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1º Edição
Copyright © 2021 Aurelio Collins
Revisão: Angélica Podda
Diagramação: Lover Diagramação
Capa: Will Nascimento
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação do autor.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Qualquer outra obra semelhante, após essa, será considerada plágio; como previsto na lei.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito do
autor.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184
do Código Penal.
SÚMARIO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
NOTA DO AUTOR
PARTE UM
“A GAROTA DO BOSQUE”
1
Os dois Feänors não disseram nada mais, depois de tudo, com Gwen e
Skye os acompanhando em seu trajeto, com eles guiando o caminho. Skye
mantinha um braço sobre ela, sendo o suporte de seu corpo exausto e fraco,
sem um mero pingo de energia, e ela sabia que Skye estava no mesmo estado,
mas se recusava a soltá-la. Ela não tinha forças para relutar.
Eles seguiram os dois em silêncio, um metro atrás deles, conforme eles
subiram por uma colina, passando por imensas dunas de areias.
Não confiava nem um pouco nos dois, tinha lido o suficiente sobre seu
povo para saber que seria tolice confiar.
O povo de Elrond, o primeiro povo a existir, herdeiros da essência do
poder dos deuses de Eldar. Capazes de conjurar magia de uma forma
diferente dos Loriorans ou de qualquer outro povo. A magia deles não vinha
da natureza como a do povo de Gwen, ou do povo de Elora. Era uma magia
voraz e sagaz. Uma magia dimensional. Poderosa. Eles poderiam conjurar
feixes de luz, pelo que sua avó contara.
Mas o que mais impressionava Gwen, quando ouvira as cantigas sobre
os Feänors, eram sobre sua metamorfose; a habilidade que eles possuíam de
se transformarem em animais sempre fora uma incógnita para ela. Um dos
muitos dons passados pelo fruto dos deuses. O poder de mudar de forma. Sua
avó sempre dizia que eles o consagravam como uma benção, quando houvera
sido roubado pelo primeiro mortal que retirara o fruto da árvore de luz para
salvar sua amada mortal.
Sua avó. Gwen tentava a todo custo manter aquelas emoções ruins
dentro do baú, contudo, era um turbilhão delas e pequenos feixes vazavam,
rasgando seu peito em uma dor lasciva pela perda. Se tudo aquilo escapasse
para fora, ela não achava que conseguiria suportar tamanho sofrimento.
A luz sempre vence a escuridão.
Ela guinchou um gemido doloroso, atraindo um olhar preocupado de
Skye. Ela nem mesmo conseguia mais forjar sorrisos para tranquilizá-lo. Se
sentia esgotada e o corpo parecia destroçado, como seu coração. Seu poço de
energia física e emocional estava vazio.
Ela se sentia vazia.
— Escuta, vocês não podiam... Sei lá... Conjurar um portal? — Skye
gritou para os dois à frente, que cessaram a subida, olhando para trás, para
eles.
O loiro, de cabelos tão prateados e lindos, que a quilômetros se poderia
notar sua nitidez, trouxe o olhar lilás fervente para Gwen, depois para Skye,
com uma sobrancelha erguida.
— Claro que não. Não podemos fazer isso. Só magos de histórias
idiotas de contos de crianças conseguem fazer tal besteira. Se acham que
nossa espécie é capaz, são tolos. — Ele respondeu para Skye bufando, o tom
carregado de escárnio.
Skye retrucou a zombaria.
— Então agora entendo porque demoraram tanto para vir.
— Por que você não, sei lá, conjura uma planta imensa que possa nos
engolir e nos levar magicamente para Elrond? — O loiro indagou sarcástico,
voltando a caminhar, pestanejando reclamações sobre "Elfos burros".
Skye ergueu o dedo do meio para ele, em um gesto indecente, com seu
parceiro captando o gesto e sorrindo. O de cabelos castanhos transmitia, por
alguma razão desconhecida, uma aura de leveza, enquanto o Feänor prateado
instigava devassidão.
— Você quer ajuda com ela? — indicou Gwen com um aceno de
cabeça, pois Skye praticamente a carregava.
Skye rolou os olhos, voltando a caminhar.
— Eu te pedi ajuda por acaso?
— Tudo bem. — O Feänor suspirou, erguendo as mãos, também
voltando ao trajeto.
— Idiotas. — Skye murmurou baixinho, ao ponto de Gwen quase não
ouvir, com um sorrisinho lento tomando seus lábios. Até mesmo quando ria
era doloroso, pois a bochecha atingida pela cauda da besta, agora inchada e
pulsante, queimava. — Você tem certeza mesmo disso, Gwen? Que devemos
seguir esses porcos Feänors?
Ela inspirou fundo.
Havia refletido sobre isso durante todo o percurso. Cada frase
incoerente de sua avó se chocando em sua mente em um quebra-cabeças que
ela tentava montar. Nada fizera sentido ainda. Nada.
Mas ela sabia que, por algum motivo, ela os queria levar para Elrond e
aguardava pela chegada deles. Se sacrificara por aquilo, no fim.
E agora que sua avó não estava mais com eles. Gwen precisava de
respostas e tinha que montar o quebra-cabeças em sua mente, que a estava
perturbando mais do que podia admitir.
Depois. Lidaria com isso tudo depois.
Ela assentiu como reposta, com ele estalando a língua, como se por um
momento esperasse que ela negasse e os dois pudessem fugir para longe.
Em seu interior, uma pequena parte desejava isso. No entanto, a maior
dominava seus instintos. A faminta pela verdade.
Os quatro caminharam um longo caminho pelas colinas, quilômetros de
distância do vale sendo atacado que deixaram para trás.
Tinham feito umas duas longas horas e meia de trajeto, em um vasto e
desconfortável silêncio.
Durante todo o caminho, ela fitou o lugar desconhecido a sua volta, os
campos íngremes, em altos relevos, as diversas montanhas com enormes
picos e as poucas árvores que se espalhavam pelo monte. Árvores secas, sem
galhos e folhas. Quase como um deserto.
— Para onde exatamente estamos nos locomovendo afinal? — Skye
questionou, a voz rouca, deixando em evidência seu cansaço e frustração.
Ele praticamente havia carregado Gwen o caminho inteiro, sem tentar
demonstrar o quão machucado e sem forças estava. Ela havia tentado se
desvencilhar dele, com ele não permitindo. Sempre com aquele senso de
proteção, que naquele momento ela não sabia se amava ou detestava.
— Precisamos pegar alguém no caminho. — Um deles respondeu.
Provavelmente o prateado. Ele tinha um sotaque estranho, o tom da voz era
mesclado em um suave rouco. Costumava arrastar o "S" em sua pronúncia.
Como se o timbre dele fosse encantado por possuir uma voz tão estrutural.
— Alguém? — Skye retrucou. — Não me diga que é mais um de
vocês?
Mesmo àquela distância Gwen pode ouvir o rosnado baixinho que o
loiro chiou. Quase feral.
— Escute, elfo, estou começando a me ofender com seus comentários
— rebateu.
— Ah, é mesmo? Então enfia sua... — Skye cessou suas palavras e
passos quando um som estranho ecoou em seus tímpanos. As orelhas
pontudas tremeram pelo eco. — O que foi isso?
A pergunta de Skye permaneceu em um vácuo de silêncio no ar, quando
os dois Feänors correram, descendo uma elevação da colina.
— Eu não acredito que esse idiota dormiu! — O loiro esbravejou, o
tom carregado de frustração.
Skye e Gwen viram o que emitiu aquele som estranho pelo monte, antes
que chegassem até o causador. Era um roncar bruto e animalesco, vindo de
um enorme tigre branco, dormindo ao lado de uma rocha.
Os dois ofegaram assustados, dando um passo em uníssono para trás,
vendo o animal de pelo menos uns dois metros, maior que a enorme rocha na
qual se encostava, dormindo, os roncos suaves como um rosnado sibilado.
Possuía algumas listras pretas envolvendo o pelo branco imenso, que
Gwen percebeu se assemelhar quase ao tom de cabelo de um dos Feänors.
Então eles se deram conta que os dois Feänors caminhavam para a
imensa criatura dormindo. Não para longe, mas para ele.
— Ei... Seus idiotas! O que pensam que estão fazendo? — Skye
sussurrou em choque. A voz ofegante. Os dois se entreolharam, dando um
breve olhar para os dois Loriorans para, em seguida, soltarem uma sonora
risada. — Saiam daí, seus estúpidos!
Eles se aproximaram do animal, o imenso tigre branco estava enroscado
em si mesmo, amontoado em sua pelagem quase como algodão, o rabo
deslizando para trás.
O Feänor loiro retrucou algo que os dois não conseguiram ouvir,
erguendo o pé, calçado por uma bota de couro marrom, e desceu com força,
pisando no rabo do animal.
— Acorda idiota! — Ele berrou para o tigre.
Gwen e Skye se sobressaltaram, assustados, quando o imenso tigre
branco acordou em um rosnado feroz, se erguendo em um salto, os dentes
imensos à mostra, prestes a fincar naqueles dois estúpidos ao seu lado.
Contudo, o tigre apenas grunhiu, balançando o rabo no ar, a cabeça
pendendo para o lado em um quase ronronar, como se estivesse bocejando,
estalando a língua no processo.
Recuperados do susto, Gwen e Skye trocaram um olhar, fitando a cena
abaixo em completo estupor.
— Você é inacreditável, não é? Deveria estar de tocaia, vigiando a área
enquanto esperava pela gente. — O loiro o repreendeu, com o tigre
grunhindo em resposta. Quase como se retrucasse.
Os dois Loriorans observavam tudo boquiabertos.
— Você não pode dormir em nossas missões, Thorion. Já discutimos
isso. — O Feänor de cabelos castanhos, com cachos caindo por sua testa,
esbravejou. — Seu felino idiota.
O tigre sacudiu a cabeça, com os três levando o olhar para os dois
Loriorans à frente.
Gwen estremeceu quando o imenso animal farejou, dando um olhar que
ela percebeu ser avaliativo para os dois. Já havia caçado vários leões da
montanha com Skye para alimentar o povo, mas ela sabia que enfrentar uma
fera como aquela, no estado em que se encontravam, seria morte certa.
Os olhos felinos amarelados do tigre deslizaram por Gwen, embora
tenha sido em Skye que se demoraram por mais tempo.
Mas então ele se virou para o Feänor loiro, grunhindo, com ele
assentindo.
— Sim, são eles.
Skye pestanejou.
— Consegue entender o que esse animal diz?
Os dois Feänors caíram em uma gargalhada estridente, com o tigre
rosnando baixinho em depreciação.
— Bom, ele é nosso animalzinho de estimação, não é, Thorion? — O
loiro deu um tapinha no flanco do tigre, apreciando o receio dos dois
Loriorans sobre ele. — Venham, não se preocupe. Ele não morde.
O idiota riu sozinho, com seu companheiro balançando a cabeça.
— Chega de piadinhas, Westyn, os dois tiveram um dia e tanto. É
melhor seguirmos com nossa viagem. — Westyn, Gwen levou o olhar para o
Feänor prateado, ainda rindo.
Ele era uma visão e tanto, ela tentou se lembrar se os livros de contos
sobre o povo de Elrond descreviam a beleza deles como algo grandioso.
— E você. — O moreno, apontou um dedo para Skye, o olhar ametista
sério e determinado. Gwen percebera que o tom de seus olhos eram mais
escuros que os de seu companheiro. Quase um roxo. — Não tente insistir em
carregá-la, quando é óbvio que não tem forças para arrastar o próprio corpo.
— O que diabos está dizendo...
— Escuta, vocês dois estão machucados e cansados. Ambos estão lentos
por causa disso. O caminho por terra para Elrond leva dois dias; com vocês,
assim, levará um mês. Estamos entrando no território das montanhas
cantantes, é um território desconhecido e perigoso. Precisamos ter cautela.
As Montanhas Cantantes. Gwen lembrava de ter lido sobre elas, um
vale flanqueado por imensas montanhas que sibilavam. Alguns contos diziam
ser gigantes em uma hibernação eterna.
Skye bufou.
— E o que quer que façamos? Que criemos asas e voemos?
O Feänor deu de ombros.
— Se pudessem, seria bom para variar. Assim poderiam nos
acompanhar.
Os dois Loriorans o fitaram com o cenho franzido. Ele suspirou,
balançando a cabeça.
— Mas como não possuem asas... O jeito é serem carregados. — Ele
esclareceu por fim.
A bile travou na garganta de Gwen pelo arquejar surpreso de Skye, o
mesmo lhe acontecera.
Ele soltou uma risada seca.
— O quê? Espera... O que isso quer dizer? Carregados por quem?
Os dois Feänors sorriram, sorrisos maliciosos, levando o olhar para o
imenso tigre branco entre eles.
Um arrepio percorreu Gwen.
— Oh não! Nem pensar! — Skye exclamou, o tom expressando o
nervosismo e medo que ele tentava camuflar. Gwen não poderia julgar o
Lorioran, afinal, compartilhava seu temor.
Ela não conseguiu retrucar em comum acordo; quando tentou se
pronunciar, um gemido estridente a golpeou em um choque de dor.
— Ela não vai aguentar a viagem inteira andando. Está muito ferida. E
você, é evidente que está sem força alguma para carregá-la por mais tempo.
O olhar azul-celeste de Skye recaiu sobre ela; Gwen viu o pesar, o
medo, a dor, o cansaço e a aflição controlada refletindo neles. Então, por fim,
ela acenou em um gesto fraco de cabeça.
Skye forçou ao máximo um sorrisinho gentil, se curvando e beijando o
topo de sua cabeça.
Ela viu que Westyn assistia tudo de forma atenta, com os olhos
ametistas fixos nos dois.
