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O Caçador de Fadas

E O Mistério da Noite
Livro 3
MARJA
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Marja Edição: 1 Ano de publicação: 2014
Capítulo 1 O entardecer

Suas mãos tremiam ao entregar o embrulho. Um filete de suor correu por sua testa, cruzou seu nariz e pingou sobre o papel
amarelado. Ela fingiu não notar, e mal ergueu as vistas ao entregar o embrulho para o comprador.

O elfo pegou o pacote de suas mãos e fitou-a com interesse. Alma fugiu desse olhar insistente e virou as costas, enquanto a
duende cobrava o peso em ouro da veste costurada e entregue ao comprador.

Pode sentir em suas costas o olhar da velha duende e também do rotineiro comprador. Alma sentiu um aperto na altura do
ventre e sentou-se no banquinho atrás da banca de madeira, contorcendo-se. Não era incomum naquela Vila presenciar
criaturas padecendo de ferimentos, ou nascimento das asas. Nenhum morador reparava mais ou se impressionava com o
ocorrido.

Era uma terra abandonada pelo Reino, onde as criaturas mais estranhas viviam em harmonia e vez ou outras recebiam
forasteiros. E geralmente era nessas ocasiões que problemas aconteciam.

Como há alguns dias atrás quando O Guardião Acheron estivera na Vila dos Desesperados arrastando a fada fugitiva Driana
consigo. Depois da partida deles, Alma não tivera mais notícias nem de um, nem do outro.

Apertando ambos os braços em torno do ventre, Alma sufocou os gemidos de dor, enquanto ouvia o elfo fazer perguntas
inconvenientes para a dona da barraca.
A duende não possuía nome, ou se possuía não lhe dissera, por isso mesmo Alma nunca a chamava por nome algum.
Ouviu o elfo perguntar sobre sapatos costurados a mão, feitos em couro de dragão e sufocou um grito de indignação. Ele
puxava assunto. É claro que sim. Há muitos dias que ela notara que o elfo farejava o nascimento de suas asas e parasitava em
torno dela.
Era um elfo alto e robusto. O corpo esguio deveria interessar a muitas fêmeas, assim como o rosto delicado de feições
angelicais deveriam seduzi-las como abelhas em torno do favo de mel. Era dotado de uma beleza cândida, que atraí e cativa
admiração. Olhos claros, pele macia e voz doce. Quem olhasse para o elfo não poderia supor que fosse capaz de atitudes
como encurralar uma fêmea desprotegida em pleno apogeu do nascimento de suas asas.
Alma contava com a compaixão daquele vilarejo, e embora todos soubessem que era uma das fadas fugitivas, ninguém dizia
nada. Tão pouco a duende lhe fazia perguntas ou cobranças. Pelo contrario, quando foi deixada no vilarejo por Tubã, quase
três semanas atrás, Alma permaneceu sem saber o que fazer, andando em círculos, com olhos de desamparo até avistar a
barraca de costura. A velha duende costurava. Era seu trabalho. Alma estava apenas olhando, apesar de nada ver.
Não sabia o que procurava, ou se procurava algo, ela não sabia para onde ir ou o que fazer, muito menos onde se esconder.
A velha havia levantado de seu banquinho, se aproximado e quando Alma maneou a cabeça e disse que não tinha ouro e que
não queria comprar nada, a velha lhe empurrara nas mãos um carretel de barbante e uma agulha longa e fina, juntamente com
um pedaço de couro cru. Não aceitou devolução.
Voltara para seu banquinho e para sua costura e Alma entendeu que era uma espécie de convite.
Elas não falavam. Raras as vezes que ouvia a voz da duende. Ela costumava a abrir a boca e falar apenas para cobrar em ouro
o preço de suas mercadorias.
Os dias eram passados em completo silêncio, fato que muito agradava Alma, pois sua voz era rachada e doída aos ouvidos
alheios, e agora com o nascimento de suas asas, sua voz estava ensurdecedora.
Sofrendo, ela baixou a cabeça, os longos cabelos castanhos cobrindo sua face, enquanto uma das mãos limpava os lábios por
onde sangue corria. Sim, ela cuspiu sangue no chão de terra.
O nascimento de suas asas acontecia a mais de uma semana e a cada dia o martírio parecia pior. Uma dor afiada em sua
barriga e ela deixou o banquinho, sentando no chão, encolhendo-se em uma bola, enquanto a dor avançava para seu quadril e
costas.
Precisou limpar a face varias vezes, pois sangue vazava em suas narinas e boca. Ela queria desesperadamente ser abraçada.
Em momentos como este, seu desejo era apoiar a cabeça no colo de uma de suas amigas, sentir um carinho nos cabelos e
chorar.
Não suportava estar passando por tudo isso sozinha.
A velha duende encerrou a venda e Alma sentiu vontade de agradecê-la quando com um resmungo mandou o elfo embora.
Alma olhou para ele por entre a cortina de cabelos que cobria seus ombros, e seus olhos eram avermelhados e injetados pela
dor insuportável. Encontrou os olhos do elfo sobre ela.
Não pode impedir o contato visual. Alma conhecia a loucura interna e nos olhos daquele macho ela viu loucura, ódio e
obscenidade. Não era apenas desejo de elfo por uma fada encontrando no cio. Era mais do que isso. Era loucura interior.
Cortou o contato visual, e baixou a cabeça, como se assim pudesse se esconder das intenções dele.
Mesmo que não quisesse admitir nem a si mesma, Alma entendia dessa loucura que toma o interior do corpo e da alma e que
torna a criatura louca. Um ódio insano que corroí as entranhas e pede por redenção. Talvez por encontrar dentro de si um
poderoso sentimento de destruição, fosse tão fácil reconhecer no olhar daquele elfo algo igual ou até mesmo pior.
Alma lutava todos os dias da sua desgraçada vida contra esses impulsos. E não era nada fácil nascer prisioneira do Ministério
do Rei, vivendo na fome, humilhação e provação, e não entregar-se a esse desejo de morte que gritava dentro de suas
entranhas mais profundas. Era consciente que a única coisa que a impedia de cometer um disparate era a presença sempre
inseparável de suas amigas Eleonora, Driana e Joan. E mesmo o estabanado e traquina Tubã ajudava a aliviar o fardo que era
sua existência.
Por conta de suas amigas que Alma continua o monstro interior que rugia e pedia por alimento. Que insistia em convencê-la
que o mundo não merece clemência e que ela poderia ser livre se encontrasse coragem para livrar-se de tudo que estivesse em
seu caminho.
Mas era preciso ignorar esses desejos, e sufoca-los, pois se desse ouvidos a eles, ela teria de escolher entre ser alguém
solitário ou viver com suas amigas. E ela preferia a clausura a ser só.
Fechando os olhos, Alma soltou um palavrão de raiva e dor e a velha duende jogou um pano velho em sua direção. Alma
pegou do chão e usou para lavar o rosto e limpar o sangue.
-Fique longe de Eldor.– A velha duende lhe disse.
Surpreendida, Alma encarou-a como quem espera por mais explicações. A fêmea de duendes nunca conversava com ela. E
nem com quem quer que fosse!
-É o que pretendo fazer– disse entre dentes, lutando contra o padecimento do corpo. Encostou a cabeça na parede de madeira
gasta que mantinha o toldo da barraca erguido e perguntou:
-Ele não está atrás do cio, está?
-Não. – Foi a única resposta que obteve.
A velha sabia bem mais do que quis expor. De qualquer modo Alma lhe era agradecida pelo prato de comida que
compartilhava e o teto que lhe oferecia sobre sua cabeça e agora, pelo gesto de caridade em lhe alertar sobre o elfo que se
chamava Eldor.
Não era um caçador de fadas, pois ouvira boatos sobre todos os caçadores conhecidos e ele não se encaixava em nenhuma
descrição. Tão pouco era algum nobre em busca de mercadorias em comércios de segunda. Não, ele era outra coisa.
Alma farejava a desgraça e sabia previamente que esse cheiro acompanhava o elfo Eldor e era por isso que detestava enxerga-
lo aproximar-se dela.
Uma pontada de dor a fez esquecer-se dos pensamentos e de tudo, contorcendo-se no chão em uma agonia frustrante.
Como um animal agonizando seus últimos suspiros. Era assim que a fada sofria. Poucas fadas escapavam de uma torturante
espera por suas asas. E ainda mais raro a fada que agonizasse desse modo. Alma deveria saber que seu azar costumeiro a
acompanharia até mesmo nesse momento de renovação.
-Ele está voltando – a velha disse lançando os olhos para fora da barraca.
Alma arrastou-se na terra e escondeu-se embaixo do balcão. Eldor inventava um assunto qualquer para interceptar a velha
duende e conseguir mais tempo perto da fada padecente do nascimento das asas.
Embaixo do balcão de madeira, Alma arfava sem ar, sem forças, o corpo sendo atacado por pontadas de dor e sangramentos
contínuos. Ouviu a conversa tola do elfo, e relutou a sair dali até estar livre de sua presença.
Quando isso aconteceu, a velha duende começou a resmungar palavras que não compreendeu, e nem deveria entender, e jogou
um saco para baixo do balcão. Alma pegou e encontrou a capa que a velha usava normalmente sobre as roupas. A capa estava
toda amassada dentro do saco.
Soluçando de medo e dor, vestiu a capa e saiu do esconderijo.
Não deveria ficar ali nem mais um minuto. Com aflição pura em suas veias Alma apoiou-se onde conseguiu para ter forças de
levantar e andar. Era melhor estar longe quando o elfo decidisse voltar outra vez ou ainda pior, decidisse que não havia
porque esperar para aprisionar a fêmea.
Eldor, como era chamado, comia pelas bordas, tentando cativar a atenção da fada, tentando se fazer notar, tentando até mesmo
alguma conversa que a fizesse sorrir. Mas era tudo fingimento. Alma conseguiu enxergar a fúria, o horror e a vontade
desenfreada de dominar e caçar. Bastava olhar nos olhos do elfo para saber que ele era doente, mesquinho e cruel.
Pior é aquele que seduz a vítima. Pior é aquele que engana e atraí de livre e espontânea vontade a pobre criatura a ser tomada
e morta.
Alma entendia tudo sobre isso, pois ela era assim, igualzinha a Eldor.
Usando a capa sobre os ombros, que cobriam as costas ensanguentadas, mas não impediam os pingos de sangue de manchar o
chão enquanto andava, capuz sobre a cabeça, foi cambaleando para o meio das árvores, procurando o caminho para o casebre
da sua protetora, a velha duende.
Alma era alta, possuía um corpo nada modesto, coberto de curvas, seios fartos, cheios e pesados, coxas amplas, rosto
anguloso, braços longos e fortes. Não era gorda, era magra, quase ossuda, por conta da escassez de comida no Ministério do
Rei, no entanto privilegiada por belas curvas femininas. Cabelos castanhos escorridos, lisos e grossos, como uma cortina
sedosa, repartida sempre exatamente e de modo metódico pelo centro da cabeça. Cabelos que sempre lhe cobriam o olhar,
como se ela quisesse e precisasse esconder os olhos, para que ninguém visse a maldade interior que carregava em seu peito.
Olhos castanhos, pele bronzeada pelo sol escaldante que castigava sua pele todos os dias ao ir e vir para o vilarejo na
companhia da velha duende. Antes de sua fuga sua pele era clara, quase amarelada, sem viço. O ar livre e a liberdade coroava
sua pele com cor e saúde. Havia recebido um vestido para usar, doado por uma fada do vilarejo que ficara mais do que feliz
em desaparecer com sua túnica típica de uma órfã do Ministério do Rei.
Era um vestido sem mangas, em forma de regata, com botões na frente, desde o decote no busto, até o meio das canelas. Era
justo em seu corpo, pois era corpulenta e a fada que lhe doara a roupa era delicada e pequena. Nos pés uma chinela feita de
couro e trançados de barbante, feitas por ela mesma durante as longas horas de costura silenciosa ao lado da velha duende.
Carregava no único bolso do vestido um par de luvas que usava em ambas as mãos quando costurava, pois a agulha feria sua
pele. Era uma vida calma. Uma vida de quem espera.
Uma vida de aflição e silêncio. No meio do caminho para o casebre, Alma precisou segurar em uma árvore, tentando respirar
e acalmar o corpo. Sua carne se contorcia em suas costas, e ela não conseguis suportar sozinha.
Gritou de dor quando foi jogada para frente pelo impacto de algo que escapava de sua carne. Ela sabia que a pele seria
rompida, mas não imaginou que era assim. Ainda não eram suas asas, era apenas pus e mais sangue. Uma nojeira odiosa. Ela
olhou para a poça nojenta no chão e chorou. Lágrimas de dor e medo.
Lágrimas pesadas rolando por sua face. Eram lágrimas mais de ódio do que dor, pois ela tinha nojo de si mesma por não
conter aquele sofrimento físico.
Com as pernas bambas, agarrada ao tronco de árvore, forçou o corpo a levantar. Quis implorar para que parasse, para que a
dor passasse e finalmente as asas nascessem, acabando com seu penar. Mas implorar para quem? Quem a ouviria?
Alma gritou o mais alto que pode, de raiva, ódio, frustração, e o revoar angustiado das aves das copas das árvores,
desaparecendo assustadas pelo som insuportável que saia de sua boca, serviu apenas para maltrata-la ainda mais.
Vida de dor e sofrimento pensou Alma, seria possível que nunca sua vida teria um final feliz? Seria eternamente condenada ao
suplício?
Arrastando-se pelo mato, Alma finalmente enxergou o casebre, enquanto sentia uma aproximação. Temeu ser Eldor, o elfo que
vinha espreitando-a, temeu ser o Guardião Solon, enviado pela odiosa Rainha Santha e que deveria aprisiona-la e andava pelo
Vilarejo, esperando uma brecha para pegá-la no flagra e leva-la para ser punida.
Tentou correr, mas a limitação do corpo a impedia. Talvez fosse o calvário que passava turvando sua mente ou seus
verdadeiros instintos vindo a tona nesse momento de descompasso, mas o fato era que se fosse atacada usaria de todo seu
potencial para matar e saciar sua antiga vontade de saber como era fazer isso.
Nada poderia segurá-la se fosse atacada. Com o coração acelerado, metade expectativa de realizar esse antigo desejo, metade
medo de chegar a tanto, Alma percorreu os últimos metros que faltava com o coração miúdo de aflição.
Quando finalmente alcançou a porta, abriu-a e entrou, notou que não estava sozinha. Um gemido de agradecimento e caiu no
chão mofado, aos pés da velha duende, que deveria ter abandonado tudo para vir atrás dela, para ajuda-la.
A duende não se comoveu com seu choro ou com sua necessidade de amparo. Com seus olhos de águia, observou a mata ao
redor, sabendo muito bem dos perigos que as rondava, sobretudo rondava a fada fugitiva da clausura. Perigos que a pobre
criatura jamais poderia supor.
Fechando a porta e as janelas, a velha duende esperava mandar uma mensagem para o observador secreto que as espreitava no
meio da floresta. Estava ao lado da fada, e a protegeria. E isso deveria bastar para causar algum receio. Seu passado contava
muita história e o observador, conhecia metade dessas histórias e por certo, a temeria.
Alma arrastou-se no chão até o quartinho que usava para dormir, pois era ali que normalmente ficava a maior parte do tempo,
para não incomodar sua protetora.
Portas e janelas fechadas não eram barreiras suficientemente eficazes contra o perigo que as rondava e Alma cobriu os lábios
com as mãos para não gritar quando baques acentuados contra a madeira do casebre ecoaram em torno de seus ouvidos.
Era para assustar, coibir e causar pânico. E conseguiu. Quando o som parou Alma estava em choque. A velha duende surgiu no
quarto e olhou-a sem mover um dedo para ajuda-la.
No chão, Alma forçou o corpo a aguentar o sofrimento e tentou subir para a pequena cama onde um colchão velho e fedorento
oferecia ao menos algum conforto. Quando seu corpo tocou o escasso conforto, uma pontada veio com tanta força que Alma
achou que sairia do próprio corpo, gritando de dor...

O Quarto Guardião Solon não gostou nada de esbarrar com um grupo de raptores. Eram criaturas escuras, grandes e famintas.
Vistas de longe se assemelhavam a ursos, mas de perto, era metade lobo e metade felino. Não gostava em nada de encontra-los
nas imediações da Vila dos Desesperados. Não era o habitat dessas criaturas medonhas.

Poderia aceitar uma ou duas, perdidas de sua manada, mas um grupo extenso? Não, aquilo era muita coincidência. Uma
sórdida coincidência. E Solon não acreditava em fatores alheatórios e simultâneos. Não quando estava em meio a uma caçada
e a fada fugitiva estava nos arredores.

Solon dispensava a luta. Preferia pacificar a erguer sua espada. Nesse caso, entanto, não era uma opção valida tentar uma
conversa. Criaturas irracionais, que não entenderia um pedido de paz.

Com a espada, Solon deu conta de duas criaturas, derrubando-as em uma luta de solo. Quando o terceiro saltou sobre ele,
Solon enfiou a espada na barriga da criatura, jogando-a longe. Meia tonelada no mínimo que foi erguida com facilidade e
lançada contra árvores.

Os outros de sua espécie rondaram, procurando o melhor caminho para o ataque. Solon jogou a espada de uma mão para a
outra, o chocalho que carregava na cintura barulhento, atraindo a atenção das feras.

Dois raptores e ele sabia serem duas fêmeas atacaram simultaneamente e Solon se viu apertado. Lambou o corpo de um dos
animais com a espada, e o outro conseguiu derruba-lo, enfiando os dentes de sua boca enorme em seu pulso.

Coberto pela armadura, sua mordida não obteve eficácia, pelo contrario, Solon fez uso do poder mágico e a fera soltou, ainda
tentando morder sua cabeça, sendo repelido pelo calor que dispensava do metal da armadura.

A fêmea cambaleou de volta para seu grupo e com rugidos, que mais pareciam lamentos de aviso, virou as costas, sendo
seguida pelos raptores machos de seu bando. A desistência não o surpreendeu. Raras as criaturas, racionais ou não, encaravam
uma luta com um Guardião em posse de sua armadura.

Levantando do chão, Solon limpou as calças e optou por manter a armadura ao corpo mais um tempo. Não queria correr o
risco de ser pego pelas costas desprevenido. Os raptores eram feras barulhentas e mesmo ele, conseguiu ouvir seus rugidos de
longe. Mas outras criaturas, atraídas pelas carniças das feras abatidas não seriam tão barulhentas assim.

Mancando, pois estava dolorido em algumas partes do corpo, Solon marchou pela estradinha de chão de volta para a Vila dos
Desesperados. Precisava dar seguimento a sua missão.

Uma missão estúpida que não o animava. Bem da verdade, há muito tempo Solon estava desanimado com as leis do Reino ao
qual jurara obediência.
O deslumbramento e encanto pela vida de Guardião ainda prevalecia, mas a confiança no Rei e em suas decisões vinha
esmorecendo pouco a pouco ao longo dos anos.
Solon percorreu um bom trecho de terra quando notou que um reboliço de gordas formigas carnívoras avolumava-se entre as
árvores. Nunca era um bom sinal. Com carniça fresca a poucos metros de distância, dos raptores abatidos, e as formigas
carnívoras estavam ali?
Usando a espada para espalha-las e liberar caminho Solon precisou cobrir o nariz para se proteger do odor e afastar os olhos
do corpo parcialmente devorado pelas formigas.
Era o corpo de uma fada. Com medo de ser a fada fugitiva da clausura, Solon olhou com mais atenção, reparando nos cabelos
louros encaracolados. A fada Alma possuía cabelos castanhos, mas não era loura. Observando atentamente com a experiência
de anos no trabalho de Guarda do Reino de Isac, Solon descobriu fatores interessantes. A jovem usava uma túnica manchada
por frutos de cor roxa, e ele sabia que havia uma barraca desses frutos na Vila.
Carregava um cesto de palha que jazia esquecido ao lado do seu corpo sem vida, e dentro dele havia ramos de ervas ainda
verdes e conservados, o que indicava que estivera viva a pouco mais de uma hora.
Era uma morte recente, apesar do aspecto do corpo. As formigas carnívoras eram responsáveis pelo estado de decomposição.
Mas não eram a causa da morte.
Olhando em torno, Solon imaginou onde estaria o responsável. Raptores devoram sua presa. Formigas carnívoras alimentam-
se de carne já abatida. Sendo assim o assassino ou assassina poderia ainda estar por perto.
Por um louco momento pensou se a fada da clausura não seria mesmo uma assassina responsável por mais essa morte.
Com um baixar da cabeça e uma prece rápida, Solon virou as costas e voltou a andar. Não poderia fazer nada pela pobre
criatura abatida. Na Vila tentaria descobrir quem era e o que lhe aconteceu. Talvez encontrar sua família. Mais do que isso
não estava ao seu alcance, pois não deveria perder tempo cuidando do trabalho de outros elfos.
Sua missão para com a rainha cobrava presa. Não por vontade, mas por necessidade. Estivera frente a frente com uma das
fadas fugitivas, de nome Driana, e a certeza que a pobre coitada não era uma assassina o convenceu de que nenhuma delas
poderia ter participado do crime hediondo imputado ao Rei Isac.
Eram iscas em uma pescaria sofisticada. E ele era capaz de ver isso com clareza. Tanto, que pretendia encontrar a fada Alma
e levá-la com ele para o castelo, exigindo um julgamento justo. Pensava inclusive em servir de álibi para as fadas.
Um álibi falso é sempre melhor do que nada. Solon não era um crédulo tolo, mas quando tendia a confiar, entregava-se
totalmente ao risco de estar errado.
Por que não? Os Conselheiros não poderiam questionar sua palavra. E se uma das fadas não pudesse ser colocada na cena do
crime, a participação de todas as demais seria questionada.
Mas primeiro, precisava encontrar a pobre infeliz antes que ela fosse a próxima a jazer em uma floresta qualquer servindo de
comida para formigas carnívoras ou outro semelhante.
Ainda na posse de sua armadura, pois a mesma não queria desgrudar de sua pele, como se o perigo ainda o rondasse, Solon
atingiu uma área arborizada, por onde uma cascata de água limpa e clara corria diretamente para um córrego que banhava a
Vila dos Desesperados.
A margem oposta um elfo com duas fadinhas. As meninas deveriam ter entre dois e cinco anos. Elas corriam e brincavam na
água, enquanto o elfo conversava com elas. Uma das meninas correu até o elfo que a pegou nos braços e rodopiou, arrancando
risos felizes da menina.
Solon sorriu. Um pai e suas filhas. Ele nunca conviveu em família e não sabia como era ter esse sentimento de ser cuidado por
um pai. Aproximou-se e o elfo parou de brincar com a menina, olhando-o com admiração.
-É um dos Guardiões do Reino de Isac? – Ele gritou da margem oposta e Solon acenou.
Não ouvira o que ele dissera. Mas não demonstraria. Evitava exibir sua fraqueza desnecessariamente.
Usando da arrogância esperada em seu posto disse:
-Guardião Solon, o quarto em hierarquia. Deve levar sua família para casa o mais rápido possível. Esse lado da floresta não é
segura.
O elfo apressou-se a correr atrás da fadinha menor e a pegou no colo, enquanto cingia a maior pela mão. Andou pela margem
até encontrar o Guardião.
-Conto com sua proteção até a vila?– O elfo pediu.
Solon ouviu apenas um sussurro muito baixo, mas entendeu o significado assim mesmo.
-Com gosto – ele disse sorrindo para uma das meninas.– Fiquem ao meu lado. Não se afastem da estrada. E não fiquem para
trás.
-Sim, senhor.– O elfo disse sorrindo tranquilo por ter proteção.– Me chamo Eldor. Essas são minhas meninas.
Se o elfo disse o nome das crianças, Solon não ouviu. Normalmente nesses casos fingia indiferença e ignorava a conversa
paralela. Era melhor assim do que deixar claro que era praticamente surdo e que poderia ser tratado coma um elfo incompleto
e frágil.
Solon não notou o olhar do elfo Eldor. Não notou o modo como ele cobiçava sua armadura, ou como as fadinhas seguiam ao
seu lado sem perceberem o risco que corriam.
Solon jamais saberia, assim como as duas fadinhas, que a fada morta era mãe e esposa e que agora, deixava suas meninas
órfãs e nas mãos de seu assassino...

Capítulo 2 Em segredo

O frenesi insuportável que corria sua carne deu uma trégua por alguns instantes. Sem fôlego, Alma rolou na pequenina cama e
olhou para a velha duende. Seu olhar pedia que conversasse com ela. Que lhe dissesse que tudo ficaria bem, que em poucas
horas esse infortúnio teria fim e ela seguiria sua vida com esperanças renovadas.

Mas essas palavras não vieram, muito menos a presença. A duende saiu do quartinho, deixando-a devastadoramente solitária.
Deitando de lado, Alma fechou os olhos, uma lágrima correndo em sua bochecha, cruzando sua face para se acomodar no
colchão velho e mofado.

Quando abriu novamente as vistas, encontrou um besouro negro, enorme e feio caminhando pela parede. Assustada tentou se
afastar da cama, mas a dor a impediu. O inferno havia retornado e ela ficou imóvel, fitando o inseto peludo, com longas
antenas e formas distorces ganhar tamanho e vida. Era enorme e não parava de correr pela parede. Subia para o teto e
começou a andar no forro de palha e barro do casebre.

A criatura abriu sua bocarra e esguichou um som agudo, que lembrava em muito os próprios gritos de Alma. Ela fechou os
olhos para afastar o som, e afastar a imagem. imóvel na cama, tensa, sem mover um único músculo, prisioneira de seu corpo
penitente de uma dor impossível de ser explicada.

Abriu os olhos e descobriu que o besouro corria rápido por paredes de pedra. Não estava mais no casebre. Não. Ele corria
pelas paredes de pedra e ela ouviu gritos e riso. Olhou para trás e descobriu que corria junto de Eleonora, Driana e Joan.

Risos ensandecidos de quem perdeu a razão e abandonou a esperança. Sempre rindo histericamente, foi Eleonora quem parou
diante da torre mais alta, diante do paredão de madeira que era a porta maciça. Com os cabelos ao vento, por causa de uma
noite de tempestade, Eleonora ergueu ambas as mãos para o céu e foi prontamente atendida em seu dom, causando um reboliço
no vento.

Uma rajada impiedosamente voraz socou a madeira sem dó até arrombá-la. Essa rajada de vento levou consigo tudo que
estava em seu caminho, inclusive arrancou as cortinas que envolviam a cama.

Cortinas essas que se moviam em completo desalinho pelo quarto, em torno da cama e foram pousar no chão.
Com uma expressão de pura lasciva Joan avançou, passando a frente delas todas. Ela correu para dentro do quarto,
diretamente para a penteadeira da Rainha Santha. O barulho de vidros e joias sendo reviradas acordou a Rainha que inocente
ao que acontecia, sentou na cama. Foi à hora tão esperada. Eleonora na posse de um longo punhal de prata, sem punho, apenas
lâmina, confeccionado artesanalmente brecou seus movimentos, sentada na cama, o punhal no pescoço da rainha.
Santha permaneceu imóvel, como que suspensa no ar, enquanto Eleonora ria e gargalhava.
O mundo estava sendo retorcido e era culpa de Joan, que pousou uma das mãos no ombro de Eleonora, pois não era mais
necessária a coação física.
Rindo muito, Eleonora levantou e fez a volta na cama. Joan voltou para a penteadeira da Rainha, cobrindo-se com as joias e os
perfumes, fazendo poses para o espelho da Rainha.
Alma assistiu a si mesma andar pelo quarto, e sussurrar ordens. Como uma boneca sem vida a Rainha levantou e ficou de pé
no centro do quarto. Soltou a camisola ficando nua. Joan abandonou as joias e a curiosidade medonha sobre os pertences de
luxo da rainha e correu até Santha, correndo as mãos pelo corpo da fêmea, falando sem parar sobre como era bela e
incrivelmente perfeita.
Alma manteve o ritmo das palavras baixas e cadenciadas, e a rainha obedeceu-a começando a dançar no centro do quarto.
Joan começou a rir enquanto fingia dançar com ela, rindo com a mesma histeria que Driana.
Sempre inteligente Driana pegou a coroa de sobre a penteadeira, a maldita tiara de diamantes que causara a prisão de
Eleonora, e colocou sobre a cabeça da rainha. Como uma boneca sem vontade ela seguiu a dançar nua e bela, sem saber que
era chacota das fadas da clausura.
Joan pegou um vidro de perfume e borrifou em Driana, e as duas começaram a brincar e rir sem parar, usando das roupas
luxuosas e joias da rainha como diversão.
Foi quando Eleonora juntou-se a elas e retirou a coroa da cabeça da rainha. Elas pararam de rir e focaram em Eleonora. Ele
colocou a coroa na própria cabeça e rodopiou, exibindo-se.
Era linda e idêntica a rainha, com a vantagem de contar com vinte anos a menos em sua idade. Com o frescor da beleza e
juventude, Eleonora aproximou-se da cama, onde o rei jazia adormecido por conta dos murmúrios de Alma, que mantinha tudo
sob controle ferrenho de seu hipnotismo.
Eleonora apontou para Alma e pediu que continuasse. Rindo histericamente Driana e Joan aproximaram-se da cama, e
ergueram a túnica que Eleonora vestia, desnudando-a completamente. Seu corpo branco como leite, sem marcas, ou sinais. Era
toda branca, como um lírio.
Rainha Santha seguia em sua dança desenfreada e Driana e Joan retornaram para a penteadeira para encher os bolsos com
perfumes e joias. Alma aproximou-se da cama, seus murmúrios ganhando volume e força.
O Rei Isac acordou e viu diante de si a Rainha Santha, mesmo que na verdade fosse Eleonora. O corpo do elfo
instantaneamente ficou ereto e a fada casta Eleonora montou sua cintura, aos gritos lascivos de paixão ao ser possuída pelo
rei.
Os murmúrios de Alma se tornaram mais altos, incentivados pelo riso compulsivo de Driana e Joan, e pelos gemidos de
prazer de Eleonora e Rei Isac.
Cada vez mais rápido, murmúrios que não cessavam, cada vez mais forte, a compulsão do corpo de Eleonora sobre o rei,
cavalgando-o, espalhando seu cheiro sobre o elfo, a dança frenética da Rainha hipnotizada, o riso de Driana e Joan...
O fim aconteceu quando Eleonora gritou em sua paixão doentia, erguendo o punhal acima da cabeça e o fincando no peito do
Rei.
O corpo forte de lutas e anos de dedicação à proteção de inocentes não cedeu, e ela passou a lâmina por seu pescoço,
esguichando sangue para todos os lados. Finalmente alcançando o gozo, em meio à morte e o frêmito do ato, Eleonora saiu de
sobre o corpo do Rei. Cambaleando, sangue da sua inocência nas coxas, ela caiu no chão, sempre rindo.
Driana e Joan a vestiram e foi Driana quem retirou a coroa da cabeça de Eleonora num requinte de maldade, levando-a para a
cabeça da Rainha Santha. Havia muito sangue na joia, e esse vermelho manchou os cabelos esbranquiçados e a pele de
pêssego da rainha ardilosa.
Observando a obra macabra realizada Driana exultou, olhos brilhantes. Foi Joan quem a puxou pelo braço e as duas puseram-
se a acudir Eleonora, vestindo-a. Eleonora, fez como sempre imaginou em suas fantasias. Levantou e cuspiu sobre o rei e
aproximouse da Rainha, entortando a coroa em sua cabeça, como uma criança que faz até.
Alma parou de murmurar e fitou-as com o mesmo olhar de pura felicidade.
De mãos dadas as quatro saíram correndo do quarto.
Outra vez o besouro corria junto delas e Alma fitou-o com felicidade pura. Vingança tem um sabor de cerejas. Sim, cerejas
doces e suculentas, sendo comidas sob a sombra de um carvalho. Alma parou de correr e fitou as amigas. Havia cerejas em
suas mãos. Fitou as frutas e então as amigas.
Era sempre Joan quem roubava cerejas do pomar e trazia para serem comidas na solidão das longas horas de confinamento
nos quartos do Ministério do Rei. Um agrado para ver um sorriso na face de sua amiga Alma.
Alma derrubou as cerejas no chão, olhando para elas com horror implícito nos olhos. Girou em torno de si gritando uma
indagação. Não saiu som algum e quando olhou em torno outra vez não encontrou nenhuma delas.
Estava sozinha no meio de uma sala. Nada de corredores. Estava de pé sendo levada por dois homens empapuçados.
-Não!– Ela gritou em pânico.– Não fui eu!
Foi arrastada sem que prestassem atenção aos seus gritos.
-Não fui eu! Eu juro! Não fui eu! Eu sou inocente! Sou inocente!
Os dois elfos empapuçados pararam diante do abismo que se abriu no chão, assim, do nada. Um buraco negro sem fundo.
Alma debateu-se e tentou fugir, mas foi pega pelos cabelos e arrastada de volta.
-Não fui eu! Sou inocente! Inocente!– Seus guinchos não surtiram efeito.
Em meio ao desespero ela viu uma menininha muito delicada, com uma boneca sendo arrastada em suas mãos. Era uma menina
doce, de olhar cheio de esperanças.
Ela chegou bem perto de Alma e a fada reconheceu a si mesma nessa menina. Era ela infanta.
A voz meiga e doce de uma criança ecoo pela amplidão do lugar:
-Não fui eu. Eu sou inocente – era um sussurro delicado. Um sussurro de inocência de um anjo infantil que ainda não conhecia
a maldade. – Acredite em mim, eu sou inocente.
A menina dizia para a própria Alma.
Desesperada ela começou a chutar, empurrar e debater-se, tentando se soltar. Não obteve êxito, foi arrastada e lançada no
abismo sem fim.
Não ouve gritos, talvez a morte fosse mil vezes melhor do que o sofrimento que nunca chega ao fim. Perdida numa súbita paz,
Alma descobriu que não existe paz. Quando um ser nasce condenado ao sofrimento, à paz é um luxo que jamais será
alcançado.
Abriu os olhos assustada, e a primeira coisa que viu foi que estava sob o corpo de um elfo. Ele se movia rápido, possuindo
sua castidade e o cio, com a voracidade de quem nunca pede licença. Segurava seu queixo, machucando sua mandíbula,
obrigando-a olhar em seus olhos. Era o elfo da vila, que vinha causando-lhe medo.
A dor da violência chegou a um ponto insuportável que Alma gritou sem parar, descobrindo que estava imersa em um mundo
de alucinações, induzidas pelo padecimento das asas e a única coisa real, era um simples besouro negro que andava
lentamente pela parede, pobre inseto, em busca de alimento ou repouso.
Suada, imóvel, deitada de costas para o colchão, Alma fitou o quarto com olhos nervosos, procurando se convencer que eram
alucinações. Não era real. Não era uma assassina, tão pouco Eleonora era uma vilã.
Foram acusadas injustamente.
E amenina Alma? O que ela queria lhe dizer? Fechando os olhos com força, tentou levantar. Sabia muito bem o que a menina
Alma queria lhe dizer. Queria lhe contar que o mal nascia dentro de suas entranhas e que se não lutasse contra ele, essas
alucinações um dia poderiam se tornar verdade.
Conseguindo andar a passos trôpegos, Alma encontrou a Velha duende fiando em seu tear de madeira rústico. Ignorando a dor
lacerante em suas costas, Driana pegou um pedaço de couro e a agulha que estavam sobre um banquinho e sentou-se, tentando
trabalhar.
Esquecer o que acontecia e ocupar a mente.
Cada laçada da linha no couro era uma fincada em suas costas, como se estivesse costurando as asas em uma boneca de pano.
E não era isso que ela fazia?
Sob a sombra de um enorme carvalho, na companhia de suas amigas, em um dia de fuga do Ministério do Rei, enquanto
Eleonora e Joan brincavam de pega-pega e Driana lia um livro, a Alma de apenas dez anos costurava duas folhas secas, com
linha velha e uma agulha feita em osso, usando a boneca desgastada pelo tempo como fada. Tornava a boneca feia e velha em
uma linda fadinha sorridente. Metade disso era sua imaginação. Mesmo assim quando terminou ela levantou e mostrou para as
amigas, todas as quatro juntas em torno da boneca.
Todas as quatro queriam brincar, pois não tinham brinquedos. Aquela boneca fora pega no lixo, descartado no lixo de alguém
do vilarejo, e trazida para elas por Tubã, o amigo que possuía uma família, e que mesmo assim, não se esquecia de suas
amigas.
Apesar de ter tido o trabalho de concertar e arrumar o boneca, Alma empurrou o brinquedo para as mãos de Joan, sua
amiguinha ruiva e de face coberta por sardinhas. Ela estivera doente outra vez e ainda estava pálida.
A menina pegou a boneca e rodopiou com a alegria genuína de quem ganhou um brinquedo novo e lindo. Driana voltou a ler,
sempre entretida em seu mundo de letras. Eleonora não precisava de muita coisa para se divertir, encontrando uma árvore
qualquer para subir, aproveitando a liberdade da natureza.
Mas Alma queria a boneca. Apesar de abdicar ela, queria a boneca. Sentou e trouxe os joelhos para junto do peito e escondeu
o roso neles. Não queria chorar e não ia chorar.
Mas ela queria tanto a boneca...
Ao erguer a cabeça encontrou a boneca aos seus pés. Um sorriso iluminou sua face e fez um carinho no rostinho feito com
linhas e pano velho. Havia sangue nas roupinhas da boneca e ela levantou para ver o que era isso.
Joan estava no chão, em uma poça de sangue. Sem vida, sua amiga jazia aos seus pés, mas agora a boneca era sua. Sua!
-Não – ela afastou-se alguns passos e olhou em volta – Não fui eu!– Defendeu-se outra vez.
-Não! Eu sou inocente! Não fui eu! Não me acuse! Não fui eu!
-É claro que não foi você, Alma– ela ouviu a voz melodiosa de Eleonora.
Não era mais uma menina. Era uma jovem e estavam nos jardins, observando a vida que acontecia além dos portões e grades.
Eleonora lhe fez um carinho nos longos cabelos castanhos e os prendeu em uma trança, com uma fita bonita.
-Precisa cuidar da sua aparência. Suas asas serão as primeiras a nascerem e deve ser escolhida por uma dos Guardiões. Será
sua única chance de viver fora da clausura– Eleonora lhe dizia.
Alma sabia muito bem que sua amiga fazia isso. As três faziam isso. Tentar colocala sempre no caminho bom.
-Eu não quero me casar.– Disse séria.
-Isso não importa. Se você estiver fora daqui – Eleonora olhou em torno – poderá encontrar um modo de nos ajudar.
-Tem razão – ela concordou– Não sou tão bonita quanto você, Lora.
-Hum, é mil vezes mais bonita do que eu– Eleonora desmentiu.
-Eu falo daqui– Alma pousou a mão sobre o próprio coração – Não sou tão bonita quanto você. Aqui dentro.
Eleonora não respondeu nada. Baixou os olhos e seguiu trançando seus cabelos. Era a mais pura das verdades. Não era tão
bonita em seu coração quanto deveria ser.
E isso assustava Eleonora. Assustava como o inferno. Mas ela nunca lhe diria isso. Jamais.
-Espero que um Guardião bem apanhado a escolha– Eleonora mudou de assunto e Alma entendeu que não conversariam sobre
aquele assunto em particular que tanto a perturbava.
-Mas e seu eu não conseguir ser escolhida...?– Foi seu sussurro embebido em medo puro.
Não obteve resposta e quando olhou para trás, procurando por Lora, descobriu que tudo a sua volta tinha se tornado cinzas
fumegantes.
Contra as grades pontiagudas o corpo de Eleonora jazia sem vida. Ela tinha os olhos abertos, mas não possuía mais vida.
Alarmada, Alma fitou em torno procurando por ajuda, mas a única coisa que encontrou foi um grupo de Guardião correndo em
sua direção.
Não implorou por ajuda. Não! Já não restavam forças para implorar! Foi presa e levada para as masmorras. De volta para
corredores fétidos e sujos. O besouro a acompanhou por todo corredor, seus olhos acompanhando o correr do inseto em torno
de si e em volta da cela. O besouro ficou no alto da parede enquanto Alma era jogada na cela e se encolhia em um canto.
-Eu lhe disse para não fazer isso.
A voz de Driana fez com que seu coração se enchesse de esperanças de ser salva. Sua amiga estava de pé, as mãos segurando
nas grades, fitando-a com olhos frios, carregados de piedade.
-Eu não fiz nada...– Alma disse engatinhando até a grade e ficando aos pés de Driana, como quem implora perdão.
-Eu lhe disse para se controlar. Para não por tudo a perder. Você não fez isso. Você acabou com todas nós. Estamos mortas,
Alma e a culpa é somente sua.
Alma fitou a face de Driana e negou, erguendo-se para tocar no rosto de sua amiga. Não conseguiu, a grade parecia ter trocado
do de lado e de súbito se viu livre, com Driana presa na cela.
-Eu lhe implorei que de contivesse– Driana disse baixando o rosto, as lágrimas correndo em sua face.
-Mas eu não fiz nada! Eu não fiz nada! Sou inocente! Eu juro! Eu juro!– Alma gritou desesperada em ser ouvida e entendida.
-Mas vai fazer– Driana avisou, os olhos vítreos, sem luz própria.– Vai colocar nossas vidas em risco. É isso que vai
acontecer. Você deveria ter ficado trancafiada na clausura para toda sua vida. Era o único modo de conter o demônio que se
esconde dentro de seu coração. Era o único modo de salvar a todos nós. Mas agora...– Driana sorriu demente – você está livre
para ser quem é de verdade. E pobre de nós, estamos perdidas em suas mãos...
-Não – Alma negou, afastando-se das grades. Olhando em torno, encontrou as celas vazias e correu pelos corredores, dessa
vez ignorando o besouro que a seguia. Atingiu o último corredor e tropeçou, caindo de joelhos, mãos apoiadas no chão, suor
pingando na testa batida, cabelos suados espalhados em torno de si.
Caiu aos pés de um elfo.
Não qualquer elfo, e sim, um Guardião.
De pé, o Guardião Solon fitava a fugitiva.
-Por favor...– Ela disse chorando, fungando e limpando as lágrimas com o braço ... Eu sou inocente. Eu juro... Eu sou inocente.
Eu nunca quis fazer mal a ninguém. Eu nunca quero fazer mal... Eu não consigo conter meus pensamentos, por favor, me
ajude... Não me prenda. Não me mate. Eu juro, eu quero ser boa... Eu juro... Eu juro... Eu juro...
Sua voz seguiu murmurando sem parar. Alma não sabia que não estava costurando junto a duende. Não, ela ainda estava na
cama, remexendo-se sem paragem no colchão velho, enquanto era carcomida pela dor.
Alucinações induzidas pelo nascimento das asas.
A velha duende estava de pé, observando-a de longe, com a face sombria imparcial. Como todo duende fêmea, era
esverdeada, mas com a particularidade de ter um tom cor de terra impregnado no verde, tornando-a uma mistura de verde e
marrom. Era alta, contrariando os demais duendes, corpo afinado, face curvada, ossuda, sem muitas curvas com exceção do
nariz protuberante. Sempre usava uma capa sobre os ombros, cobrindo a cabeça e era impossível dizer como seria seus
cabelos ou se os tinha.
Em meio a tanto tecido, túnica e capa, a única parte visível além da face, eram as mãos longas. Dedos longos e repletos de
pelos. Era uma típica fêmea de duende.
Suas razões para ajudar a fada fugitiva eram profundas, mas ela não falaria disso. A fada da clausura precisava sofrer e passar
por tudo que a vida tinha de pior para lhe oferecer. Era desse modo que deveria ser.
Não era altruísmo que movia a duende a ajudar a fada fugitiva da clausura. Suas razões eram profundas demais para seres
alegadas em vão. Chega uma hora onde a verdade se faz necessária. E ainda não era o momento.
Sobre a cama, dividida entre lembranças trazidas de seu subconsciente, e alucinações provocadas por seus medos interiores,
Alma se contorceu na cama, rolando para o lado da parede, exibindo as manchas feias em suas costas.
A velha duende aproximou-se e rasgou a túnica na altura das costas e foi esse seu único movimento de ajuda.
Voltou para junto da sala, para seu tear. Puxou o fio e começou a enrolar, seu pé batendo no pedal de modo repetitivo,
ignorando os gritos que vinham do quarto.
Alma balançou a cabaça de um lado para o outro, perdida em seu mundo de brumas, onde era constantemente lembrada de seus
medos, pecados e culpas.
Em um desses momentos, ela despertou em pânico, sentando na cama, como que tomada por uma força sobrenatural. Olhos
arregalados, encontrando a imagem do besouro que havia saído da parede e voado para o seu joelho.
Com a mão tremula, Alma tocou o inseto e o pegou entre os dedos, trazendo para perto de sua face, olhando-o como que
hipnotizada.
O inseto balançava as patas e as antenas de sua cabeça, tentando salvar-se e Alma exultou de prazer ao apertar os dedos em
torno de seu corpo, esmigalhando-o.
Um prazer tão forte, tão passional, que a acalmou.
Tornou a deitar, por enquanto mais calma...

Capítulo 3 Tanto faz

Solon ficou satisfeito ao ver a pequena família formada por Eldor e suas duas fadinhas chegar a salvo em sua casa. Separam-
se, pois ele precisava seguir nas buscas pela fada fugitiva.

Não era um Guardião obcecado pela sua missão. De modo algum. Era bastante relutante em executa-la. Duvidava que algum
dos Guardiões de fato acreditasse na ladainha da Rainha Santha. Talvez se a história houvesse vindo de boca mais confiável...
Pesaroso do titulo que carregava e ciente que em momentos como este, seu cargo de Guardião era pesado demais para
carregar, Solon atravessou a praça central do vilarejo, parando ao reparar em algo incomum.

Uma das barracas estava vazia. Pertencia a uma duende fêmea e Solon era cliente assíduo, pois ninguém confeccionava botas
de tanta qualidade quanto a velha ranzinza e careira. Nunca, em anos, viu essa barraca vazia.

Pensou em assuntar sobre o a causa, mas só de olhar em volta, soube que seria em vão. Infantilidade de sua parte achar que
alguém lhe contaria sobre a fada fugitiva Alma.
Ela não conseguiria acoitar-se no vilarejo e não ser notada. Estava sendo mantida impoluta e não cabia a ele esperar
colaboração daqueles elfos e fadas tão maltratados pela vida.
Eram uma sociedade unida no único desejo de se protegerem contra aqueles que os rejeitaram e nesse exato momento Solon
representava o perigo. Não o hostilizavam, claro que não, mas também não colaboravam com ele e sua busca.
Solon buscou acomodação na única taverna da Vila dos Desesperados. Era um lugar pequeno, construído em pedra e barro,
mas era limpo e ele sabia que poderia encontrar um quarto a disposição e comida para alimentar sua fome.
Entrou, chamando atenção dos poucos elfos que bebiam ou comiam, e das fadas que trabalhavam por ali. Algumas apenas
ajudantes, outras bem mais do que isso.
Uma caneca fumegante de elixir proibido foi colocada a sua frente imediatamente ao instante em que se sentou na cadeira. Era
uma fadinha tentando agradar ao Guardião que além de ouro deveria trazer consigo oportunidades de uma melhora de vida.
A fada era bem menor que os padrões e suas asas eram retorcidas. Talvez uma deformação de nascimento ou apenas uma
peculiaridade de seu nascimento. Mas era claro como o dia que não se encaixaria nos padrões do Reino de Isac. Assim como
ele quase não se encaixou. Afastando a amargura instantânea para longe de seu coração, pois evitava a todo custo se deixar
dominar por ela, negou e afastou a caneca.
-Nada de elixir proibido, fada– ele sorriu– Aceito vinho, apenas vinho.
A fada sorriu aliviada, pois não o desagradara e perguntou:
-Tem guisado pronto e quente, pronto para ser servido. Devo lhe trazer um prato?– A voz da fada era mais alta que o comum e
falava bastante alto, quase atrapalhada.
-Sim, e deve me fazer companhia também.– Ele disse com voz calma e serena.
Era sempre calmo. E quando encontrava alguém que falava bastante alto, não desperdiçava a oportunidade de uma boa
conversa.
Não tinha vergonha da própria fraqueza, da sua surdez quase total. Mas em seu posto de Guardião sair anunciando aos quatro
cantos do mundo que estava em desvantagem, não ajudaria em nada e sim, causaria tumulto. Por causa disso, sempre ficava de
lado, a par das conversas, carregando nos ombros a má fama de ser arrogante e indiferente.
Era preferível carregar um fama de desagradável, a ter que conviver com os fuxicos a cerca de sua capacidade. Estava de bom
tamanho ter que lidar com os constantes ataques dos Conselheiros a sua integridade profissional.
Ele esforçou-se para afastar esses pensamentos quando a jovem fada voltou e ficou de pé, depois de servir o prato de comida
quente e uma travessa com pão cortado.
-Sente-se– Solon indicou a cadeira ao seu lado, desgostando de ver uma fêmea tão acostumada a ser maltratada que achava
normal permanecer de pé mesmo tendo sido convidada para uma conversa.
-Sabe meu nome?– Ele perguntou.
-Todos na vila sabem que é o Quarto Guardião Solon– ela disse orgulhosa de si mesma e sua voz alta ajudando em muito a se
fazer ouvir.
-Mesmo? E o que dizem sobre mim na vila?– Perguntou enquanto comia.
-Dizem que está em busca de uma das quatro fadas fugitivas, que a tentativa de aprisiona-la falhou e por conta disso o
Guardião Acheron partiu com a fada que já havia capturado.– Ela contou.
-Ao menos não falam nenhuma mentira– ele não demonstrou raiva, por isso a fada sorriu e disse incentivada:
-Dizem também que ficará por esses lados até encontrar a fada Alma. É verdade?
-Vejo que os boatos chegaram aqui mais rápido do que rastilho de pólvora– disse nada surpreendido com isso – Sim. É
verdade. Estou na busca da fada Alma. Uma das fugitivas da clausura.
A fada olhou em torno, como se esperasse que alguém a impedisse, como nada aconteceu, perguntou:
-É verdade que as fadas assassinaram o Rei Isac?
-É exatamente isso que a Rainha Santha alega– ele respondeu com diplomacia.
-Estou chocada.– A fada disse com ironia– plebeias destruírem o reino. É esperado que grandes elfos fizessem tal coisa. Não
fadas imundas.
-Nem sempre o pior ataque parte do mais forte dos elfos - ele argumentou e a fada baixou a cabeça sorrindo.
-Tem razão. Deseja um quarto para passar a noite, senhor? Posso conseguir o melhor da taverna– ofereceu.
-Sim, preciso de um quarto – concordou– A comida está muito saborosa. É você quem cozinhou?
-Sim, sou eu quem cozinha– ela disse feliz com o reconhecimento.– Eu... Sabe o que dizem sobre sua caçada, senhor?
-Não estou em uma caçada. Não sou um caçador de fadas. Sou um Guardião. – Ele corrigiu.
-Sim, se você diz– ela fingiu concordar para não irritar um Guardião– Dizem que a fada Alma está escondida no Deserto das
Areias Vermelhas. É o que dizem.
Solon fitou o rosto da fada e lutou para sufocar um sorriso. Quanta lealdade a uma causa, pensou.
Apesar do medo de ofender um Guardião, ainda assim mentir para salvar alguém como ela, que foge e tem medo.
-E o que mais dizem na vila a meu respeito?– Insistiu.
-Dizem que um... Um... Alguma coisa esteve procurando-o na vila toda. Mas que partiu ao não encontra-lo.
-Do que fala?– Ele não entendeu logo de cara.
-Nem eu mesma sei o que digo. Ouvi boatos que um ser, uma criatura esteve em seu encalço, mas perdeu a viagem e partiu ao
não encontrar o Guardião Solon.
-Uma criatura?– duvidou.
-Sim, os que viram, disseram ser uma criatura pequena, estranha e com dentes horríveis. Que parecia um duende, mas não era.
Que parecia muitas cosias... Mas ninguém soube dizer ao certo o que era.– Contou feliz em ter assunto com um Guardião.
-E o que ele queria comigo? A criatura tem nome?– Quis saber curioso.
-Mikazar. Esse foi o nome que eu ouvi. Mas não posso afirmar com certeza, o que lhe conto é um boatos que ouvi, apenas isso.
E boatos são como folhas ao vento... Mudam de curso o tempo todo.– Ela suspirou– Soube que a não quis dizer o assunto.
Deve ser algum assunto de Guardião.
-Talvez um recado – ele disse pensativo.
Não era bobo. Se as asas de Eleonora houvessem nascido e a fada Driana não estivesse mentido para Acheron... Havia a
possibilidade de Egan saber sobre essa verdade e estar procurando por ele.
Conjecturas são apenas conjecturas e ele seguiria com sua missão, sem o entusiasmo esperado, mas seguiria caçando a fada
Alma.
-Sim, um recado – a fada disse com olhos brilhantes– deve ser emocionante a vida de Guardião– ela apoiou o rosto na mão,
olhando para ele com idolatria.
Idolatria que não sobreviveria a grande descoberta de que era um elfo com um defeito. Solon dedicou sua atenção ao alimento
e a fada se manteve em silêncio, servindoo quando necessário.
Mesmo um Guardião precisava e merecia algum descanso. Guardar forças para lutar por uma batalha ao qual não acreditava.

As carcereiras vestiam roupas muito semelhantes às túnicas usadas pelas fadas da clausura, com exceção de um cinturão de
couro que continua um chicote, punhal e as chaves das portas dos quartos. Felizmente, Alma nunca vira o chicote ser usado,
mas o punhal era amplamente utilizado em atividades do dia a dia, como cortar cordas e abrir pacotes.

Alma nunca vira as carcereiras baterem ou feriem os órfãos, mas as ofensas eram comuns. Terror psicológico induzindo ódio
entre órfãos e carcereiros. Alma respirava com dificuldade, pesado, entrecortado, enquanto aproveitava uma brecha na dor.
Um momento de reflexão em meio à confusão de alucinações e tormenta.
Alma nem sabia por que estava lembrando disso. Das carcereiras. Da reclusão. Das regras. A fome constante, pois a comida
era racionada e dividida com igualdade entre crianças e adultas.

Era estranho, um contraste, pois o Reino era abundante de alimento e fartura. Era comum banquetes e desperdício de
alimentos. Enquanto no Ministério do Rei, dentro do próprio castelo, meninas e meninos sentiam fome e passava por
privações.

Às vezes Driana monologava sobre tudo isso ser culpa das carcereiras. Que elas usurpavam o alimento para si mesmas. Alma
desconfiava dessa afirmação. Algo lhe dizia que era coisa de Santha e Lucius. Eles seriam bem capazes de punir as órfãs na
esperança de sufocar as próprias culpas.

Virando de lado, Alma reclamou em voz alta, alguns palavrões ajudando a aliviar a tensão. Mesmo que tentasse fugir das
lembranças, não havia como escapar.
Lembrava-se de sua infância. Sua voz era causa de chacota entre as carcereiras, que constantemente a colocavam de castigo
usando isso como desculpa. Quando se tornou uma adolescente e ficou claro que seu dom teria a ver com a voz, as carcereiras
haviam parado de implicar, provavelmente com receio de em algum momento a fada desamparada pudesse revidar e isso lhes
causar problemas.
Ou talvez, a verdadeira razão fosse à personalidade de Alma. Não poderiam ignorar que a pequena órfã era diferente das
demais. Algo sombrio a acompanhava e seu olhar muitas vezes causava medo. Essa era uma boa razão para deixa-la em paz.
Um curto período, pois sua vida fora bruscamente arrancada da normalidade.
-Não – ela reclamou quando sentiu uma pontada começando na altura do quadril– Por favor, me dê uma trégua– ela falava com
o nada, com o ambiente.
Quis pedir ajuda para suas amigas. Que estivessem com ela, segurando sua mão. Provavelmente Joan estaria segurando sua
mão enquanto Eleonora estivesse tentando ajuda-la de todos os modos possíveis, mesmo que fosse inconveniente e mais
atrapalhasse do que ajudasse.
Driana estaria de lado, evitando olhar, mas disponível para o que fosse necessário. Sorriu e seu sorriso virou um riso
estranho, quase doentio.
-Eu quero minha vida de volta!– Gritou de raiva, em uma histeria estranha.
Algo que não se explica. O choro irrompeu, e ela tentou levantar, sem conseguir. Não havia nada pior na vida do que seu
corpo ser seu maior opositor.
Seu único inimigo nesse instante era seu corpo.
Estava conformada com o nascimento das asas, e até ansiosa por isso, quando Tubã a deixara na Vila dos Desesperados, havia
rapidamente encontrado abrigo com a velha duende. Ela não fazia perguntas, não queria saber nada sobre ela. Também não lhe
oferecia respostas sobre sua própria vida. Elas pouco falavam e quando acontecia, era por conta de algum produto da barraca
de comercio.
Vez ou outra a velha gritava com ela, reclamando por ser incapaz de entender algum idioma ou língua atípica a sua. No mais,
era silêncio consentido entre as duas. Alma chegou a pensar que poderia viver assim por muito tempo, escondendo-se sempre
que algo a assustava e aguardando notícias de Eleonora e do Reino.
Ledo engano. Três dias após sua chegada, sentiu os primeiros incômodos. Não eram dores, eram incômodos desagradáveis,
indisposições que foram evoluindo e se tornando inconvenientes para o trabalho e para seu disfarce.
Foi quando encontrou Driana. O Guardião Acheron a mantinha prisioneira, usandoa como isca para atrair Alma. Fora um custo
não se revelar. Parte de sua covardia havia sido induzida pela esperança de em breve ter suas asas e poder usa-las para ajudar
suas amigas.
Joan e Eleonora sempre faziam piadas sobre seu medo irracional de altura. Ela esperava de coração não precisar lidar com
isso tão cedo. Que ao obter as asas definitivamente, elas pudessem ser sua carta de alforria e garantir a liberdade nunca antes
alcançada.
Apenada de si mesma, Alma gritou, mais como ferramenta para extravasar, do que por esperar ser ouvida. Seus gritos eram
uma forma de expurgar ou tentar expurgar, a dor lacerante que dividia seu corpo em dois.
Sim, exatamente na altura da coluna, ela sentia a pele rasgando. Angustiada, Alma virou de costas para cima, abraçando o
velho travesseiro murcho que servia como conforto. Enquanto esperava aliviar o sofrimento.
Era tolice, pois não havia nada que pudesse aliviar sua dor.
Ela não podia ver e nem iria querer ver, mas a velha duende aproximou-se para enxergar o que acontecia. Estivera espiando-a
do batente da porta e agora corria os olhos por suas costas.
A pele havia rompido em diversos pontos e uma sequencia de gomos de carne, ossos e muita gosma disforme quee formavam
duas linhas paralelas ao centro da coluna. Era por ali que as asas nasceriam. Era um espetáculo, para um ser como ela, que
jamais teria asas como as fadas. A dor vale todo sacrifício, pensava a duende, mas entendia que a fada Alma não pensasse o
mesmo, pois era sua carne que padecia exaustivamente.
Alma contorceu-se quando sentiu, de dentro para fora, algo revirar-se e estourar. Sim, eram filamentos alongados, finos e
longos, que nasciam de cada gomo de osso que se esticava além das suas costas.
Os filamentos se torceram e retorceram em um balé doloroso. Seus berros não comoviam à velha duende, que com olhos fixos,
bebia desse momento.
Alma jogou o travesseiro longe e mordeu o lençol, tentando abafar os gritos. A raiva vinha junto com a dor e ela não
conseguia pensar com clareza. Deveria ficar deitada e aceitar o que acontecia, mas sua essência não permitia.
Quanto mais sofria, mais ódio acumulava dentro de si. Porque tinha que sempre ser tudo tão difícil? Porque com outras fadas
era tudo mais simples?
Porque ela não poderia sofrer menos? Porque as carcereiras não podiam deixa-la e em paz? Porque os Guardiões estavam ali
para mata-la?
Perdida outra vez em seu mundo de alucinações, Alma conseguiu se arrastar para fora da cama, e tomada de uma fúria animal
investiu contra as paredes, como quem luta para se soltar e se salvar.
Era o que fazia, lutava para não ser arrastada pelos Guardiões. Eram quatro, e iria mata-la!
-Não!– Ela berrou, empurrando um deles, em sua cabeça ela utava ferozmente contra um deles.
Seu berro de luta ecoou pela cabeça e ela acabou por se ferir ainda mais ao investir contra uma mesinha que ficava perto de
uma janela baixa, no canto do quarto. O móvel foi chutado, empurrado e virado, no afã de lutar e sobreviver.
A velha duende não moveu um dedo para ajuda-la.
Alma caiu de joelhos, chorando, diante dos quatro corpos sem vida, encarando o sangue em suas mãos. Tremia da cabeça aos
pés desesperada. Como pudera fazer isso? Como?
-Não!!!– Ela gritou, balançado o corpo para frente e para trás, sendo empurrada para o chão de vez, quando uma punção, mas
forte nas asas, minguou seu equilíbrio.
Seu corpo convulsionou por muitos minutos, em sua mente, ela se debatia em meio ao sangue inocente de suas amigas, em
meio à carnificina que suas próprias mãos realizara.
Seu subconsciente aproveitava-se de sua fraqueza, para alertá-la de seu maior medo. O descontrole.
Sem Eleonora, Driana e Joan para condenar seus atos, quem poderia controlar o desejo avassalador de acabar com toda a dor
de modo rápido? Quem poderia entender que ela não queria matar, mas a compulsão era sedutora demais para que lutasse
sozinha?
Seria ela culpada de sucumbir a seus instintos mais básicos, que a acompanhavam desde o momento da concepção?
Seus grunhidos apenaram a velha duende, mas ela não viu. Sabia que era arrastada de volta para a cama, mas não conseguia
distinguir realidade de sonho e lutou contra a ajuda que recebia.
A duende jogou-a no colchão e se afastou, pois não era seguro ficar perto dela mais tempo. Francamente, era ciente que não
era seguro permanecer perto daquela fada em qualquer situação. Tinha algo no olhar da fada Alma. Algo que falava sobre
loucura interior, algo para ser temido.
Mas pouca coisa pode assustar alguém que já viu e viveu de tudo.
Sobre a cama, Alma não se acalmou, mas ao menos voltou para a realidade. Não uma realidade plena, mas o subconsciente
para saber onde estava e o que acontecia. Ignorou as vozes em sua mente, e focou no que sentia.
Focou no padecimento do corpo, para ter domínio sobre sua mente.
Suas costas pesavam, ela sabia que os filamentos deveriam ter nascido, era comum primeiro os filamentos, as hastes de
suporte nascerem, para somente então as asas saltarem soberanas.
Outra vez sentiu um retorce, como se estivessem puxando esses filamentos, e sabia inconscientemente que era seu corpo
lutando contra isso. Uma tentativa de proteger-se contra esse abuso.
Fadas são seres mágicos, que carregam a desvantagem de possuir um corpo humano. Assim como elfos que desfrutam do
privilegio de viverem no mundo mágico e alguns, até mesmo possuem magia, porém tendo que lidar com seus corpos frágeis.
Era passada a hora de lamentar, seus instintos animais gritavam em sua mente e corpo que a tão temida hora havia chegado.
Como um bicho que sabe o que vai acontecer, Alma se preparou para o inevitável.
Sua respiração estava rala, mas acelerou. Seus batimentos cardíacos aceleraram. Ela ouvia o zumbido em seus ouvidos, e
sentia o bater do coração, como um tambor sendo massacrado pelas mãos impiedosas de seu tocador. Sentia o cheiro de
podre, de pus, de suor e sangue. Suas narinas impregnadas por esse cheiro.
Cada pedacinho de seu corpo retesado, tenso, contido por músculos que se contrariam, na espera da desgraça final.
Sozinha naquele quarto, ignorando totalmente a presença da duende fêmea, Alma sufocou o choro, engoliu os soluços, pois não
era hora para sofrer a própria solidão e abandono.
Era hora de ser corajosa e enfrentar sem medo, rezando para aquelas asas serem sua passagem para a total liberdade.
Alma se concentrou no barulho em seus ouvidos, no ‘toc toc’ que vinha da floresta, talvez de algum pássaro bicando o telhado
de barro e palha. Se concentrou na vazia existência dentro de si e no ar pesado a sua volta.
Cheiro de carniça. Sim, ela podia farejar no ar a carniça e nesse exato momento esse cheiro vinha dela própria.
Em um ímpeto de rebeldia, Alma puxou a túnica rasgada e ficou nua da cintura para cima, com exceção do tecido esquecido
sobre sua cintura. Era melhor assim. Nenhuma barreira entre sua carne a as asas.
Estava conformada que suas asas nasciam e seu corpo penava de um sofrimento incomum. Nua da cintura para cima, de costas
para cima, naquele exato momento ela se contorcia aos gritos enquanto suas asas começavam a despontar por entre os
filamentos, entrosando-se a eles, enroscando-se a eles, asas que saltavam, rompendo a carne e espalhando sangue por todo
colchão velho.
Um som de jorro, quando o sangue e muito liquido esbranquiçado caiu no chão, fora da cama. Era assim, ninguém mentia sobre
o corpo da fada padecer neste nascimento de asas. Mas no fundo toda fada alimenta a esperança de sofrer menos e ser à
exceção de uma regra milenar.
Em um canto do quarto a duende anciã, usando seu manto e capuz apenas baixou a cabeça, sem ajudar a aliviar o sofrimento da
fada, mas aliviada por ter chegado ao fim.
Suada, tremendo da cabeça aos pés, Alma levantou a cabeça e olhou para ela, olhos vermelhos, perigosos, injetados pela dor
e pela raiva. Era tudo culpa da Rainha Santha e dos Guardiões. Seu sofrimento solitário era culpa dos Guardiões. Ela segurou
o lençol contra o peito e sentou-se. Seus punhos fechados, como se estivesse em uma luta ou prestes a entrar em uma situação
de perigo mortal.
Suas asas nasceram. A natureza seguiu seu caminho e era uma fada completa. Seus pés tocaram o chão quando se sentou no
colchão e foram lambuzados pelo seu sangue e outros líquidos expelidos durante o nascimento. Era repugnante, era
imperdoável que uma fada precisasse passar por tanto sofrimento sozinha.
No entanto, não havia tempo para lamento ou se recuperar de toda a dor lacerante. Precisava sair dali antes que o Guardião
Solon a farejasse. Era uma fada em pleno cio, no apogeu do nascimento de suas asas e seu cheiro seria alerta para todos os
machos num raio de quilômetros.
Alma fitou a velha e encontrou um olhar de indagação, como se ela também estivesse se perguntando o que deveria fazer. No
entanto, apesar da duvida, ela sabia o caminho a seguir.
Alma permaneceu ali, parada, sem coragem de tocar as próprias asas e quando a duende voltou, trazia uma túnica limpa.
Deixou-a sobre o chão, em um ponto limpo e partiu.
Solitária, Alma levantou e sentiu um peso incomum em suas costas. Suas asas. Um duplo sentimento de orgulho e medo
dominou-a. precisava se lavar e retirar o cheiro de carniça que impregnara em sua pele.
No entanto não era seguro sair. Por causa disso, não vestiu a túnica nova.
Tornou a deitar na cama estreita, relativamente limpa e fechou os olhos. Uma noite de descanso, disse a si mesma. Uma única
noite de descanso para na manhã seguinte tornar a fechar-se em copas e salvar a si mesma da injustiça imposta por Santha e
seu amante Lucius. Na manhã seguinte começaria uma nova batalha. Defender-se e esconderse dos elfos que a farejassem,
entre eles, o Guardião Solon.

O Quarto Guardião Solon havia aceitado um dos quartos da taverna para passar a noite. Depois de um dia longo, arrastado e
sem nenhum avanço significativo, decidiu por encerrar a procura e descansar um pouco. Depois de quase três semanas
dormindo na floresta e comendo mal, era hora de uma trégua.

Solon não era luxuoso, mas estava em uma missão desnecessária e ridícula. Fazia tempo que decidira encontrar a fada e
mantê-la ao seu lado enquanto não se resolvesse a situação da fada Eleonora em relação às acusações sobre o assassinato do
Rei Isac.

Esperava que Acheron e Zoé pudessem ter a mesma ideia que ele, embora não pudesse dizer estar muito esperançosos em
relação à Guardiã Zoé. Normalmente ela atacava primeiro e perguntava depois.

Solon estava deitado sobre as cobertas, um dos braços apoiados atrás da cabeça, a outra mão repousando sobre a barriga, sem
camisa, mas vestindo as calças. Sua armadura estava esquecida num canto do quarto, junto com a espada, bumerangue e o
cinturão. Sua túnica estava encardida e ele optara por deixar com a fada da taverna que se oferecera para lavar e secar sua
roupa.

Os olhos azuis estavam fechados e ele estava a um passo de adormecer. O Guardião possuía cabelos escuros, negros e lisos,
sempre bem penteados, como os bons moços devem ser arrumados. Era um dos mais baixos em altura, mas não o mais fraco.
Era musculoso e magro, com ombros impressionantes, apesar de não ser tão alto. Seu rosto, por muitos era considerado
bonito, com sobrancelhas pesadas, escuras, quase unidas sobre seus olhos.

Olhos azuis, um pouco rasgados, como se fosse descendente de terras orientais, coisa que ele sabia não ser. Seu bio tipo era
bastante comum em se tratando de Guardiões. Faltava-lhe a aparência arrogante e austera, que sobrava em abundancia em
Acheron e Egan.

Isso nunca o incomodou. Sabia que era necessário um pouco de candura para liderar. Não é saudável que lideres usem apenas
de força para obter resultados.
Distraído com seus pensamentos e com o sono que se aproximava sorrateiro, Solon levou um tremendo susto ao sentir que era
tocado.
Abriu os olhos e imediatamente fez um movimento de luta, surpreso ao descobrir que não era um inimigo e sim a fada da
taverna, que usando pouca roupa e exibindo um sorriso de sedução, estava em sua cama, sobre ele.
-Eu pensei que desejasse companhia– ela disse com sua voz alta, que antes Solon apreciou.
Tenso, ele não fez nada para afastar a fada, mas precisou lidar com o sentimento de impotência ao notar que era fácil ser
atacado. Não ouviu a fada abrir a porta, andar pelo quarto, tão pouco a ouviu subir na cama e ficar perto o bastante para beija-
lo.
Se fosse um inimigo, estaria morto e não saberia sequer como o ato se deu.
Era humilhante e frustrante saber que não podia cuidar de si mesmo. Havia se esquecido de pôr o guiso na porta e por conta
disso, não ouvira a madeira ceder e abrir.
-Eu desejo. Mas não essa noite – ele disse com educação. Afastando-a com gentileza.
-Mas eu o servi de modo adequado, não foi? Eu não vou cobrar– ela disse sorrindo, achando que o problema era esse, um
Guardião mão fechada e sovina.
Solon sentou e fez um carinho no rosto da fada.
-É muito bonita e eu não me importaria de gastar algum ouro com uma fada com seus predicados– elogiou para não magoa-la–
mas estou em uma missão e não me envolvo com fadas enquanto cumpro obrigações.
-Mas eu pensei... - ela começou a falar triste -...que não fosse atrapalha-lo.
-Cuide da minha roupa e do café da manhã– ele pediu– Estará me ajudando e muito.
A fada entendeu o recado e saiu da cama, pesarosa.
-Quando sua missão acabar... Acha que voltará a Vila dos Desesperados? – Perguntou do batente da porta, mantendo-a aberta.
Solon percorreu o corpo da fada com os olhos, lutando contra o desejo de manda-la entrar e passar a noite em seus braços.
-Eu não sei– admitiu– tenha uma boa noite.
A fada foi embora e ele ficou sozinho. Desgostoso, levantou da cama e colocou o chocalho no trinco da porta e a trancou por
dentro.
Era um chocalho mágico, que ao menor movimento alardeava um som quase inaudível para os demais seres, mas para ele um
som alto e capaz de avisa-lo do perigo.
Solon voltou para a cama e enterrou o rosto no travesseiro nervoso.
Não tinha amantes. Evitava deitar-se com fadas de taverna, para que seu segredo não virasse boato. Era de conhecimento
publico que sua audição não era das melhores, mas poucos sabiam a exatidão de sua lesão. Era quase surdo. Apenas gritos
muito altos, ou vozes exacerbadas eram captadas e ainda assim, esses sons chegavam aos seus ouvidos como sussurros muito
baixos e quase inaudíveis.
Vez ou outra Solon procurava companhia de uma fada moradora da Vila das Fadas, nos arredores do Castelo. Era alguém
suave e doce que compreendia muito bem sua situação por ser uma mulher mais velha e experiente. Entendia a necessidade de
guardar o segredo do elfo, pois ele era um dos Guardiões e se ela vivia em paz, era por causa da proteção dos Guardiões que
zelavam pelo Reino e pelas vilas.
Infelizmente a noite estava perdida para ele. Os pensamentos pessimistas estavam de volta, e Solon passou o restante da
madrugada acordado, revirando na cama, sem saber que em algum lugar na floresta ao redor da Vila dos Desesperos a fada
que caçava, a fada chamada Alma, dormia um sono pesado, exausto e revigorante...

Capítulo 4 Obrigue-me

Na primeira hora da manhã, antes mesmo do sol nascer, Alma já andava pela mata. Primeiro foi ao riacho que banhava a Vila
dos Desesperados, trazendo água do Rio Branco para saciar a sede dos moradores.

Depois em um momento de calmaria nas vendas, ela conseguiu escapar do olhar ferrenho da duende e fugir para o rio. Ela
deixou a túnica limpa sobre uma pedra e despiu a roupa suja e rasgada, andando com cuidado até a água. Era um veio de água
límpida e raso. Pedras coloridas no fundo e de pé, mal alcançava os ombros de Alma.

Cuidadosa, ela primeiro olhou na água, tentando ver o reflexo de suas asas. Eram curtas, asas relativamente curtas. A cor era
indefinida, não conseguia saber exatamente. Tinha a breve impressão de serem marrom. A forma também lhe era um mistério,
pois não tivera coragem ainda para bater as asas, e as espalhar, sabendo assim como elas eram.

A água estava gelada e ela soltou um palavrão, reclamando disso também. Aos poucos foi um balsamo para sua pele
machucada e ferida do recente nascimento das asas. Alma ficou imóvel, deixando a água lavar o sofrimento penado. Então,
começou a esfregar os braços, pernas, barriga e cabelos, limpando-os do suor, sangue seco e outros líquidos desagradáveis,
que passado o nascimento das asas, Alma não queria lembrar em detalhes.

Aos poucos a raiva por estar passando por tanta privação amenizou e Alma mergulhou a cabeça na água, permitindo assim que
seus pensamentos se desanuviassem. Não sobrava tempo para pensar em si mesma ou em bem estar. Suas perguntas ficariam
sem respostas. Era simples assim e precisava se conformar. Queria desesperadamente sentar ao lado de Driana e lhe perguntar
sobre o que acontecia. Perguntar-lhe sobre o cio, sobre as asas, sobre como seria dali para frente.

Mas pelo visto teria que descobrir tudo sozinha. E do pior modo possível. Não sentia o ataque do cio. Não, ela sentia era
ódio, raiva, rancor, sentimentos horríveis, mas não paixão ou libido. O pensamento de um elfo encostando-se a sua pele lhe
causava uma fúria descomunal.
Ela bateu as mãos na água, como quem soca, descontando sua frustração.
Limpa, Alma se permitiu um momento de reflexão, olhos fechados, saboreando o despontar do sol, que começava a aquecer
água e então, deixou a ilusão de lado, para tornar a enterrar os dois pés na realidade.
Saiu da água e pegou a túnica limpa vestindo-a sobre o corpo molhado.
Os cabelos longos enroscaram nas asas, e ela precisou puxa-los, estranhando essa nova realidade. Precisava se acostumar a
ser uma fada com asas. Era melhor aprender a voar o mais rápido possível e poder ir atrás de suas amigas, ou ao menos se
esconder de tudo e de todos. Com asas uma fuga é facilitada.
Alma não sabia que na margem, entre as árvores era sondada pelo Guardião que a caçava. Nem mesmo Solon poderia supor
ter tanta sorte assim. Havia acordado cedo, depois de uma noite de cochilos e muita insônia.
Optara por fazer uma varredura pelos arredores e deparara com uma cena peculiar. Uma fada na margem do córrego,
despindo-se para um banho. Uma imagem bastante comum, não fosse a fada em questão ser a fugitiva que vinha caçando há
semanas.
Às vezes a sorte é impiedosa. A fada se lavava e ele não era bobo. Sentia seu cheiro e sabia muito bem que ela havia sido
agraciada com suas asas há pouco tempo. Pelo cheiro e pelas marcas em sua túnica, supunha ter sido na noite passada.
Era um desafio como elfo resistir ao impulso de atacar e dominar uma fêmea em pleno cio. Como Guardião era interessante
decidir o que faria.
Ela possuía asas e por conta disso qualquer abordagem abrupta poderia resultar em uma fuga definitiva.
Cauteloso, Solon aproximou-se do córrego, guiando-se pelo som do guiso preso em seu cinturão, para saber se estava sendo
silencioso ou não. A fada continuava inocente a sua presença, desembaraçando os cabelos longos e castanhos usando os
dedos, enquanto fitava o infinito, perdida em seus pensamentos.
Solon não iria desperdiçar a oportunidade de aborda-la e conversar. Explicar o que pensava a cerca do assassinato do rei e
pedir que aceitasse sua ajuda despretensiosa.
Alma olhou em volta quando ouviu um som. Som de passos, ou melhor, de patas amassando mato e folhas em sua passagem,
algo pesado o bastante para quebrar galhos com o peso de seu andar.
A duende que a abrigaria vinha resmungando há dias sobre a presença de Raptores nos arredores do vilarejo, que isso
acabaria em tragédia e o medo assolou a consciência de Alma. Era hora de sair dali e achar um esconderijo antes de ser
farejada por um animal sanguinário como os raptores.
Solon assistiu a postura da fada mudar, ela prestar atenção a alguma coisa que lhe passava batido. A fada ouvia algo que ele
não conseguia perceber. Usando o faro, Solon entendeu a causa do medo na fada.
Raptores. E ele que suponha ter dispersado a manada. Irritado, observou-a andar com rapidez pela margem, procurando
sempre seguir o curso e sorriu orgulhoso. A fadinha sabia que os raptores são péssimos nadadores e evitam água, por isso
usava do córrego como escudo para coibir a aproximação das feras ávidas por carne.
Seguindo-a, Solon avistou entre as árvores uma das bestas andando a passada curta. Eram feras irracionais, porém eximias
predadora, e a presa naquele momento era a fada.
Um dos raptores, provavelmente o macho, pois eram as fêmeas que geralmente dominavam a presa, ficou para trás, cheirando
a túnica abandonada e destrinchando-a com seus dentes enormes e assustadores. Farejava a presa e agora, ou seria abatido ou
abateria sua caça. Era impossível escapar após ser farejado por um raptor.
Logo os dois, macho e fêmea, corriam atrás da fada e por causa disso Alma corria por sua vida. Solon não ouvia os rugidos
das feras, mas supunha serem assustadores, pois o pânico na face da fada era genuíno. Ela correu o quanto pode pelas pedras,
mas acabou escorregando e caindo. Engatinhou para dentro do córrego, lutando contra a dor em sua canela, olhando para as
duas feras com desespero. Era medida da mesma forma. O desespero de abater sua caça.
Alma não ficou para saber se estaria salvo ou não. Correu pelo córrego, para a margem oposta, parando para ver se era
seguida. A fêmea rasgou o chão com suas unhas enormes enquanto farejava seu rastro. Não iria desistir assim fácil.
Engolindo em seco, sua coragem indo embora, Alma começou a correr para bem longe, desejando chegar algo a cabana e se
abrigar atrás de paredes. Em se tratando de raptores não era garantia de segurança, mas era o melhor esconderijo que
encontraria. E o único que conhecia.
A fêmea de raptor ganhou distancia e saltou sobre o córrego, usando seu corpanzil para dar impacto e chegar ao seu destino
desejado. Foi seguida pelo macho e novamente Alma se viu em péssima situação. Correu para uma clareira onde deveria
conseguir pegar um atalho para o casebre da velha duende. Foi quando descobriu que estava enganada, que havia pego o
caminho errado.
Acabou em uma clareira de mato baixo e muitas flores. Nada de árvores ou esconderijos a vista.
Em pânico viu-se diante da fêmea que corria em sua direção. Seria uma morte horrenda se o raptor conseguisse colocar as
patas sobre sua carne.
Adrenalina correu por suas veias e Alma tentou bater suas asas, pedindo para voar. Era sua única escapatória. Não coseguiu.
Não sabia como fazer e as asas não obedeceram. Provavelmente por causa do seu nervosismo, não respondiam aos seus
impulsos.
Rainha Santha a acusara de hipnotiza-la e ela sabia que as carcereiras estimavam que este fosse seu dom. Tentou falar com a
besta fera, mas ela seguiu correndo em sua direção e Alma desistiu.
Não restava alternativa, ela não sabia mais o que fazer. Foi quando a fúria subiu a sua cabeça e ela berrou o mais alto que
conseguiu, sua voz esguichada soando insuportavelmente alta. Os dentes de Alma rangiam e ela estava tremula, enquanto seu
grito ecoava em seus próprios ouvidos de modo doloroso.
A fêmea de raptor parou de correr e baixou a cabeça, lutando contra o som, e Alma viu os filetes de sangue escapar pelos
ouvidos da fera e em segundos ela estava no chão, sem vida.
Foi quando seu berro cessou.
De longe Solon viu acontecer e quase se esqueceu do raptor macho que corria, atrasado, mas ainda seguia o passo da fêmea,
em busca de sua próxima refeição. Apesare de a fada conseguir se salvar sozinha, estava em choque e não notou o macho
vindo em sua direção, incrédula sobre o que fizera com a fêmea de raptor.
A fera saltou em sua direção e Alma apenas usou os braços como escudo, preparando-se para o pior, esquecendo que poderia
impedir o ataque com um grito.
Pior esse, que não aconteceu. Ela caiu no chão a tempo de ver um bumerangue cortar o ar, acertar o peito do animal, que
abatido foi ao chão em questão de segundos. Alma aproximou-se e puxou o bumerangue, secretamente querendo ter uma arma
consigo, mas não sendo atendida, pois como todo bumerangue mágico, escapou de sua mão e sumiu para a floresta atrás de seu
dono.
Com medo de ser um elfo que houvesse farejado seu cheiro de cio, Alma fugiu. Não sentia o impacto do cio, pois a fúria em
seu sangue impedia que sentisse qualquer outra coisa.
Correu como nunca, desaparecendo no mato, tão rápida que Solon não conseguiu alcança-la.
Livre do perigo, Alma parou para respirar e olhou em torno da floresta. Agora estava de volta no caminho correto para chegar
ao casebre. Aliviada de ter escapado, e consciente que sua voz podia matar, como era o constante medo de Eleonora, Driana e
Joan, e torcendo para em breve conseguir hipnotizar, como era suspeita das carcereiras, pois em caso contrario, seu dom seria
terrível. Ainda mais nas mãos de alguém como ela, que muitas vezes sentia o impulso de matar avolumar-se em seu coração.
Um impulso tão forte, que parecia ter sido criado dentro de seu corpo como um de seus membros. Parte de si como o ato de
respirar.
A tentação de usar esse dom sempre que estivesse furiosa, o que acontecia o tempo todo, era enorme.
Sozinha, Alma parou de correr e baixou a túnica pelos ombros, deixando-a avolumada na cintura, pois túnicas não era a
melhor roupa para uma fada que tivesse suas asas. Nua da cintura para cima, Alma puxou os longos cabelos para o lado, sobre
o seio direito e concentrou-se.
Fechou os olhos e ordenou que as asas se abrissem. Levou um susto quanto aconteceu. Manteve o equilíbrio e usou as mãos
para tentar tocar as asas. Eram curtas, quase de tamanho médio. A cor era marrom, um tom amadeirado que muito a agradou.
Asas fáceis de serem camufladas. Quando voasse não seria detectada com facilidade através das árvores. Um sorriso aflorou
em sua face, feliz com essa descoberta. Havia padrões redondos em torno da suas asas e elas eram separadas em duas
camadas, fartas, e bonitas.
Um toque de felicidade em um coração tão acostumado com a decepção.
Orgulhosa de si mesma, Alma afastou as mãos e se concentrou em bater suas asas. Conseguiu. Ouviu um som estranho, forte e
rasgado, muito parecido com os próprios gritos.
Bateu as asas mais algumas vezes e seus pés saíram do chão. Tinha medo de altura, por isso fechou os olhos com força
enquanto suas asas a levavam para o alto. O barulho era insuportável, mas ela aguentou, e quando o medo a sufocou, pois
detestava altura, baixou o corpo e voltou ao chão.
Abriu os olhos e levou um susto ao ver em torno de si.
Esquilos. Pássaros. Lebres. Animais da floresta. Mortos a sua volta. Saídos de suas tocas no desespero de escapar do barulho
ensurdecedor. Suas asas causaram um campo magnético tão forte e ensurdecedor, que causara a morte de vários animais.
Como ela poderia voar, se o farfalhar de suas asas causava a morte de todos com quem cruzasse?
Chocada, Alma arrumou a roupa e correu para longe daquele lugar, fugindo da constatação que suas asas não serviam para
nada e que era provável que seu dom também fosse inútil a menos que deixasse aflorar seu lado negro, aquela faceta da sua
personalidade que ansiava pelo momento de matar.
Faceta essa que Alma lutava para manter adormecida em nome da amizade que tinha com Eleonora, Driana e Joan, a única
família que conhecera.
Respirou aliviada quando encontrou o casebre, entrou e fechou a porta atrás de si. Falsa sensação de segurança era melhor do
que nenhuma sensação de segurança.
A velha duende fiava calmamente e assistindo-a agir desse modo, parecia que o mundo todo vivia em paz e harmonia e que
não havia perigo, que o mundo não era uma selva perigosa onde cada ser vivo luta diariamente para se manter vivo e integro.
Sem fôlego, refugiou-se no banquinho ao lado do tear, pegou a linha, agulha e o couro que deveria ser costurado. Ocupar a
mente e esquecer o ódio por ser impotente diante de si mesma e da vida que tinha.
Alma surpreendeu-se quando a velha lhe entregou um embrulho mal feito, e virou as costas como quem exige ser seguida. Era
manhã ainda e não se enganava, deveria ir trabalhar normalmente, pois abusava da hospitalidade e generosidade da duende.
Abrindo o embrulho encontrou uma longa faixa de pano. É claro que sabia para que servia. Algumas vezes, uma fada ou outra,
no Ministério do Rei, passava pelo nascimento com discrição, sem tanta dor e tentava camuflar as asas usando faixas, mas
sempre eram desmascaradas.
Com um arrepio de temor, Alma despiu-se e começou a enrolar a faixa pelo peito, envolvendo as asas dobradas. Quando
terminou, estava quase normal. Com uma capa sobre os ombros, ninguém notaria as asas.
De cabeça baixa, ela seguiu para a Vila, seguindo os passos rápidos da velha duende. O desanimo era tanto que ela não notou
nada a sua volta. Se eram seguidas ou não, tão pouco reparou se chamava atenção por conta de seu cheiro.
Na Vila, elas andaram como se nada estivesse acontecendo e se refugiaram na barraca. Não havia um único ser que não
houvesse farejado o cio, mas ninguém falou nada.
Pouco depois do almoço, Alma estava com uma fome insuportável, mas com medo de pedir por comida, pois já abusava
demais da boa vontade da duende. Sem esperanças sobre tudo, entregue a uma profunda sensação de pesar e raiva, Alma foi
surpreendida quando uma fadinha, da taverna, aproximou-se e fingiu olhar os sapatos costurados a mão.
Ela colocou sobre o balcão uma dobradura de tecido e um pequeno cesto com pão assado.
-Tive sorte. Um bom cliente. Um Guardião. Ele me deu ouro. É muito generoso – ela falava, como quem fala com a velha
duende, mas os olhos não deixavam os de Alma– quero um desses sapatos para combinar com as roupas que comprei.
-E o que um Guardião deseja por esses lados?– A velha perguntou ranzinza, sabendo bem a resposta que ouviria.
E a fadinha da taverna também tinha suas razões de puxar esse assunto.
-Ele busca pela fada fugitiva da clausura. Uma das assassinas do rei.– Olhou para Alma com insistência– Mas eu disse a ele
que perde seu tempo, se houvesse uma fugitiva na Vila dos Desesperados, eu mesma lhe contaria. Mas ele é desconfiado,
assim como todo Guardião deve ser.
A fada da taverna olhou para um dos sapatos e disse:
-É este que eu quero – entregou o ouro para Alma e demorou um segundo a mais, tocando suas mãos– Obrigada.
A fada foi embora, mas não levou o pano ou a comida. Fingia ter esquecido. Alma retirou de sobre o balcão e voltou a sentar
no banquinho, afastada dos olhares. Desdobrou a roupa e descobriu ser um vestido de alças trançado no pescoço, com as
costas nuas. Típica roupa usada pelas fadas agraciadas com suas asas. Era longo, e cobria as canelas, de chita, um tecido
muito simplório.
Emocionada, Alma sentiu as mãos tremerem. Dobrou outra vez e colocou sobre o chão, pegando um pedaço do pão e
comendo, enquanto os lábios tremulavam e as lágrimas corriam em sua face. Estendeu a cestinha e dividiu o pão com a
duende.
A fada da taverna viera ajuda-la, por pena. Era mais uma fada desgraçada pelas circunstâncias de seu simplório nascimento.
Miserável aos olhos do Reino, não merecia ajuda e terminaria seus dias em uma taverna.
Obtivera ouro, e dividia com quem precisava. Viera lhe alertar sobre o Guardião. Saciar a fome de uma pobre fada que
padece por ter suas asas, mas não poder se salvar.
Lutando contra o choro compulsivo, Alma limpou a face com o braço, afastando as lágrimas e engolindo o choro.
Tinha medo das demonstrações de amizade e ajuda despretensiosa. Não sabia lidar com a bondade. Raramente em sua vida
fora tocada pela lealdade.
-O que vai ser de mim agora?– Perguntou em um sussurro.
Não queria uma resposta. De jeito algum. Perguntava para si mesma. Para o vazio do seu coração. Quando mais pensava,
menos alternativas encontrava.

Capítulo 5
Guarde suas armas

Solon encontrou o elfo Eldor no mesmo caminho do outro dia. Curioso percebeu que estava sem a companhia das suas filhas.
O elfo não pareceu ser culpado sobre nada contou-lhe a história das meninas e sobre como as visitava quando vinha a Vila dos
Desesperados, mas não era casado com a fada com quem gerara as meninas.
Não era um comportamento incomum, ainda mais em se tratando de fadas rechaçadas como era o caso das moradoras da Vila
dos Desesperados. Poucos elfos assumiriam publicamente uma fada dessa linhagem.

Ele falava sobre estar em busca de uma fada verde. Fadas verdes são raríssimas.
-Não permitirei que siga sem explicações. Eu não posso ignorar seu estranho comportamento, mesmo estando ocupado com
uma missão importante – Solon o surpreendeu ao dizer– Você é um Caçador de Fadas?
-Não – Eldor disse alto, surpreendido – Não! Eu ouvi dizer que existe uma fada verde por aqui e estou procurando por ela!
Quero tocar sua pele para ter um pouco de sorte! Nunca caçaria uma fada! Sou da paz!– Ele ergueu ambas as mãos como quem
mostra que não usa armas.
-Que seja desse modo – ele disse cortando o assunto, pois não gostava de longas conversas por não acompanhar metade do
que o elfo dizia– Se encontrar a fada verde, me avise. Preciso de um pouco de sorte também.
Eldor sorriu, retirou o chapéu que usava na cabeça em um cumprimento respeitoso e seguiu para a Vila enquanto Solon
continuava suas buscas pela mata.
Solon guardava consigo um segredo nunca revelado. Como aconteceu o acidente que o deixou praticamente surdo. Uma lesão
irreversível e dolorosa, que mesmo passado tanto tempo ainda lhe causava dor no corpo e na alma.
O tempo não conseguiu apagar as marcas deixadas em seu interior. Sua confiança extirpada, sua boa vontade para com as
fêmeas... Tudo se foi. E foi assim por muito tempo. Graças a sua boa índole Solon não se deixou abalar, muito menos deixou
que a amargura interferisse em seu juízo e a raiva guiasse suas decisões. Com o tempo foi se abrindo para o mundo e voltou a
ser o mesmo elfo de antes. Quando acreditava nas pessoas sem relutar.
De qualquer modo, nunca tivera coragem para revelar como acontecera. Nem mesmo para seus companheiros Guardiões.
Alguns deles eram jovens e novatos, como o oitavo e décimo Guardião, recentemente agraciados com suas armaduras por
ocasião de aposentadoria de um Guardião e morte de outro. Os demais eram elfos da sua época. Guardiões que adquiriram seu
direito a armaduras praticamente na mesma época que ele. Amigos de muitos anos e de algumas boas aventuras.
E mesmo com tanto companheirismo e cumplicidade, Solon não teve coragem de contar como aconteceu. Egan, o Primeiro
Guardião, e também seu melhor amigo, respeitou seu desejo, apesar da insistência e do desejo por vingança. Com o tempo
aceitou que Solon não contaria sobre o acontecido e se conformou.
Assim como Solon se conformou com sua própria situação.
Sempre resta a tristeza e a indignação, mas ele lidava bem com estes sentimentos. Refreava a raiva e continha a mágoa usando
da esperança e das boas ações como escudo e proteção.
Solon fitou o córrego onde mais cedo naquele mesmo dia tivera o prazer de observar a fada da clausura recém agraciada com
suas asas banhar-se. Esperava que ela retornasse. Era um desejo vão, pois sabia que após o ataque dos raptores ela demoraria
a voltar ao córrego. Mesmo assim, era melhor esperar do que percorrer a floresta toda em vão.
Com suas asas era praticamente impossível que perdesse seu tempo andando pela floresta, quando poderia muito bem voar de
um lado ao outro.
Não podia negar que estava incomodado em perseguir uma fada no cio. Possuía muito autocontrole e raramente se perdia em
libido por conta de uma fada, principalmente uma fada no cio, mas venhamos e convenhamos, na situação que ambos viviam,
Guardião e fada da clausura, era uma situação única e pouco convencional.
E a fada era adorável.
Alta, da mesma altura que ele, robusta nos lugares certos... Seios fartos, cintura fina, mas nem tanto, coxas grossas e nádegas
carnudas. Particularmente havia gostado muito de seus cabelos longos, lisos e castanhos. Era uma moldura perfeita para o
rosto anguloso, comum, mas nem tanto, pois seus olhos eram profundos e seus lábios carnudos.
Lembrava-se da fada desde os tempos em que Tubã tentava convencer os Guardiões a escolherem suas amigas para
casamento. Ele reparava na fada Alma, não podia negar isso. Ela chamava sua atenção, primeiro pela aparência e segundo,
pela personalidade sempre esquiva.
As fadas costumavam ser alegres e espontâneas, mas a fada Alma era sempre séria. Não ranzinza, mas sim um pouco sombria,
como se estivesse sempre triste. Era provável que a fada não lembrasse, mas uma vez Solon tentou corteja-la. Uma desajeitada
tentativa, que acreditava ter sido ignorada ou simplesmente rechaçada.
Havia enviado por Tubã um pergaminho em branco com penas. Um agrado para que ela pudesse escrever, ter um diário, ou
quem sabe apenas desenhar. Havia visto que ela gostava bastante de desenhar.
Tubã lhe disse que havia entregado o mimo, mas que ela não dissera nada sobre isso, tão pouco foi vista usando o presente.
Esse tipo de indiferença desmotiva o interesse de um elfo, mas não surtiu efeito em Solon. Ele pretendia escolhe-la quando
chegasse seu momento.
Tubã jurava que ela seria a primeira a ser agraciada com as asas e Solon delicadamente havia avisado os demais Guardiões
que não a escolhessem, pois era seu interesse. Tubã sabia disso. Esperava sinceramente que o traquina houvesse contado para
a fada. Isso facilitaria bastante sua aproximação. Mas, em se tratando de Tubã, tudo era possível.
Solon relembrou a imagem nua banhada por água fresca. As asas eram de tamanho médio, fartas e duplas, em camadas, de uma
cor e padrões que lembravam a cor do tronco de árvores jovens. Uma camuflagem perfeitamente elaborada pela natureza.
Absorto em seus pensamentos, Solon farejou o ar, sabendo que perto dali havia uma fada no cio. E essa fada era Alma. Com
os anos e sua limitação auditiva, havia apurado seu olfato, mesmo assim nem se comparava ao potencial de Acheron, o
Segundo Guardião. Era bom o suficiente para localizar a fugitiva e era o que importava.
Conseguindo farejar a pista certa, abriu mão da vigília em torno do córrego e seguiu para a Vila.

