Você está na página 1de 350

Sombra de asas

1º Edição
Copyright © 2021 Aurelio Collins
Revisão: Angélica Podda
Diagramação: Lover Diagramação
Capa: Will Nascimento
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação do autor.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Qualquer outra obra semelhante, após essa, será considerada plágio; como previsto na lei.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito do
autor.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184
do Código Penal.
SÚMARIO

CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
NOTA DO AUTOR
PARTE UM
“A GAROTA DO BOSQUE”
1

No galho mais alto, semicurvada sobre o carvalho extenso e robusto,


olhos cinzas espreitavam, avaliando a área abaixo. Não havia som algum, o
bosque estava cálido e silencioso, como se até mesmo os insetos hesitassem
em ecoar um ruído; exceto pelo vento, aquelas breves ondas arrepiantes
guiadas por um ar cauteloso. Não havia uma espécie sequer nos arbustos à
vista, deveriam estar em refúgio, amedrontadas pela presença fria e arrepiante
que a correnteza de ar trazia como um aviso prévio de sua chegada. Os olhos,
cerrados e fixos, estavam em todos os lugares em que se poderia observar.
Por um instante, eles se ergueram, velozes o suficiente para uma inspiração
de ar, voando para alguns metros adiante, no tronco de um galho mais alto,
para olhos azuis cintilantes, também em tocaia e atentos.
Um farfalhar rasgou o silêncio, como algo se chocando contra galhos
secos. Os olhos cinzas se estreitaram ainda mais, a respiração cessou,
restando aquele silêncio mórbido e arrastado do bosque.
Os pelos do braço de Gwen Briffyn se ergueram, como se também
detectassem a presença e a temessem, com seus instintos e sentidos chiando
em alarde.
Aquela sensação fria e o mal presságio que a acompanhava junto com a
corrente de ar. Como uma bússola, orientando o que quer que estivesse
entrando na área.
Estava próximo.
Gwen se empertigou por um instante, a aljava em suas costas pareceu
mais pesada que o normal e o arco em riste travado em suas mãos. Poderia
ser um temor perante o que enfrentaria, devido ao pequeno calafrio que
correu gélido por sua espinha e que, embora com rapidez, ela o tenha
afastado. Mesmo o breve tremor em seus dedos fora ignorado.
Estava decidida a enfrentar a criatura do bosque. Há exatos dezesseis
luares que todos os animais e rebanhos da aldeia são atacados e mortos, os
poucos de seu povo que se arriscaram a enfrentar a ameaça foram
amedrontados.
Um dos aldeões, que por pouco conseguira sair ileso da caçada do
bosque, relatou o ataque na primeira tentativa de seu povo em capturar a
criatura.
Sobre o monstro terrível que passara a viver nos bosques ao redor de
sua aldeia, que aos poucos, começou a caçar os rebanhos e animais e assustar
alguns do povo que se arriscavam o suficiente para se aproximar da área.
A garota, curvada sobre um galho na ripa da haste da madeira, com um
arco, pendendo uma fecha em mira, estava tentando não deixar os temores a
consumir.
Seu povo estava desistindo de eliminar a criatura depois de tantos
ataques; não fariam nada, pois não havia o que se fazer com o monstro.
Se ao menos fosse um velho lobo, que tantos ela já caçara, ou mesmo
um javali selvagem, que passara a ser seu hobby favorito na caça. No entanto,
o que estaria prestes a enfrentar era algo desconhecido e letal.
Todas as descrições eram de algo maligno, sombrio, criado do próprio
fosso de Eldar, uma criatura das profundezas fora a principal descrição. Era
o suficiente para arrancar um ofego assustado de qualquer ser vivo.
Mesmo de Gwen, que conhecia as histórias e durante muito, muito
tempo, acreditou que fossem lendas. Até agora.
Entretanto, naquela manhã em riste ao nascer do glorioso sol, Gwen
descobriu que a criatura havia se aproximado outra vez, atacando as criações
e rebanhos de sua avó Gillyn.
Toda a plantação de Estillio e Tolloz estava destruída e os rebanhos,
bom, os restos deles haviam sido espalhados por uma campina, como se a
criatura quisesse deixar um recado. As marcas de garras imensas na carne
ensanguentada das ovelhas fora um recado claro, que a garota, de forma
estúpida, ignorou.
Gwen Briffyn não poderia permitir que aquilo continuasse, sua aldeia se
deixara abater pela criatura, permitindo toda aquela matança por medo.
Alguns aldeões disseram que seria loucura e um gesto suicida tentar enfrentar
a besta, bom, no final das contas, Gwen sempre havia sido a pior de sua
espécie mesmo.
E loucura maior seria permitir que tal besta vivesse entre seu povo, o
que ainda era um mistério pendente, como sequer a criatura invadira as
fronteiras encantadas.
Ela sorriu, afrouxando o arco, a respiração controlada e os olhos em
guarda. Não era a primeira vez em caça, embora era a primeira caçando algo
que nem mesmo sonhava o que seria. Que vários dos machos mais ferozes da
aldeia ousaram enfrentar, com apenas poucos retornando inteiros.
— Vamos lá, vamos lá. Apareça — sussurrou em um guincho baixo e
quase inaudível.
Outra rajada de ar ricochetou pelos galhos e pelos ramos abaixo. Um
calafrio a tomou, como um lampejo de alerta, seguido por aquela mesma
sensação de que algo terrível estava próximo.
Um último alerta, ela pensou. Não poderia mais voltar atrás, a criatura
estava próxima o suficiente para farejar o pequeno presente que ela trouxera
para a atrair. Uma armadilha traçada.
Se ela tentasse se mover para longe, onde quer que estivesse no bosque,
a criatura sentiria o indício de sua presença e a de Skye. O garoto a alguns
metros, em riste sobre um galho, com os olhos azuis celestiais tão centrados
quanto os dela na área em volta da armadilha.
No chão abaixo, a uns dez metros de onde cada um estava nos galhos,
havia uma das poucas sobreviventes do massacre mais cedo ao rebanho,
embora agora estivesse sem vida. Deitada na campina, com a barriga
dilacerada por um golpe de punhal.
Gwen havia feito. Tinha sido um sacrifício pelo que acabaria de uma
vez por todas com o que matara o resto do rebanho.
Era um prato e tanto, com os órgãos da pobre ovelha escapando para
fora, com o sangue vermelho e quente escorrendo, marcando o vasto campo
verde.
Um inspirar lento a tomou, flanqueada pelas imensas copas das árvores,
os galhos e vinhas estremecendo com um vento sonoro.
O foco de Gwen se eriçou assim que o barulho de um arrastar soou pelo
lugar. Seus olhos foram rápidos para os de Skye, do outro lado, que já a
fitava, atônito. Ela tentou ignorar o brilho de medo que cintilou naquelas íris
celestes, quando ela fez um breve aceno, se pondo em alerta e em posição de
ataque.
Então Gwen se preparou.
O cheiro de putrefação fora a primeira coisa que a atingiu, assim que o
ar que entrou na área da campina pareceu mudar, ficando mais espesso e
visível, quase como uma névoa. Uma névoa cinza, com um aroma de
dilacerar as narinas, transpirando podridão e morte.
Se a criatura não nos matar, seu cheiro irá. Gwen observou, tentando
manter a respiração intacta, sem inalar aquele aroma fétido e mortal como
carniça.
Os olhos cinzas estreitaram para a presença gélida e horrenda que, por
fim, entrou em seu campo de visão.
O coração, tão pequeno, pareceu inchar em seu peito em puro pavor,
martelando em desespero ao observar a criatura que rastejava. Por um
momento inexplicável, Gwen quis chorar de desespero e agonia por aquilo.
Seu corpo travou, congelado e trêmulo, ela se prontificou a afastar a
sensação; era como se fosse um encanto, uma praga por estar na mera
presença do que quer que fosse aquilo que se arrastava pelo chão.
De início, pareceu uma mulher à primeira vista, embora sua forma se
tornasse clara a cada piscar de olhos. Não havia cabelos na nuca oca, branca
como ossos, as orelhas eram como as de morcegos, se movendo em sincronia
ao ar, os braços eram longos, como uma longa vara, finos e achatados, tão
brancos que pareciam um grande osso sem cartilagem, embora fossem as
garras ferais nas mãos que causaram um grito oco preso na garganta de
Gwen. Eram afiadas como agulhas e grossas como gravetos.
Quando a criatura rastejou, percebeu por fim o que ela era da cintura
para baixo. A silhueta vesperina tomou foco. Uma serpente. Deveria ter uns
treze a catorze metros de comprimento, a cauda que se alongava de sua
cintura magra e óssea era coberta por escamas brancas, rígidas como uma
casca de árvore.
Era imensa e horripilante. Um mero olhar para aquilo era o suficiente
para entender que morte e desgraça acompanhavam o rastejar daquele ser
hediondo.
Os olhos eram imensas órbitas ocas; não possuía nariz, apenas fendas,
em dois buracos logo abaixo dos olhos. Mas a boca, essa pareceu rasgar sua
face, quando avistou o animal morto a sua frente. O mero sorriso demoníaco
que a besta abriu desencadeou os mais cruéis temores em Gwen. A fenda
imensa que se abriu era vasta de presas enormes e amarelas, com uma língua
bifurcada em movimento. Eram presas de um reptiliano. Poderia engolir a
cabeça de alguém sem pausas, enquanto os dentes dilaceravam a carne em
degustação.
Gwen engoliu em seco, balançando a cabeça, para afastar aquele
desespero e medo que poderia ser sua ruína. Era sim uma criatura terrível e
nunca tinha visto algo tão tenebroso em sua existência, embora não houvesse
como voltar atrás. Estava presa no bosque e logo a criatura iria sentir seu
cheiro e o de Skye.
Não poderia permitir que aquelas sensações ruins lhe tomassem, deveria
ser o efeito da criatura. Sua avó, Gillyn, uma vez contara que as criaturas do
fosso eram bestas como pragas, que carregavam a desgraça consigo e
causavam efeitos de desespero, que um mero olhar para elas seria letal, o que
facilitava a morte de suas presas. Se aquela era uma dessas criaturas, Gwen
precisava ser rápida.
Ela se aprumou, enchendo o peito de coragem, se posicionando sobre o
galho, levando o olhar com cuidado para a besta.
A criatura rastejou, a cauda óssea fazia um ziguezague pelo chão, as
garras arranhavam a grama enquanto se aproximava da ovelha.
Ou melhor, da armadilha. Que tinha cumprido seu propósito, com a
quantidade de sangue grosso da ovelha exalando pelo ar, cobrindo o cheiro
dos dois garotos nas árvores do monstro logo abaixo.
Rodeou em uma rapidez impressionante o corpo do animal, cercando,
erguendo uma das garras, e com uma voracidade assombrosa, agarrou um dos
órgãos expostos.
O estômago de Gwen revirou e ela rezou para os deuses de Eldar que
aquilo não ouvisse o grunhido enjoado que lhe escapou quando a besta
começou a devorar as vísceras em estupor primitivo.
As garras se afundaram no couro e num pequeno e singelo gesto, uma
delas arrancou um pedaço da ovelha, jorrando uma quantidade absurda de
sangue do corpo do animal e, arreganhando a boca abissal, a criatura
começou a rasgar a carne.
Engolindo em seco, ignorando a gota de suor que começou a descer de
seu couro cabeludo para a testa, Gwen ergueu o arco, a flecha já em prontidão
para disparar. Ela flexionou e apontou, dez metros de disparo se curvasse o
braço um milímetro para a esquerda, seria o ponto preciso para atravessar o
local atrás da cabeça da criatura. Tinha que ser letal e mortal o suficiente. Ou
estariam em apuros.
Devia ter dado atenção a todos os avisos de seu povo, pelos deuses!
Gwen pestanejou em sua mente perturbada e em choque. Devia ter ouvido
seus próprios instintos sobre isso. Onde estava com a cabeça quando achou
que poderia lidar com algo assim? O que seria essa coisa, afinal?
Imaginou que o que quer que fossem enfrentar não seria diferente de
tudo que ela e Skye caçaram em quase um século de existência, agora os
pusera em um grave perigo se sua flecha não fosse suficiente para matar
aquela criatura.
Um dos primeiros ensinamentos de caça de sua avó, quando era
pequena, fora o cálculo de distância de um disparo para conseguir êxito em
seu alvo com uma força voraz. Outro ensinamento fora que um dos métodos
mais rápidos de se acabar com uma criatura das profundezas era perfurando
sua cabeça.
Bom, agora, colocando em prática, parecia algo bem mais complicado.
A gota de suor começou a deslizar de forma lenta por sua testa, como se
acompanhasse o movimento de seu coração e do ato.
O dedo se firmou com mais precisão na ponta da flecha, um olho se
fechou enquanto o aberto tinha o ponto em mira sob sua visão.
Ela arfou e puxou a flecha.
Tinha que ser agora, enquanto o monstro está ocupado dilacerando a
ovelha. Constatou na penumbra do horror.
Trac.
Um barulho reverberou pelo bosque quando um galho se agitou do
outro lado.
A criatura ergueu a cabeça monstruosa para o ar, os olhos fundos e ocos
se movimentaram e ela farejou compulsivamente a ventania, girando em um
guincho voraz e mortal para trás, disparando em um berro agonizante para a
árvore em que Skye estava.
Foi questão de segundos, em breves piscadas a besta estava no chão e
em seguida, disparando para cima.
O sangue que corria pelas veias de Gwen perdeu sua jornada, deixando
seu coração sem pulsação. Ela disparou um grito apavorado por sua garganta,
que não conseguiu ecoar, quando seus olhos acompanharam em horror a
criatura se lançar na direção de Skye com as garras em ataque.
2

O pequeno Skye, o garoto que sempre a acompanhava para todos os


lugares desde criança, quando era um pequenino de orelhas pontudas, com
seus chamativos e lindos cachos cor de ouro e olhos celestiais que eram como
esferas de luzes. O pequeno Skye que se tornou seu melhor amigo e irmão,
seu outro lado da moeda, seu semelhante, que a tinha acompanhado em tantas
aventuras e confusões, que tinha se negado a ficar na aldeia quando ela lhe
contara sobre sua caçada à criatura, que mesmo em perigo, escolheu estar ao
seu lado. Agora, ela o veria ser destroçado em um piscar de olhos por uma
besta que exalava podridão e morte, o veria ser despedaçado e morto por
presas e garras demoníacas, tudo porque ela achou que poderia lidar com um
monstro que nem mesmo sabia explicar a existência.
Seu pobre Skye.
O grito de Gwen por fim ecoou pelo bosque, quando o monstro atingiu
o galho de Skye em um mero salto de metros, colidindo com o galho,
completamente vazio.
Não teve sequer tempo de ficar confusa com o encontro com o nada,
quando uma figura baixa e veloz saltou de outro galho, da árvore ao lado, em
que estivera escondido quando ousou atrair a atenção da criatura, vendo que
seu plano teve êxito.
Pelos deuses! Como ela não constatou aquilo de imediato? Que aquilo
fora armado por ele para atrair a criatura em outra armadilha? Ninguém corria
ou andava pelas árvores como Skye. Ele era um peregrino dos bosques e
cresceu pelos ares dos galhos de sua aldeia. Poderia se mover pelos galhos
como nenhum outro de seu povo poderia.
Mas por que ele fizera aquilo, desviado do plano inicial deles? Teria
Skye visto sua hesitação e medo e temesse que ela não conseguisse? Seria
típico dele, se pondo ainda mais em risco nesse ato. Por ela. Gwen conteve
um rolar de olhos, abafando o pânico que ainda a estremecia, observando
Skye em ataque.
Sua longa lança prateada, com uma ponta de ferro de troll, erguida ao
ar, atingiu o flanco da criatura quando Skye deslizou para o galho dela e a
acertou em um golpe que apenas perfurou, mas não atravessou.
Ele se sobressaltou ao notar isso, não dando tempo para o contra-ataque,
quando deslizou sobre a extensão do galho, desviando de uma garra
demoníaca.
A besta vociferou para ele, salivando em ira, quando Skye novamente
tentou acertar sua cauda. A ponta estalou em eco ao atingir o tronco rígido e
fortificado dela. Era como uma armadura, e Gwen percebeu que não haviam
brechas sobre ela para uma perfuração. Skye pareceu constatar o mesmo,
saltando para trás quando a besta lançou a cauda imensa para ele.
Ele se curvou, em uma posição defensiva, os olhos azuis destemidos,
observando todos os flancos que poderiam ser golpeados por sua lança.
A imensa cauda girou no ar, a criatura se enroscou no galho, sibilando,
em um rápido movimento, subindo para o galho mais alto.
Skye se preparou, a lança em prontidão, mas mesmo ele não pode evitar
quando a imensa serpente demoníaca disparou em uma velocidade
assombrosa para si. Seu único ato fora erguer a lança para evitar o golpe e a
lançar para a criatura, atingindo um ponto fixo entre seu extenso corpo.
A besta rosnou um chiado grotesco, ensandecida em ódio, que
estremeceu as copas das árvores.
— Skye, cuidado! — O aviso de Gwen não foi rápido o suficiente
quando a cauda imensa girou em disparada e o golpeou em um ataque bruto,
o lançando para o ar, arremessando seu corpo para o chão em um baque alto.
Apenas os gritos e o emaranhado de cabelos loiros passaram pelo ponto
de visão de Gwen quando ele atingiu os metros abaixo.
Ela não pode se concentrar nele quando a besta com cauda removeu a
lança e levou aqueles olhos negros e vazios para ela. Uma criatura nascida
em escuridão. Uma criatura sem luz.
Um calafrio maligno a percorreu quando o abismo de dentes se
apresentou para ela. Mesmo a uns quatro metros de distância, Gwen pode
sentir o cheiro podre e putrefato que saiu de sua boca arreganhada, e por fim,
a criatura arremessou a lança de Skye para longe, rosnando para ela.
A visão da morte a cumprimentou.
Então Gwen se preparou, erguendo o arco e mirando. A primeira flecha
passou pela cabeça óssea da criatura, com isso reverberando ódio por ela,
pelo ataque iminente.
Gwen observou em temor quando a besta se curvou, fincando as garras
no tronco, convulsionando para, em um estalar, se lançar no ar para ela.
A boca demoníaca já aberta em anseio pela carne de Gwen, tão perto de
seu ataque.
Em um movimento perigoso, Gwen deslizou pelo galho da árvore e
saltou, gemendo ao atingir os galhos mais finos em seu rosto, as vinhas do
tronco tentando se entrelaçar a ela, arranhando e arranhando, aterrissando em
outro mais baixo e rígido para seu peso, no exato instante em que a criatura
atingiu o que ela estivera, se enrolando e enroscando, dando repetidas voltas
vorazes, como uma serpente em um tronco.
Uma mão foi para a aljava de flechas em suas costas, a ponta de seus
dedos acariciou a chanfrada, capturando uma e afastando o tremor de sua
palma, quando a posicionou no arco e correu pelo galho, mirando.
Um chiar monstruoso ecoou acima enquanto ela corria e quando se
virou para trás, a criatura estava a um metro no ar, tão perto das garras a
apanharem que o coração de Gwen mais uma vez cessou pela visão daquele
monstro tão perto. Então ela atacou, em desespero e ira, disparando a flecha
quando a besta estava perto o suficiente para rasgar sua face, com seu braço
posicionado na direção certa, para o ponto da mira disparar para o local
desejado.
O freixo da flecha voou com um rasgo no ar e acertou. A criatura
guinchou um berro grotesco em agonia, se debatendo no ar e se lançando ao
chão quando a flecha atravessou seu olho esquerdo e o barulho do crânio
sendo perfurado estalou no ar.
Gwen tremeu ofegante, agradecendo aos deuses de Eldar por sua
contagem de distância para a mira ter estado correta quando, em minutos,
formulou o ataque distanciado para o golpe da criatura quando saltasse
metros abaixo para ela. Uma mínima contagem de um centímetro sequer
errado, para então ela estar em pedaços na boca da besta.
Não perdeu tempo, descendo da árvore e saltando para o chão, correndo
para o corpo caído a alguns metros enquanto o monstro se debatia e grunhia
do outro lado, tentando remover a flecha enfiada em seu olho.
Ela podia jurar que a criatura xingava, embora em uma língua arcaica
que não era compreensível. Parecia o chiar de uma cobra, tilintando, acima
de tudo, uma língua antiga e, pelos sons horríveis que fazia, Gwen constatou
que deveriam ser xingamentos, então os ignorou, correndo para seu amigo
desacordado no chão.
Havia um corte grosso e aberto em sua testa pálida, bem acima de seu
olho, manchando algumas mechas do cabelo loiro acobreado dele.
Ela tocou sua testa e garganta, verificando, observando o respirar
compassado dele. Não parecia que o impacto havia causado grandes lesões;
ele estava bem, apenas desacordado.
Um rosnado chiou.
Mas ainda estavam em perigo. Gwen percebeu que não poderia carregá-
lo para longe da criatura, então se deu conta do que precisava fazer para
mantê-la longe dele.
Beijou a testa de seu amigo, rezando aos deuses mais antigos de Eldar
para que os dois saíssem bem daquele bosque, ou, se ela não conseguisse, que
Skye saísse.
E ela se certificaria disso.
Gwen se ergueu, preparando a flecha, ignorando os latejos de arranhões
em seu rosto, levando o olhar para a direção de uma enorme besta com cauda
ainda se debatendo em agonia, com as garras tentando remover a flecha
enfiada em seu olho, tão profunda que um mero toque na madeira da flecha
deveria causar uma agonia inimaginável.
Se os deuses antigos destinaram seu fim naquele bosque, ela levaria
aquela maldita criatura consigo.
A garota com o arco e flecha sorriu com a cena.
Deveria ser realmente louca.
— Ei, criatura nojenta. — Empunhou o arco, a flecha já em riste. A
besta ergueu a cabeça, girando o corpo em rapidez para ela. A enorme cauda
se movimentou no ar. Arreganhou de forma lenta aquela boca abissal quando
o único olho a encarou. — Que tal perder o outro olho, hein?
A escuridão daquele olhar parecia lançar ecos odiosos; a forma como a
criatura a encarou foi o suficiente para relampejar o mais puro e completo
horror por sua espinha.
Então Gwen soube o que precisava, com o ódio da besta destinado a ela
pelo que fizera; a besta agora não se interessaria pelo garoto caído ao chão.
Apenas ela seria sua presa.
Ótimo.
Com um sorriso, Gwen disparou a flecha e em um rosnado a besta a
arremessou para longe com a cauda. As garras pareceram aumentar, a boca
pareceu rasgar ainda mais sua face demoníaca quando ela urrou um berro
raivoso, carregado de ódio e desejo de matar.
E então disparou para a garota, que não esperou por ela, correndo para o
bosque, adentrando pela imensa floresta e arbustos, saltando pelos galhos e
troncos caídos ao chão.
Ela ouviu quando a besta a seguiu. Rosnando, rasgando e destruindo
tudo à sua frente. Sedenta pelo sangue de Gwen. Se distanciando cada vez
mais de seu amigo, conforme era levada para a profundeza do bosque. Bom.
Aquele era o bosque de seu povo, era um lugar tranquilo e de paz. Fora
assim desde os primórdios de Eldar. Não poderia deixar viver qualquer
criatura que trouxesse desgraça para suas terras. Não ao lugar que sempre
fora o lar de Gwen.
Ela era uma Lorioran, seu povo era o povo dos bosques e ela não iria
permitir que uma criatura do fosso destruísse isso.
Depois de percorrer alguns quilômetros pela floresta, ela chegou ao fim
em uma campina de flores. Havia um rio dividindo o lugar, com as
montanhas esverdeadas e colinas ao longe. Mais além poderia ouvir o eco do
desfiladeiro, a vários e vários metros. Não poderia se arriscar a levar a besta
para mais longe, se aproximariam demais de alguns chalés do povo
montanhês.
Correu, analisando o lugar, a mente trabalhando em confusão e aflição,
se dirigindo para um tronco enorme caído sobre duas imensas rochas, se
curvando atrás dele.
Ao longe podia ouvir os gritos e rugidos da criatura chegando, e então
ela estava a alguns metros de onde Gwen se escondia, farejando a área com
inspirações bruscas.
O vento era seu aliado, junto ao aroma das flores da campina com a
correnteza do rio. Contudo, isso não seria o suficiente por muito tempo. Ela
precisava pensar em algo.
Mesmo com o barulho da correnteza do rio, o som da besta com cauda
farejando era audível o suficiente para aumentar cada vez mais as batidas de
seu coração frenético.
Não haviam árvores ao redor para que encontrasse pontos de disparos,
mesmo isso ela sopesou que não seria o suficiente contra o que enfrentava.
Uma gota de suor deslizou por seu pescoço, com ela tentando
normalizar a respiração afiada, temendo que a audição da criatura captasse o
mero som de seu respirar.
Então se viu ainda mais confusa e assustada quando, de repente, a
criatura pareceu rir, uma risada estranha e antiga, como se as cordas vocais
estivessem em estilhaços e o som agudo que ecoou fosse o arauto do horror, e
por fim, ela começou a falar, em uma língua compreensível dessa vez, com
uma voz que estremeceu o mais profundo em suas entranhas.
— Acha que pode se esconder? — Chiou com o tom grasnado, como se
ao falar a língua bifurcada batesse em seus dentes e lábios rasgados. Se é que
aquele monstro tinha lábios... Gwen não demorou o olhar tempo suficiente
naquela boca demoníaca para notar.
A besta chiou um som vibrante e arrepiante, parecendo gargalhar
serpentina.
— Sinto seu cheiro, o do seu sangue. É forte. Poderoso. Saboroso. —
Estalou a língua bifurcada em um barulho agonizante. Gwen estremeceu. O
que era aquela coisa afinal? Que espécie de monstro era ela que poderia
falar?
Um som de arranhar e arrastar reverberou.
— Irei arrancar seus olhos e comê-los. Irei perfurar seu coração e
destroçá-lo. — Parecia cantarolar, a voz soava como o som de pesadelos, de
tudo de ruim que havia no mundo. Era o tom de sua voz, a desgraça, a morte
e o caos presente. — Sinto seu cheiro. Tão diferente. Tão delicioso. Dois
sabores distintos.
A bile em sua garganta travou, enquanto ela dizia para si mesma não dar
ouvidos à cantoria da criatura. Lembrando das palavras e dos contos
macabros de sua avó, os efeitos das criaturas do fosso; quando começou a
sentir aquela onda de caos a dominando, a afastou para longe.
— Por mil anos esperamos, por mil anos estivemos em condenação. —
O coração de Gwen estrondou e ela temeu que o demônio pudesse ouvir. —
Por mil anos tivemos fome. Por mil anos esperamos que ele enfraquecesse,
para que ela estivesse forte. Por mil anos esperamos.
Sua avó uma vez contara um conto antigo para ela e Skye, sobre as
criaturas do fosso, amaldiçoadas pelos deuses de Eldar, por todo o caos que
causaram nos primórdios, na era de sombras, que como as Tien dos rios que
cantarolam para trazer o medo de suas presas à tona, ou como as Trixes que
acendem uma visão de pesadelos a um mero olhar para elas, as criaturas do
fosso possuíam um efeito semelhante: de instigar o desespero ao ponto de ser
o fim.
— Sei onde você está e não pode escapar. A Esuriit vai te pegar. — A
voz estava cada vez mais perto e Gwen sabia que ela a pegaria. Tinha que ser
rápida.
Haviam algumas pedrinhas ao seu lado, onde ela estava sentada na
grama úmida. Gwen pegou a maior, com sua mão mal se fechando e se virou
com cuidado, arremessando para o lado em um baque, onde havia uma rocha
imensa.
O ato teve seu propósito quando o barulho atraiu a criatura, que em um
rosnado satisfeito se lançou para lá, derrubando a imensa rocha.
Gwen não perdeu tempo, se erguendo veloz, com os joelhos quase
fraquejando e a respiração mal controlada e, mesmo assim, correu para o
outro lado.
Viu o momento em que a besta com cauda percebera que fora enganada,
quebrando o restante da rocha com um ataque de sua cauda, se virando na
direção em que Gwen corria e sibilando em puro ódio, com uma gosma
branca vazando de sua boca.
— Vou a matar e estripar! — O monstro gritou.
Diminuindo os passos, Gwen parou na borda do rio, apanhando uma
flecha da aljava, a última, percebeu em desespero. Deveria ter perdido
algumas enquanto corria pelo bosque.
Posicionou a flecha no arco, puxou a ponta com toda sua força e mirou.
Mesmo sem fôlego, com o coração martelando, o corpo tremendo e o rosto e
os braços arranhados em diversos lugares, ela mirou com precisão.
Era sua última chance.
Se errasse, não havia o que fazer. Estaria morta, e a criatura também
parecia saber disso quando abriu um sorriso de arreganhar o restante de sua
face e avançou em sua direção.
Por um instante, Gwen sentiu seu velho colar se aquecer sobre seu colo,
como sempre fizera, como se a reconfortasse pelo fim que teria.
A morte e o horror vindo para seu encontro, portanto, com um suspiro
trêmulo, ela disparou. Os olhos quase fecharam, quando uma prece silenciosa
saiu por seus lábios.
Gwen observou com todo o seu foco a flecha voar em fúria, como um
flash de luz rumo ao monstro, o alvo no enorme e oco olho; no outro, sua
primeira flecha ainda perfurava a órbita ensanguentada.
Com um golpe, a criatura desviou da flecha, a despedaçando com a
cauda voraz.
As pernas de Gwen falharam quando ela choramingou em fúria, dando
passos para trás, acabando por tropeçar e cair no chão, se molhando no leito
do rio. Nem se importou para a dor em suas mãos com o impacto das pedras
na água ou toda a dor que lhe rasgou o corpo, tudo isso seria um mero detalhe
comparado à agonia desesperadora que os dentes da besta feral lhe causariam.
Sua voz falhou quando ela pensou em gritar, rouca e seca, o peito
tremeu em uma convulsão de pavor. Enquanto ela apenas assistiu o imenso
demônio com presas enormes e garras ferozes rastejando para dilacerar seu
corpo.
— Saborosa! — A criatura gritou, com a voz tremendo de ansiedade,
aquele tom maligno carregado de sede, quando por fim, a alguns metros de
Gwen, ela impulsionou o enorme corpo e saltou, com as garras no ar e as
presas em exposição para a mordida fatal.
Gwen a fitou, seus últimos minutos, tentando não chorar ou se deixar
abater pelo pânico. Não daria o sabor do medo em seu gosto para que aquela
besta maldita degustasse.
Era seu fim.
Crac.
Então sangue jorrou. Todo o seu rosto, seu pescoço, foram tomados por
uma quantidade imensa de sangue.
Um grito perturbador de dor ecoou pelo bosque. Reverberando pelas
árvores em um som profano.
Mas não viera dela.
O grito fora do monstro.
Que apenas a alguns centímetros, com as garras a um palmo do rosto de
Gwen, a fitava em agonia, com os olhos ocos, sem cor ou brilho algum,
apenas vazios, em um tremor de desespero, com uma lança atravessando sua
boca imensa aberta, com um ferro de troll na ponta.
E Skye logo atrás, segurando a lança em um golpe mortal, sorrindo para
sua amiga no chão, repleta do sangue da criatura.
3

Skye foi rápido, atingindo um golpe na cabeça da besta,


impulsionando seu corpo com brutalidade, fazendo com que Gwen entrasse
ainda mais no leito do rio ao se afastar para trás, com tempo o suficiente para
Skye remover a lança em um estalo e enfiar outra vez no monstro, que gritava
e jorrava sangue sobre o corpo de Gwen abaixo.
Ele girou a lança no buraco perfurado, arrancando pedaços de carne,
estralando ossos e cartilagem em um som horripilante, unificado com os
gritos demoníacos. Ela poderia jurar como viu os fios de veias sanguíneas se
rasgando pela brecha na carne branca.
Em um gesto rápido, a besta tentou um último golpe, erguendo a garra
contra a garota no chão. Gwen urrou, chutando a cabeça do monstro,
enterrando ainda mais a lança, com a ponta vindo por completo para fora de
sua boca. Havia uma enorme abertura atrás de seu crânio, por onde Skye
puxou de volta a lança, chutando a besta para longe de sua amiga.
Deu passos para ela, girando a lança em sua mão, estendendo a outra
para uma Gwen molhada, ofegante e coberta pelo sangue negro do monstro.
Naquele instante, queria sufocar o amigo em um abraço. Ele havia salvado
sua vida. Como sempre fizera. Um sendo o protetor do outro. Aquele que
estaria lá quando o outro precisasse.
Mesmo quando ele se arriscou em um gesto tolo, quando atraiu a besta
para si, tentando dar tempo para que Gwen saísse de seu declínio de horror.
— Fico feliz em ver que esteja bem. Mas não poderia ter chegado um
pouquinho antes? — Gwen sorriu para ele, grunhindo um gemido, agarrando
sua mão estendida e se permitindo ser erguida.
O garoto de cabelos loiros como mel, enrolados, que caíam por seu
rosto jovem, mal cobrindo as orelhas pontudas e afiadas, sorriu para ela.
Alguns filetes de sangue deslizavam por sua face, descendo pelo corte na
testa.
— Desculpe, acabei tirando um cochilo. — Ele ironizou, enquanto ela
batia as mãos em suas roupas molhadas e removia a sujeira o quanto podia.
O casaco de pele de coelho estava em frangalhos. O sangue preto e
podre da besta parecia ter grudado em suas vestes, portanto, ela fingia que
não havia uma gota sequer daquilo em seu rosto, embora Skye a fitasse
enojado.
— O quê? — retrucou para o olhar dele.
— Você está com um cheiro podre — constatou, franzindo o nariz, os
olhos meio cerrados.
Ela rolou os olhos nebulosos.
— Ah, sério? Eu nem poderia imaginar.
— Deve ser porque esse cheiro não é muito diferente do seu, Gwen. —
Skye não conteve um riso.
Gwen estava prestes a emendar um comentário sarcástico quando um
guinchar seco e rouco, quase inaudível, soou atrás deles.
Por um instante, tinham esquecido da criatura que estava a um metro
deles. Que grande descuido.
A criatura se arrastava, a boca rasgada e sangrenta parecia conjurar
palavras de ódio em uma língua antiga.
— Isso não é uma criatura comum de Eldar, não é? — Skye indagou,
levando o olhar para ela. — Não como as que Gillyn e os anciões dizem
espreitar lá fora. Não é algo natural. É uma abominação da natureza. Isto é...
Profano.
Gwen concordou.
— Queria não acreditar em minha conclusão. — Ele pareceu engolir em
seco ao prosseguir. — Mas acho que é uma das bestas do...
— Fosso. — Gwen concluiu por ele. O olhar firme ao confirmar suas
próprias constatações sobre aquilo. — Provavelmente.
O olho oco intacto estava fixo nos dois Loriorans, parecera aumentar
com a aura de ódio que vazava por ele. O outro ainda deslizava jorros de
sangue pelo ferimento.
— Dilacerar. — Estalou em uma tosse sangrenta.
— Você não morre? — Skye rodopiou a lança de dois metros em sua
mão, grunhindo para a besta. Ele parecia mais atônito por ela ainda estar viva
do que pelo fato de que falava.
Quando deu um passo na direção dela, prestes a acabar de uma vez por
todas com o monstro, Gwen o impediu colocando a mão em seu braço.
Ela não o respondeu quando ele a fitou confuso, seus olhos estavam na
criatura morrendo.
— O que você é? — indagou.
Os olhos cinza analisavam com cuidado cada traço do monstro que a
instigava a cada olhar. Não era nada do que já vira em sua vida. A pele
escamosa era de um branco tão estranho, digno de algo que viveu durante
anos sem luz. Mil anos. Fora o que dissera. Como em um fosso. As garras
pareciam espinhos longos, olhando tão de perto. Não poderia definir seu
sexo, o tronco era definido e pálido, os braços longos e finos. A criatura
definitivamente era um enigma e uma aberração da natureza. Não era em
nada igual as outras bestas de Eldar.
Era antiga e primitiva.
A cabeça óssea da besta se virou de forma lenta para ela, a boca rasgada
na face se arreganhou, um gesto lento, como um sorriso. A língua bifurcada
raspou pelo sangue negro que jorrava.
Ela parecia analisar a Lorioran por aquelas órbitas escuras e vazias,
inspirando ofegante. Seus últimos suspiros.
— Algo que um dia dominou estas terras. Algo que um dia foi temido
por estas terras. Algo pelo qual a espécie começará a rastejar outra vez por
estas terras. Não mais condenadas.
Gwen sentiu os músculos de Skye se contraírem. Não poderia dizer se
pelo que havia ouvido ou pelo som que ainda o apavorava. O tom de sua voz
era o próprio medo em um timbre demoníaco, chiado e arrastado. Quase
como um cantarolar profano.
Se demônios pudessem cantar melodias etéreas, soaria como aquilo.
Gwen imaginou.
Mas por quê? Ela precisava saber por que, de toda a vasta Eldar, aquele
monstro antigo e incomum estava nos bosques de seu povo.
Como havia sequer conseguido entrar?
— Isso não responde minha pergunta. — Gwen sibilou entre dentes, se
curvando para a criatura. As pequenas presas da Lorioran quase saindo por
seus lábios cheios. — O que você é? Como conseguiu encontrar nosso
bosque e atravessar a barreira? Responda!
A besta estalou em um guinchar quando Gwen citou a "barreira", quase
em uma zombaria sarcástica.
Os olhos dela se tornaram nebulosos. O cinza se tornando a névoa que
cobria as nuvens em uma tempestade. Por um instante aqueles olhos
Loriorans refletiam o céu nublado de Eldar.
A besta grunhiu.
— Eu sou Esuriit. Aquela que vaga e destrói, aquela que amaldiçoa
terras. Aquela que deixa um rastro de morte e desgraça com sua fome, desde
que os deuses antigos eram chamas queimando Eldar em sua ascensão. — O
chiar da besta diminuiu. — Meus irmãos e irmãs estão vindo... Os arautos da
morte.
Os Loriorans se entreolharam receosos, como se ambos
compartilhassem aquele calafrio que raspou gélido e tenebroso por seus
corpos.
A Esuriit tossiu, jorrando mais e mais sangue, banhando o chão abaixo
de seu imenso corpo com uma poça de sangue negro.
Ela estava morrendo. Mas Gwen queria mais respostas. Ela havia dito
que sua espécie estava rastejando por essas terras.
Outra vez.
Esuriit, esse era seu nome. Tão terrível e abominável quanto a própria
besta; então, se haviam mais como esse monstro e estavam vindo para os
bosques, estariam mortos.
Os arautos da morte.
— Por que atacar nossa aldeia? Somos um povo pacífico. Estamos
distantes de todos de Eldar. Não queremos sua espécie aqui. — Gwen fitou a
criatura e por um instante temeu que não obtivesse resposta quando ela
desabou por completo no chão e os olhos sem pálpebras fitaram o céu. Ela se
perguntou se a criatura era capaz de enxergar bem com aquelas órbitas
negras. Se sequer poderia contemplar um feixe de luz sem a cegar.
— Sou a Esuriit... Meu povo virá... Por ela... Matar... Vocês... Todos
dilacerados. — Então com um último arfar, ela convulsionou, morrendo.
Gwen esfregou o rosto em um suspiro, ignorando o cheiro podre de
carniça que transpirava. As palavras finais do monstro rasgando sua mente.
Nem se deu conta de que apertava o braço de Skye quando ele colocou
sua mão sobre a dela, lhe tranquilizando com o olhar. Por um instante, ela se
permitiu ser recheada pelo conforto que aqueles olhos azul-celeste lhe
traziam e pelo rosto de seu amigo vivo, exceto pelo machucado em sua testa.
— O que você acha que isso significa? — Ele perguntou, meio receoso.
Gwen levou o olhar para o monstro. Havia aquela pequena nova
sensação lhe tomando, não era medo ou terror. Era o desconhecido.
— Eu não sei. — Se o tom fraquejasse um pouco mais, seu timbre teria
falhado. Sua garganta estava se fechando e agora havia uma sensação ruim
apertando seu peito. Como um mau presságio. Aquilo não era bom. — Se ela
estava dizendo a verdade, mais criaturas como ela podem invadir o bosque.
Temos que voltar para a aldeia e avisar os anciões e os protetores do bosque.
Precisamos tomar providências.
Skye soltou uma risada seca.
Os olhos azuis sempre foram fontes de alegria e luz, eram poucas as
vezes que aquelas íris celestiais eram preenchidas por raiva ou escárnio.
Embora, agora, Gwen poderia ter um vislumbre disso.
— Eles são covardes. Não conseguiram deter essa, por que acha que
tentariam deter várias desse tipo? — O tom estava carregado de escárnio. —
Nem mesmo tentaram entender como essa coisa atravessou a barreira. Se ela
conseguiu, o que mais tem lá fora conseguirá.
Gwen arquejou ao tentar imaginar o que circundava as redondezas de
seu povo e poderia ou não entrar.
Skye tinha uma ponta de razão. Depois que os protetores dos bosques
de seu povo foram abatidos ou fugiram com medo, os anciões haviam parado
de tentar destruir a besta.
Seu povo não era de guerras ou mesmo de morte. Há muitos séculos
fora um povo forte e guerreiro, mas a chama que queimava em bravura e
guerra sobre seu povo se apagara há muito tempo, desde a criação da barreira.
A representação do povo do bosque sempre fora de paz e vida, aqueles
que possuíam o dom da natureza eram protegidos pelo deus de Eldar por
terem sido seus primeiros servos na era de luz. Quando o deus do fogo surgiu
de uma dimensão etérea acompanhado por seus irmãos e criou Eldar, antes
uma pequena linha dimensional entre o espaço contínuo, dando vida ao
universo que era o lar de Gwen.
Ela suspirou.
Os anciões de seu povo não se esforçaram o suficiente para destruir essa
ameaça e se mais vindouras estivessem por vir...
— Dessa vez eles irão. Ou serão os primeiros a serem mortos. Mas não
por essas criaturas.
O Lorioran fitou sua amiga com uma sobrancelha arqueada, embora
com um pequeno sorriso curvado nos lábios.
Ele havia compreendido o suficiente o significado de suas palavras.
Skye sempre a compreendia. Mesmo quando não havia palavras entre os dois,
ele a entendia.
— Não vou permitir que mais desses monstros entrem e eles não façam
nada. É nosso povo. Vivemos em paz durante milênios, não podemos aceitar
um massacre à nossa aldeia porque aqueles velhos idiotas são covardes.
Eles tinham feito isso, mas não mais. Ela não permitiria que eles não
fizessem nada. Até mesmo os protetores do bosque mágico se afugentaram
com a criatura.
Skye e Gwen não eram protetores. Eram meros aldeões. Embora,
diferente da maioria, eles tinham algo que nenhum deles possuía. A chama de
Eldar. A mesma chama que sempre os motivou a lutar por seu povo e a
enfrentar seus medos quando entraram no bosque atrás da criatura.
Skye a fitava atento, com os olhos cintilantes.
— Sabe, às vezes acho que alguns dos anciões tem medo de você.
Sempre me perguntei o porquê, acho que agora tenho uma pequena noção.
Gwen gargalhou, ignorando as pontadas dos arranhões e cortes no
corpo, socando o amigo no braço.
Agora, ambos encaravam o monstro que por muito pouco não os matou,
embora tenha causado um caos e horror em seu povo. Uma ferida que se
curaria. Assim ela esperava.
Se apenas uma havia feito isso, o que mais algumas dessa espécie
poderiam fazer?
Gwen estremeceu.
— Temos que encontrar os anciões logo.
Um grunhido saiu do Lorioran.
— E se eles não acreditarem em nós?
Os olhos de Skye voltaram para ela.
Ela abriu um sorriso para ele. Aquele sorriso que ele conhecia muito
bem, que por milhares de vezes os metera em confusões.
— Temos uma prova imensa para eles.

O corpo de Gwen estava dolorido, poderia ser efeito de mais uma


exaustão de uma caçada matinal pelos arredores do bosque com Skye,
embora a caça dessa vez havia sido uma criatura antiga do fosso. Quando ela
lavou seu rosto no rio, quase chorou com a imagem refletida no espelho
d'água. Os cabelos loiros estavam um emaranhado de folhas e gravetos, como
se um pardal houvesse montado um ninho em sua cabeça. O rosto pálido
estava recheado de arranhões nas maçãs do rosto corado. Os lábios estavam
ressecados mais do que o habitual e o pescoço era uma bagunça com as
marcas de sangue negro que insistiam em permanecer após a lavagem.
Embora seu antigo colar, com o pingente entalhado em carvalho
límpido, estivesse intocado, sem uma mera mancha do sangue putrefato sobre
ele.
Gwen recolheu algumas flechas que haviam caído de sua aljava durante
a fuga, no caminho de volta pelo bosque.
Haviam enterrado a ovelha da armadilha, pelo sacrifício que fora feito,
como um gesto benéfico pelo que sua morte contribuíra no abate da besta.
Skye caminhava ao seu lado, quase mancando do lado esquerdo; mesmo
depois de várias inspeções de lesões por Gwen, ele decretara que estava bem.
Mesmo que em apenas um olhar fosse possível constatar que ele estava pior
que ela.
A queda que havia despencado o deixara inconsciente pelo baque, por
seu ato imprudente em chamar a atenção da besta para que Gwen pudesse sair
de seu estupor e se concentrar em um ataque certeiro, ele só não contava com
o ataque sobre si. Ela passou um bom tempo o repreendendo por aquilo.
Sua lança revestida em uma haste de aço de magno era longa, com a
ponta afiada em um ferro de troll, que ele comprara no mercado montanhês,
quatro anos atrás, quando havia perdido sua antiga lança de madeira. A atual
estava limpa, sem nenhum resquício do sangue da besta, embainhada em um
boldrié em suas costas.
Ambos seguravam em cada lado uma ponta de um enorme galho, com
uma cabeça monstruosa e óssea espetada no centro pela boca imensa,
conforme caminhavam para sua aldeia. Não poderiam carregar o corpo da
besta, era grande demais e o peso era inquestionável, portanto, Gwen cortara
sua cabeça com uma pequena adaga que Skye trouxera em seu boldrié, a
mesma que ela o havia presenteado no equinócio passado. Tinha até mesmo
removido com dificuldade a flecha fincada no olho da Esuriit.
A caminhada dos dois, dos bosques para a aldeia, levou apenas uma
hora.
O lugar em que viviam se mantinha nas profundezas dos bosques,
protegidos pela magia antiga dos deuses nas árvores que a cercavam. Que
mesmo assim não havia impedido aquela besta de adentrar. O que ainda
causava uma pontada em Gwen.
Seu povo vivera durante séculos escondido do restante de Eldar,
cobertos pelo bosque mágico, que houvera sido encantado pelos deuses para
proteger os indefesos e puros Loriorans, não permitindo a entrada de
nenhuma criatura em sua reserva.
O ataque da Esuriit causara mais caos por esse fato do que pela criatura
em si. Qual besta demoníaca poderia destruir as barreiras celestiais com
tanta facilidade? As barreiras ainda estariam intactas? Seu povo ainda
estava seguro dos monstros que espreitavam Eldar? Eram tantas aflições.
Porém, Gwen não podia se alarmar com elas. Precisavam tomar conta de tudo
e conversar com os anciões da aldeia.
— Por um momento naquele bosque achei que não voltaria a ver isso.
— Skye murmurou em um suspiro ao seu lado, o olhar vagando para o
horizonte à frente. Gwen não respondeu, mas uma parte sua concordou.
Os olhos de Skye, por um instante, pareceram se tornar uma brisa de tão
cintilantes que se tornaram. Sempre foram impressionantes, aquele tom azul
como se fosse um cristal vivo, contendo uma essência voraz dentro.
Mas não era para o imenso e glorioso sol se pondo ao longe pelas
colinas e montanhas que seus olhos tremiam, era pelas dezenas de chalés que
despontavam em cima das árvores na colina abaixo.
No cume da colina, os dois fitaram.
A aldeia de Wenkael, o povo dos bosques.
Uma raça de elfos, denominada como Lorioran. Seres da natureza e das
árvores, que possuíam o dom elemental. Abençoados pelos antigos deuses de
Eldar e protegidos pelo deus do fogo e da vida.
Wenkael era uma reserva dominada por uma área de quilômetros
inestimável, ladeado por colinas e uma floresta colossal e antiga. Haviam
vilas nas montanhas ao norte, onde seu povo montava o mercado, e diversas
divisões de domínio sobre o ambiente.
Era um reino de paz e vida, flanqueados pela mais pura vida natural,
abençoados com a selvageria.
Mesmo a alguns metros da entrada da aldeia, o ar mágico já os atingia,
aquele frio reconfortante da magia pura da natureza de seu povo.
Podia ver com clareza os cipós se movendo sobre os chalés, as
mariposas de luz e os pardais de fogo sobrevoando o lugar encantado.
Ela sorriu junto a ele, com os dois entrando na estrada de pedras e
flores, um caminho ladrilhado que levava para a entrada da aldeia.
O lugar era repleto de dezenas de árvores e carvalhos com imensos
caules de mais de treze metros de altura, as árvores foram acomodadas pelos
seus ancestrais com estruturas próprias, interligadas por pontes de cordas
entrelaçadas por vinhas e madeira no alto de seus troncos, que facilitavam o
caminho pelos chalés nos topos das árvores.
Centenas e centenas de pequenas casas se espalhavam pelas árvores,
com a mesma proporção em terra.
As cordas nas vinhas se entrelaçavam com milhares de potes de vidro,
contendo infinitas pedras de luz, que os iluminava ao anoitecer.
Alguns pequenos elfos Loriorans avistaram os dois vindo pela estrada
de pedra; eles estavam sobre uma pedreira de rochas enormes, conjurando
magia, atraindo as raízes das árvores do chão para o ar, sorrindo para os dois
e correndo até eles.
— Gwen! Skye! — Um deles, o menor, de cabelos loiros e orelhas
pontudas e afiadas se lançou na frente de Gwen, a abraçando. Mais dois
fizeram o mesmo, enquanto Skye era cercado também.
— Oh, crianças. Cuidado. — Ela sorriu para cada um, acariciando suas
cabeças emaranhadas de cachos sedosos.
Eles a soltaram, parecendo se dar conta do que carregavam.
— O que é isso? — Um deles, de cabelos verdes, perguntou. Os olhos e
os cabelos tão intensos quanto uma folha desbotada. Parecia até parte de uma
árvore, com o tom de pele marrom e os tons verdes espalhados por ele. Ele
era lindo, todos eram. As crianças Loriorans eram um brilho encantado para
os olhos.
Gwen levou o olhar para a cabeça da criatura, em seguida, sorriu para
um Skye que continha um enorme sorriso travesso.
Pelo fogo! Ela conhecia aquele sorriso.
Ele adorava aterrorizar as crianças da aldeia com seus contos
imaginários de bestas e monstros que viviam fora do bosque. Ter uma em
suas mãos era a oportunidade perfeita para assombrá-las por solstícios.
— Isso, pequenos... — Ele se curvou para elas, ao todo seis pequenos
Loriorans, que mal tinham um metro de altura, com olhos enormes e
coloridos. — É a criatura que aterrorizava nossas terras.
Skye fez um movimento que balançou a cabeça da besta, arrancando um
gemido assustado das crianças, que em minutos fugiram para as árvores.
Alguns conjuraram cipós nos topos dos galhos, que se enrolaram neles e
os levaram para cima.
— Por que insiste em assustar eles? — Gwen o fitou, balançando a
cabeça, com um sorriso contido, vendo alguns deles correndo pelos galhos
mais altos.
Ele também parecia olhar.
Embora agora a diversão não cobrisse mais sua face.
— Eles crescem com a ideia de que estão protegidos para sempre aqui.
De que nada vai passar pela barreira mágica, então não sonham ou sabem o
tipo de horror que tem lá fora. É bom alimentar seus pesadelos, para que não
possam se amedrontar na realidade. Precisam saber que existem coisas ruins
fora de Wenkael. E que elas podem entrar aqui.
Como eles. Desde cedo, sua avó lhes preparou para tudo. Skye e Gwen
tinham sido treinados e ensinados por Gillyn Briffyn, que os preparara para
os horrores que ela sempre contava sobre as bestas de Eldar e sobre o que
espreitava fora dos bosques. A maioria das crianças de Wenkael não tiveram
aquilo. Mesmo com a escola na vila vizinha. Ela sabia que o aprendizado que
tivera não fora o mesmo.
O olhar que ele deu para ela fora cheio de significados e Gwen
retribuiu, com os dois em uma conversa de olhares, acenando um para o
outro.
— Vamos para casa, precisamos de um banho e de algo para comer —
instruiu ela, com uma voz lenta. — Depois precisamos encontrar os anciões.
Não precisou olhar para Skye para saber que ele concordava, com
ambos começando sua caminhada para casa, com a criatura entre eles. A
primeira de muitas que poderiam vir.
E que os deuses os protegessem.
4

Chegaram em um dos pequenos chalés, nos arredores do centro da


aldeia, na área de baixo, com um jardim de flores cintilantes, que ao
anoitecer, iluminavam a área junto aos Twink's, pequenas criaturas com asas
que brilhavam como chamas e que viviam nos arredores das árvores de
Wenkael. No chalé, com uma pequena janela de vidro, com madeiras velhas e
desgastadas pelo tempo, vindas dos caules de salgueiros e figueiras, a avó de
Gwen encarava os dois Loriorans com uma sobrancelha erguida e aquele
olhar severo e tenebroso de ameaça. Os olhos âmbar ganhavam um tom
laranja quando ela se tornava irritada. Quase avermelhados. Naquele
momento, o mais intenso dos laranjas ardia em suas íris como cobre. Como
brasas de forjas abrasantes.
Aqueles olhos severos sempre a lembravam o quanto a mulher poderia
ser aterrorizante irada.
Gwen e Skye não a tinham informado sobre sua jornada no bosque, ou
que enfrentariam a criatura.
Nem mesmo tinham palavras naquele momento, diante do seu olhar
fulminante, que alternava para os dois até a cabeça da criatura no chão, no
vão do portal, que transpirava o pior cheiro que se podia imaginar.
Gillyn Briffyn era alta, como a maioria das Loriorans de sua idade, que
por sinal, era um mistério para todos.
A avó de Gwen deveria ter uma quantidade inestimável de anos, porque
um Lorioran chega em sua forma mais velha somente quando viveu por
tempo demais. Apesar que a mulher, com um porte magro e longo, possuía
um olhar tão forte e decidido, com longos cabelos loiros cacheados,
enrolados em cipós em uma longa trança que caía até sua cintura.
O rosto possuía linhas de expressões, desde os cantos dos olhos ao
semblante sério franzido.
Ela não disse uma palavra a eles, outrora aqueles olhos flamejantes
pareciam os engolir.
— Vovó, eu posso explicar. — Gwen arfou, se pronunciando enfim.
Skye pareceu engolir em seco, os olhos travados em Gillyn.
A Lorioran mais velha ergueu um dedo. Aquilo foi o suficiente para que
qualquer justificativa que Gwen montara se perdesse no olimpo de sua mente.
— Não, nada do que disser vai aliviar minha ira, sua criança tola e
imprudente. — A voz grave e severa a atingiu como um pontapé. Em um
instante, quis choramingar diante daquele tom ríspido. Detestava decepcionar
sua avó, entretanto, não se arrependera do que fizera. Fora por ela. Por seu
povo. — O que vocês estavam pensando? Pela luz! Vocês poderiam ter
morrido!
— Mas não morremos. Estamos bem, e o melhor é que conseguimos
matar a besta! — Abriu os braços, levando um para trás de si, indicando a
cabeça horrenda ao chão.
Gillyn pestanejou.
— Estão vivos por uma benção, por muito pouco. Nada mais. Gwen,
você saiu para enfrentar uma criatura do fosso! Não consegue entender isso?
— Gillyn nem olhava mais para eles, massageando a cabeça como se para
afastar uma dor irritante, fitando as paredes marrons. — A custo de quê?
Você não só arriscou sua vida, como a de Skye também!
O Lorioran estremeceu.
— Gillyn eu...
— Não. Eu sei. — Sua avó cortou as palavras de Skye. Ambos
entenderam seu significado. Que mesmo que Gwen o tentasse impedir, ele
estaria com ela. Sempre esteve e sempre estaria.
Gwen fitou sua avó, erguendo o queixo, o olhar decidido e determinado.
Ela não conseguia acreditar no que ouvira. Sua avó, que sempre lhe ensinou a
defender os outros, como seu avô, do qual Gillyn nunca falava, apenas que
havia sido um Lorioran forte que lutara até o fim por seu povo na guerra.
Sua avó, que sempre lhe instruiu a ser bondosa e não permitir que
emoções ruins a invadissem. Durante seu século de existência ajudando seu
povo, Gwen executou todos os ensinamentos de Gillyn.
Por que a reprovação agora?
— A custo de quê? — repetiu as palavras, o tom trêmulo e incrédulo.
Ela riu, afastando uma emoção ruim do peito. Raiva era a pior delas.
— Ninguém estava fazendo nada a respeito. Pareciam esperar a criatura
decidir que estava satisfeita e ir embora. Ela atacou nosso povo e nosso
rebanho. Ela poderia atacar as vilas vizinhas ou a aldeia a qualquer momento,
então, foi por causa da aldeia e do nosso povo, vovó.
Gillyn se virou, fitando a neta, os olhos arregalados e o semblante
franzido. Havia um medo relampejante em seus olhos que sumiu no instante
que surgiu.
— Não é dever seu proteger a aldeia. Eu já lhe disse isso incontáveis
vezes. Quando vai entender, criança?
Criança. Aquilo sempre soou amargo na mente de Gwen. Mesmo
depois de um século de existência. Ainda era uma mera criança, talvez
sempre seria perante a visão de Gillyn.
Uma criança para ajudar seu povo, uma criança para viver sob a
proteção da barreira, incapaz de sair de Wenkael. Uma criança para conhecer
a história de sua família, de seu avô, pelos deuses! De sua própria mãe.
Gwen riu, balançando a cabeça. De fato, não era a primeira discussão.
Não quando Gwen se arriscava a caçar em lugares perigosos para ajudar
alguns aldeões famintos e pobres, ou quando caçava javalis negros que
perturbavam os chalés, ou até quando se metia em confusões caçando bestas
grandes cuja pele poderia servir como manto para aqueles que não possuíam
um nas vésperas gélidas do inverno; estava sempre se arriscando, tentando
ajudar aqueles que não podiam, porque nenhum dos protetores ou anciões de
Wenkael se empenhavam em fazer.
— Tem razão, não é meu dever. Mas é isso ou assistir o fim de
Wenkael, afinal, os anciões não se importam com nada a não ser aquelas
bundas imundas deles! — esbravejou, o olhar trêmulo e a voz falhando,
percebendo que sua avó se aproximava lentamente. Nem mesmo percebeu as
lágrimas que escorriam por sua face. — Mesmo com medo, mesmo
assustada, eu enfrentei a besta porque não podia permitir que ela ferisse meu
povo. Não podia permitir que ela a machucasse, vovó. Mesmo que morresse,
eu a enfrentaria.
Por fim, ela desabou.
Permitindo que a parede que havia erguido no instante em que entrou
naquele bosque se desmoronasse, que todo o medo, receio e pavor que a
tinham atingido lhe tomassem, agora que não estavam mais presos.
Sua avó foi rápida; em um instante a sua frente, no outro a abraçando, a
apertando tão forte que parecia afastar aquelas sombras de horror que a
dominavam.
As garras e presas ainda diante de si em flashes.
O medo. O horror e o desespero que conteve ao ver Skye ser atacado a
consumiram por fim, não mais presos.
Sentiu o peito se encolher com as lembranças. Medo.
— Eu sei, eu sei, meu amor. Está tudo bem. Você conseguiu, não é? —
Ela se afastou, retirando mechas de seu cabelo de seu rosto, limpando as
lágrimas de sua face. Os olhos âmbar fixos nos cinzentos lacrimejantes. — A
aldeia pode estar em chamas, ou com milhares desses monstros, mas,
contanto que você esteja bem, isso é a única coisa que importa. Então, pare
de se arriscar tanto, criança. Você é importante demais para se arriscar e eu
não posso te perder. Eu a amo. Você e Skye.
Um olhar para o Lorioran parado assistindo a cena, para ver que ele
chorava. Gillyn sorriu para ele, estendendo um braço. Em poucos minutos, os
três estavam em um imenso abraço apertado.
Luz tomou as sombras no peito de Gwen.
— O que fizeram... Foi uma ideia tola e perigosa. E corajosa. — Ela
murmurou sobre eles, os afastando para fitar cada um. — Mas agradeço aos
deuses que estejam bem.
Gwen sentiu aquela pressão que havia libertado se esvaindo de seu
peito. Como se o abraço de Skye e sua avó fossem labaredas de chamas
rasgando aquelas sombras que a afugentaram em seu interior.
— Eu também. — Skye brandeou, com os três rindo.
Não havia mais medo nela. Nos braços de sua família, ela estava bem.
Estava bem.

Skye sempre soubera que os anciões da aldeia eram covardes miseráveis


que se escondiam em seus chalés, se esbaldando de tônicos como porcos
imundos, aproveitando da segurança da barreira mágica e do status de poder
que tinham sobre Wenkael. Quando, enfim, tiveram uma ameaça em séculos,
eles fizeram justamente o que Skye esperava. Se esconderam. Esperando que
a besta do fosso decidisse em algum momento partir. Ele sabia que aquele
monstro não iria embora tão fácil assim, não sem antes causar a desgraça
completa em seu povo; no fundo, Skye sabia que eles também.
Quando decidiu seguir Gwen naquela loucura, ele mesmo já havia
decidido enfrentar a besta sozinho, depois de tantos ataques e nada sendo
feito. Skye tinha que tentar, então nem mesmo hesitou quando Gwen lhe
contou seu plano e do que estava se arriscando a fazer.
Embora Skye sempre a seguiria.
Mesmo se a jornada fosse para as profundezas do fosso, ele estaria ao
lado dela. Sempre. Seria seu escudo e sua defesa. Seria seu amigo, seu irmão.
Porque ele a amava. Gwen era o elo mais forte que ele tinha em toda sua
vida. Era seu vínculo de alma.
Ela e Gillyn eram sua família, desde que Gillyn o encontrara tremendo e
sozinho em uma caule, nos arredores de Wenkael, e dera a ele não apenas um
nome e título, mas um lar. Um pequeno bebê elfo sujo, machucado e
abandonado e ela decidira o criar como seu, ao lado de Gwen.
Era Skye Briffyn e se orgulhava disso, e por elas ele enfrentaria qualquer
ameaça que surgisse.
Sempre fora os dois, juntos, lado a lado. Conforme cresciam, o elo entre
ambos se fortalecia como éter celestial, uma ligação mágica de almas, um
vínculo entre dois seres, que era mais forte que um laço de irmãos. Eles
morreriam um pelo outro e viveriam um pelo outro.
Dois lados de uma mesma moeda, ambos com seus humores
temperados, cabelos loiros cintilantes e sempre metidos em confusões e
perigos ao longo de suas existências.
Nas incontáveis vezes em que se arriscaram nas colinas, caçando
quimeras ou árcades monstruosas, ou ajudando o povo da aldeia, estavam
lado a lado.
Gwen levou um olhar carregado para ele, os olhos meio cerrados, o
cinza azulado de suas íris repleto de palavras que ele conseguia traduzir.
Covardes, seus olhos diziam.
Ele acenou, concordando.
Na sala comunal do templo dos anciões, uma enorme construção de
pedra e árvores nos fundos, ao norte de Wenkael, a reunião do conselho dos
anciões e protetores acontecia.
Os quatro anciões estavam sentados em volta de uma mesa de pedra no
meio da sala, velhos inúteis e irritantes, embora transpirassem poder natural
em um mero suspirar; postados à volta os cinco protetores de Wenkael.
Todos machos idiotas e arrogantes.
Todos, cada um dos presentes, encaravam os dois Loriorans parados do
outro lado em audiência.
Skye e Gwen.
A cabeça da Esuriit, com um olho perfurado e uma abertura no crânio,
posicionada no centro da mesa, com alguns dos anciões tentando manter
expressões contidas e firmes. Skye sabia que os idiotas deviam estar se
cagando de medo e nojo. Aquilo o enchia de satisfação.
— Estão dizendo que os dois entraram no bosque e mataram a criatura?
— Um dos anciões, em uma túnica verde, indagou. O tom velho e arrastado
cheio de ironia. — Sozinhos?
Haviam contado toda a história para eles, tudo sobre o que ouviram da
criatura, cada mínimo detalhe não fora deixado de lado por eles, conforme os
anciões e protetores ouviam.
Gillyn estava do outro lado da sala, no portal de madeira, assistindo a
tudo com seus olhos flamejantes.
— Como dissemos, sim. — Gwen respondeu. O tom ríspido e frio, o
suficiente para arrancar expressões irritadas e raivosas. Era um crime ter tal
postura perante os anciões.
Seres tão antigos, que presenciaram a criação de Wenkael, como assim
contavam as histórias. Skye se perguntava se mesmo quando eram Loriorans
novos, no início de sua ascensão e poder, se seriam covardes acomodados.
Por suas expressões insolentes, ele obteve sua resposta.
O ancião de cabelos vermelhos, com uma barba que chegava ao peito e
uma túnica branca imunda, olhou para os dois minuciosamente.
Erguendo uma sobrancelha para a lança de Skye em seu boldrié e a
aljava de Gwen, nas costas de cada um. Eles nunca saíam sem elas. Gillyn os
instruiu desde cedo para nunca acreditarem no decreto de paz eterna e
segurança que os anciões anunciavam para o povo. De que a barreira sempre
os protegeria de qualquer mal afora. O que enfrentaram hoje só reforçava o
desejo de ter suas armas de prontidão.
— Por que deveríamos acreditar nisso? Que os dois conseguiram tal
feito?
Skye fechou a mão em punhos, sentindo as unhas afundarem nas
palmas. Ele se prontificou a permanecer em silêncio, sabia que se colocaria
em encrenca se abrisse a boca para aqueles idiotas.
O dedo coçava para se erguer em um gesto indecente perante a
zombaria na voz do ancião.
Não era a primeira vez dos dois naquela sala, incontáveis vezes foram
chamados para comparecer perante os quatro anciões: Kalik, Hejah, Poltrix e
Godric. Eles eram a lei e os governadores de Wenkael, eram o manto que
cuidavam do povo, ou esse deveria ser o papel a ser empenhado por eles há
centenas e centenas de anos, antes que virassem esse pedaço de merda.
Os cinco protetores eram os guardas da aldeia. Cada um deles
responsável pela proteção do povo, mesmo que houvessem fugido da criatura
feito leitões amedrontados. A língua de Skye tremeu quando a garganta
coçou com aquelas palavras não ditas.
— Por que não? Trouxemos uma prova. Coisa que seus protetores tão
hábeis não conseguiram. Se desejarem, podemos mostrar o local onde
deixamos a outra parte da criatura. — Gwen abriu um sorrisinho para eles;
por fora, parecia um sorriso simples, inocente, embora era bastante evidente o
sarcasmo na camada dele.
— Cuidado, garota. — Um deles grunhiu, cabelos brancos e o único
deles sem uma longa barba. Kalik. Os olhos continham uma chama fervendo,
como se lembrasse a ela a posição deles. O respeito que deveria ser mostrado
aos anciões porcos.
— Mesmo que, de fato, tenha sido vocês a matarem a besta. — Estalou
o outro, de cabelos pretos e túnica azul, embora de um tom marinho escuro,
diferente da coloração do tom céu dos olhos de Skye. — Como podemos
saber se é verdade o que alegam que a criatura disse?
— Se realmente mataram. — Um dos protetores zombou, com os
outros quatro o acompanhando na risada. Até mesmo um dos anciões se
juntou.
Um grunhido raivoso ecoou na garganta de Skye, permanecendo nela.
Podia jurar que Gwen mostrou as presas para eles, ao esbravejar entredentes:
— Não somos mentirosos. — Quase cuspiu nos anciões, levando o
olhar cinza para os protetores, com o canto do lábio puxado em um sorriso de
escárnio. — Nem covardes.
Os protetores rosnaram para ela. Afetados por seu comentário, com ela
se satisfazendo com suas expressões odiosas. As orelhas pontudas tremendo
em raiva.
Pelos deuses! Skye quis abraçá-la. Tendo que conjurar todas as suas
forças para não gargalhar dos malditos ou de suas expressões odiosas.
— Ninguém está dizendo o contrário, criança. — O mais velho dos
anciões, Hejah, com marcas de tempo em sua face velha e túnica quase em
frangalhos, olhou para eles. O tom de voz calmo, meio lento, como se
estivesse cansado. — Se de fato o que a criatura disse for verdade, corremos
um grande perigo.
— Preferem esperar por um ataque para comprovar as palavras dela? —
Skye se manifestou. O peito apertado ao tentar conter a raiva, a garganta
ardendo com a barreira posta sobre as ondas de palavras não ditas.
— Não podemos prever que realmente um ataque pode acontecer. A
barreira...
Gwen grunhiu interrompendo Kalik, dando um passo à frente, quando o
próprio Skye quase se viu prestes a dar.
— A barreira. — Ela olhou para os quatro. O olhar ácido e firme. —
Provavelmente nem existe mais. Ou se realmente sequer existiu.
Godric socou a mesa de granito.
— Blasfêmia! — Ele mostrou as presas ao expor os dentes para ela.
Gwen nem mesmo estremeceu com a ameaça velada do ancião. — Cuidado
com suas palavras, menina.
Ela sorriu. Pelos deuses. Suor escorreu pelo pescoço de Skye. Havia
punição severa se os anciões se sentissem ameaçados ou insultados.
— Viram o que uma dessas bestas fez. — Ela não olhou para os quatros
ao falar; apesar das palavras destinadas a todos, seu olhar estava fixo no
ancião de cabelos vermelhos no centro, com as presas ainda expostas. —
Imaginem o que uma horda pode fazer.
Gwen voltou para seu lugar. Os rostos dos anciões atrás dela pareciam
em estupor de tão pálidos ao finalmente parecerem constatar aquilo.
Alguém interrompeu o exato instante em que Godric, o ancião de
cabelos vermelhos, rosnaria alguma besteira, entrando na frente dos dois,
ficando diante dos anciões.
Os cabelos loiros amarrados em uma trança em cipós atrás da cabeça.
Gillyn.
Que os deuses os salvassem.
Ela tinha permanecido as últimas horas da reunião apenas assistindo em
silêncio enquanto eles relatavam tudo aos anciões e protetores, agora
finalmente havia decidido entrar na discussão.
— Então vão optar por não acreditarem e arriscar, mais uma vez, a
proteção do povo? — A voz soou mordaz. O chiado severo tilintando no tom.
Godric riu.
— Realmente se importa com nosso povo, Gillyn?
A avó de Gwen contraiu os músculos dos ombros, a cabeça curvando
para o lado ao fitar Godric.
— Pelo visto, mais do que qualquer de vocês.
Poltrix, que até então havia permanecido em silêncio, bufou como se
estivesse farto de tudo aquilo.
— Não há perigo aqui, se a besta está morta. Não há mais. Foi apenas
um infortúnio que ela tenha conseguido entrar em nossas barreiras, mas não
irá acontecer outra vez. Não podemos nos preparar para algo que nem
sabemos se é verídico. Não podemos nos arriscar. Mas agradecemos pelo que
fizeram, e junto aos deuses, seremos eternamente gratos aos dois por terem
abatido a besta.
Gillyn riu. O som estremeceu a base de Skye.
— Ora, mas quando vocês se arriscaram mesmo? Conseguem se
lembrar ainda? Ao invés de se esconderem feito vermes, deveriam ter
protegido o bosque. Não se acovardarem ao ponto de duas crianças fazerem o
trabalho de seus protetores.
A cabeça da Esuriit tremeu sobre a mesa quando Godric socou ela outra
vez, com uma pancada ruidosa, rosnando.
— Cuidado com sua zombaria, Gillyn! Está diante de seus anciões. —
Mostrou as presas para ela, os olhos transpirando em ira.
Gillyn nem mesmo se abateu, apenas o fitou como se fitasse um mero
animal. Ou um inseto. Aquilo só inflamou a ira do ancião.
— Vocês fingem que não estão apavorados, mas cada um de vocês está
se borrando de medo. Eu senti o cheiro amargo do medo de vocês no instante
em que entrei nesta sala. Vocês sabem que as barreiras caíram, para essa
criatura ter conseguido passar, e sabem que é questão de tempo para mais
começarem a invadir Wenkael. Precisam fazer algo.
— Não há nenhum risco. Há milênios vivemos em segurança, somos
abençoados pelo deus de Eldar. Protegidos por ele. Nada pode nos ferir
dentro dos bosques. — Godric esbravejou. Os outros não discordaram.
Gillyn pareceu em choque, incrédula com o que ouvia. A crença de cada
um sobre sua segurança era algo estúpido, a confiança que eles tinham de que
estavam sãos e salvos era ridícula quando tinham evidências de que Wenkael
possuía abertura para essas criaturas.
— Não podem estar tão cegos. Estão tão velhos assim que não
conseguem reconhecer uma criatura do fosso? — Aquele tom severo dela era
o suficiente para silenciar qualquer um. Mesmo os anciões. — Ou uma
Esuriit, porque o que está diante de vocês é bastante reconhecível para mim.
E sabem o que isso significa, não sabem?
Hejah pestanejou, quase um bocejar.
— O que, afinal?
Skye teve que se conter ainda mais, um olhar para Gwen ao seu lado,
constatando o mesmo que sua amiga.
— Se uma das criaturas do fosso conseguiu ultrapassar as barreiras
mágicas do bosque, Wenkael já não é mais segura. E se o que ela disse
realmente for verdade, mais desses monstros estão rastejando para cá. Há
muitos piores do que ela. E se não quiserem virar refeição para essas bestas,
sugiro que levantem essas bundas gordas e façam algo. Ou a desgraça das
criaturas do fosso irá cair sobre nosso povo. Outra vez. — Ela vagou o olhar
abrasante sobre cada um deles, analisando as expressões pasmas e
boquiabertas dos protetores. Com Skye e Gwen prendendo risos nos lábios.
Gillyn grunhiu para eles. — Reunião encerrada.
Ela deu as costas para eles, dando um olhar para os dois Loriorans que
seguravam o riso, indo para a saída da sala.
— Gillyn. — Godric a interrompeu a meio caminho, a voz um fio de
raiva. — Você sabe o que está atraindo essas criaturas, não sabe?
Gillyn nem mesmo se voltou para eles. Embora os ombros pareceram se
contrair ainda mais com aquelas palavras, retornando a seus passos para a
saída.
Gwen e Skye se entreolharam; com uma rápida reverência de despedida
para os anciões, eles se apressaram em acompanhá-la, no entanto, também
foram impedidos a meio caminho.
— Você deveria tomar cuidado com suas companhias, pequeno Skye,
algumas coisas são afiadas demais para se ter ao lado. E podem ser letais. —
Skye viu Gwen estremecer com as palavras zombeteiras de Godric, cheias de
veneno e escárnio por trás.
Abriu e fechou as mãos, sentindo as palmas feridas pelas unhas.
Inspirando.
Ele ignorou Godric de imediato, mas Gwen continuou parada, refletindo
sobre o sentido por trás da zombaria. Como se aquelas palavras oscilassem
por ela, quase como um eco. Um olhar para ele, para então Skye ver que
aquilo a tinha golpeado em cheio e ele quis enfiar sua lança na garganta de
cada um daqueles velhos desgraçados por isso.
No entanto, apenas ignorou a existência deles atrás dos dois, indo até
ela com um sorriso nos lábios, os olhos azuis passando palavras que ele não
poderia dizer naquele momento devido aos porcos presentes, com seu
coração se aquecendo quando viu que ela as compreendeu.
Skye segurou sua mão, com ela retribuindo o aperto, e ambos saíram
daquele lugar.
Juntos.
5