Skye mal se virou para eles. Quando o tigre saltou, parando à frente dos
dois, ela viu o amigo ofegar, suspirando. O corpo até mesmo estremecendo.
O imenso tigre o encarou por um bom tempo, gracejando algo, como se
os mandassem subir logo.
Gwen se permitiu ser erguida por Skye, contendo o impulso de um urro
de dor quando suas costelas estalaram, os músculos contraindo ainda mais,
atrofiando em uma agonia aguda.
Foi posta com cuidado nas costas largas e musculosas do animal, a
pelagem branca fluida e suave sob ela. Ele era imenso, maior que a maioria
da espécie. Mas os pelos dele eram tão macios como nuvens deveriam ser. A
ponto de ser inevitável deslizar a palma de sua mão por entre os pelos, como
plumas, do tigre. O animal até mesmo ronronou como se apreciasse o gesto,
arrancando um sorrisinho de Gwen.
Logo em seguida, Skye montou atrás dela, pestanejando um xingamento
quando o tigre quase sucumbiu ao peso dos dois, grasnando em reclamação.
Os braços do amigo envolveram sua cintura e ela se permitiu se
encostar em seu peito, acomodando a cabeça em seu ombro.
— Vamos acompanhar vocês pelo ares, vigiando o perímetro em torno.
— Westyn informou, quando os dois estavam acomodados sobre o tigre.
As sobrancelhas de Gwen se ergueram.
— Como assim pelos ares?
O Feänor loiro sorriu para ela, um sorriso esnobe, ela percebeu. Com o
canto do lábio erguido para cima, expondo um pouco de sua fileira de dentes.
Ele se retesou em um movimento, estremecendo o corpo, então o som
de um farfalhar estourou pelo recinto quando imensas asas negras brotaram
de suas costas.
Cada traço e parte de Gwen estremeceu em completo choque e fascínio,
acompanhados por um pouco de horror quando ela encarou as imensas asas
negras de Westyn. Ele as bateu no ar, piscando um olho para ela, dando um
impulso em um salto e disparando para o céu.
Pelo fogo.
— Exibido. — Seu companheiro, à frente deles, bufou, com um sorriso
comparsa nos lábios.
Ainda boquiaberta, Gwen observou quando ele fez o mesmo, com asas
tão potentes quanto brotando de suas costas, embora estas fossem amareladas
ao invés de negras como as do outro. As penas, grandes e curvadas em
declínio na envergadura, se alongaram quando ele as estendeu e bateu no ar.
Gwen sentiu Skye enrijecer atrás de si.
Ele acenou para eles antes de disparar para o céu atrás do amigo, que já
zarpava em um longo voo.
Gwen ouviu Skye xingar algo indecente atrás dela, tão boquiaberto e em
choque quanto ela. Gwen apenas concordou, em uníssono, em um sussurro
ecoando em fascínio, quando o tigre rugiu, desatando a correr,
acompanhando o voo deles em terra, com as sombras das imensas asas sobre
eles.
9
Precisavam ser rápidos, eles sabiam que não podiam atravessar o Vale
ao anoitecer. Seria como caminhar para a própria morte, mas era o único
meio necessário, já que não podiam voltar pelo caminho que vieram ao sul
sem terem que passar por Wenkael e aquelas criaturas. Mas ainda assim o
trajeto pelo Vale não deixava de ser arriscado. Por isso haviam decidido
acampar em sua fronteira na noite passada. Se fossem tolos de entrar naquela
floresta à noite, a essa altura já estariam mortos.
Ele nem precisou colocar aquelas questões em palavras para seus
companheiros, Westyn e Thorion sabiam os tipos de horrores que
espreitavam pelo lugar ao anoitecer, saindo de seus buracos.
Westyn até mesmo tentou encontrar outro método que não precisassem
passar pela fronteira do Vale, mas não havia tal feito; do Sul para o norte de
Eldar, se unificava na redoma em que estavam e, para chegarem em Elrond,
precisavam atravessá-la, e rápido.
— Precisamos ir. Não podemos perder tempo — anunciou, terminando
seu pedaço de lebre assada em espetos na fogueira. Westyn e Thorion
devoravam seus terceiros pedaços.
— O quê? — Thorion indagou de boca cheia. Deveria estar faminto por
ter passado tanto tempo na forma Feänor. Fora o fato de ter carregado os
Loriorans do reino montanhês até o Vale por uma noite inteira, percorrendo
longos quilômetros. — Ainda é cedo. Temos um tempo até a chegada do luar.
— Não podemos arriscar. Nem sequer sabemos com que tipo de
criaturas podemos esbarrar em nosso trajeto. — Ele balançou a cabeça. —
Vocês conhecem as lendas e cantigas sobre o Vale. Sabem as histórias.
Temos que ir.
— Acha que enfrentaremos algo durante o dia? — Ele mesmo se
perguntara aquilo quando se deu conta que teriam que atravessar o temível
Vale para chegar em Elrond.
Toda a Eldar sabia que a imensa reserva florestal de grandes
quilômetros quadrados, rodeada por montanhas e desfiladeiros, conhecida
como Vale, era um lugar perigoso para quem o adentrasse, pois esse era o lar
de diversos tipos de criaturas e também, para o azar dele, ficava no centro de
Eldar, fazendo fronteira com os povos do reino, com Wenkael ao Sul,
Thauzand a oeste, o reino de Elora a leste e Elrond ao norte.
O Vale era o ponto cardeal principal no mapa de Eldar, que interligava e
separava todos os povos. Um dos principais motivos que distanciava os
povos uns dos outros era o medo de enfrentar a travessia pelo lugar. Porque
os poucos que se arriscam a entrar, não saem.
As lendas e contos relatam histórias sobre os piores tipos de criaturas;
há relatos de criaturas do fosso, que conseguiram fugir da guerra do Éter e se
refugiaram até os dias de hoje no lugar. Era o lugar dos Goblins, dos Gnomos
negros e das Carnival.
Liryan temia que fosse o lar das bestas que Wenkael enfrentara. Jamais
se esqueceria da visão de tal criaturas. E pensar que aqueles dois Loriorans as
enfrentaram.
— Lir tem razão, precisamos ir. — Westyn exclamou, dando um olhar
de insígnias para o amigo, levando o olhar por cima do ombro, para trás, onde
os dois Loriorans estavam sentados lado a lado, fazendo sua refeição. —
Acha que eles sabem sobre o Vale?
Liryan negou com a cabeça, se recordando dos questionamentos de
Gwen meia hora atrás sobre o lugar. Ele tinha feito observações sobre os dois
Loriorans, principalmente sobre o modo como eles olhavam para tudo com
fascínio, em pura contemplação, como se fosse a primeira vez que fossem
capazes de enxergar tudo aquilo, um novo mundo para eles, o que talvez
realmente seria.
Todos sabiam o quanto o povo de Wenkael se manteve preso em sua
proteção idiota durante séculos, reclusos do mundo afora, vivendo sob uma
falsa proteção que, no final das contas, não os protegeu tanto assim.
Nem mesmo conseguia definir que tipo de criatura havia atacado aquele
povo. A lembrança das bestas serpentinas ainda estava ardendo em sua
mente, conforme tentava decifrar a espécie nunca vista ou imaginada por ele.
Eles não quiseram falar sobre elas, Liryan entendeu os motivos visíveis, seus
amigos também, por isso não insistiram em mais perguntas sobre o ataque
quando era perceptível o quanto eles ainda estavam atordoados.
Todavia, em algum momento, se designaria a perguntar sobre aquilo
para os dois, contudo, sabia que não era o momento, ambos ainda estavam
alarmados e em choque demais com o que ocorrera. Depois ele poderia ter as
respostas para as perguntas que o sondavam.
— Eles não sabem. — Liryan respondeu por fim, ainda fitando os dois
Loriorans, vendo o de cabelos dourados, quase de um tom ouro, segurar a
mão da loira, enquanto essa lhe contava algo.
A lança dele depositada no chão ao seu lado. Liryan sabia que ao mero
sinal de ameaça ela estaria em riste em sua mão.
— Então, meu caro amigo. — Westyn se ergueu, batendo as mãos em
suas vestes. Thorion devorava a carne de coelho como se ainda estivesse em
sua forma animal. O que deveria assustar os dois Loriorans atrás dele, que
ainda pareciam cautelosos e alarmados com ele. Westyn bateu a mão em seu
ombro, o tirando de seus devaneios. — É melhor informar tudo a eles. Porque
é preciso que todos estejam preparados e atentos quando entrarmos naquele
lugar.
Liryan apenas assentiu, sem fitar o sorriso do amigo, os olhos fixos no
sorriso que a Lorioran abriu para o amigo, com o Feänor se dando conta que
ela ficava ainda mais linda quando sorria.
10
Skye estava tão fascinado com o lugar que não deixava nada escapar de
seus olhos. As imensas árvores trotando sob o vale, desde carvalhos,
salgueiros pendendo para o lado e pinheiros, ou o rio que rodeava a
quilômetros, ou até mesmo as montanhas em volta, revestidas em terra e
rochas tão imensas e em relevos curvilíneos, que seus topos eram ristes para
o céu sem nuvens.
Diversas criaturas pequeninas se amontoavam nas árvores, os pardais de
fogo, com as asas em chamas ardendo pelo ar, os Skinos de três olhos
carregando nozes imensas pelos galhos com suas mãozinhas e a cauda
felpuda balançando.
Era tudo tão mágico e revigorante. Um lugar abençoado pelo próprio
deus da natureza.
A natureza que seu povo tanto amava estava transbordando sua magia
pelo lugar e, por um momento, ele esqueceu o que os três Feänors
informaram sobre o Vale.
Ele sabia que todos esses contos idiotas deveriam ser mitos tolos e se
perguntava por que dera atenção à mera menção de histórias antigas, quando
nem mesmo acreditava mais nelas.
Rodopiou, fitando tudo, tentando captar cada mero detalhe a sua volta,
acabando por esbarrar em algo sólido, enterrando seu rosto em algo rígido.
— Cuidado, elfo.
Skye ergueu o rosto, com uma carranca já o tomando, gemendo em
frustração, ao ver que havia colidido contra o peitoral de Thorion ao seu lado.
Rosnou para ele, se afastando. Skye quis raspar as unhas naquele rosto
másculo e idiota. E lindo. Tinha de admitir, infelizmente, aquele fato.
— Feänor estúpido. — Pestanejou.
Detestava ser chamado de elfo; alguns de seu povo até se sentiam
ofendidos com aquele termo ultrajante tão antigo que mal era lembrado,
apenas os que queriam insultar sua espécie o usavam. E ele era um dos que
detestava aquilo com fervor.
O Feänor tigre abriu um sorriso de escárnio, em provocação, quase ao
ponto de receber um gesto indecente de Skye.
— Calma, elfozinho. — Thorion zombou, erguendo as mãos. — Precisa
se acalmar.
O sangue de Skye ferveu em agitação. Pelos deuses. Como ele queria
rasgar aquele Feänor com seus dentes. Até mesmo se imaginou mordendo
aquele pescoço com veias salteadas, embora aquela mera visão não causou os
efeitos que ele esperava.
Skye rosnou para ele.
— Eu estou calmo, seu idiota — sibilou gélido.
— Skye, você precisa se controlar. Eles não são nossos inimigos. —
Gwen murmurou quando ele começou a andar ao seu lado.
Suas sobrancelhas e cenho se franziram para sua amiga, com o
semblante em desgosto.
— Também não são nossos amigos. Nem sequer sabemos se podemos
confiar neles. — Ele estalou a língua, bufando. — Eu não confio.
— Acho que se tivessem alguma intenção ruim em relação a nós,
saberíamos. — Ela refletiu. — Mas de qualquer forma, não temos escolha. E
se eles estiverem mentindo, acabamos com ele.
Skye gostou daquela ideia, sorrindo ao assentir.
Gostou muito.
— Mas, por enquanto, precisamos confiar neles. — Ela continuou,
desfazendo o sorriso de deleite dele.
— Eu... — Respirou fundo, bufando. — Não prometo nada, mas vou
tentar.
Ela assentiu satisfeita, o conhecendo a ponto de saber que aquilo seria o
suficiente.
— Acha mesmo que há criaturas malignas nesse lugar? — Gwen
indagou após alguns minutos de caminhada.
Skye deu de ombros.
— Não sei. — O céu azul sem nuvens parecia abraçar o ambiente. O ar
era tão puro e reconfortante. — Não sinto hostilidade nesse lugar.
— Nem eu. — Gwen concordou. — Mas isso não significa nada.
Uma parte de Skye temeu em concordar.
A discussão de Skye com Thorion podia ser ouvida por Liryan à frente,
mas ele optou por ignorar, exausto. Fitando o mapa em mãos, do lugar em
que estavam e do ponto onde deveriam chegar. Norte. Tinham de manter o
percurso ao norte.
O caminho era longo e eles estavam indo muito devagar, precisavam ser
rápidos, pois não sabiam o que poderiam encontrar no caminho.
Era esse fato que causava uma leve pontada de dor em sua cabeça em
irritação. Liryan odiava surpresas. E aquele lugar era uma caixa delas, e
nenhuma boa, ele sabia.
— Não parece tão assustador assim como nas histórias. — Westyn
comentou ao seu lado. Se curvando para sussurrar. — O elfozinho tem razão
sobre isso.
Liryan sorriu, concordando. Havia pequenos seres brilhantes
sobrevoando acima deles nos galhos e ramos.
— Temos que percorrer mais dez quilômetros pelo menos. — Liryan
observou, seguindo em frente, levando o grupo através da orientação do mapa
que o general Tyrion lhe havia entregado.
