uma promessa de proteção contra o
exército da Rainha das Sombras. Conseguimos lutar para sair e escapar, mas Remurian foi
levado pelos homens do rei Horace para Penryth como prisioneiro. A essa altura, os Solis
haviam cedido à guerra e fugido através do mar e o reino de Avaline e Remurian havia caído.
O resto de nós também recebeu ordens de ir embora pela minha mãe, a Soberana de
Effendier.
A fada mal parecia sentir os punhais contra os quais lutava enquanto dizia: — O que
aconteceu então?
— Decidimos que íamos nos infiltrar em Penryth e libertar Remurian, maldita fosse
minha mãe e as consequências. Só que, quando invadimos os portões do castelo, o Rei de
Penryth fez seu filho mais velho matar meu irmão, meu amigo, com uma espada. O príncipe
mortal o desmembrou até que ele ficou irreconhecível e, em seguida, pendurou suas partes
nas muralhas como um aviso.
O silêncio caiu, pesado e denso, enquanto Archeron respirava fundo e continuava.
— Então, eu matei o príncipe mais velho de Penryth bem na frente de seu pai antes que eles
nos capturassem.
— Como era seu direito — sussurrou Mossbark.
— Sim, bem, quando minha mãe veio, ela viu de forma diferente. Ela ficou furiosa
conosco por colocarmos em risco a trégua com os mortais e ela executou a traição final
amaldiçoando a todos nós. Por seu papel na batalha, Rook e Surai foram trancadas em suas
formas metamorfas em metades opostas do dia. Bjorn foi liberado para vagar pelas terras
mortais, cego e sem lar. E eu estava ligado ao rei de Penryth, o covarde que nos traiu e
assassinou meu amigo, escravo de todos os seus caprichos e vontades.
— Uma mãe nunca faria uma coisa dessas com seu filho — insistiu Mossbark.
— Ah, minha mãe faria. Ela não teve escrúpulos em me entregar a um rei depravado
e covarde. Então você vê, Mossbark, eu posso ser bonito, mas minha alma foi quebrada para
sempre. Pois, o que sou eu, sem minha família e minha dignidade?
Os olhos de Mossbark estavam arregalados, marejados. Haven prendeu a respiração,
seus próprios olhos marejados, quando uma lágrima do tamanho de um diamante se formou
no canto do olho de Mossbark e então se soltou.
Ainda presa na tristeza da confissão de Archeron, Haven quase perdeu a lágrima e ela
se apressou com um de seus frascos para recolhê-la. A pequena gota brilhava na luz fraca
enquanto deslizava sobre a borda de seu frasco e se acumulava no fundo.
Uma vez que o frasco estava seguro em seu bolso, ela se permitiu voltar para a história
de traição de Archeron. Ela sempre soube que o rei era capaz de crueldade, mas se voltar
contra seus aliados na batalha? E matar Remurian, um refém político?
Suas mãos se fecharam em punhos apertados. Naquele momento, se o rei estivesse
presente, ela teria passado uma lâmina por sua garganta. Covarde. Assassino. Ele não merecia
a coroa na cabeça ou o título que a acompanhava.
Ignorando a fada, Haven se virou para Archeron. — Archeron, eu... Eu sinto muito.
Mas Archeron olhou além dela para algo que ela não podia ver, perdido na escuridão
de suas memórias.
Antes que Haven pudesse dizer qualquer coisa mais, a cabeça da fada chicoteou e ela
olhou com os olhos arregalados para a porta. — A Rainha das Sombras!
Ao mesmo tempo, Rook e Surai saltaram pela entrada, suas espadas brilhando à luz
do fogo.
— Gremwyrs! — Rook assobiou. — Temos que sair pelos fundos. Há um túnel
através das montanhas que podemos usar... se conseguirmos.
Erguendo sua espada, Surai fez um buraco na tenda com um forte rasgo e então ela e
Rook passaram por ela. A fada se agarrou ao braço de Haven com seus dedos finos. —
Liberte-me, Mortal!
Archeron esperou por ela e balançou a cabeça. — Não, Haven. Ela está com eles, não
conosco!
Haven hesitou. O verdadeiro terror se acumulou nos olhos de Mossbark e ela apertou
mais forte ao redor do braço de Haven.
— Por favor, ela já saberá da minha traição e matará todas nós. Por favor!
Haven arrancou seu braço do alcance da fada e fugiu. Quando ela chegou ao buraco
que Surai fez, ela soltou um suspiro e virou-se, acenando com a mão.
Depois de algumas tentativas patéticas, sua magia chiou para a vida e as adagas
saltaram das asas da fada.
Mossbark caiu no chão em uma pilha óssea, suas asas rasgadas caíndo sobre suas
costas.
Por uma fração de segundo, seus olhos se encontraram. — Encontre o Basilisco para
ajudá-la na próxima parte de sua jornada — disse a fada. — E use as flores de sanguessuga
que você roubou. Elas são mais poderosas do que você imagina.
Então, Mossbark disparou para baixo da tenda e desapareceu.
Archeron esperou por Haven do lado de fora e eles alcançaram os outros perto das
montanhas. Os gritos das fadas assombravam o ar, os grunhidos e rugidos dos gremwyrs, e
quaisquer sombras que a Rainha das Sombras tinha enviado, atrás deles logo em seguida.
Mossbark estava certa. A Rainha das Sombras já devia saber, porque seus monstros
estavam matando sem critério. Nuvens de magia coloriam o ar enquanto as fadas tentavam
revidar, o perfume enjoativo de rosas enchendo seu nariz, mas as sombras eram mais
numerosas.
Finalmente, Haven teve que se afastar da carnificina.
Bjorn conduziu seu grupo para o túnel escondido nas montanhas. Enquanto eles
caminhavam em silêncio pela escuridão, iluminados apenas pela magia de Haven - uma
esfera de luz envolta em magia das sombras - ela se perguntou se as fadas sabiam do horror
que esperava por elas, quando elas enviaram uma emissária para revelar a presença de Haven
aqui.
Certamente não.
Sua mão apertou o punho de sua espada enquanto ela pensava sobre o tipo de
demônio necessário para matar aquelas fadas.
E aquele demônio tinha Bell.
— Não por muito tempo, Bell — ela prometeu, desejando que suas palavras de
alguma forma o alcançassem. Para que de alguma forma se tornassem verdade. — Eu estou
indo até você. Espere um pouco mais.
Quando sua raiva havia se esgotado, Bell sabia que havia cometido um erro terrível.
Ele fugiu de uma fera para um castelo cheio de monstros.
Um grito estridente veio de algum lugar próximo e Bell se pressionou contra a parede
de granito do corredor em que ele havia se esgueirado, seu coração batendo nas costas e
contra a pedra.
Ótima ideia, Bellamy, ele zombou. Uma das suas melhores.
Assim como tantos erros em sua vida, ele não tinha a intenção de entrar em Spirefall.
Dois Noctis caíram do céu enquanto ele fugia e, no verdadeiro estilo de Bell, ele entrou em
pânico. O único lugar para se esconder era através de uma parede meio caída do castelo.
Quando ele ouviu os Noctis rindo perto dele, ele se enterrou ainda mais no labirinto
de pedra negra, um coelho estúpido e assustado em uma armadilha.
Quando ele finalmente não ouviu os sons dos Noctis, não conseguiu encontrar a
saída.
Saia. Você deve sair.
O desespero estava tomando conta dele. Pulando de corredor em corredor, ele bateu
contra paredes e caiu sobre pilhas de pedras quebradas, esfolando seus joelhos e cotovelos.
O sabor acobreado de seu sangue apenas intensificou seu terror.
Noctis podiam sentir o cheiro de sangue - ele tinha lido isso em um de seus livros. Ele
também tinha lido sobre sua depravação. Como se alimentavam do medo dos mortais e
faziam sopas com sua medula.
Pela primeira vez, ela desejou não ter aberto um livro. Ignorância teria sido apreciada
quando se tratava dos monstros que o cercavam. Como ele havia sentido pena dessas
criaturas?
Mais sons horríveis encheram os corredores frios e vazios atrás dele. Gritos. Asas se
mexendo. Palavras cruéis. Bell voou por um lance de escadas de obsidiana e desceu por outro
corredor, e outro, cambaleando em sombras bruxuleantes e escuridão.
E o tempo todo, ele parecia estar se observando de cima. O coelhinho assustado. O
príncipe covarde.
Caindo dentro de uma câmara, ele se virou. Assim que seus olhos se ajustaram à luz
bruxuleante da tocha e ele viu o que estava pendurado no teto, a náusea revirou seu
estômago. Gaiolas de ferro estavam suspensas no teto alto, pelo menos quinze delas.
Cada jaula estava cheia de mortais.
Apesar de seu medo, do cheiro opressor de corpos sujos e resíduos, ele se aproximou.
Dedos imundos arranhavam a treliça de barras de ferro achatadas.
— Por favor — alguém sussurrou. — Ajude-nos.
Bell caiu para trás quando as gaiolas começaram a balançar com as pessoas agitadas.
O ar se encheu de seus apelos. Do outro lado da câmara, uma porta se abriu.
Silêncio. Ele se aproximou da jaula mais próxima, mal respirando. Os dedos sumiram.
As pessoas dentro das jaulas estavam quietas. O puro pavor que invadia o ar tornava difícil
respirar.
— Outro pio — sibilou uma voz masculina cruel — e eu vou sangrar vocês mais cedo.
Quando Bell pressionou o rosto contra a gaiola, aterrorizado demais para se mover,
ele vislumbrou os grandes olhos azuis de uma garota olhando para ele. Ela não podia ter
muito mais do que nove ou dez anos. A sujeira manchava suas bochechas magras e tranças
de centáurea volumosas pendiam em tiras esfarrapadas sobre o que antes devia ter sido uma
blusa branca, mas agora era um trapo manchado.
Sem piscar, ela pressionou um dedo trêmulo nos lábios.
Bell sustentou seu olhar assustado até que a porta do lado oposto da câmara se fechou.
Então ele saiu correndo daquela câmara, cego pela raiva e pelo medo que o percorria,
mais potente do que a vergonha que sentia por deixar aquelas pessoas.
Ele deveria ter tentado ajudá-las. Mas como ele poderia? Mesmo que ele as libertasse,
elas estavam fracas demais para fugir. Elas teriam sido punidas, talvez pior.
Príncipe covarde. Haven teria vergonha de você - se ela ainda estivesse viva.
A culpa enrolou-se em seu intestino e ele tropeçou em mais escadas sinuosas. Se ele
pudesse encontrar outra parede quebrada para escapar. Uma porta. Qualquer coisa que o
levasse para fora.
O próximo nível se abria em uma câmara abobadada iluminada pelo luar que fluía
por uma linha de janelas abertas. A luz prateada convergia para uma longa caixa de vidro em
forma de caixão no meio da câmara.
Bell parou alguns metros à frente. Algo estava diferente aqui. O ar mais pesado, a
magia mais forte. Mas era mais do que isso. De repente, ele teve a sensação de que não estava
sozinho, como se uma presença espreitasse nas sombras.
E a câmara estava fria como a morte, ele percebeu, sua respiração enrolando em
nuvens de fumaça.
Uma garra invisível raspou sua espinha quando algo oculto o cutucou.
Quem vem aqui? uma voz feminina sussurrou, a voz tão real que ele levou um
momento para perceber que estava dentro de sua cabeça.
Eu sinto você, garoto mortal, a voz ronronou. Aproxime-se, por favor, para que eu possa
olhar para o seu rosto.
Mesmo que seu cérebro gritasse para correr, para fugir deste lugar e nunca mais voltar,
seu corpo se movia como se não fosse seu. Ele deu um passo. Algo rangeu sob suas botas.
Ossos.
Mais perto.
Como ele não os tinha visto antes? Ossos de marfim espalhados pelo chão, tão grossos
que ele não pôde evitar esmagá-los enquanto era puxado para mais perto.
Mais perto, rapaz.
Até que ele pudesse passar a mão sobre o altar de pedra clara sobre o qual estava o
caixão.
Não tenha medo, a voz murmurou. Aproxime-se.
Como se cada um de seus ossos fosse puxado por fios invisíveis, ele se inclinou sobre
o vidro curvo para espiar dentro, mesmo enquanto ele se encolhia. Mesmo enquanto lutava
para virar e correr.
Você cheira a néctar. Como uma criança fresca e gorda. Seu sangue... seu sangue está
tão maduro.
A geada estalou sobre o vidro. Ele limpou uma faixa com a mão, atraído para olhar
para o horror que ele sentia espreitando abaixo. Seu coração golpeava seu esterno como um
animal tentando escapar dela. E, em algum lugar no fundo, ele sabia que isso só a excitava...
Você está com medo, doce menino?
Uma mulher estava dentro do caixão forrado de escarlate, com as mãos cruzadas sobre
o peito. Ele limpou mais geada, revelando um pescoço da pedra da lua mais pálida e lábios
cruéis do mais escuro carmesim. Seus olhos - Deusa Acima, seus olhos estavam cobertos de
gelo.
No entanto, mesmo na morte, o ódio queimava sob a camada de gelo. E ele poderia
jurar que os lábios dela estavam zombando dele.
— Ravenna — ele sussurrou.
Sua coluna ficou rígida, seus músculos travando enquanto ele tentava lutar, tentava
forçar seus membros a carregá-lo para longe deste monstro. Mas ele estava preso em um
feitiço, incapaz de se mover sozinho.
Você vai gritar para mim, Príncipe?
Ele grunhiu enquanto tentava arrancar os braços do vidro.
Estou com tanta fome! Abra minha tampa, doce menino. Venha para dentro.
Com os olhos arregalados, ele viu como sua mão traidora abriu o fecho da tampa de
vidro.
Bom, doce menino...
Com um grito selvagem, Bell reuniu cada gota de energia que tinha e puxou seu corpo
para trás. Ele caiu de bunda em uma pilha de ossos, rastejando pelo chão. Um de seus pés
chutou uma caveira, que rolou pelos ladrilhos de pedra, batendo como a batida de seu
coração.
Ele saltou de pé, tropeçando em mais ossos enquanto disparava para as portas.
Não! Ravenna gritou dentro de sua cabeça. Volte, garoto. Estou faminta!
Em algum momento, as portas de ferro tinham se fechado atrás dele e ele as abriu,
cambaleando escada abaixo.
Ele chegou na metade do corredor quando dois Noctis o encontraram.
Bell congelou, seu terror travando seus membros.
Ao vê-lo, os Noctis ficaram rígidos. Eles farejaram o ar. Eles eram do tipo horrível de
antes, suas asas escuras e membranosas enroladas contra suas costas. Garras penduradas na
parte inferior de suas asas e sorrisos perversos curvando-se em seus rostos sem sangue.
Eles o avaliaram com olhos famintos.
— O que você está fazendo aqui, garoto mortal? — o Noctis careca perguntou, sua
língua passando rapidamente sobre o lábio inferior. Ele estava retorcido e curvado como se
tivesse sido quebrado e recolocado.
O segundo Noctis sibilou para seu amigo. — A Princesa da Noite pode nos ouvir.
Lentamente, o Noctis retorcido desviou o olhar de Bell para o amigo. — Ravenna
leva todos eles e nos dá as sobras. Mas estou cansado de sobras.
O tom frenético de sua voz raspou sob a pele de Bell, cavando até se tornar uma prensa
de medo em torno de seu coração.
Encontrando sua coragem, ele recuou um passo, apenas para lembrar que Ravenna
estava esperando no outro corredor.
— Deixe-o, Malix — o segundo Noctis avisou. — A Rainha das Sombras...
Houve um barulho de asas e Malix se lançou sobre seu amigo.
Por um momento, o choque enraizou Bell no lugar enquanto os dois Noctis
lutavam... por ele. Rosnados e gemidos ecoavam nas paredes de granito, o raspar de garras
sobre pedra como espadas se chocando.
Os Noctis se moviam tão rápido que eram apenas torres de fumaça escura; um
fragmento de asa tremulando aqui, um lampejo de presas ali, sangue espirrando por toda
parte.
Sangue. A mancha vermelha brilhante nas paredes acordou Bell de seu estupor e ele
disparou através das criaturas que lutavam e atravessou o corredor.
Respirando tão alto que não conseguia ouvir mais nada, ele desceu todo o caminho
sinuoso de escadas até a base, quando uma sombra escura cintilou acima e pousou com um
baque alto na frente dele.
Deusa Acima, Bell orou, erguendo os olhos para Malix. Dá-me coragem para lutar.
O sangue alagava as asas e o peito de Malix - não o seu, aparente pelo sorriso vicioso
que lentamente se espalhou por seu rosto. Uma mancha de sangue salpicava sua mandíbula
e ele passou um dedo torto na mancha vermelha.
— Agora, Príncipe. — Ele deslizou o dedo com a ponta de sangue em sua boca e
estremeceu, o prazer faiscando em seus olhos. — Onde estávamos?
Eles estavam no meio da passagem da montanha, quando Haven percebeu que algo
estava errado com sua magia. Sua mão estava estendida, a esfera iluminando seu caminho
pairando obedientemente acima dela. Mas o círculo de fogo laranja e azul estava mudando.
Primeiro, foi apenas um pequeno movimento. Uma mudança na forma da bola. A
luz da magia parecia sangrar na escuridão e deixar um rastro de padrões. Ela piscou e a luz
piscou de volta. Ela moveu a mão, mas o orbe mágico parou de segui-la.
Estava vivo, corpóreo.
— Para o que você está olhando? — Surai perguntou, estreitando os olhos para o
orbe.
Haven sorriu, mas sua boca parecia estranha. — Minha magia está pregando peças
em mim.
Surai olhou da esfera para ela. — Não, Haven, não está.
Mas estava. Estava rindo dela. Lá. Uma boca, dois olhos mortais. Um nariz. Estava
mudando, piscando e se transformando.
Isso a estava provocando.
— Haven — alguém a chamou, mas tudo o que Haven via era magia e escuridão.
Onde ela estava? — Haven?
O orbe mágico cresceu – quando isso havia acontecido? Ele tinha dentes agora –
dentes afiados e rangentes, e asas, garras e... um wyvern.
— Tão grande — ela sussurrou enquanto o wyvern crescia e crescia para preencher o
espaço cavernoso. A enorme cabeça ergueu-se, quase eliminando uma estalactite. Um
cavaleiro sentava-se em suas costas.
Ela o conhecia; ela o temia.
— Damius? — ela murmurou. Dor em seus joelhos. Dor em seu ombro. Dor em sua
cabeça. Quando ela havia caído?
O calor se espalhou por suas costas. Alguém estava tentando levantá-la. — Haven? O
que está acontecendo? Você está machucada? — A voz parecia familiar.
— Algo está errado — a voz feminina continuou. Surai. Haven segurou-se no nome
da locutora, mas ela estava flutuando para longe, sua mente era mil cacos de vidro que ela
não conseguia juntar de novo.
Mãos no braço dela. Ar frio sobre seus ombros quando alguém tirou sua capa e puxou
sua túnica, expondo sua clavícula.
Uma voz masculina disse: — Aí, está vendo aqueles picadinhos? Eles já estão
apodrecendo.
Outra voz feminina. — A fada deve tê-la mordido antes que ela acordasse. Ela está
alucinando.
Haven tentou rir, mas de repente ela estava acima deles na caverna, flutuando. Seu
corpo estava deitado abaixo. O orbe de magia pairou entre seu corpo e alma como se não
tivesse certeza aonde pertencia.
Como ela parecia estranha. Tão pequena e frágil. Seu cabelo se espalhava ao redor
dela, uma tapeçaria ondulada de ouro derretido tingido de sangue. Os Solis usavam máscaras
preocupadas enquanto olhavam para ela.
Uma voz quase imperceptível a encorajou a retornar ao seu corpo. E se ela não
pudesse voltar para aquela pilha inexpressiva de carne e ossos lá embaixo?
Então, novamente, por que ela iria querer quando se sentia tão leve, tão livre? Seu
corpo era uma prisão, ela percebeu. Uma prisão de fome, dor e suor.
Por que ela voltaria?
Archeron estava sacudindo seu corpo, seus lábios mais rígidos do que de costume. —
Haven, volte! — Ele se virou para Surai. — A magia na mordida de uma fada às vezes é usada
por conjuradores de luz experientes para caminhar no plano das almas. Mas é incrivelmente
perigoso.
O rosto de Surai ficou branco. — Ela não sabe como entrar novamente em seu corpo.
Bem, isso não pode ser bom. Mas o pensamento se dissipou, assim como seu espírito,
vagando e vagando pela escuridão, a cena abaixo ficando menor e menor até se tornar uma
estrela de luz.
Ela estava girando. Sem amarras. O desejo de permanecer com sua carne se foi.
Então era assim que era caminhar pelo plano das almas. Haven acenou com os braços,
surpresa com o contorno fraco de seu corpo. Ela se sentia leve, vazia. Como se ela pudesse
flutuar em qualquer lugar do mundo...
Qualquer lugar? Se isso fosse verdade, para onde ela iria? Damius não havia falado em
visitar terras exóticas do outro lado do mar apenas as imaginando?
Esquecendo o aviso de Surai sobre voltar ao seu verdadeiro corpo, ela se concentrou
na única pessoa que desejava ver, mais do que qualquer outra pessoa no reino.
Bell.
No segundo em que ela pensou em seu nome, o mundo ao seu redor mudou de
escuridão e sombras para uma paisagem quebrada de montanhas de ônix, seus picos
quebrados irregulares contra o céu cinza e aquoso. Mesmo sem um corpo verdadeiro, ela
sentiu a pontada de magia das sombras enquanto viajava pelos céus. Ela chiava ao redor dela
como veneno.
Um castelo apareceu, torres como finas adagas empalando as nuvens sujas. Antes que
ela pudesse estudar sua estrutura, ela estava dentro dele. Paredes labirínticas de pedra ônix,
esculpidas das montanhas, flutuavam diante dela em ambos os lados.
E então ela o viu. Bell. Ele estava ao pé de uma escada estreita, vestido com um colete
e calças fora de moda, ambos sujos de terra. Sem o creme que normalmente usava no cabelo,
seus cachos estavam mais soltos que o normal e mais macios. A sujeira manchava seu nariz e
suas bochechas estavam rosadas do sol.
Ele estava bem...
Mas seu grito de excitação morreu em seus lábios quando ela percebeu o terror em
seu rosto. Seus olhos estavam arregalados, narinas dilatadas, corpo agachado. Foi quando ela
percebeu a pessoa bloqueando seu caminho.
Não, não uma pessoa. Noctis.
Ela percebeu as asas de couro, as garras. E sangue... o Noctis estava coberto dele. Um
sorriso esticava o rosto do monstro, mas não era um sorriso bonito e só servia para mostrar
seus incisivos curvos e olhos cheios de malícia.
O alarme surgiu através dela com a forma como o Noctis estava olhando para Bell...
Ele está em apuros.
Toque nele e eu vou te despedaçar.
Sem pensar, ela se lançou contra o Noctis. Se ela pudesse assumir o controle de seu
corpo, se ela pudesse se conectar a sua alma, ela poderia impedi-lo de machucar Bell. Mas no
segundo em que ela tocou sua pele, uma faísca de magia das sombras a fez voar de volta.
Mais duas vezes ela tentou e mais duas vezes ela falhou.
Lembrando-se de como Damius a sufocou enquanto estava no plano das almas, ela
estendeu a mão para acertar o Noctis - mas seu punho atravessou a garganta dele. Ela olhou
para o seu braço e congelou. Estava mais fraco do que antes.
Algo lhe dizia que isso era ruim.
— Ah, finalmente entendendo, Pequena Fera? — ronronou uma voz atrás dela.
Ela se virou. Stolas estava postado contra um pilar observando-a. Apesar de sua
aparência casual, seu rosto estava lívido, suas asas alargadas em ambos os lados. Os anéis ao
redor de suas íris tremeluziam, duas fogueiras gêmeas de ouro.
— Ele está com problemas — ela sibilou.
— Não tanto quanto você, eu temo. — Suas asas se abriam enquanto ele caminhava
em direção a ela. Seu corpo, ela notou, não era muito opaco e ela podia ver o cenário
brilhando atrás dele. As partes escuras de seu corpo – seus chifres e asas – tinham a
consistência de sombras.
Ele também estava andando no plano das almas.
Ela olhou de volta para Bell. — Ajude-o. Por favor.
— Eu temo — disse Stolas, agarrando-a pelos braços — que só estou aqui para ajudá-
la.
Ela deslizou o olhar para a mão dele ao redor de seu braço. Incorpóreo ou não, seu
aperto era poderoso. Ele a estava levando embora, ela quisesse ou não.
Desesperada, ela chutou e se debateu contra o Senhor do Submundo, tentando
chegar até Bell. — Eu não pedi a sua ajuda!
Rosnando, ele a puxou em seu peito, passando seus braços ao redor de seu corpo.
Em suas formas imateriais, sua carne parecia diferente contra a dela. Ela não era mais
fria, sua magia escura parecia acariciar seu corpo, pequenas faíscas saltando entre eles. Um
cabo de necessidade entre ela e sua magia das sombras formando-se em sua barriga.
— Você pode não ter pedido — rosnou ele — mas não vou deixar uma decisão tola e
feita de cabeça quente atrapalhar tudo.
— Por quê você está sempre intervindo? — ela gritou. Em qualquer outro momento,
ela teria ficado grata por sua intervenção. Mas o pânico a rasgava por dentro, uma
necessidade desesperada e contorcida de ajudar Bell.
— Por quê você está sempre tentando o seu melhor para morrer? — ele atirou de
volta.
Ela tentou chutar Stolas, mas ele evitou seu golpe. — Por quê você se importa?
— Porque eu não quero que você morra, sua idiota teimosa — ele rosnou, sua
respiração fria contra o pescoço dela. — E se você ficar aqui mais um momento, sua alma
vai desaparecer. Você ainda não é poderosa o suficiente para caminhar até aqui. Mesmo se
partirmos agora, não há garantia de que seu corpo irá aceitá-la.
Virando a cabeça de volta para Bell, ela disse: — Então, como posso ajudá-lo?
— Você não pode, eu temo. — Havia uma pitada de tristeza em sua voz? — O
príncipe assustado deve se virar sozinho.
Ela podia sentir seu espírito se esvaindo para o vácuo. Seus braços não eram mais
visíveis, seu corpo mal era um contorno de luz pulsante. O pensamento de desaparecer era
aterrorizante.
Balançando a cabeça em derrota, ela caiu nos braços de Stolas, apoiando-se em seu
corpo maciço. Incorpóreo ou não, as lágrimas tingiam seus olhos. Antes que ele a carregasse,
ela chamou por Bell.
— Faça alguma coisa, Bell! — ela pediu, desejando que sua voz quebrasse a barreira
entre seus reinos. Para alcançá-lo. — Lute de volta!
Stolas caminhava pelo plano das almas em velocidades assustadoras. Ela mal piscou e
eles estavam nas nuvens acima de Spirefall. De seu ponto de vista, ela viu as veias sombrias
de magia das sombras fluindo do castelo.
Em seu estado emocional, os fios de magia das sombras pareciam os tentáculos negros
de algum monstro alcançando ela e Stolas. Ela fechou os olhos contra a visão mesmo quando
a escuridão a chamou para retornar.
Volte, sussurrou. Junte-se a nós. Este é o lugar a que você pertence.
Tremores destruíram sua forma diáfana. Ela estava inepta. Quebrada e desbotada.
Um fracasso total.
Bell estava tão perto e ela não podia ajudá-lo! Ela tinha feito uma promessa, um
juramento de protegê-lo, não importava o custo.
E ela havia falhado.
Incapaz de chorar propriamente, ela estremeceu nas garras do Senhor do Submundo.
A dor era insuportável. Ela estava vagamente ciente do conforto que encontrava em seu
corpo protetoramente posicionado ao redor dela.
Da maneira como ele a embalava...
No segundo que Stolas sentiu sua angústia, ele agarrou sua forma esmaecida ainda
mais forte - um braço firmemente pressionado em sua cintura, o outro envolvendo seu peito
e ombro - e roçou os lábios em sua orelha. — Ele vai ficar bem, Haven. Você ficará bem. Seja
forte.
Ele disse o nome dela com a reverência de uma oração e algo em sua voz,
anormalmente gentil, a fez acreditar nele.
Antes que ela pudesse responder, eles estavam acelerando pelos céus tão rápido que a
tapeçaria de nuvens, estrelas e céu teceram um lindo túnel, muito parecido com o onde seu
corpo esperava,
E então, Stolas se foi e ela estava de volta em seu corpo, presa em uma prisão
congelante de carne e ossos. Ela estava deitada de frente para o teto. Um cobertor grosso
pesava sobre ela.
Sob o tecido de lã, seu corpo parecia envolto em gelo, e ela lutou contra o instinto de
deixar o reino corporal novamente. O ímpeto de mais uma vez ser leve e desimpedida quase
impossível de resistir.
— Graças à Deusa você voltou, Pequena Mortal — Surai acalmou-a, esfregando os
braços de Haven para aquecê-los. — Sua pele parece cheia de neve e gelo. Agradeça a Deusa
que você voltou nesse momento... — Ela soltou um suspiro preocupado e então redobrou
seus esforços em esfregar a pobre carne de Haven. — Não se preocupe. Você deve
descongelar logo.
O resto de seus amigos Solis olharam para ela com alívio e, no caso de Archeron, um
pouco de raiva. Como se ele suspeitasse de onde ela tinha ido e das decisões precipitadas que
havia tomado.
Só que ele estava de cabeça para baixo...
Deusa Acima, sua cabeça estava em seu colo.
Seus olhos se suavizaram para a cor do musgo desbotado pelo sol, enquanto ele
murmurava: — Bem-vinda de volta.
Haven tentou falar, mas descobriu que sua voz havia sumido. E, então, um calor
escorregadio percorreu suas bochechas e ela percebeu que estava chorando. Soluçando
incontrolavelmente enquanto seus amigos observavam com rostos preocupados.
Nuvens negras e oleosas floresceram em sua visão, como se ela estivesse chorando
lágrimas de tinta, e ela sucumbiu à escuridão.
Pelo visto, chorar faz com que as pessoas te tratem de maneira diferente. Desde que
Haven desmoronou, seus amigos cuidaram dela. Ela já se sentia fraca e inútil após a
caminhada pelo plano das almas - e culpada por ser a causa deles acamparem sob as
montanhas e desperdiçar mais um dia - mas ter seus amigos a tratando como se ela pudesse
quebrar a qualquer momento era humilhante.
Depois que Haven voltou ao seu corpo, ela ia perdendo e recuperando a consciência.
Os poucos momentos entre os sonhos pareciam febris e errados, enquanto sua alma se
rebelava contra as restrições de sua carne.
E, como se a estivesse punindo por ir embora, seu corpo inteiro doía. Seus ossos doíam
e sua pele parecia inchada e apertada. Ela queimava com o calor, mesmo quando um calafrio
profundo, do qual ela não conseguia se livrar, a arrasava em arrepios violentos.
Entre os lampejos de escuridão, ela ouvia a voz severa de Archeron enquanto ele
comandava os outros.
Surai colocou todos os cobertores em uma pilha em cima de Haven. Os cobertores a
arranhavam e cheiravam a cavalos e sujeira, mas eles ajudavam.
Bjorn de alguma forma conjurou gravetos e folhas mortas para fazer um fogo
maravilhoso. Felizmente, havia rachaduras nas montanhas acima do solo ou a fumaça os
teria matado – algo que Rook apontou antes que Archeron a silenciasse com uma ordem
para coletar ervas para um chá curativo.
Ainda lutando para se acostumar à sensação de seu corpo apertado e desconfortável,
Haven ansiava por estar do lado de fora, no ar fresco. Em seus momentos esporádicos de
lucidez, ela se concentrava nos raios de luar que perfuravam a caverna. Segurando-se a eles
como um nadador se afogando segurava uma corda.
Quando ela finalmente se recuperou, Archeron estava ao seu lado. Já tendo se
desculpado duas vezes por ter deixado a fada chegar perto o suficiente para mordê-la, ele
agora se revezava entre franzir a testa e bajulá-la, ajustar seus cobertores e olhar para as
sombras.
Certa vez, Rook cometeu o erro de se aproximar muito rapidamente e Haven pensou
que Archeron acabaria com a Rainha do Sol com sua espada.
Graças à Deusa, ele voltou a si e relaxou, e Rook conseguiu entregar a Haven o chá de
casca de salgueiro sem perder um braço.
Mas tudo era simplesmente demais.
Jogando um braço para fora do ninho sufocante de cobertas, Haven avançou para
uma posição sentada, lutando contra outra rodada de escuridão. A câmara girou. As
sombras nadavam em torno dela em círculos predatórios...
Ela fechou os olhos com força, enquanto a bile lambia o fundo de sua garganta. Pela
sombra de Sombreamento, ela não se sentia tão mal desde Bell e ela roubaram um barril de
vinho de sabugueiro da adega real.
Braços deliciosamente quentes deslizaram atrás dela enquanto Archeron a colocava
em seu colo, posicionando suas costas sobre seu peito e sua cabeça em seu ombro.
— Eu posso...
— Não — ele interrompeu. A carne sensível ao redor de seu estômago estremeceu
quando o braço dele se curvou protetoramente ao redor de sua cintura. — Você não pode.
Você acabou de caminhar pelo plano das almas durante meia hora. Se você vai se sentar, vou
segurá-la para que não desmaie de novo e abra seu frágil crânio mortal.
Ele estava certo; mesmo com os olhos fechados, a escuridão por trás de suas pálpebras
se agitava em círculos estonteantes.
Ela gemeu. — Você pode fazer o mundo parar de mover, por favor?
— Você vai vomitar? — ele perguntou e ela percebeu o pânico em sua voz, por trás
da casualidade.
— Não — ela disse, esperando que fosse verdade. Ela se encolheu quando sua voz
retiniu dentro de seu crânio. — Acho que há uma regra sobre vomitar em alguém duas vezes.
Ele deu uma risadinha.
— Estou surpresa que você não me assassinou daquela vez — ela adicionou. Apesar
de seu desconforto, a lembrança de vomitar em Archeron depois do que aconteceu com o
djinn a fez sorrir. — Você estava com tanta raiva.
— Você tem esse efeito nas pessoas — ele murmurou.
— É um dom.
Outra risada. — Não importa o quanto você me deixe com raiva, eu nunca vou te
machucar, Haven.
— Isso inclui meu coração?
Ele enrijeceu atrás dela e ela abriu os olhos, desejando poder ver seu rosto. O fogo
estava reduzido a brasas, mas a luz fraca foi o suficiente para acender chamas gêmeas de
agonia por trás de seus olhos.
Ela gemeu.
Seus lábios roçaram a curva de sua orelha. — Se você precisa limpar seu estômago,
Haven, está tudo bem. Eu não vou ficar bravo.
Sua garganta se apertou com emoção pelo grande e grosseiro Archeron sendo tão...
Gentil. E protetor. E basicamente decente.
— Acho que vou ficar bem.
Ela forçou sua visão a focar em uma fenda escura ao longe, até que a câmara parou de
se mover. Depois de alguns minutos de respiração constante, ela se sentiu bem o suficiente
para absorver os arredores.
Os outros Solis estavam a cerca de dez metros de distância. Bjorn descansava em uma
posição sentada com os olhos abertos e as mãos relaxadas sobre os joelhos. Surai estava
enrolada em forma de bola perto do fogo fumegante.
Um pouco de sua culpa diminuiu quando ela percebeu que eles estavam dormindo -
talvez eles precisassem descansar também.
Bem, quase todos.
Um lampejo na periferia de Haven chamou sua atenção mais para dentro dos túneis,
onde a forma felina de Rook perseguia roedores. Ela rosnava e saltava, sua cauda balançando
orgulhosamente enquanto ela segurava algo em sua boca por sua cauda longa e escamosa.
— Deve ser difícil dormir quando se é noturna — Haven comentou, rindo quando
Rook avançou e algo guinchou. — Aliás… de quanto sono vocês Solis precisam?
— Não muito. — Ela o sentiu dar de ombros atrás dela. — Nós poderíamos continuar
sem descansar se...
Enquanto suas palavras sumiam, outra rodada de culpa a atingiu em cheio no peito.
— Só mais alguns minutos — Haven prometeu — e então eu estarei bem o suficiente para
que possamos sair.
— Sair? Você está louca? Estamos no meio da noite e você está ferida... e ainda mortal,
caso você tenha esquecido.
— Eu estou bem — ela gemeu. — E eu estou ciente de minha mortalidade; você não
precisa ficar me lembrando.
— Aparentemente sim. Você é desconcertantemente frágil.
Revirando os olhos, ela tentou se levantar, mas ele a prendeu a ele. Sua contorção e
resistência o fizeram redobrar seus esforços até que ela estivesse basicamente envolta em
músculos sólidos.
— Eu odeio isso — ela rosnou.
— Que cuidem de você?
— Oh, é assim que você chama isso?
Seus braços afrouxaram um pouco, mas ele não a soltou. — Eu só estou tentando
protegê-la – é isso que você odeia, Haven? Ter alguém mais forte, que se importa o suficiente
para te segurar quando você está sendo irracional?
Ela exalou, a resposta mordaz em sua cabeça não alcançando seus lábios. —
Eu odeio ser inútil. Toda vez que você me mima, sinto que não estou fazendo o suficiente.
Como se eu fosse um peso morto. Não posso evitar que preciso de seis horas de sono e
sustento para sobreviver.
— Seis? — ele zombou. — Eu já te vi dormir nove horas inteiras uma vez.
A raiva aqueceu suas bochechas. — Você quer dizer, quando eu estava morrendo?
— E eu não teria que mimá-la — ele acrescentou, ignorando sua pergunta — se você
não fosse tão teimosa. A toxina das fadas já deveria estar fora do seu sistema, mas fazer uma
caminhada no plano das almas sem as runas adequadas pode ser fatal. Seu corpo pensou que
você tinha morrido e é por isso que estava tão frio quando você voltou. Você precisa
descansar e comer e lembrar ao seu corpo que você ainda está viva.
Por mais que a enfurecesse admitir, ele estava certo. Apenas o esforço para se livrar de
seus braços fez sua cabeça girar novamente.
— Eu não pedi para caminhar no plano das almas — ela disse suavemente.
Ela estava cansada de discutir, mas doía que ele a culpasse por algo que ela não fez de
propósito.
— Mas você poderia ter ficado com seu corpo e encontrado uma maneira de voltar
— Archeron respondeu. Sua voz estava mais gentil - ele estava tentando. — Em vez disso,
você pegou o poder repentino e o exerceu sem pensar nas consequências. E isso... me assusta.
— Eu nunca disse que fui a lugar nenhum.
Ele soltou uma risada sombria. — Você não precisa dizer, Haven. Eu te conheço. —
Movendo-se atrás dela, ele soltou um longo suspiro. — Nossa magia existe desde o início dos
tempos. É antiga, poderosa e implacável, mas você brinca com ela como um punhal novo e
brilhante, um brinquedo que você pode controlar. Ainda assim, mesmo com mil anos de
treinamento, você nunca aprenderá a controlá-la totalmente. O máximo que você pode
desejar é impedir que a magia a controle.
Ela hesitou, avaliando seu humor antes de dizer: — Se eu tivesse runas...
— Não. Não estamos discutindo isso. — Sua voz não tinha espaço para discussão.
Admitindo derrota – por enquanto – ela relaxou contra ele. — Então, o que
exatamente vamos comer no café da manhã?
Ela não se incomodou em esconder seu tom de desdém enquanto olhava para Rook
e para a criatura escamosa e calva pendurada em seus dentes. Ela estava brincando com a
pobrezinha, jogando-a no ar e pegando-a.
O peito dele tremeu contra as costas dela com uma risada mal contida. — O ensopado
misterioso de Bjorn, é claro. Seu favorito. — Uma pausa. Ela percebeu que ele queria dizer
alguma coisa, mas não parecia saber por onde começar. — Onde você andou pelo plano das
almas esta noite, Haven?
Seu peito apertou quando ela se lembrou de Bell, o medo transformando seu rosto
gentil em alguém quase irreconhecível.
— Depois que você retornou, você chorou enquanto sonhava — Archeron
adicionou, sua voz rouca como se a memória o incomodasse. — Você disse o nome do
príncipe mais de uma vez.
— Eu o vi - Bell. — Seu corpo ficou tenso contra o dele enquanto esperava por sua
desaprovação, mas ele não reagiu. — Eu não pretendia caminhar no plano das almas até ele
- ou talvez eu quisesse - mas acabei em Spirefall. Bell estava com problemas. Ele estava tão
assustado... — Sua voz falhou e Archeron a apertou com mais força contra ele. — Mas eu
não pude ajudá-lo.
— Então é por isso que a garota que nunca chora estava chorando.
— Eu não estava chorando — disse ela antes de acrescentar: — Não conta se estava
inconsciente.
— Às vezes — disse ele com cautela — não há problema em chorar. Assim como às
vezes aqueles que amamos tem que aprender a lutar suas próprias batalhas. O príncipe é
forte. Não forte como o rei, que sabe que tem soldados, aliados e poder à sua disposição.
A força do príncipe Bellamy vem de dentro.
— Eu pensei que você não gostasse dele?
Archeron acariciou o polegar sobre a curva afiada de seu osso do quadril e ela podia
dizer, sem olhar, que ele estava sorrindo. — Talvez eu esteja me apegando à raça mortal.
Seu coração batia em seu peito e ela brincou: — Por que a mudança repentina de
coração, Senhor do Sol?
A risada de Archeron soou mais como um ronronar. Inclinando-se para frente, ele
beijou sua mandíbula suavemente, propositalmente.
Uma vez.
Duas vezes.
Três vezes.
Cada beijo fazia com que seus dedos do pé se curvassem e sua respiração ficasse presa.
Arrastando os lábios até o lado de sua mandíbula, ele acariciou a concha de sua orelha,
fazendo-a se contorcer. — Querida Pequena Mortal, você realmente não sabe a resposta para
isso?
Haven sabia - ela era a razão. Ela havia mudado a concepção dele. E, de uma maneira
estranha, isso era aterrorizante.
E se seus sentimentos por ela diminuíssem? Ou se ela se permitisse se importar com
ele e então ele se machucasse? Ela realmente conseguiria lidar com a dor do coração partido?
Depois, havia a questão de Avaline. Se importar com um homem prometido à outra
seria difícil.
Ela estremeceu quando o hálito quente de Archeron fez cócegas em seu pescoço.
Deusa Acima, isso poderia ser uma droga. Estar em seus braços. Sentindo sua respiração em
sua pele e seu corpo quente contra o dela.
A verdade era que, pelo menos neste momento, ela queria isso. Ele. Tudo isso. A
incerteza junto com o prazer. E se o risco e a vulnerabilidade faziam parte de ter Archeron,
mesmo pelo breve tempo que ela poderia ter sobrando, então ela teria que ser corajosa.
De acordo com Bjorn, ela estaria morta em breve de qualquer forma. O que ela tinha
a perder?
Sentindo-se meio possuída, ela encontrou a enorme mão de Archeron. Estava
pairando sobre seu quadril e ela deslizou seus dedos sobre os dele até que estivessem
entrelaçados. Ele ficou tenso atrás dela enquanto ela guiava sua mão para sua barriga.
Em um ato descarado, diferente dela mesma, ela tentou puxar a mão dele para baixo,
mas ele resistiu.
— E quanto aos outros? — ele murmurou, sua voz como uma lixa.
Ela pressionou contra seu corpo. — O que tem eles?
— Eu já mencionei — ele começou, acariciando sua barriga — nossa excelente
audição?
— Eu posso ficar quieta.
Seu abdômen ficou tenso enquanto ele desenhava círculos lentos e preguiçosos ao
redor de seu umbigo com a ponta do polegar. A cabeça dela caiu para trás em seu ombro. Os
círculos se tornaram mais amplos.
Seu polegar roçou sob sua cintura e ela engasgou. Alto.
— Mentirosa. — O bastardo riu. — Você é uma mortal e os mortais não sabem fazer
silêncio.
Ela podia sentir seu prazer enquanto se acomodava mais em seu peito, empurrando
seus quadris para trás até que não houvesse espaço entre eles. Uma mão grande e capaz
acariciou a parte interna sensível de sua coxa esquerda, produzindo rastros de fogo que
perfuraram o couro de suas calças.
A outra começou a mapear sua carne. Seu estômago, seus quadris.
Lentamente - tão malditamente e pelo Submundo, lento - sua mão mergulhou mais
abaixo.
Ao mesmo tempo, sua boca começou a explorar o ponto sensível onde seu pescoço
encontrava sua clavícula. Em resposta, ela arqueou as costas, um suspiro saindo de seus
lábios.
Deusa Acima e tudo que é sagrado, isso era incrível. O corpo de Archeron estava duro
como pedra, a sensação de seus músculos e poder a rodeando era inebriante. Seu coração
batia alto e rápido contra suas costas, sua carne quente ao toque.
Como ela já o havia odiado?
— Onde está isso na sua linha do tempo de cortejamento? — ela sussurrou. A voz
confiante e sensual parecia vir de outra pessoa.
Rosnando, sua mão deslizou para baixo em sua cintura, enquanto a que estava em
sua coxa viajou até sua mandíbula. Ela tentou mordiscar seu polegar enquanto roçava seus
lábios.
Parando, ele pegou seu queixo, segurando-o como refém enquanto seu polegar
explorava seu lábio inferior. — Eu devia beijar você.
— Hum. Como isso está funcionando para você?
— Estou aprendendo que existem outros lugares tão agradáveis quanto seus lábios.
— Como onde? — ela brincou. Ela se contorceu contra ele, um braço estendendo-se
para trás para tocar seu rosto, o outro persuadindo sua mão a descer, mais, mais...
Seus dedos encontraram o interior de sua coxa. Ela apertou a mão dele enquanto ele
acariciava todos os lugares menos ali, brincando com ela.
E, então, seu polegar se moveu, encontrando sua umidade e foi sua vez de ser alto, seu
rosnado ecoando nas paredes da caverna.
Ela mal ouviu. Ela estava embriagada de desejo, cada grama de foco ligada à
necessidade dolorida entre suas coxas. Ela estava hiperconsciente de seu corpo contra o dela,
da sensação de que ele a desejava.
Sua mente foi para mais cedo - ele a segurando, protegendo-a, seus corpos chiando
com magia, o céu envolto ao redor deles, subindo; lindas asas emplumadas bem abertas...
— Sto... 1— No segundo em que a palavra saiu pela metade de seus lábios, ela
congelou de mortificação. Archeron também.
Não, não, não! Eu não acabei de quase gritar o nome do Senhor do Submundo.
Mas ela tinha. Fingir não faria nada para esconder a terrível realidade.
Sem uma palavra, Archeron deslizou sua mão de volta para descansar ao redor de sua
cintura. O silêncio se estendeu estranhamente.