Quando a sombra da lua cobriu Wenkael como um manto, Skye e


Gwen estavam sentados lado a lado, em um dos galhos no topo de um
salgueiro. O céu acima era vasto, de um tom sombrio, com um azul-escuro
repleto de constelações sistêmicas. Ambos observavam a aldeia, quase em
vigia pelo povo lá embaixo, que ao anoitecer se amontoavam nos chalés, com
cantorias e brincadeiras. Comemorando o fim da criatura do bosque. A
notícia correu tão rápido que nem mesmo surpreendeu os dois o fato de as
pessoas estarem parabenizando os protetores do bosque. Não queriam a glória
pela morte da besta; no final das contas, aquela alegria transbordando no ar e
ver seu povo a salvo, festejando, era o suficiente. O som de flautas ecoava
pelos bosques, com tambores de madeira. A metros no solo, alguns Loriorans
festejavam, com fogueiras dedicadas aos deuses de Eldar. Pequenos
Loriorans corriam pelas escadas de cordas, outros eram levados por cipós
conjurados. Gwen sempre se atentava às conjurações de magia natural com
fascínio. A forma como seu povo dominava de forma hábil o elemento da
natureza, de conjurarem o ar, a água e a terra sob eles sempre a encantou,
mesmo quando ela descobriu não ser capaz de fazer o mesmo. Eram poucos e
raros os Loriorans que não podiam invocar o poder da natureza, era como
uma semente dentro deles, que crescia conforme eles cresciam; em
determinada fase, eles podiam conjurar uma ventania apenas com um estalar
de dedos, ou movimentar a correnteza de um rio somente com um gesto de
mãos, e haviam aqueles que controlavam as raízes e galhos de árvores.
Skye recordava com exatidão quando Gwen percebeu não ser capaz de
tais feitos, a forma como aquilo causou uma rachadura nela, que sempre fora
tão encantada por magia Lorioran; não ser portadora da semente foi um golpe
fatal para ela.
Talvez por isso Skye nunca usava suas habilidades, principalmente por
causa dela. Mesmo depois de tantos anos, sabia que ainda a feria quando via
outros conjurando magia; mesmo que por um segundo, ele conseguia captar a
expressão de lástima em sua face e aquilo acabava com ele. Skye sabia que
era capaz de conjurar magia natural, podia sentir a essência correndo por suas
veias; sempre fora bom em conter seus instintos de magia, mesmo às vezes
sendo insuportável. Com o passar dos anos, ele se adaptou à sensação de
prender tal poder dentro de si. Se sua Gwen não podia tê-lo, então ele não o
desejava.
Quando eram pequenos, os outros aldeões a provocavam, sempre
implicando com o fato de ela não possuir magia. Chamavam-na de apagada,
a sem chamas. A que não possuía a benção da natureza. Talvez por isso ela
tenha se empenhado tanto com os treinos e ensinamentos de Gillyn e se
arriscado tanto, provando seu real valor para a aldeia.
Gillyn sempre a lembrava que mesmo que não possuísse a semente de
poder dentro de si, tinha algo que nenhum outro de seu povo possuía: a
chama de Eldar queimando em coragem e determinação dentro dela. "Porque
a luz sempre vencerá a escuridão no fim", era o que a Lorioran mais velha
sempre ditava, motivando Gwen ao longo das décadas.
Então Gwen aprendeu a crescer sem aquela magia.
Skye nunca perguntou ou falou sobre isso com ela, como Gwen nunca o
questionara sobre ele nunca usar seus poderes.
Ele suspeitava que o motivo de Gillyn os ter treinado e ensinado tão
rigidamente, sempre alegando os preparar para o mundo, envolvia esse fato.
Gillyn os tornara hábeis na arte de luta e estratégias de ataque quando
eram meros Loriorans de um metro e meio. Ele ainda lembrava a primeira
lição, com os dois sobre rochas no rio, equilibrando varas para manter o
domínio sobre o corpo em prontidão.
Naquele momento, sentada ao seu lado, ela ria de um grupo de crianças
se entrelaçando em cipós, outros sendo lançados de galhos para galhos.
Ela segurava aquele cordão que ganhara quando era apenas uma bebê
Lorioran de Gillyn, desde então nunca o retirou. Gwen dizia ser a única
lembrança que possuía de sua mãe, uma Lorioran desconhecida que Gillyn se
recusava a falar sobre, mesmo com as milhares de tentativas dos dois.
Gillyn Briffyn não falava sobre o passado, decretava que determinadas
coisas tinham de permanecer em branco, enquanto ainda fossem crianças.
O único fato que informara para Gwen durante todos esses anos sobre
sua progenitora era seu nome: Talia Briffyn.
Estava com a peça em uma das mãos, apertando o pingente entalhado
em madeira, lapidado na forma de um raio solar, com as pontas dos raios
quase como lâminas, de tão afiadas e delineadas em madeira pura.
O sorriso em sua face era lindo e genuíno; parecia tão descontraída,
apesar da reunião que tiveram horas atrás, que Skye não queria interromper
aquela alegria em seus olhos, assistindo seu povo festejando feliz.
Seu corpo ainda se recuperava da caçada mais cedo, os filetes e cortes
em seu rosto provavelmente durariam uma semana, mas sua recarga de
energia já havia combatido o cansaço e a exaustão. Ele podia dizer o mesmo
de Gwen apenas por sua expressão.
Mesmo quando um lampejo inseguro passou por seu olhar.
— Você acha que eles vão fazer alguma coisa? — perguntou, vendo ela
respirar fundo, sem desviar os olhos das crianças brincando.
— Eu não sei, temo que não. Mas... Eles precisam fazer, vovó tem
razão sobre o medo deles. É bastante óbvio, mas por que eles estão tão
confiantes com uma segurança que não existe mais? Estão arriscando nosso
povo.
Skye assentiu, sentindo mais raiva que o comum dos anciões. Eles
sempre foram assim, nunca realmente fizeram nada por Wenkael, apenas se
enfiaram em uma bolha de paz e segurança que acreditam viver e nunca
saíram de lá.
Por eles, Wenkael poderia incendiar. A proteção do lugar talvez fosse
trabalho de deuses que nem mesmo existiam mais, não deles.
Havia se perguntado se os outros povos tinham ou estavam sob ataque
de uma daquelas bestas. Sempre se pegava pensando no mundo afora, nos
outros povos que nunca conhecera.
Como eram, como viviam, e seus povos, se seriam semelhantes ao povo
de Wenkael ou distintos.
Se mais daquelas criaturas invadissem os bosques viriam para Wenkael,
então o caos se instalaria em seu lar, que fora tão repleto de paz e
tranquilidade por tanto tempo que o mero risco de aquilo acabar dessa forma
era perturbador.
Os arautos da morte, aquela voz serpentina asquerosa ecoou em sua
mente, com um breve tremor o tomando com a lembrança.
Balançou a cabeça com um flash de visão que raspou por seus olhos, da
aldeia em chamas com milhares daquela criatura assassinando os aldeões.
Não, não, não!
Inspirou fundo, fitando o vasto céu estrelado. Outra recordação
surgindo, de horas atrás. Gwen pareceu reconhecer isso em seu semblante.
— O que você acha que Godric quis dizer para Gillyn? Sobre ela saber
o motivo das criaturas virem para cá? — Gwen indagou e, quando ele levou o
olhar para ela, encontrou olhos cinzas nebulosos o fitando.
Engoliu em seco, pensando e avaliando, tentando encontrar uma
resposta adequada para a pergunta que ele mesmo se fazia desde que saíram
da reunião do conselho.
— Eu não sei. Provavelmente mais uma de suas provocações. Godric é
o pior deles, cada palavra dita por ele é um veneno. Não dê importância ao
que aquele velho desgraçado diz. Não vale a pena.
Gwen apertou sua mão enquanto a outra ainda segurava o pingente de
raio de sol de madeira.
— Tem razão. — Suspirou mais uma vez, os olhos descendo para o
povo abaixo deles. — Estão há tanto tempo vivendo sob uma ideia de
segurança que não imaginam o perigo que podem estar correndo. Essa
barreira nos tornou um povo acomodado, crentes com a proteção eterna, que
não somos capazes de nos defender. Se mais daquilo invadir Wenkael, será
um massacre.
Um aperto se formou na garganta de Skye, que não conseguiu
responder. Não precisava, no final das contas, ela tinha arrancado seus
pensamentos e os pronunciado com exatidão.
Se a Esuriit estivesse dizendo a verdade, quanto tempo eles teriam?
Quantos sobreviveriam a um ataque daquela espécie?
Apenas com um olhar para seu povo alegre e brincalhão, tão frágil e
indefeso, ele obteve a amarga resposta a sua constatação.
Precisavam fazer algo. Os anciões. Mesmo que não lutassem ou
reforçassem as proteções da barreira do bosque. Precisavam avisar o povo.
Alertá-los sobre o mal que poderia chegar. Pelos deuses. Ele mesmo o faria
se aqueles velhos idiotas não fizessem.
Ele colocou seus receios em palavras para Gwen, que concluiu tudo em
instantes.
Uma risada amarga escapou de seus lábios, com uma pontada dolorosa
ecoando no timbre.
— Não irão. Não vão correr o risco de causar pânico em massa na
aldeia sem terem certeza de um possível ataque. — Ela apertou o pingente.
— Não acreditaram na história da criatura, talvez nem mesmo em nós.
— Eles são tolos. — Skye rosnou. — É questão de tempo para mais
dessas bestas entrarem no bosque. A invasão desta já é prova suficiente de
que a barreira está fraca.
A Lorioran apenas assentiu, o semblante preenchido por diversas
emoções. Nenhuma boa.
— Eu sei que provavelmente é tolice, no entanto, eu estive me
questionando... — Ela o fitou com fervor nos olhos. — E se essas barreiras
mágicas caíram há muito tempo? Ou se elas sequer existiram?
Ele arregalou os olhos, arquejando.
Um nó se formou em sua garganta, com ele o engolindo em seco. Por
um instante seu suor esfriou. Tais questionamentos eram proibidos. Jamais se
impuseram a duvidar do poder da barreira mágica. Até agora.
— Acha que a proteção dos deuses sobre Wenkael fora uma mentira?
Gwen deu de ombros, o tom diminuindo, como se mesmo sob a
balbúrdia da festa abaixo, seu povo, com a audição apurada, a conseguisse
ouvir.
— Quem sabe? Nosso povo conta essa mesma história desde os
primórdios. Mas e se Wenkael nunca teve uma barreira de proteção? Ou se tal
barreira há muito tempo enfraqueceu e caiu?
Levando uma mão para a nuca repleta de cachos dourados, Skye coçou
a cabeça com um resmungo.
Wenkael, há um tempo jamais conhecido, fora um povo unido aos
outros povos de Eldar. Então, na guerra do Éter, por ser um povo pacífico e
indefeso, o deus de Eldar os protegeu da destruição completa, lançando uma
barreira de proteção ao redor da aldeia, em respeito e honra pelos milhares de
seu povo que pereceram na guerra.
O bosque mágico passara a ter, então, uma barreira divina. Uma barreira
de poder celestial que impedia qualquer criatura demoníaca ou feral de
invadir seu povo, o que culminou no distanciamento dos outros povos a
Wenkael, com medo da proteção, os tornando um povo distante e protegido
do resto de Eldar.
Skye não tinha idade suficiente para lembrar se todos esses contos e
fatos eram verídicos; a guerra do Éter havia sido há centenas de anos e ele e
Gwen nasceram dois anos após o fim dela.
Já nasceram na era de luz, como ficaram conhecidos os séculos após a
guerra do Éter.
Mesmo Gillyn, que possuía uma idade jamais questionável, não falava
sobre o caos daquela época. As histórias contadas aos dois quando pequenos
eram aterrorizantes. Sobre a longa batalha travada entre os dois irmãos
celestiais, os dois deuses de mais poder de Eldar. O deus do fogo e da luz, e
sua irmã, a deusa da morte e das sombras. Nenhum de seus outros irmãos
ousaram intervir, eram deuses menores perante os dois grandes. Aqueles que
trouxeram a essência do mundo, batalhando um contra o outro pelo domínio
do mundo que criaram.
Sobre como nos anos de guerra os seres celestes duelaram sob os céus,
então só havia luz e escuridão sobre Eldar. E quando estavam sobre a terra,
Eldar estremecia com os imensos titãs em suas formas Feänor, o imenso
dragão de luz contra a imensa serpente de sombras. Com o poder sombrio e
majestoso da deusa das sombras e da morte quase prevalecendo sobre os de
luz do irmão.
Gillyn lhes contara sobre os anos da guerra de Eldar, que antes de seu
fim perdurou por cinquenta anos, quando a deusa da morte quis domínio
sobre tudo, lançando suas primeiras criaturas demoníacas sobre toda Eldar,
levando destruição e desgraça por todo o reino. Foi aí que o deus do fogo a
impediu, com a ajuda de seu povo, travando uma guerra etérea contra a deusa
e suas bestas. A guerra do Éter.
Ao fim da guerra, a deusa fora lançada e presa em um lugar
abominável, junto com seu exército profano, um lugar onde não havia luz, só
pragas e morte, o fosso. A única parte do mundo onde os deuses não
terminaram sua criação. Um lugar vazio.
Fora na guerra que os pais de Gwen e o avô morrera, provavelmente os
de Skye, era o que ele sempre tentava alegar para si mesmo ao invés de
aceitar a ideia de que fora abandonado em um caule de árvore.
Depois de todos os anos de caos em Eldar, durante a batalha dos deuses,
o deus do fogo viu a destruição do povo Lorioran, que mesmo não tendo
habilidades de guerra, lutou por ele junto ao restante do povo de Eldar, e os
abençoou com a barreira de proteção eterna. Para que qualquer ser maligno
que ousasse invadir seu povo tivesse sua existência dizimada ao atravessar a
barreira.
Durante o século de vida de ambos, eles sabiam que nada nem ninguém
indesejado entrava no bosque. Seu povo aprendera a viver e prosperar
naquela bolha de proteção. Afastado de tudo e todos. Sempre protegidos. Até
o dia de hoje.
Contudo, nem mesmo um indício do deus que os abençoara durante
todo esse tempo, Skye às vezes se perguntava se tudo aquilo não passava de
história e contos sobre deuses gigantes gladiando sob os céus, e até mesmo
sobre a barreira mágica.
Mas a Esuriit era o ponto principal em seus temores.
E se existem mais desses monstros lá fora, como não foram atacados
antes? E por que justo agora?
— Isso é loucura. Não tem como não ter havido uma barreira lá antes,
senão Wenkael já teria sido atacada há muito tempo.
Ela pareceu refletir sobre isso, assentindo depois de minutos. Talvez
tudo o que ele mesmo refletiu tenha sido um reflexo dos pensamentos dela.
— Tem razão — concluiu. — Então, por que justo agora a barreira
falhou com a Esuriit? Acha que ela é tão poderosa assim para ultrapassar uma
barreira mágica criada por um deus?
Mil anos esperando. Fora o que a besta dissera.
Skye engoliu em seco.
— Não sei — chiou em um grunhido. — Mas espero que ela ainda
esteja lá, caso não, que outros tipos de monstros virão?
Gwen desviou o olhar do seu, mas ele podia imaginar o temor que
cintilou por suas íris, semelhante ao que vibrou pelas suas. Ou o estremecer,
revestido por um calafrio, em seus corpos.
Tinha que mudar de assunto, mesmo ele que adorava assombrar as
crianças da aldeia com contos de monstros estava assustado, por que dessa
vez os monstros eram reais e poderiam estar vindo para eles.
E eles não tinham ideia do que fazer.

A noite estava tão calma, mesmo com a comemoração de seu povo. A


lua parecia cantar uma melodia fria e harmoniosa sobre eles, com o chiar do
vento leve e gélido por eles; era algo tão tranquilizante e aconchegante, que
Gwen poderia se encostar no tronco e adormecer, embora, diferente do
ambiente a sua volta, sua mente estava um caos. Temia que tudo aquilo fosse
a calmaria antes da tempestade. A mera ideia de sua aldeia em perigo a
deixava em aflição, não conseguia captar sequer um pensamento diferente
para distrair seus medos.
Ela sabia que havia a possibilidade de os anciões não fazerem nada.
Eles nem mesmo acreditaram na história que contaram sobre a Esuriit.
Sabia que estavam acomodados na ideia de segurança da barreira e não
se permitiam a noção de que poderiam estar em perigo, depois de tanto tempo
seguros.
Mesmo ela, que nascera logo após a criação da barreira, século depois,
fora ensinada a não confiar na segurança celestial. Mesmo nunca se
arriscando a chegar nos limites da fronteira a ponto de ver algo os
protegendo, ou sequer ultrapassá-la.
Eram proibidos de sair de Wenkael. Os anciões e Loriorans mais velhos
tinham permissão para comércio com os povos vizinhos, porém, nem mesmo
eles saíam. Os mais jovens eram proibidos até de se aproximarem dos limites
da barreira, com punição severa caso desobedecessem.
O mais perto que chegou de sair fora se aventurar nas colinas ao sul,
mesmo à quilômetros da fronteira.
Sua avó tinha ensinado a eles sobre o mundo lá fora, mesmo presos e
seguros dentro da barreira, afastados de Eldar; Gillyn queria que eles
conhecessem sobre os outros povos.
Elrond.
Thauzand.
Elora.
Os anciões enchiam a cabeça das crianças que os outros povos de Eldar
eram tão tenebrosos quanto as bestas que espreitavam o reino.
Gillyn os havia instruído sobre cada parte de Eldar, sobre o principal
povo do deus do fogo, os Feänors, o povo de Elrond que controlava o
domínio da magia celestial. Tinha narrado o conto sobre a criação de Eldar
todas as noites.
Sobre o primeiro reino, o Éter, o reino dos deuses, onde uma fagulha do
poder que os irmãos celestiais lançaram sobre Eldar criaram o primeiro ser
vivo. Que passou a viver no reino de Éter, criado da essência do poder do
deus do fogo e que logo teve uma companhia para compartilhar o reino
consigo, uma mulher, criada da essência do poder da deusa da morte.
O reino Éter era um lugar que exalava o poder dos deuses, seres de luz
que mal se podiam enxergar em sua forma celestial. Onde habitam, o deus
dos mares e do ar, dos animais e da natureza, do tempo e do clima e diversos
outros. Seres de uma dimensão oca, vagando pelo véu do universo,
entrelinhas da realidade, até chegarem ao espaço contínuo de Eldar,
acompanhados pelos dois grandes. Aqueles que possuíam muitos nomes, o
deus do sol e a deusa da lua, o deus da luz e a deusa das sombras, o deus da
vida e a deusa da morte. Os dois grandes que eram responsáveis pelo
equilíbrio natural do universo.
Então, depois que criaram os primeiros seres vivos, criaram um reino
onde suas crianças mortais poderiam viver e criaram um jardim para que eles
pudessem descansar depois de sua longa criação.
No jardim haviam surgido mais seres, criados dos suspiros dos deuses:
os primeiros animais. Enquanto o deus criava seres dóceis e lindos, a deusa
transpirava de sua essência seres ferozes com garras. No jardim do Éter, os
deuses criaram seu lugar de descanso e criaram seus frutos com toques de seu
poder. As árvores de luz alimentadas pela essência divina dos deuses que
habitavam o reino. Que os contos diziam possuir frutos etéreos que
continham um frasco do poder dos seres divinos. De cada um.
Eles decretaram para os dois primeiros mortais, que viviam sob sua
adoração em Eldar, que o jardim era um lugar sagrado e nenhum fruto
poderia ser colhido.
Os mortais, durante muito tempo, seguiram as leis dos deuses. Eldar aos
poucos foi se tornando um vasto mundo, os mortais tiveram dois filhos, e
viveram sob a proteção e convívio dos deuses por anos e anos.
Mas o mortal percebeu que sua vida seria curta quando sua única
parceira no mundo adoeceu. Os deuses se negaram a salvar sua frágil vida.
Era questão de tempo até restar apenas um dos primeiros mortais. Então,
numa tentativa desesperada, o mortal invadiu o jardim celestial do Éter e
roubou um dos frutos de luz. Ao mero toque no fruto ele sentiu a onda de
poder que irradiava, mal podia enxergar devido à luz que transbordava e
sabia que aquilo salvaria sua companheira; portanto assim o fez, levou para
ela e a mortal, em seus últimos suspiros, mordeu.
Ela foi tomada e rasgada pelo poder da essência dos deuses no fruto, sua
vida mortal foi roubada e restaurada pela luz de fogo. Então, ela renasceu,
não mais mortal, apenas ascendeu em vida e poder.
A fúria dos deuses rasgou os céus com sua ira. Dizem que as nuvens são
traços do poder deles. A deusa da morte explodiu em raiva e amargura
quando percebeu o que houvera sido feito, a traição de sua criação. Ela e o
irmão puniram o mortal pelo crime, a deusa da morte tomou sua vida em um
sopro pelo que fizera ao quebrar o equilíbrio da balança natural, e então ela
tomou toda sua essência de vida restante, o tornando em nada.
Antes que o mesmo lhe acontecesse, a mortal renascida fugiu e teve a
ajuda do deus do fogo, que se compadeceu por ela em fascínio, quando
percebeu que a mortal gerava outro ser vivo em seu ventre. Um terceiro filho.
Que seria diferente dos outros e de tudo. Sabia também que não era mais
sequer mortal, sabia que ela possuía um terço do seu poder e o de seus irmãos
pelo fruto roubado e que sua prole herdaria o mesmo. Por isso a protegeu,
com a ideia de uma nova espécie proliferando em seu novo mundo, a
esperança do que poderia vir a ser aquela prole. O início do primeiro povo de
Eldar, o primeiro Feänor. Um ser com um terço das habilidades celestiais.
E então, amargurada pela traição do irmão, a deusa sombria lançou seu
poder sobre o mundo, a vastidão da energia criou seres e povos, modificando
a realidade e iniciando uma era de ódio e rancor pelo irmão, se exilando em
um reino sombrio nos confins de Eldar.
Gwen sempre fora fascinada pelo conto do primeiro Feänor e da criação
de Eldar, mesmo não acreditando totalmente na história.
Gillyn sempre falava que contos antigos e velhos tendem a ser
modificados com o passar dos tempos, perdendo um pouco de sua realidade.
— Estamos demorando aqui por que estamos com medo de voltar para
casa e enfrentar Gillyn, não é? — Skye a trouxe de volta de seus devaneios, a
cutucando com o cotovelo.
Gwen sorriu, dando de ombros.
— Com certeza.
— Acho que ela consegue ser mais assustadora que a própria Esuriit. —
Skye deixou escapar, com Gwen levando seu olhar incrédulo para ele,
cerrando as sobrancelhas. Ele sorriu sem jeito com o olhar dela, até que em
minutos os dois caíram em uma gargalhada, com ela concordando.
— Definitivamente. — Gwen emendou, ainda rindo. — Lembra quando
ela nos fez passar o dia inteiro na biblioteca de Wenkael? E se voltássemos
antes do raiar do sol elas nos cozinharia vivos?
A lembrança raspou por sua mente. O dia inteiro estudando sobre os
povos de Eldar, as páginas em folhas de árvores revestidas em uma capa de
cascalho dos livros antigos, quase se rasgaram de tanto que eles as folhearam.
— Ou da caça aos coelhos no bosque, lembra? Quem conseguisse
capturar mais vencia. — Skye recordou.
Gwen o cutucou dessa vez.
— Eu sempre vencia — afirmou em uma pose de arrogância fingida.
Ele a empurrou zombando.
— Porque eu deixava.
Uma sobrancelha loira da Lorioran se ergueu.
O riso preso nos lábios.
— Você passou cinquenta anos com medo dos coelhinhos, Skye! —
constatou, com ele corando. — Pelos deuses! Você ainda deve ter medo.
Ele bufou, resmungando.
— Eles são tenebrosos com aqueles olhos vermelhos. — Seu corpo
estremeceu, como se uma brisa congelante o abraçasse. — E aqueles dentes
enormes como presas!
Ainda rindo, Gwen se encostou nele, apoiando a cabeça em seu ombro,
olhando para as constelações acima.
— Se bem me lembro, seu primeiro amor tinha olhos vermelhos, não
era? — Gwen fez um bico, com uma expressão pensativa. — Como era o
nome dele mesmo?
— Goltan. E ele era um idiota. — Skye respondeu a contragosto. —
Bom, não tanto quanto o pai.
Gwen teve que concordar. O primeiro Lorioran que Skye gostara,
quando percebeu na infância que gostava de garotos, foi o pior deles. O filho
de um dos anciões. O pior dos anciões. Godric.
Ela lembrava com exatidão o quanto o babaca magoara seu amigo
quando eles eram pequenos; ele costumava ser um idiota arrogante, sempre a
provocando pelo fato de não ter o dom natural. Pelo visto, não mudara nada
em todos esses anos, agora que fazia parte da guarda dos protetores de
Wenkael.
O que trouxe uma pequena faísca de memória a Gwen da reunião de
mais cedo. Ela tinha flagrado Goltan fitando Skye o tempo inteiro na reunião.
Não desgrudara os olhos de seu amigo, enquanto esse ignorava a existência
do macho ruivo que o fitava.
Gwen agradecera por essa paixonite do amigo não ter sido tão
duradoura, quando ele percebeu o babaca que Goltan era. Mesmo sendo um
dos machos mais bonitos da aldeia, com aquele porte musculoso, olhos e
cabelos vermelhos. Era um idiota.
Ela e Skye eram bem diferentes dos Loriorans de sua idade; pelos seus
estudos, se fossem meros mortais, como os primeiros seres de Eldar, sua
aparência e fisionomia os colocaria na idade de uns dezessete anos de
existência.
Gillyn os havia feito estudar sobre tudo isso, sobre o espaço contínuo, o
envelhecimento tardio do povo de Eldar. Quase imortais. Mas, o que se
poderia passar em duas décadas para um mero mortal, seria o equivalente a
cinco anos para o povo de Eldar.
Os descendentes da primeira mulher mortal, a progenitora da primeira
Feänor, alguns da linhagem não possuíam os traços eldarianos, então eram
considerados mortais por seu envelhecimento normal, ainda restam poucos
deles, pelo que as histórias contam.
Seres mortais, descendentes dos dois primeiros filhos da primeira
mortal, ainda vagando por Eldar.
Seres comuns, sem habilidades como ela, sem os traços que o povo de
Eldar possuía, como as orelhas pontudas, as presas afiadas, a força e a
recuperação de energia rápida. E sem o envelhecimento lento.
Havia livros sobre eles, sobre sua linguagem e suas vidas passageiras
em Eldar. O mais velho deles poderia atingir os sessenta ou oitenta anos, se
alguma doença ou fraqueza mortal não os matassem antes.
Por muito tempo Gwen se perguntou que outras diferenças teriam deles,
o controle das emoções e sentimentos. Ela sempre sopesava seu século de
existência para meros cinquenta a oitenta anos de vida, envelhecendo tão
rápido. Não parecia tão assustador com o passar dos anos.
E a falta de magia.
Alguns de sua aldeia, em sua infância, a provocavam com nomes cruéis
por sua incapacidade de conjurar magia. Alguns chegaram a chamá-la de
mortal.
Ela se perguntou como seria ser uma, uma mera adolescente mortal de
dezessete anos, com alguns anos a mais de vida, vivendo em um reino com
seres e criaturas mágicas, divididos em povos.
— Acha que o pai finalmente descobriu sobre ele? — Skye indagou,
outra vez a trazendo para a realidade.
Gwen piscou, recapitulando sua pergunta, suspirando quando a
compreendeu enfim.
— Com certeza não. Seu pai é um troglodita, se soubesse que seu
filhotinho não é tão macho assim, com certeza surtaria. — Nem precisou
olhar para Skye para saber que ele concordava.
Ela fora a primeira pessoa para quem Skye contara quando descobriu
que era diferente dos outros machos Loriorans.
Se lembrou do medo dele de se aceitar como era, achando que havia
algo de errado com ele, de que os outros o achariam uma abominação. Um
anormal. De que ela o detestaria por isso. Seu maior medo, afinal, era de que
ela, acima de todos, não o aceitasse.
Um frasco de memória se implantou em sua mente e ela sorriu com a
recordação.
De dois Loriorans pequenos, sentados sobre rochas nas colinas,
assistindo o anoitecer, podendo ouvir os gritos de Gillyn na aldeia abaixo a
procura deles.
Skye chorou enquanto contava seu segredo para sua única amiga. Ele
chorou quando ela o abraçou ao fim de suas palavras e confirmou que nada
poderia mudar o amor que sentia por ele. Que um mero traço dele não
mudava nada da visão que tinha do garoto incrível que ela amava. Que só
acrescentava. E jurou naquela noite que se alguém da aldeia tivesse uma
opinião diferente sobre seu amigo ou sequer o importunasse, se veria na mira
de sua flecha. E que os deuses os ajudassem.
Naquela noite eles criaram seu juramento ao unirem suas testas e
entrelaçarem seus dedos mindinhos, prometendo sempre estarem juntos. Fora
uma promessa de alma. Mesmo eles não sabendo naquela época que criaram
um éter celestial, um vínculo divino entre duas almas.
Levou seu olhar para ele; com pequenas gotinhas se projetando nos
cantos de seus olhos com a lembrança, ela piscou para afastá-las, apertando a
mão de seu amigo.
— É melhor irmos, caso... — Skye não conseguiu terminar a frase
quando um estrondo ensurdecedor ecoou por toda a relva, seguido por vários
gritos.
Os pelos de Gwen se eriçaram em alerta, com suas orelhas tremendo na
captação do som.
Skye também, ela percebera.
Em instantes, trocaram um olhar alarmado, se erguendo às pressas,
correndo pelas árvores através das ripas nas escadas de cordas, saltando com
uma habilidade de décadas de prática, correndo, se lançando dos galhos
estreitos para a direção do barulho.
A música e a festa pararam, o barulho dos gritos ecoou por todo o lugar
conforme os dois saltavam pelos galhos.
Eles pousaram em um galho alto, no início do trecho que levava à
entrada da aldeia. O coração latejando em agonia.
Então viram o que causou todo o alarde estrondoso.
Vários aldeões corriam aos berros, com crianças passando por eles,
saltando para longe, fugindo.
— Monstros! — Uma das crianças gritou em meio ao choro. —
Milhares deles!
Um calafrio macabro estremeceu o corpo de Gwen quando ela
semicerrou os olhos, apurando a visão em meio à noite, fitando os vários
metros além das colinas, na direção do bosque.
Não precisou ver para saber do que se tratava. Uma ventania golpeou os
dois no galho, chacoalhando os arbustos das árvores, trazendo um cheiro
podre de carniça consigo. O mesmo cheiro que sentiram no bosque mais cedo
na caçada.
Um ofego, que poderia ser um choramingo, escapou de Skye ao seu
lado e ela não conseguiu se virar para ele. Estava petrificada pelo terror atroz
que a rasgou.
Ao longe, ela finalmente enxergou o caos que vinha na direção da
aldeia, ou melhor, que rastejava para eles.
Centenas e centenas.
Seu corpo estremeceu por completo em assombro quando, diante deles,
ela observou as últimas palavras da Esuriit se concretizarem.
Então a aldeia foi atacada.
6

Haviam vários daqueles monstros, semelhantes a Esuriit, uma


multidão deles, como um mutirão daquelas criaturas, quase um furacão de
bestas, centenas e centenas delas. Foi apenas em um piscar de olhos para que
elas se lançassem para as árvores, atacando e rosnando berros demoníacos.
Os dois, paralisados no galho, ofegaram quando assistiram um aldeão
que não conseguiu correr a tempo ser pego pela enorme cauda de um deles; a
besta se enrolou, dando voltas no aldeão berrante, se enroscando em seu
corpo. Em segundos as garras da criatura trabalharam, rasgando e dilacerando
o Lorioran, com sua cabeça decepada voando no ar e a rajada de sangue
tingindo o campo.
Gwen voltou a si, grunhindo um guinchar de terror; tinha apanhado sua
aljava com o arco, do galho em que estava acomodada com Skye, no instante
em que saíram há alguns minutos quando correram pelas árvores.
Ela se virou para ele, ambos se erguendo em uníssono, a lança de Skye
já em sua mão, empunhada.
Não trocaram palavras, apenas um olhar foi o suficiente para que eles se
pronunciassem. Um único aviso prévio lampejou em um reflexo no olhar de
ambos. Cuidado.
Então ambos correram. Apenas flashes de sombras, meros vultos
velozes pelos galhos dos carvalhos, atravessando pelos mastros longos e
altos.
— Fujam! — gritaram para os aldeões correndo abaixo de si. Em
poucos minutos, o caos se alastrou por toda a aldeia.
Ela dizia para si mesma que Gillyn estava bem, sua avó sabia se cuidar
melhor do que ninguém.
Estava bem. Estava bem. Estava bem.
Tinha de estar.
Gwen saltou para um galho à distância, pousando na haste, correndo
pela escada de cordas; retirou o arco das costas, empunhando a bainha, sem
cessar seus passos.
Alguns jovens Loriorans corriam na colina metros abaixo do topo da
escada onde ela se encontrava, bem no centro da direção em que eles corriam.
Logo atrás deles, a uns metros, nos montes, bem no outeiro, duas
enormes criaturas se lançaram para eles, as garras afiadas em riste para o
ataque.
Gwen não focou na pele serpentina branca, ou na cabeça oca e óssea,
seus olhos cerraram quando ela focou no alvo.
Viu uma figura saltar nos galhos, relaxando a postura quando
reconheceu cabelos dourados em sua visão periférica.
Em um movimento veloz, capturou uma flecha da aljava, agora cheia,
posicionando o arco sem contrair ou titubear um músculo do corpo.
Seu movimento era uma sincronia perfeita e calculada, cada senso de
coordenação motora com o arco sob controle.
Seu senso de direção foi um cálculo certeiro, ela guiou o braço na
direção armada e puxou a ponta da flecha com exatidão, os olhos de águia
pegaram a besta mais próxima do grupo, que já ultrapassava a outra.
Ela sorriu e mirou no exato instante em que a besta se lançou com um
impulso de sua cauda para o ar, a metros de conseguir agarrar os Loriorans
em fuga e Gwen então soltou a flecha.
O disparo foi um borrão voraz rasgando o ar, seguido por um guincho
horripilante de um grito mortal que ecoou por todo o vale, vindo da criatura
quando a flecha se alojou em sua testa, perfurando o crânio, matando a besta.
Antes que a besta pudesse sequer cair no chão, sua companheira rosnou
em ódio, se lançando para o grupo que já alcançava a entrada da fronteira da
aldeia.
Não foi veloz o suficiente para apanhar outra flecha quando a criatura se
lançou em um salto mortal para o grupo em fuga.
Um dos aldeões, que não conseguia acompanhar o grupo rápido o
suficiente, seria destroçado diante dela quando em instantes a criatura o
capturasse.
Gwen arfou, a respiração travando.
Então algo saltou das árvores, em direção à besta, que jorrou um urro
em surpresa pelo ataque, quando um Lorioran disparou do céu, para ela, uma
lança prateada em riste e cabelos cintilantes balançando no ar. Quando
aterrissou sobre a criatura, derrubando-a, as solas das botas de couro
atingindo o rosto, com uma lança se enterrando em sua boca, enquanto seu
corpo se convulsionava em espasmos sob Skye.
O coração de Gwen batia veloz em desespero e aflição, ela trancou
aquilo, todas as emoções ruins, da forma como sua avó a ensinara quando
pequena, a criar um baú dentro de si e guardar todas as emoções que a
afugentavam dentro dele. Não deixe as más emoções a dominarem, Gwen.
Ela sempre dizia. Suas emoções são como escuridão, se permitir, ela a irá
consumir. Seja luz. Estava lançando seus temores e medos dentro daquele
velho baú naquele instante, quando observou Skye saltar do corpo da criatura
no chão, removendo sua lança, correndo adiante.
Um suspiro saiu por seus lábios trêmulos. Ela logo viu que conseguiram
salvar o grupo que já havia fugido. Mas ainda tinham muitos para ajudar. E
muitas daquelas criaturas para matar.
Seu olhar varreu todo o local, empunhando mais uma flecha no
processo, as criaturas começando a subir nas árvores, se enroscando nos
galhos.
Uma besta rastejou sorrateira contra uma Lorioran fêmea, vindo por sua
retaguarda, preparada para matar, quando uma flecha furiosa atravessou seu
crânio, perfurando.
Gwen empunhou mais uma quando o corpo imenso da besta caiu sem
vida, com a Lorioran abaixo se assustando ao perceber o corpo atrás de si,
levando o olhar para Gwen acima, em uma reverência chorosa em
agradecimento, correndo para longe em seguida.
Mais e mais aldeões eram puxados pelo ar por longas caudas que os
capturavam dos galhos. Sangue jorrava dos topos dos carvalhos. Sua terra,
que sempre fora um vislumbre de paraíso, com a grama de um verde vivo, se
manchava com a devassidão de uma onda de sangue.
Aquilo era o vislumbre do inferno.
Gotas e mais gotas ricochetearam do céu; por um momento, ela achou
que fosse chuva. E de fato era, uma chuva de sangue.
Uma garoa sangrenta.
Ela quis gritar com a visão que teve de sua aldeia, que há poucos
minutos estava em paz, festejando em alegria.
Agora, vários chalés estavam em chamas ou destroçados, com vários de
seu povo sendo atacados por aquelas bestas.
Gwen gritou quando viu um aldeão ser engolido; seus joelhos
tremeram, o sangue em sua corrente sanguínea congelou, com seu estômago
embrulhando com a visão da criatura erguendo o corpo do Lorioran pela
boca, a fenda bucal enorme se expandido a uma proporção abominável, se
alargando para deslizar o corpo inteiro do aldeão.
Correu em um rugido de ódio, mas era tarde demais, a criatura já o
havia engolido e rastejava com dificuldade devido ao imenso corpo dentro de
si para mais um ataque.
Gwen disparou sua flecha em riste, atingindo o flanco do demônio, que
rastejou para longe.
Gritos e mais gritos preencheram o vale.
Seu peito parecia ser bombardeado, gritos raspavam sua garganta,
arranhando a ponto de ela sentir o gosto de sangue. A respiração incessante e
tenebrosa.
Terror.
Medo.
Aflição.
Desespero.
Estavam a dominando. A escuridão a estava tomando, enfim.
Ela fechou os olhos, impulsionando, respirando.
A voz de sua avó ecoou em sua cabeça: Seja luz, Gwen.
Cessando a gritaria em sua cabeça, criando aquele espaço, o olimpo de
sua mente, vendo o velho baú de emoções ruins, e lançou cada parte que a
aterrorizava para aquele troço. Precisava aguentar aquela pressão ameaçando
liberar a tranca do baú. Ela conseguiria. Tinha que conseguir.
Então abriu os olhos.
Tão nublados quanto uma tempestade.
Um tornado de fúria e ódio.
Cessou seus passos em uma rota, parando, analisando, pensando.
Desviando das ripas de madeiras que caíam dos carvalhos. Precisava ter
calma, precisava de uma lógica de ataque.
Levou o olhar para o chão, à frente da entrada da aldeia, vendo vários
protetores lutando contra as bestas. Eles estavam lutando por seu povo.
Seu peito se apertou com aquilo, mas seus olhos não permaneceram
neles, parando sua inspeção ao encontrar Skye atacando uma das criaturas.
Ele era como uma besta selvagem, girava o corpo no movimento da lança,
rodopiando no ar; a sincronia de ataque era perfeita e letal para seu oponente.
Se tornara um só com sua lança.
Rodopiou o olhar pelo lugar, cada área sendo massacrada, vendo alguns
de seu povo combatendo as criaturas, alguns sendo golpeados e dilacerados
em meros golpes.
Vários cipós se projetaram do chão, atingindo as bestas, com raízes
grossas golpeando com pura ira, retribuindo o ataque. Seu povo, os inocentes
e puros Loriorans, sendo atacados e tentando a todo custo se defender,
mesmo sem nenhum conhecimento de ataque. Depois de todos esses malditos
anos acreditando em uma proteção que os colocou em risco por os tornar
acomodados e fracos.
Girou a cabeça, procurando e, enfim, encontrou sua prioridade. O peito
queimando em um ódio tão devastador que ela sentiu a garganta se fechar.
Ao longe, bem no centro da aldeia, havia um grupo de crianças
encurraladas pelas bestas, com vários corpos de machos e fêmeas Loriorans
espalhados em volta deles, enquanto as criaturas avançavam.
Um grito ressoou em seu peito quando ela se colocou em ação, correndo
para aquele ponto.
Não precisava olhar para o caminho que traçava, cada galho e ramo era
desviado com maestria, ela saltou e correu, com o arco em mãos.
As botas trotando raivosas pelo mastro da árvore.
— Qual será de vocês? — Ouviu com clareza a cantoria monstruosa de
uma das bestas, se direcionando para as crianças.
Acima deles, a uns três metros, correndo, o fôlego preso, a chama do
ódio queimando seu peito, ela mirou na criatura mais próxima do grupo de
crianças. Eram quatro criaturas ao todo.
E enfim, quando a logística dos metros de mira atingiu seu ponto
necessário, ela gritou em ódio, disparando a flecha, um chiar raivoso pelo ar,
disparando na direção da besta no centro, erguendo a garra para uma das
crianças.
O corpo da criatura caiu em espasmos no chão com o disparo em seu
peito, no local em que ela sabia se instalar o coração negro. Quando havia
decapitado a Esuriit mais cedo no bosque, tinha aberto seu peito para
conhecer sua anatomia e os principais pontos onde poderia receber um ataque
e traçar mentalmente cada um deles.
As outras três criaturas rosnaram, se virando para ela, correndo pelas
escadas no alto, rodopiando pelos galhos e se lançando para o chão, pousando
em um impacto bruto.
Mesmo com a dor em seus joelhos pela colisão das pernas com o chão,
ela não cessou sua correria, rosnando em resposta para as três bestas que a
encaravam com ódio maligno, levando a mão para a aljava em suas costas.
O monstro da esquerda ricochetou a cauda, atingindo uma das crianças,
eram umas cinco amontoadas sob as bestas, e ela voou para o tronco da
árvore com o impacto do arremesso. O impacto fora forte o suficiente para
quebrar algum osso, embora a criança continuasse consciente.
Travou a flecha no arco e a posicionou, vendo a besta raspar a grama
com as garras e ser a primeira a se lançar para ela, aquela boca arreganhada
cheia de presas demoníacas, acompanhada das outras duas logo atrás de si.
Em sua correria, Gwen saltou sobre vários corpos dilacerados, sentindo
o estômago estremecer ao passar por uma das crianças que a havia abraçado
mais cedo em sua chegada na aldeia, vendo seu corpo partido em dois da
barriga para baixo, com os órgãos para fora. Ela afastou a imagem e as
emoções que a rasgaram em brasas. Todas presas no baú.
Sentiu seu sangue ferver, os feixes da chama de ódio em seu peito se
espalhando por sua corrente sanguínea. A adrenalina a impulsionando cada
vez mais.
Poderia estar caminhando para sua morte, ela sabia disso, embora já
havia muito tempo que tinha decidido sobre seu propósito. Se estivesse
prestes a morrer, seria defendendo seu povo e levaria aquelas malditas
criaturas consigo.
Cada uma delas.
Ela mirou, puxando o braço ao extremo em um impulso bruto, trazendo
a ponta da flecha consigo, e gritou rouca e chorosa quando a flecha disparou
acertando a nuca da besta à frente, matando em um só golpe de seu ódio.
As outras duas empurraram o corpo morto da frente, avançando ainda
mais para ela. Feras letais e primitivas, eram o que elas eram. Mas não havia
medo sobre Gwen. Não com o ódio que a tomava.
Não teve tempo de apanhar outra flecha quando a da esquerda se
adiantou, se lançando para a Lorioran em um impulso.
Gwen se jogou no chão e rolou, desviando do ataque, embora não
conseguisse escapar da cauda veloz da criatura, que atingiu seu rosto em um
disparo doloroso, rasgando sua face com a força, jogando seu corpo ainda
mais para trás.
Uma tosse a tomou, com jorros de sangue escapando de seus lábios. Sua
bochecha ardia em chamas pelo golpe.
Ela não podia desviar o foco ou morreria, se recompôs de imediato
quando a criatura girou em um rastejar, se jogando sobre ela.
Seu corpo foi para o lado, sentindo o vento em seu rosto acompanhando
as garras da besta quando elas rasparam para ela, quase a pegando.
O arco estava no chão ao seu lado, com ela o apanhando, se erguendo,
dando impulso ao corpo com um joelho no chão.
— Onde está? — A melodia profana ecoou quando a criatura rosnou
para ela.
Gwen a ignorou, correndo para longe, conseguindo tempo para
posicionar mais uma flecha.
— Corram! — gritou para as crianças e ajudando a que estava ferida no
chão, que não esperaram um segundo para obedecer, fugindo.
A outra criatura chiou um sibilar, avançando para elas, mas Gwen foi
rápida ao disparar uma flecha, acertando seu tronco, rasgando a carne grossa,
errando ao mirar seu peito, entretanto, foi o suficiente para impedir o monstro
de alcançar as crianças.
Ela não teve tempo de se preparar; quando a outra criatura próxima a
ela a atacou, a cauda atingiu seu peito com uma fúria bruta.
Seu corpo flutuou no ar, com um grito perturbador escapando de seus
pulmões quando a dor atravessou cada parte sua pelo golpe, como se uma
rocha caísse sobre seu peito, lançando-a a metros pelo ar.
As flechas da aljava se foram com o impacto, o arco escapou de suas
mãos, voando para longe, e ela foi lançada pelo campo com o golpe
desferido, atingindo o caule de uma árvore e despencando para o chão.
Suas mãos fincaram na terra, as palmas se fechando sobre a areia úmida
da garoa de sangue, ecoando um gemido trêmulo de seus lábios.
O sangue de seu povo.
Seu povo.
Mal pode piscar os olhos cheios de lágrimas, ou sequer respirar para
liberar a dor maligna que a consumiu quando viu a besta saltar para ela.
As garras em riste. A boca sem lábios rasgada, arreganhada para uma
mordida fatal e sua morte então chegava.

Skye removeu a lança do flanco da besta morta sobre o chão, não


perdendo tempo, correndo pelas árvores, envolto pelo caos. Os olhos girando
para todos os cantos, se desviando com rapidez dos corpos de seu povo ou do
que restava deles, principalmente das crianças; tinha perdido a conta de
quantas partes de pequenos Loriorans espalhados pelo campo da aldeia tinha
encontrado.
Aqueles monstros pareciam ter um apetite pelas crianças Loriorans, o
que só drenava o sangue em seu corpo a todo o vapor, o deixando afoito para
matar mais e mais daquelas criaturas. Pelo que fizeram a seu povo e à sua
aldeia, que agora estava sendo completamente destruída.
Poucos do seu povo tentavam impedir o ataque; quando viu alguns
usarem os poderes de forma inútil contra as bestas, ele por fim entendeu o
porquê de todos aqueles rígidos treinamentos de Gillyn para eles. Sobre ela
sempre afirmar que, se eles não possuíssem habilidades de ataque, de nada
adiantaria as conjurações de magia.
Girou a lança em sua mão, passando por uma criatura que rastejava no
alto pelos galhos; ele acelerou os passos, correndo para acompanhar embaixo
dela e se direcionou para uma rocha, tomando impulso e saltando,
empunhando a lança com firmeza para o alto, enfiando no peito da besta e
puxando consigo, rasgando uma brecha em seu corpo e despejando seus
órgãos e uma poça de sangue junto ao corpo da besta que despencou dos
galhos, caindo no chão, com ele continuando a correr com a lança
empunhada.
Ele viu com estupor assombrado uma criatura rasgar o peito de uma
fêmea jovem, lançando seu corpo destroçado para uma rocha.
A criatura serpentina de mais de nove metros jogou a cabeça para o alto,
tremendo o corpo inteiro em júbilo; ele por fim percebeu o que era que ela
engolia quando sua visão aguçou e ele viu a besta deslizar o braço arrancado
da fêmea goela abaixo.
Skye rosnou entredentes. O coração titubeando em um ódio lascivo. Ele
rodopiou sua lança pelo braço, deslizando a haste por trás do cotovelo e
antebraço, a empunhando com maestria e correu para a criatura se
alimentando.
Antes que ele pudesse desferir um golpe, a criatura antecedeu sua
chegada, a cauda branca e escamosa se lançando para ele.
Um sorriso frio o tomou, com ele desviando o golpe, saltando e
rodopiando no ar, sentindo o vento do ataque da cauda raspar seu rosto,
passando por baixo dele.
O primeiro ponto que Gillyn o ensinou fora seus movimentos acrobatas.
Ela lhe mostrou o quanto ele era bom nisso, em coordenar os impulsos de
seus saltos giratórios. Mesmo durante anos de reclamação, ele lançou um
agradecimento mental a ela por isso e rezou para os deuses para que ela
estivesse a salvo.
Aterrissou no chão, curvado, desviando de outro golpe, acertando a
lança na criatura, que chiou em irritação.
— Onde está? — A besta rosnou para ele, se lançando ao chão,
rastejando veloz, as garras perfurando o solo. O corpo da Lorioran sobre a
rocha despencou no chão em um baque. Sem o braço esquerdo.
Skye franziu o cenho suado e sujo, havia ouvido aquilo de todas as
criaturas que encontrara, entretanto, não dera uma resposta para elas, a não
ser a perfuração de sua lança.
Mas agora uma pontada o tomou, sobre a dúvida de que talvez aqueles
monstros não estivessem atacando ao acaso.
Manejou a lança, girando para cobrir com seu antebraço, a ponta para o
ar. Estava revestido em ódio e tremores frenéticos pela adrenalina, com o
corpo e vestes sujos pela garoa de sangue que caía das árvores. O sangue de
seu povo.
Frente a frente com a besta a dois metros dele, sibilando, a língua
bifurcada deslizando pela boca rasgada e sangrenta pelos restos de carne.
— Onde está o quê, criatura horrenda? — Deu passos lentos,
cautelosos, vendo ela se rastejar em sincronia a ele.
Os olhos da besta, ocos e vazios, por um breve instante se desviaram
para cima e ele não deixou aquilo escapar, principalmente o deleite que
tomou sua expressão, com seu rastejar diminuindo, com ela atraindo seu
foco.
Quando era pequeno, Gillyn obrigava Gwen e ele a estudarem na
biblioteca da aldeia. Um dos principais livros que ele folheou durante anos,
em fascínio, fora os contos sobre as criaturas do fosso.
Os predadores mais letais que já rastejaram por Eldar. Sobre como eles
atacavam quando estavam em grupos: enquanto um distrai a presa, em uma
alusão de ataque único, o outro que estava escondido, sem a presa saber, o
ataca por trás.
A criatura à frente rodopiou, como se o fosse atacar, e o sorriso de Skye
aumentou quando ela percebeu que ele não caíra em sua distração.
E como ele previra, o chiar de galhos estardalhou em seus tímpanos. A
lança girou em sua mão direita como um relâmpago e ele impulsionou o
corpo em um giro atroz, no exato instante em que outra enorme besta saltava
de um carvalho atrás dele, as garras em riste para rasgá-lo.
Desferiu a lança em um único golpe, manuseando com brutalidade ao
desviar o ataque surpresa, atingindo a garganta da nova criatura, puxando a
lança com um rosnado, deslizando a ponta de ferro com agressividade pela
carne e dilacerando a besta.
O chão foi inundando por sangue negro, suas roupas acabaram
recebendo os jorros quando o corpo imenso despencou ao seu lado. Sem vida.
Puxou a lança de volta, girando e rodopiando na mão, o olhar frio e
neutro se voltando para a besta paralisada, e assombrada, diante de si.
— E então... — Ele grunhiu para ela, a voz um eco gélido de ódio. —
Onde está o quê?
Dentes imensos e demoníacos foram apresentados para ele quando a
criatura rosnou.
— Você vai morrer. — O corpo inteiro da criatura se convulsionou
quando ela disparou para Skye, que se preparou para o ataque, bufando.
O golpe foi rápido, com ela rastejando em um rugido, as garras
rasgando o ar ao tentar golpear o Lorioran que se tornava um com o vento,
desviando de cada ataque.
Ele deu uma cambalhota para trás, impulsionando o corpo e correndo
para frente, passando a milímetros da besta, raspando a lança em seu flanco,
rasgando, se deliciando com o urro dela.
A lança girou e Skye sorriu para a besta, piscando.
— Sabe, podemos fazer isso por um tempo. — Ele a fitou, vendo os
olhos ocos o devorarem. O corte feito em sua lateral já deflagrando. — Ou
podemos ser rápidos.
A besta chiou, tremendo, a cauda imensa girando quando ela rastejou de
forma lenta, desviando do corpo da outra morta; Skye deu passos lentos e
cautelosos.
— Você é diferente. Não é fraco como seu povo. É rápido como um
leopardo. É astuto como uma fera selvagem. — As órbitas vazias pareciam
inspecioná-lo de cima a baixo, com as narinas inspirando seu aroma. — O
que você é, garoto?
Skye enrijeceu. Sua garganta oscilando, mas foi tarde demais quando
ele percebeu o truque da besta ao distraí-lo com suas palavras, tirando seu
foco e concentração, quando ela disparou em um giro mortal no ar para ele.
Um grunhido lhe escapou quando ele se curvou para o lado, desviando
de um golpe das garras contra seu rosto, conseguindo desviar com um baque
de sua lança.
A besta gargalhou, girando e se enroscando, com ele se erguendo e
ficando em posição de ataque, mostrando as presas quando ela fez o mesmo.
E então ela atacou de novo.
Mas então, antes que eles pudessem colidir, em um piscar de olhos, ele
observou confuso a besta ser arremessada para o céu, por um jorro imenso de
uma correnteza voraz de ar.
Ele engoliu em seco, quando seu corpo se retesou em um calafrio. Ele
conhecia aquela sensação, aquele ar gélido e poderoso. Era uma onda de
poder conjurado. Estalou a língua em um xingamento.
O poder dos anciões.
Skye se sobressaltou quando gigantescas raízes, imensas, brotaram do
solo, perfurando o chão, então diversas árvores pareceram ganhar vida, se
locomovendo, os galhos e raízes golpeando as bestas em ataques mortais.
Se virou para a direção central da aldeia e foi então que ele os viu, os
quatro anciões lutando.
Kalik corria pelo vale, as mãos gesticulando correntezas poderosas de ar
que disparavam contra as bestas, arremessando cada uma a quilômetros de
distância para os céus.
Ele engoliu em seco, arfando.
Eles vieram.
Wenkael por fim, revidava o ataque.
A garoa de sangue havia cessado, mas o som de uma correnteza invadiu
o lugar quando ondas vindas dos rios do vale adentraram a aldeia, então ele
viu o ancião Poltrix as guiando.
Não teve a oportunidade de observar mais, por conta de seu estado de
choque e fascínio pela chegada dos anciões, que finalmente, haviam decidido
fazer algo, mas não percebera a chegada de algo atrás de si.

Gwen estrondeou para a criatura, lançando a mão fechada com terra


para sua face e jogando a terra da palma nas órbitas fundas e vazias,
aproveitando o momento de desnorteamento para atingir um golpe com sua
bota na cara da criatura, chutando com força bruta e ouvindo um estalar
quando a besta colidiu em sua sola, rosnando ao ser lançada para trás.
Não perdeu tempo, gemendo baixinho em dor, quando deu impulso ao
corpo e se ergueu, se sentando e se apoiando no tronco para se erguer.
O peito queimava em uma dor lancinante, cada nervo e músculo
corporal explodia em espasmos de dor. Mas ela não se permitiu ser dominada
por isso, não enquanto ainda estava em perigo, não enquanto ainda
continuaria a lutar. Até o fim.
A criatura que havia acertado com a flecha rastejava até ela, ajudando
sua companheira a se erguer no processo.
Gwen arfou, observando, analisando cada metro a seu favor pelo
campo. Mas ela estava quase encurralada, apoiada contra o caule da árvore,
com as duas bestas de nove metros em sua frente.
— Sua criatura desprezível. — A que fora chutada sibilou para ela, a
voz um tilintar de serpente com a língua bifurcada deslizando pela boca
grotesca.
A Lorioran sorriu para as duas criaturas, o gesto causando um ofegar de
dor crepitando em seus pulmões, com o gosto de sangue inundando sua boca.
— Vocês não são uma visão do paraíso, sabem disso, não é? —
Grasnou para elas, irônica, os olhos vagando, procurando uma brecha de
abertura para escapar ao conseguir tempo com suas provocações.
Tentou encontrar seu arco e o avistou a uns dez metros de onde as
bestas estavam, a aljava com as flechas não estava à vista.
Estava em risco, sem uma arma para se defender, o próximo ataque das
bestas a ela poderia ser destrutivo.
— O cheiro dela. — A da esquerda, com a flecha ainda em seu flanco,
constatou para a outra, as fendas nasais se expandindo quando as duas
pareceram inspirar o cheiro do sangue de Gwen que escorria por sua
bochecha e cortes por seu corpo, se misturando ao sangue seco da garoa em
suas vestes. — Dois sabores. É diferente.
Dois sabores. As palavras da Esuriit consumiram sua mente, com uma
pontada de confusão a atingindo.
— O quê? — Ela arfou uma indagação.
Sua respiração estava começando a falhar, o impacto da cauda da besta
contra ela havia causado alguma lesão em seus pulmões. Ela tossiu, vendo
gotas de sangue voarem no ar. Precisaria de algumas horas ou um dia inteiro
para seu corpo reabastecer sua energia vital e curar seus ferimentos.
— Onde está? — Vociferou a outra besta, enquanto sua companheira
ainda parecia inalar o ar, atônita. — É melhor nos entregarem ou essa aldeia
se tornará cinzas.
— Cinzas — emendou a outra, rindo.
Outro sorriso tomou Gwen.
— Não deveriam ter saído do lugar imundo e maldito de onde vieram.
Nosso povo não tem nada que vocês querem.
Elas estalaram a língua, rindo. Era um som amaldiçoado de tão
perturbador.
— Mate-a, estamos perdendo tempo — decretou a da esquerda, girando
em um mero rastejar, com a outra se colocando em posição de ataque,
expondo os dentes para Gwen.
Gwen estremeceu. Não possuía mais forças para lutar, seu corpo estava
inválido e rasgando em dores. Seria despedaçada e não poderia fazer nada
para impedir.
Então a criatura disparou para ela e Gwen, enfim, apenas fechou os
olhos, uma gota de lágrima deslizando por seu rosto quando esperou pelas
garras perfurando seu corpo.
Bum.
Um eco ensurdecedor explodiu pelas árvores, como um sopro de
dragão; uma ventania destrutiva raspou na área e, em um piscar de olhos,
Gwen observou a criatura que estava prestes a lhe atacar ser lançada em uma
proporção absurda para o céu, onde o baque de sua queda despedaçaria todos
os ossos de seu corpo.
Um arquejo assustado lhe escapou; confusa, ela vagou o olhar para a
entrada da campina e um sorriso lhe tomou a face quando entendeu o que
acontecera.
Mais lágrimas deslizaram por seu rosto quando os anciões entraram em
cena, os quatro varrendo as bestas com suas conjurações de poder, a onda de
magia natural transpirava pelo bosque inteiro.
O ar se tornou espesso pela essência da magia dos anciões, os pelos do
corpo de Gwen se arrepiaram em fascínio.
Boquiaberta, ela assistiu maravilhada uma enorme árvore ganhar vida,
erguendo suas raízes e galhos imensos; a criatura restante na campina, a com
a flecha alojada no flanco, tentou escapar urrando em pavor, mas as raízes
enormes foram rápidas ao se enlaçarem nela inteira, apertando e esmagando
os ossos, partindo a besta em duas.
Hajah passou por último, sorrindo para Gwen, gesticulando com as
mãos para que uma rajada de ar o erguesse e o levasse para dentro da floresta.
Eles decidiram finalmente ajudar o povo. Wenkael agora teria uma
chance com os anciões. Pelos deuses! Eles vieram. Ela riu em meio às
lágrimas e à dor.
Se encostou na árvore, observando o que aconteceu à sua frente. Todos
os anciões lutando contra as bestas. E vencendo.
Suas orelhas pontudas tremeram quando um som atraiu seus tímpanos;
devido a seus músculos travados, ela não se preparou e, quando virou o olhar,
viu uma besta vindo em sua direção.
Xingou, se movendo lenta demais, quando as garras da besta se
ergueram e a boca da criatura se arreganhou, agora a metros dela.
Gwen se sobressaltou, não pelo ataque, mas pelo som de estalar de
ossos quando uma lança arremessada à distância perfurou o crânio da
criatura, atravessando sua garganta e boca. Logo a besta estava no chão, com
a lança a atravessando.
Seu olhar se ergueu para a frente, seu coração aquecendo e relaxando
um pouco as dores quando ela encontrou Skye, ainda com um braço
estendido pelo arremesso, com o corpo curvado.
E logo atrás de si Gillyn, o enorme machado com duas lâminas na ponta
do cabo; em suas costas, com o tecido branco de suas roupas manchado do
sangue negro das bestas, a evidência de que sua avó estivera lutando pela
aldeia.
Os joelhos de Gwen tremeram e ela teria cedido à queda se sua avó não
fosse mais rápida, correndo até ela e a segurando.
Gwen desabou sobre o ombro dela, chorando e soluçando, as emoções
espreitando para fora de seu baú.
— Eu quase perdi o controle vovó... Elas vieram.... Muitas delas... A
aldeia... Todos morrendo... Eu guardei minhas emoções ruins... Não as
permiti me dominarem... Eu lutei por nosso povo. — Sua voz era um fio de
tom, soava trêmula e devastada. O aperto dos braços de sua avó em volta de
si se firmou, ela subiu suas mãos para os cabelos loiros bagunçados e sujos de
sangue de Gwen, afastando as mechas grudadas em sua face.
— Eu sei, querida. Você se saiu bem. Estou orgulhosa de você, Gwen
— exclamou, sorrindo singela. Mesmo com todo aqueles vestígios de sangue
banhando seu rosto e os arranhões e cortes, Gwen se tranquilizou com a
expressão de sua avó, assentindo em um soluço. — Temos que ir. Chegou a
hora, querida.
As sobrancelhas de Gwen franziram quando ela fitou a mais velha em
confusão.
Percebeu um rasgo de garras em seu ombro e pela quantidade de sangue
em suas roupas, Gwen percebeu que Gillyn deveria ter deixado uma pilha de
corpos de bestas do fosso pelo caminho.
Afinal, Gillyn havia ensinado tudo que ela e Skye sabiam sobre
autodefesa e golpes de ataque. Sua avó poderia ser tão letal e afiada quanto
seu poderoso machado, descansando em suas costas.
— Para onde vamos? — Skye indagou, já com a lança em mãos. Gwen
passou a observar o amigo, averiguando seu estado, checando possíveis
fraturas e machucados, percebendo que ele fazia o mesmo com ela.
Os cabelos eram uma bagunça pela garoa de sangue que os banhou, a
pele alva deveria ser um reflexo da dela, de tão imunda e machucada.
Mas estavam bem, de certa forma.
Gillyn fitou o céu, agarrando a mão de Gwen com firmeza, dando um
olhar para Skye que a assombrou por completo.
— Para fora do bosque. Temos que sair de Wenkael. Agora.
Gwen enrijeceu em estupor.
Gillyn nem mesmo deu chance para discussão ou ao menos uma
explicação, puxando os dois pelas árvores, correndo com eles.
Gwen olhou para trás por cima do ombro, tendo um último vislumbre
de sua aldeia destruída, com os anciões ao longe disparando seu poder contra
as bestas e então, juntos, os três correram para o bosque e além dele.
7