— Acha que vamos conseguir antes do anoitecer? — Eles olharam
juntos para o céu, o poderoso sol de fogo queimando acima.
— Espero que sim, meu amigo — respondeu, desviando de cipós e
galhos. Algo lhe passou a mente, com ele olhando por cima do ombro para os
três atrás, com Skye reclamando algo com Thorion, e Gwen tirando pétalas
de uma flor enquanto os acompanhava em silêncio. Ele se voltou para
Westyn. — O que você acha que o rei quer com ela? Por que razão ela é tão
importante para ser levada em total segurança e prioridade a pedido dele?
Aquilo martelava há horas em sua cabeça. Por que depois de séculos
reclusos, justo quando estão sob ataque, Gillyn Briffyn pedira tal feito ao rei?
Westyn deu de ombros, passando uma mão pelos cabelos prateados
sedosos. Suor despontando de sua testa.
— Passei a noite e a manhã inteira pensando sobre isso — confidenciou
a Liryan. — Mas não cheguei a nenhuma conclusão. Só saberemos quando
chegarmos em Eldar, eu espero.
— Nem mesmo os dois parecem saber. Algo está acontecendo. Aquelas
criaturas que atacaram o povo deles pareciam bastante familiares.
— Eu sei. Mas não consigo lembrar de onde... A ideia que tive é meio
louca e absurda. Sobre elas serem criaturas do...
— Fosso. — Liryan concluiu, engolindo em seco com a mera ideia. Das
bestas condenadas a milênios pelo deus de Eldar, livres outra vez pelo
continente. Skye as chamara de arautos da morte. — Também pensei sobre
isso, mas não pode ser. Não faz sentido. Por que criaturas do fosso atacariam
o recluso povo de Wenkael?
Westyn deu de ombros.
— Mas o que eram então, afinal? E o que queriam com o povo mais
pequeno de Eldar?
Um pensamento se instalou em Liryan, com ele mais uma vez levando o
olhar para a Lorioran de olhos cinza logo atrás, segurando a flor com apenas
uma pétala restante, removendo-a em um mero toque.
Ele balançou a cabeça.
— Não sei. Em algum momento deveremos questionar os dois antes de
chegamos ao reino.
Seu amigo apenas assentiu.
Um estalo soou na mente de Liryan. Ele pestanejou, com Westyn o
fitando em confusão, reconhecendo o que quer que tenha cintilado em sua
face.
— O quê?
O Feänor olhou para os lados ao murmurar:
— E se tudo isso estiver envolvido na antiga profecia? — Ele viu os
olhos do amigo se encherem de compreensão e temor.
Westyn grunhiu, negando. Os olhos disparando para as redondezas, os
flanqueando.
— Eu espero que não — retrucou. — Porque isso significaria coisas
ruins.
Um calafrio percorreu Liryan quando ele se deu conta disso.
Os cinco entraram em um recinto aberto, com montes ao redor, um
trecho do rio do outro lado, com várias rochas imensas espalhadas por todo o
lugar.
Depois de percorrer alguns metros em silêncio, em uma longa calmaria,
os nervos de Liryan estavam aflorados em cautela, seus instintos pareciam
tilintar.
Algo não estava certo, ele podia sentir. Era como se o ar tentasse o
alertar disso. Mesmo seus pelos do braço se eriçavam com o instinto que o
atiçava.
O Vale era um lugar que, desde os primórdios da guerra do Éter, fora o
refúgio de diversas bestas. Criaturas ruins que se escondiam do restante de
Eldar sob a redoma do lugar.
Então, onde elas estavam?
Um barulho estalou pelo lugar, por um instante, quebrando a calmaria
fria, e Liryan poderia jurar que as pequenas pedras no solo de terra tremeram.
Rodopiou o lugar pela área montanhosa, estreitando o olhar para cada
canto, não havia mais tantas árvores, as mais próximas a metros deles;
estavam rodeados de troncos caídos e rochas imensas sobre o monte da
colina. Várias e várias rochas sobre um chão de terra.
— Que barulho foi esse? — Westyn indagou, também em cautela,
observando.
Liryan não teve chance de responder quando o som de pedregulhos
caindo ecoou.
— Pessoal. — A voz de Skye soou baixa atrás deles, Liryan o ignorou,
tentando captar a direção do barulho. Mas Skye continuou: — Aquela rocha
acabou de se mexer?
Eles se viraram para trás, fitando a direção apontada por Skye, para um
imenso monte de pedras e rochas cinzas enormes.
Mas não havia nada demais. Apenas pedregulhos.
Liryan fitou o Lorioran com uma sobrancelha erguida.
Westyn bufou em frustração.
— O quê? — Skye indagou. — Ela se mexeu! Eu vi.
— Ok, elfozinho. — Thorion esbravejou, dando tapinhas em suas costas
ao passar por ele, recebendo um rosnado. — Vamos continuar.
Skye retrucou, ficando atrás quando Gwen passou por ele, acariciando
seu ombro.
Retornaram ao seu percurso, com Liryan voltando a consultar o mapa.
Precisavam sair daquele lugar o mais rápido possível. Uma parte sua o
lembrava disso o tempo todo, com seus sentidos em alerta.
Mal deram meio caminho percorrido quando um som reverberou pelo
Vale. Um chiado sibilado ressoando por todo o recinto.
O ar ricocheteou feroz nele, com um cheiro horrendo sendo trazido
consigo.
Westyn trocou um olhar com ele, se posicionando, passando a observar
com cautela o lugar.
— Tem alguma coisa errada — murmurou.
Entraram em um bosque, com o céu aberto quase fechado pelas copas
das árvores, cobrindo a luz do sol, tornando o recinto escuro, com a floresta
inteira tomada por sombras. Quase sem rastros de luz se infiltrando.
Foi então que, em um estouro, imensas figuras saíram de trás das
árvores, gritando e pulando, com bastões de madeira grossos em mãos.
Mais delas caíram das árvores, pousando nas rochas e troncos a metros
deles.
Liryan mal teve tempo de se mover quando um grito ecoou ao fundo,
vindo de Skye.
E os quatros observaram quando um cipó de vinhas estalou, rasgando o
ar, se enroscando na perna esquerda dele, o puxando, derrubando seu corpo
no chão com o ataque surpresa e o arrastando pelo solo de terra, para em
meros instantes ser erguido pelo cipó em uma velocidade e força bruta para
cima.
Gwen gritou em pavor ao ver o amigo ser levado para as copas das
árvores, que agora estavam rodeadas de várias e várias figuras horrendas
gritando e gargalhando enquanto Skye era puxado com ferocidade para cima.
Liryan finalmente os reconheceu quando a visão se apurou em meio à
escuridão das árvores e pestanejou um xingamento.
E então vários e vários Goblins selvagens saltaram para eles, atacando.
PARTE DOIS
“A HERDEIRA DO SOL”
11
Uma gargalhada sonora reverberou quando ele viu mais e mais daqueles
seres asquerosos vindo para ele. Seu sangue rosnava ensandecido. Então ele
abriu os braços, em um convite para a horda que se lançou contra ele, sendo
colidido por vários Goblins.
Bum! O poder voraz queimando suas veias fora liberado como uma
supernova, disparando uma imensidão de Goblins no ar para o abismo
abaixo.
Westyn não perdeu tempo, com as íris se tornando esferas de luz
conforme ele conjurava seu poder, lançando disparos de raios contra os
monstros.
Ele notou quando Skye entrara em seu campo de visão, ainda em
assombro pelo Lorioran banhado em sangue negro, uma força da natureza
revestido em ódio, destilando sua onda devastadora em seus ataques atrozes.
Westyn o compreendia. Seu instinto feral estava em declínio por ter
sido aprisionado por aquelas criaturas, seu poder rosnava por ter sido cortado.
Ele queria destruir aquele lugar sobre eles.
E se Skye decidisse que desabaria a colina inteira para encontrar Gwen,
Westyn o acompanharia em êxtase.
Um Goblin ousou disparar uma fecha de fogo em sua direção, mas o
escudo que surgiu diante de Westyn fez a besta correr em pavor para longe,
não sendo rápido o suficiente quando o Feänor lançou um chicote contra seu
pescoço, o puxando em uma queda brusca para baixo.
Aquelas bestas os atacaram. Os prenderam. Pelo fosso. Prenderam seus
irmãos e os machucaram com aqueles espinhos de merda.
O Feänor não teria piedade.
Os olhos brancos tremeram quando ele se aproximou. O monstro era
hediondo e tinha o aroma de algo que não possuía limpeza por décadas.
— Onde ela está? — Westyn rosnou. As marcas por seu corpo
cintilando em um aviso para o Goblin.
— Verme. — A coisa sibilou. Westyn suspirou.
— É melhor dizer logo, antes que desabemos esse lugar inteiro sobre
vocês.
Aquilo pareceu o alarmar, com ele sacudindo a cabeça, frenético. O
chicote de luz enroscado em seu pescoço apertando.
— Não podem — chiou em um grasnar. — Este é o nosso reino. Nosso
rei irá destroçar...
Em um bufo, Westyn fechou o punho. O barulho da cabeça decepada do
Goblin ecoou ao quicar no chão.
Thorion surgiu ao seu lado, em sua forma animal, a boca manchada de
sangue negro. Os olhos ametistas famintos pelo ataque pareceram indagar a
ele.
Westyn negou ao compreender.
— Nada. — Nenhum dos Goblins respondera onde Gwen estava
durante seu ataque. O aceno de Thorion disse o mesmo.
Eles levaram o olhar para o Lorioran a metros no nível abaixo,
encurralando um imenso Goblin, com uns dez corpos atrás dele.
Westyn ainda estremecia com a lembrança do que ele fizera para os
libertar da gruta cavernosa em que estavam aprisionados.
O olhar que Skye possuíra o fez tremer na base. Aquele pequeno
Lorioran se tornara uma fera demoníaca temível em um mero instante.
Por pouco quase não o matara quando percebeu a situação em que
estavam e teve um ataque de ira. As marcas já cicatrizando em seu pescoço
eram um lembrete daquilo. Westyn concluiu que, se Thorion e Liryan não o
tivessem acalmado, ele o teria feito. Mesmo com sua cura acelerada, seu
rosto ainda tinha as marcas da corrente de espinhos que o Lorioran raspara
nele.
Westyn quase teve pena daqueles Goblins. Quase.
Ela era linda, fora a primeira conclusão de Gwen sobre a garota que a
libertara e os ajudara a fugir daquele lugar. Raven. Possuía um tom de pele
escura majestosa, com uma suavidade dourada, os cabelos pretos, tão
cacheados que as mechas se entrelaçavam. Mas os olhos dela, pelos deuses,
aquelas íris verdes, tão intensas e gloriosas, contrastando de forma divina
com o tom escuro de sua pele.
Raven era a imagem do que Gwen sonhara ser uma deusa, imponente e
gloriosa. O semblante era carregado de confiança e seriedade, mesmo ao
encarar os dois que se aproximavam dela com cautela.
Gwen manteve sua expressão inexpressiva, ou tentando, conforme
desviava o olhar para Nora.
A lembrança de suas asas ainda martelando em sua cabeça. Pixie. Ela a
nomeou no instante em que o ar mágico inundou aquele salão cavernoso e as
asas, que outrora Gwen achara ser um manto transparente em suas costas, se
ergueram.
Nora era majestosa, tão linda e com traços delicados, como uma pluma
deveria ser; agora Gwen podia distinguir com clareza cada detalhe seu.
Desde os cabelos castanhos caindo por seus ombros, a pele clara, um
pouco pálida demais pelos dias que passou presa naquela alcova dos Goblins.
Os olhos faiscaram algo no interior de Gwen, quase em
reconhecimento, quando ela fitou suas íris azuis-celestes.
Lindas. As duas, era a única palavra que Gwen poderia definir para elas;
mesmo que o vestido azul de alças e costas nuas de Nora estivesse um caco e
o manto de Raven em frangalhos sobre suas vestes, a beleza de ambas era
como uma pedra intacta.
— Eu queria agradecer... — Gwen se pronunciou quando se aproximou
delas, ainda apoiada em Skye ao seu lado. Ela limpou a garganta quando o
timbre de sua voz soou arranhado, corando quando aqueles olhos azuis e
verdes se fixaram nela. — Pelo que fizeram ao nos ajudarem.
Nora abriu um sorriso singelo para ela, acenando, com Raven fazendo o
mesmo outra vez, sem o sorriso, apenas a observando.
— Não podíamos deixar você lá, Gwen Briffyn de Wenkael. — Nora
murmurou cortês, com Raven se retesando ao seu lado em surpresa.
— Você é de Wenkael? — Ela fitou os dois, incrédula, concluindo que
ambos eram quando Gwen assentiu. Raven pestanejou, coçando a nuca. —
Que grupo mais estranho... Três Feänors e dois Loriorans do povo místico de
Wenkael.
Gwen riu com o comentário, com Nora acompanhando.
— Tenho que concordar. — Ela os fitou, os olhos passando para Skye
ao lado, as íris azuis dela cruzando com as dele quando ele retribuiu o olhar.
Nora fez uma breve reverência. — Sou Nora Flower de Elora.
Skye refez a referência com leveza.
— Skye Briffyn, de Wenkael.
Os olhos de Nora se esbugalharam em reconhecimento pelo título de
Skye, alternando o olhar de um para o outro.
— São irmãos, então? — indagou.
Gwen apertou a mão de Skye, fitando seu amigo, seu irmão, que lutara
tão bravamente para encontrá-la naquele lugar. Ele retribuiu o aperto.
— Sim. — Ela respondeu. — De alma, e coração.
