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Armações do amor

por Karina Dias

Capítulo 1
[11/08/10]

Aumentei o som na sala. Com um gesto, pedi que Alan saísse do sofá e me
sentei. As luzes do ambiente tinham sido apagadas, apenas a do corredor nos impedia de
ficarmos na escuridão. Estiquei o braço e puxei Flávia para que ela sentasse no meu
colo. A garota jogou a long neck num canto qualquer, ergueu a saia e deixou as pernas à
mostra. Sedutoramente, apoiou os joelhos flexionados no sofá, inclinou-se em seguida
para se posicionar acima da minha coxa. Coloquei a mão atrás da sua nuca, forçando-a a
encostar os lábios nos meus, famintos por beijos e algo mais. A língua ágil se perdia
dentro da minha boca. Os nossos gemidos de desejo foram abafados pelo som no último
volume. Continuei puxando-a pela nuca. Minha mão solta descera pela blusa de Flávia,
tocando seus seios intumescidos e fartos.

— Quero chupar! — disse, olhando a minha mão que, com a pontinha dos
dedos apertava o biquinho do seu seio.

— Vamos pro seu quarto — sussurrou próximo ao meu ouvido enquanto enfiava
a língua dentro da minha orelha, me atormentando de tesão. Ansiosa, ela cravou as
unhas em meus ombros. A língua quente agora percorria o meu pescoço. Estávamos
“perdendo a linha”. Minha mão havia descido até o meio de suas pernas, e já afastava a
calcinha para dar passagem aos meus dedos... quando gritei um palavrão ao sentir um
líquido gelado escorrer pela minha perna. Ergui os olhos e vi Renata, parada a nossa
frente, nas mãos a cerveja que havia derramado em mim. Me pediu desculpas, no
entanto, conseguiu cortar o nosso clima.

Aproveitei para dar uma olhada ao redor. Meus amigos “delinquentes”, como
discriminava minha mãe, estavam alucinados ao som da música eletrônica. Alguns
casais já haviam se formado no decorrer da festinha, não sei se movidos pelo álcool que
entrava nas veias ou pelo desejo que acelerava o coração. Só sei que eles se esfregavam
pelos cantos, completamente desinibidos. E olha que era uma festinha daquelas bem
selecionadas, sabe? Só um grupinho de amigos da faculdade. Umas oito meninas e
cinco meninos, isso sem contar comigo e com Flávia.

Me levantei de sobressalto, quase fiz Flávia cair do meu colo. Ignorei os pedidos
de desculpas de Renata, que já estava mais para lá do que para cá, e puxei pelas mãos, a
morena gostosa que me fazia companhia. Passamos pelo único corredor iluminado da
casa e quando chegamos à porta do meu quarto, nós já havíamos deixado todas as
nossas roupas pelo caminho. Eu tinha aberto a porta enquanto beijava os lábios da
garota, depois a fechei atrás de nós com um chute. Estava louca por sexo, como sempre!
Passei as mãos pelo corpo nu de Flávia. A pele morena e suada queimava o meu corpo
de desejo.
— Tô louca... pra te comer! — sussurrei ofegante no seu ouvido enquanto a
empurrava para que se deitasse na minha cama.

— Você não presta mesmo — afoita, me puxou para cima dela — Quer comer
todas, Lê! – suspirou ao final da frase.

Afastei suas pernas e me deitei sobre o seu corpo, imediatamente encaixando os


nossos sexos.

— Só quero comer você... gostosa! — passei a língua pelo seu pescoço, me deliciando
com as mãos de Flávia que apertavam as minhas costas cravando as unhas na minha
pele.

— Abre mais a perna — pedi, me movimentando sobre ela. Obediente e


excitada Flávia tinha afastado as pernas um pouco mais para eu sentir o seu sexo
umedecido — Goza pra... mim... goza gostoso, vai! — eu tinha aumentado o atrito do
nosso corpo, enquanto suplicava pelo gozo dela, o meu, já estava quase explodindo o
meu cérebro com a sensação mais deliciosa existente na terra.

— Quero a sua boca, Lê! — conseguiu dizer com dificuldade, me apertando, me


sufocando entre os seus braços. Sua respiração ofegava no meu pescoço, me arrepiando
inteira. Ela gemia e gritava repetindo que queria gozar na minha boca. Consegui ouvi-la
melhor quando percebi que o som da sala havia sido desligado. Se eu não estivesse tão
excitada, já teria levantado e ido ver quem era o idiota que tinha feito aquilo. Depois do
silêncio, ouvimos uma vaia coletiva vinda do primeiro cômodo do apartamento e,
apesar de saber que estava acontecendo alguma coisa de errado, não consegui parar o
que estava fazendo com Flávia.

A morena ergueu as pernas, laçando-as envolta da minha cintura. Ela não havia se dado
conta do boicote da música. Continuava gemendo sob mim, arranhando as minhas
costas, rebolando o quadril deliciosamente... Não dava pra parar mesmo, meu corpo
estava preparado para o gozo, mas alguém interrompeu o meu prazer ao empurrar com
rispidez a porta do quarto e acender a luz. Tomamos um susto daqueles. Virei o rosto
imediatamente na direção da porta, claro! Queria xingar o invasor. Dei um salto depois
de ver quem era, saindo de cima de Flávia que tentava se encolher no canto da cama.

— Letícia! — dera um grito estarrecido.

— Porra, mãe! Como entra aqui assim? — puxei o lençol da cama, e cobri
Flávia com ele. Rapidamente percorri o quarto com os olhos. Aborrecida tinha
apanhado uma camiseta vermelha de malha que estava jogada num canto, uma bermuda
que eu havia usado mais cedo e deixara caída atrás da cadeira do computador, e vestido
às pressas. Minha mãe estava de braços cruzados olhando para a parede. Ela batia o pé
no chão como se fosse furar a merda do piso. Só voltou a me olhar quando me viu
vestida e parada à sua frente. Eu estava furiosa com aquela invasão absurda.

— Agora não bate mais na porta? — provoquei.


— Estou cansada de tudo isso! — ela disse, descruzando os braços e passando as
mãos pelo rosto. Estava brava... Muito brava! “Ela sempre faz tempestade em copo
d´água”.

— Qual, é! — fitei-a séria, dona de uma razão inabalável. Não abaixava a


cabeça pra ninguém, muito menos pra minha mãe, que sempre estava errada, diga-se de
passagem — Você não era pra chegar hoje! Tava ruim na casa do namoradinho?

— Olha aqui, menina! — apontou o dedo na minha cara — Você não tem o
direito de transformar a nossa casa nessa baderna que aí está! — continuou com a voz
alterada, agora apontava na direção da sala.

— Se liga! É só uma festinha, viu? E uma festinha inocente — esbocei um


sorrisinho no canto dos lábios. Ela detestava quando eu debochava, e eu adorava deixá-
la irritada.

— Letícia! — gritou para chamar a minha atenção.

“Ela pensa que sou surda, só pode!”

— Tem um bando de jovens transando na minha sala. Os vizinhos me ligaram


mil vezes para reclamar dessa música alta. E você, minha filha... — olhou na direção de
Flávia — Está nua com uma menina na sua cama!

— Até parece que você não sabe que eu transo com meninas! — fiz um gesto
para que ela parasse de gritar — Você tá no lugar e na hora errada, dona Márcia! —
apontei o corredor — Meus amigos estão se curtindo na sala; os vizinhos que estão
reclamando do som são um bando de velhos caquéticos que não sabem o que é boa
música; e eu... tô transando no meu quarto, com a minha mulher! — falei desafiando-a
com o olhar. Adoro medir forças com as pessoas, principalmente quando eu conheço as
suas fraquezas.

— Sua mulher? — ironizou, balançou a cabeça numa negação e saiu porta afora,
andando em direção à sala. Fui atrás dela, afinal de contas, não gosto que me deixem
falando sozinha, principalmente quando estou na minha razão. “Quem ela pensa que é?
Eu tenho direito de ter amigos. Gosto de festas. Isso é saudável na minha idade, da
mesma maneira que transar também é!”

— Todos para fora! — disse ela, batendo palmas para acordar os que estavam
bêbados caídos pelo chão, e os que ainda teimavam em se agarrar encostados na
parede.

— Qual é, tia? Tá tão legal! — alguns disseram.

— Sua mãe é uma chata, Lê! — ouvi mais esse murmurinho, para o meu
desespero. “Lá vai metade da minha popularidade pelo ralo”.

— Acabou! Todos para as suas casas! — dona Márcia teimava em me fazer


passar aquele vexame.
— Mas... que merda! A festa ainda não acabou! — encarei-a.

— Basta, Letícia! — segurou meus braços — Volta lá no seu quarto e manda


aquela menina ir embora! – falou gritando como se eu não estivesse na sua frente, oras!

— Tá louca? Não vou fazer isso! Eu ainda não a comi! — gritei entre os
dentes. Inesperadamente, um tapa queimou a minha face. Primeiro engoli em seco,
depois respirei fundo. Abri os olhos que se fecharam com o impacto da bofetada, passei
a mão pelo local que doía. Estava ardendo como se minha mãe tivesse também atingido
a minha alma. O ódio e a revolta se faziam presentes no meu olhar, nas minhas
expressões. Foi a primeira vez que aquela mulher havia levantado a mão para mim. Ela
levou as mãos à boca...

— Odeio você, sabia? — cuspi as palavras com ira — Odeio! Preferia ser órfã
de mãe! De pai! Ter vivido num orfanato! — a mulher apenas abaixou a cabeça e
começou a chorar. Senti prazer por estar conseguindo feri-la, mesmo porque, o maldito
tapa estava ardendo no meu rosto e no meu orgulho ferido. Olhei para porta, meus
amigos logo saíram, provavelmente rindo daquela cena ridícula.

— Você odeia todo mundo, menina! — enxugou as lágrimas. Veio na minha


direção e ergueu rudemente a minha face. Encarou os meus olhos com os seus de um
azul frio. Ríspida, esquivei o rosto das suas mãos, ela tornou a puxá-lo para que nos
olhássemos.

— Olha para mim! Estou falando com você! — disse autoritária.

Firmei o olhar fulminando de raiva. Ela continuou a falar.

— Não te aguento mais, Letícia! Você está conseguindo transformar a nossa


vida em um inferno, minha filha!

Eu vi o desespero no seu olhar, e apesar do ódio que estampava o meu rosto, um


leve ar de satisfação transitava pelo meu sorriso. Vê-la apavorada me divertia, dava
até... prazer.

— Você vai tomar jeito! Eu juro! – continuou.

— Pára de me tratar como criança! — comecei a rir da sua profecia – “Você vai
tomar jeito, eu juro!” – repeti com desdém. Logo minha face estava transtornada
novamente. Caminhei pela sala e chutei umas latas de cerveja que estavam vazias em
um canto, tinha tapado os meus ouvidos e comecei a assoviar.

— Você é uma criança!

Ergui a face ainda mais transtornada.

— Sou porra nenhuma! Já tenho dezenove anos, e vivi muito mais do que você!
Levando em consideração as minhas experiências...
— Age como uma menininha irresponsável de doze anos! — respirou fundo ao
completar a frase. Neste instante, vimos Flávia passar correndo por nós em direção à
porta de saída. Ela sequer olhou para trás, estava amedrontada com a discussão.

— Viu o que você fez? — continuei irritada — Ela foi embora! — estava me
lamentando pelo que nós não fizemos — A primeira vez que eu ia comer essa garota, e
você faz esse teatrinho e estraga tudo, merda! — balancei a cabeça no sentido negativo.
Dei uns socos nas costas do sofá, completamente inconformada, pensando no quão
difícil tinha sido aquela conquista. Flávia havia terminado com o babaca do namorado
naquela manhã para ficar comigo. Foram duas semanas de investidas e a minha
mamãezinha, em segundos, me fizera passar toda aquela vergonha.

Eu não merecia aquele castigo, sabia?

Depois de toda a gritaria, ficamos em silêncio. Irritada, apanhei do chão uma cerveja
que estava pela metade e tomei um gole. Continuei a assoviar, enquanto andava pela
sala e olhava dona Márcia pensativa, encarando a parede ao lado da TV.

— Arruma as suas coisas... Agora! — disse de repente e ergueu a face.

Sorri debochada.

— Vai me expulsar de casa? É isso? — dei de ombros — Dane-se! Fico na casa


do Alan!

— Não vou te expulsar... — disse com uma calmaria que eu odiava.

— Quer cortar a minha mesada? Corta! Não preciso de dinheiro! As meninas me


dão de graça! — ela caminhou lentamente até a beira do sofá, sentou-se. Colocou as
mãos na testa em sinal de cansaço. “Pronto! Venci de novo!” Sorri ao vê-la esmorecer
novamente diante das minhas objeções a qualquer forma de punição. “Acabou!”, pensei,
dando as costas e indo na direção do quarto quando ouvi a voz dela vibrar novamente
pelo ambiente.

— Você vai amanhã cedo para a casa do seu pai! — falou com a voz rouca.

Retornei imediatamente até onde ela estava. Pensei não ter ouvido direito.
Aquelas palavras foram piores do que o tapa que eu tinha levado.

— O quê? — perguntei, parada novamente na sua frente.

— Tá brincando, né? — o desespero já dava sinais no meu rosto e a voz


embargou — Não... não vou “praquela” roça! — apontei o dedo indicador em sua
direção — Não quero contato com aquela gente matuta! — disse descontrolada.

— Vai para a fazenda, sim! — continuou séria, havia em fim, descoberto o meu
ponto fraco.

Passei as mãos pelos cabelos, perdida por alguns segundos, tentando digerir
aquelas informações e achar uma saída.
— Já está decidido, Letícia! — continuou perversa.

— Vou nada! Tá louca, é? — perturbada, balancei a cabeça negativamente. Fui


em direção à porta, engasgada, retornei novamente — Eu não sobreviveria naquela
selva! Gosto da cidade! Poluição... boates... Gosto de “ferver” com as mulheres... a
minha gente tá aqui, ouviu bem?

— Vai se adaptar — disse calma e sádica.

— Pára de brincar comigo! — comecei a gritar novamente. Meu corpo suava, e


minhas mãos tremiam tanto quanto a minha voz — Aquele cara que se diz meu pai tem
outra família! Trocou a gente, esqueceu? Assumiu os filhos daquela vadia e abandonou
a sua própria filha!

— Ele não nos abandonou! Eu quem vim para o Rio e te trouxe comigo! — ela
tentou segurar minhas mãos, mas eu não deixei que me tocasse — É... só até as férias
acabarem...

— Não vou pra lá! Prefiro morrer a ter que passar às férias enterrada no meio do
mato... com... com... aquela gente que eu não suporto! — abri os braços para enfatizar
meus argumentos. Eu chorava, mas o choro era de raiva — Quer se livrar de mim?
Então por que não me despacha pra Londres? Eu sou o seu grande problema, não é? –
segurei seus braços - Então... prometo que se você me mandar pra qualquer outro lugar,
eu fico na minha, valeu?

Soltei-a e tirei da minha face suada alguns fios de cabelos que grudavam nela.

— Que tal o Japão? — sorri mais nervosa do que debochada — México?


Arábia? Quem sabe... África! Me manda pra linha de gaza, droga!

— Você precisa de um lugar tranquilo... com pessoas diferentes dessas que você
convive aqui. Desde que viemos para o Rio, você só viu o seu pai duas vezes. Será bom
para você!

— Já vem arrumando pretexto pra falar mal dos meus amigos, não é? — ignorei
o fato de eu ter visto o meu pai somente duas vezes em dez anos.

— Arruma as suas coisas, Letícia!

— Vai à merda! – tapei novamente os ouvidos, dei as costas em seguida, e saí da


sala pisando forte. Queria encerrar a conversa, mais tarde ela desistiria daquela sandice.
Bati a porta do quarto e deixei minhas costas deslizarem por ela, até o meu corpo tocar o
chão.

— Eu não vou! — disse afrontada — Não vou! — repeti, enquanto batia com as
mãos espalmadas no chão gelado do quarto, e puxava os meus cabelos, como se
quisesse arrancá-los da cabeça fio a fio, contudo, nada fazia diminuir a amargura que eu
carregava dentro do peito há tantos anos. Adormeci com o rosto colado no piso frio.
Capítulo 2
[15/08/10]

Acordei na manhã seguinte com minha mãe empurrando a porta do quarto e


forçando a entrada. Tanto fez que conseguiu invadir o meu espaço. Resmunguei
enquanto ela me pegava pelos braços na tentativa de me erguer do chão.

— Para o chuveiro, mocinha! – disse me sacudindo feito chocalho.

— Eu quero dormir! — retruquei irritada, abrindo os olhos e tentando me


desvincular dos braços dela. Olhei a cama e isso reanimou a minha preguiça.

— Não pode voltar a dormir, Letícia! – me puxou de volta, antes que eu deitasse
nos lençóis — Seu pai já está a nossa espera na fazenda.

“Se ela queria me despertar, pronto! Conseguiu”.

Dei um salto ao ouvir suas últimas palavras. Juro que pensei que aquela conversa da
noite anterior havia sido um terrível pesadelo, mas não! Minha mãe tinha que me
arremeter novamente àquele trágico castigo. “Pra quê insistir no devaneio de me mandar
para um hospício de bois e vacas?” Fiquei de pé, com um gesto brusco das mãos recusei
a ajuda dela.

— Olha só... Que tal fazermos um trato, hein? – sorri para tentar quebrar o gelo.

— Nada disso, mocinha! Estou cansada das suas falsas promessas! – me olhou
séria, ela continuava na defensiva.

Naquele instante, percebi que não ia adiantar um diálogo, na verdade, com dona
Márcia, aquilo não existia. A gente sempre discutia por tudo. Incompreensão era o nome
dela. Esfreguei os olhos com as mãos para ganhar tempo e pensar em um argumento.

— Uma trégua, mãe! – balancei na frente dela uma camiseta branca que havia
pegado em cima da minha cama bagunçada. Última tentativa, senão... Teria que passar
para o plano “B”. “Ela não ia gostar do plano B” – Olha, eu fico “de boa” aqui... não te
perturbo, e você não me obriga a ir pra fazenda, certo?

— Sem chance! – disse irredutível, enquanto abria o meu armário e começava a


colocar algumas roupas em uma bolsa de viagem, que trouxera do seu quarto – Vai ser
bom para você, meu amor!
— Meu amor? – desdenhei das palavras dela – Quer se livrar de mim, não é? –
acusei insatisfeita.

— Não, filha!

Ela parou de colocar as roupas na bolsa, aproximou-se de mim, que emburrada,


estava sentada na beira da cama. Passou de leve as mãos nos meus cabelos. Franzi o
cenho.

— Eu te amo, Letícia! Só quero o seu bem! – disse com a voz pastosa. Aquele
tom aguado era proposital para me deixar ainda mais enervada.

— Que nada! – me esquivei dos carinhos dela em meus cabelos – Quer me ver
pelas costas, isso sim! – alterei o tom de voz, enquanto levantava e ficava de costas para
ela – Como acha que será a minha vida com aquelas pessoas caretas? Um inferno, né?!

— Não diga isso. São boas pessoas! – deu a volta e parou de frente para mim.

— São roceiros, dona Márcia! – eu gritava indignada – Roceiros! – repeti.


Minha mãe abaixou a cabeça para esconder as lágrimas – Você só sabe chorar! – falei
franca – Se quer ficar sozinha com o seu namoradinho, não precisa me mandar embora,
é só pedir que eu me toco e deixo o terreno livre pra vocês!

Dona Márcia, como sempre havia ficado quieta. Absorvida no seu completo egoísmo.
Isso que ela era, uma egoísta!

Eu já sabia que aquela conversa não iria nos levar em lugar algum. Ela me queria longe
da sua vida, isso era fato! E eu queria encerrar aquela conversa patética. Isso me fez
pensar imediatamente no plano “B”.

“Quer guerra dona Márcia? Adoro um campo de batalhas!”

Sem dizer mais nenhuma palavra, peguei as chaves da moto que estavam sobre a mesa
do computador e saí andando pelo corredor.

— Onde vai, menina? – perguntou vindo atrás de mim.

— Não te interessa! — disse e bati a porta do quarto. Não esperei o elevador,


desci em disparada pelas escadas do prédio, e logo alcancei o estacionamento. Subi na
moto, pendurei o capacete no braço, como sempre fazia. Só usava aquela porcaria
quando tinha blitz da polícia, mas se por acaso algum guardinha de merda me pegasse
na infração, pagava uma cerveja e ele me liberava. Essa era a parte boa de morar em um
país corrompido. Parti em direção à casa do Alan.
“Quem tem amigos nunca fica sem abrigo, não é mesmo?”

Aquela batalha minha mamãezinha havia perdido feio. A dona Márcia estava armando
um complô contra mim, não era? Ela queria me tirar da sua vida? Pois bem! Nem ligo.
Já estava na hora de eu sair de casa mesmo.

Dez minutos, foi só o que levei para ir do Leme a Botafogo. Rápido? Cansei de ouvir
minha mãe dizendo que um dia eu me ferraria em cima de uma moto, mas isso não me
assustava. De uns tempos para cá, nada me assustava, exceto ter que passar as minhas
férias enterrada no meio do mato. A velocidade fazia a adrenalina explodir nas minhas
veias, era uma sensação de liberdade indescritível, e eu precisava disso, pelo menos
naquele momento.

Estacionei na calçada. Toquei a campainha, mas ninguém veio atender. Como os pais de
Alan estavam viajando, e a noite passada havia sido regada à cerveja, deduzi que ele
ainda deveria estar dormindo. Destranquei o portão e entrei. Passei pelo cachorro que
estava deitado na varanda. Bati na porta principal, mas o silêncio me fez tentar girar a
maçaneta.

“Aberta como sempre!”

Já conhecia bem os cômodos da casa, por isso fui direto ao quarto de Alan. A porta,
que estava apenas encostada fizera um ruído quando a empurrei – igual àqueles que
ouvimos nos filmes de terror. Sorri achando graça da comparação.

As cortinas das janelas inibiam a entrada do sol, e o quarto tinha as paredes


pintadas de verde-musgo, dificultando que pudéssemos enxergar lá dentro sem que as
luzes estivessem acesas. Apertei o interruptor e Alan se mexeu por baixo das cobertas,
só então percebi que ele estava acompanhado. Na mesma hora me virei de costas para a
cama. Putz! Eu não iria gostar de vê-lo nu, pode apostar!

— Acorda, cara! Precisamos conversar – falei batendo o pé no chão.

— Mas que merda, Lê! – ouvi seu tom de voz assustado e o barulho de lençóis
sendo revirados.
“É! Ele deveria mesmo estar nu. Contive um risinho debochado”.

— Tô te esperando na sala, tá legal? – me limitei a dizer e sai do quarto.

— Tá... já... to indo... – concordou desconcertado. Até parece que aquela havia
sido a primeira vez que eu o surpreendia com uma mulher. Só se... Ah, não! Sorri
achando graça do meu pensamento. Imagina se o Alan estaria com um cara. Balancei a
cabeça negativamente.

“Claro que não!” , pensei e quase retornei para ver se conseguia descobrir a identidade
da sua companhia misteriosa.

Quando Alan apareceu na sala, me levantei do sofá ansiosa, precisava resolver


logo a minha situação, não é? Não tinha tempo a perder, minha mãe não podia se dar
bem nessa. Tudo era melhor do que ir para a fazenda, até mesmo morar de favor na casa
de alguém. O bom é que seria na casa de um grande amigo.

— Alan... Eu... – parei de falar, quando vi a menina saindo de trás de sua


sombra.

— Lê... Eu... eu ia te contar... – ele tentou se justificar. Suas mãos estavam


inquietas.

Demorei alguns segundos para assimilar o que estava acontecendo diante de


mim.

— Ia me contar que levou minha namorada pra cama?! – coloquei as mãos na


testa para sentir o tamanho dos chifres, e achando tudo aquilo um grande absurdo.

“É! Eu estava dentro de um filme de terror.”

— Quem te contou? Foi aquele “viado” do Túlio? – entregou.


— Cara... Eu vim aqui te pedir ajuda pra uma parada superséria que eu tô
passando, e... – fitei-o quase sem conseguir respirar – Por que fez isso comigo?

— Ah, pera lá, sem dramas! A sua mãe expulsou todo mundo, a Flávia não
podia voltar pra casa dela, então...

— Então você fez o favor de trepar com ela, seu idiota?! – disse indignada, com
uma vontade extrema de voar no pescoço dos dois.

— Teria sido diferente se a sua mãe não tivesse me feito passar aquela
vergonha! – se pronunciou a vadia – E outra, Lê, nós não somos namoradas.

— Você é uma vagabunda, Flávia! Queria dar de qualquer jeito, não é? – falei
alto, queria acordar até os vizinhos se fosse possível.

— O que você quer comigo, Letícia? – Alan entrou na nossa frente antes que eu
perdesse a cabeça de vez e desse uns tapas naquela piranha – Se ninguém te contou que
eu estava com a Flávia, o que é tão grave que fez você vir aqui na minha casa essa hora
da manhã?

— Não... não aconteceu nada – disse com um nó na garganta. Tenho o meu


orgulho e não daria armas para eles espezinharam mais ainda de mim – Só quero dizer
que você é um filho da puta, sabia?

— Que isso, Lê! Somos amigos, o que aconteceu foi só um acidente... –


moderou novamente o tom de voz, ajeitando a bermuda, que parecia ser do seu pai.

“O desgraçado não teve nem a coragem de colocar uma roupa decente para vir falar
comigo!”

Permaneci quieta, encarando-o com ódio.

— Ah, garota! Esfria a cabeça, e depois a gente conversa, tá legal?

— Não tem depois! – olhei-o naquele momento como se eu não o conhecesse, e


não conhecia mesmo. Acho que não conhecia ninguém. Meu pai me decepcionou...
Minha mãe me decepcionou... Alan me decepcionou... Todos me decepcionavam! As
pessoas não prestam mesmo. São um bando de abutres prontos para dar o bote.

— Quer saber de uma coisa? Nunca... escreve isso! - apontei o dedo na direção
ora de um, ora de outro – Nunca mais quero ver vocês dois, nem pintados de ouro! –
gritei amargurada, antes de chutar um objeto que decorava a sala da mãe dele. Eles
tinham se assustado com o barulho que a peça, aparentemente de vidro, fez ao se
estilhaçar no chão.

Olhei-os novamente, completamente desnorteada. Sabe quando o seu mundo


desaba? Me sentia dentro de um labirinto,e para onde quer que eu olhasse, só havia
paredes e nenhuma saída. Alan era o meu melhor amigo. Dá pra acreditar nisso? Era o
cara para quem eu pediria abrigo, e o mesmo que me apunhalou pelas costas daquela
forma. Não que eu estivesse apaixonada por aquela vadia da Flávia, mas não esperava
que ela fosse dormir justamente com o meu melhor amigo. Eu tinha todos os defeitos do
mundo, mas se o Alan estivesse a fim de uma garota, ficava na minha, sempre me
mantive longe até mesmo das ex-namoradas dele. Poderia ter sido com qualquer outra
pessoa, sabe? Ele podia ter estado naquela cama com qualquer garota, ou até garoto, que
eu não iria ligar, mas... Não tinha como explicar o que eu havia sentido naquele instante.
A dor da decepção era tão grande, que fiquei literalmente sem rumo. Bati a porta
rispidamente ao sair.

Desnorteada e encurralada, rodei de moto pela cidade por horas e horas, sem
conseguir ver uma solução para o meu problema. Eu tinha duas certezas, não queria ir
para a fazenda, e não conseguiria olhar para a cara do Alan, no mínimo, pelos próximos
mil anos.

A gasolina da moto já estava acabando quando eu resolvi voltar para casa. A


manhã já tinha ido embora, mas mesmo assim, abri a porta da sala e vi minha mãe
sentada no sofá, a minha espera.

“PQP! Ela não desiste”.

Ao lado dela, a minha mochila azul. Eu não tinha escolha! Continuei parada com a mão
ainda na maçaneta da porta. Nos olhamos por pelo menos uns cinco minutos, antes dela
quebrar o silêncio constrangedor.

— Olha, Letícia... Você só precisa fazer uma experiência.

Continuei olhando-a sem nada dizer. Na verdade, as palavras me abandonaram


junto com a amizade de Alan, que se pulverizou dentro do meu peito. Naquele momento
eu estava de mãos atadas. Como dizem: “minha mãe estava com a faca e o queijo nas
mãos”. Me sentindo terrivelmente sozinha e decepcionada com aqueles que eu tinha
certeza que seriam o meu apoio, resolvi não brigar com ela. Dona Márcia respirou
fundo, antes de continuar a falar.
— Façamos um trato, está bem?

Ergui o olhar. Meus olhos exibiam uma nevoa pavorosa diante de suas palavras.
Nada respondi, mas estava interessada em saber qual seria o trato.

— Quinze dias, Letícia! – falou aproximando-se de mim. Fez um gesto


indicando que iria passar a mão pelos meus cabelos, mas desistiu ao perceber que eu me
esquivaria. Ela não me conhecia mesmo, naquele instante, não teria me esquivado – Se
nesse tempo você não se adaptar com a rotina da fazenda, pode voltar para a casa,
combinado?

“Não posso demonstrar fraqueza”, pensei.

— Vou voltar... – sorri debochada – E deportada, dona Márcia! – disse irônica,


tentando disfarçar a voz embargada.

— Que seja! Mas você vai! – a sua soou enérgica.

— Beleza! – disse sem conseguir parar de imaginar o quanto iria perturbar a


vida daqueles matutos, até ser expulsa daquela fazendinha do papai. “Vou me divertir”.
Apanhei a minha mochila azul pelas alças.

Pegamos a estrada depois do meio dia. Ajustei o banco do carona, inclinando-o


bem para trás, colocado em seguida os pés sobre o painel do carro, e tapado os ouvidos
com os fones do mp4 para evitar conversas fiadas com a minha mãe. A principio, tinha
ficado de olhos fechados, enquanto ouvia música. Meia hora depois, eu estava
entediada, o sono me abandonara e eu passei a olhar através da janela. De hora em hora,
percebia que minha mãe me fitava de rabo de olho, talvez querendo decifrar alguma
expressão que eu, por ventura, tenha deixado escapar na minha face dura, afinal de
contas, por mais que eu quisesse me manter indiferente, vez ou outra me lembrava da
traição daqueles dois safados. Aposto que minha mãe queria saber o porquê de eu não
ter ficado na casa do Alan. Ela devia estar triunfante, achando que, finalmente tinha
conseguido me domar.

“Deixa ela achando!”

As horas na estrada passaram rápido, e o incrível dessa viagem foi que durante
todo o caminho, a partir do instante que me pus a olhar através da janela, não consegui
mais controlar os pensamentos. Era inevitável deixar de pensar no lugar para onde
estávamos indo. Mesmo lutando bravamente com aquelas recordações medonhas, me
lembrei de cada detalhe bobo, sabe? Até das histórias que meus pais me contavam
quando eu era pequena. Não eram histórias infantis, mas sim, a história deles dois.
Minha mãe tinha dezoito anos quando se casou com meu pai. Ela havia acabado de
voltar da Europa e foi descansar na casa de uma amiga, que morava em uma das
fazendas próximas a do meu avô. Meu pai era o filho mais velho de um fazendeiro
falido da cidade. Eles contam que foi amor à primeira vista, embora meu pai fosse bem
mais velho do que ela – tinha trinta e cinco anos na época —, e do fato dele nunca ter
colocado os pés fora daquela cidadezinha, ser um xucro, analfabeto, peão de rodeios,
que trabalhava como todos os empregados do meu avô, na fazenda que ele iria herdar.

Bom, mesmo todas as diferenças entre eles sendo gritantes, os dois se entregaram
àquele amor. Casaram-se, e minha mãe se enterrou naquela terra de ninguém. No
entanto, uma mulher como ela queria muito mais do que uma vidinha sem graça no
campo. Dona Márcia já conhecia o mundo, havia estudado nos melhores colégios,
gostava de frequentar bons restaurantes, vestir roupas de grifes. E, como meus avós
maternos previram...

Eu tinha nove anos quando fui acordada às pressas por minha mãe, e pegamos a estrada
em direção às placas que indicavam o Rio de Janeiro. Depois desse episódio, nunca
mais quis voltar àquela cidadezinha perdida no mapa. Adaptei-me rápido à cidade
grande e tomei aversão a tudo o que diz respeito ao campo. Nesses anos, vi meu pai
apenas duas vezes. Ele se recusava a sair do meio do mato, e eu, me recusava a ir até lá.
Vivemos nesse impasse, que parecia ter terminado no instante que a minha mãe
resolveu se livrar de mim.

Capítulo 3
[18/08/10]

Depois de quatro horas e meia de viagem, parando apenas uma vez para irmos
ao banheiro e comermos um sanduíche fuleiro na beira da estrada, pegamos um trecho
de terra. O dia estava levemente nublado, o sol lutava contra as nuvens para reagir e
aparecer, de vez em quando até aparecia. Ventava bastante, as árvores pelo caminho
pareciam se inclinar para dar passagem ao automóvel, que lutava para não atolar no
barro molhado pela chuva da noite anterior. Fazia um pouco de frio também.

Tirei um casaco de dentro da mochila que estava acomodada no banco de trás, e vesti.
Seguimos por aquela estrada esburacada por mais alguns minutos, até avistarmos uma
placa de madeira, que dizia: “Bem-vindos à Fazenda Gota d’Ouro”. Como em um flash,
tinha me visto correndo por aquele gramado. Criança, com os pés descalços, cabelos
caindo pelos ombros e revoltos pelo vento. Boca suja de bolo de milho, que era
preparado todos os dias, bem cedinho, para o nosso café da manhã. Balancei a cabeça
negativamente para tentar me livrar daquelas lembranças fatídicas, enquanto minha mãe
saia do carro para abrir a porteira que o veículo passaria.

Arranquei os fones dos meus ouvidos, a música estava me incomodando, assim como
todas aquelas lembranças amargas de uma infância que eu não sabia o porquê, mas
queria muito esquecer. Senti raiva por estar entrando ali novamente. Queria fugir. Uma
agonia tremenda começou a fomentar dentro de mim, e eu quase abri a porta do carro e
sai correndo sem rumo.

Aquele cheiro de esterco espalhado e grama molhada me davam náuseas. Na verdade,


eu queria mesmo é sentir o doce aroma da poluição do centro do Rio; o barulho dos
motores dos carros; a multidão que esbarrava na gente pelas calçadas; as meninas de
biquininho na praia... O posto 9 em Ipanema! Estava até com vontade de ver os pivetes
que se aglomeravam ao redor dos Arcos da Lapa. O que para muitos era um tormento,
para mim, naquele instante era saudade.

Assim que terminei o meu pensamento, senti um arrepio percorrendo minhas


costas. O gramado e o esterco haviam dado lugar a uma estradinha de pedras, que nos
levava à entrada da casa. Olhei na direção da minha mãe assim que ela desligou o motor
do carro. Não tinha conseguido ler o que estava escrito nos seus olhos, mas identifiquei
um suspiro e uma lágrima que rolava no canto de sua face. Confesso que a sua
melancolia me deu náuseas. Me mantive inexpressiva.

Descemos do automóvel praticamente ao mesmo tempo. Paramos de frente à casa-


grande. Me lembrei dela pintada de um verde desbotado; do telhado malcuidado com
telhas soltas; da madeira opaca que se fazia presente em toda a grande varanda que
cortava a casa de fora a fora. A escadaria e o imenso corrimão eram velhos dos dois
lados. Num instante me vi criança novamente, sorrindo ao deslizar a bunda naquele
corrimão largo de madeira maciça, pra chegar mais rápido no pasto e subir nos cavalos.
Pisquei os olhos me desvinculando das imagens que estavam na minha memória e
consegui enxergar a casa, exatamente como ela estava diante dos meus olhos naquele
instante.

“Nossa! Era tudo tão diferente!”, pensei.


A fachada da grande casa de dois andares estava pintada de branco; as janelas,
impecavelmente envernizadas. O assoalho, o corrimão e as pilastras de maçaranduba
que sustentavam o telhado, também não perdiam no verniz, nem as telhas, vermelhas e
inteiriças. A grama ao redor da casa também estava aparada. Fitei minha mãe, que
parecia encantada com toda aquela mudança.

— Sua vida vai ficar tão chata sem a minha companhia – tentei fazer com que
ela se sentisse culpada – Me deixa voltar contigo, vai?

— Respirar esse ar puro te fará bem.

Foi a resposta dela. Não rebati aquela afirmação, não deu tempo, assim que
voltei a olhar na direção da casa, avistei meu pai parado na escadaria, mais
precisamente, no último degrau. Seus cabelos grisalhos denunciavam os sinais da idade.

“Que brega!”

Analisei-o de longe. Ele vestia uma calça jeans desbotada, uma camiseta branca
encardida, e calçava umas botas pretas que vinham quase na altura dos joelhos. Atrás
dele se escondia um menino magricela, de pele morena e cabelos negros, que segurava
firme na sua blusa como um bichinho acuado.

“Só me faltava essa, uma criança para perturbar a minha vida”.

Desviei meu olhar do moleque por alguns segundos para olhar na direção das
janelas, onde avistei uma mulher loira de face rosada encostada na superfície de
madeira. Ao me ver ela abriu um largo sorriso e acenou para mim. Não repeti o gesto.
Aquele sorriso me deu vontade de vomitar, certamente se tratava da segunda esposa do
meu pai. Quando me dei conta novamente, o Sr. Pedro já estava à minha frente, me
abraçando apertado e demoradamente. Pude sentir aquele cheiro enjoado de suor.
Sutilmente me afastei daquele contato.

— Desculpa, filha... Eu estava na lida. Vim correndo, imaginando que vocês já


estavam chegando – sorriu enquanto tentava segurar minhas mãos. Senti o calor das
dele em atrito com as minhas – Queria tomar um banho para te receber, mas ouvi o
barulho do carro e pensei...
— Não esquenta – interrompi-o, falando num fio de voz, completamente
incomodada com as mãos ásperas em volta das minhas. As puxei. Ele acompanhou o
meu gesto, mas não se intimidou, passou os braços pelos meus ombros, me empurrando
de encontro às escadas que nos levaria ao interior da casa.

— Como você cresceu, filha! – disse com os olhos brilhando. Não consegui
sorrir. Achava aquelas cenas patéticas.

— E você nem acompanhou o meu crescimento, mas também... Enterrado nisso


aqui, não é? – alfinetei.

— Não diga isso, filha! Eu te amo! – segurou minha mão novamente. Aquilo já
estava ficando chato! — Estive trabalhando duro, olha como a fazenda está bonita! –
começou a discursar empolgado enquanto me puxava até o lado da casa. De lá,
podíamos avistar ao fundo toda a plantação de milho, e do outro lado, um pasto cheio de
gado, separado da estrada de terra batida por uma longa cerca de espinhos. Nem sabia se
o nome era espinho mesmo, mas estava me referindo àquele arame cheio de espetinhos.

Bom, aquilo era o que a nossa visão conseguia alcançar, pois eram morros e morros de
terras, pastos, plantações... Sem contar, que se ficássemos em silêncio, dava para ouvir o
barulho da cachoeira que desaguava naquelas terras, depois descia mansa por um rio de
águas claras e tranquilas. Me lembrava bem delas.

Quando retornamos à frente da casa, a mulher de bochechas rosadas, que


anteriormente me olhava através da janela, estava conversando com minha mãe. Ela
segurava a mão do menino, que parecia mesmo um bichinho acuado.

— Filha... – chamou meu pai – Essa é a Clara, minha esposa – nos apresentou
finalmente.

Olhei a mulher de cima a baixo.

— Oi – disse seca.

Ela, inesperadamente me surpreendeu ao puxar meus ombros e me apertar em


seus braços.

— Seja bem-vinda! – olhou sorridente para mim. Suas bochechas rosadas e


brilhantes acentuavam o seu sorriso — Seu pai fala muito de você, Letícia!

— Pena que não tenho a audição do Superman – debochei, ela pareceu não se
importar, pois continuou a sorrir para mim.

“Que idiota!”, pensei.


— Bernardo! Venha conhecer sua irmã – ela falou puxando o menino que saiu
de trás dela e parou na minha frente.

— O quê? – cocei a cabeça.

“Que irmão? Meu pai não tinha mais idade para ter filhos, tampouco a mulher com
quem ele havia casado. E, o menino era quase um índio!”

O garoto estendeu a mãozinha, ele era franzino, parecia ter uns nove anos de idade.

— Me chamo Bernardo.

— Eu já ouvi! – dei um tapa de leve no chapéu de cowboy dele, e fui subindo as


escadas que levavam até o interior da casa – Tem comida por aqui?

— Letícia! Isso são modos? – repreendeu, como sempre!

— Que isso, mãe? Tô na casa do papai. Preciso de cerimônia?

— Deixa ela, Márcia. Vem, Letícia! — a mulher continuava gentil, mesmo


diante das minhas grosserias propositais.

“Falsa!”

– A Iracema fez um bolo fresquinho. Gosta de bolo de milho? – continuou tentando me


agradar.

“O que ela queria?”

Toda simpática. A trouxa não me conhecia mesmo. Que não se metesse a besta comigo.

— Como qualquer coisa – respondi com descaso.


Clara me levou até a cozinha, puxou uma cadeira para eu me sentar, depois
colocou à minha frente uma caneca com café e num pratinho branco, uma fatia de bolo.
Verdade seja dita, aquela gororoba estava boa mesmo. Minha mãe também comeu do
bolo e bebeu uma xícara de café, que a mulher do meu pai havia servido. Era uma cena
no mínimo constrangedora, embora as duas agissem com naturalidade. Eu sentia raiva
daquela mulher de bochechas rosadas.

Depois do lanche, mais meia hora de conversas vazias e sem graça, e a dona Márcia se
levantou dizendo que queria pegar a estrada de voltar para casa. Claro, oras! Ela queria
se livrar logo de mim, e mesmo diante da insistência do meu pai e da mulher dele para
que fosse embora pela manhã, minha mãe queria ir o quanto antes. Eu me levantei da
mesa...

— Ainda tenho um quarto nesta casa? – perguntei sarcástica.

— Seu quartinho tá do mesmo jeitinho, filha.

— Vou me abancar logo – falei remendando um caipira.

— Não vai se despedir da sua mãe? – perguntou a mulher do meu pai.

Não respondi a ela, coloquei os fones do MP4 nos meus ouvidos, em silêncio
boicotei a despedida e fui para o meu quarto. Joguei minhas coisas num canto do chão,
e me larguei na pequena cama de solteiro que tinha naquele cômodo. Tinha olhado o
teto bege, em seguida apanhado um despertador antigo que estava sobre um criado
mudo. Era de ferro. Tinha um formato arredondado, três pezinhos. No alto, um sino, ao
lado dele, duas argolas de ferro que berravam quando entravam em atrito. Era uma
barulheira infernal. Como eu sabia? Aquele despertador era meu. Passei o dedo nos dois
ponteiros. Ajeitei as horas. Recoloquei-o no lugar. Continuei olhando ao meu redor. O
armário antigo também era o mesmo de minha infância, assim como as prateleiras
intactas enfeitadas com uma coleção de tratores em miniatura. Respirei fundo. O quarto
era de um mau gosto impressionante.

Recoloquei os fones nos ouvidos e fechei os olhos. Estava numa prisão, embora
as portas e janelas não tivessem fechadas. Ali dentro me sentia presa a fatos de um
passado que eu não me atrevia a lembrar, até aquele momento. Adormeci ouvindo rock,
quase um sonífero para mim. Acordei de repente, assustada com o barulho de um
automóvel que provavelmente havia estacionado em frente da casa. O mp4 já estava
desligado. Arranquei os fones do ouvido e caminhei lentamente até a janela para me
informar quanto ao movimento que vinha de fora.
Afastei as cortinas, logo abri mais um pouco a janela pesada de madeira. Apoiei minhas
mãos no batente, e avistei enfim o, ou melhor, a motorista. Era uma garota quem estava
saindo do carro. Tinha os cabelos lisos abaixo dos ombros, de lá de cima fiquei na
dúvida quanto a cor deles, não sabia se eram castanhos bem claros ou algum tom de
mel. Também não consegui ver a cor de seus olhos, mas os meus não conseguiram
desgrudar um centímetro sequer dela. Achei que seu corpo bem torneado chamou minha
atenção, provavelmente despertou o meu desejo.

“Uma garota bonita sempre aguça o meu desejo”, pensei.

Ela percebeu o meu olhar, e quando me dei conta, nos encarávamos... O sol já estava
desaparecendo no céu, um tom alaranjado parecia refletir na grama, não sei se o dia
estava bonito, ou se ele havia ficado bonito. Lá de cima, há mais de dez metros de
distância, pude observar que o vento circulava pelo corpo dela desalinhando seus
cabelos finos, e obrigando-a a prendê-los atrás das orelhas. Achei que os seus olhos
fossem verdes... Tão verdes quanto os de sua mãe, Clara. Sim! Desviei o olhar dos
dela... Só podia ser a filha postiça do meu pai. Irritada com a constatação, saí da janela.
Sentei na cama com as mãos apoiadas nos joelhos.

“Ele me trocou por aquelazinha!”

Tentei religar o meu mp4, nervosa, apertei os botões várias vezes e ele não ligou, eu
desisti e taquei-o do outro lado do quarto. O aparelho caiu em cima de uma caixa de
sapatos. Fui ver o que tinha dentro dela. Peguei a caixa nas mãos. Havia um monte de
desenhos velhos que eu tinha feito quando era pirralha. Lembrei que eu sempre ia para o
quarto, depois das seis da noite, quando minha mãe me dizia que já era hora de dormir.
Então, esperava que ela saísse, acendia a luz e desenhava por horas e horas. Toda manhã
eu deixava os rabiscos colados na porta do quarto dos meus pais. Recoloquei a caixa no
lugar. Diante das lembranças, senti ainda mais raiva daquela garota que me olhava com
aqueles olhos curiosos, provavelmente temendo que eu tomasse dela, o que era meu, por
direito. Retornei para a cama e fechei os olhos na tentativa de voltar a dormir.

Minutos depois da minha tentativa frustrada de dormir, ouvi passos no corredor,


logo, duas batidas na porta do quarto. Naquele mesmo instante, um passarinho de peito
amarelo pousou na janela que estava aberta. Já era de noite, e achei muito esquisito
aquele pássaro parado, me olhando, balançando a cabeça pros lados como se quisesse
comunicar-se comigo. Num piscar de olhos, ele não estava mais lá, e a porta do meu
quarto estava fazendo aquele ruído de que iria se abrir. Fiquei olhando na direção dela
com o coração em disparo... Meus nervos deviam estar à flor da pele.
Capítulo 4
[22/08/10]

Depois de dias de chuva os quais fizeram as estradas ficarem cheias de barro, e


da manhã fria daquele dia, enfim o Sol, embora tímido, havia voltado para alegrar
aquele finalzinho de tarde. O céu estava num tom alaranjado por trás dos morros que
envolviam a casa da fazenda. A grama que de manhãzinha estava banhada de orvalho,
parecia mais verde naquele instante, como se tivessem sido acariciadas pelos raios
solares. Aquele fim de tarde estava aquecendo o meu coração como há muito não fazia.

Parei a caminhonete na porta da casa, de frente às escadas. Num pulo eu tinha


descido do carro, logo Eric desceu também. Havia sido um dia muito produtivo para
nós, passamos horas na cidade e conseguimos comprar todos os remédios que o
veterinário nos pediu. Geralmente temos que fazer encomendas para que alguns
medicamentos mais modernos cheguem das cidades vizinhas. E, ainda tivemos a sorte
de arrematar em um leilão de cavalos um reprodutor maravilhoso, esse seria um
presente para o meu pai.

“Só quero ver como o Sr. Pedro vai recebê-lo”.

Amanhã mesmo irão trazê-lo de caminhão até a fazenda. Voltarei à cidade com meu
irmão para escoltá-lo, quero que o animal chegue sem sequer um arranhão.

— Eric! Tira as caixas lá de trás. Vou pedir para o Augusto vir te ajudar com
elas, está bem?

— Pode ir, Alana, eu dou conta dessas caixas. Só preciso que você diga à
mamãe que estou morrendo de fome.

— Eu quero uma novidade, rapazinho! – sorri enquanto batia de leve no ombro


dele.

Distanciei-me de Eric e fui em direção à casa. Subi as escadas correndo, mas


antes que chegasse ao final delas, senti um puxão em meu braço. Me virei assustada,
porque até aquele momento, não havia visto ninguém por perto, e me deparei com
Maurício sorrindo para mim. Sorri de volta e joguei o chapéu dele para trás a tempo de
receber um beijo carinhoso nos lábios. Mauricio abraçou-me forte, enquanto apoiava às
costas na pilastra de madeira da varanda.

— Demorou na cidade, meu amor!

Desvinculei-me dos seus braços.

— Tínhamos muito o que fazer – disse e recoloquei de volta o chapéu em sua


cabeça. Um peão sem chapéu se sentia nu por aquelas bandas – Comprei um presente
lindo para o papai.

— Aposto que foi um cavalo – falou certo de que havia adivinhado.

— Um reprodutor! – olhei a minha volta, senti falta de algo. Dito e feito –


Espera um minuto, esqueci a minha bolsa dentro do carro! — Mauricio fez um gesto
concordando e eu retornei correndo até a caminhonete. Eric estava terminando de
descarregar as caixas. Empilhou uma a uma ao lado do carro. Balancei a cabeça
negativamente diante da sua expressão de exaustão – Devagar! Vou chamar o Augusto
para te ajudar, seu machão!

— Acha que não dou conta? – replicou aumentando o esforço que fazia.

— Acho que você precisa de uma forcinha, só isso!

Abri a porta do motorista, a bolsa estava caída perto do banco do carona.


Estiquei os braços para pegá-la. Depois disso, bati a porta. Olhei para a varanda...
Mauricio estava a minha espera de braços cruzados, no último degrau das escadarias.
Nesse instante, dispersei o meu olhar. Firmei as vistas na direção do alto da casa, a
janela do quarto, no segundo andar – mais precisamente o quarto que ninguém entrava
desde que a filha do meu padrasto foi embora –, e vi uma menina olhando, meio que,
escondida atrás das cortinas.

Apesar da distância, deu para perceber que o seu olhar estava fixo na minha
direção. Os seus cabelos castanhos escuros e lisos na altura dos ombros a faziam se
mover jogando-os para trás. Fiquei parada olhando na direção dela. Não conseguia
definir o porquê daquela... Curiosidade! Deveria ser a filha do meu pai que veio do Rio
de Janeiro. De repente, a menina saiu da janela me tirando daquele momento de torpor.

Caminhei novamente até a casa. Mauricio abraçou-me e assim entramos. Fomos


direto para a cozinha. Lá encontrei minha mãe, como já era de se esperar. Dona Clara
fazia questão de ajudar Iracema nos afazeres da cozinha, isso era uma terapia para ela.
Recebi um beijo e um abraço apertado. Era sempre assim quando nos via, agia como se
estivéssemos ficado longe por dias. Mas eu não me queixo desse carinho todo, na
verdade, não acredito que alguém no seu estado normal possa se queixar de excesso de
carinho.

— Mãe, o Eric disse que está morrendo de fome.

— Eu também estou, Dona Clara! – disse Mauricio.

Destapei as panelas e aspirei ao aroma delicioso que invadiu o ambiente.

— Hum... Esse cheiro despertou o meu apetite também – falei enquanto


abordava Iracema com um abraço – Sabe onde posso encontrar Augusto, mãe?

Depois de tantos anos de convivência, Iracema era muito mais do que uma
empregada naquela casa, muito mais do que uma amiga, para mim, ela era uma mãe, e
Augusto, seu marido, um segundo pai. Tive sorte, porque meu pai verdadeiro nos
abandonou quando eu tinha cinco anos de idade, mas Deus me proporcionou muito mais
do que eu precisava, me deu de presente o Senhor Pedro e o Senhor Augusto.

— Ele está no escritório com o seu pai, minha filha! – respondeu Iracema.

— Vou lá pedir para que ele dê uma ajudinha ao Eric. Meu maninho está
descarregando a caminhonete, já tirou todas as caixas, agora tem que distribuí-las.

— Mauricio! – gritou Iracema aborrecida – Por que não ajuda o menino?

Os dois não se davam bem, e Iracema vivia alfinetando o meu quase noivo.

— Sabe como é o moleque, oras! Se eu fosse ajudá-lo, ele iria dizer que quero
me meter no seu trabalho – respondeu irritado.

Iracema balançou a cabeça negativamente e continuou mexendo o seu molho.


Sorri achando graça da implicância daqueles dois. Encostei-me na mesa de madeira que
ocupava quase toda a cozinha. Apanhei uma maça nas mãos e mordi-a. Minha mãe
chegou perto de mim, parou na minha frente.

— Filha, a Letícia está no quarto – disse segurando as minhas mãos – Queria


que você se aproximasse dela para que a menina não se sinta sozinha aqui.
— Tudo bem, mãe! – respondi enquanto devorava a fruta, só então percebi o
quanto estava faminta.

— Só quero te alertar para uma coisa.

— Ela morde? – sorri da minha piada, logo dei mais uma mordida na maça.

— Conversei com a Márcia mais cedo, e ela me disse que a filha é muito arredia,
tem um gênio difícil... Mas, o coração dela é bom, isso dá para ver nos seus olhos.

— Vou ver o que posso fazer. Sou boa com os cavalos xucros, lembra? –
abracei-a antes de deixar a cozinha — Vou falar com o Augusto, depois tomarei um
banho, e então, irei ao quarto da Letícia, tá? – disse antes de sair.

Minha mãe apenas concordou com um gesto de cabeça. Respirei fundo enquanto
subia as escadas até o segundo andar da casa em direção ao meu quarto. Passei pelo
corredor. Olhei na direção do quarto em que Letícia estava. Ficava de frente para o meu.
Lembrei-me imediatamente dela me olhando pela janela. Os seus olhos...

“Que cor eles seriam?”

balancei imediatamente a cabeça no sentido negativo para dispersar aquele pensamento


bobo e sem fundamento. “Que diferença fazia isso?”

Depois que tomei banho e havia vestido uma roupa confortável, eu saí do quarto
em direção ao de Letícia. Não sei por que, mas algo me dizia que aquela menina
mudaria nossas vidas para sempre. Era uma sensação tão... tão... Deixa eu ver se acho a
palavra... Pensativa, ainda estava parada na porta do meu quarto olhando a dela, quando
Bernardo veio correndo e parou na minha frente.

— Oi, rapazinho!

— Você vai entrar neste quarto? – inclinou-se para trás e apontou à porta de
madeira envernizada, que estava localizada nas suas costas.

— Farei a política da boa vizinhança – disse enquanto passava as mãos na


cabeça dele. – Vou chamá-la para se sentar à mesa e jantar conosco. Deve estar um
pouco tímida. Quer ir lá comigo?

O menino balançou a cabeça no sentido negativo.

— Que foi? Não gostou da sua irmã? – perguntei, tentando entender a sua
resistência.
— Ela me assusta – disse baixinho, como se tivesse medo que alguém nos
ouvisse.

Olhei para a porta do quarto de Letícia. Sorri achando graça do jeito que
Bernardo se referiu a ela. Afinal de contas, era só uma menina. “O que teria de tão
assustador em uma menina?”

— Vou entrar naquele quarto e verei se a moça é tão assustadora assim, tá? –
abaixei-me para ficar da altura dele – Me dá um beijo e corre para a cozinha, porque o
jantar é servido às sete horas, lembra?

— Claro! E o papai gosta de todos à mesa para a oração.

— Isso mesmo! – apertei as bochechas de Bernardo antes de me levantar.

Vi o menino correr em direção às escadas, depois ele segurou no corrimão para


descer em disparada, evitando assim que caísse ou tropeçasse. Respirei fundo. Alguns
passos, e já estava parada diante da porta do quarto da garota.

Hesitei um pouco, mas bati suavemente. Outra batida... Pensei que ela poderia estar
dormindo, então girei a maçaneta e empurrei a porta devagar, quase em câmera lenta.
Eu estava tensa, provavelmente pelo que Bernardo havia me falado a respeito dela. Na
medida em que eu fui empurrando a porta, minha visão começou a alcançar os cantos do
ambiente. Parei de empurrar, assim que meus olhos encontraram a imagem de Letícia
sentada na cama, olhando na minha direção.

Engoli em seco, não imaginava que ela estaria acordada, tendo em vista que havia
batido na porta e não obtive resposta alguma. Ela levantou-se. Eu continuei parada.
Olhando-a sem conseguir desviar meus olhos um centímetro sequer dos dela. “Azuis!”
Como o céu em uma manhã ensolarada. Pensei ter me aproximado dela, mas meus pés
não saíram do lugar. Ela quem andou até mim. Medindo nossa altura naquele momento
frente a frente, percebi que ela era pouco mais alta do que eu.

— Olá! – consegui dizer, dando razão imediatamente às palavras de Bernardo.


“Que moça estranha! Ela assustava”.

— Oi! – sussurrou antipática, com um nariz tão empinado que parecia subir aos
céus.

— Eu me chamo Alana – estendi a mão, ela não cumprimentou, sequer desviou


o olhar dos meus - Sou filha da...

— Mulher do meu pai – me interrompeu – Já sei! – completou inexpressiva.


— Minha mãe pediu para que eu a chamasse para o jantar.

— Tô sem fome.

— Bom, ela pediu também para que eu falasse dos nossos horários, é que...
temos umas pequenas regras na casa – desviei o olhar. Saí da frente dela, entrando
literalmente no quarto. Me senti ainda mais desprotegida – Vamos pelo começo... –
tentei sorrir e ser simpática, mas soou deveras forçado – ... seu pai gosta que estejamos à
mesa às sete horas para o café da manhã...

Ela riu. Uma risada debochada.

— Não tomo café de madrugada.

Ignorei o comentário e mesmo contraída continuei a falar.

— O almoço é servido ao meio-dia, quatro horas tomamos o café da tarde e as


sete jantamos – olhei o relógio em meu pulso — Sete em ponto! — falei — Ele faz
questão de nos ver reunidos nesses horários.

— Não sigo regras, tá legal? – virou-se novamente de frente para mim – Como
quando tenho fome – disse, mordendo os lábios e me deixando completamente
desconcertada diante daquele olhar inquisidor que desceu até os meus seios. Nunca
tinha visto um olhar tão... estranho!

— Olha, Letícia! O recado está dado — sentindo calafrios por todo o corpo,
caminhei em direção à porta para deixar o quarto — Hoje o papai não deve ser tão
rigoroso quanto à sua presença, mas vai se acostumando, porque aqui vivemos bem, e
seguimos as regras – disse com a mão na maçaneta.

— Papai? – colocou a mão na porta impedindo a minha dispersão, assustei-me


com o gesto brusco dela – Meu pai, você quis dizer, não é? – sua voz era agressiva.

— O Senhor Pedro é mais que um pai para mim, é o meu melhor amigo também
– disse, saindo imediatamente daquele quarto. Eu precisava de ar. Não havia me sentido
nem um pouco a vontade perto dela. Tinha sentido arrepios horríveis, e aquele olhar que
ela lançou em mim, me deixou completamente travada. Nunca tinha conhecido antes
uma alma tão pesada como aquela. Desci as escadas em passos rápidos. Passei pela sala
e quase correndo cheguei à cozinha. Todos estavam sentados à mesa. Eric conversava
animadamente com Augusto e meu pai. Sentei-me ao lado de Iracema. Éramos uma
família, e os dois “empregados” faziam parte dela.

— A Letícia não vem, filha? – perguntou minha mãe.

— Ela disse que não está com fome – falei secamente, enquanto me servia.
Bernardo, que estava ao meu lado direito, cutucou de leve o meu braço.

— Ela te assustou, não foi? – sussurrou.


Não respondi, pois meus pensamentos foram interrompidos pela imagem de
Letícia à minha frente. Todos se viraram para vê-la. Meu pai se levantou da cabeceira e
foi abraçá-la.

— Bom que você desceu, filha! – disse feliz – Quero que conheça toda a família.
O Bernardo, a Clara, Iracema, e a Alana você já conhece – apontou o outro lado da
mesa – Esse rapaz bonito aqui é o Eric, seu irmão, e aquele senhor de barba branca é
nosso amigo Augusto.

— Beleza – foi o que ela disse – Coloca a minha comida, ta? Vou jantar no
quarto – falou olhando na direção de Iracema.

Achei um absurdo a maneira como ela falou. “Quem essa menina pensava que
era?” Levantei-me brava.

— A Iracema não é sua empregada! – vociferei.

— Filha, senta! – minha mãe esticou a mão para tentar tocar meu braço. Não
aceitei o pedido dela, fixei meu olhar nos de Letícia, que me encarava como se quisesse
arrancar o meu pescoço.

— Eu faço um prato para você menina – disse Iracema, já se levantando.

— Não! – minha voz saiu sonora – Se ela quer jantar, ou senta conosco à mesa,
ou faz o seu prato e leva para o quarto.

— Perdi o apetite – foi a resposta dela, antes de sair pisando forte.

Respirei fundo, puxando o ar como se minha alma estivesse voltando para


dentro de mim. Deixei o meu corpo cair na cadeira. Todos me olhavam em silêncio.
Nem eu mesma me reconhecia naquele momento.

— Desculpa, pai – consegui dizer – Não gosto de ver ninguém maltratando a


Iracema.

Senti a mão da mulher passando nos meus braços, confortando-me.

— Eu podia ter colocado a comida para ela, filha. Sabe que não me importo com
isso! – disse ela.

— Você agiu bem, Alana!

Arregalei os olhos na direção do meu pai.

— Desculpe pai, estraguei tudo.

— A Letícia veio para cá porque precisa de limites, e atitudes como essa que
vimos hoje, não serão toleradas – ele sentou-se novamente na cadeira. Seu olhar era
triste – Minha filha mudou muito depois que foi para a cidade grande.
Nós o ouvimos em silêncio.

— Não a reconheço mais. A menininha que saiu daqui era doce e gentil. Quero
resgatá-la da escuridão em que vive, e sei que se eu não for duro o bastante, perderei
minha filha para sempre.

Abaixei a cabeça. No fundo, sabia que havia feito uma tempestade num copo
d’água. Falei as palavras certas, mas perdi a minha razão quando alterei o tom da minha
voz. Era fato, eu me sentia culpada.