Os questionamentos de Gwen e Skye eram levados pela ventania,


conforme os três ainda corriam em direção aos bosques. Gillyn não os ouvia,
ou fingia não ouvir, os puxando em um aperto firme em sua corrida
incessante.
Gwen vagava o olhar para trás durante todos os minutos, vendo a
floresta de sua aldeia destruída e em chamas; mesmo a um quilômetro de
distância, ainda conseguia ver o combate dos anciões contra as bestas.
Sua avó não lhes dissera nada durante todo o trajeto, embora os dois
notassem o olhar assustado e cauteloso dela, observando como um falcão se
eram perseguidos. Os ombros e o corpo tensos, a respiração descompassada e
aflita, mas eram os olhos que diziam que algo estava errado. Muito errado.
Ela lançou uma mensagem pelo olhar para Skye ao seu lado, tão
ofegante e machucado quanto ela, com ele retribuindo em um olhar confuso e
assombrado.
Não teve tempo de indagar mais uma vez para onde estavam indo;
quando adentraram por completo o bosque, atravessando ainda mais rápido, o
corpo machucado de Gwen mal conseguia acompanhar se não fosse guiado
por Gillyn.
Eles começaram a passar pelas fronteiras do bosque, o coração de Gwen
saltou quando percebeu que em mais alguns metros era o limite da barreira.
Depois disso, era território desconhecido de Wenkael.
— Aonde estamos indo? — Ela atirou, a voz ainda falha e trêmula. Eles
começaram a diminuir os passos, não havia sequer mais árvores e salgueiros
encantados a sua volta, apenas uma colina imensa e estreita, com um vasto
campo. Ao longe se podiam ver imensas montanhas com picos tocando o céu.
O fôlego de Gwen fora tomado quando ela rodopiou, fitando o lugar.
Era tão... Distinto. Estranho, até. Saber que toda aquela área estivera a
quilômetros de distância dela durante toda sua vida... O vasto horizonte
repleto de rochas e colinas, com imensas dunas de areias cor de avelã.
Agora, então, ela se dera conta de que estavam fora dos arredores do
lugar em que viveu durante décadas.
Estavam fora de Wenkael.
Pelo fogo!
Levou seu olhar para longe, duzentos metros atrás estava a entrada do
bosque. Uma imensa reserva flanqueada por enormes carvalhos. Seu olhar se
estreitou, analisando, buscando um filtro de percepção quase intangível em
volta do bosque.
Uma barreira.
Entretanto, só haviam árvores e mais árvores, ecoando um guinchar da
destruição que acontecia quilômetros adentro, em sua aldeia.
Mesmo a essa distância, ela podia ouvir o caos que perdurava por seu
povo.
E os gritos que ainda ecoavam.
— Por que estamos fugimos? Precisamos voltar! — Ela se voltou para
Gillyn, que fitava o céu com uma das mãos na testa, semicerrando os olhos
para apurar a visão do céu noturno. — Precisam de nossa ajuda.
— Não. — Foi apenas o que Gillyn decretou. A voz fria e estridente
como uma estrela cadente.
Skye se aproximou de Gwen, o olhar fixo no dela, com o semblante
franzido. Ela notou um imenso corte em sua bochecha, mas o ignorou,
frustrada demais com o que estava acontecendo.
— Não podemos simplesmente abandonar nosso povo. Aquelas
criaturas ainda estão lá. Temos que voltar...
— Não! — Gillyn esbravejou, sobressaltando os dois, que não
esperavam por seu tom irado. — Não podemos fazer nada por eles. É tarde
demais.
— Vovó...
— É tudo minha culpa. Eu achei que... Não estava esperando que fosse
acontecer tão rápido. Estava me preparando melhor depois do ataque da
Esuriit, não esperava que elas viessem tão cedo. Não... Não importa mais.
Preciso tirar vocês daqui. Não há mais tempo.
Ela os fitou ríspida, o olhar alaranjado flamejante e frio. Era uma
combinação temível. Aquele tom escaldante refletindo um eco gélido e
abrasador. Era como olhar para o fundo de um vulcão, embora, ao invés de
escaldante, transpirasse frieza.
Os dois se entreolharam, com Gwen engolindo em seco a bile presa em
sua garganta em chamas. Sentia como se garras rasgassem suas cordas
vocais.
— Vovó, eu não entendo. O que está acontecendo?
Gillyn a ignorou, outra vez. Se voltou para trás, fitando o céu, parecia
apreensiva.
— Onde eles estão? — sussurrava repetidas vezes para si mesma. —
Rápido, rápido, rápido...
Então o som reverberou pelo campo, trazendo uma correnteza de ar fria
e fétida. Um calafrio percorreu o corpo de Gwen quando ela reconheceu
aquilo.
Aquele ar putrefato e arrepiante.
Os arautos da morte.
Skye segurou seu braço, apertando.
— Estão vindo — murmurou.
Ambos giraram o olhar para todos os lados.
Gillyn pestanejou, removendo o machado da bainha do boldrié em suas
costas, girando o cabo em sua mão. As lâminas gêmeas pareceram cintilar de
cada lado ao anoitecer.
— Temos que sair daqui. — Gwen fitou sua avó, que nem mesmo a
encarava mais, o olhar perdido entre o céu e o campo.
Ela levou seu olhar para cima, as sobrancelhas franzidas, tentando
enxergar alguma coisa fora as constelações sobre o mar negro estelar. Não
havia nada acima, fora as constelações sistêmicas.
Então, o que ela procurava?
— Não podemos. Temos que esperar aqui. — Gillyn enfim respondeu.
— Eles estão vindo.
Skye ergueu uma sobrancelha suja para Gwen. Quem? As esferas azuis
pareceram indagar.
Eu não sei. Gwen devolveu o olhar.
— Gillyn. — Ele se pronunciou. — Quem exatamente está vindo?
A Lorioran mais velha estalou a língua, grunhindo, balançando a cabeça
colérica.
— É tudo minha culpa. Eu acabei me acomodando com a crença da
proteção eterna. Foi um erro acreditar que essas criaturas nunca viriam... Ela
deve estar mais forte. Urgh! Claro que deve estar! — O olhar dela deslizou
para eles. O peito de Gwen retesou em dor ao enxergar suas lágrimas. — Mas
eu os avisei que era tarde demais quando a Esuriit invadiu. Os anciões não
quiseram acreditar em um perigo iminente. Estavam cegos pela barreira e sua
segurança tola e frágil. Eu deveria tê-los preparado melhor. Eu...
— Vovó... O que está acontecendo? — Gwen deu um passo para ela,
cessando a meio caminho quando outro barulho estremeceu o recinto.
Gillyn se prontificou, empunhando o machado em riste, se preparando
para um ataque vindouro.
— Há tanto que eu queria contar antes que esse dia chegasse. Tanto,
tanto. Eu sinto muito, querida. Mas não temos tempo a perder, não agora. —
Gillyn arfou, alternando o olhar colérico entre os dois. — Sinto muito. Por
tudo.
Outro latejar em seu peito.
— Vovó...
Gwen notou a lança de Skye rodopiar em sua mão esquerda, enquanto
ele ainda mantinha o aperto em seu braço.
— Vai ficar tudo bem. Eles estão chegando. Eu consegui enviar uma
mensagem pelo ar para eles. O sussurro do ar deve os ter alertado.
Mais e mais confusão se instalou sobre Gwen, conforme ela digeria as
palavras incoerentes.
Quem estava vindo ao ponto de Gillyn usar um método mágico tão
antigo para se comunicar com eles?
O Sussurro do ar era um meio de conjuração mágica, onde o conjurador
atraía magia elemental, o ar, em específico, e sussurrava uma mensagem para
ele, que se guiaria pelos ventos para seu destinatário, levando a mensagem
em sussurros pelos espíritos cantantes do ar.
Um grunhido irritado e doloroso deixou Gwen, com ela balançando a
cabeça.
— Não estou entendendo — ofegou. — Nada disso faz sentido! O que
está acontecendo? Quem está vindo, vovó?!
Gillyn se voltou para ela; um sorriso fraco, embora singelo, tomou sua
expressão suja, com ela se aproximando de Gwen, levando a mão para a
maçã de seu rosto, acariciando a mesma face que havia sido golpeada pela
cauda de uma das bestas.
— Logo entenderá, meu bem — sussurrou para ela, unindo sua testa à
da neta. — Logo tudo fará sentido. Todas as mentiras e verdades chegarão.
Tudo se esclarecerá, enfim.
Elas se afastaram e então Gwen pode perceber o rosto da avó, repleto de
lágrimas, com o seu sendo tomado também.
Antes mesmo que pudesse exclamar algo, várias e várias criaturas
começaram a sair dos bosques, rosnando pelas colinas, vindo para eles.
Gillyn afastou Gwen para trás com uma mão, se colocando à frente dos
dois, Skye deslizou sua mão pelo braço de Gwen para a mão dela, apertando.
— Não temos mais tempo, vocês precisam ir. — Gillyn constatou,
vagando o olhar uma última vez para o céu, descendo então para as bestas
vindo para eles.
— O quê? — A voz de Gwen mal soou em um sussurro quando ela se
dera conta do que sua avó falara.
— Não temos mais tempo. Corram. Eles vão encontrar vocês, eu sei
disso. Confiem neles, eles vão proteger os dois. Irão levá-los para o caminho
da verdade. — Gillyn olhou por cima do ombro, para os dois a encarando
incrédulos e em choque.
Gwen balançou a cabeça. As lágrimas cegando seus olhos. O peito
tremia em seus impulsos ofegantes.
A compreensão no rosto de Gwen fora como um golpe, quando ela
enfim entendeu o que sua avó estava prestes a fazer para que os dois
conseguissem escapar.
O olhar de Gillyn caiu para o cordão em seu pescoço, o pingente
entalhado há centenas de anos, ainda preso a ela. Uma parte sua se aqueceu
com aquela visão.
Bom.
Ela levantou o olhar para os olhos cinzentos de sua neta. Aqueles olhos
tão castos e amorosos, que mudavam de tom conforme seu temperamento, era
um dos traços que Gillyn mais gostava nela. Os cabelos loiros caindo por
seus ombros, que traziam doces memórias de sua outra criança, que há muito
havia perdido. Sua filha. Sua doce menina, que havia partido e deixado sua
pequena elfazinha com Gillyn.
— Não, não... Vovó... Não.
Um sorriso tomou os lábios de Gillyn. Seu peito se encheu com uma
onda de emoções, sendo dominado por paz.
Tinha visto a forma como Gwen lutara por seu povo durante décadas,
seu coração era sua maior arma, de tão grandioso e feroz. Mesmo com as
proteções para que ela não se pusesse em risco, a pequena Lorioran sempre se
colocava pelo bem dos outros.
Aquele era o alicerce principal de sua neta, a prova de que todos os
ensinamentos de Gillyn tinham valido a pena. De que Gwen conseguia
controlar seus impulsos e emoções ruins. Porque se ela se permitisse ser
dominada por eles, seria o fim.
— Eu a amo, querida. Sempre se lembre disso. — Estendeu a mão livre
para acariciar o rosto de Gwen, limpando as lágrimas de seu rosto, levando o
olhar para Skye ao seu lado, com os olhos azuis mais cintilantes que já vira,
ainda mais brilhantes com as lágrimas em volta deles. Fora aqueles olhos
celestiais, como o tom do mais lindo céu límpido, que a fizera o nomear
assim. — Meu pequeno Skye, meu menino. Você foi um presente em nossas
vidas e agora eu deixo Gwen em sua proteção. Cuide dela.
As lágrimas caíram por seu rosto angelical quando ele assentiu, trêmulo,
chorando enfim, Gillyn apenas sorriu para ele. Seu pequeno travesso. Seu
peregrino dos bosques, como o povo o chamara.
— Sempre. — Sua voz foi um arquejo baixo, de tão trêmula que soou.
O pequeno bebê que encontrara há décadas abandonado em uma árvore,
nos arredores de seu chalé, nas vésperas do fim da guerra do Éter, sozinho,
com frio e com fome, apenas com uma carta sobre sua origem. Uma carta que
mudaria tudo. Tudo. A decisão de criá-lo como seu agora sendo mais certa do
que nunca, de ensiná-lo e amá-lo. O bebê que tanto lhe lembrara de outra
criança perdida para a guerra. O pequeno Lorioran de cabelos dourados, que
se tornara um irmão para Gwen durante os anos juntos. Ele estava pronto
para protegê-la a qualquer custo. Ambos estavam.
O peito de Gillyn se apertou. Haviam tantas coisas para contar a eles,
tantos segredos e mentiras que perduraram durante tempo demais para o bem
deles, e de toda Eldar.
Mas eles não tinham mais tempo para a história que Gillyn guardou
durante um século, aguardando o momento ideal para lhes contar.
Ela não tinha mais tempo.
Se voltou para Gwen, que tremia tanto, chorando, balançando
incessante a cabeça. Se negando a aceitar o que sua avó decidira há muito
tempo, quando se deu conta de que um dia esse momento chegaria. E Gillyn
estava pronta, e não sentia medo. Por Gwen e Skye, aprendera a nunca sentir.
— Não! Nem pense nisso! Você vem com a gente... — Ela esbravejava
em meio às lágrimas e aquilo partiu o coração de Gillyn. Sua pequenina. —
Vovó... Não.
— Vocês precisam ir. — Levou o olhar para as criaturas a meros
quilômetros, se aproximando.
Quando tirou sua mão do rosto de Gwen, ela a puxou de volta.
— Vem, vovó. Vamos juntos!
As bestas rosnaram brutais. Várias delas. Deveriam estar farejando,
sentindo o cheiro. Sendo atraídas. Para eles. Por eles.
Não teriam chance contra elas, eram muitas.
Gillyn precisava impedi-las.
E eles tinham que partir.
Ela girou o machado em sua mão, apertando a de Gwen com a outra,
levando o olhar para suas crianças, que durante tantos anos as treinou para
esse dia. E então lhes sorriu uma última vez.
Um olhar firme para Skye, que ainda chorava segurando Gwen, foi o
suficiente para ele entender o que ela dizia em seus olhos tristes.
— Vão, agora!
Skye apenas assentiu, lhe dando um aceno e um olhar, que ela captou
seu significado expresso: obrigado por tudo, que aqueles olhos azuis
marejados transmitiam para ela.
Então ele segurou a mão de Gwen com firmeza e a puxou, correndo
para longe, enquanto ela se debatia, gritando, tentando pará-lo.
— Skye, não! Não! Por favor! Não!
Ela lutava e lutava, mesmo aquilo o destroçando com o sofrimento dela,
ele levava os dois para longe. Aquilo encheu Gillyn de orgulho.
Gwen chorava, a mão estendida para Gillyn conforme se afastavam.
— Lembre-se Gwen, a luz sempre vence a escuridão. — Uma lágrima
escorreu pelo rosto de Gillyn, marcado pelo tempo. Com seu coração
apertando com suas últimas palavras para os dois que se distanciavam. — Eu
amo vocês.
— Por favor, vovó! — berrou. Fraca e machucada demais para
conseguir impedir Skye. — Vovó!
Seja luz, Gwen.
Quando estavam longe o suficiente, Gillyn se preparou, limpando as
lágrimas que insistiam em cair, atrapalhando sua visão.
Pegando para si o mesmo ensinamento que impusera sobre Gwen
durante tantos anos, prendendo as dores e emoções que rasgavam seu peito
dentro de um lugar em sua mente.
E para proteger os dois que agora fugiam, ela pediu ao deus de Eldar
que os guiasse e sabia que, dessa vez, ele ouviria.
O machado, que em milênios fora usado para defender seu povo em
guerras antigas e agora esquecidas devido a uma estúpida barreira de
proteção, girou atroz em sua mão.
O olhar alaranjado e feroz se fixou adiante, nas bestas que começaram a
chegar em metros de distância.
Feixes de luz cintilaram por traços em Gillyn. Acordando.
Ela sorriu, a lembrança de dois pequenos Loriorans treinando em um
rio, vibrando em sua mente, uma pequena de cabelos loiros e olhos âmbar e
o outro de cabelos dourados e olhos de um azul tão divino. Seu peito se
encheu de coloração.
Tinha guardado tanta coisa por tanto tempo, escondido tanto de Gwen e
Skye. Não tinha mais a chance de contar a verdade. Tinha se preparado para o
dia em que contaria um longo conto para sua Gwen. Uma longa história. Mas
esperava que todos os seus ensinamentos a ela se mantivessem firmes quando
a neta descobrisse.
E que Skye nunca permitisse que nada lhe acontecesse, e ela sabia que
ele não permitiria.
Por eles ela empunhou o machado, gritando em graça e fúria, correndo
na direção das criaturas, permitindo que aquele poder mortal dentro de si, que
esteve dormente por tempo demais, por fim, despertasse.

Eles ouviram, em completo terror, escutaram mesmo a uma longa


distância quando Gillyn correu para enfrentar as criaturas, o grito feroz e
raivoso dela ricocheteou por todo o vale.
Skye tentava conter suas lágrimas, que insistiam em escorregar por seu
rosto machucado. O vento as puxava pelo ar. Mas ele não cessou. Continuou
correndo, empunhando sua lança, com um aperto rígido na haste, a ponto dos
nós dos dedos ficarem brancos, e puxando Gwen pela outra, os levando para
longe, para onde nem mesmo sabiam. Estavam em território desconhecido,
rodeados de colinas íngremes e montanhas enormes que pareciam gigantes
dormindo. Com um desfiladeiro se abrindo à frente para eles.
Gwen não chorava ou esperneava mais, estava silenciosa. Skye deu um
olhar para ela, checando, viu que seus olhos mal se mantinham abertos, meio
inchados pelo choro e seus passos não eram sequer designados; ela estava
apenas se deixando levar por ele.
O olhar em seu rosto foi suficiente para afundar por completo a adaga
que sentira apunhalar seu peito quando deixaram Gillyn.
Aqueles olhos tão vivos e sagazes, com um cinza azulado e vibrante,
naquele instante possuíam uma rachadura. O olhar estava quebrado, apenas
neutro, fitando o nada.
Ele afastou a sensação que o tomou, não poderiam parar, não ainda.
Então continuaram a correr, com um Skye ofegante arrastando uma
Gwen silenciosa e inerte. E pelos deuses! Ele preferia que ela continuasse a
espernear e gritar do que a ver assim. Preferia a ver demonstrar alguma
reação ou emoção, porque aquela postura silenciosa e devastada dela o estava
perturbando.
Os dois se distanciaram tanto que o barulho do combate de Gillyn
contra as bestas ou o ataque à aldeia se tornou um mero chiar do vento.
Passaram por um imenso riacho, onde por um rápido momento ele
escolheu parar para poderem tirar todo aquele sangue de cima deles e
reabastecerem um pouco as suas energias desgastadas. Skye fechou as palmas
em concha, se curvando sobre a borda do rio, e apanhou um pouco de água.
Ele fez Gwen beber leves goles. Ela permaneceu sem reação, fora de órbita,
quando ele esfregou seu pescoço e braços manchados. Conforme removia o
sangue seco de seus braços e vestes, os olhos nebulosos pareciam sem foco e
aquilo quebrava Skye. Ele se limpou com rapidez, dando um mero momento
para que recuperassem o fôlego da corrida para então tornarem a correr, sem
dar tempo para que aquelas bestas os encontrassem.
Ainda não estavam seguros, não quando alguns quilômetros atrás
aquelas bestas atacavam.
Quando desceram um monte íngreme, ele teve que carregar Gwen,
ainda neutra, pela descida e em seguida voltaram a correr, embora, dessa vez,
os passos se tornando cada vez mais lentos.
Cada músculo seu doía, seus nervos travavam e ganhavam impulso por
seu sangue ainda fervendo pela adrenalina.
Foi então que uma sombra raspou o céu, os cobrindo. Skye parou
ofegante, com Gwen colidindo em suas costas.
Um calafrio tomou sua espinha, quando outra sombra crepitou acima;
seus olhos se ergueram rápidos, embora ele não tenha enxergado nada.
Então outro manto de escuridão passou por eles, veloz, e os olhos azuis
captaram o movimento de asas no céu.
Sombras de asas os cobriram como um manto noturno por um breve
momento.
As orelhas pontudas tremeram, captando o mínimo som no desfiladeiro
repleto de rochas.
Skye franziu o cenho, vagando o olhar em cautela pelos picos das
colinas acima. A sombra das montanhas mal chegava a eles, ainda havia a
iluminação do luar pelo caminho à frente.
Então o que era aquilo?
Ele sentiu Gwen apertar sua mão, levando um olhar para ela atrás de si,
os olhos cinzas tristes, também fitando o céu.
— Um pássaro. — Ela enfim sussurrou, depois de longas horas em um
silêncio perturbante. O tom saiu rouco e grave.
— O quê? — Skye indagou, com os olhos dela ainda fixos ao céu.
Mas não teve a chance de ouvir sua resposta quando um impacto
estrondeou na frente deles. Skye se prontificou com velocidade, afastando o
corpo de Gwen, girando e empunhando a lança em sua mão.
Ele viu com exatidão e clareza quando uma figura masculina pousou no
solo, metros à frente deles, logo seguido por outra.
Um rosnado chiou de seus lábios quando ele fitou os dois seres ali
parados, empunhando sua lança para eles, rosnando para suas novas ameaças.
8

Os ombros de Westyn reclamaram em dor pelas longas horas de voo,


havia muito tempo que tinha se designado a percorrer tantos quilômetros
voando em uma missão. Na verdade, suas asas haviam se tornado
acomodadas pela falta de viagens longas. Elrond era um hemisfério de
distância do lugar em que estavam. Sabia que quando pousasse e tentasse
voar, sua envergadura latejaria em uma dor irritante por semanas. Tinha que
exercitar mais suas asas. Era o que Liryan sempre dizia.
Quando o rei os ordenou, naquela manhã, que partissem de imediato
para a mística aldeia de Wenkael em uma missão confidencial, que não
perdessem tempo, embora sabiam que não chegariam tão a tempo, quando a
mensagem de sussurros do ar da Lorioran Gillyn Briffyn chegou ao reino.
O rei lhes informou alguns detalhes sobre a missão de resgate, mas, o
que ainda continuava martelando em sua cabeça era o porquê estariam
resgatando dois Loriorans, as crias de Gillyn, e transportando em segurança
para seu reino?
Westyn sempre imaginou o povo dos bosques como selvagens primatas,
nunca havia sequer visto de fato um; eram raros os que se permitiam sair de
suas fronteiras encantadas. Era um povo quase exilado, vivendo sob suas
fronteiras mágicas e longe do restante do reino há séculos.
O rei não lhes dera toda a informação necessária, apenas o nome da
garota, que ele tratou de marcar em sua mente. Gwen Briffyn, como sendo a
prioridade da missão. Então, quando adentraram a região montanhosa e
florestal de Wenkael, eles se deram conta do caos abaixo da reserva. Sabiam
que o local de encontro designado seria nas fronteiras da lendária floresta
encantada, protegida por uma barreira mágica que ele sempre achou ser um
mito.
Liryan parecia tão encantado quanto ele conforme os dois sobrevoavam
a aldeia. Nunca tinham conhecido o lugar. Talvez ninguém de outro povo
tenha. Os outros povos de Eldar sempre se mantiveram afastados de Wenkael
devido à proteção celestial imposta nas árvores ao redor. Por medo e respeito.
Mas o fascínio pelo lugar não durou quando se deram conta do que
acontecia. Uma batalha era travada com criaturas horripilantes que eles nunca
haviam sonhado, mesmo no pior de seus pesadelos. Westyn nunca vira algo
assim em toda sua existência. Sua espinha foi tomada por calafrios com a
visão abaixo.
A aldeia, ou o que sobrara dela, estava em retalhos e chamas. Westyn
conseguiu enxergar com sua visão apurada alguns do povo de Wenkael
lutando contra as bestas. Ele até os viu usar sua magia elemental contra elas.
Eram muitas daquelas criaturas e haviam poucos lutando, enquanto o restante
fugia e se escondia nos carvalhos.
Um olhar para Liryan e ele compreendeu o que os olhos de seu amigo
diziam. Não podiam ajudá-los. Essa não era a missão dada a eles. Não havia
nada que pudessem fazer.
Um estalo soou em sua mente, um alerta, entendendo um traço da
urgência da missão.
Então se prontificaram a voar adiante, a informação dada era de que
deveriam encontrar a emissária da mensagem, Gillyn, e dois garotos. Com a
garota, Gwen, sendo a fonte principal da missão. Deveriam protegê-la a
qualquer custo.
Passaram pelo campo, saindo dos arredores da aldeia, deixando o caos e
destruição para trás. E então, mais alguns metros adiante, pela colina,
avistaram outro combate.
Havia uma mulher, apenas uma Lorioran, empunhando um machado
contra várias daquelas criaturas. Ela conseguia golpeá-las com a habilidade
de uma assassina, embora não havia o que se fazer, eram muitas e ela não
conseguiria vencer todas.
Westyn podia jurar que o ar se encheu de poder, como se uma essência
celeste de magia deixasse seus vestígios na ventania sobre o combate abaixo.
Nem precisou olhar para Liryan para se lembrar o que tinham de fazer.
Os olhos cerrados vagaram por todo o estreito vale íngreme, ao redor
das montanhas gigantes. Não havia um sinal sequer de alguém em torno do
lugar.
Quando estavam decididos a contornar a área outra vez, eles avistaram
ao longe, a um quilômetro exato, duas figuras correndo, passando por um rio.
E então disparam no ar, naquela direção.

Skye rosnou feroz, girando a lança, pronto para desferir o primeiro


golpe a um mero movimento de ameaça dos dois à sua frente. Seu corpo todo
se retesou em defesa quando aquelas figuras altas pousaram na frente dos
dois. Ele calculou os pontos certos onde poderia rasgar e mutilar.
Seus olhos turvos e marejados pelas lágrimas demoraram para focar a
visão em meio à sombra da noite e, quando obteve nitidez, reconheceu os
traços físicos dos dois.
O rugido em sua cabeça quase o impediu de raciocinar.
Engoliu em seco, se recusando a deixar o temor que lhe atingiu o
consumir, permitindo um ofego lhe escapar quando arquejou.
Os dentes estreitando ainda mais para fora, em um sibilar. Sentiu a mão
de Gwen apertar seu braço, sabia que ela também era capaz de identificar os
dois seres perante eles.
Tinham estudado aquela espécie durante anos. Sabiam o que eram
mesmo se fossem cegos. O cheiro de magia celestial inundava seu olfato.
As orelhas tão afiadas e pontudas quanto as deles, a pele quase creme,
de um tom dourado escaldante de sol, tão oposta da palidez aveludada de
Skye e Gwen, mas os olhos... Aqueles olhos que ambos haviam estudado
tanto na infância quando vasculharam a biblioteca sobre as espécies e seres
de Eldar.
Eram aqueles olhos que principalmente os destacavam. De um violeta
tão intenso e cintilante quanto o tom de uma flor Centáurea, as íris até
mesmo se assemelhavam às da flor.
Aqueles olhos ametistas que pareciam atrair a escuridão para si,
iluminados por um tom etéreo.
O outro ponto que os diferenciava eram as marcas, aqueles símbolos
brancos, quase transparentes, como se fossem vinhas finas, deslizando e se
entrelaçando do peito aos braços, que denominava sua magia.
Skye apertou sua lança, fitando os dois Feänors.
— Saiam do nosso caminho. — Ele agradeceu aos deuses por seu tom
ter soado firme e ameaçador, ao invés de trêmulo e ofegante como se sentia.
Os dois Feänors ergueram as mãos para o ar. Os olhos atentos sobre os
dois Loriorans.
— Ei, ei, calma. — O da esquerda, de cabelos prateados de um tom
quase branco, quase como plumas, ou neve em meio ao tom daquela noite,
murmurou. — Não viemos lutar. Estamos aqui para ajudá-los.
As presas de Skye se expuseram.
— Mentira — esbravejou entredentes. — Saiam. Do. Nosso. Caminho.
O prateado suspirou, balançando a cabeça, os cabelos cintilantes caindo
em mechas ao redor de sua cabeça, os cachos alcançando as pontas de suas
orelhas pontudas.
— Escute, não temos tempo a perder. Não estamos aqui para machucar
ninguém, ok?
— Por que deveríamos acreditar em sua espécie? — A sobrancelha de
Skye, de um tom levemente loiro sobre o preto, se ergueu.
Os dois Feänors se entreolharam, o da direita estalou a língua em um
pestanejar.
— Nossa espécie? É sério isso?
Confuso, e irritado, Skye deu de ombros.
— São surdos por acaso?
Eles riram, deixando o Lorioran ainda mais em confusão e irritado.
Queria destroçar cada um deles.
Um aperto em seu braço o fez desviar a atenção por um breve momento
dos dois para Gwen.
— Devem ser eles. — Ela sussurrou, o tom rouco, quase inaudível.
Como se a garganta há uma década não degustasse de uma gota de água. —
Devem ser eles que vovó falou. Os que estavam vindo.
A compreensão atingiu o rosto de Skye, com ele digerindo e
formulando a informação.
O de cabelos prateados a encarou com uma avaliação demorada, com os
olhos ametistas brilhando em algo como reconhecimento.
— Isso — exclamou. — Gillyn nos enviou uma mensagem pelo
sussurro do ar e aqui estamos.
O aperto de Gwen se intensificou com a menção do nome de Gillyn.
Skye apertou os dentes.
— Por que Gillyn pediria ajuda a vocês? Não consigo entender o
motivo de ela contatar seu povo.
O loiro levou uma mão ao peito, forjando uma falsa expressão de dor,
fitando o que estava neutro ao seu lado.
— Eu estou realmente começando a me ofender, e você? — Se
lamuriou para ele.
O outro riu, concordando, parecendo descontraído.
— Escuta, não temos todas as informações sobre a situação. Achamos
que teríamos quando encontrássemos vocês. Onde está Gillyn, afinal?
Skye levou o olhar para sua amiga novamente, vendo uma expressão de
dor se instalar em sua face. Os nós dos dedos brancos no aperto rígido em sua
haste.
Um suspiro saiu dos Feänors quando a compreensão os atingiu ao fitar
os dois Loriorans devastados.
— Entendo. — O da direita, de cabelos castanho-escuros, como nozes,
murmurou baixinho. — Sinto muito.
— Por que sentiria? Nem mesmo a conhecia. — O olhar de Skye foi
como gelo para eles. Como gelo fervente e agonizante.
O de cabelos cor de ébano franziu o cenho. Os olhos violetas pareciam
transmitir uma calmaria que não chegava aos de Skye.
Ele não podia baixar a guarda. Não com Gwen tão devastada. Se
precisasse lutar com os dois para que ela conseguisse fugir, ele os rasgaria em
pedaços.
— Não é necessário conhecer alguém para sentir por sua perda. O fim
de uma vida é algo terrível de qualquer forma. Ainda mais quando é de
alguém que amamos. — Ele abriu um sorriso sem dentes para Gwen, quase
como em conforto. Skye aliviou sua tensão um pouco. Não o suficiente para
relaxar.
Novamente Gwen apertou seu braço, o significado de sua frase "fim de
uma vida" reverberou por seu corpo trêmulo.
Skye percebeu que o prateado notou isso, não tirando os olhos de Gwen
em nenhum momento.
Aquilo ferveu seu sangue.
— Vão embora — esbravejou, girando a lança em um lembrete para os
dois.
Skye não confiava neles, principalmente porque eram chamados de o
povo das trapaças dentro de todos os livros que leu em sua infância sobre o
povo mágico de Elrond, que conjurava magia celestial e podiam se
metamorfosear em animais, dom herdado da essência dos deuses pelo fruto
roubado.
O Lorioran agradeceu pela barreira mágica os manter longe de seu povo
durante todos esses anos. Mesmo que ela não os impedisse de atravessar o
bosque, mas a ideia dela posta sobre Wenkael os aterrorizava o suficiente
para não tentar.
— Não podemos. Recebemos uma ordem e temos de cumprir nossa
missão. Precisam vir conosco... — O Feänor prateado pareceu sopesar as
palavras. — Para Elrond.
A mente de Skye estalou com a informação, com um rugido
estrondando por seus pensamentos.
Ele riu. Uma risada seca e dolorosa.
O prateado coçou os cabelos bagunçados, sem jeito, como se ele mesmo
se desse conta do absurdo que falara.
— O quê? — Skye indagou incrédulo em um alto tom. — Não mesmo,
nem pensar.
— Não há o que discutir. Vocês precisam vir.
Um sorriso crispou os lábios de Skye.
— Ah, é mesmo? — A haste da lança rodopiou em seu braço. Uma
ameaça velada. O olhar se tornando ainda mais frio. As órbitas azuis até
mesmo pareciam brilhar. — Ou o quê?
Eles se fitaram em um ato mútuo de ameaça singela, um combate entre
olhares, com aqueles olhos violetas instigando Skye para um ataque.
E então uma mão tocou seu peito quando ele estava disposto a aceitar o
desafio nos olhos daqueles idiotas.
Ele já tinha analisado cada ponto crucial no corpo dos dois onde uma
perfuração de sua lança poderia ser letal. Mesmo sem forças e machucado,
ele os destroçaria. Por Gwen.
— Skye. — O tom da voz de Gwen o alarmou, cessando seus instintos
de luta e tranquilizando seus nervos aflorados. Ele levou o olhar para ela, que
fitava os dois à frente. — Vovó se sacrificou para que conseguíssemos fugir e
encontrá-los. Ela queria que fossemos com eles e, de qualquer forma, não
temos para onde ir.
— Nossa aldeia... — Ele nem mesmo concluiu sua frase quando flashes
de horas atrás o atingiram em estupor. A aldeia sob chamas e destruição.
— Não podemos voltar, há um motivo para vovó nos ter feito fugir. Ela
não nos queria lá. Precisamos ir com eles e descobrir o que ela queria nos
tirando de lá. E se Elrond tem essas respostas, é para lá que eu vou.
O olhar dela se tornou rígido, o cinza se solidificando em puro aço. A
nebulosidade expressa neles foi o suficiente para fazê-lo concordar,
suspirando.
Para onde ela fosse, ele iria. Sempre. Fora a promessa de suas almas
enlaçadas.
Ela pareceu ler o temor em suas íris, apertando seu braço em uma
resposta muda.
— Tudo bem. — Se virou para os dois que os assistiam, atentos,
semicerrando os olhos para eles. — Mas eu não confio neles.
Gwen deslizou sua mão para a de Skye e a apertou, lançando um sorriso
que ele percebeu que ela forçara tentando mostrar que estava bem. Quando
ele sabia que não estava.
— Eu também não. E se eles sequer tentarem algo... — Os olhos cinzas
dela se lançaram para eles. A expressão fria. Vazia. — Eu mesma os mato.

Os dois Feänors não disseram nada mais, depois de tudo, com Gwen e
Skye os acompanhando em seu trajeto, com eles guiando o caminho. Skye
mantinha um braço sobre ela, sendo o suporte de seu corpo exausto e fraco,
sem um mero pingo de energia, e ela sabia que Skye estava no mesmo estado,
mas se recusava a soltá-la. Ela não tinha forças para relutar.
Eles seguiram os dois em silêncio, um metro atrás deles, conforme eles
subiram por uma colina, passando por imensas dunas de areias.
Não confiava nem um pouco nos dois, tinha lido o suficiente sobre seu
povo para saber que seria tolice confiar.
O povo de Elrond, o primeiro povo a existir, herdeiros da essência do
poder dos deuses de Eldar. Capazes de conjurar magia de uma forma
diferente dos Loriorans ou de qualquer outro povo. A magia deles não vinha
da natureza como a do povo de Gwen, ou do povo de Elora. Era uma magia
voraz e sagaz. Uma magia dimensional. Poderosa. Eles poderiam conjurar
feixes de luz, pelo que sua avó contara.
Mas o que mais impressionava Gwen, quando ouvira as cantigas sobre
os Feänors, eram sobre sua metamorfose; a habilidade que eles possuíam de
se transformarem em animais sempre fora uma incógnita para ela. Um dos
muitos dons passados pelo fruto dos deuses. O poder de mudar de forma. Sua
avó sempre dizia que eles o consagravam como uma benção, quando houvera
sido roubado pelo primeiro mortal que retirara o fruto da árvore de luz para
salvar sua amada mortal.
Sua avó. Gwen tentava a todo custo manter aquelas emoções ruins
dentro do baú, contudo, era um turbilhão delas e pequenos feixes vazavam,
rasgando seu peito em uma dor lasciva pela perda. Se tudo aquilo escapasse
para fora, ela não achava que conseguiria suportar tamanho sofrimento.
A luz sempre vence a escuridão.
Ela guinchou um gemido doloroso, atraindo um olhar preocupado de
Skye. Ela nem mesmo conseguia mais forjar sorrisos para tranquilizá-lo. Se
sentia esgotada e o corpo parecia destroçado, como seu coração. Seu poço de
energia física e emocional estava vazio.
Ela se sentia vazia.
— Escuta, vocês não podiam... Sei lá... Conjurar um portal? — Skye
gritou para os dois à frente, que cessaram a subida, olhando para trás, para
eles.
O loiro, de cabelos tão prateados e lindos, que a quilômetros se poderia
notar sua nitidez, trouxe o olhar lilás fervente para Gwen, depois para Skye,
com uma sobrancelha erguida.
— Claro que não. Não podemos fazer isso. Só magos de histórias
idiotas de contos de crianças conseguem fazer tal besteira. Se acham que
nossa espécie é capaz, são tolos. — Ele respondeu para Skye bufando, o tom
carregado de escárnio.
Skye retrucou a zombaria.
— Então agora entendo porque demoraram tanto para vir.
— Por que você não, sei lá, conjura uma planta imensa que possa nos
engolir e nos levar magicamente para Elrond? — O loiro indagou sarcástico,
voltando a caminhar, pestanejando reclamações sobre "Elfos burros".
Skye ergueu o dedo do meio para ele, em um gesto indecente, com seu
parceiro captando o gesto e sorrindo. O de cabelos castanhos transmitia, por
alguma razão desconhecida, uma aura de leveza, enquanto o Feänor prateado
instigava devassidão.
— Você quer ajuda com ela? — indicou Gwen com um aceno de
cabeça, pois Skye praticamente a carregava.
Skye rolou os olhos, voltando a caminhar.
— Eu te pedi ajuda por acaso?
— Tudo bem. — O Feänor suspirou, erguendo as mãos, também
voltando ao trajeto.
— Idiotas. — Skye murmurou baixinho, ao ponto de Gwen quase não
ouvir, com um sorrisinho lento tomando seus lábios. Até mesmo quando ria
era doloroso, pois a bochecha atingida pela cauda da besta, agora inchada e
pulsante, queimava. — Você tem certeza mesmo disso, Gwen? Que devemos
seguir esses porcos Feänors?
Ela inspirou fundo.
Havia refletido sobre isso durante todo o percurso. Cada frase
incoerente de sua avó se chocando em sua mente em um quebra-cabeças que
ela tentava montar. Nada fizera sentido ainda. Nada.
Mas ela sabia que, por algum motivo, ela os queria levar para Elrond e
aguardava pela chegada deles. Se sacrificara por aquilo, no fim.
E agora que sua avó não estava mais com eles. Gwen precisava de
respostas e tinha que montar o quebra-cabeças em sua mente, que a estava
perturbando mais do que podia admitir.
Depois. Lidaria com isso tudo depois.
Ela assentiu como reposta, com ele estalando a língua, como se por um
momento esperasse que ela negasse e os dois pudessem fugir para longe.
Em seu interior, uma pequena parte desejava isso. No entanto, a maior
dominava seus instintos. A faminta pela verdade.
Os quatro caminharam um longo caminho pelas colinas, quilômetros de
distância do vale sendo atacado que deixaram para trás.
Tinham feito umas duas longas horas e meia de trajeto, em um vasto e
desconfortável silêncio.
Durante todo o caminho, ela fitou o lugar desconhecido a sua volta, os
campos íngremes, em altos relevos, as diversas montanhas com enormes
picos e as poucas árvores que se espalhavam pelo monte. Árvores secas, sem
galhos e folhas. Quase como um deserto.
— Para onde exatamente estamos nos locomovendo afinal? — Skye
questionou, a voz rouca, deixando em evidência seu cansaço e frustração.
Ele praticamente havia carregado Gwen o caminho inteiro, sem tentar
demonstrar o quão machucado e sem forças estava. Ela havia tentado se
desvencilhar dele, com ele não permitindo. Sempre com aquele senso de
proteção, que naquele momento ela não sabia se amava ou detestava.
— Precisamos pegar alguém no caminho. — Um deles respondeu.
Provavelmente o prateado. Ele tinha um sotaque estranho, o tom da voz era
mesclado em um suave rouco. Costumava arrastar o "S" em sua pronúncia.
Como se o timbre dele fosse encantado por possuir uma voz tão estrutural.
— Alguém? — Skye retrucou. — Não me diga que é mais um de
vocês?
Mesmo àquela distância Gwen pode ouvir o rosnado baixinho que o
loiro chiou. Quase feral.
— Escute, elfo, estou começando a me ofender com seus comentários
— rebateu.
— Ah, é mesmo? Então enfia sua... — Skye cessou suas palavras e
passos quando um som estranho ecoou em seus tímpanos. As orelhas
pontudas tremeram pelo eco. — O que foi isso?
A pergunta de Skye permaneceu em um vácuo de silêncio no ar, quando
os dois Feänors correram, descendo uma elevação da colina.
— Eu não acredito que esse idiota dormiu! — O loiro esbravejou, o
tom carregado de frustração.
Skye e Gwen viram o que emitiu aquele som estranho pelo monte, antes
que chegassem até o causador. Era um roncar bruto e animalesco, vindo de
um enorme tigre branco, dormindo ao lado de uma rocha.
Os dois ofegaram assustados, dando um passo em uníssono para trás,
vendo o animal de pelo menos uns dois metros, maior que a enorme rocha na
qual se encostava, dormindo, os roncos suaves como um rosnado sibilado.
Possuía algumas listras pretas envolvendo o pelo branco imenso, que
Gwen percebeu se assemelhar quase ao tom de cabelo de um dos Feänors.
Então eles se deram conta que os dois Feänors caminhavam para a
imensa criatura dormindo. Não para longe, mas para ele.
— Ei... Seus idiotas! O que pensam que estão fazendo? — Skye
sussurrou em choque. A voz ofegante. Os dois se entreolharam, dando um
breve olhar para os dois Loriorans para, em seguida, soltarem uma sonora
risada. — Saiam daí, seus estúpidos!
Eles se aproximaram do animal, o imenso tigre branco estava enroscado
em si mesmo, amontoado em sua pelagem quase como algodão, o rabo
deslizando para trás.
O Feänor loiro retrucou algo que os dois não conseguiram ouvir,
erguendo o pé, calçado por uma bota de couro marrom, e desceu com força,
pisando no rabo do animal.
— Acorda idiota! — Ele berrou para o tigre.
Gwen e Skye se sobressaltaram, assustados, quando o imenso tigre
branco acordou em um rosnado feroz, se erguendo em um salto, os dentes
imensos à mostra, prestes a fincar naqueles dois estúpidos ao seu lado.
Contudo, o tigre apenas grunhiu, balançando o rabo no ar, a cabeça
pendendo para o lado em um quase ronronar, como se estivesse bocejando,
estalando a língua no processo.
Recuperados do susto, Gwen e Skye trocaram um olhar, fitando a cena
abaixo em completo estupor.
— Você é inacreditável, não é? Deveria estar de tocaia, vigiando a área
enquanto esperava pela gente. — O loiro o repreendeu, com o tigre
grunhindo em resposta. Quase como se retrucasse.
Os dois Loriorans observavam tudo boquiabertos.
— Você não pode dormir em nossas missões, Thorion. Já discutimos
isso. — O Feänor de cabelos castanhos, com cachos caindo por sua testa,
esbravejou. — Seu felino idiota.
O tigre sacudiu a cabeça, com os três levando o olhar para os dois
Loriorans à frente.
Gwen estremeceu quando o imenso animal farejou, dando um olhar que
ela percebeu ser avaliativo para os dois. Já havia caçado vários leões da
montanha com Skye para alimentar o povo, mas ela sabia que enfrentar uma
fera como aquela, no estado em que se encontravam, seria morte certa.
Os olhos felinos amarelados do tigre deslizaram por Gwen, embora
tenha sido em Skye que se demoraram por mais tempo.
Mas então ele se virou para o Feänor loiro, grunhindo, com ele
assentindo.
— Sim, são eles.
Skye pestanejou.
— Consegue entender o que esse animal diz?
Os dois Feänors caíram em uma gargalhada estridente, com o tigre
rosnando baixinho em depreciação.
— Bom, ele é nosso animalzinho de estimação, não é, Thorion? — O
loiro deu um tapinha no flanco do tigre, apreciando o receio dos dois
Loriorans sobre ele. — Venham, não se preocupe. Ele não morde.
O idiota riu sozinho, com seu companheiro balançando a cabeça.
— Chega de piadinhas, Westyn, os dois tiveram um dia e tanto. É
melhor seguirmos com nossa viagem. — Westyn, Gwen levou o olhar para o
Feänor prateado, ainda rindo.
Ele era uma visão e tanto, ela tentou se lembrar se os livros de contos
sobre o povo de Elrond descreviam a beleza deles como algo grandioso.
— E você. — O moreno, apontou um dedo para Skye, o olhar ametista
sério e determinado. Gwen percebera que o tom de seus olhos eram mais
escuros que os de seu companheiro. Quase um roxo. — Não tente insistir em
carregá-la, quando é óbvio que não tem forças para arrastar o próprio corpo.
— O que diabos está dizendo...
— Escuta, vocês dois estão machucados e cansados. Ambos estão lentos
por causa disso. O caminho por terra para Elrond leva dois dias; com vocês,
assim, levará um mês. Estamos entrando no território das montanhas
cantantes, é um território desconhecido e perigoso. Precisamos ter cautela.
As Montanhas Cantantes. Gwen lembrava de ter lido sobre elas, um
vale flanqueado por imensas montanhas que sibilavam. Alguns contos diziam
ser gigantes em uma hibernação eterna.
Skye bufou.
— E o que quer que façamos? Que criemos asas e voemos?
O Feänor deu de ombros.
— Se pudessem, seria bom para variar. Assim poderiam nos
acompanhar.
Os dois Loriorans o fitaram com o cenho franzido. Ele suspirou,
balançando a cabeça.
— Mas como não possuem asas... O jeito é serem carregados. — Ele
esclareceu por fim.
A bile travou na garganta de Gwen pelo arquejar surpreso de Skye, o
mesmo lhe acontecera.
Ele soltou uma risada seca.
— O quê? Espera... O que isso quer dizer? Carregados por quem?
Os dois Feänors sorriram, sorrisos maliciosos, levando o olhar para o
imenso tigre branco entre eles.
Um arrepio percorreu Gwen.
— Oh não! Nem pensar! — Skye exclamou, o tom expressando o
nervosismo e medo que ele tentava camuflar. Gwen não poderia julgar o
Lorioran, afinal, compartilhava seu temor.
Ela não conseguiu retrucar em comum acordo; quando tentou se
pronunciar, um gemido estridente a golpeou em um choque de dor.
— Ela não vai aguentar a viagem inteira andando. Está muito ferida. E
você, é evidente que está sem força alguma para carregá-la por mais tempo.
O olhar azul-celeste de Skye recaiu sobre ela; Gwen viu o pesar, o
medo, a dor, o cansaço e a aflição controlada refletindo neles. Então, por fim,
ela acenou em um gesto fraco de cabeça.
Skye forçou ao máximo um sorrisinho gentil, se curvando e beijando o
topo de sua cabeça.
Ela viu que Westyn assistia tudo de forma atenta, com os olhos
ametistas fixos nos dois.
Skye mal se virou para eles. Quando o tigre saltou, parando à frente dos
dois, ela viu o amigo ofegar, suspirando. O corpo até mesmo estremecendo.
O imenso tigre o encarou por um bom tempo, gracejando algo, como se
os mandassem subir logo.
Gwen se permitiu ser erguida por Skye, contendo o impulso de um urro
de dor quando suas costelas estalaram, os músculos contraindo ainda mais,
atrofiando em uma agonia aguda.
Foi posta com cuidado nas costas largas e musculosas do animal, a
pelagem branca fluida e suave sob ela. Ele era imenso, maior que a maioria
da espécie. Mas os pelos dele eram tão macios como nuvens deveriam ser. A
ponto de ser inevitável deslizar a palma de sua mão por entre os pelos, como
plumas, do tigre. O animal até mesmo ronronou como se apreciasse o gesto,
arrancando um sorrisinho de Gwen.
Logo em seguida, Skye montou atrás dela, pestanejando um xingamento
quando o tigre quase sucumbiu ao peso dos dois, grasnando em reclamação.
Os braços do amigo envolveram sua cintura e ela se permitiu se
encostar em seu peito, acomodando a cabeça em seu ombro.
— Vamos acompanhar vocês pelo ares, vigiando o perímetro em torno.
— Westyn informou, quando os dois estavam acomodados sobre o tigre.
As sobrancelhas de Gwen se ergueram.
— Como assim pelos ares?
O Feänor loiro sorriu para ela, um sorriso esnobe, ela percebeu. Com o
canto do lábio erguido para cima, expondo um pouco de sua fileira de dentes.
Ele se retesou em um movimento, estremecendo o corpo, então o som
de um farfalhar estourou pelo recinto quando imensas asas negras brotaram
de suas costas.
Cada traço e parte de Gwen estremeceu em completo choque e fascínio,
acompanhados por um pouco de horror quando ela encarou as imensas asas
negras de Westyn. Ele as bateu no ar, piscando um olho para ela, dando um
impulso em um salto e disparando para o céu.
Pelo fogo.
— Exibido. — Seu companheiro, à frente deles, bufou, com um sorriso
comparsa nos lábios.
Ainda boquiaberta, Gwen observou quando ele fez o mesmo, com asas
tão potentes quanto brotando de suas costas, embora estas fossem amareladas
ao invés de negras como as do outro. As penas, grandes e curvadas em
declínio na envergadura, se alongaram quando ele as estendeu e bateu no ar.
Gwen sentiu Skye enrijecer atrás de si.
Ele acenou para eles antes de disparar para o céu atrás do amigo, que já
zarpava em um longo voo.
Gwen ouviu Skye xingar algo indecente atrás dela, tão boquiaberto e em
choque quanto ela. Gwen apenas concordou, em uníssono, em um sussurro
ecoando em fascínio, quando o tigre rugiu, desatando a correr,
acompanhando o voo deles em terra, com as sombras das imensas asas sobre
eles.
9

A brisa empertigou sua visão no primeiro piscar de olhos, um céu


azul divino se expandiu diante de sua visão quando ela abriu suas pálpebras.
Ela piscou várias vezes, adaptando a visão embaçada à luz da brisa. Sua
garganta apertou um pouco quando ela engoliu em seco, contudo, não havia
dor, apenas uma irritação pela sede. Como se areia arranhasse sua garganta.
Uma careta tomou seu semblante pelo incômodo.
Gwen se mexeu, se dando conta que estava deitada sobre o enorme
tigre, quase enroscada nele, com ambos no solo, repleto de grama e flores
silvestres. Seu coração nos primeiros segundos salteou em pavor pela fera,
para então seu subconsciente a tranquilizar com sua mente trabalhando.
Piscando, ela bocejou, verificando o ambiente em volta. Estava em uma
redoma, como em um bosque, a área ladeada por centenas de arcos
flanqueados de árvores. Deveriam estar na fronteira ou divisa de alguma
região florestal.
Ela se sentou, com o tigre ronronando e se mexendo um pouco, ainda
cochilando.
Ergueu os braços para o céu e os esticou, contraindo os músculos
rígidos. Se deu conta de que não havia nem mesmo um frasco de dor
lampejando por seu corpo, ou sequer rasgos de feridas. Havia apenas um
imenso cansaço a tomando.
Levou uma mão para sua bochecha, que outrora possuíra uma ferida
aberta e inchada. Todavia, agora estava macia e sem marca alguma de
ferimento.
Ela arquejou pasma e em esplendor.
— Deve estar se sentindo exausta, não é?
Gwen se sobressaltou, levando o olhar à frente, vendo um garoto de
cabelos castanhos e olhos de um tom ametista escuro sentado a alguns metros
dela, em um tronco de carvalho caído.
Antes que a confusão e terror a dominassem, as engrenagens de sua
mente trabalharam, lançando luzes de lembranças da noite passada para ela.
Seu semblante fechado e pasmo se aliviou quando ela se recordou por
completo dos últimos acontecimentos. De cada infeliz recordação amargando
sua consciência, ainda inerte, despertando.
Levou o olhar para o garoto a sua frente, podendo finalmente o observar
com exatidão e nitidez agora, através da luz do dia.
Suas lembranças sobre ele, na noite passada, não eram muito claras
devido aos olhos marejados e o luar da noite.
Seus traços eram bem marcantes, com um cabelo tão castanho quanto
cacau, de um tom claro, com mechas onduladas caindo por sua testa. Os
olhos eram etéreos, com aquele tom que lembrava uma flor centáurea; nem
mesmo em seu povo, que possuía diversos tons de olhos, ela havia visto
aquele tom peculiar que era um traço exclusivo dos Feänors.
O nariz dele era fino, as maçãs do rosto acentuadas, afiadas até. Os
lábios, ela nem mesmo percebera o quanto parecera deslumbrada por eles, de
tão traçados e cheios, de um tom avermelhado. Possuía um queixo marcante,
com o maxilar rijo.
E então haviam aquelas marcas, os símbolos que, devido ao luar do
anoitecer, ela concluíra que fossem de um tom branco, mas agora, podia
constatar que eram marcas escuras, como vinhas se entrelaçando, que
tomavam seus braços e peitoral. Como ele usava um casaco verde aberto,
com bordas em pelo, expondo o peito, era bastante visível os desenhos em
seu corpo, de um tom cinza-escuro quase transparente.
Eram como linhas traçadas por símbolos estranhos, e antigos.
Gwen corou quando fitou o abdômen definido do rapaz. Fora
constrangedor quando demorou demais fitando as marcas delineadas por seus
gominhos rígidos. Ele era forte, tinha um porte magro, com o físico de um
caçador nato. Embora sua fisionomia se assemelhasse à dela, jovial, talvez
com os mesmos dezessete anos que ela achava ter, se fosse mortal.
Ela não sabia quantos séculos de vida ele deveria ter, nem conseguia
imaginar.
Mas o fato principal constatado era que ele era muito atraente, e quando
ela se deu conta disso, ruborizou em constrangimento com sua conclusão
mental.
Ele sorriu, um sorriso leve e suave, que deixava sua expressão ainda
mais atrativa, quando notou o olhar dela sobre seu porte musculoso. Ergueu
uma sobrancelha questionadora.
Gwen se dera conta de que não o havia respondido, com ele ainda
esperando por sua resposta.
Por um instante temera que, se pronunciasse algo, sua voz soaria como
um gato montanhês que chiava de forma horrível ao rosnar. Gwen detestava o
som.
— Hã... Mais ou menos. — Ela murmurou, o tom rouco e quase
inaudível. Bom. Nada de chiado horrendo, pelo menos.
Ele assentiu.
— Os resquícios da magia ainda devem estar trabalhando em seu corpo.
Tentamos não usar muito para não sobrecarregá-la — esclareceu, com os
olhos celestes fazendo uma varredura, quase como uma inspeção por sinais
de machucados por ela.
Gwen arfou, balbuciando um pestanejo incompreensível. As palavras do
garoto rodopiando em um rugido por sua mente.
— Espera... O quê? Vocês usaram magia em mim?
O Feänor assentiu, meio sem jeito; ela percebeu assim que notou suas
maçãs do rosto ganhando um tom vermelho.
Pelos deuses. Ele estava ruborizando.
— Sim, desculpa, mas foi necessário. Você e seu amigo estavam muito
machucados, inclusive, uma de suas costelas estava fraturada e seu amigo
estava esgotado de energia.
Gwen ouvia tudo em completo choque.
Boquiaberta, enquanto tentava minuciosamente detectar algum ponto de
magia em seu corpo. Mas não sentia nada, fora a exaustão que quase tornava
seu corpo dormente.
— Não se preocupe, nossa magia de cura é inofensiva. Podemos
manusear a luz ao nosso favor e conjurar propriedades curativas em seus
feixes. — Ele pareceu conter um riso da agitação visível dela, como se fosse
divertido assisti-la em declínio.
Um arquejo abrupto saiu de seus lábios quando ele demonstrou a Gwen,
erguendo uma mão, com as linhas de marcas em seu braço cintilando em
pontos de luz, clareando-as até a palma de sua mão marcada e, então, uma
enorme esfera de luz emergiu de sua mão, como um bola esférica e brilhante
de um tom lilás quase azulado.
Como um raio violeta.
O coração de Gwen bateu afoito e encantado pelo vislumbre daquela
conjuração de magia. Ela sempre fora fascinada por conjurações; mesmo
quando descobrira não ser capaz de produzir uma sequer, sempre se deleitava
com o seu uso. E aquele poder diante de si era diferente de tudo que já vira.
Ele sorriu ao ver o cenho iluminado dela, fechando lentamente os dedos
de sua mão em punho, desvaindo a luz que emanava.
Gwen balançou a cabeça, saindo de seu estupor, digerindo o presente
momento. Ela girou a cabeça pelo campo em volta, procurando.
Como se finalmente se desse conta da ausência de alguém, de uma
parte sua. E outra pessoa, que ofuscou sua mente com rapidez.
— Onde está Skye e seu amigo? — indagou, cerrando os olhos para
cada canto, tentando enxergar o mais distante possível.
— Depois que o curamos e sua energia voltou, ele se ofereceu para
ajudar Westyn a caçar nas redondezas nossa refeição matinal. Você deve
estar faminta, a magia de cura estabelece um processo de regeneração rápido
de energia vital, mas isso acaba sendo trivial, drenando um pouco de energia
corporal, causando um cansaço por algumas horas. Você nem mesmo estava
consciente quando decidimos acampar aqui antes do amanhecer.
Ela franziu o cenho.
— E mesmo assim Skye foi... — Ela se interrompeu, se dando conta de
quem falava, estalando a língua em um xingamento. — É claro que foi.
— Bom, eu tentei avisá-lo. Mas ele apenas me deu o dedo do meio. —
O Feänor riu, conquistando um pequeno sorriso que Gwen não permitiu que
ele visse. — Eles devem estar voltando, saíram há algumas horas, ao nascer
do sol.
Gwen assentiu, o olhar vagando por cada parte do recinto.
— Onde estamos exatamente?
O lugar ao redor lembrava as redomas do seu bosque.
O Feänor suspirou.
— Estamos na divisa do reino montanhês com o Vale Encantado. —
Ele ergueu um dedo, apontando para a floresta adiante. — Daqui para a frente
é território do povo do Vale. Precisamos passar por ele para chegar na capital
de Eldar.
A língua de Gwen pareceu pesar em sua boca. O Feänor continuava a
encará-la com aqueles olhos singulares, como se a avaliasse com cautela.
— Elrond.
Ele assentiu para ela.
Ele se curvou, pegando uma bolsa de uma alça só, revestida em um
tecido fino marrom, que estava próxima a um círculo de rochas com madeira
queimada de uma fogueira que deveria ter apagado algumas horas atrás.
Eles tinham passado a noite naquele lugar, tinham parado em algum
momento do anoitecer quando ela adormeceu sobre o ombro de Skye,
enquanto eram carregados pelo tigre dorminhoco ao seu lado.
Ele removeu da bolsa um frasco entalhado em madeira, uma garrafa
pequena com uma tampa de rolha, jogando para Gwen que a pegou no ar.
Gwen deslizou um dedo sobre a textura, observando o desenho de um
sol entalhado, com os raios solares despontando em pontas afiadas como
lâminas em sua borda.
— Tome. Precisa se hidratar. — Ele continuou vasculhando a bolsa
quando de repente parou, trazendo o olhar para ela, que ainda o fitava com o
frasco em mãos, o olhar curioso e singelo. — A propósito, eu me chamo
Liryan. Liryan Blackstone.
— Oh. — Ela assentiu em um ofego, erguendo o frasco. Pigarreou ao
exclamar: — Eu sou Gwen, Gwen Briffyn, mas já deve saber disso, e
obrigada.
Liryan apenas acenou, voltando a vasculhar o interior da bolsa.
Ainda intrigada com tudo aquilo, Gwen não perdeu tempo ao matar sua
sede, levando o frasco aos lábios e bebendo, a garganta aliviando de imediato
a irritação.
— Vocês... — Ela girou o questionamento em sua pergunta, tentando
evitar esbarrar em emoções erradas que poderiam disparar determinados
gatilhos. Depois. Lidaria com isso depois. — Conheciam minha avó?
A garganta, mesmo hidratada, se fechou.
Ela engoliu em seco.
O Feänor ergueu o olhar para ela, avaliando, tentando ver através de
suas camadas e Gwen notou.
Talvez o que ele tenha visto o fez analisar suas palavras com cautela e
cuidado.
— Não. Apenas recebemos a missão de encontrar vocês e os levar para
Elrond. Nenhuma informação a mais. — Ele exclamou, o olhar dela tremeu
quando ela acenou, tentando manter a postura firme diante suas palavras.
Liryan pareceu perceber mesmo assim. — Novamente... Sinto muito —
murmurou. O tom soou carregado de compadecimento e sinceridade.
Gwen não se importou em responder. O olhar caiu para o frasco em seu
colo. Não deixaria aquela dor chegar. Ela apertou o pingente em seu pescoço.
Ainda não. Esse não era o momento, dizia para si mesma e para aquela
pressão interna dentro de si, que parecia a corroer de dentro para fora.
No instante em que baixou a mão com o frasco, um barulho se instalou
no recinto, com o som de galhos e ramos chacoalhando.
Skye surgiu com uma expressão fechada, com o outro Feänor de
cabelos cor de prata logo atrás, com o semblante tão fechado quanto.
— Se você não fosse tão barulhento eu teria conseguido acertar ele. —
Skye retrucou para ele, entredentes. As presas expostas.
— Se você não fosse tão lento, talvez você teria mesmo. — O Feänor
rebateu. Ambos carregavam corpos de lebres abatidas.
— Cale a boca, feiticeiro inútil.
O Feänor gargalhou ácido e com escárnio no tom.
— Feiticeiro? É sério?
Skye grasnou para ele, sua lança na mão esquerda girando em um
lembrete para que o Feänor não o provocasse. Esse pareceu não dar a
mínima, mostrando os dentes para Skye.
Foi então que o Lorioran de cabelos dourados avistou Gwen sentada.
Com o olhar dos dois se encontrando, ela abriu um sorriso com a visão do
amigo diante de si. Ele estava bem. Ele estava bem. Estava vivo. Repetia
como um mantra para a pressão dentro de si, sentindo uma pequena parte se
aliviar.
Ele balbuciou algo, jogando as lebres que segurava no chão e correndo
para ela.
Em instantes caiu de joelhos diante de Gwen, a abraçando.
— Você acordou. — Ele sussurrou, a voz embargada arrancando uma
pontada no peito de Gwen. Ela a arremessou de imediato no baú.
Estivera lançando qualquer emoção ruim que começava a se instalar em
seu peito, ou que trouxesse a lembrança da noite anterior, para o baú em sua
mente desde que acordara.
— Sim. — Gwen retribuiu o abraço, acariciando as costas do amigo,
que com rapidez se afastou, agarrando seu rosto com as mãos, os olhos azuis
velozes sobre ela, averiguando cada traço e ponto seu, buscando um mero
machucado.
— Você está bem? Desculpa não estar aqui quando acordou. Achei que
não acordaria rápido assim. Você estava tão inconsciente e eles usaram a
magia para curar sua feridas... Eu fiquei com tanto medo... E depois... Você
capotou... E eu não...
Ela segurou seu rosto, fixando o olhar dele no seu, vendo o quão
desesperado e aflito seu amigo estava.
— Ei, ei. Eu estou bem — decretou convicta, uma parte sua alegando
isso para si mesma. — Não há sequer um machucado mais. Eu estou bem.
Mentirosa. Sua mente retrucou.
Não haviam machucados externos visíveis.
Skye a fitou, com uma respiração pesada o deixando; uma lágrima
deslizou por seu rosto e Gwen a limpou.
— Eu estou bem — repetiu em um sussurro, unindo suas testas, falando
através da conexão que possuíam, sussurrando outra vez, podendo sentir o
amigo relaxando. — Estou bem.
Se afastou para fazer sua própria checagem sobre ele, vendo que o corte
que havia em sua bochecha na noite passada também havia sumido, como o
seu.
Aquele poder dos Feänors era algo incrível, mas ainda assim
assustador. Ela não podia deixar de constatar tal fato.
— Você está bem? — indagou ao amigo, recebendo um aceno positivo
em resposta, com ambos se abraçando outra vez.
Gwen sentiu as lágrimas ameaçando inundar seus olhos e ela apertou as
pálpebras para contê-las, se recusando a chorar diante daqueles estranhos
Feänors.
Mas pelo menos uma parte sua estava em luz, vendo o amigo bem e ao
seu lado, enquanto a outra a inundava em uma escuridão mordaz, afogando e
afogando Gwen em seu interior.
A luz sempre vence a escuridão.
— Fico feliz que esteja bem, loirinha. — Uma voz murmurou acima
deles e ela se desvencilhou de Skye para encarar o Feänor de pé diante deles.
Agora, à luz do dia, ela podia constatar melhor os traços marcantes do
garoto malicioso.
Ele era alto, provavelmente da mesma altura de Liryan. Mesmo Gwen,
com seus um metro e setenta, ou Skye, que era poucos centímetros mais alto
que ela, não eram tão altos quanto os dois. Ele deveria ter um e oitenta, no
mínimo.
O porte era idêntico ao do companheiro, magro, com braços e abdômen
definidos. Deveriam ser guerreiros em seu povo pelos músculos saltados no
peito e braços. A aparência jovial era absurdamente bela, como uma dádiva
dos deuses para seu povo.
Ela se perguntou se o nível de beleza dos Feänors era tão alto assim, ou
era uma característica exclusiva deles possuir tamanha graça.
Mas, enquanto a beleza de Liryan era límpida e majestosa, a de Westyn
era devassa e feroz, com aquela aura sensual e atrativa sobre ele.
O rosto era tão marcado e acentuado quanto o de Liryan, os olhos,
porém, tinham um grau de diferença, eram de um lilás mais vivo e cintilante.
Seus cabelos se destacavam sobre a pele dourada: eram diferentes do loiro
topázio de Skye e até mesmo do loiro marfim de Gwen, com mechas claras;
os dele eram de um branco tom de plumas, prateados, quase como ao
transparecer de um dente de leão. Eram sedosos, caindo em mechas rebeldes
pelo rosto.
Seu maxilar era rígido e marcado, e os lábios, que estavam presos em
um sorrisinho indecente, eram desenhados com precisão, cheios e carnudos.
Usava uma jaqueta preta de seda, aberta, expondo o peitoral desenhado,
com calças e botas de pele também pretas.
Ele parecia um jovem rebelde com o jeito de caminhar despojado e, por
alguma razão, aquele sorrisinho malicioso lembrava as histórias que Gwen
lera sobre seu povo ser conhecido como o povo das trapaças.
— Urgh. — Skye bufou enjoado. — Não ligue para ele, é um idiota.
O Feänor loiro fez uma careta, fitando Skye no mesmo nível de
desprezo. Gwen se recordava de ter ouvido seu nome na noite anterior,
embora sua mente não conseguisse formular.
— Escuta aqui, seu elfozinho, eu salvei sua vida e você já me insultou
mais vezes do que eu posso contar. — O tom de sua voz era grave e sonoro.
Era bom de se escutar, deveria ser um efeito causado pela sua espécie, porque
Liryan causava uma sensação de conforto ao falar com seu tom suave. — Eu
mereço ao menos um obrigado.
Skye sorriu para ele, em escárnio.
— Minha lança enfiada em um lugar nem um pouco agradável seu,
seria agradecimento suficiente? — Ele indagou em um tom ingênuo. Quase
um querubim transbordando inocência.
O Feänor rosnou para ele em fúria e graça.
— Westyn, pare com isso. — Liryan o repreendeu, com o loiro, Westyn,
se virando para ele.
Gwen quase riu. Westyn. Esse era o nome.
— Esse elfo ingrato é irritante, Lir — retrucou.
Aquilo ferveu o sangue de Skye. Como esperado.
— É Lorioran, seu primata burro.
Westyn gargalhou, levando uma mão para o peito em uma fingida
expressão de indignação.
— Eu sou um primata burro, sério?
— E surdo também, pelo visto. — Skye emendou.
Gwen balançou a cabeça, trocando um olhar com Liryan, que sorriu
para ela, se erguendo.
— Ok, agora chega disso. — Se dirigiu para o centro, onde a caça deles
estava, levando um olhar para Skye. — Só lebres? Nada melhor? Nem um ser
maior?
O Lorioran rolou os olhos.
O rosto vestido em pura frustração.
— Poderia ter sido uma corça se seu amigo idiota não fizesse tanto
barulho e a assustasse.
— Você que é lento demais. — Westyn cuspiu.
Skye ergueu o dedo do meio para ele, com o Feänor retribuindo o gesto
indecente.
Gwen rolou os olhos.
O tigre ao seu lado, começando a despertar, gracejou bocejos.
Ele se ergueu, atraindo o olhar de todos ali presentes quando se curvou,
esticando as patas frontais e traseiras, contraindo sua coluna vertebral e, em
um estalo de luz, estremeceu.
Gwen e Skye se afastaram abruptos para trás, horrorizados e em choque
grotesco com a cena diante deles, quando o imenso tigre branco com listras
pretas deu lugar a um enorme garoto, completamente nu.
Skye pestanejou um xingamento boquiaberto.
— Mas que mer...

Os olhos de Skye não saíram do tigre que agora, na verdade, era um


Feänor como os outros dois, embora mais alto e musculoso, o que já era
assombroso o suficiente. Constatando que os dois primeiros eram altos e de
um porte magro forte, o Feänor tigre era ainda mais corpulento, com seus
prováveis um e oitenta e seis, com ombros largos e músculos protuberantes
distribuídos pelo imenso corpo. Ele possuía cabelos escuros em tom
nanquim, ondulantes, aparados nas laterais, com mechas caindo em sua nuca
e face, com um tom de pele dourada, repleto de marcas e símbolos como os
outros dois.
Skye nem mesmo conseguia esquecer a visão que o assombrava do
Feänor se transformando e surgindo nu. Completamente sem roupas. Pelo
olhar e semblante de Gwen, ela devia estar tão pasma e incrédula quanto ele.
Mas o Feänor tigre apenas sorriu para eles, nu, recebendo as roupas que
o Feänor de cabelos castanhos, Liryan, entregou para ele de uma bolsa que
segurava.
Ele se apresentou de forma cortês para eles, agora vestindo uma
camiseta de cetim branca com mangas curtas e uma calça escura, embora
ainda descalço, o que parecia não o incomodar, se apresentando como
Thorion Hakon para os dois, ainda congelados pelo que acontecera, incapazes
de exclamar algo.
O tigre branco que os carregara durante toda a noite era um garoto
gigante, com cabelos pretos nanquim, que em sua transformação feral, a
pelagem branca deveria cobrir os cabelos escuros. Por Eldar. Skye teve que
engolir em seco várias vezes.
Ele se repreendeu em sua mente, se recordando dos outros dois na noite
passada, das imensas asas que brotaram de suas costas e se achou um tolo por
não suspeitar que o imenso tigre branco fosse um deles.
Um metamorfo. A palavra soou amarga em sua mente.
Culpou o cansaço e desnorteio por sua mente não ter trabalhado com os
fatos. Ele e Gwen haviam estudado tanto sobre os Feänors que era tolice não
perceber de imediato suas habilidades metamórficas. Mesmo que vendo isso
tão de perto ainda fosse tão devastador.
— Isso está ficando ainda mais estranho. — Gwen murmurou para
Skye, com ele concordando enquanto ela comia sua carne de lebre assada,
sentada ao seu lado.
Ele nem conseguia se alimentar com tamanho estupor, os olhos atentos
ao trio do outro lado, no tronco, comendo e conversando.
— Como não percebemos que o tigre era um deles? — Skye sussurrou
mais para si mesmo do que para Gwen.
— Acho que eu não conseguia nem formar um pensamento sequer na
noite passada. — Ela constatou. — Contudo, me lembro de eles o chamarem
de animal de estimação. Embora fosse óbvio que não era um tigre comum,
com o tamanho dele.
Outro aceno veio de Skye.
— Os outros dois possuem asas. Então podem se transformar em tigres
também? Ou sei lá? Um lobo?
— Eu não sei. — Gwen sussurrou de volta, dando de ombros. — Os
velhos tomos da biblioteca não falavam sobre isso.
Ainda havia tantas coisas que não sabiam.
Suspirando, Skye mordeu o pedaço de carne, desviando o olhar com
rapidez e ruborizando quando Thorion, o Feänor tigre, o flagrou o encarando,
abrindo um sorrisinho imoral para ele.
Skye conteve a vontade de mostrar as presas em resposta. Um tigre. Um
metamorfo tigre. Se lembrou.
— Ótimo. Que situação estamos. Sabe o deus de Eldar onde estamos,
com três Feänors conosco, indo para um lugar que nem sabemos se é seguro.
Isso é uma grande idiotice. — Se curvou ainda mais para perto de Gwen,
diminuindo o tom. — Três Feänors. Três!
— Eu sei, eu sei. — Ela esbravejou. — Mas não temos escolha. Vovó
por algum motivo queria que os encontrássemos e fossemos com eles.
Precisamos saber o porquê.
Skye se sentiu um inválido quando viu uma expressão de dor passar
pelo rosto de Gwen, sumindo no instante em que surgiu.
Ele sabia que ela estava reprimindo sua perda e tentando desviar as
lembranças do que acontecera, evitando o inevitável, tentando impedir o
estrago que se permitir ser afetada por aquelas emoções lhe causariam.
Sempre fora assim. Era um mecanismo de defesa que a própria Gillyn a havia
ensinado e Skye sabia, melhor do que ninguém, que em algum momento ela
não iria conseguir reprimir por muito tempo aquelas emoções e então
explodiria.
E ele estaria lá por ela.
— Então, vocês enfrentaram aquelas criaturas? — Westyn, depois de
um longo tempo, quebrou o silêncio.
Os dois levaram o olhar para ele. Skye inspirou com as lembranças das
Esuriits invadindo sua aldeia. Fechou os olhos quando a memória do caos, da
garoa de sangue e do seu povo sendo devorado o tomou.
Ele respirou fundo, abrindo os olhos.
— Não tivemos escolha. — Ele respondeu. Gwen o fitou, o olhar
transmitindo as palavras que ela não conseguia formular.
— Sabem o que elas eram? — Westyn continuou, o tom aveludado
soando calmo, como se tentasse evitar um descuido na forma que
pronunciava as palavras.
O Lorioran levou o olhar para os três Feänors, os fitando com atenção.
— Arautos da morte. — A palavra pesou em seu peito. Viu a expressão
dos três enrijecer. Ele engoliu em seco. — Morte.
Gwen pegou sua mão, apertando, com ele retribuindo.
— Conseguem imaginar o porquê do ataque ao seu povo? — Dessa vez
fora Liryan a se pronunciar.
Apenas um aceno do Lorioran fora a resposta. Aquela ainda era uma
incógnita que eles esperavam concluir em Elrond. Junto a todas as outras.
— Não deveria haver uma barreira de proteção divina os protegendo
disso? — Westyn indagou, recebendo uma cotovelada de Thorion ao seu
lado. Como uma repreensão.
Gwen ergueu o olhar, fitando o céu límpido, Skye podia jurar que vira o
brilho de lágrimas em suas íris.
Ainda observando os céus, ela o respondeu, seca:
— Deveria.

