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Julianna Costa
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 e 19/02/1998.
Este livro, ou qualquer parte dele, não pode ser reproduzido por quaisquer meios sem prévia
autorização expressa da autora
Prólogo
Eu e meu irmão somos exatamente idênticos.
E essa é a única coisa que temos em comum.
Um único óvulo fecundado que - por falta do que fazer ou excesso de
determinação - decidiu gerar duas vidas ao invés de uma só.
O Aglomerado Número Um nasceria com olhos verdes e cabelos escuros. Seu olhar
seria respeitável, seu sorriso módico, sua barba bem feita e sua aparência sempre
alinhada.
O Aglomerado Número Dois nasceria com os mesmos olhos verdes e os mesmos
cabelos escuros. Mas seu olhar seria atrevido, seu sorriso ousado, sua barba iria
crescer sem ser contida e sua aparência não receberia qualquer tipo de cuidado
específico.
Eu era o aglomerado número dois. O aglomerado que abandonou os negócios da
família por um estúdio de tatuagem no litoral. O aglomerado que aposentou o
paletó e a gravata pelo corpo marcado de sol e de tinta. O aglomerado que não
falava com a família há quase dois anos e que tentava manter uma vida pacata e
discreta longe dos holofotes da imprensa e das intenções de milionários.
Talvez por tudo isso a ligação de Antônio tenha me surpreendido naquela
tarde.
Ou talvez eu não esperasse ouvir notícias dele em pleno dia de seu casamento.
- LUCA! - Alma gritou da frente do estúdio enquanto eu trabalhava em um
estêncil, assistindo meu telefone vibrar sobre a mesa branca - VOCÊ JÁ ACABOU AÍ?
As letras escuras e imensas na tela do meu aparelho narravam o nome "Antônio"
além de qualquer dúvida.
As últimas ligações que recebi da família foram de minha mãe.
Foi ela quem me ligou há três meses para avisar que Tony se casaria em breve.
Foi ela quem me ligou há dois meses para perguntar se eu já tinha recebido o
convite e se viria.
Foi ela quem me ligou há um mês para insistir que eu abandonasse minhas
"bobagens" e fosse prestigiar meu irmão.
Foi ela quem me ligou há duas semanas para perguntar se eu não iria mesmo ao
casamento.
Foi ela quem me ligou há uma semana para dizer que Fernanda estava noiva e
que eu "deveria aparecer para mostrar a ela o que tinha perdido" em uma última
tentativa desesperada de me convencer a participar.
Era ela quem me ligava.
Não Tony.
Nem mesmo meu pai.
Mas ali estava.
Meu irmão mais novo por alguns minutos… ligando para mim pela primeira vez em
meses.
No dia do seu casamento.
- Já vou. - avisei para Alma - Estou no telefone. - anunciei antes de
respirar fundo para atender - Tony?
- Luca! Graças a Deus!
Ele soava exausto e sem ar. Mas era bom ouvir sua voz.
Nossa distância tinha sido imposta muito mais pelo contexto familiar que por
uma inimizade e, embora ele achasse que eu não desconfiava de suas verdadeiras
razões, eu as conhecia muito bem.
Sempre tentando me ajudar quando meu pai não estava olhando… Se não fosse por
ele, eu jamais teria conseguido me estabelecer ali.
Ele era uma boa pessoa, o meu irmão.
Um bom homem.
Era bom ouvir sua voz.
- Tony, por que diabos está me ligando? Não deveria estar experimentando um
paletó caro demais ou algo assim? - brinquei - Ah e parabéns. - acrescentei por
motivo nenhum além de etiqueta - Não sou o maior fã de casamentos, você bem sabe,
mas…
- Luca, preciso te pedir um favor. - cuspiu, aflito.
- Cara, você tá legal? - baixei o tom de voz por nenhuma razão - O que
aconteceu?
Mas ele não parecia me ouvir.
- Preciso te pedir um favor. - repetiu - Um favor imenso.
- Antônio, você está me deixando preocupado. Aconteceu alguma coisa?
- Se aconteceu alguma coisa? - havia um tom quase cômico em seus desespero.
Como se houvesse acontecido coisas demais para narrar ou impossíveis demais para
descrever - Eu deveria estar me casando. - suspirou. Sua voz era idêntica a minha
o que servia para intensificar meu nervosismo diante de suas palavras balbuciadas
e incompreensíveis - Luca, eu… eu preciso que você volte para casa. Hoje. -
sussurrou, em pânico - Preciso que vista meu paletó caro demais e… preciso que
case no meu lugar.
Eu comecei a rir.
Foi espontâneo e delicioso.
Ou era uma pegadinha idiota, uma prenda de despedida de solteiro ou um
artifício para me convencer a ir ao casamento. Todas as três possibilidades eram
igualmente estúpidas e cômicas.
- Ótimo. - gargalhei - Quer que eu vá na noite de núpcias também? Já vou
estar por lá, mesmo.
- Não, eu acho que chego antes de vocês partirem.
- Ah, que pena. - murmurei, rindo - Mas estou por aqui, se precisar.
- Luca, eu não estou brincando.
- Claro que não. Só me ligou para pedir para experimentar meu pior pesadelo
ficando de pé em um altar e esperando para casar com sua mulher. Cara, sei que te
devo por causa de toda a coisa com o estúdio… - brinquei - Mas isso é um
pouquinho demais.
- Não estou pedindo por causa…! - ele começou, exaltado, mas então se
controlou - Sinto muito, Luca, imagino como deve ser uma perspectiva desagradável
pra você. Mas já faz tempo demais e…
- Não tempo suficiente.
- Você foi longe demais, Luca! O que aconteceu com a Fernanda foi uma merda,
mas você simplesmente não superou. Foi horrível para nós que te amávamos ter que
assistir…
- É, o que aconteceu com a Fernanda foi uma merda. Uma merda que você parece
ter esquecido ou não faria essa piada cruel de pedir para outra pessoa casar no
seu lugar.
- Luca, não é piada. E não é crueldade. Você… você não entende. - ele parecia
em pânico. Pânico genuíno e absoluto.
- Então, me explique.
- Eu estou muito longe. Tive um problema… uma questão muito grave e muito
pessoal. Precisou de minha atenção imediata. Ainda precisa.
- Pois então ligue para sua noiva. Não para mim.
- Luca, por favor! - sussurrou - Estarei lá essa noite. Mas não há condições
de chegar a tempo para o casamento! Mesmo que eu pegasse o avião agora, não
chegaria a tempo. Estarei lá essa noite! Só preciso de algumas horas suas. Só
algumas horas! Fico te devendo pelo resto da vida.
- Você tá falando sério? - me inclinei contra o telefone.
- Muito sério. Você… você não entende. É uma coisa muito grave, Luca, eu não
pediria se não fosse. Sabe que eu não pediria! Eu teria que deixar Gabrielle no
altar, Luca. E ela é uma pessoa boa. Não… não merece isso.
Filho da puta.
Estava apelando pro meu ponto fraco e sabia disso.
- Você quer que eu volte pra casa, me enfie nas suas roupas e case com a
mulher como se fosse você? Não está escutando como isso é ridículo?
- Se você não tiver feito nenhuma tatuagem no rosto ou nas mãos, vai dar
certo.
- Tony… - eu esfreguei os olhos - Eu tenho que trabalhar. Não posso largar
tudo para… casar por você.
- Cara, eu odeio ter que usar essa carta, mas você está me devendo. -
suspirou - E olha: Nossas assinaturas são quase idênticas, o terno está pronto e
vai caber perfeitamente. Meu barbeiro está esperando. Ele faz o mesmo corte e
barba em você. Só algumas horas, Luca! Estarei lá a noite.
- Calma, calma… o que nossas assinaturas têm a ver?
- Vai precisar assinar os documentos por mim.
- Ah, então você quer que eu case com sua noiva? De fato?
- Ninguém vai saber! Ninguém! O paletó cobre suas tatuagens e ninguém presta
atenção no noivo nessas coisas mesmo.
- Ninguém vai saber? Nem… sei lá, talvez… SUA NOIVA?
- Ela não vai notar. - prometeu.
- Que ótimo, hein, Tony? Vai casar com uma mulher que nem sentiria sua falta?
- Só aperte umas mãos, sorria pras fotos e vá ao banheiro masculino do prédio
anexo quando o carro chegar para levar vocês para o aeroporto. Eu estarei lá, a
gente troca as roupas e eu te devo um favor imenso.
- Tony, não…
- Vai me fazer deixá-la no altar, cara? Esperando sozinha, sem saber o que
aconteceu?
- Isso não é minha responsabilidade. É sua. E onde você está?
- Luca. - ele respirou fundo - Meu barbeiro está avisado. Tem uma passagem de
trem comprada, no seu nome, esperando por você. Meu motorista estará na estação
para te levar a todos os lugares que precisa ir. Se decidir fazer isso, vou ficar
te devendo. Muito! Mas, se decidir não fazer, Gabrielle vai ficar esperando,
porque eu não tenho como chegar lá a tempo.
- Cara, você não pode fazer isso.
- Tenho que ir, Luca. Por favor, faça isso.
- Vai pro inferno, Antônio! Ligue pra sua noiva. Você não pode fazer isso!
Antônio!
Ele tinha desligado o telefone.
Alma estava na porta assistindo o fim da minha ligação.
- Que houve? - ela cruzou os braços com uma sobrancelha erguida.
Deixar uma noiva no altar.
Respirei fundo.
E ele estava certo: eu o devia um favor.
Amarrei meu cabelo em um nó apertado e não consegui acreditar no que disse:
- Preciso que cancele minha agenda para o resto do dia, Alma. Tenho um
compromisso.
1 – Até que a morte os separe
Me aproximo do rapaz que segura a placa com meu nome no desembarque do trem.
Ele me encara desconfiado antes de murmurar.
- Senhor Luca? - arrisca.
- Sou eu.
- Luca Zummo? - confirma.
- Eu, de novo. - sorrio.
- Oh, o senhor Tony disse que vocês eram idênticos e eu…
- Cabelo comprido, barba e tatuagens não são muito o estilo do seu chefe,
han?
- Nem um pouco. - ele ri - E o senhor parece mais alto. - ele se oferece para
carregar minha mochila, mas eu recuso.
- Bem, isso não é bom. - meu estômago embrulha diante da perspectiva do que
precisa ser feito.
- Eu sou Marco. - acrescenta depressa, guiando o caminho - O barbeiro já está
esperando. - explica. Marco é alto e esguio. Parece ser poucos anos mais velho do
que eu. Cabelos castanhos bem arrepiados e olhos miúdos e escuros. Tem um jeito
agitado que eu começo a achar contagiante - Depois vou levá-lo para o alfaiate e
de lá para a igreja. O senhor Tony pediu que eu mostrasse algumas fotos da
senhorita Gabrielle, caso o senhor tenha esquecido! Já estão no carro.
Hesito.
Tony contou os detalhes para o motorista?
- O… o que?
- As fotos. - acrescenta - Já estão no carro.
Aceno devagar, seguindo suas direções.
- Escute, Marco… O que o Tony te contou que eu iria fazer aqui?
- Ocupar o lugar dele no casamento? E não se preocupe! - continua, sem
esperar uma resposta - Ele já deve estar a caminho! Vou buscá-lo essa noite no
aeroporto e aviso quando ele já estiver na recepção, para vocês dois…
destrocarem. Já sabe como vai fazer para esconder as tatuagens? Eu sei que tem
umas maquiagens que…
- Acho que o paletó resolve.
- Ah, sim! Inteligente! Mas é melhor não tirá-lo durante a noite. A camisa
por baixo é branca. Pode ser que deixe aparecer alguma coisa. O tecido é bom,
então não acho que seria exatamente transparente, mas nunca se sabe como as
pessoas são perceptivas, não é senhor Luca, essa gente nessas festas é sempre
muito perceptiva!
- Tenho certeza que sim.
- Vi uma pesquisa na revista "Eras" na semana passada. O senhor lê a revista
"Eras"? Eles dizem que as pessoas tendem a prestar atenção nos outros baseado no
que as incomoda em si mesmas. Então, se uma pessoa nota que você tem o nariz
comprido é porque elas acham que elas têm nariz comprido. Ou queriam ter nariz
comprido. Ou não queriam. Não sei. Talvez eu precise ler a revista de novo. O
senhor já conheceu a senhorita Gabrielle?
Não, eu não a conhecia.
Quando eles começaram a namorar, eu já devia estar longe há alguns meses.
Eu não tenho qualquer intenção em compartilhar tudo isso com Marco. O que é
perfeito, já que Marco parece não precisar de respostas para as perguntas que
faz.
- Ela é incrível. Muito talentosa. E responsável. E bonita. - toca minhas
costelas com o cotovelo de um jeito que eu acho muito inapropriado. Minha
resposta não vem com palavras, já que ele parece ignorá-las, mas com uma careta
de desagrado que ele prontamente compreende - Não que isso faça diferença, quero
dizer, sei que é a mulher do seu irmão. E que ela deve ser tipo homem pro senhor.
A não ser que o senhor goste de homens, aí ela seria tipo mulher mesmo. Não seria
estranho, a revista "Eras" disse que gêmeos idênticos têm coisas diferentes tipo
as impressões digitais e até questões de sexualidade. Teve um caso na Rússia em
que gêmeos idênticos nasceram com olhos diferentes, mas trocados. Um castanho e
um verde. Mas o que era o olho esquerdo em um era o direito no outro.
Completamente iguais na genética não fosse por…
- Marco, nós já estamos perto do carro? - olho ao redor no estacionamento.
Que loucura acometeu Tony para contar para o General Falador sobre seus
planos sigilosos era algo que eu nunca compreenderia, mas, em poucas horas, a
vida de Tony seria problema de Tony.
- Oh, já chegamos. - abre a porta de um carro que esteve ao nosso lado todo
esse tempo e pega minha mochila para guardá-la - O senhor quer beber alguma
coisa? Posso fazer uma parada antes do barbeiro. Pode ser melhor ter algum álcool
no estômago antes de… sabe? Quero dizer, não é todo dia que a gente casa com a
mulher do irmão! - brinca e recebe outra carranca - Mas por outro lado não é bom
beber demais e…
- Obrigado, Marco. - fecho a porta do carro apenas para tentar conseguir
calá-lo. Estou sentindo minhas têmporas se aquecerem enquanto eu considero parar
para uma bebida, como o motorista ofereceu. Talvez não fosse uma má ideia.
E é nisso que eu estou pensando: em más ideias, quando vejo as fotos no
painel do carro a minha frente. As impressões são novas e brilhantes, como se
tivessem acabado de ser feitas exclusivamente para o meu benefício. Mas não é a
qualidade das fotos o que me impressiona, ou sequer a ideia de que alguém ainda
imprime fotos, mas sim a mulher nas imagens. O cabelo castanho e muito cacheado,
os grandes olhos cor de mel, a pinta bem acima da sobrancelha esquerda que por
mais minúscula que fosse ainda conseguia atrair o olhar, como uma marca delicada
que existisse para provar que aquele ser humano é único, e não como os outros.
E única, ela era.
Puta que pariu.
Gabrielle.
Tony disse seu nome mais cedo no telefone.
Mamãe também a mencionou. Devia estar lá escrito no convite de casamento que
eu nunca abri.
Mas eu não tinha associado o nome à pessoa.
Eu nunca poderia associar o nome à pessoa.
Gabrielle.
Escondo as mãos nos olhos e começo a rir.
Tony ia casar com Gabrielle.
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O inferno de conhecer muita gente rica é que você sempre acaba encontrando
alguém nesses lugares mais caros.
Assim que entramos no restaurante a beira-mar, Gabi acena para um casal em
uma das mesas e, pelos sorrisos que me dedicaram, imaginei que eu deveria acenar
também.
Não faço ideia de quem são. Não tenho como perguntar.
Dado que meu plano é ir embora em poucas horas, não me incomodo em tentar
descobrir.
Tínhamos uma reserva em meu nome - ou no de meu irmão - que eu nunca iria
saber se deveria ter sido feito por mim ou não. Uma música latina suave toca como
plano de fundo quando nos sentamos.
Velas foram acesas e era um jantar romântico.
Minha noite estava sendo uma merda.
Por um lado, eu estava acompanhando de uma mulher interessante e linda que eu
adoraria fazer nada além de conhecer mais intimamente.
Por outro lado, eu não podia me permitir entreter por ela qualquer interesse
porque era uma mulher casada e da minha família.
E havia ainda um terceiro lado… o lado que mais me fodia: o lado que me
obrigava a lhe dar carinho, atenção no perfeito papel de apaixonado.
Veja bem, passar a noite com Gabi seria fácil. As conversas, as danças,
talvez até os beijos.
Se ela tivesse saído com Luca, aquela noite seria incrível.
Acompanhar a esposa de meu irmão também não seria de todo mal.
Ela me detestava, mas se ela tivesse saído com Luca, eles poderiam trocar
brincadeiras disfarçadas de ofensas, falar sobre Tony e tentar passar o tempo
mantendo uma distância apropriada.
Mas eu precisava ter o pior dos dois mundos.
Eu não podia ser apenas o cunhado, porque precisava ser o marido.
Mas também não podia ser o marido, porque era o cunhado.
Seria risível se Gabrielle não me tocasse com tanta frequência.
Será que ela estava montando o clima para a noite? Não que ela precisasse…
quero dizer, se tinha resguardado sua virgindade até ali, certamente havia a
suposição de que as núpcias seriam consumadas em breve, com clima ou sem.
Viro minha bebida e peço mais água.
Toda essa coisa de pensar em virgindade e consumações não está me fazendo
bem.
- Você está preocupado. - ela alisa minha mão e eu quero que pare.
- Não, só um pouco cansado ainda. - explico - Vou estar melhor depois de uma
noite de sono de verdade.
- Você sempre dorme tão bem em aviões… - ergue uma sobrancelha - O que houve?
- Nada. - sorrio, mas não estou convencendo nem a mim mesmo.
- Tony… - seu olhar meigo cai sobre o meu rosto - Você não está nervoso com
isso ainda, está?
- Hm? Não. - parece ser a resposta certa
- Porque eu já te disse um milhão de vezes que, por mim, tudo bem. De
verdade. - entrelaça nossos dedos - Você bem sabe que não me imagino casada com
nenhum outro homem nessa Terra. - sorri.
- Eu sei. - sorrio.
Ela lhe dedica tanto carinho.
Tanto carinho.
Nunca tive uma namorada que fosse assim… genuína.
Alisa meu braço esquerdo preso a mão que estava entrelaçada a sua. A camisa
subiu um pouco, beirando minha tatuagem e eu começo a ter palpitações. Solto sua
mão, voltando-me ao cardápio.
- Bem… o que há para comer aqui?
Ela ainda me observa como se me achasse curioso.
Ou estranho.
Ou ambos.
Logo aquela curiosidade e estranheza iam crescer para algo bem inescapável e
eu pretendia estar bem longe dali antes que acontecesse.
A comida, no entanto, é deliciosa. E, quando dei por mim, Gabrielle estava
conversando sobre surf e rock clássico, o que acabou tornando a conversa ainda
melhor que a comida.
Era fácil.
Conversar com Gabi não exigia qualquer esforço.
Ela te fazia sentir querido em poucos instantes e, ao fim da noite, eu tinha
decidido voltar para casa no Natal. Claro, ela estaria casada com Tony… Mas eu
iria lhe pedir desculpas do jeito apropriado. Comprar uma prancha de surf decente
para lhe dar de presente de natal. Não estaria concorrendo por seu amor, nem nada
assim, mas ela era uma pessoa incrível e eu realmente queria sua amizade.
- Vem! – estou rindo quando ela termina sua história sobre mais uma de suas
tentativas frustradas em cima de uma prancha - Vamos dançar! Quem sabe sobre
pernas você tem mais sucesso!
- Ei! Pelo menos eu tento! Ao contrário de certas pessoas. - arregala os
olhos indicando que Antônio nunca deveria se arriscar.
- Tá, tá. - dou de ombros, puxando sua mão quando ela se põe de pé,
abandonando o guardanapo em cima da mesa.
- Boa noite! - nosso percurso é interrompido por uma mulher de cabelos de um
ruivo tão forte que é quase laranja.
- Oh, olá. - gaguejo.
- Tony, querido! - ela beija minha bochecha e eu não sei como reagir - Gabi!
Que coincidência! Chegamos agora a noite, estão em sua Lua de Mel?
- Olá, Paola. - Gabi devolve - Augusto! Como está?
Paola e Augusto. Certo.
- Bem! A cerimônia foi linda, Gabi. Muitas felicidades para vocês.
- Obrigada. - ela sorri e eu imito sua gratidão.
- Precisamos nos encontrar amanhã! - a mulher laranja insiste - Vamos sair de
barco pela costa! Vocês precisam nos acompanhar!
- Paola, eles estão em Lua de Mel. - Augusto repreende. Ele é baixo e
redondo, com um bigode farto e bem cuidado.
- Ora, mas só um passeio de algumas horas - ela insiste e eu busco Gabrielle
com o olhar, desesperado por instruções. Ela mantém um sorriso educado que de
nada me serve - E não é como se eu estivesse atrapalhando-os durante a noite,
han? - ela nos oferece uma piscadela exagerada e perturbadoramente inconveniente.
Augusto tenta fazer a esposa desistir da ideia, mas ela parece tão
determinada quanto sem noção, pendurada em meu braço, exigindo que eu cedesse ao
seu convite.
Se eu tivesse certeza que eram apenas amigos inconvenientes poderia me livrar
deles. Mas e se fossem sócios? Parceiros de negócios? E se fosso o tipo de gente,
na vida de Tony, para quem não se diz "não" levianamente?
Eu não quero prejudicar meu irmão.
Deus, eu tenho uma aliança no meu dedo para provar que não quero prejudicar
meu irmão.
E, de todo modo, eu já tinha resolvido partir no dia seguinte, não era? Que
Tony lidasse com seus amigos sem limites.
- Claro. - aceito, finalmente - Vai ser divertido.
- Olhe aí, Augusto! Um cavalheiro! Além do mais, um lugar maravilhoso como
esse não está completo sem um papo de mulheres, han Gabi? - mexe os ombros -
Quero ouvir tudo sobre a noite de núpcias! - ri alto fazendo um comichão de
desagrado descer pela minha espinha.
Eles se despedem depois de nos dar os detalhes sobre o dia seguinte e eu
estou com as pernas fracas quando alcançamos a pista de dança.
A música latina está mais dinâmica e eu me atrapalho tentando acompanhá-la.
- Desaprendeu? - ergue uma sobrancelha, investigando meus tropeços.
Ah, merda. Antônio dança.
Estou fodido.
- Estou meio duro de sono, vai precisar ter paciência. - sorrio, desajeitado.
A música, abençoada seja, ficou mais lenta nessa altura e eu pude tomá-la
pela cintura sem me preocupar com minha falta de coordenação musical.
No entanto, ao mesmo tempo que "mais lento" queria dizer "menos tropeços",
"mais lento" também queria dizer "mais perto".
E lá estava ela.
Mais perto.
Muito perto.
Tão perto.
Sua blusa subiu apenas um pouco onde minha mão tocava a parte baixa de suas
costas, meus dedos roçando de leve em sua pele quente.
Eu tinha uma lembrança com Gabrielle que se destacava acima das outras. Uma
que eu tinha suprimido por tempo suficiente até que pudesse esquecer que, na
verdade, ela sempre esteve ali, mais brilhante que qualquer outra.
Um grupo de adolescentes brincando de verdade ou consequência em uma festa da
universidade. Gabi sempre pedia "verdade", sempre achava mais seguro. O problema
dela, como sempre, era eu: eu e minha técnica de girar a garrafa para que ela
sempre apontasse para onde eu quisesse. Bastava que fosse minha vez e Gabi
certamente seria minha vítima.
- Ah, que inferno! - eu já tinha lhe feito três perguntas desagradáveis
quando a garrafa apontou para ela uma quarta vez.
- Se eu fosse o último homem do mundo, você ficaria comigo? - perguntei, sem
titubear ou perder o sorriso - A última pessoa do mundo! E diga a verdade,
Gabrielle! A última! - lembrei - Ou eu ou ninguém. O que você prefere?
- Acho que prefiro ninguém. - torceu o nariz.
- Ficaria sozinha para sempre? - encarei seus olhos, sabendo que ela mentia.
Ela deixou a respiração escapar, em desistência.
- Tá, acho que se você fosse a última pessoa do mundo e não houvesse mais
nenhuma outra jamais… acho que ficaria com você. - ela ficou muito vermelha com
sua confissão e eu não deixei que passasse despercebido.
Outra pessoa girou a garrafa e mal tinha caído nela, de novo, nossos amigos
já estavam se manifestando.
- Pergunta pra ela o que ela faria com o Luca se ficasse com ele! - alguém
provocou.
- Consequência! - Gabrielle gritou - Não quero mais verdade. - estirou a
língua.
A pessoa que comandava a rodada, no entanto, parecia ter planos ainda piores.
- Tudo bem. Deixa o Luca pegar na sua bunda por trinta segundos.
- É o quê? Não. Verdade. - mudou de ideia.
- Você já escolheu consequência, Gabrielle. - o dono da garrafa lembrou - Mas
tudo bem! O que você faria com o Luca se ficasse com ele? Com detalhes!
- Ah, nossa! Por que vocês me odeiam?
- Todo mundo está recebendo perguntas horríveis, Gabi. - uma de suas amigas
riu.
- Tá bem, então. Vem, Zummo, levanta. - rosnou.
Eu lembro de ter ficado em choque, no momento.
Eu nunca, nunca, nunca, sequer considerei que ela poderia obedecer a
brincadeira.
Parar de jogar, reclamar com todo mundo, ir embora… todas possibilidades
viáveis.
Mas "Vem, Zummo, levanta" não me parecia real.
- É o quê?
- Não demora, garoto! - latiu, saindo da sala, para o quarto de sua amiga,
separado para as consequências que, em jogos de adolescentes, sempre pareciam ser
inescapavelmente safadas.
Eu a segui ainda sem acreditar. Tinha os braços cruzados e uma expressão de
impaciência assim que fechei a porta atrás de nós.
- Gabi, não precisa fazer isso. - apontei para a porta - Eu digo pra eles que
você deixou e que me deu um tapa depois, parece bom?
- Acha que eu sou covarde, Zummo?
- Credo, garota! - reclamei - Não tô dizendo isso! Só tô falando que não
precisa…
- Estou participando da brincadeira e vou fazer isso!
- Tá, tá! Calma! - abanei as mãos. Foi só aí que percebi que estava tremendo
- É só porque você trabalha pra…
- Não trabalho mais pra você, trabalho pro seu irmão.
- Tá legal. - aceitei.
Ela se aproximou, resoluta.
- Vamos lá.
- Ahm… - eu movi minhas mãos desajeitado, sem coragem de colocá-las em seu
corpo.
- Ai meu Deus. - suspirou e tomou minhas mãos. Encaixou-as nas nádegas e meu
corpo jovem começou a ter ideias indevidas no mesmo segundo. Eu a estava
abraçando, nossas virilhas coladas enquanto minhas mãos agarravam-se a sua saia,
duras e imóveis. Suor frio se condensava em minhas têmporas e quando Gabrielle
segurou meus braços como apoio, encarando o relógio, percebi que minha ereção
estava ficando indisfarçável.
Ela corou e nos manteve próximos, mesmo quando eu fiz menção de dar um passo
para trás.
Trinta segundos.
Então, nós voltamos para a sala e para a brincadeira. Ela, inabalável. Eu,
tremendo como uma vara verde.
Acho que, de certo modo, aquilo tinha sido uma vingança, mesmo que ela não
tivesse percebido.
E agora eu a tinha nos braços de novo.
Apoiada em meus ombros, dançando devagar. Nossas virilhas não estavam
coladas, mas a distância era tão pouca que quase daria no mesmo se estivessem.
Eu devo ter falado alguma bobagem porque ela riu, a testa tocando meu ombro.
Tão linda.
Eu quis beijá-la.
Eu quis que aquele beijo na cerimônia não precisasse ser o único.
Mas era errado.
Claro que era.
- O que houve? - pergunta. O nariz tão próximo do meu que eu mal precisaria
me inclinar para senti-los se tocarem.
- Quero te beijar. - confesso.
- Ora! - ela gargalha - Pois então beije!
Solto sua cintura, tomando seu rosto nas mãos. Algo confuso brilha em seus
olhos assim que a encaro. Há urgência em meu olhar, mas mais ainda em meus
lábios.
Beijo sua boca lentamente, beijos castos como ela tinha me dedicado na
cerimônia.
Beijos castos que me causavam os mesmos contínuos arrepios.
Beijos castos que não eram mais suficientes.
Uma de minhas mãos está em seus cabelos, mas a outra tomou sua cintura.
Envolvendo seu corpo e trazendo-a para bem perto. Colando nossas virilhas até que
não houvesse dúvida de sua proximidade.
E eu a beijei.
Por Deus, a beijei.
Entreabrindo seus lábios para sentir seu gosto na minha língua. Suas mãos se
agarram aos meus ombros, subindo, buscando meus cabelos, perdendo-se no momento.
Eu estou gemendo baixinho, me amaldiçoando pelo tanto que a achei deliciosa.
Mas então seus lábios desaparecem. Estalando nos meus quando coloca um de
seus braços entre nós.
Ainda considero me inclinar para continuar a beijá-la, mas meus olhos se
abriram o suficiente para que eu visse o pânico em seu rosto. A lividez em suas
bochechas.
- Você… - ela suspira em uma rouquidão doentia - Você não é o Tony.
O pânico certamente se espalhou dela para mim enquanto eu ainda tento salvar
minha situação.
- O… O que? Gabi, claro que…
Havia horror em seu semblante.
Horror puro e genuíno.
- Luca? - murmura, seca.
Eu estou arfando, entre o beijo e a angústia.
- Gabi, eu posso explicar. - prometo.
- Ai meu Deus. - ela leva as mãos a boca - Ai meu Deus! - seu braço entre nós
se fez mais presente e mais urgente. Empurrando-me para longe, instrução que
prontamente obedeci.
Ela já está saindo do restaurante quando eu começo a aceitar que aquilo
realmente aconteceu.
3 – Troca
- Seu TARADO! - ela joga uma almofada na minha cabeça assim que entro no
quarto. E então joga outra - PERVERTIDO! PERTURBADO! MIMADO! IRRESPONSÁVEL!
A fúria de Gabrielle era realmente admirável se comparada com a mulher doce e
afetuosa das últimas horas.
- Gabi…
- Seu moleque! - ela para de atirar coisas em mim e passa a esfregar as
próprias têmporas - Seu moleque arrogante e inconsequente! Ficou louco? - vira-se
para mim com olhos demoníacos e eu não sei se devo ou não responder - Ficou
louco! - aceita sem esperar uma definição de minha parte - Isso é alguma
brincadeira? Isso é engraçado pra você? - está andando na minha direção e eu dou
uma porção de passos para trás, tentando escapar de sua cólera.
- Não, senhora. Nada engraçado. - respondo com as mãos esticadas a minha
frente como proteção.
- "Vou trocar de lugar com meu irmão e pregar uma peça em sua esposa"! Era
isso que estava pensando? - eu fico mudo e em pânico - Responde! - vocifera.
- Não foi ideia minha, foi ideia do Tony. - é o meu melhor argumento e acho
melhor dizê-lo bem depressa enquanto ainda tenho chances de ser ouvido.
- Ideia do Tony?
- Ideia do Tony. - repito devagar.
Gabi abandona as têmporas para esfregar os olhos como se calculasse alguma
coisa.
- Tony queria que você passasse a noite de núpcias comigo? - ela faz uma
careta irritada e eu não percebi o sarcasmo que deveria estar em suas palavras -
É isso que está tentando me dizer?
- Não. - rio - Não exatamente.
- Do que está rindo?
- De nada. - me calo, imediatamente.
- Luca. - ela prende a respiração, seus seios incham devido ao volume em seus
pulmões deixando seu decote ainda mais em evidência. Mantenho os olhos longe de
seus peitos ou eu apanho, sem dúvidas - Você tem um minuto para me explicar o que
diabos está acontecendo! E mande Tony vir até aqui, porque é bem provável que eu
só acredite se ouvir dele.