Capítulo 5
[28/08/10]

Entrei em meu quarto completamente afrontada. “Quem aquela mulherzinha


pensava que era pra me destratar daquele jeito na frente de uma empregadinha?! E,
aquele trouxa do meu pai? Será que era pau mandado dela? Nem me defendeu! Mas
também, esperar defesa de um homem que teve a coragem de me abandonar, e que só
me viu duas vezes em quase dez anos seria muito, não é?”

Chutei a caixa que estava no cantinho, aquela que continha os desenhos imbecis que eu
havia feito na minha infância. As folhas envelhecidas se espalharam pelo quarto. Deitei
na cama, fechei os olhos para tentar me acalmar, mas não consegui porque minutos
depois ouvi uma batida na porta. Continuei em silêncio... A porta se abriu. Curiosa,
olhei para ver quem era o infeliz, e me deparei com aquela sonsa que havia me
ridicularizado. Quase xinguei a ridícula da Alana. Me levantei de sobressalto. Encarei
os olhos dela. Eram os olhos mais verdes e expressivos que eu havia visto na minha
vida!

— O que você quer comigo? – disse ríspida, só depois percebi o prato em suas
mãos.

— Não quero que durma com fome – falou suave e colocou a comida sobre o
criado mudo – Você deveria ser mais flexível, Letícia.

— Deita na cama comigo, que eu te mostro como posso ser flexível – sorri
debochada.

— O quê? – perguntou completamente aturdida.

Me aproximei dela. Toquei seus cabelos com a ponta dos dedos e encostei meus
lábios bem perto do seu rosto... deu para sentir o cheiro adocicado dos seus cabelos.
— Deita na cama comigo, que eu te mostro como posso ser flexível — repeti
num sussurro. Segurei seu braço com uma das mãos. Surpresa, ela olhou o meu gesto e
puxou o braço rapidamente. Estava apavorada e eu realizada.

— Sua louca! – seus olhos saltaram da face, e ela quase caiu ao sair do quarto
andando de costas.

Sua expressão assustada me divertiu horrores naquele momento, quando percebi,


eu não conseguia mais parar de rir. Sentei na beira da cama com o prato nas mãos e
comi com muito prazer. “Vou me divertir com essa gente”. Espetei a carne com o garfo.
“Gostosa, muito gostosa!”, pensei.

Na manhã seguinte, acordei assustada com o barulho infernal que o despertador


pré-histórico fez nos meus ouvidos. Dei um salto, agarrando e segurando o sininho para
que ele parasse de bater nas argolas.

— Puta que pariu! Quem foi o idiota que colocou essa merda para despertar? –
disse quase aos gritos, logo joguei o barulhento num canto e tapei o rosto com os
braços, impedindo que a claridade afetasse meus olhos, acho que me senti exatamente
como um vampiro ao se deparar com o sol invadindo a sua visão. Ardia, era
desconfortável. Resmunguei um bocado por ter esquecido de fechar as cortinas. Nesse
mesmo instante comecei a ouvir o barulho dos pássaros cantando enquanto
sobrevoavam a minha janela.

“Malditos, barulhentos!”

Apanhei novamente nas mãos o relógio que eu havia arremessado...

“Despertador ridículo! Foi uma besteira ter te ajeitado”. Marcava seis e meia. “Droga!
Que inferno acordar nesse horário!” Eu odiava ser acordada, ainda mais, daquela forma
tão... tão... assustadora! Quase morri do coração. Provavelmente, tinha sido uma
brincadeira daquela insuportável da Alana. Pensei por alguns segundos...

“Ela queria me provocar, não é?”

Apertei nas mãos o maldito de ferro e desci as escadas em disparada. Sabe quando você
fica cega de ódio? Os dentes trincando dentro da boca, as mãos suando frio e as imagens
totalmente deformadas a nossa frente? Assim que eu tava.

Passei correndo pela sala e fui direto para a cozinha, acho até que eu babava de tanta
raiva. Todos estavam sentados à mesa, e inclinaram a cabeça imediatamente para me
olhar. Pareciam ver o demônio, e não era difícil não! Eu estava com o bicho no corpo
mesmo.

— Toma de presente pra você! – arremessei o despertador na direção da


insuportável. O objeto era pesado, bateu na xícara delicada de porcelana, que se quebrou
espalhando... Café quente? Não! “Que pena!” Sorte dela, era leite e parecia estar gelado.

Alana se levantou num impulso, atônita olhava para mim, como se não
acreditasse no que eu havia feito. Sua blusa bege estava molhada do líquido que
respingou nela.

—Nunca mais faça esse tipo de brincadeirinha comigo, tá legal?

— Meu Deus, garota! Do que você está falando? – passou um guardanapo nas
mãos e nos braços para limpar-se.

— Fala sério! Colocar essa geringonça para gritar no meu ouvido às seis e meia
da manhã, droga! – continuei brava.

— Fui eu quem colocou para despertar, Letícia! – disse meu pai se levantando
de sobressalto. Sua face era dura. Ele estava aborrecido.

— Como? – torci o nariz, enquanto o encarava.

— Coloquei o relógio para despertar, porque servimos o café da manhã às sete.


Acho que Alana explicou isso ontem.

— Mas... Mas... – balbuciei, olhando em volta e só então me dando conta das


caretas apavoradas que me julgavam sem dó algum. Detestava estar errada.

— Quero que se desculpe com Alana, agora mesmo – ordenou. “Ninguém me


dava ordens!”

— Pedir desculpas? – contrariada, ergui a face. Detestava muito mais pedir


desculpas – Não vou pedir desculpas a ninguém!

— Então, vai ficar sem o seu café da manhã – ele franziu o cenho.

— Eu quero ligar pra minha mãe, agora! Devolvam o meu celular! – alterei o
meu tom de voz – Quero ir embora dessa merda de lugar! Você não vai dizer o que
tenho que fazer, Senhor Pedro! – ironizei – Nunca se importou comigo. Cresci sem
ouvir a sua voz, e agora quer mandar em mim? Tá louco, é? – cuspi as palavras, mas
não esperei a resposta dele. Dei as costas para todos e saí de lá. Ainda ouvi o meu pai
gritando: — Letícia! Volta aqui, menina!
“Volta o caramba!”, pensei.

Me troquei rápido, eu precisava esfriar os ânimos. Vesti uma bermuda jeans, camiseta e
saí correndo pela fazenda. Aquele Sol quente na minha cabeça tinha me deixado um
pouco zonza, mas eu queria e precisava sair de dentro daquela jaula.

Andei por alguns minutos por uma estrada de terra que dividia a plantação de milho e a
cerca das vacas. Caminhei um pouco na estrada de barro já seco pela quentura daquela
manhã. O barulho da cachoeira estava cada vez mais perto. Andei um pouco mais, e
assim que avistei aquele rio manso que cortava as terras do meu pai, comecei a tirar o
tênis. Joguei-os num canto da margem, quase ao mesmo tempo, tinha tirado a bermuda
jeans e a blusa.

Entrei na água de calcinha e sutiã. Mergulhei, ficando quase um minuto submersa. Só


voltei a superfície quando senti falta de ar. Olhei na direção das águas furiosas que
despencavam das pedras limosas da cachoeira. Parecia o meu coração naquele
momento, bravo, feroz, escorregadio. Tudo o que eu queria era ir embora daquele lugar.

Retornei até a margem do rio. Me deitei na grama e fiquei com os pés dentro da água
gelada. Olhava para o céu e via os desenhos que as nuvens formavam, como se fossem
bailarinas. Gostava de fazer isso quando era criança, me acalmava naquela época, e
coincidentemente, me acalmou naquele momento também, no entanto, eu não gostava
de lembrar de quando era pequena, as lembranças despertavam sentimentos de revolta e
mágoa dentro de mim, e meu estômago doía, minha cabeça também, até o meu corpo
parecia trêmulo e dolorido, havia uma lacuna que eu não sabia qual era. Abri os olhos e
levantei num pulo ao ver aquele menino magricela parado, olhando com cara de besta
para mim.

— O que você quer aqui, moleque? – recoloquei a bermuda e a blusa.

Ele continuou calado. Apenas estendeu uma pequena cesta na minha direção.

— Tem bolo, biscoitos e suco – disse tímido.

Peguei a cesta num rompante, apanhei o bolo e o suco que estavam dentro dela.
Sentei-me em uma pedra e comecei a comer. Estava faminta.

—Não devia ter trazido isso – falei de boca cheia.

— Minha mãe pediu para trazer.


— Tá falando da mulher do meu pai?

Ele balançou a cabeça no sentido afirmativo.

— O que houve com os seus pais de verdade?

— Dona Clara e o seu Pedro são os meus pais de verdade – disse sério.

Fitei-o com vontade de rir. “O moleque era abusado”.

— Já sei! Você é filho de chocadeira – sorri debochada.

— Minha mãe morreu quando eu nasci, e o meu pai sofreu um acidente com um
trator – assim terminou de falar, ele foi caminhando rápido em direção à estradinha de
chão.

— Ei! Volta aqui, moleque! – gritei.

O menino sequer olhou para trás, continuou andando cada vez mais depressa. Eu
dei de ombros, mas não consegui voltar a comer, olhei-o ao fundo da paisagem e
percebi que o fedelho havia levado as mãos ao rosto duas vezes. Tava chorando, o
palhaço! As crianças eram sentimentais demais para a minha compreensão.

Deixei cair o biscoito que eu havia pegado na cesta. O garoto saiu do meu campo de
visão, mas eu tinha ficado pensando no que aquele moleque havia dito. Perdeu a mãe no
parto, e o pai provavelmente morreu devido a um acidente com o trator.

“Isso não é da minha conta, merda!” Joguei a cesta num canto da margem do rio e calcei
o tênis. Voltei à casa grande e vi Bernardo sentado no primeiro degrau da escadaria. Ele
estava com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos segurando a cabeça. Olhava
para o chão. Desconcertada, pensei em passar direto, mas impulsiva me sentei ao lado
dele.

O moleque amedrontado ergueu a cabeça, se levantou antes que eu dissesse qualquer


coisa e correu para dentro da casa. Foi impedido de passar pela porta, porque esbarrou
em Alana, a qual estava de saída. Bati a poeira da minha roupa, disfarçando enquanto a
observava da cabeça aos pés. Ela vestia uma camiseta regata branca, uma calça jeans
escura que marcava as curvas do seu corpo, e usava botas pretas por baixo da calça. Os
cabelos estavam presos num rabo-de-cavalo. Antipática, Alana desceu lentamente os
degraus da varanda... Nos olhamos, ou melhor, nos enfrentamos. Ficamos naquele
embate por alguns segundos até ela quebrar o silêncio.

— O que você fez com ele? – perguntou séria.


— Ei, Ei! Calma aê! – desviei o olhar para a caminhonete parada na porta de
casa – Não fiz nada, não. Só queria conversar com alguém, mas o garoto parece bicho...
foge quando a gente chega perto.

— Não tem cara de quem gosta de conversar com crianças – colocou o dedo na
minha direção – Fica longe do Bernardo, está bem?

— Abaixa o dedo, garota nervosinha! – segurei a mão dela, e a abaixei devagar


– Quero uma trégua, tá legal? Já que vou ter mesmo que ficar enterrada aqui... Uma
trégua será legal – disse fingida.

— Você jogou um relógio em mim? – confessou perplexa, segurei a vontade de


rir...

— Não queria te machucar... perdi a cabeça... Dá uma trégua, vai?

Desconfiada, Alana ergueu a sobrancelha. Não disse nada, eu continuei a falar.

— Me leva pra dar uma volta pela cidade, vai? – suspirei entediada – Tô de saco
cheio de ver tanto mato. Aqui tem uma cidade perto, não tem? Eu sei que tem, e sei
também que você está indo pra lá – apontei a caminhonete ligada - Me leva! Preciso dar
uma volta... Ver gente, sabe? Não estou a fim de arrumar confusão, só quero respirar um
pouco senão vou enlouquecer! – disse quase acreditando em minhas palavras.

- Você já é louca.

- Não ofende, eu disse que quero paz. Acredita... por favor. – falei cínica.

Ela pensou por um instante. Aquela espera pela resposta quase me enlouqueceu.
Fiquei analisando aqueles olhos verdes, os quais nem piscavam ao olhar os meus. Por
fim, sua sobrancelha relaxou, e sua face sisuda também.

— O Eric comeu demais e está passando mal. Entra no carro – segurou meu
braço – Vou confiar só desta vez, entendeu? Não me arrume problemas lá na cidade,
está bem?

— Tá certo! Mas, me dá as chaves, pra eu dirigir.

— Nem pensar! – sorriu triunfante – Aqui temos regras, e só quem dirige a


caminhonete sou eu ou o papai.

— Isso é ridículo!
- É pegar ou largar – falou desafiadora. Eu não tinha muita escolha mesmo, a pé
eu não iria a lugar algum. Recolhi, temporariamente o meu orgulho...

“Só você e ele quem dirigem? Veremos!”

Não havia respondido, contrariada dei a volta no veículo e me acomodei no


banco do carona. Ela, ao entrar no carro estava com ar de riso. “Será que essa sonsa tava
zombando de mim? Isso não seria nada bom “praquela” metida”.

- Vai se acostumar com as regras – disse antes de pôr o veículo em movimento.

“Vai achando!”, pensei.

- Não sou pássaro de gaiola, menina! – disse.

- Não temos pássaros em gaiolas aqui, estão todos na natureza, ainda não
percebeu?

Lembrei dos barulhentos na minha janela.

- Quero minha vida de volta – falei olhando-a de frente.

- Se você cooperar, as coisas ficarão melhores.

Deitei a cabeça no encosto do banco e fechei os olhos.

Capítulo 6
[28/08/10]

Passei no armazém, e saí de lá com algumas sacolas, Iracema tinha pedido condimentos
que só encontrávamos na cidade e eu aproveitei para comprar também alguns doces
industrializados que Bernardo e Eric adoravam.
“Eram duas crianças”.

Acomodei as sacolas dentro da caminhonete e depois fui falar com Cândido,


para saber se a entrega do cavalo que arrematei no leilão seria à tarde, o qual tinha me
garantido que estava tudo certo. Apenas esperava o caminhão que transportava os
animais ser trazido pelo seu filho, que havia ido à outra cidade entregar uns gados.

Parei debaixo de uma árvore e apoiei a mão em seu tronco. Ameacei sentar-me
no banco feito de um toco cortado, o qual ficava ao lado da árvore que eu havia me
escorado, mas desisti. Olhei as horas no relógio e retornei à caminhonete. Encostei-me
ao lado da porta do carona, me abrigando na sombra das folhas de uma pequena árvore.

O dia estava quente, depois das chuvas, o sol havia voltado sem piedade. Coloquei a
mão na testa para impedir que a claridade intensa chegasse até os meus olhos, enquanto
dava uma boa olhada nos arredores à procura de Letícia. A menina havia sumido desde
que chegamos à Cidade, e eu queria ir embora. Visualizei os quatro cantos e só vi
poeira, pessoas fazendo o seu trajeto corriqueiro. Gente entrando e saindo dos
estabelecimentos. Carros, motos, carroças e cavalos aparecendo e desaparecendo na
estrada.

Iria esperá-la dentro da caminhonete, mas havia dois agravantes, o primeiro era
que dentro daquele veiculo estaria uma verdadeira sauna, e uma quase agonia me
deixava inquieta. Ignorei o calor escaldante e saí em disparada pelas ruas a fim de
procurar por Letícia. Estava irritada com a demora dela. Havíamos combinado de nos
encontrarmos em uma hora na caminhonete. O que ela estaria fazendo? Onde se meteu
aquela desmiolada... e linda?! Linda? Sim, era uma menina linda. Um pouco irritante,
mas linda! Pensei até na remota possibilidade daquela doidivanas ter tomado um ônibus
ou até mesmo carona até o Rio de Janeiro.

“Ela não seria tão louca, seria?”

Meu coração disparou diante das minhas últimas reflexões. E se minha mãe
tivesse razão quando disse que por trás daquela casca, havia um belo coração
escondido? Ela podia estar em crise existencial, como tantos outros jovens e precisava
de ajuda. Dava para ver isso através dos olhos azuis que Letícia exibia. Encará-la era
como mergulhar num mar de dúvidas e incertezas. Lembrei-me dos olhos do papai,
eram verdes. Já os de Dona Márcia, ouvi minha mãe dizer que eram tão azuis quanto o
céu. A menina não se parecia muito com o senhor Pedro, certamente teria os traços bem
desenhados e delicados da mãe. Pena não ter chegado a tempo de conhecer Dona
Márcia.

Andei pela rua olhando através das vitrines dos estabelecimentos, talvez Letícia
estivesse dentro de algum deles, era possível que estivesse esquecido da hora. Na
lanchonete, que seria o lugar mais provável de encontrá-la, a balconista disse que não
vira nenhuma menina com as características que informei, diante disso, o medo dela ter
mesmo fugido foi tomando força dentro de mim...

De volta às ruas, parei na entrada de uma cachaçaria. Opostamente havia um senhor


sentado em uma cadeira, ao lado do cinema. Atravessei a rua... Era o dono da padaria, o
qual ficava sentado todas as tardes sob as árvores, em sua inseparável cadeira de
balanço vendo a vida passar. Era o único que sabia de todo o movimento da cidade.

— Boa tarde, Seu José — aquele era o lado bom de se morar em uma cidade
pequena. Todos se conheciam.

— Menina Alana, como vai? — cumprimentou simpático, deixando de lado a


revista de palavras cruzadas que o entretinha.

— Bem, obrigada. — sorri ansiosa — Semana que vem o Eric trará a sua
encomenda de queijos — disse para criar um clima amistoso, eu não queria sugerir que
ele sabia das coisas por estar sentado todo o tempo à beira da estrada.

— Já não era sem tempo. Eles vendem bem rápido aqui na padaria.

— Sua encomenda chegará, não se preocupe — sorri gentilmente — Seu José,


por acaso viu uma menina mais ou menos da minha altura... — suspendi um pouco o
braço acima da minha cabeça, para delimitar o tamanho de Letícia — Os cabelos dela
são castanho-escuros, bem lisos, na altura dos ombros. Ela é branquinha, tem uns olhos
grandes e azuis.

— A moça não é da cidade, não é?

— É a filha do meu padrasto. Chegou ontem à fazenda.

— Que boa notícia! Então, a pequenina do Pedro voltou para fazenda —


afundou os óculos de grau na face — Olha, eu vi uma menina do jeitinho que você
descreveu entrando bem ali — apontou o lugar.
─ Não creio, quê... ─ olhei na direção em que o senhor mostrou. Era o chamado
“inferninho” ─ Não acredito que ela vai fazer isso comigo... – pensei alto, logo elevei a
mão até a testa. Seu José deu uma gargalhada.

— Se eu fosse mais jovem, iria lá buscá-la pelos cabelos.

— Obrigada. Vou me lembrar desse conselho — sorri sem graça para o velho,
que continuou entretido com a sua revista de palavras cruzadas. Com um aceno nos
despedimos.

Andei alguns metros até chegar ao citado Sinuca`s Bar. Hesitei um pouco, afinal
de contas, a reputação das moças que entravam naquele estabelecimento não era das
melhores.

“Aquela menina me paga”, pensei, enquanto espichava os olhos para visualizar melhor
o ambiente. Havia uns oito homens dentro do lugar, tentei ser discreta, no entanto,
assim que abri a porta, todos olharam em minha direção como se eu fosse uma estranha,
e de fato era. Eu não sabia se escondia o rosto nas mãos ou se dava meia volta e saia
correndo.

“Aquela menina me paga”, repeti em pensamento. Olhei a minha volta, nem sinal dela,
e de nenhuma outra moça. Seu José da padaria deveria ter se enganado e eu precisava
sair o quanto antes daquele lugar fedorento, que cheirava a álcool e cigarros.

— Ei, mocinha! — chamou-me o homem que atendia no balcão. Minha face


enrubesceu.

— Me enganei — falei hesitante.

— Tudo bem — o troglodita deu de ombros — Só pensei que fosse conhecida


da menina dos olhos azuis.

Já estava abrindo a porta para bater em retirada quando ouvi as suas palavras.
Retirei a mão da maçaneta e caminhei na direção do homem, o qual sabia do paradeiro
de Letícia.

— Ela esteve aqui? – infelizmente fiz a pergunta já sabendo que era incoerente.

— Está lá dentro... — apontou na direção dos fundos do bar — ... no banheiro.


— Obri...gada — respondi com a voz embargada enquanto me dispersava até o
local informado. Passei rapidamente por uns homens mal-encarados que riam alto, e
bebiam uma garrafa de cachaça, a qual estava sobre o balcão.

— Que moça bonita — disse um deles, tentando alcançar os meus cabelos.


Minha sorte foi que ele havia tropeçado nas próprias pernas ao tentar se levantar do
banco em que estava sentado e caiu, sendo segurado pelos ombros por outro beberrão.

Apertei o passo, ou melhor, corri em direção ao fundo do bar. Descansei as costas em


uma mureta que acomodava uma placa grosseira indicando o banheiro feminino. Mais a
frente, uma pequena porta de madeira. Ao me aproximar, ouvi gemidos e sussurros.
Automaticamente meu coração disparou e me senti a pior das criaturas. Letícia devia ter
passando mal, por isso não voltara à caminhonete no horário marcado.

Sem pensar em mais nada, abri a porta do banheiro para socorrê-la, e de repente, me
deparei com uma cena, no mínimo... inacreditável! Perdi a fala na mesma hora. Letícia
estava agarrada com... com... uma mulher! Sim! Era uma daquelas garotas que
frequentavam aquele lugar horrendo. Não consegui me controlar e gritei indignada. Elas
se assustaram com o tom da minha voz e se distanciaram. Elevei as mãos até os meus
lábios enquanto a garota me olhava furiosa por eu ter atrapalhado o seu momento de
depravação.

— Porra, Alana! – foi exatamente o que ela disse.

— Cala a boca, Letícia! – falei sem pensar.

— Tá doida? Como tem a coragem de falar...

— Cala essa boca ou... – repeti por entre os dentes. Ela se aproximou de mim.

— Ou o quê? – me encarou nos olhos.

— Ou você irá de carroça para a casa – falei tentando não me intimidar.

Ela engoliu em seco, mas não sem antes sustentar o seu olhar fumegante...
Desviei os meus olhos e dei as costas a ela, ignorei a outra despudorada que se
submeteu àquela pouca vergonha. Letícia correu atrás de mim... Entrei no carro e bati a
porta, em seguida ela entrou pelo lado do carona. Calada, sem olhar na direção da
menina, acelerei e parti em direção à fazenda.

Minha cabeça parecia um emaranhado de espinhos depois de ter sido testemunha


daquela anormalidade. “Como Letícia podia se prestar aquele papel? Uma garota jovem,
bonita. Beijar uma mulher na boca? Isso era ridículo! Não fazia o menor sentido”. E, ao
mesmo tempo em que eu sentia raiva dela, sentia pena, sim, porque ela deveria estar
doente ou algo desse tipo.
“Meu pai precisa ficar sabendo dessa história”, pensei.

... Mal pude acreditar que a estrada havia terminado, tal era o meu estado de torpor.
Bruscamente stacionei a caminhonete na frente da casa. Emburrada, Letícia saltou do
veículo e subiu as escadas em disparada. Eric, que estava chegando a cavalo, amarrou o
animal perto da porteira e veio a meu encontro.

— Que demora, hein? – falou de repente — Que cara é essa, Alana?

— Essa... essa menina! — bati com as mãos no capo do carro. As palavras


estavam presas em minha garganta.

— O que a maluquinha fez? — perguntou curioso.

— Ela está endemoniada! Só pode. — continuei pensativa.

— Como assim? — parou na minha frente. Sacudiu o meu ombro. Parece que
voltei a mim, quando as mãos dele me apertaram. — O que aconteceu Alana?

— Eric, a Letícia estava beijando uma... uma... – tive vergonha de mencionar.

— Uma o quê? — apressou-me.

— Uma... garota! — disse com dificuldade.

— Uau! — pareceu surpreso, no entanto, seu semblante sério deu lugar a um


sorriso que eu desconhecia — Que legal! — completou ficando pensativo em seguida,
sem esmorecer o sorriso.

— Legal? — agora eu quem tive de sacudi-lo — Isso não é certo!

— Ela é lésbica, só isso!

— Eric... — seu nome se desmanchou em meus lábios, eu estava deveras


decepcionada. — Você tem idéia do que está dizendo?

— Já vi nas revistas, e na TV também. Em que mundo você vive, hein? Tá certo


que nós moramos em um lugar que nem tem no mapa, mas... — sorriu novamente — Tô
adorando a nossa irmãzinha. O que tem demais em beijar garotas?

— Seu ridículo! Vou agora contar isso para o papai — empurrei-o para que
saísse da minha frente, mas ele segurou o meu braço, antes que eu pudesse alcançar as
escadas.

— Isso não é da sua conta, Alana. Não tem que contar para o papai. Deixa a
Letícia em paz.

— Ela precisa de tratamento!


— Ela precisa que você não se meta na vida dela, oras!

— Eric... elas... elas... estavam... se... — fechei os olhos. Lembrei-me da forma


que Letícia segurava o corpo daquela mulherzinha do bar; de como as bocas se
tocavam com uma urgência, que eu só havia visto nos filmes. As mãos da filha do meu
padrasto deslizavam pelo meio das pernas da outra, como se estivesse tocando o sexo
dela.

— Se beijando! — completou ansioso, tirando-me daquele momento de


lembranças fatídicas.

— Sim.

— Daria tudo pra ver isso.

— Seu doente! — dei-lhe um solavanco para que soltasse o meu braço e subi
correndo as escadas. Passei pela sala sem olhar para os lados. Caminhei até a cozinha
em passos largos. Iracema estava tirando um bolo do forno.

— Cadê ela? – perguntei exasperada.

— Quem, minha filha?

— A Letícia! — gritei sem querer. Eu estava nervosa, perturbada. Não sabia o


que pensar, e nem como agir. Minha razão me dizia que eu devia contar ao papai sobre
o que vi, mas em meu íntimo, eu não queria contar. Na verdade, acho que eu não saberia
como fazê-lo. Era vergonhoso demais.

— Aconteceu alguma coisa? — passou as mãos pelos meus ombros — Você


está nervosa. O que a menina fez dessa vez?

— Nada! — disse sem maiores detalhes, Iracema era velha demais para saber
dos detalhes, queria poupá-la da vergonha – Nada! — repeti enquanto retornava à sala.
Desnorteada, subi as escadas na direção do segundo andar. Me deparei com Bernardo
que estava saindo de seu quarto. O menino conhecia a minha braveza e pareceu ler nas
entrelinhas quando apontou na direção do quarto de Letícia, que ficava de frente ao
meu.

— Ela entrou aí! – disse ele.

Respirei fundo enquanto parava de frente a porta do quarto dela. Não havia
batido. Entrei de repente para intimidá-la, mas arrependi-me do meu arroubo quando a
vi seminua. Ela estava trocando de roupa. A bermuda jogada na cama, a blusa ainda em
suas mãos, havia acabado de retirar. Só a calcinha branca de detalhes verdes a impedia
de ficar completamente nua.

Sua pele alva era toda por igual. Seus seios estavam ao vento, tinham os bicos rosados,
eram médios e firmes. Suas pernas bem torneadas, a barriga... Meu Deus! O que estou
detalhando para você? Virei-me de costas imediatamente.
“O que eu vim fazer aqui?”, pensei.

Num impulso tinha colocado novamente a mão na maçaneta, agora com o intuito de
deixar o quarto de Letícia, mas minhas mãos trêmulas pareciam ter desaprendido a abrir
uma porta. Meu coração disparou quando eu ouvira os passos dos pés dela se
movimentando no assoalho de madeira. Ela havia parado atrás de mim. Dava para
sentir a sua respiração perto do meu ouvido. Fechei os olhos.

— Vai contar pro meu pai? — sussurrou. Sua voz me assombrara, pois todos os
pêlos do meu braço se ouriçaram.

— Eu... eu...

Indefesa, ameacei gritar quando senti as mãos dela me puxarem brutalmente


para que eu me virasse de frente novamente. Assustada, arregalei os olhos. Letícia me
encarava com os azuis dos dela, os quais pareciam submersos em meio a duas bolas em
chamas. Ela tinha dado um passo à frente e os seus seios roçaram a minha blusa.
Visualizei a cena como uma expectadora apenas. Era torpe demais acreditar que ela
tivera coragem de me coagir daquela maneira, fisicamente.

— Olha pra mim... Eu tô falando com você! — disse ela por entre os dentes.

Suas mãos ainda estavam nos meus braços, apertando-me. Minhas pernas por
um instante fraquejaram. Eu queria fugir dali, mas não podia, minhas costas batiam na
porta que eu não tive coragem de abrir; seus dedos sujos estavam me aprisionando e os
seus seios rígidos tocavam nos meus, me poluindo. Eu sentia como se aquele contato
fosse me queimar a pele, pude até visualizar a minha blusa se desfazendo em chamas.

— Não vou contar! — disse e abruptamente puxei os braços, num rompante


empurrei-a, afastando-me dela no mesmo instante. Segui com os meus olhos o olhar de
Letícia e percebi que os bicos de meus seios estavam fazendo volume. Debochada, ela
tornou a me encarar, logo sorriu. Cruzei os braços. Senti vontade de dar-lhe um tapa na
face, mas me contive — Nunca mais encoste essas mãos imundas em mim, está bem?
— disse em voz alta.

Letícia gargalhou, desacreditada com a minha ameaça. Minha face


provavelmente enrubesceu. Eu estava furiosa por ela ter se divertido com o meu
desespero. Ainda de costas para a porta, tateei a maçaneta. Girei-a com rapidez, abri a
porta e saí em disparada para o meu quarto.

Tinha ficado trancada por horas e horas, só remoendo a cena deprimente de


Letícia agarrada àquela sujeitinha desclassificada no bar. Senti nojo, repulsa... Queria
me desvencilhar da imagem do beijo, das mãos se contorcendo uma no corpo da outra.
Adormeci de repente, e acordei com o barulho de batidas na porta do quarto. Levantei-
me sonolenta, olhei através da janela, a noite já havia caído. Abri a porta...
— Aconteceu alguma coisa, filha? — era minha mãe. Ela passou as mãos nos
meus cabelos, logo entrou no quarto. Tranquei a porta atrás de nós e a abracei assim que
ela ficou novamente de frente para mim — O que houve, meu amor?

— Aconteceu uma coisa horrível, mãe! — disse, apertando-a ainda mais em


meus braços.

— Senta aqui, Alana — conduziu-me delicadamente pelas mãos até a beira da


cama. Sorriu daquele jeito afetuoso e paciente de quem se importa incondicionalmente
com os problemas das pessoas. Eu precisava contar a alguém o que havia presenciado.
Minha mãe poderia me dar melhores conselhos do que Eric — E então, o que está te
deixando nesta gastura, filha?

— A Letícia!

— O que tem ela?

— Ela estava... estava... beijando, ou melhor, se esfregando em uma menina


dentro do banheiro de um daqueles bares lá da cidade — disse tudo de uma vez, antes
que eu perdesse a coragem. Eu a olhava fixamente para ver a sua reação. Ela apertou a
minha mão e esboçou um sorriso.

— Então foi isso? — ajeitou-se na cama, aproximando-se anda mais de mim --


Olha, filha... a Márcia já havia me falado a respeito. A Letícia gosta de meninas, e não
dos meninos. Entendeu? Desculpa não ter mencionado nada antes, não achei necessário.

Dei um salto da cama. A impressão era a de estar ouvindo minha mãe falar em
grego, ou algo parecido. “Como ela pôde ter a audácia de me esconder uma informação
como aquela?” Ainda havia pedido que eu me aproximasse de Letícia. Minha cabeça
parecia que iria explodir, eu estava me sentindo traída. Andei pelo quarto de um lado
para o outro, até ter coragem de olhar novamente na direção de minha mãe.

— A senhora tem noção do que acabou de me dizer? — encarei-a indignada —


Eu disse que a Letícia estava beijando uma garota na boca!

— E eu tentei dizer que ela é lésbica, só isso.

— Desde quando a senhora acha que isso é uma coisa normal?

— Olha, filha... — levantou-se devagar, caminhou em minha direção — Seu pai


e eu sempre educamos vocês para que não julgassem as pessoas, independente da
religião, cor...

— Mãe! É diferente! — interrompi-a bruscamente. Balancei a cabeça de forma


negativa — Estamos falando de uma doença.

— Estou te desconhecendo, Alana! — franziu o cenho, parecia brava — A


doença da Letícia é a falta de amor pelas pessoas, não está ligada à decisão que só pode
partir dela, de se envolver com alguém do mesmo sexo. E, olha... não estou dizendo que
acho uma maravilha a Letícia ser homossexual, mas sei que temos de respeitar as
pessoas como elas são.

— Como assim, decisão dela? Tá na Bíblia, é errado!

— Filha, só Deus pode condenar as pessoas... – pousou as mãos em meu ombro


– Não seja tão radical com tudo. Às vezes tenho dúvidas de que você é a filha e não a
mãe da nossa relação.

— O papai sabe disso? - continuei boquiaberta.

— Sabe, mas prefere não comentar o assunto – suspirou – Seu pai pode ser um
homem bronco, mas ele a aceita, Márcia e eu também.

— Não quero mais ficar perto dela — disse séria.

— Por quê?

— Por quê? — pensei um instante — Estou... com nojo dessa menina!

— Uma pena, contava com sua ajuda para resgatá-la para um bom caminho —
abaixou a cabeça e caminhou lentamente até a porta. Antes de sair, disse: — Mauricio
está lá embaixo. Espero que desça ao menos para o jantar.

— Tudo bem... vou... Vou trocar de roupa e já desço.

Ela fechou a porta. Saltei por cima da cama e corri para frente do espelho.
Ajeitei meu cabelo, penteei várias vezes e os prendi no alto da cabeça, deixando uns fios
soltos caírem pelos meus ombros. Escolhi uma roupa sensual dentro do armário. Passei
batom nos lábios, e retornei até o espelho. Olhei-me naquele instante e não consegui me
reconhecer. Meu noivo não gostava daquele tipo de mulher. O dia havia sido estranho,
e eu parecia mais estranha do que tudo o que presenciara.

“ O que estou fazendo?”

Rapidamente soltei os meus cabelos, bagunçando-os imediatamente com os dedos.


Retirei aquela blusa com o decote vantajoso que há séculos estava esquecida em minha
gaveta. Nunca a usei porque sempre achei que as pessoas não deveriam dar margem aos
desejos alheios. Era uma falta de respeito aparecer naqueles trajes na frente do meu
noivo. Passei as mãos nos lábios e também retirei o excesso de batom com o qual havia
lambuzado a minha boca.

Trajada decentemente, desci até a sala. Vazia... Passei pelo grande corredor que levava
até a cozinha, atraída pelo aroma gostoso do tempero de Iracema. Só então me dera
conta de que eu estava com fome, no entanto, a fome tinha ido embora quando meus
olhos encontraram os azuis provocantes dos de Letícia.
Todos estavam sentados à mesa. Assim que me aproximei, Mauricio deu um
beijo delicado em minha testa. Sentei-me de frente para Letícia. Mauricio, sorridente e
falante, tornou a sentar-se na cadeira ao meu lado. Letícia me encarava... Incitava-me a
olhar em seus olhos. Eu sentia raiva. Encará-la era como reviver as cenas dela agarrada
a uma outra... mulher! Aquilo era inadmissível para mim.

Fechamos os olhos para a oração que o papai fazia todas as noites antes do
jantar. Enquanto os agradecimentos pelo alimento de todos os dias ecoavam pelo
ambiente, eu abri os olhos, pois tinha a sensação estranha de estar sendo observada e
deparei-me com aquele olhar inquisidor fazendo a minha face corar. Respirei fundo,
mas continuei alimentando aquele embate até ouvirmos o som da voz do pai dizendo
“amém”.

Depois do jantar, tinha visto Letícia sentar-se nas escadas da varanda, sozinha.
Ela parecia pensativa, devia estar arrependida dos erros que cometia insanamente, ou
não, pessoas como ela jamais se arrependem das suas luxúrias. Tentei não elucubrar
tanto quando aos seus supostos arrependimentos. Se ela não tivesse um coração, como
eu agora achava que não tinha, não haveria pelo que se arrepender.

Eu tinha sentado na rede com Mauricio. Ele fazia carinho nos meus cabelos,
enquanto falava dos planos que havia feito para nós depois do casamento. Não ouvi uma
palavra do que ele disse. De onde estávamos, dava para ver os cabelos de Letícia sendo
bagunçados pelo vento. Fiquei tentando descobrir para onde ela estava olhando, através
dos movimentos que o vento fazia. Divaguei nesta bobagem de seguir seus olhar até o
momento em que ela se levantou e passou por nós sem ao menos dizer boa noite,
desaparecendo dentro de casa. O frescor da varanda perecia ter perdido a graça para
mim, e não demorou muito para que uma dor de cabeça me assolasse furiosamente.
Tratei de me desculpar com Mauricio pela indisposição e me queixei de cansaço. Eu
precisava dormir, e talvez apagar da minha memória todos os desprazeres daquele dia.

Acordei sonolenta de madrugada. Olhei o relógio, marcava três e quarenta e


cinco da manhã. Desci da cama, calcei os chinelos e caminhei em passos lentos até o
banheiro do quarto. Acendi as luzes e assustei-me imediatamente ao sentir o meu corpo
ser envolvido pelos braços delicados, mas firmes de alguém. Inclinei a cabeça para trás
e meus olhos deram de cara com os azuis de Letícia. Tentei gritar, mas meus lábios
foram capturados pelos dela, sem me dar a chance de empurrá-la, ou sair correndo dali.
Rapidamente, ela tinha me virado de frente para ela. Meus seios, novamente entraram
em contato com os seus. Minhas mãos alcançaram a sua nuca por baixo dos cabelos.
Senti minha pele queimando como se me jogassem brasas. Sua coxa fazia pressão no
meio das minhas pernas, enquanto a mão dela deslizava pelas minhas nádegas. Apertava
a minha carne fazendo com que a minha calcinha ficasse inundada. Minhas costas
bateram na parede. Seu corpo me aprisionou de uma maneira única e inexplicável. Não
tive forças para impedir que a língua de Letícia fizesse vários movimentos excitantes
dentro da minha boca. Me debati, precisava me soltar daqueles braços, mas continuei
sem força.
— Abre as pernas pra mim — descarada, sussurrou em meu ouvido, ao mesmo
tempo em que eu sentia os seus dedos deslizando pelas laterais da minha calcinha por
baixo do short do pijama...

— Não! — gritei, logo assustei-me com o som da minha voz e,


automaticamente, dei um pulo da cama. Olhei ao meu redor. Minha pele estava suada,
meus seios intumescidos. Fechei os olhos e deslizei meus dedos para dentro da minha
calcinha. Senti as lágrimas de inquietude escorrendo pelos meus olhos ao perceber que
eu estava completamente... molhada!

— Foi um pesadelo... Só um pesadelo! — sussurrei, e me benzi três vezes —


Afasta de mim essas sensações, meu Deus! — pedi de olhos fechados, ajoelhada na
beira da cama, nas mãos, um terço de madeira que ficava sempre sobre o criado-mudo.

Capítulo 7
[30/08/10]

Depois do jantar eu tinha ficado sentada na escadaria da entrada da fazenda. “Mas


que merda! Ninguém havia me dito que aquela incompetente da Alana tinha um noivo”.
E que cara mais sem graça, meu Deus! Tive vontade de rir daquele chapéu ridículo que
ele usava. Parecia um caipira, ou melhor, era, como todos naquela cidade. Ainda tive
que ficar ouvindo os sussurros apaixonados do casal, enquanto eles namoravam na rede,
tem coisa mais antiquada do que namorar na rede? Uma chatice só. Como pode existir
relacionamentos tão idiotas? O cara se derretia inteiro diante daquela garota... sem
graça.

“Esses homens daqui não sabem o que é mulher, só pode!”

Fechei os olhos e lembrei-me do momento em que Alana entrou no meu quarto, à


tarde. Foi engraçado. Ela me viu praticamente sem roupa. Aproveitei para assustá-la
colando meu corpo no dela. Tinha visto nos olhos dela o quanto ficou apavorada.
Indescritível as sensações de vê-la se debatendo nos meus braços. Mas não posso negar
que aqueles seios rijos encostados nos meus fizeram a minha pele quase pegar fogo.
Meus lábios aguaram pelos dela de uma forma... de uma forma... visceral! Putz! Senti
dor, como se uma chama tivesse sido acesa dentro do meu estômago.

Se eu pudesse me olhar através de um espelho qualquer naquele momento, não


reconheceria as minhas expressões. Eu estava com medo... medo? Essa palavra não
existia no meu vocabulário. Quem Alana pensava que era para me fazer sentir medo?
Do que mais eu gostava nela, senão os olhos verdes, e os cabelos loiros, que exalavam
cheiro de pêssego? Tinha também o corpo esguio, cheio de curvas provocantes; a pele
alva como uma gota de chantili... Me levantei sobressaltada com aquelas besteiras
enumeradas que eu tinha pensado inconscientemente.

Passei pelo casal apaixonado e patético sem emitir nenhum som. Caminhei até a cozinha
para pegar uma fruta, escolhi uma maçã, e levei-a para o quarto. Minutos depois que eu
havia me deitado na cama, ouvi batidas tímidas na porta. Sorri ao imaginar quem
poderia ser, dei um salto da cama, tirei a bermuda e fiquei apenas de calcinha e
camiseta.

“Ela tá querendo!”

Ajeitei os cabelos rapidamente e abri a porta com um sorriso irônico nos lábios. Sorriso
esse que se desfez, no instante em que me deparei com aqueles dois babacas parados,
boquiabertos, igual um dois de paus na minha frente.

— O que... O que vocês querem? — disse séria e contente por ter controlado o
meu impulso de tirar toda a roupa toda.

“Droga! Queria que fosse a sem graça da Alana pra eu me divertir!”

— Nós... digo... eu... — balbuciava o mais velho.

— Desembucha, moleque! — disse, enquanto retornava à minha cama e vestia o


short novamente. Bernardo e Eric continuavam parados na porta do quarto. Achei graça
daquelas expressões chocadas, parecia que nunca tinham visto uma garota de calcinha.

— Queria te pedir uma coisa — enfim se manifestou Eric.

— Pedir... uma coisa pra mim? – me sentei na cama, curiosa para saber o que ele
queria comigo. Com um gesto, pedi que os dois entrassem. Coloquei as mãos na cabeça
ao vê-los enrolados, querendo passar juntos pela pequena passagem que dava acesso ao
quarto... Eric entrou e aproximou-se da cama. Bernardo ficou mais ao fundo. Ele
nitidamente tinha medo de mim — Eu não mordo — falei, para ver se ele se sentava na
cama. Maneei a cabeça, dizendo que eles podiam.

— Sabe... o ... que ... é? — gaguejava o mais velho.

— Não! Eu não sei! — disse antipática. Bernardo sobressaltado levantou-se do


cantinho do chão que havia se sentado, e preparava-se para sair do quarto, quando eu o
chamei.
— Ei! — o garoto parou na porta — Relaxa, menino! Volta aqui.

Ele olhou para mim como um cão sem dono, depois tornou a se sentar no mesmo
cantinho que havia estado antes.

— O que vocês querem?

— Eu não quero nada — se antecipou Bernardo, quebrando o silêncio.

— Então, por que está aqui? — olhei na direção do pequeno. Ele estava de cabeça
erguida, me encarando. Achei-o bonitinho naquele momento. Parecia eu mesma quando
olhava para minha mãe.

—Esse banana tava com medo de vir falar com você sozinho — disse o menino.

Soltei uma gargalhada. Dispersei o olhar na direção de Eric, que baixou a cabeça.

— O que você quer comigo... banana? — completei irônica, com ar de riso. O


rapaz levantou-se magoado. Iria sair do quarto, mas eu rapidamente segurei seu braço
— Foi mal, cara! Diz logo o que você quer! — tentei ser menos arrogante, devido à
curiosidade que saltava dos meus olhos.

— Ele quer que você o leve no inferninho.

— Fala baixo, moleque! — Eric fez sinais para Bernardo, apontando a porta —
Quer que todos saibam, é? — sussurrou.

— Nunca entrou lá? — perguntei descrente.

— Nosso pai diz que não é um ambiente para rapazes de família — explicou-se
envergonhado — Mas eu queria muito conhecer as meninas de lá.

Olhei pasma para Eric.

— Me diz uma coisa... -- tentei não sorrir ao dar margem a minha imaginação —
Você nunca... nunca...

— Ele é virgem — entregou Bernardo num impulso, depois colocou as duas


mãozinhas na boca, como se tivesse dito uma besteira, e disse, né?

Eric arregalou os olhos como quem repreende o menino. Ele tinha ficado
completamente envergonhado, as bochechas estavam vermelhas. Putz! Diante de uma
revelação dessas, a minha reação óbvia era me acabar de tanto rir, não é? Errado! Fui
prudente, me levantei da cama, caminhando paulatinamente até o rapaz, que estava
desolado com as mãos encostadas na parede movendo a cabeça, como se quisesse bater
com a testa na alvenaria. Passei a mão pelo ombro de Eric e o trouxe para que se
sentasse novamente ao meu lado na cama. Nesse instante, Bernardo deu um salto do
chão, e juntou-se a nós.
— Cara, isso é sério! — balancei a cabeça no sentido afirmativo — Vamos dar
um jeito nisso, certo? – sorri ao maquinar meu planos de vingança contra Alana —
Amanhã, na primeira hora, vamos pegar aquela caminhonete vermelha e ir à cidade.
Vou te apresentar à moça gostosa que eu conheci hoje, e você vai resolver esse
probleminha, está bem?

— Não é tão simples assim! Não podemos usar a caminhonete! E... e... de manhã
tenho que ordenhar as vacas... Tem o celeiro que precisamos limpar...

— Shiiiiii... – interrompi-o - Poxa! — disse séria — Pára de ser tão certinho! É


por isso que ainda é virgem. Nós só temos que pegar as chaves da caminhonete, ir à
cidade e trazer a menina pra cá, entende? Isso não levará muito tempo, voltaremos antes
que sintam a nossa falta.

“Não sem antes esfregar na cara de Alana o fato de eu ter pegado aquela maldita
caminhonete”, pensei diabólica.

— Isso não vai dar certo.

— Cala a boca, moleque! — repreendi a manifestação de Bernardo. Eu não


gostava de ser questionada.

— Letícia, eu não posso roubar as chaves do meu pai! Como vou entrar no quarto
dele? ─ Eric estava tentado, porém, assustado demais para visualizar as soluções.

— A Alana não tem uma cópia das chaves da caminhonete?

— Tem... Mas...

— Mas, nada! — maquinei o plano enquanto andava pelo quarto — Você tem
sorte por ter me conhecido, sabia? Um cara de... Quantos anos você tem?

— Dezoito... — sussurrou desconcertado.

— Dezenove! — gritou o pirralho — Ele fez dezenove mês passado.

— Seu fofoqueiro! — Eric tacou o meu travesseiro na cabeça do menino. Sorri


achando graça daquela briguinha infantil.

— Um cara com dezenove anos que ainda é virgem? — gargalhei, e dessa vez,
Bernardo também riu. Passei as mãos na minha frente, como se visse um letreiro com
luzes néon — Isso daria um filme: O Último Adolescente Virgem!

— Pára com isso, Letícia! — Eric disse envergonhado.


— Abandonar esse rótulo só depende de você — sorri mostrando os dentes —
Precisamos das chaves, depois a menina estará a sua disposição no seu quarto. Eu
garanto, viu?

— Não podemos! — ele balançou a cabeça negativamente — Uma das regras da


casa é que nem os namorados da Alana, e nem as minhas namoradas, podem entrar nos
nossos quartos. É proibido namorar de portas fechadas, entende?

— Quem falou em namorar? Isso é ridículo! Você só vai fazer sexo, então relaxa!
— bati no ombro dele — Duvido que a sua irmãzinha não leve o peão pro quarto dela.

— Ei garota! Mais respeito com a Alana — irritou-se Bernardo — Ela é moça de


família.

Sorri, achando graça da petulância do moleque. Era patético o fato dele querer
defender a honra da moça irritante daquela casa.

— Então, como é que eles fazem?

— Não fazem, oras! — pronunciou-se Eric — Alana só vai se entregar a ele


quando se casarem.

— Fala sério! Uma mulher de vinte e cinco anos, que não trepa com o namorado?

— Só depois que ela se casar, Letícia! -— disseram os dois ao mesmo tempo.

— Em que mundo vocês vivem, hein?

Ambos ficaram em silêncio e eu tentei assimilar aquela informação. Ou aqueles dois


eram muito ingênuos, ou Alana deveria ser uma grande atriz.

“Virgem? Uma mulher linda como aquela? Não! Isso só podia ser uma piada”.

— Tem um plano? — ouvi o menino perguntar. Voltei imediatamente à realidade.

— Claro! — respondi animada — Você... — apontei para Bernardo — pega as


chaves da caminhonete no quarto da Alana, beleza?

— Não vou fazer isso! É errado! — levantou-se afrontado como se eu tivesse


pedido que matasse algum daqueles cabritos fedorentos que andavam pelo matagal.

— Moleque medroso! — enruguei a testa ao falar — Tá se borrando nas calças só


pra não pegar uma chavinha?

— Não sou medroso! — retrucou cerrando os dentes. Ele estava me enfrentando...


Gostei disso!
— Então... Prova! — desafiei confiante.

— Não é certo roubar a chave. Você não tem autorização para dirigir a
caminhonete.

— Medroso! Medroso! Medroso! — irritei-o.

Transtornado, e rosnando como um cavalo bravo, Bernardo saiu do quarto e bateu


a porta. Eric e eu nos olhamos, e caímos na gargalhada.

— Ele vai pegar — disse ele.

— Valentão o garoto, né? — debochei, mas no fundo, eu estava admirada por


aquela criança ser tão determinada e incisiva nas suas convicções. Mas, como toda
criança, ele era deveras influenciável.

Eric e eu discutíamos a estratégia. Sairíamos sem sermos vistos na manhã


seguinte.

“Sorte ter guardado o número da garota que eu havia levado ao banheiro do inferninho!”

Ligamos para ela do celular de Eric e marcamos um encontro no dia seguinte, em plena
luz do dia, assim que as portas do estabelecimento se abrissem. Antes que eu desligasse
o telefone, Bernardo retornou ao quarto e jogou em cima da cama as chaves da
caminhonete. Orgulhosa, aplaudi-o e passei a mão em sua cabeça, ele se esquivou
emburrado.

— Valeu, Bê! — disse quase carinhosamente.

— Meu nome é Bernardo — cruzou os braços. Fez cara de bravo.

— Pois eu vou te chamar de Bê — falei dando um peteleco na cabeça dele —


Amanhã. Não esquece, viu! — pisquei para Eric, o qual parecia exultante de felicidade.

“Quase debochei”.

— Vocês dois vão arrumar sarna pra se coçar. Isso sim. – murmurou Bê.

— Vai dar tudo certo, guri! Só você ficar de bico calado, entendeu? Agora... me
deixem em paz, tá? — acompanhei-os até a porta e dei tchau. Eu queria dormir, ou ao
menos, deitar na minha cama e ficar imaginando a cara que a irritante da Alana faria, ao
descobrir que eu havia roubado o carro, e ainda tinha tido a ajuda do seu protegidinho e
pra piorar, o incentivo e a cumplicidade do seu queridinho irmão, que queria burlar as
malditas regras daquela casa e sentir o doce sabor da liberdade. Sorri pra valar ao pensar
na cara que ela faria quando descobrisse o plano.

De manhã, acordei com batidas suaves na porta do meu quarto. Abri os olhos,
ainda sonolenta.

— Entra, infeliz! — disse e tapei a cara com o travesseiro.

— Esqueceu do compromisso? Sabe que horas são? — sussurrou Eric, ao lado da


cama. Tirei o travesseiro do rosto. Olhei aquele chapéu ridículo que ele usava, a calça
desbotada, as botas de cowboy...

— Dá pra tirar esse chapéu e por um tênis? Assim você não come ninguém!

— Não implica com a minha roupa, tá? Levanta! — puxou o lençol.

— De onde veio tanta coragem? Você tá muito abusado, sabia? — me levantei e


fui até o banheiro escovar os dentes.

Descemos silenciosamente as escadas... mas dez minutos e todos estariam


acordados. Tínhamos que nos apressar. Demos a volta por trás da casa... Até aquele
momento tudo estava dando certo. Avistamos a caminhonete estacionada perto do
curral, em posse das chaves, num minuto, já estávamos passando pela porteira principal.
Eric soltou um suspiro de alívio, depois caiu na gargalhada e tocou a minha mão,
agradecido pela aventura. Balancei a cabeça negativamente, achando graça daquele
caipira, que na certa nunca havia cometido um delito como aquele.

“Todos nós temos um lado negro!”, pensei.

Entramos no carro, eu girei a chave na ignição com gosto...

“ Quem disse que eu não ia dirigir aquela porcaria de carro, hein?”, sorri por dentro.

O trajeto até a cidade foi de certa forma agradável e, curto! Eric ficou a maior parte do
tempo segurando na porta. Estava assustado por eu andar tão depressa. “Que cara
medroso, não é?” Posso dirigir de olhos fechados. Uma das coisas que mais gosto de
fazer na vida é desafiar os limites da velocidade. Tá certo que prefiro as motos, mas de
qualquer forma, correr sobre duas, ou quatro rodas, me dá uma sensação de êxtase
indescritível.
Estacionei em frente ao “inferninho”. Eric fez uma cara que deu até pena.

— Devia estacionar do outro lado — disse ele. — Vão reconhecer a caminhonete.

— Relaxa, homem puro! — sorri. Dei um salto do veículo e entrei no bar. Eric
veio em seguida. Aproximei-me do balcão. O homem gordo que preparava as bebidas
estava a postos. Torceu o nariz quando me viu entrando. Balançou a cabeça
negativamente quando viu Eric atrás de mim.

— Não quero encrenca com o seu pai, filho! — disse.

— Aê! — fitei o homem gordo — O cara tá comigo, beleza? Não precisa se


preocupar com o papaizinho dele.

—Você não acha que está indo rápido demais aqui na cidade, mocinha?

— Não! Eu não acho! — suspirei entediada — Dois chopes.

— Há essa hora, Letícia? — Eric pareceu não gostar.

— Trás um chope pra mim, e leite para a mocinha aqui — falei debochada.

— Pára com isso, tá! — Eric abaixou o chapéu para esconder o rosto vermelho de
vergonha. Alguns homens começaram a rir atrás dele, ergueram os seus copos na minha
direção e gritaram: “Saúde!”. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa a eles, Ludmila
tapou meus olhos com as mãos. Reconheci o seu perfume de flores do campo. Virei de
frente e me deparei com aquele sorriso encantador que ela tinha. De soslaio, vi Eric
admirado-a também.

— Senti saudades de você! — sussurrei perto do seu ouvido — Precisamos


terminar o que começamos ontem.

Ela sorriu. Fez cara de sapeca.

— Quando você volta pro Rio?

“Ah, não! Aquele papo outra vez! Que menina insistente”.

— Dentro de alguns dias — puxei-a num canto — Se você fizer aquele


favorzinho, te levo comigo. Topa?

Uns segundos de silêncio. Pensativa, Ludmila exibia excessivo brilho nos olhos
apenas pela possibilidade de ir conhecer a cidade dos seus sonhos. Ela já estava a par de
toda a situação, pois depois que Eric e Bê saíram do meu quarto, as horas foram
passando e eu não conseguia dormir, a casa já estava toda no escuro e eu fui até a sala e
liguei novamente para Ludmila. Contei sobre a virgindade de Eric. Nós havíamos rido
horrores, e ela ficou de pensar na possibilidade. Pisquei para o Eric, antes de ouvi-la
dizer:
— Rio de Janeiro, lá vamos nós! — falou com entusiasmo e pulou no meu
pescoço. Ela acreditava mesmo que eu a levaria comigo.

“Tsc tsc, ledo engano”.

Capítulo 8
[01/09/10]

Apresentei Ludmila ao irmão de Alana, ele ficou completamente encantado com a


beleza estonteante da garota, confesso que eu também estava. A diferença era que eu,
pelo menos, me sentia excitada com a possibilidade irrevogável de pôr as minhas mãos
novamente naquele corpo. Havíamos sido interrompidas tragicamente no banheiro pela
estraga prazeres da Alana, e eu ainda queria me perder naquela pele cheirosa.

Retornamos à fazenda. Ludmila sentou ao meu lado na caminhonete. Mudo, Eric foi
atrás, e nós mal pudemos notar a presença dele.

O assunto preferido da menina? Imagine! Cidade grande. Ludmila tinha sonhos. Queria
ser atriz, morar de frente à praia, casar-se com um homem famoso, e viajar o mundo
inteiro. Por esse sonho, faria qualquer coisa. Ela só não contava que iria me encontrar
no seu caminho.

Eu, uma canalha que apenas queria curtir, estava a contragosto naquele fim de mundo, e
levar uma lembrança insignificante, seria terminantemente impossível. Ela teria que se
contentar, quem sabe, com um casamento promissor com aquele rapazinho bobo e sem
graça que estava calado no banco de trás da caminhonete. E pensar que como Ludmila,
muitas outras caem na conversa de pessoas mal intencionadas como eu. Sorri sem que
eles percebessem. Algumas vão até para o exterior, iludidas pelas promessas de vida
melhor. Acabam virando prostitutas. Não sorri ao final desse último pensamento.

Estacionei atrás da casa grande. Descemos da caminhonete como prisioneiros em fuga.


Ludmila se acabava de tanto rir da cara que Eric fazia pedindo silêncio... “Era uma
pequena aventura e o pavor dele era tão grande que o coitado nem respirava”... Nos
esquivamos de alguns galhos de árvores até alcançarmos a porta dos fundos. Tropecei
numa pedra e quase cai de cara na poça de lama perto da mureta da varandinha. Eu e
Ludmila caímos na gargalhada e isso foi o fim para Eric, que só faltou chorar. Enfim,
entramos na casa. O rapaz andou na frente, inspecionando o território. Segurei a mão de
Ludmila enquanto corríamos para outro cômodo. Continuamos nos esquivando atrás dos
móveis. Estava sendo divertido, sabe? Era legal aquela brincadeirinha de gato e rato.

Chegamos até o segundo andar... Passamos pelos quartos do meu pai, de Alana e de Bê.
Fiquei imaginando o quanto Eric devia estar suando, se borrando de medo de ser pego,
enquanto eu não via a hora de ter Ludmila novamente nos meus braços. Fazia tempo
que eu não sentia o gosto de uma mulher. Isso estava me enlouquecendo! Apertei a mão
de Ludmila e abri apressada a porta do quarto de Eric. Empurrei-a para dentro do
ambiente, agarrando-a pela cintura. Não houve resistência, ela sabia exatamente o
porquê eu havia levado-a até ali. Beijei-a nos lábios com saudade daquele gosto de
mulher que eu havia experimentado. Sua língua se enroscava fervorosamente na minha.
Interrompi o beijo apenas para dar um recado:

— Fecha logo a porta, Eric! – disse, logo a ouvimos bater, depois olhamos de rabo de
olho para o rapaz e notamos que Eric estava estagnado, nos olhando de boca aberta,
com as duas mãos paradas na frente da sua calça. Voltei a beijar Ludmila que sorria
entre um beijo e outro. Empurrei-a de encontro à cama... Passeei as mãos pelos seus
seios sentindo o quanto eles estavam rijos por cima da blusa...

— Apressadinha, hein? -- mordeu os meus lábios.

— Tô louca para sentir o seu gosto — disse e arranquei a blusa dela puxando apressada
pelo pescoço. Admirei os seios que ficaram à mostra. Não resisti e joguei-a na cama.
Cai por cima de Ludmila. Suguei o bico dos seios dela enquanto minhas mãos
percorriam as suas coxas; Passeavam por baixo da sua saia e encontraram a sua calcinha
molhada. Ela gemeu, quando os meus dedos tocaram o seu sexo úmido pelas laterais da
peça. Chupei o outro seio. Ludmila gemeu novamente. Empurrava a minha cabeça de
encontro ao seu sexo. Resisti. Continuei devorando os bicos rígidos e rosados dos seus
seios.

— Acho que ele vai passar mal, Lê! -- sussurrou, olhando na direção de Eric.

Desviei os olhos rapidamente dos seios dela. Sorri. Eric estava encostado na parede,
com a face vermelha, da cor de um pimentão. Sua calça estava com uma mancha perto
da coxa esquerda. Como se ele tivesse feito xixi nas calças.

— Ah! Ele tá bem... desejo não mata, faz a gente viver — me ajoelhei na cama. Puxei a
saia da menina pelas pernas, a calcinha veio junto. Ela ficou completamente nua.
Admirei por alguns segundos o seu corpo. Era tão bonito. Sua pele tão branca quanto à
de Alana. Seus cabelos loiros como os dela também; sua boca rosada, desenhada para o
prazer, assim como os lábios de Alana... Percorri as mãos pela pele macia a minha
frente. Senti os seus pêlos se arrepiarem.

Eu estava séria, cheia de desejo. Completamente molhada diante de... Alana... Era quem
eu tocava... Os seus seios que uma vez encostaram-se nos meus, agora estavam ali,
diante de mim. Seus olhos verdes me encarando com profundo calor, seu hálito fresco
tocando a minha face quente, rubra... Fechei os olhos e a beijei com fervor. Meu corpo
se movimentava sobre o dela numa entrega cheia de luxúria. Escorreguei meus dedos
para dentro dela. Senti-os sendo devorados pelo calor fulminante do seu sexo... Gemi no
seu ouvido enquanto sentia o seu corpo tremer com as minhas estocadas cada vez mais
intensas. Procurei os seus lábios desesperadamente. Beijei-a sugando a sua língua e
sentindo o meu corpo reagir inteiro. Abri os olhos e me deparei com aquela face linda,
mas... diferente da que estava nos meus pensamentos.

Dei um salto da cama. Ludmila não conseguiu entender a minha atitude. Nem eu
entendi o porquê da minha repulsa. Passei as mãos pelos cabelos sem conseguir
respostas, ou lembrar no que estava pensando realmente ao tocá-la. Olhei para Eric que,
visivelmente não conseguia conter a sua excitação...