Alma estava descobrindo que os dias de uma fada no cio eram longos e penosos. Atraia olhares por onde quer que passasse. O
número de elfos que abordavam a barraca era assustador. Por causa disso estava relegada a costura e não ao atendimento. No
fundo da barraca, Alma costurava para distrair a mente e acalmar o ódio.

Por mais que tentasse, não conseguia afastar o sentimento de ódio. Tudo culpa de Santha e sua ambição desenfreada. Sua
desgraça era culpa de Lucius e sua lasciva sem justificativa. Culpa dos Guardiões que seguiam missões sem pensar nos
inocentes.

No finzinho da tarde, quando começava a escurecer Alma notou a mudança na fisionomia sempre neutra de sua protetora. A
duende estava irritada e fitava um lugar em especifico na vila.

Curiosa e preocupada, Alma levantou do banquinho e espiou o que ela tanto olhava. Através do couro que protegia a barraca,
ela espiou o elfo que andava pela vila, sorrindo para as fadas e sendo atencioso com os elfos.

Alma soltou a cortina de couro e bufou.

-Ele não vai me deixar em paz nunca? – Perguntou para a velha duende– Eu achei que tivesse que fugir dos Guardiões. Apenas
dos Guardiões!
-Fale mais baixo. – Sua protetora disse entre dentes.
-Por quê? É obvio que serei apanhada por alguns desses elfos que ficam me rodeando por causa do cio!– Disse se
esperanças– O que eu faço para acabar com essa crucificação? Como me livro desse cio desgraçado? Meu corpo está
exalando esse cheiro... Como vou me esconder assim?
A velha olhou-a por alguns segundos, medindo suas palavras e suas intenções.
-O único modo de livrar-se do cio é amenizar seu cheiro, livrando-se assim do interesse desenfreado dos elfos... E a única
forma de fazer isso é deitar-se com um deles. Uma vez consumado o ato, o cio acaba e sua vida segue normalmente.
Alma sentiu vontade de gritar de indignação. Muito fácil não é?
-As fadas emprenham durante o cio – lembrou a duende disso– qualquer um sabe disso.
Não era uma argumentação que pudesse ser contestada. Para toda regra existe a exceção e Alma gostaria de ter alguma certeza
que poderia fazer parte do seleto grupo privilegiado pela sorte. Mas não se enganava. Era uma fada do Ministério do Rei,
condenada a clausura e por conta disso, nascera condenada pelo azar.
Se ao menos pudesse usar suas asas sem o receio de atentar contra a vida de outros seres vivos... Triste por constatar que era
uma inútil, Alma voltou para seu canto, sentada no banquinho, cabeça baixa, os cabelos escondendo sua expressão.
Vestia a túnica que mantinha suas asas praticamente escondidas sob a faixa que as amarravam. Ao menos esconderia as asas
das criaturas não atingidas por seu cheiro de cio. Fêmeas e outras criaturas de linhagens diferentes. Fadas no cio, recém-
agraciadas com suas asas são alvos visados, pois alcançam preços altíssimos em mãos ilícitas, como as mãos sangrentas de
Caçadores de Fadas, elfos que viviam de caçar fadas infantas e vendelas para elfos abastados. Fadinhas jovens e
desprotegidas. Fadas com suas asas recentes ou padecendo do nascimento e, sobretudo fadas no cio.
Normalmente os caçadores de recompensa, também chamados de caçadores de fadas, eram elfos desviados do caminho
honesto e adeptos a outros crimes. Mas atualmente, os Guardiões desempenhavam o mesmo trabalho, caçando as quatro fadas
acusadas de assassinar o Rei.
Com o coração apertado de saudade de suas amigas, Alma seguiu costurando. Em determinado momento fincou a agulha no
próprio dedo sem querer. O corte era pequeno e verteu uma única gota de sangue.
Ela chupou o dedo, limpando-o e quando ergueu os olhos descobriu que era observada com interesse e obsessão masculina.
Eldor estava diante da barraca e ignorava totalmente as palavras ditas pela velha duende, ocupado em fitar a fêmea recém-
agraciada com suas asas, padecente do cio. Alma reconheceu a podridão e a fúria naquele olhar bonito.
Eldor era um elfo muito, mas muito bonito. Tão atraente quando era possível uma carcaça masculina ser. Alma não sentiu
nenhuma punção de excitação, mesmo estando no cio. Vinha reparando nisso, que não sentia os impulsos do cio como as
demais fadas descreviam. Esperava pelo menos passar logo por isso. Sabia que o cio durava semanas, caso não consumado.
Era incomum uma fada que permanecesse intocada nesse tempo, mas nos raros casos que acontecia, o cio durava entre cinco e
seis semanas. A duende empurrou de volta para as mãos do elfo um embrulho e em sua língua de duende enxotouo da barraca.
Não eram palavras educadas, mas Alma não entendeu o sentido exato das frases, embora houvesse aprendido algumas
palavras desse dialeto por conta do convívio com a duende. Os olhos de Eldor corriam por seu corpo.
-Eu não vou embora – ele disse, quebrando o contato visual, provavelmente incomodado com a duende. Era um empecilho
entre ele e a fada.
Duendes são um povo unido. Toque em um duende e estará adquirindo uma vingança para o resto da vida. Duendes caçam e
matam agressores de outros duendes. Um tipo de união que os seres humanos e mesmo os seres mágicos, na sua maioria, havia
perdido ao longo dos séculos.
-Quero entregar meu presente para a fada– ele exigiu.
Alma deixou a costura no chão e levantou. Não sentia dor alguma, o padecimento havia ficado para trás, e seu corpo parecia
renovado. Era a mágica que envolvia as fadas.
-O que deseja de mim? – Perguntou a ele, de pé, atrás do balcão, sem pestanejar ou fraquejar.
-Me chamo Eldor. Sou um bom elfo. Tenho casa, cuido de meus irmãos e de um pai enfermo. Sou bom com armas e sei lutar.
Tenho poucos recursos, mas nunca deixei faltar nada para minha família. Sou honesto e integro e sigo as regras e leis do reino
de Isac. Trabalho com plantação e tudo que produzo vendo para o castelo. Também trabalho com ouro, transformando-o em
joias. Trabalho o ouro dos outros, é verdade isso, mas sou habilidoso e consigo um bom rendimento. Meus irmãos são elfos,
um de doze anos e o outro de oito. Meu pai é velho e preciso sustentá-lo e cuidar para que sua vida seja primada, pois é o
mais sábio de todos nós. Tenho condições de sustentar uma família e o desejo de criar filhos e cuidar de uma fêmea somente
minha.– Ele disse com voz cadenciada, leve, provavelmente um discurso que resultava efeito em muitas fêmeas.
Alma seguiu olhando em seu rosto, enquanto ouvia suas palavras.
-Não sou um ladrão, ou um caçador de fadas. Eu me interessei por você, fada. Sei que seu nome é Alma e sei sua origem. Mas
não me importo, ou farei perguntas.
-Porque está me dizendo tudo isso?– Perguntou sem rodeios, seus olhos fitando os dele com agonia.
-Digo essas palavras para que entenda que não sou como os outros elfos. Eu sinto seu cheiro, não vou negar. Mas não é por
isso que estou aqui. Eu a vi na Vila desde o primeiro dia em que chegou. Eu me interessei, mesmo antes de saber que suas asas
iriam nascer, ou saber quem era. Preciso de uma fada ao meu lado e estou apaixonado por essa fêmea em questão. Quero
cuidar de você e protegê-la. Tomou meu coração, fada Alma, e eu farei tudo para impedir que a encontrem.– ele estendeu-lhe
um embrulho.– Pegue, olhe o que lhe trouxe. É um presente.
Alma pegou o embrulho, relutando em deixa-lo tocar sua pele, mesmo que ele tenha tentado encostar-se a suas mãos. Colocou
o embrulho sobre o balcão de madeira simples e velho e abriu o papel.
Encontrou sandálias de couro e uma túnica nova. Ergueu os olhos para ele como quem faz perguntas:
-Eu não quero que passe dificuldades. Posso oferecer uma vida simples, é verdade, mas uma vida com privações é melhor do
que o abandono.– ele sorriu e estendeu a mão como quem pede um carinho.
-Não estou abandonada– ela disse, na defensiva.
-Eu soube das acusações de assassinato. Suas amigas devem seguir suas vidas sem você. Ninguém pode culpa-las. Ouvi dizer
que a fada Driana fugiu para o sul e que dificilmente volta para cá – era mentira, e ela leu essa mentira em seus olhos
aparentemente sinceros.
O pensamento amargo de que ninguém deveria notar. Era exasperante saber que provavelmente ninguém percebia o fel por de
trás das belas palavras do elfo, ou de seu belo rosto e olhos compreensivos e cândidos.
Quantas e quantas fadas não deveriam ser enganadas desse modo?
-Aceito o presente – ela disse com frieza– É um presente desinteressado, estou certa?
-É claro que sim– ele ficou imediatamente satisfeito em ter conseguido chegar até ela.
-Pois bem. Eu passo privações e não serei orgulhosa. Fico com o presente.
-Aceite também minha afeição. Eu a levarei para minha casa, onde será cuidada e terá uma vida repleta de amor e cuidado. Eu
lhe prometo, Alma, que serei o melhor dos maridos e nunca lhe faltará comida e teto.
Plenamente convencido que ela estava seduzida, Eldor sorriu quando Alma curvou o corpo um pouco para frente e fixou os
olhos castanhos nos seus.
-Eu vejo você.– ela disse com voz seca e direta.
Três palavras que diziam muito mais do que o mais longo discurso.
A postura de Eldor mudou radicalmente. Ombros tensos, empostados, a face também mudou para algo totalmente oposta a
candura de outrora.
Sim, Alma via exatamente o que ele escondia. A loucura interna. A fúria assassina, amplamente posta em pratica. Eldor sabia
o que fazia e era muito bom nisso. Enganar, persuadir, envolver e tirar proveito. Alma arriscava algo maior do que isso.
Ele era muito mais que um simples trapaceiro. Ia além do ato de matar. E isso lhe causava um arrepio no corpo. Algo de medo
e admiração. Mas o medo prevalecia por ser a possível vítima do momento.
-Então você também vê as razões para que não me dizer não. – ele foi sério e direto, sem meias palavras ou ridículas
tentativas de se explicar ou desmentir as acusações implícitas no olhar de alma.
-Sim, eu vejo todas as razões imundas para uma fada não ter coragem de lhe dizer não. Mas acontece que eu sou diferente das
outras fadas... -ela baixou muito o tom de voz, como um sussurro doce, que na verdade era um doce veneno, uma lâmina afiada
cortando ao meio as ameaças de Eldor– Que eu posso mata-lo com um único grito. E levarei todos dessa vila com você para o
inferno. Sem testemunhas. Não confunda submissão com necessidade. Eu posso me salvar quando bem entender. E você? Pode
fazer o mesmo?
Eldor reteve a raiva, ela pode notar o instante em que o pensamento lógico superou o desejo insano por dominar e possuir.
Não era o simples desejo de possuir uma fada no cio, ou vende-la para lucrar. Era diferente, as razões desse maníaco eram
mais profundas e Alma conseguiu ver através de sua bela face e entender esse desejo.
-Não faria isso. – ele fez questão de amedronta-la– Eu posso trazer o Guardião até você. Ele é um idiota que confia em mim.
Se me rejeitar, colocarei o Guardião no seu encalço – ameaçou.
-Um a mais, um a menos...– ela deu de ombros, fria como uma pedra de gelo em noite de inverno - ...Me valho de um dom.
Elfos se valem de que? Armaduras? Quer testar se sou mais poderosa que uma armadura que sequer lhe pertence?– ameaçou.–
Vá, chame o Guardião. Eu fico aqui esperando. Conte a ele também a razão pelo qual eu o rejeito.
Eldor não era um caçador de fadas ou recompensas. Seu interesse era mais profundo. Algo interior que Alma bem
compreendia. Algumas vezes o desejo de matar era tão forte que a sufocava. Como se o ato de cometer esse crime contra a
vida alheia pudesse aliviar todas as suas dores e sofrimentos. Como se apenas assim a raiva, a fúria desmedida pudesse
esvair de seu coração e deixa-la em paz.
Eldor fitou o embrulho que em desafio, Alma jogou no chão, os pés do banquinho onde sentava para costurar. Era um desdém
profundo. Além de dizer-lhe não, ainda ficava com seus pertences.
Ao contrario da roupa ganha de uma fada desvalida da taverna, que Alma mantinha cuidadosamente dobrada e escondida sob o
balcão, para mais tarde levar consigo para ‘casa’, o presente de Eldor era jogado no chão batido, em meio a poeira e o
descaso.
-Isso não acaba aqui– ele disse sério.
Aqueles olhos de vidro, pensou Alma. Olhos de vidro. Como alguém poderia se deixar enganar por olhos de rancor e vidraça?
Sim, pensou em lhe dizer. Não acabava ali. O elfo foi embora e Alma virou-se para a velha duende perguntando:
-De onde ele vem?
-Eldor vem das profundezas do seu pior pesadelo – ela disse em metáfora. Ou talvez, não propriamente uma metáfora.
-Eu preciso ir embora desse lugar– ela disse assustada em pensar ter que lidar outra vez com esse homem.– Eu prometi a
Reina, mãe adotiva do Primeiro Guardião Egan que ficaria aqui e esperaria pelas boas novas que me salvaria e salvaria a
todas nós fugitivas da clausura. Mas agora...eu não confio em ficar e esperar– ela disse tensa.
A velha duende não lhe disse se estava correta ou não. Com o peso do mundo nos ombros, devastada por mais essa
desesperança, Alma sentou no banquinho e perguntou:
-Para onde eu vou?
A pergunta real era: qual lugar nesse mundo poderia ser suficientemente seguro para alguém na sua situação? Pergunta ingrata.
Ela mesma maneou a cabeça e abriu mão da resposta.
Costurar era a única coisa que a acalmava. Horas mais tarde, quando havia esquecido-se de sua pergunta, ouviu a resposta:
-O Deserto. Terra das Areias Vermelhas. Poder algum vinga por aquelas terras de calor e penar.
Alma poderia ter indagado se era ou não uma resposta para sua pergunta, mas fazia tanto sentido que apenas acenou e baixou a
cabeça continuando com o trabalho.

Capítulo 6
Eu vejo no escuro

No comecinho da noite, as barracas sendo fechadas e elfos e fadas partindo para seus casebres, Alma estava exausta
fisicamente e emocionalmente, aguardando o momento de ficar sozinha e dormir.

Deitar, fechar os olhos, e adormecer, esquecendo-se de toda a desgraça que a perseguia. Em raros momentos de esquecimento,
induzido pelo sono, Alma desfrutava de um pouco de paz.

Depois de costurar calçados durante todo o dia, sobrou-lhe uma manto para bordar. Era uma peça de couro macio, em
camurça, ricamente bordada nas barras. Nunca havia feito esse tipo de trabalho, por conta disso prestou muita atenção para
não errar e causar prejuízo para duende que tanto a auxiliava neste momento de desespero e aflição.

Alma costurava o manto, sentada ao lado da velha duende, que se cobria com mantos verdes, e mantinha sua pele da mesma
cor, tornando-se quase camuflada. No mercado da Vila dos Desesperados Alma ganhava o pão com pequenos trabalhos e
contava com apenas essa proteção para se manter escondida.

Sabia que era fugitiva, mas não teciam comentários e levando em conta que Alma suspeitava que a duende também estivesse
fugindo de algo... Tudo estava bem.
As duas mantinham-se caladas e se ajudavam. Embora às vezes, Alma sentisse a curiosidade aflorar e vir com força total,
fazendo sua língua coçar de vontade de perguntar a velha duende se também fugia de algo ou era apenas impressão sua.
Alma parou de bordar o manto ao reparar que outra vez a sagaz duende reparava em movimentação suspeita na vila.
Era só o que lhe faltava! Eldor ter voltado e insistir em infernizar sua vida, já tão miserável!
Não era nada disso, mas também era preocupante. Era o Quarto Guardião Solon. Ele falava com as pessoas por gestos e às
vezes se irritava, mas insistia em obter respostas.
Os habitantes da vila não lhe forneceriam nenhuma pista, por solidariedade a uma pobre fada que precisava fugir para
sobreviver, assim como a maioria dos moradores da Vila dos Desesperados, que já sofreram ou ainda sofrem o peso do
preconceito, dominação ou apenas miséria.
Em uma das barracas ela ouviu a voz de uma jovem fada de cor acinzentada e feições muito estranhas, uma das mais ignoradas
de todas as criaturas estranhas do vilarejo, ele gritava com a fada e ela respondia nervosamente. Não forneceu nenhuma
informação que pudesse ajudar, mas seu nervosismo e o modo inconsciente de olhar sem parar para a barraca de calçados e
artigos de couro, indicou-lhe por onde deveria começar.
Havia sim uma fada recém-chegada a Vila dos Desesperados e que a pouco mais de três semanas se escondia entre os
moradores. Uma fada que nesse instante exalava um cheiro característicos e nada discreto de cio.
A velha duende havia pendurado vários tipo de ervas por toda a barraca na tentativa de amenizar o odor, ou ao menos
disfarçar sua origem, mas era um ato falho. Tentativa desesperada de ao menos despistar os elfos mais tolos ou influenciáveis.
Sua companheira de bordado não disse nada quando Alma largou o que fazia. Apenas apontou para o fundo da barraca como
quem alerta da necessidade de fuga. Por isso, Alma não pensou em nada, apenas levantou e correu para esconder-se atrás do
couro que limitava a barraca.
Solon encontrou apenas a velha bordando, calmamente.
-Onde está a fada?– Perguntou invadindo a barraca.
-Quem?– Ela perguntou, fingindo-se de surda.
-Onde está a fada?– Ele gritou mais alto, irritado.
-Quem?– Ela insistiu e Solon desistiu.
A velha duende sabia de sua carência auditiva a usava isso contra ele! Se fosse outro elfo, se vingaria desse deboche, mas era
alguém justo e valoroso e apenas ignorou seu ato contra a lei do reino. Atrasar ou atrapalhar uma missão de um Guardião a
mando do Rei ou rainha era razão para um longo julgamento.
Alma correu para longe da barraca, escondendo-se entre árvores, espiando o Guardião Solon sair do mercado e ficar muito
perto e quando se aproximou ela rezou para não ser vista. Sem querer esbarrou em pedregulhos e o barulho foi imenso.
Em pânico ela sabia que seria avistada, mas nada aconteceu. O Guardião não ouviu o barulho.
Desconfiando que o Guardião não possuía boa audição Alma correu para outro ponto no meio das árvores.
Suas asas haviam nascido e Alma poderia voar para longe, mas evitava fazer isso. Descobrira que ao abrir suas asas e
farfalhá-las o som eram insuportavelmente alto e o barulho ao voar fazia mal para as criaturas a sua volta.
Fora na floresta longe de todos que tentou voar pela primeira vez, e acabou por matar varias criaturas entre esquilos e
pássaros, que não suportavam o som agudo e estridente.
Alma não tinha apegos sobre voar, pois tinha medo de altura, mas lamentava não poder fugir do modo mais fácil. Correu por
entre árvores e mato, torcendo para despista-lo e evitar um confronto que a impedisse de usar seu dom contra um elfo bom e
justo, que apenas cumpria ordens, seguindo leis de um reino que sempre mascarava suas falhas e enganava seus olhos, assim
como mascarava os olhos de muitas outras criaturas mágicas.
Pensou em leva-lo para o córrego e então para a clareira onde descobriu que podia controlar sua voz para matar, mas faltou
coragem para tanto. Quem sabe, com um pouco de sorte, pudesse despistá-lo sem a necessidade de cometer um crime ainda
maior?
Alma escondeu-se atrás de um carvalho gigantesco. Até tentou entrar na árvore, em uma fresta larga, mas não coube. Era
grandalhona demais para caber em um esconderijo de duendes.
Sem fôlego, fechou os olhos, torcendo para ser agraciada por uma sorte inesperada, e o Guardião perder seu rastro. Como se
isso pudesse acontecer...bastava que farejasse o ar para sentir seu cheiro de cio!
Tomada de coragem, espiou pelos lados da árvore, até avistar o elfo procurando por ela em torno das árvores. Ele era
cuidadoso, e parecia comedido demais. Não usava a armadura e isso era indicio de que não a considerava uma inimiga ou que
não considerava sua capacidade de luta suficientemente significativa para merecer proteção extra.
Alma estreitou os olhos ao notar o chocalho no cinturão de couro que ele usava. Era barulhento e indicava a direção do vento.
Estranho, porque ele precisava de um guiso?
O súbito entendimento, depois de lembrar que ele não a notou tão perto, mesmo tendo feito muito barulho, a fez chocada. Seria
possível que o Guardião não estivesse ouvindo-a?
Seria essa a razão que levava Tubã sempre a desmerecê-lo e até mesmo rir dele?
Apreensiva, espiou-o mais um pouco e descobriu que não era a única que reparou que o Guardião não tinha boa audição.
Do outro lado da clareira, ele não percebeu a aproximação de ladrões. O barulho dos passos não chegou aos seus ouvidos e
ele não percebeu que seria atacado pelas espadas.
Atacado pelas costas, pois eram mestres em roubo, e habilidosos em camuflar o barulho e sobretudo suas presenças.
Alma olhou em volta, era sua oportunidade de fugir. Deveria fugir. Quem a notaria fugir em meio a uma luta de espadas entre
ladrões e Guardiões?
Dividida entre a liberdade e a obrigação para com outro ser humano, ela observou a face do Guardião com piedade. Um
sentimento apertou seu coração, era pena pura e límpida.
Ele não podia ouvir, e não podia se defender. Como ela que não podia voar e se salvar. Simples assim.
Por maior que fosse seu poder, ainda assim, o Guardião Solon era indefeso quando seus truques não funcionavam e não
conseguia ouvir seus agressores.
Como toda criatura que foge da perfeição seria morto por sua vulnerabilidade.
Sem saber de onde viera o pensamento, Alma decidiu que precisava ajudá-lo. Como faria isso lhe era um mistério. Mas não
permitiria que fosse morto! Não por sua vulnerabilidade!
Era um impulso inexplicável vindo dela que normalmente tendia a querer ver o circo pegar fogo e a espada verter sangue.
Gostava de assistir aos treinamentos dos Guardiões, e ao contrario de suas amigas do Ministério do Rei, não o fazia para
admirar belos elfos sem camisa, suados e em posição de luta...não mesmo. Ela assistia as lutas com o desejo de ver alguém se
ferir. Eram desejos mórbidos acompanhados de muita fúria interna.
Por isso, estava surpresa com esse apelo de bondade surreal. Precisava ajuda-lo por caridade e por sentir-se unida a um ser
que como ela, é imperfeito e não pode salvar a si mesma. Assim como faria de tudo para manter-se segura e não por a vida de
suas amigas em risco. Esquecendo-se delas, Alma agiu por impulso.
Saiu do seu esconderijo, no exato instante em que um dos ladrões, que no total somavam seis elfos e poderiam ser
identificados como ladrões por usarem bandanas na cabeça, o que os distinguia como parte de um conhecido bando que
constantemente atacava a Vila dos Desesperados causando terror e medo nos moradores, ergueu a espada na direção do
Guardião.
Tão perto e mesmo assim ele não notou o perigo. Claro, pensou Alma, seu cheiro de cio impregnava nas narinas do Guardião e
por causa disso não farejava outros odores.
Lamentável, pensou Alma, enquanto se aproximava sorrateira. Indiretamente seria culpada pela morte do Guardião. E pelo
visto, mesmo a distância Rainha Santha continuaria causando mal aos seus súditos.
Solon sentiu uma mudança sutil no ar e o movimento do chocalho em sua cintura alertou-o que algo estava muito perto. Virou-
se a tempo de usar o bumerangue como escudo e evitar o choque da lâmina da espada com sua carne.
Foi tudo muito rápido, ele ouviu o som de um grito estridente, mas era um som distante, que pouco o atingia.
Mas ao contrario dele, os outros elfos pararam de lutar e um a um caiu no chão. Solon avistou a fada que gritava e reconheceu
Alma, a fugitiva da clausura.
Não viu suas belas asas, sinal que estavam amarradas e escondidas sob a roupa. Ela mantinha o grito num ritmo linear,
estridente e pelo aspecto de sofrimento dos elfos no chão, ele soube que seu dom estava ativo.
Ela parou de gritar quando os elfos desmaiaram, não por falta de vontade de terminar o serviço e acabar com a vida daqueles
biltres, mas sim, por estar diante do Guardião que a caçava.
Distraídos um com o outro, não viram um sétimo elfo surgir, usando de uma lança. Ele avançou com um brado de luta, e atacou
o Guardião. Solon notou quando estava perto demais para ser contido, a lança atingiu de raspão sua cabeça e ele cambaleou,
mas não caiu. Numa fração de segundo retirou o punhal do cinturão e fincou-o na barriga do ladrão.
Abatido, o elfo larapio jazeu sobre o chão, junto de seus parceiros de crime.
Solon cambaleou, ariscando alguns passos na direção de Alma, mas não aguentou e tombou.
Ela havia se revelado para evitar que isso acontecesse, mas como poderia prever que haveriam mais bandidos? Uma coisa
estava certa... Se o Guardião morresse, ela estaria livre daquela opressão toda.
O Guardião era como ela, pensou. Limitado em suas ações. Além disso, cumpria ordens, não cumpria?
Tomada por um arremeto de pena, Alma correu em sua direção e tentou tira-lo do chão. Solon estava confuso, e abalado pela
pancada, mas após algum esforço, Alma conseguiu fazê-lo levantar e até colaborar com alguns passos tortos enquanto o levava
pela floresta.
O casebre onde se escondia com a velha duende não ficava muito longe dali, e Alma imaginava a fúria de sua protetora
quando descobrisse quem estava acoitando em seu lar.
Em alguns momentos da vida, pensamos em tudo, menos nas consequências, e este era um dos momentos perpendiculares a
nossa vontade onde agimos por impulso e não razão.
Solon desmaiou quando estavam a poucos metros da cabana e coube à Alma colocálo no chão, e puxá-lo pelos braços,
arrastando-o.
Quem diria que Guardiões poderosos poderiam ser como sacos de batatas quando abatidos? Sorte sua ter braços fortes, pois
precisaria deixar o elfo na rua. Era pesado e coberto de músculos. Deixou-o caído no meio do cômodo, perto do tear onde sua
protetora fiava nos fins de dia.
Alma não era jeitosa como Joan, sempre delicada e sabendo o que fazer para ajudar as outras pessoas. Tão pouco era tão
inteligente como Driana, capaz de entender tudo rapidamente e saber o que fazer na hora certa. Muito menos era abusada como
Eleonora que iria atrás de ajuda pouco se importando com a própria segurança.
Alma era assim, pouco habilidosa na até de conviver. Por conta disso buscou o travesseiro velho e murcho que usava para
dormir e colocou sob a cabeça do elfo, e deu-se por satisfeita.
Não sabia ainda o que faria com ele. Meia hora depois Solon despertou do desmaio e olhou em volta, começando a levantar, e
cambaleante tentou alcançar a fada.
Alma afastou-se e ele se recostou na parede, uma das mãos segurando a ferida em sua cabeça enquanto a outra segurava sobre
o estômago.
Nauseado e zonzo ele permaneceu assim, até sentir mãos delicadas em suas costas, empurrando-o para um corredor estreito e
sem iluminação alguma. Um pouco amparado, outro pouco trocando os pés, mas ele chegou onde Alma queria, e não fez
perguntas ao avistar a simples e brejeira cama.
Gemeu de dor e satisfação ao pousar o corpo dolorido no conforto precária do colchão, este sendo mais do que ele iria
esperar dada a situação.
-Minha cabeça está doendo – ele disse tolamente, encarando o teto de barro e palha, olhos vidrados, e avermelhados.
Depois da pancada que ele levou era um milagre que estivesse acordado. Alma não disse nada e tentou se afastar, mas Solon
segurou sem punho, em um reflexo rápido, típico de quem vive sua vida para a luta e guerra.
-Fale comigo – ele pediu.
Alma puxou o pulso e não disse anda.
Falar com ele? O que ela diria?
Saiu do quartinho, e recostou-se em uma parede do corredor, respirando com dificuldade, massageando sobre o pulso onde ele
segurou, não por dor, mas sim, por um incomodo sem explicação.
Fechou os olhos aflita e espiou para dentro do quarto. Solon estava outra vez desacordado e ela não sabia afirmar se por um
desmaio ou por ter adormecido. Não sabia cuidar de alguém. Ainda mais se esse alguém fosse também seu perseguidor.
Alma franziu as sobrancelhas surpresa ao ver um embrulho no canto do quarto. Era uma mochila de couro batido. Ela deu um
passo para dentro do quarto e espiou o que era. Não estava ali a um segundo atrás.
Não chegou a tocar, pois foi surpreendida por uma voz séria e muito furiosa perto dela:
-A armadura segue seu Guardião. – a velha duende disse invadindo o quarto– Não questione a magia que os unem.
-Eu sinto muito. Não era minha intenção trazê-lo para cá. Eu não sei o que aconteceu comigo... Ou o que eu devo fazer com
ele...
-É um Guardião. Não pode matá-lo dentro da minha casa– a duende alertou.
Alma sorriu, pois gostava muito de sua protetora. Elas não conversavam, ou tinham qualquer forma de proximidade, mas era
interessante interagir com ela.
Assassinar o Guardião em sua casa era proibido, mas fora dali, ela não se importaria? Como alguém responde a isso?
-Eu não pensei em matá-lo – admitiu.
-E porque não? Seus problemas estariam findados– ela disse correndo os olhos pelo elfo.
-Eu não pensei ao trazê-lo para cá.– admitiu.
-Ele não pode ficar muito tempo. E isso – apontou a armadura– não quero isso aqui.
-Os ladrões estavam atrás da armadura. Não vejo outra razão para correrem o risco de lutar com um Guardião. Acha que uma
armadura vale muito se for vendida?
-Alguns elfos pagariam verdadeiras fortunas. Mas primeiro, o elfo precisaria estar morto. Ou jamais teria paz– avisou.
-Eu não penso em vender. Acha que devo sumir com isso?– apontou a armadura.
Não houve resposta. A duende saiu do quartinho e voltou minutos depois com uma bacia com água e panos. Largou em suas
mãos e foi embora. Alma ouviu o barulho do tear e olhou para a bacia com água sem saber o que fazer.
Ou melhor, sabia o que fazer, mas lhe faltava vontade.
Não contou para sua protetora a razão verdadeira de socorrê-lo. Fora pena de uma criatura desprotegida. Piedade tão
profunda que apertava seu coração. Alma deixou a bacia no chão e aproximou-se do elfo. Evitando encostar-se à pele do
Guardião, Alma desabotoo os botões que mantinha a túnica masculina fechada e puxou sem delicadeza, pois não era jeitosa,
livrando-o da parte de cima da roupa manchada de sangue.
Fez uma bola com o tecido sujo e descartou no chão, enquanto decidia se valia a pena ou não despir o restante das roupas. Ele
estava limpo, então, porque mexer em suas calças?
Retirou o cinturão analisando o trabalho feito no couro. Colocou no chão o punhal e o bumerangue, admirando o trabalho do
metal. Queria saber usar um desses.
Lembrou-se que fora salva mais cedo daquele mesmo dia por uma arma idêntica a essa. O Guardião salvou sua vida? E ela
salvou a dele? Ou era uma ironia do destino ou uma grande piada sem graça. Retirou as botas dos pés enormes e fez uma
careta diante do cheiro forte. Bem, alguém não primava muito pela higiene de seus pés. Ou apenas a caminhada demasiada
floresta adentro estivesse castigando os pés do elfo. Qualquer uma das opções não a agradava. Alma pegou um pano molhado
de dentro da bacia de barro e virou a face do Guardião em sua direção, revelando o machucado no lado esquerdo da cabeça,
entre os cabelos. O infeliz tivera muita sorte. A ponta afiada da lança não perfurou, apenas raspou e provavelmente machucou
o osso. Iria sarar. Ferimentos na cabeça são sempre complicados, pois o mais insignificante ferimento poderia causar a mais
devastadora das sequelas. Restava torcer para que o elfos tivesse sorte, e despertasse ileso. Suas mãos eram firmes e ela
quase se esqueceu do risco que corria ao ajuda-lo. Limpou o sangue seco, dobrou o corpo sobre o dele para ver melhor entre
os cabelos escuros. Sim, tinha razão, não havia nenhuma perfuração. Seus dedos correram pelos canelos macios e espessos e
ela encontrou um relevo inesperado, por isso fuçou até encontrar uma cicatriz. Era longa e fina e dirigia-se para o ouvido.
Plenamente escondida sob a cabeleira bem cortada e aparada, de um negro profundo, uma cicatriz acentuada e antiga se
escondia. Alma ficou pensativa sobre ser esse ferimento o responsável por sua perda quase total de audição. Com gentileza,
virou o rosto para o outro lado e procurou uma ferida parecida do outro lado. Encontrou.
Tornou a sentar sobre os joelhos e fitou-o com uma expressão de profundo desgosto. Não era um ferimento acidental. Não era
algo ao acaso. Eram duas cicatrizes gêmeas.
Enojada de pensar que alguém fizera isso propositalmente a outro ser vivo, Alma levantou e pegou o maior dos pedaços de
pano, começando a esfregá-lo nos ombros do elfo.

Capítulo 7 Em conflito

Era uma fada no cio, e contrariando toda a situação que vivia, não sentiu nenhum impulso incontrolável de excitação, como
sabia que deveria estar sentindo. Pelo contrário ao correr os dedos pela pele firme, sentiu a textura e o calor, e sim,
considerou como era agradável tal toque. Mas nada que não pudesse ser controlado. Disse a si mesma, que essa situação toda
era culpa da rainha Santha e de seu amante Lucius e ela pagava por isso e não era justo padecer com medo e privações
enquanto a rainha refestelava-se no luxo.

Alma não sabia que a raiva impedia que outros sentimentos viessem à tona. Pensou nas palavras da duende, que ouvia fiar no
outro cômodo do casebre.
Deveria matar o Guardião e se livrar do risco. A culpa não cairia sobre seus ombros, pois ele havia sido atacado por ladrões.
Bandoleiros que aterrorizavam a Vila dos desesperados a muitos anos.
Não seria difícil acabar com sua vida. Ele estava tão frágil, tão desprotegido... seus olhos correram pelo corpo do Guardião e
por sua face. Era um elfo bonito. Curiosidade a instigou, e Alma apertou o pano, gotejando água em seu peito coberto por
pelos escuros.
Distraída levou um susto quando o elfo se moveu e segurou sua mão. Ele abriu os olhos e mirou-os nos seus. Ela enxergou
confusão e duvida, como se desconfiasse que ela fosse fruto de sua imaginação. Soltou sua mão e ela respirou aliviada. Ele
esticou o braço e tocou seu cabelo longo, que caia sobre ele. Segurou as mexas e não disse nada.
Alma tão pouco teve coragem de se mover e alertá-lo que não era uma visão induzida pela pancada na cabeça, e sim
realidade.
O modo gentil como Solon acariciou seus cabelos, ela não sabia que isso existia. Puxou as madeixas para longe, evitando
assim ser tocada. Ele sorriu e tentou sentar, mas não conseguiu. Tornou a fechar os olhos e Alma ficou aliviada quando
adormeceu outra vez.
Deu sua tarefa de limpá-lo como encerrada. A velha duende tinha razão. Não era seguro ter aquele Guardião no seu encalço.
Muito menos a armadura perto de si. Levantou e olhou a bolsa de couro onde carregava a armadura mágica. Espiou e avisou o
metal escuro. A armadura de Solon era de uma cor escurecida, como um metal que oxidou. Era bonita, mas era também uma
ameaça.
Pegou a alça e tentou erguer. Era pesadíssima. Uma lástima, mas a carregou assim mesmo.
-Eu vou me livrar disso – ela disse para a duende, que parou de fiar e olhou-a com indiferença.– Pode olhar o Guardião na
minha ausência? Ele pode acordar.
-O que pretende fazer com ele?
-Ainda não decidi – admitiu.– Mas já sei o que fazer com a armadura. Como me livrar disso.
A duende não perguntou nada. Quem sabe, pudesse ler seus pensamentos e saber de seus planos? Duendes não possuem dons,
mas Alma já não duvidava de mais nada na sua vida.
Sua protetora trouxera consigo para casa o presente recebido do elfo Eldor, aquele verme imundo que a assediava e o presente
da fadinha da taverna, motivado por solidariedade.
Pegou o vestido, que era usado pelas fadas, facilitando o uso das asas, e desamarrou as faixas que prendiam suas asas. Vestiu
a roupa e amarrou atrás do pescoço. Moveu os ombros, como quem liberta sua verdadeira essência, mas não bateu as asas,
para não causar dano a duende que a ajudava tão despretensiosamente.
Ela não lhe fez perguntas e Alma também não forneceu respostas. Carregando a armadura, correu pela floresta até encontroar
uma clareira afastada, e aparentemente vazia.
Não havia outro jeito, precisava rezar para não causar mal a nenhum inocente e seguir seus planos a risca.
Sabia que não muito longe do vilarejo, havia uma das saídas para o Deserto das Areias Vermelhas, uma terra sem dono. Nada
sobrevive no calor capaz de dizimar até mesmo as magias mais poderosas.
Aquele que pisa nas terras vermelhas padece no corpo físico e mágico. Das terras quentes não brota água, ou cresce alimento.
Raras espécies de repteis sobrevivem naquelas terras, e os poucos que ali estão, são tão venenosos ou cruéis que nenhuma
fada ou elfos se arriscaria a tentar abatê-lo como alimento.
Uma magia protegia o Deserto, e dentro de seu território o poder dos dons de uma fada é anulado praticamente todo. Algumas
fadas mais fortes conseguem manter algum resquício de poder, mas algo insignificante se comparado às limitações do lugar.
Nem mesmo a magia de uma armadura sobrevive ao deserto.
Uma vez enterrada naquelas areias, a armadura não conseguiria sozinha encontrar caminho de volta para o seu Guardião.
Era essa sua ideia. Enterrar a armadura no mais profundo dos buracos e escondê-la. Separar Guardião e armadura. Apesar das
fadas crescerem sabendo da ligação entre um e outro, Alma não sentiu um pingo de culpa quando alçou voo pela primeira vez
na vida.
Quando tentou voar mais cedo naquele dia, foi apenas um esboço, não foi um voo. Dessa vez, era matar ou morrer e ela não
pensou nas consequências. Bateu as asas com força e subiu rapidamente.
Olhos fechados, pânico em cada vibra do seu ser. Foi obrigada a olhar, pois era a única forma de se localizar e saber se ia
para o lado certo. Na Vila falavam muito sobre o Deserto das Areias Vermelhas, inclusive sobre o perigo que corriam por
fazer divisa com uma terra tão hostil e perigosa.
Não foi difícil localizar o deserto, pois era devastadora a imagem vista do alto. Alma engoliu em seco e apertou a bolsa com a
armadura contra o peito, em pânico sobre cair. Detestava altura e odiava voar.
Odiava as razões que a levavam a precisar voar tão longe e tão alto. Evitava bater as asas, planando a maior parte do tempo.
Não tinha coragem de tentar descobrir se havia abatido criaturas vivas ou não, apenas torcia para que não houvesse
acontecido.
Seu voo era rápido e ela ouvia o barulho do farfalhar e sabia o quanto angustiante seria para os que a ouvissem, por causa
disso ela voava tão alto. Muito mais do que outra fada precisaria.
Era um voo desajeitado. Oscilava entre subir e descer o tempo todo perdendo o compasso do bater as asas. Não era uma
voadora nata. Precisava sentir o chão sob seus pés.
Alma desceu o voo quando atravessou a divisa entre a Vila dos Desesperados, e sua floresta e o Deserto das Areias
Vermelhas.
Precisou bater as asas com muita força, pois o calor escaldante e a poeira fina no ar impregnavam nas asas e as tornavam
pesadas.
Seu corpo foi atingido imediatamente pela mudança do ambiente. Uma mágica estranha dominava aquela região e por causa
disso Alma não sentiu receio de bater suas asas, pois sabia que não havia muitos seres que viviam ali.
-Droga– ela reclamou em voz alta ao descobrir que não sabia parar e descer.
Como uma fada faz para parar de bater suas asas e não cair em queda assustadoramente livre?
Alma imaginou que se estivesse na companhia de Eleonora, Driana e Joan, elas estariam rindo compulsivamente de seu
desespero e tolice. Ela mesma gostaria de rir, se o medo de cair não fosse tão maior.
Decidiu por baixar a altura do voo antes de parar de bater as asas. A uns dez metros do chão, ela teve a boa ideia de soltar a
armadura sobre a areia quente e então, começar a descer. Foi parando de bater as asas, e quando notou estava caindo.
Faltou-lhe maturidade para saber como agir e apenas gritou ao atingir a areia.
Ao menos era areia macia. Já era um começo. Alma prometeu a si mesma que nunca mais voaria. Mas lembrou-se que
precisaria voltar para a vila e que para isso sua promessa não teria propósito.
Enfurecida bateu uma das mãos na terra quente e reclamou de dor, pois o calor queimou sua pele sensível.
Levantou e olhou para a sola dos sapatos, consciente que eles não serviriam como proteção por muito tempo, pois o calor
escaldante da areia iria derretê-los. Fechando os olhos conformada, bateu as asas e planou.
Hum, pensou. A sensação de planar era bem mais agradável que voar. A poucos centímetros do chão, sem riscos de quedas,
era bem mais agradável. Sorrindo, Alma encontrou a armadura e levou-a no colo para um lugar bem afastado onde pudesse
localiza-la caso precisasse dela.
Avistou o tronco apodrecido de uma árvore, e seus olhos quase a enganavam se era uma miragem ou realidade. Convencida
que o tronco era maciço e os galhos realidade, Alma pisou na areia fervente e ajoelhou-se para cavar.
O calor castigava, e o suor corria em sua face, pescoço e colo. Pingos grossos, toda sua pele molhada. Suas mãos latejavam,
as unhas carcomidas pelo esforço de cavar na areia fervente.
Sem sua armadura o Guardião seria inofensivo, ainda mais levando em conta sua péssima audição. Alma sempre estaria na
vantagem e não precisaria mais se preocupar com ele e sua perseguição.
Horas mais tarde, terminou de cavar um buraco suficientemente fundo para caber à armadura e começou a jogar terra sobre
ela. Quando terminou, mal acreditou que estava feito. Levantou e precisou apoiar as mãos nos joelhos, respirando fundo,
buscando ar.
Sedenta, a pele escaldando sob o sol ardente, Alma recuperou um pouco do fôlego e usou a mão para proteger os olhos do
calor, enquanto olhava em volta. Não tinha muito o que ver. Era um horizonte de areia vermelha e exalando vapor.
Quilômetros e quilômetros de um nada aterrorizador.
Alma pensou em si mesma. Era o lugar perfeito para esconder-se. Poderia buscar alimento vez ou outra nos arredores da Vila
dos Desesperados. Sim, era um bom plano esse.
Pensou no casebre onde tinha companhia, mesmo que uma silenciosa companhia. Mesmo nos piores momentos ela sempre teve
companhia de suas amigas de orfanato. Não sabia que a vida de uma criatura sozinha era tão triste.
Então, como pensava suportar esse tipo de desconsolada, não estava pronta para abdicar do mundo em nome da fuga. Era
cruel, mas ela usaria todas as opções antes de tomar decisões dessa magnitude.
Afinal, a culpa não era sua. Era culpa da Rainha Santha, e só de pensar nela, seu sangue fervia e a fúria tomava conta do seu
coração. Tudo culpa da ambição desmedida de uma fada que um dia pertencera ao Ministério do rei, e que deveria entender o
sofrimento das fadinhas abandonadas por suas famílias, e não usa-las como escudo para seus crimes hediondos!
Alma olhou para a árvore uma última vez, decorando a imagem para não esquecer caso quisesse buscar a armadura. Quem
sabe, se conseguisse juntar suas amigas e não conseguissem provar a inocência, pudessem vender a armadura no mercado
obscuro dos caçadores de recompensa e fugirem para terras distantes?
Na Vila dos Desesperados falavam muito sobre terras distantes, lugares que Alma supunha existir apenas em sonhos, mas que
poderiam ser reais.
Repleta de coragem, Alma bateu suas asas, alçando voo, tencionando fugir do vento carregado de areia que começava a sobrar
a seu favor. Seria terrível ficar presa em uma tempestade de areia.
Seu voo era desengonçado e ela parou umas duas vezes, descendo para a areia antes de retomar voo. Detestava voar, isso era
fato.
Quando voltou para a floresta, nos arredores do casebre, era madrugada, e Alma recostou–se em uma árvore, recuperando-se
do tormento que havia sido voar. Lágrimas correram em sua face e eram lágrimas de medo. Sim, ela não queria ter que voar
nunca mais em sua vida!
Por sorte, não parecia que alguma criatura houvesse sido atingida, embora ela notasse alguns roedores em péssima situação.
Pobrezinhos, não tinham culpa de nada. Com o coração em frangalhos, limpou as lágrimas e correu para o casebre.
Quando entrou, encontrou-a fiando. A velha duende apontou para o quarto, e Alma correu para saber o que acontecia. Areia
caia do seu corpo e ela precisava de um banho para livrar-se da sujeira impregnada do Deserto das Areias Vermelhas.
O elfo estava dormindo, mas seu sono era confuso e ele se debatia. Um pesadelo induzido pela pancada? Talvez. Alma
aproximou-se e fez uma careta de desgosto ao notar que um poderoso inchaço tomara conta da região agredida.
Longe de sentir pena do Guardião, Alma voltou para junto do tear e olhou para a duende em dúvida.
-Eu poderia...– ela não tinha coragem de falar - ...seria tão mais fácil, não seria? Sem ele no meu caminho.
-Sim, seria muito fácil.– ela concordou, fiando sem parar.
-Eu poderia fazer isso.– ela disse tensa, insegura– Eu acho que gostaria de fazer isso.
solidão? Não, maneou a cabeça
A duende olhou bem para ela, vendo através de seus olhos. Não respondeu, e se Alma esperava algum apoio, perdeu as
esperanças. Não seria incentivada, tão pouco desmotivada. Ficou um tempo de pé, olhando-a trabalhar tentando descobrir o
que deveria fazer.
A reflexão era simples. Quando desse por falta da armadura, o Guardião se voltaria contra ela com mais razões para
aprisiona-la. Quanto a isso não tinha receio, pois o via como um elfo inofensivo sem armadura e sem boa audição. Por outro
lado, pensando friamente, ele era imune aos seus gritos.
Percebera isso ao atacar os bandidos. Eles caíram abatidos, mas Solon... Sequer notou ou se abalou. Era um perigo deitado
sobre sua cama.
Tivera pena e o ajudara por compaixão. Movida pelo errôneo sentimento de generosidade. Ele era como ela...alguém
quebrado, pela metade e incompreendido. Mas passado o momento de angustia e caridade, ela se pegava pensando se estava
se deixando levar por sentimentalismos baratos que causariam sua morte ou sua perdição, o que viesse primeiro.
Poderia fugir e deixa-lo para trás. Mas seria justo? Seria justo que ela fosse privada da companhia de suas amigas por causa
dos crimes de outras pessoas?
Seria justo padecer de solidão e desilusão longe do pouco apoio que tinha, e veja, ela se sentia apoiada pelos moradores da
vila, e não estava disposta a abrir mão disso por causa de um Guardião defensor de uma Rainha que destruira sua vida!
Tomada por esse pensamento, Alma voltou para o quarto, sem notar que a velha duende parou de fiar, e encarou a parede onde
Alma estivera apoiada até um segundo atrás.
Alma olhou para o elfo adormecido, inquieto e lutando contra monstros imaginários que permeavam seus pesadelos e pensou
em justiça.
O que era justiça afinal? O desejo estava dentro de si. E não era o desejo pelo elfo. Não era desejo pelo cio. Era um desejo
antigo que não tinha nada a ver com sexo. Passava longe disso.
Quantas e quantas vezes não desejou fazer isso? Aproximou-se do chão e pegou o punhal que havia deixado jogado sobre as
tabuas encardidas do assoalho. A lâmina brilhou, mas era apenas impressão sua. Era o brilho de seus olhos, refletindo a
lâmina.
Quem sabe a vida sabe o que faz, e a criou assim, para que quando chegasse esse momento fosse tudo tão mais fácil?
Tantos anos acalentando esse desejo em seu coração, quem sabe, fosse a hora derradeira de escolher o lado que desejava
seguir? E quem definia esses lados? Eleonora, Driana e Joan sempre falavam sem parar sobre o lado bom e o lado mal.
Alma ficou de cócoras no chão, descansando o corpo, enquanto olhava o punhal e então cravava os olhos no elfo.
Tão bonito. Era um macho muito bonito. Ela gostava de olhar para ele, e como a centelha de libido ameaçou queimar, Alma
sufocou-a com a lembrança da Rainha Santha rindo de sua desgraça e de suas amigas.
A luxuria do cio foi imediatamente contida, mas não a labareda que queimava a vontade de pisar para longe da linha
imaginaria que dividia o lado bom do lado mal.
Ser boazinha, quando o mundo lhe fere e agride sem parar? Fora abandonada antes mesmo de nascer. Era uma das poucas
fadas que sabia exatamente de onde viera e que sua história era demasiadamente simplória para merecer um pensamento mais
demorado. Abandonada como se não tivesse valor algum. Padecente das piadas das carcereiras, ano após ano, sempre
lembrada de como era estranha e sua voz temerária. De como jamais seria amada ou seria feliz. Anos e anos sendo
espezinhada sem trégua.
Ser bruscamente apartada de suas amigas, sua única família. Ser tratada como fugitiva, como assassina, ou no mínimo
cúmplice desse crime terrível.
E tudo isso para que? Por ambição? Para que uma fada chamada Santha pudesse usufruir de luxo, proteção e liberdade?
Alma levantou bruscamente e maneou a cabeça. Não. Era hora de aceitar que o lado bom não era o seu lado favorito. Ela era
do avesso, e o avesso era o seu lado perfeito. Seria inteira e se parte disso era cometer esse ato, ela faria o que tinha que ser
feito, e faria isso um a um. Encontraria um a um os Guardiões e daria fim aquela busca.
Estava cansada de lutar contra si mesma e contra o mundo.
Era hora de descobrir quem era de verdade.

Capítulo 8 Ouço sussurros

O punhal deveria servir para o que tinha em mente, mesmo assim, Alma percorreu todo o casebre, calmamente procurando por
mais opções. Descobriu que a velha duende escondia uma espada enferrujada dentro do único baú da casinha.
Encontrou duas fadas afiadas, uma era usada para limpar os peixes que comiam todos os dia e a outra era usada para cortar os
fios, e o material usado para preparar os sapatos, mantos e capas vendidos na vila.

Alma passou a parte carnuda do dedo no fio da maior das facas, testando o fio. Sentiu um frisson de antecipação. Sim, ela
estava no caminho certo.
Aquela seria a faca usada para cortar e destrinchar o corpo, para facilitar o ato de enterrar e esconder, sim, era perfeito. Um
meio sorriso cruel pairava em sua face durante todo o tempo em que procurava as ferramentas necessárias.
Uma das capas costuradas para serem vendidas serviria de invólucro e um tapete velho serviria de forro para estacar o
sangue.
Satisfeita com as escolhas, Alma levou algumas horas para arrumar tudo a contento. Uma bacia com água no chão, perto da
cama, tirou o vestido que tanto a agradava e vestiu a túnica ganha de Eldor, roupa essa que não se importava nem um
pouquinho de sujar e posteriormente desfazer-se.
Estava tudo pronto. Calmamente, com a mente limpa e leve, sem pensamentos que não fossem referentes ao passo a passo do
que faria, Alma despiu a calça e a roupa intima do Guardião, pois seria no mínimo ridículo ter pudor, diante do ato tão maior
que planejava.
Mais tarde levaria algumas peças de roupas, inclusive o chocalho que ele usava e deixaria junto aos raptores mortos nos
arredores do córrego. Os demais Guardiões haveriam de pensar que ele foi abatido em uma luta ou no mínimo demorariam
alguns meses para encontrar seus restos.
Sim, ela ganharia tempo.
Friamente, Alma pegou o punhal e aproximou-se da cama outra vez. Seus cabelos longos caiam sobre seu peito, bonitos e
brilhantes, ela era bonita, apenas não tinha consciência do quanto.
Seios fartos, mal contidos pelo vestido, canelas delicadas e pés charmosos em sandálias bem trançadas e costuradas. Ela
olhou para os próprios pés e então para as botas de Solon. Aproximou o pé e mediu se eram parecidos. Sim, ela poderia ficar
com suas botas.
Seriam muito uteis em sua estadia por aqueles lados. Calma, serena e secretamente satisfeita com a decisão tomada, Alma
notou a duende olhando-a do batente da porta e não se importou.
O mundo deveria perdoa-la por não se importar mais em ser quem era de verdade. Precisava desesperadamente deixar a
verdadeira Alma vir a tona, fosse ela quem fosse.
Não era culpa sua, disse a si mesma. Era culpa da mercenária Rainha Santha, que a obrigou a confrontar seu eu interior.
E o mundo que pagaria por isso. Alma não se responsabilizaria mais pelos desatinos da vida.
Era hora de deixar a infância, adolescência e medos da vida adulta para trás.
Eleonora, Driana e Joan jamais a perdoariam, mas ela poderia mentir não é? Porque não? Seria mesmo necessário ser sincera
o tempo todo?
A própria pergunta, também era a resposta e Alma olhou para a lâmina do punhal e para a garganta do elfo.
Não fora desse modo que as acusaram de assassinar o Rei Isac? Doce ironia. Ou apenas, Santha era experiente na arte da
morte e entendia exatamente como deveria funcionar em relação a uma fada e elfo.
A velha duende afastou-se da porta, e Alma não se importou. Se não tinha estômago para presenciar isso, era melhor que fosse
embora. Pois quando começasse... Nada iria detê-la.
Solon entreabriu os olhos, piscou e pareceu não saber onde estava. Pobre elfo, como poderia saber o ninho de cobra onde
havia se acoitado?
Doce, ardilosa e tão cínica quanto sua essência lhe pedia para ser, Alma acalmou-o, deixando que a visse.
-Como se sente, Guardião? – perguntou-lhe com doçura.
-Minha cabeça dói– ele alegou, tão bonito.– Onde eu estou?
-Se eu lhe disser...terei que matá-lo – satirizou e ele sorriu.
Apesar da dor, o elfo sorriu e ergueu uma das mãos para tocar a cabeça, onde a dor acontecia.
-Não faça isso – ele pediu em tom de humor– eu poderia ficar com medo de uma fada bonita e doce. E isso seria uma vergonha
para um elfo em minha posição – ele piscava muito e Alma soube que não tinha ciência exata de onde estava.
-Vou lhe oferecer um chá para a dor– disse num repente e levantou, saindo do quarto.
Porque não? Um ar medonho em sua face, e Alma preparou lentamente o chá para sua vitima. Havia algo de promiscuo em
preparar alimento para aquele de quem usurparia a vida. Algo de visceral nisso.
Solon esperava por ela, meio bobo por causa da pancada, confuso e com sono.
-Hum, a fadinha bonita voltou – ele disse baixo e ela sentou no colchão e segurou sua cabeça, ajudando-o a beber o chá.
Ele pareceu gostar, os olhos azuis sempre fixos nos seus olhos castanhos. Ele era bonito de olhar, mas ela não se importava
com beleza. Não mesmo, pensamentos horríveis em sua mente, e Alma era tomada por eles. Quando o chá acabou, ajudou-o a
recostar a cabeça outra vez no travesseiro e olhou para o corredor, notando que a luz dos lampiões não eram mais necessárias,
pois o dia nascia e o sol vinha coroar mais uma manhã.
Alma sentou-se no chão, e ficou olhando para ele deitado e adormecido. Ao seu lado as facas, a bacia de água onde pretendia
limpar as lâminas quando sujas, a capa onde o colocaria e o tapete que forraria o chão.
Tudo pronto. Ela estava pronta.
E suas amigas jamais a perdoariam.
Aquela linha tênue entre a dor e plenitude continuava ali, diante dela, intacta.
Suspirando de pesar e lastima, Alma levantou e começou a guardar tudo, como se nada houvesse acontecido.
A calmaria e a serenidade foram embora e a fúria voltou com força total. Era isso? Não teria coragem para sacrificar aquela
terrível linha imaginária onde pisava a anos, bambeando de um lado ao outro sem definir uma escolha?
Olhou para ele por alguns instantes, sabendo que isso nada tinha a ver com o elfo sobre a cama. Tinha a ver com escolhas.
De volta para perto da duende, sua protetora, Alma sussurrou, mesmo sabendo que o barulho do tear atrapalharia ouvi-la:
-Vou ter que fugir.– não esperava uma conversa, sugestão ou resposta – Sou covarde demais para me esconder no Deserto das
Areias Vermelhas. Pelo visto sou covarde demais para tudo. Até mesmo para tomar uma decisão.
Como esperado, nenhuma resposta.
Silenciosa, Alma voltou para o quarto. Juntou o que era pertence seu, correu os olhos pelo corpo nu do elfo e não o cobriu,
como um deboche particular, pois ele curaria rapidamente e voltaria a persegui-la.
Pegou os poucos pertences que tinha, colocou-os em uma trouxa, e voltou para junto de sua protetora.
Não cabia espaço para despedidas, por isso com um longo olhar de pesar, Alma foi embora.
Esperava poder voltar um dia e lhe agradecer por tudo que fizera a seu favor. E esperava que esse dia não demorasse a
acontecer. Sem muitas esperanças, Alma se viu com o mundo todo diante de si.
E ao mesmo tempo, sem opção alguma.

Dois dias mais tarde, Solon descobriu que não conseguiria arrancar nenhuma palavra útil da duende que o abrigava. O cheiro
da fêmea no cio impregnara nas paredes, nas roupas, no colchão, em tudo, então negar sua estadia naquela casa era perda total
de tempo.

Solon se lembrava da presença da fada, lembrava-se do modo carinhoso com que cuidou dele. Lembrava-se de imagens
perdidas, sem nexo. A fada havia fugido, não restava duvida a cerca de seu paradeiro.

Tentou segui-la, mas estava ferido e cambaleante. Precisou de alguns dias para se recuperar e agora, pronto para outra, havia
tido a revelação que sua armadura estava desaparecida e não respondia aos seus comandos.

A fugitiva da clausura havia roubado sua armadura, e isso era imperdoável. Mesmo assim, tendia a ser permissivo com ela e
ainda esperava encontra-la e obter sua armadura de volta sem grandes brigas.

E essa era a única razão para não estar furioso, e ter atacado a velha bruxa que se negava a lhe fornecer as respostas que tanto
precisava.
Ao menos a fada não levara seu chocalho consigo. Solon preparou-se para partir e quando o fez, foi para nunca mais voltar.
Sabia que a velha duende acharia um modo de saber de seu paradeiro, pois ela era uma duende e sua raça era unida e
conectada entre si de um modo que raça alguma do mundo mágico conseguia imitar.
Sua primeira parada seria na vila, para adquirir um cavalo e apressar as buscas. A fada possuía asas, sendo assim, alcança-la
seria questão de sorte. E Solon era um otimista nato, apesar de já superado muitas tragédias na vida, preferia crer na sorte e
não do infortúnio.
Solon estava coberto de razão ao pensar na sorte. Faltava-lhe a chance de estar frente a frente com a fada. E essa chance em
breve aconteceria.
Enquanto isso, Alma seguia solitária pelas estradas, escondendo-se em cavernas, buracos e frestas de árvores. Uma fugitiva,
cheirando a cio... estava em maus lençóis em um lugar crivado de caçadores de fadas e recompensas.
No segundo dia de fuga, certa que nunca mais voltaria a ouvir falar do Guardião Solon, Alma estava adormecida em um
buraco perto de uma árvore caída, que servia de camuflagem para uma toca abandonada de raptor, quando acordou com um
sobressalto.
Era o barulho de um grito e um apito. A primeira coisa que Alma pensou em fazer foi abrir a boca e berrar, afugentando o
perigo mas antes que o fizesse teve um pedaço de estopa colocado na boca e as mãos presas.
Era um elfo gigantesco e fortíssimo. Ela foi erguida pelas mãos, puxada para fora de um modo que sentiu os ossos dos braços
estalarem, muito próximos a uma fratura. Foi mantida assim, debatendo-se até que um elfo menor apareceu, puxou a estopa e
imediatamente amordaçou sua boca com uma mordaça de couro.
Fui tudo tão rápido e tão assustador, que Alma não teve tempo para reagir.
-Cuidado que a fada é expert em gritar. É o seu dom e não vamos subestima-la– o menor dos elfos disse.
Usava um chapéu de humano, com abas e detalhes de algum clã humano. Camisa de linho, colete de couro, calças de tecido e
botas caprichadas. Vestia-se exatamente como um humano.
Alma arregalou os olhos quando mais dois elfos apareceram, um deles farejando-a com tanta malicia nos olhos que a
apavorou. Ele amarrou suas mãos na frente do corpo e o outro prendeu uma corrente em suas pernas, separando os pés com
apenas alguns centímetros de correntes.
-Acha que é a fada certa?– um deles perguntou, o maior, que a retirou do buraco com tanta agilidade e presteza.
-Sim, é a fada encomendada. Reconheço as características físicas e também o cheiro do cio – o líder, que se vestia como um
humano, apesar de ser patético, pois era um elfo, apontou para um lugar escondido entre as árvores– O primeiro que tocar na
fada, será um elfo morto. Estão avisados. Com o ouro que receberei pela venda dessa fada poderemos comprar quantas fadas
castas quisermos. Antes, durante e depois do cio.
Os três elfos de menor importância se olharam e com risos e comentários chulos de aprovação, começaram a empurra-la para
que andasse.
Como alguém anda daquele jeito? Alma logo descobriu que não havia escolha, ou caminhava ou era atrasada pelo chão
coberto de pedregulhos, galhos e outros.
Com pavor nos olhos, descobriu que o grupo era enorme. Uns doze elfos, liderados pelo elfo vestido como humano. E eles não
estavam sozinhos.
Três fadas adultas, uma padecendo do nascimento das asas, e duas fadas sem asas seguiam amarradas do mesmo modo que
ela, em mãos e pernas, mas sem mordaças. Eram fadas novinhas, ainda sem dons e não ofereciam tanto risco.
Duas fadinhas infantas, de não mais que quatro anos não eram amarradas, mas estavam amplamente vigiadas. Alma viu outros
objetos de venda, como sacos com ouro, joias e objetos roubados de vilarejos.
Alma foi presa a corrente que mantinhas as outras fadas adultas presas em fila indiana. Elas estavam jogadas no chão,
exaustas. Alma imaginava quanto tempo deveriam estar assim. Dias, quem sabe, semanas.
A fada que padecia do nascimento estava quase desfalecida e fora presa logo a sua frente. Alma reconheceu a curiosidade nos
olhos das fadas que a mediam de alto a baixo, perguntando-se porque uma fada precisaria se amordaçada. Suas asas atraíram
atenção e Alma puxou o corpo para longe quando uma delas tentou tocar em suas asas curiosa sobre como seria o toque.
Fugiu e escapou de contato de qualquer natureza. Era ressabiada por natureza. Estava em uma situação sem saída e não queria
amizades e sim escapatória!
E como encontrar escapatória estando amarrada e amordaçada? Seu dom estava na voz. Poderia bater suas asas e causar dano
em todos os presentes, pensou. Isso era uma característica sua que ninguém conhecia. Eles também não poderiam saber, pois
nem mesmo as carcereiras previam tal peculiaridade. Mas se fizesse isso iria ferir as fadinhas crianças e também as fadas
adultas, que como ela, eram apenas vítimas.
Pensou se conseguiria voar e levar todas elas consigo...quem sabe um voo rápido, do tipo planar, como fizera no Deserto das
Areias Vermelhas... Sabia que era um pensamento estúpido, nunca daria conta de adultas e crianças. Não era assim tão forte.
Seus olhos analisaramos elfos e as fadas. Eles falaram em ‘encomenda’. Alguém havia encomendado seu rapto? Ela seria
vendida sob encomenda? Isso era ultrajante, pois além deuma violência brutal, ser ‘encomendada’ tornava tudo isso
absurdamente pessoal.
Realmente, ela deveria ter se escondido no deserto. Fugir e achar que poderia cuidar de si mesma havia sido uma ideia
estúpida. Reina, madrasta de Egan, Primeiro Guardião, estava certa ao decidir previamente para onde cada uma das fadas
fugitivas deveriam ir. Reina conhecia a vida profundamente e sabia onde elas se adaptariam ou não e onde poderia conseguir
ajuda.
Apesar de Eleonora ser a preferida de Reina, que nutria por ela amor materno, a fada nutria em seu coração profunda afeição
pelas outras fadinhas, companheiras de Eleonora no calvário do Ministério do Rei.
Deixar a Vila dos Desesperados havia sido uma estupidez sem tamanho. E agora? Como conseguiria escapar? Tentou se
acalmar, dizendo a si mesma que não poderia ser mantida amarrada para sempre. Quem tinha encomendado sua prisão, com
certeza apareceria em breve e a soltaria. Nem que fosse para aproveitar-se do cio. Nessa hora ela acharia um modo de fugir.
Convencendo-se disso, Alma acalmou-se. Um falso conformismo. Durante horas manteve-se parada, esperando. As outras
fadas prisioneiras pareciam acostumadas e pelo estado de suas roupas e higiene, poderia supor que estivessem a muitos dias
sendo levadas pela floresta.
Uma lavagem foi servida para elas, mas nada ofertado a Alma. Claro, não queriam desamarrar sua boca e correr o risco de
serem atacados com gritos que poderiam mata-los. Espertos. Não muito, mas espertos.
Alma quis saber quanto tempo eles conseguiam manter essa situação. Sem alimentála. Ela não sabia, mas eles não pretendiam
ficar por muito tempo com esta fada em mãos, tão pouco eles sabias que era uma das fadas fugitivas da clausura. Se
soubessem, jamais a comercializariam como uma fada qualquer.
O comprador não entrara em detalhes, apenas alertara do dom da fada e da exigência do cio preservado, e pelo valor em ouro
que oferecia, eles não fizeram muitas perguntas.
Alma não esperava ficar o dia todo naquele lugar. Mas aconteceu. Não podia ignorar a verdade. Eles não a levariam até o
comprador. Ele viria buscá-la.
Na manhã seguinte, ela acordou de um cochilo perturbado por pesadelos, quando a corrente que a ligava nas outras fadas foi
puxada e arrastada.
Era hora de andar. Faminta, sedenta e exausta, Alma arrastou os pés, seguindo-os por não ter outra escolha.

Solon precisou de um dia todo de vantagem, mesmo que não soubesse desse fator, para encontrar o rastro de Alma. As pistas
eram claras, ela estivera pelos arredores. Em determinado momento farejou o cheiro de outra fada entrando no cio, e isso o
confundiu momentaneamente.

Conseguiu voltar ao rumo certo e segui-la de perto. Fazia algumas horas que Solon deixara seu cavalo para trás, pastando em
uma clareira, para seguir a pé a comitiva de Caçadores de Recompensa.

Eles lavavam fadas e crianças, além de muita mercadoria roubada.


Pelo estado das roupas das fadas sem asas, estavam a muitas semanas sendo levadas de um ponto ao outro do Monte das
Fadas, provavelmente em busca de compradores interessados em pagar por fadas sem asas e sem a certeza sobre quando as
asas nasceriam.
Uma delas padecia do nascimento das asas, e por certo, seria a primeira a ser vendida. Alma ainda estava no cio, e haveria
mercado garantido para ela. As duas meninas pequenas seriam muito visadas também.
Solon entendia o risco de enfrentar um grupo grande de caçadores de recomeça sem o uso de sua armadura. Era complicado.
Não tinha medo, pois gostava de usar de algum planejamento antes do ataque. Não era o primeiro grupo que cercava e abatia.
Mas era a primeira vez que sentimentos como raiva estavam envolvidos.
A fada da clausura estava amarrada de um modo desumano. E isso fervia seu sangue de raiva. Precisou esperar muitas horas
até surgir à primeira oportunidade. Muito tempo apenas rondando e assistindo aos maus tratos impostos a Alma.
Dois elfos afastaram-se do grupo em busca de alimento ou de aliviar suas necessidades fisiológicas.
Solon levou poucos minutos para abatê-los usando seu bumerangue. Eles nem viram de onde viera à arma que os derrubou
definitivamente.
Com a arma de volta em mãos, Solon tornou a observar. Eles demoraram por dar falta dos companheiros, mas quando
aconteceu, Solon observou um deles, o líder, ordenar uma varredura nos arredores.
Não por preocupação. Essa corja normalmente não se importa uns com os outros. Mas sim, em busca de sinal de perigo que
pudesse atingir o restante do grupo, ou nesse caso, atingir a ele próprio e causar a perda de suas mercadorias. Sim, a mente de
algumas criaturas podem ser mesquinhas e egoístas e Solon não se surpreendia mais com isso. Lamentava, mas não se
surpreendia.
O líder, ridiculamente vestido como um nobre humano dispersou alguns elfos para procurar os companheiros desaparecidos.
Como esperava, de dois em dois, cada grupo para um lado, esperando cobrir maior território.
Era uma boa estratégia se o perigo a atocaia-los não fosse um Guardião. Mesmo sem sua armadura, um Guardião.
Solon preferia o uso do bumerangue e era profundo conhecedor dessa arte, pois assim, não precisava de confrontos diretos
que colocassem sua deficiência auditiva em foco. Ele nem sempre conseguia acompanhar o inimigo, quando ele se escondia
dele. Preferia olho no olho ou então, o uso do bumerangue.
Os últimos dois ladrões procuravam em um campo de muitas árvores e Solon precisou abrir mão desse gosto pessoal, pois
não queria desperdiçar o fator surpresa. Não foi difícil atacar um deles pelas costas e o outro não era muito habilidoso com a
espada nas mãos.
Satisfeito, Solon voltou a atocaiar o grupo restante. Cinco elfos, incluindo o líder.
Entre mercenários não existia lealdade e o líder dos elfos não hesitou em seguir seu caminho sem esperar o retorno de seus
comparsas. O perigo rondava e como líder, cabia a ele a decisão de partir ou ficar e enfrentar o risco eminente. Com espadas
nas mãos e olhares atentos, os elfos seguiram, arrastando as fadas que acorrentadas seguiam em fila indiana, sendo Alma a
última da fileira.

Capítulo 9
Mentiras coloridas
Uma hora mais tarde o grupo foi abordado por três elfos saídos das sombras, em meio às árvores.
Carregavam pesadas espadas e eram elfos de luta e não comercio. Elfos de guarda. Não como os guardiões, mas eram
provavelmente pagos para defender algum elfo de maior poder ou prestigio.
Houve uma rápida conversa entre eles e o líder, e Alma foi solta da corrente que a prendia as outras fadas e ela foi arrastada
para junto dos elfos. Um deles olhou-a de alto a baixo e acenou com a cabeça, provavelmente concordando com o preço e com
a mercadoria.
Alma foi empurrada para um dos elfos que começou a arrastá-la. Solon olhou para as demais fadas, que foram repudiadas.
Sim, ele tinha uma missão, mas não iria abdicar de sua personalidade, e simplesmente ver um inocente ser vendido e não
interferir.
Observou Alma ser levada e aguardou algum tempo, enquanto os elfos se afastavam. Seguiu-os em surdina e sorriu satisfeito
quando os dois grupos se separaram, cada qual seguindo para um caminho. Os elfos que levavam Alma optaram por seguir na
direção do Vilarejo Sem Fim e os Caçadores de Recompensa para a divisa entre A Vila dos Desesperados e a Floresta De
Saul.
Era um plano audaz e ao mesmo tempo arrogante. Solon esperou escurecer totalmente para abordar os elfos. Eram apenas três
e Solon contava com a vantagem de ter ótima visão e estar sóbrio, pois dois deles bebiam elixir proibido há bastante tempo.
Deveriam considerar a tarefa demasiadamente fácil, pois conversavam animadamente, sem preocupações.
Não foi uma luta difícil quando Solon se revelou e os atacou. Alma caiu no chão, quando um dos elfos pegou-a pelos cabelos,
arrastando-a, para usa-la como escudo.
Se a situação fosse outra, Solon tentaria arrancar do bandido informações sobre o comprador, mas visto que ainda precisava
resgatar as outras fadas prisioneiras e pretendia fazer isso antes que alcançassem a Floreta de Saul, Solon arremessou o
bumerangue e foi um movimento certeiro.
O elfos riu, debochado, por a arma ir longe, sem atingi-lo, por ter se esquivado tão facilmente do ataque de um Guardião.
Sacudiu a cabeça de Alma, como quem diz que está no poder. Estava prestes a gritar algum comentário ofensivo, quando
descobriu do pior modo, que o bumerangue que vai é o mesmo que volta.
Atingido nas costas, ele soltou os cabelos de Alma e caiu no chão.
A fada tentou engatinhar para longe, pois estava com medo de ser pega pelo Guardião depois de ter desaparecido com sua
armadura. Esperava uma surra de criar bicho, ou coisa pior.
Solon segurou-a pelas correntes e puxou para trás, de um modo petulante que a fez ferver de raiva. O Guardião agarrou seus
tornozelos e a fez girar, até estar de frente para ele, olhos arregalados.
Solon largou seus tornozelos e segurou a corrente que mantinha suas mãos presas. Então, a mordaça. Soltou-a com dois puxões
nada delicados.
Alma puxou ar com força, pois estivera muito sufocada. Sua face estava marcada pelo couro e Solon passou uma das mãos
sobre sua boca, limpando as marcas ou ao menos tentando limpar. Alma não notou a gentileza, apenas se debateu.
-Fique quieta, fada - ele segurou o seu queixo e olhou no fundo dos seus olhos– Eu sei que foi você quem desapareceu com
minha armadura e sei também que poderemos chegar a um acordo sobre isso. Você me diz onde a escondeu, e eu a ajudo a sair
dessa enrascada que se meteu. O que me diz? Um trato justo?
-Vá pro inferno!– ela gritou, rechaçando a proposta. Estava no limite dos nervos e não queria ouvir proposta.
-Vamos, Alma, você é uma fadinha inteligente– ele disse com lábia– Seu dom não me afeta. Sua força física não vai conseguir
me conter. Está acorrentada, e o mundo é perigoso para uma fada no cio. Ofereço-lhe a chance de inocentar a si mesma e suas
amigas, basta que colabore comigo.
Solon era sincero, mas ela não acreditava. Furiosa cuspiu no rosto do Guardião e debateu-se, esperando pela surra que viria a
seguir.
Solon afastou-se e limpou a face com a manga da túnica. Sim, não era nada agradável ser desafiado daquele modo. E ele não
era um santo. Mas pensava na fada e no seu emocional. Estava fugindo, com medo e amarrada. Fora vendida. Ela não estava
em sua capacidade plena de pensar.
-Levante-se– ele disse sério, sem lhe oferecer alternativa. – Eu preciso que use seu dom para ajudar a resgatar as fadas
aprisionadas pelos caçadores de recompensa. Você fará isso? Ou devo amordaça-la outra vez?
Alma não entendeu o seu pedido, mas acenou concordando.
-Precisamos nos apressar, eles não podem alcançar a Floresta de Saul ou teremos que lidar com a magia do lugar - ele disse
sério, pegando no chão a mordaça e guardando no bolso.
-Eu vou soltá-la– ele disse piscando, como quem quer ganhar sua confiança– Quando você se dispuser a me ouvir.
-Estou com fome e sede– ela disse, apesar da raiva, precisava comer e saciar a sede, ou não teria forças para fugir dele.
Fugir dele? A quem estava tentando enganar? O Guardião deu conta de inúmeros elfos mesmo sem sua armadura e com
péssima audição. Considera-lo incapaz era uma tolice. Ele mostrou que era exímio lutador e estrategista.
-Beba– ele entregou o cantil em suas mãos e sorriu– Não beba rápido demais, ou passará mal.
Solon não carregava alimento, mas arrumaria algo para ela comer no trajeto em busca dos caçadores de recompensa. Saciada,
Alma jogou o cantil no chão, em represaria, privando-o de beber o restante.
-Não vai conseguir me enfurecer, sou muito grato por ter me ajudado. Cuidou do meu ferimento e graças a sua ajuda estou
vivo. Por causa disso, serei permissivo com suas más criações.
-Se pretendesse mesmo me ajudar, me soltaria– ela acusou os olhos espalhando fúria.
-Eu a soltaria sem pensar duas vezes se pudesse confiar na sua ajuda.
Solon permaneceu na espera pela decisão da fada. Ela não tinha alternativa. E era esperta demais para não reconhecer isso.
-O líder é um idiota– ela disse seca, referindo-se ao grupo de caçadores de recompensa– ele é amigo de um humano ou diz
que é. Está levando as fadas para o Campo dos Humanos, para vendê-las para esse humano. Antes, porém venderá as duas
fadas pequenas para um morador na Vila das Fadas.
-Eu não terei tempo para investigar as motivações dele. Mas não vou esquecer o que me disse– afirmou, intrigado.
Nem tão intrigado quanto Alma diante do seu interesse em ajudar as fadas aprisionadas. Não esperava esse tipo de dedicação
vinda de um Guardião. Esperava ser surrada e levada a força para o Castelo, diretamente para as mãos nefastas da Rainha e
sua loucura.
-Como assim, não terá tempo para investigar? O que você acha mais importante? Entregar uma inocente para a morte, a
prender assassinos e sequestradores? – acusou, venenosa.
-Eu não sei. Não sei o seu grau de inocência e também não sei o grau de culpa da rainha. Entenda, fada raivosa, você e suas
amigas são apenas quatro fadas, rainha Santha controla a vida de centenas de outras.– era um aviso duplo.
O tempo que Alma levou para meditar sobre isso,foi o tempo que Solon levou para começar a puxa-la em direção a trilha por
onde deveriam seguir se quisessem encontrar pistas do caminho seguido pelos caçadores de recompensa.
-Sou uma fada e tenho asas. Porque ir andando?– ela jogou verde, esperando conseguir engana-lo e fugir.
-Porque suas asas estão livres e mesmo assim tão as usou para tentar escapar, e isso quer dizer que existe algum impedimento
para fazer isso. Como deduzo que não vá me contar espontaneamente a razão de sua hesitação... Resta-me excluir essa
possibilidade.
Ele estava coberto de razão.
-É surdo. Porque está me ouvindo?– ela fez questão de esfregar na face do elfo seu problema.
-Não sou surdo – ele disse como se não o abalasse falar do assunto, mas ela sabia que abalava– Sou quase. É uma diferença
sutil que faz toda a diferença.
-Hum, eu vi quando foi atacado e não pareceu que essa diferença fosse muito significativa– ela ofendeu.
-Às vezes uma coisa ou outra sai do controle, mas na vida é assim não é? Nem sempre conseguimos prever tudo que pode
acontecer.
-Você ouve minha voz?– insistiu.
Solon a puxava pela corda, e não havia muita diferença entre o método que era levada e o modo como os sequestradores de
fadas a tratavam. No fundo, eram todos iguais.
-Nitidamente – ele olhou para ela e sorriu– Acredite, isso me surpreende também. Uma surpresa agradável– ele disse.
-Não tem nada de agradável em conversar com um Guardião - ela foi sincera.
-Diz isso porque não me conhece ainda. Precisamos ter uma conversa, Alma. Uma conversa longa e totalmente sincera. Eu
estou disposto a ouvir sua história. Você está disposta a contá-la?
Esse era o seu sonho secreto. Ter a chance de contar sua versão do acontecido. Explicar como Eleonora era o pivô de um
plano macabro. Mas ele era um Guardião e era esperto. Usava de palavras para engana-la e fazê-la boba.
-Não – ela avisou– não estou nem um pouco interessada em perder meu tempo conversando com você.
-É uma pena. Eu estou apreciando conversar com você. Fazia muitos anos que não desfrutava de uma conversa onde posso
entender todas as palavras pronunciadas e não preciso ler lábios– ele fez graça, mas por trás do sorriso, havia muita verdade.
Solon estava contente em encontrar alguém no mundo com quem pudesse ter uma conversa sem dificuldades de entendimento.
-Eu não vou me deixar enganar–ela avisou, seguindo-o com raiva, seus pés doloridos de tanto andar e seu estômago apertado
de fome– Não vou lhe contar onde está sua armadura. Não vou mesmo.
-Hum, eu devo deduzir então, que não encontrarei minha armadura com os caçadores de recompensa?– ele pareceu
decepcionado.
-Seja realista...se estivesse com eles, você já teria recuperado-a.– havia satisfação em falar sobre isso. O sentimento de
vingança.
-Eu sei disso. Queria saber se você também sabia– ele foi franco – Achei que pudesse ter vendido a armadura para eles. Esse
tipo de escoria sabe como esconder uma armadura. Eles conhecem todos os segredos do mundo mágico.
-Não são apenas eles quem sabem todos os segredos– ela avisou – eu também sabia onde esconde-la. Mas não lhe contarei
onde deixei sua armadura. Não adianta insistir.
-É uma pena– ele deu de ombros– eu vou encontrar minha armadura, isso é fato. Não será uma fada que conseguirá separar
armadura e Guardião.
-É um otimista – ela disse com desdém, cabelos caindo sobre a face pois eles subiam um pequeno decline de terra e pedras–
Ao menos tem uma nova meta em sua vida. Mas creia no que digo, tenho a satisfação de ter afastado a armadura de você para
sempre.
A seriedade da fada o convenceu que estava convencida disso.
-Prefiro acreditar que entraremos em acordo e você me contará o paradeiro da armadura no momento adequado – ele disse
para provoca-la.
Alma lhe ofertou um olhar de fúria mal contida. Solon não suspeitava que estivera prestes a matá-lo. Que havia desistido no
último segundo, mas isso não queria dizer que o impulso não existiria novamente.
Alma calou-se e manteve-se assim pelas próximas horas. Solon tinha razão ao ter pressa. Amanhecia quando encontrou a pista
dos caçadores de recompensa. Eles seguiam por um caminho bastante previsível, rumo a Floresta de Saul. Um trecho
conhecido por sua utilização para fins obscuros.
Alma estava exausta. Sua fome fora saciada com alguns frutos, encontrados no caminho. Mas a exaustão era presente e estava
com as pernas bambas, prestes a ceder e desmaiar ou ao menos cair no chão e permitir o cansaço abatê-la.
O Guardião não apresentava sinais de cansaço e isso incentivava sua raiva contra ele. Enquanto seu corpo feminino sucumbia
ao esforço físico o dele exultava em vigor e força.
Era uma deslealdade do destino, ter nascido fêmea e frágil, se pretendia transformala em fugitiva e ter sua vida ameaçada por
elfos sem um pingo de piedade.
Solon parou de andar e apontou o grupo de elfos que dominavam as fêmeas. Eles estavam acampados logo abaixo de um
rochedo, de onde Solon e alma os avistavam.
-Eu quero que grite o mais alto que puder quando eu mandar– ele orientou.
-Eu não posso – ela disse contrariada– Se eu fizer isso, as fadas serão afetadas. Principalmente as menorzinhas.– detestava ter
que contar essa verdade, mas era isso mesmo. Não queria ver gente inocente pagando por seus infortúnios.
-Um único grito. Eu tenho certeza que as fadas preferem algum desconforto a serem vendidas para elfos sem escrúpulos. Elas
vão sofrer alguns segundos, e depois, terão uma chance de viver com liberdade.– argumentou.
Para seus argumentos Alma não possuía nenhuma resposta. Seguiu-o por falta de opção, e também, porque no fundo queria
ajudar as pobres fadas prisioneiras.
Solon pediu silencio, enquanto aproximava-se do acampamento com passos suaves, silenciosos. Alma se perguntava como ele
conseguiria ser tão silêncio se não sabia o barulho que produzia ao andar. Isso era fruto de muito treinamento.
Afastou o sentimento de apreciação e fincou os olhos em seu pescoço.
Solon possuía um pescoço curto, musculoso, os cabelos negros cobriam-no quase totalmente. Era um elfo bem cuidado,
cuidava com esmero de sua aparência. Do tipo de macho certinho, que sempre mantém a ordem em torno de sua vida, mesmo
que o restante do mundo viva no caos.
Tão diferente de Alma que era o caos em pessoa. Ela baixou os olhos e quando olhou outra vez descobriu que ele fazia um
sinal para uma das fêmeas do grupo que havia notado a presença do elfo perto deles, espreitando.
Ele fez uma mímica, cobrindo os próprios ouvidos, como quem pede que ela faça o mesmo. A jovem estava confusa, mas
acenou e cochichou algo com as outras fadas.
Não era fácil se mover acorrentada, mas um delas segurou uma das menininhas no colo, e lhe falou no ouvido sobre a
brincadeira de cobrir os ouvidos com ambas as mãos e apertar bem forte.
As fadas estavam deitadas no chão, descansando, enquanto os elfos comiam e bebiam, era uma pausa no percurso. Nenhum
deles se resentia mais com o risco de serem pegos.
Solon puxou a corrente e Alma o seguiu para o outro lado do acampamento, para que ela atacasse diretamente junto aos elfos,
e não as fadas.
-Faça agora– ele disse baixinho, em seu ouvido e Alma afastou a cabeça, pois desgostava desse som e principalmente do
halito em seu pescoço.
Estava no cio, e incorria no risco de permitir que a carne falasse mais alto. Sorte sua ser capaz de se controlar.
Solon não saiu do seu lado, empunhando a espada enquanto aguardava que fizesse o que mandava.
Alma abriu a boca e imediatamente o grito saiu. Parecia que a cada grito, ficava mais potente. Mais agudo e afiado. As fadas
gritaram em pânico, a dor latejante em seus ouvidos, enquanto os elfos tentaram levantar, mas caíram, segurando as próprias
cabeças, sucumbido.
-Chega– Solon segurou seu braço, para que ela parasse. Não surtiu efeito – Chega!
– ele a empurrou, interrompendo seu grito.– Enlouqueceu, fada? Quer matar as meninas também?
Sim, ele ficou furioso por um segundo, ele não sabia que para Alma se conter era muito difícil. A resposta para sua pergunta
poderia facilmente ser sim.
Ela sentou no chão, abalada por essa constatação. Solon avançou no acampamento e com sua espada venceu os elfos
facilmente. Eles estavam abatidos, e não havia porque permitir que seguissem matando e sequestrando.
Do líder, vestido como humano, Solon arrancou do pescoço um cordão com um pingente que continha um brasão. Aquilo
ajudaria nas suas investigações futuras sobre um elfo envolvido com humanos.
As fadas choravam e estavam nervosas, mas não fugiram da ajuda do Guardião. Solon não falou com elas, pois não
conseguiria entende-las. Notou que a fada Alma aproximava-se com passos cambaleantes.
Revoltado por ver o estado em que as fadas se encontravam, Solon revirou os pertences dos elfos em busca do alimento recém
cozido, pratos e copos de barro.
Libertou uma das fadas e foi o bastante para que uma a uma se soltasse. Uma delas, uma fada sem suas asas ainda, bastante
robusta, com o tom de pele esverdeado, o que poderia indicar ser uma descendente de fada verde, veio ajuda-lo.
-Ele tinha uma caderneta com os preços e nomes– ela dizia, mas ele não entendeu nada.
A fada ficou parada esperando por uma resposta que não veio.
-Me solte e eu lhe digo o que ela falou– Alma barganhou.
-Eu não vou soltá-la por causa de uma chantagem, fada rabugenta. Farei isso para que descanse, coma e durma algumas horas.
Preciso enterrar os corpos, para não atrair animais.– ele pensava nos raptores e outros semelhantes.
Alma sentiu-se péssima por ser tão egoísta.
-A fada disse que o líder tem uma caderneta onde anotava informações sobre as vendas– ela disse, como quem aceita um
pedido de trégua.
Solon sorriu para ela, ergueu uma das mãos, retirando uma sujeita que manchava a bochecha da fada. Ela não se afastou, mas
paralisou de surpresa.
-Comam, esses animais não serviam para nada, mas a comida parece limpa– sugeriu e afastou-se para arrastar os corpos para
longe de onde as fadas estavam.
Culpada por ter feito as fadinhas menores chorarem, Alma aproximou-se para saber se elas estavam bem. Uma delas, de não
mais de quatro anos, muito carente e assustada veio para seu colo, e Alma ficou sentada com a menina abraçada ao seu peito.
Não gostava disso, pensou. Não, não gostava. Não sabia como lidar com a menina.
Acabou acariciando as costas da fadinha, e ela foi se acalmando e adormeceu.
-Eu não vejo a hora de ter meu dom– uma delas disse, a que sofria do padecimento das asas.– De não ser tão frágil.
-Eu não sei se o meu dom é boa coisa– Alma confidenciou sem saber por que conversava com elas sobre isso.
-Como não? Você nos salvou. Você e o Guardião– ela disse agradecida.
Sim, melhor não frustrar suas esperanças de vida lhe alertando que uma fada, com dom ou sem, é sempre frágil. E que o
Guardião não estava ao seu lado, e sim, contra ela.
Mais tarde, haviam comido e descansavam quando Solon regressou. Ele fez um sinal para que viesse até ele, longe das fadas.
-Encontrei isso – ele exibiu a caderneta e um saco de ouro.
-Quanto ouro – ela disse com os olhos compridos para o saco de ouro.
Solon afastou-o dela, como quem diz que não a deixará por as mãos sobre o ouro.
-Acha que as asas da fada nascem logo?– perguntou-lhe olhando para a moça que sofria.
-Sim, uma delas me disse que acha que as asas nasceram em algumas horas.– disse, ainda olhando para o ouro.
-Ótimo. Não poderei cuidar delas, existe um problema maior esperando por nós no castelo. Um problema que irá causar
sofrimento a muitos elfos e fadas e que precisa ser resolvido logo.
-Pretende deixa-las aqui?– surpreendeu-se com seu egoísmo.
-Não, eu pretendo esperar as asas da fada nascerem e seu dom aflorar. Entregar o ouro e torcer para que elas consigam chegar
sozinhas a Vila dos Desesperados– contou.
-Isso é crueldade.– ela acusou.
-Diz a fêmea que roubou minha armadura.– ele acusou de volta– eu teria como ajudar a todas se estivesse na posse da minha
armadura.– lembrou-a disso.
-Me deixe partir e eu lhe conto onde está a armadura. Você leva as fadas em segurança para a Vila e eu caio do mundo e nunca
mais ouvirá falar de mim...– barganhou.
-Acontece, fada, que se você e suas amigas são inocentes– ele aproximou-se e ficou bem pertinho, desafiando-a a lutar contra
sua presença– quer dizer que a rainha é uma mentirosa e precisa ser parada antes que cometa mais desatinos e acabe com a
vida de outras pessoas. São fadas perdidas– ele apontou as fadinhas– mas se não pararmos a rainha, haverá muitas outras
nessa situação. Ou você acha que eu nunca percebi que os Guardiões sempre são desviados de suas missões de conter os
Caçadores de Recompensa? Sempre acontece uma coisa importante ou uma nova missão que nos desvia do que realmente
importa. Se Santha é esse monstro que Driana diz ser... Eu quero saber.– foi taxativo.
Alma queria acreditar nele. Queria muito. Sorriu sádica e ofertou a ele as costas. Sim, ela não se deixaria enganar por
palavras bonitas.
-Não tem curiosidade de saber por quanto foi vendida? -ele perguntou, e ela parou.
Sim, queria saber. Por mais que doesse em sua auto estima, ela queria saber.
Voltou os mesmos passos percorridos e encarou-o com frieza.
-Veja você mesma– ele apontou a página onde constava seu nome– Alguém sabia seu nome, seu dom e onde encontra-la. Foi
uma encomenda.
-Eu já sabia disso. Eles me chamavam de ‘encomenda’ o tempo todo – revelou– Isso é muito ouro – surpreendeu-s.
Solon sorriu. O modo como a mediu de alto a baixo causou-se desconforto.
-É uma fada bonita. Tem um dom útil. Asas...suas asas são incríveis. E está no cio. Acredite, eu pagaria mais do que isso. O
preço foi taxado muito abaixo do valor esperado. Vale no mínimo o dobro.– ele revelou.
-Meu dom não é útil– negou– Eu mato as pessoas com a minha voz.
-Proteção garantida para quem a tiver ao seu lado – lembrou-a disso – Mas acredito que essa compra era mais pessoal do que
baseada em interesse de luta. O elfo que a comprou sabia seu nome, esse tipo de mandante nunca sabe o nome das vitimas.
Isso é pessoal. Sabe quem poderia fazer isso?
-Não. Eu vivia no Ministério do Rei. O único elfo com quem tive contato é Tubã.
-Não creio que seja alguém do castelo. – ele desacreditou.
Solon guardou a caderneta no bolso da roupa e olhou-a com interesse:
-Descanse mais um pouco, levará algumas horas para o nascimento das asas da fada. Aproveite para desfrutar da proteção de
um Guardião. Verá que posso ser muito agradável com quem protejo.
-Eu não me importo se é agradável ou não. Eu quero ir embora. Quero me esconder. Não me interessa quem você é.– contou.–
ou suas falsas intenções.
Solon não a impediu de ir, apenas maneou a cabeça. Era uma pena uma fada tão bonita ser tão amargurada e ressabiada.
Gostaria de lhe perguntar sobre seu presente, de semanas atrás e seu pedido de conhecê-la, enviado através de Tubã, mas era
melhor não arriscar a causar-lhe mais irritação.
Durante as próximas horas Alma se manteve longe, evitando ajudar ou participar da situação da fada que era agraciada com
suas asas. Não era falta de generosidade ou caridade, apenas não conseguia lidar com o sofrimento alheio, quando não
conseguia lidar nem com o seu próprio.
Em um canto, Alma deitou e ficou assim por muito tempo, ignorando os gritos da fada, tentando descansar o corpo e a mente,
para clarear os pensamentos.
Podia fugir a qualquer momento. Bastava bater suas asas e desaparecer. Sim, ela faria mal as outras fadas? Mas e daí? O que
lhe importava a vida dos outros, quando nunca, alguém se importou com a vida dela?
Angustiada, Alma adormeceu sem notar.
Solon percebeu que ela dormia e fez questão de mantê-la assim pelas horas seguintes. Alma não presenciou as asas da fada
nascerem e tão pouco presenciou a conversa entre Solon e uma das fadas. Foi preciso explicar a ela que ele não podia
entende-la e os dois se acertaram por mímicas.
Solon acordou-a quando as fadas estavam prontas para partir.
Tocou seu ombro e a acordou gentilmente. Alma abriu os olhos, e afastou-se no exato segundo que descobriu quem a tocava.
-É hora de irmos. Juntei tudo que pode ser reaproveitado desse acampamento.
Alma sentou-se e olhou para as fadas que estavam prestes a ir. As asas da fada eram azuis. Coloridas e brilhantes.
-Qual é o seu dom?– perguntou para a fada, que sorridente exibiu uma das mãos.
Suas unhas viraram farpas e então afiadas lanças de madeira, sendo lançadas em direção a uma das árvores. Elas se fincaram
ao tronco e Alma sorriu um pouco.
-É um dom muito útil.– elogiou.
Não sabia como elogiar. Era desse jeito desajeitado com as palavras.
-Elas ficarão bem– ele disse convencido disso.– Não estamos longe da Vila dos Desesperados. Pedirão ajuda em meu nome e
tenho certeza que serão abrigadas. Mais tarde, eu procurarei informações sobre o elfo que as sequestrou e para quem as
venderia. Vamos, Alma, nosso caminho é longo também.
-E para onde pretende me levar?– perguntou levantando e ignorando a mão que ele esticava em ajuda.
-Seguiremos o Rio Branco até a Nascente. De lá, seguiremos para a Vila das Fadas.
– ele explicou.
-Pretende atravessar a Floresta de Saul?– incomodou-se com essa possibilidade.
-Não. De jeito algum. Eu pensei em uma solução perfeita. Eu não me abalo com seus gritos, ou com o barulho das suas asas–
notou a surpresa em seu olhar e sorriu – Eu não sou bobo, Alma, você não fugiu e a causa para tanta parcimônia não é a figura
de autoridade de um Guardião. Irá voar sobre o rio. O som não vai abalar as criaturas do rio. E quanto as margens...bem, nada
na vida é perfeito.
-E porque eu iria leva-lo de carona com minhas asas se você pretende me entregar para a morte?– ela perguntou irônica,
andando para longe dele.– É uma ideia estúpida e não vou colaborar.
Primeiro, ela detestava voar e não iria mostrar a ele como era desajeitada, principalmente tentando carregar alguém. Ela mal
conseguiu levar a armadura até o Deserto das Areias Vermelhas!
Não, ela pretendia fingir colaborar com ele, e quando estivessem longe das fadas, voaria sozinha para bem longe dele!
Iria criar vergonha na cara e aceitar que o único lugar seguro para ela era o Deserto. Alma tinha planos fortuitos de fuga, e ele
fingia não saber para tentar ganhar sua confiança.
Alma detestou vê-lo entregar todo o ouro para as fadas. Afinal, esse ouro era fruto da negociação da sua venda. Teoricamente,
lhe pertencia. Egoísmo puro da sua parte, mas tudo bem, ela nunca teve vocação para ser boazinha e precisava se conformar
com isso.