- Hmmm… não sei se vai ser possível cumprir essa parte. - gesticulo com muito
cuidado - Tony não está aqui.
- Como pode não estar aqui? Foi embora essa tarde? Vocês trocaram de lugar
quando ele subiu para descansar, não foi?
Ok. Eu achei que ela tinha percebido tudo.
Mas… aparentemente, ainda não tinha entendido a pior parte.
- Não… nós trocamos… antes. - murmuro.
- Antes? - ela está se aproximando mais uma vez, com aquela postura homicida
que me causa aflições - Eu não me separei de Tony desde o aeroporto. Como vocês
dois conseguiram fazer isso sem que eu notasse?
- Bem…
Seus olhos se abrem forçosamente quando a compreensão a atinge como um
porrete.
- Não. - ela diz, simplesmente - Não, não. - está rindo. Rindo de desespero.
- O Tony me ligou ontem, ele disse que…
- Não… - repete.
- Ele teve alguma emergência, não conseguiria chegar a tempo, mas não quis
cancelar o casamento.
- Meu Deus, oh meu Deus… - ela está curvada sobre o próprio estômago - Eu
casei com você? - me encara em pânico.
- Não! - gesticulo depressa - Não, não, não! Você casou com o Antônio. Eu fui
só… só um procurador. Sabe? Ele não podia ir, eu fui no lugar dele. Escuta, Gabi,
ninguém precisa saber disso. Nunca! Eu não vou contar, prometo.
- Ah! O Luca prometeu! - dessa vez o sarcasmo é perceptível - Claro que
podemos confiar na palavra dele.
- O Tony não vai contar, você não vai contar. Pronto! E agora que você já
sabe, eu posso ir. - estou indo para a porta quando ela passa por cima do sofá
para fechar o meu caminho.
- Agora que eu já sei? Eu não sei de nada! Onde está o seu irmão?
- Pois então somos dois sem saber de nada. Eu também não faço ideia de onde
ele está. Só me ligou dizendo que ia ter que deixar a noiva no altar a não ser
que eu lhe fizesse esse favor. Bem cruel da parte dele cutucar essa ferida, han?
- E aí você veio e o que?
- Vesti as roupas dele e o resto você já sabe.
- Era você? Desde ontem?
- Desde ontem. Olha, não me mata, está bem? Eu só estava tentando ajudar o
meu irmão. E ele deveria ter aparecido ontem a noite na recepção. Ele nunca me
pediu para vir com você na Lua de Mel!
- E por que veio?
- Porque eu já estava enfiado na história! E ele desapareceu. Marco me
convenceu a vir e…
- Marco? - ela piscou, homicida - Marco?
- Marco, o motorista.
- Eu sei quem é Marco, Zummo! - ralha - Ele também sabe, então?
- Tony contou para ele! - aceno, em rendição - Não tenho nada a ver com isso,
se resolva com seu marido.
- É! SÓ QUE ELE NÃO É MEU MARIDO!
- É seu marido. Gabrielle, não exagere.
- Exagerar? Eu? Você abandona vida e família por causa de uma mulher que não
prestava e eu sou a exagerada?
- Ai. - reclamo - Isso foi desnecessário.
- Oh, me perdoe se não estou no clima para amenidades, Luca! Não acredito que
é você! - esfrega os olhos - Eu vou matar seu irmão.
- Eu ajudo! - brado.
- E você não sabe onde ele está?
- Não faço ideia.
- E o Marco?
- Também não sabe. Estava tentando falar com ele e trazê-lo até aqui antes
que…
- Antes que eu percebesse. - mordisca o interior dos lábios.
- Precisamente. Por favor, não me mate. - repito.
- Ainda não decidi. - avisa - E então, qual o plano?
- Bem, agora o plano é eu ir embora.
- Você não pode ir embora!
- Por que não?
- Porque eu e seu irmão estamos casados e eu não vou arriscar que alguém
perceba que não foi exatamente isso o que aconteceu. E você já aceitou sair
amanhã para navegar com os Adriatic, esqueceu? Não podemos desmarcar, eles podem
suspeitar. Deus, do jeito que aquela gente é fofoqueira, com certeza vão
suspeitar. E aí quando perguntarem para onde o Tony foi, o que eu digo? E se o
assunto chegar nos seus pais? O que eu digo?
- Olha, com todo o respeito, mas acho que isso não é da minha conta.
- Não seria da sua conta se você não tivesse aparecido. Teríamos adiado o
casamento ou cancelado ou sei lá! - ruge.
- Você preferia ter sido deixada na igreja? - balbucio.
- Pelo menos teria sido pelo seu irmão! Ele se explicaria e resolveríamos!
Mas agora… agora, se a explicação não for suficiente podem perceber o que
aconteceu! E foi você quem aceitou a porcaria do convite para amanhã! Não vai me
deixar sozinha!
- Tudo bem, tudo bem! - eu ia apertar seus ombros, mas sinto que não seria
seguro - Eu fico até ele aparecer. A gente sai com os… seja lá quem forem… e
espera o Tony aparecer. Ele não deve demorar… não é possível.
Gabrielle senta no sofá e parece estar se acalmando.
- Você quer uma água?
- Máquina do tempo. - geme - Você tem?
- Não, sinto muito. - sento ao seu lado - Não fiz pra te provocar, sabe? Pra
falar a verdade nem sabia que era você quem ia casar com ele.
- Seu cuidado me comove. - rosna.
- Gabi, eu só estou tentando pedir desculpas, você deixa?
Ela fica em silêncio fitando meu pedido.
- Desculpe. - eu digo, cauteloso - Realmente, só queria ajudar.
**********************
**********************
Gabi
**********************
Luca
- Tony? Ah, ainda bem! - expira aliviada, agarrada ao celular - Onde você
está? É, eu já percebi o que vocês fizeram. Por que não me contou? O que…
Ótimas perguntas.
Eu gostaria de respostas para todas elas também, assim que possível, por
favor.
Gabrielle fica em silêncio enquanto Tony tece suas explicações.
Seu rosto se derrete em compreensão e eu me sinto arrebatar pela cólera: o
que diabos um cara pode dizer para sua noiva para justificar seus atos dos
últimos dois dias com tanta velocidade?
Ela o ama.
Se Fernanda tivesse chegado atrasada para o nosso casamento alegando uma unha
encravada, eu não ligaria.
Não ligaria se ela tivesse me feito esperar uma hora ou duas. Aceitaria
qualquer motivo estúpido que ela me desse como justificativa, desde que a tivesse
ao meu lado no fim da noite.
Eu estava apaixonado.
E "paixão" e "estupidez" são duas coisas frequentemente atreladas.
Eu tive minha chance.
Agora, aparentemente, era a vez de Gabrielle.
- Entendo, querido, claro. Não se preocupe comigo, faça o que a Giseli
precisar. Tem algo que eu possa…? - ela pergunta e se cala, diante de mais
instruções - Não… - seu olhar corre para mim - Ele ainda está aqui. É…
Ergo as mãos, questionando o que se passava.
- Tudo bem. - ela engole em seco - Vou passar pra ele. Seu irmão quer falar
com você. - entrega-me o celular.
Encaro o aparelho em suas mãos como se ele fosse capaz de explodir, mas o
pego mesmo assim. Com cuidado e receio.
- Antônio, onde caralhos você se enfiou?
- Luca, escuta, me perdoa! - pede, apressado - Sei que te devo um pedido de
desculpas mais elaborado do que isso, mas…
- Pode apostar que deve! Tony, mas que merda, cara?
- Luca, eu sei! Escuta! Se você apenas me escutar por um instante. - pede -
Eu não tenho como te contar tudo agora, mas vou fazer isso! Em breve, juro que
vou!
- Não, Tony, você vai me explicar agora!
- Cara, confia em mim. Preciso que confie em mim. Eu sei que isso parece
loucura e que… ah… merda. Eu sei, tá bem? Mas preciso… preciso de verdade que
confie em mim dessa vez. Não posso explicar tudo agora, não desse jeito. Não
quero… não quero que você me odeie. - suspira.
- Você é meu irmão. - murmuro, sem entender - Eu te amo, não importa o que
seja, está bem? Mas puta que pariu, Tony, você tá me deixando preocupado.
- Eu estou bem e… e vai ficar tudo bem. Eu prometo. Mas não posso… não posso
agora, Luca, por favor acredite em mim. Só… só confia em mim.
- Tá, tá. Ai, inferno, Tony, tudo bem. Você me conta quando chegar, é isso?
Quer que eu te espere?
Ele demora um pouco demais para responder.
- Quero. - murmura, vazio - Quero que espere eu voltar. Pode fazer isso?
- Posso. Claro, cara. Que merda… que horas você chega?
- Ahm… - ele deixa o lamento no ar e eu começo a entender que a dimensão da
pergunta feita foi diferente do que eu compreendi.
- Antônio. - rosno baixinho - Você está chegando hoje, não está?
Ele fica em silêncio.
Encaro Gabi e a vejo desviar o olhar.
Puta merda.
- Antônio? - sibilo.
- Devo demorar mais alguns dias, Luca.
- ALGUNS DIAS? Você… você PERDEU O JUÍZO! Cara, PUTA MERDA, vocês está
CASADO! VEM FICAR COM SUA MULHER, AGORA!
Do outro lado, Tony está tentando falar, mas eu não tinha parado de gritar:
- Gabrielle quer que eu vá embora e na boa, irmãozinho, ela está certa! Se
você chegar hoje, ok, eu te espero. Se não chegar, me liga quando estiver na
cidade e a gente conversa!
- … você não entende!
- Pode apostar essa porra desse teu pau orgulhoso que eu não entendo! Você
arranja uma mulher espetacular pra casar e foge do casamento! Foge da Lua de Mel!
Que cacete tá acontecendo?
- Luca, se você precisa ir embora, eu entendo. Claro que… droga… droga. Eu
entendo! - repete - Você já me ajudou muito e eu sei que tem sua vida, seus
amigos, seu estúdio, seu trabalho… droga, cara, eu sei! Mas… mas se puder fazer
isso por mim… Se puder ficar, vai salvar minha vida. Vai… vai resolver tudo. Se
não puder, eu entendo e te agradeço pelo que já fez. - ele parece cansado. Parece
exausto - Mas se puder… Luca, se puder… vou ficar te devendo pelo resto da vida.
Aperto minhas têmporas encarando o chão.
Mesmo sendo mais velho por pouco mais de dois minutos, essa porra desse
complexo de Irmão Mais Velho sempre me fodeu. Eu não consigo dizer "não" ao ouvir
meu irmãozinho me implorando para salvá-lo.
- O que você precisa que eu faça? - murmuro, sem vida.
- Ai, Luca, obrigado!
- Calma que eu ainda não concordei, idiota. - resmungo - O que precisa?
- Só preciso que fique aí! Dez dias em um hotel cinco estrelas! Você pode…
pode surfar e fazer trilhas! Jantar, spa, tudo por minha conta! - acelera-se em
seu discurso - Só fique aí com Gabi e… quando voltarem, eu encontro vocês em
casa. Eu juro!
Ai que merda.
- Espera. - murmuro, afastando o telefone do rosto - Ele quer que eu fique,
você sabe disso?
Gabi se abraça como se temesse que algum segredo escapasse.
- Sei.
- E por você tudo bem?
- Por mim tudo bem. - engole em seco.
- Sério? - arregalo os olhos com uma risada de descrença.
- Luca, olha… me desculpa. - ela acena devagar - Sei que fui irritante e… Eu
só tomei um susto, está bem? Nós não somos exatamente a pessoa favorita do outro.
Eu podia ter sido mais simpática.
- Meu Deus. – balanço a cabeça - O que está acontecendo?
- Por quê?
- Porque você estava pronta para me amarrar do telhado há cinco minutos e
agora está pedindo desculpas.
- O Tony precisa disso, agora. Ele precisa da nossa ajuda. - murmura e não
sei se ela acredita nas próprias palavras.
Dei de ombros.
Eles são casados, não são? Então que se resolvam.
- E você atende o telefone quando eu ligar? – rujo para o celular.
- E eu atendo o telefone quando você ligar! - promete.
Preciso respirar fundo duas vezes inteiras antes de dizer:
- Tá. Tá bem. Fico até você voltar.
- Obrigado, cara! Obrigado! Estou te devendo.
- Pelo resto DA VIDA, Antônio!
- Pelo resto da vida!
Desligo o telefone e o devolvo.
- Acho que não vou embora cedo, no fim das contas.
- Obrigada. - ela sussurra, miúda, deixando o aparelho sobre a mesa.
- Gabi… - peço - O que tá acontecendo?
- Ele disse que ia te contar?
- Disse! Mas aí começou uma série de outras afirmações que fez sentido
nenhum.
- Tipo?
- Tipo achar que eu vou odiá-lo!
Ela acena como se aquilo, na verdade, fizesse bastante sentido. Meus ombros
estão duros e sofríveis, larguei o peso do corpo no sofá e desisti.
- Ok. Acho que não vou conseguir respostas de nenhum de vocês dois, hoje.
- Não é uma resposta minha para dar, Luca. - ela ainda se abraça - Não acho
certo você ficar aqui sem… sem saber de nada. Mas não é uma resposta minha. É
dele. É do seu irmão.
Atento para os seus trejeitos. Parecia nervosa. Parecia… triste.
Curioso como a ideia de que Gabi estava triste me incomodava mais que
qualquer outra loucura naquele cenário surreal.
- Bem! - dou de ombros - Você quer companhia?
- Companhia? - seu olhar frio se aquece, focando-se em mim.
- Sim, para sua trilha.
- Ah, eu… - olha para os lados como se confusa - Eu ia fazer sozinha, o Tony…
Tony não gosta de trilhas.
- É, mas o Tony não está aqui. E parece que não vai estar por algum tempo.
Então, - sorrio - quer companhia?
4 – A garrafa italiana
E aí eu descobri que Gabrielle gostava de trilhas.
Mais do que eu, o que foi surpreendente até certo ponto, porque Tony as
detestava.
- Cansado, Zummo? - ela provoca alguns metros a minha frente.
- Não estou dando o meu máximo para não te deixar constrangida. - puxo a
garrafa de água.
- Hmhum. - ela ri, esperando-me.
A trilha é suficientemente bem demarcada, a não ser em uma das pradarias em
que tivemos que usar um pouco do instinto para descobrir qual direção seguir. Mas
o dia está lindo, não tínhamos nada além daquilo para fazer e nos perder em um
gramado verde e alto debaixo de um Sol gostoso acabou sendo uma ideia excelente.
Seja lá qual o problema de Tony, que tinha deixado Gabi cabisbaixa e
entristecida, o fato é que ele não estava mais em sua mente e vê-la sorrir foi um
alívio bem recebido.
Poder me livrar das mangas compridas também.
A trilha serpenteia em uma subida brusca antes de se aplanar mais uma vez.
Gabi espera por mim no ponto mais alto, enquanto eu dou os últimos passos ladeira
acima. Escondo meu arfar cansado, fingindo uma energia plena que não é exatamente
verdadeira e ela me devolve apenas um olhar entediado.
Ou deveria ter sido um olhar entediado… se ela não tivesse se demorado
libidinosamente nos meus músculos.
- Viu algo que te interessou? - roubo sua atenção - Gostou das minhas
tatuagens?
- Não. - desfaz-se, subitamente. Voltando a caminhar.
- Então só está encarando meu corpo? - provoco, irritante.
- As tatuagens. - decide, virando-se de lado, os polegares enfiados nas alças
da mochila - As tatuagens são bonitas.
- Oh, obrigado, Gabi! - exagero na gratidão, como se ela tivesse sido
perfeitamente genuína - Já pensou em fazer alguma?
- Por enquanto, mais nenhuma.
- Mais nenhuma? Você já tem uma?
- Tenho. - murmura, descontraída.
Freio minha caminhada imediatamente com os olhos bem abertos.
- Onde?
- Não é da sua conta.
Acho que meu sorriso talvez tenha sido safado demais quando a persegui,
agitado.
Minha virilha perturba-se com as cócegas que precedem a ereção. Cada pessoa
tem suas preferências sexuais, as minhas frequentemente envolviam mulheres
tatuadas. Mesmo antes do estúdio, ou de aprender qualquer coisa sobre a arte, eu
já tinha um tesão meio animal por uma mulher com alguma tinta na pele. Me fazia
perder a razão.
- Eu te vi de biquini - lembro - e não vi qualquer tatuagem.
- Estava encarando meu corpo, então? - devolve.
- Sagaz. - parabenizo.
- Obrigada. - ergue um ombro.
- Gabi? - peço.
- Luca? - ri.
- Onde é a tatuagem? - imploro.
- Talvez seja em um lugar secreto. - vira-se para assistir minha angústia -
Ou talvez eu esteja inventando para te provocar.
- Precisa ser pequena. - considero - Teu biquini era minúsculo, não cobria
muita coisa. E se for fora do biquini… tem que ser muito pequena mesmo, ou eu
teria notado.
Ela tira uma garrafa de água da lateral da mochila para se servir:
- Qual o seu problema com tatuagens?
Fico duro só de pensar em uns traços de tinta nesse teu corpo gostoso.
Não.
Péssima resposta.
- Interesse profissional.
Ela morde o canto do lábio úmido pelos goles de água e parece considerar me
absolver.
- É pequena. - confirma - Mas está fora do biquini.
Melhor assim.
Pensar na sua região púbica depilada e tatuada ia me foder com força.
- Vai me contar o que é?
- Vou te deixar tentar descobrir. - dobra o lábio e eu rio.
- Tudo bem. Desafio aceito.
Seguimos quase em silêncio pela próxima meia hora. Nenhum assunto se forma de
forma relevante. Apenas comentários sobre o percurso ou o cenário.
E a vista.
Meu bom Deus, a vista.
- Tony é um estúpido. - eu resmungo finalmente - Tem que ser muito babaca pra
perder uma vista dessas!
Gabi me responde com uma risada gostosa.
- Mesmo que ele tivesse vindo, ainda teria perdido a vista. Até parece que
ele ia subir isso tudo!
- Verdade! - lembro – Preguiçoso.
- "Acomodado", eu diria. - pisca um olho.
- Nossa. - meu desconforto sai grave e gutural - Você realmente o ama muito.
- Por que diz isso?
- O modo como o defende. - aceno - E o fato de estar tão na boa com tudo
isso.
- Não estou "tão na boa". - ergue um ombro - Mas estou lidando. - completa,
com maturidade.
É verdade.
Não devia ser fácil, mas ela estava lidando como podia.
Conheço a sensação de ser abandonado no casamento, mas a parte boa daquilo
tudo - se é que houve uma parte boa - é que pelo menos acabou logo. Fernanda
deixou um bilhete rabiscado às pressas que tinha nenhuma consideração e muita
objetividade. Era terminal e resoluto. Acabou e é isso e seguimos.
Mas para Gabi… era um eterno estado transitório. Como se a espera no altar
estivesse se prolongando por dias. Não deveria ser nem um pouco agradável e eu
sequer conseguia imaginar qual desculpa Tony tinha lhe dado para tornar aquilo
aceitável.
Minha suspeita é que a desculpa - seja lá qual fosse - era péssima, e
Gabrielle só a tinha aceitado porque o amava.
Mas, se eu estivesse certo, sua paciência não ia se sustentar eternamente.
E se Antônio não voltasse, eu podia apenas imaginar sua dor.
Fico em silêncio por alguns passos, quando o terreno se tornou lamacento e
tivemos que experimentar sair da trilha para escolher um percurso mais
transitável.
- Deu pra perceber o quanto você gosta dele. - assinto, depois do que parece
uma eternidade de silêncio.
- Ele é meu melhor amigo. - ela sorri, quieta, e eu sinto a pontada de inveja
me atacar de novo.
O homem é idêntico a mim… e ainda assim tinha conseguido um sucesso absoluto
onde eu fracassei epicamente.
- Estou feliz por vocês. - devolvo o sorriso e sei que não é mentira.
É, eu estou cobiçando sua esposa e invejando suas decisões amorosas, mas eu
amava aquele puto e saber que ele tinha uma vida pela frente com uma mulher como
Gabi… eu estava feliz por ele.
Não acho que um cara consegue muito melhor do que isso na vida.
- Assim como ficou feliz por mim e André?
- Aquilo foi diferente! - engulo em seco, desesperado para trazer a conversa
de volta para um terreno seguro - É sério, Gabi, eu sei que você não confia em
mim, mas… Você tá rindo?
Ela estava rindo.
Estava se divertindo às minhas custas.
- Sua mulher maldita. - eu praguejo baixinho - Quase me mata do coração.
- Está nervoso, gatinho? - provoca.
- Estou querendo paz pelos próximos dias.
- Hmhum. - ri.
- E o André não prestava.
- Hmhum.
- É sério, Gabrielle! Se você ouvisse as coisas que ele falava de você para
os caras!
- Até você lhe dar um murro?
- Alguém precisava fazer alguma coisa. - murmuro, contrariado.
- E o murro foi porque ele falava de mim e não porque ele pegou a tua garota?
- Ela não era minha garota. - estreito os olhos pra ela, impaciente.
- Sei. - ela ri.
- É sério! Meu Deus, você não acredita em nada que eu digo, não é?
- Tenho uma certa dificuldade. - admite. Mas não estava brigando. Acho que
era a primeira vez que conseguíamos falar do passado sem discutir – Mas foi legal
ver o André apanhar.
- Viu? De nada.
- E foi legal ver você apanhar também. - ela ri mais alto.
- Eu não apanhei! - revolto-me - Dei uma surra nele, de nada.
- E ele deu outra em você. Foi uma troca. - constata.
- Ele não me deu… Oh, Gabrielle, ele não bateu em mim!
- Luca, eu estava lá. Você levou uns três murros.
- Que não doeram. O André não sabe bater. O Tony também não, por sinal. Vai
ver você tem um tipo.
Ela ri muito alto.
- Tá, vou fingir que acredito em você. Mas não se preocupe, porque eu finjo
muito bem.
- Sabe? Você devia me dar uma chance. - reclamo - Nem que fosse uma bem
pequenininha.
- Uma chance? Pra quê? Já sei que você não sabe se comportar. É impossível.
- "Não sei me…" Ei! Estou me comportando muito bem!
- Antes ou depois de ter dito que queria me beijar? - ela cora
instantaneamente.
Instantaneamente.
Não consegue esconder.
- Me perdi no momento. - confesso.
- É, mas eu não chamo isso de "se comportar". Estava se aproveitando da
situação e da minha inocência, e isso é tão típico, Luca. Você e essa sua mania
de agir como se fosse invulnerável, às vezes não pensa em como… - ela se aquieta
- Não. Eu prometi. - respira fundo.
- Você não gosta mesmo de mim, não é? - considero.
Gabi solta os punhos que tinha em riste.
Ela foi um período curioso na minha vida.
Eu fui um período detestável na dela.
- Você deve amá-lo muito. - acrescento antes que ela respondesse - Para
aceitar tudo isso.
- Eu amo. - acena.
Nós continuamos. Ultrapassando alguns grupos que andavam mais devagar.
Um jovem andava sozinho com a caixa de som do celular tocando Beyonce mais
alto do que seria aceitável.
Um casal parou para sentar em algumas pedras e fazer um lanche rápido
enquanto a mulher reclamava da sua garrafa térmica, exigindo que o companheiro
fosse mais cuidadoso.
- Isso é uma termal com duplo isolamento térmico, Davi. Comprei na Itália!
Não deixe cair! É italiana!
Sussurro pra Gabi quando ela revira os olhos para a interação alheia.
- Não vai me contar mesmo o que ele disse?
- Vai ter que perguntar pra ele. - observa-me com o canto do olho.
- Tá. Então, pelo menos me conta da sua tatuagem? - rio.
- Voltamos para esse assunto? - ela sorri.
- Acho que nunca saímos!
A subida termina em um pequeno cume de pedras rosadas que se fecham em uma
queda íngreme em todas as direções menos uma… Logo a esquerda, nossa trilha
continuava miúda, entre as pedras, descendo para a vista deslumbrante que
observávamos lá de cima.
O lago muito azul, cercado por suas margens de pedras cinzentas e circulares,
a mata verde que se fechava em todas as direções e as montanhas, lá do outro
lado, enquadrando a paisagem.
- Nossa… - o olhar de Gabrielle se perde na distância e eu a acompanho.
Ela se vira, animada, para descer a trilha até o lago. Lá embaixo algumas
pessoas já se sentavam espalhadas entre sanduíches, ou experimentavam a água.
Colocamos nossas coisas sobre as pedras em uma parte mais afastada e vazia.
Gabrielle tira a calça primeiro e eu prendo a respiração. Usava um biquini
largo por baixo, ou um short muito muito curto, era difícil definir.
- Não vai entrar no lago?
- Vou. - gaguejo - Claro.
Quando tiro a camisa e a calça para ficar apenas com o calção de banho
escuro, Gabi já estava de biquini, afastando-se em direção à água.
Finjo que estou procurando sua tatuagem mas, em meu coração, eu sei que é só
uma desculpa para apreciar a vista.
Sua cunhada.
Mulher do seu irmão.
Família.
Fechei os olhos, bem apertado e…
- Luca? Você vem?
- Shh. Não me chama assim! - peço, olhando para os lados. Ela leva a mão a
boca em uma careta de desculpas - Não sou eu quem está enrascado caso alguém
descubra, sabia? - me aproximo depressa, puxando-a pela mão e condenando sua
falta de cuidado.
- Eu sei. - morde as palavras, seguindo-me - Mas é estranho te chamar de
Tony.
- Invente um apelido que faça sentido.
- Tipo "amor"? - ri.
Baixo os olhos para a água que já alcançava nossas cinturas enquanto
entrávamos no lago.
- É. Na falta de algo melhor.
- Certo. Amor. - murmura com um tom forçadamente erótico que deveria ser uma
brincadeira, mas foi dito mais ou menos na mesma merda de segundo em que descobri
onde estava sua tatuagem. Aí o efeito me fodeu.
- Achei. - mordo a boca.
- Han? - ela ainda estava se divertindo com as próprias brincadeiras.
Coloco o indicador em suas costelas, abaixo da tatuagem. Duas linhas de tinta
escura, em uma caligrafia discreta bem abaixo do seio direito.
- Ah. Parabéns. - busca meus olhos. Mas eu não consego desviar minha atenção.
"O melhor olá" era a primeira frase.
A segunda permaneceu um mistério porque ela se afastou, afundando nas águas
cristalinas antes que eu pudesse lê-la.
"O melhor olá"?
Normalmente tatuagens têm um significado específico para o sujeito que a
tatua. Mas - normalmente - é algo que dá para inferir. Ou pelo menos imaginar.
Mas… "O melhor olá"? O que diabos era isso?
- O que significa? - vou atrás dela como um cachorrinho.
- Vou te deixar imaginar. - balança os ombros dentro da água.
E "imaginar" foi o que eu fiz.
Enquanto nadávamos.
Enquanto compartilhávamos histórias de infância que envolviam acampamentos,
lagos, rios ou perder-se na natureza.
Enquanto a via sorrir como se não tivesse qualquer preocupação na vida.
Por algum motivo, estávamos de mãos dadas quando saímos da água.
Acho que ela quase escorregou nas pedras lisas. Ou talvez tenha sido eu.
Ela se apoiou em mim. Eu me apoiei nela.
As mãos estavam entrelaçadas e eu me contorcia para dar mais uma olhada em
sua tatuagem.
Gabi correu, rindo e cobriu-se depressa com a toalha de rosto, trazida na
mochila para ocupar menos volume.
- Não vai conseguir se esconder pra sempre.
- Mas posso tentar. - pisca um olho, provocando.
- Vou te amarrar na areia e…
Um gemido.
Por um lado, foi bom, já que era pouco provável que minha frase sobre
"amarrar Gabi na areia" tivesse algum final apropriado.
Por outro lado, era um claro gemido de sexo o que era… bem… péssimo.
Nós dois vasculhamos os arredores e encontramos os corpos ondulando-se não
muito longe de nossas mochilas, enfiados na vegetação que - para infelicidade dos
amantes - não era fechada o suficiente.
Aparentemente não fomos os únicos a escolher a parte mais vazia para baixar
acampamento.
Não que o lugar estivesse lotado… O lago era imenso e não havia mais que oito
ou nove pessoas em toda sua circunferência.
Gabi tapa a boca de queixo caído entretendo uma risada e se apoia em meu
ombro, às minhas costas, como quem quer gritar "OLHA PRA ISSO!"
Eu preciso rir de sua crise.
- EI! - exclamo para os amantes no mato que se cobrem depressa em um
sobressalto de pânico. Os risos de Gabi se fizeram audíveis - Precisam de uma
camisinha aí?
- Ahm… não. - ele não devia ter mais de 17 anos. Ela também não. Por Deus…
ainda bem que ainda estavam vestidos. Não completamente, mas… pelo menos não
estavam nus - Obrigado. - ele ergue um polegar.
- Será que vocês podiam encontrar outro lugar? - peço - O lago é bem grande e
eu não curto ouvir gemidos de desconhecidos durante o almoço. - aponto para a
refeição que nos aguardava em nossas mochilas embora estivesse certo que eles
deveriam estar alheios aos meus gestos, concentrando-se apenas na inconveniência
de minhas palavras - Ou talvez arranjar um quarto. - sugiro.
A garota se afastou primeiro, descendo ao longo da circunferência do lago
para se afastar ainda mais da concentração de pessoas.
- Não esqueçam a camisinha, pelo amor de Deus. - lembro, quando o garoto
ergue a mão em um cumprimento desajeitado.
- Coitados, amor. - Gabi ri, sentando nas pedras - Devia deixar eles
terminarem. A gente ia pra outro lugar.
- Sério? - sento ao seu lado - Eu estou prestando um serviço público! Melhor
eles aprenderem a ficar ligados comigo que sou de paz do que com o casal tipo a
mulher da garrafa térmica que vimos no caminho.
- Oh, ela era horrível.
- Fazer sexo em público é uma arte. Eles têm que ficar atentos desde cedo. -
aceno, aceitando o sanduíche, antes de lembrar de uma questão delicada.
Virgem.
Ela é virgem.
Todo esse assunto de sexo devia ser realmente embaraçoso.
- Ah… "melhor olá"? - mudo de assunto depressa.
Ela não responde com nada além de um sorriso promissor.
- Vou descobrir. - prometo antes da primeira mordida.
- Não acha sempre desagradável quando as pessoas ficam te perguntando a razão
por trás da tatuagem?
- Acho, mas que se dane, estou curioso. - ralho e ela se desfez em
gargalhadas gostosas.
A jornada até ali levou horas mas valeu cada minuto.
E a companhia fazia a coisa toda valer ainda mais.
Um almoço preguiçoso, seguido de um banho de sol nas pedras antes de nos
enfiar de volta nas roupas e preparar nosso retorno. Já estaria escurecendo
quando chegássemos de volta no hotel.
Eu queria ficar ali para sempre.
Principalmente se as coisas fossem diferentes e eu pudesse de fato ficar ali
para sempre.
Com ela.
- Italiana! Não deixe cair, Davi! Cuidado, Davi!
- Nossa. - Gabi faz um muxoxo - Que pena do Davi.
Eu concordo, infeliz.
Davi deixa a bendita garrafinha nas pedras e vai se encontrar com a namorada
na beira da água. Eles usam uma pulseirinha plástica de acesso a um resort
vizinho ao nosso. Outro cinco estrelas.
Gente rica reclamando de coisa cara.
Espremo a boca sentindo o moleque sapeca dentro de mim tomar o controle.
- Você tá com tudo aí?
- Han?
- Pronta pra correr?
- O quê? - enruga a testa.
Eu me abaixo depressa, roubo a garrafinha italiana e agarro a mão de
Gabrielle.
- Vem! - ordeno, baixinho.
Ela inspira para me repreender, mas a emergência é maior e corre atrás de
mim, embalada subida acima, até chegar ao topo do pequeno monte onde tínhamos
visto o lago pela primeira vez. Mas eu continuo a correr para ter certeza que ia
colocar uma boa distância entre nós e meu crime.