— É contigo, cara — dei um empurrão nele, que foi parar perto da cama — Fica
tranquilo, você vai gostar -- disse e atordoada, me encostei na parede em que Eric estava
anteriormente. Meu corpo estava presente, minha cabeça não! O rapaz, inseguro olhava
assustado para minha cara, depois para Ludmila deitada a sua frente.

— Vem cá, vem! – convidou ela, enquanto Eric apoiava o joelho na cama. A moça
levantou-se imediatamente e abriu o zíper da calça dele. Era hora de ir embora...
Coloquei a mão na maçaneta para sair do quarto e deixá-los a sós, ao mesmo tempo em
que ela foi empurrada abruptamente por alguém.

— Eric, precisa... mos... — disse a invasora antes de entrar, olhar a cena que estava a
sua frente e ficar automaticamente histérica — O que está havendo?

“Coitado do moleque, viu?”, pensei enquanto, inconsolável, colocava as mãos na


cabeça.

— Não sabe bater na porta, sua mal-educada? — disse olhando Alana de frente. Os
olhos verdes me fuzilaram por alguns segundos. Eric deu um salto da cama, Ludmila
fez o mesmo, procurou as suas roupas pelo chão e começou a se vestir as pressas.

— Sua irresponsável! — gritou colocando o dedo na minha cara. — Aposto que foi
você quem armou tudo isso!

Ouvimos alguém correndo pelo corredor, logo Bernardo também entrou no quarto.
Assustado ao ver Eric sem blusa e com as calças abertas, colocou a mão na boca.

— Xiiiiiiiii — resmungou o moleque.

— Pára de gritar, garota! Vai acordar a casa inteira com a sua histeria, sabia? —
caminhei até Ludmila, toquei-a no braço para tentar acalmá-la — Tá tudo bem.

— Tira as mãos dessa vagabunda! — brava, transtornada, Alana continuou gritando.


Olhamos todos, ao mesmo tempo, na direção dela — Isso é... Não! Só pode ser um
pesadelo, meu Deus! -- colocou uma mão na cintura, outra na cabeça, e ficou andando
como um peru tonto pelo quarto — Eric! Que pensa que está fazendo?

— Eu... Eu... — estava apavorado.

— Ele só tava tentando transar, oras! — me antecipei sem medir as palavras — Mas
você é uma estraga prazeres, que puta que pariu, hein?

— Fica quieta, Letícia — Bernardo sussurrou e puxou a minha blusa.

— O que você sabe que eu não sei, hein, menino? — Alana veio como um furacão de
encontro a ele. Segurou a orelha do pobre, que ficou resmungando palavras sem nexo.
Meu sangue subiu. “Quem ela pensava que era para arrumar aquele barraco?”
— Deixa o moleque sua... Ridícula! — puxei Bernardo pelo braço, coloquei-o atrás de
mim — Tá machucando ele!

— Até parece que se importa com alguém, sua irresponsável! — ela estava perdendo a
noção.

— O moleque é parceiro -- disse com ar de riso para provoca-la ainda mais.

— Vou te esganar, Bernardo! — colocou as mãos na cintura — Vocês dois sabem


muito bem das regras da casa...

— Porra! Você parece uma velha falando — debochei, fiz careta e remendei o que ela
disse: — “vocês dois sabem muito bem as regras da casa”. Fala sério, viu? O cara tem
dezenove anos e ainda é virgem! Duvido que você, senhorita certinha, seja também! —
encarei-a, ela me encarou de volta e nesse momento, avistamos meu pai e a esposa
parados na porta do quarto.

— Xiiiii — resmungou Bernardo. — Danou-se!

— O que está acontecendo aqui? — meu pai olhou o ambiente... Estávamos: Eu e Alana
nos estranhando no centro do quarto; Bernardo perto da porta, ou seja: ao lado dele, Eric
e Ludmila próximos à cama. Quando meu pai avançou no quarto, o rapaz vestiu a
camisa às pressas. Seus olhos estavam arregalados de tanto pavor, era de dar pena.

— Já consegui visualizar tudo, pai! -- disse Alana, dona de uma razão que me deixou
enfurecida. — A Letícia e o Eric roubaram a caminhonete e trouxeram essa... essa...
mulherzinha pra dentro de casa!

— Deixa de ser “X9”, sua ridícula!

— X, o quê? -- quis saber.

— F.o.f.o.q.u.e.i.r.a! – disse bem devagar.

— Vocês duas parem de brigar! — a voz estridente do meu pai fez com que nós duas
parássemos de falar ao mesmo tempo. — Quem roubou as chaves da caminhonete?

Silêncio. Eric olhou para minha cara, Bernardo se encolheu num canto, completamente
amedrontado. Não sei por que, mas senti pena dos dois frouxos. Encarei meu pai.

— Eu roubei! — falei séria. Vi quando o moleque soltou o ar aliviado. Eric, no outro


canto, também deve ter respirado melhor. Meu pai baixou a cabeça, respirou fundo e fez
aquela expressão patética que minha mãe fazia quando estava zangada comigo.

— Você roubou o meu carro, trouxe uma desconhecida para dentro da nossa casa, está
incentivando o meu filho a cair na perdição... É um péssimo exemplo para o Bernardo,
que é só um menino...

— Esqueceu de dizer que eu sou lésbica! — gritei — Não vai jogar na minha cara que
eu sou lésbica? Tava louca pra comer essa garota linda — apontei Ludmila num canto.
— Mas essa idiota entrou no quarto e estragou tudo! — afrontada, coloquei o dedo na
cara dele — Nunca foi meu pai! Nunca esteve ao meu lado quando eu senti dor, frio,
fome... Quem pensa que é para me dar lição de moral? Dizer o que eu tenho, ou não
tenho que fazer? — olhei a minha volta. Todos estavam em silêncio — Quero que todos
vocês vão a merda! Não tenho que ter esses pudores ridículos! Por que o Eric tem que
ser virgem? Tem que casar virgem? Essa é a proposta? A Alana já deve tá dando pro
namoradinho há séculos!

Assim que terminei de falar, Alana que estava a minha frente, me ouvindo calada até o
momento, deu um tapa no meu rosto, que queimou a minha pele, e depois de me
agredir, ela saiu correndo do quarto. Elevei a mão até o lugar afetado... Lembrei do tapa
que eu havia levado da minha mãe, e percebi que esse havia doido muito mais.

O silêncio se rompeu quando meu pai se aproximou de mim, e começou a falar


segurando no meu ombro, olhando pateticamente emocionado nos meus olhos.

— Não me importo que seja lésbica. Você é a minha filha e, sempre será — respirou
fundo, suspirou. — Nós temos algumas regras nessa casa, mas isso não quer dizer que
vocês sejam escravos delas. Às vezes eu posso parecer muito rigoroso, mas a minha
intenção é impor limites, para que ninguém perca o prumo. Ensinar aos meus filhos é a
minha obrigação.

Retirei bruscamente as mãos dele dos meus ombros.

— Eles não são seus filhos! — disse brava. — Eu sou sua filha, e você me abandonou!
O que o senhor me ensinou? Que é um pai filho da puta, que abandona uma garotinha
de nove anos, porque encontrou uma nova família!

— Não, Letícia! — tentou tocar novamente em mim, eu não deixei. -- Eu sei que nada
vai justificar a minha ausência como pai, mas não culpe as pessoas por isso. Nós
erramos, filha! Eu por não me permitir ir a seu encontro, porque morro de medo de sair
do meu mundinho e, você errou também, porque eu perdi as contas de quantas vezes
implorei para que viesse passar uns tempos na fazenda comigo. Você nunca atendeu
uma ligação minha, se recorda disso?

— Não me venha com esse papo mole! Se quisesse realmente falar comigo, teria
vencido o seu medo e saído para ir a meu encontro no Rio... Quer saber? Tô de saco
cheio disso tudo! Fui! — disse, dei as costas e saí. Clara impediu que eu saísse do
quarto... Encarei-a. Ela me olhou com aqueles olhos lacrimejando. Sentimentalismo
barato, sabe?

— Não seja tão dura com o seu pai, menina! — disse. Puxei o braço e antes que eu a
empurrasse ela me deu passagem. Não a respondi. Caminhei em direção às escadas. Eu
estava com tanta raiva daquelas pessoas. Todos sempre dizendo o que eu tinha ou não
que fazer. Não cumpro regras. Quando é que iriam entender isso?

Precisava espairecer, sai em disparada na direção da cachoeira. Eu estava exausta.


Minha cabeça fervendo, queria a tranquilidade que aquele riacho me proporcionavam.
Na medida em que eu ia correndo, ouvia o barulho das águas se aproximarem de mim,
como se o riacho também estivesse vindo a meu encontro. Enxuguei umas lágrimas pelo
caminho.

Assim que parei de frente ao rio, avistei, amarrado no tronco de uma árvore o cavalo
que Alana iria dar de presente ao meu pai. Olhei a minha volta. A menina estava de
costas pra mim, olhando entretida na direção da queda d’água. O que eu sentia quando
olhava pra ela? Bom, eu sentia raiva, muita raiva; uma vontade louca de me aproximar e
brigar, discutir. Ela me irritava, provocava... Despertava o meu corpo para o desejo.
Minha boca aguava pelos lábios dela. Minhas mãos ficavam trêmulas com a
possibilidade de tocar naquele corpo.

Aproximei-me devagar. O barulho que os meus pés fizeram ao quebrar um graveto, a


fez dar um grito de susto e virar-se rapidamente de frente pra mim. Deu pra sentir o seu
hálito tocar o meu rosto e o calor do seu corpo passar para o meu, como se fosse um
filtro, da mesma forma que o meu passava para o dela. Fitei os seus olhos verdes. Ela
encarou os azuis dos meus... Quietas! Desci o olhar pelos seus lábios, desviei e alcancei
os seus seios, que já davam sinais de vida por baixo da blusa fina de botões na frente.
Voltei o olhar para os seus lábios. A menina mordeu o cantinho da boca. Minha pele
queimou de vontades. Meu corpo em brasas tentava se mover para junto do dela, mas
algo impedia meus pés de saírem do lugar.

— Eu te odeio! -- disse ela me encarando.

— Idem! — suspirei involuntariamente — Mas que você deve ser uma vadia muito
gostosa, ah, isso sim!

Falei de propósito. Sabia exatamente como acender aquela pólvora. No minuto seguinte,
Alana ergueu a mão para me dar um novo tapa na face. Segurei seu pulso quando ela
girou para me acertar, imediatamente tentou me acertar com a outra mão. Prendi-a
também. Como eu pretendia, agora os dois pulsos estavam aprisionados.

Sorri da sua face apavorada. Puxei-a para mim. Seu corpo grudou no meu e seus seios
rijos se esfregaram na minha pele, enquanto ela se debatia inutilmente para tentar se
soltar. As nossas respirações ofegavam. Nos encaramos. Ela parou de lutar contra mim,
eu era mais forte do que ela. Ainda nos encarávamos compenetradamente...
Rapidamente soltei-lhe os braços e agarrei-a pela nuca com uma das mãos, a outra eu
pousei no seu queixo, puxei a sua face e grudei os meus lábios nos dela.

Alana tentou novamente me empurrar, mas minhas mãos prenderam seus cabelos com
força, machucando-a toda vez que ela tentava esquivar a cabeça para trás e fugir
daquele contato. Seus lábios macios deslizaram nos meus... Sua língua molhada entrava
na minha boca arrancando gemidos de mim. Minhas coxas instintivamente passearam
no meio das suas pernas, se revezando na medida em que ela se debatia e eu tentava a
todo custo manter-nos de pé.

Suguei sua saliva por longos minutos. Uma troca tão perfeita que dava a impressão de
que iríamos morrer por não conseguir respirar. Por fim, as mãos de Alana laçaram o
meu pescoço. A suavidade do seu toque me deixou completamente arrepiada, e era um
simples roçar dos seus dedos na minha nuca.
Faltou-nos o ar e eu soltei-a lentamente. Puxamos o ar juntas. Parecia que tentávamos
roubar o ar uma da outra, tamanha era a nossa dificuldade ao tentar respirar. Áspera, ela
me empurrou. Desgrudou o seu corpo do meu. Andou de costas para se afastar de mim,
enquanto as mãos pousavam na sua boca entreaberta e sua cabeça balançava de um lado
e para o outro numa negação sofrida. Apoiei minhas mãos nos meus joelhos e inclinei
um pouco o corpo para frente. Eu estava exausta, e aquele só tinha sido um beijo...
“Putz! Que beijo!”

Capítulo 9
[05/09/10]

Deus! Ela me beijou! Coloquei as minhas mãos nos lábios, ainda quentes,
enquanto meus olhos encaravam os de Letícia. Naquele momento, não conseguia ouvir
mais nada que não fossem as batidas do meu coração. Os grilos cantando, o gemido da
queda d’água, os gravetos que gritavam quando eram esmagados pelos nossos pés.
Nada mais produzia som! Caminhei de costas. Ela pôs as mãos nos joelhos e puxou o
ar, como se fosse morrer asfixiada. Aquele olhar que Letícia me lançava me deixava
completamente enraivecida. Ela havia vencido? Sim! Correspondi aquele beijo com
tanto, ou mais desejo que ela. Isso era completamente impossível! Ambas éramos
mulheres, oras! Nunca havia sentido atraída por nenhuma antes! Tá certo que tive
poucos namorados, mas eu queria estudar... e... me dedicar aos negócios da fazenda
também era prioridade, além de que, cuidar do meu irmão mais novo ocupava muito do
meu tempo e, depois apareceu Bernardo nas nossas vidas.. Bom, ele era como um filho
para mim. Fui eu quem trocou as fraldas, ficou acordada quando ele sentiu cólicas.
Bernardo era o filho que eu nunca havia sonhado em ter, afinal de contas: não tinha
tempo. Quando Mauricio apareceu na minha vida, achei ótimo, ele era muito
trabalhador, carregava nas costas a fazenda vizinha, ou seja: resolvia todos os problemas
no lugar do dono, por isso nos víamos duas ou três vezes por semana.

Mauricio era maduro, responsável, meu pai o adorava, confiava nele, e eu me


sentia protegida ao lado de um homem que agia, na maioria das vezes, como se fosse o
meu... pai! Ao final desses pensamentos, eu ainda não conseguia distinguir o barulho de
nada.

Ainda mais apavorada com a insanidade de Letícia, de repente corri até à árvore que
prendia as rédeas da minha montaria, subi no cavalo preto que atendia pelo nome de
Café. Num minuto, eu estava ganhando o campo da fazenda. Veloz, Café seguia o curso
do riacho. Cavalguei por alguns minutos, não tenha idéia de quantos. Parei do outro
lado do rio, desci. Alisei um pouco o pêlo do animal, que relinchou e riscou a terra com
a pata, como se quisesse se comunicar comigo. Beijei-o e agarrei-o firme. Chorei
lágrimas de sangue, porque tudo dentro de mim me fazia chegar à conclusão de que eu
havia enlouquecido.

Soluçando, mergulhei no rio. Queria espantar aquela febre que estava impregnada no
meu corpo e me livrar do toque sujo daquela menina. Ela era doente, e a sua doença
contagiosa estava se espalhando entre nós. Eric e Bernardo também estavam infectados.
Eu tinha que resistir àquela falta de pudor e depravação. Era só a minha carne que me
impulsionava para o pecado, já a minha cabeça, sabia perfeitamente distinguir que
aquilo não era aprovado por Deus!

Quando eu cheguei em casa, minhas roupas ainda estavam úmidas, mas os meus
cabelos, revoltos pelo vento, já haviam secado. Minha mãe veio da cozinha assim que
ouviu passos nas escadarias da grande casa. Me olhou como se não me reconhecesse.

— O que aconteceu, minha filha?

— Tomei um banho de rio, não posso? — tentei passar por ela e subir as escadas em
direção ao meu quarto. Dona Clara me segurou no braço.

— Precisamos conversar, querida — disse séria.

Tremi, não queria que ela visse nos meus olhos a agonia que estava no meu coração.
Negaria a mim mesma, até a morte, o desejo que sentia por outra mulher.

— Não... não tenho nada pra falar — abaixei os olhos — Me dê licença, mãe... Preciso
tomar um banho.

— Você está sendo muito dura consigo mesma e com os meninos — ergueu minha face
— Até com a Letícia — disse com suavidade.

Quando minha mãe pronunciou aquele nome, acho que a minha feição mudou
radicalmente. Fui arremetida novamente as lembranças do ocorrido na cachoeira e a
raiva por tê-la beijado aflorou de tal maneira dentro de mim, que a vontade que eu
sentia, era a de bater no quarto dela e esganá-la com as minhas próprias mãos. Assim o
meu tormento terminaria. Por que ela havia feito isso comigo? Ou melhor: por que Deus
havia permitido que nós nos conhecêssemos, que ela me desse aquele beijo, e por que
permitiu que a minha cabeça ficasse tão perturbada com o gosto dos lábios dela? Com o
cheiro daquela pele macia e a suavidade do toque das suas mãos?

— Quero que essa menina morra, mãe! — disse e comecei a chorar.

Minha mãe imediatamente me acomodou em seus braços.


— Não diga isso, minha filha — apertou-me mais. Senti-me protegida — Ela é só uma
menina, e precisa de nós... da nossa ajuda para enxergar muito mais do que o lado ruim
da vida, Letícia precisa experimentar o amor.

Ergui minha cabeça ao final das palavras dela, fixei o olhar sem conseguir entender o
porquê da minha mãe estar sendo tão condescendente com aquela desmiolada e irritante.

— Não acredito que a senhora vai ser conivente com o que ela aprontou. — saí dos
braços protetores, andei pela sala... Uma mão na cabeça, a outra na testa — Ela trouxe
para dentro da nossa casa uma vagabunda. Conspirou contra nós, e bem debaixo dos
nossos narizes! Ainda conseguiu convencer o Eric e o Bernardo a ajudarem. Mãe, essa
menina não tem limites!

Eu queria ter contato que ela tinha me agarrado, violentado os meus lábios de forma
tão... tão... faminta! Mas, tive vergonha da minha fraqueza.

“Eu devia ter lutado mais!”

— Não podemos jogar a responsabilidade toda sobre ela, filha. O Eric também tem a
sua parcela de culpa, a moça foi pega no quarto dele, e o Bernardo não deveria ter se
mantido calado, mas o fez, porque quis.

— O que a senhora está me dizendo é completamente irrelevante. O Bernardo é uma


criança, e o Eric, é um sonhador, um garoto imaturo de apenas dezenove anos.

— A Letícia é da mesma idade que ele, filha. Não podemos absolver o seu irmão e
condená-la. Os dois são jovens, imaturos, e o que seu pai diz quanto à imaturidade das
pessoas? — fez uma pausa, depois retomou as falas — Que elas amadurecem, à medida
que passam a se envolver com as coisas e pessoas que lhe são caras.

— Só tenho certeza de uma coisa: eu odeio a Letícia! — disse com o tom de voz grave.
— Odeio! — repeti. Nesse instante, minha mãe olhou por cima do meu ombro.
Arregalou os olhos como se tivesse visto um fantasma. Virei na direção da porta da sala
e vi a garota parada de frente para mim. Perdi a noção de tempo e espaço novamente.
Os seus olhos azuis faiscavam ao olhar os meus. Seu sorriso debochado despontou
imediatamente em sua face.
Ela me intimava com o olhar, me arremetia ao momento anterior, em que os seus lábios
grudaram nos meus com tamanha intensidade, que meus pêlos se arrepiaram inteiros só
de pensar. Duelamos por longos minutos. O azul dos seus olhos encarava o verde dos
meus sem piscar. Sem desviar um centímetro sequer. Senti o toque dos dedos da minha
mãe nos meus ombros. Só então desviei o olhar.

— Hoje é o aniversário do pai de vocês — disse ela tentando nos remover daquele duelo
de ódio e ... e... desejo?

Não! Eu não podia desejar uma mulher. O que uma mulher poderia oferecer de
diferente para mim? Um homem poderia me dar um lar, filhos, obrigações de esposa...

— Vocês duas me escutaram? — minha mãe repetiu balançando o meu ombro. Letícia
continuava me encarando, ignorando o comentário que ela havia feito. Comentário esse,
que eu também havia perdido.

— O que a senhora disse? — perguntei.

— Disse que hoje é o aniversário do pai de vocês, e como todos os anos, faremos uma
comemoração na frente da casa.

— Nossa! — saí de frente de Letícia. Senti o seu olhar me acompanhando — Esqueci


do aniversário do papai — disse inconsolável.

— Vou ficar trancada no meu quarto — ouvi a voz da menina vibrar atrás de mim.

— Não faça isso, minha filha — mamãe caminhou na direção dela e docemente segurou
suas mãos — Seu pai ficará muito triste se você não estiver presente.

Ela soltou uma gargalhada irônica, depois puxou as mãos que estavam entre as da
minha mãe.

— Meu pai nunca fez questão da minha presença nos aniversários dele — apontou na
minha direção. — A sua filhinha querida e certinha que não pode faltar.

— Olha aqui, garota! — levantei o dedo na direção dela. Mamãe veio correndo e
segurou-me pelos braços.

— Chega! — disse séria. — Vocês duas tem que parar de brigar de uma vez por todas!
Vai para o quarto agora, Alana! E você Letícia... — virou-se na direção dela — Devia
parar de culpar o seu pai pelos erros que tanto você, quanto sua mãe, também
cometeram.

—Erro? — fitou minha mãe com fúria nos olhos. — Se você não tivesse aparecido para
se jogar na cama do meu pai, eles teriam se acertado, sabia?

Foi demais para mim. Parti para cima dela na tentativa de dar um murro na sua cara.
— Não fale assim da minha mãe! — tentei esmurrá-la. Letícia conteve os meus braços,
me segurando firme. Ela riu ao prender novamente os meus pulsos e me puxou para
perto do corpo dela.

Seu calor novamente se misturou com o meu. Estremeci quando minhas pernas roçaram
nas dela. Só que desta vez, eu reagi e continuei me debatendo. Tentando me vingar das
palavras grosseiras que ela dirigiu à minha mãe. A menina continuou a sorria para mim,
debochando da minha fraqueza diante dos seus braços fortes.

Sentimos quando minha mãe nos separou. Estranhamente odiei estar longe dos braços
de Letícia, e aquilo me deprimiu demasiadamente. O que estava passando na minha
cabeça, meu Deus? Não disse mais nenhuma palavra. Saí em disparada até o meu
quarto. Arranquei as minhas roupas úmidas e me joguei nas águas mornas do chuveiro.
Fiquei lá por pelo menos uma hora, depois vesti uma camisola, e exausta, deitei na
cama para descansar. A noite seria longa, como todas as festas da fazenda.

****
Acordei com uma indisposição horrível. Olhei através da janela. O fogo já
estava acesso lá embaixo. Os músicos já afinavam a viola, a sanfona e a gaita para a
cantoria em homenagem ao meu pai. Ele, todos os anos ligava para Márcia, sua ex-
esposa, mãe de Letícia. Os dois passavam horas ao telefone, e ao final de cada ligação,
ele nos olhava e dizia desanimado:

— Hoje elas não virão, quem sabe no ano que vem, não é?

Era de partir o coração. O velho Pedro ficava sentado na varanda, deprimido, até
Augusto chegar com a notícia de que já havia abatido o gado que serviria de churrasco
para aquele povo todo. Meu pai fazia questão de que nossas festas fossem fartas, e uma
questão ainda maior de que todos os funcionários da fazenda comparecessem. Éramos
todos iguais, juntos no intuito de comemorar mais um ano de vida de alguém.

O Sr. Pedro era um sábio, e a idade só fazia com que sua sabedoria se
multiplicasse. Eu o admirava, o respeitava e sabia no meu íntimo que nenhum outro pai
seria melhor do que ele.

Despreguicei-me na janela. A noite estava quente, e o meu humor havia


melhorado consideravelmente depois de olhar as pessoas dançando e ver o quanto todos
estavam felizes por comemorar o aniversário de um dos homens mais queridos daquela
cidadezinha perdida no mapa. Ouvi o canto da gaita e comecei a dançar no quarto. Uma
batidinha na porta me fez parar de mexer os pés. Abri. Era Bernardo. De olhos baixos,
face envergonhada e com uma rosa vermelha nas mãos.

—Entra, pequeno — disse, apanhando a rosa das mãos dele — Pode sentar se quiser.

— Arruma o meu cabelo? — estendeu o pentinho de madeira que estava escondido no


bolso da calça. Olhei-o quase com ar de riso. Ele visivelmente estava querendo voltar às
boas comigo. Eu o amava. Perdoá-lo não seria difícil.

— Coisa feia que você fez, hein? — puxei o assunto, ele se preparou para guardar o
pente, mas o detive. Sentei-me na cama para ficar da altura do menino — Vem cá, eu
penteio, sim, os seus cabelos — ele parou na minha frente, sorridente.

— Não fiz por mau — se justificou — Tenho uma coisa para dizer.

— O quê? — perguntei distraída, jogando os cabelos dele para o lado.

— Eu... eu... quem... roubei as suas chaves — disse e fechou os olhos como se estivesse
com medo de ver a minha reação. Parei de penteá-lo. Lembrei imediatamente das
palavras de Letícia ao meu pai: — Eu roubei! — disse ela séria.

“Por que protegeu Bernardo?”

— Por que a Letícia disse que foi ela? – perguntei séria.

— Não sei! Também ficamos nos perguntando isso, Eric e eu.

Calada, terminei de pentear os cabelos dele... Estava intrigada com aquela


descoberta. Acho que queria, sinceramente, acreditar que a menina tinha ao menos um
pouco de humanidade dentro dela. Bernardo correu na direção do meu armário, abriu a
porta e me tirou completamente dos meus pensamentos.

— Põe esse! — disse ele, segurando nas mãos um vestidinho de malha fria vermelho
com algumas flores brancas em sua estampa.

Levantei-me sorridente, o menino sempre me ajudava na escolha dos vestidos para as


festas. Cocei a cabecinha dele, Bernardo se esquivou e passou a mão nos cabelos como
se os penteasse.

—Tá bagunçando, Alana!


Sorri.

— Desculpa, senhor vaidoso!

— Vai pôr esse?

— Não sei... — coloquei o vestido na frente do meu corpo, girei como se tivesse
provando — Parece muito curto — olhei na direção dos meus joelhos, que ficaram
descobertos — E... as alças são finas demais...

— Tá calor lá fora! Você ficará linda com esse vestido.

— Você acha, Bernardo? — sorri da forma como ele me olhava. Parecia um rapazinho.

— Pode me chamar de Bê, Alana — disse.

— Ora, ora! Então temos um apelidinho para o senhor!

— A Letícia só me chama de Bê, eu gosto — disse animado. Amarrei a cara


imediatamente. A minha noite estava boa demais até ouvir o nome dela — O que foi?
Não gosta de Bê? — ele quis saber, percebendo a minha insatisfação.

— Não... é isso — fixei o olhar em outra direção. Meu estômago começou a revirar
quando lembrei do beijo que Letícia me roubou nas margens da cachoeira. Calafrios
percorriam agora todo o meu corpo. — Desce, Bernardo! — evitei o olhar — Vai para
a festa. Vou me trocar e já desço, está bem?

— Mauricio já chegou, sabia?

— Ah, ta! — não sei por que, mas aquela notícia me entristeceu profundamente.

— Anda! Desce, moleque! — levei-o até a porta. Eu queria ficar sozinha.

Terminei de me arrumar uma hora depois. Resolvi colocar o vestido que


Bernardo havia escolhido, afinal de contas era confortável e fresco. A noite estava
abafada, e para ficar perto do calor da brasa que assava o churrasco, somado ao vinho e
a dança caipira que assolava a noite inteira, a roupa tinha que estar de acordo.

Abri a porta do quarto no mesmo instante em que ouvi o estalar da maçaneta do


de frente ao meu, ou seja, o quarto de Letícia. Congelei os passos. Ela saiu do quarto e
demos de cara uma com a outra. Automaticamente, como um vício, os nossos olhos nos
prenderam na mesma direção. Mas dessa vez foi diferente. Letícia me violentou com
aquele olhar provocante, o qual despiu-me da cabeça aos pés, como se eu fosse uma
desconhecida. Mexi nos cabelos e fechei a porta. Fugi do olhar inquisidor... Corri para
longe dela e quase tropecei nas escadas. Invadi a cozinha da casa e me servi de uma
caneca generosa de vinho. Queria fugir da minha realidade. Mais ainda, quando senti o
hálito quente de Mauricio em meu pescoço.

— Você está linda, Alana!

Virei de frente para ele... Eu queria desaparecer!

Capítulo 10
[08/09/10]

Depois do beijo incandescente que roubei de Alana, fiquei perdida andando pela
fazenda por alguns minutos. Como desejava aquela garota! Acho que meu corpo nunca
quis tanto uma mulher. Ela era cabeça-dura, e aquilo me excitava. Alana era um desafio,
que eu ambicionava mergulhar inteira. Só uma vez! Queria uma única veizinha poder
deitá-la na minha cama e saciar todo aquele desejo que meu corpo emanava pelo dela.

Quando voltei para casa, suada e completamente dominada pelo fogo do tesão,
encontrei com Alana e Clara ainda na sala. Ouvi quando ela disse que me odiava. Sabia
bem o que aquela sonsa odiava: sentir desejo por mim. Me lembrei do sorriso malicioso
que lancei para ela, e do dela, frio e mentiroso.

Deitei na cama fazendo uma retrospectiva do que havia sido aquele dia. E pensar
que aquela delicia de mulher estava no quarto de frente pro meu. Senti vontade de bater
em sua porta, mas desisti. Ela deveria estar se arrumando para aquela festa ridícula de
aniversário do meu pai. O barulho brega da sanfona, do violão e da gaita já ecoavam
pelos quatro cantos da fazenda.

A cada minuto parecia que chegavam mais e mais peões. Um falatório infernal em
baixo da minha janela. Tentei tapar os meus ouvidos com os travesseiros, mas ninguém
dorme com um falatório desses, meu Deus! Aspirei o cheiro de churrasco que vinha lá
de fora. Senti meu estômago roncar, só então me dei conta de que havia ficado trancada
no quarto mais tempo do que pensava. Calcei os chinelos, ajeitei a bermuda no corpo, e
coloquei outra camiseta.

Abri a porta para ir até a cozinha e comer alguma coisa, quando dei de cara com
Alana saindo do quarto da frente. Foi automático. Visualizei-a da cabeça aos pés. Ela
estava linda! Usava um vestidinho vermelho com flores brancas. Os seios salientes eram
emoldurados por alças finas e um decote generoso. As curvas do corpo estavam
sobressaltadas. Eu que sempre a via de calça jeans e botas, me surpreendi com a sua
feminilidade naquele momento. Alana estava deslumbrante. Parecia uma daquelas
mocinhas dos filmes de faroeste.

Umedeci os lábios. Ameacei dar um passo na direção dela, e a garota saiu


correndo em disparada para as escadas. Me acabei de rir daquele medo absurdo que ela
tinha de mim. Estremeci ao sentir o cheiro bom que a garota deixou no corredor. Antes
de descer as escadas, encontrei com Bê saindo do quarto. O menino estava vestido para
uma festa à fantasia, só podia! Chapéu preto, camisa xadrez, botas quase até os joelhos
com uma estrelinha no calcanhar...

“Credo!”

— Vai pra onde assim, pirralho?

— Pra festa, oras! Você não vai?

— Acha mesmo que vou me prestar a esse papel?

— Você vai gostar, Letícia! – abusado, me puxou pelas mãos – Podemos dançar ao som
da gaita. Adoro a gaita do senhor Manoel. É divertido... Te ensino. Aposto que
aprenderá rapidinho!

— Ei! – puxei-o para que parasse antes de descermos – Não vou pagar esse mico!
Jamais vou me rebaixar indo comemorar o aniversário desse velho no meio de um
bando de peões!

— Não devia falar assim do seu pai.

— Falo do jeito que eu quiser.

— Lê... – o menino estava temeroso – Falei pra Alana que fui eu quem roubou as
chaves da caminhonete.

— Como assim, moleque? – minha voz saiu grave, notei que ele se encolheu num canto
achando que eu iria brigar. Abaixei o tom de voz: — Disse que fui eu pra você não se
prejudicar, seu palhaço!

— Obrigado, mas eu não devia ter roubado as chaves, e também... – fixou o olhar como
se já fosse um homem. – Eu devia ter assumido meu erro antes de você ter se acusado.
Fui um covarde, Letícia, e não quero ser um covarde. Por isso falei a verdade.
— Tudo bem, seu idiotinha! – joguei o chapéu dele para trás — Dá próxima vez te
coloco eu mesma no fogo, ta legal?

— Não terá próxima vez, Lê!

—Veremos... – caminhamos juntos até à cozinha.

Belisquei alguma coisa das panelas de Iracema. A comida era boa. Uma fartura
danada. As panelas de barro com os alimentos estavam todas migrando para frente da
casa. Da cozinha ouvia-se a música ainda mais alta. Tentei abafar o som pondo os fones
do meu Mp4 no ouvido, mas o pobre era inútil diante daquela algazarra toda. Um
inferno! Nem meus amigos e eu fazíamos tanto barulho quanto aqueles roceiros. Umas
gargalhadas ridículas ecoavam por toda a casa. As pessoas, desafinadas, cantavam as
músicas. Encostavam as canecas de vinho e chope derramando os líquidos. Uma
felicidade idiota demais pra minha cabeça...

“Bêbados”, pensei observando-os.

Eu já estava no meio do povo. Fui arrastada contra a minha vontade por Bê, que
não soltava a minha mão um só minuto. Olhei a minha volta. Estava à procura de Alana.
Já que tive coragem de me enfiar naquela algazarra, o mínimo que podia fazer era
procurar por ela.

— Já volto, Lê! – disse o menino enquanto soltava a minha mão e corria na direção em
que estavam assando as carnes.

“Que pivete abusado, me chamando de Lê!”, balancei a cabeça e sorri.

Continuei andando, circundando a festa, já um pouco afastada dos outros. Dali


tinha uma visibilidade muito maior. Reparei o local e notei que as luzes acesas acima
das cabeças das pessoas davam à impressão de que nos encontrávamos em uma espécie
de quermesse. Ao fundo um pequeno palco rústico de madeira. Era o local mais
iluminado, onde os casais subiam e dançavam. Balancei a cabeça negativamente
achando tudo aquilo... tão brega!
Quando voltei novamente os olhos na direção da tal pista de dança, avistei Alana
nos braços de Mauricio. Os dois acompanhavam os outros dançarinos como se fosse um
grupo ensaiado. Ela sorria para ele, que retribuía. Isso me deixou completamente
furiosa.

Depois de ter correspondido ao beijo na cachoeira, aquela safada estava cheia de


sorrisinhos para aquele idiota? Todas as mulheres são iguais! Só me dei conta de onde
eu estava, ao parar de frente ao grupinho de dança cafona, ou melhor: de frente pra
Alana. Ela perdeu o ritmo quando me viu, errou o passo duas vezes e sussurrou alguma
coisa no ouvido de Mauricio, que ficou parado na pista de dança, enquanto ela desceu
um pequeno degrau e saiu correndo para dentro de casa.

Acompanhei-a com os olhos. Percebi que o noivinho dela ficou olhando na minha
direção com cara de quem comeu e não gostou. Ignorei-o e saí em disparada para dentro
da casa grande.

Avistei Alana no final dos degraus da escadaria. Apressei o passo. Invadi a sala... ela
não estava. Alcancei a cozinha rapidamente e a encontrei encostada na mesa, de costas
pra porta. Olhei para os lados, estávamos completamente sozinhas. As panelas já
haviam sido retiradas do fogão e o pessoal da cozinha já se fartava na frente da casa,
enchendo a cara de vinho e chope.

Silenciosamente, me aproximei dela. A cada passo o meu peito disparava... Minhas


mãos ficavam trêmulas, minha boca estava seca. Toquei o ombro de Alana, que se virou
num susto. Assim como na cachoeira mais cedo, estávamos novamente frente a frente.
As respirações alteradas. Os olhos compenetrados um no outro. Era nítida a vontade
recíproca que sentíamos de nos beijarmos. Dei um passo para frente, Alana deu outro
para trás. Era uma luta que travávamos. Ela queria resistir, mas eu já estava entregue. A
menina ousou desviar os olhos dos meus. Num impulso aprisionei os braços dela,
impedindo-a que saísse correndo dali. Puxei-a para perto do meu corpo. Nosso calor fez
com que soltássemos ao mesmo tempo um gemido de dor, devido ao desejo que estava
sendo negado por ela. Por que se dependesse de mim, aquela mesa de madeira da
cozinha iria virar cama.

— Só um beijo – sussurrei próximo ao ouvido de Alana. Desci os lábios lentamente


pelo seu pescoço. Os seus pêlos se arrepiaram e ela me empurrou imediatamente ao
ouvir uma voz, que disse:

— Está acontecendo alguma coisa aqui?


— N... Não, Mauricio! – saiu de perto de mim.

Eu cerrei os dentes... O homem me encarou de frente. Ele queria me intimidar,


deu pra ver isso no vermelho enraivecido que transbordava dos seus olhos.

— Vamos voltar para a festa – disse Alana desconcertada, e crente que nós a
seguiríamos como dois cães adestrados, saiu em disparada pela porta da cozinha.

— Fique longe dela, sua... sua... – disse ele ao se certificar que ela não estava mais ali.

— Sua o quê? – encarei-o enfurecida.

— Sua anormal! – disse sem cerimônia – Todos já estão comentando sobre você nesta
cidade, garota! Que desgosto para o seu pai! Meu amigo não merecia uma filha como
você!

— Seu analfabeto! Peão de rodeios! – cuspi a palavra para ofendê-lo – Você não sabe
nada da minha vida!

— Sei o bastante para te deixar avisada: mantenha distância da minha noiva, entendeu?

— Tá me ameaçando, cara? – aproximei-me dele. Coloquei o dedo na sua direção —


Acha que pode me ameaçar, babaca?

— Acho que posso transformar a sua vida nesta fazenda num inferno. Se eu fosse você,
garotinha... – desdenhou ao pronunciar a última palavra. – Voltava amanhã mesmo
praquele antro de perdição que é a sua cidade.

— Vai achando, otário! – sorri debochada.

— Tá avisada. Mantenha distância da minha noiva.

“Quero comer a sua noiva, seu idiota!”, pensei.

— Olha aqui, ninguém me diz o que fazer – disse.

Ele balançou a cabeça negativamente e saiu batendo o pé. “Odeio que me deixem
falando sozinha!” Fiquei alguns minutos ainda lá, parada. Remoendo as palavras do
peão. Ele havia me ameaçado. Aquilo não ficaria barato. Quem aquele merdinha
pensava que era para falar daquele jeito comigo? Aí que eu não desistiria mesmo de
trepar com a noivinha dele. Sorri abertamente, no mesmo instante em que Clara entrou
na cozinha com o telefone nas mãos.
— Letícia, minha filha! Estou te procurando há horas. Sua mãe ao telefone – o estendeu
para mim.

Olhei-a fria.

— Diz que eu não estou.

— Atenda a sua mãe, Letícia! – disse séria. – Já tem uma semana que você chegou aqui,
e não atendeu a pobrezinha nenhuma vez.

— E o que você tem a ver com isso? Que se dane a minha mãe! Esta fazenda... as
vacas... os porcos... Vocês todos! Tô de saco cheio disso tudo, sabia? Todo mundo quer
me dizer o que fazer. Vai à merda com esse telefone! Diz pra dona Márcia que eu viajei
para o raio que o parta! Ela não me queria aqui? Pois bem! Estou aqui... presa!

Falei e saí de lá. A mulher ficou sem ação diante das minhas palavras sinceras. Sempre
falei o que penso mesmo, e daí? Aliviei minha tensão completamente. Quem mandou
aquela idiota chegar justo no momento em que meus nervos estavam à flor da pele? A
culpa era dela, não minha.

Sentei-me num tronco de árvore, um pouco afastado do pessoal. Minutos depois de todo
aquele tédio, senti uma pedrinha tocar o meu ombro, logo outra... e outra...

— Que diabos é isso? – disse enquanto inclinava a cabeça para trás, e dei de cara com o
sorriso generoso de Ludmila, que estava um pouco escondida por entre as árvores.
Levantei-me num pulo e caminhei até ela. – O que você está fazendo aqui, sua doida?

— Sabia que teria uma festa, resolvi dar uma passadinha – sorriu ao dizer. Aquele
sorriso safado que ela tinha.

— Adorei ver você! – olhei pros lados. – Alguém te viu entrar?

— Não! Acabei de chegar. Ia dar a volta na casa e tentar entrar no seu quarto pelos
fundos, mas pra minha sorte, te encontrei sentada nesse banco.

— Sorte minha, você quis dizer, né? – agarrei-a pela cintura. – Vamos dar uma voltinha
no celeiro?

— Não vai me levar pro seu quarto?

— Vai dar trabalho despistar essa gente toda.

— Então, tá! – disse caindo na gargalhada com as cócegas que os meus beijos no seu
pescoço produziam.
Guiei-a rapidamente até que ultrapassássemos as árvores em direção ao celeiro, que
ficava perto de onde estávamos. Ela estava me salvando daquela festa boba. Eu gostava
mesmo de ação, e naquele lugar, eu só encontraria isso nos braços de Ludmila... A
música foi ficando pra trás...

— Tá escuro aqui, Lê! – disse temerosa apertando os meus ombros.

— Assim que é bom – empurrei a porta e logo alcancei os lábios da menina. Eu estava
com fome, e sem que ela dissesse qualquer outra palavra, minhas mãos passearam por
baixo de sua blusa... Na escuridão não tínhamos rosto, e meu sexo pulsava sem me
deixar raciocinar direito. Minha boca clamava desesperadamente pelo gosto de Alana.
Sim!

Como uma febre, eu percorria a pele de Ludmila fantasiando que aquela mulher no
escuro do celeiro fosse a minha loirinha perfeita e abusada. Gemi ao sentir meus dedos
em contato com o bico dos seios rijos.

Ela retribuía o meu desespero, e puxou a minha blusa desesperadamente, não conseguiu
tirar e me empurrou de encontro ao feno que se acumulava num canto. Nem o cheiro de
animal nos tirava o tesão. Caiu por cima de mim e começou a acariciar o meu corpo.
Tremi inteira com aquelas mãos passeando pela minha pele... Alcançou o zíper da
minha bermuda jeans e abriu-o com deveras facilidade...

Puxou a bermuda para baixo e me deixou na frente dela de calcinha. Empurrei-a para o
outro lado. Segurei seus pulsos sobre a cabeça. Gostava de estar no comando e queria
deixar isso claro. Movimentei o meu sexo sobre o dela. Estava escuro, não dava sequer
para ver a luz de seus olhos. Continuei mergulhada na minha fantasia e o descontrole do
desejo tomou conta da minha carne. Abocanhei seu seio direito com paixão... suguei...
lambi... apertei nas minhas mãos. Depois, abaixei seu jeans e senti por baixo da calcinha
o quanto estava molhada. Introduzi meus dedos dentro dela. Ouvi o gemido de Alana
ecoar nos meus ouvidos. Sua voz aveludada invadia a minha racionalidade... Desarmava
as minhas barreiras. A penetrei mais fundo. Mais rápido. Senti meus dedos se perderem
dentro dela...

— Goza pra mim, Alana – sussurrei no seu ouvido.

No instante seguinte, senti quando as mãos quentes e pesadas me empurraram


bruscamente. Caí do outro lado do feno. Ela deu um salto. Estava completamente
aborrecida... pelo quê? Eu não sabia.
— Como tem coragem, Letícia?

— Coragem de quê?

— De trepar comigo pensando naquela sem graça da Alana! – falou furiosa.

— Ta brincando, né? – me levantei.

Ludmila estava se vestindo, aproveitei para recolocar minha bermuda também.


Assim que vesti uma perna, um fio de luz chamou nossa atenção... Um segundo depois
a porta do celeiro fez um ruído e alguém pôs nas nossas caras àquela luz infernal da
lanterna. Tapamos nossos olhos, depois nos acostumamos com a iluminação.

Mais uma vez fomos interrompidas por... Alana? Só podia ser castigo, ou azar!
Daquela vez ela estava parada à nossa frente, tapando os olhos de Bernardo, que estava
ao seu lado. Alana não disse nada, apenas desligou a lanterna e saiu do celeiro. Eu não
deveria estar me sentindo culpada, não é? Mas estava. Fiquei dividida entre ir atrás dela
e me explicar com Ludmila. Pela primeira vez na minha vida eu me senti totalmente
perdida.

Capítulo 11
[12/09/10]

Tudo parecia estar bem. Voltei para a festa e tentei me desvencilhar das desgostosas
lembranças daquele beijo com Letícia na cachoeira. Maurício estava carinhoso como
sempre. Olhando ao redor avistei meu pai feliz festejando mais um ano de vida junto
aos amigos. Eric flertava com uma boa moça, filha de um fazendeiro das redondezas.
Augusto e Iracema bebiam vinho e um pouco tímidos, dançavam perto do calor do fogo
de chão. Minha mãe tentava se divertir colocando o papo em dia com as mulheres da
fazenda. A troca de receitas era o foco delas.

E, para a minha maior felicidade, depois do episódio quase trágico dentro da cozinha,
em que meu noivo quase me surpreendeu num momento de fraqueza, Letícia não havia
voltado à festa. Muito melhor assim. Ao menos eu não corria o risco de sentir aquelas
sensações assustadoras toda vez que meus olhos encontravam os azuis dos dela. Ah,
aquelas sensações! Nesse súbito momento de realidade pude perceber que o sorriso que
eu estava lançando para Mauricio soava tão falso quanto à negação dos meus desejos.
Tive pena de mim, porque meu corpo gritava pelas sensações impróprias de se
experimentar com outra mulher.
Os pensamentos racionais e irracionais se chocavam e eu me pegava perdida nas
loucuras deles o tempo inteiro. Desde que Letícia havia chagado por essas bandas, eram
raros os momentos em que não me questionava quanto a mim mesma. Pedi licença a
Mauricio e fui pegar um copo de água para beber.

Ao deixá-lo sozinho, percebi que meu noivo olhava para os lados como se procurasse
por alguém, ignorei essa constatação e abordei Augusto para que ele me fizesse a
gentileza de servir um pouco com água.

— Você está bem, pequena? – perguntou o velho senhor abraçando-me fraternamente.

— Sim... – baixei os olhos pedindo a Deus que ele não entrasse em detalhes sobre a
minha tristeza. Eu nem devia estar triste, afinal de contas, não pretendia ceder aos
desejos que eu ousei sentir por uma garota. Aquela garota! Faltavam poucos dias para
Letícia voltar para a sua cidade e a minha vida para o seu devido lugar. Sem tormento
algum.

— Quer dançar com o pai aqui? – Augusto sempre com aquele sorriso bonachão nos
lábios e a face terna de quem quer ver as pessoas sorrindo também.

— Estou com dor de cabeça, “pai” – beijei-o no rosto assim que peguei o copo com a
água. – ...E, Mauricio está me esperando lá atrás.

— Tudo bem, querida. Sei que você não vai dispensar a companhia do seu jovem noivo
para ficar ao lado de um velho barrigudo feito eu – sorriu ao final da frase. Suas
bochechas rosadas brilharam. Antes que eu pudesse responder ao meu segundo pai,
Bernardo ia passando por nós como um foguete. Abordei-o.

— Quantas vezes terei que pedir para você não correr desse jeito no meio das pessoas,
rapazinho? – segurei seu braço.

— Desculpa, Alana. Não quero machucar ninguém – respirou ofegante – É que preciso
correr para o celeiro.

— O que vai fazer no celeiro uma hora dessas, Bernardo? Lá está muito escuro.

—Vi a Letícia passando pra lá. Aposto que ela vai aprontar das suas. Quero impedir, só
isso! Hoje é aniversário do pai, se ela fizer bobagens ele vai ficar triste.

— Aquela menina é louca! – abaixei para ficar da altura dele – Não quero que você
fique grudado nela desse jeito.

— A Letícia é gente boa, Alana – franziu o narizinho – Gosto daquela desmiolada e tô


com medo que a doida faça bobagem. Não sei se você brigou de novo com ela, mas
quando a pobrezinha saiu de dentro da casa estava triste demais. Não quero que ela
fique sozinha naquela escuridão.

Pensei por alguns segundos. Bernardo era um menino de coração de ouro. Mesmo
Letícia sendo grossa com ele a maior parte do tempo, o garoto ainda pensava nela. Em
protegê-la de alguma forma.
— Você só vive brigando com ela, Alana! – se queixou insatisfeito. Só então sai do
momento de reflexão.

— Deixa de ser injusto, Bernardo! – fitei-o brava, quase saindo do meu estado normal.
– Aquela abusada merece todas as palavras duras que um dia eu já disse para ela.

— Não sei o que ela fez de tão grave pra você, mas acho que as duas deviam resolver
isso.

— Você é só um menino... Não devia ser metido o sabichão desse jeito.

— Sou um menino, mas consigo ver que seus olhos brilham quando você fala dela, e os
da Letícia também quando fala de você!

— Ei! - falei séria - Não repita isso, está bem? Para ninguém – falei um tanto ríspida.

Assustado, ele balançou a cabeça no sentido afirmativo. Confesso que as palavras de


Bernardo me deixaram deveras encabulada.

– Vá pegar uma lanterna lá dentro de casa. Não vou te deixar ir sozinho buscar aquela
maluca — disse e ele sorriu.

— Oba! Vamos convencê-la a dançar! – pulou, girou e saiu correndo para buscar a
lanterna.

Balancei a cabeça negativamente achando graça da empolgação do menino. Como


aquele filhotinho de cascavel conseguiu cativar uma criança? Bernardo estava até mais
falante depois que obteve contato com aquela louca petulante... Eric parecia ter deixado
a timidez de lado e ao invés de estar tocando viola com os rapazes que comandavam a
música, tinha engrenando em um papo animado com uma moça perto do coreto dos
músicos.

Meu pai contava aos amigos com satisfação que hoje, pela primeira vez em dez anos,
estava comemorando seu aniversário com toda a família reunida. Como ele pode dizer
isso, se a filha mal lhe deu um abraço e sequer desejou-lhe felicidades? E eu? O que
dizer daquela agonia e vontade de vê-la, a qual fazia o meu corpo estremecer e o
coração disparar no peito? O que essa menina veio semear entre nós, meu Deus?!

Bernardo voltou correndo, acendendo e desligando a lanterna. Apressado, me puxou


pelas mãos. Deixei meu copo cair pelo caminho, e imersa na vontade de encontrar
Letícia, esqueci completamente de avisar Mauricio do meu paradeiro.

Entramos no meio do mato em direção ao celeiro. Andamos poucos metros e avistamos


a estrutura de madeira desgastada pelo tempo. Não parecia ter ninguém lá dentro. O
silêncio seria soberano se não fosse o barulho dos grilos e do vento balançando as folhas
das árvores.

Ao longe dava para ouvir a música tocando, e avistávamos também a fumaça do


churrasco indo em direção ao céu. Sem deixar de registrar aqui as gargalhadas daquele
povo animado que não se fazia de rogado diante de boa comida e bebida farta.
— Ela não está aqui, Bernardo! Você deve ter se enganado – puxei-o pelas mãos –
Vamos embora.

— Aqui só tem o celeiro, Alana – puxou-me de volta. — A Letícia só pode ter vindo
pra cá, oras!

— Se ela veio... e está em silêncio... deve querer ficar sozinha – disse insegura. As mãos
suando com a possibilidade de ficar parada na frente dela novamente. Aquele desejo era
mais forte do que eu. Eu queria, necessitava, precisava olhar naqueles olhos para ver e
sentir aquele calor incomum subir pelas minhas pernas.

Mais alguns passos em direção ao celeiro... Afastamos a porta e com a lanterna iluminei
o lugar. Ela estava lá! Tapei os olhos de Bernardo imediatamente, pois a cena que vi
deixou-me ainda mais certa de que tudo não passava de um grande erro, e Deus, a todo
o momento me mostrava quem ela era de fato. Não conseguiria, em tão poucas palavras,
descrever a ira que senti naquele momento.

Letícia estava dentro do celeiro, coberta de feno e vestindo às pressas a bermuda. Do


seu lado esquerdo avistamos aquela mulherzinha desclassificada que se deitava com
todos os peões da fazenda.

Não tive forças para brigar com ela desta vez. E também, por que brigaria? Meu irmão
não estava envolvido naquela pouca vergonha, nem Bernardo... Só o meu peito parecia
ter sido esmagado. Como se eu tivesse sendo apunhalada pelas costas. Mas eu não podia
me sentir... Traída? Não! Isso era demais para a minha cabeça. Letícia não fazia parte da
minha vida, só dos meus pensamentos... dos meus desejos, e isso tinha que parar!

Quem sabe agora, diante daquela cena tão descarada, teria finalmente um fim. Deus! Ela
acabou de me pedir um beijo na cozinha. Que nojo senti daquela garota mimada e
insolente que queria impor a todos naquela casa a sua presença absolutamente
dispensável.

Nunca desejei que alguém morresse em toda a minha vida, mas diante dela, naquelas
circunstancias, eu desejava no mínimo que a garota desaparecesse e fosse para bem
longe de mim. Impulsiva, saí correndo, deixando Bernardo para trás. Eu queria deixar
meu coração para trás também. Deixar os meus desejos, minhas vontades, meus
anseios... Era um inferno o que eu estava vivendo. Fui tocada literalmente pelo anjo
ruim do mal. Ele queria a minha alma, e era Letícia a incumbida de levar-me para as
profundezas.

Passei por Mauricio, o qual tentou, sem sucesso me fazer dizer o que havia me
assustado tanto a ponto de eu estar com a face coberta de lágrimas. Me debati nos
braços dele. Senti raiva por ele estar próximo de mim. Queria desaparecer sem ter que
me explicar. Como podemos explicar a alguém o que sentimos se nem nós mesmos
sabemos o que é? Por que as pessoas precisam sempre ter que dar satisfações para as
outras?

— Amanhã nos falamos – fixei o olhar ao dizer. – Preciso me deitar.


Ele soltou o meu braço. Tudo havia acontecido tão rápido. Não conseguia pensar.
Apenas queria estar só. Subi as escadas da varanda em disparada. Atravessei a sala.
Iracema passou por mim segurando algumas garrafas de vinho.

— O que foi menina? Aonde vai desse jeito?

Não respondi. Sequer dei ouvidos às palavras dela. Continuei correndo em direção ao
meu quarto. Abri a porta, logo encostei-a, e joguei-me na cama afogando o meu rosto no
travesseiro e dando um grito estrondoso.

Minutos depois ouvi o barulho da porta batendo. Dei um salto da cama. Era Letícia!
Com agilidade passou o trinco na fechadura. Meus pensamentos tomaram formas
desconhecidas.

“Ela veio atrás de mim? Sim! Estava ali diante dos meus olhos. Deixou a outra para trás
e veio a meu encontro. Deus! O que eu estava pensando? Isso era ridículo! Eu não
queria que ela tivesse vindo, mas eu sabia que viria... então...”

— Vai embora daqui! – quando me dei conta já estava dizendo. A garota ignorou a
minha ordem. Veio caminhando lentamente a meu encontro. Isso me fez tremer inteira.
Eu tinha pavor daquele olhar – Vai embora agora, sua... sua...

— Precisamos conversar – disse com o tom de voz doce, calmo. Como se não fosse
aquele poço de arrogância.

Empurrei-a para longe de mim, e passei para o outro lado do quarto.

— Não temos nada para conversar...

— Olha... Eu tenho que te dizer... – veio novamente atrás de mim.

— Não quero saber, nem ouvir! – como uma criança que não quer ouvir sermão dos
pais, tapei meus ouvidos e virei à cara. Impaciente com a minha infantilidade, Letícia
segurou forte os meus braços. Como sempre, as mãos dela queimaram a minha pele.

— Olha pra mim, eu tô falando com você! – fixou aqueles olhos azuis nos meus...
Estremeci na hora.

— Dá para ver o demônio nos teus olhos – disse temerosa. Os olhos dela estavam
vermelhos. Sua pele branca também exibia uma coloração esquisita. Suas mãos ora
macia, ora firmes me deixavam tonta.

Ela sorriu.

— Não é demônio... É desejo! – disse quase num sussurro.

Aproximou seu corpo do meu. Me debati. Eu não queria cair em tentação novamente.
Precisava ser forte. Aquela menina não podia me dominar daquele jeito. Isso era
inaceitável! Senti sua coxa mergulhar no meio das minhas num passo que me fazia
andar para trás, apenas para trás. Ela me encarava. Olhava para os meus lábios exibindo
mais do que um sorrisinho de cobiça. Letícia me hipnotizava, enfeitiçava de uma forma
irresistível. Eu queria me soltar dos braços dela, mas ela me apertava. Nossos seios se
comprimiam um no outro... Aquele atrito fomentava a umidade no meio das minhas
pernas.

— Me solta! – sussurrei, mesmo sabendo que ela não o faria – Você não tem... o direito!

Perdi a fala quando Letícia aproximou os lábios dos meus. Senti a sua respiração
descompassada vindo de encontro a minha. Suas mãos soltaram os meus braços.
Desceram até as minhas coxas me arrepiando os pêlos do corpo... Eram mãos macias
que ousaram passear pelo meio das minhas pernas. Senti meus olhos revirando com
aquele toque e o meu coração disparou. Nunca tinha deixado alguém ir tão longe ao
percorrer a minha pele. O máximo que Mauricio conseguiu, foi acariciar os meus
joelhos. E ganhou um tapa nas fuças para deixar de ser ousado.

Letícia me tirava o chão. Senti a cama atrás de mim. Temi que ela me deitasse nela, não
teria forças para me levantar. E, para o meu desespero, ela continuou deslizando aqueles
dedos sedosos pela parte interna das minhas coxas... Sádica, continuava estudando as
minhas expressões.

“Por que ela não me beijava?”

Seu hálito quente batia na minha boca entreaberta que involuntariamente emitia uns
sons. Não sei ao certo se eram gemidos. Eu apenas vibrava através da voz quando as
mãos dela se aproximavam do meu sexo.

“Isso era absurdo!”

Letícia ergueu o meu vestido. Fiquei envergonhada ao perceber que a minha calcinha
estava exposta. Abaixei o olhar. Com uma das mãos, ela ergueu minha face.

— Olha pra mim – disse e mergulhou dois dedos na lateral da peça íntima.

Eu devo ter ficado rubra, ela, fechou os olhos, mordeu os lábios, em seguida deslizou os
dedos superficialmente em meu sexo. Gelei de vergonha, meu corpo me traiu, pois
minha calcinha estava encharcada. Imediatamente tirei os dedos dela de dentro da
minha calcinha. Letícia reclamou. Tornou a segurar os meus braços com força e no
mesmo instante, sem que eu esperasse, senti seus lábios tomarem os meus com paixão.

Novamente a sensação de que o mundo estava acabando e nada mais existia além
daquele beijo tomou conta de mim. Eu queria empurrá-la, mas não tinha forças. Aceitei
o beijo. Aceitei também as suas mãos ágeis que me tocaram os seios por cima do tecido.
Acho que aquele som que a minha boca emitia era mesmo um gemido. Ouvi-a dizer em
meu ouvido:

— Isso, geme pra mim – dizia e tornava a capturar meus lábios com os seus.

— Me deixa sair... daqui! – tentei dizer, mas como eu temia, fui empurrada para a cama.
O demônio estava mesmo nos olhos dela, e acho que também nos meus. Minha pele
parecia que ia saltar do corpo. Eu estava em basas. Caí com as costas na cama. Letícia
ajoelhou-se depressa no chão. Tentei empurrá-la para não deixar que o pior acontecesse.

Ela não se intimidava com nenhuma tentativa de afastamento, ergueu novamente o meu
vestido, rápida arrancou minha calcinha pelas pernas. Temi aquele momento, mas
desejei tanto qualquer que fosse o contato com aquela louca.

Bruscamente, me puxou pelas nádegas, me fez apoiar os pés na beira da cama. Letícia
não dava tempo para que eu dissesse não a ela. Suas mãos vorazes afastaram as minhas
pernas. Contestei, tentei inutilmente fecha-las, mas não consegui.

Senti minha umidade escorrer, molhar a cama. O que eu estava fazendo? Não sei!
Coloquei as mãos na testa ao sentir a sua língua quente me invadindo o sexo. Sem
controle, sem pudor. Diante deste ato, eu não sentia mais vergonha de mostrar a minha
intimidade a ela.

Ouvi os seus gemidos enquanto sua língua aveludada e voraz fazia movimentos de entra
e sai dentro de mim, depois mordia de leve, e me sugava com força... Sua boca faminta
me devorava inteira. Nesse instante de prazer profundo... Ouvi batidas na porta do
quarto...

Não consegui emitir outro som que não fosse gemidos cada vez mais constantes. Era
uma loucura o que ela fazia comigo. Suas mãos me apertavam as nádegas, me puxando
para ela enquanto sua boca, língua e dentes me enlouqueciam de uma forma que eu
nunca pensei ser possível.

Outras batidas na porta... Agora acompanhadas de uma voz.

— Sou eu, Alana, sua mãe! Está acontecendo alguma coisa, filha?

Não consegui responder. O ar me faltava. Minhas pernas tremiam de uma forma


inexplicável. A respiração de Letícia ia de encontro ao meio das minhas pernas. Ela
também tremia e ofegava...

— Alana! Abre a porta, filha!

Ao mínimo sinal de que eu iria afastar sua cabeça, Letícia aumentou os movimentos que
fazia com a língua. E, dessa vez eu gritei abafando a voz com a palma da mão. As mãos
de Letícia me sacudiam. Eu podia sentir seu rosto inteiro se esfregando em mim.
Minhas coxas estavam molhadas. E, eu completamente tomada pelo momento de
luxuria. Era deveras irracional...

— Tá acontecendo alguma coisa, filha? – continuava minha mãe. Batia na porta.

Eu queria morrer por estar adorando aquele contato. Em outras circunstâncias, jamais
deixaria minha mãe naquela angústia. Mas eu não conseguia falar. Meu corpo tinha
vontade própria. Meu quadril se movimentava. Minhas mãos agarravam os cabelos dela,
puxando-os para que sua cabeça continuasse naquela posição. Era uma tortura
maravilhosa o que ela fazia comigo. Sensações desconhecidas, estranhas... Faziam o
meu coração disparar e a impressão de que eu iria desfalecer era latente.