Precisavam ser rápidos, eles sabiam que não podiam atravessar o Vale
ao anoitecer. Seria como caminhar para a própria morte, mas era o único
meio necessário, já que não podiam voltar pelo caminho que vieram ao sul
sem terem que passar por Wenkael e aquelas criaturas. Mas ainda assim o
trajeto pelo Vale não deixava de ser arriscado. Por isso haviam decidido
acampar em sua fronteira na noite passada. Se fossem tolos de entrar naquela
floresta à noite, a essa altura já estariam mortos.
Ele nem precisou colocar aquelas questões em palavras para seus
companheiros, Westyn e Thorion sabiam os tipos de horrores que
espreitavam pelo lugar ao anoitecer, saindo de seus buracos.
Westyn até mesmo tentou encontrar outro método que não precisassem
passar pela fronteira do Vale, mas não havia tal feito; do Sul para o norte de
Eldar, se unificava na redoma em que estavam e, para chegarem em Elrond,
precisavam atravessá-la, e rápido.
— Precisamos ir. Não podemos perder tempo — anunciou, terminando
seu pedaço de lebre assada em espetos na fogueira. Westyn e Thorion
devoravam seus terceiros pedaços.
— O quê? — Thorion indagou de boca cheia. Deveria estar faminto por
ter passado tanto tempo na forma Feänor. Fora o fato de ter carregado os
Loriorans do reino montanhês até o Vale por uma noite inteira, percorrendo
longos quilômetros. — Ainda é cedo. Temos um tempo até a chegada do luar.
— Não podemos arriscar. Nem sequer sabemos com que tipo de
criaturas podemos esbarrar em nosso trajeto. — Ele balançou a cabeça. —
Vocês conhecem as lendas e cantigas sobre o Vale. Sabem as histórias.
Temos que ir.
— Acha que enfrentaremos algo durante o dia? — Ele mesmo se
perguntara aquilo quando se deu conta que teriam que atravessar o temível
Vale para chegar em Elrond.
Toda a Eldar sabia que a imensa reserva florestal de grandes
quilômetros quadrados, rodeada por montanhas e desfiladeiros, conhecida
como Vale, era um lugar perigoso para quem o adentrasse, pois esse era o lar
de diversos tipos de criaturas e também, para o azar dele, ficava no centro de
Eldar, fazendo fronteira com os povos do reino, com Wenkael ao Sul,
Thauzand a oeste, o reino de Elora a leste e Elrond ao norte.
O Vale era o ponto cardeal principal no mapa de Eldar, que interligava e
separava todos os povos. Um dos principais motivos que distanciava os
povos uns dos outros era o medo de enfrentar a travessia pelo lugar. Porque
os poucos que se arriscam a entrar, não saem.
As lendas e contos relatam histórias sobre os piores tipos de criaturas;
há relatos de criaturas do fosso, que conseguiram fugir da guerra do Éter e se
refugiaram até os dias de hoje no lugar. Era o lugar dos Goblins, dos Gnomos
negros e das Carnival.
Liryan temia que fosse o lar das bestas que Wenkael enfrentara. Jamais
se esqueceria da visão de tal criaturas. E pensar que aqueles dois Loriorans as
enfrentaram.
— Lir tem razão, precisamos ir. — Westyn exclamou, dando um olhar
de insígnias para o amigo, levando o olhar por cima do ombro, para trás, onde
os dois Loriorans estavam sentados lado a lado, fazendo sua refeição. —
Acha que eles sabem sobre o Vale?
Liryan negou com a cabeça, se recordando dos questionamentos de
Gwen meia hora atrás sobre o lugar. Ele tinha feito observações sobre os dois
Loriorans, principalmente sobre o modo como eles olhavam para tudo com
fascínio, em pura contemplação, como se fosse a primeira vez que fossem
capazes de enxergar tudo aquilo, um novo mundo para eles, o que talvez
realmente seria.
Todos sabiam o quanto o povo de Wenkael se manteve preso em sua
proteção idiota durante séculos, reclusos do mundo afora, vivendo sob uma
falsa proteção que, no final das contas, não os protegeu tanto assim.
Nem mesmo conseguia definir que tipo de criatura havia atacado aquele
povo. A lembrança das bestas serpentinas ainda estava ardendo em sua
mente, conforme tentava decifrar a espécie nunca vista ou imaginada por ele.
Eles não quiseram falar sobre elas, Liryan entendeu os motivos visíveis, seus
amigos também, por isso não insistiram em mais perguntas sobre o ataque
quando era perceptível o quanto eles ainda estavam atordoados.
Todavia, em algum momento, se designaria a perguntar sobre aquilo
para os dois, contudo, sabia que não era o momento, ambos ainda estavam
alarmados e em choque demais com o que ocorrera. Depois ele poderia ter as
respostas para as perguntas que o sondavam.
— Eles não sabem. — Liryan respondeu por fim, ainda fitando os dois
Loriorans, vendo o de cabelos dourados, quase de um tom ouro, segurar a
mão da loira, enquanto essa lhe contava algo.
A lança dele depositada no chão ao seu lado. Liryan sabia que ao mero
sinal de ameaça ela estaria em riste em sua mão.
— Então, meu caro amigo. — Westyn se ergueu, batendo as mãos em
suas vestes. Thorion devorava a carne de coelho como se ainda estivesse em
sua forma animal. O que deveria assustar os dois Loriorans atrás dele, que
ainda pareciam cautelosos e alarmados com ele. Westyn bateu a mão em seu
ombro, o tirando de seus devaneios. — É melhor informar tudo a eles. Porque
é preciso que todos estejam preparados e atentos quando entrarmos naquele
lugar.
Liryan apenas assentiu, sem fitar o sorriso do amigo, os olhos fixos no
sorriso que a Lorioran abriu para o amigo, com o Feänor se dando conta que
ela ficava ainda mais linda quando sorria.
10

Os dois Loriorans escutaram atentos e sem uma expressão fixa


decifrável conforme Liryan os informava sobre o temível Vale, o local
proibido de Eldar, que fazia fronteira com todos os povos, que era fonte de
inspirações para cantigas de horror nas tavernas e que eles estavam prestes a
adentrar.
Gwen mal tinha terminado de ouvir e sequer digeriu tudo aquilo que o
Feänor havia contado, quando concluiu que o lugar era um perigo iminente e
aqueles três idiotas queriam atravessar.
Uma troca de olhares para Skye para reconhecer seus próprios
pensamentos naquelas íris celestes, com ele sacudindo a cabeça.
Levou a mão para os cabelos dourados, os cachos se enroscando entre
os dedos; pela manhã Skye parecia um ser de luz, celestial até, com a face
delicada e os traços mais suaves que um ser abençoado pelos deuses poderia
desejar.
— Você está dizendo que estamos prestes a entrar em um lugar repleto
de todo tipo de criatura e monstros? — indagou com brusquidão para Liryan,
que parecia sem jeito, assentindo.
— Sim. Mas vai ficar tudo bem, vamos proteger vocês e ainda estamos
sob o alvorecer. As lendas e histórias sobre o Vale contam que as criaturas
que habitam o lugar são predadores da noite. Não podem sair à luz do dia.
Uma risada seca e amarga extravasou do Lorioran. Mal tinham
escapado de uma horda de criaturas e agora estariam caminhando para o lar
delas.
Gwen deu crédito à frustração do amigo.
— Ah, é mesmo? As histórias dizem isso? — Skye ironizou. — As
mesmas histórias que diziam que Wenkael jamais permitiria a entrada
de monstros em nossa aldeia? Que estaríamos seguros por toda a eternidade?
Se uma coisa eu aprendi com isso tudo foi que as histórias não são totalmente
verídicas e não podemos confiar nelas.
Liryan fitou os dois por longos minutos, com Westyn e Thorion logo
atrás, silenciosos, recolhendo seus pertences, se preparando para a partida.
Ele, por fim, suspirou.
— Eu entendo seu ponto, de verdade. Mas não temos outra escolha, é
isso ou teremos que voltar pelo Sul e passarmos de volta por Wenkael e
esbarrar naquelas criaturas.
Um calafrio reverberou por Gwen, com ela estremecendo com a mera
ideia, afastando a imagem das bestas do fosso de sua mente.
— Deve haver uma outra forma de...
— Não há. — Liryan o interrompeu abrupto. — Acreditem, eu gostaria
que tivesse.
Por sua expressão, Gwen acreditou. Mas isso não mudava o rumo das
coisas. Ainda era um risco.
— É isso, ou voltamos pelo Sul — decretou Liryan, a voz um fio de
exaustão. Os olhos violetas alternando entre os dois.
Não sabiam o que poderiam encontrar naquele lugar, todavia, tinham
enfrentado, e fracassado, o que os aguardava se voltassem pelo caminho de
Wenkael.
— Ele tem razão Skye, não podemos voltar. — Gwen segurou seu
braço, o fitando, pedindo que ele lesse as palavras expressas em seus olhos.
— Se essa é nossa única escolha para chegar na capital de Eldar, precisamos
ir.
Gwen podia reconhecer o medo em seus olhos, o temor pelo
desconhecido, porque tudo aquilo era inédito e assustador para os dois. Mas
eles estavam juntos e ela não podia se deixar abater por aquilo.
Em toda sua existência eles nunca haviam ouvido ou lido sobre esse
lugar, nunca tiveram a oportunidade de sair de Wenkael, as leis não
permitiam, devido aos horrores que empesteavam Eldar e que os anciões
alimentaram sobre seu povo.
Gwen se virou, observando a entrada da floresta adiante. Eles tinham
passado a noite nos arredores de um lugar infestado de criaturas monstruosas.
Era tanta coisa para digerir em pouco tempo e eles precisavam ser
rápidos, se as histórias de fato eram verdadeiras, contudo, como Skye ela não
se firmava mais nelas. Não depois do que acontecera.
— É melhor irmos andando. — Gwen manteve o olhar de Liryan firme.
Era intrigante para ela como ele nunca tirava aquele brilho gentil e suave de
seus olhos arroxeados. Até mesmo o sorriso do jovem Feänor era um deleite.
— Sim. — Ele assentiu. Sua bolsa de uma alça sobre o ombro. — E não
se preocupe, não permitiremos que nada os machuque.
Os Loriorans se entreolharam, com Skye soltando um riso seco
zombeteiro, girando sua lança na mão.
A expressão de Skye era tão fria que sua alma poderia estar congelando
naquele instante.
— Não precisamos de sua proteção.
— Não disse que precisavam. — Liryan cerrou os olhos adiante. —
Mas nesse território, não sabemos o que podemos enfrentar.
Skye trocou um olhar significativo com Gwen. Tem certeza? As esferas
azuis pareciam indagar. Ela inspirou fundo, calculando os riscos e suas
próprias indagações, para, por fim, assentir para ele.
Depois de alguns minutos se preparando, eles se amontoaram no centro,
traçando o trajeto percorrido através de um pergaminho que continha um
mapa, guardado na bolsa de Liryan.
Norte. Deveriam permanecer na direção norte.
Nada mais.
Westyn, o idiota, queria sobrevoar o Vale, contudo, Liryan destacou os
possíveis perigos de uma barreira mágica que mantinha as criaturas presas
dentro do lugar. O que soou irônico para Gwen e Skye.
Mais uma barreira idiota.
Eles informaram os possíveis monstros que encontrariam no lugar para
os dois Loriorans, que apenas escutavam em silêncio as estratégias expostas,
desde Trixes, Fendys, Goblins, Trolls e Gnomos negros e as Tiens.
Quando estavam prontos se designaram, os cinco, para o caminho do
Vale, adentrando na selva desconhecida e mística.
Thorion ao lado de Skye e Gwen, com Liryan e Westyn à frente, onde o
Feänor de cabelos castanhos os guiava com a ajuda do mapa.
Gwen notou algo que não havia notado antes nos dois; suas vestes, em
ambas as jaquetas, possuíam duas aberturas, quase fechos, nos pontos de suas
costelas, dois cortes perfeitos traçados no tecido das costas.
Ela se recordou em um borrão as imagens da noite passada, com
imensas asas brotando das costas dos dois.
Nunca havia imaginado encontrar seres tão instigantes, ou sequer
sonhou poder vislumbrar seres alados, com um tipo de magia diferente do
que ela cresceu vendo.
— Hã... Lança legal a sua. — Uma voz grossa soou à direita, com
Thorion, ao lado de Skye, sorrindo para ele, indicando a lança de seu amigo
em um aceno.
Ela conteve um riso com a expressão de Skye, era inevitável não
lembrar da primeira visão de Thorion em sua forma humana algumas horas
atrás.
Seu rosto corava em ardência com a recordação. Principalmente de
certas partes do corpo imenso do Feänor desnudo.
Skye grunhiu algo para ele, passando a ignorar o Feänor grandão ao seu
lado que, por sua vez, continuou fitando Skye, os olhos deslizando por cada
traço do Lorioran, que era um terço mais baixo que ele, mal chegando nos
ombros largos de Thorion e Gwen se tornava praticamente uma Gloris perto
dele.
Thorion não possuía traços de agressividade ou arrogância em sua
expressão; mesmo com seu porte robusto, ele possuía linhas de expressões na
face que o delatavam como alguém que sorria bastante.
Possuía uma barba rala, quase imperceptível, sobre o queixo, de tão
bem aparada. Deixando seu maxilar ainda mais marcante e masculino.
— E então, Thorion... — Ela se pronunciou, conforme acompanhavam
os dois à frente. O Feänor tigre desviou o olhar para ela. — Vocês nunca
estiveram aqui?
Ele negou com a cabeça.
— Tivemos sorte de nunca ter que passar por esse lugar, até agora.
Nossas missões são sempre em nosso reino ou na divisa dele. É a primeira
vez em séculos que fomos tão longe de Elrond. Deveria ser excitante, se não
fosse por isso.
Ele abriu os braços, sugerindo o ambiente em volta. Os imensos
pinheiros, com diversos bosques sob a redoma.
— Vocês são algum tipo de guerreiros ou servos do rei de Elrond? —
indagou, com Skye balançando as orelhas pontudas, atento, mostrando
curiosidade.
Thorion pareceu pensar, franzindo o cenho, para enfim dar de ombros.
Um leve vestígio de um sorriso surgindo nos lábios.
— Pode se dizer que sim.
— E nenhum de vocês sabem o porquê minha avó enviaria uma
mensagem pedindo ajuda para seu povo? — Um resquício de esperança
ecoou em seu tom, sendo apagado quando ele negou em um aceno.
— Quando fomos convocados pelo rei achamos que seria mais uma
inspeção de rotina por Elrond.
Pelo rei. A cabeça de Gwen se tornava zonza com aquele detalhe,
tentando decifrar ligações ou o motivo de sua avó contatar ninguém menos
que o próprio rei de um povo. Elrond.
Mais uma peça para o jogo de perguntas.
— Você e os dois idiotas ali são uma espécie de equipe? — Skye
perguntou, indicando Westyn e Liryan à frente, que pareciam focados em sua
própria conversa, não dando atenção alguma a eles.
Um sorriso travesso alargou a face de Thorion.
— É, nós somos — confirmou. Havia um traço peculiar em seu rosto
exótico quando afirmou aquilo. Era um traço fraterno, ela percebeu quando o
tom do macho se inundou de ternura.
— Hum. — Um bufo veio de Skye. — Que trio mais cômico.
— Ei. — O Feänor tigre protestou em indignação. — Nós salvamos
vocês. Conseguimos encontrá-los, não é?
Skye se virou para ele, lado a lado, o Feänor mais alto descendo o olhar
para encarar o Lorioran baixo.
Mesmo com aquela imensa diferença de altura dos dois, Skye parecera
dois metros maior que o Feänor quando os olhos celestiais se chocaram
contra ele.
— Se eu bem me lembro, seus amiguinhos chegaram tarde demais. E
você... — Ele apontou um dedo acusador para o peitoral de Thorion. O tom
entredentes. — Estava tirando um cochilo enquanto isso. Então sim, vocês
são uma equipe de merda.
O Feänor grunhiu, expondo os dentes para Skye, que nem mesmo se
alarmou, com Thorion começando a mostrar traços felinos. Os olhos
ametistas quase transbordando magia, de tão cintilantes.
Contudo, Skye não se retesou.
— Cuidado, elfozinho. — O tom soou meio feral.
Skye riu. Um riso tilintante e perigoso.
— Ou o quê?
Gwen arquejou atônita, sentindo o clima pesar com os dois a ponto de
se atracarem.
Ela viu os nós dos dedos de Skye brancos devido ao aperto da lança e
ela sabia que, a um mero piscar de olhos, ele poderia causar um estrago no
Feänor.
Ambos podiam se destroçar em instantes.
— Ei, pessoal. — Eles foram interrompidos antes que Gwen pudesse
apartar uma possível briga, com Liryan os chamando à frente.
Eles estavam a alguns metros, na ponta de uma colina, fitando o recinto
à frente.
Skye pestanejou para Thorion, dando as costas para ele e seguindo
Gwen, com o Feänor tigre sibilando um xingamento atrás deles.
Um ofego embasbacado tremeluziu de Gwen quando chegaram até eles,
fitando o lugar surreal abaixo.
A alguns metros adiante haviam imensas colinas, com montanhas
ladeando toda a relva florestal, como se os montes fossem uma espécie de
muro em volta da selva.
Um rio cortava o centro do lugar, dividindo o estreito em dois pontos, a
correnteza em uma longitude incalculável.
Westyn assobiou ao lado de Gwen, encarando o lugar abaixo deles. O
próprio paraíso selvagem.
A região baixa e alongada, cercada por vertentes mais altas de cada um
dos lados. O rio circulando em maestria, em um declínio azul celestial.
— Esse é... — Gwen mal pode concluir a frase, o fascínio a inflamando
com maestria com sua contemplação.
— O Vale. — Liryan completou, o tom em admiração tanto quanto os
próprios olhos pela deslumbrante visão.
— É majestoso. A vida natural esbanja sua essência aqui. Até o ar é
puro. — Skye inspirou, sorrindo. — Os três idiotas tem certeza que esse é
mesmo o lugar dos contos de horror, afinal?
Westyn rolou os olhos, balançando a cabeça, começando a descer a
colina íngreme, sem esperar por eles.

Skye estava tão fascinado com o lugar que não deixava nada escapar de
seus olhos. As imensas árvores trotando sob o vale, desde carvalhos,
salgueiros pendendo para o lado e pinheiros, ou o rio que rodeava a
quilômetros, ou até mesmo as montanhas em volta, revestidas em terra e
rochas tão imensas e em relevos curvilíneos, que seus topos eram ristes para
o céu sem nuvens.
Diversas criaturas pequeninas se amontoavam nas árvores, os pardais de
fogo, com as asas em chamas ardendo pelo ar, os Skinos de três olhos
carregando nozes imensas pelos galhos com suas mãozinhas e a cauda
felpuda balançando.
Era tudo tão mágico e revigorante. Um lugar abençoado pelo próprio
deus da natureza.
A natureza que seu povo tanto amava estava transbordando sua magia
pelo lugar e, por um momento, ele esqueceu o que os três Feänors
informaram sobre o Vale.
Ele sabia que todos esses contos idiotas deveriam ser mitos tolos e se
perguntava por que dera atenção à mera menção de histórias antigas, quando
nem mesmo acreditava mais nelas.
Rodopiou, fitando tudo, tentando captar cada mero detalhe a sua volta,
acabando por esbarrar em algo sólido, enterrando seu rosto em algo rígido.
— Cuidado, elfo.
Skye ergueu o rosto, com uma carranca já o tomando, gemendo em
frustração, ao ver que havia colidido contra o peitoral de Thorion ao seu lado.
Rosnou para ele, se afastando. Skye quis raspar as unhas naquele rosto
másculo e idiota. E lindo. Tinha de admitir, infelizmente, aquele fato.
— Feänor estúpido. — Pestanejou.
Detestava ser chamado de elfo; alguns de seu povo até se sentiam
ofendidos com aquele termo ultrajante tão antigo que mal era lembrado,
apenas os que queriam insultar sua espécie o usavam. E ele era um dos que
detestava aquilo com fervor.
O Feänor tigre abriu um sorriso de escárnio, em provocação, quase ao
ponto de receber um gesto indecente de Skye.
— Calma, elfozinho. — Thorion zombou, erguendo as mãos. — Precisa
se acalmar.
O sangue de Skye ferveu em agitação. Pelos deuses. Como ele queria
rasgar aquele Feänor com seus dentes. Até mesmo se imaginou mordendo
aquele pescoço com veias salteadas, embora aquela mera visão não causou os
efeitos que ele esperava.
Skye rosnou para ele.
— Eu estou calmo, seu idiota — sibilou gélido.
— Skye, você precisa se controlar. Eles não são nossos inimigos. —
Gwen murmurou quando ele começou a andar ao seu lado.
Suas sobrancelhas e cenho se franziram para sua amiga, com o
semblante em desgosto.
— Também não são nossos amigos. Nem sequer sabemos se podemos
confiar neles. — Ele estalou a língua, bufando. — Eu não confio.
— Acho que se tivessem alguma intenção ruim em relação a nós,
saberíamos. — Ela refletiu. — Mas de qualquer forma, não temos escolha. E
se eles estiverem mentindo, acabamos com ele.
Skye gostou daquela ideia, sorrindo ao assentir.
Gostou muito.
— Mas, por enquanto, precisamos confiar neles. — Ela continuou,
desfazendo o sorriso de deleite dele.
— Eu... — Respirou fundo, bufando. — Não prometo nada, mas vou
tentar.
Ela assentiu satisfeita, o conhecendo a ponto de saber que aquilo seria o
suficiente.
— Acha mesmo que há criaturas malignas nesse lugar? — Gwen
indagou após alguns minutos de caminhada.
Skye deu de ombros.
— Não sei. — O céu azul sem nuvens parecia abraçar o ambiente. O ar
era tão puro e reconfortante. — Não sinto hostilidade nesse lugar.
— Nem eu. — Gwen concordou. — Mas isso não significa nada.
Uma parte de Skye temeu em concordar.

Thorion sempre imaginou os Loriorans, pelas histórias que ouviu e os


desenhos traçados sobre eles, como um povo dócil e indefeso. Mas, os dois
em sua frente não tinham nem um pouco do conceito idealizado por ele.
Principalmente o de cabelos dourados com temperamento arisco.
Ele sempre os imaginou tão baixinhos quanto os Gloris de Thauzand,
com expressões severas e desagradáveis. Outra vez estava totalmente errado.
Os dois Loriorans não era nada mais do que possuidores de uma beleza
majestosa, os traços divinos e delicados; o rosto de ambos fora desenhado
com tanta exatidão que eram um vislumbre de contemplação para os olhos.
A Lorioran de cabelos loiros como luz tinha a estrutura de uma jovem
caçadora, a estatura um pouco mais baixa que o outro e muito menor em
comparação ao próprio Thorion. Mas mesmo ele era grande demais para seu
povo.
Seus olhos eram diferentes dos que ele já vira, dos dois afinal, contudo,
o cinza-azulado nebuloso em suas íris era como nuvens em um dia nublado,
tão diferentes do violeta que era a marca de seu povo.
Já Skye era algo infinitamente intrigante para ele; nunca, em todos os
seus séculos de existência, encontrara um ser tão fascinante e esbelto como o
Lorioran.
Ele possuía um tom de cabelos que, ao ver de Thorion, eram sublimes,
da cor do mais puro ouro. Era o que ele poderia constatar, de um loiro
despojado, caindo em mechas pelo rosto lindo e jovial, com aquelas
bochechas gordinhas e avermelhadas e aqueles lábios recheados que
pareciam formar um coração. O nariz pequeno e angular, e os olhos, pelos
deuses! Thorion não conseguia desviar os seus próprios daqueles olhos
celestiais. Eram como esferas de luzes, de um azul tão vibrante que
hipnotizava.
Thorion os tinha achado os seres mais belos que vira em sua existência
no primeiro olhar. Ambos foram abençoados pela própria deusa da beleza, e
se esse era um traço do povo de Wenkael, os Loriorans deveriam ser as
criaturas mais belas do reino.
Tinha observado os dois por um tempo, cada um, principalmente Skye.
Era parte de seu treinamento na guarda observar os traços e postura dos
outros.
Mesmo sendo grosseiro e emburrado, diferente de seu perfil delicado e
suave, causava diversão ao Feänor notar como o Lorioran quase fechava os
olhos quando estava irritado, com as bochechas gordinhas corando de forma
iminente e o cenho se franzindo.
Ele se tornava tão fofo que Thorion poderia se acostumar com a ideia de
passar horas o irritando, mas o fato é que era espontâneo, quase inevitável,
não rebater as ofensas do pequeno Lorioran de língua afiada.
Que por sinal o fitava nesse instante, com uma das sobrancelhas
erguidas e os lábios contraídos em desgosto. O canto superior do lábio
puxado para cima, em uma expressão enojada.
Para um macho, Skye possuía uma beleza que chamaria a atenção de
qualquer deus. E um temperamento que assustaria um.
— O que diabos você está olhando, seu idiota de merda? — Skye
rosnou para ele, expondo os dentes em uma ameaça.
Lindo. Era como poderia definir aquele garoto.
Thorion riu, dando de ombros, o que pareceu irritar ainda mais o
Lorioran.
Gwen murmurou algo para ele, que pareceu o acalmar. Por enquanto.
Ela era tão instigante, por alguma razão que ele não conseguia decifrar.
Seus instintos felinos se eriçavam com ela. Aquela beleza etérea e calma. Os
olhos que observavam tudo.
Ainda não sabia o que pensar a respeito dos dois, sua espécie se
mantivera reclusa por tanto tempo que sua existência ainda era uma incógnita
para todos.
Thorion não acreditou para onde iriam quando o rei os destinou a tal
missão. A ideia de conhecer o místico povo de Wenkael o tinha excitado de
inúmeras maneiras, embora agora, perante os dois, não sabia formular o que
achava sobre eles.
Mas aqueles olhos ferozes e raivosos que vira na noite anterior, quando
Westyn e Liryan os encontrara aos trapos e a ponto de serem atacados,
preencheu uma lacuna em seu ponto de vista: que eles eram tudo, menos
inofensivos.

A discussão de Skye com Thorion podia ser ouvida por Liryan à frente,
mas ele optou por ignorar, exausto. Fitando o mapa em mãos, do lugar em
que estavam e do ponto onde deveriam chegar. Norte. Tinham de manter o
percurso ao norte.
O caminho era longo e eles estavam indo muito devagar, precisavam ser
rápidos, pois não sabiam o que poderiam encontrar no caminho.
Era esse fato que causava uma leve pontada de dor em sua cabeça em
irritação. Liryan odiava surpresas. E aquele lugar era uma caixa delas, e
nenhuma boa, ele sabia.
— Não parece tão assustador assim como nas histórias. — Westyn
comentou ao seu lado. Se curvando para sussurrar. — O elfozinho tem razão
sobre isso.
Liryan sorriu, concordando. Havia pequenos seres brilhantes
sobrevoando acima deles nos galhos e ramos.
— Temos que percorrer mais dez quilômetros pelo menos. — Liryan
observou, seguindo em frente, levando o grupo através da orientação do mapa
que o general Tyrion lhe havia entregado.
— Acha que vamos conseguir antes do anoitecer? — Eles olharam
juntos para o céu, o poderoso sol de fogo queimando acima.
— Espero que sim, meu amigo — respondeu, desviando de cipós e
galhos. Algo lhe passou a mente, com ele olhando por cima do ombro para os
três atrás, com Skye reclamando algo com Thorion, e Gwen tirando pétalas
de uma flor enquanto os acompanhava em silêncio. Ele se voltou para
Westyn. — O que você acha que o rei quer com ela? Por que razão ela é tão
importante para ser levada em total segurança e prioridade a pedido dele?
Aquilo martelava há horas em sua cabeça. Por que depois de séculos
reclusos, justo quando estão sob ataque, Gillyn Briffyn pedira tal feito ao rei?
Westyn deu de ombros, passando uma mão pelos cabelos prateados
sedosos. Suor despontando de sua testa.
— Passei a noite e a manhã inteira pensando sobre isso — confidenciou
a Liryan. — Mas não cheguei a nenhuma conclusão. Só saberemos quando
chegarmos em Eldar, eu espero.
— Nem mesmo os dois parecem saber. Algo está acontecendo. Aquelas
criaturas que atacaram o povo deles pareciam bastante familiares.
— Eu sei. Mas não consigo lembrar de onde... A ideia que tive é meio
louca e absurda. Sobre elas serem criaturas do...
— Fosso. — Liryan concluiu, engolindo em seco com a mera ideia. Das
bestas condenadas a milênios pelo deus de Eldar, livres outra vez pelo
continente. Skye as chamara de arautos da morte. — Também pensei sobre
isso, mas não pode ser. Não faz sentido. Por que criaturas do fosso atacariam
o recluso povo de Wenkael?
Westyn deu de ombros.
— Mas o que eram então, afinal? E o que queriam com o povo mais
pequeno de Eldar?
Um pensamento se instalou em Liryan, com ele mais uma vez levando o
olhar para a Lorioran de olhos cinza logo atrás, segurando a flor com apenas
uma pétala restante, removendo-a em um mero toque.
Ele balançou a cabeça.
— Não sei. Em algum momento deveremos questionar os dois antes de
chegamos ao reino.
Seu amigo apenas assentiu.
Um estalo soou na mente de Liryan. Ele pestanejou, com Westyn o
fitando em confusão, reconhecendo o que quer que tenha cintilado em sua
face.
— O quê?
O Feänor olhou para os lados ao murmurar:
— E se tudo isso estiver envolvido na antiga profecia? — Ele viu os
olhos do amigo se encherem de compreensão e temor.
Westyn grunhiu, negando. Os olhos disparando para as redondezas, os
flanqueando.
— Eu espero que não — retrucou. — Porque isso significaria coisas
ruins.
Um calafrio percorreu Liryan quando ele se deu conta disso.
Os cinco entraram em um recinto aberto, com montes ao redor, um
trecho do rio do outro lado, com várias rochas imensas espalhadas por todo o
lugar.
Depois de percorrer alguns metros em silêncio, em uma longa calmaria,
os nervos de Liryan estavam aflorados em cautela, seus instintos pareciam
tilintar.
Algo não estava certo, ele podia sentir. Era como se o ar tentasse o
alertar disso. Mesmo seus pelos do braço se eriçavam com o instinto que o
atiçava.
O Vale era um lugar que, desde os primórdios da guerra do Éter, fora o
refúgio de diversas bestas. Criaturas ruins que se escondiam do restante de
Eldar sob a redoma do lugar.
Então, onde elas estavam?
Um barulho estalou pelo lugar, por um instante, quebrando a calmaria
fria, e Liryan poderia jurar que as pequenas pedras no solo de terra tremeram.
Rodopiou o lugar pela área montanhosa, estreitando o olhar para cada
canto, não havia mais tantas árvores, as mais próximas a metros deles;
estavam rodeados de troncos caídos e rochas imensas sobre o monte da
colina. Várias e várias rochas sobre um chão de terra.
— Que barulho foi esse? — Westyn indagou, também em cautela,
observando.
Liryan não teve chance de responder quando o som de pedregulhos
caindo ecoou.
— Pessoal. — A voz de Skye soou baixa atrás deles, Liryan o ignorou,
tentando captar a direção do barulho. Mas Skye continuou: — Aquela rocha
acabou de se mexer?
Eles se viraram para trás, fitando a direção apontada por Skye, para um
imenso monte de pedras e rochas cinzas enormes.
Mas não havia nada demais. Apenas pedregulhos.
Liryan fitou o Lorioran com uma sobrancelha erguida.
Westyn bufou em frustração.
— O quê? — Skye indagou. — Ela se mexeu! Eu vi.
— Ok, elfozinho. — Thorion esbravejou, dando tapinhas em suas costas
ao passar por ele, recebendo um rosnado. — Vamos continuar.
Skye retrucou, ficando atrás quando Gwen passou por ele, acariciando
seu ombro.
Retornaram ao seu percurso, com Liryan voltando a consultar o mapa.
Precisavam sair daquele lugar o mais rápido possível. Uma parte sua o
lembrava disso o tempo todo, com seus sentidos em alerta.
Mal deram meio caminho percorrido quando um som reverberou pelo
Vale. Um chiado sibilado ressoando por todo o recinto.
O ar ricocheteou feroz nele, com um cheiro horrendo sendo trazido
consigo.
Westyn trocou um olhar com ele, se posicionando, passando a observar
com cautela o lugar.
— Tem alguma coisa errada — murmurou.
Entraram em um bosque, com o céu aberto quase fechado pelas copas
das árvores, cobrindo a luz do sol, tornando o recinto escuro, com a floresta
inteira tomada por sombras. Quase sem rastros de luz se infiltrando.
Foi então que, em um estouro, imensas figuras saíram de trás das
árvores, gritando e pulando, com bastões de madeira grossos em mãos.
Mais delas caíram das árvores, pousando nas rochas e troncos a metros
deles.
Liryan mal teve tempo de se mover quando um grito ecoou ao fundo,
vindo de Skye.
E os quatros observaram quando um cipó de vinhas estalou, rasgando o
ar, se enroscando na perna esquerda dele, o puxando, derrubando seu corpo
no chão com o ataque surpresa e o arrastando pelo solo de terra, para em
meros instantes ser erguido pelo cipó em uma velocidade e força bruta para
cima.
Gwen gritou em pavor ao ver o amigo ser levado para as copas das
árvores, que agora estavam rodeadas de várias e várias figuras horrendas
gritando e gargalhando enquanto Skye era puxado com ferocidade para cima.
Liryan finalmente os reconheceu quando a visão se apurou em meio à
escuridão das árvores e pestanejou um xingamento.
E então vários e vários Goblins selvagens saltaram para eles, atacando.
PARTE DOIS

“A HERDEIRA DO SOL”
11

Skye piscou alarmado, conforme era erguido em uma rapidez e força


impressionante, colidindo em vários galhos no processo, grunhindo em
irritação quando gargalhadas malignas estrondaram a sua volta. Seu sangue
ferveu irado, com ele grasnando, fechando ainda mais o punho em sua lança,
girando-a, quando ele já estava a pelo menos uns doze metros no ar.
Ele curvou a coluna e deslizou a lança em um golpe, com a ponta de
ferro desferindo um corte mordaz no grosso cipó enroscado em sua perna,
cortando as fibras.
Para, em instantes, despencar no ar, tomando impulso no corpo e
girando, dando contornos nos sopros de ventania, se lançando para um galho
e pousando em um baque, a mão livre agarrando o mastro.
Sentiu os filetes de sangue pelos arranhões causados escorrendo.
Ofegante e furioso, ergueu os olhos para as copas das árvores ao redor e
acima.
Pelos deuses!
Por todos os lados haviam seres hediondos gritando e gargalhando,
empunhando armas de todos os tipos.
Espremendo os olhos, aguçando a visão diante das sombras que os
cobriam, ele pode enxergar a pele verde como musgo, as mãos com garras
sujas e a cabeça de um réptil meio humanoide sobre um tronco largo e
viscoso.
Figuras e gravuras de desenhos estalaram em sua mente sobre os
variados tipos de criaturas, tomando um nome de imediato para aqueles.
— Goblins. — Ele praguejou com amargura, em meio ao mar de
gritaria que os monstros ecoavam.
Usavam tangas e tecidos em frangalhos cobrindo os corpos imensos, as
orelhas eram grandes e afiadas, não como as do povo de Eldar, mas
triangulares e estreitas. Os olhos eram órbitas com íris grandes e brancas, sem
nenhuma coloração a mais, e a boca era quase Eldariana, mas ao invés de
dentes, sua arcada dentária era repleta de presas. Presas afiadas e tortas.
Skye desviou seu foco do horror em volta quando ouviu seu nome ecoar
em um grito, metros abaixo.
Gwen.
Os quatros no solo estavam encurralados por mais daqueles monstros
verdes horrendos.
Sua amiga o fitava com as mãos na cabeça, em choque, com os três
Feänors em volta dela, em posição, a protegendo, ele percebeu em alívio.
Curvado sobre o galho, agachado, com uma mão sendo seu suporte
sobre a haste do mastro e a outra empunhando sua lança, Skye observou os
metros intercalados até o solo, as copas das árvores, principalmente a que
estava; eram altas e, se ele arriscasse saltar para eles, despencaria em uma
queda que quebraria seus ossos.
Analisou os galhos e a distância das árvores, calculando a logística se
saltasse entre eles.
— Cuidado! — Thorion gritou abaixo, com ele se aprumando, ouvindo
a tempo um saltar acima dele, vendo um Goblin asqueroso pousar no galho
mais alto, estremecendo o caule da árvore.
O monstro gargalhou uma risada estridente, como se rangesse os dentes
no processo. Aquilo causou uma agonia irritante nos nervos de Skye.
Mas não teve tempo de pensar quando a criatura despencou para seu
galho.
Ele se ergueu, com cuidado, se afastando da colisão do monstro. Os
ramos chacoalhando no ar.
— Olha o que temos aqui. — O Goblin riu com fileiras de presas sujas
sendo expostas. A dicção era estridente e estranha. Ele ergueu um machado
em sua mão, sorrindo de forma perturbadora para Skye, com aqueles olhos
brancos sem íris percorrendo seu corpo. — Comida.
Com voracidade a criatura se lançou para Skye, atacando, erguendo o
machado em riste para golpear, gritando um berro sonoro.
— Sai fora, desgraçado. — Skye saltou em uma careta enojada,
atingindo um chute no peito do monstro verde quando esse se aproximou
demais, lançando o Goblin gritando pelos ares, despencando em uma queda
impactante em vários galhos até o chão. Skye grunhiu enjoado pelo fedor que
ele exalava. — Urgh! Que nojo!
Tentando respirar pelo nariz, porque se respirasse aquele cheiro pela
boca poderia sentir o gosto fétido.
Se equilibrou com cuidado no galho, se atentando ao grupo lá embaixo,
com Gwen no centro.
A onda de gritos e urros se unificou ao estardalhaço das árvores
chacoalhando, quebrando o silêncio mórbido de alguns minutos atrás.
Skye manteve o foco sobre Gwen.
— Você está bem? — Ela gritou, com ele erguendo o polegar em
resposta, um joelho apoiado no galho e o corpo curvado.
Voltou a calcular a distância de seus saltos, descartando alguns galhos
perto demais dos grupos de Goblins. Ele tinha que se mover, era habilidoso o
suficiente para se locomover nos galhos, fazia parte dele, como um dom,
depois de crescer correndo pelos carvalhos de sua aldeia. Peregrino dos
bosques, era como seu povo o chamara.
Levou o olhar para Gwen, ela estava sem seu arco, praticamente
indefesa contra aquelas coisas, apesar dos três Feänors em seu entorno.
Precisava chegar até ela.
Uma dupla de Goblins saltaram das rochas para eles e então Skye
assistiu com estupor quando, em um mero manuseio de mãos, Liryan os
arremessou para longe com esferas de luzes disparando de suas mãos, quase
como raios, desferindo um ataque certeiro nos monstros nojentos.
Uau! Ele riu da cena.
Aquilo havia sido incrível.

A onda de seu poder esquentou suas palmas. Quando Liryan se virou


com rapidez, se preparando para um ataque vindo da esquerda, e mais um
deles atacou, com um pedaço de tronco nas mãos, ele foi mais rápido,
disparando suas esferas de luz, os raios de poder explodindo contra o rosto do
Goblin que voou pelo ar em um grito de dor.
Sabia que um acerto de seus disparos era como uma onda abrasante de
choque, como se uma descarga elétrica de centenas de volts disparassem dele,
ou mesmo um raio de energia viva.
Fitou o grupo a frente, somando, sabendo que Westyn e Thorion faziam
o mesmo em sua retaguarda.
— São muitos. — Gwen comentou no centro deles, o tom baixo, fitando
os incontáveis grupos.
— Não se preocupe, loirinha. — Westyn piscou para ela, sorrindo. —
Nós damos conta.
Gwen lançou uma careta para ele. Liryan apreciava o humor do amigo
nessas situações, mas tinha que concordar com a carranca da Lorioran.
— Ela tem razão, Westyn, são muito deles. Estamos em menor número.
— Liryan cintilou a luz em sua palma quando viu alguns Goblins darem
passos para eles.
Um riso ressoou de Westyn. Se não fosse a situação, Liryan socaria o
amigo.
Westyn conseguia ser um idiota convencido quando queria.
Inclusive, naquele exato momento.
Liryan o observou caminhar à frente deles, se dirigindo para o monte de
Goblins, fitando os que estavam no solo e os acima, sobre as árvores.
— O que você está fazendo? — Liryan grunhiu para ele, as palavras
soando entre as presas expostas.
Ele o ignorou. Claro que o idiota ignoraria.
— Meus caros Goblins, não estamos a fim de encrenca, sabe? Estamos
apenas de passagem. Então, tenho apenas duas opções para vocês. — Ele
abriu os braços, cortês, com um sorrisinho presunçoso nos lábios. Os Goblins
cessaram sua gritaria, parando para ouvir o idiota. Thorion e Liryan se
entreolharam quando Westyn continuou: — Ou saem do nosso caminho e nos
deixam em paz, ou acabamos com todos vocês.
Merda!
Um nervo tremeu na testa de Liryan. Ele estava tentado a lançar
Westyn para as bestas.
Um longo minuto de silêncio perdurou pelo recinto, com uma brisa de
vento ecoando, quando por um momento Liryan achou que os Goblins
pareciam refletir a proposta de Westyn.
Contudo, os monstros desataram em uma gargalhada ecoante que deve
ter ressoado por todo o vale, estremecendo as copas das árvores que
afugentavam a luz do sol com seus imensos galhos.
Um resmungo veio de Westyn.
— Receio que tenham escolhido a opção errada, rapazes. — Então o
corpo inteiro do Feänor cintilou através das marcas celestiais, com suas mãos
erguidas emergindo uma luz brutal de suas palmas abertas.
O primeiro ataque veio da esquerda, com um Goblin avançando em
disparada com uma espada curta para Westyn.
O Feänor se virou com a rapidez de um sopro, raios lilases de luz
raspando o ar, destroçando o Goblin inteiro.
Foi então que o caos se instalou sobre eles, quando uma manada inteira
daquelas criaturas saltou sobre eles, vindo de todos os lugares, das árvores,
das rochas.
Liryan bufou, atacando, atingindo o máximo possível que entrava em
seu campo de ataque.
Ele manuseou a mão em uma névoa de luz, criando uma corrente longa
que se interligava entre suas palmas e golpeou com dois chicotes de raios,
atingindo um grupo de cinco com uma explosão de luz.
Thorion saltou para vários deles, as garras e presas conjuradas se
projetando, dilacerando com aspereza, seus rosnados animalescos mesmo na
forma original.
— Skye... — Liryan não teve tempo de impedir Gwen, que correu
adiante quando mais chegaram para ele, desviando de ataques, saltando e
rodopiando.
Foi então que ele viu com clareza, mesmo com o recinto coberto por
sombras, quando uma chuva de corpos de Goblins começou a despencar com
brusquidão do céu, machucados e gritando em dor, com uma figura de
cabelos dourados saltando sobre os galhos em uma rapidez difícil de
acompanhar, varrendo os monstros com sua lança.
Desviou seu olhar mais à frente, para Gwen, cercada por três deles,
correndo para ajudá-la quando a viu dar uma rasteira em seus oponentes,
acertando chutes e pontapés em seus peitos.
Ela se ergueu em um salto; quando Liryan chegou a ela, trazendo
consigo um machado de um Goblin caído, empunhando a arma com firmeza
na mão.
— Você não precisa lutar. — Liryan a fitou com firmeza, vendo o olhar
cinza dela captar o seu, revirando os olhos quando rodopiou o machado na
mão, erguendo-o em um movimento e acertando um Goblin na cabeça, que
estava logo atrás de Liryan, prestes a atacá-lo.
Liryan arregalou os olhos, fitando o monstro caindo no chão, com a
lâmina cravada no crânio, já escorrendo sangue negro.
Voltou seu olhar para Gwen, que ergueu uma sobrancelha para ele,
sorrindo afiada.
Ela se curvou, removendo o machado do monstro e correndo para o
centro do caos.
O peito do Feänor desatou em uma excitação eufórica. Seu coração
bateu frenético, como nunca antes batera. Não pelo combate ou pela
adrenalina.
Liryan não conseguia tirar o sorrisinho extasiado que se alastrou por sua
face enquanto fitava as costas da Lorioran, que acertava golpes letais nos
Goblins que se arriscavam a entrar em seu caminho.
Era como uma força da natureza, desviando em fintas, curvando o corpo
em um declínio e delicadeza que o deixava boquiaberto enquanto ela acertava
o machado em cabeças e troncos, cortando tudo à sua volta como se ela
mesma fosse uma lâmina.
Ela era majestosa, surreal e linda. Ele pensou, quando correu na
direção dela, ainda sorrindo.

O cabo do machado era pesado, diferente da haste de suas fechas, mas


Gwen nem mesmo afrouxou o aperto conforme destroçava aqueles monstros
com a lâmina.
Tinha que por mais impacto quando acertava os pescoços, concluíra
quando atingia a área rígida como uma casca nos monstros; a lâmina do
machado quase grudava na carne quando ela os decepava.
Vários e vários pontos de luzes disparavam a sua volta, como fogos de
artifícios, com o poder dos Feänors emanando pelo lugar. Era indescritível,
poderoso e surreal.
Parecia que ela estava no meio de uma tempestade, com relâmpagos de
tons violetas disparando a sua volta.
Thorion rasgava várias daquelas coisas verdes, os Goblins, que ela
sempre achara horrendos nas figuras dos livros, confirmando que eram ainda
mais, agora que os enfrentava.
Ela arfou, vendo a quantidade de corpos deles caídos no solo, com mais
e mais parecendo brotar da terra, vindo em montes para ataques em grupo.
Levou seu olhar para cima, encontrando seu alvo, vendo Skye girar em
um galho, atingindo dois com um chute e saltando para outro galho,
empunhando a lança com rapidez. Ele estava limpando os grupos nos
carvalhos. Como um raio dourado de morte por onde passava.
Um Goblin surgiu atrás de si, quase a golpeando com um pedaço de
tronco, mas sua audição apurada captou sua chegada com um movimento de
suas orelhas pontudas.
Ela sorriu, desviando o golpe.
O Goblin rosnou.
— Você parece deliciosa. — Ele raspou a língua escura pelos lábios
nojentos. O estômago de Gwen revirou em repulsa e aversão.
— Eu sei. — Ela piscou para ele, com o monstro franzindo o cenho em
confusão, não prevendo o movimento guiado de seu machado, quando a
lâmina subiu pelo ar, atingindo o queixo do Goblin e cravando em sua
jugular.
Um buraco se abriu em sua garganta, despejando uma quantidade
imensurável de sangue negro sobre o Goblin, estacado e com olhos
arregalados em assombro para ela.
Gwen piscou para ele, puxando o machado de volta e chutando o corpo
do monstro, com ele despencando em um baque no chão.
— Você é impiedosa. — Liryan surgiu ao seu lado, ofegante, com suor
escorrendo de sua testa.
Uma esfera de luz brilhava em sua palma, o disparo lançado contra um
Goblin a fazendo estremecer.
Ela ignorou seu comentário, o fitando. Os cabelos castanho-claros
estavam grudados em seu cenho pelo suor.
Mais uma vez fascinada pelas marcas na pele caramelo, que agora
ferviam em um brilho sagaz, em cada linha traçada nos braços e símbolos no
peito.
Aquele peitoral definido, e o tronco repleto de gominhos rígidos, fez
sua boca salivar com a visão do suor escorrendo por seu abdômen.
Gwen sentiu o rubor ameaçando chegar, desviando seu olhar antes que
ele notasse sua análise sobre si.
— Não podemos lidar com tantos deles.
— Eu sei — concordou. — São muitos.
Liryan uniu as duas mãos, mesclando esferas de luz e criando uma bola
grande, com ondas de poder se unificando e, em um estouro poderoso, as
lançou em um grupo que atacava Thorion, que parecia uma besta selvagem,
com presas e garras enormes nas mãos e pés, e que nem mesmo estava em
sua forma animal.
— Temos de sair. — Liryan pestanejou, o olhar vagando para todas as
direções infestadas.
— Eles estão vindo aos montes. — Ela fitou a direção escura do bosque
de árvores secas e negras de onde eles pareciam brotar. — Não podemos
contê-los. Precisamos ir.
— A rota de caminho está infestada deles, e se fugirmos, com certeza
nos perseguiriam.
— Há muito deles. Não vamos conseguir sem um plano para despistar
essas coisas.
Ele ofegou, assentindo.
— Eu sei.
Gwen engoliu em seco, fitando o combate.
Westyn saltava sobre os monstros, desferindo golpes mortais, rindo
eufórico, o cabelo prateado voando no ar com seus movimentos atrozes.
Contudo, era evidente que seu nível de energia estava acabando, com
seus golpes se tornando lentos aos poucos, como os de Liryan, que
continuava a afastar os Goblins que se aproximavam deles.
Ela vagou o olhar pelo lugar inteiro, Thorion a alguns metros, Westyn à
frente, atacando na direção em que eles vinham, e Skye nas árvores.
Tinha que pensar em algo.
E rápido.
Então uma ideia crepitou em sua mente, formando chamas.
— Talvez se... Se conseguirmos interceptar o lugar em que estão
saindo. Ou quem sabe...
Um golpe atingiu as costas de Gwen, que estava desatenta a seu campo
de ataque, com seu corpo voando a alguns metros quando um Goblin a
acertou com um imenso tronco.
Seus pulmões reclamaram em dor pelo impacto de seu corpo ao solo.
Ela viu Liryan desferir raios de luzes brutais contra o Goblin.
Mas não foi rápido o suficiente quando outro surgiu sobre ela,
agarrando seu pescoço com uma enorme e asquerosa mão, a erguendo do
chão.
Gwen se debateu contra o monstro, ofegando em dor, com a respiração
quase sendo cortada pelo aperto.
— Cheirosa. — Ela gritou em asco quando a besta raspou a língua
grossa sobre a maçã de seu rosto, a lambendo em júbilo, com Gwen se
debatendo.
O Goblin gargalhou a puxando para si, com a lâmina de uma faca se
chocando contra sua garganta.
— Solte ela, seu verme imundo. — Liryan surgiu à frente, as esferas de
luz explodindo em suas palmas.
— Mais um passo e eu rasgo a garganta dela. — O Goblin bafejou um
ar podre que a desnorteou quando falou com Liryan.
Pode ver quando os olhos do Feänor brilharam, se tornando esferas de
luzes também. As íris sumiram, havendo apenas luz. Ela ofegou um
xingamento incrédulo com aquela visão.
As veias de seu corpo inteiro cintilaram, com as marcas brilhando
intensamente. Ele era grandioso e feroz, transpirando puro e completo poder.
Então aquela era a essência divina que eles possuíam em seu sangue.
Um traço do poder dos deuses.
— Eu disse para soltá-la, sua criatura nojenta. — Ele ameaçou
entredentes. — Ou vou fazer você em pedaços.
O Goblin gargalhou, causando um corte no pescoço de Gwen, com as
luzes se apagando dos olhos de Liryan quando percebeu, com ele se
alarmando.
Um rosnado raivoso ecoou pelo vale, então ela o reconheceu, vendo
Skye saltando das árvores com a euforia de uma besta, acertando os Goblins
a sua volta, fitando os três no solo.
Ele agarrou um galho, girando e girando, saltando metros no ar,
pousando para eles.
Porém, estava com seu foco tão centrado neles que não previu um golpe
de uma rocha sendo lançada para ele, golpeando sua cabeça em cheio,
lançando seu corpo e lança a metros no chão.
O som que aquele impacto causou reverberou em um terror alucinante
por Gwen.
Um grito de agonia grotesca ecoou de Gwen quando viu seu amigo cair
inconsciente no chão, com seu baú de emoções ruins sendo aberto, com a pior
delas começando a dilacerar seu peito conforme ela gritava o nome de Skye a
plenos pulmões, sentindo o puro fogo a incendiando.
Queimando e queimando.
Nem se importou quando a lâmina do Goblin cortou ainda mais sua
pele, perfurando, arrancando gotas de sangue de seu pescoço.
— Abaixe essas mãos, escória. — O Goblin ainda rindo, ordenou para
Liryan.
O olhar de Gwen, inundado de lágrimas, ainda fitava o corpo do amigo,
com seus gritos ecoando pelo lugar, com mais Goblins se aproximando dele.
Ela viu Thorion correr para ele, os olhos do Feänor tigre sobre o corpo
pequeno machucado no chão, mas ele também foi acertado por se permitir
desviar de seu foco, caindo a poucos metros de Skye, quando dois Goblins
saltaram das árvores para ele, o imobilizando com lanças em sua garganta.
— Seus porcos malditos. — Westyn estava ao lado de Liryan, o poder
celeste ricocheteando por seu corpo, fitando o Goblin que segurava Gwen
com ódio assassino em suas íris cintilantes.
— Desistam, lixos. Vocês perderam. — O monstro gargalhou, sendo
acompanhado por uma multidão de outros. — Cessem seu poder, ou seus
amigos morrem.
Liryan e Westyn rosnaram em uníssono, o ódio fervendo em seu tom, se
entreolhando quando viram o peito de Gwen manchado de sangue do corte
em seu pescoço.
Então suas luzes desvaíram por fim, com os Goblins atrás deles
golpeando suas cabeças com imensos pedaços de troncos, derrubando os dois
Feänors ao chão, inconscientes.
A Lorioran continuou fitando o corpo de seu amigo caído, com os
Goblins começando a erguê-lo.
As lágrimas que começavam a deslizar por seu rosto estavam quentes,
ardentes, como se estivessem aquecidas, chamuscando sua face.
Sentiu seus olhos se incendiarem, mas não se importou.
Ela estremeceu em pranto, sentindo aquela emoção que tanto prendeu
dentro de si começando a sair, contudo, não se importava mais com o estrago
que lhe causaria, sentindo as chamas a tomando.
Queimando.
E então foi golpeada na cabeça com um golpe brutal do cabo da lâmina,
tendo uma última visão de Skye sendo erguido pelos monstros, quando
sombras e luzes douradas cobriram sua visão.
12

Uma dor latejante estalou na cabeça de Gwen quando ela arquejou,


despertando, as pálpebras pesadas quase se recusando a abrir, se
acostumando ao recinto turvo, envolto em sombras e escuridão, quase
incapaz de se enxergar um traço, ainda mais com sua consciência recém-
desperta e os olhos ardentes dos resquícios de lágrimas ofuscantes.
Seu corpo chiou em dores por diversas partes, entretanto, ela as ignorou.
Tentando se erguer, para ser tomada por uma agonia abrasante em seus
pulsos, como se estivessem dilacerados em infinitas lacerações.
E de fato estavam, quando ela os fitou em meio à escuridão. Os pulsos
estavam atados a espinhos grossos e pontudos. Uma corrente de espinhos que
circundava seus pulsos unidos e, a um mero movimento, rasgavam sua pele.
Grunhiu em dor, ajeitando sua postura sobre uma parede rochosa e
úmida em que estava jogada.
Avaliou sua situação, vendo as mãos e dedos ensanguentados pelos
cortes desferidos.
De forma inútil tentou mover os pulsos, tentando encontrar uma brecha,
sendo perfurados pelas pontas afiadas, como se várias e várias agulhas
projetadas se fincassem em sua pele.
— Não adianta. — Ela arquejou em um sobressalto quando uma voz
harmoniosa soou a sua frente. Seus olhos ainda sem foco tentaram obter
nitidez quando dispararam na direção da voz. — São espinhos negros,
possuem um encanto que retardam a magia e se fincam ainda mais se tentar
tirá-los.
Gwen afastou o horror que aquilo a causou, formando a figura diante de
si e semicerrando os olhos.
— Quem é você? — disparou com a voz seca. O ato a fez sentir um
arranhar grotesco em sua garganta.
A figura riu em meio às sombras.
— Isso importa? — replicou sem ironia.
Gwen respirou fundo, o ar era asqueroso e salgado, havia um cheiro
forte de mofo e musgo. Seu olhar deslizou pelo recinto, tentando desvendar
formas sob a escuridão. Não havia um resquício de luz, nem um mero feixe
vazando por alguma abertura.
Mesmo assim, ela conseguiu formar algumas silhuetas, as pontas
afiadas e grandes a metros acima, fincadas no teto, estalactites rochosas,
deslizando e diminuindo pelas paredes de pedra molhada e fria.
O chão estava congelante e deslizante, o ar abafado.
Sua mente lutou para trabalhar em meio à dormência, digerindo cada
detalhe. Então ela estalou em um guincho.
— Uma caverna. — A figura a sua frente grunhiu algo como se
confirmasse a exclamação de Gwen.
— Uma maldita alcova dos Goblins. — A figura retrucou em
frustração.
Aquilo despertou a mente de Gwen com um turbilhão de recordações.
Goblins. Ataque. Skye.
Skye.
Ela arfou, ignorando os rasgos em seus pulsos quando ajeitou sua
postura, erguendo seu olhar para todos os cantos, buscando. Mas apenas
silêncio e escuridão a saudaram.
Eles não estavam ali.
Ele não estava.
A garganta de Gwen se fechou com brusquidão.
— Quem procura? — A voz harmoniosa soou.
Gwen levou o olhar mais uma vez para ela. O peito começando a latejar
em uma dor ofuscante.
— Quem é você? — Ela rebateu ao invés.
A figura riu outra vez e Gwen percebeu ser um riso feminino. Era uma
garota.
— Quem eu sou não importa. Não mais — chiou. — Não com esses
monstros lá fora.
Ela pareceu indicar a direção com a cabeça. Gwen acompanhou,
tentando encontrar um mero rastro de luz que indicasse uma entrada.
— Lá fora? — Ela indagou. — Onde estamos?
A garota pestanejou.
— Você realmente não sabe? — Mais um riso seco. Gwen rangeu os
dentes. — Esta é a prisão deles. Uma das várias. No reino deles. O reino dos
Goblins.
Suor frio escorreu por sua coluna, junto a um calafrio de assombro por
sua espinha com aquela informação.
Pelos deuses.
Não podia se permitir entrar em pânico, não enquanto não soubesse
onde Skye e os outros estavam. Não enquanto não saísse desse lugar
miserável.
Tomou fôlego, se autoavaliando, movimentando os pés livres em um
suspiro de alívio, inspecionando possíveis regiões afetadas por lesões. Havia
um incômodo em sua cabeça e costas e uma pequena ardência de corte em
sua garganta, onde ela podia sentir o sangue seco que deslizou por sua
clavícula.
Mas nada que a impedisse de se erguer ou correr.
— Você disse que essa é uma das várias prisões deles, certo? —
Tentava raciocinar porque não fora posta com os outros. Onde estavam
então?
— Sim — decretou. — Há várias dessas cavernas por esse lugar. É uma
espécie de civilização entre as montanhas.
Gwen guardou aquela informação em sua mente.
— E como veio parar aqui? — perguntou. Mal podia formar a silhueta
da garota, apenas uma cascata escura caindo, que ela supôs serem seus
cabelos.
— Muitas decisões me trouxeram até aqui. Mas um erro tolo me fez ser
pega desprevenida no Vale por essas criaturas — murmurou depois de longos
minutos. — E agora estou condenada a algo pior que a morte. — Ela pareceu
se dar conta de algo, uma risada amarga carregada de medo ressoou. — Nós
estamos.
Gwen franziu o cenho, não gostando de seu tom.
— O que quer dizer com isso?
A garota inspirou fundo.
— Nunca ouviu as histórias sobre os Goblins? — Gwen se eriçou, se
preparando, quando ela continuou. — Ou o que o rei deles faz com as
prisioneiras fêmeas?
Gwen podia jurar que ouviu cada batida de seu coração, com uma
pressão ruim estalando em sua cabeça. Ela tentou o máximo que pode afastar
a péssima sensação que despontou sobre ela.
— Há quanto tempo está aqui? — perguntou quando começou a juntar
algumas peças em sua mente.
— Não consigo dizer. Não há luz para contar dia ou noite. Não consigo
distinguir. — O peito de Gwen foi perfurado com o tom assustado e rouco
dela. Ela pareceu choramingar. Murmurando mais para si mesma as próximas
palavras: — Talvez uma semana. Graças aos deuses de Eldar por algum
motivo eles resolveram adiar.
Uma sobrancelha de Gwen se arqueou.
Uma parte sua temeu por sua curiosidade. Não sabia se queria
descobrir, mas se viu perguntando:
— Adiar o quê?
Um ruído baixinho tilintou, vindo dela. Gwen percebeu que ela tentava
abafar seu choro.
— Você não sabe mesmo, não é? — A voz saía entrecortada, mesmo
com ela tentando a manter firme. — O rei Goblin não mata suas prisioneiras
fêmeas porque ele as força a se vincularem com um de seus vários filhos.
O estômago de Gwen revirou com aversão e asco, ela conteve uma
ânsia fervente que a tomou em cheio.
— Não estamos apenas sendo mantidas presas. — A garota prosseguiu,
alimentando o enjoo de Gwen. — Estamos aguardando enquanto o rei
escolhe nossos futuros maridos.
A risada aflita da garota não chegou aos seus ouvidos. Sua cabeça girou
e girou em tremores. Ela se encostou por completo na parede de rocha.
Tinha que sair daquele lugar.
Por Eldar. Precisava sair.
Tinha de sair.
Tinha de sair. Rápido.
E em meio à escuridão, com o riso estridente de aflição da garota nas
sombras, Gwen mordeu os lábios ao ponto de sangrar e puxou seus pulsos
das correntes de espinhos com toda força. A dor quase a desnorteou e o grito
agonizante que a rasgou ficou preso em sua garganta.

Skye fitou o ambiente cavernoso, sentindo gotas de água o atingirem,


despencando das estalactites no teto. Ele ignorou o grunhido dos dois Feänors
idiotas tentando remover a corrente de espinhos negros do pulso, que
pareciam se fixar ainda mais quando movimentados.
Seu pulso ardia em uma dor irritante, mas nada comparado ao latejar em
sua nuca, onde fora atingido em um nocaute brusco.
Mais uma vez ele empurrou o desespero para longe quando esse o
ameaçou tomar outra vez.
Quando acordara e compreendera a situação em que estava, teve um
pequeno ataque de surto ao notar a ausência de Gwen e os três Feänors ao seu
lado. Ele não conseguiu se controlar, perdera o controle sobre sua sanidade.
Até mesmo tentou matar Westyn quando esse o repreendeu, tentando o
conter, e mesmo com a corrente de espinhos o dilacerando, ele conseguiu
arranhar e golpear o Feänor desgraçado, sendo impedido pelos outros dois
antes que obtivesse triunfo ao estrangulá-lo.
Era culpa deles por estarem ali. Fora decisão deles entrarem nesse lugar
maldito. Era culpa deles ele não saber o paradeiro de Gwen. E se algo tivesse
acontecido a ela? Que os deuses os salvassem, e a quem a tivesse machucado,
de Skye.
Agora, horas depois do pequeno surto, ele estava sentado contra uma
rocha, fitando a entrada fechada por uma imensa pedra do lado de fora.
Sua mente trabalhando a todo vapor enquanto Westyn e Thorion o
desconcentravam com seus grunhidos de dor, tentando arrancar a corrente e
conjurarem sua magia.
Eram apenas tentativas inúteis.
Skye percebera com rapidez o que os espinhos faziam, retardando a
magia. Ele sentira, como se um punho se fechasse sobre aquela pressão que
ele mantinha presa dentro de si durante eras. Liryan, do outro lado,
inexpressivo, fitando o teto, parecera perceber também.
Westyn pestanejou um xingamento, as mãos encharcadas de sangue
pelas suas tentativas falhas.
— Dá para calar a boca? — Skye rosnou entredentes a ele, as presas
despontando e desejando poder rasgar o pescoço do idiota com elas.
Westyn ergueu o olhar para ele, grasnando.
— Eu pelo menos estou tentando fazer alguma coisa, e quanto a você?
— A cabeça de Skye pareceu latejar ainda mais, embora ele fizesse o máximo
para ignorar.
A caverna tinha uns vinte metros de diâmetro, a estrutura do chão ao
teto era rochosa, a única abertura era o imenso portal feito, coberto por uma
rocha ainda maior do lado de fora.
Eles não conseguiriam rolá-la pelo lado de dentro. Era um ponto a mais
para os Goblins, que os contos sempre afirmaram serem criaturas ocas e
burras.
Skye estava cansado de acreditar em contos idiotas.
Tinham sido espertos o suficiente para algemar cada um com correntes
de espinhos que cortavam magia e os trancarem em um buraco praticamente
sem abertura interna.
Passara a criar um mantra em sua cabeça, de que ela estava bem e em
algum lugar daquele inferno, repetindo isso em sua mente várias e várias
vezes.
Encontraria Gwen, nem que precisasse derrubar a montanha inteira
onde estavam enfiados.
Suas orelhas tremeram, captando um som. Ele ergueu os olhos,
encontrando os de Liryan do outro lado, que também captara.
Os guardas. Ele pareceu dizer e Skye assentiu, atento. Os guardas
voltaram de seu intervalo breve, se prostrando do lado de fora.
Ele pode ver as sombras vazando por baixo da abertura da rocha. Eram
dois. Apenas dois.
Um sorriso mortal se formou em seus lábios quando formulou uma
ideia louca e improvável de funcionar. Mas era sua única alternativa. Não
tinha nenhuma opção naquela caverna com aqueles dois idiotas e Liryan.
Não se permitiria apodrecer naquele lugar. Não mesmo.
Então mais uma peça se encaixou, com ele levando o olhar mais uma
vez para o Feänor de cachos castanhos bagunçados. Dos três, ele era o que
Skye menos desgostava. Ele se lembrava o quanto Liryan lutou para proteger
Gwen antes de serem abatidos.
O Feänor pareceu compreender a mensagem estampada nas íris
brilhantes de Skye. Ele sopesou por longos minutos, para com um olhar ácido
e firme, acenar em confirmação.
Skye retribuiu o aceno não perdendo tempo, apoiando as costas na
parede, se encostando ao máximo, com Liryan do outro lado fazendo o
mesmo. Westyn e Thorion pararam o que faziam para observar os dois.
Com um impulso corporal, Skye forçou suas pernas a erguer seu corpo,
se arrastando pela parede, pedras incrustradas trotando suas costas,
arranhando.
Ele ficou em pé, com os pulsos atados. Liryan o acompanhou.
— O que estão fazendo? — Thorion e Westyn indagaram em uníssono,
as vozes roucas se mesclando em uma.
Mais uma vez Skye os ignorou, com Liryan se prostrando ainda mais
para dentro das sombras do outro lado, a centímetros da abertura, sendo
encoberto por completo pela escuridão. Sumindo.
O Lorioran inspirou fundo, enchendo seus pulmões de ar ao tomar
fôlego, engolindo em seco, e com voracidade começou a berrar,
sobressaltando os dois Feänors no chão com o grito estalado que reverberou
pelas paredes.
Seus próprios ouvidos latejaram, suas orelhas tilintando com ele
berrando cada vez mais alto, com Westyn retrucando algo por cima do tom,
se calando quando percebeu a agitação do lado de fora, com a rocha na
abertura começando a rolar, se arrastando. Ele olhou de Skye para Liryan nas
sombras, xingando ao se dar conta do que estavam prestes a fazer; trocou um
olhar com Thorion e ambos começaram a levantar.
Skye manteve o foco na rocha que começava a ser empurrada por
completo para o lado, com faixas de luz invadindo o recinto e lampejando em
seus olhos.
Duas figuras se prostraram na entrada, armados.
— Cale a boca, seu verme maldito. — O Goblin à frente, empunhando
uma espada, se aproximou de Skye quando ele parou de gritar.
Um sorriso se alargou por sua face quando o Goblin deu passos em sua
direção sem tirar os olhos dele.
Os olhos etéreos de Skye cintilaram com um brilho feroz.
Num piscar de olhos, ele estava diante de Skye, para, em seguida, mãos
surgirem das sombras, com Liryan passando os pulsos por cima da cabeça do
Goblin. A corrente de espinhos neles se atracou no pescoço da criatura
quando ele desceu as mãos e o puxou para as sombras em um berro cessado
com o estalo de um pescoço sendo quebrado ecoando no recinto.
O outro na entrada enrijeceu sem reação, o que fora seu fim quando
Skye impulsionou o corpo em um salto sobre a parede ao lado e disparou
para ele, derrubando ambos no chão.
Antes que o Goblin tivesse a oportunidade de reagir, com sua espada
caída ao seu lado, Skye rasgou o rosto da besta com os espinhos e afundou
seus dedos nas órbitas brancas arregaladas, perfurando a cartilagem e
jorrando bolhas de sangue por seus dedos, pressionando os cotovelos juntos
sobre a boca do ser odioso, abafando o grito estridente de dor que reverberou
por seus lábios. Skye se deliciou com isso e, com rapidez, suas mãos
agarraram com firmeza a cabeça e o pescoço do Goblin estalou ao ser
quebrado.
Ele observou o corpo imenso abaixo de si parar de convulsionar e se
debater quando a vida se esvaiu. O rosto partido em uma expressão horrenda
de choque e dor quando Skye removeu seus braços e se ergueu, ficando em
pé com dificuldade. Repleto de sangue negro por seus dedos e palmas.
Encontrou três pares de olhos o fitando em choque colérico, com
Westyn e Thorion boquiabertos, os olhos em um assombro divino.
Skye não se importou, se curvando e apanhando com a mão a espada
caída ao lado do corpo morto. Liryan se aproximou às suas costas quando ele
ergueu a espada, o Feänor fez o mesmo com os pulsos, afastando suas mãos
uma da outra.
Então Skye desceu a lâmina com força, travando um corte firme sobre
os espinhos rígidos como aço que se entrelaçavam no pulso dele.
A corrente se desfez, caindo em tiras ao chão, revelando o pulso repleto
de cortes e sangue.
Liryan o fitou com aqueles olhos ametistas sérios, movimentando os
pulsos em um gesto rápido, tomando a espada de Skye de sua mão em
seguida e fazendo o mesmo a ele, partindo sua corrente de espinhos.
Ele inspirou em alívio quando os pulsos se viram livres daquela pressão,
massageando os pulsos ensanguentados conforme Liryan fazia o mesmo com
os amigos, libertando-os, que ainda permaneciam em estado de estupor
fitando Skye. Não sabia distinguir se em fascínio ou horror, ou ambos.
Westyn inspecionava sua magia, conjurando uma esfera de luz sobre a
palma sangrenta. Iluminando a caverna.
Se abaixando, Skye se curvou sobre o corpo do Goblin, cujo rosto agora
jazia em uma poça absurda de sangue. Ele vasculhou o boldrié em sua
cintura, retirando uma adaga longa e enfim levando o olhar para os três atrás
de si.
— Vamos encontrar Gwen — chiou rouco, o sangue ainda fervendo.
Nenhum dos três pareceu a fim de o contradizer. — E vamos dar o fora deste
lugar.
Eles assentiram, observando Skye puxar o corpo mais ao fundo,
caminhando para a abertura e por fim saindo daquele lugar, com os Feänors
em seu encalço.
Não havia muita luz no local, o pouco que o anoitecer trazia não
chegava até eles. O declínio rochoso era imenso, ladeado de imensas curvas e
aberturas. Haviam várias daquelas alcovas, com rochas cobrindo a entrada,
espalhadas pelo lugar.
Mas não fora isso que causou espanto em Skye quando ele se
aproximou da borda, vendo a queda abaixo de si, com centenas e centenas de
aberturas como tocas na imensa colina montanhosa em que estavam.
E a metros abaixo, no solo, uma imensidão de Goblins dominava o
ambiente. Uma civilização inteira deles. E aquilo, aquelas milhares de
cavernas despontando da galeria, de todos os lugares dentro da colina, era o
lar deles.
Um xingamento pesou sobre sua língua, com ele avaliando os andares
abaixo, fitando o lugar inteiro e o abismo que se abria no centro.
Ela está bem. Repetia para sua dor de cabeça. Está em algum lugar
daqui. Eu vou encontrá-la.
Eu vou.
— É melhor se prepararem. — Skye grunhiu para cada um ao seu lado.
— Vamos ter uma diversão e tanto.
Westyn bufou em ironia. Ele estava um caco, com o cabelo prateado
sujo e bagunçado. Um reflexo de cada um deles. Já Skye se sentia em
pedaços.
— Vamos acabar com esses porcos. — Westyn grasnou ao seu lado
com fúria e graça.
Skye assentiu, apreciando aquilo.
Os olhos azuis vagaram pelos Goblins do outro lado, em guarda, que
não os tinham notado ainda.
Desceu o olhar para o estreito, vendo mais dois em guarda a uns oito
metros abaixo. Mas não fora um dos Goblins em específico que prendera sua
atenção, fervendo ainda mais seu sangue.
Fora o reflexo de um brilho que cintilou em um lampejo que ele captou,
de uma arma nas mãos de um dos guardas. O ferro de troll brilhando na
ponta.
Skye deu um sorriso deturpado.
— Por onde começamos então? — Thorion indagou, avaliando os
diversos andares flanqueados.
Os três levaram o olhar para Skye, arquejando em espanto quando o
Lorioran ergueu a adaga em sua mão, sorrindo para os três ao seu lado e
saltou no ar para baixo, despencando e colidindo no Goblin com sua lança,
enterrando a adaga até o cabo no crânio do monstro, dando a resposta para os
Feänors acima quando o caos se instalou sob a colina.