- Você é louco! - zomba - Além de, obviamente, um criminoso.
- Admita: foi divertido.
- Meu coração ainda está acelerado. - toma o próprio peito enquanto eu
abandono a garrafinha sagrada no meio da trilha, em cima de uma pedra
particularmente larga - E você sabe que o pobre Davi vai levar a culpa, não é?
- Só até eles voltarem, aí vão encontrar no meio do caminho.
- Louco! - repete, caçoando - E criminoso!
- Mas foi divertido. - aviso.
Ela sorri.
Tão linda.
- É. - confessa - Foi divertido.
Não estávamos mais correndo.
Não soltei sua mão.
**********************
- Certo! - a lua está alta, brilhando um caminho prateado sobre o mar escuro.
Dividíamos uma espreguiçadeira larga, sentados lado a lado com nossos pés
descalços enfiados na areia enquanto a música da festa estava distante o
suficiente para que fosse pouco mais que um fantasma sonoro. As luzes tremeluziam
ao nosso redor brincando com nossas sombras, fazendo-as se fundir e entrelaçar
como nossos corpos, provavelmente, jamais fariam - Momento mais constrangedor da
sua vida? - pergunto.
- Não. De jeito nenhum. Não vamos fazer isso. - aceita o copo de dose que lhe
ofereci.
- Ah, vai, Gabi! A gente está bebendo tequila! É claro que a gente tem que
fazer isso.
- Não tem! - ri.
- Não dá pra beber tequila sem conversa constrangedora, está no manual que
vem com a garrafa. - empurro-a com o ombro.
- Você é ridículo!
- E cheio de momentos constrangedores que você só vai descobrir se brincar.
Ela tem diversão estampada nos olhos e eu faço uma dancinha curta,
estimulando-a a participar.
- Tá, vai! Mas você começa! - estica o indicador para mim - Momento mais
constrangedor?
- Calma, mulher, a gente vira primeiro. - aviso, chamando seu copo para um
brinde antes de engolir a tequila. Ele me acompanha e bebe a sua também. - Tudo
bem! Momento mais constrangedor… - reviro minha memória procurando um bom - Aqui
vai: então, eu tinha uns 15 anos, certo? Estava louco por essa garota da minha
escola, vamos chamá-la de Vanessa. Nomes fictícios para preservar a integridade
dos envolvidos. - aviso.
- Lógico. - ela serve mais dois copos com a garrafa de tequila que esperava
aos nossos pés, cortesia do meu irmão.
- Nós nos aproximamos bastante, voltávamos juntos da escola quase todos os
dias, cinema, festas… a gente sempre se encontrava e o papo era sempre ótimo.
- Garanhão.
- E aí! Um belo dia, ela me dá uma carta. Eu penso: uma carta? Quem dá uma
carta para outra pessoa hoje em dia? Mas eu abro o negócio, não é? Ela me pede
para ler, eu leio. - explico, gesticulando - E é uma porra de uma declaração de
amor.
- Uuuhh.
- Gabi, eu já estava sorrindo antes de terminar de ler a parada. Eu tava
louco a fim dessa garota e ela me escreve uma declaração de amor? Aí eu terminei
de ler e devolvi a carta para ela. Meu sorriso ia de uma orelha até a outra. O
Coringa perdia pra mim.
- E ela?
- Ela me perguntou o que eu achava. E eu disse algo tipo: incrível, melhor
carta que eu já li. E ela: ótimo, eu queria ouvir a opinião de um amigo antes de
entregar ela pro Arthur. - deixo meu sorriso amarelo descrever minha decepção
enquanto Gabi ri às minhas custas.
- Ah, coitadinho!
- Eu não sabia onde me enfiar depois disso.
- E você pegou a garota depois?
- Não. Nunca. Mas eu superei. – faço uma careta fofa de doído.
- Calma. - enruga a testa - "Vanessa" é a Vanessa do marketing? Ela era
colega do seu irmão na escola, então…
- NOMES FICTÍCIOS! - exclamo, tentando esconder a verdade enquanto Gabi
gargalha ainda mais alto - TUDO FICÇÃO!
- Claro, claro. Perdão. - leva a mão ao peito, teatral.
- Sua vez, querida. - aponto - Momento mais constrangedor?
- Hmm. - aperta os olhos, vasculhando a memória assim como eu tinha feito -
Tenho uma boa pra você.
- Me impressione. - peço.
- Eu estava ficando com esse cara.
- "Vanessa" também?
- Vamos chamá-lo de Arthur! - ri, malvada.
- Ai. - reclamo.
- Aí o Arthur, todo cavalheiro, correu para abrir a porta para mim, quando
chegamos no restaurante. Encurtando a história, ele escorregou em alguma coisa,
caiu no chão e machucou a parte baixa das costas.
Estreito os olhos decepcionado.
- Sério, Gabi? Isso é o melhor que consegue fazer? Uma queda?
- Escuta o resto da história! - dá um tapa na minha perna - Acontece que
Arthur se machucou pra valer! Tivemos que interromper o jantar para ir ao
hospital. Era nosso terceiro encontro, eu não tinha muita intimidade com o cara,
mas não ia deixá-lo lá sozinho, não é?
- Claro que não. - concordo.
- E aí tudo bem. Ele vestir um daqueles roupões ridículos pra fazer uns
exames. Sabe do que estou falando? Aqueles que te deixam meio pelados?
- Rá! Agora a história tá melhorando.
- Hm. E quando o médico de plantão chegou… era meu ex-namorado. E aí eu tive
que ficar lá, apresentar os dois e assistir meu ex vendo o meu atual semi-nu.
- Nossa! - levo a mão aos olhos, impressionado - Momento mais constrangedor
foi um sucesso. - brindamos e viramos a segunda - Pior arrependimento?
- Você é horrível. - torce o nariz - A gente não pode só beber feito gente
normal?
- O Manual da Tequila…
- Tá, tá!
- E você vai primeiro dessa vez. - aviso.
- Ah, sei lá, a gente se arrepende de tanta coisa. - dá de ombros.
- Escolha um.
- Não sei, Luca.
- Se tem tantos arrependimentos, não deve ser difícil lembrar de um só!
- Luca…
- Só um! – peço, puxando seus braços - Vamos lá, um só!
- Ter te apresentado a Fernanda. - fala, de repente.
Assim que liberta as palavras, percebo que talvez ela tivesse se arrependido
de ter dito isso também.
Uma menção ao seu nome e o mundo todo ficou morno e em câmera lenta.
- Eu devia ter antecipado algo assim. Eu a conhecia! Sabia bem quem ela é. -
continua, baixinho - Acho que sempre senti como se tivesse minha parcela de culpa
pelo que te aconteceu e…
- Gabi, não. - puxo-a para mim - Não foi culpa sua. De nenhum modo possível.
Ergue um único ombro para o rosto de um jeito tímido.
- Você não sabe como foi, Luca.
- Seja lá o que for, não foi culpa sua. Foi culpa dela. E minha. E só. – faço
um carinho em seu braço, tentando confortá-la.
Ela inspira profundamente, soltando o ar devagar como se lutasse com a ideia
de finalmente revelar algo que guardou por muito tempo.
- O que foi? - peço.
- Eu tinha… - balança a cabeça, colocando os fios atrás da orelha - Eu tinha
essa coisa por você. - admite com um sorriso discreto - Mesmo quando você era
irritante e impossível. Sei lá, essa coisa de hormônios, enfim… - desfaz-se e eu
congelo onde estava - Mas eu tinha essa… essa…
- Coisa? - ajudo.
- Essa coisa por você. - repete, tentando achar graça do fato de que não
achava nenhuma graça - E a Fernanda sabia disso. Quando apresentei vocês,
inclusive, foi meio aquela coisa de "olha esse é o cara que te falei".
- Isso não torna nada do que aconteceu culpa sua, Gabi.
- A Fernanda estava sempre competindo comigo, Luca. Minhas amigas tentavam me
avisar, mas eu achava isso lenda de quem quer cria inimizade, sabe? É, ela era
ambiciosa e competitiva, mas não achei que era algo específico comigo. Mas era. -
acena - E ela foi atrás de você porque… - ela engole em seco, envergonhada -
Porque achou que eu te queria, não sei… E… talvez ela tenha gostado de você. Mas
talvez tenha sido só pra "ganhar" e eu devia ter te avisado. Se eu tivesse dito
algo, pelo menos você poderia ficar atento aos sinais.
- Gabi. - seguro seus braços, trazendo seus olhos para mim - Gabi, para. O
que a Fernanda faz é responsabilidade da Fernanda. Só dela. De mais ninguém.
Então, por favor, não faz isso. Você não tinha como saber. Não tinha. - repito -
Mas… obrigado.
Ela assente, timidamente.
- Ei. - chamo - Foi isso que ela quis dizer no casamento? Quando falou sobre
ela ter pego o outro, mas agora você também ter um para você?
- Foi, ah meu deus! - exclama, levando as mãos à boca - O casamento! Você
precisou… precisou se controlar na frente da Fernanda! De todas as pessoas, logo
ela!
- É. Não foi fácil. Mas já estabelecemos que o Tony está me devendo pelo
resto da vida.
- Verdade. - murmura - Bem, e você? Maior arrependimento?
Coço a cabeça. Eu também tinha muitas opções. Escolhi uma que me pareceu
terreno seguro:
- Ter ido embora da empresa.
- A Zummo?
- A Zummo. - encaro o mar escuro, tentando encontrar alguma paz no barulho
das ondas - Acho que nunca admiti isso em voz alta. - confesso.
Gabi se manteve em um silêncio de respeito enquanto eu decidia se deveria
continuar ou não.
- Eu adoro o que faço agora. - explico - Adoro arte, adoro trabalhar perto do
mar. Adoro fazer meu próprio horário! E se te dizem que você pode fazer isso
sendo dono de uma empresa do porte da Zummo, é mentira. - sorrio. Gabi aperta meu
joelho e, agora, é ela quem me conforta - Mas… droga, sabe? Não tem emoção igual
a trabalhar no design de um novo carro modelo. Aquela arte onde o céu é o limite.
Não tem sensação igual a testar uma máquina nova na pista. Nossa! - suspiro, sem
conseguir afastar o sorriso - Aquelas preparações para as feiras de carro de
Frankfurt ou Tokyo… eram as melhores semanas da minha vida. Eu adorava a loucura.
Mas… não conseguia ficar lá. Não com o meu pai sendo… bem… sendo o meu pai. Eu
precisava de tempo para cicatrizar e superar o que aconteceu.
- Você realmente a amava. - sussurra.
- É. Acho que sim. E tudo aquilo me magoou muito. - busco sua mão em meu
joelho e estou apertando seus dedos antes que percebesse - Eu tive uma
adolescência furiosa, como você bem sabe.
- Eu bem sei. - concorda, tentando aliviar o clima.
- Mas eu estava pronto, sabe? A coisa do ter uma casa, uma esposa, uma
família. Filhos, quem sabe. - sorrio - Eu estava finalmente pronto. E eu e
Fernanda estávamos juntos há tempo suficiente para eu acreditar que seria ela.
Mas então…
- Então, não foi.
- "Não foi". Boa definição. - saúdo.
Segurando sua mão.
Encarando o mar.
- Nossa! A brincadeira da Tequila devia ser divertida! - reclamo e ela ri
alto.
- Acho que vai precisar pegar o manual, no fim das contas. Parece que estamos
brincando do jeito errado.
- Outra? - nos servi e ela aceita.
- Eu tenho uma! - exclama, animada.
- Deus abençoe! Por favor, nos salve, Gabi.
- Melhor sexo da sua vida?
Eu tossi a tequila.
Ela ia querer falar de sexo?
Ok.
- Ahh… Certo! Eu… ahm…
- Luca. - pede, delicada.
- Hm?
Aproxima seus olhos dos meus, investigando-me. Ela é linda. E assim, tão
perto, é irresistível.
- Não minta. - avisa - Eu vou saber.
- Não. - gaguejo - Não vou mentir. Ok. Melhor sexo. É… Uma garota me amarrou
na cama uma vez. - balbucio - Foi… ahm… foi bem legal.
- "Uma garota te amarrou na cama"? Sério? Eu precisei te arrancar de um
quarto com três garotas nuas em um avéspera de prova e quer me dizer que
"amarrado na cama" é o primeiro lugar?
- Não fico muito a vontade respondendo essa pergunta. - admito, abraçando-me.
- Que pena. Foi você quem inventou a brincadeira. - pisca, sem se abalar.
- Certo. - expiro, irritado. Era melhor admitir de uma vez - O nome dela era
Bianca. Foi a primeira garota tatuada com quem eu fiquei. Eu sabia que eu tinha
um tesão por tatuagens, mas foi com ela que eu descobri como era forte. Minha
vez. - aviso - Se você pudesse trabalhar onde quisesse, no mundo, ainda ficaria
na Zummo?
Gabi está confusa.
- Não quer que eu responda a pergunta do sexo?
Agora Luca está confuso.
- Se você quiser… - gesticulo - Mas imaginei que não teria opções, sabe? Você
sendo…
- "Sendo"?
- Bem… - gaguejo - Você sendo virgem e tudo o mais.
- EU SENDO O QUE? - arregala os olhos com violência.
- Ah, eu pensei que… Você não é?
- Não! Luca! Por que achou que eu era virgem?
- Ahm… - coço a testa.
- Luca? - rosna, autoritária.
- O Marco disse que você era.
- Por que diabos o Marco diria isso?
- Eu sei lá! - gesticulo, rápido - Isso você pergunta pra ele. Estava
tentando me convencer a vir passar a noite de núpcias com você, no lugar do Tony,
e disse que não seria problema porque você era virgem, então não se incomodaria
em adiar. – explico depressa, antes que sobrasse pra mim.
- Talvez ele tenha mentido para te convencer.
- Talvez. - eu estou tonto, meu sangue está fugindo para toda parte - Então…
você não é?
- Não. - resmunga - Não sou. E o melhor sexo da minha vida foi com o Matheus.
E, de repente, meu sangue volta.
- O Matheus? Da faculdade? - boquiaberto - Você transou com o Matheus?
- É! Qual o problema?
- Eca! Por que…? Ele era… Você sabia, não é? Ele era descarado, nunca
prestou… Credo, Gabrielle, você arranja os… Sabe o que ele dizia de… ECA! POR
QUÊ?
Ela está rindo.
- Bem, o que ele dizia, eu não sei. Mas o homem lambia como poucos.
- Eu acho que vou vomitar. - reclamo - E não é nem por causa da tequila.
Nossa, garota, acho que a gente precisa transar qualquer dia para você ver como…
- eu só percebi o tamanho da MERDA que eu tinha dito quando já era tarde, tão
tarde. Gelo, engolindo as palavras e a sinto tesa ao meu lado - Ai, puta merda!
Desculpa Gabi… eu… ah, eu sou um idiota. Não quis ser...
- Tá tudo bem. - me exime do crime, imediatamente. Provavelmente porque,
assim como eu, não queria falar daquilo por nem mais um segundo.
Mas aí eu notei uma coisa.
- Espera. Então, o Tony não é o melhor sexo da sua vida? Me parece ser o tipo
de coisa que uma esposa deveria dizer nem que fosse por educação.
- É, mas…
- Eu preciso dar umas dicas pro meu irmão? - estreito os olhos.
- Talvez. - engole em seco - Eu não saberia dizer.
Eu rio da sua piada até perceber que não era uma piada.
- Calma. Você e o Tony nunca transaram?
Gabi não parece feliz em precisar dizer as palavras, mas as disse ainda
assim:
- Eu e Tony nunca transamos.
- Casou com um cara sem ter transado com ele?
- Há cinco minutos você achava que eu era virgem!
- É, e há cinco minutos essa tua afirmação faria sentido. Meu Deus!
Encolhe-se, desfazendo-se de minha descrença.
- Nosso relacionamento é diferente.
- Estou vendo. - atesto - Tá, eu tenho outra pergunta! - lembrei de algo
importante - Quem é Giseli?
- Chega de perguntas! - ela sorri, tomando os copos de dose - Temos que
acordar cedo amanhã para encontrar os Adriatic, lembra? Você prometeu que iríamos
navegar a costa com eles.
Puxa-me pelo braço, colocando-me de pé.
Finjo que ela tinha conseguido me enganar.
Só esperava que ela soubesse que não seria por muito tempo.
5 – Migalhas
Agora que Gabi já sabia de tudo e tínhamos nos livrado do estranhamento
inicial, eu estava consideravelmente mais calmo. Ou talvez tenha sido apenas a
tequila. Seja como for, minha noite de sono no sofá foi bem menos permeada de
pesadelos.
E por "bem menos" eu quero dizer que os pesadelos foram oportunamente
substituídos pelo que me pareceram longas horas de sonhos safados envolvendo
cenários errados com minha mais nova cunhada.
Acordo ereto, me esfregando nas almofadas e sentindo meu corpo queimar de
vergonha.
Talvez eu devesse ter uma vida sexual mais ativa… se tivesse ficado com
algumas mulheres recentemente, talvez estivesse mais calmo. Mas - ao contrário do
julgamento equivocado que muitos faziam ao meu respeito - eu prefiro o
relacionamento de verdade. Sexo puro é bom, mas nunca se compara ao sexo com
emoção.
O problema é que ser largado no altar é o tipo de coisa que fode com sua
confiança e não te deixa exatamente receptivo para novas experiências. Então,
eram águas estranhas essas que eu navegava: tentando me aproximar o suficiente de
mulheres a ponto do sexo ser interessante, mas não demais a ponto de começar a
esperar algo.
O resultado disso era um sexo frequente, mas não tanto. E inexistente nas
duas semanas que antecederam o casamento do meu irmão e, consequentemente, toda a
brincadeira da tequila com Gabrielle.
Jogo uma das almofadas sobre o meu colo, quando a vejo saindo do quarto para
a ante sala onde eu dormia.
- Pronto para hoje?
- Não exatamente. – bagunço os cabelos - O que eu preciso saber sobre essa
gente?
- Paola e Augusto Adriatic. - senta ao meu lado, bebendo o seu café - Tem
negócios com o seu pai, com a Zummo. Fizeram uma fortuna com um produto novo no
mercado. São boas pessoas, mas acabam sendo meio intrometidas. É uma pena.
- Pena?
- É. - ela respira fundo - São decentes e simpáticos… mas se esforçam demais.
- Precisa me dar mais detalhes do que isso. - resmungo, ainda sonolento.
- Tony não se dá muito bem com eles. Seu irmão é muito privado e eles são
muito intrusivos. Ela principalmente. Não faz por mal, dá pra notar… mas faz,
ainda assim.
- Tudo bem. Então só preciso falar pouco e esperar o dia acabar? Se eles não
são íntimos do Tony não vão perceber nada, certo?
- Mais ou menos. - coloca-se pé quando termina o café - Eles conseguem ser…
Espero que ela conclua, mas Gabi parece incapaz de escolher uma palavra.
- Fofoqueiros. - decide, por fim - De novo: não fazem por mal. Mas estão
sempre querendo criar assuntos e guiar conversas. Acabam falando demais e sobre
tudo.
- Então, se eu escapar algum detalhe, eles podem passar isso adiante?
- Exato.
- É bom que eles sejam fofoqueiros. A integridade da informação sempre é
questionada quando vêm de fontes assim.
- É, mas eles são os típicos "fofoqueiros do bem". Não gostam da fofoca em
si, gostam da conversa.
- O que eles dizem têm credibilidade. - compreendo.
- Parece ridículo, não é?
- É. Mas… casar com a mulher do seu irmão também parece. - dou de ombros -
Vamos agilizar as coisas por aqui porque se eu vou precisar ser cuidadoso com
essa gente… primeiro, eu vou precisar de café.
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Gabi
Eu preciso de sexo.
Eu entendo que Tony não se sente assim por mim e tudo bem.
Mas eu preciso de sexo e Luca não para de me olhar como se estivesse com
fome.
Esquece, Gabrielle! Nem pensa nisso.
Ele é seu cunhado e você mesma disse que nunca colocaria o Tony nessa
situação, não é?
NÃO É?
Ele sai do banheiro com uma regata branca que me faz querer chorar. Lágrimas
verdadeiras e irrepreensíveis. Minha cabeça passa a noite toda revivendo em alta
definição o momento que descobrimos o casal ao sexo na mata. Mas, em meus sonhos,
a história acabava de muitos modos diferentes que não se assemelhavam em nada ao
que realmente aconteceu.
Os detalhes variam, mas, em meus sonhos, no fim, Luca me comia.
Me comia na água.
Sobre as pedras lisas.
Escondido pela vegetação fechada.
No meio da trilha.
Na frente da mulher da garrafa italiana.
Luca me comia em todos os lugares, por todos os lugares e, meu bom Deus, eu
gostava.
Aquilo precisava parar.
Eu amo Tony. Não vou fazer isso com ele.
A voz de Luca, no entanto, permanecia provocando-me.
"Você diz isso como um mantra".
É porque não posso esquecer. Principalmente agora.
Eu amo Tony.
Amo Tony.
Amo…
- Vou até a praia. - avisa, arrancando-me de meu monólogo interior - Quer
vir?
Não estávamos exatamente comunicativos desde nosso desentendimento na noite
anterior, o café da manhã foi particularmente infernal, seguindo - nós dois - em
uma dança em que cada um tentava começar um assunto apenas para vê-lo falhar em
seguida.
Talvez fosse melhor assim. Tínhamos encontrado uma sincronia nos últimos dias
que poderia ser perigosa se nutrida.
Concordo com o plano e o acompanho para o elevador.
Era melhor sermos vistos juntos… Até porque era para isso que ele estava ali.
O calor da areia subia envolvendo meus pés e pernas, fazendo-me afundar em
sua calidez fofa um passo de cada vez. Uma porção de espreguiçadeiras e
namoradeiras de madeira escura e largas almofadas cor de gelo se espalhavam pela
orla à borda do resort, protegidas do calor do sol por imensos guarda-sóis
brancos. Alguns espaços já estavam ocupados por hóspedes que se distraíam entre
um daiquiri ou um suco de laranja. Uma guitarra dedilhada em ritmos latinos se
fazia ouvir, suave, em algum lugar por perto e a música parecia nos abraçar de um
jeito caloroso assim como todo o resto da paisagem.
Mas "paradisíaca" era a vista para o mar.
A areia branca quase imaculada escurecia com a umidade das ondas antes de
abrir espaço para o mar mais azul que eu já tinha visto. Translúcido em suas
ondas frágeis, como se nos convidasse para ver tudo que tinha em si: nenhum
segredo ali naquele mar. Ao contrário do resto de nós…
A baía se fechava tornando as ondas mais calmas desse lado do resort, mas
mesmo a calmaria não era capaz de afastar os surfistas. Os mais inexperientes,
sem dúvida. Um deles, acompanhado de um instrutor que levava as mãos à cabeça
sempre que o garoto falhava em firmar as pernas com o equilíbrio necessário.
- É cedo demais para bebida? - pergunta.
- Estamos de férias. - dou de ombros - E eu não vou contar a ninguém.
O garçom se aproxima vestindo uma camisa de botões e uma bermuda branca.
- Qualquer coisa que tenha rum. - pede.
- Parece bom. Pra mim também.
Ele se foi com sua bandeja e seu sorriso.
Luca encara o mar através de seus óculos escuros. O modo como respira, tenso
e lento, sugere que ele - assim como eu - está querendo dissipar o ar de desastre
que nos rondava desde nosso último embate.
- Temos um acordo. - decido quebrar o gelo. Não para restaurar a sincronia
perigosa, mas para evitar o retorno da animosidade - Eu e seu irmão temos um
acordo.
Seu rosto inclina-se. AS lentes escuras não me deixam saber, com certeza,
para onde olha. Eu suponho, no entanto, que deveria ser para mim.
- Não coloquei minha vida em pausa. - suspiro, cautelosa - Enquanto
estivermos juntos, será um relacionamento discretamente aberto. No sentido de que
não somos exclusivos, mas também não planejamos tornar isso público. Eu sou
apenas um escudo enquanto ele reúne forças e prepara o terreno para contar tudo
para sua família.
- E quando isso acontecer? - seu maxilar se enrijece daquele jeito furioso.
Assim como tinha ficado na noite anterior ao perceber o esquema entre eu e seu
irmão - Ele te joga fora?
- Nos divorciamos. O mesmo acontece se eu encontrar alguém. Tony não quer que
eu destrua minha vida, como você sugeriu. É só algo que funciona agora, para nós
dois. Se deixar de funcionar, então encerramos tudo.
- Gabi. - ele senta - Eu entendo como isso é bom para ele. Entendo que
funciona perfeitamente para o que ele precisa. Mas e você? Não é saudável ficar
assim com um homem que você ama.
- Não se preocupe comigo.
- Mas…
- Não, Luca. - sussurro o nome - Não se preocupe comigo. - insisto.
Eu consigo resistir aos seus olhares de fome e seus braços deliciosos. Mas
aquele cuidado genuíno que se formava nos seus olhos era demais.
Odeio quando ele me olha assim.
Com carinho.
- Eu também estou usando ele. - minto - Tony vai me ajudar a conseguir
investidores para minha start up. Esse é o acordo.
Ele tira os óculos escuros para olhar nos meus olhos. Se demora por cinco
segundos inteiros, quase acho que ele vai me beijar.
- Mentira.
- O quê?
- Você é a pessoa mais certinha que eu conheço. Teve umas vinte coisas
diferentes que poderia ter usado contra mim na nossa adolescência: coisas que
teriam te garantido um lugar de prestígio na Zummo, mas nunca fez isso. E agora
quer me convencer que trocou alguns anos da sua vida por uma porção de
investidores? Duvido.
- Bem…
- Até porque o Tony te conseguiria isso mesmo que não lhe desse nada em
troca.
Eu preciso sorrir.
Meu Tony.
É, ele tinha me oferecido aquilo em troca do casamento.
Mas a verdade é que eu casaria com ele mesmo que não tivesse oferecido nada.
E a verdade é que ele me daria o que ofereceu mesmo que não houvesse
casamento.
Éramos melhores amigos e Luca só ouvia o mantra… não conseguia entender que,
no fim, era verdade.
**********************
Luca
- Deixa eu te ajudar.
O instrutor que Gabi escolheu estava um pouco amigável demais, segurando-a
pela cintura, mostrando, ainda na areia, como ficar em pé em cima da prancha.
Pela cintura.
Ele estava o quê? Com medo que ela perdesse o equilíbrio e caísse? Na areia?
Com os dois pés no chão?
Mordisco o pedaço de abacaxi no meu copo como se fosse uma goma. Não quero
apreciar a fruta, mas destilar a raiva.
Eu trabalho perto da praia, ou seja: conheço o tipo. O cara com o sorriso
jovial e o corpo bronzeado ansioso para ser útil e simpático com qualquer turista
que chegue perto o suficiente. As pessoas, de férias, estão sempre procurando
"amores de verão", mesmo no inverno. Uma turista morena e bonita de cabelos
cacheados e bunda arrebitada era justo o que o instrutor pediu a Papai do Céu
quando acordou aquela manhã.
Eu fico quieto.
Comportado.
Mordendo meu abacaxi.
- Isso, você tem um dom! - elogia - Vai surfar melhor do que eu, já, já.
Agora assim… isso.
Suas instruções começavam a se aproximar de gemidos eróticos ou é impressão
minha?
- Maravilha. - murmura quando Gabi segue suas instruções, simulando braçadas
na areia antes de se colocar de pé na prancha.
"Maravilha".
A merda é que, para ficar de pé do jeito certo, você precisa alongar o torso
primeiro, como um movimento de yoga, aí você se inclina de lado e salta sobre os
dois pés. Todo o movimento deixa sua bunda bem exposta de um jeito que não
interessa a ninguém porque:
1 - É uma ação executada no meio da água, longe dos olhares curiosos,
2 - É uma ação executada de modo veloz.
Gabi, no entanto, saltava agachando-se vez após a outra, para a satisfação do
seu instrutor que, obviamente, estava perfeitamente posicionado às suas costas.
"Maravilha" mesmo.
"Maravilha" que começava a soar - para mim - como se ele estivesse elogiando
seu corpo muito mais que suas habilidades em surf.
Morde o abacaxi, Luca.
Só morde a porra do abacaxi.
Só que minha vida é uma merda e o abacaxi acabou me deixando para morder a
língua, soltando um palavrão furioso.
- Tudo bem aí? - Gabi ergue o olhar para minha irritação diante de si.
- Tudo. - resmungo, infeliz.
- Não pare agora. - ele pede.
"Não pare agora". Dentro de minha mente, eu repetia cada frase do instrutor
com uma voz aguda e infantil.
Tentando deixar seu discurso tão ridículo quanto ele.
- Agora, basta alongar e vamos entrar na água, tudo bem?
Ele segura Gabi pela coluna, descendo o meio do seu corpo enquanto a ordenava
que mantivesse pés e pontas dos dedos no chão. O modo como ele gira o corpo atrás
dela para "lhe dar mais apoio" foi óbvio demais e eu estalo de meu torpor de
línguas e abacaxis.
O maluco vai roçar nela?
- Tá bom, colega. - estico o braço, sem alegria - Ela já entendeu.
- É só o alongamento. - sugere com um sotaque forte.
- Hmhum. Gabi, você sabe alongar sozinha? - não espero uma resposta - Ela
sabe alongar sozinha.
- Tudo bem. - assente.
Gabi me olha feio por um segundo completo.
- Para a água, então? - ele indica.
- Olha, por que você não faz assim? - sugiro enfiando uma nota alta demais na
mão dele - Por que não vai beber alguma coisa? Eu termino aqui.
- Mas vocês me pagaram por…
- É, eu sei. Mas está liberado. Eu assumo a partir daqui. Tchau.
O instrutor olha de mim para Gabi antes de aceitar o dinheiro e partir.
- Com licença? - Gabrielle pisca olhos mel de incômodo - O que pensa que está
fazendo?
- Desculpa. - adianto-me - Não queria decidir por você! Mas o cara era… era…
escorregadio.
- Escorregadio?
- É! Cafajeste, descarado, não presta. Estava se aproveitando de você.
- Se aproveitando de mim?
- Oh Gabi, dá pra parar de repetir tudo que eu digo?
- Assim que você voltar a fazer sentido. - promete.
- O cara tava te pegando pela cintura pra te ensinar a surfar NA AREIA!
- Hm. - cruzou os braços, analisando-me.
- E ainda te ensinou tudo errado. - reclamo - Vem até aqui. - indico a
prancha - Coloca os pés assim… E imagina que tem um quadrado invisível, tá bem?
Daqui até aqui. Isso. Os pés ficam sempre até aqui, nunca depois, como ele estava
mostrando.
- Mas ele disse que…
- Ele queria que você se inclinasse para que pudesse ver tua bunda. -
estreito os olhos - E queria que você caísse bastante para que ele tivesse que
vir com mais dicas para uma segunda rodada. Faz como estou te dizendo.
- Tudo bem. Aqui e aqui? - coloca os pés levemente fora do quadrado.
- Não. Até aqui!
- Ah! Assim?
- Isso, mas não muda a posição. - uso um de meus pés para inclinar um dos
dela - Na mesma inclinação de antes. Não. Aqui. - e eu estou com as mãos na sua
cintura inclinando seu corpo.
Ela vira o rosto para mim, revirando os olhos em uma indicação clara da
ironia, já que eu estou seguindo o exato comportamento que, há menos de dois
minutos, criticava.
- Não é a mesma coisa. - ralho.
- Claro que não. - sarcástica.
- Não é! Porque… porque eu sou teu marido. Fica quieta, Gabrielle. - resmungo
quando ela explode em gargalhadas
**********************
Ela ainda caiu uma porção de vezes, apesar de minhas melhores instruções. Mas
estava progredindo depressa.
Ganhei abraços.
Melhor do que morder abacaxis.
E, dentro da água, os abraços eram molhados, o que por um lado era melhor,
mas por outro, era pior.
Por outro, era bem pior.