— Filha, abre a porta!

Continuei desesperada com a impossibilidade de responder a minha mãe, e com a


certeza de que eu morreria diante daquelas sensações estranhas que faziam todo o meu
corpo se arrepiar.

Letícia intensificou os movimentos. Afastou ainda mais as minhas coxas. Pressionou


seu rosto e eu desabei... Aquele era o tormento mais deslumbrante que eu havia
experimentado na vida. Sufoquei ainda com as mãos, os gritos e gemidos que foram
produzidos por mim, involuntariamente. Senti espasmos violentos por todo o meu
corpo... como se eu fosse um liquidificador ligado. O céu parecia ter caído em minha
cabeça... Relaxei em seguida... Minhas pernas caíram pela cama como se eu não tivesse
mais forças para andar. Como se daquele momento em diante eu fosse ficar aleijada
para sempre. Letícia continuou sorvendo o meu líquido e quando me dei conta, ela
estava sobre mim.

— Minha... mãe... esta chamando... – disse com dificuldade.

— Se você atender a porta... vou ter que ir embora – disse grudando a boca na minha e
me dando um beijo muito mais molhado do que o habitual.

Senti o meu gosto em sua boca e o meu corpo se acendeu inteiro novamente. Insaciável,
Letícia explorava com as mãos os meus seios por cima do tecido. Ameaçava tirar o meu
vestido. Eu não sabia o que pensar e, nem o que fazer.

— Estou no banheiro, mãe! Está... – aumentei o tom de voz, antes que a minha voz
desaparecesse novamente – Está... tudo bem sim! Preciso dormir. Estou com dor de
cabeça.

— Quer remédio, filha? – disse a voz do outro lado da porta.

Balancei a cabeça negativamente ao notar que Letícia ria debochadamente da minha


angústia.

— Eu te dou remédio – sussurrou em meu ouvido, mordeu o meu pescoço...

— Não... não precisa, mãe! – gemi ao final da frase assim que senti os lábios dela
deslizarem pelo meu pescoço... Perdi as forças novamente, apaguei de prazer.

Capítulo 12
[15/09/10]
Nem me lembro direito o que falei para Ludmila, só sei que quando meus olhos viram
Bernardo e Alana parados na porta do celeiro, fiquei inquieta, eu queria explicar o
inexplicável. Para isso, fui atrás dela e quando a encontrei no quarto, meus pensamentos
se misturaram imediatamente. Eu queria acreditar que ela estava esperando por mim.
Me lancei a ela como quem desafia as leis da gravidade. Ela me queria, isso tava tão
claro no meu coração que chegava a gritar.

“Alana negaria suas vontades?”, pensei analisando as expressões dela. Não importava!
Eu insistiria e empataríamos naquela guerra excitante de negação e desejo.

Mas, para minha surpresa, ela estava tão entregue quanto eu. Seu corpo tão ardente e
excitado que me fazia perder a noção de quem eu era ou onde estava. Sentir o seu sabor
foi o melhor de todos os deleites que eu já experimentei na vida. Seu sexo encharcado
clamava pela minha boca desesperadamente. A fiz minha... Sorvi todo o seu líquido até
o seu corpo se entregar num gozo profundo e demorado.

Foi como mergulhar no desconhecido do prazer! Aquele momento ao lado de Alana


havia mudado para sempre todas as minhas necessidades de sexo nessa vida. Sim! A
partir daquele instante eu estava presa àquele desejo, ao àquela mulher, como nunca
estive a mulher nenhuma.

Ignoramos o fato da mãe dela estar gritando sem sossego.

“Mas que merda! A mulher não parava de berrar lá fora”.

Alana não conseguia respirar, quem dirá, dizer alguma coisa... Mas depois do gozo...

– Minha... mãe... tá chamando – disse num fio de voz. Nesse instante meus dedos
deslizaram pelas laterais do seu corpo, escalando-a devagar e deixando-a docemente
instigada.
– Se você atender a porta... vou ter que ir embora – alcancei os seus olhos verdes e
brilhantes, era quase um verde musgo naquele momento. As pupilas dilatadas, a boca
rosada me provocando. Sustentei o olhar por alguns segundos, depois mergulhei os
meus lábios molhados nos dela. Alana soltou um suspiro ao provar do seu gosto. Deixei
o meu peso sobre ela...

– Está... – aumentou o tom de voz antes que perdesse as forças – Tudo bem aqui, mãe!
Preciso dormir, estou com dor de cabeça.

Sorri achando graça da mentira deslavada que ela estava contando para a mãe...

“Que feio mentir! Deus castiga”, sorri do meu pensamento, mas continuei me
movimentando sobre ela. O jeans que eu vestia atrapalhava um pouco o atrito, mas acho
que isso não tava fazendo diferença para ela.

– Quer remédio, filha? – a mulher insistia.

“Porra! As mães são um saco, não é?”

– Eu te dou remédio – sussurrei no ouvido dela enquanto me acomodava melhor no


meio das suas pernas. Alana gemeu baixinho ao sentir o contato mais íntimo dos nossos
sexos.

–N... não precisa, mãe! – disse com a voz trêmula novamente.

Deslizei meus lábios pelo seu pescoço enquanto ela se contorcia embaixo de mim. Suas
mãos tímidas começaram a passear por baixo da minha blusa. Meu corpo pegou fogo
com o simples toque de seus dedos nas minhas costas.

Aumentei os beijos no pescoço dela. Suas unhas cravaram na minha pele. Gemi me
sentindo cada vez mais excitada. Elevei o corpo sem desgrudar meus lábios de sua pele,
só o suficiente para as minhas mãos deslizarem pelos seus seios.
Subi um pouco mais o vestido de Alana, os bicos rosados ficaram à mostra. Visualizei-
os com cobiça. A posição que ela estava me deixava febril de tesão. Lembrei dos sonhos
que eu vinha tendo... Alana sempre esteve entregue neles. Eu só não contava que na
realidade a sua entrega fosse ser tão mais intensa.

– Você me enlouquece... garota – admiti enquanto descia faminta até os bicos de seus
seios nus. Eram médios e rígidos. Passeei a língua no mamilo direito enquanto apertava
o esquerdo entre os meus dedos. Senti o seu corpo vibrar junto ao meu. Suguei-o mais
forte...

Alana demonstrava descontrole novamente. Escorreguei minhas mãos pelas suas coxas.
Nossos olhos se encontraram... e, quando ela mordeu o lábio inferior, eu gemi pra ela.
Aquele simples gesto fez a minha cabeça rodar. Dar voltas e voltas sem que eu pudesse
imaginar onde iria parar. Eu a queria... Toda, inteira, completamente minha.

– Quero entrar em você – sussurrei enquanto molhava os meus dedos no seu líquido e
me preparava para senti-la por dentro. Forcei a entrada do seu sexo, mas ela impediu o
meu gesto. Segurou o meu braço com força e... medo!

– Não pode, Letícia – disse com a voz ofegante, depois, como se tivesse despertado de
um encanto, empurrou-me sutilmente para que eu saísse de cima dela. Fiquei tão sem
ação que não hesitei ao jogar meu corpo para o outro lado da cama, deixando-a livre do
meu peso.

– Não pode... ser... com uma mulher – disse cruelmente e baixou os olhos
envergonhada.

- O que?

- Não me faça repetir... por favor!

Fiquei indignada com aquela repulsa. Estávamos tão entregues. Dava pra sentir os
nossos corações batendo no mesmo ritmo. Havia tanto desejo estampado na nossa face.
Por que ela não queria? Como teve coragem de desistir na última hora?
– Você quer... Eu sei! – ela não respondeu. Encolheu-se num canto da cama tentando
tapar o corpo nu. Isso me deixou ainda mais irritada. Claro! Pra quê se esconder depois
de ter gozado daquele jeito pra mim?

Ainda sem acreditar no que estava acontecendo, me sentei na cama de frente para ela.
Num impulso de raiva, ou sei lá o quê? Não gostava de ser rejeitada, oras! Puxei as
mãos dela e desnudei o seu corpo novamente.

“Linda! Completamente linda!”, pensei voltando a sentir na minha boca o gosto daquele
corpo que eu havia provado com intensidade.

Desci meus olhos numa exploração visual que fez as bochechas dela corarem. Suas
curvas... Sua cor... Seu suor escorrendo pela pele deixando-a brilhar como se tivessem
jogado purpurina. Ela era toda luz.

Ergui sua face novamente. A fiz encarar os meus olhos.

– Olha pra mim, eu tô falando com você! – disse brava.

Alana me encarou. Seus lindos olhos verdes exibiam culpa, remorso. Isso doeu fundo
no meu peito, porque eu não me culpava, não me escondia. Nem queria negar o desejo
que sentia há dias por ela. Abri a guarda.

– Estou sonhando com esse momento desde que cheguei aqui. Você é maravilhosa –
afaguei o seu rosto num momento de fraqueza que eu desconhecia ser capaz de ter.

– Não me toque desse jeito... – esquivou-se do meu contato, e se levantou de


sobressalto, logo esticou a mão e capturou o vestido. Colocou-o numa rapidez
impressionante – Sou noiva! Não podia ter me dado ao desfrute desse jeito. Será que
você não entende que somos diferentes. Eu não sou como você... Uma... uma...
– Lésbica? – me levantei também.

Parei de frente pra ela. Alana deu um passo para trás, aparentemente amedrontada.
Colocou as mãos na altura dos meus ombros determinando uma distância entre nós.

– Compreenda, por favor... – engoliu em seco. Estava completamente balançada com os


afagos que meus dedos faziam em suas mãos macias – Nunca... nunca... fiz isso,
entende?

– Porque você nunca encontrou alguém que deixasse a sua cabeça enlouquecida como
eu deixo.

– Pára com isso! É um erro e eu não sei como tive coragem de deixar você... você...

– Te chupar... lamber... Fazer você se abrir pra mim e gozar loucamente na minha boca?
– sussurrei descarada, tomada pelo desejo incontrolável que movia os meus atos. Num
instante de loucura, puxei-a para mim. Senti o seu corpo grudar novamente no meu e
isso me deu paz – É isso? Tem medo de falar, admitir que se sente atraída por mim?
Não adianta negar... Você não diz, mas a sua cabeça pensa, Alana!

– Pára, Letíc...

Não a deixei terminar a frase. Grudei meus lábios nos dela e a beijei sem que houvesse
repulsa da parte de Alana. Ela me queria. Se deleitava quando os nossos lábios se
tocavam.

– Tá vendo... – sussurrei com meus lábios presos nos dela – Você me quer... Me deseja
também... aposto que tá doidinha pra deitar nessa cama e abrir as pernas de novo pra
mim.

Ela me empurrou, desta vez se afastando consideravelmente.


– Você é muito vulgar! Detesto essa sua vida promiscua! – firmou o olhar. Dava pra ver
no verde de seus olhos o quanto estava brava comigo – Se deita com qualquer uma! Não
sou qualquer uma, Letícia! Vai para o seu quarto e esqueça o meu momento de
descontrole. Amanhã você se deita com uma daquelas vadias da cidade e me esquece,
está bem? – manteve o olhar firme – Me deixa em paz, pelo amor de Deus! Pára de me
provocar... Saia da minha vida! – disse e começou a chorar e se debater.

Ela queria me ferir, mas não conseguia. Quando suas mãos batiam nos meus ombros
estavam amolecidas pelo seu receio de me machucar.

– Você está doida, mulher! – tentei segurar seus braços novamente, ela não deixou –
Tudo bem – disse mais maleável - Calma, tá tudo bem – repeti.

Ela parou de se debater. Só a sua respiração estava ofegante agora.

– Vou pro meu quarto, mas... amanhã, quando todos dormirem... – sorri pelo cantinho
da boca. – Vou bater aqui – apontei – na sua porta, pra te chupar mais... Muito mais... –
sorri descaradamente.

Ela ficou sem ação com as minhas palavras.

“Por hoje chega!”, pensei.

Dei as costas e caminhei lentamente até a porta. Antes de sair:

– Pensa com carinho... Se você é mesmo virgem, vou ser muito cuidadosa – disse
irônica e fechei a porta atrás de mim.

Ouvi quando algo bateu na madeira se estilhaçando como se ela tivesse arremessado um
jarro de vidro na minha direção.
“Quem ela pensava que era? Virgem uma ova! Tava fazendo tipinho pra se valorizar.
Duvido que aquele peão maldito não tinha ido alem dos beijos e abraços com ela. Uma
mulher como aquela enlouquece qualquer um”, pensei.

Balancei a cabeça negativamente e caminhei para o meu quarto, em frente ao dela.


Antes de abrir a porta, tive a sensação de estar sendo observada. Olhei para os dois
lados do corredor. Não ouvi nenhum barulho e nem sinal de que alguém estivesse ali.
Dei de ombros e entrei.

Me joguei na cama sentindo o cheiro do corpo de Alana impregnado em mim. Sorri ao


lembrar das expressões dela. Daqueles olhos verdes me olhando como se o mundo fosse
acabar no instante em que a minha língua começou a deslizar no seu sexo.

Ela me fez gozar só por devorá-la. Era um desejo incrível!

Meu corpo não foi tocado nem uma veizinha, mas o prazer que eu senti foi inexplicável.
A menina era mesmo um sonho...

Olhei o calendário na parede. Faltava pouco para eu ir embora. Fixei o olhar no teto.
Não queria ir embora, não antes de comer inteira aquela virgenzinha.

Sorri por achar graça do meu pensamento machista e cafajeste. Eu não a amava, mas era
um cobiça tão estranha que pulsava dentro de mim. Meu coração disparava de uma
maneira impressionante quando eu estava perto dela. Virei de lado, ajeitei o travesseiro
e tentei dormir.

Acordei cedo. Tomei um banho e desci antes de todos. Sabia que às sete da manhã era
servido o café. Fui a primeira a sentar à mesa. Quando meu pai desceu, fez aquela cara
patética de feliz. Beijou a minha testa e logo ouvimos barulhos nas escadas.

Eric e Bernardo estavam conversando animadamente. Os dois pararam de conversar


quando me viram sentada. Clara chegou em seguida e sentou-se ao lado do meu pai.
Sorriu pra mim. Quase perguntei se eu estava usando nariz de palhaço. Credo! Descer
para o café da manhã causava tanto espanto assim naquela gente?

Ouvi novos passos nas escadas. Inclinei meu corpo inteiro para olhar. Era Alana. A
menina desviou o olhar assim que me viu. Acho que seu desconforto foi sentido por
todos. Ela dava tanta bandeira. Típico dessas meninas caipiras mesmo.

– Está melhor, filha? – perguntou Clara assim que a garota sentou-se de frente pra mim.
Sorri por entre os dentes antes de ouvir a resposta dela.

– Estou melhor, mãe! Foi... só uma dor de cabeça, acho que ela nunca mais vai voltar –
disse e me encarou discretamente.

– Você tem trabalhado muito, Alana – falou meu pai enquanto se servia do café – Hoje
quem vai buscar remédios na cidade é você, Letícia.

– Eu? – quebrei o olhar assim que ouvi meu pai pronunciar o meu nome.

– Todos aqui temos tarefas. Hoje você vai pegar a caminhonete. Irá à cidade e trará tudo
o que está faltando na fazenda.

– Não precisa, pai! – interveio Alana – Eu quem sempre faço isso. É meu trabalho!

– Eu vou! – encarei-a desafiadoramente – Finalmente vou dirigir aquela geringonça... E


com a autorização do papai – quase gargalhei na cara insatisfeita a minha frente. Ela
estava possessa de raiva.

– Eric irá com você, filha. Ele conhece todos os estabelecimentos e te ensinará o que for
preciso.
– Legal! – ouvi Eric dizer num impulso, logo o moleque se calou. Também, depois do
olhar desaprovador que Alana lhe lançou.

Sorri mais ainda da cara dela.

– Prometo... fazer um trabalho tão bom quanto o da Alana, pai – disse com desdém.

– Tenho certeza que não me desapontará – disse animado – E a festa de ontem? Gostou,
Letícia? Notei que você desceu do quarto. Isso me deixou muito feliz.

– Adorei... foi tão... gostosa! – disse quase num sussurro olhando para Alana, que
abaixou a cabeça imediatamente.

– Festa gostosa? Por que vocês cariocas sempre chamam tudo de gostoso? – quis saber
Eric.

– Nem tudo é gostoso, cara! – continuei olhando na direção dela – Mas a festa de
ontem... tava gostosa demais! – pisquei pra ela, que desconcertada mexeu nos cabelos,
esfregou as mãos... quase derramou o café.

Eric riu da minha explicação. Bernardo o acompanhou. Alana pediu licença e saiu da
mesa.

– Você nem tomou café, filha! – reclamou Clara.

Meu pai me olhou com aquela cara de quem pergunta se eu sabia de alguma coisa. Dei
de ombros, e ele coçou os vestígios de barba branca que já davam sinais em seu rosto.
– Acho que a dor de cabeça dela voltou! – resmunguei enquanto cortava uma fatia de
bolo e colocava no prato – Bem... Come logo, Eric! Temos muito que fazer na cidade –
esbocei um sorriso ao final da frase, ele entendeu, pois sorriu de volta.

Estávamos colocando alguns caixotes na carroceria da caminhonete. Eric fazia questão


de amarrar sozinho as caixas de madeira, que eram pesadas. Eu fiquei só orientando
para que a corda não ficasse frouxa, pois traríamos remédios de uso veterinário, não
podíamos correr o risco de quebrar nada.

Ao fundo, sentada nas escadarias da frente da casa estava Alana, que nos observava de
longe. O dia estava quente e ela usava um vestido leve, num tom de laranja, que
realçava a cor da sua pele. Nem preciso dizer que a garota estava linda, não é? O que ela
estaria pensando naquele momento? Acompanhei-a com o olhar... Um caixote caiu
dispersando a minha atenção, quando voltei a admirar Alana, a vi se levantar com a
chegada da figura de um homem de chapéu que parou perto das escadarias. Ele estava a
cavalo. Desceu da montaria, amarrou o bicho em um pé de Jamelão, ao lado da casa.
Subiu correndo os degraus e estendeu as mãos para que ela se aproximasse. No minuto
seguinte, o nojento a abraçou. Era o seu noivo.

Eu não podia ir lá e quebrar a cara dele como queria. Continuei olhando-os. Até que o
carinha segurou a face dela e deu um beijo na sua boca. Queimei por dentro. Aqueles
lábios que eu degustei na noite passada me pertenciam. Joguei uma corda para trás. Eric
reclamou por ela ter caído em cima dele. Ignorei o comentário. Depois Bernardo parou
na minha frente puxando a minha camisa.

– O que foi, moleque? – disse ríspida sem desviar os olhos de onde Alana e Mauricio
estavam.

“Virgem? Se agarrando daquele jeito? Duvido!”

– Deixa eu ir com vocês! – perguntou.

– Não! – disse sem piscar.


– Por que olha tanto pra lá? Não gosta do Mauricio? – questionou o menino.

Voltei para a minha realidade assim que Bê falou o nome daquele palhaço do noivo da
Alana.

– Não me importo com ele – respondi seca.

– Não vou muito com a cara dele, mas Alana escolheu o Mauricio para casar. Não acho
que ele vai ser um bom pai. Vive me mandando ir embora da sala quando eles estão
namorando. Acho que não gosta de crianças.

– E... você sabe quando eles vão... casar? – perguntei com nó na garganta.

– Acho que no Natal.

– Natal? – repeti assustada pela proximidade da data.

– Você tá bem, Lê? – perguntou o moleque.

– Cla... ro! – falei num fio de voz.

– Terminei! – Eric pulou da carroceria – Vamos? Estou doido pra tomar um chope na
cidade.

– Beleza, cara! – afastei Bernardo do veículo – Fica quieto em casa, garoto. Hoje não
temos hora pra voltar – disse ainda olhando os dois noivos se beijando nas escadarias da
casa.
– Vê se vocês dois não vão aprontar na cidade! – gritou enquanto eu arrancava com a
caminhonete.

Senti minha face ficar roxa de raiva por vê-la aos beijos com aquele cangaceiro, ou
caubói, roceiro... Sei lá o que ele era, viu? Só sei que eu precisava me desligar um
pouco daquela mulher!

Capítulo 13
[19/09/10]

O café da manhã foi insuportável. Eu me descontrolei e acabei saindo da mesa,


deixando todos preocupados. Tanto que Iracema foi até o meu quarto levando algo para
que eu comesse. Não consegui. Eu só chorava.

Ao contrário da minha mãe Iracema não me perguntou nada, apenas deitou minha
cabeça em seu colo e me deixou chorar. Depois de alguns minutos levantei e lavei o
rosto no banheiro tentando melhorar a minha aparência. Desci ainda na companhia de
Iracema. Quando chegamos à sala ela foi para a cozinha e eu me sentei na escada da
varanda.

De longe vi Letícia e Eric preparando a caminhonete para irem à cidade. Ao olhar para
ela, eu sentia o meu peito gritar palavras desconexas, e o meu corpo ficava em brasas.
Lembrei-me dos beijos que trocamos, das carícias ousadas que ela fez em minha pele.
Pressionei as pernas sentindo-me completamente tomada por uma força estranha, o
desejo.

Continuei olhando-a, buscando algo que explicasse aquela eclosão de sentimentos que
eu nunca havia experimentado antes. Eu não era como Letícia. Lésbica? Não! Como
alguém poderia se descobrir lésbica aos vinte e cinco anos de idade?

Nunca havia desejado uma mulher, apesar de nunca ter desejado os homens. Achava
algumas amigas do colégio e da faculdade bonitas, os meninos nem tanto. Mas daí a ser
lésbica por isso, ah. Não! Desde quando admiração tinha a ver com desejo?
Coloquei as mãos na face, desconsolada. Mauricio era forte, bonito, atraente aos olhos
das moças que sempre me diziam que eu tinha sorte por tê-lo como noivo. Letícia era
delicada, seu beijo era suave, da mesma forma que suas mãos... Fechei os olhos por uns
segundos e consegui me transportar para dentro do meu quarto, na noite fatídica em que
eu não consegui resistir às tentações da carne.

As mãos dela tocaram o meu corpo como se eu tivesse sendo tocada por uma pétala de
rosa. Já Mauricio, deslizava as mãos ásperas pelos meus ombros me fazendo esquivar
consideravelmente do seu contato.

Os lábios de Letícia tinham gosto de hortelã; sua boca era macia e a pele de seu rosto
tão fina, que quando tocava a minha, parecia fazer-me carinho. Os lábios de Mauricio
eram rijos, seu hálito tinha gosto de cigarro. Seu rosto áspero pela barba sempre por
fazer, arranhava-me quando nossos beijos se tornavam ardentes.

A menina exibia um cheiro suave e fresco, um perfume agradável que me embebedava


da doce vontade de sentir o aroma que exalava da sua pele. Meu noivo tinha cheiro de
trabalho. Mesmo depois que tomava banho e espalhava loção de barbear pela face,
ainda assim expelia um cheiro forte, que nunca havia me atraído como o cheiro suave de
Letícia.

Não! Balancei a cabeça numa negação sofrida. Não podia achar que aquela menina era
melhor do que o meu noivo. Mauricio era trabalhador, temente a Deus, fiel, honesto,
tinha bom caráter. Letícia era o caminho da luxúria, pecava por gostar de pecar, não
tinha escrúpulos, era egoísta, nunca pensava nos outros, era péssima filha... Um
exemplo a ser extinto da face da terra.

Levantei-me num salto quando me dei conta de que Mauricio havia amarrado seu
cavalo em uma árvore que ficava ao lado da casa. Busquei o seu sorriso quando ele se
aproximou de mim. Aquilo era um sinal, só podia! Eu ali cheia de dúvidas, e ele
aparecia em um horário que seria pouco provável para uma visita devido ao seu trabalho
na fazenda vizinha.

– O que faz aqui? – perguntei tentando retribuir a felicidade que ele exibia nos olhos ao
me ver. Sorri forçadamente.
– Fugi um pouco do trabalho... – puxou-me pela cintura. Deixei ser agarrada por ele –
Precisava te ver, minha Flor – disse, buscando meus lábios numa saudade que não era
recíproca.

Permiti ser conduzida naquele beijo que minha boca clamava para que terminasse logo.
Diante desse pensamento que me enlouquecia, abracei-o com mais força, roçando meu
corpo no dele, sentindo meus seios esmagados em contato com o peito de Mauricio, que
apoiou as costas na pilastra da varanda para me acomodar em seus braços.

Pousei minha língua dentro de sua boca com urgência, queria sentir aquele calor que os
beijos de Letícia haviam provocado... Era aquilo que buscava nele.

Abri os olhos quando terminei de beijá-lo, e a primeira coisa que fiz foi olhar na direção
da caminhonete que passava pela porteira em direção à cidade. Suspirei, e voltando a
falar do beijo... Foi tão... tão... frio, sem paixão, sem aquele fogo queimando os meus
pés e subindo até o meu último fio de cabelo.

– Que beijo delicioso, Flor – disse ele animado, interrompendo os meus pensamentos –
Vou fugir mais vezes do trabalho para vir te ver.

Sorri pelo cantinho da boca.

– Quer tomar um café?

– Iracema tá na cozinha? – quis saber desconfiado.

– Tem que parar com essa implicância, Mauricio. Iracema é como uma mãe pra mim.
Quero que ela abençoe o nosso casamento – disse desanimada ao lembrar-me que já
havíamos marcado a data e que os papéis já estavam correndo no cartório.
– Não vejo a hora de nos casarmos, sabia? – abraçou-me ainda mais animado.

Empurrei-o sutilmente, saindo do seu contato.

– Estamos falando de Iracema, seu espertinho. Não mude de assunto – ele suspirou
como quem estava impaciente.

– Não sei por que ela não gosta de mim, Alana. Sempre a tratei como uma mãe, mas a
mulher implica o tempo inteiro.

– Vamos até a cozinha, você toma um café e conversa um pouco com ela. Temos que
removê-la dessa antipatia, Mauricio.

– Isso é uma condição para que você se case comigo? – segurou minha mão enquanto
entrávamos em casa.

“Minha condição é sentir aquele calor dentro de mim, como Letícia me faz sentir”,
pensei.

– Não, mas quero muito que vocês se entendam – disse ao invés.

Assim que chegamos à cozinha, Iracema olhou Mauricio parado na porta.

– Já tirei a mesa do café – disse irritada.

– Pare de implicar com o meu noivo, mãe! – passei por ela puxando Mauricio pelas
mãos e dei um beijo no rosto de Iracema. Ela torceu o nariz. – Pode deixar que eu sirvo
um café pra ele.
– Vou na horta pegar uma verdura fresca.

– Mas... – achei estranho ela não ter pedido ao Bernardo que apanhasse as verduras para
ela. Iracema saiu sem ao menos me deixar argumentar – Que coisa, hein?

– Ela me detesta, Flor! – sentou-se à mesa esperando que eu servisse o café.

Fiquei meditando sobre as palavras de Mauricio. Não fazia sentido toda aquela
implicância. Desde que o apresentara como namorado, Iracema havia se mostrado
contra a nossa união.

***

Depois que Mauricio voltou para a fazenda vizinha, peguei um livro para ler na sala.
Não consegui me concentrar na leitura. Na verdade, a noite que passei com Letícia não
saia da minha cabeça. Sem contar a ansiedade por vê-la entrar por aquela porta falando
alto e fazendo algazarra com Eric. Essa ansiedade doentia me fazia olhar de cinco em
cinco minutos o relógio preso na parede. Cochilei com o livro sobre a minha barriga.
Acordei ainda sonolenta com o barulho de passos que pareciam andar de um lado para o
outro na sala. Abri os olhos e vi meu pai com o telefone nas mãos discando um número.

– Aconteceu alguma coisa, pai? – ajeitei-me no sofá.

– Sim. Já é noite, Alana, e aqueles dois ainda não voltaram da cidade – ergueu o punho
deixando o telefone em evidência – Estou tentando ligar, mas o seu irmão não atende o
celular. Estou preocupado.

Olhei através da janela. Realmente já havia anoitecido. Fiquei de pé, o livro que eu lia
anteriormente caindo no sofá, não fiz nenhuma menção de pegá-lo. Eu estava
consumida num misto de preocupação e culpa. Era eu quem devia ter ido à cidade com
Eric, Letícia não estava acostumada com a estrada mal iluminada e esburacada. Se
acontecesse alguma coisa com eles... Meu Deus! Não me perdoaria nunca!
– Vamos até a cidade, pai! – sugeri num impulso.

Bernardo desceu as escadas com minha mãe segurando a sua mão.

– Pedro, Bernardo me disse que Letícia e Eric pretendiam ficar mais tempo na cidade
hoje.

– Sim, Clara! Mas já passam das nove da noite, e eles saíram por volta das dez da
manhã. Estou preocupado e irei com Alana até a cidade para tentar localizá-los.

– Quer que eu vá com vocês?

– Não precisa, mãe. Iremos papai e eu. Fica com o Bernardo, e se por acaso aqueles dois
aparecerem nos ligue – disse, meu pai balançou a cabeça concordando com o que eu
havia dito.

– Está certo, mas dêem notícias. Estarei ao lado do telefone...

– Pode deixar – dissemos juntos assim que batemos a porta.

Estávamos aflitos, e dentro do jipe que Eric costumava competir nas corridas de fim de
ano, aceleramos ao máximo. Fomos quietos por todo o caminho. Apreensivos, tentando
imaginar prováveis lugares que aqueles dois podiam estar.

Tive medo de pensar que Letícia pudesse ter enfiado Eric novamente naquele antro de
perdição onde a encontrei aos beijos com aquela mulherzinha de cabaré. Senti asco ao
cogitar essa hipótese.
Assim que chegamos à cidade passamos devagar pela rua principal. Queríamos localizar
a caminhonete vermelha que eles haviam saído de casa. Para a nossa sorte e alegria o
veículo estava estacionado em frente da padaria.

Sorri ao ver que eles não estariam no inferninho da cidade. Supus que haviam perdido a
hora, pois Eric se reunia de vez em quando com um grupinho de amigos em torneios de
cartas que aconteciam em umas mesas que havia dentro da padaria do seu José. Meu
peito deu sinais de alívio.

Estacionamos ao lado do carro e descemos mais despreocupados. Se eles estavam


mesmo jogando carteado, isso justificava a perda do horário. Sorri aliviada enquanto
fitava meu pai, que retribuiu o sorriso, nitidamente também mais calmo. Assim que
fomos nos aproximando do estabelecimento, notamos que um senhor de cabelos
grisalhos se preparava para fechar a porta de ferro da padaria. Corri na direção dele.

– Boa noite, seu José.

– Boa noite, menina – sorriu, para depois cumprimentar meu pai, que vinha logo atrás
de mim, com um aperto de mão – Como vai o amigo?

– Vou bem, e o senhor? – devolveu meu pai.

– Tirando a velhice que me deixa cansado, estou como um garoto de vinte anos – sorriu
animado – Estão procurando as crianças?

– Eles ficaram para o carteado, não é? – disse com o coração aos pulos.

Seu José balançou a cabeça no sentido negativo, e isso me deixou deveras ansiosa e
temerosa.

– O menino Eric e a mocinha dos olhos azuis estão perdidos desde cedo, lá! – apontou
para o lugar onde eu temia que eles estivessem.
Letícia não tinha jeito mesmo. Ela era movida pela perversão, maldade, crueldade...
Sim! Ela era má por ter invadido a minha vida daquela forma, cruel por só pensar em si
mesma e estar corrompendo um menino bom como o Eric.

Tranquei a cara. Meu pai fez o mesmo, vi seu semblante se transformar de preocupado
para furioso. Ele nem se despediu do seu José. Atravessou a rua em direção ao
“inferninho”... Passos largos, apreçados. O segui.

– Não quero que entre aqui, Alana – disse ele assim que paramos de frente ao local.

– Claro que eu vou entrar! – respondi num impulso, meu pai fitou-me como se não
compreendesse o meu interesse. – Eric... é meu irmão... me preocupo com ele, pai –
baixei a cabeça envergonhada pela mentira.

Na verdade eu queria surpreender mais uma vez Letícia com aquela mulherzinha vulgar,
para quem sabe me convencer de uma vez por todas que a noite passada havia sido um
erro, sim, porque, por mais que eu tivesse certeza que aquilo era pecado, coisa do
demônio para nos tirar do caminho do bem... no meu íntimo, eu não conseguia sentir a
purificação do arrependimento, e isso me martirizava absolutamente.

– Tudo bem, entendo.

Abrimos a porta. Meu pai entrou na frente. O lugar estava repleto de gente, a maioria
homens. Todos bêbados, caindo pelas tabelas como dizíamos por ali. A música incitava-
os, da mesma forma que as mulheres ao se esfregarem nos peões que gritavam como
porcos selvagens a simples aproximação delas. O cheiro de cigarros também era
fortíssimo.

Andamos mais alguns metros e enfim os encontramos. Para minha surpresa e decepção.
Surpresa... por ver Eric agarrando a tal de Ludmila num canto. A moça estava sentada
no colo dele colocando um charuto em sua boca, e ele tossindo feito um louco pela falta
de jeito com o fumo. Decepcionada... porque Letícia conversava animadamente com o
homem do bar em vez de estar aos beijos com alguma mulher e me fazer acreditar, mais
uma vez, que era uma loucura estar apaixonada por ela. Minha cabeça estava tão
confusa. O tal homem naquele exato momento servia a ela uma caneca de chope.
Paramos ao lado deles... Eric tomou um susto tão grande ao ver meu pai, que se
levantou depressa, quase derrubando a moça do seu colo. O charuto deslizou por sua
roupa, por pouco não provocou queimaduras.

Letícia continuou fazendo a mesma coisa. Acompanhei o seu gesto de erguer a caneca
de chope do balcão e levar até a boca. Tomou dois goles, depois tornou a apoiar o
objeto no balcão. Inclinou o corpo para o lado ficando de frente para mim... Seus olhos
azuis, ora meio fechados, ora meio abertos, tentavam me encarar. Ela sorriu. Um sorriso
que me enganaria se eu não a conhecesse. Ela conseguiu, não sei como, me lançar um
sorriso quase ingênuo. Uma felicidade estranha estava depositada em sua face.

Franzi o cenho. Ergui uma sobrancelha quando ela tentou se levantar e caiu em cima de
um rapaz que estava ao seu lado.

– Desculpa, aê, cara! – foi o que ela disse.

Meu pai avançou para cima dos dois. Eric se encolheu num canto e Letícia o encarou.

– Tudo certinho, pai? – balançou a mão no ar em sinal de que estava bem.

– Sua irresponsável, o que pensa que está fazendo? – segurou-a pelo braço.

Senti dó quando percebi que a mão do papai a estava machucando.

– Te dou uma responsabilidade e você retribui desta maneira? Enchendo a cara com
esse imbecil do Eric?

– A gente já tava voltando pra casa! – ela disse firme embora sua fala estivesse
comprometida pela bebida – Tá me machucando o braço, sabia?
– Estou com vontade de te dar a surra que eu nunca te dei, menina! Como tem coragem
de nos deixar preocupados desse jeito? Quer destruir a sua vida? Beber até morrer, é
isso? É o que te deixa feliz? – balançou-a – Responde!

– Você nem sabe o que me deixa feliz, não é? – indagou ríspida. A música parou e as
pessoas ao nosso redor começaram a prestar atenção na discussão.

– Eu sei que a sua mãe não te agüenta mais, e eu também não, Letícia! – ele disse sem
pensar.

– Pai... – me meti na discussão imediatamente. Segurei as mãos dele, para que largasse
o braço dela. Os dois não diziam mais nada, só se encaravam num duelo de mágoa,
rancor e medo. Ambos tinham os olhos cheios de lágrimas – Solta... por favor!– insisti.
Ele pareceu cair em si. Largou o braço de Letícia e ela saiu porta afora. Meu coração se
comprimiu no peito.

– Vamos conversar em casa, mocinho – disse para um Eric que se borrava nas calças
com medo do olhar severo do Senhor Pedro – Vai atrás dela, Alana! Vou levar esse
rapazinho para casa – deu as ordens e levou Eric pelas orelhas para fora do inferninho.

Não pensei duas vezes. As palavras do meu pai só me incentivaram a fazer o que eu o
meu coração pedia. Saí correndo pela rua à procura de Letícia. A encontrei encostada a
uma árvore, com a cabeça inclinada para baixo... vomitando. Passei minhas mãos pelos
seus ombros. Ela me olhou com aqueles olhos azuis molhados. Quase li neles que ela
pedia socorro. Mas do que eu podia socorrê-la?

Senti meu peito se comprimir mais. Muito mais do que eu podia suportar. Eu era
impotente diante de suas dores. Acabei derramando algumas lágrimas também. Ver
Letícia chorar naquele momento me fez sentir a dor dela como se fosse minha.

– Vem, vamos para casa... eu te levo – abracei-a mais forte e caminhamos em direção à
caminhonete vermelha.
Capítulo 14
[22/09/10]

A princípio Letícia parecia desprotegida. Ela agarrou-se ao meu ombro como uma
criança que pede colo. Senti o seu hálito quente no meu pescoço. Peguei as chaves da
caminhonete no bolso da claça dela.

– Entra, Lê – abri a porta.

– Como você me chamou? – indagou com aquele sorriso malicioso despontando dos
lábios.

– De Letícia, oras!

Ela apoiou as costas na lataria do veículo e segurou meu rosto entre as mãos.

– Não! Você me chamou de Lê – sorriu copiosamente – Só os meus amigos me chamam


de Lê... olha, eu adorei, foi tão... doce.

Apoiei minhas mãos nas dela, acariciei de leve enquanto as tirava da minha face.

– Pára de bobagens, Letícia! Entra no carro, precisamos ir embora – olhei para o local
onde o jipe em que eu havia vindo estava estacionado anteriormente – Nosso pai já foi
embora levando o Eric – balancei a cabeça negativamente – Coitado do meu irmão.

– Seu irmão é um medroso, sabia? – cruzou os braços nitidamente indicando que não
iria entrar no carro – Não quero voltar praquela casa – concluiu com a voz pastosa.
Dava para sentir de longe o cheiro de bebida que exalava da sua boca.

– Já está tarde, precisamos voltar para fazenda.

– Você não entendeu, né garota? Não ouviu o que aquele besta do meu pai me disse?
Ele não me quer lá.

– Não complique as coisas, Letícia! Vocês estavam de cabeça quente, e ele estava muito
preocupado contigo, sua ingrata! – irritei-me.

– Ele não se importa, Alana. Só estava preocupado porque o Eric veio comigo – disse
com mágoa no olhar.

Segurei firme nos seus braços deixando esvair a pouca paciência que eu tinha.
– Deixa esse ciúme bobo de lado. Seu pai e sua mãe te amam – despejei de uma só vez.
– Tira da sua cabecinha esse negócio de que o senhor Pedro abandonou sua mãe e te
substituiu por nós. Isso não é verdade!

– Sua mãe é a culpada!

– Chega! – disse furiosa por saber aonde pararia aquela conversa caso continuássemos.
– Não quero brigar com você! Entra no carro, agora! – empurrei-a, e nesse instante eu
tropecei e cai com meu corpo colado ao dela. Desequilibramo-nos em seguida, e a
menina deslizou pela porta aberta do veículo deitando-se no banco do carona. Cai por
cima dela. Tentei levantar, mas ela não parava de rir e me puxar para que eu entrasse
cada vez mais dentro do carro – Pára com isso! – juntei as forças e levantei. Ajeitei a
blusa que Letícia havia desalinhado na tentativa de me aprisionar em seus braços –
Tudo é motivo para você se aproveitar!

– Fica aqui comigo, numa boa, só um pouquinho, Alana! – choramingou balançando as


pernas fora da caminhonete.

Senti vontade de rir ao vê-la daquele jeito. Parecia tão inofensiva, era quase angelical
aquela cena. Puxei-a pelas mãos, fazendo com que a menina sentasse no banco. Ergui a
camisa dela. Letícia me encarou com aqueles olhos azuis arregalados. Aproximei meu
rosto do dela.

– Entra a.g.o.r.a dentro dessa merda de carro, ouviu bem? – disse firme.

– E o que eu ganho se te obedecer? – aproximou seus lábios dos meus. Senti minha
boca desejando a dela – Posso escolher? – sussurrou tentando me seduzir.

Pensei por uns instantes antes de responder... Senti prazer por ela estar me olhando
como quem olha um pedaço de carne. Não sei por que, mas isso me envaideceu
profundamente. Letícia fazia com que eu me sentisse mulher.

– Você ganha a minha promessa de te levar em segurança para casa ao invés de jogá-la
no primeiro barranco que eu vir pela frente – sorri ao final da frase.

Molhei os lábios instintivamente para provocá-la, e fiquei feliz ao perceber que o seu
olhar acompanhou o meu gesto, logo soltei a camisa que estava presa em meus dedos e
empurrei-a para dentro do carro. Ela ficou visivelmente perturbada e isso evitou
resistência. Sabia que se continuássemos tão próximas eu perderia totalmente a cabeça.
Dei a volta no carro, entrei...

– Legal! Eu adorei a sua solidariedade com os bêbados indefesos, sabia? – sorriu – Me


jogar num barranco foi demais! Não dá essa idéia pros meus pais não, tá? Eles são
capazes de gostar, viu?

Sorri enquanto ligava o motor...

Trocamos olhares no começo do caminho de volta para casa. Letícia sorria


maliciosamente enquanto fingia estar desequilibrada e buscava a todo instante tocar em
mim. Foi uma tortura deliciosa sentir a pele dela roçar na minha. Isso não durou muito
tempo, o álcool a fez cochilar em meu ombro. Senti uma paz tão grande ao vê-la
adormecer tão docemente nos meus braços que não tive coragem de empurrá-la para o
outro lado. Meu cuidado era tanto que eu tentava mudar as marchas com máxima
suavidade para não acordá-la. De vez em quando ela se mexia, e eu a olhava para que
não caísse em direção a sua porta e batesse com a cabeça. Num determinado momento,
Letícia entreabriu as pernas e esse gesto chamou minha atenção. Tanto que suavemente
deslizei as mãos por sua virilha. Era curiosidade... pura curiosidade...

“Meu Deus, o que estou fazendo?”, pensei, e em resposta a isso, a ela se mexeu, tirando
a cabeça do meu ombro e apoiando no vidro de sua janela.

Suspirei aliviada, ao menos a menina não percebeu o que eu estava pretendendo fazer.
Retirei a mão do corpo dela e contive os meus impulsos.

Chegamos em casa e Augusto me ajudou a levar Letícia do carro para a sala. Ela
sentou-se no sofá completamente sonolenta. Iracema, que já havia visto o estado em que
Eric chegou, veio correndo com uma xícara de café amargo nas mãos. Dei à Letícia
imediatamente. Em seguida ao primeiro gole ela cuspiu no chão.

– Essa merda tá horrível! – disse alterada enquanto empurrava a minha mão, afastando o
café – Não vou tomar! Tira essa porcaria daqui! Anda!

– Vai tomar, sim! – fiz um gesto para que Augusto me ajudasse e ele segurou os braços
de Letícia, que esperneava como um bebê – Engole, garota! – enfiei o líquido em sua
boca, e era engraçado vê-la se engasgar quando tentava protestar. Sua teimosia em
tentar falar a fez tomar boa parte do café. Meu pai estava na porta da sala nos olhando
guerrear com sua filha rebelde e embriagada.

– O que deu nessas crianças, hein, compadre? – perguntou Augusto assustado com o
estado em que os dois inconseqüentes chegaram à fazenda.

Meu pai apenas fez o gesto desconsolado de balançar a cabeça negativamente.

– Leva ela pro quarto e dá um banho gelado nessa menina, Alana! – disse ele vindo na
nossa direção de braços cruzados. Letícia o encarou – Não dá pra conversar contigo
nesse estado, filha – tentou fazer carinho na face dela, mas a garota estava esguia.

– Quem disse que eu quero conversar? Quero beber mais! – retrucou e danou-se a rir.

Ignoramos o seu comentário.

– Eu... eu.... – gaguejei imaginando o que falar para fugir da árdua tarefa de ter que
entrar no quarto de Letícia, e o que era pior, dar banho nela – Cadê o Eric? – foi o que
consegui dizer.

– Dei café amargo a ele e depois o joguei na água fria, está dormindo agora. Amanhã
vou conversar com aquele moço também.

– Bom...
– Vamos, Alana! – disse puxando Letícia pelos braços e a levantando do sofá.

A menina estava tagarelando coisas sem sentido, depois sorria sem que pudéssemos
entender o motivo. Eu estava tensa. Subi as escadas tentando programar a minha mente
para o autocontrole diante da situação. Seria terminantemente proibido ceder a ela
naquele momento, mesmo porque Letícia estava embriagada, e se caso acontecesse algo
entre nós, isso feriria completamente o meu brio.

“A quem eu queria enganar?”

Minhas pernas tremeram quando paramos de frente ao quarto dela.

Meu pai entrou arrastando Letícia. Fui logo em seguida. Ele a levou até o banheiro.
Colocou-a sentada na privada. Ela ainda sorria como uma criança. Senti as mãos de o
meu pai tocarem o meu ombro.

– Obrigado, filha – disse aliviado, eu era toda apreensão – Sei que você irá cuidar bem
dela.

– Ok. – foi só o que consegui dizer.

Saí do banheiro para acompanhá-lo até a porta. Queria evitar vê-la daquele jeito, nua...
completamente nua...

“Vamos, Alana! Controla-se... Você só tem que dar um banho nela, depois secá-la...”,
senti meu corpo reagir com aquele pensamento. “Vesti-la... deitá-la na cama e... e... ir
embora!”, pensei retornando até a porta do banheiro.

Letícia me encarou com aqueles olhos azuis perdidos. Mordi os lábios ao encará-la de
volta.

– Tira a minha roupa – disse, pegando-me totalmente de surpresa.

– O quê? – demonstrei naquela pergunta todo o meu pavor pela situação.

Ela riu. Um sorriso safado, daqueles que nos despe até a alma.

– Se vai me dar banho, tem que tirar a minha roupa, oras! – sussurrou e tentou se
levantar. Desequilibrada teve que segurar na parede.

Liguei o chuveiro enquanto tentava programar o meu cérebro para não deixar a minha
calcinha molhar naquele momento. Senti as mãos dela tocarem as minhas costas. Dei
um pulo como se tivesse tomado um susto, ela levantou a mão como quem diz:
desculpa!

– Não consegue se despir? – perguntei ingênua.

Letícia parou na minha frente. Ergueu os braços, junto com eles a sua blusa foi saindo
lentamente. Minha face começou a esquentar. Provavelmente minhas bochechas
estavam da cor de um pimentão. Como em câmera lenta ela tirou a blusa. Seus seios
ficaram diante dos meus olhos e para a minha máxima vergonha, eu não conseguia
desviar o olhar. Eram lindos... médios... rijos... tinham os bicos salientes e rosados.
Senti uma vontade quase incontrolável de pôr a boca neles. Balancei a cabeça
negativamente para tentar sair daquele estágio de loucura que eu me encontrava.

– Tira a calça pra mim? – ela sussurrou enquanto nitidamente analisava as minhas
expressões. – Não consigo olhar para baixo – justificou o pedido.

– Tiro – disse quase sem conseguir respirar.

Aproximei-me dela. Puxei o seu cinto, seu corpo veio junto. Seus seios rosados tocaram
a minha blusa. Estremeci de desejo. Engoli em seco e tentei não perder a cabeça, ou
melhor, a compostura. Isso só podia ser um pesadelo. Desde quando uma mulher, que
tem tudo o que eu tenho, podia me deixar naquele estado?

Desabotoei a calça. Desci o zíper devagar. Ela me encarava exibindo um sorrisinho


safado, eu séria, a encarava também.

Deslizei o jeans pela sua pele. Abaixei-me lentamente enquanto o tecido escorregava
pelas suas pernas. Visualizei a calcinha azul, da cor dos olhos dela. Suas tirinhas finas
nas laterais deixavam ainda mais expostas as curvas abaixo de sua cintura.

Senti um cheiro delicioso de hidratante subindo pelas minhas narinas enquanto a despia.
Letícia ergueu uma perna, depois ergueu a outra e chutou a calça para o lado. Escalei
seu corpo sem conseguir tirar as minhas mãos de sua pele, o incrível era ver os seus
pêlos se arrepiando pelo caminho.

– Faltou a calcinha – olhou-me irônica, tendo a certeza de que eu estava completamente


dominada por ela – Tira pra mim – continuou a tortura.

Não hesitei. Inclinei o corpo, minhas mãos deslizaram pelas alcinhas finas. Escorreguei-
as devagar até vir o seu sexo completamente nu. Abafei um gemido. Olhei a minúscula
peça em minhas mãos e notei que ela estava completamente molhada. A minha deveria
estar do mesmo jeito. “Eu não podia ceder”, pensei, e num impulso troquei de posição
com ela e a empurrei para dentro da água gelada.

– Mas que merda, Alana! – reclamou se encolhendo no box.

Sorri sentindo na pele aquele sentimento de vitória.

– Eu vim só te dar banho, sua cachaceira — zombei enquanto derramava quase meio
vidro de xampu em sua cabeça, mexendo para fazer muita espuma e tapar a sua nudez
que me desconcertava.

– Pára... com isso, sua maluca! – reclamou irritada tentando me conter com as mãos,
tirando a espuma dos olhos. Se debatia fazendo espirrar água para todo lado. A essa
altura minha roupa estava toda molhada.

– Ah, é! Você quer guerra? – continuou brava enquanto eu ria aos montes pelas
expressões de indignação dela.
Aumentei a fricção nos cabelos de Letícia fazendo duplicar a espuma que já escorria
para o seu corpo. Neste instante, com a visão comprometida pela brancura das bolhas de
sabão, senti as mãos dela me puxando. Dei um grito e cai nos braços da menina
embaixo da água e com as costas grudadas na parede. Tentei empurrá-la, mas ela me
segurou com força, ergueu minhas mãos até o alto da minha cabeça e me prendeu com o
seu corpo, depois cerrou os seus lábios nos meus.

Me deixei ser beijada. Senti como se o mundo tivesse parado mais uma vez, só dava
para ouvir as gotas de água batendo no chão e nas costas de Letícia.

Agarrei-a pelo pescoço e a puxei para mim. Me deliciei com aquele beijo sedento de
desejo e paixão. Senti o seu corpo nu aconchegar-se no meu, me fazendo ter sensações
de puro deleite. Mas ela não podia exercer aquele domínio sobre mim. Me debati e
aproveitei o momento dela de letargia e sai do seu contato. Sai do box também. Deixei a
água escorrer pela minha roupa e tocar o chão, enquanto nos olhávamos sem pressa,
nossas respirações ofegantes. Meu sorriso debochado duelando com o dela, de quem
queria uma revanche. Descobri que isso me excitava. Peguei uma toalha que estava
pendurada e joguei em sua direção.

– Se enxuga e deita na cama – disse maliciosa.

Letícia sorriu e imediatamente começou a se enxugar. Em menos de cinco minutos ela


já estava deitada onde eu ordenei. Sorri achando graça do poder que nem eu mesma
sabia que tinha.

– Agora vem, Alana! – disse ansiosa.

Aproximei-me da cama. Senti minhas pernas fraquejarem. Provavelmente aquela


imagem de Letícia nua não sairia da minha cabeça pelos próximos mil anos. Mas ela
precisava de uma lição. Inclinei meu corpo e sussurrei em seu ouvido:

– Agora você vai dormir quietinha, está bem? – beijei o seu rosto e caminhei até a porta.

– Ei! – gritou afrontada – Volta aqui! Tá pensando que pode me deixar desse jeito?
Alana... Isso não se faz! Volta aqui! Por favor... Vol...ta!

Bati a porta atrás de mim, e fiquei com as costas sobre ela esperando os gritos
indignados de Letícia cessarem. Esse era o caminho! Se eu não podia com ela, tinha que
me juntar a ela!

Capítulo 15
[26/09/10]

Não sei quanto tempo passou até meus gritos de insatisfação desaparecerem e meus
olhos serem vencidos pelo cansaço. Que raiva Alana havia me feito passar! Aquela
metida devia se sentir a última rosquinha do pacote, com certeza! Provocar daquele
jeito e depois me deixar literalmente na mão era algo inadmissível. Mulher nenhuma
tinha feito isso comigo. E eu posso garantir que não seria uma roceira que iria fazer.

“Ela queria guerra? Teria guerra!”

Quando eu colocasse novamente as mãos naquele corpo, certamente não a deixaria ter
dúvidas do que uma mulher poderia fazer com ela. Aquilo não era uma promessa, era
uma certeza!

Acordei com a estupidez de alguém que afastou rispidamente as cortinas do meu quarto,
deixando o sol invadir o ambiente e fazer cócegas na minha face. Resmunguei um
bocado sem conseguir abrir os olhos e vir quem era o infeliz que me arrancou
bruscamente do meu sono REM. Ergui as cobertas para cobrir o meu corpo nu. Mas a
insistência da criatura foi tamanha que eu tive que despertar. Elevei a mão até a testa
para aplacar um pouco a claridade e conseguir enxergar.

– Mas... que merda! Fecha essa droga de cortina! – gritei irritada. Então senti algo cair
em cima de mim. Olhei para o meu colo e vi que era uma blusa e uma bermuda.

– Vista-se! – disse meu pai com uma voz vibrante, autoritária... Enraivecida. De quem
queria comer o meu fígado.

Me levantei depressa e me vesti. Não que eu estivesse com medo dele, é que se íamos
discutir, que não fosse perdido nem um minuto, certo? Pra que perder a oportunidade
de jogar na cara dele todas as minhas mágoas? Vinha sofrendo a sua rejeição todos
esses anos, natural querer que ele sofresse ao menos em forma de decepção tudo, ou boa
parte do meu tormento.

Egoísta? Vingativa? Era mesmo, e daí?! O que você tem a ver com isso? Aposto que
está satisfeita com a sua vida e não tem um pai e uma mãe que são um saco! A vida
nunca havia sido boazinha comigo, tá legal?
Desde que cheguei no Rio de Janeiro, depois da separação esquisita dos meus pais, sofri
pela obrigação de me adaptar a revelia a um mundo completamente diferente do meu.
Naquela época eu era uma caipira, e permaneci caipira até os meus treze anos. Até
conhecer a menina que mudou a minha vida pra sempre. Amanda! Ela era a garota mais
temida do colégio, vivia implicando com todos e submetendo as crianças as mais
torturantes humilhações. Eu e metade da escola morríamos de medo dela. Até que me
envolvi sem querer numa briga com um garoto que queria roubar, pela milésima vez, o
meu lanche.

Contar pra minha mãe? Não! Eu passava mais tempo com a empregada do que com ela.
Dona Márcia vivia viajando a negócios. Para a direção do colégio? Era bem pior,
porque o garoto ladrão seria expulso e provavelmente me mataria quando eu estivesse
voltando pra casa. E, apesar da minha vida ser uma merda ao cubo, eu era jovem demais
para morrer.

Mas o milagre aconteceu. Um dia eu tomei coragem e disse ao cicraninho que não iria
dar o meu sanduíche a ele. O que ele fez? Disse que iria enfiar a minha cabeça na
privada do banheiro e puxar a descarga, coisa que ele já estava costumado a fazer com
as outras crianças. Todo mundo tinha medo daquela descarga.

O idiota só não contava com a intervenção de Amanda. Para a minha surpresa e sorte,
ela tomou as minhas dores e jogou o infeliz dentro da enorme lata de lixo azul que
ficava no pátio da escola. Depois disso, eu me inseri na sociedade e nunca mais
ninguém mexeu comigo. Afinal de contas, eu era a protegida da Amanda. Bom, no dia
eu não entendi o porquê da menina ter me defendido na frente de todo mundo, mas
depois de uma semana andando pra cima e pra baixo com a poderosa-mor do ensino
fundamental... aconteceu o meu primeiro beijo... No mês seguinte, Amanda me
convenceu a ir mais longe... Minha primeira transa e a revolução da minha vida!

Na verdade, foi ela quem me apresentou a vida. Eu passava mais tempo com Amanda
do que em casa. Foi nessa época também que conheci o Alan. Aquele traidor. Me
lembrei imediatamente dele na cama com aquela vadia da Flávia. Mas isso não vinha ao
caso. Voltando aos tempos de colégio... Éramos o tripé inseparável. Nesse tempo
comecei a desfrutar dos benefícios de ter um pai distante e uma mãe relapsa. O trio
inseparável era composto por jovens de classe média alta que tinha o domínio das suas
próprias vidas. Íamos onde queríamos, fazíamos o que quiséssemos sem nos
preocuparmos com as consequências, afinal de contas: quem tem grana conta com
bônus do perdão imediato, já quem não tem... é bandido, oras!
Tínhamos passe livre em casa, nossos pais sempre nos deixavam aos cuidados das
pobres empregadas. Conclusão: conheci todos os bares da Lapa, centro da Cidade, Santa
Tereza, Ipanema, Copacabana... Até na Vila Mimosa nós fomos. Encontramos putas de
todos os tipos, e o que é melhor: o nosso dinheiro também comprava a maioridade.

A parte triste de tudo isso é que Amanda faleceu de overdose aos dezesseis anos, a boa é
que eu fiquei com o seu legado. Aos quinze eu já era tão temida na escola quanto ela. O
trio foi desfeito e formou-se a dupla dinâmica. Eu e Alan. Até a minha mãe resolver me
mandar para o fim do mundo.

Fiquei de pé olhando meu pai que ainda estava de costas. Sabe como seria a minha vida
se eu tivesse ficado ali?

– O senhor me fez um grande favor quando resolveu esquecer que tinha uma filha –
disse.

– O quê? – virou-se de frente pra mim.

Nos olhamos por alguns segundos sem nada dizer. Fiquei analisando as expressões dele.

“Como é que pode alguém abandonar uma filha e não demonstrar nenhum tipo de
remorso, hein?”

– Se eu não tivesse ido pro Rio... – uma breve pausa. Acho que a minha fisionomia
mudou, não sei se fiquei mais séria ou simplesmente inexpressiva – Eu seria uma
matuta como o Eric que se borrou de medo do senhor ontem à noite, ou como a Alana,
que acha que tudo nesse mundo é pecado... Até o pobre do Bê tá indo pra esse caminho!
O moleque vai ser um bobão, todos vão se aproveitar da moralidade e da honestidade
intacta que ele se orgulha por ter – confessei irônica.

– Criei meus filhos para que sejam honestos, e isso incluí você, Letícia! Acha que a sua
vida é melhor do que a deles? Acha que ter mudado para a cidade... se envolvido com
amigos que você se orgulha ter foi o melhor caminho? – aproximou-se de mim – Não te
abandonei! Ir embora daqui foi uma escolha da sua mãe, e eu sofri, porque ela arrancou
de mim os meus dois maiores tesouros... Você... – afagou o meu rosto. Não permiti que
ele continuasse com o contato, me esquivei para trás – E ela! – engoliu em seco – Fiquei
louco aqui, Letícia! Eu não podia imaginar que a Márcia estava insatisfeita com o
casamento. Ela nunca havia dado sinais. Quase perdi a fazenda porque não queria mais
trabalhar. Fui atrás de vocês!

– Mentira! – gritei revoltada.

– Fui sim! – sacudiu os meus braços – Eu estive no apartamento de vocês no dia


seguinte ao que sua mãe me abandonou. Te encontrei dormindo e eu me despedi com
um beijo na sua testa! Sua mãe me disse que nunca mais pisaria nessas terras, ela me
culpava por ter perdido a juventude ao meu lado. Eu a amava e sofri muito para tentar
compreender que nossa família havia se desfeito.

– A família se desfez, mas eu continuei sendo a sua filha, merda!

– Sim! Esse foi o meu maior erro – soltou os meus braços. Atordoado, andou pelo
quarto, logo retornou e parou de frente para mim – Você me lembrava demais a sua mãe
– apontou na minha direção – Olha pra você, Letícia! Sua pele, seus olhos... cabelo,
boca... É a Márcia mais jovem!

– Não me compare a ela!

– Fui um fraco, filha! Passei um bom tempo com medo de ver você... Até a Clara
aparecer na minha vida com a Alana e o Eric – sentou-se na cama desconsolado – A
presença dos dois nessa casa me remetia às tuas lembranças. Eu sentia tanto a sua falta,
Letícia! – enxugou os olhos – Foi nessa época que tentei te trazer para mais perto de
mim, mas você estava impossível, inflexível com a possibilidade de vir passar uns
tempos comigo na fazenda. Eu não tinha coragem de ir a seu encontro... Tinha a Márcia
entre nós. Eu ainda a amava – disse parecendo desolado.

– Não tá pensando que é simples assim, não é? – passei a mão pelos cabelos, prendi uns
fios atrás das orelhas – Você nos trocou, pai! Podia ter tentado reconstruir o seu
casamento. Minha mãe só arrumou um namorado há poucos meses. Ela só queria uma
vida melhor! Longe desse cheiro de estrume e essa mesmice de sempre! Nem sei se ela
tava tão sem razão assim.
– Ela não era mulher pra mim! – abriu os braços e levantou-se – O que você vê?

– Vejo um idiota que se enterrou nessa merda de lugar por medo do mundo lá fora! –
disse séria.

– Você está errada! Sou apenas um homem simples que consegue enxergar a felicidade
num pedaço de chão que me dá paz. Diferente da sua mãe.

– Abandona uma filha e tem paz, senhor Pedro? – ironizei.

– Nunca vai entender, não é?

– Nunca! – disse firme.

– Então... – respirou fundo, balançou a cabeça numa negativa e coçou a barba – Vou dar
esse assunto por encerrado, já tentei me justificar de todas as maneiras, e...

– Vamos! – interrompi-o – Dá logo a bronca por eu ter levado o seu filho queridinho pra
tomar um chope e trepar com uma mulher! Você... – exaltada, apontei o dedo na cara
dele – Deveria ser o primeiro a querer que o seu filhinho virasse homem! É ridículo um
moleque de dezenove anos ser virgem! Só queria dar um empurrãozinho... – sorri
debochada.

– Ser virgem ou não, não é uma condição para ser um homem, Letícia! – firmou o olhar.