Capítulo 10 Junto a mim

Enquanto andava com Solon, perguntava-se porque ele não parecia abalado pelo cio. Talvez não fosse um elfo com impulsos
de macho. Às vezes, em brigas de amigos, elas chamavam Tubã de palavrões bastante ultrajantes, e um deles era referente a
ser afeminado. Nessas ocasiões ele ficava muito ofendido e geralmente abandonava a briga indo embora e permaneceria
irritado por dias.

Quem sabe o Guardião Solon fosse isso? Um elfo com impulsos femininos? Ele era bastante compreensivo e calmo. Doce
demais para um Guardião. Quem sabe preferisse elfos a fadas? Porque não? Toda forma de amar é valida desde que não cause
dados a terceiros.

Alma seguia calada, mas seus olhos não desgrudavam da imagem do Guardião. Em determinado momento ele virou para trás e
comprou esse olhar. A fada possuía um modo profundo de olhar. Não verbalizava em palavras metade do que pensava e isso
era perturbador, pois não sabia como agir com ela.

-Porque usa esse guiso? – ela perguntou a queima roupas.–É inútil se você não pode ouvi-lo. É surdo demais para ouvi-lo.
Sim, era uma agressão. Ela consequências. Não era sua intenção magoar ou ofender. Era apenas a verdade nua e crua, sem
atenuantes, sendo questionada.
-O chocalho foi enfeitiçado por um duende antigo. Ele não toca para os seus ouvidos, mas sim para o meu. Quando o vento
muda ao meu redor, serve de aviso para que eu fique atento – explicou pacientemente e sem se ofender com ela.
-Mas não serviu para nada no outro dia quando foi atacado por ladrões.– acusou outra vez.
-Hum, sempre tem serventia. Às vezes, é uma técnica falha. Nada substitui o recurso natural. Seria melhor se eu pudesse ouvir
plenamente, mas como não é possível... Aprecio a ajuda que o chocalho me dá em algumas situações perigosas.– explicou.
-Como aconteceu? -ela perguntou– Alguma luta entre Guardiões?
-Como aconteceu o que?– ele perguntou, sem saber exatamente onde ela queria chegar.
-Eu vi as cicatrizes em meio ao seu cabelo– avisou, olhos frios, sem grande emoção
– Como foi que o feriram?
-Não fui ferido em combate– ele baixou a cabeça e suavizou o andar, para ficar ao lado da fada, achando inocentemente que
poderiam dialogar como amigos.
Talvez, aos pouquinhos conquistar sua confiança? Não custava tentar, não é?
-Foi uma agressão premeditada– ela disse surpreendendo-o.
-Como sabe disso?– perguntou-lhe.
-São cicatrizes idênticas, uma de cada lado. Muita coincidência se fosse acidentais. Parece que alguém planejou e executou
um plano perfeito.
-Está certa.– ele concordou– Acho que você entende muito de mentes doentes.
Alma parou de andar e encarou-o com frieza:
-Eu ia mata-lo na cabana.– avisou– Preparei tudo para mata-lo. E não precisa fazer essa expressão de surpresa e desagrado,
eu não teria sentido nada depois de mata-lo. não era de ponderar as palavras ou medir as Francamente, eu teria apreciado a
sensação de ter seu sangue correndo entre meus dedos...
– ela olhou para a palma da mão com uma sensação de desejo.
Sim, executar algo assim lhe daria muito prazer.
-Você me assusta falando assim, fada– ele disse desagradado do que via em seu olhar e em sua face.
-Porque? Acha que todas as criaturas nascem boas? Porque eu não posso ter prazer em matar?
-Eu não sei. Gosto de pensar que as pessoas podem escolher entre ser más ou boas.
– ele disse imediatamente– Porque não me matou? Você disse que tinha tudo pronto para executar o ato, o que a fez desistir?
Alma deu de ombros, como quem nem se deu ao trabalho de pensar no assunto.
-Senso de oportunidade, eu acho – disse com descaso – Surgiu outras ideias bem mais interessantes e uteis em mente.
-Entendo – ele fingiu acreditar.
E alma fingiu não ter notado que Solon escapou de lhe responder sobre quem o agrediu e as razões para fazê-lo. Um não
confiava no outro. Era fato e não poderia ser diferente, pois não se conheciam e para piorar, eram antagonistas declarados.
Solon tinha a convicção que a fada da clausura pretendia fugir a qualquer momento. Ela seguia placidamente cordata ao seu
lado, aceitando suas ordens, mas ele sabia que aguardava o melhor momento para bater suas asas e voar.
Era fim do dia quando alcançaram o lugar onde Solon queria chegar. Na margem do Rio Branco, um trajeto costumeiro de
fazer travessia. Solon imaginava que era agora que a fada lhe passaria a perna e sairia voando. Por causa disso tinha uma
tática em mãos para evitar tão situação.
-Espere– ele pediu, enganando-a.
-Está vendo algum sinal de perigo?– Alma perguntou sem entender e sem notar que enquanto olhava em torno, Solon prendia
uma corda em suas mãos. Um nó previamente ajambrado que serviu de algema.
Indignada Alma gritou, mas não surtiu efeito. Solon era imune aos seus potentes berros. Imune e debochado. Ele riu, sem tentar
disfarçar quanto o agradava ser superior ou estar ao pé de igualdade com a fada. Segurando suas mãos amarradas, Solon a
puxou para o rio. Aquele trecho não era profundo ou difícil, pois ele escolhe um trecho onde uma represa natural continha a
parte mais selvagem do rio e o desviava para o Vale dos Humanos.
Alma poderia voar, mas de que serviria se estava amarrada? Alguém encontraria uma fada no cio amarrada e tiraria proveito.
Melhor seguir com ele, do que acabar nas mãos de outro caçador de fadas.
Alma empacou várias vezes, tentando causar-lhe problemas. Fingia não conseguir andar sobre as pedras, para tentar empurra-
lo ou forçar que a soltasse.
Solon raramente se irritava com alguma coisa. Era preciso algo muito mal intencionado para causar-lhe aflição e irritação. E a
fada fugitiva estava alcançando esse objetivo de ter êxito onde tantos outros falharam.
Cansado de lidar com ela de modo gentil, Solon parou e a jogou sobre o ombro, carregando-a como faria com um saco de
batatas.
Alma se calou não por falta do que dizer ou gritar, mas sim pela surpresa e incredulidade!
Quando recobrou a fala e os pensamentos lógicos, era tarde, eles chegavam a outra margem do rio, e estavam em território do
Vilarejo Sem Fim.
-Calada, Alma– ele a colocou sobre o chão e pousou os dedos sobre sua boca, para impedi-la de gritar– Estamos no Vilarejo
Sem Fim. Não é seguro para nenhum de nós atrair atenção errada. Muitos perigos rondam esse vilarejo.
-E porque me trouxe para cá? – ela perguntou mordendo os dedos dele, o atazanando, para que a soltasse.
Solon lutou para não sorrir. Achava graça da sua zanga constante.
Alma era de mal com o mundo. Fato. Mal humorada e furiosa o tempo todo.
-Porque tenho um lugar onde esconde-la por uns tempos. Um conhecido que nos abrigará enquanto conversamos e nos
entendemos.
-Entendemos? Não há nada para conversarmos!– ela ergueu as mãos em sua direção
– Solte as cordas. Esse lugar é perigoso! Não quero ficar amarrada e correndo riscos!
-Não posso desamarra-la enquanto não tiver certeza que ficará quieta ao meu lado– ele negou.
-Eu devia tê-lo matado – ela rugiu entre dentes.
-Teve sua chance.– Solon concordou com escárnio – Agora é minha vez de ter você nas redias curtas.
-Solte as cordas– ela mandou, com um olhar fatal de ódio.
-Conte onde escondeu minha armadura e começo a pensar no seu pedido– ele disse com descaso.
-Vá pro inferno– ela respondeu.
Eu já estive por lá, pensou Solon, mas nada disse. era melhor não lembrar dos tempos nublosos de seu passado, quando a fúria
e a indignação o deixava com um comportamento muito parecido com o de Alma.
Tão raivosa o tempo todo. Era um paradoxo, pois seu cheiro de cio a tornava irresistível, mas sua fúria exalando por todos os
poros o desanimava de vê-la como fêmea. Quem sabe mais tarde quando todos os medos houvessem passado ela se
acalmasse?
Provavelmente para Alma não era fácil lidar com os sentimentos despertados pelo cio em plena fuga.
Com um sentimento inesperado de compaixão, Solon pousou a mão em seu ombro, e ela afastou-se. Fugia de qualquer apoio
emocional.
Fugia também do calor despertado em seu corpo. Era quente, o ar seco, uma noite calorenta no meio da floresta é sempre
perigosa. Ainda mais quando o elfo é um macho atraente e a fêmea está padecendo do cio.
Alma se recusava a ser tão fraca. Pensou nas amigas, passando por privações idênticas ou até mesmo piores, que as privações
que sofria. Pensou em Santha, tão bonita, afortunada e desfrutando de luxo e dádivas, rindo das quatro fadas desgraçadas que
pagavam por seu crime.
Pensou em tudo que a feria, e assim sufocou os sentimentos animalescos do cio, e voltou a ser indiferente a presença de Solon
e qualquer outro elfo que pudesse inadvertidamente cruzar seu caminho.
Alma conhecia as histórias contadas sobre o Vilarejo Sem Fim. Más linhas diziam que uma antiga magia protegia as terras, tal
qual acontecia com a Floresta dos Dois Dias e com a Floresta dos Desejos, e que essa magia poderosa protegia os moradores
do Vilarejo contra ameaças externas. E era complicado descobrir quem seria considerado traiçoeiro e perigoso e quem seria
inocentado e teria trânsito livre pelas Terras Sem Fim.
Era impressionante como durante a noite as florestas se tornam assustadoras. Solon não se importava de andar a noite, pois era
exímio farejador, e seu olfato se acentuava durante a noite. Sua visão era perfeita e ele não via impedimentos. Alma não era
adepta de andar na floresta a noite e depois de tropeçar algumas vezes, optou por bater suas asas de leve, e planar. Desse
modo o som não existia e não havia problemas de agredir outros serem vivos.
Solon apenas fitou suas asas com olhos brilhantes, com apreciação masculina vibrando em seu ser. Eram olhos de cobiça.
Afinal, era um elfo interessado em fêmeas, pensou Alma irônica.
Alma não via nada de especial na floresta, muito menos no vilarejo. O dia raiava quando chegaram ao centro comunitário do
vilarejo. Era diferente da Vila dos Desesperados.
Não havia barracas de comercio, eles não produziam nada, compravam de outros vilarejos. Uma aura de abandono pairava
pelo ar. Casebres redondos, construídos com palha e madeira, pequenos e sem janelas, apenas umas portinholas estreitas para
entrada e saída dos moradores.
Era muito cedo ainda, mesmo assim deveria ter pessoas indo e vindo, pois muitos afazeres aguardam aqueles que trabalham e
cultivam para a sobrevivência.
-Onde estão os elfos e as fadas?– Alma perguntou em voz alta e Solon respondeu com um tom muito parecido com o dela.
-É uma boa pergunta. Nunca vi esse lugar tão deserto.
Alma olhou-o com duvida.
-Me solte, Solon– pediu com medo no olhar.– Solte minhas mãos.
Ela sentia o perigo rondando. Não sabia como explicar em palavras para que ele compartilhasse com ela esse sentimento. Era
algo que corria sob sua pele, então sabia reconhecer.
Algo rondava e era mortal. Solon não atendeu a uma ordem e sim a um pedido.
-Fique perto de mim. Não estou gostando disso. – disse retirando o bumerangue da cintura onde o mantinha preso no cinturão.
Os habitantes do Vilarejo Sem Fim eram hospitaleiros e na sua maioria, criaturas da paz. Raras exceções. Era um povo muito
unido e guardavam muito bem o grande segredo que envolvia o vilarejo.
Uma vez, muitos anos atrás, Solon ouvi falar de um elfo que tentou vender a informação e foi sumariamente linchado, mas era
um fato isolado e não comprovado. São comuns boatos que tentem incendiar e fabricar outros boatos, que alimentem uma
mesma crendice. Solon não acreditava em magia alguma naquele Vilarejo. Algo acontecia, é verdade, mas não era mágico e
sim real, vindo das mãos e espadas de elfos e fadas.
Essa era sua teoria.
-Solon– Alma disse parando de andar.
Ela sentia algo vindo. Estendeu a mão e agarrou a túnica do elfo, como quem pede ajuda. Não era de pedir ajuda, e ele sabia
disso. Segurou sua mão, pois ela estava em pânico.
Alma olhou em volta, ela sabia que estava ali, estava rondando-os, estava vendo-os com olhos de cobiça e loucura. Ela sentia
em seus nervos esse olhar, essa loucura carcomendo seu juízo.
-Solon! -ela gritou, apertando seus dedos– Está aqui!
-O que está aqui?– ele perguntou, talvez crendo que não pudesse ouvir o inimigo.
-Eu não sei! Eu não sei o que é! Mas está aqui! Está vindo! Está vindo... - ela bateu as asas desesperadamente, querendo voar.
Atrapalhou-se, pois estava nervosa demais, e foi Solon quem usou as mãos para conter suas asas.– Não! Está vindo!
Ela tentou se soltar e voar outra vez e ele deixou, segurando-a pela mão. Era sério, ou ela não iria querer ajuda-lo. O que
vinha, e apenas Alma conseguia sentir, era devastador e a deixava em pânico.
-Não! Oh, não, está aqui! Está aqui! Solon, não me solte!– ela foi a primeira a ouvir e sentir.
Foi agarrada pelas pernas. Sim, ela era agarrada pelas pernas e no instante seguinte estava caindo.
Uma queda profunda, sem ter onde segurar. Seus olhos abertos, arregalados, procurando por imagens, mas era tudo escuro, era
tudo negro, sem luz. Ela ainda agarrava no braço de Solon, mas seus dedos soltavam, pois ele era mais pesado e caia em uma
queda veloz em relação a ela.
Perder esse ponto de apoio a fez berrar. Sentia cheiro de apodrecimento, ouvia sons estranhos e encarava apenas a escuridão
total. O ar estava impregnado de poeira, fazendoa lembrar do Deserto das Areias Vermelhas, que possuía o ar impregnado de
areia.
Mas não era areia. Era mais pesado, menos volúvel. Era terra. Sim, era terra entrando por suas narinas.
A queda durou alguns segundos, mas pareceu séculos. Ela bateu em algo solido com um som oco, e não viu mais nada, seus
olhos fechando-se imediatamente.
Solon, caído não muito longe permaneceu acordado, embora fosse imobilizado por vários seres desconhecidos, vestindo
capas que os cobriam da cabeça aos pés.
Sendo mantido imóvel, ele cravou os olhos nos pés que o cercavam. Sua cabeça foi imobilizada e um capuz colocando sobre
ela, barrando sua visão e olfato. Solon gritou e tentou respirar nessa prisão, mas não conseguia.
Não viu que era levado, assim como não viu o que o mesmo acontecia com Alma...

Suas pestanas se moveram com dificuldade, a cabeça latejava dolorosamente. O movimento de seus cílios era intenso, e ela
piscou quando o conseguiu abrir os olhos a despeito da dor.

Não conseguiu mantê-los abertos, por isso fechou-os em uma fração de segundos.

Seus ouvidos apurados não conseguiram captar som algum. Estava sozinha? Era provável. E o Guardião? Onde estaria Solon?
Alma empurrou essa pergunta para o fundo da mente, e se concentrou em prestar atenção para o cheiro do lugar. Ainda
cheirava a terra molhada, um ar pesado, desagradável, muito parecido com o ar carregado do Deserto das Areias Vermelhas.
A ausência total de calor era prova de que não estava no deserto. Sentia frio. Principalmente em suas costas. Um frio
desolador. Umidade. Sim, ela estava deitada em um lugar úmido, um lugar frio.
Não era gelado, mas era frio. Alma tentou abrir a boca e descobriu que a mordaça estava de volta. Pensou no Guardião, ele
poderia ter feito isso com ela? Não, lembrava que ele estava ao seu lado quando começou a cair. Quando algo a pegou e
puxou para baixo. Ou teria sido impressão sua?
A dor em sua cabeça não permitia que chegasse a conclusões lógicas. Amordaçada não poderia gritar. Alguém não queria
ouvir seus gritos. Temia que seu dom causasse danos? Era provável.
Alma moveu as pernas, chutando e descobriu que suas pernas estavam livres, sem amarras, mas suas mãos estavam amarradas
com corda. Ela sabia que eram cordas pois ergueu ambas as mãos e forçou os olhos abertos e enxergou corda nova, trançada e
grossa. Peculiar, ela nunca vira uma trama de cordas com aquele padrão.
Seus olhos estavam irritados pela terra no ar, avermelhados e lacrimejando. Por isso, foi difícil focar em torno de si.
Estava deitada em uma cama? Não. Estava deitada sobre uma esteira de palha fina que não impedia a umidade da terra de
atacar suas costas.
As carcereiras do Ministério do Rei iriam brigar com ela, se a vissem ali. Diriam que isso lhe causaria um resfriado e por
consequência mais trabalho para elas. Esse pensamento era ridículo para a situação mas Alma não conseguiu evitar.
Seus olhos focaram em volta, e Alma não entendeu o que enxergava. A imagem demorou em fazer sentido em seu cérebro.
Estava em uma câmara, um quadrado exato, com paredes feitas em terra. Teto, paredes, chão... Tudo era feito em terra. Seus
olhos arregalaram ao entender que estava em uma tumba ou cripta.
Sim, ela estava enterrada. Mas estava viva! Viva! Seria possível terem confundindoa com uma morta? Quem sabe com a
queda... O mero pensamento a fez agitada, e Alma conseguiu sentar, grunhindo de dor e desconforto. Com as pernas livres
ficou de pé e andou no pequeno espaço. De pé, o topo de sua cabeça batia no teto de terra, e fragmentos caiam em sua face.
Apesar de amarrada, em usou as mãos para procurar nas paredes uma escapatória. Não encontrou portas, janelas, ou qualquer
outra forma de entrada ou saída.
Desesperada, ela olhou para cima, ergueu os braços e começou a empurrar, percorrendo cada centímetro com os dedos,
procurando por saídas, como nada aconteceu, ajoelhou-se no chão e engatinhou em torno, procurando por saídas no chão.
Em pânico, ela achou que o ar estava acabando. Parou de procurar e levantou, batendo sem querer contra uma parede de terra,
muita terra solta caindo em sua volta, apavorando-a ainda mais.
Sim, não era impressão sua, o ar em torno findava.
‘Não! Não! Não! Eu não posso morrer aqui! Eu não posso morrer aqui!’. Sua mente repetia essas palavras como um mantra.
Se ela estava enterrada viva, era provável que o Guardião Solon também estivesse. Ou quem sabe, ele estivesse de fato morto.
Uma pontada de dor a pegou de surpresa, e grossas lágrimas vieram aos seus olhos.
Tudo culpa de Santha! A rainha desgraçada que forçara a fuga das fadas e colocara os Guardiões em seu encalço! Seriam
fadas vivendo suas vidas miseráveis e os guardiões seguiriam sua trajetória de lutas e glorias. E agora, ela estava morrendo e
o corajoso Guardião estava morto.
Engatinhando no chão, Alma sentiu uma fisgada incontrolável de pânico e dor. Sim, seu corpo sucumbia. Porque havia
acordado? Por quê?
Teve uma onda de renovação em seu ódio contra a rainha que desgraçara sua vida e por causa disso, seu corpo reagiu. Ela
bateu as asas no limitado espaço, causando um barulho ensurdecedor. Não havia espaço para voar, e suas asas esbarravam nas
paredes soltando mais e mais terra e impregnando o ar com uma nuvem de pó. Angustiada, ela bateu com mais força, rezando
que o barulho pudesse alertar sobre sua presença e talvez a resgatasse dessa cova.
Alma não aguentou muito tempo. Exausta, ela bateu contra uma das paredes e o choro irrompeu quando se conscientizou que
morreria presa e agoniada. Era questão de tempo, talvez minutos.
Seu choro não era sentido, sua mente com amontoado de imagens perdidas. Nunca mais veria o rosto de suas amigas, jamais
voltaria a sentir a alegria de correr livre por um prado, vendo o sol nascer numa manhã de verão. Mesmo seu voo desajeitado,
jamais voltaria a provar dessa emoção.
Alma berrou o mais alto que pode, a mordaça barrando todo o som, mas ela precisava extravasar.
Seu esforço não era totalmente em vão. Ela não ouviu o barulho de luta, de um corpo se chocando contra uma porta muito bem
camuflada na parede de terra aparentemente inteira e sem brechas.
Alma seguiu gritando e pedindo ajuda, o som abafado, mesmo assim, seus grunhidos e gemidos eram ouvidos. Ela não viu
imediatamente a parede ceder, pois não era de verdade uma parede e sim uma espécie de porta. Viu a terra caindo e levantou
tentando fugir desesperadamente, tinha medo de ser soterrada e morrer lentamente...
Solon enxergou a fada se debatendo em desespero e correu para segurá-la. Suas asas eram empecilho, e mais tarde ele se
preocuparia em ter ferido as estruturas delicadas. Agarrou-a por trás, seus braços fortes segurando os braços delicados
imóveis.
Ela lutou muito, e por muito tempo. Muita adrenalina correndo em suas veias. Ela estava descontrolada.
-Sou eu – ele dizia em seu ouvido – Sou eu, Solon. Não vou machuca-la. Sou eu, Alma. Sou eu, se acalme, sou eu. Estamos os
dois vivos. Isso não é o que parece. Acalmese– ele dizia baixo, sabendo que em seu estado de nervoso, usar de gritos seria o
mesmo que atiçar com chamas um emocional que estava incendiado.
-Eles nos separaram, Alma– ele dizia– Mas eu a encontrei. Fique quieta, eu a encontrei.
As palavras não faziam sentido em seu cérebro, mas ela foi acalmando e parando de lutar contra ele aos poucos. Acabaram os
dois no chão, a fada exausta, em seus braços.
-Eu vou soltar a mordaça -ele disse avisando – Não grite. Existe inocentes aqui, Alma. Não grite ou matará muitos elfos e
fadas.
Ela acenou com a cabeça entendendo, apesar de não saber do que falava.
Solon a amparava toda recostada contra seu peito, a cabeça em seu ombro, de costas para ele, enquanto soltava o aperto em
torno de seus braços, para desamarrar a faixa de couro que mantinha seus lábios presos.
Ela puxou ar avidamente, e o gosto do ar, era gosto de terra.
Solon alisou sua testa, afastando o suor e a sujeira, tentando assim, acalma-la completamente.
-Onde estamos?– ela perguntou depois de um curto tempo apenas respirando com dificuldade.
-Eu não sei– foi sincero– Pensei o mesmo que você quando acordei preso em um lugar idêntico a esse. Mas consegui sair e
existem corredores. Estava tentando encontrá-la quando ouvi o barulho de suas asas. Elfos e fadas começaram a aparecer e
muitos ficaram nos corredores, caídos e desmaiados.
-Eu não queria machucar ninguém– ela admitiu, olhando para cima, com os olhos castanhos injetados de medo. Encontrou um
olhar muito parecido no Guardião.
-Aposto como neste instante você está profundamente arrependida de ter escondido minha armadura– ele disse para distraí-la.
Alam soltou uma espécie de riso e se moveu, afastando a cabeça de seu ombro, olhando para ele com duvida.
-Alguma coisa segurou minhas pernas. Foi a última coisa que me lembro de ter acontecido antes de cair.
-Será essa a magia que tanto falam sobre o Vilarejo Sem Fim?– ele ponderou.
-Pra mim pareciam mãos bem reais– disse séria.
Solon soltou suas mãos presas pelas cordas, e segurou-as antes que Alma pudesse se afastar.
-Escute – ele disse sério demais– Eu acordei sem armas. Sem o meu bumerangue. Sem o meu guiso. Sem espada e sem punhal.
E como nós dois sabemos, sem chances de reaver minha armadura.
Alma lhe forneceu um olhar irônico e tentou puxar as mãos. Não conseguiu.
-Eu gostaria de dizer que nesse momento é cada um por si.
-E quando não tem sido assim?– ela revidou azeda.
-Desde que nós dois fomos pegos por terceiros. Não é algo entre nós dois. Não sou seu inimigo, nunca fui, mas, sobretudo
agora não sou seu inimigo. E você não é minha inimiga. Agora, sobre os que estão lá fora eu não posso dizer o mesmo.
-Eles sabem que sou uma das fadas fugitivas? – ela deduziu a que se referia.
-Ou sabem que eu sou um guardião? – ele revidou– o seu preço fada, é enorme, mas o preço pela minha cabeça nas mãos de
um Caçador de Recompensa é ainda maior. Eu não a entrego se prometer não me entregar.
Alma entendeu a porcaria onde haviam se enfiado. Sentia as mãos do elfo em torno das suas, era um modo de acalma-la e ter
sua atenção. E estava coberto de razão. Alma ouviu som de vozes e passos e acenou apressada, concordando com ele.
-Estão vindo – avisou-o, puxando as mãos com força, querendo achar um modo e sair dali.
Mas não havia. O único modo era se acalmar e esperar. Solon levantou e estendeu a mão para Alma. Ela aceitou apenas por
falta de opção melhor.
Três elfos armados com espadas surgiram pela porta destruída e apontaram a espada para Solon. Ele não se abalou.
-As assas da fada são mortais– um deles disse, acusador e Solon leu seus lábios, surpreendendo Alma a que imaginava ter que
sussurrar para ele tudo que os elfos dissessem.
-A fêmea estava nervosa. Eu a acalmei. Ela me obedece. Não oferece mais perigo algum. – ele tentou acalmar os ânimos.
Alma precisou se controlar para não reagir. Era assim entre elfos. Machismo puro.
-As asas devem ser cerradas– um deles disse nervoso.
Alma ficou em pânico na mesma hora e sem notar colocou uma das mãos no ombro do Guardião e apertou quase ao nível da
dor. Era o único modo de sufocar a vontade de fazê-los pagarem pela ameaça real.
-A fada está sob controle– ele avisou– Me leve ao seu líder.
Era um Guardião e sabia que aquele lugar não era governado sem um líder ou rei.
Não sabia onde estava, mas sabia como o mundo funciona, e seja ele mágico ou não, sempre segue as mesmas regras em um
jogo onde um dá as cartas e os outros obedecem. E essas regras milenares de poder e ambição jamais mudarão. Alternam de
mão, mas sempre seguindo o mesmo padrão.
Os elfos se olharam como quem mede a decisão.
-A fêmea deve ser levada– um deles disse aproximando-se com a espada em mãos.
-A fada me pertence– ele disse rápido, estando na frente, barrando a passagem– Sou o dono dessa fêmea. É comigo que seu
líder deve falar, não com ela.– não era trouxa. Sabia muito bem que estavam ali por causa do cio da fada.
Isso estava ficando cada vez mais claro diante de seus olhos.
Um dos elfos disse para os outros:
-É direito do elfo falar por sua fêmea– ele disse sério e um dos elfos, acenou e se afastou.
Os dois outros não se moveram. Permaneceram vigiando-os.
-Pergunte a eles onde estamos– ela sussurrou para Solon, pois seria estranho uma fada sob o domínio de um elfo tomar a
palavra.
-Estamos no Vilarejo Sem Fim?– perguntou a um deles que não respondeu nada.
-Que lugar é esse?– insistiu, mas foi em vão.
-Filhos de uma puta – Alma esbravejou, raivosa por lhes negarem a resposta que ela tanto queria.
Solon olhou para ela e sentiu vontade de costurar sua boca para que não causasse mais polêmica. Muito tempo depois o
guarda retornou e fez um sinal para que fossem levados.
Alma arregalou os olhos de surpresa ao andar pelos corredores. Era terra pura. Eles andavam por coredores de terra. Olhou
para o guardião que pegou sua mão. Era um modo de segurá-la perto de si evitando que causasse algum problema
prejudicando uma situação que já era tão complexa.
Alma não tentou soltou-se. Nunca admitiria, mas queria ficar assim. Sentir que não estava sozinha nessa empreitada. Que
alguém intercedia por ela e sua sobrevivência. Não tentaria entender esse sentimento.
Quando seus pés tocaram pedras, ela soltou o ar preso nos pulmões. Rochas e pedras cobriam as paredes de terra. Era uma
ilusão de segurança, mas era o bastante para acalmala.
Havia muitas portas naqueles corredores. Um labirinto de corredores. Em algumas dessas portas, elfos e fadas os observavam
passarem.
Todos vestiam roupas muito parecidas. As fadas usavam vestidos de tecido simples, decorados com fitas coloridas. Os elfos
usavam túnicas, calças de couro e mantos de peles.
A aparência física era variada. Alma ficou surpresa ao ver uma fada verde de pé, na companhia de um elfo escuro, alto e
bonito. Ao redor dela, duas fadinhas infantas que mesclavam sua cor com a cor do elfo. Uma família?
Intrigada, Alma percebeu que o mesmo modo desconfiado com que ela olhava para aqueles elfos e fadas, era o mesmo modo
com que eram olhados.
Os corredores de pedra levaram para uma escadaria que os fez descer ainda mais fundo. Solon havia chegado à conclusão de
que estavam sob a terra, provavelmente sob o vilarejo. Em um esconderijo subterrâneo
Desceram muitos degraus e foram empurrados diretamente para um salão amplo, recoberto por chão de pedras lapidadas e
coloridas. Era um lugar especial onde não havia nada além de chão decorado e paredes recobertas pelas mesmas pedras
decoradas.
Uma média de oito elfos munidos de espadas esperavam por eles. Alma olhou para trás e notou que eram seguidos por fadas e
elfos, que eram atraídos pela curiosidade. Não foram impedidos de entrar, muito menos de participar da reunião que
aconteceria ali.
-Separem a fada do elfo – uma voz foi ouvida, e Alma reconheceu imediatamente.
-Não – ela disse para Solon, pois ele ouviria apenas a sua voz.– Eu sei quem ele é!
Solon não quis responder, mas claro que não a soltou. Manteve as mãos unidas e elevou a voz:
-A fêmea me pertence. Já disso isso. Ela está no cio e não permitirei que outros elfos tenham contato com ela.
Era uma afirmativa plenamente aceita. Uma realidade comum. Elfo algum permitiria que outro tivesse contato com sua noiva,
ou esposa, estando ela em um momento de descontrole hormonal, que principalmente mexia com a libido de machos e fêmeas.
-A fada foi escolhida por mim. Eu a cortejei– a voz se revelou pertencer a um elfo muito bonito e bem vestido. Ele fez um
gesto e foi atendido. Os elfos abriram caminho para que ele surgisse.
Alma reconhecera a voz de Eldor, o elfo psicopata que vinha infernizando sua vida a dias, e notou que o Guardião também o
conhecia, mas pela sua surpresa, tinha aquele espécime como alguém bom.
-Existe um claro impasse aqui– outra voz se fez ouvir.
Era de uma fada mais velha, com uns cinquenta anos. Ela saiu do meio do grupo dos curiosos e falou diretamente para Eldor:
-A fêmea não contradisse o elfo em questão.– apontou Solon– A quem ela pertence afinal?
-O nome da fada é Alma. Eu a escolhi como minha companheira.– Eldor elevou a voz e todos pareceram surpresos e
agraciados com uma bela dádiva– Sim, finalmente terão uma líder para ajuda-los. Uma fada com dom e asas para ensina-los
sobre liberdade. Esse é meu presente para o meu povo.
Alma olhou em volta. Seu povo? Grande mentiroso. Contara-lhe historias mentirosas!
-Fui trazida para cá a força! – ela respondeu, soltando a mão de Solon e aproximando-se de Eldor– Eu disse não para seu
pedido. Disse que não o aceitava como meu elfo e que não queria saber da sua companhia! Eu não sabia que era para isso que
me queria!
-Eu tenho certeza que agora que sabe a magnitude do meu pedido, mudará de ideia– ele disse sorrindo.
-De modo algum! Eu fui trazida a força!
-Nós dois fomos sequestrados– Solon aproximou-se e pousou ambas as mãos em seus ombros, acalmando-a - Trazidos para cá
a força. Alma levou um susto gigantesco sendo amordaçada e vendida como um animal. Foi você quem encomendou o
sequestro dessa fada?– ele exigiu saber e pela expressão dos outros elfos, eles não sabiam disso.
-De modo algum. Meu povo não compactua com sequestros.
-Sei– Solon desdenhou– Baixem as espadas e nos devolvam a liberdade.– ele exigiu.
-De modo algum. Eu digo que a fada me escolheu– Eldor afirmou com veemência.
-Sua palavra não me interessa– Alma afirmou – Sou livre, escolho o que eu quero fazer e quem eu quero! Eu lhe disse não!
Prova disso é que nos trouxe aqui a força! Fui arrancada do chão e jogada em um buraco! Fui amarrada e amordaçada!
Separada do elfo que me acompanhava– apontou Solon– Achei que estivesse...enterrada viva! Crueldade pura! Eu não lhe
disse sim antes e não diria agora nem que minha vida dependesse disso!
A expressão de Eldor deixava claro que sua vida dependia sim, de aceitá-lo.
-Espere– novamente a fada mais velha intrometeu-se– Meu nome é Agra. Sou madrasta de Eldor– apresentou-se– Até poucos
anos atrás era meu marido quem governava nosso povo. agora, cabe aos ombros de Eldor esse fardo. Ele a escolheu, minha
cara jovem, e deve ser grata por essa dádiva. Mas...– ela frisou bem a palavra olhando para o enteado com desconfiança - ...se
a fada escolheu outro elfo que não Eldor, e diz que deseja partir, é nossa obrigação libertá-la imediatamente.
-De modo algum– Eldor negou– Alma está confusa sobre o que deseja. Sobre o que é melhor para ela. Tenho certeza que
depois de descansar e refletir fará a escolha acertada.
-Eu não preciso refletir! Eu quero ir embora daqui!– Ela começou a se exaltar e Solon acalmou-a tomando a palavra:
-Permita que Alma se acalme. Nenhum de nós deseja que ela use seu dom em um momento de descontrole– ele ameaçou.
Sim, era uma ameaça velada. A fada possuía um dom mortal e ele possuía aparente domínio sobre ela. Não era tolo. Sabia que
metade do interesse de Eldor para obter a fêmea referia-se ao seu dom. a chance de possuir uma arma em mãos facilmente
controlável, que o tornaria imbatível.
-O elfo tem razão, meu enteado – Agra disse mansa, traiçoeira– Permita que a fada descanse. Não é o momento para brigas,
pois sua história precisa ser esclarecida junto ao nosso povo. Eles não entendem o que acontece aqui.
Ela lembrou-o que existiam pessoas a quem deviam explicações. Eldor olhou-a como se ela fosse um inseto insignificante que
o atrapalhava em seus planos. Agra parecia muito acostumada a esse tratamento.
-Leve Alma para meus aposentos– Eldor ordenou.
-De modo algum– Solon, que lia os lábios do elfo contrariou– A fada está comigo. É meu direito exigir que ela seja protegida
de outros elfos nesse momento delicado.
-Quer me convencer que é seguro manter uma fada padecente do cio ao seu lado?– Eldor debochou.
-Não. Não tenho essa pretensão. A fada me pertence, me escolheu. O que acontecer entre nós não é da conta de ninguém. Muito
menos sua. Defina agora se somos ou não seus prisioneiros.
Ele havia reparado que mencionar a palavra prisioneiros deixava os aparentes curiosos e observadores fadas e elfos
pressentes em estado de choque. Eles não consideravam essa possibilidade aceitável, por isso, Solon abusava disso para
deixar Eldor em péssima situação.
Era preciso descobrir o que acontecia naquele lugar, que tipo de dominação existia sobre essas pessoas.
-Ordene que levem os dois para um dos aposentos vazios, eles tem o direito de desfrutar de alguma privacidade, afinal, são
nossos hospedes– foi Agra quem sugeriu.
Havia sim muita raiva e antagonismo entre Eldor e Agra e Alma guardou isso no fundo da mente, para ser usado em um futuro
muito próximo.
-Exijo que uma fada os acompanhe e permaneça no quarto para vigiar o cio da fada
– Eldor não abriria mão facilmente de seu desejo obscuro.
-Acontece, que sendo vigiada ou não, eu só faço o que eu quero – ela avisou– Eu sou sua prisioneira. Não importa o quanto
insistam em me chamar de hospede– Alma olhou para os presentes, e avistou a fada verde que se destacava entre todos– Eu
peço ajuda.– ela olhou para cada rosto – Sou prisioneira desse elfo!– apontou Eldor. – prisioneira! Alguém me ajude! Eu
quero sair daqui!
-Porque alguém iria querer voltar lá para cima?– um sussurro vindo de entre os presentes causou desconforto imediato em
Eldor.
-Isso é desnecessário, a fada tem razão – ele disse falsamente constrangido– Peço perdão pelo meu ciúme. Mas eu estou
apaixonado pela fada e morro de pensar que outro a terá.
Agra, sua madrasta ergueu uma sobrancelha no alto da testa, com tanta ironia no olhar que Alma quase se aproximou para
cumprimentá-la por ser capaz de ver que ele mentia, assim como ela via.
-Baixem as armas.– Solon tomou a palavra– Se não somos prisioneiro, não há razão para apontar espadas para nós dois.
Era uma verdade incontestável.
-Nossos pertences devem ser devolvidos– ele disse irritado– Meu bumerangue, minha espada, meu punhal e meu guiso.
-E meu ouro!– a fada mentiu, olhando para Eldor com pura satisfação – Eu carregava um saco repleto de ouro. Muito ouro.
Quero de volta.
Solon não a desmentiu, pois ela dizia desse modo que sabia que Eldor ordenou que fosse sequestrada e pagou por esse
serviço. E agora pagaria mais uma vez.
-Eu lhe ofereço o mundo, Alma. Não um simples guiso.– ele ironizou e Alma virou a face para olhar para o outro lado.
Alma lutou contra o impulso de manda-lo enfiar aquele Guido em um lugar bastante ofensivo. Solon insistia em manter uma
postura dominadora e ela estava começando a chegar ao limite entre o que conseguia aceitar e o que deveria aceitar.
Eldor fingia não conhecer o Guardião. Não contou para ninguém quem eram de verdade. Ela uma fada valiosíssima, uma
fugitiva da clausura acusada de assassinato. Solon, um Guardião sem sua armadura, mas que no mercado negro valia uma
fortuna. Muitos inimigos pagariam o que fosse para obter vingança contra um Guardião.
Agra encerrou a questão ordenando que saíssem do caminho para que ela pudesse guiar os hospedes até seus novos aposentos.
Pela forma como foi atendida, ela primava por alguma autoridade entre aquelas criaturas.
Alma olhou para baixo quando sentiu algo puxar a barra de seu vestido de fada. A roupa estava imunda e ela viu uma fadinha
de cor verde escuro tocando-a.
Sentiu vontade de sentar e chorar.
Foi um sentimento forte demais para aguentar.
Fadas verdes são tidas como raridade. Poucos exemplares existentes e quando uma fada é encontrada, ela decide dividir sua
sorte com outros a sua volta.
Ser tocado espontaneamente por uma fada verde era sinal de sorte para a vida toda. A fadinha afastou-se correndo, pois sua
mãe chamava seu nome.
Solon segurou o braço de alma e a puxou para que lembrasse onde deveriam ir. Ela seguiu ao seu lado. Por falta de escolha.
Unicamente por falta de escolha.

Capítulo 11 Pensando em você


Os corredores eram longos, e recobertos por pedras, alguns corredores em pedras coloridas, outros em pedras feias,
acinzentadas. decorados eram trajeto rotineiro dos moradores corredores eram mantidos para o trato mais braçal, por isso não
necessitavam de boa aparência.

Foram levados por muitos corredores, e foi Agra quem fez um sinal para que os guardas de Eldor parassem e reconhecessem o
lugar como sendo o quarto escolhido por Eldor. Um deles chegou a abrir a boca para reclamar, mas Agra disse com voz séria:

-Este é o quarto perfeito para nossos hospedes. Abra a porta – ordenou e um dos elfos obedeceu.
Ela estendeu a mão para receber a chave e dispensou-os com um olhar de desprezo.
Agra era extremamente antipática. Alma sabia como era ser rotulada desse modo. Afinal, ela própria não primava pela
simpatia mutua.
Eles entraram e Agra fechou a porta logo atrás deles.
Era um quarto pequeno, com uma cama coberta por roupa de cama, tudo em algodão e linho simplório. Um móvel de madeira
em um dos cantos, onde deveriam colocar roupas.
Havia uma lareira em uma das paredes, e Solon foi o primeiro a pensar sobre como deveriam ser os dutos de condução da
fumaça para a superfície. Era um sofisticado sistema subterrâneo. Lembrou-se imediatamente das casinhas do Vilarejo Sem
Fim, sempre com suas chaminés liberando fumaça.
Não eram moradores prendados cozinhando. Não, era apenas um disfarce.
-O Vilarejo Sem Fim não existe, não é?– ele perguntou e Agra não pareceu surpresa com a pergunta.
-Não. Alguns de nós permanecem durante o dia nos casebres. À noite, todos nos encontramos aqui em baixo.
-E qual é a mentira que contam para os outros para justificar a ausência dessas pessoas?– Solon foi direto à ferida.
Sabia por instinto que a maioria dos moradores daquele subterrâneo não sabia da vida dupla do vilarejo.
-Dizemos que é necessário uma vigília constante para proteção de nosso povo. Eles creem que a ausência se explica pela
necessidade de manda-los vigiar as saídas e entradas.
-Quantas pessoas existem aqui em baixo?– Solon insistiu.
Alma estava de pé, imóvel, sem falar nada.
-Oitocentas.– Agra disse, com o olhar firme.– oitocentas e duas, contando vocês dois.– acrescentou.
-De modo algum. Não ficaremos aqui– ele negou.
-Essa decisão não é sua. Infelizmente.– Agra disse olhando para Alma– As fadas do nosso povo perderam a capacidade de
voar, a maioria sequer desenvolve as asas. Faze muitos anos que não vejo uma fada nascida aqui em baixo passar pelo
nascimento, ou padecer do cio.
-Isso quer dizer que as fadas não têm dom?– Alma quis saber.
Solon imaginava que os corredores daquele estranho lugar. Os demais
-Sim, eu sou uma das ultimas a possuir asas e ter um dom. fui escolhida para casarme com o líder do nosso povo quando era
muito jovem, e não sabia de suas ações, assim como todos os outros sequer imaginam o que existe por de trás das próprias
vidas. Eu nunca voei. Nem sei se as minhas asas saberiam fazer isso, depois de uma vida toda sem uso – ela disse em lamento
– Meu dom é pequeno. Eu broto água do chão. Acho que é somente por isso que Eldor ainda não me matou.
Sim, agora Agra chegavam onde Solon esperava que chegasse.
Agra era uma fada de pouca beleza, a tez esbranquiçada, provavelmente por nunca ter sido tocada pela luz do sol. Cabelos
longos trançados e enrolados no alto da cabeça. Era morena, alguns poucos fios mais claros indicando que sua idade era mais
de quarenta anos. Olhos acinzentados, corpo miúdo. Nas costas ela mantinha um par de asas curvadas, em tons amarelados,
provavelmente escurecidos pelos anos de atrofia. Vestia uma túnica longa e bordada com pedrarias. Uma tentativa de
embelezar a si mesma em um mundo de horror? Era possível.
-O que aconteceu com o pai de Eldor? – foi Alma quem se lembrou disso.
-Ele educou Eldor para ser seu sucessor nessa vida que levamos. Quando Eldor fez quinze anos... Eliminou a concorrência e
assumiu seu lugar de líder– disse tensa - Fui poupada, pois como disse meu dom é útil em emergências. E também... Porque
ninguém acredita em mim quando tento falar sobre a vida que existe lá em cima.
-E porque não?– Solon não entendia essa devoção.
-As fadas e elfos que estão aqui... eles nasceram aqui. Não conhecem outra vida. Os primeiros a se refugiarem nesse
esconderijo subterrâneo o fizeram por necessidade. Havia uma guerra acontecendo a mando do Rei Ulder e essa guerra
massacrava todas as fadas. – ela disse com lamento.
-Faz séculos que isso aconteceu– Alma indignou-se– Driana, uma das minhas amigas– disse a Solon– ela sempre lia sobre
esses assuntos e passava horas nos contando...mesmo que não quiséssemos ouvir– era uma indireta sobre ela não gostar muito
de aturar as chatices de Driana– Rei Ulder era um rei caprichoso e invejoso que desejava acabar com a suposta vantagem das
fadas sobre os elfos. Ordenou que todas as fadas fossem aprisionadas e tivessem suas asas cerradas. As que aceitassem a
submissão ao seu poder seriam libertas depois disso, as que não aceitassem... Eram sumariamente mortas. A guerra entre elfos
e fadas foi sangrenta. E durou muitas décadas. Mas acabou sem explicações quando o rei Ulder foi misteriosamente
assassinado em sua alcova...– Alma notou o olhar de Solon.
Ele pensava sobre isso. Sobre ela conhecer a história do rei Ulder. Sobre suas amigas falarem sobre isso. Sobre esse
conhecimento poder ter desencadeado um desejo de repetir o mesmo com rei Isac. Foi uma troca de olhar que apenas os dois
poderiam entender.
-A razão para existir esse lugar foi a melhor possível– Agra explicou– Um esconderijo até a guerra acabar. Uma mascara para
impedir que os olhos do Rei Ulder recaíssem sobre os inocentes. Algumas fadas se sacrificaram, e perderam suas asas,
jurando obediência ao Rei, e voltaram a viver com suas famílias no Vilarejo Sem Fim. Mas era tudo um escudo, uma máscara.
Um modo de manter os outros escondidos e protegidos. Para que centenas de fadas não perdessem suas asas! Para que não
perdêssemos nossos dons! Era o desespero da guerra! E olhe agora como estamos...olhe o que fizeram conosco?– agra abriu
os braços mostrando a si mesma– Antes houvéssemos lutado e perdido a guerra. Não seriamos prisioneiros. Eu sou uma das
poucas que conhece a história real. Não adianta tentar contar para essas fadas e elfos. Eles não acreditam, são a oitava
geração desde os primeiros. Muita coisa se perdeu, inclusive os ideais.
-Eldor é um porco – Alma disse agressiva– Eu soube disso no primeiro momento em que o vi. Sempre me rondando, como um
raptor caçando sua presa. Ele é um assassino. Senti o cheiro de morte nele.– ela dramatizou.
-Em muitos séculos não foi necessário trazer uma fada para baixo. E às vezes em que aconteceu, elas vieram de livre e
espontânea vontade, seduzidas por uma vida de proteção. Eldor deseja mais do que ser líder de um povo subterrâneo. Ele
deseja muito mais. Por isso ele a escolheu. Seu dom será muito útil para seus planos. Eu não sei que planos são esses, mas sei
que ele tem metas que colocam a todos nós em risco.
Solon olhou para a Alma, e então para Agra. Havia acompanhado a conversa, lendo os lábios de Agra, algumas palavras
foram perdidas, ela falava muito rápido, mas ele conseguiu entender praticamente tudo.
-O que nos aguarda daqui para frente?– perguntou a ela.
-Eu não sei. Acredito que Eldor manterá essa brincadeira por algum tempo. Ele não vai desistir– contou.
-Como fujo daqui?– Alma não fez rodeios para saber o mais lhe importava!
-Eu ainda não sei.– Agra foi sincera.
-Quais os meios de sair e entrar nesse lugar?– Solon insistiu.
-Quem pode lhe dizer isso com conhecimento profundo é o Guardião Estevão – ela indicou.
-Guardiões? Existem Guardiões aqui?– Solon surpreendeu-se.
-É o nome que Eldor deu aos cargos de vigia. Meu enteado tem desejos de grandeza e volúpia. Não entende que somos um
povo desgraçado e prisioneiro da própria ignorância. Ele acha que é importante.– disse com pesar na voz.
-E como me aproximo desse elfo?– Solon insistiu.
-Não será difícil. Elfos e fadas precisam trabalhar para manter esse lugar funcionando. Sugiro que conversem e descansem
muito nas próximas horas, pois amanha cedo... Devem ser levados para funções de trabalho. É um elfo grande e forte – Agra
aproximou-se e olhou Solon de alto a baixo– Terá serventia no trabalho pesado. E Estevão estará vigiando-o de perto. Sei que
ele anda desgostoso de Eldor desde que sua esposa fugiu daqui e não foi mais vista. Ele ficou com duas fadinhas órfãs para
criar e nenhuma explicação sobre o que aconteceu de fato. Uma de suas filhas, pois eram três, está desaparecida junto com sua
mãe.
Alma notou a expressão do Guardião imediatamente mudar para algo de desgosto e nojo. Agra não percebeu e seguiu falando:
-A vida aqui é muito simples. Um quarto, água e alimento, não esbanjamos, por isso aproveitem cada refeição e cada punhado
de água que obtiverem. Quem não trabalha, não come. Quem não tem boa saúde não serve para nada e é...fica a cargo de Eldor
decidir o destino. Ele não vai desistir de desfrutar do cio de uma fada, ele nunca obteve isso antes, muito menos desistirá de
ter controle sobre um dom tão útil quanto o seu, fada Alma.
-Meu dom não tem utilidade– ela negou.
-A menos que você tenha vontade de matar e possa aliar o prazer a um dom mortal– ela corrigiu.
Alma sentiu essa verdade no fundo da alma. Sim, era assim que Eldor sentia-se, mas também, era assim que ela se sentia às
vezes.
-Enviarei uma fada de minha confiança com alimento e água. Não devem sair sem permissão. Por enquanto são convidados de
Eldor... Mas sabem que é apenas fachada. São prisioneiros até segunda ordem.
Agra era elegante para falar e se mover, uma fada de classe, uma pena ter uma existência tão inútil e sofrida, vergada aos
desejos de poder alheio.
A porta foi fechada e Solon pegou a chave que estava consigo e trancou-a. Era uma patética proteção, mas era melhor do que
nada.
-Que situação – ele disse, mãos na cintura, fitando Alma com uma duvida no olhar.
-Eu não aceitei Eldor– ela disse, entendendo muito bem o que ele estava pensando
– Eu não disse sim para aquele... Se eu houvesse aceitado sua proteção, porque ele precisaria me sequestrar ou contratar
Caçadores de Fadas? É ultrajante que pense que eu seria capaz de me vender por tão pouco.– disse irritada, cruzando os
braços e afastando-se dele o máximo que pode.
-Está no cio, Alma. Eu não poderia julga-la por fazer escolhas erradas. Esse momento não é fácil para uma fada
desprotegida.– ele foi sincero.
-Não sou uma fada desprotegida–aproximou-se dele e disse olhando em seus olhos, em um desafio – sou uma fada perseguida,
é bem diferente. E o cio... Ele não me afeta. Não estou nem um pouco inclinada a arrancar as roupas e me jogar sobre o
primeiro macho que cruzar meu caminho.
-Não sente as dores do cio?– Solon ficou curioso – Sei de fadas que sofreram dores insuportáveis por não copular durante o
cio.
-Eu passei pelo nascimento das asas. E agora estou ótima.– ela mentiu, não lhe contando do desespero do nascimento, das
horas de sofrimento inesgotável.
Tão pouco quis lhe contar que sentia os calores do cio. Não o tempo todo, pois a raiva a impedia de se concentrar em
qualquer outro sentimento que não fosse ódio e rancor.
-É uma sorte que esteja passando por isso de modo suave– ele ponderou, sentandose na beirada da cama, o corpo cansado –
Será o inferno conter os elfos nesse espaço limitado. Esteja preparada para não andar sozinha por esses corredores. Até
encontrar um modo de nos tirar daqui...terá que aceitar que sou seu elfo dominante e que você me pertence, se eles
desconfiarem que não é desse modo... Sinto lhe dizer, Alma, mas a fuga do reino de Isac será o menor dos seus problemas.
Ela sabia disso, era consciente da desgraça onde estava envolvida.
-Você é um Guardião. É sua obrigação me prender. Me subjulgar. Eu não confio em você.– ela disse, sem esmorecer em sua
expressão de indiferença e raiva.
-Não. Eu não sou um Guardião aqui. Eu sou um elfo aprisionado. E você é uma fada em péssima situação. Baixe sua crista,
fada raivosa. Ou não poderei fazer nada ajuda-la.
Alma concordava com suas palavras, mas não admitiria em voz alta.
-Sabe o que eu acho?– ela perguntou andando pelo quarto de tamanho limitado – Que Eldor não pretendia trazê-lo para cá. Eu
lembro claramente de ter sido pega primeiro e você ter tentado me segurar. Foi isso não foi? Ou foi sonho?
-Foi real. Eu tentei segurá-la. Foi quando caímos os dois.– ele concordou.
-Sua presença é um inconveniente para Eldor. Ele fará de tudo para se livrar de você. O que para mim seria um adianto, pois
pretendia me livrar de você a qualquer momento.– divagou– Não seria mais fácil aceitar Eldor e jogar o Guardião que me
caça aos lobos? Depois, eu aproveito dessa falsa proteção por algum tempo...e então, mato Eldor e tomo o poder. Sim, é um
bom plano esse. Um elfo adormecido é sempre uma presa fácil. Não é de algo assim que me acusam no reino?
O modo como ela falou não deixou duvidas de que pretendia fazer algo assim. Ou que ao menos isso pairava em sua mente. E
que não lhe faltaria coragem uma segunda vez. Solon sempre tendia a pensar o melhor de cada criatura, tentando ver as
qualidades e não os defeitos. Alma era confusa, e um pouco má. Sim, era inegável que ela transitava por um caminho muito
perigoso. A qualquer momento ela poderia se tornar o pior dos monstros, como acontecera com Rainha Santha ou o próprio
Eldor. É assim que o mal se manifesta. Como um pensamento insistente. Como um atraente atalho para livrar-se da dor e
opressão.
Às vezes o mal nasce dentro de um coração, e reside ali uma vida toda. Às vezes, ele se instala e vai crescendo aos poucos.
Solon mediu a fada com pesar.
-E suas amigas? O que elas diriam sobre isso? Acha que elas a apoiariam nessa decisão?– ele perguntou sério.
-E porque não? Veja nossa situação, o que temos a perder?– havia muito ódio em sua voz.
-Eu vi a fada Driana. Ela estava em poder de Acheron, não indeferi na caçada do meu amigo, pois sei que ele acabará cedendo
no final e ouvindo a fada. E ela fala sem parar...– sorriu a essa lembrança - ela não me pareceu ser alguém que concordaria
com suas palavras.
-Você não sabe nada sobre minhas amigas– Alma disse com veneno nas palavras.
-E você sabe? O que elas estão passando nesse exato instante para fugirem da prisão? Para que a captura de uma não
signifique a captura das outras? Tem ideia de como deve ser difícil para uma fada inteligente como Driana se controlar e não
se livrar de Acheron com um plano mirabolante vindo de sua mente privilegiada? Ou, se vocês todas estiverem certas, e
Eleonora realmente for filha de Santha, como deve ser difícil para ela não usar seu dom de controlar o tempo e as forças da
natureza, e simplesmente, causar alguma catástrofe natural que pusessem fim a toda a agonia dela? Como seria muito fácil para
todas elas cruzarem os braços do jeito que você está fazendo nesse instante, e tramar planos mortais para inocentes, apenas
por ser mais fácil do que lutar pela verdade?
Alma descruzou os braços e lutou contra o desejo de avançar sobre ele, arranhar seu rosto inteirinho, e depois, por em pratica
seus arrojados planos de liberdade.
-Não fale comigo. Eu não tenho porque perder meu tempo ouvindo-o.
Estava sendo infantil, é claro que sim.
Solon sorriu, mas não a forçou a falar com ele. Alguns minutos de puro silencio e batidas na porta alertaram da vinda do
alimento e água.
Solon abriu a porta, e ignorou o que a fadinha vestida de azul lhe dizia. Não conseguia acompanhar suas palavras, ela falava
muito rápido e não dava para ler seus lábios.
Alma sorriu irônica e conversou com a fadinha, bem baixinho para que ele não entendesse o que dizia. Pedia a jovem que
tentasse arrumar-lhe roupas limpas e descobrir onde estava o chocalho. Disse-lhe que era seu, um presente dado ao seu elfo
escolhido e que gostaria de tê-lo de volta.
Era uma armadilha, Eldor não poderia negar esse pedido sem parecer uma quebra em sua conduta.
-Apenas os guardas usam espadas– a fada disse, com olhos compridos para suas asas.
-Quantos anos você tem?– Alma lhe perguntou enquanto observava a jovem dispor os pratos e travessas em uma mesa no canto
do quarto.
-Dezenove– ela disse olhando mais uma vez para suas asas.
-É verdade que as fadas nascidas aqui não obtêm suas asas como acontece com as outras, nascida na superfície?
-Eu não sei. O que sei...é que não nascem asas aqui em baixo – ela disse triste.
-E se eu lhe prometer que consigo que suas asas nasçam? Você me ajudaria em tudo que eu precisar enquanto estiver aqui em
baixo?– ofereceu.
A jovem parou de trabalhar fitou-a com desconfiança, negou com a cabeça e quase correu para sair do quarto.
-Ela vai mudar de ideia– disse Solon, que conseguira acompanhar apenas o final da conversa.
-Não se meta nos meus negócios, Guardião. – ela avisou.
-Solon. Chame-me apenas de Solon. E eu a chamarei de Alma. É melhor evitarmos referencias sobre nossas verdadeiras
historias. Nada de usar palavras como Guardião, clausura ou fugitiva. Estamos de acordo sobre isso?– ele tentou uma trégua.
-Fala de esquecermos que você obedece a uma rainha louca que está destruindo minha vida e a vida de minhas amigas?–
ironizou– sim, temos um acordo sobre isso.
Solon relevou seu ataque de mal humor. Levantou e inspecionou a comida, farejando o cheiro e tentando decifrar se havia
alguma coisa estranha no alimento.
-Pode comer, parece seguro. Não sinto cheiro de nenhum veneno conhecido.–ele sugeriu pegando um dos pratos e levando
consigo para a cama.
Alma pegou seu prato, mas permaneceu de pé, comendo em silencio. O alimento era bem cozido, uma espécie de massa feita
com grãos e ervas. Não era algo que escolhesse comer. Não, ela preferia carne suculenta e vinho. Uma preferência tola, pois
raramente tinha a oportunidade de provar alimentos que a agradasse. Na clausura prevalecia a economia. Todo alimento que
viesse para as órfãs seria dividido em pequenas porções que mal saciaria a fome, e então, o excedente serviria de banquete
entre as carcereiras.
Essa lembrança reacendeu o ódio em seu coração. Solon analisava seu rosto, e se impressionou em como a fada poderia se
enraivecer facilmente. Era preciso menos que nada para causar-lhe ódio.
Alma comeu com voracidade, estava faminta, e seu estômago doía por comida. Esqueceu que não estava só, comendo e
bebendo da água fresca que vinha acompanhada por algum tipo de bebida fermentada, que ela nunca havia provado antes. Em
uma jarra havia leite fresco e Alma terminou a refeição bebendo muito do leite, pois era raro provar desse sabor, pois no
Ministério do Rei leite era escasso, e valioso demais para desperdiçar com as fadas da clausura.
Abonou-se de um pão redondo e quentinho que jazia em uma cesta e foi sentar no chão em um canto do quarto, perdida em seus
pensamentos enquanto comia absorta em seus pensamentos.
Solon terminou a refeição, deixou o prato e o copo feito em barro sobre a mesinha e aproximou-se de onde a fada estava
abrindo o pequeno armário conferindo que havia roupas limpas. Duas mudas para cada. Um par de sapatos para cada. Sim,
eles tinham o habito de manter poucos recursos para cada criatura que vivesse naqueles labirintos subterrâneos. Torna-los
dependente de Eldor era um modo de exercer poder sem precisar de força.
Alma terminou de comer e Solon fez um sinal de silêncio para que ela não falasse sobre o assunto. Ele enrolou os pães que
haviam sobrado em um pano que encontrou dentro do armário e escondeu sob a cama.
Sim, era uma boa ideia guardar alimento para o caso de usarem a privação e a fome como arma para forçar a fada a aceitar
Eldor.
Não era a toa que aquele elfo era um Guardião. Tinha boas ideias e compensava sua lesão auditiva com atitudes corretas,
habilidade de luta e muitas ideias brilhantes e bem executadas.
Pelo sim, e pelo não, Alma levantou e bebeu todo o restante do leite que havia na jarra e Solon sorriu:
-Eu pretendia pedir para deixarem o leite aqui.– ele disse sorrindo.– Algum liquido e alimento eles devem manter nos quartos.
-É claro. Eu só...– ela ficou envergonhada, limpou a boca com as costas das mãos e disse– não bebíamos muito leite no
Ministério do Rei.
-As carcereiras são mesquinhas, eu sei -ele a surpreendeu dizendo – Eu conheço algumas delas pessoalmente e posso lhe
dizer, elas não valem muita coisa.
-De onde as conhece?– ficou surpresa com a revelação.
-Uma delas é minha mãe– ele disse sem grande emoção na face. Era apenas um acontecimento na sua vida, não permitia que
isso guiasse seus dias ou lhe causasse magoa.
-Como é possível que uma carcereira da clausura seja mãe de um Guardião? Porque ela viveria numa vida miserável da
clausura se pudesse ter uma família?
-Hum, você não responde minhas perguntas...eu não respondo as suas– ele disse sorrindo, lembrando-a que não lhe contou
sobre a armadura.
-Pode ao menos dizer o nome da infeliz?– insistiu.
-Miquelina.– ele disse, esperando pela surpresa que encontrou em sua face.
-Miquelina? Não é possível!– ela não conteve um sorriso. O primeiro em muito tempo.– É a carcereira
mais...mais...insuportável. Porque ela viveria uma vida tão horrível se tem família?
-No dia em que pudermos fazer e responder perguntas por igual, ficarei feliz em lhe explicar toda a minha vida – Solon
debochou.
Intrigada com o pensamento de Miquelina, a carcereira que mais infernizou sua vida em todos os anos de orfanato, Alma
calou-se e pegou uma das roupas do armário no cantinho do quarto.
Queria e precisava se lavar, mas não havia água para isso. Seu vestido estava completamente encardido. Havia perdido as
sandálias de couro, e estava com os pés cobertos de terra. Seus cabelos estavam um nojo e ela queria muito tomar banho.
Solon reparou em sua intenção clara de se trocar e virou de costas, sem sair da borda da cama. Já vira a fada nua se banhando
no córrego que cortava a Vila dos Desesperados, mas não lhe diria isso, ou seria desrespeitoso quando tentava cativar sua
confiança.
Alma fingiu não se importar em ter companhia ao despir o vestido e usa-lo para tirar o excesso de terra que a cobria da
cabeça aos pés. Vestiu a túnica, incomodada por tolher suas asas. Pegou o sapato de couro e vestiu-o. Era uma espécie de
botinha e ela apreciou-o por ser confortável para andar.
Incomodada com os cabelos, enrolou-os no alto da cabeça e manteve-os em coque, para que o cheiro de imundice não a
incomodasse enquanto dormisse.
Solon continuava de costas, e Alma espiou se ele não estava mesmo olhando. Um pouco decepcionada, Alma aproximou-se da
cama, e deitou:
-Se tentar me tocar eu juro quero grito até os guardas de Eldor invadirem esse quarto e o matarem– ela ameaçou, antes de
fechar os olhos, virar de lado, e encerrar qualquer conversa que pudesse existir.
Solon sorriu e olhou para o corpo delicado deitado na cama, farejando o cio.
Ia ser uma longa noite, pensou. Uma longa noite...

Capítulo 12 Pilar da vida

Na manhã seguinte, foram acordados com batidas frenéticas na porta. Alma levantou primeiro e ficou no canto do quarto,
sentada no chão, escondendo-se de quem estivesse procurando por eles.

Solon abriu a porta e encontrou a mesma ajudante do dia anterior. Ela carregava uma bacia pequena com água.
Solon deixou-a entrar e permaneceu longe, observando-a interagir com Alma.
-Eu odeio esse lugar– disse Alma– Como faço para tomar um banho aqui?
-Existem as casas de banho.– a jovenzinha disse– Mas Eldor disse para leva-la para sua casa de banho particular. É uma
honra desfrutar desse luxo.
-Oh, sim, uma honra – Alma debochou, satisfazendo-se com água para lavar o rosto.
– Como se chama?
-Pía.– a fada disse, olhando para Solon com curiosidade.
-Pía.– Alma repetiu o nome e sorriu– Eu gostaria de lhe contar como é o mundo lá em cima, Pía. Você gostaria de saber?
-Não – ela negou– O mundo lá de cima é feio, escuro, e sangrento.– a menina negou, baixando o rosto.
Era mirrada, com cabelo encaracolado e curtinho, em um tom de castanho idêntico ao de Alma. Era roliça e vestia uma
espécie de turbante, mas no corpo e não na cabeça. Roupa de serviçal.
-Você acha mesmo que eu venho de um lugar tão horrível assim?– tentou confundila.
-Mostre a ela suas asas, Alma– Solon opinou, estrategista como sempre.
Alma ficou de lado e permitiu que suas asas se abrissem. A menina arfou de surpresa e ficou maravilhada.
-Toque nas asas - Solon mandou.
Alma olhou para ele com raiva. Não queria que a tocasse! Timidamente Pía correu os dedos pelas estruturas que formavam
filamentos e curvas e que sustentavam as películas finas e macias de suas asas.
Alma sentiu um arrepio de paixão. Sim, ela estava no cio, e um toque desses era muito estimulador. Solon sorriu, notando o
rubor em suas faces e sabendo muito bem que a culpa era do cio, e não de inclinações para o sexo entre mulheres.
-São lindas. São macias. Você já voo com elas?– Pía perguntou encantada.
-Sim, algumas vezes– Alma afastou-se um pouco e fitou o rosto da jovem.
-E como é...?– ela nem terminou a pergunta.
-É maravilhoso.– contou. Não gostava muito, tinha medo, e não possuía aptidão alguma para voar, mas não diria isso para a
jovem!
-Eu a invejo.– Pía confessou.
-Não deveria invejar uma fada - Solon disse– Existe um mundo lá em cima, um mundo seguro, sem guerras, onde as fadas
nascem, crescem, obtém suas asas e seus dons e vivem felizes- ele claramente deixou de lado os problemas e as dificuldades
que existiam no Monte das Fadas, enaltecendo apenas as qualidades.
-isso não é verdade– Pía negou – O mundo lá em cima é horrível! Uma guerra sangrenta!
-E como pode ter certeza disso?– alma perguntou– Eu lhe dou meu testemunho de que existem lindas florestas, lindos campos e
córregos onde as fadas batem suas asas e alcançam lindos voos... Lugares onde famílias e mais famílias vivem em paz e
harmonia. Problemas existem em todos os lugares... Mas guerra? Não. Não vivemos uma guerra. Rei Ulder morreu a muitos
séculos, e com ele, a guerra teve fim.
-Não – e menina negou.
-Acha que eu minto?– Alma perguntou.
-Eu acho que...que eu não devo achar nada– ela se contradisse– Eu posso levar a bacia?
-Claro – Alma permitiu.
Atrapalhada a menina pegou a bacia e a toalha e disse antes de sair:
-Em poucos minutos virão busca-los para o trabalho.
-Eu a verei ainda hoje, Pía?– Alma quis saber.
-Acho que sim, Agra me recomendou para ensinar-lhe sobre o funcionamento dos labirintos. Devo lhe mostrar nossa vida e
ensiná-la a andar sozinha por aqui.
-Ótimo. Quero ter a chance de lhe contar de onde venho e sobre as minhas asas.
Pía manteve os olhos nas asas, e então, baixou a cabeça e saiu.
-Não se atreva a contar a ela sobre o Ministério do Rei– ele avisou– Eldor sabe que é uma das fadas da clausura, mas não
precisamos que mais deles saibam. Eu não confio nessas pessoas. Existe uma parte deles que compactua com Eldor. Que sabe
como é lá em cima, e mente para os outros. lembre-se disso, Alma. Não sabemos quem é quem.
-Sim.– ela concordou– Você viu como Pía olhava para minhas asas? Será que eu consigo motivar as fadas usando do desejo
de ter asas?
-Acho que pode tentar arrancar informações sigilosas sobre saídas e entradas e o funcionamento dos dutos de ar. Quanto ao
resto desista, melhor não causar falatórios sobre tentativas de fugas.
Alma concordou, mas não disse nada.
-E principalmente...– Solon não resistiu a dizer - ...Não vá a casa de banho particular de Eldor.
-Eu sei cuidar de mim.– ela reclamou.
-Sim, você sabe. Esse é meu medo – ele admitiu.
-O cio me pertence. Talvez se ele obtiver logo o que quer me deixe em paz– resmungou.
Solon parou de calçar o sapato e olhou para ela com olhos de critica:
-Se você entregar-lhe o cio, Eldor perdera o interesse e você estará sujeita a todos os riscos que os outros correm. Conserve o
cio mais um tempo e ele não a matará.
-Bobagem, ele também quer o meu dom. As razões de Eldor são menos físicas, e bem mais ambiciosas. Você só diz isso,
porque é como todos os outros elfos... Quer o cio para si– acusou fria, distante, e cortante como uma lâmina afiada.
-Talvez tenha razão – ele admitiu.
Todos os elfos em um raio de quilômetros, queriam desfrutar do cio da fada. Não era vergonha admitir isso.
-Um lembrete, Alma– Solon segurou seu braço quando ela se aproximou da porta, para abri-la, pois ouvia novas batidas.
Seu olhar era de descaso, pois ela não achava que houvesse mais assuntos a serem discutidos entre eles.
-Esse lugar pode encantá-la.
-É claro que não – ela negou, petulante.– Não existe magia no vilarejo sem fim, é tudo uma armação bem elaborada e real.
Nada de mágico existe aqui!
-Eu falo de outro tipo de encanto. O de fingir que a vida real não existe. É por isso que é tão difícil conversar com Pía e fazê-
la ver a verdade e será impossível convencer os demais com palavras. Viver aqui, com uma aparente proteção, é muito mais
atraente do que estar lá em cima, fugindo de caçadores de recompensa e Guardiões.
-Então porque eu deveria ter medo de ficar aqui?– exigiu saber, pois sem a presença desagradável de Eldor, aquele lugar era
um paraíso para alguém como ela.
-Porque aqui não existem suas amigas, aqui não existe felicidade verdadeira. Aqui existem apenas mentira e provações
desnecessárias. Essas pessoas passam fome e sede, existindo um mundo de opção lá em cima, lembre-se disso, Alma, cada
fada e elfo aprisionado aqui, é como uma fada da clausura presa nas masmorras...quando o mundo lá fora continua abundante e
cheio de vida.
Solon estava certo. Em cada palavra dita havia toda a veracidade da situação. Baixando os olhos, Alma atendeu a porta. Eram
dois elfos. Solon tomou seu lugar, mantendo-a afastada deles.
Um dos elfos mantinha os olhos fixos na fada, cada pelo de seu corpo eriçado, em posição de luta. Solon não duvidava que
pudesse perder a razão a qualquer momento e ataca-lo, em uma disputa pela fêmea no cio.
O outro elfo, mais calmo, falou:
-Eldor os aguarda no pavilhão central.
-Estamos prontos– Solon avisou e pegou Alma pela mão outra vez.
Ele fazia muito isso, e ela lutou para não rechaça-lo e escancarar diante de todos que não pertencia a ele. Que na verdade não
possuía dono algum.
Desta vez percorreram um atalho, e Alma apertou a mão de Solon com mais força, sem notar, ao entrarem em um amplo salão
recoberto por pedras coloridas. Havia muitas mesas e bancos de madeiras e centenas de pessoas. Pelo cheiro de pão e leite,
ela imaginou que era um salão para refeições.
O elfo que parecia mais abalado pela fada, agarrou-a pelo braço e tentou leva-la. Alma puxou o braço de volta e encarou-o:
-Se ousar me agarrar outra vez desse jeito eu juro que estouro seus tímpanos– ela grunhiu e afastou-se dele.
Solon não gostou nada de vê-la fazendo ameaças.
-Fique quieta.– ele mandou e ela forçou a raiva a ceder espaço para as ordens de Solon.
-A fada deve sentar ao lado de Eldor– um deles disse e Alma reparou na mesa central, que estava entre as demais, onde Agra
e mais alguns elfos e fadas tinham o privilegio de ocupar espaços de honra.
Ao lado de Eldor um espaço vazio.
-Eu não me importo com as ordens que recebeu. A fêmea sentará ao meu lado.– ele avisou e a puxou para longe deles.
Havia um banco vazio em um canto recluso entre os demais bancos.
-Continue me segurando como se eu fosse sua prisioneira e eles duvidarão da minha vontade– ela avisou e Solon soltou-a.
-Sinto muito – disse tenso - Odeio essa situação.
Alma entendia perfeitamente seu sentimento. Amenizou a expressão e tocou espontaneamente no braço do elfo.
-Farei isso para minguar com os boatos– avisou, como quem diz para não se acostumar com isso.
Não eram amigos ou estavam no mesmo lado. Eram inimigos, temporariamente unidos pelo desejo de fuga.
Alma sentou ao seu lado e correu os olhos sobre os elfos e fadas em torno. Todos olhavam para eles. Ser o foco de toda
atenção, sabendo muito bem o que passava pela mente de cada um, era desolador. Alma baixou a cabeça, envergonhada de seu
estado. Seu cheiro deixava os elfos atentos e as fada incomodadas. O que era suficientemente ruim ao ar livre, era ainda pior
em um espaço limitado.
Solon observou a fadinha Pía na companhia de outra fada maior, mais alta e menos sorridente, servir pão e um liquido quente,
parecido com chá, porém bastante amargo.
Eles comeram e beberam com voracidade. Alma até esqueceu-se dele, e da situação. Era a necessidade de se alimentar
falando mais alto.
-Preste atenção na companhia de Pía– ele sussurrou, enquanto fingia que comia.
Alma procurou as duas com os olhos até encontrar a fada morena e de olhos verdes olhando para os dois fortuitamente,
enquanto servia Eldor, no centro do pavilhão.
-O que tem ela?– quis saber.
-Faça a mesma proposta que fez a Pía. Ela está curiosa e incomodada com a vida aqui dentro. Olhe o modo desleixado com
que serve seu líder– ele não tirava os olhos de sobre a mesa do líder.
Alma não pode deixar de notar o mesmo. Dificilmente um seguidor dócil e feliz derramaria liquido quente na mesa do seu
líder e limparia com a manga da roupa, ou ficaria tão desatento a ponto de precisarem gritar para que ela o servisse. E quando
isso acontecesse, em vez de vergonha ou timidez, ela ostentou um olhar superior como alguém que acha que isso tudo é
temporário.
-Eu tenho pensando em como vai ser quando notarem que você é...? - ela não quis usar a palavra‘surdo’.
Solon olhou-a com estranheza.
-Como tem sido nos último dez anos da minha vida... Normal– ele desdenhou sua pergunta.
-Não se faça de desentendido! Sabe do que falo. Eles irão tentar usar isso contra você. Se o meu elfo dominante estiver
morto...eles me pegam– ela disse convencida.
-Subestima meu potencial, Alma.– ele sorriu nem um pouco abalado pelo seu medo.
-Que seja do seu jeito – ela não insistiu na conversa, embora estivesse incomodada com a perspectiva de ficar só outra vez.
Era devastador a sensação de desamparo.
Ela pensou na velha duende. Deveria ter permanecido com ela. Que ideia estúpida ter salvado a vida do guardião e com isso
destruído seu esconderijo perfeito!
Eldor cochichava algo no ouvido da jovem, que de má vontade andou entre as mesas, em direção aos dois. Posicionou-se atrás
dos dois.
-O que você quer?– perguntou Alma nada simpática.
-Fui designada para cuidar do bem estar da escolhida de Eldor– ela disse com profundo rancor na voz.
-Eu prefiro Pía...– notando o modo carregado de censura com que Solon a fitou, completou– ajude-a a cuidar do meu bem
estar. Agradei-me dela.
A jovem olhou-a com rancor descarado, afastou-se e quando regressou trazia Pía.
-Estamos a sua disposição – ela disse com falsa submissão.
-Como se chama?– perguntou a ela.
-Anastácia– respondeu de modo seco, sem olhar para ela.
-Pois bem, Anastácia, eu quero que você faça algo para mim– pediu com satisfação na voz.– Eu quero que vá até seu líder
Eldor e diga a ele para parar de olhar na minha direção, pois não pretendo acasalar com ele. Que guarde seus ímpetos para
quem tenha interesse. E que usufrua muito de seu poder nos próximos dias...pois eu pretendo acabar com ele antes de
conseguir fugir desse inferno.
Anastácia olhou para ela como quem olha para alguém louco. Então, o que parecia um sorriso surgiu em seu olhar. Pía tentou
segurá-la, assustada pela coragem de sua amiga em dirigir-se para o líder.
Anastácia chegou a mesa central, curvou-se e cochichou o recado no ouvido de Eldor. Ele olhou para Alma com surpresa e ela
sorriu, enquanto bebia o máximo possível daquele liquido estranho, de gosto amargo.
-Ótimo – Solon disse de mau humor– Agora você conseguiu atiça-lo ainda mais.
Alma não acreditou no que ouvia.
-Deve saber, fada estranha, que ao espezinhar um macho, você o atiça a conquistar e subjugá-la. – alfinetou-a.
-Não me chame de estranha– ela grunhiu ofendida.
Sabia que era estranha, mas não queria ouvir isso!
-Então pare de comportar-se como uma criança mimada.– ele reclamou.
-Brigue comigo.– ela alfinetou, batendo os talheres– Quer que todos vejam o quanto nos odiamos?
-Eu não a odeio, Alma– Solon disse surpreso – Deveria saber depois do presente que enviei.
-Presente? Que presente?– perguntei num impulso.
-Os pergaminhos e as tintas.– ele disse rápido, ofendido por ela não lembrar - Tubã entregou o presente, ele não é mentiroso.
Isso faz meses. Muito antes das acusações. Era uma oferta de apreço.
-Eu nunca recebi um presente na vida – disse furiosa– Não tente me enganar.
-Eu enviei papel e tintas -ele segurou seu punho, mantendo-a sentada na cadeira, pois usaria força se fosse necessário, mas não
queria fazer isso. Era necessário que ela se contivesse e permanecesse ao seu lado, para não levantar suspeitas sobre a
afeição entre eles dois.– Eu vi como desenhava as paisagens quando ficava com suas amigas nos prados. Elas brincavam e se
divertiam...e você preferia o desenho. Achei que a agradaria.
-Está mentindo. Eu nunca recebi um presente em toda minha vida.– disse lutando para não avançar sobre ele e matá-lo pela
audácia de mexer com esse sentimento tão cruel que machucava dentro de seu coração.
Eleonora, Driana e Joan sempre a presenteavam com flores, folhas, beijos e abraços. Eram os únicos presentes que elas
conheciam. Não possuíam bens para presentear. Vez ou outra Reina, mãe do Primeiro Guardião Egan, protetora de Eleonora,
trazia roupas e sapatos, mas não eram presentes, eram provisões para quem vivia passando tanta carência de tudo!
Tubã nunca entregou um presente para ela! Nunca! O pobre infeliz evitava presentear Eleonora, sua preferida, pois não queria
magoar a todas elas. Ter sentimentos de namoro por Eleonora não diminuía o amor de irmão que sentia pelas demais e jamais
poderia escolher entre uma ou outra.
A única vez que Tubã trouxera um presente, fora a muitos meses, quando trouxera tintas e papel para Driana a mando de um
admirador secreto. Eram folhas para suas escritas. Driana gostava tanto de escrever! Depois disso, Tubã nunca mais falou do
assunto e elas deduziram que o admirador secreto havia perdido o interesse na infeliz fada da clausura e Tubã não tinha
coragem de lhes contar.
Alma olhou para o guardião com surpresa ao pensar que talvez um engano pudesse ter acontecido. Seria possível Tubã ter se
confundido com a fada presenteada? E esse engano, e silencio, houvesse desmotivado o Guardião a insistir?
Ela o olhou com tanto horror nos olhos, que Solon olhou para outro lado. Sim, saber de seu interesse lhe causava horror. Podia
acontecer. Ele sabia que muitas fadas poderiam preferir elfos completos e não querer se aventurar por uma vida muitas vezes
difícil. Ele era quase surdo. Era fato. Podia lidar com isso. Mas sua companheira talvez não.
Anastácia voltou e disse com voz mansa, repetindo as palavras de seu líder:
-Eldor solicita que o encontre mais tarde para uma conversa. Seu acompanhante é bem vindo.– olhou para Solon com
petulância.
-Pois diga a seu líder que se não obter meus pertences de volta, não me dignarei a dirigir uma palavra que seja em sua
direção. Não tolero falta de respeito, e estou no meu limite com esse lugar.
Anastácia parecia deveras contente em retornar para junto de Eldor e causar intrigas. Era bom saber que a jovem era inclinada
a uma boa intriga.
Pía observava tudo calada. Alma olhou para ela com repreensão.
-Deve me acompanhar agora– Anastácia voltou dizendo – As mulheres seguiram para o trabalho. Os homens também.
-Não vou erguer um dedo para trabalhar– ela avisou– Não sou uma convidada. Fui sequestrada e trazia a força.– cruzou os
braços emburrada.
-Cale a boca e siga as ordens– Solon disse com autoridade.
Sim, Alma queria arrancar-lhe a cabeça e servir d jantar para o primeiro raptor que encontrasse pela frente. Estava escrito em
sua face.
Obedecê-lo era apenas um indicio de sua submissão. E foi por isso que ela seguiu as duas fadas. Para que todos soubesse que
obedecia Solon.
Foi preciso muita paciência para andar por aqueles longos e sinuosos corredores, ignorando que estava a metros do solo
firme, com camadas e mais acamadas de terra sobre sua cabeça. Era um pouco frustrante saber que estava longe do ar puro e
do sol. Anastácia andava um pouco mais a frente, com passadas rápidas e compassadas.
-Eu gostaria de ver Agra.– ela disse para chamar atenção da fada.
-Eu pensei que não quisesse ser a escolhida de Eldor– Anastácia respondeu com arrogância– As fadas comuns, não tem direito
de escolher quando verão Agra.
-Sim, mas eu não sou uma fada comum, eu sou uma prisioneira. Não há compaixão por uma fada prisioneira?
Anastácia olhou-a com azedume, mas seus olhos a contradiziam.
-Agra está recolhida, ela sempre se deita para descansar após o desjejum.
Ou seja, ela era prisioneira em seu quarto. Seu transito livre era mera ilusão. Ela era mantida em seus aposentos quando não
interessava a Eldor sua presença.
-Para onde estão me levando?– perguntou.
-Oh, Eldor ordenou que a levasse para um banho com toda a privacidade que a futura esposa do líder merece.– Pía disse
empolgada– depois, escolherá uma bela roupa para seu encontro mais tarde com ele!
Alma sentiu vontade de gargalhar. Conteve-se por duas razões bastante distintas. A primeira, e soberana, era a necessidade
punge de um banho longo e caprichado. E a segunda, não menos importante, era a oportunidade de estar frente a frente com
Eldor para dizer-lhe exatamente o que aconteceria se não a libertasse logo.
O faria entender o risco que corria. E faria isso do pior modo possível!
Elas cruzaram por alguns elfos, e o modo como eles olharam para ela era de dar medo. Alguns deles seguiram-nas de perto, e
era claro que não conseguiam se conter.
Foi preciso Anastácia trancar a porta que separava o amplo salão de banho dos corredores, para afugentar os elfos.
-Eu não sei quanto tempo poderá viver aqui em baixo fedendo a cio – Anastácia disse, e ao reparar no que dissera, correu
para se afastar com a suposta desculpa de preparar o banho.
A casa de banho era uma imensa câmara de pedras, com uma piscina de águas translucidas, refletindo o colorido das pedras
que cobriam seu fundo.
Anastácia referia-se ao lugar ondevivia como sendo ‘em baixo’, como se soubesse que havia um ‘em cima’.
-Já esteve lá em cima?– perguntou-lhe apesar de Anastácia correr de um lado ao outro, trazendo uma cestinha com sais de
banho e potes.
Ela ergueu os olhos verdes, olhos traiçoeiros, e respondeu:
-Não.– mentia.
Era nítido que mentia.
-Pía sabe que já esteve lá em cima?– insistiu, observando a outra fada procurando por toalhas e panos limpos.
-Eu nunca estive lá em cima– Anastácia reafirmou, mas seus olhos negavam essa afirmativa.
Alma não insistiu, pois Pía voltava para junto delas, a fadinha começou a despir sua túnica e Alma deixou. Sabia que no
castelo de Isac era normal os nobres serem despidos e tratados com todo esse luxo. Era impressionante que Eldor possuísse a
prepotência de achar que merecia o mesmo.
Nua, Alma soltou os longos cabelos castanhos e desceu os degraus até a água. Gemeu de prazer quando entrou em contato com
a água gelada. Não sentia frio, pelo contrario, sentia um calor infernal por conta do cio. Não era o tempo todo que sentia-se
assim.
Ficava mais difícil lidar com esse sentimento desde que passara a estar ao lado de um elfo o tempo todo. Fechou os olhos e
mergulhou na água límpida, nadando por alguns instantes.
A piscina era funda e larga o bastante para permitir algumas braçadas. Suas asas farfalharam sob a água e ela sabia que não
emitiria som desse modo. Sim, era instintivo, ela sabia que não aconteceria.
Sorrindo sob a água, Alma abriu os olhos, e fitou as pedras coloridas que cobriam o fundo e as laterais da piscina.
Quando emergiu sentia-se limpa e fresca. Flutuou no centro da piscina, e procurou pela imagem das duas fadas.
-Porque não entram na água?– ela perguntou, precisando ganhar a confiança de Pía.
-Não somos autorizadas– Pía confessou– A casa de banho coletiva é o único lugar onde os inferiores podem se banhar–
contou– Essa casa em especial pertence a Agra. Antes dela, pertenceu as outras escolhidas do líder. Sempre há pelo menos
duas escolhidas em cada reinado. Você é a primeira que Eldor escolheu.– contou com orgulho.
-Inferiores? E porque vocês são inferiores? Não vivem todos aqui, e trabalham para gerar água, alimento e algum conforto? O
que os faz inferiores?– perguntou para atiçar Anastácia que calada, andava pelos cantos, como uma cobra peçonhenta que
espreita todas as possibilidades antes de palpitar.
Claro que Pía não ousaria responder tal questão.
-Ninguém verá se você entrar - Alma sugeriu– Tão pouco eu contarei.
Pía olhou para Anastácia, e tornou a negar com um movimento da cabeça.
-Se as duas entrarem...não poderão dedurar uma a outra sem se ariscar– Alma sugeriu e voltou a mergulhar, deixando que as
duas decidissem sozinhas.
Quando emergiu descobriu que as fadas se despiam. Sorriu e voltou a mergulhar, emergindo um instante mais tarde.
Pía mergulhou e começou a nadar, feliz como uma criança ao ganhar um almejado presente.
Alma aproximou-se e segurou o braço de Anastácia antes que ela fizesse o mesmo. A fada era morena, cabelos longos e belos
olhos verdes. Era linda e seu corpo muito bem feito. Era também egoísta e traiçoeira, Alma apenas não sabia se isso era bom
ou não.
-Como faço para sair e entrar sem ser vista?– ela perguntou direta, sem rodeios.
Anastácia puxou o braço e sorriu convencida:
-Essa informação custa caro.– ela avisou.
-Mesmo? Como é possível que saiba como sair e não tenha obtido suas asas?– Alma perguntou o obvio. Nas costas da fada
havia marcas do nascimento que não se concretizara. Apenas marcas vermelhas. Ela obtivera o começo das dores, mas não
suas asas.
-Quando eu descobri como sair desse inferno... Já era tarde demais para mim– Anastácia cravou os olhos em Pía que nadava
alheia a conversa– Cuidado com ela – referia-se a fada– é uma criatura muito boa e boba. Fácil de manipular.
Alma entendia isso. Pía poderia entregar um segredo mesmo sem a intenção de fazer o mal.
-Era tarde demais para você. Mas havia alguém que ainda poderia ter sua chance?– insistiu.
-Sim– ela concordou e baixou a cabeça diante de uma lembrança triste – Não conte para ninguém, ou Eldor nos mata.– ela
disse tensa, boa parte da sua rebeldia indo embora
– Minha irmã possuía três filhas. A mais velha começou a sentir as dores do nascimento. Foi nessa época que eu descobri
como sair daqui. Que eu descobri todas as mentiras...– ela engoliu em seco – Ela fugiu com as meninas.
-E o que aconteceu com elas?– imaginava a desgraça que deveria ter se abatido sobre aquela família.
-Eu não sei. Eldor trouxe de volta as duas menores, mas não há sinal da minha irmã ou da minha sobrinha. Eu tenho certeza que
ele lhes fez mal. Meu cunhado... Estevão, está arrasado. É o mais fiel seguidor de Eldor. Tão enganado, o pobre infeliz. Ele
precisa de ajuda para criar as meninas que restaram e não suspeita de nada errado sobre Eldor. Ele acha que elas foram
levadas por invasores. Veja a que ponto chega a credulidade dessa gente – disse irritadíssima com a mente limitada dos seus
conterrâneos.
Alma entendia esse sentimento.
-É mulher do seu cunhado?– perguntou sabendo qual seria a resposta.
-Ainda não. Mas a decisão é a mais acertada, eu não tenho quem cuide de mim, e ele precisa de ajuda com as meninas. E elas
são minha família, meu sangue. É um destino triste, pois eu sei o que existe lá em cima. Eu poderia ter subido sozinha,
sabe...eu poderia ter feito isso. Mas deixei que elas fossem no meu lugar. Perdi minha chance e elas estão...
– suas palavras morreram em sua boca e ela voltou a mergulhar.
Alma não insistiu mais. Guardou cada palavra dita e armazenou em sua memória.
Ficou observando-as nadar. Metade do belo corpo para fora da água, cabelos molhados rentes a sua cabeça. Asas abertas,
inquietas, farfalhando muito de leve, enquanto pensava sobre contar tudo isso a Solon o mais rápido possível.
Alma não gostou de estar pensando isso. Desde quando ele era seu amigo ou cúmplice? Ele era um Guardião. Um pau
mandado da rainha que desgraçou sua vida e a vida de suas amigas. Mas era também um elfo, e cheirava a virilidade.
Ela havia notado isso na noite passada. Ele cheirava bem, um cheiro peculiar de madeira, suor e ervas, como se estivesse
sempre perfumado, o que ela sabia que não era verdade, pois os dois estavam imundos.
Alma banhou a cabeça com água e fechou os olhos, relaxando totalmente, e foi nesse momento que uma cosia aconteceu. Uma
inesperada quentura varreu cada célula do seu corpo e Alma se assustou, achando que estava em uma fogueira ou algo do
gênero.
Era algo dentro de si. Um calor escaldante. O sangue correndo forte em suas veias, os pensamentos invadidos pela lembrança
do corpo nu do elfo enquanto cuidava dele na cabana da velha duende.
Solon segurando suas mãos. Afastando terra da sua testa, contendo sua fúria...o hálito quente em seu pescoço a voz macia em
seu ouvido...
Alma mergulhou para não enlouquecer. Era o cio martelando em sua mente, e entorpecendo seu corpo. Era o cio. Apenas e
somente o cio.
Agarrando-se a essa verdade, sobretudo exigindo que sua mente não esquecesse que era tudo culpa da Rainha Santha, Alma
conseguiu bloquear aqueles sentimentos incontroláveis.

Capítulo 13 Lados opostos

Solon observava o ambiente com olhos atentos e principalmente olhos perspicazes. Precisava entender o funcionamento do
lugar para conseguir fugir rapidamente. Alguns servos de Eldor olhavam-no de modo estranho. Ele não duvidava nada que a
ordem fosse abatê-lo em segredo. Mais isso não aconteceria naquele momento. Seria muito estranho se o elfo dominante da
fada Alma simplesmente desaparecesse justamente enquanto a fada estava inconsolável e indignada com seu aparente
sequestro.

O elfo Estevão mostrou-lhe todo o funcionamento e Solon não demorou para simpatizar com o elfo. Se ele notou sua
dificuldade em ouvir, não demonstrou, embora Solon tivesse reparado que ele passara a falar bem mais alto depois de um
tempo de conversa.