A calmaria de Gabi só se foi quando, no começo da tarde, lembrou que
deveríamos encontrar Paola e Augusto.
- Posso dizer que estou passando mal. - retorce o canudo nos dedos.
- Pode. - concordo.
- Eles não vão suspeitar, não é?
- Não vão.
- No máximo vão achar estranho nosso comportamento ontem e vão falar sobre
isso. - dá de ombros.
- Verdade.
- Mas é estranho, não é? Recusar uma massagem de graça? Mesmo quando você é
rico como o Tony, quero dizer, foi um presente.
- É um pouco estranho.
- E deveríamos estar em Lua de Mel. - abraça-se, tentando reduzir o pânico.
- Deveríamos.
- É o tipo de coisa que eles podem comentar, não é?
Eu estou rindo:
- Gabi. Nós vamos. Chegamos em cima da hora e não conversamos muito. Depois
da massagem, eu arranjo uma desculpa e a gente foge.
Ela engole em seco.
- Certo.
Estamos no elevador, descendo todos os andares até o spa, quando ela diz:
- É por isso que o Tony não gosta de encontrar com eles. Nunca é uma vez
só. A Paola sempre te arrasta para uma continuação. - choraminga - Eu não tenho
problemas com eles, mas... nossa situação é delicada.
- Vai ficar tudo bem. - prometo, colocando em minhas palavras mais convicção
do que eu sinto.
Chegamos ao spa um minuto antes da hora marcada e, pela expressão de Paola,
percebo que ela imaginou que nós não viríamos.
- Sentimos muito! - anuncio - Nos... distraímos e perdemos a hora. - minha
piscadela indecente para os dois deixa clara minha motivação que, em uma Lua de
Mel, deveria ser imediatamente perdoada.
- Ah! Claro, claro!
- Que bom que vieram. - Augusto aperta minha mão quando as massagistas entram
na antessala convidando-nos para as cabines de massagem.
Coloco uma mão nas costas de Gabi, conduzindo-a a minha frente. Paola e
Augusto no corredor logo atrás de nós.
- Senhor e senhora Zummo, aqui, por favor. Senhor e senhora Adriatic, na
cabine mais em frente.
Era uma sala só. Éramos dois.
Não deveriam ser duas salas?
- Ahm... devemos ir um de cada vez? - encaro a porta, sem atravessá-la.
- Não, querido! - Paola sorri - É uma massagem para casais.
Eu fiquei parado na porta.
Gabi
E se ele aparenta estar assim, eu posso apenas imaginar a expressão que não
deveria estar em meu rosto.
Ele, no entanto, seguiu obedecendo.
A massagista que o acompanhou manteve a toalha ao seu redor até que estivesse
dentro da banheira e eu nem ousei olhar em sua direção enquanto entrava na água.
Mas agora, eu, de pé diante dele, me descubro em um inferno de categoria
diferente.
A ordem de entrada, por mim escolhida, me forçaria a ficar nua em pelo na
frente de Luca. E ali, deitado no meio da banheira estreita, ou ele fechava os
olhos ou não haveria como escapar.
A toalha escorre ao meu redor e eu tento me enfiar na banheira depressa,
agradecendo mentalmente a um Luca que colocou a mão sobre os olhos como se
coçasse a testa.
Mas a vida me odeia, essa vagabunda, e eu não consigo entrar na banheira tão
fácil quanto ele.
- Ai, por Deus. - rosna, grave, ao se ajoelhar na banheira e me oferecer uma
mão para que entrasse. Finge se distrair com a cachoeira do outro lado da cabine,
desviando o olhar de minha nudez mas, quando me sento entre suas pernas, foi
impossível não sentir sua ereção.
Luca se move, desconfortável, tentando me afastar de seu comprimento ereto.
Mas a banheira é muito curta e ele é muito longo, de modo que nossa desgraça é
completa e não há como impedir seu sexo de me tocar.
Eu tenho palpitações ao ponto de temer um desmaio.
Uma das massagistas se foi e a outra sussurra rapidamente que já estaria de
volta, circulando o biombo para buscar algo sobre a bancada de pedra enquanto a
escutamos mexendo em seus potes.
Luca agarra as bordas da banheira de cobre com força. As linhas das veias em
seus antebraços indicando o nível de sua angústia. Eu não sei o que fazer com
minhas mãos, então as repouso entre minhas pernas. Não exatamente para tapar meu
sexo, já que a pouca espuma na água faz esse trabalho bem o suficiente, mas para
acalmar meu sexo. Uma expressão corporal intencional para avisar à minha vagina
que nem inventasse de criar ideias!
Manter minha coluna reta, sentando afastada de seu tórax, está começando a
doer em meus músculos. A posição é péssima e pouquíssimo confortável. Eu não vou
resistir daquele jeito por muito tempo.
- Gabi. - murmura, sôfrego - Desculpa, mas eu não... não consigo... - ele
arfa, grave, como se estivesse tentando pela sua vida pensar em qualquer coisa
que não fosse meu corpo nu e molhado colado a sua rigidez.
Eu não posso culpá-lo caso ele descobrisse ser impossível.
Impossível.
Nua. Na banheira. Luca Zummo. Ah, merda.
Não ia ter escapatória, não é?
**********************
Luca
Ainda tínhamos os corpos úmidos quando saímos do spa. Nenhum de nós dois
queria passar um segundo a mais lá dentro. Quer dizer... eu não sei Gabi, mas meu
problema talvez fosse que eu queria passar segundos demais lá dentro.
Eu precisei usar cada instante dos quinze minutos dados pela massagista para
conseguir fazer meu pau voltar ao tamanho flácido normal.
Puta merda.
Eu não tinha uma gota de saliva na boca.
Na verdade, eu não tinha uma gota de nada em lugar nenhum. Tudo tinha descido
pra minha ereção e agora ela ia doer como o inferno.
Paola e Augusto nos acompanharam na saída, conversando divertidamente
enquanto eu e Gabi parecíamos saídos de um enterro.
- Precisamos jantar juntos!
- Paola, deixe-os em paz. - Augusto implora pela centésima vez, enquanto
esperamos pelo elevador - Estão em Lua de Mel.
- Ora, mas já vamos embora amanhã! O que será mais um jantar, não é mesmo? -
brinca - Vamos!
Entreolhamo-nos, eu e Gabi.
Ela respira fundo, mas eu sei o que precisa ser dito.
- As pessoas te enchem a paciência, não é, Paola?
- Perdão? - deixa a incerteza tomar-lhe o semblante.
- Você tem o coração muito bom. Apenas as convida para algo agradável porque
aprecia sua companhia, mas escuta milhões de recusas sempre que tenta. É como se
as pessoas achassem que "recusar" mostra como elas são ocupadas, importantes
ou... superiores. Então, ou você insiste ou nunca consegue fazer acontecer.
- Oh. - ela parece levemente envergonhada. Eu a conhecia há dois minutos e já
suspeitava que deveria ser a primeira vez na História que ela se sentia assim.
- Sabe o que eu acho?
- O quê? - engole em seco.
- Acho que essas pessoas não te merecem. E vou te prometer uma coisa.
- Ah é?
- Vou. - aceno - Vou te prometer que, sempre que me convidar, vou te dizer a
verdade. Se eu puder ir, vou dizer que "sim" já desde a primeira vez que
perguntar. Mas se eu disser "não", não é porque estou me escondendo ou querendo
me livrar. É simplesmente porque não posso... ou porque não quero. - completo e
ela ri - Vou querer ficar sozinho com minha mulher, às vezes, sabe?
- Claro! - ela ri com gosto.
- Então, vamos lá. A sua festa. Pergunte-me.
- Estou organizando uma festa para o próximo mês. Apenas uma reunião de
amigos e gostaria que viessem. - convida.
- E eu gostaria de ir. Mas não sei como está a agenda e só vou descobrir
quando voltar. Ligo para você na semana que estivermos de volta.
- Certo. - aceita, comportada.
- Agora, o jantar. - lembro.
- Ah! - estala - Sim! Querem jantar conosco?
- Não. - respondo - Estou em Lua de Mel e, embora hoje tenha sido muito
divertido, quero aproveitar minha mulher o resto da noite.
Ele ri antes de aceitar com educação.
- Agora é minha vez! - aviso quando o elevador chega.
- Oh?
A dúvida estampada no rosto de Paola é comparável apenas ao divertimento em
Gabi.
- Quero convidar vocês dois para um jantar em nossa casa. Quando voltarmos.
O rosto de Paola se ilumina como se fosse Natal.
- No fim de semana seguinte. Adoraríamos!
- Não. Não no nosso primeiro fim de semana de volta. - pisco - Quero mais um
pouco da minha mulher até aí. Mas no seguinte?
- Ótimo! E pode ser na nossa casa, se...
- Não! Eu estou convidando, Paola, não seja mal educada. - repreendo com um
gracejo e Augusto acompanha Gabi nas gargalhadas dessa vez - Será na minha casa.
Estamos combinados?
- Combinados. - ela aperta minha mão, despedindo-se e nos desejando uma boa
Lua de Mel quando descem em seu andar.
Meu olhar cruza com o de Augusto por apenas um instante. Acho que vi alguma
gratidão ali.
- Você foi incrível. - Gabrielle encara-me surpresa quando estamos sozinhos,
no quarto.
- Você parece impressionada.
- É. Não sabia que você conseguia ser... gentil.
- Vou tentar não deixar isso me ofender.
Gabrielle demora sua atenção sobre mim com um sorriso pacífico de quem se
permite ver algo que nunca viu antes.
A estranheza da situação ainda não tinha se afastado de nós completamente,
mas acho que minha gentileza com Paola deve ter sido um bom primeiro passo para
quebrar o gelo.
- As pessoas crescem, sabe?
- É... acho que sim. Mas quer me dizer que não marcou um jantar em casa só
para provocar o Tony? Quer dizer, ele vai estar de volta. Não será você quem vai
recebê-los.
- Acho que o Antônio precisa crescer também. - constato, infantil.
- Luca. - suspira, pesada.
- Sim?
- Sinto muito, por... - ela está vermelha.
- Gabi, acho que a gente não precisa conversar sobre isso nunca mais na vida.
- peço.
Ela acena com um sorriso curto e eu percebo que, apesar de minhas palavras,
por algum motivo, eu estou mais perto dela agora - depois de minhas palavras
conclusivas - do que antes. Meus pés pareciam levar-me para ela independente de
minha vontade.
Ou talvez meus pés apenas fossem melhores do que eu em admitir minha vontade.
- Acho que vou tomar um banho. - devolvo, grave, aproximando-me ainda mais.
- É uma boa ideia. - murmura, genérica, procurando meus olhos.
- E eu também sinto muito por... sabe?
- Achei que não íamos mais falar sobre isso. - sorri.
- Não quero que as coisas fiquem estranhas. Estávamos indo bem. - toco sua
cintura, quase que por acidente.
- Eu sei. E eu não quis te... te tocar daquele jeito. Não sei no que estava
pensando.
- Tudo bem. - assinto, a mera lembrança de seu toque rápido em meu pau duro
me faz babar por dentro.
Me faz babar por toda parte.
Nua e molhadinha no meu colo.
Por Deus, que desperdício.
Eu quis morder seu pescoço e mandar a cautela para o Diabo.
Quis ela montada em mim ali mesmo.
Meu Deus.
- E isso é "amor"? - deslizo o dedo por suas costelas, logo abaixo do seio
esquerdo onde a tatuagem enigmática marca sua pele por baixo do vestido.
- E o que mais seria? - sorri. Ela tem um sorriso quieto e delicado. Um que
mal faz sua boca se curvar mas, mesmo que seja quase imperceptível, eu posoo
senti-lo como se não houvesse força mais poderosa no universo do que aqueles
lábios - "Amor" é quando a pessoa te faz sentir assim. A pessoa que é o melhor
olá. O pior adeus.
O melhor olá. O pior adeus.
Vou precisar dizer "adeus" pra você, Gabi. E, por Deus, vai ser horrível.
Não sei quem calou primeiro, eu ou ela.
Não sei quem se perdeu no olhar do outro primeiro, eu ou ela. Não sei quem
primeiro deixou claro o desejo que pairava no ar sufocando nós dois.
Mas ela foi a primeira a quebrar o encanto.
Um sorriso que mudava de natureza: aquele de quem acha graça em nada além do
próprio constrangimento. Uma curva envergonhada quando os próprios lábios admitem
pensamentos inconfessáveis.
Coça a testa com o polegar de um jeito híbrido entre o tímido e o desajeitado
antes de se afastar com uma meia explicação que deve ter envolvido a palavra
"chuveiro".
Achei que a tinha perdido quando meus dedos caíram de seu corpo para o vazio,
perdendo-a mesmo que estivéssemos sozinhos e ao alcance de um abraço.
E então ela para. Hesita.
Talvez tenha fraquejado. Ou questionando.
Seja lá o que for... fez com que ela interrompesse sua fuga.
Parada no meio do quarto, decidindo se iria partir ou ficar.
Sabendo que deveria partir.
Sabendo que queria ficar.
Inspira fundo como fazem as pessoas que querem exorcizar um pensamento que as
assombra e que não pode mais ser contido. Sinto o cheiro de sua confissão: mesmo
que ela não viesse com palavras bem enunciadas.
Gabi vira-se de volta para o meu corpo e eu a tomo pela cintura. Já a tenho
em minha boca antes mesmo de decidir beijá-la.
E minha Nossa Senhora das Más Ideias...
Nunca em minha vida um beijo conseguiu ser tão avassalador. Nem o meu
primeiro.
Nem quando perdi a virgindade.
Nem com Fernanda.
Nunca.
Gabrielle me beija e é como se ela arrancasse o ar direto dos meus pulmões,
tirando minha capacidade de respirar ou pensar. Tirando minha capacidade de
existir em qualquer lugar que não fosse ali, agarrado a sua boca, engolindo o
sabor de sua saliva misturado aos restos de sal que ainda cobriam sua pele
queimada.
Tomo seu rosto nas mãos e sinto seus dedos fincados em meus cabelos úmidos,
puxando-me para si como se temesse o arrependimento que viria quando finalmente
tivesse que me soltar.
Arrependimento por me beijar.
Arrependimento por me deixar ir.
Eu lambia sua língua voraz enquanto lutava contra sensações idênticas.
Minha cunhada.
Mas que se foda.
8 – Uma má ideia
Gabi
Certo.
Tudo bem.
Ok.
Sem problemas.
Respira.
Sem desespero.
Eu transei com meu cunhado.
Certo.
O irmão do meu marido está pelado na cama bem atrás de mim.
Ok.
Tenho certeza que consigo sentir sua ereção em minha bunda.
Sem problemas, não é?
Sem problemas.
Eu amo o Tony, mas…
Eu sempre soube.
E o Luca…
Respira, Gabi.
O Luca está pelado atrás de mim, com a ereção cutucando minha bunda, raspando
o nariz no meu ombro, a respiração quente no meu pescoço e as mãos largas na
minha cintura.
O Luca.
Meu.
Cunhado.
Meu Deus, Meu Deus, MEU DEUS.
Estou acordada.
Absolutamente desperta como se alguém tivesse enfiado cafeína com energético
direto na minha veia.
Eu transei com meu cunhado.
O que cacete há de errado comigo?
Eu sabia que ia ser assim.
Sempre soube.
Desde que eu e Tony decidimos fazer aquilo.
Ele está lá com Giseli, exatamente onde deveria estar.
E tudo bem que eu esteja nua na cama com outro homem.
É isso que "relacionamento aberto" quer dizer, não é?
Mas tinha que ser o irmão dele?
O inferno do Luca Zummo.
Aperto meus olhos com força porque nunca se sabe se chegou minha vez na fila
e Deus decidiu me conceder um milagre.
Aí eu pediria para voltar no tempo e…
E fazer o quê?
Não transar com o Luca?
Não casar com o Tony?
Aperto meus olhos com mais força ainda, mas tudo que consigo ver é o chuveiro
no meu velho apartamento da universidade.
Tinham sido duas semanas demoníacas e eu não tive chance de me masturbar
nenhuma vez.
Quatorze dias absolutamente seca.
E aí Luca Zummo sai do banheiro da empresa, molhado do banho, usando uma
toalha ao redor da cintura. Pisca o olho pra mim, provocando-me com seu sorriso
de "você não faz ideia do que eu poderia fazer com você agora".
Eu nem sei como saí de lá sem tropeçar.
Nua, no chuveiro, naquela noite, eu rocei um único dedo no meu clitóris e já
estava gozando.
Gozando de gemer alto.
Eu queria tanto que me comesse.
Acho que nunca quis um homem com tanto ardor na minha vida.
Mas era errado então.
E era absolutamente vil agora.
Minha pele ainda estava sensível onde ele beijou, arranhou e mordeu.
Eu queria que me lambesse.
Tinha sonhos vívidos com sua língua.
E ontem a noite foi exatamente isso que ele fez, não foi?
Ou pelo menos eu acho que foi.
Aconteceu tão rápido.
Se acontecesse de novo, eu prestaria mais atenção.
Acho que esse seria meu milagre, se eu pudesse voltar no tempo: fazer tudo de
novo.
Luca se move, despertando.
Ainda é cedo mas não fechamos as cortinas e o sol não vai deixar nenhum de
nós dois dormir por muito mais tempo.
É trágica a angústia trazida pela sanidade.
Ontem a noite, na loucura dos calores, nenhum de nós dois se importou com
razão.
Ignorância não nos causou nenhum mal.
Era o conhecimento que ia me destruir.
Conhecimento do gosto dele.
Conhecimento da sua extensão dentro de mim.
Conhecimento de que era seu corpo largo e despido que me abraçava.
Conhecimento de que ele ia acordar em breve e não haveria onde esconder o
arrependimento.
Será que existia algum tipo de resort para onde você ia tirar férias das
consequências?
"Faça todas as merdas que quiser e depois venha se esconder aqui" era um
ótimo slogan. E, depois dos últimos eventos, eu certamente pagaria o preço que
fosse.
Luca respira de um jeito estranho… intencional.
Está acordado.
Não adianta mais fingir ou afastar. Abro os olhos e sinto-o apertando-me em
seu abraço.
Tem os lábios em meu ouvido quando respira fundo. Parece hesitar por um
segundo e eu percebo que não apenas ele está desperto há muito tempo, como já
percebeu que eu também. Seja lá o que quer dizer, deve estar refletindo há algum
tempo.
Eu congelo.
Paro de respirar.
É isso.
Não está certo.
Não está tudo bem.
Não está ok.
Ele murmura muito baixo. O calor de seu hálito causando-me arrepios.
- Você decide. - sussurra - Eu te conheço, Gabi. - sua risada é baixa e
genuína. Carinhosa. - Deve estar enlouquecendo agora mesmo, não é? E não precisa.
- ele beija a curva do meu queixo. Para confortar-me. Para despedir-se. - Eu sei:
Você é casada com meu irmão e nós dois… juntos… não é certo. - engole em seco -
Mas também sei que… você não é dele. E isso, Gabi… - aperta-me, respira-me - Por
Deus, Gabrielle, isso não é errado. Não pode ser. - acrescenta, mais para si
mesmo do que para mim - Não pode. Mas a decisão é sua. Se você quiser, eu posso
levantar agora mesmo e nunca mais falo sobre isso de novo. Prometo. Nunca mais. -
suas palavras falham como se doessem - Ou… - murmura quente e seus lábios estão
na minha pele de novo - Eu posso ficar bem aqui e te mostrar uma coisa que eu
gosto de fazer com a língua.
Fecho os olhos porque minha vida não me preparou pra esse tipo de decisão.
- Você escolhe, Gabi. Mas precisa escolher.
Viro-me para ele e Luca me envolve com seus braços imensos, enfiando os dedos
em meus cabelos e pronto para me beijar.
Eu o interrompo com uma mão em seu peito.
Quero a loucura por mais uns instantes.
Não quero a razão.
Quero ficar aqui e fingir que pode ser para sempre porque quando eu tiver que
sair dessa cama eu sei que não vai ser.
Não apenas pelo Tony… mas por mim.
Não posso, Luca.
Se fosse qualquer outro homem, talvez eu pudesse.
Mas você, não.
Vou magoar o Tony.
Vou me apaixonar por você.
E aí o que acontece?
- Será… - peço e ele pausa - Será que a gente podia ficar aqui? Em silêncio,
só… só mais um pouco?
Ela não diz uma palavra.
Desliza os nós dos dedos pelo meu rosto e beija minha testa antes de me
fechar em seu abraço.
Faz cafuné em meus cabelos até eu pegar no sono de novo.
**********************
Luca
**********************
**********************
**********************
Gabi
Foi divertido.
Foi muito divertido.
Mas deveria ter acabado.
Antes que ele dissesse que se apaixonou por mim e antes que eu considerasse
responder algo parecido.
Sexo com Luca Zummo era uma ideia fantástica e eu não sei por que me impedi
de experimentar aquilo por tanto tempo até porque, sendo sincera, do jeito que
ele era tarado na faculdade, bastava que eu dissesse "e aí?" e ele diria "claro".
Mas quando você é o tipo de mulher que adora homem que não presta é
importante não esquecer que, se você vacilar é você quem se fode.
E eis o quebra-molas em meu caminho: Adoro o Luca. Pelado, então, é meu
melhor amigo.
Mas ele não presta.
Nunca prestou.
Eu já presenciei sua boca desenhada e deliciosa dizendo "eu te amo" para
mulheres demais até levá-las para a cama e nunca depois. É o tipo de mentira que
não lhe causa dores na consciência.
Mentira que ele repetiu quantas vezes foram precisas até conhecer a Fernanda.
Foi aí que a mentira virou verdade.
E o Luca Caçador, virou o Luca Bichinho de Estimação.
Aquele amor foi de verdade. Da parte dele, pelo menos.
Ele se apaixonou e estava pronto para casar, ter filhos, envelhecer juntos… o
cronograma completo.
Isso é o que eu lembro sobre o Luca e que ele parece ter esquecido: o tanto
que ele ama Fernanda. Digo "ama" no presente mesmo porque eu vi a expressão no
rosto dele quando finalmente percebeu que tinha sido abandonado no altar. Quando
a música parou de tocar, o recado chegou através de uma das damas de honra e o
atraso da noiva era longo demais para ser confundido com um engano qualquer. O
amor que tinha não era correspondido e isso quase o matou. Fez com que fosse rude
com sua mãe, com que desse as costas para o pai, com que abandonasse a carreira e
o emprego que - apesar de todas as suas brincadeiras - sei que amava. Luca fugiu
para bem longe e se escondeu do olhar de todos enquanto degustava a própria mágoa
ao longo do tempo.
Dez dias e ele dizia que estava apaixonado por mim?
Era mentira.
Assim como mentiu para tantas outras.
Talvez ele quisesse, de verdade, estar apaixonado por mim.
De algum modo sociopata e infeliz seria sua desforra diante da agressão
sofrida.
Sua ex ia casar? Pois ele estaria apaixonado.
Todos nós já passamos por isso.
Rejeição dói. Deixa qualquer um irracional.
As coisas que nós fazemos para nos esconder da humilhação da rejeição acabam
por ser ainda mais vergonhosas que a rejeição sozinha.
Eu entendo o que está acontecendo com ele, mas entender não significa que
posso deixar que faça.
Ao contrário de Luca, eu posso me apaixonar por ele de verdade.
Eu já cheguei bem perto vezes demais para contar, e tenho coisas demais para
me preocupar agora: Entre o casamento com Tony, a questão da Giseli, a rodada de
investimentos em minha empresa, a mentira que precisamos contar para sua família,
o jantar que ele prometeu aos Adriatic… Se eu me apaixonar por Luca agora vai ser
um problema a mais do que eu consigo lidar. E eu sequer tenho certeza se consigo
mesmo lidar com os que já tenho.
Então, esse é o plano: sobreviver a semana.
A Lua de Mel foi maravilhosa e está no passado.
É isso.
Simples.
Não pense muito sobre isso.
Parece um ótimo plano.
Ou pelo menos parecia, até ele sair do banheiro vestindo um terno de três
peças.
Minha cabeça está dizendo "Gabrielle, você passou dias vendo o homem pelado,
sem camisa, molhado… qual o problema de vê-lo em um terno? Cresce!"
Mas meu coração está chorando "Por que ele precisa ser tão lindo? Por que ele
deixou essa barba malfeita? Por que ele faz até o tecido parecer ter uma textura
boa de sentir nas mãos? Por que os braços dele precisam ficar tão lindos nesse
paletó? Meu Deus, eu quero um abraço."
E eu concordo, isso já seria patético o suficiente.
Mas o verdadeiro problema não é nenhum desses dois.
O verdadeiro problema é que minha vagina está sorrindo, encarando a bunda
dele e pensando em como roupas assim são boas para nos lembrar de como as pessoas
são quando as despem.
- Pronta? - ele me observa com o canto do olho, prendendo o relógio ao pulso.
- Pronta. - assinto, virando-me para a porta.
Quer dizer, eu acho que estou pronta.
Eu não sei direito, sabe?
Ele saiu do banheiro com aquele paletó e aí eu meio que esqueci como faz pra
andar. Mas estou usando roupa íntima, um vestido, sapatos e acho que coloquei
maquiagem, então está tudo bem.
- Eu vou dizer que não estou me sentindo bem. - anuncia quando entramos no
carro.
Estou evitando falar com Luca porque sempre que olho pra ele lembro que está
disposto a seguir tirando minhas roupas para me fazer rebolar em seus dedos. E,
sempre que olho pra ele, não consigo lembrar por que essa ideia é ruim.
Foco.
Olho pra frente.
Luca é muito bom.
Mas eu já fiquei na fossa por causa desse cara uma vez, não posso deixar
acontecer de novo.
Não posso.
- Assim a gente tem uma desculpa para sair logo. - completa, diante da minha
ausência de palavras.
- Certo. - é tudo que consigo dizer.
Certo.
Isso nunca vai dar certo.
A mãe dele vai perceber que é o filho errado no instante em que disser "boa
noite".
Mas, de algum modo, isso não me preocupa tanto quanto o fato de que, quando
"voltarmos mais cedo" seremos só nós dois de novo.
Sozinhos.
Em uma casa na penumbra.
E aí?
De onde eu arranco resiliência pra resistir as três peças do paletó?
Aperto meus dedos e encaro a rua enquanto Luca segue guiando-nos para a casa
dos seus pais.
Foco, Gabi.
Foco.
**********************
Luca
**********************
**********************
**********************
Luca
Se eu abrir minha boca para falar mais um A, a Fernanda vai perceber que é um
A de Luca e que Tony nem leva essa letra.
Estou em silêncio.
Ela viu meu corpo e as tatuagens. Ela me conhece bem o suficiente para
perceber as sutilezas.
O café da manhã, na verdade, é um campo minado.
Bastou que ela aparecesse na minha frente naquela manhã para que eu
percebesse o tanto que realmente me importava com a Mentira.
Até então tinha sido uma grande brincadeira, não é? Se tudo der errado, o
Tony que volte e resolva a bagunça que ele criou.
Agora, no entanto, eu tinha algo a perder.
Sem a mentira, a Gabi me deixaria ficar? Me beijaria a boca ao se despedir
como se quisesse que eu ficasse? Me deixaria fazer carinho em seus cabelos até
que pegasse no sono em meu peito?
Fecho os olhos por um segundo.
Gabi mudou tudo.
O que eu sinto por Gabi mudou tudo.
Minha inconsequência diante de meus pais tinha sido estúpida mas inocente
porque se eles descobrissem o que estávamos fazendo iriam querer resolver tudo
discretamente e, considerando seu catolicismo incondicional, era bem capaz que
quisessem me manter casado com Gabi, já que era aquela a união que tinha sido
feita perante Deus.
Minha inconsequência diante de Fernanda, no entanto, seria demônio de um
círculo do inferno bem inferior.
- Omeletes? - ela pergunta.
Eu seria capaz de comer uns dezoito e ela sabe disso. Mas quantos o Tony
comeria?
Eu sempre fui do tipo comer muito, me exercitar mais.
O Tony era do tipo fazer dieta.
Respiro fundo.
Peço um e um suco.
Vou precisar tomar outro café da manhã quando sair daqui.
- Luca, eu queria te agradecer por fazer isso por mim, sei o quanto Gabi deve
ter sido contra.
Assinto e estou prestes a dizer "problema nenhum" só para que ela comece com
suas perguntas quando percebo a gafe.
- Luca? - enrugo a testa.
- Oh. - ela sorri, maldita - Desculpe! Você está tão mais parecido com seu
irmão.
Engulo em seco.
- Vou tomar isso como um elogio.
- Claro que vai. - pisca um olho - De todo modo, sei que você foi contra essa
entrevista por muito tempo e sei que Gabi ainda deve ser. Então, obrigada. Não
precisava ter feito isso. E se foi apenas para aplacar os rumores, não se
incomode, tenho certeza que não duram muito tempo.
Rumores?
Tony perguntaria?
Não. O Tony é um frouxo.
- Como posso te ajudar, Fernanda? Do que precisa? - o Tony é um frouxo mas é
educado pra caralho.
- Isso vai ser longo. - avisa, verificando as perguntas em seu tablet - Eu
disse que ia precisar de duas horas, lembra?
- Claro.
Ela tem um enorme sorriso de satisfação quando começa suas perguntas.
São dezenas. Centenas. Técnicas em sua maioria, o que facilita minha vida já
que cresci com Tony e conheço de perto todos os detalhes que ela precisa. Talvez
algumas das minhas respostas estejam alguns anos desatualizadas, mas, de novo, se
meu irmão tem um problema com o jeito como respondo a sua entrevista, ele pode
vir aqui dar as respostas ele mesmo.
- … mergulhar com os tubarões em Fernando de Noronha, com os golfinhos em
Nápoles. - respondo, com um gesto rápido, a mais uma de suas infinitas perguntas.
- Ah! Eu lembro dessas férias! Em Nápoles! Eu estava com o Luca, lembra?
Lembro.
- Claro.
- Foi quando ele me pediu em casamento. - baixa os olhos, pesarosa.
Foi.
Fica em silêncio por um instante. Parece desconcertada.
- Me desculpe.
- Pelo quê? - engulo em seco.
- Não quis desviar do assunto.
Minha garganta está seca.
Na praia.
De noite.
Com o anel pesando em meu bolso enquanto eu tentava encontrar as palavras
certas.
Palavras certas dificilmente me ocorrem.
As erradas, no entanto, costumam ser minhas melhores amigas.
- Como pediu Gabi em casamento? - pergunta, tentando afastar o rápido
desconforto - Algo loucamente romântico, tenho certeza!
Droga.
Não sei como foi.
- Não tão romântico quanto Gabi merecia. - aceno, diplomático. As palavras me
faltam. Tony é pragmático, o casamento foi por conveniência. Na verdade, ele deve
ter feito pedido nenhum. Mas qual a mentira que contaram? Uma que poderia ser
real? Ou exageraram para atrair o típico deslumbramento que frequentemente afasta
perguntas?
- Hm, tenho certeza. Gabi merece o mundo. - quase a percebo revirando os
olhos - Mas me dê detalhes! - inclina-se - Detalhes suculentos!
Abro a boca.
Meu Deus.
Certo. Qualquer mentira vai ter que servir.
Diga algo genérico.
Algo que pode ser interpretado de muitos modos.
- Um… jantar. - começo.
- Um jantar?
- É. Com flores. - limpo a garganta. - Champanhe.
- Senhor Zummo? - a voz masculina às minhas costas me assusta e alivia ao
mesmo tempo.
- Marco?
- Temos uma pequena emergência, senhor. Exige sua imediata atenção.
- Pequena emergência? - Fernanda ergue a sobrancelha - Em uma fábrica de
carros? Foi algum acidente?
- Não! - Marco preza pela imagem da empresa mesmo pego na mentira.
- Então, o quê? - ela cruza os braços, invasiva.
Eu estou prestes a lhe pedir que deixe Marco em paz já que o assunto pode ser
sigiloso ou simplesmente não da sua conta.
Meu motorista, no entanto, tem outros planos.
- Foi o desenho da válvula de calibre. A senhora sabe o que é?