A Pixie assentiu em compreensão, parecendo se dar conta de algo,
sorrindo sem jeito ao dar uma cotovelada em Raven, que apenas assistia.
Raven bufou, rolando os olhos em uma exaustão visível.
— Sou Raven Greenthorn, de Elora. — Se apresentou, em uma breve
reverência.
— É uma Pixie também? — Skye atirou a pergunta antes que Gwen
tivesse a chance de a fazer. Ela agradeceu o amigo mentalmente. Não havia
sinais de asas ou traços que indicassem uma sobre Raven.
Raven Greenthorn negou em um aceno, com os dois franzindo o cenho.
— Não. Não sou. — Foi apenas o que ela respondera, o tom deixando
em evidência que aquilo seria suficiente.
Gwen sabia que haviam diversas espécies no reino de Elora, como as
Pixies do ar e das flores e as Tien das águas e mares, mas haviam também
Nikies e outras espécies do povo.
Nora a fitou com um olhar que só poderia ser comparado a reprovação,
sendo ignorada por Raven, que estalou um murmúrio, indicando o grupo de
Feänors atrás, na fogueira.
— Estão com eles? — Ela questionou incisiva.
A Lorioran levou o olhar para eles, vendo Liryan conjurar sua magia de
cura sobre os ferimentos no ombro de Westyn, que reclamava enquanto as
palmas banhadas de luz do outro raspavam por sua pele.
Ela se voltou para as duas à frente.
— Sim, estamos.
Raven apenas assentiu, serena. O rosto um retrato inexpressivo, embora
era perceptível que sua mente trabalhava com as informações dadas.
— Eles são... — Nora pareceu sopesar suas palavras, mordendo o lábio
inferior ao fitar Gwen. — Confiáveis?
Sua mente girou aquela pergunta em sua cabeça, mesmo que ela tenha
passado a manhã inteira indagando para si mesma sobre os Feänors.
Eles a tinham protegido no ataque contra os Goblins, tinham resgatado
ela e Skye de Wenkael, até mesmo lutaram junto a Skye para a encontrar.
Não confiava totalmente neles, não ainda, embora uma amarra dentro de
si a respeito da cautela e desconfiança sobre eles houvesse afrouxado um
pouco. Como se o muro defensivo em volta dela diminuísse um pouco suas
altas estruturas.
No entanto, antes que pudesse responder, Skye se adiantou novamente,
rindo em escárnio.
— Eles? — A voz chiou em deboche. — São um bando de idiotas.
E Gwen não conteve o riso ao ver as expressões exasperadas de Nora e
Raven que não esperavam por aquilo, com Skye se juntando a ela.
Era a primeira vez que ria de forma tão natural depois do que
acontecera na noite anterior. Não pareceu tão ruim quanto ela pensou que
seria.
Skye deu passos lentos pelo caminho escuro, passando pelas imensas
raízes desenterradas da figueira, caminhando até o Feänor prateado do outro
lado. Fitando além da barreira. Ele sabia da presença de Skye antes mesmo
que o Lorioran chegasse até ele. Talvez o tenha ouvido no momento em que
Skye deixou Gwen dormindo sobre a grama, trocando um olhar com Raven,
que compreendeu muito bem quando ele se direcionou para trás da imensa
árvore, onde Westyn, de braços cruzados, fitando o céu sem estrelas, estava.
Devagar, o Lorioran se posicionou ao seu lado, com um certo ponto de
distância entre os dois, acompanhando o olhar do outro para cima. O céu
escuro e divino em esplendor, parecia um manto sombrio sobre Eldar, os
cobrindo com maestria.
Westyn não falou nada, os olhos ametistas continuaram contemplando o
céu, os braços musculosos cruzados sobre o peito, enquanto navegava em
seus próprios pensamentos.
As marcas Feänor espalhadas por seu corpo ganhando um tom solene ao
anoitecer.
Mordendo o lábio inferior, Skye inspirou fundo.
Tinha feito uma longa batalha interna sobre se deveria ou não fazer
aquilo, então agora que já estava de prontidão ao lado de Westyn, precisava
fazer.
Na pior das hipóteses, o imbecil apenas riria dele, na melhor... Bem, ele
não conseguia imaginar.
— Acha que conseguiremos passar por esse lugar? — Ele se viu
quebrando o silêncio imposto. O Feänor exalou, ainda sem o fitar. Skye
analisou sua postura, buscando algum vestígio nela que indicasse que ele não
estava a fim de conversa.
O rosto marcante continuou inexpressivo, com o céu acima refletindo
em suas íris cintilantes.
— Temos de conseguir. — Ele respondeu apenas. O tom aveludado
soando meio seco. Skye não captou nenhum desagrado além, apenas um eco
exaurido.
Ele acenou de leve.
— É... Temos.
Uma sobrancelha prateada se ergueu, com o cenho do Feänor franzindo
quando ele olhou para Skye de lado, quase por sua visão periférica.
— Não parecia ansioso em chegar tão rápido em Elrond mais cedo. —
O tom de Westyn não possuía sarcasmo, mesmo assim Skye conteve um rolar
de olhos. As muralhas defensivas que sempre mantivera em torno de si ainda
erguidas.
— Não estou — rebateu, os olhos sobre o céu. — Contudo, não temos
escolha. E nem para onde ir. Não podemos arriscar voltar para Wenkael. Se
as respostas para tudo isto estão em Elrond... Precisamos disso.
Westyn pareceu perceber algo na expressão de Skye, relaxando a sua,
saindo da defensiva que sempre se colocava perante ele, como Skye notara.
Skye ainda não se sentia confortável envolvido pelos três e sabia que o
sentimento era recíproco. Ambas as espécies não sabiam nada uma sobre a
outra. O Lorioran ainda ponderava alguns fatos sobre eles, vetando votos de
confiança que poderia ou não os dar.
— Sinto muito pelo que aconteceu com seu povo. — O Feänor
murmurou depois de um tempo. Skye piscou, sem conseguir responder
aquilo, apenas acenando em retorno. Surpreso pelo ato de Westyn, até mais
do que por suas palavras.
Desceu o olhar, abaixando a cabeça, fitando a grama verde e silvestre
daquela campina. Havia insetos sobre pequenas raízes brotadas, fora naquele
ponto que ele se concentrou.
— Eu... Eu... — Ele respirou fundo, os olhos focando nas botas de pele
que usava, observando o quão sujas e maltrapilhas estavam. — Eu sinto
muito pelo que fiz na gruta a você.
O Feänor enrijeceu, congelando ao seu lado. Incrédulo, embora não
mais do que o próprio Skye ao reconhecer suas ações.
Ele tinha extravasado o ódio que o inundara sobre Westyn, quando
quase o matara, pelos deuses! Teria o matado se não fosse impedido por
Thorion e Liryan. Mas Westyn não tivera culpa do que acontecera a Gwen,
nenhum deles. Mesmo ainda não confiando por completo nos Feänors, tinha
que dar crédito para o que eles fizeram, ajudando-o a encontrar Gwen na
colina.
Principalmente Westyn. Ele se recordava do Feänor criando uma
tempestade feroz de raios, se tornando uma fúria da alvorada, a própria ira
de um deus sobre os Goblins, para que pudessem encontrar Gwen.
Tinha de admitir que o idiota merecia um voto de confiança por aquilo,
por mais difícil que fora constatar e desabar, mesmo que um pouco, as
muralhas defensivas em volta de si.
— Me desculpe. — Skye sussurrou sem jeito, erguendo o olhar para um
Westyn ainda incrédulo e estupefato.
O Feänor piscou, balançando a cabeça, voltando a si.
Ele arquejou, limpando a garganta seca. A pele tinha diminuído um
grau de palidez. Os olhos permaneceram meio esbugalhados, destacando a
intensidade daquele oceano violeta.
— Pelo quê? — indagou então, sorrindo. Trocando a expressão de
choque por uma de provocação, mexendo as sobrancelhas. — Por tentar me
matar? Aquilo não foi nada, elfozinho.
Skye se viu sorrindo, rolando os olhos para o idiota. Quase rangendo os
dentes.
— Não me faça me arrepender disso. — O Feänor riu zombeteiro. Skye
por pouco não mostrou as presas, lembrando a si mesmo que estava tentando
se redimir. — Ou não me tente a fazer de novo. Seus amigos não estão aqui
para me impedir agora.
Westyn engasgou com seu ofego, estancando, os olhos se arregalando
ao digerir aquelas palavras, mesmo seu sorrisinho caiu um oitavo quando seu
rosto perdeu a cor por completo.
Pelo fosso! Skye quase gargalhara de sua expressão, levando a mão aos
lábios para contê-la, abafando um riso.
O Feänor suspirou por fim, ao perceber, grunhindo.
— Isso não teve graça.
Skye balançou a cabeça rindo.
— Sua expressão foi impagável, no fim das contas.
— Há. Que hilário! — Westyn bufou, com Skye se recompondo ao fitar
o Feänor com uma expressão fechada.
Westyn adorava provocações, embora não gostava de as ter contra si.
Que grande idiota.
Sempre achou que os Feänors fossem uma raça perigosa e severa.
Aquele ao seu lado deveria ter algum defeito, pois, mesmo com os
incontáveis séculos que deveria ter, tinha a personalidade de uma criança
imatura e idiota.
Um grande bebezão.
Apesar dos traços maduros, com aquele olhar marcante, que muitas
vezes Skye vira pousando sobre Gwen.
— Sério. — Skye atirou. — Desculpe por aquilo.
Westyn gesticulou um aceno em dispensa, estalando a língua em um
sorriso cortês.
— Não esquenta. Está tudo bem. — O Feänor piscou para Skye, com
um sorrisinho que deveria achar ser charmoso, com o Lorioran não evitando
franzir os lábios com aquilo. Westyn tinha um senso de prepotência
impressionante. —Eu faria o mesmo, sabe? Por Thorion e Liryan.
— Eu entendo. — Skye murmurou. Provavelmente se arrependeria de
suas próximas palavras. Mas mataria Westyn antes que ele comentasse com
alguém que houvesse dito aquilo. Então concluiu: — Vocês não são tão ruins
assim, sabe? São uns idiotas de merda. Mas não tão ruins de todo.
Westyn grasnou um gemido, arqueando uma sobrancelha.
— Isso deveria ser um elogio?
Skye dera de ombros rindo.
— Queria o quê? Que eu dissesse que são incríveis?
— Seria bom, para começar. — Westyn ajeitou a lapela de sua jaqueta,
aprumando seus ombros em uma postura majestosa, empinando o queixo. —
Mas não preciso que me digam o quanto sou incrível. Eu sei bem disso.
— Pelos deuses... — Skye bufou. — Você tem alguma síndrome de rei
ou coisa do tipo?
Westyn riu.
— O que posso fazer? Eu sou o rosto da equipe! O lindo e sexy Westyn
Dandellion. O conquistador de corações. O sedutor de moças inocentes. O
guerreiro feroz e letal. O lindo e estonteante Westyn.
Ele gesticulava com as mãos conforme falava, com um tom sério que
fez Skye se perguntar sobre a sanidade do Feänor conforme esse engrossava
o tom ao narrar sua encenação.
— Isso é ridículo — zombou Skye. — Então como Thorion e Liryan se
definem nesse trio de ouro?
Westyn analisou aquilo, levando uma mão para seu queixo, coçando,
conforme pensava em uma expressão contemplativa.
— Thorion é o coração da equipe. O mais gentil e atencioso. Embora
tenha um tamanho assustador, ele é uma fera mansa. É o mais puro de nós
três. — Skye não conteve a surpresa, apreciando o tom fraterno e terno de
Westyn ao falar sobre seus companheiros de equipe. Erguendo uma
sobrancelha para as descrições dele. — E Liryan... Bom, Liryan sempre foi o
mais inteligente entre nós. Ele definitivamente é a mente da equipe.
— É um conjunto e tanto de definições.
— Toda equipe tem uma parte importante que a faz ser como é. Uma
característica única. Então, como definiria você e Gwen?
Um sorrisinho brincou nos lábios de Skye.
— Incríveis — esbravejou. — Tempestuosos.
— Tem certeza que eu sou o prepotente aqui?
Skye socou o braço de Westyn, contendo um sorriso.
— Cala a boca, seu merda.
Westyn riu.
— Escuta... Eu estive me perguntando. — Skye se retesou ao tom sério
dele, se atentando. — Quando Liryan e eu sobrevoamos Wenkael, vimos
aquelas... Bestas.
Skye se encolheu, desviando o olhar para o bosque em volta, através da
barreira mágica de Liryan, evitando o olhar que Westyn lhe dera e suas
palavras.
Qualquer traço de diversão correndo por ele, fugira.
A mera lembrança que aquilo lhe trouxe o fez envolver o corpo com
seus braços, estremecendo. Ele sabia que Westyn notou aquilo e que soubera
que não era devido ao frio, mesmo assim prosseguiu:
— Nunca vi bestas assim em minha existência. Eram profanas e... Pelos
deuses. Nada era como elas. Apenas as criaturas das lendas antigas sobre o
fosso. — Um tremor gélido percorreu o corpo de Skye. Ele levou um olhar
para trás, por cima do ombro, para Gwen dormindo a alguns metros, temendo
que aquilo chegasse até ela. — Eu entendo se não quiser falar. Não precisa.
Mas se as criaturas do fosso estão vagando por Eldar novamente, talvez as
coisas sejam mais graves do que imaginamos.
Aquilo pesou com gravidade na mente de Skye. Tudo. Rodopiando e
rodopiando por um bom tempo, com Westyn respeitando seu silêncio. Com
ele debatendo contra si mesmo. Contra a onda de desconfiança que o tomava,
com ele nadando para longe dela.