Não era alguém sem coração e isso era bom, pois pessoas frias e indiferentes são sempre complicadas de lidar.
Solon foi levado para um corredor escuro e fedorento, onde as pedras coloridas desapareceram, assim como as pedras
escuras que recobriam alguns corredores de menor importância, e as paredes eram apenas de terra batida. Solon pousou uma
das mãos em uma dessas paredes, sentindo a terra, a umidade, o frescor. Gostava da natureza e estava incomodado em ficar
preso ali embaixo.
-Não sentem falta do sol?– perguntou a Estevão enquanto andavam lado a lado. O elfo carregava espada e outras armas na
cintura, e era alto, bem mais que Solon, bastante magro e com feições simplórias, não era muito bonito, mas deveria ser
agradável para os olhos de uma fada.
-Poucos aqui conhecem a luz do sol– contou– Eu mesmo, estive poucas vezes do outro lado.
-E como fazem para que todos acreditem que existe mágica no vilarejo?– perguntou interessado.
Estevão sorriu e maneou a cabeça, contando com orgulho:
-Sob o assoalho de cada casebre existe uma passagem secreta. Exatamente como a passagem por onde foram trazidos para
cá.– ele explicou– É um sistema simples. Usado para transportar alimento e outras necessidades que tenhamos.
-Sim, eu vi que não falta alimento ou água. Eu preciso dizer, é um sistema interessante de vida. Eu apreciaria e até apoiaria
essa escolha...caso fosse baseada em total conhecimento. Não sou a favor do alheamento total.
-Eu já estive lá fora. Não é seguro– Estevão contrariou.
-É seguro. Tanto quanto aqui em baixo. Acaso aqui não existem crimes?– duvidou.
Estevão seguiu olhando para frente, sem olhar em sua direção, mas pensava em sua pergunta.
-Possuímos leis severas para coibir certos ímpetos– ele confessou.
-Conte-me sobre isso – ele pediu e Estevão parou e virou-o com seriedade.
-Somos simples, Solon. Não existe sofisticação em nossa vida. Já é tudo difícil aqui em baixo, não complicamos o que já
difícil. Existem cinco leis e é o suficiente para manter a paz. Não roubar. Não tocar em uma fêmea que não lhe pertença. Não
causar dano ao patrimônio alheio e não matar.
-E qual é a quinta lei?– já sabia a resposta, mas queria ouvir.
-Não questionar seu líder. Neste momento nosso líder é Eldor e sua vontade é nossa lei.
-E quem julga esses crimes? Quando eventualmente acontece um crime, quem julga o assassino ou ladrão? O líder, suponho
eu.
-Sim, o líder.– ele concordou tornando a andar.
-Porque estamos indo por esses lados? Que tipo de trabalho terei que desempenhar?
-Estamos construindo um novo sistema de dutos. Precisamos de mais quartos e aumentar áreas de banho e alimento. Estoque
de alimento é necessário, pois estamos crescendo. Muitas fadas estão prenhes e muitas se casaram esse ano, no total de
noventa e seis fadas infantas que serão casadas ainda esse ano. O que nos renderá um aumento de população para o próximo
ano.
-Fala com orgulho. Isso não é comum?– Solon perguntou olhando em torno, analisando a estrutura construída.
Por ser recente poderia ser a região mais frágil e por consequência, mais acessível para uma fuga.
-Existiram anos em que nenhuma criança nasceu. Tempos difíceis onde foi preciso subir a superfície e atrair interessados em
fugir da guerra e se abrigar no subsolo. O pai de Eldor, nosso antigo líder...ele era muito bom em convencer as pessoas a
abrirem mão do medo e do sofrimento e se abrigarem aqui em baixo – contou com orgulho.
-Eu imagino – Solon ironizou. Nem perderia tempo explicando ao elfo que não existia guerra alguma.– E o que acontecia se
nenhum elfo ou fada desejasse viver no subsolo? O que fariam para garantir a sobrevivência de seu povo?
Estevão não falou sobre isso, mas pelo curvar de sua testa em preocupação ele pensava sobre as barbáries que seriam
necessárias para assegurar a sobrevivência, e que isso não seria necessário se vivessem lá em cima.
Eles finalmente chegaram a um corredor largo, onde outros elfos estavam trabalhando. Solon imaginava que Eldor fosse
mantê-lo longe de Alma o dia todo, e sobretudo, em um trabalho estafante. Não tinha ilusões sobre isso, por isso não foi
surpresa quando Estevão lhe entregou uma ferramenta e o colocou para quebrar pedras e cavar mais um dos tuneis que eram
abertos naquela direção.
Na companhia de outros elfos de posição inferior dentro do clã, Solon passou as próximas horas do dia suado, calorento e
cavando como um condenado, pensando em onde estaria a fada. Alma sabia se cuidar, isso ele tinha certeza.
O que o assustava mesmo, era se ela estaria ou não lidando bem com toda aquela inusitada situação...

Após o banho relaxante e de passar boa parte da manhã atirada em uma piscina de águas límpidas e calmantes, Alma
descansou e relaxou deitada em uma esteira, ao lado da piscina, desfrutando de um relaxamento nunca antes sentido. Sim, ela
gostava de ser paparicada.

Foi Anastácia quem a ajudou a vestir uma roupa coberta de pedrarias preciosas. Um vestido sem mangas tomara que caia, com
orifícios para encaixar suas asas. Foi engraçado ver a menina lidar com suas asas, pois não possuía habito de lidar com as
preciosas asas de uma fada.

Pensativa, ela olhou para sua amiga Pía que ainda não obtivera sua chance de ser agraciada por asas. Havia saudosismos,
pensando em si mesma, e em sua chance perdida, e também, em tantas outras fadas que perderiam essa chance.

Alma sorriu como uma criança contente ao calçar sapatos costurados em couro delicado e macio. A camurça fez cócegas nas
solas dos pés e ela abriu um lindo sorriso para as duas ajudantes. Pía se dispôs a secar sua longa cabeleira e trançou duas
finas tranças em sua testa, prendendo-as na parte de trás da cabeça, permitindo que a cabeleira ficasse solta e macia em seus
ombros, enquanto sua testa era adornada com uma corente de ouro.

-Nunca vesti algo assim tão bonito – ela confidenciou.


-Eldor é muito generoso com quem o agrada– Pía disse alcoviteira.
-Hum, com quem faz o que ele quer, você diz.– alfinetou, encantada pela beleza do tecido da roupa.

Anastácia provavelmente retiradas dos confins da terra, pós cavavam em camadas profundas. Prendeu em seu pescoço e Alma
tocou a joia, sentindo o metal gelado nos dedos.
-Está linda. Ele ficará encantando com sua beleza – disse Pía orgulhosa de ter ajudado a prepara-la para seu líder.
-Me diga, porque ele escolheu alguém de fora e não uma fada daqui? Será que nenhum de vocês merece essa honra?– criou
uma dúvida na mente de Pía quando fez essa pergunta, tinha certeza disso!
-As ordens são de leva-la para um almoço privativo. Mais tarde, deve ser levada para a companhia de Eldor. – Pía disse
mudando de assunto.
-Almoço privativo? Eldor é mesmo um porco trapaceiro– disse incomodada– Estou pronta para um almoço privativo – ela
ironizou e por incrível que pudesse parecer, Pía achou bom ouvir isso. Sua mente corrompida pelas mentiras que ouviu a vida
toda, desde o seu nascimento.
Alma foi levada para um salão ainda maior que a casa de banho. Possuía uma única mesa longa, em madeira nobre, coberta de
louças nobres. Alma sentou na cabeceira, sendo servida, como se fosse uma rainha.
Comida farta, abundância de vinho, nada de vinho aguado e mal cheiroso. Não, era vinho de primeira qualidade! Comida bem
temperada, bem feita e caprichada! Ela comeu com prazer, tentando esquecer a escassez de alimento do Ministério do Rei,
quando na maioria das vezes ia dormir com fome, ouvindo a barriga roncar. E não era apenas a sua, a barriga de todas as órfãs
roncavam de fome a noite toda.
Ela devorou o almoço e quando Pía retirou uma cesta de pães de sobre a mesa para colocar a sobremesa, Alma segurou usa
mão:
-Pode levar isso para meu quarto, por favor?
-Por quê? – Pía perguntou imediatamente.
-Eu tenho fome em horários inesperados– mentiu.
É claro que Pía atentaria agradar a escolhida do líder. Alma pretendia armazenar alimento, como sugerira Solon.
Pensar em quando a paciência de Eldor chegasse ao fim. Sozinha com Anastácia, Alma disse:
trouxe um colar gigantesco feito em pedras coloridas, naturais e
-Então, qual o plano de Eldor para esta noite? - ela retirava um pedaço de doce de um tacho e mordia, enquanto encarava a
fada de olhar traiçoeiro. Anastácia sorriu e cochichou, pois apesar de estarem sozinhas, ela tinha medo de ser ouvida contando
segredos de seu líder.
-Ele pretende que seu macho seja ferido em um ‘acidente’ nos corredores novos. Isso deve acontecer amanhã a noite, para que
não haja suspeitas. Para esta noite, pretende lhe enviar um presente e então, mostrar a todos como ele cuida bem de sua fêmea
escolhida– apontou as roupas.
-É realmente adorável– ela disse enojada.– E seu cunhado? Estará ao seu lado na mesa de jantar esta noite?
Alma atingiu o alvo. Anastácia odiava a ideia de deitar-se com seu próprio cunhado, para ajudar na crianção de suas
sobrinhas. Ela queria a liberdade, mesmo que essa liberdade a fizesse escolher o cunhado. Queria ter direito a escolha. Queria
ver as sobrinhas com suas asas. Quem sabe procurar a irmã e a sobrinha desaparecida e encontralas com vida?
-Você é uma fêmea muito cruel– disse Anastácia entre dentes, magoada.
Sim, pensou Alma. Ela nunca foi um cordeirinho de bondade. Se magoar Anastácia era o único modo de atiça-la contra Eldor,
e isso poderia ajudar a conquistar sua chance de sair daquele lugar...bem, então, ela faria isso e coisa bem pior.
Uma hora mais tarde ela foi conduzida para uma área de convívio comunitário. Muitas fadas e suas crias, brincavam e liam em
uma sala especial para a educação dos pequenos. Alma ficou olhando para aquelas criaturas com superioridade.
E elas lhe retribuíam esse olhar. O olhar da escolhida do líder era sombrio e elas sentiam isso em seus corações.
Não era por causa da maldade, e sim, por saber o que de fato acontecia naquele lugar que tornava Alma tão seca e distante.
Ela viu Agra em determinado momento, mas a fada não a procurou.
Foi obrigada a permanecer ali por muito tempo apenas assistindo a interação entre fadas e suas crias. Era um modo sórdido de
seduzir uma fada ofertando proteção e uma vida calma e serena ao lado de seus proventos. O único defeito nesse mundo
perfeito criado por Eldor, era a mentira gigantesca que essas criaturas viviam, e que a natureza encontrara um modo de
boicotar tornando evidente quando as asas se recusavam a nascer.
Os corpos precisavam da vida natural, da luz do sol, da chuva, do convívio com o que é mágico. Observa-los causou efeito
contrario em Alma que sentiu a raiva renovar. Um banho relaxante, roupas luxuosas, e ela estaria apronta para se vergar ao
poder e a vida sórdida que Eldor poderia lhe proporcionar? Outra fada não hesitaria a tal fraqueza, mas Alma não era fraca.
Ela sabia que acabaria fugindo dali, com ou sem ajuda de Solon. Mesmo que precisasse deixa-lo para trás. Pensando sobre
isso, ela baixou a cabeça e fitou os pés cobertos por sandálias bonitas e confortáveis.
O que ele diria quando a visse assim? Por certo riria dela.
Será que ele falara a verdade ao lhe contar do presente que lhe mandou meses atrás? Que as folhas e tintas que Driana
recebera eram na verdade para ela? Será...?
O pensamento ingrato que teria sido tão simples. Se a Rainha Santha não houvesse metido seu bedelho real na vida delas, as
quatro fadas da clausura poderiam ter tido uma chance na vida. Uma chance de felicidade.
Ela teria aceitado Solon. Mesmo que fosse difícil aceitar ser domesticada por um macho, aceitaria seu pedido e sua proteção
em troca de ver as amigas em boa situação. Se ele não estava mentindo, havia tentado uma abordagem meses antes do
nascimento de suas asas, e haveria tempo para pedir a ele que convencesse outros guardiões, ou ajudantes de Guardiões a
aceitarem suas amigas, nem que fosse como um favor pessoal ao Guardião Solon. Nem que a liberdade delas tivesse por preço
a humilhação de serem aceitas por caridade.
Tudo culpa de Santha. Tudo culpa da ambição de Santha. Ela abriu a e fechou os punhos com ódio profundo, lutando para se
conter. Era alvo dos olhares e não queria ser observada desse modo. Virou de costas para todas elas, e sentou-se em um divã
afastado e ali permaneceu até Pía regressar e leva-la de volta para o quarto que dividia com Solon.
A menina sorria muito e lhe cochichou:
-Prepare-se, Eldor preparou uma linda surpresa para você no jantar.
Oh, sim, ela estaria preparada para toda e qualquer surpresa que aquele biltre tivesse preparado para ela!
Minutos mais tarde, quem regressou foi Solon. Os horários eram rígidos e mesmo querendo cansar o elfo, Eldor não poderia
parecer exceder em seu poder diante dos olhos dos outros elfos.
Solon não disse nada. Jogou-se sobre a cama, e fechou os olhos.
Estava exausto. Suado da cabeça aos pés. Sem camisa, sem sapatos. Ele estava um trapo. Doze horas quebrando pedras,
inalando terra impregnada em ar e afogando-se em camadas e mais camadas de terra solta que inadvertidamente insistia em
cair sobre os lacaios de Eldor.
-O que ele fez com você?- Alma perguntou com uma sobrancelha erguida em sua direção, em ironia pura.
-Hum.– ele rosnou em reclamação, sem abrir os olhos– Quebrar pedras.
Alma sorriu. Solon não precisava abrir os olhos para saber que ela ria da sua desgraça.
-Creia no que digo, fada ingrata, você não vale esse sacrifício todo.– ele reclamou de volta, mais por obrigação de defender
seu orgulho próprio do que por magoa.
-Pía diz que ele tem uma surpresa para mim no jantar.– avisou.
-Espero que não sejam mais pedras– ele reclamou abrindo os olhos e focando-os sobre ela.– vejo que seu dia foi bem
diferente do meu.
-Passei toda a manhã em um banho incrível em uma casa de banho particular, sendo paparicada por Pía e Anastácia. Depois,
um almoço soberbo e por fim, fui levada para conhecer as dependências que a prometida do líder deve frequentar– disse com
sarcasmo.
-Vejo que desfrutou de cada minuto - ele acusou levantando e estalando os músculos das costas.
Alma nem se deu ao trabalho de fingir não estar olhando. Que o mundo explodisse. Ela estava no cio, e ele tinha costas
amplas, largas e bem desenhadas e seus dedos doíam de vontade de apertar a carne suada...conteve os ímpetos da carne e
pensou em uma resposta apropriada.
-Eu não vi porque reclamar. Afinal, nunca fui bem tratada antes– era uma espécie de confissão aliada a acusação.
-Poderia ter sido tudo diferente, Alma -ele lamentou– Se nada disso tivesse acontecido...– maneou a cabeça– não se pode
mudar o destino. Então, aproveite os paparicos que receber, mas não esqueça quem é de verdade e onde deveria estar nesse
momento.
-E onde eu deveria estar?– desafiou-o.
-Lá em cima, ajudando suas amigas–ele foi sério, fitando-a nos olhos.– Mas não falaremos disso aqui. Não é apropriado.
Sim, ele tinha razão.
Alma ficou calada enquanto ele retirava a roupa e trocava-se. Nada de timidez, ele era livre de pudores e ela não hesitou em
correr os olhos pelo corpo masculino.
-É uma droga ficar em um quarto trancado com uma fada no cio – ele reclamou tentando abrandar a tensão do ambiente, com
um meio sorriso.
-Eu pensei que não se importasse– ela disse com petulância.
-Aprendi a controlar meus ímpetos. Alguém com o meu poder não pode se dar ao luxo de perder o controle facilmente.
Principalmente em relação as fadas a quem deve proteger. Sempre fui designado para missões que envolvem caçadores de
fadas e recompensas, e mais de uma vez precisei lidar com o cio de fadas desprotegidas.– explicou banalmente.
Estava explicado porque Solon as vezes agia com indiferença ao seu cio.
-Eu notei que os elfos ficavam me seguindo o tempo todo – ela disse em uma reclamação, sem saber exatamente porque
conversava com ele sobre isso.
-Tenho pensando nisso. Não podemos ficar aqui muito tempo. O cheiro do cio vai acabar descontrolando algum elfo. Tenho
receio que nos preocupemos demais com Eldor e nos esqueçamos dos outros.
-Os outros não possuem o mesmo poder que ele– desmereceu sua observação.
-Mesmo assim, não quero que seja machucada.– ele disse com simplicidade, sem notar sua expressão, pois se vestia, tentando
evitar ofender a fada com sua nudez explicita.
Ninguém nunca se importava com ela. Mesmo suas amigas, sabiam que ela se virava bem sozinha e não precisava de ajuda.
Abalada, Alma sentou na beira da cama, pensando naquele presente recebido meses atrás. Infelizmente isso martelava em sua
mente o dia todo e ela não conteve apropria língua:
-Driana recebeu um rolo de pergaminhos e tintas.– ela disse com voz tensa.
Surpreso, Solon olhou para ela e sorriu enquanto vestia uma túnica limpa.
-Eu disse a Tubã para entregar para a amiga dele. A mesma que desenhava os montes e o horizonte.– ele defendeu-se.
Um riso irônico foi a resposta de Alma:
-Não é uma surpresa que Tubã nunca tenha reparado qual de nós desenha. Ele é um parvo estúpido. Serve apenas para distrair
o Primeiro Guardião como um cãozinho de estimação e para enaltecer o ego de Eleonora chamando-a de bela e de outros
tantos elogios melosos– cruzou os braços, raivosa pelo descuido de seu melhor amigo.
-Diz isso porque está com raiva. Tubã não gastaria tanto tempo tentando salvá-la da clausura se achasse que pensa isso dele.–
Solon soou como se a repreendesse.
Alma olhou para baixo e não respondeu nada. Não iria lhe dizer do ódio de por causa de Santha estar passando por tanto
sofrimento.
-Estive pensando durante todo o dia nas acusações de Santha– ele falou baixo sentando ao seu lado na cama. Bem pertinho.
Alma olhou para ele com cobrança. E ele continuou ali....bem pertinho.
-As carcereiras disseram claramente que seu dom era o hipnotismo através da voz. Elas criam os órfãos. São elas quem
observam as fadas dia e noite, em busca dos vestígios de dom. E as carcereiras nunca erram. Sabe por que isso não
aconteceu?
-Não. Eu não sei. Quando era mais nova...– calou-se ao notar que contaria sobre si. Olhou para o outro lado. Solon não forçou
que falasse. Esperou pacientemente que ela falasse espontaneamente. -...eu conseguia fazer isso. Às vezes dava certo. Mas de
um tempo para cá... Eu não consigo mais hipnotizar animais, ou criaturas.
-O que é estranho, pois o dom se fortalece com a aproximação do nascimento das asas. – ele concluiu– Pensemos com calma
sobre isso. Sua voz é capaz de matar. Isso sabe muito bem. O farfalhar das suas asas é capaz do mesmo feito. O que mais você
notou? Algo diferente tem acontecido com você desde o nascimento das asas?
-Caso não tenha notado estou no cio– ela disse com rancor– É claro que existem coisas ultrajantes acontecendo comigo!
-Eu falo do seu dom, e das asas. Foque-se nas minhas perguntas e não em sua raiva do mundo – ele elevou a voz para calar
suas ofensas.
Alma nem se deu ao trabalho de responder a altura.
-Quando eu nado o farfalhar das asas não emite som– contou.
Infelizmente sozinha não parecia capaz de entender a si mesma.
-Isso aconteceu antes?– ele insistiu.
-Sim, quando eu voo e plano....não há som. Eu fui muito longe para esconder sua armadura– sorriu diante dessa lembrança e
principalmente, por causa da expressão de desagrado dele– e houve alguns momentos em que não...emitiram som.
-E você não suspeita da causa?– perguntou displicentemente tocando sobre sua mão que estava apoiada no colchão.
Alma olhou para ele e então para sua mão e negou com a cabeça.
-Não.– disse.
-E se eu pedisse que você fechasse os olhos e tentasse se acalmar. Acha que poderia fazer isso?–perguntou insistindo no
toque.
Alam puxou a mão e levantou.
-Me deixa em paz.– mandou.
Solon tinha uma teoria da razão de Alma não conseguir usar seu dom verdadeiro. Acreditava que os trejeitos desagradáveis de
seu dom eram secundários. Que o dom verdadeiro estava perdido em meio a raiva e inquietação.
Havia muito ódio dentro de Alma para que ela conseguisse descobrir quem era e ouvir o clamado do seu dom que desejava vir
à tona.
Solon não insistiu porque era interrompido por batidas na porta. Incomodado por ter que enfrentar Eldor estando exausto
fisicamente, seguiu a fada enquanto eram levados para o amplo salão onde aconteciam as refeições coletivas.
A cena se repetia como no dia anterior. Mesas repletas de fadas e elfos de todas as idades. Eldor esperava pro ela de pé, com
uma taça de elixir proibido nas mãos.
-Está linda, Alma– ele segurou sua mão separando-a de Solon e a levando para o centro das mesas, para que todos pudessem
admirar e cochichar sobre como recobrira a fada escolhida de joias e luxo.
-Solte-me ou o mato aqui mesmo – ela disse convicta de cada palavra dita.
-Eu ainda sinto seu cheiro de cio– ele disse baixo para que apenas ela pudesse ouvir
– Esteja pronta, quando menos esperar eu a pegarei sozinha e a arruinarei por bem ou por mal. A escolha é toda sua.
Alma encarou-o quase sem palavras. Respirou fundo e tentou conter o ódio dentro de si. Sua vontade era abrir a boca e gritar
como uma louca acabando logo com aquela coação.
Pensou nos inocentes em torno deles e notou o modo como Solon a olhava, de uma distancia ultrajante.
Era justo para todos que Eldor tivesse sua chance de conquistar seu coração, ela não teve desculpas para não aceitar ao menos
jantar ao seu lado. Outra vez, foi fraca e comeu como uma condenada. Não sabia quando em sua vida teria a oportunidade de
comer com tanta fartura e sua mente inconsciente insistia que comesse o máximo possível,
Cheia, ela recostou-se contra a cadeira estofada em couro e peles e olhou para Solon. Ele conversava com uma fada ao seu
lado. Ou melhor, a fada tentava conversar com ele. O Guardião apenas acenava e fingiu prestar atenção. Então baixou a
cabeça e comeu com atenção exagerada ao alimento.
Alma sentiu pena. Tão profunda pena que perdeu o apetite para sobremesa. Pobre elfo, tão forte, dedicado e honesto...não
merecia o sofrimento de carregar uma limitação física.
Surpresa com o sentimento, sufocou as lágrimas inesperadas com mais vinho. Virou uma taça toda de uma vez, e o sorriso
arrogante de Eldor, sentado ao seu lado, indicava que ele achava mesmo que estivesse sendo seduzida por comida e vinho.
Porco, ele era um porco imundo. Mais tarde quando o jantar chegou ao fim, um elfo entrou carregando uma bandeja gigantesca
com algo coberto por peles.
Deveria ser o seu presente, todos levantaram e Alma a fez o mesmo. Esperava sinceramente que fosse algo bem apetitoso que
pudesse levar para seu quarto e comer na madrugada quando sentia mais fome. Resquícios da vida difícil no Ministério do rei.
O servo segurou a bandeja bem diante dela, e coube a Alma puxar as peles e revelar seu presente. Alma era constantemente
nervosa, e por isso, ao ver uma cabeça de raptor decepada sobre a bandeja, gritou de susto, medo e horror, e o servo assustou-
se inclinadose para frente.
A cabeça caiu sobre ela que desesperada, debateu-se para se livrar daquilo. Seus dedos roçaram a carne e os pelos e seus
gritos eram de horror profundo. Quantas e quantas vezes em sua vida não tivera pesadelos horrendos com morte? Lembro-se
dos raptores que a teria pego durante seu primeiro banho com asas, Alma sentiu o medo paralisá-la.
Estava desesperada, e descontrolada mais uma vez, pois era um poço de descontrole emocional e seus nervos eram atacados e
estimulados diariamente por conta de sua personalidade e das tensões que viviam.
-Chega! - ela ouviu um grito e então as pessoas foram afastadas dela.– Tirem isso daqui! Agora!
A cabeça despareceu rapidamente e ela viu por olhos nublados de lágrimas Agra dando ordens, enquanto os gritos de ordem
de Solon encerravam o espetáculo. Ele a segurou como fizera na câmara de terra quando ela achou estar enterrada viva.
Alisou seus cabelos de um modo que parecia acalma-la e Alma segurou em seu braço escondendo o rosto em seu ombro,
envergonhada de seu descontrole.
-Respire, Alma, e não grite mais– ele pediu baixo, mando, tenso em cada poro, tentando lhe passar calmaria e segurança, para
acalma-la.
Deixar uma fada nervosa como Alma assustada era um perigo, levando em conta o poder de sua voz.
-Eu não quero ver aquilo – ela disse baixo, mas ele poderia ouvi-la, pois sua voz era sempre tão esguichada que seu mais
delicado sussurro sempre seria um falar alto. O que era muito apreciado por Solon que podia ouvi-la facilmente, apesar de sua
carência auditiva.
-Feche os olhos e não olhe. Vou carrega-la para o quarto – ele prometeu.
-Não – ela negou e afastou a cabeça olhando em seus olhos– Eu vou andando.
Sempre orgulhosa. Solon olhou em volta, descobrindo que as fadas e elfos estavam assustados com o comportamento de Alma
e cederam espaço quando ele se moveu, levando-a pelo braço, servindo de apoio e ao mesmo tempo ,de guia.
-Vejam o que seu líder faz com sua escolhida– ele disse em voz alta, para ter o clamor publico a seu lado – Vejam a crueldade
com que trata sua escolhida!
-Não é crueldade– Eldor defendeu-se– Eu sei que Alma gosta disso! Não seja fingida. Eu sei que adora ver a morte de perto,
eu conheço seus desejos, Alma. Você me vê,queria, e o que vê é espelho de seus íntimos desejos.– ele disse em referencia a
quando ela o confrontou ainda na Vila dos Desesperados, na barraca escondida junto da velha duende.
Ela não respondeu. Deixou-se levar.
Ele estava certo. Isso era doentio, mas Eldor estava coberto de razão!

Capítulo 14 Desordem e caos

Alma tremia quando a porta fechou atrás de si.


A jovem Anastácia estava logo atrás dos dois, e saiu correndo quando Solon gritou com ela, exigindo uma bacia e água para
que Alma pudesse se lavar e livrar-se do sangue que impregnava sua pele.
-Acalme-se– ele tornou a pedir, mas ela se afastou e ficou de costas, encarando uma das paredes de pedra.
-Eu não posso me acalmar!– bradou.
-Pode e deve. Esteve muito perto de gritar e ferir pessoas honestas.– ele avisou, com repreensão na voz– Foi uma tentativa de
Eldor de desestabilizá-la e causar-lhe medo. Eu não deveria ter deixado que ficasse perto dele um segundo que fosse!
-Você não entende– ela voltou-se, com olhos repletos de rancor– você não sabe de nada!
-Eu sei o que importa. Eldor não vale nada e você está assustada.– ele ponderou e Alma soltou um risinho cínico.
-ele não estava mentindo. Eu sou uma fingida! Uma fingida! Eu nem sei por que estou assim! Eu nem sei por que estou me
sentindo desse modo se eu... na verdade, eu gosto!
-Gosta de receber como presente uma cabeça decepada de uma fera que assustaria a qualquer um? Alma!
-Você não me conhece– ela disse nervosa, e ele relevou.
Com mãos trêmulas, ela tentou arrancar a joia que adornava sua testa e os cabelos e lutou contra as lágrimas quando alguns
fios de cabelos foram sacrificados.
-Eu gostei!– ela parou, as palavras incontroláveis em sua boca– Eu não o ajudei por piedade, quando vi que era surdo e não
ouviria o atraque. Não foi por isso! Não foi! Foi porque eu sabia que seria mais fácil me livrar de você se pudesse tê-lo em
um lugar reservado! Eu gostei, Guardião, eu goste de forrar o chão, amolar a faca e despir peça por peça das suas roupas
enquanto decidia como eu faria para a faca dar conta dos cortes sem precisar pedir ajuda, pois a velha duende nunca me
ajudar a tirar a vida de um inocente! A única coisa que me parou foi pensar nas minhas amigas. Elas nunca me perdoariam!
Eleonora perdoaria, mas Driana? Não! Ela jamais aceitaria minha decisão! E Joan...eu a assustaria demais. Joan nunca
poderia confiar em mim. Ela é frágil...ela tem medo de ser ferida o tempo todo, e eu seria um constante lembrete de tudo que
ela teme!– ela jogou longe o colocar de pedras preciosas, sem ligar para as pedrinhas que se desprenderam da joia e
ricochetearam pelo chão de pedra– Mas eu queria fazer! Eu soube que Eldor não valia nada quando o vi a primeira vez! E eu
soube, porque ele é igualzinho a mim! Por isso ele me quer, porque eu sou perfeita para alguém como ele! E quer saber a
verdade? Eu poderia ser feliz aqui. Oprimindo e mentindo para essas pessoas, eu poderia ser plenamente feliz vendo-as
sofrendo, na ironia de saber que existe uma vida plena de tudo lá em cima!– gritou.
Solon não respondeu nada, pois batiam na porta. Era Anastácia com uma bacia larga e pesada, carregada de água morna, e
toalhas. Pía ajudava a carregar, com medo de aproximar-se de Alma.
-Me deixe!– alma empurrou a menina quando tentou lhe ajudar a tirar o vestido.
Solon esvaziou o quarto, mas Alma não notou. Sangue do animal cobria o vestido bonito e sujava seus braços, cabelos e asas.
Enjoada ela tentava se livrar das roupas, mas não conseguia, com as mãos tremulas como estavam.
-Pare quieta.– ele mandou, enquanto puxava os botões que prendiam o vestido em seu pescoço. As asas estavam presas no
tecido e Solon precisou de paciência para soltálas, pois a fada não conseguia controla-las.
Alma segurou o tecido sobre o peito, quando o vestido escorregou por seus ombros. Imóvel, demorou em notar que deveria se
livrar da roupa e aproveitar água morna.
-Limpe-se– ele disse suave, segurando-a pelos ombros- Não posse ajuda-la com isso. Eu nem deveria estar aqui dentro...– ele
não queria falar sobre o cio, mas era inevitável pensar nisso, pois o cheiro da fêmea era estonteante - ...Limpe o sangue e
metade do horror terá ido embora.
Alma pegou-se a esse conselho. Solon gostaria de ter sido mais forte e não ter ficado olhando. Mas não tinha mais condições
de ignorar a fêmea, não em um espaço tão limitado.
Perdida em seus pensamentos, Alma soltou o vestido bordado com pedrarias e ficou nua, andando com lentidão despercebida
até a bacia com água morna. Seus pés tocaram a água e ela sentiu um frêmito de nojo de si mesma e por isso baixou o e pegou
a esponja, esfregando o sangue da pele como se isso pudesse livra-la do medo e do ódio.
Esqueceu-se do Guardião, de costas para ele, sentada na bacia, os cabelos longos foram limpos, e ela deixou-os de lado,
enquanto esfregava água nas costas e essa água escorria por sua coluna entre as asas macias.
Solon engoliu em seco, incapaz de conter-se. Olhava cada pedacinho de pele exposta, desde a curva macia dos ombros, até as
nádegas redondas. Era a segunda vez que tinha a oportunidade de ver a fada nua e estava apreciando cada vez mais esse
privilegio. Não queria ser aquele que a oprime, pois sentia que Alma não tolerava qualquer forma de coesão. Isso a tornava
raivosa, e arredia e ele esperava ter a oportunidade de ter seu apreço e não seu ódio.
-Está olhando para mim?– ela perguntou de surpresa, olhando para trás, como se somente agora se lembrasse da sua presença.
-Sim– ele admitiu, sem o menor pudor.
O olhar castanho fixou-se no seu, ela deixou água correr da esponja em um dos ombros e as asas se dobraram como se
formassem um adorável casulo em torno de seu corpo.
-Um pouco tarde para pudor. Eu a vi se banhar no córrego que banha a Vila dos Desesperados. – ele contou.
-Foi você quem me salvou do ataque dos raptores– não era uma pergunta, mas uma constatação.
-Sim, e você me salvou dos ladrões. Estamos quites, nenhum deve nada um ao outro
– ele lembrou-a disso, livrando-a da opressão de sentir-se em dividida.
-Mas eu tramei mata-lo.– lembrou-o.
-Mas não executou seu plano, mesmo tendo oportunidade. Não se deixe levar pelas artimanhas de Eldor. Ele vê suas
fragilidades e as usa contra você. Se os elfos e fadas daqui começarem a achar que é louca...Bem, eles não acreditaram em
uma única palavra dita por você ou por mim.– avisou.
Alma parou o banho, levantou e deixou a água escorrer pelo corpo, ouvindo o longo suspiro de apreço do elfo. Mas ignorou.
Pegou a toalha e se enrolou, tomando cuidado de manter uma folga nas costas, para as asas respirarem. Ainda se acostumava a
ter asas.
De frente, Alma fitou-o com curiosidade:
-Acha que é isso que ele está fazendo?
-Sim, e acho também que está obtendo êxito em seus planos.– alertou-a.
-Anastácia me contou que a filha mais velha de Estevão e a esposa estão desaparecidas. Que Eldor trouxe de volta as duas
filhas menores. E todos acreditam que ele é um herói. Ela sabe como sair daqui. Ela quer cooperar. Mas preciso convencê-la
de que vale a pena.
-A mulher está morta, eu vi o corpo. E vi Eldor sem as meninas, eu não sabia na ocasião do que ele era capaz. Precisamos
fugir antes que você sucumba e faça uma besteira–ele foi franco– Eu preciso admitir que atualmente meu maior medo não é
Eldor, mas sim que você se descontrole e mate alguém.
-E porque isso seria ruim se é o meu desejo? Desde pequena é meu único desejo – confessou.
-Desde pequena você é prisioneira, e não conheço um único prisioneiro que nunca tenha tido esse tipo de pensamento.
-Não são pensamentos... É a minha vontade– não queria assusta-lo, não queria mesmo, mas não conseguia conter a verdade,
precisava dividir isso com ele!
-Tem algo bloqueando seu dom verdadeiro. Esqueça suas vontades, esqueça tudo, Alma, e se concentre nisso. O que está
bloqueando seu dom. Se você puder hipnotizar as pessoas...estará tudo resolvido. Encantará Anastácia e ela nos mostrará a
saída.
-Eu poderia convencer Eldor a contar a verdade para todos que moram aqui. Liberta-los do medo de uma vida lá em cima.
Eles vivem na mentira, e isso não é vida.– ela completou, gostando dessa ideia.
-Mas primeiro precisamos descobrir o que tem abafado o seu dom verdadeiro, e causado toda essa confusão dentro de você.
Alma não respondeu nada, mas baixou os olhos. Não queria lhe dizer que tinha duvidas se queria mesmo descobrir o que a
tornava assim. Tinha medo de ser algo incontrolável.
-Eu não sou a melhor das fadas. Tem algo ruim em mim– avisou com voz de cansaço.
Solon gostaria de lhe dizer que existia algo ruim dentro de todas as criaturas. Era da natureza de cada ser padecer de medos,
angustias, e as vezes, de momentos de descontrole emocional, e ele suspeitava que Alma vivia assim, no limite entre o que
conseguia suportar e o que era obrigada a suportar. Era o ódio nutrido dia após dia, em estar presa no Ministério do Rei, sob a
constante ameaça da clausura, e agora, pela opressão da fuga, que a deixava assim, sempre pensando em maldades para livrar-
se de tudo e todos!
Solon fingiu não notar que ela sentiu dor ao andar. Era culpa do cio. Quando postergado e não consumado, o cio começava a
provocar dores insuportáveis e ele pensava se isso também não poderia ser a causa da dificuldade em obter seu dom
completo.
Alma não trocou de roupas, deitou-se enrolada na toalha e ficou de lado, tentando não demonstrar que sentia dor. Era
inesperado, e ela sabia que era culpa do cio.
Solon puxou o cobertor e colocou sobre ela.
-Tente dormir. Eu vou pensar em um modo de fugirmos daqui. De amanhã não passa, eu lhe prometo, Alma, de amanhã não
passa.
Ela não respondeu. Mas escondeu o rosto no travesseiro para esconder as lágrimas que ameaçavam correr em seu rosto. Era
emoção por sentir a preocupação de Solon por sua causa.
Solon vigou seu sono por cerca de uma hora. Então, ela acordou, e sentou na cama, a toalha não protegia sua nudez tão pouco
ela se importava com tão pouco. Sentia dor no corpo todo e estava quase sem fôlego.
-É a dor induzida pelo cio – a voz de Solon cortou o silencio dentro do quarto, e embora estivesse tudo escuro, e não pudesse
vê-lo ou ser vista, Alma tentou sufocar a expressão de sofrimento.
-E como faço para isso parar?– ela perguntou entre dentes, voltando a deitar quando a pulsão de dor suavizou.
-Quando copular, o cio acaba. É do mesmo modo para todas as fadas. Acalme-se e tente relaxar. Ficar tensa não vai resolver
seu problema– ele avisou.
-Quanto tempo isso vai durar?– ela perguntou baixinho, lutando contra as lágrimas de profunda humilhação.
-Eu não sei. Nunca conheci uma fada que suportasse tanto tempo ou que não fosse pega a força ou ainda convencida a ceder. O
que sei da teoria, diz que uma fada permanecerá no cio enquanto não copular. É só isso. Não adianta se martirizar. Isso não
vai passar por enquanto.
-Eu não aguento mais– ela confidenciou, era mais fácil fazer confidencias no escuro, sem olhar para ele– os elfos ficam me
seguindo...ficam farejando o ar na minha frente! Alguns...eu já notei o modo como eles tocam as espadas...como se
pretendessem usa-las a qualquer momento...Isso precisa acabar. Eu não consigo pensar desse modo.
-Alma, você precisa ficar calma. Eu não quero insistir ou irrita-la, mas preciso de sua colaboração. Lembre-se que eu consigo
resistir ao cio por conta do meu treinamento de Guardião. Os outros elfos são criaturas livres, sem obrigações, sem noção do
que significa para você o cio.
-Não significa nada– ela disse furiosa– acha que me importo com castidade? Com cio? Eu não me importo! Se não estivesse
me causando dor e me impedindo de obter meu dom completo, eu não pensaria uma única vez sequer nesse inferno de cio!
-Alma– ele sentou também, e tentou encostar-se à fada, mas desistiu. A pele dela queimava, e ele afastou a mão de seu ombro,
pois o calor era abrasador, e ele precisava se conter– Você precisa manter o juízo. Eu estou percebendo a conclusão que
chegou. E lhe peço para esquecer isso.
-Esquecer? De modo algum! – ela negou.– Se eu me deitar com um elfo qualquer, eu me livro disso! - havia convicção em sua
voz.
-Não. Você é fêmea, e merece mais do que isso. Merece a chance de conhecer sentimentos menos animalescos do que...
-Não perca seu tempo enchendo meu ouvido com baboseiras.
Solon estava se acostumando a ser tratado sem brutalidade e lidar com o veneno na voz da fada. Nunca imaginou que ela fosse
assim. Quando tentou corteja-la meses atrás, achava que era uma bela fada triste e emburrada, mas que isso fosse por causa da
ameaça da clausura. Que ela seria dedicada e atenciosa quando pudesse se dedicar a si própria, sem medos.
-Eu lhe peço um pouco de paciência. Vou dar um jeito de tirá-la daqui. Eu lhe prometo.
-Palavra de capacho da Rainha Santha não vale nada para mim– voltou a deitar, com raiva, engolindo o choro. Sentia a pele
aquecida e o fato dele ter tocado-a lhe causara um frisson inexplicável. Era bom encerrar a conversa imediatamente.
-Não se entregue para qualquer um.– ele tornou a pedir, mas ela ignorou.
Solon sabia que era cabeça dura, e que faria exatamente o contrario. Encontraria um elfo qualquer interessado no cio, e
acabaria com o problema.
Incomodado, Solon não queria que desperdiçasse esse momento único com alguém que não gostasse dela. No dia seguinte,
ficaria de olho na fada, para que Alma não tivesse oportunidade de fazer uma besteira.

Capítulo 15 Pesadelos perdidos

Anastácia achava graça de olhar para ela, lembrando-se de seu descontrole do dia anterior, e Pía estava assustada. Alma
queria passar o dia todo na casa de banho, mas as ordens eram outras. Agra queria ter uma conversa com ela, e Alma não
poderia negar.

Era manhã, ela estava arrumada e pronta para enfrentar mais um dia naquele infortúnio. No caminho para os aposentos de
Agra, Alma cruzou com Estevão, que conduzia alguns elfos de poder melhor dentro do clã subterrâneo, entre eles Solon. Ela
reparou no Guardião, sobretudo reparou-nos outros elfos. Eles usavam roupas esfarrapadas e sujas, roupas para trabalhar
quebrando pedras e cavando buracos. Eram machos, ela era fêmea. Precisava acabar com o cio.

Era sua única ideia fixa.


-Não quero ver Agra. Quero ir para o meu quarto – ela disse parando de andar, e obrigando as meninas a fazerem o mesmo.
-São ordens de Eldor. Não podermos desrespeitar suas ordens– Pía disse com humildade.
-Estou pouco me importando com as ordens de Eldor. – virou as costas e começou a andar para longe delas.
Pía foi à única que a seguiu. Anastácia não era babá de fadas e não perderia seu tempo paparicando-a, quando não havia
ninguém olhando.
-Porque está fazendo isso? É uma honra ser escolhida por Eldor! – a jovem disse esbaforida, correndo atrás dela.
Alma parou e encarou-a:
-é uma honra viver privada de suas asas? É o que acontecerá com você.– avisou– Suas asas não nascerão, pois está aqui em
baixo, em um ambiente hostil para sua natureza de fada. Lá em cima existe um mundo livre de guerras onde você teria suas
asas e sua vida plena. Seu dom. poderia ter um dom, Pía. Rei Ulder não existe mais. não existem seguidores. O que você tem
ouvido sua vida toda são mentiras! Porque não pode me ouvir? Ajude-me a fugir daqui. Eu lhe imploro!
-Não. Eldor disse que o outro a tem enfeitiçado. Que ele é um dos seguidores das leis de Rei Ulder!
-Eldor disse isso?– perguntou irônica– E por acaso ele contou como seguiu a fada fugitiva que levava suas três filhas lá para
cima, na esperança que suas filhas pudessem ter suas asas? Solon viu Eldor próximo ao corpo da fada, levando as duas
fadinhas menores. Ele não sabia o monstro que Eldor é na ocasião.
-Eu não acredito nas mentitas de um elfo que deseja destruir nossa harmonia.– Pía alegou, submissa e convicta de que Alma
estava terrivelmente enganada.
A fúria se avolumava dentro de Alma. Ela ficou imóvel enquanto alguns elfos passavam por elas, todos eles olhando fixamente
para elas. Miravam a fada no cio, e não enxergavam a fêmea de coração magoado que havia dentro de si.
Ofendida por ser apenas uma carcaça carregada de libido, Alma descontou em Pía:
-Afaste-se de mim antes que eu perca a cabeça e te faça ver a verdade usando a força física!
-Tenho ordens de cuidar de suas necessidades– Pía tentou amenizar a brinca, mas Alma afastou-se visivelmente enraivecida.
-Quero Anastácia. Ela me ouve e entende! Agora vá! Saia de perto de mim! Eu conheço o caminho para a casa de banho! Vá!
Deixe-me em paz!
Pía não teve coragem de contraria-la, mas Alma notou que a fada saiu correndo contendo as lágrimas. Com fúria gritando
dentro de si, vinda das entranhas de seu corpo e mente, onde penava por ter que aturar tanta humilhação, Alma avançou pelos
corredores, ficando um pouco desconfortável quando cruzou com um grupo de elfos em fiscalização dos guardas de Eldor.
Eram quatro e a olharam com ardor indisfarçável. Alma estava decidida a entregar a castidade para um elfo qualquer, e não
perderia a oportunidade de fazê-lo, estava sozinha e sem ninguém para vigia-la. Acabar com a distração que limitava seu
dom., mas lhe faltou coragem de atiçar quatro machos. Não importar-se com a castidade não queria dizer que tinha coragem
para tanto!
Engoliu em seco e apressou o passo, olhando para baixo, morrendo de vergonha de seu estado. A decisão estava tomada,
faltava agora encontrar coragem. Alma confessava ter pensando no Guardião. Não seria fingida e mentiria que não pensou
nele. Era um elfo gentil e não parecia ter inclinações para agredir uma fêmea, e mais do que isso, ela conseguia ter algum
controle sobre ele enquanto os dois estivessem presos ali em baixo.
Fora desmotivada por duas razões. A primeira, e maior delas era o medo de emprenhar de um Guardião da Rainha Santha.
Mais cedo ou mais tarde ela teria que lidar com a causa dos dois terem sido aprisionados e estarem no mesmo barco. Ela era
fugitiva, ele o caçador. Sabia do risco de emprenhar durante o cio, mas ao menos, se fosse de outro elfo, ela não ficaria ligada
a um elfo que odiava.
E segundo, caso o pior acontecesse, e ela fosse aprisionada, ao menos não daria a satisfação daquele capacho da rainha ter se
deitado com ela!
Sim, ela não se deitaria com ele, nem que Solon fosse o último elfo da face da terra!
Alma apressou o passo quando notou que não conseguiria escapar de cruzar nos corredores estreitos com dois elfos. Um deles
era moreno, pele escura, alto e forte. O outro era menor, mirrado, e louro. Alma parou e fitou os dois. Sim, ela poderia causar
intriga entre eles depois, para que brigassem por sua causa e apenas um deles vencesse e a tomasse.
O modo como ela olhou para os elfos, mudou a postura de ambos. Alma estava a um segundo de abrir a boca e efetuar o
convite que não teria volta, quando foi agarrada pelo braço.
-Continue andando – Solon disse furioso, segurando seu braço com força.
Ele empurrou-a, pois sabia que seriam seguidos.
-Rápido – ele empurrou mais uma vez, e ela correu, sendo levada por alguns corredores desconhecidos, sendo seguidos pelos
dois elfos, atentados de sua promessa não verbalizada, e descontrolados por conta do cheiro do cio.– Para onde você estava
indo?
Alma pensou em não responder, mas olhou para trás e descobriu que seu maravilhoso plano de descontrolar ambos os elfos
obtiveram resultado, e eles os seguiam, com espadas nas mãos.
-A casa de banho de Agra fica nessa direção – disse rápida, apressando o passo junto com ele.
Solon conduziu-a na direção acertada e quando estava quase atingindo o corredor correto, a fez esconder-se junto dele, em
uma bifurcação. Pousou a mão em seus lábios para que ela não gritasse ou chamasse atenção para eles.
Alma manteve os olhos atentos, e viu os elfos seguirem para o caminho errado ainda procurando por ela.
Solon a soltou e a puxou outra vez, na direção da casa de banho. Ela entrou e foi Solon quem usou a tranca para manter a porta
fechada atrás dos dois.
-O que estava pensando ao provocar dois elfos armados?– ele perguntou com pouca paciência para seus joguinhos– Eles
lutariam entre si por sua causa, fada desmiolada!
-Era essa a ideia– ela afastou-se e andou para bem longe dele.– Que sobrasse apenas um.
-É mesmo? E o vencedor receberia o grande premio?– ele não a deixou fugir, seguiu-a – É aqui que tem passado seus dias
enquanto eu fico lá embaixo nos corredores quebrando pedras e cavando por horas sem fim?– disse com amargor, observando
a piscina de águas clara e límpidas. Os ladrilhos coloridos. As almofadas no chão, e os sais de banho.
-O que você quer? Porque veio atrás de mim?– ela soou como se estivesse lhe cobrando. E na verdade, era o que acontecia.
-Eu fiquei desconfiado que pudesse fazer uma cosia estúpida como esta! Achei que deveria segui-la e evitar uma catástrofe! E
eu estava coberto de razão!
-Catástrofe? Está brincando comigo, não é? Se eu me liberar do cio, talvez meu dom desabroche e eu possa sair daqui! A
única catástrofe é permanecer aqui mais tempo! Eldor é louco e essas pessoas são alienadas de tudo! Veja Pía! Ela se voltaria
contra a mim, basta uma ordem de Eldor! – gritou com ele, e Solon a segurou pelo braço, tocando seus lábios para que não
gritasse.– Me solte!
-Eles ainda procuram por você. Não grite, Alma! Que mania de gritar!– ele acusou soltando-a, porém permanecendo bem
perto – Eu lhe prometi achar um modo de fuga, não prometi? Estevão deixou escapar que existem duas formas de sair daqui.
Estou estudando um meio seguro de fazer isso! Você precisa ter paciência!
-Não! Eu não deixarei minha vida nas mãos de outra pessoa! Primeiro, minha vida esteve nas mãos de um rei fraco e de uma
rainha estúpida e olhe onde terminei! Não! Sou eu quem decide o que faço! Eu vou acabar logo com o cio e obter meu dom
completo. É fato! Você pode brigar o quanto quiser, mas não poderá me cercar para sempre!
-Eu sei disso! Mas vou tentar!– ele revidou seu ataque.
-Por quê? Você enlouqueceu? Não seja estúpido! É preferível usufruir do meu dom a ficar procurando rotas de fugas.– ela
tentou trazê-lo a razão.
-Eu sei disso. Acontece que não quero que entregue sua castidade para outro elfo. – ele confessou.
-Oh, é mesmo? Que preciosidade é essa que os elfos veem no cio? Quanta tolice! Pode encontrar uma fêmea no cio quando
bem entender! É um Guardião! Nesse exato minuto existem dezenas de fadas a beira de obter suas asas trancafiadas no
Ministério do Rei ansiosas por serem escolhidas por um Guardião! Deixe-me em paz, e encontre uma delas para saciar sua
vontade de desfrutar do cio!– empurrou-o e ganhou espaço.
Sentou em uma estrutura de madeira, que servia de banco. Respirava com dificuldade, quase sem ar, de tanto esbravejar.
-Você não entende– ele disse com voz cansada– Eu não tenho obsessão pelo cio de uma fada. Eu tenho ciúmes de uma fada, é
bem diferente.
Alma não respondeu. Para ela ciúmes e obsessão eram a mesma cosia. O mesmo sentimento corrosivo que impulsionava elfos
e fadas do mundo todo cometerem atos espúrios. E com ampla justificativa!
-Não adianta fingir que não está me ouvindo!– ele ficou magoado com seu pouco caso.– Eu tentei corteja-la, não se faça de
boba fingindo que não sabe do meu interesse! Entre todas as fadas da clausura você foi à única que eu cortejei!
-Isso é o que você diz! Eu nunca recebi presente algum!– ela virou a cabeça, pois não conteve a reclamação.
-Isso é culpa de Tubã. Reclame com ele! Eu fiz minha parte! Teria te escolhido e feito-a minha mulher! Será que eu não tenho
o mínimo direito de sentir ciúmes?
-Nossa, e deve ser um grande feito salvar uma fada inferior de um destino de clausura– ela ridicularizou.
-Não. O grande feito está em escolher entre todas as fadas do mundo uma única para amar. Mas você não entende disso. Está
com ódio de mim, porque sabe que eu estou certo. Você quer se deitar com um elfo que vai lhe bater e ofender? É o que
acontece durante o cio, entre animais que não se conhecem, eles se arranham, se machucam e se ferem.
-Eu só quero que isso acabe de uma vez– ela baixou os olhos, para que ele não notasse que a abalava ouvir a verdade.
-E eu quero que você me deixe ajuda-la. Vamos esperar. Me dê a chance de tirá-la daqui antes que seja necessário chegar tão
longe– Solon aproximou-se e ajoelhou-se na altura da fada, tocando seu queixo, para olhar em seus olhos.– Uma única
tentativa.
-E depois? Você me entrega para Rainha Santha? – ela afastou sua mão, para que não encostasse-se na sua pele.
-Não. Depois procuramos juntos por sua amiga Eleonora e se ela estiver falando a verdade, ajudaremos a salvá-la e provar
sua inocência. Se ela for rainha, tudo estará acabado.
-Você mente.– ela acusou.
-Isso é o que você diz– ele revidou.
-Me deixe em paz– ela levantou e se afastou– Se estivesse falando a verdade me ajudaria a acabar com o cio e obter meu dom
completo! Iria preferir me ver forte e plena! Mas não, prefere me ver inútil, assim pode me aprisionar e levar para Santha
quando sairmos daqui!
-Quanta maldade em sua mente, Alma.– ele disse incrédulo – Eu tenho pensando com a cabeça e não com a emoção. E se a
causa do seu bloqueio não for o cio? Você é tão raivosa o tempo todo! Tão inquieta, tão tensa...outras coisas podem estar
bloqueando-a!
-Mentiroso– ela afastou-se, olhos nos olhos, deixando claro que não acreditava em um única palavra dita por ele. Não achava
que se importava com ele e sua situação.
-Está bem– ele disse abrindo os braços em rendimento– Será do seu modo. Fique aqui dentro, vou encontrar um elfo para
ajuda-la com isso, pois pelo visto, você não aceitaria que fosse eu! Isso vai convencê-la das minhas intenções? Vai?
Alma não acreditou que ele estivesse falando sério. Solon andou para a porta, e ela se perguntou se ele faria mesmo isso.
Arrumar um elfo para...bem, para se deitar com ela?
-Está bem– ele disse desistindo quando estava quase na porta – Eu não vou fazer isso. Não quero outro se deitando com a fada
que escolhi! Mas quero reinterar que é ciúme, e não qualquer outra ideia estúpida que possa ter a meu respeito. Eu não quero
que outro a toque. Acredite ou não em mim, mas é essa a verdade.
Alma soltou o ar que havia retiro ao achar que ele iria mesmo arrumar alguém para possuí-la.
-Qual a possibilidade de uma fêmea emprenhar logo na primeira vez?– perguntoulhe, surpreendo-o, pois não esperava por
essa pergunta.
-Poucas não emprenham– ele foi sincero– não existe escapatória. Gostaria de lhe mentir que existem modos de evitar, mas no
caso do cio, basta um pouco de contato, para que a fêmea emprenhe, então, nenhum método de prevenção será útil de verdade.
-Se eu me deitasse com você. Com quem ficaria a cria?– perguntou séria.
Solon quase não acreditou no que ouvia.
-Como assim?– perguntou desconfiado.
-Eu não quero ficar com a cria. Você ficaria com ela? - jogou a pergunta de volta para ele.
-Sim. Claro que sim, e ficaria com você também. Se me quisesse.
-Eu não quero. Sabe que não quero. Eu teria dito sim ao seu pedido de casamento, se houvesse feito meses atrás, apenas pela
esperança de salvar minhas amigas da clausura. Que você pudesse me ajudar a convencer seus amigos guardiões a escolhê-
las. Apenas por isso.
Ser rechaçado era difícil, e quando isso acontecia diante de uma total humilhação era ainda pior. Solon mediu-a de alto a
baixo. O que ele estava esperando? Era quase surdo. Não era como os outros elfos. Era justo que Alma quisesse coisa melhor.
Provavelmente pensava que a cria dos dois pudesse herdar seu defeito.
-O que eu tenho não é genético. Uma cria nossa não nasceriam surdo – avisou.
-Isso não me importa. Eu não quero nada disso. Deito-me com você, se prometer que me deixará em paz quando acabar. Que
fará de conta que isso nunca aconteceu!
-Se a situação fosse outra, fada, eu diria não.– Ele avisou, engolindo o orgulho – mas a situação é essa e eu digo que sim a
todas as suas reivindicações.
Alma afastou os olhos e olhou em torno. A casa de banho era um lugar muito bonito, vazio e solitário. Por certo a jovem Pía
levaria algum tempo até encontrar Anastácia e convencê-la a fazer seu trabalho.
-Você esteve nas dependências da cozinha e dispensa? – ela perguntou, surpreendendo-o com a mudança de assunto.
-Sim, é lá que guardam as ferramentas de trabalho. Existe um anexo onde ficam os materiais pesados. Você não tem ideia de
quanto espaço eles criaram aqui em baixo, é impressionante.
Uma parte de Solon achava interessante esse método de vida.
-Anastácia demorará em vir até aqui, ela deve estar presa na cozinha. Tem reclamando sobre isso. Desde que ela começou a
fugir das ordens de Eldor, ele a tem colocado no trabalho braçal.– confidenciou.
-E isso importa...?– ele não entendeu imediatamente.
-Esse lugar está vazio. Você pode resolver meu problema aqui mesmo. Não é preciso voltar para aquele quarto...abafado e
cheio de poeira.– alegou, irritada. Estava cansada de respirar pó de terra.
O descaso da fada ofendia. Qualquer elfo se sentiria ofendido em sua virilidade por conta de seu pouco caso.
Se ele não estivesse convicto que por trás de tanta amargura e raiva havia uma fada carente e desesperada por amor, Solon
desistiria dela.
-Está me convidando para fugir do trabalho pesado e aproveitar essa água fresca e convidativa?– optou pelo humor, para
suavizar a situação.
-Estou pedido para acabar logo com isso – ela disse cansada.
Exausta emocionalmente.
Parecia ser a única forma de acalma-la. Solon ainda pensava que era melhor tentar outras alternativas, mas não a deixaria
desesperada tentando acabar com o cio nos braços de outro elfo.
-A água está convidativa– ele disse aproximando-se– Porque não relaxa um pouco?
-Está sempre me dizendo para relaxar– ela avisou.
-Sim, porque você está sempre nervosa e tensa. Está sempre furiosa.
-Eu não estou furiosa. Eu sou furiosa. Você que ainda não notou isso.– foi franca.
-Hum, eu ainda quero ter a chance de conhecê-la fora do Ministério do Rei, sem ameaça da clausura, ou acusação de
assassinato. Sem ninguém coagindo-a a fazer o que não quer. Então, voltaremos a falar sobre isso. O que me diz? Você pode
dar uma chance a si mesma?
Alma pensou em lhe perguntar de que serviria isso. Mas se calou. Solon havia erguido a mão em sua direção, e ela aceitou o
pedido, colocando sua mão sobre a dele. Era um toque de apoio, no entanto ela sabia que precisaria começar a copula por
algum lugar, e provavelmente era um toque de introdução.
Solon segurou sua mão, pois não duvidava que ela tentasse escapar do contato. A fada não olhava em seus olhos, e ele preferiu
fingir não se incomodar com isso. Puxou-a gentilmente para perto, e tocou sua cintura com a outra mão.
Foi o bastante para Alma encara-lo com acusação. Diante de sua fúria e indignação feminina Solon precisou sorrir. Não era
deboche, apenas achava graça de tanta raiva desnecessária.
Solon baixou o rosto bem devagar, e ela foi afastando a cabeça, fugindo de qualquer contato.
-Eu vou beija-la– ele avisou, e soo como um pedido– eu posso beija-la? Não corro o risco de levar uma mordida, levo?
-Eu não sei– foi franca.
Seus lábios estavam entreabertos, ela pretendia falar mais alguma coisa, mas Solon não esperou para saber o que seria.
Aproveitou o momento e grudou seus lábios aos dela, pegando-a de surpresa. Do jeito esquivo que a fada era, melhor seria
contar com o fator surpresa, ou jamais conseguiria toca-la.
O primeiro contato em seus lábios lhe pareceu ofensivo, ele lhe roubava um beijo e ela não gostava da sensação de ser
enganada. Então, o beijo começou de verdade, um toque gentil e doce, e Alma não acompanhou, por inexperiência e surpresa,
mas quando Solon mordiscou seu lábio inferior, algo queimou dentro dela. Apertou a mão na dele, e Solon fez o mesmo em
sua cintura, como quem responde que é assim mesmo.
Ele mordiscou de novo e ela fechou os olhos, aceitando o beijo. Foi um segundo de rendição, e Solon aproveitou. Soltou sua
cintura e sua mão e segurou seu rosto com ambas as mãos, aprofundando o beijo de um modo delicioso enquanto afundava uma
das mãos em sua nuca e baixava a outra para suas costas, em torno das asas.
Alma arqueou o torso ao sentir a pressão em suas costas, em um ponto aprazível, e ele a cingiu contra o peito, soltando seus
lábios para que ela pudesse respirar.
Face corada, lábios entreabertos e úmidos. Era tão bonita, a face de traços fortes era muito bonito com aquela expressão de
confusão. Ela queria estar com raiva, mas não estava.
Os cabelos lisos, macios e castanhos acariciavam o braço de Solon e ele baixos os olhos, cravando-os no vão entre os seios
que se sobressaiam pelo decote da túnica. Alma quis reclamar, não gostava quando os elfos a olhavam assim, mas esse olhar
em especial não a incomodou tanto assim, por isso, ela não encontrou palavras para reclamar.
Solon tornou a beija-la, dessa vez provocando-a com pequenos beijos nos lábios sem aprofundar um contato maior. Ela
ondulava o belo corpo, o cio deixando o repouso em seu interior, para comandar seus atos, e Solon sorriu quando ela ergueu
uma das mãos e segurou em seu cabelo escuro, como quem quer causar dor.
Ele sentiu esse puxão, e obedeceu, sugando sua língua com a sua para uma troca intensa de saliva e paixão. A dor nesse caso
era aliada do desejo, e não o contrario.
Calados, Solon não ouvia muita coisa, pois não conversavam. Mas Alma ouvia o som molhado do beijo, os gemidos de
ambos, e esses sons eram excitantes e afrodisíacos.
Alma nem percebeu quando agarrou os cabelos do elfo com ambas as mãos e pediu por mais beijo. Pedia através da
voracidade com que correspondia ao beijo.
Solon não a decepcionou, ofertando-lhe exatamente o que precisava. Era elfo, e estava abalado pelo cio da fêmea, mas usava
de todo autocontrole aprendido no treinamento de Guardião, e mais do que isso, aprendido com a vida, depois de tantas
decepções e sofrimentos, para resistir ao impulso de dominar e possuir.
Ele escolhera aquela fada para si meses atrás, e seu sentimento não mudou. Queria agrada-la e fazê-la macia em suas mãos.
Não queria tensão e retaliação. Muito menos paixão escrachada, que não corresponde e sim absorve.
Seu interesse na fada era profundo, beirando sentimentos como amor. Solon não confiava em fêmeas o bastante para usar essa
palavra, mas quando pensava em Alma, sentia-se pronto para se deixar cair por ela, e pensar em algo além da paixão.
Solon sufocou o sentimento negativo que guardava dentro de si a cerca das fêmeas, e concentrou-se naquela em especial que
queimava em suas mãos.
O sabor da fada era delicioso e ele lambeu seus lábios antes de terminar o beijo, e sussurrou em seu ouvido, enquanto
mordiscava o lóbulo, mantendo-a aconchegada ao seu corpo:
-Pronta para um mergulho inesquecível?
Alma sentiu vontade de perguntar-lhe o que tinha demais em um mergulho. Ou se ele estava mais interessado na água
convidativa do que nela. Mas não disse nada. As palavras nunca foram seu forte, e agora, pareciam extraditadas totalmente de
sua mente.
Solon imaginava a confusão que deveria estar ocorrendo dentro daquela cabecinha repleta de pensamentos desencontrados.
Amoleceu suas negativas com suaves mordidas em seu pescoço, enquanto se desvencilhava de suas mãos ansiosas em apertar.
Alma fitou-o com olhos largos, curiosos e um pouco repressores. Iris castanha tomada pelo desejo, enegrecida, pois ela
enxergava algo que desejava, e desejava muito.
Solon manteve o contato visual enquanto derrubava a túnica por seus ombros. Alma não se importava com nudez, nunca foi
apegada a pudores referentes ao corpo ou vaidade, mas se importava, e até demais, com as mãos grandes que acariciavam sua
pele enquanto levavam o tecido por seus braços.
O decote da roupa raspou seus mamilos rijos e ela entreabriu os lábios surpresa com a sensação aprazível, notando que Solon
baixava seus olhos para estudar a reação do seu corpo, reparando que os seios eram grandes, não exagerados, mas graúdos,
cheios e rijos, vendo de perto os pontículos eriçados, em rosa escuro, enrugados e pontudos, atiçados pelo cio, ou quem sabe,
por um desejo antigo que a fazia pensar muito em Solon desde que esbarrara com ele a primeira vez, ainda na Vila dos
Desesperados, enquanto ajudava Driana a fugir.
O tecido cedeu, amontoou-se aos seus pés. Alma fechou os olhos quando Solon curvou-se para o chão, e segurou sua canela,
retirando sua sandália de couro costurado artesanalmente.
Ele não retirava os olhos das curvas da fada, e pousou um beijo em sua barriga, exatamente acima do púbis, onde havia um
sinal de nascença deliciosamente inocente esperando por um carinho.
Faltou malicia para que Alma notasse que enquanto descalçava seus pés, Solon aspirava o cheiro de sua intimidade, e
observava o vale que revelava a cada vez que erguia seu tornozelo para retirar o sapato.
Precisava de controle. E não era nada fácil com uma fada que o cativava a meses e ainda por cima, estava no cio. Nua, Alma
abriu os olhos para ver o que ele fazia. Solon segurou sua mão, a mesma que Alma usava para afastar os cabelos da face e
joga-los para trás, para que não a incomodasse nessa hora de confusão e descobertas.
Solon a puxou gentilmente para a água.
-Entre. Eu já vou– ele prometeu, e Alma não controlou a vontade de reclamar:
-Não fale como se eu fosse uma boba. Sei muito bem o que vai acontecer. Não precisa ser um professor. Isso nem deveria
estar demorando tanto.
Solon optou por não retrucar e começar uma discussão. Alma era fêmea e estava em seu direito de tirar seu juízo. A fêmea foi
criada para instalar o caos na vida de um macho, e ao mesmo tempo equilibrar razão e emoção, trazendo para a vida de um
provedor o caos e o equilíbrio. Por isso ele não se irritaria com seus modos.
Afinal, ele que estava escolhendo uma fada complicada.
Cabia a ele protegê-la de ferimentos e agressões, quando era a própria Alma que estava disposta a se machucar. Ela esperava
o pior das pessoas, e vinha recebendo exatamente isso durante toda sua vida.
Alma afastou o quadril, tocada por um desejo que a envergonhava. O modo como ela lutava para não gritar, brigar e ofende-lo
era louvável.
-Coloque a culpa do que sente no cio – ele disse baixo, a voz rouca e falha, voz tomada pela paixão. Uma voz que ela quase
não reconheceu. Assim como não reconhecia o olhar azul, agora tomado por nuvens escuras, como um céu prestes a ser
possuído por uma tempestade inesperada.– Se é culpa do cio, não tem porque se preocupar. Vai passar quando trivermos
acabado.
Alma pareceu entender o que ele dizia. Sim, não era nada para se preocupar, ela não estava caída no amor por ele, ou coisa
parecida, seria assim com qualquer elfo que desfrutasse do cio.
Alma não precisava tentar escapar, aquilo teria fim, e logo. Resoluta, andou para a piscina de águas límpidas, e mergulhou.
Não era de movimentos contidos. Apenas mergulhou graciosamente, e nadou braçadas pesadas, acalmando a ansiedade.
Solon admirou o trabalho da natureza naquelas asas perfeitas e macias. Costas suaves, longilíneas, nádegas grossas, cheias e
firmes. Coxas torneadas e canelas musculosas de quem sempre correu muito.
Bem se lembrava dela correndo com suas amigas, sempre fugindo do Ministério do Rei com alguma carcereira esbaforida
correndo atrás das meninas fugitivas. Quando era Miquelina, sua mãe, Solon achava ainda mais graça das estripulias das
fadinhas. E as fadinhas haviam deixado para trás a inocência de criança e se transformaram em fêmeas lindas, e no caso de
Alma, uma fêmea pronta para começar uma vida a dois e ser repleta de alegrias.
Bastava sossegar o facho e deixar de lado os pensamentos negativos. Solon era um otimista nato e não se assustava com ela.
Alma era assustadora em alguns momentos, mas ele preferia a sinceridade total, mesmo que em carne viva, do que a falsidade
singela e doce de uma mentira.
Alma parou de nadar e virou-se em sua direção, olhando para ele com expectativa. Ela poderia mentir o quanto quisesse, mas
seus olhos pediam por sua presença.
E atiçado por seus olhar, Solon despiu as roupas correndo, sem notar onde suas botas caíram, uma delas infelizmente boiando
na água, enquanto suas roupas jaziam no piso repleto de pedras coloridas.
Alma sentiu um arrepio percorrer sua espinha quando o elfo ficou nu, e excitado diante do seu olhar. Ele mergulhou na água e
ela baixou a cabeça, afundando para escapar dele...

Capítulo 16 Embaixo da cama

Solon encontrou-a do outro lado da piscina. Alma havia mergulhado e parecia precisar desse momento de fuga para
reencontrar seu eixo de autocontrole. Pois bem, ele não queria que isso acontecesse.

Mergulhou atrás dela, e a surpreendeu ao pegá-la com ambos os braços ao redor de suas coxas erguendo-a para cima. Ela
puxou ar com força quando foi erguida bem acima da linha da água. Solon ria, como uma criança pega fazendo arte.

-O que...O que está fazendo? – ela perguntou com ambas as mãos em seus ombros, como apoio. Olhava para baixo, pois ele a
erguia bem acima da altura dele.
-Estou tentando fazê-la sorrir. – ele disse sincero, começando a soltá-la de leve, o corpo feminino resvalando contra o seu
enquanto descia de volta para a água.– Não brigue comigo, fadinha. Não me condene por gostar dos seus escassos sorrisos.
Alma não ousou falar sobre isso. Era um assunto perigoso. O modo como o elfo a olhava...ela não saberia descrever. Mas
caso tentasse, diria que seus olhos azuis escurecidos pela paixão pareciam duas estrelas perdidas em um céu noturno, onde a
lua havia partido e deixado para trás apenas a sua mágica presença. Como se aqueles olhos procurassem por algo, e
encontrasse esse algo ao olhar para ela.
Ela lutou para não fechar os olhos e gemer, pois o contato dos seios no peito musculoso do elfo era muito aprazível. Para ser
franca, o contato de todo corpo no seu, era assustadoramente prazeroso.
Solon introduziu uma das mãos entre seus cabelos molhados e agarrou sua nuca, obrigando-a a olhar em seus olhos, sem uma
segunda opção.
-Eu quero que você desfrute disso. É um pedido, mas se for mais fácil lidar como se fosse uma ordem...então, é uma ordem.–
ele alertou.
-Eu não estou tocada pelo cio – avisou, pois ele precisava saber disso.
Estava excitada, mas não era nada comparado a como deveria ser o cio. Solon notou isso desde o começo. Não quis lhe dizer
que ela possuía um forte bloqueio que barrava seu dom completo, e provavelmente também reduzia os instintos do cio a tênues
nuances de fogo. Nada além disso.
-Talvez seja melhor dessa forma. Apenas você e eu.– ele trouxe sua cabeça para junto da sua, e roçou os lábios nos seus bem
de leve.– Somente nós dois.
Alma não soube o que pensar. Solon reivindicou sua boca em um beijo de roubar o fôlego e Alma sem notar enlaçou-o com os
braços. Uma das mãos em sua cabeleira negra, e a outra em suas costas, embaixo do braço, os dedos agarrando a carne
masculina com o mesmo desespero com que se agarraria a uma tabua de salvação em meio a um naufrágio.
Sua mente lhe trouxe imagens na mente. Imagens feias de como poderia afoga-lo facilmente ou empurra-lo até que sua cabeça
batesse no fundo da piscina coberto de pedras coloridas...e Alma cortou o beijo, afastando a cabeça assustada.
Empurrou-o e naquele instante pretendia sim encerrar o momento. Solon foi atrás, e a agarrou por trás antes que Alma pudesse
alcançar a borda da piscina. Ele não achava que seria fácil lidar com a fada, sempre soube que seria difícil.
Sua mão imediatamente tocou sua barriga e desceu, pretendendo seduzi-la de modo mais eficaz, e menos cavalheiresco, pois
com Alma excesso de zelo causava impaciência ou fornecia tempo para fugas.
Atacou seu pescoço com beijos molhados e as asas se agitaram. Solon sussurrou em seu ouvido no mesmo instante em que sua
mão desceu da barriga para entre suas pernas, deixando-a sem ação:
-Acalme suas asas, fadinha. Quieta, eu não vou parar agora.
Alma sentiu um frisson de antecipação e conteve as asas, dobrando-as junto as costas. Aliviado, pois Solon não tinha certeza
se ela o ouviria ou não, desceu os carinhos por seu ombro, devorando a pele molhada enquanto agarrava um seio, e apertava a
carne macia com dedos ansiosos. Ela gemeu, surpresa pela sensação e empurrou-se contra ele, esfregando, sem notar, as
nádegas em sua ereção. Solon gemeu em seu ouvido, enquanto mordiscava ombro, pescoço e ouvido.
Sua outra mão enveredou por território inocente, nunca antes explorado, e o primeiro roçar dos dedos longos em seus grandes
lábios arrancou-lhe um gritinho miado de surpresa.
Precavido, Solon soltou o seio e tapou sua boca com a mão, para que seus gritos não virassem berros e causasse dano a todos
os outros elfos e fadas que viviam naqueles labirintos subterrâneos.
Os dedos alisaram a região macia entre suas pernas, e um deles avançou por entre os lábios maiores, encontrando o ponto de
prazer, onde passou a rodilhar a ponta do dedo, para aquecê-la e amolecer seu coração sempre tão carregado e pesado.
Alma fechou os olhos, o corpo todo recostado no dele, enquanto a água morna banhava suas curvas, alisando a pele e
acariciando cada centímetro de pele carente de atenção.
Os dedos de Solon seguiram tocando-a intimamente e Alma agarrou a mão que prendia sua boca, e por isso, ele confiou de
soltar seus lábios e descer os dedos de volta para seu seio. Toca-la era delicioso e estimular o corpo feminino levava o dele
muito perto do clímax final.
Alma conteve os gritos por um tempo, concentrada no balanço dos corpos, no movimento da água, no roçar do dedo entre suas
dobras intimas. O mundo poderia ser feliz assim, pensou, apenas sentindo aquela emoção doce e crescente que enchia seu ser
de uma vibração nova e desconhecida.
Em uma crescente de paixão, Alma gemeu muito forte quando ele juntou mais dedos e usou a mão inteira para toca-la, dessa
vez, empurrando um dedo gentilmente para dentro, enquanto o restante da mão estimulava o clitóris.
Ele não foi fundo o bastante para romper o hímen, mas fundo o bastante para enlouquecer a fada resistente em seus braços e a
levar a um sobressalto sem volta. Muito perto, avolumado em seu ventre um crescente de paixão que parecia
insuportavelmente perto de explodir, mas que não acontecia.
Desesperado para agrada-la e poder ter sua chance de possuí-la sem culpas, Solon soltou o toque e a deixou sozinha na água
por exatos três segundos, ela virou para ele, olhando-o com acusação, sem entender o que acontecia com ele.
Não era nada demais, quis lhe dizer, apenas queria ter a chance de ver seus olhos e saber como se sentia.
-Isso acaba assim?– ela perguntou, sem ar, assustada com a decepção que sentia.
-Não.– Solon andou para ela, e a cada passo, Alma afastava-se um novo passo, até sentir a borda da piscina em suas costas.
Estava de pé na parte mais rasa, água em seus ombros, pois os dois eram quase da mesma altura.
O elfo olhava-a como se pudesse lhe tirar um pedaço a qualquer momento, e Alma não duvidou que se fosse um raptor, ele o
fizesse. Era algo carnal que não se explicava com palavras e sim atitudes.
Com as mãos em baixo da água, Solon esfregou entre as pernas da fada mais uma vez, lambendo os dedos a seguir.
Hipnotizada pela imagem, ela entreabriu os lábios e não disse nada quando ele esfregou os dedos nos lábios dela também.
Ela gemeu baixinho, e foi o convite que Solon esperava para descer as duas mãos e afastar suas pernas, ambos de pé, e
encaixar o quadril entre elas. Ergueu uma das pernas da fada, para que ela se abrisse bem largo para sua invasão. Alma
manteve a perna erguida, e para isso, precisou agarrar em seus ombros.
-Não aperte, apenas segure. Não seja bruta, fadinha– ele pediu, seduzindo-a com beijos doces em seu rosto.
A resposta foram unhas fincadas em sua carne com mais força. Solon grunhiu em um misto de prazer e dor e em represaria,
esfregou seu membro em sua intimidade, antes de se empurrar um pouquinho, começando a deflorar a fada que apenas
mantinha o corpo rijo, tenso, e assustado.
Solon distraiu-a com caricias no colo, e com um empurrão tentou ganhar espaço, sem sucesso. Tentou um beijo, mas ela não
correspondeu. Seus olhos arregalados era um indicio que não sabia lidar com o que acontecia, e estava um passo de se
descontrolar e perder a razão de um modo desagradável.
Solon tentou um carinho menos doce, abocanhou um seio, atacando o mamilo com beijos, chupões e mordidas na tentativa de
distraí-la dos pensamentos hostis e trazê-la de volta para seus braços, de volta para o ato entre os dois.
Alma esqueceu por alguns segundos o medo pelo desconhecido e os sentimentos que Solon lhe despertava e desfrutou das
caricias rudes em seu seio, e por isso não ofereceu resistência, ao contrario, sua intimidade inundou-se de excitação e facilitou
a penetração.
Com um empurrão de quadril, Solon encontrou a barreira da castidade da fada e rompeu-a, ganhando espaço e profundidade.
Ela gemeu, e Solon precisou beija-la, era uma necessidade sua, dividir com ela esse momento de conquista e satisfação em
fazer sua a fada que desejava a tantos meses.
Foi correspondido, e o beijo acompanhou os movimentos gentis que ele executava com o quadril. Sempre gentil, para não ferir
a preciosidade em seus braços. Bem devagar era bom e pelo modo como Alma escapou do seu beijo, olhos fechados,
expressão de entrega, ela sentia o mesmo.
Solon voltou a acariciar seus seios, fonte de prazer inesgotável para sua fêmea, e movimentou o quadril no ritmo que parecia
agrada-la. Sempre devagar, sempre cadenciado, sem força, sem brutalidade. Ela merecia carinho, atenção, dedicação. Ela
merecia tudo e mais um pouco, e ele estava pronto para lhe entregar seu coração e toda sua esperança de felicidade na vida.
Alma assistiu o elfo e sua expressão de prazer, pois para ele estar dentro do corpo quente, macio e cálido, era delicioso. Alma
era estreita, mas perfitamente capaz de levar seu membro sem sofrimento, e Solon sempre se orgulhou de ser um elfo bem
dotado. O encaixe era perfeito, e por conta de seus gemidos baixos ele supôs que não houvesse resquícios de dor.
Na dúvida, Solon parou de movimentar o quadril, e a beijou, oferecendo uma pausa, para ela se acostumasse a sensação nova.
Não concebia a ideia de ser a causa de mais magoa e rancor no coração tão machucado de Alma.
Alma não gostou que houvesse parado. Retribuiu o beijo, pois não queria pedir que continuasse, esperava que ele o fizesse
sem precisar se expor tanto. Solon desceu ambas as mãos por entre suas asas e agarrou a carne opulenta de suas nádegas e a
puxou para cima, penetrando-a outra vez, acelerando um pouco o movimento do quadril, surpreendendo-a.
Alma não havia sentido muita dor com a intrusão inicial, quando seu hímen foi rompido, mas se ressentia do desconforto
inicial, e quando ele parou, foi um alivio para essa sensação estranha. Agora, retomada a paixão, ela queimou.
Solon a segurou com firmeza. Força não lhe faltava. Alma abriu os olhos para enxergar se o elfo olhava para ela. Sim, ele
olhava. Quis lhe contar do barulho ensurdecedor em seus ouvidos. Um zumbido forte, que vinha de dentro para fora. Mas não
teve coratem para tanto.
Soltou os braços que tinha enrolado em seu pescoço, e seu corpo planou para trás, na água. Suas asas mergulhadas totalmente
na água se moveram, batendo ferozmente, refletindo o prazer que Alma não sabia expressar com palavras ou demonstrar de
modo mais afetuoso.
Solon gemeu, sustentando seu peso, encantado pelas formas bonitas, os seios cheios empurrados para cima, balançando a cada
funda penetração. Alma esticou os braços, permitindo que seu corpo desligasse de todas as preocupações, todas as raivas,
rancores e medos, e simplesmente desfrutou da sensação que explodia em sua intimidade e envolvia seu ventre.
Era intenso, era estranho, era única a sensação de ser possuída lentamente, com tanta delicadeza. Alma gostaria de poder
descrever com palavras a sensação de paz que insistia em se infiltrar por dentro da opressão do seu corpo. A tensão sexual
atingiu seu ápice e Solon puxou-a para si, abraçando-a junto ao seu peito, quando sentiu que ela se contraia e estava prestes a
atingir o ápice.
A fada não olhou para ele, escondeu o rosto em seu ombro, e Solon pode afundar-se de um modo que evitava para não ferir
sua fada escolhida. Alma mordeu o peito firme do elfo, cravando seus dentes de um modo doloroso, e não se arrependeu
disso. O sentimento queimou em seu interior e ela levou um susto diante do seu primeiro orgasmo. Tão forte que a fez
esquecer-se de respirar por alguns curtos segundos.
O elfo se movia dentro do seu corpo, e Alma quis fugir. Havia acabado para ela, e podia acabar para ele também. O simples
pensamento de um elfo que seguia ordens de rainha Santha estar divertindo-se com seu corpo era indigesta. Não era um
pensamento real, pois ela havia escolhido aquele elfo em especial, sabendo muito bem quem era e de quem recebia ordens.
Mas o terror pelo final do cio havia acabado e ela se julgava pronta para esquecer aquela loucura e obter seu dom completo.
Chegou a empurrar Solon, e tentar desvencilhar as pernas das dele. Era forte, por isso conseguiu soltar as pernas e precisou
lidar com o sentimento de prazer escancarado ao sentir o membro deslizar para fora de si, tão rijo e longo.
-Acabou. Pode me deixar em paz agora. Está acabado – ela disse arfante, conseguindo impor espaço. Chegou a virar de costas
para sair da piscina.
Solon a segurou por trás, ambas as mãos agarrando seus seios, e apertando-os centre os dedos de um modo que não poderia
ser ignorado.
-Eu a ajudei sem pedir nada em troca. Não seja mal agradecida, Alma.
Ela ouviu seu pedido e quase sorriu. Tocou suas mãos e obrigou-o a soltá-la. Olhou em seus olhos e então desceu os olhos
para seu corpo. Era impressionante pensar que aquilo tudo estiver dentro dela. E pior, que havia apreciado isso.
Seus cabelos longos e molhados formaram uma cortina molhada em suas costas, sobre as asas agora quietas e dobradas junto a
pele, quando ela andou para a borda e saiu da água. Nua, sentou-se no banco de madeira que adornava o amplo salão. De
costas para ele, ignorou-o.
Solon esperou que ela voltasse. Esperou em vão. A ingrata não se importava nem um pouquinho com ele. Indignado, ele socou
a água em sua volta, mas não lhe deu o gostinho de ir atrás dela. Passou uma das mãos pelo cabelo, nervoso, e olhou para si,
naquela situação indigna.
Não restava alternativa além de aplacar o fogo nadando e queimando a energia acumulada durante o ato, e que não pudera
extravasar.
-Se eu soubesse que faria isso comigo não teria me preocupado com você, sua fadinha ingrata – ele fez questão de dizer antes
de mergulhar.
Alma respirou aliviada quando ele ocupou-se de fortes braçadas, deixando-a em paz. Olhou para ele, sem virar na direção da
piscina. Suas mãos tremiam, e ela fitou as próprias mãos sem entender porque estava assim. Suas pernas ainda estavam
bambas. Apesar o ato ter ocorrido na água, ela estava um pouco suja em regiões intimas e inconfessáveis.
Ela esqueceria logo o acontecido. Sim, era o que aconteceria. As braçadas fortes não cessavam e após uns dez minutos, ela
percebeu que ainda estava nua e não fizera um único movimento no sentido de se vestir.
Talvez inconscientemente quisesse que Solon viesse atrás dela? Porque não? Ele lhe disse que tinha planos de corteja-la, não
é? Que lhe enviara um presente meses atrás? Era de esperar que fosse tentar seduzi-la mais uma vez após a rejeição não é?
Fechou os olhos agoniada ao pensar que nem sempre a vida é do modo que deveria ser. Solon estava humilhado e a culpa era
sua. Além disso, havia se mostrado respeitador e protetor e não abusaria de uma fada indefesa.
Alma levantou e segurou a bata diante do peito, numa parca proteção para a nudez. Aproximou-se da beirada da piscina e ele
parou de nadar, encarando-a:
-Se eu lhe mandasse mergulhar e ficar no fundo da piscina até perder o fôlego e sentir os pulmões repletos de água o que você
faria?– perguntou-lhe e Solon achou que estava ficando louca.
-Eu a mandaria para um lugar bastante ofensivo e lhe daria umas boas palmadas no traseiro para que perca a vontade de tentar
me assassinar o tempo todo!– ele respondeu com uma pitada de humor.
Alma não esperava por isso!
-Acontece que eu deveria estar conseguindo hipnotiza-lo!– lembrou-o disso.
-Bem, eu tinha razão. Tem algo bloqueando seu dom, e não é o cio. Ou...o fato de você ter interrompido o ato.
-Eu não fiz isso – ela negou, sem compreender.
-É claro que fez. Perdeu sua castidade, fada, mas ainda posso farejar o cio.– mentiu descaradamente.
Alma mal acreditou que isso pudesse ser verdade. Revoltada consigo mesma, deixou a túnica cair no chão e mergulhou
graciosamente na água. Solon sorria quando ela emergiu.
Escondeu o sorriso para que não soubesse que a ludibriava.
Água banhava a face sempre franca e séria de Alma.
-Eu não posso demorar muito tempo aqui. Seja rápido.
-Hum, e quem disse que eu quero continuar?– ele segurou seu queixou e pousou um beijo delicado na pontinha do seu nariz–
Não quero mais.
-Está mentindo – ela disse cínica, olhando para baixo, para a imagem que a água revelava, o corpo masculino ainda tocado
pelo desejo – eu não gostaria de estar fazendo isso quando Anastácia vier atrás de mim por ordens de Eldor.
-Não estou mentindo. Estou brincando com você– ele afastou-se e encartou a fada– Não vou erguer um único dedo em sua
direção.
Alma mergulhou para na verdade esconder um sorriso. Não queria que soubesse que achava graça quando ele agia assim com
ela, e que gostava de rir com ele, pois assim, esquecia todos os problemas e desilusões da vida.
Solon observou-a nadar para o lado oposto. Alma ficou de costas, e apoiou ambos os braços na beirada da piscina, olhou para
trás e perguntou:
-Você vem?
Sim, ela também não ergueria um dedo para fazer isso acontecer.
Solon não recursaria aquele convite. De modo algum! Ansioso, nadou em sua direção, e encoxou a fada, beijando seu pescoço
por entre os cabelos longos e macios. Alma fechou os olhos, e saboreou o carinho, sentindo a tensão voltar para seu corpo, ou
apenas, ser reacendida, pois na verdade, ainda pairava em seus nervos sempre tão agitados.
Solon acariciou seus ombros, e desceu os beijos para suas costas, naquele caminho entre as asas, acariciando a junção das
hastes, uma região extremamente excitante para uma fada. Ela se contorceu, incapaz de disfarçar o prazer.
Solon segurou as asas e obrigou-a abri-las, para que pudesse acariciar os filamentos e as junções, causando-lhe arrepios
descontrolados.
Sim, havia encontrado um gatilho perfeito para enlouquecer a fadinha em seus braços. Algumas fêmeas eram extremamente
sensíveis nas asas, outras não. Alma era uma das sortudas a desfrutar de prazer ao ser tocada nas junções e filamentos.
Era uma arma de sedução para não ser esquecida no futuro.
Desceu os beijos, e agarrou seus quadris com ambas as mãos, erguendo suas nádegas para cima, para poder beijar o caminho
dentre elas. Alma engasgou-se com água e tentou perguntar-lhe o que faria, mas Solon não lhe deu chance de formular
perguntas antes de prova-la com a língua.
A água não era empecilho para a caricia, e Alma se contorceu em um prazer tão forte quanto o desamparo que sentia por estar
entregue as suas mãos habilidosas. Ele era um amante gentil e experiente, nada ansioso.
Solon gostaria de ter mais tempo para usufruir do ato, mas ela tinha razão ao dizer que logo seriam pegos no flagrante. Deveria
ser um ato fugidio e não prolongado. Era inevitável tentar fazer amor com Alma e não sexo. Ela poderia negar o quanto
quisesse, mas havia sentimentos entre os dois e esses sentimentos vinham a tona quando estavam juntos.
O sabor do sexo da fada era delicioso, e nesse momento, ele evidenciava o cio com força total. O bloqueio emocional de
Alma a impedia de desfrutar dos sentimentos aguçados que o cio induzia, e Solon tentava acompanhá-la e não se deixar levar
apenas pelo cheiro forte. Lambeu e sorveu desse gosto, fazendo o corpo da fada responder com arrepios, tremores e gemidos
involuntários. Ela se contorceu e agarrou uma das mãos de Solon, que a segurava, e esse aperto era como um pedido por mais.
Ele sugou com força e Alma gritou. O prazer foi forte demais para conter um grito. Da primeira vez havia sido diferente, mais
calmo, suave e doce, mas agora, era um furacão varrendo tudo dentro de si, levando todas as conclusões, duvidas e carências.
Solon tornou a tapar sua boca, com medo que ela começasse ferir pessoas com seus gritos guinchados, e ergueu o corpo. Alma
não viu quando ele se guiou para dentro, forçando caminho, mas sentiu a penetração e segurou sobre a mão dele, que a
mantinha calada.
Era forte, duro, e rápido, muito diferente da sua tentativa de ser carinhoso e gentil da primeira vez. Ele queimava de paixão e
não lhe daria a chance de fugir uma segunda vez. As asas de Alma bateram com força e ele grunhiu de prazer ao sentir o toque
das fadas em sua carne. Se ela fazia isso para machuca-lo teria que se esforçar um pouco mais, pois o agradava em muito o
toque das asas.
Solon gemeu e empurrou com força, quase os derrubando. Ergueu um dos braços e segurou na beirada da piscina para apoiar
os dois corpos, empurrando dentro da fada com força.
Alma mordeu a mão que a mantinha calada, não por desejar ser solta, mas sim, pois não conseguir se controlar. Era mil vezes
mais forte que da primeira e segunda vez. ela enxergava tudo colorido sob as pálpebras fortemente fechadas, e ouvia algo que
acontecia dentro do seu corpo. Algo que somente ela sabia que estava lá. Como um cálice de cristal precioso caindo ao chão e
estilhaçando-se. Era assim que ela se sentia ao ser jogada outra vez num precipício chamado gozo. Dessa vez ela foi
acompanhada por Solon, que varreu o interior de sua intimidade com tudo que tinha para lhe oferecer.
Era assim que uma fada emprenhava no cio, pensou, desacorçoada. Solon foi parando os poucos e descobriu sua boca, apenas
para segurar seu queixo e virar seu rosto um pouco de lado, para lhe roubar um beijo.
Um beijo diferente dos beijos desfrutados até aquele instante. Alma girou em seus braços e agarrou sua nuca, segurando em
seus cabelos e sem notar acariciando o elfo que deveria detestar. Solon ajudou-a a planar, as pernas em tono dele, os seios
grudados em seu peito, braços unidos e provavelmente recomeçariam tudo outra vez.
Foi Alma quem ouviu um som de susto e abriu os olhos, notando que Pía estava encarando-os com horror, enquanto Anastácia
parecia mais ocupada olhando para o corpo do elfo, do que para a fada em questão. Solon reparou, pois ela reparava. Não
havia ouvido nada em especial.
Pía saiu correndo e Anastácia fechou a porta e permaneceu em seu canto, aguardando novas ordens. Como serva, não deveria
reparar em nada que acontecia com seus senhores.
-Você deve ir agora– Alma disse para Solon, sem ar, as palavras um pouco engasgadas em sua boca.
-Sim– ele concordou– Não conte a elas do seu dom verdadeiro. Eu sei que tem algo a bloqueando e agora sabemos que não é
o cio.– ele sorriu sem vergonha, lhe roubando um novo beijo antes de se afastar– Falaremos disso mais tarde, quando
estivermos a sós.
Alma não queria sorrir por nada no mundo. O certinho Guardião Solon havia enganado uma fêmea com mentiras para obter a
conclusão do ato sexual? Se ela não fosse à dita fêmea poderia achar adorável.
Displicente, ele saiu da água e apanhou as roupas, vestindo-as sem se importar com a nudez. Alma não gostou de ver
Anastácia olhar despudoradamente o elfo em todo seu esplendor.
A fadinha chegou a estufar o peito de vaidade quando ele passou bem perto, para sair da casa de banho.
Sem saber o que pensar de si mesma, e do que aconteceu, Alma mergulhou e ficou sob a água por alguns preciosos segundos,
tentando pensar com clareza.