Gwen desistira de suas tentativas inúteis de arrancar a corrente quando


os espinhos perfuravam tão a fundo que ela mal conseguia mexer seu pulso, o
rosto banhado em lágrimas salgadas pela dor que se impôs, os lábios rasgados
pelos dentes ao tentar conter os gritos.
Caída sobre o chão, sentada, com a cabeça encostada na parede rígida,
ela pensou o que sua avó acharia disso tudo, dela nessa situação, desistindo
de lutar. Incapaz de puxar fôlegos devido à dor que a corroía, não a física,
isso era um mero detalhe, afinal, mas aquela que parecia garras dilacerando
seu interior. Como se seu próprio coração estivesse sob aquelas correntes de
espinhos.
O velho baú de emoções estava entreaberto, vazando as emoções ruins
que a dominavam.
Ela causara isso a si mesma e a Skye quando optou por entrarem no
Vale sem pestanejar duas vezes. Seu Skye. Mais lágrimas caíram, a banhando.
— Por que sinto que suas lágrimas não são por você? — A voz
calentosa murmurou para ela. — Por quem chora?
Gwen mal virou o rosto na direção dela, o ruído de seus choramingos
chiando em um eco maldito.
— Meu amigo. — Sua voz fora um mero fio no ar.
A imagem de Skye sendo golpeado na cabeça se repetiu em sua mente,
como uma punição imposta por ela mesmo.
— Onde ele está? — O ruído que Gwen fez foi resposta o suficiente
para a garota. — Talvez ele esteja bem. Quando me trouxeram para esse
lugar, eu pude ver de relance as imensas alcovas espalhadas do pico aos
arredores da colina. Se ele foi trazido para cá, deve estar em alguma, como
essa.
A atenção de Gwen se fixou no barulho do gotejar do sangue de seus
pulsos no chão, que parecia afastar as imagens que rondavam sua cabeça.
Todavia, não o suficiente.
Ela mal compreendera as palavras da garota; não tinha forças para
respondê-la, no fim das contas.
Sua cabeça não lhe permitia formular um pensamento coerente, não
com aquele zumbido chiando, com os pedaços de lembranças se tornando
cacos de vidro e a machucando.
— Escute, você precisa ficar acordada. Você está perdendo a
consciência. Seu corpo perdeu sangue demais e está sem energia. Fique
acordada. — Aquela voz parecia tão distante, um mero zumbido em seus
ouvidos. — Vamos, converse comigo... — Parecia haver urgência naquele
tom harmonioso. — Por que está aqui? Como chegou nesse lugar?
Gwen inspirou, o peito subindo e descendo, devagar, muito devagar. A
garganta oscilando quando ela engolia saliva.
Então forçou a mente, um último esforço contra aquele mar que a
afogava por completo e que ela empurrou, forçando para o baú.
Quando sua mente clareou um pouco ela se viu falando, de forma
automática, contando sua história para a estranha nas sombras, que ouviu
dando sinais de atenção com seus suspiros e arquejos, principalmente nas
partes do ataque das bestas a sua aldeia e por fim aos dos Goblins no vale.
— É uma história e tanto. — Ela concluiu ao fim. O tom mais firme do
que outrora fora. — Então você é uma Lorioran. Seu cheiro é bem diferente
de tudo que já senti, é como flores do campo e brisa de um alvorecer. Isso
explica o porquê.
Gwen sorriu de forma fraca, pestanejando baixo.
Um silêncio crispou no lugar. Perdurando.
— Sinto muito por sua aldeia. — A estranha quebrou o silêncio
cortante, o tom carregado de serenidade e conforto. — E por sua avó.
A Lorioran nada disse, apenas se deixou ser coberta por aquele manto
de sombras que parecia a abraçar.
Suas pálpebras pesando mais e mais.
— Como se chama? — A estranha indagou, a despertando de sua
inerência com a realidade.
Gwen respondeu. Ou achou o ter feito. Estava tão sonolenta e cansada.
O corpo parecia leve e dormente.
— Gwen, você precisa permanecer consciente. Aqueles monstros
podem entrar a qualquer instante com alguma refeição podre. Esteja
acordada, por favor. Não deixe que eles forcem a comida por sua boca. É
horrível e asquerosa.
Aquilo pareceu despertar Gwen um pouco, com o sangue aquecendo
seu corpo pelo pânico que a atingiu pelo vislumbre que teve daquilo.
— Qual seu nome? — Ela se viu perguntando, sua mente a lembrando
que ainda não tinha indagado aquilo ou achava não o ter feito.
— Nora. — A estranha, Nora, respondeu com um tom doce.
— E então, Nora, com aroma de neve, de onde... — Suas palavras
foram interrompidas quando suas orelhas tilintaram, captando som.
Ela se aprumou e, pelo movimento das sombras à frente, Nora também.
Um barulho estrondou afora, alto o suficiente para reverberar pelas
paredes de pedra. As orelhas mais uma vez tremeram, atraindo o som de
gritos.
— O que está... — Nora cessou suas palavras, quando no mesmo
instante um eco grotesco ecoou pela caverna, alguns metros à frente.
Pareceu como se uma imensa rocha fosse empurrada, sendo arrastada,
trotando contra o chão e paredes de pedra.
Então o recinto recebeu luz, com uma imensa abertura que surgiu em
sua frente. Uma entrada.
Mas o alívio de Gwen ao notar aquilo se esvaiu quando uma figura
encapuzada surgiu, com uma espada empunhada, caminhando até elas.
13

Goblins corriam em desespero apagando o fogo das tochas postas nas


rochas, com o vento raspando por sua corrida. Haviam dezenas deles saltando
das redomas e alcovas dentro da colina. Com diversas tocas se abrindo nas
rochas.
A galeria de subníveis elevados, ladeada de grutas e tocas, com diversas
alcovas, se estruturavam sobre um imenso abismo que levava ao subsolo
abaixo.
Um olhar para baixo e ele contemplou um esquadrão ser dizimado por
uma fúria dourada empunhando uma lança, abrindo caminho por eles,
deixando corpos mutilados atrás de si. Rastros de sangue negro flutuando
pelo ar.
Explosões de luzes destruíam as rochas, raios violetas estrondavam as
estruturas do lugar, com Westyn tendo cuidado para não acertar os pilares e
pontos que poderiam desabar a colina inteira sobre eles.
Liryan corria, o chicote de luz rasgando o ar em um chiado sonoro ao
atingir seus alvos, com meros disparos de seu poder derrubando uma horda
quase inteira.
Não possuía uma arma, com ele mesmo se tornando uma.
Seu sangue pulsava em fervor. O poder rosnava em ira bruta por ter sido
aprisionado durante horas. A corrente elétrica de energia disparando por suas
veias a fim de serem lançadas.
Ele correu e pulou para o andar abaixo, a tempo de ver Skye saltar no ar
em um giro mortal, a lança girando na mão acima, quando ele saltou pelas
cabeças dos Goblins.
Mesmo a uma longa distância, Liryan conseguia ouvir e compreender
os rosnados que o Lorioran ensandecido e voraz dirigia para eles, repetidas
vezes, conforme matava mais e mais.
Onde ela está?
Um rosnado ainda mais animalesco ecoou pelas paredes rochosas, com
as estalactites estremecendo assim que um imenso tigre branco saltou de
fileira em fileira, derrubando Goblins.
Liryan se viu encurralado por um grupo, desviando de duas adagas
lançadas em sua direção. Ele riu.
— Vamos lá, rapazes. Podemos fazer isso do jeito fácil... — Outra
adaga veio por sua retaguarda, com ele desviando, o sorriso aumentando. —
Ou do difícil.
Em um estouro de luz incandescente, Liryan liberou a pressão de seu
poder, com um estrondo de raios raspando por ele, lançando o grupo em seu
entorno no abismo abaixo. A parede atrás lascada com o golpe.
Ele estalou os músculos do corpo, vendo o Goblin que restara caído ao
chão, o fitando em assombro.
O caos havia se infestado em sua colmeia cavernosa, com diversos
Goblins sendo abatidos por um Feänor de cabelos brancos, um elfo dourado
levando uma onda deles consigo e uma fera branca arrancando cabeças e
braços.
Cada um impulsionado por ira e ferocidade mortal.
Liryan deu passos para ele, com o monstro recuando para trás,
assustado, quando o Feänor se abaixou para ele.
Os olhos ametistas possuindo uma luz sobrenatural, quando um sorriso
insano tomou seus lábios.
— Eu não quero ser rude, ok? — Ele sorriu sereno. Cortês até. — Mas
só vou perguntar uma vez.
O Goblin piscou.
— Onde ela está? — A pergunta soou entredentes. O Goblin cuspiu em
Liryan mostrando os dentes podres. O Feänor estalou um pestanejo,
balançando a cabeça. — Resposta errada.
E em um gesticular de dedos, uma lâmina de luz, de raios violetas,
atravessou o pescoço do monstro.

Uma gargalhada sonora reverberou quando ele viu mais e mais daqueles
seres asquerosos vindo para ele. Seu sangue rosnava ensandecido. Então ele
abriu os braços, em um convite para a horda que se lançou contra ele, sendo
colidido por vários Goblins.
Bum! O poder voraz queimando suas veias fora liberado como uma
supernova, disparando uma imensidão de Goblins no ar para o abismo
abaixo.
Westyn não perdeu tempo, com as íris se tornando esferas de luz
conforme ele conjurava seu poder, lançando disparos de raios contra os
monstros.
Ele notou quando Skye entrara em seu campo de visão, ainda em
assombro pelo Lorioran banhado em sangue negro, uma força da natureza
revestido em ódio, destilando sua onda devastadora em seus ataques atrozes.
Westyn o compreendia. Seu instinto feral estava em declínio por ter
sido aprisionado por aquelas criaturas, seu poder rosnava por ter sido cortado.
Ele queria destruir aquele lugar sobre eles.
E se Skye decidisse que desabaria a colina inteira para encontrar Gwen,
Westyn o acompanharia em êxtase.
Um Goblin ousou disparar uma fecha de fogo em sua direção, mas o
escudo que surgiu diante de Westyn fez a besta correr em pavor para longe,
não sendo rápido o suficiente quando o Feänor lançou um chicote contra seu
pescoço, o puxando em uma queda brusca para baixo.
Aquelas bestas os atacaram. Os prenderam. Pelo fosso. Prenderam seus
irmãos e os machucaram com aqueles espinhos de merda.
O Feänor não teria piedade.
Os olhos brancos tremeram quando ele se aproximou. O monstro era
hediondo e tinha o aroma de algo que não possuía limpeza por décadas.
— Onde ela está? — Westyn rosnou. As marcas por seu corpo
cintilando em um aviso para o Goblin.
— Verme. — A coisa sibilou. Westyn suspirou.
— É melhor dizer logo, antes que desabemos esse lugar inteiro sobre
vocês.
Aquilo pareceu o alarmar, com ele sacudindo a cabeça, frenético. O
chicote de luz enroscado em seu pescoço apertando.
— Não podem — chiou em um grasnar. — Este é o nosso reino. Nosso
rei irá destroçar...
Em um bufo, Westyn fechou o punho. O barulho da cabeça decepada do
Goblin ecoou ao quicar no chão.
Thorion surgiu ao seu lado, em sua forma animal, a boca manchada de
sangue negro. Os olhos ametistas famintos pelo ataque pareceram indagar a
ele.
Westyn negou ao compreender.
— Nada. — Nenhum dos Goblins respondera onde Gwen estava
durante seu ataque. O aceno de Thorion disse o mesmo.
Eles levaram o olhar para o Lorioran a metros no nível abaixo,
encurralando um imenso Goblin, com uns dez corpos atrás dele.
Westyn ainda estremecia com a lembrança do que ele fizera para os
libertar da gruta cavernosa em que estavam aprisionados.
O olhar que Skye possuíra o fez tremer na base. Aquele pequeno
Lorioran se tornara uma fera demoníaca temível em um mero instante.
Por pouco quase não o matara quando percebeu a situação em que
estavam e teve um ataque de ira. As marcas já cicatrizando em seu pescoço
eram um lembrete daquilo. Westyn concluiu que, se Thorion e Liryan não o
tivessem acalmado, ele o teria feito. Mesmo com sua cura acelerada, seu
rosto ainda tinha as marcas da corrente de espinhos que o Lorioran raspara
nele.
Westyn quase teve pena daqueles Goblins. Quase.

Skye ofegava, estremecendo em ódio. Cada um. Cada maldito monstro


que matara se recusava a dizer onde Gwen estava. Ele estava cansado, estava
perdendo tempo com aquilo. Gwen tinha de estar em algum lugar ou em
perigo enquanto lutavam. Ele estava cansado. Chega. Grunhiu para si
mesmo.
O Goblin à sua frente o fitava em horror, como se Skye fosse o pior dos
demônios diante dele. A ponta de sua lança mirando sua jugular, um mero
movimento errado e um corte o rasgaria.
Skye mostrou os dentes para ele.
— Me. Diga. Onde. Ela. Está — ditou pausadamente, a voz tão rouca
que era quase irreconhecível por seus tímpanos.
O Goblin arfou.
— Quem? — retrucou para ele.
Os olhos de Skye reluziram.
— A garota que trouxeram conosco. Onde ela está? — Compreensão
tomou aquela expressão hedionda. O coração de Skye disparou ainda mais.
— Diga e eu o pouparei.
O Goblin riu em escárnio. A lança se aproximou mais, com ele
engasgando em sua risada apavorada.
Skye continuou com o semblante frio. Inexpressivo.
— Como posso acreditar que não irá me matar? — O Goblin indicou os
corpos dos seus, atrás de Skye.
— Eles não foram muito úteis. Não responderam minha pergunta —
esbravejou. — E você?
O monstro pareceu engolir em seco. Sopesando. O peito gordo subia e
descia com sua respiração acelerada.
Skye era uma tempestade silenciosa por fora.
— Ela... Ela está no subsolo. Aguardando o rei. Na única gruta do salão.
— O monstro apontou o dedo para baixo, indicando os subníveis daquele
lugar.
Uma sobrancelha loira se ergueu.
— Aguardando o rei?
Um aceno.
— O rei toma as fêmeas para seus filhos — esclareceu em deleite. Um
sorriso podre e nojento tomou aquele Goblin. O estômago de Skye se revirou.
— Os filhos do rei gostam de acasalar com fêmeas bonitas. Sua amiguinha
será de um deles. E quando ela procriar, terá seu fim como as outras.
Skye sorriu. E pelos deuses. O Goblin compreendeu aquele sorriso
deturpado e choramingou ao se dar conta do que aconteceria a ele.
A lança girou, com Skye correndo para o outro lado, para a descida que
levava ao subnível, ouvindo quando o corpo sem vida do Goblin despencou
por completo ao chão, o pescoço possuindo um imenso rasgo, formando uma
poça de sangue.
Então Skye disparou como um tornado para sua amiga. Pedindo para
qualquer deus que o ouvisse para que ela estivesse bem e que não fosse tarde
demais.
Os passos da figura encapuzada ecoaram pelo recinto, com Gwen
arquejando. Não havia o que fazer. Estava atada e sem forças. Mesmo assim
lutaria e rasgaria qualquer Goblin com seus próprios dentes.
Mais passos, com um cheiro de neve e limões, invadindo suas narinas.
Não era nada comparado ao cheiro podre que sentira dos Goblins.
Nora pareceu inalar o aroma também, arquejando um soluço, se
aprumando.
— Raven — arfou. O som quase um choro de alívio, como se ela
agradecesse a algum deus. — É você?
A figura se direcionou para ela, se curvando e se abaixando para Nora.
Com a luz fraca que entrava pelo recinto, Gwen pode distinguir a silhueta
magra de Nora e seus cabelos escuros caindo por seus ombros.
— Nora. — A estranha, Raven, murmurou, abraçando Nora, que
choramingava.
— Como? Como chegou aqui? Pelos deuses, Raven! — Nora indagava,
rindo e chorando.
Raven pestanejou.
— Depois. — O tom soou firme. — Preciso tirá-la daqui, enquanto
temos uma distração para fugir.
Então Gwen ouviu novamente o estrondoso caos ecoando lá fora.
Nora pareceu assentir em meio às lágrimas. Raven sacou uma adaga de
seu manto, apanhando os pulsos atados de Nora, começando a cortar os
espinhos, pedindo desculpas a ela quando um choramingo de dor lhe escapou.
Logo Nora estava livre das correntes de espinhos, se lançando sobre
Raven em um abraço ofegante. As duas se abraçaram por um tempo, com a
figura encapuzada ajudando Nora a se erguer.
— Não temos muito tempo — grunhiu Raven. — Precisamos ir.
Ela segurou o braço de Nora, a puxando para a entrada ainda aberta do
outro lado. No entanto, Nora cessou seus passos, enrijecendo no lugar.
— Não! — esbravejou.
— O quê? — Raven olhou para trás, para ela. O tom incrédulo e
urgente.
— Não podemos partir. — Nora decretou rouca. O olhar caindo para o
chão a alguns metros atrás. — Não sem ela.
Raven acompanhou o olhar, encontrando Gwen, como se só agora se
desse conta de sua presença mórbida.
Gwen poderia sorrir se tivesse força para tal coisa.
A outra garota pestanejou.
— Nora. — O tom soou em alarde, uma repreensão talvez. — Não
podemos. Não temos tempo.
Nora balançou a cabeça, resoluta.
— Então não iremos. — Ela grunhiu para a outra. — Não a deixarei
aqui sozinha. Não posso, Raven.
Minutos se passaram enquanto elas se fitavam; a outra, Raven, parecia
sopesar aquilo, bufando ao estalar um xingamento feio, soltando Nora e se
direcionando para Gwen, que apenas assistia a tudo em silêncio.
A estranha se abaixou em sua frente, a encarando com atenção, com
Gwen mal podendo fazer o mesmo pela pouca iluminação.
Raven pegou os pulsos de Gwen, arquejando quando os notou
ensanguentados, erguendo-os.
— Você perdeu uma boa quantidade de sangue, hein? — constatou,
erguendo sua adaga e começando a trabalhar nos espinhos em uma precisão e
cuidado que Gwen notou ser para lhe evitar causar mais ferimentos.
Quando as fibras de espinhos caíram, Gwen gemeu rouca, em alívio
pelos pulsos livres dos cortes.
Raven guardou a adaga, se curvando ainda mais para ela, deslizando um
braço por seu corpo e passando por sua cintura.
— Consegue ficar de pé? — Gwen assentiu de forma fraca. Então ela
foi erguida em um movimento.
A cabeça zuniu por um instante, revirando, quando ela se viu em pé,
encarando Nora à frente.
— Agora podemos ir? — Raven retrucou para ela.
Nora bufou, assentindo.
As três caminharam para fora, com Gwen sendo carregada por Raven,
que possuía sua mesma estatura. Nora na frente, sendo a primeira a atravessar
o arco de luz da entrada.
Gwen teve que cerrar os olhos quando foi tomada pela luz nublada que
quase a cegou quando saíram.
Um ruído ressoou de sua garganta quando ela inspirou fundo. Livre.
Estava livre.
Então ela ergueu o olhar para cima, ofegando, ouvindo Nora em um
reflexo do seu, fitando os metros acima.
Era como o interior de uma torre gigantesca, com níveis de andares em
volta, rodopiando até o topo da colina que esbanjava o luar no céu.
Haviam várias tocas, grutas, ela concluiu, como a que estivera, várias e
várias ladeando os níveis cavernosos acima. E o caos se instalara sobre ela.
Um aperto se fixou em sua garganta quando seus olhos captaram o
brilho das explosões acima, que derrubavam rochas e Goblins.
Aquele brilho violeta, como um raio disparando sobre vários grupos
daqueles monstros verdes.
O rugido que ecoou acima, quando ela viu um tigre saltar entre o
abismo, pousando em um nível, atacando.
Gwen quase chorou. Pelos deuses. Se não fosse pelo apoio de Raven
sobre ela, Gwen estaria no chão quando suas pernas tremeram, vendo o
combate dos três Feänors contra diversos Goblins acima.
E lá estava ele, um tornado incandescente dourado, disparando para
baixo, jogando Goblins para o abismo, desferindo golpes fatais. Um mar
revolto sobre eles.
Lágrimas deslizaram por seu rosto quando ela o viu, seu Skye. Seu outro
lado da moeda. Seu semelhante.
Skye. Pronunciou seu nome sem falar.
Quando o Lorioran de cabelos dourados e olhos celestes a encontrou,
seu olhar cruzando com o dela no salão do subsolo daquele lugar, fora como
se o baú dentro de si fosse trancado à força e com brutalidade.
Ele estava bem.
Ele estava bem.
E vindo como um tornado selvagem até ela.
14

Os deuses o tinham ouvido. Skye piscava para afastar a imensidão de


lágrimas que o tomavam. Grunhindo para si mesmo. Não era hora para
lágrimas. Não agora. Não com Gwen tão perto dele, a uns quatro metros
abaixo. No subsolo. Bem. Ela estava bem. Ele repetia para sua onda de fúria,
tentando acalmar seu ritmo frenético, conforme disparava como um raio até
ela. Ele viu que os Feänors também notaram a presença de Gwen, começando
a descer também.
Deslizou por uma rampa de pedra pela planície rochosa, saltando no ar,
pousando com maestria no nível abaixo, quando um Goblin se lançou para
ele. Skye nem mesmo o olhou, os olhos azuis se mantiveram focados na
amiga quando moveu a lança em um movimento rápido contra o monstro,
que despencou no ar.
Seus pés trotaram no chão, correndo de forma incessante. Lá estava ela.
Gwen. Seu peito gritou em júbilo e euforia. Ela estava bem. Estava bem.
Mesmo assim aquela onda feroz que o inundava, quase o cegando,
ainda o movimentava, com ele tentando acalmar a maresia revolta. Seu
coração batia frenético, seu fôlego era um disparo de ar.
Ela estava bem.
Metros e mais metros, ele se viu um nível acima de Gwen, dando
impulso com os pés em uma parede e se lançando ao ar, em um giro, com seu
corpo rodopiando em um movimento voraz, deslizando no ar conforme Skye
se lançava para o chão, pousando a alguns metros dela.
Haviam duas garotas a sua volta, uma delas dava suporte ao corpo
exaurido de sua amiga. Com uma inspeção rápida de seus olhos, Skye notou
os pulsos sangrentos dela, que outrora possuíra as mesmas correntes que o
feriram. As ondas se tornaram ácidas em seu interior, o queimando.
Ele inspirou fundo, a analisando vidrado.
Gwen o fitava também, lágrimas varrendo seu rosto. Ela estava um
caco, os cabelos loiros um desastre, as roupas sujas e maltrapilhas, mas ele
mesmo sabia que não era uma visão muito digna.
Um ofego escapou quando ela se desvencilhou com dificuldade da
garota encapuzada, cambaleando um pouco ao dar um passo em sua direção.
Mais lágrimas caíram, acompanhando as próprias de Skye.
O Lorioran fungou, permitindo enfim suas emoções o tomarem. Aquele
medo e desespero que nutrira quando não a encontrara ao seu lado na gruta.
Lá estava ela, dando passos lentos para ele.
Estava bem.
— Skye... — O som de sua voz quebrada ecoou nos tímpanos dele, com
seu peito sendo atingido por uma lâmina invisível com o tom carregado de
dor.
Então Skye chorou, correndo para ela, deixando sua lança cair no chão
ao colidir em Gwen.
Um som de choro se unificou ao seu quando ela retribuiu seu abraço de
forma leve e lenta, pondo sua cabeça no ombro dele, enquanto Skye chorava
e chorava.
— Está tudo bem. — A voz de Gwen mal soou, cantando em um tom
entrecortado.
Ele balançou a cabeça, se afastando para fitá-la. Seu rosto
transparecendo cada emoção que deslizava por ele.
— Eu sinto muito... Me desculpa por não ter te protegido, Gwen... Eu...
Eu... — Ele se odiou por falhar com suas palavras. Aquelas lágrimas malditas
atrapalhavam sua visão e o choro sua dicção. Era um tolo. Tinha sido um por
ter permitido que fossem separados e que ela fosse pega.
Um tolo de merda.
Gwen sorriu, unindo sua testa a dele.
— Está tudo bem — assegurou. Ele ainda não acreditava naquilo, mas
ela estava ali. Estava bem. — Estamos juntos de novo.
Ela segurou sua mão, entrelaçando seu mindinho ao dele, sorrindo em
meio a suas próprias lágrimas, enquanto ele chorava ainda mais. O peito se
inundando de conforto com a presença dela, quase o afogando em uma
maresia nauseante.
Ela estava bem. Eles estavam.
— Juntos — sussurrou para ele, testa contra testa. Alma contra alma.
Skye fungou, assentindo para ela.
Se afastando, Gwen fez uma breve inspeção sobre ele, massageando sua
nuca, onde ele fora atingido quando foram atacados. Ela limpou suas
lágrimas com a ponta dos dedos, levando o olhar para trás dele.
Skye não precisou olhar para saber que os Feänors saltavam para eles
quando ouviu o ronronar do imenso tigre e os passos de Westyn e Liryan.
Ela os encarou de forma atenta, se afastando de Skye, mas ainda
permanecendo ao seu lado, com ele segurando sua mão e ela se apoiando a
ele. Skye sendo seu suporte. Sempre seria.
— Você está bem? — Westyn, banhado do sangue de Goblins como
Skye, se adiantou, a fitando com cautela, analisando cada mínimo traço de
Gwen.
Os olhos ametistas primitivos se permitindo aliviar a tempestade sobre
eles quando repousaram sobre Gwen. O Feänor prateado a fitou por
completo, cada mínima parte, averiguando seu estado com um foco eriçante.
Ele estava um caos, com o peitoral exposto sujo, o abdômen definido
manchado de sangue, sua jaqueta preta aberta. Todavia, parecia não dar a
mínima para aquilo, conforme a encarava com fervor.
Ela não se incomodou em responder, apenas assentindo, em uma visível
mentira, passando a inspecionar cada um dos três machos. Liryan a fitava
com um cuidado singelo, diferente da voracidade de Westyn. O imenso tigre
meneou a cabeça em um aceno contemplativo a ela.
— Fico feliz que esteja bem. — Liryan murmurou para ela, indicando
Skye em um aceno de cabeça. — Ele estava prestes a derrubar cada pedra
deste lugar para a encontrar. — Ele sorriu, com Gwen firmando o aperto em
suas mãos. Liryan prosseguiu com um brilho cintilante nos olhos. — E nós o
ajudaríamos.
Westyn acenou em concordância, com um sorriso predatório nos lábios.
Gwen sorriu, um sorriso que mal chegava aos olhos, acenando em gratidão.
— É uma bela reunião. — Uma voz soou atrás deles, em um tom de
alarde. — Mas temo dizer que vocês irritaram alguém.
Eles se viraram para a garota encapuzada, que apenas apontou para
cima, com eles levando o olhar para a direção a tempo de ver o que ela
indicava.
Westyn xingou. Quando um imenso, não, um Goblin gigante, robusto,
surgiu no topo dos níveis, bem no cume, fitando-os com um olhar raivoso,
para então milhares de Goblins, mais e mais, saírem das alcovas e grutas.
Então o imenso Goblin rugiu um urro grotesco, sendo ecoado pelo
restante deles.
O rei Goblin. Skye percebera de imediato, em horror.
— São muitos. Não podemos lidar com tantos, não com nossa energia a
um fio de se esgotar... — pestanejou Westyn em um ofego. Thorion, em sua
forma animal, rugindo em concordância.
— Precisamos sair. — Havia um tremor sob a base da voz de Skye
quando ele olhou para os lados do salão em que estavam, para as aberturas,
enquanto mais e mais Goblins surgiam nos níveis acima. — Agora.
As duas estranhas se entreolharam, em uma troca de palavras sem
pronúncia, assentindo uma para a outra, com uma delas, a encapuzada, se
voltando para eles.
— Conheço uma saída — informou.
— Então lidere o caminho. — Westyn brandeou.
A estranha riu.
— Não iremos conseguir a tempo com essa quantidade nos
perseguindo, não chegaremos muito longe.
— E o que sugere que façamos?
Westyn coçou os cabelos prateados. Um explícito ato de puro e
completo nervosismo.
A outra, de cabelos castanho-escuros, se aproximou.
— Eu lido com isso — esbravejou, recebendo um olhar fulminante da
de capuz.
— Você está fraca demais. Não tem energia para isso.
Ela negou, erguendo uma das mãos, fitando sua própria palma e as
marcas de cortes de espinhos no pulso.
— Tenho energia suficiente para isso. — O sorriso que ela abriu raspou
calafrios pela coluna de Skye.
E em um movimento, ela estendeu os dois braços para cima, fitando a
horda de Goblins que descia os níveis cavernosos para eles a uns sete metros
acima.
A de capuz deu passos para trás, cautelosos, sendo acompanhada pelos
outros ao perceberem aquilo.
Magia! Diferente da que Skye já sentira, até mesmo da dos Feänors,
inundou o ar do recinto com o aroma mágico, junto ao cheiro de limões e
laranjas dela.
A garota, de cabelos castanhos ondulantes que batiam em seus ombros,
usava um vestido azul em frangalhos de tão sujo, mas havia algo singular em
suas costas, que inicialmente ele achara ser um manto ou capuz, de um tom
quase como cetim transparente, caindo até sua cintura. Então ele as distinguiu
quando ela as ergueu em riste, abrindo-as.
Asas.
Tão transparentes e lindas como as de uma libélula, mesmo as veias que
as circundavam eram quase incapazes de serem captadas à luz. Dois pares em
cada lado, retangulares, com uma envergadura delicada e fina, diferente das
de Westyn e Liryan, despojando de uma abertura em seu vestido de costas
nuas.
Eram majestosas. Surreais.
Os cinco presentes a encararam em fascínio, com Westyn, sempre
Westyn, é claro, xingando em completo estupor.
Com as mãos erguidas, as veias em seus braços e as das asas alinhadas e
sistêmicas, lampejaram com uma corrente de luz azul que correu por elas.
Então eles assistiram atônitos, enrijecendo, quando das rochas e alcovas
acima, grossas raízes e vigas brotaram, com espinhos grossos sobre elas, uma
porção deles, ramificando, despontando em uma velocidade alarmante contra
o imenso buraco a céu aberto acima deles, indo uma em direção da outra, de
todas os lados, se unificando, fechando a abertura e formando uma barreira.
Vinha por vinha espinhosa se entrelaçou, com os Goblins presos acima
dela rugindo em depreciação quando a última se enroscou, fechando o lugar.
Os deixando sob sombras e escuridão.
As mãos da garota recuaram quando ela os fitou, abrindo um sorriso
tranquilo para eles.
A porra de um sorriso sereno, como se não houvesse acabado de
conjurar uma magia feroz e poderosa perante eles.
Skye sentiu o aperto de Gwen, o trazendo de volta de seu fascínio
quando ele a fitou, vendo seu assombro refletido nos olhos dela.
Aquelas asas transparentes desceram em uma leveza suave, como
plumas, caindo por suas costas outra vez, feito um manto, quase como se
descansassem.
O olhar da garota avaliou cada um, seu rosto um retrato de pura
serenidade e beleza.
Uma palavra sibilou na mente de Skye com força.
Pixie.
Ela era uma Pixie do povo de Elora. Ele quase riu em delírio. A cabeça
martelando com aquele fato. Contudo, lidaria com aquilo depois.
A Pixie bufou para as expressões exasperadas, com Westyn ainda
boquiaberto a fitando. Mesmo o tigre branco estava paralisado.
— O que estão esperando? Não temos tempo a perder. A barreira não
irá suportar muito tempo.
Aquilo pareceu os trazer de volta. Com a estranha encapuzada correndo
à frente deles, entrando em uma das alcovas do outro lado, sendo seguida
pela Pixie. Os cinco se entreolharam, com Gwen tendo a iniciativa de dar o
primeiro passo naquela direção, com Skye a seguindo, apanhando sua lança
no chão.

Uma Pixie. Aquela garota baixinha, com asas transparentes caindo


como um manto por suas costas nuas, era uma Pixie do povo de Elora. Liryan
ainda conseguia sentir o riso de nervosismo em sua garganta. Que situação
estavam... Correndo por um imenso e estreito túnel cavernoso, em uma
colmeia de Goblins, sob uma colina.
Tinha estado em alerta desde então, com a garota. Ele conhecia sua
espécie tão bem quanto conhecia a dos Loriorans, o que somava quase em
nada.
Eram um povo respeitado entre Eldar, mas perigosos e letais acima de
tudo, de acordo com as histórias.
Se lembrou de como o pequeno Lorioran reclamara mais cedo sobre a
veracidade das histórias. Liryan começava a concordar.
Era quase inacreditável, mas ele afastou as emoções que começavam a
atrapalhar seu próprio raciocínio. Precisava manter a cabeça funcionando
naquele lugar. A visão do imenso Goblin robusto, o rei, ainda o assombrava.
Se aquele monstro tivesse chegado até eles, no estado de esgotamento em que
estavam, estariam ferrados.
Ele era o último da fileira, com Thorion correndo em suas patas a sua
frente, quase incapaz de caber no túnel estreito enquanto corriam pela
penumbra fria.
— Onde esse túnel vai levar? — Ele ouviu Westyn indagar à frente de
Thorion para a estranha encapuzada os guiando.
— Do outro lado do rio do Vale, ao sul. Foi como consegui entrar. —
Ela esclareceu em um tom seco.
Ao sul. Ele quase grunhiu frustrado.
Seu percurso era para o norte.
Ela desviou de outra abertura, entrando em uma alcova ainda mais
escura e fétida, seguindo em frente. Sem escolha, eles a seguiram.
Liryan ainda estava alarmado com tudo que acontecera, o sangue ainda
fervente da luta travada. Mas o que importava era que Gwen estava bem.
Todos estavam.
Seus irmãos estavam a um fio de energia, sendo impulsionados agora
apenas pela adrenalina da fuga.
Thorion tinha ficado por muito tempo em sua forma animal, aquilo
deveria o estar consumindo, e agora que tinha perdido suas roupas naquele
lugar, continuaria por mais algum tempo.
Mesmo sua bolsa com seus pertences Liryan perdera, quando foram
atacados mais cedo.
No entanto estava bem. Juntos. Com Gwen a salvo.
Uma parte sua se aliviou com aquilo, quando a vira bem, abraçada a
Skye. Liryan tinha a impressão de que o Lorioran arrancaria a cabeça de
qualquer um que se aproximasse dela, por isso ele decidiu por não a sondar
melhor quando a encontrou.
Embora, em algum momento, conversaria com ela, mesmo que tivesse
de enfrentar aquele Lorioran feral.
E uma parte sua lhe dizia que sua preocupação frenética com o estado
dela não se dava totalmente à ordem da missão. Mas ele ocultou aquele fato
de si mesmo.
Seguindo em frente.
Quando vira Gwen bem, a tempestade que o rasgava de alguma maneira
se acalmou. Não o suficiente, quando notou os machucados no corpo e
pulsos. Se não fosse o Lorioran de cabelos dourados que insistia em não sair
de seu lado, com ameaças profanas de morte naqueles olhos celestiais,
Westyn teria verificado cada traço dela.
Mas ela parecia bem, mesmo com os ferimentos. O que não o impediu
de tirar os olhos dela, o que percebeu não ser totalmente voluntário.
Desde que a conhecera, quando seus olhos distinguiram aqueles traços
tão belos e divinos, Westyn era incapaz de tirar os olhos dela.
Dos cabelos loiros cintilantes, caindo em uma cascata por seus ombros,
ao rosto majestoso marcante, com lábios delineados em um contorno atrativo
e aqueles olhos nublados, como um azul acinzentado. A pele alva, que suas
palmas coçavam para agraciar em um mísero toque. Os seios fartos sob sua
camiseta, com os mamilos quase visíveis sob o tecido, causando calor na pele
de Westyn quando se via levando o olhar para aquela parte com rapidez.
Sua silhueta era como um desenho traçado, desde as curvas perfeitas
aos seios majestosos, em um declínio ao seu perfil. Ele queria tocá-la. Como
se fosse atraído por um magnetismo invisível.
Ela era linda. Como um alvorecer, carregada de uma luz incandescente.
Com o aroma de flores. Westyn se repudiava por aquilo, mas o cheiro dela o
deixava duro. Era quase difícil resistir ao impulso de sua excitação com
aquele olhar dela. Seu pau entrava em combustão quando Gwen o fitava com
atenção, o que era raro, já que ela parecia sempre evitar seu olhar.
Westyn se lembrou das palavras de Liryan sobre Skye, que estivera
disposto a derrubar a colina inteira para encontrá-la. Westyn o ajudaria.
Destruiria cada maldito Goblin, até mesmo o rei imenso e nojento deles, se
houvessem mexido em uma mecha sequer do cabelo dela.
Não sabia de onde diabos vinha aquele instinto fodido e primitivo
perante a garota, que parecia tão indefesa e frágil, uma mera faceta diante da
fera mordaz e atroz que ele vira despertar no ataque mais cedo, cortando
Goblins como se ela mesma fosse feita de lâmina.
O Feänor suspirou, acompanhando o grupo a frente, olhando de Skye
para a Lorioran diante dele. Ela caminhava de forma mais lenta, sua reserva
de energia deveria estar esgotada e mesmo assim não soltava a mão do
amigo.
Quando vira a forma como ela gritara por ele no ataque dos Goblins, a
forma como ele corria como um deus rasgando o ar para Gwen, Westyn
concluiu que o laço que ambos possuíam estava além do de irmãos. Era uma
ligação de almas. Quase como a que ele mesmo possuía com Thorion e
Liryan.
Skye se tornara uma força da natureza quando saíram da gruta; os três
Feänors não ousaram entrar em sua frente quando ele derrubou montanhas de
Goblins com sua ira pela amiga que fora tomada.
Westyn jamais admitiria aquilo para o elfo irritante, mas havia crescido
um respeito imenso em seu peito por ele, principalmente depois do que fizera
para os libertar da gruta. Medo e respeito. Westyn acrescentou com um
sorriso, seus ferimentos causados por Skye já se fechando e curando. Mas a
lembrança deles ainda vivia em sua memória.
Atravessaram uma nova alcova no trajeto, dessa vez repleta de luz
nebulosa no espaço pequeno, com uma abertura a uns cinco metros
mostrando a ravina do lado de fora.
Westyn quase gemeu em alívio ao ver as árvores do outro lado e o mero
ar que invadiu seus olhos o fez grunhir em satisfação. Estavam livres daquele
lugar hediondo.
Mas ele só iria comemorar esse fato quando estivessem a uns bons
quilômetros de distância da colmeia dos Goblins.
O grupo inteiro parecia constatar o mesmo, portanto, eles se apressaram
para sair daquele túnel e lugar. Sem olhar para trás, para os rugidos que
ecoavam dentro da colina ficando para trás.
15

Três Feänors. O nariz de Raven se contraiu quando ela os identificou


pelo cheiro de alecrim. Mas não fora apenas o cheiro que os delatara, aquelas
marcas nos dois e o imenso tigre branco, que ela suspeitava ser um, foram o
suficiente para os delatar como Feänors de Elrond. Todavia, aqueles outros
dois loiros, a garota que ajudara na gruta aprisionada com Nora e o garoto
com a imensa lança, ela não conseguia distinguir a espécie.
O cheiro de flores transbordava deles. Mas nenhum traço que os
indicasse como membros de seu povo ou de Elrond. Ambos eram uma
incógnita para ela, mas não tinha tempo para desvendá-la, conforme corriam
pelo bosque esgueirando o rio, se distanciando mais e mais da colina dos
Goblins, podendo ouvir a agitação das criaturas horrendas presas dentro dela.
Eles correram por horas seguindo o percurso do rio ao anoitecer, a
margem brilhante da correnteza os guiando para um trecho de campina.
O Feänor que corria mais à frente, o de cabelos castanhos, cessou sua
corrida, erguendo a mão para barrar o grupo atrás.
Raven se preparou para uma possível ameaça, levando as mãos para a
adaga em seu manto e o olhar para Nora, ofegante ao seu lado.
Nora era sua prioridade. Nada mais.
— Precisamos parar. — Ele decretou, olhando os arredores. A imensa
lua despontava no céu acima, com sua luz nublada. — Estamos exaustos, sem
forças e energia; se entrarmos mais a fundo na profundeza do Vale a essa
hora, podemos encontrar coisas piores que os Goblins.
A bile desceu pela garganta de Raven, com ela tomando fôlego pela
corrida de horas.
— Já estamos a uns bons quilômetros da colmeia daqueles monstros. O
rio e o ar vão lançar nossos cheiros para direções contrárias. — O outro, de
cabelos prateados, disse avaliando o grupo, passando para o lugar em que
eles estavam. — Podemos parar e acampar aqui durante esta noite, é mais
seguro. Manteremos guarda e ao alvorecer retornamos ao nosso percurso.
Não é seguro caminhar por este lugar ao anoitecer.
— Acha que é seguro aqui? — A garota loira indagou rouca, com o
Feänor prateado a fitando por um bom tempo antes de responder.
— Não. Mas é o único lugar onde nosso cheiro é camuflado devido ao
rio, que impede de as criaturas o farejarem. — Um olhar para o outro Feänor,
que assentiu em concordância.
— Não temos escolha. — O loiro retrucou, ao lado de sua semelhante, a
fitando com um olhar firme, ambos se comunicando por seus olhares. —
Estamos sem reserva de energia. Precisamos descansar.
— Sim. — Nora se manifestou, dando um passo adiante para o grupo.
Raven se alarmou quando os cinco a fitaram, parecendo lembrar da presença
das duas. Ela fixou o olhar na garota. — Principalmente você, Gwen, perdeu
muito sangue. A qualquer instante pode desabar sem forças. Apenas a
adrenalina da fuga a manteve consciente.
O loiro franziu o cenho.
— Como a conhece? — A garota, Gwen, sorriu para ele, voltando o
olhar para Nora.
— Ela era minha companheira de cela. Me manteve sã durante cada
maldito minuto. — Um sorriso leve tomou seus lábios, com ela desviando o
olhar para Raven ao lado, que manteve os seus sobre ela quando a garota fez
uma reverência, os olhos brilhando em uma emoção de gratidão, que Raven
reconheceu quando ela murmurou um agradecimento. — Obrigada.
Raven apenas acenou para ela, em uma resposta silenciosa.
— Vocês são de Elora, não são? — O de cabelos prateados indagou, ao
lado de uma figueira imensa sobre eles, com os extensos galhos despontando
sombras, como um cobertor sombrio.
Seria um ótimo lugar para acampar naquela noite, de fato, ela percebeu
ao analisar o ambiente.
Nora se virou para ele, seus olhos avaliando o tom de sua pergunta,
decidindo algo e, por fim, assentindo.
— O que fazem aqui? — Ele abriu os braços, como se completasse:
nesse lugar.
Raven trocou um olhar significativo com ela. Deixou que suas íris
transparecessem o peso de suas emoções.
— É uma longa história. — Ela murmurou com os olhos ainda sobre os
de Raven.
Um estalo ecoou no recinto quando o Feänor tigre surgiu com ripas de
madeira na boca, caminhando para o centro abaixo da figueira, depositando-
as, conforme o outro, de cabelos castanhos, ergueu as mãos em um manejo.
Luzes violetas dispararam por suas veias, iluminando as marcas nos seus
braços, quando Raven e todos os outros assistiram um escudo, não, uma
barreira se formar em volta da enorme figueira, os cobrindo. Quase de um
tom transparente, mesmo assim visível o suficiente.
Ele se virou para os outros, o olhar e a postura exaustos.
— Bom, é melhor se acomodarem. Teremos uma longa noite. — Ele
levou o olhar para elas. — Vocês podem passar a noite conosco, se
desejarem, e podem partir ao alvorecer pelo caminho de vocês.
Nora a fitou, com os olhos clamando por aquilo. Raven tinha feito um
longo percurso para encontrá-la, e agora que o tinha feito, não poderia
arriscar sua segurança com as duas adentrando naquele lugar hediondo
sozinhas.
Ela inspirou fundo, concordando, com as duas acenando para ele em
agradecimento.
Portanto, o restante começou a se estabelecer, com o Feänor prateado se
sentando na grama enquanto o tigre montava uma pilha ao centro. Quando
havia uma boa quantidade, o prateado ergueu um dedo com uma esfera de luz
se projetando na ponta e a disparou para a pilha, que estourou em chamas.
Uma fogueira. A barreira mágica posta sobre eles impediria as chamas
de chegarem aos céus e atrair criaturas naquela direção. Eram inteligentes,
ela tinha de admitir.
Raven avaliou os três Feänors que se acomodaram em volta da fogueira,
com o castanho se sentando ao lado do prateado e parecendo inspecionar os
ferimentos do outro, que resmungava como uma criança, com o tigre se
deitando ao lado deles em um bufo.
Não manteve muito tempo seu foco, quando percebeu que os outros
dois desconhecidos caminhavam em sua direção, o de olhos azuis intensos a
fitando com um olhar curioso, conforme segurava sua lança. Raven nem
mesmo hesitou ao retribuir o olhar dele, quando removeu seu capuz.

Ela era linda, fora a primeira conclusão de Gwen sobre a garota que a
libertara e os ajudara a fugir daquele lugar. Raven. Possuía um tom de pele
escura majestosa, com uma suavidade dourada, os cabelos pretos, tão
cacheados que as mechas se entrelaçavam. Mas os olhos dela, pelos deuses,
aquelas íris verdes, tão intensas e gloriosas, contrastando de forma divina
com o tom escuro de sua pele.
Raven era a imagem do que Gwen sonhara ser uma deusa, imponente e
gloriosa. O semblante era carregado de confiança e seriedade, mesmo ao
encarar os dois que se aproximavam dela com cautela.
Gwen manteve sua expressão inexpressiva, ou tentando, conforme
desviava o olhar para Nora.
A lembrança de suas asas ainda martelando em sua cabeça. Pixie. Ela a
nomeou no instante em que o ar mágico inundou aquele salão cavernoso e as
asas, que outrora Gwen achara ser um manto transparente em suas costas, se
ergueram.
Nora era majestosa, tão linda e com traços delicados, como uma pluma
deveria ser; agora Gwen podia distinguir com clareza cada detalhe seu.
Desde os cabelos castanhos caindo por seus ombros, a pele clara, um
pouco pálida demais pelos dias que passou presa naquela alcova dos Goblins.
Os olhos faiscaram algo no interior de Gwen, quase em
reconhecimento, quando ela fitou suas íris azuis-celestes.
Lindas. As duas, era a única palavra que Gwen poderia definir para elas;
mesmo que o vestido azul de alças e costas nuas de Nora estivesse um caco e
o manto de Raven em frangalhos sobre suas vestes, a beleza de ambas era
como uma pedra intacta.
— Eu queria agradecer... — Gwen se pronunciou quando se aproximou
delas, ainda apoiada em Skye ao seu lado. Ela limpou a garganta quando o
timbre de sua voz soou arranhado, corando quando aqueles olhos azuis e
verdes se fixaram nela. — Pelo que fizeram ao nos ajudarem.
Nora abriu um sorriso singelo para ela, acenando, com Raven fazendo o
mesmo outra vez, sem o sorriso, apenas a observando.
— Não podíamos deixar você lá, Gwen Briffyn de Wenkael. — Nora
murmurou cortês, com Raven se retesando ao seu lado em surpresa.
— Você é de Wenkael? — Ela fitou os dois, incrédula, concluindo que
ambos eram quando Gwen assentiu. Raven pestanejou, coçando a nuca. —
Que grupo mais estranho... Três Feänors e dois Loriorans do povo místico de
Wenkael.
Gwen riu com o comentário, com Nora acompanhando.
— Tenho que concordar. — Ela os fitou, os olhos passando para Skye
ao lado, as íris azuis dela cruzando com as dele quando ele retribuiu o olhar.
Nora fez uma breve reverência. — Sou Nora Flower de Elora.
Skye refez a referência com leveza.
— Skye Briffyn, de Wenkael.
Os olhos de Nora se esbugalharam em reconhecimento pelo título de
Skye, alternando o olhar de um para o outro.
— São irmãos, então? — indagou.
Gwen apertou a mão de Skye, fitando seu amigo, seu irmão, que lutara
tão bravamente para encontrá-la naquele lugar. Ele retribuiu o aperto.
— Sim. — Ela respondeu. — De alma, e coração.
A Pixie assentiu em compreensão, parecendo se dar conta de algo,
sorrindo sem jeito ao dar uma cotovelada em Raven, que apenas assistia.
Raven bufou, rolando os olhos em uma exaustão visível.
— Sou Raven Greenthorn, de Elora. — Se apresentou, em uma breve
reverência.
— É uma Pixie também? — Skye atirou a pergunta antes que Gwen
tivesse a chance de a fazer. Ela agradeceu o amigo mentalmente. Não havia
sinais de asas ou traços que indicassem uma sobre Raven.
Raven Greenthorn negou em um aceno, com os dois franzindo o cenho.
— Não. Não sou. — Foi apenas o que ela respondera, o tom deixando
em evidência que aquilo seria suficiente.
Gwen sabia que haviam diversas espécies no reino de Elora, como as
Pixies do ar e das flores e as Tien das águas e mares, mas haviam também
Nikies e outras espécies do povo.
Nora a fitou com um olhar que só poderia ser comparado a reprovação,
sendo ignorada por Raven, que estalou um murmúrio, indicando o grupo de
Feänors atrás, na fogueira.
— Estão com eles? — Ela questionou incisiva.
A Lorioran levou o olhar para eles, vendo Liryan conjurar sua magia de
cura sobre os ferimentos no ombro de Westyn, que reclamava enquanto as
palmas banhadas de luz do outro raspavam por sua pele.
Ela se voltou para as duas à frente.
— Sim, estamos.
Raven apenas assentiu, serena. O rosto um retrato inexpressivo, embora
era perceptível que sua mente trabalhava com as informações dadas.
— Eles são... — Nora pareceu sopesar suas palavras, mordendo o lábio
inferior ao fitar Gwen. — Confiáveis?
Sua mente girou aquela pergunta em sua cabeça, mesmo que ela tenha
passado a manhã inteira indagando para si mesma sobre os Feänors.
Eles a tinham protegido no ataque contra os Goblins, tinham resgatado
ela e Skye de Wenkael, até mesmo lutaram junto a Skye para a encontrar.
Não confiava totalmente neles, não ainda, embora uma amarra dentro de
si a respeito da cautela e desconfiança sobre eles houvesse afrouxado um
pouco. Como se o muro defensivo em volta dela diminuísse um pouco suas
altas estruturas.
No entanto, antes que pudesse responder, Skye se adiantou novamente,
rindo em escárnio.
— Eles? — A voz chiou em deboche. — São um bando de idiotas.
E Gwen não conteve o riso ao ver as expressões exasperadas de Nora e
Raven que não esperavam por aquilo, com Skye se juntando a ela.
Era a primeira vez que ria de forma tão natural depois do que
acontecera na noite anterior. Não pareceu tão ruim quanto ela pensou que
seria.

Os instintos de Skye ainda se eriçavam com a presença daquelas duas,


até mais que com a dos três Feänors idiotas, enquanto se reuniram a eles em
volta da fogueira, com Liryan se oferecendo para usar sua magia de cura
neles após o ter feito em Westyn. Skye apenas indicou Gwen para ele, em um
aviso claro nos olhos para que ela fosse a primeira. Quando o imbecil de
cabelos prateados se ergueu, se oferecendo para ajudar Skye, ele não teve
alternativa quando Gwen o repreendeu.
O Feänor usou sua magia de forma calma por longos minutos, sentado
ao lado de Skye no chão, espalhando os feixes de luz violeta pelas lesões
mais graves do Lorioran. Ele percebeu que Liryan fazia o mesmo com Gwen
ao lado. Os cortes ainda abertos nos pulsos e palmas foram os primeiros;
conforme Skye assistia em fascínio e assombro aquelas luzes trabalharem em
seus machucados, apenas uma sensação de formigamento o tomou pelo
contato do poder sobre sua pele.
— Por que elas brilham tanto? — Skye indicou o braço musculoso de
Westyn, para as veias e marcas brilhando naquele tom violeta, como se pura
luz corresse por sua corrente sanguínea. Tinha visto o mesmo em Nora,
quando ela usara sua magia, com um tom cobalto claro iluminando suas
veias.
Seu povo não tinha aquele tipo de poder celeste; os dons dos Loriorans
eram naturais. Mas sabia que mesmo seu povo lampejava uma luz verde por
sua corrente sanguínea ao conjurar magia. Contudo, nem chegava aos pés da
intensidade da dos Feänors.
E aquelas marcas, que pareciam linhas, quase como cipós finos, com
espinhos sobre eles, deslizando por seus braços e peitoral.
Westyn as observou também, sorrindo.
— É a essência de nosso poder. Contos antigos dizem que o povo de
Eldar habitam em cascas; nossa pele é apenas uma capa para conter nossa
real forma vinda da criação dos deuses. Esse brilho é um vislumbre da nossa
essência divina. Do que possui por baixo da casca.
Skye arquejou em um calafrio, estremecendo com aquilo.
— Entendo. — Fora apenas o que murmurou.
— E você? Qual sua essência mágica? Não vi nenhum dos dois usarem
sua magia natural. — Westyn o fitou com curiosidade, indicando Gwen ao
lado com o queixo. Aquilo lampejou uma emoção por Skye, com ele se
aprumando, grunhindo para o Feänor.
— Apenas termine o que está fazendo — sibilou, com Westyn
pestanejando algo que Skye optou por ignorar.
Luz violeta cintilou com intensidade do Feänor quando ele voltou a
trabalhar nos hematomas de Skye.
Longos minutos se passaram até que as feridas atrofiadas e abertas se
fechassem, deixando a pele e regiões onde houveram rasgos e cortes
imaculada.
Skye teve que conter ao máximo seu pavor com aquilo, nem um pouco
acostumado com aquele tipo de poder, mesmo após a outra noite, quando os
Feänors os curaram.
Quando Westyn concluiu Skye o dispensou com as mãos, com o Feänor
grunhindo entredentes para ele.
Ele observou que as duas garotas do outro lado da fogueira os assistiam
atentas; Westyn pareceu notar também, se recordando dos pulsos de Nora,
que também estavam estilhaçados em cortes.
Westyn não hesitou quando se ofereceu para curá-los, com Raven
grunhindo algo incompreensível em dispensa, mas Nora apenas ergueu seus
pulsos em um convite singelo, ignorando sua companheira.
Skye viu o espanto no rosto de Westyn quando a garota ergueu os
pulsos em um gesto delicado; ele demorou alguns minutos em estupor,
observando, e Skye o repreendeu pela demora, chutando os tornozelos dele
para que se adiantasse, recebendo como resposta um grunhindo das presas
expostas do Feänor. Quando esse se direcionou para Nora, com cautela e
cuidado, se sentando ao seu lado com um pouco de distância e conjurando
sua magia, a outra, Raven, o fitava com uma atenção felina, avaliando cada
gesto de Westyn sobre Nora.
Skye riu ao ver a tensão do Feänor perto delas. Principalmente de
Raven, que continha um aviso sinuoso, como uma ameaça, de que um gesto
em falso dele sobre Nora, ela o destroçaria.
— Você está bem? — Ele tirou a atenção dos três, se voltando para
Gwen ao seu lado, com Liryan lampejando sua magia pelos braços dela. Os
cortes no pulso e o que havia em seu pescoço, feito pela lâmina do Goblin,
haviam sumido.
Skye não respondeu em palavras, dando um olhar que fora o suficiente
para ela, passando a observar Liryan.
O Feänor estava um caco, com a respiração ofegante sendo captada a
metros e, mesmo assim, mantinha o foco ao curar os machucados do corpo de
Gwen, com o seu ainda repleto deles. Skye nem mesmo sabia de onde o
Feänor tirava tanta energia, sua própria reserva não continha uma gota
sequer.
— Ele está forçando o corpo a trabalhar, mesmo quando é evidente que
não tem forças. — Gwen exclamou lendo a expressão de Skye sobre o
Feänor.
Liryan a olhou, limpando o suor de sua testa com seu antebraço,
inspirando fundo.
— Tenho forças suficientes — retrucou exaurido.
Gwen manteve o olhar firme sobre ele, depositando uma das mãos sobre
a palma da dele em seu braço.
— Eu estou bem. Não há mais ferimentos ou lesões, apenas cansaço.
Agora você precisa de cura. Seus ferimentos não estancaram ainda.
Os olhos ametistas dele cintilaram para Gwen. Skye ergueu uma
sobrancelha vendo o Feänor a encarar por longos minutos. O rosto a
centímetros acima do dela. A respiração de Liryan se tornou ainda mais
afiada, como se ele mesmo acabasse de se dar conta da aproximação dos dois.
— Eu estou bem — murmurou, enfim. Mas Gwen o impediu de
continuar, segurando seu braço.
— Descanse. Você precisa. — Ela brandeou. Ele bufou, suspirando ao
se afastar dela, se erguendo meio cambaleante e caminhou para Thorion, já
dormindo do outro lado, se acomodando ao lado dele.
O tigre nem mesmo se moveu quando Liryan praticamente desabou em
exaustão por cima dele. A fera apenas grunhiu sonolenta, sem energia.
Skye não deixou de perceber um brilho, quase como satisfação, passar
pelos olhos nublados de Gwen quando ela observou o Feänor descansar.
Tinham tido um dia e tanto, ele tinha de admitir, conforme Gwen se
acomodava mais a ele, depositando sua cabeça no ombro de Skye e
adormecendo. O corpo incapaz de resistir aos comandos de exaustão.
Entretanto, Skye continuou pesando a situação dos dois. Sozinhos
naquele lugar, com um grupo de seres que passaram séculos se distanciando
deles.
Era impossível não temer o dia de amanhã e os vindouros por diante.
Mas Gwen estava bem. Estava com ele. Ele continuava repetindo aquilo para
a onda de pânico que insistia em ameaçar afogá-lo mais e mais.
16

Liryan permanecera em um sono profundo durante as sessões de cura


de Westyn sobre ele. Seu amigo e irmão estava esgotado, tinha se esforçado
demais para tirá-los daquele lugar com Skye, e lutado ao máximo no ataque
mais cedo; fora que tinha usado sua cota de magia curando Westyn e Gwen.
O próprio Westyn teria carregado o amigo pelo caminho inteiro se este não
conseguisse mover os pés. Tinha o verificado durante todo o trajeto que
percorreram, fugindo das colinas.
Westyn jogou toda sua essência de cura sobre o amigo, acomodado
sobre o imenso corpo de Thorion em sua forma de tigre, que estava tão
sobrecarregado e esgotado quanto Liryan, ao ponto de não se incomodar em
voltar para sua forma Feänor, sem contar o fato que perdera suas roupas na
colina, ronronando em um sono profundo.
Ele continuava empurrando aquela onda de exaustão para baixo,
impedindo que ela o alcançasse, por isso guardou um pouco de sua energia na
reserva, caso a barreira de Liryan caísse.
Se sentou ao lado de seus companheiros, arquejando, não havia uma
parte do corpo que não reclamasse em dor e exaustão, com ele as ignorando
conforme se mantinha atento, em guarda, batalhando em seu interior contra o
cansaço.
— Não deveria descansar também? — Levou o olhar na direção do som
daquela voz aguda e fina, com aqueles olhos azuis intensos o fitando através
das chamas da fogueira do outro lado.
Ele estalou um sorriso zombeteiro para Skye.
— Alguém tem que manter guarda. — O garoto continuou a encará-lo.
Gwen adormecera sobre ele, com o corpo enroscado ao dele e a cabeça
pendendo no ombro do elfo. Os cabelos loiros bagunçados dela caíam por seu
rosto. Westyn piscou para as chamas. — E você? Por que não tenta
descansar? Vamos ter um longo trajeto amanhã.
Skye ajeitou sua postura, com Gwen se mexendo sobre ele, sibilando
sonolenta.
— Eu estou bem. — Foi a única coisa que murmurou, com o olhar se
direcionando para o lado, Westyn o acompanhou, vendo que a garota morena
os fitava com olhos afiados de falcão. Raven Greenthorn, do povo de Elora;
ele tinha captado sua apresentação com a audição apurada, com Nora, a
garota de cabelos castanhos dormindo com a cabeça em seu colo.
Nenhum dos dois dispostos a pregarem os olhos naquele lugar repleto
de ameaças os rondando, não com suas companheiras à mercê. Westyn não
podia discordar do sentimento, levando o olhar para Liryan e Thorion ao
lado. Seu coração esquentou com a visão de ambos.
A ideia dos dois em risco despertava um medo gélido em suas veias,
aqueles dois que estiveram com ele durante décadas e décadas, lutando ao seu
lado, o protegendo e ajudando de todas as formas. Os três haviam crescido
juntos e estiveram unidos desde então. Aprenderam a se tornar amigos, para
enfim traçarem um laço puro de irmãos. Fizeram seus votos de honra à
guarda e ao trono juntos. Treinaram e aprimoraram suas habilidades juntos.
Sempre juntos.
Liryan Blackstone, o cabeça e a mente da equipe, aquele que possuía
um coração tão puro e grandioso que era respeitado por todos de seu povo. O
estrategista e intelectual dos três. Aquele que sempre estava disposto a ajudar.
Seu melhor amigo, que o ajudara a trilhar o caminho que percorreu para se
tornar o Feänor que é. Liryan, que era tão altruísta e protetor que se tornara
uma parte de Westyn durante todos esses anos juntos.
E Thorion Hakon, o bobalhão da equipe, que mesmo com todo o seu
tamanho e porte enorme era o mais zeloso e emocional dos três. O coração
da equipe. Aquele que adorava flores silvestres, que cochilava durante as
missões, que os faziam rir em situações de risco e rasgaria um exército de
inimigos para proteger seus amigos. Thorion, que completava uma parte do
coração de Westyn, ao lado de Liryan. Seus irmãos de honra e alma.
Os dois sendo uma parte de Westyn, que ele não poderia viver sem. Os
três aprenderam a se tornar apenas um. E assim seria, até o fim dos tempos.
Mesmo agora, com uma mera gota de energia o mantendo acordado,
Westyn seria capaz de lutar com uma horda de Goblins por eles. E sabia que
Skye e Raven fariam o mesmo por Gwen e Nora.
Ele se viu designando o olhar para a garota de cabelos pretos e pele
escura do outro lado, que passara a observar as labaredas da fogueira.
Ao luar da noite, sua pele ganhava um tom brilhante e majestoso, com a
cor escura de avelã cintilando, principalmente os braços suados.
— Como sabia daquela saída? — A pergunta saiu de seus lábios antes
que ele tivesse a chance de detê-la.
Olhos esmeraldas se lançaram para ele.
Raven pareceu pensar no que responder, ou se sequer deveria dar uma
resposta à sua pergunta, e ele esperou por uns três minutos.
— Estive sondando aquela região e o lugar por três dias, espreitando
cada canto da colina onde poderia entrar e sair. O lugar era infestado por
grutas de Goblins. Aquela é a civilização deles e, para adentrar o interior
dela, eu tinha que achar o caminho certo ou acabaria como vocês. A maioria
das alcovas dava para salões inundados de Goblins, alguns para cavernas
vazias, quando encontrei aquela entrada — esclareceu, esfregando as mãos na
direção do fogo, aquecendo as palmas.
Westyn apenas assentiu, sem palavras ideais para expressar algo. A
cabeça se inundando de questões silenciosas.
— Você estava tentando encontrar um meio de resgatá-la. — Skye
exclamou sob o clima silencioso que se formou. Não a fitou, apenas manteve
os olhos sobre a pilha de fogo no centro.
Mesmo assim deve ter visto quando ela assentiu em um aceno sério,
abaixando o olhar para a Pixie em seu colo.
O silêncio se estendeu por eles, com o som de corujas e insetos nas
árvores em volta.
— Um deles me contou. — Skye continuou. Westyn levou o olhar para
o Lorioran, que passara a vestir um manto de aura fria enquanto falava. — O
que o rei deles faz com as prisioneiras fêmeas. Se não tivéssemos... Se você
não tivesse libertado Gwen...
Um calafrio percorreu a coluna de Westyn com aquilo. Ele quis voltar
naquele lugar hediondo e estripar o rei maldito. Arrancaria cada parte
asquerosa de sua pele, com ele consciente, e o Feänor se deleitaria de sua
agonia sem fim.
Skye não precisou esclarecer o suficiente para Westyn compreender o
tom de suas palavras.
Raven o fitou com um olhar suave, por um momento desfazendo aquela
aura protetora sobre Nora, os olhos afiados fitando o Lorioran, compadecida.
— Gwen me contou o que fez. O que as duas fizeram. — Ele desceu o
olhar para a Pixie no colo dela. — Tenho uma dívida com ambas por tal feito.
— Não há dívida alguma. Não poderia deixá-la. Nosso povo cresceu
ouvindo histórias sobre o povo do Vale, o quinto povo inominável e temível
de Eldar. Principalmente sobre as fêmeas que caíam nas garras dos Goblins.
E a prole que eles as forçavam a ter. Não deixaria nenhuma garota ser
condenada a tal coisa.
A garganta de Westyn se fechou, com seu estômago revirando com as
palavras ásperas e firmes de Raven.
Ele poderia comentar algo, a boca se abrira para o fazer, quando um
ruído baixo atraiu seus tímpanos, suas orelhas tremendo ao captar o som.
Vinha de Skye. Como um fungar.
— Mesmo assim. Terei. Se algo tivesse acontecido com Gwen... Eu...
— A voz do Lorioran estava embargada e trêmula, tão baixa que só ouvidos
Eldarianos poderiam distinguir. Ele fungou outra vez, para o choque e
espanto de Westyn, que jamais esperava ver aquele Lorioran, tão feral e
mordaz, em um momento de fragilidade. Skye não olhou para Raven quando
sussurrou para as chamas: — Obrigado, Raven Greenthorn de Elora.
Era medo cru e cruel que tilintara no tom trêmulo do Lorioran de
cabelos dourados. Raven sabia porque o sentira quando seguira o rastro de
Nora há três dias e descobrira onde estava. Ela conhecia aquela emoção e
sabia o quão dolorosa poderia ser. Conhecia o gosto amargo e venenoso que
aquilo tinha.
Uma parte sua acolheu em respeito o olhar que o Lorioran lhe dera
depois de um longo momento. Abraçando o silêncio que os três, despertos,
permitiram instalar no acampamento.
Sua mera presença ainda inflamava algo dentro de Raven, sobre sua
espécie. Os místicos Loriorans de Wenkael, o povo que vivia exilado do
restante do reino. Com uma barreira divina impedindo a entrada de outros
povos entre eles.
O povo que durante séculos não se vira ou ouvira, que ela tanto ouviu
quando pequena, com dois deles diante dela agora.
O macho, com traços delicados e belos, possuía uma aura inofensiva e
frágil, com um olhar que mesmo um querubim teria inveja. Contudo, ela
sabia que aquilo era uma fachada de merda sobre a criatura devastadora por
baixo de toda aquela camada adorável. Tinha visto o que ele e os Feänors
fizeram na colmeia dos Goblins. A dizimação que aquele pequeno Lorioran
fizera apenas com sua lança e fúria graciosa.
Eles eram lindos, como um reflexo de um e do outro, com cabelos
loiros brilhantes; enquanto o de um era dourado como ouro, o outro era
amarelo como raios de sol. A pele de ambos era clara, como se um mero
aperto deixasse vestígios de marcas. As orelhas pontudas de ambos mal eram
escondidas por seus cabelos sedosos.
Não havia diferença em seu perfil que os tornassem próprios de
Wenkael, como as marcas dos Feänor sobre seus corpos e os olhos ametistas,
ou as asas de libélula das Pixies de Elora.
Eram comuns. Apenas com traços Eldarianos.
Raven sempre os imaginou como selvagens reclusos, usando vestes
feitas de árvores e folhas, como primatas, vivendo no alto das árvores.
Os dois diante de si, vestindo pele de animais e botas, eram totalmente
diferentes de sua concepção. Mesmo os casacos desgastados e sujos de
manchas de sangue seco eram bem traçados.
Porém, em meio a todas aquelas questões, havia uma que pairava no ar
para ela. A principal.
O que eles faziam naquele lugar?
Seu povo não deveria ser proibido de sair do bosque protegido? Ela os
fitou com atenção, como se eles pudessem responder a aquela pergunta não
feita apenas com seu olhar questionador.
E havia aqueles Feänors com eles, três poderosos, ela podia sentir em
seu cheiro. A essência do poder agressivo e celestial deles.
Havia descartado a hipótese de que os dois Loriorans seriam
prisioneiros dos três quando observou o comportamento e a interação deles.
Não pareciam ter afinidade, mas também não havia escárnio de um para com
o outro. Não quando o Feänor prateado praticamente zombava em comum
retribuição com o Lorioran.
O Feänor de cabelos prateados continuava a manter guarda. Depois de
uns minutos ele se ergueu, deixando os dois companheiros dormindo no chão,
caminhando para trás da figueira, com a intenção de inspecionar a redoma, ou
de fugir dos olhares afiados de Raven, ela não poderia dizer ao certo.
Enquanto o Lorioran continuava fitando a fogueira, bastante interessado
nas brasas queimando com ferocidade a pilha no centro.
Uma coruja piou ao longe, acompanhada por um grunhido oco a
quilômetros de distância. Raven se aprumou, extraindo o cansaço de si,
preparando o corpo para um possível ataque.
Conhecia as lendas sobre aquele lugar, sabia o tipo de seres que se
escondia no reino do Vale. Os piores possíveis. Mesmo os Goblins horrendos
seriam um conto infantil perto dos outros horrores que habitavam aquele
lugar.
Cantigas antigas e quase esquecidas diziam que o lugar era protegido
pela deusa sombria, a criadora de todo mal existente em Eldar. Que aquele
era o reino criado para que suas criaturas malignas vivessem em refúgio
quando o deus da luz condenara suas mais perversas bestas ao poço, nos
primórdios de tudo.
Ainda era um mistério para ela Nora ter vindo parar justo nesse lugar.
Mas não perguntara ainda as questões que a afugentava, pois Nora estava
esgotada demais. Mas na manhã seguinte descobriria os motivos que a
trouxeram a atravessar aquele lugar.
Quase hesitara em entrar sozinha neste lugar quando o rastro de Nora
a trouxe até aqui. Raven fitou a Pixie deitada em seu colo, levando uma das
mãos para o rosto sedoso e sonolento. Aquela face tão bela e bondosa. Tão
linda. Raven acariciou sua bochecha macia com suavidade.
Fora ela. Apenas por ela, que Raven não hesitara em entrar no lendário
Vale atrás de Nora. Por ela.
E se aqueles monstros nojentos a tivessem machucado ou mesmo
tocado em alguma parte sua, que sua deusa maligna os protegessem. Porque
Raven traria sua tropa Eloriana inteira para aquele lugar e derrubaria aquela
montanha sobre eles e se deleitaria quando arrancasse o coração do rei Goblin
e de seus filhos asquerosos de merda.
Por ela.
Por sua princesa.
17