Mais e mais longe, sendo puxado pela correnteza.
Sua mente então se preencheu com os motivos daquele ataque. Depois
de milênios condenadas, por que justo Wenkael? Por que atacara um povo
recluso há séculos?
Por que as lendárias bestas tinham destruído a barreira divina e
massacrado seu povo?
Por quê?
Por quê?
Por quê?
Tinha se atormentado com aquelas dúvidas o dia inteiro. Com mais
delas pesando em sua consciência, unindo algumas peças de um quebra-
cabeças perigoso que começara a montar, temendo acima de tudo o
desvendar.
Não sabia se estava preparado para aquilo. Para uma possível verdade
que se manteve oculta por tempo demais. Gwen não suportaria. Ele sabia.
Tinha plena consciência de que o que quer que estivessem buscando em
Elrond, a atingiria com brutalidade.
Ela mal falara de Gillyn, ele sabia o que sua amiga estava fazendo.
Guardando aquelas emoções, as contendo para depois. Depois. Lidaria com
aquilo depois. Ouvira e vira ela fazer aquilo tantas vezes e assistira o quanto
aquilo a destroçava quando por fim as liberava.
Quando Gwen Briffyn se permitisse aceitar sua perda, Skye temia que
não restasse nada dos estilhaços que sua amiga se tornaria.
Mas ele estaria lá por ela. Juntos.
E enfrentariam a verdade sombria que buscavam, sobre o porquê Gillyn
os tirara tão rápido de Wenkael e se sacrificara para que eles chegassem a
Elrond e descobrissem o porquê de tudo aquilo.
O Feänor ao seu lado suspirou, parecendo desistir de ouvir algo de Skye
a respeito do ataque. Ainda era doloroso para ele se lembrar. Não do ataque
em si. Mas das perdas. De seu povo, a lembrança afiada e cortante de seu
povo feliz e alegre morrendo por aquelas bestas demoníacas.
Ele fechou as mãos em punhos, mordendo o lábio.
Não confiava em Westyn, não o suficiente para contar determinadas
coisas. Mas sabia que não havia motivos até o momento para desconfiar dos
três Feänors, que até agora só os tinham ajudado.
Mesmo Westyn, que quase se esgotara ao curar seus machucados. E o
fizera sorrir há pouco, pela primeira vez depois do que acontecera. Ele tinha
rido. Mal tinha percebido aquele fato.
Longos minutos se passaram, quando Skye voltou a fitar a imensidão
devastadora do céu, se vendo contando para o Feänor o que acontecera no dia
anterior, da caçada da besta ao alvorecer ao ataque à aldeia ao anoitecer.
Ocultando alguns detalhes, guardando para si informações que achava não
serem necessárias ou que não conseguia contar para Westyn. Sobre certas
coisas ditas por velhos idiotas. E sobre Gwen.
Sempre fora sobre Gwen.
Algumas suspeitas que há muito, muito tempo o rondavam, com aquele
declínio de acontecimentos infelizes os consumindo, o perturbando ainda
mais.
Mas ele sabia, sempre soubera, que Gwen era diferente, que o que quer
que tudo aquilo fosse, de alguma maneira infeliz estava interligado a ela.
Uma recordação de décadas e décadas atrás raspou sua mente. De dois
Loriorans pequenos fugindo de imensos leões da montanha. Um bando
inteiro deles. Estavam sozinhos naquele pico montanhoso e as feras os
perseguiam, famintas e raivosas. Não tinham chance contra tantas. Não
sobreviveriam a aquilo e pereceriam juntos. E Skye estava pronto para partir
ao lado de sua Gwen. Estavam sozinhos e aquele seria o fim dos dois. Seria o
fim. Ou deveria ter sido.
Ele fechou os olhos com a lembrança apertando seu peito, a mesma
lembrança que ele guardou para si durante décadas, temendo sua mera
recordação, esquecendo para seu próprio bem e o de Gwen.
Não sabia como a própria Gwen esquecera aquilo, mas ele agradecia
aos deuses por isso.
As palavras dos anciões, principalmente as de Godric, ecoaram em sua
cabeça como uma martelada, sendo acompanhada pelas de uma besta que
enfrentara. Onde está? A voz serpentina chiou em sua cabeça.
O que você é?
Nora viu o mais puro e frívolo medo fervendo nas íris dos dois
Loriorans. Não fora sua intenção causar mais alarde nos dois com sua
descrição da criatura monstruosa que vira quando atravessou o lugar.
Ela pigarreou, dando mais passos na direção dos dois, passando a
caminhar ao lado de Gwen, ignorando o olhar arqueado que Raven atirou
para ela.
— Eu estive me perguntando... — Olhos cinzentos e olhos azuis etéreos
se puseram sobre ela, à direita de Gwen. — Wenkael não deveria impedir que
saíssem de sua redoma?
Se arrependera de suas palavras no instante em que as pronunciou
quando vira o olhar dos dois erguer muros, se solidificando em uma
expressão defensiva.
Não tinha esquecido o que Gwen relatara quase inconsciente, lutando
para permanecer sã na prisão dos Goblins. A história que contara por partes a
Nora, sobre o ataque a seu povo. Alguns traços ainda estavam frescos na
mente de Nora, no entanto, havia uma porção de indagações.
— Não vejo porque isso é de sua conta. — Skye brandeou entredentes,
o tom deixando visível sua irritação.
Nora arquejou em rubor. Merecera aquilo, fora direta demais. Não tinha
direito a tais perguntas quando era uma mera estranha para os dois.
— Eu sinto muito. Não quis ser intrometida — esclareceu sem graça,
com a expressão sólida de Skye permanecendo, enquanto Gwen a fitava com
mais suavidade. — Fui uma tola, perdoe-me por isso. Mas eu cresci ouvindo
as histórias sobre seu povo e estudei sobre vocês. Sobre a barreira...
Skye grunhiu, com ela se calando ao se dar conta que estava sendo
novamente intrometida e indulgente.
— Desculpe... — murmurou envergonhada, abaixando o olhar para suas
botas sujas enquanto caminhava.
— Está tudo bem, perdoe Skye, ele pode ser um pouco arisco quando
quer. — Gwen deu ao Lorioran um olhar de repreensão e Nora captou o rolar
de olhos dele quando ergueu os seus para os dois.
As íris cinzas, salpicadas por um tom azul nublado quase imperceptível,
a fitaram com clareza.
— E você tem razão, Wenkael não deveria permitir que saíssemos. — O
tom fora seguro e firme. Mas o olhar... Nora viu um brilho se esvaindo das
íris. — Ou deveria ter razão.
Algo lampejou sobre a Pixie com o indício de algo naquele tom
fervoroso da Lorioran.
Nora ergueu uma sobrancelha. Ela se viu decidindo se indagava ou não
o motivo daquilo, receando se estaria sendo impertinente demais quando não
conseguiu resistir à sua curiosidade, no final das contas.
— O que quer dizer com isso?
Ela esperou algum ruído de frustração vindo de Skye, que ela já tinha
feito uma anotação mental em sua observação sobre os dois, com o Lorioran
dourado sendo o mais afiado e de humor arisco dos dois. Tinha que ter
cuidado com suas palavras perante ele.
Embora Gwen possuísse uma aura de leveza e conforto em sua postura
e olhar, Nora não tinha certeza total de como poderia defini-la. Ela parecia
calma demais para alguém que tinha escapado de um ataque ao seu povo.
E as criaturas que ela contara! Nora precisava saber mais. Tinha se
perguntado se a história de Gwen na gruta fora apenas uma alucinação da dor
que a consumia, de tão desnorteada que estava.
A Lorioran a fitou com um olhar cheio de emoções transbordando
daquele tom cinza tão vasto. Outro ponto sobre os dois eram seus olhos, a
vastidão sem fim que aqueles olhos cinzas possuíam, como se um tornado
selvagem estivesse instalado sobre eles, embora tão diferente e distinto das
íris instigantes e intrigantes de Skye. Aquele azul divino e esférico causava
pontadas de fascínio sobre Nora sempre que os fitava. Era revigorante apenas
o fitar.
Então seu corpo inteiro foi tomado por uma onda fria e congelante de
assombro quando Gwen, depois de alguns minutos respondera, a voz oca,
sem emoção alguma quando atirou ao ar:
— Wenkael fora atacada — disse seca. — E destruída.
Nora tropeçou em sua caminhada, hesitando quando um ofego de
estupor ressoou por seu peito. Então de fato era verdade. O povo de Wenkael
havia sido atacado. Mas pelo quê? E por qual motivo?
— Oh, deuses.
Nora levou a mão para sua boca, estupefata.
Os Loriorans não a fitaram. Nenhum dos dois, recusando a entregar
uma mera emoção em seu olhar com aquela afirmação tenebrosa.
Um silêncio perturbador se instalou entre eles, conforme seguiam o
grupo de Feänors à frente, guiando-os pela relva florestal.
Nora engoliu a bile com dificuldade, como se um imenso caroço
descesse por sua garganta apertada. Digerindo aquela informação com pesar.
Raven murmurou algo, se aproximando mais deles.
A Pixie não teve tempo de intervir quando sua guarda real se dirigiu
para os dois com um olhar incrédulo. Ela tinha ouvido tudo, cada parte da
conversa, então.
— O que querem dizer com atacada?
Skye diminuiu um pouco seus passos, olhando por um breve segundo
para ela por sobre o ombro.
— Foi o que ouviu, atacada.
Raven quase grunhiu; Nora sabia que ela conteve isso quando o tom de
sua voz soou rouco demais.
— Mas atacada por quem?
Mais um longo minuto de silêncio; quando um suspiro pesado ecoou,
Nora não soube dizer de quem saiu, nem mesmo se fora dela.
— Por bestas. — A voz de Skye fora carregada por uma energia
sombria, e Nora se preparou quando viu que ainda havia mais, embora não
estivesse preparada para aquilo. — Por bestas do fosso.
A Pixie ofegou, estancando de imediato, com Raven compartilhando o
declínio de pavor.
Bestas do fosso.
Gwen de fato tinha dito aquilo na prisão, embora Nora não se agarrara a
ele, devido as dores e exaustão que lutava contra. Sua mente estivera em um
estado inerte, ausente de foco. Mas agora estava atenta o suficiente com
aquele detalhe abrasante.
Bestas do fosso.
Aquela mísera frase rasgou cada pedaço de pensamento dela, fazendo
sua mente sangrar com brutalidade, ecoando com estilhaços de espinhos.
Nora cobriu sua boca por completo com suas mãos, evitando permitir
que um grito oco lhe escapasse.
Raven, tão estupefata e petrificada quanto ela, parou, grasnando um
xingamento feio no ar.
— Esperem — esbravejou, alto e em bom tom, fazendo até mesmo os
Feänors à frente cessarem, olhando para trás, para eles, em confusão. Skye e
Gwen a encararam com um olhar neutro quando Raven rosnou. — Que porra
estão dizendo?
— Qual parte não entendeu, hein? — Fora como lascas de gelo que os
olhos de Skye a fitara, a voz ricocheteando em zombaria.
— Isso não pode ser verdade. — Raven cuspiu. — São mentiras.
Skye rosnou mordaz, mostrando as presas.
— Cuidado com o que fala — sibilou em um chiado raivoso. — Não
sabe de que merda está falando.
Contudo, Raven não baixou sua guarda, ou mesmo hesitou.
— Você que não sabe o que está falando. Isso é idiotice e uma mentira.
Não pode brincar com isso.
— Raven... — Nora tentou intervir, o tom fraco e estridente. Ela apenas
a ignorou quando Skye deu passos em sua direção.
— Acha que estou brincando? — As presas para fora em uma ameaça
visível. Raven mostrou as suas em retribuição. — Acha que mentiria sobre
meu povo ser destruído por criaturas do fosso? O quão idiota é?
— Deve estar louco com tamanha ilusão. Criaturas do fosso são apenas
lendas antigas. São ilusões.
Cada pedaço de Nora estremeceu com a risada de Skye. O som fora
tenebroso, com ela dando um passo automático para trás. A aura em volta do
Lorioran era letal e furiosa. Era etérea.
Embora Raven não se abatera com aquilo, a apenas um metro de colisão
dele, com ambos rosnando um para o outro.
— Não há mentira. — A voz de Gwen quebrou a tensão entre eles.
Raven estremeceu com o tom dela. O olhar fora intimador e frio. — Wenkael
caiu sob o ataque de criaturas demoníacas vindas do fosso. Essa é a verdade.
— Não pode ser... Isso é... — Raven grunhia abrupta.
O imenso tigre passou por Gwen, indo para Skye, se prostrando ao seu
lado, fitando Raven com um olhar feral. Em um aviso estampado. Se desse
mais um passo para o Lorioran, ele a rasgaria.
Os outros dois Feänors se aprumaram, com Westyn, o de cabelos
prateados que a havia curado na outra noite e ameaçado algumas horas atrás,
se aproximando de Gwen.
— Acredite no que quiser. Vimos o que restou de Wenkael e nenhuma
criatura comum se assemelha às bestas que causaram aquilo. — Ele
murmurou com um tom grave, trocando um longo olhar com Gwen.
— Estiveram em Wenkael? — Raven olhou para os Feänors, rindo. —
Mais mentiras. Como entraram na barreira de proteção?
O imenso tigre rosnou ao lado de Skye, que parecera aliviar sua fúria
com a presença do mesmo.
— Não havia barreira. Não mais. — O de cabelos castanhos logo atrás
de Westyn anunciou.
— Liryan e eu sobrevoamos Wenkael inteira. Só havia caos e
destruição. E aquelas criaturas. — Westyn indicou Liryan, o Feänor de
cabelos castanhos atrás de si com um aceno.