1
Sto vai parecer como Stop (pare) ao invés de Stolas
— O que você disse? — ele perguntou, sua voz calma.
Ela procurou seu tom por raiva, enquanto sua barriga estremecia sob as palmas das
mãos. Seus pensamentos eram um turbilhão de constrangimento e vergonha.
O que acabou de acontecer? Ela se sentiu possuída, desequilibrada. Como os lábios
dela disseram o nome dele? Por que ele apareceu em sua cabeça como um demônio
enlouquecido?
Por quê? Por quê? Por quê?
Sua pulsação saltou em seu pulso. Ela levou a mão à garganta, permitindo que o ar
entrasse nos pulmões. Isso não estava acontecendo. Parecia o pior tipo de traição.
— Eu... — As palavras falharam.
Não fazia sentido. Ela nunca tinha pensado em Stolas dessa forma. Como ela poderia?
— Haven — Archeron disse, sua voz firme, mas não indelicada. — Está tudo bem se
você quiser parar.
Parar?
Oh- oh.
Ele pensou que ela havia soltado 'pare'. Não Stolas. Não o nome do Noctis mais
odiado do reino.
Alívio e frustração encheram-na. Parar era a última coisa no mundo que ela queria
fazer, mas era melhor do que admitir que ela literalmente quase disse o nome de seu inimigo
durante um momento incrivelmente íntimo.
O Senhor do Submundo havia lançado algum tipo de feitiço sobre ela? A Deusa sabia
que ele não tinha amor por Archeron e ela podia ver Stolas usando magia para fazê-la dizer
seu nome, simplesmente, porque ele estava entediado.
Se isso fosse verdade, ela o mataria. Assassinaria-o. Com suas próprias mãos.
Tomando seu silêncio como acordo, Archeron murmurou: — Durma, Pequena
Mortal.
Sua voz era suave, calmante. Nenhuma animosidade ou raiva por ter, supostamente,
tido dúvidas.
Pela sombra de Sombreamento, quando ele havia se tornado tão bom?
Ela balançou a cabeça. Ela não estava cansada - ou ela não se sentia cansada. Não até
que ele começou a acariciá-la suavemente, afetuosamente. Dedos fortes acariciando seus
braços, suas costas - movimentos destinados a levá-la ao mundo dos sonhos.
— Eu não sou um... bebê... que você pode apenas balançar... para dormir — ela
murmurou através de um bocejo traidor.
— Não é? — ele brincou. — Os mortais parecem adormecer em qualquer lugar.
Feche os olhos e experimente.
Antes que ela percebesse, ela caiu em um descanso sem sonhos, sem pesadelos ou
perturbações. E quando ela acordou, incontáveis horas depois, com o fogo reduzido a brasas,
ela ficou desapontada.
Stolas não tinha aparecido.
Ela acordou ao amanhecer. Em vez do fio prateado do luar, a luz do sol cinza suja
iluminava a caverna. Archeron já estava de pé com os outros, empacotando seu
acampamento e se preparando para o dia.
Apenas observá-lo enviou uma pontada de culpa em sua barriga. A noite anterior
parecia um sonho - um sonho adorável, até ela quase chamar o nome de Stolas.
Graças à Deusa, Archeron e os outros partiram para explorar a saída da caverna,
dando a Haven tempo para organizar seus pensamentos.
Depois de alguns alongamentos lânguidos, ela se juntou a Surai em uma pedra perto
do fogo. Surai entregou a ela um espeto de carne do tamanho de um roedor, com um rabo
queimado esticado para fora. Haven quase engasgou quando a cauda quebrou em seu colo.
— Eu não acho que posso — Haven disse, segurando a criatura o mais longe possível
de seu rosto.
Surai estreitou seus olhos lilases para Haven. — De repente, você é exigente?
— Ele tem uma... cauda.
— A maioria das coisas que comemos tem. E orelhas. Olhos. Um nariz. — Surai
sorriu. — A cauda é realmente muito deliciosa.
Haven não estava convencida quando ela virou o espeto em suas mãos.
— Mas se você não comer — Surai apontou, não rudemente — você não vai ficar
com fome mais tarde?
Ah, as armadilhas de ser uma mortal. Pelo que Haven entendia de seu tempo com os
Solis, a comida era necessária para o sustento, mas não na mesma taxa desesperada que para
os mortais. Eles poderiam facilmente passar alguns dias sem comer muito além de algumas
folhas de grama e algumas frutas.
Apertando os olhos bem fechados, Haven se forçou a dar algumas mordidas. Um
erro. O roedor gorduroso ficou pesado em seu estômago e logo seu estômago se agitou.
Ou talvez fosse a memória da noite passada.
— Surai — Haven disse, jogando o resto de seu espeto no chão. — Posso pedir o seu
conselho?
Surai ergueu uma sobrancelha curiosa. — Claro.
— Depois de minha aventura de caminhar pelo plano das almas ontem à noite,
enquanto você e Bjorn dormiam, Archeron e ficamos... íntimos.
A outra sobrancelha de Surai se juntou à primeira, um pequeno sorriso curvando sua
boca.
— E foi incrível. — Um rubor aqueceu sua pele e ela esfregou as bochechas.
Surai gemeu. — Não diga isso a Archeron ou seu ego ficará ainda maior.
Haven riu, acomodando-se mais perto da rocha de Surai. — Tudo estava indo bem,
até que eu posso ter... chamado um nome. E não o de Archeron.
A surpresa alargou os olhos de Surai quando ela exclamou: — Pode ter? Ou você fez
ou não fez. E considerando que eu não acordei na noite passada com Archeron destruindo
o lugar, ou você não o fez, ou ele não o ouviu.
Haven apertou a junta em sua coxa. — Consegui parar no meio do caminho e ele
achou que eu disse outra coisa.
Surai deixou escapar um suspiro de alívio. — Agradeça a Deusa por aquele pequeno
milagre. Archeron pode ser muito compreensivo com aqueles que ama. Mas no meio de um
novo cortejamento, um homem Solis pode ser muito territorial.
— Eu me sinto como a pior mortal no reino. — Haven chutou areia no fogo. — A
coisa é, eu não sei porque eu disse outro nome. Eu não gosto deste outro homem. Na
verdade, eu não posso suportá-lo.
Surai zombou, nem mesmo se preocupando em esconder seu ceticismo. — Eu não
sei como as coisas funcionam no reino mortal, mas você não chama o nome de outro
homem, a menos que sinta algo por ele. — Um sorriso perverso se espalhou por seu rosto.
— Você não precisa gostar de alguém para querer dormir com essa pessoa.
A declaração foi como um tapa na cara. Se Surai soubesse que o homem de quem
Haven falava era o Senhor do Submundo...
— Eu não — Haven insistiu. — É por isso que é estranho.
Os lábios de Surai franziram enquanto ela estudava Haven por um momento, então
ela jogou seu espeto - limpo - no fogo. — Você sabe, os Solis acreditam que há duas almas
gêmeas para todo mundo? Uma para te ensinar a ser forte. E uma para te ensinar a amar. A
maioria de nós só encontra uma alma gêmea... alguns de nós nunca encontram nenhuma.
Mas encontrar ambos...
— Isso não é o que isso é — Haven disse, balançando a cabeça para dar ênfase. — E
eu prometo que, se você soubesse quem ele é, você nem mesmo mencionaria essa
possibilidade.
Surai deu uma risadinha. — Haven, eu odiava Rook quando a conheci. Achava que
ela era uma princesa presunçosa com problemas de hierarquia e uma atitude ruim. Mal
suportávamos estar na mesma sala. Eu disse isso a Archeron e ele riu na minha cara. Ele
apostou que estaríamos juntas em uma semana.
— E? — Haven disse enquanto se levantava e esticava as pernas.
— E eu perdi vinte pedras rúnicas para ele. O salário de um ano inteiro de um soldado.
Quer adivinhar qual foi o nosso presente de noivado?
— Vinte pedras rúnicas?
— Exatamente as mesmas. Além disso, uma espada extravagante que eu odeio - mas
não diga a Archeron. — Surai se juntou a Haven perto do fogo, aquecendo suas mãos. — O
amor não segue as nossas regras.