Capítulo 17 Vendo o futuro

-Fico feliz que não pretenda escolher Eldor – Anastácia disse enquanto segurava a toalha para que Alma saísse da água.
-Não fale de assuntos que não conhece– ela disse tentando se irritar, mas era difícil sentir qualquer coisa além de satisfação
plena e perfeita.
Seus cabelos molhados ficaram para o lado, sobre seu peito, enquanto vestia o vestido bordado com fios e ouro. Roupas
dignas de uma rainha. Uma fada pode se acostumar com tanto luxo, pensou triste por um instante.
Veio-lhe a mente o pensamento de como estariam suas amigas. Driana lhe contara brevemente, durante o momento em que se
encontraram no Vale dos Desesperados, que havia se deitado com o elfo que a perseguia, Acheron. Será que todas elas
acabariam deitando-se com seus perseguidores em nome da liberdade? Era indigno, pensou.
Uma faixa foi amarrada em sua cintura e Alma cutucou uma das pedras preciosas até soltá-la do pano. Rodou acompanharem o
brilho da joia.
-Você quer?– perguntou.
-Sabe que eu quero – ela disse sem esconder a verdade.
-Lhe dou esta em troca de uma informação.– disse cautelosa.
-Dependendo das informações podemos negociar– foi sincera.
-Pois bem. Diga-me onde Eldor escondeu as armas de Solon. – estendeu a pedra em sua direção e Anastácia pegou, sorrindo
como uma criança alegre.
-Na alcova de Eldor. Estão lá... Exibidas como troféus. Eu sei, pois ele se deita com uma fada que divide alojamento comigo.
Ela sabe muitos segredos, mas nem adianta tentar suborna-la...Eldor a tem na palma da mão– avisou.
-E Pía? O que eu posso oferecer que a faça ceder?– foi direta, arrancando outra pedra preciosa do cinto da roupa.
-Hum...– Anastácia parecia prestes a pular de felicidade, pegou a joia e segurou junto ao peito – Ela quer se casar com meu
cunhado, Estevão. Mas Eldor quer que ele se case comigo. Se você prometer a ela a chance de viver esse amor...ela pode
ceder.
-Como é possível uma fada preferir um elfo a ter suas asas? Eu ofereci a ela a chance de ter suas asas!– não acreditou.
-Não esqueça que para Pía o mundo lá de cima não é real.– ela lembrou.
As duas pararam de falar quando ouviram um barulho ensurdecedor de passos.
-Veja, sua paz acabou– Anastácia disse– Pía deve ter contado a Eldor o que viu.
Preocupada, Alma secou os cabelos calmamente, a mente vagando nas lembranças do que aconteceu naquelas águas. Sua
castidade se perdera nos braços do Guardião Solon. Sempre havia o risco de emprenhar, mas ela contaria com a sorte para
que isso não acontecesse. Joan, sua amiga, vivia dizendo que o pensamento tem força e que se acreditamos que tudo ocorrerá
de modo correto, é o que acontecera.
Alma fechou os olhos e pediu aos céus que a ajudasse. Que a mãe de toda a natureza, olhasse por seus filhos que sofrem. Que
houvesse um momento de paz em sua medíocre vida.
a pedra nos dedos, notando os olhos de Anastácia
Abriu os olhos e fitou a água. Pensou ter visto um movimento no centro da piscina, mas não havia anda. Um movimento
involuntário na água, que a fez franzir a sobrancelha, mas não dar atenção, pois a porta se abria e guardas de Eldor entravam
acompanhados por Pía.
-Eu não vou com nenhum de vocês– Alma disse séria– Digam a seu líder que não quero vê-lo. Que estou cansada e vou me
deitar.
-Cansada de deitar-se com outro?– Pía cobriu a boca com a mão, chocada.
-Exatamente. Cansada de me deitar com outro. Quero descansar. Acaso sou prisioneira de seu líder?– como nenhum deles
disse nada, ela sorriu– Pía deve me acompanhar até o quarto.
-Porque eu?– a menina não queria ajuda-la. Estava revoltada com sua audácia em trair seu líder.
Alma aproximou-se da fada, com uma sensualidade que não sabia possuir e disse com um olhar de segundas intenções:
-Porque é minha preferida.
Anastácia sabia o que faria, mas os guardas não. Um deles tentou segurar seu braço e Alma farfalhou as asas, e o principio de
som provocado por elas, foi o bastante para que eles se contivessem:
Com um olhar de aviso, Alma deixou a casa de banho com a cabeça erguida. Não tinha do que se envergonhar, não mesmo. A
decisão era sua, seu direito de fêmea em escolher quem lhe interessava, e por mais que negasse, o elfo que a interessava era o
mesmo com quem dividira aquele momento especial.
No quarto, Alma mal esperou a porta se fechada atrás de si para dizer:
-Diga a seu amante que posso ajuda-los a ficarem juntos.– Pía pareceu assustada com essa informação – Sim, eu sei o seu
segredo. Sei que Estevão pertence a Anastácia. Mas ela não o quer. Eu faço um favor a todos vocês. Vou embora e levo
Anastácia comigo. O que me diz? Tudo continua igual. A vida que conhece não vai mudar pela minha ausência. Diga sim, e sua
vida será mais feliz.
-Não posso trair meu líder– Pía disse baixando a face.
-Ele não precisa saber. Você não fará nada, Pía. Apenas dirá uma informação de conhecimento de todos não é? Onde ficam as
saídas para o mundo lá de cima? Por onde os guardas saem e voltam todos os dias, e os elfos e fadas que habitam os casebres
do Vilarejo Sem Fim conseguem passagem para ir e vir sem serem vistos? Conte-me o segredo, Pía.
-Eu tenho medo – ela disse negando-se a responder sua pergunta.
-Medo de Eldor? – perguntou forçando a jovem a ir a extremos.
-Não. Medo do que você disse ser verdade.– confessou– Medo que não havia guerra alguma lá em cima, e todos nós tenhamos
desperdiçados nossas vidas aqui em baixo a toa...
O que Alma poderia lhe dizer? Calou-se para que a jovem decidisse sozinha o que faria.
-Eu não posso contar nada. Mas posso lhe dizer que Estevão levará alguns elfos e fadas para a superfície amanhã cedo. É a
única coisa que posso contar.– foi sincera.
-É o que preciso para descobrir como sair desse lugar– ela disse respirando fundo – E você? Terá coragem de assumir o que
sente?
-Pra que? Anastácia não lhe contou?– Pía disse triste – Estevão anseia pelo casamento com ela. A ama. Ele não quer nada
comigo. O que temos é... vento, que vem com intensidade, devasta tudo que encontra no caminho e depois...parte sem deixar
sinais de sua presença.
-Levo Anastácia comigo, ela tem coragem de ver a superfície. Quer encontrar a irmã e a sobrinha desaparecidas.– disse
convencida.
-E o que muda? Estevão não me amará mais ou menos por ela estar longe.– triste, Pía aproximou-se da porta e perguntou–
Você ama o elfo que escolheu?
Alma pensou nessa pergunta.
-Eu poderia ter amado. Se a vida fosse diferente, eu poderia ter aprendido a ama-lo – confessou.
Pía partiu e Alma sentou na beirada da cama. Apoiou as duas mãos no colchão, seus dedos trêmulos. Por fora estivera firme,
calma e serena. Mas por dentro seu coração estava oprimido e ansioso por uma resolução.
Se houvesse sido cortejada por Solon e houvessem se casado, ela poderia ter se acostumado a presença dele e ter aceito seu
afeto. Sim, ela sempre seria estranha, quebrada por dentro, mas poderia ter se acostumado a uma vida simples ao lado de um
elfo que a amasse e também, ao lado de suas amigas, sabendo que todas estariam a salvo e felizes.
Mas o tempo de conjecturas havia findado, e Alma não podia perder tempo com isso. A vida é o que é. E sua face mais feia
era a face que encarava no espelho todas as manhãs.
Guardando dentro de si a magoa, Alma sufocou as lembranças do prazer, do calor, do aconchego encontrado nos braços do
Guardião da Rainha Santha e levantou. Precisava alertá-lo sobre Estevão e a saída fortuita na manhã seguinte.
Sua mente sã lhe avisava que poderia espera-lo voltar a noite. Mas sua mente não controlava suas ações. No fundo, ela temia
uma represaria de Eldor contra Solon por ter se deitado com ela.
Por mais que vivesse insistindo em pensar coisas feias, ainda assim, Alma lembrava-se da fragilidade do elfo, mascarada por
muita competência e treinamento de Guardião, fragilidade que ele muito bem escondia.
Sem pensar nas consequências de seu ato, Alma deixou o quarto, e percorreu os corredores com habilidade. Nunca fora tão
inteligente ou sagaz quanto Driana, mas sempre se orgulhara de ser observadora e decorar facilmente as coisas.
Não se perdeu nos corredores, pelo contrario. Uniu-se a um grupo de fadas que andava calmamente, discutindo algum assunto
tolo da convivência do local. Elas notaram sua presença, e notaram a ausência do cio, e como Alma supunha, era boato
consistente que havia se deitado com o elfo Solon.
Em determinado momento ela avistou elfos, e baixou a cabeça, medindo o comportamento deles ao passarem por ela. A
decepção era visível na face dos elfos. Sim, a única fêmea no cio que conheceram não estava mais disponível.
Alma seguiu andando, e depois de um tempo era a única a percorrer os corredores de pedra cinza, deixando para trás os
corredores de pedra lapidadas.
Sentia um arrepio de desgosto ao lembrar-se do momento trágico onde julgou estar enterrada viva. Quanto horror. Fechou os
olhos e seguiu andando até sentir terra bruta entrar pelas sandálias, sujando seus pés.
Estava andando pelos novos corredores subterrâneos, recém-abertos, em construção ainda, que deveriam garantir maior
espaço para as novas gerações.
Alma olhou para cima, e terra caiu em seu rosto. Limpou a sujeita e maneou a cabeça. Não gostava disso. Estar presa.
Agoniada suas asas se moveram inquietas e Alma quase esqueceu que deveria conter o farfalhar.
Um olhar de aflição para a terra e torno, e Alma esfregou uma das mãos na parede, sentindo a terra nos dedos. Isso não era
certo. Não gostava disso. Poderia ser sua mente sempre negativa lhe pregando peças, mas ela não gostava de estar ali.
Do mesmo modo que desgostara de Eldor imediatamente depois de conhecê-lo, estava acontecendo com aquele lugar. Parte
sua apreciava o mundo criado para tranquilidade de quem tanto sofreu no passado. Mas outra parte repudiava aquele lugar
com desespero.
Ouviu vozes distantes, vozes e elfos. Eram os trabalhadores braçais, elfos considerados inferiores e que eram renegados a um
trabalho quase escravo. De longe, Alma observou Solon sem camisa, pés descalços, cabelos encharcados de suor, cavando
vorazmente. Ele estava furioso, e Alma supunha que não conseguir acompanhar a conversa que acontecia a sua volta o irritava
profundamente.
Havia percebido que o Guardião lidava bem com sua carência auditiva, mas em alguns momentos, perdia a calma consigo
mesmo.
Sua presença foi notada pelos outros. Sem o guiso para indicar a mudança a sua volta, naquele ambiente hostil, com barulho
ensurdecedor de pedras sendo quebradas e terra revirada, Solon não poderia jamais notar a aproximação de quem quer que
fosse.
Os outros elfos notaram, e pararam de trabalhar. Alma não estava mais no cio, e isso era uma grande novidade, que aliada ao
erotismo do desejo despertado quando no cio, fazia com que os elfos reparassem nela mesmo passado o momento de maior
libido.
Solon parou de cavar ao nota-la. Fincou a ferramenta afiada no chão, e apoiou o braço no cabo. Seu olhar mesclava diversão e
ironia.
-Preciso falar com você– ela disse seca, fingindo não notar que era admirada e até desejada por outros elfos.
Talvez fosse tolice da sua parte, mas era diferente o modo como interpretava esses olhares agora que sabia o que acontecia
entre elfo e fada, macho e fêmea, e entendia a razão de tanto alvoroço por causa disso. Era prazer puro, e entendia a vontade
de fazer e fazer sem parar!
Corou, mesmo assim, não esmoreceu em um centímetro em sua postura de cobrança.
-A escolhida do seu líder quer falar comigo - Solon disse com deboche, olhando para Estevão, que fiscalizava o trabalho dos
elfos inferiores.– Tenho sua permissão para abandonar o trabalho, meu senhor?
-Quem sou eu para me colocar entre a fada escolhida e seus desejos?– o elfo resmungou, e deixou claro seu desinteresse com
toda aquela inusitada situação entre seu líder e os forasteiros.
-Seus desejos, fada, são uma ordem para mim– Solon ridicularizou, fingindo muito bem ter ouvido a resposta de Estevão.
Alma admirava sua capacidade de entender o movimento dos lábios e saber o que diziam. Isso lhe poupava de ter que contar
aos demais de sua carência auditiva.
Alma perguntou-se intimamente se era assim que os elfos lidavam com suas fêmeas após a conquista... Com essa petulância.
Ou se era pessoal com ela, que o desmerecera tanto, mesmo após o ato sexual.
Solon a conduziu bem de perto, levando-a para um dos corredores rústicos que estava quase pronto, alargado, e sendo
reforçado por pedras, mistura de pedras e barro, e outros métodos de arquitetura que Alma não compreendia o funcionamento.
O lugar estava abandonado, pois toda a força braçal estava concentrada no outro setor.
-Pía contou que amanhã cedo Estevão levará um grupo de elfos e fadas lá para cima, para ficarem nas cabanas do Vilarejo
Sem Fim. Pode ser a chance que esperávamos.– contou rápida, sem chance para outro tipo de conversa.
-Está bonita, sabia disso?– ele estendeu uma das mãos e tocou seu rosto, tentando roubar-lhe um beijo.
Alma afastou-o com ambas as mãos e perguntou:
-O que está fazendo?
-Beijando a minha fada– ele sorriu, desistindo do carinho – Sim, eu sabia que seria uma tentativa vã.– seu sorriso iluminava a
quase escuridão total do corredor.
Alma afastou os olhos do Guardião e olhou em torno, incomodada.
-Eu não sei o que é... Mas não deveríamos ficar aqui mais tempo.– ela confessou, abrindo-se de um modo que não gostava de
fazer.
Muitas e muitas vezes era um custo para suas amigas lhe arrancarem o que pensava. E normalmente isso só acontecia quando
Eleonora, Driana e Joan estavam enlouquecendoa com tanta insistência! Então, porque contava espontaneamente para Solon de
suas aflições? Estava perdendo o juízo presa ali em baixo?
-Explique-se– ele disse sem contestá-la.
Alma desviou o olhar para o seu, e sua expressão era fechada.
-Eu não sei. Não sei explicar. Quando Eldor me abordou eu sabia que ele não valia nada. Eu sempre sei quando algo ruim está
perto. Talvez porque eu seja igual. Eu não sei. E eu sei que tem algo muito ruim se aproximando. E não quero estar aqui
quando acontecer.
-Algo ruim de que gênero? É algum tipo de pressentimento? – ele aproximou-se e a manteve entre ele e a parede de terra.
Alma não se afastou.
-É claro que não. Pressentimentos são dons extintos desde a guerra de Ulder. Todo mundo mágico sabe que isso não existe
mais.– ela ridicularizou.
-Minha mãe, Miquelina, foi isolada na clausura por ter o dom do pressentimento - ele revelou e Alma arregalou os olhos de
susto.– Sim, foi ela quem me avisou sobre você, antes mesmo de Tubã tentar me convencer a reparar em suas amigas da
clausura.
-Miquelina falou de mim? Por quê? Ela sempre me odiou!
-Sim, e exatamente por isso, porque ela sabia que você era predestinada para o filho dela. Miquelina sempre foi muito
possessiva comigo – ele explicou– com meu pai. Ela não sabe lidar com a vida, ou com as pessoas.
-Ela sempre me deu os piores castigos. – disse com rancor.
-Inveja e ciúme de mãe– ele abrandou– Tente perdoar, Alma. Ela nunca conheceu a felicidade.
-E porque você nunca fez nada para salvá-la da clausura? Que espécie de filho é você?– empurrou-o com uma das mãos e
Solon segurou-a, enlaçando os dedos nos seus.
Havia muita tristeza em seu olhar quando respondeu:
-Um dia lhe responderei essa pergunta, Alma. Quando você confiar em mim, eu lhe contarei sobre minha vida.
O modo profundo de olhar, o jeito... Algo lhe dizia que Miquelina estava envolvida com a ferida que encontrara cicatrizada na
cabeça do elfo, próximo a cada ouvido.
-Me diga onde está minha armadura. Dependendo de onde a escondeu eu posso tentar ordenar que ela me encontre - ele disse
sério, mudando o assunto.
-Não. Eu a escondi em um lugar onde mágica alguma pode encontrá-la.– confessou.
O entendimento perpassou a face do elfo, que soltou sua mão e virou de costas, contendo a raiva.
-Deserto das Areias Vermelhas?– era uma pergunta retórica.
-Não adianta perguntar, eu não lhe direi.– recusou-se a confirmar essa suspeita.
-Você é uma cobra, fada– ele disse rancoroso. Respirou fundo, e conteve sua raiva.
– Eu vou perdoar isso...eu tenho que perdoar, porque entendo o seu desespero e sua raiva. E entendo que alguém tomado
desses sentimentos pode fazer as piores atitudes na esperança de se proteger. Mas escute bem, se eu estivesse com a minha
armadura nós dois estaríamos livres. Então, não acha que deveria ter pensado um pouco antes de agir contra mim?
É claro que sim, pensou em responder. Mas as palavras não lhe vieram a boca.
-O que pretende fazer sobre Estevão?– ela mudou o assunto.
-Segui-lo. Descobrir onde ficam as entradas. E você? Está conseguindo manter Anastácia do seu lado?– quis saber.
-Anastácia não está em lado algum. Ela quer ser livre. É a única motivação que a move.
Soou como se falasse de si mesma.
-Pois bem, se tivermos sorte, amanhã mesmo sairemos daqui.– ele sorriu.
Alma não queria sorrir para ele. Não mesmo. Mas um pequeno sorriso escapou e Solon entendeu como um incentivo.
-Mantenha-se longe de Eldor– ele disse tornando a toca-la, curvando-se para ariscar um beijo.
Alma não o repudiou. O toque dos lábios do elfo era morno. A pele suada, quente, coberta de músculos e terra, era tentadora
demais para se conter. Alma enterrou os dedos na carne suculenta do peito musculoso e aprofundou o beijo, acompanhando os
movimentos ele.
Solon usou a mão livre para puxar seu vestido para cima, e liberar espaço para o caminho entre suas pernas. Não tinha muito
tempo, logo procurariam por ele, e o lugar não era apropriado, mesmo assim, Alma parecia rendida e ele não desperdiçaria
uma oportunidade dessas.
Encostou-a contra a parede rústica e serpenteou o corpo contra as curvas macias da fada, arrancando-lhe um gemido. Solon
começava a liberar a roupa que usava, para ter liberdade para possuí-la quando Alma quebrou o beijo.
-Você ouviu isso?– pareceu assustada.
A pergunta quase o ofendeu.
-Não, você não ouviria–ela mesma respondeu– Eu ouvi um ruído. Um rangido. Um...eu não sei o que é.
-Deve ser o som das ferramentas cavando a terra. Estamos perto do corredor onde cavamos sem parar– ele ariscou seguir
beijando seu pescoço e ela não lutou.
-Você não entende.
Alma não sabia como explicar.
-Isso não está certo.– ela pareceu inflamar de angustia e Solon parou as caricias, segurando seu rosto.
-O que foi? Conte-me o que foi.– pediu sem suavidade e sim com voz de autoridade.
-Eu não sei. Quando olhei para a água... Para a piscina da casa de banho... Eu vi a água se movendo de baixo para cima. Isso
não é normal. Eu senti um calor estranho na terra quando estava indo atrás de você... Eu sinto isso agora. A terra queima.– ela
pegou um punhado de terra da parede e estendeu para que Solon pegasse.
Ele fez isso.
-Tem razão sobre a temperatura da terra– Solon levou para perto do nariz– Não conheço as oscilações de temperatura aqui em
baixo, mas conheço esse cheiro.
-Cheiro?– ela tentou sentir o que ele falava.
-Água da chuva.– ele disse tenso – Estamos na estação das chuvas, lembra-se?
Alma maneou a cabeça concordando. Era esperado que as tempestades viessem a qualquer momento. Era uma época do ano
onde as chuvas são intensas.
-Estamos a muitos metros de profundidade da superfície. A água da chuva não deveria estar escoando para cá.– ele disse
pensativo.
-Acha que...?– ela parou a pergunta no meio, pois Solon jogava a terra no chão e soltava um palavrão de desgosto.
-As obras. Estevão vive reclamando que são audazes para quem não conhece tão bem esses lados. E é época de tempestades.
Você pode estar certa. Precisamos avisar a todos do risco que corremos.
-Não – ela negou– Se avisarmos, eles mudarão a rotina e não poderemos fugir amanhã. É melhor sairmos daqui e acharmos um
modo de ajuda-los.– disse ansiosa.
Solon soltou um som de desgosto.
-O que eu vou fazer com essa sua mania de pensar em si mesma?– disse pesaroso– Nada de planejar mortes, ou de importar-se
somente consigo mesma. Consegue fazer isso, alma? Pensar um pouco nos outros? Uma vez na vida?
Alma afastou a mão que tentava tocar seu rosto, e virou-se emburrada.
-Vá para o inferno – ela disse entre dentes.
-Eu iria se estivesse com minha armadura. Mas você a escondeu. E agora não posso ir para lugar algum.
Alma respirou fundo, e olhou para ele com despeito:
-Acontece que se você houvesse sido um macho eficaz eu teria obtido meu dom completo ao perder o cio. Mas você não
serviu para nada. Contínuo sem controle do meu dom. E desperdicei o cio!
-Acontece que estava certo, o bloqueio que a faz incapaz de lidar com seu dom é outro. É essa raiva toda, esse ódio que grita
por cada poro da sua pele, que fica evidente em cada olhar seu! É sua magoa e rancor que suprima tudo que há de bom dentro
de você.
-Sinceramente, eu não tenho disposição para conversa fiada. Eu pretendo fugir amanhã, se você quer contar a todos do risco
de ficar aqui....o problema é seu.
Alma deu a conversa por encerrada. Andou apressada e com passos duros, e foi seguida por Solon.
-Não vire suas costas para mim, Alma! Você acha que pode resolver tudo na sua vida desse modo? Fugindo da verdade?
-Me deixe em paz!– ela gritou, suas asas agitadas.
Alma percorreu o corredor, e começou a correr, quando descobriu que não sabia como sair daquele labirinto de novos
corredores sendo construídos. Não havia pedras nas paredes ou ladrilhos coloridos, então, ela não sabia diferenciar um do
outro. Ainda mais estando nervosa e atacada como novamente se encontrava.
Solon correu atrás da fada, para impedi-la de se perder. Ele odiaria ter que pedir ajuda para encontra-la. Eram forasteiros, e
ele também não conhecia profundamente aqueles corredores.
Alma parou de correr diante da cena que encontrou.
Assustada, as palavras fugiram de sua boca:
-Solon! Solon, aqui! Oh, não...isso não!
Solon foi guiado pelo som da voz da fada. Uma voz naturalmente esguichada, mas que para ele, sempre soava como uma voz
normal. A fada era perfeita para ele, esperava conseguir provar isso para alma algum dia.
Ela observava a cena a sua frente assustada e Solon a encontrou, dividindo com ela esse temor.
Um dos corredores abandoados, pois eles desistiram de cavar por ali, por ser uma área de difícil acesso e desembocar em um
paredão natural de rochas, intransponíveis, exibia a razão do medo dos dois.
Água vertia pelas rochas e alagava o chão, tornando-o barrento. As paredes de terra pareciam chorar, água escorrendo
rapidamente.
-Será que existe o risco de alagamento? -ela perguntou, segurando no braço de Solon, pois ele a segurara primeiro.
-Não. Isso é pior do que um alagamento. Veja – apontou para cima, onde a terra começava a soltar. Alma afastou o rosto, pois
terra caia em seus olhos.– A terra vai ceder. Seremos soterrados.– ele disse realista.
-Mas...será que aguenta até amanhã? – perguntou em uma última tentativa de salvar a si mesma.
Solon a olhou com profunda repreensão.
-Venha, precisamos contar isso aos outros– ele a puxou pelo braço e Alma o acompanhou.
Uma voz interior insistia em gritar, dizendo que era tolice. Eles poderiam ter uma chance de fuga. Poderiam, não é? Mesmo
com esse pensamento, não fez nada para impedi-lo de leva-la consigo para o corredor onde os outros trabalhadores braçais se
reunião para trabalhar.
-Pense bem, nós poderíamos sair daqui amanhã– ela tentou falar uma última vez, mas foi ignorada.
Ficou de lado ouvindo a conversa entre Solon e Estevão. O guarda não acreditou em suas palavras.
Alma fechou os olhos quando Estevão recrutou dois guardas para escolta-los até o quarto, onde deveriam permanecer até
serem chamados por Eldor.
-Ora, por favor, Solon, se o elfo quer morrer soterrado, deixe-o! Ele já perdeu a esposa para as mãos de Eldor, e
provavelmente a filha mais velha também, que mal tem morrer pela causa de Eldor?
Sua ironia enfureceu Estevão, mas Alma não esmoreceu.
-Veja com seus próprios olhos– pediu Solon. – Acidentes dessa natureza podem acontecer em lugares como este.
Desconfiado, o guarda concordou, mas Solon e Alma foram escoltados pelos guardas.
-Eu não disse?– Alma perguntou petulante quando chegaram ao lugar.
-Isso não quer dizer nada.– Estevão contrariou– Já vi isso acontecer muitas vezes. Quando a chuva passar, tudo ficará bem.
-Se você diz– Alma provocou, olhando para Solon com deboche.
Seus planos de esperar pela manhã seguinte aconteceriam. Era a vitoriosa, afinal.
-O teto está baixo – Solon argumentou– Não vai aguentar o peso da água. Muitos corredores novos, terra sendo remexida. Esse
ano as coisas podem ser diferentes, Estevão.
-Levem-nos– ele ordenou e Alma seguiu os guardas sem reclamar, enquanto Solon parecia inconformado.
O modo como a fada o olhava era de cortar o orgulho de um elfo em tiras finas e esfarrapadas. Alma sempre esperava o pior
das pessoas, e era exatamente isso que acontecia.
Foram exilados para o quarto, e Alma foi a primeira a notar que alguém estivera ali na ausência deles.
Solon permaneceu quieto, até estarem inteiramente sozinhos. Alguém havia deixado em um canto do quarto, com discrição, as
armas de Solon e o chocalho.
-Isso é obra sua?– ele perguntou, prendendo o cinturão na roupa, conferindo a espada, o punhal e principalmente o
bumerangue. O chocalho
-Não. Mas pode ser obra de Anastácia– Alma imaginava isso.
Estava tão surpresa quanto ele.
-E agora? Vamos esperar até amanhã para irmos embora daqui?– ela perguntou, infelizmente, já prevendo a resposta.
-Não. Eu vou contar a todos o que está acontecendo Solon vestiu uma túnica limpa e Alma tentou detê-lo quando tentou passar
por ela e sair do quarto.
-Espere o jantar. Os guardas não o deixaram entrar na área de recreação, onde as fadas e crianças ficam durante o dia. Muito
menos, o deixarão entrar na cozinha e outras dependências de trabalho onde haja fêmeas. E os elfos...estão sobre comando de
Estevão. É perca de tempo gastar saliva com os guardas de Eldor.
Era verdade, exasperado, Solon sentou na cama, e encarou-a com desespero velado:
-Acaso você percebeu, Alma, que se nada for feito todas as pessoas serão soterradas? Mortas por soterramento?
-Sim, estou ciente disso – ela foi séria, como ele era.
-E não se importa?
Era uma pergunta interessante. A demora em responder, foi de certo modo uma resposta.
-Eu nunca pedi para que você criasse fantasias a meu respeito, eu sou isso que você está vendo. Se não gosta... O problema é
inteiramente seu.
Alma não queria ser julgada.
-Eu me assusto quando vejo que você parece tão indiferente ao sofrimento alheio.– ele admitiu.
-Eu não levantei um dedo para causar dano aos moradores desse lugar. Mas não me peça para fingir que me importo com o
que vai acontecer com eles.
Solon mediu sua face, perguntando-se até onde havia verdade em suas palavras.
-Sente-se do meu lado, Alma– ele pediu cansado.
As conclusões ao qual chegava a cerca da fada eram desconcertantes.
-Não.– ela afastou-se, andando pelo quarto estreito como um animal enjaulado.
-Seu dom é muito útil, mas estava sendo bloqueado. Eu tenho certeza que se você eliminar essa raiva toda, e limpar sua mente
de pensamentos de morte, tudo isso ficará para trás e seu dom será completo.– ele começou a falar.
-E como alguém limpa sua mente de pensamentos que fazem parte de si? Caso não tenha notado, eu lhe contarei, metade de
mim está torcendo para ver essas pessoas morrem soterradas. E de preferência, que eu possa achar um modo de ficar e assistir
acontecer.
Eram palavras feias. Solon engoliu em seco, mas não titubeou.
-E a outra metade? - ele insistiu.
Alma soltou um profundo suspiro de raiva e não respondeu.
-E a outra metade? - Solon insistiu mais uma vez.
-A outra metade? Quer ir embora daqui e levar essas pessoas consigo. Mas sabe que não vai acontecer que é melhor partir só,
e livrar-se de um capacho da rainha Santha enquanto é possível. Tentar encontrar minhas amigas, a única família que eu
conheci na vida e tentar recuperar a vida que me roubaram desde o dia em que nasci!– revelou.
-E quem lhe roubou sua vida, Alma?– ele levantou e perguntou– Sua família? Seus pais que a abandonaram?
-Não ouse fazer isso comigo. Conversa não adianta comigo. Driana cansou de falar como um papagaio sobre sentimentos e
olhe só onde eu estou? Contente em ver alguém se dar mal, e que pra variar, esse alguém não seja eu!
Alma saltou assustada quando ouviu batidas na porta do quarto.
-Eu odeio isso – ela disse baizinho, segurando-se em um fiapo de autocontrole– eu odeio isso. Odeio.
Solon não disse nada, era melhor calar. O autocontrole de Alma era um fio muito tênue. E ela era um perigo quando se
descontrolava. Um perigo mortal.

Capítulo 18 Malícias e beatas

Alma foi levada para um dos salões privados de Eldor, esperava que o elfo não tivesse nenhuma ideia errada sobre o que
pretendia fazer com ela, pois estava uma pilha de nervos e temia perder o controle totalmente.

Trazia escondido sob o vestido um punhal, que Solon havia surpreendido-a ao fazêla silenciar-se e com a intimidade de um
amante, erguer a parte de baixo de sua roupa para esconder o punhal em sua roupa intima.

Não adiantaria lutar contra os guardas, eram muitos, e não poderia acompanha-la. Alma esperava por Eldor. Que ele estivesse
furioso com a situação. Perder a oportunidade de desfrutar do cio de uma fada? Poucos aceitariam isso sem um pouco de
raiva, e levando em consideração que Eldor era um maníaco, seu ódio deveria estar alcançando níveis alarmantes.
Enquanto andava, Alma sentiu um tremor, e olhou para o chão. Parou de andar, olhando em torno. Se os guardas haviam
notado, não demonstraram.
Eles a esperaram, por isso, Alma voltou a andar, para evitar represarias.
Preocupada, seguiu andando, e prestando muita atenção onde andava. O caminho era de pedras coloridas e aquela região
deveria ser mais segura que os corredores recémabertos e sem nenhuma estrutura de segurança.
Alma tentou esquecer que lá em cima, era provável que uma tempestade estivesse acontecendo. Alguns minutos depois, sentiu
um movimento sob seus pés e olhou para os guardas.
Eles haviam reparado também. Um deles olhou para cima, e Alma fez o mesmo. Uma pedrinha colorida soltou do teto, e caiu
no chão, aos pés do guarda. Ele acompanhou o movimento.
Alma deu um passo para trás, pressentindo o que aconteceria. Quando mais pedras soltaram, ela começou a correr. De volta
para o quarto. Ela não queria estar entre inimigos quando o pior acontecesse.
Ignorou um aviso interior que lhe questionava sobre considerar Solon alguém amigo. Correu e ninguém a seguiu. Ela olhou
para trás quando ouviu o barulho de algo pesado caindo. Quase parou de correr ao ver terra descendo do buraco que se abria
no teto até então recoberto por pedras.
Os guardas corriam, e ela fez o mesmo. Levou alguns minutos para chegar ao quarto e esmurrar a porta.
Solon era surdo, disse a si mesma. Ele não ouviria as batidas na porta. Precisava pensar rápido. Agarrou o trinco da porta e
sacudiu-o como uma condenada. Começou a gritar o nome dele, para que a ouvisse.
Soltou o trinco quando ouviu a chave correr na fechadura.
-Mas que droga!– ela entrou angustiada e furiosa– Você precisava ser surdo não é?
– acusou, querendo agredir, extravasar seu ódio – O teto está caindo! Eu corri, mas o teto está caindo! Os guardas correram
para a ala reservada a Eldor.
-E ninguém vai avisar os outros? - ele verbalizou o que ela pensava.
-Não é nossa obrigação – disse sem fôlego, um pouco histérica.
Solon agarrou suas mãos e a fez parar, olhar para ele, e prestar atenção ao que ele dizia:
-Venha comigo. Eu vou avisar aos outros.
Alma sabia que era isso que Solon iria querer fazer. Era típico de alguém como ele. Alma acenou com a cabeça e se deixou
levar.
Os dois correram pelos corredores, e Alma gritou de surpresa quando encontrou um corredor completamente derrubado. O
teto havia cedido e coberto toda a passagem.
-É o caminho mais curto para a casa de banho –ela disse nervosa, lembrando que o lugar onde perdera sua castigada estava
soterrado totalmente.
Empalideceu, mas não havia tempo para recuperar-se da surpresa. Solou segurava sua mão e eles correram para o lugar onde
acontecia as reuniões de todas as tardes, onde as fêmeas cuidavam de suas crias, e ocupavam suas mentes, enquanto o trabalho
era executado pelos elfos e fadas de menor importância dentro da sociedade criada por Eldor e seus antepassados.
Um estrondo fez com que Alma agarrasse com força a mão de Solon e o puxasse, avisando:
-Não dá para seguir por lá– apontou o corredor que Solon pretendia seguir– Ouvi um estrondo! Solon! – ele não parecia
querer ouvir.
-Você fica aqui, Alma.– ele a fez ficar parada– Se ficar com medo corre de volta para o quarto. Eu vou tentar levar o maior
numero de elfos e fadas para um lugar seguro. Eu volto para te buscar!
-Lugar seguro? Estamos embaixo da terra! Não tem lugar seguro! Eu sabia que algo assim aconteceria! Não vou ficar para trás!
Não adiantaria tentar argumentar com Alma. O jeito foi leva-la com ele, mesmo sabendo do risco que representava para os
dois.
Alma seguiu correndo junto do Guardião pelos corredores, e quando uma parte de uma das paredes cedeu e a água correu,
Alma gritou quase atingida. Os dois finalmente encontraram o salão onde ocorria a integração entre fadas e suas crias. Estava
vazia e parte do teto havia cedido.
-O que vamos fazer?– ela perguntou alarmada olhando em torno.
-Não é seguro voltar. Vamos seguir em frente.
Alma concordou, amedrontada.
O percurso não foi fácil, água corria pelas paredes manchando as pedras coloridas e terra soltava das paredes empurrando as
pedras e fechando a passagem. Solon ajudou-a a passar pela estreita passagem e Alma segurou-se nele, não por equilíbrio, e
sim por necessidade.
-Não fique com medo – ele disse baixo, como quem conta um segredo – Vamos sair dessa, fadinha, eu lhe prometo isso.
Alma bebeu dessas palavras. Sim, ela queria que tudo acabasse bem. A começar pela salvação de suas amigas e de sua
própria liberdade.
Os próximos corredores não estavam em estado melhor. Foi preciso destreza de movimentos e agilidade. Alma o acompanhou,
mas estava sem ar e toda doída.
-Não, não consigo passar.– ela disse parando de correr quando encontraram uma pilastra derrubada sobre o chão, com metade
do teto caído. O caminho era praticamente impossível de seguir. Solon avistou uma fenda, e poderiam passar por ali.
-Vá na frente. Boa vontade, Alma, você precisa passar por aqui.– ele disse ajeitando sua cabeça para que ela conseguisse se
espremer e passar.
Alma não era uma fêmea pequena, possuía formas e corpo graúdo, por isso sofreu para se espremer e conseguir passar por
uma fenda mínima. Caiu sentada do outro lado da fenda. Solon pelo contrario, encolheu-se e se contorceu como um gato, e
passou rapidamente pela fenda.
Ele notou algo antes dela, por isso ajudou-a a levantar e segurou seu rosto, dizendo:
-Não olhe para os lados, ou para baixo, Alma, olhe só pra frente.– pediu.
Ela reteve o ar, sabendo muito bem o que deveria ter de tão assombroso no chão para que Solon tentasse protegê-la.
Não o obedeceu por submissão e sim, por não se sentir capaz de encarar a realidade de modo tão cru e sangrento.
Seguiu Solon resistindo ao impulso de olhar. Infelizmente o subconsciente sempre prega peças e Alma olhou com o canto dos
olhos.
Entre os corpos soterrados e esmigalhados pelo peso das pedras, Alma reconheceu alguém.
-Solon– ela disse com voz falha– É Pía não é?
A menina estava morta. Boa parte do corpo soterrado por terra e pedras. Um dos braços esticados e parte da face a mostra.
Era a jovem Pía. Alma ajoelhou-se perto e tocou sua mão.
Uma prece silenciosa para que obtivesse paz, mesmo que após a morte.
-Será que Anastácia estava com ela na hora do soterramento?– perguntou a Solon– As duas sempre andam juntas...
-Torcemos que não. Venha Alma, não há tempo para despedidas.–ele chamou, com receio da reação de Alma se permanecesse
mais tempo junto aos mortos.
Apesar de sonhar com a chance de extinguir a vida de alguém, Alma nunca vira um cadáver. Nunca. Seu coração estava
apertado, pois apesar de tudo, tinha algum tipo de afeição distorcida pela jovem que relutava em crer que vivia uma enorme
mentira.
Entendia a pressa, mas se ressentia de deixar alguém assim, sem um enterro digno.
Os corredores seguintes estavam vazios, e parcialmente soterrados. Mas vazios.
Alma quase gritou de alegria ao ouvir vozes e som de passos. Foi só o tempo de dizer a Solon para onde ir e terra soterrou o
corredor por onde eles vinham. Alma olhou para trás com medo, mas não havia tempo para lamentar.
Alma não conhecia aquele salão, mas quando os dois adentraram, foram recepcionados por alguém que em total histeria correu
na direção de Alma.
-Ela morreu! Eu não pude evitar!– o rosto de Anastácia estava banhado de lágrimas
– eu tive que cuidar das minhas sobrinhas. Foi minha culpa, eu deixei Pía sozinha!
-Eu vi Pía. O corredor está soterrado agora– ela disse, mantendo distancia de Anastácia e seu sofrimento.
A fada se conteve, pois Alma era o mais próximo que conhecia como amizade. Pía, sua única amiga estava morta. E Anastácia
não queria assustar Alma com sua carência.
-O que será de nós agora?– Anastácia perguntou em voz baixa, sussurrada.
-Onde está seu líder?– Solon perguntou, mantendo-se atrás de Alma, em uma postura que deixava claro que na ausência de
poder maior, ele tomaria as rédeas da situação.
Era um Guardião e com seu treinamento era capaz de estruturar uma forma de lidar com a situação. Mas para isso, precisava
estar vivo e não sendo coagindo por sua suposta desobediência.
-Eldor está em seus aposentos. O lado leste não foi abalado pelo soterramento– Estevão respondeu, surgindo do meio das
pessoas, com expressão fechada– Você me avisou que aconteceria. Eu não acreditei.– era um lamento.
-Aconteceu muito rápido. Não teria feito à mínima diferença se houvesse acreditado em mim. Agora me diga: porque Eldor
não esta aqui contando os mortos e decidindo o que fazer?
-As ordens são para que todos fiquem aqui enquanto ele decide o que fazer– Estevão contou contrariado.
-Acaso uma tropa de guardas está vasculhando os corredores para resgatar os sobreviventes e feridos? Alguns corredores
estão parcialmente destruídos, pode haver sobreviventes.
-Eldor está decidindo o que fazer– Estevão tornou a falar.
-Entendo – Solon ignorou suas palavras e elevou a voz, para que cessassem as conversas paralelas e prestassem atenção a
ele– Enquanto seu líder não decide o que fazer
– ironizou– preciso saber qual de vocês conhece todos os moradores do subterrâneo.
Um elfo vestido com roupas simples, descabelado e com um ferimento feio na testa ergueu a mão e chamou atenção sobre ele:
-Eu sou responsável pela contagem semanal das alas.
-Como se chama?– Solon perguntou.
-Ezequiel, senhor– ele respondeu baixando a cabeça, com dor, segurando um pano sobre o sangramento.
-Ezequiel eu quero que organize uma lista com todos os nomes. Elfos, fadas, e crianças. Não esqueça ninguém, está bem? E
seja rápido.
O elfo acenou e começou a procurar nos bolsos da roupa por papel e tinteiro.
-As saídas estão preservadas?– Solon perguntou a Estevão– Não é hora para se preocupar com a fuga de dois prisioneiros–
referia-se a eles mesmos– e sim, de pensar na salvação de todos.
Estevão olhou em torno, muitos queriam saber a resposta para essa pergunta. Ele aproximou-se de Solon e falou baixo,
complicando ainda mais o entendimento do que dizia:
-As saídas ficam para o lado das novas construções. Todo essa área está desabada, não sei o estado das saídas, mas arisco
dizer que estão perdidas.
Alma odiou ouvir isso. Temia que isso acontecesse!
-É preciso uma varredura para conferir se há sobreviventes, e qual a situação das saídas. Caso estejam perdidas, precisamos
definir um ponto estratégico para tentar abrir outra. Você conhece o posicionamento das casas do vilarejo sem fim, então, deve
saber o melhor ponto para escavar.– Solon anunciou.
Estevão mexeu a cabeça negando:
-Não é inteligente cavar depois do que aconteceu. Não sobreviveremos a um segundo desmoronamento – ele alegou.
-Isso nunca aconteceu antes?– Alma intrometeu-se– Há tantos anos vivem assim... Nunca antes algo desse tipo aconteceu?
-Não. É a primeira vez que fizemos obras. Vivíamos com conforto nas construções feitas pelos primeiros habitantes do mundo
subterrâneo.– Estevão confidenciou, com uma pontinha de recriminação – Eu era contra esse plano de aumentar o espaço –
confessou – vivíamos bem antes.
-Agora, ninguém viverá bem aqui– Alma lembrou-o disso – Existe um mundo perfeitamente habitável lá em cima. E não me
venham com essa história de guerra, porque não existe Rei Ulder ou seguidores. Existe um mundo normal, com problemas
normais, onde fadas e elfos são livres.
-Politicagem– Estevão disse contrariado – Não vou discutir isso.
Alma poderia ter discutido com o elfo, mas sua atenção foi chamada para Ezequiel que trazia a lista.
-Tem certeza que não se esqueceu de ninguém?– Solon perguntou.
Ezequiel apenas acenou e sentou em um canto qualquer no chão, com dor.
-Alguém precisa cuidar dos feridos– alma lembrou Solon disso – Alguém com conhecimento.
-E quem seria essa pessoa?– Solon perguntou para Estevão que olhou em volta.
-Agra é uma eximia curandeira– ele respondeu– Mas ela está com Eldor nos aposentos do líder.
-Mais alguém?– Solon insistiu.
-Eu sei cuidar de feridas– Anastácia disse, oferecendo-se– Não sou curandeira, mas sei fazer curativos.
-Deve ficar com suas sobrinhas– Estevão disse com seriedade, contrariado pelo oferecimento de Anastácia.
-Não tente mandar em mim. Não vou me casar com você, ou cuidar de suas filhas porque você quer. São minhas sobrinhas e eu
cuido delas por amor. Agora, saia da minha frente, Estevão – ela estourou. Há muito tempo vinha contendo sua raiva para com
o cunhado, e agora, no ápice da emoção, encontrava coragem para enfrenta-lo.
Estevão não era um elfo com más intenções.
-Ajude Anastácia nisso – Solon sussurrou para Alma, segurando sua mão, para que ela não se sentisse sozinha - Fique onde eu
possa vê-la.
Não era uma ordem, era precaução.
Alma seguiu Anastácia, que encontrou suas duas sobrinhas e as levou consigo enquanto elas juntavam os feridos e os isolavam
dos outros, para curativos serem feitos. Não havia quase material. Precisavam encontrar a dispensa.
Alma retornou para junto dos elfos, que faziam uma chamada com os presentes, assinalando quem faltava.
-Precisamos acessar a dispensa– ela avisou – Não há provisões ou curativos.
-Eldor precisa decidir o que fazer– Estevão disse acuado, olhando em volta, para seus conterrâneos que sofriam, e precisavam
de ajuda.
-Então vá buscar seu líder e diga a ele, que eu vou assumir o comando. É melhor que ele apareça se não quiser perder seu
estimado posto de rei.– Solon avisou. E amargurado murmurou, fazendo com que Alma sorrisse dessa grande verdade– Um rei
de coisa alguma.
Não era algo discutível. Em uma situação de crise, não permaneceria parado vendo o sofrimento alheio sem fazer nada para
ajudar.
Estevão não foi atrás de Eldor, mas enviou alguns dos guardas sob seu comando. Era um sinal de que apoiava as ordens de
Solon, ou quem sabe, uma demonstração de que não confiava em deixa-lo sozinho dando ordens.
Uma hora mais tarde, contado os vivos e feridos, chegaram a uma lista precisa de quantas pessoas estavam desaparecidas.
Alguns nomes foram riscados, pois suas mortes foram confirmadas por quem os viu ficar para trás.
-É um milagre que apenas um número pequeno de elfos e fadas estejam desaparecidos– Solon disse aliviado.– É necessária
uma varredura para encontrarmos essas pessoas, mesmo que mortas.
-Não vamos conseguir ir longe– Estevão foi franco – A ala sul está perdida. Tudo desabado. Tenho medo que...a cozinha e
dispensa tenha sofrido o mesmo fim.
-Existe algum outro lugar onde guardem provisões?– Solon perguntou uma ruga de preocupação na testa.
-Não. Tudo que possuímos de alimento e medicamentos fica na dispensa, a disposição de todos. Somos uma sociedade
igualitária, Solon.
-Neste momento são sobreviventes– Solon lembrou-o.– E sobreviventes vivem por si mesmos, e não por lideres. Lembre-se
disso, Estevão. Onde está seu líder? Eu não consigo vê-lo aqui.
O guarda não obteve resposta capaz de sanar essa acusação. Solon juntou-se a Alma, que tentava ajudar no que podia. Ele
reconheceu as duas meninas que estavam com Eldor na floresta quando o conheceu. Elas estavam assustadas, e Solon abaixou-
se para falar com a maiorizinha:
-Lembra-se de mim, fadinha?
A menina acenou concordando.
-Nos vimos na floresta. Você sabe onde está sua mãe e sua irmã mais velha?
A menina negou com a cabeça, e Solon olhou para Anastácia.
-Eu tenho certeza que elas logo estarão aqui, junto de vocês. - ele disse para alegrar a menina e fez um carinho nos cabelos da
criança e levantou.
-Então é verdade que esteve com minhas filhas na floresta. Eldor negou essa acusação.– Estevão disse, surgindo próximo a
eles.
Ele viera atrás, para vigiar o prisioneiro, e não esperava descobrir que suas meninas conheciam Solon e não sentiam medo
dele.
-É claro que ele negou. Eldor matou sua esposa e provavelmente sua filha mais velha. Eu só vi o corpo da fada mais velha –
ele contou sendo direto e frio, pois não era tempo para emoção que dispersasse qualquer um dos dois– Não precisa acreditar
em mim. Levando em consideração a situação que vivemos, sua confiança não me serve para nada.
Alma gostou de ouvir isso. Era a verdade e era bom que todos ali dentro soubessem disso.
Solon preocupava-se muito com os outros. com o bem estar e a saúde de elfos e fadas que não retribuíam essa afeição. Era
algo que ele nutria dentro de si: a necessidade de cuidar e proteger.
Alma olhou em volta, e notou quando as pessoas pararam de falar. Desgostosa, notou a entrada de Eldor, seguido de perto por
Agra e mais uns dez guardas.
Era um psicopata, pensou Alma. Mesmo naquela situação Eldor exibia uma expressão orgulhosa e banal, como se nada demais
estivesse acontecendo.
Uma fada chorando tentou obter sua atenção, mas foi delicadamente afastada do líder. Essa era a forma de cuidar e apoiar de
Eldor. Enojada, Alma olhou para Agra.
A expressão da fada era diferente. Ela estava profundamente contrariada.
Estevão aproximou-se de seu líder e o colocou a par do que fazia. O modo como Eldor olhou para Solon deixava muito claro
que haveria represarias por ter tomado seu lugar e ordenado sua gente.
-Toda a área leste está preservada– Eldor disse em voz alta atraindo a atenção de todos sobre si. Alma notou como Solon se
esforçou para enxergar a imagem do homem, para assim tentar ler seus lábios.
Havia muitas pessoas no caminho e dificultava tal feito.
-Moveremos os feridos para o salão de convivência. Devem ser cuidados por seus familiares. Os demais, devem permanecer
aqui.
Solon olhou para trás surpreso quando Alma ficou fora do campo de visão de todos e lhe sussurrou tudo que Eldor lhe dizia.
-O roto está tomando para si os créditos do que você está fazendo – ela alinhavou com um comentário maldoso.
-Está surpresa com isso?– Solon perguntou entre dentes.
-E quanto ao alimento?– Estevão perguntou ao seu líder– Precisamos checar se o acesso a dispensa está livre ou não.
As ordens de Eldor eram copias escarradas das sugestões de Solon. Enquanto repetia suas palavras, Alma sentia o sangue
ferver.
Cínico. Descarado. Usurpador. Olhar para Eldor a fazia lembrar-se de Santha e todo ódio vinha à tona.
-Onde está minha escolhida?– Eldor perguntou a Estevão, mas todos olharam na direção de Alma.
Ela manteve-se escondida, não queria ser alvo da atenção daquele dissimulado.
Ao enxerga-la, Eldor andou em sua direção, mediu Solon de alto a baixo, com um olhar profundo, de um macho que perdeu sua
chance para outro. Então sorriu irônico, e afastou-a de Solon, segurando seus braços com ambas as mãos.
-Está ferida?– ele perguntou com voz mansa, pois sabia que eram foco do interesse de todas aquelas criaturas que perderam
seu lar abruptamente.
-Estou – ela disse cínica.– Ferida em meu orgulho. Agora tire suas mãos nojentas da minha pele ou vou gritar até vê-lo cair
morto aos meus pés.
Sua voz era macia, mas seus olhos diziam a Eldor que faria exatamente isso. ele soltou-a e sorriu:
-Não se guardou para mim, Alma.– começou a falar, mas ela o interrompeu:
-Não acha que existem assuntos mais importantes a tratar do que a minha escolha? Eu vim parar aqui na companhia de um elfo.
E é nessa companhia que permanecerei. Precisará subir a superfície e raptar outra fada no cio, pois essa será a única chance
que terá de se adornar do dom de uma fada.
-O tempo é o dono de tudo, inclusive das nossas vontades– ele disse baixo, manso, olhos brilhantes– Não me julgue por aquilo
que você também faria.
Era verdade. Se os dois trocassem de lugar, poderia não haver diferença alguma.
-Como se sente vendo o seu pequeno mundo de conto de fadas destruído?– ela perguntou maldosa e sorriu diante da mudança
no olhar de Eldor– você tem razão. Somos iguais, e por isso mesmo que você sabe que eu estou rindo por dentro.
Solon detestava vê-la interagir com Eldor como dois iguais. Alma não era como o maníaco. Era alguém ferido e mantido em
cárcere por toda a sua vida. Alguém que guardava um forte senso de liberdade sob controle, escondido em meio à raiva e
ódio.
Eldor nasceu livre, com suas escolhas prontas, mesmo assim, livre. Poderia ter escolhido qualquer caminho, mas escolheu ser
um ditador.
Eldor se vingou de Alma afastado-a de Solon. Como se ela se importasse. O Guardião era treinado para tomar a liderança em
momentos de crise, e ela já sabia que iria se expor ao risco, ajudando nas buscas.
Alma observou-o juntar-se ao demais guardas e elfos selecionados para as buscas e fingiu não reparar quando ele olhou em
sua direção. Solon não queria partir sem garantirlhe que tudo ficaria bem. Temia pela sanidade de sua fada. Mas Alma estava
confortável entre as outras fadas, e era difícil vê-la unificada com outras de sua espécie.
Alma dedicou toda sua atenção para aos feridos, ajudando nos curativos.
Vez ou outra notava Eldor ronda-la. Nestes momentos, juntava-se ao grandes grupos de fadas, e assim, criava uma barreira
solida entre Eldor e seu desejo.
Era noite, quando o lugar se acalmou. Os feridos foram levados junto aos seus familiares para um dos salões intactos, onde
seriam mantidos apartados dos sobreviventes saudáveis, em uma suposta medida de paz, quando na verdade, Alma sabia que
era uma tentativa de afastar o problema dos olhos daqueles que podiam lutar contra Eldor, pois possuíam saúde intacta.
Quando acabou o trabalho, Alma apoiou-se em uma das paredes e fechou os olhos, cansada. Aquele havia sido um longo dia.
Primeiro, perder sua castidade nos braços de Solon, depois descobrir que corriam risco de vida, e por fim, ver aquele lugar
desabar e não poder fazer nada além de correr e escapar.
Distraída não notou a conversa que acontecia perto de si, até reparar em uma das vozes alteradas.
-Isso não é justo – Ezequiel dizia, recuperado de seu ferimento, decidira ajudar e não permanecer sendo cuidado – Solon tem
nos ajudado. Sem as ordens dele estaríamos sentados esperando por Eldor até agora!
-São ordens– o outro elfo mais jovem dizia– ordens são ordens. Meu pai precisa cumpri-las.
-E quem ordenou que matassem o elfo Solon? – o outro elfo jovem, que também fazia parte da conversa perguntou baizinho.
-Ouvi quando nosso líder Eldor ordenou para o guarda, que junto do meu pai, foi designado para dispersar Solon do grupo de
buscas e mata-lo em algum dos corredores. Meu pai não é um assassino. Mas ele não pode ir contra as ordens de Eldor, pode?
Os outros dois elfos permaneceram em silencio pensativo. Não conheciam resposta para essa indagação.
Ao rejeitar as ordens impostas por seu líder, automaticamente perderiam seu lugar na sociedade onde suas famílias viviam.
Era um passo delicado que poderia custar a vida e a dignidade de todos que amavam. Esse tipo de coação enojava Alma.
Quantas e quantas vezes ela não se manteve quieta, aceitando os castigos injustos e as privações do Ministério do Rei
unicamente para não ver suas amigas e as outras meninas do orfanato serem punidas por causa das suas decisões de rebeldia?
Alma afastou os cabelos do rosto, e abriu suas asas, que jaziam dobradas e adormecidas em suas costas. Tirou-as do repouso,
pois era hora de esfregar na face de todas aquelas pessoas o que perdiam.
Visualizou Agra entre a multidão de fadas, crianças e elfos jovens que jaziam sentados ou deitados, aguardando noticias sobre
o que aconteceria.
Bateu as asas muito de leve, e planou a alguns centímetros do chão. Nada mais que uns poucos centímetros, pois assim não era
preciso bater as asas com força e conseguia mantê-las silenciosas. É claro que todos os olhares a acompanharam.
Era sua intenção que vissem o que perdiam seguindo as ordens de um líder louco. O próprio Eldor parou de falar com elfos de
sua confiança para fitar a fada. Ele sabia que essa exibição toda vinda de alguém como Alma era apenas uma intenção de
armadilha.
Quando um desejo intenso toma conta de um ser não existem leis ou regras que o contenha, e se Alma pudesse despertar o
desejo daquelas fêmeas de verem suas filhas poderem ter a chance de obter suas asas...então, ela teria um grande numero de
pessoas ao seu lado.
Alma finalmente tocou o chão, ao chegar perto de Agra. Não perderia seu tempo conversando, por isso foi direto ao assunto:
-Eldor ordenou a morte de Solon, e você sabe para onde o levaram.
-Sim, o levaram para os corredores desabados, onde fica a dispensa. A ordem é que a morte de Solon pareça um trágico
acidente.– Agra confirmou.
-Me conte qual é o plano – Alma exigiu saber, pois a tranquilidade de Agra indicava que algo aconteceria.
-Não existe plano. Nas atual situação de precariedade não há margem para elaborados planos. Eu deixei as armas do elfo em
seu quarto – revelou– agora cabe a ele conseguir se defender sozinho.
Agra havia sido a responsável pela devolução das armas de Solon. Essa era uma revelação intrigante, pois atribuirá esse feito
para Pía ou Anastácia.
Novamente esse tipo de indagação para lidar. A morte do Guardião resolveria um grande problema seu.
Alma fechou os olhos, e escovou a face com uma das mãos, inquieta. Quanta complicação. Era uma fada que desejava a
liberdade. Era seu único intento na vida. Eleonora, Driana e Joan eram suas parcerias de sonho de liberdade. Era o único
desejo delas. Ser livre. Então, porque era tão difícil? Porque tudo era tão difícil em sua vida?
A decisão estava tomada mesmo antes de reconhecê-la para si mesma.
Ninguém percebeu sua saída do salão de convivência. Os corredores estavam em estado bem pior do que lembrava. Percorrê-
los sem escolta de um Guardião treinado para situações complexa era difícil. Em determinado momento, Alma sentiu que era
seguida. Podia sentir em sua nuca olhos estranhos seguindo-a. Incomodada, fingiu dobrar uma esquina de corredores, e
esperou seu perseguidor.
Anastácia quase gritou de susto ao ser interceptada em sua perseguição por Alma. Às vezes, a fada lhe dava arrepios.
-Porque está me seguindo?– Alma perguntou a queima roupas.
-Eu vi quando saiu. Você não conhece os corredores. E tudo está mudado com o desabamento. Eu achei que era melhor ver de
perto se você ficaria bem– ela disse com simplicidade.
Alma não era de acreditar imediatamente na palavra de terceiros, mas Anastácia não era de mentir. Na verdade, era franca até
demais. O olhar insistente de Alma acabou por extrair-lhe a verdade:
-Está bem– Anastácia cedeu, envergonhada, e revelou – A verdade é que eu não queria permanecer mais tempo com minhas
sobrinhas.
-São crianças. Porque você foge delas?– Alma duvidou.
-Porque elas sabem que eu sou a única que cuidará delas daqui para frente. Sem Pía... Eu não terei desculpas para negar o
casamento com Estevão. Elas me olham com desespero, Alma. Elas precisam tanto de mim.
Seu tom era de desamparo. Estar presa a uma vida que não desejava. Alma mediu-a de alto a baixo.
-Você é estranha– disse afinal– Eu sei que ama seu cunhado. E agora Pía não é mais razão para sentir culpa.
Anastácia não tentou negar. Sorriu e disse:
-É por isso que nos damos bem. Nenhuma de nós presta – Anastácia disse e apontou para um dos corredores– Eles devem ter
seguido por aqui. É a única forma de chegar à dispensa por esses lados.
Alma não insistiu no assunto, apenas acenou e a seguiu. As duas andaram por algum tempo. Os corredores foram afunilando e
Alma parou de andar quando encontraram uma barreira física de entulhos e terra. Bateu suas asas e foi erguida o bastante para
alcançar o alto, onde havia um buraco suficientemente alto para passar. De lá, sorriu e esticou uma das mãos na direção de
Anastácia, para ajuda-la a alcançar o espaço. Era uma tremenda aventura para Anastácia. Para Alma era uma tortura.
Pensativa, seguiu andando, cuidando para não tropeçar ou escorregar. A precariedade da iluminação se tornou inexistência
total quando alcançaram os corredores da área mais afetada. Na quase escuridão total, Alma viu pegadas. Muitas pegadas.
Elfos haviam passado por ali, e era provável que há essa hora estivesse atocaiando Solon. O infeliz era quase surdo, e quando
ela usava a palavra quase era uma temeridade, pois com exceção de sua voz que era uma questão especial, Solon não ouvia
mais nada. E se ouvia, Alma duvidava que coseguisse disseminar o significado dos sons. O uso do termo quase era uma
delicadeza para fazê-lo sentir-se menos inútil.
Seria fácil atocaia-lo. Ainda mais em meio ao caos e pior, por elfos que ele aprendeu a confiar. Por essas e outras que Alma
preferia não acreditar cegamente.
Alma perdeu-se nos pensamentos pesados sobre morte e perda e não reparou que em torno de si o perigo rondava. Ao seu
lado, um passo atrás, Anastácia escorregou na lama que cobria o chão, e Alma se virou para ajuda-la. Foi nesse momento que
o perigo achou meios de se criar e atacar. Um estrondo e mais terra caiu do teto e das paredes. Anastácia gritou desesperada,
quando a lama a empurrou para o lado. Seu súbito senso de proteção desvairado e fora de hora lhe custou o bem estar.
Alma não gritou quando foi atingida, mas Anastácia gritou por ela. Terra a cobriu e tudo ficou escuro. Alma manteve os olhos
abertos e uma tábua caiu sobre ela antes de ser coberta por mais terra e barro.
Foi tudo muito rápido, em um instante, e tudo ficou escuro e frio.

Capítulo 19 Noites insones

O ar era limpo. Alma puxou o ar com força, pois ainda sentia a ausência dele como um desespero que não queria ir embora.
Piscou, mas não abriu os olhos não queria abri-los e descobrir que estava acabada, ou pior, que estava no aguardo de seus
últimos momentos.

-Eu não vou olhar – ela sussurrou para si mesma, como um devaneio ou algo assim. Poderia jurar que se abrisse os olhos
encontraria Eleonora ao seu lado, olhando –a ansiosa por vê-la acordar. Ela estaria bem perto, analisando sua face, e
procurando por sinais de que Alma estava acordada ou presa em um pesadelo induzido pela dor.

Driana estaria com a cabeça enfiada em um livro qualquer, procurando uma fórmula ou resposta para cura-la mais rápido,
mesmo que soubesse que isso era em vão, a ajudaria a se acalmar. Em algum canto, Joan estaria sentada, roendo as unhas da
mão, rezando e pedindo ajuda a mãe de toda natureza, para que rogasse pela vida de Alma. Sim, ela fazia isso quando
desesperada. Ela limparia as lágrimas de aflição e seria a primeira a tentar acorda-la enquanto dizia:

-Não é bom que fique desacordada depois de bater a cabeça com tanta força. Alma ouviu a voz, e sentiu o coração explodir de
felicidade. Era Joan! Joan!

Eleonora e Driana estariam com ela! Ela estava em casa? Estava com suas amigas!
-Joan!– ela acordou, abriu os olhos ansiosa para ver sua amiga. Abraça-la, apertar
sua amiga ruiva e suave em seus braços, protegendo-a de toda dor e medo. Acalentar a suave bonequinha ruiva, de saúde
frágil e olhar inocente em seus braços,
protegendo-a de todo mal do mundo! Para que Joan nunca precisasse enfrentar o
sofrimento que Alma tão bem conhecia!
Seus olhos encontraram a imagem de Anastácia. Morena, cabelos negros, olhos
preocupados. Não era a face sardenta e de boneca que Joan ostentava.
Suas mãos tentavam tocar Joan, mas ao encontrar outra pessoa, suas mãos perderam
a vontade e Alma deixou-as cair em seu colo. Estava deitada, agora sentada, em uma cama
improvisada, sendo alvo de olhares estranhos.
Estranhos para Alma que esperava encontrar suas amigas. Estanhos para ela que
sentia a necessidade opressora de voltar ao passado quando tinha sua família ao seu lado,
pois suas amigas eram a única família que alguma vez conheceu.
-Eu cuido dela agora– Alma ouviu a voz forte, mas não prestou atenção, até
enxergar uma mão graúda tocar o ombro de Anastácia e a jovem se afastou. Alma notou que não era a única a olhar para ela.
Agra estava de pé, mãos
entrelaçadas em frente ao corpo, com olhar cândido. Estevão, contrariado esperava por
Anastácia. Lama e barro sujavam as roupas do guarda até a cintura.
Confusa, ela observou que cortinas improvisadas separavam as camas igualmente
improvisadas. Colchões forrados com lençóis e acomodados no chão, com travesseiros e
no seu caso uma bandeja com água e comida no chão ao lado da cama precária. Sozinha, Alma finalmente fitou o Guardião. A
roupa dele estava limpa, e ele estava
molhado, como alguém que tomou banho ou se lavou recentemente.
-sabe o que aconteceu?– ele perguntou sentando perto dela, tirando as botas e
deitando junto dela na cama estreita.
Perdida, sem saber o que fazer ou dizer, ficou calada.
-Você bateu a cabeça quando foi soterrada.– Solon deitou de lado e enlaçou sua
cintura para que ela deitasse também.
Alma tocou a base do crânio, onde sentiu dor ao se mover. Solon afastou seus
cabelos e disse baixo para não ser ouvido pelos outros feridos que descansavam em suas
camas improvisadas.
-Anastácia nos encontrou a tempo de resgata-la– ele continuou contando, como se
ela esperasse ouvir o que aconteceu.– Foi tudo muito rápido, a terra foi barrada por uma
tabua que a protegeu. É uma fada de sorte, Alma. Muita sorte.
Estranho, pois ela não se sentia assim. Nada sortuda. Pelo contrario.
-Fiquei assustado, Alma– ele sussurrou em seu ouvido – com medo de não
conseguir resgata-la a tempo.
Alma ignorou essa declaração. Não conseguiria lidar com isso agora.
-Diga alguma coisa– ele pediu, fragilizado por crer ter perdido a fada que detinha
todo seu interesse.
-Quando abri os olhos eu achei que fosse Joan falando comigo – contou, sem saber
por quê. – Mas não era.
-Saudade. Você sente saudade de sua amiga– ele explicou, abraçando-a por trás–
Passaremos a noite aqui. Você precisa ser cuidada. Ficar bem para quando sairmos daqui–
ele queria vê-la menos triste.
-Nunca sairemos daqui. Eldor ordenou sua morte– disse com pessimismo– como é
possível que ainda esteja vivo?
-Eles me encontraram– Solon revelou, erguendo o corpo, e fitando-a com carinho.
Alma se moveu, ficando de frente para o elfo, para ver seus olhos– Estevão me contou da
ordem dada. Ele está dividido entre o que acredita e o seu senso de dever para com seu
líder. Eu já estive em uma posição bastante parecida e posso compreendê-lo – revelou,
pois não era fácil para alguém que cresce seguindo um líder e regras, simplesmente jogar
tudo pro algo e crer em novas diretrizes da noite para o dia– Estávamos decidindo o que
fazer quando Anastácia surgiu aos gritos pedindo ajuda.
-Ao menos conseguiram uma desculpa para abortar a ordem de Eldor– ela ironizou
e observou um sorriso nascer na face de Solon. – fico feliz em ter sido útil.
-Não repita isso – ele disse com um sorriso triste – fiquei apavorado quando
Anastácia contou que estava soterrada– ele corria um dedo por seu colo, no vão entre os
seios cheios que se destacam pela roupa limpa.
-Quem cuidou de mim?– perguntou suave.
-Anastácia e outras fadas. Agra ajudou a fazer compressas e um emplasto para a dor
e o inchaço na sua cabeça.– ele contou.
-E Eldor? Veio atrás de mim?– perguntou só para checar.
-Não. Eu não permiti que a levasse com ele. Porque quer saber? Gostaria de ter sido
cuidada por ele?– perguntou.
-Eu prefiro ficar sozinha. Não gosto de companhia– ela enxotou-o.
-Sem chances.– ele negou, tornado a deitar e a abraça-la– Para todos os efeitos eu
sou o seu escolhido. Não pode me mandar embora ou pensaram que não me quer mais e
que escolheu Eldor. – Solon encostou a boca em seu ouvido, e acariciou a pele com
intimidade antes de sussurrar– Estou conseguindo organizar uma rebelião contra Eldor.
Não estrague isso.
Alma fechou os olhos e se moveu, escapando dele, virando de lado. Solon não
pretendia deixa-la só, por isso ajeitou-se contra ela, de conchinha.
-Tente dormir– ele sugeriu– eu sei que não é fácil, mas precisa descansar um
pouco. Amanhã será um dia difícil. Muito difícil.
Alma deixou-o acariciar seu braço e beijar seu pescoço. Deixou-o abraça-la e cuidar
dela, pois Solon estava coberto de razão. No dia seguinte tudo seria ainda pior.
Pior, e barulhento. Acordou com uma dor de cabeça insuportável e o corpo dolorido em cada pedacinho que pudesse tocar.
Moveu-se na cama improvisada com letargia e espreguiçou-se com preguiça e lentidão dolorida. Quando abriu os olhos, e
descobriu que o lugar estava em polvoroso.

Feridos eram cuidados por seus familiares, e isso causava um atropelo de crianças correndo de um lado para ao outro, aos
gritos, pois sem atenção de suas mães, elas ficavam livres para brincar, e sem entender a seriedade do que acontecia, o lado
lúdico dominava.

Um monstro de raiva revirou dentro de Alma, e ela sentou na cama, observando aquelas crianças gritarem e rirem como se o
mundo estivesse em paz.
-Chega dessa gritaria!– ela gritou e as crianças pararam de brincar, olhando para ela com medo.
Na verdade, ela não conseguiu medir a altura de sua voz, por isso todos pararam o que faziam para encara-la com receio.
-Minha cabeça dói. Calem a boca um pouco – ela amenizou o tom, e voltou a deitar, a cabeça no travesseiro, puxando o lençol
até cobrir seu rosto.
Não era vergonha, disse a si mesma. Sentia lágrimas quentes em seus olhos. Não queria assustar ninguém. Seu comportamento
era involuntário.
-Você acordou– ela ouviu a voz de Anastácia e não se moveu– Eu ouvi seu grito. Fico feliz que alguém tenha feito àquelas
crianças ficarem quietas.– ela disse sorrindo, mas alma não viu o sorriso, apenas imaginou que sorrisse.
Descobriu a cabeça e olhou para Anastácia. Profundas olheiras. Marcas de muito choro.
-Onde ele está?– perguntou.
-O seu elfo? Seguiu com Estevão para os corredores destruídos. Eles precisam trazer alimento para cá antes que a terra
desabe outra vez. Metade da dispensa esta perdida, mas um pouco se salvou. O que é bom por um lado.
-Como conseguiremos comida se não pudermos usar as saídas secretas para a superfície?– Alma perguntou séria.
-Eu não sei. Tirávamos alimento das plantações do Vilarejo sem Fim. Dos animais e das compras feitas de forasteiros. Vez ou
outra Eldor procurava fornecedores em outros vilarejos. Agora eu não sei como vai ser. A água está acabando. Nosso
reservatório precisa ser bombeado todos os dias, pelos que ficam na superfície. Mas a válvula está destruída. E não há
ninguém lá em cima. Quando o desabamento começou, todos estavam aqui em baixo com suas famílias.
Anastácia baixou a cabeça amedrontada.
-Sem água e sem comida.– Alma suspirou pesarosa– eu sempre soube que minha vida seria uma merda e que meu fim seria
horrível, mas nunca imaginei algo tão medonho
– admitiu.
-Porque Eldor a deseja tanto?– Anastácia perguntou– Ele está dando ordens estranhas. Ele quer deixa-la a sua mercê. Proibiu
que lhe desse alimento. Disse que o elfo pode comer, e beber, mas você não. Que deve escolher entre a morte ou a presença
dele. Eu nunca vi nosso líder assim. Eldor nunca prestou, é verdade, mas nunca o vi tão louco. O que você tem que o deixa
assim?
-Meu dom. Minha voz pode matar. E eu acho... Que meu dom é mais que isso. E ele precisa desse dom para manter todos
vocês no cabresto.– contou, suspirando – Então, eu serei a primeira a morrer?
-Não – Anastácia sorriu e retirou um pedaço de pão das vestes.– Não tem muita água, mas vou tentar trazer um pouco para
você.
Ela levantou, pois estava ajoelhada ao lado da cama, e desapareceu em meio as fadas e elfos que eram cuidados ou cuidavam
de seus familiares. As duas sobrinhas de Anastácia vieram brincar próxima a cama de Alma, e ela as ignorou, comendo o pão
com fome.
Uma das meninas chegou-se na cama, e Alma estendeu para ela um pedaço, pois era claro que a menina sentia fome.
Logo, o pão era repartido em três partes.
Alma que sempre padeceu de fome no Ministério do Rei, prometeu a si mesma que não morreria desse modo. De jeito algum!
Eldor deveria saber se alguma passagem escusa, que fugia ao conhecimento de seus seguidores, mesmo os mais próximos.
Quando Anastácia voltou, ela havia adormecido outra vez. As meninas brincavam perto, mas em silencio para não incomoda-
la. Anastácia fez sinal para que elas ficassem bem quietinhas e foi ajudar os outros feridos, que necessitavam de atendimento
especial, pois padeciam de dores horríveis.
Sorte que Agra possuía algum conhecimento de curandeirismo.
Alma dormiu e acordou varias vezes naquele dia. Seu corpo se ressentia do sofrimento passado e por conta disso, não
conseguia se controlar. Oscilava entre o despertar e o adormecer.
Em um dos momentos que adormeceu, ouviu como quem ouve um sonho distante, uma conversa que acontecia em torno de si:
-Ela está bem?– era a voz de Solon.
-Acho que sim. Eu consegui trazer comida escondida e ela comeu bem. Mas tem dormido muito. Eu pensei em acorda-la, mas
fiquei com receio de irrita-la.
Alma lamentou que todos achassem que poderia explodir por tão pouco.
-Alma nunca descansa. Ela tem uma vida difícil, deixe que durma. Escute Anastácia, manter Alma calma é muito importante.
Vou trazer comida mais tarde, não se preocupe com isso. Não seguirei as leis de Eldor e muitos pensam como eu. Eu preciso
ir. Há uma boa chance de conseguirmos acessar os corredores onde ficam as saídas para o subterrâneo. Mas isso precisa ficar
entre nós.
-Estevão sabe?– Anastácia perguntou.
-Sim, ele está ajudando com isso – ele explicou. Uma das mãos do Guardião afastava os longos cabelos da face de Alma, e ela
se resentiu desse carinho.
Um sentimento estranho diante desse afeto.
-Eu não sei se confio em Estevão. Ele sempre foi o braço direito de Eldor. Cuidado com ele, Solon. Cuidado com ele.
O aviso vinha de Anastácia, a fada que amava secretamente o cunhado. Talvez por isso, mesmo sem ninguém para atrapalhar,
Anastácia ainda mantinha distancia de seu amor proibido. Não confiar em alguém é o pior sentimento do mundo.
Alma afastou-se do toque de Solon e ele sorriu, curvou-se e sussurrou em seu ouvido, provando que sabia que fingia dormir
para não ter de lidar com ele:
-Eu volto mais tarde, descanse bastante, fadinha.
Ela abriu os olhos para encara-lo depois dessa indulgencia. Solon apenas sorriu e esfregou um beijo casto em seus lábios
cerrados, antes de se afastar e ir embora.
Alma não sabia lidar com ele. Era hora de arrumar um modo de livrar-se desse elfo. De acabar com tanto sofrimento. Quem
sabe, um grito que acabasse com todo o sofrimento dessas criaturas que penariam de fome e sede até um derradeiro final? Não
seria mais justo e piedoso de sua parte.
Alma suspirou e não disse nada, mesmo sabendo que Anastácia queria conversar.
-eu vou deixa-las aqui.– ela disse suave, referindo-se as sobrinhas– elas sabem que não devem fazer barulho.
-Porque está cuidando de mim?– Alma perguntou em tom de acusação.
-Porque eu gosto de fazer isso. E porque eu sinto que você pode me levar para a superfície– foi sincera– Eu quero ver minhas
sobrinhas obterem suas asas.
Alma olhou para as meninas e acenou, virando de lado, angustiada e exausta demais para conversar.
Anastácia tornou a ajudar os outros feridos e Alma fingiu não notar que as meninas se ajeitaram na cama ao seu lado, para
dormirem também, pois era isso que meninas pequenas faziam após o almoço. Ignorando-as, pois muitas e muitas vezes Joan
viera dormir em sua cama, em busca de segurança após um pesadelo, Alma sufocou os pensamentos ruins e descansou.
Quando Alma acordou era noite outra vez, e o barulho de idas e vindas de elfos e fadas em busca de medicamentos, alimento e
noticias havia cessado. Silencio total era a única coisa que pode notar. A escuridão era quase total também.
Ouviu o som de uma respiração funda e passos pesados em torno da cama no chão, onde ela estava. Havia cordas amarradas
nas paredes, que permitiam que panos velhos, lençóis e outros tecidos fossem usados como cortinas improvisadas, garantindo
alguma falsa privacidade para as famílias dos feridos. Alma supunha que o mesmo havia sido feito no pavilhão onde estavam
os sobreviventes que escaparam sem ferimentos.
Solon deitou ao seu lado, sem as roupas, e ela disse baixinho:
-O ar está carregado de poeira.
-Tem sido assim na última hora. Um dos corredores desabou e não é seguro voltar para a dispensa– ele contou desanimado.
-E agora?– ela perguntou sentindo uma pulsão de medo instalar-se em sua mente e coração.
Solon beijou sua testa e a puxou para seu peito, abraçando-a mesmo que Alma não quisesse seu carinho.
-Eu não sei.– o Guardião admitiu – Precisamos nos manter vivos e a salvo o maior tempo possível até encontrarmos uma
escapatória. Estevão está falando sobre tentar cavar uma saída. Mas é perigoso, ele mesmo revelou que Eldor decidiu abrir
novos coredores, pois essa região está condenada a anos. É um milagre não ter sido a primeira a despencar.
-Que ótimo – ela disse amargurada, escondendo o rosto no peito do elfo, sem saber por que se deixava levar desse modo.–
Eldor é tinhoso. Ele deve saber como sair daqui.
-Não adianta tortura-lo, fada malvada– ele antecipou sua sugestão, pois ela pensava muito em morte e torturas– esse tipo de
maníaco não abre mão do poder. Ele nunca aceitaria desistir do poder que tem sobre seus seguidores.
-Maldito -ela reclamou e Solon sorriu na escuridão– Amanhã, se você estiver melhor, eu quero conversar com você sobre o
seu dom. uma conversa franca e verdadeira, sem mascaras.
-Eu não uso mascaras– ela disse sonolenta.
-Sim, você usa uma mascara Alma. E é tão perfeita, que engana a si mesma.
Solon percebeu que ela estava adormecida e que provavelmente não se lembraria dessa estranha conversa no dia seguinte.
Acariciou seus cabelos e inalou o ar, enojado pela terra que impregnava.
Preocupação apertou seu coração. Precisava tirar aquelas pessoas dali e salvá-las. Era sua missão salvar e proteger os
inocentes. E Solon não lidava com essa isso de vida de forma banal. Era mais que uma missão, era a razão de sua existência.
Sabia que Eldor estava se movendo no sentido de tolher seus avanços. Acreditava em novas tentativas de elimina-lo e por
conta disso, se mantinha atento e em alerta. Acreditava também em uma mudança de estratégia. Desacredita-lo totalmente,
obrigandoo a sair de cena para não causar histeria entre os sobreviventes.
Criaturas tão sensibilizadas e amedrontadas que facilmente se voltariam contra qualquer agente que oferecesse novo risco.

Capítulo 20 Massacre

Três dias mais tarde, Alma ainda se mantinha no pavilhão dos feridos. Primeiro, por não estar totalmente recuperada, e
depois, por preferir ajudar e ocupar sua mente a ficar pensando que estava soterrada em um buraco fedorento e miserável e
que não encontraria salvação.

Talvez por isso estivesse tão saudosa de suas amigas, a lembrança delas vindo perturba-la o tempo todo. Queria notícias de
Joan, que sabia ser perseguida por Zoé uma Guardiã totalmente grotesca e selvagem. Driana se entendia com Acheron, e
naquele jogo de gato e rato, Alma não duvidava que sua amiga obteria êxito. Mas Joan... não. Ela era frágil, e como todo ser
frágil, necessita de amparo e cuidado.

Angustiada, Alma procurou entre os feridos e seus familiares pelas sobrinhas de Anastácia. Elas deveriam estar brincando
perto de onde Alma estava, mas encontrou apenas uma.

-Onde está sua irmã? – perguntou para a menina que apenas apontou em direção a porta de saída do pavilhão.
As duas meninas eram mudas, por causa disso, a comunicação era sempre precária para Alma que não estava habituada. A
fada da clausura não gostava de pensar em sua afeição pelas meninas. Não gostava de pensar em porque gostava dessas
crianças quando sempre detestou crianças.
As meninas eram como ela e Solon, eram pela metade, e sempre seriam tratadas com diferença, sempre seria subjulgadas e
atacadas, por serem incapazes de cuidar de si mesmas o tempo todo.
-Fique aqui. Se você sumir também, eu lhe dou umas palmadas, entendeu?– ela segurou a menina pelos braços e a colocou
sentada na cama, e entregou-lhe um brinquedo de madeira, que ela vivia arrastado de um lado para o outro.
A menina pareceu obedecer, e Alma procurou por Anastácia antes de decidir que era melhor procurar a menina e fazer algo de
útil, em vez de ficar ali parada reclamando do mundo e enlouquecendo todos os demais com seu gênio forte e seu mau humor
insuportável.
Eles a toleravam por achar que era o grande amor de seu líder e apesar dela ter escolhido outro elfo, nutriam a esperança de
que mudasse de ideia e aceitasse ser a fêmea a reger aquele povo.
Alma não entendia esse tipo de idolatria, pois seu espírito sempre foi líder, apesar de sua carne ser prisioneira.
Estava frio e úmido, e ela tremeu enquanto caminhava hesitante pelos corredores. A umidade tomara conta das paredes e do
ar, e ela sabia que em breve todos adoeceriam. Não havia como manter fogo acesso por muito tempo, e o alimento vinha sendo
ingerido cru, e ela agradecia a sorte por boa parte do alimento ser vegetal e não animal. Rações, grãos e legumes.
Alma teve um vislumbre de cachos cor da noite e correu atrás da menina, esquecida de seu receio em percorrer aqueles
corredores sombrios e ser outra vez soterrada. Ainda tinha pesadelos com isso, mas não se lembrava deles na manhã seguinte.
Sufocou a voz interior que lhe dizia que lembrava apena da voz sussurrada em seu ouvido, lhe dizendo que tudo ficaria bem.
Solon em suas mentiras piedosas.
-Aí está você!– ela guinchou irritadíssima quando viu a menina brincando com um animal. Era um filhote de coelho talvez. Ela
cutucava o bicho com sua mão, curiosa, e olhou para ela como quem pergunta por que seu filhotinho não está mais brincando.
Alma reconheceu o bicho, pois era de criação de Anastácia, e havia sobrevivido ao soterramento junto com outros bichos de
estimação de outros moradores do subterrâneo.
Alma segurou a menina pela mão e olhou o animal.
-Oh– ela segurou a menina perto de si escondendo o rostinho bonito contra sua barriga para que ela não olhasse para o animal
outra vez.– Não olhe.
Alguém havia assassinado o pobre animal com crueldade.
A menina olhou para Alma e ela segurou seu roto, sabendo que precisava dizer-lhe algo:
-Sua irmã está procurando-a. Não quer deixar Anastácia furiosa quer? Vamos. A menina segurou a barra da sua saia, que lhe
chegava ao joelho, e apontou para o coelhinho.
-Eu lhe arrumo outro coelho quando sairmos daqui, ok? Só não faça isso comigo, não faça– ela implorou agarrando sua mão e
a levando para longe.
Não era boa com crianças e não tinha a menor ideia de como lidar com o sofrimento de uma!
-Prestativa e dedicada como uma boa fada deve ser. Estou orgulhoso.
Alma parou de andar e olhou para trás, de onde a voz sombria vinha atazanar sua vida.
-Foi você? Não estou surpresa - disse ao reconhecer Eldor– Atacando pobres coelhos indefesos? O que foi? Está ficando
desesperado?
-Porque ficaria?– ele sorriu e aproximou-se olhando para a menina.
Alma segurou a mão da criança com força e sentiu um arrepio percorrer sua coluna. Eldor havia aberto mão do manto e do
excesso de luxo. Comum como qualquer outro elfo, havia saído para caçar. Primeiro o coelho, depois a criança.
-Seu mundo está ruindo ao seu redor. Eu não sou estúpida, você não sabe o que fazer. Essas pessoas irão morrer e você ficará
sozinho.– jogou em sua cara.
-Sozinho? – Eldor estreitou os olhos e sorriu– Você acha mesmo que alguém com o meu poder de persuasão ficará sozinho?
Neste mundo de puro desespero e medo, você acredita mesmo que não encontrarei fadas e elfos dispostos a trocarem vidas
miseráveis e de escravidão por uma vida de privações, porém de paz e tranquilidade? É uma tola, Alma. Uma grande tola.
Como dizer que mentia? Ela mesma era uma dessas fadas disposta a encontrar um pouco de paz na vida.
-O que você ainda quer comigo?– perguntou tensa– eu escolhi o Guardião e você sabe muito bem por que.
-Porque o seu dom insiste em não se revelar em sua plenitude. Eu soube no momento em que a via na Vila dos Desesperados–
ele sorriu tocando a parede de pedras, que apesar de aparentemente intacta, conservava relevos que indicava uma lenta
mudança de lugar, pois a terra vinha cedendo lentamente.
-E você quer obter o meu poder de convencimento.– ela disse sorrindo– Bom, eu também quero. Mas pelo visto, ambos
ficaremos frustrados.– era satisfação pura que pairava em sua face.
-Eu quero mais que obter seu dom, Alma. Eu quero uma parceira que me entenda e desfrute do mundo que eu criei. E essa
parceira é você.
-você é patético – ela segurou a menina pela mão com força quando Eldor aproximou-se.
Ele tinha a atenção dividida entre ela e a fadinha. Alma entendia que aquela mente doentia precisava ser enaltecida e que
Eldor obtinha satisfação plena tirando a vida de pequenos seres vivos e a menina era perfeitamente pequena e indefesa. Não
poderia gritar ou pedir ajuda.
-Vá atrás de sua irmã, e não desvie do seu caminho ou eu realmente vou lhe dar a surra que prometi – ela pôs medo na menina
e viu seus olhos arregalados de receio, sem saber que o verdadeiro perito não era a fada e sim o elfo.
Soltou a mão da criança que correu para junto de sua família. Sozinhos no corredor vazio, Alma perguntou:
-Você sabia o tempo todo que isso poderia acontecer, porque não fugiu?
-E abrir mão de tudo que é meu?– ele divagou.
-Nada é seu.– ela negou petulante.
O modo como o encarava era de pura arrogância. Mesmo subjulgada, Alma não lhe pertencia.
-Eu soube que éramos almas idênticas quando a via a primeira vez. Cheira a morte, Alma, e eu posso fareja-la. Não foi o
cheiro de cio que me instigou e atraiu, foi o seu cheiro de morte. Suas mãos estão sujas de sangue inocente. E eu amo isso em
você.
-Eu nunca matei ninguém.– ela negou.
-Ainda– ele corrigiu– é questão de tempo.
Por mais triste que fosse admitir, Alma precisava ser sincera a admitir que ele tinha razão. Toda razão do mundo.
-O Guardião vai tentar domestica-la. Domar seu dom e conter seus impulsos. É um idealista. E você é um desafio para alguém
que se julgar capaz de salvar os desvalidos e desprotegidos. Solon pode conseguir conter seus desejos por algum tempo, mas
não para sempre. Quando menos esperar, você cometerá um ato que mudará tudo. Eu sei como é. Eu passei por isso. Você não
escapará de sua natureza, Alma, ninguém escapa de ser quem é para sempre.
-Me deixa em paz– ela negou, e virou de costas.
Sua intenção era sair do confronto sem aparentar covardia. Eldor a seguiu e a fez parar, encostando um punhal em suas costas.
-Nos dois sabemos que se você gritar, e me matar, estará fazendo o mesmo com todos os elfos e fadas que estão aqui embaixo
conosco. Sendo assim, não importa o que acontecer, você não vai pode escapar de mim.
-é mesmo? E o que você vai fazer comigo?
Ele estava atrás dela, e passou uma das mãos por sua barriga, mantendo seu corpo contra o seu. Era assim, não era? Os
machos sempre se achavam no direito de submeter uma fêmea aos seus caprichos? Fervendo de raiva, Alma tentou soltar-se,
mas foi em vão.
Eldor a empurrou contra a parede, com a face esmagada contra as pedras e agarrou seus cabelos, segurando o punhal contra
sua garganta. Alma farejou o sangue, pois cortava sua pele.
Gemendo em seu ouvido, Eldor levou a mão livre para baixo de sua saia e a tocou nas coxas, alisando sua pele.
-Eu vou mostrar-lhe, Alma, como será perfeito ao meu lado. É justo que tenha um comparativo. O direito de escolha. O
Guardião é um capacho de um Rei deposto. Eu sou um elfo livre, que sigo minhas próprias leis. E você sentirá a diferença
entre um e outro quando terminarmos.
Alma gemeu de nojo e conteve a vontade de gritar e lhe dizer que já sabia a diferença entre um e outro. Um a estuprava, outro
a seduzia.
A diferença era muito clara, e não havia como ignora-la.
-Você pode ir em frente – avisou a Eldor– quando terminar, eu arrumarei minha roupa e seguirei minha vida, sem olhar para
trás. Acha que me importo com quantos elfos me deito? Acha que me importo com quem está comigo? Se você sabe que somos
iguais, então, sabe que eu não me importo nem um pouco com você. Que não sou capaz de amar um elfo ou me importar com
ele. Vá em frente, tome a força o que você quer. Eu posso muito bem suportar e depois esquecer.
Suas palavras eram sinceras. Ela não se importava, disse a si mesma. Não se importava. Mesmo que mantivesse trancafiado
em seu coração a lembrança doce do modo como Solon a tocou. Ainda assim, ela sobreviveria a essa violência, como
sobreviveu a todas as outras tristezas de sua vida.
Furiosa, sentiu-o subir aquela mão asquerosa para entre suas pernas, e contrariando as próprias palavras, Alma tentou
escapar. Eldor riu e a pressionou contra a parede, esmagando seu corpo dolorosamente.
Eldor havia esquecido que havia mais um atributo em Alma além de seu aparente dom inútil. Ela tinha asas e as bateu
fervorosamente, causando seu afastamento involuntário. Foi questão de segundos, mas ela conseguiu escapar e correr. Não foi
muito longe, pois Eldor a derrubou no chão e montou sobre ela, segurando sua cabeça contra o barro que cobria o chão. Alma
engasgou engolindo terra e inalando barro, mas ele não parou.
Ela pensou ter ouvido gritos e passos, mas não percebeu o que de fato acontecia, até sentir que estava livre.
Eldor estava de pé, com o punhal nas mãos, afastando-se dela com passos inseguros.
-A fada me escolheu. Estava tomando o que me oferecia. –ele explicou e Alma ergueu a cabeça o suficiente para olhar e
descobrir que vários elfos e fadas olhavam para os dois inseguros. A sobrinha de Anastácia estava ali, e uma das fadas a
pegou no colo e levou entre as pessoas, para que não visse a cena degradante.
Era provável que a menina houvesse explicado para Anastácia onde ela estava e com quem.
Eles esperavam que ela levantasse e confirmasse a versão de seu líder. Solitária, magoada e ferida, Alma sentou e tentou
levantar. Seus joelhos estavam ralados e ela estava desconjuntada.
-Eu não o escolhi– disse em um fio de voz– ele ia me pegar a força.– baixou a cabeça envergonhada, lamentando a própria
existência, sem notar que lágrimas corriam em seu rosto– eu não o escolhi– sua voz tornou-se um gemido e ela andou com
dificuldade até ser ajudada por algumas fadas que a apoiaram, sempre olhando para Eldor com cobrança;
-é mentira. A fada me escolheu e deve ser levada para meu quarto. Agora me pertence.
-Se isso é verdade, porque segura o punhal em posição de ataque?– perguntou Anastácia antes de virar as costas e ajudar
Alma a seguir pelo corredor.
A pergunta ficou no ar, mas Alma não soube como a conversa continuou.

Alma enxergou o Guardião se destacando entre as pessoas e suspirou. Ele parecia descontrolado e um pouco frenético.
Esperou-o enxerga-la entre as fadas e elfos e se preparou.

-Não – ela disse antes que ele tivesse tempo de falar– eu não me importo com isso. Você sabe que não ligo para quem se deita
comigo – era mentita, mas ela ficaria contente se ele fingisse acreditar nisso e a deixasse em paz– Agora a maioria desses
elfos e fadas sabem que seu líder é capaz de forçar uma fêmea. Isso é bom não é? A confiança é quebrada.
-Anastácia disse a Estevão que ele não teve tempo para tocá-la... Isso é verdade? Ele não abusou de você?– preferiu manter-
se distante, pois ela impunha distancia emocional, e por mais que fingisse estar bem, ele reconhecia os claros sinais de seu
esforço para não surtar e causar uma tragédia.
-Não ouve tempo – contraiu, olhos brilhantes.– Por favor, me deixe quieta.

Era um pedido de que não a obrigasse a mostrar fraqueza na frente de tanta gente. Solon tocou seu rosto, seu queixo e olhou em
seus olhos em busca de tranquilidade.

Ela estava um caos.