Acho que ele não gostou da piada, sim! Havia sido uma piada. Um cara de dezenove
anos virgem na minha concepção era uma grande e divertida piada.
– O caráter de um homem se constrói com honestidade, trabalho, verdade, honra...

Aplaudi-o ironicamente.

– Bravo! Brevíssimo! Quer me dar esporro? – olhei fundo em seus olhos e bati no peito.
– Dá esporro, mas me poupe da breguice do seu discurso. Suas palavras são bonitas,
mas não funcionam no mundo real. Sabe o que eu consegui com esses valores
ultrapassados que o senhor me ensinou? Consegui o título de caipira da escola! Passei
fome no colégio porque eu tinha bom coração e deixava os aluninhos necessitados
roubarem a minha comida. Tinha que aguentar, passar todos os dias pelos corredores de
cabeça baixa e ouvir os sussurros de “esquisita” seguidos de gargalhadas. Sabe por quê?
Porque eu tinha bom coração, era honesta, não mentia porque Deus castiga, não fazia
mal às pessoas porque devemos amar os outros como a nós mesmos, mas com o tempo
eu percebi que essa história de que não se paga o mal com o mal é pura utopia! As
pessoas no mundo real se vendem, se xingam, se engolem... se matam mesmo! Se
odeiam, e se amam porque é conveniente e dá prazer! Ninguém é bonzinho, sabia? Eu
não sou boazinha! Eu sou autêntica. Ponto final!

– Está de castigo! – cerrou a face ao dizer.

– O quê? – disse com a mão na cintura completamente desacreditada.

– Nessa casa existem regras, mocinha! – apanhou o despertador antigo que estava sobre
o criado mudo e ajeitou os ponteiros – Está condicionada a acordar todos os dias às seis
e meia da manhã. As sete, quero você sentadinha à mesa, está bem?

Tentei falar, mas ele fez um gesto para que eu me calasse e continuou com aquela
bobagem toda.

– Vai participar das orações, depois pode descansar alguns minutos, mas o celeiro a
partir de hoje é a sua responsabilidade, quero o feno arrumado. De tarde, você terá a
doce tarefa de ajudar Augusto a dar banho nos animais.

– Tá brincando que eu vou lavar vacas! – quase cai para trás com aquela imposição
autoritária.
– Não são vacas, são cavalos. Doze que estão na sua responsabilidade até a sua volta
para o Rio de Janeiro.

– Não pode me obrigar... – ergui uma sobrancelha. O cara havia perdido a noção do
ridículo – Isso é trabalho escravo!

– Ainda não terminei – continuou com a sessão regresso à ditadura – É de sua


responsabilidade também, ajudar o Eric a consertar as cadeiras e carteiras da escolinha
que fica na divisa da nossa fazenda com a do Américo.

– Que escolinha?

– Ninguém te contou? Alana dá aulas para os adultos que não foram alfabetizados.
Precisamos consertar boa parte dos móveis para o início das aulas na próxima semana –
sorriu animado e orgulhoso. Claro! Aquela puritana era sua filha perfeita.

– Início das aulas? Alana é professora? – acho que havia um ponto de interrogação
enorme na minha testa. Isso que dava olhar para as mulheres só pelo que elas têm no
meio das pernas. Se eu não tivesse tão apreensiva, teria sorrido do meu pensamento.

– Se vocês parassem com essa implicância que uma tem com a outra e conversassem
mais... tenho certeza que seriam boas amigas. Alana é professora de Literatura. Formou-
se há cinco anos. Estudou na cidade de Campos. A pobrezinha fazia uma viagem de
quase duas horas, todos os dias, mas nunca dormiu sequer uma noite fora de casa.

– É! Ela é uma idiota! – resmunguei mais pra mim do que pra ele – Pensei que ela fosse
veterinária. Gosta tanto dos animais, sabe sempre o que dar pra eles quando estão
doentes...

– Temos mesmo essa mania de julgar as pessoas sem saber como elas são no íntimo.
Cuidar dos animais é um prazer para ela que nasceu no campo. Vocês deviam ter uma
segunda chance.
“Só se for para comê-la”, pensei.

– Não quero papo com essa garota chata! – disse.

– Que seja... Bom... faltam dez para as sete, seu castigo começa hoje, então... Apresse-
se para o café!

– Pai... eu não...

Ele me ignorou, deu as costas e bateu a porta.

– Eu não aceito as suas condições – sussurrei enquanto chutava o pé da cama – Mas que
droga! – puxei os cabelos – É um pesadelo, meu Deus! Não sou mulher de cuidar de
cavalos, muito menos consertar coisas...

Capítulo 16
[29/09/10]

Nosso pai havia descido a pouco do quarto de Letícia. Após a gritaria vinda do
segundo andar, todos nós estávamos em silêncio, esperando que ele dissesse algo. O
homem sentou na ponta da mesa e nada falou. Eric, que andava cabisbaixo depois da
bebedeira, ergueu um pouco a face para tentar avistar Letícia em algum canto. Era
inútil, já sabíamos que ela não viria. A menina era arredia demais para aceitar as
imposições do pai ou de qualquer outra pessoa.

Eric respirou fundo, achando que só ele seria responsabilizado pelo que havia ocorrido.
Estava desolado e com o seu orgulho ferido, pois tinha sido submetido a um sermão
daqueles e ainda ganhou como castigo vários trabalhos acumulados da fazenda. Mas,
pela conversa que ouvi, três funcionários estariam de folga para que ele e Letícia
fizessem seus trabalhos.

Não sei se o meu padrasto havia sido duro demais com os dois, mas tinha certeza que
ele queria o melhor para todos nós. Isso era fato. Nem sempre as nossas atitudes
agradam a todos, contudo, no nosso íntimo, sabemos quando é a hora de pôr um ponto
final em determinadas questões que estão passando dos limites da tolerância. Letícia
não podia agir como se não devesse explicações a ninguém, afinal de contas, quando
saímos à noite para procurá-los, temíamos por eles.

Meu pai começou a oração da manhã tendo a certeza de que a filha iria
desobedecê-lo mais uma vez. Todos fechamos os olhos, as palavras foram breves e logo
voltamos a abri-los. E, grande foi a minha surpresa ao ver Letícia parada a minha frente
como se fosse uma assombração.

Petulante, encarava-nos com aqueles olhos azuis emoldurados pela sobrancelha erguida
e a testa levemente franzida. Meu coração disparou. Todos a olhávamos. Eric inclinou o
corpo para vê-la; Bernardo foi o único que sorriu, logo levantou-se e pegou nas mãos de
garota conduzindo-a para que se sentasse de frente para mim.

Rapidamente, para fugir daquele olhar inquisidor, o qual me fazia tremer inteira, peguei
o bule de leite e derramei o líquido na minha xícara. Devido ao tremor das minhas
mãos, um pequeno desastre me fez derramar o leite morno na toalha, próximo ao bolo
de milho.

- Como sou desastrada – disse apanhando o guardanapo e tentando conter a


inundação na mesa. Iracema veio em meu socorro, limpando o líquido que escorria para
o chão.

- Não se preocupe querida – dizia ela – Acidentes acontecem.

- Eu limpo, mãe – tentei ajudá-la.

Olhei a minha volta depois que me sentei novamente. Agora, todos olhavam para mim,
fazendo-me ter a impressão de que haviam notado o meu desconcerto pela presença de
Letícia.
“Um absurdo a menina me fazer ficar nervosa daquela maneira”.

O susto passou... Torci para que ninguém me questionasse quanto ao meu notório
nervosismo.

Ela tomou café em silêncio. Na verdade, o silêncio prevaleceu naquela manhã.


Mal consegui tocar no pedaço de queijo que estava em meu prato. Fiquei observando-a
comer calmamente, como se nenhuma palavra dura tivesse sido dita pelo Sr. Pedro.

Letícia estava estranha, quieta demais para o meu gosto. Assim que terminou seu café,
pediu licença, desfrutando de uma educação que não fazia parte da sua roupagem;
levantou-se da cadeira, em seguida bateu no ombro de Augusto.

- Estou te esperando lá fora – disse pausadamente, quase com doçura nos lábios.

Confesso que vê-la falar daquele jeito fez meu coração disparar ainda mais. Sim,
porque, quando a vi se aproximar da mesa, sua sobrancelha erguida me pareceu
denunciar que ela iria aprontar das suas. Rapidamente Augusto levantou-se e foi atrás de
Letícia. Meu pai olhou-os até que sua visão não alcançasse além da porta da cozinha.

- Ela está bem? – perguntou minha mãe.

- Eu não sei – disse balançando a cabeça negativamente – Tenho medo de ter


perdido a minha filha para sempre. Ela me culpa pela separação com a Márcia. Acha
que vocês me roubaram dela.

- Ela é uma mimadinha! – falei indignada.

- Ela é legal! – completou Bernardo, logo colocou uma fatia enorme de bolo na
boca.

- Deixa de ser porco moleque! – repreendeu Eric.

- A boca é minha! – retrucou o pequeno cuspindo o alimento enquanto falava.

- Crianças! Parem com essa briga tola – disse minha mãe batendo uma mão na
outra – Eric, você também está de castigo, se já terminou o seu café pode ir consertar as
cercas perto do rio, está bem?

- Já tô indo – levantou-se bruscamente, e com a face irritada fitou Bernardo –


“Licença” – disse e saiu batendo o pé.
Não aguentei de ansiedade... Minutos depois que todos foram para os seus
afazeres, apanhei uma jarra de barro na cozinha, coloquei água gelada e sai com ela
porta afora. Eu estava inquieta. Queria ver com meus próprios olhos se Letícia estava
cumprindo o que nosso pai impôs a ela. Algo me dizia que não.

Corri pela frente da casa olhando para os lados como se tivesse medo que alguém me
visse levar água para ela. Passei por um bocado de árvores e parei perto do celeiro, me
escondendo feito uma fugitiva. Ela e Augusto estavam na porta olhando para o feno
empilhado. Eu estava um pouco distante, mas consegui ouvir o que os dois
conversavam.

- Porque fica tudo amontoado? – perguntou ela.

- Presta atenção menina Letícia – disse simpático e atencioso. Esticou os braços


mostrando o local – O feno deve ser armazenado em galpões como esse, arejado e
protegido da umidade. Os fardos são colocados em pilhas sobre esses estrados de
madeira para evitar o contato com o piso.

- E não dá pra deixar o troço quietinho aí? Tenho que ficar jogando pra lá e pra
cá por quê? – estava de braços cruzados como quem desdenha da conversa, mas percebi
que se mantinha atenta a tudo que o velho falava. Augusto sorria para ela... Pôs a mão
no seu ombro direito.

- O aumento da temperatura do fardo ou a presença de mofo indicam umidade


demais no feno. Quando isso acontece, as pilhas têm que ser desfeitas para deixá-las
mais arejadas. Por isso é importante usar esse garfo – apontou a ferramenta no canto –
Para arejar a gramínea. Compreendeu?

- Muita frescura, só pra dar trabalho, sabia?

Augusto deu um tapinha de leve nas costas dela...

- Se precisar de alguma coisa é só me chamar, tá? – respirou fundo – Não


precisa mudar as duas pilhas, quando terminar esse – apontou um empilhamento de feno
– Já basta!

- Você é agrônomo?

- Eu? – balançou a cabeça negativamente – Sou um homem da terra. Tudo o que


aprendi foi pondo as mãos para fazer. Assim como o seu pai – disse e saiu pela outra
entrada que havia no galpão. Fiquei aliviada, porque se ele passasse pela frente, me
surpreenderia espionando-os.
Continuei alguns minutos parada... Hipnotizada, olhava Letícia manusear o garfo. Ela
vestia um tênis all star preto, uma bermuda jeans justinha quase na altura dos joelhos e
uma camiseta de malha branca coladinha na pele. Analisei suas costas bem torneadas...
As curvas do seu corpo; seus braços não tão frágeis quanto imaginei; as pernas semi-
flexionadas...

Senti um graveto embaixo dos meus pés e percebi de imediato o barulho que ele fez ao
se partir. Quase gritei de susto, mas o que me apavorou mesmo foi ver Letícia parar o
que estava fazendo e virar-se de frente para mim. Num segundo, pensei em buscar um
subterfúgio. Eu podia fugir. Correr bem rápido e me trancar no quarto de casa,
protegida ou simplesmente podia me aproximar dela e oferecer a água que eu havia
trazido caso ela tivesse sede.

- Trouxe água – disse desconcertada enquanto adentrava no ambiente. As


minhas mãos suavam com a mesma intensidade do suor que eu via escorrer no cantinho
da face de Letícia. Encarando-a mais de perto, percebi que sua camisa estava úmida, só
então me dei conta de que ela havia colocado boa parte do feno para o lado e eu,
provavelmente devo ter passado horas olhando-a sem ter sido notada, ou pior: sem ter
me dado conta disso.

- Pensei que eu teria que voltar na casa para matar a minha sede – disse com o
tom de voz amigável, até sorriu quando eu derramei um pouco de água fora do copo.
Estendi a mão para que ela pegasse o objeto. Letícia imediatamente colocou o garfo que
trabalhava num canto próximo a uma pilastra de madeira e envolveu as mãos na minha
para segurar o copo. Fiquei completamente perturbada. Ela me olhou com aqueles olhos
cintilantes, sua pele do rosto molhada, seus cabelos próximos da face também... Era
uma cena irresistível.

A garota estava rosada devido ao calor, e suas mãos quentes, assim como todo o seu
corpo devia estar. Quase suspirei, ou suspirei. Não sei! Só sei que quando Letícia se
aproximava de mim, eu perdia totalmente o meu bom senso. Passava a agir como uma
vadia que deseja entregar-se a uma estranha. Sim! Ela era uma estranha, que eu não
sabia o que pensava, e nem concordava com as suas atitudes sempre infantis...

Se aproximou de onde eu estava como se lesse nos meus olhos os meus


questionamentos. Deixei que permanecesse com as suas mãos na minha até que... dei
um passo para trás. Ela então levou o copo até a boca e sorveu o líquido com desmedida
vontade. Até sentir inveja da borda que acomodava aqueles lábios macios.
Balancei a cabeça negativamente e tentei me concentrar no meu objetivo. Qual era
mesmo o meu objetivo? Sim! Levar água para ela e voltar para casa... em segurança!

- Quer mais? – perguntei erguendo a jarra.

- Quero! – disse enquanto trazia o copo para me entregar. Segurei-o nas mãos.
Letícia fez um gesto para que eu não colocasse água dentro dele.

- Você disse que queria – fitei-a sem conseguir conter a sua aproximação.
Percebi de qual sede ela se referia. Logo, o medo e a insegurança se sobrepunham ao
meu desejo. Deixei a jarra cair no chão, ela quebrou. Nos afastamos em seguida. A água
molhou a madeira em que ficavam as pilhas de feno. Pensei que Letícia iria se zangar
por eu ter estragado parte do seu trabalho, mas não, para minha surpresa ela sorriu.
Arrancou o copo das minhas mãos e jogou-o num canto do galpão. O copo estilhaçou-se
assim como a jarra.

- E quero – continuou ela, indiferente ao que aconteceu – Estou morrendo de


sede, sabia?

- Pára com essa brincadeirinha, menina! – disse apavorada com aquele olhar
que me deixava quase cega de vontades, e tentada a sentir novamente a maciez da sua
boca.

- Você vem aqui... com a desculpa de me trazer água – disse com os olhos azuis
faiscando de desejo. Era sempre assim quando ela se aproximava de mim, seus olhos
flutuavam no desejo que refletia deles. Eu me sentia... Não sei como me sentia, mas sei,
tão forte como a minha fé, que eu adorava vê-la me olhar daquela maneira.

“Desejada!”

Suas mãos apertaram forte a minha cintura... Fechei os olhos para amenizar a luta
desleal que eu travava com a minha razão que não queria ceder ao prazer de estar nos
braços dela.

Suavemente sua boca encostou na minha, sem resistência a língua de Letícia me invadiu
os sentidos... Desnudando as minhas vontades. Ela me conduziu até a pilha de feno que
estava atrás de mim. Deixei-me ser jogada na maciez daquele colchão para sentir o peso
do corpo dela sobre o meu. Gemi quando os seus seios roçaram levemente na minha
blusa. Nossos lábios ainda em contato... Não quis empurrá-la, qualquer gesto que eu
fizesse seria movido pelo prazer que eu sentia por aquela mulher, não pela culpa
dilaceradora de estar me deleitando no pecado.

– Sabia... que você queria – sussurrou com os lábios cerrados nos meus.

Puxei-a pela nuca enquanto sentia as suas mãos passearem por baixo da minha
blusa. Seus dedos ágeis tocaram o bico dos meus seios, me fazendo enlouquecer de
vontades avessas aos meus princípios.

- A gente não pode ir muito longe – sussurrei perto do ouvido dela.

- Entendo... – disse e me sorriu daquele jeitinho promiscuo que ela tinha.


Suspendeu a minha blusa e abocanhou os meus seios com os lábios mais quentes que a
minha pele pode sentir. Minha calcinha umedeceu ainda mais...

A única certeza naquele momento era a de que eu precisava sentir novamente aquelas
sensações que ela me proporcionou na outra noite. Estava disposta a deixar que Letícia
me possuísse. Tinha lido numa das revistas eróticas de Eric que se não houvesse
penetração, eu não deixaria de ser virgem, sendo assim, ainda seria pura para me casar
com Mauricio na igreja e sem culpa. Eu precisava me apoiar fielmente nessa
informação.

Ela desceu os lábios pelo meu ventre... enquanto suas mãos aflitas marcavam o
caminho, ora apalpando-me, ora deslizando as unhas de leve pela minha pele... Seu
hálito quente arrepiava os meus pêlos e meus seios rijos mostravam a ela o quanto eu
estava pronta...

Letícia desabotoou minha calça, desceu-a até os joelhos... Deslizou as mãos pelo meio
das minhas pernas, as quais eu fechei imediatamente, temendo que ela usasse os dedos.

- Assim não! – puxei a face dela para que olhasse nos meus olhos – Igual
naquela noite – praticamente pedi.

Ela sorriu e continuou descendo a minha calça... Livrou-se dela e acomodou o


seu corpo no meio de mim. Beijando-me intensamente, sugando os meus lábios e
arrancando suspiros, gemidos e pedidos para que ela colocasse a boca em meu sexo.
“Céus! Quando em minha vida, pensei em permitir que uma... uma... Mulher fizesse
isso comigo?”

Letícia percorreu lentamente o meu sexo com a língua... Tremi sentindo-a passear por
essa região...

- Pede – ouvi-a sussurrar.

- O quê?

- Quero te ouvir... o que você quer que eu faça? – mordeu de leve a minha pele,
meu corpo inteiro, involuntariamente se contorceu.

- Me... Me... – era difícil dizer, nem sei se eu conseguiria. Ela parou o que
estava fazendo.

- Quero ouvir, Alana... Se rende logo... Você me quer... Eu te quero... e muito!

Ela estava certa... Eu a queria. Sim! Eu a queria e era isso que causava toda a
minha dor.

- Me dá prazer – disse com dificuldade –– Me chupa - continuei dizendo e senti


Letícia movimentar a língua dentro de mim cada vez mais forte.

A cada nova palavra que eu dizia, ela gemia e intensificava o contato...

– Assim... Ai... Me faz gozar na sua boca, Lê! Me mata de prazer como da primeira
vez... – as palavras foram fluindo, fluindo como se eu não pudesse controlá-las.
Descobri que proferir aquelas palavras imundas me excitava e a ela também.

Gemi mais alto. Letícia completamente descontrolada agarrou minhas nádegas com
urgência e puxou o meu quadril para si. No minuto seguinte eu senti algo me invadindo.
Ousei olhar para ela e vi os seus dedos dentro de mim. Não consegui pedir que ela
parasse... Eu... eu estava excitada demais. Minha cabeça rodava, meu sexo pulsava
enquanto ela entrava em mim, e... ao mesmo tempo a sua língua faminta me devorava.
Suas estocadas foram se intensificando. O pequeno desconforto de início deu lugar a
uma sensação maravilhosa de prazer... Minhas pernas começaram a tremer
involuntariamente e meu corpo explodiu num orgasmo intenso e demorado que me fez
gritar como se minha voz não pudesse ser ouvida através daquelas paredes de madeira...
Como se eu tivesse despencado de um lugar bem alto, minhas costas tocaram a maciez
do feno... Eu não tinha forças, apenas consegui erguer o meu braço e tocar com a ponta
dos dedos os meus olhos que lacrimejavam.
Olhei na direção dela, Letícia estava estática. Assustada, olhava para as suas mãos sujas
de sangue. Naquele instante, vendo-a como se não acreditasse no que aconteceu... Me
entreguei a um pranto dolorido... Ela continuou imóvel, consumida na sua surpresa. Não
sei como, nem donde encontrei forças para levantar-me, vestir-me de qualquer jeito e
sai correndo daquele lugar. A menina continuou onde estava, ajoelhada no feno,
deslumbrada com a mão marcada pela minha desgraça.

“Como tive coragem?”

Entrei em casa correndo, não dei tempo de Iracema nem Bernardo que estavam na sala
perguntarem o que havia acontecido... Eu estava completamente transtornada, limitada
na minha fraqueza...

“Nunca poderei me casar com Mauricio ”.

“Ela tem que ir embora da minha vida, antes que eu cometa mais loucuras”.

Esses eram os pensamentos que me atormentavam a carne, a alma, a vida!

Capítulo 17
[03/10/10]

Quando eu senti o corpo de Alana estremecer, aumentei as estocadas dentro


dela... Todo o meu corpo gritou de prazer no instante em que ela derramou o seu gozo
nas minhas mãos e na minha boca. Meu sexo também latejava, embora ela não tivesse
tocado intimamente em mim.

Alana me satisfazia pela sua entrega quente, alucinante... Putz! Aquela mulher me
deixava irracional, completamente a mercê do desejo de fazê-la sentir cada vez mais o
gosto do prazer. Parei um instante, tentando organizar as minhas ideias.
Olhei a minha volta, a cabeça girava... Estava diante de mim, diante de nós, a certeza...
A comprovação... Foi surreal demais olhar a minha mão umedecida de sangue. Ela era
mesmo virgem? Sim! Como eu podia imaginar que uma mulher de vinte e cinco anos
pudesse mesmo ser virgem? Hipnotizada! Assim que eu estava. Admirada, olhava para
os meus dedos vermelhos... O feno, abaixo das pernas dela também exibia gotas de
sangue. Nossa! Era tudo estranho demais pra mim.

Quando Alana, aos prantos se levantou e vestiu às calças apressada, deixando para trás
sua calcinha e as sandálias, percebi que eu, no mínimo, deveria ter dito uma palavra.
Mas o que eu ia falar, droga? Ainda demorei uns cinco minutos entre a vontade de
permanecer ali admirando a primeira vez que tirei a virgindade de uma mulher, e a
certeza absoluta de que eu precisava ir atrás dela para explicar o inexplicável.

Me levantei de sobressalto e corri atrás dela... Pulando de dois em dois degraus da


escada da varanda; entrei na sala como um furacão, mal olhei para Iracema e Bernardo
que me perguntaram algo, que agora não lembro o que foi... Eu precisava olhar nos
olhos de Alana novamente. Não sei o porquê, mas talvez eu precisasse me desculpar
pelo que jamais vou poder corrigir!

“Deus do céu! Ela era mesmo... Virgem!”

Mas... Como eu podia imaginar que hoje em dia ainda existia virgindade, oras!

Subi às escadas em disparada, logo alcancei o corredor que me levava aos quartos...
Andei pelo assoalho de madeira sem fazer muito barulho... O coração disparado, o
fôlego entrecortado... A porta de Alana estava semi-aberta, empurrei-a devagar e
entrei...

Ela não estava ali. Coloquei as mãos na cintura e olhei a minha volta. Ouvi um barulho
de água escorrendo. Andei pelo quarto silenciosamente até o banheiro... espiei pela
fresta da porta e vi Alana nua, embaixo d`água, se banhando como se quisesse tirar da
alma as marcas das minhas mãos. Entrei... Ela estava de costas para mim, dentro do
box...

Com o barulho que a água fazia, escorregando pela sua pele, respingando no chão,
dificilmente Alana ouviria os meus passos. Mas, sentiu a minha presença, porque assim
que eu me aproximei do box, ela virou de repente e num impulso cruzou os braços para
tapar os seios... Não adiantou muito, seu sexo estava exposto... Sua pele... Seu olhar...
tudo nela, denunciando que ainda me queria.

Eu me dividia entre a sensação de estar emocionada e excitada. Afastei lentamente a


porta de vidro. A água começou a espirrar em mim... Entrei de roupa e tudo, como se
Alana fosse um imã que me atraia para mais perto. Ela também queria mais, por isso
relaxou... Deixou os braços caírem ao lado do seu corpo... Seus olhos vermelhos de
tanto chorar fitaram os meus que não sabiam como agir, minha voz também estava
embargada... Tomei-a em meus braços enquanto a água passeava pelos nossos corpos,
levando embora qualquer dúvida.

- Me desculpa... – sussurrei próximo ao seu ouvido. Pode não parecer, mas as


palavras eram sinceras. Senti suas mãos envolverem a minha cintura. Não sei se isso era
sinal de que ela havia me desculpado, mas... Pela primeira vez na minha vida eu senti
paz... Ficamos assim por alguns segundos, até Alana surtar novamente e como uma
louca descontrolada me empurrar para longe do seu corpo... Na verdade, ela não sabia
se me empurrava, batia, ou grudava as mãos aflitas na minha roupa e me puxava para
junto dela...

- Te odeio, Letícia! Odeio te desejar desse jeito! Você não tinha o direito de
fazer isso comigo... – chorava enquanto gritava comigo - Não sou mais digna para casar
com Mauricio... Você é o demônio!

- Pára de me empurrar sua louca! – segurei os seus braços com força... Sacudi-a
para tentar fazê-la cair em si – Quem você quer enganar, Alana? Pára de culpar o pobre
do demônio pelos teus desejos!

- Isso é pecado sua despudorada! Vamos para o inferno e a culpa é toda sua! –
continuou alterada.

- Se sentir o corpo queimar de prazer desse jeito, e a alma vibrar como nunca
vibrou antes é pecado... Quero mesmo ir para o inferno! – disse firme olhando-a nos
olhos.

- Você não sabe o que está dizendo... – concluiu, agora um pouco mais contida.

- Sei que você tá confusa... Olha, isso é normal! Mas... Nós podemos... – fui
falando sem saber ao certo onde eu queria chegar – Não precisa ter medo... Eu... Eu...

- Eu não consigo mais! Não sei parar de te desejar! – me interrompeu aos


prantos – Minhas noites têm sido um inferno enquanto penso em você. Tudo me deixa
nervosa, irritada... E a culpa é esse fogo que me consome as entranhas quando penso nas
suas mãos... na sua boca... no seu corpo – passou as mãos pelos meus ombros – Como
eu gosto de sentir o seu corpo encostado no meu.
Não conseguiria expressar nessas poucas linhas o que senti quando Alana
desandou a falar das suas confusões, dos seus sentimentos e desejos conturbados... Não
era vaidade o que eu sentia, na verdade, ela estava dizendo exatamente o que eu queria
dizer.

A realidade veio dura aos meus olhos, eu estava envolvida mais do que pensava. A
felicidade que eu senti só por ouvi-la naquele momento, nem de longe eu havia sentido
em outro momento. Na esperança de fazê-la calar a boca...

“Putz! Como falava aquela mulher!”

... Puxei-a pra mais perto do meu corpo. Sem conseguir conter o sorriso, acariciei sua
face enquanto seus lábios se entreabriam para receberem a minha boca... Ela estava
quente... Nua diante de mim... Perdi o ar quando minha pele tocou na dela novamente.
Abracei-a mais forte... E mais forte... Quando me dei conta Alana estava me conduzindo
de volta ao quarto, em direção a sua cama.... Seus dedos trêmulos tentavam com
dificuldade tirar a minha blusa. Ajudei-a tirando-a eu mesma. Alana tateou as mãos
pelos meus seios nus, como se jamais em sua vida tivesse visto algo parecido. Era até
engraçado vê-la tão deslumbrada.

- Gosta disso? – perguntei colocando as minhas mãos sobre as dela e ajudando-


a a apertar os meus seios para senti-los melhor. Ela não respondeu com palavras, e sim
com os olhos que faiscavam de desejo, e o que veio depois das suas mãos nos meus
seios? Alana me empurrou na cama e deitou sobre mim, me beijou com descontrole;
desajeitada, mas com a boca totalmente sedutora deslizou os lábios macios e úmidos
pelo meu pescoço... Passou a língua...

Apertava o seu corpo no meu, pressionando os nossos seios um no outro. Esfregando...


Perdi a fala, o chão, a sanidade... Se é que eu tenho alguma. Gemi ao sentir as mãos
curiosas avançarem pra dentro da minha bermuda molhada, em todos os sentidos, e
mais ainda quando seus dedos alcançaram o meu sexo e, ela sem querer, como uma
criança que recebe um brinquedo e quer ver todas as peças, introduziu um dedo dentro
do meu sexo encharcado. Sussurrei próximo ao ouvido dela.

- Quer me matar... de tesão, garota? – disse com a voz falhada. Ela sorriu e me
empurrou mais forte. Eu bati com as costas no colchão da cama... a garota rapidamente
desceu a minha bermuda que mesmo molhada da água do chuveiro, escorregou fácil
pelas minhas pernas. A calcinha veio junto.
Alana se sentou na altura do meu sexo. Suas pernas abertas sobre a minha cintura... Ela
rebolava descobrindo como era gostoso manter a nossa pele em atrito...

- Você tá me alucinando! – disse enquanto tentava retomar o controle da situação.


Tentei segurar os pulsos dela, mas Alana estava comandando o meu desejo, portanto,
foi ela quem ergueu os meus pulsos sobre a minha cabeça e inclinou o corpo caindo por
cima de mim... Deslizou a língua sensualmente pelos meus lábios... Acomodou os seus
seios nos meus me molhando inteira com a umidade do seu sexo...

- Quero sentir o teu sabor, Lê! – sussurrou com os lábios presos nos meus. Sua
língua me invadindo a boca e derrubando as minhas defesas.

- Verdade? – disse mais pra mim do que pra ela. Eu estava completamente
excitada e surpresa, afinal de contas, que raio de santinha era aquela que me alucinava
de prazer? Alana me deixou completamente tomada por sensações que até aquele
momento, nenhuma mulher havia despertado.

- Vou descer pelo seu corpo e te chupar todinha... – disse cafajeste, nesse
momento, vendo-a tão cheia de desejo, comecei a cogitar a possibilidade dela estar
possuída.

“Credo! A mulher estava incorporada. Jesus, ela vai me matar se me comer desse jeito,
com essa gula”.

- Ah, é? Duvido... Me fode gostoso então! – não resisti e desafiei, sussurrando


com a respiração ofegante enquanto conduzia as mãos dela para pousarem no meu sexo
que latejava. Recebi como resposta uma boca que escalou o meu corpo, beijando,
sugando cada pedacinho da minha pele... Explorando as minhas curvas, me torturando
deliciosamente... Arrancando gemidos e sussurros de prazer.

Alana ajoelhou-se fora da cama, afastou as minhas pernas, e mergulhou no meu sexo
como se já fizesse isso desde que nasceu. Abri mais as pernas para recebê-la. Era
incrível como ela me acariciava com a língua, me fazendo gemer loucamente. Quando
menos esperei, ela me penetrou... A principio timidamente, depois, quanto mais eu
gritava e pedia, mais ela entrava em mim... Era como se o mundo fosse acabar naquele
instante. Começamos a gemer juntas... Gozei demoradamente pra ela. E antes da última
gota de gozo ser absorvida pela sua boca, puxei-a para junto de mim, a fiz virar-se ao
contrario e me oferecer o seu sexo que havia sido inteiramente meu no celeiro. Alana
não resistiu, encaixou-se no meu rosto... Continuou a me instigar com a sua língua
macia e desinibida... Nos chupamos mutuamente e o prazer veio forte, com uma
intensidade devastadora sacudindo os nossos corpos, provocando tremedeiras por toda a
nossa musculatura. Gozamos... Juntas!
Depois do ato completamente consumido... Nos olhamos, cheias de perguntas...
Duvidas... Incertezas que causavam dor dentro de nós. Vendo Alana naquele instante,
tive a certeza de que a minha vida, daquele dia em diante seria totalmente diferente.

- Quero mais – sussurrei.

- Eu também – disse me encarando séria e ao mesmo tempo perdida.

- Como a gente faz agora? – eu me sentia como uma menininha diante da


primeira namorada.

- Ninguém pode... saber Letícia – levantou da cama de sobressalto, logo trancou


a porta que nós duas, no calor do momento deixamos destrancada.

- Vou embora em três dias... – disse com pesar.

- É só o que temos para... viver – engoliu em seco – Serei... serei sua por três
dias - disse para a minha surpresa.

- Jura? – quase não acreditei. Arrisco dizer que os meus olhos estavam
brilhando.

- S...sim...

Parecia um sonho ouvi-la falando daquele jeito. Meu coração estava disparado...
Minhas mãos suavam frio... Meu corpo ainda tremia.... me levantei também... Caminhei
até ela, admirando a sua nudez que me acendia inteira.

- Você é deliciosa, Alana – sussurrei, logo afaguei sua face e busquei os seus
lábios para beijar. Sua retribuição veio tímida, ela estava aflita...

- Estamos vivendo em pecado.

- Estamos vivendo uma paixão... – contestei antes de tomar os seus lábios num
beijo cheio de sentimentos... Quem diria que um dia eu ia dizer essas besteiras para uma
mulher. Tá certo que eu não queria correr o risco dela não “dar” de novo pra mim,
mas... Eu queria falar de sentimentos – Jamais vou esquecer esses dias...

- Vem dormir comigo essas noites, tá? – depositou beijos rápidos e instigadores
nos meus lábios.

- Claro! – disse num impulso.

- Mas... Toma cuidado... Não posso correr o risco...

- Ei! Ninguém vai saber – ergui a sua face – Faço qualquer coisa pra passar
essas noites contigo, viu?
- Não sei onde estou com a cabeça – suspirou ao final da frase.

- Olha... Vou ter que voltar pro celeiro... Preciso... preciso terminar o meu
trabalho... A noite... A noite eu volto... Vai me deixar entrar? De verdade? – Insegura?
Pois, é!

- Vai Letícia! Veste a sua roupa... Mas tarde você vem e a gente conversa.

- Olha pra mim... – segurei sua face – Pára de achar que está vivendo em
pecado. Tira isso da sua cabeça, garota!

- Você é uma mulher... Igual a mim! É errado... Eu não podia... Nós não
podíamos sentir esse desejo...

- Relaxa! Eu vou embora... e... e... – as palavras pareciam não querer sair –
Você vai casar... – disse enfim, com dor no peito – Pronto, acabou! Entende?

- Não posso enganar o Mauricio! – afastou-se dos meus braços, deu-me as


costas... Pôs as mãos na cabeça... Senti medo que ela desistisse das nossas noites...
Agarrei-a por trás... Grudei meu corpo no dela... Nossas peles quentes. Meus seios
roçando nas suas costas... Alana amoleceu e inclinou a cabeça para trás se deliciando
com os meus beijos na nuca...

- Esquece esse palhaço... Duvido que ele te faça sentir isso – deslizei minhas
mãos pelas laterais do seu corpo e alcancei o seu sexo... Seu líquido escorria pelas suas
coxas... – Vai me deixar vir mais tarde? – perguntei enquanto apertava-a mais junto de
mim.

- S...sim.

- Ótimo!

Sorri desgrudando o meu corpo do dela... Vesti-me depressa e mandei um beijo


para a menina que deixou o corpo deslizar lentamente para cima da cama. Finalmente
eu havia conseguido! Dei um soco no ar. “Três noites”. Pensei enquanto abria a porta do
meu quarto para trocar aquela roupa molhada.

Capítulo 18
[06/10/10]

Deitei-me na cama ciente de que havia perdido totalmente a minha sanidade.


Estava sentindo-me o ser mais desprezível da face da terra. Traí o homem que seria pai
dos meus filhos, e em um momento irracional, impensado, agindo somente pelo desejo,
deixei que Letícia me tirasse o que mais preza uma garota de família.
Apavorada, comecei a elucubrar sobre as consequências, caso alguém descobrisse que
eu estava alimentando um sentimento clandestino e desfrutando de dias promíscuos. A
minha vida acabaria, era fato. Mauricio jamais se casaria comigo sabendo que não sou
mais pura; meu pai teria o maior desgosto de sua vida; minha mãe, coitada, iria ouvir
das beatas da igreja o quão sou uma filha desnaturada.

Sacudi a cabeça para os lados numa negação sofrida. Coloquei as mãos na testa e
continuei divagando em meus pensamentos mordazes... As imagens do celeiro
misturavam-se com as que eu havia vivenciado a pouco em minha cama. Deslizei as
mãos pelo meu corpo, em brasas novamente. Aspirei o cheiro dela nos lençóis. Tão
suave... tão excitante e envolvente que tinha o poder de me fazer vibrar novamente só
por imaginar os beijos, os toques, as insinuações... Letícia fazia eu me sentir mulher...
Inteiramente, até quando apenas me beijava. Isso, jamais Mauricio ou qualquer outro
homem fez.

Em meio as minhas muitas dúvidas eu só tinha uma certeza: a queria em minha cama
até o último dia da sua estadia naquela fazenda. Agarrei o travesseiro e apertei-o ao meu
corpo. De olhos fechados, eu imaginava as minhas mãos tocando novamente naquela
pele febril e úmida de pecado... Adormeci sonhando com Letícia.

- Acorda minha filha! – ouvi, ao fundo, uma voz me chamar. Sonolenta, abri os olhos.
A principio, eu não consegui identificar quem era, mas depois de firmar as vistas e ver
minha mãe parada a minha frente, com as mãos nos meus ombros empurrando-me para
lá e para cá, me situei. Arregalei os olhos e como um gato, saltei para o outro canto da
cama. Puxei o lençol, cobrindo a minha nudez por completa.

- M...ãe!?

- Por que está nua Alana? – olhava como se me acusasse de alguma coisa.

- Não é o que a senhora... está pensando!

“O quê ela estava pensando? O quê? O quê? O quê?

- Você está se sentindo bem, meu amor? – colocou a mão em minha testa – Está
suando, filha!

- Ãh? – deixei que ela me examinasse.

- Aposto que esteve com febre...


- Estou nua – olhei-a como quem pergunta: não vai questionar o porquê de eu
estar nua?

- Estou vendo, sente calor? Quando a febre passa suamos muito mesmo.

- Mãe! – não sei se gritei, ou simplesmente pensei ter gritado.

- O quê? – perguntou virando-se novamente de frente para mim.

- Nada – suspirei.

“Como ela não havia notado que eu, agora pouco tinha feito algo de errado?”

– Pro chuveiro mocinha, agora! – catou as minhas roupas que estavam jogadas sobre
uma cadeira, em seguida entrou no banheiro e abriu o chuveiro. Gritou de lá: - Vem,
Alana! A água está morninha.

Levantei-me sonolenta, cambaleando, quase tropecei nos meus pés. Meu corpo estava
meio dolorido, meu sexo também. Eu sentia uma leve ardência no meio das minhas
pernas, e a falsa impressão de estar pisando em ovos.

“Será que todas sentem isso quando perdem a virgindade?”

Entrei no banheiro e logo dona Clara me conduziu ao chuveiro.

- Que cheiro é esse? – perguntou desconfiada.

“Pronto! Ela descobriu o meu ato promíscuo”.

Tirei o corpo de baixo da água... Estava prestes a me desculpar, dizer que tinha me
arrependido, enfim, fazê-la compreender as razões que eu mesma desconhecia.
- Posso explicar, mãe! – a aflição estava estampada em meu rosto. Ela parou de
me olhar e apanhou nas mãos a blusa que eu usava quando estive no celeiro mais cedo.

- Como deixa essa blusa fedorenta espalhada por aqui, menina? – balançou a
cabeça negativamente – Tem que parar de ficar fazendo o trabalho dos peões dessa
fazenda, Alana! Já está na hora de deixar de revirar aquele feno – puxou minhas mãos,
alisou a palma – Daqui a pouco terá calos! – torceu o nariz antes de voltar a falar -
Discuti com o seu pai pelo castigo que ele deu a Letícia. Sabe o que ele me disse? “A
Alana faz mais trabalhos do que os meus peões nessa fazenda! A Letícia também pode
fazer!”. Tadinha da menina! A pobrezinha ficou lá na sala, jogada no sofá, cansada, sem
conseguir se levantar. Iracema quem a acordou para que ela pudesse tomar um banho e
sentar conosco à mesa.

“Era esse o cheiro? Será que minha mãe era tão ingênua assim? Deus! Não estava
escrito em minha testa que eu tinha deixado de ser virgem?”

Estava vivendo em pecado e ela sequer cogitou essa possibilidade. Enfiei-me por
inteira debaixo da água.

- Vou pedir para Iracema lavar essas roupas com cheiro de... Cavalos! – engoli em seco
ao dizer.

- Não demore no banho minha filha! Vou pedir a Iracema que faça um chazinho pra
você tomar depois do jantar, está bem? Sua indisposição pode ser gripe.

- Jantar? Não é almoço?

- Você dormiu a tarde inteira... Não te chamamos para almoçar porque pensei que
precisasse descansar...

- Por que eu precisaria descansar? – arregalei os olhos ao fazer essa pergunta.

- Porque estava indisposta, oras!

- Sim, entendo... não... não vou demorar no banho.

- Estamos só esperando você para jantarmos.

- Estão... estão todos à mesa?

- Sim! – disse e saiu do banheiro – Não demore.


Banhei-me rapidamente. O pensamento não me dava trégua...

“Porque minha mãe agiu daquela maneira? Ela me conhecia tão bem! Como não
descobriu ou desconfiou que eu tivesse escondendo algo?”

Balancei o cabelo enquanto os penteava. Olhei-me no espelho. Virei de costas


analisando as minhas roupas.... Retornei até o armário e abri uma das portas. Deslizei os
dedos pelas blusas penduradas... Não tenho nada diferente! As mesmas blusas sem
graça de todos os dias. Puxei uma, de tecido mais colorido que estava guardada no
fundo de uma das gavetas.

“Será que ela vai gostar dessa? O quê? Como assim? Não tenho que me importar com o
que ela gosta!”

Fechei bruscamente a porta do armário. Continuei vestida com a minha blusa simples e
discreta. Uma camiseta de malha decorada na frente com uma vaquinha sorrindo e...
cheia de tetas!

“Nada sexy!”

Vesti minha calça jeans e calcei uma sandália rasteira. Até pensei em pôr maquiagem
no rosto, mas isso seria inviável! Detesto maquiagem, a minha caixinha de jóias e de
maquiagem só faltava criar mofo por estarem esquecidas num canto solitário do meu
criado-mudo.

“O que deu em mim, agora?”

Um batom cor de boca estava de bom tamanho. Perfume e mais uma, duas, e três
escovadas nos cabelos... Desci às escadas correndo, consciente de que eu havia
demorado muito mais do que o necessário. Sentei-me de frente para ela...
- Com licença – disse sem encará-la, mas morrendo de vontade de me perder no azul
dos seus olhos – Desculpem a demora.

- Quase nos matou de fome! – reclamou Bernardo.

- Trabalhei o dia todo, estou faminto e nem pude beliscar um pedacinho de carne – a
segunda reclamação veio de Eric, o qual estava emburrado, com a face vermelha pelo
sol ingrato que fez hoje.

- Perdi a hora, desculpem! – me justifiquei novamente.

- Dez minutos a mais ou a menos não vai matar ninguém de fome, meninos! – interveio
meu pai - Agora que estamos todos reunidos, vamos agradecer a comida, e depois
poderemos comer em paz – ninguém se manifestou para fazer a oração, meu pai quem
começou. Todos de olhos fechados, menos eu... Menos ela... Aquela tinha sido a
primeira vez que nos encarávamos depois do ocorrido... Seu pé por baixo da mesa
começou a tocar as minhas pernas... Subiu pelas minhas coxas... Seus olhos azuis, como
sempre, me hipnotizavam. Meu coração disparou, as mãos duras, inertes sobre a mesa,
um desconforto enorme me tomava por completo.

Ela queria me enlouquecer, e eu queria ser enlouquecida. Afastei as minhas coxas e


deixei que os seus dedos do pé tocassem entre as minhas pernas. Fechei os olhos e me
permiti mergulhar naquele toque gostoso e sedutor. Aquela carícia tão ousada, e
excitante... Senti um cutucão no meu ombro esquerdo...

- Já pode abrir os olhos, Alana! – sussurrou Bernardo em meu ouvido – Já podemos


comer.

- Ãh, sim! – olhei na direção de Letícia que se servia da salada de batatas. Seu pé
saliente já não estava me atiçando, só o seu sorriso cafajeste fazia plantão na sua face
também rosada pelo sol daquele dia.

“Irônica, abusada!”

Me servi também. Eu estava faminta. Horas sem comer, o cansaço estampado na minha
face... Depois do jantar me sentei um pouco na varanda. Fiquei olhando Letícia e
Bernardo que estenderam um lençol no gramado na frente da casa e ficaram, os dois,
olhando o céu. Deviam estar admirando as estrelas. Aqui, nesse paraíso perdido, o céu
parecia mais próximo de nós.

Distraída, não percebi que meu pai havia se sentado ao meu lado... Augusto trouxe um
cachimbo na boca, e juntou-se a nós. Acomodou-se num degrau da escada, logo, minha
mãe e Iracema vieram com chá, biscoitos e geléia de morangos. Todos nos sentamos
perto. Eric apareceu um pouco depois com o seu violão e começou a tocar músicas de
todos os tempos, desde a juventude saudosa de meu pai, Augusto, Iracema e minha mãe
até as músicas preferidas de Bernardo, que não demorou a se juntar a nós na varanda.
Ele adorava cantar. Arredia, deslocada do grupo, Letícia continuou imóvel, deitada no
lençol branco de flores amarelas.

- Chama ela pra cá – sussurrou minha mãe em meu ouvido. Não respondi, encorajada
pelo pedido dela, desci devagar as escadas, aproximei-me da menina que olhava o céu
sem desviar um centímetro sequer. Num impulso deitei-me ao seu lado... Cruzei as
pernas e acomodei minha cabeça nos meus braços que usei como travesseiros.

- Por que não se junta a nós? – perguntei.

- Não faço parte de nada disso – respondeu sem desviar os olhos do céu.

- Já viu um céu como esse, Lê? – virei a face na direção dela para tentar ver uma
reação. A menina olhou meio de lado para mim... Seus olhos estavam tão límpidos.

- Nunca vi tantas estrelas na minha vida, Alana! – falou com a voz sentida.

Naveguei no seu olhar... Continuamos nos olhando como se o tempo e as palavras


tivessem se perdido na escuridão pontilhada de estrelas... A música ao longe, as risadas
e o cheiro do cachimbo de Augusto pareciam uma cena a parte de nós duas. Era como se
nós estivéssemos em outro lugar... outra dimensão. Longe de tudo e de todos. Eu
adorava encarar os olhos dela. Eram tão tristes, mas guardavam, na sua essência, algo
desconhecido... E isso era bom!

- Não acho que você seja tão má – disse num impulso.

- Acha que... que as pessoas podem mudar, digo, deixar de serem más?

- Acho que se elas pensam em mudar, é porque nunca foram más.

- Por que se entregou a mim?

- Por que não faz outra pergunta? – sussurrei.

- Quer... ir para varanda... ficar junto de todos? – ela disse, senti receio em sua voz.

- Não! Quero continuar olhando as estrelas com você! – respondi firme.

Estávamos pela primeira vez conversando... Desarmadas enfim. Voltamos a olhar para o
céu e eu senti uma paz enorme dentro de mim. Não sei o que era, mas... pode parecer
estranho ou surreal demais o que vou dizer, no entanto, as estrelas dessa noite, pareciam
rabiscar o céu com as seguintes palavras: o amor não é pecado. Disfarçadamente eu
desvinculei uma das minhas mãos que estavam atrás da minha cabeça e acariciei de leve
a de Letícia, a qual estava solta ao lado do seu corpo. Nos olhamos pela segunda vez
naquela noite... Nesse instante, percebemos que o sereno nos molhava... Não saímos do
lugar, ficamos ali, quase de mãos dadas, com os cabelos umedecidos pelo sereno, até a
melodia vinda do violão de Eric cessar, a luz fraca da luminária da varanda se apagar e
o silêncio se estender a tal ponto que só os grilos eram ouvidos... Levantei-me então,
sorrateiramente... Ela ficou olhando-me como se não entendesse...

“Será que ela, tanto quanto eu, passaria a noite inteira ao relento, vendo a beleza da
noite naquele lugar?”

- Estarei te esperando em meu quarto – sussurrei, logo sai em direção a casa.

... Entrei no quarto e só encostei a porta. Corri para o baú do meu enxoval. Abri-o
depois de meses. Remexi para lá e para cá... Não havia nada que eu pudesse usar. Quer
dizer, ao fundo, dentro de uma embalagem que ficava escondida... Havia o presente da
minha mãe. Ela disse quando me entregou: “para a sua noite de núpcias, filha!”

Eu era um monstro! Assim me senti ao desembrulhar o pacote e erguer sobre a cama


uma camisola de seda vermelha, cheia de rendas próximo aos meus seios, deixando-os
sedutoramente... seminus. Não pensei muito para não perder a coragem. Vesti a calcinha
vermelha rendada que veio junto com a camisola, em seguida a própria e depois... O
robe de seda. Amarrei-o na cintura e corri para o espelho. Olhei-me e cheguei a
conclusão de que eu parecia uma puta. Coloquei as mãos na cabeça, assustada com a
minha coragem, mas ao invés de arrancar aquela roupa despudorada do meu corpo,
balancei os cabelos para frente e para trás. Logo, abri uma gaveta no criado-mudo e
apanhei a minha caixinha de maquiagem esquecida com o tempo... O batom vermelho,
para a minha sorte era da mesma tonalidade da camisola... Sentei-me na cama, pensando
se eu a receberia daquele jeito, ou corria para o banheiro e arrancava, não só a roupa,
mas também o batom dos lábios...

“O que estou fazendo?”

Não queria que ela me igualasse àquela mulherzinha que conheceu no inferninho.
Levantei-me para fugir das minhas vontades, ao mesmo tempo em que ouvi duas
batidas suaves na porta... Não esperava que ela pudesse vir tão rápido.
O ruído da porta abrindo fez eco em meu cérebro. Virei de frente para ela... Letícia
parou, estática ainda segurava na maçaneta.

“Ridícula! Completamente ridícula com aquele robe vermelho até os joelhos!”, senti
vergonha, aposto que minhas bochechas ficaram rosadas.

- Você... você... – ela balbuciava enquanto se aproximava de mim – Está... Linda! –


sussurrou numa distância que dava para sentir o seu hálito fresco.

Senti um enorme alívio diante das palavras dela, e a sensação de tolice foi se esvaindo
aos poucos. Ela, bom... me olhava como se eu fosse um ser de outro mundo. Seus olhos
azuis nem piscavam diante da minha figura. Aproximou-se mais... Encarou-me inteira...
Da cabeça aos pés como se nunca tivesse visto uma mulher na vida.

“Não deve ter visto uma tão oferecida, aposto! Como tive coragem de pôr a camisola da
minha noite de núpcias? Sou um monstro! Daqueles bem perversos. Há essa hora
Mauricio está dormindo, cansado de tanto trabalhar, e eu aqui me dando ao desfrute
com uma... Uma mulher... Ainda por cima usando, a camisola da noite de núpcias”.

Ela abriu lentamente o meu robe... Afastou as duas metades, mas não o tirou.
Umedeceu os lábios com a ponta da língua e tocou os meus ombros suavemente com os
dedos... Empurrou lentamente o robe para trás... ele deslizou pelo meu corpo e caiu no
chão. Letícia estava com a respiração ofegante, os olhos saltando da face, as mãos
trêmulas percorreram o meu pescoço; sua expressão foi mudando, mudando...
Impaciente, ela me puxou pela nuca, encostando lentamente os seus lábios macios e
saborosos nos meus. Gemi com o beijo, mais ainda quando senti a sua outra mão me
envolver pela cintura e os nossos corpos se aconchegarem, encaixados, como se
tivessem sido feitos um para o outro.

Sua coxa começou a passear por baixo da camisola, indo de encontro à calcinha rendada
que fazia conjuntinho com os outros dois acessórios, um deles, o robe, já estava no
chão... As mãos dela percorriam as laterais do meu corpo, retornavam agilmente para
cima dos meus seios escondidos pela renda vermelha. Eu já era dela... Meu corpo reagia
instintivamente a todas aquelas carícias tão esperadas... Eu precisava ser tocada por
aquela menina como quem precisa de água para não morrer de sede.

- Você... está linda! – repetiu no meu ouvido enquanto mordia o lóbulo da minha
orelha. Suas mãos subiram das minhas coxas para o alto dos meus braços erguidos... A
segunda peça do conjuntinho fora arrancada de mim com suavidade, sensualidade e
desejo... Suspirei ao sentir o vento da noite circundar o meu corpo exposto... Faltava a
calcinha rendada e minúscula. Letícia pacientemente me conduziu até a cama... Deitou-
me, logo começou a despir-se devagar...

Mordi os lábios quando ela tirou a blusa, gemi quando abaixou o short, e quase gozei
quando suas mãos delicadas arrancaram a sua calcinha, deixando-a nua diante dos meus
olhos. Seu corpo causava febre no meu. Ela deitou-se sobre mim, nua! Abri as pernas
para acomodá-la... A menina desceu pelo meu corpo como uma cobra se enroscando na
sua presa. Abaixou a última peça de núpcias e arremessou-a no chão. Suspirei sentindo
as suas mãos me tomarem toda a pele... Seus lábios deslizaram pelo meu corpo fazendo
todos os meus pêlos clamarem para que eu fosse satisfeita do desejo que me queimava
inteira. Ela chupou os meus seios demoradamente, depois desceu pelo meu ventre e
afastou as minhas coxas. Senti seu hálito quente e em seguida... Me chupou devagar...
Sua língua explorou todo o meu sexo, horas e horas... Eu me contorcia, e estava prestes
a explodir num orgasmo delicioso quando senti os seus dedos entrarem em mim, ora
devagar, ora com intensidade... Gemi mais alto e rebolei nos dedos dela com tamanho
desespero que pensei ter saído do meu corpo. Letícia aumentou os movimentos dentro
de mim, e eu gozei para ela. Senti uma satisfação que nem em meus sonhos imaginei
existir.

Capítulo 19
[10/10/10]

Eram cinco da manhã e eu estava parada na porta do quarto de Alana, olhando para os
lados como uma fugitiva. Era divertido correr riscos, eu adoro! Saí do quarto dela,
direto pro meu. Minha cabeça a essa altura, estava completamente embaralhada. Pulei
na cama com as roupas na mão, eu só trajava camiseta e calcinha. Desmaiei de cansaço,
a noite havia sido perfeita!

Acordei com o despertador berrando às seis e meia da manhã. Resmunguei um bocado,


afinal de contas, eu tinha acabado de fechar os olhos e já tinha que acordar para ajudar o
Eric a terminar o conserto das mesas e das cadeiras da escola improvisada.

Apesar da vontade de ficar mais um pouco na cama, eu me levantei. Não sei o porquê,
mas eu estava gostando daquele contato com as coisas da fazenda. Um dia herdarei
aquele lugar. Deve ser por isso.

Tomei banho, vesti bermuda jeans, camisetinha azul bem clarinha, para o sol não me
maltratar tanto quanto o dia anterior, tênis e boné na cabeça. Todos estavam sentados à
mesa quando eu pedi licença e me sentei também.

“Os ares do campo estavam me amolecendo demais, ou seriam às noites com Alana que
fragilizavam e viciava? Putz! Aquela garota era simplesmente... Um sonho!”
Suspirei com os meus olhos perdidos nos dela. Alana me encarava tão profundamente.
Depois, como quem se corrói em culpas, baixava o olhar que se perdia na comida que
ela mal conseguia tocar. Alguns minutos passavam e, ela me olhava de novo como se
pedisse para eu invadir a sua vida e modificá-la para sempre. Não dá pra entender, viu?
É complexo demais pra mim.

- Fez um belo trabalho no celeiro, filha – disse meu pai me tirando à concentração.

- Ãh? – desviei o olhar para a direção dele.

- Ensinou a ela como se arruma o feno no celeiro, Alana?

- Não... estive no celeiro, pai – baixou os olhos enquanto colocava na boca um pedaço
de bolo.

- Augusto me explicou como funciona – tomei um gole do meu café com leite – Hoje
vou ajudar o Eric com as mesas da escola.

- Você me surpreendeu, filha – sorriu pra mim – Tem certeza que quer ir embora para o
Rio?

Silêncio. A pergunta era difícil ou apenas eu não sabia respondê-la? Desviei o olhar.
Fitei Alana que estava paralisada, como todos, a espera de uma resposta que eu não sei
o porquê, mas não veio. Não imediatamente.

“Tem certeza que quer ir embora para o Rio?”

A pergunta se repetia na minha cabeça. Olhei a palma da minha mão e notei-a suando
frio. Tornei a olhar para Alana, mas não consegui ler a sua expressão.

- Quero... Ir embora, sim. – disse, logo a menina, que estava a minha frente levou até a
boca mais um pedaço do bolo.

- Mas você voltará para nos visitar, não é Lê? – perguntou Bê com a face triste.

“Estava triste por que eu iria ir embora? Ele se importava comigo? Acho que era o único
em toda a minha vida. O moleque era maneiro, tenho que admitir”.

- Não sei, cara! Mas... Se eu não vier, você vai me visitar, certo?

- Posso mesmo? – entusiasmou-se.

- Pode sim! – apertei a mão dele.

- Também posso ir Letícia? – perguntou um Eric tímido.

- Claro! – encarei Alana com um ar de ironia – Também está convidada para ir me


visitar – provoquei-a.
- Lamento, mas não espere que eu vá em uma cidade que me dá... Medo! – suspirou ao
final da frase.

- Bobagem! A cidade não é perigosa como mostram os jornais. Isso é puro


sensacionalismo. Moro no Rio desde que saí deste fim de mundo, e jamais fui
assaltada... Inclusive, posso contar nos dedos as pessoas que conheço que foram.

- De qualquer forma... tenho medo do que não... conheço – continuou firme, me


encarando.

Todos estavam em silêncio, como se fossem expectadores da nossa conversa.

- Se der uma oportunidade de conhecer, poderá perder o medo – apoiei as mãos na


mesa, fixei o olhar – A sua covardia é tanta que não seria capaz de dar uma
oportunidade?

- Não preciso dar nenhuma oportunidade, Letícia! – engoliu em seco.

- Por que não? – alterei meu tom de voz como se ninguém nos visse ou ouvisse.

- Por quê? – rebateu indignada - Porque não quero me expor às consequências, não
entende?

- Nossa, Alana! Que mau humor. A cidade é linda! Violência existe em qualquer lugar,
oras! – ouvimos a voz de Eric, nos pareceu longe, mesmo ele estando ao meu lado. Nos
demos conta do rumo que aquela discussão, que só tinha significado para nós, estava
tomando.

- Tem razão, Eric! – balancei a cabeça negativamente – Quem tem muito medo de viver,
acaba se enterrando no silencio da sua própria frustração. Me dêem licença – disse,
joguei o guardanapo na mesa e me levantei.

Não sei como começou aquela conversa, mas sei como terminou. Na verdade, nada
começou, portanto, não podia ter terminado. Ela só queria uma aventura. Alana devia
estar doidinha para que esses dias passassem voando, e minha mãe viesse me buscar.

Sabe o que é mais duro de tudo isso? É que eu estava gostando de lá. Horrível admitir
isso, mas eu estava adorando acordar cedo, ouvir o barulho dos bichos passeando pelos
arredores. Até o cheiro dos cavalos não me incomodam mais. Fraquejei de verdade. Não
devia querer ficar num lugar em que eu sabia que tinha de ir embora, para não
enlouquecer e não me tornar uma idiota.

“Tem certeza que quer ir embora para o Rio?”

De novo a frase do meu pai batendo na minha cabeça como um porrete de basebol.

“O quê eu quero?”

Espreguicei-me no feno desidratado. Fechei os olhos e a única coisa que veio na minha
cabeça foi Alana. Quando abri os olhos, foi ela que eu vi, parada a minha frente,
segurando uma garrafa de barro numa das mãos, na outra uma caneca de alumínio. Me
ajeitei. Ergui o corpo para sentar. Ela se ajoelhou na minha frente.

- Me desculpa – disse colocando água na caneca, logo ofereceu a mim – Deve estar com
sede, arrumou essa quantidade de feno em menos de meia hora.

Sabe quando o seu corpo anda sozinho? Nem me dei conta do quanto havia trabalhado,
nem do tempo que tinha utilizado para fazê-lo. Pensar nela era como ver a vida passar
sem me dar conta.

- Obrigada – segurei nas mãos a caneca, tomei um gole – Eu estava cheia de sede
mesmo, daqui a pouco tenho que terminar o conserto das cadeiras, faltou pregos.

- Letícia... – firmou o olhar – Não sei como agir. Me desculpa.

- Quer que eu vá embora? – coloquei a caneca apoiada no feno.

- Eu quero arrancar de dentro de mim essa dor.

Cheguei mais perto dela...

- Nunca fui tão eu mesma nos últimos tempos como tenho sido nesses dias.

- Você parece outra pessoa – me olhou com admiração. Acho que nunca ninguém tinha
me olhado daquele jeito.

- É porque não preciso me defender. Estamos no mesmo patamar, entende? – segurei


sua face. Puxei-a para um beijo, no entanto, fomos interrompidas pela chegada de Eric.
Alana deu um pulo quando o viu parado na porta do celeiro...

- Letí...cia... – parou de falar ao ver a Irmã estranhamente na minha companhia.

- Já terminei aqui – disse ao me levantar – Obrigada pela água Alana. E quanto ao seu
medo de ir a minha cidade, não esquenta. Temos mesmo a mania de julgar o que não
conhecemos.

- Se... Se... Vocês quiserem água, eu levo... Fresquinha... pros dois... Na escola, tá?

- Tudo bem – respondeu Eric desconfiado.

- Tá certo – disse antes de puxar Éric pelos braços para irmos logo consertar as mesas. –
Trouxe os pregos?