Skye deu passos lentos pelo caminho escuro, passando pelas imensas
raízes desenterradas da figueira, caminhando até o Feänor prateado do outro
lado. Fitando além da barreira. Ele sabia da presença de Skye antes mesmo
que o Lorioran chegasse até ele. Talvez o tenha ouvido no momento em que
Skye deixou Gwen dormindo sobre a grama, trocando um olhar com Raven,
que compreendeu muito bem quando ele se direcionou para trás da imensa
árvore, onde Westyn, de braços cruzados, fitando o céu sem estrelas, estava.
Devagar, o Lorioran se posicionou ao seu lado, com um certo ponto de
distância entre os dois, acompanhando o olhar do outro para cima. O céu
escuro e divino em esplendor, parecia um manto sombrio sobre Eldar, os
cobrindo com maestria.
Westyn não falou nada, os olhos ametistas continuaram contemplando o
céu, os braços musculosos cruzados sobre o peito, enquanto navegava em
seus próprios pensamentos.
As marcas Feänor espalhadas por seu corpo ganhando um tom solene ao
anoitecer.
Mordendo o lábio inferior, Skye inspirou fundo.
Tinha feito uma longa batalha interna sobre se deveria ou não fazer
aquilo, então agora que já estava de prontidão ao lado de Westyn, precisava
fazer.
Na pior das hipóteses, o imbecil apenas riria dele, na melhor... Bem, ele
não conseguia imaginar.
— Acha que conseguiremos passar por esse lugar? — Ele se viu
quebrando o silêncio imposto. O Feänor exalou, ainda sem o fitar. Skye
analisou sua postura, buscando algum vestígio nela que indicasse que ele não
estava a fim de conversa.
O rosto marcante continuou inexpressivo, com o céu acima refletindo
em suas íris cintilantes.
— Temos de conseguir. — Ele respondeu apenas. O tom aveludado
soando meio seco. Skye não captou nenhum desagrado além, apenas um eco
exaurido.
Ele acenou de leve.
— É... Temos.
Uma sobrancelha prateada se ergueu, com o cenho do Feänor franzindo
quando ele olhou para Skye de lado, quase por sua visão periférica.
— Não parecia ansioso em chegar tão rápido em Elrond mais cedo. —
O tom de Westyn não possuía sarcasmo, mesmo assim Skye conteve um rolar
de olhos. As muralhas defensivas que sempre mantivera em torno de si ainda
erguidas.
— Não estou — rebateu, os olhos sobre o céu. — Contudo, não temos
escolha. E nem para onde ir. Não podemos arriscar voltar para Wenkael. Se
as respostas para tudo isto estão em Elrond... Precisamos disso.
Westyn pareceu perceber algo na expressão de Skye, relaxando a sua,
saindo da defensiva que sempre se colocava perante ele, como Skye notara.
Skye ainda não se sentia confortável envolvido pelos três e sabia que o
sentimento era recíproco. Ambas as espécies não sabiam nada uma sobre a
outra. O Lorioran ainda ponderava alguns fatos sobre eles, vetando votos de
confiança que poderia ou não os dar.
— Sinto muito pelo que aconteceu com seu povo. — O Feänor
murmurou depois de um tempo. Skye piscou, sem conseguir responder
aquilo, apenas acenando em retorno. Surpreso pelo ato de Westyn, até mais
do que por suas palavras.
Desceu o olhar, abaixando a cabeça, fitando a grama verde e silvestre
daquela campina. Havia insetos sobre pequenas raízes brotadas, fora naquele
ponto que ele se concentrou.
— Eu... Eu... — Ele respirou fundo, os olhos focando nas botas de pele
que usava, observando o quão sujas e maltrapilhas estavam. — Eu sinto
muito pelo que fiz na gruta a você.
O Feänor enrijeceu, congelando ao seu lado. Incrédulo, embora não
mais do que o próprio Skye ao reconhecer suas ações.
Ele tinha extravasado o ódio que o inundara sobre Westyn, quando
quase o matara, pelos deuses! Teria o matado se não fosse impedido por
Thorion e Liryan. Mas Westyn não tivera culpa do que acontecera a Gwen,
nenhum deles. Mesmo ainda não confiando por completo nos Feänors, tinha
que dar crédito para o que eles fizeram, ajudando-o a encontrar Gwen na
colina.
Principalmente Westyn. Ele se recordava do Feänor criando uma
tempestade feroz de raios, se tornando uma fúria da alvorada, a própria ira
de um deus sobre os Goblins, para que pudessem encontrar Gwen.
Tinha de admitir que o idiota merecia um voto de confiança por aquilo,
por mais difícil que fora constatar e desabar, mesmo que um pouco, as
muralhas defensivas em volta de si.
— Me desculpe. — Skye sussurrou sem jeito, erguendo o olhar para um
Westyn ainda incrédulo e estupefato.
O Feänor piscou, balançando a cabeça, voltando a si.
Ele arquejou, limpando a garganta seca. A pele tinha diminuído um
grau de palidez. Os olhos permaneceram meio esbugalhados, destacando a
intensidade daquele oceano violeta.
— Pelo quê? — indagou então, sorrindo. Trocando a expressão de
choque por uma de provocação, mexendo as sobrancelhas. — Por tentar me
matar? Aquilo não foi nada, elfozinho.
Skye se viu sorrindo, rolando os olhos para o idiota. Quase rangendo os
dentes.
— Não me faça me arrepender disso. — O Feänor riu zombeteiro. Skye
por pouco não mostrou as presas, lembrando a si mesmo que estava tentando
se redimir. — Ou não me tente a fazer de novo. Seus amigos não estão aqui
para me impedir agora.
Westyn engasgou com seu ofego, estancando, os olhos se arregalando
ao digerir aquelas palavras, mesmo seu sorrisinho caiu um oitavo quando seu
rosto perdeu a cor por completo.
Pelo fosso! Skye quase gargalhara de sua expressão, levando a mão aos
lábios para contê-la, abafando um riso.
O Feänor suspirou por fim, ao perceber, grunhindo.
— Isso não teve graça.
Skye balançou a cabeça rindo.
— Sua expressão foi impagável, no fim das contas.
— Há. Que hilário! — Westyn bufou, com Skye se recompondo ao fitar
o Feänor com uma expressão fechada.
Westyn adorava provocações, embora não gostava de as ter contra si.
Que grande idiota.
Sempre achou que os Feänors fossem uma raça perigosa e severa.
Aquele ao seu lado deveria ter algum defeito, pois, mesmo com os
incontáveis séculos que deveria ter, tinha a personalidade de uma criança
imatura e idiota.
Um grande bebezão.
Apesar dos traços maduros, com aquele olhar marcante, que muitas
vezes Skye vira pousando sobre Gwen.
— Sério. — Skye atirou. — Desculpe por aquilo.
Westyn gesticulou um aceno em dispensa, estalando a língua em um
sorriso cortês.
— Não esquenta. Está tudo bem. — O Feänor piscou para Skye, com
um sorrisinho que deveria achar ser charmoso, com o Lorioran não evitando
franzir os lábios com aquilo. Westyn tinha um senso de prepotência
impressionante. —Eu faria o mesmo, sabe? Por Thorion e Liryan.
— Eu entendo. — Skye murmurou. Provavelmente se arrependeria de
suas próximas palavras. Mas mataria Westyn antes que ele comentasse com
alguém que houvesse dito aquilo. Então concluiu: — Vocês não são tão ruins
assim, sabe? São uns idiotas de merda. Mas não tão ruins de todo.
Westyn grasnou um gemido, arqueando uma sobrancelha.
— Isso deveria ser um elogio?
Skye dera de ombros rindo.
— Queria o quê? Que eu dissesse que são incríveis?
— Seria bom, para começar. — Westyn ajeitou a lapela de sua jaqueta,
aprumando seus ombros em uma postura majestosa, empinando o queixo. —
Mas não preciso que me digam o quanto sou incrível. Eu sei bem disso.
— Pelos deuses... — Skye bufou. — Você tem alguma síndrome de rei
ou coisa do tipo?
Westyn riu.
— O que posso fazer? Eu sou o rosto da equipe! O lindo e sexy Westyn
Dandellion. O conquistador de corações. O sedutor de moças inocentes. O
guerreiro feroz e letal. O lindo e estonteante Westyn.
Ele gesticulava com as mãos conforme falava, com um tom sério que
fez Skye se perguntar sobre a sanidade do Feänor conforme esse engrossava
o tom ao narrar sua encenação.
— Isso é ridículo — zombou Skye. — Então como Thorion e Liryan se
definem nesse trio de ouro?
Westyn analisou aquilo, levando uma mão para seu queixo, coçando,
conforme pensava em uma expressão contemplativa.
— Thorion é o coração da equipe. O mais gentil e atencioso. Embora
tenha um tamanho assustador, ele é uma fera mansa. É o mais puro de nós
três. — Skye não conteve a surpresa, apreciando o tom fraterno e terno de
Westyn ao falar sobre seus companheiros de equipe. Erguendo uma
sobrancelha para as descrições dele. — E Liryan... Bom, Liryan sempre foi o
mais inteligente entre nós. Ele definitivamente é a mente da equipe.
— É um conjunto e tanto de definições.
— Toda equipe tem uma parte importante que a faz ser como é. Uma
característica única. Então, como definiria você e Gwen?
Um sorrisinho brincou nos lábios de Skye.
— Incríveis — esbravejou. — Tempestuosos.
— Tem certeza que eu sou o prepotente aqui?
Skye socou o braço de Westyn, contendo um sorriso.
— Cala a boca, seu merda.
Westyn riu.
— Escuta... Eu estive me perguntando. — Skye se retesou ao tom sério
dele, se atentando. — Quando Liryan e eu sobrevoamos Wenkael, vimos
aquelas... Bestas.
Skye se encolheu, desviando o olhar para o bosque em volta, através da
barreira mágica de Liryan, evitando o olhar que Westyn lhe dera e suas
palavras.
Qualquer traço de diversão correndo por ele, fugira.
A mera lembrança que aquilo lhe trouxe o fez envolver o corpo com
seus braços, estremecendo. Ele sabia que Westyn notou aquilo e que soubera
que não era devido ao frio, mesmo assim prosseguiu:
— Nunca vi bestas assim em minha existência. Eram profanas e... Pelos
deuses. Nada era como elas. Apenas as criaturas das lendas antigas sobre o
fosso. — Um tremor gélido percorreu o corpo de Skye. Ele levou um olhar
para trás, por cima do ombro, para Gwen dormindo a alguns metros, temendo
que aquilo chegasse até ela. — Eu entendo se não quiser falar. Não precisa.
Mas se as criaturas do fosso estão vagando por Eldar novamente, talvez as
coisas sejam mais graves do que imaginamos.
Aquilo pesou com gravidade na mente de Skye. Tudo. Rodopiando e
rodopiando por um bom tempo, com Westyn respeitando seu silêncio. Com
ele debatendo contra si mesmo. Contra a onda de desconfiança que o tomava,
com ele nadando para longe dela.
Mais e mais longe, sendo puxado pela correnteza.
Sua mente então se preencheu com os motivos daquele ataque. Depois
de milênios condenadas, por que justo Wenkael? Por que atacara um povo
recluso há séculos?
Por que as lendárias bestas tinham destruído a barreira divina e
massacrado seu povo?
Por quê?
Por quê?
Por quê?
Tinha se atormentado com aquelas dúvidas o dia inteiro. Com mais
delas pesando em sua consciência, unindo algumas peças de um quebra-
cabeças perigoso que começara a montar, temendo acima de tudo o
desvendar.
Não sabia se estava preparado para aquilo. Para uma possível verdade
que se manteve oculta por tempo demais. Gwen não suportaria. Ele sabia.
Tinha plena consciência de que o que quer que estivessem buscando em
Elrond, a atingiria com brutalidade.
Ela mal falara de Gillyn, ele sabia o que sua amiga estava fazendo.
Guardando aquelas emoções, as contendo para depois. Depois. Lidaria com
aquilo depois. Ouvira e vira ela fazer aquilo tantas vezes e assistira o quanto
aquilo a destroçava quando por fim as liberava.
Quando Gwen Briffyn se permitisse aceitar sua perda, Skye temia que
não restasse nada dos estilhaços que sua amiga se tornaria.
Mas ele estaria lá por ela. Juntos.
E enfrentariam a verdade sombria que buscavam, sobre o porquê Gillyn
os tirara tão rápido de Wenkael e se sacrificara para que eles chegassem a
Elrond e descobrissem o porquê de tudo aquilo.
O Feänor ao seu lado suspirou, parecendo desistir de ouvir algo de Skye
a respeito do ataque. Ainda era doloroso para ele se lembrar. Não do ataque
em si. Mas das perdas. De seu povo, a lembrança afiada e cortante de seu
povo feliz e alegre morrendo por aquelas bestas demoníacas.
Ele fechou as mãos em punhos, mordendo o lábio.
Não confiava em Westyn, não o suficiente para contar determinadas
coisas. Mas sabia que não havia motivos até o momento para desconfiar dos
três Feänors, que até agora só os tinham ajudado.
Mesmo Westyn, que quase se esgotara ao curar seus machucados. E o
fizera sorrir há pouco, pela primeira vez depois do que acontecera. Ele tinha
rido. Mal tinha percebido aquele fato.
Longos minutos se passaram, quando Skye voltou a fitar a imensidão
devastadora do céu, se vendo contando para o Feänor o que acontecera no dia
anterior, da caçada da besta ao alvorecer ao ataque à aldeia ao anoitecer.
Ocultando alguns detalhes, guardando para si informações que achava não
serem necessárias ou que não conseguia contar para Westyn. Sobre certas
coisas ditas por velhos idiotas. E sobre Gwen.
Sempre fora sobre Gwen.
Algumas suspeitas que há muito, muito tempo o rondavam, com aquele
declínio de acontecimentos infelizes os consumindo, o perturbando ainda
mais.
Mas ele sabia, sempre soubera, que Gwen era diferente, que o que quer
que tudo aquilo fosse, de alguma maneira infeliz estava interligado a ela.
Uma recordação de décadas e décadas atrás raspou sua mente. De dois
Loriorans pequenos fugindo de imensos leões da montanha. Um bando
inteiro deles. Estavam sozinhos naquele pico montanhoso e as feras os
perseguiam, famintas e raivosas. Não tinham chance contra tantas. Não
sobreviveriam a aquilo e pereceriam juntos. E Skye estava pronto para partir
ao lado de sua Gwen. Estavam sozinhos e aquele seria o fim dos dois. Seria o
fim. Ou deveria ter sido.
Ele fechou os olhos com a lembrança apertando seu peito, a mesma
lembrança que ele guardou para si durante décadas, temendo sua mera
recordação, esquecendo para seu próprio bem e o de Gwen.
Não sabia como a própria Gwen esquecera aquilo, mas ele agradecia
aos deuses por isso.
As palavras dos anciões, principalmente as de Godric, ecoaram em sua
cabeça como uma martelada, sendo acompanhada pelas de uma besta que
enfrentara. Onde está? A voz serpentina chiou em sua cabeça.
O que você é?

Westyn ouviu a história, afastando os tremores que o tomavam


enquanto Skye narrava o ataque demoníaco das bestas. Das mais horrendas e
lendárias criaturas do fosso. Os arautos da morte, como Skye as chamara.
Porra.
Tinha estado certo; suas teorias e as de Liryan sobre aquelas criaturas,
para sua desgraça, eram concretas.
Ele continha a vontade de vomitar conforme o Lorioran descrevia a
batalha travada entre seu povo e, quando chegava à parte em que ele vira seu
povo ser devorado e engolido vivo, Westyn congelou em puro terror, com as
descrições dos corpos de crianças Loriorans espalhados. Havia sido um
massacre mortal contra o povo de Wenkael.
— Sinto muito — repetiu novamente, a voz oca pelo aperto que sentia
em sua garganta. Se recordou das palavras de Skye sobre Gillyn, a avó de
Gwen se sacrificar para que eles pudessem fugir e encontrá-los. Westyn se
recordou em um flash da mulher combatendo várias e várias bestas na
fronteira de Wenkael, sem chance alguma a seu favor. Um sacrifício honroso
por suas duas crianças. — Sinto muito por seu povo e por Gillyn. Ela deve ter
sido uma Lorioran forte e corajosa.
O Lorioran estremeceu, assentindo devagar, virando o rosto para o outro
lado ao erguer um braço e limpar o rosto para que Westyn não pudesse ver
suas lágrimas rolando, ele fitou o céu em respeito e consideração.
— Ela foi. — A voz de Skye soou firme ao confirmar. — Nos fez quem
somos e nos ensinou tudo que sabemos. Gillyn Briffyn foi uma Lorioran
como nenhuma outra. E para sempre será lembrada.
Westyn decidiu que esse era um dos motivos para os olhos nebulosos de
Gwen parecerem tão vazios. Ocos até. A perda devastadora que tivera e ainda
não digerira ou, de alguma forma, não quisesse digerir, a estava consumindo
de dentro para fora.
O que aqueles dois Loriorans fizeram, caçando e matando a criatura em
seu bosque. Por seu povo. Não qualquer criatura de Eldar, mas bestas do
fosso há muito condenadas pelo deuses. E o ataque à aldeia deles.
Seu peito se apertava com a cena que montava em sua cabeça com as
descrições de Skye.
Aquele Lorioran, aquele pequeno e delicado Lorioran. Caralho! Nem
mesmo conseguia descrever a emoção de respeito que o tomou. Skye e Gwen
Briffyn eram muito mais do que Westyn supusera. Muito e muito mais. O
surpreendendo de forma constante de todas as maneiras possíveis.
O Feänor não tinha palavras naquele momento que expressassem o que
sentia. Não conseguia imaginar tal coisa a seu povo. Aquela mera hipótese
rasgava um desespero lento por suas veias.
Bestas do fosso, livres por Eldar.
Aquilo era o início do caos, sabia que os dias vindouros poderiam ser
banhados por desgraça por todo o reino, se algo não fosse feito. Tinham de
chegar em Elrond o mais rápido possível.
O rei saberá o que deve ser feito, se já não estiver a par de toda a
situação, já que os enviara em direção ao ponto inicial de tudo.
Bem no ponto principal.
Mas por que Gwen e Skye? Qual seria a importância deles nesse jogo?
Por que de fato se arriscaram tanto para que os pudessem levar em segurança
para seu povo?
Dois Loriorans quebrados pelo massacre de seu povo e sua perda
inestimável. Dois Loriorans que destruiriam o mundo um pelo outro.
E havia aquele fato, o maldito e fodido fato.
Bestas do fosso.
Arautos da morte.
Uma parte sua sussurrava questões que ele não conseguia engolir, não
queria aceitar, porque no fundo, ele sabia o que o retorno dessas bestas
poderia significar.
Odiava as teorias que rondavam sua cabeça e odiava mais ainda o fato
de não ter respostas concretas para elas. O rei de Elrond os tinham enviado às
cegas para essa missão. Não lhes dera informações suficientes para
concluírem para qual espécie de perigo caminhavam.
Era um tabuleiro vazio, onde eles eram as únicas peças que jogavam
sem retorno. Apenas puro caos mental.
— Se aquelas bestas chegarem aos outros povos... — Skye o puxou de
volta de seus devaneios sufocantes, o tom de voz seco. — Temo que sofram o
mesmo que Wenkael.
Westyn se viu negando em estupor.
— Não iremos permitir. Esse não é o lugar delas, não mais. Nem que
precisemos expurgá-las para o buraco imundo de onde saíram.
Skye sorriu.
Um riso que estremeceu os ossos de Westyn.
— Quem dera fosse tão fácil assim. Aquelas bestas não são naturais.
São abominações. Difíceis de matar de fato, mas não invencíveis.
— Isso já é um ponto para nós.
Ambos se olharam. Aqueles olhos azuis etéreos pareciam ter um
milênio de existência, como se Westyn fitasse um dos vários deuses de Eldar
diante de si.
— Talvez. Meu povo não teve chance porque não estava preparado para
algo assim. Acho que talvez por isso tenham sido atacados primeiro. Como se
aquelas bestas soubessem disso. Que a maldita barreira os tenha tornado um
povo fraco e indefeso com a alusão de proteção eterna.
Engolindo em seco, Westyn arqueou uma sobrancelha.
— Acha que a barreira divina posta sobre seu povo ainda está de pé?
Uma risada seca, quase raivosa, ecoou pelo recinto.
— Se de fato estivesse, isso não teria acontecido. Wenkael não estaria
em destroços agora.
— Mas a barreira sempre os manteve protegidos.
Um brilho primitivo tilintou naquelas íris azuis.
— Será?
— Isso não faz sentido algum. O restante dos povos de Eldar jamais
tiveram contato com seu povo depois da barreira, apenas por temer a mera
ideia dela.
— De fato. Talvez realmente tenha existido uma barreira divina sobre
nós durante todos esses séculos, nos mantendo enclausurados em uma bolha
durante eras. Vivendo sob uma ideia idiota de que estaríamos em segurança
pela eternidade. Então por que agora, justo quando essas bestas rastejam do
inferno onde vivem, a barreira tenha caído?
Aquilo o desnorteou. Mais peças no tabuleiro.
Mais questões o corroendo.
Westyn respirou fundo, voltando a fitar o céu, quase esperando que
encontrasse todas as respostas que buscava lá.
— Então acha que tudo isso tem um significado?
Não precisou olhar para ver que o Lorioran dava de ombros.
— Não faço a mínima ideia. Mas deve ter no fim. É isso ou aceitar um
fato desastroso.
— Qual fato?
Skye não respondera sua pergunta, se manteve em um silêncio por
longos minutos, sopesando se devia ou não confessar seus temores a ele.
Já tinha desistido de esperar quando o Lorioran se virou, dando as
costas para ele, voltando para o acampamento.
Quando Westyn o ouviu parar.
— O fato... — exalou. — De que meu povo viveu durante séculos sob
uma mentira.
Westyn engoliu em seco.
Skye o olhou por cima do ombro.
— Aliás, o que acabou de acontecer... — Westyn sabia ao que ele se
referia, ao breve momento amistoso que tiveram. Ao diálogo natural e
divertido entre eles. Sem ameaças ou rosnados. Skye o fitou com um olhar
cerrado. — Não significa que somos amigos. Continuo não gostando de você,
Feänor.
Contudo, havia um pequeno sorriso nos lábios de Skye.
E talvez nos de Westyn também.
— Continuo não gostando de você também, elfo.
Skye pestanejou, dando as costas para um Westyn sorridente.
Então Skye se fora. Com os olhos de Westyn absorvendo a imensidão
do céu acima, com sua cabeça fervendo com as novas informações. O sorriso
em seus lábios, junto com qualquer traço de humor, se fora junto com o
Lorioran, com uma expressão exasperada surgindo.
Seus olhos contemplaram o vislumbre do céu noturno sem fim e ele
podia jurar como o céu respondera, quando uma única estrela rasgou o véu
majestoso em uma queda cintilante por aquele mar revolto e sombrio.
18

O chão estremecera, como se houvesse um imenso gigante acima dele,


fazendo sua caminhada pelo lugar, tremendo o solo inteiro. Fora a primeira
coisa que Nora Flower percebera ao despertar, sonolenta. Piscando para
aguçar a visão turva, distinguindo o ambiente escuro à sua volta sob a
penumbra fria e silenciosa.
Estava deitada sobre Raven, que permanecia em vigília, fitando a
fogueira à frente. As chamas alaranjadas crepitando sobre as brasas,
iluminando o recinto sombreado, coberto por um manto de sombras do luar e
da figueira sobre o acampamento.
Nora arfou, se erguendo, com Raven levando o olhar para ela.
— Ouviu isso? — indagou, com Raven assentindo em uma afirmação
silenciosa para ela. Nora inspirou, ainda captando o som ruidoso. Quando
vasculhou o acampamento, notou que todos pareceram perceber, mesmo o
tigre despertara. — O que será?
Raven deu de ombros, subindo o olhar para o céu, não, para a barreira
posta sobre eles. Nora percebeu ao ver os olhos de sua amiga analisarem,
como se inspecionassem o muro transparente de poder, buscando falhas ou
aberturas que não haviam.
— Não sei. Temo que não gostaria de descobrir também. — O barulho
ecoou firme, deveria ser a quilômetros de distância. Mas a mera ideia de algo
gigante causar tal som pela terra lançava uma pontada de terror por Nora.
Raven deveria concordar com seu temor. — Algo bom não deve ser, vindo
desse lugar.
Nora apenas assentiu, levando as mãos para as mechas bagunçadas de
seu cabelo, entrelaçadas em nós, pondo algumas em ordem, ou tentando.
Estava um caco. Se sentia como um pedaço de merda, de forma externa e
interna.
Sentia que seu poço de energia não tinha carregado o suficiente pelos
dias que passara presa naquela gruta miserável dos Goblins. O corpo
resmungava por isso.
Tinha sido capturada ao anoitecer do Vale, três ou quatro luares atrás,
quando fora pega em uma armadilha traçada pelos monstros horrendos.
— Por quanto tempo dormi? — murmurou, pigarreando, quando seu
tom soou arranhado.
— Cinco ou seis horas talvez. Estamos a quatro horas do alvorecer,
pelos meus cálculos — esclareceu, a voz um mero tom de afinidade.
Cinco horas não eram o suficiente. Ainda sentia estilhaços de cansaço
raspando por seu corpo como cacos de vidro a perfurando.
Expirando, ela levou o olhar para o grupo do outro lado. Para a garota
de cabelos loiros contra o de cabelos dourados. Loriorans. Aquilo martelava
em sua cabeça desde que a garota, Gwen Briffyn, a informara na alcova da
gruta o que acontecera com ela e seu povo.
Atacados. Massacrados por bestas demoníacas, místicas e lendárias, de
Eldar. Criaturas profanas do fosso tinham atacado o povo de Wenkael e
poderiam muito bem estar, naquele momento, rastejando para os outros
povos.
Para Elora.
Nora engoliu o nó que se formou em sua garganta com dificuldade. O
gosto amargo e doloroso.
Aqueles dois, membros do povo de Wenkael, tinham lutado e escapado
de tais bestas. E aqui estavam.
Não poderia descrever a sensação que a corroía com tamanha ironia do
destino, ou benção dos deuses, mesmo com o que acontecera a eles, com seu
caminho tendo sido cruzado com aqueles seres místicos.
O povo de Wenkael.
Bem diante dela. Como se os próprios deuses jogassem a solução para
seu enigma e jornada diante de Nora, com a presença dos dois.
Aquilo era surreal e assustador, de uma forma colossal.
Ainda não conseguia acreditar naquilo, que sua jornada os levara até
eles. Dois. Com aquela garota, por alguma trama inquestionável dos jogos
indecifráveis dos deuses, indo parar em sua cela. Se tivesse forças suficientes,
teria gargalhado em puro pânico com tamanha ironia.
Aquilo não havia sido por acaso.
Porra, com certeza não fora.
E havia aquele garoto ao seu lado, que ela alegara ser seu irmão de alma
e coração. Um vínculo de Éter. Skye Briffyn, seu nome. O ser de olhos azuis
inigualáveis. Como esferas de energia vital. Fora a primeira constatação de
Nora sobre o garoto singular.
— Estive esperando você acordar para conversamos melhor, Nora. — A
voz severa de Raven a puxou de seu foco sobre os Loriorans. Nora inspirou,
engolindo em seco, se preparando para o que viria. Já esperava por isso. Pela
luz! Tinha agradecido aos deuses incontáveis vezes quando Raven entrara
naquele lugar e a salvara, mas temia por aquele momento. — O que, pelo
fosso, estava pensando quando fez isso? Onde estava com a cabeça?
A Pixie estremeceu com aquele tom repreensivo. Não levando ao todo
para a defensiva. Raven jamais fora grossa com ela antes, todavia, nunca se
viram em uma situação lastimável como a que estavam.
— Fora necessário. — Conseguiu responder, neutra.
Raven riu seca. O som de um raspar de garras sobre Nora.
— Fora? Por que afinal?
— Por nosso povo — decretou. — Por Elora.
— Em que sentido achou que fazendo tal tolice ao se arriscar saindo de
Elora seria por nosso povo? Fora uma desonra, uma covardia, o que fez.
— Não pode me julgar, Raven. Nem entender. O que fiz está feito e não
me arrependo. Sei que estou trilhando o caminho correto.
— Nora... Porra... O que você fez... — Sua amiga guinchou, balançando
a cabeça. Diminuindo o tom, temendo que a audição apurada do grupo do
outro lado ouvisse a conversa de ambas. — Você fez algo imperdoável. Sabe
que não tenho outra escolha a não ser levá-la de volta. Não há perdão ou
piedade por seus atos.
Um sorriso frio, frio como uma estrela gélida, tomou o rosto de traços
delicados de Nora, tornando sua expressão etérea.
— Não tem? Raven, existe outra escolha. Preciso garanti-la. Por nosso
povo. Ou... — Ela inspirou. Tinha pensado tanto no que fizera enquanto
estava presa... E não se arrependera de nada.
— Você é uma criminosa agora, Nora. Eu... Por quê?
Por quê? A indagação carregada de decepção crepitou em um rugido
feroz em sua cabeça.
Nora fechou os olhos ao captar a dor no tom de sua amiga, tentando ao
máximo impedir lágrimas vindouras quando seus olhos arderam.
Não choraria. Jamais choraria.
— Não posso contar. Não. É arriscado demais para você. Foi o
suficiente para mim e olha minha situação. — A Pixie não conseguiu evitar o
timbre embargado. Raven grasnou irritada. As presas ameaçando se exporem.
— O suficiente para fazê-la esfaquear seu rei, porra?
O corpo inteiro de Nora estremeceu com aquela afirmação, com aquele
fato que a tomava a cada minuto desde que fugira de Elora. De seu amado
povo.
Nora Flower, a assassina real. Fora como seu povo a chamara. Uma
criminosa perante a coroa.
— Ele não é meu rei — sibilou entredentes, baixinho. — Não é, e nunca
será o verdadeiro rei de Elora.
— Pare com isso, Nora. Apenas pare. Não se condene mais, por favor.
Por mim, e por sua mãe, a rainha. — Raven a perfurou em um golpe com
aquelas palavras. Nora a fitou, deixando esvair suas emoções. — Volte
comigo para Elora, talvez com sorte o rei a perdoe... Ou talvez ele tenha
piedade em sua pena.
Nora riu. Seu peito inflou em uma dor lancinante. Piedade. Aquela
palavra soou tão amarga sobre ela. Quase sentiu o gosto em sua boca.
— Não quero a piedade de um monstro — esbravejou, a voz
estilhaçada. — Não de um usurpador. De um falso rei que está matando a
energia vital de nosso reino e povo.
Raven, sua amiga há tanto tempo, e sua guarda real, que sempre a
protegera e esteve ao seu lado, a fitou com um olhar que culminou as dores
no peito de Nora. A decepção mortal que cintilava naquelas íris esverdeadas
era pior do que palavras ardilosas.
Nora não se importava com o que achariam dela, ou como a intitulariam
pelo que fizera. Não enquanto estivesse caminhando para a verdade. Porém,
aquele olhar de Raven a atingiu com força. Mais do que ela gostaria de
admitir, mais do que poderia suportar.
— Não há outro perante nosso rei. Precisa aceitar esse fato. Ele é o
único a estabelecer o equilíbrio vital de Elora. O que fez vai contra o
equilíbrio natural de nosso povo. Se tivesse tido triunfo em sua idiotice, teria
condenado nosso povo a perecer em ruína e caos.
Aquilo despertou a ira de Nora, com ela grasnando, mostrando as presas
para a amiga.
— Ele está matando Elora. Toda vida de nossa fauna se esvairá
enquanto seu falso rei reinar. Raven, por que não consegue enxergar isso?
Depois de tanto tempo achei que fosse capaz disso. Mas não é.
Raven estava cega perante o falso rei.
Como seu povo estava.
— Não posso ficar contra meu rei, Nora. Eu... Sabe disso. É graças a ele
que nosso reino ainda está de pé. Sua energia transpira a vida...
Mentiras. Mentiras e mentiras.
Tudo era uma mentira imortal e perigosa.
Como uma lâmina letal se afiando sobre Elora há milênios.
— Não. — Nora a interrompeu, sua garganta se fechando. Havia tantas
coisas que gostaria de contar para Raven. Havia tantas verdades cruéis que
descobrira sobre Elora. Tantas coisas. Mas não poderia jogar tal fardo e
perigo sobre ela. Descobrir o que descobriu a colocou nessa situação. Não
havia mais volta.
— Sua mãe está devastada com o que aconteceu. Não consegue
enxergar isso? O que fez não apenas machucou nosso povo, mas sua própria
mãe, Nora. Não posso compreender isso. Não há como.
A Pixie fitou as brasas queimando na fogueira, não conseguiria fitar
Raven. Não mais. Não podia.
— Tudo isso é por causa dela. Apenas ela...
— Você se perdeu, Nora. Está desorientada e perdida. Está cega com
seu ódio pelo rei. Precisa enxergar o que fez.
Aqueles olhos azul-escuros, quase como esferas gélidas, vazias e ocas,
se infiltraram em sua lembrança. Tão diferente das íris azul-celeste
esbanjando energia vital da realeza de Elora. Tão vazios e cruéis. A ira e o
ódio venenoso que a encarou quando a adaga de Nora perfurara o falso rei.
Tinha errado seu alvo, por um mero descuido. Tinha fracassado.
Mas não fracassaria com seu povo outra vez.
As chamas crepitando refletiram naquelas íris azul-celeste de Nora
quando ela sorriu.
— Nunca enxerguei tão bem em toda minha vasta existência, Raven. —
Brandeou sem titubear. — E nunca estive tão certa sobre meu caminho.
Um suspiro de desapontamento veio de Raven.
— Então sinto muito. Sinto muito pelo que lhe acontecerá. Porque ele
não descansará enquanto não a encontrar e punir. Mais e mais guardas virão,
além de mim, até que pague pelo que fez. Até que o rei retribua seu ato contra
ele.
Uma pequena lágrima deslizou pela bochecha macia, acariciando o
sorrisinho fatal de Nora.
Não choraria. Não iria chorar.
— Então que ele os mande. Porque não temo o falso rei. E não desistirei
até que ele esteja fora do trono de meu povo.
Então, a princesa de Elora limpou suas lágrimas, fechando suas mãos
em punhos e sopesando seu destino. Que os deuses acabaram de acrescentar
mais peças em seu tabuleiro. Uma chama na escuridão que ela trilhava e
agora, não se perderia mais.

Gwen tinha despertado quando o barulho ecoou por todo o vale,


deixando todos em alerta. Mas não fora aquele barulho assustador que a
acordara em assombro.
Ela inspirou, enchendo seus pulmões diversas vezes, sem um mero
frasco de ar neles, com Skye ao seu lado, com uma das mãos esfregando suas
costas.
Tinha sonhado, um sonho sombrio e nebuloso com sua avó; Gillyn a
estava ensinando em uma colina de seu povo. Gritando para que Gwen se
controlasse. Mas por quê? Por que sua avó estava tão aflita? Parecia com
medo. O mais puro e tenebroso medo. Dela.
Ela era uma mera criança no sonho. Não poderia ser uma lembrança
viva, pois não se recordava daquilo.
Sombras rasgaram por seu sonho, cobrindo sua avó e a pequena
Lorioran chorando na colina, quando foram tomadas por uma vasta
escuridão. Como um imenso tornado sombrio consumindo tudo.
O rosto apavorado de sua avó, esticando a mão para ela, enquanto a
chamava em meio ao tornado de sombras, fincando em sua mente.
Gwen tinha acordado aflita, quando por um momento sentiu as sombras
sorrirem para ela.
— Está tudo bem, estamos bem. — Skye murmurava ao seu lado, a
reconfortando. Sua mão acariciando as costas de Gwen, com suas vestes
grudadas a ela pelo suor que escorria.
Flashes do sonho a inundaram, com o rosto em terror de sua avó
gritando com ela. A chamando. Sua avó. Que agora estava morta. Morta por
bestas do fosso.
Morta.
Ela estava morta.
Morta. Gillyn estava morta.
Aquela palavra maldita zumbiu em sua cabeça, como se a própria mente
de Gwen quisesse lembrar aquele fato infinitas vezes, a machucando como se
espinhos se entrelaçassem sobre ela.
Gwen arfou, tomando ar para os pulmões necessitados, a respiração
ofegante, quando o peito foi apertado por uma mão invisível. A esmagando
com crueldade.
Morta.
Gwen abriu a boca para gritar, mas não possuía voz. Apenas um eco de
dor. Um mero vestígio de som.
Morta.
Ela estremeceu, precisava gritar. Doía. Pelos deuses. Doía. Tinha de
gritar. Deuses. Precisava gritar. Não aguentava. Ela estava ardendo.
Queimando. Tinha de gritar, pois não aguentaria a dor. Não aguentaria.
Lágrimas, muitas lágrimas, ardiam por seu rosto, como se feixes de
fogo queimassem por ela.
Dor, abrasante e sufocante, a tomou.
Morta. Sua avó estava morta.
Sentiu um aperto em sua mão, Skye. Ela levou o olhar para ele, mas não
o enxergou. Não o ouvia. Dor. Apenas dor havia. Não possuía voz. Não
possuía visão ou audição. Apenas dor.
Onde eles estavam?
Um grito mudo a tomou quando uma onda a afogou.
Morta.
Morta.
Morta.
— Está tudo bem. — Por fim, uma luz a inebriou quando aquela
escuridão a abraçando pareceu desfazer seu aperto. Gwen fora tomada por
braços, sendo envolvida por alguém. Sentira o toque. O tato contra sua
própria pele.
Ela inspirou fundo, tentando em meio à falta de ar.
Se sentia sufocada. Quebrada em muitos níveis.
Os braços ao seu redor se apertaram e inspirou com força, sendo
inebriada por um cheiro de flores e ventania selvagem, o aroma de casa.
Mais lágrimas desceram.
Skye a abraçava.
— Estamos bem. Estou aqui, estou aqui. — Ela ofegou por fim,
conseguindo colocar um mero som para fora. Sua visão tomando nitidez
outra vez, arfando contra o ombro de Skye que a abraçava com força, como
se temesse soltá-la.
A dor... Aquele fundo de poço em que caíra parecia se distanciar alguns
metros dela. Mas ainda sentia sua marca imposta, um aviso de que jamais a
deixaria.
Ela fechou os olhos, grunhindo raivosa para aquela onda de emoções
ruins a afogando com deleite enquanto sufocava em dor. Rosnou para ela de
volta. Por Skye. Por Gillyn. Ela gritou em seu interior, empurrando todas
aquelas emoções destrutivas para o baú que estava quase aberto, com Gwen
se tornando uma própria onda. Uma onda de luz sobre a escuridão que
vazava por ela.
Seja luz, Gwen.
19

O que Skye tanto temia acontecera e ele não previra a tempo


suficiente de impedir, quando Gwen despertou em um estupor cego, arfando
sem fôlego, proferindo sons incompreensíveis, com seu rosto sendo banhado
por lágrimas.
Ele entrou em um estado de puro desespero quando percebeu o ataque
de pânico de Gwen, sendo consumida pela dor que ela tanto evitava sentir em
uma crise abrasante de emoções contidas, com as emoções que prendia
dentro de si enfim escapando.
Ela tremia sob ele, mesmo depois de longos minutos após se recuperar
do ataque, ambos abraçados o tempo inteiro. O leve arfar lento dela o
informava que Gwen ainda continuava consciente.
Skye daria tempo para ela se reestabelecer, mesmo que sua amiga
quisesse passar um dia inteiro assim, o abraçando enquanto a dor se esvaía,
ele permaneceria ao seu lado quanto tempo fosse necessário para ela.
Embora ele soubesse que aquela não era uma solução apropriada, ela
precisava colocar para fora tudo aquilo. Precisava extravasar. Quanto mais
prendesse e evitasse sentir, pior seria. Contudo, essa era uma decisão dela,
um passo que ela deveria tomar. Se não se sentia pronta para isso, ele estaria
com ela mesmo assim. Mesmo que Gwen optasse por perdurar um silêncio
infinito entre eles, estaria com ela.
O corpo de Gwen tremia, como se lascas de gelo deslizassem por ela,
com Skye a envolvendo mais ainda, tentando transmitir o calor e o conforto
de seu corpo para ela.
Vira Westyn os fitar com atenção; o Feänor, que havia voltado algumas
horas atrás para o recinto, até mesmo se erguera, hesitando, decidindo se iria
ou não até eles quando Gwen foi tomada por sua crise.
Skye o encarou através do fogo, os olhos azuis transmitindo uma
mensagem para os ametistas do outro lado. O Feänor transpirava uma aura
que ele não conseguiu decifrar quando esse se sentou ao lado de seus amigos,
mantendo a concentração sobre os dois se abraçando durante todo o instante.
Os olhos violetas inquietos. Skye, de início, supôs que fora por medo ou
receio de Gwen, mas ele lera com exatidão a expressão estampada em
Westyn. Já vinha o lendo há um tempo, observando como ele se portava
perante Gwen. Cada olhar dele sobre ela, quando achava que ninguém estava
olhando.
O Lorioran agradeceu pelo olhar por Westyn ter optado em dar espaço
para os dois, respeitando o momento dela.
O Lorioran suspirou, deslizando sua mão com uma leveza de plumas
sobre as costas suadas de Gwen.
— Doeu tanto, Skye. — Ele se assustou quando ela sussurrou contra seu
ombro, a voz um fio de som. Ele não esperava por aquilo, estava sem reação
e as palavras lhe fugiram, o deixando sem voz. Mas ela continuou. — Doeu
tanto. A dor... Eu não posso aguentar.
Um bolo grosso, como um caroço, se formou em sua garganta. Aquilo o
atingiu com força, vê-la tão instável e sofrendo. Skye conteve a pressão que o
preencheu. Ele apertou Gwen sob ele. Desejava afugentar todas as suas dores
com aquele abraço. Todas as sombras que a envolviam.
— Dói tanto...
— Eu sei. — Ele sussurrou de volta, contra a nuca dela. As brasas da
fogueira crepitaram ferozes. — Mas você vai conseguir, Gwen. Você vai, e
eu vou estar com você o tempo inteiro. Sempre.
Ele caminharia descalço em um chão de lavas ao lado dela. Se optasse
por seguir sua jornada, o caminho que a libertaria de toda dor que a ofuscava,
ele caminharia lado a lado com ela.
— Eu quase cedi... — Gwen fungou. O tom embargado e rouco quase
inaudível. — Naquela gruta... Eu quase cedi às emoções. Eu estava tão
cansada de tudo... E doía tanto, que por um momento eu a aceitei. E foi como
se eu não sentisse mais nada. Foi... Horrível.
Skye sentiu lágrimas caírem em seu ombro, rolando pelo rosto dela em
um declínio incessante.
— Eu sei. — Ele sussurrou. — Eu sei...
— É tão sufocante, e às vezes eu sinto que vai me consumir. Tudo isso.
Eu me torno tão pequena diante dessas emoções e é como se elas me
esmagassem.
— Não. Você é maior que elas, Gwen. Você é mais forte que elas,
precisa entender isso. Você é quem as controla, não o oposto. — Skye fechou
os olhos, inspirando fundo, os abrindo para encarar o fogo voraz da fogueira
o encarando de volta. — Mas você precisa enfrentá-las. Precisa senti-as.
Essas emoções, mesmo as ruins, precisam ser sentidas, para que você possa
combater cada uma e superá-las. São nossas emoções que nos torna quem
somos e você não pode temê-las. Sinta cada uma, Gwen, e enfim as enfrente.
Por mais doloroso que seja encarar as ruins, você consegue.
— Não. — Ela brandeou seca. — Eu não posso.
O aperto em volta de Skye se solidificou. Ele respirou fundo,
assentindo. Não poderia combater aquilo. Era uma decisão dela, mesmo que
ele achasse que era uma escolha ruim e que a machucaria ainda mais. Era ela,
e apenas ela, quem deveria decidir aquilo.
— Gillyn a ensinou a contê-las. Agora você deve aprender a libertá-las.
— Ele se arrependeu de suas palavras no instante em que elas saíram, se
dando conta de seu descuido quando Gwen estremeceu sob ele em um
espasmo de lembrança.
Porra. Skye se xingou em seu interior.
Que grande idiota era.
Aquilo não a ajudaria de forma alguma.
Gwen perdurou longos minutos em silêncio; conforme o tempo passava,
os dois continuavam se abraçando em um aperto silencioso e significativo.
Como se ele fosse o suporte físico dela e se separar dele fosse como cair de
um penhasco sem fim.
— Por quê? — Skye soube, quando o tom dela falhou em uma nota, ao
que ela se referia. Sua garganta oscilou. — Por que ela fez aquilo? Por quê?
Eu não sei. Ele não deu voz às suas palavras, com elas ecoando em
ovação por sua cabeça. Não poderia pronunciá-las quando só abriria mais um
buraco sobre ambos, os afundando ainda mais no desconhecido.
Estavam caminhando por um território perigoso. Gwen estava frágil, ele
até mesmo temia trazer determinadas verdades para ela. A um mero toque ela
poderia quebrar. E aquilo o deixava em uma agonia bruta, sem fim. Essa não
era sua Gwen, ela resistia ao impacto, à dor, era forte. Mas agora, a dor da
perda e do que acontecera a modificara. Pelos deuses. Toda aquela merda o
tinha mudado também.
Ele podia sentir, quase tocar, o estilhaço dentro de si, como uma ferida
aberta que a um mero toque o machucava. As lembranças. A dor. Estavam lá.
E para ela, ele imaginava que deveria ser mil vezes pior.
Muito pior.
Gwen sempre sentira as emoções de forma intensa demais, diferente dos
outros, com aquilo sendo sua mais profunda fraqueza. Sentir demais. Por isso
todos aqueles milhares de ensinamentos de Gillyn para que ela aprendesse a
controlar suas emoções. Mas nenhum deles eram eficazes frente a perda que a
rasgara; por mais que ela lutasse para impedir, era questão de tempo até elas
se libertarem, como fizeram a poucos minutos.
Gillyn tinha os salvado de incontáveis maneiras ao longo dos séculos,
embora seu sacrifício na outra noite era uma lacuna que jamais poderia ser
consertada.
Um buraco aberto que jamais se fecharia, sempre transbordando um
pesar de dor sobre ambos. Mas ela fizera por eles. Para que ambos
conseguissem.
— Por nós. Ela fez por nós. — Skye respondeu enfim, a voz firme ao
assegurar. — Por você.
Ele sentiu Gwen estremecer inteira.
— Não é justo... Eu não consigo... Não sem ela. — Ela murmurava com
a voz ainda mais embargada.
Skye fungou, contendo as lágrimas que ameaçavam lhe escapar,
piscando repetidas vezes.
— Gwen Briffyn. — Se desvencilhou dela, agarrando seu rosto com
suas mãos. Skye fitou Gwen, com o olhar de ambos cruzando. O cinza
lacrimejante com os azul-celeste. Ele abriu um sorriso sereno para ela. —
Você, apenas você, irá conseguir passar por isso. Você é a garota mais forte e
corajosa que conheço, Gillyn a tornou quem é e sua avó tinha tanto orgulho
de você como eu tenho. Então resista à dor. Resista ao medo. Não permita
que a escuridão a envolva... Seja luz, Gwen.
Ela se engasgou com um riso preso, desatando em um choro, assentindo
de leve, com ele unindo suas testas. Juntos. Estariam sempre juntos.
— Tenho medo, Skye.
— Do quê?
Gwen balançou a cabeça, as lágrimas rolando.
— De tudo isso. Do desconhecido. Há tanta coisa que não sei e eu temo
a verdade mais do que a dor que me corrói. Temo não conseguir suportá-la.
Um arquejo o dominou, com aquela amarga verdade que ele mesmo se
condenava. O medo do que poderiam encontrar em sua busca por respostas
para tantas questões que os sondavam.
Respostas que custaram a vida de Gillyn.
— Eu também. Eu... Também tenho medo. Mas seríamos tolos se não
tivéssemos, porque precisamos o sentir. É o medo que nos motivará a
encontrar coragem no fim. — Ele admitiu em um sussurro, inspirando. Se
afastou de Gwen, segurando as mãos dela, sentindo o tremor que as tomava.
Ele apertou. — Mas enfrentaremos isso juntos. Como sempre fizemos. Não
importa o que iremos descobrir em Elrond. E depois que isso tudo terminar,
voltaremos para casa.
Gwen arregalou os olhos em um lampejo de choque. Ambos tinham
evitado falar sobre seu lar; mesmo depois de tudo que acontecera o dia
inteiro, tinham fugido daquele fato acima de todos. Wenkael.
Ela pareceu rondar sua mente, sopesando suas palavras. As lágrimas
cessando, junto ao tremor em suas mãos depois de alguns minutos, com os
dois apenas se fitando.
Soltando uma de suas mãos, Gwen limpou seu rosto e nariz com as
costas de sua palma. Ela abriu um leve e frágil sorriso para ele, não forçado
ou impulsivo, mas sincero, quando assentiu devagar.
O coração do Lorioran transbordou em ternura. Os olhos arderam com
ele os piscando.
Gwen ergueu seu punho no ar, entre eles, levantando seu dedo
mindinho com o olhar cintilando para ele.
— Juntos. — A voz não soara trêmula, nem mesmo embargada dessa
vez. O tom foi seguro e firme. Uma promessa.
De voltarem para casa, quando isso tudo se resolvesse.
Juntos.
Um sorriso lampejou a face de Skye, com ele sentindo uma lágrima
sorrateira deslizar por sua face, assentindo de volta, erguendo seu punho com
seu próprio mindinho estendido.
Ele entrelaçou seus mindinhos, sentindo a conexão, aquele laço
fortificado transbordando entre eles. Seu vínculo divino, o laço do Éter, com
suas almas se unificando em uma.
Mais lágrimas desceram, mas Skye não as impediu.
— Juntos.

O glorioso sol finalmente despontara no horizonte sobre eles, o recinto


inteiro iluminado pela brisa solar, com os raios de luz ferozes emanando
calor.
Mesmo o fogo da fogueira tinha parado de crepitar horas atrás, restando
apenas cinzas dos vestígios dela.
Westyn não dormira em nenhum momento da noite, não conseguira e
sabia que, mesmo se tentasse, não obteria êxito nisso, como Raven e Skye,
que possuíam olheiras que deveriam se assemelhar às suas. No entanto, ele
não se sentia cansado; aquele tempo acordado, em vigília, serviu para
restaurar suas energias aos poucos durante as horas que passaram.
Ele viu Thorion e Liryan despertarem aos poucos, com o primeiro
arreganhando a boca em sua forma feral, os imensos dentes sendo expostos,
quando ele soltou um longo bocejo.
Westyn riu, com Liryan se erguendo devagar, esfregando suas
têmporas, o olhar caindo sobre o amigo os assistindo ao lado.
— Não querem continuar cochilando mais um pouco? Pareciam tão
bem dormindo. — Ele atirou em ironia, sorrindo para os dois. — Deve ser
esse lindo lugar abençoado. É um bom lugar para tirar um cochilo, não
acham?
— Vai se ferrar, Westyn. — Liryan rosnou, embora rindo, com o tigre
branco atrás dele grunhindo em concordância ao xingamento.
Liryan alongou seus músculos, despertando por completo, fitando a área
inteira e o grupo do outro lado, os Loriorans já acordados e Raven e Nora
também, logo depois deles.
Ele observou seu amigo erguer o olhar para a barreira, ainda consistente
sobre eles; Westyn a tinha solidificado com sua própria magia, apenas por
garantia.
O Feänor prateado se ergueu, limpando a sujeira de suas vestes, a
jaqueta preta estava um caos. Ele pestanejou com aquilo. Ele amava aquela
jaqueta. Se achava um vislumbre sexy nela.
— O que estão esperando? — Atirou em um bufo, não apenas para os
dois ao chão ao seu lado, mas para todos em volta da barreira, atraindo a
atenção deles. — Não me digam que estão esperando o café da manhã?
Um grunhido frustrado soou.
— Você é um pé no saco o tempo inteiro? Caramba. — Skye grunhiu
em um silvo. — O dia mal amanheceu.
Westyn levou seu olhar para ele. Tinham tido uma conversa amistosa,
sem agressividade como de costume, na outra noite. Um momento apenas,
Westyn se lembrou do que o Lorioran advertiu, embora naquele exato
instante sentira uma aura mais suave na postura de Skye em relação a ele.
Não totalmente à vontade ou relaxado, mas ele sentira. Como se o muro posto
em volta dele diminuísse um pouco. Apenas um pouquinho. Mas isso já
significava alguma coisa, pelo menos.
Mesmo assim ele não podia deixar de o provocar.
— Ah, vamos lá, elfozinho. Quer que eu prepare seu café da manhã?
Que tal uma torta? Ou um frango assado?
— Cala a boca, idiota.
— Vamos lá, pessoal, não temos tempo a perder. Não podemos ser mais
descuidados, precisamos dar o fora desse lugar o mais rápido possível.
Liryan praguejou, se erguendo devagar, se colocando ao lado de
Westyn, movimentando os ombros em alongamento, descontraindo cada
músculo tenso.
— Westyn tem razão — emendou, a voz mais rouca que o habitual pela
manhã. Os cabelos castanhos uma bagunça desajustada sobre ele. — Temos
que nos apressar.
Aquilo parecera ser o suficiente para despertar o restante, com os
Loriorans e Pixies se erguendo. Westyn ainda não tinha certeza do que Raven
era, não havia traços de asas nela, mas supunha que também fosse uma Pixie,
por enquanto.
Ele aproveitou o momento para esticar seus braços, aliviando os
músculos contraídos, inspirando fundo.
— Você não pregou os olhos, não é? — O tom de repreensão de Liryan
ao seu lado o atraiu para ele, quando o flagrou bocejando, sonolento.
Ele deu de ombros apenas. O amigo balançou a cabeça em
desaprovação.
— Foi necessário, sabe disso. Você e Thorion estavam esgotados e eu...
— Você também. — Liryan o interrompeu abrupto.
Westyn rolou os olhos, com Liryan cruzando os braços sobre o peito,
erguendo uma sobrancelha em um desafio de contradição.
— Eu tinha energia suficiente para permanecer em vigília. Não
podíamos abaixar a guarda, sabe disso.
Liryan ponderou em silêncio por incontáveis minutos, Westyn já
calculava e imaginava as palavras repreensivas tão familiares que seu amigo
atiraria sem piedade.
Então ele esperou pela onda de desaprovação, sendo surpreendido
quando foi tomado pelos braços de Liryan, com seu amigo, seu irmão, o
abraçando em um aperto forte.
As mãos dando batidinhas em suas costas.
— Estou feliz que esteja bem, seu babaca de merda. — Liryan grunhiu
feral contra o ombro dele.
Sem jeito e atônito, Westyn piscou, sorrindo, retribuindo o abraço,
pondo sua cabeça contra o ombro de Liryan.
— Sabe como dizem, as coisas mais bonitas são as mais difíceis de
acabar. — Ele piscou para Liryan, rindo, quando se desvencilharam.
Liryan praguejou, contendo um riso.
— Você é um imbecil, irmão.
— Eu sei. — Ambos gargalharam. Westyn fitou Liryan com atenção
então, inspecionando seu companheiro, que fazia o mesmo sobre ele. —
Estou feliz que esteja bem também, irmão.
Liryan assentiu comparsa.
Algo colidiu contra a perna de Westyn, com ele bufando um riso, com
Thorion, como tigre, esfregando sua cabeça contra ele, como se retribuísse as
palavras de ambos.
— Você também, seu felino idiota. — Ele murmurou para o tigre,
acariciando sua nuca peluda, com Liryan rindo quando Thorion ronronou em
apreciação ao carinho.
— Você é tão manhoso, tigrinho — zombou com Thorion rosnando.
Ele se curvou para ele. — Quer um carinho, quer?
Um pigarreio o interrompeu, com os três levando o olhar para trás, com
Skye, Gwen, Nora e Raven os fitando com sobrancelhas arqueadas e olhares
indagadores.
Merda.
Os três se aprumaram, ajeitando suas posturas. Thorion se pôs em riste,
com Liryan e Westyn se afastando um do outro, pigarreando sem jeito.
Ele viu, com rapidez, quando Gwen levou a mão para os lábios,
tentando esconder um risinho que lhe escapou, e por alguma razão, ele se viu
sorrindo também com a visão de seu sorriso majestoso.
— O grupo de idiotas já sabem por onde devemos ir? — Skye, com sua
gentileza e ternura de sempre, se pronunciou.
Relutante, Westyn desviou os olhos de Gwen para ele.
Ele chegou a abrir a boca para responder, uma provocação, é claro,
todavia, Liryan o interceptou.
— Devemos estar a leste do nosso percurso, talvez uns dezoito
quilômetros ou mais. Precisamos chegar a ele e seguir para o norte. Talvez
antes do anoitecer conseguiremos sair desse lugar de merda.
Liryan tinha perdido seus pertences no ataque dos Goblins, sua bolsa
contendo o mapa dentro. Mas Westyn sabia que ele tinha instalado o mapa
em sua mente com toda aquela inteligência que o amigo possuía. Thorion e
Westyn eram as lâminas da equipe, Liryan sempre fora a mente.
— Apesar que por algum motivo sinto que nosso caminho está em uma
direção contrária a que estávamos... — Liryan bufou, balançando a cabeça ao
se interromper, como se barrasse suas indagações mentais. — Norte. É a
direção que nos levará para fora desse lugar.
Skye assentiu com sua instrução, parecendo satisfeito com aquilo. Por
enquanto.
— E qual o destino de vocês? — Nora indagou, dando um passo
adiante, com Raven grunhindo para ela.
Westyn e Liryan trocaram um olhar. Não confiavam o suficiente
naquelas duas. Nem um pouco. Mas elas os tinham ajudado, ajudado Gwen na
toca dos Goblins.
Também havia o fato de que os instintos de Westyn não informaram
cautela ou alarde algum perante elas.
— Para a capital de Eldar. — Westyn informou apenas.
Ele a viu semicerrar os olhos, digerindo.
— Elrond, então — concluíra. Os olhos azul-celeste vagaram,
deslizando para os dois Loriorans, com ela os indicando com o queixo. —
Irão com eles?
Skye cruzou seu olhar com o dela, eram tão cintilantes quanto os da
Pixie, e ela não hesitou sob aquele olhar feroz, quando por fim ele assentiu.
— Sim, iremos.
A Pixie sorriu, um sorriso estranho que Westyn não conseguiu decifrar,
não quando ela se virou para eles e comunicou:
— Então irei junto.

Um rugido estridente chiou em sua cabeça quando Raven Greenthorn


fitou sua princesa, o eco em sua cabeça repetindo suas últimas palavras.
O grupo em torno delas arquejou, atônitos.
— Nem ouse, Nora. — Raven grasnou entredentes.
Ela olhou de soslaio para ela.
— Não se intrometa, Raven. Agradeço pelo que fez, serei eternamente
grata e os deuses a recompensarão por isso. — Nora murmurou, desviando o
olhar para os três Feänors a sua frente. — Mas você deve seguir seu caminho
e voltar para Elora.
— Está louca se acha que permitirei isso.
Nora fechou os olhos. A princesa de Elora possuía uma calma fria que
sempre a intrigara, tanto quanto a assustava.
— Não tem o direito de permitir coisa alguma. — Ela decretou. — Esse
é meu destino, não o seu.
Não havia ordem em seu tom. Nenhuma. Mas sob a camada dela, Raven
sentiu o vestígio de uma.
Raven rosnou, dando um passo para ela, sendo interrompida quando a
Lorioran se pronunciou.
— Seu destino? O que quer dizer com isso?
— E por que quer ir conosco? — O outro atirou.
A princesa os fitou com cuidado, pensando com cautela em suas
próximas palavras.
— Estou em uma jornada por meu povo, buscando algo. Estive
trilhando um caminho às cegas durante muito tempo e, por algum motivo, os
deuses os colocaram em meu caminho. Sinto que não fora por acaso. Nosso
encontro fora premeditado por algum jogo divino. Sinto isso — esclareceu
com um tom sereno, fitando todos, inclusive Raven. — Não estou pedindo
que confiem em mim ou que me aceitem. Apenas que me permitam
acompanhá-los. Alguma coisa me diz que encontrarei as respostas que busco
em sua jornada. Meus instintos dizem isso.
— Sinto muito. Mas não podemos... Estamos em uma situação
complicada. Maior que isso. — O de cabelos castanhos murmurou sem jeito.
Raven vira a expressão de Nora quebrar em aflição.
— Por favor... Eu prometo os ajudar. Não irei atrapalhar...
— Não, não há o que discutir. — O Feänor prateado, Westyn
Dandellion, que tinha curado os machucados de Nora, esbravejou firme.
Contudo, a Lorioran ergueu a mão, interrompendo qualquer um que
estivesse disposto a se pronunciar. Ela fitou Nora com uma intensidade que
Raven percebeu ser muito mais que um mero olhar.
As duas pareceram trocar palavras em seu contato visual. Com Gwen
sorrindo graciosa para Nora.
— Ela virá conosco — decretou enfim. O Feänor, Westyn, crispou um
silvo. Skye assistia a tudo calado ao lado dela. — Nora me ajudou naquele
lugar. Me manteve consciente quando eu estava à beira de cair em uma
agonia sem fim. Sinto que posso confiar nela, de alguma forma.
— E estamos em dívida pelo que as duas fizeram. — Skye se
pronunciou, alternando o olhar entre elas. — Se deseja vir conosco, está livre
para vir.
Nora ofegou sem reação, assentindo mais do que o necessário para os
dois, sorrindo em declínio.
— Obrigada.
— Você tem certeza disso? — O de cabelos castanhos indagou para ela.
Os olhos ametistas brilhando.
Nora passou alguns minutos sem lhe dar uma resposta, pensando,
olhando para os Loriorans, para depois assentir com firmeza.
Raven não conseguia a entender. Sua princesa, que amava seu povo
com tanto fervor, estava perdida de tantas formas e não conseguia enxergar
aquilo.
Era uma criminosa pelo que fizera; Raven fora ordenada, junto a outros,
a levá-la de volta para Elora para receber a devida punição por seu crime.
Mas a vendo com tanta segurança em seus objetivos insanos, Raven
percebeu o quão perdida Nora estava.
Não podia a deixar assim. Não podia. Era Nora.
Sua Nora.
Ela grunhiu, rosnando para si mesma, sabendo as consequências que lhe
cairiam sobre sua decisão idiota. Seria considerada sua cúmplice, uma
criminosa por seu povo.
Mas era Nora. Ela precisava dela, mesmo que não enxergasse aquilo
também. Nora precisava dela.
— Eu irei junto também — murmurou, com todos a fitando.
— Não, não irá mesmo. — Nora rosnou.
— Mas que porra está acontecendo? Isso virou um clube de aventura,
por acaso? — Westyn pestanejou.
Raven ignorou o Feänor, fitando sua princesa com firmeza.
— Aonde for, eu irei. Onde estiver, eu estarei — recitou seus votos de
juramento quando se tornou sua guarda real. A capitã da tropa de Elora
perante a princesa de seu povo.
O olhar de Nora vacilou, estremecendo, com sua garganta oscilando.
— Raven...
Mas ela vira a decisão já tomada nas íris esverdeadas de Raven, não
havendo palavras que pudesse dizer para mudar a escolha da capitã, com ela
por fim, assentindo devagar com a cabeça.
O Feänor de cabelos castanhos suspirou, esfregando o rosto, levando o
olhar para elas.
— Tudo bem. Todos iremos então — murmurou para o grupo. —
Temos que nos apressar agora.
E assim fizeram quando, depois de alguns momentos, a barreira posta
sobre eles caiu, com todos se preparando para sair.
Nora evitando fitar Raven a todo custo. Mas isso não a incomodou.
Raven estaria com ela.
Westyn caminhou para o centro do grupo, apontando um dedo na
direção delas.
— Se fizerem alguma merda, ou ao menos nos colocarem em risco... —
Ele expôs as presas com sua ameaça velada. — Acabo com vocês.
Deu as costas para elas, seguindo adiante.
Raven engoliu em seco, sentindo o aroma de sua ameaça flutuando com
rigidez pelo ar, e sem escolha, se viu seguindo eles quando o grupo saiu do
recinto.
Poderia se arrepender de forma amarga disso.
Mas, tinha feito um juramento. E aquilo, sua decisão, tinha sido acima
dele.
Aonde for, eu irei. Onde estiver, eu estarei.
20

Tinham entrado outra vez no Vale, adentrando na floresta quieta e


ecoante do lugar, dessa vez, atentos aos mínimos sons nos galhos e topos das
árvores, os olhos inspecionando cada parte em que passavam.
Contudo, acompanhados por Raven e Nora, com a última
surpreendendo o grupo inteiro com seu pedido inusitado de se juntar a eles
em sua jornada para a capital de Eldar, por motivos que Gwen nem mesmo
poderia imaginar.
Mas ela tinha visto a sede por respostas e o vazio corroendo o olhar de
Nora, como se sua busca pelo que procurava a estivesse desgastando aos
poucos. Gwen sabia como era aquilo. Conhecia aquela sensação.
E por alguma razão, sentiu em seu peito que deveria aceitá-la no grupo.
Permitir que a Pixie buscasse o que procurava com eles, tendo que aceitar
Raven como um extra, quando essa deixou explícito que não iria a nenhum
lugar sem Nora.
Era perceptível uma certa tensão entre as duas, que mesmo lado a lado,
colocava uma certa distância entre elas. Sem nem mesmo se encararem.
Skye, ao seu lado, caminhava no mesmo ritmo que ela, sua lança em
riste em uma das mãos, com seu braço esquerdo erguido, fitando o pulso no
ar.
Os olhos fitavam um ponto entre as linhas de marcações do pulso, onde
outrora houvera cortes e machucados que Gwen também possuíra.
— A sensação ainda formiga, não é? — Ela atirou, com sua voz caindo
em uma oitava, se recordando da agonia eletrizante que a rasgou com a
corrente de espinhos sobre ela.
Seus próprios pulsos formigavam em alguns momentos, como se ainda
fossem atormentados por aquilo.
— É mais como uma sensação de... Vazio. — Skye murmurou,
fechando e abrindo seu punho para descer seu braço, dando um olhar franco
para ela.
Gwen acenou em compreensão, erguendo o olhar para os imensos
caules das árvores e a imensidão de cipós e vinhas se entrelaçando acima.
O céu estava limpo, de um azul tão majestoso, sem a sombra de uma
nuvem sequer o rondando.
— Gwen.
Seu foco retornou para Skye, captando o receio em seu tom. Ele fitou os
três Feänors mais à frente, com Thorion ainda em sua forma animal.
— Sim?
A garganta de Skye oscilou, com seus olhos pesando, então Gwen
soube que o que quer que passasse por sua mente, ele calculava com cuidado,
avaliando como daria voz a seus pensamentos.
— Acha que... — Ele engoliu em seco. — Acha que eles conseguiram?
Confusão a tomou de início, com seu cenho franzindo conforme ela
girava aquela indagação, sendo inundada por compreensão, enfim.
Ela sabia a quem Skye se referia. Uma parte sua latejou em dor com
aquele fato que se instalou nela. Não tinha parado para se questionar a
respeito daquilo.
A visão que a tomava quando pensava em sua aldeia, seu último
vislumbre do caos sobre ela.
Da destruição completa.
Sua garganta se fechou um milésimo.
— Eu não sei. — O olhar cinzento vagou para o Vale inteiro. Um flash
de memória surgiu, com ela acrescentando: — Talvez tenham tido uma
chance, afinal, os anciões lutaram por Wenkael no fim.
Skye assentiu, embora reluto.
— Acha que foi o suficiente? Que conseguiram expurgar o restante
daquelas coisas para fora?
— Pelos deuses, eu espero que sim.
— Foi tão... Inesperado. Toda aquela horda de monstros. Mesmo se
Wenkael estivesse preparada, mesmo que nosso povo revidasse, não teriam
chance com o ataque inusitado de tantas.
O aperto se fixou ainda mais, com o gosto amargo daquele fato
salgando sua boca ao assentir.
— Wenkael sofreu um massacre destrutivo e nem mesmo estávamos lá
para ajudar no fim... — Ela balançou a cabeça, sentindo uma faísca surgindo
dentro de si, com ela a apagando. — Nós fugimos. Deixamos nosso povo e
simplesmente fugimos por...
— Gwen, não. Não se martirize por isso. Nós... Não tivemos escolha.
Fora o desejo de Gillyn e eu me agarro à ideia de que não fora simplesmente
por fugir. Ela não queria que fugíssemos, ela queria nos tirar de lá, por
alguma razão. Gillyn nos treinou durante décadas; não fugimos por não
sermos capazes de lutar por Wenkael.
— Por qual razão então?
Ela riu. Um riso gélido, como se lascas de gelo deslizassem por sua
garganta. Tentando ocultar a dor em seu próprio tom.
Gillyn tinha se sacrificado por aquilo. Mas por quê? Qual fora a razão
para que desejasse os tirar de Wenkael tão rápido assim? Por que se sacrificar
para que eles conseguissem fugir?
Fugir.
Enquanto seu povo era atacado e seu lar era destruído. Fugir. Fora o
que fizeram. Sem respostas ou explicações. Fugindo sem um propósito e sem
compreensão. Fugindo sem um lar.
— Eu não sei. — Skye grunhiu. — Mas é por essa razão que estamos
aqui, não é? Em busca de respostas para toda essa merda acontecendo.
Um rugido chiou em sua cabeça, feroz e urgente, com uma onda de
lembranças a consumindo.
De sua avó, que a tornara tão forte e protetora de seu povo, de palavras
cruéis que lançaram sobre ela durante toda sua infância, das palavras dos
anciões, de incontáveis falhas em sua memória, de coisas que não conseguia
se lembrar, devido a uma escuridão revolta sobre elas. Daquele poço infinito,
sem fundo, preenchido até a base de indagações.
Ela estava sob ele, tentando emergir, sem fôlego, se afogando mais e
mais naquele poço infinito; podia sentir as sombras no fundo subindo, como
uma serpente, rastejando para ela.
Gwen fechou os olhos, inspirando fundo.
— Não sei se quero essas respostas. — Admitir aquilo fora menos
indolor do que ela imaginou. Levando seu olhar para o grupo à frente,
imaginando se a audição apurada deles captava a conversa dos dois. Ela não
se importava. Não se importava mais.
— Não temos escolha. Precisamos delas. — A voz de Skye fora suave,
embora ela sentisse a rigidez por trás de suas camadas. — Por Gillyn,
precisamos.
Por Gillyn.
Apenas por ela. Gwen poderia enfrentar aquilo, mesmo que caminhasse
por um terreno desconhecido onde poderia se perder, sem retorno.
— Mas por que Elrond? — Ela indagou, diminuindo o tom. Voltando a
fitar os três Feänors à frente, entretidos em seu próprio diálogo. — Qual
ligação isso tudo tem com Elrond? Ou com o rei?
O rei. Aquilo ainda raspava calafrios por ela. Estavam indo ao encontro
de ninguém menos que o próprio rei de um povo para obter respostas para
perguntas que ela nem mesmo conseguia formular ou imaginar.
— Eu sei. É sufocante, tento não pensar muito nisso... Mas não consigo
interligar os pontos. Não ainda.
— Podemos nem mesmo encontrar resposta alguma lá. Só os deuses
sabem como esse destino irá terminar.
Skye riu, não em humor ou diversão, mas um riso seco e temível,
ecoando seu nervosismo através do som.
— Se chegarmos lá — constatou, o olhar vagando pelo lugar com os
lábios retraídos. — Mal entramos nesse lugar e fomos atacados por aquelas
coisas desprezíveis. Não sabemos o que podemos encontrar adiante.
Ela se viu concordando a contragosto.
Os Goblins eram apenas medianos, em uma vasta rede de criaturas que
poderiam espreitar por aquele maldito lugar.
Estavam navegando em um mar escuro calmo, no entanto, não
imaginavam que tipo de monstros circulavam sobre eles.
Levando o olhar para trás, por cima do ombro, Gwen fitou as duas
garotas logo atrás deles.
— Você encontrou alguma outra criatura quando entrou aqui? — Gwen
se direcionou para Nora.
A Pixie de cabelos castanho-escuros a fitou com um olhar terno,
assentindo com um olhar pensativo.
— Passei por uma colina e vi uma criatura que até mesmo os deuses
temeriam entrando em uma caverna. Quase não consegui me mover com
tamanho horror e quando consegui, corri o mais longe possível.
Skye pestanejou um arquejo.
— Que tipo de criatura?
Ambos viram quando um tremor percorreu Nora com a lembrança que
deve ter passado por ela.
— Era maligna. Possuía uma estrutura masculina, com um tronco e
braços, mas as pernas... — Nora engoliu em seco hesitante. — Do tronco
para baixo era como um enorme escorpião negro. Com pinças enormes e
monstruosas. Mesmo o ar que emanou dele fora terrível.
A imagem que inundou a mente de Gwen, quando ela formou a
descrição do monstro, crispou calafrios tenebrosos por cada mínima parte
sua.
Skye parecia compartilhar a mesma emoção.
— Temos que sair desse buraco. — Ele grunhiu, praguejando. — Antes
que encontremos coisa pior.
Nora assentiu em concordância.
— E antes do anoitecer. É a hora que o povo do Vale sai de suas tocas.
Se passarmos mais uma noite neste lugar... — Ela avaliou o ambiente em
volta, os olhos azuis cheios de aversão. — Poderá ser nossa última.
Gwen enrijeceu com aquele fato.
Que os deuses os ajudassem.