Quando Archeron apareceu, Haven deixou o fogo para se juntar a ele. Ele jogou sua
mochila para Haven e lhe deu um sorriso que não alcançou seus olhos. Antes que ela pudesse
dizer qualquer coisa, ele se virou e saiu da caverna.
Talvez ele não estivesse tão bem com ela querendo parar, ontem à noite, como ele
havia dito.
Ela olhou de volta para Surai, que observava a interação com um sorriso e sua habitual
curiosidade afiada. Haven respondeu seu sorriso com uma carranca apertada, aliviada por
ela não ter que continuar a conversa.
Por mais que apreciasse o conselho de Surai, não havia como no Submundo isso se
aplicar a ela e a Stolas. Era mais provável que ela ainda estivesse grogue e alucinando com a
toxina da fada e sua caminhada pelo plano das almas e ela, acidentalmente, tivesse chamado
o nome dele.
Ela balançou a cabeça enquanto seguia os outros, afastando o pensamento. Não havia
sentido em se preocupar com isso, porque nunca iria acontecer novamente.
Nunca.
Do lado de fora da caverna, o céu estava enevoado, plano e morto. Haven apertou sua
capa contra a garoa leve e, em seguida, empurrou outro galho para fora do caminho,
murmurando maldições sob sua respiração.
No meio da manhã, a chuva deu lugar a um frio intenso. Mas não era um frio normal.
Tinha uma presença, penetrando profundamente em sua carne e medula, invadindo-a
lentamente.
Em uma palavra, o frio parecia maligno. E a cada passo que ela dava para mais perto
da fonte de magia das sombras, mais alta a voz sinistra dentro de sua cabeça crescia.
É isso, a voz sussurrou. Você me sente dentro de você? Agitando-se através do oco de seus
adoráveis ossos mortais. Crescendo com poder.
Tirando o cabelo úmido e meio congelado de seus olhos, ela afastou a voz de seus
pensamentos - obviamente um sintoma de sua fadiga - e se concentrou em seu entorno.
Esta terra não era como as florestas luxuriantes que eles invadiram ou mesmo o
deserto da Maldição. Era escassa, inanimada. Desprovida de vegetação ou de vida. Grama
morta e árvores pretas e finas escalavam o terreno quebrado por montanhas de granito, que
arranhavam o céu cinza-cadáver.
Uma vez que eles estavam longe do abrigo da face da montanha, um vento constante
uivava pela terra quebrada, como se as almas de todos os que morreram aqui os estivessem
avisando.
Ela quase podia ver os tentáculos escuros de magia de Spirefall - fios perversos de
poder antigo deslizando através das rochas, os riachos negros e florestas silenciosas, veias do
mal envenenando a terra.
Seus companheiros sentiam o mesmo.
Seus olhares preocupados voavam ao turbilhão de névoa negra em torno das Terras
Sombrias ao norte. Surai caminhava perto do cotovelo de Bjorn, pronto para guiá-lo sobre
as rochas íngremes.
Rook rondava ao longo da encosta ao lado de sua companheira. Com a cintilação do
lampejo de ouro entre as pedras, o gato magnífico rosnava para cada sombra, sua cauda longa
e elegante chicoteando e para frente e para trás em agitação.
De repente, Rook congelou. Seus pelos se arrepiando enquanto ela examinava o
horizonte.
A paisagem à frente estava repleta de fragmentos de rochas e penhascos íngremes, o
chão duro e varrido de grama crivado de ossos. Um exército de ossos, quebrados e espalhados
por quilômetros.
Alguns ainda usavam a armadura com a bandeira de qualquer reino que eles haviam
saudado e Haven se viu catalogando aqueles que ela reconhecia, até que o ato a deprimiu.
Se exércitos inteiros tinham chegado tão longe apenas para perecer, como eles teriam
sucesso?
Assim que o pensamento se materializou, ela o enterrou com todas as outras dúvidas.
Essa conversa não iria salvar Bell.
Surai pegou a mão de Bjorn, guiando-o em torno de uma pedra afiada. — Quão mais
longe, Bjorn?
Franzindo a testa, ele disse: — Deve estar aqui, escondido pelas montanhas.
— E o Basilisco? — Haven perguntou, alcançando-os.
Suas sobrancelhas se juntaram. — Tem certeza que foi isso que a fada disse?
— Sim. Positivo. Mas só a Deusa sabe se podemos confiar nela.
— Oh, certamente não podemos — acrescentou Archeron, juntando-se a eles.
Ele tinha uma folha de grama entre os dentes e sua túnica desabotoada para que seu
peito polido aparecesse, os músculos abaixo praticamente ondulando. Seu olhar foi atraído
para os lábios ao redor da grama, macios e curvados no topo.
Qual teria sido a sensação de beijá-lo na noite passada?
Ela engasgou quando se lembrou de seu corpo, seu poder, a forma como se sentiu
pressionada contra aqueles músculos duros...
Depois disso, seu comportamento frio hoje era uma facada no abdômen.
— Talvez você não deva ser tão cético, Senhor do Sol — Haven respondeu,
enxugando o suor de sua testa apesar do frio. — Talvez você deva confiar nas pessoas de vez
em quando.
Ele lhe deu um sorriso otimista que enviou calor aos seus dedos dos pés. — Irritável.
Acho que você precisa dormir mais, Mortal. E só para você saber, eu teria te beijado ontem
à noite, se você não tivesse ficado com dúvidas.
— Você leu meus pensamentos? — ela chiou.
— Meus músculos realmente... ondulam? — Sua voz era zombeteira e dura. Por que
ele estava sendo tão droob?
Ela rosnou e alcançou o punho de sua espada. Os outros se afastaram casualmente,
fingindo que não estavam bisbilhotando enquanto avançavam.
— Uau, não fique com raiva — disse ele, levantando as mãos fingindo medo. Então,
ele fez aquele truque em que ele, de repente, estava mais perto, sem parecer se mover. Ele se
inclinou, seu cabelo dourado escorregando sobre um ombro, e a prendeu contra uma rocha.
— Talvez eu deva beijar você bem aqui.
Sua arrogância a irritava. — Qual é o seu problema?
— Onde você gostaria que eu te beijasse, Haven?
— Talvez eu não queira mais beijar você — ela rosnou, sua atitude petulante, depois
da doçura da noite anterior, fazendo-a querer esfaqueá-lo.
Uma emoção próxima à dor cintilou no rosto de Archeron.
E, então, ela percebeu. Ele estava sendo um total droob, porque queria que ela
admitisse que não queria estar com ele. Porque o que ele assumiu ser a rejeição repentina
dela na noite passada o afetou mais do que ela pensava ser possível.
— Então o que é que você quer, Haven? Você mudou de ideia ontem à noite; agora
você diz que não quer me beijar... — Ele passou a mão pelo cabelo comprido, escurecido
pela garoa para a cor de trigo. — Talvez ouvir o que eu disse a Mossbark tenha te assustado.
Talvez você não sabia exatamente o quão quebrado eu sou e agora... Não vou forçá-la a fazer
algo que você não quer.
— Isso não é justo — disse ela. — Você não pode me incitar a ser uma idiota para
validar suas suspeitas. Não é assim que isso funciona.
— Então como isso funciona?
— Basta me perguntar.
Liberando seus braços, ele apoiou uma mão em cada lado de sua cabeça. Sua voz era
suave, gentil enquanto ele dizia — O que você quer, Haven Ashwood?
Um meio-sorriso vulnerável apareceu em seus lábios e uma esperança hesitante e frágil
cintilou dentro de seus olhos verde-esmeralda.
— Você sabe o que eu quero. — A raiva desapareceu de sua voz.
— Haven — ele disse cuidadosamente, sua respiração acariciando seus lábios. —
Você tem todo o direito de parar, a qualquer momento, quando estivermos juntos. — Seu
olhar caiu sobre seus lábios. — Mas eu preciso saber que isso é o que você quer. Que eu sou
o que você quer.
Nunca em sua vida ela teria imaginado que alguém como Archeron sentiria incerteza
quando se tratava de amor. A revelação pegou algumas de suas suposições sobre ele e as
destruiu.
Ela estendeu a mão e segurou seu queixo, espalmando a barba dourada ao longo de
sua carne, saboreando a aspereza sob seus dedos. — Eu já te disse.
— Não, você não disse. — Ele fechou os poucos centímetros restantes entre eles, seus
lábios roçando os dela. — Eu preciso que você diga.
Os outros estavam observando-os, enquanto fingiam não fazê-lo e Haven se mexeu
sob o seu peso. Sua magia, sua carne - ambos a chamavam.
— Você, Haven Ashwood, quer ficar comigo?
— Sim. — Sua voz tremeu quando ela fez sua declaração. — Eu quero. Claro que eu
quero. Eu quero cada parte de você.
— Todas as partes? — Suas pupilas queimaram e ele baixou as mãos para segurar seu
traseiro.
Ela acenou com a cabeça, a garganta apertada. — Todas elas. Mesmo as partes
indesejáveis .
Ele deu a ela um sorriso malicioso. — Já me disseram que todas as minhas partes são
desejáveis.
Bem, não demorou muito para sua autoconfiança voltar. A arrogância dele fez seus
dentes rangerem. — E, quando eu não quero matar você, o que não é tão frequente, me pego
pensando em você.
Suas sobrancelhas se ergueram com interesse. — Que tipo de pensamentos,
exatamente?
Ela sorriu, o que era estranho, já que se sentia perto de desmaiar. Sua cabeça girava; seu
coração batia irregularmente.
— Qual seria o seu gosto — ela murmurou. O que ela estava dizendo? — Como
seriam as nossas carnes pressionadas, uma contra a outra, sem nenhum tecido de roupa entre
nós.
Ela sentiu um tremor de surpresa e desejo percorrê-lo.
Mas ela não terminou de chocá-lo, enquanto sussurrava: — Qual seria a sensação de
você dentro de mim.
Seu olhar intenso era quase predatório. Surai gritou um insulto grosseiro, algo sobre
transar mais tarde, mas Archeron não pareceu ouvir sua amiga.
— E... — ele murmurou. — Como você está se sentindo agora?
Ela riu. — Inclinando-me para assassina.
Archeron passou a ponta do polegar sobre seu lábio inferior como se avaliasse os finos
méritos de sua boca, o pavão. — Uma... pena.
Um grunhido quebrou o feitiço entre eles. Haven seguiu o som até o grande gato
caminhando através da colina até eles. Rook deixou escapar outro grunhido impaciente e
bateu com a cabeça na coxa de Archeron, com força.
— Ai — ele disse, esfregando o local para dar ênfase enquanto Rook lançava seu olhar
felino para Haven.
Mesmo em sua forma animal, seu rosto era majestoso. Um padrão de manchas pretas
formavam uma máscara ao redor de seus olhos, estes franjados com cílios finos e pretos,
delineados com uma varredura espessa de kohl.
Sem pensar, Haven estendeu a mão para acariciar o tufo preto em uma orelha
perfeitamente triangular. Rook sibilou em resposta, mostrando a boca cheia de presas.
— Alguém está de mau humor — Archeron comentou.
Seus olhos âmbar eram a única parte dela agora que se assemelhava ao seu corpo Solis.
Eles deslizaram de Archeron para Haven, brilhando com uma ordem inconfundível: Chega
de bate-papo, agora movam suas bundas.
Ela mordeu a mão de Archeron para enfatizar a questão e então saltou para o grupo,
que estava rindo histericamente.
Surai chamou a atenção de Haven e fez um gesto vulgar.
Envergonhada, Haven empurrou Archeron para longe enquanto ela se movia para se
juntar a eles, irritada com a forma como ela mal o fez se mover. Ela podia sentir o olhar dele
em suas costas quando ela o fez.
Como era possível querer estrangular e beijar alguém ao mesmo tempo?
Ele riu atrás dela. Pare de ler meus pensamentos, ela rosnou de volta para ele, antes de
se lembrar do truque que alguém havia ensinado-lhe para isso.
Me obrigue.
Sorrindo, ela aceitou o desafio. No segundo em que o sentiu preguiçosamente
acariciar sua mente com a dele, ela pensou na palavra foetor.
Alguns segundos se passaram...
Quando ela se virou, o rosto dele estava da cor de um osso velho e ele parecia prestes
a vomitar, com a mão fechada em punho e pressionada contra o estômago.
— Está se sentindo bem, Senhor do Sol? — ela provocou, se afastando. A
recomendação de Stolas de manter distância pesando em sua mente.
Com uma careta, ele ignorou ela. Um momento depois, ele colocou a mão sobre sua
linda boca.
— Onde você aprendeu esse truque sujo? — ele gemeu.
Ela lançou um olhar presunçoso para trás. — Você não gostaria de saber?
Graças a Stolas, provavelmente levaria algum tempo antes que ele tentasse ler a alma
dela novamente.
— Aqui — Bjorn chamou, apontando para um riacho. — O único Basilisco que
conheço estaria em torno daquele riacho. As selkies deixaram-no ficar lá.
O traço de pinheiros e sequoias era o único verde em quilômetros ao redor. Um riacho
cintilava entre lampejos de folhas.
Assim que eles se aproximaram da água, Haven sentiu a mudança da magia das
sombras para a da luz, o ar esquentando e se tornando pegajoso. Ela respirava o rico cheiro
de terra - de vida, árvores e água - enquanto o canto dos pássaros e o som do riacho correndo
enchia o ar.
— Território Selkie — explicou Bjorn. — Semelhante às fadas, elas também usam
magia da luz e são protegidas da Rainha Sombria pela mesma barganha.
— Elas entregam mortais para ela? — Haven perguntou, tremendo com o
pensamento.
Um sorriso sombrio iluminou seu rosto. — Aqueles que elas não comem, sim.
— Por quê? O que a Rainha das Sombras quer com os mortais?
Surai olhou para a floresta além, os lábios puxados em uma linha sombria.
Bjorn olhou para ela com olhos que pareciam perfurar sua alma. — Os Noctis se
alimentam de sua magia até que você seja uma concha de carne e osso e, então, Morgryth te
prende à vontade dela. Cada mortal que entrou nestas terras, e não morreu, é dela para fazer
o que quiser.
Haven sentiu o sangue sair de seu rosto e ela estudou a escuridão agitando o céu ao
norte. — Mas por quê?
Surai soltou uma respiração irregular, sua trança escura deslizando por cima do
ombro. — Achamos que ela está construindo um exército.
— Mas então,— Haven estremeceu —, todos aqueles mortais que marcharam para
as Terras das Ruínas...
— Como um aracnídeo — Bjorn sussurrou como se Morgryth pudesse ouvi-los —
ela atraiu os exércitos mortais para sua teia, com a promessa de um desejo para quem
quebrasse a Maldição, sabendo que era quase impossível de o fazer. Eu vi as legiões de
mortais mortos-vivos que ela mantém sob Spirefall, ouvi seus gritos de tormento.
— Quem se atreve a cruzar aqui? — uma voz masculina sibilou de algum lugar no
alto das árvores.
Metal raspou quando os Solis desembainharam suas espadas e Haven recuperou seu
arco e encaixou uma flecha, apontando-a para o topo das árvores.
— Apareça, Basilisco — Archeron gritou.
— Sss. — O sibilo parecia vir de todos os lugares e Haven girou seu arco em um
círculo, procurando nos galhos.
Um lampejo laranja chamou sua atenção e ela apontou a ponta de sua flecha sobre a
forma brilhante, enquanto o basilisco descia pelo tronco e em direção a um galho mais baixo.
A boca de Haven se abriu quando ela olhou para a criatura. Exceto por seus olhos
amarelos e sua língua preta e bifurcada, sua metade superior era a imagem de um homem.
Mas as semelhanças terminavam em sua cintura, onde escamas laranjas e marrons brilhantes
formavam um corpo espesso e serpentino, duas vezes mais longo que o torso que terminava
em uma ponta afiada como a de uma cobra.
Haven deu um passo à frente, lutando para esconder sua repulsa quando o basilisco
se abaixou e passou sua longa língua sobre seu rosto.
— Tola mortal — o Basilisco sibilou — vocêsss não deveriam essstar aqui.
As pupilas cortadas do basilisco focalizaram acima de sua cabeça e ela sentiu o corpo
de Archeron se materializar atrás dela.
Um sorriso serpentino brilhou nas presas, do comprimento de dedos, do basilisco. —
E um Sssenhor do Sssol também. Quão esssplêndido.
— Chega de conversa — Archeron rosnou. — Nos foi dito para encontrar você.
— Pela fada, Mossbark — acrescentou Haven.
A cauda do basilisco balançava de um lado para o outro enquanto ele os estudava. —
Mossbark? Como ela essstá?
Haven deixou o arco cair um centímetro. — Provavelmente, morta.
— Que pena para você — disse o basilisco enquanto se virava e começava a deslizar
para longe. — A morte dela acaba com o favor que devo-lhe.
— Espere! — Haven levantou a mão. — Por favor. Estamos aqui para quebrar a
maldição e...
O basilisco virou-se. — Eu sei por que você está aqui, garota mortal. Todo mortal que
cruza essas terras quer a mesma coisa. Elesssss vêem riqueza em vez de morte - essssse é o seu
erro.
— Então nos ajude. Ou você quer viver sob o domínio das selkies, apenas com este
pequeno riacho?
— Este pequeno riacho é maisss do que ossss mortaissss me deram.
— Sim e isso vai mudar. Posso te dar a mesma promessa que fiz à fada. Ajude-nos e o
mortal Príncipe de Penryth irá garantir terras a você.
— Sss. — A língua do basilisco sacudiu o ar como se pudesse provar a verdade de sua
declaração. — E quem é você para fazer tais promessas, garota?
Haven tirou o capuz, pela primeira vez sem vergonha de seu cabelo de cor estranha.
— Eu sou amiga e Guarda Real do Príncipe Bellamy de Penryth e falo por ele.
— Mesmo que o que você diz seja verdade — o basilisco disse — por que eu iria contra
a Rainha dasss Ssssombras?
— Você tem magia de luz, certo? O que você acha que vai acontecer quando a Rainha
das Sombras ficar sem mortais para drenar o poder e todos os Solis estiverem do outro lado
do mar?
Archeron se aproximou dela ainda mais, quando o basilisco se inclinou para
encontrar seu olhar, a cabeça inclinada para o lado. — Quando o sssol toca o horizonte no
crepússsculo, as Ssselkies entram em um transe dócil. Essa é a sua melhor hora de fazer o
bonito Senhor Sssoool, aqui — ele acenou para Archeron — distraí-lasss enquanto você
pega uma escama. Assim que o sssol ssse põe, o transe é quebrado e elasss vão matar ele e
você.
— Obrigada...
Mas o basilisco já estava deslizando entre as árvores. Antes que ela pudesse piscar, ele
se foi, deixando apenas o farfalhar das folhas para provar que alguma vez ele já esteve lá.
Haven se virou para Archeron e sorriu. — Hora de encantar algumas selkies sedentas
de sangue, Senhor do Sol. Vamos ver se elas acham todas as suas peças tão desejáveis quanto
você afirma que elas são.
A enseada das Selkies era uma lagoa de jade aninhada entre três penhascos íngremes e
a floresta, metade da água rasa sombreada por carvalhos e olmos pendentes. Eles esperaram
atrás da cobertura de árvores, ocasionalmente cortando as trepadeiras espinhosas que
puxavam suas roupas e carne.
— Esta é uma ideia horrível — acrescentou Archeron, não pela primeira vez.
— Eu acho que é uma ideia maravilhosa — Rook disse, dando um tapinha no ombro
de Archeron. Ela havia mudado de volta para sua forma humana, não muito tempo atrás.
— Finalmente encontramos um uso para esse seu lindo rosto.
Archeron resmungou baixinho, olhando emburrado para as águas paradas. — Tenho
certeza de que as selkies vão achá-lo delicioso.
— Com medo de alguns peixes, Senhor do Sol? — Rook provocou.
Haven reprimiu uma risada quando Archeron olhou para ela, carrancudo. — Os
peixes não arrancam a carne do osso de um homem com os dentes.
— Verdade. Mas é Haven, não você, que vai entrar na água.
Todos eles haviam decidido, antes, que a magia das sombras de Haven seria menos
perceptível para a Rainha das Sombras se ela tivesse que usá-la na água. Com sorte, ela
entraria e sairia despercebida.
Ainda assim, o pavor coagulava suas entranhas enquanto ela olhava para a superfície
ondulante da água. Uma solitária selkie se bronzeava através do reservatório, uma enguia,
enrolada em seus dedos palmados, se contorcendo enquanto tentava escapar. A luz fraca
refletia nas escamas laranja e rosas, e nas nadadeiras vibrantes da selkie.
Quando a selkie abriu a boca – revelando fileiras cheias de dentes irregulares – e
mordeu a cabeça da enguia, Haven sentiu os primeiros sinais de pânico verdadeiro.
Bjorn se inclinou contra um olmo jovem e Haven tocou seu ombro. — É aqui que...
você sabe?
Bjorn arqueou uma sobrancelha. — Onde você morre?
Ela enfiou a ponta da bota no chão coberto de musgo. — Sim.
— Não posso...
— Eu sei, eu sei. — Ela soltou uma respiração irregular, com a boca seca de repente.
— É apenas tão... profundo.
— Insondável, na verdade — Bjorn corrigiu. — Diz-se que sob essas águas misteriosas
existem passagens que levam a todos os corpos d'água do reino.
— Pelo menos diga que elas vão me afogar antes de me comer.
Os lábios de Bjorn se torceram em um sorriso sombrio. — Isso tornará a situação mais
fácil?
Ela ergueu as sobrancelhas. — Só... minta para mim ou algo assim.
— Se você tiver sorte, a água vai te levar primeiro.
— Maravilhoso. Você é um amigo de verdade. — Ela olhou para a runa que Bjorn
tinha esculpido na carne de seu braço. — Você está certo de que isso vai me permitir respirar
debaixo d’água?
Bjorn acenou com a cabeça. — Sim. Mas sua magia das sombras está curando a marca
mais rápido do que eu previ. Devemos nos apressar.
Ele estava certo. As bordas da runa já estavam cicatrizando e fechando. Se o tempo
deles não estivesse se esgotando, ela teria ficado fascinada por sua carne se curando e as
perguntas que isso trazia.
Tipo, isso significava que feridas feitas por magia das sombras também iriam se curar?
Mas nada disso importava agora, especialmente se estes fossem seus últimos minutos
de vida.
Ótimo forma de ser otimista, Ashwood.
Seu foco saltou para os trechos do céu entre as árvores. Surai estava lá em algum lugar.
No segundo em que o sol começasse a se pôr, ela os alertaria.
A partir daí, eles teriam talvez cinco minutos.
Ela tirou as botas e a túnica, e eles começaram a se aproximar da água turva em
preparação. A camiseta fina que ela usava não era suficiente para protegê-la contra o leve frio
no ar e arrepios cortavam sua carne exposta.
A menos de três metros da costa, uma mão desceu por seu braço e agarrou seu
cotovelo. O gesto era íntimo o suficiente para que ela soubesse que era Archeron, mesmo
antes de se virar.
O olhar intenso em seu rosto congelou a respiração em seu peito.
— Eu ainda posso ir em seu lugar — disse ele, sua voz um estrondo baixo.
— Mas eu não sou tão bonita quanto você — ela brincou, expulsando o nervosismo
de sua voz. — Eu poderia ficar nua e as selkies nem piscariam.
Ele abriu a boca para dizer algo travesso – considerando o brilho em seus olhos e a
maneira como ele deslizou seu olhar sobre seu top minúsculo – então pareceu pensar
melhor. — Rook pode ir. Ela é uma nadadora forte.
Haven balançou a cabeça. — Se algo acontecer com ela... Eu não posso. Surai é minha
amiga e Rook sua companheira.
— E você é minha... — Ele passou a mão pelo cabelo dourado, olhando para ela como
se fosse culpa dela que ele não pudesse encontrar a palavra.
A verdade era que não havia um termo para o que eles eram. Eles não estavam noivos.
Eles nem eram amantes... ainda.
— Eu pensei que nós concordamos que usar magia da luz chamaria muito a atenção
da Rainha das Sombras? — ela o lembrou suavemente. — Da última vez que verifiquei, sou
a única com magia das sombras. Além disso, já vou morrer de qualquer jeito, certo? O que
importa se é agora ou em Spirefall?
Uma carranca contraiu seus lábios quando ele estendeu um pequeno pedaço de
madeira flutuante. — Coloque isso no seu bolso.
Confusa, ela olhou para a madeira desbotada com desconfiança. — Por quê?
— Se algo der errado na água e você precisar de ajuda, solte a madeira e ela irá flutuar
para a superfície.
— E o quê? — Ela se virou para sair. — Você vai pular para me salvar?
Usando uma leve pressão no cotovelo dela, ele a virou para encará-lo. — Eu disse que
não deixaria você morrer, Haven. Você achou que eu estava brincando?
— E se eu sobreviver a essa tarefa? — ela perguntou em uma voz ofegante. — Aí você
vai me beijar?
Um sorriso felino capturou seus lábios. — Sim, Pequena Mortal. Eu já prometi isso...
embora, eu não especifiquei onde.
Seus dedos do pé enrolados em suas botas. Deusa me ajude.
Vibrações através das folhas chamaram sua atenção para as copas das árvores. Antes
que ela pudesse responder ao atrevido Senhor do Sol, Surai pousou no galho mais próximo,
enquanto a luz deslizava através do dossel de árvores, destacando o índigo brilhante dentro
de suas penas escuras.
O sinal.
Sem uma palavra, Archeron empurrou a madeira em sua mão aberta e deslizou através
da formação rochosa cinzenta que conduzia à água.
Ele passeou casualmente com as mãos nos bolsos, membros soltos como se não tivesse
ideia do que espreitava na água abaixo, mesmo quando cabeças escuras começaram a
aparecer na superfície da água para observá-lo. As selkies se aproximaram enquanto ele se
sentava na beirada das rochas, esticando o comprimento de seu impressionante torso.
— Metido — Haven murmurou, observando lentamente, deliberadamente, ele puxar
sua túnica sobre a cabeça, revelando músculos esculpidos e uma cintura ágil.
O último resquício escasso de luz do sol tangerina brilhou dentro das marcas de runas
prateadas que serpenteavam sobre sua carne lisa enquanto ele colocava as mãos atrás da
cabeça. Direcionando os olhos para ela, ele piscou e ela desviou o olhar.
Pomposo menino bonito. Espero que o comam.
Mais cabeças brilhantes apareceram, aproximando-se. A água ao redor dele estava
cheia de selkies e ela preparou sua mente para o que estava por vir.
Era hora.
Seu coração estava em sua garganta quando ela contornou a borda das árvores e
escorregou na água morna, um fedor estagnado atingiu-a.
A escama de ouro polido de uma selkie, ela repetiu, lembrando-se do que estava
fazendo.
Mas as palavras não conseguiram acalmar seus nervos.
Por um momento, ela lutou para afundar. Mas não havia tempo para ter medo, então
ela se forçou a liberar todo o ar de seus pulmões e mergulhar.
O som ficou abafado. A água estava turva, mas ela podia ver um ou dois metros à sua
frente. Abaixo, a água parecia ser interminável e ela enterrou o pânico que arranhava seu
peito enquanto mergulhava ainda mais. Para baixo, para baixo naquelas profundezas sujas,
em um lugar hostil de água e morte.
Apesar da runa de formigando em seu braço, o instinto a fez prender a respiração até
que seus pulmões ardessem e ela engolisse água.
Ela esperava tossir... mas a runa funcionou.
Seu corpo relaxou quando o oxigênio alcançou sua corrente sanguínea e, depois de
algumas tentativas falhadas, ela estava respirando água como se fosse ar. Um movimento
atraiu seus olhos para as rochas onde Archeron estava apresentando seu show. Ela nadou em
direção ao caos de selkies se debatendo, procurando as cores brilhantes de suas caudas.
Isso mesmo. Observem o pavão de ego inflado.
O plano era simples. Pegar uma escama de ouro de uma selkie e sair da água antes que
o sol se pusesse totalmente e as selkies a notassem.
Prata e cobalto brilharam à sua direita.
Ela congelou na água abaixo, hipnotizada pelas belas cores metálicas da cauda selkie,
o coral translúcido e a nadadeira prateada ondulando na água como fios da mais fina seda.
Mais corpos selkie brilharam sobre a cabeça de Haven, uma tapeçaria de cores atraídas
a Archeron, tecendo a mais bela tela da morte.
Haven quase podia sentir sua empolgação com seu lindo prêmio. Já estive lá, ela
pensou, lembrando-se da noite passada.
Se a beleza podia ser usada como arma, a de Archeron era como a adaga que ela havia
roubado - e perdido - de Stolas. A lâmina que não era sentida até que uma estivesse morrendo
de sua mordida.
A água agitou-se com selkies agarrando-se e lutando entre si, atraindo sua atenção de
volta para a massa de criaturas enquanto cada uma lutava pela melhor visão de Archeron.
Ele deve estar dando um show.
Haven tinha pavor que as criaturas pudessem ouvir as batidas frenéticas de seu
coração enquanto ela nadava mais perto. Seu olhar percorreu a carne metálica, procurando
desesperadamente por uma escama dourada em meio a todas as cores, exceto ouro, ao que
parecia.
Você está ficando sem tempo, Ashwood.
Se ao menos as selkies parassem de se mover por tempo suficiente para ela encontrar
a cor certa. Seus movimentos rápidos lembravam Haven dos peixes gordos nos lagos de
Penryth, a maneira como ficavam frenéticos por algumas migalhas caídas na água.
Ela chutou e deu braçadas ainda mais perto, desejando ter nadado mais em Penryth
quando seus braços começavam a se cansar.
E então, no meio do carmesim amarelo e azul, um estalo de ouro brilhou tão rápido
que ela pensou que tinha imaginado.
Caudas lisas e carnudas batiam em seus ombros e bochechas enquanto ela se
contorcia entre elas, rezando para a Deusa que as criaturas estivessem cativadas demais pelo
belo Senhor do Sol para olhar abaixo da superfície da água. Garras com membranas
arranharam seu lado.
Haven engoliu um grito quando uma fita de seu sangue se espalhou na água.
Libertando-se do caos, ela espiou a selkie com as escamas douradas um pouco longe
do grupo. Os poucos pedaços de ouro em sua cauda contrastavam com as escamas verde-
azuladas e prateadas e Haven se aproximou lentamente.
Foi quando ela percebeu que os raios de sol que perfuravam a água haviam sumido, a
lagoa escurecendo a cada segundo. Ela precisava pegar a escama e sair da água.
Um metro e meio a separavam da selkie com a escama dourada e ela deu um chute
forte para diminuir a distância, alcançando um oval liso de ouro, assim que a água ficou
quase completamente escura.
Prendendo a respiração, ela apertou a escama e puxou. Ela se soltou facilmente e,
depois de uma rápida olhada para garantir que era a certa, ela enfiou o pequeno disco no
bolso e se virou, chutando furiosamente.
Ela nadou através da água turva, seu coração batendo rapidamente, indo na direção
de onde ela veio. Atrás dela, a água se agitava enquanto as selkies se tornavam selvagens
novamente.
Logo, a escuridão se encheu com os sons das criaturas lutando.
Ela estava perto? Uma onda de pânico caiu sobre ela quando percebeu que não tinha
certeza de qual caminho era para cima e qual era para baixo. E se ela estivesse nadando mais
fundo no abismo?
Sem pensar duas vezes, ela puxou um orbe de magia de luz e o soltou, desejando que
flutuasse. Enquanto traçava um caminho brilhante direto para a superfície, o alívio a
invadiu. Ela estava indo na direção certa.
A luz ainda era forte o suficiente para iluminar um metro e meio ao redor dela e,
abaixo, uma sombra repentina chamou sua atenção. Ela olhou para baixo-
Olhos totalmente negros brilhavam para ela acima de fileiras de dentes afiados como
navalhas. Então, a selkie agarrou sua perna e a puxou para baixo.
Baixo, baixo, mais abaixo.
Haven chutava e dava socos na criatura escorregadia, mas a selkie não se mexeu, exceto
para envolver-se mais apertadamente ao redor de sua coxa. Um lampejo e outra selkie
prendeu sua outra perna e foi arrastando-a mais profundamente.
Garras afiadas vinham de todos os lados. Dedos prendiam de seus braços e cabelos.
Então, a runa de Haven parou de formigar e a próxima respiração queimou como
fogo líquido.
Ela ia se afogar.
Haven sempre presumiu que afogamento era algo indolor, mas ela estava errada.
Pedaços de vidro em chamas enfiados em seus pulmões e peito, abrasadores e pesados
enquanto ela afundava na enseada das selkies. O pânico envolveu suas costelas e se alojou
sob seu esterno, pesado e sufocante e tão real que poderia ser uma coisa viva.
Em choque, seu primeiro pensamento foi que Bjorn deveria tê-la avisado, malditas
sejam suas leis estúpidas de vidente. Então, escuridão e desespero se apoderaram de sua
mente e ela entendeu que estava morrendo.
Lute contra isso!
Novamente, ela acertou a selkie em sua perna.
Mais uma vez, a criatura se envolveu com mais força.
Mais duas fêmeas rastejantes agarraram-se a seus braços. Ela não conseguia se mover.
Não conseguia ver.
Use magia.
Assim que o pensamento veio, sua mão, presa ao seu lado, ficou quente com uma
faísca de magia, iluminando as criaturas bizarras que tentavam matá-la.
Ela esperou até que o poder subisse por seu braço e então o liberou. As selkies gritaram
quando sua magia as mandou para trás, atordoadas. Dois chutes. Isso é tudo que ela
conseguiu dar na água antes que mais quatro selkies a capturassem novamente.
Haven pulsou outro lampejo de poder, enviando as novas selkies voando para as
profundezas, mas mais tomaram seu lugar. Desta vez, incontáveis corpos a envolviam. Carne
lisa e carnuda esmurrando-a enquanto a empurravam mais fundo para a morte.
Suas orelhas estalavam.
Seus pulmões gritavam.
Ela tinha energia suficiente para uma última onda de magia. Desta vez, quando os
selkies a soltaram, ela alcançou a adaga em sua cintura. Cega. Ela não podia ver, não podia
sentir nada.
Ela lutou com a adaga... e então ela escorregou de seus dedos para as profundezas.
A raiva rugiu em seu peito mesmo quando as bestas escorregadias surgiram mais uma
vez para arrastá-la para seu fim.
Deusa Acima, não desta forma.
De repente, houve uma explosão de luz radiante. As selkies gritaram, nadando com as
mãos palmadas para fugir da figura que cortava a água em direção a elas.
Archeron. A magia parecia vir de todos os lugares enquanto ele lançava onda após
onda de selkie para longe, de forma a chegar até ela.
Fraca e lutando para permanecer consciente, Haven estendeu a mão e de alguma
forma alcançou o pulso de Archeron. Ele a puxou para seu peito liso e ela colocou os dois
braços ao redor de seu pescoço.
O calor da magia que ele enviava através da água aqueceu sua pele.
Então eles estavam na praia e ela caiu de joelhos e vomitou o que parecia ser o lago
inteiro.
Ela sentiu a mão dele, quente, molhada e pesada em suas costas enquanto expelia a
água estagnada de seus pulmões. Parecia não ter fim. Cada expurgo destruidor torcia seu
corpo, fazendo-a tremer.
Rook correu até eles, cobriu Haven com um cobertor fino e seu corpo estremeceu
com convulsão após convulsão até que ela estava seca e arfante.
Então, ela caiu de lado na terra coberta de musgo e apenas respirou.
Seu mundo girou, seu corpo implorando para escapar um pouco...
Não. Fique acordada.
Archeron se inclinou, seu cabelo molhado deixando cair gotas de chuva sobre sua
bochecha, e levantou-a em seus braços. Grunhindo, ele puxou o cobertor mais alto com o
queixo.
— Ponha-me no chão! — ela rosnou.
Ele olhava para a frente enquanto a levava para a floresta, ignorando sua súplica. Seu
maxilar estava tenso de raiva.
— Ponha-me no chão!
Ele lançou seu olhar lívido sobre ela. — Tudo que você precisava fazer era mandar a
madeira para a superfície, mas você é muito teimosa. Você prefere morrer a pedir ajuda.
A raiva cresceu através dela. Isso não era verdade. Seus braços estavam presos e liberar
a madeira foi impossível. Mas esse não era o ponto.
— Eu não deveria — disse ela. — Eu tenho os mesmos poderes que você tem, talvez
mais. Mas eu não posso usá-los sem drenar toda a minha energia!
Seu corpo enrijeceu contra ela, então ele parou e a deixou de pé. — É por isso que
você está brava?
— Sim!
Bjorn e Rook os seguiaam pela floresta. Eles trocaram um olhar e se viraram para sair.
Haven plantou as mãos nos quadris. — Fiquem!
Archeron lançou-lhes um olhar incrédulo. — Ela está... está brava porque... — Ele fez
uma careta para ela. — Bem, você diz a eles.
— Eu sei porque ela está frustrada — Rook disse, considerando Haven com uma
expressão cautelosa. — Surai mencionou seu interesse em runas de carne para mim.
Haven pegou a franja de seu cobertor. Se Surai mencionou isso para ela, então era um
assunto mais importante do que ela tinha feito parecer. E do jeito que Rook falava agora, ela
também não aprovava. Mas, é claro que eles não sabiam o que era ter todo esse poder dentro,
mas não saber como usá-lo.
Rook deu um passo à frente. — O que você está pedindo?
— O que estou pedindo é pelo mesmo privilégio que vocês. Eu preciso de marcas de
runas... ou de alguma outra maneira de aproveitar minha magia. — Ela se enrolou com mais
força no cobertor. — Se eu tivesse marcas de runas, eu não teria quase me afogado, porque
minha magia não teria acabado.
O silêncio caiu sobre a floresta enquanto os Solis a encaravam. — Mas você não se
afogou, Haven — Archeron disse em voz baixa. — Eu não teria deixado.
— Isto não é suficiente! — Sua mandíbula se apertou. Por que ele não conseguia ver
que não era a mesma coisa? — Embora eu aprecie sua ajuda, não quero ter que depender de
você, Senhor do Sol. Ou de qualquer um de vocês.
Rook desviou o olhar enquanto Archeron balançava a cabeça e Bjorn disse: — Runas
em um mortal é contra a lei dos mortais e dos Solis, Haven.
Ela projetou o queixo. — Eu sei.
— Então por que continuar perseguindo algo que nunca pode acontecer? — Rook
perguntou, realmente curiosa.
Haven deu de ombros, com força. — Você nunca quis algo que todos diziam ser
impossível?
Surai estava empoleirada em um galho acima e Rook não conseguiu esconder o olhar
fugaz que ela lhe lançou.
— Se vocês tivessem seguido as regras — Haven continuou — vocês nunca saberiam
como é o amor verdadeiro. — Ela se virou para Bjorn e depois para Archeron. Dando a cada
um, um olhar penetrante. — Vocês dois, tenho certeza, já quebraram as regras antes, quando
era conveniente para vocês. Como isso é diferente?
— Cuidado, Haven — Archeron disse, seu tom suave não fazia nada para esconder
sua frieza. — Este não é um jogo qualquer dos mortais. Se permitirmos que você seja
marcada em carne, você será marcada por toda a eternidade como uma abominação. Não
haverá nenhum lugar onde você possa se esconder e nenhuma magia forte o suficiente para
impedir que todo o reino – Solis, Noctis e mortal – a persiga e acabe com sua vida.
— Essa é minha escolha a fazer — ela sussurrou.
— Na verdade — ele rosnou, virando-se para sair — não é.
— E, de acordo com Bjorn, eu vou morrer de qualquer maneira, então não importa.
As costas de Archeron estavam viradas e ele se enrijeceu antes de se afastar.
Rook se aproximou e colocou os braços ao redor de Haven. — Foi uma longa noite e
a Rainha das Sombras deve ter notado o aumento de magia da luz. Vamos encontrar um
lugar para passar a noite.
Haven assentiu, mas só porque agora ela entendia que nunca iria convencê-los a dar-
lhe marcas de runas.
Ainda assim, enquanto eles faziam seu caminho de volta para a floresta, incontáveis
cabeças selkie balançando na água para vê-los passar, Haven jurou encontrar uma maneira
de canalizar sua magia - quer os Solis gostassem ou não.
Se ela fosse morrer, levaria o maior número possível do exército da Rainha das
Sombras com ela.
Bell sabia que gritar era inútil - mas o barulho saiu dele mesmo assim. Um gemido
áspero de terror que ecoou pelas paredes de granito do corredor vazio e só pareceu excitar
mais ainda o Noctis à sua frente. Excitação selvagem brilhava dentro dos olhos negros
oleosos de Malix, um sorriso predatório cortando seu rosto pálido.
O Noctis estendeu a mão. — Venha, Príncipe. Se eu tiver que persegui-lo, será muito
pior.
Já Bell podia sentir o terror paralisante se infiltrando em seus membros, tornando-o
indefeso. Seu intestino se apertou, a bile quente queimando sua garganta. Como sempre, ele
estava com medo demais para lutar. Ele avançou um passo.
— Sim — Malix ronronou, seu peito arfando e boca entreaberta, dentes irregulares
espreitando. — Sim, isso mesmo. Venha aqui.
Outro passo. O coração de Bell estava na garganta. Seu corpo tremendo.
E, então, ele sentiu... algo mudar. Uma presença preencheu o espaço. Ele conhecia-a
de alguma forma. Haven? Em qualquer outro momento, ele teria questionado sua sanidade,
mas agora fazia sentido. Mesmo morta, ela o protegia. Ele não esperava nada menos dela.
— Haven? — ele engasgou.
Malix inclinou a cabeça para o lado em confusão.
E, então, impossivelmente, sua melhor amiga falou. Revide, Bell, ela pediu, sua voz
tão real como se ela ainda estivesse viva e bem ao lado. Revide.
A adrenalina inundou suas veias.
Revide!
Ele deu mais dois passos à frente. Malix estava sorrindo enquanto o alcançava.
Bell bateu com o punho no nariz da criatura, os nós dos dedos estalando contra carne
e osso. O sangue quente jorrou no rosto de Bell. Por um segundo estúpido, Bell olhou em
choque para Malix, incapaz de acreditar no que ele tinha feito.
Então, ele escapou. Um grito escapou de seus lábios quando as garras ao longo da
parte inferior da asa da criatura rasparam a bochecha de Bell.
Malix rugiu de raiva atrás dele, mas Bell avançou pelo corredor, correndo mais rápido
do que ele jamais pensou que poderia. A coragem recém-descoberta o estimulava.
Deusa Acima, isso foi bom.
Ele dobrou a esquina. O Noctis trovejando atrás dele. Outro corredor se abriu e Bell
cortou para a esquerda, batendo na pedra.
Ele mal sentiu a dor em seu ombro. Mal sentiu os cortes em sua bochecha jorrando
sangue para o chão a cada batida forte de seu coração.
Um beco sem saída. Porcaria.
Bell se virou para correr, mas era tarde demais. As garras de Malix arranhavam o chão
enquanto ele caminhava em direção a ele, suas asas abertas e lançando sombras profundas
sobre Bell.
Raiva - os olhos negros do monstro brilhavam de raiva e ódio, seus lábios se torcendo
em um sorriso de escárnio.
Bell estava preso... sem arma. Sem chance de fuga. Onde estava sua magia? Ele ergueu
as mãos como se de alguma forma seu desespero pudesse fazer seus poderes existirem.
Mas não havia nada em suas palmas, exceto sujeira e suor.
— Problemas com sua magia? — Malix ronronou. Ele fechou as asas e se aproximou.
— Não se preocupe, príncipe. Vou pegar sua magia e fazer bom uso dela. Talvez... — Em
um piscar de olhos, Malix estava a centímetros do rosto de Bell. — Talvez eu use sua magia
para mantê-lo vivo enquanto eu rasgo sua caixa torácica e me banqueteio com seu coração.
O que acha disso?
Bell tentou atingir o rosto do Noctis, mas, desta vez, Malix estava pronto e ele pegou
o braço de Bell e torceu-o. Fogo atravessou o ombro de Bell.
Ele gemeu, tentando se afastar.
Com uma risada estridente, Malix sussurrou no ouvido de Bell: — Eu te disse para
não correr, Príncipe.
Então, ele ergueu Bell pelo pescoço e o jogou contra a parede. A escuridão cintilou,
seguida por dores agudas em todos os lugares. Bell desabou no chão com o monstro Noctis
pairando sobre ele.
O cheiro de sangue estava forte em sua boca. O cheiro de medo era mais forte ainda...
Apoiando-se nos cotovelos, Bell começou a se arrastar de volta para o corredor aberto.
Talvez se alguém o visse. Talvez...
As garras de Malix cravaram nos tornozelos de Bell, puxando-o de volta para a
escuridão. Bell gritou, chutando o rosto horrível do monstro. Seus movimentos arrancaram
as garras de sua carne e ele gritou novamente, usando a dor para alimentar sua raiva, sua
vontade de lutar.
Ele tentou se levantar.
Uma batida em sua cabeça o fez cair novamente.
Mais escuridão. Quando ele abriu os olhos, Malix estava espalhado sobre ele, suas asas
enroladas em torno deles para esconder o que estava para acontecer.
Hálito quente e podre atingiu o rosto de Bell quando Malix mostrou suas presas e
disse: — Eu adoraria brincar mais, Príncipe, mas outros podem querer provar. E eu não
gosto de compartilhar, então...
O coração de Bell se agitava dentro de seu peito. Ele não conseguia respirar. Malix
tinha os dois braços de Bell presos acima da cabeça com uma mão. O outro traçou uma garra
cinzenta, longa e curva.
Essa garra cutucou ao longo do esterno de Bell. Uma vez. Duas vezes.
— Você sabia — Malix murmurou, sua voz rouca e rápida de excitação — que nossas
garras podem rasgar ossos?
Bell se contorceu quando a garra perfurou sua carne e cavou em sua caixa torácica...
Um rugido quebrou o ar. As mãos de Bell ficaram livres quando Malix o soltou.
Verde brilhou através das sombras e Malix foi lançado contra a parede. O Noctis soltou suas
presas e tentou se levantar, mas quem tinha atingido Malix o seguiu, atacando antes que o
Noctis pudesse se recuperar.
Bell olhou em estado de choque para a capa verde, as costas curvadas.
A criatura.
Rosnados e gritos de dor vieram dos homens se contorcendo, enquanto lutavam, e
Bell teve que se virar. Ele deveria ficar? Correr? Não, ele deveria lutar. Ajudar a criatura.
Mas dois passos o fizeram cair de lado, sua cabeça girando. Ofegante, ele se pressionou
contra a parede e esperou até que, finalmente, a criatura puxou uma adaga de algum lugar e
a enfiou no peito do Noctis.
Chamas de ouro e prata iluminaram as sombras e o Noctis se transformou em um
monte de cinzas no chão.
E, de repente, a luta acabou.
A criatura ficou de pé. Por um segundo, ele olhou para as cinzas no chão, ofegante,
seus ombros curvados levantando a cada respiração irregular. Ele parecia estar em pior forma
do que Bell, se isso fosse possível. Então, como se lembrando do príncipe, ele se virou,
lentamente se abaixou e o ergueu sobre o ombro.
Bell gritou com a dor aguda em seu ombro e cabeça.
— Sinto muito — a criatura disse ofegante, enquanto eles deslizavam pelo corredor.
— A dor não pode ser evitada. Eu vou te curar quando voltarmos para o meu lado do castelo.
Bell estava inconsciente. Ele piscou e as paredes de obsidiana de Spirefall foram
substituídas por estrelas e uma lua quase cheia. Outra piscada, outra respiração irregular, e
eles estavam dentro da casa da criatura, o fogo forte.
Bell finalmente permitiu que seus olhos se fechassem. Ele sentiu a maciez do sofá. Os
dedos enluvados da criatura foram repentinamente gentis enquanto cutucavam seu corpo
machucado e quebrado em busca de ferimentos.
Então o fogo se alastrou ao longo de seus ossos, sua carne.
Mas o fogo estava distante como o beijo do sol em um dia de inverno. Ele apenas
gemeu, quando as chamas entraram em sua cabeça... mas mesmo isso parecia tão distante.
A vida de outra pessoa. A dor de outra pessoa.
— Durma. — As palavras gotejaram de outro reino enquanto ele obedecia.
Eles acamparam em um grande penhasco com vista para um rio largo e semi-
congelado de preto brilhante, sombreado pelo aglomerado irregular de montanhas que
separavam as Ruínas do Reino das Sombras. Haven envolveu sua pobre capa ao redor de seu
corpo para proteção contra o vento cortante e olhou para seus companheiros amontoados
ao redor de uma fogueira, cobiçando seu calor.
Seu próprio fogo de magia das sombras, uma bela chama azul-gelo misturada com
preto, havia se apagado há muito tempo, seu corpo drenado demais para sustentá-lo.
O que só alimentou sua determinação de obter runas de carne.
Os outros a observavam de sua posição calorosa com expressões divertidas e
ligeiramente preocupadas. Eles provavelmente presumiram que ela teria que se juntar a eles
eventualmente ou enfrentaria um congelamento até a morte - o que era verdade.
Surai pousou em seu ombro por um tempo, seus gritos preocupados alto nos ouvidos
de Haven, até que o frio provou ser demais para o pássaro.
Haven sabia que ela estava sendo ridícula, mas ela não se importava. Eles estavam
perdendo tempo. Tempo que Bell não tinha. Ela tinha certeza de que a resposta para tudo
estava escondida sob a ponta dos dedos, em sua magia, e ainda assim ela não podia controlá-
la. Não propriamente.
Talvez se ela tivesse vinte anos para praticar...
No entanto, ela nem sequer tinha um dia garantido. Uma hora. Sua vida estava se
esgotando e os Solis não podiam deixar de lado as regras estúpidas e a tradição para fazer com
que as últimas horas de seu tempo fossem úteis.
Dê-me uma arma, pensou ela, franzindo o cenho para Archeron, quente e