- Um sacão! – ergueu uma sacola de nylon que continha dois martelos e os pregos.

- Vamos terminar logo com essas mesas quebradas, tá? – tentei desconversar para não
ter que responder nada.

- Tudo bem.
Evitei conversar com ele depois disso...

No finzinho da tarde, boa parte das mesas estavam consertadas. Deixamo-nas


enfileiradas, prontas para receber os alunos de Alana. Incrível como alguém consegue
abdicar parte do seu tempo para ensinar velhos a ler e escrever. Ela nem recebe por isso!
Sem contar que deve ser muito chato ficar ouvindo aquele blá blá blá dos peões
analfabetos.

“Será que o noivinho dela faz parte da turminha?”, sorri ao pensar, logo balancei a
cabeça negativamente. Eric ficou curioso com a minha expressão.

- Tá rindo de quê?

- Nada não! – respondi.

- O que há entre você e a Alana? – disparou. Fiquei séria imediatamente.

- Tirando o fato de que nos detestamos, nada!

- Pareciam bem amiguinhas hoje cedo no celeiro.

- Sua irmã falou mal da minha cidade. Ela age por impulso e depois precisa se
desculpar. Foi o que aconteceu.

- Posso te dar um conselho?

- Acha que preciso de um? – parei de pôr os restos de madeira no canto.

- Acho que você tá se metendo em encrencas, sabia? – puxou uma cadeira. Sentou-se de
frente pra a que eu havia me sentado – O Mauricio é bravo. Seja lá o que está rolando
entre vocês, é mais seguro parar, entende?

Me levantei afrontada.

“Bravo? Então ele é bravo? Foda-se! Se a Alana quisesse eu a levaria para bem longe
dele”.

- Não tá rolando nada, Eric! E... eu vou embora depois de amanhã.

- Não queria que você fosse – disse tímido – Te acho muito legal.

Pera aê! Ele e o Bê me achavam legal? Queriam que eu ficasse na fazenda? Essas
pessoas estão doidas? Eu só havia aprontado naquele lugar! Eric estava de castigo por
minha causa!

- Cara, você tá de castigo por minha causa!

- Não! Eu quis me embriagar e passar a noite com as mulheres do “inferninho”. Desde


que você chegou por essas bandas, a minha vida ficou... digamos, bem movimentada –
sorriu, encostou a mão fechada no meu ombro – Agora que senti o gostinho... tô
mandando a minha timidez pro deserto! – apoiou a outra mão no meu ombro – Você
fará falta, sua desmiolada!

Sorri ao final da frase dele. “Desmiolada, sempre desmiolada!”

- Meu pai e sua mãe devem estar loucos para eu ir embora.

- Você tá enganada, Letícia! – balançou a cabeça – Seu pai te ama.

- Ele me abandonou quando eu tinha nove anos?

- Essa é a desculpa que você usa para sustentar a sua casca de revoltada. Sabe que não é
verdade, Lê! Dá uma chance pro “veio”!

- Não temos mais tempo. Vou embora depois de amanhã. Fim de papo! – disse e me
levantei. Eric continuou sentado enquanto eu caminhava em direção a saída. Parei.
Olhei para trás – Você não vem?

- Ainda não. Vou descansar um pouco mais.

- Então... Tchau – aquele papo me fazia ficar irritada e eu não queria me desentender
com Eric.

Saí da escola e caminhei lentamente de volta pra casa. Os olhos vidrados no chão.
Entardecer lindo, aquele! O sol fraco ia desaparecendo atrás das montanhas cobertas de
árvores e matos. Aspirei o ar... Tinha um cheiro tão suave. O vento batia no meu rosto e
fazia eu ter a sensação de que uma pessoa invisível me fazia carinho.

Antes de eu chegar no caminho que me levaria até a porteira da fazenda, fui


abruptamente interrompida por alguém que me surpreendeu por trás e me empurrou de
encontro a uma árvore enorme que fazia sombra na bifurcação do caminho. O ser
indefinido tapou os meus olhos e eu sorri ao me virar e dar de cara com aqueles lindos
olhos verdes a minha frente. Sem contar o sorriso suave e sedutor que Alana exibia nos
lábios.

- O que deu em você pra sair das sombras desse jeito e se arriscar dessa maneira? –
perguntei quase... emocionada.

- Saudade! – disse, logo me puxou pela nuca, agarrando forte o meu pescoço e grudando
os seus lábios nos meus. Correspondi ao beijo com desmedido prazer. Agora, sentindo o
seu cheiro e tocando a sua pele daquela maneira, todas as palavras que eu ouvi dela, se
pulverizavam da minha mente feito pó.

- Tá... muito espertinha, viu? – pronunciei com dificuldade devido aos lábios dela
estarem presos nos meus.

- Tem... certeza... que quer voltar para casa, Lê? – pressionou seu corpo no meu. Eu
ficava tonta quando sentia a pele dela tão próxima de mim.

- Preciso de um banho, Alana! Estou suada – disse agarrando-a mais forte pela cintura.
- Então vamos tomar um banho de cachoeira. O que acha?

- De onde tirou tanta coragem, garota?

- Do desejo que está se manifestando bem no meio das minhas pernas – sussurrou me
encarando nos olhos enquanto conduzia a minha mão até o seu sexo quente. Acariciei
por cima da sua bermuda, logo ela mordeu o lóbulo da minha orelha.

“Putz! Me arrepiou inteira”.

- Uau! “Vambora” pra lá então! – iria puxá-la pelas mãos, mas Alana saiu correndo na
frente.

- Quem chegar por último vai ter que pagar uma prenda! – gritou sem olhar para trás.

“Pagar o quê? Uma prenda? Como assim pagar uma prenda? O que isso queria dizer,
meu Deus? Não sei, não quero saber, mas não tenho raiva de quem sabe”.

Acho que pela primeira vez na minha vida eu não sentia raiva de nada, nem de ninguém.
Saí em disparada atrás dela. Pegamos a estradinha de barro batido que chegava a
levantar poeira com aquela correria toda. O barulho da cachoeira estava cada vez mais
próximo...

Quando passamos pelo bambuzal que balançavam, pendendo de um lado para o outro
como se fossem se quebrar, alcancei-a... Estiquei as mãos para tocá-la. Alana gritou e
sorriu. Depois se jogou no riacho de roupa e tudo. Num impulso eu me enfiei dentro
d`água também. O céu alaranjado era um espetáculo à parte. Agarrei-a pela cintura e
beijei-a com fervor. Ela me dava febre.

- Espera! – me afastou com as mãos.

- O quê foi? Ainda tá cedo para se arrepender.

Ela sorriu.

- Sua boba. Não tem perigo, nesse horário ninguém aparece por essas bandas – segurou
meus ombros mantendo certa distância entre nós – Me deve uma prenda. Você perdeu a
corrida.

- Que raio de prenda é essa? – cocei a cabeça.

- Vai ter que fazer algo que eu pedir – disse com os olhos verdes mergulhados num
vermelho cheio de loucura – Não pode se negar, está bem?

- O quê você quiser de mim, alteza! – disse me curvando como um súdito,


reverenciando a sua rainha.

- Quero que tire a sua blusa – mordeu os lábios ao falar, dava pra ver o quanto ela estava
louca de vontades.
Sorri. Olhei para o tecido molhado. Os seios salientes já faziam volume na peça.

- É o que você quer? Só isso? – encarei-a com malícia.

- É! – se jogou para trás, submergindo o corpo na água rasa. Caminhei para a margem e
comecei a brincar com ela, fingi que iria tirar a roupa, mas não o fiz.

- Eu tiro a blusa, mas você tem que cantar pra fazer um clima, tá?

Alana riu. Pensou por um instante e balançou a cabeça negativamente... Fiz um gesto
apontando os meus seios rijos por baixo da blusa, excitada, ela mordeu os lábios
novamente e cedeu.

- Eu canto – disse de imediato.

- Então começa, baby! – ameacei tirar a blusa. Ela aplaudiu. Engatinhando como uma
gata selvagem, aproximou-se de onde eu estava... Começou sedutora...

- “Don't tell me you're sorry cuz you're not

Baby when I know you're only sorry you got caught

But you put on quite a show

You really had me going

But now it's time to go

Curtain's finally closing

That was quite a show

Very entertaining

But it's over now

Go on and take a bow” (Take a Bow – Rihanna)

(Não me diga que está arrependido, porque não está

Baby, quando eu sei que você só está arrependido


porque foi descoberto

Mas você dá mesmo um show

Você realmente tinha me enganado

Mas agora é hora de ir


A cortina está finalmente fechando

Aquilo foi um belo


show

Muito divertido

Mas acabou agora

Continue e curve-se em agradecimento)

Ela dizia. Me instigado... Marcando a música no som das batidas das suas mãos. Fui
tirando a peça devagar... Os olhos verdes e vermelhos de Alana nem piscavam. Ela
cantava, uma voz agressiva... A garota estava cada vez mais próxima de mim. Quando
tirei por completo a camiseta e meus seios ficaram expostos... Senti as mãos dela
escalando o meu corpo. Fechei os olhos e ajoelhei-me devagar...

- Quer que eu tire mais alguma coisa? – perguntei ofegante.

- Não! Deixa que eu tiro para você – sussurrou enquanto metia as mãos no botão da
minha bermuda. Abriu... Desceu o zíper e me deixou completamente nua.

Fiz o mesmo com ela... Nossas roupas foram arremessadas às margens da cachoeira. O
som da água batendo nas pedras nos
instigava a produzir cada vez mais gemidos. Era uma sinfonia de prazer... Amor...
Desespero. Nossos corpos se amaram demoradamente por entre as pedras... Gozamos
intensamente... E o ciclo recomeçaria, porque estávamos famintas uma da outra. Meus
dedos deslizaram para dentro dela enquanto meus lábios se perdiam no seu sexo rijo de
desejo... Alana afastava ainda mais as coxas quando ouvimos o barulho do trote de um
cavalo. Sai de cima dela imediatamente.

- Alguém vem vindo! – sussurrou apavorada.

- Calma! – tentei tranquilizá-la, minhas mãos estavam na altura do seu coração e eu


percebi o quanto ele estava disparado – Fica quietinha e se esconde aqui atrás dessa
pedra, ninguém vai nos ver. Já é noite. Tá tudo escuro – falei no seu ouvido.

Ela se encolheu. Aninhou-se em meu corpo. O barulho das patas do cavalo se


aproximaram. Olhando por cima das pedras deu pra ver quem era.

- Mauricio! – ela disse num impulso. Tapei a sua boca em seguida. Ele não a ouviu.

- Shiiii – falei.

O cavalo fez a volta e o seu trotar deu lugar a uma disparada, se distanciou. Soltamos o
ar dos pulmões aliviadas.

- Meu Deus, Lê! Temos que voltar para casa... Estão todos preocupados... O que vamos
dizer? Nossos cabelos molhados! Vão descobrir... Estou perdida!
Sacudi-a por um instante.

- Ei! Olha pra mim! – ela se recusou. Ergui sua face... – Olha pra mim, eu to falando
com você! – ela olhou – E se descobrirem? A gente tá se curtindo!

Alana não disse nada, apenas me abraçou e molhou os meus ombros com as suas
lágrimas...

Capítulo 20

[13/10/10]

Mauricio distanciou-se de nós. Saímos da água rapidamente. Nos vestimos às pressas.


Nenhuma palavra foi dita. Tanto eu quanto Letícia, em silêncio, pensávamos o que
diríamos em casa. Eu estava nervosa, completamente amedrontada.

“Um ato impensado destrói toda uma vida! Só pode ser castigo!”

Sim! Deus devia estar me castigando pelo pecado que eu, voluntariamente, fui buscar.
Olhei para Letícia que vestia a sua blusa molhada. Ela era o motivo do meu pecado, mas
naquele instante, não senti ódio, nem desejo ao olhá-la, e sim, o meu coração em
chamas. Era uma sensação que se comparava a um prazer quase que celestial. Um bem-
querer inexplicável e inestimável. Jamais senti algo parecido por alguém. Eu queria
odiá-la por ter me desvirtuado daquela maneira, mas simplesmente, não conseguia.

“O que estava acontecendo com a minha vida?”

Todas às vezes que eu fazia amor com ela, não pensava em mais nada senão, em todo o
desespero da paixão que emanava pelos meus poros. Não media as consequências
desses atos, apenas me entregava ao calor do momento, mas quando estava diante do
perigo de ser descoberta, me sentia a pior das criminosas. Pecadora, insensível,
desumana, indigna do amor de um homem que seria tão bom marido.

- Vamos? – disse ela estendendo-me a mão. Segurei a mão de Letícia e me vi


caminhando em passos largos pela estrada escura, iluminada apenas pela lua cheia, a
qual parecia aproximar-se de nós, como uma escolta, na medida em que nos
aproximávamos de casa.

O cavalo de Mauricio estava amarrado em um pé de Jamelão que ficava perto da


escadaria. Tentei ajeitar o cabelo, mas era inútil! Nossas roupas molhadas, sujas e
esgarçadas denunciavam nosso delito. Eu me via a um passo de ser desmascarada e
condenada por todos. Letícia parou no segundo degrau da escadaria. Puxou-me pelas
mãos... Retrocedi um degrau e parei na frente dela. A garota suspirou. Passou a mão de
leve em meu rosto. Involuntariamente, fechei os olhos. Era tão bom sentir aquele
carinho, principalmente por saber que seriam os últimos, eu não queria que fosse, mas
no fundo da minha racionalidade, sabia que precisávamos nos afastar. Minha vida tinha
que seguir e, a dela também.

- Alana... – sussurrou. Parecia estar sem forças para falar – Acho que não dá pra fugir
mais.

Continuei quieta, não sabia onde ela queria chegar. Apertou minha mão.

- Vamos aproveitar o momento... Contar para eles... – seus olhos azuis refletiam a
insegurança das suas palavras que me soaram inadmissíveis.

-
Está louca criatura? Meu noivo me mataria! – indignada coloquei as mãos na cintura -
Minha mãe morreria de desgosto... Eu não conseguiria mais olhar na cara do seu pai! É
impossível, entende?

Ela, quieta, apenas observou a minha reação desesperada. Ao final da explanação, os


meus olhos gritavam: “pavor!”

- Então... Vai lá! – me fitou furiosa, logo soltou a minha mão e saiu desarvorada pelo
pasto, desapareceu na escuridão.

- Brilhante! – debochei de mim – Ela não vai querer ir ao meu quarto nessa última noite
– parei no último degrau da escada.

“O que eu estava dizendo! Como eu podia ser tão egoísta?” Me peguei pensando.

“Será que Letícia nutria algum sentimento por mim? E eu? O que sinto por ela?”

Quando me dei conta, estava de pé, parada no centro da sala. Meu pai, minha mãe,
Mauricio, Augusto, Eric, Bernardo e Iracema olhavam na minha direção como se
vissem uma... aberração. Era assim que eu me sentia.

- Por onde andou minha filha? – veio minha mãe a meu encontro – Você não costuma
sumir assim, estávamos preocupados.

- Dei... Umas voltas... por aí... – apontei uma direção que nem sei qual, por isso, seria
impossível descrevê-la para você.

- Estava na cachoeira, Alana? – Mauricio levantou-se do sofá. Nesse instante, temi que
meus olhos me denunciassem.

- Estivemos na cachoeira – disse uma voz completamente tranquila vinda da cozinha.


Olhei para trás. Era Letícia que segurava nas mãos uma maça. Deu uma mordida na
fruta antes de completar a frase – Apostamos uma corrida e eu perdi. Alana me fez pular
de uma pedra na cachoeira. Torci o pé no pulo, quase me afoguei e ela se jogou na água.
Salvou minha vida, hein garota? – disse e piscou para mim. Não sabia se a agradecia ou
dava um tapa nas fuças dela por me deixar em maus lençóis daquele jeito.

- Passei por lá e não vi ninguém – meu noivo encarou a minha amante como se a
acusasse de estar mentindo.

- Também não o vimos, esteve mesmo lá? – sustentou o olhar. Letícia era tão petulante.

- Foi só... Isso! – entrei na frente deles – Fiz uma brincadeira com a Letícia... para me
redimir... do mal estar que causei hoje pela manhã... – menti e isso me fez baixar os
olhos.

- Você é prisioneira desse cara, Alana? – disse ela irônica e aborrecida, dava para
perceber – Já tá bem grandinha pra ter que dar explicações detalhadas desse jeito.

- Estávamos preocupados com ela sua encrenqueira! Do jeito que você é, poderia
colocá-la em risco a qualquer momento – falou ríspido – Desculpe... Senhor Pedro –
logo voltou a si.

- Que perigo tem dentro dessas terras seu... Seu... Peão!? – fitou-o brava.

- Pára de se exaltar minha filha! – Sr. Pedro caminhou em direção a ela – Machucou o
pé? Você está bem?

Eu quase não acreditei que ele havia sido convencido por uma desculpa tão esfarrapada.

“Será que só eu achava que estava estampado em nossa face o nosso delito?”

- Es...tou bem – vacilou ao dizer – Vou... tomar um banho!

- Também preciso de um banho! – disse num impulso.

- Não demore, minha flor – Mauricio sussurrou perto de mim, enquanto Letícia nos
observava e o viu tocar de leve o meu rosto com a ponta dos dedos, logo ele beijou os
meus lábios e disse: – Precisamos resolver algumas coisas sobre o nosso casamento.

- Está... bem... – desviei a face e dei de cara com os olhos azuis borbulhando de raiva.
Fiquei confusa e incomodada – Me dêem licença! – disse esbarrando no corpo dela que
obstruía a minha passagem. Corri na direção do meu quarto... Letícia veio atrás de mim.
Senti as suas mãos impedirem que eu fechasse a porta. Tive mede de ouvi-la. A garota
soltava fogo pelas ventas. Entrou em meu quarto... Empurrou-me para o meio do lugar...

- Vai discutir sobre o seu casamentinho, é? – falou com deboche.

- Não é da sua conta! – retruquei aborrecida pela forma como ela desdenhou do meu
casamento.

- Não é da minha conta? – alterou o tom de voz – Você passa dias trepando comigo e
não é da minha conta!? Sua hipócrita!
- Fala baixo! – tentei segurar os braços dela. Arredia, a menina se esquivou como uma
fera acuada – Vão nos ouvir desse jeito! – sussurrei.

- Que se dane! Não me importo com ninguém que ta lá embaixo!

Assustada e com medo de sermos ouvidas, baixei a cabeça e tapei os ouvidos. Ela
estava aos gritos... Letícia segurou meus braços com força...

- Ei! Olha pra mim, eu to falando com você! – me sacudiu enquanto falava – Quer que
eu vá mesmo embora? Diz!

Comecei a chorar. Não podia respondê-la naquele instante. Estava com a cabeça
embaralhada, cheia de dúvidas, medos, receios...

- Eu não sei!

- Pois eu vou embora! E, você nunca mais irá me ver, entendeu? – sacudiu-me mais uma
vez – Fica com essa sua vidinha de camponesa! Se enterre no seu preconceito ridículo...
E sonhe todas às noites com os meus dedos, boca, língua... Dentro de você!

- Pára, Lê! Por que está fazendo isso comigo? – disse com lágrimas nos olhos. Ela me
soltou. Passou as mãos na cabeça como se tivesse voltado a sanidade.

- Eu... Eu... – andou pelo quarto como quem está perdida, procurando uma saída
imaginária para a sua fuga.

- Lê! Você está sendo injusta! – segurei-a pelo braço – Gosto tanto de você! – admiti.

- Mas não tem coragem... Não é? – continuou com a fisionomia de quem está sem
paradeiro.

- Preciso preservar a minha vida! – abracei-a – Mas não quero te perder... Pelo menos
essa noite.

- Só quer sexo, não é? – afastou-me dela.

- Não faz assim... Eu...

Retornou até onde eu estava... Encarou-me profundamente com aqueles olhos azuis
provocantes. Encostou a sua testa na minha. Lentamente me conduziu até a parede do
quarto. Me rendi fácil a ela. Letícia pressionou seu corpo no meu. Sua coxa quente no
meio das minhas. Seus seios apertando-me deliciosamente. A calidez do seu hálito
batendo em meu rosto... Enlacei meus braços em seu pescoço e puxei-a para mim. Senti
os seus lábios suaves roçarem nos meus. Eu era dela... Meu coração disparou. Seu corpo
em um atrito sedutor com o meu. Gemi completamente tomada de desejo... Ela voltou a
me encarar... Lentamente tirou as minhas mãos do seu pescoço...

– Preciso de um banho – sussurrou, logo caminhou apressada em direção à porta, a qual


bateu ao sair. Encostei-me na parede e deixei meu corpo deslizar por ela até tocar o
chão. Tirei uns fios de cabelos dos olhos que marejados, faziam-nos colarem em minha
face...

“Eu a amava! Ela me amava! Eu a queria, ela me queria”.

Nos digladiávamos para oprimir aquele sentimento, porque sabíamos que não seria
possível vivê-lo. Éramos muito diferentes! Havia um abismo entre nós.

*****

De banho tomado as coisas pareciam mais claras para nós. Letícia desceu normalmente
para o jantar. Engrenou uma conversa animada com Eric e Bernardo e mal olhava em
minha direção. Ela estava totalmente indiferente. Olhei o relógio em meu pulso, ainda
não eram nem oito da noite e eu estava ansiosa para ir me deitar. Mauricio discutia com
meu pai e Augusto trivialidades do meio rural; Iracema e minha mãe estavam quietas,
assim como eu. Não sei se elas estavam solidárias a mim, ou se haviam percebido o
quanto me chamava a atenção os sorrisos iluminados e sarcásticos de Letícia. A rejeição
dela me corroia as entranhas.

Depois de quase uma hora sentados à mesa de jantar. Passamos para a sala. Iracema
trouxe café para nós. Os homens continuaram conversando. Bernardo se sentou ao lado
de Letícia que disputava uma partida de xadrez com Eric. Não imaginava que ela sabia
jogar xadrez. Mamãe e Iracema me faziam perguntas sobre os preparativos do
casamento, mal consegui respondê-las, estava impressionada demais com a
concentração que Letícia dispensava ao jogo. Enfeitiçada, me levantei e me aproximei
da mesa de granito que comportava o tabuleiro... Involuntariamente, pus a mão nos
ombros dela, a qual, por um instante se distraiu e olhou na minha direção. Fitou a minha
mão em seu ombro e sorriu para mim. Um sorriso tão encantador que não tive como
deixar de retribuir à altura. Sorri de volta, e toda aquela agonia em meu peito, devido a
sua falta de atenção pareceu se dissipar.

- Podiam disfarçar – sussurrou Eric enquanto coçava a barba rala que despontava em
seu rosto.

- O quê? – perguntei duvidando ter ouvido direito o que ele disse. Eric não repetiu,
apenas colocou os cotovelos na mesa e apoiou a cabeça nas mãos espalmadas.
Desconcertada, retirei imediatamente a mão dos ombros dela. A menina fitou-me de
rabo olho e continuou o jogo. Com a respiração sobressaltada, retornei para perto de
minha mãe e de Iracema. Perdida, só demonstrei interesse na conversa quando ouvi a
pergunta de Iracema:

- Tem certeza que quer se casar, minha menina?

- Por que não iria querer?

- Esse rapaz não me inspira confiança, querida – disse a senhora de quase setenta anos.

- O que tem contra o Mauricio? – firmei o olhar. Me dava agonia toda aquela
implicância sem explicação.
- Iracema, por que insiste que Alana não deve casar com esse rapaz? – sussurrou minha
mãe para que não fôssemos ouvidas.

- Não tenho o que falar – desconversou – Só acho que Alana não olha para ele com... Os
mesmos olhos que...

Meu coração disparou. Fitei-a aflita. Não sei o porquê, mas temi profundamente que ela
terminasse a frase. Mas, como se lesse os meus pensamentos, a doce Iracema apertou
minhas mãos entre as dela e respirou fundo antes de continuar falando.

- Com os mesmos olhos que você, Clara, ao se casar com Pedro.

Soltei o ar devagar, aliviada por ouvir o fim da frase da senhora. Eu estava com mania
de perseguição, por um momento havia pensado que Iracema estava se referindo a
forma como eu olhava Letícia.

- São tempos diferentes – mamãe sorriu – Os jovens de hoje acham o casamento algo
ultrapassado.

- Quero me casar, mãe! – disse séria, encarando uma Iracema completamente incrédula.

- E, vamos nos casar minha flor! – disse uma voz vibrante atrás de mim, logo recebi um
beijo na nuca e Mauricio sentou-se ao meu lado no sofá – Viremos morar aqui com o
seu pai... – aumentou o tom de voz para chamar a atenção de todos – Daremos muitos
netos aos meus sogros e seremos o casal mais feliz dessas terras! – ao final da frase ele
beijou-me nos lábios. Não consegui fechar os olhos e vi quando os azuis de Letícia
olharam na nossa direção. Meu pai veio até nós com uma garrafa de vinho.

- Vamos fazer um brinde aos meus netos que virão! – falava animado. Fez gestos para
que pegássemos na mesa as taças que ele enchia de vinho - Letícia, Eric... Venham
brindar conosco. Bernardo, tem um refrigerante aqui, a sua espera.

Letícia veio na nossa direção. Caminhava lentamente... sem desviar os olhos dos meus.
Senti frio, medo, pavor, dor... Desesperança! Ela apanhou nas mãos a sua bebida e foi a
primeira a erguê-la. Disse em bom tom:

- Seja feliz, garota! – não tocou a sua taça na de ninguém, tomou um gole... Depois a
repousou sobre a bandeja e, desarvorada, saiu porta afora. Meu coração sangrou por
dentro. Ela estava visivelmente amargurada, enquanto que Mauricio sorria e
comemorava sozinho... a nossa futura união.

As horas passaram, e Letícia não voltou para casa... Mauricio foi embora depois das
onze da noite. Tomei banho, vesti uma camisola branca. Deixei a porta semi-aberta e
me deitei na cama. Fingi estar dormindo, mas as horas pulavam no relógio e nada de
Letícia entrar por aquela porta. Meu corpo estava pegando fogo, clamando pelo dela. A
possibilidade de não saciar, aquela que seria a última noite de prazer das nossas vidas,
me corroia.
Ela não veio... O sol batia na janela do meu quarto quando eu me dei conta que não
havia pregado os olhos a noite inteira. Ela não veio... Meu corpo sangrou de saudade...

Capítulo 21
[17/10/10]

Era demais pra minha cabeça, viu? Deu vontade de quebrar aquela taça de vinho na cara
daquele peão de merda! Era com aquele sujeito bronco que ela queria se casar? Que se
dane! Atordoada, saí de casa em direção ao galpão. Apanhei um lampião que estava na
varanda... Augusto devia tê-lo preparado para um passeio pela fazenda, era uma ronda
pessoal, uma
vez por semana ele fazia isso para pensar na vida. Hoje, eu quem precisava de uma
ronda pessoal para pensar na vida. Me sentia dentro de uma roda gigante que nesse
momento pendia para baixo. Depois que desci às escadas da varanda apertei os passos.
Só então percebi que os meus olhos lacrimejavam, e...

“Isso é absurdo! Não vou ficar me martirizando por causa de uma mulherzinha
qualquer. Já tive tantas, Alana é só mais uma na minha lista. Não me importo com ela!
Amanhã eu vou embora... Voltarei pra vida real.
Cairei na noite, comerei várias mulheres nas boates cariocas. O que mais eu posso
querer da vida? Pra quê ter apenas uma mulher, se posso ter várias? Isso é... Patético!
Me dá asco imaginar ter somente uma boca pra beijar!”

A luz fraca do lampião me fez enxergar o feno. Me deitei nele, acomodei a luz ao lado
do meu corpo. Tentei fechar os olhos, mas desisti... Eu estava com muita raiva, se
fechava os olhos, única imagem que vinha na minha cabeça era daquele peão beijando
os lábios de Alana. E, eu não
podia fazer nada para impedi-lo de tocar nela.

“Que raiva daquele vaqueiro maldito!”

Bati na madeira, minha mão pegou de cheio numa farpa... Sangrou um pouco, doeu um
pouco... Mas o que parecia doer de verdade era dentro de mim.

Fiquei horas pensando na vida... Deitada no feno, esperando o querosene do lampião


apagar. Ele não apagou, da mesma maneira que eu também não consegui desviar o meu
pensamento de Alana.

“Ela me fez de babaca, não é? Me seduziu! Se aproveitou de mim para satisfazer os seus
desejos, como ela mesma teima em dizer, promíscuos”.

Agora, eu volto pro Rio e ela fica feliz da vida programando os preparativos pro
casamento com aquele jumento em forma de peão. Ri ironicamente. O sangue estava
fervendo. Eu queria me vingar dela! Sim! Precisava me vingar de Alana, e só tinha um
jeito de
fazer isso: ficando na fazenda e fazendo-a se perder na própria tentação.

“Ela tinha que sofrer! Imagina a cara dela, do peão, do meu pai que me largou para
assumir aqueles filhos postiços... A cara daquela mulherzinha que roubou o meu pai da
minha mãe!”

Seria uma vingança que englobaria a todos! Me levantei de sobressalto.

“É isso!”

Sou um gênio. Me gabei e continuei seguindo o meu raciocínio. Depois que eu armar
tudo... Quando eles estiverem sofrendo ao saber que Alana, esse tempo todo teve um
caso comigo, o peão tomará uma lição que nunca se esquecerá; meu pai vai se
arrepender de ter depositado tanto orgulho e confiança naquela que debaixo das suas
asas mergulhou na cama de uma mulher... A Clara, com certeza iria morrer do coração
quando soubesse que a sua filhinha, tão religiosa, andou pecando pelos quatro cantos
daquela fazenda.

Depois de desmontar a vida de todos eles, eu volto pra minha realidade... Sem ela.
Esmoreci. Volto sem ela, claro! Alana vai morrer de raiva de mim, provavelmente vai
abolir a minha existência, mas... Eu terei me vingado! Não é o que eu quero? Cocei a
cabeça enquanto andava de um lado para o outro dentro daquele minúsculo celeiro.

“Mas que merda! Por que estou pensando nisso? Me vingo e pronto! Não tem o porquê
de eu ficar pensando no que aquela traidora irá pensar de mim. Isso não me importa,
oras!”

Respirei fundo. Olhei o relógio e vi que já passava da meia noite. Voltei pra casa. No
meio do caminho o lampião apagou. Parece que com as chamas da sua luz, apagaram
também as minhas esperanças, se é que eu tinha alguma. Nunca estive tão
perdida na minha curta existência. Sempre me achei sabida, mas agora, diante de algo
que envolvia sentimentos tão... estranhos, eu não sabia mais como tomar decisões.
Talvez por isso tenha optado pela vingança. É o que mais combina comigo. Afinal de
contas, sou uma menina má!

Entrei sorrateiramente em casa. Todos estavam dormindo... Caminhei pelo corredor da


parte
superior da casa também em silêncio. Não queria acordar ninguém. Parei de frente a
porta de Alana. Estava semi-aberta. Ela estava me esperando. Dava pra sentir a
quilômetros de distância o calor do seu corpo chamando pelo meu. Coloquei às duas
mãos na porta, depois encostei a face esquerda. Como eu queria entrar naquele quarto e
fazê-la vibrar de prazer.

Minha carne tremia de vontade, mas eu precisava mostrar à ela quem mandava nessa
história. Suspirei e dei meia volta. Abri a porta do meu quarto... Entrei. Me sentei na
cama e antes de me deitar, com as
mãos apoiadas nos meus joelhos, lembrei dos lábios dela; dos beijos quentes que Alana
depositava na minha boca. Seus lábios eram tão macios, doces... E quando ela me
olhava com aqueles olhos verdes, expressando desejo, me arrepiava inteira. Apertei as
minhas mãos no meio das minhas pernas. Visualizei o gesto que aquela insana fazia
mordendo o lábio inferior e me olhando com aquela cara de “nada pura”... Me toquei
mais forte. Agora dentro da bermuda... Por baixo da calcinha... Deitei-me na cama e
gemi pra ela. Cheguei a sentir o gosto do sexo daquela garota. O cheiro da pele...
Cabelos... Visualizei às suas expressões na hora do orgasmo... Gozei desesperadamente.

“Ela me pagaria por ter virado a minha cabeça daquela maneira!”

Fechei os olhos, mas não consegui dormir... O Sol já batia na janela quando senti a mão
de alguém me balançando. Abri os olhos sonolenta. Resmunguei um bocado depois
virei pro outro lado sem me importar com o invasor que me balançava irritantemente.

- Larga do meu pé! Me deixa dormir, droga! – disse irritada.

- Acorda, filha! – sussurrou docemente.

De repente, me virei na direção donde vinha a voz. Apoiei meu corpo nos cotovelos....
Arregalei os olhos...

- Mãe! – disse espantada – O que tá fazendo aqui? – olhei a meu redor, eu ainda estava
no mesmo quarto da fazenda.

- Vim te buscar, oras! – sentou ao meu lado na cama – Não atende as minhas ligações,
Letícia. Seria perda de tempo avisar que eu viria. Sei que está chateada comigo por eu
ter te obrigado a vir passar uns tempos aqui com o seu pai... Por isso vim pessoalmente
te buscar. Estou morrendo de saudades filha!

Terminou a frase e se jogou nos meus braços agarrando forte o meu pescoço. Quase
sufoquei com aquele abraço meloso.

- Pega leve dona Márcia! – tentei me desvencilhar dos braços dela. A mulher me soltou.
Percebi que os seus olhos estavam marejados.

- Senti tanta falta de você, Letícia! A casa fica tão vazia sem a sua presença, meu amor.

- Devia ter pensado nisso quando me obrigou a ficar enterrada nessa merda de lugar. –
levantei-me da cama. Fiz charme... Olhei-a de rabo de olho. Adorava ver a minha mãe
submersa no sentimento de culpa.

- Estou aqui para te levar de volta pra casa – sua voz era pausada, suave.

- Uê! Não queria se livrar de mim? Conseguiu! – esfreguei o rosto – Curtiu a lua-de-mel
com o namoradão?

- Não queria me livrar de você, minha filha! Sabe disso – levantou-se. Parou na minha
frente. Sua face exibia aflição – Do jeito que você estava, temi que acontecesse algo
contigo. Você não parava de ir naquelas rives, todas as noites estava com uma menina
diferente, vivia bêbada pelos cantos... – passou as mãos delicadamente na minha face.
Sorriu calorosa – Sua face está rosada Letícia. Você saiu de lá tão magrinha, parecia
doente, hoje está mais forte, com a aparência de uma
menina saudável...

- Tô forte? – debochei, mostrei meus braços pra ela – Isso aqui foi trabalho pesado, tá
legal? Meu papai me fez jogar feno pro alto, lavar cavalos, consertar mesas e cadeiras
quebradas...

- O quê? – balançou a cabeça numa negativa como se não tivesse


compreendendo.

– É isso aí! Eu virei empregadinha do patrão Pedro. Trabalhei igual burro de carga e
diferente dos outros peões, nem pagamento eu tive.

- Que absurdo! Vou agora mesmo falar com esse louco do seu pai! – disse indignada
indo em direção à saída do quarto. Consegui segurar o seu braço e impedi-la de fazer
um escândalo. Exagerei, não
é? É que adoro vê-la sentindo-se culpada.

- Pera... Péra... Péra... – disse puxando-a para dentro do quarto novamente, logo fechei a
porta que minha mãe havia aberto – Não foi bem assim – baixei os olhos ao dizer.

- Como? – continuava sem entender nada. Eu também estava sem entender nada. Puxei-
a de
repente para junto de mim e a abracei como nunca havia feito na minha vida. Fora um
gesto totalmente inusitado, confesso! Mas eu precisava fazê-lo. Apertei dona Márcia
bem forte e acomodei o meu rosto no ombro dela.

- Leti...

- Fica quieta, tá mãe? – sussurrei no


ouvido dela. Dona Márcia retribuiu o meu abraço e afagou os meus cabelos.

- Está tudo bem, minha querida – disse no meu ouvido – Vou te levar pra casa e...

- Não vou! – Disse firme, irredutível. Sai daquele contato. Segurei nas mãos dela... –
Não vou voltar – reafirmei.

- Enlouqueceu? – franziu a testa.

Respirei fundo. Um saco ter que dar uma explicação, viu?

- Mas que merda! Você não me trouxe pra cá? Não era isso o que queria? – abri os
braços – Pronto! Quero ficar mais um tempo... Só isso!

- Mas... E a faculdade?

- Tranca!

- Nossa casa?
- Não vende!

- Seu quarto, suas coisas...

- Deixa tudo como tá, viu? Não doa nada, tá legal? Tenho apego pelas coisas materiais.

- O quê deu em você? – alterou um pouco o tom de voz – Sempre detestou essa fazenda!
Gosta da vida urbana... O que mudou?

- Dá pra parar de gritar? – dei-lhe às costas. Apoiei as mãos na penteadeira e olhei-me


no espelho. Vi quando ela se aproximou de mim, deu um puxão no meu ombro me
fazendo olhar para ela.

- Olha pra mim, eu to falando com você! – ela disse.

Ao final da frase dela eu sorri. Cocei o canto dos olhos...

– Tá rindo de quê?

- “Olha pra mim, eu to falando com você!” – remendei-a – Costumo falar isso quando
quero a atenção de uma pessoa.

- Somos tão iguais, filha! – amenizou o tom de voz. Passou as mãos na minha face.
Sorri novamente. Acho que naquele instante, algumas coisas ficaram claras dentro de
mim. Tirei as mãos dela do meu rosto e segurei-as na altura do meu peito. Mantive o
tom de voz calmo. Irritantemente e estranhamente calmo.

- Não somos iguais – respirei


fundo antes de continuar falando – A senhora quem não gosta da fazenda. É você quem
curte a cidade, aquela correria louca... Eu... Eu... – parei um instante. Precisava refletir
sobre o que estava dizendo. Me peguei com lágrimas nos olhos, como se a minha frente,
enfim, tudo ficasse claro – Impregnou a minha cabeça com as suas próprias vontades! –
ela deu uns passos para trás - Meu pai foi me ver? – disparei.

- O quê? – me olhou surpresa com a pergunta.

- Quando você me levou embora pro Rio. O meu pai foi me ver? – formulei melhor a
pergunta.

Fitou-me desconcertada. Mexeu às mãos no ar... Ela gesticulava dessa maneira quando
estava sem palavras.

- Sim.

- Por que disse que ele nunca havia me procurado? – irritada, mudei radicalmente o meu
tom de voz.

- Porque tive medo... – engoliu em seco.

- Medo? Medo de quê? – acho que começávamos um discussão.


- De você querer voltar pra ele.

Coloquei a mão na cabeça indignada.

- Mas que merda, mãe! Me deixou pensar esse tempo todo que eu era uma rejeitada? –
balancei a cabeça negativamente – Pode voltar pro Rio, viu? O seu medo de que eu
ficasse aqui, era real. Eu vou ficar! – me vi magoada – Se eu tivesse tido escolha, teria
ficado. Aqui é o meu lugar, mãe!
Estive perdida todos esses anos naquela cidade que nunca considerei como minha.

- Não diz isso, filha! Você era feliz lá! Tem seus amigos...

- Não apela! Você nunca gostou deles!

- Olha... Podemos recomeçar... Eu compro um apartamento maior, o que acha? De


frente pra praia... Você gosta tanto!

- Tenho que ficar! – disse com pesar por ter que admitir, não apenas para mim, mas
também para terceiros os meus sentimentos.

- Por quê? – disse desesperada. Eu sabia que a próxima pergunta seria essa, e eu já
estava com a resposta engatilhada.

- Porque estou apaixonada, mãe! – suspirei ao final da frase.

- Ãh? – olhou-me incrédula.

Antes que eu pudesse respondê-la, ouvimos batidas na porta do quarto, logo uma
sorridente menina entrou carregando uma mala enorme.

- Ludmila!? – disse assustada.

- É hoje que você volta pro Rio, não é? Fugi de casa!

- Então está apaixonada... – disse minha mãe cruzando os


braços e olhando pra nossa cara com deboche. Pus às duas mãos na cabeça em sinal de
desespero.

“O quê eu faço agora?”

- O que foi Lê? Não contou pra sua mãe que iria me levar? – disse ela com a face
atormentada – Prometeu que me levaria pro Rio, lembra?

- Sim, mas... – engoli em seco – Vou ficar aqui. Não vou embora pro Rio... Tão cedo.

- Como assim, não vai? – disse desesperada – Não posso voltar pra casa, meu pai disse
que não sou mais filha dele.
Mereço, não é? Caminhei pelo quarto... Me sentei lentamente na cama, desejando que
nada disso tivesse acontecendo e nenhuma daquelas duas estivessem na minha frente.
Me pus a pensar numa solução. Tô encrencada, não é?

Capítulo 22
[20/10/10]

Caminhei preguiçosa até a janela do meu quarto. A manhã estava linda, o sol vibrando
lá fora, no entanto, dentro de mim, tudo estava tão obscuro que aquela manhã
ensolarada de nada adiantou. Meu peito estava comprimido, latente. Era o dia de perdê-
la para sempre. Nem havíamos nos despedimos... A noite, ela não veio.

Frustrada, debrucei-me na janela do quarto e assustei-me ao ver um carro desconhecido


parado na frente da fazenda. Coloquei a mão na boca e juntei um mais um que deram
dois e...

“Bingo!”

Era o carro da mãe de Letícia.

“Como assim? Ela não avisou que viria buscá-la pela manhã. Meu Deus! Será que não
terei tempo sequer de vê-la partindo?”

Não queria dar adeus através daquela janela. Corri na direção do armário, peguei a
primeira roupa que vi pela frente e vesti. Era um vestidinho verde claro, florido, pouco
usado porque eu achava saliente demais o seu decote em “V”, sem falar das alças finas
que deixavam todo o meu colo nu, e o fato de que ele, o vestido, ficava bem acima dos
meus joelhos. Calcei meus chinelos e esbaforida, angustiada, bati a porta do meu quarto.

O clima estava estranho. Notei um movimento anormal no quarto da frente. Vozes


alteradas. Passei as mãos em meus cabelos como se os penteasse... Ajeitei o vestidinho
minúsculo no corpo.

“Uma vergonha aquele pedaço de pano”.

Afastei a porta devagar. Letícia estava sentada na cama com as mãos nos joelhos; dona
Márcia de braços cruzados olhava para ela e... e... Aquelazinha do inferninho parada no
centro do quarto e segurando uma mala? Completamente estarrecida, admiti que era
fato, ela estava mesmo ali, no quarto de Letícia. A porta fez ruído e as três mulheres
olharam em minha direção...

- Des....culpe! – disse sem graça.

- Olá! Você deve ser a Alana, certo? – dona Márcia abriu um largo sorriso e veio me
cumprimentar. Eu parecia um robô dando beijos no rosto dela.

- Sou... Sim... muito prazer dona Márcia – consegui dizer.


- Acho que finalmente teremos tempo de trocar umas palavras, pelo visto Letícia vai
demorar para arrumar as malas... Já que queria ficar na fazenda por causa da mocinha
ali – apontou na direção de Ludmila.

- Mãe! – resmungou, se pondo imediatamente, de pé.

Colocou as mãos nos bolsos da bermuda jeans escura que usava na noite anterior...
Nossos olhos se encontraram por um instante e eu mergulhei sem reservas, no azul dos
dela.
Cheguei a suspirar quando Letícia me olhou daquela forma tão profunda, como se
quisesse justificar ou me pedir para entender algo que naquele momento, era
terminantemente impossível. Sua fisionomia séria, preocupada...

“O quê Ludmila estava fazendo ali? E aquela mala gigante, era para...”

- Vai viajar com ela? – perguntei num impulso.

- Não! – disse Letícia.

- Sim! – disse Ludmila ao mesmo tempo em que ela.

Dona Márcia sorriu. Puxou-me pelo braço até que saímos do quarto e alcançamos o
corredor. Fechou a porta atrás de nós... Eu estava completamente ignorante aos fatos.

“Será que aquela mulherzinha havia dormido com Letícia?”

Só podia! Por isso ela não tinha ido ao meu quarto à noite. Me deixei ser conduzida pela
mãe de Letícia, mas quase não consegui compreender o que ela tagarelava ao meu lado,
suas palavras se misturavam com os meus pensamentos e faziam eco em meu cérebro.

- Elas têm que conversar, vão se entender e irão às duas comigo para o Rio de Janeiro –
descemos às escadas – Se a minha filha está apaixonada por essa moça, não tem
problema. Que elas fiquem juntas, mas que seja sobre o meu teto... Quem sabe a Letícia
se acalma agora, não é? – demonstrava um contentamento por aquela situação
incompreensível aos meus olhos.

“Como a mãe de Letícia podia aceitar o lesbianismo da filha daquela forma tão
condescendente? Será que ela não entendia que era errado viver esse pecado?”

Descemos de braços dados. Meu pai triste e ansioso fitava-nos do primeiro degrau da
escada. Dei um beijo na face dele e percebi que seus olhos estavam marejados. Tinha
certeza que era porque Letícia voltaria para o Rio com a mãe. Tive dó dele. Eu sabia
exatamente como era difícil admitir que ela iria embora... para sempre! Segurei nas
mãos do meu pai.

- Ela virá nos visitar – disse para confortá-lo. Ele balançou a cabeça afirmativamente.
Pena que, não havia quem me confortasse ou eu pensava que não houvesse. Bernardo
veio correndo da cozinha. Carregava nas pequenas mãos uma rosa branca.
Provavelmente a colhera no jardim que ficava atrás de casa.
- Pra Lê – disse o menino sem que eu precisasse perguntar. Naquele instante, eu me
senti péssima.

Ao mesmo tempo em que sofria muito pela partida dela, sabia que esse seria o único
caminho para me libertar definitivamente daquele domínio que Letícia exercia sobre
mim. De repente meu estômago embrulhou, e eu não conseguia respirar. Estava
sufocada em minhas próprias dúvidas, incertezas... Ela desceu. Ao seu lado aquela
infeliz de vida fácil. Minha face deve ter ficado rubra. Vê-la ao lado de Letícia me
causou um tremendo mal estar.

- Vem cá minha filha! – disse meu pai estendendo os braços para ela. Um clima de
enterro pairava no ar.

- Sem drama, pai! – disse ela se entregando ao abraço do Sr. Pedro que começou a
chorar - Eu não vou! – disparou.

- Como? – como em um milagre, o homem parou de se desmanchar em lágrimas.

- Como assim não vai? – me peguei dizendo. Ela me olhou; saiu do contato com o pai e
caminhou até onde eu estava.

- Vou ficar aqui, Alana – encarou-me profundamente. Não sei o que eu senti naquele
momento. Alívio, desespero... Era um misto de sentimentos antagônicos, tão
inconstantes e incompreensíveis aos meus olhos.

- E a faculdade? – perguntei tentando arrumar um pretexto que a levasse embora do meu


convívio.

- Minha mãe vai trancar.

- Você não... Pode... Lê! – disse num impulso tomada pelo descontrole. Havia perdido
mais que minha compostura, minha sanidade também fora comprometida
fervorosamente.

- Não posso o quê? – aproximou-se de mim. Senti medo daquele olhar azul e gelado –
Diz? Não posso ficar na casa do meu pai?

- Meninas... vocês não vão brigar, não é? – o Sr. Pedro se colocou na nossa frente – Por
que não tentam se entender, agora que terão mais tempo de conviverem juntas?

- Não... Não quero conviver com ela! – eu disse afrontada.

- O que é isso, Alana? – ele estava decepcionado com a minha atitude egoísta e
desesperada.

- Tá vendo? Ela tá louca pra eu ir embora dessa casa – provocou. Ela adorava semear a
discórdia.

- Não é isso, Letícia – tentei me justificar, mas a minha atitude era injustificável.
- Então é o quê? – firmou o olhar.

- Não... Não... Você... Sabe... – me vi perdida. Gaguejei. “Ela queria me forçar a falar?
O que aquela menina queria de mim?” – Me deixa em paz! – disse e saí correndo em
direção à cozinha. Letícia veio atrás de mim, mas eu só percebi quando a sua mão
quente tocou o meu braço me virando bruscamente para ela. Me encarou.

- Eu vou ficar, queira você ou não! – disse puxando-me para junto dela – Podemos
continuar na clandestinidade, o que acha? – sussurrou perto do meu ouvido. Senti o seu
corpo colar no meu. Ela só me soltou quando Eric pigarreou para chamar a nossa
atenção. Me vi completamente desconcertada. Mexi nos cabelos para evitar olhar na
direção do meu irmão.

- Papai quer saber o que fazer com a Ludmila, Letícia! – exibiu um ar de riso – Agora
que você não vai levá-la pro Rio, a menina tá sem ter onde morar. O pai dela é bravo,
não vai aceitá-la de volta.

Cruzei os braços e fixei o olhar na direção da garota. Ela não sabia o que dizer... Coçou
a cabeça... Estalou os dedos, depois respirou fundo...

- Vou... Ver o que faço – disse e saiu em direção à sala. Eu e Eric a seguimos.
Precisavamos saber qual seria o destino daquela mulherzinha fácil.

- Bom... – parou na frente do Sr. Pedro. Ludmila a olhava com esperança. “Oferecida” –
Pai, ela... pode ficar aqui?

- Claro que não! – num impulso, me manifestei. Todos olharam interrogativos na minha
direção.

- Vai me deixar na rua, garota? – se manifestou a desfrutável.

- Calma meninas! Sem brigas – o Sr. Pedro estava pensativo – Você fica hoje aqui na
fazenda, amanhã cedo terei que ir à cidade e falarei com o seu pai, menina.

- Ele não vai me deixar voltar pra casa, Sr. Pedro... A Letícia disse que...

- Tá vendo sua irresponsável? Suas promessas vazias prejudicam a vida das pessoas! –
continuei agressiva.

- Cala a boca, Alana! Pára de me encher o saco! – aproximou-se de mim, pôs o dedo
indicador bem pertinho da minha face – Por que você é tão irritante?

- Fala direito comigo, Letícia! – afrontada, ou melhor: descontrolada, dei um passo a


frente, encarando-a, desafiando-a para ver se ela teria coragem de encostar a mão em
minha face.

- Vem cá vocês duas! – Sr. Pedro puxou-nos pelo braço – Já está resolvido! Parem de
brigar, entenderam? – abaixei a cabeça, Letícia continuou com a dela erguida, não
demonstrava um pingo de respeito pelo pai – A Ludmila vai ficar essa noite aqui,
amanhã cedo irei falar com o pai dela.

- Ela pode ficar no meu quarto – disse Letícia.

- Claro que não pode! Temos um quarto de hóspedes! – disse brava, quase aos gritos.
Olhei para a cara de Eric e percebi que ele estava dando risadas. Quase voei no pescoço
dele.

- O quarto de hospedes estará ocupado pela Márcia, acho que a Ludmila ficará melhor
acomodada no seu quarto, Alana – falou minha mãe.

- O quê? No meu quarto? – coloquei as mãos na cabeça – Não quero essa garota em
meu quarto!

- Não tenho nenhuma doença contagiosa, sua ridícula – se pronunciou debochada.


Como eu odiava aquela vagabunda.

“Deus, eu disse vagabunda! Ai! Disse de novo.”

- Então ela fica no meu, oras! – Letícia puxou a vagab..., digo, menina pelas mãos em
direção às escada, meu coração deu pulos... Eu não iria aguentar saber que as duas
estariam na mesma cama.

- Tudo bem... Tudo bem... – consegui dizer – Só essa noite... Você... – engoli em seco –
Fica em meu quarto.

- Prefiro ficar no quarto da Lê – sorriu ao final da frase. Letícia olhou-a com malícia e
eu quase morri de raiva daquelas duas... pervertidas!

- É melhor que você fique no quarto da Alana – meu pai segurou a bolsa que ela trazia
nas mãos – Eric, leva as coisas da moça para o quarto da sua irmã.

- Claro, pai! – se prontificou de imediato, piscou discretamente para Ludmila e subiu


com as coisas dela.

“Dos males o menor, ela ficaria em meu quarto”.

O dia transcorreu péssimo. Dona Márcia e a vagab..., digo, Ludmila tentavam fazer com
que Letícia mudasse de idéia e fosse para o Rio de Janeiro. Há essa altura, eu não sabia
se queria que ela fosse embora, na companhia daquela desfrutável, ou que ficasse
comigo nas condições atuais, ou seja: às escondidas.

“Que ódio! Elas devem ter passado à noite juntas”.

O dia inteiro me peguei pensando nisso. Martirizada, aproveitei o momento em que


Letícia, aparentemente de saco cheio de tanta insistência para que ela regressasse ao
Rio, deixou-as falando com as paredes e foi até a cozinha... Levantei-me de sobressalto
e discretamente saí atrás dela. Esquivei-me atrás da porta, pois Iracema estava
preparando o jantar.
Letícia me viu escondida, e sorriu enquanto abria a geladeira e se servia de água. Franzi
a sobrancelha e com um gesto de cabeça pedi que ela saísse pela porta dos fundos e me
esperasse lá. Ela ameaçou falar alguma coisa para chamar a atenção de Iracema, e eu,
ameacei sair correndo se o fizesse. Venci! A encrenqueira ficou quieta, acomodou o
copo na pia e saiu pelos fundos. Retornei até a sala, passei pela porta principal, e
correndo, fui ao encontro dela.

A menina estava apoiada num tronco de madeira. Os braços cruzados na altura do peito,
o olhar preso na direção que eu passaria. Suspirei ao me aproximar. Meu coração estava
aos pulos e meus olhos não conseguiam se desprender daquele rostinho angelical e
medonho que ela exibia. Seus cabelos revoltos pelo vento, batiam em seus olhos,
incomodando-a, e davam um charme a mais àqueles azuis reluzentes.

- O que você quer comigo? – perguntou impaciente.

- Dormiu com ela? – fui taxativa. Ela riu, balançou a cabeça negativamente.

- Não é da sua conta – disse.

- Te esperei a noite inteira! Queria me despedir de você.

- Não vou embora, não precisa se despedir – descruzou os braços, agilmente segurou
minhas mãos e me puxou para ela. Meus seios foram de encontro aos dela. Afastei-me
rapidamente daquele contato...

- Está louca? – olhei para os lados para ver se ninguém estava nos espionando.

- Tá com medinho? Te apavora a idéia de alguém saber de nós, não é?

- Será que não pode tentar ser legal e parar de ficar me julgando?

- Legal? Você é a pessoa mais má que eu conheço, Alana! Só se preocupa com o seu
umbigo... Não tá nem aí com o fato de me usar; não se importa com o que os outros
sentem...

- Essas palavras deviam ser minhas! Você é uma menina metida e mimada. Adora
bagunçar a vida das pessoas – respondi ríspida.

- Tudo bem, então concordamos em discordar. Certo? É sempre assim, não é? Você é a
certinha da história e eu sou a rebelde sem causa que decidiu ficar na casa do meu
próprio pai para perturbar a sua vida. É muita pretensão sua, sabia? – me empurrou para
longe dela – Vai se ferrar, Alana! – disse e saiu. Não consegui reagir. Fiquei parada com
as mãos na cintura, olhando-a enquanto desaparecia na escuridão.

O jantar foi marcado pelo silêncio absoluto, nem Eric e Bernardo ousaram dizer uma
palavra sequer. Depois da louça recolhida por Iracema... Chegara então o trágico
momento de dividir uma pequena cama de solteiro com aquela desfrutável da Ludmila.
Tomei meu banho, vesti um pijama e deitei-me rapidamente na cama, puxei o lençol e
dei às costas para ela, a qual em seguida deitou-se ao meu lado. Apaguei a luz do abajur
que estava acomodada sobre o criado mudo ao meu lado.
- Devia parar de negar o que sente por ela – ouvi-a dizer. Acendi a luz do abajur
rispidamente.

- Do que você está falando? – virei-me de frente para ela.

- Morre de ciúmes da Letícia, quando olha pra ela deixa claro o quanto está
apaixonada... Só não vê quem é cego, sabia?

- Olha aqui garota! Não repita isso de novo, nem por brincadeira. Está bem? Você é
uma desfrutável e acha que todas são como você?

- Tá, tá, tá! – balançou as mãos numa negação – Senhorita freirinha, apaga a luz e
esquece o que eu disse. Tudo bem?

Não respondi a sua provocação. Apaguei a luz, virei para o lado e tentei dormir...
Acordei de madrugada... Olhei para o outro lado da cama... Nem sinal de Ludmila.

“Ela só pode estar no quarto da Lê”.

Afrontada, levantei-me da cama num pulo. Descalça, me dirigi até a porta do quarto de
Letícia... Ridiculamente encostei o ouvido na porta, mas não consegui escutar nem um
ruído. Ansiosa, abri a porta e entrei... A escuridão me impedia de enxergar o local, mas
não era só isso, um sentimento esquisito me cegava a razão. Eu queria dar um flagrante
nelas. Desesperada, acendi a luz para que não restassem dúvidas. No mesmo instante...
Letícia, assustada com a claridade abriu os olhos. Olhei ao lado dela... Não havia
ninguém.

Fiquei atordoada, sem graça... Sem saber onde pôr as mãos. Ela? Não disse nada, apenas
levantou-se. Eu... fiquei estática no meio do quarto. Ela... caminhou lentamente até
mim. Eu... tremi com a proximidade cada vez maior de nós duas. Ela... parou a minha
frente, exibindo aquele olhar que me roubava os mais secretos desejos. Eu... só
conseguia olhar na direção daqueles seios rijos por baixo da camiseta branca de malha.
Ela... sorriu. Eu... cheia de desejo, mordi o meu lábio inferior. Ela... me puxou pelas
mãos com força, meu corpo parou no dela. Eu... senti aquele calor que emanava da sua
pele e reagi, enfim... Cai nos braços de Letícia e loucamente suguei a sua língua, que
entrou voraz em minha boca.

Minhas mãos começaram a despi-la com desespero. Eu a queria nua. Precisava sentir a
sua pele em contato com a minha. As mãos dela também buscavam o meu corpo,
apertavam as minhas coxas, subiam pela minha barriga, alcançavam os meus seios...
Seu corpo pressionava o meu de encontro à parede do quarto. Ela me imobilizou, me
esmagou na alvenaria gélida, e começou a devorar o meu pescoço com aquela boca
faminta. Rasgou a parte de cima do meu pijama de malha, arrancou os botões da parte
de baixo... Desceu pelo meu colo. Sua língua quente circulou os meus seios... Eu gemi,
ela sussurrou frases desconexas... As nossas respirações ofegavam. Letícia desceu mais.
Retirou minha calcinha com habilidade, afastou minhas coxas, fez-me jogar a perna
direita sobre o seu ombro e mergulhou... sedenta de desejo em meu sexo que implorava
por ela. Segurei em seus cabelos, pressionando a sua cabeça para que não parasse com
aquele contato. Gemi, me esfreguei na sua face. Gozei loucamente com a sua língua e as
estocadas dos seus dedos dentro de mim.
Caímos na cama... Meu corpo pesando sobre o dela... e continua...

Capítulo 23
[24/10/10]

Alana estava nua sobre mim. Eu sentia na boca o gosto de prazer que havia sido
derramado intensamente. Nos olhamos por alguns segundos... O verde dos olhos dela
queimava de desejo tanto quanto o azul dos meus. Ela era minha, como nos meus
sonhos os quais tantas vezes me alertaram de que aquela seria a mulher cujos encantos
tocariam de fato o meu coração. Ela não sabia o quanto me pertencia, e eu a ela.

Apertei sua cintura e senti o seu sexo ser ainda mais pressionado no meu. Gemi
excitada, enlouquecida de vontades, Alana sorriu de uma forma totalmente maliciosa e
em seguida mexeu o quadril. Deixei um grito abafado ecoar próximo ao seu ouvido, em
seguida abocanhei os seus lábios com os meus frios de uma paixão que me alucinava.

- Você me deixa louca, Alana! – sussurrei enquanto minha boca sugava a dela com
desmedido prazer. Tocá-la, sentir o seu cheiro... Era tudo tão intenso. Como se o ar
faltasse em meus pulmões, sabe?

- Não suporto a idéia de... de... – perdeu a fala quando os meus dedos a preencheram,
mergulhando com facilidade no seu sexo molhado – ... outra mulher sentir o toque das
suas mãos, boca, pele...

- Não quero outra – tirei rapidamente os dedos de dentro dela, não queria que Alana
gozasse ainda, girei o corpo e troquei de posição com ela na cama. Agora era eu quem
estava sobre o dela. Minhas mãos seguravam os seus pulsos sobre a cabeça... Encarei-a
com sinceridade – Só quero tocar em você! – falei firme.

- Me deixa te amar... agora, Lê! – se livrou das minhas mãos e começou a puxar minha
blusa desesperadamente. Inclinei-me para o lado da cama e estiquei os dois braços,
deixei-a tirar. Meus seios tocaram nos dela que já estavam nus e fizeram a nossa pele
queimar uma na outra, aumentando o desejo. Rapidamente Alana puxou o meu short
que escorregou pelas minhas pernas... A calcinha molhada veio junto com a peça.
Tornei a deitar-me sobre ela. Agora nossos corpos nus pareciam um só. Nossa pele
bailava uma na outra, aproveitando cada centímetro de prazer.

Eram mãos e braços, bocas, dentes, cabelos loiros e castanhos que se misturavam,
rolando na pequena cama desesperados para se fundirem um no outro eternamente.
Nossas bocas só se desgrudaram para percorrer o caminho sedutor... na direção do
prazer. De ponta a cabeça nos encontramos... Puxei as nádegas de Alana de encontro a
minha língua que ansiava para saborear o seu líquido ao mesmo tempo em que ela
cravava as suas unhas no meu quadril e mergulhava em mim. Minutos prolongados de
carinhos e tortura... na busca de retardar o momento de êxtase... Naquele instante,
éramos livres para nos amarmos... Gemermos, gritarmos. Nossos músculos tremeram na
mesma intensidade, cientes da eclosão de sensações que despertávamos uma na outra.

Nossa respiração era cada vez mais entrecortada, ofegávamos... Nossas mãos trêmulas
arranhavam as nossas peles em busca de mais contato dos lábios, língua, dentes...
Nossos sexos definiam o prazer. Gozamos e dormimos abraçadas, desta vez sem culpas,
cobranças, sem mencionar o que seria do nosso futuro...

Na manhã seguinte, Alana acordou assustada, pulou da cama e se vestiu às pressas.