- Não, eu…
- Pois a senhora imagine que é uma coisa muito importante, tipo o salto do
salto alto. Não dá pra tirar, que aí fica só "alto" e "alto” sozinho não é mais
um calçado, é só uma palavra, não é? É um substantivo, eu acho? Ou um adjetivo.
Não sei. Mas junto, é uma válvula que é importante e tem um desenho que é mais
importante porque é do desenho que vem a válvula, a senhora está acompanhando?
- Estou, eu acho que sim. Houve um problema com o desenho?
- Não! Alguém disse isso? - assusta-se.
- Você! - ela afirma.
- Não, eu estava só começando a explicar a história. A questão é a Laura, que
é a desenhista, ela mora com a Arlene do departamento de recursos humanos e a
senhora sabe que esse pessoal é o encarregado de todas as demissões! Bem como!
Todas as contratações também, é importante não esquecer. A Arlene namorou com um
rapaz que tinha uma plantação de bois. Não, não é plantação o nome. Como é que
chama quando é de bicho?
- Ah…
- Ele criava um monte de bichos, mas não é mais. Não é mais o namorado da
Arlene, eu quis dizer, talvez ele ainda crie os bois, aí eu não sei, a senhora
quer que eu verifique?
Fernanda pisca, confusa.
Mas Marco, como de costume, não precisa de uma resposta.
- Eles acabaram e foi assim que a Arlene foi morar com a Laura. Elas já se
conheciam de antes, mas quando a Laura ainda trabalhava na secretaria. Hoje, quem
está na secretaria, a senhora sabe, é a Dona Inês. E eu, um pouco, ajudo ela como
posso não é? Mas a Dona Inês sabe o funcionamento de toda a empresa! Inclusive
quando dá problemas desse tipo. Foi ela quem logo notou e mandou chamar a Laura,
porque o Miguel quis dizer que não recebeu o rascunho!
- Que rascunho?
- Da válvula! A senhora não está prestando atenção? Senhor Zummo, o senhor
precisa vir agora mesmo! Depois o senhor explica. – balança a cabeça como se a
falta de compreensão de Fernanda fosse um defeito horrível dela, e não
incapacidade comunicativa sua – Agora mesmo. – ele puxa a cadeira para que eu me
levante e colocou tanto dinheiro sobre a mesa que da pra pagar três cafés da
manhã – Depois ele explica pra senhora, viu dona? E eu descubro a coisa dos bois
do ex-namorado da Arlene que a senhora queria saber e já mando a informação.
Minha cabeça ainda está girando quando entro no carro.
- Marco… O que… O que caralho foi aquilo?
- Eu estava sentado na mesa de trás, escutando. E o senhor gostou do “temos
uma pequena emergência, exige sua imediata atenção”? Eu vi isso em um filme,
senhor Luca! – abre os olhos, encarando-me pelo retrovisor – Um desses com algum
presidente americano quando tem um monte de coisas que explode.
- Como assim?
- Olhe, eu acho que são efeitos especiais. Tudo coisa de computador. Mas eu
ouvi dizer que às vezes eles explodem mesmo! E filmam tudo de verdade.
- “Como assim” você estava sentado na mesa de trás?
- Ah! Caso o senhor precisasse. Eu achei que era bom deixar o senhor
responder algumas perguntas para disfarçar. Mas depois que deixei vocês dois na
porta, eu estacionei bem depressa e procurei um lugar logo atrás. O senhor sabe
se essa coisa de válvula existe mesmo? Essa parte eu tive que inventar. Agora, a
coisa do ex-namorado da Arlene é verdade! O senhor acredita mesmo nisso?
- Marco, quieto! Eu vou te fazer perguntas e você responde com “sim” ou
“não”, entendeu?
- Nem sempre dá, hein, senhor Luca. Às vezes, tem umas perguntas que…
- MARCO.
- Entendi. Sim! – enfatiza, como se tivesse acabado de lembrar qual a palavra
que deveria usar.
- Gabrielle mandou você me vigiar?
- Não.
- Tony?
- Não.
- Você fez porque quis?
- Essa pergunta é meio…
- MARCO.
- Sim.
Respiro fundo.
Solto a gravata.
- Eu não quis me meter, não, senhor. Eu só…
- Marco… - aperto seu ombro com carinho – Muito obrigado. Muito muito
obrigado.
Ele sorri, acena e volta a falar sobre doze milhões de coisas.
Ao mesmo tempo.
**********************
Fernanda
**********************
**********************
Fernanda
É o Luca.
É óbvio que é o Luca.
Aquelas tatuagens, aquele corpo.
Aquele não é o Tony de modo algum.
Eu só preciso descobrir por quê antes de começar a destruir tudo.
E não se engane: eu VOU destruir tudo.
Ela está mesmo transando com ele? Quem ela pensa que é?
Eu sabia que o Luca estava ajudando a disfarçar o desaparecimento do Tony por
alguma razão, mas não imaginei que ele estivesse mesmo comendo a própria cunhada!
E, mais que isso! A GABRIELLE?
Que tipo de história era essa? Em que depois de tudo que eu passei, e tudo
que tive que ouvir daquela ali, ela acabava com o homem que sempre quis?
Não, não, não.
O Luca Zummo era meu hoje, do jeito que sempre foi.
Ele teve que fugir, destruído, quando descobriu que eu não o quis não foi?
Era meu.
Se ela o tinha nu agora, era temporário e casual e eu precisava mesmo lembrar
os dois disso.
Uma visita ao estúdio vazio de Luca Zummo ia comprovar minhas dúvidas.
E, caso ele corresse até lá para tentar fingir que estava tudo certo… aí eu
teria Luca Zummo sozinho.
Sinceramente, não sei qual das duas opções me parece melhor.
15 – Uma dessas coisas é mentira
Luca
Até aqui, sempre que eu usei a frase "Passei a noite em claro com Gabi" era
por uma razão excelente pra caralho.
Mas passar a noite em claro, correndo para conseguir um trem que nos levasse
de volta pra costa antes de Fernanda aparecer por lá, não estava na minha lista
de predileções.
O curso correto aqui seria ligar para Antônio, dizer que acabou a brincadeira
de verdade e que ele precisava voltar antes de ser exposto. Porque aí
apareceríamos os dois na frente da Fernanda: ele com o braço ao redor de Gabi, eu
solteiro, e estaria tudo resolvido.
Quer dizer… "tudo" menos a parte do braço dele ao redor de Gabi.
No começo, eu queria que Tony voltasse logo porque ver Gabi de biquini sem
poder reagir estava me enlouquecendo.
Aí eu reagi e a loucura passou.
Então eu queria muito que Tony voltasse logo porque minha cunhada era uma
mulher fantástica e eu ia me apaixonar por ela.
Aí eu me apaixonei e agora tudo se tornou nulo, não é?
Eu queria que Tony voltasse pra quê?
Gabi estava nua na minha cama durante a noite, e com a mão colada na minha
durante o dia. Ou durante as madrugadas enquanto corríamos para pegar um trem que
acabamos por perder.
O retorno de meu irmão agora ia me colocar de volta sem reação diante da Gabi
de biquini. Ia quebrar meu coração e meu espírito.
A volta de Tony seria minha loucura.
Então, não: não liguei pra ele e, sinceramente, não pretendia mais ligar. O
que o destino jogasse na minha porta, eu ia atender e encaminhar na direção
correta porque enquanto eu conseguisse fazer isso sozinho, Gabi era minha. E eu
precisava pra caralho que Gabi fosse minha.
- Luca, isso é loucura! - ela diz pela centésima vez, assim que abro a porta
do meu apartamento sobre o estúdio. O cheiro de mar é forte aqui. Mar, conforto e
alguma coisa que eu devo ter deixado fora da geladeira, às pressas, porque quando
saí deveria ter sido só por uma noite.
- Gabi, confia em mim! Ela não vai perceber nada!
- Era melhor ela achar que você estava de férias, que não está na cidade.
- Se ela não me encontrar, vai aumentar suas suspeitas de que é porque eu
estou, na verdade, no lugar do meu irmão.
- Então você concorda que ela suspeita?
- Eu vou dar um jeito.
- Você é um péssimo mentiroso!
- Então vou colocar algumas verdades no meio das mentiras para ficar mais
fácil.
- Luca…
Gabrielle está corada e em pânico.
Percebe?
É exatamente por isso que eu a trouxe comigo: ela está sempre a cinco
segundos de ligar pro Antônio. Preciso vigiá-la para que não faça isso.
Não estou pronto pro meu irmão voltar. Ainda não.
Só mais um pouquinho.
- Isso é loucura! - ela repete.
- Tá, mas ela deve chegar no estúdio a qualquer instante, verifico o relógio.
Então a loucura já está feita.
Poucos minutos.
Nós pegamos o primeiro trem do dia, mas havia outro que saía uma hora depois
mas fazia menos paradas. Se Fernanda pegou esse (e conhecendo os horários de suas
manhãs, sua dedicação e sua pressa, ela provavelmente pegou esse) não estava
muito atrás de nós.
- Luca, eu… - ela vai reclamar de novo, mas algo em minha estante chama sua
atenção - "Alice no País das Maravilhas". - recita, incrédula.
Ela pega o exemplar do original de Lewis Carroll, exatamente o mesmo que ela
me emprestou anos atrás.
- Você nunca leu, não foi? - julga com olhos apertados.
Abro minha boca vazia de palavras porque não consigo mentir pra ela.
- Cara de pau! - ela pega o exemplar e enfia dentro da própria bolsa - Encheu
minha paciência para que eu te emprestasse! Desaparece com o meu livro! E nem
sequer lê?
- Você vivia dizendo que era incrível! Eu fiquei curioso.
- Curioso o suficiente para roubar meu livro, mas não para lê-lo? Cara de
pau! - repete, investigando minha estante - O que mais tem por aqui que não é
seu?
- É um livro infantil!
Gabrielle ergue um dedo para mim como se eu estivesse errado em mais níveis
do que ela tem disposição para explicar e eu me calo.
- Um box fechado de livros de Kafka, isso foi presente do Tony, com certeza.
- Como você sabe?
- É o autor favorito dele.
- Sério?
- O homem eternamente preso em uma vida, trabalho e relacionamentos que
detesta. - recita baixinho e eu não faço mais perguntas porque, de algum modo, me
parece muito pessoal - Não leu nenhum desses também, não é?
- Kafka, não. Tentei começar O Processo algumas vezes, mas muito chato.
- ESSE AQUI você já leu! - anuncia, pescando uma Playboy do meio dos livros.
- Um amigo me deu isso! De brincadeira!
- Claro. - sarcástica - A calcinha no seu sofá foi presente também?
- O quê? - eu encaro meu sofá depressa e vejo a calcinha fio dental de um
azul bem claro e paro de respirar.
Acho que me lancei com muito afinco contra as almofadas, em uma jornada fútil
para esconder a peça porque quando anuncio "isso aqui não é nada", a Gabi respira
como se mentira maior nunca tivesse sido dita em voz alta.
- Eu fiquei com alguém uns dias antes do Tony ligar. Já tinha esquecido!
Achei a calcinha embaixo da cama e coloquei aí para lembrar de devolver e…
Ela leva a mão ao peito em uma demonstração exorbitantemente exagerada de
choque:
- Dormiu com outra nas vésperas do nosso casamento? Cachorro!
Não foi na véspera, mas deixo meus ombros caírem porque ela vai me provocar o
resto do dia por causa dessa calcinha. Melhor eu aceitar.
Mais fácil.
- Pode rir.
- Eu vou! - ela tem um sorriso lindo que me derrete um pouco. Abandona minhas
estantes e vem tomar a calcinha da minha mão - A gente pode deixar isso… - joga a
peça longe de nós dois com uma careta nervosa.
- Pode. - quem está sorrindo sou eu. Tomo sua cintura e apoio a testa na
dela. Gabi não me olha nos olhos porque está deslizando os dedos pelos meus
ombros e verificando minhas tatuagens, a mostra sob a regata.
- Vai precisar colocar outra camisa. Ela viu as tatuagens no outro dia.
Assinto.
Sei que, provavelmente, deveria ir me trocar logo porque trem com menos
paradas e tudo o mais, mas sabe quando você chega em casa depois de um dia filho
da puta, toma um banho quente, veste pijama mais confortável, pega um pote de
Nutella, se enfia embaixo dos cobertores e liga um filme na Netflix?
A Gabi é isso.
A Gabi é casa e conforto.
Quando ela se encaixa nos meus braços daquele jeito faz a distância parecer
detestável.
Não consigo soltá-la.
Ela raspa os dedos sobre a rosa dos ventos em aquarela pintada em minha pele,
refazendo os traços com as unhas, todos os pontos cardeais, menos o Norte. Menos
a parte que ficou faltando na minha vida.
- Eu vou te dar um beijo. - suspiro, a verdade escapando sem que eu tenha
decidido dizê-la.
- Vai começar a anunciar a partir de agora? - tem um sorriso tímido.
Eu tenho uma resposta espertinha pronta, mas não tem nada que eu possa dizer
que seja melhor que beijar Gabi e aí é isso que eu faço.
Ela tem um jeito de apertar meus ombros e enfiar as mãos em meus cabelos que
me causa um tesão quase maior que as tatuagens.
Adoro o gosto que ela tem. O gosto da sua língua, do seu suor, do seu
sorriso.
Devia ter sido eu.
Devia ter sido eu a pedi-la em casamento desde o início.
Estou prestes a lhe dizer isso quando escuto a campainha tocar.
Não no estúdio. No meu apartamento.
O caralho da Fernanda.
A mulher foi posta na Terra pra me infernizar nos piores momentos possíveis.
**********************
Gabi
Luca respira fundo como se quisesse dizer algo e detestasse ter que esperar.
- Isso é loucura. - sussurro porque sei quem está do outro lado da porta -
Essa bagunça toda só para não precisar chamar o Antônio, Luca. Toda essa confusão
só pra, no fim, você ainda ter que passar um monte de tempo preso comigo. -
murmura - É loucura.
O carinho que faz em minha bochecha é com tanta ternura que parece que me
amou a vida inteira.
- Não, meu amor. - ele murmura, com a testa na minha - Loucura é todo o
resto. - beija minha mão e me leva até seu quarto.
Confesso que, de todas as vezes que imaginei Luca Zummo me levando para o
quarto dele depois de me beijar e me chamar de "meu amor", aquela nunca foi uma
possibilidade.
Beija minha testa e me deixa ali, sozinha. Fecha a porta atrás de si, mas o
apartamento é quase um flat. Vou conseguir ouvir tudo através da porta e,
sinceramente, não sei se quero.
- Fernanda? - escuto sua voz de falsa surpresa.
Ah meu Deus, Luca. Finge melhor do que isso, por favor.
- Luca! Quanto tempo! - a voz dela é falsa também, mas Fernanda é falsa com
frequência. Difícil saber se é especial dessa vez.
- Hm. Eu não quero parecer grosseiro, mas o que caralho você está fazendo
aqui?
- Isso é você "não querendo parecer grosseiro"?
- Talvez eu queira um pouquinho. E não te convidei pra entrar!
Fernanda ri com desdém e há um segundo de silêncio.
- Azul-claro, Luca? Nunca foi sua cor favorita.
- E desde quando você sabe minha cor favorita?
- Fio-dental é tão deselegante.
- Ah, é por isso que você tem tantos?
- Ainda está pensando em minhas lingeries?
- O que caralho você está fazendo aqui?
- Sua secretária disse que você não estava em casa, ontem.
- Isso não responde minha pergunta.
- Não vim aqui responder suas perguntas.
- Ótimo. Então, já pode ir. - a porta se abre.
- Sua secretária disse que você desapareceu no dia do casamento do seu irmão.
Mas não vi você por lá. Ficou escondido durante a festa, Luca? Estava com medo de
me ver?
Toco a porta que nos separa.
Consigo ouvir quando ele respira fundo.
É exatamente por isso que ele não quis ir ao casamento.
Porque ainda a ama.
Porque ainda… há algo.
"Misturar verdades com as mentiras". Tudo bem, Luca. Diga pra ela que ainda a
ama. Eu vou entender.
Vai doer como se tivessem me derrubado nua em água fervente, mas eu vou
entender.
- É melhor você ir embora, Fernanda.
- Por que não quis ir ao casamento, Luca?
- Não é da sua conta.
- É, se você estava com medo de me ver.
- Eu estava com medo de ver a Gabi. - explode.
- O quê? - consigo ouvir o nojo e a incredulidade em sua voz - Por quê?
- Porque… - ele ri de desespero - Porque eu a amo. Eu amo aquela mulher mais
que… E ela casou com o meu irmão. E eu preferi desaparecer em uma trilha do meio
do nada por uns dias.
- Você não é apaixonado pela Gabi. - decide - Está dizendo isso pra me
magoar!
- Lembra do que eu te disse na noite que a gente se conheceu?
- Não! - reclama, como quem lembra sim, mas se recusa a admitir - Você não é,
nem nunca foi, apaixonado pela Gabrielle. Você só quer me magoar por causa do que
eu fiz.
- É, o que você fez comigo foi nojento pra cacete. Mas não tem mais nada a
ver com você. Isso tudo é a Gabi. Sempre foi a Gabi.
- Bela tatuagem. - ela diz com raiva.
Fecho os olhos e mordo meus dedos.
Ele não trocou de camisa.
- Obrigado. - é tudo que ele responde.
- Seu irmão tem uma igualzinha, sabia?
- Claro que eu sabia. Quem você acha que tatuou ele?
Ela pausa.
- Fizeram tatuagens idênticas?
- Não são idênticas. Se olhar de perto vai ver que as linhas, na minha, são
mais certinhas. O Tony não parava de tremer com medo da agulha… foi um processo.
Mentiras e verdades.
Respiro fundo.
Aquilo é louco, mas soa verdade.
É a cara do Tony.
- Eu o vi ontem. Ele está mais… atlético.
- Não é? Está fazendo uma rotina de exercícios que eu recomendei. A que ele
tinha antes era uma porcaria.
- Vocês ainda se falam com frequência?
- Ele é meu irmão, Fernanda.
- Claro, claro.
- Veio até aqui só pra isso?
Silêncio.
Muito silêncio.
Acho que a ouvi respirar fundo.
- Não.
- E o que quer?
- Você?
- Fernanda, tenha um bom dia.
- Luca! Por favor, só me dá um minuto.
- 59 segundos, vai.
- Eu acho que eu estava com medo. Eu não estava pronta para casar, não estava
pronta para um compromisso.
- Isso é uma tentativa de pedir desculpas?
- Eu sinto muito. Não devia ter feito as coisas daquele jeito.
- Está desculpada.
- Luca.
- Inferno, Fernanda, o que mais você quer?
- Eu quero que você me diga que não teria dado certo! Quero que me diga que
nós dois juntos seríamos uma má ideia.
- Filha de uma… Você quer que eu te convença a não casar com o Vicente? Não,
meu bem, se você quiser ser sacana com o Noivo Número Dois, assuma sua
responsabilidade.
- Eu preciso ouvir da sua boca. Eu não consigo parar de pensar em você, Luca.
Nunca consegui! Se você me disser que a gente nunca teria dado certo, eu vou
acreditar e posso seguir com a minha vida.
- A gente nunca teria dado certo. Nunca.
- Olha nos meus olhos quando diz isso!
Ele pausa por um instante.
- A gente NUNCA teria dado certo. - repete.
- Não acredito em você.
- Filha da… Fernanda, sai da minha casa.
- Eu saio depois que você provar que não me ama.
Eu escuto os sons de desdém que Luca emite, sem conseguir acreditar que ela é
capaz daquilo.
Mas é.
Ela é capaz de qualquer coisa para não perder algo que acha que tem.
Principalmente se for pra perder pra mim.
Vai embora, vai embora, vai embora.
- E eu faço como pra provar? Um teste de revista? Pode me mandar por e-mail,
viu? Respondo com muito gosto.
- Talvez eu esteja usando um fio dental por baixo dessa roupa, Luca.
Filha da puta!
Não, não, não.
Estou apertando minhas têmporas.
Ela é maldita mas eu sei que é gostosa.
É o tipo de coisa que ninguém consegue olhar pra ela e negar.
E o Luca… é o Luca.
Meu coração se espreme e afunda.
Ela vai colocar as mãos nele. Ela vai beijá-lo.
- Eu achei que fio dental era deselegante.
- Quem liga pra elegância? - ela murmura - E o que estou usando agora é da
sua cor favorita. Quer vir descobrir se eu sei qual é?
- Você está noiva.
- Eu não preciso estar.
Ele não sabe o que dizer.
- Fernanda, vai embora.
- Lembra de quando eu te deixei no altar? Eu imagino como você não ficou com
raiva… principalmente quando soube do Vicente. Eu fui horrível com você, não fui?
Fui uma garota má. E se eu te mostrar o fio dental da sua cor favorita e te
disser que você pode me punir como quiser?
- Fernanda, não!
A voz dela está se aproximando. Ela vai entrar no quarto.
Vai entrar no quarto e vai me ver.
Por um lado, acabou a charada. Por outro, ela vai tirar as mãos dele.
Eu me pego na certeza de qual via seria a minha favorita.
- Pode me foder com a força que quiser, Luca. - ela está do outro lado da
porta. Imediatamente do outro lado. - E eu posso implorar o tanto que você
quiser.
- Eu ainda te amo! - ele grita e eu congelo.
O silêncio parece que vai acabar nunca.
- O quê?
- Eu ainda te amo. Eu estava tentando te magoar. Mas não quero você desse
jeito.
- Quer que eu acabe com o Vicente?
Eu aperto minhas mãos em punhos tão fortes que enfio as unhas na carne.
Misturar mentiras e verdades.
Não pode amar nós duas.
Qual das duas foi a mentira, Luca?
Qual das duas foi a verdade?
- Não. Mas eu não posso ficar com você desse jeito. Você precisa decidir o
que quer. Não vou fazer com o Vicente o que ele fez comigo.
- Luca… - ela derrete.
Está distante da porta, o que significa que está perto dele.
Mal consigo ouvir o que diz, deve estar tão perto dele agora que precisa
apenas suspirar.
Meus olhos ardem.
Ele mentiu agora, Gabi.
Ele não a ama.
Ele ama você.
Ele só disse isso para mantê-la longe da porta.
Pode ser que ele a beije para mantê-la longe da porta.
Pode ser que prometa amá-la pra sempre pra mantê-la longe da porta.
Eu DETESTO essa merda dessa porta.
Mas e se não foi?
E se não foi completamente mentira?
E se ainda há algo ali, mesmo que só um pouco?
Ela vai beijá-la e ele vai lembrar.
Vai ligar pro Tony, vai se livrar de mim.
E se casar com ela?
Abri a porta.
Não sei por quê.
Mas está aberta.
Estou tremendo.
- Gabi? - ela me encara como se nada no planeta fosse mais impossível. - O… o
que…?
Atrás dela, Zummo fecha os olhos e derruba a cabeça no ar.
- Terminei de olhar os rascunhos, Luca. Tem alguns que gostei bastante, mas
eu queria mais cor.
- Mais cor? - ela pergunta, erguendo uma sobrancelha. Está linda, a
miserável. Os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo majestoso e um vestido
vermelho que desenha todas as curvas que ela tem: naturais e artificiais.
- A Gabi quer fazer uma tatuagem nova. - ele entende minha deixa.
Ela pausa por tempo suficiente para curvar os lábios em um sorriso quase
cartunesco.
- Claro que quer.
Se ela tinha alguma dúvida antes, agora tem certeza.
Luca está no lugar do Tony e eu estou apaixonada por meu cunhado.
Ela sabe.
É absolutamente inegável.
Luca ainda conseguiu fazer muitas mentiras parecerem quase palatáveis. E se
ela achasse de fato que ele está apaixonado por ela, é possível que seu ego
gigante a cegasse para todo o resto.
Mas agora…
Agora, ela sabia.
Mas, pelo menos, não ia mais beijá-lo.
Eu não consigo respirar.
- Bem. Acho que é a minha deixa. - ela acena - Luca. Nos vemos em breve.
É uma promessa.
É uma ameaça.
**********************
Luca
- O que diabos foi isso? - exclamo assim que Fernanda partiu há tempo
suficiente para estar bem longe.
Gabi tapa os olhos nas mãos e se encolhe até curvar o corpo.
- Eu não sei! Não sei!
- Ela estava acreditando em mim! Estava tudo sob controle!
- Eu sei! Mas você… - ela levanta e seus olhos estão úmidos. A Gabi triste é
um negócio que me destrói - Você disse que a amava. Disse que a amava e eu…
- Eu estava mentindo! Ela ia entrar no quarto!
- Você disse que ainda a amava!
- Gabi! - eu levo as mãos aos cabelos antes de ir até ela. - Eu te amo. -
tomo seu rosto nas mãos e coloco seu olhar em mim - Está me ouvindo? Consegue
entender isso? Eu te amo. Amo você. Mais ninguém. Eu passei a odiar meu irmão por
ele ter tomado você. Passei a me odiar por ter sido idiota por tanto tempo. E eu
sei que nossa vida agora é uma bagunça, mas eu te amo! Olha pra mim. - repito
devagar - Te amo. Por favor, aceita isso.
- Eu estraguei tudo. - ela se encolhe no meu peito e eu beijo seus cabelos.
- Não, meu amor.
- A gente vai precisar ligar pro Tony, agora.
Respiro fundo porque… é. Acho que vamos precisar.
- Acho que está na hora. - sinto meu peito doer.
- Mesmo? - choraminga, agarrada a minha camisa - Não acha que tem mais nada
que a gente pode fazer?
O quê?
Ela não quer ligar pro Tony.
Ela também não quer ligar pro Tony.
Beijo seus cabelos de novo, tentando impedir meu sorriso.
Aperto meu abraço ao seu redor.
- Sabe? Acho que ainda tem mais algumas coisas que a gente pode tentar.
16 - Norte
Gabi não quis voltar pra casa.
Ela quis fazer amor no meu sofá, comer omeletes no café da manhã, tentar
surfar com uma das minhas pranchas e conhecer o estúdio de tatuagem.
Foi isso que Gabi quis fazer e foi isso que a gente fez.
Esquecer o mundo por um dia. Acho que ela estava se despedindo. Acho que ela
não acreditou que eu ia dar um jeito de resolver a Fernanda e que o Tony voltaria
em breve.
Eu curti o nosso dia de fuga assim como curtia qualquer segundo que eu
passava com ela. Mas isso não ia ser uma despedida. Mesmo que Fernanda tivesse
descoberto tudo: entre ela saber e ela conseguir provar, havia um abismo. O que
ela ia fazer? Arrancar um fio de cabelo meu para fazer um teste de DNA? O
resultado seria prova nenhuma.
Na pior das hipóteses o Tony ia ter que, de fato, fazer a tatuagem e começar
o crossfit. Mas sinceramente? A essa altura do campeonato, o Tony que se foda.
Ele é bem grandinho, ele é capaz de fazer um sacrifício ou dois.
Seria a nossa palavra contra a da Fernanda.
E a palavra da Fernanda não valia de muita coisa, principalmente considerando
seu histórico com nossa família.
O sol já está se ponto quando entramos no meu apartamento.
- Pegamos o trem amanhã cedo? - pergunto.
Ela dá de ombros, na linguagem internacional de "é o jeito".
- A gente pode fugir por mais um dia, se você quiser. O Marco resolve tudo. -
assinto.
Sua risada é alta.
- Que foi? Eu sei que a gente pode confiar nele, agora. - concordo.
Mas ela me ignora.
Quando se vira pra mim, com a pele dourada e os cabelos cacheados ainda
úmidos, apenas estende uma mão.
- Vem me dar um banho.
Não é uma pergunta, até porque ela já sabe a resposta.
Mordo meu sorriso e a sigo para o meu chuveiro.
Ela está nua antes que eu tire a camisa. Vem me despir e eu não faço nada
para ajudá-la porque está tão quente e pelada nas minhas mãos que quero que
demore o máximo possível.
Mordo um de seus peitos com força, ela ri e liga o chuveiro. Eu a empurro
para debaixo da água, agarrado ao beijo, antes de me livrar da bermuda. Jogando
nós dois contra a parede com a pressa que o tesão exige, escuto-a reclamar porque
a angústia foi tanta que sequer notei tê-la apertado contra a torneira do
chuveiro. Beijo sua boca, apertando seu corpo… tem uma bermuda no meu caminho
atrapalhando minha vida. Não demoro a me livrar dela e aí somos só nos dois e a
água. Não acho que estou fazendo um trabalho muito bom em dar um banho em Gabi,
como ela pediu, mas acho que estou fazendo o possível com o que me foi dado e não
escutei qualquer reclamação dela, então sigo.
E sigo.
E sigo.
Até restarem só as línguas e os corpos.
Nenhum pensamento.
Nenhum receio.
Nenhuma bermuda (essa parte é importante).
Ela atinge sua crise gemendo meu nome, mordendo o meu lábio, e aí é
impossível afastar a minha.
O banho, depois disso, é lento, descompromissado. Enrolo uma toalha ao redor
da minha cintura e outra ao redor dela antes de ir fazer uns sanduíches.
Quando volto para o quarto, Gabi está inspecionando minhas roupas. Enfiou-se
em uma de minhas camisas e está analisando uma porção de outras.
- Acha que preciso de mais paletós, como Tony?
- Acho que você ficaria gostoso nisso aqui! - mostra uma camisa que escolheu.
- Fico. Eu fico gostoso em tudo. Fico gostoso sem nada também.
Ela solta minha toalha e ergue uma sobrancelha.
- Verdade.
- Posso me vestir? - rio.
- Hmm. Não. - decide.
- Você se vestiu!
- Eu coloquei uma de suas camisas! - ela anuncia, como se fosse explicação
suficiente - Estou nua por baixo.
Estou prestes a discordar, mas ela senta na cama e coloca o próprio braço
entre as coxas quando se empurra para trás no colchão. O movimento faz com que a
barra de minha camisa se enfie entre suas pernas, esfregando-se bem direitinho na
sua…
Parece acidental, mas ela me encara para deixar claro que é de propósito.
- Cuidado com essa camisa, é minha favorita!
- Ah! - ela se preocupa - Eu não sabia! Peguei a primeira que…
- Não, não era a favorita antes. - explico, deixando os pratos sobre o criado
mudo para poder apertá-la contra os lençóis - É minha favorita agora.
Enfio minha mão entre suas coxas, esfregando a barra da camisa contra seu
clitóris. Bem devagar e maldito.
Ela fecha os olhos.
- O que está fazendo?
- Só pra ter certeza que ela vai ficar com teu cheiro pra sempre.
Mas a barra da minha camisa é como a bermuda: me atrapalha.
Tiro ela do caminho e escorrego minha boca pelo corpo semi nu de Gabi.
Trago sua boceta inteira pra minha boca e fico ali.
É curioso porque não tenho qualquer pressa. Não é tanto sexo oral quanto é…
um beijo?
Passo minha língua devagar por todos os lugares, mordisco o que couber entre
meus dentes, chupo só para provocá-la. O corpo de Gabi, no entanto, não parece
sentir diferença entre meu beijo e um sexo oral. Ela se contorce como se fosse o
segundo quando claramente deveria ser só o primeiro.
Mas olha, eu gosto de beijo de língua, é por isso que enfio a minha nela. Seu
corpo se arqueia inteiro, arranhando meus ombros, agarra meus cabelos puxando-me
para cima.
- Luca, Luca…
Só que eu não vou sair daqui, não, viu meu bem? Se você quiser conversar,
arranje outra pessoa.
Agarro suas coxas tentando mantê-la quieta. O problema é que Gabi rebola de
um jeito capaz de me fazer esporrar no colchão.
- Luca, não.
Palavra mágica.
Paro.
- O que foi, amor?
- Para.
- Fiz algo errado?
- Não. Fez algo certo. - está sem fôlego - Mas eu estou morrendo de fome e se
você continuar eu vou acabar desmaiando. Só, por favor, não faz a piada de
primeiro comer o sanduíche e depois me comer.
- Jamais! - minto - Quer assistir alguma coisa?