-Tem razão, é um bom momento para conseguir alianças. Conte a todos do horror e
do medo que sentiu. Isso ajudará a reforçar a imagem pejorativa de Eldor. E a aliviar o peso em seu coração, pensou Solon,
mas não disse.
Alma acenou concordando e ele afastou-se. Fechando os olhos com força, Alma
deixou que Anastácia viesse limpar os arranhões em seus joelhos e não disse anda, mesmo
quando Anastácia parou de limpar os machucados e disse:
-Eu tenho medo que ele tenha feito o mesmo com minha sobrinha mais velha–
confessou.
-Eu quero sair daqui– Alma disse, e isso resumia tudo. Inclusive a resposta para a
duvida de Anastácia.
-Estevão me contou que Solon crê que você pode adquirir um dom maior capaz de
salvar a todos nós. Mas que você não o deixa ajuda-la. – a serva contou, olhando-a com
cobrança.
-Eu sou egoísta, eu sei disso – afastou-se e deitou na cama, escondendo o rosto no
travesseiro.
-Não. Você é covarde. Eu também.– Anastácia disse cansada– Agra quer vê-la
mais tarde, o que digo a ela?
-A menos que ela queira me ajudar a sair desse inferno, diga que não quero ver
ninguém.
Sua raiva não era dirigida para a jovem, mas sim, para Solon que ousava falar dela
por suas costas.
Era típico dos elfos decidirem sua vida. Lucius e sua amante Santha a jogaram aos
leões, e agora era fugitiva, Solon a perseguia e levava consigo para essa armadilha do
destino. E agora, Eldor a tocava e tentava lhe roubar os desejos do corpo, quando não
obtinha permissão para ser dono dos desejos de seu coração.
Era injusto. Muito injusto ser vitima dos desejos alheios e não poder lutar contra.
Furiosa, Alma agarrou o tecido sujo do travesseiro e sufocou as lágrimas. Apertava o
tecido para extravasar o ódio, mas era em vão. A raiva não passaria assim tão fácil. As palavras de Eldor marcavam seu
coração, pois ele estava certo ao dizer que eram
idênticos. Quem sabe, no futuro, ela seria igual a ele em comportamento? Só de pensar
nisso, ela sentiu o coração apertado.
Não queria ser má, pois sabia que não haveria volta caso pusesse em pratica todo o
ódio que carregava no peito.
Solon não voltou nas próximas horas. Alma esperava que voltasse e lhe dissesse que
tudo ficaria bem, era infantilidade sua, mas queria ser abraçada e sossegada. Era fraqueza,
mas era um sentimento tão grandioso que não sabia ignorar.
Ela comeu sem vontade, empurrando a comida, e interagiu com os outros por
necessidade e não opção. As sobrinhas de Anastácia pareciam ter tomado-a como uma
familiar, pois insistiam em rodea-la. Com dor de cabeça, a cabeça quente, e os nervos a
flor da pele, Alma tentou dormir, quando tudo silenciou.
Foi um momento de fechar os olhos e rezar para tudo acabar bem. Um momento de
falsa paz que não perdurou.
Ela ouviu gritos e algazarra. As luzes foram acesas a bastante tempo quando ela
notou o que acontecia.
-Está tudo bem– disse Anastácia, que pálida estava sentada no chão com as irmãs,
ao lado do colchão ao qual alma repousava.– Não se assuste. Estevão e Solon estão
liderando uma rebelião. Devemos ficar aqui e não interferir.
-Rebelião?– sentou-se na cama, agitada.
-Sim, veja – apontou uma fila de elfos e fadas.– É uma trégua. Os que apoiam Eldor
estão sendo trocados pelos que não apoiam. Uma tentativa de Eldor parecer bonzinho. Os
guardas estão do seu lado, e eles são maiores numero e estão armados. Somos a minoria. Alma observou calada o movimento.
Vez ou outra um guarda entrava e observava
em torno, checando se não havia nenhum infiltrado de Eldor entre os presentes. Levou
muitas horas para que Solon voltasse. Quando isso aconteceu, Anastácia se retirou na
companhia de suas sobrinhas e a cortina foi fechada em torno da cama.
-Isso nunca vai dar certo – Alma disse a ele no instante em que ficaram sozinhos.
-Acha que precisa me dizer isso?– ele ironizou, sorrindo desconsolado – É um
pouco ridículo uma guerra com dois lados distintos em uma situação como esta. Não há
condições, espaço ou pessoas disponíveis para uma luta. Nossa resistência é mínima.
Enquanto pudermos contar com a decisão de Eldor em se manter fingindo ser um bom
líder, poderemos ganhar tempo.
-Ganhar tempo para que?– perguntou observando-o despir apenas a camisa e as
botas.
Sua pergunta foi silenciada pelas luzes sendo apagadas. Apenas um feixe muito
suave mantinha-se acesso, pois os guardas precisavam de luz para cuidar da entrada.
Estevão era um deles, e Solon faria revezamento com ele.
-A água não dura mais que uma semana. A comida menos que isso. Eldor tomou a
frente e agora detém praticamente todo o alimento. O racionamento vai piorar. Prepare-se
para isso.– ele deitou ao seu lado – como está se sentindo?
-Ganhar tempo por quê? – ela insistiu na pergunta.
-Eu tenho esperança de conseguir vencer seu bloqueio, Alma.– ele prometeu, a voz
exausta pelo pesado trabalho e também pela tensão de toda aquela situação.
-Não seja patético. Eu não tenho bloqueio algum. Rainha Santha mentiu sobre meu
dom, com base no engano das carcereiras em deduzirem que esse seria meu dom. todos
estão esperando por algo que não acontecerá.
-Miquelina nunca se engana. Ela prevê o futuro. Se ela disse que seu dom é lidar
com a voz e ser obedecida, é o que acontecerá. Resta conseguirmos vencer todas as suas
barreiras e libertar o que existe aí dentro escondido.
-Acredite, Solon, você não quer fazer isso – ela satirizou, com veneno na voz. Solon estendeu uma das mãos e esfregou suas
costas, pois ela havia virado de
costas, para afastar-se dele o máximo possível.
-O seu problema é que está sempre nervosa. Sempre com ódio e raiva. Eu não a
culpo – ele corrigiu o que dizia antes que ela ficasse ainda mais tensa.
Os dois falavam por sussurros, e era possível que ninguém os escutasse. Havia um
pouco de privacidade, mesmo assim, era uma ilusão, pois apenas cortinas os separavam
dos outros.
-Sua vida toda tem sido de lástimas. Opressão. Sofrimento, prisão, sempre algemada
por decisões alheias. Você precisa deixar esse ódio sair.
-Mesmo?– ela ironizou– e eu faço isso como?
-Não tenho como lhe responder essa pergunta, eu lhe sugeriria tentar ser mais suave,
e respirar fundo, não aguardar todas as raivas e todos os rancores.
-E como é possível fazer isso? Não tenho sangue de barata como você!– agredir era
sua forma de escapar das palavras verdadeiras de Solon.
-Acha que eu sempre fui assim? Que eu sempre vi o lado bom de tudo?– ele
perguntou incomodado com seu modo de falar– Eu já tive tanto ódio dentro de mim, que
achei que a vida não valia a pena. Foram muitos anos vivendo e me alimentado do rancor e
da raiva. Tempo perdido, pois esses sentimentos se refletem nas nossas ações.
-Como você fez para se livrar desses sentimentos? – ela virou para o seu lado, e
perguntou baixinho.
Solon aproveitou a brecha e acariciou seu rosto, observando o brilho intenso de seu
olhar. Ela implorava para ser salva.
-É algo gradativo. – contou – Primeiro, é preciso admitir que queira ser feliz. Que
você merece ser feliz. Que tudo que lhe fizeram até hoje não foi culpa sua. Que o mal que
lhe infringiram foi gratuito e que não merecia nada disso.
-Mas se...–ela quase não conseguiu falar– E se eu mereço?
-De que jeito? Um bebê não merece que a vida lhe impunha o abandono. Você foi
abandonada, Alma, como centenas e milhares de bebês são abandonados todos os anos. E
isso não quer dizer que seus pais sejam maus. Ou que você mereça ter sido deixada em um orfanato. É tudo culpa do acaso.
Talvez seus pais tivessem fortes razões para isso. E talvez
você jamais descubra que razões eram essas.
Alma ouvia atentamente suas palavras. Eleonora vivia lhe dizendo o mesmo. Driana
então? Cansava seus ouvidos com esse discurso otimista. Joan era a única que não lhe
falava nada, apenas a abraçava e beijava a face, como quem diz que não há explicação e é
melhor esquecer.
Ouvir as palavras de Solon era um modo de confirmar se suas amigas estavam
certas.
-Você não tem culpa que rainha Santha tenha decidido abandonar sua filha. Ou
tenha decidido vingar-se de um rei que a amou a vida toda. Muito menos, culpar sua filha
por seus crimes. Você é vitima. Eleonora é vitima. Suas amigas são vítimas.
-Eu não matei o Rei. Não fui cúmplice- admitiu– mas eu sempre quis... saber como
é.
-Matar?– ele verbalizou em voz alta – Não pode se culpar por algo que não fez
ainda. E quando eu digo ainda é sabendo que esse momento não vai chegar. Eu vou lhe
dar razões para não querer descobrir como é.
-E como pretende fazer isso?– ela duvidou de suas palavras.
- Hum, deixe-me ver: vou ajeitar nossa vida de um modo que você não vai querer
correr o risco de perder o que teremos. Uma família, suas amigas, um lar. O que me diz?
Você abriu mão da sensação de matar, quando me deixou viver, por receio de perder a
confiança de suas amigas. Eu confio que sempre fará a escolha certa. Agora, você precisa
confiar em si mesma.
-Parece tão simples ouvindo-o falar– confessou.
-Fique perto do que é bonito, Alma. Perto de crianças, de fadas que sorriem e de
pessoas que amam. Fuja das pessoas sombrias. Fuga de pessoas como Eldor. Quando os
pensamentos ruins a atormentarem, procure por algo bonito. Você desenhava, lembra? Eu
a vi desenhar algumas vezes. Imagine em sua mente que está desenhando algo bonito.
Quando puder lhe conseguirei papel e tintas. Distraia sua mente do perigo. Engane o mal
que existe dentro de si, com o tempo, ele deixará de existir.
-Como foi que você enganou o mal que o rondava?– deduziu que ele falava por
experiência própria.
-Hum, Acheron me levou a força para treinar, eu não queria. Sabia que seria
rejeitado pela minha armadura. Nos nunca nos acertamos totalmente, minha relação com
minha armadura sempre havia sido conturbada e eu sabia que seria rejeitado
definitivamente. Acheron me convenceu a provar a mim mesmo que era digno de usar
armadura outra vez.
-sua armadura não lutou contra mim quando a roubei– não queria decepciona-lo,
mas era a verdade.
-Isso aconteceu, porque você é minha fada escolhida e a armadura pode não gostar
de você, mas sempre vai aceitá-la, pois é aceita por mim– contou.
-Mas como...como você conseguiu se acalmar? Eu não entendo como é possível
simplesmente deixar para traz e esquecer tudo que me fizeram!– ela disse indignada e
Solon abraçou suas costas, pousando um beijo em seu ouvido.
-Miquelina, sua carcereira, me abandonou no Ministério do rei quando eu tinha dois
anos– ele contou, para surpresa de Alma– Eu cresci no mesmo lugar que você. Aos sete anos um caixeiro viajante buscou por
um menino entre os órfãos, porque precisava de ajuda com as vendas. Ele queria um ajudante, não vou usar a palavra escravo,
pois ele sempre me tratou bem. Quando eu fiz quinze anos, ele foi assassinado por caçadores de recompensa. Eu fiquei sem
saber para onde ir. Voltei para o Castelo de Isac. Fiz alguns trabalhos, vivi sem paragem, até que fui pego roubando e me
levaram para ser julgado por Isac. O rei que sempre foi injusto com os órfãos era justo com outros desvalidos, Alma. Isac era
uma criatura atormentada. Ele me absolveu em troca de ser mandado para treinamento. Foram muitos anos sendo treinado para
a escolha da armadura. Eu odiava o que eu fazia. Detestava me sentir um prisioneiro. Como dizem por aí, eu mordia a mão que
me acudia. Quando fiz vinte anos, a armadura me escolheu.
Alma sentiu profundo alivio ao ouvir algo feliz na história de vida de Solon.
-Foi uma escolha, mas eu me sentia desconfortável com a armadura. Era estranho. A
aradura me escolheu, mas não me aceitava plenamente. Eu fui ficando louco com isso. Fiz
muitas coisas feias. Andava com fadas, bebia e ficava mais tempo nos vilarejos arrumando
arruação do que no castelo servindo ao meu Rei.
-Eu nunca poderia imaginar– ela disse surpresa.
-Um dia, o pior aconteceu, e você sabe o resultado -ele disse com voz triste – Foi
quando me recuperei e voltei para o castelo, certo que seria rejeitado definitivamente pela
armadura. Acho que parte de mim esperava por isso, e queria isso. eu queria me destruir
antes da minha tragédia, e esse sentimento só aumentou depois.
-E o que aconteceu? Quem fez isso com você?– ela se moveu em seus braços,
tocando sobre sua orelha, onde ela sabia que havia muitas cicatrizes escondidas pelos
cabelos escuros e fartos.
-Eu não falarei disso agora. Mas lhe direi, Alma que no instante em que Acheron
percebeu o que eu fazia...ele me obrigou a esperar. Levou-me para o treinamento pesado e
me disse algo que jamais esquecerei. Ele me disse que no instante em que o ódio fosse
embora, eu poderia ter uma chance de ser feliz.
-Simples? Como alguém faz isso?– ela ironizou.
-No meu caso...eu treinava pesado dia a enoite. Parava de treinar só quando estava
exausto. Acheron me levava nas piores caçadas e nas piores missões. Era exaustão noite e
dia. Meu corpo mal aguentava ficar de pé. Foi quando comecei a perceber que depois que
a exaustão passava, eu acordava disposto. Se alguém dançava, eu achava bonito. Se
alguém ria, eu ria também. Um pouco aqui, um pouco ali, andando entre pessoas
estranhas, conhecendo criaturas diferentes...eu fui aprendendo a ler lábios, a me comunicar
com as mãos. Eu fui esquecendo as outras coisas e me apaixonando pela diversidade da
vida. Eu fui sendo alguém novo. Eu nunca fui nada além de um elfo furioso. Não foi
rápido ou fácil, e não levou um dia. Mas eu consegui me acalmar o suficiente para pensar
antes de agir.
-Você é tão calmo. Nada parece irrita-lo – ela disse, mas falava para si, e não para
ele.
-Bem, você se esforça para me tirar do sério – ele suavizou a voz– mas eu procuro
ver seu lado bom, e ignorar seu veneno.– ponderou.
-Eu não posso sair daqui e treinar lutas até a exaustão. Como eu posso me livrar
dessa raiva toda?
-Raiva é energia. Você não precisa se livrar dela, pode redirecioná-la. Tem muito
trabalho para executar aqui dentro. Essas fadas não conhecem o mundo lá de cima. Conte
a eles como é. Ensine-os a pensar com suas próprias cabeças. Gaste seu tempo fazendo
isso. E quando estiver comigo... Permita-me mostrar-lhe como pode ser doce o encontro
entre macho e fêmea. Permita-se desfrutar disso. Algumas pessoas acreditam– ele
sussurrou em seu ouvido, arrepiando sua pele– que a satisfação sexual alivia as tensões e
acalma os sentidos.
Alma soltou um som de indignação e o empurrou na cama. Solon riu baixinho e a
puxou de volta.
-Fique quieta, não estamos sozinhos, esqueceu?– avisou, para que ela se contivesse.
-Isso torna sua sugestão cada vez mais ridícula.– ela cruzou os braços sobre o
peito, furiosa com sua audácia.
-Por quê? Vai negar como se sentiu relaxada e calma quando fizemos amor? Como
foi boa a sensação depois que acabou?– ele insistiu.
Alma não poderia negar. Fisiologicamente falando seu corpo ficou calmo e sereno.
Ela estava calma, relaxada e controlada.
Não foi um sentimento que durasse muito, pois ela vivia carregada de tensões e
muita raiva, mas durante alguns minutos, ela se sentiu como alguém normal.
-É uma sensação que passa rápido demais – ela negou e desconsiderou essa
possibilidade.
-Hum, mas você pode fazer durar– ele sugeriu– Passe essa noite nos meus braços,
sem brigar, sem lutar contra o que estiver sentindo... Amanhã, quando acordar, faça o que
pedi. Conte para os interessados como é o mundo lá em cima. Fale das coisas boas. Do
clima, do sol, dos lagos, das árvores. Lembre-se que a maioria nunca viu um pássaro, ou
qualquer outro elemento da natureza. Conte como é sentar-se na grama macia, uma relva
verde e orvalhada, e desenhar o horizonte, sabendo que com suas asas poderá desvendar os
mistérios que se escondem além das terras onde pisam seus pés.
O cenário descrito por Solon era perfeito, e Alma entreabriu os lábios, sem notar
que cedia, ao perguntar:
-Acha que será o suficiente para desabrochar o meu dom?
-Não.– foi sincero – mas é um passo nessa direção.
-Se eu obtiver meu dom completo... Eu posso convencer Eldor a contar onde fica a
saída secreta que não está destruída. Ele nunca contará sem ser obrigado a isso e suspeito
que tortura física não obterá resultado com alguém louco como ele.
-O seu dom será uma benção nesse momento, Alma. Poderemos salvar a vida de
todas essas criaturas. Pense comigo, um ato de tamanha abnegação supera qualquer
pensamento ruim sobre causar mal a outra criatura viva. Estou certo?
-Acho que sim. Driana diria que sim– ela se lembrou disso. – Ela sempre fala dessa
forma. Com teorias mirabolantes sobre assuntos triviais.
-Sua amiga é esperta. É sempre bom meditar sobre um assunto difícil antes de tomar
uma decisão importante. Evita arrependimentos.
-Eu nunca me arrependi de nada que fiz até hoje – foi teimosa.
-Ainda bem que nunca fez nada repreensivo. Ou eu poderia me preocupar
seriamente com você– ele tentou suavizar sua expressão.
Alma suspirou de pesar, ajeitando-se na cama, suas pernas inquietas.
-Miquelina estava envolvida diretamente com o que lhe aconteceu? – perguntou
curiosa, sua mente fervilhando com mil pensamentos desencontrados.
-Pensamentos desta natureza não vão ajuda-la a relaxar, Alma– ele fugiu da
resposta – Olhe para mim e veja o que sou e não o que fui. Eu me conformei com a
mudança na minha vida. Não é fácil, e eu não vou mentir que gosto. Mas aceitei e convivo
sem amarguras. Conviva você também com seus problemas sem amarguras. E sobretudo,
não guarde rancor por indignar-se com as atitudes alheias a sua vontade. Será mais fácil
lidar com cada pedra do seu caminho se você tentar separar o que pode feri-la, do que
pode fortalecê-la.
-Filosofia barata. Eu sei que não quer me contar quem lhe fez isso – ela desmereceu
sua resposta e ouviu seu riso.
-Em poucas horas estarei de pé, protegendo os poucos que acreditam em nós. Não
quero desperdiçar esse tempo falando do meu passado.– Solon admitiu, adoravelmente
despojado.
-Mas eu quero saber– ela disse incomodada com isso.
-Fique do meu lado, e um dia, eu lhe contarei.– ele prometeu.
Quando, pensou Alma? Antes ou depois de entrega-la para rainha Santha? Seu
corpo ficou tenso e ela maneou a cabeça, soltando o ar preso no pulmão com raiva. Ouvir Solon filosofar fazia tudo parecer
simples.
-Relaxe– ele pediu, sussurrando outra vez em seu ouvido, cheirando seu ouvido.
-Não estamos sozinhos– ela pousou ambas as mãos em seu peito, barrando seu
avanço.
Uma ínfima cortina improvisada separava o limitado espaço onde o colchão estava
colocado no chão. Era tudo muito precário. Totalmente sem privacidade.
-Seremos silenciosos. É muito tarde, os feridos estão dormindo e seus familiares,
preocupados demais com sua própria segurança para reparar em nós.–ele subornou-a com
um carinho atrás da orelha.
Tensa, Alma manteve distancia, mesmo no espaço limitado. Testa franzida, indecisa
sobre isso acontecer outra vez.
-Feche os olhos– ele pediu, pois seria impossível lidar com suas preocupações e
tensões se ela não se desligasse do mundo.
Alma fixou os olhos nos dele, com veneno no olhar.
-Você precisa confiar em mim... Ao menos nisso.– ele ponderou.
Alma sorriu. A expressão pedinchona do elfo a fez sorrir.
-Espero que consiga me fazer relaxar– ela disse mudando algo em sua face, pois
deixava um pouco de lado a raiva e os pensamentos frustrados sobre liberdade e prisão –
Porque eu preciso sair desse lugar. E rápido. Eu não estou brincando quando digo que
preciso sair daqui!
-Vou me esforçar, fadinha, eu prometo, que vou me esforçar para resolver esse
nosso problema –ele sorriu, e segurou seus pulsos, se colocando sobre Alma, sem
esconder o sorriso e o olhar empolgado pela chance de fazer amor uma vez mais com sua
fada escolhida.
-Não me chame assim. Eu não sou uma fadinha. Sou uma fada adulta. Sou madura.
Não sou uma criança– ela reclamou.
-hum, por quê? Porque você não pode ser uma adulta com sentimentos nobres como
uma criança? Um momento de liberdade, Alma. Nem sempre nossa prisão é feita de
algemas e masmorras. Às vezes, nossa prisão está aqui– ele tocou de leve sua testa,
fazendo alusão a sua mente.
-Você fala demais. – Ela disse azeda.
Solon sabia que deveria esperar isso dela. Um passo enorme estava sendo dado ali.
Um passo na direção do coração da fada.
Alma lhe despertava doces sentimentos, principalmente a cerca de abnegação. E
outros sentimentos menos nobres, como paixão. As palavras haviam chegado ao fim, e era
hora de mostrar a ela como era bom render-se, apenas sentir e não pensar. O Guardião roçou o queixo no seu, e ela perdeu a
vontade de falar. A pele arranhava
a sua, coberta por uma barba cerrada que começava a despontar de modo doloroso em
contato com sua pele suave. Era um modo doido de sentir. Ela gostava. Por isso, dobrou a
face, cedendo espaço.
Solon manteve um braço em torno de sua cintura, e uma das pernas entre as pernas
da fada, roçando beijos em sua face, pescoço e a região entre o ouvido e a nuca, onde ela
era muito sensível.
Alma ficou inquieta, e Solon sorriu na escuridão quase total. Carícias delicadas
deveriam amansa-la. Era uma tentativa que não garantia resultado imediato, mas ao
menos, poderia torná-la menos raivosa.
Solon queria seus sorriso e não sua fúria, assim como esperava conseguir salvá-la e
conquistar ao menos um pouquinho de sua confiança.
Alma sufocou um gemido quando o elfo baixou a gola ampla da túnica,
mordiscando seu ombro. Ele não tinha pressa alguma, e quanto mais Alma se agitava,
maior a candura e gentileza dos toques.
Uma lenta tortura para quem era acostumada a ser maltratada. Como os longos
abraços de Joan, sempre tão amorosos. Abraços que muitas vezes deixavam Alma
desconfortável como alguém que é obrigado a suportar um mosquito chato pairando em
torno de sua cabeça.
Mas contrariando a lógica de tudo que viveu até aquele momento, Alma não queria
que acabasse. Tinha pressa, é verdade, era muito impaciente. Mas não queria que
terminasse rápido. Na primeira vez em que a amou, Solon foi calmo, e tentou ser doce e
generoso, mas Alma não colaborou e precisou de um pouco mais de ênfase para seduzi-la.
Desta vez esperava contar com sua colaboração para lhe mostrar o que era amar com
sentimento e não apenas pele.
Com cuidado para não despertar sua raiva, Solon puxou a túnica para baixo,
revelando seus braços longos, seu tronco e seus quadris.
Alma puxou-o de volta, quando Solon pretendia baixar totalmente a roupa. Ela não
queria se afastar, mas também não queria acordar nua, e exposta na frente de crianças e
enfermos. Não por pudor tolo, mas por respeito.
Solon sufocou suas criticas com um beijo suave, um toque leve, mordiscando seu
lábio inferior com o seu. Alma tentou retribuir ao beijo, mas seu modo era sempre
opressor, por isso Solon não deixou que o beijo seguisse um caminho pesado, forte e
voraz. Manteve um ritmo muito doce.
Demorou algum tempo para que ela aceitasse que seus desejos não seriam atendidos
e retribuir no mesmo ritmo lento e doce. Alma segurou no antebraço de Solon, cravando
os dedos no músculo, deixando a tensão extravasar através desse aperto.
O beijo de Solon era meigo e suave, ela nem sabia por que algo tão inocente e
simples poderia estar despertando aquela necessidade toda de tê-lo entre suas pernas e
mais, tê-lo profundamente intimo. Era um beijo com pretensões de seduzi-la, mas Alma
não sabia disso ainda, pois lhe faltava experiência sexual para conhecer todos os trames de
um elfo acostumado a desfrutar do prazer físico.
Antes de ser atacado e ter sua audição destruída, Solon era um devasso, de leito em
leito, e muito aprendeu sobre a arte do amor. Depois da tragédia, repudiou o contato
feminino por muito tempo, culpando-as por sua desgraça. O tempo cicatrizou as feridas
físicas e também, amenizou as chagas de seu coração, e de um ao outro, sobrou um meio
termo, onde sobressaia um elfo que apreciava o ato sexual, e tentava envolver-se com a
fada que o agradasse.
Não escolhera nenhuma outra além de Alma nestes anos todos, mesmo assim, nunca
ia embora sem tentar agradar a fada que confiasse o bastante para deitar em sua cama. O
problema era que raramente confiava em alguém.
Alma segurou os cabelos de Solon e retribuiu cada avanço da língua saborosa do
elfo. Solon havia bebido café, e algo mais pesado, talvez vinho. Com a escassez de água,
era de esperar que estivessem consumindo o vinho estocado. Esse sabor doce e amargo,
em um composto complexo, a entorpeceu. De olhos fechados, Alma, esqueceu o mundo. Não havia razão para pensar em
qualquer outra coisa que não fosse os dois. No
escuro quase total, naquele espaço mínimo, eram apenas dois seres em busca de carinho.
Solon moveu o quadril, e usou as pernas para afastar as dela. Alma afastou as coxas, para
recebê-lo entre elas.
Solon quebrou o beijo, e ela não o deixou ir, grudou os lábios outra vez aos seus,
oferecendo a ele o ritmo carinhoso a qual foi apresentada.
Seu beijo era guloso, Alma sentia a necessidade pungente de senti-lo. Era como se
algo estivesse desperto dentro de seu corpo, não era apenas um amontoado de células e
vísceras se remoendo em um caleidoscópio de atividades celulares. Era paixão pura. Da outra vez, no dia anterior, quando
ficaram juntos havia sido diferente, pois havia
uma pitada de curiosidade e colupa mascarada por opressão. Prazer nostálgico que a
obrigara a mentir que não havia gostado. E mentia para si mesma. Naquele primeiro
momento, quando optou por se entregar justamente para o Guardião, havia pouco do seu
coração envolvido. Apesar de gostar de Solon secretamente, poderia ter sido ele, ou
qualquer outro elfo.
Em segredo, admitiria que ficava aliviada de ter sido com ele. Mas poderia ter sido
com outro e ela na se importaria. Tudo que lhe interessava era acabar com as barreiras que
a impediam de adquirir seu dom completo.
Desta vez, Alma sentia que era diferente, pois tinha que ser com Solon e nenhum
outro poderia substituí-lo!
O ritmo do beijou cresceu e fugiu do caminho carinhoso e seguiu por outro destino,
da paixão desmedida, um tipo de beijo que não precisava de gritos, tapas ou brigas para
explodir. Precisava apenas de beijo. De língua. Saliva. Dentes e mordidas. Solon deslizou as mãos por seu peito, agarrando
seu seio, enquanto a outra mão
descia entre suas pernas, procurando a resposta do corpo feminino a sua proposta de
carinho.
Alma estava molhada e pronta, e provavelmente somente o fato de ter falado deste
assunto já houvesse sido o bastante para deixar sua fada excitada. Alma era muito
excitável, por de trás da garota irritada e com raiva de tudo e de todos, havia uma mulher
extremamente sensível, e era essa mulher que Solon queria tocar. E a única ferramenta
para esse toque era através da relação física, através do prazer de seus corpos. Solon esfregou suavemente suas coxas, para
que Alma sentisse que de forma
alguma ele lidava com isso como algo rápido. Não poderiam demorar, era verdade, a
situação não permitia uma noite de prazeres sem fim, mas mesmo assim, se o tempo era
curto não queria dizer que necessariamente eles precisariam ter pressa. Era um daqueles
paradoxos da vida, que não pedia explicação para acontecer.
Solon intensificou o carinho entre suas coxas, enquanto era beijado com paixão
correspondida. Ser beijado expostamente por Alma era um sopro de alívio e esperança em
seu coração. Essa era uma das ultimas oportunidades para fazerem amor antes de sair
daquele lugar. Das duas uma, Solon estava convencido que ou haveria uma rebelião e
muitos seriam mortos, por estarem em menor numero de elfos feridos e famílias de
crianças e fadas sem asas enquanto Eldor contava com um grande numero de guardas
armados e crédulos de suas mentiras. Ou seriam soterrados vivos. Essa era a grande
verdade.
E se um ou outro não acontecesse, a privação do alimento e da água,
inadvertidamente acabaria levando-os para o mesmo resultado.
Por isso fazer amor com Alma era mais do que apenas um meio para amenizar sua
tensão e raiva e aliviar seu coração, para quem sabe deixar seu dom completo desabrochar.
Era um modo de perpetuar o que sentiam antes do pior acontecer.
E se o pior não viesse, e sim o melhor, com a liberdade total, não apenas dos dois,
mas também daquele povo oprimido, Solon desconfiava que não seria tão fácil conviver
com ela fora de qualquer ambiente que obrigasse Alma a aceitá-lo.
Alam acharia um modo de fugir dele, ou o rejeitaria por estarem em lados opostos.
De uma a outra, o correto era afirmar que Solon perderia e ficaria sozinho. Alma gemeu contra seus lábios e parou o beijo sem
notar, por isso Solon
desvencilhou-se e acariciou-a na curva do pescoço, pois havia notado que ela gostava
muito desse tipo de carinho.
Aperto suave no seio, bem de leve, não queria agarrar, oprimir ou causar danos. Era
para Alma lembrar, ou quem sabe descobrir, que o amor não precisa doer. O amor pode
simplesmente acontecer.
Carinhos doces, era o que Solon singelamente lhe oferecia, suas mãos apalpando
seus seios macios e cheios, pois Alma possuía mamas repletas de carnes. Desceu os lábios
por sua pele perfumada, muito devagar, até rolar os bicos em sua língua, um por vezes. Alma contorceu o corpo. Ela tinha
pressa. Sempre aquela pressa sem fim, e dessa
vez, ele não poderia lhe dar isso. Era sua decisão fazer do ato algo inesquecível. Solon
passou de um seio ao outro, molhando e chupando delicadamente cada mamilo, muito
vagaroso, sentindo a textura de veludo em sua língua. Seus bicos foram enrugando em sua
boca, e foi Solon quem gemeu, sem afastar os dedos que bolinavam sua parte intima. Alma se contorcia. Estava muito perto do
clímax, quase alcançando esse sentimento
pleno da outra vez, quando fizeram amor. Estava muito perto de gritar, mesmo assim, sua
voz não saia, abafada pelas sensações. Murmurava baixinho, gemia baixinho. Sons castos, ingênuos, tentando ser menos afoita,
pois sabia que deveria conter seu
ímpeto, pois não estavam sozinhos. Fazer barulho era além de falta de respeito aos feridos,
avisar a todos que estavam fazendo amor, estavam copulando, e para ela representava uma
derrota de sua força de vontade.
E não poderia esquecer as crianças que não deveriam ouvir. Por isso a necessidade
de silenciar, mesmo quando ansiava gritar por mais. Um interessante exercício de
autocontrole para alguém que nunca antes aprendeu a se conter, a menos que fosse usado
força bruta, como acontecia no Ministério do Rei, quando era contida com castigos físicos. Os carinhos perduravam, e Alma
não sabia como suportar sem avisar a todos que
estava enlouquecendo de prazer. Naquele exato momento, Solon levantou a cabeça e tirou
os dedos, e esfregou gentilmente a barba por fazer em seus seios, atiçando-a. Alma
agarrou sua cabeça, pois não sabia se queria pressionar contra a pele, ou se queria afastalo. Solon manteve esse carinho
arrojado, descendo a barba para sua barriga, arranhando
bem de leve, sem saber, ou talvez prevendo, que isso lhe causaria arrepios incontroláveis
na base da espinha.
A túnica continuava no caminho, não havia sido retirada, estava amontoada em sua
cintura, por isso Solon apenas ergueu o tecido, revelando seu sexo, e Alma temeu que ele
seguisse fazendo exatamente isso.
Cada vez mais para baixo, irritando sua pele com o contato da barba em sua a pele
delicadíssima. Alma usava o termo‘irritar’ pois para ela era difícil usar palavras como
acariciar, seduzir, excitar. Alma preferia o uso de palavras negativas, depreciativas, pois
isso a fazia sentir-se mais forte, no controle de seus sentimentos. Sua vida toda foi pensada
de modo negativo, e agora do nada, um mundo se abria diante de seus olhos e Alma
descobria muito mais do que pensou existir em seu mundo feio, cinzento e carregado de
rancor e ódio.
Solon acariciava suas coxas com as mãos, coxas cheias, apesar de ser magra e não
ter tido a oportunidade de abusar da alimentação, pois no Ministério do rei, eram vigiadas
e alimentadas em mínimas porções suficientes para a sobrevivência. A comida era
controlada, e muitas e muitas vezes Alma se perguntou porque tinha o corpo tão grande.
Provavelmente era sua estrutura óssea, sua genética. Ela não entendia desses assuntos e
também não tinha interesse em saber se herdara isso de seus pais, pois nunca os
conheceria.
Grandalhona, suas coxas eram cheias, e Solon gostava disso, de pernas longas,
pernas grossas, que podia acariciar com boca, mordiscando bem na curva entre a lateral
interna da coxa e a intimidade. Alma achou que poderia levitar, mesmo sem o uso de suas
asas, seu quadril se ergueu, e Solon a segurou contra ao colchão. Eles não podiam fazer
barulho e parte de não poder fazer barulho era não causar reboliço no lugar onde dormiam.
Manteve-a imóvel, enquanto provava seu sabor bem de leve, correu sua língua
vagarosamente, causando as mais devastadoras sensações em seu corpo tenso. Solon queria devorá-la, queria que fosse
romântico e adorável, e não uma simples
copula animal. Havia reverencia em seu modo de tocar, provar seu gosto, invadir sua
intimidade com dedos e língua, resistindo ao impulso de ser voraz, de morder e de causar sobressalto. Ele ergueu os olhos
para observa-la, medir suas reações, saber se agradava ou não. Com Alma contar apenas com sua experiência e instinto de
macho não era suficiente, precisava checar se não lhe causava magoa. Alma não conseguiria lidar com mais nenhum
tipo de magoa. Estava no limite.
De olhos fechados, ela estava ocupada, a cabeça um pouco de lado, os lábios
entreabertos, procurando desesperadamente por ar. Estava silenciosa e quieta, como Solon
havia pedido. Seu peito cheio, bonito e tentador subia e descia rapidamente, sua barriga se
contraia, seu quadril lutava para se erguer, sob o aperto dos dedos do elfo. Alma estava
lutando contra aquela deliciosa empreitada.
Por isso mesmo, por saber que ela precisava desse alivio físico mais do que qualquer
outra coisa, Solon enfatizou o movimento da língua em seu clitóris, em função do tempo,
mesmo assim, era impossível não envolver-se no ato e esquecer dos por menores a sua
volta. Lambeu, delicadamente por vários minutos, deixando-a cada vez mais tensa. Não
queria simplesmente fazê-la gozar, queria que fosse uma lenta escalada. Para que Alma
entendesse que às vezes na vida não é preciso força para abrir uma janela, que nem sempre
é preciso força bruta para conseguir o que se deseja.
Muitas vezes é necessário apenas um pouco de carinho, gentileza e sentimento.
Alma sentiu aquele fogo subindo por seu corpo, queimando sua intimidade, seu ventre,
algo que subia, bem de leve, queimando, aumentando, brasas acessas reavivadas pelos
carinho de Solo. Quando ele rodou o clitóris entre os dentes, muito de leve, Alma contraiu
os lábios pois não queria e não podia chamar atenção.
Seu peito arquejou e indicou a Solon que não havia porque esperar. Pois Alma
estava a um passo do auge, ou já estava desfrutando-o. Alma também não saberia
explicar, era um prazer diferente, calmo, algo totalmente novo, explosivo. Uma explosão
que nascia do nada, sem pretensões. Não precisou de um detonador. A explosão foi
construída aos pouquinhos em seu coração.
Para Solon também era novo toda essa dedicação. Desaforando-a, Solon subiu
beijos por sua barriga, mordiscou seu umbigo, sugou seu seio, apertando o outro entre os
dedos, sabia como ela apreciava esse tipo de carinho. Fixou-se em seus seios, pois ela se
rendia totalmente quando tocada no peito.
Alma não percebeu quando Solon usou a mão livre para abrir bem suas pernas e
encaixar-se ali. Foi um momento demorado, não queria ser bruto, muito menos que ela
gritasse, por isso cobriu sua boca com a sua, beijando-a para distraí-la. Alma permitiu o
beijo, não apenas aceitou.
Estava começando a perceber que existia grande diferença entre aceitar e permitir. Recebeu-o profundamente, com jubilo e
euforia, mas não demonstrou. Seus olhos
brilhavam inteiramente e ele sabia o que isso queria dizer. Suas pernas o enlaçaram pelas
costas. Agarrou seus ombros, em um abraço puxado, seus lábios corresponderam aos seus,
havia um frêmito inexplicável. Que estava entre eles. Um calor, uma faísca, que não seria
fácil explicar com palavras.
Solon se moveu vagarosamente, em uma constante, moendo o quadril contra o seu,
enquanto cheirava seu pescoço e beijava sua pele, enlevando os sentidos ao máximo
possível.
Cada recuo a deixava ansiosa, cada retorno fazia gemer sem som. Essa dança era
contagiante e mordaz, rasgando seu autocontrole, deixando-o em farrapos, esmigalhado
sob o toque do Guardião.
Alma não lutava mais, não era necessário. Ela subia rapidamente uma escada
inacabável, torcendo de todo coração para que houvessem degraus de volta, pois ela não
conseguia imaginar um modo de seguir, não sem ele. Suas mãos apertaram os músculos
das costas, e Alma percorreu-os com um toque possessivo, amassando os cabelos da nuca
entre dedos ansiosos enquanto acelerava o mover do quadril, desafiando-o a ir mais fundo
e rápido.
Solon a conteve, impondo seu ritmo e Alma fechou os olhos, arfando, cravando os
dedos na pele dos ombros, arranhando enquanto galgava os últimos centímetros daquele
espiral de prazer.
Não era nada sobre o prazer físico de Solon, e sim da fada em seus braços, mesmo
assim, ele procurou seus lábios para um beijo fundo, longo e molhado, enquanto os dois
alcançavam o ápice, pernas entrelaçadas, braços apertados em torno um do outro, os
corpos unidos e grudentos de suor.
Ele era pesado, e amassava seu corpo. Essa pressão era divina e quando o prazer
esmoreceu e Alma voltou a realidade, abriu os olhos para encontrar o olhar claro sobre sua
face, analisando suas reações.
Sem notar, Alma passou uma das mãos pela face suada do Guardião e então pelo
pescoço, um carinho de amante. Um cuidado de fêmea para com seu macho escolhido.
Solon sorriu, malicioso e preguiçoso, se movendo para libertar sua carne, enquanto alisava
seus cabelos longos, acariciando suas costas, entre as asas, correndo os dedos por sua
espinha, para puxar sua roupa para cima, protegendo sua nudez, caso adormecessem antes
de se vestirem.
O brilho de satisfação no seu olhar, confirmando que ele sabia que Alma estava
relaxada e incremente calma, a fez esconder um sorriso e olha-lo de modo acusador.
-Mercenário – ela disse, em retribuição ao seu carinho.
Não foi uma ofensa, pelo contrario. Era o seu jeito de dizer-lhe que entendia e
aceitava sua tentativa de amá-la. Alma baixou a guarda, e seria assim por aquela noite. E
se Solon insistisse e lidasse com seus traumas, poderia ser assim por muito tempo. Quem
sabe, uma vida toda a dois? Sim, ele aprendeu a ser um elfo esperançoso.
Sorrindo, ele observou-a se mover, deitando de costas para cima. Com as asas
esticadas por um segundo. Então, ela acalmou suas asas que repousaram em suas costas.
Solon gostava de ver as asas. Tinha um carinho todo especial pelo corpo daquela fada que
o encantava com sua personalidade e seu jeito.
Beijou entre as hastes das asas e ela se arrepiou, mas não lhe deu atenção. Estava
lânguida, sonolenta e pronta para ter uma noite de sono tranquilo. Solon relaxou contra o
colchão velho, um braço atrás da cabeça, enquanto fitava a escuridão quase total. Era possível haver esperança em meio ao
caos. Solon acreditava fervorosamente
nisso.
Ele esperava que Alma pudesse compartilhar desse pensamento junto dele.

Capítulo 21
Em busca da liberdade

Alma despertou na manhã seguinte com um suave toque em sua testa. Não poderia dizer se era um beijo ou um afago, pois foi
muito rápido e ela adormeceu outra vez. Poderia ter sido apenas um sonho.

Tornou há despertar uma hora mais tarde, quando os elfos e fadas a sua volta começaram a despertar também. Alma arrumou a
roupa antes de levantar, pois as cortinas estavam abertas e ela coberta por pouco lençol. Ninguém reparava, pois estavam
vivendo na precariedade, mas ela se importava que soubessem que havia se deitado com Solon. Eles saberiam que ela era
apenas uma fada que amava. E isso lhe soava estranho.

Alma arrumou a roupa de cama, e calçou os sapatos antes de sair a procura de Anastácia. Ela ajudava a trocar curativos dos
feridos e era impossível ignorar o clima tenso e preocupado que tomava conta do limitado espaço.
Famílias divididas por medo e ideais. Opressão e incerteza sobre o dia de amanhã. Algumas fadas choravam silenciosamente
enquanto cuidavam de seus familiares. Até mesmo as crianças, sempre inocentes ao perigo que as ronda, estavam menos
arteiras, e bem mais quietas.

As duas sobrinhas de Anastácia estavam sempre correndo atrás da irmã, ou seguindo os passos de Alma, carentes de atenção e
querendo a proteção das adultas.
Alma ficou observando aquela gente tão enganada na vida, e lembrou-se das palavras de Solon quando a raiva subiu a sua
cabeça diante da injustiça do que acontecia com eles.
Sentou-se em um canto, no chão e fez sinal para que as meninas se aproximassem.
-Vocês querem saber como é lá em cima?– perguntou com esforço.
Era-lhe custoso baixar a guarda e ser suave. Anastácia parou o que fazia, deixando a atadura de um elfo ferido na cabeça pela
metade enquanto a observava deixar a menina menor sentar em seu colo e brincar com seus longos cabelos castanhos,
enquanto a maiorzinha sentava pertinho, agarrando suas pernas, como toda criança faz com quem confia. Outras crianças se
aproximaram, e Alma pareceu prestes a sair correndo.
Fechou os olhos, e começou a falar:
-Eu vivi muito pouco em liberdade. Pouco depois de nascer fui deixada em um orfanato no Reino do Rei Isac– ela começou a
falar e como esperado, foi interrompida:
-Quem é Rei Isac?– uma das crianças perguntou.
-É um rei muito bom– preferiu omitir seu ressentimento e também o infortúnio do rei, para que eles confiassem em algo melhor
do que a vida que tinham– tem seus erros, é verdade. Mas mentem o Monte das Fadas em paz. Essa paz perdura a muitos
séculos, desde que o Rei Ulder e seus seguidores foram derrotados. Eu cresci em uma masmorra, no Ministério do Rei. Não
tínhamos autorização para sair. Então, minhas amigas e eu, fugíamos– ela sorriu dessa lembrança– o tempo todo. Fugíamos
sempre que podíamos. Acho que com o tempo as carcereiras facilitavam nossas fugas... Ou apenas desistiram de tentar nos
vigiar. Passávamos o dia correndo pelos prados, ou enfurnadas nos campos. Sempre dentro do castelo, não conseguiríamos
passar pela segurança do reino, e sair do castelo. Mas era o bastante para vermos o mundo e sentirmos o desejo de liberdade–
ela confidenciou.
-E como é o mundo?– uma outra criança perguntou, bebendo de suas palavras.
-O mundo é lindo. Injusto. Mas também é lindo - ela sentiu essas palavras dentro de si, pois era verdade. Quando mais se
fechava em seu rancor mais difícil era ver o quanto gostava do mundo, das pessoas e de viver.– Algum de vocês já viu de
onde vêm as sementes que comem?
Houve uma negativa coletiva.
-As sementes, folhas, frutos, legumes... Tudo vem das plantas, as plantas são verdes, algumas coloridas, grandes, outras
pequenas e delicadas. Aposto como nunca viram flores.
– outra vez uma negativa– são lindas, coloridas, perfumadas.– divagou– Eu já andei descalça na grama verde e orvalhada... É
um sonho.
-O que é grama?– a pergunta a fez sorrir e manear a cabeça, afastando as mãos da menina menor, que insistia em trançar seus
longos cabelos castanhos.
-A grama cobre o chão. É macia e viva. Quando a noite vai embora e o dia começa, orvalha o chão, e ele é úmido ao toque e
refrescante.– explicou– Eu amo andar descalça na grama...
Alma seguiu contando, falando sobre a chuva, sobre o sol, sobre o ar.
-O ar puro é delicioso. Não é como o ar que respiramos aqui. Mesmo antes do desmoronamento havia uma camada fina de
poeira. Um ar impregnado de impurezas. Não é a mesma coisa que viver lá em cima. O ar é puro, límpido. Cheiro de mato, de
flor. Cheiro de animais. Cheiro de vida. Aqui embaixo tem cheiro de... iria dizer ‘cheiro e morte’ mas se conteve, pois eram
crianças - cheiro de terra. Só de terra. De poeira de terra.
-Alma– Anastácia a chamou, encerando a conversa, pois era preciso ajuda para trocar as bandagens de um enfermo.
Alma permaneceu o restante do dia ajudando a cuidar de quem precisava de ajuda. O tempo correu. Todos comeram uma
comida mal feita, parecida com um mingau. Água suja, barrenta de acompanhamento. Ela sabia que era a escassez
aproximando-se. Solon tinha toda razão em querer despertar seu dom enquanto havia tempo. Foi preciso lutar varias vezes
durante o dia contra o sentimento de indignação.
No finzinho do dia, quando sentou para descansar, percebeu o quanto aquelas fadas estavam desgastadas. Sentadas em
posições muito parecidas com a sua, no chão, exaustas física e mentalmente, tristes e assustadas, uma era reflexo da outra. E
todas sentiam o mesmo desespero que ela própria.
Era provável que sua vida toda houvesse sido assim. Suas amigas Eleonora, Driana e Joan se sentiam assim, apavoradas com
a clausura tanto quanto ela, e as demais órfãs também compartilhavam desse desespero. Mas todas aprenderam a sufocar essa
dor e tentar viver o lado bonito da vida. Sorrir para não chorar, como vivia repetindo Eleonora, e agora, Alma se perguntava
se não havia bem mais em suas palavras do que otimismo. Talvez houvesse desespero de que isso fosse possível: sorrir em
meio à desgraça.
Sufocada pela emoção, pela vontade de chorar, Alma escondeu rosto nos braços, que estavam curvados em seus joelhos e
desejou se render ao sofrimento. Não foi possível, uma das fadinhas menores, veio brincar com suas asas.
Sim, suas asas eram um acontecimento novo e incrível, e as crianças adoravam tocar, acariciar e brincar de esconde-esconde
entre as asas. Alma fingiu não se importar. Tentar lidar com naturalidade, pensar que para a criança era uma válvula de
escape. Uma forma de ser feliz.
Ser feliz... Isso era mesmo possível?
Tentou levar as próximas horas com um sorriso menos triste na face, e esperou Solon retornar, do mesmo modo que as outras
fadas esperavam seus maridos ou familiares retornarem.
Exausta, Alma acabou adormecendo antes do retorno do Guardião.
E foi desse modo pelos próximos três dias. Solon retornava durante a madrugada, quando retornava, deitava ao seu lado e a
abraçava, sem tencionar acorda-la, pois estava exausto demais para conversar ou tentar qualquer carinho mais ousado. Na
terceira noite, ele sussurrou em seu ouvido:
-Estou com saudades suas– foi um sussurro cansado, antes de cair em um sono pesado, com direito a roncos altos.
Nessa noite, a terceira, Alma não conseguiu mais dormir. Estava acordada quando Solon levantou e deixou o lugar.
E foi nessa manhã que a água chegou até eles totalmente barrenta. E a comida havia chegado ao fim. As crianças foram
alimentadas e os feridos. Os demais ficaram com a fome e a consciência que a resistência chegara ao fim.
Era difícil nutrir esperança em seu coração quando a desesperança rondava cada elfo e fada a sua volta. Apesar dos pesares
tentou manter a conversa e acompanhar as tentativas de manter um clima menos tenso. Parecia que Anastácia notava sua
tentativa de ser diferente em relação a sua raiva e a ajudava nisso.
Alma encontrou Anastácia chorando baixinho, atrás de uma das cortinhas, foi ao acaso. Pensou em fingir que não viu, mas ela
olhou em sua direção e não pode afastar-se, apesar de seu coração gritar para fugir disso.
-Eu tenho saudade da minha irmã– Anastácia disse chorando – Sinto falta de Pía. Era minha melhor amiga.– confessou,
limpando as lágrimas da face– Faz três dias que não vejo Estevão. Ele pode estar morto, não é?– baixou os olhos– Só o tenho
na vida. As meninas são tão pequenas...
-Não é vergonha estar com medo por amar Estevão - Disse nua e crua, sem colocar panos frios na verdade.
-Eu não queria gostar dele. Estevão foi o único amor da vida da minha irmã. E era o grande amor de Pía.– Anastácia disse
sofrendo.
-Mentira– ela corrigiu – Sua irmã amava as filhas acima de tudo. Ela escolheu a chance de salvá-las dessa vida de podridão e
mentiras. Ela queria a liberdade, e não a vida ao lado de um elfo escolhido por Eldor. Não confunda complacência e aceitação
com amor. E Pía... Ela nem sabia o que era querer de verdade, seguia ordens. Não teve a chance de conhecer o direito de
escolha, inclusive de amar outras pessoas.
-E eu? Porque eu choro então?– perguntou nervosa.
-Porque apesar de tudo, você sente carinho por Estevão, talvez amor.– foi sucinta.
-Como você sente amor por Solon?– Anastácia precisava de uma resposta.
-Odeio admitir que existe essa possibilidade - Alma deu de ombros.
-Eu notei que você está diferente... sorrindo mais.– ela disse, mudando de assunto para tentar sofrer menos– Acha que
sairemos vivos daqui?
-Se eu conseguir controlar minha raiva e deixar meu dom aflorar... existe a chance. Mas eu não sei se consigo fazer isso –
havia um pedido de desculpas em suas palavras.
-Não é culpa sua. Vivíamos aqui há muito tempo antes de você chegar. E esse desastre aconteceria uma hora ou outra. Sua
presença só trás uma esperança onde antes não havia nada.– Anastácia levantou do chão e sacudiu a saia, respirando fundo –
Me ajuda a descobrir onde estão minhas sobrinhas?
-Elas não estão escondidas nas minhas asas? Jura? – tentou uma brincadeira, como faria com suas amigas e Anastácia riu.
Em meio ao desespero era bom sorrir.
-Não, acho que não. Mas se vamos sair daqui e escapar, é bom que elas se acostumem com asas, pois um dia possuíram asas
lindas– Anastácia disse cheia de esperanças.
Alma acenou e ajudou-a a procurar as meninas.
Quando anoiteceu todos ouviram uma gritaria insuportável nos corredores. O medo tomou conta de todos.
Eram gritos de uma fada. Histérica a fada berrava sobre ser o fim de todos eles. O tumulto demorou um minuto, e então, o
salão onde estavam acampados foi invadido por guardas de Eldor.
-O que está acontecendo? - uma fada gritou, sendo empurrada para fora do caminho dos guardas.
Eles procuravam com algo, e não havia onde se esconder e Alma sabia muito bem que a caçavam. Era sua vida, não é? Ser
caçada como um animal?
Foi agarrada pelos braços e cabelos e arrastada para fora.
-Não! Não!– ela gritou, mas era um aviso para que Anastácia não tentasse ajuda-la. A fada segurava um punhal. Mas não teria
chance contra os guardas– Solon! Solon!– ela berrou, mas não foi atendida.
Rezando secretamente para que ele estivesse longe e não pudesse ouvi-la, e não morto, e por isso não atendia seu pedido de
ajuda. Alma foi arrastada pelos corredores destruídos e quando alcançaram um corredor especialmente rico em adornos, ouro
e pedras preciosas, Alma soube que era aquele o esconderijo de Eldor. Seus aposentos pessoais.
Um aposento imenso, repleto de paredes cravejadas de rubis vermelhos. Joan ficaria encantada se visse essas pedras
preciosas. Ela adorava a cor vermelho. Imaginava como sua amiga ficaria impressionada.
Foi jogada no chão, como se fosse um animal. Aprisionada, Alma olhou em volta, e descobriu que havia uma porta em uma
das paredes. Mesas com cadeiras e louças adornadas com ouro. Móveis sofisticados como poucas vezes ela vira na vida. Nas
raras vezes em que viu a mobília real, ainda assim, não poderiam ser comparado a todo o luxo, pois Eldor gostava mesmo da
ostentação.
Alma levantou e andou em torno, aproximando-se da porta para descobrir que não havia trinco ou trancas, ao contrário da
porta principal por onde fora empurrada e lançada ao chão.
-Aproxime-se, Alma– ela ouviu a voz pastosa e assustou-se o bastante para esquecer-se da porta.
Virou, e encontrou Eldor vestindo uma longa túnica branca, com bordados em dourado e vermelho. Botas de couro nos pés.
Cabelos bem penteados. Expressão satisfeita.
-Não – ela negou e ficou parada no mesmo lugar.
Eldor andou até a mesa caprichosamente arrumada e pegou uma jarra, sem afastar os olhos astutos de sobre Alma. Derramou
água fresca e límpida em uma taça e ergueu em sua direção:
-Está com sede. Beba. Não há razão para que passe privações. Tudo que é meu lhe pertence.
-Mentiroso – ela disse seca, afastando os olhos da água. A sede deixava seus lábios secos e só de pensar em provar da água
fresca, sentia uma palpitação no coração.
-Por lhe oferecer o melhor da vida?– ele perguntou, bebendo a água, sem afastar os olhos dos seus.
-O que me oferece não é vida. Não é diferente do que eu tinha no reino de Isac. É uma prisão.– acusou.
-Depende do ponto de vista. Eu considero um novo modo de vida. Quando quero, vou à superfície. Minha companheira
desfrutará da mesma liberdade.– prometeu.
-Companheira? Não subestime minha inteligência. Não sou uma fada estúpida como as demais que você convive aqui em
baixo! Essas fadas foram treinadas para obedecê-lo e crer em suas enganações. Eu não sou assim. Eu vejo quem você é, e não
gosto do que meus olhos enxergam.– disse irônica.
-Será mesmo que não gosta?– ele aproximou-se, com a taça entre as mãos, o líquido incolor respingando o chão enquanto ele
balançava o conteúdo, atraindo seu olhar.– O que há de errado em oferecer água para uma fada sedenta?
-Olhe o luxo que você vive. E olho a situação do povo que você considera seu.– ela disse amarga– Isso é injustiça. Fadas que
perderam o direito a ter suas asas, sufocando sua natureza nessa vida de sofrimento. Você mente para essas pessoas, Eldor.
Você não presta.
-A mentira é bastante volátil. Não a vi contar a qualquer um do mundo subterrâneo que é uma fada fugitiva e assassina e seu
amante um Guardião surdo. Na verdade, notei que nenhum dos dois tem sido sinceros com aqueles que fingem proteger numa
anciã de encontrar a própria salvação. Acontece, Alma, que sua salvação está do meu lado.
-Olhe em volta – ela pediu cínica– quanto tempo você acha que levará para esses corredores cederem? Você irá perder tudo,
Eldor.
Sim, ela esbanjava satisfação ao dizer isso. Ele perderia seu mundo de mentiras. Eldor fechou a expressão e deixou a taça
cair, espalhando a tão querida água. Alma lamentou o desperdício, mas não ousou dizer nada. Sua vontade era ajoelhar-se no
chão e tentar lamber o que conseguisse da pequena poça de água. Mas seu orgulho não permitiu.
-É por isso que tem me rondado não é?– ela sorriu com algo de maléfico na face– Eu sabia que não era interesse. No começo
achei que fosse por causa do cio, mas essa impressão durou o tempo de ver seu olhar e reconhecer o mal que se esconde por
trás desse seu rosto aprumado – ela explicou, para que ele entendesse com quem lidava.–Você queria meu dom. Meu poder. E
eu tola... Achei que fosse para ter uma arma de destruição em massa. Uma fada com asas e dom mortal, em meio a tantas fadas
incapazes de oferecer isso. Quanta inocência.– ela andou pelo salão e chegou bem perto dele, passando direto, deixando-o
para trás, como quem diz que não sente medo.
Sentia medo, tanto que seus joelhos quase fraquejavam, mas não mostraria a ele. Audaz, serviu-se de uma taça com água
gelada e saborosa. De costas para Eldor conteve um gemido de puro deleite. Não passaria sede diante de tanto desperdício.
Uma coisa era aceitar algo vindo de suas mãos, outra era apropriar-se de um bem comum a todos que viviam no subterrâneo.
Sedenta, apreciou a água descendo pela garganta e quase se esqueceu de Eldor por alguns instantes. Ele sorria satisfeito, quem
sabe considerando uma fraqueza que cedesse e bebesse de sua água.
-Eu sei que você quer o meu dom real. Aquele que eu nunca considerei real. Que achei que fosse apenas conversa das
carcereiras. O dom de dar ordens e ser obedecida. Imagine como deve ser isso... Hipnotizar com o poder da voz? Eu estou
ansiosa para usar meu dom. Você não está ansioso para me ver usar esse dom?– satirizou.
-Você não acha patética a tentativa do Guardião em acalma-la?– ele mudou de assunto – eu sei de tudo que acontece em meu
território. Solon confia em Estevão. São amigos. Mas eu tenho infiltrados entre os rebeldes.– Eldor sorriu– bem vejo que não
está surpresa com isso.
-Eu deveria estar?– perguntou incomodada pelo fato de Solon ter falado de sua situação intima com terceiros.
-O Guardião está completamente errado. Acalma-la não vai trazer seu dom a tona. Assim como a perda do cio não libertou seu
poder– ele jogou em sua cara, com voz mordaz, língua afiada, venenosa– Esses artifícios conseguem apenas postergar ainda
mais o momento de libertação. Eu acredito, e se você for sincera me dará razão, que o único modo de libertar seu dom é
libertar a verdadeira Alma que está aprisionada dentro de você. Presa por falsos laços de amor. Onde estão suas amigas? Pelo
que sei uma delas, Driana, a deixou para trás em sua fuga. Poderia ter levado-a consigo, mas a deixou para trás. É isso que
você quer? Ser deixada para trás?
Alma baixou as pálpebras pensando no abandono ainda na tenra infância. Não, ela não queria ser abandonada outra vez. Nunca
mais!
-Acalma-la irá atrasar o momento de o seu dom vir a tona. Será como domesticar uma fera livre de amarras - ele a encantou
com sua fala, aproximando-se– Escute seu coração bater, Alma. Ele bate com sangue. Ele bate e queima com vida. Ter
passado esses dias como uma santa, falando de sol, chuva e grama verde não mudou quem você é. Não mudou o pulsar agitado
do seu corpo, pedindo por mais. Admita, não mudou em nada seu desejo de sentir o gosto da carne e provar do fel de ser
aquela que segura o chicote. Uma vez apenas, ser aquela que açoita, e não a açoitada– ele segurou seu pulso, e segurou seu
braços e subiu o toque por seu braço.
Era diferente de ter tocada por Solon.
Não era ruim. Era apenas diferente.
Olhos nos olhos, ele era um elfo bonito.
-Aqui dentro – ele tocou sobre seu colo, acima do seio, numa caricia que a confundiu – bate um desejo que o Guardião não
compreendeu. Um desejo que nasceu com você. Que nasceu comigo. Eu herdei esse pequeno paraíso, Alma. Eu herdei poder–
ele ergueu a mão e fechou o punho e Alma acompanhou esse movimento, olhos vidrados cada palavra fazendo um sentido
concreto em sua mente.– Eu sou herdeiro desse império subterrâneo, e mando e desmando na vida de cada fada e elfo. Sou
idolatrado. Essa é a vida que lhe ofereço. Você sente o desejo de ser mais que uma fada fugitiva. Seja minha parceira, e eu lhe
darei isso. O poder. O poder de decidir a existência alheia. O gosto de segurar o açoite. Você quer isso, Alma?
O toque em seu peito ficou mais insistente e ela afastou o tronco quando os dedos desceram para o seio. Não era desgosto pela
caricia, era incerteza se estava aceitando isso ou não.
-Você me oferece uma mentira. Eu não quero ser sua prisioneira, não serei prisioneira de mais ninguém.
-Eu lhe ofereço a liberdade total. Inclusive de quem você realmente é. Eu aprecio essa Alma cruel que se esconde por trás de
um rosto bonito e delicado– ele tocou seu queixo e Alma sentiu uma dor opressora no coração.
-É mentira. Você não me oferece nada. Sabia que esse lugar desmoronaria. Por isso começou a construir novos corredores.
Por que sabia que a estrutura estava comprometida e esse desastre aconteceria. Não serei livre em um reinado que não existe.
Não existem reis sem um povo. É tudo mentira. Você precisa do meu dom para hipnotizar esses elfos e fadas para que eles o
obedeçam lá em cima, quando for obrigado a libertá-los.
-Você não entende Alma, se você não fizer isso, eles não serão libertados -Eldor afastou qualquer toque, e tornou a exibir sua
face de crueldade velada.
A face do mal escondido por gestos comedidos e elegantes. Se a falsidade possuísse um nome, seria Eldor!
Ele deixaria o povo subterrâneo morrer em massa se ela não colaborasse?
-Você mesmo disse que eu não presto, Eldor. Porque me importaria com o que acontece com eles?– jogou de volta, sorrindo
satisfeita por deixa-lo sem reação por um instante.
-Porque você pode ser rainha ao meu lado. Ter o poder em suas mãos– ele insistiu.
-Está sendo patético. – ela afastou-se e tornou a aproximar-se da porta que encontrou no fundo do amplo salão, a porta que não
estava trancada.– Se eu puder hipnotizar quem eu quiser... Poderei ser rainha em qualquer lugar, inclusive, poderei voltar ao
Reino de Isac e me livrar da Rainha Santha e todas as acusações contra mim. Posso ser rainha se eu quiser, e não preciso de
você para isso.
Era a mais tenra das verdades.
-Mas seu dom não está ativo. Por enquanto você está em minhas mãos– ele jogou de volta.
-Eu não vejo desse modo. Você precisa de mim, eu não preciso de você. Como pode ver... Não é um impasse. Eu sou a
ganhadora. Não importa como você conte essa história, eu sou a ganhadora. Você pode ditar ter feito as regras do jogo, mas
não pode me obrigar a jogá-lo.– disse vitoriosa.
Seus olhos brilhavam de satisfação. Eldor estava encurralado. O sentimento de oprimi-lo era deliciosa. Alma gostaria de
guardar esse instante para sempre em sua mente. Poucas vezes em sua vida ela esteve com o poder nas mãos.
-O guardião não vai aceitar seus instintos verdadeiros, Alma -ele ponderou – Está se enganando se acha que ele vai aceitá-la
como é. O que vocês estão vivendo é fogo de palha. É empolgação momentânea. Ele quer converte-la e leva-la para a rainha
Santha. Ele tem boas intenções, mas é um tolo vivendo de idealizações sobre um mundo justo. Você nunca terá espaço na vida
de um Guardião.
-Eu não pretendo ficar com Solon – ela confessou – Tão pouco com você. Não fale como se fosse uma escolha entre um e
outro. Eu escolho a mim mesma e se a sua intenção é me manter presa aqui, saiba que estou a um passo de colocar tudo a
perder e acabar com você– ela bateu as asas de leve, numa sutil ameaça.
Se gritasse, Eldor não sobreviveria. Se batesse suas asas com força, ele estaria perdido.
Eldor pareceu encantado com sua ameaça.
-Eu gosto tanto de você, Alma– ele disse esbanjando veracidade– quando você me ameaça...eu sinto vontade de beija-la e
fazer-lhe amor por horas e horas. Você é meu par perfeito, fada. Feita para mim.
Era amor, pensou Alma. Eldor a amava por representar a parceira perfeita para alguém como ele.
-Porque você não liberta essas criaturas? Não vê... Libertá-los é uma crueldade sem tamanho. Eles não sobreviverão na
superfície. Solon é um idealista, como você disse. Mas eu não sou. Essas fadas e elfos não conseguiram viver na realidade,
depois de séculos de vida mentirosa. Algumas enlouqueceram outros não conseguirão sobreviver. Você poderia achar
divertido ver isso acontecer.– barganhou.– Me conte onde fica a saída secreta, Eldor.
-Não. Eu mostro somente se você provar que ficará comigo. Que deixará que eu ajude a trazer seu dom a tona. - ele barganhou
também.
-E como eu faria isso?– ela foi cínica sem notar.
-Eu tenho um presente para você. Eu quero que você desfrute desse presente antes de tomar qualquer decisão, minha querida–
ele tentou uma nova aproximação e Alma deixou.
Eldor era louco e mau e ela não queria perder tempo com alguém asqueroso como ele. Afinal, ele representava tudo que ela
mais detestava em si mesma. Olhar para Eldor era como ver em um espelho. Ver um espelho que lhe contava o futuro. Um
futuro onde ela seria assim, impiedosa e cruel. E estranhamente, essa perspectiva não a incomodava tanto assim.
Ao menos ela seria soberana aos demais e não seria ferida e humilhada nunca mais.
-Mostre-me a saída, Eldor. Eu parto sozinha. Você sabe que não me importo com essa gente e definitivamente não me importo
com o guardião. Ele é um emprazo para minha fuga. Deixe-me partir. Quem sabe um dia... Nos encontraremos nos caminhos da
vida e possamos...tornar a falar desse assunto?– sugeriu, traiçoeira.
-é uma pena que eu não possa acreditar em alguém tão bonito – ele sorriu e puxou-a gentilmente pela mão em direção a porta.–
Este é meu quarto. Meu leito. O único lugar onde sou verdadeiro. E você me verá em minha mais pura essência.
Por um segundo ela pensou que Eldor se referia a sexo. Talvez devesse experimentar algo diferente do que Solon lhe oferecia.
Como saber se o que sentia pelo Guardião era real, a menos que obtivesse um comparativo justo?
Brevemente confusa sobre afasta-lo ou não, observou-o abrir a porta e tentou focar sua atenção no que a aguardava.
Era um quarto ricamente decorado e isso não era surpresa. Uma cama enorme, de dorsal e cortinas bordadas com ouro e
pedrarias recobria a cama. Parecia tão confortável que Alma quase esqueceu sua decisão de não ceder a ele, tentada por uma
noite de sono em lençóis macios e colchão de penas...
Tapetes macios, paredes incrustados em rubis. A temperatura no quarto era fria, tão diferente do calor insuportável que
tomava conta dos corredores depois do desmoronamento. Era por causa do material que revestia as paredes. Seria delicioso
ter uma noite de sono em um lugar de sonhos como aquele...
-Veja, esse sou eu. Lhe apresento o verdadeiro elfo por de trás do líder do povo subterrâneo. - Eldor apontou um gigantesco
espelho numa parede lateral e Alma se enxergou ao lado de Eldor.
Faziam um belo casal. Quase da mesma altura, com corpos jovens e bonitos. Suas asas eram lindas, pensou Alma orgulhosa de
si mesma. Bateu as asas de leve, ignorando Eldor e se admirando. Foi quando ouviu um choramingo de lamento.
Curiosa, ela andou em torno da cama, a procura do animal ferido.
Deveria saber que não era um animal.
Alma ficou de pé e foi recebida pelo olhar acuado de uma fada. Pouco mais de vinte anos, ela estava acorrentada pelo
pescoço. A corrente era curta e estendia-se por menos de um metro, por isso ela estava deitada no chão puro. Suas roupas
estavam rasgadas e encardidas.
Muito sangue seco e secreções sujas em suas pernas e coxas, provavelmente de constantes relações sexuais. Cabelos imundos,
ela fedia muito. A fada ergueu os olhos em sua direção, tão cansada de lutar, que mal respirava. Alma perguntou em voz
cansada:
-É a filha desaparecida de Estevão?
-Sim. Ela é linda, não é? - Eldor ficou de cócoras e acariciou a cabeça da fada que apenas se encolheu como um animal
exausto de lutar. Seus olhos refletiam um horror tão grande que Alma sentiu o coração sangrar de pena. – Eu preferia a mãe.
Mas ela quis fugir e levar as meninas. Eu fui atrás e precisei me livrar dela. Mas essa precocidade não poderia ser
desperdiçada.
O modo carinhoso como ele acariciou a face da fada era nauseante.
-Ela estava no cio?– perguntou imóvel, sem mover um único músculo.
-Sim. O cio mais delicioso que já provei – ele ergueu-se e olhou para ela com candura.
Alma reconheceu na fada aprisionada como um animal, traços físicos semelhantes aos seus. Eram fisicamente parecidas.
-Você a pegou porque eu lhe disse não?– perguntou séria.
-Uma substituta temporária– ele disse sorrindo– você é minha favorita, Alma. Por isso guardei essa pequena para você.
-Guardou-a para mim?– perguntou correndo os olhos pela corrente.
Eldor andou em torno, pelo quarto, buscando por algo. Quando retornou exibia um punhal em suas mãos. Possuía um cabo de
marfim, com uma lâmina longa e afiada. Ele ofereceu a arma e esperou que Alma a pegasse.
Ele não oferecia armamento para um inimigo e sim para um aliado. Essa certeza gritou em sua mente.
Alma aproximou-se da menina e olhou suas asas. A esposa de Estevão havia arriscado a própria vida pela esperança de ver a
filha obter suas asas. E conseguiu, pensou. As asas eram amarelas, belas e vistosas. Uma pena que Eldor houvesse cortado-as
pela haste, quase no limite entre o recuperável. Seriam muitos meses de cuidado e quem sabe um dia ela pudesse voltar a
voar. Quem sabe conseguisse reverter os danos...Era provável que não, mas não custava ter esperanças, não é?
Alma pensou nisso. Esperanças? Parecia conversa de Solon. Talvez ele estivesse impregnado em sua mente com suas
conversas fiadas sobre esperança, justiça e amor.
-Faça– Eldor incentivou– Você quer isso, então faça, Alma. – ele segurou sua mão, e a fez erguer o punhal– Um corte longo no
pescoço e ela estará em suas mãos.
-Eu prefiro que você saia– ela disse azeda.
Sentia tanto nojo, que o vomito estava na ponta da língua.
A jovem sequer lutava. Havia perdido a vontade e a capacidade de lutar. Entregue, seria um alivio aquela tortura chegar ao
fim.
-Não. Eu quero ver. Será um momento nosso, Alma. Um momento que elfo algum poderá lhe proporcionar. Somente eu a
entendo. Somente comigo você obterá o que mais deseja, Alma. Faça. Sinta o prazer de dominar. Pela primeira vez em sua
vida, fada escolhida, seja a soberana.
Ela queria fazer. Não iria mentir sobre sua real vontade. Mas até onde era verdade? Tudo parecia tão irreal. Nos braços de
Solon, ela acreditava em um mundo justo, e por mais difícil que fosse acreditar, esperava que esse mundo existisse um dia.
Mas quando ouvia Eldor, ela sentia vontade de ceder e acabar logo com toda a sua fragilidade diante do mundo a sua volta.
Extrapolar os limites e ser inabalável.
-Faça– ele falou em seu ouvido por trás, tentando-a como uma serpente faria.
A jovem se moveu, e parecia em transe, olhos nos olhos de Alma, como quem pede para que a sua desgraça chegasse ao fim.
O inocente que implora pela redenção, mesmo que sua salvação fosse também a perda da vida. Como alguém lida com isso?
Diante da sua demora, Eldor cansou e tomou o punhal da sua mão.
Alma ficou olhando enquanto ele segurava a fada pelos cabelos e a erguia. O punhal correu pela garganta da fêmea indefesa e
Alma viu o sangue verter. Chegou a dar um paço para trás quando notou que a fada se debatia. Não era uma feria fatal. Ainda
não era fatal. Era para acordar os instintos de Alma. Despertar algo dentro dela.
E Eldor obteve êxito. Em completo alheamento, Alma avançou e puxou a fada de suas mãos. A jovem caiu no chão, gritando e
chorando desesperada, enquanto tentava se proteger. Eldor acertou um tapa em Alma, para que ela aprendesse a não ataca-lo.
A fúria surgiu de suas entranhas e Alma o empurrou de volta. Era alta, e grandalhona e usaria sua força contra ele. A força
induzida por um ódio que vinha desde sua tenra infância. Ódio da opressão. Os dois caíram sobre a cama, e Alma tentou tirar
o punhal das mãos de Eldor. Ele não deixou e segurou sua garganta, sufocando-a com ambas as mãos, enquanto o punhal era
esquecido ao lado, no colchão.
Sem ar, ela arregalou os olhos, enxergando a imagem de suas amigas, vivas em sua mente e subconsciente. A imagem de Solon
e seus carinhos gentis, lhe dizendo que acreditava em sua índole. O conforto que sentira ao contar sobre o mundo para as
fadinhas sobrinhas de Anastácia... Imagens de uma vida que não lhe pertencia mais.
Tentou se soltar, mas não conseguiu. Suas asas estavam espremidas no colchão pelo peso do elfo, e não poderia batê-las e
causar dor aos tímpanos do elfos. Sua garganta apertada, impedindo gritos e impedindo-a de respirar.
Alma não conseguia distinguir o que acontecia, mas teve a impressão de ver um relance de movimento quando a fada tentou
levantar e cambaleando tentou ajuda-la, sendo empurrada para o chão outra vez.
Alma estava imóvel, abatida, por isso Eldor a deixou e avançou sobre a fada indefesa, cravando os dentes em sua pele tenra,
como uma fera que não aceita apenas ferir e matar, uma fera que precisa de mais, de novas experiências.
Os gritos da fada a despertaram do transe e da paralisia que seu emocional a impunha. Conseguia respirar. Estava viva e
conseguia respirar. Tossindo, Alma girou na cama, e escorregou no chão quando tentou levantar, suas mãos tremendo ao levar
com elas o punhal.
Via tudo vermelho. Desfocado. Em brumas. Seus ouvidos palpitavam, ela não escutava nada além do som de gemidos e
grunhidos animalescos vindos da dor que a fadinha sentia e dos sons de satisfação de Eldor em provar um novo sabor, em seu
próprio transe induzido pela maldade que cultivava dentro de si.
Trocando as pernas, decadente e tremula, Alma avançou sem pensar no que fazia. O punhal penetrou a carne com um baque
seco. Ela nem sabia que tinha tanta força até sentir a lâmina cravada nas costas de Eldor.
Tudo turvo, vermelho e confuso, ela retirou o punhal e enfiou-o outra vez. Repetiu o gesto até que conseguiu para-lo
definitivamente. Mas não conseguiu parar a si mesma. Em um frenesi de desespero induzido pelo horror, Alma enfiou a lâmina
quantas vezes conseguiu antes de ser brutalmente parada.
Debateu-se e empurrou, esperneando para não ser impedida. Mãos a seguravam, e eram muitas mãos. Precisava muitos elfos
para segurá-la.
Uma mão tapou seus lábios quando ela começou a gritar desesperada. Mordeu os dedos e arrancou dor do seu opressor. Eldor,
pensou, ele estava de volta! Lutou o quanto pode, até ser amordaçada com couro.
Amarrada e abatida, Alma correu os olhos em torno, tentando ver e registrar o que acontecia, sem êxito. Não conseguia.
Estava frenética, estava desesperada, estava louca.
Ouviu a distancia uma voz gritar seu nome e abrir caminho. Ela conhecia aquelas mãos, e aquela face, e a mordaça foi
arrancada de sua face, por isso gritou e berrou, sem saber que suas palavras eram de pedido de ajuda.
Ela precisava de ajuda. Ser salva. Ela não queria que tudo acabasse assim.

Capítulo 22
Parceiros de corrida

Alma reparou primeiramente no silencio. Aos poucos ouviu sussurros. Voz de fêmea. Vozes de fêmeas. Ela estava cercada de
fêmeas. Uma delas estava perto, checando se estava dormindo ou não. Alma entreabriu os olhos, e a fada afastou-se. Talvez
com medo. Talvez em busca de alguém que queria vê-la quando acordasse.

Quando conseguiu olhar em volta, e fixar os olhos, descobriu que não estava no salão onde os feridos estavam relegados e
exilados, pois faziam parte do grupo rebelde. Estava no salão principal.

Água fresca foi colocada ao seu alcance. Era Anastácia. Suada, nervosa, mãos tremendo, ela lhe oferecia uma caneca com
água limpa e cálida.
-Existe um reservatório secreto na alcova de Eldor. Água limpa. Deve durar uma semana.– ela explicou com voz sussurrada. –
Há comida. Pouca, mas o bastante para as crianças sobreviverem por muitos dias.
-Sua sobrinha...?– tentou sussurrar, mas não conseguiu.
Sua garganta doía. A agressão sofrida, a fez sentir dor.
-Está viva– Anastácia se apressou a dizer– Eu nem acredito, ela está viva. Ferida, magoada e doente, mas está viva.–
Anastácia parou de falar e olhou para longe, segurando a caneca e afastando-se. Todo o corpo de Anastácia tremia, mas ela
precisava ajudar e amparar, por isso ignorava seu próprio emocional.
Alma sabia que apenas uma pessoa poderia ter interesse em vê-la. E era também a única pessoa que Alma não desejava ver
naquele momento. Deitada, perguntou-se porque estava ali, se não estava doente. Não estava ferida. Era assassina, não vitima.
-Como está se sentindo? – a pergunta soou banal demais.
Cravou os olhos sobre o Guardião. Ou melhor, sobre o que restara do Guardião depois de tantos dias de provação e ausência
de vida. Solon estava abatido, exausto, pálido e perdendo peso rapidamente, aliás, o que acontecia com todos os outros,
inclusive Alma.
-Eu matei Eldor.– ela disse com voz fraca.
Sua única chaga eram marcas vermelhas de mãos que tentaram estrangular seu pescoço. Dor por cauda dessa tentativa falha.
Era muito pouco para ser tratada como vitima.
-Sim, e agora todos sabem que Eldor é um monstro. Ele manteve a filha de Estevão prisioneira. Cometeu crimes de cárcere,
estupro, tentativa de assassinato. As ilusões chegaram ao fim.– Solon sentou na beira da cama e pousou uma das mãos na coxa
de Alma acariciando a carne com parcimônia.– Sabe o que acontece quando um povo perde todas as suas ilusões?
-Não. Mas eu sei o que acontece quando uma criatura nunca teve ilusões em sua vida – respondeu pensando em si mesma–
Porque está me tocando? Eu matei Eldor.
-É de conhecimento de todos que foi preciso matá-lo. Ninguém questiona seu feito, fada. Foi necessário lutar por sua vida e
pela sobrevivência de uma fada aprisionada, e é da essência de uma criatura salvar outra de sua espécie. Não lhe foi dada
escolha. Matar ou morrer. Quem poderá condená-la?
-Mentira. Eldor me ofereceu uma escolha. Eu poderia ter ido embora. Eu poderia ter aceitado ficar ao lado dele. Eu tive
muitas escolhas. Mesmo assim, eu o matei. Não finja que não sabe que eu gostei de fazer isso.– esfregou essa verdade em sua
cara.
Solon pareceu agredido por suas palavras. Problema dele se não era capaz de aceitála como era. Talvez fosse a vez de o
Guardião perder suas ilusões sobre ela.
O que Alma não sabia, era que estava vendo tudo deturpado. Sua mente confusa por anos de sofrimento a confundia sobre
quem era quem naquela história.
-A filha de Estevão contou que você poderia ter feito mal a ela. Que Eldor a ofereceu em sacrifício. Porque não a tocou?–
Solon perguntou.
-Eu não tenho nada contra ela.– Alma disse com desanimo.
-Você queria me matar, Alma– Solon a lembrou disso, de quando planejou se livrar dele ainda na Vila dos Desesperados, na
cabana da velha duende– porque eu a perseguia. Eu representava o perigo. Você atacou Eldor pela mesma razão. Não é uma
assassina fria e cruel, é uma vitima oprimida e assustada. Não assuma um lugar no mundo que não lhe pertence.
-Eldor disse que você é um idealista. Ele estava coberto de razão. – Alma acusou, ignorando o sentido de suas palavras–
Eldor sabia onde ficava uma passagem secreta. Agora... Essa chance de fuga acabou. Eu deveria ter pensado antes de reagir.
Eu deveria ter manipulado-o. Como sou tola.– disse inconformada.
-Não veja as coisas desse modo. Nossas chances aumentaram. Não existe dois lados, somos um lado só. Os que protegiam e
seguiam Eldor acordaram de suas mentiras e estão do nosso lado. Iremos procurar e encontrar essa saída. Existe água e
alimento para mais uma semana. Ganhamos tempo. Isso é importante, não é? Tempo para achar uma escapatória?
-Se você diz– ela virou de lado na cama, e fitou a parede de pedra, ignorando a presença dele.
-Nenhum elfo ou fada está condenando-a pelo que fez– Solon curvou-se e falou baixinho em seu ouvido– A maioria é grata
pela sua coragem. Não aceito que se culpe pelo que aconteceu. Foi forçada a isso. Eldor não lhe deu outra alternativa, não
importa as besteiras que ele tentou colocar na sua cabeça.
-Não – ela olhou para Solon por sobre o ombro, as faces muito próximas. E por isso Solon não pode ignorar o que seus olhos
diziam– Até quando vai fingir que eu não gostei de ter feito isso?
Solon não respondeu nada.
Não queria brigar, e deixa-la nervosa. Estava tão orgulhoso da evolução de Alma naqueles últimos dias, sempre atenta e
disponível para uma conversa amigável, se esforçando para ouvir e entender, antes de deduzir e julgar. Querendo ajudar e ser
aceita. Tudo isso para que? Para Eldor acabar com seu pequeno avanço e confundir sua mente tão perturbada pela vida que lhe
impuseram no Ministério do Rei?
-Você não gostou de ter feito isso, Alma. É a única certeza que eu tenho sobre você. Acredite em mim, se não pode acreditar
em si mesma.
Alma lutou contra o impulso de gritar com o Guardião. Ele iria insistir em não ver a realidade? Em não enxerga-la como
realmente era?
Recusou-se a falar com ele, e Solon foi embora. Na ausência de um líder, muitos guardas vinham solicitando sua opinião
sobre o que fazer. Era um povo carente de diretrizes e ele iria tomar a frente até quando fosse necessário.
Alma ouviu a voz de Anastácia e não pode ignorar a conversa entre a fada e o Guardião. E pelo visto, Solon não se importava
que ela ouvisse.
-Não seria melhor levarmos Alma para os aposentos que pertenciam a Eldor? É mais confortável. Lá tem um pouco de luxo
para conforta-la nesse momento.– Anastácia ofereceu, solicita.
-Não – Solon disse olhando para Alma, deitada naquela cama precária e improvisada no chão – Não quero que ela desfrute do
que não lhe pertence. É melhor que conviva com o que é real, e não com fantasias de um mundo de luxo e falsidade. Alma é
igual a qualquer outro de nós. Estevão levará os feridos gravemente para os aposentos de Eldor. É mais confortável para eles
ficarem lá enquanto nos ajeitamos aqui.
Anastácia não compreendeu exatamente o que ele queria dizer, mas Alma entendeu o porquê da negativa de Solon em lhe
proporcionar conforto e era o que importava.
Ele sabia sim quem era a fada Alma e seus impulsos. Suas necessidades interiores, suas inclinações pouco ortodoxas.
Conhecia e entendia, por isso lutava para lhe dar um voto de confiança e desejava estar ao seu lado, para que o mundo e suas
maldades não despertassem cada um desses impulsos feios.
Horrorizada consigo mesma, e confusa com tudo que sentia, Alma fechou os olhos com força, ignorando os sons e vozes em
volta. Queria ficar sozinha e reclusa. Nunca mais precisar ter contato com outras criaturas. Ser esquecida.
Emocionalmente abalada, Alma adormeceu. Quando acordou, era quase noite, e ela abriu os olhos para descobrir que as
sobrinhas mais novas de Anastácia brincavam perto dela. Anastácia deveria estar insana por achar seguro deixar as crianças
perto de uma assassina.
Eleonora ficaria decepcionada por ter cedido aos seus impulsos de morte, lembrou num resquício de sofrimento pelo que fez.
Driana nunca a perdoaria por ter cedido aos seus impulsos, depois de ter lhe implorado para se controlar e empenhado sua
palavra nisso e Joan... Pobre Joan ficaria assustada. Joan... Tão doce frágil quanto uma flor. Ela sentiria tanto medo... Mesmo
assim ficaria aio seu lado apoiando-a e isso era ainda pior que a rejeição.
Com medo da reação de suas amigas quando descobrissem o monstro que era, Alma sentiu os olhos cheios de lágrimas.
Chorar era sinal de fraqueza. Angustiada, limpou as faces e sentou não colchão, abraçando os joelhos enquanto observava o
movimento no pavilhão.
Um sentimento ruim a motivava a alimentar rancor contra aquelas criaturas desprotegidas. Se não fosse por cauda da
existência dessa gente, Alma não teria sido aprisionada por Eldor e não estaria ali perdendo seu tempo e seu juízo. Era tudo
culpa deles!
Seus olhos acompanharam a imagem de Agra, que andava entre os elfos e fadas, conversando e fornecendo ordens necessárias
para a manutenção do lugar, dentro daquela situação tão difícil.
Com os olhos fixos na madrasta de Eldor, Alma notou algo. Agra lhe contou sobre Eldor e ajudou-os a obter as armas do
Guardião de volta. Era uma aliada, mas não lhes contara o mais importante: que Eldor escondia água a alimento.
De longe, Agra notou seu interesse e lhe sorriu. Vendo-a com os olhos da maldade, Alma notou que estava completamente
enganada sobre Agra. A matriarca do povo subterrâneo era pior que Eldor. O elfo era tomado de uma monstruosidade
visceral, que provavelmente nascera com ele. Agra não... Ela era uma cobra criada pela vida.
Agora, Alma via tudo com clareza. Agra usava do enteado ensandecido para livrarse de um marido repressor e ter quem
levasse a culpa por manter esse povo escravizado. Era Agra quem aliciava e incitava Eldor. Que criava um cenário
apropriado para as maluquices de Eldor!
Tão claro quanto à luz do sol em um dia de verão, era a certeza que Agra conhecia a passagem secreta. Mas ela nunca
contaria. Ninguém chega tão longe em uma obsessão para ceder diante de alguma pressão.
Alma impulsionou o corpo para fora do colchão e levantou.
-Não – ela disse firme, quando as crianças tentaram segui-la – Fiquem aqui, não quero fedelhos atrás de mim.
Seu tom era de briga, mas as meninas não sentiam essa repressão. Alma não era capaz de compreender que se uma criança
inocente não sente sua maldade, é porque algo de bom supera seus anseios mais obscuros.
-Onde ele está?– Alma perguntou para uma fada que estava no caminho. Deduzindo que se referia ao elfo Solon, a jovem
apontou para a saída do pavilhão.
Com passos cansados e sentindo peso do mundo nos ombros, ela procurou por Solon. Encontrou-o junto aos guardas. Ele a viu
pelo canto dos olhos e afastou-se dos demais, pois não queria saber de Alma espalhando aos quatro ventos que se achava uma
assassina cruel. Bastava sua cabecinha acreditando nessa besteira. Não precisava que mais fadas e elfos comprassem essa
ideia.
-Agra não é de confiança. Eu percebi isso agora. Ela é cúmplice de todas as armações de Eldor.– contou a ele, a seco, sem
preâmbulos.
-Eu suspeitava disso – Solon confirmou– Uma fada se descontrolou mais cedo, e isso causou uma briga entre os guardas de
Eldor e os meus guardas. Foi por causa dessa distração que não vigiamos nossos protegidos e você pode ser pega tão
facilmente.– explicou suas desconfianças– faz sentido, Agra tem poder de liderança sobre essa gente.– disse desacorçoado.
-Eldor sabia sobre sua tentativa de me acalmar.– ela contou, corando um pouco – ele achava patético e desnecessário.
-É claro que sim. – Solon disse irritado – Eu não quero incomoda-la com lembranças tristes, Alma– Solon mudou sua postura,
e ficou bem pertinho, barrando os olhares que incidiam sobre a fada, para ter sua atenção toda para si– não quero vê-la sofrer.
Mas eu preciso saber... Eldor a agrediu?
-Fala de copula?– foi direta, pois ele fazia rodeios demais para perguntar o que desejava saber.
-Sim, é disso que eu falo. Ele a forçou?– havia uma veia saltada no pescoço do elfo, que indicava uma fúria contida, que não
desejava transparecer.
-Não. Ele não me tocou a força– notando que a tensão se mantinha presente, acrescentou– ou por querer. Não houve sexo.
-Eu não achei que houvesse. Você não gosta dele, e não se entregaria.– ele disse aliviado.
-Mesmo assim você tinha duvidas. Não confia em mim tanto quanto gostaria de acreditar.– ela disse cruzando os braços em
frente ao peito, magoada, mas sem saber o que era esse sentimento. Sem identificar dentro de si a causa dessa tensão.
-Alma, precisa voltar lá para dentro e descansar. Eu quero uma acareação entre você e a filha de Estevão. A situação aqui em
baixo é precária, mesmo assim, manteremos a ordem, e resolveremos a situação da morte de Eldor como seria feito em dias de
normalidade. Se isso não for feito a desordem e o caos se instalará entre essa gente.
-Você teme um descontrole em massa– ela deduziu.
Solon segurou seu braço e a levou para longe dos guardas.
-O líder dessa gente manteve uma fada prisioneira. Mentiu sobre segurança e prosperidade, sabendo que estavam a dias de
uma catástrofe. Eles perderam o chão e o sentido da existência. E estão prestes a perderem a vida. Um pouco de esperança é
necessário para mantê-los unidos. Explicar o acontecido, sem grandes detalhes, para que eles entendam que a segurança voltou
a reinar. Que mesmo sem um líder eleito, eles podem se considerar seguros.
-Então, contar sobre Agra está fora de questão – ela disse com recalque.
-Exatamente. Ouça Alma, você ainda pode despertar seu dom e fazer Agra falar. Mudou o opressor, mas seu dom continua
sendo necessário e vital. Seremos discretos sobre os últimos acontecimentos.
-Está pedindo para que eu minta?– estranhou, fitando Solon com acusação.
-Estou pedindo que não conte sobre sua ligação com Eldor. A filha de Estevão concordou em não contar sobre a estranha
conversa que ela presenciou. Ela falará sobre como Eldor a agrediu e tentou mata-las, sobre como ambas se defenderam do
modo que foi possível. Faça o mesmo. Não é preciso assustar esse povo com conjecturas que estão vivas apenas em sua
mente, Alma.
Confusa, ela soltou o braço e afastou-se um passo:
-Você acha que sou louca?– perguntou incapaz de conter a pergunta.
-Às vezes eu desconfio disso – ele sorriu, tentando fazer graça e acalma-la. Alma não compartilhou desse desejo e continuou
esperando uma resposta verdadeira– Você não é louca. Muito menos uma psicopata. Ou uma assassina fria e cruel. Enquanto
estiver confusa e não puder acreditar em si mesma, confie e acredite em mim.– tocou seus braços, que mantinha cruzados
contra o peito, em uma posição de defesa.
Foi uma caricia de conforto. De apoio. Isso a irritava profundamente. Afastou-se desse contato e disse séria:
-Eu farei o que me pede.– seu tom era jocoso.
-Alma, eu quero ter a oportunidade de conversar com você sobre tudo isso. Não se feche para mim, está bem? Afaste-se dos
outros, mas não de mim. Temos um acordo?
Ela negou com a cabeça.
-Uma chance para conversamos. Eu não posso fazer isso aqui, Alma. Eles precisam de uma liderança.– implorou.
-E o que você pretende me dizer que eu já não saiba?– perguntou, atacando para se defender.– Nada que disser mudara a
verdade. Eu não presto. Eu sempre soube. Agora, não posso mais ignorar. Eu quero ficar sozinha. Faço o que me pediu, minto
para essa gente, mas não me peça para ficar ouvindo sua conversa fiada sobre bons sentimentos.
Solon não a deixaria ir com a cabeça cheia desses pensamentos ruins. Mas os guardas o chamaram, e entre aliviar seu
emocional, ou garantir sua sobrevivência, Solon preferiu garantir que a fada estivesse fisicamente bem para lidar com seus
problemas emocionais.
-Volte para a cama.– ele mandou.
Não era um pedido, era uma ordem. Ele precisa ser líder.
-Contou a eles que é surdo?– perguntou antes que Solon se fosse– Deveria contar.
-O medo é estranho, Alma. Eu não quero que o medo vença essa briga antes que todas as oportunidades tenham se desgastado
– Solon avisou.
Alma deu de ombros, e foi embora. Deixou Solon sozinho, para cuidar dos afazeres de um lugar que estava em ruínas.
Caminhando em meio ao caos e destruição, Alma sentia o coração apertado. Marchou por entre os elfos e fadas, e quando
avistou as meninas brincando em seu colchão, ficou de pé encarando-as.
-Eu juro que vou tirá-las daqui pelas orelhas se não me deixarem em paz!– gritou com as meninas.
A menor teve a audácia de rir antes de correr para brincar em outro canto. A maiorzinha ainda pulou algumas vezes antes de ir
brincar em outro lugar.
Pelo visto ninguém a respeitava. Era passado o tempo em que assustava as meninas mais jovens no Ministério do Rei. Havia
perdido toda a autoridade. Culpa de Solon, sempre ao seu lado, sorrindo e esbravejando aos quatro ventos como o mundo é
bonito e a vida cheia de esperanças. Ter um elfo bondoso ao seu lado desmentia sua ferocidade. As criaturas acreditavam que
fraquejava.
Pensar mal de Solon não lhe fez bem, como fazia antigamente. Pelo contrario. Alma deitou de lado, depois de puxar a cortina e
esconder-se no diminuto espaço. Deitou de lado e fingiu não notar que as lágrimas corriam em seu rosto.
Chorar por causa de um monstro como Eldor era patético. Fizera um favor ao mundo livrando-o da presença espúria de Eldor.
Então porque sentia aquele peso no coração? Seria pena de Eldor? Ou falta da sua presença? Assustada, Alma virou e olhou
para o teto, olhos arregalados de pânico ao pensar que poderia estar com o coração aos pedaços por estar secretamente
apaixonada por Eldor.
Não, pensou. Isso não era possível. Ela gostou de mata-lo. Era essa a única razão para sua magoa. Sentiu prazer em acabar
com a existência daquele miserável! Eldor estava coberto de razão ao dizer que ela cultivava dentro de si um monstro ávido
por crueldade.
Quem seria o próximo? As lágrimas vieram com maior intensidade quando se lembrou de anos atrás, quando flagrara uma
conversa entre suas três amigas. Driana dizia para Eleonora e Joan que temia que Alma cometesse um desatino. Que cometer
um ato cruel uma única vez, poderia despertar permanentemente o desejo de matar e que não seria possível conte-la. Que elas
precisavam se unir para não permitir que isso acontecesse. Ficar ao seu lado para impedir que ela derrapasse a primeira vez.
Será que Driana estava certa? Na ocasião Joan havia defendido-a fervorosamente, acreditando em sua boa índole, mas
Eleonora parecera tão incerta, em duvida sobre o que poderia acontecer caso Alma cedesse aos seus impulsos, que a
magoava.
Chorando baixinho, Alma afundou a face no travesseiro, e se permitiu um momento de tristeza. Nunca chorava no Ministério
do Rei. Era algo pessoal, algo somente seu. Guardar o choro, para que suas amigas soubessem que ela era insensível às dores
infligidas ao abandono e humilhações da vida de confinamento.
Naquele momento, ela queria chorar e não se importava com o mundo a sua volta. Não soube por quanto tempo chorou, ou se
adormeceu, pois as imagens passavam por seus olhos sem parar. O momento em que suas mãos agarraram o punhal, e o
zumbido em seus ouvidos, as marteladas pesadas de seu coração batendo em seu peito como um louco, enquanto ela perfurava
a pele de Eldor, acabando com seu ataque animalesco.
Angustiada, Alma não viu o tempo passar.
Assustada, saltou na cama, quando Anastácia a despertou de suas divagações, tocando seu ombro. Ela estava séria e não disse
nada apenas apontou para fora, como quem diz que é para segui-la.
Limpando as faces, sabendo que não poderia esconder o inchaço e vermelhidão dos olhos, Alma levantou, mas não calçou os
sapatos. Faltou-lhe animo para isso.
Era madrugada e com exceção dos feridos e crianças, o restante de elfos e fadas estavam acordados reunidos em torno de
lampiões acessos e um pequeno grupo de guardas.
Estevão, Solon e Agra eram os principais. Algo como líderes improvisados. Alma sabia muito bem, que se não conseguisse
arrancar a verdade de Agra, ela encontraria um modo de tomar o poder e manter aquelas criaturas sob seu poder por mais
algumas décadas de privação, até encontrar um novo sucessor.
É uma pena ver que o mal se renova com tanta facilidade enquanto o bem demora tanto para se propagar.
Suspirando pesarosa sentou no chão, no canto indicado por Anastácia.
A jovem Elba, filha de Estevão, agora com curativos nas asas, e no pescoço, banhada e vestida em roupas limpas, estava ao
lado de seu pai, a cabeça apoiada em seu ombro, precisando de sua proteção.
Alma queria isso. Uma proteção de pai. Angustiada, olhou para Solon. Baixou os olhos, pois não era nele que deveria buscar
proteção. Isso não existia para criaturas como ela, criaturas desassossegadas.
-Elba nos contou da insensatez de Eldor.– foi Estevão quem tomou a palavra.– Eu lhe peço Alma que nos conte sua versão.
-Por quê? – ela questionou apática.
Face abatida, cansada, sem vontade para nada, braços largados, sem a energia de sempre.
-Assassinato não será perdoado. É nossa lei e deve ser cumprida, mesmo que em momento de desespero como o que vivemos.
– Estevão gentilmente afastou a filha e levantou, andando em torno das pessoas– É preciso que julguemos seu ato, para que
não reste duvidas sobre sua culpa.
-Minha culpa? Eu matei seu líder. Essa é minha culpa– ela disse séria.
-Alma– Solon a fez se calar e atraiu sua atenção – Conte o que aconteceu. Em detalhes, por favor.
Ela piscou melancólica.
-Eu fui levada pelos guardas de Eldor, os mesmo que estão aqui, agindo como se não houvessem participado disso tudo – ela
acusou, e causou desconforto generalizado.– Fui deixada em seus aposentos. Um lugar imenso e luxuoso. Eu diria para que
catassem todas aquelas pedras preciosas das paredes e guardassem. Serão uteis caso saiam daqui.– ela disse com lástima e
ironia velada, esfregando um dos braços, sentindo frio.
Não era frio propriamente. Era algo interior, um desamparo que lhe causava arrepios.
Solon percebeu e levantou, colocando em seus ombros uma manta que jazia esquecida em um canto qualquer. Ela olhou apara
cima, encontrando seus olhos. Quis pedir que ficasse ao seu lado, mas era inapropriado. Segurou o manto e aconchegou-se a
ele, e isso deveria bastar. A falsa ilusão de proteção deveria lhe sossegar o coração. Mas não a mente.
-E o que aconteceu quando foi recepcionada por Eldor? – Estevão perguntou cordato, para não irrita-la, em uma troca de
olhares com Solon, uma troca de cumplicidade.
-Ele apareceu e me fez propostas. Queria me ajudar a despertar meu dom verdadeiro. Não sou apenas uma doida gritando e
esbravejando. Eu tenho um dom bonito, só não tenho controle sobre ele ainda.– ela disse magoada.
-E que dom é esse?– perguntou interessado.
-Eu posso... Eu poderei, ao dominar minha natureza, hipnotizar as pessoas com minha voz. Torna-las fantoches das minhas
vontades. Claro, eu ainda estou aqui, então sabemos que não tenho domínio de mim mesma.– satirizou.
-E o que Eldor esperava conseguir usando de seu dom?– ele ignorou seu descaso.
-Ele sabia que não teria domínio sobre vocês quando fossem obrigados a subir a superfície. Que todos descobririam suas
mentiras e se voltariam contra ele. Eldor desejava que eu os encantasse e os obrigasse a concordar em segui-lo, onde quer que
ele fosse. E é isso que Agra espera que eu faça. Ela é cúmplice de tudo que o enteado fez. Uma sádica mentirosa que me
enganou por muito tempo.
Solon praguejou, pois não queria que ela falasse sobre isso.
-Dane-se– Alma disse olhando para ele– eu cansei de mentiras. Agra vai tomar o lugar de Eldor. A única esperança de todos
nós é que eu consiga arrancar dela a localização da única saída preservada. Um caminho direto para a superfície.
O burburinho foi generalizado. Alma sabia que aconteceria. Fechou os olhos e fingiu não ouvir os burburinhos. Agra manteve-
se impassível, consciente que ninguém se voltaria contra ela, e acreditaria em uma fada forasteira e assassina.
-Eldor manteve minha filha prisioneira. Estuprou seu corpo, aproveitou-se do cio, e feriu suas asas. Ele disse que asas não
existiam mais, e a fada Alma prova o contrario. As asas da minha filha são a prova derradeira que era mentira. Nossas fadas
poderiam ter suas asas. E vejam o que ele fez com as asas de uma filha de seu povo – Estevão fez Elba levantar e mostrar os
curativos em suas costas, uma tentativa de unir as asas e salvá-las.– Eu não me perdoarei jamais por ter acreditado naquele
animal.– Estevão abaixou o rosto humilhado.
-Eldor admitiu ter assassinado sua esposa porque ela se negou a voltar e calar-se sobre o mundo que viu na superfície– Alma
contou.
Agora que começara a ser sincera, iria até o fim, sem dó nem piedade.
-Ele ria de todos vocês. Ofereceu essa fada– apontou Elba– Ofereceu-a como um presente.– lembrou-se do pedido de Solon
sobre não contar seus impulsos, e pensou em não obedecer. Queria ser sincera não é mesmo? Fechou os olhos angustiada
sobre não saber o que queria. Por não se controlar.– Para que eu a ferisse em homenagem a ele, como uma prova de minha
submissão. Eu não quis. Ele decidiu matá-la na minha frente, como uma oferenda... Eu acho que era essa a ideia dele. A briga
começou, ele tentou me enforcar e quando eu percebi... O punhal estava nas minhas mãos e então...– parou de falar, as
lembranças vivas em sua mente.
-Eldor era um animal– Anastácia interrompeu-a revoltada– Um monstro! Vejam o estado em que deixou minha sobrinha!
Olhem as marcas das mãos daquele verme no pescoço de Alma!– ela levantou e gritou aflita e indignada– É por causa dele
que estamos todos nessa situação! Ele sabia que o nosso mundo iria ruir e não fez nada por nós! Alma não pode ser culpada
por salvar a si mesma! Eu faria o mesmo!
-Não estamos em um julgamento – Estevão tentou controlar sua prometida e ela afastou-se com rancor.– Ouvimos suas
palavras, Alma. Tem sua versão dita. Cabe a todos uma votação sobre o que deve ser feito. Eu proponho o esquecimento e o
perdão para o ato de violência cometido por Alma. Proponho também que elejamos outro líder. E, sobretudo, proponho uma
vigilância sobre Agra até decidirmos o que é real ou não nessa conversa toda.
Solon concordava com ele. Ergueu-se e tomou a palavra, falando sobre o que iria acontecer nos próximos dias. Era demais
para Alma. Ela levantou, e deixou a manta cair no chão, retirando-se da conversa.
Passos cansados, pesados, melancolia pura. Voltou para seu canto, puxou as cortinas e deitou-se puxando um lençol sobre a
cabeça para se proteger do barulho das vozes.
Que decidissem sua vida. Isso não era uma novidade, era?