Despreguicei-me descompromissada com o horário. A menina parou de frente a cama
em que minutos antes estava deitada - presa nos meus braços como se tivesse medo de
se mexer e o meu corpo escapar dos dela -, e irritada com o meu descaso com as horas,
balançou o meu ombro para me despertar.

- Sabe que horas são, sua preguiçosa?

- Hora de você me dar um beijo – tentei puxá-la pelas mãos, mas não obtive sucesso –
Relaxa, garota! Estão todos dormindo...

- Claro que não, Lê! Já passam das nove da manhã. Perdemos o café... Nós duas... No
mesmo dia, entende?

- A noite foi maravilhosa – ignorei o que ela havia dito, sorri enquanto me levantava,
tentando me equilibrar nas pernas ainda trêmulas. Abracei-a por trás, suspirei –
Perdemos a hora, só isso! Não é o fim do mundo. Ninguém pode nos condenar porque
resolvemos dormir um pouco mais.

- Dormimos juntas, esqueceu? – continuou irritada.

- É, mas ninguém sabe disso – calma, passei as mãos pela sua cintura, apertei-a em meu
corpo grudando os meus seios nas suas costas – Foi demais, sabia? – sussurrei no seu
ouvido enquanto beijava a sua nuca.

- Sua mãe irá embora, Lê... – pendeu o pescoço para o lado ao sentir os pêlos do lado
esquerdo do seu corpo arrepiarem-se. Sorriu delicadamente e afagou as minhas mãos
que estavam emaranhadas na sua cintura – Despeça-se dela.

Ao final da sua frase, girei-a para que ficasse de frente pra mim... Sorrindo disse:

- Não quer que eu vá com ela?

- Você não irá de qualquer jeito – abaixou os olhos num sinal de timidez.

- Não foi isso que eu perguntei – ergui sua face – Olha pra mim, eu to falando com
você! – disse em tom de brincadeira. Eu estava emocionada com a possibilidade de
Alana estar transpondo aquela barreira que ela havia erguido entre nós.

- Não sei como... como... será a minha vida sem você – apenas sussurrou, quase não
ouvi a sua voz ao final da frase.
Abracei-a fortemente, acolhendo-a inteira nos meus braços...

“Não sei o que será da minha vida sem você, sua chata!”

O que deu em mim? Meu coração parecia que ia sair pela minha boca e havia uma
vibração estranha em cada pedacinho do meu corpo. Notei até que uma estranha lágrima
queria rolar dos meus olhos, mas fui resgatada daquele devaneio pelo barulho de alguém
batendo na porta.

- Filha, já está acordada? – disse a voz do lado de fora do quarto.

- Ai meu Deus! – Alana desesperou-se, novidade, não é? – O quê... o quê...

- Entra no banheiro e fica lá até eu despachar a dona Márcia, tá legal? – dei um beijo
rápido nos lábios dela que apenas balançou a cabeça numa afirmativa, logo correu pro
banheiro. Eu ri. Vesti uma blusa e um short qualquer. Abri a porta e dei de cara com
uma dona Márcia sorridente e alegre.

- Essa alegria toda é por que vai voltar pro Rio sem mim? – ironizei.

- Engraçadinha – pediu passagem, eu dei, ela entrou no quarto – Passou um furacão


aqui? – disse reparando os lençóis da cama que estavam praticamente no chão.

- Um daqueles meus surtos de raiva, lembra? Queria ter pulado da janela, mas fiquei
com medo de quebrar os meus dentes, então...

- Sempre cheia de piadinhas, não é filha?

- Tá, desembucha! O quê quer? – passei as mãos pelos cabelos, ajeitei-os atrás das
orelhas.

- Me despedir do meu bebê, oras! – me puxou pela mão, me abraçou e sorriu – Sinto
cheiro de travessura, sabia?

- Pode parando, tá? Sem especulações sobre a minha vida sexual – me desvinculei do
abraço, abri o armário e peguei uma roupa limpa – Vou tomar um banho e já desço.

- A Ludmila também não desceu ainda – olhou pelo quarto como se procurasse algum
vestígio deixado na noite – Aposto que ela está em seu banheiro – sussurrou apontando
a porta de madeira encostada.

- Nem pense em entrar aí dona Márcia! – disse ao notar o perigo daquela aproximação.
Minha mãe sorriu da minha cara preocupada.

- Ora, ora! Fico feliz em saber que finalmente ama alguém de verdade, Letícia! – deu
um beijo na minha testa – Só quero que seja feliz – disse olhando nos meus olhos,
depois me deu às costas e saiu, acenou da porta.

“Amo alguém de verdade?”


Nunca havia parado pra pensar nisso.

“Que besteira! O amor deixa as pessoas bobas... eu não estou boba. Estou?”

Corri pro banheiro e encontrei Alana encolhida no cantinho do box. Sorri, era até
engraçado aquele pavor que ela tinha de ser pega em pleno delito.

- Tá vestida, por quê? – abri o chuveiro fazendo-a dar um pulo e cair nos meus braços –
Geralmente, pessoas normais não tomam banho vestidas.

- Não pode...mos... – seu olhar estava preso nos meus lábios, assim como o seu corpo no
meu.

- Quem disse? – abracei-a mais forte, grudei meus lábios nos dela enquanto nossas mãos
nos despiam com urgência. Eu queria aproveitar cada minuto daquela “febre de desejo”.

Minha mãe foi embora assim que eu desci para me despedir. Não sei bem o que senti ao
vê-la partindo... Não era saudade. Nunca tinha visto dona Márcia como uma mãe de
verdade. Desde a minha infância, ela era muito ausente. Sempre fui cuidada pelas
empregadas, sabe? Passei mais tempo com as faxineiras e cozinheiras do que com ela.
Olhei pra casa da fazenda assim que o carro partiu e percebi - no instante em que Alana
surgiu na janela -, que eu havia feito a coisa certa. A menina sorriu pra mim, um sorriso
tímido... Que seja! Mas que representava uma vitória para quem negava a todo instante
os sentimentos.

“Seria uma evolução do... Amor? “

Depois do almoço, fui com Eric e meu pai na casa de Ludmila... Fomos recebidos por
uma senhora de meia idade que trabalhava na casa. Minutos depois da nossa chegada,
um homem de aparência desleixada apareceu para nos receber. Olhou feio pra Ludmila
que estava encolhida num canto do sofá.

- O que essa desnaturada está fazendo aqui? – perguntou o velho de braços cruzados
como se quisesse se defender de uma ameaça. Ludmila, sua filha, era uma ameaça ou
seria a sua ignorância?

- Zé Antunes, eu vim aqui... – meu pai quem tentou introduzir o assunto – Digo, viemos
para pedi-lo que aceite a sua filha de volta.

- Ela foi avisada que se pusesse os “pé” pra fora dessa casa com essa idéia maluca de ir
pra cidade grande, eu num ia mais “querê” ela de “vorta”.

- Desculpa, pai! – falou temerosa.

- Fica quieta! – ele gritou, ela se calou em seguida.

Percebi naquele instante que a vida de Ludmila era bem mais complicada do que a
minha. Como podemos viver sem diálogo? Ao menos os meus pais me deixavam falar,
embora nunca concordassem comigo. Um misto de sentimentos começou a passear
dentro de mim.
A culpa era minha, não é? Fui cruel ao prometer a Ludmila algo que eu sabia que não
iria cumprir. Senti dó daquele homem parado a minha frente. Ele parecia ser um senhor
limitado, sabe? Daquelas pessoas que só enxergam a sua própria verdade... Cocei a
cabeça... Pela primeira vez na vida me arrependi profundamente de ter inventado uma
mentira só para levar uma menina pra cama. Ludmila era sonhadora e eu usei o seu
sonho para estragar a sua vida. Respirei fundo... Iria começar a falar, mas
surpreendentemente, Eric tomou a palavra.

- Senhor Zé Antunes, eu vim com o meu pai para pedir... pedir a mão da sua filha em
casamento – disparou.

- Ãh? – dissemos eu e meu pai ao mesmo tempo.

- Quer “casa” com essa daí? – perguntou o homem assustado – Falada do jeito que é? –
continuou cada vez mais surpreso.

- Filho...

- Pai, sei o que estou fazendo – disse ao interrompe-lo – Quer casar comigo Lú? –
direcionou o olhar na direção de uma Ludmila atônita.

- Claro, Eric! – sorriu ao dizer, quase pulou no pescoço dele.

- Então... – olhou de volta para o velhinho surpreso – Aceite a sua filha de volta,
ficaremos noivos e em breve nos casaremos... Essa semana mesmo, se o senhor
conceder a mão dela, irei no cartório colocar o papel pra correr.

O velho coçou a barba... olhou pra Ludmila, depois para Eric.

- Você tá prenha, é? – perguntou.

- Não, pai!

- Deixe-me casar com a sua filha! – Eric suplicava – Sou um bom rapaz.

O velho coçou a barba mais algumas vezes...

- Tá certo... Pode casar com ela, garoto – disse – Essazinha vai “vortá” pra casa, mas
que esse casamento seja rápido “caso” que ela dormiu fora de casa essa noite e...

- Prometo que farei a sua filha feliz – disse orgulhoso, como se tivesse recebido de
presente um diamante. Ela também o olhou como se tivesse recebido de presente um
diamante.

Não sei o porquê de ele ter feito esse pedido de casamento, mas era óbvio que o pai de
Ludmila iria aceitar, ele sabia que a filha dificilmente encontraria um homem bom que
quisesse assumi-la como esposa, levando em consideração todos os burburinhos que
envolviam o nome dela na pequena cidade.
Ludmila era uma garota que sabia exatamente o que queria, mas numa cidadezinha
atrasada como aquela, isso era motivo suficiente para que qualquer moça deixasse de ser
considerada séria para casar.

Dentro do carro questionei Eric a respeito do casamento relâmpago. Descobri que o


moleque havia passado a noite com a garota e que estava apaixonado. Suspirava ao
falar. Uma das suas frases foram marcante pra mim, num determinado momento, o meu
pai perguntou se ele tinha certeza do que estava fazendo. Eric respondeu: “Não me
importo com o que ela fez ou quem ela foi antes de mim, me importo com o que
Ludmila será ao meu lado, e eu tenho certeza que ela me fará feliz”.

Queria que a irmã dele tivesse a mesma coragem. Como complicamos a vida, não é?
Eric sabia exatamente o que fazer, por isso pediu Ludmila em casamento. Eu e Alana
sabíamos exatamente o que tínhamos que fazer, mas nenhuma das duas conseguiu dar
um passo a frente em busca da nossa felicidade.

“Mas que droga! Eu não vivo mais sem ela”.

Cheguei à fazenda louca de saudades. Parecia até que eu não via Alana há dias.
Perguntei a Bernardo se ele sabia onde ela estava e o menino me disse que Alana havia
voltado pro quarto depois que saímos, reclamou de cansaço, dor de cabeça, mal estar,
essas coisas que dizemos quando queremos ficar sozinhos. Sorri ao lembrar da noite
cheia de amor que nós tivemos.

“Credo! Eu parecia uma idiota com aquele sorrisinho bobo no canto dos lábios, mas...”

Dane-se o sorriso. Subi as escadas correndo, no entanto, me esquivei atrás da porta do


quarto de Eric que ficava no início do corredor quando avistei... Mauricio?

“O que ele estava fazendo naquele andar?”

Olhei novamente na direção do peão detestável... Ele estava aparentemente assustado,


olhando de um lado pro outro como se temesse ser visto. Fechei a porta antes que ele
me visse. Engoli em seco ao constatar que aquele bronco estava na frente do quarto de
Alana, ou seja: saindo do quarto dela. Notei perfeitamente quando ele ajeitou a manga
da camisa que vestia. Passei a mão no meu rosto e senti meus dedos molharem numa
lágrima que escorria pela minha face petrificada de... ódio e ciúme.

“Ela só quer me usar. No final ficará com ele e eu terei que engolir a felicidade dessa
metida!”

Uma angústia estranha tomou forma dentro de mim. Esperei o peão descer para sair do
quarto de Éric. Avaliando sua fisionomia eu diria que ele estava feliz.

“Claro! Aproveitou a casa vazia e deve ter se esbaldado com aquela vadia no quarto”.

Raiva... Era o que eu sentia, dela, dele, do mundo...

Tomei um banho demorado, depois desci para o café da tarde. Aquele peão maldito
estava na sala com Augusto e meu pai. Passei por eles e sequer os cumprimentei. Iria
direto para a cozinha, queria comer alguma coisa e depois sair para espairecer um
pouco, afinal de contas, eu precisava pensar no que iria fazer da minha vida, pois de
uma coisa eu tinha certeza: Alana não me faria de otária.

“Ah! Isso não!”

Falando no Diabo... Assim que terminei o meu pensamento esbarrei nela, que vinha da
cozinha trazendo uma bandeja com três xícaras de café.

- Não olha pra aonde anda? – perguntei brava.

- Desculpa, Lê... Não vi você... – falou visivelmente surpresa com o meu tom de voz
amargurado e ríspido – Sujou você? – o café havia espirrado das xícaras.

- Quer me queimar agora? Só falta isso, não é? – continuei soltando fogo pelas ventas,
como dizem por aqui.

- Meninas.... O quê aconteceu? – meu pai parou próximo a mim, logo Augusto veio
também.

- Se queimou garota? – perguntou preocupado o senhor que me ensinara a mexer no


feno.

- Essa ridícula que não sabe nem servir um café!

- O quê... o quê... – estava sem saber o que me dizer diante da minha grosseria - Você...
É uma estúpida, sabia Letícia? – irritada, trancou a cara e me encarou como se estivesse
sentida com as minhas palavras.

“Fingida. Tava dando pro outro. Queria o quê? Que eu lambesse também o chão que ela
pisa?”

- Vocês vão começar a brigar de novo? – quis saber meu pai.

- Trégua meninas, por favor – Augusto também parecia preocupado.

- Eu não suporto olhar pra sua cara, sabia? – provoquei. Naquele momento, tudo o que
eu menos queria era encontrar com aquela vadia dentro de casa.

- Fique você sabendo que para mim é uma tortura ter que conviver sobre o mesmo teto
que você sua... Sua... Ignorante... Arrogante... Grossa... Mau humorada... Mau
educada...

- Vai a merda, Alana! – empurrei-a para que saísse da minha frente, a bandeja caiu no
chão, espalhou café no tapete da sala, e eu ainda ouvi quando o meu pai ironicamente
disse:

- “Compadre Augusto, é como dizem os caminhoneiros: quer aprender a viver no


mundo selvagem? Então tenha filhos!”
Dei uma última olhada na direção do peão, ele estava rindo, quase gargalhando. Pisando
forte, fui me sentar nas escadas da varanda... Inquieta, resolvi caminhar pela fazenda na
esperança de esquecer a minha imaginação que não parava de fervilhar dentro da minha
cabeça. Acredita que eu conseguia ver Mauricio e Alana na cama? Isso era uma tortura
horripilante. Dava a impressão de que eu iria morrer a qualquer momento... Morrer de
raiva, se é que me entende.

Capítulo 24
[27/10/10]

Não pude acreditar quando Augusto falou. Pensei ter ouvido errado, afinal de contas,
quem faria uma maldade tão grande como aquela? Meu estômago embrulhou e eu não
consegui engolir nem mais um gole de café. Levantei-me furiosa. Precisava ter certeza
que as minhas desconfianças eram reais.

- Onde vai, filha? – quis saber minha mãe.

- Tirar satisfações com uma certa pessoa – disse e sai pisando forte.

Entrei no quarto de Letícia feito um furacão. Ela ainda estava dormindo.

“Preguiçosa!”

Abri as cortinas para a claridade entrar, sonolenta, Letícia pôs as mãos nos olhos e como
era de seu costume, começou a reclamar da claridade.

- O que você tá fazendo no meu quarto, sua doida? – levantou-se cambaleando.

- Onde esteve ontem a noite? – cruzei os braços na frente dela, impedindo que a garota
viesse fechar as cortinas.

- Não é da sua conta! – esfregou as mãos nos olhos – Você não é minha mulher pra eu
dar satisfações, sabia?

Ansiosa, andei pelo quarto... Sentei em uma cadeira que ficava ao lado do guarda roupa
de Letícia. Eu ainda não conseguia acreditar no que havia acontecido. Coloquei as mãos
nos joelhos em sinal de cansaço.

- A Lua foi envenenada e morreu! – desabafei.

- Lua? Que Lua garota?

- A minha vaca! – alterei o tom de voz – Você sabe muito bem quem é a Lua, não se
faça de desentendida!
- Tá... A vaca não devia saber ler, tomou veneno ao invés de leite, e o que eu tenho a ver
com isso? – disse cínica. Quase voei no pescoço dela, mas ao invés disso, notei que
embaixo da cama de Letícia havia um recipiente azul que gotejava. Inclinei a cabeça
para olhar o que era, abaixei-me no chão e quando me levantei, estava ainda mais
furiosa – O quê foi, Alana? Tem um ET embaixo da minha cama, é isso?

- Tem... – peguei o objeto nas mãos – ... do tipo de veneno muito comum usado para
combater pragas do milho – meu olhar inquisidor denunciava o quanto eu a odiava
naquele momento – Que tipo de ser humano tem a coragem de matar um bicho por
vingança?

- Ei, ei, ei! Pera aí! – pegou a embalagem do veneno nas mãos, olhou, olhou, como se
não soubesse o que era – Nunca vi isso na minha vida, tá legal? Isso já devia estar aqui
antes de eu chegar, oras!

- Não guardamos veneno embaixo das camas!

- Não fui eu! – desesperou-se.

“Era um teatrinho. Que canalha!”

- Você armou tudo, sua... Sua... Desumana! – gritei enquanto que dos meus olhos saiam
um turbilhão de lágrimas. Eu estava com o coração partido. Aquela mulher a minha
frente, que havia me feito descobrir toda a magia e a grandeza do amor, não passava de
uma pessoa cruel, fria, calculista, vingativa... – Por isso foi tão grossa comigo ontem,
não é? Já havia premeditado tudo! Como pôde Letícia? Era só um bicho indefeso!

- Eu não fiz isso! – olhava-me como quem realmente não tem culpa, mas os fatos
falavam por si. Eu tinha provas palpáveis da sua covardia – Alana... – segurou os meus
braços como se assim, pudesse ser mais veemente em sua desculpa esfarrapada – Não
matei a vaca! Eu não gosto desses animais, mas não tenho motivos pra matá-los!
Acredita em mim, por favor... – sussurrou ao final da frase. Seus olhos azuis, tão
expressivos, estavam mergulhados em lágrimas falsas.

“Era uma atriz essa menina!”

- Nunca devia ter me envolvido com você! – dei um tapa nas mãos dela para que
soltasse-as de mim – Não toca em mim! Tenho nojo de você, sabia? – continuei
amargurada – Por que tem tanta raiva de mim?

- Eu não fiz nada... Nem sei o que está acontecendo, sua doida! - colocou as mãos na
cabeça, pensativa, rodopiou envolta do seu próprio corpo.

- Como não? – alterei-me – Ontem brigou comigo assim que voltou da cidade, depois
sumiu pela fazenda, só voltou de madrugada... Ou melhor: entrou nesse quarto as três e
vinte e oito da manhã. Eu estava acordada, tentando entender o que a fez ser tão
insensível comigo naquela tarde – respirei fundo antes de continuar a falar – Esse foi o
horário que você matou a Lua, não foi? – tentei bater nela, mas Letícia segurou os meus
braços e me sacudiu.
- Olha aqui! – me encarou com os olhos tão vermelhos quanto inseguros – Eu não matei
a vaca, está bem? – titubeou um pouco antes de recomeçar a falar – Briguei contigo
ontem porque... – engoliu em seco antes de recomeçar a falar - ...porque não aguentei
saber que aquele peão maldito teve umas horinhas de prazer na sua cama, tá legal? Eu
tava com ciúmes! Pronto! Eram ciúmes de você!

- Como assim “umas horinhas de prazer na minha cama?” Eu nunca dormi com o
Mauricio, sua... sua... Maluca! – passei as mãos pelos meus cabelos, olhei para o chão e
comecei a andar pelo quarto tentando entender o que estava acontecendo – Desde que
começamos com essa... Essa... Nossa... – confesso que não sabia como dizer. Baixei o
tom de voz - ... essa nossa pouca vergonha, eu tenho evitado o Mauricio, mal consigo
beijá-lo.

- Eu vi quando ele saiu do seu quarto ontem a tarde! – disparou com magoa no olhar –
Não precisa mentir. Aposto que você queria descobrir se com ele sente o mesmo que
comigo! – quase gritou na última frase.

Não resisti e direcionei um tapa na sua face, do lado esquerdo. Arrependida, pelo tapa,
não pela minha indignação com as palavras dela, coloquei a mão na boca e dei uns
passos para trás.

- Sua mentirosa! Mauricio não pode ter saído do meu quarto, simplesmente porque ele
nunca esteve lá dentro! – parei novamente de frente a ela, apontei o dedo indicador na
sua face, Letícia continuou a me encarar com aquela petulância de sempre – Me
arrependo de não ter insistido para você ir embora com a sua mãe! Queria te ver longe,
bem longe das minhas vistas... – minha face tremia, minha voz também. Ela continuou
encarando-me, suas expressões tensionadas, a sobrancelha junta na testa, os olhos azuis
firmes nos verdes dos meus, seus dentes trincados dentro da boca – Nunca mais chegue
perto da porta do meu quarto, de mim, ou faça mal a qualquer ser vivo desta fazenda,
entendeu? – ameacei-a.

- Vou te fazer engolir... cada palavra que está me dizendo, Alana! – sussurrou com o
tom de voz se esvaindo pela sua garganta seca.

- Estou cansada das suas armações!

Empurrei-a para que saísse da minha frente. Letícia deu um passo para trás e eu passei.
Voltei para sala enxugando as minhas lágrimas. Fui amparada por Mauricio que havia
chegado naquele momento. Meu noivo, completamente solidário e carinhoso, acolheu-
me em seus braços e pedindo-me calma mexeu em meus cabelos. Senti-me protegida...
Era disso que eu precisava para toda a minha vida: proteção! Só um homem bom como
ele poderia me proporcionar tal coisa.

- Vai ficar tudo bem, flor – sussurrou no meu ouvido. Abracei-o mais forte e chorei
mais forte também. Não sei se eu chorava pela morte de Lua, ou pela decepção que tive
com Letícia.

“Doei o meu coração a ela, por mais medo que eu tivesse do desconhecido, foi a ela que
eu me entreguei, não apenas de corpo, mas também, houve a entrega maior que era a
dos meus verdadeiros sentimentos. Eu a amava”.
- Alana... – chamou-me Bernardo enquanto puxava a borda da minha camisa. Sai dos
braços de Mauricio para dar atenção ao menino. Olhei para ele, o qual estava com os
olhos molhados – Não foi a Lê! – disse ingênuo.

- Bernar...

- Sai pra lá moleque! – interrompeu-me um Mauricio ríspido – Essa menina já tá mais


do que encrencada por aqui. Ninguém pode defendê-la.

Bernardo olhou feio para o meu noivo e pela primeira vez na vida fez uma grosseria
com um adulto.

- Seu peão de merda! Não foi a Lê! – gritou e saiu correndo – Não foi ela! – continuou
dizendo enquanto desaparecia pela porta.

- Está vendo, Alana? Essa Letícia está influenciando o menino – disse afrontado
apontando para a porta pela qual Bernardo passou – Ele vai ficar rebelde como ela, viu
como falou comigo? Temos que ter uma conversa séria com o seu pai!

- Ele... gosta da Letícia – foi só o que consegui dizer. Minha cabeça estava cheia de
pontos de interrogação.

****

Ficamos o fim de semana inteiro sem nos falarmos. Letícia ainda teve a coragem de
bater na porta do meu quarto no sábado e no domingo. Ignorei todas as suas tentativas
de reaproximação. A única coisa que eu queria era passar uma borracha em tudo o que
aconteceu nessas férias e conseguir resgatar a vida simples e perfeita que eu tinha antes
daquela destruidora aparecer por ali. Era difícil, tendo em vista que o meu coração vivia
me traindo, batendo forte a simples aproximação dela, mas sempre que isso acontecia eu
me lembrava de Lua. Se Letícia foi capaz de matar a sangue frio um animal, ela seria
capaz de qualquer maldade para sustentar os seus caprichos. Ela conseguiu assassinar
também, todo o resquício de confiança que eu ainda teimava em nutrir por ela.

Era segunda-feira. Acordei um pouco mais cedo para arrumar o meu material de aula.
Separei em uma bolsa, dois apagadores, giz, uma caixa de lápis, caneta, borracha e
apontadores para distribuir aos meus alunos.

Seria o início de um novo tempo para mim. Voltaria enfim a dar aulas aos meus adultos,
a maioria, trabalhadores rurais de meu pai e das fazendas vizinhas que vinham em busca
de um pouco de instrução. Quando os primeiros chegaram aqui, nenhum deles sabia ler
nem escrever, após dois anos que a escola estava em funcionamento, nossa turma havia
crescido, e todos que frequentavam sabiam escrever e faziam contas. A leitura ainda é
uma das maiores dificuldades por aqui. O único livro que todos têm e trazem para as
aulas é a bíblia, um livro complexo demais para aqueles que nunca tiveram contato com
as palavras.

Desci para o café. Letícia estava sentada à mesa. Não me sentei, apenas peguei uma
fatia de bolo, dei um beijo na testa do meu pai, outro na minha mãe; despedi-me dos
meninos e saí. Andei alguns minutos até a escola. Meus livros nas mãos, o restante
pendurado em uma bolsa que caia pelo lado esquerdo do meu corpo. Entrei no galpão
improvisado ao som de boas vindas:

“Bem vinda professora, Alana!”

“Sentimos saudades das aulas”.

“Consegui ler uma bula de remédio”.

“Calculei os meus gastos do mês”.

“Estou feliz por não ser mais analfabeto!”

Parei diante daqueles homens e mulheres que sentiam alegria pelas suas superações.
Qual será a sensação de alguém que passou a vida inteira sem saber ler e escrever? Deve
ser a mesma de estarmos sozinhos e perdidos em um país diferente do nosso, onde não
sabemos a língua, nem a cultura.... e então, paramos de frente a uma enorme placa, com
letras garrafais, mas não conseguimos saber se nos diz para seguirmos em frente ou se
devemos dobrar a esquerda.

No fim da manhã eu me despedi do meu último aluno, recusei duas caronas de carroça
para casa, e uma no lombo de um jumento. Preferi ir a pé, mesmo com o Sol a pino, na
verdade, eu queria retardar ao máximo a chegada em casa. Não desejava ver Letícia tão
cedo. Acho que minha cabeça e meu coração precisavam de um tempo para se
acostumarem com a falta que eu sentia dela. Arrumei minhas coisas e fechei o galpão.
Assim que me virei para pegar a estradinha de terra em direção à fazenda, dei de cara
com aqueles olhos azuis me encarando.

- Precisamos conversar, Alana – disse e veio atrás de mim. Sim! Saí quase correndo da
frente dela.

- Não temos nada para conversar.

- Ei! – puxou o meu braço, os livros que eu carregava caíram no chão – Desculpa –
disse, logo abaixou-se e os recolheu rapidamente.

- Não quero que me siga, está bem? – apanhei os livros das mãos dela e continuei
andando rápido.

- Que merda! Eu não matei a vaca! – começou a andar ao meu lado enquanto falava sem
que eu me pronunciasse a respeito – Eu vi o peão saindo do seu quarto na tarde em que
fomos levar a Ludmila. Ele tava no corredor, de frente pra sua porta. Queria que eu
pensasse o quê? Meu sangue ferveu... Ficou na minha cabeça a imagem de vocês dois...
sabe? Passei a madrugada inteira remoendo isso, depois voltei pra casa... Estava com
raiva de você, por isso não fui te procurar no quarto... Senti ciúmes, oras!

Parei de andar... Olhei-a de frente e senti ainda mais raiva naquele momento.

- Você é uma mentirosa, sabia? – disparei ríspida – Pára de sustentar essa história de
que viu o Mauricio em meu quarto, ou no corredor, que seja! É mentira! Você não pode
tê-lo visto porque ele nunca esteve lá! Eu nunca o deixaria entrar em meu quarto.
Diferente de você que dorme com qualquer uma, eu tenho os meus princípios e o único
erro que cometi até hoje foi ter me entregado aos desejos que sinto por você! Me
arrependo de não ter me guardado para o meu noivo que jamais mereceu a minha
traição – parei de falar por uns segundos, ela continuou quieta. Olhos vermelhos, cenho
pesado... – Você é má! Muito má! Foi capaz de inventar que sentiu ciúmes de um
Mauricio que só na sua imaginação esteve naquele corredor para ter um motivo que
justificasse a sua crueldade. Mas você deu azar, porque encontrei o veneno embaixo da
sua cama. Devia ter escondido melhor, sabia? – ironizei ao final da frase.

Letícia não tinha mais o que dizer, eu dei as costas a ela e fui andando em direção à
fazenda. A garota não voltou para a casa. A vi novamente no jantar. Silenciosa, mal
tocou na comida. Antes que terminássemos, ela pediu licença e se recolheu no quarto.

Na manhã seguinte, minha rotina era a mesma. Letícia não estava sentada à mesa, não
perguntei por ela. Provavelmente estava prostrada na cama, não fazia nada da vida
mesmo. Era só sombra e água fresca. Tomei café e fui dar aulas no galpão improvisado.
Assim que cheguei, notei que havia uma movimentação diferente. Meus alunos estavam
sentados sobre as carteiras, sorriam muito e comentavam algo entre si. Mais alguns
passos adiante e pude ver que todos eles tinham nas mãos uma espécie de gibi.

- Olha, professora! Isso é supimpa! – disse-me o João, um dos mais velhos da turma.
Sorri para ele, um sorriso daqueles bem amarelos, eu queria saber o que estava
acontecendo, e para minha surpresa, vi Letícia terminando de distribuir para os alunos
aqueles... Gibis. Aproximei-me dela.

- O que você está fazendo aqui?

- Fui a cidade ontem e comprei isto! – suspendeu uma daquelas revistinhas da turma da
Mônica – Eles estão lendo! – falou entusiasmada - Adoraram o Chico Bento!

- Você não tinha o direi...

- Já li essa, me dá outra revistinha Letícia? – disse dona Cândida puxando-a pela


camisa.

- Essa é a última – entregou a que ela havia acabado de me mostrar, depois se voltou
para os meus alunos – Vou trazer outras semana que vem, essas vocês troquem entre si,
pra todo mundo ler, beleza?

Todos concordaram com a cabeça e eu achei aquela manifestação... Produtiva! Mas não
podia permitir que ela interferisse em meu trabalho daquela maneira tão pretensiosa.
Letícia não era aquele anjo de candura que eles pensavam. Ela havia feito um inferno na
vida dos pais, tanto que a mãe mandou-a para cá, tinha também estragado a minha vida,
quase destruído o meu casamento, matado uma vaca e agora queria... queria...

- Já to indo embora, Alana – disse interrompendo os meus pensamentos – Ontem assisti


sua aula pela fresta da porta, notei que eles têm muita dificuldade pra ler e lembrei do
sufoco que eu passava na escola. Só consegui me interessar pela leitura quando uma
professora me apresentou a... Turma da Mônica!
- Você tá brincando, não é? – coloquei as mãos na cintura – Quero ver você longe da
minha escola, está bem?

Ela colocou as duas mãos na frente como quem está na defensiva...

- Tudo bem, tudo bem... Já estou indo embora...

- Vai embora menina? – perguntou um senhor.

- Fica com a gente, ajuda a Alana! – manifestou-se um outro. De repente todos


começaram a pedir que Letícia não fosse embora e me ajudasse a dar aulas. Aquilo me
atormentou, mas... Cedi ao apelo popular, no entanto, a fiz prometer-me que seria só
daquela vez.

Ela parecia outra pessoa na sala de aula. Circulava entre os alunos e fiscalizava os
trabalhos, atenta, de vez em quando parava em uma das carteiras e ficava explicando,
repetindo a mesma coisa até que o senhor, ou senhora sorrisse pra ela e dissesse que
entendeu. Letícia não iria amolecer o meu coração, se era o que estava tentando fazer.

No fim da manhã ouvi o senhor João cochichar no ouvido de Letícia:

- Traz do homem-aranha!

Ela sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Senti vontade de rir, mas eu não daria
esse gostinho aquela petulantel.

- Deixa eu te ajudar com esses livros, Alana – disse já segurando as minhas mãos para
amparar os exemplares. Sentir novamente o toque macio dos dedos dela fez com que
todos os pêlos do meu corpo se arrepiassem, mas eu resisti, puxei a mão, os livros...

- Não quero a sua ajuda – disse seca. Em seguida eu fui para um lado e ela para o outro.

Capítulo 25
[31/10/10]

Os dias passavam e cada vez mais eu sentia a necessidade de provar pra Alana a minha
inocência. Mesmo que nada mudasse entre nós, e ela jamais repensasse os sentimentos
que um dia sentiu por mim. Eu precisava tirar aquele peso das minhas costas. Sei que o
que ela acha não devia ter importância para mim, mas tinha, viu?

A indiferença dela queimava o meu peito. Alana não falava comigo, embora eu
continuasse frequentando as aulas dela na escola da fazenda. Acabei me inteirando à
turma, me apeguei a alguns, me sentia útil, e isso estava, estranhamente, me fazendo
bem. O que fazia mal para mim, eram as noites solitárias que eu passava sem poder
sentir o cheiro e o gosto de Alana. Era uma tortura desejar tanto aquela mulher e não
poder sequer tocar nas mãos dela. A menina estava arredia, evitava ficar sozinha
comigo, e quando isso acontecia, ela só sabia me acusar da morte da maldita vaca e
principalmente, de eu estar enganando os seus alunos. Cruel, julgou que eu estava
ganhando a confiança deles só para ter o prazer de abandoná-los e voltar pra a minha
cidade. Ela teimava em dizer que mais cedo ou mais tarde eu iria embora, mas o que
aquela teimosa não sabia era que ali - naquelas terras que eu tentei esquecer -, era o meu
lugar.

O peão de Alana passou a frequentar mais vezes à casa da fazenda. Sempre que eu
passava para ir com Eric à cidade, os via namorando na varanda. Dava vontade de
desaparecer, ou expulsá-lo de lá, mas acho que me acostumei com essa dor, sabe? Nos
primeiros dias eu ia chorando dentro da caminhonete até chegarmos na casa de Ludmila,
continuava chorando enquanto nós pegávamos a moça e íamos tomar cerveja no
inferninho. O pai dela não reclamava mais ao saber que a filha ia encher a cara naquele
lugar, afinal de contas, ela estava na companhia do noivo.

Apesar de nós não conversarmos abertamente sobre o que havia acontecido entre eu e
Alana, Eric era um bom amigo, sabia o quanto eu estava sofrendo, não me questionava
sobre nada, mas nem precisava, né? Existem sentimentos que ficam estampados na
nossa face, a tristeza é o mais fácil de ser reconhecido.

Três semanas já haviam passado desde que eu vi o peão no corredor dos quartos.
Cheguei em casa mais uma noite bêbada, acho que eu bebia para esquecer Alana, mas
isso não ajudava muito, porque toda vez que eu acordava de manhã, o primeiro
pensamento era ela, só depois eu me lembrava da dor de cabeça.

****

Era de tardinha e eu estava desanimada, sem perspectivas, deitada na rede da varanda


quando tive um insight. Dei um salto da rede, quase cai na madeira lisa que acabara de
ser lustrada por Iracema. Eric e Bê pararam na minha frente...

- Bora perder esse medo de montar, Lê?


– convidou Eric.

- Estou pensando... – disse com as mãos encostadas nas grades de madeira como se
fosse cair – Lembra quando eu disse que o peão estava no corredor dos quartos?

- Eu lembro sim – respondeu Bê de imediato.

- Como eu não pensei nisso antes? – bati na cabeça como se me culpasse.

- Em quê? – disseram juntos.

- É tão óbvio! – balancei a cabeça negativamente, logo sorri da minha descoberta – Ele
não tava no quarto da Alana. – franzi a testa – Ele estava no meu quarto!

- Fazendo o quê? – continuaram fazendo as mesmas perguntas.


- Prestem atenção: Maurício matou a vaca, depois colocou a caixa de veneno debaixo da
minha cama pra Alana me acusar, entendem? – nervosa, elevei as mãos até o meu rosto
– O desgraçado sabia de nós duas! E, do jeito que a coisa tava andando entre nós...
Bom, só tinha um jeito de nos afastar....

- Fazendo você parecer um monstro, Lê! – completou o pequeno.

- Grande garoto! – mexi nos cabelos dele – Tenho que provar pra ela que eu sou
inocente.

- Podemos ir na loja que vende venenos pra lavoura e ver se o Mauricio esteve por lá –
sugeriu Eric.

- Isso não resolve, foi usado veneno pro milho. O papai deve ter esse veneno aqui na
fazenda – desanimei.

- Há muito tempo que o pai não usa veneno na plantação de milho. A pior das pragas
era a larva alfinete que ataca as raízes, geralmente a partir de um mês após a semeadura.
O milho tá grande... O veneno que matou a Lua é o mesmo que combate essa praga.

- Ou seja: essa praga não ataca mais nas terras da fazenda! – voltei a ficar animada. Dei
um beijo barulhento na testa de Eric.

- Isso mesmo, então... Quem comprou o veneno, comprou na loja do Laércio, na cidade.

- Vamos ver Ludmila hoje? – convidei.

- Agora! – disse Eric com um largo sorriso nos lábios – O passeio de cavalos pode
esperar. Escapou de uma, hein Lê?

Apenas sorri. Eu não tinha medo de cavalgar, tinha verdadeiro pavor!

- Eu quero ir também, Lê! – disse Bê com cara de choro – Quero ajudar a provar que foi
aquele malvado quem matou a Lua.

- Vai lá dentro e pede pro pai deixar você ir com a gente pra cidade, moleque! – pisquei
pra ele e recebi de volta um abraço apertado.

- Oba! – saiu
pulando feito um cavalo selvagem.

“Farei Alana engolir cada acusação feita a mim!”

*****

Chegamos à cidade um pouco depois das seis e meia da noite. A pequena loja de
herbicidas e inseticidas já estava para fechar quando corremos até o balcão para falar
com o senhor Laércio, dono e único vendedor do estabelecimento.

- Boa noite Senhor Laércio!


- Boa, Eric – passou por baixo de uma abertura do imenso balcão de madeira – Que
ventos o trazem aqui?

Eric piscou pra mim, percebi que ele sabia como perguntar ao dono da loja sobre o
veneno.

- O Mauricio esteve aqui umas semanas atrás, levou um veneno pra combater a larva
alfinete, o senhor lembra?

O homem coçou a barba, forçou os olhos num ponto fixo como se tentasse se recordar
de algo. Cruzei os dedos com o coração na mão.

- É... – sussurrou - Tem dado essa praga lá na fazenda?

- O Senhor tem mais desse veneno que o Mauricio levou? – insistiu Eric.

- Ele levou desse aqui, olha! – caminhou até uma estante, apanhou um vidro de
embalagem azul. Vibrei por dentro. Eu, Bê e Eric nos olhamos e sorrimos um para o
outro – Vão levar mais?

- Não... Obrigada, senhor Laércio! A gente só queria saber se tinha mais desse veneno...
Prevenção, sabe?

- Mas, seu pai vai plantar mais milho?

-
Talvez, talvez... – Eric apertou a mão do senhor que nada entendeu e nós saímos pela
rua comemorando.

- Que peão idiota! – quase gritei eufórica com a descoberta – Ele me subestimou muito,
sabia?

- Tomara que a Alana não case com ele – disse Bernardo com um sorriso nos lábios.

- Se depender de mim, não vai casar moleque! – falei e suspendi o menino no alto, girei
com ele como se nós dois tivéssemos a mesma idade.

Voltamos pra casa ouvindo a rádio local que só tocava música sertaneja. Eu tinha pavor
só de ouvir falar em música sertaneja, lembram? Pois é! Respeitar as pessoas, as crenças
delas, os seus gostos musicais, sua cultura... Não dói, e se querem saber, a música que
tocava na rádio embora eu apenas tivesse ouvido uma parte dela, entrou tão fundo no
meu coração que eu posso dizer que decorei cada palavra cantada... Dizia:

“...
Mas tudo mudou

Você se foi não sei o que fazer

A dor é uma lição


Que eu nunca quis aprender

Mas no fundo do meu peito

Ainda preciso de você”

(Nathália Siqueira)

Bernardo dormia encostado no meu ombro quando chegamos à fazenda. Eric queria
colocá-lo na cama, mas eu disse que não precisava, sabia que ele estava louco para ir
pro quarto com Ludmila. Apanhei Bernardo no colo e levei-o para o quarto.

“Pesa um chumbo esse moleque!”

Coloquei-o deitadinho na cama, tirei as botinhas de couro dos seus pezinhos. Sorri
achando graça daquele jeitinho de boiadeiro que ele tinha. Pendurei o seu chapéu de
caubói perto da janela. Puxei a colcha e cobri-o. Dei um beijo na sua testa, o menino se
mexeu, virou pro lado e continuou dormindo com aquela tranquilidade que só as
crianças têm...

“Quando será que eu perdi essa tranqüilidade, meu Deus?”

Ouvi o ruído da porta, olhei imediatamente naquela direção e vi Alana parada, olhando
pra nós. Me levantei da cama...

- Só vim saber se ele está bem – disse ela – O Bernardo nunca chegou tão tarde em casa.

- Foi à cidade comigo e com o Eric. Tinha um... Parque meio antigo por lá, levamos ele.

- Olha, Letícia – sussurrou para não acorda-lo – Não quero que faça mal a esse garoto.
O Bernardo é como um filho pra mim.

Aproximei-me dela...

- Acha que eu faço mal as pessoas que estão a minha volta, não é? – admiti triste –
Gosto dele.

- Não importa o que eu acho, só quero que jamais se esqueça de que se machucar o
Bernardo de alguma forma, você vai comprar uma briga feia comigo – disse e saiu do
quarto, como sempre, sem me dar chance de uma réplica. Voltei a olhar o menino que
dormia...

- Você quebrou todas as minhas barreiras, moleque! – sorri.

“Acho que todas as formas de amor... mudam a gente!”

Fechei a porta e pedi a Deus que protegesse aquele menino.


No outro dia de manhã eu não fui à escola em que Alana dava aulas.
Passei boa parte do tempo no quarto de Bernardo. Ele queria me ensinar a dançar
country. Foi divertido, nós rimos pra valer. Posso dizer que há muito tempo eu não me
divertia tanto. No fim da manhã eu mostrei a ele os meus cd`s favoritos.

Eu tinha Isabella Taviani, Maria Gadú, Ana Carolina, Zélia, Cazuza, Legião, e outros
que eu havia trazido comigo. Lembrei-me que eu precisava pedir que minha mãe me
mandasse mais algumas das minhas coisas, tais como: roupas, cd´s, livros... Bernardo
disse que não costumava ouvir nenhuma daquelas músicas, a cidade respirava o ritmo
sertanejo. Discutimos sobre boa música e eu prometi a ele que quando nós fossemos ao
Rio eu iria levá-lo a uma big loja de cd´s aonde poderia conhecer todos os ritmos do
mundo.

“Se vai dizer que não gosta de algum ritmo, tem que ouvir primeiro”.

Eu estava desligando o radinho de Bernardo quando Eric bateu na porta do quarto.


Entrou segurando nas mãos de Ludmila.

- Êeeeeee casal! – dissemos eu e Bernardo, assoviamos quando eles entraram.

- Tá o maior calor, vamos dar um mergulho na cachoeira? – chutou uma bola de futebol
na minha direção – Vôlei na água!

- Com uma bola de futebol? – debochei – Legal!

- Oba! – disse Bernardo pegando uma bermuda de banho no seu armário.

- Vamos, Lê? – chamou Ludmila.

- Vou sim, só esperem um minuto que vou trocar de roupa, tá?

- Você tem um minuto! – disse Bernardo me empurrando para eu me apressar.

- Calma aê moleque! – caminhei até a metade do corredor, depois voltei até a porta do
quarto do menino – Não vou demorar – disse brincando com os três.

- Já ta demorando, Lê! – Eric tacou a bola na minha direção, me esquivei e deixei-a


rolar pela casa.

*****

Estávamos descendo as escadas da varanda, falando alto, sorrindo, jogando a bola um


no outro quando esbarramos em Alana que chegava da escola. Nossos olhares se
cruzaram imediatamente. E, num reflexo, segurei nas mãos a bola que Bernardo havia
jogado na minha direção. O menino correu até Alana e jogou-se nos braços dela, que o
amparou com uma das mãos, pois a outra estava
ocupadas com livros.

- Vamos pra cachoeira com a gente?


Encarei-a... Recebi de volta um olhar que não deu para decifrar direito. Ela me olhou de
cima a baixo, eu estava vestida com um short e a parte de cima do biquíni, carregava
nas mãos uma toalha.

- Não poderei ir.... Tenho umas coisas para fazer – disse, deu um beijo em Bernardo –
Me dá licença, Letícia!

Fiquei imóvel na frente dela sem conseguir que meus pés me obedecessem... Respirei
fundo ao olhá-la tão de perto, mas senti-a tão distante.

- Não pode fazer a vontade do menino ao menos uma vez? – ousei dizer.

- Pára de tentar se fazer de boazinha na frente dele! – disse ríspida, logo me deu um
empurrão que se não fosse por Eric, eu teria caído da escada.

- Não esquenta, Lê! – disse Bê estendendo a mão para que fossemos até a cachoeira –
Ela vai saber a
verdade.

“Talvez seja tarde de mais”.

Tentei manter os meus pensamentos longe de Alana, da rispidez com que ela me tratava,
das grosserias cotidianas, no entanto, tudo me lembrava ela. Quando paramos a beira da
cachoeira, a primeira coisa que eu vi foi a pedra em que fizemos amor. Uma lágrima
rolou lentamente pela minha face, e foi nesse instante que Ludmila e Eric jogaram água
em mim, a qual caiu no meu rosto e apagou os vestígios das lágrimas... Bernardo veio
por trás e me derrubou na água, a partir daquele instante eu liguei o botãozinho do foda-
se e tentei me divertir com as pessoas que realmente queriam me ver alegre.

Ainda bem que Ludmila lembrou de trazer uma cesta com bolos, doces, biscoitos e suco
para nós, porque só lembramos de ir embora quando a noite deu seu sinal no céu.
Fomos correndo, chutando a bola um pro outro como um time de futebol. Confesso que
a tarde foi bem divertida, mas facilmente estragada quando entramos na sala e Alana
estava com a sua mãe, Iracema e meu pai vendo o maldito enxoval de casamento.

Meu pai falava sobre a festa, cheguei bem na parte em que ele perguntava quantos
seriam os convidados. Visivelmente abalada, não consegui disfarçar, joguei a bola pela
porta da frente, ela quicou até cair no gramado... As lágrimas que eu havia segurado na
cachoeira vieram à tona de uma forma inimaginável, e a única saída que eu encontrei,
foi a de correr para o meu quarto, deitar na cama com a cabeça mergulhada no
travesseiro, na tentativa de afogar a minha dor e chorar como uma criança que vê seu
brinquedo quebrado. Nesse caso, quebrado estava o meu coração.

Alguns minutos em silêncio com a minha angústia... Ouvi a porta do meu quarto se
abrindo lentamente. As luzes foram acesas e eu senti que alguém havia sentado ao meu
lado. Ergui a cabeça pra ver quem era... Senhor Pedro, meu pai. Ajeitei-me na cama,
enquanto enxugava o rosto molhado.

- Acho que está na hora de termos uma conversa, filha! – disse ele com o semblante
calmo... Sereno.
- Não sei onde o senhor quer chegar.

- Acha que sou tolo? – balançou a cabeça numa negativa – Há tempos já sei o que está
acontecendo entre você e a Alana.

Fitei-o assustada, ou melhor: surpresa. Ele continuou falando.

- Não me meti antes porque achava que vocês duas tinham que resolver esse problema,
sem a interferência de ninguém.

- A gente se odeia, só isso!

- Não... vocês não se odeiam – esticou a mão e conteve uma lágrima teimosa que
escorria pelo meu rosto – Sei que está sofrendo por ela. Não posso pedir que Alana
abandone o Mauricio, mas também não posso fechar os olhos e ser indiferente com a
sua dor.

- Pai... – ao dizer essa frase eu perdi totalmente a compostura, pulei nos braços dele e
chorei como eu nunca havia feito antes. Ele fez carinho nos meus cabelos.

- Chora, filha! Pode chorar no colo do seu pai... Isso vai passar, confia em mim, está
bem? – puxou minha face para me olhar, percebi que seus olhos estavam vermelhos,
assim como os meus – Vai passar, meu amor... vai passar... Eu estou aqui, e vou estar
sempre que você precisar.

Senti-me protegida, acolhida, amada... Ao contrário do que pensei, eu tinha um pai.

Capítulo 26
[03/11/10]

Quando eu vi os olhos vermelhos de Letícia, olhando-me naquele começo fatigante de


noite, como se não houvesse ninguém a minha volta, senti-me esmorecer e minha
fisionomia se modificou simplesmente porque estava sendo desgastante demais omitir
aqueles sentimentos revoltos dentro de mim. Eu a odiava por ser uma pessoa tão
premeditada e covarde, no entanto, não conseguia ser indiferente ao que ela
explicitamente sentiu ao nos ver reunidos, falando do meu casamento com Maurício.

“Suas lágrimas podiam ser tão falsas?”

Não consigo dizer se eram lágrimas de amor ou de ódio por ela ter perdido a sua
diversão, no caso: eu! Suspirei logo que meu pai levantou-se, pediu licença e subiu as
escadas em direção ao quarto dela. Os meninos e a noivinha do meu irmão foram em
direção à cozinha depois que minha mãe e Iracema fizeram um gesto com as mãos
pedindo que eles nos deixassem a sós.

“Elas queriam conversar?”

Eu não queria conversar.

- Que carinha triste é essa, minha filha? – disse segurando as minhas mãos.

- Devo estar... nervosa com a proximidade do casamento – respondi baixando os olhos e


tentando segurar a vontade de chorar.

- Não queria que você se casasse com aquele moço – falou Iracema repetitiva.

- Por que detesta tanto o Maurício? – questionei embora soubesse que ela sempre
desconversava quando nós tentávamos aprofundar o assunto – Tem que haver um
motivo!

- Não gosto dele, só isso!– ajeitou-se no sofá a minha frente – A menina Letícia não
quer que você case.

- Ela... ela... – fiquei um pouco surpresa – Não tem que querer, oras!

- Filha... Vocês duas... – minha mãe aproximou-se um pouco mais de mim. Estava
desconcertada.

- Mãe! Não existe nós duas! – respondi ríspida.

- Como está esse seu coraçãozinho? – ao ouvir a pergunta de Iracema, tive a impressão
de ter mergulhado alguns minutos no silêncio da minha dor. Meu coração estava
dilacerado. Odiava admitir, mas acho que o fato de Letícia ter envenenado Lua, foi a
desculpa que eu precisava para me afastar dela, e principalmente, tentar esquecer tudo o
que havia acontecido e assombrava tanto os meus dias. Agora, como em um pesadelo,
Iracema e minha mãe tentam me fazer reviver os momentos que vivi ao lado dela.

- Está bem – respondi seca.

- Ama o Maurício, Alana? – minha mãe firmou os olhos nos meus, senti frio, medo,
desespero, vontade de gritar.

- S...sim. Ele... é o homem da minha vida, e é assim... que serei feliz.

- Não acha que devia esperar um pouco mais para se casar? Esse moço não parece que
tem chance de te fazer feliz.

- Que implicância boba, Iracema! – levantei-me, coloquei as mãos na cadeira e firmei o


olhar numa direção que não sei qual. Temi perguntar onde elas queriam chegar com
aquelas perguntas sem fundamento.
- E Letícia? – perguntou minha mãe enquanto se levantava e parava à minha frente – O
que sente por ela, filha?

- Na...da! – apavorei-me diante daquela pergunta, desconfiança... Sei lá o quê! – Não


gosto dela!

- Tem certeza? – segurou minha face e me fez encará-la – Tanto você quanto Letícia...
andam tristes pelos cantos, mal se olham... Te conheço filha e teus olhos me dizem que
está sofrendo.

- Mãe! A senhora está... Achando que eu... e... – balancei a cabeça negativamente – É
errado! Somos duas mulheres, eu... Eu... Jamais te daria esse desgosto, e...

- Alana! – falou mais alto – Não me importa se é errado ou não! Eu preferia que não
acontecesse, mas acho que vocês duas...

- Chega! – quis encerrar a conversa antes que ela tomasse um caminho sem volta – Não
vamos tocar mais nesse assunto, está bem? Não tem cabimento esse tipo de
especulação... Vocês estão me ofendendo, sabiam? – disse brava, incomodada com as
perguntas e desconfianças nítidas das duas. Se elas queriam que eu confessasse os meus
sentimentos proibidos por Letícia, estavam perdendo o tempo delas. Jamais confessarei
tal absurdo.

Deixei-as falando sozinhas. Recolhi meus objetos do enxoval e arrastei-os até o meu
dormitório. Parei por uns segundos de frente a porta do quarto de Letícia: estava
trancada e o silêncio pairava lá dentro.

A semana terminou sem que nós tocássemos novamente no assunto que muito me
incomodava, ou seja: meus sentimentos por Letícia. Por falar nela, a menina continuava
ajudando-me nas aulas. Não aparecia na escola todos os dias, na verdade, eu a via as
terças e sextas, eram os dias os quais ela não tinha obrigações na fazenda.

Meu pai não estava sendo fácil com ela. Letícia continuava com os banhos dos cavalos e
era ela quem organizava o galpão. Ia também à cidade com Eric duas vezes na semana
comprar medicamentos e alimentos que faltavam. Nas horas vagas estava com Augusto
ou Bernardo. O menino parecia sua sombra, de uns tempos para cá era Deus no céu e
Letícia na terra. Eu não conseguia compreender como uma criança podia gostar de
alguém com o coração tão impuro quanto o de Letícia.

“Será que só eu tinha a certeza de que havia sido ela quem matou a Lua?”

Isso era irritante.

Passei a manhã e a tarde de sábado trancada no quarto, deitada na minha cama ouvindo
música num antigo radinho de pilha. Divaguei por várias horas. De olhos fechados eu
lembrava dos beijos de Letícia, das mãos dela pela minha pele, do seu suor escorrendo
pelo meu corpo, da sua voz; sua respiração ofegante, seus olhos azuis feito brasas... No
finzinho da tarde, adormeci sentindo a angustia da saudade.
Acordei com o barulho da música em baixo da minha janela. Com os últimos
acontecimentos e o meu isolamento, eu havia esquecido que era o aniversário de
Augusto e o meu pai havia encomendado um churrasco daqueles bem fartos para a
peãozada toda da fazenda.

Respirei fundo e fui ajeitar-me para descer, embora meu estado de espírito
desencorajado não me deixasse com tanta vontade de festejar naquele dia, seria uma
desfeita incalculável não descer para cumprimentar o bom amigo Augusto.

A noite estava abafada, por isso escolhi um vestidinho verde de alcinhas finas, uma
sandália rasteira bem confortável; prendi os cabelos num rabo de cavalo e para não
exibir o meu total e completo desânimo, salpiquei um pouco de batom em meus lábios
que estavam opacos e sem graça.

Na medida em que eu ia descendo as escadas da varanda, podia ver a animação das


pessoas. Era sempre assim na fazenda, músicos, um palco de madeira improvisado para
as pessoas dançarem, churrasco, chope, sorrisos, brincadeiras para todos os gostos.
Mauricio ainda não havia chegado e isso me deixava mais a vontade para olhar a festa.
Aproximei-me mais um pouco das pessoas, todos os expectadores estavam em volta do
pequeno palco batendo palmas. Fui contagiada por aquela energia boa e bati palmas
também, comecei a sorrir involuntariamente.

Engraçado como as pessoas que estão a nossa volta têm o poder de nos deixarem tristes
ou não, dependendo do seu humor. Avistei Eric dançando com Ludmila, minha mãe
também estava na roda, dançava com o aniversariante, meu pai olhava-os de longe,
sorrindo e entornando uma caneca de cerveja. Mais ao fundo, um casalzinho bem
desproporcional chamou-me a atenção. Continuei batendo palmas, embora não
acreditasse que estava vendo Letícia e Bernardo dançando como duas crianças. Na
cabeça dela o chapéu de caubói dele, os cabelos soltos sob o acessório, nos pés um tênis
All Star azul, uma calça jeans desbotada e coladinha ao corpo, e uma camiseta regata
preta completava o figurino dela, a qual girava o menino que se acabava de rir. De vez
em quando um pisava no pé do outro e mais risadas se propagavam entre eles. Confesso
que eu nunca tinha imaginado ser possível ver Letícia dançando aquele tipo de música,
e mais, divertindo-se a valer.

A música terminou e logo começaria outra, Bernardo me avistou e veio correndo em


minha direção. Puxou-me para que eu subisse no pequeno palco de apenas um degrau.

- Dança com a Lê! – disse entusiasmado – Ela aprendeu, Alana! Aprendeu direitinho!

Quase não acreditei no que estava ouvindo, parecia tudo tão surreal. Parei na frente
dela. Seus olhos azuis alcançaram os meus como se me desmoronasse por dentro. Senti
as mãos delicadas de Bernardo me empurrando de encontro a ela. Nos chocamos uma
na outra, pois Letícia não fez a mínima questão de afastar-se de mim, pelo contrário,
segurou minha mão com firmeza, logo pôs a outra na minha cintura.

- Não devemos dançar assim – tentei afastar-me, mas minha mãe, sorridente, parou com
Augusto ao nosso lado e maneou a cabeça dizendo que nós deveríamos dançar. Tive a
impressão de que aquilo não estava acontecendo, parecia um filme... de terror!
- É só uma dança, filha!

- Não fica bem... – tentei argumentar.

- A maldade está na cabeça das pessoas, só na cabeça das pessoas... – dizendo isso, saiu
rodopiando com Augusto.

A música começou... Animado, Bernardo disse algo para Letícia que eu não consegui
entender muito bem, ou melhor, compreender o que significava.

- É a música que tocou no carro... A música preferida da Alana – disse e depois saiu
correndo na direção de Eric que ao lado de Ludmila, nos olhava exibindo os dedos
cruzados, nem imagino o porquê.

“Seria um complô declarado? Eu não podia e nem queria perdoá-la. Ninguém entendia
isso?”

Era tão perfeito

Era como um sonho bom

Tudo o que um dia eu desejei

Nosso amor era tão lindo

Poesia em uma canção

O mundo era só eu e você

Enquanto a música tocava, meu corpo era cada vez mais pressionado ao dela. Eu sentia
o calor de Letícia queimando a minha pele, seu cheiro me impregnando inteira. Agarrei-
a mais forte. Senti a sua boca roçar de leve o meu pescoço... A música continuava...

Mas tudo mudou

Você se foi não sei o que fazer

Pra continuar a viver

[refrão]

Você me ensinou amor

Você me ensinou paixão

Tocou tão fundo minha alma

Mas machucou meu coração


Não sei se um dia vou amar alguém

Como amei você

Tudo de bom que eu aprendi

Hoje só me faz sofrer

- Estou com saudades de você, Alana – sussurrou em meu ouvido. Minhas pernas
começaram a falhar ao ouvir a sua voz.

- Acabou, Letícia! – disse seca, com um pesar incalculável na voz. A música continuou.

Outro dia outro amanhecer

Outra chance pra curar a dor

Quem sabe aprendo a te esquecer

Quantas lágrimas que eu chorei

E as noites que eu nem dormi

Esperando só você voltar pra mim

- Queria que você acreditasse em mim... Sem que eu precisasse te provar que sou
inocente – continuou sussurrando em meu ouvido. Meus pêlos se arrepiaram ao sentir o
calor do hálito dela, tão próximo ao meu pescoço.

- Você jogou sujo comigo, quis vingar-se de mim, matou um animal para provar o que
eu já sabia, ou seja: que você é uma pessoa ruim.

- Não envenenei aquela vaca, Alana! Eu não seria capaz de uma maldade dessas... –
afastou a cabeça do meu ombro, buscou o meu olhar – Acredita em mim, não me faça
ter que te provar que sou inocente, porque se a minha palavra não basta pra você, não
acreditarei mais no nosso amor.

Olhou-me com aqueles olhos de súplica que em outros tempos teriam amolecido o meu
coração. A música continuou...

[refrão]

Você me ensinou amor

Você me ensinou paixão

Tocou tão fundo minha alma

Mas machucou meu coração


Não sei se um dia vou amar alguém

Como amei você

Tudo de bom que eu aprendi

Hoje só me faz sofrer

Fiquei em silêncio por alguns minutos.

“ Que diabos! Porque era tão importante para ela o que eu achava? Letícia era apenas
uma menina mimada e arrependida das suas bobagens. Quem mais poderia ter
envenenado a Lua? Não! Eu não acreditava na sua inocência, depois de tantas mentiras,
era realmente difícil acreditar em alguém... Como Letícia.”

A música continuou...

Mas tudo mudou

Você se foi não sei o que fazer

A dor é uma lição

Que eu nunca quis aprender

Mas no fundo do meu peito

Ainda preciso de você

- Você ainda precisa crescer muito, menina! – disse irritada com a sua chantagem barata
para tentar me fazer acreditar nela - Não pode fazer o que bem quiser com a vida das
pessoas. Somos responsáveis pelas nossas escolhas, Letícia! Você escolheu que todos
sempre duvidassem da sua honestidade.

- Você me ensinou amor – repetiu um trecho da música. Os olhos marejados, certamente


na tentativa de me enfraquecer, e sim! Eu estava deveras enfraquecida.

- Não acredito em você! É o que quer ouvir? Não acredito em você! – disse, em seguida,
antes que a música terminasse, deixei-a sozinha no palco. Eu precisava de água para
aplacar toda a angustia que eu sentia ao lado dela.