Ligo a televisão e me jogo nos travesseiros ao seu lado. Um sanduíche pra
cada. Ela devora o seu em minutos e depois vem morder meus lábios. Eu ainda estou
comendo, mas levar mordidas de Gabrielle é uma coisa que me incomoda em nada.
Me livro dos pratos assim que terminamos, para deixar que ela me morda
melhor.
- Você está com gosto de maionese. - murmura.
- É? Deixa eu ver do que é que você tem gosto. - enfio minha língua em sua
boca, puxando-a para um beijo que, dependesse só de mim, demoraria horas.
Ela ri na minha boca e me deixa beijar seu decote antes de deitar a cabeça em
sua barriga. Fica ali provocando suas coxas em um carinho preguiçoso, beliscando
seus seios quando ameaça perder sua atenção.
Seus dedos em meus cabelos fazendo um cafuné que quase me faz cochilar.
Sua respiração é calma. Tranquila.
Estou quase pegando no sono.
- Fui apaixonada por você por anos. - sussurra.
Ergo o olhar.
Ela parece desistir. Parece estar se despedindo.
Apoio-me nos cotovelos para levar minha boca para a dela.
Um beijo.
Um só.
- Pede o divórcio. - imploro - Vocês não se amam, Gabi. Pede o divórcio e vem
ficar comigo. O Tony se vira.
- Luca…
- Ele é um homem adulto, precisa aprender a enfrentar o pai.
- E você acha que sua família ia entender? Se eu me divorciasse de um irmão
para casar com o outro?
Meu choque é tão grande que eu demoro dois segundos para responder.
- Gabrielle, quem liga? Olha bem pra mim! Eu tenho cara de quem se importa se
minha mãe acha que Jesus não está feliz comigo?
- Do jeito que você fala tudo parece simples. Eu estou tentando ser uma boa
amiga e uma boa pessoa.
- Diz que não me ama.
- O quê?
- Olha pra mim e diz que não me ama.
Ela engole em seco e me encara em silêncio.
Pânico e silêncio.
- Então me faz um favor? - peço.
- O quê?
- Diz que me ama. Porque acho que ainda não te ouvi dizer.
Ela derrete e cola o nariz no meu.
- Te amo.
- Viu? - eu tenho certeza que tenho um sorriso idiota na cara - Não dói.
- Não, não dói.
- Quer experimentar de novo?
- Te amo. - repete - Te amo.
Eu a beijo.
E de novo.
E mais uma vez.
- Pede o divórcio. Ele vai voltar, Gabi, mas você não é dele. Você é minha.
Vem ficar comigo.
- O que você disse pra ela?
- O quê?
- Na noite que vocês se conheceram? Você disse pra Fernanda que disse algo
pra ela. O que foi?
Dou uma risada baixa.
- Foi você que nos apresentou, lembra?
- Lembro. - sua careta deixa claro que não é uma memória agradável.
- Quando comecei a conversar com ela… eu estava querendo dicas de como dar em
cima de você.
- O quê?
- É, ela estava me provocando e disse algo como "todas as mulheres aqui
dariam pra você" e eu disse "menos a Gabrielle". Ela respondeu com algo como "a
Gabi seria a primeira da fila", e essa frase me interessou bastante. Eu sabia que
ela era sua amiga, pelo menos na época ela era… e aí pensei que talvez eu pudesse
pegar alguma dica. Eu devo ter passado uma boa hora falando de você enquanto ela
dava descaradamente em cima de mim. Com o tempo, ela me ganhou pelo cansaço. E
depois, me envergonha dizer, me ganhou de outros jeitos.
- Te ganhou pelo cansaço? Você levou ela pra casa naquela noite!
- O Luca adolescente se cansava rápido. - defendo e ganho um tapa.
- Vinte e um anos é adolescente?
- Minha adolescência foi um estado de espírito que durou um pouco mais que
isso, acho que você vai concordar.
Ela assente.
- Mas você não respondeu minha pergunta.
Faz carinho em meus braços.
- Não posso me divorciar do Tony assim, Luca. Você não entende, não é tão
simples assim. Eu não sou o tipo de pessoa que o deixaria sozinho em um momento
como esse. Ele precisa de tempo e precisa de mim. E vai ter essas duas coisas. Se
isso faz com que você me deteste, eu entendo mas…
- Quanto tempo?
- Não sei.
- E se eu esperar?
- Luca… você não conseguiu esperar por mim por uma noite. Acha que seria
capaz de esperar meses?
- Eu esperaria anos.
- Você me pediu um favor e agora eu vou te pedir um.
- O que quiser.
- Por favor, não promete coisas que não pode cumprir.
- Gabi….
- Por favor.
Eu a abraço e me calo.
**********************
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Fernanda
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Luca
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Eu peguei no sono.
Peguei no sono antes de pensar como seria o dia seguinte.
Peguei no sono antes de ligar pro Tony.
Peguei no sono antes de decidir o que a gente iria fazer.
É por isso que quando o telefone toca às oito da manhã, eu tenho alguma
convicção de que estou fodido.
- Alô?
- Filho?
- Mãe?
A porta do banheiro está entreaberta, escuto o chuveiro ligado.
Talvez Gabi já tenha ligado pro Tony? Talvez ela já tenha resolvido tudo
enquanto eu estava aqui, rendido e incapaz, recusando-me a seguir em frente por
saber que significava seguir sozinho.
- O seu pai quer que você fale com os advogados, mais tarde. E eu acho que
ele está certo. A Fernanda está assediando nossa família, isso já foi longe
demais.
- Assediando?
- Ela só queria entrevistar você como uma tentativa macabra de se aproximar
da família! Eu sempre soube disso, mas seu pai não me ouvia! E agora ela está
fazendo essas acusações que você e seu irmão trocaram de lugar. É inaceitável.
Engulo em seco.
- Seu pai quer processá-la e eu acho que devemos mesmo fazer isso! Pode falar
com os advogados ainda hoje?
- O que ela disse, mãe? A… Fernanda? - digo o nome baixo, certificando-me que
o chuveiro ainda está ligado.
- Ela queria fazer um exame da sua digital… que deu em nada, é claro. E
agora, o seu pai está com medo que ela siga nesse caminho louco! Eu acho que ela
ainda deve ser…
- Espera, espera! - paro de respirar - O que houve com a digital?
- Eu te disse, ontem! Ela quis provar que você era o Luca! Acredita nisso? Aí
pegou sua digital e fez o teste. O resultado já saiu e, obviamente, você não é o
Luca. Seu pai acha que um processo é o melhor caminho, mesmo que ela não tenha
feito nenhuma acusação pública, isso não é brincadeira que se…
O resultado saiu?
Fico de pé e bagunço meus cabelos.
Não apenas saiu como disse que eu sou… o Tony?
- O que você acha? - ela continua - Acha melhor falar com os advogados
também?
- Mãe… O que… o que a Fernanda usou como referência?
Ela pausa por um segundo.
Respira fundo.
- Uns trabalhos infantis. Daqueles com os dedos nas tintas. - ela repete - Um
seu e um do Luca. Dei um de cada pra ela verificar.
Ela sabe.
Aperto os lábios e fecho os olhos.
Gêmeos não tem a mesma digital.
O único jeito da Fernanda ter descoberto que eu tenho a digital do Tony é se
a impressão que ela tem como referência não fosse do Tony.
Mamãe trocou os trabalhos.
- Tony? - ela chama com uma sugestão que é clara demais para passar
despercebida.
Engulo em seco.
Tenho um sorriso curto porque eu não sei que loucura me acometeu para achar
que seria possível enganar uma mãe.
- Não acho que a gente deve processá-la, mãe. - falo devagar - Melhor deixar
as coisas como estão. A Fernanda pode decidir se defender procurando mais provas
o que pode… nos incomodar ainda mais. - ela faz muito silêncio e sei que está me
entendendo.
- Melhor deixar para lá e seguir?
Assinto, mesmo que ela não esteja no quarto comigo.
- Melhor deixar pra lá.
- Tudo bem. Vou dizer ao seu pai para cancelar com o advogado.
- Obrigado. E… mãe?
- Filho? - ela não me chama de Tony. Quase nunca me chama de Tony.
- Eu te amo. - murmuro.
Ela fica quieta por um instante e tenho certeza que está sorrindo.
- Eu sei, meu filho. E eu também te amo demais.
**********************
México?
Um dos meus amigos da faculdade levou a esposa pro México na Lua de Mel e
parece que gostou.
Ou talvez Canadá?
Argentina podia ser bom.
Uruguai.
Ou algum lugar bem longe, tipo Índia.
- E o Egito? - pergunto.
- Pode ser.
- A gente pode colocar uma semana a mais e ir pro Marrocos também. Dizem que
conhecer o deserto é uma experiência bem única.
- Pode ser.
- Ou de repente, a gente fica mais perto. Vai pra praia em Fernando de
Noronha? A gente gosta de praia. E trilha. Vai ser tipo uma segunda Lua de Mel.
Gabi sorri e acena.
Mas só diz:
- Pode ser.
Fecho o laptop e deixo de volta na mesa.
Ela está colocando os saltos e parece estar pronta.
Aniversário do pai é o tipo de evento que não me apetece. Ele vai querer
fazer algum discurso e meu progenitor é o tipo de ser humano medíocre que não
consegue dizer quinze palavras em sequência sem ofender alguém. Mas ele tem
dinheiro e uma porção de amigos igualmente medíocres que, ao invés de julgar, só
aplaudem. O que, na minha opinião, é ainda pior.
Mas mamãe me pediu pra ir e Gabrielle se enfiou em um vestido azul marinho
com um decote baixo que me faz salivar de fome.
Minha mulher.
Casados há três meses. Estou tão acostumado com minha aliança que já até
esqueci que talvez um dia tenha que tirá-la.
Paramos de conversar sobre O Dia.
O dia do adeus.
O dia do acabou.
O dia do Tony.
Paramos de falar sobre ele e passamos a fingir que ele não existia.
Meu irmão não ligou. Nós também não.
Ela me garantiu que ele estava bem e a salvo, acho que os dois se falavam
ainda.
Mas nós paramos de conversar sobre O Dia.
No começo eu precisava evitar o assunto ativamente.
Só que as semanas trouxeram a rotina e eu… esqueci. Gabrielle era minha
mulher e quanto mais semanas se passavam, mais eu acreditava que O Dia do Tony
seria apenas o dia que ele ia voltar e descobrir que seria um cara divorciado.
Ela me amava.
Eu sei que amava.
Me amava quando me abraçava enquanto eu guardava as compras.
Me amava quando fazia cafuné nos meus cabelos até eu pegar no sono.
Me amava quando fazia amor comigo.
Me amava quando sorria para minhas brincadeiras idiotas.
Me amava quando ralhava para que eu não provocasse tanto meu pai.
Me amava.
O Tony ia voltar e ia descobrir que a vida que ele deixou para trás não ficou
congelada no tempo esperando por ele.
E, enquanto isso, eu planejava o meu Natal.
- E que tal a Rússia? - sugiro - Como será que os russos comemoram o Natal?
- Provavelmente em janeiro. - responde, procurando a chave na bolsa - Já que
são Ortodoxos.
- Hm. Então não serve.
- É. - sorri, mas não tem vida no seu sorriso - Não serve.
Já estamos no carro e no caminho quando eu desisto de dar sugestões.
- Você prefere ficar em casa no Natal? Eu imaginei que você ia querer viajar
porque passar o Natal com o meu pai…
- A gente pode ficar em casa. - decide.
Silêncio.
Gabi fica retorcendo os próprios dedos.
Eu fico retorcendo suas palavras.
- Você não quer fazer planos para o Natal. - murmuro, por fim - Não comigo.
- Luca.
Parece que ela vai dizer mais alguma coisa, mas não diz.
- O Tony pode voltar. - compreendo - E você não quer fazer planos para o
Natal porque pode ser que ele volte.
Ela não responde.
Nunca responde quando eu falo dele.
Sua lealdade ao seu melhor amigo é realmente algo digno de nota. Mesmo depois
de meses sendo deixada a sós, ainda é fiel a uma amizade que eu, pra ser sincero,
nem acho que é recíproca.
- Nos fins de semana a gente vai pra praia surfar. A gente vai pro cinema.
Mas você nunca faz planos com mais de uma semana de antecedência. A gente não
consegue ir ao teatro ou ver um show. Não posso planejar uma viagem… porque o
Tony pode voltar.
- Eu sei que não é ideal e se você preferir…
- Gabrielle, eu juro por Deus, se você me disser que eu posso ir embora se eu
quiser…
- Mas pode!
Eu agarro o volante com força e acelero pelas pistas escuras.
- Sério? Esse é o seu argumento toda vez?
- Você não é um prisioneiro, Luca!
- Eu não aguento mais! - estou gargalhando. Estou furioso, mas estou
gargalhando - Não aguento mais! Não aguento mais ser perseguido pelo que vai
acontecer quando o Tony voltar. O Tony não volta porque não dá a mínima pra você!
E nem pra mim. - acrescento baixinho - E eu to apaixonado, querendo passar o
Natal com a mulher que eu amo e… você faz isso comigo! Eu não entendo! Você não
faz a menor ideia de como…
- Como dói? - rosna - Acha que eu não sei? Acha que eu estava planejando me
apaixonar por você? Eu aceitei casar com o Tony porque ele é meu amigo e
precisava de mim. A parte do acabar casando com o cara por quem eu fui apaixonada
por anos e descobrir que ele gosta de mim de volta não estava nos planos.
- Você diz isso como se fosse algo ruim!
- Eu também não aguento mais discutir isso, Luca! Eu também preferia que
fosse simples!
- Mas é! Gabrielle, complicado seria se você não me amasse. Está dizendo que
não me ama?
- Estou dizendo que não é simples como você imagina. Você não sabe o que o
Tony está… - ela morde os lábios e parece que vai chorar. Mas não chora. Respira
fundo - Eu queria muito fazer isso, Luca. Te dizer que "sim" e ir embora para
alguma praia esquecida por Deus. Passar o resto da vida surfando mal e assistindo
filmes idiotas. Fazer amor em um dia de chuva e ficar conversando embaixo do
cobertor. Mas… mas que tipo de pessoa eu seria se desse as costas para o Tony?
- Ele deu as costas para você!
- Você não sabe do que está falando! Eu não posso, Luca! Eu não posso
abandonar um amigo em um momento como esse. Ele precisa de mim e eu queria muito…
Eu… - respira fundo - Eu te quero demais! E eu queria tanto que fosse simples
como você acha que é! Mas eu não posso ser a pessoa que abandona um amigo. Eu não
sou essa pessoa.
- Por que não me diz o que está acontecendo, então?
- EU QUERO! Eu queria não ter integridade, Zummo. Eu queria te dizer tudo e
ir embora com você e ligar o foda-se. Eu queria! Mas não posso. Não consigo. Eu
nunca ia conseguir conviver com minha consciência. O Tony nunca te contou isso e
não cabe a mim contar. E eu não posso abandoná-lo. E eu sei que isso é
desagradável e eu sei que…
- Gabi, para. - interrompo - Isso já foi longe demais. Não estamos falando de
semanas, estamos falando de meses.
Estaciono na casa dos meus pais. Já tem carros espalhados em todos os
lugares, mas os convidados já devem estar lá dentro. Seguro a mão de Gabi no
escuro.
- Você é uma pessoa boa e decente. - digo - Mas isso já foi longe demais.
Agora, são só umas férias de Natal. Mas e se quisermos mudar de casa? Ter filhos?
Eu não quero passar o resto da minha vida esperando o Tony. Você precisa decidir.
Ou está comigo, ou está com ele.
- E preciso decidir agora?
Sinto meu coração bater pesado porque tenho medo da sua resposta.
Mas esse é um momento de lucidez que eu dificilmente teria, principalmente
quando sinto seu perfume. E a razão é demais para ignorar.
- Isso não é justo com nenhum de nós dois. Se você me ama o suficiente, eu
espero por você. Mas se não ama, Gabi… Se o plano ainda é voltar pro Tony… Você
precisa me deixar ir.
Silêncio.
Um silêncio que dói e se faz sentir.
Ela abre a fecha a boca como se tivesse tantos pensamentos que precisam ser
ditos e tempo nenhum para dizê-los.
- Luca… será que a gente pode só sobreviver essa festa de aniversário? E
conversar quando chegar em casa? Por favor?
Eu assinto e ela desce do carro.
Atravessa o estacionamento como se fugisse de mim.
Respiro fundo e desço do carro.
Estou apertando os olhos e tentando entender por que caralho inventei de
começar essa discussão agora quando escuto uma voz familiar atrás de mim.
Uma voz muito familiar porque é minha voz.
- Luca?
Ali está ele.
Depois de todo esse tempo.
Usando uma camisa vinho e calcas sociais. Minha altura, meus olhos, meu
cabelo.
Está usando um corte diferente e a barba está feita.
Mas é quase meu reflexo.
- Tony? - a palavra saiu entre a descrença e a angústia.
Ele sorri.
Tem um sorriso imenso e acolhedor.
- Voltei, maninho. - dá de ombros com as mãos enfiadas nos bolsos - Está
livre agora. Já pode ir.
19 – No altar, de novo
Ah, mas nem fodendo.
- É o quê?
Eu amo meu irmão. Mas às vezes é normal a gente querer que alguém que a gente
ama vá tomar no cu.
- Luca…
- Você liga pra mim no dia do seu casamento, diz "vai lá casar por mim, por
favor" e DESAPARECE, Antônio, por TRÊS MESES, e depois me vem com "obrigado, pode
ir"? Nem fodendo!
- Luc…
- NEM FODENDO, irmãozinho. Você me deve uma palestra de oito horas de
explicações detalhadas, com meia hora aberto a perguntas no final.
- LUCA! - ele olha ao redor em pânico e me arrasta para uma parte mais
escondida do quintal - Você está certo! Eu te devo um milhão de explicações e
respostas! E vou te dar isso tudo! Te devo um obrigado e um pedido de desculpas
muito mais apropriado do que qualquer coisa que posso fazer em quinze segundos.
- Ótimo, estou esperando. Pode começar!
- Luca, por favor. Se alguém nos vir aqui… Depois do aniversário do pai?
Espera por mim lá em casa e eu te conto tudo que quiser. Por favor?
- Eu já to bem de saco cheio de te fazer favor, sabia? - meu rugido é furioso
mas ele tem um sorriso calmo.
Calmo porque eu e o Antônio somos irmãos do tipo que compartilhou um útero.
Eu amo aquele idiota mais que quase qualquer coisa na vida e sei que ele me
ama também.
Respiro fundo.
- Se a situação fosse inversa - ele diz - eu faria o mesmo por você.
- É, imbecil, a diferença é que eu nunca te pedi pra casar no meu lugar.
- Isso é porque quando eu te peço pra casar com alguém, a mulher no altar é a
Gabi. Se você me pedisse pra casar com a Fernanda, eu te jogava de um penhasco. -
acena.
Mordo minha fúria porque seu comentário foi pertinente.
Ele ainda tem um meio sorriso no rosto.
- Senti sua falta! - diz, por fim.
Imbecil.
- Idiota. - resmungo e o puxo pelo ombro pra um abraço.
Amor fraterno é diferente de qualquer outra coisa. Não é como um amor
familiar comum, não é como o que você sente pelos seus pais.
É um vínculo único. Um negócio que não dá pra explicar direito. Só dá pra
sentir.
- Me desculpa. - ele diz - Eu acho que nunca vou conseguir te agradecer
direito.
- Nunca vai conseguir me agradecer direito. - respondo e ele ri - Mas vai
você me esperar em casa. Eu termino aqui.
Tony arregala os olhos em legítima confusão.
- Quer passar a noite com o papai e os amigos dele? Voluntariamente?
Enrugo a testa.
Não é no papai que estou pensando.
É nela.
Eu pedi pra ela escolher e sua resposta foi "depois a gente conversa".
Eu queria ficar porque queria ficar com ela.
Mas, ao mesmo tempo, o que vai acontecer quando eu cruzar aquelas portas?
Gabrielle vai passar a noite inteira sem conseguir me olhar nos olhos porque sabe
que, quando finalmente tiver que me dar uma resposta, ela vai ser do tipo que
destrói meu coração e minha esperanças. Principalmente agora que Tony está de
volta.
- Tá… - assinto - Diz pra Gabi que…
- Eu explico pra ela. Não se preocupa.
Tem algo na expressão do meu irmão que é…
Parece um pouco de alívio, mas muito pouco.
Ele está pálido e cansado. Como se tivesse uma dor muito profunda que vai
precisar esconder. Vergonha misturada com angústia.
Tenta disfarçar tudo isso, mas não tem muito sucesso.
- Você tá legal?
- Mais tarde. - pede - Lá em casa. Espera por mim? Eu te explico tudo. - o
sorriso discreto e tímido.
Concordo com um gesto lento.
Ele me dá um meio abraço e dois tapinhas no ombro.
- Ela te ama. - eu digo. Não sei por quê. Mas digo.
Seu sorriso aumenta. Parece ter um pouco mais de vida.
- A Gabi é…
- … sua melhor amiga? - recito, exausto de ouvir aquela afirmação.
Ele acena por um segundo como se procurasse as palavras:
- Existem vários tipos de amigos, não é? Tem os colegas, os conhecidos, os
amigos das horas boas, os amigos íntimos… e tem… Tem amigos que são família. -
gesticula - Aquela pessoa do mundo que você sabe que não importa quão fodida seja
a situação, você pode contar com ela. Você pode ligar pra ela do meio da
tempestade com um pedido impossível e ela vai vir te salvar. A Gabi é essa amiga
pra mim. Ela é minha amiga da tempestade. Ela é família.
- Você pediu pra ela se casar pra te ajudar e ela aceitou.
- É.
- Eu não entendo, sabe? Não entendo como ela pode se colocar nessa situação
por você!
Tony tem um olhar curioso, quase divertido.
- Não entende? Luca… foi exatamente o que você fez por mim.
- É, mas…
- Fez porque me ama. Porque é família. A Gabi também.
Ótimo.
Se já não bastasse ter um caso com minha cunhada agora parece que estou tendo
um caso com uma meia-irmã. É melhor eu ir embora antes que o Tony me coloque em
mais algum subgênero de pornô.
- Acho que eu acabei de ter os piores meses da minha vida, Luca. A Gabi me
salvou. Você me salvou. E se algum dia precisarem de mim… estou aqui! - ele
promete, sério, antes de se interromper preocupado - Menos pra casar com a
Fernanda. Por favor, não me pede isso.
- É? Eu tive que fazer uma entrevista com a Fernanda por você. - tenho um
sorriso psicopata e ele fica pálido ao perceber que tinha esquecido desse
compromisso - Você me deve uns três casamentos, Antônio.
Ou um divórcio.
- Tá. - ele ri, rendido. Olha ao redor - Eu acho que preciso… - aponta para a
porta de entrada.
- Vai.
- Mais tarde? Lá em casa?
Eu aceno, concordando.
Estou quase de costas.
- Luca?
- Hm?
Ele tem uma expressão frágil. Abre a boca como se fosse se desculpar ou
agradecer, como se fosse admitir um fracasso ou celebrar uma vitória. Como se
fosse dizer que me ama e que sente muito.
Eu ergo a mão porque sei exatamente o que ele quer dizer e apesar de minhas
investidas eu sei que dificilmente há palavras.
- Eu sei. - prometo.
Ele sorri e se vai.
Eu sei.
Entro no carro de volta e agarro o volante com as duas mãos.
Minha respiração está pesada.
O pior adeus.
Parece que estou no altar de novo. Esperando uma Fernanda que não aparece.
Rejeição é uma merda.
Rejeição me destruiu naquele dia.
Me fez fugir da família e de responsabilidades.
Estive me escondendo e me reconstruindo.
E foi só a Fernanda.
O que aconteceria comigo quando a rejeição viesse da Gabi?
Quando ela finalmente respondesse minha pergunta e dissesse que eu fui seu
marido por algumas semanas, mas o Tony era sua família há anos.
Ela não vai se divorciar dele.
E ele voltou.
É o marido dela.
Não tem lugar pra mim.
Estou sozinho no altar esperando por uma mulher que não vem.
De novo.
É mais ou menos aí que percebo que não importa o que o Tony me diga, não vai
fazer com que eu me sinta melhor.
Ele pode ser um espião com uma vida dupla e uma família em outro hemisfério e
ainda assim… eu não vou conseguir tirar os olhos da mulher dele.
Vou ouvir a palestra de oito horas e a única pergunta que eu vou ter, ao
final, ainda vai ser "E aí Gabi? Eu ou ele?". E para essa pergunta, apesar de
todos os meus desejos e esperanças, eu já sei a resposta.
Ouvi-la em voz alta vai me fazer bem nenhum.
Dou a partida no carro e sigo pelas ruas ao pôr-do-sol, indo pra casa.
Mas não pra do Tony.
Pra minha.
Acelerando pela pista, no escuro, perdido em pensamentos.
Até sentir o cheiro do mar.
**********************
Gabi
**********************
Gabi
**********************
Luca
Qual é o plano, Luca?
Olha, aqui entre nós, eu vou ser bem sincero contigo: o plano não existe.
Eu queria vir aqui pra…
Sei lá.
Eu queria ver a Gabi, tá bem?
A coisa toda da massagem, do dedo, do enlouquecer ela… isso tudo se chama
"improviso de um cara sem noção".
E é isso.
Agora eu to aqui.
Enfiado em um salão de jantar bem iluminado, com uma dezena de mesas servindo
o buffet mais sofisticado que eu já vi na vida. E olha que eu sou filho da minha
mãe e aquela mulher entende de coisa chique. Mas esse jantar é de fazer
milionário de berço de ouro dizer "Nossa Senhora, pra quê isso?"
E Nossa Senhora nem ia saber o que responder, porque Gabrielle me apareceu
nessa porcaria usando um vestido branco de tecido muito fino e costas nuas, que
faz ela parecer uma daquelas estátuas gregas, sabe? Que não tá pelada, mas tá
quase. Nossa Senhora ia ficar sem palavras, assim como eu.
Talvez Nossa Senhora babasse também, mas por enquanto só posso falar por mim.
Fecho a boca e tento manter meu queixo bem duro e resoluto.
Meu pai passa boa parte da noite me evitando e por mim tá ótimo.
Tony passa boa parte da noite olhando pro celular ou seguindo o pai como um
assistente.
Gabrielle passa boa parte da noite me provocando mesmo que não tenha qualquer
intenção de fazer isso.
Fernanda passa boa parte da noite me encarando a distância e tentando se
aproximar.
E eu…
Eu passo boa parte da noite tentando entender qual foi meu plano.
Ainda sinto o calor nos meus dedos, onde os enfiei nela. Coça como um membro
fantasma.
Gabrielle inteira é um pedaço de mim que foi arrancada.
- Não vai conseguir me evitar a noite toda. - Fernanda suspira.
- Talvez. Mas eu posso tentar! - pisco um olho e já estou longe antes que ela
decida o que dizer.
- Está se divertindo? - mamãe pega meu braço no meio de minha fuga e eu lhe
dou um beijo na bochecha.
- Nem um pouco. Mas estou feliz por vê-la.
Ela aperta meu antebraço de um jeito bem materno, como faria se eu tivesse 12
anos de idade e tivesse acabado de me machucar.
Eu sou duas ou três vezes o tamanho dela, mas basta que me tome pelo braço
para fazer com que eu me sinta pequeno e miúdo. Parece um superpoder das mães,
essa habilidade de se fazer gigante. Ela nos guia de volta até sua mesa. Papai
está sentado ali entre alguns amigos, Tony e - a razão pela qual eu fico sem
reclamar - a mulher dele.
Mamãe me senta do lado de Gabi como se fosse de propósito antes de pegar
outra cadeira para si. O pai acena a cabeça para mim como se educação o obrigasse
a agir mas teimosia o impedisse e, na briga entra as duas coisas, sobrou o aceno.
Eu não aceno de volta porque sou mais teimoso e menos educado.
Viro o resto da minha bebida e peço outra pro garçom porque mamãe começou a
colocar um monte de coisas diante de mim em um prato, e se ela vai me obrigar a
comer eu preciso aumentar a dose de álcool porque não acho que vai me fazer bem
ficar sóbrio ali.
- A empresa da Gabi passou por uma rodada incrível de investimentos. - ela
conta.
Não é novidade pra mim.
Fui eu que sentei com um monte de gente para fazer aquilo acontecer.
- Parabéns. - enuncio com um sorriso.
Ela sorri de volta. Discreta. Quase envergonhada. O topo das bochechas cora e
eu não sei se é maquiagem ou natureza.
Meu Deus, como ela é linda.
E tem um perfume capaz de endoidar um homem.
Helena de Tróia devia cheirar como Gabrielle cheira agora. E aí a gente até
entende o Menelau ter declarado guerra. Eu quero dar uns tapas no Tony e olha que
ele é meu irmão, Páris era só um desconhecido.
Quando a gente tá muito apaixonado e cheio de tesão é muito difícil não ficar
sonhando acordado o tempo inteiro. Eu preciso me lembrar de focar na conversa.
Mas os mamilos da Gabi começaram a endurecer e eu tenho certeza que consigo vê-
los apontar no vestido. Só um pouquinho, mas suficiente pra me roubar a sanidade.
Passo a mão no rosto como se tentasse acordar. Como se tentasse não morrer.
O dedo não foi suficiente.
Eu queria morder ela inteira.
- Não vai funcionar assim, Tony. Isso está errado. – meu pai resmunga quando
Tony tenta explicar pela terceira vez qual seu plano para o primeiro trimestre do
ano subsequente.
Estou aqui há poucas horas e já percebi que essa suposta aposentadoria do pai
não é incondicional. E muitas das condições parecem estar vinculadas ao Tony.
Eu até queria defender o meu irmão, o problema é que eu não concordo com o
plano dele. O pai está certo.
Mas eu prefiro ficar em silêncio do que abrir minha boca para concordar com o
Frederico essa noite. Então eu deixo os dois discutirem.
E é exatamente isso que eles fazem.
Discutem.
Sobre a empresa, o plano e o trimestre.
Sobre família e responsabilidades.
Sobre um time de futebol.
E é patético porque sequer são discussões interessantes mas, ao invés disso,
apenas Tony tentando concordar com nosso pai enquanto o outro faz um esforço
imenso para continuar discordando. Mesmo que isso signifique discordar de si
mesmo.
- … e aí é importante pra um homem focar no trabalho, Antônio!
- Eu sei! Eu estou vivendo por esse trabalho, pai. Não faço outra coisa que
não seja…
- E está abandonando sua família?
- O quê? Não, eu…
- Não pode abandonar sua família. É mais importante que qualquer outra coisa.
Um homem precisa ter filhos, colocá-los no mundo e prepará-los para serem homens
também!
- E se nascer uma mulher? - eu pergunto porque o babaca do meu irmão estava
prestes a concordar - Aí faz a cirurgia de redesignação sexual ainda no berço?
Papai olha pra mim como se achasse um luxo me ter sido permitido respirar no
mesmo ambiente que ele, quem dirá falar.
- Você entendeu o que eu quis dizer.
- Sim, ser um homem é muito importante. - me esforço pra não revirar os olhos
- E sendo um homem é importante que todos saibam que você está mesmo se
esforçando para continuar sendo um homem.
- Você não sabe nada sobre isso. Você não é um homem. - papai resmunga.
- Não sou um homem? Eu tenho um pinto que eu uso de vez em quando. Não sabia
que tinha outro requisito fora esse.
- Luca! - ele rosna.
- Que foi? - me defendo - Eu disse "pinto". Nem usei uma das palavras feias.
- E agora a gente devia te agradecer?
- Eu acho que sim. Se soubesse o autocontrole que me custou pra dizer a
palavra "pinto".
- Luca… - mamãe pede. E aí só porque foi a mãe quem pediu, eu fico quieto.
Mas meu silêncio não vai durar. Eu sei disso, ela sabe disso. Nossa Senhora, lá
do Céu, sabe disso.
Pego alguma coisa que tinha no prato e coloco na boca.