aconchegante perto do fogo. Veja como sou útil então.
Como se sua demanda tivesse viajado através do ar gelado até a bela cabeça do Senhor
do Sol, Archeron olhou em sua direção. Todos haviam aproveitado a oportunidade para
invocar roupas mais quentes na protegida enseada das selkies e ele estava enterrado sob uma
capa de arminho negra, sobrancelhas douradas como mel abaixadas em uma carranca.
Quando ele percebeu que ela estava olhando, um sorriso divertido iluminou seu rosto
e ele se levantou antes de andar com sua discrição de sempre. O vapor saía da tigela de
ensopado de Bjorn entre suas mãos.
Ele lhe ofereceu a tigela. Ela olhou para ele.
— Deusa Acima, Haven — Archeron ronronou — você vai recusar comida? —
Debaixo de seu tom imperioso havia uma preocupação recorrente.
Seu olhar deslizou avidamente de volta para a tigela. Marcas de runa brilhavam em
laranja ao longo do lábio interno, refletindo em um ensopado espesso e irregular. — O que
há nele?
Ele deu uma risadinha. — Você realmente quer saber?
Ela balançou a cabeça e aceitou a oferta. Um suspiro escapou de sua garganta quando
o calor trabalhou em seus dedos congelados. Quando ele se recusou a sair, ela enfiou uma
mordida abrasadora na boca e ergueu as sobrancelhas para ele. — O quê?
Ele estalou suavemente. — Sua coisa ingrata.
Pedaços estranhos de alguma coisa giraram em torno de sua boca e ela engoliu
rapidamente sem mastigar antes de forçar um — Obrigada.
Sua garganta balançou. Tirando a capa forrada de pele, ele a colocou sobre os ombros
dela. Ela estremeceu quando o calor do corpo dele se infiltrou no dela.
— Obrigada — ela murmurou, novamente. Desta vez com mais sentimento.
— Suas maneiras precisam de algum trabalho.
— E sua arrogância precisa de... seu próprio castelo!
Um momento de silêncio se passou e então metade de seus lábios se curvaram. —
Acho que era para ser um insulto, mas não tenho certeza.
Ela olhou para os pedaços de carne em sua tigela para que ele não visse seus olhos se
enrugando. — Era.
— Então, estou profundamente ofendido — ele brincou, sentando-se ao lado dela na
rocha. — Embora seu próprio reino seja provavelmente mais verdadeiro. — Ele esperou um
momento, esfregando as mãos antes de continuar. — O que você pede é impossível, Haven.
Eu sei que você deve estar frustrada...
— Não. Você não sabe. Você nasceu com marcas rúnicas para guiar sua magia. Tudo
o que você precisa fazer é pensar e está feito.
Ele bufou. — Isso é o que você acha? Sim, nasci com as runas de carne de meus
ancestrais, mas ainda precisei aprender a moderar minha magia. As marcas de runa em minha
carne podem me dar o poder específico de criar uma folha a partir de um grão de areia, mas
tive que praticar para garantir que a folha não se tornasse uma floresta.
Haven mordeu várias observações infantis. A ideia de um jovem Archeron ficando
frustrado por muito poder não inspirava exatamente pena... mas ele estava
obviamente tentando fazer as pazes.
Ela colocou a tigela na mesa, olhando para os outros que fingiam não observá-los. —
Deve haver uma maneira de adicionar marcas de runa ao meu corpo. E, se você está
preocupado em ofender a Deusa, estarei morta em breve de qualquer maneira, então posso
dizer pessoalmente a ela que não é sua culpa.
Um grunhido retumbou em seu peito. — Isso é o que você imagina? Que estou
preocupado em perturbar a Deusa? Se eu achasse que isso te deixaria mais segura, eu
quebraria todas as malditas leis dela sem pedir desculpas.
— Então por que você é contra isso?
— Porque, uma vez que você tiver uma marca de runa, minha espécie irá caçá-la até a
morte. Pela sombra do Sombreamento! Eu poderia ser ordenado a encontrá-la e enforcá-la
nos portões de marfim do palácio de Effendier, com você tendo sua carne arrancada e
queimada. É isso que você quer?
— Eu quero quebrar a Maldição. Eu quero que meu melhor amigo... — Sua voz
falhou e ela limpou a emoção de sua garganta. — Quero que Bell viva depois dos dezoito
anos e tenha dez filhos lindos, tão gentis e inteligentes quanto ele. Eu quero um reino mortal
que não se esconda sob a sombra da Rainha das Sombras.
Ele deve ter pensado que ela tinha parado de falar, porque ele abriu a boca...
Ela ergueu a mão para silenciá-lo. — E eu quero morrer fazendo algo incrível com o
poder que me foi dado. Algo digno. Por mais estúpido que pareça, quero fazer do nosso
reino – nosso reino – um lugar melhor.
Ele enrijeceu. — Quantas vezes devo dizer que não vou deixar você morrer?
Mordendo o lábio, ela pegou a mão dele. Seu coração batia, enquanto ela deslizava os
dedos sobre a pele macia na parte de trás dos nós dos dedos dele. — E eu acredito que você
vai tentar. Mas eu não tenho medo da morte, Archeron. Tenho medo de deixar a única
pessoa que se preocupou comigo morrer por causa da minha magia. E eu estou apavorada.
Com medo de decepcioná-lo. Por favor, me ajude.
O silêncio caiu sobre eles, cortado apenas pelo gemido do vento. Lentamente, seus
dedos se enrolaram em torno dos dela. — Eu vou pensar sobre isso.
Isso era tudo que ela receberia do carrancudo Senhor do Sol.
Sorrindo com a pequena vitória, ela lançou um olhar para suas mãos entrelaçadas. —
Será que eu atrapalhei a sua etiqueta de cortejo Solis?
Um olhar feroz brilhou em seu rosto. — Você atrapalha tudo, Pequena Mortal.
De repente, sua mão dentro da dele parecia quente e pesada, e uma sensação de vazio
cresceu dentro de seu peito até que ela mal conseguia respirar.
Evitando o olhar de Archeron, ela se concentrou no grupo ao redor do fogo. —
Devemos formar um plano para amanhã.
Por um momento, seus dedos se apertaram ao redor dos dela. Mas então, ele puxou
sua mão e eles se juntaram aos outros.
Ainda assim, o calor crepitante do fogo não era nada comparado ao desejo agitado em
suas veias.
Tinham havido meninos e quase-homens antes - um treinador na academia, um
soldado de passagem de um reino próximo - mas nenhum que significasse algo para ela.
Esse era o ponto.
Talvez fosse por saber que sua morte era iminente, mas agora ela queria algo mais.
Não as mãos curiosas de um menino cujo rosto e nome ela não conseguia se lembrar; ou o
hálito encharcado de vinho de um treinador bêbado que ela conseguia superar com sua
lâmina.
Mais.
Hora perfeita para decidir isso, ela se repreendeu, enquanto Rook traçava o plano
para a última tarefa. Ela estava sentada em um tronco. Suas costas retas e ombros elevados,
apesar do cansaço que revestia seu rosto. Um cenário de estrelas delineava sua figura
escultural e Haven decidiu que nunca tinha visto alguém parecer mais com uma rainha do
que a Princesa Morgani.
Surai – recém-transformada em sua forma Solis – estava aninhada no ombro de sua
companheira, seu cabelo escuro solto e contrastando com as tranças pálidas de Rook.
A mão de Surai repousava na perna de Rook, o dedo mínimo de sua mão esquerda,
de ossos delicados, pressionado contra a muito maior e mais capaz de Rook. Um pequeno
gesto íntimo destinado apenas a elas.
Como seria amar alguém tanto assim? Compartilhar piadas internas e gestos secretos?
Uma pontada de decepção a atingiu. Se as palavras de Bjorn fossem verdadeiras, ela
nunca saberia.
Rook cruzou as pernas na altura do tornozelo, exibindo suas botas de couro de
bezerro na altura do joelho. Cada uma ostentava uma fivela de ouro adornada com
diamantes. — Bjorn e eu discutimos nosso próximo passo enquanto vocês dois estavam...
—os dentes de Rook brilharam em um sorriso — conversando, e a única maneira de
recuperar o último item para o Preço da Maldição, uma lasca do chifre da Rainha das
Sombras, é invadir Spirefall....
— Você sugere uma loucura — Archeron disse, sua voz calma pinicando a pele de
Haven enquanto ela sentia o sangue drenar de seu rosto e formar uma poça, fria e coagulado,
em seu intestino.
Loucura, de fato.
Haven puxou a capa de Archeron com mais força ao redor de seu corpo, apesar do
beijo quente de fogo dançando perto de sua pele. — Não podemos atraí-la de alguma forma?
Rook olhou para trás de Haven para as nuvens escuras obscurecendo o céu sobre o
Reino das Sombras. — De acordo com Bjorn, a Rainha das Sombras nunca sai do castelo.
Bjorn acenou com a cabeça. — Morgryth não precisa. Seus corvos permitem que ela
veja tudo de Spirefall e seus gremwyrs agem por ordem dela. Ela permaneceu protegida em
seu covil desde que a Maldição foi lançada.
— Inteligente — Haven murmurou. — Como alguém pode quebrar a Maldição
quando o item final está trancado dentro de uma fortaleza impenetrável?
— Exatamente — Rook caminhou ao redor do fogo com a cabeça erguida, parecendo
totalmente a princesa que ela era, enquanto as chamas lançavam um brilho laranja contra
sua capa pálida como a lua e as maçãs do rosto salientes. — Exceto, não é tão impenetrável
quanto ela pensa.
— O que você quer dizer?
— A Rainha das Sombras tem uma fraqueza. Ela mantém o príncipe mortal que
assassinou sua filha no castelo, forçando-o a cuidar de cada criança mortal trazida para
Spirefall como um sacrifício. Só ela seria tão cruel.
Archeron colocou uma mão larga no ombro de Rook para impedi-la de continuar
andando. — E como isso nos ajuda?
Rook deu um sorriso feroz. — Eu conheci esse príncipe mortal uma vez. Um idiota
vaidoso e egoísta, como você, Archeron. — Ela piscou para o Senhor do Sol. — Mas imagino
que ele faria qualquer coisa para parar sua tortura perversa. Como quebrar uma barreira ou
duas.
Archeron soltou uma risada calorosa e envolveu Rook em um abraço de urso. —
Princesa Morgani, eu poderia te beijar agora mesmo.
E, fiel às suas palavras, ele fez isso. Um beijo dramático em sua bochecha que fez a
princesa se contorcer descontroladamente.
— Chega — ela rosnou enquanto se desviava sob seus braços, enxugando sua
bochecha. — Esses lábios tocaram todas as Rainhas do Sol no Mar Cintilante.
Archeron lançou um olhar preocupado para Haven antes de se concentrar
novamente em Rook. — Você fala de quase cinco séculos atrás, quando eu era um jovem
soldado ignorante. Não me faça desenterrar seu longo histórico…
Rook silenciou Archeron com uma cotovelada nas costelas. — Concentre-se no
plano, menino bonito.
— O que eu não estou percebendo? — Haven perguntou antes de esclarecer: — Não
sobre os lábios errantes de Archeron. Eu sabia que ele era um mulherengo no momento em
que o conheci. — Rook riu e Archeron olhou para ela. — Sobre o príncipe mortal. Como
podemos alcançá-lo?
— Isso se chama Jornada dos Sonhos, Mortal — Bjorn disse.
Archeron soltou Rook e se virou para Haven. — Porque ela o conheceu, ela pode
contatá-lo em um sonho.
— Ela não precisa de uma mecha do cabelo dele? — A pergunta surgiu antes que
Haven tivesse tempo de pensar sobre as implicações e ela acrescentou: — Eu li sobre isso em
algum lugar.
— Tecer sonhos — Bjorn disse, inclinando a cabeça na direção dela — é totalmente
diferente. Oferecer seus sonhos a outra pessoa por toda a vida é um ato íntimo e muito
poucos são poderosos o suficiente para conceder tal coisa. Menos pessoas ainda estão
confortáveis com as consequências.
O coração de Haven deu um salto. Vida?
Várias outras perguntas vieram à mente, junto com alguns palavrões para Stolas, mas
ela as guardou para mais tarde. Perguntar agora pareceria suspeito e Bjorn já estava olhando
de soslaio para ela com aqueles olhos astutos que viam tudo e nada.
Em vez disso, ela disse: — Como Rook pode fazer isso quando há magia das sombras
neste reino?
Rook balançou a cabeça. — A escuridão não pode acessar a magia em meus sonhos.
— Ela sorriu para Archeron. — E se eu puder convencer o príncipe caído a quebrar uma das
proteções nas portas de Spirefall...
— Nós teríamos uma maneira de entrar — Archeron terminou. Ela nunca tinha
ouvido sua voz soar tão esperançosa.
— Então, estamos de acordo? — Rook perguntou, olhando ao redor. — Se o príncipe
caído conseguir quebrar uma das proteções nas portas, nós vamos entrar?
Por alguns segundos, o único som era o crepitar do fogo e o vento uivante.
— Concordo — disse Bjorn.
Surai pegou a mão de Rook enquanto assentia.
Ninguém mencionou o óbvio. Que a missão era provavelmente uma sentença de
morte. Mesmo que o príncipe caído quebrasse a proteção e eles conseguissem entrar em
Spirefall e passar pelos guardas, mesmo que eles de alguma forma conseguissem chegar perto
da Rainha das Sombras... eles ainda tinham que cortar uma lasca de seu chifre, tudo sem
magia.
Bem, exceto pelos poderes quase inúteis de Haven.
Ela não hesitou. — Concordo.
Archeron cravou os olhos nela, algo sombrio e feroz passando entre eles. Sua garganta
se apertou de emoção enquanto ela lia seu rosto, seu significado.
Eles estavam nisso juntos. Eles se ergueriam juntos e cairiam juntos e, se o destino
assim desejasse, morreriam juntos.
— Concordo — Archeron disse.
Quando a lua quase cheia espiou por cima das montanhas e uma leve camada de neve
começou a cair, eles decidiram que era hora de descansar. Mais uma vez, Haven sentiu a
vergonha de sua mortalidade cair sobre ela. O sono nunca pareceu mais uma pris o do que
agora.
Ela empurrou uma pedra perto do fogo com a ponta de sua bota, imaginando se havia
uma runa para conseguir ficar sem dormir. Mas, então, ela viu a maneira como Surai e Rook
se abraçaram e entendeu que esta noite não era apenas para dormir.
Era também uma chance de se despedir - só por precaução.
— Podemos descansar hoje à noite e partir de manhã cedo — Rook disse, enquanto
tirava dois cobertores de lã tingidos de verde-pinheiro. — Se tivermos sorte, podemos chegar
a Spirefall ao anoitecer e ao atacar quando Surai e eu estamos em nossas verdadeiras formas.
Archeron deu um passo à frente. — Eu posso atuar como vigia esta noite enquanto...
— Não. — Rook lançou um olhar conhecedor para Haven antes de olhar de volta
para Archeron. — Você tem outras coisas para fazer esta noite. Eu posso fazer isso.
— Princesa, eu vou ficar de guarda — Bjorn ofereceu. — Eu sou o único sem... um
parceiro. — Rook fez um gesto para que ele parasse, mas ele insistiu. — Você precisa tentar
sonhar com o príncipe caído.
Rook suspirou, seus lábios se torcendo em uma carranca. — Tem certeza? Depois de
sua última visão, você parecia... drenado. Todos nós sabemos que estar mais perto de
Spirefall trouxe de volta memórias dolorosas.
Era verdade. Algo estava diferente em Bjorn desde o início da jornada. Como se ele
tivesse perdido sua faísca, se apagando, de alguma forma.
Bjorn abriu um sorriso cansado. — Só estou cansado de dormir no chão e estar
cercado por magia das sombras; isso é tudo. — Ele fingiu encher sua xícara com um pouco
de bebida esquentada no fogo. — Vá. Eu não poderia descansar mesmo se quisesse.
Rook inclinou seu corpo alto e beijou a testa de Bjorn. Ela apertou seu ombro, os
olhos estreitos com preocupação. — Se você mudar de ideia, Vidente, venha me encontrar.
Foi difícil deixar o calor do fogo. Haven ficou grata por suas duas capas quando
pedaços de neve explodiram das montanhas e atingiram seu rosto.
Rook a alcançou e Haven diminuiu a velocidade para caminhar com ela em direção
aos poucos recessos cortados na encosta da montanha que eles usariam como abrigo. Flocos
de neve cobriam o cabelo da princesa e grudavam em seus cílios loiros.
— Sobre o que você disse antes — Rook começou. — As marcas de runa. Sinto
muito, Haven. Ter o poder que você tem, tanto da luz quanto das trevas, e não saber o que
fazer com ele ou como orientá-lo, deve ser difícil.
Haven deu um aceno solene, sufocando sua frustração. Provavelmente não era todo
dia que uma princesa Morgani se desculpava.
— Você deve saber que a razão pela qual hesitamos é que você se tornou parte de
nossa família e não podemos perder outra pessoa. Runas de carne em seu corpo seriam uma
sentença de morte para você.
— Archeron me disse.
Eles estavam no primeiro abrigo, uma alcova baixa, grande o suficiente para duas
pessoas se esticarem. Rook olhou por cima do ombro para Archeron e Bjorn. — Antes de
perder Remurian, Archeron teria feito isso por você, apesar do risco. Ele nunca poderia dizer
não para aqueles que amava. Mas, quando alguém de quem você gosta morre, o espectro da
morte está sempre lá, lembrando-o de que qualquer um pode ser levado embora. Isso muda
você.
Haven passou a mão sobre a saliência cinza da ardósia, traçando veias prateadas que
corriam pela rocha com o dedo. — Ele me disse que iria pensar sobre isso.
— Ele pode ter dito isso e talvez o faça. Mas ele não correrá o risco de perder você
também e sua resposta será não. Eu só espero que você possa entender o porquê.
Haven soltou uma respiração turva. — Veremos.
Ela se recusava a pensar que Archeron diria não, especialmente depois que ela
explicou a ele porque queria as marcas de runa. Pela manhã, ela tentaria novamente.
— Archeron diz que você está fazendo tudo isso para salvar um príncipe mortal? —
Rook perguntou.
— Eu fiz um juramento para protegê-lo. — Haven soltou um suspiro, observando-o
congelar em uma pluma leitosa.
— Mesmo assim — Rook disse. — Muito poucas pessoas se arriscariam como você,
mesmo por um juramento.
— Você quer dizer poucos mortais?
— Não. — Ela puxou a ponta de uma de suas tranças. — Nós Solis não somos tão
honrados quanto pensamos. Todos – mortais ou não – sentem medo.
— Até você? — Haven brincou, pensando que ela diria 'não'.
— O tempo todo, Haven. — Rook correu dois dedos por seu pescoço. — Você sabe
que membros da realeza Morgani são informados da forma como morrerão?
— Então você sabe... como isso termina?
Ela assentiu com a cabeça, seus olhos âmbar escurecidos para ouro manchado,
quando um sentido de finalidade caiu sobre ela. — Somos informados de como morremos
desde o nascimento, para que a morte não nos mantenha escravos.
— Se você sabe quando vai morrer, não pode evitar?
Por um momento, seus olhos perderam o foco e ela parecia perdida em seus
pensamentos.
Então a Princesa Morgani sorriu, o sorriso melancólico fazendo-a parecer radiante.
— Minha morte é honrosa e boa. Eu não temo isso, Haven. Só a tristeza que virá depois para
aqueles que eu deixar para trás. E a culpa que eles podem sentir...
Havia algo implícito em suas palavras que Haven não conseguia desvendar e ela ficou
inquieta.
Rook riu, qualquer seriedade residual desaparecendo sob aquele som lírico. —
Desculpe pela mudança de humor, Mortal. De volta ao seu príncipe. Você deve amá-lo
muito.
— Ele foi meu primeiro amigo verdadeiro — Haven admitiu, embora a declaração
não fizesse justiça ao que ela sentia por Bell.
— Mas não o seu único amigo. — Rook deslizou os dedos sobre o braço de Haven.
— Certamente você vê isso agora?
Um arrepio de felicidade a percorreu. — Eu vejo.
— Surai também não tem muitos amigos — Rook continuou. — E nosso isolamento
aqui tem sido difícil para ela, não que ela vá admitir isso. Você a fez sorrir de novo de uma
forma que eu não consegui e sei que você sempre estará aqui para apoiá-la. Então, obrigada.
Muito aturdida para dizer qualquer coisa, Haven apenas assentiu, novamente
sentindo que havia algo que ela não percebia. Então ela observou que Rook ainda estava em
sua forma Solis. — Por que você ainda não se transformou?
Rook girou algo ao redor de seu dedo - um anel de ônix. Uma runa azul ígnea pulsava
do centro plano. Algo sobre a runa parecia errado para Haven. Sombria.
— Existem maneiras de contornar a nossa maldição. Este anel permite que eu fique
na minha forma verdadeira, mas a um grande custo. Eu nunca usei isso antes... mas o preço
vale a pena. Uma noite inteira com Surai. — Uma emoção que Haven não conseguia ler
atravessou o rosto de Rook e então ela balançou a cabeça para alguma coisa por trás de
Haven. — Agora, diga ao bonitão ali não para mantê-la acordada até muito tarde. Como
uma mortal, você precisa dormir um pouco.
Haven sabia que Archeron estava atrás dela mesmo sem olhar, mas não pôde deixar
de virar. Como estivesse esperando que ela fizesse isso, um sorriso felino se estendeu por sua
mandíbula, seus olhos brilhando.
Ela rapidamente encarou Rook novamente com seu próprio sorriso tímido. — Boa
noite, Princesa.
Rook revirou os olhos e riu enquanto se inclinava para frente e roçava os lábios na
bochecha de Haven. — Eu não sou mais uma princesa. Assim como você não é uma mortal
de verdade. Você é uma de nós. E você — seu olhar se voltou para cima, novamente para
Archeron — meu lindo amigo, precisa deixá-la descansar.
Archeron riu. Uma canção quente e sensual em que ela poderia se afogar. — Como
você comanda, Princesa.
Rook rosnou de brincadeira para ele. Mas seu olhar permaneceu fixo, seus olhos
melancólicos e tristes de uma forma que Haven não entendia.
Então, com uma última ameaça de estripação se Archeron não deixasse Haven
dormir, Rook se retirou para seu abrigo.
De repente, eles estavam sozinhos.
Trêmula, Haven se virou para ver o Senhor do Sol espalhar uma pele de pelo escura
sobre o chão de sua alcova. Sem a capa, apenas uma túnica fina e calças separavam seu corpo
do frio, mas ele não parecia se importar com o vento cortante enquanto dobrava outro
cobertor para servir de travesseiro.
Então, ele agarrou a barra de sua túnica e a puxou sobre a cabeça.
Deusa salve-a.
Sua boca se abriu enquanto ela absorvia a imagem da carne morena da parte superior
de seu corpo, lisa e firme, coberta de marcas rúnicas da cor das estrelas. Os redemoinhos e
linhas prateadas pareciam dançar com cada movimento seu... uma coreografia de músculos
e carne da qual ela não conseguia desviar o olhar.
— Sua vez, Mortal — ele disse, sua voz baixa e queimando com propósito.
— O quê?
Ele se estendeu sobre a pele de animal para observá-la, rindo mesmo enquanto seus
olhos queimavam com poder – uma faísca verde ardente que de alguma forma conseguiu
romper a barreira da magia das sombras e dançava ao redor de suas íris.
— Nós não temos fogo — disse ele com naturalidade. — Então, pele a pele nos
manterá aquecidos. A menos que... você queira que eu construa um para nós? Eu posso, se
você assim o desejar.
Um olhar satisfeito o dominou quando ela balançou a cabeça.
Ela engoliu em seco, o olhar dele marcando cada movimento seu enquanto ela tirava
as duas capas e as jogava na cama.
Ele esperou com um olhar faminto enquanto ela fazia uma pausa, suas mãos
emaranhadas na parte inferior de sua túnica. Tudo o que ela tinha embaixo era uma camiseta
frágil e suas calças. Mas a promessa de seu calor a levou a continuar e sua túnica caiu no chão
com um silvo silencioso.
O ar gelado passou sobre sua pele e ela pulou para o abrigo ao lado dele, seu coração
batendo em seus ouvidos. Ele deslizou o tecido pesado sobre os dois, as capas suaves em seus
braços nus.
Por um momento, ela ficou deitada virada para o lado, sua respiração pesada era o
único som. O corpo dele estava quente e maciço em suas costas.
Um pequeno suspiro escapou de seus lábios quando ele deslizou um braço sobre seu
estômago, o outro sob seu pescoço para embalar sua cabeça. Então, ele a puxou para seu
corpo duro. O calor rolou sobre ela, enchendo-a como uma onda de fogo. Hálito quente
atingiu seu pescoço.
Por instinto, ela tentou empurrar seu traseiro contra ele, mas ele se afastou, seus
braços apertando ao redor dela. — Uma coisa de cada vez, Haven.
— Achei que você fosse me beijar? — Sua voz era rouca.
Seu coração martelava contra sua omoplata esquerda enquanto ela esperava por sua
resposta. — Você quer que eu te beije?
Ela se contorceu dentro de seus braços apertados para encará-lo, inalando seu cheiro
de couro e alguma flor exótica que ela não conseguia nomear. Seu peito pressionou contra
o dela através de sua camiseta fina e ela deslizou o pé descalço por sua cintura, prendendo-o
atrás das costas.
— Pelos dentes de Odin, Mortal — ele gemeu. — Seus pés são feitos de gelo.
Ela cravou os dedos dos pés em seu flanco. — Cala a boca e me beija.
Ele soltou uma respiração irregular. — E onde a mortal gostaria que eu a beijasse?
— Eu não sei. Onde você beijou todas as inúmeras Rainhas do Sol que Rook
mencionou?
Ele franziu a testa. — Eu era jovem, Haven, um guerreiro imprudente e egoísta...
Ela deslizou dois dedos sobre os lábios para silenciá-lo. — Eu não me importo com
isso, Archeron. Nós dois temos um passado que não seria bom reviver agora.
A pele ao redor de sua testa e boca suavizou quando ele relaxou visivelmente. — De
volta à pergunta, então. Onde?
Ela estremeceu, imaginando os lábios dele sobre sua carne, todos os lugares íntimos
que ela escondia do mundo...
— A parte de trás dos meus joelhos.
Sua cabeça inclinou para o lado. — Seus... joelhos?
Ela deu de ombros. — Você disse em qualquer lugar. Além do mais. Eu imagino que
você não beijou metade das Rainhas do Sol no reino lá.
— Não.
— Bom. Então, eu serei a primeira.
Mesmo sob a luz fraca das estrelas e do fogo moribundo atrás dela, ela podia ver a
expressão selvagem que cintilava em seu rosto. — Antes que eu o faça, você deve me dizer
algo pessoal. Algo privado.
Suas sobrancelhas pressionaram juntas. — Não é justo.
— Eu quero conhecer você, Haven. Não apenas sua carne, mas sua alma.
Por um segundo, o medo quase a fez dizer não. Afinal, era mais fácil expor um pedaço
de sua pele do que um pedaço de si mesma. Mas ela acenou com a cabeça, engolindo
enquanto pensava no que dizer.
E, então, ela encontrou. A única peça de sua história que moldou quem ela era. Falar
em voz alta era algo que ela nunca tinha feito, nem mesmo para Bell - e ela se fortaleceu com
uma golfada de ar antes de começar.
— Você já sabe o que o Devorador fez comigo pela memória que te enviei — Haven
começou. Ela tentou separar a emoção de sua voz, mas as palavras estremeceram em sua
garganta e saíram suaves e assombradas.
O corpo de Archeron ficou rígido com o tom dela, raiva tremeluzindo nas
profundezas de seus olhos e narinas dilatadas.
— Eu deveria ter arrancado a cabeça dele do corpo no acampamento dos Devoradores
— ele rosnou.
Damius. Seu rosto brilhou em sua paisagem mental. O ódio sombrio, corrosivo e a
possessividade que ele sentia por ela.
Um fio de pavor aninhou-se entre suas omoplatas, seu peito apertando, mas ela se
preparou para continuar. — Não teria feito diferença, Archeron. Morto ou vivo, ele sempre
viverá dentro dos meus pesadelos.
— Não se eu puder evitar. — Archeron pousou uma mão enorme em seu quadril e
acenou para que ela continuasse.
— Depois que eu escapei — ela começou, forçando sua voz mais alta para imitar força
—, eu vaguei pelas Terras das Ruínas, só a Deusa sabe por quanto tempo, mal sobrevivendo.
Mas meu corpo estava apenas agindo. Dentro... por dentro eu já estava morta. Damius tinha
me quebrado e, mesmo que eu tivesse escapado, ele ainda estava lá, meu pesadelo sem fim.
Sua voz falhou. Fazia anos desde que ela tinha chorado com a memória, mas algo
sobre falar as palavras deu nova vida ao pesadelo.
Tirando a pressão de seus dedos em sua cintura, Archeron ficou em silêncio. Ele
estava dando a ela tempo para se recompor. Para encontrar sua força.
Ela puxou duas respirações calmantes em seus pulmões e continuou. — Então, um
dia, eu estava catando frutas silvestres na floresta e encontrei uma raiz de cobra branca. Sem
pensar, fervi as folhas com um pouco de água do riacho e esperei até o cair da noite para
beber o veneno e acabar com a minha vida.
Ela fez uma pausa quando os braços de Archeron se apertaram ao redor dela, os
músculos de sua mandíbula tremendo.
— Vá em frente — ele insistiu, sua voz ilegível.
— Ainda posso sentir o vapor amargo e venenoso queimando meus lábios enquanto
me preparava para beber a tintura, a forma como minha boca formigava e meus olhos
ardiam. Bem, quando eu levantei a tigela, uma estrela cruzou o céu. De repente, apesar de
não ter lembranças da minha casa ou da minha vida anterior, lembrei-me da voz de minha
mãe clara como qualquer coisa, recitando a história da Deusa, Freya. Como Odin e os Noctis
a aprisionaram no Submundo após a Guerra dos Deuses e, ao invés de viver na escuridão por
toda a eternidade, ela renasceu.
— Primeiro, ela colocou seu coração no céu para subir e descer a cada dia e nos trazer
a luz. Então, ela espalhou sua magia pelos céus, de forma que, na escuridão, nós
lembraríamos de seu amor por nós. E, toda vez que alguém vê uma estrela cadente, Freya
está lembrando-o desse amor.
Ela fez uma pausa, sufocando a emoção que deu um nó em sua garganta. Mesmo
agora, ela podia ouvir a bela voz de sua mãe contando a história.
— Eu soube então — ela adicionou — que a Deusa tinha um plano para mim. Então,
eu larguei o veneno, cortei meu cabelo com a lâmina cega da minha adaga e renasci
exatamente como ela.
A respiração irregular de Archeron estava quente em seu rosto enquanto ele passava
um polegar sobre suas bochechas, enxugando lágrimas invisíveis.
Então, ele se apoiou sobre os cotovelos e deslizou sua capa pesada sobre suas cabeças.
Sua respiração engatou quando ela sentiu-o deslizar para baixo em seu corpo. A unha dele
deslizou sob sua cintura, desabotoando sua calça e a carne de sua barriga estremeceu. Ela
ergueu a bunda para que ele pudesse deslizá-la para fora dela, sentindo o ar frio formigando
suas pernas nuas.
Por algumas batidas erráticas de seu coração, não havia nada além de escuridão e
antecipação. E, então, suas mãos largas deslizaram sob seu tornozelo e ele ergueu sua perna
alguns centímetros.
Seus lábios pressionaram suavemente no ponto delicado abaixo de seu joelho e ela
engasgou com a sensação. Terno e selvagem.
Ela tentou mexer a perna, mas ele a segurou firme enquanto seus lábios viajavam pelo
interior de sua coxa. De alguma forma, encontrando as partes mais delicadas de seu corpo.
Ondas de calor caíram sobre ela e ela se perdeu na sensação de seus lábios em sua carne. Nada
estava fora dos limites, nem mesmo seus pés, desgastados pelos dias de viagem.
Ela começou a arquear as costas e a mão dele pressionou em seu estômago, enquanto
a outra agarrou seu traseiro e ele puxou-a para ele. Seus lábios encontraram seu estômago e
ela exclamou, tentando resistir, mas ele a segurou no lugar.
O fogo consumiu sua pele, seus ossos, sua medula, até que sua magia deslizou ao
longo de suas veias e ela teve que lutar para não liberá-la.
Deusa a salve, seus lábios não eram o suficiente. Ela queria tudo. Tudo.
A batalha estava em seu futuro e o sono frio da morte viria em breve.
Mas, em meio à carnificina e à incerteza que a esperavam, ela precisava sentir a verdade
primorosa de duas almas colidindo da maneira mais íntima que pudessem.
Ela precisava de Archeron dentro dela.
— Por favor — ela implorou.
Ela o sentiu fazer uma pausa logo acima do oco entre seus dois seios. Então, ele
arrastou a boca sobre seu pescoço, raspando os dentes levemente sobre sua clavícula.
— Esta parte de você é a minha favorita — ele murmurou. Ele correu dois dedos por
sua garganta e ela piscou quando ele puxou o cobertor, deixando entrar o luar. — Você não
tem ideia de quantas vezes eu observei a curva do seu pescoço se mover enquanto você ria
ou fazia algum comentário mordaz para mim.
Ela abriu a boca para se desculpar, mas ele pressionou os dedos em seus lábios. — O
que eu tenho certeza que eu mereci. A maioria das vezes. — Levantando o cobertor, ele
passou o olhar sobre o corpo dela, em seguida, soltou um suspiro profundo e ofendido. —
Você deve dormir agora, Haven. Rook vai me estripar se eu não te apresentar amanhã
descansada.
— Você não pode estar falando sério — Como ela deveria dormir agora?
— Eu estou.
— E se eu não quiser dormir?
— Então, faça isso por mim, Pequena Mortal, com a promessa de viver, para que
possamos continuar depois que a Maldição for quebrada.
— Mas Bjorn...
— Bjorn está errado — Archeron rosnou. Suas pupilas dilataram enquanto ele
sustentava seu olhar. — Diga. Diga que você vai viver.
— Ele já se enganou antes? — Sua voz era um sussurro. Ela queria acreditar em
Archeron, que havia uma chance de Bjorn estar enganado. Que havia uma pequena
possibilidade de ela não morrer.
Ela queria isso agora mais do que nunca.
A veia no meio da testa de Archeron pulsou com raiva enquanto seus lábios se
curvavam para trás. — Desde quando você deixa alguém te contar o seu destino? — Ele se
acomodou em seu cotovelo. — Só tenho certeza de uma coisa: a morte virá para você
amanhã, assim como para todos nós. Mas só você pode decidir se ela te levará. Agora diga.
Ela ergueu o queixo. — Eu vou viver.
Falar as palavras era seu próprio tipo de magia e, pela primeira vez, ela imaginou um
mundo com a Maldição quebrada... e o que poderia vir depois.
Só que isso trouxe mais perguntas.
— Se tivermos sucesso — disse ela —, você vai voltar para Effendier?
— Sim, se minha mãe permitir meu retorno. Mas estarei livre da minha escravidão ao
rei Horace.
— Como ele controla você? — ela perguntou, tremendo ao se lembrar quando o rei
ordenou que ele obedecesse, a forma como as bochechas de Archeron se afrouxaram e seus
olhos ficaram vidrados.
Uma sombra passou pelo rosto de Archeron e ele correu um dedo sobre o peito - logo
acima do coração. — Um anel. Ele sempre o usa na mão direita.
— Isso força você a fazer o que ele manda?
— A pedra preciosa aprisiona um fragmento de minha alma. — Um músculo saltou
em sua mandíbula e ele balançou a cabeça antes de puxá-la para si. — Não devemos falar
sobre assuntos tão obscuros. Não essa noite.
Agradecida pela mudança de assunto, ela se acomodou em seu corpo. — Uma vez
que quebrarmos a Maldição, o desejo pode ser qualquer coisa?
— De acordo com os mitos. — Sua voz adquiriu uma sonolência lenta e melosa. —
Quando quebrada, o poder da Maldição é transferido para a concessão de um único pedido.
— Apenas um? — Ela pensou que haviam mais.
— Apenas um — ele confirmou. — Os reis mortais precisavam de uma maneira de
atrair seus exércitos para as Ruínas, então eles começaram o mito dos múltiplos desejos, mas
eu mesmo li as antigas tábuas e a lei da Deusa declara um desejo concedido por uma maldição
quebrada, nada mais.
— E os outros estão bem com você tomando o único desejo?
— Claro — ele disse. — Eu sou o líder deles e o Solis mais velho. É meu por direito.
Ela bufou com sua arrogância.
— Você acha algo ofensivo?
— E se eu desejar o desejo?
Ele passou um polegar sobre seu estômago, fazendo-a perder o fôlego. — Com a
Maldição quebrada, seu príncipe fica livre. O que mais você deseja? Diga-me e farei tudo o
que estiver ao meu alcance para isso acontecer.
Uma imagem fugaz de seus pais – as formas sem rosto que ela criou para eles anos
atrás – brilhou em sua mente. Se ela pudesse desejar qualquer coisa neste mundo, seria
encontrá-los.
E, no entanto, depois de anos construindo-os para serem perfeitos em todos os
sentidos, uma parte dela estava apavorada com a perspectiva. — Meus... E quanto aos
outros?
— Quando minha escravidão ao rei for quebrada, pedirei a minha mãe que acabe com
a maldição de Rook e Surai e dê a Bjorn um lugar na corte.
— Ela vai ouvir? — Haven perguntou, tentando imaginar a Soberana Effendier.
Havia um retrato dela em um livro de séculos atrás em um trono cercado por ferozes Rainhas
do Sol. Tudo o que ela podia imaginar agora era uma severa Soberana do Sol, ainda mais
régia e bela do que Archeron, com olhos de jade e lábios severos e sérios.
— Se quebrarmos a Maldição, ficará mal para ela, se ela recusar. Além disso, era a mim
que ela queria punir mais do que ninguém.
— Como uma mãe pode ser tão cruel?
Uma risada sombria escapou de seus lábios. — Eu sou o filho acidental de um de seus
incontáveis concubinos masculinos. Se não fossem pelos poderes notáveis que demonstrei
no início, eu teria sido transportado da corte, juntamente com os outros bastardos que
minha mãe concebeu, para desaparecer em algum reino ignóbil. Mas eu nunca poderei
escapar da minha linhagem e devo provar meu valor mil vezes.
— Até mesmo para sua própria mãe? — Haven disse.
— Especialmente para ela. — A última palavra saiu afiada e fria. — Uma vez que o
Rei Boteler não me possuir mais, minha honra estará intacta e ela será forçada a me dar as
boas-vindas de volta. Minha linhagem pode ser questionável, mas minha magia é mais
poderosa do que qualquer verdadeiro filho ou filha da Soberana. Ela pode me desprezar, mas
não pode me negar um lugar na corte.
Haven passou um dedo pelos músculos de seu antebraço, em torno de sua barriga. —
Então eu rezo para a Deusa que você seja livre em breve.
— Livre. A palavra nunca soou tão bonita. Agora durma, minha Pequena Mortal.
Haven suspirou enquanto ele colocou o cobertor ao redor deles, a decepção
enchendo seu peito. Seu corpo ansiava por mais dele, mais exploração, mais alguma coisa...
mas ela se contentou com os braços dele envolvendo sua cintura.
Seu queixo se aninhou em seu pescoço e ele puxou seu corpo contra o dele. — Se as
estrelas são a razão pela qual você está aqui agora comigo, Haven Ashwood, então vou
agradecê-las todas as noites pelo resto da minha vida imortal.
Ela riu, afundando em seu calor. Agora ela entendia porque seu povo os chamava de
Senhores do Sol. Ele era uma chama envolta em carne e osso. Um fogo que aquecia a parte
mais profunda dela.
— Uma vida inteira de gratidão? — ela brincou. — Eu não sabia que você era capaz,
Archeron Halfbane. Então, isso significa que não sou mais uma chinga?
Ele beijou seu pescoço, um beijo suave e gentil que reverberou por seu corpo. — Oh,
você é isso mais do que nunca. Uma criatura incessante que se infiltrou no meu coração,
para o bem ou para o mal.
— Romântico — ela murmurou.
Quando ela se sentiu começando a adormecer, embalada por seu calor e proteção, ela
fez uma prece à Deusa para salvá-la mais uma vez.
Por favor, Deusa de todas as coisas boas e verdadeiras, se é meu destino viver, peço-lhe
que me ajude.
Malditas visões do vidente.
Ela se recusava a morrer. Não quando ela tinha tanto pelo que viver.
Stolas estava esperando por Haven sob o grande olmo de sua paisagem de sonho,
encostado na árvore com um braço atrás das costas. O outro puxava uma mecha de cabelo
branco prateado que havia caído sobre sua testa. Um colete de cetim, preto como as asas
enfiadas atrás das costas, afilado perfeitamente em torno de sua cintura, refletindo o luar
correndo ao longo do bordado de prata.
Ela correu pela grama ondulante para encontrá-lo, olhando para a paisagem em busca
de sinais do que quer que tenha estado lá da última vez. Mas, além do brilho das estrelas e do
sussurro do vento, tudo estava quieto. Nenhuma entidade sombria à vista.
Quando ela se aproximou, os lábios de Stolas se curvaram em um sorriso e ele se
desencostou da árvore e andou ao redor dela, seu olhar irônico deslizando por seu corpo do
jeito que o dela deslizava sobre o horizonte.
Foi quando ela percebeu que ela estava usando a última coisa que ela tinha embaixo
de sua camisola e nada mais. Cerrando os punhos, ela rapidamente acrescentou calças ao seu
sonho.
— Não se preocupe — disse ele. — Eu já vi tudo antes.
Seu estômago apertou e ela forçou os braços para baixo para evitar arranhar a
bochecha dele com as unhas. — Você estava me espionando?
— Eu sempre espio você. — Ele deu de ombros. — Embora, eu prefira “prestar
atenção para ver se você não se matou ainda”.
— Engraçado.
— Hilário, beirando horrível. Você esquece, Pequena Fera. Eu já vi seus dedos dos
pés e eu nunca vou conseguir esquecer a imagem de Archeron beijando-os.
— E quando você me fazer falar o seu nome quando estava com ele?
Um lampejo de confusão percorreu seu rosto. — Garanto-lhe que nunca me
rebaixaria a tanto. — Ele correu o polegar sobre sua mandíbula. — Você realmente disse o
meu nome? Eu imagino que ele não reagiu bem... ele não te machucou, não é?
— Ele nunca… só, não importa, esqueça. — Ela o olhou carrancuda, mas sua
expressão se suavizou apesar de seu aborrecimento. — Você está bem? Eu pensei... quando
você não apareceu...
Um músculo saltou em seu pescoço pálido. — Eu tinha que ter certeza de que a
Rainha das Sombras não estava me monitorando. Ela não disse uma palavra, mas posso
sentir uma mudança em sua atenção. É por isso que precisamos ser breves e...
— Que tal praticar minha magia? — Haven perguntou. Agora que ela estava a horas
de invadir o castelo da Rainha das Sombras, o pouco de magia que ela aprendeu em seus
sonhos parecia assustadoramente inadequado.
Ele a encarou com um olhar impaciente. — Pequena Fera, seus truques terão que
esperar. Devemos manter nosso encontro breve.
Ela soltou um suspiro frustrado, mas não discutiu. Ele estava certo. Especialmente
depois do que aconteceu da última vez. — Então, por que você está aqui?
— Eu preciso saber seu plano para amanhã. Diga-me que você tem uma estratégia
melhor do que o esquema ridículo que eu ouvi.
Ela cruzou os braços sobre o peito. — O que há de errado com ele?
Ele bufou. — Sombreamento Abaixo, como você e seu desajeitado Solis chegaram até
aqui? — Ele passou a mão pelo cabelo branco prateado enquanto suas asas se dobravam atrás
dele. — A Princesa Morgani não sonhará com o príncipe caído. Você realmente acha que
Morgryth já não protegeu seus sonhos de tais coisas?
Haven enfiou o dedo do pé na terra gramada. — Então o que você sugere?
— Encontre outra maneira.
— Não há outra maneira! — Ela puxou a bainha de sua camiseta. — O castelo está
protegido. Só alguém de dentro...
Ele ergueu uma sobrancelha afiada quando ela o encarou.
— Alguém de dentro — ela repetiu, seu coração disparado. — Morgryth estará te
observando muito de perto agora para que você faça isso, mas ela se importaria se você
encontrasse tempo para atormentar o príncipe caído? E talvez enquanto você faz isso, você
passa a mensagem para ele.
— Não. — Sua voz estava farpada com determinação. — Você não entende o que
está me pedindo.
— Mas está tudo bem eu quase me afogar? Quase sangrar até a morte pelas garras de
um vorgrath? — Ela marchou até que estivessem quase nariz com nariz. — Covarde.
A fúria fez os anéis amarelos dentro de seus olhos explodirem e ele mostrou suas presas
em um silvo. — Você não sabe nada. Eu vivi sob o reinado insidioso de Morgryth por mais
tempo do que você, apenas com minha inteligência para impedi-lá de me quebrar. Eu sei do
que ela é capaz, Pequena Fera, porque eu já aturei. Ela quebrou cada osso dentro do meu
corpo e deixou seus gremwyrs drenarem meu sangue até que minhas veias estivessem secas,
na primeira vez que me recusei a me casar com sua filha. Ainda assim, eu a recusei mais sete
vezes e cada vez se tornou pior que a anterior. Se eu visitar o príncipe caído, ela arrancará
minhas asas pena por pena, osso por osso.
Haven olhou de volta para ele, recusando-se a se encolher de suas presas à mostra. —
Então ela já te quebrou.
Sua bochecha tremia como se ela o tivesse golpeado. A dor lancinante queimava
dentro de seus olhos e, de repente, ele era o menino torturado e sequestrado que viu
Morgryth massacrar sua família. O príncipe perdido preso no Submundo, sofrendo e
sozinho.
Então, as emoções mortais se transformaram em sua indiferença usual. O fogo
amarelo circulando em suas íris se desvaneceu, seus incisivos se retraíram.
Um suspiro profundo separou seus lábios. — Você pede demais.
— Não mais do que você me pede. — Ela hesitou quando ela percebeu o perigo de
seu pedido. Stolas era um monstro, mas ele já fora um simples príncipe antes que a Rainha
das Sombras o moldasse com sua crueldade insondável no perverso Senhor do Submundo.
Pedir a ele para arriscar a ira da Rainha das Sombras novamente parecia errado...
Não há outra maneira.
— Você sabe que estou certa — acrescentou ela suavemente. — É por isso que você
vai fazer isso
Sua garganta pálida balançou. — Sim.
— Por quem possui aquela escova de prata?
Ele piscou e algo sombrio e assombrado brilhou sob sua máscara de porcelana.
— Sim.
O alívio tirou a tensão de seus ombros. Ela recuou um passo, arrastando as mãos sobre
a grama alta.
— Atacaremos amanhã à noite quando a lua estiver alta. Você...
A cabeça de Stolas chicoteou para cima e ele rosnou.
— Eles estão aqui! Acorde!
Como se empurrada por uma força invisível, ela acordou cambaleando, suada e
quente, apesar do ar frio. Ela saltou de pé - e quase quebrou a cabeça na saliência acima.
Arrastando a palma da mão sobre o rosto, ela trabalhou para livrar as últimas dragas
de sono de seus sentidos.
A noite estava quieta. O único som era o vento estridente através dos penhascos e sua
própria respiração ofegante.
Com o coração na garganta, ela vasculhou o acampamento em busca de algo
incomum quando sua respiração começou a se balancear. Um leve punhado de neve girava
com o vento. A noite parecia plana, morta.
Ela se concentrou na sensação fria de magia das sombras que zumbia no ar viciado.
Agitava-se através de sua medula como formigas-de-fogo, transmitindo uma sensação de
inquietação.
Algo a incomodava. O que estava errado?
Silêncio.
Sua respiração se enrolou em nuvens.
O fogo foi extinto há muito tempo.
Onde estava Bjorn?
— Haven.
O sussurro atraiu seu foco para Archeron enquanto ele deslizava silenciosamente para
o chão, seus olhos nunca deixando o céu. Seu cabelo dourado caía sobre um ombro, sua
túnica abotoada às pressas aberta no peito para revelar o pulso de luz de suas runas de carne
brilhantes.
Elas brilhavam mais do que o normal, o derramamento de luz iridescente das linhas
elegantes quase tão vibrante como o luar acima.
A luz rúnica de ouro alaranjado também brilhava dentro do aço de sua espada longa.
Ele lançou um rápido olhar em sua direção, a intensidade em seus olhos a levando a
colocar suas calças e recuperar suas armas sem um ruído.
A magia das sombras era agora um redemoinho sob sua caixa torácica. Uma sensação
de pavor primitivo se agarrou a ela como fedor a um cadáver podre. Ela enterrou o pânico
apertando seu peito e se concentrou em alcançar os outros.
Ela andou poucos metros para fora da caverna quando o primeiro gremwyr apareceu.
Com um lampejo escuro, o gremwyr veio guinchando pelo ar em direção a ela, garras
curvas apontadas diretamente para seu rosto. O odor decadente da fera ardia em seus olhos
e queimava o fundo de sua garganta.
Lutando contra o desejo de vomitar, ela descarregou sua flecha na barriga dele e
puxou outra antes que ele pudesse atingir o chão.
Um segundo gremwyr apareceu, asas agitando o céu enquanto deixava algo cair...
Ela engasgou quando um baque úmido soou a seus pés.
Nas rochas a alguns metros de distância, escamas laranja cintilavam e eram tudo o que
restava do basilisco.
Quando ela viu seu corpo quebrado e torturado – o preço por trair a Rainha das
Sombras – o horror preencheu sua mente. A maior parte de seu torso havia desaparecido,
sua cauda cortada e desfiada, mas ela reconheceu o belo padrão de diamante que eram tão
exóticas naquela floresta antes – as escamas da cor do sol poente.
Era isso que ela estava pedindo ao Senhor do Submundo para arriscar: a ira de um
monstro.
Tirando seu foco da visão miserável e sangrenta, ela se preparou para o que estava por