[refrão]

Você me ensinou amor

Você me ensinou paixão

Tocou tão
fundo minha alma
Mas machucou meu coração

Não sei se um dia vou amar alguém

Como amei você

Tudo de bom que eu aprendi

Hoje só me faz
sofrer

Depois de chorar escandalosamente dentro do banheiro do meu quarto, cobrir as marcas


de tristeza com um pouco de maquiagem, e embebedar-me com litros de água. Assim
que desci as escadas, de volta à festa, algo me chamou a atenção. Avistei Eric e
Mauricio indo em direção ao celeiro. Eu sequer sabia que Mauricio havia chegado.
Segui-os sem que me vissem.

Mais estranho ainda foi ver que o galpão estava iluminado por um lampião. Eles
entraram, aproximei-me... Esquivei meu corpo atrás da porta de madeira e olhei através
de uma fresta. Fechei um dos meus olhos para ver melhor dentro do ambiente. Fiquei
deveras intrigada quando ao fundo, estava Letícia e Bernardo.

“O que estava acontecendo?”

Mauricio riu ao avistá-los, e fez um gesto informando que sairia do local, mas Eric o
impediu, bloqueou a sua passagem com o corpo.

- Aonde vai peão? – ouvi meu irmão dizer.

- Não tenho nada que conversar com vocês, pirralhos! – respondeu ríspido.

Letícia aproximou-se dele.

- Acha que sou tão idiota que não descobriria o seu planinho? – deu um tapa no ombro
do meu noivo, Mauricio revidou, empurrou-a, mas ela quase não se moveu.

- Não sei do que você está falando, garota!

- Não sabe mesmo? – Eric quem tomou a palavra – Estivemos na loja do Sr. Laércio.
Descobrimos que você esteve lá comprando um veneninho pra praga do milho, um de
embalagem azul igual ao que você colocou embaixo da cama da Letícia.

- Endoidou moleque? – sorriu debochado.

- Eu vi você no corredor dos quartos, um dia antes da Lua ser envenenada – falou
Letícia com o olhar furioso – Pensei que você estava saindo do quarto da Alana, mas
não! Seu peão vagabundo, você entrou no meu quarto, seu merda! Colocou aquela
embalagem vazia de veneno lá pra Alana pensar que eu matei a vaca.

- Você matou a vaca! – gritou Mauricio completamente descontrolado.


- Ela não matou, não! – Bernardo disse e foi correndo na direção dele, chutou-lhe a
canela. Mauricio avançou indo de encontro ao menino, mas Eric e Letícia o impediram,
Eric segurava nas mãos um garfo de ferro, e o ameaçou. Fiquei boquiaberta com a cena,
mas não tive coragem de interferir. Eu estava confusa e perplexa demais.

- Não vai bater no garoto não, viu? – disse Letícia.

Mauricio riu.

- Vou falar com o seu pai que você está sendo uma péssima influência pra esse
moleque. Sabe o que vai acontecer contigo, Letícia? – sorriu novamente, ainda mais
sarcástico – Você vai voltar pra sua cidadezinha, e eu vou me casar com a Alana.

- Diz uma coisa... – Letícia firmou o olhar, encarou-o – Você sabia da gente, não é?

- Achava o quê? Que eu iria perder a minha mulher pra uma fedelha como você? –
apontou o dedo na direção dela, que não se intimidou – Eu te avisei no aniversário do
seu pai pra ficar longe dela, lembra? A Alana te odeia! Você matou o bichinho dela, não
pode provar que fui eu.

Assustada, coloquei a mão na boca, não esperava ouvir aquela que parecia ser, uma
confissão. Deus! Todos sabiam de nós: Iracema, minha mãe, Augusto, meu pai...

“E, se Letícia é inocente, que tipo de homem é o Mauricio?”

- Você nunca vai apagar o que nós duas vivemos – Letícia continuou falando. Tornei a
olhar pela fresta na madeira e a vi chorar. Meu coração ficou despedaçado e quando me
dei conta, minhas lágrimas também molhavam o meu rosto.

“Como pude ser tão injusta? Acreditei nos fatos e feri os sentimentos de alguém que não
merecia, logo eu que gosto de ser justa com as pessoas”.

- Vai chorar na cama que é lugar quente, garota! – ajeitou o chapéu na cabeça – Vou ver
minha noiva que eu estou louco de saudade, e... – deu uma parada antes de sair do
galpão, escondi-me atrás de uma árvore para não ser vista – Você bem que podia tomar
vergonha na cara e voltar pra sua cidade, vai ser muito desagradável que fique para o
nosso casamento.

- Seu desgraçado! – Letícia partiu para cima dele, mas Eric e Bernardo a seguraram.

Ainda escondida, observei Maurício caminhando calmamente, com a sensação de


impunidade, em direção a festa. Olhando-o se afastar naquele momento eu não sabia o
que sentia, embora tivesse a certeza de que nunca o amei.

Entrei devagar no galpão e deixei que o trio me visse. As lágrimas rolando no rosto...
Os meninos tentavam consolar Letícia que estava ajoelhada no feno. Me olharam. Ela se
levantou, me encarou com a face dura.

- Eu... Eu...
- Bora pra festa, Bê! – disse Eric para nos deixar a sós. Os dois passaram por mim,
sequer olharam em minha direção.

- Ouviu? – ela suspirou ao dizer.

- Eu nunca... Imaginei que ele soubesse – sussurrei.

- Eu nunca... Imaginei que precisaria jogar na sua cara a minha inocência.

- Letí...

- Eu te implorei pra acreditar em mim, Alana! – disse ao me interromper.

- Descul...pa.

- Desculpa não passa a dor que eu senti quando você, olhando nos meus olhos, teve a
coragem de achar que eu estava mentindo e, me acusou de uma maneira tão cruel.

- Você...

- Não agi bem desde que cheguei, mas se é verdade que o amor muda as pessoas, ele
está me mudando, viu? Mas isso não importa mesmo. Agora vai lá e se casa com o seu
noivinho assassino – passou por mim, mas parou no meio do caminho – Tudo o que eu
não queria era que fosse necessário provar pra você que eu estava falando a verdade –
engoliu em seco – Alana, você teve o melhor de mim.

Ela simplesmente não me deu o poder da palavra, sequer um minuto para defesa. Não
insisti, Letícia estava magoada demais. Deixei meu corpo cair no feno, abracei os meus
joelhos e fiquei pensando em minha vida.

“Deus! O que eu faço? Ilumina os meus pensamentos e me aponte uma saída, porque
não é justo que o senhor me ponha à prova desta maneira”.

Capítulo 27
[07/11/10]

“Acabou!”

Foi o que pensei quando encostei a porta do meu quarto naquela noite. Me deitei na
cama e fechei os olhos. Um turbilhão de sensações me assaltava os sentidos. Sem
querer, com um empurrãozinho do destino, ou sei lá o quê! Eu havia finalmente
provado que estava limpa naquela história do óbito da vaca. Um bicho que mugia, para
Alana, valia mais do que a minha palavra.

Reservei uns minutos daquele momento de alívio para pensar na minha vida. Em tudo
de bom e de ruim que eu fiz por ela, quero dizer, pela minha vida. Sabe a que conclusão
eu tinha chegado? Odeio admitir que errei muito mais do que acertei. Nossos atos nos
colocam a prova a todo o momento, os meus, sempre amargurados. Talvez por isso,
quando eu mais precisei que alguém acreditasse em mim, eu não consegui alcançar a
credibilidade. É agonizante, como se faltasse o ar e não pudéssemos pedir socorro.

Alana me decepcionou duvidando do meu caráter, mas na verdade, fui eu mesma quem
a fiz duvidar de todos os meus sentimentos por ela. Uma vez ouvi alguém dizer, não sei
quem, mas isso não importa, não é? O importante é que a pessoa em questão, que eu
provavelmente achei um idiota, por isso não quis dar ouvidos, disse que nós sabemos
identificar o caráter das pessoas pelos atos delas consigo e com os outros, e também por
tudo de bom ou de ruim que se fala de alguém.

Eu não fiz nada por ninguém, sempre pensei em mim, no que era melhor para a minha
satisfação; jamais falei bem dos outros, mesmo porque, os defeitos dos seres humanos
são bem mais divertidos e, dizer coisas boas para as pessoas poderia até fazer bem a
alguém, mas não moveria um só grama das minhas frustrações nesse mundo ridículo.

“Que benefício eu teria, oras?”

Sempre eu, eu, eu... Coloquei as mãos atrás da nuca. Firmei os olhos no teto do quarto.
O pouco tempo que passei naquela fazenda, havia morrido de inveja do carinho e da
cumplicidade que Eric e Alana tinham com a mãe deles; Bernardo, apesar de ser um
pequeno órfão criado por gente que nem era da sua família, carregava um sorriso tão
iluminado e feliz nos lábios, que espantava; Iracema e Augusto eram tratados como
amigos dentro da casa, e não deviam, porque na minha leitura sobre as coisas, eles não
passavam de subalternos. Meu pai amava Alana, Eric e Bê como a mim mesma, sua
filha de sangue; Clara nunca havia me tratado mal, mesmo quando eu era rude e
ignorante; Alana me fez enxergar os meus defeitos...

“Mas como? Eu não tenho defeitos!”

Ironicamente, sempre achei que a razão me pertencia. Minhas vontades deviam ser
preservadas, pois era eu quem ditava as regras, mesmo que as minhas regras fossem
sujas, cheias de mentiras, maldades, descaso com as pessoas e com as suas
individualidades.

Meu coração disparou, sabe? O mundo havia caído sobre a minha cabeça sem aviso
prévio. Me levantei da cama, sentei na beirinha... pés plantados no chão frio, mãos nos
joelhos. Lágrimas de desespero escorriam pelos meus olhos, bochechas, lábios...
pingavam no chão como se fosse o sangue de uma ferida.

“Eu nunca fiz nada de bom pela minha própria vida, nunca me amei, como podia amar
os outros? Ferrei com tudo! Ferrei com a vida da minha mãe, tentei ferrar com a vida do
meu pai e da sua nova família. O motivo? Eu não sei! Sei
que, com todo o meu egoísmo, prejudiquei somente a mim”.

Balancei a cabeça de um lado para o outro numa negativa sofrida até que meu
agonizante choque com a realidade foi interrompido pelo estrondo da porta batendo.
Ergui a cabeça ao mesmo tempo em que o meu corpo - como se minha alma saísse dele,
pendeu-se para frente -, e eu fiquei, involuntariamente, de pé.
- Alana? – sussurrei enquanto enxugava as lágrimas dos meus olhos. Ela veio na minha
direção. Seus olhos verdes estavam úmidos.

- Você tem que me desculpar pela minha injustiça... Os fatos... Tudo me levava a crer
que você tinha...

Aproximei-me dela, coloquei os meus dedos nos seus lábios. Ela parou de falar, e eu
estava feliz porque Alana havia vencido o seu orgulho e tinha ido ao meu quarto. Não
sei desde quando as mudanças dentro de mim estavam me fazendo amadurecer, só sei
que em outros tempos eu a teria mandado embora e consequentemente perderia a
chance de dizer o que o meu coração realmente estava sentindo.

- Eu queria que a minha palavra tivesse valia pra você, mas... – tudo estava tão claro pra
mim. Deslizei os dedos pela sua boca, delicadamente eu fazia o contorno dos teus
lábios... Meus olhos acompanhavam o meu gesto. A boca rosada a minha frente era tão
perfeita – Sei que fui infantil, mimada, irritante, boba, idiota... – engoli em seco antes de
continuar – Só que... Amo você, Alana! Não sei desde quando, nem o porquê de eu ter
me apaixonado logo por uma mulher tão complicada, mas... De todas as escolhas
erradas que eu fiz na minha vida, a que menos me causa arrependimento é você! –
respirei fundo – Droga! Minha cabeça tá fervendo... É como se eu tivesse visões, sabe?
Minha vida antes de... voltar pra fazenda e, agora... – eu não conseguia completar meu
raciocínio, havia muitas palavras que não se projetavam nos meus lábios, estava confusa
– Consegue me entender?

- Está mais madura, Lê! – passeou as mãos pelos meus ombros, sentindo a minha pele
como se quisesse me abraçar – Você não é mais a mesma, nem eu sou a mesma daquele
dia em que nos vimos pela primeira vez através da janela do seu quarto.

- Precisamos resolver as nossas vidas – suspirei deixando os meus olhos livres para
soltarem as lágrimas que eu relutava em sufocar – Não suporto mais essas armações do
amor, Alana! Quero paz... Preciso saber se você me quer, tanto quanto eu te quero.

- Lê... Eu... Eu... – retirou lentamente as mãos dos meus ombros, desviou o olhar...
Meus dedos também não tocavam mais a sua face, ela afastou-se lentamente, cruzou os
braços... – Não consigo aceitar esses sentimentos... – balançou a cabeça numa sofrida
negação – As pessoas vão falar de nós... e, eu não quero ser apontada nas ruas como
uma doente, anormal, ou sei lá o quê! Não suportaria...

Debochei das suas palavras... Bati na minha cabeça como se não acreditasse que na
altura do campeonato aquela louca e cabeça dura estava me dizendo tudo aquilo.
Naquele instante eu me afastei de vez da minha sobriedade. Dei uma passo a frente e me
aproximei de Alana. Segurei firme nos seus braços que estavam cruzados sobre o peito
como se ela quisesse se proteger e a sacudi, fazendo-a me encarar novamente.

- As pessoas falam mesmo! – disse irritada – Falam, fofocam... Tudo isso porque... É
mais fácil apontar a falha dos outros, muito mais emocionante ficarmos pendurados nas
janelas solitárias das nossas vidas especulando sobre a conduta das pessoas – sacudi-a
mais forte como se quisesse despertá-la da sua covardia – Tem gente que nem te
conhece, não sabe nada do seu caráter, mas em nome do “achismo” vai falar de você, de
mim... Do nosso pai, do Eric, do Bê, do Augusto, da Iracema... da sua mãe que não tem
coragem de fazer mal a uma mosca sequer, e sabe por quê? – fiz uma pausa olhando
bem dentro dos olhos dela – Porque sempre haverá uma pessoa infeliz, que esquece de
olhar pro seu próprio umbigo e viver a sua própria história para perder tempo tomando
conta da vida dos outros. E quer saber? Pergunte a uma dessas pessoas se elas são
felizes – ri, num deboche quase dramático – É pra essa gente mesquinha, mal amada,
recalcada que você deve satisfações?

- Des...culpa, Lê! – molhou os lábios, balançou a cabeça numa negativa, anunciando o


que refletiria as suas palavras – Não posso – disse num fio de voz.

- Você é uma burra e covarde, sabia? – ao final da frase eu puxei-a pela nuca e beijei-a
com paixão, sofrimento... Alana descruzou os braços e envolveu o meu pescoço,
sedenta por aquele beijo, que talvez fosse o último de nós duas, retribuiu com a mesma
intensidade. Deslizei minhas mãos pelas costas dela para sentir a sua pele queimar os
meus dedos, unhas... Ela me apertava contra o seu corpo, e suspirava de prazer naquela
troca de saliva e carinho... Afastamos os nossos lábios depois de quase cinco. Nos
olhamos... – Tem certeza?

- Não teria coragem para te assumir – baixou os olhos. Fraca e completamente limitada
– Desculpa...

- Eu também não quero uma mulher inconstante que a qualquer momento pode resolver
me largar e seguir outro caminho por conveniência – concluí amarga.

- Desculpa, me desculpa – repetiu incansavelmente e levou as mãos no rosto, conteve as


lágrimas.

- Não tenho mais nada pra fazer aqui – disse com a voz embargada.

- Quero que seja feliz, mas sei que... não será se continuar me amando.

As palavras frias e racionais de Alana doeram fundo na minha alma. Afastei-me dela
andando de costas até bater no meu guarda-roupa. Senti minhas costas arderem pela
pancada. Me virei, puxei devagar uma das portas. Apanhei ao fundo uma sacola de
viagem, abri sobre a cama e comecei a depositar minhas roupas dentro dela. Ouvi a
porta bater, no entanto, não precisei desviar os olhos para saber que Alana havia ido
embora... Para sempre! Continuei jogando as minhas roupas dentro da sacola... Pouco
tempo se passou, eu estava quase no fim da arrumação apressada, quando a porta do
quarto voltou a fazer barulho. Num impulso cheio de esperança – talvez ela tivesse
repensado -, meus olhos buscaram o visitante e eu me deparei com Bernardo. Seus
olhos marejados olhavam ora para a sacola, ora para o armário quase vazio, sem minhas
roupas.

- Pensei que fosse mentira – disse o moleque – Por que vai fazer isso comigo? Só a
Alana te prende aqui? Não gosta de mim?

- Olha... – larguei as roupas num canto e comecei a chorar imediatamente, se é que eu,
em algum momento havia parado de chorar – Não posso ficar, tá doendo muito, sabe?
O menino correu na minha direção. Rapidamente me ajoelhei no chão e nos abraçamos
bem forte... Ele pós a cabeça no meu ombro e suspirou.

- Não quero ficar longe de você, Lê! – envolveu-me com seus bracinhos magricela,
pensei que eu fosse morrer de tristeza naquele instante. Bernardo havia sido
fundamental para mudar os meus conceitos sobre as pessoas. Aquela criança me fez
enxergar o quão os seres humanos podem ser reais, sem maldade, cheios de esperanças,
sonhos...

- Bê... – afastei-o um pouco de mim, eu queria ver a sua face. Enxuguei os seus olhos
vermelhos – Eu te devo tanto, seu moleque atrevido! – sorri um sorriso murcho, e
baguncei os cabelos dele – Você tá aqui! – coloquei a mãozinha do menino no meu
coração – Nunca ficaremos longe um do outro.

- Não pode voltar pro Rio, eu tenho que cuidar de você... Tu só se mete em encrencas,
Lê!

Sorri achando graça daquela preocupação. Sempre achei que era cada um por si e
pronto!

- Não me meterei em encrencas, tá legal? – cruzei os dedos e beijei-os – Prometo!

- Volta pra cá quando esquecê-la?

- Se eu precisar voltar aqui nessas condições, jamais pisarei nessas terras novamente. –
sorri, suei o nariz numa camiseta velha que estava sob a cama – Só preciso de um tempo
pra minha cabeça, tá? Ficar perto da Alana machuca muito. Sei que não conseguirei
esquecê-la, ela é a mulher da minha vida, mas eu quero me recuperar e se eu ficar perto
dela...

Ele me abraçou forte e colocou a cabeça no meu ombro novamente.

- Eu te amo! – disse com sinceridade, talvez aquele tenha sido o “eu te amo” mais
sincero que alguém já me disse na vida. Pronto! Eu não era indiferente ao amor como
tinha imaginado.

Capítulo 28
[10/11/10]

Eu precisava de ar. Letícia estava indo embora e eu não tinha forças para mudar isso.
Por mais que eu soubesse que ela tinha razão, a minha covardia me travava inteira,
corroia as minhas entranhas como uma erva daninha, me tirando as forças.
Em minha concepção, aquele fogo que me consumia o corpo toda vez que eu via ou
encostava-me àquela menina iria passar, eram apenas fagulhas de desejo. Eu só
precisava de um tempo para esquecê-la, pois era inaceitável continuar levando uma vida
clandestina já que assumir aquele relacionamento seria terminantemente impossível. Só
de imaginar todos nos olhando atravessado pelas ruas, meus pais se sentindo
envergonhados pelos meus atos... Nem filhos eu poderia ter, e nessa terra precisamos
deixar frutos. Sempre foi assim, desde o início dos tempos. O homem nasceu para a
mulher e a mulher para o homem. Por que minhas vontades, desejo e necessidade de
amor me impulsionavam a acreditar que eu podia ser feliz de outra forma?

Era uma agonia, um desespero... Um embate entre razão e coração que me fazia mal tão
mal que eu sentia náuseas, tremores e vontade de chorar. Aquelas dúvidas estavam
corroendo a minha alma há tempos, e fazendo a minha carne adoecer de tristeza.

Bati a cabeça incansavelmente em meu travesseiro. A madrugada em claro só me fez ter


a certeza de que um dos meus problemas seria resolvido. Precisava encarar Mauricio.
Assim que me levantei para o café, pedi que Eric chamasse o meu noivo para que nós
tivéssemos uma conversa definitiva.

Todos estavam em silêncio naquela casa; Letícia, depois da nossa conversa no dia
anterior, que me pareceu definitiva, sequer descera para se sentar a mesa conosco no
café. Bernardo de hora em hora deixava uma lágrima cair pelo seu pratinho. Nem tocara
no bolo de cenoura que era o seu preferido.

Lá pelas dez da manhã... Recebi Mauricio na sala. Ele chegou com um sorriso de orelha
a orelha. Senti uma repugnância enorme quando aquele homem que quase me fez subir
ao altar inclinou-se para me beijar os lábios. Virei o rosto e sua barba mal feita deslizou
pela minha face fazendo-me sentir asco daquele toque rude.

- O que foi minha flor? – perguntou desconfiado.

- O nosso noivado acaba por aqui! – disse séria e direta, eu não queria prolongar aquela
situação. Na verdade, ao pronunciar aquela frase, foi como se eu tivesse tirado um peso
enorme dos meus ombros. De fato, eu não o amava, talvez nunca o tenha amado.

- O quê? Co...mo assim? – a palidez tomou conta da sua face.

- O desconheço. Você é tudo o que eu não quero para a minha vida.

- Enlouqueceu? – sorriu sarcástico – Sou o homem da sua vida!

- Não! O homem da minha vida não é um crápula feito você. Deus não seria tão injusto
comigo.

- Você não está bem, minha flor. – balançou a cabeça, tentou aproximar-me de mim.
Dei um passo para trás. Ele me olhou aborrecido – Vou falar com o seu pai. Isso é um
absurdo, já marcamos a data!

- Não seja infantil, o meu pai não têm influência alguma sobre as minhas decisões.
Quero terminar o noivado e ponto final.
- Olha, Alana... Se é por causa das bobagens que o seu irmão e aquela desmiolada da
Letícia estão falando...

- Que você envenenou a Lua? – fixei os olhos nos dele desafiadoramente.

- É uma grande bobagem...

- Bobagem? – interrompi-o novamente - Nós dois sabemos que não é bobagem e eu...

Mauricio agarrou os meus braços, começou a sacudir-me violentamente... Assuste-me


com a sua atitude brusca.

- Você não vai terminar comigo! Vamos nos casar e...

- Ela não vai se casar com você seu miserável! – ouvimos a voz afrontada de Iracema.
Ele soltou-me... A senhora de cabelos brancos avançou contra Mauricio e direcionou
alguns tapas em seu braço, o qual tentava se defender com as mãos, Augusto veio em
socorro e agarrou a mulher pela cintura para que ela parasse de estapeá-lo. Iracema
parecia fora de si – Esse moço é um vigarista, minha filha! Foi ele quem engravidou a
pobre da minha amiga Rosália, depois que soube da gravidez, largou a moça e se não
fosse o falecido Humberto, o menino Bernardo teria vindo ao mundo sem o amparo de
um pai.

O quê? Mauricio era o pai de Bernardo? Abandonou... grávida a mãe do menino? Olhei
Iracema que estava com a face vermelha de raiva. Mauricio assustado, acurralado, os
olhos saltando da face cínica.

- Sua velha maldita! – falou exasperado.

- Isso é verdade, Iracema? – perguntou meu pai que havia entrado na sala ao ouvir as
vozes alteradas.

- Por isso que eu nunca gostei desse moço, não falei antes porque não queria dar esse
desgosto ao menino Bernardo. Esse peão é um canalha que não quis assumir o próprio
filho.

- Saia desta casa agora rapaz! – falou o meu pai dirigindo-se a Mauricio – Minha filha
não quer mais se casar com você e diante dos fatos a sua presença não é bem vinda
nessa fazenda.

- Sr. Pedro... – balbuciou tentando se justificar.

- Não precisamos prolongar esse assunto – disse taxativo, Mauricio nos deu as costas e
logo o silêncio perpetuou no ambiente. Todos nós estávamos tão chocados e
consumidos com a revelação de Iracema que não conseguíamos emitir som. O único
som que ouvimos foi o do grito de Bernardo quando Mauricio passou pela porta.

- Ele não é o meu pai! – correu na direção da saída da casa – Ele não é o meu pai! –
repetiu, depois fechou a porta com rispidez como se quisesse mandar embora a dor
daquela descoberta. Suas mãos deslizaram pela maçaneta, e ele, tremulo se certificou de
que a porta estava realmente trancada, depois, virou-se lentamente em nossa direção.
Todos os olhávamos penalizados, menos Letícia, a qual estava parada na escada até
aquele momento. Ela não se intimidou com a situação, tampouco estava sem palavras
como nós. Caminhou até o menino. Mexeu nos cabelos dele, em seguida deu dois
tapinhas em ombro...

- Seu pai se chama Pedro e sua mãe, Clara! – ajoelhou-se para ficar da altura de
Bernardo – Foi o que você me disse, lembra? – o menino, com lágrimas nos olhos,
balançou a cabeça afirmativamente, e ela continuou a falar, nós continuamos em
silêncio. A voz firme e aveludada de Letícia entrava em meus ouvidos bagunçando
ainda mais a minha consciência – Naquele dia, na cachoeira, quando perguntei sobre os
seus pais, eu não era capaz de entender o que significava ser pai ou mãe, por isso não te
compreendi, mas hoje... eu tenho certeza de que você tinha toda a razão quando falou
que aqueles dois... – apontou na direção de Pedro e da minha mãe que estavam de mãos
dadas – ... são os seus verdadeiros pais e nunca... Nunca deixe ninguém dizer o
contrário, está bem? – puxou o rosto dele, firmou os olhos azuis nos castanhos chorosos
do menino – Promete pra mim, Bê?

Bernardo abraçou Letícia com força, e eu percebi que Deus realmente não daria um pai
como Mauricio àquele menino.

Capítulo 29
[14/11/10]

Passei o dia inteiro com Bernardo. Fomos passear na cachoeira, andamos de carro pela
fazenda, paramos em alguns lugares para conversar sobre coisas banais, menos os fatos
que nos angustiavam que eram Alana e Mauricio. Por falar nela, não a via desde o
incidente com o menino pela manhã. Alana, provavelmente, devia estar trancada no
quarto chorando as magoas pelo fim do noivado. Quer saber se eu fiquei aliviada com
esse rompimento? Não! Eu não fiquei. Sabia perfeitamente que mulheres como Alana
podiam passar a vida inteira renegando os seus verdadeiros sentimentos, e eu, era muito
bem resolvida para me submeter e viver condicionada à sombra de alguém que nunca
teria coragem de dizer: eu sou lésbica, e isso não me faz nem melhor e nem pior do que
ninguém.

De noite, esperei Bernardo adormecer e liguei pra minha mãe. O papo foi rápido, ela
ficou feliz e surpresa por eu ter resolvido voltar pra casa, embora tenha se entristecido
ao saber os motivos que me fariam retornar.

Ficou combinado que ela viria me buscar no fim da manhã do dia seguinte. Tão rápido,
não é? Desliguei o telefone e fiquei parada com ele ainda nas mãos, absorvida nas
minhas lembranças, eu tinha a sensação de que a minha vida jamais seria a mesma
novamente, na verdade, nenhum de nós teria a mesma rotina de antes, porque barreiras
haviam sido transpostas, verdades esclarecidas, magoas perdoadas. Sentimentos
nasceram e feridas, grandes feridas foram abertas.

Me deitei na cama ao lado de Bernardo que dormia um sono tranquilo depois da


avalanche de dores em que o pequeno havia mergulhado mais cedo, mas não preguei os
olhos, pelo menos até a metade da madrugada. Como voltaria ao Rio, fiquei tentando
planejar a minha vida, acho sinceramente que a cidade receberia uma moradora
desconhecida. A Letícia que saiu de lá, em nada se parecia com a Letícia que estava
retornando.

Ainda não sabia o que faria primeiro, eram tantas as quebras de paradigmas, mas tinha
certeza de uma coisa, queria mudar de faculdade, pois conviver com amigos da onça do
tipo: Alan e Flávia não faziam parte dos meus planos. Talvez continuasse no curso de
Turismo, ou mudaria para Administração, quem sabe faria Arquitetura, Biologia,
História... No fundo, não sabia do que eu realmente gostava.

Não lembro de ter adormecido, mas acordei com o barulho do vento que fazia a janela
do quarto bater na parede. Me levantei e fechei-a. Antes, dei uma olhada no dia:
nublado! As árvores balançavam feito loucas por conta da ventania que chegava a
levantar a poeira do chão. O céu cinza e as nuvens carregadas denunciavam que iria
chover e chover muito. Olhei o relógio, eram seis e cinco da manhã. Bernardo se
mexeu, depois, sonolento, abriu os olhos. Me sentei ao seu lado na cama...

- Vou para o meu quarto, tá? – disse suavemente enquanto afaguei o seu bracinho –
Daqui a pouco tá na hora do café. Vê se não dorme mais que a cama, moleque.

- É hoje que você vai? – falou arregalando os olhos como quem espanta o sono.

- É sim... No final da manhã minha mãe tá chegando aqui pra me buscar.

Vi os seus olhos, mais uma vez, enxerem-se de lágrimas. Isso doía, viu?

- Vou sentir sua falta – disse, logo cruzou os braços no meu pescoço. Acariciei suas
costinhas, ele suspirou.

- Não te darei tempo de sentir falta, vou te ligar todos os dias e quando as férias
chegarem, venho te buscar pra você ir pro Rio comigo. Combinado?

- Vou esperar! – disse e levantou sua pequena mão espalmada para encontrar a minha.
Tocamo-nas uma na outra e saí do quarto do menino. Aquela era de fato uma despedida.
Ainda dei uma olhadinha através da fresta da porta, Bernardo estava cabisbaixo,
olhando pro chão completamente desolado.

Eu sabia que não era só a minha partida que o fazia ficar daquele jeito, mas também a
bomba de saber que era filho daquele boçal do Maurício, e mais... A sua mãe havia sido
abandonada grávida, aquele, além de ser um peão maldito, ainda era um pai FDP! Isso
não tinha palavra que consolasse, ele teria que viver essa amargura e dar a volta por
cima sozinho.
Mas, eu ia embora... Talvez, nenhuma palavra que eu disse tenha diminuído a sua
tristeza pela minha partida, assim como nenhuma palavra, faria o meu coração, mesmo a
distância conseguir esquecer o que sentia por Alana.

Andei pelo corredor em silêncio, eu estava descalça e isso ajudava bastante. Parei de
frente a porta do meu quarto, atrás de mim, a porta do quarto dela. Com o coração
tentado eu hesitei, bati a cabeça na alvenaria, relutante, cheguei a colocar as mãos na
maçaneta da porta do meu quarto, mas quando dei por mim, estava parada de frente a
porta dela, as mãos espalmadas na madeira como se pudesse absorver as energias que
vinham de lá. Lentamente encostei o lado esquerdo do meu rosto, fechei os olhos, mas
nada ouvi além das batidas aceleradas do meu coração. No fundo, eu queria abrir aquela
porta e me jogar nos braços de Alana, mesmo que isso fosse uma tolice e ela me
mandasse embora em seguida, queria quase que incontrolavelmente, me perder no louco
e inconsequente amor, o qual faria com que eu me sentisse viva, pois eu tinha a
impressão de ser um imenso vazio de braços e pernas. Loucura, não é? Respirei fundo e
segui o meu caminho, voltei para o meu quarto, voltei para a minha realidade sem ela.

****

Não vi Alana por toda a manhã. Já havia completado vinte e quatro horas desde a última
vez em que nos vimos. Não perguntei por ela, embora a vontade de saber o que estava
acontecendo fosse latente em mim. Depois do café, fiquei sentada na sala com Bê e
Eric. Às horas passaram e toda vez que eu ouvia um barulho diferente, corria até a
janela para ver se era a minha mãe que havia chegado. Um medo assustador estava
beirando a minha consciência. Queria ver Alana ao menos uma última vez, a distancia,
já valeria a pena, no entanto ela tinha desaparecido feito poeira.

Tive vontade de perguntar onde a menina estava, mas meu restinho de orgulho impedia
tal atitude. As horas continuaram a passar e de repente, o tão temido barulho de buzina,
de motor sendo desligado e o grito de “Ô de casa” da minha mãe, pusera fim a
esperança de uma despedida entre nós duas.

“Havia mesmo acabado!”

Nada mais adiantava. Meus planos de recomeçar sem Alana começaram a tomar forma
na minha cabeça. Sabe quando morre o seu último fio de esperança? O meu havia
morrido naquele instante. Abracei dona Márcia, a qual estava toda sorridente
adentrando a sala. Meu pai agarrou-se a mim quando minha mãe terminou de me
cumprimentar.

- Fique ao menos para o almoço – disse ele olhando para ela com cara de cachorro sem
dono.

- Não dá tempo nem de descansarmos Pedro, tenho um jantar importantíssimo essa


noite, pegaremos a estrada depois que Iracema me servir um copo de água.

- Não está cansada da viagem? – perguntou meu pai assustado.

- Estou, mas tempo, sabe como é...


- É dinheiro – completei a frase. Só nisso que minha mãe pensava: trabalho, trabalho, e
mais trabalho. Por isso passei tanto tempo com as empregadas, agora, voltaria para o
Rio, mas a diferença é que eu passaria mais tempo comigo mesma.

- Está tudo pronto, filha?

- Está! – ergui a mochila. Bernardo segurou na minha mão, sorriu pra mim um
sorrisinho tão amarelo que me fez ter vontade de pedi-lo que não prendesse o choro.

- Deixa eu levar essas coisas pra você, Lê. – Eric se prontificou a colocar a pouca
bagagem dentro do carro. Minha mãe fez um gesto com a cabeça dizendo que o veículo
estava aberto. Ela já pegava nas mãos o copo com água que Iracema trouxe da cozinha.
Senti uma mão nos meus ombros, inclinei lentamente a face e vi aquele sorriso largo,
aquelas bochechas vermelhas, os olhos verdes, cabelos loiros que muito me lembrava
Alana, mas era Clara.

- Sabe que pode voltar quando quiser, não é mesmo? – disse gentil como sempre.

-
Sei, sim. Obrigada... – falei tímida – ...pela sua atenção de sempre, e por ter tolerado as
minhas grosserias sem me expulsar daqui, afinal de contas, a casa é sua.

- Que isso, criança?- falou ternamente - A casa é nossa! Esqueceu que o seu pai é o
dono dessas terras?

- Posso? – inclinei-me para lhe dar um abraço.

- Claro! – abraçou-me demoradamente e sussurrou no meu ouvido: - Sabia que dentro


dessa casca grossa havia um coração a ser lapidado.

- Você não precisava ter sido tão paciente comigo.

- O que eu fiz, foi dar uma oportunidade para nós duas – acariciou o meu rosto – Às
vezes precisamos dar uma oportunidade para as pessoas, e tentar entendê-las é o melhor
caminho. Não me decepcionei com você, menina!

- Obrigada – agradeci novamente e empurrei minha mãe para que saíssemos logo dali.
Eu queria fugir daquelas despedidas que claramente me arrancariam lágrimas.
Caminhamos todos até a varanda. Descemos os degraus da enorme escadaria, um a um
numa lentidão quase que surreal.

“O quê todos esperavam? Que Alana saísse por aquela porta para se despedir de mim?”

Havia uma apreensão em cada olhar. Eric e Bernardo de vez em quando elevavam os
olhos até a porta da sala na esperança, perdida por mim, de que Alana viesse ao menos
despedir-se, era o mínimo, não é? Me apaixonei por uma insensível e mau educada.

O carro de minha mãe estava estacionado logo na frente da casa. Ela tratou de beijar a
todos rapidamente enquanto eu deixava o meu corpo se perder em cada abraço. Dava a
impressão de que eu estava levando um pouquinho de cada um comigo, e deixando
também um pouco de mim; dos meus erros, acertos, das minhas mudanças...

A cada novo abraço passava um filminho diferente na minha cabeça. Iracema, visualizei
nitidamente o dia em que rudemente eu a pedi que ela pusesse o meu jantar, naquele
instante eu percebi o quanto tinha sido arrogante, no entanto, a mulher a minha frente,
de sorriso fácil e olhar de mãe, na sua humildade, me disse que o faria, mesmo Alana se
levantando e repudiando o meu atrevimento; Augusto, aquele senhor simples que sabia
mais da terra do que os estudiosos que possuem nível superior guardado em baixo dos
braços... Lembro-me do feno e dos cavalos que ele me ensinou a cuidar.

Mais alguns passos e eu sorri ao abraçar Eric, e lembrar da sua cara de espanto ao me
ver beijando Ludmila, seu porre dentro do inferninho, o pedido de casamento
inesperado que ele fez ao pai da moça “fácil” da região... Eram muitas as lembranças.
Bati nas costas dele, o qual retribuiu batendo carinhosamente nas minhas. Éramos mais
do que irmãos... Mais a frente, abaixei-me para cumprimentar Bernardo que já se
debulhava em lágrimas.

- Caubói não chora rapaz! – bati no chapéu dele.

- Todo mundo chora, Lê. – foi a sua resposta. Certamente, todos nós, por mais durões
que possamos parecer, temos nossos momentos emotivos. Lembrei-me da primeira vez
em que conversei com Bernardo na cachoeira, a maneira que os seus olhos brilharam
quando ele me disse que meu pai e dona Clara eram seus verdadeiros pais. O brilho que
vinha dos seus olhos era amor. Senti vergonha do meu desdém.

“Como pude ser tão idiota?”

Soltei o menino e caminhei mais um pouco.

- Pai... – ergui a face para alcançar os seus olhos – Obrigada por ter sido o melhor pai
que alguém pode ter.

- Ah, filha! – abraçou-me, logo as lágrimas caíram pelos nossos olhos – Como eu queria
ter participado mais da sua vida...

- O senhor participou do meu melhor momento – despedi-me dele com um beijo no


rosto. Acho que o marco da nossa história foi a conversa que tivemos no meu quarto,
quando ele abraçando-me e chorando junto comigo, me disse que já sabia o que eu
sentia por Alana.

Abracei Clara e lembrei-me de quando ela havia me pedido para atender a minha mãe
no telefone. Eu estava tão arredia, tinha raiva do mundo e nem sabia o porquê. Pra mim,
eram todos culpados por eu não ser uma pessoa feliz.

- Vamos, filha? – ouvi a voz da minha mãe e olhei na direção da porta.

“Ela não vem!”


Nem sei porque eu ainda esperava que ela viesse. Nada do que Alana dissesse hoje me
faria voltar atrás e remover da minha cabeça, a ideia de que eu precisava de um tempo
pra mim.

Parei um instante, alheia a tudo e a todas, como se eu tivesse saído de mim... Dela eu
levaria as lembras do sorriso; pude até sentir o seu cheiro ora de jasmim, ora de lavanda.
Seus olhos verdes e vivos estavam nítidos na minha memória... O celeiro, a sua entrega,
minhas mãos manchadas de sangue... Seu olhar e seus gemidos de prazer...

- Té mais! – disse quase num fio de voz, e caminhei em direção ao automóvel. A


medida que eu caminhava, distraída na minha nuvem de lembranças, eu conseguia ouvir
o som do atrito que os meus pés faziam ao tocar o chão, a terra apinhada de pedras e a
grama salpicada entre elas. Ouvi a porta do carro rugir e então, percebi que minha mãe
havia aberto a porta do carona pra mim... Preparei-me para entrar no veículo... Não
olhei para trás, a imagem de todos reunidos acenando tchau não era a que eu queria
levar comigo. Mas...

- Letícia! – ouvi um grito e me virei quase que em câmera lenta. O doce som daquela
voz me fazia duvidar se era real ou apenas fruto da minha imaginação e vontade. Olhei
para a casa da fazenda e no alto das escadarias...

*** Alana ***

Meu coração estava disparado, eu não sabia mais o que era real ou fantasia. Minhas
pernas bambas me fizeram correr pelo corredor vazio daquela casa silenciosa que
chorava a partida do meu grande amor. Quem mais me faria feliz, senão aquela que fora
a responsável pela minha noite de insônia, pelas minhas lágrimas de angústia e pelo
meu coração que disparava só de ouvir dizer o nome dela?

“Letícia, Letícia, Letícia...”

Seria tarde para vencer a minha covardia? Enclausurada eu pensei em várias fugas,
vários meios de esquecê-la de uma vez por todas. Ela iria embora, mas eu ficaria
aprisionada nas lembranças dolorosas de um amor que não quis viver, por covardia,
medo, preconceito!

Não posso negar que só fui feliz ao lado dela, nas noites e dias que me entreguei aos
meus verdadeiros desejos. Eu sentia como se houvessem duas Alanas dentro de mim,
uma que se escondia atrás dos medos, recalques, receios... de asas baixas, a menina que
os pais sonhavam em ter, responsável, devota a religião, digna do reino dos céus por ser
impiedosa com os seus pecados, a Alana infeliz, que vivia em prol do que os outros
achavam dela, mas, perto de Letícia havia uma outra Alana, essa descobriu em poucos
meses o quanto gosta da vida, de se arriscar e se entregar ao desconhecido, é uma
mulher que quer ser amada como mulher, desejada como mulher, vista e ouvida como
mulher. A Alana destemida que entregou-se ao desejo, ao prazer, ao pecado, o qual para
muitos podia ser considerado o fim da linha, mas que para mim, foi o despertar de
alguém que passou a conhecer os seus próprios medos, desejos, sentimentos, a si
mesma... Essa Alana não queria e não podia perder o seu grande amor.

A sala estava vazia, as vozes vinham de longe. Sussurros chorosos de despedida.


“Entregue-se ao desconhecido. Não tenha mais medo do que você é!”

- Letícia! – gritei estridente, com toda a força do meu coração. Todos olharam na
direção da varanda, ou melhor, do último degrau das escadas. Eu só vi Letícia virando-
se lentamente como se o som da minha voz estivesse no limiar da realidade e da
fantasia, assim como eu me sentia naquele momento.

“Como vencer o meu maior medo? Como provar a ela que eu a queria se eu jamais teria
coragem de assumir o meu amor?”

Desci as escadas em disparada. Todos a nossa volta estavam em silêncio.

“O que esperavam de mim? Queriam ouvir as minhas palavras?”

Não! Eu as diria somente para Letícia. Aproximei-me daqueles olhos azuis que
expressavam dor, desespero... Ou eram os verdes dos meus que expressavam dor e
desespero? Éramos tão iguais naquele momento. Eu podia ouvir e sentir a respiração de
Letícia bem perto do meu rosto. O calor do seu corpo passava para o meu numa troca
mágica de energia. Isso só acontecia com nós duas. Era algo forte e especial demais que
nos envolvia, e ia muito além das explicações plausíveis pela minha vã filosofia.

- Não vá! – sussurrei, busquei o ar, tirei os fios dos meus cabelos do meu rosto.

- Não posso ficar, você sabe! – disse no mesmo tom de voz que o meu, talvez para que
ninguém nos ouvisse, tenho certeza de que ela achava que eu temia ser ouvida.

- Eu... – o medo, o pavor embargava a minha voz – Não quero que você vá – sussurrei
ainda mais baixo.

- Seu medo a impede de ser feliz. – molhou os lábios, prendeu o choro – É tão simples,
eu sou lésbica e ninguém tem nada a ver com isso.

- Eu não sou... – calei-me temerosa.

- Você não é feliz, e nem será, porque jamais vai aceitar os seus sentimentos.

- O que quer que eu faça para você ficar? – deixei a emoção falar por mim, eu precisava
desabafar – Não consigo dormir, nem comer... Só penso em você! Em cada noite que
tivemos... No seu cheiro, na sua voz... Não posso viver longe de você, Lê!
Reconsidera... Me dá uma chance de...

- Eu te implorei por amor e você foi indiferente ao que sinto – disse amargurada, logo
passou as mãos no rosto. Seria desespero? – Tenho medo, Alana! Muito medo... Agora
sou eu quem não acredito em você. Se é por fatos que nós julgamos alguém, os fatos me
fazer crer que você vai me magoar e que eu tenho que pular fora antes que não haja
mais saída pra mim.

- Está sendo covarde Srta Letícia!


Eu precisava pensar. Estava fora do meu controle, Letícia iria embora e me deixaria
somente a frustração, a dor do arrependimento, as lágrimas de saudade... O que ela
queria que eu fizesse? Me ajoelhasse aos seus pés? O que eu queria naquele momento?
Qual era o meu desejo? Desesperada, agarrei-a em meus braços. Seus olhos azuis não
acreditavam no que eu iria fazer. Não olhei para trás, não queria pensar que havia outras
pessoas a nossa volta, eu apenas estava dentro de um sonho, e fazia parte do meu sonho
agir impulsivamente, de acordo com os meus instintos.

Envolvi-a pelo pescoço, senti suas mãos laçarem a minha cintura, seu corpo quente e
vibrante me acolhia inteira, suas pernas entre as minhas, seus olhos presos nos meus
como quem pede água. Era um deserto que estava a minha frente, com fome, sede, calor
de amor... Puxei sua nuca e selei lentamente os meus lábios nos dela.

“Meu Deus! Eu estava louca!”

Meu medo desapareceu no instante em que nossas línguas se encontraram matando a


sede do doce sabor daquele beijo tão sonhado, esperado... Eu a amava! Era só nisso que
eu tinha que pensar.

“Que se danem os outros! Eu a amava!”

E pela retribuição de Letícia, não era tarde para nós. Não podia ser tarde para aquele
sentimento grandioso que habitava as nossas almas. Eu sorria ao beijá-la. Aquele beijo
teve o peso de uma libertação. Libertei-me de todos os empecilhos que me afastavam
dela, os quais me impediam de viver como eu quisesse, e de me entregar aos
sentimentos que revigoravam a minha alma.

Ao contrário do que pensei, era fácil, indolor, e só dependia de mim. Ao final do meu
sorriso, nosso beijo foi se desmanchando, desmanchando, desmanchando... Até
abrirmos os nossos olhos. Silêncio, só o vento frio daquela manhã cinzenta fazia
barulho nas árvores. Meus olhos verdes esperançosos se depararam com o azul
entristecido dos dela.

“O que a entristecia?”

Eu estava ali como nunca pensei que pudesse ser capaz de estar. Diante dela, com o
coração repousando na palma das minhas mãos, prontinho para entregá-lo a ela, sem
ressaltar o orgulho e os medos vencidos. Meu sorriso se desfez quando Letícia balançou
a cabeça negativamente e enxugou as suas lágrimas.

- Não acredito em você, Alana – as palavras dela tiveram o peso de uma bofetada em
minha face.

- O que está dizendo? – perguntei indignada - Eu dei um beijo em boca diante de todos,
sua doida!

- Foi fácil, eles já sabem do nosso pequeno romance proibido – coçou a testa, mexeu
nos cabelos – Preciso de um tempo pra minha cabeça, tá legal?
- Quer voltar para o Rio? Não precisa inventar uma desculpa, está bem? – ela queria me
enlouquecer – Vai Letícia! Vai embora viver a sua vidinha promíscua na cidade grande!

- Não é isso...

- É o quê, Letícia? Só queria me conquistar? Provar que um dia eu, diante de todos iria
me render a você? Conseguiu, droga! Estou aqui... Abrindo o meu coração, pela
primeira vez na vida me lixando para o que vão pensar de mim – engoli em seco antes
de continuar com o derrame de desabafo – E isso tudo porque eu te amo, mas admitir
isso foi difícil, sabia? Difícil ter que conviver com um sentimento que eu desconheço,
que me parece errado, pecaminoso e condenável! Não é fácil mudar toda uma cultura...

- Chega! – sacudiu-me, percebi que eu estava completamente perdida, alterada, e aos


berros – Você não se aceita ainda, não pode me aceitar e viver o que sente.

- Não pode ir embora simplesmente porque acha que eu não estou preparada!

- Quero ver se daqui a uma semana você vai ter tanta coragem quanto nesse instante.
Agir por impulso pra eu não ir embora é desumano, sabia? – deu-me as costas ao
terminar a frase, mas parou antes de alcançar o carro de dona Márcia – Preciso de um
tempo pra mim, e você também precisa de um tempo.

- Você não sabe do que eu preciso! – ela não disse mais nada, entrou no carro, fechou a
porta. Minha mãe, penalizada, veio ao meu encontro. Fiz um gesto pedindo que ela não
se aproximasse mais. Eu queria ficar sozinha para ver Letícia passar por aquela porteira
e desaparecer atrás dos morros. O carro foi partindo lentamente. A dor foi aumentando
dentro do meu peito... Eu estava inconsolável. Eric pôs as mãos no meu ombro – Me
deixa! – disse ríspida e magoada. Aquele sentimento pesado de perda pairava em meus
olhos, em minhas lágrimas de arrependimento...

- Vamos entrar crianças – ouvi o meu pai dizer, logo, o barulho dos passos nas escadas,
e da porta batendo me fizeram crer que enfim, eu estava sozinha. Continuei olhando na
direção em que Letícia partiu... O carro cruzou a porteira, a poeira da estrada de barro
foi levantando, o vento ajudava e, desapareceu na paisagem. Só o pó restava para os
meus olhos doloridos virem. Permaneci ali, de pé, com as mãos paradas ao lado do
corpo. Meu vestido o vento violentava como queria, e eu também não tinha forças para
tirar os fios dos meus cabelos que batiam em meu rosto. Nem os meus pés tinham
vontade de se afastarem dali. Eu era uma estátua que o coração sangrava. Letícia havia
ido embora, por minha culpa, e agora, restava a saudade. Chorei ainda mais ao lembrar-
me dos nossos beijos, abraços quentes, da pele de Letícia misturada a minha como se
fôssemos um só ser.

*** Letícia ****

Minha mãe não disse nada. Eu entrei no carro, ela deu a partida e saiu devagar.
Passamos pela porteira quase em câmera lenta, os olhos de dona Márcia de vez em
quando desviavam da estrada e pousavam em minha direção, ignorei-a porque sabia que
se ela dissesse qualquer coisa, meus olhos não iriam resistir às lágrimas de tristeza e
dúvidas.
“Será que eu estava fazendo a coisa certa?”

Coloquei os meus pés pendurados no painel do carro, liguei o MP4 e fechei os olhos.
Encostei-me na poltrona do veículo como quem se esconde do mundo... Uma lágrima
escorreu sem o meu consentimento.

“Será que eu estava fazendo a coisa certa?”

Eu precisava me convencer de que podia viver sem Alana. Estar a mercê dela me
apavorava. Não queria ser um brinquedinho nas mãos daquela mulher. Começou a tocar
uma música... Já na introdução eu comecei a chorar. Minha mãe parou o carro, olhei pra
trás e só vi poeira.

“Era tarde?”

“ ...O que você quer?”

“...O que você sabe?”

“... Não é fácil pra mim...”

“...As vezes, me vejo tão triste...”

“...Onde você vai? Não é tão simples assim...”

“... por que às vezes meu coração não responde...”

“... Por favor não vá ainda...”

Trechos da música: “Não vá ainda / (Christiaan Oyens; sZélia Duncan)"

http://www.youtube.com/watch?v=4IuybRyJaUs&feature=related

*** Alana ****

Só poeira... Só dor... Só desesperança...

- Eu te amo, Letícia! – gritei com toda a força dos meus pulmões. Eu queria me libertar
– Eu te amo sua louca, idiota, burra! Havia sido tão difícil para mim... – enxuguei
minhas lágrimas – ...admitir o que sinto por você – sussurrei olhando para o céu cinza
que parecia chorar comigo. O Vento continuava circulando em volta de mim,
carregando folhas secas, fazendo a grama bailar numa negativa que quase me
condenava pela covardia que me tirou a alegria do amor...

“Amo você, Letícia”.

*** Letícia ***


Senti o abraço da minha mãe a me consolar... Só então percebi que ela estava com as
mãos fora do volante. Chorávamos juntas, como duas amigas de colégio.

- Não posso te levar comigo, minha filha – sussurrou – Vai deixar o seu coração aqui,
como quer voltar para o Rio sem um pedaço de você?

- Eu... Tô com medo – admiti dolorosamente.

- Você se adaptou a um mundo que achava que não era seu em menos de três meses,
meu amor – passou as mãos nos meus cabelos – Não quero vê-la nessa agonia, sofrendo
desse jeito. Vou retornar e te levar de volta para a fazenda, está bem?

- Não! Espera...

- Seja forte!

- Vou andando! – disse com fervor, logo diminui a adrenalina da voz – Eu a amo!
Nunca havia amado antes, mãe – deixei meus olhos livres para desabafarem – Não sei
viver sem a Alana.

- Filha... – ergueu a minha cabeça – Olha pra mim, eu to falando com você!

Eu a olhei enquanto tentava conter as lágrimas.

- Não cometa o erro que eu cometi. Fui embora amando o seu pai e até hoje eu o amo,
mas nossas vidas são diferentes, eu não pertenço ao mundo dele, muito menos ele ao
meu... ao contrário de nós dois, você e a Alana, dividem a mesma história. Seu lugar
sempre foi aqui! – disse com uma certeza inenarrável, pude ver nos seus olhos azuis o
quanto eu parecia com ela – Desce do carro e vai ser feliz, porque ninguém pode ser
feliz por você, Letícia! Vai, desce desse carro de uma vez por todas e não olhe pra trás.
Não hesite. Não duvide do seu amor, muito menos da capacidade que nós temos de
perdoar.

- Não posso duvidar do amor, nós mudamos por ele – arranquei os fones dos meus
ouvidos. Abri a porta do carro e coloquei minha mochila nas costas – Obrigada, mãe! A
melhor coisa que fez por mim, for ter me obrigado a vir pra esse lugar. Agora entendo
que os pais, querem sempre o melhor para os seus filhos, mas nós não percebemos isso,
sabe? É complicado pra nós... E...

- Vai, Letícia! E... Saiba que eu amo você, minha filha... Apesar de todos os meus erros,
eu amo você!

Dei um beijo na testa dela... Saí em disparada pelo pasto. Corri como louca, meus pés
rápidos e descuidados destruíam os gravetos e folhas secas que havia caído das árvores.
Pulei algumas cercas cheias de espinhos para cortar caminho. O vento bagunçava os
meus cabelos, sujava a minha roupa do pó vermelho que levantava da estradinha de
barro. Dei a volta no galpão para chegar pelo lado da casa... Faltou-me o ar quando
parei... Não havia mais ninguém a minha espera, além de Alana que estava de costas,
com a mão direita segurando o corrimão das escadas.
- Alana! – gritei, meu coração vibrou quando ela virou de frente para mim, quase que
em câmera lenta...

*** Alana ***

Não sei o que senti quando olhei para trás e percebi que em meio a toda aquela poeira
que o vento levantava, parada diante de mim, estava Letícia. Os cabelos bagunçados, as
bochechas vermelhas, a blusa branca suja do pó da estrada que o vento espalhou. Olhei
para o céu, as nuvens negras pareciam se esvaziar nas gotas finas de chuva que
começaram a nos banhar.

O vento parou tão de repente quanto aquele momento, a cortina de poeira abaixou. A
minha visão alcançava os olhos azuis que estavam vermelhos pelas lágrimas, assim
como os verdes dos meus. Eu corri até ela, ela correu até mim... Não sei quanto tempo
levou até a chuva cair, e nós pararmos frente a frente, sentindo as respirações tão
próximas... Nossas mãos suspensas no ar se tocaram lentamente... As gotas d`água
escorrendo pelo nosso corpo, nos envolvendo como uma aura.

Nós duas entreabríamos a boca para tentar falar, mas a chuva cada vez mais brava
escorria pela nossa face quase nos afogando. Até firmar os olhos um no outro era
difícil... Só os sorrisos conseguiam refletir o que uma queria dizer a outra. A blusa de
Letícia voltou a ser branca, a grama alta, que pendia para os lados como se me negasse
algo, parou de se mexer, curvando-se diante de nós, como se as águas que vinha do céu
ordenasse que o
fizessem.

*** Letícia ***

Alana estava linda. Muito mais linda do que a primeira vez em que eu a vi. Naquele
momento, estávamos nos encarando despidas das máscaras, apenas os nossos corações
acelerados de felicidade falavam por nós e eu me apaixonei novamente por ela. Todas
as palavras duras, as mágoas, as mentiras, as ofensas, a vingança... Estavam sendo
lavadas pela chuva que caia sobre nós sem piedade.

- Vem pra casa! Vocês vão ficar resfriadas! – ao longe uma voz, que não sabemos de
quem era, ecoava pela janela. Sorrimos mais ainda, pois havia testemunha do nosso
amor, além do céu, da chuva, da grama, da poeira da estrada. Alguém tinha a falsa
convicção de que podíamos ficar doentes. Adoecidas nós estivemos, na nossa negação
sofrida de querer nos entregar uma a outra sem poder, ou ter a coragem necessária para
isso. Juntas éramos imunes a todo o tipo de dor.

Nossas mãos no ar se envolveram trançadas como se fosse uma só. Com a mão
esquerda solta, puxei o queixo de Alana para sentir a doçura dos seus lábios nos meus.
Parecia um sonho, e eu tinha muito medo de acordar dele. Mas o medo não pode, nunca,
ser maior do que a vontade de viver. Temos que arriscar! Era mágico sentir os seus
lábios rosados, frios e trêmulos friccionados nos meus, sem pressa, nem medo...
finalmente, não estávamos tentando esconder o amor.

- Eu... Sou uma mulher que ama outra mulher, e serei a pessoa mais feliz do mundo se
puder... – beijou-me de leve nos lábios - ... dormir e acordar todos os dias ao seu lado –
sussurrou e me encarou com aqueles olhos verdes que mais pareciam um presente de
Deus para arrebatar a minha alma. Aquela mulher diante de mim havia me salvado de
toda a tristeza e descrença em que eu vivia.

Segurei Alana pela cintura e ergui-a do chão, nós duas olhamos para o alto e vimos que
as nuvens negras davam espaço para um fio de azul que rasgava o céu, teimando em se
fazer presente, em meio aquela tempestade.

- Amo você sua chata! – gritei, engasguei com a água da chuva – Amo você! – tornei a
gritar.

Não precisávamos explicar... Todos sabiam o que nos unia: o amor!

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... O fogo estava aceso. Aquele cheiro gostoso de churrasco e cerveja parecia entrar
pelas gretinhas da porta, e os cantores faziam barulho em baixo da nossa janela.

- Cadê meu chapéu, Alana? – perguntei terminando de calçar as botas.

- Não vai usar as novas? – pulou na cama onde eu estava sentada.

- Gosto dessas, são velhas mas são boas para a montaria.

- Até parece que vai montar a noite – apoiou-se nos cotovelos – Sabe da última?

- O que aconteceu minha fofoqueira? – beijei-a rapidamente nos lábios.

- Vai me chamar assim, eu não conto! – fez doce.

- Tô brincando, me conta, estou curiosa – insisti, eu sempre precisava fingir que insistia
para ela falar alguma coisa.

- Conversei com o Eric hoje cedo. Ele e a Ludmila andam em pé de guerra – balançou a
cabeça negativamente enquanto se sentava ao meu lado - Vê se pode! Ela queria tanto ir
para o Rio de Janeiro, ele resistiu, mas foi. E agora que o meu irmão terminou o curso
de advocacia, e está empregado em um dos melhores escritórios da cidade, a Lú entrou
em crise e diz que sente falta do campo.

Eu ri.

- Temos que ter cuidado com os nossos sonhos, sabia? Eles podem se realizar – puxei-a
para outro beijo, suspirei... – Nesses cinco anos ao seu lado, percebi que nenhum outro
lugar no mundo me faria mais feliz do que aqui, com você.

- Mas... – apertou minhas bochechas - A minha agrônoma preferida está muito


romântica hoje! – deitou-se sobre mim – Está também com pressa de descer para o
aniversário do papai?
- Pressa? Claro que não! – joguei o chapéu para trás e troquei de posição com Alana na
cama. Deslizei minhas mãos pela blusa fina que ela vestia, fiz o contorno do vantajoso
decote... – Tá tão gostosa! – sussurrei antes de abocanhar os seus seios e ouvi-la gemer
bem baixinho perto do meu ouvido. Alana agarrou os meus cabelos com as mãos e me
conduziu pelo seu corpo até o seu sexo quente, úmido e latente de desejo.

“Fazer amor com a minha mulher é o mesmo que renovar os votos de amor eterno todos
os dias”.

Depois de muita cantoria, vinho, gargalhadas... A festa havia terminado. A madrugada


estava quente e a casa parecia ter ido dormir. Meu cunhado Eric que o diga, foi o
primeiro a se recolher, queria estar bem disposto para pegar a estrada de volta ao Rio de
Janeiro na primeira hora do dia. Como a vida é engraçada, não é? Ludmila, ao contrário
do que pensava, não se adaptou a vida no Rio de Janeiro, e daria tudo para voltar a viver
naquela cidadezinha pacata perdida no mundo. Enchi os pulmões de ar enquanto Alana
se agarrava a mim. Estávamos de pé na varanda, ambas olhando a lua que enfeitava a
escuridão da noite. Parecia ser accessível as nossas mãos. Passei o meu braço sobre os
ombros dela.

- Quanta coisa mudou em cinco anos, não é? – suspirei.

- Mudou até o meu amor por você – sorriu ao dizer.

- Ah, é? Mudou?

- Sim! Hoje eu te amo muito mais do que antes.

Beijei-a suavemente nos lábios...

- Eu nunca havia pensado que podia levar essa vida simples e tranquila daqui, sabia?
Hoje eu penso que não conseguiria viver longe dessa cidade pacata que me fez
encontrar o meu destino, a minha essência, o meu amor.

- E eu, que nunca imaginei que pudesse ter uma família com uma mulher? Achava
pecado, lembra? Mas o maior pecado era sofrer e te fazer sofrer por medo de viver esse
sentimento tão verdadeiro e puro.

- E quanto ao nosso bebê, hein? Já pensou a respeito? – deslizei lentamente a mão sobre
a barriga dela – Temos que aproveitar a sua genética, amor!

Alana sorriu, sua mão agora estava sobre a minha.

- A hora que você quiser teremos o nosso filho.

Sorri feliz enquanto sentia duas mãozinhas abrindo caminho no meio da gente. Era
Bernardo que estava tomando posse do seu lugarzinho no meio de nós duas. Abraçamos
o menino.
- Vocês duas já têm um filho – deu um beijo no meu rosto, logo outro em Alana. O
menino estava quase do nosso tamanho - Mas eu deixo vocês encomendarem um
irmãozinho pra mim.

Sorrimos os três... Uma família é muito mais do que podemos definir em palavras.
Família é amor, respeito, carinho, sinceridade, compreensão, dedicação, doação,
afeição, empatia...

Fim.

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