Entre querer dizer umas coisas pro pai e dar umas mordidas na Gabi, é melhor
mesmo eu manter minha boca ocupada.
O problema é que ela está sentada bem ali.
Bem ali. Do meu lado. Sinto seu calor queimando minha pele.
Papai está dizendo pro Tony como um homem de família é respeitado em todos os
lugares, em oposição a um homem da vida.
Eu não sei o que ele quer dizer com isso mas não faz diferença: é de mim que
ele está falando mal. Porque eu tentei ser um homem de família, não deu certo e
eu me escondi para ser um homem da vida. Um hippie vivendo da minha arte na
praia. E isso era calúnia e desgraça moral para um pai como nenhuma outra que
jamais existiu.
Por mim, está ótimo. Amo minha arte e viver na praia me dá um bronzeado do
caralho.
- Por que não tira a Gabi pra dançar? - mamãe me pergunta - A coitada esteve
aqui, de castigo, ouvindo esses dois discutirem a noite inteira.
Bebo um gole de champanhe e encaro a mulher do meu lado. Ela tem uma
expressão bem típica de quem preferia ser enfiada em um espeto do que dançar
comigo e isso faz com que meu sorriso seja ainda maior do que planejei.
- Uma honra! - é o que digo. Já me coloquei de pé e lhe ofereci a mão.
Tony está tão distraído tentando não discutir com papai que nota nada disso.
Amo demais o meu irmão e teria pena dele. Mas idiotice auto infligida é o
tipo de comorbidade que não pede pena. Pede uns tapas.
Gabrielle aceita minha mão, mas tenta andar a oito metros de distância de
mim. Não consegue porque não temos braços de quatro metros, mas era bem isso
mesmo que ela queria.
Assim que chego no meio do salão eu a puxo pra perto. Nem sou discreto porque
não to nem aí. Eu a puxo com gosto mesmo. Colo seu corpo no meu, agarro sua
cintura inteira no meu braço. Deixo-a tão perto que consigo sentir meu coração
batendo na sua pele. Meu plano era sorrir, piscar um olho e provocá-la com alguma
piada de "pra que toda essa distância".
O que fode o ser humano é ser atingido pelo feitiço que lançou.
"Karma" é como algumas pessoas chamam.
Justiça celestial do universo.
Eu chamo de "fodeu" porque é normalmente assim que me sinto.
E aí assim que eu tenho Gabrielle grudada em mim porque era parte do plano,
eu percebo que fodeu e eu esqueci o plano.
O coração dela bate no meu peito.
E ela tem um cheiro muito bom.
Puta que me pariu, se colocassem o cheiro da Gabrielle em um frasquinho
servia de feromônio para masturbação violenta.
E é isso que mais te destrói, não é? Porque quando você está tenso, a solução
pra se acalmar é tentar respirar fundo. Mas respirar fundo como, Jesus Cristo?
Inalar o cheiro de Gabi e esporrar nas calcas vai me ajudar de que modo?
Eu não sei que música tá tocando e não me importo. Estou nos movimentando
para um lado e pro outro, sem qualquer compromisso. Lento.
Minha cabeça pesa enquanto ela tenta manter o rosto erguido, teimosa. Isso
deixa meu nariz perto demais do dela. Apoio minha testa na sua e fecho os olhos.
É, eu sei que é inapropriado pra caralho. Sou o cunhado dela e blá blá blá…
Mas, queridos, se já fodeu mesmo, então que se foda, sabe?
Eu to absolutamente a deriva.
Me afundando em uma hipnose absoluta do momento.
Você sabe que uma mulher é tua dona quando você perde toda a dignidade. E é
assim que eu estou ali, nos braços dela, de olhos fechados: sem dignidade.
A sua mercê.
Se ela estalar os dedos e disser "me chupa", eu fico de joelhos no mesmo
segundo pra perguntar se pode ser agora mesmo, por favor.
- Luca, eu acho melhor você se afastar um pouco. - ela pede, mas não se
afasta.
- E eu acho melhor você pedir o divórcio, mas fazer o quê…
- Você foi embora.
- Você queria que eu ficasse?
- E se quisesse?
- Não queria. - balanço a cabeça.
- E sabe disso como?
- Você queria o Tony.
- Você não faz a menor ideia do que eu quero.
- Eu vim até aqui pra…
- … me enlouquecer. Eu te escutei.
- Foi só uma piada.
- Esse é justamente o problema com você, Luca. Tudo é uma piada. Nada é
sério. Nada é um compromisso.
- Você quer mesmo conversar comigo sobre compromissos?
- Eu me comprometi com seu irmão.
- Gabrielle, eu não aguento mais te ouvir dizer essas palavras. Juro por
Deus.
- Não aguenta porque não entende! Porque não entende o que é se comprometer
com alguém de um modo genuinamente…
- Você não acredita nisso! O Antônio é uma avelã!
- Uma avelã? - torce o nariz sem entender.
- É. Um negócio qualquer que ninguém sabe direito o que é, mas às vezes tá
lá.
- Eu sei o que é uma avelã.
- Ótimo pra você. Mas ninguém liga. Não é um negócio que marca presença,
sabe?
- Você é viciado em Nutella!
- O que isso tem a ver?
- É creme de avelã.
- Nutella é chocolate.
- É avelã. O Tony é Nutella.
- Não! Escolhe outra noz, então!
- Avelã é uma fruta.
- Tenho certeza que é uma noz.
- Noz é fruta também.
- Escolhe alguma outra fruta, então. - rosno.
- Eu não! Você que começou com esse argumento idiota, agora termine.
Mordo meu lábio. Como essa mulher consegue me deixar excitado na mesma medida
que me causa enxaqueca?
- Diz alguma coisa pra me fazer ir embora. - peço - Diz qualquer coisa. Você
casou com meu irmão e eu acho que vocês dois estão loucos com essa farsa
estúpida, mas é isso que decidiu fazer. Então, eu preciso que você me liberte.
Diz alguma coisa pra me fazer ir embora.
Ela ri, triste e parece saber exatamente o que eu preciso ouvir.
- Eu te amo. - suspira - Ainda te amo. Sempre te amei. Mesmo quando você era
um zumbi imbecil apaixonado pela Fernanda, eu te defendia dos comentários. Te
defendia quando seu pai falava algum dos milhões de imbecilidades que ele fala,
até começar a ficar com o Tony e ele me pedir para ser mais discreta. Eu te amava
sem camisa nas festas da faculdade, e até de madrugada, na Zummo, rascunhando
carros-modelo sozinho no escuro quando você achava que ninguém estava olhando
porque, no fundo, você ama demais aquela empresa. Eu te amava me ensinando a
surfar e com ciúmes do instrutor. Eu te amava quando você foi embora depois da
Fernanda e pensava em como seria ter um homem assim pra mim. Eu te amava quando
casei com você achando que tinha casado com outra pessoa e te amava quando você
me beijou e fez amor comigo pela primeira vez. E eu te amava há algumas semanas
também, quando você foi embora, de novo. E te amo agora. Mas de que me serve,
Luca? De que me serve, se você nunca sequer me percebeu? E nem vem me dizer que
me achava gostosa que isso não é a mesma coisa. E aí porque dediquei três meses a
um amigo você acha que é justo me tratar do jeito que quiser? Ir embora sem ouvir
nenhum de nós? Sem se despedir? De que me serve te amar? De nada. Agora, pode ir.
Vai embora, de novo. Vai.
Acho que parei de dançar.
Não tenho certeza.
Mas tenho certeza que peguei seu rosto nas mãos e a beijei.
Eu estava com saudades dela.
Tanta saudade.
Saudade demais.
E eu a amo mais que…
Eu a beijei.
Por três segundos inteiros.
Até ela me empurrar com pânico nos olhos.
- Luca. - murmura, tomada pelo mais absoluto pavor.
Engulo em seco.
Não existe qualquer pessoa naquele salão que não esteja olhando para nós.
22 – Se tiver que doer
- Me dá um tapa. - murmuro.
Gabrielle é a personificação do pânico.
Absoluto horror.
Nunca vi uma mulher tão assustada depois de um beijo. Nem depois daquele
primeiro quando ela percebeu que eu não era o cara com quem ela decidiu casar.
- O quê? - gagueja, baixinho.
- Me dá um tapa. Agora. Rápido. - sussurro, depressa.
Ela obedece.
Estala os dedos na minha bochecha, respira fundo com os lábios ainda trêmulos
e vai embora.
Não sei se ela entendeu meu plano, mas não poupou esforços. Ela desceu a mão
na minha cara com força como se achasse que eu merecesse mesmo aquela surra. Tudo
bem, pelo menos serviu para manter as aparências de um jeito verídico.
Metade do salão ainda está me encarando. Dou de ombros com um sorriso sacana
e digo:
- Acho que ela não gostou do meu presente de natal.
- Luca. - papai rosna como se fosse a voz de Deus, vindo dos Céus, para
anunciar que adiantou o Dilúvio - O que pensa que está fazendo?
- Ah, foi só uma brincadeira, pai. A Gabi é família, eu tava só zoando. Mas
acho que ela não achou graça.
- Brincadeira? Beijar a esposa do seu irmão?
"Beijar"…
Pai, se o senhor soubesse…
- Você é um irresponsável. Vai pedir desculpas a Gabi! E ao seu irmão!
- Tony, me perdoa. - mostro dentes demais no meu sorriso - Eu não sei mesmo o
que passou pela minha cabeça pra achar que estava tudo bem em ficar nessa
situação com a esposa do meu irmão. Você nunca me colocaria em uma situação assim
e eu deveria retribuir a gentileza. - mordo as palavras.
Antônio abaixa os olhos e não consegue dizer as palavras muito alto:
- Tá tudo bem, Luca. Ele tava só brincando, pai. Você conhece o Luca.
- É, você conhece o Luca. - repito - Eu vou atrás da Gabi pedir desculpas
para ela também, tá?
Aponto na direção da saída, mas a multidão ainda está em silêncio
acompanhando meus movimentos:
- Vocês já podem voltar ao que estavam fazendo antes. Se eu beijar minha
cunhada de novo não vai ser no meio do salão, não. Brincadeira, paizão! - pisco
um olho mantendo o sorriso - Só pra descontrair. Não sei por que toda essa gente
está preocupada com a vida alheia. O Francisco largou até o prato, nem parece que
ele tá comendo a babá quando a esposa vai pra academia. E Lurdinha, todo mundo
sabe que você já está na oitava cirurgia plástica. Não é da conta de ninguém,
viu, meu amor? Se te faz bem, faz mais oito, mas para de agir como se ninguém
fosse capaz de notar porque tá todo mundo te chamando de Cassandra pelas costas.
Paola morde uma risada porque metade daquelas coisas foi ela quem me contou.
E a outra metade também.
- Podem voltar a discutir suas próprias imoralidades que eu vou lá resolver a
minha.
Meu pai me deu as costas em algum ponto ao longo do discurso e acho que foi
descobrir se tem como exigir que a segurança do resort me expulse.
Eu estou pagando, assim como ele, então duvido que eu seja convidado a me
retirar.
Tony deu pela ausência de papai tarde demais e se colocou a segui-lo como o
bom golden retriever que é.
Eu sempre amei meu irmão mas nunca o admirei.
E hoje acho que perdi o pouco do respeito que eu ainda tinha por ele.
Atravesso a porta e dou de cara com Marco que aponta em uma direção
específica.
- Ela foi pra lá? - pergunto.
- Não. Acho que ela deve ter ido pro quarto. Mulheres gostam de se esconder
no quarto quando estão tristes, eu acho. Mas homens devem gostar também. É uma
coisa de todo mundo, na verdade. Eu falei "mulheres" não por machismo, senhor
Zummo, mas só por hábito. É uma dessas coisas que a gente diz quando…
- Marco!
- Ela foi pro quarto, mas o senhor espera ali e eu já trago ela.
- Eu posso ir atrás dela.
Ele limpa a garganta sem dizer muitas palavras.
Aqui e ali ainda tem alguém me observando e, mais que tudo, a dois metros de
distância, há uma Fernanda querendo saber exatamente qual caminho eu vou tomar.
Levei o tapa e a humilhação para ajudar a disfarçar as coisas. Se eu seguir
para o quarto de Gabi e lá ficar pelas próximas duas horas, ela vai ter um bom
argumento esperando por mim quando eu sair.
Se o objetivo é ser discreto… É mais fácil ser discreto no business center do
resort do que no quarto da mulher que eu acabei de beijar.
Assinto e vou para a biblioteca.
Fernanda me segue.
Claro que me segue.
**********************
- Por quanto tempo vocês vão tentar esconder isso? - ela fecha a porta,
deixando nós dois ali dentro.
- Boa noite, Fernanda. Você quer alguma coisa? Café, suco, veneno?
- Você e seu irmão estão comendo a Gabi. Os dois. Ao mesmo tempo. E parecem
estar em paz com isso.
- O quê? - torço o nariz. Eu achei que ela já tinha entendido a história a
essa altura, mas Deus preserve sua burrice.
- Olha, eu não ligo para poligamia e Deus sabe que a Gabrielle precisa de um
trato. Mas se o senhor e senhora Zummo ficarem sabendo que seus dois filhos estão
vivendo em pecado desse jeito. Acho que seu pai morre e sua mãe vai querer
morrer.
- Fê, ia ser tão legal se você realmente aprendesse a cuidar da sua própria
vida.
- Como funciona, Luca? Vocês trocam a cada quinze dias? O que acontece se ela
engravidar? Os dois assumem o filho?
- Não precisa nem ser de um jeito radical sabe? Começa devagar, tenta passar
uma semana sem se meter em coisa que não te interessa.
- Você me interessa.
- Fernanda, na boa. - esfrego os olhos - Você não pode, não pode, acreditar
que ainda tem alguma chance comigo. Você me largou NO ALTAR, depois de insistir
que eu gastasse UMA FORTUNA em uma festa de casamento, pra ficar com um dos meus
amigos mais íntimos. Você não pode estar sofrendo de uma alucinação tão maligna e
severa a ponto de achar que existe qualquer possibilidade de alguma coisa ainda
acontecer entre a gente.
- Alucinação? Luca… - ela sorri - Quando eu te conheci você passou a noite
toda falando sobre a Gabrielle. E essa era a história da minha vida na faculdade,
sabe? A Gabi! - encara o horizonte com teatralidade - A Gabi que era tão
simpática e inteligente e gostosa. A Gabi que era aceita em todos os programas e
tirava as melhores notas. Eu perdi a conta de quantos homens eu quis e fiquei sem
porque a bunda da Gabrielle era mais interessante do que eu. E aí você apareceu
e… Luca Zummo! - ela toca meu braço e ri - Você não faz ideia do tanto que a
Gabrielle te queria. Dava pena, de verdade. E aí eu percebi que… você também a
queria. Não é justo, sabe? Uma hora o universo precisava equilibrar as coisas.
Foi aí que eu percebi que eu era o que o universo precisava. Uma semana comigo e
você esqueceu até o nome dela. Uma semana. E aí agora você diz que "depois de
tudo que aconteceu…", Luca eu não acho que você vai me pedir em casamento de
novo. Não na primeira semana, pelo menos. - ri - Mas o sexo era bom. O sexo era
muito bom, isso você não pode negar. Então pode me chamar de louca, se quiser,
mas eu só estou aqui esperando a história se repetir. Uma hora você cansa de
esperar a Gabi e aí eu só preciso de uma semana para te fazer esquecê-la e, Luca…
algo me diz que dessa vez você vai querer que eu te ajude a esquecer.
Ela toca minha camisa. Meu peito.
Ela também tem um cheiro bom.
E apesar da Gabi ser uma delícia, eu nunca neguei que a Fê era gostosa.
Nunca neguei isso.
E ela não está errada: eu quis a Gabi antes e quem me conquistou foi ela. Era
realmente loucura que ela acreditasse que podia repetir o feito?
Ou a loucura na verdade era eu achar que ela jamais teria chances?
Respiro fundo.
É aí que sou invadido por um pensamento de paz. Um pensamento que muda tudo.
Seguro seus pulsos e a afasto de mim.
- Não vai acontecer de novo, Fê. A história não vai se repetir e eu te
agradeceria muito se você parasse de tentar. Em respeito a mim e a si mesma.
Tenha um pouco de dignidade, sabe?
- Não vai acontecer de novo? - ela brinca com as palavras, tem desdém na sua
voz e no seu sorriso.
- Não.
- E posso perguntar por que não?
- Porque eu amo a Gabi. - assinto e Fernanda congela - Eu tinha uma queda
horrível por ela, antes. Mas hoje eu a amo. E mesmo que não dê certo, mesmo que
eu não possa tê-la e mesmo que isso doa mais do que qualquer outra coisa na minha
vida já ousou doer… Ainda assim nada vai acontecer entre a gente.
- Por quê?
- Porque isso ia magoar a Gabi. - suspiro - E eu não consigo magoar a Gabi.
- Eu posso te ajudar a fazer ciúmes nela com…
- Você ouviu o que eu disse?
- Só estou sugerindo que…
- Pare. Tá? Só pare. Eu vou perdê-la. Vai doer e eu vou sobreviver. Mas não
vou machucar aquela mulher. Nunca vou machucar aquela mulher, porque saber que
ela está sofrendo por minha causa só ia fazer doer ainda mais. Então, por favor…
O barulho da porta se fechando atrai nossa atenção.
Olho de volta pra Fernanda.
Ela não viu quem era e eu também não.
Mas só tem uma pessoa que eu estava esperando.
Abandono Fernanda no meio da frase e Marco é a primeira pessoa que eu vejo
quando saio da biblioteca.
- O que aconteceu? - ele pergunta, parece contrariado.
- Era a Gabi?
- Olha, senhor Zummo. - ele esfrega as têmporas - Eu tenho tentado mesmo
gostar do senhor, mas já basta, está bem? A senhora Gabi é uma mulher incrível e
o senhor não para de fazer besteira.
- Marco! Era a Gabi?
- Era!
- Há quanto tempo ela…?
- Entrou quase na mesma hora que o senhor e… - Fernanda passa pela porta
atrás de mim e Marco engasga em cólera - Mas por São Judas das Causas Perdidas!
Eu desisto do senhor. O senhor não tem jeito! E olha que eu nunca desisto de
alguém! Até do meu primo que saía com essa moça que, olha senhor Zummo, eu não
gosto de julgar, mas essa…
- Marco! Pra onde ela foi?
Ele inspira fundo e eu temo que ele vá demorar mais quinze minutos para me
dar uma única resposta simples. Mas, ao invés disso, ele só dá de ombros:
- Saiu por aquela porta ali. Vai dar na praia.
Tudo bem.
Respiro fundo e atravesso a porta.
Já consigo vê-la a distância.
Sentada na areia, na penumbra.
O vento ondulando seu cabelo.
Curvada sobre si mesma em seu vestido branco de estátua grega.
"Acha que pode me tratar como quiser".
Fui embora sem te ouvir.
Sem me despedir.
Tudo bem, Gabi.
Nenhum de nós dois aguenta mais.
Acho que chegou a hora de fazer essas duas coisas.
**********************
Gabi
Pelo jeito como Luca olha pra mim na piscina naquela manhã, parece até que
alguém lhe prometeu um prêmio caso conseguisse me engolir em público sem ninguém
perceber.
Não voltei com ele pro seu quarto, na noite anterior. Mas hoje me enfiei no
biquini amarelo que ele adora e prendi o cabelo em um rabo de cavalo para ter
certeza que nada ia cobrir minha tatuagem nova.
Veio me enlouquecer, não é?
Eu também conheço essa brincadeira.
Um carnívoro faminto, escondendo os olhos nos óculos de sol para tentar
disfarçar o fato que está me seguindo, esquecendo-se que o movimento da cabeça
admite os pensamentos que ele tenta esconder.
- Respira fundo. - eu digo. Em parte para o Tony, em parte para mim mesma.
Ele tem aquele olhar exausto que eu já me acostumei a traduzir.
- O que aconteceu agora?
- Ele vai adiar a aposentadoria. Acabou de me dizer. Vai adiar em seis meses.
Seria um ano, mas não acho que a mãe aceitou.
- Tony…
- Mais seis meses, Gabi. Mais seis meses disso. - gesticula e sei que está se
referindo não ao nosso casamento falso mas às perseguições do pai - Ele sabe. -
sussurra - Sabe sobre mim. Sobre quem eu sou. Sobre o que eu sou. E assim que
sente o cheiro disso fica em pânico.
- Respira fundo. - digo, mais uma vez - Não é a primeira vez que você precisa
lidar com as loucuras do seu pai! Você é bom nisso, lembra?
Era bom nisso.
Depois da Giseli algo aconteceu com o Tony.
Algo o quebrou em algum lugar que não dava pra consertar.
Ele não tinha mais tanta paciência, tanto tato, tanta resiliência.
Tudo que ele tentava esconder estava bem a mostra na superfície e, ele estava
certo, seu pai não tardou a perceber.
- Eu só preciso que ele se aposente. - esfrega os olhos - Só preciso que se
mude pra longe. Só isso.
- Eu já te disse o que penso sobre isso. - dou de ombros.
Ele massageia a nuca encarando o chão.
- Não vou contar pra ele, Gabi. Não agora! Não depois de todo esse esforço!
- Quem liga pro esforço, Tony? Conta pra ele e se livra disso de uma vez.
- Depois de todo o trabalho que eu tive… que nós dois tivemos pra esconder?
- Meu amor, você não precisa se apegar a um erro só porque dedicou bastante
tempo pra cometê-lo. O que passou, passou. Você não vai conseguir viver assim pra
sempre!
- Não é pra sempre. É por seis meses.
É pra sempre.
Ou seria.
Porque agora eu prometi ao Luca que seriam meses, então é esse o tempo que o
Tony tem antes de me perder como boia de segurança.
Esfrego seus braços tentando lhe passar algum conforto.
Vai ter que passar o Natal longe de sua família.
Longe de seus filhos.
E pra quê?
Pra acalentar um pai inacalentável.
- Você devia pedir ajuda ao Luca. Ele parece saber lidar com seu pai muito
bem.
- O Luca? - ri com desdém.
- É. Ele tem aquela boca enorme e nenhum filtro, mas olha só: três meses com
ele e o seu pai não adiou a aposentadoria. Alguma coisa certa ele fez.
- Não é disso que estou falando.
- E do que então?
- Gabi… - ele esfrega os cabelos com violência - O Luca sabe.
Meu coração para de bater.
- Você contou pra ele? - finalmente contou pra ele.
- Não precisei. Olha só como ele está agindo! Primeiro, foi embora assim que
eu voltei, sem sequer falar comigo. - conta nos dedos - Chegou aqui pro Natal
cheio de discursos passivo-agressivos sobre como promessas de casamento não valem
de nada. Fez questão de chamar atenção de todo mundo para minhas tatuagens!
- Tony… - engulo em seco porque tenho alguma certeza que esse comportamento
passivo-agressivo foi muito mais dedicado a mim do que a ele - Acho que você pode
ter interpretado mal o que seu irmão estava dizendo.
- Ele disse pro pai que ele é homem porque tem "um pinto que usa de vez em
quando".
Eu preciso rir porque eu não sei de onde o Luca tira essas coisas.
- Você acha graça? - ralha.
- Tony, o Luca fala essas coisas! Eu não acho que foi uma crítica velada! Até
porque, você também usa o… - não consigo dizer a palavra porque estou rindo de
novo - E mesmo que não usasse ou não tivesse, ainda poderia ser homem... O Luca
só estava querendo irritar o seu pai e você sabe disso.
- Ele fica te encarando como se tentasse descobrir por que aceitou fazer
isso!
Não acho que é por isso que está me encarando.
- Ele deve achar que você é lésbica! E o que foi aquele beijo na frente de
todo mundo? Ele está querendo me constranger, Gabi. Ele já descobriu tudo, me
acha um nojento e um covarde e…
- Respira. - peço - Tony, respira. Você está entendendo tudo errado. Você
precisa muito falar com o seu irmão.
- Não. Você estava errada, Gabi. O Luca não vai conseguir superar o próprio
preconceito e eu não preciso disso agora.
Estou tentando ser paciente.
Estou tentando ser paciente pela Giseli.
Mas não sei quanto mais disso eu aguento.
Até porque não sei quanto mais disso o próprio Tony aguenta.
Nunca o vi assim.
Girando fora de controle. Um barquinho de papel manteiga no meio da
tempestade.
Ele não vai durar.
Não vai resistir.
Existe um limite para a quantidade de estresse que uma pessoa consegue
aguentar.
- Tony, preciso falar com você sobre o Luca. Já que você não vai falar com
ele… preciso te contar uma…
- Antônio. - seu pai o chama a distância e ele se coloca de pé como um animal
de estimação bem adestrado.
Engulo a frase na metade.
A distância, meu sogro me encara como se quisesse me destruir em pequenos
pedaços.
A esposa adúltera. A decepção.
Ele ainda pode destruir meu negócio, se quiser. A diferença é que eu não sou
o Tony. Se ele quer uma briga, que venha.
Fico sentada e em silêncio.
Os dois se vão e como por decisão do destino, meu foco cai no homem de pé, no
bar, logo atrás deles.
Luca tirou a camisa e agora sou eu quem precisa de óculos escuros.
Eu e todas as mulheres na piscina.
Ele termina o uísque e vem na minha direção.
Não, não, não.
Estou de pé e procurando uma rota de fuga porque não sei se posso responder
por mim se aquele homem me abraça sem camisa.
Mas ele me alcança antes que eu possa executar qualquer plano.
- Luca. - aviso, assim que está perto o suficiente.
- Que foi? - sua casualidade é diametralmente oposta a eterna seriedade do
irmão. São absolutamente idênticos, aqueles dois. Mas são absolutamente
diferentes.
- Se seu pai nos vir conversando…
- Eu te dou um beijo e ele vai ter que calar a boca.
- Ficou louco?
- Duvida?
- Nem um pouquinho. E é disso que eu tenho medo.
- Te beijo e digo pra ele que esse casamento de vocês dois seria só de
aparências. "Seria" porque, na verdade, quem casou com você fui eu, já que o Tony
estava bem longe com uma namorada que ele esconde porque o pai não aprovaria.
Digo também que fui eu quem consumou o casamento e que a gente se ama. E aí já
sugiro logo o divórcio pra facilitar as coisas. Falo logo aqui, mesmo, na
piscina. Que aí todo mundo já escuta e a informação já se espalha mais fácil.
- Não pode fazer isso.
- Claro que posso!
- Ia ser o caos!
- Coisa nenhuma. - dá de ombros com descaso - Ia ser uma fofoca genial por
uns dois meses. E só isso.
- Zummo!
- Mas relaxa! A única razão pela qual eu não vou fazer isso é porque eu sei
que ia machucar o Tony e aí você ia ficar com raiva de mim.
- É gentil de sua parte não querer machucar o seu irmão.
- Quem disse que eu ligo pra isso? Ele merece umas porradas, aquele ali, pra
deixar de ser idiota. É a parte de te deixar com raiva que me preocupa.
- Ah é?
- Hm. - assente, antes de se aproximar - Acontece que eu gosto muito mesmo de
ter teus peitos na minha língua. - murmura quente - E algo me diz que não ia me
deixar fazer isso se estivesse com raiva.
- Dois passos para trás. - aviso.
Ele é bem teatral nos exatos dois passos que dá, afastando-se de mim.
Faz-me rir.
E é o sorriso idiota que eu não consigo impedir pelo resto do dia.
*********************
**********************
Luca
*********************
Gabi
**********************
Luca
Não.
Não, não, não, não.
Não.
Não dá.
Eu já levantei e saí.
A Gabi pediu uns meses e eu disse que esperaria anos.
Mas na boa, não dá.
Por que ela não me disse?
Depois de tudo que aconteceu hoje?
Depois da Fernanda e da mamãe?
Ela ainda estava escondendo essa última coisa de mim. Por quê? Porque queria
dar a Antônio os meses que ele precisava e sabia que, se estava grávida, eu teria
um problema com esse plano?
Essa lealdade dela ao melhor amigo só fazia me foder.
Ela ainda tentou interromper o Tony… "melhor falar com seus pais, a sós,
primeiro". SÉRIO, Gabrielle?
Não… sério?
Nem com o CARALHO que esse bebê é do Antônio.
Nem fodendo.
Vaca podia tossir pra afastar a cobra que criou asa e, ainda assim, esse
filho não era do Antônio.
Bem que a mamãe disse que o Tony ainda ia destruir tudo. Ele achava mesmo que
eu ia ficar esperando enquanto ele curtia minha mulher grávida por meses? E se o
papai adiasse a aposentadoria de novo? Qual seria a desculpa que eu ia ter que
ouvir da Gabi dessa vez?
Preciso de ar puro.
Não consigo olhar pra cara do Antônio agora.
Não.
Não, não, não.
Fuji para o estacionamento do resort e alguém veio atrás de mim.
Nem vi quem era, mas já me viro com a palavra na boca:
- Não.
- Luca.
É o Antônio.
A Gabi não veio, claro que não. Ia vir e me dizer o quê?
- Não! - aponto pra ele.
- Eu imagino que você não deva ter uma opinião muito boa ao meu respeito. -
tem os lábios rígidos e a expressão fria - Mas imaginei que poderia, pelo menos,
ficar ao meu lado pra isso?
- Não. - esfrego minhas têmporas.
- Eu sei que vou perdê-los quando chegar a hora. Mas parte de mim esperava
não precisar perder você também.
- Antônio, o que CACETE você está fazendo? Explica bem devagar. E depois
repete.
- Eu sei que você sabe.
- É CLARO QUE EU SEI!
- E eu sei que não me respeita mais.
- Nem um pouquinho. - concordo, sereno.
- E provavelmente me detesta.
- Bem por aí, mesmo.
- Você deve querer me dar um murro.
- Uns três só pra abrir o diálogo.
Ele sorri entre a tristeza e a decepção.
Balança a cabeça no escuro e respira fundo.
- Você percebe o quanto isso é errado, não é? Querer me julgar e me condenar
por isso?
Estou em choque.
De verdade.
O Antônio enlouqueceu.
- Se eu sei o quanto isso é errado? Antônio, você bateu com a cabeça em algum
lugar? Errado é você!
- Eu sou errado? "Errado"?
- Tá achando a palavra complicada? A gente te arranja um dicionário.
- Ou uma Bíblia. - dá de ombros - Acho que lá também tem escrito o tanto que
eu estou errado.
Estou quase concordando, só porque estava no embalo.
Mas…
Calma.
- O quê?
- "Um homem não se deitará com outro homem como faria com uma mulher" ou algo
assim?
Han?
- Você é ótimo, Luca. - rosna com uma careta de raiva - O desapegado que
largou tudo para viver na praia em um estúdio de tatuagem com uma prancha de
surf. Nenhuma responsabilidade, nenhum julgamento. Mas, claro, desde que seja pra
você. Porque julgar os outros tudo bem.
- É o quê?
- Eu te agradeço muito por ter me ajudado quando eu precisei, mas isso não te
dá o direito de ser um preconceituoso arrogante! Eu entendo isso deles! Que são
velhos e… religiosos e… E quer saber? Nem deles eu devia ter que entender! Mas de
você? Depois de tudo que você já passou pra poder ser quem é em paz, você acha
certo me julgar porque eu quis fazer o mesmo? Parabéns, você é mesmo ótimo.
- Antônio, do que caralho você tá falando?
Ele pausa.
Encara-me ao engolir em seco.
- Você… você disse que sabia.
- Eu acho… eu ACHO - enfatizo - que a gente não está falando sobre a mesma
coisa. Do que você está falando?
- Eu… - ele se encolhe e olha ao redor - Eu sou gay. - sussurra.
Eu espero por um segundo porque ainda não entendi se tem mais alguma coisa ou
se esse alvoroço todo foi só por causa disso.
Aí eu lembro de quem é nosso pai e, de repente, meu cérebro funciona no
tranco.
- Ah! - exclamo longamente - Era isso? Que merda, Antônio, por que inferno
você não me disse isso de uma vez?
- Você não sabia? Não suspeitou?
- Eu sempre achei que você podia ser bi. Achei que se fosse gay mesmo teria
me contado há anos.