Nora viu o mais puro e frívolo medo fervendo nas íris dos dois
Loriorans. Não fora sua intenção causar mais alarde nos dois com sua
descrição da criatura monstruosa que vira quando atravessou o lugar.
Ela pigarreou, dando mais passos na direção dos dois, passando a
caminhar ao lado de Gwen, ignorando o olhar arqueado que Raven atirou
para ela.
— Eu estive me perguntando... — Olhos cinzentos e olhos azuis etéreos
se puseram sobre ela, à direita de Gwen. — Wenkael não deveria impedir que
saíssem de sua redoma?
Se arrependera de suas palavras no instante em que as pronunciou
quando vira o olhar dos dois erguer muros, se solidificando em uma
expressão defensiva.
Não tinha esquecido o que Gwen relatara quase inconsciente, lutando
para permanecer sã na prisão dos Goblins. A história que contara por partes a
Nora, sobre o ataque a seu povo. Alguns traços ainda estavam frescos na
mente de Nora, no entanto, havia uma porção de indagações.
— Não vejo porque isso é de sua conta. — Skye brandeou entredentes,
o tom deixando visível sua irritação.
Nora arquejou em rubor. Merecera aquilo, fora direta demais. Não tinha
direito a tais perguntas quando era uma mera estranha para os dois.
— Eu sinto muito. Não quis ser intrometida — esclareceu sem graça,
com a expressão sólida de Skye permanecendo, enquanto Gwen a fitava com
mais suavidade. — Fui uma tola, perdoe-me por isso. Mas eu cresci ouvindo
as histórias sobre seu povo e estudei sobre vocês. Sobre a barreira...
Skye grunhiu, com ela se calando ao se dar conta que estava sendo
novamente intrometida e indulgente.
— Desculpe... — murmurou envergonhada, abaixando o olhar para suas
botas sujas enquanto caminhava.
— Está tudo bem, perdoe Skye, ele pode ser um pouco arisco quando
quer. — Gwen deu ao Lorioran um olhar de repreensão e Nora captou o rolar
de olhos dele quando ergueu os seus para os dois.
As íris cinzas, salpicadas por um tom azul nublado quase imperceptível,
a fitaram com clareza.
— E você tem razão, Wenkael não deveria permitir que saíssemos. — O
tom fora seguro e firme. Mas o olhar... Nora viu um brilho se esvaindo das
íris. — Ou deveria ter razão.
Algo lampejou sobre a Pixie com o indício de algo naquele tom
fervoroso da Lorioran.
Nora ergueu uma sobrancelha. Ela se viu decidindo se indagava ou não
o motivo daquilo, receando se estaria sendo impertinente demais quando não
conseguiu resistir à sua curiosidade, no final das contas.
— O que quer dizer com isso?
Ela esperou algum ruído de frustração vindo de Skye, que ela já tinha
feito uma anotação mental em sua observação sobre os dois, com o Lorioran
dourado sendo o mais afiado e de humor arisco dos dois. Tinha que ter
cuidado com suas palavras perante ele.
Embora Gwen possuísse uma aura de leveza e conforto em sua postura
e olhar, Nora não tinha certeza total de como poderia defini-la. Ela parecia
calma demais para alguém que tinha escapado de um ataque ao seu povo.
E as criaturas que ela contara! Nora precisava saber mais. Tinha se
perguntado se a história de Gwen na gruta fora apenas uma alucinação da dor
que a consumia, de tão desnorteada que estava.
A Lorioran a fitou com um olhar cheio de emoções transbordando
daquele tom cinza tão vasto. Outro ponto sobre os dois eram seus olhos, a
vastidão sem fim que aqueles olhos cinzas possuíam, como se um tornado
selvagem estivesse instalado sobre eles, embora tão diferente e distinto das
íris instigantes e intrigantes de Skye. Aquele azul divino e esférico causava
pontadas de fascínio sobre Nora sempre que os fitava. Era revigorante apenas
o fitar.
Então seu corpo inteiro foi tomado por uma onda fria e congelante de
assombro quando Gwen, depois de alguns minutos respondera, a voz oca,
sem emoção alguma quando atirou ao ar:
— Wenkael fora atacada — disse seca. — E destruída.
Nora tropeçou em sua caminhada, hesitando quando um ofego de
estupor ressoou por seu peito. Então de fato era verdade. O povo de Wenkael
havia sido atacado. Mas pelo quê? E por qual motivo?
— Oh, deuses.
Nora levou a mão para sua boca, estupefata.
Os Loriorans não a fitaram. Nenhum dos dois, recusando a entregar
uma mera emoção em seu olhar com aquela afirmação tenebrosa.
Um silêncio perturbador se instalou entre eles, conforme seguiam o
grupo de Feänors à frente, guiando-os pela relva florestal.
Nora engoliu a bile com dificuldade, como se um imenso caroço
descesse por sua garganta apertada. Digerindo aquela informação com pesar.
Raven murmurou algo, se aproximando mais deles.
A Pixie não teve tempo de intervir quando sua guarda real se dirigiu
para os dois com um olhar incrédulo. Ela tinha ouvido tudo, cada parte da
conversa, então.
— O que querem dizer com atacada?
Skye diminuiu um pouco seus passos, olhando por um breve segundo
para ela por sobre o ombro.
— Foi o que ouviu, atacada.
Raven quase grunhiu; Nora sabia que ela conteve isso quando o tom de
sua voz soou rouco demais.
— Mas atacada por quem?
Mais um longo minuto de silêncio; quando um suspiro pesado ecoou,
Nora não soube dizer de quem saiu, nem mesmo se fora dela.
— Por bestas. — A voz de Skye fora carregada por uma energia
sombria, e Nora se preparou quando viu que ainda havia mais, embora não
estivesse preparada para aquilo. — Por bestas do fosso.
A Pixie ofegou, estancando de imediato, com Raven compartilhando o
declínio de pavor.
Bestas do fosso.
Gwen de fato tinha dito aquilo na prisão, embora Nora não se agarrara a
ele, devido as dores e exaustão que lutava contra. Sua mente estivera em um
estado inerte, ausente de foco. Mas agora estava atenta o suficiente com
aquele detalhe abrasante.
Bestas do fosso.
Aquela mísera frase rasgou cada pedaço de pensamento dela, fazendo
sua mente sangrar com brutalidade, ecoando com estilhaços de espinhos.
Nora cobriu sua boca por completo com suas mãos, evitando permitir
que um grito oco lhe escapasse.
Raven, tão estupefata e petrificada quanto ela, parou, grasnando um
xingamento feio no ar.
— Esperem — esbravejou, alto e em bom tom, fazendo até mesmo os
Feänors à frente cessarem, olhando para trás, para eles, em confusão. Skye e
Gwen a encararam com um olhar neutro quando Raven rosnou. — Que porra
estão dizendo?
— Qual parte não entendeu, hein? — Fora como lascas de gelo que os
olhos de Skye a fitara, a voz ricocheteando em zombaria.
— Isso não pode ser verdade. — Raven cuspiu. — São mentiras.
Skye rosnou mordaz, mostrando as presas.
— Cuidado com o que fala — sibilou em um chiado raivoso. — Não
sabe de que merda está falando.
Contudo, Raven não baixou sua guarda, ou mesmo hesitou.
— Você que não sabe o que está falando. Isso é idiotice e uma mentira.
Não pode brincar com isso.
— Raven... — Nora tentou intervir, o tom fraco e estridente. Ela apenas
a ignorou quando Skye deu passos em sua direção.
— Acha que estou brincando? — As presas para fora em uma ameaça
visível. Raven mostrou as suas em retribuição. — Acha que mentiria sobre
meu povo ser destruído por criaturas do fosso? O quão idiota é?
— Deve estar louco com tamanha ilusão. Criaturas do fosso são apenas
lendas antigas. São ilusões.
Cada pedaço de Nora estremeceu com a risada de Skye. O som fora
tenebroso, com ela dando um passo automático para trás. A aura em volta do
Lorioran era letal e furiosa. Era etérea.
Embora Raven não se abatera com aquilo, a apenas um metro de colisão
dele, com ambos rosnando um para o outro.
— Não há mentira. — A voz de Gwen quebrou a tensão entre eles.
Raven estremeceu com o tom dela. O olhar fora intimador e frio. — Wenkael
caiu sob o ataque de criaturas demoníacas vindas do fosso. Essa é a verdade.
— Não pode ser... Isso é... — Raven grunhia abrupta.
O imenso tigre passou por Gwen, indo para Skye, se prostrando ao seu
lado, fitando Raven com um olhar feral. Em um aviso estampado. Se desse
mais um passo para o Lorioran, ele a rasgaria.
Os outros dois Feänors se aprumaram, com Westyn, o de cabelos
prateados que a havia curado na outra noite e ameaçado algumas horas atrás,
se aproximando de Gwen.
— Acredite no que quiser. Vimos o que restou de Wenkael e nenhuma
criatura comum se assemelha às bestas que causaram aquilo. — Ele
murmurou com um tom grave, trocando um longo olhar com Gwen.
— Estiveram em Wenkael? — Raven olhou para os Feänors, rindo. —
Mais mentiras. Como entraram na barreira de proteção?
O imenso tigre rosnou ao lado de Skye, que parecera aliviar sua fúria
com a presença do mesmo.
— Não havia barreira. Não mais. — O de cabelos castanhos logo atrás
de Westyn anunciou.
— Liryan e eu sobrevoamos Wenkael inteira. Só havia caos e
destruição. E aquelas criaturas. — Westyn indicou Liryan, o Feänor de
cabelos castanhos atrás de si com um aceno.
— Estão dizendo que não havia barreira sobre Wenkael? Mas os contos
e as histórias dizem...
— Mentiras. — Fora Skye que se pronunciou com escárnio. — Apenas
mentiras. Durante eras.
— Isso... — Raven parecia tão distante e sobrecarregada com todas
aquelas informações, ainda em um estado frenético de estupor. Seus olhos
verdes se lançaram para Westyn. — O que faziam em Wenkael quando o
povo fora atacado? O que sequer fazem aqui, afinal?
Nora engoliu com dificuldade, levando o olhar arregalado para eles,
esperando pelas respostas que ela mesma estava se fazendo, sendo corroída
por tudo aquilo.
Westyn abriu a boca para responder, no entanto fora interrompido por
um pestanejar irritado de Skye.
— Você não tem o direito de fazer perguntas. Não conhecemos vocês.
— Ele levou o olhar colérico para Nora, que estremeceu diante da imensidão
etérea que a fitou, o azul ainda mais cintilante, respirando em alívio quando
ele se direcionou para Raven. — Não estamos exigindo saber que porra estão
fazendo aqui, estamos? E mesmo assim permitimos que nos acompanhassem.
Então cale essa maldita boca e se meta nos seus assuntos.
Raven rosnou furiosa.
— Vá se ferrar, elfo idiota.
O tigre rosnou de volta em fúria, emitindo um som tenebroso, com
Raven mostrando as presas para ele. O tigre retribuiu o gesto de forma
assustadora com as imensas presas.
— Elfo idiota? — Sky riu. Outra vez o riso seco.
— E mentiroso.
— Foda-se, cretina.
Gwen se aproximou dele, pondo uma mão em seu ombro, com um olhar
cheio de avisos que Nora não conseguira ler.
— Skye, não. Está tudo bem. Não precisa se exaltar.
— Como não? Ela nos chamou de mentirosos. Depois de toda a merda
que passamos, não vou aceitar isso.
A mão de Gwen subiu para a face do Lorioran, acariciando a maçã de
seu rosto, puxando seu olhar feroz para ela.
— Está tudo bem. — Algo naquele olhar pareceu recair sobre ele,
relaxando seus ombros e sua postura defensiva, abaixando suas defesas.
— Gwen... Eu não posso permitir.
— Conhecemos nossa verdade, isso é a única coisa que importa, ok?
Ele suspirou, assentindo.
— Tem razão.
— Não temos tempo a perder, não precisa nos acompanhar se não
desejar. Nosso destino será longo e não cabe a vocês fazê-lo. — Liryan
murmurou sereno atrás deles, a mensagem imposta para Nora e Raven.
— Eu vou. — Nora conseguiu pronunciar sem titubear, dando um passo
adiante.
— Está cometendo um erro, Nora. — Raven chiou. — Não podemos
confiar neles. Alguma coisa muito errada está acontecendo aqui. Sinto isso.
Aquilo impulsionou a ira de Skye novamente.
— Não está sendo forçada a nos acompanhar. Siga seu caminho.
— Não pedi sua opinião, imbecil.
Rosnaram um para o outro. Nora ofegou frustrada.
Então uma risada arranhada e estridente reverberou pelo recinto inteiro,
com eles se sobressaltando, virando para frente, com os instintos em alerta
total.
— Por que toda essa briga, crianças?
Alguns metros à frente, no arco de dois ramos se unificando em uma
abertura na floresta, havia uma velha alta os fitando com imensos olhos,
sorrindo em deleite para eles.
Nora observou em estupor a velha caminhar para eles, ainda rindo, e
fora aquele riso estranho, carregado por um tom ecoante, e antigo, que
revirou seu estômago por inteiro, com seus instintos se aflorando em alerta.
21

Havia a porra de uma velha estranha e tenebrosa na frente deles,


sorrindo como uma louca, enquanto os olhos passavam por cada um com um
deleite assombroso.
Westyn a observou com cada pedacinho seu queimando em alerta,
vendo os cabelos brancos desgrenhados caindo como fios de prata por seus
ombros ossudos. Ela era alta, magra e óssea, usando um vestido preto
maltrapilho, que caía até seus pés, cobrindo as pernas que deveriam ser finas
e compridas, com o tecido velho se arrastando no chão em seu caminhar. A
pele era enrugada, com uma boca murcha, o nariz fino e achatado.
Com imensos olhos dourados, que os fitavam com uma atenção
abrasante, cintilando um tom malicioso.
Os braços eram longos, finos e pálidos, com unhas que estremeceram a
base de Westyn com tal visão.
A velha era tenebrosa. Embora sorrisse com ternura.
O riso que chiava era lento e arrastado, como se um eco ressoasse por
sua garganta em um tilintar.
— O que crianças tão bonitas e adoráveis como vocês fazem aqui? —
Os pelos do braço de Westyn se arrepiaram com aquele tom arranhado e
suave.
— Quem diabos é você? — Ele grunhiu ao invés, com ela disparando o
olhar para si, com Westyn se arrependendo de imediato por atrair a atenção
daquela velha estranha para ele.
Ela sorriu, com a boca murcha se abrindo em um sorriso pavoroso,
expondo dentes pretos.
Urgh. Ele quase resmungou enojado.
O Feänor viu com clareza quando ela inalou o ar com deleite, raspando
a língua pelos lábios secos.
— Eu? — Ela riu. — Sou apenas uma pobre velhinha que vive afastada
na floresta.
Um chiado irritado soou, com Westyn percebendo que não viera dele,
quando o Lorioran dourado grunhiu.
— Nesse lugar? — vociferou. — Você é louca por acaso?
A velha o fitou, semicerrando o olhar para ele, todavia Skye não recuou
com o olhar penetrante dela.
— O Vale não é um lugar para crianças — respondera ao invés, com
aquele tom meticuloso que crispava os instintos de Westyn. Ela vagou o olhar
pelos sete. — O que fazem aqui?
Liryan se aproximou, a fitando com cautela.
— Estamos apenas de passagem.
A velha sopesou, esfregando suas mãos, como se acolhesse calor para
as palmas enrugadas. Embora o recinto estivesse frio, com uma névoa
maçante fluindo pelo ar.
— Estão perdidos, então. — Ela atirou. Os dentes pretos à mostra para
eles. Westyn ofegou.
— Não estamos não.
— Nenhum caminho pelo Vale é concreto. Não sabem disso? Enquanto
caminham pelo Sul, ao oeste chegarão. Se chegam em oeste, no Leste
terminarão.
Liryan lançou um olhar para ele, com ambos trocando palavras sem voz
em seu contato visual.
A garganta de Westyn se apertou, com ele coçando o cabelo revolto.
Merda. O que ela estava dizendo?
— O que quer dizer com isso? — Westyn indagara.
Dando de ombros, a velha assobiou neutra.
— Há um encanto nesse lugar, no momento em que entrar não pode
sair. Não há direção definida, nem caminho concreto. É um labirinto sem
saída. Deveriam saber.
Lascas de gelo reviraram o estômago de Westyn. Ele ouviu seu próprio
arquejo ressoar no grupo ao lado.
Gwen, que estava a uns três passos dele, se direcionou para a velha à
frente.
— Isso não pode ser verdade. Tudo tem uma direção.
A velha manejou a cabeça em um estalo negativo.
— Não o Vale.
— Essa velha estranha está mentindo. — Skye grunhiu para eles. Ela
sorriu terna apenas, com ele cerrando o olhar ainda mais em retorno.
— Para qualquer direção que forem, apenas se perderão ainda mais.
Existem certos lugares aqui onde não desejarão caminhar — chiou em um
aviso.
Westyn notou um traço em seu tom, que soou firme e seguro, com ele
percebendo que ela não titubeara em nenhum momento ao falar. Poderia de
fato estar sendo sincera.
Mas eles não tinham como saber.
Era apenas uma velha bizarra, na porra de um lugar desconhecido e
perigoso. Não se sentia confortável perto dela, não confiava em nada daquele
lugar.
Nada de bom vinha dele.
E que merda essa velha fazia morando neste lugar?
Seus sentidos pareciam gritar alguma coisa, um nome, embora ele não
conseguisse ouvir.
Westyn bufou, esfregando os olhos, que começavam a ficar meio
embaçados diante da brisa do sol.
— Como tem tanta certeza disso? — Liryan indagou, com uma calma
que chiou os nervos de Westyn. Ele não invejava aquele traço de
personalidade de seu irmão. Fora sua desconfiança e cautela que o livraram
de situações como essa ao longo de eras.
— Vivo há muito tempo aqui. Conheço cada parte deste lugar. E não
minto quando digo que não encontrarão seu destino.
— Está dizendo que não há como sair daqui? — Raven resmungou para
ela. — Que estamos presos nesse buraco?
Rindo, a velha negou.
Sempre em ternura. Sempre estranha.
— Oh, não, não, minha querida — ressoou. — Pelo contrário, há um
caminho que pode os tirar daqui.
Um nervo estalou sob Westyn. Ele praguejou.
— Então nos diga como — sibilou entredentes.
Mais um riso arranhado veio dela. Ele estava cheio daquele som
peculiar e irritante. A risada era como uma melodia angustiante e
desconfortável.
Os cabelos brancos balançaram no ar, com ela curvando o pescoço para
o lado, fitando ele.
— Eu não me lembro. — Os olhos dourados, como ouro derretido,
brilharam com intensidade.
Todos os sete pestanejaram um bufo, mesmo Thorion ainda em sua
forma animal. A velha notou aquilo.
— Mas... — Ela ergueu uma das mãos, com um dedo esguio e longo,
como um graveto, em riste. — Tenho um mapa enfeitiçado, que leva à rota
exata para fora do Vale. O único caminho congelado, enquanto os outros
estão encantados sob um feitiço de tempo. Nem aqui, nem lá.
O dedo girou, balançando.
O sorriso estranho aumentando.
Liryan se posicionou mais uma vez. Westyn podia ver os músculos de
seu amigo tensionados, com seus ombros largos contraídos em alerta.
— E onde está esse mapa?
A velha gesticulou, as unhas grandes tilintando umas nas outras.
— Em minha casa, no coração da floresta. — Ela decretou de forma
suave. — Não é muito distante daqui. Se desejarem, podem me acompanhar
até lá e o entregarei de bom grado para que continuem seu percurso.
Um calafrio escorreu pela espinha de Westyn. Ele fitou a velha com
incredulidade. Os instintos chiando mais e mais.
Skye riu. Um som trêmulo e sarcástico.
— Acha que vamos acompanhar você para um lugar que pode muito
bem ser uma armadilha? Nem sabemos o que uma velha louca como você faz
morando na porra deste lugar horrendo. Por que deveríamos confiar no que
diz?
Se a ofensa a atingiu ela não demonstrou, com o sorriso terno ainda
preso em sua face. Embora Westyn achou ter visto um brilho gélido cintilar
naquelas íris douradas.
— Tem razão, não há motivos para confiar em mim — decretou com
franqueza. — Só quis ser generosa, ajudando pobre garotos perdidos. Muitos
como vocês entraram aqui e jamais saíram. Não imaginam o tipo de seres que
habitam nesse lugar.
— Então por que vive aqui? — retrucou Skye.
A velha suspirou.
— Não tive escolha, no fim.
— Há sempre uma escolha.
— Vai aprender que não há, criança. — A velha infiltrou um olhar
frenético sobre ele, que o calou de imediato.
Nenhum deles nada falou, com cada um fitando a velha. Westyn
percebera que a desconfiança que o inundava se instalava no peito deles
também. Alerta e cautela espreitando sob suas peles.
— Não pode mesmo nos dar uma direção que nos leve direto ao norte?
— Gwen se aproximou dele, ficando bem ao seu lado. O cheiro doce e
delicado dela inundou suas narinas, acalmando um pouco seus nervos
aflorados com sua presença tão próxima.
Ela olhou para ele por um instante, com Westyn se vendo sorrindo
automático para ela, ficando sem jeito quando Gwen não retribuíra, voltando
sua concentração afiada para a velha.
O Feänor se xingou, pedindo aos deuses para que nenhum deles tivesse
lhe visto corar.
— De nada adiantará, minha cara. — A velha esbravejou. — Acabarão
em outro percurso.
Gwen engoliu em seco, trazendo seu olhar para ele outra vez. Ele quase
perdeu o fôlego com o quão perto estava dela. Tão linda e majestosa, com ele
se coçando para tocar seu rosto ao menos uma vez.
— Se ela estiver realmente dizendo a verdade, estamos perdidos neste
lugar. — Gwen murmurou para ele. Westyn se obrigou a sair de seus
devaneios contemplativos, se obrigando a acenar ao invés de responder,
temendo falhar de forma tola em sua pronúncia perante ela.
Liryan caminhou para eles, se prostrando ao lado dela.
— Não temos certeza se isso é verdade ou não. — Ele decretou.
Gwen assentiu em concordância.
— Embora não podemos arriscar. Se de fato há um encantamento sobre
as direções desse lugar, vagaremos sem rumo até o anoitecer. Não podemos
correr esse risco. Não quero passar mais uma noite aqui.
— Nem eu. — Westyn emendou. Ela o fitou com profundidade.
Aqueles olhos cinzas tão lindos se conectando ao dele, com o Feänor
desviando de imediato, sem jeito.
Sem rubor. Sem rubor. Ele grunhia para si mesmo.
Estava agindo como um imbecil perto dela. Tinha que se recompor, essa
não era sua postura natural.
— Então não temos outra escolha senão a acompanhar. — Liryan
constatou, atraindo a atenção do grupo atrás.
Skye se aproximou, com Thorion em seu encalço.
Nora também, com uma Raven cautelosa logo atrás.
— Se estiver pensando que vou acompanhar essa velha estranha para
sabe deus, onde, descarte.
— Não temos opções aqui, Skye — grunhiu Liryan.
Ele riu.
— Então a única opção é acompanhar uma velha estranha, que mora no
meio de uma floresta de um lugar cheio de criaturas de contos de horror? —
Ele atirou para eles. Westyn grunhiu em concordância com o Lorioran. — E
se ela for um deles?
Thorion gracejou baixinho como se assinasse embaixo.
Bufando, Liryan esfregou o rosto.
— Que escolhas temos então?
— Podemos arriscar e ver se de fato ela está dizendo a verdade.
Percorremos alguns quilômetros... — Raven se adiantou.
— Quem disse que você poderia opinar? — Skye a interrompeu com
visível frustração.
Ela pestanejou graciosa.
— Eu estou presa na porra deste lugar também, então tenho todo o
direito de decidir como sair, elfo.
— Então vai sozinha, ora!
— Cala a boca.
— Chega. — Liryan rosnou entredentes. O silêncio perdurou no círculo
dos sete, com todos o focando. — Não vamos resolver nada discutindo feito
crianças idiotas. Não temos tempo a perder, e não podemos arriscar a
perambular por aqui sem um caminho traçado.
— Liryan tem razão. — Gwen murmurou, com ele a fitando em
surpresa ao seu lado, sem saber se pelo que dissera ou por ter pronunciado
seu nome pela primeira vez. O Feänor não poderia dizer. — Se essa mulher
realmente tem um mapa que pode nos tirar daqui, precisamos dele.
— Então a seguimos até a casa dela, a matamos e pegamos o mapa. —
Todos olharam horrorizados para Skye em completo choque. Ele bufou,
dando de ombros. — Estou apenas brincando.
Liryan balançou a cabeça em reprovação.
— Por alguma razão, tenho a impressão de que o que ela diz sobre as
direções desse lugar serem encantadas não é apenas uma mentira.
Eles olharam, cada um, para trás, para a figura a alguns metros,
estancada como uma estátua fria, os fitando com atenção. O sorriso terno
tenebroso ainda sobre os lábios.
— Eu não confio nela. — Nora murmurou de forma suave, o tom baixo,
como se temesse que a velha estranha ouvisse. — Ela me causa mais
calafrios que esse lugar inteiro. E as histórias sobre o povo do Vale, ela pode
ser parte delas.
— Ela é apenas uma velhinha. — Gwen murmurou. Engolindo em seco.
— Que mal ela pode nos fazer?
Um arrepio passou por Westyn, reverberando como um vento frio por
seu corpo inteiro.
— Temo em imaginar. — Skye inspirou fundo. — Mas se ela insinuar
algum ataque, eu acabo com ela.
— Pelos deuses, Skye! — Gwen o repreendeu.
Westyn se viu sorrindo. Estava começando a admirar aquele elfo louco
e raivoso. Concordando em um aceno de cabeça para ele, que retribuiu sério.
— Então vamos mesmo a acompanhar? — Westyn quase gemeu em
desgosto com a ideia.
Cada um se entreolhou, decidindo. Liryan fitou um por um, primeiro
Gwen ao seu lado, que acenou de leve, para Skye que assentiu a contragosto
quando Gwen apertou seu braço, Thorion grunhiu um chiado que eles
levaram em conta, com Nora sopesando em uma expressão temerosa,
suspirando um ar pesado ao assentir. Raven olhou para a velha com uma
calma fria, a observando com aqueles olhos esverdeados vivazes, para enfim
concordar.
E então eles fitaram Westyn.
Que apenas soltou um xingamento feio em resposta.

Skye tinha estado envolto em uma aura afiada, desde que partiram com
a velha bizarra, que os guiava à frente, de forma lenta, mais e mais
adentrando nas profundezas da floresta. Ele não estava nem um pouco
satisfeito com aquilo, seus instintos relampejando com a presença fria e
tenebrosa daquela mulher estranha. Sua mão apertando com força a lança,
preparado para qualquer surpresa iminente.
Não se deixaria ser abatido outra vez, como fora com os Goblins; desta
vez seus sentidos e nervos estavam atentos, apurados a tudo.
Inclusive ao terrível fato de que tinham passado por uma redoma
infestada de gigantescas teias de aranhas nos carvalhos despontados, com ele
jurando ter visto imensas pinças deslizando por um tronco no topo.
O imenso tigre branco caminhava ao seu lado, com Thorion o
acompanhando em seus passos. Skye sabia que o Feänor estava naquela
forma porque tinha perdido suas vestes na gruta dos Goblins.
Sabia que quando ele retornasse para sua forma original estaria
completamente nu, e aquele pensamento lançou um calor pelo corpo de Skye
com fervor, esquentando-o com a lembrança de Thorion nu, de cada músculo
e parte à mostra, de certas regiões tão grandes e proporcionais ao imenso
corpo de Thorion, que o Lorioran piscou para afastar as imagens provocantes
de sua mente, sem ao menos notar que mordia o lábio inferior com elas.
Não tinha se perguntado o porquê da constante aproximação de Thorion
sobre ele desde que começaram a percorrer o trajeto com a velha estranha.
Embora ele não podia negar que uma parte sua gostava da presença do felino
por perto.
Thorion, em sua forma animal, passava da altura da cintura de Skye.
Era tão imenso quanto em sua forma Feänor.
Gwen caminhava na frente, com Westyn e Liryan em cada lado seu,
ambos com uma aura perceptível de cautela e proteção sobre ela e o lugar.
A velha mais à frente nem mesmo olhava para trás, contudo, o
sorrisinho que dera quando eles decidiram a acompanhar não passou
despercebido por ele.
Skye concordava com o que Nora falara, não confiava nem um pouco
naquela mulher, que parecia uma louca, habitando esse lugar hediondo. Ele
sabia que ela não era apenas uma velha comum. Deveria de fato ser mais uma
das criaturas desse povo.
Ele girou a haste de sua lança na palma, com aquela ideia passando por
sua mente em uma repetição incontável.
— Não gosto disso. — Ele sussurrou, com a cabeça do tigre se
erguendo para ele. Os olhos ametistas, mesmo na forma animal, o fitaram
atentos, com Thorion assentindo em comum acordo. — Não gosto nem um
pouco.
Eles estavam seguindo uma velha para o completo desconhecido, em
um lugar que, de acordo com ela, fora encantado para não ter direções
concretas. Não havia norte, leste, oeste ou sul. Era um vácuo no espaço-
tempo.
Entraram numa relva, com uma névoa esfumaçada chiando como uma
fumaça grossa mesclada pelo ar. Skye teve que aprumar a visão para enxergar
através da neblina cinza, vendo com clareza quando, a alguns metros, havia
uma casa com estrutura de madeira, com um cercado também de madeira se
arrastando ao redor dela, flanqueada pelas árvores e névoa, que chegava a
ocultar o solo onde pisavam.
Skye cessou seus passos, Thorion fez o mesmo, com o Lorioran
inspirando fundo, tentando captar um aroma sequer. Não havia nenhum.
Nenhum cheiro emanando do lugar. Nenhum.
Que estranho.
Nora entrou em seu campo de visão, parando ao seu lado, com ele a
fitando por sua visão periférica.
— Não sinto uma energia boa nesse lugar — comentou, as mãos em
punhos sobre o colo conforme observava a casa da velha em meio ao
nevoeiro. A dona já atravessava a cerca dela.
Era uma construção de madeira e pedras, de uns quarenta metros
quadrados. Com um telhado triangular, formado de grossas telhas de ripas de
madeira. Possuía uma pequena varanda a circundando. Sem nenhuma janela à
vista, apenas uma porta de um tom marrom-escuro, diferente do marfim sujo
da casa velha, rodeada de galhos e vinhas se enroscando.
Skye se viu concordando, quando uma sensação alarmante o abraçou,
como se uma voz sedosa sussurrasse em seu ouvido: “Cuidado” e “Corra”.
Corra, a voz parecia repetir. Ele engoliu em seco, fitando a casa da
velha, quando seus instintos pareceram fugir para longe daquele lugar
estranho e assombroso, com ele fazendo o oposto daquilo quando Gwen,
Liryan e Westyn acompanharam a velha, que os esperava na soleira da
varanda.
Os olhos cor de ouro brilhando em deleite, com aquele sorrisinho terno,
congelando a alma de Skye até o último fio tecido.
22

Gwen continha o receio e o temor que a corroíam conforme ela


acompanhou a senhora para dentro da cabana. Com Westyn e Liryan ao seu
lado, atentos a tudo, tão eriçados quanto um felino apreensivo, entrando na
toca de algum monstro.
Os dois tinham se prostrado ao seu lado no momento em que passaram
a seguir a senhora, em guarda. Ela não sabia o que pensar daquilo, aqueles
dois machos ferozes a mantendo sob proteção de uma mera senhorinha e do
fato de eles a estarem protegendo. Humpf! Ela quase riu daquilo.
Não precisava da proteção de ninguém, muito menos vinda de machos.
Por isso rosnou sibilante para Westyn quando chegaram ao cercado,
com ele se colocando na frente dela para ir primeiro, o que Gwen barrou,
passando por ele e tentando não transparecer o pequeno tremor que a raspou
quando fitou aqueles olhos ametistas predadores, engolindo em seco perante
as presas dele expostas para ela, em frustração, conforme lhe sorriu em ironia
e passando por ele.
Não podia ser hipócrita com aquilo tudo; uma parte sua, a mais secreta e
profunda, apreciava aquilo. Os dois perante ela, alarmados e a ponto de
ataque. Tão perto que ela só precisava erguer o braço para tocar ambos. Tocá-
los. A ideia não parecia de todo tão ruim.
Gwen tinha que reconhecer os frascos pervertidos de sua imaginação,
com sua mão deslizando pelos abdomens definidos dos dois Feänors,
apreciando cada gominho rígido em uma carícia lenta, seguindo para aqueles
pelos que desciam por seu umbigo em uma trilha ilícita e pecaminosa que
levaria para suas virilhas.
Ela engoliu em seco, sorrindo com o canto do lábio.
Nunca tinha conhecido machos como eles em toda a sua existência,
mesmo os garotos com quem ela se relacionara em sua aldeia eram apenas
isso perante os três Feänors, garotos em comparação aos três. Liryan, Westyn
e Thorion eram quentes e um vislumbre sensual para os olhos.
E aqueles dois ao seu lado, a mantendo em guarda, a fazia ter
pensamentos que não poderia se designar a ter naquele momento.
Mesmo imaginar que o gosto do sexo que provara em sua vida deveria
ser apenas um aperitivo, uma mera degustação da foda que aqueles dois
poderiam lhe proporcionar. E o simples fato de imaginar um deles sobre ela,
ou mesmo os dois, a tornava em combustão.
Gwen não era tola, muito menos ingênua o suficiente para não ver a
chama que crepitava no olho violeta de Westyn quando o flagrava a fitando,
com ela sempre o evitando encarar por esse motivo. Pelo calor que aquilo
proporcionava ao próprio corpo dela.
Não era cega, tinha o observado tanto quanto, quando ele não a estava
olhando; os dois, para ser sincera. E era quase impossível não inundar sua
mente com certos pensamentos, com aqueles dois machos atraentes e ferozes,
tão predatórios, em torno dela.
A pele suada e bronzeada de ambos sendo um deleite para sua visão,
com aquelas vestes malditas expondo demais do corpo deles, quase como se
eles apreciassem aquela exposição. E ela também.
Westyn, com a pele dourada, suja e manchada de sangue seco, era o
próprio declínio da devassidão, enquanto Liryan possuía um esplendor
majestoso e caloroso.
Eles eram ardentes. Sensuais e ferozes, e Gwen tinha que parar de
pensar naquilo. Não era o momento para seus devaneios absurdos. Tinha
empurrado e empurrado aquilo de sua mente há horas, mas com os dois ao
seu lado era quase difícil resistir.
Tinham atravessado a soleira da porta, entrando na casa, com Gwen
imediatamente se aprumando em cautela, os olhos inspecionando o ambiente
inteiro.
Era modesta, o interior era dividido em repartições métricas, com uma
sala bastante espaçosa e mobiliada; o piso de madeira possuía uma camada
grossa de poeira como se nunca tivesse visto uma limpeza em décadas.
Havia móveis de madeira mobiliando o recinto, cadeiras velhas e
desgastadas, um tapete de pele no chão, quase cobrindo o recinto inteiro.
Dois corredores ladeando a esquerda, onde um provavelmente levaria
para quartos, e o outro para a cozinha.
— Entrem, entrem. Não tenham vergonha, já tem um tempinho que não
recebo visitas. Não liguem para a bagunça. — A senhora anunciou, terna,
gesticulando com a mão para que entrassem.
Westyn pestanejou algo atrás de Gwen, avaliando o interior do lugar,
conforme Liryan fazia o mesmo.
Ela ouviu quando o restante do grupo entrou, com os sete se instalando
na imensa sala. Repleta de poeira e mofo nas madeiras encouraçadas, com
teias de aranhas nos cantos e nenhuma, nenhuma mínima janela à vista.
— Um tempinho? — Westyn indagou irônico para ela, com Gwen
dando uma cotovelada em seu flanco; o Feänor engasgou em um riso contido.
— Sim. Há um tempinho. — A velha caminhou adiante, parando ao
lado de uma velha poltrona desgastada. O sorriso que ela abriu para eles fora
estranho, com seus lábios murchos se alargando, expondo a arcada dentária
negra. — Devem estar exausto de sua jornada. Estão tão sujos e maltrapilhos,
pobrezinhos. Devem ter enfrentado alguns dos habitantes do Vale, não é
mesmo? E devem estar com fome também, certo?
O estômago de Gwen roncou como se a tivesse ouvido, com ela
engolindo em seco, inspirando. Estava faminta, embora não comeria nada
vindo de uma completa estranha.
— Viemos aqui apenas pelo mapa. — Skye deu um passo à frente, se
pronunciando para ela. Thorion não saíra de seu lado em sua forma de tigre,
como se estivesse de guarda sobre ele também. — Onde está?
— Oh, o mapa! Sim! Sim!
A velha sorriu. O rosto em um retrato de ternura.
Skye sibilou com os nervos crispando.
— Sim, o mapa — bradou. — Não enrole, velha.
Levando o olhar para ele, Gwen o repreendeu.
— O que Skye quer dizer é que temos pressa, sabe? Não desejamos
perdurar nossa estadia por muito tempo. — Gwen interceptou, quando vira o
olhar dourado da senhora endurecer para Skye, com sua expressão gentil
quase se afiando, aumentando ainda mais quando voltou para Gwen.
Skye bufou.
A senhora ergueu um dedo longo, batucando a unha afiada sobre o
queixo, uma expressão pensativa a tomando.
— O mapa — murmurou.
— Sim, o mapa. — Skye grunhiu.
Gwen quase bufou, contendo um revirar de olhos.
— Onde ele está? Poderia nos trazer?
— Oh sim, claro, claro. — Ela sorriu, deslizando o olhar por cada um,
com sua língua raspando por seus lábios murchos, umedecendo-os ao
escorrer uma saliva seca.
Alguém fez um som baixinho de repulsa. Com certeza Skye ou Westyn,
ou os dois em uníssono.
— Ótimo. — Gwen lhe sorriu, desfazendo o sorriso quando o olhar da
mulher parou sobre ela, então se firmou, a expressão dela se tornando
inexpressiva, o olhar gélido conforme a fitava com uma atenção
sobrepungente, as íris de ouro derretido queimando sobre Gwen.
Com aquele sorrisinho terno aumentando, o canto do lábio subindo em
deleite. O silêncio reinou no lugar pelo tempo que a senhora levou a
encarando, com um olhar estranho e horripilante.
— Não vai pegá-lo? — Westyn indagou, quebrando o momento, com a
mulher não desviando seus olhos de Gwen em nenhum momento.
Ela inspirou fundo, fechando os olhos e, quando os abriu, aquelas íris
pareciam ter se solidificado ainda mais.
— Não irão querer que eu os sirva nada mesmo? Nem uma refeição
sequer? Não sentem fome? — Ela murmurou sibilante, vagando os olhos pelo
grupo. — Porque eu estou morrendo de fome.
— Apenas o mapa. — Liryan se pronunciou, acrescentando. — Por
favor.
A velha se curvou, em uma reverência quase saudosa.
— Muito bem, se assim desejam — murmurou, as mãos gesticulando
no ar, com as unhas agarrando o vento. Ela se ergueu, indicando as cadeiras
desgastadas, revestidas em couro pela madeira. — Esperem aqui, se
acomodem enquanto aguardam. Irei buscar o mapa em minha despensa,
tenho uma bagunça e tanto.
Ela riu. Nenhum deles a acompanhou.
Muito menos se sentou.
A mulher percebeu aquilo, erguendo uma sobrancelha ao sibilar algo
para si mesma, dando as costas para eles e entrando no corredor, sumindo de
vista com seu andar lento e arrastado.
Westyn pareceu soltar uma respiração que prendia quando a mulher
saiu, com ele inspirando fundo.
— Essa velha me dá calafrios. — Ele bufou, com Gwen arqueando uma
sobrancelha para ele.
— É só uma senhora, Westyn.
Ele devolveu o olhar zombeteiro.
— Na porra de um lugar de contos de horror. Vivendo em uma casa no
meio de uma floresta estranha.
— Está com medo? — Gwen mordeu o lábio, rindo ao erguer e descer
suas sobrancelhas para ele.
Westyn semicerrou os olhos para ela, se aproximando ainda mais de
Gwen, ambos a uma palma de distância um do outro.
O sorriso que crepitou nos lábios sensuais de Westyn despertou calor no
corpo de Gwen, com ela não recuando perante ele, tendo que erguer o olhar e
o queixo para fitá-lo.
— Não tenho medo, loirinha. — Ele murmurou, embora seus olhos não
estavam sobre os dela, e sim sobre os lábios de Gwen, os encarando com uma
fome visível. Ela os umedeceu em modo automático, entreabrindo-os quando
uma respiração fraca passou.
O recinto se tornou quente. Como se o ar esquentasse a um grau de
diferença em minutos.
— Ah, não? — Gwen indagou baixinho, seu próprio olhar descendo
para o sorrisinho malicioso naqueles lábios cheios e convidativos.
A mensagem de sexo bruto e primitivo instalada nele.
Pelos deuses.
Talvez Westyn tenha se aproximado mais um pouco, ou talvez tenha
sido ela? Não importava. Não quando ela podia sentir o calor do corpo dele
emanando para o dela, e o cheiro daquele macho feroz inundando suas
narinas.
Seu cheiro... Pela luz. Era devastador.
— Não. — Westyn respondera rouco, quase gutural.
Tão perto. Ele estava tão perto. Os olhos ametistas brilhando com uma
luz lampejante que parecia a engolir. Como uma mariposa atraída pela luz,
ela queria se aproximar mais e mais.
Um pigarreio soou, passando por eles, quando Liryan limpou a garganta
alto demais atrás dos dois.
Gwen saiu de seu estupor, se afastando no exato instante em que
Westyn fizera o mesmo, com ambos se recompondo.
Westyn levou uma mão para os lábios e tossiu sem jeito, grunhindo
quando sua atenção se fincou em um canto da sala.
Gwen se aprumou, olhando para Liryan, que os fitava com o cenho
franzido, o restante do grupo atrás compartilhando a emoção.
E Gwen sorriu para eles, em uma confusão fingida. Ignorando ao
máximo a umidade entre suas pernas e sua pele queimando.
Que porra. Westyn rosnava para si mesmo, tentando acalmar a rigidez
em suas calças, inspirando e expirando, controlando sua respiração, tentando
como um tolo idiota retomar o equilíbrio sobre seu corpo e mente, incluindo
a rigidez entre suas pernas, latejando em excitação e anseio.
Ele quase agira como um idiota estúpido há pouco. Pelos deuses. Quase
perdera o controle. Mas fora uma armadilha inevitável, quando ela o
provocou com suas palavras e ele se viu caindo quando seus olhos se
encontraram nos dela. Naquelas íris cinzentas, tão nebulosas e intensas que
ele se perdera nelas.
Não tinha como conter o instinto que o chamava, era como um sexto
sentido, como na noite anterior, quando a vira acordar em um choque
frenético, chorando conforme abraçava Skye. Ele quase correra para ela.
Quase sucumbira ao impulso de ir até ela e a envolver com seus braços.
Embora o olhar que trocaram a alguns instantes fosse um gatilho para
sua apreciação e a aproximação de ambos, mesmo sem um mero contato de
seus corpos, quase o fez explodir com tamanha combustão.
Por pouco, por muito pouco, Westyn quase a tocara. Pelo fosso. Suas
palmas coçavam coléricas em anseio por aquilo. Ela estava tão perto, tão em
estupor quanto ele. Ele precisava apenas erguer sua mão e tocá-la. Seu pau
latejava com a mera ideia do contato de suas peles. E o cheiro da excitação
dela inundando suas narinas quase o desnorteou em uma explosão alucinante
de tesão.
O que estava acontecendo com ele? Quando perdera tanto o controle
sobre seus instintos? Ele não tinha esse direito. Não podia. Porra. Não com
ela.
Não deveria fazer isso.
Mas estava disposto a ir contra a voz da razão em sua cabeça; estava a
um fio de cair no declive frenético que pulsava sobre sua corrente sanguínea,
como se chamas corressem por ele.
Se Liryan não tivesse interceptado, Westyn teria cedido a seus impulsos
idiotas e descontrolados.
— Onde essa velha se meteu? — A voz de Skye soou no recinto, o
puxando de seus devaneios.
— Ela está demorando demais, não acham? — Nora entoou.
— Não sinto uma energia positiva nesse lugar. — Raven, ao lado dela
esbravejou. — Tem alguma coisa muito errada aqui.
— Não iremos estender nossa estadia, apenas pegaremos o mapa e
sairemos. — A voz sedosa de Gwen murmurou.
— Mas e se não houver um mapa? — Raven brandeou. — E se isso for
uma armadilha?
— Então que os deuses estejam conosco. — Liryan acrescentou com
um tom brando.
Skye riu em ironia.
Já fizera alguns minutos que a velha estranha desaparecera no corredor,
Westyn tinha conseguido voltar ao normal, evitando o olhar de Gwen ao seu
lado, e principalmente o de Liryan, que com certeza deveria conter
advertência e repreensão.
O olhar de Westyn pousava em tudo, menos nos dois ao seu lado, com
ele fazendo o máximo para ignorar a presença ardente de Gwen.
Com isso, se dispôs a inspecionar o lugar com um foco desnecessário,
observando a madeira arranhada e suja do piso, com marcas raspando afiadas
sobre as ripas, marcas finas e arrastadas arruinando em linhas a base da
madeira. Como se unhas tivessem tentado se firmar sobre o piso e arranharam
a textura. Ele se arrepiou com aquilo, fitando a mobília, desde as cadeiras,
que possuíam um revestimento estranho, como pele encouraçada sobre elas.
Westyn engoliu em seco, se aprumando, levando o olhar para os outros
móveis; no canto havia uma mesinha e ele viu que as pernas que davam
suporte a ela também possuíam aquele revestimento.
Ele xingou, dando um passo mais à frente, atraindo a atenção do
restante do grupo sobre si quando tornou a avaliar as poltronas.
Uma que estava próxima a ele, possuía braços longos e ele deslizou os
dedos pelo revestimento de couro, liso demais dela.
Seu estômago imediatamente revirou em aversão, quando ele constatou
do que era feito aquele couro.
Não era de animais.
— Westyn. — Liryan pronunciou seu nome com um pesar, em alerta
pela postura rígida do mesmo. — O que foi?
Westyn deixou um ofego escapar, retirando seus dedos apressado
daquele revestimento hediondo.
Ele engoliu em seco com dificuldade, se afastando daquela poltrona,
vagando o olhar pelo lugar.
Merda. Merda. Merda.
— Temos que sair. — Ele esbravejou.
Cada parte sua se arrepiando em completo terror quando seus olhos
tomaram nitidez e foco. Como se uma névoa os cobrisse, ocultando sua visão
do real terror em que estavam.
Uma névoa sobre seus olhos.
Uma velha em uma cabana na floresta.
No Vale.
Ele sentiu os pontos se interligando em sua cabeça, quando todas as
peças se juntaram e lhe deram razão.
— Porra. — Ele rosnou, finalmente encaixando as peças em sua mente,
em completo pavor.
— Westyn? O que foi? — Gwen indagou em receio.
Mas ele não conseguia dar atenção. Não com a gritaria em sua cabeça
lhe dizendo para correr, correr e correr.
Conforme o encanto saía dele quando se dera conta, com sua visão se
tornando clara outra vez, focando nas paredes a sua volta e no chão. Ele
quase chorou em assombro, seu corpo inteiro jorrando incontáveis arrepios
tenebrosos.
Então um velho e antigo conto, há muito esquecido, cantarolou em sua
cabeça. Como ele odiava aquele conto quando sua mãe lhe contava quando
ele era apenas um pequeno Feänor assustado com tudo.
Mas de todos os contos que temia, aquele era o pior.
O conto sobre a Mãe da floresta, um ser maligno condenado pelo
deuses nos primórdios a habitar o Vale em exílio.
Cuidado com a velha gentil. Cuidado com seu riso. Cuidado com sua
casa modesta. Porque no coração do Vale ela habita. Tão cruel e mortal. A
Mãe da floresta. Em sua casa modesta, com seus móveis modestos, revestidos
em pele e ossos. Abra os olhos e a mente para a Mãe da floresta. Ou seu
encanto o pegará. E na casa dela terminará. Com seu rosto nas paredes
acabará. Cuidado com a Mãe da floresta. Porque sua fome ela saciará e,
com sua pele, sua casa ela modelará.
Mesmo os ossos de Westyn estremeceram quando ele ressoou aquela
velha cantiga macabra em sua cabeça. Ele se virou para o grupo, branco
como neve, como se sua alma houvesse sido sugada.
Westyn arquejou, encarando o grupo em confusão perante ele. Agora
ele podia ver. O encanto sobre eles. A porra do maldito encanto que cobria
suas órbitas como se uma névoa espessa tomasse seus olhos. Ocultando sua
visão dos horrores em que estavam, mudando a realidade para algo comum e
natural.
Liryan deu um passo para Westyn. Os olhos opacos, sem um frasco do
tom ametista, como o dele próprio deveria ter estado antes de desfazer o
encanto ao perceber onde estava. Na casa de quem estava.
E ele sabia que apenas uma palavra para Liryan o tiraria daquele
encanto maligno.
— Estamos na casa dela. — Westyn sussurrou. Seus ossos tremendo
como se temesse que a velha ouvisse, onde quer que estivesse. Seus pelos do
corpo continuaram arrepiados, com ele se esforçando com toda sua força para
não encarar as paredes e o chão onde pisava. Para os rostos sangrentos.
— Não entendo. O que quer dizer? — Liryan balançou a cabeça. — Na
casa de quem?
Westyn quase choramingou fitando seu amigo. A penumbra macabra da
casa parecendo o nausear com aquele cenário demoníaco.
— A Mãe da floresta, porra. — Então ele viu a compreensão
assombrosa inundar os olhos de Liryan. Com o Feänor praguejando em um
tremor violento por seu corpo, quando a névoa sobre seus olhos se dissipou e
íris ametistas cumprimentaram Westyn em terror alucinante. Ele ouviu
quando Thorion, Raven e Nora ecoaram um som tenebroso em comunhão,
saindo do encanto. Com eles olhando para o inferno onde estavam. Westyn
fitou Liryan com profundidade, fazendo o possível para não desviar os olhos
de seu amigo. Liryan parecia fazer o mesmo, quando por fim Westyn
prosseguiu. — Estamos na casa de Jezibaba. E precisamos dar o fora daqui.
Agora.
— Porra. — Liryan grasnou, o olhar tremendo, quando ele lutou para
não olhar em volta.
Ele sabia, sabia que algo estava errado. Seus instintos o alertaram em
uma advertência ecoante; sua mente o avisou, quando encontraram a velha,
de que algo estava muito errado.
Mas nada disso adiantou no momento em que fitaram a velha e caíram
em seu encanto visual. Em sua névoa macabra que ocultava a percepção da
realidade.
Merda. Estavam na casa de um ser de quem ouviu durante a infância
toda seus contos de horror. Na casa sangrenta da Mãe da floresta. De
Jezibaba.
Westyn mal piscava, sentindo seus olhos arderem, com seus instintos
fervilhando, com a atenção de vários olhares mórbidos sobre ele. Nas
paredes, no chão, nos móveis, em todos os lugares.
Ele viu Gwen se voltar para ele, com ele não contendo seus
movimentos, quando se direcionou para ela, agarrando seus braços.
— Gwen — esbravejou. Ela arfou assustada quando ele a pegou. O
fitando com as órbitas brancas, as sobrancelhas erguidas em confusão. —
Precisa enxergar. É um encanto maligno, de um ser antigo e hediondo.
Enxergue.
— O quê? — Ela grunhiu, com ele a sacudindo.
— Que porra, Westyn? — Skye se direcionou para eles, estancando a
um passo, arfando quando seu fôlego foi roubado pelo choque.
As órbitas nubladas cintilaram quando a névoa se esvaiu, deixando suas
íris azuis visíveis para que, finalmente, ele pudesse enxergar com clareza a
realidade sem encanto algum.
E ele olhou. Diferente dos outros que temiam deslizar o olhar pelo lugar
em torno deles, Skye olhou.
A pele do Lorioran se tornara sem cor, com a palidez assumindo um
tom mórbido, quando ele vagou o olhar pelas paredes, agora reais, da casa.
Para o que se encontrava costurado sobre elas, mais precisamente os
rostos. Incontáveis rostos de crianças e adultos em expressões de pânico e
dor, as faces rasgadas e costuradas umas nas outras, como um imenso manto
de couro e pele de pessoas.
O Lorioran levou uma mão para sua boca no exato instante que ressoou
um som de vômito, quando seu enjoo ameaçou vazar para fora, com Skye o
contendo.
Aquilo pareceu despertar Gwen, com o encanto se desvaindo de seus
olhos. Ela estremeceu sobre Westyn, levando uma mão para o peito dele, se
apoiando zonza quando fitou o lugar e ele não teve outra escolha senão olhar
também.
E os rostos nas paredes olharam de volta.
— Esse lugar... — Gwen gemeu pavorosa.
— Precisamos ir. — Westyn grunhiu entredentes.
— Mas e o mapa? — Skye indagou com um tom trêmulo, gaguejando
em sua pronúncia oca.
— Que se foda o mapa. — Raven rosnou. — Vamos dar o fora agora
desse lugar...
Westyn sibilou em concordância, deslizando sua mão pelo braço de
Gwen, unindo suas mãos ao entrelaçar seus dedos. Gwen apertou em
reconforto. As palmas de suas mãos tão gélidas e trêmulas.
— Vamos... — Eles mal deram dois passos para a entrada quando um
ruído ecoou abrupto assim que a porta, ainda aberta, se arremessou com
brutalidade em direção ao portal, se fechando em um estalo. Gwen e Nora
gritaram pelo susto com o som do estrondo.
Então foram tomados por sombras no recinto mal iluminado.
— Merda! Merda! Merda! — Skye rosnou colérico, correndo feito um
louco na direção da porta, agarrando a maçaneta e puxando em vão. Estavam
selados. — Isso só pode ser uma brincadeira.
— Temos que encontrar uma abertura. — Raven rosnou.
Um baque estrondoso, seguido por outro, ecoou quando Skye chutou a
porta repetidas vezes. Sem triunfo em arrebentar a estrutura.
— Porra. — O Lorioran grasnou.
Um som, um maligno e arrepiante som se instalou na sala quando uma
risada sobrenatural, como o som de pesadelos e gritaria, ecoou.
Cada um dos sete foram tomados por um calafrio congelante quando
enrijeceram em seus lugares, assim que uma presença entrou na sala. Junto
com uma névoa espessa e esfumaçante.
Westyn apertou a mão de Gwen, com eles se voltando para trás,
tentando enxergar com clareza na direção da entrada dos corredores. Ele se
colocou na frente dela, expondo os dentes, eriçado.
Lá estava. No arco da entrada, em pé, rindo como algo que eles nunca
tinham escutado. O próprio som da morte. Arranhado e tenebroso.
A Mãe da floresta gargalhou, com os olhos dourados queimando em um
brilho maligno, se destacando em meio à névoa sombria quando fitou cada
um.
— Vão a algum lugar, crianças?
23

Skye quase atirara sua lança na direção daquela velha desgraçada. Ele
desejava que ela pudesse atravessar no crânio em um ataque certeiro, quando
a mesma continuava a gargalhar para eles ali à frente. Apenas o medo, do
mais profundo e intenso, o impediu de o fazer, quando um calafrio
escorregou por sua espinha, o congelando em seu lugar.
Thorion enrijeceu ao seu lado, com sua pelagem branca inteira se
eriçando em um silvo. Merda. Aquilo não era nada bom. Nem um pouco.
Todos estancaram, quando o ar no recinto pareceu engrossar, se
tornando espesso. Quase como se uma suave fumaça inundasse o lugar
inteiro. Uma névoa.
Skye levou o olhar para a velha, no arco do corredor, embora não
conseguisse distinguir sua silhueta com clareza agora, devido à névoa que os
sondavam.
— Não vão sem o mapa, não é?
Ele viu algo ser erguido em meio às sombras e neblina. Mas não se
atentou àquilo, não quando o tom da velha mudou. Antes dócil e terno, agora
grave e estridente.
— Nos entregue, agora.
— Venha pegar, criança tola.
A velha riu. Um som de pesadelos. Era o que era.
— Você nos fez vir até essa casa de merda. Apenas nos entregue esse
mapa e saímos sem confusão alguma.
Um chiado grasnado estrondeou a garganta da velha.
— Você tem uma língua afiada, criança. Irei adorar arrancar e devorá-
la.
Skye sorriu colérico.
— Sabe o que é afiado também, velha desgraçada? — A lança rodopiou
em um movimento rápido em sua mão. — Minha lança.
Ele estava de saco cheio de tudo aquilo, bestas do fosso, Feänors,
Pixies, Goblins e agora uma velha louca? Skye estava cansado disso.
Mãe da floresta, fora como Westyn a chamara? Skye vasculhou suas
memórias buscando cantigas e contos desconhecidos sobre tal criatura. Não
encontrou nada. Não a conhecia. Mas sabia que não era uma coisa boa. A
mera presença dela instigava calafrios de horror por seu corpo.
Porra. Por que não tinha que ser uma velha bondosa com doces? Que
merda tinham feito aos deuses para merecerem aquilo?
— Venham, aqui está o mapa. Não sairão do Vale sem ele. — Algo
brilhou em meio à névoa sombria, tinha um formato simétrico, quadricular. O
mapa estava cintilando, erguido por uma mão da velha.
— Não. Decidimos que iremos sem. — Liryan pestanejou.
— Acabaram de chegar. Acomodem-se em minha modesta casa. — Ela
guinchou a eles, ainda rindo.
Modesta. Aquilo era um eufemismo fodido para definir aquela merda de
casa. Skye tentava ao máximo evitar fitar os rostos contorcidos e
horripilantes pregados nas paredes e piso. Vários rostos, com as peles
arrancadas costuradas uma sobre a outra, pregadas em todos os lugares.
Mesmo os móveis eram de ossos e peles.
Seu estômago revirava em uma ameaça de vômito a cada olhar, com a
névoa grossa ajudando a evitar aquela visão assombrosa.
— Já estamos de partida. — Raven sibilou. — Não temos tempo a
perder.
— Tempo. — A velha ressoou a palavra, como se degustasse dela. — O
que é o tempo nesse lugar?
— Abra a porta, velha. — Westyn gracejou entredentes, se colocando
na frente de Gwen. De mãos dadas. Skye grunhiu em concordância, o aperto
em sua lança firme.
Um estalo chiou na sala, vindo dela, quando a velha pareceu se
contorcer, a coluna indo para um lado e os braços para o outro ao curvar o
corpo de uma forma estranha.
— Merda. — Skye sussurrou.
— Não deveriam ter entrado neste lugar, crianças. — A velha
esbravejou, com o tom arranhado se mesclando a sua risada hedionda. —
Não deveriam mesmo.
Liryan deu um passo à frente, sem recuar perante ela.
— Sabemos o que você é e quem você é.
— É claro que sabem. — A velha grunhiu. — Vocês são diferentes.
Cada um. Inteligentes. Charmosos. Poderosos. Possuem belos rostos, e serão
ótimas aquisições para a minha coleção.
Ela pareceu inspirar fundo, inalando em um som de júbilo ao apreciar o
aroma deles.
— Vai sonhando, velha — grasnou Skye e Thorion, em uníssono.
— É melhor nos deixar ir, criatura. — Raven rosnou, o que só a fez rir
ainda mais em uma gargalhada sonora.
— Tão corajosos... — zombou. — Tão tolos.
— Não queremos confusão. Apenas queremos sair deste lugar. —
Liryan, com seu tom gentil, murmurou.
— Sair? — A velha indagou irônica. — Não irão sair daqui. Não mais.
Irei cortar seus lindos rostos e costurá-los em minha coleção.
Cada um dos sete arfou em alerta, com o corpo de Skye congelando em
um horror nauseante.
— Uma porra que vai. — Westyn rugiu.
— É melhor nos deixar sair, velha desgraçada. — Skye se direcionou
até ela. Outro estalo chiou, quando ela se virou para ele. Os braços longos
tomando foco na névoa. — Ou vamos acabar com você.
A velha o encarou, com os olhos dourados fervendo perante as sombras
nebulosas. Em puro e completo deleite. E fome.
— Tentem.
Ela jogou o corpo para frente, se curvando, como se os ossos se
alongassem, crescendo, esticando seu corpo.
— Temos que pegar o mapa. — Liryan esbravejou. — Se preparem
para atacar.
— Ótimo. — Skye cuspiu irônico, modelando sua postura para uma de
ataque.
Foi então que a velha atacou, se lançando na direção de Raven e Nora
com uma rapidez assustadora.
Nora gritou iminente, girando o corpo com maestria e desviando dos
golpes ferozes da velha com suas mãos cheias de unhas enormes afiadas.
Raven fora mais ágil, deslizando o corpo para baixo e dando uma
rasteira na velha com uma das pernas, a derrubando no chão, mas a velha
gargalhou, se ajustando como um demônio veloz e rastejando entre pernas e
braços na direção dela.
Thorion rosnou, saltando para a velha em um piscar de olhos, as garras
raspando contra o flanco dela.
— Besta imunda. — A velha gritou, acertando um golpe no tronco do
imenso tigre e o arremessando para longe, em um baque surdo contra a
parede.
Skye ofegou ao assistir o tigre despencar em um gemido de dor, com o
Lorioran correndo até ela.
Ele ouviu Westyn rosnar raivoso, embora não focou nisso quando se
ajoelhou ao lado do tigre que se erguia com dificuldade.
— Você está bem? — Ele acariciou a nuca peluda da fera, que chiou
um sibilo, acenando com a cabeça em concordância. Skye sorriu para ele. —
Tenha cuidado, seu gatinho tolo.
Ambos levaram o olhar para o combate que a velha travava com Nora e
Raven, as duas trabalhando em comum acordo contra ela, com Raven na
defensiva e Nora no contra-ataque.
— Nos entregue o mapa — rosnava Raven.
A velha apenas riu, atacando frenética.
Em um movimento rápido, Nora ergueu as asas que descansavam
acolhidas, e deu impulso para cima, se lançando na direção de uma parede ao
pegar impacto e se locomover em um giro no ar para a velha, que estava
distraída golpeando Raven, sem perceber o ataque que vinha por sua
retaguarda.
Foi assim que a Pixie aproveitou para desferir dois chutes nas costas da
velha distraída, arremessando com brutalidade o corpo esguio a metros contra
uma mesinha de centro, que fora estilhaçada com o impacto.
Uma folha brilhante caiu no ar, como uma pena levitando, e com
rapidez Raven saltou, a pegando.
— O mapa — anunciou sem fôlego. — Eu peguei.
Ele viu quando ela a guardou no bolso de seu casaco, se voltando para
Nora que descia para o seu lado.
— Vamos dar o fora, agora. — Westyn esbravejou.
— Rápido. — Liryan deu passos apressados na direção da porta selada,
mas não previra a coisa horrenda que se lançou como um demônio sobre ele.
O grito de Westyn ecoou quando ele viu seu companheiro de equipe ser
atacado pela velha, que gritava e ria, conforme desferia golpes contra Liryan
no chão.
— Deixe-o, desgraçada.
Os dois rolaram pelo piso, com Liryan se defendendo o máximo que
podia dos ataques sobre ele.
Com um rugido reverberando por sua garganta, ele explodiu em luz
violeta, iluminando seu corpo inteiro, ao arremessar a velha para longe dele.
— Você está bem, irmão? — indagou Westyn aflito, ainda de mãos
dadas com Gwen, conforme Liryan se erguia, apressado.
Em pé, o Feänor castanho apenas assentiu sem fôlego. Skye podia
distinguir alguns arranhões de unhas nos braços e rosto dele.
— Vocês irão pagar por isso, crianças idiotas. — A risada estridente
chiou, conforme eles levaram o olhar para a velha imensa que se erguia do
chão a alguns metros do outro lado.
— É melhor abrir essa porta e nos deixar sair. — A voz de Raven
engrossou com sua ameaça implícita.
— Não irão sair daqui, não mais. — Entoou a velha. — Se tornarão
parte de minha casa, e assim será.
Então, em um movimento, ela se lançou para trás, a coluna se retesando
em um estalo, quando a velha caiu de quatro no chão, os braços sendo o
suporte do corpo com as pernas, com ela gargalhando ao começar a subir a
porra das paredes.
Puta merda.
Luz. Incandescente e feroz, de um tom violeta, iluminou o recinto
inteiro vinda de Westyn e Liryan.
Thorion rosnou ao seu lado, quando Skye levou o olhar para cima, na
direção de uma gargalhada estranha, nem um pouco comum, quando as luzes
dos Feänors clarearam o recinto inteiro.
Então eles viram a criatura mais horrenda e monstruosa de suas vidas.
Feita de pesadelos e desgraça.
A verdadeira forma da velha.
O corpo parecia ter sido esticado, o vestido caíra dele, posto ao chão,
com os seios murchos caindo quase como braços sobre seu tronco longo e
pálido, os braços eram imensos, finos e pálidos, com os dedos esticados
repletos daquelas unhas projetadas.
A cabeça da velha era um horror para os olhos, achatada, com uma boca
imensa escancarada, com dentes pretos tortos e pontiagudos.
Ela estava no teto, os fitando com um sorriso demoníaco, os imensos
olhos sobrenaturais os fitando com uma calma fria.
— Eu sei o que são também. — Ela raspou uma língua grossa e esticada
pelos lábios murchos. — E vou degustar do sangue de cada um.
Principalmente dos mestiços.
Girando o pescoço, em um ângulo impossível, a velha levou seu olhar
para Westyn, então em completo horror. Skye percebera onde aqueles olhos
se detiveram quando Gwen arfou, a encarando de volta.
— E você... — Ela sorriu, a boca demoníaca rasgando sua face em uma
abertura desproporcional, quase até os olhos. — Eu vou me banhar com seu
sangue e vísceras.
Então a Mãe da floresta saltou para eles, com as garras projetadas e os
braços de meio metro abertos para colidir contra eles. Fora uma visão dos
infernos ver aquele monstro imenso, esticado e nu, saltar para Westyn e
Gwen, sendo o suficiente para libertar Skye de seu estupor.
A meia distância, um raio disparou para a velha, lançando o corpo
esguio para longe, para a parede adjacente em um estouro de luzes violetas.
— Chegue perto dela... — Westyn, revestido em um brilho ametista
pelas marcas de seu corpo, com uma das mãos erguidas e uma esfera de luz
surgindo na palma, apontou para a velha. — E eu mato você.
Skye expôs as presas, quando cada um dos sete, um acompanhando o
outro, se colocou em postura de ataque, grasnando para a criatura que se
erguia para eles do outro lado.
Ela se ergueu entre pernas e braços longos, com toda a estrutura do
corpo antropomórfico de quatro no chão, os seios murchos quase tocando o
piso, quando a velha sorriu para eles.
— Irei arrancar o coração de cada um de vocês — sibilou em uma fúria
monstruosa, curvando a cabeça para o lado, observando quando um brilho
prateado cintilou em meio às sombras da penumbra, vindo da ponta de um
ferro de troll.
Conforme Skye sorriu, girando e rodopiando sua lança, a pondo em
riste contra seu antebraço, estendendo o outro e manejando a palma em um
convite irônico.
— Pode vir, velha desgraçada.
E assim ela o fez, disparando pelo chão como uma imensa aranha para
ele, rugindo esfomeada e colérica.