vir. Desta vez, o Senhor do Submundo não seria capaz de intervir e parar o ataque.
A Rainha das Sombras estava enviando uma mensagem.
Metal sibilou atrás dela enquanto Surai e Rook se preparavam. Archeron se juntou a
eles antes que pisassem na saliência onde o fogo ardia.
— Gremwyrs — Haven murmurou, examinando o céu.
E, então, como se apenas o nome os conjurasse, os grandes animais alados
enxamearam acima, uma horda incontável de monstros obliterando as estrelas. Eles
pareciam vir de todas as direções, seus rosnados e urros sacudindo seus ossos, enquanto
pousavam ao redor deles, na montanha.
Cada baque pesado, cada arranhão de garras na pedra, enchia-a de uma condenação
profunda e sinistra.
preso em uma visão.
— Bjorn! — Ela gritou, mas ele mal se mexeu.
Rook o alcançou no momento em que um gremwyr desceu perto do fogo. Ela
atravessou a criatura com sua espada e então sacudiu Bjorn pelos ombros. Ele acordou
assustado, sua cabeça careca girando enquanto mais gremwyrs aterrissavam, o vento
trazendo baforadas de seu fedor pútrido.
Rook arrastou Bjorn pela saliência para se juntar a eles e eles formaram um círculo
solto voltado para fora - Haven com seu arco, Surai girando suas katanas e Archeron com
sua espada longa cheia de runas. O chicote de Rook se desenrolou no chão e o machado de
Bjorn girou em sua mão.
Por um momento fugaz, Haven travou os olhos com Archeron, observando o olhar
dele repetindo seu apelo para que ela vivesse.
A emoção compartilhada renovou sua determinação.
Eu não vou morrer esta noite.
Erguendo seu arco para o céu, ela gritou assim que os gremwyrs choveram sobre eles.
Eles atingiram o chão com tanta força que ele tremeu. Um segundo depois, o ar irrompeu
com os sons da batalha. A sinfonia de gelar o sangue, de aço contra carne e osso, de flechas
tinindo, chicotes estalando e os gritos de sombras moribundas.
Um gremwyr disparou do céu no ombro de Haven com uma força forte o suficiente
para derrubar o arco de suas mãos e mandá-la para o chão. A dor ricocheteou em seu peito,
mas ela conseguiu se equilibrar antes de sair rolando pelo penhasco.
Uma sombra caiu sobre ela...
Ela se virou assim que o gremwyr a alcançou, sua boca com presas bem abertas e a
centímetros de seu rosto. Estava tão perto que ela podia sentir o hálito fétido da criatura em
sua bochecha, ver os fios de saliva entre cada dente afiado.
Jogando sua mão para cima, ela disparou um raio de luz mágica envolto em magia das
sombras direto para a garganta do monstro.
O gremwyr gritou, a magia o consumindo de dentro para fora. Um brilho laranja
vazou de rachaduras em sua carne dura, pulsando como um vaga-lume. Antes que ela
pudesse manobrar para fora do caminho, a criatura explodiu em cinzas que caíram sobre seu
rosto e em sua boca.
Cuspindo, ela vasculhou as pedras em busca de seu arco assim que outro gremwyr
apareceu. Garras negras cortaram sua garganta.
Ela rolou para trás e ficou de joelhos e as garras por pouco não atingiram sua carne. A
ponta de seu arco estava a alguns metros de distância, descansando entre duas rochas.
Ela se lançou para ele. Quando o gremwyr viu a arma em suas mãos, ele ergueu as asas
para voar - mas ela tinha sua flecha encaixada e disparada em direção à sua garganta antes que
pudesse escapar.
Ela matou mais quatro criaturas antes que pudesse voltar para perto dos outros,
saltando sobre o monte ensanguentado de carcaças de gremwyr que os cercava e pousando
ao lado de Archeron. Ele jogou para ela outra aljava cheia de flechas.
Quando ela ficou sem elas, ela começou a invocá-las.
Eles estavam lutando como guerreiros Solis, mas o ataque continuava chegando.
Logo eles seriam enterrados em corpos de gremwyr. A parede de mortos já estava em sua
cintura - e crescendo. O ar cheio de fedor de sangue e vísceras.
E, ainda assim, o céu estava escuro, coberto de gremwyrs. Uma onda interminável de
monstros destinada a acabar com eles.
— Nós não vamos durar muito mais tempo — Haven gritou quando outra flecha
encontrou seu alvo. O cadáver do gremwyr que ela matou rolou em seu círculo e Archeron
o chutou de volta e olhou para ela.
— As passagens da montanha? — ele rosnou.
Quando eles escolheram este lugar, eles se certificaram de que havia dois caminhos
para escapar. E, se tivessem sido avisados com antecedência, poderiam tê-los usado.
Mas agora... agora ambas as passagens estavam cheias de corpos escuros e alados das
feras e Haven balançou a cabeça, seu cérebro zumbindo para encontrar uma solução. Se eles
não podiam descer a montanha, o único outro jeito era o penhasco.
Haven agarrou o ombro de Archeron. — O rio abaixo!
A compreensão cintilou em seu rosto enquanto ele afundava sua espada no peito de
couro de um gremwyr, o aço raspando ruidosamente seus músculos e ossos. O gremwyr
gritou antes de desabar sobre uma pilha de seus irmãos.
Grunhindo, Archeron forçou o corpo para fora de sua lâmina com sua bota. — Isso
poderia funcionar. Rook? Surai? Querem pular de um penhasco?
Rook olhou por cima do ombro para Archeron, um sorriso preguiçoso em seu rosto.
Sua capa estava rasgada em duas, seus braços atléticos pingando sangue negro. Em
algum ponto, ela perdeu seu chicote e ela balançava sua espada tão rápido no ar que não era
nada mais do que um borrão de aço. — Com medo de alguns gremwyrs, Archeron?
Os olhos de Archeron brilharam quando ele se lançou, cravando sua lâmina em um
gremwyr uma fração de segundo antes que este pudesse arrancar sua cabeça.
— Não, princesa! — ele respondeu. — Você?
— O que você acha, Vidente? — Haven gritou, voltando sua atenção para Bjorn. —
Sua visão lhe deu alguma ideia de como escapar?
Ele parou de golpear a parede de criaturas, que se agarrava a eles, com seus machados
ensanguentados e encontrou o olhar dela. Sua expressão assombrada enviou uma onda
inexplicável de pavor na base de sua espinha.
— Bjorn! — Archeron chamou.
Bjorn inclinou a cabeça para o lado ao ouvir a voz de seu amigo e a sombra escura
deixou seu rosto.
— O penhasco é o único caminho — ele respondeu, sua voz incomumente cortada.
Quando Haven deslizou seu olhar para a borda, um choque de pânico tomou conta.
O caminho que levava à beira do penhasco estava cheio de gremwyrs mortos.
No momento em que seu círculo se quebrasse, eles seriam eliminados.
Ela se virou para avaliar a face da montanha. O luar brilhava sobre a crosta de neve
que cobria o pico. Tanta neve...
Haven não teve tempo para pensar nas consequências enquanto gritava: — Vocês vão
enquanto eu formo um escudo ao nosso redor. Assim que todos terminarem, farei uma
avalanche lá de cima para enterrá-los.
Archeron voltou seu olhar para ela, seu rosto lívido. — Não! Vamos juntos ou não
vamos.
Eles não tinham tempo para discutir ou para ela dizer as coisas que ela queria dizer.
Então, ela simplesmente disse: — Confie em mim, Senhor do Sol.
Ele segurou o olhar dela por mais um segundo – um segundo que pareceu uma
eternidade. Você fez uma promessa de viver, sua expressão implicava.
Então, ele acenou com a cabeça. — Vamos lá!
Ela praticou o escudo duas vezes com Stolas e, em ambos os casos, teve dificuldade.
Mas, desta vez, parecia quase fácil demais convocar o escudo iridescente e meio-invisível ao
redor deles, em camadas de magia das sombras e luz, com veias de azul e ouro entrelaçados
firmemente.
Quando seus amigos abriram caminho para a borda, ela impulsionou o escudo para
fora com sua mente. Era como levantar algo pesado e ela podia sentir seu controle
enfraquecendo, do jeito que um músculo poderia tremer antes de ceder, mas ela pressionou.
Determinada a salvá-los.
Assim que Surai saltou sobre a borda, o poder de Haven cintilou. Um gremwyr
rompeu a barreira. Haven gritou a tempo de alertar Archeron e ele desferiu um golpe mortal
em seu pescoço quando ela fechou a brecha.
Ele encontrou seu olhar. Uma palavra dela e ele voltaria. Em vez disso, ela assentiu,
incitando-o a seguir em frente, enquanto trabalhava para esconder seu poder enfraquecido.
Deusa salve-a, a energia estava drenando dela tão rápido quanto ela podia convocá-la,
seu corpo enfraquecendo a cada segundo. Gavinhas de magia sangraram do escudo para o
céu, suas habilidades ásperas incapazes de conservá-lo.
De certa forma, parecia que estava sangrando. Só que era sua magia e não seu sangue
sendo drenado.
Bjorn saltou em seguida.
Haven cerrou os dentes enquanto lutava para manter seu poder. Incontáveis
gremwyrs ricochetearam no escudo, gritando e arranhando a parede invisível. Se a barreira
falhasse, eles seriam enterrados nas criaturas.
Ela mal podia segurar sua espada, mas a forçou para o alto para esconder sua energia
desvanecida de Archeron.
Mais gremwyrs invadiram, mergulhando sobre seus amigos.
— Vão! — ela gritou. — Vão!
Mas Archeron se virou, sua espada brilhando enquanto ele começava a abrir caminho
através das criaturas de volta para ela. Eles estavam por toda parte. Seu ódio por ele era
palpável.
Eles rosnaram e assobiaram seu nome — Bastardo Solis — suas vozes de outro mundo
cheias de ódio evocando terror cego.
Não! Uma imagem de pesadelo dos gremwyrs rasgando sua carne surgiu em sua
mente. Eles iriam rasgá-lo em pedaços.
Archeron derrubou duas das bestas e eles se entreolharam.
— Sinto muito — ela murmurou.
Erguendo a mão, ela desistiu do escudo e usou sua energia para convocar uma rajada
de vento forte o suficiente para jogá-lo para trás. A capa que ele usou para cobri-los
anteriormente se espalhou com o vento quando ele caiu na saliência.
Sem seu escudo, as criaturas convergiram todas de uma vez, seus rosnados tão
frenéticos que pareciam ricochetear dentro de seu crânio.
Ela conseguiu levantar sua espada, conseguiu lutar contra eles por alguns segundos,
alguns batimentos cardíacos, uma respiração. E, então, seus joelhos se dobraram e ela
tropeçou para o lado, a espada faiscando enquanto a lâmina se arrastava pela pedra.
Olhos vermelhos e famintos brilharam. Haven girou e as garras do gremwyr roçaram
seu ombro, causando uma dor cegante.
Ela piscou e as garras perversas da criatura estavam arqueando em direção ao seu
rosto...
Rook lançou sua lâmina na espinha do gremwyr e ele caiu a seus pés. — Levante-se,
Haven!
A voz de sua amiga a despertou para ficar de pé, seu corpo se enchendo de esperança
enquanto elas, de alguma forma, conseguiam abrir caminho para a borda. A princesa
Morgani estava em toda parte, dançando em círculos de morte, empunhando sua lâmina
como se fosse uma parte dela e sorrindo.
Naquele momento, a princesa era a coisa mais linda que Haven já tinha visto. Um
miasma de aço, morte e destruição.
Haven parou quando o rio gelado apareceu. — A avalanche!
— Rápido! — Rook gritou, cortando sua lâmina através da membrana e tendões da
asa de um gremwyr. A criatura gritou, caindo do penhasco e, depois, ficou em silêncio.
Se Haven não trouxesse a neve sobre as criaturas, elas continuariam vindo.
Fazendo uma oração rápida, ela se concentrou no pico nevado. Tirando cada gota de
poder que restava em suas veias, transformando-o em um tornado de vento que transformou
a gigantesca placa de neve em uma arma.
Uma rachadura cortou o ar. A montanha começou a tremer enquanto o pico nevado
mudava e gemia.
Totalmente esgotada, Haven soltou um suspiro exausto. — Conseguimos.
Rook abriu a boca e então seu olhar foi para algo atrás de Haven...
Quando Haven se virou, era tarde demais para pular fora do caminho. O gremwyr já
estava sobre elas. Ela se encolheu, levantando as mãos em uma reação instintiva para usar a
magia que não estava lá, quando Rook empurrou Haven para fora do caminho.
A Princesa Morgani absorveu toda a força das garras do demônio.
Haven se ouviu gritar ao ser jogada de lado. Ela tentou agarrar algo, mas seus dedos
arranharam inutilmente a rocha lisa.
Ela deslizou pela encosta do penhasco como se estivesse em um sonho.
Por uma fração de segundo, ela viu Rook, uma ferida horrível jorrando sangue de seu
peito. De alguma forma, ela ainda estava balançando a espada enquanto as garras do
gremwyr afundavam em suas costas. Ainda lutando com a graça de uma guerreira, embora
ela tivesse que saber o que viria a seguir.
O monstro abriu suas asas e se ergueu no ar. A espada de Rook brilhou. Ela gritou -
mas foi um grito de raiva, não de medo.
Mesmo quando o gremwyr subiu mais alto nas estrelas, a princesa continuou
lutando. Ela poderia ter tido uma chance, se não fosse pelo resto dos monstros. Sentindo
sangue, eles convergiram sobre a Princesa Morgani, rasgando e retalhando como demônios
do Submundo.
Logo antes de Rook desaparecer sob a nuvem coriácea de garras e dentes e de Haven
começar sua queda livre para o rio abaixo, seus olhos se encontraram. Algo passou entre elas.
Um grito às armas - e um adeus.
E, então, Haven gritou e gritou todo o caminho até a água gelada enquanto sua amiga
moribunda ondulava no céu.
Uma estrela cadente; uma verdadeira princesa Morgani.
Bell acordou de um sono sem sonhos. Por um momento, antes de ver a lareira
queimando com o fogo mágico dourado ou a forma relaxada da criatura na cadeira em frente
ao sofá, ele pensou que estava em Penryth.
A verdade caiu sobre ele em uma onda de desespero. Os Noctis. A luta. Seus
ferimentos.
A dor - Deusa Acima, a dor.
Exceto que, ao se espreguiçar no sofá, ele percebeu que a agonia de antes havia se
transformado em uma pulsação fraca em seu ombro. Seu pescoço doía, mas provavelmente
era por dormir no sofá duro - embora alguém tivesse sido cuidadoso o suficiente para colocar
um travesseiro sob sua cabeça e cobri-lo com um cobertor.
Não era um cobertor. Um manto verde-pinheiro esfiapado nas pontas. Bell sentou-
se e notou um longo corte no veludo, sangue seco manchando as pontas.
A criatura foi ferida?
O pensamento formou um nó em sua garganta. Jogando fora a capa, Bell escorregou
do sofá para ver como ele estava. Ele estava caído de costas com os olhos fechados, seu corpo
enorme saindo da cadeira.
Era estranho ver a criatura sem sua capa com capuz e Bell tentou não se encolher com
as escamas verdes e âmbar que desciam pelo lado direito de seu rosto e pescoço, polidas e
brilhantes como pedras preciosas.
Mas foi a outra metade que o atraiu. O menino-príncipe dentro do monstro, a pele
arenosa pálida contra as escamas coloridas. Seu cabelo mortal banhado pelo sol caía sobre a
metade desumana de seu couro cabeludo, cobrindo o lado arruinado de seu rosto.
Um destino cruel - ter a beleza de sua juventude e o horror de sua maldição lado a
lado. Era como olhar para uma esmeralda bruta presa dentro de sua rocha hospedeira.
Os olhos da criatura se abriram e ele piscou cansadamente para Bell. — Você não
está... com medo?
Bell balançou no lugar. — Não, pelo menos, não como antes.
— Seu medo se transformou em uma curiosidade mórbida. Talvez você esteja se
perguntando como um príncipe tão bonito quanto eu se tornou essa criatura miserável.
A amargura em sua voz não conseguia esconder a angústia estampada em cada
palavra. Enquanto ele se reposicionava na cadeira, um gemido escapou e seus dedos
enluvados vibraram sobre seu peito.
— Você está ferido?
— O Noctis me arranhou com as garras envenenadas ao longo de suas asas.
Esquecendo as escamas, Bell começou a desabotoar a camisa azul-marinho da
criatura.
O braço da criatura disparou e agarrou o pulso de Bell. Por um segundo, ele apenas
olhou para Bell, com o peito arfando. Então, sua cabeça caiu para trás e ele soltou um suspiro
áspero.
Bell engoliu enquanto continuava a desabotoar. Quando o último botão se soltou,
ele abriu a camisa, mal contendo o suspiro. Um corte desagradável ocupava o lado mortal de
seu peito, deixando veias pretas brotando da ferida purulenta como víboras furiosas. — Isso
é mais que um arranhão!
A garganta da criatura balançou. — Já tive piores. Isso vai se curar... com o tempo.
— Por que não usar a magia que me curou?
A criatura fechou os olhos como se apenas mantê-los abertos fosse uma tarefa árdua.
— Eu usei-a toda em suas feridas.
— Mas certamente podemos fazer algo?
— Sim. Deixe-me descansar.
Mas Bell já estava cruzando o chão da sala em busca de suprimentos. Demorou alguns
minutos, mas ele encontrou um jarro de prata com água na mesa da sala de jantar e usou
uma faca de uma gaveta para cortar tiras das cortinas para usar como trapos.
Ele podia dizer que a criatura não estava dormindo, quando ele voltou, pela subida
muito rápida de seu peito. Ainda assim, Bell ficou quieto enquanto encharcava o primeiro
pano em água e lavava a crosta seca de sangue de sua pele.
A carne jovem estremeceu sob o toque de Bell e ele não pôde deixar de pensar em
Renault, o príncipe cuja pele ele estava limpando. Que, segundo a lenda, uma vez deu festas
luxuosas, de uma semana, sobre as quais todo o reino ainda falava.
Como poderia esta criatura, este jovem arruinado, ser como aquele príncipe?
Finalmente, quando a água na jarra estava escura com sangue e tiras secas e azuis
estavam enroladas nas feridas da criatura, Bell se levantou para sair. Ele revirou o pescoço.
— Fique. — A criatura abriu os olhos, um dourado e belo, o outro reptiliano. — Por
favor.
Bell hesitou. Ainda havia muito sobre este príncipe que ele não entendia, não
confiava. No entanto, ele o salvou, usando o que restava de sua magia para curar os
ferimentos de Bell ao invés dos seus. Aquilo não parecia com o príncipe caído sobre o qual
ele havia lido. Alguém que poderia orquestrar o assassinato de sua família.
— Devo trazer comida para nós? — Bell ofereceu.
Ainda o observando, a criatura assentiu lentamente e Bell mais uma vez entrou na sala
de jantar. A mesa estava posta para o jantar.
Ele hesitou um pouco antes de pegar uma bandeja de cordeiro com especiarias e
batatas, junto a talheres e guardanapos.
A criatura estava sentada na cadeira, seus olhos mais brilhantes do que antes. Sua
camisa ainda estava desabotoada e depois de mexer nos botões com a mão esquerda
enluvada, ele soltou um grunhido. — Pode me ajudar?
Bell colocou a comida na mesa de centro e então caiu de joelhos. A criatura bufou
uma respiração irregular quando Bell começou a abotoar sua túnica.
— Eu era canhoto. Antes. — Ele ergueu a mão enluvada e, pela primeira vez, Bell
percebeu como ela era muito maior do que a direita. Como os dedos eram tortos. — É difícil
abotoar uma camisa com garras. Normalmente, eu uso magia.
Depois que Bell terminou, ele arrastou a mesa de centro de madeira entre às duas
cadeiras. A criatura pegou a colher de sopa, Bell o garfo.
— Devo... — A criatura pigarreou. — Devo colocar minha capa?
— Não. Quer dizer, não a menos que você queira.
Enquanto comiam, Bell percebeu que a criatura ficava lançando olhares rápidos sobre
ele, como se estivesse preocupada de que, em algum momento, Bell decidiria que não
poderia comer ao lado de tal monstro.
— Algum dos outros sacrifícios já viu você sem sua capa? — Bell perguntou.
— No começo, eu não tinha essa aparência. E quando as escamas começaram a
crescer, eu... não, eu nunca ousei.
Bell mordeu o lábio, hesitando antes de sua próxima pergunta. — Por que você está
mudando?
A criatura pousou a colher na bandeja com um estrondo. — A magia das sombras me
devora. Transformando lentamente minhas entranhas. Minha carne. — Ele balançou o
braço em um semicírculo sobre a sala. — Aqui principalmente, minha magia me protege.
Mas, quando eu deixo a proteção do meu lado do castelo, sou afetado.
Bell engoliu em seco, pensando em como a criatura partiu para salvá-lo. — Porque a
Rainha das Sombras permite que você mantenha sua magia?
Uma sombra escura cintilou sobre seu rosto. — Porque me mantém humano por
mais tempo. Assim que eu sucumbir a esta forma bestial, não possuirei mais a humanidade
para me sentir como agora. Todo o meu tormento, toda a minha dor e agonia desaparecerão.
O olhar de Bell caiu para a bandeja recolhida.
— Vá em frente. Pergunte-me se os rumores são verdadeiros. Os outros perguntavam,
até que eu aprendi a esconder minha identidade junto com meu rosto monstruoso.
— Eles são?
— Sim. E não. — Foi a vez da criatura baixar o olhar e sua mão arruinada agarrou o
braço enrolado de sua cadeira sem ele parecer notar. — Eu era o terceiro filho nascido e uma
decepção para meu pai desde o início. Eu me importava mais com roupas e bailes do que
com política, preferia botas polidas a espadas. Mas eu nunca o odiei o suficiente para querer
sua morte.
Atrás dele, o fogo crepitava e crescia como se suas emoções estivessem ligadas a sua
magia.
— Quando fiz dezoito anos — ele continuou, sua voz pouco mais que um sussurro
— meu pai marcou meu noivado com uma rainha mortal três vezes viúva, conhecida por
sua crueldade e feiura. Era um castigo que me levaria para longe do meu amado reino... e
amante.
Bell estava na ponta da cadeira. — A bela mulher que vi no outro mundo?
Um sorriso irônico esculpiu a mandíbula da criatura. — Não. O irmão dela.
Ah... Ah.
Inclinando a cabeça para o lado, Bell estudou a criatura sob uma nova perspectiva.
Nunca antes ele havia conhecido alguém como ele. Ele tinha ouvido rumores de cortesãos
que preferiam a companhia de outros homens, é claro.
Mas conhecer alguém como ele, pessoalmente, era diferente.
— Mas foi a irmã dele, Ephinia — a criatura continuou, alheia à curiosidade de Bell
— que sugeriu que convocássemos um Noctis do Submundo para trabalhar um feitiço com
magia das sombras. Todos nós três tínhamos uma magia poderosa, embora não soubéssemos
na época o quão poderosa, e, em uma noite de luar, convocamos Ravenna.
— Você sabia que ela era a filha da Rainha das Sombras? — Bell interrompeu.
O cabelo louro-avermelhado caiu sobre seu rosto enquanto ele balançava a cabeça. —
Não. Ela foi tão gentil no começo, jogando com meu desespero, minha vaidade. O feitiço
deveria apenas mudar suas mentes. Era... ela disse que eles dormiriam, mas só por um tempo.
Eles não sofreriam.
Sua voz falhou. Seus dedos apertaram os braços de sua cadeira com tanta força que a
madeira embaixo gemeu antes que ele continuasse. — Depois que o feitiço foi lançado e
meu pai, mãe e irmãos morreram, suas demandas aumentaram. Se eu concordasse com elas,
ela prometeu usar sua magia para esconder os assassinatos do meu povo. Até então, eu sabia
que ela era má, mas eu estava preso. Preso ao nosso segredo, nossa barganha.
Bell soltou um suspiro irregular. — O que ela queria?
— Governar ao meu lado como rainha. Eu não sabia nada sobre seu marido no
Submundo ou quem ela era. Ela disse que meu amante e sua irmã não se machucariam, mas
eu sabia que era mentira. Ela queria reivindicar meu reino mortal. Então, em nossa noite de
núpcias, eu a esfaqueei com uma adaga envenenada que a deixou impotente e, então, eu
arranquei seu coração.
Bell afundou em sua cadeira, a sala de repente pesada com sombras. — Você ainda
não sabia...
A criatura olhou para Bell como se ele tivesse esquecido que ele estava ali, seus olhos
atormentados pelo remorso. — Eu não entendia a magia antiga e maligna dos Noctis, nem
as repercussões de quebrar um acordo vinculado a ele. Mas assim que tirei seu coração negro
e toda a terra tremeu, eu sabia que a escuridão veria a seguir.
— A maldição — Bell adicionou suavemente.
Olhando para suas mãos, a criatura aliviou seu aperto nos braços enrolados de sua
cadeira; o tecido azul empoeirado por baixo estava rasgado. — Quando a Rainha das
Sombras chegou com seu exército de sombras e Noctis, tentei esconder meus amigos. Mas
ela os encontrou de qualquer maneira e fez coisas horríveis e monstruosas com eles. Não vejo
Ephinia ou Bjorn há mais de três séculos.
— E o portal?
— Eu estava confinado à única parte do castelo que a Maldição não havia tocado. No
início, a solidão era insuportável e eu egoisticamente ansiava pelos sacrifícios mortais que
viriam. A Rainha das Sombras me fez cuidar deles. E, então, a cada lua cheia, eu era forçado
a assistir enquanto Ravenna voltava à vida e se banqueteava em sua magia, carne e sangue
para sobreviver. Ao longo dos séculos, os nobres com magia começaram a diminuir, então
eu tive tempo para praticar a minha própria, para aprimorá-la. Foi então que descobri o que
eu conseguia fazer.
— Você pode voltar no tempo?
Quase parecia bobo sugerir, impossível, mas a criatura assentiu. — De certa forma,
sim. Não posso alterá-lo, mas posso interagir de certas maneiras. No início, criei o portal para
que pudesse reviver meus dias antes da Maldição. Mas, então, eu me lembrei de algo. A
lâmina que usei em Ravenna foi envenenada por Ephinia com algum tipo raro de flor que
crescia em nossos jardins. Eu sabia que se pudesse encontrá-la novamente e aumentar sua
potência, talvez pudesse usar o veneno para matar a Rainha das Sombras.
Bell passou a mão pelo cabelo. — É isso que estamos fazendo?
— Sim. Experimentei todas as flores que crescem naquele jardim, matando uma
sombra ou um Noctis algumas vezes por ano e escondendo as evidências para que a rainha
não suspeitasse. Mas nunca tive sucesso em encontrar um veneno forte o suficiente para
matá-los de uma vez só... até hoje.
Uma imagem de Malix pegando fogo e se transformando em cinzas passou pela mente
de Bell. — Qual flor era?
— Não é uma flor - um espinho. Eu não tinha estado naquela câmara há mais de um
século até que te encontrei lá. Depois que você fugiu, eu destruí o quarto e um dos espinhos
da rosa tirou sangue. Então eu a segurei, cobri minha lâmina com ela e fui te encontrar.
— O veneno esteve aqui no castelo o tempo todo?
Um sorriso raro cintilou na parte mortal de seus lábios. — A magia da luz deve ter se
agarrado ao lado de fora do castelo todos esses anos. Esperando que eu a encontrasse. E se
não fosse por você, eu nunca teria entrado no meu antigo quarto novamente.
Bell sentiu um rubor subindo pelo pescoço e limpou a garganta.
Um segundo a criatura estava relaxada na cadeira.
No seguinte, seu corpo ficou rígido e ele saltou da cadeira no momento em que uma
sombra escura entrou pelo canto aberto e deslizou pela sala.
Asas enormes com penas. Uma beleza cruel e raivosa. Bell reconheceu o Senhor do
Submundo que o trouxe aqui, algo que parecia anos atrás, e ele se levantou também.
— Espere - não está na hora — gritou Bell. — Eu tenho mais um dia até a lua cheia.
O Senhor do Submundo caminhou em direção ao fogo, casualmente, como se tivesse
vindo para tomar chá. — Não estou aqui para isso. Ainda.
— Então por que você está aqui, Noctis? — A voz da criatura era um estrondo
sombrio misturado com fúria pertencente ao seu lado bestial.
Dando um olhar preguiçoso para a criatura, o Senhor do Submundo disse: — Estou
aqui para falar sobre uma porta.
— Uma porta? — Bell cruzou os braços. Quaisquer jogos que o Senhor do
Submundo quisesse jogar, ele não lhe daria o prazer.
O Senhor do Submundo se endireitou para enfrentar Bell e sob sua expressão
entediada cintilou algo a mais. Algo importante.
— Uma porta, Príncipe de Penryth. A coisa que você usa para entrar e sair de lugares.
A criatura rosnou quando o Senhor do Submundo de repente rondou em direção a
Bell. Quando Bell quase podia tocar as lindas penas do Senhor do Submundo, ele parou.
— Você tem uma amiga que gostaria muito de abrir uma e visitá-lo — disse o Senhor
da Sombras. — Uma garota mortal teimosa com cabelo rosa dourado, pés horríveis e magia
muito poderosa.
O nome retiniu em seu coração antes mesmo de deixar seus lábios. — Haven?
— Sim — o Senhor do Submundo ronronou, um sorriso serpentino se espalhando
por seu rosto. — Ela.
— Mas ela não tem magia. Além disso, ela está... ela está... — Mesmo depois de todo
esse tempo, ele ainda não conseguia dizer as palavras. Morta. Ela está morta. E agora o
Senhor do Submundo estava pregando uma peça cruel nele.
— Eu lhe asseguro que ela não passou para meu domínio — o Senhor do Submundo
respondeu. — Embora, não por falta de tentativa. Sua amiga tem as vidas de um wyvern.
Bell engoliu uma risada enquanto a esperança crescia dentro dele. — Então, é
verdade? Ela não morreu?
O Senhor do Submundo balançou a cabeça, seu cabelo branco caindo sobre um olho
prateado. — Ela está muito viva e com a intenção de resgatá-lo, não importa o custo. Agora,
sobre aquela porta.
Eles encontraram Rook logo após o amanhecer.
Archeron liderou o grupo de busca, caminhando nove metros à frente de Haven e
dos outros. Ele não havia falado uma palavra desde que soube do destino de Rook.
Nenhum deles havia.
Um silêncio pesado e estrangulante caiu sobre a terra, como se até mesmo as rochas
amaldiçoadas e árvores murchas lamentassem a Princesa Morgani. O vento se recusando a
soprar. A neve se recusando a cair. O sol velado recusando sua cálida carícia.
Archeron chegou ao topo de uma colina gramada e suas costas enrijeceram. Ele
congelou, imóvel como a grama e a brisa. Depois de alguns momentos de agonia, ele lançou
a Haven um olhar cauteloso para manter Surai longe enquanto ele foi investigar o que quer
que ele tinha visto.
Mesmo quando ele se ajoelhou ao lado de algo na grama, mesmo quando a vida
parecia esvair-se dele - Haven ainda tinha esperança de que Rook estivesse viva.
Que ela poderia ter se libertado de alguma forma, talvez caído no rio.
Talvez ela estivesse ferida e esperando por eles... mas ela estava viva. Ela tinha que estar
viva. Como ela poderia não estar? A princesa estava tão cheia de vida, amor e coragem.
Pessoas como ela não morriam. Não desta forma.
Essa esperança se desvaneceu no momento em que Archeron se levantou. Ele desviou
o olhar, mas não antes que ela percebesse a dor absoluta que cobria seu rosto. Sua boca
baixou e uma mão pairou sobre sua garganta como se tentasse forçar o ar em seu corpo.
Fortalecendo os ombros, ele os encarou e deu um aceno rápido e brusco.
Um único gesto que destruiu completamente as esperanças de Haven. Seu estômago
apertou, náusea rolando sobre ela como uma onda.
Não Rook. Ela não poderia...
Eles se aproximaram lentamente. Assim que Rook apareceu, Haven teve que engolir
um suspiro horrorizado. A Princesa Morgani deve ter caído do alto, porque estava quebrada
e amassada, deitada de bruços no sopé da montanha perto de um aglomerado de rochas.
O sangue escurecia seu cabelo louro a ponto de ela ficar quase irreconhecível. Os
pedaços de seu manto branco como a neve, ainda agarrados a ela, estavam completamente
manchados de vermelho, suas amadas botas de cano alto rasgadas e enlameadas.
Deusa, não.
O corpo de Archeron tremia com a dor mal reprimida enquanto ele se inclinava e
substituía sua capa manchada pela escura dele. Ele não disse uma palavra enquanto
começava a limpar a lama e a sujeira do corpo de Rook.
Por sua vez, Haven tentou manter Surai longe. Para impedi-la de ver o pior até que
Archeron terminasse.
No começo foi fácil. Surai parecia em transe. Olhos vidrados e fixos, respiração
superficial. Ela mal olhou para Rook, mal parecia entender o que estava acontecendo.
Quando ela se moveu, seu olhar distante voou para o céu como se sua companheira
ainda estivesse lá - como se o corpo quebrado de Rook fosse apenas um estratagema para
enganá-la.
Mas, então, uma mecha do cabelo loiro de Rook foi pego pela brisa - a única seção de
seu cabelo não manchada de vermelho - e Surai se concentrou em sua companheira. Um
arrepio percorreu o corpo franzino de Surai. Ela piscou.
— Seu lindo cabelo — Surai sussurrou. — Ela odeia quando está sujo.
A garganta de Haven se apertou quando ela compartilhou um olhar doloroso com
Archeron.
Surai disse o nome de Rook, suavemente – uma pergunta.
Então, a guerreira Solis gritou, um som que Haven sentiu dentro de seu peito, e se
lançou em direção a Rook.
Haven tentou segurá-la, mas ela lutou como um animal selvagem, arranhando e
batendo até se libertar e cair de joelhos ao lado de Rook.
Enquanto Surai embalava a cabeça de sua companheira em seu colo e lamentos saíam
de seus lábios, Haven tinha certeza de que seu peito se abriria por dentro – cada grito áspero
e penetrante um lembrete de que ela havia falhado.
Ela era a culpada.
Se ao menos ela pudesse ter segurado seu escudo por mais alguns minutos. Se ao
menos ela não estivesse tão exausta. Se ao menos Rook tivesse deixado Haven morrer em vez
de voltar para ela.
Eu sou a culpada. Minhas falhas e incapacidade de controlar meu poder a mataram.
Ninguém disse isso. Não quando ela disse a eles pela primeira vez, minutos depois
que ela atingiu a água e Archeron a arrastou das águas geladas cem metros rio abaixo. Nem
quando eles lutaram contra os últimos gremwyrs que não morreram na avalanche que
custou a vida de Rook. E nem quando eles estava sentados em silêncio na frente do fogo que
aqueceu o gelo de sua carne o suficiente para que pudessem começar sua busca por ela.
Antes de atingir a água fria, Haven sabia que eles nunca encontrariam Rook viva, mas
ela deixou os outros acreditarem que poderia haver uma chance. Ela estava fraca demais para
contar a verdade. Fraca demais para até mesmo admitir essa verdade para si mesma.
Outra razão para se desprezar.
E agora, à luz do dia, ela se sentia exposta. Seus pecados pregados em sua pele para
todos verem.
Eu a matei.
Os gritos de Surai se transformaram em outra coisa - um lamento. De alguma forma,
reunindo coragem para se juntar a sua amiga, Haven deslizou o braço ao redor dos ombros
da garota em luto.
Surai engasgou. — Ela se foi?
Haven acenou com a cabeça, desejando que ela pudesse retirar a agonia de sua amiga
e tomá-la como sua. Ela podia ver Surai tentando encaixar essa nova realidade em sua mente.
Tentando aceitar o inaceitável.
— Ela não pode ter ido — disse Surai. — Não assim. Não aqui, nesta terra horrível.
Então, ela enterrou o rosto no peito de Haven e soluçou.
Apenas Bjorn parecia incapaz de sofrer. Ele ficou à distância, observando-os cuidar
de Rook com aqueles olhos cegos que viam tudo. Seu rosto ilegível.
Ele viu o destino dela de antemão?
Haven sabia que o Vidente e a princesa eram próximas, mas Haven ainda achava sua
ausência covarde.
Archeron amava Rook da mesma forma. Ainda assim, foi ele quem limpou o sangue
do rosto e do corpo de Rook, seus dedos meio congelados tirando, meticulosamente, neve
de seus cabelos e pele.
Com lágrimas nos olhos, Haven observou o Senhor do Sol consertar o cabelo de
Rook, seus dedos grossos tentando refazer suas tranças e consertar os cortes em suas roupas
enquanto Surai arrancava gravetos e outros detritos. Ele recolheu as joias de Rook, incluindo
o anel que permitia que ela permanecesse em sua verdadeira forma.
Haven entendeu agora que Rook devia saber que era sua última noite com Surai.
Qualquer que fosse o preço que o anel exigisse - Rook nunca teria que pagá-lo.
Eles trabalharam nela em silêncio, cada carícia, cada pincelada de dedos em suas
bochechas, cabelos ou roupas, um gesto de amor. Uma parte de Haven se perguntou,
quando sua hora chegasse, se eles fariam o mesmo.
Ela certamente não se sentia digna de tanto amor - especialmente agora.
Quando terminou, Archeron passou o polegar sobre cada uma das pálpebras escuras
de Rook, fechando seus olhos âmbar para sempre.
Agora limpa e vestida como uma princesa Morgani deveria estar, Archeron a ergueu
contra seu peito, seus braços frouxos e botas finas brilhando sob o sol da manhã, e eles
subiram a montanha sem dizer uma palavra.
Quando o ar ficou rarefeito e a neve cobriu as rochas, eles encontraram uma pequena
plataforma de pedra para deitá-la.
Surai teve um tempo para ficar sozinha com Rook enquanto eles esperavam na
passagem nevada. Haven estava com medo de enfrentar Bjorn e Archeron; com medo de
que a culpassem por não segurar o escudo por mais tempo.
Mas, no segundo em que se afastaram de Surai, Archeron a puxou para seu peito
quente, passando os braços em volta do pescoço dela.
— Você está bem? — ele murmurou.
Ela balançou a cabeça enquanto sua mente repassava os últimos segundos de Rook
viva, ainda lutando, enquanto o sangue gorgolejava de seu peito.
Esta deveria ter sido ela, não Rook. Haven deveria ter morrido.
Sua oração brilhou em sua mente, uma pontada de culpa. Será que a Deusa havia
levado Rook no lugar dela? Porque Haven havia pedido para viver?
Ela estremeceu contra seu peito. — Eu poderia tê-la salvado, Archeron.
— Pare. — Apoiando as mãos em cada lado de suas bochechas, ele inclinou seu rosto
para olhar para ele. — Rook conhecia os riscos de vir aqui.
Haven mal o ouviu. — Mas se meu escudo fosse mais forte...
— Não. Você está olhando para isso tudo de forma errada. Se não fosse por sua
coragem e a força de seu escudo, todos nós teríamos perecido. Você entende? Você nos
salvou, Haven e quase morreu no processo.
Ele correu as pontas de seus polegares sobre suas bochechas, enxugando a umidade.
Quando ela havia começado a chorar?
— Às vezes coisas ruins acontecem, Haven — ele continuou. — Às vezes, as pessoas
que amamos morrem. Por isso, amar quem ainda está aqui é a coisa mais importante que
você pode fazer para honrá-las. Você me ensinou isso. — Inclinando-se, seus lábios roçaram
os dela, o gosto salgado das lágrimas ardendo em sua boca. — Bell ainda está vivo. Ele está
esperando por você. Mas você não pode salvá-lo se continuar por este caminho escuro.
Ela se inclinou para ele, agradecida por seu calor, sua presença constante. Sua garganta
doía de lágrimas, mas suas bochechas estavam secas, seu coração cheio de um propósito
renovado. — Vamos simplesmente deixar Rook aqui?
Um músculo pulsou em sua mandíbula quando ele deslizou seu olhar para a princesa.
— Ela será preservada na montanha até o nosso retorno. Se ela estiver enterrada aqui — sua
voz falhou e ele limpou a garganta — se ela for enterrada nas Terras das Ruínas, sua alma
estará presa, escravizada por Morgryth.
Uma voz assombrosa estremeceu no ar quando Surai começou uma canção em
Solissiano.
— Deite-se, minha querida, e descanse sua cabeça cansada. Sua batalha acabou, sua
jornada está no fim. Suas Costas Douradas estão chamando; seus ancestrais estão próximos.
Vá agora, princesa, reivindique seu trono para sempre e então espere por mim até que eu seja
chamada para casa.
Não havia mais lágrimas para derramar quando eles deixaram a Princesa Morgani
sozinha naquela montanha.
A cada passo, a dor de Haven se transformava em um poço crescente de fúria que
rugia dentro de seu peito. As palavras de Archeron fizeram o oposto do que ele pretendia.
Ela não tinha separado a culpa de seu coração; ela a guardou, usou, transformou,
alimentando aquela emoção angustiante de um único propósito ardente: vingança.
Ela queria vingança. Queria derramar sangue suficiente para lavar a culpa que batia
nela em ondas implacáveis.
Sua mente revivia o momento em que os gremwyrs mataram Rook repetidamente.
Cada vez, a raiva surgia ardendo em sua medula, fervendo seu sangue até que sua magia saía
dela em rajadas quentes que distorciam o ar.
A Rainha das Sombras levou Bell. Ela matou milhares de mortais. Tirou Rook de
Haven. E a vadia assassinou a melhor guerreira do reino.
Uma guerreira que deveria ter se casado com sua amante, não dilacerada por monstros
e jogada como lixo.
Pela primeira vez desde que tudo isso começou, Haven entendeu o quanto Morgryth
tirou dela. E de todas as pessoas que ela amava e com quem se importava. E se ela não fizesse
algo sobre isso, a Rainha das Sombras destruiria o mundo mortal como eles o conheciam.
As mãos de Haven estavam fechadas em punhos ao seu lado e elas queimavam com
magia. Magia selvagem e raivosa. Magia que poderia ter evitado a morte de Rook. Magia que
poderia fazer a Rainha das Sombras pagar.
— Eu não pude salvá-la — Haven engasgou. Eles estavam no sopé da montanha e os
outros se viraram para ela. Quando ela viu a expressão de dor de Archeron, a agonia torcendo
seu rosto em uma máscara irreconhecível, ela fez um voto silencioso à Deusa.
Algum dia, eu juro; vou arrancar o coração negro da Rainha das Sombras.
Archeron estendeu a mão para ela. — Você fez tudo que podia.
— Eu? — Em vez de aceitar a oferta de conforto de Archeron, Haven ergueu as mãos,
olhando fixamente para as chamas de cor dourada e safira de magia lambendo sua carne. —
Minha magia falhou comigo. Eu falhei.
Surai balançou a cabeça. — Não há maior honra na cultura Morgani do que morrer
por sua irmã.
— Mas se eu tivesse runas de carne, ela não teria morrido!
— Não. — Lágrimas escorriam livremente pelo rosto de Surai. — Nós todos lutamos
tão duro quanto podíamos, Haven, e a morte dela não é culpa de ninguém, além da Rainha
das Sombras. Rook é... era uma guerreira e ela morreu como uma guerreira.
Haven se virou para Bjorn, cujo olhar cego estava fixo no local onde haviam deixado
Rook. — Você sabia, não é?
Bjorn se encolheu como se ela tivesse batido nele. — Eu a amava, mas nem mesmo eu
pude evitar sua morte. Ela conhecia seu destino e o aceitou.
— Destino? — Haven zombou, a raiva envenenando a palavra. — A malícia da
Rainha das Sombras não é destino. Minha morte não está fadada. Nós fazemos nosso
próprio destino. — Ela estendeu as mãos, sua inaptidão nunca mais aparente do que agora.
— Eu tenho uma magia infinita e poderosa que poderia finalmente nos dar uma chance
contra Morgryth, mas não posso acessá-la a menos que vocês me ajudem. Dêem-me marcas
de runa. Façam de mim uma arma para destruir Morgryth.
Archeron sacudiu a cabeça lentamente, seus ombros caíram. — Eu não vou te
condenar à morte, Haven. Eu me recuso a perder você também.
— Mas isso é exatamente o que você estará fazendo, se me enviar para Spirefall sem
runas de carne. Você estará sentenciando todos nós à morte.
— Mesmo se, por algum ataque momentâneo de insanidade, eu permitisse isso... este
lugar está infestado de magia das sombras e a cerimônia não funcionaria.
— Na verdade, existe um jeito — Bjorn disse, ignorando o grunhido de protesto de
Archeron. Aqueles olhos cegos da cor da neve a estudavam. — Mas precisaríamos de todos
os nossos três poderes para realizar o ritual. É perigoso e não sei se a carne mortal aceitará a
magia, mas se ela sobreviver, será marcada com uma runa.
— Está fora de questão — rebateu Archeron.
O coração de Haven doeu por Archeron quando ela disse: — Mas não é sua escolha,
Senhor do Sol. É minha.
Ela odiava causar-lhe dor, especialmente depois de tudo que eles sofreram.
Mas sua necessidade de esmagar Morgryth a consumia.
— Você está certa — ele rebateu. — Você e os outros podem escolher condená-la a
uma vida sendo caçada. — Por baixo de sua raiva corria uma corrente de tristeza. — Mas eu
me recuso a fazer parte disso.
— Mesmo que minha condenação significasse salvar a vida de incontáveis inocentes?
— ela perguntou suavemente.
— Mesmo que isso significasse salvar o maldito mundo inteiro — ele respondeu
suavemente. — Não vou sacrificar você por eles, por ninguém.
Ela olhou para Surai, sua expressão suplicante e feroz. — Você vai me ajudar?
Os olhos lilases de Surai estavam vermelhos de tanto chorar, mas também claros. Ela
deslizou a mão enluvada sobre o punho dourado de sua katana. — Vou ajudá-la no que
puder. Apenas me prometa, quando entrarmos em Spirefall, você matará o máximo de
Noctis que puder, Soror.
Soror - a palavra Solis para irmã. Haven piscou para conter as lágrimas que
queimaram sua garganta. — Essa é uma promessa que posso facilmente fazer. Eu vou matar
todos eles, cada monstro de asas negras até que meu coração pare de bater.
Archeron rosnou e andou alguns metros, como se fosse partir, então se virou e
caminhou de volta para ela. — Por favor, Haven. Encontraremos outra maneira. Não faça
isso.
As súplicas de Archeron penetraram profundamente em seu coração. A última coisa
que ela queria era machucá-lo e, por um momento, ela considerou desistir da ideia.
Mas, não importava o quanto ela tentasse enterrar sua raiva, ela crescia para enchê-la.
Uma chama crescente de raiva.
Ela precisava de vingança, precisava ver o rosto da Rainha das Sombras contorcido
com o mesmo medo e agonia que todos sentiam. — Sinto muito, mas você não pode me
influenciar, Archeron. Já está decidido.
Ele piscou, procurando seu rosto enquanto seu peito arfava, seus punhos se fechando
e abrindo ao lado do corpo. — Haven, você não tem ideia do que desencadear a magia da
luz e da escuridão vai fazer. Isso pode te matar ou pior. Você poderia mudar, se tornar um
monstro.
— Então, me mate depois que quebrarmos a Maldição.
Ela não queria soar tão dura ou indiferente, não depois de tudo o que aconteceu e tão
perto da morte de Rook, mas saiu de qualquer maneira.
Archeron a olhou fixamente com olhos incompreensíveis, como se, de repente, ela
fosse uma estranha. — Como você pode sugerir tal coisa?
A dor em sua voz cortou profundamente, mas ele saiu antes que ela pudesse consertar.
Surai se adiantou e colocou sua mão fina no pulso de Haven. — Ele vai superar isso.
— Eu não acho que ele vai — Haven respondeu, observando-o desaparecer na densa
floresta além do rio. Uma parte dela doía com o pensamento de perdê-lo, mas quebrar a
Maldição, salvar Bell e fazer a Rainha das Sombras pagar pela morte de Rook – ela faria o
que fosse preciso para que essas coisas acontecessem.
E, se tornar-se uma arma mágica era a única maneira, que assim fosse.
Soltando um suspiro profundo, ela se virou para Bjorn. — Vidente, o que temos que
fazer?
Bjorn enfiou a mão no bolso interno da capa e tirou uma pequena bolsa verde. Seu
saco de runas. Parecia que anos haviam se passado desde que ela havia escalado aquele freixo
gigante e recuperado a pedra de Bell, aquela que havia começado tudo isso.
Seus lábios se curvaram em um quase sorriso. — Damius pode estar sentindo falta
disso. Agora, precisamos encontrar abrigo e fazer um fogo quente o suficiente para derreter
essas pedras rúnicas.
De repente, tudo se tornou real, o que ela estava prestes a fazer e sua garganta parecia
seca enquanto ela lutava para engolir. Ela imaginou Bjorn desenhando marcas de runa em
sua pele.
Mas isso, isso era outra coisa. — Essas não são marcas rúnicas, Vidente. Essas são runas
de poder.
Um olhar impressionado cintilou no rosto de Bjorn quando ele ergueu uma
sobrancelha. — Muito bom. Quem escolheu essas pedras tinha olho perito. Algumas dessas
runas de poder são tão raras, tão poderosas, que eu nunca as vi antes, nem sei o que,
exatamente, elas fazem.
Havia um aviso ali. Ela se mexeu, a náusea agitando seu estômago.
— Mudando de ideia? — Bjorn perguntou cautelosamente.
— Não. Eu só… — Seu foco se desviou para as árvores. E se Archeron estivesse
certo? E se isso a matasse, ou pior?
E se ela se tornasse um monstro?
Expelindo seus medos com um suspiro, ela arrastou seu olhar de volta para o vidente
e sua bolsa de pedras. — Estou pronta. Apenas me prometa, se eu me tornar algo... mal, você
vai me matar para que Archeron não precise fazer isso.
Surai engasgou, mas o Vidente mal piscou enquanto acenava com a cabeça. — Agora
— ele começou. — Ore à Deusa para que Archeron volte para nos ajudar.