— Estão dizendo que não havia barreira sobre Wenkael? Mas os contos
e as histórias dizem...
— Mentiras. — Fora Skye que se pronunciou com escárnio. — Apenas
mentiras. Durante eras.
— Isso... — Raven parecia tão distante e sobrecarregada com todas
aquelas informações, ainda em um estado frenético de estupor. Seus olhos
verdes se lançaram para Westyn. — O que faziam em Wenkael quando o
povo fora atacado? O que sequer fazem aqui, afinal?
Nora engoliu com dificuldade, levando o olhar arregalado para eles,
esperando pelas respostas que ela mesma estava se fazendo, sendo corroída
por tudo aquilo.
Westyn abriu a boca para responder, no entanto fora interrompido por
um pestanejar irritado de Skye.
— Você não tem o direito de fazer perguntas. Não conhecemos vocês.
— Ele levou o olhar colérico para Nora, que estremeceu diante da imensidão
etérea que a fitou, o azul ainda mais cintilante, respirando em alívio quando
ele se direcionou para Raven. — Não estamos exigindo saber que porra estão
fazendo aqui, estamos? E mesmo assim permitimos que nos acompanhassem.
Então cale essa maldita boca e se meta nos seus assuntos.
Raven rosnou furiosa.
— Vá se ferrar, elfo idiota.
O tigre rosnou de volta em fúria, emitindo um som tenebroso, com
Raven mostrando as presas para ele. O tigre retribuiu o gesto de forma
assustadora com as imensas presas.
— Elfo idiota? — Sky riu. Outra vez o riso seco.
— E mentiroso.
— Foda-se, cretina.
Gwen se aproximou dele, pondo uma mão em seu ombro, com um olhar
cheio de avisos que Nora não conseguira ler.
— Skye, não. Está tudo bem. Não precisa se exaltar.
— Como não? Ela nos chamou de mentirosos. Depois de toda a merda
que passamos, não vou aceitar isso.
A mão de Gwen subiu para a face do Lorioran, acariciando a maçã de
seu rosto, puxando seu olhar feroz para ela.
— Está tudo bem. — Algo naquele olhar pareceu recair sobre ele,
relaxando seus ombros e sua postura defensiva, abaixando suas defesas.
— Gwen... Eu não posso permitir.
— Conhecemos nossa verdade, isso é a única coisa que importa, ok?
Ele suspirou, assentindo.
— Tem razão.
— Não temos tempo a perder, não precisa nos acompanhar se não
desejar. Nosso destino será longo e não cabe a vocês fazê-lo. — Liryan
murmurou sereno atrás deles, a mensagem imposta para Nora e Raven.
— Eu vou. — Nora conseguiu pronunciar sem titubear, dando um passo
adiante.
— Está cometendo um erro, Nora. — Raven chiou. — Não podemos
confiar neles. Alguma coisa muito errada está acontecendo aqui. Sinto isso.
Aquilo impulsionou a ira de Skye novamente.
— Não está sendo forçada a nos acompanhar. Siga seu caminho.
— Não pedi sua opinião, imbecil.
Rosnaram um para o outro. Nora ofegou frustrada.
Então uma risada arranhada e estridente reverberou pelo recinto inteiro,
com eles se sobressaltando, virando para frente, com os instintos em alerta
total.
— Por que toda essa briga, crianças?
Alguns metros à frente, no arco de dois ramos se unificando em uma
abertura na floresta, havia uma velha alta os fitando com imensos olhos,
sorrindo em deleite para eles.
Nora observou em estupor a velha caminhar para eles, ainda rindo, e
fora aquele riso estranho, carregado por um tom ecoante, e antigo, que
revirou seu estômago por inteiro, com seus instintos se aflorando em alerta.
21
Skye tinha estado envolto em uma aura afiada, desde que partiram com
a velha bizarra, que os guiava à frente, de forma lenta, mais e mais
adentrando nas profundezas da floresta. Ele não estava nem um pouco
satisfeito com aquilo, seus instintos relampejando com a presença fria e
tenebrosa daquela mulher estranha. Sua mão apertando com força a lança,
preparado para qualquer surpresa iminente.
Não se deixaria ser abatido outra vez, como fora com os Goblins; desta
vez seus sentidos e nervos estavam atentos, apurados a tudo.
Inclusive ao terrível fato de que tinham passado por uma redoma
infestada de gigantescas teias de aranhas nos carvalhos despontados, com ele
jurando ter visto imensas pinças deslizando por um tronco no topo.
O imenso tigre branco caminhava ao seu lado, com Thorion o
acompanhando em seus passos. Skye sabia que o Feänor estava naquela
forma porque tinha perdido suas vestes na gruta dos Goblins.
Sabia que quando ele retornasse para sua forma original estaria
completamente nu, e aquele pensamento lançou um calor pelo corpo de Skye
com fervor, esquentando-o com a lembrança de Thorion nu, de cada músculo
e parte à mostra, de certas regiões tão grandes e proporcionais ao imenso
corpo de Thorion, que o Lorioran piscou para afastar as imagens provocantes
de sua mente, sem ao menos notar que mordia o lábio inferior com elas.
Não tinha se perguntado o porquê da constante aproximação de Thorion
sobre ele desde que começaram a percorrer o trajeto com a velha estranha.
Embora ele não podia negar que uma parte sua gostava da presença do felino
por perto.
Thorion, em sua forma animal, passava da altura da cintura de Skye.
Era tão imenso quanto em sua forma Feänor.
Gwen caminhava na frente, com Westyn e Liryan em cada lado seu,
ambos com uma aura perceptível de cautela e proteção sobre ela e o lugar.
A velha mais à frente nem mesmo olhava para trás, contudo, o
sorrisinho que dera quando eles decidiram a acompanhar não passou
despercebido por ele.
Skye concordava com o que Nora falara, não confiava nem um pouco
naquela mulher, que parecia uma louca, habitando esse lugar hediondo. Ele
sabia que ela não era apenas uma velha comum. Deveria de fato ser mais uma
das criaturas desse povo.
Ele girou a haste de sua lança na palma, com aquela ideia passando por
sua mente em uma repetição incontável.
— Não gosto disso. — Ele sussurrou, com a cabeça do tigre se
erguendo para ele. Os olhos ametistas, mesmo na forma animal, o fitaram
atentos, com Thorion assentindo em comum acordo. — Não gosto nem um
pouco.
Eles estavam seguindo uma velha para o completo desconhecido, em
um lugar que, de acordo com ela, fora encantado para não ter direções
concretas. Não havia norte, leste, oeste ou sul. Era um vácuo no espaço-
tempo.
Entraram numa relva, com uma névoa esfumaçada chiando como uma
fumaça grossa mesclada pelo ar. Skye teve que aprumar a visão para enxergar
através da neblina cinza, vendo com clareza quando, a alguns metros, havia
uma casa com estrutura de madeira, com um cercado também de madeira se
arrastando ao redor dela, flanqueada pelas árvores e névoa, que chegava a
ocultar o solo onde pisavam.
Skye cessou seus passos, Thorion fez o mesmo, com o Lorioran
inspirando fundo, tentando captar um aroma sequer. Não havia nenhum.
Nenhum cheiro emanando do lugar. Nenhum.
Que estranho.
Nora entrou em seu campo de visão, parando ao seu lado, com ele a
fitando por sua visão periférica.
— Não sinto uma energia boa nesse lugar — comentou, as mãos em
punhos sobre o colo conforme observava a casa da velha em meio ao
nevoeiro. A dona já atravessava a cerca dela.
Era uma construção de madeira e pedras, de uns quarenta metros
quadrados. Com um telhado triangular, formado de grossas telhas de ripas de
madeira. Possuía uma pequena varanda a circundando. Sem nenhuma janela à
vista, apenas uma porta de um tom marrom-escuro, diferente do marfim sujo
da casa velha, rodeada de galhos e vinhas se enroscando.
Skye se viu concordando, quando uma sensação alarmante o abraçou,
como se uma voz sedosa sussurrasse em seu ouvido: “Cuidado” e “Corra”.
Corra, a voz parecia repetir. Ele engoliu em seco, fitando a casa da
velha, quando seus instintos pareceram fugir para longe daquele lugar
estranho e assombroso, com ele fazendo o oposto daquilo quando Gwen,
Liryan e Westyn acompanharam a velha, que os esperava na soleira da
varanda.
Os olhos cor de ouro brilhando em deleite, com aquele sorrisinho terno,
congelando a alma de Skye até o último fio tecido.
22
Skye quase atirara sua lança na direção daquela velha desgraçada. Ele
desejava que ela pudesse atravessar no crânio em um ataque certeiro, quando
a mesma continuava a gargalhar para eles ali à frente. Apenas o medo, do
mais profundo e intenso, o impediu de o fazer, quando um calafrio
escorregou por sua espinha, o congelando em seu lugar.
Thorion enrijeceu ao seu lado, com sua pelagem branca inteira se
eriçando em um silvo. Merda. Aquilo não era nada bom. Nem um pouco.
Todos estancaram, quando o ar no recinto pareceu engrossar, se
tornando espesso. Quase como se uma suave fumaça inundasse o lugar
inteiro. Uma névoa.
Skye levou o olhar para a velha, no arco do corredor, embora não
conseguisse distinguir sua silhueta com clareza agora, devido à névoa que os
sondavam.
— Não vão sem o mapa, não é?
Ele viu algo ser erguido em meio às sombras e neblina. Mas não se
atentou àquilo, não quando o tom da velha mudou. Antes dócil e terno, agora
grave e estridente.
— Nos entregue, agora.
— Venha pegar, criança tola.
A velha riu. Um som de pesadelos. Era o que era.
— Você nos fez vir até essa casa de merda. Apenas nos entregue esse
mapa e saímos sem confusão alguma.
Um chiado grasnado estrondeou a garganta da velha.
— Você tem uma língua afiada, criança. Irei adorar arrancar e devorá-
la.
Skye sorriu colérico.
— Sabe o que é afiado também, velha desgraçada? — A lança rodopiou
em um movimento rápido em sua mão. — Minha lança.
Ele estava de saco cheio de tudo aquilo, bestas do fosso, Feänors,
Pixies, Goblins e agora uma velha louca? Skye estava cansado disso.
Mãe da floresta, fora como Westyn a chamara? Skye vasculhou suas
memórias buscando cantigas e contos desconhecidos sobre tal criatura. Não
encontrou nada. Não a conhecia. Mas sabia que não era uma coisa boa. A
mera presença dela instigava calafrios de horror por seu corpo.
Porra. Por que não tinha que ser uma velha bondosa com doces? Que
merda tinham feito aos deuses para merecerem aquilo?
— Venham, aqui está o mapa. Não sairão do Vale sem ele. — Algo
brilhou em meio à névoa sombria, tinha um formato simétrico, quadricular. O
mapa estava cintilando, erguido por uma mão da velha.
— Não. Decidimos que iremos sem. — Liryan pestanejou.
— Acabaram de chegar. Acomodem-se em minha modesta casa. — Ela
guinchou a eles, ainda rindo.
Modesta. Aquilo era um eufemismo fodido para definir aquela merda de
casa. Skye tentava ao máximo evitar fitar os rostos contorcidos e
horripilantes pregados nas paredes e piso. Vários rostos, com as peles
arrancadas costuradas uma sobre a outra, pregadas em todos os lugares.
Mesmo os móveis eram de ossos e peles.
Seu estômago revirava em uma ameaça de vômito a cada olhar, com a
névoa grossa ajudando a evitar aquela visão assombrosa.
— Já estamos de partida. — Raven sibilou. — Não temos tempo a
perder.
— Tempo. — A velha ressoou a palavra, como se degustasse dela. — O
que é o tempo nesse lugar?
— Abra a porta, velha. — Westyn gracejou entredentes, se colocando
na frente de Gwen. De mãos dadas. Skye grunhiu em concordância, o aperto
em sua lança firme.
Um estalo chiou na sala, vindo dela, quando a velha pareceu se
contorcer, a coluna indo para um lado e os braços para o outro ao curvar o
corpo de uma forma estranha.
— Merda. — Skye sussurrou.
— Não deveriam ter entrado neste lugar, crianças. — A velha
esbravejou, com o tom arranhado se mesclando a sua risada hedionda. —
Não deveriam mesmo.
Liryan deu um passo à frente, sem recuar perante ela.
— Sabemos o que você é e quem você é.
— É claro que sabem. — A velha grunhiu. — Vocês são diferentes.
Cada um. Inteligentes. Charmosos. Poderosos. Possuem belos rostos, e serão
ótimas aquisições para a minha coleção.
Ela pareceu inspirar fundo, inalando em um som de júbilo ao apreciar o
aroma deles.
— Vai sonhando, velha — grasnou Skye e Thorion, em uníssono.
— É melhor nos deixar ir, criatura. — Raven rosnou, o que só a fez rir
ainda mais em uma gargalhada sonora.
— Tão corajosos... — zombou. — Tão tolos.
— Não queremos confusão. Apenas queremos sair deste lugar. —
Liryan, com seu tom gentil, murmurou.
— Sair? — A velha indagou irônica. — Não irão sair daqui. Não mais.
Irei cortar seus lindos rostos e costurá-los em minha coleção.
Cada um dos sete arfou em alerta, com o corpo de Skye congelando em
um horror nauseante.
— Uma porra que vai. — Westyn rugiu.
— É melhor nos deixar sair, velha desgraçada. — Skye se direcionou
até ela. Outro estalo chiou, quando ela se virou para ele. Os braços longos
tomando foco na névoa. — Ou vamos acabar com você.
A velha o encarou, com os olhos dourados fervendo perante as sombras
nebulosas. Em puro e completo deleite. E fome.