- Você ficou no meu lugar por três meses, eu… eu achei que tinha feito as
contas.
- A Gabi falou que você estava com "Giseli". Eu achei que você tinha se
apaixonada por alguma stripper mais velha que estava te usando pra roubar teu
dinheiro.
- O quê?
- É. Aí eu imaginei que não ia querer apresentá-la pro pai por causa da parte
do dinheiro ou pra mãe por causa da parte da stripper. E nem pra mim porque eu
era o único que ia realmente conseguir te fazer largá-la.
- Isso é… específico.
- Foram três meses. É bastante tempo pra imaginar coisas.
- E não ficou preocupado comigo?
- Você tem bastante dinheiro. Quanto uma stripper poderia roubar, não é
mesmo? Achei que estava se divertindo um pouco e a Gabi prometeu que você não
estava em problemas. Então imaginei que ela ainda não tivesse te viciado em
drogas.
- Drogas?
- Três meses é bastante tempo, Tony. - dou de ombros e aí lembro de algo -
Então… onde você estava?
- Eu… me apaixonei por alguém.
- Conheceu alguém e decidiu casar com Gabi pra disfarçar?
- Não, nós… Nós estamos juntos há três anos.
Eu me encosto no carro atrás de mim porque essa notícia é demais pros meus
joelhos.
- Tony…
- Eu só preciso que o pai se aposente, Luca. Aí ele me deixa em paz. Mas essa
coisa de "ser homem"… você sabe como ele é. Eu achei que se casasse e começasse
uma família que ele aprova, poderia adiantar as coisas.
- Tony, para! - seguro seus ombros - Manda pararem o carrossel porque você
precisa descer! A vida é sua! E daí se ele te demitir? Você não precisa desse
emprego, você… você sequer gosta desse emprego?
Ele abaixa a cabeça e enfia as mãos nos cabelos.
- Eu não sei. - confessa.
Coloco a mão na sua nuca e lhe dou um segundo.
- Mas… por que você desapareceu? E quem é Giseli?
- O Rafael… - respira fundo - O meu…
Ele não consegue dizer a palavra.
- Teu namorado?
- É. - sorri.
- Ou noivo a essa altura. Nossa Senhora, Tony, três anos. - resmungo.
- Ele foi casado antes. É viúvo. Ele tem dois filhos. Seis e quatro anos e
eu… eu vi essas crianças crescerem. São… são meus também, sabe?
- Giseli é uma das crianças?
- Ela tem quatro anos.
- E ficou doente às vésperas do casamento?
Ele assente.
- Câncer.
- Puta merda, Tony.
- O Rafael… O Rafael não conseguia fazer tudo sozinho. E a Gi, Luca… - seus
olhos se enchem de lágrimas e eu o abraço - Ela parecia que ia desaparecer. Você
não tem noção do quanto um câncer consegue chupar a vida de uma criança. Quatro
anos. Ela era só… e a medicação e as cirurgias… eu não achei que ela ia… Eu não
podia deixá-la lá e não podia deixar o Rafael até saber que eles estavam bem.
- Antônio, você entende que devia ter acabado com essa farsa há muito tempo,
não é? Se eu fosse o Rafael eu tinha te dado um chute há muito tempo! Imagina
ficar com alguém que vira as costas e desaparece ao primeiro sinal de… - engulo
minhas palavras porque elas me atacam do mesmo jeito que a ele.
- É. Acho que eu preciso consertar muitas coisas, principalmente para… - ele
interrompe o discurso no meio da frase e me encara - Espera! Se você não sabia e
não estava com raiva de mim, por que saiu do salão desse jeito?
- Eu não disse que não estava com raiva de você!
- Por que está com raiva de mim?
- Pelo que você fez com a Gabi, idiota! É errado!
- Luca, eu conversei muito com a Gabi antes disso, a gente tem um plano.
- Um plano que envolve você criar o filho dela como se fosse seu, só pelas
aparências? Pra satisfazer as expectativas do teu pai?
- Criar o…? Ela não tá grávida, Luca. Eu só falei isso pra o pai me deixar em
paz com essa coisa de família.
Eu ia chamar o Tony de doente egocêntrico, mas outra coisa me ataca primeiro.
- Ela não está grávida?
- Não. Por que você está triste? - ele enruga a testa e me encara como se eu
não fizesse sentido - Por que está tão interessado na… - e aí arregala os olhos
por um instante. Abre um sorriso imenso de compreensão - Você se apaixonou pela
Gabi. Claro que se apaixonou pela Gabi. - encara o vazio por um segundo como se
não acreditasse que nunca pensou naquilo antes - Meu Deus, vocês são meio que
perfeitos um pro outro.
"Meio que…"?
- Nada de "meio", irmãozinho.
- Perfeitos. - ri.
- É. Fora a parte dela ser minha cunhada.
Ele espreme os olhos com uma careta.
- O lado bom é que perto de um filho gay, o pai nem vai ligar pra um
adúltero.
- De repente ele tem mais um filho pra ser ladrão e aí a gente faz um bingo
de pecados.
Ele ri alto. Balança a cabeça em um silêncio, admirado. Quando me observa de
volta é com muito carinho.
- Eu não acredito que nunca… - sorri - Eu sou um egocêntrico idiota, não sou?
- É sim. Mas o primeiro passo para resolver um problema é admiti-lo.
- Eu sinto muito. Eu vou… vou resolver tudo com a Gabi para que vocês possam…
- Tony, não é só a gente. Você precisa se libertar da insanidade.
- Eu não consigo, Luca. Tá? - morde o lábio com forca - Eu queria ser como
você. Eu queria poder ir embora e não ligar para nada. Mas não consigo. Eu queria
conseguir! Queria mais que tudo! Mas, não sou eu.
Tento ver as coisas pelo seu ponto de vista.
Não dá.
Ele só está com medo.
Mas então…
- Você não consegue. - aponto - Mas eu consigo.
- O quê?
- Você não consegue! - repito, rindo - O Tony não pode ser gay em paz, mas o
Luca pode.
- O quê? Do que diabos você está falando?
Estou rindo.
É estúpido e simples.
- Eu volto lá dentro e digo pro pai que sou gay e estou indo embora. Depois
faço a barba, troco de roupa e assumo teu lugar. E você… - dou de ombros antes de
apontar pro manobrista - Você pede seu carro e vai embora. O Marco te leva o que
precisar, depois.
- Acha mesmo que isso vai dar certo? - seus olhos brilham.
- Não. Nem um pouquinho. Eu acho que você é um covarde que devia ir lá
resolver isso. Mas se você não tem forças pra fazer isso agora, principalmente
depois do ano que teve, eu faço por você.
- Mas e a empresa, e…
- Antônio, eu não sou você. Daqui a um mês ou eu fiz o pai se aposentar ou eu
pedi demissão e fui trabalhar com outra coisa. De um jeito ou de outro, eu conto
toda a verdade pra todo mundo.
- Daqui a um mês?
- Ou dois. - rosno diante de sua covardia - No máximo.
- Não acha que…
- Vai ser uma fofoca desagradável por um tempo. Eu tiro férias. - dou de
ombros - Ninguém vai morrer por causa de fofoca.
- Faria isso por mim?
Preciso rir.
- Tony, eu te amo. Mas… não estou fazendo isso só por você.
Ele concorda devagar.
- Vai fazer isso pra ficar com ela.
- Acho que sou capaz de fazer qualquer coisa pra ficar com ela.
- Até dar um beijo na Fernanda? - brinca.
Aperto os olhos:
- Eu acho bem difícil isso ser um requisito pra ficar com a Gabi.
Ele tem um sorriso imenso.
Como se estivesse livre.
Como se estivesse feliz.
- Cuida bem dela?
- Melhor do que você, idiota! Que deixou a menina no altar! "Cuida bem dela"…
- reclamo e ele começa a rir, culpado - Vai embora daqui antes que eu resolva te
dar os três murros que você ainda merece.
Ele dá um passo para trás, mas aí volta e me dá um abraço.
- Desculpa. - pede.
Bagunço seus cabelos e aperto o abraço ao seu redor.
- Eu quero conhecer o Rafael. - aviso - E se você mentir pra mim de novo, te
enfio em um espeto.
Ele ri e se afasta em direção ao manobrista.
Mas eu o agarro pela camisa e o trago de volta.
- Tem mais uma coisa!
- O quê?
- Tem uma coisa que precisa fazer por mim.
- Que coisa?
Eu sorrio também porque essa parte me interessa:
- Ele é minha, Tony. Você vai ter que assinar um divórcio.
24 - Olá
Marco está esperando por mim assim que saio do banheiro com a barba feita e
as roupas do Antônio.
Tem um olhar nervoso e a boca entreaberta.
- Não vou cortar o cabelo. - aviso, porque já entendi qual o seu problema.
- Mas…
- Sh! - ergo o indicador antes que ele comece - A Gabi gosta do cabelo mais
longo e eu acabei de esgotar o estoque de sacrifícios que estou disposto a fazer
pelo meu irmão.
Ele acena, em silêncio.
Um milagre.
Aí respira fundo e eu espero que dispare com um milhão de palavras por
minuto. Mas tudo que diz é:
- Ele foi embora mesmo? O senhor Tony?
Aperto seu ombro porque sei que eram amigos.
- Foi. Mas ele vai ficar bem. Vou precisar que você leve algumas coisas pra
ele.
- Sim, senhor. - encara o chão por um instante - E, depois… o senhor vai
querer que eu treine um substituto ou já tem alguém em mente?
- O quê?
- Pra… minha vaga?
- Você vai com o Tony?
- Oh, não, senhor. Mas imaginei que o senhor quisesse alguém que fosse de sua
confiança.
Engole em seco e fica muito quieto.
Eu preciso rir.
- Marco, você é o alguém de confiança.
- Sou?
- Acho que sim.
- Tem gente que acha que eu falo demais, senhor. Não confia em mim para ser
discreto.
Estou rindo alto.
- Isso é porque essas pessoas não te conhecem, Marco. - aperto seu ombro, de
novo - O emprego continua sendo seu, enquanto quiser.
- Ah, eu quero, sim, senhor. - sorri - Mas acho mesmo que devia cortar o
cabelo. O senhor Tony o usa muito curto. Não vai enganar ninguém assim.
- E quem disse que eu quero enganar alguém?
Ele me encara, sem entender.
- Eu te disse, Marco. Acabei de esgotar o estoque de sacrifícios que estou
disposto a fazer pelo meu irmão.
**********************
Meu pai torce o nariz assim que abre a porta do quarto para mim.
Vai reclamar que já é tarde e que, se já se recolheu, não quer mais ser
incomodado.
No entanto, a combinação das roupas do Tony com o cabelo do Luca e a ausência
de barba o deixa muito confuso e ele me deixa entrar.
A suíte que ocupa é quase um apartamento de luxo. Me recebe no hall e eu nos
conduzo para a direita onde sei que há um escritório. Ele me segue confuso porque
eu fui mais rápido que seus protestos.
Fecha a porta atrás de nós ainda com confusão no olhar.
Verifico as horas.
Já deu tempo do Tony estar bem longe.
- Luca. - aponto para mim mesmo - Caso esteja confuso.
- Fez a barba e está se vestindo melhor. - aprova - Agora, só falta um pouco
de atitude e pode voltar a presidência da empresa. As coisas com o Tony…
- O que têm as coisas com o Tony?
- Ele não é o mais indicado para um cargo de liderança, Luca. Nós dois
sabemos disso.
Tem algo estranho no seu tom.
Eu fui até ali para dizer pro pai que o Tony tinha ido embora por um tempo e
falar a verdade sobre eu e Gabi. Mas...
- O que está dizendo?
Ele enruga a testa:
- Não foi isso que veio fazer aqui? Com a barba feita e a essa hora da noite?
Me pedir desculpas e dizer que está pronto para voltar?
Eu abro e fecho a boca antes de decidir o que dizer.
- O que quer dizer sobre o Tony não ser indicado para um cargo de liderança?
Ele balança a cabeça.
- A Gabrielle não está grávida de um filho dele, não é?
Fico quieto. Alguns segundos de silêncio e ele continua:
- O Antônio... ele...
Ele sabe.
Sempre soube.
- Deixa pra lá. – decide – O que veio fazer aqui se não foi pedir seu emprego
de volta?
- Não acho que o emprego é seu pra dar. Mas vim até aqui te dizer umas
coisas. Isso vai ser bem delicado porque eu sei que você é meu pai e que te devo
muito, mas você se tornou um crápula arrogante e egocêntrico que está destruindo
a vida das pessoas ao seu redor. E acho que seria de bom tom alguém te avisar.
- O quê?
- O Antônio é gay.
Ele ri com desdém. Mas seus olhos estão secos e frios.
Ele sabia.
- Qual o seu problema, Luca? Por que quer fazer isso comigo? Com sua mãe?
Acha que isso é alguma brincadeira, como as que você aprontava na…
- Pai, acho que você já sabia disso. E tenho certeza que a mãe sabe. Eu
confesso que achei que ele era bi. Mas quando o assunto é relacionamentos… eu
estive mais preocupado com os meus do que com os dele, então não estive prestando
atenção. Algo que, se me perguntar, é até bem saudável, porque ele fica pelado
com quem ele quiser e dificilmente é da conta de algum de nós.
- Luca, chega.
- É, chega. O Tony é gay, pai. Homossexual. Está em um relacionamento há
anos. Praticamente casado e com filhos. A filha dele teve câncer e ele quase
morreu junto, mas precisou esconder isso de todo mundo por causa do medo
sobrenatural que ele tem em te desagradar.
- Ele não é gay! E se é, não é meu filho. – decide, com uma frase tão
ensaiada que, imagino, já deve ter repetido para se mesmo no escuro de sua mente
algumas vezes.
- Ótimo. Então você não tem mais filho algum. O Antônio provavelmente vai me
matar por estar te contando isso desse jeito, mas você está certo: chega. Ele
nunca vai ter coragem de te dizer. Então eu vim aqui resolver o problema pra
vocês dois. Agora, você sabe e ele tá livre.
- Você acha certo chegar aqui e… jogar isso tudo em cima de mim e… o que quer
que eu faça?
- Você tá certo. O ideal seria se o Tony conseguisse te contar isso, ele
mesmo. O ideal seria se você fosse capaz de calar a boca por dois minutos para
ouvi-lo. Mas, pai. Fala a verdade pra mim: você acha mesmo que alguma dessas duas
coisas iria acontecer? Então eu vim aqui pra te dizer algumas coisas.
- E já disse. Pode ir. - torce o nariz, furioso.
- Não, ainda não. Tem mais.
- Você é gay também? Ou está só vivendo em pecado com a mulher do seu irmão?
- Que bom que você perguntou! Porque é justamente sobre isso que eu queria
falar. O Tony nunca casou com a Gabi. Fui eu que casei.
Ele não diz "o quê?" com as palavras mas deu no mesmo porque tem uma
expressão que diz do mesmo jeito.
- É uma história bem longa que eu vou fazer questão de explicar pra todo
mundo. Só o que você precisa saber é: quem fez os votos diante de Deus fui eu.
Quem consumou o casamento fui eu. Eu a amo e a parte legal… está resolvida
também. É minha mulher, não do Tony. E se você ameaçar minha mulher de novo, pai…
- sorrio - Nós dois vamos ter um problema.
Alongo os ombros e nos sirvo duas doses de uísque.
- Eu vou assumir a empresa agora que o Tony foi embora. Do mesmo jeito que
fiz pelos últimos meses. A sua sorte é que, apesar de não concordar com você
sobre quase nada sob o Sol… - estou rindo - Concordo em relação às projeções para
o primeiro trimestre. O Tony não sabe do que está falando e, se estamos sendo
sinceros, ele nunca foi o maior fã da Zummo. É por isso que você queria que eu
assumisse. E é isso que eu vou fazer: você tem um mês - ergo o indicador - Um mês
para se aposentar. Pode ficar por perto observando durante um mês e nem um
segundo a mais. Seu problema comigo era a Fernanda. Ela não existe mais na minha
vida. Agora, eu sou o cara de família que bebe uísque, pode me chamar de Tony se
isso fizer você se sentir melhor. Mas é inteligente da sua parte não nos
confundir. Você vai deixar Gabi e Tony em paz, não vai mais se meter na Zummo
depois desse mês e vai levar a mãe para viajar o mundo como ela sempre quis
fazer. E vai me deixar desenrolar o nó que o Tony deu nas nossas vidas do jeito
que eu achar melhor. Se não fizer qualquer uma dessas coisas, pai… eu não sou o
Tony. Eu peço demissão e vou embora. O Tony vai continuar sendo gay, eu vou
continuar casado com Gabi e você vai ficar pra trás com uma empresa sem herdeiros
e uma mulher que te quer aposentado. Boa sorte. E uma dica de amigo? Trabalhe no
seu preconceito, viu? Idade não é desculpa pra ser idiota. Você já perdeu meu
respeito mas, não sei como, ainda não perdeu o do Tony. Seria inteligente da sua
parte tentar recuperar um dos filhos, ou invés de se ocupar em perder o segundo.
Mas aí a decisão é sua. Faz como preferir. - viro minha dose de uísque - Eu vou
me passar por Tony essa noite como gentileza para os convidados e porque,
sinceramente, eu estou de férias até depois do Ano Novo que é quando eu pretendo
lidar com essa bagunça. Alguma pergunta? Não? Boa noite.
Já abri a porta quando lembro de uma última coisa:
- Ah! Pai? Se ligar para o Tony, colérico, gritando para que ele volte pra
casa imediatamente e deixe de ser gay ou mais qualquer absurdo do gênero… Eu
desço naquele salão, digo pra todo mundo que sou o Luca e como a Gabrielle em
cima da mesa. Por cima do peru de Natal, eu juro por Deus.
- Você é louco. - balbucia, em choque.
- Sou! - aceno - Minha criação foi meio mais ou menos. Te vejo em janeiro,
paizão! Feliz Ano Novo.
**********************
Gabi
Uma pequena parte das pessoas já foi embora, encerrando a noite. Mais dois
terços dos hóspedes ainda estão no salão. A música, a comida, a dança, a
conversa… tudo segue como se nada tivesse acontecido. E, para elas, nada
aconteceu.
Ainda não consigo respirar.
Viro uma taça inteira de champanhe para tentar sobreviver e recebo olhares
constrangidos de conhecidos que acham que eu estou grávida.
Eu vou matar o Antônio.
O que diabos ele tem na cabeça?
Só não matei no exato segundo porque eu tive sérias dificuldades de acreditar
que ele ia mesmo terminar aquele brinde sem gritar "brincadeira!" no final.
E depois ele correu atrás do Luca e eu perdi minha chance.
Luca.
O Luca que foi embora, de novo.
Meu Deus.
Esfrego minhas têmporas e enfio uma porção de comida em um prato.
Nem estou com fome, só estou tentando me manter ocupada. Não aguento os
olhares, mas acho que a solidão do quarto tendo nenhuma companhia fora meus
pensamentos vai ser ainda pior.
Eu vejo quando se aproxima, com o canto do olho.
Mordo meu lábio com raiva porque não queria explodir com ele ali, na frente
de todo mundo. Mas ficar em silêncio é um desafio.
- Não acredito que fez isso. - enfio mais um pão no prato - Ficou louco? -
rosno, rouca, o mais baixo que posso - Tony, eu disse que ia te ajudar enquanto
você se estabelecia para contar a verdade pro seu pai! Não pra me enfiar nessa
espiral de loucura! - estou tremendo de raiva, não consigo olhar pra ele - E eu
tentei ser paciente! Por você, pelo Rafa, pela Gi. Principalmente, pela Gi que
precisava de você! Eu tive medo de contar algo pro seu irmão porque o Luca é
maluco! Ele ia acabar dizendo tudo pro seu pai e aí você, feito o… covarde!
Covarde, covarde, covarde! - espanco alguns camarões - Feito o covarde que é! Ia
voltar correndo e deixar uma garotinha de quatro anos sozinha em uma cama de
hospital! E eu não podia fazer isso com você. Não podia fazer isso com ela! Mas
você devia ter contado pro seu pai! Devia ter contado pro seu irmão! - aperto
minhas têmporas e escondo meus olhos atrás das mãos - O Luca teria entendido, seu
asno! Ele teria te ajudado! Por que, POR QUE, eu aceitei te ajudar? Eu não
esperava que isso fosse acontecer. - falo, mais pra mim do que pra ele - É por
isso que aceitei. Porque eu nunca imaginei que isso poderia acontecer. Nunca! -
esfrego meus olhos - Tony, eu preciso conversar com você sobre o Luca. Eu… eu não
posso mais fazer isso. Sinto muito mesmo. Mas eu… Meu Deus, eu me apaixonei pelo
idiota do seu irmão, sabe? E acho que talvez a gente devesse ir pra algum lugar
mais reservado porque eu preciso conversar com você. - olho ao redor - Todo mundo
já acha que eu estou grávida, vai ser bem legal se alguém ouvir que…
Suas mãos pesam na minha cintura de um jeito estranho.
De um jeito familiar.
Ele me beija com gosto, enfiando os dedos nos meus cabelos. Agarro seus
ombros e sinto sua língua até perdermos o fôlego um no outro.
Mordisca meu lábio inferior quando solta o beijo.
Fez a barba.
Eu sei o que isso significa.
- Não podia ter me avisado?
- E perder a chance de te ouvir reclamar? Você fica tão linda quando está
furiosa.
- Sério?
- E eu nunca tenho a chance de notar porque normalmente é comigo que você
fica furiosa. E aí joga coisas na minha cabeça.
- Não jogo coisas na sua cabeça.
- Não lembra das almofadas quando descobriu que eu não era o Tony?
- Eram almofadas! E você mereceu cada uma delas.
- Foi um bom beijo! - reclama.
- O beijo foi ótimo. Não é disso que estou reclamando.
- Ah não? - se derrete em um sorriso imenso.
Apoio minhas mãos em seu peito e ele me puxa para mais perto.
- Pra onde ele foi?
- Ficar com o… Rafael? - estreita os olhos porque não sabe se decorou o nome
certo. Eu confirmo.
- Já era hora. E aí a gente faz isso por quanto tempo? - engulo em seco.
- Por tempo nenhum, que eu não sou o Tony. Já contei tudo pro pai.
- Contou… - arregalo os olhos.
- Gabrielle, ele já sabia. Não queria admitir. Diz pra mim se você acha que o
Tony ia contar algum dia? Diz pra mim.
- Não ia.
- Não ia! Pois contei pro meu pai. E já resolvi tudo. Daqui a uma semana,
conto pra todo mundo.
- Por que daqui a uma semana?
- Porque eu pensei que a gente podia tirar umas férias e ir virar o ano em
alguma praia bem longe daqui.
- E aí quando você voltar vai ter alguma outra emergência e vai adiar de
novo.
- Você tá me confundindo com o Antônio. Eu digo uma semana só porque achei
que a gente podia passar essa semana sem o estresse da fofoca. Mas, se você
prefere… COM LICENÇA! - pede a atenção das pessoas e eu segura seu rosto em
pânico.
Desse jeito não! Por Deus!
- Não, não… tudo bem. Uma semana. Pra me preparar, pelo menos. - imploro.
Só que metade do salão ainda está olhando pra ele. Sei que estou corada e
constrangida.
Luca me dá um beijo rápido:
- PALIO AMARELO, ESTACIONADO EM LOCAL PROIBIDO. POR FAVOR RETIRE SEU CARRO.
Estou está rindo, encolhida no seu peito.
- Você é louco.
- Eu sei! Já imaginou? Até parece que alguém aqui vai ter um Palio amarelo.
Ei! - chama minha atenção porque ainda estou rindo. Desliza o polegar no meu
sorriso. - O Tony vai assinar o divórcio amanhã. - rosna a última palavra como se
fosse uma promessa - Quando a gente voltar de viagem, casa comigo?
- Você sabe que a gente só está junto há três meses, não é?
- Mas foram TRÊS MESES! - enfatiza.
- Eu sei. Mas… ainda assim, Luca. É pouco tempo. Tem certeza?
Ele considera por um segundo.
Acena, concordando.
- Certo, então vamos fazer o seguinte. Meu pai quer um homem de família pra
guiar a empresa. Então você casa comigo, de mentira, só pra apaziguar o pai. Só
por um tempo, até eu decidir contar pra ele que, na verdade, sou um cara da vida.
Eu já estou lhe enchendo de tapas nos braços desde a quarta palavra.
Ele se desfaz em risos e me agarra pela cintura. Seus braços são largos e
imensos, não consigo me mover dentro do seu abraço.
- Casa comigo? De novo?
- Tá. - dou de ombros - Se eu mudar de ideia daqui pra lá posso te deixar no
altar?
- Ai! - dá risada.
- Muito cedo? - brinco.
- Não, não. Foi boa. Até porque eu, provavelmente, vou ter crise de ansiedade
no dia e vou acabar colocando o Tony no meu lugar.
- Ah é?
- Mas não se preocupa, eu chego pra Lua de Mel.
- Já ouvi essa história antes.
- Coisa nenhuma. - pisca um olho, e murmura em meu ouvido - Você acha mesmo
que eu ia perder a Lua de Mel?
Toma minha boca na sua e me beija até quase esquecer que ainda estamos no
salão.
Procura meus dedos e traz minha mão para si.
- O que…?
Ele me dá mais um beijo rápido e tira minha aliança.
A nova.
A que eu precisei fazer para combinar com a nova do Tony depois que Luca foi
embora levando a velha.
- Vai colocar a velha de volta?
- Não. Vai ficar sem. - beija meu dedo, livre do anel - Porque a próxima que
colocar vai ser a última.
Tenho vontade de beijá-lo. Mas apenas espremo os lábios e digo:
- Você lembra que temos um quarto aqui no resort, não é?
- Gabrielle - Ele ri e estala os dedos como se não acreditasse que esqueceu
disso - É por isso que casei com você.
25 – Lembrança
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A noiva é minha.
Mais ainda agora que todos se foram.
Ficamos nós e a noite.
Beijo sua boca muito devagar.
É mais uma provocação que um beijo.
Não funciona porque queria provocá-la, mas quem está provocado sou eu.
Quero mordê-la.
Eu me demoro tirando seu vestido branco. Um dia, essa noite vai ser só uma
memória. Quero aproveitá-la enquanto ainda está em minhas mãos. Se é para criar
uma lembrança, quero que seja uma que vai me fazer fechar os olhos sempre que eu
a revisitar.
Há nudez naquela noite.
Há beijos.
Mordidas.
Saliva e desejos.
Eu poderia descrever o traço que as gotas de suor fazem em sua pele quando
arqueia as costas sentindo o prazer atravessá-la.
Poderia explicar como mal consegui assistir seu orgasmo porque minha crise
pesou em minhas pálpebras, fazendo-me fechar os olhos.
Eu poderia narrar os corpos e a febre.
Mas me parece errado fazer isso aqui.
Me parece vil.
Porque essa noite não foi sobre nada disso.
Essa noite foi sobre o jeito íntimo como Gabi mordeu o canto de minha boca
quando eu tentei provocá-la.
Foi sobre o modo como seus gemidos de desejo se transformaram em promessas de
amor sussurradas em meu ouvido.
O bater do seu coração contra minha pele me excitando mais que sua nudez.
Eu a amo.
Talvez eu sempre a tenha amado.
Mas hoje a amo muito.
Muito.
E ela é minha.
É finalmente minha.
Epílogo
- Como você e a tia Gabi se conheceram, tio Luca? - ela me pergunta, cheia de
inquisição em seus olhos de cinco anos.
- Não! - sorrio pra pequena no meu colo - Pergunta como foi que eu casei com
ela. Essa história é muito mais interess…
- Não! - Gabrielle e Tony decidem por mim.
- Acho melhor o tio Luca não contar história nenhuma! - Tony pede.
- A de bica foi a melhor!
- Ibiza. - corrijo.
- Quando ele acordou com uma cabra na coleira, dois pasteis no bolso e uma
passagem pra Cuba depois de ter bebido demais!
- Quem conta esse tipo de história pra uma criança? - meu irmão me recrimina.
- Ah, relaxa. Metade nem foi verdade.
Giseli me encara decepcionada e eu pisco um olho pra ela tentando fingir que
estou enganando meu irmão.
Ela morde o cantinho da boca indecisa se pode ou não acreditar em minhas
palavras.
- Eu te avisei pra mantê-lo longe das crianças. - Gabi avisa.
- Está me julgando? - Tony ri - Você CASOU com ele.
- É, mas foi meio que por acidente. E você quer mesmo descer por esse buraco,
Antônio?
Eu agarro Gabi pela cintura e beijo sua bochecha:
- E que história é essas de "mantê-lo longe das crianças"? - deixo minha mão
pesar em seu estômago.
- Você vai me dar um trabalho horrível, não vai? - resmunga.
- Claro que vou! E ele atendeu? - viro minha atenção para o Tony quando ele
deixa o celular sobre a mesa.
- Atendeu! Desejou feliz natal para todos! Acredita nisso?
- Depois de um ano e da mamãe quase se divorciar dele estava mesmo na hora
dele começar a superar.
- Tio Luca, o que é divorciar?
- É quando os adultos brigam e vão viajar sozinhos, aí deixam as crianças na
casa dos avós comendo Doritos no café da manhã.
Giseli e Daniel arregalam os olhos:
- Pai! Vocês podem se divorciar!
O Rafael ri e tenta desfazer minha explicação enquanto Tony olha pra
Gabrielle cheio de julgamento:
- E você escolheu deixar ele ser pai dos teus filhos.
Ela me olha de cima a baixo:
- Não vai me defender?
- Eu não. Teu histórico é horrível. Teu primeiro marido era gay.
Gabi esconde os olhos atrás das mãos, tentando disfarçar a risada:
- Rafa, ainda tem mais daquele suco de maçã? Acho que eu preciso me acalmar.
Belisco sua cintura e dou outro beijo na sua bochecha.
Linda.
E minha!
Um ano depois.
Vai ser mãe dos meus filhos e acho que estou mais apaixonado por ela hoje do
que no natal passado.
Ela pisca um olho para mim quando se serve de suco e eu derreto inteiro.
Tenho certeza.
Muito mais apaixonado.
- Cama! Todos dois! - Rafael avisa - Pra esperar Papai Noel.
- Por que o Papai Noel só vem no Natal, tio Luca?
- Porque ele é alcoólatra e sua esposa só o deixa sair de casa uma noite no
ano.
- Papai, o que é alcoólatra?
- Por quê? - Tony me encara, em sofrimento - Por quê?
Minha única resposta é um sorriso imenso.
Os dois saem, conduzindo para a cama duas crianças que têm nenhuma intenção
de dormir.
Gabi termina seu suco e me observa a distância.
Eu ainda tenho vontade de mordê-la todinha.
Mesmo depois de tanto tempo.
Mesmo fazendo isso toda noite.
- O que foi? - pergunto.
- Duas crianças é bastante trabalho.
- A gente se vira. - prometo, puxando-a para os meus braços.
- Já contou pro seu irmão que são duas meninas?
- Não! Eu pensei que a gente podia fazer uma daquelas festas de revelar
gênero, sabe?
- Luca, aquilo não é meio brega?
- Mas me escuta! A gente podia colocar dois gladiadores para se enfrentarem
até a morte. E aí quem ganhasse podia escolher o gênero do bebê.
- Não é assim que funciona.
- Mas podia ser assim.
- Não, não podia.
- Eu sou um visionário.
- Você é louco.
- Um gênio, a frente do meu tempo.
- O Tony está certo! - ri, contra o meu peito - Por que foi que eu te escolhi
pra ser pai dos meus filhos?
Eu tomo seu rosto nas mãos e beijo sua boca.
Devagar, como ela gosta.
Sentindo sua língua, mordendo seus lábios.
- Ah. - suspira - Foi por isso.
- Foi por isso. - concordo. E aí talvez meu plano fosse dizer mais alguma
coisa, só que o problema quando eu começo a beijar a Gabrielle é que eu não
consigo mais parar.
E aí eu a beijo aquela noite.
Eu a beijo a vida inteira.
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