Um enorme fogo ardia dentro da caverna que Bjorn escolheu para a cerimônia e uma
fumaça negra subia pelas rachaduras no teto de granito. Haven se concentrou na mancha
azul do céu enquanto Bjorn circulava o fogo, cantando em uma língua que ela não
reconhecia. As pedras rúnicas queimando perfumavam o ar enfumaçado, com um cheiro
metálico de rosa esmagada que revirou seu estômago.
Exceto por sua camiseta e calcinha, suas roupas haviam sido arrancadas, e suor
escorria ao longo de sua pele nua, acumulando-se entre seus seios. Já haviam passado horas
dentro desta caverna encharcada de calor, horas de canto e espera.
Haven se virou para encarar Surai, que estava sentada de pernas cruzadas ao lado dela.
— Ele não virá.
Surai piscou, emergindo do transe de tristeza que a havia tomado nas últimas horas.
— Então, faremos isso sem ele.
— Não — Bjorn chamou. — Precisamos de seu poder para controlar as pedras.
Mesmo com três de nós, pode não funcionar. Há simplesmente magia das sombras demais
aqui.
Surai balançou a cabeça, sua trança bagunçada serpenteando por cima do ombro. —
Esta noite é lua cheia. Devemos fazer isso agora.
Haven se apoiou nos cotovelos. — Faça isso, Vidente. Vou assumir as consequências.
E ela iria. Quaisquer que fossem. Por Bell. Por vingança.
A cabeça de Bjorn inclinou em direção a ela. Por um momento, ela jurou que ele
podia vê-la claramente de seus olhos brancos como a lua. Sua garganta balançou. Então, ele
se arrastou ao redor do fogo mais uma vez e ela voltou sua atenção para Surai.
— Se algo acontecer — Haven disse — diga a Archeron que ele é um bastardo bonito.
E... que eu sinto muito.
Surai abriu a boca e então seu olhar passou por Haven. — Diga a ele você mesma.
O coração de Haven bateu contra suas costelas quando ela se virou para ver Archeron
rondando pela entrada da caverna em sua direção. Ele a encarou enquanto cruzava o chão e
se ajoelhava ao lado dela.
Ela soltou um suspiro de alívio. — Você veio.
Sua mão estava fria por estar do lado de fora, quando ele pegou a dela. Instantes
passaram e ele parecia lutar por palavras. — Eu não concordo com isso, Haven, mas eu vou
lutar ao seu lado até o fim, seja quando for. Você tem minha espada... e meu coração.
Aconteça o que acontecer.
— Você demorou o suficiente — Surai rosnou.
Archeron olhou para ela. — Se ela morrer, culparei todos vocês.
Ele não mencionou a alternativa - se ela se tornasse algo malévolo. Algo tão ruim
quanto a Rainha das Sombras. Magia era uma mestra sombria e dúbia, e ela poderia muito
bem acordar uma pessoa totalmente diferente.
Antes que ela pudesse responder, Bjorn se adiantou e o clima sério ficou ainda mais
sombrio. O coração de Haven ameaçou sair de seu peito quando Bjorn se inclinou sobre ela.
O vapor saía da taça gasta em suas mãos.
Antes, as joias devem ter circundado a taça, mas agora a única evidência disso eram os
contornos ovais e brilhantes contra o ouro embaçado.
Ele se acomodou na capa à esquerda dela, o conteúdo da taça iluminando seu rosto
solene. Silêncio. Todos os olhos estavam fixos na taça com as runas derretidas dentro.
Toda aquela magia condensada...
Haven levantou para uma posição sentada e colocou os braços em volta dos joelhos,
enquanto espiava por cima da borda dourada, e ofegou.
Em sua forma sólida, as pedras rúnicas eram rochas e pedras preciosas polidas.
Bonitas, mas não incríveis.
Mas derretidas.... derretidas elas eram uma massa rodopiante de cores e luz,
cintilantes, metálicas e atraentes, a coisa mais magnífica que Haven já havia visto.
E o poder ilimitado borbulhando por cima da borda... ele a chamava, sussurrando em
uma linguagem sem palavras. Com isso, todos os seus medos e dúvidas evanesceram.
— Estou pronta. — Sua voz era uma rouquidão impaciente.
— Você vai ter que beber isso — disse Bjorn.
Ela deu um aceno rápido e eles começaram a cantar, suas vozes se juntando e ecoando
nas paredes da caverna até se tornar uma longa sequência de sons, uma canção derramando
em suas veias e mexendo em seus ossos.
Ela se sentia leve e pesada, oca e cheia. Seu batimento cardíaco desacelerou, sua
respiração se alinhando com algum ritmo antigo que pulsava dentro de tudo.
Ela pegou a taça, mal ciente do metal quente queimando sua palma. A magia dentro
da taça pareceu aumentar quando ela a ergueu aos lábios, a luz diáfana cegando-a.
Por um segundo, ela hesitou.
A garota mortal de Penryth sabia que ela deixaria de existir, uma vez que a magia
enchesse seu corpo; mas a garota do outro lado do Mar Cintilante estava pronta para emergir
e aceitar seus poderes. Pronta para vingar Rook e salvar seu amigo, custe o que custasse.
Então, ela inclinou a cabeça para trás e reivindicou seu destino.
A mente de Bell girava com perguntas enquanto ele seguia o príncipe caído, Renault
- ele ainda estava se acostumando com seu nome verdadeiro - mais fundo dentro de Spirefall,
perto da luz laranja da tocha piscando sobre as paredes de pedra úmidas, enquanto morcegos
mergulhavam em volta de sua cabeça.
Como Haven poderia estar viva?
Ele a viu mergulhar no abismo de fogo. Viu o wyvern sombreando-a. A menos que a
história maluca que o Senhor do Submundo lhe contou fosse verdade: ele a salvou e, agora,
ela estava vindo com um bando de Solis para quebrar a Maldição e libertá-lo.
Se fosse qualquer um além de Haven, ele teria acreditado que era impossível.
— Depressa — ordenou Renault. — O Noctis disse que a porta estaria aqui.
Bell correu atrás do príncipe caído, suas botas escorregando pelas escadas desgastadas
enquanto ele lutava contra uma onda de medo. Este lugar parecia mal até mesmo na pedra
de ônix escorregadia, iluminada por rajadas de magia azulada esculpida no material.
Ocasionalmente, quando a luz desbotada conseguia passar pelas rachaduras, pedras
rúnicas brilhavam nas paredes.
Ele não tinha muito conhecimento de runas, mas podia sentir o mal nas pedras. Este
lugar era uma fortaleza de magia das sombras, destinada a manter mortais como ele
aprisionados para sempre.
E eles não estavam sozinhos.
Enormes besouros negros e escorpiões brancos como a lua deslizavam em torno de
seus pés; ratos muito grandes guinchavam pelos cantos. Perto da base da escada em espiral,
uma víbora vedada de preto, tão grossa quanto seu braço, sibilou para eles antes de deslizar
preguiçosamente para a escuridão.
Eles pararam para se orientar e Bell se livrou de duas aranhas do tamanho de maçãs
que rastejavam em seu pescoço.
Sua voz estava embaraçosamente alta quando ele disse: — Então, você acredita nele?
— Nós temos outra escolha? — A respiração gelada de Renault ondulou no ar e ele
acenou com o lampião para a direita, iluminando outro lance de escadas. — Esta é a única
chance que você tem.
Bell tentou reprimir a esperança crescente em seu peito. Ele não podia se dar ao luxo
de acreditar. Ainda não.
Ainda assim, com cada passo que dava ao descer as escadas sinuosas, frias, úmidas e
cobertas de sombras e noite criaturas, sua esperança crescia um pouco. Mesmo quando eles
passaram por cômodos cheios de prisioneiros mortais em gaiolas, semelhantes às que ele
encontrou da última vez, seus lamentos ecoando nas paredes cheias de runas.
Se Haven realmente estivesse vindo por ele, talvez eles pudessem tentar libertá-los
também.
— Ali — sussurrou Renault.
Bell seguiu o grande orbe de luz do fogo até a porta. Estranhas runas e símbolos foram
esculpidos na superfície da porta de ferro e eles brilharam em um azul brilhante quando os
dois se aproximaram.
— Tem que ser isso — ralhou Renault. Ele entregou a tocha a Bell, enviando uma
onda de calor suave sobre suas bochechas, então começou a sussurrar feitiços enquanto
desenhava runas no ar com sua mão mortal.
Bell encostou-se na parede fria de obsidiana à direita, tentando não pensar na
liberdade que havia do outro lado.
Segundo o Senhor do Submundo ajudando-os, as proteções nesta porta, que
mantinham as pessoas dentro, eram mais fortes do que as que mantinham as forças
afastadas. Mas mesmo que eles pudessem quebrar essas proteções e escapar, a Rainha das
Sombras o rastrearia facilmente.
Não, deixar Haven entrar era sua única chance - se ela realmente estivesse viva. Mas
ela sabia quais pesadelos a aguardavam lá dentro?
Não era como se um pouco de morte fosse detê-la. Quando se tratava de salvar seus
amigos – ou ele, mais especificamente – ela morreria mil vezes.
Ele nunca admitiu isso, mas sua lealdade desumana muitas vezes o fazia se sentir
menos do que digno. Às vezes, ele desejava que sua lealdade vacilasse. Apenas uma vez - para
que ele pudesse parar de ter que viver de acordo com sua ideia dele. A melhor versão dele
possível.
Na maioria dos dias, ele era apenas uma sombra desse ideal – não que ela notasse. Ela
o amava incondicionalmente, sem vacilar e sem moderação. E às vezes... às vezes ser a pessoa
que merecia tanto amor era exaustivo.
Ele deitou a cabeça contra a parede, pressionando um punho em seu esterno. Ele
deveria pedir a Renault para parar.
Uma vez que Haven entrasse, suas chances de sair eram inexistentes. Imagens da
Rainha das Sombras torturando-a encheram sua mente e ele abafou o grito que se seguiu.
Talvez ele fosse um covarde. Ou, talvez, ele só precisasse ver sua amiga novamente,
para ter certeza de que ela ainda estava viva. Mas ele observou Renault enquanto desenhava
suas runas e recitava seus feitiços, observou os redemoinhos brilhantes na porta lentamente
se transformarem em sombras moribundas e não disse nada para detê-lo.
De repente, estava feito.
Renault se voltou para Bell com um raro sorriso. — As proteções foram quebradas.
Bell passou a mão sobre a porta de ferro congelante. — Você tem certeza?
— Sim. Eu as senti quebrar.
Antes de deixarem o lado do castelo de Renault, o Senhor do Submundo havia
realizado seu próprio feitiço para proteger a magia da luz de Renault da magia das trevas
aqui, pelo menos por tempo suficiente para ele quebrar as barreiras.
— Precisamos ir, Bellamy.
Foi a primeira vez que Renault disse o nome de Bell e, por alguma razão estúpida, ele
sentiu o calor subir em suas bochechas. — Obrigado por fazer isso. Eu sei que se eles pegarem
você me ajudando, você será punido.
A garganta de Renault balançou e ele lentamente se virou para olhar para Bell. — Eu
deveria ter feito isso anos atrás. Obrigado... por me lembrar de que ainda há algo de bom
neste mundo. E que ainda posso fazer parte dessa bondade, mesmo depois de todos os meus
pecados.
— Claro que você pode — disse Bell. — O que quer que você tenha feito, não
importa como tenha falhado com você mesmo e com os outros, nunca é tarde para fazer a
coisa certa. E todos merecem ser perdoados por suas falhas. A Deusa sabe que as minhas são
incontáveis.
— Suas? — Renault zombou. — Que falhas você poderia possuir, Príncipe? Você é
o homem mais gentil que já tive a infelicidade de manter prisioneiro.
Gentil? Bell olhou para Renault, chocado com sua sinceridade.
No mundo de Bell, a bondade era um pecado e a crueldade a resposta. Ele havia
decidido há muito tempo que nunca chegaria à altura de Renk.
Mas agora, para alguém ver sua bondade como algo digno...
Uma bolha de calor cresceu dentro de seu peito, enchendo-o de uma espécie estranha
de euforia oca.
Num impulso, Bell estendeu a mão e pegou a mão em garra de Renault. Ele ficou
absolutamente imóvel quando Bell removeu a luva, tomando cuidado com cada dedo torto.
A luz da tocha tremeluziu em escamas verde-escuras. Garras curvas e cinzentas pendiam
frouxamente das pontas dos dedos, meio retraídas.
— Em breve — disse Renault — serei como as criaturas que se escondem nas sombras
ao nosso redor. Um monstro em dívida com Morgryth. Você ainda vai olhar para mim com
tanta ternura então, gentil Príncipe?
Bell quase riu ao perceber o quão indignos os dois se sentiam quando se tratava de
amor. Ele correu um dedo sobre a mão bestial de Renault, arrancando um suspiro áspero de
Renault.
— Não acho que você seja um monstro — disse Bell. — E eu acho que você merece
amor.
Os olhos de Renault brilharam.
Reunindo coragem, Bell ergueu a mão e passou-a pelas escamas ao longo do lado
arruinado do rosto de Renault, maravilhado com sua suavidade, com a forma como a luz
mudava de cor.
Agora que ele olhava para as escamas, elas não eram tão hediondas. Na verdade, ele
mal notou-as quando ele ficou na ponta dos pés e roçou os seus lábios sobre os de Renault.
Renault endureceu. — Príncipe Bellamy, eu...
De repente, ele ficou rígido, seu olho reptiliano se contraindo e garras empurrando as
pontas dos dedos. Ele se virou para encarar a escada. Foi quando Bell pegou um vislumbre
de asas da meia-noite e olhos selvagens.
Magewick.
— Vejo que você encontrou a única porta para a terra — Magewick ronronou com
aquela voz cruel.
Ele desceu as escadas com cautela sobrenatural, sem fazer barulho. Atrás dele,
gremwyrs rastejavam ao longo das paredes, espalhando os morcegos pelo teto.
— Não fique tão surpreso — Magewick continuou. — Você realmente achou que
era o primeiro a tentar escapar?
O alívio encontrou um lugar próximo ao medo no coração de Bell. Magewick não
sabia a verdadeira razão deles estarem aqui. — Se você soubesse que não abriria — disse Bell
— por que veio até aqui?
— Será que você realmente esqueceu? A lua está inchada e cheia. — Magewick
agarrou Bell pelo pescoço e seu coração parou. — Hora de alimentar nossa princesa faminta.
— Não! — Renault se lançou sobre Magewick, mas os gremwyrs desceram sobre ele,
arranhando e mordendo sua carne. Bell tentou lutar, mas Magewick o acertou na bochecha
esquerda, atordoando-o.
Escuridão. Bell lutou para não ficar inconsciente enquanto o arrastavam
violentamente escada acima... tão rápido. Torcendo-se nas garras do Noctis, ele conseguiria
virar e avistar Renault.
A última imagem que Bell viu antes do Noctis o arrastar escada acima e fora de vista
era o príncipe caído desaparecendo sob um enxame de monstros de verdade.
Haven acordou de uma escuridão que ela não conseguia se lembrar, sua pele febril e
coberta de suor. O fogo dentro da caverna havia esmaecido, o ar frio contra sua pele.
A primeira coisa que viu foi o rosto preocupado de Archeron.
A segunda, as runas prateadas que serpenteavam pela carne de seus braços.
Elas eram lindas – a coisa mais linda que ela já tinha visto. Lágrimas encheram seus
olhos quando ela viu as marcas e o que elas significavam.
Poder. Vingança.
Ela tentou se levantar, mas Archeron deslizou um braço em volta de suas costas antes
que ela pudesse levantar mesmo que cinco centímetros, firmando-a enquanto a ajudava a se
sentar.
— Haven? — Sua voz era um sopro de água fria contra sua pele quente, mas seus
olhos estavam apertados. — Haven?
— Por favor, garota — Surai murmurou. — Diga algo.
— Quanto tempo eu estive inconsciente? — ela murmurou, sua garganta dolorida e
seca.
— Muito tempo — Archeron disse. — Nós pensamos...
— Nós pensamos que você tinha morrido — Surai terminou cuidadosamente,
olhando para Archeron.
Seu corpo ficou rígido. De repente, ele se levantou, os punhos cerrados ao lado do
corpo, e saiu da caverna.
Surai tocou sua pele abrasadora. — Dê-lhe um tempo. Duas vezes, seu corpo não teve
batimentos cardíacos. Ele estava tão perturbado que eu pensei que ele iria persegui-la até o
Submundo e arrastá-la de volta.
— Agora... isso eu gostaria de ver — Haven murmurou, imaginando Stolas e
Archeron juntos.
— Você se sente diferente?
— Quente. Eu me sinto quente, mas também fria. — Mais uma vez, Haven deixou
seu olhar vagar pelas marcas brilhantes que passavam ao longo de sua carne. Elas estavam em
todos os lugares, uma treliça de bandas iridescentes, marcando cada centímetro de seu corpo.
Enquanto ela traçava um dedo por um braço, ela percebeu que o calor mercurial
vinha das próprias runas.
— Eu não me sinto... transformada, no entanto. — A voz de Haven tremeu. —
Não daquela forma.
Ela não teve que soletrar o que ela quis dizer. Ambas as garotas se lembravam do medo
de Archeron de que ela de alguma forma se transformasse em algo sombrio.
— Um monstro não saberia que é um monstro — Surai observou antes de perceber
o que ela estava dizendo e tapar a boca com a mão. — Você sabe o que eu quero dizer. Além
disso, as runas de carne não terão efeito total até meses a partir de agora, então quaisquer
mudanças duradouras podem não acontecer até muito mais tarde.
— Reconfortante. — A declaração de Surai deveria tê-la preocupado mais, mas ela
estava muito em transe com suas runas de carne para pensar muito.
— O que você está olhando? — As palavras de Surai saíram lentamente, como se
Haven fosse um vaso delicado que se estilhaçaria se manuseado com muita brutalidade.
Haven se endireitou, ignorando a oferta de ajuda de Surai. O calor gelado permeando
seu corpo se tornou um sussurro de fogo e gelo, chamas, poder e promessa.
Ela se virou para Surai, acenando com o braço na frente do rosto. — Você não
consegue ver as marcas de runa?
Surai balançou a cabeça. — Você consegue?
— Sim, eu gostaria que você conseguisse também. — Haven se colocou suas roupas,
deleitando-se com a energia poderosa que sentia fluindo através de cada parte dela. Parecia
uma pena cobrir as marcas e ela continuou segurando as mãos levantadas para se maravilhar
com as linhas delicadas que se enrolavam em espiral até as pontas dos dedos. — Elas são
magníficas.
— Mas elas funcionam?
Haven sorriu enquanto afivelava seu punhal de adagas em seu peito. — Só há uma
maneira de descobrir.
Um sorriso abriu o rosto de Surai e ela jogou os braços ao redor de Haven. — Aí está
nossa mortal mal-humorada. Agora eu sei que você está bem.
— Eu estou, de verdade — Haven disse, deslizando seu braço sob a trança de Surai e
ao redor de suas costas esbeltas. Ela pressionou sua bochecha na de Surai. — Você está?
Surai soltou um suspiro irregular, afastando-se para olhar para ela. — Minha mente
sabe que ela se foi, Haven, mas levará tempo para minha alma acreditar nisso. Eu me pego
procurando por ela, ouvindo sua voz como se ela estivesse fora de vista. Todas as minhas
roupas ainda carregam seu pelo... — Ela enxugou as lágrimas molhando seus cílios. — Vou
sofrer por ela mais tarde. Agora, busco conforto no Fogo do Submundo que estamos prestes
a fazer chover em Spirefall e na Rainha das Sombras.
— Espera. — Haven estudou o rosto de Surai. — Por que você ainda está em sua
forma verdadeira?
Surai tocou a maçã redonda de sua bochecha. — Eu não sei. Acho que quando Rook
morreu, nossa maldição foi quebrada. Mas parece errado, de alguma forma. Isso deveria
acontecer para nós duas, juntas. Caso contrário, o que me importa se eu sou um corvo ou
Solis?
A voz da Rainha do Sol estava vazia e Haven sabia que ela seria um pássaro para
sempre se isso significasse trazer Rook de volta.
— Rook gostaria que você desfrutasse de sua verdadeira forma — Haven insistiu
suavemente.
— Você não tem ideia. — Um sorriso fraco encontrou os lábios de Surai. — Eu só
posso imaginar as maldições que ela gritaria comigo se soubesse que eu estava sofrendo
tanto. Ela me disse quando nos conhecemos que morreria jovem... mas nós duas pensamos
que ainda tínhamos tempo. Ela teve visões de sua morte, mas não o contexto. Acho que ela
percebeu ontem à noite, porque continuou falando comigo sobre seguir em frente e ser
forte. — Sua voz falhou e ela limpou a garganta. — Se eu soubesse que aqueles eram meus
últimos momentos com ela...
Haven puxou Surai para um abraço feroz. — Transforme sua dor em raiva. Juntas,
faremos a Rainha das Sombras se arrepender de ter tirado Rook de nós.
As meninas pressionaram suas testas juntas. Então, Haven escapuliu para recolher
suas armas, as runas ao longo de sua carne pulsando como se estivessem ansiosas para se
provar seu valor.
— Vou ver como Archeron está— Surai falou por cima do ombro enquanto saía. —
Mas você realmente deveria falar com ele logo.
Uma vez que Haven tinha sua espada amarrada nas costas, junto com seu arco e aljava,
ela finalmente se sentiu pronta. Quando ela saiu, Bjorn a encontrou. Ele era o único que não
parecia preocupado após a transformação e ela o estudou por um momento.
Sombras escuras se moviam ao redor dele, fracas o suficiente para serem fumaça do
fogo. Tudo nele parecia diferente agora. Sua energia. Seus movimentos. Mas ela sabia que
ele era próximo de Rook. Talvez ele estivesse levando a morte dela pior do que deixava
transparecer.
Ou, talvez, estar tão perto do lugar onde foi torturado e ficou cego estava pesando
sobre ele.
Ele estendeu a mão e desenrolou os dedos. Vermelho brilhou de sua palma. — Pegue
isso. Isso vai te proteger.
Era um rubi dentro de uma elaborada gaiola de ferro de runas, pendurado em uma
delicada corrente.
Enquanto a colocava sobre a cabeça, a gema pendurada pesada e fria contra seu
esterno, ela sentiu uma pulsação de pavor. — Obrigada.
Bjorn baixou a cabeça e ficou assim, até que ela foi falar com Archeron. Ela o
encontrou parado perto de um aglomerado de rochas com Surai, preparando armas. A neve
fresca tinha caído enquanto ela estava inconsciente e ela protegeu seus olhos do brilho
branco enquanto se dirigia para Archeron.
Surai a viu primeiro e escapuliu sem dizer uma palavra.
Haven estava preparada para uma série de emoções ao lidar com Archeron, mas tudo
o que sentiu ao se aproximar dele foi orgulho.
O Senhor do Sol parecia pronto para a batalha. Seu cabelo cor de mel estava puxado
para trás com uma faixa de couro e colocado sobre um peitoral de couro de corte fino com
runas gravadas, as bordas de cada peça douradas. Duas espadas longas entre suas omoplatas,
uma espada curta pronta em seu quadril.
Suas facas de arremesso estavam escondidas dentro de sua capa, ela sabia, junto a uma
variedade de adagas em suas botas e outros lugares.
Sua coluna se endireitou quando ela tocou seu braço, tenso com músculos.
— Você sempre se veste tão bem para a batalha? — ela perguntou.
Apesar de suas sobrancelhas franzidas, metade de seus lábios se contraiu em um
sorriso. — Eu deixei minha armadura dourada em casa.
— Que pena.
Os músculos de sua mandíbula tremeram quando seus olhos ficaram solenes. — O
feitiço funcionou?
Ela ergueu o braço, admirando as runas prateadas, a forma como elas brilhavam na
luz. — Você não pode vê-las? Minhas runas?
Ele balançou a cabeça, lentamente, seu olhar perturbado percorrendo sua carne. —
Elas devem estar escondidas. Bom. Isso vai mantê-la segura – por um tempo.
Os dedos dela deslizaram até o cotovelo dele e os músculos abaixo de sua carne ficaram
tensos sob as pontas dos dedos. — Archeron, sinto muito se a transformação te assustou.
— Assustou? — Ele bufou, levantando uma sobrancelha duvidosa enquanto se
preparava para dar alguma resposta sarcástica – então parou. Sua expressão arrogante
derreteu, sua mandíbula se apertando. — Quando senti sua carne virar fogo e seu coração
parar sob minha palma... — Ele desviou o olhar até transformar a emoção horrorizada em
seu rosto em uma fúria fria. — Nunca mais quero sentir essa dor.
— Sinto muito por te machucar — ela disse, esperando que ele ouvisse a sinceridade
em sua voz. — Não sei o que vai acontecer em algumas horas. Mas sei que quero você ao
meu lado. Como parceiro. Como um igual. — Ela deslizou sua mão dentro da dele, sua
palma macia encontrando a pele calejada de séculos passados segurando uma espada. —
Você lutará ao meu lado, Archeron Halfbane?
Um sorriso lento se espalhou por sua mandíbula. — Com prazer, Haven Ashwood.
E posso pensar em algumas coisas que poderíamos fazer depois.
Suas marcas de runa formigaram e queimaram para combinar com suas entranhas.
Ela sabia que ele não estava apenas sendo acanhado; ele estava tentando dar a ela esperança,
a promessa de uma vida depois. De conseguir sair de Spirefall com vida.
— Mais beijos?
— Oh — ele murmurou, aproximando-se para roçar seus lábios sobre a concha de sua
orelha. — Acho que já ultrapassamos isso.
De fato.