— Tentem.
Ela jogou o corpo para frente, se curvando, como se os ossos se
alongassem, crescendo, esticando seu corpo.
— Temos que pegar o mapa. — Liryan esbravejou. — Se preparem
para atacar.
— Ótimo. — Skye cuspiu irônico, modelando sua postura para uma de
ataque.
Foi então que a velha atacou, se lançando na direção de Raven e Nora
com uma rapidez assustadora.
Nora gritou iminente, girando o corpo com maestria e desviando dos
golpes ferozes da velha com suas mãos cheias de unhas enormes afiadas.
Raven fora mais ágil, deslizando o corpo para baixo e dando uma
rasteira na velha com uma das pernas, a derrubando no chão, mas a velha
gargalhou, se ajustando como um demônio veloz e rastejando entre pernas e
braços na direção dela.
Thorion rosnou, saltando para a velha em um piscar de olhos, as garras
raspando contra o flanco dela.
— Besta imunda. — A velha gritou, acertando um golpe no tronco do
imenso tigre e o arremessando para longe, em um baque surdo contra a
parede.
Skye ofegou ao assistir o tigre despencar em um gemido de dor, com o
Lorioran correndo até ela.
Ele ouviu Westyn rosnar raivoso, embora não focou nisso quando se
ajoelhou ao lado do tigre que se erguia com dificuldade.
— Você está bem? — Ele acariciou a nuca peluda da fera, que chiou
um sibilo, acenando com a cabeça em concordância. Skye sorriu para ele. —
Tenha cuidado, seu gatinho tolo.
Ambos levaram o olhar para o combate que a velha travava com Nora e
Raven, as duas trabalhando em comum acordo contra ela, com Raven na
defensiva e Nora no contra-ataque.
— Nos entregue o mapa — rosnava Raven.
A velha apenas riu, atacando frenética.
Em um movimento rápido, Nora ergueu as asas que descansavam
acolhidas, e deu impulso para cima, se lançando na direção de uma parede ao
pegar impacto e se locomover em um giro no ar para a velha, que estava
distraída golpeando Raven, sem perceber o ataque que vinha por sua
retaguarda.
Foi assim que a Pixie aproveitou para desferir dois chutes nas costas da
velha distraída, arremessando com brutalidade o corpo esguio a metros contra
uma mesinha de centro, que fora estilhaçada com o impacto.
Uma folha brilhante caiu no ar, como uma pena levitando, e com
rapidez Raven saltou, a pegando.
— O mapa — anunciou sem fôlego. — Eu peguei.
Ele viu quando ela a guardou no bolso de seu casaco, se voltando para
Nora que descia para o seu lado.
— Vamos dar o fora, agora. — Westyn esbravejou.
— Rápido. — Liryan deu passos apressados na direção da porta selada,
mas não previra a coisa horrenda que se lançou como um demônio sobre ele.
O grito de Westyn ecoou quando ele viu seu companheiro de equipe ser
atacado pela velha, que gritava e ria, conforme desferia golpes contra Liryan
no chão.
— Deixe-o, desgraçada.
Os dois rolaram pelo piso, com Liryan se defendendo o máximo que
podia dos ataques sobre ele.
Com um rugido reverberando por sua garganta, ele explodiu em luz
violeta, iluminando seu corpo inteiro, ao arremessar a velha para longe dele.
— Você está bem, irmão? — indagou Westyn aflito, ainda de mãos
dadas com Gwen, conforme Liryan se erguia, apressado.
Em pé, o Feänor castanho apenas assentiu sem fôlego. Skye podia
distinguir alguns arranhões de unhas nos braços e rosto dele.
— Vocês irão pagar por isso, crianças idiotas. — A risada estridente
chiou, conforme eles levaram o olhar para a velha imensa que se erguia do
chão a alguns metros do outro lado.
— É melhor abrir essa porta e nos deixar sair. — A voz de Raven
engrossou com sua ameaça implícita.
— Não irão sair daqui, não mais. — Entoou a velha. — Se tornarão
parte de minha casa, e assim será.
Então, em um movimento, ela se lançou para trás, a coluna se retesando
em um estalo, quando a velha caiu de quatro no chão, os braços sendo o
suporte do corpo com as pernas, com ela gargalhando ao começar a subir a
porra das paredes.
Puta merda.
Luz. Incandescente e feroz, de um tom violeta, iluminou o recinto
inteiro vinda de Westyn e Liryan.
Thorion rosnou ao seu lado, quando Skye levou o olhar para cima, na
direção de uma gargalhada estranha, nem um pouco comum, quando as luzes
dos Feänors clarearam o recinto inteiro.
Então eles viram a criatura mais horrenda e monstruosa de suas vidas.
Feita de pesadelos e desgraça.
A verdadeira forma da velha.
O corpo parecia ter sido esticado, o vestido caíra dele, posto ao chão,
com os seios murchos caindo quase como braços sobre seu tronco longo e
pálido, os braços eram imensos, finos e pálidos, com os dedos esticados
repletos daquelas unhas projetadas.
A cabeça da velha era um horror para os olhos, achatada, com uma boca
imensa escancarada, com dentes pretos tortos e pontiagudos.
Ela estava no teto, os fitando com um sorriso demoníaco, os imensos
olhos sobrenaturais os fitando com uma calma fria.
— Eu sei o que são também. — Ela raspou uma língua grossa e esticada
pelos lábios murchos. — E vou degustar do sangue de cada um.
Principalmente dos mestiços.
Girando o pescoço, em um ângulo impossível, a velha levou seu olhar
para Westyn, então em completo horror. Skye percebera onde aqueles olhos
se detiveram quando Gwen arfou, a encarando de volta.
— E você... — Ela sorriu, a boca demoníaca rasgando sua face em uma
abertura desproporcional, quase até os olhos. — Eu vou me banhar com seu
sangue e vísceras.
Então a Mãe da floresta saltou para eles, com as garras projetadas e os
braços de meio metro abertos para colidir contra eles. Fora uma visão dos
infernos ver aquele monstro imenso, esticado e nu, saltar para Westyn e
Gwen, sendo o suficiente para libertar Skye de seu estupor.
A meia distância, um raio disparou para a velha, lançando o corpo
esguio para longe, para a parede adjacente em um estouro de luzes violetas.
— Chegue perto dela... — Westyn, revestido em um brilho ametista
pelas marcas de seu corpo, com uma das mãos erguidas e uma esfera de luz
surgindo na palma, apontou para a velha. — E eu mato você.
Skye expôs as presas, quando cada um dos sete, um acompanhando o
outro, se colocou em postura de ataque, grasnando para a criatura que se
erguia para eles do outro lado.
Ela se ergueu entre pernas e braços longos, com toda a estrutura do
corpo antropomórfico de quatro no chão, os seios murchos quase tocando o
piso, quando a velha sorriu para eles.
— Irei arrancar o coração de cada um de vocês — sibilou em uma fúria
monstruosa, curvando a cabeça para o lado, observando quando um brilho
prateado cintilou em meio às sombras da penumbra, vindo da ponta de um
ferro de troll.
Conforme Skye sorriu, girando e rodopiando sua lança, a pondo em
riste contra seu antebraço, estendendo o outro e manejando a palma em um
convite irônico.
— Pode vir, velha desgraçada.
E assim ela o fez, disparando pelo chão como uma imensa aranha para
ele, rugindo esfomeada e colérica.
Ele era lindo e imortal, e os tinha salvado quando Gwen, naquela forma
etérea, quase os dizimara em um ataque de poder profano. Aquele pequeno
Lorioran de olhos azuis celestiais, tão lindo e corajoso, se tornara a porra de
um deus feito de chamas azuis e os protegera de sua amiga.
Thorion não conseguia mover um músculo, ele nem sabia se poderia.
Ainda achava que estava morto. Tinha estado, ele concluíra quando fora
tomado por sombras que o corroeram de dentro para fora. Não lembrava de
nada depois que fora consumido pela escuridão de Jezibaba. Apenas da luz
que o inundou e, quando abriu os olhos, lá estava ela brilhando como se fosse
o próprio sol sobre eles e queimando tudo com seu poder. E Skye estivera
sobre ele, o abraçando em completo terror sobre o corpo nu de Thorion.
O Lorioran tinha estado sobre ele. De alguma forma, quando voltaram
do lugar sombrio onde estiveram, tinha ido parar ao lado de Thorion, e agora
estava queimando como um deus metros à frente.
O ser etéreo que outrora fora Skye se aproximou ainda mais de Gwen,
ambos levitando no ar de uma forma majestosa e assustadora. Não estavam
voando, apenas flutuando, como se controlassem a gravidade.
Skye então entoou uma canção, não, ele falara, a voz o próprio som do
universo, em uma língua diferente de tudo. Uma língua primordial e divina,
se dirigindo para Gwen, que o encarava com uma frieza silenciosa.
Os olhos dela, antes tão nebulosos e cinzentos, agora ferviam como se
puras brasas ardessem nas íris que, agora, possuíam um tom dourado topázio.
E os de Skye, que sempre foram indescritíveis, eram como esferas
transbordando luz estrelar cintilante.
Ela se tornara o sol, e ele a lua.
O ser etéreo ergueu uma das mãos, estendendo para ela, que apenas o
fitou, para então estourar novamente em luz.
Thorion grunhiu, fortificando sua barreira estilhaçada quando a luz
dourada iluminou o mundo.
Quando cessou o poder, ele levou o olhar apressado para Skye,
impassível, a fitando, um escudo o sondando.
Boquiaberto, Thorion fitou Skye quando esse manejou as mãos para
cima, então uma correnteza de água brotou do solo, como se ele conjurasse
cada partícula de água enterrada nas profundezas da terra queimada pelo fogo
de Gwen.
Se unindo em uma onda imperiosa, aos comando dele, quando Skye
manuseou ao mãos em chamas azuis em breves movimentos e lançou a onda
flutuante sobre Gwen.
O ataque seria certeiro e a atingiria em um golpe atroz, com ela apenas
parada no ar, esperando, para então erguer a mão com delicadeza, barrando a
onda tempestuosa a metros dela.
Vapor preencheu o recinto, inundando o ar de calor fervente e uma
neblina sufocante quando Gwen transformou a onda inteira em vapor.
Quando a fumaça se espessou, Thorion viu a fúria celestial no ser
dourado, curvando a cabeça para fitar Skye, os cabelos em chamas caindo
sobre o ombro.
Thorion ofegou, quase choramingando, quando Gwen pareceu rir, uma
risada que estremeceu cada osso de seu corpo diante do som primordial.
Ela ergueu as duas mãos para cima, com a suavidade e a maestria de um
deus, acima de sua cabeça. Então cintilou intensamente. Cada parte do corpo
incandescente se iluminou.
Os olhos de Thorion lacrimejaram diante da luz que reverberou pelo
corpo dela, iluminando o recinto inteiro.
E no centro de suas palmas erguidas, uma bola de fogo começou a se
formar, crescendo e crescendo conforme ela brilhava ainda mais.
— Porra... Não, não, não. — Medo o drenou quando ele percebeu o que
ela estava prestes a fazer.
Thorion se ergueu cambaleando, diminuindo a barreira e caindo aos
tropeços nos destroços quando tentou correr adiante.
A bola de fogo, agora em um tamanho assustador sobre as mãos de
Gwen, enquanto ela fitava Skye com sagacidade.
Aquele poder destruiria ele. Seria o fim.
Thorion correu para ele.
Porque aquele poder que ela conjurava, destruiria Skye.
— Não! Skye! Não!
E aquilo fora seu maior erro, e Thorion morreria por isso. Mas mesmo
assim não cessou seus passos, correndo na direção do deus de chamas azuis,
mesmo quando Gwen levou seu olhar para ele, e ele podia jurar que aquele
ser glorioso sorriu em deleite.
Skye levou o olhar por cima de seu ombro quando acompanhou o olhar
dela para ele, e a visão daquele ser grandioso e divino o fitando o desnorteou.
Não era o Skye que o fitava, sempre em zombaria e irritado. Não era aquele
pequeno Lorioran lindo e raivoso de bochechas gordinhas. Era o próprio
divino que o fitava com esferas azuis em suas órbitas, quando Gwen ergueu
ainda mais os braços e mudou seu foco para ele.
Ele engasgou a meio caminho quando percebera aquilo, a vendo se
direcionar para ele com todo aquele poder.
Thorion tropeçou em um pedaço de madeira rachada, tropeçando e
caindo no solo queimado.
Gritos vieram atrás de si, o alertando para que corresse, para que fosse o
mais longe possível.
Mas quando ele ergueu o olhar, fora tarde demais. Gwen já havia
lançado aquele poder imortal sobre ele, arremessando a imensa bola de fogo
na direção de Thorion.
Lágrimas caíram ardentes por seu rosto, quando ele encarou seu fim
chegando, e então ele queimaria até se tornar nada.
Thorion fechou os olhos, clamando por seus deuses, quando calor
abrasante o abraçou com a chegada da bola de fogo.
O recinto inteiro ecoou o som do colapso destrutivo quando um baque
devastador se instalou.
O Feänor tigre ofegou quando não sentira sua dizimação chegar,
abrindo os olhos abruptos e trêmulos.
Para enxergar, a metros dele, o deus de chamas azuis contendo a bola de
fogo com uma das mãos. Uma ventania ardente e incontrolável raspava o ar
com o poder conjurado.
Skye moveu o braço com rapidez e disparou a bola de fogo de volta
para Gwen, que a dissolveu em um mero gesto de mãos antes mesmo que
chegasse a ela.
Thorion chorou, o coração a ponto de saltar pela boca com a visão
diante dele. Seu corpo inteiro tremendo como se não houvesse um osso
sequer sobre sua estrutura.