Gwen assistiu atônita quando a velha se locomoveu com uma rapidez


assustadora para Skye, com ele se lançando para ela, a um passo de distância,
saltando no ar em uma cambalhota que só ele poderia dar, sobrevoando a
velha e atingindo um corte em suas costas nuas com a lança, arrancando um
urro da mesma, que tentara em vão o agarrar com os braços esguios.
Ele pousou, dando impulso com os pés em uma parede de rostos
costurados, quando a criatura atacou seu flanco. Jezibaba, fora como Westyn
a chamara. A Mãe da floresta. Uma criatura de névoa e terrores.
Jezibaba tentou atingir suas garras contra o flanco de Skye, quando ele
desviou em uma finta curva, se desvencilhando em movimentos majestosos.
A lança colidiu contra o braço da velha, quando ele desferiu um ataque
na cabeça, sendo barrado.
— Maldito. — A velha cuspiu. Skye sorriu, se afastando.
De forma lenta ele deu passos para trás quando a Mãe da floresta se
ergueu, se colocando de pé, arrancando xingamentos apavorados pelo recinto,
quando ela quase tocara o teto em sua altura alongada e monstruosa.
Skye, estupefato em horror, não previra quando ela conjurou uma
espécie de poder maligno, e foi como se as sombras se tornassem conscientes
e obedecessem a ela, e assim uma névoa se lançou para Skye, o arremessando
pelo ar.
Gwen gritou, com Thorion a acompanhando em um rosnado feroz,
saltando contra as costas imensas da velha, rasgando com suas garras
conforme ela tentava se desvencilhar da fera em berros demoníacos.
— Skye! — Gwen gritou, se soltando de Westyn e correndo para onde
seu amigo tinha caído sobre uma mobília feita de ossos.
Mas fora interceptada no meio do caminho, quando a velha agarrou
Thorion sobre ela e o arremessou na direção de Gwen, em uma colisão bruta,
levando os dois ao chão.
Ela arfou sem ar com o peso do tigre, protegendo seu rosto e cabeça
com as mãos quando bateu contra o piso. Um rosto infantil e dócil, preso em
uma expressão de dor, a encarou no piso, com ela contendo o enjoo que a
inundou com a visão.
Thorion se ajustou sobre ela, saindo de cima, conforme ela mesma se
erguia, sentando.
Skye já estava erguido do outro lado, a fitando.
— Estou bem — murmuraram em uníssono um para o outro.
Ambos levaram o olhar adiante para a velha monstruosa, raspando as
garras contra as paredes.
— Me pergunto, o que crianças como vocês fazem longe de seus
povos? — murmurou sonora. — Tão diferentes e incomuns. Que jogo seus
deuses fazem para os unir?
Gwen aproveitou o momento, deslizando as mãos pelo chão, para os
destroços de uma mobília que colidira, quando Jezibaba direcionou o olhar
para Skye, como um foco deturpado, deslizando em seguida para Gwen a
alguns metros.
— Consigo distinguir perfeitamente os outros. O sabor deles. — Ela
retrucou, inspirando fundo ao inalar o ar. — Mas não os dois.
Gwen engoliu em seco com dificuldade.
— O que vocês são?
Ela mostrou os dentes pretos. A boca se abrindo em uma abertura
descomunal e monstruosa, rasgando a face dela quase até às órbitas oculares.
Os cabelos brancos caindo em fiapos pela nuca oca. Como os de uma
espiga de milho, mal alinhados sobre a cabeça achatada e deformada.
Se aprumando, Gwen se ergueu por completo, ficando em pé, ajeitando
sua postura, retribuindo o olhar colérico dela.
— Quer saber o que somos?
Ela sorriu. Cortês até.
A velha franziu o cenho murcho.
— Diga, criança. Agora.
Gwen piscou para ela, fechando seu punho em volta do osso longo e
afiado, correndo para a velha.
— Sua morte.
Subindo sobre uma poltrona no centro, Gwen colocou impulso em seu
corpo e saltou furiosa em direção à velha, que a fitou com os olhos dourados
esbugalhados em espanto.
Com um movimento rápido, Gwen desferiu seu punho contra a
clavícula dela, o mais perto que chegara, enfiando o osso até a ponta em sua
carne, estremecendo a mão quando a cartilagem da pele fina se rasgou em um
buraco, escorrendo sangue negro.
Urrando, a velha desferiu um golpe em Gwen com o braço, jogando-a
para trás, que caiu rolando sobre o piso, rindo conforme a ouvia gritar em
completa agonia pelo ataque, se debatendo e esbarrando contra a mobília e
paredes.
Skye estava em instantes ao lado de Gwen, a ajudando a se erguer, com
Thorion surgindo do outro, esfregando seu focinho contra ela.
— Maldita! — urrava em desespero e dor. — Maldita!
Sangue e mais sangue negro jorrava, banhando a pele pálida e fina da
velha em uma camada grossa.
— Você está bem? — Skye murmurou para ela, um braço em volta de
Gwen quando a levantou. Ela assentiu, recebendo um sorrisinho dele. — Belo
golpe.
— Eu sei. — Ela retribuiu o sorriso breve.
Eles assistiram, enquanto a velha se debatia em gritos e urros, berrando
palavras antigas em uma língua arcaica, conforme tentava tirar o talo do osso
de sua perfuração.
Um estalo ecoou, quando o osso de repente caiu no chão. O som
reverberando pelo piso.
A velha começou a rir. Não. Gargalhar. A gargalhada frenética
causando arrepios na base de Gwen.
Ela se virou lentamente para eles, fitando cada um conforme se
afastava, dando passos lentos para a parede, colando suas costas a ela e
começando a subir, em uma escalada lenta.
— Não deveria ter feito isso — sibilava rindo.
— Não deveria ter nos trazido aqui. — Skye rebateu.
Gwen observou quando o recinto mal iluminado se tornou ainda mais
escuro, completamente. Eles perderam a velha de vista. Pelos deuses. Mal
poderiam se enxergar na escuridão que os cobriu.
Skye deslizou a mão para a sua, apertando firme. Juntos.
— Mas que porra... — Westyn xingou.
— Calma. — Liryan murmurou, as marcas cintilando em um tom tão
fraco, que parecia que aquela escuridão maligna devorava sua essência. —
Onde ela está?
— Merda. Cadê ela? — Westyn, que tinha brilhado tão forte alguns
minutos atrás, estava opaco.
— Não sei. — Raven grunhiu. — Fiquem atentos às paredes.
— Mas e se ela estiver sobre o chão? — Nora arfou temerosa; com
rapidez eles vasculharam o chão, sem enxergar onde pisavam. Escuridão.
Apenas escuridão. As luzes ametistas dos Feänors não ajudavam em nada. O
que quer que aquelas sombras fossem, não eram naturais. Eram malignas.
A risada estridente chiou em um eco vibrante. Todos levaram o olhar
para o teto, em cada direção.
— Cuidado com a velha gentil — cantarolou de todos os lugares. De
todas as direções. — Cuidado com seu riso. Cuidado com sua casa modesta.
Porque no coração da floresta ela habita. — O riso chiou mordaz. As
sombras pareceram dançar em harmonia ao cântico sombrio. — Cuidado com
a Mãe da floresta, porque ela vai te pegar.
Um grito estrondou, assustando todos, quando Nora berrou em
completo pavor e dor. Cessando de imediato.
— Nora! — Raven berrou. — Nora! Cadê você? Nora!
— Merda. — Westyn chiou. — Nora? Nora!
Eles gritaram por ela. Um por um. Sem resposta.
A garganta de Gwen se apertou com força. Ela arfou.
— Nora! — Raven gritava frenética. O tom rouco e embargado pelos
gritos. — Devolva ela, desgraçada! Por favor! Eu estou implorando! Por
favor. Traga ela de volta.
O coração de Gwen pareceu ter corrido para sua garganta quando ela
reconheceu o desespero e o aroma de completo medo e aflição de Raven.
A risada estridente soou outra vez.
— Cuidado com a velha gentil. — A voz cantarolou maligna. —
Cuidado com sua casa modesta.
— Vá se foder sua... — O grito de Raven ecoou voraz. Não de apelo.
Mas de medo. Um berro ecoante e sonoro que cessou em um instante.
Então Raven se fora. E a risada aumentou.
— Pare com isso — gritou Westyn. — As devolva agora!
Um brilho violeta cintilou por ele. Mas se apagara como um sopro sobre
uma vela. A escuridão pareceu rir em deleite.
Skye apertou sua mão, ofegando.
— Temos de sair. — Ele sussurrou para ela.
Ela abriu a boca para responder, mesmo que achasse que não
conseguiria encontrar sua voz. Seu coração a desnorteava com suas batidas
desesperadas, quando um som ruidoso reverberou por eles.
Um grasnado animal, em dor, e então Thorion se fora.
— Não. Não. Não. Não. — Westyn e Liryan gritaram ainda mais. O
corpo de Gwen raspou calafrios com o som que eles emitiam. O completo
desespero.
— Traga ele de volta, desgraçada! — Westyn urrou em agonia. O tom
falhando ao tremer. Ele pareceu cair de joelhos quando o som de sua queda se
instalou. — Traga ele... Por favor.
Westyn gritou em seguida, então cessara.
— Westyn? — Liryan ofegou atônito com o tom trêmulo. — Não! Não!
Westyn! Não!
— Ele... Deuses. — Gwen estremeceu, não contendo as lágrimas que
inundaram seus olhos. O medo ferveu seu sangue em um declínio perigoso.
— Por favor... Pare. — O som viera de Skye, e aquele tom quebrado,
embargado, entregou seu choro.
Era o fim deles.
— Os devolva agora. — Liryan ainda sibilava.
— Porque no coração da floresta ela habita.
— Traga eles de volta! — Liryan rosnou, ensandecido de dor e pânico
para a voz harmoniosa que apenas ria. — Por favor... Porra!
Em um grito brando Liryan se fora.
— Não! — Gwen gritou, dando um passo na direção em que achava que
Liryan estivera, cometendo o erro de soltar a mão de Skye.
E aquilo fora o fim.
— Gwen... — Ele sussurrou uma última vez, em um sibilo doloroso, e
simplesmente se fora. Como se fosse engolido pelo chão. Evaporado e mais
nada.
Ela estancou, um grito rasgando preso em sua garganta.
E um rugido estourou em sua cabeça.
Skye se fora.
Ele se fora diante de seus olhos.
Ela tinha soltado sua mão. Fora sua culpa.
Ela fizera isso a ele.
Ele se fora.
Se fora.
Todos se foram.
A risada retornou, dessa vez mais perto, com o manto sombrio se
dissolvendo diante dos olhos arregalados e vidrados de Gwen.
Um imenso conjunto de sombras se formou, se unificando em uma
forma feminina. E a velha, na forma da mulher que se apresentara para eles
no bosque, surgiu diante de Gwen e lhe sorriu.
— Cuidado com a Mãe da floresta, porque ela vai te pegar. — A
mulher sorriu para ela ao terminar sua cantiga maligna. Dando passos para
ela.
Gwen a fitou sem enxergar, nem mesmo sentira as lágrimas que
escorriam por seu rosto. Sua respiração travara, as batidas de seu coração
cessaram.
Skye se fora.
Por sua culpa.
Ela soltara sua mão.
— Eu a avisei, criança. — Jezibaba parou diante dela, completamente
nua, feita de sombras e desgraça. O sorriso que abriu para Gwen fora mortal.
Os olhos dourados flamejando em brasas. A Mãe da floresta ergueu sua mão
longa, levando para o rosto congelado de Gwen, deslizando por sua face
perturbada, acariciando sua bochecha. Gwen não sentira o toque. Não sentira
nada. — O que você é?
Os olhos não a encararam. Ela não sentia nada. Porque ele tinha partido.
Sem ela. Por sua culpa.
Um rangido ecoou em sua mente. O baú. O velho baú pareceu a encarar,
a observando com uma calma fria. As bordas tremendo com o conteúdo preso
dentro dele rugindo por liberdade.
Ele a olhou e, dessa vez, ela olhou de volta.
— Que tipo de ser você é para possuir tanta essência divina? Eu a quero
para mim. E a irei devorar. — A boca da velha se rasgou quando ela a
escancarou, deslizando a mão para o pescoço de Gwen, as garras projetadas
cortando o fio do cordão de seu colar, quando ela apertou o pescoço de
Gwen.
O colar deslizou por Gwen, caindo no chão em um baque.
E ela sentiu, sentiu cada mínima parte, quando o fecho do baú se
rompeu em um estouro e aquela onda, uma onda feroz transbordou para fora,
o destruindo por completo, não, o derretendo inteiro, quando a onda se
tornou dourada e incandescente.
— Mas o que... — A velha arfou, firmando o aperto sobre o pescoço de
Gwen, mas ela não sentira nada.
Não quando fora inundada pela onda libertada, mas dessa vez, Gwen
não nadou para longe dela. A recebeu com intensidade e fora consumida.
Seu corpo inteiro estremeceu quando queimou e ferveu em uma
corrente de luz dourada. Ela ofegou.
Queimando. Estava ardendo e queimando.
Ele se fora.
Por sua culpa. Skye se fora.
A velha a fitou em completo estupor, com o mais profundo dos medos
se instalando em seu olhar.
— O que você é?
Não fora Gwen quem a encarou de volta, quando seus olhos queimaram
em fogo e pura luz dourada os inundou, fervendo. Seu corpo inteiro se
infestou de luz, a vestindo, sua pele queimando e queimando em feixes de
luz. Mas nada ela sentira.
A mão em volta do pescoço de Gwen derreteu, quando a pele se tornou
dourada e incandescente, em fogo.
Jezibaba gritou apavorada.
O ser feito de luz diante dela sorriu, um sorriso imortal e letal, quando
Gwen abriu os braços por completo e explodiu.
Como uma supernova, se tornando o próprio sol, liberando a maresia
sem fim que a tomava, libertando as ondas que a afogavam.
O grito da velha fora cortado quando a explosão a atingiu e então a
consumiu, junto às sombras e ao recinto inteiro.
Fora como uma eclosão, destroçando tudo.
Seja luz, Gwen.
Então ela se tornou luz e queimou tudo com ela.
24

Tinha sido consumido por sombras, como se a própria escuridão o


engolisse. Pareceu ter se passado uma eternidade quando sua existência fora
devorada pelas sombras. Só houvera escuridão o sondando. Então havia luz.
A mais feroz e imortal luz clareou o mundo e o trouxe de volta do vácuo
onde estivera. Do buraco no contínuo espaço onde fora aprisionado. Luz.
Apenas luz havia então.
Ele colocou a mão sobre seus olhos, evitando que se cegasse diante do
próprio sol. Glorioso e eterno. Poderoso e divino. Mas logo Westyn
percebera que aquilo perante ele não era a porra do sol queimando tudo com
sua magnitude infinita.
Não, aquela forma vivaz e abrasadora queimando no centro de uma
explosão imensurável não era o sol que estava posto no horizonte sobre
Eldar. Embora fosse sua imagem e semelhança em grandeza e poder.
Seus sentidos apurados despertaram, com seu coração se tornando
desenfreado quando ele a distinguiu. Aqueles traços e silhueta que ele
aprendera a admirar como um artista, ardendo em luz.
Era ela.
Gwen.
Um grito de assombro se prendeu em sua garganta conforme ele
distinguia sua silhueta em meio à esfera de fogo e luz que a envolvia. Como
um vislumbre divino do próprio sol. Gwen tinha se tornado uma estrela anã
branca, com seu núcleo eclodindo em uma explosão nuclear.
Puta merda. Ela tinha se tornado a porra do sol.
Ela estava no centro da explosão, queimando como uma supernova no
ar. Sim, porra. Ela estava no ar. Flutuando a metros do chão em uma
gravidade majestosa, profana, levitando em maestria.
Queimando e queimando tudo.
Mas os raios que lançava pareciam não o atingir, como se ela mesma
desejasse que assim não o fizessem. Mas eram fortes o suficiente para o
derreterem e o cegaram com a incandescência sem fim. O colapso do
universo e do infinito.
Os cabelos dela se tornaram chamas douradas, como raios solares,
flutuando atrás dela, as roupas queimaram em sua explosão divina.
E lá estava ela, com os braços abertos, o corpo feito de luz e chamas
douradas. Queimando a área inteira a quilômetros e quilômetros com o mais
profano poder.
Aquilo... Ela... Poderia destruir o mundo inteiro.
Luz.
Ela tinha se tornado a própria luz.
E aquele poder... Talvez fora esse o poder da primeira Feänor. Talvez
isso explicasse o fato de Gwen ter tamanho poder preso dentro de si.
Ela era descendente da linhagem divina da primeira Feänor. O poder
que emanava era um traço do que fora roubado dos deuses, herdado por ela.
Agora as peças começavam a se encaixar na cabeça de Westyn. Mais e
mais se montando em seguida.
— Gwen! — Westyn gritou, rouco, em meio ao som da completa
destruição que ela causava. Ele cobriu seu rosto com o braço quando ela
pareceu se incendiar ainda mais. Merda. — Você precisa parar! Ou vai
queimar tudo!
O ser de luz nem mesmo deu ouvidos a ele, com chamas e mais chamas
consumindo a redoma inteira. Os destroços onde ele estava jogado, outrora
fora a casa da Mãe da floresta, havendo apenas alguns objetos, madeiras e
ripas espalhadas do que restaram do lugar agora.
Nada de Jezibaba. Gwen tinha dizimado sua existência. Aquilo revirou
o estômago de Westyn em terror absoluto.
O poder. Aquela porra de poder. Não era natural.
Porque agora ele sabia que Gwen Briffyn, o ser ardendo em luz no
centro de tudo, não era apenas uma Lorioran de Wenkael. Caralho. Ela era o
próprio Sol. E o poder que emanava em ondas brutais dela não era nada
apenas de divino e celestial.
Westyn engoliu em seco. Era o poder dos deuses.
Ele arfou em dor, vendo uma queimadura começar a surgir em seu
braço erguido. Se a olhasse por completo, na melhor das hipóteses poderia
perder a visão, na pior poderia ser dizimado.
Mas aquele poder, que iluminou e tomou a redondeza inteira em luz
voraz, estava o queimando aos poucos; se ela não parasse, iria o desintegrar.
Pelos deuses. Poderia desintegrar Eldar inteira.
Contudo, não havia nada que ele pudesse fazer, além de conjurar sua
própria magia, projetando um escudo ametista em volta dele ao chão, o
protegendo o máximo que pudesse daquele poder profano.
Porque aquela flutuando no ar não era mais Gwen.
Era um ser etéreo que destruiria tudo sem consciência alguma. E seria a
ruína de seu mundo.
— Gwen! — Um voz ecoou arrasada no recinto.
Ele a reconheceu de imediato, levando o olhar coberto pelo braço na
outra direção, a alguns metros à frente. Skye estava se erguendo de destroços
do piso, com Thorion ao seu lado, nu em sua forma Feänor.
Havia madeiras imensas quebradas em torno deles, com vestígios da
construção destruída por todo lado.
O Lorioran tinha um braço sobre seus olhos, conforme se erguia,
levando o olhar para ela.
— Gwen. Precisa parar! — Skye gritou rouco. — Eu estou aqui! Eu
estou bem! Mas precisa parar agora!
Chamas rasparam o ar ainda mais. Como se o ar fosse restaurado em
uma essência ardente, se modificando para fogo puro.
Westyn vasculhou a zona explodida, encontrando Raven e Nora juntas
em meio aos destroços, fitando Skye do outro lado, então ele viu em alívio
Liryan a alguns passos delas, com uma barreira posta sobre eles. A mesma
que Thorion conjurava para si e Skye.
— Gwen... Eu estou aqui... — O Lorioran chorava e chorava conforme
gritava para ela. O ser de luz no ar se virou para ele então, curvando a cabeça
quando ela o fitou, atenta. — Sou eu, Skye. Seu Skye. Por favor, pare. Precisa
parar, Gwen.
Ele gaguejava, conforme chorava.
O ser de luz o fitou por longos momentos para, em seguida, de forma
lenta, erguer a mão na direção deles.
O coração de Westyn parou de imediato.
Ele percebeu o que ela faria no instante em que o corpo inteiro dela
reverberou em luz bruta e violenta.
Skye também percebera com rapidez.
Seria o fim deles, de tudo.
— Fechem os olhos. Agora! — O Lorioran gritou para todos em um
berro grotesco. Ninguém hesitou em obedecer, com Westyn tendo um último
vislumbre de Skye quando ele correu para fora da barreira de Thorion e se
lançou para Gwen.
Então o mundo inteiro explodiu, em um eco profano de poder que
estremeceu o Vale inteiro. Talvez Eldar inteira, com o baque estrondoso que
eclodiu. Um colapso temporal no espaço-tempo. O som de mundos surgindo,
e perecendo.
Mesmo com os olhos fechados, Westyn sentiu o impacto do poder
hediondo contra sua barreira, sentindo ela rachando em diversos pontos, com
ele pedindo aos deuses para que sua barreira e a de seus irmãos se
mantivessem firmes.
Silêncio. O mais mortal e assustador silêncio perdurou no recinto
destruído e em chamas, quando, por fim, Westyn arriscou abrir os olhos,
fitando o caos divino diante dele.
E ele perdeu o único fôlego que lhe restara quando fitou Skye. Ou o que
outrora fora Skye à frente.
Medo, o mais abominável e enlouquecedor o abraçou quando se viu
perante aqueles dois seres.
Porra.
Ele era revestido de luz, da mais pura e cintilante luz azul, com chamas
azuladas crepitando sobre o corpo incandescente, como o de Gwen.
— Puta merda. — Westyn arquejou boquiaberto e trêmulo conforme
fitava o que Skye se tornara.
Quando fitou o ser de chifres sobrevoando o solo, flutuando a metros de
onde Gwen estava e, entre eles, uma imensa barreira de luz azul se
solidificava com o ser divino, que outrora fora Skye, a erguendo.
Arrepios tomaram Westyn inteiro, com ele levando o olhar para o grupo
do outro lado. Assistindo a cena tão horrorizados e congelados quanto ele.
Skye os tinha protegido. A gigantesca barreira de luz que conjurara à
frente tinha recebido o ataque de Gwen com tudo, se desfazendo, enfim,
quando ele abaixou os braços.
Ele tinha os salvado daquele poder catastrófico.
Os seres de luz no centro de tudo se encararam, com a de luz dourada
fitando o de luz azul com atenção.
Skye, a uns bons sete metros do chão, estava nu como ela, mas seu
corpo não possuía camada alguma de pele à vista, assim como o de Gwen.
Ambos eram feitos de luzes e chamas. Etéreos.
Seres etéreos, era isso o que eles eram.
Mas ele possuía chifres, como uma pequena galhada de cervo, brotando
de sua nuca, dos cachos dourados que se tornaram chamas crepitantes.
No entanto, o estupor de Westyn fora arrancado quando o ser celestial
azul se direcionou para a dourada, falando em uma voz imortal e antiga, em
uma língua grossa e divina que soou como o princípio de tudo.

Ele era lindo e imortal, e os tinha salvado quando Gwen, naquela forma
etérea, quase os dizimara em um ataque de poder profano. Aquele pequeno
Lorioran de olhos azuis celestiais, tão lindo e corajoso, se tornara a porra de
um deus feito de chamas azuis e os protegera de sua amiga.
Thorion não conseguia mover um músculo, ele nem sabia se poderia.
Ainda achava que estava morto. Tinha estado, ele concluíra quando fora
tomado por sombras que o corroeram de dentro para fora. Não lembrava de
nada depois que fora consumido pela escuridão de Jezibaba. Apenas da luz
que o inundou e, quando abriu os olhos, lá estava ela brilhando como se fosse
o próprio sol sobre eles e queimando tudo com seu poder. E Skye estivera
sobre ele, o abraçando em completo terror sobre o corpo nu de Thorion.
O Lorioran tinha estado sobre ele. De alguma forma, quando voltaram
do lugar sombrio onde estiveram, tinha ido parar ao lado de Thorion, e agora
estava queimando como um deus metros à frente.
O ser etéreo que outrora fora Skye se aproximou ainda mais de Gwen,
ambos levitando no ar de uma forma majestosa e assustadora. Não estavam
voando, apenas flutuando, como se controlassem a gravidade.
Skye então entoou uma canção, não, ele falara, a voz o próprio som do
universo, em uma língua diferente de tudo. Uma língua primordial e divina,
se dirigindo para Gwen, que o encarava com uma frieza silenciosa.
Os olhos dela, antes tão nebulosos e cinzentos, agora ferviam como se
puras brasas ardessem nas íris que, agora, possuíam um tom dourado topázio.
E os de Skye, que sempre foram indescritíveis, eram como esferas
transbordando luz estrelar cintilante.
Ela se tornara o sol, e ele a lua.
O ser etéreo ergueu uma das mãos, estendendo para ela, que apenas o
fitou, para então estourar novamente em luz.
Thorion grunhiu, fortificando sua barreira estilhaçada quando a luz
dourada iluminou o mundo.
Quando cessou o poder, ele levou o olhar apressado para Skye,
impassível, a fitando, um escudo o sondando.
Boquiaberto, Thorion fitou Skye quando esse manejou as mãos para
cima, então uma correnteza de água brotou do solo, como se ele conjurasse
cada partícula de água enterrada nas profundezas da terra queimada pelo fogo
de Gwen.
Se unindo em uma onda imperiosa, aos comando dele, quando Skye
manuseou ao mãos em chamas azuis em breves movimentos e lançou a onda
flutuante sobre Gwen.
O ataque seria certeiro e a atingiria em um golpe atroz, com ela apenas
parada no ar, esperando, para então erguer a mão com delicadeza, barrando a
onda tempestuosa a metros dela.
Vapor preencheu o recinto, inundando o ar de calor fervente e uma
neblina sufocante quando Gwen transformou a onda inteira em vapor.
Quando a fumaça se espessou, Thorion viu a fúria celestial no ser
dourado, curvando a cabeça para fitar Skye, os cabelos em chamas caindo
sobre o ombro.
Thorion ofegou, quase choramingando, quando Gwen pareceu rir, uma
risada que estremeceu cada osso de seu corpo diante do som primordial.
Ela ergueu as duas mãos para cima, com a suavidade e a maestria de um
deus, acima de sua cabeça. Então cintilou intensamente. Cada parte do corpo
incandescente se iluminou.
Os olhos de Thorion lacrimejaram diante da luz que reverberou pelo
corpo dela, iluminando o recinto inteiro.
E no centro de suas palmas erguidas, uma bola de fogo começou a se
formar, crescendo e crescendo conforme ela brilhava ainda mais.
— Porra... Não, não, não. — Medo o drenou quando ele percebeu o que
ela estava prestes a fazer.
Thorion se ergueu cambaleando, diminuindo a barreira e caindo aos
tropeços nos destroços quando tentou correr adiante.
A bola de fogo, agora em um tamanho assustador sobre as mãos de
Gwen, enquanto ela fitava Skye com sagacidade.
Aquele poder destruiria ele. Seria o fim.
Thorion correu para ele.
Porque aquele poder que ela conjurava, destruiria Skye.
— Não! Skye! Não!
E aquilo fora seu maior erro, e Thorion morreria por isso. Mas mesmo
assim não cessou seus passos, correndo na direção do deus de chamas azuis,
mesmo quando Gwen levou seu olhar para ele, e ele podia jurar que aquele
ser glorioso sorriu em deleite.
Skye levou o olhar por cima de seu ombro quando acompanhou o olhar
dela para ele, e a visão daquele ser grandioso e divino o fitando o desnorteou.
Não era o Skye que o fitava, sempre em zombaria e irritado. Não era aquele
pequeno Lorioran lindo e raivoso de bochechas gordinhas. Era o próprio
divino que o fitava com esferas azuis em suas órbitas, quando Gwen ergueu
ainda mais os braços e mudou seu foco para ele.
Ele engasgou a meio caminho quando percebera aquilo, a vendo se
direcionar para ele com todo aquele poder.
Thorion tropeçou em um pedaço de madeira rachada, tropeçando e
caindo no solo queimado.
Gritos vieram atrás de si, o alertando para que corresse, para que fosse o
mais longe possível.
Mas quando ele ergueu o olhar, fora tarde demais. Gwen já havia
lançado aquele poder imortal sobre ele, arremessando a imensa bola de fogo
na direção de Thorion.
Lágrimas caíram ardentes por seu rosto, quando ele encarou seu fim
chegando, e então ele queimaria até se tornar nada.
Thorion fechou os olhos, clamando por seus deuses, quando calor
abrasante o abraçou com a chegada da bola de fogo.
O recinto inteiro ecoou o som do colapso destrutivo quando um baque
devastador se instalou.
O Feänor tigre ofegou quando não sentira sua dizimação chegar,
abrindo os olhos abruptos e trêmulos.
Para enxergar, a metros dele, o deus de chamas azuis contendo a bola de
fogo com uma das mãos. Uma ventania ardente e incontrolável raspava o ar
com o poder conjurado.
Skye moveu o braço com rapidez e disparou a bola de fogo de volta
para Gwen, que a dissolveu em um mero gesto de mãos antes mesmo que
chegasse a ela.
Thorion chorou, o coração a ponto de saltar pela boca com a visão
diante dele. Seu corpo inteiro tremendo como se não houvesse um osso
sequer sobre sua estrutura.
Mas não teve tempo de absorver o que acontecera, quando Skye se
virou para ele e o fitou com aqueles olhos siderais, com o brilho de estrelas,
vazando luz.
Ele o tinha salvado, outra vez. Aquele ser grandioso e divino ainda era
Skye. Por trás daquela luz intensa, o Lorioran feroz ainda estava sobre aquele
poder monstruoso.
Thorion, ainda boquiaberto, se moveu para se ajustar, contudo, em
instantes estava sobre o chão, para em seguida ser agarrado com força para o
ar.
Ele gritou assustado em estupor cego.
— Sou eu, idiota. — Westyn rosnou feroz, conforme segurava o corpo
de Thorion e os levava para o céu. As imensas asas negras de Westyn
tomando impulso com velocidade.
— O que está fazendo? — Thorion grunhiu, piscando os olhos para
afastar a imensidão de lágrimas, conforme se afastavam cada vez mais do
duelo imortal abaixo.
— O tirando de lá, seu imbecil. Onde estava com a cabeça correndo até
eles, idiota? Poderia ter morrido em instantes. — Thorion não se importou
em esclarecer que não tinha corrido até eles, mas sim até ele. Conforme
engolia a bile com dificuldade, observando seres alados mais à frente, com
Liryan sobrevoando o recinto e Nora ao lado, carregando Raven.
Fora então que Thorion se permitiu enxergar a destruição causada no
lugar, quando olhou para baixo e encarou o que restara da redoma florestal.
Apenas um imenso buraco onde outrora havia uma vasta floresta, o
desfiladeiro com solo preto queimado em cinzas, nenhum resquício de
árvores à vista.
Apenas destruição total.
25

Tinham pousado em uma área montanhosa, na encosta de uma colina


com uma planície rochosa, a uns bons setenta metros de distância do combate
dos dois seres etéreos no solo a metros abaixo.
Liryan se dirigiu para o cume, recolhendo as asas de falcão sobre suas
costas em uma postura firme, as unindo, conforme levava o olhar para os dois
seres abaixo.
Nora e Raven pousaram logo atrás, com Westyn e Thorion em seguida.
Ele ouviu os dois discutindo no ar, mas não conseguia raciocinar o suficiente,
não conseguia pensar, não obteve foco além do embate divino sob eles.
— Onde estava com a cabeça, seu idiota?
— Eu não pensei direito, Westyn.
— É claro que não. Quem é louco o suficiente para correr na direção da
morte? Imbecil.
— Não me insulte. — Thorion rosnou. — Queria que eu ficasse parado
e assistisse ela o destruir?
— E você iria fazer o quê, hein? Nada. Ela o teria matado e você não
poderia fazer nada. Ninguém poderia.
Aquilo atingiu Thorion, o desnorteando. Ele ainda estava nu, com as
duas garotas evitando fitar o imenso corpo dele, enquanto ele nem parecia se
dar conta daquilo, como sempre.
Nora, com as asas em riste, fitava o pico da montanha. Suas asas,
mesmo estendidas, ainda eram tão delicadas e menores comparadas às
envergaduras longas e grossas das asas de Westyn e Liryan.
Westyn grunhiu um resmungo, removendo sua jaqueta preta e jogando
para Thorion, que se dera conta então, bufando ao amarrar a peça em sua
cintura, se cobrindo.
— Aquilo... Não são mais eles. — Westyn apontou na direção dos seres
divinos com um tom entrecortado.
— Não. — Thorion contrapôs. — Ele... Ainda é ele.
Westyn riu amargo.
— É? Aquilo não me parece nada com Skye.
O ser de luz azul com chifres lançou uma correnteza de ar congelante e
imensa sobre o ser que outrora fora Gwen. Era como ver um duelo entre o sol
e a lua. O princípio do caos.
Thorion deu um pequeno rosnado para Westyn.
— Ainda é ele. Eu posso sentir. — O Feänor tigre inspirou fundo,
levando o olhar para o combate. — Ele me salvou há pouco. Ele nos salvou
no primeiro ataque dela. Ele ainda está lá...
— Thorion. — Westyn bufou grunhindo, esfregando o rosto
exasperado. Havia queimaduras em seus braços, como as que Liryan e o
restante possuíam pela aproximação demais daqueles seres. Mesmo Thorion
esbanjava uma enorme na lateral de seu peito. — Aquilo... O que quer que
sejam, não são mais eles.
— Foda-se. — Thorion rosnou, se afastando de Westyn, que apenas
estalou um xingamento, unindo suas asas negras sobre as costas.
Liryan então percebera a presença ao seu lado, nem mesmo tinha se
dado conta de sua aproximação quando ela se prostrou.
— Vocês sabiam... — Nora indagou, o tom arfante. — Sobre eles?
Liryan engoliu em seco, piscando, ao negar depois de alguns minutos de
forma incessante com a cabeça. Ele estava trêmulo e tentava ao máximo
conter isso, em vão, com o mais insano pavor o possuindo ainda.
— Não — decretou seguro. — Isso... Esses dois...
— Eu sei. É aterrorizante. Nunca vi nada como eles. — Nora suspirou.
— A não ser o conto sobre a linhagem divina da primeira Feänor.
Ela o fitou vidrada, com ele engolindo em seco.
— Acha que eles são herdeiros da semente divina?
— Que outra explicação há para tamanho poder? Não é apenas uma
conjuração natural. Isso é poder divino.
— Eu não...
Ele não conseguiu concluir, engasgando quando Gwen arremessou uma
bola de fogo contra Skye, que desviou em um giro assombroso, com o
disparo ardente destruindo um pico montanhoso e derrubando uma encosta
inteira sobre a redoma.
Skye disparou para ela, se tornando o próprio vento, na velocidade da
luz. Eles mal puderam acompanhar o embate quando os dois colidiram e luz
brutal reformou a redoma. Luz da mais abrasante e inundante cintilando em
uma proporção sobrenatural.
Um disparo de luz dourada lançou o ser azul a metros de distância com
brutalidade; ele se recompôs, sobrevoando etéreo, queimando em chamas
azuis. A galhada de chifres se inundando de fogo cobalto sobre os cachos
dourados.
Eles eram lindos e divinos, e destruiriam o mundo em seu combate
celestino.
Skye levitou em um voo instantâneo e quase difícil de acompanhar,
erguendo uma das mãos. Uma esfera incandescente de luz azul se formou em
sua palma, com seu corpo chiando disparos de luz.
A ventania do lugar inteiro engrossou voraz, como se Skye fosse o
início de um tornado, os dois sendo o centro da devastação daquele
fenômeno.
— O poder dele... — Nora arfou ao seu lado, ofegante em um soluço
sonoro. Liryan levou seu olhar para ela, encontrando a Pixie chorando com
fervor. Lágrimas deslizando brutais por sua face suja e manchada.
— Essa conjuração... — Raven surgiu ao seu lado, o rosto banhado por
lágrimas inundando seu olhos. A pele escura as reluzia em seus deslizes.
Os olhos de Nora cintilaram azuis, vivazes, quando ela despencou no
chão em um berro choroso, levando a mão para sua boca.
Raven permaneceu em pé, estancada em um pavor vislumbrante
conforme fitava Skye brilhando e brilhando.
— Esse poder... Não pode ser... Não pode.
Nora soluçava ainda mais, convulsionando o corpo em um declínio
desnorteante.
— O que está acontecendo? — Westyn surgiu do outro lado de Liryan,
com Thorion em companhia.
Raven levou o olhar para os três, as íris esverdeadas lacrimejantes
fervilhando com uma emoção bruta.
— A conjuração de Skye... — Ela arfou como se engasgasse com suas
palavras. — É uma conjuração de poder vital.
Liryan franziu as sobrancelhas, direcionando o olhar para Skye, que
ergueu a mão para cima, a esfera de luz azul pulsando em um poder
assombroso.
Então ele explodiu.
Em luz e vida.
Eles se abaixaram, com Liryan abrindo as asas e cobrindo as garotas e
Westyn fazendo o mesmo a Thorion quando o recinto inteiro fora coberto por
um poder além da compreensão.
Quando a luz azul cessou, Liryan abaixou de forma lenta suas asas e
vislumbrou o que aquela explosão de poder fizera.
Em torno de tudo e todos. Uma barreira divina.
Uma fodida barreira de luz azul perante todo o Vale, como um
gigantesco escudo cobrindo a uma distância incalculável o recinto inteiro,
cobrindo até mesmo os céus.
— Puta merda... — Westyn arquejou ao se dar conta.
Nora arfou atônita, ainda ao chão, fitando o escudo imposto.
— Isso... — Raven arquejou.
— É poder Eloriano. — Nora atirou rouca. — Fora uma conjuração de
energia vital do povo de Elora. Um poder que apenas o verdadeiro rei de
Elora pode possuir. O poder da energia vital. Uma conjuração de poder da
lua.
Liryan se arrepiou com aquela constatação.
— Mas... — Westyn balançou a cabeça. — Skye não é Eloriano. Ele...
O que infernos ele é?
— Não é algo natural. — Liryan engoliu em seco. — É divino.
O ser etéreo dourado, Gwen, pareceu perceber o que o outro fizera.
Queimando voraz ao se dar conta da barreira que Skye projetara. Da prisão
imposta.
Thorion arquejou.
— Ele não quer que ela escape. A está prendendo aqui.
— Se ela sair para Eldar... — Raven entoou. — Será o fim.
Gwen abriu os braços, erguendo ambos em uma sincronia majestosa. O
ar pareceu se tornar chamas atrás dela, quando uma onda dourada de fogo
celestial surgiu às suas costas.
Skye ergueu apenas um braço, cintilando, quando conjurou sua própria
onda de chamas azuis atrás de si.
— Pelos deuses... — choramingou Nora.
— Se eles continuarem... Irão destruir tudo.
Liryan não olhou para Raven quando concordou em um aceno, então os
cinco assistiram quando os seres etéreos explodiram em luz, disparando suas
ondas de chamas na direção um do outro.
As ondas de fogo se chocaram em uma colisão imortal, uma sobrepondo
a outra, com os dois seres tentando derrubar a defesa do outro.
A de Gwen quase fora contida pela de Skye no centro de tudo, com ele
erguendo o outro braço para solidificar seu poder. O que pareceu irritar ainda
mais Gwen.
O ser dourado queimou em uma supernova, a forma dela sendo tomada
por completo. Então não havia mais um traço de Gwen. Apenas luz e fogo.
Liryan perdeu o fôlego inteiro, vendo o que ela se tornara.
Então a correnteza de chamas douradas consumiu a de Skye, em um
disparo atroz, o atingindo antes que ele pudesse ao menos se mover, o
lançando para o chão em um estrondo oco, com o terreno onde ele caíra se
abrindo em uma rachadura grotesca.
— Não! — Thorion gritou, dando um passo no cume, com Westyn o
segurando antes que ele despencasse de uma queda mortal.
No local queimado e arruinado onde Skye fora arremessado, a luz azul
se esvaiu quando as chamas douradas sumiram.
— Ele está... — Nora arquejou abrupta.
— Não, não... Por favor... — Thorion choramingou com Westyn em
estupor ainda o prendendo.
Eles olharam naquela direção, tentando enxergar através da imensidão
nebulosa que se formara com a fumaça e vapor subindo para os céus.
E dos destroços e ruínas, não fora um ser de luz e de outro mundo que
se erguera cambaleante, completamente nu, em meio às sombras de poeira e
fumaça.
Fora Skye. Apenas Skye.

Ele tinha libertado as amarras que durante tempo demais prendera, no


instante em que a vira queimar e ser consumida por aquele poder profano.
Skye enfim libertou seu poder, que tanto prendera durante um século e então
se fora, como se outra coisa tomasse o controle sobre quem e o que ele era,
quando seu corpo queimou e se reformou em uma forma de luz e poder.
Por ela, ele libertara aquela pressão sufocante que esteve com ele
durante eras, com ele aprendendo a viver com aquela dor. Para naquele
momento de completo desespero e fim, ao ver em que sua Gwen se
transformara, ele se permitiu abraçar aquela parte sua que reprimira por ela. E
agora por ela, ele abraçaria seu poder.
Mesmo que fosse consumido e dizimado por ele.
No instante em que assumira aquela forma de luz, sua consciência se
fora. Apenas seus instintos pareceram se manter acima da sede por libertação
de poder. Por destruição. Apenas o declínio do ser de luz dourada queimando
em frieza tudo à frente manteve seus sentidos intactos. Ele era ele. Mas não
era.
O que se tornara estava além da compreensão natural. Não era deste
mundo. Nem comum.
Ele estava no núcleo do poder, como uma estrela, tão frio e congelante
que as chamas eram projetadas como aço ardente em volta de sua forma. Não
conseguia voltar a sua forma normal. Apenas fora dominado pelo poder de
infinitas constelações correndo por suas veias.
Se tornara estrelas, constelações, o espaço, então a lua.
Era um ser de fogo e luz, como Gwen, e ele apenas assistiu, sem sentir,
sem ouvir, sem controle algum sobre ele; o ser que ele habitava como um
mero parasita lutar contra sua Gwen.
Quando um disparo de poder letal dela o atingira com uma graça
monstruosa, o derrubando então em meio ao fogo e luz, Skye ressurgiu,
ascendendo conforme gritava sem voz pela dor que o rasgava, com seu corpo
sendo modelado outra vez, a pele cobrindo os ossos ardentes e os nervos
sendo criados novamente.
Lá estava ele de volta, rasgado e restaurado, dor da mais agonizante e
infinita o possuíra, ele gritava e gritava sem som. Não possuía voz. Não
possuía visão. Apenas dor conforme era reconstruído.
Ele lutou em meio a ela, chorando, mas não havia lágrimas.
Queimando, conforme ele tentou impulsionar seu corpo, contudo, não
possuía coordenação motora. Não tinha controle sobre si mesmo. Aquele
poder o tinha arruinado. O dizimado.
E Gwen... Sua Gwen.
Gwen.
Ela ainda estava naquela forma. Queimando.
Gwen deveria estar enfrentando aquela desgraça infinita que o rasgava e
rasgava.
Skye não permitiria. Não a deixaria sofrer.
Sua mão se moveu em meio ao solo queimado, a palma fechou sobre a
terra e ele rosnou para o fogo dentro de si, para a constelação de poder frio,
para a dor queimando e ordenou para os comandos de seu corpo, e por fim, se
ergueu.
Caindo, ele tentou se colocar de pé outra vez, repetindo o processo
conforme caía.
Por Gwen.
Ainda sem voz, Skye gritou, sentindo os nervos de sua garganta se
rasgarem com o esforço, assim que ele se erguia cambaleante em meio à
fumaça e poeira.
Deu passos e tropeços ao se firmar em pé, nu, observando o corpo
repleto de rasgos e aberturas, se fechando, com a pele se unindo em conserto.
Ele ignorou aquilo. Não se importava consigo mesmo.
Apenas Gwen.
Erguendo o olhar, com a visão ainda desfocada, ele não precisou de
nitidez ou foco para enxergar a uns bons metros no ar a imensa criatura de luz
dourada sobre os céus.
E não se importou com a dor, nem com os repletos rasgos sobre seu
corpo, quando deu pequenos passos e começou a caminhar na direção dela.
Piscou devagar, obtendo nitidez à visão turva a cada piscada, podendo
aos poucos distinguir a visão dela.
Do que ela se tornara.
O ser de luz e fogo queimava acima, agora sem nenhum traço da forma
corporal de Gwen.
No entanto, parecia o fitar de volta.
Ele sorriu.
Gwen. Ela ainda estava lá. Ele sabia.
Sentia em seu coração, sentia em sua alma.
Sua amiga, sua irmã. Seu vínculo divino de eras ainda estava lá e ele a
libertaria daquilo.
Gritos ecoaram distantes, vozes talvez, ele não podia distinguir, nem se
importava, conforme ecoavam pelo Vale o alertando para que se afastasse.
Como ele poderia?
Ela era sua Gwen.
E ele jamais caminharia para longe dela.
Juntos.
Sempre estariam juntos. E Skye queimaria com ela mesmo no fim. Pois
eram feitos da mesma essência. Um só.
Juntos.
Ele caminhou para ela, se aproximando mais e mais, com ela descendo
alguns metros no ar, se colocando a pouca distância perante ele. Queimando e
queimando.
— Sou eu, Gwen. — Ele conseguiu dizer, não sabia como encontrara
forças para falar, mas por ela ele conseguira, mesmo que o tom tenha soado
uma merda e entrecortado. Ele sorriu para ela. — Seu Skye.
O ser de luz cintilou apenas.
Era Gwen. Ela estava lá.
Seu coração lhe dizia. Seu vínculo pulsava.
— Por favor, volte para mim... Preciso de você. — A voz de Skye caiu
em uma oitava. Chamas arderam atrás dela. Ele ergueu a mão de forma lenta
em direção a seu peito nu, no ponto de seu coração. — Preciso de você.
Ela ainda estava lá. Skye gritava em sua cabeça.
Aquele ser etéreo, que poderia destruir mundos e criar novos, ainda era
sua amiga. Ainda era.
A garota que o defendia de todos durante sua infância, que sempre
estivera com ele, que o abraçou durante incontáveis tempestades, que o
ensinara a se aceitar como é e que não importava quantos defeitos ele
possuísse, ela amaria todos. E ele aprendera a se amar por ela. Seu lar. Sua
parte mais importante da vida. A garota que lutou por seu povo e o ajudou
durante toda sua existência; Gwen, que possuía um coração imenso e uma
coragem além dos limites. Gwen que sempre fora seu suporte e estrutura.
Agora queimava acima em uma forma celestial.
Ela nunca desistira dele, mesmo quando ele mesmo desistira. Skye não
desistiria dela. Nunca.
Juntos. Murmurou sem pronunciar as palavras no ar.
Ela se aproximou e Skye sentiu, os rasgos que já tinham se fechado em
seu corpo retornando a abrir em queimaduras abrasantes com a presença dela.
Ele não se importou com a dor.
Ela ainda estava lá.
Estava lá.
— Eu sei que ainda está aí, Gwen. Eu a sinto, eu a vejo. — Skye gritou
sobre as chamas e luz, mal conseguindo enxergar alguma coisa com os olhos
ardendo em lágrimas. Ele sorriu. — Não permita que a dor a consuma. Não
se deixe ser tomada por isso. Suas emoções não podem ter controle sobre
você. Suas emoções não a definem. Você é a luz, Gwen. Você possui o
controle.
O ser ergueu os braços, conjurando a onda de chamas atrás de si em
uma correnteza voraz.
As vozes e gritos ecoaram atrás de Skye em ecos absurdos. Mas não
havia nada que pudesse fazer.
Ele não desfez o sorriso, porque mesmo que o ser diante de si não
tivesse nada de Gwen, ele a via. A sentia.
Ela estava lá.
— Seja luz, Gwen. — Ele sussurrou, erguendo a cabeça para a onda
fervente que se solidificou perante ele. Então Skye encarou o sol e sorriu para
ele. — Eu te amo.
Um estouro de luz eclodiu, reivindicando tudo.
E ele.
Juntos.
Eles queimaram juntos.

A luz que tomou tudo fora diferente do poder desferido antes por ela.
No momento em que Skye se prostrara perante ela, Westyn soube que seria o
fim de tudo quando ela superaqueceu e explodiu, transformando a redoma
inteira em luz.
Mas aqueles feixes que ela lançara não queimaram ou os transformaram
em pó. Pelo contrário, aquela essência divina de luz os curara. Ele sentiu
quando cada rasgo em cura lenta sobre seu corpo sumira. As queimaduras nas
asas e braços tinham sido evaporadas com o poder que Gwen deixou
transbordar.
E quando, por fim, a luz cessou, Westyn desceu sua asa arqueada sobre
ele e Thorion, que choramingava baixinho.
Ele abriu as asas para trás, observando atônito o que aquele último
golpe de poder dela fizera.
Os outros se ergueram também, boquiabertos e em fascínio bruto como
ele.
Aquela onda de poder tinha restaurado tudo, toda a vida que antes ela
queimara tinha sido restaurada por inteiro. A energia deles tinha sido
restaurada.
A natureza que os abraçou parecia ainda mais viva e verde. Mesmo as
montanhas destruídas se tornaram colinas esverdeadas e pastosas.
Westyn riu em um engasgo assombroso, correndo para o cume e
observando o leito do vale abaixo.
O solo que outrora fora queimado e arruinado, estava repleto de árvores
e pinheiros outra vez, com grama se estendendo como um tapete sedoso por
todo o lugar.
Vida. O ar emanava pura vida. Aquela última onda de poder dela fizera
isso. Restaurara o que fora dizimado.
Westyn correu o olhar na direção deles e os avistou.
No solo verde, haviam dois corpos nus, um ao lado do outro, abraçados
como se fossem um só, sobre tudo.
O princípio de tudo sendo eles.
— Westyn não... — Ele não deu ouvidos ao aviso de Liryan quando
alçou voo e disparou no ar, caindo em uma queda bruta, abrindo as asas e
planando, indo na direção deles.
Westyn sobrevoou os dois sobre o chão, sopesando com cautela, quando
pousou a metros deles, correndo para lá.
Ele ouviu quando Liryan alçou voou carregando Thorion, com Nora
fazendo o mesmo a Raven.
O Feänor se aproximou com cuidado dos dois ao chão, se ajoelhando às
costas de Gwen, levando uma mão para seu pescoço.
Grunhindo um pestanejo, ele removeu os dedos no instante em que a
tocou quando se queimou com o contato. A pele dela, não, a pele dos dois
ainda parecia aquecida, fervente até.
Mas ele observou o compassar de seus peitorais, a respiração lenta e
calma. Estavam vivos. Estavam bem.
Ele respirou aliviado, esfregando o rosto em um sorriso alucinado. Pelos
deuses. Eles estavam bem.
— Eles estão vivos? — Thorion correu para ele, caindo de joelhos atrás
de Skye, à frente de Westyn.
Westyn observou quando seu irmão levou sua mão para o rosto de
Skye, gritando em dor ao ser queimado com o toque.
— Você sabia, seu idiota. — Thorion o fitou feroz, semicerrando os
olhos. — E não me avisou.
Westyn deu de ombros.
— Você gosta de se queimar, não gosta?
— Vá se foder.
O Feänor prateado apenas bufou, levando o olhar para o corpo dos
Loriorans, avaliando possíveis lesões ou queimaduras. Eles estavam intactos.
Nenhuma marca sequer sobre a pele pálida e suave dos dois.
Liryan chegou com as garotas, retirando sua jaqueta, ao se curvar sobre
um joelho ao lado de Westyn e os cobrir com sua veste.
— Eles estão bem? — Nora indagou atrás deles.
Westyn assentiu, removendo com cuidado uma mecha loira do rosto de
Gwen. Sentindo o calor que emanava dela e não se importando com o quão
quente ela estava quando deslizou um dedo por sua face.
Linda.
Ela era o ser mais belo que ele já vira.
— Eles estão contidos agora? — Raven questionou, relutante.
— Creio que sim. — Liryan afirmou, o olhar sobre os dois em um
abraço eterno e sereno.
— O que vamos fazer? Com eles, quero dizer. É seguro os ter em
Eldar? Nem sabemos o que são.
Westyn olhou por cima de seu ombro para Raven.
— Eles irão para Elrond conosco, apenas isso.
— E deveríamos estar tranquilas sabendo que vocês estão transportando
seres com o poder de um deus para seu povo?
— Estou me fodendo para vocês.
— Westyn. — Liryan o advertiu, se erguendo devagar, fitando Raven.
A calma suave e fria dele presente. — Precisamos os levar para lá. Ainda há
tantas questões que não sabemos sobre os dois. Mas as respostas estão lá.
Raven balançou a cabeça, relutante.
— Como não sabemos que estão mentindo? Que já não sabiam que
esses dois são seres de tamanho poder? — Ela apontou para Gwen fria,
fazendo com que Westyn mostrasse as presas em ameaça. — Ela quase
destruiu tudo com esse poder profano. Não é algo natural... É uma
abominação. Os dois são.
Thorion grunhiu um gracejo. Mas fora Westyn quem rosnara raivoso.
— Cale essa maldita boca.
A garota riu com escárnio.
— Foda-se, você não é cego, viu do que ela fora capaz. Ninguém
deveria ter tamanho poder. E os dois possuem. Você está tão sedento para a
foder como um cachorro no cio em volta dela que não quer enxergar isso.
Aquilo fora o estopim para Westyn, com ele abrindo suas asas em um
ângulo defensivo e se lançando para ela, que desviou em um golpe veloz.
Westyn ignorou o grito de aviso de Liryan quando disparou um raio de
luz contra ela, que rindo, desviou, saltando para ele.
— Não deveria ter feito isso, Feänor. — Os olhos esverdeados de Raven
cintilaram, quando luz azul correu por seu corpo, cintilando suas veias.
— Raven! Não! — Nora berrou, mas fora tarde demais quando a garota
de pele escura ergueu sua mão, abrindo a palma em esplendor e começou a
fechá-la de forma lenta.
O corpo inteiro de Westyn convulsionou em um espasmo violento
quando ele caiu de joelhos, sufocando em seu próprio sangue, quando jorros
de sangue transbordaram para fora de sua boca, nariz e olhos, conforme
Raven fechava o punho em deleite com a visão de Westyn se afogando em
seu próprio sangue.
— Pare! — Liryan gritou em meio aos espasmos brutos de Westyn.
Sangue e mais sangue vazava por ele. — Pare agora! Pare! Por favor! Pare!
Raven sorriu para Westyn, o corpo brilhando em luz azul, com os olhos
esverdeados ganhando um tom grave, conforme ela fechava mais e mais o
punho e ele sabia o que aconteceria quando ela o fechasse por completo.
Um disparo de luz violeta a lançou pelo ar quando Liryan disparou
contra ela, correndo para Westyn, que caíra sobre o chão banhado de sangue.
— Westyn! — Liryan se prostrou ao seu lado, agarrando seu rosto
conforme o via soluçar tosses sangrentas em um desespero sem fim.
Seu irmão limpou seu rosto com as mãos, afastando o sangue que
vazava dele, o erguendo com cuidado sobre si.
Lágrimas escarlates escorriam das órbitas de Westyn, conforme ele
tentava obter nitidez.
— Feänors malditos... — Raven rugiu a metros, se erguendo.
Levantando a mão, o ar pareceu rodopiar em um redemoinho em torno
dela com atrocidade. Era uma conjuração de poder grandiosa e poderosa,
deixando sua essência emanando no ar.
— Chega! — Nora rosnou do outro lado, o corpo cintilando em tons
azuis, com os olhos brilhando em poder quando ergueu as palmas, manejando
magia.
Imensas raízes brotaram do solo, se entrelaçando nas pernas e se
lançando para os braços de Raven.
— Nora... Pare! — Ela gritou enquanto era enlaçada pelas vinhas de
fibras grossas das raízes.
— Não enquanto não se acalmar. — Nora girou a mão, a esfera de luz
azul queimando sobre a palma, como uma leve fumaça brilhante rodopiando.
As raízes apertaram ainda mais uma Raven enfurecida.
Liryan acariciou a fase de Westyn, desviando o olhar das duas, ao
erguer sua mão e conjurar sua magia de cura, sopesando a palma por Westyn
ao restaurar um pouco de sua energia e do sangue perdido.
Westyn tossiu afoito, se recuperando, tomando rajadas profundas de ar
para os pulmões machucados.
Ele se ergueu com a ajuda e suporte de Liryan.
— Cretina... — rosnou sibilante para Raven, ainda aprisionada sob a
conjuração de Nora.
— Parem com isso. — Nora advertiu. — Chega disso tudo. Não
chegaremos a nenhum lugar assim. Precisamos ficar calmos e pensarmos com
lógica.
— Nora tem razão. — Liryan emendou, um braço sobre o ombro e o
outro sobre a cintura de Westyn. — Saímos ilesos por pouco de tudo isso.
Agora precisamos nos acalmar.
— Temos que dar o fora deste lugar. — Thorion resmungou logo atrás
deles, ainda de guarda sobre os dois ao chão.
Liryan negou com a cabeça.
— Não podemos. Não com eles assim.
— Está dizendo que passaremos mais uma noite aqui?
— Quantas forem necessárias até eles voltarem. — O olhar de Liryan
fora duro para Raven, que suspirou, assentindo enfim depois de alguns
minutos, com Nora desfazendo sua magia sobre ela, com as raízes voltando a
se enterrar no chão.
— Precisamos de um lugar escondido para passarmos esta noite, então.
— Se erguendo, Thorion caminhou para eles.
Liryan ergueu o olhar para o céu, com Westyn fazendo o mesmo ao se
dar conta de que a barreira que Skye havia posto em sua forma divina tinha
caído.
— Há uma caverna a alguns metros daqui, eu a vi quando voamos para
a montanha. — Ele murmurou.
Westyn a tinha visto também. Sabia onde ficava.
— Ainda está com o mapa? — Thorion indagou a Raven.
Levando a mão para o bolso, ela ergueu uma folha brilhante para eles,
fitando o conteúdo nela.
— De fato é encantado. As direções se movem como fumaça no recinto,
há apenas um caminho traçado, definido e sem mudanças. Leva uns cinco
quilômetros daqui para o percurso dele.
— Bom. — Liryan suspirou. — Vamos ter um longo caminho então, e
uma longa noite pela frente.
— Eu levarei os dois até a caverna. — Thorion anunciou, sem esperar
por resposta, retirando a jaqueta presa em sua cintura e se contorcendo ao se
metamorfosear para sua forma animal.
— Sinto o cheiro de um rio próximo daqui. Tentarei pegar um pouco de
água e lenha para uma fogueira. — Westyn se desvencilhou dos braços de
Liryan, bufando ao analisar seu estado, banhado e sujo pelo seu próprio
sangue, levando o olhar para a garota de pele escura que o fitava inabalada.
— Aproveitarei para me jogar um pouco de água, já que alguém fez uma
bagunça e tanto ao tentar me matar.
Ela deu de ombros, em pouco caso.
Cretina.
Westyn se virou para Liryan, que tinha apanhado a jaqueta do solo, ao
segurar a bainha de sua calça, ouvindo Nora ofegar assustada e se virando
para trás, quando ele a deslizou por suas pernas, ficando completamente nu,
jogando a calça para Liryan, que a pegou no ar, bufando irônico.
— Não demore, Westyn. — Ele advertiu, com Thorion caminhando até
os dois Loriorans desacordados. Westyn dera um último olhar para Gwen, em
alívio por ela estar bem, se voltando para seu irmão que o olhava atento. —
Tenha cuidado.
Assentindo, Westyn conjurou sua metamorfose, suas asas se esticando e
sua coluna estalando, com ele se contorcendo e esticando os ossos, saltando
no ar.
Eles assistiram abaixo quando o corvo negro voou distante para o céu,
crocitando um assobio ecoante ao disparar para longe do grupo.
26

Sombras a olhavam, chiando sons incompreensíveis, línguas arcaicas


que pareciam a chamar. Seu nome, embora não parecesse seu nome. Não, era
um nome diferente. Antigo. Embora ela sentisse que fosse o seu. Sibilando
em milhares de tons e vozes em meio ao vazio contínuo que a cercava.
Ela tentou avistar algo ou alguém, contudo, não havia nada, nem
ninguém. Estava em um buraco sem fim. Um vazio eterno. Sem luz ou vida.
Apenas sombras.
E lá estava ela, vestida de escuridão, surgindo para Gwen em meio ao
espaço negro, estendendo a mão. Os cabelos negros eram lindos, caindo
como uma constelação sombria de estrelas, cobrindo os seios mal cobertos
pelo vestido sombrio.
A pele alva se destacava como neve, ou leite, em meio àquela
devassidão escura.
Era linda, da mais real e original beleza, com lábios vermelhos
instigantes e os olhos ocos, tomados por escuridão; entretanto, eram
magníficos, e a chamavam conforme ela estendia a mão para Gwen.
— Você despertou, minha querida.
— Quem é você? — A voz de Gwen ecoou em um eco.
A mulher sombria e linda lhe sorriu. Era majestosa.
— Venha até mim. Eu a esperei durante todo esse tempo. E você,
enfim, despertou. — Sombras rastejaram como serpentes pela mão estendida.
Ela lhe sorriu carinhosa, o rosto era o retrato do divino, da perfeição. —
Venha até mim, herdeira do sol.
Herdeira do sol, centenas de vozes ecoaram em uníssono de todas as
direções, como se a própria escuridão ecoasse o som daquelas palavras.
Fora assim, com aquelas palavras, que a escuridão reinou, com a mulher
sombria e bela se dissolvendo em sombras. Em meio ao nada, Gwen sentiu
aquele vácuo contínuo e escuro lhe sorrindo, ainda a convidando.
Ela despertou brusca, abrindo os olhos abrupta para a escuridão do
mundo real, despertando do sonho sombrio e nauseante que a dominara.
Estava em uma espécie de alcova, com uma casca rochosa se
sobrepondo acima, com uma abertura em arco declinado a alguns metros.
Havia uma pequena fogueira crepitando no centro, queimando em estalos
chiados.
Uma caverna. Constatou, quando engoliu em seco com dificuldade,
piscando turva na penumbra da escuridão.
Se ajustando, Gwen percebeu que estava coberta por um imenso casaco
preto com capuz, vendo que ele era familiar.
Vagando o olhar pelo recinto, ela percebeu onde estava, vendo Skye ao
seu lado, com uma jaqueta de seda preta sobre ele. Com um imenso tigre logo
atrás deles, com os dois deitados sobre seu flanco.
Olhos ametistas grandes a fitaram quando Thorion a encarou, com uma
atenção cautelosa, meio em alarde.
— Oi. — Ela sussurrou rouca para ele, que meneou a cabeça em um
aceno trêmulo, em uma resposta silenciosa, se ajustando sobre suas patas e
voltando a se deitar. Ainda a fitando.
— Você acordou. — Uma voz soou à frente, com ela agarrando o
casaco posto sobre si, ajustando na altura dos seios ao perceber que estava
completamente nua, conforme lançou o olhar na direção da voz.
Westyn estava a alguns metros, sentado ao chão rochoso, encostado
contra a parede da caverna, a encarando com um olhar significativo que ela
não compreendera de início.
Gwen encontrou Nora ao lado dele, podendo avistar Raven usando
apenas uma camiseta de linho branco, em guarda na abertura da caverna onde
estavam. O casaco era dela. Gwen percebeu, apertando o tecido aveludado
contra seus dedos.
— Está sentindo algo? — A voz acalentada de Westyn soou outra vez
carregada de preocupação. Mas ela não levou seu olhar para ele, passando a
descer o olhar para Skye.
Ele estava bem. Estava bem. E respirando ao seu lado, em um sono
profundo e sereno, sem uma marca sequer sobre a pele alva exposta. Os
cachos dourados caindo sobre o rosto. Ele estava bem. Com Thorion abaixo
dele, o mantendo aquecido, e em vigília.
A mente, até então turva de Gwen, clareou com os flashes de memória
que a tomaram, com um calafrio tenebroso a raspando com suas lembranças
esquentando.
Ele tinha partido. Ela o tinha perdido na casa da Mãe da floresta. Todos
eles tinham. E Skye, ela havia soltado sua mão.
Tinha o perdido.
E aquilo a tinha desfeito por completo.
Uma lágrima sorrateira escorreu por sua bochecha, sem que ela ao
menos se desse conta, levando a mão para o rosto sereno de Skye.
— Eu o tinha perdido. — Conseguiu murmurar com um tom arranhado,
quase como se há muito não falasse, com a voz saindo entrecortada. — Todos
vocês tinham...
— Você nos trouxe de volta. — Westyn brandeou suave.
Ela disparou o olhar para ele, incrédula e confusa.
— O quê? — Atirou rouca. — Como?
— Não sabemos. — Dera de ombros, o rosto um retrato transparente de
cansaço visível. Ele estava sem sua jaqueta, com o peitoral exposto. E fora
então que Gwen notou que não havia um arranhão sequer sobre ele. Mas...
Eles tinham travado um combate contra Jezibaba. Ela os tinha apanhado.
Como? — Você não se lembra, não é?
— Eu... — A voz de Gwen se tornou um fio de som no ar, quando uma
onda de lembranças a atingiu.
Tinha cedido à sua dor, na casa de Jezibaba, quando todos se foram,
quando Skye se fora. Ela tinha se entregado a suas emoções contidas, tinha as
aceitado por fim. E fora consumida por aquilo.
Transformada por suas emoções.
— Deuses. — Um ofego trêmulo escapou, com ela levando a mão para
sua clavícula onde seu antigo colar pulsante deveria estar. Mas não
encontrara nada. O tinha perdido. Não. Não. Não. Pelos deuses.
Sua mente fora despertando, trazendo cortes do que acontecera, do
momento em que Gwen fora reconstruída de dentro para fora. Quando fora
queimada por suas emoções contidas há tanto tempo. Queimada. Ela ainda
podia sentir a sensação daquilo a alastrando, a modificando, a tornando outra
coisa. Queimando e queimando.
Tinha se tornado luz, banhada por um poder hediondo pelo qual ela não
tinha controle. Presa em uma zona de luz onde assistia por fora o que aquela
criatura que se tornara fazia. E Gwen a sentia, o desejo de consumir tudo. De
explodir.
De queimar.
E Skye. Seu Skye. Ele tinha se tornado seu semelhante e tentado lhe
conter. Como ela, ele tinha se tornado um ser grandioso e incandescente.
Gwen levou sua mão para a de seu amigo, apertando quando cada traço
de memória começou a vazar de um poço. Era como se tal poço houvesse
sido tampado há muito tempo e agora haviam recordações das quais ela não
imaginava outrora possuir.
— Suponho que não tenha noção do que aconteceu. — A voz
harmoniosa entoou ao lado de Westyn, ela não precisou se virar para saber
quem fora.
— Não — continuou a fitar Skye, se recusando a encarar os dois atrás
dela, conforme tentava conter as lágrimas que insistiam em cair. Thorion a
fitava com um olhar repleto de reconforto, mas ela o ignorou.
Tinha se tornado uma criatura de luz e fogo. Pelos deuses! O que
acontecera? Afinal, o que ela era?
Queimara e queimara.
Sua cabeça a estava matando, com tudo aquilo transbordando para fora.
O que os anciões de seu povo falara. Cada maldita palavra em alerta. O que
as bestas do fosso exigiam. O que a Esuriit lhe dissera. O que Jezibaba a
sondara antes que Gwen a transformasse em nada, a queimando com aquele
poder destruidor.
O que você é?
Tudo o que acontecera. Todo esse caos e destruição. Fora por sua culpa,
então? Gwen, o que quer que fosse, causara a destruição a seu povo e isso
tudo?
Sua avó, que tinha se sacrificado por ela. Tinha mentido para ela.
Mentiras. Tantas mentiras. Estava cheia. Sufocando com elas.
— Isso tudo... — Gwen se viu arfando palavras. — Fora por minha
culpa?
— O quê? — Westyn chiou. — Gwen, não. Não pense nisso. Não...
— O que eu me tornei... Aquilo quase destruiu tudo. Quase o matou...
— Ela fixou seu olhar em Skye, se recordando de quando estava dentro
daquele ser de luz que se tornara, assistindo em um desespero rasgante
quando seu amigo fora para ela. Por ela. Ele tinha ido por ela. E Gwen quase
o matara naquela forma hedionda. Contudo, ela se lembrava de lutar contra o
impulso imortal e destruidor do ser, de lutar por controle, de gritar e rosnar
contra aquele poder profano. Por ele.
Ela havia conseguido superar o impulso que destruiria tudo e Skye,
quando viu seu Skye disposto a queimar por ela.
— Mas você não o fez. — Nora ditou. — Você conseguiu o controle,
Gwen. O que você fez em sua última conjuração... Aquele poder curou toda a
energia vital que fora destruída e de alguma forma aquela onda de luz nos
curou por completo.
— E quase os destruí também.
— Mas não destruiu. — Westyn rosnou.
Gwen balançou a cabeça, fungando dolorosa.
— O que eu sou? — Mais lágrimas caíram. — Que espécie de monstro
eu me tornei?
Sempre fora assim?
Pelos deuses.
Dessa vez ela levou o olhar para eles, com olhos violetas e azul-celeste
a encarando de volta.
Westyn bufou, se afastando de onde estava e, antes que Gwen pudesse
evitar, ele estava diante dela, agarrando seu rosto com suas mãos. Ela tentou
o afastar. Não confiava em si mesma perto dele. Era um monstro. Uma
entidade incontrolável e destrutiva. Mas ele não se importara.
— Você não é um monstro, Gwen Briffyn. O que quer que seja, não é
algo que compreendemos. Mas apenas você poderá decidir quem e o que
você é. Você, e apenas você. — Ele murmurou, os olhos sobre os dela, de
alguma forma contendo e aliviando a tempestade revolta que a perturbava.
Gwen inspirou fundo, assentindo devagar, arfando quando Westyn a
puxou para seus braços e a abraçou em um aperto quente e caloroso.
Ela inspirou seu aroma masculino em conforto, com o calor do corpo
quente dele emanando para o dela.
Não podia explicar a sensação que a inebriou, o conforto instantâneo
que sentira com o contato da pele de Westyn. A sensação majestosa que a
saudou.
Ela não sabia como, mas se sentia bem com ele.
Aquele contato corporal, que ela tanto ansiara ter, a relaxou aos poucos,
aliviando seus temores com maestria com aquele abraço apertado.
— Durante tanto tempo achei que não possuísse uma faísca de magia.
Durante toda minha existência achei que fosse uma abominação por ser
diferente dos outros. — Ela riu, seca. — E agora me tornei um monstro com
um poder incontrolável. Dessa vez, uma abominação por possuir um poder
tão profano.
— Pare com isso, você não é um monstro.
— Então o que é, Westyn?
— Eu não sei. — Ele colocou o queixo contra a nuca dela, envolvendo
ainda mais os braços em torno do corpo trêmulo de Gwen. — Mas você
conseguiu controle no fim. E de alguma forma, trouxe todos de volta de onde
quer que Jezibaba nos aprisionara. Você nos salvou, Gwen. E no fim,
escolheu salvar Skye. Você não é um monstro.
Ela fungou.
— E o que eu sou então? Eu estou tão cansada disso... De todas essas
peças sem sentido. De tantas mentiras. Minha avó disse que encontraríamos o
caminho da verdade. Mas eu temo saber. O que eu me tornei... O que Skye e
eu nos tornamos... Por que nós?
— Eu não sei. Mas não precisa temer a verdade, porque a iremos
descobrir. Juntos. — Seu aperto se fixou, enviando uma onda de calor pelo
corpo dela. — Amanhã sairemos desse buraco, temos o mapa de Jezibaba. E
em Elrond decifraremos esse enigma. Encontremos as respostas que busca.
— Acha que seu rei sabe o que somos? Skye e eu?
— Sim. Meu intuito diz que sim. Que existe muito mais por trás disso
tudo. E o que vocês dois são... Vai além de tudo.
Ela apenas assentiu, devagar.
Durante toda sua existência, fora atormentada por não possuir uma
faísca de poder em seu sangue. Não nascera com a semente de conjuração
mágica e aquilo a machucara tanto e agora descobrira que possui uma espécie
de poder além da compreensão. E que acima de tudo, se transformara em um
ser hediondo explodindo em fogo e luz.
Tinha sido lançada sobre um poço de indagações e incógnitas há três
dias e agora estava se afogando com a nova onda que arrebentou a maré.
O que ela era?
E Skye. Ele tinha se tornado como ela.
Eles tinham queimado juntos em um poder imortal.
Poderosos e destrutivos.
Gwen fechou os olhos, respirando fundo diversas vezes, o coração a
ponto de explodir de tão frenético.
Ela tentou acessar o velho baú de emoções para que pudesse prender
todas aquelas emoções novas que a afugentavam. No entanto, não havia mais
baú.
Não conseguia o sentir mais. Ele havia sido destruído. Derretido quando
Gwen libertara a onda de poder dentro de si.
Teria que aprender a enfrentar suas emoções, a enfrentar a verdade que
buscava e, principalmente, enfrentar o que se tornara.
Suas emoções não a definem. A voz de Skye ecoou em sua mente. Você
define quem você será.
Quem eu serei?
O que eu sou?
O sonho que tivera a poucos minutos se instalou em sua mente, como
um vestígio das sombras que habitavam nele. Da dama sombria e bela.
Ninguém enfrenta a escuridão sem deixar uma parte sua nela. Fora o
que Gillyn lhe dissera durante incontáveis lições.
Suas emoções são como escuridão, se permitir, ela irá te consumir.
Seja luz, Gwen.
Um som ecoou no recinto sombrio e silencioso, no exato instante em
que Gwen abriu os olhos. Os olhos que outrora foram cinzas e nublados,
agora se acenderam brilhantes. O tom que antes fora opaco, apagado, agora
cintilava com as íris âmbar.
E Gwen encarou quando um falcão entrou na caverna, abrindo as asas
em um pouso ao repousar sobre uma rocha, em cima de uma pilha de vestes,
sobre uma jaqueta de seda verde e calças com botas.
O falcão a encarou de volta, os olhos ametistas do pássaro pareceram se
arregalar ao encarar os olhos âmbar etéreos de Gwen. E ela não hesitou
quando abriu um sorriso para Liryan em sua forma animal.
Tinha por muito tempo se afogado em seus medos e tremores, tinha
prendido suas emoções e aquilo poderia ter culminado de alguma forma com
o que acontecera. Tudo o que a definira poderia se basear no princípio de que
Gwen esteve contida e afugentada por suas próprias emoções por tempo
demais.
Contudo, agora, ela estava disposta a enfrentar tudo. Trilharia o
caminho da verdade com eles, buscaria por ela. Sem medo. A enfrentaria e,
dessa vez, sentiria tudo.
Porque por tempo demais caminhara sob as sombras, mas agora se
tornaria luz e iluminaria seu caminho. E ela encontraria a verdade sobre si.
E sobre tudo.

Os olhos dela tinham mudado, quando Skye acordara no alvorecer do


dia seguinte, horas atrás. Tinha encontrado todos ainda em choque por toda a
merda que acontecera, mas principalmente pela mudança nas íris de Gwen.
Aqueles olhos tempestuosos passaram a possuir um tom quase dourado, uma
cor âmbar etérea magnífica e aquilo só tornava as coisas ainda mais
assustadoras.
Ela havia despertado um poder que dormira durante seu século de
existência, embora não qualquer poder. Um poder imortal e divino que Skye,
em um ato de desespero, descobrira também possuir.
Gwen o tinha abraçado, na verdade quase o sufocara quando Skye
despertara mais cedo; ela chorara tanto, pedindo milhares de desculpas, não
só pelo que fizera, mas por ter soltado sua mão na casa de Jezibaba. Ele ficou
incrédulo ao perceber o quanto aquilo a perturbava.
Portanto Skye apenas a abraçou, transmitindo um zilhão de significados
com aquele abraço, que perdurou por horas enquanto o restante do grupo
assistia.
Ninguém comentou, ou exigiu saber de nada, cada um respeitara o
momento deles quando Gwen deixou claro que sabia tanto quanto eles sobre
tudo aquilo, e o poder que ambos conjuraram. O respeito deles desnorteou
Skye pela consideração e suporte do grupo, com ele não sabendo como agir,
ou o que pensar sobre isso. Embora Skye percebesse o clima hostil entre
Raven e Westyn quando o Feänor a pegava olhando para eles.
Eles tinham saído do Vale, em um júbilo eterno, quando todos
percorreram cedo o trajeto do mapa enfeitiçado de Jezibaba, que indicava o
caminho para fora daquele lugar maldito.
Vestindo a jaqueta de Liryan, Skye montava Thorion conforme ele
corria a estrada de terra.
O Lorioran não se permitira ser afetado por tudo que acontecera, tinha
feito um acordo com Gwen que lidariam com tudo aquilo quando chegassem
em Elrond.
Descobririam toda essa merda sobre eles, todas as mentiras que foram
mantidas a respeito de cada um.
Mas, por enquanto, lidariam com a jornada para Elrond.
Skye riu conforme Thorion avançava veloz, recebendo o vento chiando
com força sobre seu rosto.
Thorion não tinha saído do seu lado desde que começaram a trilhar o
caminho para fora do Vale. Skye se lembrava de tudo. Do grito de pavor de
Thorion quando Skye fora atacado por Gwen. Se lembrava de Thorion correr
para ele, apenas para ele, e não conseguia decifrar o calor que o inundava
com aquele fato. A sensação que o abraçava quando pensava no que Thorion
fizera.
Seu coração disparava afoito com a presença do Feänor tigre. Mas Skye
ignorava ao máximo aquilo.
Ele levou o olhar para Gwen sob o céu, agarrada a Westyn, que estendia
suas asas negras com maestria em um voo glorioso; Liryan, com suas asas
amareladas, de um lado e Nora levando Raven do outro.
Tinham decidido que chegariam mais rápido assim em Elrond, no
momento em que saíram da redoma do Vale, entrando nas redondezas do
povo nortenho.
Skye observou o glorioso sol no horizonte, afastando a lembrança
perturbadora que o raspou do próprio sol que enfrentara, abrindo os braços
em deleite com a corrida veloz de Thorion, que rosnou contagiante.
Sombras de asas os cobriram, do grupo alado acima, com Skye levando
o olhar para Gwen e Westyn, vendo o quanto sua amiga parecia bem com o
Feänor que a levava cada vez mais ao alto.
Eles estavam se dirigindo para um caminho sem volta, em busca de algo
que nem imaginavam o quanto poderia os destruir. Mas estavam prontos para
aquilo. Depois de tudo que passaram, estavam prontos para descobrirem
quem são e o que eram. Precisavam disso, e Skye sabia que, assim como ele,
Gwen não sentia medo daquilo.
Porque enfrentariam tudo um ao lado do outro.
Não estavam sozinhos. Não mais.
Sem medo.
Juntos.
Eles enfrentariam aquela jornada juntos.
E que os deuses os temessem então.
NOTA DO AUTOR

Você também pode gostar