Assim que cruzaram as montanhas para o Reino das Sombras, a sombra escura da
noite caiu. Haven olhou para o castelo irregular de espirais e névoa em silhueta contra o céu
azul-negro, garras de pavor raspando em suas entranhas.
Sombras circulavam acima, manchas escuras lançadas contra uma lua grande demais.
Abaixo, corvos se reuniam sobre as rochas e pedregulhos que cobriam a paisagem.
Ocasionalmente, um som os assustava e eles levantavam voo, derramando-se no céu como
tinta caindo na água.
Bjorn assumiu a tarefa sombria de abater os pássaros até Haven se acostumar com o
baque dos espiões da Rainha das Sombras chovendo sobre a paisagem morta.
Magia das sombras fervilhava deste deserto árido de granito. Não haviam florestas,
nem árvores, nem sinais de vida além de insetos rastejantes e terríveis criaturas noturnas.
Apenas montanhas, neve, gelo e... medo.
Ela estremeceu quando o vento uivou pelos vales como os gritos raivosos de um
wyvern de gelo.
Haven não teve a chance de testar suas marcas rúnicas e Archeron e Surai
despacharam as poucas sombras que encontraram antes que Haven pudesse levantar um
dedo. Quando chegaram aos penhascos de ônix na base de Spirefall, ela estava tremendo de
frio, apesar das runas de fogo aquecendo sua carne.
Diretamente abaixo do castelo, a parede de névoa velava tudo, exceto o pico mais alto.
Mas ela podia sentir a magia das sombras dentro correndo ao longo de sua pele. Enchendo-
a com um vazio frio.
A escuridão traçou suas novas runas como se a provocasse, a sensação semelhante a
de ter um picador de gelo arrastado sobre sua carne.
Havia uma magia antiga aqui que nem ela entendia. Uma consciência distante e cruel
que avisava o que aconteceria com sua alma se ela deixasse a magia das sombras dominá-la.
Enquanto eles se reuniam, ninguém mencionou que eles realmente não sabiam se
Rook tinha tido tempo de avisar o príncipe caído antes do ataque. E Haven não queria trazer
a ajuda do Senhor do Submundo à tona. Isso abriria outra rodada de perguntas que ela não
estava pronta para responder, junto com a pergunta mais importante - por que eles
confiariam nele?
Para isso, ela ainda não tinha uma resposta.
— Aqui. — Bjorn pressionou a mão no penhasco íngreme e o contorno vermelho
fraco de uma porta alta apareceu.
— Espere. — Archeron foi o último a seguir e se virou para observar algo à distância.
— O que é? — Haven perguntou.
Seu corpo estava rígido, alerta enquanto ele estudava o vale atrás deles, mergulhado
na sombra. — Talvez não seja nada. Pensei por um momento que estávamos sendo seguidos.
— Ele estalou o pescoço. — Seja o que for, eles não vão querer nos seguir para onde estamos
indo.
Um olhar estranho passou pelo rosto de Bjorn e ele inclinou a cabeça na direção dela.
— Última chance para voltar atrás.
A pedra era áspera contra a palma de Haven quando ela a colocou ao lado da de Bjorn.
— Você pode fugir se quiser, Vidente. Mas vou buscar meu amigo.
Ele deu a ela um sorriso tenso. — Essa é a sua decisão, então?
— É. — A porta se abriu sob seus dedos, levando a um espaço escuro como breu.
Haven convocou uma chama de magia, luz envolta em escuridão, o ato tão fácil quanto
respirar. Com a outra mão, ela desembainhou a espada, apreciando o silvo do aço que
ressoou alto contra o silêncio.
Uma escada grosseira fora esculpida na obsidiana e eles subiram os degraus sinuosos
com passos calmos. Insetos e outras criaturas se escondiam nas sombras.
À medida que subiam, um fedor azedo encheu o ar. Não demorou muito para
encontrarem a fonte: jaulas penduradas em todos os andares, abarrotadas de mortais. Alguns
ainda usavam suas armaduras, não muito mais do que abas de metal corroídas agora, as
insígnias dos reinos de onde vieram irreconhecíveis.
A maioria, porém, tinha sorte de possuir roupas.
Haven forçou a bile subindo por sua garganta. Os cheiros e sons eram como algo de
um pesadelo.
Quantas dessas pessoas já foram soldados? Quantas vieram aqui como ela, para
quebrar a Maldição, e nunca mais voltaram?
Levou toda sua força de vontade para ignorar seus gritos, seus gemidos e pedidos de
morte.
Este seria o destino de seu mundo se ela não quebrasse a Maldição. Seu povo
torturado e escravizado, usado para comida, entretenimento e pior.
A náusea agitou seu estômago. Náusea e raiva.
Parte dela implorou para parar e ajudá-las, mas não havia nada que ela pudesse fazer
além de continuar subindo o eterno lance de escadas, subindo em espiral, subindo,
subindo...
Haven ouviu os passos um segundo antes dos Noctis aparecerem na curva. Ela estava
pronta com sua magia. Quando ela jogou a esfera de chamas na criatura, ela tentou se
esquivar - mas sua magia desviou. Ela viu lamber suas asas e pele de marfim com um estranho
fascínio.
A criatura mal teve tempo de gritar antes de se transformar em faíscas e cinzas.
Ao todo, a matança foi sem esforço. Fácil.
Mais vieram. Cada um encontrou sua ira ardente.
Ela foi implacável, enviando chama após chama até que pedaços de cinza se agarravam
a sua pele e boca. Eles morreram silenciosamente, sem um som, o que tornou ainda mais
agradável ver a surpresa no rosto de cada monstro quando ela o apagou da existência.
Os outros nem tiveram a chance de molhar as armas.
Você gosta disso, uma voz sombria sussurrou. É para isso que você foi feita. Seu destino.
Archeron agarrou seu braço. — Você precisa desacelerar, Haven.
— Não — ela assobiou. — Não até que todos estejam mortos.
Uma parte dela sabia que ele estava certo. Suas emoções estavam desordenadas, seu
peito doendo de raiva. O ódio vazava dela como um veneno...
Mas as gaiolas passaram por sua mente. Ela viu as figuras esqueléticas arranhando as
barras. Ouviu seus gritos angustiados como se ela ainda estivesse naquela câmara. Ela
imaginou os pés de Bell chutando enquanto ele era arrancado do templo. O rosto corajoso
de Rook enquanto ela lutava contra criaturas sem alma e morria bem em frente dos seus
olhos.
Então, ela abraçou sua raiva, entrelaçando aquela fúria brilhante com sua magia,
deixando-a atear fogo em seu interior. Se ela estava indo para o Submundo, ela levaria metade
deste castelo podre com ela.
Haven subiu as escadas de dois em dois. Bjorn disse que a Rainha das Sombras estaria
nos andares mais altos do castelo, mas eles não tinham ideia do quão longe estavam. Às vezes,
eles tinham que atravessar câmaras antes de encontrar a próxima escada e eles encontravam
gremwyrs e outras sombras.
Haven se forçou a finalmente deixar que os outros os despachassem. Ela poderia ter
usado sua magia, mas eles precisavam molhar seu aço e soltar seus músculos antes que a
verdadeira batalha começasse.
Qualquer energia nervosa que sentia, desaparecia com cada liberação de poder de suas
veias, a sensação estranha, mas agradável, uma pressão crescente e, então, clímax, como um
espirro. Outro andar. Dois Noctis caíram do teto, suas asas abertas e as garras brilhando.
Desta vez, ela arrancou as asas de seus corpos enquanto eles ainda estavam no ar, a
carne delicada e membranosa rasgando e seus ossos ocos estalando.
Então, ela os afogou em seu próprio sangue.
Ela sentiu os olhares preocupados dos outros enquanto eles subiam mais escadas,
desta vez largas o suficiente para todos os quatro subirem ombro a ombro.
Archeron lançou seu olhar para ela, seu aço já preto com sangue, mas ela o ignorou.
Correndo - ela estava correndo agora. Sua magia clamando por mais coisas para matar.
Faça-os pagar, sussurrou. Mostre a eles o que você é. Rasgue suas entranhas. Destrua-os.
Como eles ousavam levar Bell.
Ela sacudiu a mão e uma parede inteira desmoronou sobre um grupo de soldados
Noctis, esmagando-os.
Como eles ousam tentar me machucar.
Ela atirou lanças de fogo em três gremwyrs que vieram correndo para baixo das vigas.
Eles caíram morto a seus pés.
Como eles ousam matar Rook e jogá-la do céu como lixo.
Como. Eles. Ousam.
Mais morreram. Incontáveis. Ela era um redemoinho de morte, um prenúncio de ira
e ruína. Seus amigos lutavam ao lado dela, suas armas brilhando contra as sombras, mas ela
mal os notou.
Quase não percebeu a magia das sombras furiosa de seus dedos, ausente de qualquer
luz.
Matar.
Matar.
Matar.
Quase não percebeu enquanto as chamas ficavam menores, mais fracas.
Largas portas de ônix esculpidas com todos os tipos de criaturas apareceram e Haven
as abriu, pronta para atacar - e congelou.
Uma caverna gigante estava à frente com criaturas se contorcendo dentro das
catacumbas que revestiam as paredes. O teto alto se agitava com gremwyrs e gritos estranhos
reverberaram nas paredes. Um estrado natural de pedra esperava na parte inferior da escada,
esculpido na obsidiana.
E, amarrado a um altar ao lado da Rainha das Sombras e uma comitiva de Senhores
das Sombras, seus braços e pernas espalhados pela pedra escura, estava Bell.
Qualquer que seja o transe sombrio que tomou conta de Haven se dissipou quando
ela viu seu amigo.
— Bell! — O grito de Haven cortou o ar e a cabeça de Bell virou para o lado. Seus
olhos se encontraram. Algo se passou entre eles - um pulso de esperança e amor. — Bell!
O medo tomou conta do coração de Haven. Ela precisava chegar a Bell. Antes que ela
pudesse correr, Surai agarrou seu braço. — Espere, Haven! Pode ser uma armadilha.
— Eles vão matá-lo! — ela assobiou.
Uma compreensão sombria cintilou dentro dos olhos lavanda de Surai e ela deu um
aceno sério. — Vá buscá-lo. E Haven... — Seu olhar se desviou para a Rainha das Sombras.
— Mate a vadia.
Um whoosh atraiu o foco de Haven para cima. Noctis e gremwyrs estavam caindo do
teto.
Ela se lançou, liberando uma explosão de magia que ondulou através da parede de
criaturas. Elas caíram no chão, queimando até as cinzas quando ela saltou sobre eles.
Aqueles que sua magia não matou foram encontrados pelos Solis.
Archeron tinha ambas as espadas em punho e elas cortavam gremwyr após gremwyr
em um borrão de prata e vermelho. Surai estava ao seu lado, abrindo caminho entre as
sombras que bloqueavam seu caminho. Os machados de Bjorn cintilando como joias.
Dois machos Noctis avançaram, asas abertas em agressão. Magia das sombras
chamejou de suas mãos. Mas ela se lembrou da lição de Stolas sobre manobras defensivas e
ela lançou um orbe de magia mista, distraindo suas chamas enquanto ela jogava as suas.
Eles gritaram enquanto morriam, murchando em cinzas.
O som de seu nome sendo gritado chamou sua atenção para o estrado. Uma Noctis
feminina estava pairando sobre Bell, suas asas esqueléticas curvadas ao redor dele como se
ela o estivesse reivindicando. As protuberâncias afiadas de sua coluna se projetavam de suas
costas, um vestido preto esfarrapado vestido com rubis agarrado a sua forma emaciada.
Ravenna.
De repente, Haven estava ao lado deles e ela agarrou a filha da Rainha das Sombras
por seu pescoço pálido e a jogou para trás. Foi só quando Ravenna bateu na parede e gritou
de raiva que Haven soube que ela havia saído de seu corpo como Damius tinha feito.
Um olhar para seu corpo imóvel e sem vida em meio ao caos confirmou isso.
Archeron e os outros perceberam o que ela havia feito e formaram um círculo protetor ao
redor dela.
Levantando a mão, ela viu o ar onde seu braço deveria estar.
Ravenna se levantou bruscamente, seus olhos mortiços e transparentes disparando ao
redor enquanto ela procurava por quem a jogou para trás. Seu olhar saltou direto sobre
Haven. De repente, suas asas macabras se abriram e ela deu um passo para trás em direção a
Bell.
— Sem chance no maldito Submundo! — Haven rosnou. Então, ela a segurou pela
garganta novamente, seus dedos afundando profundamente em carne e osso emaciados e,
de alguma forma, a ergueu no ar, impulsionada pela fúria e magia.
Ravenna gritou e chutou, suas asas batendo descontroladamente enquanto tentavam
controlar o ar. Seus olhos nublados de cadáver incharam de medo, a visão enchendo Haven
de um prazer doentio.
— Deixe-o em paz, vadia — Haven rosnou em seu ouvido. Então, ela jogou a filha
morta-viva da Rainha das Sombras no chão com um estalo.
Se ela continuasse andando pelo plano das almas, seu corpo estaria desprotegido,
então ela voltou a si mesma, a sensação como forçar um pé inchado em uma bota de couro
velha e seca um tamanho pequeno demais
Sua cabeça girou. Depois de algumas respirações firmes, a tontura passou.
Archeron lançou-lhe um olhar severo. — Não faça isso de novo.
Ela acenou com a cabeça e juntos, eles lutaram seu caminho para as escadas do estrado.
A Rainha das Sombras estava no centro, quatro enormes soldados Noctis vestidos
com armaduras de ônix a cercando. Seu olhar estava em Haven, sua cabeça inclinada para o
lado e os dentes à mostra em um sorriso entediado. Suas asas esqueléticas pendiam soltas
atrás dela.
Algo estava errado. Por que ela não estava mais preocupada?
Haven lançou uma onda de magia para ela, mas os soldados deviam ter algum tipo de
escudo sobre a rainha, porque as chamas azuis e douradas apenas rolaram ao redor dela.
A Rainha das Sombras cutucou algo em sua armadura de ombro.
Haven tentou novamente, mas desta vez a chama da magia que fluía de seus dedos
mal era forte o suficiente para alcançar a rainha. A próxima vez que ela tentou, foi um
gotejamento.
Suas runas. Elas estavam frias. Escuras. Estéreis.
Uma onda de pânico surgiu em seu peito. O que estava acontecendo?
Ela girou para abrir caminho em direção a Bell, assim que um soldado Noctis
balançou uma espada irregular em seu pescoço.
Ela jogou magia nele. Nada aconteceu. A lâmina cortou seu cabelo quando ela se
abaixou e ela teve que acabar com ele com seu aço.
— Por que você não está usando magia? — Surai sibilou enquanto pressionavam as
costas e lutavam para subir as escadas.
— Não funciona! — Haven falou entre as respirações. Ela embainhou sua espada e
puxou seu arco em preparação para o ataque que se aproximava. — Algo está errado!
Archeron se juntou a elas. Seu rosto estava abatido, sua armadura escorregadia de
sangue escuro. Ainda assim, ele lutou.
Todos eles lutavam.
Mesmo enquanto os monstros continuavam vindo, mais rápido do que eles poderiam
matá-los. Mesmo quando as flechas que Haven lançava na Rainha das Sombras quebraram
uma após a outra contra seu escudo.
Mesmo depois que sua aljava ficou vazia e ela voltou para sua espada, seus músculos
gritando enquanto ela balançava, cortava e esfaqueava.
E, então, um grito perfurou o estrondo do derramamento de sangue e Haven se virou
para ver um Noctis com enormes asas negras em pé sobre Bell, uma adaga esculpida em
obsidiana posicionada sobre seu peito, bem acima de seu coração.
Ela parou de respirar. No espaço de meio segundo, ela viu a curta vida de Bell pulsar
por trás de seus olhos. Seu sorriso suave e infantil; a maneira como ele enrolava o cabelo
enquanto lia; sua risada irrestrita.
Tudo isso estava prestes a ser apagado.
Um grito gutural saiu de sua garganta.
Como se por causa de algum sinal que Haven não pudesse ouvir, a batalha parou, as
criaturas recuando para o ar. Suas asas criaram um vento que soprava seu cabelo para trás
enquanto subiam.
A rainha deslizou até Bell, lentamente, muito lentamente, sua capa carmesim
profunda deslizando sobre a pedra, mesmo quando seu olhar misterioso nunca deixou o de
Haven. Ela caminhava com um andar estranho e sobrenatural, como uma serpente
deslizando sobre a superfície de um lago.
Todas as criaturas e os Noctis se curvaram, exceto aquele que segurava a lâmina
perversa sobre o coração de Bell.
A única coisa mais assustadora do que o silêncio repentino era a própria rainha. Em
pessoa, ela era horrível, um demônio dos abismos mais profundos do Submundo.
Observando-a andar, a forma como seu corpo antigo se movia sem parecer estar sob
aquela armadura negra, a forma desumana que sua cabeça balançava para o lado, tudo isso
fez Haven instintivamente querer fugir.
Quando a rainha se aproximou do Noctis com a adaga, ele se curvou e deu um passo
para trás, removendo a lâmina de cima do peito de Bell.
Uma lufada de ar escapou dos lábios de Haven, o alívio bombeando em suas veias.
Os lábios da rainha se torceram em um sorriso serpentino. — Essa foi uma exibição
bastante impressionante, garota.
Haven cerrou os dentes para não lançar insultos à rainha.
Bell se contorceu sob suas amarras enquanto a Rainha das Sombras arrastava uma
garra em sua cintura.
Quando o som de sua camisa rasgando a encontrou, Haven rosnou, sua mão apertada
no punho da espada.
— Eu me pergunto, o que ele significa para você, esse menino fraco e impotente?
Pela primeira vez desde que Haven subiu no estrado, ela se permitiu encontrar os
olhos arregalados de Bell. Seus olhos azuis piscaram para ela e seu coração despencou
enquanto ele tentava sorrir através do medo.
Ele tinha nove anos novamente, aterrorizado com o pai, encolhendo-se sob sua
sombra enquanto caminhavam pelos mercados de escravos. No entanto, ele ainda
encontrou coragem para sorrir para ela enquanto passavam. Para puxar a manga cravejada
de esmeraldas de seu pai, duas vezes, para fazê-lo parar.
Para salvá-la.
Oh, Bell. Seus lábios se separaram e ela quase sussurrou que ia ficar tudo bem. Quase.
Mas esse seria o pior tipo de mentira.
— Por que você pergunta? — A voz de Archeron soou forte, sua coluna ereta e
ombros para trás, deixando claro que ele estava disposto a lutar até a morte. Por ela.
Ignorando sua pergunta, a Rainha das Sombras olhou além de Haven. — Bjorn.
Acho que você tem algo para mim.
Antes que ela pudesse se virar para olhar para o amigo, Bjorn pegou o amuleto de rubi
que ele havia dado a ela, a corrente arranhando sua pele enquanto ele a arrancava de seu
pescoço. O estalo alto da corrente cortando dividiu o ar.
Archeron rosnou, sua espada sibilando de sua bainha, mas no mesmo momento, uma
figura familiar apareceu.
Ao ver Stolas, adornado com seus trajes do Submundo - armadura de meia-noite
brilhante e a capa sinistra feita com as penas de sua mãe - Haven ficou imóvel. Ele mal olhou
em sua direção quando levantou a mão, congelando Archeron no lugar.
Haven tocou seu peito; o local onde o rubi estava pendurado logo acima de seu
esterno estava gelado... e dolorosamente vazio. Uma profunda sensação de perda, de algo
roubado e perdido, cravava-se em suas entranhas.
Sua magia. Ela se foi. Tirado dela.
Bjorn cruzou o estrado até o altar e curvou-se diante da rainha.
Não.
O chão pareceu cair debaixo dela quando ele ofereceu o amuleto à Rainha das
Sombras com uma mão trêmula, seus olhos cegos fixos no chão. — Minha rainha.
Sua voz era um sussurro reverente misturado com terror. Nunca duas palavras
causaram tanto medo em Haven como agora. Minha rainha.
Stolas fez o mesmo, dobrando o joelho e proferindo as mesmas duas palavras
penetrantes.
Não. Ela foi traída. Seu coração estava prestes a se abrir, a dor que uma lâmina de dois
gumes atingiu seu peito.
A Rainha das Sombras arrancou o rubi da palma de Bjorn e o ergueu. Se antes ela
piscava com luz, agora era uma estrela ofuscante enviando prismas vermelhos dançando
sobre sua armadura de ônix. Eles foram lançados todo o caminho até o teto alto da câmara.
— Menina tola e estúpida — a rainha ronronou. — Como você pode não reconhecer
o Solis que eu fiz roubar você de sua casa anos atrás? Aquele que vendeu você para o
Devorador que me adora?
Os joelhos de Haven dobraram e ela mal conseguiu evitar cair de joelhos quando a
verdadeira extensão da traição a atingiu. — Ele... aquele era Bjorn?
Imagens do homem que a levou naquele dia para a margem do rio dançaram dentro
de sua cabeça, piscando e borradas. Mas sempre que ela tentava focar no rosto, uma sombra
passava sobre ele, tornando as feições difíceis de distinguir.
Não podia ser ele. Impossível. Eles cavalgaram para a batalha juntos. Eles comiam do
mesmo caldeirão e dormiam no mesmo fogo.
Bjorn não poderia ser o homem que a sequestrou de sua família. Sua casa.
— Oh! — A rainha bateu palmas, sua armadura rangendo com o movimento. — Isso
é bom demais. Ele deve ter ligado sua memória com magia. Solis inteligente. Eu o ensinei
bem.
O coração de Haven batia em seu esterno enquanto ela tentava dar sentido a tudo. —
Mas por quê? Por que ele me levaria?
— Por sua magia — a rainha disse, ainda admirando o amuleto. — Por que mais? Era
para mantê-la segura e protegida até que sua magia estivesse pronta, mas então você escapou,
garota estúpida. Sim, você correu direto para os braços do tolo rei Penrythiano, que teria
matado você se soubesse o que se esconde dentro de sua carne mortal.
Uma raiva selvagem tomou conta de Haven quando ela enfrentou o traidor. — Você
sabia que eles viriam ontem à noite e você não nos avisou. Rook morreu por sua causa.
Seu corpo tremia de necessidade enquanto ela procurava por sua magia das sombras,
sua fúria implorando para ser liberada. Mas foi embora.
Em vez disso, ela arrancou uma adaga de arremesso de seu peito e a jogou pelos ares.
A adaga girou de ponta-cabeça na direção de Bjorn, mas uma fração de segundo antes de
afundar profundamente em seu pescoço, Stolas acenou com a mão e a congelou no ar.
Lágrimas encheram os olhos de Haven quando sua adaga se transformou em um
corvo. Era o mesmo truque que ele executou quando se conheceram. Quando o pássaro
escuro levantou voo, um pensamento terrível a atingiu.
Stolas os traiu também?
Ela não pensou que ela poderia lidar com tamanho golpe. Agora não. Não com tudo
o que aconteceu.
Ela tentou procurar em seu rosto, mas ele recusou seu olhar.
Bjorn ainda estava ajoelhado, o rosto parcialmente escondido. Mas um lampejo de
dor atravessou sua máscara sem emoção, seus lábios se contraindo. Ficando de joelhos, seu
rosto mais uma vez suavizou em um olhar implacável quando ele virou as costas para eles.
— Bjorn! — Surai gritou, sua voz embargada. — Bjorn! Você a matou, seu
bastardo! Sua amiga. A princesa guerreira que cuidou de você até você ficar saudável, que
confiou em você como uma família.
Por um momento, Bjorn congelou e Haven pensou que ela poderia tê-lo ouvido
murmurar — Sinto muito.
Uma exalação irregular estremeceu seu corpo enquanto Surai sussurrava maldições
através da divisão entre eles. Cada uma parecia entrar em sua carne e reverberar, e ele se
encolheu como se estivesse levando a ponta de um chicote.
Quando Surai finalmente ficou quieta, ele pareceu ceder. Então, ele correu pelo
estrado até uma linda garota de pele escura.
Eles eram parecidos. Ambos com maçãs do rosto salientes e traços finos.
Exceto que, enquanto ele era saudável e bem alimentado, ela era um esqueleto envolto
em seda esfarrapada, que deve ter sido boa, mas agora mal cobria seu corpo enrugado.
Por sua bagunça de cabelo, a garota emaciada olhou para eles com olhos brilhantes e
distantes, mal parecendo notar quando Bjorn deslizou um ombro por baixo de sua axila para
se apoiar.
Haven os observou fugir do estrado, apanhados em seu próprio tipo de torpor. Tudo
deu errado. Tudo. E ela não sabia como impedir.
— Traidor! — Archeron berrou, alto o suficiente para Bjorn ouvir até do outro lado
da caverna. — Eu prometo a você, não haverá nenhum lugar seguro para você viajar.
Nenhum lugar para você se esconder. Para sempre, seu nome será conhecido como
traidor! E, se as maldições de Surai não matarem você, eu o matarei.
Bjorn parou, voltando uma vez para olhar para eles. Talvez o remorso cintilou em seu
rosto, talvez não. Mas uma coisa estava realmente clara a partir daqui.
Seus olhos não eram mais brancos.
Parte de seu preço para traí-los. Sua visão. A outra sendo a garota, quem quer que ela
fosse para ele.
A Rainha das Sombras riu e colocou o amuleto na cabeça. A pedra retiniu contra sua
armadura. — Você não percebeu que sua energia estava diminuindo? Ou você também
estava envolvida na matança? Cada vez que você assassinava uma de minhas criaturas, eu
ouvia seu coração estremecer de prazer. Ouvia seus ossos suspirarem de gratidão. É para isso
que você nasceu, Mortal. Uma arma de luz e escuridão. Uma assassina de deuses.
Haven olhou para a rainha, engolindo os grãos da verdade em suas palavras. — Tudo
isso foi para tirar minha magia?
— Tirar? Eu não posso tirar de você uma fonte eterna de magia dada pela própria
Deusa. Seus poderes voltarão. E, quando o fizerem, vou arrancá-los de você de novo e de
novo até que eu tenha amuletos suficientes para todo o meu exército.
— As pedras rúnicas e a cerimônia?
— Bjorn sabia que você iria pedir as marcas eventualmente. Ele só tinha que
convencer os outros.
Ela tinha feito isso. Forçado Archeron a usar sua magia para isso. Ela sentiu vontade
de vomitar, bile quente e pegajosa dentro da garganta. — Por quê?
O pescoço da rainha estalou quando ela olhou avidamente para o amuleto que
pulsava em seu peito. — Porque, garota tola, sem as marcas de runa, eu não poderia acessar
seus poderes. Você é o conduíte, a chave que abre a porta para sua preciosa luz mágica, mas
as runas controlam esse poder em algo que pode ser possuído.
— Você quer dizer roubado — Haven estalou.
A raiva explodiu dentro daqueles olhos antigos e cruéis. — Roubado? Uma mortal
ousa falar de roubo quando foi sua espécie que roubou a magia de luz que é nossa por
direito? Sua espécie, que pensava que você merecia um poder infinito, enquanto nós temos
que implorar e raspar por cada pedaço de magia, sugando-a da terra e dos Solis como
necrófagos. Sua espécie, que ajudou a nos lançar nos fossos do Submundo enquanto vocês
dançavam em nossa prisão eterna. Você não sabe nada sobre ter o que é seu por direito
roubado.
Uma sensação de vazio assumiu o controle e Haven pressionou o punho em seu peito.
Ela tinha feito isso. E agora seria ela que daria à Rainha das Sombras e seu exército a magia
para conquistar suas terras.
De alguma forma, ela tinha que consertar isso.
— Qual é o preço? — A voz de Haven soou no silêncio, forte apesar de tudo.
A loucura foi drenada do rosto da rainha, um sorriso triunfante torcendo seus lábios.
— Venha comigo. Permita-me de boa vontade o acesso à sua magia. Torne-se a arma que
você sempre quis ser. Torne-se minha arma. E você pode matar e matar para o deleite do seu
coração.
— E se eu aceitar?
Archeron rosnou ao lado dela, mas Haven o ignorou.
— Vou deixar seus amigos livres.
A boca de Haven ficou seca. — Até o Príncipe Bellamy?
A rainha inclinou a cabeça, as sombras se acumulando dentro de suas maçãs do rosto
ocas enquanto considerava o pedido. — Ele pode ir também.
Do canto, Ravenna assobiou seu descontentamento. Bell arqueou as costas, lutando
contra as amarras. — Não, Haven! Assim não.
Surai disse: — Por favor, Haven. Encontraremos outra maneira.
— Agora — a Rainha falou naquela voz horrível e rastejante. Ela levantou a mão e
acenou para Haven mais perto. — Venha até mim. Ou posso simplesmente pegar você e
fazer você assistir enquanto eu arranco os ossos de seus amigos um por um. Talvez eu faça
você fazer isso.
— Não! — Archeron rugiu.
Sua espada brilhou ao ser erguida - mas a Rainha das Sombras estalou seus longos
dedos e sua espada se estilhaçou. Torcendo sua mão, ela o forçou a ficar de joelhos. Ele
gemeu enquanto lutava com ela, mas ela era muito poderosa.
A Rainha das Sombras poderia fazer qualquer coisa que ela quisesse. Haven estava
impotente. Todos eles estavam.
Haven deu um passo à frente enquanto os gritos de seus amigos desapareciam no
fundo. Ela já se sentia a mil quilômetros de distância.
Não havia mais medo. Sem mais dúvidas.
Ela se trocaria por seus amigos, por Bell.
E, quando chegasse a hora, ela mataria a rainha ou enfiaria uma adaga em seu próprio
coração antes que alguém pudesse usá-la como arma.
A decisão foi repentinamente simples. A vida dela acabou. Mas eles poderiam viver.
Ela estava quase no altar, a mão da rainha ainda estendida, quando um lampejo de
cinza chamou sua atenção.
Haven se virou para encarar o movimento, o choque passando por ela enquanto seu
cérebro entendia o monstro esquelético com olhos redondos e leitosos a poucos metros de
distância.
Não era uma sombra.
Não era um Noctis.
Vorgrath. O nome clicou no momento em que a companheira do vorgrath saltou. O
impacto derrubou Haven de costas, sua cabeça quebrando no chão. A companheira do
vorgrath bateu com todo o seu peso no corpo de Haven, prendendo-a na pedra.
A rainha gritou de raiva enquanto Archeron rosnava e se levantava em um salto. De
sua periferia, ela viu Stolas avançar em direção a eles.
Mas já era tarde demais. A vorgrath a tinha.
Seus olhos se encontraram. Monstro e presa. Haven quase riu do absurdo de tudo
isso...
Pressão e dor rugiram em seu peito, ondas abrasadoras de agonia, e ela olhou para
baixo em descrença ao ver as longas presas da vorgrath mergulhando em sua carne e esterno
com um estalo nauseante.
Direto em seu coração.
A besta se lançou para Haven e Bell se contorceu contra o altar. Vorgrath. Uma
imagem da criatura de seu livro surgiu em sua cabe a, cravando adrenalina em seu corpo.
Por seu tamanho e coloração perolada, provavelmente era uma fêmea.
O que ela estava fazendo aqui?
— Haven — ele gritou, mas ela parecia estar em algum tipo de neblina; ela nem tentou
lutar quando a vorgrath a derrubou. Não se moveu enquanto mostrava suas presas do
tamanho de uma adaga e...
Deusa Acima. Ele sacudiu a cabeça quando o monstro afundou suas presas no peito
de sua amiga.
— Não! — Bell resistiu, sentindo as pontas de pedra afiadas arranhando suas costas.
O barulho dos incisivos do vorgrath perfurando seu esterno torceu seu estômago e uma
onda de vômito inundou sua boca. — Haven!
O salão tornou-se um caos ao seu redor. Gremwyrs cercaram a vorgrath,
despedaçando-a em segundos. Bell observou em choque enquanto eles lutavam pelas peças,
gritando e se debatendo.
Todo o tempo, Haven estava perfeitamente imóvel.
Ela não pode estar morta. O pensamento parecia estúpido e ingênuo em sua cabeça.
Ele abriu a boca para respirar, mas o ar não saiu.
A Rainha das Sombras estava completamente imóvel. Ela avaliou Haven deitada de
costas, seu rosto ainda contorcido em uma careta de dor e surpresa.
Uma poça de sangue escurecendo a pedra ao redor dela. Ela estava morta. Sua amiga
estava morta. Morta.
Não havia como negar desta vez. Nenhuma revelação surpresa para torná-lo inteiro
novamente.
Bell piscou quando outra onda de vômito queimou sua garganta.
Ele se sentiu preso em um sonho enquanto observava o Senhor do Sol de seu pai,
Archeron, desvencilhar-se dos soldados Noctis que o seguravam e se aproximar de Haven.
Um grito suave escapou de seus lábios quando ele caiu de joelhos ao lado dela. Com cuidado,
ele deslizou sua capa sob sua cabeça.
Seu belo rosto era uma máscara irregular de agonia quando ele se inclinou para
sussurrar algo em seu ouvido, enxugando o sangue de suas bochechas. Uma esguia fêmea
Solis com longos cabelos escuros presos em uma trança se juntou a ele, chorando
silenciosamente.
Em sua dor, Bell quase se esqueceu de Renault, perto da parte de trás do estrado.
Quando eles chegaram pela primeira vez, Magewick havia vigiado pessoalmente Renault,
forçando-o a ficar e assistir o sacrifício.
Agora, ele estava desprotegido.
Bell ouviu o suspiro de dor e surpresa de Renault quando o homem que traiu Haven
deu um passo à frente. Ele era bonito como todos os Senhores do Sol, seu crânio raspado e
pele escura lembrando Bell de sua mãe.
O rosto do traidor parecia familiar e, após a reação de Renault, Bell pensou que sabia
quem era o Senhor do Sol. O amante de Renault do jardim do outro mundo, aquele com
uma irmã.
Qualquer dúvida de Bell morreu no momento em que viu Bjorn abraçar sua irmã,
Ephinia. Como era estranho que o Senhor do Sol que roubou Haven todos aqueles anos
atrás era este mesmo Solis, e que ele acabou viajando com ela novamente.
Em seguida, traindo-a mais uma vez.
— Traidor — Bell rosnou, lutando com suas amarras. Se ele estivesse livre, ele teria se
jogado no covarde Senhor do Sol.
Torcendo o corpo contra as amarras, Bell lançou um olhar para Renault, que estava
usando o momento de confusão para chegar até Bell.
Prata brilhou e seu corpo, mais leve que a corda ao redor de seus pulsos, caiu.
— Você deve ir agora — sussurrou Renault, ajudando Bell a sair do altar.
Os joelhos de Bell quase se dobraram quando seus pés tocaram o chão. — Mas
Haven...
— Não há nada que você possa fazer pela sua amiga agora.
Mas Bell não podia simplesmente sair. Em vez disso, ele congelou, como se pudesse
simplesmente esperar e sua hesitação traria Haven de volta à vida.
Foi quando ele percebeu que o Senhor do Submundo, aquele que os ajudou antes,
deslizou para trás da distraída Rainha das Sombras. Ele estava dentro e fora de foco, um
lampejo de escuridão, de modo que Bell pensou que ele poderia ser uma manifestação de seu
choque.
Exceto pela capa de corvo que Stolas usava, ele nem teria reconhecido que era ele, se
movendo rapidamente.
Um lampejo de sombras e o Senhor do Submundo se foi.
Mas em algum lugar naquela fração de segundo, Bell poderia jurar que viu o cabo
vermelho de uma adaga,e foi estranho o suficiente para fazer Bell observar o Senhor do
Submundo enquanto ele cruzava as raivosas sombras e encontrava Archeron ainda
cuidando de Haven.
— Isso parece familiar — as palavras de Stolas cortaram o ar, o silêncio caiu enquanto
a Rainha das Sombras e suas criaturas assistiam para ver o que o Senhor do Submundo diria.
— O que você quer? — O tom áspero e derrotado do Senhor do Sol deu a entender
que ele se importava com Haven. Mais do que até mesmo Bell teria imaginado possível.
— Parece que você falha em proteger aqueles que ama, Archeron. Exceto que antes
era seu irmão de alma. Qual é o nome dele mesmo? Ah, certo. Remurian.
Bell nunca tinha ouvido o nome, mas assim que deixou os lábios zombeteiros do
Senhor do Submundo, Archeron rosnou e o atacou. Eles se espalharam pelo estrado, um
violento vórtice de luz e escuridão.
As sombras gritaram e bateram as asas, mas a luta terminou quase antes de começar.
Dois Noctis agarraram Archeron e o Senhor do Submundo se afastou, arrepiando as
penas de suas asas e estalando seu pescoço. Então, ele se inclinou para frente e sussurrou algo
no ouvido de Archeron.
Os punhos de Bell se curvaram em seus lados. Desgraçado! Por que ele estava
provocando Archeron? Especialmente após tê-los ajudado?
Archeron voltou para Haven e disse algo em Solissiano para a garota Solis. Por um
segundo, ela congelou, seus estranhos olhos roxos se arregalando. Então, ela tirou algo de seu
bolso e o deixou cair nas mãos de Archeron.
A Rainha das Sombras deslizou pelo palco até os Solis, seus lábios à mostra em um
sorriso irregular. — Que vergonha. — Ela fez um gesto petulante sobre Haven. — Sua magia
era única. Mas agora ela está morta e qualquer acordo que eu tinha, morreu com ela.
Ravenna juntou-se a sua mãe. Juntas, elas eram sombras gêmeas de ira e ruína. Suas,
asas distorcidas e afiadas brilhando com garras. Seus olhos primordiais e curvos, presas a
mostra.
Cada parte de seus corpos sem sangue eram angulosos e inflexíveis como a
extremidade quebrada de um osso.
Uma névoa de tinta começou a agitar sua carne enquanto sua magia escura escoava
para fora, fria e aterrorizante.
— Qual você gostaria primeiro? — a Rainha das Sombras perguntou a Ravenna.
Pela forma como o olhar de Ravenna ficava sobre Archeron, ela já tinha decidido. —
Ele é quase bonito demais para comer, mãe.
Archeron permaneceu imóvel, aparentemente imperturbável. Na verdade, um
lampejo de arrogância tinha voltado para ele, seus lábios se curvaram em um sorriso
preguiçoso enquanto ele considerava as duas criaturas com desdém. Era o mesmo olhar
repugnante que ele dava ao pai de Bell.
De repente, ele estendeu as mãos com as palmas para cima. Quando o salão ficava em
silêncio e os Noctis se aproximaram, Bell instintivamente se aproximou para ver.
Cinco itens repousavam dentro daquelas mãos largas: um frasco de vidro, algum tipo
de osso, uma escama dourada em forma de lágrima e o que parecia ser uma fruta seca, talvez
um figo.
E a ponta preta lisa de... de um chifre.
— Rainha Morgryth Malythean — Archeron retumbou. — Eu sou Archeron
Halfbane e apresento a você a Maldição.
A rainha ficou quieta e imóvel de uma forma que aterrorizou Bell. Lentamente, ela
levantou a mão e apalpou a ponta de seus chifres maciços. Daqui, parecia que um chifre era
ligeiramente mais curto que o outro e mais rombudo.
A pele ao redor de sua boca se apertou quando ela soltou a mão e virou a cabeça. Bell
seguiu seu olhar assustador para o Senhor do Submundo que os havia ajudado, Stolas.
A escuridão que passou entre eles poderia ofuscar o sol de Penryth. Bell sentiu
Renault vir atrás dele.
— Você precisa ir — ele sussurrou, pressionando algo na palma da mão aberta de Bell.
A adaga estava fria e pesada na mão de Bell. — Se você sair agora, eles podem ficar distraídos
por tempo suficiente para você escapar.
Bell piscou para ele. — Você não pode ver? Eles quebraram a Maldição.
— Sinto muito, mas eles não a quebraram.
O tom solene de Renault atingiu o estômago de Bell e ele apertou a adaga com mais
força. — O que você quer dizer?
Renault balançou a cabeça, os olhos baixos. — Eles não devem saber sobre o último
ítem do Preço da Maldição. O sacrifício de dois amantes dilacerados.
A respiração de Bell engatou dentro de seu peito, seu coração um punho gelado.
Uma risada fria cortou o ar e a Rainha das Sombras acenou com a mão. Os itens
dentro palma da mão de Archeron irromperam em chamas. — Tolo Senhor do Sol.
Mas Archeron já estava caindo de joelhos. Seus braços deslizando sob o pescoço de
Haven. As costas dela. Ele a estava levantando. Sua bela profusão de cabelo rosa-dourado
derramando de seus braços, finalmente livre.
— Meu único desejo — Archeron disse, sua voz firme ecoando pela caverna — é
trazer Haven Ashwood de volta à vida.
A cabeça da Rainha Sombra rompeu a Archeron. — O que você disse?
— Traga-a de volta.
Um silêncio como Bell nunca tinha conhecido caiu sobre a caverna. A Rainha das
Sombras se inclinou para frente, usando um dedo ossudo torto com garras para erguer o
queixo de Archeron para que ele não pudesse evitar seu olhar. — Eu sei o que você quer,
Senhor do Sol. Liberdade. Sua terra natal, Effendier. Isso é o que você deseja.
As mãos de Bell estavam tão apertadas ao redor do cabo da adaga que suas unhas
esculpiram crescentes dentro de sua palma. Deve ter havido verdade em suas palavras,
porque o rosto de Archeron se contorceu com dor enquanto ele olhava para Haven, pálida
e flácida dentro de seus braços. O sangue dela manchava sua bochecha.
— Seu coração clama pela terra de seus ancestrais. — A voz da Rainha das Sombras
era uma cobra suave e escorregadia de persuasão. — Pelo mar que corre nas suas veias, pelas
margens que assombram os seus sonhos. Por que você se importaria com a vida curta de uma
garota mortal? Algumas piscadas e ela não será nada mais do que ossos e poeira.
Um olhar distante cintilou nos olhos de Archeron. Bell se perguntou se ele podia ver
sua terra natal, se ela dançava na frente dele da mesma forma Penryth fazia por Bell.
Então, o olhar rasgado e cansado do Senhor do Sol pousou em Haven e a paz se
estabeleceu em seu rosto. — Esta mortal assombra meus sonhos; sua risada corre em minhas
veias. E eu teria o prazer de sacrificar minha terra natal para ouvi-la me chamar de arrogante
e bonito apenas mais uma vez. Algumas horas a mais com ela ou alguns anos, não importa.
Só para ouvir a voz dela novamente.
O corpo da Rainha das Sombras ficou rígido; ela mostrou suas presas em um silvo.
— Traga-a de volta para mim. — Sua voz carregava uma finalidade justa. — Esse é o
meu único desejo.
A respiração ficou presa atrás do esterno de Bell. O sacrifício de dois amantes
dilacerados...
A rainha gritou quando um som como duas pedras se chocando retumbou no ar.
Uma onda de luz quente e ofuscante atravessou a caverna. Quando as línguas de chama
dourada tocaram as sombras e Noctis, eles gritaram e caíram se contorcendo no chão.
Rachaduras apareceram em suas peles, como se fogo derretido jorrasse de suas
medulas e inchasse suas peles a ponto de estourá-las. Uivando, eles se arrastaram pela pedra
para tentar fugir, mas a magia estava em toda parte. Bell podia senti-la surgindo ao seu redor,
uma pulsação de luz mais radiante que ele já experimentou.
Era tão brilhante, tão penetrante que ele colocou um braço sobre os olhos para
protegê-los.
Em um lampejo doentio, as asas da rainha pegaram fogo, um miasma dourado de
chamas que lambeu sua carne. Ela varreu o inferno com suas garras enquanto seus gritos
rasgavam o ar.
Um suspiro escapou dos lábios de Bell quando a realidade o atingiu.
A maldição que durou séculos, que matou incontáveis mortais e destruiu reinos e
vidas, foi quebrada.
O que significava que ele estava livre.
Ravenna tropeçou ao lado de sua mãe, um olhar atordoado em seu rosto. Ao
contrário dos outros, ela permaneceu intocada. E, então, enquanto Bell a observava, seu
corpo começou a se restaurar. As cavidades cadavéricas sob suas bochechas se preencheram.
Sua carne flácida e sem sangue tornou-se carnuda e rosada com vida. A película opaca que
embaçava seus olhos desapareceu.
Mas, se ela estava feliz que a maldição que a mantinha entre a vida e a morte tinha sido
quebrada, ela não demonstrou. E ela certamente não ficou muito feliz com a liberdade
recém-descoberta de Bell.
Seu olhar furioso vasculhou o salão até que ela encontrou Bell. Uma raiva igual à de
sua mãe torceu seus lábios em um sorriso de escárnio horrível.
Antes que ele pudesse se mover, ela se lançou para ele.
A adaga que Renault lhe dera ainda estava firmemente entre seus dedos. Ele foi
treinado por mais de metade de sua vida em como segurar uma lâmina. No entanto, quando
ela se aproximou, seu único pensamento foi com o lado pontudo para cima, Bell.
Ela estava em cima dele antes que ele pudesse assumir uma postura adequada. Seus
olhos se fecharam enquanto ele recuava, cegamente empurrando a adaga...
Ele abriu os olhos a tempo de ver a ponta de sua lâmina cortar seu antebraço.
No momento em que a ponta de aço rompeu a pele, a surpresa arregalou os olhos
dela. Com um grito áspero, ela puxou o braço para longe, embalando-o contra o peito.
Tanto Ravenna quanto Bell observaram a carne onde sua arma fez contato. Serpentes
furiosas de ouro se contorceram para fora da pequena ferida, serpenteando sob a pele e
envolvendo seu braço.
A ponta da adaga estava envolta em veneno do espinho.
Ela gritou novamente, uma mistura nauseante de choque e agonia.
Então, ela fugiu.
Bell respirou fundo e se virou para Renault, exceto que qualquer vestígio da criatura
havia desaparecido. Em seu lugar estava o príncipe do outro mundo. Sem escamas. Sem
garras ou olhos reptilianos.
Dominado pela felicidade, Bell deslizou os braços ao redor da cintura do príncipe e o
puxou para perto, surpreso com o quão macio Renault era. — Conseguimos.
Renault se recostou para encarar Bell. Deusa Acima, seu rosto era lindo. Seus olhos
estavam iluminados por âmbar, seus lábios sensuais sorrindo. — Bellamy... — Sua voz não
era nada parecida com o estrondo da criatura. — Príncipe, eu...
Bell ficou rígido quando Renault se inclinou para frente, roçando os lábios nos dele.
Mas em vez do beijo interrompido de antes, este foi longo e prolongado. Uma declaração
ousada de seus sentimentos.
— Eu queria fazer isso por um tempo— Renault murmurou. — Eu não ousava, até
agora, porque eu temo que nosso tempo está acabando.
Um segundo, Renault estava em seus braços.
No próximo, ele estava deslizando para o chão.
— Renault! — Bell agarrou seus braços e tentou levantá-lo, mas ele era muito pesado.
Um suspiro irregular escapou dos lábios de Renault. Seus olhos estavam tremulando.
— O meu nome. Diga mais uma vez. Faz tanto tempo que não o ouço.
Bell se deixou cair ao lado dele, aninhando sua cabeça no colo. — O que está
acontecendo?
— Estou cansado, Bellamy. A maldição... ela me manteve vivo por séculos,
preservando minha carne mortal para sua depravação. Séculos de horror e vergonha. Mas
agora que foi quebrada... agora posso finalmente descansar. — Seus dedos estavam trêmulos
quando ele estendeu a mão e pegou a mão de Bell na sua.
Uma dor profunda encheu o peito de Bell. — Eu queria mais tempo com você.
O corpo do príncipe caído ficou mole, mas seus olhos, seus quentes olhos mortais
fixaram-se em Bell. — Você tem uma bela alma, Príncipe Bellamy de Penryth. Eu gostaria
de ter conhecido você antes. Talvez sua bondade tivesse me tornado um homem melhor.
Talvez...
Alguns segundos, algumas respirações, algumas batidas do coração partido de Bell –
isso é todo o tempo que a criatura, o príncipe caído e o Criador da Maldição, levou para
deslizar deste mundo para o outro.
Lágrimas manchando sua visão, Bell segurou o príncipe morto em seus braços
enquanto o mundo ao seu redor mergulhava no caos.
Haviam flores por toda parte. E estrelas cruzavam os céus. Haven passou a mão pela
clareira que se espalhava ao seu redor, esfregando as pétalas sedosas entre os dedos antes que
algo a fizesse tocar seu peito.
O vorgrath.
Ela deveria estar morta.
Ela estava morta – e dentro de sua paisagem de sonho campestre.
— Você realmente está — surgiu uma voz masculina ronronando e ela a reconheceu.
O som causando arrepios que ondularam através dela quando Stolas apareceu, rondando
pelo campo de flores.
Por um segundo, ela apreciou a visão do Senhor do Submundo espreitando por entre
margaridas e outras flores. Ele não estava mais vestido com seu uniforme escuro, mas, em
vez disso, uma túnica fina e calças de couro preto, seu cabelo claro bagunçado e as asas
abertas. Na verdade, ele parecia para todos um jovem desfrutando de um passeio vespertino.
Exceto, ele não era um homem jovem, ele era um monstro. Um traidor.
A fúria a impulsionou em direção a ele. Não havia armas neste reino, mas ela usaria
seus punhos. Ela estava a centímetros de arrancar seus olhos quando ele agarrou seus pulsos.
Seus dedos se envolveram com força em torno de seus ossos, gentis, mas firmes.
— Bastardo — ela rosnou, mostrando os dentes. — Você nos traiu.
Ele reprovou, um sorriso triste levantando suas maçãs do rosto salientes. — Por que
você sempre assume o pior sobre mim?
— Você se curvou diante dela. De boa vontade.
— Sim — ele admitiu em uma voz suave. — E, quando eu recuso, ela quebra todos
os ossos do meu corpo até eu não aguentar mais. Se ela está com um humor particularmente
azedo, ela arranca minha espinha e depois me repara para repetir o processo adorável.
— Eu confiei em você. — Lágrimas molharam seus olhos. Por alguma razão, a ideia
de que ele os traiu era intolerável.
Assim que ele viu suas lágrimas não derramadas, ele soltou seus braços e deu um passo
para trás. — Eu prometo a você, Pequena Fera, eu não te traí. Eu nunca trairia.
Ela engoliu em seco, tentando avaliar a verdade em suas palavras. — Então, por que
estou aqui?
— Seu espírito está preso dentro de sua paisagem de sonho.
— Por quê?
— Porque — ele disse, o anel amarelo ao redor de suas pupilas chamejando — uma
vez que você entra no Submundo, não há como voltar. Você será minha e eu serei forçado a
torturá-la.
— Não — ela esclareceu. — Por que me ajudar? Estou morta e, portanto, não sou
mais útil para você.
Ele sorriu. — Ah, você sempre será útil para mim. Mas preciso de você aqui agora
para que possamos negociar.
Ela arqueou uma sobrancelha exasperada. Mesmo morta, pelo visto, ela não podia
escapar de sua conversa enigmática. — Negociar o quê, exatamente?
— Sua vida. — Stolas esfregou dois dedos sobre o queixo pontudo. — Estou prestes
a fazer algo para o seu precioso Senhor do Sol. Se ele está tão enamorado por você, como eu
acho que ele está, ele vai exigir a sua vida de volta.
Haven se mexeu. — E em troca?
— Em troca, tudo que eu peço é que você encontre seu caminho para minha casa
escondida dentro do Submundo e leve algo de volta com você para Penryth. Mantenha-a
segura. A proteja de si mesma. Principalmente. Embora às vezes você precise proteger outras
pessoas disso.
Ela apertou a mandíbula. Mais conversa enigmática. — Disso?
Seus olhos se estreitaram. — Dela.
Sua curiosidade aumentou. — E presumo que este acordo esteja vinculado à magia?
— Todos os bons acordos são. — Stolas piscou para ela com aqueles olhos estranhos
e sempre mutáveis, agora fulvos e prateados com manchas. — Então, nós temos um acordo?
Talvez a morte a tivesse amolecido, mas ela estendeu a mão e colocou-a no ombro frio
e duro de Stolas, os músculos tensos sob sua camisa lembrando-a das poucas vezes que ele
envolveu aquele corpo divino ao redor dela, protegendo-a.
Sua carne estremeceu sob seu toque, mas desta vez, ele não removeu sua mão. Na
verdade, por um momento louco, ela pensou que ele poderia ter se apoiado em sua palma.
— O que quer que você faça vai te causar problemas com a Rainha das Sombras?
Um sorriso triste apareceu em seus lábios. — Sim.
— Então, por que fazer isso?
— Pela mesma razão que você deu sua vida para salvar o príncipe. — Ele ergueu uma
sobrancelha branca como cinza. — O quê? Você me achou totalmente sem coração? Todos
nós amamos algo além da razão ou compreensão. Além da sobrevivência, até.
Seu coração se apertou ao imaginar todas as coisas que a Rainha das Sombras faria
quando descobrisse que ele era cúmplice. — Você não pode escapar de alguma forma?
A dor cintilou em seu rosto. — Receio que eu esteja ligado pela magia das sombras ao
Submundo e à Rainha das Sombras por toda a eternidade. Minha vida acabou e ousar
esperar o contrário é o tormento de um tolo. Mas espero que, muito em breve, alguém que
eu amo esteja seguro.
Sua voz era um sussurro áspero que sugeria agonia e perda. Uma perda tão profunda
que ela podia jurar que, por um momento, toda a sua paisagem onírica tremeu com a dor
dele. Seu desejo de liberdade. Pela vida que ele tinha antes de se tornar o monstro do
Submundo.
Haven entendeu essa emoção muito bem e ela acenou com a cabeça, um mergulho
suave e derrotado de seu queixo. — Eu vou fazer isso.
Suas sobrancelhas tensas se ergueram com alívio. — Obrigado. Há um portal perto
do abismo que a levará ao Submundo. Ravius a encontrará quando estiver perto e a guiará
pelo resto do caminho. Se não for pedir muito, cuide dele também.
Doando seu animal de estimação? Isso não era um bom presságio para Stolas. Sua
garganta se fechou. — Eu te verei de novo algum dia?
Ele segurou o olhar dela pelo que pareceram minutos sob aquelas lindas e insondáveis
estrelas. — Felizmente não. Seus sonhos vão voltar para as trivialidades mortais chatas. Tente
não comemorar muito a minha ausência.
Ela abriu a boca para protestar assim que ele desapareceu, um fio de fumaça preta
desaparecendo na brisa. A única pena flutuou em seu rastro. Ela arrancou a pena tinta-preta
do ar, surpreendida pela sua suavidade felpuda.
Enquanto ela olhava para as estrelas, ela ouviu sua voz sussurrar através da campina
— Adeus, Pequena Fera.
E estando sozinha dentro daquela gloriosa clareira, ela sentiu sua própria perda,
estranha e inexplicável.
Haven acordou nos braços de Archeron, sentindo como se tivesse vindo de algum
lugar muito distante. De algum lugar que ela não conseguia nomear ou lembrar.
— O que aconteceu? — ela perguntou, mesmo quando as memórias voltaram à tona.
A companheira do vorgrath. Suas presas perversas, o estalo de osso raspando contra seus
tímpanos.
Ela agarrou o peito, esperando sangue e dor. Em vez disso, sua carne foi curada - mas
o sangue seco de sua túnica era a evidência de que ela havia sido mordida.
— Como?
Havia tristeza nos olhos de Archeron enquanto a colocava no chão, gentilmente.
— Eu trouxe você de volta.
Ela piscou, sem entender a princípio.
— Você... a maldição foi quebrada?
— Sim.
Era verdade, ela percebeu enquanto olhava ao redor. O fedor pungente de carne
queimada foi mascarado com o doce aroma de canela e rosas deixado pela magia de luz. As
sombras que não haviam sido feridas ou mortas haviam fugido, a Rainha das Sombras e
Ravenna não estavam à vista. E a magia das sombras e contundente que permeava este lugar
se foi. Esfregada e limpa.
Uma parte dela estremeceu de tristeza por sua ausência - não. Ela afastou o
sentimento.
Prometa que nunca mais confiará na magia das sombras novamente, Ashwood.
Mesmo agora, enquanto ela se firmava contra Archeron, as memórias de sua sede de sangue
a enchiam de vergonha. Ela abriu os dedos para agarrar o ombro de Archeron e notou algo
escuro emergir de sua mão.
Uma pena preta meia-noite, umedecida com seu suor.
Stolas.
Antes que Archeron pudesse ver, ela empurrou a pluma do comprimento de uma
mão em seu bolso e se dirigiu para Bell.
Criaturas noturnas correram para baixo de suas botas. Besouros pretos e verdes,
escorpiões brancos como a lua e todos os tipos de aranhas. Os morcegos voaram em direção
às saídas, seus guinchos ecoando nas paredes. Uma centopeia vermelha do tamanho de seu
braço correu por cima da bota e ela a chutou para longe.
Eles estavam fugindo da magia da luz.
— Bell? — Assim que ela disse seu nome, ela o viu deitado sobre o peito de alguém.
Um jovem bonito de rosto aristocrático e nariz fino e majestoso.
Seu coração gaguejou quando ela percebeu que o corpo do homem estava lentamente
se desintegrando em cinzas.
Bell mal pareceu notar. Sua cabeça estava baixa, seus ombros tremendo com soluços
silenciosos. Seus cachos elásticos haviam crescido, longos e desgrenhados, e eclipsavam sua
testa, escondendo grande parte de seus olhos. Mas Haven podia imaginar as lágrimas se
acumulando ali, a forma como seus cílios se fechavam.
Antes que ela pudesse ir para ele, Archeron a deteve. — Dê-lhe um momento para
lamentar. Por quem quer que seja que ele chore, eles eram amigos.
Ela assentiu, tirando o olhar de Bell. — E quanto a Effendier?
Archeron não foi rápido o suficiente para esconder o lampejo de dor que ondulava
em seu rosto, mas ele cobriu-o com um sorriso terno. — Onde é a minha casa sem você,
Pequena Mortal, lembrando-me da minha arrogância?
Sabendo o quanto ele queria ir para casa, aquele sacrifício a atingiu profundamente.
— Como você conseguiu o chifre da Rainha das Sombras?
Um borrão passou pela periferia de Haven e, então, Surai envolveu Haven em um
abraço apertado. — Ele não fez isso — Surai murmurou como se fosse um segredo. — O
Senhor do Submundo fez.
— Stolas? — Haven deixou escapar, lembrando como ela quase arrancou seus olhos.
A boca de Archeron se apertou. — Sim. Eu não sei como ele pegou o chifre sem que
ela soubesse...
— Eu sei — Haven disse, se contorcendo do aperto de sua amiga.
Surai e Archeron lançaram olhares questionadores a ela enquanto ela sorria,
relembrando a adaga mágica que ela quase perdeu quando lutou contra o vorgrath. Aquela
que cortava sem dor.
Archeron arqueou uma sobrancelha. — E, por acaso, você sabe porque ele nos
ajudou?
Foi então que ela se lembrou de ter feito uma promessa a Stolas e se viu brincando
com a pena em seu bolso. Mas como explicar isso a eles?
— Podemos conversar sobre isso depois de sairmos — disse ela. Ela precisaria de
tempo para dar uma resposta que não soasse completamente insana.
Descansando uma mão no peito de Archeron, ela se deleitou com os músculos firmes
pressionados em seus dedos. O batimento cardíaco forte abaixo. — Obrigada, Archeron
Halfbane. Sempre serei grata.
Ele segurou seu olhar por algumas respirações. Um Senhor do Sol e uma mortal, uma
vez inimigos e agora... algo mais.
Haven passou por Archeron e correu para Bell. De perto, ela hesitou, horrorizada
com sua condição.
Sob o verniz escorregadio das lágrimas, suas bochechas se projetavam
acentuadamente. Cinzas cobriam as pontas dos dedos e joelhos. A falta de luz solar coloria
sua pele com uma cor de sebo esverdeado, hematomas salpicando seu corpo e agrupando-se
sob seus olhos azuis antes brilhantes. E a sujeira se cravava sob suas unhas muito longas.
Mas foi a agonia torcendo seu rosto que doeu mais.
Quase incapaz de acreditar que este momento era real, ela o envolveu em seus braços
e sussurrou: — Vamos para casa.
— Casa — ele repetiu, o som rouco e quase imperceptível. Então, ele a abraçou de
volta, seus dedos arranhando sua carne como se ele pensasse que ela poderia desaparecer. —
Você é minha casa, Haven.
Enquanto eles deixavam Spirefall, a escuridão que envolvia a terra desapareceu,
substituída pela luz suave do sol. Partes do castelo estavam desmoronando, placas maciças
de obsidiana quebradas com uma rachadura para revelar as paredes brancas abaixo do
castelo do príncipe caído.
Mas enquanto torres e cúpulas douradas surgiam das paredes quebradas do covil da
Rainha das Sombras, era difícil imaginar algo belo existindo aqui novamente. Especialmente
com o cheiro forte de cinzas agarrado a suas gargantas e o fedor de sangue no vento.
Ainda assim, a grossa crosta de neve sob suas botas já havia começado a derreter, rios
de água borbulhando e tilintando dos vales esculpidos nas rochas.
A terra já estava tentando se curar, purgar o mal que a governou por tanto tempo.
Enquanto eles se aventuravam para longe do Reino das Sombras e para as Terras das Ruínas,
o ar estava leve e cheio de vida e uma sombra saiu da mente de Haven.
Seu humor melhorou ainda mais quando Archeron explicou que, agora que o
domínio da magia das sombras sobre a terra foi quebrado, eles poderiam invocar cavalos e
equipamentos.
O poder de Haven ainda não havia se recuperado, então ela fez Surai invocar Dama
Pérola. O cavalo de Rook, Aramaya, teria sido mais prático, mas depois de tudo o que
aconteceu, Haven precisava de algo familiar, algo bom, para tentar trazer de volta um
semblante de sua vida antiga.
A vida antes de tanto horror e perda.
Com medo de que Bell caísse de seu cavalo devido à exaustão, Haven sentou-se atrás
dele e o segurou no lugar. Ignorando a forma como seus braços já cansados tremiam, ela
sussurrou lembretes de todas as coisas de casa que ele amava.
Tortas de bolacha. Painéis de luz do sol atravessando o chão empoeirado da biblioteca
enquanto ele lia. Almoço no prado sob o carvalho antigo.
Tudo estaria esperando por eles quando voltassem para Penryth, ela prometeu,
sufocando a falsa promessa de normalidade. Mesmo em seu otimismo esperançoso, ela sabia
que era pedir demais.
Mas ele estava mole dentro de seus braços. Um fantasma quieto e imóvel do príncipe
que ela lembrava. Assim como a terra ao redor deles, levaria tempo para curar suas feridas.
E ela estaria lá com ele o tempo que levasse.
O juramento que ela tinha feito, o que parecia séculos atrás, de protegê-lo, não havia
acabado - tinha apenas assumido um novo significado.
Quando encontraram os penhascos íngremes e sinuosos que levavam ao corpo de
Rook, Surai congelou, com os ombros caídos e os olhos vidrados.
Eles decidiram deixá-la enquanto Haven e Archeron recuperavam Rook.
Eles deixaram os outros na base do penhasco e fizeram a caminhada sinuosa para onde
a Princesa Morgani estava, ainda enterrada por uma concha iridescente de magia. Quando
seu cabelo loiro apareceu, preso em um elaborado conjunto de tranças, uma pontada de
tristeza atingiu o núcleo de Haven.
Ela sentia falta da força de Rook, de sua honestidade inabalável. Seu humor direto e
amor temível por todos em seu pequeno círculo.
O fato de Rook ter colocado Haven dentro daquele círculo sagrado significava o
mundo e ela desejou poder ter contado isso a ela antes de morrer.
Archeron hesitou ao lado de Haven. Os músculos ao redor de seus ombros ficaram
tensos, seus lábios se torceram em uma careta enquanto ele lutava para esconder sua dor dela.
Estendendo a mão, ela pegou a mão dele, puxando-a para ela enquanto ele tentava
arrancá-la. — Você não precisa mascarar seus sentimentos.
Evitando seu olhar, ele soltou uma risada sombria. — Minha espécie não vê a exibição
de emoções da mesma maneira honrosa que você. Para um homem Solis, sofrer abertamente
é uma fraqueza.
— Então, sua espécie está errada — Haven disse, projetando seu queixo. — Eu disse
que quero tudo de você. Tudo, até as partes de você que estão feridas, machucadas e feias.
Não há nada de covarde em expor suas partes despedaçadas a alguém que você ama,
Archeron. É preciso coragem para esse tipo de confiança.
Um suspiro áspero escapou de seus lábios quando ele se virava para encará-la. A dor
endureceu seu rosto. Dor, raiva e agonia, fazendo-o parecer, por um momento, um estranho.
— Haven, você não quer o fardo dos meus demônios sobre seus ombros.
Ela fechou a distância entre eles. Ele estava rígido quando ela passou os braços em
volta de sua cintura, sussurrando: — Eu sou mais forte do que pareço, Senhor do Sol, e
quero tudo de você.
Outro suspiro saiu de sua boca e, desta vez, as lágrimas caíram. Os músculos de suas
costas e tórax saltaram sob a ponta dos dedos enquanto seu corpo inteiro parecia ter uma
convulsão. — Eu deveria tê-la salvado — Archeron disse, sua voz um sussurro desgastado.
— Eu deveria saber que Bjorn estava corrompido. Eu deveria ter... feito mais.
Ela quase podia senti-lo quebrando por dentro. Esse forte e belo Solis, soluçando
baixinho em seus braços.
— Não é sua culpa — ela insistiu.
Seu corpo suavizou e foi sua vez de enroscar os braços ao redor dela. — Obrigado por
tentar me confortar, mas devo carregar essa culpa até acabar com a vida de Bjorn.
— Onde você acha que ele foi?
— Eu não sei. A única coisa de que posso ter certeza é que ele ficará perto da Rainha
das Sombras. Ele é sua criatura e se ela sobreviver ao ataque da magia de luz, ela o manterá
por perto.
— Quando você vai sair para encontrá-lo? — Ela desejou que ele dissesse nunca, que
houve derramamento de sangue suficiente para durar um século.
— Assim que voltarmos, pedirei permissão ao rei para caçá-lo.
Porque ele precisaria da permissão do rei? Uma pontada de culpa a atingiu e ela se
desvencilhou de seus braços. — Você se arrepende de usar seu desejo para me trazer de volta?
— Nunca. — Ele segurou seu olhar, forçando-a a acreditar nele. — Se eu não tivesse
feito tal sacrifício, a maldição não seria quebrada. Não desejo retornar ao rei como escravo...
— Seu olhar vacilou por um momento, os músculos de sua têmpora estalando. — Não havia
outro jeito e eu nunca vou me arrepender de ter salvado sua vida. Você entende?
Ela assentiu, sua garganta doendo de emoção.
— Devíamos voltar. — Recompondo-se, ele olhou para Rook. — Não havia
ninguém como você neste reino, minha amiga, e sentirei sua ausência até o dia em que
morrer. Mas eu juro pela Deusa e por tudo que é sagrado que vou vingar você e matar o
traidor, não importa o custo.
Haven estremeceu com suas palavras. Eles já não tinham perdido o
suficiente? Conversas sobre matança e custos se instalaram sombriamente dentro dela e ela
se ocupou em preparar Rook para a viagem, para que não precisasse pensar no que mais eles
poderiam perder.
Eles ergueram a Princesa Morgani e carregaram-na montanha abaixo. No fundo, eles
invocaram um trenó improvisado para colocá-la em cima. O cavalo de Rook, Aramaya, teve
a honra de carregar sua mestra pela última vez.
Como se a bela criatura soubesse a importância de sua carga, ela ergueu a cabeça, os
chifres brilhando sob o sol, e cuidadosamente começou a trotar atrás do grupo.
Mesmo com a maldição suspensa, ninguém queria ficar nas Terras das Ruínas mais
do que o necessário. Em algum lugar ao longo do caminho, Haven contou aos outros sobre
sua promessa a Stolas, embora ela tenha mantido seu relacionamento anterior com o Senhor
do Submundo e apenas revelado seu acordo atual.
Ela passou duas horas frustrantes tentando convencê-los a seguir em frente e
Archeron, especialmente, não tinha aceitado bem.
Ainda assim, no final, ela fez um acordo vinculado à magia e todos concordaram que
ela tinha que cumpri-lo.
Foi uma cavalgada de dois dias até a floresta perto da fenda onde Haven se lembrava
do portal estar. Mesmo com sua memória, eles nunca o teriam encontrado se Ravius não
tivesse aparecido. Ele pousou no ombro de Haven, grande como um gato, gritando quando
Surai apontou uma flecha em seu peito eriçado.
Haven quase não conseguiu impedir Surai de matar o pobre pássaro. E, quando ele
os levou para o círculo oscilante de magia escondido atrás de um grosso bosque de amieiros,
Haven foi a primeira a entrar, atraída por sua curiosidade.
Algo lhe dizia que finalmente estava prestes a descobrir a dona daquela escova.
Os outros hesitaram. Archeron suspirou profundamente antes de incitar sua égua ao
portal. Ela se esquivou, relinchando de medo, e ele teve que desmontar e gentilmente
persuadi-la a passar. Surai conseguiu fazer sua égua entrar, mas apenas com a promessa de
passas recém-conjuradas.
Quando Surai passou do reino dos vivos para os mortos, ela fez o sinal da Deusa.
O Submundo era exatamente como Haven se lembrava, um reino monocromático
talhado com prata e preto e o índigo ocasional. Algo sobre os céus cristalinos e sombras
delicadas fez Haven sorrir... antes que ela se lembrasse que o Submundo era para ser um
lugar horrível.
E ela deveria odiá-lo.
Os outros obviamente odiavam-no. Seus rostos estavam sombrios, sua respiração
rápida e as mãos em suas armas. Eles sentiram a magia das sombras permeando o ar, mas
Haven pensou que parecia diferente da magia distorcida dentro de Spirefall.
Estava fria, sim, e assustadoramente sensível. Mas, em vez de malévola, parecia...
curiosa.
— Vamos nos apressar e sair deste maldito reino — Archeron resmungou.
Surai assobiou em concordância e eles esporearam seus cavalos em um galope pela
floresta de espelhos retorcida, o estalar dos galhos combinando com o estalo agudo das
batidas dos cascos.
Ravius os conduziu direto para lá. Assim que o pico de carvão da casa secreta de Stolas
na montanha apareceu, Ravius pousou no chifre da sela na frente de Haven, com as penas
estufando-se orgulhosamente, e começou a alisar suas belas asas.
A crista estava aninhada dentro de um flanco crescente de penhascos mais altos. Ao
contrário da última vez, não haviam gremwyrs circulando o céu. Nenhum sinal de vida. O
sol era uma estrela desbotada quando ela apertou os olhos para ver a única varanda visível,
dali, apenas uma mancha branca contra a montanha escura.
A noite cairia em algumas horas. E nenhum deles queria descobrir como era o
Submundo depois do pôr do sol.
— Como vamos chegar lá? — Surai refletiu ao lado dela, protegendo os olhos com a
mão contra o sol abafado.
— Só a Deusa sabe — Haven respondeu.
Parecia estranho que Stolas dissesse a ela para vir aqui, mas não a deixasse subir,
especialmente se quem estava dentro da casa fosse importante o suficiente para ele se
sacrificar à Rainha das Sombras.
Mais uma vez, a escova veio à mente. Stolas tinha uma amante? O pensamento era
perturbador, apenas porque ela não conseguia imaginar ninguém aguentando seu
temperamento inconstante e mau-humor.
Como seria a amante do Senhor do Submundo? Tão selvagem quanto ele, com
certeza. Com chifres e asas e um sorriso sardônico.
— Talvez seja a última piada de Stolas — Archeron meditou.
Ele mal tentou esconder seu desprezo pelo Senhor do Submundo. Mesmo se aquele
Senhor do Submundo em particular os tivesse ajudado a quebrar a Maldição – e agora
pagasse caro por isso.
— Não. — Haven enxugou uma gota de suor de sua testa e abriu a boca para falar –
quando algo chamou sua atenção. Um lampejo logo acima da varanda.
Archeron deve ter visto também, porque ele desembainhou sua espada alguns
centímetros e seus olhos se aguçaram enquanto seguiam a sombra.
Conforme a forma se aproximava, ficava mais claro. Havia... asas. Lindas asas com
penas que pareciam refletir todos os tons de azul e roxo sob o sol poente.
A boca de Surai se abriu. — É um... ?
— Um Noctis — Haven terminou. — Uma fêmea.
Uma pontada de ciúme aninhou-se sob as costelas de Haven enquanto ela observava
a fêmea Noctis flutuar no vento em direção a eles em círculos graciosos e cada vez mais
apertados.
Os cavalos se mexeram e relincharam quando a sombra alada cintilou pela grama.
Observando a criatura predatória se aproximar, Haven não tinha certeza se ela deveria puxar
seu arco ou acenar.
Será que Stolas tinha preparado quem quer que fosse para a chegada de Haven? Caso
contrário, a Noctis poderia matá-los tão facilmente quanto dizer olá.
Entre o amplo alcance das asas, Haven pegou vislumbres de maçãs do rosto de
mármore fino e lábios carnudos, os olhos azuis mais pálidos com cílios pretos e um
emaranhado de cabelo branco acinzentado que precisava desesperadamente ser escovado.
Um vestido dourado de tecido fino se agarrava ao corpo feminino da Noctis,
soprando descontroladamente na brisa em que ela flutuava. Ela não poderia ter mais de
quatorze ou quinze anos de idade.
De repente, a garota mergulhou direto para eles, levando o coração de Haven a
loucura. Segundos antes que ela pudesse ter atingido Haven, ela dobrou suas asas e desceu,
pousando com a precisão de um gato em seus pés descalços na frente da égua de Haven.
Olhos azuis prateados espiaram Haven acima de um nariz comprido e reto e lábios
macios. Seu rosto em forma de coração era surpreendentemente bonito, talhado com uma
selvageria que Haven reconhecia; o olhar feroz da garota disparou sobre os companheiros de
Haven antes de pousar de volta nela.
A garota inclinou a cabeça para o lado. — Olá, Haven Ashwood.
— Olá — Haven disse, sua voz suave e movimentos lentos. Ela não podia deixar de
sentir que movimentos rápidos a assustariam ou incitariam a selvageria fervendo sob suas
feições infantis.
A camisola. A escova de cabelo. A mente de Haven zumbia enquanto ela tentava se
lembrar de sua conversa com o Senhor do Submundo. Ele disse que sua espécie viveu por
séculos. Aqueles com cem anos mortais equivaliam a cinco dos seus.
— Eu sou Nasira, irmã de Stolas.
Irmã? Mas isso é... impossível.
Os olhos de Nasira mais uma vez percorreram os outros, mas desta vez, a fome
persistia em seu olhar. — O que são essas criaturas?
Haven pensou que ela estava falando sobre os Solis, mas Archeron entendeu e ele
bufou uma risada. — Cavalos. Seu irmão nunca lhe mostrou os reinos mortais?
Irmão. Haven não conseguia se acostumar com a ideia de que Stolas era um irmão
com uma irmã que ele obviamente adorava. Especialmente, porque Stolas havia dito que sua
irmã morreu tentando escapar.
Um estratagema, é claro. Para escondê-la de Morgryth.
Os lábios carnudos de Nasira se contraíram em um beicinho. — Stolas nunca me
deixou sair. Ele disse que era muito perigoso. — De repente, seu rosto iluminou-se. —
Vamos comê-los?
O silêncio reinou. Archeron encontrou Haven e deu-lhe um olhar de “bem-feito”,
enquanto Surai olhava boquiaberta para a garota e Bell olhava ao longe, perdido em seu
mundo de dor.
— Sim — Archeron disse. — Ela é definitivamente a irmã de Stolas.
Haven engoliu um gemido. Deusa Acima. Que tipo de barganha ela havia feito?
— Não — ela disse, cuidadosamente. — Nasira, não comemos os cavalos. É assim que
aqueles de nós sem asas viajam.
— Ah. — A decepção tingiu sua voz. — Estou faminta. E este que você segura, é seu
escravo? — Ela indicou Bell com um empurrão de seu ombro de osso de pássaro. — Posso
beber dele?
Beber? — Não! — Haven rosnou, muito rápido. Seus braços se apertaram ao redor de
Bell. Se Stolas estivesse por perto, Haven o teria socado em seu lindo rosto sorridente.
O tom agressivo de Haven despertou algo predatório dentro de Nasira e ela sorriu. —
Eu não preciso de sua permissão, Mortal. Mas... já que Stol me fez prometer me comportar,
não vou forçar o assunto. — Um beicinho escureceu seu rosto. — Eu preciso comer, você
sabe.
Pela sombra do Sombreamento! Eles não tinham tempo para isso.
Archeron riu, obviamente apreciando a situação em que Haven havia se metido.
Haven acenou com a cabeça lentamente para Nasira, escondendo seu aborrecimento
por trás de um sorriso tenso. — Stolas não mencionou esse detalhe em particular, mas
podemos descobrir algo. Só não agora.
Os lábios de Nasira tremeram. Haven pensou que ela poderia fazer uma birra, mas
então seus olhos brilharam. — Eu nunca deixei o Submundo antes, pelo menos, não que eu
me lembre. Talvez haja criaturas para caçar enquanto eu voar.
— Voar?
— Enquanto, eu a sigo de volta ao seu reino mortal. Stolas disse que você viria me
buscar. Que... — Seus lábios se torceram enquanto ela tentava se lembrar. — Que você teria
cabelo estranho e seria rude, mas eu não deveria matá-la.
Nasira sorriu com essa última parte, como se todos devessem agradecê-la por ser tão
magnânima a ponto de não matar todos eles.
Archeron atirou a Haven outro sorriso antes de voltar sua atenção para Nasira. —
Claro. E Haven mal pode esperar para apresentá-la ao rei mortal. Ele vai te amar, Nasira. —
Ele mostrou os dentes em um sorriso irônico enquanto incitava sua égua a trotar, gritando
por cima do ombro: — Sinta-se à vontade para matá-lo sempre que tiver vontade.
Runas! Haven nem tinha pensado tão longe. Como no Submundo ela explicaria que
havia uma Noctis adolescente ao Rei Horace? Especialmente uma que se banqueteava com
mortais - obrigada por excluir essa parte, Senhor do Submundo - e, pelo que parecia, era meio
selvagem e nunca tinha sido devidamente apresentada ao mundo?
Não havia tempo para repensar nada. Nasira já estava seguindo a égua de Archeron
no céu e, assim, Haven incitou Dama Pérola a um trote lento.
Ravius olhou para ela de sua posição preguiçosa no chifre da sela, seus olhos
penetrantes e redondos curiosos demais para seu conforto. Ocasionalmente, como se ela
fizesse algo para irritar o pássaro, ele bicava seus dedos e grasnava estridentemente para ela.
Bell não pareceu notar nada disso. Ele estava quieto em seus braços, meio adormecido
pela aparência de seus ombros soltos e sua respiração suave. Ela não podia imaginar os
horrores que ele testemunhou e teve o cuidado de não empurrá-lo enquanto impelia sua
égua a um galope suave.
Dormir era a melhor coisa para ele agora.
Os olhos cor de lavanda de Surai, um suave malva na luz prateada, estavam arregalados
quando ela parou ao lado de Haven em seu cavalo. — Você sabe quem Stolas lhe encarregou
de guardar, não é?
Haven deu de ombros, mesmo quando seu estômago se emaranhava em nós. — Sua
irmã feroz e sanguinária?
— Haven, os Noctis têm Senhores das Sombras, mas apenas uma verdadeira Rainha
das Sombras, a mulher Serafin mais velha descendente da linhagem real. Com apenas Stolas
vivo e casado com Ravenna, esse título foi para Ravenna e Morgryth. Mas se os Noctis
soubessem que sua irmã não está realmente morta...
— Stolas disse que sua irmã morreu tentando escapar. — A respiração de Haven
prendeu e ela correu as palmas das mãos suadas sobre as calças. — Surai, no que eu me meti?
— Parabéns. — Surai deu um sorriso irônico. — Você agora está vinculada como
protetora da última rainha legítima dos Noctis.
Ravius grasnou, no que quase soou como prazer, e Haven gemeu, afundando em sua
sela. Um dia desses, ela contaria a Stolas o que achava do acordo. Se ela o visse novamente.
Apesar de seu aborrecimento atual, uma parte dela ansiava por isso.
Enquanto eles galopavam atrás de Archeron, Bell balançando instavelmente nos
braços de Haven, ela respirou fundo para se acalmar, tentando não olhar para a sombra
circulando acima - aquela que ocasionalmente mergulhava para assustar os cavalos enquanto
cacarejava.
Se Morgryth soubesse...
Não, ela nunca poderia descobrir. Para onde quer que ela e suas sombras tivessem
fugido, onde quer que fossem para se reagrupar e lamber suas feridas, eles nunca poderiam
saber que a verdadeira rainha Serafin estava vinculada por magia a Haven.
Se eles tivessem sorte, a Rainha das Sombras decidiria ignorar Haven e seus amigos.
E, se eles fossem realmente abençoados pela Deusa, a Rainha morreria por causa de seus
ferimentos.
Mas Haven só acreditaria que a Rainha das Sombras havia morrido quando ela visse
seu cadáver apodrecido com seus próprios olhos. Até então, eles nunca estariam realmente
seguros.
Eventualmente, quando o sol mergulhou na terra e o ar esfriou, Nasira se cansou de
provocar os cavalos e encontrou uma brisa para deslizar, suas asas esculpindo sombras
escuras no chão iluminado pela lua.
Nesse ritmo, levaria pouco mais de uma semana para chegar a Penryth. O reino já
estaria ciente de que a Maldição foi quebrada; talvez eles enviassem um emissário para
cumprimentá-los.
Afinal, o rei Horace gostaria de reivindicar toda a glória.
Glória - a palavra parecia errada.
Sem dúvida, eles seriam imortalizados por quebrar a Maldição. Seus nomes escritos
em fábulas e cantados em canções, sua história passada de geração em geração. Os mortais
contariam sua história em tom reverente ao redor de fogueiras ou bêbados em banquetes.
Talvez sua história se tornasse uma história de ninar para crianças, um mito diluído
para as massas acreditarem que o bem sempre derrota o mal.
E, em algum lugar ao longo do caminho, os detalhes se perderiam na história até que
alguma versão idealizada fosse tudo o que restasse de sua jornada, seu sacrifício.
Seus nomes seriam esquecidos, suas perdas e desgostos seriam encobertos, sua verdade
perdida para sempre. O mundo nunca entenderia verdadeiramente o que eles desistiram por
isso - e uma parte amarga dela pensou que o reino não valia as coisas que eles perderam.
Se eles pudessem voltar para suas velhas vidas, eles voltariam?
Se Haven pudesse ficar com Bell, intacta, Rook viveria. Se Surai pudesse se casar com
o amor de sua vida, Archeron nunca teria experimentado a liberdade apenas para tê-la
arrancada dele. Eles nunca teriam sentido a lâmina cruel da traição de Bjorn e Haven nunca
teria entendido a atração perversa e inescapável da magia das sombras.
Haven soltou um suspiro pesado. Não havia como voltar atrás, seus destinos estavam
escritos. Tudo o que ela podia fazer era tentar compensar de alguma forma. Eles não
voltariam para Penryth da mesma forma - mas voltariam.
Às vezes, isso era tudo que você poderia pedir. Outra chance.
Bell se mexeu em seus braços, em seguida, acomodou-se contra o pescoço lustroso de
Dama Pérola, os dedos entrelaçados em torno de sua crina branca. Quando Haven afastou
o cabelo do rosto, a luz da lua dançou dentro das runas serpenteando ao longo de seus
braços, destacando músculos e cicatrizes.
Mesmo agora, suas runas de carne queimavam com poder crescente. Implorando para
serem usadas. Testadas.
Magia ilimitada, tanto escura quanto clara. Fogo e gelo. Proibida.
Como se lesse seus pensamentos, Archeron se aproximou dela e acariciou seu braço
com seus cálidos dedos. Um gesto terno que disse o que as palavras não podiam.
Estou aqui.
Surai se juntou ao outro lado e eles viajaram em silêncio, todos eles muito diferentes
das pessoas que haviam entrado nas Ruínas, algo que parecia anos atrás. Todos eles
fragmentados e sofrendo à sua maneira.
Mas eles tinham um ao outro. Eles tinham o amanhã e todos os dias depois.
Chorar. Lamentar. Curar. Ter esperança.
E, talvez, se tivessem sorte, amar.
1. The Bane - A região central da Eritrayia e um terreno baldio estéril, atua como o
amortecedor entre as Terras das Ruínas destruídas pela Maldição e os reinos intocados do
sul protegidos pela Muro de Runas.
2. Preço da Maldição – Os itens que devem ser coletados e apresentados à Rainha das
Sombras para quebrar a Maldição.
3. Magia das sombras – Derivado do Submundo, não pode ser criado, apenas
canalizado de sua fonte, e está disponível apenas para Noctis. A magia negra se alimenta da
magia da luz.
4. Darkcaster – Aquele que exerce magia negra.
5. Devoradores – Mortais com sangue de Noctis que praticam magia negra demente
e adoram a Rainha das Sombras; viva na ruína e guardam a fenda/travessia para as Ruínas.
6. A Névoa – A névoa carregada de magia negra que desce quando a Maldição atinge
e causa doença amaldiçoada e morte aos mortais que atinge.
7. Donatus Atrea – All-Giver, ou árvore rúnica da vida de onde toda a magia da luz
brota.
8. Eritrayia – reino mortal.
9. Runas de carne – Runas com as quais os Solis nascem; as marcas tatuam a carne de
um Solis e canalizam seus muitos dons mágicos.
10. A Deusa – Freya, mãe dos Solis e dos Noctis, ela é um ser poderoso e divino que
presenteou os mortais com magia e lutou ao lado deles durante a Guerra das Sombras.
11. Juramento do Coração – Juramento feito antes do noivado. Só pode ser quebrado
se duas partes concordarem em romper o juramento e com grande custo.
12. Nove Casas – Descendentes dos nove mortais que receberam flores rúnicas da
Árvore da Vida.
13. Runa das Casas – Runa dada a cada uma das Nove Casas e passada de geração em
geração.
14. Magia de luz – Derivada do Nihl, não pode ser criada, apenas canalizada de sua
fonte e está disponível apenas para os Solis e mortais reais das Nove Casas.
15. Lightcaster – Aquele que exerce magia de luz.
16. Runa Mortal – Runas mortais que as Nove Casas podem possuir/usar.
17. Submundo – Inferno, para onde vão as almas imorais, governado pelo Senhor do
Submundo.
18. Nihl – Céu, governado pela Deusa Freya.
19. Noctis – Raça de imortais nativos de Shadoria e do Submundo que possuem
magia negra, eles têm pele pálida, asas escuras e frequentemente chifres.
20. Runa do Poder– Tipo poderoso de runa proibida aos mortais.
21. The Rift – Abismo no continente da Eritrayia causado pela Maldição que leva ao
Submundo e permitiu que a Rainha das Sombras e seu povo escapassem.
22. Terra das Ruínas – Metade norte da Eritreia, essas terras são encantadas com
magia negra e governadas pela Rainha das Sombras.
23. Dia da Runa – O décimo oitavo aniversário de uma criança real das Nove Casas,
onde ele ou ela recebe a pedra rúnica de sua casa e potencialmente ativa sua magia.
24. Magia de Runas – Magia canalizada precisamente através de runas antigas.
25. Pedra Rúnica – Pedras esculpidas com uma única runa – geralmente – e imbuídas
de magia.
26. Totem de Runas – Postes altos esculpidos com runas, são usados para anular
certos tipos de magia enquanto aprimoram outros.
27. Muro das Runas – Uma parede mágica que protege os últimos reinos do sul
restantes da Maldição.
28. Flor do Coração Sagrado – Dado aos Solis no nascimento, este botão sagrado é
mantido dentro de um frasco de vidro e usado ao redor do pescoço do parceiro pretendido.
29. Senhor das Sombras – Um poderoso macho Noctis, perdendo apenas para a
Senhora das Sombras.
30. O Sombreamento – Odin, pai de Solis e Noctis, já amou Freya, mas ficou sombrio
e distorcido depois de lutar contra seu amante na Guerra das Sombras. Ele agora reside nas
profundezas do Submundo, um monstro aterrorizante que até os Noctis se recusam a
libertar.
31. A Guerra das Sombras – Guerra entre as três raças (mortais, Noctis, Solis)
desencadeada pela Deusa Freya dando magia aos mortais.
32. Shadowlings – Monstros do Submundo, sob o controle do Senhor do Submundo
e da Rainha das Sombras.
33. Solis – Raça de imortais nativos de Solissia que possuem magia de luz, eles são
mais parecidos com mortais em sua aparência, com olhos e cabelos claros.
34. Solissia – Reino dos imortais.
35. Leitura da Alma – Para ler a mente de alguém.
36. Andar no plano das almas – Para enviar a alma para fora do corpo.
37. Ligação de almas – Para vincular a vontade de outra pessoa à sua/tomar o corpo
dela.
38. Senhor do Sol – Um poderoso macho Solis que desfruta de uma posição especial
na Corte Real do Sol de Effendier sob a Soberana do Sol de Effendier.
39. Rainha do Sol – Uma poderosa fêmea Solis que desfruta de uma posição especial
no Corte Real do Sol de Effendier sob a Soberana do Sol de Effendier.
1. Ascilum Oscular – Beije minha bunda (talvez)
2. Carvendi – Bom trabalho (mais ou menos)
3. Droob – Botão/idiota
4. Paramatti – Feche a porta do Nihl, usado durante um feitiço de magia leve
5. Rump Falia – Cara de bunda
6. Umath – De nada
7. Victari – Feche a porta para o Submundo, usado durante um feitiço de magia negra