Capítulo 23 Pessimismo

Alma não contava os dias, mas inconscientemente sabia que uma semana havia corrido no calendário. Era meio dia, ela sentia
fome. Era a primeira vez em dias que sentia fome espontaneamente, talvez por que a comida estivesse cada vez mais escassa e
em menor quantidade.

Dessa vez não foi Anastácia quem lhe trouxe comida e água, e sentou pacientemente ao seu lado insistindo para que comesse.
Não, dessa vez, foi Solon quem trouxe o prato e a jarra de barro com água barrenta. De volta à escassez, e a privação. Sua
vida era assim, pensou.

-Está com fome? -ele perguntou sentando no colchão e provando uma colherada da comida de Alma– Hoje você não irá
comer.– ele sorriu ao dizer isso – Você não quer, e existem outros famintos. Ordenei que dessem sua comida para as crianças
que penam de fome.

Alma ouviu suas palavras, incrédula.


-Mas eu estou com fome– ela disse baixinho.
-Está curada, mas não ajuda em nada.– ele continuou falando– não precisa comer

tanto. Não faz nada de útil.


-Tanto faz–ela disse emburrada, virando para o lado oposto, para não olhar para ele,
olhos rasos de lágrimas.
-Está contente agora?– Solon perguntou, pousando o prato no chão com maior força
que o esperado. Talvez ele estivesse raivoso com ela.
-Porque estaria?– ela perguntou com voz abafada, pois tinha a face escondida
parcialmente pelo travesseiro.
-Porque você conseguiu, vou trata-la do modo que espera ser tratada. – ele revelou.
– Cansei de tentar falar com você. De tentar ajuda-la. Como você não se cansa de dizer,
todos morrermos aqui, e é hora de vivermos a verdade da nossa situação.
Alma não se conteve e olhou para Solon.
-Você não é assim, - ela disse confusa.
-Quem disse? Não é você quem vive dizendo que eu minto e que vou engana-la para
entrega-la para Santha?– ele perguntou sem amargor.
-O que você tem? Enlouqueceu?– ela perguntou sentando no colchão, ficando bem
perto dele– A reclusão nesse lugar entorpeceu sua mente? É isso?
-Não.– ele negou– Estou sendo exatamente do jeitinho que você espera que eu seja.
– seu olhar era firme.
-Eu não espero nada de você– ela disse em sua defesa.
-Por isso não estou lhe oferecendo nada– ele alegou, sem hesitar em sua postura. Alma baixou os olhos. Ele ficou em silencio
e ela esfregou uma das mãos no rosto,
para afastar o sono e limpar o suor. Cada dia mais quente. Era culpa do ar impregnado de
pó e da queima de óleos, e das poucas saídas de ar completamente impregnadas de
fumaça.
-Eu gostei de ter matado Eldor– ela disse com parcimônia. - você sabe disso.
Porque não me deixa em paz?
-Eu sei de culpa, e você é alguém culpado – ele disse sério– Foi perdoada e todos a
idolatram por terem-nos salvo de um líder monstruoso, mas a culpa a ronda. Você se culpa
Alma. Não os outros.
-Você é surdo mesmo, não é?– ela acusou, ofendendo – eu disse que senti prazer
em matar Eldor!
-Sim, você sentiu tanto prazer que está definhando em culpa.– ele devolveu a
acusação – Assassinos frios comemoram seus feitos. Pessoas honestas e justas sofrem e se
martirizam por cometer um ato de crueldade, mesmo que contra quem mereça. Alma encarou seus olhos procurando por
falsidade.
-Eu sempre quis saber como era fazer isso – admitiu em um sussurro.
-E a vida a obrigou a descobrir e aqui esta você, desfazendo-se em culpa e
desespero. Eu não tenho tempo para conversar com você e consolar. Eu mal tenho tempo
para sentar e comer. E eu preciso comer e estar de pé, porque tenho esperanças que você
acorde e me ajude. Isso vai acontecer?
-Ajuda-lo?– a pergunta escapou por seus lábios com incerteza.
-Agra está sendo mantida amarrada. Ela não revela a verdade, prefere que todos
paguemos por sua loucura. Eu tenho fé que você possa convencê-la a falar a verdade. –
exasperado, Solon disse– A água não dura mais que dois dias. O alimento acabou hoje. –
Ele baixou a cabeça furioso com a situação– Os homens não comem há dois dias. As
mulheres mais fortes pararam de comer hoje. Os feridos e as crianças terão alimento até
amanhã. Depois... Não resta um depois.– era essa situação.
Alma notou que as mãos de Solon tremiam. Exasperado, ele enterrou-as no cabelo e
baixou a cabeça, deixando-a ver sua dor:
-Eu não pude ajuda-los. Não pude fazer nada. Eu não tenho como ajuda-los, Alma.
Não posso fazer absolutamente nada por eles!
Solon não se importava consigo mesmo e sim com o bem estar dos inocentes e
desprotegidos.
Sem refletir, Alma estendeu uma das mãos e tocou a dele, e então, quando notou o
abraçava pelas costas, escondendo o rosto em suas costas.
-Eu queria ser forte como você– ela sussurrou, mas ele conseguiu ouvir. Sua voz era perfeita para a audição do Guardião.
Eram perfeitos juntos.
-Você é. É tão forte, que eu sei que vai me ouvir e acreditar em mim.– ele a puxou
para seu colo e Alma deixou-se sentar em suas pernas, o rosto a centímetros do dele–
Você é boa. Meiga, doce, e inocente. O mundo é feio, escuro e sombrio. Somos todos
vitimas. Caçador ou caça, todos acabaremos sendo pegos um dia. Uns mais cedo, outros
mais tarde. Em meio a essa certeza, existe a felicidade. Escassa, e muitas vezes fugas, as
existe felicidade. É o que eu quis lhe mostrar. E não consegui. Desculpe-me por isso. Alma vislumbrou a verdade sobre medo
e perda, olhando naqueles olhos claros.
Solon era sempre tão sincero e desprovido de segundas intenções. Ele realmente se
culpava por não ter sido capaz de lhe mostrar a vida bonita que gostaria que ela
conhecesse.
Solon era o elfo mais honesto e justo da face da terra, pensou Alma. Havia algum
exagero em seu pensamento, mas ela sentia essa verdade com profundidade, e era a única
coisa que lhe importava naquele momento.
Solon beijou sua testa e Alma permitiu.
-Eldor estava errado quando tentou convencê-la a se render aos maus pensamentos.
Completamente equivocado ao dizer que você é repleta de crueldade.– ele afirmou,
sorrindo com admiração para a fada em seus braços.
-Porque diz isso?
-Você sentiu o gosto de matar e continua sem o seu dom. Se Eldor estivesse certo,
tudo seria diferente. – ele afirmou contente em ao menos ter essa alegria.
-Mas você também não obteve existo.– lembrou-o disso.
-Por falta de tempo e intromissão de Eldor. Eu poderia ter conseguido. Solon tinha a convicção que sua fada preferida teria se
acalmado aos poucos e isso
ajudaria a desabrochar seu dom verdadeiro. Mas não houve tempo. E agora, não adiantava
lamentar.
-Quer vir comigo?– ele perguntou roçando o nariz no dela.
-Para onde?– perguntou meiga.
-Ficar com os outros. Passaremos as próximas horas juntos, conversando. É o
melhor jeito de passar o tempo.
E escapar dos pensamentos sobre o que aconteceria com todos eles nos próximos
dias sem comida e água.
-Eu não sei se eles me querem por perto – ela admitiu, magoada.
-Você os libertou de uma vida de mentira. Há consideram como uma de seu povo.
Você tem se isolado, Alma. Por isso não sabe do apreço que essa gente tem por você.
-Isso é verdade?– ela perguntou surpresa.
-A mais pura das verdades. Eu não minto para você.
O pior de tudo era acreditar no Guardião. Fechando os olhos, Alma escondeu o rosto
no pescoço de Solon e ficou assim por alguns instantes.
-Eu não posso morrer aqui. Minhas amigas precisam de mim. – ela disse com
angustia. - Eu tenho medo que elas não saibam que eu tentei voltar para junto delas. Que
eu fiz tudo que pude para me salvar e ajuda-las. Eu tentei Guardião. Eu tentei de verdade. Solon tocou seu rosto e a fez erguer
o rosto e olhar para ele. Lábios entreabertos.
Olhos marejados. Pálida. Era a face da dor. Do arrependimento. Do medo. E Solon não
podia fazer nada para aliviar seu pesar. Ele próprio tinha suas dores e seus pesares. Queria ver sua mãe uma última vez.
Agradecer Acheron, o Guardião que o ajudou a
superar a raiva e a depressão e o fez encarar a vida como ela é, e que nunca obteve uma
palavra de gratidão da sua parte, embora soubesse de seu eterno agradecimento. Queria ter feito tantas coisas antes desse fim
trágico.
-Nunca saberão o que nos aconteceu– ele disse triste – Ao menos, elas não sofrerão.
Talvez pensem que você escapou. Não é melhor assim? Que elas esperem sua volta, com a
certeza que estas bem e feliz em algum lugar vivendo sua vida?

Capítulo 24 Ingratidão fere

Alma acenou concordando. Preferia que suas amigas vivessem com a esperança do que com a certeza que seu fim havia sido
triste e amargo.
Será, ela pensou? Nunca em sua vida houve pessoas que confiassem e a admirassem, e com exceção de Eleonora, Driana e
Joan, ela não sabia o que era carinho até conhecer Solon.
Alma gostava de olhar para o Guardião. Ele tinha feições bonitas. Sempre arrumadinho. O cabelo bem penteado, mas depois
de tanto sofrimento e desânimo, estava despenteado, mesmo assim conservava aquele ar de coretidão.
Seu nariz era bonito, pensou seus olhos. Seus lábios. Ela gostaria de ter tido mais tempo para conhecê-lo.
Sem saber de onde a coragem surgiu, Alma tocou o queixo quadrado, e alisou a pele coberta por uma barba rala, que pinicava
a pele da sua mão. Solon ficou quieto, esperando que viesse de Alma a iniciativa. E não foi frustrada a sua espera. Alma
aproximou o rosto e tocou seus lábios com os seus, em um beijo muito simplório, doce e pueril. Segurou o queixo masculino, e
moveu os lábios, pedindo que ele abrisse os seus, querendo beija-lo para valer.
Guardava as lembranças de seus beijos e carinhos, mas sentir era mil vezes melhor do que lembrar. O beijo começou
vagaroso, preguiçoso, e suave. Solon apertou sua cintura, e era a maior demonstração da possessão e necessidade que nutria
pelo o que da fada. Não a prenderia ou pressionaria.
Aquele aperto acendeu a fogueira dentro de Alma. Ela queria mais, queria tudo com Solon. Mas precisou se conformar com
um beijo intenso e profundo. Uma troca generosa de afagos e muita paixão.
Quando o beijo chegou ao fim, sem ar, corada e aliviada por ter finalmente deixado à necessidade falar mais alto, Alma disse:
-Eu quero ficar com você nesses últimos momentos.
Solon sorriu e lhe fez um carinho no queixo antes de ajuda-la a levantar, deixando seu colo, e fazer o mesmo.
-Eu gostaria de ter ouvido isso em outra situação – confessou, beijou de leve sua testa e sugeriu– Será que eu consigo
encontrar algum instrumento para tocar nessa confusão de destroços?
-Você toca um instrumento?– ela perguntou surpresa.
-Não, mas eu canto – ele explicou, distraindo sua mente.
-Você não canta. Você não ouve bem. Como poderia cantar?– perguntou com total sinceridade. Sem resquícios de maldade ou
preconceito, apenas dúvida.
-Eu cantava antes de perder a audição, e canto agora. Enquanto ninguém reclamar... Eu vou continuar cantando – ele sorria.
-E como você sabe se está cantando no ritmo certo?– perguntou com expressão de duvida.
-Certas coisas a gente sente, Alma. Não é preciso ouvir, tocar ou enxergar. A gente sente e isso basta.
Alma ainda não compreendia o que Solon queria dizer com isso, mas acreditou em suas palavras, pois era ele quem dizia. E
era estranho confiar em alguém que não fosse Eleonora, Driana ou Joan.
Solon entrelaçou os dedos nos seus, e de mãos dadas a levou para longe da reclusão ao qual vinha se submetendo por
depressão.
Os moradores do mundo subterrâneo estavam reunidos no outro pavilhão, alguns ainda jantavam outros apenas conversavam.
Alma sentiu os olhos de todos se voltarem para eles. Sim, eram um casal diante dos olhos de todos, e Alma suspeitava que não
somente de aparência.
Era um casal de verdade. O mais estranho dos casais. E apesar das diferenças gritantes ente eles, funcionavam muito bem
como um casal.
Solon a levou gentilmente por entre os elfos e fadas, as famílias reunidas, e encontrou entre eles, Estevão e suas filhas. A
jovem Elba que fora brutalizada por Eldor estava entre eles, menos pálida e abatida. Um sorriso pairava na face de Elba
enquanto interagia com as irmãs. Ela parou de conversar e olhou para Alma com gratidão.
-Gostaria de um pouco de vinho?– Solon perguntou em seu ouvido, ela tocou seu ombro para impedi-lo de causar-lhe tantos
arrepios.
Seu jeito de falar, de olhar e de toca-la lhe provocava um reboliço emocional.
-Sim– concordou, imaginando que Solon não lhe ofereceria algo que fizesse falta para os demais necessitados.
-Sente-se aqui- ele indicou um espaço perto das filhas de Estevão. Alma obedeceu, e o fez por vontade, não obrigação.
Estevão seguiu Solon e ela sabia que conversariam. Anastácia estava adiantada e trazia uma bandeja, provavelmente
esperando encontra-la faminta e sedenta.
Alma não reclamou quando as fadinhas vieram acabar com sua paciência. Elas tinham um jeito de estar sempre pegando,
tocando e agarrando alguma parte do seu corpo, tomadas da carência e necessidade de conhecer.
Alma era uma grande novidade, com suas asas moveis e seu dom aflorado.
Distraída pelas meninas, ela não percebeu a conversa entre Estevão, Solon e Anastácia.
-Alma já sabe?– foi Anastácia quem perguntou.– Ela parece tão mais contente. Você contou a ela?
-Não – Solon olhou na direção da sua fada escolhida– Pelo contrairo.
-Como assim? Você não contou para Alma que encontramos um compartimento secreto nos aposentos de Eldor com água e
alimento para mais um mês? Ela ficará muito aliviada em saber que ganhamos tempo para cavar uma saída– havia indignação
na tez de Anastácia.
-Cavar é perigoso. As estruturas estão frágeis– Estevão respondeu cúmplice de Solon.
-Alma é uma guerreira. Ela é motivada pela raiva e não sabe o quanto é lutadora. Eu tenho esperança que saber que estamos
no limite e que não existe mais razão para ódio possa liberta-la dos sentimentos ruins que barram seu dom. um tratamento de
choque, acho que é disso que ela precisa para superar suas ansiedades e ressentimentos.
-É cruel deixa-la acreditar que não há mais chances– Anastácia não gostou disso.
-Alma tem muito ódio no coração– ele disse pensativo– Se o fim está próximo, o ódio perde o sentido. E sem ódio... Ela vai
deixar seu dom aflorar.– ele meditou– Ela vai ficar com raiva quando descobrir que menti... Mas vai me agradecer se
descobrir isso com seu dom em mãos.
-Solon está coberto de razão. As fêmeas não sabem o que é melhor para elas.– Estevão alegou.
O som de desprezo de Anastácia alertou o cunhado de seu desagrado. Apesar de não concordar com essa posição machista,
não ousava contraria-los, pois havia uma grande chance de estarem certos.
-Asas– a menina menor dizia, começando a demonstrar que apesar de ter uma dificuldade e lentidão, poderia ter chances
futuras de conseguir se comunicar com alguma normalidade. A vida subterrânea acabava com a genética das criaturas mágicas
e muitas sequelas eram presenciadas. Apesar de sentir uma profunda ternura pela menina e estar contente de vê-la evoluir,
Alma a ignorava por tudo que valia. Não possuía paciência para as fadinhas infantas.
-Sim, são as minhas asas– Elba disse com doçura e saudade, pegando a menina no colo para que não incomodasse Alma.
Estivera muito tempo apartada das irmãs e sentia uma saudade que parecia nunca ter fim– Minhas asas serão tão belas quanto
as de Alma quando estiverem curadas.
-Posso ver suas asas abertas?– uma das meninas, filha de algum morador do subterrâneo perguntou.
Ela pareceu frenética sobre isso, de pé, saltitando, e com olhos de suplica.
-Mostre a elas, Alma– Elba pediu– Eu tenho curiosidade de ver asas normais. As minhas foram feridas logo depois do
nascimento. Não cheguei a ver minhas asas abertas.– disse com pesar.
Como negar um pedido dessa magnitude?
Alma levantou e afastou os cabelos das costas, colocando-os para o lado, sobre o peito. Divididos ao meio, longos e
castanhos, sempre lisos e brilhantes, seus cabelos não eram empecilho para asa asas.
Abriu-as, e as meninas menores tomaram conta, acariciando, mexendo e fingindo balançar as delicadas estruturas presas aos
filamentos.
-Parecem as asas de borboletas que vi quando estive na superfície – disse Elba. – Eu vi lindas borboletas. Esse padrão é
muito parecido.
Sim, pensou Alma. Eram parecidas com troncos de árvores, madeira e terra. Fáceis de camuflar na natureza. Alma gostava de
suas asas, mas normalmente não perdia tempo com vaidade.
-Você pode voar?– Elba perguntou fascinada.
-Sim– Alma temia bater suas asas e o som causar problema para as meninas pequenas.
Mordeu o lábio inferior em dúvida. Não queria frustrar o desejo delas em ver o voo de uma fada. Pobres infelizes jamais
obteriam suas asas, e Elba que as tinha, não viveria para ter suas asas curadas e poder desfrutar de um voo.
‘Por favor’, Alma implorou a si mesma,‘Por favor, não façam barulho dessa vez. Por favor, somente dessa vez...
Sejamsilenciosas’.
Era um pedido tolo. Mesmo assim, ela concentrou-se nisso.
Não sabia que era atentamente observada por Solon. Ele mantinha-se a distancia, lendo os lábios das outras fadas para saber o
que diziam.
Alma bateu vagarosamente as asas e as fadinhas riam contentes. Uma delas colocouse entre as asas e Alma riu. Por milagre
suas asas estavam sendo silenciosas.
Elba ria e incentivava as meninas a brincarem. Quando os pés de Alma saíram do chão, uma das fadinhas pediu para ir ao seu
colo.
Sem notar que sorria, Alma pegou a pequena no colo, e subiu alguns centímetros, mantendo um bater de asas suaves.
Mesmo a distancia, Solon sorriu e disse para Estevão com autoridade e muito orgulho na voz:
-Traga a fada Agra até aqui. Chegou o momento de confronta-la.
Não interrompeu a brincadeira das fadas. Quando Alma pousou a fadinha no chão e revoo acima da cabeça das fadas e elfos
foi brindada com a atenção coletiva.
Por alguns momentos essa foi a maior alegria daquele povo em anos. Ver asas. Saber como eram, pois a maioria das fêmeas
jamais viu um par de asas em toda sua vida.
Quando pousou outra vez, estava corada pelo esforço e sorrindo de orelha a orelha. Procurou com os olhos a imagem de Solon
e o encontrou parado, olhando-a de longe.
-Eu não sei qual é o meu dom.– Elba disse– Não consegui descobrir. Nunca tive sintomas de como seria... As asas não nascem
aqui em baixo, muito menos aflora o dom. eu gostaria que fosse algo bem legal.
-Quem sabe que se pudermos subir a superfície– Alma disse apenada– você consiga descobrir qual é o seu dom.
-Será que isso acontecerá?– Elba perguntou e sua expressão era de descrença.
Anastácia aproximou-se delas e disse tensa:
-Fiquem quietinhas, queridas– juntou as sobrinhas menores e sentou-se perto de Alma.
-Porque você está nervosa?– Alma perguntou desconfiada.
-Não fique brava, por favor, Alma. Não fique magoada. - ela pediu em tom de desculpas e não precisou elucidar o que dizia,
pois a entrada dos guardas trazendo Agra contou a Alma o que precisava saber.
Levantou e encarou Solon com repreensão.
-Obteve domínio de suas asas– ele disse sério, lidando com seu olhar de cobrança– É dona de suas asas e pode dominar seu
dom. Teste-o com Agra.
-Isso não é verdade. Às vezes eu consigo dominar minhas asas, fiz isso quando me livrei de sua armadura– ela desacreditou–
Eu gostaria de ajudar, mas não consigo.
-Consegue– disse Solon convencido – Tente – ele segurou seu braço e praticamente a arrastou até o lugar aonde Agra era
mantida presa pelos guardas.
O silencio em torno deles era gritante, como um grito de lamento nunca emitido.
-Não – ela tentou se soltar do seu aperto, Solon não recuou – Não faça isso comigo.
– pediu.
-Faça– ele mandou mais uma vez.
-Não!– ela gritou e Solon agarrou seu outro braço, sacudindo-a uma única vez para que ela parasse.
-Faça, Alma. Faça o que tem que fazer. Chega de se esconder. Chega de negar a si mesma seu direito. Chega de fugir. Não é
prisioneira, não tem ninguém a mantendo cativa. Chega de recuar. Chega.
O modo como Solon a soltou e empurrou na direção de Agra era decidido. A hora da decisão final.
Ele confiava em seu dom. Ele a vira dominar suas asas. Isso não queria dizer nada. Nada.
Alma quis correr e se esconder. Ele era um monstro, um mentiroso. Ele a enganava para obter seu dom. Solon não valia anda.
Fechou os olhos com força. Não adiantava culpar Solon por seu medo. Ele não era um monstro. Não era mentiroso. Não a
enganava.
Ela mesma se enganava. E isso acontecia há anos.
Agra exibia a expressão de arrogância e petulância típica das mentes doentias. Dos insanos ávidos por poder e controle da
vida dos fracos e desvalidos. Mesmo na desgraça, Agra ainda esperava uma oportunidade para se erguer e obter outra vez o
poder nas mãos. E se Alma fraquejasse, Agra venceria e sua vitoria seria uma vitoria a mais para o mundo de podridão. Um
vitoria para o lado negro da vida, juntando-se a vitoria de tantos outros monstros, como Santha e Lucius. Existiam muitos
espalhados pelo mundo. Muito mais do que Alma poderia contar.
Com nojo dessa espécie de criatura, que não era fêmea, era um ser desprezível e não merecia respeito ou piedade.
-Porque colaborou com Eldor?– contrariando a ordem de Solon, ela precisava saber a razão que motivava uma mente como a
de Agra.
-Nunca colaborei.– ela disse séria e distante, inalcançável– Eu criei Eldor. Eu o fiz ser o que era.
-Por quê?
Naquele momento Agra não poderia lhe negar a verdade mesmo que assim desejasse. Ninguém notou, foi algo muito sutil. Uma
mudança mínima no tom de voz de Alma. Apenas Solon distinguiu essa diferença.
-Eu perdi o direito a ter asas. Quando nasci meus pais viviam nessa submissão. E então, eu descobri que havia uma vida lá em
cima e eu poderia ter tido asas. Eu não quis que nenhuma outra pudesse ter aquilo que me roubaram.
-Está bem– Alma disse, entendendo – Eu posso compreender suas razões.
Era verdade, ela entendia. Não concordava totalmente, mas também, não podia afirmar não pensar sobre o assunto.
-Alma... Pergunte a ela como sair daqui– Solon segurou seu braço e ela o olhou com superioridade.
Seu modo de olhar deixava claro que não aceitaria ordens suas. Ter um dom tão avassalador era ter o poder nas mãos. Por um
segundo, Alma pensou sobre isso. Poderia voar para o Reino de Isac e acabar com a liderança de Santha. Uma expressão tão
obvia tomou a face de Alma que Solon precisou segurar sua mão e puxar seu rosto, para que ela olhasse em seus olhos.
-Pergunte a Agra onde fica a saída secreta que Eldor mantinha em total mistério.
Novas ordens. Como ele ousava ordenar o que fazer para alguém que possuía o domínio de suas vontades?
Contrariando seus pensamentos de superioridade, Alma virou-se para Agra e perguntou, rezando secretamente para seu
domínio do dom não ser apenas fruto da sua imaginação. Para que fosse de fato real.
-Onde fica a passagem secreta para a superfície?
A pergunta foi verbalizada e Agra abriu os lábios para responder. Não podia negar a resposta. Era mais forte que ela. Mesmo
assim, relutou.
Alma aproximou-se, e curvou o corpo, até estar na mesma altura que Agra, que era mantida sentada.
Seus olhos brilhavam por lágrimas de raiva em ter que revelar seu mais profundo segredo.
-Eu perguntei: onde fica a saída desse buraco?
Agra rangeu os dentes, e então emitiu um grito, em meio a um choro de ódio, enquanto Alma insistia:
-Onde fica a saída? Onde fica a saída?– repetiu sem parar, enquanto Agra fugia a face, tentando olhar para todos os lados,
tentando fugir, tentando ser mais forte.
Alma agarrou os cabelos bem cuidados da mulher, mantendo sua cabeça imóvel e fixou seus olhos nos seus, pausando a dicção
de cada uma das palavras ditas:
-Eu ordeno que me diga onde fica a saída secreta para a superfície. Não é um pedido, é uma ordem.
Chorando, Agra puxou a cabeça, e Alma a soltou. Agra levantou, e tencionou andar. Alma fez sinal para que deixassem.
Imediatamente ao primeiro passo de Agra, Estevão posicionou atrás da fada, fiscalizando que não estivesse livre para fugas.
Solon ofereceu a mão para Alma, para que ela se mantivesse perto, e o pequeno grupo seguiu Agra, enquanto os guardas
mantinham a ordem entre os outros elfos e fadas, pois a motivação de escapar logo era imensa e poderia atrapalhar.
Poderia ser inacreditável para outra criatura, mas a essência de maldade que Agra carregava dentro de si impedia que
verbalizasse com palavras a resposta para a pergunta de Alma. Mesmo sob forte encanto.
O pensamento de retornar aos aposentos de Eldor era desolador, mas Alma enfrentou as lembranças. Felizmente não foi
necessário adentrar o quarto principal, onde manchas de sangue ainda marcavam o chão.
Agra retirou um moveu do lugar, e revelou que sob o tapete bordado a ouro que cobria o chão de pedras, havia um
compartimento secreto. Era estranho que descessem, em vez de subir, mas nenhum deles questionou enquanto desciam a
escada de degraus frágeis e apodrecidos.
Por certo era uma passagem construída há muitos séculos e esse segredo perdurara a custo do silencio dos descendentes de
Eldor.
Solon manteve Alma perto de si. Era preocupação. Ela não lidava bem com situação tensas. O longo corredor de paredes
fétidas e úmidas desembocou em um salão estreito onde havia pedras revestindo as paredes. Todos olharam para cima,
quando Agra fez isso. Estavam exatamente sob uma passagem que levaria para a superfície. O único problema era que a saída
estava a uns bons cinquenta metros de altura.
-A saída levará para o Vilarejo Sem Fim?– Perguntou Solon.
Sob a terra era difícil precisar se estavam exatamente sob os casebres ou invadindo o território da floresta.
-Sim– foi Estevão quem respondeu.
Ele possuía total conhecimento e experiência para definir onde estavam. Conhecia a planta daquele lugar como conhecia as
linhas da palma de sua mão.
Solon sabia o que precisava ser feito. Era lógico. Era claro como água a única solução, mesmo assim não verbalizou o obvio.
Alma olhou para ele e com um sorriso de pura satisfação surgindo na face perguntou:
-Por acaso serei eu a primeira a sair daqui?
-Sim, e você não pode fugir, fada– Solon avisou sério.
-Porque Alma fugiria? – perguntou Estevão sem compreender.
-Porque sou acuada de assassinar o rei vigente, chamado Isac. Sou fugitiva, e Solon é um Guardião, enviado para me caçar e
levar viva ou morta, de volta para o castelo para ser julgada... Ou melhor, condenada sem direito a um julgamento justo. –
revelou.– E agora, Guardião? Tem medo que eu suba e o deixe para morrer aqui em baixo?
Por um segundo louco a palavra ‘sim’ pairou na mente de Solon, e foi esse segundo que a envergonhou de si mesma e de suas
atitudes.
-Eu acredito que você sabe disseminar entre o certo e o errado – ele foi sincero, e Alma pareceu decepcionada por não ser
capaz de saber até onde ia à confiança de Solon. Ele parecia sempre tão verdadeiro quando se dirigia a ela!
-Nossa situação não muda o que somos e o que fizemos por seu povo – Solon disse a Estevão antes que essa nova revelação
criasse um abismo entre eles.– Não pretendemos permanecer junto dos seus. Ajudá-los será nossa prioridade. Depois,
seguiremos nosso caminho.
-E o que será de nós sem um líder?– Estevão questionou preocupado.
-Não nego que tenho o desejo de acompanhar o desenvolvimento e estabelecimento de seu povo nas terras do Vilarejo sem
Fim. Será necessário uma adaptação profunda e demorada, e como Guardião – olhou para alma frisando a palavra– gostaria
de ajudá-los. Mas devo obediência ao meu Rei, neste caso em especial, a Rainha Santha. E não gostaria de contar a ela
imediatamente sobre vocês. Prefiro manter a existência desse povo subterrâneo como um segredo até as coisas se ajeitarem.
-Você diz, até acertar nosso julgamento– Alma acusou.
-Sim, é disso que falo. Se Eleonora for inocente, e sua história for verdadeira, é possível que haja uma rainha justa e honesta
com quem dividir esse segredo. Se ela não for... Vou esperar o Conselho escolher um novo substituto para Isac antes de
contar.
-Rainha Isac fará de Lucius o Rei.– ela disse melancólica.
-Esperemos que não – ele disse preocupado - ou os Guardiões terão uma luta árdua pela frente.– disse pesaroso.
-Acredita que os Guardiões se revoltariam contra a escolha de Lucius como Rei? – perguntou incrédula.
-Esse não é o melhor momento para discutir política. – ele lembrou-a disso – É necessário escolhermos a melhor estratégia
para levarmos todos para a superfície.
-Isso não será fácil– Estevão disse bastante realista – Eu diria até impossível.
-Nada é impossível quando a vida está em jogo – Solon lembrou-o dessa verdade incontestável– Preciso que traga suas filhas
e Anastácia até aqui.
-Por quê? – ele quis saber na defensiva.
-Porque Elba e suas irmãs estiveram na superfície. Elas não se deslumbraram ao chegar lá em cima. Anastácia irá cuidar
delas, e ouvi-las, pois é bastante centrada. Precisamos de ajuda para definir como as coisas acontecerão daqui para frente.
-Solon quer dizer que precisarei de ajuda, para conferir o estado das casas e se há forasteiros ou viajantes com os quais nos
preocuparmos. Ajeitar as coisas antes de levar a todos.– Alma concordou– Pensou em uma ordem de prioridade?
-Sim. Dez homens fortes devem ser levados à superfície. É necessário força para manter a ordem, e ir ajudando a estabelecer
os demais. Então, primeiro as mulheres. Depois as crianças.
-É melhor deixar os guardas de Eldor por último – ela disse com rancor olhando para Estevão – É impossível saber quais
deles não era simpático à causa de Eldor e apenas aceitou a nova situação por não ter alternativa.
Estevão levou Agra, agora dispensável, e Solon e Alma ficaram sozinhos. Ela afastou o olhar, e tentou ignorar que o elfo
esperava algo dela. Até um instante atrás, Alma estava convencida de seus sentimentos e disposta a se curvar a palavra de um
macho. Agora... Ela não sabia mais o que pensar.
-Lembre-se de dominar suas asas, Alma. Elas a obedeceram e devem ser silenciosas.
– Solon disse cordato, querendo poder falar com Alma sobre assuntos bem mais profundos do que este.
-Você mentiu para mim?– Alma perguntou de surpresa, pensando sobre a situação toda.– Alguma vez, aqui em baixo, você
mentiu para mim?
-Sim– ele foi verdadeiro – Não posso dizer que seja uma mentira que mudasse a situação a meu favor. Eu apenas apressei o
que aconteceria. Encontramos um suprimento de alimento e água que nos permitiria pelo menos um mês para escavar tuneis
que fatalmente acelerariam o restante do desmoronamento. Estevão estava animado com a esperança que isso representava,
mas eu sabia que não mudaria em nada o sofrimento dessa gente. O resultado seria o mesmo.
-Porque mentiu sobre isso?– queria ouvir suas palavras.
-Para que pela primeira vez na vida você esteve completamente livre e pode ser a Alma verdadeira. Admita, você parou de se
proteger quando achou que isso não faria diferença, dada à situação em que todos nos encontrávamos.– Solon aproximou-se e
ela deixou– Eu quis lhe dar uma chance de nos salvar, mas principalmente de saber como você é. Eu confesso, gostei do que
eu descobri.
-E como eu sou?– perguntou, hipnotizada por sua voz.
Era complicado, pois quem detinha o dom de hipnotizar com a voz era Alma. Solon possuía outro tipo de poder que
funcionava somente com ela. Um poder que Alma detestaria precisar nomear.
-Não deixe o mundo lá em cima revirar sua cabeça outra vez, Alma– ele pediu amoroso, com um carinho em sua face,
segurando seu rosto entre as mãos, e salpicando um suave beijo em seus lábios. Algo muito doce.
Alma suspirou ruidosamente quando ele a soltou. Sentia que jamais sua vida seria a mesma depois que deixasse Solon para
trás. Olhou para cima, para onde ficava a saída.
-Vou precisar de uma corda bastante resistente – ela disse séria – Não vou aguentar levar todos os moradores. Os elfos podem
subir sozinhos– ela disse analisando a situação.
-Foi o que pensei– ele disse sorrindo cúmplice.
Alma correspondeu a esse sorriso, de forma tímida. Não havia porque não aproveitar a oportunidade de agrada-la, por isso
Solon ficou bem perto e a abraçou de leve pela cintura, Alma apoiando o braço em seu ombro, enquanto sussurrava em seu
ouvido banalidades de amantes.
Ela estava corada quando foram interrompidos. Sorriu envergonhada, e achou graça da expressão de pânico de Anastácia. Ela
sempre se fazia de corajosa, pronta para lutar com tudo e todos. Mas estava morrendo de medo de encarar a vida na
superfície, longe do casulo de falsa proteção criado por Eldor.
Com uma trouxa de pertences de permaneceu quieta, olhar assustado. Alma enquanto não soubesse se a escotilha era fácil de
abrir ou não. Sem pedir opinião, bateu suas asas e ganhou altura.
Voou diretamente para a escotilha. Era incrível como seu voo estava ordeiro. Quando escondeu a armadura de Solon, seu voo
foi desorganizado, estranho e pesado. Agora, era solto, livre e concentrado. Desfrutando desse controle, Alma chegou até a
escotilha e planou, enquanto forçava a abertura. Poeira, terra e barro caiu em seu rosto. Mesmo assim ela insistiu. Seus braços
doíam quando conseguiu ergue-la o bastante para arrastar para o lado.
Seu corpo se espremeu para passar pela pequena abertura e suas asas, foram amassadas dolorosamente. Livre, Alma se
arrastou na grama e mato orvalhado, pois era noite, e ficou longe, fitando a abertura. Era camuflada por grossa camada de
mato e grama, típica vegetação da floresta em torno do vilarejo sem fim.
Ignorando a voz dentro de si que ameaçava desnortea-la, repetindo sem parar que estava livre e deveria partir enquanto era
seguro, Alma levantou e voo baixo, a meio metro do chão, em direção ao Vilarejo.
Não havia sinal de forasteiros, apenas uma solidão e abandono completo. Alma perguntou-se como fariam para acomodar
centenas de pessoas em menos de cinquenta casebres diminutos.
Bem, isso não era problema seu. Demorou bastante para abrir as portas e conferir se estavam mesmo vazios. Abandonados
completamente, mas por sorte, abastecidos com alimento e moveis.
Era um começo precário para quem precisaria de tudo.
Alma sabia exatamente a dimensão da angustia e aflição que sua demora deveria estar causando nos elfos e fadas que a
aguardavam lá em baixo. Uma vozinha masoquista dentro de si, a obrigou a sentar na grama, pertinho da escotilha quando
retornou, e ficar imóvel, esperando os minutos passarem.
Não era somente maldade. Quem esperou uma vida toda pela liberdade, vivendo na ignorância, poderia esperar mais alguns
minutos. Era um nada discreto recado simbólico para o Guardião. Ela não o obedecia. Enquanto Solon não se esquecesse
disso, os dois ficariam bem.
Ficar bem? Como poderiam resolver essa situação? Viviam em mundos totalmente diferentes, e suas personalidades eram
opostas, como chuva e sol. Seria impossível conciliarem uma vida a dois. E se por ventura arriscassem, que bem Alma traria
para a vida de alguém tão honesto e justo? Fechou os olhos pensando na sensação de alivio ao suas sobrinhas e dela própria,
Anastácia não queria levar nenhuma delas consigo eliminar Eldor. As lembranças vieram atormenta-la e Alma se manteve
sentada ao lado da saída, incapaz de se mover.
Ouviu os gritos vindos lá de baixo, chamando seu nome e sorriu. Pobre Solon, deveria estar ficando desesperado achando ter
sido enganado. Um pouco realizada em causar-lhe esse destempero, Alma puxou totalmente a cobertura que mantinha a fenda
escondida, alargando a passagem. Colocou primeiro as pernas para dentro e depois se lançou, confiando em suas asas.
Os gritos pararam e quando ela tocou o chão com os pés, Solon exibia uma expressão de fúria controlada.
Sorrindo, como se não soubesse o que passava em sua mente, Alma disse:
-As casas estão prontas para receber os moradores, mas são poucas. O Vilarejo está às moscas, e é noite lá em cima.
Solon acenou e quando falou, foi controlado:
-Leve Anastácia primeiro. Ela ajudará a amarrar a corda– ele sugeriu.
Alma não perguntou sobre isso, imaginava que Sólon teria pensando em algo para resolver o impasse de como leva-los lá para
cima.
-Se você reclamar, eu a jogo lá de cima– avisou Anastácia, pois não queria lidar com pânico de voo ou mazelas de quem não
sabe se tem ou não medo de altura e a expressão de pânico de Anastácia era um alerta de que poderia haver um ataque de
nervos a caminhos. Voava em torno da fada e a segurava por baixo dos braços, erguendo-a.
Anastácia gritou de susto, deixando de lado a sempre ostentada frieza e agarrou contra ao peito a pesada corda.
Juntos, o peso igualava-se ao da armadura de Solon, e por experiência própria Alma já sabia que seu voo perderia boa parte
da elegância e destreza.
Quando colocou Anastácia na superfície, descobriu que não era a única emocionalmente desamparada.
-Como é possível termos aceito menos do que isso?– ela sussurrou, olhando em torno, enxergando pela noite repleta de
estrelas.
-Não saia daqui. Mesmo que fique com medo – Alma avisou sem grande paciência.
Quando voltou para baixo, Solon não esperou que ela reclamasse, instruiu-a sobre como carregar Elba que estava ferida.
Olhando para ele com rancor, Alma obedeceu.
Sem fôlego, retornou minutos mais tarde, em um voo preguiçoso.
Ouviu atentamente as instruções de Estevão e revirou os olhos de indignação.
-Está bem, farei isso – assegurou ao ouvir instruções sobre a corda– Eu disse que entendi – ela reclamou quando Solon
continuou olhando-a em duvida e teimou em repetir as mesmas instruções.
Depois de tantas viagens precisou deitar na relva, para descansar, olhando as estrelas que coroavam o céu e garantiam luz
suficiente para que pudesse ver em meio à mata. Tensa, Anastácia olhava para ela esperando coordenadas. Elba conhecia a
Vila dos Desesperados, e a floresta, e eram bastante parecidas com aquele lugar, com exceção da vegetação de cor
escurecida, enquanto as plantas e árvores da Vila dos Desesperados possuíam coloração clara.
Exausta, instruiu sobre procurarem uma árvore de tronco grosso e com aparência antiga. Uma árvore que aguentasse o peso de
um elfo, e o impacto da subida. Ao encontrar, coube a Anastácia amarrar e formar um nó deplorável. Alma ajudou-a
lembrando dos nós do Ministério do Rei. Nós insolúveis usados para amarrar as fadas rebeldes e mantê-las presas por uma
noite e um dia, em meio ao salão principal, para que todas as outras a tomassem, por exemplo, e temessem punições para atos
considerados espúrios pelas carcereiras.
Quantas e quantas vezes Alma não passara por essa punição por responder a uma carcereira, principalmente Miquelina, que
infernizava sua vida diariamente?
Satisfeitas, Alma tentou fazer Anastácia sorrir ao perguntar:
-Enfim, vamos testar nosso trabalho com qual dos dois? Solon ou Estevão?
Era uma insinuação venenosa sobre qualquer um que caísse, não fazer grande falta.
Tensa, Anastácia estourou em um riso histérico, sentando no chão para chorar quando as lágrimas de nervosismo
sobrepuseram à histeria.
-Meu pai deve permanecer lá embaixo, Alma– disse Elba, manifestando-se para ajuda-las.–Ele entende tudo sobre a nossa
gente, e Solon... Entende tudo sobre o mundo aqui de cima. É justo que cada um ajude no lugar onde pode ser útil.
Concordando com a sugestão, Alma não escondeu o desagrado de precisar voar outra vez.
Ela não carregaria nenhum elfo em suas costas, sobretudo Solon, com quem vivia uma relação estranha de amor e ódio.
Acompanhou a subida perto, levando consigo uma das sobrinhas de Anastácia. Solon era rápido e ágil, e não demorou a
vencer a escalada. Vendo-o fazer isso, parecia fácil, mas Alma sabia como seria complicado levar todas as pessoas para
cima.
-Eu acho que deveria trazer carregamento de alimento antes de trazer as pessoas– ela disse pensativa, sem notar que estava
quase colada ao elfo, como se fosse natural, ficar pertinho, como um casal. Solon repousou o braço em suas costas e
concordou, completando seu pensamento:
-Seria uma lástima ter esse pessoal passando necessidade enquanto trazemos todos os outros.
-Você tem ideia do tamanho do problema que isso aqui representa?– Alma perguntou baixinho em seu ouvido – você está
adquirindo responsabilidade para com esse povo. Eles o veem como um líder.
-Não olhe para mim assim, fadinha - ele sussurrou em seu ouvido, cúmplice– pois esse mesmo povo a vê como uma heroína
que os libertou. A responsabilidade também é sua.
Sem palavras para rebater esse argumento, Alma repousou o rosto em seu ombro, e disse:
-Estou exausta – não era seu costume reclamar ou admitir fraqueza.
-Apenas mais uma viagem, depois você pode descansar - ele incentivou.
Com um resmungo de revolta, Alma empurrou-o e aceitou a lástima de ter que voltar lá para baixo.
Voltou para buscar a filha mais jovem de Estevão e avisa-lo dos planos de Solon. Ele deveria selecionar um grupo de dez
elfos fortes e responsáveis, de confiança. Dez fadas igualmente capazes de agir em momentos de conflito, preferencialmente
esposas, filhas ou mães desses mesmos elfos. Uma questão de lógica, para evitar conflitos futuros. E as crias que
eventualmente dependessem dessas fadas.
Alimento deveria começar a ser embrulhado e amarrado em panos, e tudo que pudesse ser usado para içar alimento para cima.
Era algo gradativo. Um trabalho exaustivo que levaria dias para chegar ao fim.
Quando retornou para a superfície, Alma não esperou permissão, deitou-se na grama e fechou os olhos. Estava exausta.
Sentiu um toque no cabelo, e não olhou para Solon, apenas resmungou:
-Me deixe descansar um pouco e estarei pronta para trazer mais gente para cima.
-Eu só queria agradecê-la por estar colaborando - Solon avisou, beijando de leve sua testa – Sem você, nada disso seria
possível. Fique com Anastácia e Elba e as ajude se necessário. Eu vou olhar as cabanas e separar tudo que possa ser útil.
Alma concordou e resmungou, olhando para ele com olhos repletos de lágrimas não derramadas, pois era estranho ouvir
alguém agradecer-lhe e lhe atribuir algum valor.
-Estou com fome e não posso trabalhar com tanta fome.
Era uma reclamação. Alma era assim, não adiantava tentar convencê-la a ser diferente.

Alma descansou por uma hora. Não conseguiu dormir, a cabeça cheia de pensamentos e ansiosa por continuar ajudando. Solon
encontrou-a sentada na relva, abraçando os joelhos, a mente distante.

-Veja só o que arrumei – ele sentou ao seu lado e mostrou-lhe um pote de metal com alça, um balde pequeno e uma cordinha
fina, amarrada a varias outras cordas menores.– O que acha de usarmos isso para enviar recados lá para baixo? Isso lhe
poupará algumas viagens desgastantes.

Alma manteve os olhos sobre o seu Guardião. Aprovava sua sugestão, mas isso não era importante.
-Achou mesmo que eu houvesse fugido e deixa-o para trás?– perguntou, sabendo que não seriam interrompidos, pois Elba
dormia perto de onde estavam e Anastácia estava frenética demais, em conhecer esse mundo novo para ela, para se dar ao
trabalho de reparar neles.
-O pensamento passou pela minha cabeça quando demorou a voltar– ele foi franco
– Mas não pelas razões que você imaginou.
Solon pegou e manteve sua mão entre as dele, sem força-la a entender o que dizia. Nada de maiores explicações. É claro que
Solon temia que Alma sucumbisse aos pensamentos de liberdade. Depois de tantos anos de prisão no Ministério do rei, e
frente aos anos de clausura que podia visualizar em um futuro próximo, a fuga era a única alternativa aceitável.
-É melhor descer o recado. Quanto mais cedo trouxermos essa gente para cá, mais cedo eu poderei partir– ela avisou,
levantando.
Solon fez o mesmo e segurou sua mão com força, para que ela não fugisse justamente durante uma conversa:
-Irá fugir de mim?– era uma pergunta retórica.
-Não. Eu pretendo ir atrás de Joan. Ela é a mais frágil de todas nós. E pelo que Driana me contou... A Guardiã Zoé é a
perseguidora e eu não confio nessa cobra.– foi franca– Eu sei que não é a melhor alternativa, mas não sei como encontrar
Eleonora. A essa altura ela deve ter obtido suas asas e eu não a encontraria no mesmo lugar onde foi deixada. Joan é muito
jovem ainda... Ela não tem asas, e duvido que tenha tão cedo. Eu posso acha-la logo. Tirar Zoé do caminho. Solon não
perguntou que modo usaria para tirar uma guardiã do caminho, mas a pergunta não verbalizada pairou entre eles.
-Venha comigo para o Reino de Isac– ele pediu.
-Voltar para o castelo? – ela não acreditou nesse pedido estapafúrdio.
-Voltar como a minha protegida. Eu lhe digo Alma, e você precisa acreditar em mim: eu conto com influencia entre os
Conselheiros. Apelarei por sua causa. Por suas amigas. Venha como minha protegida. Eu não permitirei que mal algum se
abata sobre você.
-Você pode estar mentindo – ela disse seca, puxando a mão para se soltar.
-Mas não estou– ele foi decidido, segurando-a com ambas as mãos, em um ato de possessão.
-Você pode mentir.– ela pausou cada palavra, com magoa - Você é como todos os outros. Mente quando lhe convém e isso não
é um defeito. É a natureza de toda criatura. Você pode mentir para mim, Guardião, e me levar para o perigo por vontade
própria. Eu faria isso, usaria de seu afeto para conseguir cumprir uma missão. Como posso confiar que você não faça o mesmo
comigo?
Conseguiu se soltar e fitou-o com tristeza.
-Não voltarei com você. Não insista.
A tristeza impregnava sua voz. Voltar para os tuneis destruídos e para a escuridão quase total daquele lugar, era encontrar um
refugio em sua confusão.
Estevão separou os elfos e fadas que deveriam ir à superfície e nas próximas horas, Alma desanuviou a mente trabalhando
para ajuda-los nessa árdua tarefa. Aos poucos, foram se estabelecendo nas casas do vilarejo.
Quando amanheceu, Alma achou difícil crer que eles nunca antes houvessem estado na superfície. Integrados, ordeiros e nada
deslumbrados. Com exceção das crianças que corriam pela grama, e brincavam com total liberdade lúdica, os adultos
preparavam a chegada dos demais.
Uma sociedade fortemente unida por laços de respeito mutuo e proteção comum, e não individual.
Alma ouviu quando Solon instruiu dois elfos fortes a usarem as ferramentas encontradas nos casebres para derrubar e cortar
árvores, para usar a madeira na construção de choupanas improvisadas para abrigar as famílias que ficariam no sereno quando
resgatadas. Tudo muito improvisado, mas era um começo.

Capítulo 25 A fera
O resgate demorou três dias para alcançar o ápice. Era necessário cuidado em demasia com os feridos e anciões. Fadas
gestantes e outras situações complexa que demandaram muito trabalho e força física.

No final do terceiro dia, Solon havia inventado uma engenhoca formada com cordas e uma espécie de banco, onde ele descia e
subia, usando da força física dos elfos e fadas que já estavam na superfície. Era desse modo que ele içava os feridos, e muitas
vezes, os levava em seu colo.

A criatividade daquele elfo parecia não ter fim. Observando-o de longe agir, Alma quase acreditava que possuísse mesmo
uma carta em sua manga e que pudesse se valer disso para ajuda-la a enfrentar as acusações de cumplicidade no assassinato
do rei.

Estevão foi o último a ser resgatado. Sim, era quase simbólico que ele fizesse isso. Ainda haveria muitas decidas ao interior
daquele subsolo, para resgatar objetos, alimentos e pertences, mas oficialmente estavam livres daquela vida de mentira e
sofrimento.

Estevão foi recepcionado com gritos de euforia quando chegou ao vilarejo. Era cair da tarde, e Alma sorriu diante de tanta
alegria e disposição. Nenhum elfo ou fada comemorou enquanto o último de seu povo não foi resgatado. Agora eram livres
para comemorar.

Alma não quis se aproximar de Anastácia e sua família, pois a relação entre o cunhado e ela era delicadíssima. Recebê-lo de
volta era uma faca de dois gumes. Uma relação que envolvia amor e culpa.

Distraída, captou a imagem de Solon andando por entre os elfos e fadas em direção a um dos casebres. Em meio a toda a festa
e comemoração, tanta euforia e êxtase coletivo, ele queria e precisava de solidão.

Não conseguia interagir em meio a um tumulto. Era difícil ler lábios quando as pessoas estão eufóricas. E muita gente falando
ao mesmo tempo, o impedia de acompanhar as conversas.

Preso em seu mundo de silencio, Solon encostou a porta do casebre, um que temporariamente era de seu uso, e retirou o
bumerangue do cinturão. Pousou-o sobre a mesa de madeira no canto do quarto, e alisou o metal frio.

Sentia tanta falta de sua armadura. Era como se uma parte sua estivesse adormecida e precisasse acordar. Retirou o chocalho
do cinturão, estava entre amigos, e não precisava disso. As botas libertaram seus pés, deixando a que a carne respirasse. A
túnica de linho puída foi esquecida em um canto qualquer. Ele puxou a bacia de água que jazia sobre a mesa e usou a água
para lavar a face e espalhar água na cabeça, acalmando o calor e também os pensamentos nervosos.

Alma o observava pelo vão da porta. Água corria em seu peito e se perdia no cós da calça de camurça. Solon virou de costas,
e observou o final do dia através da janela aberta, sob a cama estreita de colchão de palha.

Ele parecia pensativo e resignado. O mundo sem sons deveria ser assim, pensou Alma. Solitário e frio, sem companhia.
Solon se moveu, com a graça de quem tem total domínio sobre o corpo e seus sentimentos. Sentou na beira da cama, e enterrou
a cabeça nas mãos, demonstrando que seus pensamentos não eram tão tranquilos quanto lhe parecia a distancia.

Alma olhou em volta, conferindo se alguém reparava nela. Sem saber de onde viera esse impulso, depois destes dias de
afastamento, Alma soltou as tiras que mantinham seu vestido preso atrás do pescoço e retirou os chinelos, deixando-os na
soleira da porta.

Entrou e fechou a porta. Perdido em seus pensamentos, sem ouvir o som de sua movimentação, Solon não viu a fada deixar o
vestido cair no chão e andar em sua direção.
Muito natural, o desejo queimava em suas veias e Alma queria estar com ele uma última vez antes de partir. Estava decidida a
partir e procurar esconderijo bem longe do Guardião. Não era por falta de confiança, era por excesso de credulidade. Vinha
crendo demais nas palavras labiosas daquele elfo.
E isso era perigoso. Entregou a ele sua castidade, entregou a ele sua confiança. E relutava em usar seu dom contra ele e isso
era assustador e perigoso. Não estava disposta a ser presa em uma armadilha enredada por paixão e sentimentos fúteis como
amor.
Não sabia que ansiavapor um ‘adeus’. Mas era esse o sentimento que a movia em direção a Solon. Era provável que jamais
voltassem a se encontrar. Primeiramente, ela não tinha planos de ficar no Reino de Isac, caso um milagre acontecesse, e fosse
inocentada junto de suas amigas. Se a sua situação permanecesse critica, ela pretendia voar para as terras mais distantes que
pudesse encontrar. Abandonar o Monte das Fadas.
E em nenhum dos seus planos, poderia encaixar um Guardião movido por honestidade e hombridade.
Solon reparou que não estava sozinho, e ergueu a cabeça para encontrar a imagem da sua fada escolhida nua e pertinho, ao seu
alcance.
Os cabelos castanhos cobriam os seios bem feitos e cheios e Solon molhou os lábios, pois sentiu toda a saliva desaparecer
diante do nervosismo de ser alvo do interesse de uma fada tão esquiva.
Agradar Alma era como tentar agradar uma deusa. Impossível para um simples mortal comum. Ela era intocável, sempre
fechada como uma ostra. E dentro dessa linda ostra havia uma perola intocada, pura e perfeita. E era essa perola que Solon
enxergava quando olhava em seus olhos.
Alma ergueu a mão e tocou seus lábios, pedindo que não dissesse nada. Correu os dedos por seus lábios e Solon segurou sua
mão, beijando os dedos, sem afastar seus olhos dos seus.
-Eu quero passar a noite com você– ela disse baixinho, mas ele ouviu.
Sua voz era uma benção para alguém com audição limitada como era o caso de Solon.
Ainda era dia, mas ela não se referia a isso. Não era uma colocação sobre horário e sim sobre a situação. Ela queria passar
todo tempo possível ao lado deste elfo antes de voltar a viver solitária e angustiada. Não queria pensar em detalhes tolos
como horários.
Solon sorriu e mordiscou seus dedos sensualmente. Alma também sorriu e se curvou para beija-lo. Beijar Solon era sempre
uma aventura. Os braços musculosos rodearam sua cintura, apertando fortemente na altura dos quadris, enquanto ditava o ritmo
do beijo. Alma enterrou as mãos em seus cabelos escuros, agarrando os fios, acariciando e desfrutando desses pequenos
detalhes, da sutileza de decorar seus traços através do tato.
Solon fugiu do beijo, em prol de enterrar a face nos seios que estavam exatamente na altura do seu rosto. Macios, perfumados
e quentes, e ele era um apreciador dos seios femininos.
Alma era uma fêmea de cheiro forte, ardente, anunciando previamente seu estado de excitação e ele apreciava seu cheiro.
Desfrutava disso, tanto quanto desfrutava de seus gemidos miados, como um gatinho ronronando sob os carinhos de seu dono.
Alma mantinha os olhos fechados, egoísta em seu prazer, enquanto Solon mordiscava e lambiscava seus bicos cheios. Sugou-
os avidamente quando ela sentiu os joelhos fraquejarem e se apoiou totalmente, sendo segura por seus braços.
Não ofereceria a ela apenas suavidade, e sim ardência. Se a fêmea veio procura-lo, era justo que decidisse e definisse o ritmo
desejado. Seu corpo deveria guia-los. Solon soltou seu peito com um som firme de sucção e ela abriu os olhos, atiçada, com
os pelos do corpo eriçados, como um animal prestes a se defender.
Alma empurrou seus ombros e Solon caiu para trás sobre o colchão, bastante contente em ceder aos seus impulsos de fúria.
Havia suavizado seus rompantes de ódio, antes tão comuns e frequentes, e era esperado que ela tivesse momentos de válvula
de escape.
E se fosse assim, na cama, Solon seria eternamente grato pela sorte de ser seu macho escolhido.
Sorrindo agarrou as laterais das coxas da fada quando ela montou sua cintura, sem trégua ou preliminares. O encaixe foi
perfeito e instantâneo. Solon plantou os pés com força no chão, oferecendo suporte para seu peso. Ela pousou as mãos em seu
peito, descendo-as para sua barriga e então as subindo novamente, enquanto rebolava sobre ele, esfregando em seu corpo,
querendo contato intimo.
Solon fechou os olhos, gemendo e apertando suas carnes, levado por sua sedução. Abriu os olhos imediatamente ao ouvir o
som das asas sendo abertas e por isso a puxou pelos cabelos, com um puxão nada delicado, para lhe roubar um beijo que a
distraiu do rompante de paixão que deixava alheia ao que fazia.
Pensou em lhe dizer sobre conter suas asas e o barulho, pois não desejariam ferir alguém. Não precisou falar nada, pois ela se
aquietou, as asas abertas, porém silenciosas.
Alma esfregou o peito no seu, gemendo forte, enquanto roçava a face em sua bochecha coberta por uma barba rala, de um dia
apenas. Pinicava e ela estava pegando fogo.
Respirando com força, arfante, ela subia descia, os braços fortes mantendo-a curvada sobre ele, enquanto a possuía
rapidamente, e com força. Alma queria assim. Uma lembrança que permanecesse em sua mente enquanto vivesse.
A janela aberta permitia que a brisa forte daquele dia, uma ventania que anunciava chuva entrasse e varresse o pequeno
casebre, levando consigo algumas folhas de pergaminho esquecidas sobre a mesa, onde Solon estivera fazendo anotações e
escrevendo uma carta. O papel correu pelo chão, e ficou esquecido em um canto qualquer.
Alma buscou para mais um beijo, segurando seu rosto, voraz em sua paixão e necessidade de possuir o coração do Guardião
que deveria caça-la e leva-la diretamente para as mãos nefastas de uma rainha louca.
As diferenças culturais e sociais entre os dois estavam destruídas desde o instante em que suas peles se tocaram, e nem mesmo
que pudesse, Alma lembrar-se-ia das razões para não estar fazendo isso.
Permitir que Solon desfrutasse de seu corpo e obtivesse prazer, era uma forma de afrontar suas amigas, que penavam e sofriam
na luta diária de esconder-se e manter-se incólume. Era um sinal de derrota. Mas se ela insistisse em pensar desse modo
jamais teria qualquer tipo de felicidade. Seria uma eterna refém do martírio da culpa.
Alma sentiu quando Solon a empurrou gentilmente para longe e subiu o dorso, pois ele queria assisti-la. Imediatamente suas
mãos envolveram seus seios, e apertaram a carne com dedos possessivos. Simplesmente esquecida de quem era, e de qual a
sua real motivação para estar em seus braços, alma cavalgou o elfo, fingindo para si mesma que não precisaria apartar-se dele
jamais.
Seu coração havia admitido, mesmo que simplório, que o nome certo para os sentimentos que nutria por Solon, era ‘amor’. Um
sentimento simples, inocente e sem malicia. A carne, o corpo e os instintos possuem malicia, jamais o coração.
Ela segurou um grito, empurrando o corpo para trás. Praticamente erguendo as pernas, retirando o membro praticamente todo,
antes de empurrar o quadril para frente, engalfinhando-o outra vez.
Repetiu esse movimento umas duas ou três vezes, e Solon retribuiu apertando suas coxas, agora que fora privado do prazer de
ter seus seios nas mãos. Ele lhe deu um tapinha na coxa direita, instigando-a a fazer isso mais uma vez.
Alma empurrou os cabelos para trás e repetiu o movimento. Sua mão tocou o próprio ventre, apreciando o prazer que isso lhe
conferia. Um pouco de compasso, onde havia apenas o caos. Solon puxou-a pelas coxas, pedindo que voltasse ao ritmo
anterior e ela riu suave, enquanto endireitava o corpo e o cavalgava duramente.
Pouco tempo depois, aos gritos, alma encontrou a libertação que tanto procurava. Foi voraz e intenso, luzes escuras sob seus
olhos pesados, fechados e tensos. A libertação era maravilhosa quando seu corpo estava assim, retesado, tenso e exigindo
alivio.
Não era apenas sexual. Era vital libertar todo o amor que não conseguia demonstrar. Era egoísta de sua parte, mas ela
desfrutou sozinha do ato, assistindo deliciada os nuances do rosto do elfo quando foi à vez dele gozar.
Era um espetáculo assistir as expressões do rosto bonito. Beijou-o antes que as palavras viessem e estragassem o momento.
Alma acalmou os movimentos e subiu o corpo, libertando o corpo do elfo, enquanto se movia na cama estreita e apoiava a
cabeça no travesseiro de penas. Seu propondo suspiro de contentamento foi a deixa para que Solon se ajeitasse ao seu lado, e
a trouxesse para o seu peito, em um abraço calmo.
Um beijo suave em sua testa e carinhos em seu cabelo. Os mesmo carinhos que a poucos dias atrás tencionavam acalmar uma
fera ensandecida e enjaulada, na busca frenética por liberdade, e que agora, tencionava apenas recompensa-la por permitir que
desfrutasse desses momentos tão íntimos e prazerosos ao seu lado.
-Eu não quero sair daqui - ela disse baixinho, avisando-o que esperava que ele também não quisesse.
Havia uma festa acontecendo, onde comemoravam liberdade e redenção, mas para Alma era o final de um ciclo, e ela se sentia
outra fada. Sua cabeça estava do avesso e estranhamente isso não lhe parecia errado.
-Ficaremos aqui dentro, apenas nós dois.– Solon prometeu– Eu disse a Estevão que não pretendo participar das
comemorações.
-Tolice comemorar quando há tanto para fazer– ela disse erguendo a cabeça para olhar em seus olhos.
Corada do recente prazer, arrancou do elfo um sorriso malicioso que fingiu não notar.
-Essa gente precisa de esperança, Alma. Eles perderam tudo. Suas casas, as regras, a rotina de suas vidas. Eles não sabem o
que pensar ou a quem seguir. Alguns falam em partir, conhecer o mundo, outros em voltar lá para baixo. É um momento
confuso. Em alguns dias, tudo se acalmará e pensarão com clareza.
-E uma festa os ajudará a pensar com clareza?– duvidou dessa fraqueza.
-Não, mas ajudará a lembra-los do que vale a pena. A amizade construída ao longo dos anos de convívio, os laços afetivos, o
amor e o respeito. Isso é a única coisa que prevalece apensar de tudo. Por isso é tão importante amar, Alma. Pois esse é o
único sentimento que não parte jamais.
Pensativa, ela deixou a cabeça em seu ombro e fechou os olhos, sussurrando:
-Eu gostaria de conseguir fazer isso. Comemorar e me divertir, sem pensar em mais nada.
-Não quer tentar?– ele perguntou após alguns instantes de silêncio, meditando sobre isso.
-Eu teria que sair daqui – ela lamentou, e seu sorriso convencido quase à fez desmentir essa afirmação – Para você não deve
ser confortável ficar em uma comemoração com tantas criaturas.
-Eu posso repensar o que é bom para mim, se tiver a companhia certa – ele sugeriu, segurando-a pelas costas, enquanto a
beijava de surpresa, um beijo rápido e modesto apenas para sumir com o vinco de preocupação que insistia em surgir na testa
bonita de Alma.
-Afinal, eu não o vi tocar instrumento algum– lembrou-se de sua promessa de dias atrás, quando ainda estavam presos no
subsolo.– Eu gostaria de ver se isso é mesmo possível.
-Hum, eu posso tocar para você. Mas...– ele fez um gesto exagerado, como quem exige atenção -... Exijo uma paga em troca
desse agrado.
-E o que mais posso lhe oferecer?– ela apontou o corpo nu, exposto e ainda suado do ato sexual.
-Dance comigo. - pediu singelo.
Era um pedido tão singelo.
-Eu posso dançar normalmente, se você ditar o ritmo com sua dança. Sabe dançar?
-É claro que sei– ela disse quase ofendida por achar que não – Eu não danço. Nunca. Jamais. Nem em sonhos. Mas sei dançar.
Sua veemência e a contradição impressa nessa afirmação o fez rir leve, do jeito que apenas um amante satisfeito e apaixonado
pode rir.
-Aposto como dançava no Ministério do Rei, escondida de todos– ele sugeriu o riso alcançando os olhos de modo cativante.
-Tudo culpa de Eleonora e Joan.– ela disse imediatamente, corando - Elas não aceitam um ‘não’ como resposta. Deixo claro
que Driana, ou eu, não colaborávamos de livre vontade, éramos sempre forçadas– disse convencida disso.
-Eu acredito– ele fez troça.
-é verdade! As duas são impossíveis quando se juntam em uma ideia!– insistiu.
-E você, se vergava a vontade de suas amigas?– ele fingiu duvidar.
-Como eu disse as duas não aceitam um ‘não’ como resposta – reafirmou, escondendo um sorriso.
Às vezes em que dançavam escondidas de todos, ouvindo a musica das festas do castelo, que democraticamente alcançavam
cada recanto, sem distinção, Alma sempre participava com alegria, mesmo que escondesse.
Repudiava esses momentos com a mesma veemência com que os apreciava.
-Eu danço. - concordou de má vontade, escondendo a vontade reprimida de participar de uma festa real. - Mas primeiro, quero
vê-lo tocar.
-Muito justo, fada desconfiada.– ele sentou na cama e Alma observou-o andar pelo casebre juntando suas roupas e se vestindo.
Preguiçosa, relutou em fazer o mesmo. Estava amarrando o vestido atrás do pescoço quando notou as folhas de pergaminho
jogadas no chão. Pegou-as e leu brevemente o que dizia.
Solon possuía letra caprichada, bem feita e graúda.
-Está escrevendo para a rainha?– sua pergunta soou acusadora.
De costas, prendendo o chocalho ao cinturão Solon respondeu completamente despreocupado:
-Leia até o final antes de me acusar– era um lembrete.
Foi o que Alma fez. Não era nada demais, um bilhete simples, dizendo que estava seguindo uma pista consistente do paradeiro
da fada Alma, sem, no entanto, fornecer detalhes significativos. Também dizia ter vasculhado o vilarejo sem fim, e não haver
indícios de maior investigação por aqueles lados.
Era um meio de manter o vilarejo fora do alcance dos olhos de rapina da rainha Santha e assim garantir algum tempo para que
aquela gente se estabelecesse e acalmasse, decidindo o que fazer das próprias vidas.
-Vamos?– ele estendeu uma das mãos em sua direção, e ela deixou os pergaminhos sobre a cama, aceitando seu convite,
entrelaçando os dedos sem hesitação.

Capítulo 26
Tenha medo do escuro
Os elfos que tocavam acharam graça de ceder uma das flautas para Solon. Não falavam do assunto, mas há muito tempo
haviam notado sua dificuldade em ouvir. Evitavam perguntas, pois se não era desejo do elfo falar do assunto, não era desejo
deles questionarem o único ser em toda a existência daquele povo que se dedicou à salvá-los e lhes dar a oportunidade de
viver plenamente.

Vestindo a túnica, em desalinho, e a calça justa, com as botas, Solon posicionou a flauta e com uma mesura começou a tocar.
Alma achou instigante vê-lo em desalinho, pois lembrava que Solon era o Guardião maia arrumadinho e pomposo de todos.
Sempre perfumado, bem penteado e barbeado.

Isso deveria ser uma mascara para esconder sua natureza simplória do povo. A música ecoou naquele comecinho de noite, e
ele deixou o corpo acompanhar às notas musicais que estavam impregnadas e registradas em sua mente, mesmo que seus
ouvidos não pudessem entende-las.

O som das palmas acompanharam a musica e os casais e crianças dançando incentivaram os outros músicos a tocarem,
acompanhando a flauta. Alma não sabia que um Guardião pudesse tocar uma flauta. Múltiplos talentos, pensou Alma.

Porque ficaria surpresa? Solon era um estrategista nato, hábil em tomar decisões acertadas em momentos críticos. Um líder
sem comparativos. Um Guardião competente e justo, um amante dedicado e um exímio tocador de flautas.

A canção durou alguns minutos e Solon terminou sua apresentação sorrindo, com uma felicidade genuína que alcançava seus
olhos brilhantes e galante, estendeu uma das mãos para entregar a flauta longa e dourada, que pertencia a uma dos elfos, e com
a outra mão buscou por Alma.

Ela lutou para não rir tolamente quando foi rodopiada ao som da musica. Não eram os únicos a dançar. Alma acompanhou-o
entusiasmada. Solon sabia conduzir, marcando as passadas com força, enquanto sua parceria de dança girava e rodopiava,
movendo os quadris no som da batida forte entrelaçada a suavidade da flauta agora tocada por um jovem elfo que substituía
Solon.

Esquecida de quem era, e de suas aflições diárias, Alma dançou com todo seu coração, divertindo-se como nunca em sua vida.
Solon estava certo em dizer que comemorar era libertador para a mente.

Os corpos se roçavam o tempo todo, ansiosos, procurando contato, usando da dança para acarinhar e provocar. Era sensual e
excitante. Alma sentia o sangue ferver nas veias, as faces quentes, as mãos ansiosas por pegar e apertar o elfo entre seus
dedos, obtendo dele mais e mais daquela única sensação de ser amada.

Em determinado momento, muitas horas mais tarde, em meio à dança e animadas conversas, alimento e vinho, Alma foi pega
por Solon, e abraçada por trás, enquanto ele sussurrava obscenidades em seu ouvido, e não adiantava tentar afastar suas mãos,
as crianças estavam dormindo nos casebres, e haviam apenas adultos desfrutando da musica e dança.

Solon apalpou sua barriga e suas coxas e a chamou baixinho, convidando-a para algo. E nesse enlevo de paixão, sob as
estrelas de um céu sem lua, Alma o seguiu para as árvores escondendo-se junto dele de olhos curiosos. Solon a encostou no
tronco de uma grande árvore, e ergueu a saia de seu vestido, escondendo o rosto em seu pescoço quando a possuía sem
delongas, pois a uma noite toda de dança e caricias veladas em público manteve os corpos em constante estado de excitação e
adrenalina.

Depois disso, não restou espaço para conversa. O prazer levou todas as perguntas e os dois passaram muito tempo em meio a
floresta, desfrutando da liberdade de escolher onde e com quem desejavam ficar.

Mais tarde Solon a levou para o casebre e adormeceram juntos e abraçados na cama estreita.

Os primeiros raios de sol acordaram Solon de um sono profundo e carregado de sonhos de um futuro acolhedor e feliz. Sonhos
bobos para um elfo que já vira de tudo em sua vida, e sabia que a felicidade é constantemente posta a prova e raramente
sobrevive as peripécias do destino.

Avistou Alma de pé, se preparando. Ela não vestia o vestido, e sim uma calça de elfo, e uma espécie de colete feminino, feito
em couro, com aberturas ajustadas as suas asas, permitindo total liberdade de movimento.
O couro trançava diante de seu peito, moldando-o sedutoramente. Ela amarrou os longos cabelos em uma trança alta, pendendo
de um rabo de cavalo.
Solon admirou a força que o penteado empregava em sua face. Nos pulsos Alma usava braceletes de couro e quando ela
prendeu um cinto largo, com punhais, Solon entendeu que acontecia.
Enquanto dormia, Alma levantou, zanzou pelo vilarejo e voltara para a cabana, talvez para espera-lo acordar.
-Está partindo – ele afirmou.
Alma havia percebido que o Guardião estava acordado. Esperou que falasse com ela, que percebesse o que acontecia, pois
assim, ela se isentava de precisar explicar.
-Sim, estou indo embora– não negou.
Ainda de costas, Alma arrumou o cinturão. Solon fitou a bolsa de couro, com uma única alça, onde provavelmente ela juntara
todos os seus pertences.
-Está bonita vestida assim.– ele disse sério, mas sem confronta-la por causa de sua partida.
Alma olhou para trás, fitando-o com curiosidade.
-Anastácia me deu algumas roupas. Ela diz que eu pareço desajeitada de vestido– explicou, seguindo a mesma estratégia de
Solon. Não falar do acontecimento maior. Gastar tempo, e permanecerem juntos mais um tempo, mesmo que a partida
estivesse próxima.
-As botas serão uteis na floresta – ele disse banalmente, referindo-se as botas que Alma usava. Eram botas de cano longo, que
cobriam suas canelas e subiam até os joelhos. Não havia salto, eram perfeitas para longas caminhadas.
-Eu posso usar minhas asas sem medo. Não andarei pela floresta – ela negou, e aproximou-se da cama– Eu pretendia dizer
adeus antes de ir. Não é uma fuga– explicou.
-Eu não pensei nada diferente disso – Solon tocou a ponta dos cabelos, onde havia uma fita de couro amarando a trança. Era
um carinho saudoso.
Os olhos de Solon refletiam saudosismo.
-Eu disse que não estou caçando-a e não vou me desmentir, impedindo-a de ir– sentou na cama, e enrolou-se no lençol,
levantando.– Eu vou me vestir. Precisamos conversar sobre sua partida.
Solon não lhe pedia que o esperasse. Ele dizia que iria espera-lo, porque era o mínimo que ambos mereciam depois de tudo
que passaram juntos. Acenando com a cabeça, Alma concordou e saiu do casebre, misturando-se aos elfos e fadas que
trabalhavam.
A festa da noite anterior não os impediu de acordar cedinho para continuar os trabalhos exaustivos. Muitas famílias estavam
ao relento, era necessário pensar em moradias, e era melhor fazer isso antes que a temporada de chuvas começasse de
verdade.
Alma sentou-se em um tronco de árvore derrubado, que em breve se transformaria em madeira para construção e esperou por
Solon. No dia anterior ele havia desenhado um mapa da região e feito uma espécie de calendário com anotações
imprescindíveis para quem vivia na superfície.
Por exemplo, a temporada das chuvas. Apesar das constantes tempestades que impediam as obras de seguirem e assustavam as
crianças menores que nunca antes ouviram barulho de chuva, trovões e viram raios, a temporada chuvosa não havia atingido o
ápice quando os temporais eram impiedosos.
Internamente Alma se perguntava como Solon faria para se livrar daquela gente. Mesmo os elfos mais fortes, eram
desprotegidos por conta da ignorância. Não sabiam sobreviver na superfície. Lidar com a terra viva e as plantas.
Os elfos e fadas que costumavam habitar a superfície, mantendo a farsa sobre o Vilarejo sem Fim haviam se tornado
prisioneiros juntos com Agra, e não serviam como referência de sobrevivência e não poderiam confiar em seu julgamento.
Solon poderia não ter se conscientizado ainda, mas estava preso a dependência emocional e social de todo aquele povo.
Distraída, Alma sorriu quando uma das fadinhas, sobrinha de Anastácia correu na sua direção. Ela sempre se empoleirava em
qualquer lugar que pudesse escalar, para alcançar as asas de Alma e saturar sua curiosidade, brincando com elas.
Anastácia surgiu gritando e chamando-a de volta para o casebre. Era uma vida estranha e Alma sabia o quanto a outra fada
estava estranhando. Viviam em uma casinha, e ela precisava lidar com a presença angustiante de seu cunhado e as sobrinhas.
Não eram um casal, mas caminhavam para isso, e Alma podia sentir o desespero de Anastácia por conta disso.
Metade sua amava Estevão. A outra metade se destroçava em culpa e remorso por querer o elfo que pertenceu a sua irmã e
posteriormente a sua melhor amiga, Pía, da qual guardava luto de ambas.
A fada acenou a distancia e Alma retribuiu o gesto. Haviam conversado no dia anterior e Anastácia sabia de sua partida.
Alma baixou a cabeça quando Solon chegou até o lugar onde se escondia. Ele sentou ao seu lado e fitou-a com insistência,
esperando que falasse em primeiro lugar.
-Eu preciso ir. Não posso e não quero continuar aqui esperando que me encontrem e me entreguem para rainha Santha.– fitou-
o, olhos piscando pelo sol que os banhava e doíam sua retina– antes de conhecê-lo, eu já devia minha vida as minhas amigas.
É para com elas que devo minha lealdade.
-Eu não quero seu dever, Alma– ele tentou conversar.
-Tão pouco minhas amigas me pedem isso. É um dever diferente. Eu preciso ajudalas. E me manter segura é a melhor forma de
impedir que todas sejam apanhadas. Seu amigo, Acheron, tentou usar Driana como isca. Quem garante que outro Guardião não
tente o mesmo me usando como isca?
-Eu só posso responder por mim mesmo – Solon se defendeu.
-Eu sei disso – concordou.– Eu parei de culpa-lo por ser quem é. Você escolheu sua profissão antes de me conhecer.– ela
tentou sorrir e ele fez o mesmo.
-Eu não escolhi ser Guardião. Não me restou alternativa, Alma. Acredite quando eu digo que assim como acontece com você,
também não me deram direito a escolha.
-Você nasceu para fazer isso – ela disse carinhosa, estendendo a mão para tocar seu braço. Não era um carinho propriamente,
era apenas um toque. Era uma evolução imensa para alguém como ela, no entanto, Solon apreciava demais vê-la tão entregue e
sem medos para com ele.
-Mas nem sempre foi assim, ou me senti assim. Um dia, - ele segurou sua mão e levou aos lábios, beijando seus dedos com
muito amor– eu lhe contarei toda a minha história, fada, e nesse dia você entenderá porque eu a escolhi e porque me recuso a
desistir de você.
Emocionada, Alma baixou a cabeça e lutou contras as lágrimas.
-Eu queria muito acreditar em você e em suas intenções. Eu tenho muito a perder se for tudo uma fantasia. Prefiro ir embora
enquanto é tempo.
-Está sendo tola. Com o seu dom você pode controlar a situação facilmente. Eu sei que é errado e desonesto, mas você pode
mudar a vontade da rainha Santha e de qualquer outro que deseje se impor sobre você.
Alma concordou. É claro que sabia disso.
-Eu não sou burra, Solon. É provável que haja uma proteção extra no castelo esperando por um ataque nosso. Principalmente
por causa do meu dom. Não vou correr o risco de colocar tudo a perder e ser apanhada. Prefiro encontrar Joan e Driana e
juntas decidiremos o que fazer. Com minhas asas... Eu posso encontra-las rapidamente. Eu sei como elas pensam e sei onde
acha-las. É questão de tempo para que isso aconteça.
-Eu temo por vocês quatro sozinhas sem orientação. Que abram mão de serem inocentadas e optem por uma vida inteira de
fugas, sem saber que há uma alternativa. Alma, eu lhe garanto que tenho influencia junto aos Conselheiros. Posso conseguir
interceder por vocês. Conseguir um julgamento justo.
-Influência? Que tipo de influência? – perguntou irônica.
-Eu não posso lhe contar ainda, você não confia em mim e eu não me sinto pronto para lhe contar sobre isso – admitiu.
-Veja – ela levantou e disse acusadora– Eu não confio em você e a recíproca é verdadeira. É melhor eu ir de uma vez.
-Ao menos diga onde escondeu minha armadura– ele pediu humilde, magoado por ser abandonado, por sua fada escolhida não
confiar em sua proteção.
-Não. Você é um Guardião. Eu não lhe contarei onde ela esta, para que não tenha uma vantagem sobre mim. Sou uma fada,
tenho asas, e um dom útil, mas não sou páreo para uma armadura na posse de seu Guardião.
-Não pode partir e me deixar sem minha armadura. Eu deixei esse assunto de lado porque achei que em algum momento me
contaria do seu paradeiro! – indignou-se.
-Sinto muito, eu deixei claro desde o princípio que isso não aconteceria. Eu não sou um anjo de candura, Solon. Você se
recusa a ver isso. Posso não ser uma assassina fria e calculista, ou uma psicopata louca, como agora consigo ver que não sou,
mas ainda assim, não sou uma fada desprotegida e doce. Sou diferente das outras fadas. Sou o oposto do que você quer que eu
seja.
-Eu quero minha armadura de volta, Alma, não posso voltar para casa sem ela! Todos saberão que fui roubado e não fiz nada
para recuperar meu poder!– ele andou, alcançou-a e segurou-a pelo braço – não seja covarde, me conte onde está. Eu levarei
muito tempo para recupera-la, não tenho asas, você sabe disso. Conte-me onde escondeu minha armadura!
-Não! Se o envergonha admitir sua derrota, não volte para o castelo. Faça como eu, fique zanzando seu destino e sem paragem.
É assim a vida de fadas fugitivas, porque seria diferente com um Guardião que envergonha seu reino?
Solon a soltou e tomou distancia.
-Eu vou seguir para o castelo e enfrentar as consequências da minha submissão a uma fada que não gosta de mim. E você? Siga
sua vida de covardia.– ele disse magoado, fechando-se em pura magoa.
Alma não sabia, mas ele havia superado muitos traumas passados para tentar ajudala. E agora, a consternação de descobrir
que novamente era enganado e espezinhado por quem amava.
-Não venha atrás de mim, seria patético – ela disse, segurando a bolsa de couro em um ombro e olhando em torno,
despedindo-se simbolicamente daquele povo que a acolheu e lhe devolveu a sanidade perdida durante dos anos de clausura no
Ministério do Rei.
-Eu não sei que eu ainda quero ir atrás de você– ele afirmou com a voz carregada de pesar e desilusão.
-Não me culpe por ter se iludido sobre mim. Eu nunca lhe prometi nada, Solon. Eu nunca lhe ofereci nada. Eu nunca partilhei
nada de mim com você.– era seu modo de pedir desculpas por magoa-lo, pois no fundo, ela não fizera nada para que ele
acreditasse que seria diferente.
Pelo contrario, Solon a ensinou a ser menos bruta e odiosa, ajudou-a a obter seu dom definitivo e a desconfiar de si mesma,
quando se perdia em pensamentos de morte. Solon a ensinou a ver algo de bom dentro de si. Ela devia tudo a ele. Mas não
podia partilhar nada com ele.
Dividida entre esses desejos, fitou-o a espera de um comentário qualquer.
-Eu vou tentar encontrar minha armadura antes de voltar ao castelo. Se você se arrepender de me apunhalar pelas costas...
Procure-me. Eu estarei esperando-a de braços abertos.– contrariando a magoa e a raiva Solon lhe oferecia uma segunda
chance.
Enraivecida por ser pega de surpresa com sua complacência, Alma olhou para o céu antes de bater as asas.
-Eu não vou procura-lo. Não adianta esperar por isso. Vai perder seu tempo.
-Vale a pena perder meu tempo esperando-a – ele disse irritando-a novamente.
-Não fale assim!– ela desistiu de voar e avançou em sua direção, jogando sobre ele sua frustração– Não vou me sentir culpada
e lhe contar do paradeiro da armadura! Desista de me manipular! Desista!
Alimentar uma raiva imaginaria era o combustível que precisava para conseguir abandona-lo. Em muito pouco tempo Solon
lhe roubou o coração e ela não sabia que não queria seguir sem ele. Até mesmo sua fúria parecia branda demais, para quem
sempre foi alimentada por ódio e rancor.
Invocada, Alma bateu as asas fervorosamente e alçou voo. Para bem longe do Guardião, pensou. O mais longe possível do
risco que representava entregar-se a um amor impossível!
Solon permaneceu de pé, observando-a desaparecer no céu azul. Quando sua imagem sumiu de vista, baixou a cabeça e olhou
para os próprios pés. Alimentaria a esperança que Alma voltasse para ele. Por isso não a prendeu. Nem mesmo tentou
subjugá-la ou aprisiona-la. Preferia confiar que nutria sentimentos por ele, e que voltaria espontaneamente.
Esperava não estar enganado. Não queria passar por uma desilusão desse porte uma segunda vez na vida. Sem sua armadura,
ele não era nada além de um elfo sem capacidade de ouvir. Lutando contra a auto depreciação, Solon desistiu de esperar que
ela voltasse arrependida naquele instante, pois suspeitava que levasse alguns dias para o arrependimento trazê-la de volta,
Solon procurou por Estevão, pois precisa arrumar suas coisas e partir, mas possuía o desejo de orienta-lo sobre como manter
seu povo unido em sua ausência.
Uma ausência que esperava ser breve, pois Solon temia ter encontrado seu lugar no mundo. Um mundo da qual a presença de
Alma era imprescindível. Ela voltaria, convenceu-se. Voltaria para ele.
Alma pousou na copa de uma árvore. Nunca fizera isso antes, estar sobre a copa de uma árvore, mas conseguiu se manter com
dignidade apoiada em um galho enquanto observava o Vilarejo sem Fim. Estava arfante, primeiro havia voado para longe,
muito longe, então seu coração apertou, e ela precisou voltar.
Ainda não sabia o que iria fazer, mas voltou assim mesmo. Ficou observando a movimentação do vilarejo, os elfos e fadas que
iam a vinham, cuidando de suas vidas.
Alguns ainda trabalhavam no subterrâneo recuperando pertences e moveis, mas a maioria cuidava da nova vida e do novo lar.
Alma ajeitou-se sobre a copa das árvores, vez ou outra olhando desconfiada para baixo, pois não gostava de altura.
Incomodava-lhe profundamente estar frágil e dispersa. O que ela queria afinal? Precisava encontrar Joan e Driana! Precisava
aliar seu dom aos pensamentos lógicos e dinâmicos de Driana. Sua amiga saberia exatamente como usar seu dom de hipnotizar
com a voz, de um modo que obtivessem êxito total.
Era nisso que precisava se concentrar e não ficar correndo atrás de um Guardião! Com o coração quebrado, Alma permaneceu
ali por algum tempo. Solon demorou até sair da casa e percorrer o vilarejo delegando ordens, e conversando com elfos e fadas
antes de pegar estrada.
Será que ele falava mesmo a verdade quando dissera que procuraria a armadura sozinho? Ele nunca encontraria sem a sua
ajuda e direcionamento.
Alma se moveu, voando alto, bem distante, seguindo-o sem se fazer notar. Quando Solon entrou na floresta e dirigiu-se para os
lados do Rio Branco imaginou que seu destino fosse o Vale dos Desesperados, na busca pela velha duende que a ajudou no
começo de sua trajetória de fugitiva.
Era inteligente de sua parte buscar por pistas, mas totalmente ineficaz, pois mesmo que houvesse contado para a duende sobre
a armadura, algo que não fizera, ainda assim, Solon jamais convenceria a criatura a abrir o bico.
Sofredora de causar dissabores para um elfo que apenas lhe trouxe alegrias, Alma manteve o ritmo do voo, para não se
revelar. Desse modo ela o seguiu até escurecer.
Solon acampou em uma clareira discreta no meio das árvores. Sempre sozinho, ele agiu de modo coreografado cuidando de si
mesmo. Foi assim sua vida toda, e ele se iludira com a possibilidade de ter alguém com quem dividir sua vida e sua confiança.
Alma observou-o dormir ao relento, fitando as estrelas, procurando nelas a resposta para suas aflições e milhares de
perguntas. Ela também possuía perguntas. Por exemplo, a vontade inexplicável de saber em quem pensava.
Se era nela e no que aconteceu entre eles naquela realidade paralela, presos em um mundo subterrâneo, vivenciando uma
experiência única e lutando pela sobrevivência, ou se pensava em outra pessoa.
Algumas vezes ela suspeitava que Solon possuísse um amor perdido ou algo do gênero. Que talvez por isso se negasse a falar
com ela sobre o que lhe acontece, e a causa de ter sofrido o atentando que lhe roubara a audição.
Escondida na floresta, ela recostou-se no alto da mais frondosa das árvores e encostou a cabeça em seu tronco, suspirando
pesarosa.
Culpa assolava seu coração. Porque não lhe contou onde estava a armadura? Era o mínimo que poderia fazer para retribuir o
bem que lhe fizera!
Alma não tinha como saber que deitado, insone, Solon torcia secretamente e silenciosamente para a sua fada se arrepender e
vir atrás dele. Era uma ilusão, assim como a maior parte dos amores é, mas era uma ilusão tão bonita que ele se recusava a
abrir mão dessa chance de ser feliz.
Afastando a angustia e o desespero que as lembranças do passado lhe traziam, Solon fechou os olhos e tentou dormir. Quando
pegou no sono não ouviu ou notou que Alma desceu do galho de árvore e andou lentamente em sua direção, incapaz de conter
seus impulsos egoístas.
Surrupiou de sua comida, ainda quente em uma panela improvisada. Bebeu de sua água e roubou uma das frutas que ele
escondera em sua bolsa de couro. Infelizmente no afã de partir, ela se esqueceu do detalhe importante que era levar alimento
extra. Levava consigo apenas um cantil e caçar estava fora de cogitação, pois nunca fizera isso em sua vida.
Comeu calmamente, pois conhecia ao sono pesado de seu amante. Solon dormiu durante todo o tempo em que ela ficou junto
dele no acampamento. Então, quando começava a amanhecer, ela voo e se escondeu.
Solon acordou, juntou seus pertences e fingiu não notar que havia menos comida que na noite anterior. Fingiu não dar por falta
de água extra e frutas. Ocultou um sorriso de alivio e alegria ao perceber que estava certo em acreditar que aquela fada era
perfeita para ele e aprendera a ama-lo de algum modo.
Tudo ficaria bem, pensou Solon. Os dois encontrariam um modo de fazer as coisas darem certo. Recolhido seus pertences
Solon seguiu viagem. Admitia que seria mais fácil se a fada simplesmente desse o braço a torcer e lhe oferecesse uma carona
com suas lindas asas. De preferência uma carona até o lugar onde escondera sua armadura.
Mas enquanto isso não era possível, ele aceitava sua secreta presença. Era melhor do que nada.
Crendo estar incógnita, Alma o seguiu de perto, sempre no meio das árvores. Preferia andar, não era uma fada apegada a voar.
O medo havia amenizado, mas ela ainda era da terra e não do ar.
Algumas vezes ela sorria vendo Solon interagir com a natureza, ele era ágil para caçar e apreciava a flora. Infelizmente era
uma toupeira em relação aos perigos distantes.
Tensa, ela percebeu que não estavam sozinhos alertada pelo barulho de passos. Solon percebeu pelo barulho do chocalho
mágico, mas somente quando o perigo estava muito próximo.
Alma ficou imóvel, observando-o manter a postura corajosa quando seu inimigo se revelou.
Um elfo gigantesco, coberto por marcas desenhadas na pele, e roupas de linho brancas como algodão. Era moreno, pele
escura, cabeça raspada inteiramente. Não carregava espadas ou qualquer outra forma de armas.
Solon notou bem antes de Alma que na verdade o risco era outro, não apenas o elfo de postura intimidadora. Ao lado do
homem, dois raptores imóveis a espera de ordens, ambos da cor branca, anomalias da natureza, pois a cor predominante da
raça era um marrom escurecido.
Uma miúda fada surgiu de trás do elfo. Muito pequena, curvilínea e vestida de branco, como uma aparição ou uma deusa de
candura, a fada sorriu e adiantou-se a presença dos elfos e seus animais de estimação. Na verdade, o elfo gigantesco era um
dos seus animais, em total domínio. A fada sorriu e cravou os olhos no Guardião.
E o pior de tudo, era que Solon a reconhecia. Alma conscientizou-se com horror, que o Guardião conhecia aquela fada.

Capítulo 27 O que me pertence

-Quanto tempo – disse a fada– Quanto tempo que não vejo o Guardião Solon pessoalmente.– sua voz era cantada, rítmica e
suave, e ela sorriu ao notar que ele não podia entende-la– Vejo que continua surdo como uma pedra. Que decepção, Solon,
pensei que seu pai ajeitaria as coisas para você.