Mas não teve tempo de absorver o que acontecera, quando Skye se
virou para ele e o fitou com aqueles olhos siderais, com o brilho de estrelas,
vazando luz.
Ele o tinha salvado, outra vez. Aquele ser grandioso e divino ainda era
Skye. Por trás daquela luz intensa, o Lorioran feroz ainda estava sobre aquele
poder monstruoso.
Thorion, ainda boquiaberto, se moveu para se ajustar, contudo, em
instantes estava sobre o chão, para em seguida ser agarrado com força para o
ar.
Ele gritou assustado em estupor cego.
— Sou eu, idiota. — Westyn rosnou feroz, conforme segurava o corpo
de Thorion e os levava para o céu. As imensas asas negras de Westyn
tomando impulso com velocidade.
— O que está fazendo? — Thorion grunhiu, piscando os olhos para
afastar a imensidão de lágrimas, conforme se afastavam cada vez mais do
duelo imortal abaixo.
— O tirando de lá, seu imbecil. Onde estava com a cabeça correndo até
eles, idiota? Poderia ter morrido em instantes. — Thorion não se importou
em esclarecer que não tinha corrido até eles, mas sim até ele. Conforme
engolia a bile com dificuldade, observando seres alados mais à frente, com
Liryan sobrevoando o recinto e Nora ao lado, carregando Raven.
Fora então que Thorion se permitiu enxergar a destruição causada no
lugar, quando olhou para baixo e encarou o que restara da redoma florestal.
Apenas um imenso buraco onde outrora havia uma vasta floresta, o
desfiladeiro com solo preto queimado em cinzas, nenhum resquício de
árvores à vista.
Apenas destruição total.
25
A luz que tomou tudo fora diferente do poder desferido antes por ela.
No momento em que Skye se prostrara perante ela, Westyn soube que seria o
fim de tudo quando ela superaqueceu e explodiu, transformando a redoma
inteira em luz.
Mas aqueles feixes que ela lançara não queimaram ou os transformaram
em pó. Pelo contrário, aquela essência divina de luz os curara. Ele sentiu
quando cada rasgo em cura lenta sobre seu corpo sumira. As queimaduras nas
asas e braços tinham sido evaporadas com o poder que Gwen deixou
transbordar.
E quando, por fim, a luz cessou, Westyn desceu sua asa arqueada sobre
ele e Thorion, que choramingava baixinho.
Ele abriu as asas para trás, observando atônito o que aquele último
golpe de poder dela fizera.
Os outros se ergueram também, boquiabertos e em fascínio bruto como
ele.
Aquela onda de poder tinha restaurado tudo, toda a vida que antes ela
queimara tinha sido restaurada por inteiro. A energia deles tinha sido
restaurada.
A natureza que os abraçou parecia ainda mais viva e verde. Mesmo as
montanhas destruídas se tornaram colinas esverdeadas e pastosas.
Westyn riu em um engasgo assombroso, correndo para o cume e
observando o leito do vale abaixo.
O solo que outrora fora queimado e arruinado, estava repleto de árvores
e pinheiros outra vez, com grama se estendendo como um tapete sedoso por
todo o lugar.
Vida. O ar emanava pura vida. Aquela última onda de poder dela fizera
isso. Restaurara o que fora dizimado.
Westyn correu o olhar na direção deles e os avistou.
No solo verde, haviam dois corpos nus, um ao lado do outro, abraçados
como se fossem um só, sobre tudo.
O princípio de tudo sendo eles.
— Westyn não... — Ele não deu ouvidos ao aviso de Liryan quando
alçou voo e disparou no ar, caindo em uma queda bruta, abrindo as asas e
planando, indo na direção deles.
Westyn sobrevoou os dois sobre o chão, sopesando com cautela, quando
pousou a metros deles, correndo para lá.
Ele ouviu quando Liryan alçou voou carregando Thorion, com Nora
fazendo o mesmo a Raven.
O Feänor se aproximou com cuidado dos dois ao chão, se ajoelhando às
costas de Gwen, levando uma mão para seu pescoço.
Grunhindo um pestanejo, ele removeu os dedos no instante em que a
tocou quando se queimou com o contato. A pele dela, não, a pele dos dois
ainda parecia aquecida, fervente até.
Mas ele observou o compassar de seus peitorais, a respiração lenta e
calma. Estavam vivos. Estavam bem.
Ele respirou aliviado, esfregando o rosto em um sorriso alucinado. Pelos
deuses. Eles estavam bem.
— Eles estão vivos? — Thorion correu para ele, caindo de joelhos atrás
de Skye, à frente de Westyn.
Westyn observou quando seu irmão levou sua mão para o rosto de
Skye, gritando em dor ao ser queimado com o toque.
— Você sabia, seu idiota. — Thorion o fitou feroz, semicerrando os
olhos. — E não me avisou.
Westyn deu de ombros.
— Você gosta de se queimar, não gosta?
— Vá se foder.
O Feänor prateado apenas bufou, levando o olhar para o corpo dos
Loriorans, avaliando possíveis lesões ou queimaduras. Eles estavam intactos.
Nenhuma marca sequer sobre a pele pálida e suave dos dois.
Liryan chegou com as garotas, retirando sua jaqueta, ao se curvar sobre
um joelho ao lado de Westyn e os cobrir com sua veste.
— Eles estão bem? — Nora indagou atrás deles.
Westyn assentiu, removendo com cuidado uma mecha loira do rosto de
Gwen. Sentindo o calor que emanava dela e não se importando com o quão
quente ela estava quando deslizou um dedo por sua face.
Linda.
Ela era o ser mais belo que ele já vira.
— Eles estão contidos agora? — Raven questionou, relutante.
— Creio que sim. — Liryan afirmou, o olhar sobre os dois em um
abraço eterno e sereno.
— O que vamos fazer? Com eles, quero dizer. É seguro os ter em
Eldar? Nem sabemos o que são.
Westyn olhou por cima de seu ombro para Raven.
— Eles irão para Elrond conosco, apenas isso.
— E deveríamos estar tranquilas sabendo que vocês estão transportando
seres com o poder de um deus para seu povo?
— Estou me fodendo para vocês.
— Westyn. — Liryan o advertiu, se erguendo devagar, fitando Raven.
A calma suave e fria dele presente. — Precisamos os levar para lá. Ainda há
tantas questões que não sabemos sobre os dois. Mas as respostas estão lá.
Raven balançou a cabeça, relutante.
— Como não sabemos que estão mentindo? Que já não sabiam que
esses dois são seres de tamanho poder? — Ela apontou para Gwen fria,
fazendo com que Westyn mostrasse as presas em ameaça. — Ela quase
destruiu tudo com esse poder profano. Não é algo natural... É uma
abominação. Os dois são.
Thorion grunhiu um gracejo. Mas fora Westyn quem rosnara raivoso.
— Cale essa maldita boca.
A garota riu com escárnio.
— Foda-se, você não é cego, viu do que ela fora capaz. Ninguém
deveria ter tamanho poder. E os dois possuem. Você está tão sedento para a
foder como um cachorro no cio em volta dela que não quer enxergar isso.
Aquilo fora o estopim para Westyn, com ele abrindo suas asas em um
ângulo defensivo e se lançando para ela, que desviou em um golpe veloz.
Westyn ignorou o grito de aviso de Liryan quando disparou um raio de
luz contra ela, que rindo, desviou, saltando para ele.
— Não deveria ter feito isso, Feänor. — Os olhos esverdeados de Raven
cintilaram, quando luz azul correu por seu corpo, cintilando suas veias.
— Raven! Não! — Nora berrou, mas fora tarde demais quando a garota
de pele escura ergueu sua mão, abrindo a palma em esplendor e começou a
fechá-la de forma lenta.
O corpo inteiro de Westyn convulsionou em um espasmo violento
quando ele caiu de joelhos, sufocando em seu próprio sangue, quando jorros
de sangue transbordaram para fora de sua boca, nariz e olhos, conforme
Raven fechava o punho em deleite com a visão de Westyn se afogando em
seu próprio sangue.
— Pare! — Liryan gritou em meio aos espasmos brutos de Westyn.
Sangue e mais sangue vazava por ele. — Pare agora! Pare! Por favor! Pare!
Raven sorriu para Westyn, o corpo brilhando em luz azul, com os olhos
esverdeados ganhando um tom grave, conforme ela fechava mais e mais o
punho e ele sabia o que aconteceria quando ela o fechasse por completo.
Um disparo de luz violeta a lançou pelo ar quando Liryan disparou
contra ela, correndo para Westyn, que caíra sobre o chão banhado de sangue.
— Westyn! — Liryan se prostrou ao seu lado, agarrando seu rosto
conforme o via soluçar tosses sangrentas em um desespero sem fim.
Seu irmão limpou seu rosto com as mãos, afastando o sangue que
vazava dele, o erguendo com cuidado sobre si.
Lágrimas escarlates escorriam das órbitas de Westyn, conforme ele
tentava obter nitidez.
— Feänors malditos... — Raven rugiu a metros, se erguendo.
Levantando a mão, o ar pareceu rodopiar em um redemoinho em torno
dela com atrocidade. Era uma conjuração de poder grandiosa e poderosa,
deixando sua essência emanando no ar.
— Chega! — Nora rosnou do outro lado, o corpo cintilando em tons
azuis, com os olhos brilhando em poder quando ergueu as palmas, manejando
magia.
Imensas raízes brotaram do solo, se entrelaçando nas pernas e se
lançando para os braços de Raven.
— Nora... Pare! — Ela gritou enquanto era enlaçada pelas vinhas de
fibras grossas das raízes.
— Não enquanto não se acalmar. — Nora girou a mão, a esfera de luz
azul queimando sobre a palma, como uma leve fumaça brilhante rodopiando.
As raízes apertaram ainda mais uma Raven enfurecida.
Liryan acariciou a fase de Westyn, desviando o olhar das duas, ao
erguer sua mão e conjurar sua magia de cura, sopesando a palma por Westyn
ao restaurar um pouco de sua energia e do sangue perdido.
Westyn tossiu afoito, se recuperando, tomando rajadas profundas de ar
para os pulmões machucados.
Ele se ergueu com a ajuda e suporte de Liryan.
— Cretina... — rosnou sibilante para Raven, ainda aprisionada sob a
conjuração de Nora.
— Parem com isso. — Nora advertiu. — Chega disso tudo. Não
chegaremos a nenhum lugar assim. Precisamos ficar calmos e pensarmos com
lógica.
— Nora tem razão. — Liryan emendou, um braço sobre o ombro e o
outro sobre a cintura de Westyn. — Saímos ilesos por pouco de tudo isso.
Agora precisamos nos acalmar.
— Temos que dar o fora deste lugar. — Thorion resmungou logo atrás
deles, ainda de guarda sobre os dois ao chão.
Liryan negou com a cabeça.
— Não podemos. Não com eles assim.
— Está dizendo que passaremos mais uma noite aqui?
— Quantas forem necessárias até eles voltarem. — O olhar de Liryan
fora duro para Raven, que suspirou, assentindo enfim depois de alguns
minutos, com Nora desfazendo sua magia sobre ela, com as raízes voltando a
se enterrar no chão.
— Precisamos de um lugar escondido para passarmos esta noite, então.
— Se erguendo, Thorion caminhou para eles.
Liryan ergueu o olhar para o céu, com Westyn fazendo o mesmo ao se
dar conta de que a barreira que Skye havia posto em sua forma divina tinha
caído.
— Há uma caverna a alguns metros daqui, eu a vi quando voamos para
a montanha. — Ele murmurou.
Westyn a tinha visto também. Sabia onde ficava.
— Ainda está com o mapa? — Thorion indagou a Raven.
Levando a mão para o bolso, ela ergueu uma folha brilhante para eles,
fitando o conteúdo nela.
— De fato é encantado. As direções se movem como fumaça no recinto,
há apenas um caminho traçado, definido e sem mudanças. Leva uns cinco
quilômetros daqui para o percurso dele.
— Bom. — Liryan suspirou. — Vamos ter um longo caminho então, e
uma longa noite pela frente.
— Eu levarei os dois até a caverna. — Thorion anunciou, sem esperar
por resposta, retirando a jaqueta presa em sua cintura e se contorcendo ao se
metamorfosear para sua forma animal.
— Sinto o cheiro de um rio próximo daqui. Tentarei pegar um pouco de
água e lenha para uma fogueira. — Westyn se desvencilhou dos braços de
Liryan, bufando ao analisar seu estado, banhado e sujo pelo seu próprio
sangue, levando o olhar para a garota de pele escura que o fitava inabalada.
— Aproveitarei para me jogar um pouco de água, já que alguém fez uma
bagunça e tanto ao tentar me matar.
Ela deu de ombros, em pouco caso.
Cretina.
Westyn se virou para Liryan, que tinha apanhado a jaqueta do solo, ao
segurar a bainha de sua calça, ouvindo Nora ofegar assustada e se virando
para trás, quando ele a deslizou por suas pernas, ficando completamente nu,
jogando a calça para Liryan, que a pegou no ar, bufando irônico.
— Não demore, Westyn. — Ele advertiu, com Thorion caminhando até
os dois Loriorans desacordados. Westyn dera um último olhar para Gwen, em
alívio por ela estar bem, se voltando para seu irmão que o olhava atento. —
Tenha cuidado.
Assentindo, Westyn conjurou sua metamorfose, suas asas se esticando e
sua coluna estalando, com ele se contorcendo e esticando os ossos, saltando
no ar.
Eles assistiram abaixo quando o corvo negro voou distante para o céu,
crocitando um assobio ecoante ao disparar para longe do grupo.
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