1. Barrington (Reino das Sombras, anteriormente Reino da Maldovia)


2. Bolevick (Reino de Verdure)
3. Boteler (Reino de Penryth)
4. Courtenay (Drothian)
5. Coventry (Veserack)
6. Halvorshyrd (local desconhecido)
7. Renfyre (Lorwynfell)
8. Thendryft (Duna)
9. Volantis (Ilha Skyfall)

Jogadores mortais
1. Haven Ashwood — órfã
2. Damius Black — Líder dos Devoradores
3. Príncipe Bellamy (Bell) Boteler—Casa Boteler, príncipe herdeiro, segundo e único
herdeiro sobrevivente do rei de Penryth
4. Rei Horace Boteler—Casa Boteler, governante de Penryth
5. Cressida Craven - amante do rei Horace Boteler
6. Renk Craven—meio-irmão de Bell, filho bastardo de Cressida e do Rei de Penryth
7. Eleeza Thendryft—Princesa da Casa Thendryft do Reino de Duna, Casa
Thendryft
8. Lorde Thendryft—Casa Thendryft do Reino das Dunas
9. Demelza Thurgood—A criada de Haven Ashwood

1. Stolas Darkshade – Senhor do Submundo, marido de Ravenna, filho da última


verdadeira Rainha Noctis
2. Avaline Kallor – Rainha Esqueleto, Governante de Lorwynfell, meio Noctis meio
mortal, prometida a Archeron Halfbane
3. Remurian Kallor – Meio Noctis meio mortal, irmão de Avaline, morreu na última
guerra
4. Malachi K'rul – Lorde das Sombras, subalterno da Rainha das Sombras
5. Morgryth Malythean – Rainha das Sombras, Feiticeira, Rainha das Trevas,
governante dos Noctis
6. Ravenna Malythean – Filha da Rainha das Sombras, morta-viva
1. Bjorn – Senhor do Sol de origens misteriosas
2. Archeron Halfbane - Senhor do Sol e filho bastardo da Soberana do Sol de
Effendier
3. Surai Nakamura – guerreira Ashari
4. Brienne “Rook” Wenfyre – Rainha do Sol, princesa pária, filha da Rainha
Guerreira Morgani

1. Freya – a Deusa, governante do Nihl, mãe de Noctis e Solis


2. Odin – o Sombreamento, preso nos poços do Netherworld, pai de Noctis e Solis

1. Aramaya – cavalo temperamental de Rook


2. Lady Pearl – o cavalo leal de Haven
3. Ravius – o corvo de Stolas
4. Sombra – Wyvern de Damius

1. Espada de Haven - Juramento


2. Adaga de Stolas – Vingança
Audrey Gray vive no charmoso estado de Oklahoma cercada por animais, livros e
pessoas pequenas. Geralmente você pode encontrar Audrey escondida em seu escritório,
bebendo grandes quantidades de cafeína enquanto sonha com tacos e tem conversas inteiras
com seus amigos usando gifs. Audrey considera sua capacidade de viajar para mundos
fantásticos uma superpotência e adora levar seus leitores com ela.

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