Alma franziu as sobrancelhas sem entender o que a fada queria dizer. Não sabia quem era o pai de Solon, pois nunca ouviu
falar sobre ele.
Solon entendeu parte da frase, acompanhando o movimento de seus lábios. Estava contrariado com sua visita inesperada.
-O que você quer de mim?– perguntou sem delongas.
-De você? O que eu quero de você? Porque eu deveria querer algo de você? - a fada aproximou-se e Solon não se moveu, mas
Alma notou sua postura tensa.– Nosso último encontro não foi dos melhores... Mas eu ainda guardo boas lembranças.
A fada falava em códigos e Alma sentiu o ciúme remoer dentro de si. Chegou de considerar a possibilidade de virar as costas
e partir, para que não ser obrigada a ver um embate entre Solon e uma ex-amante. Ou quem sabe, um ex-amor do passado?
-Está me seguindo?– ele perguntou sério - Foi banida dessas terras, Charlotte.
-Não posso ser banida da terra de meu pai– ela disse com empáfia – Tenho sangue de Rei Ulder correndo nas veias. Sou a
vigésima geração depois dele, e essa terra ainda é minha por direito.– ela fez questão de elucidar.
-Não. Você é a filha bastarda de um Guardião. Você não é nada. Foi renegada e expulsa por conta de seus crimes. É uma
fugitiva.– ele disse com maldade na voz.
Alma sentiu desconforto de reconhecer esse sentimento em Solon. Ele não era assim, mas aquela fada lhe despertava esse
instinto.
Pequena, com pouco mais de um metro e meio, curvas suaves e bonitas, rosto de boneca de pano, com traços angelicais e
longos cabelos louros encaracolados até a cintura, asas rosadas, curtas e arredondadas, a fada era tão bonita como uma flor
recém-colhida pelo orvalho de uma manhã de primavera.
O oposto exato de Alma.
-Papai não sabe o que faz, é muito velho para decidir por si mesmo. Eu andei muito, Solon, meu querido, e aprendi a dominar
meu dom. Agora, eu quero tudo que é meu de volta. Por isto estou aqui. Por isso o segui desde a sua partida do Reino de Isac.
Eu fiquei confusa– ela disse sorrindo e andando em torno de Solon com plena confiança de não ser atacada– quando Alma
perdeu seu rastro– ela olhou para o elfo que a acompanhava– Foi bom ter aguardado. Que bela surpresa descobrir que você
trouxe a superfície o povo da escuridão. Eu já tinha ouvido falar deles, mas nunca antes soube como encontra-los. – sorrindo
Charlotte estreitou os olhos poderosamente azuis ao perguntar com malicia– você notou quantas fadinhas infantas trouxe a
tona? Quantas adolescentes prestes a se tornarem maduras? Sabe o lucro que terei ao vendê-las?
-Ainda neste negócio sujo? Pensei que tivesse evoluído.– ele ironizou.
-Não finja para mim, Solon. Eu sei que sentiu minha falta.– ela sorriu ainda mais– eu sei que nunca conseguiu me esquecer.
Que eu habito suas memórias mais intimas - ela riu com um resquício de loucura que incomodou Alma.
O comportamento daquela fada lembrava muito Eldor. enlouquecido, inexplicável. Charlotte ficou seria e apontou para
brilhantes:
-Eu sei que nunca acreditará em mim, Solon, que sempre pensará nas minhas atitudes e escolhas e não em meus sentimentos.
Mas eu o amei e ainda amo com todo o meu sentimento. Quando vasculho minhas lembranças mais felizes é sua imagem que
encontro.
-Eu não vou lidar com você, Charlotte. Não é meu negocio.
-Hum, Solon... Você não mentiria para mim, não é? Não esperaria que eu seguisse viagem inocente as suas intenções e tentaria
me pegar desprevenida antes que eu tivesse a chance de colocar minhas mãos sobre aquelas lindas fadinhas cheirando a
castidade e ansiosas pelos nascimentos de suas asas, não é?
Era exatamente isso. Alma notou que Solon correu os olhos sob o elfo e os raptores. Charlotte também notou.
-Elman me obedece cegamente, na verdade, neste exato instante ele está preso em algum lugar entre o aprisionamento de sua
família e a morte de seus filhos. Eu não quis entrar em suas memórias e descobrir qual é exatamente a sua mais horrível
lembrança que o aprisiona– ela explicou, com seu sorriso angelical, referindo-se ao elfo sob seu domínio.
Um sorrido demente.
Alma pensou sobre isso. O dom da fada era aprisionar a mente das criaturas usando de suas lembranças? Neste caso as piores
lembranças? Se fosse verdade, Charlotte era perigosíssima.
-Eu levei muitos anos para me aperfeiçoar. Você ficará orgulhoso quando souber tudo que sou capaz de fazer.– havia sim um
tom de amor em sua voz.
-Usará seu dom contra mim?– ele ironizou aparentemente sem medo.
-Eu não preciso fazer uso do meu dom para acabar com você, meu amor. Lembra-se de como fui rápida e é eficaz?
-Lembro. Claro que lembro. – ele apontou para as mãos da fada e perguntou– E você lembra?
Era um jogo de palavra. Alma notou que a perfeição física da fada acabava em suas mãos. Cicatrizes grossas e profundas
marcavam suas mãos, braços e provavelmente marcavam o restante do corpo. Charlotte olhou para si mesma, e Alma notou
que seus pensamentos não eram propriamente agradáveis.
-Onde está sua armadura?– a pergunta foi seca.
-Em um lugar seguro – ele respondeu em um tom dissimulado.
-Será que a fada Alma a roubou? Não me diga Solon, que ela obteve êxito onde eu falhei– ela fingiu expressão coquete, mas
por dentro lhe incomodava profundamente que outra possuísse o Guardião e a armadura.
-Foi por isso que voltou? Para ter uma nova chance de roubar minha armadura ou por que soube do meu interesse pela fada da
clausura?
Pega em seu crime, Charlotte relutou em responder.
-Eu soube que você ia pedir Alma em casamento. Que há escolheria esse ano. Como pode pensar em fazer isso comigo,
Solon? Eu sou a sua escolhida! Fui eu quem o recebeu de braços abertos! Eu sou a sua fada escolhida! – Charlotte bateu no
próprio peito, furiosa.
Algo temerário e Solon com olhos
-Voltou por minha causa, Charlie?– Solon perguntou, aproximando-se.
-É claro que sim– ela parou, e fitou-o com olhos de puro arrependimento, a voz suavizando– Eu nunca consegui viver sem
você. Eu tive que voltar quando soube das suas intenções. Eu não podia viver com a ideia de outra ter roubado seu coração de
mim.
Solon ficou bem perto, e Alma reteve o ar, indignada só com o pensamento de que os dois pudessem ser um casal, e acontecer
uma reconciliação amorosa, e tudo isso, pelas suas costas.
Solon fez um movimento, e pareceu prestes a tocar o rosto da fada, mas para surpresa tanto de Charlotte, quanto de Alma, ele
agarrou os cabelos da fêmea e falou bem pertinho do seu rosto:
-Você nunca foi a minha escolhida.
Com a mesma raiva com que falou, Solon jogou-a no chão. Charlotte gritou furiosa, atacada em sua vaidade e Alma ouviu o
barulho, apavorada que Solon não ouvisse.
Mas ele previu o ataque. Os dois raptores avançaram sobre o Guardião, e o bumerangue cortou o ar atingindo um deles
exatamente no pescoço. O animal foi lançado para trás e caiu perto de Charlotte, agonizando. O segundo raptor foi mais rápido
e derrubou Solon.
Com a espada, o Guardião lutou e livrou-se do ataque. Manteve-se distante, espada nas mãos fitando o animal, arfando. Seu
bumerangue estava preso na carne do outro animal, então precisava contar apenas com a espada e a força física.
O raptor, branco como a neve, mancava, e sangue corria do ataque da sua espada. Ele recuou alguns passos e foi à vez do elfo
aproximar-se. Ele retirou um cajado cravado de pedrarias preciosas e girou-o nas mãos, pronto para lutar. Seus olhos vítreos,
esbranquiçados, sem vida própria, sua mente presa nas lembranças de seu passado, enquanto Charlotte dominava suas
vontades.
A luta começou, e Solon precisou evitar o uso da espada, pois temia estar lutando contra um elfo de boa índole. Solon
derrubou Elman e debatia-se mortalmente sobre matalo ou não quando notou que os olhos do elfo readquiriam a cor normal.
Ouviu um sussurro, e pensou ser sua imaginação:
-Pare de lutar– a voz repetiu e as mãos do elfo, que apertavam o cajado com força, o soltaram.
Solon ergueu os olhos e viu Alma de pé, olhando para os dois. O raptor branco estava ao lado dela, e Alma estendeu uma das
mãos para tocar o pelo claro do animal.
-É uma criatura linda quando não está tentando nos comer vivos– ela disse suave referindo-se ao animal selvagem.
Sua voz mantinha o domínio do animal, mas não de Charlotte, que levantou do chão e encarou a fada.
-Uma luta de fadas por causa de um elfo?– Charlotte disse irônica– Eu pensei que não viveria para ver isso acontecer. Duas
fêmeas lutando por um macho? Incomum e peculiar, mas sem duvidas interessante. – seu riso era quase nervoso – Porque não
nos aliamos? Fada Alma, eu admiro qualquer um que tenha a petulância de matar seu rei. Admito sua coragem e sua eficácia.
Admiração é o primeiro passo para uma linda amizade e parceria. Solon não vale uma gota do nosso sangue. Eu posso ajuda-
la a vender a armadura. O que me diz?
Solon notou imediatamente que o pensamento chegou a ser considerado. Indignado, ele ajudou o outro elfo a levantar e fez um
sinal para que ele se mantivesse imparcial, pois a luta seria complicada, e entre fadas, o que era perigoso para dois elfos.
-Eu tenho seus bichos de estimação e seu elfo. Não preciso me aliar a você– Alma disse e virou de costas, exibindo a ela seu
desprezo e despreocupação – vá embora enquanto posso ter piedade.
Charlotte nunca foi humilhada. Não conhecia o sabor disso. Furiosa, ergueu as duas mãos e traçou um movimento no ar, como
se estivesse esticando uma corda imaginaria, e gritou:
-Me conte sua pior memória– seus olhos se tornaram esbranquiçados e sua face mudou drasticamente, linhas bancas surgindo
em toda sua pele, tornando-a parecida a uma pedra de gelo rachada.
-Não. Conte-me você a sua pior memória– Alma respondeu.
Era um duelo. Dom de fada contra dom de fada. Aquele que tentasse interferir teria que lidar com ambas.
Charlotte riu consciente que seria a vitoriosa daquele duelo. Enxergava sangue correndo. Sangue correndo pelas mãos de
Alma. O punhal caído no chão, e ela com o sangue de Eldor nas mãos. Não era sua culpa, agora Alma sabia que não era
maldade e não era sua culpa, mas era sua pior lembrança.
As duas enxergavam as imagens, como se estivessem presentes, mas eram as únicas a verem. Solon conhecia o dom de
Charlotte e sabia que era perigoso tentar libertar alguém preso em suas memórias. Por isso Charlotte era tão perigosa. Ela
sempre conseguia o que desejava, mas dessa vez, Solon confiava plenamente no poder de Alma. Em sua determinação.
-Não – Charlotte guinchou quando entre as lembranças de Alma surgiu vestígios e suas próprias lembranças– Não! Não aceito
isso!– ela intensificou seu poder, mas não era possível vencer o dom do convencimento.
Charlotte precisava primeiramente entorpecer os sentidos e a mente para conseguir tomar conta da vontade, com Alma era
mais rápido e menos complicado. O comando de sua voz bastava para tornar às vontades alheias inexistentes.
Uma musica forte, batidas intensas ecoava nas lembranças de Charlotte. Som de tambor, de mãos que batem no couro do
instrumento. Pés que riscam o chão de terra. Era hora de comemorar. Mais uma vitoria do Guardião pomposo e festeiro, que
vivia atazanando os povoados em busca de aventuras e amantes.
Nesta noite, sua favorita, Charlotte era também, seu alvo. Incapaz de ver por de trás do rosto bonito e bem maquiado, o jovem
e tolo Guardião Solon, que andava sempre as volta com vitorias e rixas com sua armadura, gastou o tempo e a paciência da
fada com sua conversa sem fim, e calou-se apenas quando Charlotte o levou para seu quarto, despiu as roupas e o fez gemer
em seus braços.
Alma detestou cada imagem. O ciúme trouxe lágrimas em seus olhos e por mais que se esforçasse a lembrar de que isso
aconteceu anos atrás quando Solon ainda podia ouvir e era um jovem perdido na vida, sem rumo ou responsabilidade, doeu
vê-lo nos braços de outra mulher. Nesse momento Charlotte quase conseguiu inverter o jogo, mas Alma a pegou no pulo e
disse:
-De joelhos– mandou furiosa.
O corpo de Charlotte desceu para o chão e ela baixou os braços, fitando a relva enquanto as lembranças tomavam sua mente.
Quando a copula chegou ao fim, Solon adormeceu, vitima do cansado físico e de forte elixir proibido.
Charlote saiu da cama nua, e abriu a porta do quarto para que um elfo entrasse. Não se preocupou em se vestir. Aquele homem
também era seu amante e ela não possuía pudor:
-Onde está a armadura? - o elfo perguntou.
-Ali– ela apontou a caixa da armadura devidamente guardada em uma bolsa de couro grande e larga– O tolo deixou no canto.
Ele não dá valor à armadura. Não sei como ambos se suportam. A armadura não o escolheu por vontade.
-Eu sei– o elfo disse com calma e fez um carinho no rosto de Charlotte– Essa armadura deveria ter sido minha. Veja – ele
apontou Solon que dormia de barriga para baixo, um braço jogado para fora da cama, suado e fedendo a elixir proibido – olhe
a degradação desse elfo. É revoltante.
-Seu irmão passou a armadura para o filho. É desse modo que acontece em família...
– Charlotte recebeu uma bofetada por conta desse comentário e se afastou dele com raiva
– Não me bata!
-Repita outra vez uma coisa dessas e nosso trato está desfeito. Tem seu dom, fada da taverna?
-Não sou uma fada da taverna.– ela reclamou – Você me trouxe para cá. Solon me escolheu para casamento. Ele me jurou
casamento.
-E, no entanto não moveu um dedo para tira-la do trabalho da taverna– ele ironizou.
Era um elfo baixo, gordo e vestido em muito veludo verde e joias reluzentes.
Charlotte sabia que era verdade. Solon era um elfo agradável de conviver, contente, farreador, mas não era para casamento.
Ele não a assumiria jamais. E Charlotte não gostava dele com a responsabilidade de esperar o amor nascer.
-Essa armadura seria minha, se o meu irmão não houvesse me aleijado em combate
– ele reclamou pensativo – é justo que eu tenha o que me pertence de direito. Leve-a até mim quando estiver terminado – o
elfo estendeu uma das mãos na direção da armadura como quem tenciona toca-la, mas desistiu.
É conhecida a mágica que impede alguém de apartar a armadura de um guardião. Até mesmo. toca-la, a menos que seja aceito
por Guardião e armadura.
-Acha mesmo que a armadura o rejeitará se Solon estiver... Se ele estiver imperfeito?– Charlotte perguntou uma última vez,
provavelmente para se certificar que ele não mentia e ela perderia muito tentando algo ineficaz.
-Eu não mentiria para você, querida Charlotte. Leve-me a armadura, e sua vida estará garantida e repleta de ouro até o final
dos seus dias.
Diante dessa premissa, Charlotte sentiu a confiança renovar. Esperou o elfo sair e fechou a porta. Abriu uma gaveta de um
móvel qualquer e retirou um longo e fino punhal.
Vestiu um penhoar em seda branca, muito fina e transparente e andou até a cama, balançando o ombro do elfo, para acorda-lo.
Os olhos claros de Solon se abriram e ele sorriu ao ver sua amante, sua mente confusa pelo sono e pelo álcool.
-Olhe para mim, meu amor– Charlotte segurou seu rosto e beijou-o de leve nos lábios.– isso, deite pertinho de mim...
Ajudou-o a virar de lado e quando Solon fechou outra vez os olhos, ela apontou o fio na lâmina em seu ouvido, e não titubeou
antes de olhar para armadura e fincar a lâmina.
O elfo gritou e acordou, tentando se defender, mas Charlotte, tomada pelo desejo e ambição montou-o e empurrou sua cabeça
de lado perfurando seu outro ouvido. Foi tudo muito rápido, em segundos estava terminado. A roupa branca que protegia deu
corpo nu perfeito em formas e cores, estava lavado de sangue e o elfo desmaiado.
Talvez morto. Charlotte desmontou-o e correu os dedos pelo peito do elfo, sentindo o bater de seu coração. Não podia morrer.
A ordem era deixa-lo vivo. Trêmula, as lágrimas corriam no rosto de Charlotte quando ela se curvou sobre ele e beijou de
leve seus lábios entreabertos, e sussurrou:
-Me perdoe... Eu preciso pensar em mim, querido. Você não me ama, e podia amar mais. Eu preciso pensar em mim.
Era um argumento dos egoístas.
Saindo da cama, Charlotte deixou o punhal sobre a cama, e pelo cair do penhoar, Alma pode ver em suas lembranças que
havia marcas suaves em suas costas denunciando que em breve ela obteria suas asas. Uma fada da taverna passa sua vida toda
sendo humilhada e espezinhada, sendo submetida a donos e constante violências.
Esquecendo-se do elfo, pois seu amor era tudo, menos solido, Charlotte aproximouse da armadura e puxou o couro revelando
a caixa que continha a armadura. Era uma caixa de metal, de cor escurecida. Mordendo o lábio, Charlotte agachou-se e
estendeu a mão para pegar a armadura.
Sim, era esse o plano. Com o Guardião ‘estragado’ a armadura não o reconheceria e qualquer um poderia toca-la. E esse
qualquer um era Charlotte, que a venderia pelo preço em ouro que uma fada bonita e sensual merece para ser feliz.
Sorrindo ela tocou o metal e sentiu o calor da armadura percorrer seu corpo.
Esse calor tornou-se insuportável e ela abriu os olhos vendo chamas formando-se sobre a sua pele. Gritando ela levantou e se
debateu, saindo porta a fora do quarto, implorando ajuda.
As chamas não puderam ser apagadas, mesmo com a ajuda de elfos e fadas. O fogo consumiu a carne e a dor a fez inerte.
Levou muito tempo para que parasse e ela pudesse respirar outra vez. Recebera ajuda, ninguém suspeitava que ela houvesse
feito aquilo ao Guardião ou a si mesma.
Uma tragédia se abateu na taverna, na Vila das Fadas e quando outros guardiões surgiram, juntamente com Miquelina, e Rodor,
Guardião aposentado, que assumira o cargo de Conselheiro recentemente, Solon foi tratado e levado para o castelo.
Dias mais tarde, Charlotte recuperou-se o suficiente para levantar e olhar para si mesma.
Queimada. Carne queimada. Dor insuportável. Feiura para quem sempre exultou em sua beleza contagiante. Naquela mesma
noite. Vestindo uma capa para esconder seu corpo deformado, procurou pelo homem que lhe prometera ouro.
Este elfo estava morto. Ela viu o agressor deixar o quarto dele, na calada da noite. Esbarrou nele e reconheceu-o
imediatamente. Tentou revirar o lugar, mas encontrou apenas algumas moedas sem grande valor.
Sua vida estava acabada, e ela precisava fugir antes de ser encontrada e presa pelo crime contra o Guardião Solon.
Charlotte chorava enquanto Alma mantinha o poder sobre ela.
-O que eu faço com essa fada?– Alma perguntou a Solon, lutando contra o ódio que a fazia tremer.
Ver tudo que fizeram a ele, explicava sua relutância em lhe contar sobre o passado. Suas mãos tremiam.
-Deixe-a viva– Solon pediu.
-Não – ela negou, narinas dilatadas, fúria acesa em suas entranhas– ela merece pagar pelo que fez!
-Sim, mas não será sujando suas mãos que a justiça será feita– ele aproximou-se e segurou-a por trás.
Alma afastou-se e olhou em seus olhos, com acusação:
-Está protegendo-a?
-Não, estou protegendo você.– ele afirmou– Viu o que aconteceu?
-Sim, e você, sabe tudo que aconteceu?– perguntou de volta, pois era provável que ele não soubesse detalhes sórdidos que
apenas aquela bruxa conhecia.– Me solte.– mandou e abaixou-se ficando na altura de Charlotte– Olhe para mim, sua cadela.
Obediente, Charlotte olhou com a face tão bonita e inocente que era impossível crer que realmente fosse capaz de crimes
hediondos.
-Está condenada a uma vida de submissão. Jamais voltará a erguer os olhos ou a voz a quem quer que seja. De hoje em diante
é uma fada sem dom. Esquecerá seu dom, como se nunca houvesse sido agraciada por ele. Está me ouvindo?
-Sim– ela respondeu submissa, olhando para baixo.
-Eu deveria fazê-la pagar pelo que fez– Alma disse entre dentes, com tanta raiva que era difícil não chorar.
-Eu posso cuidar dela– a voz do elfo grandalhão quebrou o encanto, e Alma engoliu em seco, levantando e encarando-o – Esta
fada tomou meu reino e me aprisionou. Aprisionou minha família. Agora estou livre. Ela precisa ser julgada e condenada de
acordo com seus crimes, e meu povo precisa ter seu rei de volta.
-Seu reino?– Solon perguntou.
-Sim, venho de um reino distante além das terras geladas.– o elfo baixou o corpo e estendeu uma das mãos para tocar os pés
de Alma e então levantou– Sou seu escravo para sempre, fada. Fui libertado pelo seu poder, e serei seu seguidor se assim o
desejar.
-Meu escravo?– ela riu com algo histérico na voz -Não. Eu não quero escravos. Eu sou prisioneira, e não quero escravos.– sua
frase não fazia sentido – Mas eu quero esse animal para mim– pediu em um impulso incontrolável.
Os elfos olharam para o raptor ferido e o elfo sorriu:
-Meu animal de estimação – ele alegou– É um preço pequeno a pagar em troca da liberdade. Devo partir. Estou há muitos anos
longe de casa.
Era tudo surreal. Alma observou o elfo erguer a fada pelo braço e ordenar algo em seu ouvido, sendo prontamente atendido.
Submissa, Charlotte alçou voo e levou o elfo consigo, provavelmente de volta para sua casa.
Alma manteve os olhos no céu até não haver mais nada a ser visto.
-O que você vai fazer com esse animal, Alma?– ele atraiu sua atenção e Alma sorriu:
-Eu preciso de companhia. – ela aproximou-se do raptor, um animal tão feio por natureza, mas com aquela coloração branca
era lindo e único, e acariciou seu pelo espesso
– Vou cuidar dele, e seremos bons amigos. Quem sabe... Ele não cuida de mim?
-Não. Eu cuido de você.– Solon ficou parado olhando para ela– Eu sabia que viria até mim. Vai me permitir ajuda-la?
-Eu não sei. Pretende cobrar seu pai e obter ajuda através de chantagem? – perguntou– Eu não aguento mais isso, essa sujeira
que nunca tem fim.
-Minha relação com meu pai não é assim. Não há chantagens.– Solon afirmou – Vem aqui, Alma.
Ela não queria ir. Queria respostas. Muitas respostas. Estava confusa e ainda chocada em ver o que aconteceu com Solon no
passado.
-Eu sabia que viria atrás de mim.– ele alegou e ela lhe lançou um olhar desconfiado
– Está bem, eu vi que a comida faltar e deduzi que você estivesse me seguindo.
-Porque não tentou me pegar?– duvidou.
-Hum, achei que você merecia o direito de escolher quando me abordar.
Alma desistiu de esconder o que sentia. Aproximou-se de Solon e disse:
-Não fique muito convencido, isso é uma fraqueza momentânea.
Solon sorriu e a acolheu em seus braços. O aperto daquele abraço desmentia as palavras de Alma. Seus braços envolveram as
costas do elfo, suas mãos agarrando o tecido da roupa, precisando segurá-lo contra seu corpo. Seu rosto escondido no pescoço
de Solon, aspirando seu cheiro forte e masculino.
Solon acariciou seus cabelos, aliviado por obter seu carinho. Um alívio difícil de descrever, quase impossível de
exemplificar com palavras.
-Você a amou?– a pergunta veio abafada.
-Charlotte?– ele perguntou, mas era apenas um jeito de ganhar tempo antes de responder.
Alma afastou a cabeça de seu ombro e olhou em seus olhos como quem diz que o assunto é serio e que precisa de uma resposta
igualmente séria.
-Eu era egoísta demais para amar uma fêmea– ele admitiu.
-Agora eu acredito em tudo que me disse sobre raiva e indignação. Eu não passei um terço do que você passou. – ela disse
triste por causa dele. Fez um carinho em seu cabelo, onde ela sabia que se escondiam as cicatrizes.
Solon pegou sua mão e beijou seus dedos, como um mudo agradecimento.
-Está com fome?– ele mudou o assunto drasticamente.
-Faminta. -ela confessou e sorriu.
Solon não disse muita coisa enquanto afastava o corpo do raptor abatido e ajeitava um acampamento improvisado. Solon
caçou e preparou um almoço saboroso enquanto Alma cuidava do raptor ferido.
Nunca imaginou que fosse se apegar a um animal capaz de ferir. Ela própria era capaz de ferir, não era? Cuidou da ferida na
perna do animal contente em descobrir que era um ferimento superficial. Sussurrou besteiras no ouvido animal, e retirou o
encanto de sobre ele, quando o bicho se ajeitou no chão para descansar.
A boca gigantesca se abriu e ele pareceu querer avançar. Por isso Alma o controlou outra vez.
-Tente usar isso – Solon lhe entregou uma ave abatida e sangrenta – Normalmente os animais ariscos aceitam comando de
quem os alimenta em momento de dificuldade– sugeriu– É uma troca justa baseada em interesse.
-Nossa, quanto romantismo. É por isso que está me alimentando?– apontou a comida que cozinhava em uma fogueira bem feita.
Solon apenas sorriu e ergueu ma sobrancelha com charme, beijando seu pescoço antes de se afastar para cuidar do almoço.
Eles precisavam conversar. Ambos sabiam disso. Por hora, Alma apenas sorriu feliz, mordiscando o lábio maliciosa,
enquanto retirava o encantado do raptor e lhe oferecia a comida, como barganha por sua simpatia...
Capítulo 28 Lágrimas puras

Bem mais tarde, Alma estava deitada, sob a sombra de uma árvore, enquanto fazia a digestão do almoço e esperava que seu
novo amigo melhorasse. O raptor apelidado de El, em homenagem a sua amiga Eleonora, que entenderia a brincadeira
mórbida referente à sua cabeleira loura clara, esbranquiçada, em relação ao pelo branco do animal.

Sonolenta, uma das mãos pousadas sobre a barriga, a outra alisando os cabelos do seu amante, que silencioso esperava pelo
momento em que ela conversaria. Eles apenas almoçaram a comida farta e saborosa e deitaram para descansar, presos em uma
conversa superficial que logo virou um silencio profundo e contemplativo.

Alma olhou para Solon, e suspirou atraindo sua atenção.


Olhos tão bonitos e cativantes, cobrando dela uma resposta para esse suspiro.
-Você sabia que seu pai é um Conselheiro do rei? Um ex-Guardião? Por isso me

disse que tem influencia junto ao Conselho? – perguntou direta.


-Sempre soube quem eram meus pais – ele foi simplista em sua resposta. –
Miquelina era uma fada simples, filha de taverneiros, mas não era uma fada de taverna.
Ainda não, mas acredito que teria sido seu caminho natural. Quando conheceu meu pai,
ele havia se casado com uma fada, e era infeliz. Eles tiveram um caso, e eu sou o resultado
disso. A única forma desse relacionamento não acabar em morte, ou prisão, pois um
Guardião segue rígidas regras de conduta, era esconder esse crime, ou seja, me esconder.
Miquelina me entregou ao Ministério do rei. Mas não foi um abandono. Ela pediu para
trabalhar como carcereira.
-Mas você não acha que foi por amor ao filho?– Alma deduziu– Notei que sente
rancor por Miquelina.
-Eu tive rancor e ódio por muitos anos. Depois entendi que Miquelina é mais
profunda do que isso. Seu dom é a previsão do futuro, um dom tido como extinto. Viver na
clausura era uma proteção para uma fada que seria caçada e morta por conta de seu dom,
ou constantemente caçada para a venda. Ela aliou o útil ao necessário. Manteve-se amante
do elfo que amava. Cuidou do filho dele. Ela fez o que tinha que fazer para ser feliz, com
os recursos que a vida lhe ofereceu.
-Ela o ajudou quando foi atacado?– estranhou – Eu vi nas lembranças de Charlotte
que seu pai cobrou sua tragédia com a espada. Ele puniu o mandante. Mas não vi
Miquelina ajudando-o.
-Ela sabia o que me aconteceria– ele afastou os olhos, fitando o dia luminoso,
bonito, de nuvens claras no céu.– Ela previu o que Charlotte faria comigo e não me
alertou.
-Oh– ela não esperava por isso.– Como ela pode fazer isso com o próprio filho?
-Eu não sei. E por muito tempo essa indagação me perturbou.– foi sincero.
-E não perturba mais?– queria conhecer suas magoas para entender exatamente
como Solon pensava.
-Eu esqueci.– ele admitiu- precisei esquecer minha vida passada para suportar
minha nova condição. – havia tristeza em sua voz– não sou o Guardião jovem e egoísta
que fui. Sedutor barato, inconsequente e irresponsável. Espero que Miquelina também não
seja mais a mulher fria e capaz de deixar o filho padecer em prol de nada.
-Eu gosto do modo como sua mente funciona - ela disse sorrindo simpática a causa
de Solon– Talvez eu devesse fazer o mesmo. Esquecer.
-é o melhor caminho quando não há uma segunda opção.
-Segunda opção?– ela riu suavemente – Sou fugitiva e acusada de cumplicidade no
assassinato do Rei. Você consegue mesmo ver uma segunda chance para mim?
-Sim, eu vou apelar junto ao meu pai. Ele intercederá por nós dois. Confiará na
minha palavra e será esse voto de confiança que atrasará seu julgamento. Conseguirei
tempo para que Eleonora e suas asas apareçam e libertem suas amigas das acusações.
-E se Eleonora não aparecer, ou suas asas não puderem nos salvar?– perguntou
triste, não queria pensar nessa possibilidade, mas era amplamente possível.
-Eu fugirei com você. Mas apenas em último caso. – ele falou com complacência e
aceitação.
-Deixaria de ser Guardião para viver comigo?– perguntou surpresa.
-Nunca deixarei de ser um Guardião até o dia em que minha armadura me rejeitar,
pela idade ou condição física. Posso ser um Guardião em qualquer lugar do mundo,
mesmo que em uma cabana escondida em algum lugar, só você e eu.
Alma manteve os olhos nos seus. Faltou-lhe palavras para expressar a gratidão e o
amor que apertava sua garganta com força.
Beijou-o na bochecha, pois lhe faltou condições para pensar em algo mais profundo.
Solon retribuiu beijando seus lábios, um beijo curto e molhado, para dividir sentimentos e
não causar um ataque sexual.
-No Deserto das Areias Vermelhas. Foi lá que escondi sua armadura– ela revelou,
corada e arfante do beijo, acariciando o pescoço masculino, um pouco curvada sobre ele,
cabelos lisos e castanhos caindo em sua face.
-Você é uma fada malvada– Solon sorriu ao dizer isso – Onde exatamente você a
enterrou?
-Não se preocupe, eu buscarei para você– disse com humildade– Eu nunca quis seu
mal. Agora eu sei disso.– admitiu– É verdade que você iria me escolher mesmo antes de
me conhecer?
-Eu a conhecia, Alma. A distância é verdade, mas eu a conhecia. – ele disse
romântico– Eu a quis por sua beleza, porque aos meus olhos você é a fada mais linda
desse mundo, eu a quis por sua seriedade e por seu olhar assustado.
-Eu não tenho o olhar assustado – ela desconfiou dessa afirmação.
-Tem. Você tem susto no olhar. Um susto que vem do ódio e do medo. Eu soube
reconhecer esse olhar desde a primeira vez em que a vi. Culpa de Tubã que enalteceu as
qualidades de suas amigas, mesmo assim, meu interesse é apenas meu. Fui eu quem a
desejei acima das recomendações de um amigo puxa saco.
-Acha que Miquelina aprovará sua decisão sobre mim? Ela sempre me detestou.–
disse ocultando um sorriso.
-Não cabe a ela aprovar. – Solon foi franco – Então, terei que esperar muito tempo
para reaver minha armadura?– mudou de assunto e ela manteve um sorriso gigantesco na
face.
-Dependente. O que você mais deseja nesse momento? Sua armadura ou...– ela
sussurrou uma obscenidade em seu ouvido e Solon a girou na relva– é, eu imaginei que escolheria a segunda opção!– ela disse
rindo, antes de soltar um gritinho ao ser atacada
com beijos e cócegas.
Era tão fácil sentir-se feliz nos braços de Solon. Tão simples, e único momento que
Alma esqueceu-se das obrigações e as feridas abertas em seu coração, e desfrutou da
sensação de ser apenas feliz.

Horas mais tarde, Alma pousou no chão, depois de um longo voo sobre o Monte das Fadas. Um voo pesado, pois levara
consigo o Guardião e não era adepta de carregar peso. Pousou reclamando de ter lhe dado carona. Solon fingia não ouvir suas
reclamações, roubando-lhe um beijo rápido para calar suas reclamações.

-Oh, aí está você – ela disse ao ver El, seu novo amigo surgir de entre as árvores, correndo.
Havia ordenado que o raptor os seguisse, e com a velocidade que o animal alcançava quando correndo, não foi difícil
alcança-los. Alma observou a divisa entre o Deserto das Areias vermelhas e a Vila dos Desesperados. Podia sentir o calor e o
bafo do deserto mágico.
Com uma careta, ela fez um carinho rápido no animal e então se aproximou de Solon.
-Eu vou sozinha, você vai acabar me atrasando.
-Quanta simpatia– ele ironizou, enlaçando-a pela cintura.
-Não é muito longe daqui. – Alma respondeu assim, fingindo não achar graça de seu modo de tratar seus desaforos gratuitos.
Não era uma fada doce e suave. Era bom que ele soubesse com quem pretendia passar o restante de sua vida. Melhor não
haver enganos.
Alma voo novamente, enfrentando o calor e o mormaço que dificultava sua respiração. Da última vez seu voo era deselegante
e instável. Dessa vez foi um pouco mais fácil e menos penoso. Sorte sua ter tido a boa ideia de enterrar em um lugar próximo a
divisa entre o Deserto das Areias Vermelhas e a Vila dos Desesperados, ou sua tarefa seria ainda mais cansativa.
Por um momento, Alma parou de voar e manteve as asas batendo em ritmo lento, imóvel no ar, cobrindo os olhos com ambas
as mãos, criando uma proteção contra o sol escaldante que a cegava momentaneamente. Começou a nutrir um sentimento de
pânico ao não avistar a árvore que usava como referencia. Uma arvore velha e seca, sem folhas, mas que servia como ponto
de referencia.
Seu coração voltou a bater normalmente quando avistou os galhos e o alivio a fez sorrir. Deveria ter trazido uma pá, pensou
amarga, ao começar a cavar com as mãos a areia fumegante. Meia hora mais tarde, ela puxou a caixa revestida por couro de
dentro do buraco e caiu para trás, suada e sem fôlego.
Estava respirando com força, tentando recuperar seu fôlego quando ouviu o som de um grunhido animalesco. Na imensidão de
areia vermelha e vapor quente, Alma avistou um ponto branco correndo em sua direção e sorriu antes de fechar os olhos e
aguardar.
Seu príncipe era na verdade um Guardião, e seu cavalo branco, na verdade era um raptor, uma besta fera animalesca quando
não controlada e domesticada. E poderia haver algo mais perfeito que isso?
-Eu pedi que me esperasse– ela disse mansa, abrindo os olhos para ver seu Guardião montado no animal.
-Esse seu bicho de estimação é ótimo em seguir rastros.– ele disse sorrindo – Venha, é um caminho difícil até sairmos daqui.
-Eu prefiro voar - ela disse levantando e erguendo para Solon a sua bendita armadura.
-Não seja petulante comigo– ele recomendou, suando tanto quanto ela.
-Eu não poderia ser petulante com você, Guardião. Ter asas é uma benção, mas disso os elfos não entendem.
Solon não a corrigiu ou pediu retratação pela ofensa. Gostava de vê-la adquirir confiança em si mesma. Seguiu-a da terra, no
lombo do animal, enquanto Alma cortava o céu com suas asas.
Quando tornaram a se encontrar, em solo seguro, a decisão estava tomada.
Sem medos, os dois seguiriam juntos para o Reino de Isac.
A fada Alma, fugitiva e acusada do assassinato do rei Isac estava prestes a se entregar.

Nos dias seguintes, nenhum dos dois falou sobre seguir o mais longo dos caminhos de volta. Poderiam ter optado por seguir
voando, ou no longo de El, que rapidamente se tornara o queridinho de Alma.

Tanto um quanto o outro, preferia atrasar a chegada ao máximo possível. Não era medo propriamente, era um sentimento de
perda antecipada. Perder a espécie de lua de mel que viviam. Acampando juntos, fazendo amor, conversando e falando muito,
muito mesmo sobre retornar para junto do povo subterrâneo para viver junto das fadas e elfos que os trataram como um dos
seus.

Um pensamento em comum. Um desejo em comum, eles tinham muitas escolhas parecidas. Vivendo uma espécie de
relacionamento sério, Alma e Solon seguiram juntos, firmes nessa decisão. Mesmo que Alma parecesse disposta a fraquejar
quando margearam a Vila das Fadas e fizeram um atalho diretamente para o castelo.

Ela olhava muito para o céu enquanto Solon se reportava a um dos guardas que fazia proteção em uma torre baixa, na murada
de proteção do castelo. Ele notou que a fada estava insegura e segurou seu braço. Intimamente Alma sabia que Solon temia que
ela se arrependesse no último instante. Não custava precaver, não é mesmo? Os dois haviam chegado muito longe naquela
decisão para simplesmente um deles se arrepender e voltar atrás, estragando tudo.

O olhar de aviso que Alma o presenteou não o fez fraquejar. Era o certo, e ela precisava entender isso.
Chamaram atenção enquanto percorriam o caminho de barracas e estrebarias em direção do portão principal, por onde Solon
pretendia avançar. Não iria expor Alma à exibição publica diante dos aldeões que trabalhavam e residiam em casebres junto
ao castelo.
Há quase um século os aldeões viviam na Vila das Fadas, e apenas os moradores e trabalhadores do castelo residiam nas
imediações mais próximas. Era um modo de manter a hierarquia e garantir que miscigenações alheatórias não acontecessem.
Pensamento pequeno e mesquinho, digno de reis inseguros, que mantém a paz às custas de leis arbitrarias.
Rei Isac não poderia ser totalmente julgado como indulgente. Ele fizera o que podia em tempos de guerra e sofrimento. Os
anos passaram e ele não soube acompanhar as mudanças. Talvez estivesse muito ocupado com uma rainha dominadora, que
mantinha um controle doentio sobre seu rei e seu povo.
Solon rechaçou a proximidade de guardas, que tencionavam aliviar o fardo do Guardião, levando armadura e prisioneira, pois
era esperado que quisesse descansar após semanas de trabalho pesado em uma caçada importantíssima para a vida do reino.
Alma mal respirava enquanto percorria os corredores tão conhecidos, gravados em sua memória desde os tenros primórdios
de sua infância. Talvez por ter estado livre pela primeira vez em sua vida, Alma sabia diferenciar o belo do feio, e podia ver
com clareza que aqueles corredores não eram bonitos e sim, claustrofóbicos.
Antigamente as fadas da clausura ficavam tão felizes em caminhar fora da clausura, que viam os corredores do castelo com
olhos de admiração. Tempos de nulidade total.
Em um dos corredores, cruzaram com um grupo de fadinhas do Ministério do Rei, mantidas sob controle ferrenho por duas
carcereiras, uma delas Miquelina. Alma sentiu os olhos da fada sobre si e sentiu a fúria ameaçar vir à tona quando ela juntou
as meninas, como se as protegesse da fugitiva assassina.
-Paciência– Solon sussurrou em seu ouvido, pois sentia a tensão tomar conta do corpo da fada.– Controle sua raiva.
Demonstrações de insubordinação causaram ainda mais problemas para você. Eu não posso ajuda-la, se não me ajudar.
Alma olhou para ele com olhos de veneno. Claro que Solon tinha razão. Mas naquele momento separar uma coisa da outra era
muito difícil.
Alma parou de andar quando enxergou um grupo de Guardiões avançarem na direção deles.
-Não – ela parou de andar, olhando para trás com medo, talvez tencionando fugir.– Eles vão me machucar.
-Não. Eles não farão nada sem minha permissão.
-Está mentindo – ela disse seca.
-Não, você está com medo e me agredindo– apertou a carne do seu braço, para que ela acordasse e ouvisse o que dizia.
Três Guardiões fizeram uma mesura e Solon falou rapidamente, ordenando que juntassem os Conselheiros. O mais confiante
dos jovens guardiões lhe respondeu em tom de orgulho:
-Sua chegada já foi anunciada e a Rainha, junto ao Conselho, o aguarda no salão principal.
-Ildegar– disse Solon– Sua lealdade pertence aos Guardiões, Conselheiros ou a Rainha?
O guardião pareceu ponderar a pergunta:
-Aos meus eu ofereço minha cega lealdade, Solon– ele disse com certeza absoluta.
-Certo – Solon disse, agradado de sua resposta- então, prepare sua espada.
O Guardião abriu um sorriso cúmplice e maneou a cabeça:
-Eu lhe diria para ir com calma, meu senhor. Um curto tempo passou desde sua partida. E creio que surpresas o aguardam.–
ele disse com respeito pertinente a um Guardião novato, mesmo assim parecia achar graça, embora um pouco de tensão
sempre fosse presente em uma situação como aquela.
Os três Guardiões os seguiram de perto e Alma sussurrou para Solon:
-Eu não sei se gosto deles.
-Não precisa gostar, precisa obedecer– ele avisou tenso.
Finalmente diante do amplo arco que indicava a passagem para o salão principal do trono, Alma segurou sobre a mão que
segurava seu braço.
-Eu vou ter que fazer o que for para ficar livre se você falhar, Solon.– lembrou-o disso – você não pode me acusar por nada
que acontecer depois.
-Eu sei. E digo o mesmo.
Olhos nos olhos. Solon confiava que conseguiria resolver tudo com ajuda de seu pai. Alma desconfiava seriamente que era sua
oportunidade de manipular a rainha Santha, a traiçoeira ordinária, e salvar a todas elas. Cada qual com sua estratégia.
Solon não encontrou a imagem de Egan ao levar a prisioneira consigo. Muito menos Acheron, ou Zoé, sinal que nenhum havia
retornado ainda. Seu pai, o Conselheiro Rodor estava presente e não esboçou reação ao vê-lo. Havia orgulho por de trás da
expressão gélida. Solon conhecia aquele elfo amargurado. Era seu jeito. Amava o filho em silencio. E em silencio aquele
amor deveria ser mantido.
-Onde está Lucius? - foi Alma quem notou a ausência.
Tenso, Solon esperou que alguém dissesse algo. O primeiro a falar foi Túlio, pai do primeiro Guardião Egan. Como
Conselheiro Real, e primeiro em hierarquia, cabia a ele a palavra:
-Diga seu nome, fugitiva - ele ordenou, andando em torno de Alma.
Solon soltou o braço da fada e Túlio a analisou da cabeça aos pés.
-Alma.– ela respondeu seca, sem olhar para ele.
-A fada Alma, com suas asas nascidas e sem cheiro de cio.– ele olhou brevemente para Solon– Com suas asas, seu dom foi
adquirido. É necessário uma fada de controle da mente - ele ordenou a um dos jovens Guardiães– pois precisamos conter seus
impulsos.
-Não será necessário – Alma disse gélida– Sei meu lugar.
-Está se entregando e admitindo sua culpa no assassinato do Rei Isac?– perguntou Túlio com uma pontinha de surpresa na voz.
O modo selvagem como Alma olhou-o e a empáfia em sua postura mostrava exatamente o oposto.
-Eu gostaria de ver isso acontecer. Ver alguém capaz de convencer Alma a confessar algo que não fez, eu realmente gostaria
de saber se essa pessoa existe. – disse uma voz conhecida, saída de uma porta lateral. Uma voz carregada de ironia velada, e
sentimentos profundos em relação à fada Alma.
A voz também vinha carregada de humor e algo de choro.
-Alma nunca admite que errou. Jamais.– a voz insistiu e a imagem não cabia a voz.
Por um segundo Alma achou estar vendo a Rainha Santha vinte anos mais jovem, vestida em um longo vestido de véus e rendas
vermelho. A pele branca feita de seda e leite era realçada pelo tecido diáfano, coberto por pedrarias belas e brilhantes,
enquanto faixas do tecido macio cobriam seu peito, cintura, quadris e pernas como uma caricia e não uma roupa.
Na cabeça uma tiara corria por sua testa feita em ouro dourado e as mesmas pedras vermelhas. A tez tão pálida, sem
maquiagem, lábios opacos e traços esculpidos pela própria beleza realçavam os olhos claros, esbranquiçados assim como os
cabelos.
Braços nus, mãos longas, dedos finos. Aquelas mãos pertenciam a Eleonora. Não pertencia a Santha.
-Querida– disse Eleonora diante de seu assombro – Oh, minha querida– correu para aproximar-se e dizer Alma quem era, pois
ela parecia em total choque.
Foi tarde demais, enfraquecida pelos sentimentos, Alma caiu de joelhos e pousou as mãos no chão, para se segurar e não cair
deitada.
-Não, não fique no chão – disse Eleonora, ajoelhando-se e amparando. Segurando-a em seus braços, abraçando-a – Sou eu,
Alma. Minha adorada sou eu– ela disse com voz embargada, sem ligar para as lágrimas que presas tornavam sua voz um fiapo
frágil– O que fizeram com você, Alma? O que fizeram com nossos corações? – ela sussurrou no ouvido de Alma - Estou salva.
Você está salva. Alma, por favor, diga alguma coisa... Não fique no chão, eu não concebo a ideia de vê-la sem forças no
chão...– implorou.
Eleonora não queria que fosse assim, que Alma soubesse em meio ao susto. Ela precisava de cuidado.
-Onde ela está? Onde a desgraçada está?– Alma perguntou aceitando seus carinhos. Referia-se a Santha.
Eleonora estava extasiada com as asas de sua amiga. Era uma visão esplêndida e ela precisou de um momento para entender o
que dizia.
-Está salva.– não quis falar disso ainda– Pode levantar?
-Não. Minhas pernas tremem– Alma admitiu facilmente e Eleonora riu, pois as suas também estavam bambas.
Solon observou-as juntas e mal pode crer que sua fada ressabiada e esquiva fosse à mesma que se soltava e derretia nos
braços de sua amiga.
-Eu a levo no colo – ofereceu, mas sua mão foi afastada de perto de Alma, e o olhar da Rainha Eleonora era duro.
-Afaste-se, Guardião. Enquanto eu não souber o que fez com Alma, o considerarei um traidor.
Alma não a desmentiu, mas afastou-se e aceitou a mão do Guardião. Não conseguia falar, e contar Eleonora tudo que lhe
aconteceu. Então, aceitar o toque do Guardião era uma pista da situação real.
Eleonora não o impediu de pegar a fada Alma nos braços.
-Leve-os para meu aposento – mandou Eleonora, e dois jovens guardas os acompanharam enquanto ela levantava e aceitava o
abraço de Reina, sua mãe postiça.
Precisava de um coração muito forte para suportar tantas emoções.
Sua fraqueza durou pouco. Seguiu-os decidida a saber tudo que aconteceu.
Encontrou Alma deitada na cama, e o Guardião Solon lhe acarinhando os cabelos. O elfo estava vivo para insistir no carinho,
então Eleonora deduziu que Alma consentia sua proximidade.
Quando a viu outra vez, Eleonora afastou o toque do Guardião e ergueu as mãos para Lora.
-Pode voltar para seu posto, Guardião– Eleonora disse sem prestar atenção a ele– Será colocado a par de suas obrigações
para com o reino segundo as novas leis. Agora vá– despachou-o.
Como Alma não se manifestou para pedir que ficasse, magoado, Solon saiu.
O pouco caso de Alma não foi notado pode ela mesma. Só tinha olhos para Eleonora.
A rainha retirou os sapatos e subiu com ela na cama, deitando ao seu lado e pousando a cabeça em seu ombro, abraçadas
como faziam no Ministério do Rei, quando sentiam medo. As quatro se juntavam em uma mesma cama estreita e se abraçavam,
desde pequenas era assim.
Mas dessa vez não havia medo.
-Egan me encontrou e viu minhas asas. Ajudou-me a provar minha inocência perante o reino. Houve um justo julgamento e
Rainha Santha foi sentenciada a morte. Lucius está nas masmorras– Lora explicou baixinho, com palavras sucintas, pois sabia
que a mente de Alma era direta e não precisava de muitos detalhes para funcionar, o que não aconteceria com Driana, que
precisaria de mil explicações para se satisfazer.– Driana está a salvo.– ergueu a cabeça e sorriu, pois Alma precisava ser
tranquilizada– Ela segue sob a proteção do Guardião Acheron. Recebi uma carta dela. Está bem e feliz. Optou por seguir
viagem em busca de Joan. Ela nos preocupa muito, Alma. Joan é tão frágil e delicada. Tão doente. Zoé é uma bruxa. Uma
selvagem. Driana não quis esperar. Mas tenho fé que em breve estará de volta trazendo Joan consigo. Diga alguma coisa,
Alma.
Era um pedido simplório.
-Eu posso controlar as criaturas usando o poder da minha voz. Eu vi e convivi com uma civilização subterrânea secreta e
tenho um raptor de estimação.– ela atropelou as palavras– E eu matei um elfo.
Eleonora manteve os olhos nos seus. Não fez alarde de sua declaração.
-Um raptor? Como alguém consegue um raptor como animal de estimação?– optou por não enfrentar sua última declaração.
Alma sorriu diante de sua precaução.
-Eu não sou uma assassina, não se preocupe. Eldor queria me tornar uma assassina, mas eu não aceitei. Ele era horrível, um
mostro. Eu fiz o que tinha que fazer para me salvar e salvar a muitos outros.– havia convicção em sua voz– Ao menos, foi isso
que Solon disse para me convencer que sou socialmente aceitável.
-E porque ele se deu a esse trabalho?– uma ruga em sua testa mostrava a Alma que Eleonora desconfiava do interesse do elfo.
-Lembra quando Driana recebeu pergaminhos e penas de um admirador secreto?– Alma perguntou de surpresa.
-Sim, eu lembro. Ele nunca mais enviou nada. Achamos que era fogo de palha– Lora disse.
-Não era para Driana. Era para mim. Solon mandou para que eu desenhasse. Tubã confundiu tudo, o cafajeste. – disse com
falso rancor.
-Está me dizendo que você e o Guardião...?– Eleonora manteve na voz uma surpresa velada.
-Não está mais surpresa do que eu.– Alma foi taxativa.
-Ele aproveitou-se de você?– Eleonora perguntou ainda desconfiada.
-Não. Solon é incapaz disso.– defendeu-o.
-Como ele conseguiu esse feito?– Lora perguntou exibindo toda sua incredulidade e então riu, deitando na cama, olhando para
o teto decorado do quarto.– Afinal, o que aconteceu conosco? Egan está buscando por Joan, antes ele esteve na busca por
Driana. Quando ele regressar nos casaremos. Acho que é o caminho natural para Driana e Acheron. E agora você e Solon. O
que afinal aconteceu conosco?
-Eu não sei. A única coisa que sei é que vivi um século em pouco menos de dois meses– Alma confessou deitando de lado,
cansada emocionalmente.
-Conte-me tudo que aconteceu, Alma. Cada palavra, eu quero saber tudo. – Eleonora lhe fez um carinho e ouviu atentamente
quando Alma começou a narrar sua aventura, desde o momento em que deixou o castelo, até o instante em que tomou a decisão
de enfrentar o perigo junto ao Guardião Solon...

Capítulo 29
Longe dos meus olhos

Um dia e uma noite. Foi esse o tempo em que Solon permaneceu sem ver Alma. Estava quase convencido que fora esquecido e
abandonado por sua fada escolhida, quando foi chamado para uma conversa privada junto a Rainha Eleonora em seus
aposentos pessoais.

Uma sala anexa ao quarto, decorada com capricho e ostentação. A primeira criatura que Solon reparou foi em Alma vestida
com uma calça de couro nova, um colete do mesmo material, trançado nas costas para permitir total liberdade para suas asas
tão agitadas. Na frente o couro enaltecia seu decote generoso, e uma coleira de fios trançados da mesma cor marrom do traje,
realçava seus cabelos e olhos amendoados.

Nos pulsos os adornos ganhavam utilidade, pois ele notou que pequenos punhais escondiam-se ali. Nada de cinturões, ela não
gostava disso. As botas altas, não possuíam salto, perfeitas para longas caminhadas de uma fada que não apreciava muito
voar. Os cabelos estavam soltos, e pelo menos, seu olhar não era de desdém.

A rainha Eleonora havia convidado à presença de Túlio, e Rodor. Reina permanecia no cômodo sem função diplomática,
porém por ampla necessidade de manter a paz entre os elfos e as fadas, caso a conversa não prosperasse de modo conciliador.
Eleonora prometia ser uma rainha generosa e bondosa, mas lhe faltava experiência, e poderia desviar de seus verdadeiros
interesses sem uma direção firme.

-Aí está o Guardião Solon – disse Eleonora, andando pela sala, arrastando seu vestido belíssimo, em azul muito claro, quase
esbranquiçado como sua pele– Pesa sobre seus ombros, Guardião, a acusação de defloramento de uma fada casta da clausura–
foi direto ao ponto, para surpresa de Solon – Como dilui o Ministério do Rei, e por consequência a clausura, a acusação não
procede. Porém, em qualquer situação, aproveitar-se do cio de uma fada continua sendo crime diante do reino.
-Eleonora– Alma reclamou– Isso não é necessário.
-Sim, isso é necessário. Incorre sobre Egan e Acheron o mesmo crime. Como todos sabem, Egan preferiu ser rei, a ser
prisioneiro – ela fez graça, pois para ela o assunto era tão menor, que não merecia tanta tensão – Acheron manifestou-se sobre
assumir suas responsabilidades. E você? Devo exigir compensação ou honrará suas calças?
-Fale pausado – Alma disse a ela, irritadíssima com esse constrangimento – Solon lê seus lábios, e não tem culpa de você
falar as palavras sem mover os lábios adequadamente. Não é obrigação do elfo lidar com seu pouco jeito, Lora.

Era uma alfinetada entre amigas. Estava irritada com Eleonora por fazê-la passar por isso.
-Não é necessário que me defenda– Solon reclamou– Me caso com sua amiga. Minha palavra está empenhada nisso.
Alma fez troça de suas palavras e Eleonora segurou a mão de Alma, dando um tapinha amigo em sua mão para que ela não
abrisse a boca para falar besteiras e magoar o elfo.
-Alma pediu permissão para uma viagem. Como rainha, consenti, pois é uma fada livre.
-Uma viagem?– ele perguntou sem entender, olhando para Alma com olhar acusador.
-Vou ao Campo dos Humanos, ajudar nas buscas por Joan.– ela disse com voz seca.
-Não é necessário. Egan e Acheron estão nessa busca.– ele negou– Porque está indo também?
-Porque eu quero – ela disse séria.
-Pensei que houvéssemos passado dessa fase - ele disse magoado.
-Eu nunca neguei quem sou, ou meus instintos. Eu ainda quero tudo que lhe disse, mas primeiro vou procurar por Joan. Fazer a
minha parte. Venha comigo se quiser. Se não quiser... É livre para seguir seu caminho sem mim.– disse no mesmo tom que ele.
Solon não acreditou no que ouvia. Eleonora olhou de um para o outro, e sentou-se em uma das poltronas que adornava a saleta.
-É verdade que tem o desejo de cuidar pessoalmente do povo subterrâneo resgatado no Vilarejo sem Fim? Alma me contou em
detalhes sobre toda a situação.– Eleonora mudou o assunto.
-Sim, tenho o desejo de ajuda-los a erguer um povoado e a lidar com a situação. Não é fácil para eles lidarem com todas as
novidades. Não conhecem a nossa vida.– ele disse ainda olhando para Alma– Pensei que essa traidora quisesse o mesmo que
eu.
-Hum, não confie no querer de Alma– disse Eleonora entendendo muito bem o que ele sentia– Ela se fecha com o passar do
tempo. É necessário conquistá-la novamente e novamente. Não pense que é fácil. É uma luta constante manter seu amor e sua
consideração. Uma luta diária. Uma reconquista diária, eu diria.
Alma mal acreditou nas palavras de Eleonora.
-Eu não sou assim– defendeu-se.
-Intencionalmente não – Lora disse cordata, sorrindo para acalma-la– Sou muito grata, Solon, por tudo que fez por Alma. Você
não acredita na evolução que conseguiu. Ela era praticamente selvagem na última vez em que a vi. E agora... É uma fada quase
tranquila. Toda aquela fúria angustiante se tornou segurança e confiança em si mesma. Por ter mantido-a em segurança e ter
cuidado tão bem dela, lhe ofereço o domínio sobre o Vilarejo sem Fim e todos os meios e recursos para manter esse povo em
segurança. Eu temo que meu presente possa ser a razão de uma separação definitiva entre os dois– Lora apontou Alma e
Solon– mas também sei que entre elfo e fada não existe empecilhos quando desejam ficar juntos. Não cabe a mim, como
rainha, força-los a nada.
Solon agradeceu com um movimento da cabeça e olhou fixamente para Alma.
-Deseja falar as sós com Solon?– perguntou Eleonora, no fundo achando graça do comportamento dos dois.
Alma namorando era uma imagem quase irreal.
-Não temos nada para falar. Eu vou partir, quando voltar, se ele tiver interesse, podemos conversar.– disse com
distanciamento.
-Eu não tenho interesse em conversar quando você voltar.– ele foi direto, magoado.
-Que assim seja.– ela levantou– Posso ir agora, Rainha?
Seu tom era petulante e Eleonora levantou e a beijou na face enquanto dizia:
-Se encontrar Egan no caminho, diga-lhe que sinto saudades.
-Seu pedido é uma ordem, minha rainha– Alma fez uma mesura e partiu com uma expressão decidida, sendo seguida
diretamente pelo Guardião.
-Não deveria ter permitido que ela fizesse isso – disse Reina, em aviso.
Rodor e Túlio discutiam entre eles sobre o comportamento do Guardião e da fada, e as duas os ignoraram.
-Porque não? Alma é assim. Ou Solon aprende a lidar com ela, ou é melhor que desista logo de uma vez.– admitiu– Não ache
que é fácil viver ao lado de Alma. Tem vezes que dá vontade de esgana-la... Em outras, de lhe dar todo o amor do mundo. Eu
mesma me divido entre as duas vontades– sorriu e abraçou Reina, acalmando-a – imagine esses dois juntos...– sentia tanto
orgulho que podia chorar de felicidade.
-Deseja deitar-se, Eleonora?– perguntou Reina em seu ouvido.
-Sim. Acha que alguém notou?
As duas deixaram a saleta sem serem notadas. Reina a levou para o quarto principal e ajudou-a.
-De modo algum. Os machos são desatentos para isso.– disse ajudando-a a despir as roupas e deitar-se.
-Egan precisa voltar logo, precisamos nos casar, ou todos pensarão que a cria pertence à Ildegar.
Reina sorriu orgulhosa e sentou na cama, tocando seu ventre com ternura.
-Isso não acontecerá. Antes que sua barriga desponte, Egan estará de volta e o casamento ocorrerá. Depois, é só evitar fazer
contas e todos acreditaram no que a rainha Eleonora disser. Afinal, você é a salvadora de seu povo. O carinho que essa gente
tem por você tudo perdoa Eleonora.
-Que assim seja. – ela sorriu e disse sonhadora– Mas eu quero Egan de volta, o mais rápido possível. Sinto falta dele. Muita
falta.
Confortando-a, Reina lhe fez companhia.

Alma ignorou a presença de Solon. Ele a seguiu por muitos corredores. Então parou de andar, e afastou-se emburrado. Alma
virou a tempo de vê-lo ir embora. Sim, ela fizera isso de novo. Conseguirá irritar até mesmo Solon. Sem saber por que a raiva
estava de volta, Alma andou apressada, praticamente correu.

Era estranho estar finalmente livre e optar por ir justamente para o caminho da prisão. O Ministério do Rei não existia mais.
Os órfãos haviam sido transferidos para outra ala do castelo, e os cômodos abafados e desumanos estavam vazios e
abandonados. Mesmo assim, foi para lá que Alma dirigiu-se marchando a passos duros.

O quarto que dormiu sua vida toda parecia o mesmo. Nada havia mudado com exceção da ausência das fadas. As mesmas
paredes podres, mofadas e fedidas, as mesmas camas pequenas, cobertas por colchões de palha seca, os mesmos lençóis
amarelados.

O único baú de pertences ainda estava escorado contra a parede oposta a cama, e Alma ajoelhou-se no chão para abri-lo.
Estava vazio.
Levantou-se e andou para trás, olhos fixos no vazio do baú. Ela não sentia as lágrimas correndo em sua face. Estava absorta no
passado. Ouviu passos, mas os ignorou totalmente até sentir uma presença aterrorizante atrás de si.
-Eu sabia que a encontraria aqui– era Miquelina.
Vestida com a túnica e o mesmo manto de sempre, com sua touca na cabeça, Miquelina não havia mudado nada, ainda lhe
parecia à mesma megera fria e calculista, sempre a caçando pelos corredores querendo puni-la por algum crime não cometido.
As chicotadas eram sempre mais fortes quando dirigidas a Alma.
-O que você quer? Pelo que sei o chicote está abolido do Ministério do rei – ela disse entre dentes, limpando as lágrimas das
faces, para não exibir sua fraqueza para sua inimiga.
Miquelina não fraquejava diante do olhar de Alma. Aliás, enquanto as outra carcereiras pareciam temê-la e com os anos,
foram parando de mexer com ela, Miquelina parecia instigada em enfrentá-la, como agora ao falar independente de Alma
querer ouvi-la ou não.
-A primeira previsão que eu tive em minha vida foi sobre a morte do meu filho. Eu não possuía grande domínio sobre o meu
dom, era jovem demais, mal haviam nascido minhas asas quando emprenhei.– Miquelina disse, ignorando sua ironia e seu
rancor.– Foi durante o parto, no instante em que colocaram Solon nos meus braços. Depois disso, todos os dias eu via como
seria. O menino havia nascido predestinado a uma morte prematura. Então, eu fazia tudo diferente, todos os dias, tentando
impedir. Quando o entreguei o bebê no orfanato eu achei que ele estaria a salvo do mundo. Preso entre paredes. Mas os
perigos aumentaram. Eu me ofereci de carcereira, Solon acredita que foi para esconder os crimes de adultério de Rodor. Mas
não foi. Amar o pai de Solon não seria o bastante para me fazer abandonar meu filho em um orfanato. Quando Solon fez sete
anos eu vi que sua paz havia finalmente chegado. Ele estava livre de previsões de morte. Eu pensei que tudo ficaria bem. Foi
quando previ a destruição total do Monte das Fadas. Aconteceria em aproximadamente vinte anos. Rei Isac seria assassinado
por sua rainha louca Santha e Lucius seria Rei. Ele levaria nosso povo à destruição em meio a guerras incitadas entre criaturas
mágicas e humanos. Uma tragédia horrorosa. Meu filho seria um dos primeiros abatidos. Rodor partiria logo depois e eu vi o
modo de impedir tudo isso. Um bebê abandonado no Ministério do Rei. Uma criatura chamada Eleonora. Eu fiquei para ajudar
a vigiar que essa menina estivesse viva para impedir tudo isso acontecer. As previsões foram seguindo. Eu previ a tragédia de
Solon, e previ que isso o transformaria em um homem justo e adorável. Eu previ que a fada Alma, a menina que infernizava
meus dias desde o dia em que foi deixada no orfanato seria importantíssima na vida do meu filho. O que eu faria? Amar essa
menina? Não. Eu a detestei com todas as minhas forças. Você terá algo que eu nunca tive. A chance de viver com Solon e ter o
seu amor. Eu perdi isso, eu optei por não ter isso. Eu tenho a satisfação de vê-lo criado e autossuficiente, em um mundo que
parece seguir por um caminho de paz, longe das guerras. Eu tenho o amor de Rodor, e agora que o Ministério do Rei não
existe mais, e ele é viúvo... Talvez haja uma chance para nós dois.
-Porque está me contando tudo isso? Eu não me interesso nas suas razões. Eu não gosto de você. Não me importa que seja uma
mártir. Eu não vou esquecer o que me fez.
-Eu não quero que esqueça. Eu quero que olhe para mim e veja a si mesma daqui a vinte anos.– Miquelina disse amargurada.
Alma correu os olhos por aquela fêmea, e engoliu em seco atingida por essa verdade.
-Ceda e aceite ajuda. Solon merece essa oportunidade. Ele vale qualquer sacrifício. Cuide dele. Será bom para vocês dois.
Alma não respondeu. Quando Miquelina estava saindo do cômodo, voltou e olhou para ela com superioridade:
-Alguém lhe mandou lembranças. – ela disse sorrindo misteriosa.
-Quem?– perguntou surpresa.
-Uma amiga. Uma velha amiga duende– ela disse erguendo uma sobrancelha do mesmo modo que Solon fazia ao sentir-se
superior.
Agora era possível ver a semelhança entre mãe e filho.
-A velha duende? Você tem algo a ver com toda a ajuda que recebi?– perguntou chocada.
-Eu sabia que você era selvagem demais para aguentar sozinha.– ela disse cínica– Parece que isso mudou. Posso dizer que
olha quase... Civilizada.
Miquelina se foi e Alma ficou parada olhando para o vazio deixado por sua presença. Aproximou-se do baú e empurrou a
tampa, que bateu com um som alto, fechando-o e selando o passado em seu devido lugar. Talvez aquele lugar não fosse apenas
um receptáculo de lembranças ruins.
Fechou os olhos pensando em Solon e sua bondade. No modo como ele a manteve integra.
Sorriu para si mesma. Sentia saudades dele. Fazia apenas um dia e uma noite afastados, mas ela sentia tanto a sua falta!
Sentia falta de Anastácia e suas sobrinhas, da pobre Pía que não teve chance de viver plenamente. Falta de Driana e Joan. Até
mesmo da silenciosa velha duende! Mas principalmente falta de estar na companhia de Solon.
Decidida, Alma deixou o Ministério do Rei com passos urgentes. Percorreu os corredores e desembocou em um corredor
aberto, margeado por uma parede de tijolos, onde no passado escondiam-se canhões. Lá de cima, ela avistou El amarrado e
mantido sob controle, próximo ao local onde ficavam os cavalos. Sorriu e correu as mãos pelos tijolos, balançando suas asas.
Seu primeiro voo no castelo.
Cruzou o pátio em um voo manso e sagaz.
El ergueu-se imediatamente ao vê-la. Seu raptor de estimação estava quase curado do ferimento na perna e totalmente dócil,
cheirou seus dedos, enquanto Alma acarinhava seu pelo branco.
-Vai se comportar El? Hem, me diga, você se comportará em nossa nova vida? Espero que sim, garoto, porque eu gosto muito
de você. Muito mesmo.– cochichou no ouvido do animal, mas seus olhos miravam outra criatura.
Solon fingia não vê-la, enquanto encilhava e cuidava de seu cavalo. Iria partir, e estava pronto para isso. Era louvável o
esforço que ele fazia para ignorar totalmente sua presença.
Era um elfo tão bonito. Tão cativante. Ela queria muito ouvir sua voz, falar com ele, estar em seus braços... Antes de mudar de
ideia, cedeu ao impulso de andar em sua direção. Solon continuou ignorando-a, mesmo quando Alma chegou perto demais
para fingir não vê-la.
-E se eu sentir vontade de matar outra vez? – ela perguntou do nada, pois era uma das razões do subconsciente que a fazia fugir
dele.
-Não vai acontecer– ele respondeu ainda em olhar para ela.
-Mas e se acontecer?– insistiu.
-Não vai acontecer. – ele repetiu taxativo, sem permitir argumentações sobre como ele poderia saber disso. A voz séria e
virou para encarar seus olhos– Pegue suas coisas, vou partir em uma hora.
Alma não conseguiu conter um sorriso de pura felicidade. Ele voltou a cuidar do cavalo, mas sorria. Não queria dar o braço a
torcer, mas sorria com a mesma alegria e alivio que ela.
Não conseguiriam se separar mais. Estavam unidos para a vida toda. Era fato.
Solon partia para assumir uma vida no Vilarejo sem Fim, até ser designado para outra missão e sua mulher o seguiria. Alma
ficaria ao seu lado, e esperaria noticias de Driana e Joan.
Quando Alma correu para o castelo, para providenciar uma trouxa de pertences, Solon observou-a a distancia.
A vida não seria fácil ao lado de Alma, e ele estava preparado para vencer mais essa batalha. A mais bonita das batalhas.
Uma hora mais tarde, o cavalo partiu levando Guardião e fada, ao lado um raptor branco como a neve os seguia dócil. Da
mais alta das muralhas Eleonora acenava para Alma. Não era uma despedida. Em breve estariam reunidas outra vez.
Longe do castelo, Solon cingiu os braços em torno de Alma, ambos sobre o cavalo e beijou seu pescoço. Ela virou a face e lhe
roubou um beijo.
-Eu te amo – sussurrou Solon em seu ouvido.
Alma não respondeu. Ainda era cedo para uma confissão, mas tornou a beija-lo. Um beijo que valia mais que mil palavras...

Palavras que faziam sentido aos ouvidos de Joan. Ela estava presa. Não importava as desculpas usadas. Ela entendia o
significado de grades em suas janelas. De pé, diante da janela coberta por grades, Joan observava o céu azul coberto por
nuvens brancas. Encostou a face na grade e fechou os olhos, enquanto ignorava as palavras que ouvia.

-Acha que ela está louca? – Roni perguntava aos sussurros.


-Você não ouviu quando ela me falou sobre fadas e poderes mágicos?– perguntou à aldeã belamente vestida ao seu lado. –
pobrezinha, perdeu o juízo. Isso acontece muito quando uma mulher passa por tudo que ela passou.

Joan não suportou mais. Olhou para Zoé, mantiveram o olhar desafiador. Joan baixou os tratamento. Arrastou-se para a cama,
e deitou. Vestia apenas uma camisola e um penhoar. Os cabelos estavam desgrenhados, ela não pensava muito em vaidade
depois de ter sido presa naquela torre.

-Eu não consigo acreditar que Joan... – Roni conteve as palavras e aproximou-se da cama– Algumas vezes é um mal
passageiro. Ela pode estar confusa.
Zoé correu os olhos pelo humano, com recalque e ciúme na face, mas ele não notou. Muito próximo, acariciou os cabelos
ruivos e longos de Joan enquanto dizia:
-Eu gostaria de ter Joan na mesa de jantar essa noite. O ar da noite há de fazer bem para sua saúde.
Zoé não queria concordar.
-Acha prudente expor seus filhos a uma aldeã insana? Não seria mais apropriado manda-la de volta para a vila? Para que seja
cuidada por seus familiares?
a guardiã que a caçava. As duas olhos, não suportava esse tipo de Roni olhou para Zoé com duvida no rosto. Sim, era prudente
e apropriado.
-Joan cuidou de mim. É minha vez de cuidar dela.– ele disse e se afastou.
Joan fechou os olhos com raiva, mas não se intrometeu na conversa. Quando ouviu Zoé tentar convencê-lo mais uma vez a
desistir do jantar, sentou na cama e pediu:
-Fica mais um pouco comigo? Eu tenho medo de Zoé– ser louca lhe conferia uma liberdade arrebatadora contra Zoé.– Ela é
uma fada, tem asas e o dom de ver tudo que escondo dela. Eu tenho asas, Roni. Mas não posso mostra-las na presença de Zoé,
pois o dom dela me impede de revelar minhas asas. É culpa do meu dom que as esconde. Mas um dia... Eu vou mostrar a
verdade. Fique mais um pouco comigo. Por favor. Eu tenho medo de Zoé. Ela vai me machucar se me deixar sozinha com ela.
Louca ou não, Joan ainda detinha toda sua afeição.
-Saia– Roni disse para Zoé, sem lhe dignar um único olhar– e feche a porta.
-Não faça isso. Não é seguro expor-se a uma situação dessas.– Zoé disse furiosa.
-Eu mandei sair– ele insistiu, aproximando-se da cama, segurando a mão de Joan e sorrindo para ela, com piedade aliada a
outros sentimentos.
Não restou outra alternativa que não fosse sair. Zoé fechou a porta atrás de si e lutou contra o susto ao descobrir que Edward a
esperava.
Com um olhar de aviso, Zoé afastou-se. Edward era um problema, mas estava sob o seu ferrenho controle. Ou era o que
pensava. O humano olhou para a porta fechada e lutando contra muitos sentimentos contraditórios e fugiu dali antes de ser
arrebatado por suas secretas vontades.
Joan deixou-se acomodar na cama, e piscou graciosamente para Roni.
-Quer ouvir sobre o mundo mágico, Roni?
Ele engoliu em seco e acenou concordando.
-É claro que sim. – ele queria agradá-la, mesmo que lhe doesse achar que Joan perdera sua mente inteligente e doce para a
insanidade.
Joan sorriu e começou a contar. Prepara-lo para quando a verdade viesse à tona e a vida de Roni mudasse totalmente. Para
quando não fosse possível impedir a guerra entre o mundo dos humanos e o mundo mágico.
Uma guerra que era realidade, e não mais um sonho distante de Lucius, o amante da rainha Santha.
Guerra que não interessava Tubã. Ouvia boatos, mas estava mais ocupado tentando sobreviver. Arrastou-se sobre as cincas
frias, despidos das roupas, o corpo nu ressentido do calor que ainda exalava das cinzas e caçou os restos de carne dos ossos
jogados para os animais.
Estava faminto, desesperado por comida. Roeu os ossos e arrancou o que encontrou de carne. Quando ergueu os olhos notou
que ela estava de pé, encarando-o. Não sentiu vergonha de sua situação, não era sua culpa, mas sentiu raiva do modo que era
tratado.
Uma delas aproximou-se e cochichou no ouvido da criatura que o encarava.
-Posso leva-lo, Helana?
-Sim– ela disse com voz firme, mas seu olhar dizia outra coisa– É a sua vez.
A criatura aproximou-se e cutucou suas costelas com a ponta da longa lança. Foi obrigado a levantar e andar, mesmo que
olhasse para trás, procurando encarar a mandante, para que ela soubesse que a culpa era inteiramente sua...
Culpa essa, que assolava Egan. Seguia a liderança de Acheron, pois o guardião era deveras bom farejador. Na companhia de
sua fada, Driana, Acheron seguia em marcha rápida. Procuravam no Campo dos humanos, mas não era fácil conseguir
informações quando se é tão diferente dos humanos. Eram tratados como forasteiros estranhos e a desconfiança instalara-se em
todos os moradoras.
A culpa vinha assolar quando seus pensamentos se remetiam para Eleonora. Uma rainha sem um rei é um alvo fácil, um reino
sem os seus principais Guardiões é um alvo fácil. Sua fada escolhida, sem o seu grande amor, é uma criatura frágil. Sentia
saudades e ansiava para voltar para casa e ter sua escolhida outra vez em seus braços.
Egan tentou tirar as preocupações da mente, mas sentia um arrepio no pescoço, como um aviso de que o perigo estava
próximo.
E a cada passo distante de casa, mais perto do perigo.
Um perigo que acabaria com a existência do Monte das Fadas.

Capítulo 30 - Epilogo Oito anos depois

O raptor mais jovem, e também o mais afoito, acelerou o passo e foi contido com um grito de ordem. Ele parou e rosnou,
arranhando o chão com suas unhas gigantescas, enquanto baixava a cabeça e encarava seu treinador com olhar feroz.

-O que há de errado com ele, mamãe?


A pergunta quase a distraiu. Alma estava cansada das perguntas inoportunas de Joá.

Ele estava avisado sobre fazer isso em horas impróprias.


-Eu já lhe disse para não me assustar assim, da próxima vez eu o mando para uma
estadia prolongada nos montes gelados, junto de sua madrinha Driana– ameaçou. Joá sabia que a ameaça não era vã. Sua mãe
era bem capaz de fazer isso. E ele era
bem capaz de apreciar a punição.
Alma olhou para o filho, vestido em roupas parecidas com as suas, em couro e
algodão, e maneou a cabeça, cedendo:
-Ele está com raiva. Muita raiva. Por isso é tão demorado treina-lo.
-Porque não desiste dele, então?– Joá subiu na cerca de madeira que delimitava o
espaço de treinamento, bastante retirado do Vilarejo sem Fim. Mordeu uma maçã e
aguardou a resposta.
Alma ficou em silêncio por um instante, pensando em si mesma no passado.
-Porque às vezes é preciso persistência.– respondeu vaga.
-Por quê? – Joá insistiu.
-Mas que garoto chato - Alma parou de treinar o raptor e abriu mão do comando de
voz, libertando assim o raptor.
Protegida fora do círculo de madeira amplo, Alma observou o animal correr e
cabecear a cerca, ferindo a si mesmo, na ansiedade de fugir. Alma deixaria que o animal
gastasse energia antes de tentar continuar. Olhou para Joá e estendeu a mão pedindo um
pedaço da fruta.
-Saia da cerca, se cair do outro lado eu não irei busca-lo – avisou e o menino pulou. Alma sorriu enquanto comia a fruta e lhe
devolvia para que ele seguisse com seu
lanche.
Não queria assustar o filho falando sobre como às vezes à fúria pode cegar todos os
demais sentimentos bons. Que é necessário vencer o ódio e o rancor para alcançar a plena
felicidade. E que foi Solon quem lhe ensinou isso.
Olhou para o raptor branco, cria de El com um raptor fêmea de pelo escuro, o que
lhe conferira orelhas escuras e calda manchada, e viu a si mesma no passado, cabeceando
a vida com o desejo insano de se ferir e acabar com tudo.
-Quando eu terei um raptor para mim, mãe?– Joá perguntou esquecido de suas
perguntas anteriores sobre raiva.
-Um dia. Quando for do tamanho do seu pai.– ela disse olhando para ele com olhos
orgulhosos.
-Eu quero este raptor– Joá virou para a cerca e apontou o raptor.
-Por quê? Veja como ele é bravo.– tentou dissolve-lo da ideia.
-Eu não sei por que, mas gosto dele. – o menino falava a verdade e Alma
despenteou seus cabelos e o empurrou docemente para longe da cerca– Vá cuidar de seus serviços, garoto. Aqui não é lugar
para você.– seu modo carinhoso de olhar e beijar a testa
do menino desmentiu-a vergonhosamente.
Joá correu e obedeceu a suas ordens, mas ela sabia que era questão de minutos para
voltar acompanhado.
Encarando o animal selvagem, Alma deixou a mente vagar para o passado.
Exatamente um ano após tornar-se uma fada livre, e reencontrar suas amigas, todas a
salvo, Alma emprenhou. Qual não foi sua surpresa quando pariu uma ninhada, em lugar de
uma única cria.
Três elfos. Morenos como o pai, com as mesmas feições e personalidades muito
semelhantes à Solon. Eram machos e deveriam ser mais próximos ao pai do que a mãe.
Mas não era bem assim que acontece quando o coração de uma fêmea ama
incondicionalmente. Apaixonada por suas crias Alma criou-os apegados a sua saia. Não
era uma mãe convencional, e ninguém parecia incomodado com isso.
Solon rapidamente se tornara uma espécie de líder do povo subterrâneo, e ajudara a
criar um vilarejo prospero e seguro. Um lugar governado com mãos flexíveis, pois Solon
exigia que seguissem as leis do Reino de Eleonora, mas não obrigava que permanecessem
prisioneiros a uma vida infeliz. Todo elfo e fada que desejasse partir, encontraria apoio e
ajuda para seguir uma nova vida.
Felizmente poucos tiveram esse desejo e naqueles anos todos, o vilarejo prosperara
e expandira-se prosperamente.
Alma tornou a controlar o raptor, pois seu trabalho era esse. Treinar os animais
selvagens para o uso e venda. Muitos elfos e fadas adquiriam raptores treinados para o
trabalho, pois eram fortes e rápidos e aliviavam o fardo dos cavalos. Não eram baratos, e
era uma das fontes de lucro do Vilarejo sem Fim. Dois anos de treinamento para que
estivesse suficiente manso para aceitarem ordens, sem a necessidade do poder de Alma
para controlá-los. Ela os dominava e excluía a parte selvagem do instinto do animal, mas
era preciso convencê-lo a aceitar ordens de outros elfos e fadas.
Esse era um trabalho prazeroso, e Alma adorava o que fazia.
Como esperado, ela visualizou a corrida das três pestes que alegravam sua vida. Joá
era o mais velho, nascido com doze minutos de diferença dos irmãos. Diego e Dean eram
separados por menos de dois minutos. O que não fazia diferença alguma quando Alma se
lembrava dos quatro dias de trabalho de parto e dor lacerante. Ela afastou as lembranças
aterrorizantes da mente e sorriu para os filhos, que se dependuravam na cerca de madeira.
-A mãe avisou para não fazer isso – Joá ainda tentou avisar, sem sucesso. Diego foi o primeiro a passar por baixo da cerca e
correr até ela na grama verde,
ignorando o perigo.
-O pai precisa que volte para casa– ele avisou arfante, enquanto dedicava toda sua
atenção para o animal – Eu posso continuar o que está fazendo? Eu já sei como treina-los.
– ofereceu.
Sim, uma oferta por hora, durante todo o último ano. Alma segurou o queixo do
filho e olhou profundamente em seus olhos.
-Eu já disse que não.– era um aviso divertido.– Volte para a cerca.
-Mas eu sei fazer isso, mãe. Não confia em mim?– ele perguntou sério. Aos oitos anos, Diego era mais adulto do que criança.
Joá ainda conservava um
pouco da inconsequência de criança, mas Diego era responsável e sério a maior parte do
tempo. E corajoso. Muito corajoso.
-Confio, mas você sabe que a armadura do seu pai lhe escolheu. Não treinará
raptores. Será um Guardião a serviço do Reino da Rainha Eleonora. Deixe algo para seus
irmãos fazerem. Não queira tudo para si.– disse séria, e era um assunto entre eles. Diego baixou a cabeça e seus belos olhos
claros, idênticos ao pai e aos irmãos exibia
sua magoa. Alma desistiu do treinamento do raptor e ordenou que ele deitasse e
descansasse enquanto tirava o filho de perto do perigo.
Junto dos três elfos infantis, Alma encarou o desafio de falar a verdade sem magoalos:
-Eu não quero saber dos três desafiando uns aos outros. O que é de um, o outro não
deve querer para si. Diego é uma honra ser escolhido Guardião, e você não tem o talento
para o trato dos animais. Joá tem o jeito de lidar com os bichos e é para ele que ensinarei o
oficio.
-E eu, mamãe?– Dean era sempre o mais doce.
Alma abriu um lindo sorriso e puxou o filho para perto de si abraçando-o pela
cintura, pois apesar da pouca idade, os meninos eram bastante corpulentos como ela e
também Solon:
-Você me surpreenderá ainda. Tenho certeza que me surpreenderá com seus feitos.–
era seu modo de dizer que o filho não possuía aptidão para nada em especial. O modo como ela olhou para Diego e Joá
avisava muito bem o que aconteceria se
ousassem implicar com o irmão mais jovem. Eram idênticos fisicamente, mas Alma era
precavida e nunca permitia que se vestissem iguais.
Era apaixonada pelos filhos, mas não era uma santa e precisava de uma ajudinha
externa para reconhecer quem era quem. Sobretudo quando as pestes se uniam para
engana-la em alguma tentativa de fugir das surras bem dadas por suas constantes
traquinagens.
-Vão – ela disse suave– brinquem um pouco com El, mas não se aproximem dos
outros raptores até que eu diga que podem fazer isso.
Beijou a cabeça dos três e eles correram, dispersos e esquecidos de qualquer assunto
sério. Eram seus amores. Menos ativa que os trigêmeos, Alma andou calmamente para o
vilarejo.
As casas não eram mais de palha e barro. Eram construções bem feitas em madeira e
pedras. Uma delas, pintada em tons de marrom e vermelho era a sua casa. Secretamente
ansiosa, Alma entrou e encostou a porta. A fada jovenzinha que cuidava do bebê levantou
e acenou antes de sair. Era a babá oficial de sua pequenina fada.
Alma ficou de pé observando Emmanuelle brincar no ar com suas mãos gordinhas e
diminutas, olhos azuis profundos e bochechas rosadas. Sorriu encantada. Era uma
florzinha bonita e delicada. Sua pele era uma pétala macia de margarida. Seus cabelos
negros como os do pai eram macios e com suaves cachinhos. Era toda suave. Olhar para
ela era como ver um anjo.
Muitas vezes, no meio da noite, Alma acordava e observava a menina dormir e
pensava se era mesmo possível ter gerado e parido um pequeno anjo com quem dividiria o
mistério do seu dom, seu cheiro e suas asas. Se ela merecia tanta felicidade e harmonia. Seus meninos eram brutos, arrogantes
e cheios de defeitos como ela, mas aquela fada...
Sim, era linda demais para ter defeitos.
Um pensamento louco de quem ama demais. Pois havia pensado o mesmo dos bebês
elfos quando estavam no bercinho, dormindo inocentes. Um dia àquela menina cresceria e
seria levada e mal criada. Era assim, seus genes prevaleceriam.
-Vai mimar Emmanuelle– Solon chamou sua atenção, parado na porta, observandoa fazer isso novamente.– Vai estraga-la e
será uma fada vaidosa e impossível de lidar.
-Eu sinto muito, não posso evitar. A bebê é linda.– disse em suave desculpa,
pegando a filha nos braços.
-Eu não quero que continue treinando os raptores. Emmanuelle tem dois dias de
vida, Alma. Você deveria estar repousando.– ele aproximou-se e fez um carinho na filha.
-Eu torço que ela tenha puxado seu jeito – disse a ele– que ela não seja como eu.
-Não tem nada de errado com você, Alma.– Solon sentou na beirada da cama e
ajudou-a fazer o mesmo, mantendo a fadinha nos braços. Alma era muito jeitosa com
crianças e se desmanchava com os filhos.
-Por sua causa. Se eu estivesse sozinha... Eu não sei como eu seria– ela disse
sincera.
-Hum, eu posso dizer o mesmo – ele desconversou, pois Emmanuelle bocejava e os
dois ainda estavam naquele encanto permanente com a filha nascida há tão pouco tempo.–
Quando você deseja leva-la para conhecer a rainha?
-Eu escrevi para Lora, não vamos até lá dessa vez. A rainha virá até nós. Ela quer
conhecer o Vilarejo sem Fim, e você sabe que é um sonho antigo conhecer o que fizemos
nesse lugar.
-A vida de uma rainha é muito atribulada– Solon sorriu – Talvez seja uma boa ideia
Eleonora e Egan viverem um tempo para eles, longe das obrigações.
-Ainda bem que pensa assim– ela disse abrindo um lindo sorriso de quem sabe que
vai causar-lhe um grande desagrado – Pois combinamos de seguir viagem daqui, buscar
Joan e as crianças. Então, iremos para os montes gelados, visitar Driana. É uma viagem
sem elfos. Apenas nossas crias.
Solon sequer piscou diante dessa informação.
-Você já sabia– ela deduziu.
-Acha mesmo que Egan não nos avisaria? Não são as únicas a terem segredinhos?
Essa viagem será preparada por nós e vocês não partirão com nossos filhos sem proteção
extra.
-Mas não queremos elfos nos atrapalhando e exigindo nossa atenção o tempo todo.
Queremos liberdade para ficarmos juntas por alguns dias. Em paz– ela frisou a palavra.
-Estaremos por perto. – ele fugiu de uma discussão – Mas não iremos tomar o tempo
de vocês. A menos que sintam saudades e nos chamem– ele sorriu e ela corou.
-Continua um mercenário – ela disse baixinho– Mas não foi por causa disso que
mandou Diego e Dean me chamarem. O que foi? Alguma noticia ruim?
Pela seriedade que a expressão de Solon adquiriu diante da sua pergunta, ela
imaginou que não fosse algo inteiramente bom,
-Eu não sei. Meus pais estão aqui.– foi sua resposta simples– Eles querem se
mudar para cá.
-Oh, não – ela disse e colocou Emmanuelle nos braços de Solon antes que se
agitasse e deixasse a menina angustiada– Eu não quero seus pais aqui!
-Eu também não – era uma afirmativa nada verdadeira– Talvez eu queira um pouco,
mas não sei se confio nas razões dos dois.
Alma andou de um lado para o outro, pensativa.
-Quer que eu os convença a ir embora?– ofereceu, e deu de ombros diante do olhar
recriminador de Solon.– Eu em seu lugar iria querer– disse maldosa– Eu sei que seu pai
está de olho em Diego há anos. Ele quer treina-lo, como fez com você. Mas isso não é
certo, Solon. Você é o pai, você é o guardião. Ele deve ser treinado por você. E a sua mãe
– seu tom ao falar de Miquelina era o pior possível– Ela só quer me roubar Emmanuelle.
Eu suspeitei disso desde que ela escreveu para contar que havia previsto que eu iria parir
uma fêmea. Ela tentou me convencer que queria me alertar, para que eu não ficasse
preocupada em ter outra ninhada... Mas eu sei que era mentira. Miquelina quer conquistar
minha filha e rouba-la de mim.
Solon levantou e com cuidado, colocou o bebê de volta no berço. Aproximou-se de
Alma e a abraçou.
-Fale a verdade– ele pediu manso e Alma agarrou-o pelos ombros, enterrando o
rosto em seu pescoço.
-Eu tenho medo que Miquelina roube o amor da minha filha, que ela seja melhor do
que eu e Emmanuelle me odeie.
-Isso não vai acontecer. Você teve o mesmo sentimento sobre os meninos e eles são
loucos por você.– Solon garantiu.
-Mas é diferente. Eles são elfos. Emmanuelle é fada. Eu vou ser um péssimo
exemplo para ela.
Solon não podia rir diante dela. Manteve-a abraçada e fez sinal de silêncio quando a
porta da casa abriu e os gêmeos entraram.
-O que a mãe tem?– Dean perguntou, era o mais meigo e Alma soltou o marido
para abraçar o filhote.
-Nada– ela disse sentindo-se uma boba - Não tem nada errado comigo. Eu quero
que vocês três se comportem. Eu não estou brincando, Joá– ela fez questão de frisar para
não restar duvidas sobre para qual dos três era o aviso. Era sempre o mais velho que
incitava as traquinagens dos mais novos– Seus avós estão aqui e eu não quero saber de...
Arruaças.
Era tarde para sermões. Os três haviam saído atrás dos avós antes que Alma pudesse
começar a reclamar sobre não fazer isso.
-Eu não sei por que eles gostam tanto daqueles dois.– ela disse com rancor– eles
foram horríveis com nos dois no passado.
-Sim, e você faz de tudo para lembra-los disso todos os dias da nossa vida juntos–
Solon disse em tom de aviso - Miquelina não quer lhe roubar sua filha, ela quer apenas a
chance de ver a neta crescer e meu pai não quer me roubar o treinamento de Diego, ele
quer apenas ser útil. E eu posso gostar disso, de ter meu pai por perto.– Solon pegou sua
mão e Alma o olhou de má vontade.
-Eu sei– deu o braço a torcer– Mas não espere que eu goste de Miquelina. Isso
nunca.
-Eu não espero isso.– Solon beijou a palma de sua mão e ela se esqueceu do
assunto.
-Você sempre me convence a fazer o que eu não quero – Alma reclamou cedendo ao
seu abraço.
-Não diga isso. Eu penas a faço ver o que você também quer.– ele disse com
ternura.
Sorrindo, ela beijou o queixo e Solon e provocou.
-Mesmo? Acho que eu vou antecipar essa viagem com minhas amigas e deixa-lo
aqui com sua família. Talvez eu nem volte mais... – Alma soltou um riso assustado quando
Solon a ergueu no colo em represaria a sua ameaça.– Está bem, está bem, eu estou
mentindo. Nunca iria embora. Solon! – ela reclamou quando os dois caíram juntos na
cama.
Não podia fazer nada, ela estava de resguardo do recente nascimento de sua filha,
mas os beijos compensavam a saudade e aliviavam o fardo de quem sempre temia ver o
pior lado da vida.
Envolvidos no namoro, não notaram a confusão e gritaria do lado de fora até que o
barulho se tornou ignorável. Solon foi o primeiro a correr pra fora e descobrir o que
acontecia.
-É melhor você vir - ele voltou para chama-la, na face uma expressão de profundo
medo e horror.
Alma correu junto com Solon, depois de conferir que a menina que cuidava de sua
filha estava por perto, e ficaria com Emmanuelle.
A confusão estava feita. O raptor que Alma treinava havia escapado do cercado e
rosnava e riscava o chão, ameaçando avançar sobre os elfos e fadas. Alma surgiu entre a
multidão e fez um sinal para que os guardas de Estevão baixassem as armas e se
afastassem.
-Não – ela disse para o animal, gesticulando pra que ele se afastasse– Não ouse
avançar– ela tornou a avisar– Para trás, isso, garoto, para trás.
O raptor puxou o corpo para trás com força, sua bocara repleta de dentes
assustadores aberta, escancarada, sendo um terrível lembrete do que aconteceria caso não
conseguisse conte-lo.
-Eu já disse que não o machucarei. Porque não consegue me ouvir? Isso se acalme.
Eu não vou machuca-lo – Alma deixou o tom de ordem para trás, pois o animal se
acalmava, o corpo pesado pulsando em uma respiração funda, rápida e frenética, rosnados
assustadores. Sua presença o fazia sentir-se seguro e ele se acalmava lentamente – Eu só
quero ajuda-lo a se sentir melhor...
Aos poucos com cuidado conseguiu tocar o animal. Ele rechaçou seu toque e Alma
deu um passo para trás, então, tentou mais uma vez, conseguindo tocar os pelos macios da
fera entre seus dedos.
Aquele raptor era o mais complicado e difícil de treinar que Alma conhecera nos
últimos anos. Com os olhos cheios de lágrimas ela fez um carinho na fera que respirava
com tanta rapidez, fruto do medo incondicional que o fazia agredir para se defender e
sussurrou:
-Você está bem agora está protegido, nada poderá lhe fazer mal. Eu vou lhe mostrar
isso. Vou lhe dar um dono que fará todo o modo ir embora. Você quer isso? Eu sei que quer um pouco de paz...– ela não podia
chorar, por isso se controlou e olhou na direção de
Solon sorrindo– Você o quer? Ele não serve para a venda. É muito instável. Era mentira, Alma não queria se desfazer do
animal. Solon aproximou-se e passou
uma das mãos no pelo fartos do animal e sussurrou em seu ouvido:
-Sim.– ele sabia por instinto que ela precisava de conforto, tanto quanto o animal
precisava - Eu te amo, Alma. Um pouco mais a cada dia.
-Não tanto quanto eu o amo – ela sussurrou tão baixo que Solon mal ouviu. Era a
primeira vez que Alma dizia isso em oito anos de convivência. Solon apenas sorriu e
enlaçou seus dedos, apontou para o raptor enquanto perguntava:
-Então, como eu faço para manter os meninos longe dele?

FIM

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